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Estava a ser um ano em cheio.
Em Janeiro, o chefe, Mike Trevalyan, mandara Dora a Boston para investigar um pedido de indemnização dos proprietários de uma casa. Este casal de novos-ricos fora passar o fim-de-semana a Nova Iorque e, ao regressar, no domingo à noite, encontrara o apartamento roubado. Segundo diziam. Todos os móveis e quadros tinham desaparecido. Tinham filmado todos os objectos em vídeo e queriam que a companhia entrasse com o valor total da apólice: cinquenta mil dólares.
Dora levou dois dias a descobrir que os novos-ricos eram dois cabeças-de-vento, com uma preferência por estratagemas duvidosos. Todos os móveis e quadros tinham sido alugados; eles não tinham nada de seu. Convenceram-se de que não tinham mais nada a fazer senão arranjar uma apólice de seguro, pagar o prémio do primeiro ano, desfazerem-se do recheio alugado e pedir uma indemnização. Ora esta!
Em Fevereiro, Dora foi a Portland investigar um pedido de indemnização de uma fábrica de edredões que fora totalmente destruída por um incêndio, um dia, de manhã cedo. Os bombeiros locais não descobriram qualquer prova evidente de fogo posto, mas a fábrica estava a ter problemas com os pagamentos e aquela apólice de dois milhões devia ter-se revelado muito atraente para o proprietário.
Foi preciso uma semana para Dora descobrir o que se passara. O dono tinha puxado uma mesa de madeira para debaixo de uma lâmpada com um fio muito comprido. Enchera a mesa de algodão em rama. Depois, envolvera a lâmpada, de 150 watts, em gaze, ligara o interruptor e fora-se embora a trautear Blue Skies. O calor da lâmpada incendiara a gaze, que, por sua vez, caíra em cima do algodão e, como que por acaso, toda a fábrica ardera.
Em Abril, foi a Stamford, na senda de um pedido de indemnização pelo roubo de um esboço de Picasso de uma luxuosa galeria de arte. O esboço estava avaliado em cem mil dólares. Menos de vinte e quatro horas depois da sua chegada, a companhia recebeu o telefonema de um homem que dizia ser o ladrão e que se oferecia para vender a obra de arte por vinte e cinco mil dólares. Trevalyan telefonou a Dora e disse-lhe que se pusesse em contacto com o FBI.
Depois de vários telefonemas, Dora marcou um encontro com o criminoso no parque de estacionamento de um centro comercial. Entregou-lhe a soma combinada, recebeu o esboço e o FBI entrou em acção. Provou-se que a obra de arte era falsa e que o "ladrão" era o amante do dono da galeria que fizera o pedido de indemnização. Este engendrara todo o plano e tinha o verdadeiro esboço de Picasso guardado no seu cofre.
Em Maio e Junho, todos os pedidos de indemnização que Dora investigou eram casos vulgares. Aparentemente, provinham todos de gente honesta, e isso preocupou-a; tinha receio de ter descurado algum pormenor.
Mas, em Julho, as coisas voltaram à normalidade.
Tudo aconteceu à saída de Providence, na casa de Verão de um banqueiro de Wall Street. A mulher afirmava que houvera uma quebra de energia pouco antes da meia-noite. No escuro, às apalpadelas, o banqueiro descobriu uma lanterna e desceu as escadas para ir à cave verificar o quadro. A mulher ouviu-o gritar e cair. Pouco depois, a luz voltou e ela correu para a cave, onde foi encontrar o marido estatelado ao fundo das escadas. com o pescoço partido. Morto.
Dora chegou um dia depois do sucedido, e a história da mulher não lhe cheirou bem. E ainda lhe cheirou pior quando notou, e disse aos detectives que investigavam o caso, que, apesar de todos os relógios eléctricos que havia em casa registarem uma diferença de vinte minutos, corroborando assim a versão da mulher, o relógio do gravador de vídeo fora acertado e mostrava que a energia faltara às nove e meia daquela noite.
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Os interrogatórios feitos às alcoviteiras da vizinhança revelaram que a mulher tivera um caso tórrido com o jardineiro, um jovem robusto que estudava artes marciais e entrava com frequência em torneios de caraté. O jardineiro podia ser fisicamente forte mas não tinha miolos. Descaiu-se logo ao princípio e admitiu ter colaborado no plano de assassínio perpetrado pela mulher.
A mulher metera-o na cave no final do dia, enquanto o marido fora jogar críquete. As nove e meia da noite, o amante desligou o interruptor principal do quadro eléctrico. O banqueiro desceu cautelosamente as escadas para a cave. O jardineiro agarrou-lhe o tornozelo e, depois dele cair, partiu-lhe o pescoço. A electricidade voltou e eles deixaram passar vinte minutos antes de acertarem os relógios. Mas esqueceram-se do relógio do gravador de vídeo. Motivo? O seguro de vida do banqueiro, evidentemente. E o amor, calculou Dora.
Em Setembro, foi a Manhattan, onde um político local clamava que o seu Hatteras 37 convertível fora roubado da marina da Rua 79. Dora levou menos de uma semana a descobrir que ele oferecera o iate à sua ex-amante, uma mulher vingativa que ameaçara falar aos jornais sobre os pecadilhos de alcova do político. Estes incluíam, segundo ela disse, uma preferência por vestir a roupa interior dela, e tinha fotografias a prová-lo.
Dora descobriu o iate ancorado em City Island. A ex-amante mudara o nome, por cima da escotilha, de O Nosso Tesouro para O Meu Tesouro.
Outubro foi preenchido com vários casos rotineiros, mas em Novembro Dora investigou o pedido de um homem de aspecto mirrado, que negociava em autógrafos e documentos históricos assinados. Este afirmava que as jóias da sua colecção, várias cartas encardidas de Samuel Clemens a seu irmão, tinham sido roubadas da sua loja. A polícia de Worcester afirmou a Dora que o estabelecimento apresentava todos os indícios de um assalto, mas não compreendia por que razão outros objectos de valor, que se encontravam à vista, não tinham sido levados, a menos que se tratasse de um roubo por contrato: o ladrão fora pago para levar apenas a correspondência de Mark Twain e nada mais.
Dora estava prestes a aprovar o pedido quando reparou
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("Você é uma chata, mas é terrivelmente observadora", dissera-lhe o chefe uma vez) que o papel que revestia as paredes do escritório da loja bolorenta fora substituído há pouco tempo. Parecia estranho que o negociante tivesse gasto dinheiro a embelezar o seu santuário privado quando o resto do estabelecimento parecia a casa de banho da Casa de Usher.
Contratou um detective privado com mais energia do que escrúpulos e, numa noite escura, ambos arrombaram a porta principal do estabelecimento. Em menos de meia hora, descobriram as cartas de Samuel Clemens enfiadas em bolsas de plástico escondidas debaixo do novo papel de parede do escritório. Provou-se que o negociante estava muito mal de finanças e desenvolvera uma paixão não platónica por uma garota com um terço da sua idade, cujo mote era "não pagas, não gozas".
Ao regressar a casa, em Hartford, Dora foi encontrar o marido, Mário Conti, a planear o jantar do dia de Acção de Graças. Era motorista de camiões de longo curso quando se casaram, mas, nessa altura, fora promovido a expedidor. Adorava cozinhar e a sua especialidade era cordon-bleu. Era por isso que Dora, com um metro e meio de altura, pesava em geral setenta e cinco quilos (ou setenta e dois e meio, durante as suas dietas de quinze dias). Mas Mário nunca lhe chamava "coisinha fofa" nem "bolinha", o querido.
- Tacchino di festa! - exclamou ele, mostrando a lista das compras.
- Salame? E chouriço doce? com o peru? - perguntou ela, enquanto lia.
- é para o recheio. Vai por mim - explicou ele.
- Está bem - disse ela, bem-humorada. Convidaram doze pessoas, entre família e amigos, e a
sala de jantar da vivenda aconchegada estava cheia. Mas toda a gente elogiou a obra-prima de Mário e os numerosos pratos e jarros de vinho preparados para uma verdadeira festa.
Na opinião de Dora, sobrara comida suficiente para mais dois jantares, que não chegariam a realizar-se. Trevalyan telefonou na sexta-feira de manhã, embora fosse feriado.
- É melhor fazer as malas e vir ao escritório - disse ele. - Encontro-me aqui consigo.
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- Para onde vou? - perguntou ela.
- Para Manhattan.
- Por quanto tempo?
- Pelo tempo que for preciso.
- Qual é a quantia que está em causa?
- Três milhões. Um seguro de vida - disse ele.
- Uau! Morte natural? - perguntou Dora.
- Não me parece - respondeu Trevalyan.
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Helene Pierce observava-o a vestir-se. Tinha um belo corpo - não era fabuloso, mas era belo. Começava a ter pregas na barriga e o rabo descaído, mas o que poderia esperar de um homem de quarenta e cinco anos?
- Quem me dera que pudesses ficar - disse ela. Podia mandar vir comida. Talvez aquele frango de que gostas, com alecrim e alho.
Ele estava de pé, diante do espelho grande da porta da casa de banho, a dar o nó à gravata.
- Não posso. Eleanor quer que eu vá para casa cedo. Outra das suas festas de caridade.
- Onde?
- No Plaza. Para crianças com sida. Tive de comprar uma mesa.
- Uma festa tão próxima do funeral?
Ele voltou-se e encolheu-se para vestir o colete.
- Sabes como é a Eleanor com as festas de caridade. Além disso, todos os lugares-comuns são verdadeiros: a vida continua, de facto. Ele morreu... Há quanto tempo? Faz amanhã uma semana. Antigamente, as pessoas andavam um ano de luto. As mulheres vestiam-se de preto. Ou, se eram italianas, andavam de preto o resto da vida. Nem mais. Agora, as pessoas andam de luto uma semana.
- Ou menos - comentou ela.
Ele aproximou-se outra vez do espelho para ajustar o ombro do colete. Tudo tinha de estar impecável.
- Ou menos - concordou ele. - Sabes quem está a sofrer mais?
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- A tua irmã? - adivinhou Helene. Ele voltou-se para ela.
- Como sabias? Ainda tem os olhos inchados. Tenho-a ouvido chorar no quarto. Nunca pensei que isto a atingisse desta maneira; Felicia é um bicho tão raro...
- E a tua mãe?
- Sabes como ela é: que se faça estritamente a vontade de Deus. Desde que isto aconteceu, está praticamente a viver com aquele guru. Adorava saber quanto é que ela lhe paga. Uma enormidade, aposto. Mas é lá com ela.
- A polícia descobriu alguma coisa de novo? - perguntou Helene.
- Se descobriram, não nos disseram nada. Continuam a pensar que foi um brincalhão qualquer. Talvez um drogado. Pode ter sido. O pai era o tipo de pessoa que não entregaria a carteira a ninguém sem armar uma briga.
- Clay, ele tinha setenta anos. Starrett abanou a cabeça.
- Até podia ter noventa, e continuaria a armar uma briga. Era um velho patife, mesquinho e intratável, mas tinha tomates.
Pegou no sobretudo de gola de veludo. Veio sentar-se na beira da cama. Olhou para ela. Ainda estava despida e ele pousou-lhe a mão ao de leve na coxa morena.
- O que vais fazer esta noite? - perguntou ele.
- vou telefonar ao meu irmão para saber se ele tem algum plano. Se não tiver, talvez vamos jantar juntos.
- Óptimo. Se o vires, diz-lhe que está tudo a correr às mil maravilhas. Sem problemas.
- Eu digo-lhe - prometeu ela.
Ele inclinou-se para lhe beijar o seio nu. Ela arfou.
- Estás a pôr-me doida outra vez - disse. Ele riu-se, levantou-se e puxou o sobretudo.
- Oh, já me esquecia - disse.
Meteu a mão na algibeira e tirou uma pequena bolsa de camurça fechada com um cordão.
- Outra miniatura para a tua colecção. Tem quase três quilates. É de cor De Talhe em almofada. É uma linda pedrinha.
- Obrigada, Clay - disse ela, com voz sumida. Ele fez menção de sair, depois deu um estalo com os dedos e voltou para trás.
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Outra coisa. O perito do seguro de vida anda na cidade a fazer perguntas. É uma mulher. Já falei com ela. Tenciona ir ver a minha mãe, Eleanor e Felicia. É possível que queira falar com os nossos amigos. Se ela te procurar, responde honestamente a todas as perguntas, mas não lhe adiantes qualquer informação.
- Eu cá me arranjo. Como se chama ela? - perguntou Helene.
- Dora Conti.
- Como é que ela é?
- Ruiva. Baixa e gorda. Uma verdadeira bola.
- Não parece ser o género dos peritos de seguros.
- Não deixes que te iluda - disse ele. - Tenho a sensação de que é uma espertalhona. Toma cuidado com o que dizes. Amanhã telefono-te.
Ela levantou-se e acompanhou-o à sala. Fechou a porta à chave, trancou-a e pôs a corrente, depois de ele sair. Trouxe a pequena bolsa de camurça para a secretária do canto e acendeu o candeeiro de pé alto. Tirou uma lupa da gaveta de cima, abriu a bolsa e despejou o diamante no papel mata-borrão.
Inclinou-se para a frente, de lupa em punho, e voltou a pedra de um lado e outro. Não descobriu uma única impureza, e pareceu-lhe que era branca como o gelo. Aproximou-a da luz e admirou-lhe o brilho. Depois, guardou a pedra preciosa na bolsa e juntou-a a outras que quase enchiam uma caixa de charutos. Os seus tesouros iam para a última gaveta da secretária.
Sabia que devia levar os diamantes para o cofre. Andava a pensar nisso há um ano. Mas não conseguia fazê-lo, não conseguia. Gostava daquele toque aguçado, daquele brilho forte. Gostava de se sentar à secretária a tomar o peso às pedrinhas brilhantes, a deixá-las escorregar por entre os dedos.
Telefonou a Turner Pierce.
- Ele foi-se embora. Foi a uma festa da caridade no Plaza, com a mulher - relatou ela. - Podemos jantar juntos?
- Claro. Mas tenho de me despachar às dez. vou encontrar-me com Ramon às onze, lá em cima - disse ele.
- Temos muito tempo - respondeu ela. - E se eu me encontrasse contigo naquele restaurante italiano, em Avenida Lexington? Aquele das duas costeletas de vitela.
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- O Vito - disse ele. - Acho bem. Não te aperaltes muito esta noite, que eu vou de couro preto.
- Mas que bem! - disse ela, rindo-se.
Sentaram-se numa mesa ao canto da sala pouco iluminada. Três criados disputaram o serviço por saberem que aquele homem os gratificava principescamente. Ambos pediram vodca Tanqueray, com gelo e uma casca de limão. Depois, examinaram a ementa.
- O que recebeste? - perguntou Turner em voz baixa.
- Um com quase três quilates. Branco como o gelo. Talhe em almofada - respondeu Helene.
- É bom. Mas fizeste por isso - disse ele.
- Ele pediu-me para te dizer que corre tudo às mil maravilhas. Sem problemas.
- Ainda bem que ele pensa assim. Tenho a sensação de que Ramon não está tão satisfeito. Acho que ele quer mais acção.
- Julguei que a ideia era começar devagar, pôr tudo a funcionar e depois ir aumentando a pouco e pouco.
- Era essa a ideia, mas Ramon anda nervoso desde que o seu contacto em Nova Orleães foi acusado.
- O homem vai falar?
- O homem de Nova Orleães? Duvido muito. Teve um acidente.
- Oh! O que aconteceu?
- O carro dele explodiu. com ele lá dentro. Helene levantou a cabeça para olhar para ele.
- Turner, tem cuidado com Ramon - disse.
- Quando vou ter com ele, nunca levo o carro. vou sempre de táxi - respondeu ele, a sorrir.
Comeram duas costeletas de vitela mal passadas cada um e pediram massa com óleo e salada à César. Beberam uma garrafa de Pinot Griglo. Estavam com muito apetite e comeram tudo.
- Não é como em Kansas City, pois não? - perguntou Turner, recostando-se na cadeira.
- Graças a Deus - respondeu ela. - Quantos hamburgers consegues comer? Ouve, Clayton disse que anda na cidade um perito de seguros a fazer perguntas. É uma mulher chamada Dora Conti. Ele acha que ela é uma espertalhona e diz que pode querer conversar com os amigos de Lewis Starrett.
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Não te aflijas - disse ele. - Sabes, eu gostava do
velho. Bem, talvez gostar não seja o termo certo, mas tinha admiração por ele. Herdou uma lojeca esburacada na Rua Quarenta e Sete Oeste e transformou-a na Joalharia Starrett Fine. Podem não ser a Tiffany ou a Cartier, mas sabem do seu ofício. Quantas lojas têm? Dezasseis, creio eu. Em todo o mundo. Há ali muito dinheiro.
- Havia, antes de Clayton trazer aqueles estilistas excêntricos. Depois as coisas pioraram - disse Helene.
- Isso foi no ano passado - disse Turner. - Agora, ele está no caminho certo. Vamos tomar o café e um Frangelico ao bar. Ainda tenho tempo.
Sentaram-se colados um ao outro, com os joelhos a tocarem-se, no pequeno bar junto da entrada.
- Felicia voltou a telefonar-me - disse Turner.
- Ah sim? O que queria ela?
- Já sabes.
- Clayton chamou-lhe bicho raro.
- É o que ela é. Ao máximo. Mas pode tornar-se um problema. Por isso, vou estar atento.
- Querido, quanto tempo temos ainda de esperar? perguntou ela, pondo-lhe a mão no braço. - Um ano? Dois? Três?
- Três, espero. Talvez dois. Eu saberei quando tivermos de parar.
- E depois?
- Vamo-nos embora para outro lado. Sabes qual é o meu estilo. Dentro de um ano teremos o suficiente, dentro de dois muito, e dentro de três muitíssimo. E tu terás a tua colecção de diamantes. Nós merecemos. Somos gente simpática.
Ele riu-se, levou-lhe a mão aos lábios e beijou-lhe os nós dos dedos.
- É um jogo perigoso - observou. Ele encolheu os ombros.
- É a primeira lei do investidor: quanto maior é o ganho maior é o risco - disse ele.
- Amanhã estás ocupado? - perguntou ela casualmente.
- vou ter com Felicia, cedo, para almoçar. De tarde, estou livre.
- Isso agrada-me - respondeu ela.
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A companhia tinha uma suite reservada no Hotel Bedlington, em Madison Avenue, e foi lá que Dora ficou. Telefonou a Mário para lhe falar da sala com televisão e bar totalmente equipado, da pequena copa e dos dois quartos, qualquer deles com uma cama enorme.
- Boa para orgias - disse Dora.
Mário deixou escapar uns termos de camionista, Dora riu-se e desligou.
O hotel tinha um bar à saída do átrio e, nas traseiras, uma sala de jantar bafienta que parecia dominada por mulheres de cabelo azulado e velhos de aspecto andrógino, que traziam o lenço de assoar enfiado no punho do casaco. As refeições eram comestíveis mas insípidas; a tudo faltava tempero. Precisavam de um cozinheiro que tivesse os dotes de Mário a lidar com as ervas e as especiarias, concluiu Dora.
Mas foi onde almoçou com o detective John Wenden, da polícia de Nova Iorque. Encontraram-se no átrio e examinaram os documentos de identificação um do outro. Em seguida, foi a vez de ele a inspeccionar.
- Sabe, se você perdesse quinze quilos, seria uma mulher muito atraente - disse ele.
- Sabe, se você fosse o Robert Redford, seria um homem muito atraente - disse ela.
Ele riu-se e bateu as palmas.
- Desculpe. Foi um comentário estúpido, e peço-lhe as minhas desculpas. Aceita-as?
- Claro. Vamos comer.
- com certeza.
- Então, vou comer um bife.
- Aceite o meu conselho e ponha muito sal e pimenta. A comida é boa mas não tem sabor.
- O ketchup encobre uma infinidade de pecados - disse ele.
O velho chefe-de-mesa indicou-lhes uma mesa junto da parede. O detective Wenden olhou à sua volta para os velhotes, que mascavam sanduíches de agrião e bebiam chá de camomila.
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- Acho que posso pedir um Geritol com gelo? - perguntou.
- o que lhe apetecer - disse Dora.
Contudo, mandou vir uma cerveja para acompanhar o bife. Dora também quis uma cerveja com a salada à chefe.
É casada? - perguntou Wenden.
Sou. Felizmente. E você?
Divorciado. Todos os polícias de Nova Iorque são
divorciados, não sabia? É um risco ocupacional. De quanto é o seguro do Starrett?
- Três milhões.
- Isso é muito. Quem vai recebê-lo?
- Três pessoas; partes iguais para a mulher, filho e filha. Ouça, eu é que devia fazer as perguntas. Sou eu que estou a pagar-lhe o bife... Para lhe sacar dados.
- Não há muito a sacar.
Wenden calou-se enquanto o criado servia as cervejas. Depois, perguntou:
- Tem lido os jornais? Ela fez um sinal afirmativo.
- Nada de especial.
- É tudo o que temos... Nada. Trouxeram-lhe o bife. Ele cortou um pedaço e provou-o, à cautela.
- Tem razão - disse. - Parece cartão. Polvilhou a carne com bastante sal e pimenta e Dora
começou a comer a salada.
- Pode falar com a boca cheia, se quiser. Não fico ofendida -- disse Dora.
- Está bem. Deixe-me repetir a dose - respondeu ele.
- A vítima é Lewis Starrett, de setenta anos, raça branca, presidente aposentado da Joalharia Starrett Fine, Inc. Mas pertencia também ao Conselho de Administração e era o principal accionista. Todos os dias ia à sede da empresa, em Park Avenue, por umas quantas horas. Vivia num duplex com dezoito divisões, na Quinta Avenida, com a mulher, a filha, o filho e a nora. Tinha dois criados internos, um mordono e uma cozinheira, casados um com
o outro. o falecido era conhecido por ser um velho patife, mesquinho e opinioso, mas todos reconhecem que era inofensivo. Esse foi o seu primeiro erro: não compensa ser-se inofensivo nesta cidade.
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"Todas as noites, às nove horas, Lewis Starrett ia dar um passeio. O seu segundo erro: não se pode andar a pé de noite, nesta cidade, a menos que se seja obrigado a isso. Descia a Quinta Avenida, na direcção da Rua Cinquenta e Nove, depois seguia para a Avenida Lexington, entrava numa tabacaria e comprava o charuto diário que o médico o deixava fumar.
"Depois, continuava pela Avenida Lexington, para norte, direito à Rua Oitenta e Três, a fumar o charuto. Aí, voltava para oeste, para regressar ao seu apartamento, na Quinta Avenida. Diziam que se podia acertar o relógio por ele. O seu terceiro erro: nunca alterava a rota nem as horas.
"Na noite fatal, como os jornais gostam de dizer, começou o seu passeio à hora habitual, comprou o charuto na tabacaria da Avenida Lexington, acendeu-o e encaminhou-se para casa. Mas nunca lá chegou. O seu corpo é descoberto, de cabeça para baixo, no passeio, entre a Lexington e Park Avenue. Foi apunhalado só uma vez, praticamente entre as omoplatas. Morte instantânea. Sem testemunhas. E foi assim."
O detective Wenden calculara o tempo na perfeição. Acabou a história ao mesmo tempo do jantar. Fez menção de acender um cigarro, mas o chefe-de-mesa aproximou-se, a coxear, para lhe dizer que não se podia fumar naquela sala.
- Se não quiser sobremesa nem café, podemos ir para o bar e beber outra cerveja. Lá podemos fumar - disse Dora.
- Boa ideia - disse ele.
Eram os únicos clientes do bar. Sentaram-se em cadeiras desconfortáveis, de vinil preto, junto de uma mesa de fórmica da mesma cor, a beber a cerveja e a fumar.
- Ele foi roubado? - perguntou Dora. Wenden olhou para ela com curiosidade.
- Você dá-se sempre a esse trabalho para investigar um pedido de indemnização de seguro? - perguntou.
- Nem sempre - admitiu ela. - Mas, desta vez, temos três milhões de razões para o fazer. A companhia não ia gostar se alguém se aproveitasse ilegalmente do assassínio de Starrett.
- Quer dizer, se um dos beneficiários o tivesse eliminado?
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- Exactamente. Ele foi roubado?
Não - respondeu Wenden. - Tinha com ele os
cartões de crédito e uma carteira com cerca de quatrocentos dólares em dinheiro. Além disso, trazia um relógio de pulso da Starrett, de quinze mil dólares, e um anel com um diamante, também da Starrett, que valia trinta mil dólares.
- Mas você acha que foi um assalto frustrado?
- Não necessariamente. Talvez um vagabundo drogado lhe tenha pedido uma nota. Starrett agarra-o, insulta-o e afasta-se. A família e os amigos afirmam que ele era capaz de o fazer. Então, o vagabundo chateia-se, puxa de uma faca, dá-lhe uma facada e pira-se.
- Sem se deter para lhe levar a carteira e o relógio?
- Aparentemente não há testemunhas do crime, mas talvez o assassino não quisesse abusar da sorte e ficar mais tempo no local. Poderia vir alguém a passar.
- Não sei - disse Dora, incrédula. - Parece haver uma série de probabilidades no seu cenário.
O detective mexeu-se, inquieto.
- Já investigou muitos homicídios?
- Alguns.
- Então, sabe que, mesmo depois de eles resolvidos, fica sempre uma série de perguntas sem resposta. Nunca trabalhei num caso que ficasse absolutamente terminado, explicado e justificado.
- Quer outra cerveja? - perguntou ela.
- Porque não? - respondeu ele. - Esta tarde não tenho mais nada que fazer senão investigar mais quatro homicídios.
- Tem assim tanto trabalho?
- Nunca acaba - respondeu ele, com um ar fatigado. - Morre-se muito por aí, nos dias que vão correndo.
Dora foi ao bar e trouxe mais duas cervejas geladas.
- Tenho a sensação de que você não acredita totalmente na sua história - disse.
- É a versão oficial - respondeu ele.
- Que se lixe a versão oficial! - retorquiu ela, irritada. - Trata-se apenas de uma conversa entre nós os dois e eu não vou a correr contar aos jornais. Qual é a sua opinião?
Ele suspirou e disse:
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- Há duas coisas que me dão que pensar. Já alguma vez investigou uma morte provocada por uma faca?
- Não.
- Um assassino profissional pega na faca como se fosse a chave de uma porta, com os nós dos dedos para baixo. Aplica um golpe furtivo, baixo, em geral na barriga ou nos rins. Essa zona é mole; não tem ossos que impeçam o percurso da lâmina. O golpe que atingiu Starrett foi-lhe dado nas costas, de cima para baixo. Foi obra de um amador, que segurava o cabo da faca com o punho fechado, com os nós dos dedos para cima. E teve sorte por a lâmina não ter atingido a espinha ou as costelas. Cortou uma artéria e atingiu o coração, no que teve ainda mais sorte.
- Sorte para o assassino, não para Starrett.
- Sim. Em geral, um golpe daqueles não provoca morte instantânea.
- Foi um homem ou uma mulher?
- Um homem, acho eu. O golpe é profundo. Cheio de força. Cortou-lhe o sobretudo, o casaco, a camisa, a camisola interior, a pele e a carne e atingiu o coração.
- Foi uma lâmina comprida?
- Teve de ser. Já falou com alguém da família?
- com o filho. Clayton - disse Dora.
- O que achou dele?
- Fiquei com a sensação de que não estava propriamente desorientado com o desgosto.
Wenden concordou:
- Achei que ele controlava muito bem o seu desgosto. Do que tenho conseguido apurar, ele e o pai não se davam muito bem. Clayton tornou-se presidente e director executivo da Joalharia Starrett, quando o velho se reformou, e cheira-me que não estavam de acordo numa série de decisões empresariais. Segundo o pessoal, havia muitas discussões, em altos berros. Mas isso é vulgar quando um pai abandona o poder e o filho toma conta dele. Em geral, o herdeiro quer fazer as coisas de modo diferente e tenta inovações para provar a sua capacidade.
Dora suspirou.
- Odeio estes negócios de família. São sempre intrincados. É tão triste... Em princípio, seria de esperar que uma família se desse bem.
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O detective riu-se.
A maior parte dos homicídios são cometidos por
Um membro da família ou por um amigo íntimo. Já falou com o advogado?
Não, ainda não.
É um velho simpático. Era o advogado do Lewis
Starrett desde o princípio.
Quem é o herdeiro? - perguntou Dora.
- A mulher - respondeu Wenden. - Por razões de natureza fiscal. São cerca de oitenta milhões.
- Uau! E o filho e a filha não recebem nada?
- Bem, é você que diz que cada um deles vai receber um milhão do seguro. E acredito que Olivia deixará tudo aos filhos quando morrer.
- Como é ela?
- Olivia? - O detective sorriu. - vou deixar que você forme a sua própria opinião. com a filha, Felicia, é que é preciso ter cuidado. É esquisita.
- O que quer dizer com isso?
- É doida. Lida com gente estranha. Mas digo-lhe uma coisa: parece ser a que mais sente a morte do pai.
- E a mulher de Clayton?
- Eleanor? É uma borboleta da sociedade. Pertence a mil e uma comissões. Anda sempre a combinar festas de caridade. Adora isso. Talvez porque não consegue usar duas vezes o mesmo vestido. Ouça, tenho de me raspar. Onde é que você vive?
- Em Hartford.
- Vai a casa no fim-de-semana?
- Duvido. Pode ser que o meu marido venha até cá, se puder.
- O que faz ele?
- É expedidor numa empresa de camionagem. Trabalha tempo de mais.
- Bem, se ele não aparecer, talvez possamos ir comer uma pizza.
Dora ficou a olhar para ele.
- Já lhe disse que tenho um casamento feliz.
- E eu ouvi - respondeu o detective. - E o que tem isso a ver com o facto de irmos comer uma pizza juntos?
- Nada - respondeu Dora. - Desde que nos fiquemos pelo nível profissional. Talvez possamos comparar apontamentos e ajudar-nos um ao outro.
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- Claro que podemos - disse Wenden. - Aqui tem o meu cartão. Se eu não estiver, pode sempre deixar recado. Obrigado pelo almoço.
- Foi um prazer - respondeu Dora, vendo-o afastar-se, e a pensar que ele era um tipo fixe, embora precisasse do fato vincado e dos sapatos engraxados. Sabia que ele era obrigado a lidar com tipos da escumalha, mas não era obrigatório que se vestisse como eles.
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A sede da Joalharia Starrett Fine, Inc. ficava em Park Avenue, mesmo a sul da Rua 57. Ocupava uma das poucas vivendas que restavam na avenida, no centro de Manhattan, e estava rodeada de torres de vidro e aço. A estrutura barroca de seis andares, construída em 1896 para servir de residência ao magnate de uma agência de navegação, fora concebida por um estudante de Stanford White, e o exterior fora citado pela Comissão para a Conservação do Património.
O estabelecimento de joalharia ficava no rés-do-chão, e no primeiro andar havia pratas, cristais e porcelanas. No segundo e terceiro andares ficavam os gabinetes de trabalho dos estilistas e a zona de atendimento para trabalhos de gravação e consertos. Os gabinetes dos executivos ocupavam os dois últimos pisos. A fábrica principal da Starrett, destinada ao fabrico de modelos exclusivos, ficava em Brooklyn. A empresa comprava também diversos artigos e correntes de ouro, em quantidade, a fornecedores particulares do Taiwan e da Coreia do Sul.
Além de Nova Iorque, a Starrett tinha estabelecimentos em Boston, Chicago, Beverly Hills, São Francisco, Atlanta, Dallas, Palm Beach, Londres, Paris, Zurique, Hong Kong, Honolulu, Cancun, Roma e Bruxelas. A Starrett não possuía um catálogo para encomendas pelo correio, mas, por vezes, cedia desenhos dos modelos novos a clientes especiais, antes de aqueles serem fabricados e apresentados ao grande público. Muitos desses modelos eram peças únicas: alfinetes, pulseiras, anéis, colares e tiaras.
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Em geral, todas as lojas da Starrett, espalhadas pelo mundo, tinham os mesmos artigos, embora as colecções variassem. O gerente de cada filial encomendava a Nova Iorque as peças que lhe parecia venderem-se melhor na sua zona. Além disso, todas as filiais da Starrett tinham oficina própria e eram encorajadas a produzir jóias a pedido dos clientes mais importantes, em geral peças personalizadas, criadas de acordo com as indicações do cliente.
No ano anterior, Clayton Starrett, na qualidade de presidente e director executivo, substituíra nove dos dezasseis gerentes das lojas. Alguns desses homens (e uma mulher) trabalhavam na empresa há dez, quinze, vinte anos e o seu despedimento provocara discussões violentas entre Clayton e o pai.
O falecido Lewis Starrett reclamava que todos eles eram empregados experientes e leais, que tinham dado provas da sua competência e que o seu despedimento não só constituía um acto de ingratidão como também - e era o mais importante - teria um efeito adverso nos lucros.
Mas Clayton mostrou-se inflexível. Os veteranos teriam de sair porque, na sua opinião, sabiam pouco das novas técnicas de marketing, publicidade, promoção e relações públicas. Contentavam-se em fornecer os clientes antigos e não faziam qualquer esforço para cativar uma nova geração de clientes. As discussões entre pai e filho atingiram tais proporções que começaram a afectar o moral do pessoal da loja de Nova Iorque. E o caso só se resolveu quando Clayton, lívido, ameaçou demitir-se e sair de casa dos pais. Perante isso, o velho recuou e o filho tornou-se o patrão reconhecido e indiscutível da Joalharia Starrett Fine, Inc.
Os novos gerentes, contratados por ele para as filiais, eram, na sua maioria, jovens severos, vestidos à moda, atentos aos resultados e bruscos para com os subordinados. Alguns eram MBA famosos e outros eram estrangeiros. Todos pareciam movidos por uma forte ambição e, pouco antes da sua morte, Lewis Starrett foi obrigado a admitir que as vendas e os lucros estavam a aumentar de forma espectacular.
Quando Lewis dirigia a empresa com pulso de ferro e acessos de fúria, chegava todas as manhãs ao escritório às sete e meia e era frequente trabalhar doze horas por dia.
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O estilo de gestão de Clayton era consideravelmente mais brando. Aparecia por volta das dez horas, fazia almoços prolongados e, se voltava, em geral saía por volta das cinco horas.
Naquele dia, saiu da sua limusina (uma das prerrogativas presidenciais) conduzida pelo motorista e entrou no edifício da joalharia Starrett Fine um pouco antes das dez horas. Deu uma olhadela ao estabelecimento, quase vazio. Não ficou desanimado - os melhores clientes da Starrett não eram madrugadores, preferiam aparecer de tarde.
Um elevador pequeno e bem decorado transportou-o lentamente ao seu gabinete, no último andar. A secretária, uma inglesa que fora admitida mais pelo sotaque do que pela eficiência, pegou-lhe no chapéu e no sobretudo. Pouco depois, voltou com uma chávena de café e uma torrada. Este pequeno-almoço em miniatura foi servido num serviço de porcelana do modelo Belladonna, exclusivo da Starrett.
Enquanto comia a torrada, Clayton reviu a sua agenda para aquele dia. Não havia nada que lhe parecesse de grande importância e pensou que, por volta das quatro, quatro e meia da tarde, poderia telefonar a Helene Pierce, perguntando se ela queria recebê-lo.
Estava a pagar cinco mil e quatrocentos dólares por mês pelo apartamento dela, dava-lhe mil dólares por semana para despesas e, de vez em quando, oferecia-lhe pequenos diamantes para a sua colecção. Mas, apesar da sua generosidade, tinha de obedecer às regras dela: nada de visitas inesperadas, poucos telefonemas, nada de perguntas sobre o modo como passava o tempo. Ele aceitava estes ditames com boa disposição porque, admitia-o, estava obcecado por ela. Helene tinha metade da sua idade, um corpo que o excitava sempre, e era tão experiente nas artes do amor que ele não percebia como é que uma pessoa tão nova sabia tanto.
A sua primeira tarefa da manhã era passar revista às vendas da véspera, efectuadas pelas dezasseis lojas, no computador que tinha em cima da secretária. Estava-se na melhor época de compras de Natal, um período que contribuía, em geral, em cerca de trinta por cento para o rendimento anual da Starrett. Clayton carregou nas teclas e observou atentamente os números que enchiam o ecrã.
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O computador não só mostrava as vendas correntes como fornecia a comparação com os resultados dos últimos cinco anos, no mesmo período. Os números indicavam que os negócios decorriam sem oscilações: o aumento verificado mal dava para cobrir a taxa de inflação. Ele estava agora mais convencido do que nunca de que a Starrett não poderia depender apenas das vendas a retalho para continuar a ter lucros e a crescer.
Depois, ligou um programa do qual só ele possuía o código de acesso. Agora, os números que apareciam no ecrã eram muito mais encorajadores. Aliciantes, na verdade, e Clayton abençou o dia em que Helene e Turner Pierce tinham entrado na sua vida. Helene trouxera-lhe alegria e, por vezes, arrebatamento; Turner fornecera-lhe a salvação financeira.
A sua primeira reunião foi com um estilista da casa para escolherem, entre os padrões propostos, uma nova linha de porta-chaves de prata representando figuras mitológicas. Tiveram uma discussão surrealista sobre o facto de o unicórnio ser ou não um símbolo fálico e, em caso afirmativo, qual o seu efeito nas vendas. Clayton rubricou todos os esboços excepto o do centauro, que achava demasiado sugestivo para expor e vender ao público.
Recebeu um telefonema de Eleanor e esteve a falar com ela quase um quarto de hora, encantado (não pela primeira vez) pelo facto de o seu caso de adultério o ter transformado num marido melhor, mais paciente com a mulher e consentâneo com os seus desejos. Ela telefonara a lembrar-lhe que tinham um jantar de beneficência e um desfile de modas no Museu Metropolitan.
Eleanor não estava directamente envolvida no acontecimento, mas os Starrett tinham-se inscrito (mil dólares por casal) porque o organizador era um dos melhores amigos de Eleanor. Clayton sabia que estas intermináveis festas de caridade eram um mundo de maledicência. Sujeitava-se a elas porque mantinham a mulher ocupada e feliz e porque eram vantajosas em termos de relações públicas. Além disso, gostava de usar smoking.
Em seguida, recebeu um decorador de interiores e fez Planos para redecorar o seu gabinete. No dia seguinte ao funeral do pai, Clayton mudara-se para o gabinete deste,
o maior da suite dos executivos. Mas estava cheio de móveis
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escuros de madeira de carvalho, as janelas que davam para Park Avenue estavam ocultas por reposteiros de veludo poeirento, e as paredes cobertas por papel enrugado. Clayton levou uma hora a descrever exactamente o que queria: aço inoxidável, vidro, cadeiras estilo Bauhaus, Warhols de cores vivas nas paredes e talvez uma poltrona Biedermeier, por graça.
Almoçou num restaurante japonês, a convite de um negociante de Tóquio que queria vender à Starrett uma selecção de pequenas figuras antigas em marfim. Enquanto comiam sashimi e bebiam saké quente, o exportador mostrou-lhe algumas amostras das peças, requintadamente esculpidas. Clayton ficou fascinado e aceitou um pequeno carregamento à consignação, como teste de vendas.
Regressou ao escritório, a pensar se a Starrett poderia rivalizar com a Gump de São Francisco e vender curiosidades, bibelôs e objectos de arte importados. Estes poderiam, conforme reconheceu, ser postos à venda na secção agora destinada a peças de joalharia para o lar e era provável que encontrassem um mercado próprio.
Ditou várias cartas à secretária e, depois de ela sair, telefonou para o apartamento de Helene pela linha particular. Mas ninguém respondeu e calculou que ela andasse a gastar dinheiro. "Fazer compras é o meu segundo passatempo favorito", dissera-lhe uma vez.
Eram quase quatro e meia, e Clayton resolveu chamar a limusina, ir para casa e dormir uma sesta antes de se vestir para o jantar. Mas foi então que Solomon Guthrie telefonou, a perguntar se podia subir imediatamente. Guthrie era o director financeiro da Starrett e Clayton sabia do que ele queria falar-lhe.
Sol tinha sessenta e três anos, trabalhava na Starrett há quarenta e tratava os patrões por Mr. Lewis e Mr. Clayton. Tinha uma orla de cabelos fracos, em forma de ferradura, à volta da cabeça calva e era talvez o único empregado de escritório em Nova Iorque que ainda usava mangas de alpaca. Aprendera, com dificuldade, a servir-se do computador, mas insistia em guardar um exemplar dos registos copiados à mão, com a sua escrita angulosa, em arquivadores gigantescos que lhe cobriam a secretária.
Apareceu no gabinete de Clayton a arrastar os pés,
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e um grande rolo de folhas de computador debaixo do
braço.
Mister Clayton, não sei o que diabo está a acontecer aqui - disse, com um ar aflito.
- Suponho que se refere ao negócio das barras - disse Clayton, suspirando. - Já lhe expliquei uma vez, mas posso repetir a explicação, se quiser.
- É a quantidade de papel - disse o director financeiro, irritado. - Estamos a receber facturas, cheques anulados, conhecimentos de embarque, guias de remessa, avisos de prémios de seguro... É uma avalancha! Olhe para isto, é somente um dia de papel!
- Isso é apenas temporário - disse Clayton, para o acalmar. - Quando o nosso novo sistema integrado estiver a funcionar, essa papelada será reduzida ao mínimo, garanto-lhe.
- Mas não costumava ser assim - lamentou-se Sol. Eu costumava ter tudo em ordem. É verdade que tinha de fazer serão, às vezes, mas isso são ossos do ofício. Mas com estes negócios das barras, estou desorientado. Estou a atrasar-me cada vez mais.
- Está a dizer-me, Sol, que precisa de mais gente?
- Não, não preciso de mais gente. O tempo que levaria a dizer-lhes o que deveriam fazer, então faço eu. O que eu quero saber é a razão de tudo isto. Durante anos, vendemos jóias. Agora, de repente, negociamos em ouro... É um negócio completamente diferente.
- Não necessariamente - respondeu Clayton. Faz-se dinheiro a comprar e a vender barras de ouro. Porque havemos de deixar a nata para os intermediários? com os nossos contactos, podemos comprar por grosso e vender aos joalheiros particulares por um preço que eles não encontram em lado nenhum.
- Mas compramos o ouro a quem? Eu recebo as facturas, mas nunca ouvi falar desses fornecedores.
- Está tudo dentro da legalidade - disse Clayton. Você recebe as guias de remessa, não é verdade? Essa é a prova de que eles estão a expedi-lo e de que o ouro entra na nossa casa-forte.
- E os clientes?... Quem são?
- Em primeiro lugar, tenciono autonomizar todas as nossas lojas. Serão mais subsidiárias do que filiais. Quero
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que elas criem os seus próprios modelos e os fabriquem. Nova Iorque vende-lhes a matéria-prima: ouro, prata, pedras preciosas, etc. com uma margem, evidentemente. Por sua vez, as subsidiárias podem vender a pequenas ourivesarias da zona.
Guthrie abanou a cabeça.
- Isso parece-me uma loucura. E, neste momento, investimos demasiado nas barras. E se a Rússia ou a África do Sul fazem uma guerra de preços e o mercado sofre uma quebra? Então é a nossa morte.
Clayton sorriu.
- Estamos bem protegidos - disse ele. - Não nos podem atingir. Sol, você verifica os resultados. Estamos a perder dinheiro com o negócio do ouro?
- Não - admitiu o director financeiro.
- Estamos a fazer dinheiro, não estamos? Rios de dinheiro.
Sol fez um sinal afirmativo.
- Mas não percebo - disse, contrafeito. - Não percebo como é que o senhor tenciona escoar tanto ouro. Acho que o nosso inventário está muito, muito pesado. E o seu pai, que Deus tenha a sua alma em descanso, diria o mesmo, acredite.
Clayton tirou um charuto de uma bela caixa humidificadora, de mogno, que tinha na secretária. O charuto era de uma marca superior à que o pai fumava. Mas não o acendeu logo. Fê-lo rolar entre os dedos.
- Sol, você tem sessenta e três anos, não é verdade?
- Tenho.
- Reforma-se daqui a dois anos. Aposto que está desejoso disso.
- Não tenho pensado nisso.
- Mas devia pensar, Sol. Não seria prematuro começarmos a treinar alguém para o substituir.
- Quem? Esses garotos... O que sabem eles? Saem da faculdade e nem sequer sabem conferir um livro de cheques.
- E aquele novo que eu admiti, Dick Satterlee?
- É uma nódoa! - exclamou Sol.
- Ensine-o - insistiu Clayton. - Ensine-o, Sol. Ele vem com grandes recomendações.
- Não gosto dele - disse Sol, irritado. - Tem a mania
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de trepar, aquele tipo. Na semana passada fui dar com ele a mexer nos meus arquivos.
- E depois? Como quer que ele aprenda? - ripostou
Clayton.
Ouça, Mister Clayton, esses arquivos não lhe pertencem - disse o velho. - Toda a gente no escritório sabe que não se lhes pode mexer. Não quero que ninguém toque neles, são da minha responsabilidade.
Starrett cortou o charuto lentamente e acendeu-o.
- Sol, há quanto tempo não é aumentado? Guthrie ficou espantado.
- Há dois anos. Julgava que o senhor sabia - respondeu.
- Devia saber, mas tenho tanta coisa na cabeça. A morte do pai e tudo... - disse Clayton.
- Compreendo.
- Suponha que tem um aumento de cinquenta mil dólares por ano, até à reforma. com a sua pensão, seria uma quantia muito razoável.
O director financeiro ficou chocado.
- Obrigado, Mister Clayton - disse, por fim.
- Você merece. E, Sol, não se preocupe mais com o negócio do ouro. Confie em mim.
Depois de Guthrie sair, Clayton pousou o charuto cuidadosamente e telefonou a Turner Pierce. Ao fim do sexto toque, atenderam do outro lado da linha.
- Está?
- Turner? Fala Clayton Starrett.
- Como está, Clay? Estava justamente a pensar em si. Esta noite estive com Ramon e há algumas novidades interessantes.
- Turner, tenho de falar consigo o mais depressa possível.
- Há problema?
- Pode haver - respondeu Clayton.
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Dora Conti, ansiosa por se ver livre da mala demasiado cheia que trazia ao ombro, entrou no apartamento dos Starrett às duas e meia da tarde. Um homem alto e curvado,
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no qual reconheceu o mordomo, identificado nos jornais como sendo Charles Hawkins, veio abrir-lhe a porta. Na sua opinião, não parecia um mordomo da 5ª Avenida, nem tão-pouco um criado de quarto, um moço de recados ou um ajudante de cozinha. Tinha os ombros e os joelhos salientes, faces descarnadas, e uma madeixa de cabelos pretos, húmidos e encaracolados caía-lhe sobre a testa. Usava um colete de alpaca cinzenta, cheio de lustro, calças de sarja preta, igualmente lustrosas, e sapatos excêntricos.
- Sou Dora Conti e venho ter com Mistress Olivia Starrett. Tenho hora marcada - disse Dora.
- A senhora está à espera - respondeu ele, em voz baixa e fúnebre, estendendo-lhe os braços.
Por instantes, Dora, assustada, julgou que ele ia abraçá-la, mas depois percebeu que queria apenas segurar-lhe no casaco. Tirou o lenço do pescoço e desenvencilhou-se da parka pesada. Ele pegou neles com a ponta dos dedos e ela seguiu o seu passo arrastado através de um longo corredor que desembocava na sala.
Era um aposento de tecto alto, que parecia apinhado de cadeiras e sofás forrados de chintz e cretone, todos de padrões florais: rosas, papoilas, lírios, íris e camélias. Parecia uma estufa, só faltava o aroma.
Um homem e uma mulher partilhavam uma conversadeira quando Dora entrou na sala. O homem levantou-se imediatamente. Usava um fato de flanela cinzento-claro, acertoado, um peitilho de seda preta e um cabeção branco de padre.
- Boa tarde - disse Dora, com rispidez. - Sou Dora Conti e, tal como expliquei ao telefone, sou o seu perito de seguros. Muito obrigada por me receber tão depressa.
- Espero que não fique ofendida por eu lhe pedir a sua identificação - disse o homem com um sorriso que Dora achou de uma simpatia exagerada.
Dora não respondeu e procurou na mala o cartão de identidade e a carta de autorização.
O homem examinou-os cuidadosamente e depois devolveu-lhos, sempre a sorrir.
- Obrigado. Deve compreender as minhas precauções; há tantos repórteres a tentar entrevistar famílias sob os mais variados pretextos que vamo-nos tornando desconfiados. Sou Brian Callaway.
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- Padre Brian Callaway - disse a mulher sentada no
sofá. - E eu sou Olivia Starrett.
Minha senhora, em primeiro lugar, apresento-lhe as
minhas condolências pela morte do seu marido - disse
Dora.
- Oh, ele não morreu. Juntou-se à harmonia divina - disse a mulher. - Meu Deus, que bonito é o seu cabelo!
- Obrigada.
- Os operários da construção civil devem assobiar à sua passagem e gritar "Olá, ruiva!", não?
- Não - respondeu Dora. - Em geral, assobiam e gritam "Olá, gorda!"
Olivia Starrett deu uma gargalhada que parecia um gorjeio.
- Os homens sabem ser tão cruéis! Claro que você não é gorda. Roliça, talvez... Não acha, padre?
- é agradável à vista - disse ele.
- Agora, venha sentar-se aqui ao pé de mim - disse a viúva, ajeitando a almofada a seu lado. - Vamos conversar um pouco.
Também ela era uma mulher pesada, dotada de uma ternura maternal. A pele era aveludada e macia e os olhos, muito abertos, exprimiam uma contínua surpresa. Usava o cabelo grisalho preso em rabo-de-cavalo e atado com uma fita de rapariguinha. As mãos eram inesperadamente rechonchudas e os anéis de diamantes, pelos cálculos de Dora, dariam para fornecer Mário de prosciutto durante duas vidas.
- Mistress Starrett, deixe-me explicar-lhe porque estou aqui - começou Dora. - Se o seu marido estivesse doente e... bem, tivesse morrido no hospital, ou mesmo em casa com um médico assistente, não precisaríamos talvez de investigar o pedido, apesar do montante da apólice. Mas, dada a sua morte violenta e inesperada, é necessário averiguar os factos.
O padre Callaway sentou-se numa poltrona, voltado para as duas mulheres.
- É claro que a investigação desse crime horrível compete à polícia - disse ele.
- com certeza - concordou Dora. - Mas, neste momento, eles têm uma teoria sobre o modo e o motivo pelo qual o crime foi cometido. Pode estar correcta ou
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não. No entanto, até o criminoso ser apanhado, existem algumas perguntas sem resposta que eu gostaria de ver esclarecidas. Mistress Starrett, espero não estar a incomodá-la ao falar na morte do seu marido.
- Oh, de modo nenhum - disse ela, quase alegre. Já encontrei a minha paz.
- Olivia é uma mulher forte - disse Callaway.
- Como o padre disse no serviço religioso, a fé tudo conquista.
- Apenas algumas perguntas - disse Dora. - Em primeiro lugar, pode dizer-me onde estavam as pessoas da família no momento em que o seu marido foi morto?
- Ora, deixe-me ver - disse Mrs. Starrett, olhando para o tecto. - Ao princípio da noite, toda a família estava aqui, a beber e a comer aperitivos. Helene e Turner Pierce passaram por cá.
- Eu também cá estava, Olivia - interrompeu Callaway.
- Claro que estava! Bem, tomámos umas bebidas e depois Clayton e Eleanor saíram para ir a uma festa de caridade no Waldorf. Felicia tinha um jantar e saiu também. E depois saíram os Pierce.
- E eu saí com eles - lembrou o padre. Olhando directamente para Dora, explicou:
- Tenho um pequeno tabernáculo na Rua Vinte Leste e queria estar presente na refeição da noite para dar conforto espiritual.
- Tabernáculo? Então não é católico? - perguntou Dora.
- Não - respondeu ele, lacónico. - Sou o fundador e pastor da Igreja da Santa Unidade.
- Compreendo - respondeu Dora. E, voltando-se para a viúva, perguntou:
- Então, só a senhora e o seu marido estavam em casa à hora do jantar?
- E Charles, o nosso mordomo, e Clara, a nossa cozinheira.
- A mulher de Charles. Olivia abriu ainda mais os olhos.
- Como soube? - perguntou.
- Veio nos jornais - respondeu Dora, impassível, a mentir. - Jantaram e depois Mister Starrett saiu para ir dar o seu passeio habitual, não é assim?
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- É - disse Olivia, com um aceno de cabeça. - Foi
o que se passou. Recordo-me de que estava a chover muito e disse a Lewis que levasse o chapéu-de-chuva e calçasse os sapatos de sola de borracha, mas ele não quis.
Suspirou e acrescentou:
- Era um homem muito obstinado. Callaway corrigiu-a com delicadeza:
- De espírito forte, Olivia - disse, num murmúrio.
- Sim, era um homem de espírito muito forte.
- Mistress Starrett, conhece alguém que quisesse mal ao seu marido? Ele tinha inimigos?
A viúva ergueu o queixo.
- O meu marido era uma pessoa difícil, por vezes. Em casa e, tenho a certeza, no emprego, sei que muita gente se sentia ofendida com as suas palavras. Tinha mau feitio, sabe, e acho que às vezes, quando estava zangado, dizia coisas de que mais tarde se arrependia. Mas, não, não conheço ninguém que lhe quisesse mal.
- Ele foi ameaçado alguma vez? Pessoalmente ou por carta?
- Que eu saiba, não.
- A polícia está convencida de que ele foi morto por um desconhecido - observou Callaway.
- Hum, é a teoria deles. Mistress Starrett, não quero tomar-lhe mais tempo. Se eu me lembrar de mais perguntas, posso voltar? - perguntou Dora.
Olivia pousou-lhe a mão no braço, com doçura, e respondeu:
- Claro que pode, minha querida. Sempre que quiser. É casada?
- Sou. Vivemos em Hartford. O meu marido é expedidor numa empresa de camionagem.
- Que interessante! Ele ama-a? Dora ficou espantada.
- Acho que sim. Ele diz que sim.
- E você ama-o?
- Sim.
Olivia fez um sinal de aprovação.
- O amor é a coisa mais importante. Não é, padre?
- A única - respondeu Callaway, um homem robusto que gostava de mostrar os dentes.
Dora levantou-se. O pastor levantou-se ao mesmo
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tempo e tirou uma carteira do bolso interior do casaco. Puxou de um cartão de visita e estendeu-lho.
- Aqui tem o endereço da Igreja da Santa Unidade
- disse. - Há serviço religioso todas as sextas-feiras, às oito horas da noite. Mas será bem-vinda a qualquer hora que queira passar por lá.
- Obrigada - disse Dora, guardando o cartão na mala a tiracolo. - Talvez calhe. Mistress Starrett, foi um prazer conhecê-la e espero voltar a vê-la.
- E o seguro? - perguntou Callaway. - Quando podem os beneficiários contar com a aprovação do pedido de indemnização?
Dora sorriu com doçura e respondeu:
- O mais depressa possível. E apertou-lhe a mão.
Charles aguardava no vestíbulo e ela pensou se ele não teria escutado a maior parte da conversa. Ajudou-a a vestir a parka.
- Obrigada, Charles.
Pareceu-lhe que ele lhe piscara o olho, mas era um gesto tão impróprio de um mordomo que se convenceu de que ele pestanejara apenas. Só com um olho.
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Clayton Starrett não detectava qualquer semelhança física entre Helene e Turner Pierce. Todavia, ambos davam a mesma imagem ao mundo: frios, um pouco distantes, de sorrisos contidos e poucos risos. E ambos se vestiam com uma elegância descuidada, bebiam bem e manifestavam frequentemente o seu desagrado por lugares-comuns. "Rasteiro" era o termo mais forte que utilizavam para mostrar o seu repúdio.
Sentado com eles na sala do apartamento de Helene, a beber um vermute, Clayton reparou, pela primeira vez, na palidez, na elegância de ambos e na languidez dos seus gestos. Na presença deles, sentia-se desconfortavelmente rústico, como se a sua energia e saúde de ferro fossem um pouco vulgares.
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- E qual foi a reacção de Guthrie quando você lhe
deu o aumento? - perguntou Turner.
Ficou admirado - respondeu Clayton. - Talvez
chocado seja um termo melhor. Eu sei que ele não esperava uma coisa destas. Fi-lo, é claro, para o motivar mais. podem chamar-lhe suborno... Para calar a boca acerca do negócio do ouro.
- Acha que vai resultar?
- Não sei - respondeu Clayton, preocupado. - Sol é um homem sério... Demasiado sério, talvez. Apesar do aumento, pode continuar a farejar. Apercebi-me de que ele não ficou totalmente satisfeito com a minha explicação.
- Helene? - disse Turner.
- De momento, não faças nada - aconselhou ela. O dinheiro pode convencê-lo de que seria estúpido da sua parte fazer ondas. Mas, em todo o caso, é melhor dizeres a Dick Satterlee que o vigie.
- Sim, isso seria conveniente - disse Turner. - Desde que o contacto de Ramon em Nova Orleães foi eliminado que ele quer aumentar os investimentos num lado qualquer. Vamos ficar com a parte de leão. Por isso a última coisa que queremos agora é um contabilista armado em esperto, a farejar. vou telefonar para casa de Satterlee e pô-lo de sobreaviso.
Deu uma olhadela ao seu Piaget Polo, acabou de beber o vermute e levantou-se.
- Tenho de ir a correr. Obrigado pela bebida, mana.
- Depois telefono-te - disse ela. Ele baixou-se para beijá-la na face.
- Só se for muito tarde. Não estarei em casa antes da meia-noite.
- Porta-te bem - recomendou ela.
- Não me porto sempre bem? Clay, esta minha irmã comporta-se como se fosse a minha mãe - disse Turner.
Todos se riram. Turner pegou na gabardina e continuou:
- Clay, não se preocupe com Sol Guthrie. Eu tomo conta do assunto.
- Ainda bem - disse Clayton. - Ele trabalha na Starrett há muito tempo e só lhe faltam dois anos para ter uma pensão confortável. Seria insensato se pusesse isso em risco.
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- Às vezes os homens sérios fazem coisas insensatas
- retorquiu Turner. - Conhece o velho ditado "Nenhuma boa acção fica sem castigo"? Espero que Mister Guthrie se lembre disso.
Acenou-lhes com a mão e saiu. Helene levantou-se para ir trancar a porta e pôr a corrente.
- Tens outra festa esta noite? - perguntou a Clayton. Ele fez um sinal afirmativo.
- É a terceira desta semana. A minha mulher faz parte da organização desta. É no Pierre.
- Qual é o destinatário? Ele encolheu os ombros.
- Sei lá... Mães solteiras, gatos vadios ou outra coisa qualquer.
- Então tens de ir a casa vestir-te. Ele sorriu.
- Só daqui a uma hora - respondeu.
- Chega. Numa hora pode-se dar a volta ao mundo - disse ela.
Se Helene parecia lânguida, quase débil, quando estava vestida e na companhia de outras pessoas, revelava um carácter totalmente diferente quando estava despida e a sós com ele. Tinha uma força surpreendente e um vigor notável. A indiferença desvanecia-se; era então uma mulher determinada e cheia de vitalidade. Atribuía a Clayton o mérito dessa transformação. "Sou uma pagã nas tuas mãos", dizia-lhe.
Clayton mal acreditava na sua boa sorte. Esta jovem bela e ardente parecia não desejar mais nada senão dar-lhe prazer. Não havia nada que ele lhe pedisse que ela não fizesse e, quando faziam amor, um mundo novo parecia abrir-se para ele. Era um déspota sexual e ela era a sua escrava submissa, desejosa de servi-lo.
Pensou que nunca experimentara um êxtase igual a este, e só mais tarde começou a congeminar como poderia modificar a sua vida de modo a garantir que a sua felicidade durasse sempre.
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Há quase uma semana que Dora Conti tentava marcar um encontro com Felicia Starrett. Por duas vezes tinham combinado encontrar-se, mas Felicia telefonara à última hora a cancelar, com desculpas que Dora achou banais: tivera de ir tratar das mãos e o Bloomies estava a saldar roupa interior.
Por fim, lá aceitou encontrar-se com Dora para tomar um copo, no bar do Bedlington, às quatro e meia de sexta-feira. Chegou apenas com vinte minutos de atraso.
Entrou no bar com um casaco de marta que fez as delícias de Dora. Por baixo trazia uma camisola branca, de gola alta, e uma saia de calfe preto, curta e justa. A sua única jóia era um solitário, um diamante da Tiffany. com cinco quilates, pelo menos, pelos cálculos de Dora.
Felicia apertou-lhe a mão, tirou o casaco e atirou-o para uma cadeira vazia.
- Um Chivas simples. E uma Perrier - gritou ao empregado do bar.
Sentou-se à mesa, em frente de Dora, a mirar a sala.
- Isto é meio bolorento - comentou.
- É, não é? - respondeu Dora, prazenteira. - Muito obrigada por me conceder uns minutos do seu tempo, Miss Starrett.
- Espero que sejam só uns minutos. Tenho uma marcação no cabeleireiro às cinco e meia e, se me atraso, o Adolph tira-me o escalpe. Onde vai arranjar o cabelo?
- Arranjo-o eu própria. Não se nota? - perguntou Dora.
- Está bem assim - disse Felicia. - É como se você não se preocupasse com ele. Gosto disso. Posso tirar-lhe um cigarro?
- Sirva-se à vontade.
- Estou a tentar deixar de fumar, por isso não tenho comprado cigarros. Ainda continuo a fumar, mas poupo muito dinheiro. Chama-se Dora Conti?
- Exactamente.
- É italiana.
- O meu marido é que é.
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- São casados há quanto tempo?
- Há seis anos.
- Têm filhos?
- Não.
- Isso é inteligente da vossa parte. Quem é que quer trazer crianças a este mundo podre? Esta conversa é por causa do seguro?
- Apenas algumas perguntas - respondeu Dora. A sua mãe já me disse a maior parte das coisas que eu queria saber. Disse-me que você tinha estado em casa, num cocktail, na noite em que o seu pai foi morto. Mas que saiu cedo.
- É verdade. Eu tinha um jantar no centro. Um restaurante novo, em Spring Street. Acabou por ser uma estopada. Eu contei isto tudo à polícia. Tenho a certeza de que eles foram verificar.
- Certamente que sim - disse Dora. - Miss Starrett, sabe se o seu pai tinha inimigos? Alguém que quisesse fazer-lhe mal?
Até aí, Felicia fumara com baforadas curtas e rápidas. Nesse momento, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e apagou o cigarro.
- Bolas! Pensei que já tinha acabado com a choraminguice - disse ela.
- Peço desculpa por estar a entristecê-la.
- A culpa não é sua. Mas, sempre que penso nele caído no passeio, ali sozinho, vou-me abaixo. O meu pai era um filho da mãe, mas eu adorava-o. Compreende isto?
- Compreendo.
- E, por muito que ele não prestasse, ninguém devia morrer assim. Não está certo.
- Não, não está - respondeu Dora.
- É claro, acho que ele tinha inimigos. Não é possível ser-se um patife durante toda a vida sem o ódio das outras pessoas. Mas não, não conheço ninguém que o odiasse ao ponto de o matar.
- Conheci o padre Callaway quando fui interrogar a sua mãe. Ele parece concordar com a teoria da polícia, segundo a qual o seu pai foi morto por um desconhecido.
- Padre Callaway! - exclamou Felicia. - Ele é tão padre como eu sou astronauta. Não ligue ao que ele diz ou pensa. Esse homem é uma fraude.
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Ah sim? O que quer dizer com isso? - perguntou
Dora.
Ele tem aquela igreja miserável numa loja vazia, e
suga dinheiro a uma série de papalvos como a minha mãe, que morre de amores por aquele sorriso untuoso e por aquela treta de um mundo de amor e harmonia.
- Mas é provável que faça bem a alguém - atalhou Dora. - Ele diz que a igreja dele fornece sopa aos sem-abrigo.
- Pois... ele distribui umas sanduíches de queijo, enquanto anda a comer bife Wellington pelas casas daqueles que explora. O meu pai é que o topava. Sempre que via o Callaway vestido de padre, perguntava-lhe: "Então como é que vai hoje o crime eclesiástico?"
Dora riu-se e disse:
- Mas o seu pai recebia-o em casa.
- Em atenção à mãe - respondeu Felicia, enfadada. - Ela acredita mesmo no Callaway e naquela igreja de fachada.
- E mais alguém da família acredita? A sua cunhada, por exemplo.
- Eleanor? Essa só acredita nas colunas sociais. Quando não vê o nome dela no jornal, é como se não existisse. Não sei porque estou a contar-lhe tudo isto; não tem nada a ver com o seguro.
- Nunca se sabe - disse Dora, observando-a a acender outro cigarro, com os dedos a tremer.
Pensou que Felicia já tinha sofrido muito. Era uma mulher alta, angulosa, muito traumatizada, com um perfil de Nefertiti e mãos prontas a arranhar.
- Vou-lhe contar uma coisa acerca de Eleanor - disse ela, com um ar pensativo. - Nós éramos muito íntimas, assim... - e cruzou dois dedos. - Depois, ela e Clayton tiveram um filho, um rapaz, uma criança linda. Viveu dezoito meses e teve uma morte horrível, com meningite. Isto deixou Eleanor despedaçada; tornou-se uma mulher diferente. Disse a toda a gente: "Não quero mais filhos." Estava certo. Foi a decisão dela. Mas (e isto é o que eu penso) creio que isso a afastou do sexo. Pouco dePois, o meu irmão começou a andar por aí a divertir-se. Tenho a certeza disso. Encontros fortuitos, nada de sério. Mas quem podia culpá-lo? Em casa não tinha nada. E foi
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então que Eleanor entrou no circuito das festas de caridade, e essa tem sido a sua vida desde essa altura. Triste, triste, triste. A vida suga-nos, sabia? Dora não respondeu.
- Bem, por hoje chega de folhetim - disse Felicia, levantando-se abruptamente. - Tenho de pôr-me a andar. Obrigada pela bebida. Se precisar de mais alguma coisa, apite.
- Muito obrigada, Miss Starrett.
Ela pegou no casaco de marta e ficou um momento a olhar para Dora.
- Há seis anos, hem? Eu nunca me casei. Sou uma solteirona - disse ela.
- Não diga isso - respondeu Dora.
- Porque não? - replicou Felicia, com um riso forçado. - É verdade, não é? Mas não tenha pena de mim; tenho as minhas alegrias... Uma vez por outra. Vá dando notícias, menina.
E, dizendo-lhe adeus, foi-se embora. Dora ficou sentada, sozinha, e sentiu que precisava de beber uma coisa mais forte do que a cerveja. Dirigiu-se ao bar e pediu um Chivas simples e uma Perrier. Nunca bebera aquilo, mas fora o que Felicia escolhera e Dora queria homenageá-la. "Imagine-se!", disse com os seus botões.
Quando acabou de beber, foi para o quarto e tomou alguns apontamentos que iriam ajudá-la a redigir o relatório para Mike Trevalyan. Depois, dormiu uma sesta que operou maravilhas, pois acordou bem-disposta. Tomou um duche e telefonou a Mário ainda despida. Assim era mais íntimo. Mário disse-lhe que sentia a sua falta e ela disse-lhe o mesmo. E mandou-lhe beijos pelo telefone.
- Que miséria! - disse ele, a rir, e desligou. Dora vestiu-se, pegou na parka e saiu. A noite estava fria, o cheiro da neve pairava no ar e, quando ela pediu ao porteiro do Bedlington que lhe arranjasse um táxi, ele respondeu: "Esqueça!"
Então, foi a pé até à 5ª Avenida, depois virou para sul, parando para ver as montras alusivas à quadra. Avistou a árvore de Natal cintilante do Centro Rockefeller e parou para ouvir um grupo de cantores que entoavam Heilige Nacht e recolhiam donativos para as vítimas da sida.
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Desceu a 5ª Avenida e parou várias vezes para ver as montras, à procura de uma prenda fora do vulgar para dar a Mário no Natal. Os leões de pedra da biblioteca tinham grinaldas ao pescoço, e Dora achou-os mais simpáticos. Havia uma bicha para ver as montras animadas da Lord Taylor, e por isso decidiu deixá-las para outra vez.
Sem dar por isso, viu-se na Rua 34 e encaminhou-se para Herald Square, a fim de mirar as montras do Macy. Eram quase sete e meia da tarde e, como já ali estava, resolveu andar um pouco e ir visitar a Igreja da Santa Unidade, do padre Callaway.
O tempo arrefecera e uma névoa fina envolvia os candeeiros da rua. Dora caminhava com dificuldade, as mãos enfiadas nos bolsos da parka, a pensar no que o detective Wenden dissera sobre o disparate que era passear na cidade à noite. Sabia manejar uma arma, mas nunca trazia nenhuma, por se considerar incapaz de alvejar alguém. E se não o fazia, qual a vantagem?
Mas chegou à Rua 20 Leste sem incidentes, excepto ter sido obrigada a afastar vários pedintes, que aceitaram a sua recusa docilmente. Admitiu que afastá-los não era consentâneo com o espírito natalício, mas não lhe apetecia parar, abrir a mala e procurar a carteira. Wenden não a avisara sobre o perigo de ser destemida. E ela não o era.
Tal como Felicia Starrett dissera, a igreja de Callaway estava instalada num antigo estabelecimento. Parecia ter sido uma loja que fornecia comida para fora porque, num dos cantos da montra, ainda se lia FORNECE-SE PARA FORA. Uma persiana larga, fechada, escondia o interior a quem passava, mas por cima da porta havia uma tabuleta que indicava, em escrita cursiva, IGREJA DA SANTA UNIDADE.
TODOS SÃO BEM-VINDOS.
Dora parou antes de entrar e, de repente, sentiu um objecto duro contra o braço.
- A bolsa ou a vida - disse alguém, de voz áspera. Ela voltou-se e viu o detective John Wenden a rir, emPurrando-lhe as costelas com o punho fechado.
- Seu maroto! Assustou-me mesmo! - disse ela, a arfar.
- Bem feito! Que diabo anda você a fazer aqui sozinha? - perguntou ele.
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- Simples curiosidade - respondeu ela. - E você?
- Ora, tinha de matar o tempo e resolvi vir espreitar o pregador em plena função. Vamos entrar - respondeu ele.
- Vamos sentar-nos cá atrás - propôs ela. - Mistress Starrett pode estar aqui, e não gostava que ela me visse.
- Concordo. Espero que o local esteja aquecido - disse ele.
A atmosfera estava quente de mais. Cerca de cinquenta cadeiras de abrir e fechar estavam dispostas numa sala comprida e estreita, de frente para um palco baixo, onde havia uma estante e um piano. A maior parte das cadeiras estavam ocupadas, essencialmente por mulheres de meia-idade e bem vestidas. Mas também havia alguns casais jovens, vários homens e mulheres sós e meia dúzia de pedintes que tinham entrado para se aquecerem. Estavam a dormir.
Um homem gordo e de cabelo ralo estava sentado ao piano, a cantar Ó Pequena Cidade de Belém, com uma surpreendente voz de tenor. A assistência parecia atenta. Conti e Wenden tiraram os casacos e esgueiraram-se para as cadeiras da última fila. Dora esticou o pescoço e avistou Mrs. Olivia Starrett sentada numa fila da frente.
O hino acabou, o pianista levantou-se, abandonou o palco e saiu por uma porta nas traseiras. A assistência mexeu-se, acomodou-se e depois ficou à espera. Pouco depois, entrou o padre Brian Callaway, caminhando pelo palco com pompa e circunstância. Parou, hirto, junto da estante e sorriu para os presentes.
Vestia uma sotaina de cetim branco, cujas mangas eram invulgarmente largas. A parte da frente era debruada de tecido cor de púrpura e o decote e os punhos bordados a ouro. Um anel com um diamante reluzia-lhe no indicador da mão direita.
- O Padre Supremo - sussurrou Wenden a Dora.
- Chiu! - disse ela.
- Boa noite, irmãos e irmãs - disse Callaway, num tom afectuoso e acolhedor. - Sejam bem-vindos à Igreja da Santa Unidade. Depois do serviço religioso, serão servidos café e bolos e pedir-vos-ão uma contribuição voluntária para o trabalho da igreja, que, como muitos de vós sabeis, inclui a distribuição diária de comida àqueles infelizes
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que, muitas vezes sem culpa própria, não têm meios de subsistência.
"Esta noite, quero falar-vos do ambiente. Não da chuva ácida, da poluição da atmosfera e da água, da destruição das florestas e da costa, mas do ambiente pessoal, da poluição das nossas almas e da necessidade de procurarmos aquilo a que chamo a harmonia divina, no seio da qual nos juntamos à natureza, uns aos outros e a Deus."
O homem desenvolveu o tema mais em pormenor durante os trinta minutos que se seguiram. Comparou a cobiça, a inveja, a luxúria e outros pecados aos produtos químicos letais que envenenam o solo e os alimentos que dele são extraídos. Disse que a terra não poderia suportar aquela contaminação eternamente e que, do mesmo modo, a alma humana não poderia enfrentar a corrosão das ofensas morais que enfraqueciam, debilitavam e poderiam vir a destruir o indivíduo e, inevitavelmente, toda a sociedade.
A solução, acrescentou, num tom calmo e sensato, era reconhecer que, tal como o ambiente físico era um só, independente e sagrado, também o ambiente moral era um só, e exigia cautela, sacrifício e, acima de tudo, amor, se queríamos descobrir a harmonia divina com a natureza, com os outros e com Deus: uma Santa Unidade que incluía todas as alegrias e todas as tristezas.
Ainda estava a falar da Santa Unidade quando Wenden puxou a manga de Dora.
- Vamo-nos pôr a andar - disse, em voz baixa.
Ela concordou, pegaram nos casacos e saíram. Aparentemente, nem o pastor nem nenhum elemento daquela assistência enlevada dera pela saída deles. Cá fora, a névoa dera lugar a um granizo gélido.
- Eu tenho carro, mas há uma pizzaria mesmo à esquina com a Quinta Avenida. Não nos molharemos muito
- disse ele.
- Vamos - concordou Dora. Deu-lhe o braço e estugaram o passo.
Pouco depois, estavam confortavelmente instalados num banco alto, numa atmosfera a cheirar a alho, a beber cerveja gelada e à espera de uma pizza gigante, com anchovas e peperoni.
- O tipo surpreendeu-me - disse Wenden.
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- Julguei que ele era um daqueles fala-barato, dos que gritam "Venham a Jesus!". Mas tenho de reconhecer que parecia sincero, como se acreditasse mesmo naquela banha-da-cobra que anda a vender.
- Talvez ele seja sincero - disse Dora. - Achei-o impressivo. Muito terra-a-terra, muito convincente. Diga-me a verdade: como é que você arranjou tempo para o apanhar em acção?
Wenden encolheu os ombros.
- Não sei. Talvez por ele ser tão suave e ter dentes a mais. Acha que isto tem a ver com a detecção científica de um crime?
Ficaram a olhar um para o outro, pensativos. Por fim, Dora disse:
- vou pedir ao meu chefe que procure Callaway no nosso computador. Embora a nossa base de dados só inclua pessoas que estiveram envolvidas em fraudes de seguros.
- Faça isso. Apenas por curiosidade - insistiu o detective.
Trouxeram-lhes a pizza gigante e eles começaram a comer, servindo-se de guardanapos de papel.
- Como está você a dar-se com a família Starrett? perguntou Wenden.
- Bem, suponho. Até agora, toda a gente tem colaborado. Mas o resultado é zero. Porque terei a noção de que não ando a fazer as perguntas certas?
- Como, por exemplo? "A senhora matou o seu marido?" ou "Você matou o seu pai?" - perguntou ele.
- Nada tão desagradável como isso. Mas estou convencida de que a família tem segredos - disse ela.
- Todas as famílias têm segredos.
- Mas os segredos dos Starrett estão relacionados com o homicídio. Digo-lhe, John...
- John? - interrompeu ele. - Oh, meu Deus, julguei que você tinha um casamento feliz.
- Ora, cale-se - respondeu Dora, a rir. - Se estamos os dois a comer uma pizza, podemos tratar-nos por John e Dora. O que eu ia a dizer é que, sem ofensa à polícia do estado de Nova Iorque, acho que a versão oficial, segundo a qual o assassino foi um desconhecido, não faz sentido. E acho que você é da minha opinião.
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Venden pegou cuidadosamente num pedaço de peperoni, dobrou-o no sentido do comprimento e começou a comê-lo, com um guardanapo de papel a proteger-lhe a camisa.
Tinha um rosto vincado, mais interessante do que belo: o nariz e o queixo eram demasiado compridos, os malares altos e salientes, os olhos escuros e profundos. Dora gostava da boca dele, quando não estava a abarrotar de pizza, e o cabelo era negro como o de um cigano. Na opinião dela, o melhor dele era a voz: uma voz de barítono, forte e sonante, musical como o som de um saxofone.
Ele limpou a boca e bebeu um gole de cerveja.
- Talvez não faça sentido. Mas nós não temos nada melhor. E você? - perguntou ele.
Ela abanou a cabeça.
- Algumas pistas, muito fracas. O padre Callaway é uma delas. Clayton Starrett é outra.
- O que há com ele?
- Aparentemente, anda a enganar a mulher.
- Isso é um crime? - perguntou Wenden. - O mundo não teria prisões que chegassem para todos os homens casados que têm aventuras. E que mais?
- Sabe alguma coisa de Charles Hawkins, o mordomo? Ele sorriu.
- Acha que foi o mordomo? Só nos livros. Sabe de algum homicídio em que o mordomo tenha sido o assassino?
- Não - admitiu ela. - Mas trabalhei num caso em que foi o jardineiro a fazer o trabalho sujo. Acho que vou falar com Mister Hawkins. Dá-me boleia até ao hotel?
- Claro. Vai convidar-me para beber um copo? perguntou ele.
- Não - respondeu ela. - com uma pizza a meias, já chega de intimidades por esta noite. Deixe a conta comigo; a companhia pode pagá-la.
- Está bem - disse ele, satisfeito. - Para a semana tenho de pagar a pensão de alimentos e estou a ficar teso.
- Precisa de dinheiro até receber o ordenado? - perguntou ela.
Ele olhou para ela.
- Você é um amor. Obrigado, mas não aceito. Cá me arranjo.
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Ela pagou a conta e, debaixo de uma chuva gelada, correram para o carro de Wenden, um velho Pontiac que, na opinião de Dora, devia ir para a sucata. Mas o aquecimento funcionava e o rádio também. Percorreram a cidade ao som de uma rapsódia de Gershwin e cantando ao mesmo tempo. Wenden podia ter uma voz de barítono, forte e sonante, mas tinha um ouvido péssimo.
O detective parou à porta do Bedlington e voltou-se para ela, dizendo:
- Obrigado pela pizza.
- Obrigada pela companhia, John. Ainda bem que o encontrei.
Dora fez menção de sair do carro, mas ele pôs-lhe a mão no braço.
- Se mudar de ideias, espero ser o primeiro a saber - disse.
- Mudar de ideias? Acerca de quê?
- Acerca de nós os dois. Um pouco daquela harmonia divina.
- Boa noite, detective Wenden - disse ela.
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Clayton Starrett, afogueado pela boa comida e pelo bom vinho, esperava pacientemente, de pé, que a mulher acabasse de beijocar todos os anfitriões que estavam no salão de baile do hotel. Por fim, ela aproximou-se dele, sempre a sorrir. Eleanor era uma mulher magra, bastante ossuda, e o vestido de noite sem cinto não ajudava a disfarçar o contorno das clavículas e do peito, liso como uma tábua de lavar roupa. Mas as festas emprestavam-lhe sempre algum fulgor. A excitação fortalecia-a, dava-lhe um ar quente e enérgico.
- Achei que correu muitíssimo bem. E tu? - perguntou ela.
- Foi uma bela festa - concordou ele.
- E os discursos não se prolongaram muito, pois não, Clay?
- Foram mesmo à medida - disse ele, embora tivesse
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dormido a maior parte do tempo. - Podemos ir-nos embora já?
Muitas das limusinas já tinham partido e a deles aproximou-se imediatamente. A caminho de casa, Eleanor tagarelou sobre a comida, o vinho, a decoração das mesas, quem vestia isto e aquilo, quem bebera de mais, quem embirrara com o criado.
- E reparaste naquele idiota do Bob Farber com a nova mulher? - perguntou ela ao marido.
- Eu vi-os.
- Ela deve ter metade da idade dele, ou menos. Mas que idiota!
- Hum - rosnou Clayton, que retinha da nova Mrs. Farber a imagem de uma criatura apetitosa. Não havia outro termo para defini-la: apetitosa!
Charles, com um roupão coçado, veio abrir-lhes a porta. Disse-lhes que Mrs. Olivia e Miss Felicia já tinham ido para o quarto. A pedido de Eleanor, levou-lhes dois brandes à suite, fechou a porta e, presumivelmente, prosseguiu as suas tarefas nocturnas: fechar a porta à chave e desligar as luzes.
Clayton tirou a gravata e o cinto e desapertou o primeiro botão das calças. Instalou-se numa poltrona de veludo coçado (cor de malva, em tempos) e observou a mulher, que tirava as jóias. Recordava-se de quando lhe oferecera o colar de pérolas de três voltas, a pulseira de ouro e jade negro, os brincos de pérolas a condizer e o alfinete de platina, em forma de dragão, com rubis e diamantes. Ora, e porque não? Ela era a mulher de um joalheiro. Da mesma maneira que ele reconhecia a mulher de um talhante pela forma como comia.
Eleanor aproximou-se dele e voltou-se de costas. Obediente, Clayton abriu-lhe o fecho do vestido. Viu-lhe as costas pálidas e magras.
- Estás a perder peso a mais, não estás, querida? perguntou.
- Não acho - respondeu ela, bem-humorada. Não conheces o ditado: não sejas muito rica nem muito gorda?
Foi para o quarto despir-se. Ele ficou a beber o brande e a pensar na nova mulher do Bob Farber. Apetitosa! Eleanor voltou com um roupão de seda escarlate na
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mão. Antes de ela apertar o cordão, Clayton reparou na sua magreza. Em tempos, antes de o filho morrer, antes de Eleanor se ter modificado, era um prazer para ele vê-la vestir-se e despir-se à sua frente. Adorava esses momentos gratificantes da sua vida conjugal. Mas agora, todo o fervor desaparecera da intimidade de ambos. O prazer dele acabara, à medida que o corpo de Eleanor secava e as paixões desta se transferiam para as mesas das festas de caridade.
Ela bebeu um gole de brande e depois estendeu-lhe o copo, dizendo:
- Acaba-o. vou para a cama.
Baixou-se para o beijar na face e depois voltou para o quarto. Ele sabia que a mulher ia pôr uma máscara para dormir e tampões nos ouvidos. Desconfiava que ambas as coisas constituíam uma armadura, que a protegia de investidas físicas indesejáveis. Isso não o ofendia, embora o entristecesse; não tencionava forçá-la. A sua última tentativa, há quase dois anos, fora um desastre e acabara com lágrimas e recriminações histéricas.
Acabou o brande, afastou o copo e bebeu o de Eleanor. Viu a luz do quarto apagar-se e pensou quanto tempo mais suportaria este casamento só de fachada.
Desde que conhecera Helene Pierce, preocupava-se com a idade e a passagem do tempo. Parecia-lhe que este passava mais depressa. Meu Deus, já chegara outra vez o Natal! Outro ano a acabar, que passara tão depressa. Sentia o peso dos anos. A sua mente era aguda como sempre, na sua opinião, mas o corpo abrandava inexoravelmente, a gravidade produzia os seus efeitos na barriga e no rabo, o vigor diminuía e, o pior de tudo, a sua capacidade de gozar minguava, excepto quando estava com Helene. Ela restaurava-o - era o melhor remédio que um homem podia desejar.
Bob Farber fizera o mesmo, sem falar de uma dúzia de outros amigos e conhecidos. Era fácil contar anedotas ordinárias sobre velhos e meninas novas, mas isto era mais um simples divertimento passageiro do que uma prova de virilidade. Era o rejuvenescimento, o renascer da energia e da determinação.
Reconheceu que seria difícil. Teria de mover-se devagar e com cuidado. Se não conseguisse a aprovação da
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mãe, pelo menos precisaria da sua neutralidade. Tal como as coisas estavam agora, ela era, de facto, a dona da Joalharia Starrett Fine e ele não podia arriscar-se a contrariá-la.
Quanto a Helene, não estava a vê-la a rejeitá-lo, apesar de ele ter idade para ser seu pai. Além dos seus atractivos físicos, ela era arguta e pragmática. Não lhe conhecia outros amantes e, embora ele não fosse nenhum Adónis, oferecia-lhe a segurança financeira suficiente para a levar a esquecer-se da sua idade. E, é claro, grande parte dos rendimentos de Turner Pierce dependiam da Joalharia Starrett Fine. Podia contar com o empenhamento de Turner.
Eleanor ficaria triste. Naturalmente. Mas havia muitas mulheres em Manhattan, no seu círculo de relações, que tinham passado pelo mesmo. Não havia nada como um acordo financeiro generoso para amortecer o choque.
Clayton acabou de beber o brande, levantou-se e espreguiçou-se. O assunto requeria muita ponderação e prudência. Mas, na sua opinião, era exequível e só precisava de um plano inteligente para torná-lo realidade.
Foi para a cama, continuou a pensar na sua decisão e no modo como iria implementá-la. E nunca, por uma só vez, no meio das suas especulações, deu um nome ao que estava a planear. Tal como, não há muito tempo, as pessoas se referiam ao cancro como o Grande C, pois o simples facto de pronunciarem a palavra trágica constituía um choque, também Clayton Starrett, mesmo a sós, nunca pronunciou a palavra "divórcio". Nem mesmo lhe chamou o Grande D.
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Os escritórios da companhia, em Hartford, abriam oficialmente às nove horas da manhã, mas Dora sabia que Mike Trevalyan chegava todos os dias às oito para organizar o seu dia de trabalho. Telefonou-lhe cedo, pela linha directa, e sorriu ao ouvir o seu grunhido mal-humorado.
- Passou mal a noite, Mike? - perguntou ela.
- Não foi pior do que é costume. Tive de ir a um jantar
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de homenagem de um polícia que se vai reformar. Uma festa muito bem regada. O que há?
Ela disse-lhe o que queria: que procurasse Brian Callaway no computador e verificasse se havia alguma coisa contra ele. E obtivesse algumas informações sobre a Joalharia Starrett Fine: quem eram os donos, montante dos activos, das vendas, dos lucros, etc.
- Callaway será fácil - disse Trevalyan. - Hoje, ao fim do dia, já devo ter uma resposta para si. Mas a Starrett vai demorar. É uma sociedade anónima, portanto pouco se sabe dela. Mas tenho alguns contactos no ramo da joalharia e verei o que posso apurar.
- Obrigada, Mike - disse Dora. Uma das coisas que apreciava no seu chefe era o facto de ele nunca fazer perguntas desnecessárias como "Para que precisa disso?". Ela não saberia o que responder.
Tinha um encontro marcado com Helene e Turner Pierce ao meio-dia. Dava-lhe tempo para tomar um pequeno-almoço descansado, à moda de Nova Iorque (oxigénio e pão com queijo), e depois passar pela loja da Starrett, em Park Avenue, para ver as jóias. Havia árvores em miniatura por todo o lado, decoradas com fitas douradas, e de altifalantes escondidos saíam cânticos de Natal em surdina. Os clientes eram poucos, mas nenhum empregado veio ao seu encontro perguntar-lhe o que desejava.
Dora levou quase uma hora a examinar jóias em estojos e artigos de prata, cristal e porcelana dispostos nas prateleiras. As etiquetas com os preços estavam todas voltadas para baixo ou disfarçadas discretamente por baixo das peças. Mas Dora sabia que nunca poderia comprar as coisas de que gostava, excepto, talvez, uma travessa de prata, em forma de golfinho.
Chegou ao prédio onde vivia Helene Pierce um pouco antes do meio-dia. Era um arranha-céus vistoso, de construção recente, na 2ª Avenida, todo em vidro e tijolo cor-de-rosa, com uma pastelaria e uma loja de decoração ao nível da rua. O porteiro envergava um uniforme emplumado e um boné militar de lã escarlate. Lá dentro, o recepcionista, atrás de um balcão de mármore, vestia um fato de seda branca. Dora ficou impressionada e imaginou a renda que Helene Pierce estaria a pagar. Mesmo
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que os apartamentos fossem propriedade dos ocupantes, a manutenção devia ser cara; uniformes emplumados e fatos de seda custavam muito dinheiro. Além dos elevadores com painéis de ébano e espelhos antigos.
A mulher que veio abrir a porta do apartamento do décimo sexto andar parecia dez anos mais nova do que ela, quinze centímetros mais alta e com quinze quilos a menos. Tinha feições de modelo, um sorriso distante. Trazia um fato-calça cor de conhaque, com um cinto que parecia uma corrente de bicicleta. Estava descalça.
- Dora Conti? - perguntou, com uma voz arrastada e insípida.
- Sim, Miss Pierce. Muito obrigada por me receber. Prometo não lhe tomar muito tempo.
- Entre. O meu irmão deve estar a chegar.
O apartamento não era tão luxuoso como Dora esperava. As carpetes e os móveis eram agradáveis, mas não de luxo. A sala de estar tinha um ar curiosamente pouco acolhedor, como se fosse o gabinete de provas de um grande armazém. Dora teve uma sensação de ausência, como se a ocupante fosse apenas alguém que estava de passagem.
Sentaram-se nos extremos de um sofá forrado de linho beje e mal se viraram uma para a outra.
- Mas que lindo edifício - disse Dora. - A entrada é muito original.
Helene fez um sorriso trocista.
- Um pouco espalhafatoso - respondeu. - Eu preferia que fosse um pouco mais discreto. Mas parece que as pessoas gostam assim. Todos os apartamentos foram vendidos.
- É um condomínio?
- Exactamente.
- Há quanto tempo vive aqui, Miss Pierce?
- Ora... Deixe-me ver... Há pouco mais de um ano.
- Espero que não se importe que eu diga isto, mas não tem sotaque de Nova Iorque. Eu diria que é do Midwest.
Helene ficou a olhar para ela e depois pegou num maÇo de cigarros que estava em cima da mesa.
- Quer um? - perguntou.
- Não, obrigada.
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- Não se importa que eu fume?
- De modo nenhum.
Dora viu-a acender o cigarro lentamente, a pensar se esta mulher encantadora e cheia de si estaria a esquivar-se.
- Sim, tem razão. É do Midwest - disse ela, soltando uma risadinha.
- Ah sim? Donde? - perguntou Dora, tentando mostrar-se descontraída.
- De Kansas City.
- Qual delas? No Missouri ou no Kansas?
- No Missouri. Nota-se?
- Só na sua voz. Acredite que, pelo aspecto, parece ter nascido em Manhattan - disse Dora.
- Espero que isso seja um cumprimento.
- E é. Já alguma vez foi modelo, Miss Pierce?
- Não. Já me pediram, mas... Alguém bateu à porta da rua.
- Desculpe-me. Deve ser o meu irmão.
O homem que entrou na sala atrás de Helene trazia um sobretudo de caxemira com gola de marta pelos ombros, como se fosse uma capa. Vinha a cambalear ligeiramente e, quando se inclinou para cumprimentar Dora, esta apercebeu-se doutra coisa. Fumo de charuto. Ou talvez brande.
- Miss Conti - disse ele, a sorrir. - Muito prazer. O que é isto? A minha irmã não lhe ofereceu de beber?
- Desculpe - disse Helene. - Quer alguma coisa?... Forte ou fraca?
- Nada, obrigada. Tenho apenas algumas perguntas a fazer e depois vou-me embora - respondeu Dora.
Os Pierce confirmaram que tinham estado numa pequena festa em casa dos Starrett, na noite em que Lewis fora morto. E não, nenhum conhecia inimigos que desejassem a morte do velho Starrett. Era certo que ele, por vezes, tinha um relacionamento difícil, mas o seu mau humor ocasional não era motivo para que o matassem.
- Há quanto tempo conhecem os Starrett? - perguntou Dora, dirigindo-se a Turner.
- Oh... Talvez há dois anos - respondeu ele. - Talvez há um pouco mais. Começou por ser uma relação profissional quando entrei na Starrett como cliente. Depois, Helene e eu conhecemos a família toda e ficámos amigos.
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Qual é a sua actividade profissional, Mister Pierce?
Sou consultor de gestão. É, de facto, uma profissão
liberal. Sou especialista em sistemas informáticos. Analiso as necessidades do cliente e crio o sistema mais adequado a essas necessidades. Ou, por vezes, recomendo que o cliente melhore ou mude os seus computadores.
- E foi esse o tipo de trabalho que fez para a Starrett?
- Foi. O novo sistema integrado deles está agora a começar a funcionar. Acho que aumentará consideravelmente a eficiência do expediente e dará aos executivos da Starrett os instrumentos que lhes permitirão aperfeiçoar as suas técnicas de gestão.
Isto soou a Dora como conversa de vendedor, mas ela respondeu delicadamente:
- Fascinante.
- Não faço a mínima ideia do que o meu irmão está a falar - disse Helene. - Os computadores são tão misteriosos para mim como o motor do meu automóvel. Lida com computadores no seu trabalho, Miss Conti?
- Oh, sim. A actividade seguradora estaria perdida se eles não existissem. Gostava de fazer a ambos uma outra pergunta, mas primeiro quero garantir que as vossas respostas serão mantidas em rigoroso sigilo. Algum de vós, ou ambos, notou alguma vez sinais de discórdia entre os membros da família Starrett? Brigas, por exemplo, ou outras provas de hostilidade?
Por instantes, os Pierce olharam um para o outro.
- Não me recordo de nada - respondeu Turner, lentamente. - E tu, mana?
Ela abanou a cabeça.
- Parecem ser uma família muito feliz. Não me recordo de nenhuma discussão. Às vezes, Lewis Starrett zangava-se com o padre Brian Callaway, mas é claro que o padre não faz parte da família.
- E, mesmo nessas alturas, Lewis estava apenas a descarregar o vapor - acrescentou Turner, resoluto. Tenho a certeza de que não lhes atribuía qualquer significado. Era a sua maneira de ser.
- E qual o motivo das suas zangas? - perguntou Dora. Turner levantou-se.
- Posso tirar-te um cigarro, mana? - perguntou.
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Dora viu-o acender o cigarro, a pensar que aqueles dois usavam o mesmo estratagema para atrasarem as respostas.
Turner Pierce era um homem alto, magro e gracioso como um mestre de esgrima. Tinha a pele morena, quase cor de azeitona, e usava um bigode preto, largo, tão liso que parecia pintado. Tinha os mesmos modos negligentes de Helene, mas por trás da sua indiferença havia mais qualquer coisa: um toque de frieza e crueldade, como se as opiniões ou mesmo o sofrimento dos outros fossem um aborrecimento e só o seu prazer contasse.
- Creio - disse ele, com cuidado - que diziam respeito às contribuições que Olivia fazia para a igreja do padre Callaway. Era um absurdo, claro. Os Starrett têm todo o dinheiro do mundo e a igreja do padre faz muito pelos pobres e pelos sem-abrigo.
Dora fez um sinal afirmativo.
- E eu sei que Mistress Eleanor Starrett é uma pessoa muito activa em obras de beneficência. Parece que as senhoras da família Starrett são muito generosas para os menos afortunados.
- Sim, são - respondeu ele, lacónico.
- Felicia Starrett também? - perguntou Dora, de repente.
- Oh, Felicia tem as suas obras de caridade privadas - disse Helene, imperturbável. - Ela pratica muito o bem, não é verdade, Turner?
- Oh sim, muito - disse ele.
Eles não sorriram, mas Dora apercebeu-se do tom de troça e não gostou.
- Muito obrigada a ambos. Agradeço a vossa simpática colaboração - disse, levantando-se.
Turner pôs-se de pé e ajudou-a a vestir o volumoso casaco.
- Foi um prazer conhecê-la, minha senhora. Se precisar de mais alguma coisa, eu e a minha irmã teremos muito gosto em ajudá-la.
Dora cumprimentou ambos: o mesmo aperto de mão, frio e frouxo. Percorreu o corredor de mármore, a pensar que aqueles dois não estavam a levá-la a sério; havia escárnio na sua voz. E porque não? Eram seres elegantes, belos e distantes. E ela? Era uma bola a andar, não muito
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desalinhada, é verdade, mas não certamente um modelo
da Elle.
E, ali mesmo no elevador, decidiu recomeçar imediatamente a fazer dieta.
Passou a tarde a fazer compras de Natal. Escolheu um belo cachimbo para o pai, que, depois da morte da mãe, vivia sozinho em Kennebunkport e se recusava a sair da cidade, mesmo para ir visitar alguém. E comprou lenços para o pescoço, luvas, suportes de latão, terrinas, livros de banda desenhada, caixas de música, escovas de cabelo e outros objectos delicados. Pagou com os cartões de crédito, pediu que lhe embrulhassem tudo em papel bonito e enviassem, pelo correio, para as tias, tios, sobrinhas, sobrinhos, primos e amigos dela e do marido. Só não encontrou nada adequado para Mário.
Jantou num restaurante da praça do Centro Rockefeller: a melhor truta grelhada que alguma vez comera. Bebeu um copo de Chablis, mas, quando viu a lista de sobremesas, a sua decisão mais recente desvaneceu-se e mandou vir uma enorme mousse de chocolate e banana. E castigou-se, regressando a pé ao hotel, convencida de que as calorias se derreteriam no caminho.
O recepcionista do Bedlington tinha uma mensagem para ela: telefonar a Mike Trevalyan. Dora subiu à suite, atirou com os sapatos e ligou. Mike pareceu-lhe muito mais bem-disposto do que de manhã, e Dora calculou que ele tivesse ido a um daqueles almoços em que bebia três vermutes.
- Esse Brian Callaway por quem você perguntou é um tipo grande, forte, de tronco largo, vermelhusco, cheio de charme e de sorrisos?
- É ele mesmo - disse Dora. - Descobriu-o?
- Finalmente. No ficheiro dos pseudónimos. O seu verdadeiro nome é Sidney Loftus, mas já teve meia dúzia de nomes falsos.
- Ele é pregador?
- Pregador? - repetiu Trevalyan, rindo-se. - Bem, talvez. Já foi vendedor de carros usados, psicoterapeuta, consultor de investimentos e (ouça-me isto) consultor de seguros.
- Oh, oh! Um vigarista? - disse Dora.
- Tão retorcido que você podia aparafusá-lo ao chão.
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De acordo com o computador, nunca esteve preso por nenhuma das suas fraudes. Sempre trabalhou muito, pagou uma indemnização e saiu com a pena suspensa ou em liberdade condicional. Depois, sai da cidade, muda de nome e entra noutra vigarice. Há cinco anos, criou uma rede de carros roubados. Se você não conseguisse pagar as prestações do calhambeque, ou precisasse de dinheiro de repente, ia ter com ele e ele arranjava maneira de lhe ficar com o carro. Nunca era ele a agir directamente; tinha um grupo de drogados a trabalhar para ele. O carro era levado para uma oficina de sucata e, quando os peritos do seguro lá iam, as peças já estavam no Uruguai. Os chuis infiltraram-se na rede e preparavam-se para prender Sidney Loftus no dia seguinte, mas ele deve ter sido avisado porque fugiu da cidade e nunca mais ninguém soube dele senão agora, por si. Sabe onde ele está, Dora? Ela ignorou a pergunta.
- Mike, essa rede de carros roubados... Onde actuava?
- Em Kansas City.
- Qual delas? No Missouri ou no Kansas?
- Missouri.
- Muito obrigada - disse Dora.
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Apesar de trabalhar na Joalharia Starrett Fine há quarenta anos, Solomon Guthrie sabia pouco das técnicas de fabrico de jóias. Só percebia de números. "Os números não mentem", gostava ele de dizer. Este homem honesto nunca imaginara verdadeiramente que os números podem ser cozinhados, e nunca lhe passara pela cabeça que uma empresa de Park Avenue, baseada em dados falseados, poderia ter uma estrutura financeira igual à da carroça de um vendedor ambulante de Orchard Street.
Mas apesar da sua ingenuidade, Guthrie não podia deixar de desconfiar de que havia qualquer coisa errada no modo como Mister Clayton conduzia os negócios. Todos aqueles gerentes novos. E aquela introdução em computador que Sol não entendia. E as tremendas compras e
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vendas de barras de ouro. Não acreditava que nenhuma joalharia ou cadeia de joalharias usasse tanto ouro puro. todavia, no fim do mês, Starrett mostrava um bom lucro sobre o negócio das barras. Guthrie estava confuso. Por fim, telefonou a Arthur Rushkin, que era o advogado da Starrett quase há tanto tempo como Sol labutava nos ficheiros da empresa.
- Baker Rushkin - respondeu a recepcionista.
- Fala Solomon Guthrie, da Joalharia Starrett. Posso falar com Mister Rushkin, por favor?
- Sol! - respondeu Rushkin calorosamente, do outro lado da linha. - Quando é que vamos comer um arenque os dois?
- Ouça, Art - retorquiu Guthrie. - Tenho de falar consigo imediatamente. Tem uma hora que me dispense, esta tarde?
- Algum problema?
- Creio que sim.
- Nenhum problema vale mais do que meia hora. Espero-o aqui às três horas, está bem?
- Lá estarei.
Guthrie enfiou um rolo de folhas de computador na sua pasta bastante usada e juntou um exemplar da última demonstração de resultados da Starrett. Depois, disse à secretária, Claire Heffernan, que ia ao escritório de Arthur Rushkin e que talvez só regressasse por volta das quatro horas.
Mal ele saiu, Claire dirigiu-se ao gabinete de Dick Satterlee.
- Ele foi ter com o advogado - relatou.
- Obrigado, boneca - respondeu Satterlee.
- Há farra esta noite? - perguntou ela.
- Porque não? - respondeu ele, a sorrir. Quando ela saiu, Satterlee telefonou a Turner Pierce.
Turner não estava em casa, mas Satterlee deixou uma mensagem no gravador, pedindo-lhe que lhe telefonasse assim que pudesse; era importante.
Solomon Guthrie sabia que não conseguiria apanhar um táxi, por isso foi a pé até aos escritórios da Baker Rushkin, na 5ª Avenida, junto da Rua 45. Estava um dia triste, o céu pesado, com nuvens escuras, e um vento cortante que soprava de noroeste. As pessoas, que andavam
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a fazer compras de Natal corriam de um lado para o outro e os pais-natais do Exército de Salvação, às esquinas, batiam com os pés no chão para os aquecer.
Rushkin saiu do gabinete e foi ao encontro de Guthrie, na recepção, para cumprimentá-lo. Os dois homens abraçaram-se, apertaram as mãos e deram palmadinhas no ombro um do outro.
- Boas-festas, Sol - disse Rushkin.
- Igualmente - respondeu Guthrie.
O advogado era da idade do director financeiro, mas de aspecto físico completamente diferente. Tinha o rosto corado de quem está habituado a comer bem e a beber melhor, e o seu estômago impressionante estava em parte escondido pelo fato de corte italiano e, para dizer a verdade, por uma cinta elástica que lhe comprimia a barriga.
Instalou Guthrie num sofá junto da secretária antiga do sócio e depois recostou-se na cadeira giratória e entrelaçou os dedos sobre o colete.
- Muito bem, Sol, o que o preocupa? - perguntou. Guthrie contou tudo, tão depressa que quase não se
percebia o que dizia. Falou a Rushkin dos novos gerentes das filiais, do plano de Clayton para autonomizar todas as lojas Starrett, do novo sistema informático que Sol não entendia, e, por fim, descreveu todo o negócio das barras de ouro. Muito antes de terminar o seu relato, já Rushkin brincava com uma faca de papel que estava em cima da secretária e olhava para o outro com um ar quase de comiseração.
- Sol, Sol - disse, afectuosamente. - Aquilo de que você se queixa são decisões de gestão. Clayton é presidente e director executivo, tem o direito de tomar todas essas decisões. A Starrett está a perder dinheiro?
- Não.
- Está a fazer dinheiro?
- Está.
- Então, parece que Clayton está a fazer um bom trabalho.
- Ouça - retorquiu Sol, em desespero. - Eu sei que não tenho provas, mas está-se a passar qualquer coisa que não é escorreita. Todos aqueles negócios com o ouro, por exemplo.
- Bem - continuou o advogado, cheio de paciência.
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- Conte-me exactamente como é que esses negócios são feitos. Onde é que a Starrett vai arranjar o ouro?
- Compramo-lo a fornecedores estrangeiros de metais preciosos.
- E como lhes pagam?
- O nosso banco transfere o dinheiro da nossa conta para os bancos dos fornecedores, no estrangeiro. Electronicamente. Por computador - acrescentou com desagrado.
- E depois os fornecedores enviam o ouro para os Estados Unidos?
- Não. Os fornecedores têm filiais aqui. O ouro é guardado nos armazéns das filiais. Quando nós compramos, o ouro é enviado para a nossa casa-forte em Brooklyn.
- E como é que é entregue?
- Geralmente, em camiões blindados.
- A segurança é boa?
- Da melhor que há. O nosso armazém em Brooklyn é uma fortaleza. Custa muito dinheiro mas vale a pena.
- Muito bem - disse Rushkin. - A Starrett assina um contrato para comprar determinada quantidade de onças de ouro. E vocês recebem duplicados do contrato?
- Naturalmente.
- Depois, o fornecedor estrangeiro entrega o ouro na casa-forte da Starrett. As quantidades são conferidas pelo contrato?
- Claro.
- Já alguma vez foram enganados?
- Não.
- Então, agora a Starrett tem as barras na casa-forte. A quem é que as vendem?
- Às nossas sucursais espalhadas pelo país. Por sua vez, elas vendem-no a pequenas joalharias da zona.
- Corrija-me se estou errado, mas creio que, dada a sua dimensão, recursos e reputação, além do volume de compras, a Starrett compra ouro a fornecedores estrangeiros por bom preço.
- Está certo.
- E vende-o às filiais com uma boa margem?
- Exacto.
- As quais, por sua vez, fazem lucro quando vendem aos comerciantes independentes da sua zona?
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- Sim.
Arthur Rushkin levantou as mãos.
- Sol - disse, a rir -, o que você acaba de descrever-me é a forma normal e convencional de fazer negócio. Comprar por baixo preço, vender por alto preço. Você recebe toda a documentação relativa a cada uma das fases do processo, não é verdade? Contratos, conhecimentos de embarque, facturas, etc.?
- Sim. Em computador.
- E os clientes finais, as pequenas joalharias independentes, já alguma vez deixaram de pagar?
- Não - admitiu Guthrie, exclamando em seguida:
- Mas há aqui qualquer coisa que cheira mal! Há ouro a mais, a entrar e a sair por aí. E algumas dessas lojecas que compram o nosso ouro... há dois anos nem existiam. Eu sei, verifiquei.
- Os pequenos retalhistas aparecem e desaparecem, Sol. Você sabe disso. Não consigo perceber por que motivo é que está tão preocupado. Não me disse nada que indiciasse quaisquer práticas ilegais... Se é o que quer dar a entender.
- Passa-se qualquer coisa - insistiu Guthrie. - Eu sei. Estamos a comprar barras a mais, e há lojas a mais a comprarem-nas. Ouça, para que precisam delas? Toda a gente sabe que o ouro puro raramente é utilizado em joalharia. É demasiado frágil, dobra-se e risca-se. Talvez se use o de vinte e quatro quilates ou o de vinte e dois, para revestimento de outro metal, mas o ouro que se utiliza no fabrico de jóias é geralmente uma liga de dezoito ou catorze quilates. Então, por que razão estas lojas de meia-tigela precisam de tanto ouro?
Arthur suspirou.
- Não sei, mas se os cheques deles têm cobertura, por que diabo é que você se preocupa com o que fazem com ele? Sol, o que quer que eu faça exactamente? Que fale a Clayton? Sobre quê? vou dizer-lhe que está a fazer bom dinheiro com o negócio das barras de ouro?
Guthrie abriu a pasta e empilhou as folhas de computador e a demonstração de resultados em cima da secretária do advogado.
- Dê uma vista de olhos por isto, está bem, Art? Examine isto. Talvez detecte qualquer coisa que eu não consegui.
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Calou-se e depois prosseguiu, quase a gritar: -- Sabe o que Clayton fez outro dia?
- O que foi?
- Deu-me um aumento anual de cinquenta mil dólares.
- Que sorte! - exclamou Rushkin. Sol abanou a cabeça.
- Sorte de mais - disse. - Sob o ponto de vista empresarial, não faz sentido dar-me um aumento tão grande. E deu-mo exactamente depois de eu me queixar do que se estava a passar na Joalharia Starrett Fine. Você não acha que ele o fez para me calar a boca, pois não?
O advogado fitou-o.
- Sol - disse -, só lhe posso dizer que isso me soa a paranóia. Honestamente, acho que você está a fazer um bicho de sete cabeças de um facto sem importância.
- Mas olhe para estes dados, Art... Faz-me isso?
- Claro.
- E, por favor, não diga a Clayton que eu vim ter consigo. bom, pode dizer-lhe se ele perguntar. A minha secretária sabe que cá vim. Mas não diga a Clayton do que falámos.
- Como quiser, Sol.
O director financeiro levantou-se e enfiou a pasta vazia debaixo do braço.
- vou continuar a averiguar - prometeu. - Hei-de descobrir o que se está a passar.
Rushkin concordou com um gesto de cabeça, acompanhou Guthrie até à recepção e ajudou-o a vestir o casaco.
- Vá dando notícias, Sol - disse, bem-disposto. Quando a porta se fechou, o advogado voltou-se para
a recepcionista e ficou a olhar para ela por instantes.
- é muito mau - disse.
- O que é que é muito mau, Mister Rushkin?
- Envelhecer é muito mau para algumas pessoas. Não conseguem adaptar-se às coisas novas, como os computadores. Ressentem-se pelo facto de os mais novos virem para as empresas e fazerem um bom trabalho. Querem que as coisas fiquem na mesma. A mudança faz-lhes confusão. Têm a sensação de que o mundo lhes escapa e começam a pensar que estão a ser vítimas de uma conspiração. Nunca envelheça, Sally.
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- E qual é a alternativa que eu tenho? - perguntou ela
Rushkin riu-se.
- Tenho um encontro com Mister Yamoto no Bar Four Seasons. Isso quer dizer que não voltarei esta tarde. Na minha secretária está uma rima de folhas de computador. Por favor, arrume aquilo num arquivo.
- Qual deles?
- Num qualquer - respondeu Arthur Rushkin.
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Mrs. Eleanor Starrett estava sentada a uma mesa branca, laçada, no Salão Georgio, na Rua 56 Leste, a pôr unhas postiças. A seu lado estava Dora Conti, desconfortavelmente sentada num banquinho com rodízios. Do outro lado da mesa, em frente de Mrs. Starrett, a empregada, uma mulher anafada da Martinica, empenhava-se em colar-lhe as unhas, sem perder uma palavra da conversa.
- Lamento imenso não ter podido recebê-la em casa - disse Eleanor. - Mas, dentro de meia hora, tenho de estar na Tiffanys para escolher uns prémios para um espectáculo de beneficência. com as festas à porta, não fazemos senão correr, correr, correr.
- Não tem importância - respondeu Dora, perguntando a si mesma como é que ela poderia calçar as luvas com pedras daquele tamanho nos dedos. - Tenho apenas algumas perguntas a fazer.
- A verdade é que não percebo porque é que a companhia de seguros anda a investigar a morte do meu sogro. Pensei que era trabalho da polícia.
- É claro que é - respondeu Dora. - Mas a polícia é um mundo e as circunstâncias da morte de Mister Starrett são tão confusas que queremos ter a certeza absoluta de que o caso fica esclarecido, antes de pagarmos a indemnização.
- Bem, com certeza que o pobre do homem não se apunhalou a si mesmo, não é verdade? - retorquiu Eleanor, com rudeza. - O que significa, suponho, que o autor do crime foi um dos beneficiários.
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Mistress Starrett - disse Dora, suspirando. - Ninguém está a acusar ninguém de coisa alguma. Gostaríamos apenas de ver o assassínio resolvido e o caso encerrado, mais nada. Sabe de alguém que fosse inimigo de Lewis Starrett? Alguma ou algumas pessoas que desejassem o seu mal?
- Não.
- Como é que a senhora se dava com ele? Eleanor voltou-se para olhar directamente para a interlocutora.
- O papá... era assim que eu o tratava: papá... Podia ser uma pessoa terrível, por vezes. Tenho a certeza de que outras pessoas já lho disseram também. Mas, por qualquer razão, engraçou comigo e eu dava-me muito bem com ele. Olivia, Clayton e Felicia sofriam muito mais com o seu mau humor do que eu. E os criados também eram visados, evidentemente. Mas ele nunca me levantou a voz. Talvez soubesse que, se o fizesse, eu sairia pela porta fora e nunca mais voltaria.
- Tanto quanto sei, o padre Brian Callaway era, por vezes, a causa da sua raiva.
- Bem, bem - respondeu Mrs. Starrett, trocista -, não tem estado parada, não é verdade? Sim, tem razão. O papá não suportava o homem. O facto de Olivia dar dinheiro ao padre enfurecia-o. Por fim, proibiu-a de dar mais um cêntimo que fosse à chamada igreja do padre Callaway.
- E o que motivava as zangas com os criados?
- Oh, essa era uma guerra antiga. Coisas estúpidas, como o facto de Charles andar com as unhas compridas, faltar uma secção do Sunday Times, Clara utilizar vinho de boa qualidade para temperar a comida... Coisas insignificantes como estas.
- E eles não ameaçavam despedir-se?
- Claro que não. Eles estão de facto muito bem pagos e, embora não se possa afirmar que são incompetentes, estão longe de ser superlativos. Servem, diria eu. Se se despedissem, quem lhes pagaria o que o papá lhes dava?... Além do pequeno apartamento que ocupam.
- Sei que participa activamente em obras de beneficência, Mistress Starrett.
- Faço o que posso - respondeu ela com tal humildade que Dora teve vontade de lhe dar um pontapé.
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- A sua cunhada alguma vez participou nessas actividades?
- Receio que o alvo preferido da caridade de Felicia seja ela própria. Damo-nos bem. Por fases.
- Mas não são íntimas.
- Não - respondeu Eleanor, soltando uma risada. Não somos nada íntimas.
- Pode falar-me um pouco de Helene e Turner Pierce? Há quanto tempo se conhecem?
- Oh, talvez há dois anos.
- E como é que eles se tornaram amigos da família Starrett?
- Deixe-me pensar... - Eleanor calou-se por instantes. - Creio que foi o padre Callaway que os trouxe. Conhecia-os de qualquer lado, ou talvez eles pertencessem à sua igreja... Realmente, não me lembro.
- E como se dá com eles?
- Muitíssimo bem. Admiro-os. São dois jovens atraentes, muito chiques, têm qualquer coisa de especial. E dá gosto ver dois irmãos tão carinhosos um para o outro.
- Mais carinhosos do que Clayton e Felicia? Eleanor olhou-a fixamente e respondeu:
- Sem comentários.
Dora levantou-se do banquinho com alguma dificuldade.
- Muito obrigada pelo tempo que me concedeu, Mistress Starrett. Foi muito útil - disse.
- Fui? Não percebo como - respondeu a outra mulher.
Dora saiu do instituto de beleza, entrou num pequeno hotel que havia na porta ao lado e utilizou o telefone público do átrio.
- Fala da residência Starrett - respondeu Charles.
- Daqui fala Dora Conti. Está alguém da família em casa? Gostaria de falar com um deles.
- Um momento, por favor.
Pouco depois, Felicia veio ao telefone, ofegante.
- Olá. Agora não posso falar. Estou com pressa. Tenho um almoço importante.
- Espere, espere - disse Dora rapidamente. - Só quero saber se posso ir aí falar com Charles e Clara, por uns minutos.
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- Claro que pode - respondeu Felicia. - Eu vou avisá-los de que você virá cá fazer-lhes algumas perguntas. Adeus!
Dora encaminhou-se para Madison Avenue e apanhou um autocarro. Arrefecera, a atmosfera estava gelada, e toda a gente andava cheia de roupa; o autocarro cheirava a naftalina. O trânsito estava difícil e Dora levou quarenta e cinco minutos a chegar a casa dos Starrett. Charles veio abrir a porta e indicou-lhe o caminho da cozinha, onde uma mulher baixa e robusta descascava cenouras junto do lava-louças.
Clara Hawkins parecia ser tão sorumbática como o marido. Tinha o cabelo cinzento-escuro, apanhado num carrapito, e na sua boca parecia haver sempre um trejeito de desaprovação. Trazia um avental sujo sobre um vestido de bombazina desbotada e os pés gordos estavam enfiados numas chinelas sem salto. O que chamava mais a atenção, na opinião de Dora, era o seu bigode bem visível.
Ninguém lhe ofereceu uma cadeira, e por isso ficou de pé, encostada ao frigorífico, que era enorme. Olhou à volta, para apreciar a cozinha, bem equipada: tachos e panelas com fundo de cobre, pendurados acima da altura da cabeça, uma máquina de cozinha na bancada, um suporte de madeira com facas e um cutelo, um lava-louças duplo de aço inoxidável, electrodomésticos brancos, resplandecentes, e armários com portas de vidro onde havia louça que chegava para um regimento.
- Tenho apenas algumas perguntas a fazer - disse Dora, dirigindo-se a Charles. - Já sei que, na noite em que Mister Starrett foi morto, houve uma festa para a família e amigos.
Ele fez um sinal afirmativo.
- Onde decorreu a festa? Na sala?
- Essencialmente - respondeu ele. - Foi onde servi as bebidas e os canapés. Mas as pessoas andavam por aí.
- Quer dizer que não estiveram sempre na sala enquanto durou a festa?
- Andavam por aí - repetiu ele. - Só Mistress Olivia é que não se levantou. Os outros ficaram de pé e foram aos quartos buscar coisas ou fazer telefonemas.
Clara voltou-se e disse:
- Às vezes vinham à cozinha. Buscar mais gelo e
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bebidas, enquanto Charles andava a servir os hors doeuvres.
- Houve zangas durante a festa? Alguém fez alguma cena?
Marido e mulher olharam um para o outro e abanaram a cabeça.
- Há quanto tempo estão em casa dos Starrett?
- Faz em Março sete anos - respondeu Charles. Eu entrei primeiro. Um ano depois, a cozinheira foi-se embora e Clara veio substituí-la.
- Ambos se dão bem com a família? Charles encolheu os ombros.
- Ele gostava de tudo como deve ser.
- E quando assim não era, dizia-vos alguma coisa?
- Dizia a toda a gente - respondeu Clara, voltando-se outra vez de costas para o lava-louças. - Era um homem ruim, mesmo ruim.
- Clara! - advertiu o marido.
- Bem, era mesmo - insistiu ela. - A maneira como tratava as pessoas... Não estava certo.
- Dos mortos só se deve dizer bem - admoestou o marido.
- Tolices - retorquiu Clara, inesperadamente. Desanimada, Dora concluiu que não estava a chegar a
lado nenhum. Esta gente não ia revelar os segredos dos Starrett e ela não podia censurá-los. Tinham um bom emprego e queriam conservá-lo.
Deitou um último olhar à cozinha. Reparou no suporte das facas, pendurado na parede. Tinha oito fendas. Duas estavam vazias. Aproximou-se do suporte, tirou uma faca de pão, comprida e com serrilha, e examinou-a.
- Bela faca - disse.
- São importadas - disse Charles. - De aço inoxidável. São as melhores.
Dora pôs a faca no seu lugar.
- Faltam duas - disse, como que por acaso. - Onde estão?
Do lava-louças, Clara mostrou a faca com que descascava as cenouras.
- Aqui está uma - respondeu.
- E a outra? - insistiu Dora.
Charles e Clara trocaram um olhar rápido.
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- Era uma faca de cozinha de vinte centímetros - respondeu ele. - Tenho a certeza de que está por aí, mas ainda não a encontrámos.
- Vai aparecer, com certeza - disse Dora, sabendo que isso não iria acontecer.
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Mike Trevalyan insistia muitas vezes com Dora para que usasse gravador durante as entrevistas. A maioria dos peritos da companhia utilizava-os, mas ela recusava-se.
- As testemunhas retraem-se - argumentava Dora. Vêem aquela caixinha preta e têm medo que eu use as suas palavras em tribunal ou que possam fazer qualquer afirmação que queiram negar mais tarde.
Por isso trabalhava sem gravador, e nem tirava apontamentos durante as entrevistas. Mas logo que podia, escrevia um resumo das conversas num espesso bloco de apontamentos: as perguntas que fizera e as respostas dadas. Também tomava notas sobre o aspecto físico das testemunhas, a sua maneira de vestir, o tipo de conversa e quaisquer gestos ou tiques fora do vulgar.
Depois da sessão com Clara e Charles Hawkins voltou ao Bedlington e começou a tomar nota dos pormenores do seu encontro com os criados e com Mrs. Eleanor Starrett. Quando acabou, leu devagar tudo o que escrevera, todas as conversas e as suas impressões pessoais sobre os intervenientes. Em seguida, ligou ao detective John Wenden.
Ele não estava, mas ela deixou recado, pedindo-lhe que lhe telefonasse para o Bedlington. Foi à copa e serviu-se de um copo de vinho branco. Trouxe-o para a sala e enroscou-se num sofá. Sorvia o vinho enquanto olhava para o bloco de notas, interrogando-se sobre o que Mário estaria a fazer. Por fim, afastou o copo vazio e voltou aos apontamentos, em busca de inspiração. Nada.
Desceu cedo, para jantar no hotel, e comeu rolo de carne, puré de batata e ervilhas, que não lhe agradaram. Naquele momento, imaginou, melancólica, Mário devia estar a jantar escalopes de vitela fritos, com marsala e sumo de limão. A vida era injusta, toda a gente o sabia.
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Voltou para o quarto e, com receio que Wenden tivesse telefonado durante a sua ausência, ligou novamente. Mas ele ainda não regressara ao escritório nem telefonara a perguntar se havia alguma mensagem. Então, instalou-se e pegou de novo no bloco, convencida de que aqueles apontamentos escritos à pressa continham a chave do que acontecera verdadeiramente a Lewis Starrett, e porquê.
Quando o telefone tocou, correu a atender, cruzando os dedos para dar sorte.
- Olá - disse Wenden, com voz rouca. - Mas que surpresa ter notícias suas!
- Porquê? - perguntou Dora verdadeiramente admirada.
- Pelo modo como a tratei naquela noite. Julguei que estava zangada.
- Não - respondeu ela. - Faz bem ao ego de uma mulher. Quando os piropos acabam é que é altura de nos preocuparmos. Meu Deus, John, você está com uma voz horrível.
- Ah, merda! Acho que apanhei uma gripe. Tenho tudo: espirros, o nariz a pingar, dores de cabeça e tosse.
- E está a tomar algum remédio?
- Sim, aspirinas. Apanho isto todos os anos. Não há nada a fazer senão esperar que passe.
- Porque não dá parte de doente e fica em casa para se tratar?
- Porque já outros três tipos fizeram o mesmo, e o chefe pôs-se de joelhos a chorar. E você, está bem?
- Oh, claro que estou. Sã como um pêro. John, contava vê-lo esta noite, mas calculo que queira ir para casa.
- Não estou especialmente interessado. Sinto-me tão mal que nem sequer quero pensar que tenho de guiar até Queens.
- É onde vive?
- Se assim se pode dizer. O que se passa?
- Algumas coisas com interesse. Ouça, se você pudesse vir até cá, eu arranjava-lhe uma chávena de chá quente com um gole de brande. Não cura mas pode ser que ajude a esquecer.
- vou já - respondeu ele. - Não levo mais de vinte minutos.
Dora pôs a chaleira ao lume, tirou uma chávena e um
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pires, e depois foi à casa de banho escovar o cabelo e dar um pouco de brilho aos lábios, sem perceber porque o estava a fazer.
Quando Wenden chegou, com uma caixa aberta de cleenex na mão, parecia um morto ressuscitado: olhos ramelosos, barba por fazer, nariz vermelho e inchado. E, como de costume, o fato parecia a roupa de um espantalho.
Dora mandou-o sentar no sofá e serviu-lhe uma chávena de chá a ferver, a que juntou um pouco de brande. Wenden pegou na chávena com as duas mãos, sorveu um gole, fechou os olhos e suspirou.
- Obrigado, Florence Nightingale.
- Você devia estar na cama - disse ela.
- Foi a melhor oferta que tive hoje - disse, espirrando e pegando num lenço de papel.
- Agora sei que você não está a morrer - disse Dora, a sorrir. - Há novidades sobre o caso Starrett?
- Nada, das nossas fontes de informação. Inspeccionámos as redondezas, três quarteirões. Ninguém viu nem ouviu nada. Procurámos em todas as sarjetas e contentores de lixo. Nada de faca. Passámos a palavra em todas as empresas de táxis da cidade. A versão oficial continua a ser homicídio por um desconhecido, talvez uma briga, talvez algum pírulas que embirrou com o fumo do charuto de Starrett... Quem sabe?
- Hum... John, você viu o relatório da autópsia?
- Claro que vi. Adoro ler aquelas coisas. Fazem-nos desistir da espécie humana. As coisas que as pessoas fazem umas às outras...
- E o relatório descreve a ferida que matou Starrett?
- Claro.
- De que tamanho era a ferida... Recorda-se? Wenden ficou a pensar.
- De cerca de vinte centímetros. À volta disso. Eles nunca podem ser exactos. Os tecidos dão de si. A ferida exterior tinha mais ou menos cinco centímetros.
- Acho que você precisa de outro brande - disse Dora.
- De boa vontade - respondeu Wenden, dando mais um espirro. - Mas porquê?
- Hoje fui falar com os criados dos Starrett. Estivemos
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a conversar na cozinha. Há um suporte para facas na parede. bom material. Aço inoxidável importado. Falta uma faca. Uma faca de cozinha de vinte centímetros; nós temos uma igual lá em casa. De lâmina triangular. Tem cerca de cinco centímetros junto do cabo.
Wenden pousou a chávena, que tilintou ao tocar no pires.
- Há quanto tempo desapareceu a faca? - perguntou, fitando-a.
- Não lhes perguntei - respondeu Dora. - Mas quando fiz esse comentário, Clara e Charles olharam um para o outro. Creio que terá desaparecido naquela festa, na noite em que Starrett foi morto, mas os criados não quiseram admiti-lo.
- Porque não os apertou?
- E como é que eu podia? - perguntou, irritada. Você é polícia, você pode apertar as pessoas. Eu sou apenas uma perita de seguros, baixa e gorda, com ar de dona de casa. Não tenho força.
- Está bem, está bem - disse ele. - Eu vou apertá-los. Se a faca desapareceu na noite do crime, isso abre uma nova lata de vermes.
- Também elimina três pessoas deste elenco de personagens - disse Dora. - Olivia e os criados ficaram em casa e é natural que lá estivessem quando Lewis saiu para ir dar o seu passeio. Vocês verificaram o paradeiro dos outros no momento do crime?
O detective olhou para ela, furioso.
- Você pensa que nós somos estúpidos? Claro que verificámos. Todos eles possuem álibis. Nenhum deles é muito sólido, mas os álibis raramente o são. Felicia estava num restaurante novo, em Spring Street. Foi confirmado pelo acompanhante, um palerma que usa um brinco. Helene e Turner Pierce estavam num teatro na Rua Quarenta e Seis Oeste. Tinham a metade dos bilhetes como prova. O padre Callaway estava na igreja, a distribuir sanduíches aos sem-abrigo. Foi visto lá. Eleanor e Clayton Starrett estavam numa festa de caridade no Hilton. Soa bem, mas qualquer deles se podia ter pirado e apanhado um táxi para a Rua Oitenta e Três Leste, a tempo de matar Lewis. Todos conheciam a sua rotina nocturna. Como quer que a trate?
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- Como diz? Trate-me por Dora.
- Eu sei, mas é um nome demasiado doméstico. Fica zangada se eu a tratar por Ruiva?
Dora suspirou e respondeu:
- Fico encantada.
- Posso tomar outro brande, Ruiva?
- Não vai cair em cima de mim, pois não?
- Não, que horror! Quero apenas pôr a cabeça em ordem.
Dora trouxe a garrafa e pousou-a na mesa em frente do sofá.
- Sirva-se - disse.
- Também quer?
- Não, obrigada. Não tenho de guiar até Queens. Wenden riu-se e deitou mais brande na chávena.
- Era capaz de fazer esse caminho mesmo que estivesse em coma, tantas vezes já o fiz. Ora bem, vamos supor que algum dos presentes na festa tirou a faca. Eliminemos Olivia e os criados. Isso deixa-nos seis possibilidades.
- Aqui vai a minha segunda boa acção do dia - disse Dora. - Lembra-se de eu lhe ter dito que ia pedir ao meu chefe que procurasse no computador informações sobre o padre Brian Callaway?
- Claro que me lembro. Descobriu alguma coisa?
- O verdadeiro nome dele é Sidney Loftus. É um vigarista com uma história mais comprida do que o seu braço.
- Oh! Algo de violento?
- Não sei. Já lhe disse que a nossa base de dados só refere fraudes de seguros. é melhor você procurar nos seus registos, em Callaway ou Loftus.
- Sim, é melhor.
- E, ao mesmo tempo, dê uma olhadela às fichas de Helene e Turner Pierce. Perguntei ao meu chefe, mas não há nada sobre eles.
- Porquê os Pierce?
- A última vigarice de Callaway foi um caso com um carro roubado em Kansas City, no Missouri. Helene Pierce é de lá.
- Como sabe?
- Foi ela que me disse.
Wenden examinou-a por breves instantes e depois abanou a cabeça, espantado.
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- Você é especial, Ruiva. Como consegue pôr as pessoas a falar?
- Por vezes, contamos aos estranhos coisas que não diríamos aos nossos melhores amigos. Além disso, tenho ar de zé-ninguém. Não constituo verdadeiramente uma ameaça, na opinião deles, e por isso falam.
- Um zé-ninguém... - repetiu Wenden. - Começo a acreditar que você é mais uma piranha.
Voltou a espirrar e assoou-se.
- Está bem, vou fazer uma busca sobre Callaway e os Pierce. Aviso-a de que vai demorar. Os arquivos estão incompletos e sobrecarregados, como o resto do departamento.
- Eu posso esperar - disse Dora. - A indemnização não vai ser paga senão quando eu der ordem para isso.
Wenden respirou fundo, encostou a cabeça para trás e olhou para o tecto.
- Acho que não me admiraria se alguém da família ou um amigo íntimo tivesse eliminado o velho. Está sempre a acontecer. Mas eu pensei que esta gente tinha classe. Qual acha que foi o móbil?
- Dinheiro - respondeu Dora.
- Sim, talvez - retorquiu Wenden. - Quando o dinheiro está em jogo, a classe desaparece. Sempre.
Dora riu-se.
- Não sabia que você era filósofo.
- Como é que se pode ser polícia sem se ser filósofo? - Baixou a cabeça, e fitou-a com os olhos ramelosos. - Menti-lhe, Ruiva.
- Porquê?
- Disse-lhe que não ia morrer. Mas agora já não tenho a certeza.
- De qualquer modo, não está em condições de guiar. Tenho um quarto a mais. Pode ficar nele.
- Obrigado - disse ele.
- A que horas quer levantar-se?
- Nunca. Ajude-me, está bem?
Dora ajudou-o a levantar-se e amparou-o até ao quarto. Ele sentou-se em peso na beira da cama.
- Consegue despir-se? - perguntou Dora.
- Consigo tirar os sapatos - respondeu ele com a
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Voz entaramelada. - É o suficiente. Já tenho dormido vestido.
- Ninguém diria. Quer outra aspirina?
- Não. Já tomei que me cheguem.
- Também acho. Não vou acordá-lo de manhã. Durma o mais que puder. Vai fazer-lhe muito bem.
- Mais uma vez, obrigado, Ruiva. Ouça... Tentou sorrir e acrescentou:
- Não precisa de fechar à chave a porta do seu quarto.
- Eu sei - respondeu Dora. Mas fechou a porta à chave.
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Solomon Guthrie vivia sozinho num apartamento de seis divisões, em Riverside Drive, junto da Rua 86. O edifício, anterior à guerra, fora vendido por andares em
1974, e Guthrie comprara o seu por cinquenta e nove mil e quinhentos dólares. Na opinião da mulher, fora muito dinheiro, o que era verdade, naquela altura. E, perguntara ela, porque precisavam de tanto espaço se os filhos já tinham saído de casa? Jacob era oftalmologista, em Minneapolis, e Alan era projectista de naves espaciais, em Los Angeles.
Mas Solomon não quis desistir de uma casa que adorava e na qual ele e a mulher tinham vivido a maior parte da vida. Além disso, em sua opinião, seria um bom investimento, e foi exactamente o que veio a verificar-se, pois havia agora apartamentos semelhantes à venda no prédio, por preços que iam de setecentos e cinquenta mil a um milhão de dólares.
Hilda morreu em 1978, de cancro, e Solomom ficou sozinho nas seis divisões. Os filhos, as noras e os netos vinham visitá-lo pelo menos uma vez por ano, e era uma festa. Mas, em geral, a sua vida era solitária. Depois de todos aqueles anos, era triste regressar a uma casa vazia, em especial nas noites escuras de Inverno.
Todos os dias Guthrie saía de casa às sete e meia da manhã, tirava o Times de uma mesa de mármore que havia no átrio do prédio e seguia até West End Avenue para apanhar um táxi para a zona sul. Uma hora depois, seria
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completamente impossível encontrar um táxi livre, mas em geral, antes das oito horas, Solomon tinha sorte.
Naquela manhã, o tempo estava particularmente frio, gélido, com um vento húmido que vinha do rio. Sol congratulou-se por ter trazido o sobretudo grosso. Também trazia as luvas forradas de pele e a velha pasta atulhada com o trabalho que trouxera para casa na noite anterior. Um dos assuntos em que trabalhara era um plano de bónus de Natal para os empregados da Starrett.
Solomon dobrou a esquina da West End com a Rua 86 e olhou para cima. Havia um táxi estacionado na Rua 86, mas com a lâmpada apagada, e o condutor parecia estar a ler o jornal. Avançou um pouco para ver se haveria outros táxis. Levantou o braço quando avistou um, no outro quarteirão, que descia West End.
Foi então que o táxi parado na Rua 86 se pôs em movimento. O motorista acendeu a luz, atirou com o jornal para o lado e o carro atravessou a rua e parou junto de Solomon. Este abriu a porta de trás e enfiou-se lá dentro com alguma dificuldade, pousando primeiro a pasta e o jornal e depois torcendo-se para ocupar o lugar e voltando-se para fechar a porta.
- bom dia - disse.
- Para onde vamos? - perguntou o motorista, sem se voltar para trás.
- Para o Edifício Starrett, por favor. Em Park Avenue, entre as Ruas Cinquenta e Seis e Cinquenta e Sete.
Solomon recostou-se e desabotoou o sobretudo. Pôs os óculos e começou a examinar a primeira página do Times. Depois, apercebeu-se de que o táxi abrandava e levantou a cabeça. Os semáforos estavam verdes, tanto quanto podia distinguir, mas o táxi ia a parar entre as Ruas 78 e 77, próximo de outros carros que estavam estacionados junto da curva.
- Porque vai parar aqui? - perguntou ao motorista.
- Para apanhar um outro tipo que vai para sul - respondeu o motorista. - Não se importa, pois não?
- Sim, importo-me - respondeu Guthrie, irritado. Estou a pagar-lhe a tarifa para me levar onde quero e não me apetece parar para apanhar...
Ainda não tinha acabado de falar quando o táxi estacou. Um homem de gorro de pele preto e casaco de cabedal surgiu de repente de entre os automóveis parados e atirou-se para dentro do táxi, a seu lado.
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- Ouça lá! Que diabo pensa que... - exclamou Guthrie.
Mas o desconhecido já estava lá dentro, quase em cima dele. A porta fechou-se com força, e o táxi arrancou com um chiar de pneus.
- Mas o que... - disse Guthrie.
Então, sentiu um ardor no abdómen, uma sensação de calor que não entendeu senão quando olhou para baixo e viu o homem esfaqueá-lo outra vez. Tentou afastar-se da lâmina, mas foi empurrado para o canto, o chapéu e os óculos caíram-lhe e o homem golpeava-o sem parar, enterrando a lâmina de aço no seu corpo, lentamente, retirando-a e voltando a enterrá-la. Depois, parou.
- Certifica-te - disse o motorista, sem se voltar para trás.
- Já me certifiquei - respondeu o assaltante, empurrando o corpo de Guthrie para o chão. Depois sentou-se, limpou a lâmina ao sobretudo de Solomon, e guardou a faca numa bela bolsa de couro que trazia presa à anca direita.
O táxi parou junto ao semáforo da Rua 72. Quando o sinal abriu, virou para sul, na direcção da Rua 71, voltou à direita para uma rua sem saída e rodou lentamente entre os automóveis estacionados para uma rotunda no limite oeste.
O carro parou na curva e os dois homens olharam à volta, com ar despreocupado. Além de uma mulher que andava a passear um doberman, à distância, não havia mais ninguém na rua.
- Vamos - disse o motorista.
Ambos saíram do carro e fecharam as portas. Pararam por instantes para acender um cigarro e depois encaminharam-se para West End Avenue, num passo normal.
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- Como se sente? - perguntou Dora.
- Ainda estou a fungar - respondeu John Wenden -, mas sobrevivo. A verdade é que me sinto muito melhor. Foi do chá e do brande.
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- Foi, sim, de uma noite bem dormida - insistiu Dora. - Você estava arrombado. Quer tomar um duche quente?
- Acertou.
- Esteja à vontade. Há muitas toalhas. Se quiser fazer a barba, pode usar a minha gilete. Tenho outra.
- Obrigado, mas vou-me pôr a andar. Tenho uma máquina de barbear no escritório; a barba pode esperar. Peço-lhe desculpa por me ter ido abaixo ontem à noite, Ruiva.
- Era de esperar. Enquanto toma duche, vou preparar o café. Mas é instantâneo e sem leite. Aceita?
- É a minha bebida favorita.
Enquanto fazia os cafés, Dora lembrou-se de repente do que havia de comprar ao marido no Natal. Uma máquina expresso! Um daqueles objectos muito bonitos e brilhantes que fazem café expresso e cappuccino. Mário, um perito em cafés, ficaria encantado.
Tomaram o café de pé, junto do lava-louças. Wenden olhou-a com um ar pensativo.
- Está convencida de que o padre Callaway foi o assassino, não está?
Dora encolheu os ombros.
- Acho que ele é o cabecilha. Vai procurar dados sobre ele, não vai? E sobre os Pierce.
- Claro, vou-me atirar a isso assim que me sentar à secretária. O que vai fazer hoje?
- Tenho um encontro com Clayton na Starrett, às dez horas. Era a única hora a que me podia receber.
- O que espera conseguir dele?
- Estou confusa acerca do modo como os Pierce se tornaram tão amigos da família Starrett. Não sei se foi antes ou depois de Turner Pierce ter aterrado na Joalharia Starrett Fine como cliente e ter criado o novo sistema informático. Também gostaria de apurar se foi o padre Callaway que os apresentou.
Wenden fitou-a com admiração.
- Você é um verdadeiro Sherlock. Gosta do seu trabalho?
- Gosto imenso.
- E o que pensa o seu marido de você ser perita de seguros?
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Dora fez um gesto brusco com a mão.
- Não se importa. Só não gosta que eu esteja fora de casa tanto tempo. Isso significa que ele tem de cozinhar só para uma pessoa, o que não é lá muito divertido. Mário é um óptimo cozinheiro. É você que faz a comida?
- Não exactamente - respondeu Wenden. - Tenho uma cozinheira, Mistress Paul. Ouça, Ruiva, tenho de ir a correr. Mais uma vez, muito obrigado pelo brande. E pelo duche. E pelo café. Estou em dívida para consigo. .
- Não se esqueça do que disse - retorquiu Dora. -? Posso vir a reivindicar os meus direitos.
- Quando quiser - respondeu o detective.
Dora deixou que ele lhe beijasse a face, à saída.
Levou alguns minutos a arrumar a suite, pouco acostumada ao serviço de quartos. Depois saiu. A manhã estava gélida, demasiado fria para andar a pé. Por isso, Dora apanhou o autocarro na 5ª Avenida e depois caminhou até Park Avenue, parando frequentemente para ver as montras na Rua 57.
Chegou a horas, mas teve de esperar um pouco numa sala de espera exígua. A maior parte das revistas que estavam em cima da pequena mesa eram publicações sobre joalharia, mas havia um exemplar do Town Country. Folheando-o, Dora descobriu um anúncio da Starrett que ocupava uma página inteira. Mostrava um magnífico colar de diamantes brancos e amarelos, alternados, disposto nos seios nus de uma mulher (não se viam os mamilos). A única frase era curta e discreta: "Jóias Starrett Fine. Simplesmente superiores."
Uma secretária com sotaque inglês introduziu-a no gabinete de Clayton Starrett às dez e um quarto. O homem inclinou-se do lado de lá da secretária, resplandecente e, aparentemente, cheio de energia matinal.
- bom dia! - cantarolou, apertando-lhe a mão com entusiasmo. - Peço desculpa de a ter feito esperar. Mas, sabe, como é a época do Natal... Não temos mãos a medir. Dê-me o seu casaco. Agora sente-se aqui. É um gabinete horrível, não acha? Triste e melancólico. Mas vou mandar modificar tudo. Quero cores claras. Para lhe dar mais vida. Bem, espero que me traga boas notícias acerca do seguro.
- Ainda não, Mister Starrett - disse Dora, com um
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sorriso afectado. - Mas lá chegaremos. Gostaríamos de esclarecer o mistério da morte do seu pai antes de aprovarmos o pedido de indemnização. Como estou certa de que será o seu caso.
- Claro, claro! - exclamou ele. - Qualquer coisa que eu possa fazer para ajudar... Seja o que for.
Parecia um pouco excêntrico e Dora resolveu tirar partido disso.
- Apenas algumas perguntas. Que, na verdade, ultrapassam o foro das minhas averiguações, mas gostaria de pôr os pontos nos is. Pode dizer-me como é que o senhor e a sua família conheceram Helene e Turner Pierce?
O homem ficou espantado com a pergunta, depois recostou-se na cadeira e cruzou as mãos.
- Como é que conhecemos os Pierce? Ora, deixe-me ver... Creio que foi há alguns anos. Sim, há dois, pelo menos. O padre Callaway veio jantar a nossa casa e eu comentei por acaso que os nossos computadores estavam desactualizados. O padre disse que conhecia precisamente o homem que me convinha, um consultor de gestão, especializado em concepção e aperfeiçoamento de sistemas informáticos. Então pedi-lhe que o mandasse ter comigo. Era Turner Pierce, que nos fez um trabalho magnífico. E foi através de Turner que eu conheci a irmã, Helene. Um casal encantador. Vieram jantar connosco várias vezes e tornámo-nos bons amigos.
- Compreendo - respondeu Dora. - E o senhor investigou os documentos de Turner antes de...
Mas nesse instante o telefone de Starrett tocou, e ele olhou para o aparelho, de sobrolho franzido.
- Bolas. Disse à minha secretária que não me passasse chamadas. Desculpe-me por um momento, por favor.
Inclinou-se para a frente, com os cotovelos apoiados na secretária, e pegou no telefone.
- Está? Quem? Está bem, ligue. - Olhou para Dora, admirado. - É da polícia - explicou. - Está? Sim, fala Clayton Starrett. Exactamente. O quê? Oh, meu Deus! Quando é que foi isso? Oh, meu Deus, que horror! Sim, claro. Compreendo. Irei para aí o mais depressa possível.
Desligou. Olhou para ela, branco como a cal, e Dora levantou-se, com medo que ele desmaiasse. Estava tenso
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e destroçado, com os olhos muito abertos e a boca a tremer.
- Era da polícia - disse, com a voz a falhar. - Dizem que Solomon Guthrie foi morto. Assassinado.
- Quem?
- Sol Guthrie, o nosso director financeiro. Trabalhava na Starrett há quarenta anos. Era um grande amigo do meu pai.
Pestanejou, mas em vão. As lágrimas começaram-lhe a cair. Irritado, enxugou-as com a mão.
- E como o mataram? - perguntou Dora.
- Foi apunhalado. Como o meu pai. Oh, esta cidade horrível está podre! Odeio-a, odeio-a!
- Não é só em Nova Iorque, Mister Starrett. Acontece em todo o lado.
Clayton fez um sinal de assentimento, levantou-se e respirou fundo.
- Tenho de sair. A polícia pediu-me que fosse lá, ao local onde Sol foi descoberto. Querem que eu identifique o corpo. Entre a West End Avenue e a Rua Setenta e Um. Sim, foi o que o homem disse.
Dora contornou a secretária e pôs-lhe a mão no ombro.
- Mister Starrett, gostaria que eu fosse consigo? Talvez seja um pouco mais fácil para si se não estiver sozinho.
Clayton olhou-a, atormentado.
- Não se importa? Obrigado. Sim, por favor venha comigo. Fico-lhe muito grato. Ouça, naquele armário está uma garrafa de uísque e copos. Não se importa de arranjar dois para nós, enquanto eu telefono lá para baixo para o motorista trazer o carro?
Dora serviu-lhe uma boa quantidade de uísque, mas não quis nenhum. Clayton acabou o telefonema e sorveu a bebida em duas goladas. Depois, tossiu e recomeçou a chorar.
- Vamos - disse bruscamente.
No caminho, foi sempre a olhar para o lado contrário, observando as ruas estreitas da cidade através dos vidros fumados da limusina.
- Que idade tinha ele, Mister Starrett?
- Sol tinha sessenta e três anos.
- Era casado?
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- Viúvo. Tinha dois filhos já homens, mas não vivem em Nova Iorque. Têm de ser avisados o mais depressa possível. Espero que tenhamos os endereços deles no nosso arquivo de pessoal.
- A polícia descobre-os - assegurou-lhe Dora. E disseram-lhe se o assassino já foi apanhado?
- Não me disseram nada.
- O que acha que ele estava a fazer lá... No sítio onde descobriram o corpo?
- Provavelmente vinha para o emprego. Ele vivia perto da Rua Oitenta e Seis, em Riverside Drive.
Foram encontrar a Rua 71 Oeste vedada por dois polícias fardados. Clayton Starrett identificou-se e os homens deixaram passar a limusina, que rolou lentamente até ao fim do quarteirão. No local havia carros-patrulha, uma ambulância e uma carrinha do laboratório da polícia, todos estacionados em semicírculo, à volta de um táxi amarelo com as portas abertas. Uma fita atada às árvores e vedações de ferro separavam o local do crime de um grupo de curiosos.
Um homem corpulento, de fato escocês e com o distintivo de detective na lapela, veio ao encontro deles.
- Mister Starrett?
Clayton fez um sinal afirmativo.
- Sou o detective Stanley Morris. Falei consigo ao telefone. Muito obrigado pela sua ajuda. Preciso de uma identificação que não ofereça dúvidas. Por aqui, se faz favor.
Pegou firmemente no braço de Clayton e começou a dirigir-se para o táxi.
- Também posso ir? - perguntou Dora.
O detective parou, olhou para ela e perguntou-lhe:
- Quem é você?
- Dora Conti. Uma amiga de Mister Starrett.
- Conhecia a vítima? ;
- Não.
- Então fique aqui.
Sozinha, Dora olhou à volta e avistou John Wenden encostado à porta de um carro-patrulha, a falar com um polícia fardado. Aproximou-se para que ele a visse e agitou o braço no ar. Ele viu-a e veio ao seu encontro, com ar inexpressivo.
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- Que diabo está aqui a fazer, Ruiva? - perguntou.
- Estava no gabinete de Clayton quando ele recebeu o telefonema. Achei que ele devia vir acompanhado.
- Como é que ele recebeu a notícia?
- Foi um enorme choque para ele. E não estava a representar. Este Solomon Guthrie... Foi apunhalado?
Wenden fez um sinal afirmativo.
- Como Lewis Starrett?
- Não, pela frente. E mais do que uma vez. Várias, na verdade.
- O tipo de faca era o mesmo? Lâmina triangular de vinte centímetros?
- Duvido. Parece mais ter sido uma espécie de estilete, mas não vamos ter a certeza antes da autópsia.
- Alguma pista?
- Nada de jeito.
- E o táxi?
- Foi roubado hoje de manhã cedo, entre a Broadway e a Rua Setenta e Nove. O motorista parou para ir a correr tomar o pequeno-almoço. Deixou o motor a trabalhar... o azelha! Quando saiu, o táxi tinha desaparecido. E acabou aqui.
- Roubo?
- Não parece. A carteira de Guthrie e os cartões de crédito estão todos ali. E um relógio de bolso Starrett, de ouro. Não tocaram em nada. Ele trazia uma pasta cheia de documentos da Starrett. Foi por isso que telefonaram a Clayton.
Dora abanou a cabeça.
- Não percebo. Clayton diz que ele talvez fosse para o emprego. Depois o motorista volta neste sítio, vai até ao fundo da rua, pára, sai do carro, abre a porta traseira, apunhala o passageiro até à morte e vai-se embora. Acredita nisso?
- Não - respondeu John. - Não faz sentido. A vítima teria tido tempo de gritar, de sair pelo outro lado ou de lutar com ele. Mas não há sinais de luta. Aposto que havia dois tipos: o motorista e outro lá atrás, com o Guthrie.
- Um homicídio planeado?
- Acho que sim. Talvez executado por profissionais. Uma morte por contrato, muito provavelmente. Eles sabiam exactamente o que estavam a fazer. O pessoal do
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laboratório está a tirar tudo do táxi. Poderão contar-nos mais coisas. O que acrescenta isto à sua teoria de que foi o padre Callaway a matar Lewis Starrett?
- Alguma coisa - admitiu Dora. - O presidente e principal accionista da Starrett Fine morre apunhalado na Rua Oitenta e Três Leste. Depois, o director financeiro da Starrett é esfaqueado na Rua Setenta e Um Oeste. Não acredita em coincidências, pois não?
- Não. Neste caso, não.
- Então, onde encaixa a sua teoria oficial, segundo a qual a morte de Lewis Starrett foi um acto fortuito de um desconhecido?
- Tal como a sua, em qualquer lado - respondeu John. - Parece evidente que os dois homicídios estão relacionados, e é provável que a Joalharia Starrett seja a chave do enigma. Portanto, agora vamos aos ficheiros deles, começar a procurar empregados que tenham sido despedidos ou alguém com ódio à companhia e tenha decidido abater os seus executivos.
- Vai colocar Clayton sob vigilância?
- Não poderemos guardá-lo vinte e quatro horas por dia. Não temos gente suficiente. Mas vamos avisá-lo e propor-lhe que reforce a segurança nas lojas e contrate guarda-costas para ele, para a família e para os executivos mais importantes. Ele pode pagar. Olhe, lá vem ele.
Clayton Starrett, apoiado ao detective Stanley Morris, entrou de novo na limusina. Ia quase a cambalear e o seu rosto apresentava uma palidez acinzentada.
- vou acompanhá-lo ao escritório - disse Dora -, ou a casa, se ele preferir. Ouça, John, telefona-me esta noite, se tiver novidades sobre este caso?
- Telefono-lhe esta noite, mesmo que não tenha novidades - disse Wenden. - De acordo, Ruiva?
- De acordo - respondeu Dora. - Ainda bem que já fez a barba. bom trabalho.
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- Estou pronta - disse Felicia Starrett.
- Estás sempre pronta - retorquiu Turner Pierce. Ela riu-se.
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O quarto de Turner era igual ao resto da casa, um apartamento subalugado, em Murray Hill: escuro, com pesados móveis de carvalho, carpetes orientais já gastas e reposteiros de brocado sem brilho. Em todas as superfícies lisas se viam pequenas figuras de porcelana pertencentes à colecção do proprietário e artisticamente dispostas: pastores, bailarinas, cortesãos, elfos e fadas, todos em tons de rosa e alfazema.
Os poucos haveres de Turner estavam à vista: essencialmente jornais espalhados, revistas e publicações sobre computadores. Em cima do aparador estava um Compaq portátil, fechado, e no quarto, uma garrafa de vodca Tanqueray dentro de um balde de alumínio com cubos de gelo, ao lado da cama. Dentro do balde via-se também um monte de cebolinhas.
Felicia ergueu-se, nua, dos lençóis amarrotados e ficou de pé, a tremer. Pousou as mãos nas ancas e respirou fundo antes de ir para a casa de banho.
Turner esticou-se para encher o copo de vodca gelada. Tirou uma cebolinha e começou a mastigar. Felicia saiu da casa de banho, a fazer caracóis no cabelo com um pente de dentes grandes. Parou, para afastar a camisa de Turner, e depois sentou-se na beira da cama e ficou a vê-lo beber e mastigar a cebola. Ele estendeu-lhe o copo, mas ela abanou a cabeça.
- Não, meu impostor - disse. - Como muito bem sabes. Onde aprendeste a fazer amor dessa maneira?
- Foi a minha mãe que me ensinou - respondeu Turner.
Ela riu-se.
- Não foi a tua irmã?
- Não, ela ensinou ao papá. Felicia riu-se outra vez.
- Patife - disse. - Estás sempre a entrar comigo. Ouve, vou fazer-te uma proposta que não podes recusar.
- Ah, sim? - respondeu Turner, atirando um cubo de gelo para dentro do copo.
- Quando vier o dinheiro do seguro, vou receber um milhão. Tenho dez por cento da Starrett Fine, e isso rende-me cerca de cinquenta mil por ano, em dividendos. E quando a mãe morrer, serei uma senhora muito, muito rica.
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- E daí?
- Quero comprar-te - disse ela. - Estou a pedir-te em casamento, patife. Casa comigo e ficarás bem instalado na vida. Assinarei qualquer acordo pré-nupcial que o teu advogado redigir.
Turner não pareceu ficar chocado nem surpreendido; começou apenas a mordiscar a cebola esverdeada.
- Porque queres que eu faça uma coisa dessas? -- perguntou.
- Porque estou farta de andar por aí aos caídos. Estou farta de companheiros de uma noite. Estou farta de homens estafados que têm medo de compromissos. Estou farta de viver em casa do meu pai, que é agora da minha mãe. Quero ter a minha casa e o meu homem. Sou dez anos mais velha do que tu, certo?
- Quinze, diria eu - atalhou ele, distraído.
- Porco! - exclamou ela. - Nunca me pediste nada que eu não te tenha feito. Dou-me bem contigo. E de corpo não estou assim tão mal, pois não?
- De corpo estás bem - reconheceu Turner.
- Devo estar... para o que tenho gasto com ele. Posso não ser um borracho, mas também não sou um coiro. E tu terás estabilidade económica para o resto da vida. Que dizes?
Turner serviu-se de vodca, e desta vez Felicia tirou-lhe o copo e bebeu um gole. Fez uma careta e estendeu-lhe o copo.
- O que diria a tua família? A tua mãe? Clayton? perguntou Turner.
- Que se lixe a minha família! - respondeu ela, com ódio. - Tenho a minha vida para viver. Não posso continuar a viver como eles querem. Aposto que não deixas que Helene oriente a tua vida.
- A tua mãe podia deserdar-te - acrescentou ele.
- Só se for em tribunal - disse Felicia. - Se ela morrer e eu não herdar metade, há um advogado que vai ganhar muita massa para me defender. Mas estamos a falar do futuro. Neste preciso momento, tenho dinheiro suficiente para tu e eu levarmos uma vida de príncipes. Então?
- É uma proposta interessante - disse Turner. - Tenho de pensar.
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- Claro - disse ela. - Estuda-a no computador e vê se não faz sentido. Agora, deixa-me provar-te que, ao casares comigo, farias o negócio mais inteligente da tua vida.
Turner acabou de beber a vodca e pousou o copo no chão.
- Tenho uma coisa para ti - disse. - Queres que ta dê agora?
- Julguei que nunca mais perguntavas - respondeu ela. - Onde está?
- Na gaveta de cima da cómoda.
- Quanto é?
- Um grama.
- És um amor! - exclamou Felicia.
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Na antevéspera de Natal, Dora voltou para casa e chegou com uma máquina de café expresso dentro de uma grande caixa de cartão. Gastara mais dinheiro do que contava, mas a peça era esplêndida. Não só fazia café expresso e cappuccino como moía os grãos. E tinha muitas torneiras a brilhar, válvulas, mostradores e interruptores que fariam a felicidade de Mário enquanto este não aprendesse a fazer uma chávena de café perfeito.
Antes de sair de Nova Iorque, Dora telefonou a John Wenden. Ele disse-lhe que não havia nada de novo sobre os homicídios de Lewis Starrett e Solomon Guthrie. O departamento estava a verificar todos os empregados despedidos da Starrett Fine, mas a tarefa prometia ser árdua.
- Tivemos acesso ao registo das admissões - disse Wenden. - Mas houve uma grande movimentação nos últimos dois anos. Isto vai levar muito, muito tempo.
- Soube alguma coisa de Callaway ou dos Pierce?
- Ainda não. Eles dizem que estão a trabalhar nisso, e se eu os pressiono irritam-se e atrasam-se, só para me darem uma lição. É assim que funcionam.
- A quem o diz - respondeu Dora. - Tenho o mesmo problema no meu emprego.
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Depois, disse-lhe que regressaria a Manhattan no dia
2 de Janeiro e que lhe telefonaria quando voltasse. Desejou-lhe um bom Natal e um Ano Novo feliz.
- Igualmente - disse John.
E foi para casa, sentindo-se culpada por deixá-lo sozinho na época das festas, e interrogando-se sobre a causa irracional daquele sentimento. Mas Wenden tinha um ar tão cansado e perdido que a preocupava, e lamentou não lhe ter comprado um presente de Natal. Um cachecol de caxemira castanha teria sido uma boa ideia. Mas não tinha a certeza se os detectives usavam cachecol.
Mário estava no emprego quando Dora chegou a casa, por isso teve oportunidade de esconder a sua prenda no fundo do roupeiro. O marido armara, na sala, um pinheiro denso, quase de dois metros de altura, e ao lado viam-se caixas de enfeites, bugigangas, fitas e luzes, que trouxera da cave. No frigorífico havia uma garrafa grande de Frascati, e na prateleira dos vinhos garrafas de Lacrima Christi, Soave, Valpolicella e o preferido de Dora: espumante Asti.
Passaram uns dias esplêndidos, sobretudo porque estiveram sozinhos. Na véspera de Natal, fizeram amor debaixo da árvore cintilante porque lhes parecia que a situação tinha algo de sagrado. Mário ofereceu-lhe uma linda pulseira e, apesar de os brilhantes parecerem cristais comparados com as pedras que as mulheres da família Starrett usavam, Dora achou que fora o melhor presente de toda sua vida, e sentiu-se duplamente feliz ao ver a alegria com que Mário recebera a sua máquina expresso.
Durante o resto da semana, Dora foi ao escritório todos os dias e redigiu um relatório no computador, depois de consultar o seu bloco de apontamentos para se certificar de que poderia justificar as suas suspeitas e conclusões. Deixou o relatório, de dezanove páginas, em cima da secretária de Mike Trevalyan, uma noite, já tarde, e na manhã seguinte foi chamada ao seu gabinete, um aposento húmido, cheio de arquivos e pilhas de folhas de computador atados com fitas. A atmosfera era fétida, devido ao fumo dos charutos. Trevalyan era conhecido por acender dois charutos ao mesmo tempo durante as suas explosões de mau humor.
Era um homem de aspecto porcino, com olhos pequenos,
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ar amuado e toda a razoabilidade dócil de um instrutor dos fuzileiros. Mas a companhia não lhe pagava um ordenado astronómico para ser afável. Queriam que ele fosse irascível, desconfiado, que farejasse todos os pedidos de indemnização como se o dinheiro saísse do seu bolso. Toda a sua vida trabalhara com indemnizações, estava sempre à espera de tramóias e, segundo diziam, ficava furioso quando elas não existiam.
- Este caso - disse, apontando para o relatório de Dora com o charuto -, cheira mal por todos os lados. Há muita falcatrua aqui, menina, e não lhes pago um cêntimo antes de estarmos mais bem informados.
- Concordo - disse Dora. - Há demasiadas perguntas sem resposta.
- Os polícias acham que foi um ex-empregado descontente que se quis vingar nos executivos da Starrett?
- É o que eles pensam.
- Sabe o que é que está errado nessa teoria? - perguntou Trevalyan.
- Claro que sei - respondeu Dora. - Não explica o desaparecimento da faca de casa dos Starrett, talvez na noite em que Lewis foi morto. Essa é a primeira coisa que quero verificar quando voltar a Nova Iorque.
- Esse detective John Wenden de que fala... Ele devia ter visto isso. O tipo é parvo?
- Não, tem trabalho a mais, está a investigar meia dúzia de casos de homicídio ao mesmo tempo. Por acaso, até é um profissional muito experiente e consciencioso.
Trevalyan olhou para ela.
- Você não está apanhada por esse tipo, ou está?
- Oh, Mike, não diga disparates. Não, não estou apanhada por ele. Sim, somos amigos. Quer que eu me torne inimiga do detective que está a tratar do caso?
- Mas não se cole demasiado - avisou Mike. - Pago-lhe para usar os miolos, e não as glândulas. Se ele está sobrecarregado como você diz, pode tentar esconder tudo debaixo do tapete.
- Não - respondeu Dora com firmeza. - John nunca faria uma coisa dessas.
- Oh, oh - disse Trevalyan, apagando o charuto num cinzeiro a abarrotar. - com que então é o John, hem? Tenha cuidado, menina. Esse espertalhão da cidade
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pode andar a dizer-lhe coisas bonitas e a ser simpático só para a caçar. E, entretanto, está a tramar alguma que você nem imagina.
- Você é doido - respondeu Dora, zangada. - Fui eu que lhe falei da faca que faltava e do cadastro do Callaway. Estou mais adiantada do que ele.
- Mantenha-se assim - avisou Trevalyan, acendendo outro charuto. - Se ele não anda a experimentá-la, como você diz, então experimente-o você. Não lhe conte tudo, apenas o suficiente para o fazer colaborar. E que mais tenciona fazer quando regressar a Sodoma, no Hudson?
- Algumas coisas - respondeu Dora. - Acima de tudo, quero aprofundar o papel do padre Callaway neste caso. Por exemplo, onde estava e o que fazia na manhã em que Solomon Guthrie foi apunhalado.
- Acha que foi o Callaway?
- No caso de Guthrie, não tenho a certeza, mas acho que há boas hipóteses de ele ser o assassino de Lewis Starrett.
Trevalyan fitou a ponta incandescente do charuto.
- E que motivo tinha para o fazer?
- Ainda não pensei nisso. Creio que Starrett lhe disse algumas coisas desagradáveis, mas nada que justificasse um assassínio.
Mike olhou para ela e riu-se.
- Dora, é melhor voltar a ler o seu relatório. O motivo de Callaway está aqui.
- O quê?
- Já lhe disse. O relatório refere uma motivação muito lógica para que Callaway tivesse liquidado Lewis Starrett.
- Qual é, Mike? Trevalyan abanou a cabeça.
- Você vai descobrir. O caso é seu. E traga esse chui de Nova Iorque debaixo de olho. Continuo a pensar que ele quer entrar no seu terreno.
- Onde diabo é que você estava quando Deus criou a bondade? - exclamou ela, indignada.
- À espera, na fila dos cínicos - respondeu ele. Agora vamos comer qualquer coisa. Você é que paga.
Estava a exagerar, evidentemente. A verdade é que comeram bem: sanduíches de carne com batatas fritas e
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uma caneca de cerveja para cada um, num bar irlandês que ficava junto dos escritórios da companhia. E, durante o almoço, Mike contou-lhe o que conseguira apurar sobre a Joalharia Starrett Fine.
Pouco se sabia, porque era uma sociedade anónima, à qual não era exigida a publicação de dados sobre a sua estrutura e situação financeira. Mas dizia-se que Olivia, Clayton e Felicia detinham dez por cento, cada um, do capital. Lewis tinha setenta por cento, que, presumivelmente, iriam para a viúva.
- Então, a partir de agora, Olivia controla tudo - disse Dora.
Mike concordou.
- Do que eu ouvi dizer, na década de cinquenta e de sessenta a Starrett Fine era uma mina. Foi nessa altura que abriram todas as filiais. Depois, de há dez anos para cá, as vendas e os lucros começaram a diminuir cada vez mais. O problema era o desgaste. A clientela estava a envelhecer, empregava o dinheiro em obrigações ou em títulos do Tesouro em vez de comprar diamantes. E os novos-ricos iam comprar as jóias noutros sítios mais na moda. Achavam a Starrett antiquada e desinteressante. Então, há dois anos, Lewis afastou-se e entregou as rédeas a Clayton.
"Bem, o primeiro ano de Clayton à frente dos negócios foi um desastre. Ele trouxe uma série de estilistas excêntricos e começou a desenvolver uma linha de artigos cujo preço era verdadeiramente exagerado. Essa linha não só não atraiu os novos-ricos como afastou os antigos clientes que restavam. A Starrett estava a afundar-se e, no meio empresarial, dizia-se que eles podiam ir à falência. Foi então que, há um ano, Clayton fez uma viragem completa. Viu-se livre de todos os estilistas esquisitos e voltou ao estilo clássico de joalharia requintada que caracterizava a Starrett. Despediu a maior parte dos gerentes das filiais e trouxe para a empresa jovens génios que percebiam alguma coisa das modernas técnicas de vendas. E começou a negociar nas barras, a comprar ouro no estrangeiro, a bom preço, e a vendê-lo a pequenos joalheiros deste país, com uma boa margem. Do que eu ouvi, a Starrett está outra vez nos píncaros, e todos estão satisfeitos."
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- Excepto Lewis - atalhou Dora. - E Solomon Guthrie.
- Sim - disse Trevalyan. - Excepto esses. Você já falou com o advogado da Starrett?
- Ainda não, mas está na minha lista.
- É provável que ele não lhe diga nada, mas vale a pena tentar. Pergunte-lhe se Lewis tinha alguma amante.
Dora ficou a olhar para ele.
- Porque lhe haveria de fazer essa pergunta?
- Só por graça. Nunca se sabe. Dora suspirou.
- Está bem, Mike, eu pergunto. Agora vou pagar o nosso almoço. Mas aviso-o de que vou pôr a despesa na conta da empresa.
- Acho bem - respondeu Trevalyan.
Na véspera do dia do Ano Novo, Dora e Mário foram à igreja, assistir ao serviço religioso do meio-dia. Depois, foram à procura do padre Piesecki e deram com ele na cave da igreja, onde, ajudado por um acólito gordo, dourava uma imagem de gesso. Falaram-lhe da festa que davam nessa noite e pediram-lhe que passasse por lá.
- vou tentar, mas tenho mais quatro festas para visitar - disse o padre.
- Temos kielbasa caseira - disse Mário.
- Lá estarei quando a festa começar - prometeu o padre Piesecki.
Foi uma noite louca e encantadora, com os amigos e a família a entrar e a sair. Muitos dos convidados trouxeram um prato coberto ou uma garrafa, e por isso houve de comer e beber com fartura. Os vizinhos tinham sido convidados, para prevenir eventuais queixas por causa do barulho. O padre Piesecki apareceu com o seu acordeão e não foi às outras quatro festas.
Ninguém bebeu de mais nem pisou o risco, e, se é verdade que a árvore de Natal tombou durante uma polca violenta, logo a levantaram. Até mesmo Mike Trevalyan e os colegas amigos de Mário se portaram razoavelmente bem. A pior coisa que aconteceu foi quando um tio de Dora, já idoso, deixou cair a dentadura na taça do ponche.
Mário começou a servir cafés expresso feitos na sua máquina nova à uma e meia da manhã, mas só por volta
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das três horas é que os últimos convidados saíram, a cambalear. Uma hora depois, quando a comida que sobrara estava guardada, os copos e a louça suja estavam no lava-louças e os cinzeiros estavam limpos, Dora e Mário beberam uma última taça de espumante, fizeram um brinde e caíram na cama, felizes. Não fizeram amor senão quando acordaram, às onze horas do dia 1º de Janeiro.
No dia seguinte, Dora regressou a Nova Iorque. Manhattan emergia ainda de uma camada de neve de doze centímetros, mas isso era agradável. A neve cobrira o lixo acumulado nos passeios e ainda não estava suja de dejectos de cão. As ruas tinham sido limpas, os autocarros rodavam de um lado para o outro e o céu azul parecia acabado de lavar e posto a secar.
Dora telefonou a John Wenden do seu quarto no Bedlington, mas ele só a contactou ao fim da tarde.
- Ólá, Ruiva - disse ele . - Como foram as férias?
- Formidáveis - respondeu Dora. - E as suas?
- Não tenho razão de queixa. Bebi de mais, mas toda a gente fez o mesmo. Como está o seu QM?
- O meu quê?
- O seu QM, Querido Maridinho.
- O meu marido está bem, obrigada - disse ela num tom severo, que provocou o riso de Wenden.
- Ouça, Ruiva - disse ele. - Finalmente tive notícias dos registos. O que eles conseguiram apurar sobre o padre Brian Callaway é mais ou menos aquilo que você me contou. O verdadeiro nome dele é Sidney Loftus, cometeu pequenas fraudes e vigarices, mas nada de crimes violentos. Não passou um único dia na choça... Acredita? Sobre Helene e Turner Pierce não há nada. Isso não quer dizer que eles estejam completamente limpos, apenas não foram apanhados. Deixe-me ver, que mais... Ah, é verdade, tive uma conversa cara a cara com os criados dos Starrett. Acabaram por admitir que a faca de cozinha de vinte centímetros desapareceu na noite em que Lewis Starrett foi morto.
- John - disse ela. - Eu pensava que você estava convencido de que Lewis e Solomon Guthrie tinham sido mortos por um ex-empregado.
- Convencido? Não, que diabo, eu não estava convencido. Mas quando dois tipos da mesma empresa são
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liquidados, impõe-se verificar se algum dos antigos empregados se quis vingar. É uma coisa que tem de ser feita, mas não é garantido que nos conduza ao caminho certo.
- Ainda bem que o diz. Nesse caso, acha que foi algum dos participantes daquela festa?
- Por tudo o que eu sei, até podia ter sido Jack, o Estripador - respondeu o detective. - O que vai fazer a seguir?
Dora hesitou por instantes, lembrando-se de que Trevalyan a aconselhara a não fazer demasiadas revelações sobre os seus passos.
- Não sei - respondeu. - vou apenas farejar um pouco por aí, acho eu.
- Que disparate! - retorquiu Wenden. - A menos que eu esteja enganado, você vai averiguar onde estava Callaway no momento em que Solomon Guthrie foi assassinado num táxi amarelo.
- Talvez - admitiu ela.
- Não desconfie de mim, Ruiva, senão acabo com a nossa bela amizade. Esqueça o Callaway. Eu já verifiquei. Estava num hospital, na manhã em que Guthrie foi liquidado.
- Num hospital? A fazer o quê?
- Uma pequena cirurgia. Eu dizia-lhe a fazer o quê, mas não quero que você core. Digo-lhe apenas que, neste momento, ele está sentado num grande donut de borracha. Assim sendo, não poderia ter morto Guthrie. Ficou desapontada?
- Sim, fiquei - respondeu Dora.
- Junte-se a mim - disse John. - E se almoçássemos os dois amanhã?
- Pode ser. Acha que suporta outra vez a comida do hotel?
- Eu suporto tudo desde que seja de borla. Podemos encontrar-nos cedo? Ao meio-dia?
- Está bem.
- Vai ser bom vê-la outra vez. Tive saudades suas, Ruiva - disse Wenden.
- Também eu - replicou Dora, escandalizada com o que estava a dizer. - John, como se chama o advogado da Starrett?
- Oh, oh, você não pára, não é verdade? Chama-se
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Arthur Rushkin. Baker Rushkin, na Quinta Avenida. £ outra que você me fica a dever.
- Não me esquecerei - prometeu ela.
- Não se esqueça - disse ele, e desligou.
Dora telefonou para a Baker & Rushkin, na Quinta Avenida, explicou quem era e disse o que pretendia. Ficou cinco minutos à espera, escutando Mack the Knife do outro lado da linha. Por fim, Arthur Rushkin atendeu. Dora voltou a identificar-se e perguntou se ele poderia recebê-la por alguns minutos.
- Amanhã estarei no tribunal, mas voltarei ao escritório por volta das quatro horas. O que lhe parece?
- Lá estarei, Mister Rushkin.
Em seguida, Dora sacou de uma cópia do relatório que entregara a Trevalyan. Releu-o pela enésima vez, à procura do que Mike dissera sobre a existência de um motivo lógico para Callaway ter matado Lewis Starrett. Ainda não o descobrira e pensara que talvez Trevalyan estivesse a pô-la à prova. Achava-o capaz de fazer uma estúpida partida desse género.
Mas desta vez descobriu-o, e bateu com a mão na testa, perguntando a si mesma como podia ter sido tão cega.
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Turner avisara Helene da reacção de Clayton à morte de Solomon Guthrie e sugerira-lhe que não desse muita importância ao assunto.
- Não vais ter dificuldades - previu. - A maior parte das pessoas acredita naquilo em que tem de acreditar, para se proteger da realidade.
- Mas tu não és assim - retorquiu Helene.
- Oh, não - respondeu Turner alegremente. - Eu tomo a realidade à letra. É delicioso, embora nos faça suar um pouco.
Mesmo assim, não era tarefa fácil convencer Clayton de que o assassínio de Guthrie fora o resultado de um simples assalto que dera para o torto. Ele admitiu que todos os dias se davam essas mortes absurdas em certas ruas
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de Nova Iorque, mas Helene percebeu que a culpa o atormentava. Clayton não conseguia libertar-se da sensação de que de algum modo contribuíra para a morte de Sol, de que fora de facto um acessório. Foi o termo que ele empregou: acessório.
Por fim, Helene ignorou as instruções de Turner sobre o modo como havia de lidar com aquele bebé-chorão e decidiu-se por um método mais elementar e eficaz: levou-o para a cama. Pouco depois, a tristeza desvanecera-se, a culpa fora esquecida e Clayton revelava o ardor frenético de um homem que pensara demasiado na sua condição de mortal.
Helene apercebeu-se do tom tétrico, mas nem por isso menos agradável, do seu arrebatamento. Ainda que depois tivesse de escutar os seus comentários banais sobre a transitoriedade da vida, sobre a importância de se "colherem da vida todas as flores que é possível", sobre a necessidade de evitar que, no leito de morte, se dissesse alguma vez "eu devia ter dado mais importância a este assunto", em suma, todos os lugares-comuns estafados que Helene já ouvira dúzias de vezes, em geral a homens mais velhos.
Mas desta vez a conversa foi diferente.
Deitado de costas, com as pernas juntas, os braços afastados do corpo, a olhar para o tecto como se o mundo fosse um cadáver retalhado à espera da mortalha, Clayton declarou:
- Decidi modificar a minha vida. Completamente. Disse-o num tom de desafio, como se esperasse oposição e se preparasse para a enfrentar.
- Modificar como, Clay?
- vou separar-me de Eleanor. Pensa-se que o casamento une as pessoas. Nós temo-nos afastado cada vez mais. Somos como estranhos. Eu já não a conheço, nem ela a mim. Não é assim que quero passar o resto da minha vida.
- Já lhe disseste alguma coisa?
- Não, ainda não. Antes disso, quero saber qual vai ser a reacção da minha mãe. E a tua.
- A minha? - perguntou Helene, receando o que viria a seguir. - Não tenho nada com isso.
Clayton virou a cabeça na almofada para olhar para ela.
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- Tens, sim. Porque se a minha mãe aprovar... Ou, pelo menos, se se mostrar neutra e eu deixar a Eleanor, quero casar contigo.
Helene era uma actriz perfeita, cujo rosto e voz revelavam todas as reacções adequadas às situações: choque, prazer, dúvida.
- Clay, eu não sou... - começou a dizer. Mas ele fez um gesto com a mão para a calar.
- Espera. Deixa-me acabar. Em primeiro lugar, o meu casamento tornou-se insuportável. É um dado. E não vejo hipótese de a situação melhorar. De modo nenhum. Por isso, independentemente do que decidas, a minha vida com Eleanor está acabada. Não deves considerar-te responsável por este rompimento. Teria acontecido mesmo que eu não te conhecesse.
- Vamos beber um copo? - perguntou ela.
- Não, ainda não. Não preciso. Helene, eu sei que tenho o dobro da tua idade, mas há decerto outras coisas mais importantes. Somos parecidos, rimo-nos das mesmas coisas, damo-nos às mil maravilhas, e estamos a construir uma série de memórias partilhadas, não estamos?
- Estamos.
- Posso não ser o melhor do mundo, mas também não sou uma besta completa, pois não?
- Tens tudo o que é preciso para eu te aturar - respondeu ela, fazendo-o sorrir de satisfação.
- O mais importante é o nosso futuro - prosseguiu Clayton com determinação. - O nosso futuro em termos financeiros. E esse posso eu assegurar. Eu sei que, se não te ajudasse, tu dependerias da generosidade do teu irmão. Porém, durante quanto tempo queres manter-te nessa situação? E se ele tiver reveses financeiros (tudo é possível), onde irás parar? O que estou a oferecer-te é segurança, agora e no futuro. Tens de pensar no teu futuro.
- Sim. É verdade - respondeu ela.
- Casa comigo, e poderemos redigir uma espécie de acordo para que, se eu morrer de repente ou o nosso casamento não resultar, tu fiques em boas condições. Sei como gostas de gozar a vida. Esta é a tua oportunidade de assegurares que podes continuar a gozá-la.
- És o vendedor perfeito - disse ela com um risinho metálico. - Acho que vou beber um copo. Também queres?
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- Quero - respondeu ele.
Nua, na cozinha, com os braços firmemente apoiados na bancada, Helene perguntava a si mesma como poderia contornar esta complicação. Gostaria que Turner estivesse ali para aconselhá-la, mas sabia o que ele iria dizer: espera, espera, espera. Até ambos entenderem as alterações que se iriam verificar e decidirem o que seria melhor para eles.
Deitou a vodca sobre o gelo, juntou cascas de limão e levou os dois copos para o quarto. Era uma jovem altiva e esbelta, com corpo de bailarina e apetites sem fim.
Estendeu um copo a Clayton e depois sentou-se aos pés da cama, de pernas cruzadas.
- Não vou comentar o facto de deixares a tua mulher
- disse ela. - Nunca to propus, não é verdade? Nem mesmo aflorei o assunto. Mas não percebo porque sentes que tens de casar comigo. Porque não podemos continuar como estamos? Sinto-me perfeitamente bem.
Clayton abanou a cabeça.
- Em primeiro lugar, sou um homem muito convencional. Apegado às tradições e tudo isso. Se mantenho uma relação duradoura com uma mulher, devo legalizá-la. Foi assim que me ensinaram. Em segundo lugar, por razões meramente egoístas, quero-te na minha vida. Quero ser visto contigo em público, levar-te ao teatro e a festas, ouvir-te dizer que és a mulher de Clayton Starrett. Não quero ver os outros a rirem e a cochicharem: "É o Clay com a amante." Isso não teria bons resultados na Joalharia Starrett Fine. Seria mau em termos de relações públicas.
- Verifico que pensaste nesse assunto muito a sério.
- Sim, pensei - respondeu Clayton, sem se aperceber da ironia de Helene. - E acho que tu também deves pensar. Não estou à espera que me respondas agora, mas, se reflectires maduramente, sei que verás as vantagens da situação, em especial sob o ponto de vista da segurança.
- Não te importas que eu fale nisto ao meu irmão, pois não?
- Claro que não - respondeu ele com um sorriso cínico. - Já estava a contar com isso. Sei como vocês são íntimos e aposto que ele estará de acordo. Ele dir-te-á que é o melhor que tens a fazer, a sorte grande.
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Helene não respondeu.
Clayton acabou a bebida e levantou-se da cama.
- Ouve, tenho de voltar para o escritório. A confusão é enorme desde que Sol morreu. Dick Sattterlee tomou conta das coisas e está a fazer o que é possível. Mas Sol tinha uma série de assuntos na cabeça e Dick vai levar tempo a pôr tudo em ordem.
Depois de vestido, tirou uma pequena bolsa de camurça da algibeira e atirou-a para cima da cama.
- É de dois quilates. Em forma de pêra. Tem uma pequena impureza na base, mas não se dá por isso.
- Obrigada - agradeceu ela em voz baixa.
- Espero que a minha próxima prenda seja um solitário - disse ele. - E prometo que terá mais de dois quilates.
- Clay, amas-me? - perguntou Helene. Clayton fez um gesto com a mão.
- Isso nem é preciso dizer - concluiu, inclinando-se para beijá-la.
Depois de ele sair, de ter fechado a porta à chave e de ter posto a corrente, Helene foi juntar o diamante novo ao seu tesouro e sentou-se a admirar a sua colecção reluzente. Não queria telefonar logo a Turner. Precisava de pensar, fazer planos, imaginar a melhor maneira de chegar à sorte grande.
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A neve derretera, contudo as goteiras ainda estavam cheias de lixo e algumas esquinas eram autênticos lagos. Mas como recuperara quase dois quilos e meio durante as férias em casa, Dora decidiu que o passeio a pé até ao centro lhe faria bem. Almoçara com John Wenden e, cheia de boas intenções, limitara-se a mordiscar uma pequena sanduíche de atum e a beber chá.
- Está doente? - perguntou John.
- Estou de dieta - explicou ela. - É a minha decisão de Ano Novo.
- Eu também fiz uma, para cortar com a cerveja - disse ele bebendo a cerveja.
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Curiosamente, falaram pouco do caso Starrett durante o almoço. No essencial, trocaram recordações de natais passados, quando eram pequenos, o mundo reluzia de esperança e os sonhos não tinham fim.
- Não duraram muito - disse Wenden. - com dez anos, já eu sabia que nunca viria a ser presidente de coisa nenhuma.
- Mesmo em criança, eu era rechonchuda - disse Dora. - E o engraçado é que as outras raparigas me escolhiam como amiga porque não queriam concorrentes.
- Ninguém me escolheu como amigo - disse John. Sempre fui um solitário. Talvez tenha sido por isso que o meu casamento não resultou.
- Continua a ver a sua ex-mulher?
- Não - respondeu secamente. - Ouvi dizer que ela anda a namoriscar um barbeiro de Yonkers. Serve-lhe perfeitamente.
Dora riu-se.
- Acho que devia voltar a casar, John. O rosto dele iluminou-se.
- A minha primeira proposta deste ano!
- Não é comigo, seu parvo - respondeu Dora. - Eu sou comprometida.
- Nem mesmo por uma semana? - perguntou John, olhando para ela.
- Nem mesmo por uma noite. Você não desiste, pois não?
- Nunca se cansa do seu marido?
- Nunca.
- Ele não viria a saber. Seria um acto de caridade.
- Seria um acto de estupidez - concluiu ela.
A caminho do centro, tentando saltar as poças de água e evitar os borrifos produzidos pela passagem dos automóveis, Dora recordou a conversa do almoço e sorriu ante a insistência de John. Na sua opinião, era um cumprimento que um homem se atirasse a ela daquela maneira. Mas também era aborrecido, e não percebia como é que Mike Trevalyan descobrira logo as intenções de Wenden, sem nunca o ter visto. Talvez porque Trevalyan tinha desejos semelhantes, pensou com astúcia.
Os homens, concluiu, tinham nascido para o eterno desejo. Excepto Mário, evidentemente. Verdade? Verdade?
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Como estava adiantada para o encontro com Arthur Rushkin, passou pela loja da Starrett em Park Avenue. Havia pouca gente a comprar e a maioria limitava-se a examinar os escrínios com anéis de diamantes, relógios de ouro, alfinetes de pedras preciosas e, em particular, um esplêndido colar de três voltas, de rubis e esmeraldas, que, pelos cálculos de Dora, devia custar mais do que a vivenda dos Conti em Hartford.
De caminho, tirou um pequeno folheto em papel lustroso: um formulário para uma conta-corrente. Incluía também uma breve história da Joalharia Starrett Fine e indicava os endereços de todas as filiais. Dora enfiou-o na carteira, para juntar ao dossier da Starrett, e depois encaminhou-se para o escritório do advogado, na 5ª Avenida.
Não esperou mais de cinco minutos na recepção. Arthur Rushkin saiu do gabinete, apresentou-se, apertou-lhe a mão e perguntou-lhe se queria tomar um café. Dora não aceitou, mas agradaram-lhe os seus modos amigáveis. Se estava a representar, era um bom actor.
O advogado mandou-a sentar junto da secretária antiga que havia no gabinete e depois instalou-se confortavelmente na grande cadeira giratória. Entrelaçou os dedos sobre o colete aveludado e olhou para ela com um ar afável.
- É Mistress Conti, não é verdade? - perguntou. Dora fez um sinal afirmativo.
- Espero que não se ofenda, Mistress Conti, mas depois de me ter telefonado tirei informações suas. Gosto de saber alguma coisa sobre as pessoas que vêm ter comigo. Talvez lhe agrade saber que é muito considerada. As pessoas com quem falei apresentaram-na como sendo uma profissional muito inteligente e uma inspectora dedicada.
- Sim, agrada-me sabê-lo - respondeu ela.
- Suponho - prosseguiu ele a sorrir - que o seu trabalho é certificar-se, antes de o pedido de indemnização ser aprovado, de que nenhum dos beneficiários esteve envolvido na morte de Lewis Starrett.
- Em parte - respondeu ela cautelosamente.
- E o que descobriu?
- Nada de definitivo - disse ela. - Há ainda muitas perguntas sem resposta. Mister Rushkin, sabe se Lewis Starrett tinha inimigos que pudessem querer-lhe mal?
O advogado abanou a cabeça.
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- Lew era, às vezes, um homem muito difícil, mas não conheço ninguém que o odiasse ao ponto de lhe enfiar uma faca nas costas.
Dora suspirou.
- É o que toda a gente diz. E toda a situação se complicou ainda mais com o assassínio de Solomon Guthrie.
Rushkin deixou de sorrir.
- Sim, imagino - disse em voz baixa.
Depois, manteve-se calado durante tanto tempo que Dora perguntou a si mesma se ele estaria à espera que ela falasse. Por fim, levantou-se e foi até à janela que dava para a 5ª Avenida. Ficou ali, a olhar, de costas para ela, com as mãos nos bolsos das calças.
- Vamos supor o seguinte, Mistress Conti - disse com voz soturna. - Se eu lhe revelasse matéria que possivelmente (e repito a palavra "possivelmente") viesse a ajudá-la na sua investigação, e se dessa matéria resultasse uma possível prova de qualquer irregularidade ou ilegalidade, a senhora sentir-se-ia impelida a apresentar essa prova às autoridades?
- Claro que sim - respondeu Dora sem hesitar. O advogado voltou-se para ela.
- É claro que eu nunca lhe pediria para não o fazer. Afinal, eu sou, por assim dizer, um membro do tribunal. Mas qual seria a sua reacção se eu lhe pedisse que, caso a senhora descobrisse uma prova incriminatória, ma revelasse primeiro antes de contactar a polícia?
Dora ficou a pensar. Depois, ergueu o queixo e respondeu, num tom decidido:
- Creio que isso não seria possível, Mister Rushkin. Não estou a pôr em causa a sua honestidade nem a sua ética profissional, mas tenho de admitir a hipótese de que a prova que eu viesse a descobrir pudesse implicar alguém que lhe fosse chegado, alguém a quem se sentisse ligado por uma forte amizade pessoal. Nesse caso, ao revelar-lhe a prova antes de contactar a polícia, possivelmente (e repito a palavra "possivelmente") o resultado seria o rápido desaparecimento do suspeito.
Rushkin sorriu, contrafeito.
- O louvor à sua inteligência era justificado - disse, voltando a sentar-se na cadeira giratória. Começou a brincar com uma caneta que estava na secretária, enquanto
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Dora observava as pregas grossas formadas pela pele da cara e do pescoço. Era um homem de cara gorda, mas a tristeza conferia uma espécie de nobreza às suas feições.
- Nestas últimas semanas, pôs-se-me um problema - confessou, sem olhar para ela. - Um problema que pode achar ridículo, mas que me tem custado algumas noites de sono. A questão é a seguinte: a quem devo eu lealdade? Em todo este caso triste, quem é o meu cliente? Era Lewis Starrett? É a família Starrett ou algum membro dela? Ou os empregados da Starrett, incluindo Sol Guthrie? Quem represento? Cheguei a uma conclusão que pode achar estranha, mas decidi que o meu cliente é aquele que me paga os honorários. Neste caso, é a Joalharia Starrett Fine, Inc. O meu cliente é uma empresa, não os vários donos ou empregados dessa empresa, mas a própria empresa, e é perante essa entidade legal que sou responsável.
- Não acho nada estranho - retorquiu Dora. Quem paga é que manda.
- Sim, é mais ou menos isso - prosseguiu Rushkin. A minha luta com este problema tornou-se mais difícil, dada a minha relação pessoal com Lewis Starrett e Solomon Guthrie. Eram ambos velhos e bons amigos, e já não me restam muitos como eles. Eu não gostaria, através dos meus actos, de manchar a sua reputação ou desgostar as famílias. Creio que eram ambos homens íntegros. E gostaria de continuar a acreditar nisto.
- Mister Rushkin - disse Dora com brandura -, é óbvio que o senhor sabe qualquer coisa acerca deste caso que o perturba fortemente. Proponho que me diga do que se trata. Não posso prometer-lhe um sigilo total e eterno, porque poderei alguma vez ser chamada a testemunhar em tribunal. Tudo o que posso dizer-lhe é que farei todos os esforços para tratar o que quer que me diga como uma comunicação de carácter particular, que não será divulgada sem a sua autorização.
O advogado fez um sinal afirmativo.
- Muito bem, aceito - disse.
Em seguida, contou-lhe que, uns dias antes da sua morte, Solomon Guthrie estivera naquele mesmo gabinete, sentado precisamente na cadeira em que se encontrava agora Mrs. Conti, e lhe dera conta das suas suspeitas acerca de algo ilegal que se passava na Joalharia Starrett
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Fine, Inc. Não tinha provas para sustentar as suas acusações, mas estava convencido de que havia uma fraude, e sentia que ela talvez estivesse relacionada com o negócio de barras de ouro da Starrett.
- Ele descreveu-me exactamente como se processava o negócio - relatou Arthur Rushkin a Dora. - E eu não me apercebi de qualquer ilegalidade. Pareceu-me uma prática negocial convencional: comprar barato e vender caro.
- Mister Guthrie citou o nome da pessoa, ou pessoas, que ele suspeitasse estarem envolvidas em ilegalidades?
- De facto, não acusou ninguém - respondeu o advogado. - Mas deu a entender que Clayton Starrett sabia o que se estava a passar.
Depois, Rushkin contou que Solomon Guthrie deixara um grande maço de folhas de computador em seu poder e lhe pedira para as examinar, na esperança de vir a descobrir-se alguma prova de roubo, fraude ou de qualquer outro crime que estivesse a ser perpetrado.
- Arrumei as folhas e esqueci o assunto - confessou Rushkin. - Depois, Sol foi morto, e pode imaginar como me senti culpado. Peguei nas folhas e levei horas a examiná-las, uma por uma. Não detectei nada a não ser transacções comerciais vulgares: a compra e a venda de barras de ouro pela Joalharia Starrett Fine, Inc., durante os últimos três meses. Fiquei um pouco admirado com o volume de ouro transaccionado, mas todas as operações se encontram amplamente documentadas.
Rushkin acrescentou que chamara um perito em computadores, um homem da sua inteira confiança, e lhe pedira que examinasse as folhas para tentar descobrir discrepâncias ou algo que lhe parecesse minimamente suspeito. O perito não descobrira a mínima coisa.
Mas o advogado prosseguiu, afirmando que não conseguia deixar de pensar que as folhas de computador constituíam, de facto, a última vontade e testamento de Solomon Guthrie e que ele, Rushkin, se sentiria a decepcionar o seu cliente, a Joalharia Starrett Fine, se não prosseguisse as investigações.
- Exactamente - disse Dora. - Acho que devia fazê-lo. Diga-me uma coisa, Mister Rushkin: alguém da Starrett sabe que Solomon Guthrie veio ao seu escritório?
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O advogado ficou a pensar.
- Ele pediu-me que não falasse a Clayton Starrett da sua visita, mas depois acrescentou que a secretária, a secretária de Sol, sabia que ele viera cá.
- E, para além do que ele pensava existir nas folhas de computador, não tinha mais nenhuma prova das suas suspeitas?
- Bem, ele disse-me que Clayton Starrett lhe dera um aumento anual de cinquenta mil dólares. Eu felicitei-o pela sua boa sorte, mas Sol estava convencido de que se tratara de um suborno para que ele não falasse e não abanasse o barco. Estava muito nervoso, e eu quase me ri do que considerei ser uma desconfiança infundada do patrão. Penso agora que estava enganado e que devia ter encarado o caso mais a sério.
- O senhor não podia adivinhar que ele viria a ser assassinado. E há sempre a possibilidade de as suas suspeitas não estarem relacionadas com a sua morte.
- Acredita nisso? - perguntou Rushkin.
- Não - respondeu Dora. - E o senhor? O advogado abanou a cabeça.
- Já lhe disse que me sinto culpado por ter ignorado o que Guthrie me contou. Também sinto uma raiva profunda e permanente por quem matou aquele homem adorável.
- Suspeita de Clayton Starrett? - sugeriu Dora. Rushkin fulminou-a.
- De maneira nenhuma! Sou padrinho daquele rapaz, e garanto-lhe que ele é totalmente incapaz de cometer um acto violento, seja de que tipo for.
- Se o afirma... - disse Dora.
O advogado respirou fundo e inclinou-se sobre a secretária, para se aproximar dela.
- Mistress Conti, quero dar-lhe as folhas de computador. Talvez a senhora consiga descobrir alguma coisa que nem eu nem o perito detectámos. Dá uma vista de olhos por elas?
- Claro que sim. Farei um exame longo e cuidadoso. Estava à espera que mo pedisse, Mister Rushkin. Mas, diga-me, de que maneira pensa que os negócios das barras de ouro podem estar relacionados com a morte de Lewis Starrett?
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O advogado encolheu os ombros.
- Não faço ideia. A menos que Lew tivesse descoberto alguma coisa e precisasse de ser silenciado.
- E depois Solomon Guthrie descobriu a mesma coisa e também teve de ser silenciado?
O homem ficou a olhar para ela.
- É possível, não é?
- É. É bem possível - respondeu Dora.
Suspirando, Rushkin abriu a gaveta do fundo da secretária e retirou um grande maço de folhas de computador. Tomou-lhes o peso.
- Sabe - prosseguiu. - Não sei se desejo que venha a descobrir qualquer coisa. Se não descobrir nada, então a minha culpa por ter tratado Sol com tanta leviandade será menor. Se descobrir alguma coisa, então receio que as pessoas que eu conhecia e amava possam ter sido gravemente atingidas.
- Logo se vê - disse Dora, retirando-lhe das mãos o maço de folhas e despejando-o na mala a tiracolo. Muito obrigada pela sua ajuda, Mister Ruskin. Irei dando notícias..Se quiser contactar-me, estou hospedada no Hotel Bedlington, em Madison Avenue.
O advogado tomou nota num bloco que tinha em cima da secretária e Dora encaminhou-se para a porta. Depois, parou e voltou-se para trás.
- Conhecia Lewis Starrett há muito tempo? - perguntou.
Rushkin voltou a sorrir.
- Antes de a senhora ter nascido. Foi um dos meus primeiros clientes.
- O meu chefe disse-me para fazer esta pergunta: ele tinha alguma amante?
O sorriso desapareceu. O advogado lançou-lhe um olhar implacável.
- Que eu saiba, não - respondeu.
Quando Dora abriu a porta, Rushkin chamou-a e ela voltou-se para trás.
- Mistress Conti, há muitos anos - disse o advogado.
Dora esteve muito tempo à espera do elevador e depois desceu sozinha, até chegar à rua, com a consciência de que um elevador sem ninguém fomenta a introspecção. No seu caso, sentia-se feliz por ter ar de dona de casa rechonchuda.
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Se tivesse aparência e modos de mulher fatal, duvidava que o advogado Arthur Rushkin lhe tivesse revelado até que ponto o seu sorriso luminoso ocultava um desgosto.
Regressou ao Bedlington, agarrada à carteira como se transportasse nela o Santo Graal. Aferrolhou-se no quarto, atirou com os sapatos, pôs os óculos e começou a examinar as folhas de computador, convencida de que iria descobrir o que outros dois (homens!) tinham deixado passar.
Começou por dar uma vista de olhos rápida, para ter uma noção do que tratavam. Parecia tratar-se de um simples registo de compras de ouro no estrangeiro. Carregamentos de ouro efectuados pelos agentes dos fornecedores, nos Estados Unidos, para a casa-forte da Starrett, em Brooklyn. Venda de barras de ouro pela Starrett às suas filiais. Vendas das filiais a pequenas joalharias da zona.
Depois, começou a estudá-las lenta e cuidadosamente. A documentação pormenorizava meticulosamente todas as fases: números e datas dos contratos de venda, facturas, guias de remessa, cheques, registos electrónicos de transferências de dinheiro da Starrett para o estrangeiro. Dora reviu todas as transacções e conferiu mesmo as somas, subtracções e percentagens com a sua calculadora de bolso. Tudo estava certo até ao cêntimo.
De repente, cerca das nove e meia da noite, deu-se conta de que estava esfomeada. Durante o dia, não comera nada a não ser aquela desprezível sanduíche de atum, ao almoço. Telefonou apressadamente lá para baixo e apanhou a cozinha quase a fechar. Convenceu um cozinheiro mal-humorado a preparar-lhe duas sanduíches de galinha em pão de trigo, a muito custo. Enquanto esperava a chegada do criado, fez um bule de chá muito forte.
E foi o seu jantar: sanduíches que lhe souberam a cartão molhado e um chá tão forte que dava para tirar o verniz de um móvel. Enquanto comia, pegou de novo nas folhas de computador, verificando metodicamente todas as operações, em busca de qualquer indício, ainda que ténue, de fraude. Não descobriu nada.
Por volta da meia-noite, já tinha a vista cansada e desistiu. Tomou um duche quente, pensando que talvez Solomon Guthrie tivesse visto fraudes onde não as havia.
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E se havia algo errado, como Mike Trevalyan sugerira, não seria nos negócios de ouro da Starrett que ela o descobriria.
Mas não conseguia dormir. Sentia a cabeça a latejar. Tentou abordar o problema de um ângulo diferente. Se Arthur Rushkin, o perito e ela mesma não tinham conseguido descobrir nada nos pormenores das folhas, talvez a corrupção estivesse implícita na própria concepção de negócio das barras. Talvez houvesse uma grande fraude, tão óbvia que ninguém dava por ela, semelhante àquela situação em que Mário perguntava às vezes: "Onde estão os orégãos?", com o frasco mesmo na bancada à sua frente. Então, Dora dizia-lhe: "Se eles tivessem dentes, mordiam-te."
Às duas horas da manhã, levantou-se da cama. Acendeu a luz e pôs os óculos. Desta vez, deu uma olhadela rápida pelas folhas, tentando a "grande história". E descobriu-a. Nada de avassalador. Talvez fosse inócua e pudesse ser explicada com facilidade. Mas era uma anomalia que, embora pequena, constituía a sua única esperança.
Procurou na carteira, com nervosismo, o folheto que trouxera da Joalharia Starrett Fine, na manhã do dia anterior: o formulário para abertura de conta-corrente que também indicava os endereços das filiais da Starrett. Verificou a sua localização nas folhas de computador.
Depois, a sorrir, voltou para a cama e adormeceu quase instantaneamente.
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- Este kir é doce de mais - lamentou-se Helene Pierce.
- Tu nasceste mulher e as mulheres estão condenadas à insatisfação eterna. Olha que é do verdadeiro. Agora come uma uva - disse Turner Pierce.
Turner congelara uma porção de uvas brancas, sem grainhas. Estavam duras como pedra, mas amoleciam na boca e desfaziam-se deliciosamente nos dentes.
Os Pierce estavam instalados languidamente nos sofás
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bem estofados do apartamento de Turner. Tinham almoçado no Vi to: massa Primavera, salada de agriões e uma garrafa de Pinot Grigio. Agora, estavam cheios de comida e de vinho, a brincar com os kirs e as uvas geladas e a recordar os tempos em que comiam arroz com feijão.
- Tenho uma coisa para te contar - disse Helene.
- E eu tenho uma coisa para te contar - disse ele. Mas, continua. Primeiro as senhoras.
- Desde quando? bom, Clayton pediu-me em casamento.
Turner ia perdendo a compostura. Esvaziou o copo.
- Quando foi isso? - perguntou com voz rouca.
- Há uns dias.
- E porque não me disseste logo?
- Não é pressa - respondeu ela. - Ele tem de pedir primeiro autorização à mamã.
- Claro, agora ela é dona da empresa. Ele vai mesmo divorciar-se da Eleanor?
- É o que ele diz.
- Que grande merda!
- Exactamente, que grande merda! - respondeu Helene. - Como vamos nós resolver isto?
- Antes de pensarmos nisso a sério, prefiro dar-te a minha novidade. Vais-te rir. Felicia quer casar comigo.
Olharam um para o outro. Queriam rir mas não conseguiam.
- Esta família está a portar-se muitíssimo bem - disse Turner, com um sorriso amarelo. - O que te propôs Clayton?
- Estabilidade financeira. Um acordo pré-nupcial nos termos em que eu entender.
- Muito parecido com o que Felicia me propôs. Isto envolve montes de massa, menina.
- Eu sei.
- Bolas! - explodiu. - As coisas estavam a correr tão bem, e agora isto. Quanto tempo podes fazer Clayton esperar?
Helene encolheu os ombros.
- Até ele conseguir o divórcio. Se Eleanor contratar um bom advogado, poderá demorar um ano. Pára de roer as unhas.
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Turner respirou fundo.
- Isso quer dizer que teremos de rever o nosso calendário. Mais um ano neste negócio, e acabou.
- E Felicia?
- vou pensar numa solução.
- Queres cortar com tudo e fugir já? - perguntou Helene, com curiosidade.
Ele abanou a cabeça.
- Este negócio levou muito tempo e foi difícil de conseguir. Está justamente a começar a dar lucro. Não vou largá-lo. Além disso, se eu saísse, Ramon constituiria um pequeno obstáculo.
- A declaração do ano! - disse ela. Ele concordou, desanimado.
- Hei-de descobrir uma maneira de lidar com Felicia. É Clayton que me preocupa.
- Tu preocupas-te de mais. Deixa isso comigo - rematou Helene.
- Se o dizes - disse ele, desconfiado, encaminhando-se para a cozinha para ir buscar mais kir.
Helene levantou-se do sofá e acendeu um cigarro lentamente. Ouvia-o de um lado para o outro, o ruído do vinho, o tilintar dos copos. Olhou para a porta da cozinha, de sobrolho carregado.
Notara qualquer coisa na voz dele que a perturbara. Não era pânico - ainda não -, mas uma insegurança que nunca lhe sentira antes. Dos dois, era ele quem lhe incutia autoconfiança.
- Não te preocupes - ensinara-lhe ele. - com nada. Isso dá-te uma margem sobre todos os que acreditam nalguma coisa.
E era assim que ambos tinham gozado a vida. A amoralidade era a sua religião, e tinham florescido. E quanto maior era o sucesso, maior era a confiança. Olhavam o mundo com sobranceria e afastavam-se a rir. Mas agora, na opinião dela, a segurança de Turner estava a esboroar-se. Imaginou todos os cenários que poderiam resultar da fraqueza dele e qual o impacte que teriam na sua vida.
Turner trouxe mais bebidas da cozinha, e ela sorriu-lhe, pensando que, se a situação se complicasse, ela teria de fazer uma escolha difícil.
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Dora acordou, no dia seguinte, convencida de que o quebra-cabeças da noite anterior lhe tinha provocado esse mesmo efeito: que lhe tinha partido a cabeça. Agora, à calma luz do dia, parecia-lhe bastante improvável que o pormenor que detectara nas folhas de computador tivesse algum significado. Havia uma dúzia de explicações inocentes para justificá-lo. Era uma questão menor. Não a levaria a lado nenhum.
Mesmo assim, pensou, mal-humorada, aquilo era tudo o que tinha, e merecia, pelo menos, dois telefonemas. Então, ligou a Arthur Rushkin. Ainda não tinha chegado ao escritório, e Dora continuou a tentar, de quinze em quinze minutos, até que, cerca das dez e meia, conseguiu falar com ele.
- Descobriu alguma coisa? - perguntou ele, ansioso.
- Não - respondeu ela, perguntando a si mesma se a dissimulação fazia parte do seu trabalho ou do seu carácter. - Tenho apenas uma questão técnica a esclarecer e gostaria de saber se pode dar-me o nome daquele perito de computadores que consultou.
- Não vejo motivos para não o fazer - respondeu Rushkin, devagar. - Chama-se Gregor Pinchik e está no directório de Manhattan. Tem os seus negócios próprios: consultoria informática para bancos, corretores, empresas de cartões de crédito e outras.
- Parece ser mesmo a pessoa que me convém.
- Há duas coisas que deve saber sobre ele - prosseguiu o advogado. - Primeira, cobra cem dólares à hora. Segunda, é um ex-criminoso.
- Oh, oh! Porquê? - perguntou Dora.
- Por fraude num sistema informático - respondeu Rushkin, a rir. - Mas desde essa altura descobriu que fazia mais dinheiro a dizer aos clientes como deveriam evitar ser apanhados por espertalhões como ele. Quer que eu telefone a Pinchik para o avisar de que vai contactá-lo? Assim, poderá evitar a lengalenga das identificações.
- Seria uma boa ajuda. Muito obrigada, Mister Rushkin.
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Em seguida, Dora telefonou para Mike Trevalyan, em Hartford.
- Já descobriu alguma coisa? - perguntou ele.
- Não - voltou a responder Dora -, mas surgiu qualquer coisa que precisa de ser esclarecida. Mike, lembra-se de me ter contado a história da Joalharia Starrett Fine? Disse-me que, há cerca de um ano, Clayton Starrett tinha despedido a maior parte dos gerentes das filiais e admitido gente nova. E que foi nessa mesma altura que começou a negociar em barras de ouro.
- E então?
- A Starrett tem quinze filiais, além da sede em Nova Iorque. O que preciso de saber é o seguinte: quais as filiais que mudaram de gerente há um ano.
- Não sei se posso conseguir essa informação - respondeu Trevalyan. - Mas, se é importante, vou tentar.
- É importante - assegurou Dora.
- Como é que eu acabo sempre a fazer o seu trabalho?
- Não todo. Também lhe queria dizer que vou contratar um consultor informático.
- Mas para quê?
- Porque é preciso - respondeu Dora pacientemente. - Questões técnicas a que só um especialista pode dar resposta.
- E quanto é que ele cobra?
- Cem dólares por hora.
- O quê? - urrou Trevalyan. - Você está doida? Cem dólares por hora? Isso quer dizer que a companhia vai pagar vinte cinco dólares sempre que esse tipo for à casa de banho.
- Mike - disse Dora, suspirando. - Tem mesmo de ser assim tão porco e ordinário? Ouça, se você precisasse de fazer uma operação ao cérebro (o que, às vezes, me parece que lhe faria falta) andaria à procura do cirurgião mais barato que encontrasse? A especialização paga-se, como você sabe.
- Tem a certeza de que esse tipo é um especialista?
- O melhor que há nesta matéria - respondeu Dora, omitindo que o homem estivera implicado numa fraude de computadores.
- Bem... De acordo - resmungou Trevalyan. - Mas tente utilizá-lo só por uma hora.
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- vou tentar - prometeu ela, tendo o cuidado de cruzar os dedos.
O seu terceiro telefonema da manhã foi para Gregor pinchik, cujo endereço no directório era na Rua 23 Oeste.
Dora disse quem era e perguntou se Mr. Arthur Rushkin já o tinha informado de que ela iria telefonar-lhe.
- Sim, telefonou-me - respondeu o consultor com a voz arrastada. - E ele falou-lhe dos meus honorários?
- Cem dólares por hora?
- Exactamente. E acredite, minha senhora, que valho o dinheiro. Do que se trata?
- Preferia não falar do assunto pelo telefone. Podemos encontrar-nos em qualquer lado?
- Porque não? E se viesse até ao meu escritório?
- Pode ser. A que horas?
- Ao meio-dia. Que lhe parece?
- Lá estarei - respondeu Dora.
- Fica na parte oeste da Nona Avenida. Não se assuste com o prédio. Está a ser demolido e, neste momento, sou o único inquilino. Mas o intercomunicador ainda funciona. Toque lá em baixo (três toques rápidos e um longo) e eu abro-lhe a porta, está bem?
- Está bem. vou já para aí - disse Dora.
O prédio, decrépito, da Rua 23 Oeste tinha andaimes e viam-se operários a espreitar por entre as cantarias a esboroarem-se e o revestimento de tijolo. O entulho caía lá em baixo, dentro de taipais de contraplacado que protegiam o passeio.
Nervosa, Dora entrou no vestíbulo sujo e tocou no único botão que viu: três toques curtos e um longo. Ouviu-se o ruído do trinco eléctrico. Ela empurrou a porta e subiu com cautela cinco lanços de escadas de madeira quase a desfazerem-se, pensando que, por cem dólares à hora, Gregor Pinchik poderia comprar um escritório com melhor aparência.
O homem que veio cumprimentá-la à porta do último andar era baixo, entroncado, com cabelo à Einstein e barba à Smith Brothers, bastante encrespada. Mas os olhos eram vivos e o sorriso agradável.
- É um belo sítio, hem? - disse ele, a sorrir. - Para a semana, vou mudar-me para o Soho, assim que eles me trouxerem os cabos eléctricos para os computadores. Veja
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onde põe os pés e no que toca. Está tudo sujo e a desfazer-se.
Conduziu-a para um aposento enorme, repleto de caixotes e caixas de cartão. Uma mesa de jogo fazia de secretária e o telefone estava coberto com um plástico. O homem serviu-se do lenço de assoar para limpar a cadeira metálica onde Dora se sentou. Dora remexeu na carteira, descobriu um cartão da companhia e estendeu-lho.
Pinchik inspeccionou-o e riu-se.
- Eu conheço a companhia - disse. - O sistema informático deles tem mais buracos do que uma tábua velha. Fui lá uma vez, apenas por graça, compreende? Dei uma vista de olhos, mas não vi nada com interesse. Diga ao seu patrão que o sistema de segurança dos computadores dele é uma brincadeira.
- Vou-lhe dizer - prometeu Dora. - O senhor é programador?
- Sou um superprogramador - disse ele. - Protejo os meus clientes de bisbilhoteiros electrónicos como eu. O que quer dizer que tenho de andar sempre à frente dos curiosos, e isso não é fácil. A propósito, a sua primeira hora de consulta começou quando você tocou à campainha.
Dora fez um sinal de assentimento.
- Mister Rushkin disse-me que o senhor esteve a rever as folhas de computador da Starrett e que não descobriu nada errado.
Pinchik fez um gesto de indiferença.
- Aquilo não era um trabalho de computador a sério
- disse. - Trata-se apenas de processamento de dados. Você poderia ter feito a mesma coisa com uma máquina de somar ou uma calculadora de bolso, se quisesse passar o tempo.
- Mas é rigoroso? - insistiu Dora.
- Rigoroso? - Pinchik soltou uma gargalhada seca. É tão rigoroso como o que puseram lá dentro. O que sai depende do que entra. Se enchermos um computador de dados falsos, o que sai são dados falsos. Muita gente tem dificuldade em perceber que um computador não tem consciência. Ele não sabe o que está certo ou errado, o que é bom ou mau. Se o programarmos para que nos diga
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como havemos de fazer o mundo ir pelos ares, ele trabalha uns segundos e depois diz-nos. Não se rala. Rushkin disse-lhe que eu estive preso? Dora fez um sinal afirmativo.
- Deixe-me contar-lhe como tudo aconteceu - disse pinchik. - Se não se importa de gastar uma parte dos seus cem dólares por hora...
- Não me importo - respondeu Dora.
- Eu tenho o quarto ano do liceu, mas sou um barra em computadores. Muitos programadores têm essa paixão. Em mim, é uma obsessão. Eu era vendedor numa firma de computadores na Rua Quarenta e Seis Oeste. Comprava equipamentos novos com desconto de empregado e vivia aqui com uma renda barata. Trabalhava oito horas por dia na firma e passava outras oito de roda dos programas. Fazia programas e correspondia-me electronicamente com gente de todo o mundo, tão louca como eu. Não posso enumerar todos os sistemas em que me meti: governo, universidades, laboratórios de investigação, exército, bancos, a nata toda.
"Agora, tenho de dizer-lhe que sou divorciado. A minha mulher queixou-se que era viúva de um computador, e tinha razão. Agora vive no Havaí e sei que anda a dormir com um tipo novo, bonitaço, que usa brincos, toca tambor e assa leitões para os turistas. Mas isso é com ela. Eu é que tinha de lhe mandar o cheque da pensão todos os meses. Estou a aborrecê-la?
- Não, não - respondeu Dora, que pensava no detective John Wenden e nos seus problemas com a pensão.
- Estou interessada.
- Bem, aqueles cheques todos os meses estavam a dar cabo de mim. Eu poderia pagá-los se não tivesse esta obsessão, mas todo o dinheiro que me sobrava gastava-o em computadores, modems, programas, etc. Então, numa noite em que estava aqui feito parvo, consegui entrar no sistema informático de um banco do Estado, em Nova Iorque. Só por graça, percebe?
- Como conseguiu? - perguntou Dora, curiosa. Pinchik mostrou o seu sorriso radioso.
- Se quer saber a verdade, minha senhora, a maior parte dos banqueiros são atrasados mentais. Neste caso, tratava-se de um sistema informático integrado, totalmente
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novo, instalado num velho banco com mais de vinte balcões locais. Havia sete executivos que tinham acesso a todo o sistema através de um código secreto. Muito bem, você vê sete tipos que podem entrar no sistema e podem mexer-lhe sempre que querem. Agora, adivinhe quais foram as palavras que aqueles sete tipos escolheram para o código.
- Os dias da semana? - sugeriu Dora.
- Mais uma tentativa.
- Os sete pecados mortais?
- Tente outra vez. Dora ficou a pensar.
- Os sete anões da Branca de Neve?
- Agora acertou - disse Pinchik com ar de aprovação. - Pensavam que eram muito espertos. Para os programadores é fácil entrar nos chamados sistemas de segurança. Levei dez minutos a entrar nos ficheiros do banco, usando a palavra de código "Palerma". Estava justamente à procura, a ler todas aquelas informações confidenciais, e tive esta ideia brilhante.
- E foi assim que foi parar à cadeia - disse Dora.
- Sim, minha senhora - disse o perito, com um ar arrependido. - Mas não era essa a ideia, era apenas o começo. Dei cabo daquilo, foi o que foi. A coisa funcionava assim... Aquele banco, como tantos outros, tinha uma série de contas chamadas inactivas. Velhas contas de poupança que não tiveram movimentos (nem depósitos nem levantamentos) durante anos e anos. Talvez o titular se tivesse esquecido de que tinha dinheiro naquele banco. Talvez tivesse morrido e os herdeiros não soubessem que a conta existia. Talvez estivesse na cadeia e não quisesse mexer-lhe até sair em liberdade. Talvez estivesse a esconder o dinheiro da mulher ou da namorada. Ou talvez tivesse roubado o dinheiro e o depositasse num banco, à espera que o estatuto de limitações desaparecesse. Seja pelo que for, essas contas inactivas vão aumentando à medida que os juros se acumulam.
- Mas os bancos não têm que dar conhecimento público da existência dessas contas?
- Claro que têm, depois de uns certos anos. Então, alguns dos titulares aparecem. Na maior parte dos estados, se o dinheiro não for reclamado após um período de
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uns tantos anos, vai parar aos cofres do Estado. Foi então que eu vi todas essas contas inactivas nos ficheiros do tal banco de Nova Iorque, e pensei: "Porque não?" A partir daí, todos os meses, através do código "Palerma", transferia a pensão para um banco Hilo, onde a minha mulher tinha conta, mediante levantamentos de uma grande conta inactiva. O titular não se queixou, ninguém sabia onde ele estava. Talvez tivesse morrido. E a minha ex-mulher não levantou objecções. Só via o dinheiro que recebia todos os meses. Os registos contabilísticos do banco mostravam levantamentos legítimos sem que houvesse provas de que eram feitos pelo "Palerma", que era eu.
- Tinha razão. Foi uma ideia brilhante. E o que correu mal? - perguntou Dora.
- A culpa foi minha - respondeu Pinchik. - Todos os meses eu entrava no computador através do tal código "Palerma" e dava instruções ao banco de Nova Iorque para transferir o montante da pensão para o banco em Havaí. O que eu deveria ter feito era dar instruções ao computador do banco de Nova Iorque para que esses pagamentos fossem efectuados automaticamente, todos os meses. Teria sido uma tarefa fácil, mas eu tinha outras coisas na cabeça e nunca me lembrei disso. Então, num dos meses, esqueci-me de dar a ordem de transferência ao banco de Nova Iorque.
- Oh, oh!
- Sim, oh, oh... - disse Pinchik, aborrecido. - Foi o meu primeiro erro estúpido. Naquele mês, a minha ex-mulher não viu o pagamento no extracto da conta e pediu ao banco Hilo que verificasse. Eles contactaram o banco de Nova Iorque e perguntaram onde estava o dinheiro da pensão. Nova Iorque perguntou: "Que pensão?" Naturalmente, a minha ex indicou-lhes o meu nome. Ela não estava a denunciar-me, pensava que o dinheiro que recebia era meu. E o banco de Nova Iorque descobriu que eu não tinha lá conta nenhuma. Uma coisa levou à outra e eu acabei no tribunal. Mas foi uma maravilha de negócio enquanto durou.
- Não parece falar desse assunto com amargura. O superprogramador encolheu os ombros.
- Cada coisa tem o seu tempo.
- Praticam-se muitas fraudes com sistemas informáticos?
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Pinchik virou os olhos nas órbitas.
- Mais do que as pessoas imaginam. Quer uma estimativa? Aposto que dois ou três biliões de dólares, no mínimo, por ano, são roubados através de fraudes efectuadas por computador. E ninguém sabe da existência da maior parte delas.
- Porquê?
- Porque as vítimas (bancos, na maioria dos casos) têm vergonha de exibir publicamente os seus prejuízos por incúria. Na maior parte dos casos, mesmo que o criminoso seja apanhado, recusam-se a acusá-lo. Não querem publicidade. Deixam que as companhias de seguros cubram as perdas.
- Muito obrigada. Isso deixa-me bem-disposta - disse Dora. - Diga-me outra coisa: existe alguma lista a nível nacional de que constem todos os ladrões e autores de fraudes em sistemas informáticos, que tenham sido apanhados, mesmo sem terem comparecido em trinunal?
- Não, minha senhora, não conheço nenhuma base de dados que registe apenas crimes desse género. Mas suponho que os registos computorizados do FBI estão programados para fornecer uma lista dessas.
Dora abanou a cabeça.
- As pessoas que me interessam não constam dos arquivos do FBI.
- Ah, ah! Agora chegamos ao fundo da questão! exclamou Pinchik, tentando pentear a barba hirsuta com os dedos. - Suspeita de que alguém que conhece tenha cometido fraudes em computadores?
- É possível. O detective da polícia de Nova Iorque foi aos registos deles e não encontrou antecedentes. Da base de dados da companhia sobre autores de fraudes de seguros também não consta nada. Eu pensei que, talvez com os seus contactos, você pudesse averiguar se esta gente já esteve envolvida nalguma tramóia de computadores.
- Claro que posso fazê-lo - respondeu o perito. Depois, apontou para a tralha amontoada no sótão. - Mas apanhou-me em má altura. Tudo o que está nos caixotes e nas caixas de cartão são os meus computadores, discos, arquivos e programas, embalados e prontos a sair. Antes de uma, talvez duas semanas, não retomarei o trabalho.
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- Eu posso esperar - respondeu Dora.
- Óptimo. Entretanto, se me der os nomes e as descrições, poderei começar a contactar programadores conhecidos. Quando estiver instalado e a funcionar em pleno no meu escritório novo, no Soho, poderei fazer uma investigação mais ampla. Que lhe parece?
- Parece-me bem - respondeu Dora. - Por favor, faça um cálculo rigoroso do tempo que irá gastar e das suas despesas. Tenho um chefe picuinhas.
- Estou sempre a encontrá-los - retorquiu Pinchik. Agora, deixe-me ligar o meu gravador, e você dita-me tudo o que sabe sobre essa gente. Seja o mais pormenorizada possível, minha senhora. Não omita nada.
Então Dora falou para um gravador portátil do tamanho de um bloco de apontamentos. Soletrou os nomes de Turner e Helene Pierce, referiu os seus princípios em Kansas City, no Missouri, descreveu o seu aspecto físico e o pouco que sabia dos seus hábitos, a actividade de Turner como consultor de informática, o estilo de vida de ambos, o sotaque, as ligações com a Joalharia Starrett Fine, os endereços e os números de telefone.
- É tudo o que sei - concluiu.
- Já é suficiente para eu começar - disse Gregor Pinchik, desligando o gravador. - Os nomes não me dizem nada, mas talvez um dos meus contactos os conheça.
- Estou hospedada no Hotel Bedlington, em Madison Avenue. Pode entregar-me relatórios semanais? perguntou Dora.
- Não - respondeu Pinchik. - São uma perda de tempo. Assim que eu descobrir qualquer coisa, contacto-a logo. Mas não vale a pena fazer todas as semanas um relatório a falar de insucessos.
- Quanto tempo pensa que vai demorar a investigação, Mister Pinchik?
O homem ficou a pensar.
- Dê-me três semanas a um mês - disse. - Se, nessa altura, eu não tiver descoberto nada sobre eles, é porque estão limpos. De certeza. Confie em mim.
- Eu confio - disse Dora, levantando-se. - Mande-me as suas facturas para o Bedlington, está bem?
- Ah, claro. Recebê-las-á semanalmente. É disso que eu vivo. Tive muito prazer em conhecê-la, minha senhora.
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A decoradora recuou até à porta do gabinete, voltou-se e examinou a sua obra, com os olhos semicerrados.
- Bem, Mister Starrett, agrada-lhe?
Clayton, de pé junto da sua nova secretária metálica, mirou o gabinete decorado de novo. -
- Aquele óleo por cima do sofá - disse - não devia ficar um pouco mais acima?
- Não - respondeu a decoradora, num tom decidido. - O senhor é alto, por isso o óleo lhe parece baixo. Mas a verdade é que está ao nível dos olhos de uma pessoa de estatura normal. As proporções da composição na parede estão correctas, e um Warhol sobre um Biedermeier confere à sala um certo je ne sais quoi.
- Sim - respondeu ele, com um sorriso de satisfação. - É exactamente o que eu queria, um certo je ne sais quoi. Acho que você fez um belo trabalho.
- Muito obrigada - disse a decoradora, pousando discretamente a factura, dentro de um sobrescrito cor de malva, num canto da secretária. Lançou um último olhar à sala. - Adoro este ambiente - disse com um suspiro. E saiu.
Clayton meteu as mãos nos bolsos e, durante alguns minutos, percorreu o gabinete, admirando as cadeiras de cabedal preto para os directores, dispostas junto de uma mesa baixa com tampo de vidro fumado. Em sua opinião, todo o gabinete reflectia agora a importância e a prosperidade do ocupante. Tal como a decoradora afirmara, era o ambiente certo: luxuoso, de bom gosto e moderno.
Abriu o sobrescrito cor de malva, olhou para a conta, empalideceu e depois sorriu. O seu pai teria tido uma apoplexia ao ver uma conta daquelas para redecorar um gabinete. Mas os tempos mudam, como Clayton bem sabia, e se as pessoas não mudassem com eles ficariam irremediavelmente para trás.
Ele próprio mudara, estava a mudar, sentia-o. Vivera à sombra do pai durante muitos anos. Fora um seguidor, um lacaio, um simples ornamento. Mas agora vivia a sua própria vida, estava a fazer coisas. No meio do seu gabinete
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novinho em folha, sentiu um frémito que o obrigou a respirar fundo, um soco nas tripas. Agora estava a criar, era esse o termo.
Usou o seu novo telefone, um instrumento maravilhoso, onde estavam codificados os números que ele mais utilizava. Bastou-lhe tocar num botão para ligar para casa.
- Charles? Fala Clayton Starrett. Chame a minha mãe ao telefone, por favor.
Enquanto esperava, deslizou para a cadeira giratória, com "estofo ergonómico", que o aconchegou como o ventre materno. Era uma experiência com um toque sensual aquela de se sentar naquela cadeira, descontraído, saboreando aquele conforto discreto mas sólido, fechar os olhos e ficar a pairar, saboreando a recompensa do seu espírito criativo.
- Mãe? Clayton. Vai ficar em casa por agora? Óptimo. A Eleanor saiu? Ainda melhor. Gostaria de falar consigo sobre um assunto importante. Dentro de vinte minutos, estarei em casa. Até já...
Desligou rapidamente, depois pegou de novo no telefone e carregou num botão com as letras H P.
- Helene? Clayton. Estás em casa esta tarde? Oh, dentro de duas horas. Óptimo. Gostava de passar por aí. Não me posso demorar, o meu pessoal da publicidade vem cá ter comigo. Muito bem. Até logo.
Quando chegou a casa, Mrs. Olivia Starrett estava no seu quarto florido, sentada a uma secretária delgada, a tratar da correspondência. Clayton baixou-se para beijá-la na face.
- Nunca mais acabo... - disse ela, suspirando. São as cartas de condolências pela morte do pai. E depois, os cartões de Boas-Festas. É de mais.
- Há-de responder a todos - sossegou-a Clayton, puxando uma poltrona estofada, pequena de mais para ele. - Fá-lo sempre. Eleanor disse quando voltava?
- Não me lembro - respondeu a mãe distraidamente. - Disse-me qualquer coisa sobre a preparação de um jantar dançante num barco de cruzeiro. Faz sentido, Clay?
- Talvez. Quero falar-lhe de Eleanor, mãe. De Eleanor e de mim.
Olivia tirou os óculos e olhou para ele.
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- Oh, meu Deus. Espero que não seja uma zanga. Sabes como eu detesto zangas.
- Infelizmente, o assunto é mais grave - respondeu Clayton, que prosseguiu: - Mãe, sabe que as coisas não correm bem entre mim e a Eleanor há vários anos. Desde que Ernie morreu, ela modificou-se. Não é a mulher com quem casei. A mãe é inteligente e sensível, deve ter-se apercebido de que as coisas não correram bem entre nós.
Mrs. Starrett agitou a mão com nervosismo.
- Seja feita a vontade de Deus. Temos de aprender a aceitar a tristeza e a dor como parte da santa unidade.
- Sim, sim - retorquiu Clayton, com impaciência. Mas eu não posso continuar a viver assim. É... É uma hipocrisia. Por trás das obras de beneficência há um vazio. Não posso mais viver assim. Isto está a dar cabo de mim.
A mãe fitou-o com os seus olhos grandes e brilhantes.
- Já falaste com Eleanor sobre o que sentes?
- Eleanor e eu não falamos de coisa nenhuma. Pelo menos, de nada importante. Tornámo-nos estranhos um para o outro. Mãe, eu vou pedir o... o divórcio.
A palavra obstruiu-lhe a garganta.
Olhou para a mãe, mas teve de voltar a cabeça ao ver os seus olhos cheios de lágrimas. Mesmo assim, ela tocou-lhe no ombro ao de leve.
- Por favor, Clayton, por favor! - disse. Clayton levantou-se abruptamente e começou a andar
de um lado para outro, incapaz de encará-la.
- Tem de ser - disse bruscamente. - Tem de ser. O nosso casamento é um enorme falhanço. Eleanor tem as suas festas de caridade, eu tenho a empresa para dirigir, e não temos nada em comum. Não partilhamos nada. Eu quero ter uma oportunidade de ser feliz. Pelo menos, uma oportunidade. Não acha que a mereço? Que toda a gente a merece?
- Já pensaste em consultar um conselheiro matrimonial? - perguntou ela, timidamente. - Ou talvez pudesses falar com o padre Callaway. Ele é muito compreensivo.
Clayton abanou a cabeça.
- Não se trata de um amuo temporário. É mais profundo. Tornámo-nos incompatíveis, mais nada. Eu sei que isto é um choque para si, mãe, mas quis dizer-lhe o
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que tenciono fazer antes de falar no assunto a Eleanor.
Quis saber a sua reacção.
- A minha reacção? - exclamou ela. - Outra morte na família... É essa a minha reacção.
- Vamos lá! - disse Clayton, com ternura. - Não é assim tão mau. As pessoas estão constantemente a divorciar-se e sobrevivem. Às vezes, é a decisão mais sã a tomar. Um casamento sem amor é como uma doença incurável.
Mrs. Starrett baixou a cabeça, olhou para uma das mãos e fez rolar a aliança de casamento.
- O que tencionas então fazer? Voltar a casar? perguntou.
Clayton não tencionava dizer-lhe. Pensara em avançar a pouco e pouco: informá-la do divórcio, numa primeira conversa; depois de lhe dar tempo para se habituar à ideia, falar-lhe-ia de Helene, noutra conversa a sós.
Mas naquele momento, em que ela não lhe pareceu demasiado transtornada, decidiu de repente ir até ao fim, desabafar tudo, pensando que a mãe poderia abrandar se soubesse que ele desejava voltar a casar e não ficar só.
Sentou-se de novo junto dela e apertou-lhe as mãos nas suas.
- Mãe, a primeira coisa que quero fazer é acabar com esta situação impossível e divorciar-me de Eleanor. Acredite que ela será bem tratada. Não terá de inquietar-se até ao resto da vida. Estou a referir-me a preocupações de dinheiro. Sabe que eu velarei pela estabilidade financeira dela.
A mãe concordou:
- Sim, é o que tens de fazer.
- Claro. E quando o divórcio for decretado - Clayton respirou fundo -, quero casar com Helene Pierce, se ela me aceitar.
Olivia levantou o olhar para o filho e este detectou algo que o surpreendeu: uma espécie de astúcia própria da gente do campo.
- Há quanto tempo é que isso dura? - perguntou ela. Clayton ocultou a sua culpa, fingindo-se surpreendido.
- Há quanto tempo é que dura o quê? Conhece Helene há tanto tempo como eu. Ela e o irmão tornaram-se
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bons amigos de todos nós. Acho que Helene é uma pessoa encantadora, terna, sensível... Não acha?
- Ela é tremendamente jovem, Clayton... Para ti. Ele abanou a cabeça.
- Não concordo. Talvez seja... É claro que nem sequer lhe dei a entender o que sinto por ela. Talvez ela me rejeite.
- Não o fará - retorquiu Mrs. Starrett, com o mesmo ar rústico. - Ela não é assim tão tola.
Clayton encolheu os ombros.
- Mas tudo isso ainda está para vir. Só quero que saiba que eu tenho esperança de voltar a casar. Não tenciono ficar solteiro para o resto da vida. Quando me lembro como a mãe e o pai foram felizes durante tantos anos, sinto que o casamento (o casamento certo) é o que eu quero.
- Sim - respondeu a mãe.
Clayton inclinou-se para ela, sério e concentrado.
- Eu sei que isto pode ser para si um choque e uma decepção. Daria tudo para não a magoar. Quero-lhe muito e sei que também me quer.
- É verdade, mas também gosto muito de Eleanor. O que estás a fazer-lhe parece-me tão... tão injusto.
Clayton mostrou-lhe um sorriso triste.
- Conhece aquele ditado que diz "por vezes, temos de ser cruéis para sermos justos"? Eleanor será mais feliz sem mim.
- Não sabes.
- Mãe! Ela ainda tem a sua vida: os amigos, as obras de caridade, os donativos. E talvez volte a casar também. Isso é possível, não é?
- Não creio - respondeu Mrs. Starrett.
Clayton endireitou-se, tentando disfarçar a irritação na voz:
- Se não quer que eu me divorcie de Eleanor, continuarei a suportar este casamento infeliz toda a vida. É isso que quer? A minha felicidade não conta para si?
Nessa altura, Mrs. Starrett desatou a chorar e inclinou-se para abraçá-lo.
- Conta - respondeu, soluçando. - Sim, quero que sejas feliz. Daria a vida para te fazer feliz.
- Eu sei que sim, mãe - sussurrou Clayton, acalmando-a, dando-lhe palmadinhas na face molhada. -
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O que é mais importante para mim é que este assunto não se intrometa entre nós dois. Não quero arriscar-me a perder o seu amor, e se me disser para não o fazer não o faço.
- Não - respondeu a mãe. - Não te posso dizer isso- É a tua vida. Não posso controlá-la. Clayton, por favor, não falemos mais no assunto. Agora não. Estou tão abalada que nem consigo pensar. Acho que vou tomar uma aspirina e deitar-me um bocado.
- Isso mesmo. E tente não se preocupar. Sei que lhe é difícil aceitar, mas as coisas hão-de compor-se... Vai ver.
Clayton reiterou-lhe o seu amor por ela e depois saiu. Já no elevador, lembrou-se de outros argumentos que poderia ter utilizado, mas, de um modo geral, estava satisfeito com o modo como as coisas tinham corrido. A caminho de casa de Helene, pediu ao motorista que parasse numa florista e encomendou uma dúzia de rosas para serem entregues imediatamente à mãe, com um cartão assinado onde se lia: "Amo-te acima de tudo".
Ainda estava enervado quando Helene lhe abriu a porta do apartamento. Abraçou-a, a rir, e não acalmou senão quando ela o convenceu a tirar o chapéu e o casaco e a sentar-se no sofá da sala, enquanto lhe servia uma vodca. Ele sorveu-a avidamente e relatou-lhe a conversa que tivera com a mãe.
- Ela vai recompor-se - previu, confiante. - Talvez isto a tenha abalado, a princípio, mas vai habituar-se à ideia. Amanhã ou depois, volto a falar com ela, e irá aceitando a pouco e pouco.
- Então, ela não vai despedir-te?
- Não, não acredito - respondeu ele, a sorrir.
- Espero que estejas a proceder bem, Clayton - disse Helene. - Detestaria ser eu a causa de um rompimento entre ti e Olivia.
- Isso não vai acontecer. Ela acha que és nova de mais para mim, mas eu disse-lhe que a decisão seria tua.
- E o que disse ela?
- Disse que não me rejeitarias. Que não serias assim tão tola.
Helene esboçou um sorriso gélido.
- Às vezes, tu e a tua família tratam Olivia como se ela fosse uma cabeça oca. Mas a verdade é que é uma senhora muito sensata.
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- Se o dizes... Estás preparada para te tornares Mistress Helene Starrett, um dia depois de o meu divórcio ser decretado?
- Oh, Clay, ainda faltam meses e meses. Parece-me que estás a precipitar as coisas.
- Ouve, se vais fazer qualquer coisa, então fá-la. Ainda não respondeste à minha pergunta.
- Queres mesmo casar comigo?
- Não tenho dúvidas!
Ela aproximou-se, encostou o corpo ao braço dele e acariciou-lhe a nuca.
- Então, porque não vamos praticar? - perguntou com voz rouca. - Agora mesmo.
- Acertaste - apressou-se a responder Clayton. Levantou-se, afastou o copo e começou a despir o casaco.
- E o pessoal da publicidade, querido? - perguntou ela, desabotoando-lhe a camisa.
- Que espere! - disse ele. - Eu é que lhes pago, não são eles que me pagam a mim.
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O telefone tocou um pouco antes das oito horas e Dora acordou de um sono profundo.
- Está? - balbuciou.
- Acordei-a, menina? - disse Mike Trevalyan. Óptimo. Já ganhei o dia.
- Sim, calculo - disse ela, pondo os pés no chão. Foi para isso que telefonou? Para me acordar?
- Ouça, você pediu-me para verificar quais os gerentes da Starrett que foram despedidos há um ano.
- Já conseguiu?
- Não, falhei nessa. Os meus contactos no ramo da joalharia não me serviram de nada. Até pus uma tipa a ler publicações sobre o comércio de jóias nos últimos anos, mas ela não conseguiu nada. Às vezes, estas revistas noticiam mudanças de pessoal, mas só quando a empresa envolvida manda comunicados para a imprensa. Acho que a Starrett não quis fazer publicidade dos despedimentos.
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- De qualquer modo, agradeço-lhe, Mike. Obrigada por ter tentado.
- Como vai o caso Starrett? - perguntou ele.
- Devagar - respondeu Dora. - Quanto mais eu procuro, mais estranho se torna. A propósito, descobri no meu relatório aquela frase que aponta um bom motivo para o padre Brian Callaway ter morto Lewis Starrett.
Trevalyan riu-se.
- Você devia ler mais vezes os seus relatórios. Acha que o Callaway, aliás, o Sidney Loftus, fez o trabalho sujo?
- Não sei - respondeu ela, hesitante. - Ele tem um álibi perfeito para o assassínio de Solomon Guthrie.
- Talvez as duas mortes não estejam relacionadas.
- Ora, ora, Mike. As duas vítimas eram velhos amigos e trabalhavam na mesma empresa. Tem de haver uma relação.
- Então descubra-a - disse-lhe o chefe. - E agora vá dormir.
- Não é provável - respondeu Dora, mas ele já desligara.
Sentou-se na beira da cama, a bocejar e a esfregar o couro cabeludo. Já não era a primeira vez que pensava que devia fazer ginástica matinal. Talvez algumas flexões dos joelhos e outros tantos exercícios para esticar o corpo. O pensamento deprimiu-a. Foi para a casa de banho tomar um duche.
Estava na cozinha, de pé, a beber o seu primeiro descafeinado do dia e a pensar no que Mike dissera, quando se lembrou que talvez conseguisse a informação que pretendia. Telefonou ao detective John Wenden e ficou admirada por encontrá-lo à secretária.
- O que está a fazer no escritório tão cedo? - perguntou.
- Esta noite não fui a casa - respondeu Wenden. Tivemos um pequeno motim em East Village, e todos os disponíveis foram chamados.
- E qual foi a causa do motim?
- Quem pode ou não pode usar um parque público. O que lhe parece? Esta cidade é de doidos... Não acha? O que há, Ruiva?
- John, você disse-me que o departamento estava a
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examinar os registos de emprego da Joalharia Starrett Fine para encontrar alguém que tivesse sido despedido e tivesse ficado zangado ao ponto de liquidar Lewis Starrett e Solomon Guthrie.
- Sim, estamos a trabalhar nisso. Ainda não descobrimos nada.
- Bem, há cerca de um ano, a Starrett despediu uns quantos gerentes das filiais. Pode verificar isso nos registos e apurar quantos foram despedidos e em que filiais?
- Talvez possa, mas porquê? - perguntou, cauteloso.
- Para me fazer um favor - respondeu Dora, esperançada.
- Ruiva, isto não é uma rua só com um sentido. Não pode ser caviar para si e feijões para mim. Se você quer essa informação, é melhor dizer-me o que é que essa sua mente ínvia está a congeminar.
Dora hesitou.
- Está bem - respondeu, por fim. - Eu compreendo. Se você me conseguir o que quero, digo-lhe porque preciso dessa informação.
- Você é uma sentimental - rematou Wenden, suspirando. -? Está bem, Ruiva, eu vou conseguir-lhe a informação. Mas só na condição de eu ir entregá-la pessoalmente. Quero voltar a vê-la.
- Também eu.
- Para me fazer festas? Ela não deu resposta.
- Então? Estou à espera.
- Não - respondeu Dora, baixinho. - Só para o ver.
- E tenho um extra - disse ele. - Um pequeno extra. Só lhe digo quando tiver a informação.
Dora desligou o telefone, sem perceber porque tinha a mão a tremer. Não era propriamente uma tremura. Para acabar com aquele disparate, telefonou a Mário logo de seguida. Ninguém respondeu. Devia estar no emprego e não gostava que ligassem para lá. Então, Dora bebeu outra chávena de café e dispôs-se a arredar John Wenden dos seus pensamentos. Pelo menos por cinco minutos.
Passou o dia a fazer investigação na biblioteca da 5ª Avenida. Começou pelas bases: o número atómico do ouro era 79, o seu símbolo químico era Au, fundia a mil e
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sessenta e quatro graus centígrados e fervia a dois mil oitocentos e setenta e cinco graus centígrados. Fora descoberto nos tempos pré-históricos e utilizado em joalharia e cunhagem de moedas.
Depois, começou a ler artigos sobre minas e fundição do ouro, e a formação de lingotes, barras e folhas, incluindo lâminas tão finas (quatro milionésimos de polegada) que poderiam quebrar-se com um espirro.
Ao meio-dia e meia hora, fez um intervalo, guardou todas as suas notas e foi à procura de almoço, debaixo de chuva. Na Rua 42 havia um homem a vender croissants numa banca protegida por uma sombrinha. Dora comeu um de presunto e outro de queijo, regados com uma lata de Dr. Pepper, de dieta. Ao voltar para a biblioteca, reparou que pesava mais um quilo, mas metade era da parka, que estava ensopada.
De tarde, concentrou-se nas jóias: como eram criadas e fabricadas, os metais e as ligas utilizados. Por volta das quatro horas, com os olhos a doer e a mala repleta de fotocópias e apontamentos, saiu da biblioteca, encaminhou-se para Madison Avenue e tomou um autocarro até ao Bedlington.
Despiu a roupa molhada, tomou um duche quente e engoliu duas aspirinas, só para prevenir. Depois, fez um bule de chá, pôs os óculos e sentou-se, de roupão, tentando encontrar algumas respostas. Não descobriu respostas, mas detectou um novo quebra-cabeças, e estava a matutar nele quando John Wenden lhe telefonou, por volta das sete e meia.
- Um dia horrível e uma noite horrível - disse. - Já comeu, Ruiva?
- Não, ainda não.
- Nem eu, mas não lhe pediria para sair numa noite péssima como esta. Gosta de comida chinesa?
- Neste momento, gostaria de qualquer coisa que fosse comestível.
- Imagine que eu paro num sítio onde se vende comida para fora e compro qualquer coisa. E que a levo para o hotel enquanto está quente.
- Parece-me uma boa ideia - respondeu Dora. Tenho um fraco por camarões com molho de lagosta. Traz-mos?
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- Claro, com sopa wonton, arroz frito, chá e biscoitos.
- Não traga o chá - respondeu ela. - Posso ser eu a fornecê-lo. Mas traga bastante mostarda quente.
- Está bem - disse ele. - Dentro de uma hora estou aí.
Dora meteu num armário o produto das suas investigações e vestiu à pressa uma saia de tweed e uma camisola preta de gola alta, suficientemente larga para lhe esconder a cintura, que estava a engrossar.
"Na segunda-feira, começas a fazer dieta, menina", disse com os seus botões, decidida. "Estou a falar a sério."
Quando John chegou, acabara de fazer outro bule de chá. John trazia o casaco e o chapéu ensopados da chuva, e as mãos, sem luvas, estavam vermelhas e geladas. Dora preparou-lhe um brande para aquecer e abriu os recipientes onde ele trouxera a comida chinesa. Dispôs as caixas de cartão na mesa baixa, junto do sofá, e trouxe pratos, talheres e chávenas para o chá.
Ele não se esquecera dos camarões com molho de lagosta e trouxera também uma boa porção de porco agridoce com rodelas de ananás e pimenta. E também crepes, costeletas grelhadas e gelado de ginja.
- Um verdadeiro banquete! - exultou Dora. - vou empaturrar-me.
- À vontade - disse Wenden. - Você está com bom aspecto, Ruiva. Está a perder peso.
Dora riu-se.
- Seu mentiroso - disse. - Não, não perdi peso e não vou perdê-lo se você continua a alimentar-me desta maneira. vou ficar mesmo gorda, gorda, dois por quatro.
- Mais fica para amar - disse ele e, como ela não respondeu, começou a comer uma costeleta grelhada.
- Vamos falar de trabalho - disse Dora, besuntando um crepe de mostarda. - Conseguiu a informação sobre os gerentes da Starrett que foram despedidos há um ano?
- Sim, já a tenho. E você prometeu-me que me diria porque a quer.
- Está bem - disse ela. - Sabia que a Starrett negoceia em barras de ouro há um ano?
- Claro que sabia - respondeu Wenden, enchendo o prato de arroz frito e porco agridoce.
Dora ficou espantada.
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- Como é que sabia?
Ele olhou para ela e riu-se.
- Ficou admirada por nós não sermos totalmente estúpidos? Quando Solomon Guthrie foi morto, levava uma pasta atulhada de documentos da empresa. Fomos verificar. Tratavam essencialmente de bónus de Natal para os empregados da Starrett. Mas havia também um dossier sobre compras e vendas de barras de ouro feitas há pouco tempo.
- Oh! - exclamou ela, um pouco desanimada. Fez alguma coisa com isso?
- Livra! - disse John, limpando a testa com um guardanapo de papel. - Esta mostarda é forte. Claro que fiz. Perguntei a Clayton Starrett o que era aquilo. Ele disse-me que a empresa compra o ouro no estrangeiro, a bom preço, e vende-o no país, a pequenas ourivesarias, com uma boa margem. Mostrou-me os registos. Pareceu-me estar tudo em ordem. Não está?
- Talvez - respondeu Dora. - Eu consegui um documento feito em computador, que regista todas as transacções em ouro da Starrett, nos últimos três meses, e...
- Uau! - exclamou o detective, levantando a mão.
- Espere aí. Onde é que conseguiu o documento?
- Digamos apenas que veio de uma fonte digna de confiança. Aceita?
Wenden continuou a comer, sem dar resposta. Depois disse:
- Para já, aceito.
- Bem, li e reli o documento muitas vezes e por fim descobri uma coisa interessante. Além da loja-mãe em Park Avenue, a Starrett tem mais quinze filiais espalhadas pelo mundo. Sete são no estrangeiro, e as oito restantes são nos Estados Unidos, incluindo uma em Honolulu. Todas as barras de ouro vendidas pela Starrett foram para as filiais nacionais, nenhuma foi para o estrangeiro.
Wenden não reagiu. Serviu-se novamente de arroz frito.
- E então? - perguntou. - O que é que isso quer dizer?
- Não sei o que quer dizer, mas é estranho, não acha? - retorquiu Dora, de mau humor.
Ele recostou-se, limpou a boca com um guardanapo e tomou um gole de chá.
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- Pode haver uma dúzia de explicações. Talvez as filiais no estrangeiro comprem o ouro localmente. Talvez as taxas alfandegárias para importação de ouro sejam pesadas nesses países. Talvez as filiais estrangeiras não precisem de ouro por receberem peças já fabricadas de Nova Iorque.
- Acho que tem razão - concordou Dora, desanimada. - Estou a agarrar-me a ninharias.
- Por outro lado - prosseguiu John, inclinando-se para a frente para começar a comer o gelado -, você pode estar em cima de qualquer coisa. Há cerca de um ano, nove gerentes, incluindo o tipo de Manhattan, foram despedidos e substituídos. Todos os despedimentos e substituições se verificaram nas filiais dos Estados Unidos, nenhum no estrangeiro.
Olharam um para o outro. Então Dora respirou fundo.
- Tem alguma ideia? - perguntou.
- Nenhuma. E você?
- Nem uma. Pode haver um motivo inocente para isso.
- Acredita?
- Não.
- Nem eu - respondeu ele. - Há algo aqui que cheira mal. Sabe de alguma coisa que não me tenha dito, Ruiva?
- Disse-lhe tudo o que sei - respondeu ela, dando ênfase a sei, consciente de que estava só a dizer meia verdade.
- Bem, continue a procurar, e se descobrir qualquer coisa dê-me um toque. Alguém anda a tramar-nos e eu não gosto disso.
Dora concordou, levantou-se e começou a levantar a mesa.
- John, sobrou comida. Quer levá-la para casa?
- Não - disse ele. - Esta noite, volto para o escritório por umas horas, e não tenho onde a aquecer. Fique com ela. Pode comê-la amanhã ao pequeno-almoço.
- com mostarda? - disse ela a sorrir. - Para eu ficar batoque, de olhinhos a brilhar? Obrigada pelo banquete. Você salvou-me a vida.
- Para chegarmos ao coração de uma mulher temos de passar pelo estômago, não acha? - perguntou ele.
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- É uma hipótese... - respondeu Dora. Arrumaram a sala, guardaram o resto da comida no
frigorífico e lavaram a louça. Depois, voltaram para a sala e Dora serviu o brande.
- John, você está com um ar cansado - disse Dora.
Em geral, tem um ar cansado, mas esta noite parece
estafado. Anda a dormir o suficiente?
Ele encolheu os ombros.
- Não tanto como gostaria. Sabia que, num período de oito horas, na véspera de Ano Novo, se registaram treze homicídios em Nova Iorque? Dez com arma de fogo.
- Isso é terrível.
- Não podemos aguentar isto. É por isso que eu não dedico ao caso Starrett o tempo que devia. Estou dependente da sua ajuda.
- vou tentar - disse Dora com voz sumida, sentindo-se culpada pelas coisas que não lhe tinha contado. Não tem dias de folga? Uma possibilidade de recarregar as baterias?
- Tenho, de vez em quando. Mas não me ajudam verdadeiramente. Continuo a pensar nos casos que tenho em mãos, a pensar se me esqueci de alguma coisa, a arquitectar novas maneiras de os agarrar.
- Você tem de se descontrair.
- Eu sei. Preciso de umas boas férias. Um ano, mais ou menos. Ou isso ou uma boa mulher.
Dora concordou.
- Isso iria ajudar.
- Você? - perguntou ele. Ela esforçou-se por sorrir.
- Já lhe disse que estou comprometida.
- Um dia destes, você deixará Nova Iorque, não é verdade? Quer o caso Starrett esteja esclarecido quer não. Quer a indemnização tenha sido aprovada quer não. Voltará para Hartford. Certo?
- É verdade.
- Por isso, podíamos ter um caso enquanto você cá está, porque sabemos que não iria durar sempre. Quem sairia magoado?
Dora abanou a cabeça.
- Não é por mim.
- Oh, Ruiva - disse ele. - A vida é demasiado curta
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para se ser fiel. Está convencida que o seu marido é fiel?
Dora empinou o queixo.
- Acho que sim. Mas isso é com ele, não é verdade? Se ele me começar a enganar porque é um homem ou porque é o Mário... Isso é com ele. Não tenho interferência nessa decisão.
- Você morreria se soubesse que ele andava a enganá-la?
Dora ficou a pensar. Depois respondeu:
- Não sei o que sentiria. Não morreria, mas talvez sofresse muito.
- Mas perdoá-lo-ia?
- Talvez.
- Se as coisas fossem ao contrário, ele perdoá-la-ia.
- Talvez, mas não quero experimentar - respondeu Dora. - Ouça, John, você disse que a vida é curta de mais para sermos fiéis. Mas eu acho que a pequenez da vida é mais uma razão para tentarmos portar-nos com decência. Lido com imensos casos de corrupção humana no meu trabalho. Não tanto corrupção violenta, como você vê, graças a Deus. Por isso quero tentar firmemente ser uma boa escuteira. Talvez porque queira provar que sou superior aos patifes com que lido. Talvez porque, se eu desse o primeiro passo em falso voluntariamente, isso seria um sinal de fraqueza e eu acabaria por cair pelas escadas. Seja pelo que for, quero viver o mais correctamente que posso... O que, por vezes, pode ser um transe muito difícil.
- Este é um deles? Você e eu? - perguntou ele. Dora fez um sinal afirmativo, sem articular palavra. John acabou de beber, levantou-se e pegou no casaco
húmido. Olhou para ela com um ar tão triste que ela abraçou-o e tentou beijá-lo na face. Mas ele voltou a cabeça à procura da sua boca e, apesar da sua determinação, Dora cedeu. Ficaram colados um ao outro.
- É melhor ir-se embora - disse ela bruscamente, afastando-se. - Deixe-me em paz.
- Está bem. Por agora - respondeu ele.
Depois de ele sair, Dora fechou a porta à chave e começou a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com as mãos nos cotovelos. Pensou no que ele dissera
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e no que ela dissera, e no que ela poderia ter dito, e no que poderia ter sido o resultado.
Sabia que devia ir buscar ao armário os apontamentos que tirara na biblioteca e tentar resolver aquela charada. Mas não conseguia abstrair-se da sua charada pessoal: o que fazer com este homem atraente e desgastado, que falava a sério, apesar do seu descaramento? Sim, sim, ele era um homem sério, muito consciente de que estava a caminhar para a exaustão.
"E quem te nomeou sua enfermeira?", perguntou a si mesma em voz alta.
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Mrs. Olivia Starrett e o padre Brian Callaway estavam sentados na longa sala de jantar e aguardavam em silêncio, de mãos cruzadas, que Charles servisse o chá. O serviço era de porcelana fina Mimosa, um padrão exclusivo da Starrett.
Charles serviu pastéis de Ferrara, sortidos, dispostos num tabuleiro, depois deixou-o em cima da mesa e retirou-se, fechando a porta devagarinho.
- São de facto notícias muito tristes, Olivia - disse o padre Brian, deitando açúcar no chá. - Deve ter ficado desolada.
- Fiquei e ainda estou - disse Mrs. Starrett. - Nunca houve um divórcio na família. Nem num lado nem noutro.
- Ele já falou com Eleanor?
- Que eu saiba, não. Ele disse que queria contar-me primeiro. Clayton é um bom filho.
- É verdade - respondeu Callaway. - Cumpridor dos seus deveres. Ele pediu a sua aprovação?
- Não exactamente. Disse que, se eu discordasse, ele continuaria casado com Eleanor. Mas não posso obrigá-lo a manter um casamento sem amor. É óbvio que o pobre rapaz está a sofrer. Coma um éclair.
- Acho que vou comer um, são deliciosos. E o que pensa de ele vir a casar com Helene Pierce se o divórcio for por diante?
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- E eu acho que vou comer um bolo de anis. bom, eu acho Helene uma jovem encantadora e apresentável, mas é nova de mais para Clayton. Embora ele não dê muita importância à diferença de idade. E devo confessar que tenho um motivo egoísta para querer que Clayton volte a casar, com Helene ou com outra mulher que ele escolha. Antes de morrer, gostaria de pegar num neto ao colo. Acha que estou a ser má ao pensar na minha própria felicidade?
Callaway estendeu o braço por cima da mesa e pegou-lhe numa das mãos papudas.
- Olivia, você não é capaz de ser má. E o seu desejo de ter um neto é totalmente natural e compreensível. Eleanor não pode ter outro filho?
- Não pode ou não quer - respondeu Mrs. Starrett com um ar triste. - Ela nunca se recompôs completamente da morte do pequeno Ernie. Sirva-se de mais chá, padre.
- Mas que tragédia! - disse ele, enchendo as duas chávenas. - Mas a dor, a tristeza e a morte fazem todas parte da santa unidade. Temos de aceitá-las e mesmo acolhê-las como um teste à nossa fé. Porque do vale do desespero emerge a alma renovada e triunfante. Tente um destes. São tão requintados...
- Mas engordam tanto! - protestou Mrs. Starrett.
- Não interessa - respondeu ele, a sorrir. - Você é uma mulher muito elegante, Olivia.
- Muito obrigada - disse ela, radiante. - Padre, posso pedir-lhe um favor?
- Claro - retorquiu ele num tom afectuoso. O que quiser.
- Eu propus a Clayton que consultasse um conselheiro matrimonial ou falasse consigo antes de tomar a decisão final. Se houver alguma hipótese de salvar este casamento, terei de tentá-la. Estaria disposto a falar com Clayton e a dar-lhe o benefício da sua experiência e compreensão?
- Claro que estaria, mas ele viria ter comigo? - perguntou Callaway, cauteloso.
- Oh, tenho a certeza! - retorquiu Olivia afectuosamente. - Em especial, se o padre lhe dissesse que era meu desejo expresso que ambos falassem e tentassem encontrar uma solução para o problema.
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Pensativo, Callaway mordiscou uma fatia de pannetone.
- Depreendo que a solução que prefere é a de que o casamento seja preservado...
- Sim, preferia. Mas se, na sua opinião, o divórcio servir melhor a felicidade de Clayton e de Eleanor, então aceitá-lo-ei. Confio no seu juízo, padre, e concordarei com o que lhe parecer melhor.
- É uma tremenda responsabilidade, Olivia, mas verei o que posso fazer. Posso dizer a Clayton que me contou todos os pormenores da sua conversa com ele?
- Claro.
- Nesse caso, verei o que se pode fazer. Concordo consigo, minha querida senhora, em que o casamento é um compromisso sagrado, cujos votos só podem ser quebrados por razões muito fortes. Fomos postos neste mundo para cuidarmos uns dos outros, para partilhar, e devemos fazer todos os esforços para manter intacta a santa unidade.
- Eu sabia que poderia contar com a sua compreensão, padre - disse Mrs. Starrett. - Deu-me tanto conforto! E agora beba mais uma chávena de chá, talvez com uma fatia desta torta. Acho que é feita com Grana Marnier.
Quando Brian Callaway saiu de casa dos Starrett, parou no corredor para alargar o cinto. Depois, desceu e, no átrio, utilizou o telefone público para ligar a Clayton. Eram quase quatro e meia e, pelas suas contas, Clayton devia estar prestes a sair do escritório.
Clayton mostrou-se cordial, e quando o padre pediu para se encontrarem o mais depressa possível, para discutir um assunto particular "da maior importância", ele acedeu em encontrar-se com Callaway no Bar Four Seasons, às cinco horas ou um pouco mais tarde.
- Do que se trata? - perguntou Clayton com curiosidade.
- Prefiro não falar do assunto pelo telefone - respondeu o padre, num tom autoritário.
Foi o primeiro a chegar e engoliu à pressa uma vodca dupla. Em seguida, mandou vir uma água tónica simples, e estava a bebericá-la quando Clayton Starrett apareceu, com um sorriso rasgado. Os dois homens trocaram apertos de mão. Clayton pediu um gim.
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- Receio que tenhamos de ser breves - disse Clayton. - Esta noite, tenho outra festa de beneficência e devo ir a casa vestir-me.
O padre fez um sinal afirmativo.
- Serei breve - prometeu. - Acabei precisamente de tomar chá com a sua mãe. Foi ela que me pediu para vir ter consigo. Contou-me da sua intenção de se divorciar de Eleanor e tem esperança que eu possa convencê-lo a mudar de opinião.
Por instantes, Clayton ficou a olhar para ele, admirado. Depois, engoliu o gim.
- A minha mãe contou-lhe tudo o que eu lhe disse?
- perguntou com voz rouca.
- Contou. E autorizou-me a dizer-lhe que o fizera. Clay, esta situação é muito embaraçosa para mim. A verdade é que não tenciono interferir nos seus assuntos pessoais, mas dificilmente poderia recusar o pedido da sua mãe.
- Ela também lhe disse que eu quero casar com Helene Pierce?
- Disse. Clay, qual é o seu problema com Eleanor? O jovem começou a beber o segundo gim.
- Uma série deles, padre. Creio que o maior é o sexo... Ou a falta dele. Isto choca-o?
- De modo nenhum - respondeu Callaway. - Calculei que fosse essa a questão. Eleanor tem os seus atractivos, mas comparada com Helene... - a voz morreu-lhe na garganta.
- Exactamente - replicou Clayton. - Eu quero um pouco de alegria na minha vida.
- É compreensível. Mas, se você pedir o divórcio a Eleanor e depois Helene o recusar? A sua mãe disse-me que você ainda não tinha falado a Helene dos seus sentimentos.
Starrett deu várias voltas ao copo, sem tirar os olhos dele.
- Isso não é bem verdade. Eu já falei a Helene do que sinto por ela e do que tenciono fazer.
- E qual foi a reacção dela?
- Não sei porque estou a contar-lhe tudo isto. Espero poder contar com a sua discrição.
- Garanto-lhe que esta conversa tem o mesmo sigilo de um confessionário.
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Clayton olhou à sua volta, observando o bar barulhento e cheio de gente.
- Bem, já que tem de saber, Helene casará comigo logo que o divórcio seja decretado.
- Ela disse-lho?
- Não por tantas palavras, mas estou certo de que é o que ela sente. Mesmo que o divórcio demore um ano, Helene está disposta a esperar. Afinal, é uma situação que lhe trará um estatuto social e estabilidade financeira.
- Sem dúvida - disse Callaway. - Creio que vou pedir outra bebida, se não se importa. Talvez desta vez uma vodca simples com gelo.
- Claro - disse Clayton, chamando o empregado. Padre, aprecio os seus esforços. Sei que a sua intenção é boa... Mas não é possível fazer-me mudar de opinião.
- Não o esperava.
- Como lhe pareceu a minha mãe quando lhe contou isto? Ainda está aborrecida?
- Está, e um pouco confusa. Quer que você seja feliz e espera vir a ter netos, um dia, mas a ideia de haver um divórcio na família perturba-a. E, é claro, está consciente do desgosto que Eleanor vai ter.
- Então a minha mãe ainda não aceitou verdadeiramente a ideia?
- Não. A propósito, ela disse-me que estaria disposta a aceitar qualquer recomendação que eu faça.
Clayton soltou uma gargalhada metálica.
- Por outras palavras, o meu destino está nas suas mãos...
- Está - disse o padre, bebendo um gole de vodca. Pode dizê-lo. O meu principal objectivo neste caso é evitar à sua mãe qualquer desgosto inútil. Ela é uma senhora formidável e tem dado contributos muito generosos para a Igreja da Santa Unidade.
Ao proferir estas palavras, Callaway fitou Clayton nos olhos.
- Contributos muito generosos...
Os dois homens, de olhar fixo, mantiveram-se em silêncio por alguns instantes.
- Compreendo - disse Clayton, por fim. - Sabe, padre, às vezes sinto que tenho sido desleixado por nunca lhe ter oferecido auxílio financeiro para a sua igreja, apesar de o conhecer há tantos anos.
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- Nunca é tarde - replicou o velho, bem-disposto.
- A Igreja da Santa Unidade está sempre a precisar de fundos. Por exemplo, contamos aumentar a cozinha da igreja para podermos dar de comer a mais alguns infelizes sem abrigo. Mas, neste momento, isso pertence ao domínio dos sonhos. Já recebi alguns orçamentos e cheguei à conclusão de que precisaremos de dez mil dólares, pelo menos, para fazer essas obras.
Clayton teve um acesso de tosse e o padre teve de lhe dar palmadas nas costas até ele se acalmar.
- É claro, eu acho que dez mil dólares representam um donativo exorbitante para um particular - continuou Callaway, impassível. - Mas talvez uma grande empresa de Nova Iorque esteja disposta a contribuir para o bem-estar da gente pobre e faminta desta cidade.
- Sim, isso faz sentido - respondeu Clayton, muito aliviado. - Aceitaria uma contribuição de dez mil dólares da Joalharia Starrett Fine, Inc.?
- com agrado, meu filho, com agrado - respondeu Callaway. - Deus o abençoe pela sua generosidade. É claro que o donativo seria dedutível nos impostos. Quando posso contar com o cheque?
- vou prepará-lo e amanhã meto-o no correio. Deverá recebê-lo no fim desta semana. E quando tenciona transmitir a minha mãe as suas recomendações sobre o meu divórcio?
O padre Callaway sorriu com um ar beatífico.
- No fim desta semana.
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Eleanor e Clayton Starrett estavam sentados numa mesa redonda para oito pessoas, mesmo em frente de Bob Farber e da sua nova mulher. Esta era uma mulher jovem, pequena, com um vestido de lamé prateado, sem cinto, mas tudo o que Clayton avistava do outro lado da toalha engomada era a parte de cima do peito, os ombros e os braços nus e a cabeça coroada de cabelos louros. Era fácil imaginá-la sentada ali, completamente nua, numa
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conversa amigável com o marido, a rir, mostrando os dentes brancos e afiados enquanto mordiscava o camarão.
Clayton tentava não fixar o olhar, mas, incontrolavelmente, não conseguia tirar os olhos dela. Parecia-lhe meiga, quente, suculenta. E, sentada a seu lado, estava Eleanor, dura, fria e ossuda.
Sonhou com o dia em que poderia ser visto em público com a sua nova mulher, Helene. Exibi-la-ia com orgulho: um símbolo de honra. A beleza, a juventude e a sensualidade dela testemunhariam a sua masculinidade, a sua virilidade. Helene conquistaria toda a gente. Que trofeu!
Eleanor deu-lhe um pontapé por baixo da mesa.
- Podes pestanejar de vez em quando, se quiseres - segredou ela, com malícia, sorrindo para os acompanhantes verem. - Se continuas a olhar dessa maneira, ainda te caem os olhos na sopa.
- Do que estás a falar? - replicou ele, ofendido.
Eleanor não lhe deu mais atenção, o que ele lhe agradeceu. Não parava de olhar para Mrs. Farber e deixava discorrer a sua fantasia. A luz das velas dava à sua carne um brilho rosado e Clayton imaginou-se com Helene, à lareira, em cima de uma pele de urso.
Suportou o resto do jantar graças ao vinho que bebeu em demasia. Pelo menos, reconheceu, tivera o bom senso de não ir dançar. Eleanor dançava mal, hirta e sem acompanhar o ritmo da música, e Clayton não se atreveu a convidar Mrs. Farber, não fosse, num momento de loucura, atirá-la para o chão e... Abanou a cabeça. Pensou, com tristeza, que poderia apanhar vinte anos por pensar assim. Só pelo facto de pensar assim.
Afastou o copo de vinho e foi para o terraço. Ficou ali, a respirar o ar fresco da noite, até sentir a cabeça mais fria e o ardor aplacado. Depois, conseguiu pensar racionalmente, mais ou menos, e sentiu-se frustrado por faltar ainda tanto tempo - talvez um ano! - para que os seus sonhos se tornassem realidade.
A caminho de casa, Eleanor manteve-se silenciosa e não trocaram uma palavra. Já em casa, continuaram calados. Por fim, aquele silêncio amargo convenceu Clayton de que era o momento indicado para falar. Se estava decidido, era para já. Enquanto Eleanor tirava as jóias, Clayton disse, como que por acaso:
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- Eleanor, eu quero o divórcio.
A reacção dela foi totalmente inesperada. Clayton imaginara que ela poderia desmaiar, gritar, chorar ou, pelo menos, não acreditar. Em vez disso, fez um sinal afirmativo, continuou a tirar as jóias e perguntou com frieza:
- é a Helene Pierce, não é?
- O quê? De que estás a falar? - replicou, agastado. Eleanor interrompeu o que estava a fazer e voltou-se
para ele.
- És mesmo um idiota, Clay, sabes. Eu apercebi-me disso antes de nos casarmos, e nada do que fizeste desde então me fez mudar de opinião.
- Juro-te que Helene e eu nunca tivemos... - explicou ele, acalorado.
- Oh, acaba com esse disparate! - interrompeu-o ela, cheia de desprezo. - Tens andado a atirar-te a ela desde o dia em que a conheceste. Tomas-me por parva? Já vi como olhas para ela. Do mesmo modo que olhaste para a nova mulher de Bob Farber, esta noite. Foi isso que te deu a ideia, Clay?
- Estou a dizer-te que não há nada entre Helene e eu.
- Ris-te das gracinhas dela - prosseguiu Eleanor, com brandura. - Concordas sempre com as suas opiniões estúpidas. Corres a ajudá-la a vestir o casaco. Arranjas todos os pretextos para lhe tocares. Não há maior idiota do que um velho idiota, Clay.
- Eu não sou velho! - gritou ele. - E estás muito enganada sobre tudo isso. Tentei apenas ser um bom anfitrião.
- Oh, claro! - zombou a mulher. - É por isso que tentas sentar-te sempre ao lado dela quando vem cá jantar. Estás a fazer-te de trouxa, Clay? Ouve, não penses que a mulher é a última a saber. A mulher é a primeira a saber. Assim que o marido começa a ser demasiado agradável e gentil. Quando começa a comprar roupa demasiado jovem e a massajar a cara. Como tu, Clayton. És mesmo um pateta se pensas que eu não sabia o que se estava a passar. Claro que podes contar com o divórcio, meu menino, mas vai custar-te os olhos da cara, até ao fim da vida.
- Acredita que, custe ele o que custar, valerá a pena
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eu ver-me livre de uma bruxa azeda e seca como tu - disse ele, furioso.
Mesmo assim, ela não chorou.
- Oh, Helene casa contigo - disse ela, com um sorriso triste. - Aquela cabra gananciosa tem uma mentalidade baixa. Dou-te um ano para ela se pôr a andar. E terás mais um cheque para assinar todos os meses, Clayton. Depois, começarás um novo caso (digo caso) e acontecerá o mesmo, sempre, até cresceres, o que nunca sucederá. És uma vítima da carne, Clay.
- Diz ao teu advogado que entre em contacto com Arthur Rushkin amanhã de manhã - disse Clayton, endurecido.
- com muito gosto - replicou a mulher. - Antes de isto acabar, ainda te hão-de cair os dentes. Já falaste neste assunto à tua mãe?
- Já.
- Pobre Olivia! - disse ela. - É a única pessoa de quem tenho pena. Já teve o seu quinhão de desgostos, nestes últimos tempos. Mas ela é uma mulher rija, há-de sobreviver. Tenho a certeza que ela já sabia que o seu único filho não tinha miolos. Agora vou-me deitar, Clay, e acho que farias melhor em ir dormir para outro lado qualquer.
Clayton ficou fora de si.
- Para onde irei a esta hora da noite? - perguntou.
- Podes ir para o inferno, miserável! - gritou Eleanor.
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Turner Pierce andava de um lado para o outro no apartamento de Helene, de cabeça baixa e mãos atrás das costas.
- Meu Deus, estás frenético! - disse Helene. Acalma-te, é apenas Sid.
- Tenho um mau pressentimento acerca disto - disse ele. - Eu recordei-lhe que tínhamos combinado não nos encontrarmos, a menos que surgisse uma emergência. Ele disse que se tratava de uma emergência, mas soou-me a falso. Não gostei do tom dele.
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- Ele é um velhaco - disse Helene.
- Um velhaco? - repetiu Turner. - Querida, o homem é um autêntico escroque, um escroque nojento.
- Por uns se conhecem os outros - respondeu Helene.
Turner voltou-se para verificar se ela estava a sorrir. E estava.
Sentou-se no sofá e bebeu um gole de Stolichnaya.
- Pelo menos, nós não andamos a prometer aos papalvos a vida eterna na santa unidade. é por isso que ele é nojento.
- Sim, nós temos os nossos padrões, não é verdade? disse Helene, sempre a sorrir. - Já te disse alguma vez que Sid tem um fraco por mim?
- Isso era óbvio em Kansas City. Já alguma vez tentou qualquer coisa contigo?
- Sim, uma vez - respondeu Helene, já séria. Disse-lhe o que lhe faria se ele fizesse alguma tentativa. E ele afastou-se.
Turner olhou para o relógio.
- Se ele não estiver aqui dentro de dez minutos, vou-me embora. Tenho um encontro com Felicia, esta noite.
- Onde vão?
- Quem te disse que vamos a algum lado? - perguntou ele.
- Já descobriste uma maneira de a fazer esperar?
- Já, mas não queres saber qual é, pois não?
- Não.
- E Clayton?
- Eu trato dele - respondeu ela. - Esse está bem domado. E nós só precisamos de mais um ano, não é verdade?
Turner fez um sinal afirmativo.
- Deve chegar.
O telefone interno tocou e Helene levantou o auscultador.
- Está? Está bem. Pode mandá-lo subir, por favor. Obrigada.
Desligou.
- Era o porteiro. Sid vem a caminho.
- Não me apetece vê-lo - disse Turner.
A primeira coisa que o padre Brian Callaway fez ao
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entrar no apartamento, mesmo antes de tirar o casaco e o chapéu, foi arrancar o cabeção.
- Um dia destes, esta maldita coisa corta-me as goelas - disse.
- Ficaríamos tão satisfeitos! - asseverou Helene. Sidney Loftus deu uma gargalhada.
- Que brincalhona! O que estão a beber?
- Stoli com gelo - respondeu Turner.
- Também quero - disse Loftus, esfregando as mãos. - com água, por favor.
Helene levantou-se, suspirando, e foi à cozinha. Sid deixou-se cair numa poltrona. Os dois homens olharam um para o outro com um sorriso cauteloso.
- Como vai a igreja? - perguntou Turner. Loftus abanou a mão.
- Não está brilhante, mas vai chegando - respondeu Loftus. - O lucro é bom, mas tenho de viver naquele pardieiro na Rua Vinte, no quarto das traseiras, e aturar aquela escória.
- Porque não se muda? O outro abanou a cabeça.
- Não posso. É o reverso da medalha, sabe? Viver naquele pardieiro prova a minha espiritualidade. Não poderia viver num duplex em Park Avenue e pregar a pobreza, não acha?
- A construção da imagem - replicou Turner.
- Exactamente - respondeu Sid. - É muito importante no nosso ramo, como bem sabe. Obrigado, minha querida - disse, pegando no copo que Helene lhe estendeu e levantando-o. - À saúde do crime - brindou. Mas os outros não o secundaram.
- Sid - disse Turner. - Tenho de ir a uma reunião. Qual é a grande emergência de que falou?
Loftus cruzou as pernas, ajustou o vinco das calças e recostou-se na poltrona. Tirou uma caixa de pele de porco de um bolso interior, puxou de uma longa cigarrilha com todo o cuidado e acendeu-a devagar.
- Uma pose impressionante! - comentou Turner. Continue, que eu vou começar a dançar a valsa. O que tem na cabeça?
- Negócios, negócios - disse Sidney, abanando a cabeça. - Consigo só falo de negócios. Você nunca me dá
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tempo para fazer flores. Muito bem, vou ser breve. Decerto sabe que Clayton Starrett vai divorciar-se de Eleanor.
- Quem lhe disse? - perguntou Helene. Ele olhou para ela, divertido.
- Olivia. Ela conta tudo ao padre Brian Callaway.
- Meu Deus, você não anda a montar a mulher, pois não? - perguntou Turner.
- Deus me livre! Eu sou o seu confidente, o seu confessor. Ela adora-me.
- Você é mesmo um patife! - disse Turner. Sid encolheu os ombros.
- A cada um o seu quinhão - respondeu. - E Olivia também me disse que, assim que Clayton der um pontapé na mulher, tenciona casar com Helene.
Voltou-se para ela e acrescentou:
- Parabéns, minha querida. Que tudo lhe corra bem.
- Vá-se lixar! - respondeu Helene. Ele sorriu e bebeu mais um gole.
- Tem água a mais. Aqui vai o que eu penso... Helene, Clayton já lhe falou no divórcio e já a pediu em casamento. Tenho a certeza de que você já descobriu que Clayton não é propriamente o tipo mais brilhante da zona. Deixa-se manipular com facilidade, e aposto que você vai gozar um bocado com ele até o divórcio ser decretado, e depois vai dar uma curva. Estarei a falar bem?
Helene preparava-se para responder, mas Turner levantou a mão, fazendo-lhe sinal para que se calasse.
- Suponha que sim - disse ele, dirigindo-se a Loftus. - E onde é que você entra?
- Ora - prosseguiu o outro -, parece-me injusto que sejam só vocês os dois a aproveitar-se desta situação única. E de que maneira, diria eu. Afinal, fui eu que os apresentei aos Starrett. Mereço uma recompensa.
Turner fez um sinal afirmativo.
- Logo vi que era qualquer coisa desse género - disse. - Você é mesmo um ganancioso. E se eu o mandasse bugiar, qual seria a sua reacção, Sid?
Loftus suspirou.
- Teria de pensar maduramente no assunto. É possível que a minha decisão fosse no sentido de, tal como é meu dever e na qualidade de conselheiro espiritual de Olivia, informá-la de certos pormenores da história passada dos dois seres adoráveis que vocês são.
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- Isso é chantagem - disse Helene, sem alterar o tom de voz.
Loftus fez um gesto de troça.
- Mas que palavra tão feia, minha querida. Prefiro chamar-lhe comissão. Por me ajudarem a carregar o meu pesado fardo.
Turner sorriu com frieza.
- Você está a fingir, Sid - disse. - A coisa funciona para os dois lados. Também nós podemos sentir necessidade de contar aos Starrett a sua história.
- A sério? - exclamou Loftus, radiante. Bebeu mais um gole de vodca. - Para lhe poupar trabalho, posso dizer-lhe que Olivia já está ao corrente dos meus deslizes passados. Não de todos, claro, mas da maior parte. Contei-lhos e ela perdoou-me. Sabe que estas beatas adoram pecadores arrependidos. Acreditam piamente na ovelha transviada que regressa ao bom caminho.
- Eu subestimei-o, Sid - disse Turner.
- As pessoas fazem-no, às vezes, e acabam por pagar por isso - comentou Loftus, complacente.
- E o que consideraria você uma comissão razoável?
- Ora, acho que cinquenta mil é um número bonito.
- Cinquenta mil! - exclamou Helene. - Você está louco?
- Não quero acreditar que estou a ser julgado - disse Sid, rindo-se do seu próprio sentido de humor. - De facto, Helene, não é um pedido exagerado, se pensarmos no que você já recebeu e irá receber de Clayton até ele conseguir o divórcio. E ainda nem fiz referência à sua saída airosa, Turner, daquele golpe maravilhoso na Joalharia Starrett Fine. Não acho que cinquenta mil sejam um exagero.
- Em dinheiro, suponho - disse Turner, ácido.
- Não necessariamente, meu velho. Bastaria um donativo para a Igreja da Santa Unidade. É dedutível nos impostos, sabe?
- Bem, vai dar-nos algum tempo para pensar na sua proposta, não é verdade? - perguntou Turner.
- Evidentemente - respondeu Loftus, num tom caloroso. - Não estava à espera de uma resposta imediata. Acho que uma semana será suficiente para tomar a única decisão racional que é possível. Obrigado pela bebida.
Levantou-se e pegou no chapéu, no casaco e no cabeção. Os Pierce continuaram sentados. Sid acenou-lhes
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com um ar afável e encaminhou-se para a porta. Depois, voltou-se e disse, com um sorriso ameaçador:
- Lembrem-se, não há prazer sem dor. E saiu.
- Acho que preciso de outra bebida - disse Helene.
- Também eu - respondeu Turner. - vou buscar.
Helene acendeu outro cigarro enquanto ele foi à cozinha. Olhou, espantada, para o cinzeiro cheio de pontas de cigarro que tinham fumado até meio e apagado em seguida, durante aquela conversa desgastante com Sid Loftus.
Turner voltou com as bebidas. Sentaram-se junto um do outro no sofá e estenderam as pernas.
- Tinhas razão - disse Helene. - Ele é nojento. Turner, podemos desmascarar a farsa que é a igreja dele?
- Não - respondeu Turner. - Ele descobriria logo quem fora e contaria à polícia o caso da Starrett. Não podemos correr esse risco.
- Não lhe vamos pagar, pois não?
- De modo nenhum - disse ele. - Se o fizéssemos, estaríamos a pagar adiantado. Ele havia de sugar-nos até aos ossos:
- Então? Quais são as alternativas? Turner voltou-se para olhar para ela.
- Não temos muitas. Só uma, na verdade. Temos trabalhado de mais para deitar tudo a perder por causa de um canalha como Sid.
Helene concordou.
- Ramon podia encarregar-se disso? - perguntou.
- Podia, mas eu não quero pedir-lho. Em primeiro lugar, trata-se de uma coisa pessoal, e Ramon não precisa de saber do teu caso com Clayton. Em segundo lugar, ficaria com um ascendente sobre mim. Receio que tenhamos de ser nós a tratar disto. Queres ser tu?
- Claro que quero - respondeu ela, beijando-o.
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Dora Conti decidiu que iria passar o dia na zona dos ourives, na Rua 47 Oeste, entre a 5ª e a 6ª Avenida, a falar com comerciantes e vendedores, na esperança de
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descobrir respostas para algumas das interrogações que a incomodavam. ia a caminho da porta quando o telefone tocou. Voltou atrás para atender. Era Gregor Pinchik, o perito de computadores.
- Olá, minha senhora - disse. - Ouça, estou no meu escritório novo, tenho os computadores todos ligados e, depois de verificar tudo, ficarei pronto a começar. Talvez amanhã. Entretanto, tenho feito uma série de telefonemas para tentar descobrir qualquer pista sobre aqueles nomes que me deu, Turner e Helene Pierce.
- E teve sorte? - perguntou Dora.
- Talvez sim, talvez não. Há um barra em Dallas que é muito meu amigo. Nunca o vi, mas há anos que comunicamos através dos computadores. Ele é paralítico e trabalha no computador com um objecto que segura nos dentes. Não imagina como ele é rápido. De qualquer modo, falei-lhe neste Turner Pierce, e ele diz que lhe parece ser um jovem vigarista que operava em Dallas, há quase dez anos. O nome dele era Thomas Powell, mas as iniciais são as mesmas. Por isso pensei que pudesse tratar-se do nosso pombinho. O que acha?
- Pode ser - respondeu Dora, à cautela. - Os tipos que mudam de nome costumam manter as iniciais para não terem de deitar fora os calções com monograma.
Pinchik riu-se.
- Tem razão, minha senhora - disse.
- E o que fez esse Thomas Powell?
- Os peritos de Dallas chamavam-lhe "Ma Bell" porque a especialidade dele era fraudes com telefones. Começou por criar um apito cujo som tinha a mesma frequência que o que a companhia dos telefones usava para estabelecer ligações regionais ou intercontinentais. Você apitava para dentro do telefone e podia falar para Hong Kong quanto tempo lhe apetecesse. Ele vendeu uma série desses-apitos. Depois, quando a companhia dos telefones descobriu e mudou o sistema de ligação, esse Thomas Powell começou a fabricar e a vender umas caixas azuis. Eram dispositivos que emitiam sons que interferiam com o sistema de facturação da companhia e permitiam fazer chamadas para muito longe, de borla. Ouça, o tipo tinha talento, sem dúvida.
- E nunca lhe deitaram a mão?
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- O meu amigo diz que ele andava sempre mais depressa do que a lei. Por exemplo, nunca vendia os apitos ou as caixas azuis ao consumidor final. Vendia-os sempre a armazenistas, que depois vendiam a retalhistas, os quais, por sua vez, vendiam aos consumidores. Powell estava sempre a milhas da fraude do momento. Quando a polícia relacionou a mercadoria com ele, ele já desaparecera.
- Para onde? O seu amigo sabe?
- Ele falou com dois peritos locais e telefonou-me. Um afirma que ouviu dizer que Thomas Powell foi para Denver, quando as coisas começaram a aquecer para ele em Dallas. Tenho bons contactos em Denver e, logo que as minhas máquinas estejam a funcionar em condições, vou tentar descobrir a pista de "Ma Bell". Está certo?
- Claro - disse Dora. - Pode ser um falso alarme, mas vale a pena tentar. O seu amigo de Dallas não disse nada de Helene Pierce?
- Não. Diz que Thomas Powell era um borracho, com uma série de mulheres atrás dele, mas nenhuma em especial. E ninguém em Dallas lhe conhecia nenhuma irmã; consideravam-no um solitário.
- Continue atrás dele - disse Dora. - E avise-me, se souber de alguma coisa.
- Pode ficar descansada, minha senhora - respondeu Pinchik.
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O bar ficava na Rua 28, entre Lexington Avenue e a
3ª Avenida e não tinha nada de atraente. Os vidros da montra precisavam de ser lavados, o toldo enrolado estava em farrapos e uma parte do vidro biselado da porta estava rachado e remendado com fita gomada. Lá dentro, era óbvio que o decorador tentara criar um ambiente íntimo, mas só conseguira uma atmosfera lúgubre.
Sidney Loftus entrou e começou a olhar à sua volta, com curiosidade. Vestia um casaco desportivo de tweed e calças de flanela, debaixo da gabardina, e não havia traços
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do cabeção do padre Callaway. Em lugar deste, trazia ao pescoço um lenço de seda, atado como se fosse um pirata. Avistou Helene Pierce sentada, sozinha, num banco afastado da porta, levantou a mão para lhe dizer adeus e aproximou-se dela sem pressas. Das doze mesas do restaurante, só duas estavam ocupadas e Helene era a única pessoa sentada num dos oito bancos altos.
- Boa tarde, minha querida - disse Sid, jovial. Pendurou a gabardina num gancho da parede e deslizou para o banco ao lado dela. - Mas que sítio elegante! Não posso acreditar que você vai jantar aqui.
- Não - respondeu Helene. - Talvez apanhasse alguma gastrite. Mas as bebidas são bem servidas. Estou a beber uma vodca Tanqueray.
- Parece-me uma boa ideia - disse Loftus. Fez sinal ao criado, apontando para o copo de Helene e espetando dois dedos.
- Fiquei admirado por ter notícias suas. Julguei que seria Turner a telefonar-me, e não você.
- Pensei que poderíamos encontrar-nos - disse ela, olhando-o nos olhos. - Em qualquer lado que Turner não tenha o hábito de frequentar e onde você não fosse Teconhecido.
- Meu Deus, que mistério! - disse ele. - Então Turner não sabe do nosso encontro?
- Não, não sabe.
- Ah! - exclamou Sid.
Calou-se. Um criado sorumbático, a arrastar os pés, serviu-lhes as bebidas, pousando os copos em pequenos guardanapos de papel enfeitados com um escocês estampado a preto.
- Encantador! - disse Loftus, pegando no guardanapo com as pontas dos dedos. - Tem mesmo classe. Bem, quaisquer que sejam os seus motivos, minha querida, sinto-me feliz por estar aqui a beber um copo consigo, sem o Turner. Onde é que ele foi esta noite?
- Você deve saber. Está fora da cidade a tentar arranjar os cinquenta mil dólares, a sua comissão.
Loftus provou a bebida.
- É bom - disse. - Não está muito fresco, mas é bom. Não acredito que seja assim um problema tão grande conseguir cinquenta mil. Tenho a certeza de que vocês dois têm esse dinheiro.
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- Acho que você não percebeu bem, Sid - replicou Helene com veemência. - Aqueles lucros de que você falou ainda não existem. Admito que o potencial existe, mas, até agora, os recebimentos têm sido anémicos. Clayton paga-me a renda da casa e oferece-me uns diamantes do tamanho de cabeças de alfinete, mas é tudo. O negócio na Joalharia Starrett Fine virá a render, não duvido, mas por agora os lucros são praticamente nulos. Não me interprete mal, não estou a chorar-me, mas Turner vai ter de contrair um empréstimo para conseguir os cinquenta mil. com grande dificuldade, é claro.
Sid bebeu mais um gole e sorriu com um ar desanimado.
- Não me diga que me convidou para regatear o preço, Helene. É uma tarefa tão aviltante, não acha?
- Não, não estou a regatear - respondeu ela. Turner vai conseguir os cinquenta mil. Não temos alternativa, não é verdade?
- Nenhuma, de facto - concordou ele.
- Mas Turner espera que venha algum da minha parte - continuou ela, fria como uma pedra. - Não me agrada. Por isso é que quis falar consigo a sós.
- Sem querer ofendê-la, minha querida, desconfio que Turner a mandou ter comigo para me enrolar.
- Ouça primeiro a minha proposta - aconselhou ela -, e depois decida-se.
- Sou todo ouvidos - disse ele. Chamou o criado e pediu nova dose.
Aguardaram em silêncio que o criado trouxesse as bebidas e se afastasse. Depois Helene inclinou-se sobre a mesa. Trazia uma camisola de lã grossa, azul-pervinca, com o decote em V, e quando se chegou para a frente, Sid viu-lhe a pele morena e macia dos seios, sem soutien.
- Diga-me a verdade, Sid, o que pensa verdadeiramente de mim? - perguntou ela.
Ele tentou esboçar um sorriso, mas não conseguiu.
- Ora, acho que você é uma mulher jovem, extremamente atraente. Bela, de facto. com tudo o que é preciso para fazer um velho esquecer a idade e sonhar em acariciá-la.
- Você não é velho, Sid - disse Helene, impaciente. - E vamos esquecer a parte física. Você já andou a
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sondar-me duas vezes. Qual a sua opinião pessoal sobre o que sou e como funciono?
O homem respondeu devagar, com prudência:
- Acho que você é uma mulher muito perspicaz, muito mais do que a vida lhe ensinou a ser. Acho que você anseia muito por uma vida de luxo. É ambiciosa. Sedenta de dinheiro. E com a moral de um gato vadio.
Ela desatou a rir e inclinou a cabeça para trás, fazendo rodopiar o cabelo comprido.
- Você topou-me. Sinto-me culpada - disse ela.
- Não tem nada que se sentir culpada - respondeu ele. - Você é equivalente a Turner, no feminino, ou a mim, ou a qualquer outro tubarão que esteja no jogo. Só que é pouco vulgar encontrar essas características numa mulher. Mas não estou a condená-la. Au contraire, meu torrãozinho.
- Desde que você saiba... - disse ela.
- Saiba o quê? - perguntou ele, intrigado.
- Quais são os meus motivos. Já lhe disse que me desagrada o facto de uma parte da sua comissão ter de sair do meu bolso. Não gosto disso. Tenho trabalhado muito junto de Clayton Starrett para conseguir a minha parte e não vou desperdiçá-la. Também sei que você está embeiçado por mim. Deu provas disso em Kansas City.
- É verdade, e você deu-me com os pés - admitiu ele.
- Ainda sente da mesma maneira? Ele olhou-a com um ar aprovador.
- Talvez. O que tem na ideia, minha querida?
- Não se trata de um acto despreocupado de lascívia.
- Essa é para rir - disse ele.
- Seria apenas um acordo profissional - disse ela, olhando-o fixamente. - A minha hipótese de abater uma parte da minha contribuição para a sua comissão. Ficou escandalizado?
- De modo nenhum - respondeu ele, sem desviar o olhar. - Você é uma mulher fria, Helene.
- Fria? Conhece outro modo de sobreviver?
- Não - respondeu ele. - Não conheço. Então, o que está a tentar dizer-me é que gostaria de um abatimento sobre aquilo que Turner me vai pagar. Por favores prestados. Compreendi bem?
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- Compreendeu bem.
- E qual a dimensão desse abatimento?
Helene voltou a inclinar-se para a frente. O decote da camisola abriu-se mais.
- Ainda nem pensei nisso. Só queria discutir a ideia consigo. Se você recusar, paciência. Se está disposto a avançar, então poderemos discutir os pormenores. Sou uma mulher razoável.
Ele riu-se.
- E eu sou um homem razoável. Somos os dois da mesma laia. É uma ideia interessante, Helene. Perigosa mas interessante. Se Turner descobrir, mata-nos.
- Acha que eu não sei? Mas quero correr o risco. E você?
Ele olhou para o copo e fê-lo deslizar em pequenos círculos pelo tampo da mesa. Observou de novo a coluna esguia que era o pescoço nu de Helene e susteve a respiração.
- Acho que quero tentar - respondeu. - Mas estamos confrontados com um problema logístico. Especificamente, onde e quando?
- Não estou a imaginar-nos a entrar no Waldorf, não acha? Ou noutro hotel ou motel em Manhattan. Qualquer de nós poderia ser reconhecido. E não pode ser no meu apartamento. Creio que Clayton anda a pagar ao porteiro para vigiar as minhas visitas. Não posso arriscar. Só resta a sua casa.
- A minha casa? - protestou ele. - É um pardieiro.
- Tenho a certeza que já vi pior - disse ela, acabando a bebida. - Vamos lá agora e fechamos o negócio. Vai ser fácil convencê-lo que está a fazer uma boa jogada.
- É praticamente a cela de um monge - avisou ele.
- Isso pode ter piada.
Loftus rendeu-se completamente.
- Vai ter - disse.
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Artur Rushkin referira por acaso que, depois de ter examinado as folhas de computador, ficara um "pouco admirado" com a quantidade de ouro transaccionada pela
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joalharia Starrett Fine. Dora pensou que ele deveria ter ficado chocado e não admirado. Mas o advogado não passara um dia inteiro a fazer pesquisas sobre ouro na biblioteca pública nem andara a cavaquear com os ourives astutos da Rua 47 Oeste.
A reacção de um deles, um autêntico monte de banha enfiado num fato de xadrez, foi típica. Dora perguntou-lhe se uma joalharia de dimensão média poderia usar a quantidade de ouro que a Starrett alegadamente vendia, e o homem olhou para ela como se Dora tivesse acabado de aterrar num disco voador.
- É absolutamente impossível! - respondeu, com um sotaque que Dora não conseguiu identificar. - Isso está totalmente fora de questão, minha cara menina. Nunca, nem em mil anos.
O homem continuou a explicar, no seu inglês atabalhoado, que nenhuma ourivesaria média fabricava as peças que vendia, e que dependia dos fornecimentos dos distribuidores e dos armazenistas. Se tinha de fazer alguma reparação, poderia guardar uma pequena quantidade de ouro em fio, correntes, fechos, engastes, etc. Mas tratava-se de ligas de catorze ou dezoito quilates, não do ouro puro de que Dora estava a falar.
- Então, nenhuma joalharia precisaria de quilos de ouro? - perguntou ela.
- Isso é ridículo - respondeu o homem. - Completamente ridículo. Valha-me Deus, quer construir uma Estátua da Liberdade em ouro puro? com essas quantidades que me indicou, pode fazê-lo. Mas para uma loja pequena, nem mesmo uns grãos ou uma onça de ouro puro. Estou a dizer a verdade.
- Acredito - apressou-se a responder Dora. E outros proprietários e vendedores com quem falou disseram-lhe o mesmo.
Então, numa bela manhã, Dora sentou-se no quarto do hotel a olhar para a pilha de papéis que tinha em cima da mesa baixa: as folhas de computador, os apontamentos que tirara na biblioteca e o bloco de notas.
Perguntou a si mesma aonde é que a continuação das investigações sobre o negócio de ouro da Starrett poderia levar. Que relação, se é que havia alguma, teria com o assassínio de Lewis Starrett e com o pedido de indemnização
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do seu seguro de vida. Essa era, afinal, a sua principal preocupação, e mesmo que se provasse que o negócio do ouro era ilegal, mas que não estava relacionado com a morte de Lewis Starrett, ela andava apenas a perder tempo.
Estava ainda a pensar na direcção mais correcta a seguir quando o telefone tocou.
- Está? - respondeu, quase distraída.
- Olá, Ruiva - disse John Wenden. - Tenho boas notícias para si. Acho que podemos encerrar o caso Starrett.
- O quê? - exclamou ela.
- É que, se esperarmos mais tempo, todas as pessoas envolvidas serão liquidadas.
- John, de que diabo está você a falar? - perguntou ela.
- A notícia chegou agora mesmo do departamento - disse ele. - Hoje, de manhã cedo, Sidney Loftus, também conhecido por padre Brian Callaway, foi encontrado morto no quarto das traseiras da Igreja da Santa Unidade, na Rua Vinte Leste.
- Oh, meu Deus! - exclamou Dora, sem conseguir respirar.
- Lá se vai o seu suspeito preferido na morte do Starrett... - disse Wenden. - Lamento, Ruiva.
- Foi apunhalado?
- Como é que adivinhou? Este caso tem mais facas do que um número de circo. Ouça, desconheço os pormenores, mas vou agora para lá. Fica em casa esta tarde?
- Farei o possível por estar.
- Depois de eu descobrir o que se passou, dou-lhe uma telefonadela ou passo por aí.
- Passe por aqui - pediu Dora. - Eu arranjo umas sanduíches.
- A ideia agrada-me. Hoje apetece-me salame - disse ele.
- Conte com ele - prometeu ela.
Depois de desligar, Dora voltou a olhar para a pilha de papéis, sem os ver. A sua primeira reacção à notícia da morte de Callaway foi recear até que ponto o assassínio poderia afectar Mrs. Olivia Starrett. Aquela pobre mulher já suportara a morte do marido e de um amigo íntimo
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da família. Agora, teria de aguentar o "falecimento" de um homem que poderia ter sido um vigarista mas que fora, sem dúvida, o seu conselheiro espiritual e, pelo que Dora imaginava, a confortara e aconselhara. Os motivos de Callaway podiam ter sido venais, mas Dora estava convencida de que ele era um conforto para Olivia, algo que ela nunca tivera da parte do marido nem do resto da família.
Já passava das duas quando Wenden apareceu, com o ar exausto e desalinhado do costume. Tirou o cachecol e deixou-se cair no sofá.
- Estou esgotado e o dia ainda mal começou - disse. Sem dizer nada, Dora trouxe-lhe uma lata de cerveja
gelada e abriu-a. Ele bebeu quase metade, sem parar, e depois respirou fundo.
- Obrigado, Ruiva. Você está com um ar muito calmo, hoje.
- Não me sinto calma. O que aconteceu?
- O homem levou quatro ou cinco facadas. No peito, no estômago, nas costelas e na barriga. Depois, como medida de precaução, cortaram-lhe as goelas. Alguém que não gostava nada dele. O local parecia um matadouro.
- Acha que foi algum daqueles drogados e vadios que iam comer à igreja?
- Não - respondeu o detective, revolvendo-se no sofá. - Ele estava nu, deitado na cama, de barriga para cima. E estava atado.
- Então não pôde defender-se? Wenden fitou-a.
- Estava amarrado, com os braços e as pernas esticados. Tinha os tornozelos e os pulsos atados às extremidades da cama, com lenços de seda. Nós fáceis de desfazer. Podia ter-se libertado. Era um jogo sexual, Ruiva.
Dora olhou para ele, sem expressão.
- Há uma série de tipos que se submetem a essa escravidão - disse John, encolhendo os ombros. - Já tenho visto cenas mais esquisitas do que aquela.
- Acha que ele era homossexual e que apanhou algum parceiro sádico?
- Isso foi o que pensámos ao princípio, mas agora não estamos assim tão certos. Pode tratar-se de uma encenação, para dar essa aparência. Os tipos da brigada de
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detecção ainda estão a trabalhar, estão a vasculhar todo o local. Saberemos mais coisas quando recebermos o relatório deles. Ouça, estou com fome. Você prometeu-me uma sanduíche.
- Desculpe, John. Estava tão interessada no que você contava que me esqueci. As sanduíches já estão feitas. São de salame com pão de centeio e mostarda quente. E picles.
- Sim, vou nisso - disse ele.
Dora trouxe uma travessa de sanduíches coberta com um guardanapo humedecido e os picles.
- Não bebe nada? - perguntou ele.
- Talvez uma cola de dieta.
- Você pára com isso, ou não? - disse, quase zangado. - Apanhou esse complexo de sentir-se demasiado gorda.
- Não é um complexo. Sei que estou gorda.
- Não acho - disse ele, atirando-se a uma grossa fatia de salame.
- John, como acha que isto se relaciona com os homicídios de Starrett e Guthrie? - perguntou Dora, a mastigar.
- Não sei se estão relacionados - respondeu ele. Em seguida, olhou para ela e perguntou: - E você?
- Também não. Mas nos três casos foram utilizadas facas.
- Facas diferentes - disse ele. - Não posso ter a certeza enquanto eles não acabarem o trabalho, mas aposto que a lâmina que matou Callaway era diferente da faca de cozinha que matou Starrett e do estilete que acabou com o Guthrie. Há uma série de naifas nesta cidade, menina. São as armas preferidas. Não fazem barulho.
- Mas todas as vítimas estavam relacionadas umas com as outras - replicou Dora. - Conheciam-se. Todas faziam parte do círculo de relações dos Starrett.
Wenden pegou noutra sanduíche.
- Poderia ser um autor de assassinos em série que, por mero acaso, tivesse escolhido três alvos que se conheciam. Não acredito nisso nem por um minuto. Ou podia ser alguém com ódio à família Starrett e aos seus amigos e conhecidos. E que está a apanhá-los, um por um.
- Pôs guardas no apartamento dos Starrett? - perguntou ela, preocupada.
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- Claro que pus. Mas você sabe tão bem como eu que isso não vai servir de muito. Um assassino determinado descobre sempre maneira de o fazer. E, mais tarde ou mais cedo, os guardas terão de ir-se embora.
- Então, acha que uma mesma pessoa, ou pessoas, é responsável pelos três crimes?
- É uma hipótese - admitiu Wenden. - É também o que você pensa?
- Para dizer a verdade, não sei o que diabo está a passar-se - respondeu ela.
- É você e eu - disse John, encostando-se no sofá, a suspirar. - Isto encheu-me as medidas. Foi talvez o único alimento sólido que comi em todo o dia.
- Leve as sanduíches que sobraram - disse ela. Insisto.
- Não vou dizer que não - respondeu ele, com um sorriso alarve. - Aproveito as calorias. Ouça, quando eu sair daqui, volto para a Rua Vinte. O caso da morte de Callaway não me pertence, mas quero andar por ali e verificar se os responsáveis descobrem alguma coisa.
- Como, por exemplo?
- Eles vão vasculhar todos os caixotes do lixo, contentores e lixeiras da zona para ver se descobrem a faca. E vão percorrer todos os estabelecimentos, bares e restaurantes das redondezas, com uma fotografia do querido defunto, para perguntar se ele foi visto ontem à noite e, em caso afirmativo, se estava com alguém.
- John, isso vai levar vários dias!
- Pelo menos - concordou ele. - Talvez semanas. Mas tem de ser feito. Você parece triste. O que há, Ruiva?
- Estou triste - disse Dora. - Sabe porquê? Por causa de Sidney Loftus, ou antes, do padre Brian Callaway. Eu sei que ele era um vigarista e um homem desonesto. Sei que andava a espoliar Olivia Starrett e outros crentes ingénuos o mais que podia. Que ele era mau. Mas, mesmo assim, tenho pena dele, por ter morrido daquele modo.
- É um luxo a que não posso dar-me - replicou John. - Esse de ter pena. Se me deixar ir atrás dos sentimentos, não estou a fazer nada no departamento.
- Não acredito.
- Acredite - insistiu ele. - Sou como um cirurgião.
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Se ele vai extrair um tumor canceroso, não pode ter pena do doente; isso iria interferir com o seu trabalho. Tudo o que lhe interessa é extirpar toda a doença. Tem de pensar na pessoa que está debaixo do bisturi como se ela fosse um objecto. Só carne. Não se pode distrair com sentimentos de tristeza ou de pena.
- É assim que você pensa nas pessoas, como objectos?
- Só nas más. Sid Loftus era um objecto, por isso não consigo sentir nada por ele. Não penso em si como objecto. Sabe o que sinto por si.
- O que sente? - perguntou ela, desafiando-o.
- Estou sempre a pensar em si - disse ele, fazendo-a rir.
- Você é um buldogue, é o que você é - afirmou ela.
- Parece uma ideia fixa, não é? - perguntou Wenden. - Mas não é. É uma atracção muito, muito forte. Acho que nos faria felizes a ambos. Muito bem, seria uma felicidade passageira. Nada de pesado, nada de eterno. Apenas um grande gozo que não faria mal a ninguém. É assim tão. mau?
- Você não pode saber se não faria mal a alguém - objectou Dora. - Não pode fazer previsões.
- Estou disposto a correr o risco. E você? Dora não respondeu.
- Pense nisso - insistiu ele.
- Está bem, vou pensar - respondeu ela.
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Quando Ramon Schnabl dizia quem era, ninguém questionava nem pensava sequer em investigar os seus antecedentes. Era um homem grave, e as poucas pessoas que o tinham ouvido rir preferiam que isso não acontecesse. Era conhecido por ter uma fortuna fabulosa, o que, dada a natureza dos seus negócios, era de esperar.
Era um indivíduo extremamente baixo e magro, cujos fatos eram confeccionados em Roma, e os sapatos, com
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um toque invisível, uma criação de um fabricante de Londres. Tudo o que ele usava parecia minúsculo, apertado e lustroso, e dizia-se que os tampos das sanitas do seu apartamento, em Central Park South, eram feitos por medida, não fosse ele cair dentro das de tamanho vulgar.
Não era propriamente um albino, porque os olhos eram escuros e havia um rubor desmaiado na sua face magra. Mas era de uma palidez indesmentível, cabelos brancos com um tom prateado, pele leitosa e até os nós dos dedos eram translúcidos. Preferia jóias de platina e fatos brancos acertoados, que lhe acentuavam a palidez. Usava também, em casa e na rua, óculos muito escuros, como se não conseguisse suportar as luzes fortes ou as cores garridas.
Turner Pierce tinha-o na conta de um homem perigoso, muito possivelmente psicótico. Mas Helene achava que ele tinha uma personalidade fascinante. O que a atraía, dizia, era a contradição entre o seu pequeno tamanho e a ameaça que projectava. Ramon nunca fazia ameaças, mas os sócios nunca se esqueciam da capacidade de agressão que ele encerrava.
O seu apartamento era tão insípido como o seu aspecto. A sala tinha paredes brancas, o chão era de mosaicos pretos e brancos, dispostos como se fosse um tabuleiro de xadrez, e os móveis eram de cabedal preto com estruturas metálicas. Sobre a lareira de mármore, de um branco gélido, via-se o único adorno do aposento: o crânio desbotado de um órix.
Ramon e Turner estavam instalados em duas poltronas desengraçadas, a condizer, voltados um para o outro. O anfitrião preparara copos de água Evian, gelada. Era um adepto do chá e um feroz inimigo do cigarro. Naquele momento, o seu convidado ansiava ardentemente por um cigarro e por um copo de Absolut com gelo.
- Os assuntos estão a evoluir bem - disse Schnabl, com a sua voz seca e sem inflexão. - Não concorda, meu amigo?
- Oh, sim! Sem problemas - anuiu Pierce.
- Nenhum? Então diga-me porque tem um ar tão preocupado.
- Tenho? - exclamou Turner, desejoso de espreitar os olhos astutos do homem escondidos pelos óculos escuros.
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Tentou dar uma gargalhada. - Bem, como você sabe, diz-se que um homem só tem duas preocupações na vida: dinheiro e mulheres.
- E qual é a sua?
- Não é dinheiro - apressou-se a responder Pierce. -- Não há problema nenhum nesse campo. Tenho um problema pessoal com uma mulher.
- Ah, sim? Não é decerto com Helene, aquela senhora adorável... - perguntou Schnabl.
Turner abanou a cabeça.
- Então deve ser com Felicia Starrett, a irmã de Clayton.
Turner fez um sinal afirmativo, sem perceber como é que Ramon sabia. Este homenzinho sabia tudo.
- Não é um problema grave - assegurou a Ramon. Mas ela é muito emotiva, muito imprevisível.
- É uma má combinação, meu amigo. E é vingativa?
- Receio que possa haver essa possibilidade.
- Pensei que ela dependia de si para os fornecimentos.
- E depende, mas as coisas não estão a correr como eu planeei. Ela quer sempre mais - disse Turner.
- Mais?
- Quer-me a mim - respondeu Pierce, consciente de que estava a dar-lhe um trunfo, mas sem vislumbrar uma alternativa.
- Compreendo, meu amigo - disse Ramon, completamente desprovido de compreensão. - Tem um problema de administração.
- Sim, é mais ou menos isso - respondeu Turner.
- Talvez seja preciso um medicamento mais forte. Pierce olhou para ele, confuso.
- O que sugere?
Por instantes, Ramon observou-o com um ar grave. Depois disse:
- Estou a apresentar uma nova linha de produtos. Cristais grandes de metanfetamina para fumar. Na rua, chamam-lhe "gelo". Acredito que venha a ser a criação favorita da década de noventa; outros produtos tenderão a ser considerados fora de moda. A grande vantagem do "gelo" é que produz um estado de euforia que dura vinte e quatro horas. Pode vir a ser a resposta para o seu problema de administração.
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- Muito obrigado - disse Pierce, submisso. Naquela noite, foi ter com Felicia. Jantaram no Vito, ele sorriu com a tagarelice dela, riu das suas piadas e deu-lhe a mão no caminho de regresso ao apartamento. Uma lua intumescida pairava num céu sem nuvens, e a noite parecia plena de promessas: algo que se misturava no vento, que se escondia nas sombras azuladas, pronto a irromper, com um sorriso malicioso.
- Mas que giro! - tagarelava Felicia. - Clay divorcia-se de Eleanor e casa-se com Helene. E tu e eu damos o nó. Uma só família, grande e feliz! Não é, Turner? Não tenho razão?
- Tens razão. Seremos os quatro destemidos - disse ele.
- Adoro isso - confessou ela, apertando-lhe a mão.
- Os quatro destemidos, que somos nós. Podemos até fazer um pás de quatre, numa noite qualquer em que estejamos bem grossos. Entrarias numa dessas?
- Porque não? - respondeu ele.
Felicia nem o deixou preparar os brandes e começou a despir-se assim que entrou no apartamento dele. Mas Turner mostrou-se deliberadamente lento, um pouco rancoroso no meio do seu aborrecimento. Agradava-lhe a dependência dela perante o seu próprio poder, desejava puni-la por todo o incómodo que estava a causar-lhe. Mas a crueldade dele excitava-a ainda mais, e ela recebia a dor como se fosse uma prova da paixão de Pierce. Esta mulher, concluiu Turner, era louca e terrivelmente perigosa.
Mais tarde, deixou-a na cama e foi à cozinha buscar o seu conhaque. Voltou para o quarto com o brande, um cachimbo de vidro e um pequeno embrulho com cristais em pedaços. Ela olhou para ele com os olhos semicerrados e tentou levantar-se.
- O que é isso? - perguntou.
- Uma coisa nova para ti. Chama-se gelo. É a última novidade. Fuma.
- Tu também vais fumar? Ele levantou o copo.
- Este é o meu escape. O cachimbo é o teu - disse. Ela inspeccionou os cristais e disse:
- Gelo... Parecem diamantes.
- Exactamente. É o que está na berra. Tudo o resto está desactualizado.
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Foi tudo o que ela quis ouvir, pois era uma vítima da vulnerabilidade. Encheu o cachimbo, com os dedos a tremer, e pressionou o conteúdo enquanto ele acendia um fósforo. Aspirou e inalou profundamente, de olhos fechados.
O efeito fez-se sentir quase de imediato. De olhos esgazeados, Felicia sugava avidamente o cachimbo.
- É bom? - perguntou ele.
Ela olhou para ele com um sorriso estonteado e inclinou-se para trás, para se encostar à cabeceira da cama. Continuou a sugar o cachimbo, agora mais devagar, saboreando-o indolentemente.
Ele pousou-lhe a mão na canela nua e ficou admirado ao ver como o corpo dela estava febril. Estava a escaldar.
Os cristais foram consumidos. Turner tirou o cachimbo de vidro dos dedos trémulos de Felicia e pô-lo de lado.
De repente, ela começou a rir-se convulsivamente. Cheia de energia, levantou-se rapidamente da cama e cambaleou, sempre a rir. Correu para a sala, a vacilar, embatendo nas paredes, e voltou tão depressa como fora, antes que Turner conseguisse mexer-se.
- Como te sentes? - perguntou ele com curiosidade. Ela olhou para ele e deixou de rir. Puxou-o para a cama com uma força a que ele não pôde resistir.
- Eu sou o mundo - proclamou ela.
- Claro que és - concordou ele.
- As estrelas. Planetas. Universo. Tudo e mais alguma coisa.
- E mais alguma coisa - repetiu ele.
Ela deixou-se cair e tentou enfiar os dedos dos pés na boca. Ele afastou-se, voltou a sentir o calor incrível do seu corpo e reparou que ela estava afogueada. Pousou-lhe a mão no peito e o pulsar forte e tumultuoso do coração da rapariga alarmou-o.
- Sentes-te bem, Felicia?
Ela começou a pairar sem nexo: frases inacabadas, fragmentos de canções, nomes que ele não reconheceu, palavrões. A tagarelice acabou tão abruptamente como começara. Ele deixou-a naquele estado e foi à cozinha buscar outro brande.
Ela continuava imóvel quando ele regressou ao quarto. Mas o seu rosto estava agora retorcido, feio, e Felicia
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estava a arfar. Ele sentou-se na beira da cama e observou-a sem paixão, reparando que ela tinha as pernas a tremer e os dedos dos pés encaracolados. Parecia estar a retorcer-se cada vez mais, e todo o seu corpo fora acometido de um paroxismo.
De repente, ela deu um grito, tão alto que ele se assustou e entornou o brande. O corpo dela ficou inerte e os olhos abriram-se lentamente. Olhou para ele, siderada, sem o ver, e Turner perguntou a si mesmo onde estaria ela.
- Felicia. Sou o Turner - disse ele.
- Turner - repetiu ela, e um laivo de conhecimento voltou ao seu olhar.
- Estás no meu apartamento - disse ele. Ela olhou-o, enlevada.
- Queres matar-me? - perguntou ela. - Podes fazê-lo, se quiseres.
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Mrs. Olivia Starrett estava sentada na cama, com um casaco de renda, apoiada em almofadas, com um tabuleiro de vime branco no regaço. No tabuleiro via-se um serviço de chá e um pratinho de croissants em miniatura, um dos quais mordiscado.
- Ele era um homem tão bom! - disse ela, esfregando os olhos com um lenço de cambraia. - Eu ainda me sentiria mais desolada se não estivesse inspirada pelos seus ensinamentos. "Aceite tudo", dizia ele, "e compreenda que a dor e o sofrimento não são senão uma parte da santa unidade." Tem a certeza que não quer uma chávena de chá, querida?
- Obrigada, Mistress Starrett - respondeu Dora. Sentou-se junto da cama de dossel, numa poltrona florida. - A senhora já teve, sem dúvida, mais do que a sua parte de desgostos, nos últimos tempos. Lamento profundamente.
Olivia apertou-lhe a mão.
- Como é meiga e compreensiva! A morte de Lewis,
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de Sol Guthrie e do padre Brian foram desgostos que eu pensei irem destruir-me. Mas depois apercebi-me de que não podemos chorá-los para sempre. Isto parece-lhe cruel e desumano?
- Claro que não.
- Temos de continuar a lutar pela vida, enfrentando os problemas do presente e as preocupações do futuro.
Olivia pegou no croissant que começara a comer e acabou-o.
- Disse-me que não tinha filhos?
- Exactamente.
Mrs. Starrett suspirou.
- São uma bênção e um fardo. Já ouviu falar de Clayton? E de Eleanor?
- Se já ouvi falar deles? Não, minha senhora. Não sei de nada.
Ora esfregando os olhos, ora dando dentadinhas num bolo, Olivia falou a Dora do divórcio iminente do filho.
- Eleanor já saiu de casa - disse.
Depois, referiu os planos de Clayton para desposar Helene Pierce.
- Sinto que é nova de mais para ele. Mas desejo tanto ter um neto... O padre Callaway, da última vez que o vi, disse-me que eu não estava a ser egoísta.
- E tinha razão. Não está - respondeu Dora.
- Mesmo assim... - disse Olivia, com um olhar vago. - Às vezes é difícil saber o que devemos fazer. Os jovens são tão independentes hoje em dia... Pensam que nós, pelo facto de sermos velhos, temos necessariamente de estar senis.
- A senhora não é velha, Mistress Starrett, e muito menos senil.
- Muito obrigada, minha querida. Conforta-me tanto! Fique mais um bocadinho ao pé de mim, fica?
- com certeza. O tempo que quiser.
- Eu nunca podia conversar com Lewis. De assuntos importantes, nunca. Ele pensava que eu estava apenas a palrar. E resmungava comigo. Eu adoro Clayton, evidentemente. É meu filho. Mas também não posso conversar com ele. Clayton é superficial. Não é capaz de sentimentos profundos. Eu aprecio a profundidade nos outros, mas Clayton não é um homem que tome as coisas a sério. Vive
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a flutuar. Nunca foi um líder. Por vezes, falta-lhe o bom senso. Eleanor sabia-o quando casou com ele. Talvez tenha sido por isso que casou com ele.
Dora escutava esta divagação com fascínio e admiração. com fascínio porque, de repente, dera-se conta de que Mrs. Olivia Starrett não era uma mulher frívola, não era apenas uma matrona afável e tagarela. Havia nela uma grande dose de argúcia. Apesar da sua religiosidade, via as coisas com clareza. Analisava os assuntos com profundidade e fora casada com um homem que resmungava com ela.
- Felicia... - balbuciou Mrs. Starrett. - Tão infeliz com os homens. É um modelo. Tem gosto no vestir, na música, na arte. Mas não nos homens. Aí, o bom gosto abandona-a. Nenhum dos seus namorados tem prestado. Ou são uns fracos ou são uns grosseirões. Eu apercebia-me disso. Toda a gente se apercebia disso. Excepto Felicia. Pobrezinha! Tão ansiosa! Ansiosa de mais. Agora anda atrás de Turner Pierce. Oh, sim, eu sei. É um homem muito mais novo do que ela. Não é decente.
O seu olhar avivou-se de repente. Olhou fixamente para Dora e perguntou:
- Não concorda?
- Tem razão. Não é decente - respondeu Dora de imediato.
- Você é uma jovem tão inteligente, tão equilibrada.
- Muito obrigada, Mistress Starrett.
- Gostava que falasse com Felicia. Dora ficou espantada.
- Eu? Falar com ela?
- Sobre a vida dela, sobre o modo como está a desperdiçá-la.
- Mas eu não sou sua amiga íntima.
- A minha filha não tem amigas íntimas - disse Olivia, tristemente. - Nem mesmo eu. Talvez ela lhe dê ouvidos.
- Mas o que poderia eu dizer-lhe?
- Aconselhá-la. Dar-lhe o testemunho da sua experiência. Tentar segurá-la. Felicia tem aquelas terríveis oscilações de humor. Às vezes, assusta-me.
- Mistress Starrett, ela pode precisar da ajuda de um profissional. De um psicoterapeuta.
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- Talvez venha a precisar, mas ainda é cedo, ainda é cedo - respondeu Olivia com um ar sombrio. - Oh, é uma rapariga tão desesperada. Desesperada! Mas não discute os seus problemas comigo. E recusou-se a falar com o padre Callaway. Mas a senhora está mais próxima da sua idade. Talvez ela confie em si e a senhora possa ajudá-la. Vai tentar?
- Se é esse o seu desejo - respondeu Dora, hesitante. - Mas ela pode ficar ofendida por eu estar a interferir nos seus assuntos pessoais.
- É possível, mas tente, por favor. Eu sei que ela se sente infeliz, e esse caso com Turner Pierce preocupa-me. Felicia já foi ferida tantas vezes... não quero que ela o seja novamente.
- Está bem, Mistress Starrett, vou tentar.
- É a minha família - disse a velha, com determinação. - Tenho de fazer tudo o que posso para a proteger. Mesmo que eu os considere estúpidos ou longe da razão, mesmo que me causem desgostos, tenho de proteger os meus filhos. Compreende, não é verdade?
- Claro. - disse Dora, levantando-se. - Muito obrigada por me conceder tanto do seu tempo. Queria exprimir-lhe pessoalmente as minhas condolências pelo falecimento do padre Callaway.
- É muito gentil da sua parte e agradeço-lhe.
- Mistress Starrett, Eleanor deixou-lhe algum endereço ou número de telefone por onde possa ser contactada?
- Ela está em casa de uns amigos. Charles tem a morada e o número do telefone. Peça-lhos.
- Muito obrigada. E vou tentar marcar um encontro com Felicia.
Mrs. Starrett voltou a cabeça para o outro lado e ficou a olhar para a claridade ténue daquele dia de Inverno, através da janela.
- Ela não veio para casa esta noite - acrescentou num murmúrio.
Ninguém estava à espera de Dora no vestíbulo, por isso ela encaminhou-se para a cozinha. Charles e Clara Hawkins estavam sentados a uma mesa laçada, a beber café e a comer o que lhe pareceu serem biscoitos de aveia. O mordomo e a cozinheira levantaram o olhar quando Dora entrou.
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- Boa tarde - disse Dora, com rudeza. - Mistress Starrett disse-me que o senhor poderia dar-me o número do telefone de Mistress Eleanor Starrett.
Charles fez um sinal afirmativo e levantou-se devagar.
- vou buscá-lo - respondeu, e saiu da cozinha. Dora calculou que ele iria pedir a aprovação de Olivia
antes de lhe dar o número do telefone.
- Como está hoje, Clara? - perguntou Dora num tom caloroso.
- vou sobrevivendo - respondeu a mulher.
Dora reconheceu que este casal era o mais lúgubre que conhecera em toda a sua vida. Interrogou-se se marido e mulher já alguma vez tinham rido ou sorrido, e tentou imaginar o que seria a vida sexual de ambos. Mas não conseguiu.
- Clara - disse -, o detective John Wenden contou-me que você acha que a faca de cozinha de vinte centímetros desapareceu durante a festa, na noite em que Mister Lewis Starrett foi morto. Tem alguma ideia de quem possa tê-la levado?
- Não.
- Não estou a perguntar-lhe se sabe ao certo quem a levou. Não quero que você acuse ninguém. Mas tenho curiosidade em saber quem pode tê-la levado.
Clara ficou a olhar para ela, e Dora distinguiu de novo aquele bigode bem visível, sem perceber por que motivo é que aquela mulher taciturna não fazia nada para o disfarçar. Rapá-lo diariamente, por exemplo.
- Eu não cito nomes - respondeu a cozinheira, com um ar solene.
Dora suspirou.
- Está bem. Eu vou referindo os nomes e você diz que não ou que sim com a cabeça. Está bem?
Clara fez um sinal afirmativo.
- Foi Clayton Starrett? Não.
- Eleanor Starrett? Não.
- Felicia Starrett? Não.
- Helene Pierce? Não.
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- Turner Pierce?
Não.
- O padre Brian Callaway? Sim.
Charles voltou à cozinha, com um pedaço de papel na mão. Olhou para a mulher com um ar acusador.
- Estiveste outra vez a dar com a língua nos dentes? - perguntou.
- Ela não pronunciou uma palavra - disse Dora. Eu é que estive a contar-lhe que o meu marido é um grande cozinheiro.
- Ela fala de mais - resmungou Charles, estendendo-lhe o pedaço de papel. - Aqui está o número do telefone e a morada. é em West Side - acrescentou, com um ar de desdém.
- Obrigada, Charles - disse Dora. - E agora traz-me o chapéu e o casaco, por favor? Vou-me embora. Muito prazer em vê-la, Clara.
- Igualmente - respondeu Clara.
Dora apressou-se a regressar ao hotel, ansiosa por pegar no bloco e tomar nota de todos os pormenores daquela conversa surpreendente com Olivia. E também do que apurara através da exibição muda de Clara.
Encheu duas páginas de apontamentos que incluíam tudo o que recordava das declarações de Mrs. Starrett, nomeadamente a alusão ao triângulo Clayton-Eleanor-Helene e as relações de Felicia com Turner. Se todo este caso era um folhetim, tinha um argumento tétrico, reflectiu Dora tristemente.
Desceu à sala de jantar e pediu uma salada de atum, tentando recordar-se se esta era a sua quarta ou quinta dieta desde que tomara conta do caso Starrett. Meditando nas suas tentativas fúteis para perder peso, veio-lhe à ideia o que John Wenden dissera sobre a sua cintura a engrossar: "Mais há para amar." Que homem tão simpático!
Regressou à suite e telefonou-lhe. Ele não estava, mas ela deixou uma mensagem, na esperança que ele pudesse voltar antes da meia-noite. Não voltou e, então, Dora telefonou a Mário. Este não estava em casa. Não lhe restou mais nada senão lavar os dentes e ir para a cama, de mau humor, perguntando a si mesma o que diabo andavam os seus homens a fazer e imaginando hipóteses medonhas.
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Era fácil fingir, com Clayton ou com qualquer outro homem, e Helene Pierce aprendera a proporcionar um bom espectáculo. Considerava-se uma actriz "metódica" e as suas motivações prendiam-se com a crescente colecção de diamantes.
O diálogo surgia com facilidade:
- Oh, Clay, tu és de mais... Pões-me doida... Não me canso de ti... Onde aprendeste estas coisas?
Deixou-o, ensopado em suor, no meio dos lençóis amarrotados e foi à cozinha servir-se da garrafa de Perrier-Jouét que ele trouxera. O tipo tinha bom gosto, sem dúvida, e não deixava que a traça lhe entrasse na carteira. Helene queria tratar dele com muito, muito cuidado e, por uma vez na vida, sacrificava o prazer do presente à prosperidade do futuro.
Clayton estava sentado quando ela voltou ao quarto, com o champanhe. Ele acendeu um charuto, mas até isso ela estava disposta a suportar.
- Aqui está, querido - disse ela, estendendo-lhe o copo.
Deitou-se a seu lado, inclinando-se para lhe beijar o ombro peludo.
- Tu és cá um vulcão! - disse. - Qualquer dia, tens de ligar ao cento e quinze para me levarem aos Cuidados Intensivos.
Ele riu-se, deliciado, sorveu o champanhe, saboreou o charuto e sentiu-se dono do mundo.
- Nunca me farto de ti. É como se tivesse renascido. Oh, meu Deus, o tempo que desperdicei com aquela carga de ossos.
- com Eleanor? - perguntou ela, com um ar distraído. - O que está a acontecer?
- Como te disse, ela saiu de casa. O meu advogado, Arthur Rushkin, não trata de divórcios, mas pôs-me em contacto com um tipo eficiente, um verdadeiro pirata que luta até ao último cêntimo. É assim que as coisas estão agora: o meu advogado anda em conversações com o advogado dela. Ouve, minha querida, isto vai levar tempo. Estás disposta a esperar?
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- Depois do que acabámos de fazer, ficarei à espera para sempre - respondeu ela, trocando com ele um olhar de entendimento.
- é assim mesmo. Há-de ser um mar de rosas, vais ver - disse ele, dando-lhe uma palmadinha no joelho.
Clayton começou a divagar sobre o modo como viveriam depois de casados. Num duplex em East Side. Automóveis para ambos, talvez um Corniche e um Porsche. Criados internos.
- Mais novos e bem-parecidos do que Charles e Clara. Talvez jantassem fora a maior parte das vezes. Depois,
iriam ao teatro, ao bailado, à ópera, a umas quantas festas de beneficência, escolhidas. Fariam um cruzeiro no Inverno, claro, e de vez em quando iriam a Paris, a Londres ou a Milão fazer compras, no Concorde. Podiam pensar em comprar uma segunda casa, ou mesmo uma terceira. Em Vermont e em St. Croix, seria uma boa ideia. Decoradores de interiores de nível internacional, naturalmente. Do género Architectural Digest.
Enquanto ele visionava o futuro de ambos em conjunto, Helene-escutava atentamente, imaginando que tudo o que ele descrevia era possível; não eram apenas baforadas de fumo. Turner revelara-lhe quanto é que Clay estava a tirar da Joalharia Starrett Fine, contando com o ordenado, bónus anual, dividendos e a sua parte naquele negócio com Ramon Schnabl.
E Clayton receberia um milhão logo que a indemnização do seguro de vida do pai fosse autorizada. E, quando a mãe morresse, ficaria multimilionário. Portanto, se todos estes planos de vida eram exequíveis, ela seria uma parva, concluiu, se o rejeitasse em troca de um futuro mais limitado, na companhia de Turner.
- O que te parece? - perguntou Clayton, sorrindo como um miúdo que tivesse acabado de herdar uma loja de guloseimas.
- Parece-me o paraíso - respondeu Helene.
- E vai ser - assegurou-lhe ele. - Conheces aquele dito: "Fica comigo, miúda, e cobrir-te-ei de diamantes"? Neste caso é verdade. A propósito, tenho outra pedrinha de gelo para a tua colecção.
- Podes dar-ma mais tarde - disse ela, tirando-lhe o charuto das mãos e pondo-o de lado. - Vamos a um extra.
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Tu deitas-te de costas e deixas-me fazer o trabalho todo.
Quando, por fim, Clayton saiu, ela recebeu um magnífico brilhante de quatro quilates, uma pedra da categoria D, imaculada. Mas, antes de lha oferecer, ele sujeitou-a à leitura de um texto sobre os quatro critérios utilizados na avaliação dos diamantes: cor, claridade, talhe e peso em quilates.
Depois de ele sair, Helene pulverizou toda a casa com desodorizante, tentando ver-se livre do cheiro fétido do charuto. Em seguida, sentou-se e começou a brincar com a sua colecção de diamantes, enquanto ponderava sobre o caminho mais inteligente a seguir.
Turner era o obstáculo, claro. Ela tinha um compromisso e, desde a morte de Sid Loftus, Turner ganhara um trunfo que poderia vir a causar problemas. Mas Helene achava que sabia como tornear o assunto. Delineou um plano e o seu primeiro movimento foi telefonar a Felicia Starrett.
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Ele insistiu em levá-la a um restaurante da Rua 46 Oeste.
- Não é um sítio de excepção - disse ele. A maior parte dos polícias e dos actores vão lá. Mas a comida é boa, e os preços razoáveis. Poderemos comer um belo naco do lombo com manteiga de alho, batatas cozidas com molho ácido e cebolinhas, uma salada enfeitada de queijo, e talvez uma cerveja para empurrar. O que lhe parece?
- Oh, meu Deus! Lá se vai a minha dieta! - choramingou Dora.
- Amanhã começa a fazer outra - contrapôs Wenden. O restaurante era um túnel cheio de fumo, revestido
de madeira já gasta, com candeeiros de latão encardido e espelhos manchados por trás do bar enorme. As paredes estavam repletas de fotografias de pugilistas já falecidos, de cavalos de corrida e de cartazes de espectáculos da
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Broadway saídos de cena há várias décadas. Até os criados de avental pareciam reminiscências de outra época.
- O que descobriu? - perguntou John, barrando de manteiga uma fatia de pão integral.
- Pouca coisa. Fui visitar Mistress Olivia Starrett para lhe dizer como lamentava a morte de Callaway - respondeu Dora.
- E como está ela a aceitar esse facto?
- Estava sentada na cama, e parecia um animalzinho doente, mas está a conseguir. É uma velha rija.
Dora contou ao detective uma parte do que apurara. Uma parte, não tudo. Que Clayton e Eleanor estavam a divorciar-se e que ele queria casar com Helene Pierce. E que Felicia Starrett andava a arrastar a asa a Turner Pierce.
- Tem interesse, mas não sei o que tudo isso significa, se é que significa alguma coisa. E você?
- Também não. Parece-me uma peça de teatro.
- Sim. Quer saber novidades sobre o homicídio de Sid Loftus ou isso vai estragar-lhe o jantar?
- Nada me pode estragar o jantar - disse ela. - Estou esfomeada. Não tenciono olhar para outra salada de atum até ao fim da minha vida.
Acabaram de beber os vermutes à pressa e o criado trouxe-lhes duas grandes tijelas de salada e serviu as cervejas.
- A faca que o matou não era igual às que liquidaram Starrett e Guthrie - disse Wenden, começando a comer a salada. - Talvez fosse uma lâmina de sete ou oito centímetros. Parece ter sido um canivete de ponta e mola. Há milhões deles na cidade. Neste caso, a lâmina estava bem afiada.
- Isso não veio nos jornais - disse Dora.
- Nós não contamos tudo aos meios de comunicação social. Outra coisa que não revelámos é que os tipos da brigada de detecção e do laboratório acham que talvez ele estivesse com uma mulher.
Dora pousou o garfo e ficou a olhar para ele.
- com uma mulher? Tem a certeza?
- Absoluta. Encontraram uns quantos cabelos compridos e partículas de pó-de-arroz.
- De que cor eram os cabelos?
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- Negros, mas podem ser pintados. Mandámos os cabelos para o laboratório do FBI para ver se eles podem identificar a cor e também o tipo de champô ou de laca que foi usada, no caso de ter sido usada alguma.
Calaram-se enquanto o criado lhes serviu os bifes e as batatas cozidas. Dora olhou para o prato, admirada.
- Não vou conseguir comer isto tudo.
- Vai ver que consegue. Aposto - disse Wenden.
- Então era uma cena de sexo?
- Parece que começou por ser, mas não foi assim que acabou. Ele não ejaculou antes de morrer. Isso é mau sinal. Era um vencido, em todo o sentido da palavra.
Por instantes, Dora continuou a comer em silêncio, a pensar. Depois, perguntou:
- Havia pontas de cigarro?
- Não - respondeu Wenden. - Apenas algumas pontas daquelas cigarrilhas que ele fumava. Mas quando eles levantaram as tábuas do soalho, adivinhe o que encontraram.
- Não sei.
- Cerca de três gramas de cocaína, da melhor. Dora imobilizou-se, com o garfo cheio a meio caminho da boca.
- Quer dizer que ele se drogava? Wenden fez um sinal afirmativo.
- Há tempo suficiente para ter vestígios na urina. Riu-se e acrescentou:
- Mas que belo padre me saiu aquele velho parasita! Olivia Starrett continua a acreditar nele?
- Parece que sim, e eu não lhe disse nada em contrário. Nem mesmo o verdadeiro nome de Callaway ou o modo como morreu. Este bife é uma delícia e não vou comê-lo todo.
- Já calculava. É carne de animais já velhos. Eles raspam-na antes de a grelhar.
- Espero que esteja a brincar.
- Claro que estou.
Wenden recostou-se e suspirou.
- É uma bela comida e que se lixe o colesterol. Agora vou beber um café e um cálice de Bushmills Black, para assentar. E você?
- vou beber um café. O uísque irlandês é um pouco indigesto para mim.
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- Eu digo-lhe o que vai beber: uma parte de Bushmills e outra de Irish Mist, com gelo. Vai adorar.
- Está bem, concordo. Espero que você me deixe pagar isto tudo, John. Vai para a conta da companhia.
- Não. É a minha vez. Você já me alimentou o suficiente.
- De sanduíches de salame. Isto é comida a sério - respondeu ela.
Saborearam tranquilamente o café e as bebidas que se seguiram ao repasto.
- John, acha que Loftus caçou uma pega na rua? Ele abanou a cabeça.
- Não. Não o imagino a ter de pagar a uma prostituta. Além disso, no quarto dele havia dinheiro, cartões de crédito e algumas jóias de valor, incluindo um relógio de pulso Starrett. Uma mulher da rua teria levado tudo. Não, acho que a parceira era alguém que ele conhecia. Quem quer que era, levou por diante a sua estranha concepção de gozo. Ele não podia ter atado os próprios pulsos às extremidades da cama.
- E depois a festa azedou? Wenden fitou-a.
- Não faz muito sentido, pois não? Mas é o que parece ter acontecido.
- Os seus colegas descobriram alguma coisa nos bares e nos restaurantes?
- Nada. Mas, como dizem nos jornais, a caça ao homem está a aumentar.
- Havia algum indício de que ele tivesse consumido drogas naquela noite, antes de ser morto?
Ele voltou a abanar a cabeça.
- A coca foi descoberta em saquinhos fechados, transparentes. Não havia nada que indicasse que houvera consumo de coca ou de qualquer outra droga. A análise ao sangue mostrou que ele bebera uns copos, mas não estava embriagado. E que tal a sua bebida?
Dora rolou os olhos nas órbitas.
- É uma delícia. Gostava de encher a banheira com isto, rebolar-me lá dentro e depois bebê-la toda.
Ele sorriu-se.
- Você está numa de bizarria! Quer mais um café?
- Talvez meia chávena. Vai trabalhar esta noite?
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- Não, vou começar uma folga de quarenta e oito horas. E vou passar o tempo todo a dormir.
- Espero que sim - disse Dora. - Está com um ar esgotado. Como se sente?
- Cem por cento melhor do que me sentia há duas horas.
- É o que faz um bom bife.
- Na realidade, é a si que o devo. Você dá-me sempre uma ajuda - disse ele, fitando-a.
Wenden foi levá-la ao Bedlington e estacionou em segunda fila.
- Muito obrigada por este jantar memorável - agradeceu ela.
- Muito obrigado pela companhia.
- Quer subir para tomar o último copo da noite? perguntou ela, hesitante.
- Gostava muito, mas não o vou fazer - respondeu ele. - Tenho um longo caminho à minha frente e depois quero ir para a cama. Fica para a próxima, de acordo?
- De acordo.
Ele voltou-se para o lado para olhar para ela. Estendeu o braço ao longo, sem lhe tocar. Mas ela ficou hirta e continuou a olhar em frente, através do pára-brisas.
- vou dizer-lhe uma coisa - disse ele, com voz arrastada. - Pode não acreditar, mas é a verdade. Quando eu a conheci, e mesmo mais tarde, sei que lhe causei uma impressão forte. E imaginei que poderíamos divertir-nos um bocado, porque não?
- John... - disse ela, com ternura.
- Não, deixe-me acabar. Mas agora é mais do que isso. Estou sempre a pensar em si. Invento pretextos para lhe telefonar ou para a ver, e depois não o faço. Sabe porquê? Porque tenho vergonha de agir como um palerma que anda sempre a seringar. E também porque tenho medo de ser rejeitado. Já o fui em tempos e fiquei na mesma, porque a situação não me interessava verdadeiramente. Agora interessa-me. Não sei o que sinto por si, não sei como chamar ao que sinto, mas não estava a mentir quando lhe disse que o simples facto de estar junto de si me ajuda. É como se eu tivesse sido apanhado, e fico doido cada vez que a vejo.
- Talvez seja porque estamos a trabalhar em conjunto
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- respondeu Dora, com calma. - As pessoas que trabalham no mesmo gabinete, por exemplo, ou num mesmo projecto, desenvolvem uma intimidade especial: partilham o trabalho, as esperanças e os objectivos.
- Claro que, em parte, é por isso - concordou Wenden. - Mas, mesmo que eu fosse sapateiro e você telefonista, tenho a certeza de que sentiria o mesmo. Isto ultrapassa o trabalho. É qualquer coisa que existe estritamente entre você e eu.
Nessa altura, Dora voltou-se para ele.
- Não pense que não tenho consciência disso. A princípio, pensei que você era apenas um tipo à procura de um caso passageiro. Isso não, muito obrigada. Mas agora acho que você está a dizer a verdade, porque os meus sentimentos para consigo também mudaram.
Dora soltou uma risada nervosa e continuou:
- Até lhe posso dizer exactamente quando é que isso aconteceu: quando eu descobri, de repente, que lhe devia ter comprado um cachecol de caxemira pelo Natal. Curioso, não é? Mas, como já disse muitas vezes, sou casada, e como já disse ainda mais vezes, tenho um casamento feliz.
- E isso é a coisa mais importante da sua vida?
- Era. Diabos o levem! - exclamou ela, tentando sorrir. - Mas você veio estragar o meu belo cenário. É você que me obriga a interrogar-me sobre o que é verdadeiramente importante para mim. Antes de o conhecer, eu tinha a certeza. Agora, já não tenho.
Nunca viriam a perceber se foi ela que o beijou primeiro ou se foi ele a ela. Mas aproximaram-se um do outro, no banco da frente daquela caranguejola, abraçaram-se com força, como se estivessem assustados, e beijaram-se.
Ele foi o primeiro a afastar-se.
- Agora, vou tomar aquele último copo da noite - disse ele, com a voz arrastada.
- Não, não vai - replicou Dora, pouco segura. Vai para casa, a guiar com cuidado e vai dormir. E eu vou para o quarto sozinha.
- Isso não faz sentido - argumentou ele.
- Eu sei - concordou ela. - Mas eu preciso de tempo para pensar neste assunto. Boa noite, querido. Durma bem.
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- Sorte madrasta! - disse ele, de mau humor. Beijaram-se mais uma vez. Um beijo à pressa.
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- Olá, minha senhora. Fala Gregor Pinchik.
- Olá, Mister Pinchik. Ainda bem que me fala.
- Mister Pinchik! Ouça, trate-me por Greg. Não fico aborrecido.
- Está bem, Greg. E você trate-me por Dora, em vez de minha senhora. Não fico aborrecida.
- Claro que sim. Ouça, esse tipo que me pediu para seguir, esse Turner Pierce... A coisa está a ficar animada.
- Descobriu mais alguma coisa sobre ele?
- Tenho quase a certeza de que é a mesma pessoa. Há cerca de cinco anos, um tipo aparece em Denver e dá pelo nome de Theodore Parker. As mesmas iniciais, T e P, certo? Como o Thomas Powell, em Dálias. Mas em Denver aparece com um grande bigode preto, tal como você o descreveu. Por isso acho que tem de ser ele.
- Assim parece. E o que fazia ele em Denver?
- As mesmas vigarices com telefones. Mas agora vendia códigos de acesso. Aqueles números que as empresas criam para que os empregados possam telefonar de longe para o escritório e mandem debitar no destino. Assim como um vendedor em viagem pode telefonar para a sede e mandar debitar as chamadas à empresa, através de um código de acesso.
- E como é que Theodore Parker conseguia os códigos?
- Ora, há uma dúzia de maneiras. Pode invadir os computadores de uma empresa e caçá-los. Ou compra um programa informático que ligue números de quatro dígitos em sequência até conseguir o que lhe interessa. Ou rouba o cartão de código a um vendedor. Depois, está lá dentro. É mais fácil quando a empresa tem números como oitocentos, por exemplo, mas também é possível meter-se nas linhas através da central.
- E ele vendia os códigos?
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- Exactamente. Principalmente a universitários e a militares que estavam longe de casa, mas também a grandalhões que faziam muitos telefonemas para países distantes como a Bolívia, Colômbia e Panamá, e que não queriam correr o risco de ter as suas linhas interceptadas.
- Mas que mundo este!
- Pode dizê-lo. De qualquer modo, este Theodore Parker tinha um belo negócio. Até vendia os códigos a criminosos rafeiros que dirigiam aquilo a que se chama "salas de telefone". São sítios onde, por um ou dois dólares, se pode telefonar para qualquer parte do mundo, o tempo que se quiser. E as chamadas eram todas debitadas à empresa proprietária dos códigos de acesso que os criminosos compravam a Parker.
- Óptimo. E que aconteceu ao homem?
- Os tipos de Denver com quem falei disseram-me que os detectives começaram a rondar e, nessa altura, Theodore Parker desapareceu. Foi para Kansas City. O que acha?
- Agrada-me. E há notícias de alguma mulher que tenha desaparecido com ele?
- Investiguei isso. Toda a gente diz que ele era um solitário, tal como em Dallas. Tinha muitas mulheres, mas nenhuma que se pareça com a tal Helene Pierce que você descreveu. Foi tudo o que consegui apurar até agora.
- Greg, recebi as suas facturas de honorários e enviei-as para a companhia. Mas você não incluiu os telefonemas regionais que tem feito para este trabalho. A companhia paga esses telefonemas.
- Pois paga. Estou a servir-me dos códigos de acesso da companhia.
- Patife! Então voltou a invadir os computadores deles?
- Não. Ouça, você pode comprar um código de acesso para chamadas regionais, na rua, por cinco ou dez dólares. Mas eu nem tive de fazer essa despesa. Os códigos de acesso da sua companhia constam de um painel electrónico que eu utilizo. Tirei-os de lá. Bem, agora vou começar com Kansas City. Dir-lhe-ei como é que me saio.
- Sim, por favor. Logo que possa.
- Muito prazer em ouvi-la, minha senhora.
Dora desligou, a sorrir, e depois fez um resumo das informações
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de Pinchik no seu bloco de apontamentos. Sentou-se um pouco, recordando as suas impressões iniciais sobre Turner e Helene Pierce: gente arrogante, mais indiferente e arrogante do que havia razão para ser. Era gratificante saber que Turner era, ao que parecia, um patife de vida dupla que lutava para andar sempre um passo à frente da lei.
Olhou para o relógio de pulso e depois para o espelho a todo o comprimento da porta da casa de banho. Tinha o único vestido "bom" que trouxera de Hartford: um camiseiro de seda preta que, não sendo propriamente haute couture, disfarçava a sua figura atarracada. Afagou o cabelo ruivo e jurou a si mesma que, num dos dias seguintes, faria qualquer coisa dele. Em seguida, foi sentar-se na sala de espera do Bedlington, esperando que Felicia Starrett não chegasse atrasada.
Para seu espanto, ela já lá estava, sentada a um canto, a beber uma grande caneca de cerveja, com modos afectados.
- Espero não estar atrasada - disse Dora. A mulher olhou para ela.
- O quê? - perguntou.
- Esteve à espera muito tempo? Felicia abanou a cabeça.
- Estou fora disto, Nora.
- Dora. O que se passa? Está doente?
Ela não respondeu. Dora observou-a de perto. Estava mais magra, com má cara. Tinha os tendões do pescoço tão salientes que pareciam prestes a rebentar. O nariz estava reduzido a um osso e tinha um olhar esgazeado.
Dora foi ao bar e pediu uma cerveja. Enquanto esperava, observou Felicia através do espelho. Estava sentada, com o corpo rígido, e quando levava o copo à boca fazia-o em movimentos muito lentos, como se tivesse planeado cuidadosamente cada um deles e obedecesse escrupulosamente ao comando da sua mente.
Trazia um casaco de fazenda, sem cinto, abotoado até ao pescoço, embora a sala estivesse sobreaquecida. Não tirara as luvas de pele já gastas. Não trazia chapéu, e os cabelos negros, compridos, tinham um ar desalinhado e sujo.
Dora trouxe a cerveja para a mesa.
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- Não quer comer nada? Talvez uma sanduíche? perguntou, puxando a cadeira em frente.
- O quê?
- Não tem fome?
- Não. Onde estou? - perguntou Felicia, olhando à sua volta com um olhar vago.
Dora não sabia ao certo o que fazer. Felicia não parecia embriagada nem drogada. Mas a verdade é que estava ausente. Parecia estar a flutuar.
- Está na sala de espera do Hotel Bedlington - respondeu Dora. - Sou Dora Conti. Muito obrigada por aceitar o meu convite para tomar um copo.
- Quero um cigarro - disse Felicia.
Dora pescou um maço amarrotado na mala. Mas, quando lho estendeu, Felicia não fez qualquer movimento para tirar um cigarro. Dora pousou o maço em cima da mesa.
- Vejo que está a beber cerveja. Hoje não bebe Chivas Regai? - perguntou Dora com todo o cuidado.
A mulher olhou para ela com um ar vago e ripostou:
- Cabe-me a mim saber e a si descobrir.
Dora ficou chocada com esta resposta acriançada.
- Felicia, posso fazer alguma coisa? - perguntou.
- Alguma coisa de quê?
- Sente-se bem?
- Hei-de sentir-me bem.
Calou-se e, lentamente, desviou o olhar até se concentrar em Dora.
- Vou-me casar - disse, de repente. - Sabia? Claro que não, ninguém sabe. Mas vou-me casar.
- Isso é formidável. Parabéns. Quem é o felizardo? perguntou Dora.
- Comprei-o. Comprei o felizardo - respondeu Felicia, com um esgar que pretendia ser um sorriso.
Dora engoliu metade da cerveja, desejosa de terminar aquela conversa sem nexo o mais depressa possível ou então tirar partido do estado de perturbação da pobre mulher.
- É Turner Pierce? - perguntou Dora tranquilamente.
- Oh, já lhe tinha dito... Esqueci-me. Conhece Turner? - perguntou Felicia.
- Já nos encontrámos. Espero que seja muito feliz.
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- Ele sabe como fazer-me feliz.
Felicia inclinou-se sobre a mesa, com o indicador espetado. Dora aproximou-se para ouvir.
- Estou nua - disse Felicia em voz baixa.
- O quê?
- Por baixo do casaco. Não trago uma única peça de roupa. Olhe.
Desapertou dois botões e abriu o decote. Dora viu-lhe os seios nus.
- Abotoe-se - disse Dora com rudeza. - Felicia, por que diabo não está vestida?
- E depois? Não me apetece. Não sou obrigada a fazer o que não quero. E a mãe não me pode obrigar.
Voltou a acenar com o dedo ossudo e Dora aproximou-se mais dela.
- Clayton vai casar com Helene. Isso é bom. Sabe porquê?
- Porquê?
- Porque eu pensava que Turner e Helene andavam metidos um com o outro.
- Felicia! Eles são irmãos.
- E depois? Mas agora está tudo bem. Turner é meu. Nunca hei-de deixá-lo.
Disse isto com tal determinação que Dora se sentiu triste, receando o que pudesse acontecer àquela mulher tão vulnerável. Felicia recostou-se e olhou para ela com um ar orgulhoso.
- Mudei-me para casa de Turner. Agora, a minha casa é aquela.
- E quando é o casamento?
O olhar vago voltou ao rosto de Felicia.
-"Em breve. Muito em breve - respondeu. - Acho melhor ir-me embora. Turner fica preocupado comigo. Não gosta que eu saia sozinha. Quer que eu esteja sempre com ele. Sempre.
- Isso é bonito - respondeu Dora, sem acreditar numa palavra do que ela dizia. - Felicia, por favor, tenha cuidado consigo. E vá ver a sua mãe sempre que puder.
- Não creio que o faça. Tem dinheiro? Dora ficou espantada.
- Algum.
- Dá-me uma nota de vinte para o táxi?
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- com certeza - disse Dora. Puxou da carteira e estendeu-lhe uma nota.
Felicia levantou-se como pôde e, inesperadamente, estendeu-lhe a mão.
- Gostei da nossa conversa - disse, com um ar formal. - Gostei muito de a ver e temos de fazer isto outra vez, muito em breve.
- Está bem - respondeu Dora.
Felicia voltou-lhe as costas e depois voltou atrás, pousou o braço no ombro de Dora e inclinou-se para ela.
- Eu chamo-lhe o homem do gelo, a Turner - segredou. - Quando estamos a acabá-lo, digo-lhe: "O homem do gelo que venha." Não é divertido?
Dora fez um sinal afirmativo e viu-a afastar-se, com um sentimento de horror e desamparo. A avalancha começava a deslizar e não era possível detê-la.
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Aquela conversa demencial com Felicia Starrett afectara-a. Mas não era só por causa de Felicia, reconheceu Dora. Todo o caso envolvia personagens inquietantes e sem nexo, todos pareciam agir por motivos irracionais. As suas vidas eram tão complicadas, as suas ambições tão perversas, os seus planos tão bizantinos que ela desesperava de deslindar fosse o que fosse.
Mas depois, admitiu com relutância que a sua própria vida também não era um modelo de arrumação. A confissão de John Wenden - e o pedido que implicava - não lhe saíra totalmente do pensamento. Uma análise aos seus próprios sentimentos por ele demonstrava quão frustrante e intrincada era a história confusa dos Starrett. Ela mesma, cuja maneira de pensar fora sempre tão ordenada e linear, parecia ter-se deixado contagiar pelos lunáticos que povoavam este caso. Deixara-se envolver naquela confusão e estava tão desnorteada como eles.
Quase por uma questão de autopreservação, resolveu concentrar-se nas folhas de computador de Solomon Guthrie, pensando no que poderiam revelar sobre o intrigante
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negócio de ouro da Joalharia Starrett Fine, Inc. Agora lidava com nomes, moradas, números, transacções: tudo dados frios, que em nada se comparavam às emoções desordenadas do clã Starrett e das pessoas da sua intimidade.
Encheu uma página de notas e delineou um plano de acção.
Telefonou para a empresa de aluguer de automóveis utilizada pela companhia, identificou-se e indicou o número do seu cartão de crédito. Pediu que lhe entregassem um Ford Escort no Hotel Bedlington, na manhã seguinte, às sete horas.
Deu instruções na recepção para que a acordassem.
No outro dia de manhã, quando o Ford Escort foi entregue, já ela estava à espera no passeio. Era um carro azul-escuro, acabado de lavar, cujo interior cheirava a desodorizante de cereja.
Dora dirigiu-se para o aeroporto de La Guardia, estacionou o carro e, vinte minutos depois, embarcava num jacto da Pan American. Destino: aeroporto de Logan, em Boston.
Ia à janela, do lado da porta do avião, e, a meio caminho, por cima das nuvens, acenou lá para baixo. O homem que ia a seu lado, a ler o The Wall Street Journal, olhou para ela e perguntou com curiosidade:
- À quem está a dizer adeus?
- Ao meu marido. Que está em Hartford - respondeu Dora.
- Ah! - disse o homem.
À chegada a Logan, pôs-se na bicha dos táxis, e depois entregou ao motorista o papel onde tomara nota do endereço. O homem leu-o e voltou-se para ela.
- Tem a certeza de que quer lá ir?
- Tenho a certeza - respondeu Dora. - Pode ficar à espera e depois traz-me de volta.
- Se escaparmos vivos... - respondeu o homem com um ar lúgubre.
A morada ficava em Roxbury, numa rua constituída essencialmente por edifícios em ruínas e quarteirões inteiros afogados em ervas daninhas. Mas havia três pequenos estabelecimentos, encostados uns aos outros, à espera de serem demolidos. Um era uma taberna, outro uma loja
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de doces transformada em balcão de apostas. O terceiro era a Joalharia Felix Brothers Classic.
- Cá estamos - anunciou o motorista com nervosismo. - Se não voltar dentro de cinco minutos, raspo-me... se ainda tiver rodas.
- Eu não vou a lado nenhum - respondeu Dora. Saiu do táxi e inspeccionou a ourivesaria. Esta tinha
três metros e meio de largura, no máximo. Uma montra de vidro remendada com uma placa de estanho. O vidro estava tão poeirento e salpicado que mal se via lá para dentro. Dora avistou algumas vitrinas vazias e diversas cadeiras, uma delas tombada. Não valia a pena tentar abrir a porta; estava protegida por uma grade de ferro, ferrugenta, e fechada com um cadeado enorme.
Um homem que andava por ali seguira os movimentos de Dora com um interesse indolente. Trazia um camuflado e um barrete de pele artificial com as pontas soltas.
- Por favor, pode dizer-me a que horas abre a ourivesaria? - perguntou Dora.
O vagabundo mostrou-se muito divertido.
- Aqui não há borlas - respondeu. Dora deu-lhe um dólar.
- Nunca abre - disse o homem.
- Muito obrigada - respondeu Dora, apressando-se a voltar para o táxi.
- Graças a Deus! - exclamou o motorista, arrancando.
Dora apanhou o avião de regresso a Nova Iorque. Meteu-se no Ford Escort e seguiu para Manhattan. Entregou o carro ao porteiro do Bedlington, para arrumar, e subiu ao quarto. Telefonou logo a John Wenden.
- Tem um minuto? - perguntou.
- A vida toda. O que há? - disse ele.
- Ouça-me isto... - E relatou-lhe o que fizera durante o dia. Depois, acrescentou: - John, aquele sítio nem sequer é uma loja. É um pardieiro a cair. Nunca está aberto. Não tem mercadoria nem clientes. Não é nada.
- E daí?
- Há dois meses, a filial da Joalharia Starrett Fine em Boston vendeu à Joalharia Felix Brothers Classic mais de um milhão de dólares de ouro puro.
- Filhos da mãe! - exclamou o detective.
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Turner estava sentado, a esfarelar o pão com os dedos trémulos, moldando bolas duras, que punha de lado.
- Turner, o que estás a fazer? - perguntou Helene. O homem reparou na porcaria que fizera.
- Meu Deus, estou a estragá-lo! - disse.
Ia dizer mais qualquer coisa, mas o criado aproximou-se para servir as costeletas de vitela com massa. O chefe-de-mesa trouxe uma garrafa gelada de Pinot Grigio e mostrou o rótulo a Turner. Este fez um aceno de cabeça, e o outro tirou a rolha e serviu o vinho.
- Agora, acalma-te e janta - disse Helene. Turner tentou comer um pedaço de carne, mas afastou
o prato para o lado.
- Não consigo. Come tu. vou beber o vinho e talvez comer um pouco de massa.
Helene começou a comer, sem tirar os olhos do prato.
- O que há? - perguntou.
- Ramon deu-me um produto novo, que anda a distribuir. Metanfetamina para fumar. Chama-se "gelo". Disse que produzia um grande efeito, e é verdade. Dura horas. Mas Ramon não me falou na ressaca. É um desastre.
- Então, corta-lhe a dose - aconselhou Helene.
- Não posso. Fica-se apanhado com a primeira dose. Aquilo é dinamite. Mandei-a vir para minha casa para a manter debaixo de olho. A mulher é perigosa, para ela e para mim.
Helene levantou a cabeça, de sobrolho carregado.
- Perigosa? Estás a falar em suicídio?
- Suicídio, homicídio, depressão, alucinações, desilusões, chama-lhe o que quiseres. Nem consegue falar como deve ser.
- Arranjaste um problema, meu filho.
- Obrigado por me avisares - respondeu ele com azedume. - Julguei que conseguia mantê-la bem charrada, tranquila. Mas que engano! Fuma aquilo e começa a trepar pelas paredes. Aquele estúpido do Ramon!
Helene continuou a comer.
- Se ele é estúpido, como é tão rico? - perguntou.
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- Aí é que tu te enganas - respondeu Turner. - Os homens mais ricos que conheci eram os mais broncos. Isso não tem a ver com a inteligência. A habilidade para fazer dinheiro é uma aptidão que se tem, é como fazer ilusionismo ou soufflé.
- Hum... Não comes a costeleta? - perguntou Helene.
- Não tenho fome. Quere-la?
- Só metade. Corta-a para mim.
Obediente, Turner cortou a costeleta no seu prato, em pedaços, e transferiu-a para o prato dela.
- Obrigada - disse ela. - Então o que vais fazer?
- Não sei - respondeu ele, aborrecido, recomeçando a fazer bolas de pão. - Tentei cortar-lhe a dose, mas ela ficou furiosa. Absolutamente furiosa. Ameaçou-me. Estás a imaginar? Ameaçou-me mesmo.
- Como?
- Disse que me mataria se eu não lhe trouxesse mais "gelo". E acredita que não estava a brincar.
- Estás assustado?
- Claro que estou assustado - respondeu ele, sorvendo o vinho. - Ela está completamente doida.
- Turner, talvez seja melhor ires falar com Clayton ou com Olivia e sugerires que ela vá fazer um tratamento.
- E deixar que ela lhes conte onde arranja a droga? Nem pensar! Isso iria estragar tudo.
Helene acabou o vinho, tirou a garrafa do balde com gelo e voltou a encher os copos de ambos.
- Queres fechar a loja e zarpar? - perguntou tranquilamente.
- Não sei. Não sei o que fazer - respondeu ele. De cabeça baixa, fez rolar as bolas de pão na toalha.
Helene recostou-se e observou-o atentamente. Ele tinha razão. Estava a perder o controlo da situação. Estava pálido, com olheiras e os dedos trémulos. E ele, que sempre fora um janota, trazia agora uma camisa suja, o nó da gravata mal feito e o casaco amarrotado. Ela quase lhe sentia o cheiro do medo.
- Quanto tempo consegues aguentá-la? - perguntou.
- Sei lá! - respondeu ele. - Tenho de lá estar quando ela entra na ressaca. Se a deixo sair do apartamento, pode ir para casa, e então estamos fritos. Helene, não
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fazes ideia do que aquilo lhe fez. Perdeu peso, não consegue dormir, tenho de lhe dar banho como se fosse uma inválida. Quando está a fumar, fica com o corpo tão quente que até tenho medo de lhe tocar. Mas quando está no máximo, só quer continuar. Dura horas, às vezes um dia inteiro. Depois, fica muito abatida e quer matar-se. Ou matar-me... A menos que eu a tire da fossa. O que significa nova dose de "gelo".
- Onde está ela agora?
- No meu apartamento, fechada à chave. Dei-lhe uns sedativos, para ver se consegue dormir. É melhor eu voltar. Não me admiraria se ela deitasse fogo ao prédio. Talvez tenhas razão; talvez seja melhor zarparmos. Não vejo outra maneira de sair desta trapalhada.
- Vamos pensar nisso - disse Helene. - Vai andando para casa. Eu vou acabar de beber o vinho, talvez tome um café e depois apanho um táxi para casa.
- Pedes a conta? Helene olhou para ele.
- Claro.
Ele levantou-se e tentou sorrir.
- Obrigado, querida. Posso sempre contar contigo. Havemos de sair desta, está bem? Vais ver.
- Claro que sim - disse ela.
Bebeu o vinho devagar, depois tomou um café e comeu uma pequena torta de maçã. Pagou a conta e deu uma gorjeta ao empregado para lhe ir chamar um táxi em Lexington Avenue. Meia hora depois, estava em casa.
Procurou na agenda o número do telefone de Ramon Schnabl, que não vinha na lista. Mas quando ligou respondeu-lhe uma gravação. Quando ouviu o sinal, deixou o nome, o número do telefone e pediu a Mr. Schnabl que lhe telefonasse quando pudesse.
Em seguida, telefonou para casa dos Starrett. Charles veio atender e Helene perguntou se Clayton estava em casa. O mordomo respondeu que Mr. Starrett tinha um jantar de negócios naquela noite e que não devia demorar-se. Helene pediu que ele lhe telefonasse quando voltasse, fosse a que horas fosse.
Fez uma chávena de café instantâneo e levou-a para a secretária, na sala. Começou a fazer contas, incluindo o dinheiro que tinha consigo e o que esperava conseguir
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com a venda dos diamantes, numa emergência. Calculou, por alto, um total de cinquenta mil dólares. Não poderia considerar-se pobre, mas aquilo era uma ninharia comparado com o que sonhara.
Estava a acabar de beber o café quando o telefone tocou. Deixou-o tocar seis vezes antes de levantar o auscultador.
- Está? - disse, com voz sonolenta.
- É o Clay, querida. Acordei-te?
- Não faz mal, Clay. Tinha adormecido há pouco tempo. Não é nada importante. Só queria dizer-te que te amo muito e que tenho muitas saudades tuas.
- Alto, isso é importante. Deitaste-te tão cedo?
- Não há nada de especial na televisão, por isso resolvi ir para a minha cama solitária.
- Ouve, não podemos deixar-te ir assim para a tua cama solitária. E que tal se eu aparecesse por aí? Podes sempre dormir até mais tarde - disse ele, comovido.
- Bem, se queres mesmo vir... - disse ela, hesitante. - Adorava ver-te, Clay, mas deves estar cansado.
- Nunca estou assim tão cansado - respondeu ele. Estarei aí dentro de vinte minutos.
Ela despiu-se à pressa, lavou os dentes e tomou um duche rápido. Quando ele chegou, estava toda perfumada e vestia um roupão de seda cor de pêssego.
- Oh, meu querido! - disse, abraçando-o com força. - Sinto-me tão feliz por te ver! Sei como andas ocupado, mas estava à espera que viesses esta noite. Sinto-me tão só... Preciso mesmo de ti.
Ele ficou com ela quase duas horas. Quando estava a vestir-se, pegou na carteira e deu-lhe quinhentos dólares.
- É só para os teus alfinetes - disse ele. - Quando o divórcio for decretado e estivermos casados, ponho-te na lista do pessoal da empresa, com mil dólares por semana. Chamar-te-emos consultora ou qualquer coisa desse género. Será um lugar discreto, mas, se alguém fizer perguntas, poderemos responder que tu verificas as exposições e as novas criações da concorrência.
- Mil dólares por semana... - repetiu ela. - Obrigada, querido. És tão bom para mim!
Depois de ele sair, tomou outro duche, bebeu um brande e mudou os lençóis e as fronhas da cama.
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Voltou às suas contas, e acabou a noite a elaborar uma lista meticulosa dos seus diamantes e respectivo peso em quilates. Depois foi para a cama. Ficou acordada durante alguns minutos, a pensar que Turner deveria ter-lhe deixado dinheiro para o jantar. Aquele jovem estava a ficar muito pouco generoso. Clayton Starret era diferente.
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Mrs. Eleanor Starrett mostrou-se inesperadamente gentil ao telefone.
- Estou tão contente por me ter telefonado, chérie!
- disse ela. - Nunca estive tão ocupada na minha vida, mas posso sempre arranjar tempo para si.
Dora achou aquilo um pouco exagerado, mas perguntou-lhe quando e onde poderiam encontrar-se. Bem, Eleanor tinha uma sessão de massagem marcada para as onze e meia, no Salão Georgio, na Rua 56 Leste, e se Dora fosse lá ter teriam tempo para conversar.
Dora foi encontrá-la num aposento, nas traseiras, rodeado de cortinas, deitada numa marquesa e a ser massajada por uma mulher gigantesca de cabelo louro.
- Puxe uma cadeira, querida - cantarolou Eleanor. Podemos conversar enquanto Hilda me reduz a uma massa de gelatina. Você devia fazer qualquer coisa ao seu cabelo.
- Eu sei - respondeu Dora.
- Tem um brilho formidável, mas está péssimo. vou pedir a Georgio que seja ele mesmo a cuidar de si. Este homem é très chic e faz autênticas maravilhas com a sua tesoura mágica.
- Talvez noutra altura - respondeu Dora. - Mistress Starrett, eu queria...
- Oh, chame-me Eleanor. Não sei porquê, mas sinto que já nos conhecemos há anos e anos. Dora... Não é?
- Exactamente.
- Bem, Dora, quando... Oh, meu Deus, Hilda, você está a dar-me cabo da perna! Bem, Dora, tenho a certeza que já sabe que estou a divorciar-me de Clayton, e que
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esse patife tem de fazer uma lista de todos os seus bens. Por isso é muito importante para mim saber quando é que ele vai receber esse milhão do seguro do pai.
Agora Dora entendia a efusão espalhafatosa da mulher.
- Não posso indicar-lhe uma data definida, Eleanor, mas creio que não será daqui a muito tempo.
- Espero que não. Eu quero atingir aquele verme no sítio que lhe dói mais, ou seja, na conta bancária.
- Tive pena quando soube do divórcio - disse Dora.
- Não tenha pena, querida; alegre-se, como eu. Há anos que devia ter dado com os pés naquele atrasado mental. É tão estúpido! É um patife e é estúpido. Claro que Helene Pierce não é o seu primeiro caso. Desde o dia do casamento que ele andava a enganar-me. E o idiota julgava que eu não sabia...
- Porque é que suportou essa situação? - perguntou Dora com curiosidade.
Eleanor ergueu a cabeça para olhar para ela.
- Toda a gente engana toda a gente, querida. Também não é um crime digno da pena capital, não acha? Se fosse, não havia cadeiras eléctricas que chegassem, no mundo inteiro. Não é assim tão horrível enganar alguém. Eu própria dei umas escapadelas, mas temos de ser discretos, não acha? E acabar com um casamento só para nos divertirmos é realmente de trop. Ou seja, não se faz. Excepto patifes como Clayton Starrett. Bem, desejo que ele seja muito feliz com a sua Barbie. Ela vai aturá-lo com o pouco que lhe restar depois do divórcio. Pobre Clay, vai acabar a lavar vidros de automóveis junto dos semáforos.
A mulher cacarejou de satisfação.
- Eleanor, um dos assuntos sobre os quais queria falar consigo é a Felicia. Estive ontem com ela, e pareceu... Pareceu-me doente.
- Doente? - exclamou a mulher, soltando uma gargalhada impiedosa. - Saída da redoma, quer você dizer. Felicia é um caso desesperado. Ela devia, de facto, estar sob vigilância médica, mas Olivia não sabe o que se passa.
- O que se passa?
- Ora, ela mete-se na coca, não tenho dúvidas disso. Acho que Turner Pierce é que lha dá, mas se não fosse
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ele seria outra pessoa qualquer. Felicia está perdida. Um dia destes ainda vai arranjar um problema a sério.
- Porque é que Turner Pierce se dispõe a fornecer-lhe as drogas?
- Mas como você é ingénua! Felicia não é propriamente uma pobretanas e Turner tem gostos caros. Como eu bem sei. Uma das escapadelas de que eu lhe falei foi com Turner. Mas não demorei muito a dar-lhe com os pés. É um jovem muito, muitíssimo ganancioso. Exactamente como a irmã.
- Julguei que você gostava dos Pierce. No nosso primeiro encontro, teceu-lhes muitos elogios.
- Isso era quando eu pertencia à família - respondeu Eleanor com azedume. - Agora, posso dizer a verdade, e eles podem arder todos no inferno!
Quando saiu do salão, Dora ficou alguns minutos parada no passeio, a respirar fundo. Precisava sentir que existia um mundo lavado, em que tudo era imaculado e brilhante.
Não era o sentimento de vingança de Eleanor para com Clayton que a desanimava; esperava-se que uma mulher despeitada o experimentasse. Nem mesmo as revelações sobre o vício de Felicia tinham constituído um choque para ela; Dora apercebera-se de que aquela mulher condenada estava fora do seu controlo, e, provavelmente, do de outros bons samaritanos.
Mas o que verdadeiramente a deprimia eram os comentários levianos de Eleanor sobre a infidelidade. A mulher teria razão? Toda a gente era infiel? O adultério não era mais grave do que um namorico de festa sem importância? Era um acontecimento tão sério na vida de um casal como deixar o tubo da pasta de dentes fora do sítio?
Caminhou ao longo da Rua 56, na direcção oeste, perguntando a si mesma se seria irremediavelmente ingénua, um ser inocente, incapaz de perceber como é que o mundo girava e as pessoas se comportavam. "Como você é ingénua!", dissera Eleanor. E talvez, reconheceu Dora, ela fosse uma criança, imbuída da noção de bem e de mal que lhe tinham ensinado, e sem a sabedoria que advém da experiência.
Voltou para a Rua 54 e continuou para oeste, sempre
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a pensar. Estaria ela certa e todos os outros errados? Era pouco provável. John Wenden afirmara: "A vida é demasiado curta para sermos fiéis", e talvez aquela fosse uma verdade universal que, de algum modo, passara ao lado de Dora Conti, uma mulher com um casamento feliz, que agora questionava se o seu mundo seria ridiculamente limitado.
Afastou estes pensamentos melancólicos e olhou à sua volta. Parou na esquina da Rua 54 com a 8ª Avenida. Este bairro era muito diferente do que acabara de deixar. Havia uma esquadra da polícia cercada de carros-patrulha estacionados. Seguia-se uma faixa cerrada de casas de habitação, garagens e edifícios comerciais baixos.
Esquivou-se ao trânsito, virou na 8ª Avenida e continuou pela Rua 54, na direcção oeste, atenta aos números e a pensar que ainda faltava um ou dois quarteirões.
Quando falara a John sobre aquela ourivesaria vazia em Roxbury, o detective dissera: "Ouça, este caso do negócio do ouro é seu. Eu ando ocupado com os três homicídios. Não posso, de repente, começar a perseguir barras de ouro. Porque não se agarra a isso e vê o que consegue descobrir? Eu cá estou pronto a ajudar. De acordo?"
"Claro", respondera Dora, "de acordo", e voltara ao plano de acção que delineara antes da sua ida a Boston.
Tinha o endereço da casa-forte da Joalharia Starrett Fine, em Brooklyn, mas achou que não valia a pena investigar, porque desconhecia as datas de entrega dos carregamentos de ouro. Fazia mais sentido ir espreitar o principal fornecedor de barras de ouro da Starrett, uma firma chamada Metais Preciosos Stuttgart, Inc., que ficava em Manhattan, na Rua 54 Oeste. De acordo com o que constava das folhas de computador, a Stuttgart era a filial norte-americana de uma empresa chamada Refinarias Croesus, Lda., sediada no Luxemburgo.
Dora contava ir encontrar a Metais Preciosos Stuttgart instalada na casa-forte de um prédio, numa fortaleza de paredes grossas, talvez rodeada por uma vedação sólida encimada de arame farpado, com guardas armados à vista. Em vez disso, deparou com um prédio de cimento, só de um piso, sem vedação nem guardas. Ficava mesmo a oeste da 10ª Avenida e parecia ter sido aproveitado de uma antiga garagem, com um pequeno escritório na frente,
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a toda a largura, e portas de correr que davam acesso à parte principal. Não tinha tabuleta.
Ainda mais estranho que a vulgaridade da estrutura era o seu ar de delapidação. Parecia deserto, como se o negócio tivesse ruído e a bancarrota espreitasse. Um vagabundo remexia num caixote do lixo que havia no exterior do escritório. "Andará à procura de barras de ouro?", interrogou-se Dora.
Deu uma olhadela ao edifício do outro lado da rua. Depois encaminhou-se, decidida, para a porta do escritório e empurrou-a. Encontrou-se numa sala lúgubre, com soalho de madeira, paredes manchadas e mal retocadas, e sem cadeiras ou outras peças de mobiliário destinadas a receber potenciais clientes. Havia um balcão de madeira riscada e, do outro lado, uma secretária igualmente decrépita, onde uma mulher de óculos e cabelo grisalho estava sentada, a escrever à máquina. Em cima da secretária não se viam papéis ou documentos.
A mulher parou de escrever quando Dora entrou, e olhou para ela.
- O que deseja? - perguntou, com voz de cana rachada.
- É aqui a firma Metais Preciosos Stuttgart? - perguntou Dora.
A mulher fez um sinal afirmativo. Dora tinha preparado uma história.
- Eu e o meu marido temos uma pequena oficina em Vermont - disse, com um sorriso aberto. - Criamos e decoramos peças soltas de joalharia, principalmente em ouro e prata pura, com motivos abstractos. Temos comprado o ouro e a prata em Boston, mas como tive de vir a Nova Iorque em serviço, resolvi passar por aqui para tentar obter preços mais favoráveis.
A mulher abanou a cabeça.
- Não vendemos a retalho - respondeu.
- Bem, não se trata propriamente de retalho - disse Dora. - Afinal, nós somos estilistas e fabricantes. Vendemos a algumas das melhores lojas e armazéns do país.
A expressão da mulher não se alterou.
- Que quantidade de ouro poderia gastar por mês? perguntou. - Algumas onças. Ora nós só vendemos às libras e aos quilos. O nosso ouro vem do estrangeiro em barras e lingotes. É de mais para si, menina.
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- Oh, meu Deus, talvez tenha razão - respondeu Dora. - Nem saberíamos o que fazer com uma libra de ouro puro. Ouça, outra coisa, eu venho a pé da Oitava Avenida e lembrei-me que talvez um dia pudéssemos pensar em abrir uma pequena oficina, com uma sala de exposições em Manhattan. A Stuttgart tem mais alguma propriedade nas redondezas?
- Nós não somos proprietários das instalações, somos inquilinos - respondeu a mulher.
- Ah! - exclamou Dora. - Bem, acho que tenho de continuar a procurar. Muito obrigada pelo tempo que lhe tomei.
A mulher fez um aceno de cabeça e voltou ao trabalho.
Dora teve sorte. Apanhou um táxi livre que saíra de uma garagem da 11ª Avenida. Mas o trânsito estava péssimo, e levou uma hora a chegar ao Bedlington. Foi imediatamente para o quarto e atirou com os sapatos. Depois, telefonou a Mike Trevalyan, em Hartford.
- Ena, ainda bem que a ouço! - disse ele. - Que tal estão-a correr essas férias?
- Vá lá, Mike, acabe com esse paleio. Preciso de ajuda.
- A sério? E eu que pensava que tinha telefonado para me dar os parabéns pelos meus anos...
- Tenho duas coisas para lhe dizer e não têm nada a ver com o seu aniversário. Os computadores do nosso departamento de propriedades e sinistros utilizam uma base de dados que cobre todas as casas comerciais do país, não é verdade?
- Oh, oh! Eu já sabia o que vinha aí.
- Há uma firma na Rua Cinquenta e Quatro Oeste, em Manhattan, que se chama Metais Preciosos Stuttgart e é filial de outra registada no Luxemburgo. A Stuttgart utiliza espaços alugados. Vou-lhe dar a morada e preciso de saber quem é o proprietário e mais alguma coisa que você descubra sobre a Stuttgart: as condições do aluguer, há quanto tempo é que lá estão, etc.
- O que tem isso a ver com a reclamação do seguro da Starrett?
- Nada. Sou eu que ando a brincar - respondeu Dora, bem-disposta.
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Depois de ele se acalmar, ela deu-lhe a morada da Stuttgart e ele prometeu contactá-la assim que tivesse novidades.
- Tem saudades minhas? - perguntou ele.
- Claro que tenho - respondeu ela num tom afectuoso. - Como é que você se chama?...
Depois desta calamidade, desligou e telefonou a Mário. Estiveram a conversar durante quase meia hora. Dora inteirou-se dos mexericos locais e disse a Mário que sentia muito a falta dele e da casa.
- O que sentes é a falta da comida caseira - disse ele.
- Também sinto - reconheceu ela.
- Quando voltas?
- Daqui a pouco tempo - prometeu ela. - Tens-te portado bem?
- Como de costume - respondeu ele.
Não era exactamente aquilo que ela queria ouvir. Mas a conversa com o marido animou-a, e foi para a cama decidida a esquecer tudo sobre gente de moral duvidosa. Nada se comparava à satisfação de ter um casamento feliz e fiel.
Mas não adormeceu com facilidade. A calma não durou muito e Dora deu consigo a levantar mais questões. Então, saltou da cama, ajoelhou-se e rezou. Há muito tempo que não o fazia e achou que chegara a altura indicada.
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Felicia Starrett não era uma mulher estúpida, mas a introspecção retraía-a como se tivesse uma infecção em último grau. Tinha a consciência, permanente, de que faltava qualquer ingrediente essencial à sua vida que pudesse dar-lhe sentido ou, pelo menos, torná-la suportável. A mãe não se cansava de lhe lembrar que um bom companheiro e um casamento feliz resolveriam todos os seus problemas. Felicia pensava, aborrecida, que aquele conselho era o mesmo que dizer a um vagabundo esfomeado e sem vintém que tinha de comer bem e com fartura.
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Mas, admitiu, era verdade que as suas relações com os homens lhe tinham envenenado a vida. Ainda adolescente, com a arrogância da juventude, começara a oferecer dinheiro e presentes caros aos homens. Este hábito manteve-se até concluir a licenciatura em Barnard e, num esforço para descobrir a causa deste estranho comportamento, leu muitos livros de psicologia para leigos. Mas nenhum lhe forneceu explicações para o facto de continuar a conhecer (ou a procurar?) homens que aceitavam a sua magnanimidade como se ela estivesse a cumprir um dever.
Em vários períodos de auto-análise, aduzira diversos motivos para justificar a generosidade a que se sentia obrigada. Primeiro, pensou tratar-se de um estratagema de poder: queria dominar os homens. Na verdade, queria possuí-los, reduzi-los ao papel de humildes servidores. Por fim, concluiu que dava dinheiro porque não conseguia dar amor. Receava os compromissos, reconhecia essa deficiência e dava presentes em substituição.
Mas o facto de reconhecer a causa não contribuía nada para minorar a sua infelicidade. E era por isso que se entregava a diversos vícios: cafeína, nicotina, álcool, uma infinidade de drogas e, eventualmente, cocaína, numa busca imparável da poção mágica que lhe traria a alegria que a vida lhe negara.
Convenceu-se de que essa busca fora finalmente bem sucedida quando Turner Pierce lhe trouxe o "gelo", aquela metanfetamina para fumar. Ali estava a fonte do êxtase que a transformava numa criatura sublime flutuando num mundo maravilhoso. O clímax que atingia era totalmente diferente do que experimentara até então.
Mas havia um alto preço a pagar. A ressaca era pavorosa: náuseas, incontinência, alucinações terríveis, temores inomináveis e frequentes acessos de violência, que ela não conseguia controlar. Mas Turner, aquele ser adorável, estava ali sempre para a guiar e para, depois de passada a fase pior, lhe dar mais daqueles cristais maravilhosos num cachimbo de vidro. Então, recomeçava a pairar.
Tinha uma vaga sensação de náusea, perdia peso, custava-lhe respirar, tinha palpitações e febre. Mas estava tão empenhada em atingir aquele esplêndido estado de euforia que teria pago qualquer preço, dado mesmo a
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própria vida, para se evadir e, ao mesmo tempo, sentir-se dona do mundo.
Mas a morte não a atraía, porque lá estava sempre Turner, que prometera casar com ela, um acto de amor que aumentava a sua felicidade. Sentia-se tão alegre que até conseguia reconhecer a beleza e a bondade de Helene, uma mulher de quem começara por desconfiar, e que uma vez viera ajudar Turner a dar-lhe banho e a lavar-lhe a cabeça. E também a limpar o apartamento que Felicia, durante uma ressaca, quase destruíra, golpeando os móveis com um canivete, partindo os vidros e estilhaçando todas aquelas figurinhas de porcelana que pertenciam ao senhorio.
Alternava entre o êxtase e o desespero, pouco consciente da passagem do tempo, mas, nos escassos momentos de lucidez, compenetrava-se de que em breve seria uma mulher casada e de que, finalmente, a sua vida teria sentido.
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Dora contornou duas vezes aquele quarteirão e os dois quarteirões seguintes. Por fim, descobriu um lugar para o carro, mas só depois de dez minutos de manobras, que a fizeram suar, conseguiu estacionar o Escort junto da curva. Fechou-o e encaminhou-se para o escritório de Gregor Pinchik, no Soho, que ficara para trás. Nem sequer queria pensar em como iria tirar o Ford daquele espaço exíguo.
O perito de computadores ocupava o último andar de um antigo edifício de escritórios acabado de restaurar. O chão do átrio fora ladrilhado de novo e nas paredes havia candeeiros art déco, de vidro fosco, com ninfas a dançar. O elevador de serviço era o original - com espaço suficiente para transportar um piano Steinway -, mas fora revestido de espelhos estalados e fotografias de Man Ray emolduradas.
O escritório de Pinchik recebia a luz de duas clarabóias gigantes que mostravam um céu monótono. Mas
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havia candeeiros aos cantos e ouvia-se música de Brahms vinda de uma aparelhagem estereofónica que tinha mais botões, interruptores, válvulas e dispositivos de controlo do que um foguetão.
- O que me diz a isto, minha senhora? - exclamou Pinchik, apontando para a aparelhagem.
Proporcionou a Dora aquilo a que chamou uma "excursão por cinquenta cêntimos", avisando-a que não tropeçasse nos fios e nos cabos que serpenteavam pelo chão. Mostrou-lhe, à mistura com algumas demonstrações, uma espantosa confusão de computadores, monitores, impressoras, modems, fitas e disquetes, telefones, faxes e gravadores de chamadas, jornais digitais, calculadoras electrónicas e muitas, muitas coisas mais.
- Sou um maníaco por estas coisas - admitiu o homenzinho barbudo com um ar alegre. - Se é um dispositivo electrónico, tem de ser meu. Grande parte disto é uma porcaria, mas até a porcaria pode ser divertida. Agora sente-se aqui, que eu vou pô-la a par das aventuras do nosso pombinho.
Dora sentou-se numa confortável cadeira giratória e Pinchik empoleirou-se num banquinho metálico com rodízios. Aproximou-se de um monitor e carregou nuns quantos botões com os seus dedos gorduchos.
- Pus o ficheiro todo numa só disquete - disse ele. Você já sabe o que eu apurei em Dallas e em Denver. Agora vamos às novidades.
Um texto dactilografado começou a passar no ecrã e Pinchik aproximou-se mais para o ler.
- Muito bem, aqui estão os elementos que eu consegui dos meus colegas em Kansas City. O nosso herói apareceu em Kansas City depois de sair de Denver. E passou a chamar-se Turner Pierce. São as mesmas iniciais, mas sabe-se lá qual é o verdadeiro nome dele...
- De bigode? - perguntou Dora.
- De bigode. E com as vigarices do costume. Os tipos de Kansas City conheciam-no bem porque ele se apresentou com o que parecia ser um negócio legal. Escritório, uma secretária, papel timbrado, anúncios: o cenário completo. Intitulava-se consultor informático e criador de sistemas completos de qualquer dimensão, grandes ou pequenos. Era um dos melhores do ramo, em Kansas City, e
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tinha um sucesso enorme. Em primeiro lugar, conhecia o material e nunca tentava vender aos clientes mais hardware do que eles precisavam. É claro que Pierce devia receber comissões pelo equipamento que recomendava, mas nada de significativo. Conseguiu alguns clientes importantes: um banco com filiais, uma universidade local, uma companhia de seguros, uma cadeia de sapatarias, uma série de fábricas, distribuidores, supermercados, um centro comercial, etc.
- Sempre dentro da legalidade?
- Era o que toda a gente pensava. A princípio. Depois, houve uma série de fraudes efectuadas por computador. O banco registou elevadas perdas de dinheiro, as sapatarias e os distribuidores perderam mercadoria entregue e registada como se tivesse sido paga, embora o pagamento nunca tenha sido feito. E a companhia de seguros deu consigo a pagar indemnizações sobre apólices inexistentes.
- Não diga mais, Greg. Posso imaginar - interrompeu Dora.
- Aí tem - prosseguiu Greg, com um aceno de cabeça. - Todas essas vítimas tinham sistemas de computador instalados por Turner Pierce Associates, Inc. O que ele fazia era deixar em todos os sistemas que criava aquilo a que nós chamamos um "alçapão". Na sua forma mais simples, era um código de acesso, talvez uma só palavra ou um número de seis dígitos, que permitia a um bandido qualquer do exterior entrar no sistema, vasculhar todos os registos e aparar o negócio da maneira que ele queria, pelo montante que queria.
- E era isso que Turner andava a fazer?
O perito de computadores abanou a cabeça desgrenhada.
- Não - respondeu. - Ele era esperto de mais para isso. Seguiu o mesmo sistema que usara em Dallas e em Denver. Nunca era ele a fazer o trabalho sujo. Vendia esses alçapões a tipos mais gananciosos e mais estúpidos do que ele. Quando todos esses crimes vieram a lume, alguns dos criminosos foram apanhados e condenados, mas Pierce desarmou a tenda e desapareceu tranquilamente.
- Greg, alguns desses tipos que foram condenados devem ter tentado negociar com as autoridades indicando o nome de Turner Pierce.
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- Claro. Apontaram-no como tendo sido o tipo que lhes vendera os códigos de acesso. Mas que provas tinham as autoridades para deitar a mão a Pierce? Nenhumas. Apenas a acusação de um arguido. Nenhum dos casos levou Pierce a tribunal, por isso ele foi aconselhado a sair da cidade.
- E veio para Nova Iorque.
- Exactamente - respondeu Pinchik, que recomeçou a manejar a consola. - Mas eu ainda não lhe contei a parte mais saborosa. Espere um bocadinho.
Pinchik levantou-se para ver melhor o ecrã.
- Sim, cá está. Lembra-se de eu lhe dizer que, quando Pierce se instalou em Kansas City, tinha um escritório, uma secretária, tudo o que parecia legítimo?
- Lembro-me.
- A secretária era uma mulher alta e vistosa chamada Helene.
- A irmã! - exclamou Dora.
- Suponho que sim - disse Pinchik. - A descrição que tenho coincide com a que você me deu. E quando Turner Pierce saiu de Kansas City, Helene desapareceu ao mesmo tempo. Por isso aposto que ela veio com ele para Nova Iorque.
- Também acho - concordou Dora.
Pinchik voltou a sentar-se no banco e aproximou-se dela.
- Mas eu não lhe contei o melhor - disse ele, com o seu ar inexpressivo. - Antes de essa tal Helene ir trabalhar para o escritório de Turner Pierce, era prostituta.
Dora ficou a olhar para ele. Depois perguntou com voz rouca:
- Tem a certeza? - O homem fez um sinal afirmativo.
- Recebi as mesmas informações de duas fontes distintas e creio que são verdadeiras. Ela era prostituta, é certo, mas isso não quer dizer que andasse pelas ruas encostada aos candeeiros. Os meus colegas dizem que ela era mais uma espécie de call girl, uma daquelas prostitutas finas que se chamam pelo telefone. Tinha alguns clientes regulares, que eram homens muito importantes, e, quando havia um congresso na cidade, ela estava sempre pronta.
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Dora respirou fundo.
- Não se importa que eu fume? - perguntou.
- Mas só se me der um cigarro dos seus - respondeu Pinchik. - Já não tenho nenhum.
Acenderam os cigarros e deixaram-se ficar calados, a olhar para o tecto.
- Que mundo maravilhoso! - disse Dora, por fim.
- Repita o que disse - pediu Pinchik.
- Que mundo maravilhoso! - repetiu Dora, a sorrir. Depois, baixou a cabeça para encarar o homenzinho soturno, o tal maníaco que se servia da electrónica para desnudar as pessoas. - Diga-me, Greg, você já esteve metido nisso. O que pensa de Turner Pierce?
Pinchik mirou a ponta incandescente do cigarro.
- Eu caí no mesmo, uma vez. Tinha a consciência de que estava a fazer mal e, se Deus quiser, nunca mais o farei. Mas este Pierce actua como se fosse um fora-da-lei inato. Está-se nas tintas. Ouça, o tipo é esperto. No que respeita a computadores, pode até ser um menino-prodígio. Se tivesse continuado por aí fora, poderia ser agora multimilionário. Mas, como eu já disse, ele está-se nas tintas. Para ele, não há leis nem regras. Avança pela vida como um touro, e se alguém se aleijar que se lixe. Desculpe a minha linguagem, minha senhora.
- Tenho ouvido pior.
- Além disso, acho que ele pode ser muito, muito perigoso. Não se esqueça disso - disse Pinchik.
- Não me esquecerei - prometeu Dora.
Pinchik atirou a ponta do cigarro para o chão e pisou-a com a sola do sapato.
- Agora, temos Helene e Turner Pierce em Nova Iorque. O meu trabalho acaba aqui, não é verdade?
- Não, ainda não - respondeu Dora. - Volte ao seu contacto em Kansas City e veja se consegue mais dados sobre Helene Pierce. Onde e quando nasceu, porque abandonou a prostituição para se associar ao irmão... Qualquer coisa mais que consiga descobrir.
- Isso é possível. Tenho alguns contactos em Kansas City a que ainda não recorri.
De repente, o homem deu uma gargalhada.
- E um deles, tenho a certeza, está metido nos computadores da cidade. Tem acesso a todos os registos municipais.
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- Qual é o interesse dele em invadir a Câmara? - perguntou Dora com curiosidade.
Pinchik encolheu os ombros.
- Apenas para se divertir. Porque aquilo está ali. Pela mesma razão que há pessoas que escalam o monte Everest.
- Outra coisa... Um homem chamado Sydney Loftus
- prosseguiu Dora. - Já morreu, mas, em vida, apresentava-se como sendo o padre Brian Callaway, um pregador que inventou a sua própria religião. Creio que ele estava em Kansas City na mesma altura dos Pierce, e gostaria de saber se eles se conheciam.
- Está bem, deixe-me ir buscar o gravador, para você me dizer tudo o que sabe de Sydney Loftus, incluindo a descrição física dele, e verei o que posso apurar.
Quando Dora se aproximou do Ford Escort, verificou que o carro da frente desaparecera, por isso saiu sem dificuldade e tomou a direcção do centro. Encarou esta circunstância como um bom presságio: um problema aparentemente intrincado fora resolvido por acaso ou por milagre.
- Obrigada, meu Deus - disse em voz alta. - Agora vamos ver o que podes fazer para esclarecer o enigma da Starrett.
Quando chegou ao Bedlington, tinha uma mensagem na recepção: telefonar a Mike Trevalyan, em Hartford, o mais depressa possível. Foi para o quarto, fez chá e abriu um pacote de biscoitos Pepperidge Farm, de laranja, os seus preferidos. Depois fez o telefonema.
- Não há dúvida de que você me meteu numa embrulhada - disse Mike Trevalyan com um ar ofendido. Essa tal Metais Preciosos Stuttgart, o tal pardieiro na Rua Cinquenta e Quatro Oeste... Consegui que um tipo dos computadores do Departamento de Propriedades e Sinistros a investigasse.
- E então?
- Tal como você disse, a Stuttgart funciona em instalações alugadas. O contrato de aluguer foi assinado há dois anos, por um prazo de cinco, com possibilidade de ser renovado por igual período.
- Quem é o dono do terreno e do edifício?
- Uma firma chamada Spondex Realty Corporation.
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- Nunca ouvi falar. E você? - perguntou Dora.
- Cale-se um bocadinho e deixe-me acabar - ripostou Trevalyan, furioso. - O tipo dos computadores fez uma investigação sobre a Spondex e descobriu que a proprietária é outra firma, chamada R. L. Jessup Investments. Então o tipo começou a interessar-se mais porque começou a farejar qualquer coisa. Como você sabe, quando se descobre uma pista destas, existe alguém por trás. De qualquer modo, os proprietários da tal firma na Rua Cinquenta e Quatro Oeste foram descobertos, seguindo o rasto de quatro empresas, até que finalmente se chegou a uma holding que possui imóveis em Los Angeles e Nova Iorque, uma agência de navegação, uma boutique em Palm Beach, uma grande plantação de café na Colômbia, um rancho no Wyoming e Deus sabe mais o quê.
- Como se chama a holding?
- Rabi Enterprises, Ldt. E isto vai fulminá-la: está registada no Luxemburgo. Não é onde a sede da tal Stuttgart está registada?
- Acertou, Mike - disse Dora. - E isto está a começar a cheirar a qualquer coisa. Quem é o dono da Rabi Enterprises?
- É uma sociedade anónima. Talvez com uma dúzia de accionistas. Não está cotada na Bolsa. O presidente do conselho de administração e director executivo é um tipo chamado Ramon Schnabl. Creio que é daí que vem o nome da holding: das primeiras duas letras do nome próprio e das duas últimas do apelido. Procurámos na nossa base de dados, mas não há nada sobre Ramon Schnabl.
- Está bem, Mike. Obrigada pela sua ajuda. vou continuar aqui a minha tarefa.
- Isso significa que podemos enterrar o pedido de indemnização dos Starrett?
- Não sei o que significa, nem mesmo se significa alguma coisa - respondeu Dora, aborrecida.
- Bem, tenha cuidado, menina. Essa rede de empresas faz-me pensar que alguém pode estar a jogar em grande. Não faça nenhuma asneira.
- Ora, Mike, você está preocupado comigo. Que simpático!
- Vá à merda! - rosnou ele, e desligou.
Dora correu para o seu bloco de apontamentos e
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tomou nota de todos os nomes referidos durante o telefonema. Depois, ligou ao detective John Wenden, mas este estava numa reunião e não pôde atender. Dora deixou recado e voltou aos seus apontamentos, rabiscando uma versão condensada de tudo o que soubera através de Gregor Pinchik naquela manhã. Ainda estava a escrever quando o telefone tocou.
- Olá, Ruiva - disse Wenden. - Tenho pouco tempo. O que se passa?
- Não o demoro - respondeu Dora.
E falou-lhe da ida à Metais Preciosos Stuttgart, na Rua 54 Oeste, da investigação que a companhia fizera para descobrir quem era o proprietário e, depois de seguir uma pista complexa, da descoberta da holding registada no Luxemburgo.
- O nome de Ramon Schnabl diz-lhe alguma coisa? perguntou Dora.
Não houve resposta.
- John, está a ouvir-me? - insistiu ela.
- Ouça - disse Wenden, num tom de súbita impaciência -, faça-me um favor, promete? Não faça mais nada sobre o negócio de ouro da Starrett. Absolutamente nada, compreende? Não volte a esse tal sítio na Rua Cinquenta e Quatro Oeste. Não faça mais perguntas sobre esse assunto. Não mencione sequer o caso do ouro da Starrett a mais ninguém até eu voltar a falar consigo. Está bem? Promete-me que abandona tudo até eu voltar a telefonar?
- John, isso é importante?
- A vida é importante? Promete-me que não se mexe até ter notícias minhas?
- Prometo - disse Dora, submissa. - Se é isso que quer.
- Amo-a, Ruiva - concluiu Wenden.
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Apesar do que Turner dissera, Helene Pierce relacionava a riqueza com a inteligência. Os espertos faziam bom dinheiro, isso era um dado. Agora, sentada na sala
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descolorida do pequeno apartamento de Ramon Schnabl, olhava para os óculos escuros do homem e perguntava a si mesma que segredos ocultariam. Este homenzinho, com o seu fato apertado e lustroso, poderia passar por um alcoviteiro de Palermo, mas, e ela sabia-o, era um Creso que nunca apareceria na Forbes 400.
- Mas que prazer em voltar a vê-la, minha querida - disse ele, num tom de voz sem energia. - Fiquei admirado, encantado mas admirado, por ter notícias suas. Turner sabe que está aqui?
A pergunta foi tão repentina e directa que Helene ficou surpreendida.
- Não, não sabe. Achei que era preferível não lhe dizer - respondeu.
Schnabl fez um sinal de concordância.
- Decerto não serei eu a dizer-lho - disse ele, sem um laivo de ironia. - Quer falar de algum assunto relacionado com Turner?
- E consigo - respondeu ela.
Ele aguardou, paciente e calado, beberricando a água gelada.
- Sabe com certeza - disse Helene, procurando desesperadamente um cigarro - que Turner está envolvido com Felicia Starrett.
- Estou a par da relação deles.
- Receio que essa relação possa ser um problema.
- Um problema? Por Felicia ou por Turner?
- Por ambos. Ela está totalmente metida na droga e as tentativas para controlá-la começam a afectar o juízo de Turner. Não só o seu juízo como a sua personalidade, até mesmo o seu aspecto físico. Falando claro, Ramon, o homem está a destruir-se.
- Lamento muito sabê-lo, minha querida. Só desejo o melhor para Turner, tal como desejo para si. Está a insinuar que o comportamento dele está a tornar-se, de certo modo, estranho?
- Já chegou a isso - respondeu Helene, levantando o queixo, mas sem desviar o olhar daqueles óculos escuros. - Mas penso que Felicia representa um perigo mais imediato. Ela perdeu a razão. Destruiu o apartamento de Turner. E quando está na ressaca fica completamente psicótica.
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- Mas que maçada! - replicou o homenzinho, suspirando. - É o preço que pagamos pelos nossos prazeres. Bem, essas notícias são inquietantes, minha querida. Tem alguma sugestão a fazer para remediar essa situação lamentável?
Helene respirou fundo.
- Sabia que Clayton Starrett está a divorciar-se?
- Já ouvi falar nisso.
- Ele quer casar comigo quando estiver divorciado. Schnabl não se mostrou surpreendido.
- Compreendo. E você quer casar com ele?
- Quero. Falo-lhe neste assunto pessoal apenas para o convencer de que, se decidir eliminar Turner... dos seus planos... Se decidir eliminar Turner dos seus planos, queria que soubesse que isso não teria de afectar o acordo com a Starrett. Eu posso controlar Clayton.
- E porque quereria eu, como você diz, eliminar Turner?
- Porque ele está a passar um mau bocado com Felicia. Isso modificou-o. Já não é o mesmo homem de há seis meses, ou mesmo de há seis semanas. Já não se pode confiar nele. E, é claro, Felicia representa uma ameaça ainda maior. Não é possível prever o que aquela mulher louca pode vir a fazer. Outro factor que deve ter em consideração: se Turner sair da jogada, você poderá poupar a parte dele no negócio com a Starrett. Garanto-lhe que não quero herdá-la. Clayton está a fazer dinheiro suficiente para nós os dois.
- Você não é apenas uma mulher encantadora, minha querida, mas também incrivelmente perspicaz. Gosto disso.
Helene começou a falar, mas Schnabl fez um gesto com a mão, pedindo-lhe que se calasse. Voltou os olhos vítreos para o crânio desbotado do órix que estava pendurado por cima do fogão de sala apagado. Depois, sentou-se, sem articular palavra.
- Acho que não - disse por fim, voltando-se para Helene. - Não é o momento adequado. Como sabe, ou talvez não, Turner está encarregado de montar uma operação em Nova Orleães semelhante à da Starrett. Para mim, é importante que este projecto seja concluído e implementado. Além disso, já combinámos uma terceira
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operação em Tucson, no Arizona, que está a transformar-se rapidamente num importante centro de distribuição. Não, minha querida, receio não poder aceder ao seu pedido.
- Não foi um pedido - replicou Helene, impassível. Foi apenas uma sugestão que eu pensava ser-lhe benéfica.
- E a si, também, claro - disse Schnabl. - Aprecio a sua preocupação, e vou vigiar o comportamento de Turner. Se, como você diz, ele se tornar indigno da minha confiança, então serei obrigado a rever a minha decisão. Mas por agora não tenciono agir. Lamento.
- Não há nada a lamentar - disse Helene. Levantou-se e pegou no chapéu, nas luvas, na carteira e no casaco.
- Pensei apenas que você devia estar a par da situação real para poder agir em prol dos seus interesses.
O homem sorriu, finalmente, num esgar horrível, um sorriso de cadáver.
- Todos nós agimos em prol dos nossos interesses, minha querida. É a marca do homem civilizado. E da mulher também - acrescentou ele, fitando-a.
Helene voltou para casa de táxi, furiosa, mas controlando-se porque já preparara um cenário alternativo, no caso de Schnabl não se deixar manipular. Fora o que acontecera e agora teria de ser ela a agir. Essa perspectiva não a amedrontava.
Ficou mais bem-disposta quando o porteiro lhe deu um embrulho que acabara de ser entregue por um mensageiro da Joalharia Starrett Fine. Helene apertou-o contra o peito enquanto subia no elevador; sabia o que estava lá dentro.
Nessa noite, ela e Clayton foram a um jantar de beneficência no Waldorf. Era a primeira vez que apareciam juntos em público. Helene comprara um novo vestido de noite, de lantejoulas azuis, sem alças. E Clayton prometera emprestar-lhe um colar pertencente à secção de ourivesaria da Starrett.
- Lembra-te que é só um empréstimo, por uma noite - dissera ele. - Tem de ser devolvido à loja, a não ser que uma mulher qualquer que esteja na festa morra de amores por ele e apareça com os dois milhões e meio que ele custa. Nesse caso, recebes uma comissão.
- Compreendo - disse Helene.
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Abriu o embrulho com as mãos a tremer, abriu o estojo de veludo e ficou sem respiração. Era um magnífico colar com dez safiras esplêndidas, cada uma incrustada numa pirâmide de diamantes ligada à outra por uma corrente de ouro de dezoito quilates. Helene avaliou o peso total das safiras em setenta e cinco quilates e o dos diamantes em cinquenta quilates.
Tirou o casaco e a blusa e pôs o colar ao pescoço. Era deslumbrante e ficava-lhe a matar no pescoço nu. Manteve-se em frente do espelho, mirou-o sob vários ângulos, e admirou a cintilação das pedras e o brilho do ouro. Aquele era o tipo de ornamento para o qual estava destinada. Sempre o soubera. Só precisara de uma oportunidade, e Clayton era essa oportunidade.
Desceu as escadas, envergando uma capa de seda. A limusina estava à espera. Clayton encontrava-se de pé no passeio, a fumar um charuto. Quando a viu, tentou falar, mas ficou sem voz. Helene reconheceu o desejo no seu olhar.
- Sinto-me a Cinderela a caminho do baile - disse ela, a rir.
- Mas- a meia-noite não vai chegar. Nunca! - proclamou ele.
No Waldorf, ficaram sentados numa mesa de dez pessoas. Todos os outros homens pareciam ser fornecedores da Joalharia Starrett Fine e, tanto eles como as mulheres, tratavam Clayton com a deferência que um bom cliente merecia. Não foram menos amáveis para com Helene, admirando-lhe o colar, o vestido e até o tom do verniz das unhas. Ela tirou o melhor partido da situação.
O traje era de cerimónia e, olhando à sua volta, Helene só via sinais de riqueza e requinte. Brilho de jóias. Aroma de perfumes caros. Naquela sala, parecia não haver preocupações, dor ou desgostos. Na sua opinião, era assim que a vida devia ser.
Mais tarde, durante o baile, foi apresentada a muita gente: a homens que a admiravam e a mulheres de olhar astuto. Comportou-se com discrição, agradeceu os cumprimentos em voz baixa, de mão dada com Clayton, e deixou que ele a exibisse, com orgulho: ela era a sua mais recente e valiosa aquisição.
A orquestra tocou Depois do Baile às duas horas da manhã, mas eram quase quatro horas quando tomaram a
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última taça de champanhe, pediram os casacos e ficaram à espera que a limusina se aproximasse. Regressaram ao apartamento de Helene sob um nevão fraco que envolvia os candeeiros da rua e acrescentava àquela noite o toque final de um conto de fadas.
- Adorava subir, mas não posso - disse Clayton, decidido. - Amanhã vou estar muito ocupado e, além disso, bebi demais. É melhor ir dormir.
- Oh, Clayton, é a primeira desilusão de uma noite verdadeiramente fabulosa - disse ela com um ar triste, tremendamente aliviada e apertando-lhe a mão com força.
- Foi soberbo, não foi? Querida, tu foste a mais bela do baile. Nunca ouvi tantos elogios. Todos os tipos queriam o teu número de telefone, é claro, mas eu disse-lhes que estavas comprometida.
- E estou... Contigo - disse ela, beijando-o com ardor.
- Oh, meu Deus - disse ele, quase num gemido -, mas que vida iremos ter!
- Queres que te devolva o colar agora? - perguntou ela.
- Não. Fica com ele até amanhã. Eu mando um mensageiro buscá-lo, de manhã. Helene, amo-te. Sabes isso, não sabes?
Em resposta, ela beijou-o de novo, e depois entrou em casa sozinha, com a gola da capa levantada, para esconder o colar. Despiu-se à pressa, a pensar que tinha de lavar a cabeça antes de se deitar, para se ver livre do cheiro dos charutos de Clayton.
Acariciou o colar, que guardou na sua bolsa de camurça. Era um objecto encantado, um amuleto que a protegia do fracasso e só lhe traria sorte.
Estava tão enfeitiçada por aquele tesouro extraordinário que nem se lembrou de que o mensageiro viria buscá-lo de manhã.
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Dora Conti começava a perceber o que se estava a passar. Na sua opinião, Sidney Loftus e os Pierce eram os tubarões, e os Starrett as vítimas. Mas continuava a não
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perceber quem fazia o quê e a quem. Até desenhou um diagrama: nomes dentro de quadrados ligados por linhas rectas ou curvas. Não lhe serviu de nada.
Depois, o detective John Wenden telefonou.
- Olá, Ruiva. Há um tipo que lhe quero apresentar. É Terence Ortiz, um sargento detective. Nós chamamos-lhe Terry, o Terrível - disse ele, sem mais preliminares afectuosos.
- Está bem - disse Dora. - vou direita ao assunto: porque lhe chamam Terry, o Terrível?
- Ele é dos Narcóticos - disse Wenden. - E injecta as pessoas. Ouça, podemos passar por aí esta noite? Tarde?
- A que horas?
- Por volta das oito.
- Isso não é tarde - disse Dora. - Raramente me deito antes das nove.
- Mentirosa! - disse ele, a rir. - Até logo à noite.
Terry Ortiz era um homem baixo e magro, com um bigode preto, descaído, que lhe dava um ar melancólico. Mas era cheio de genica e tinha a mania de dar estalos com os dedos. Quando foi apresentado a Dora, beijou-lhe a mão e ela sentiu o roçar do bigode na pele.
- Querem uma cerveja? - perguntou ela.
- Essa é a minha frase preferida - respondeu Ortiz.
- Excepto quando há que fazer - disse Wenden.
- Sim, excepto nesse caso. Eu vou numa cerveja - afirmou Ortiz.
Trazia um blusão de couro preto e umas jeans da mesma cor. Quando despiu o blusão, Dora reparou no revólver de cano achatado que ele trazia numa alça presa ao ombro. Trouxe latas de cerveja, um pacote de aperitivos salgados e molho de mostarda quente. Sentaram-se à roda da mesa baixa, e Terry, o Terrível, deixou-se cair no sofá, levantando os pés.
- Só disponho de cerca de uma hora - anunciou. Depois tenho de raspar-me. Se não vou a casa esta noite, a minha velha dá cabo de mim.
- Onde mora, sargento Ortiz? - perguntou Dora com delicadeza.
- Terry - emendou ele. - No bairro de East Side. Onde havia de ser? Vamos falar de trabalho.
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- Sim, é boa ideia - disse John. - Ruiva, conte ao Terry como soube da existência do Ramon Schnabl.
Dora explicou de novo que pedira ao chefe para verificar no computador quem era o proprietário das instalações ocupadas pela Metais Preciosos Stuttgart, na Rua 54 Oeste, e que, por acaso, a pista a levara a uma holding do Luxemburgo, presidida por Schnabl.
- Hum... E qual era o primeiro proprietário que você referiu... A firma que alugou o espaço à Stuttgart?
- Spondex Realty Corporation.
Os dois detectives olharam um para o outro e riram-se.
- De que se estão a rir? - perguntou Dora.
- Depois de você falar em Ramon Schnabl - disse Wenden -, lembrei-me que me tinha falado daquela ida a Boston, e da loja em Roxbury, que parecia um pardieiro deserto. Então, só por graça, telefonei para Boston e pedi-lhes que descobrissem quem era o proprietário do edifício ocupado pela Joalharia Felix Brothers Classic. Adivinhe. É a Spondex Realty Corporation.
Dora bateu com a mão na testa.
- Porque não me lembrei disso? - perguntou.
- Porque você é uma amadora - respondeu Wenden. - Talentosa e bela, mas é uma amadora.
Dora deixou passar o comentário, temporariamente, pelo menos.
- E quem é esse Ramon Schnabl? E o que faz? perguntou.
- Terry, isto pertence-te. Conta-lhe tu - disse John.
- Ramon Schnabl é um dos patrões da droga - contou o homem. - Muito, muito grande. O tipo dirige uma espécie de supermercado: jogo, cavalos, coca, ópio, haxixe, drogas fabricadas em laboratórios próprios. Basta pedir o que se quiser, que ele arranja. Também tem uma organização vertical: é produtor, agente, importador, exportador, distribuidor, armazenista e estamos convencidos de que ele anda agora a montar uma rede de venda a retalho em Nova Iorque e em Nova Orleães, e alguns dos seus representantes locais foram localizados em Tucson, no Arizona. Esse tipo é um magnate da droga.
- Se sabem tudo isso porque não o destruíram? perguntou Dora.
Terry fez estalar os dedos.
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- Não pense que não tentámos. Assim como o Tesouro e o FBI. Sempre que nos convencemos de que já o encurralámos, ele escapa-se. As testemunhas calam-se. Ele não mata ratos, mata famílias inteiras: mulheres, filhos, pais, parentes. Os traficantes preferem passar um mau bocado a denunciar Ramon Schnabl. Ele não presta.
- Não - disse Dora. - Mas se é assim tão importante no mundo da droga, qual o seu interesse em metais preciosos e em joalharias?
- É isso que eu não sei - respondeu Wenden. Pensei que se tratasse de contrabando de ouro, mas não faz sentido. Há ouro em toda a parte, e é o mercado que fixa o preço. Além disso, o ouro é demasiado pesado para ser contrabandeado em barras e lingotes. Tens alguma ideia, Terry?
- Nada - respondeu Ortiz, acabando a cerveja. Lembrei-me que talvez ele transportasse droga no interior de barras de ouro ocas. Mas isso não daria resultado, porque, como tu disseste, o ouro é pesado e qualquer pessoa daria por isso.
- E então? Onde é que isto nos leva? - perguntou John.
- Esta história é boa de mais para deixar cair - disse Ortiz. - Acho que talvez deva ir espreitar a Metais Preciosos Stuttgart. Pode ser apenas uma fachada e, em vez de ouro, terem a casa-forte cheia de droga. vou investigar e, se vir que é possível, talvez lhes deitemos a mão. O que achas, John?
- Concordo - respondeu Wenden. De repente, Ortiz voltou-se para Dora.
- Tem carro? - perguntou.
- Um Ford Escort alugado - respondeu ela.
- Óptimo. Podemos pedir um empréstimo.
- Se precisarem de ir dar uma olhadela, estejam à vontade - disse ela.
- Adoro esta mulher - disse Terry a Wenden. Adoro-a.
Levantou-se, vestiu o blusão e pôs um boné de couro preto.
- vou inspeccionar a Stuttgart e depois conto-lhe. Obrigado pelas bebidas. Vens, John?
- Acho que ainda fico mais um bocado - respondeu Wenden.
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O detective ergueu a mão para lhes dar a bênção.
- Deus os abençoe, meus filhos.
Tirou dois biscoitos salgados do pacote e foi-se embora.
Dora riu-se.
- Ele acha que temos um caso - disse ela.
- Julguei que tínhamos - replicou John. - Posso beber outra cerveja?
Dora trouxe-lhe uma lata de cerveja fria.
- John, não quis dizer nada na presença do Terry, mas você está com um aspecto horrível. Perdeu peso e tem os olhos mais papudos que nunca. Não tem dormido bem?
- Não o suficiente. Tenho de ir fazer exames para o mês que vem e é provável que o médico me meta nos Cuidados Intensivos.
- Estou preocupada consigo - afirmou ela.
- Está? - disse ele com um sorriso acriançado. É simpático da sua parte. Ouça, chega de falarmos de mim. Vamos falar desta grande trapalhada, dos três tipos que foram mortos. Tem alguma novidade?
Dora relatou-lhe as conversas que tivera com Felicia e Eleanor, e os planos da primeira para casar com Turner Pierce. Não lhe contou nada do que soubera através de Gregor Pinchik e do seu grupo de especialistas.
- Acha que Felicia está perdida? - perguntou Wenden.
- Definitivamente. Ela devia andar a fazer tratamento.
- Quem é que a abastece?
- Eleanor diz que é Turner Pierce. Mas Eleanor está tão azeda com a questão do divórcio que não sei se fala verdade.
John abanou a cabeça.
- Descobrimos coca debaixo do soalho, em casa do padre Callaway, Felicia droga-se e agora Ramon Shnabl, um grande da droga, parece estar relacionado com o negócio de ouro da Starrett. Talvez tudo isto se conjugue, mas não estou a ver como. E você?
- Ainda não - respondeu Dora. - E você? Tem novidades sobre os três homicídios?
O rosto dele iluminou-se.
- Tenho... Finalmente temos uma pista. Pelo menos,
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espero que seja uma pista. Lembra-se de eu lhe dizer que estávamos a inspeccionar todas as lojas, bares e restaurantes nas redondezas da Igreja da Santa Unidade, para ver se Loftus-Callaway fora visto na noite em que foi morto? Finalmente, demos com um restaurante francês, manhoso, na Rua Vinte e Oito Leste, e um dos criados está convencido de que o padre esteve lá naquela noite.
- John, isso levou muito tempo, não acha?
- Você pensa que isto é fácil, que se pode entrar assim num restaurante, rapar de uma fotografia do falecido e perguntar se ele lá esteve num certo dia, a uma certa hora, e que as pessoas se abrem? Não é assim tão simples, Ruiva. Os empregados dos bares e os criados de mesa atendem tantos clientes que se esquecem das suas caras. E, além disso, é difícil descobrir quem estava de serviço naquela noite. E, depois, pode acontecer que um dos criados tenha sido despedido, deixado o emprego ou saído da terra. E depois temos de ir atrás dele. Acredite que é um trabalho demorado e chato, com boas hipóteses de não chegarmos a lado nenhum. Mas tem de ser feito. Então, como eu dizia, descobrimos finalmente este restaurante na Rua Vinte e Oito Leste, onde um dos criados se lembra de ter visto Callaway na noite em que foi morto. A razão por que se lembra dele é que o bom do padre não lhe deixou gorjeta. Moral da história: nunca se deve defraudar um criado.
- Callaway estava sozinho ou com alguém? Wenden olhou-a com admiração.
- Você é muito esperta... sabia? Desculpe aquela minha piada de há pouco, quando disse que você era uma amadora. Mas também disse que você era uma amadora bela e talentosa. Isso ajuda, não acha?
- De certo modo - disse Dora, ainda ressentida. com quem estava Callaway?
- O criado diz que ele se sentou num banco com uma jovem. Mas o criado é tão velho que, para ele, "uma jovem" pode ser uma mulher perto dos sessenta.
- O que fez depois?
- Fui ter com Mistress Olivia Starrett e trouxe fotografias de Eleanor, Felicia e Helene Pierce. São Polaroids a cores tiradas no jantar de Natal do ano passado, em casa dos Starrett. Mandei fazer cópias e vou ter com o
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criado, para ver se ele consegue identificar alguma delas como sendo a mulher que esteve sentada no banco a beber um copo com o falecido. É uma tentativa, mas é tudo o que temos.
- Parece-me boa ideia. Acho que você está a fazer um belo trabalho - disse Dora, com entusiasmo.
- Diga isso ao meu chefe - replicou o detective, sorumbático. - Ele acha que ando a arrastar os pés. A verdade é que ando a arrastar o rabo. Diga-me que vá para casa dormir, Ruiva.
- Vá para casa dormir.
- Está bem. É o meu dever. Lembra-se da noite em que me deixou cá ficar? - perguntou ele.
- Esta noite, não, John - disse Dora, com firmeza.
- Não confia em mim?
- Não confio em nenhum de nós. Além disso, você está demasiado cansado para sofrer emoções.
- Tem razão - disse ele, lamuriento. - Sinto-me a morrer. bom, obrigado por tudo, Ruiva.
- John, tenha cuidado a guiar. Ele fitou-a com um ar esgotado.
- Ainda não se decidiu, hem?
- Ainda não.
- Mas está a pensar nisso?
- Sempre - respondeu ela, quase zangada.
- Óptimo. Ia fazer-nos bem, Ruiva, tenho a certeza. Antes dele sair, abraçaram-se com força e beijaram-se
longamente e sem pressa. Por fim, Dora empurrou-o para fora da porta e virou a cabeça depressa, para ele não lhe ver os olhos marejados de lágrimas.
Apanhou as migalhas dos biscoitos, ainda a fungar, e deitou fora as latas de cerveja vazias. Pegou na caneta e no bloco, mas deixou-se ficar sentada algum tempo sem escrever. Pouco depois, conseguiu varrer John Wenden do pensamento e concentrar-se no que soubera pelo valente Terry Ortiz.
Imaginou que ele iria para a frente com uma investida na Metais Preciosos Stuttgart; John ajudá-lo-ia e ela também. Sabia o que eles iriam encontrar... E não eram drogas. Mas, nunca diria aos detectives o que adivinhara, pois isso iria ferir o seu ego masculino. Deixá-los-ia convencidos de que ela era uma amadora.
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Os números sempre tinham fascinado Turner Pierce. Até lhes atribuía características: 1 era coragem, 3 sensualidade, 7 firmeza, 8 lascívia. Mas, mesmo desprovidos destas imagens fantasiosas, os números faziam mover o mundo. Uma vez compreendidos e entendido o seu modo de funcionamento, era possível explorar o seu poder em benefício próprio.
Mas agora, no seu universo elegante e bem organizado, fora introduzido um factor totalmente irracional. A presença de Felicia Starrett assemelhava-se à destruição de um computador, após a invasão de um vírus. O software, que concebera para programar a sua vida, estava a ser afectado por esta mulher demente.
Turner tinha perfeita consciência do que estava a acontecer-lhe. Era como se tivesse sido contagiado pela loucura de Felicia. A sua lógica linear era constantemente afectada pelos efeitos demenciais que as drogas provocavam nela, e as suas reacções estavam a tornar-se tão desordenadas como as alucinações e a paranóia de Felicia. Sabia que estava a deteriorar o seu aspecto físico e a descurar o trabalho para Ramon Schnabl.
O discurso de Felicia tornava-se cada vez mais incoerente. Ela perdera a capacidade de controlar a bexiga e os intestinos. As suas cóleras eram mais violentas. Perdera tanto peso que se notavam os ossos e as articulações através da pele seca e febril. Turner estava amarrado a um esqueleto convulsivo, cujos paroxismos se tinham extremado a tal ponto que se via forçado a amarrá-la com tiras de pano. Mas, mesmo quando estava presa à cama, esticava o corpo com tal fúria que Turner receava que a sua fraca ossatura estalasse.
Só quando fumava um cachimbo de "gelo" é que aquelas aterradoras demonstrações de loucura se apaziguavam. Mas, nessas alturas, a temperatura do seu corpo subia tanto, a respiração tornava-se tão difícil e as pulsações tão incertas que ele ficava em pânico ao pensar que ela poderia expirar na cama dele, no apartamento dele. Não tinha planeado a sua vida para defrontar esta eventualidade.
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Telefonou a Ramon Schnabl duas vezes, com a intenção de lhe perguntar se haveria algum antídoto que restituísse Felicia à normalidade. Mas os seus telefonemas não tiveram resposta. Então, telefonou a Helene, tentando dissimular a histeria, e pediu-lhe que viesse tomar conta da "doente" para poder sair um pouco daquele apartamento destruído e fétido, jantar decentemente e tentar refrescar as ideias na atmosfera fria da noite.
Sem fazer perguntas, Helene disse que iria logo que pudesse.
- Obrigado - disse Turner Pierce, sem se aperceber do tom lamuriento da sua própria voz.
Felicia Starrett vivia num mundo que não reconhecia. Tudo era novo, diferente: cores mais intensas, sons estranhos, odores esquisitos e sensuais. Ouvia o seu próprio balbuciar mas não entendia as palavras. Não tinha consciência de quem era nem de onde estava. O seu novo mundo era primitivo. Recordava-se de algumas coisas, nos breves momentos de lucidez: um passado doloroso e um futuro glorioso, quando casasse com Turner Pierce e tudo ficasse em ordem. Para todo o sempre. Olhava à sua volta com os olhos em alvo.
Uma vez, em Kansas City, quando repelira Sid Loftus, este dissera-lhe: "Você não é profunda, é superficial." Depois, acrescentara: "Mas tem uma visão ampla." Helene Pierce nunca entendera o significado daquelas palavras. Se insinuava que ela era incapaz de reflectir sobre o significado da vida, estava totalmente enganado; era frequente Helene ter pensamentos profundos. Afinal, não era nenhuma parva. A experiência ensinara-lhe que a vida encerrava uma dicotomia. Ou as pessoas eram individualistas ferozes, motivadas apenas pelo interesse próprio, ou eram aquilo a que se poderia chamar comunicadoras, que dedicavam a vida às relações com a família, o cônjuge, os amigos, os amantes, os bairros, as cidades.
A escolha parecia fácil a Helene. Ser uma comunicadora exigia sacrifício de tempo e de energia, e a vida era demasiado breve para isso. Ser egocentrista exigia menos sacrifício mas mais risco. As pessoas dependiam totalmente de si próprias. Então, começou a relacionar o comunicador
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com a timidez e o individualista com a coragem. Ela tinha, reconhecia, pernas para caminhar sozinha. Jogar tudo, e perder ou ganhar tudo.
Nessa altura, Turner telefonou e pediu-lhe para ir a casa dele e tomar conta da tontinha da Felicia enquanto ele ia dar uma volta. Sentindo-lhe o pânico na voz - Helene era sensível ao tom de voz dos homens - concordou imediatamente. Reconheceu logo que se tratava de uma oportunidade que poderia não se repetir.
Enquanto se preparava para sair, reviu o cenário que delineara. Tinha a virtude de ser simples. Era directo, rigoroso e, na opinião dela, tinha cinquenta por cento de hipóteses de ser bem sucedido. Mas toda a sua vida fora uma proposta a cinquenta por cento; não se deixava atemorizar por uma ninharia.
E saiu de casa, com uma excitação quase sexual pelo que ia fazer.
Turner tinha a porta fechada à chave, trancada e com uma corrente. Levou tempo a abri-la.
- Meu Deus, estou mesmo contente por te ver, querida. Entra - disse, com voz sumida.
Helene tentou disfarçar o choque que sentiu ao vê-lo: tinha um olhar estranho, as faces descaídas, a barba por fazer, o cabelo despenteado. Até o bigode, antes cuidadosamente tratado, se transformara numa mancha hirsuta. As roupas estavam sujas e deformadas.
Não se referiu à aparência dele, mas observou, desconsolada, o apartamento em desalinho.
- Turner, estás a viver num pântano - disse.
- Não me digas nada - respondeu ele, com amargura. - Tentei limpar tudo, mas depois lá vem ela com outro acesso. E, como é óbvio, não posso arranjar nenhuma empregada, com uma lunática na sala ao lado.
- Ela está no quarto?
Ele fez um sinal afirmativo.
- Tive de atá-la à cama. É para estar mais segura - acrescentou, na defensiva. - E eu também.
- Como está ela?
- Agora, está a dormir. Ou inconsciente, não sei. Fumou um cachimbo esta manhã. Se ela acordar esta noite, vai ficar estonteada por algumas horas, antes da ressaca. Achas que consegues aguentar-te?
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- Claro - respondeu Helene. - Vai-te arranjar e janta bem. Estarei aqui quando tu voltares.
- Obrigado, querida - disse ele, com voz rouca. não sei o que faria sem ti. Como está o tempo lá fora?
- Mau. Neve, granizo e uma chuva gelada. Frio como um raio e um vento que não desarma.
- Talvez vá ao Vito comer uma costeleta de vitela e beber uns copos. Ficarei como novo.
- Claro que ficas - disse Helene.
Ele foi para a casa de banho e, pouco depois, ela ouviu o ruído da máquina de barbear. Não foi ao quarto, mas fez um esforço para arrumar a sala. Apanhou os livros e as revistas que estavam no chão, endireitou as cadeiras e levou a louça suja para a cozinha. Deu uma espreitadela no frigorífico. Não tinha quase nada lá dentro: apenas duas laranjas, uma embalagem de fiambre cortado às fatias e um bocado de queijo já esverdeado. Havia uma garrafa de Absolut no armário por baixo do lava-louças, mas não lhe tocou.
Turner apareceu com um aspecto melhor. Fizera a barba, tomara banho, vestira uma camisa lavada e penteara o cabelo e o bigode.
- Duas coisas - disse ele. - Mantém a porta fechada à chave e não a desates, seja em que circunstância for. É natural que ela te peça para a soltares, mas não o faças. Não calculas do que ela é capaz. Estarei de volta dentro de uma hora.
- Vai à vontade - disse Helene.
Depois de ele sair, Helene trancou a porta da frente e olhou para o relógio. Depois, dirigiu-se ao quarto. Este cheirava mal, estava coberto de pó e demasiado quente. A iluminação vinha de uma lâmpada fraca do candeeiro do toucador. A carpete cheia de pedaços de tecido rasgado, jornais e vidros partidos. E tinha nódoas enormes.
Felicia Starrett, de olhos fechados, estava deitada na cama, debaixo de um lençol de algodão fino, cheio de manchas amarelas e castanhas. A sua respiração era fraca e irregular; de vez em quando, saíam-lhe uns sons da boca aberta, tão fracos como o miar de um gatinho. Tinha os pulsos atados com uma tira de lençol. Os tornozelos também estavam amarrados e uma tira larga de tecido, que passava por baixo da cama, prendia-a pela cintura.
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Helene achou que ela parecia moribunda, que o sopro seguinte poderia ser o último. Puxou uma cadeira para junto da cama e tocou-lhe ao de leve numa das mãos.
- Felicia - chamou, baixinho. Não houve resposta.
- Felicia - repetiu, batendo-lhe no braço sujo e encolhido. - Felicia, minha querida, estás a ouvir-me?
As pálpebras ergueram-se, de repente, e os olhos abriram-se. Helene aproximou-se.
- Felicia, sou a Helene. Reconheces-me, querida? perguntou com doçura.
Os olhos de Felicia voltaram-se para ela, mas focados noutra direcção.
- Água - pediu Felicia, tentando lamber os lábios ressequidos.
Helene foi à cozinha, descobriu uma chávena de plástico, encheu-a com água da torneira e trouxe-a para o quarto. Aproximou-a dos lábios gretados da mulher agrilhoada, que bebeu a água com sofreguidão. Não deixou uma gota, mas voltou a cabeça para o lado e cuspiu tudo o que acabara de beber sobre a almofada, a cama e o chão.
- Não faz mal - disse Helene, controlando a sua náusea ao ver aquilo. - Tentaremos mais tarde. Queres alguma coisa, Felicia?
Felicia voltou para ela os olhos ramelosos.
- Helene? - perguntou.
- Claro que sou a Helene, querida. Estou aqui para te ajudar. Como te sentes?
- Estou doente.
- Eu sei, Felicia, mas vais melhorar depressa.
- Onde está Turner?
- Teve de sair, mas não se demora.
Felicia olhou para as mãos atadas que jaziam sobre o lençol encardido.
- Desata-me - pediu, com voz rouca.
- Agora não, querida. Talvez quando Turner voltar. Queres tentar beber mais água agora? Talvez uma laranja te saiba melhor. Há uma bela laranja no frigorífico. vou descascá-la para ti.
Helene voltou à cozinha e, depois de uma busca de alguns minutos, descobriu onde Turner escondera as facas:
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na última prateleira do armário por cima do fogão. Helene escolheu uma comprida e pontiaguda, a que Felicia usava para golpear os móveis. Trouxe a faca e a laranja para o quarto.
Sentou-se tranquilamente a descascar a laranja com a faca afiada, deixando cair as cascas para o chão. Sabia que Felicia observava cada um dos seus movimentos.
- Ora cá está! - disse Helene, bem-disposta, exibindo a laranja descascada. - Não tem bom aspecto? Queres um gomo agora?
- Onde está Turner? - repetiu Felicia.
- Teve de sair, mas não se demora - repetiu também Helene. - Tu amas Turner, não amas, querida?
Felicia pestanejou e tentou humedecer os lábios. Fez um esforço para falar, uma, duas vezes, e por fim disse a custo:
- Nós vamos casar.
- Era sobre isso que te queria falar - disse Helene, aproximando-se mais. - Agora ouve-me, querida, e tenta entender-me.
Falou devagar, com clareza, durante quase dez minutos, repetindo tudo até se certificar de que a outra mulher tinha ouvido e compreendido as suas palavras, ainda que com dificuldade. Não houve reacção, nem objecções. Mas Felicia estava outra vez de boca aberta e fechou os olhos tão depressa como os abrira.
- Agora vou-me embora, querida - disse. - Turner deve estar a chegar. Mas deixa-me desatar-te primeiro.
Em vez de desatar os nós, Helene cortou-os com a faca. Felicia jazia imóvel. Helene deixou a laranja descascada e a faca em cima do lençol, junto daquele corpo flácido em postura de múmia.
- Espero que não tardes a sentir-te muito melhor, querida - disse. - Tem cuidado contigo.
Depois, foi para a sala à pressa, pegou no chapéu, no casaco, na carteira e saiu do apartamento. Lá fora, inclinou-se para a frente, para se proteger do vento e das rajadas de granizo, e encaminhou-se para oeste o mais depressa que pôde.
Ele desabotoou a gabardina para tirar as chaves. Quando entrou no apartamento, este estava quase às escuras.
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A única claridade vinha de uma luz fraca no quarto.
Voltou-se para acender o interruptor.
O casaco abriu-se-lhe.
- Helene! Já voltei! - exclamou.
A faca atingiu-o precisamente abaixo do esterno.
A força do golpe obrigou-o a encostar-se à porta fechada.
A faca foi retirada e enterrada outra vez.
E outra.
E outra.
Em estado de choque, com o corpo a arder, ele olhou para o sangue que jorrava das feridas.
Olhou para o fantasma, despido, curvado na sua frente.
Na obscuridade, avistou os lábios dela arrepanhados num sorriso torturado.
Apercebeu-se de um braço hirto que se movia como um êmbolo.
Sentiu a lâmina penetrar.
E queimá-lo.
Tentou desviar-se para acabar com aquele ardor, mas os joelhos cederam.
Escorregou lentamente para o chão até ficar sentado, com as pernas dilaceradas, apertando a barriga com as mãos, para tentar estancar o sangue.
Ela não parou. Inclinou-se sobre ele e continuou a esfaqueá-lo, a esfaqueá-lo.
Mesmo depois de ele já estar morto, ela continuou a atingi-lo com a faca, em todas as partes do corpo, até se certificar de que ele já não existia.
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- Está um tempo perfeito! - exclamou o detective Ortiz, entusiasmado. - Todos os polícias do distrito devem estar a dormir e todos os vadios devem estar enfiados em caixas de cartão, algures debaixo das pontes.
- O que se passa, Terry? - perguntou Wenden.
- Nada. Não vi seguranças nem detectei nenhum
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sistema de alarme. O local parece um queijo suíço. Entrámos pela porta da frente. Consegui abrir a fechadura com um gancho de cabelo. Depois, entrámos no escritório. Havia uma porta nas traseiras que dava para o armazém. Dei uma olhadela e não vi lá nada a não ser um ferrolho. Ouve, entrámos e saímos daquela pocilga num ápice.
- Sabe o que deve fazer, Ruiva? - perguntou Wenden. - Deixa-nos na esquina da Décima Avenida com a Rua Cinquenta e Cinco. Depois, contorna o quarteirão. Estaciona o mais perto possível da Stuttgart. Se tiver de estacionar em segunda fila, também serve. Apite duas vezes se vir qualquer coisa estranha. De acordo?
- É canja - respondeu Dora.
Dora ia ao volante do Ford Escort. Os dois detectives, vestidos de preto, iam no banco de trás. Os limpa-pára-brisas iam a funcionar e Dora inclinou-se para a frente para espreitar por entre os pingos de chuva e os flocos de granizo.
- Se vocês vão ser tão rápidos, talvez seja melhor não desligar o motor - disse ela. - Não teria de perder tempo a pedir socorro.
- Boa ideia - disse Terry, o Terrível. - Tem o depósito cheio?
- Claro - respondeu Dora, ofendida. - Esta não é a minha primeira aventura policial.
- Adoro esta mulher! Adoro-a! - exclamou Ortiz.
O trânsito era praticamente nulo. Não se viam autocarros, apenas alguns táxis e um automóvel particular, de vez em quando. Avistaram um limpa-neves que se dirigia para a 8ª Avenida e uma camioneta de areia a descer a
9ª Avenida. Dora percorreu a 10ª Avenida e parou junto da curva com a Rua 55.
- Boa sorte - desejou ela.
Os dois polícias saíram do carro.
- Vinte minutos - disse Ortiz. - Se nos atrasarmos, não entre em pânico.
- Eu nunca entro em pânico. Fico à vossa espera - asseverou Dora.
Contornou o quarteirão devagar, tendo o cuidado de parar nos sinais vermelhos. Encontrou um lugar para estacionar quase em frente da Metais Preciosos Stuttgart, do outro lado da rua. Voltou-se para ver os dois homens a
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descer a Rua 54, inclinados contra o vento, mas atentos. Dora achou que eles deviam estar gelados, dentro dos blusões de couro. Eram os únicos peões à vista e não havia carros a circular.
Viu-os parar, olhar à volta e depois avançar para a porta principal da Stuttgart, com um ar despreocupado. Inclinaram-se sobre a fechadura. Ortiz falara verdade, um minuto depois estavam lá dentro. A porta fechou-se atrás deles. Dora acendeu o rádio. Apanhou uma previsão meteorológica. Não era boa: chuva e granizo, com tendência para se transformar em neve. Esperavam-se camadas de cinco centímetros de espessura na cidade e de dez centímetros nos subúrbios. Dora acendeu um cigarro e ficou à espera.
Não aconteceu nada, o que a deixou desapontada; um pequeno drama teria vindo a calhar. Ainda não tinham passado vinte minutos quando os dois homens saíram, cautelosamente, pela porta principal da Stuttgart. Pararam um pouco, enquanto Ortiz se arranjava com a fechadura. Dora acendeu as luzes, e os polícias atravessaram a rua, apressados, e entraram para o Escort.
- Jesus! - disse Ortiz. - Que frio estava naquela pocilga!
Dora abriu o porta-luvas, tirou um saco de papel castanho e estendeu-lho. Tinha uma garrafa de brande Califórnia lá dentro.
- É para aquecer - disse ela.
- Eu não te disse que adoro esta mulher? - lembrou Terry a Wenden. - Adoro-a!
Os homens abriram a garrafa e partilharam-na, enquanto Dora arrancava e se dirigia para o Bedlington.
- Não vá nem muito devagar nem muito depressa - avisou Wenden.
- Eu conheço o caminho - respondeu Dora, agastada. - Como é que vocês se saíram?
- Agora guie, falamos mais tarde - disse ele. Dora não disse mais nada até chegar ao hotel. Os dois detectives conversaram em voz baixa, no banco de trás, mas ela não prestou atenção. Tinha quase a certeza do que eles haviam encontrado na Stuttgart.
Os polícias tinham mostrado os distintivos e deixado a caranguejola de John estacionada na zona proibida, em
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frente do hotel. Dora arrumou em segunda fila, desligou o motor, as luzes e o limpa-pára-brisas. A neve começara a cair, lentamente. Os flocos pareciam penas à luz dos candeeiros da rua.
Dora voltou-se para o lado, olhou para eles e perguntou:
- Descobriram droga?
- Nem um grama - respondeu Ortiz.
- E barras de ouro? Os detectives riram-se.
- Ah, isso sim! - respondeu John. - Encontrámos pilhas de barras de ouro. Por acaso, até raspámos uma com a minha faca de escuteiro. Quer ver?
Meteu a mão na algibeira do blusão e depois estendeu a palma da mão para Dora ver. Ela viu o que já esperava: raspas encaracoladas de um metal escuro, cor de estanho.
- Que diabo é isto? - perguntou ela, toda inocência.
- Chumbo - respondeu John. - A Joalharia Starrett Fine tem andado a negociar em barras de chumbo.
- Merda! - exclamou Terry, aborrecido. - Seria de esperar que uma empresa com a categoria da Starrett tivesse a decência de revestir as barras de chumbo de ouro genuíno. Mas não, aquelas barras foram pintadas, com tinta dourada. Você acredita numa coisa destas?
- Não percebo - disse Dora, desejosa de lhes proporcionar o seu momento de triunfo. - Porque é que a Starrett e Ramon Schnabl andam a transportar barras de chumbo pintadas de ouro por todo o país?
- É uma boa vigarice - disse John. - Aqui vai como achamos que a coisa funciona: o dinheiro dos negócios de droga feitos por Schnabl é enviado pelo correio para as cidades em que a Starrett tem filiais e entregue aos gerentes. Eles compram ouro à Starrett em Nova Iorque e pagam com o dinheiro da droga. Por sua vez, a sede da Starrett transfere o dinheiro, por via electrónica, para os seus fornecedores de ouro no estrangeiro, todos eles controlados por Schnabl.
- Mas, afinal, não há ouro nenhum! - atalhou Dora.
- Apenas barras de chumbo que eles enviam de um lado para o outro, aparentemente para obterem documentos legais sob a forma de conhecimentos de embarque, guias de remessa, etc.
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- Acertou, Ruiva - disse Wenden. - Tudo isto não passa de um esquema para lavar o dinheiro da droga e fazê-lo sair do país através do que parece ser uma transacção legal.
- Mas qual a razão de ser da Joalharia Felix Brothers Classic, em Boston, e de todas as outras pequenas ourivesarias? - perguntou Dora.
- São fachadas criadas por Schnabl para que, no papel, as filiais da Starrett possam provar que têm clientes legítimos para todo aquele ouro que compram a Nova Iorque - respondeu Ortiz. - E talvez algumas dessas lojecas sejam bancos que servem para fazer negócios de droga locais.
Dora ficou a pensar.
- Clayton Starrett tem de estar metido nisso.
- Não duvide - respondeu John. - Até ao pescoço. Assim como os gerentes admitidos há dois anos. E talvez o tipo que está à frente da casa-forte da Starrett, em Brooklyn. Estão todos envolvidos e recebem uma parte. Solomon Guthrie era demasiado honesto para se modificar. Mas sabia que se estava a passar algo que não cheirava bem e por isso foi eliminado. Pelos algozes de Schnabl.
Dora abanou a cabeça.
- Têm de admitir que é uma trama bem urdida. Quem me dera saber quem foi o autor da ideia.
Wenden disse:
- O meu candidato preferido é Turner Pierce, o génio dos computadores. Seriam precisos computadores para seguir a pista das compras, das vendas, das despesas, e depois apresentar resultados semanais.
- Se, de facto, foi Turner Pierce, acham que a irmã sabia disto? - perguntou Dora, devagar.
- Helene? Claro que sabia. Tinha de saber. E vai casar com Clayton Starrett, não vai? Isso transforma a fraude num segredo de família; não são permitidos estranhos.
- John, temos de meter nisto a Polícia Federal - disse Ortiz.
Wenden deu um salto.
- Diz-me que isso não vai acontecer, Terry.
- Vai. Esta fraude envolve vários estados e vários países e movimenta grandes somas de dinheiro. Vai ser preciso um batalhão de peritos bancários, advogados,
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contabilistas e peritos informáticos para verificar tudo e reconstituir este caso. Não temos efectivos suficientes. Temos de notificar o Tesouro e a Polícia Federal.
- Merda! Acho que tens razão. Mas certifica-te de que aqui a Ruiva recebe os louros - disse Wenden, sorrindo e inclinando-se para acariciar o braço de Dora. Não haveria caso se ela não tivesse começado a farejar.
- Os louros chegam para todos - disse Dora. O que vai fazer a seguir, John?
- Voltar para o escritório, alertar a Polícia Federal e pôr o carro em andamento. Mas, antes de eles começarem a actuar em conjunto, talvez vá ter uma conversinha com Turner Pierce.
- Acho que também vou - disse Terry. - Se o apertarmos, pode ser que ele dê com a língua nos dentes sobre Ramon Schnabl. Quero ver esse patife em Leavenworth, a tomar duche.
- Eu sei porque mataram Guthrie - prosseguiu Wenden -, mas gostaria de descobrir por que razão foram eliminados Lewis Starrett e Sid Loftus. Tudo isto se relaciona com o negócio do ouro e a lavagem de dinheiro da droga.
Dora não respondeu.
- Ouça - disse Terry Ortiz, o Terrível, dirigindo-se a ela. - Talvez eu não volte a vê-la, o que me desgosta muito. Só quero que você saiba que é uma senhora encantadora e que foi um prazer conhecê-la.
Inclinou-se para lhe beijar a mão.
- E tome conta do meu amigo. Ele merece uma oportunidade - acrescentou, apontando para Wenden.
Dora fez um sinal afirmativo, mas não disse nada. Os dois homens saíram do Ford, entraram na caranguejola de John e arrancaram. Ela arrumou o carro no espaço que eles tinham deixado, na zona proibida. Depois entrou no Bedlington, disse ao empregado do turno da noite o que fizera ao Escort e perguntou-lhe se o porteiro tomaria conta dele quando entrasse de serviço.
O empregado garantiu-lhe que o carro ficava em boas mãos e entregou-lhe duas mensagens, ambas de Gregor Pinchik. "Telefone-me logo que possa, a qualquer hora do dia ou da noite." Mas já eram quase duas e meia da manhã e Dora só queria deitar-se e dormir.
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Já no quarto, aqueceu leite. Bebeu-o devagar, enquanto reflectia sobre os acontecimentos daquela noite e em que medida poderiam ou não afectar o pedido de indemnização que ela supostamente investigava. Sentiu-se como alguém que andasse à procura de mel e se visse rodeada por um enxame de abelhas enfurecidas. Mas não podia fugir; isso não seria uma atitude profissional.
Perguntou a si mesma se se colara a este caso, e a todos os que surgiam na sua profissão, por causa da rudeza que as emoções humanas revelavam. Talvez a sua vida pessoal fosse tão monótona e vulgar que ela precisasse de partilhar o entusiasmo do trabalho dos outros. Da mesma maneira que a pobre Felicia Starrett precisava da sua dose periódica. E, afinal, talvez fosse por isso que a hipótese de ter um caso com John Wenden não tinha sido instantânea e automaticamente rejeitada. Dora ansiava por ter qualquer acontecimento grandioso na sua vida, algo que a abanasse, mesmo que a deixasse frustrada e preocupada.
Sentiu-se terrivelmente tentada a experimentar.
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Dora tencionava dormir até tarde, mas, quando o telefone a acordou, olhou para o relógio e viu que eram ainda oito horas da manhã.
- Está? - respondeu, sonolenta.
- bom dia, minha senhora. Daqui fala Gregor Pinchik. Ouça, surgiu uma coisa que eu acho que deve saber. Pode vir até cá imediatamente?
- com este tempo? - gemeu ela.
- Que tempo? O céu está azul, o sol a brilhar e as ruas foram todas limpas.
- Não pode vir cá, Greg? - perguntou, ansiosa.
- Não. Você tem de ver uma coisa aqui no ecrã.
- Está bem. Dê-me uma hora - disse ela.
Lavou os dentes, escovou o cabelo e vestiu uma camisola e uma saia de tweed. Pendurou a mala ao ombro e saiu. Lembrando-se da dificuldade que tivera em estacionar no Soho, resolveu deixar o Escort onde estava e apanhou um táxi.
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Pinchik tinha razão: estava uma manhã luminosa, clara como cristal e os restos de neve derreter-se-iam assim que o Sol aquecesse. Felizmente, o trânsito circulava com facilidade e, às nove horas, Dora estava sentada no escritório de Pinchik. Este arranjou café e pão com manteiga, o que ela lhe agradeceu.
- Coma, que eu vou falando - disse ele. - Encontrei uma coisa interessante. Agora já não há segredos. A privacidade é obsoleta... Não sabia? De qualquer modo, em primeiro lugar, aquela vida dupla de Sidney Loftus, de que me falou: ele estava envolvido numa série de negócios escuros e utilizava uma meia dúzia de nomes falsos.
- Eu sei - disse Dora. - A companhia trazia-o debaixo de olho porque ele estava metido numa fraude de seguros. O que eu quero saber é se Loftus conhecia Turner e Helene Pierce em Kansas City.
- Claro que conhecia - respondeu Pinchik. - Por sinal, foi ele que encaminhou alguns clientes para Pierce, para os seus serviços de consultoria informática. Contra o pagamento de uma comissão, evidentemente. Um dos clientes que ele arranjou a Pierce foi um tipo que era dono de uma cadeia de bares, restaurantes de pronto-a-comer e motéis de prostitutas. Agora repare nisto! Mais tarde, este mesmo tipo meteu-se no negócio da droga. E, depois de ser acusado, os jornais de Kansas City chamaram-lhe o rei da droga de Midwest. Era com esta escória que Loftus e os Pierce estavam associados. Bela gente, hem, minha senhora?
- Não eram propriamente pilares da sociedade - concordou ela. - Sabe se Loftus e os Pierce eram consumidores de droga?
O homem abanou a cabeça.
- Não sei nada disso, mas eles teriam um acesso fácil à droga, se quisessem. Agora, Helene Pierce e a sua história, antes de se tornar prostituta. Veio de uma pequena quinta no Kansas e mudou-se para a cidade depois do liceu, na esperança de se tornar uma estrela de cinema rica e famosa. Tinha físico, julgo, mas não tinha talento. Trabalhou como modelo para catálogos e outras coisas do género, e a seguir entrou na vida. Pouco tempo depois, já tinha o seu apartamento de luxo, onde recebia chamadas.
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Dora suspirou.
- Não é uma história original. Pinchik olhou para ela.
- Guardei o melhor para o fim. O verdadeiro nome dela é Helene Thomson.
Foi a vez de Dora olhar para ele.
- Não percebo, Greg. O irmão chama-se Turner Pierce. São filhos de pais diferentes? Foram adoptados? Ou quê?
- Minha senhora, eles não são irmãos. São marido e mulher. Turner Pierce casou com Helene Thomson. Ainda estão casados, tanto quanto sei - disse o homem.
Dora respirou fundo.
- Tem a certeza absoluta disso, Greg?
- Já lhe disse que conheço um tipo em Kansas City que está metido na Câmara. Olhe para isto.
Pinchik ligou um dos computadores, dedilhou o teclado e procurou um documento que apareceu no ecrã. Fez sinal a Dora e esta inclinou-se para ver. Era a reprodução de uma licença de casamento passada há quatro anos a Helene Thomson e Turner Pierce.
Dora deu uma palmadinha no computador.
- Deus ex machina! - disse.
- Não, é um Apple - replicou Pinchik.
Dora tomou um táxi para casa, confusa, perguntando a si mesma o que deveria fazer em primeiro lugar. Avisar Felicia? Informar Olivia? Dizer a Clayton? Ou calar a boca e deixar que aqueles malucos resolvessem os seus problemas ou se matassem uns aos outros? Uma pessoa que tinha de saber aquilo era o detective John Wenden, decidiu. Se ele e Terry Ortiz iam apertar Turner Pierce, seria útil saberem do seu casamento "secreto" com Helene.
O táxi dirigia-se para norte de Park Avenue, depois de atravessar a Rua 34, e, de súbito, abrandou. Dora chegou-se para a frente e avistou uma confusão de automóveis da polícia, carros de bombeiros e ambulâncias a sair de uma rua lateral. Um polícia fardado dirigia o trânsito num só sentido, à volta do grupo de veículos oficiais.
- Aconteceu alguma coisa - disse o motorista. Carros da polícia e dos bombeiros. Talvez seja uma bomba. Já há dois dias que não rebenta nenhuma.
- Que bom - rematou Dora.
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Assim que chegou ao quarto, telefonou a Wenden. Ele não estava, por isso ela deixou recado para que ele lhe telefonasse logo que pudesse. Era extremamente importante.
Depois, confrontada com a tarefa de anotar as revelações de Gregor Pinchik no seu bloco, disse em voz alta: "Que se lixe." Atirou com os sapatos e meteu-se na cama, vestida, pronta para uma soneca matinal. Nunca fizera aquilo antes, e era uma festa.
Mas não durou muito. Pela segunda vez naquele dia, acordou de um sono agradável com o tinir do telefone.
- Fala John. O que é que é extremamente importante? - perguntou Wenden.
- Tenho de lhe dizer... - começou ela.
- Espere - interrompeu ele. - Também tenho uma coisa para lhe dizer. Estou a telefonar de um centro comercial em Lexington. Vim agora do apartamento de Turner Pierce em Murray Hill. Ele foi morto sem dó nem piedade. Apunhalado muitas, muitas vezes, repito, muitas vezes. Lá se foi a minha conversinha. Eu bem lhe disse que, se esperássemos mais, todas as pessoas envolvidas neste caso seriam eliminadas.
- Em Murray Hill? Eu passei por lá de táxi. E vi carros dos bombeiros - disse Dora.
- Sim, foi assim que encontrámos Pierce. Felicia Starrett matou-o esta noite e depois, esta manhã, pegou fogo à casa. Os vizinhos sentiram o fumo e deram o alarme.
- Felicia está viva?
- Se se lhe pode chamar assim. Estava nua e parecia um cadáver de oito dias. E drogada a tal ponto que não conseguia fazer mais nada senão babar-se.
- Tem a certeza de que foi ela que o matou?
- Ruiva! Ela ainda tinha a faca na mão, e segurava-a com tanta força que tivemos de a obrigar a largá-la. Levaram-na para Bellevue. Quando estiver desintoxicada, talvez ela possa contar-nos o que se passou. Ouça, tenho de desligar.
- Espere! - exclamou Dora. - Ainda não lhe disse porque lhe telefonei. Turner e Helene Pierce não eram irmãos; eram casados.
- O quê? Tem a certeza? - gritou ele.
- Absoluta. Vi uma cópia da licença de casamento.
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John, faça-me um favor. Mesmo que tudo indique que foi Felicia quem matou Turner, verifique por onde andou Helene esta noite. Está bem?
- Está bem - respondeu ele, tenso. - É melhor. Obrigado pela gorjeta, Ruiva. Volto a falar-lhe mais logo.
- Quando? - perguntou ela.
- Ouça, tenho mil e uma coisas a fazer. Não sei quando terei uma aberta.
- Mais tarde ou mais cedo, terá de comer, ou vai acabar em Bellevue com Felicia - argumentou ela. - John, vou ficar por aqui todo o dia. Pode telefonar-me quando tiver tempo. Passe por aqui e iremos comer qualquer coisa lá abaixo ao bar. Assim, teremos oportunidade de comparar os nossos dados.
- Parece-me razoável. Voltarei a telefonar - disse ele.
Dora passou a tarde a escrever no seu bloco de apontamentos, satisfeita por não ter muito mais notas a tomar. O emaranhado novelo estava a desembaraçar-se, e o que ela não sabia poderia adivinhar. Até foi buscar o tal diagrama descabelado que fizera, com os nomes de todos os personagens envolvidos dentro de quadrados ligados entre si por linhas rectas e curvas. Mas agora as relações entre os personagens pareciam-lhe claras e infinitamente tristes. Perguntou a si mesma se todos os seres humanos teriam uma capacidade inata de destruir as suas vidas.
John telefonou pouco depois das cinco horas. Disse que ia largar o trabalho por uma hora e que não se importava que toda a ilha de Manhattan caísse à baía enquanto ele estava a descansar. Dora escovou o cabelo e desceu ao bar. Escolheu a mesa onde estivera a conversar com Felicia, no primeiro encontro.
Quando Wenden entrou, dirigiu-se directamente ao balcão e pediu um copo de uísque. Bebeu-o de um trago e depois pediu uma garrafa de cerveja e trouxe-a para a mesa de Dora.
- Você julgava que eu estava habituado a ver destroços, não julgava? - disse ele, irritado. - Porém, não estou. Mas, pelo menos, nunca mais vomito. Meu Deus, Ruiva, não imagina como foi horrível. Não eram só os despojos, era também aquela louca. E o apartamento... Parecia uma espelunca!
- John, você está esgotado - disse Dora, pousando-lhe
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a mão no braço. - Beba a cerveja e tente acalmar-se. Eu vou mandar vir sanduíches. Concorda?
- Concordo com tudo.
Wenden parecia estar a funcionar apenas à custa da adrenalina, e Dora receava que ele pudesse ir-se abaixo quando o ímpeto se desvanecesse.
- Você tinha razão - disse ele, falando depressa e sorvendo a cerveja. - Interroguei o porteiro do prédio de Helene. Ela saiu esta noite, por volta das oito horas, e só regressou às duas da manhã. O tipo disse que ela vinha ensopada e que tinha aspecto de ter vindo a pé. Não sei o que isto significa... E você?
- Significa que ela esteve no apartamento de Turner ontem à noite. Vai mandar tirar impressões digitais à faca?
- De que serviria? Já lhe disse que tivemos de arrancá-la à força da mão de Felicia. Mesmo que houvesse outras impressões digitais, já teriam desaparecido.
- Então verifique chávenas e copos - implorou Dora. - Tenho a certeza de que descobrirá marcas de Helene.
- E depois? Ela dirá que foram feitas há tempo, durante uma visita.
- Então, mande aspirar o local - insistiu Dora, desesperada. - Pode ser que encontre cabelos compridos, iguais aos que descobriram no quarto em que Sidney Loftus foi morto.
Wenden olhou para ela.
- Está a tentar dizer-me que foi Helene que esfaqueou Turner Pierce?
- Não. Não acredito. Mas acho que ela foi lá esta noite - disse Dora.
- Para quê?
- Para dizer a Felicia que era a mulher do homem com quem Felicia esperava casar. Ela sabia o estado em que aquela desgraçada se encontrava e resolveu levá-la ao rubro. Helene pode não ter apunhalado Turner, mas guiou aquela faca. Ela queria o marido morto.
John respirou fundo, expirou e deixou-se cair na cadeira, subitamente abatido e relaxado.
- Talvez você tenha razão, mas não é ilegal uma mulher contar à outra que o amante desta já é casado.
Calaram-se ambos enquanto o criado servia as sanduíches. John olhou para a sua.
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- Não sei se consigo bater-me com isto. O meu estômago ainda está às voltas - disse ele.
- Tente - implorou Dora. - Você precisa de comer. Parece um morto ressuscitado.
Ele deu uma dentada pequena, mastigou com determinação e engoliu. Ficou à espera, depois sorriu e fez um aceno de cabeça.
- vou ficar fino - disse ele. - Isto é bom. Sobre aqueles cabelos que descobriram no quarto das traseiras da Igreja da Santa Unidade, é natural que você tenha razão em dizer que Helene esteve lá na noite do crime. Eu mostrei as fotografias àquele criado do restaurante da Rua Vinte e Oito e ele identificou Helene como sendo a mulher que acompanhava Loftus na noite da sua morte. Mas isto é tudo circunstancial, Ruiva. A identificação de um criado e meia dúzia de cabelos... Nunca teremos a certeza.
- Você quer dizer que ela vai continuar em liberdade? - perguntou Dora, num tom acalorado.
Wenden fez um sinal afirmativo.
- A menos que descubramos mais alguma coisa. Além disso, não estou certo de que tenha sido Helene. Continuo convencido de que os homicídios de Lewis Starrett, Sol Guthrie e Sid Loftus estão todos relacionados entre si e com a lavagem do dinheiro da droga.
Dora largou a sanduíche.
- Detective Wenden, você está cheio de insinuações - notou ela, com a maior calma que lhe foi possível.
- Está bem - disse ele, no mesmo tom. - Diga-me você o que acha que aconteceu.
- Houve quatro homicídios. Quatro mortes. Quatro assassinos diferentes. E quatro motivos diferentes - começou ela. - Primeiro: Lewis Starrett foi morto por Sidney Loftus, que usava então o nome de padre Brian Callaway. Motivo? Eleanor Starrett disse-mo no nosso primeiro encontro. Eu escrevi-o no meu relatório e não me apercebi da relação senão quando o meu chefe em Hartford me chamou a atenção para ela. Lewis proibira a mulher de dar mais um cêntimo que fosse para a falsa igreja de Callaway, e Olivia era a melhor contribuinte do bom padre. Ora este vigarista nunca iria perder a sua vítima mais rica. Por isso, matou Lewis com a faca da cozinha
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que roubou do apartamento dos Starrett, na noite da festa. Ele sabia que a morte de Lewis deixaria Olivia ainda mais rica.
"Segundo: o assassínio de Solomon Guthrie. Você tem razão neste caso. Sol sentiu que qualquer coisa estava errada no negócio de ouro da Starrett, provavelmente teve uma briga com Clayton e confiou as suas suspeitas a Arthur Rushkin, o advogado. Quando Clayton, Turner Pierce e Ramon Schnabl souberam, livraram-se da ameaça que Guthrie constituía, mandando-o matar. Suponho que tenha sido Schnabl a fornecer os assassinos. Aquilo tinha todos os sinais de um assassínio por contrato, executado por profissionais.
"Terceiro: Sidney Loftus. Este é o mais duvidoso do conjunto, e admito que as minhas ideias tenham muito de invenção. Sid Loftus e os Pierce eram unha com carne em Kansas City, e ele tinha de saber que eles eram casados. Mas tinha o negócio da igreja em Nova Iorque e os outros dois estavam colados aos Starrett. Por isso todos os tubarões se entendiam e não abalroavam o barco. Mas depois Clayton anunciou que ia divorciar-se e casar com Helene. Loftus vislumbrou a hipótese de sacar algum dinheiro e resolveu atingir os Pierce. Eles não eram pessoas para se deixar chantagear e decidiram eliminar o velho companheiro Sidney. Helene marcou um encontro com ele, talvez lhe tenha prometido sexo, e matou-o no quarto das traseiras do seu falso tabernáculo.
"Quarto: o assassino de Turner Pierce. Já lhe disse como acho que se deu. Turner estava a ficar desorientado ao tentar controlar Felicia, por causa das drogas - provavelmente fornecidas por Ramon Schnabl - e Helene resolveu que já não precisava do marido. com o maridinho fora de combate, poderia desposar Clayton, com todas as benesses que este lhe prometera. Então, serviu-se de Felicia para fazer o trabalho sujo por ela. Creio que foi assim que tudo aconteceu. Uma das razões pelas quais acho que foi Helene que o matou é o facto de eu não gostar daquela mulher.
Dora acabou de falar, recostou-se na cadeira e aguardou as críticas de Wenden.
- Não come a sua sanduíche? - perguntou ele.
- Só metade. Quer a outra metade?
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Ele acedeu e ela chegou-lhe o prato. Começaram a comer.
- As suas ideias agradam-me - disse John. - Tudo o que você disse faz sentido. Se você tiver razão, o dossier de Lewis Starrett será encerrado porque o assassino, Sid Loftus, está morto. Quanto a apertar com os tipos que mataram Guthrie, não tenho esperança nenhuma, a menos que alguém denuncie Schnabl, e não me parece que isso vá acontecer. E quanto ao assassínio de Loftus, também estou convencido de que Helene é a responsável, mas por agora não temos provas suficientes para a acusar, processar e condenar. E talvez ela tenha provocado a morte de Turner através de Felicia, mas, como lhe disse, o que ela fez, ainda que pérfido e imoral, não é ilegal. Felicia vai receber tratamento, e duvido que venha a ser presa por um acto cometido quando estava (e o advogado vai alegá-lo) temporariamente louca, sob influência da droga fornecida pelo homem que ela matou, depois de saber que ele a traíra. Por isso, pelas minhas previsões, houve quatro assassínios brutais, e ninguém vai passar um só dia na cadeia por qualquer deles.
- O que aconteceu à justiça? - exclamou Dora.
- A lei é uma coisa e a justiça é outra - disse Wenden, com um sorriso forçado. - A menos que você acredite na justiça divina. E se assim é, há uma ponte em Brooklyn que você poderá estar interessada em comprar.
- Odeio isto! Odeio isto! - explodiu Dora.
- O facto de os culpados não serem punidos? - perguntou John. - Tenho de viver com isso. Todos os dias.
Acabaram de comer as sanduíches e continuaram sentados, com os copos vazios na mão, a olhar um para o outro.
- Creio que isto resolve o seu problema - disse John.
Dora fez um sinal afirmativo.
- Amanhã, tenho umas coisas a fazer. Provavelmente, parto na sexta-feira de -manhã cedo.
- Para Hartford?
- Sim. Acho que vou de carro. Posso devolver lá o Escort.
- Podemos jantar amanhã?
- Claro. Gostaria muito - respondeu ela.
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- Quando lhe telefonei de Lexington Avenue, esta tarde, reparei num restaurante italiano. Tinham a ementa na montra e pareceu-me que era boa. Chama-se Vito. Quer tentar?
- Estou pronta para tudo - disse Dora.
- Espero que sim - respondeu Wenden.
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O advogado Arthur Rushkin saiu do gabinete para a cumprimentar, com um sorriso radioso. Estava elegante, com o seu casaco de fazenda, colete de camurça e lacinho a emergir do queixo suado.
- Mistress Conti! - exclamou, apertando-lhe a mão. - Que prazer em voltar a vê-la! Tinha esperança de que aparecesse.
- Parto amanhã de manhã e senti que lhe devia entregar uma cópia do relatório.
Ele pegou-lhe no anoraque e pendurou-o. Depois, introduziu-a no gabinete e instalou-a na poltrona, junto à secretária do antigo sócio. Sentou-se na cadeira giratória com estofo de cabedal.
- Mister Rushkin, presumo que está a par do que se tem passado nos últimos dias - disse Dora.
Ele fez um sinal afirmativo.
- Infelizmente, estou. A Joalharia Starrett Fine fechou, bem como todas as filiais. Temporariamente, espero. Depois daquele acontecimento horrível em Murray Hill... Os jornais não andam cheios de sorte? Felicia tem estado em tratamento. Soube que ela sobreviverá, mas que a recuperação será um processo longo e árduo. E caro, diria eu.
- E Clayton?
O advogado torceu o nariz e fez uma careta.
- O meu afilhado? Ainda não foi acusado, mas é apenas uma questão de tempo. Neste momento, está a ser interrogado pelos representantes do Ministério Público. Eu não posso representá-lo (criar-se-ia aqui um conflito de interesses), mas consegui arranjar-lhe um especialista
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em Direito Criminal extremamente competente. A conselho dele, Clayton está a responder, inteiramente e com honestidade, a todas as perguntas. é o mínimo que pode fazer; as autoridades já deitaram a mão aos registos da Starrett, incluindo os que se referem ao negócio fraudulento do ouro.
- Acha que Clayton será preso, Mister Rushkin?
O advogado entrelaçou os dedos grossos e suspirou.
- Receio que sim. Mas, se ele continuar a colaborar, a pena poderá ser mais leve do que se possa pensar. As autoridades não estão tão interessadas em Clayton Starrett como estão em Ramon Schnabl, o traficante de droga. Se Clayton ajudar a meter o Schnabl na prisão, creio que eles poderão decretar uma sentença leve e aplicar uma multa pesada. Creio que se chegará a um acordo.
- Tenciono ir visitar Mistress Olivia Starrett antes de partir. Como é que ela está a aceitar tudo isto? Já falou com ela?
- Já falei, de facto, e a resistência daquela senhora é espantosa. Ela vai recompor-se. Mistress Conti, tenho um entendimento razoável do modo como o negócio do ouro foi organizado, mas não estou tão bem informado sobre os homicídios que ele provocou. Pode elucidar-me?
Dora repetiu a explicação que dera a John Wenden sobre os quatro crimes. O advogado escutou atentamente e, quando ela acabou, suspirou outra vez e abanou a cabeça com tanta força que as bochechas lhe tremeram.
- É claro que muito disto é mera suposição - assinalou Dora. - Há uma parte que nunca poderá ser provada.
- Mas desconfio que tem razão - disse Rushkin. É um exemplo deprimente de uma história de ganância. É a doença generalizada, de que a violência é um sintoma.
- O que me irrita - confessou Dora -, é que o detective John Wenden acha que não existem muitas hipóteses de Helene Pierce ir parar à prisão pelo que fez.
- Os polícias têm tendência para o pessimismo - disse o advogado, com um sorriso sombrio. - É compreensível.
Depois, inclinou-se sobre a secretária, na direcção de Dora.
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Mistress Conti. A lei
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é como Deus: ela dá e ela tira. No caso de Helene Pierce, acho muito provável que a acusação considere que ela tinha um conhecimento culposo dos factos. Por outras palavras, ela estava inteiramente ao corrente do negócio fraudulento do ouro (e até se aproveitou dele), mas não informou as autoridades como devia. Estou convencido de que Clayton testemunhará no sentido de provar o seu envolvimento.
- Tem a certeza? - perguntou Dora, ansiosa. Rushkin riu-se.
- Congreve escreveu sobre a fúria de uma mulher despeitada. Asseguro-lhe, Mistress Conti, que a virulência de uma mulher despeitada pode comparar-se à amargura de um homem maduro que descobre ter sido tomado por parvo, por lorpa, por uma garota com metade da sua idade. Oh, sim, acho que Clayton está mais do que ansioso por depor contra Helene Pierce. E se o conhecimento do estratagema culposo não chegar ao tribunal, o Governo tem outra arma de reserva. Tenho a certeza de que a Secretaria de Estado das Contribuições e Impostos estará interessada em saber se Helene declarou todas aquelas dádivas em dinheiro e em diamantes feitas por Clayton. Além disso, o idiota comprou-lhe um andar e estava a pagar-lhe a manutenção por cheque. A Secretaria de Estado terá o maior prazer em seguir essa pista. Não, não acredito que Helene Pierce vá a caminho da liberdade.
- Isso faz-me sentir melhor - respondeu Dora. Levantou-se e pegou na carteira. - Espero que já não se sinta culpado pelo que sucedeu a Solomon Guthrie. Deu-me aquelas folhas de computador que, eventualmente, conduziram à resolução do caso.
O advogado ficou subitamente sombrio, com as bochechas descaídas.
- Ainda não me libertei totalmente do sentimento de culpa, mas, na minha idade, não é de esperar que isso aconteça. Mistress Conti, agradeço todos os esforços que fez por mim e pela Joalharia Starrett Fine. Tenciono escrever ao seu patrão, a exprimir-lhe o meu profundo reconhecimento pelo seu excelente trabalho.
Dora sorriu timidamente.
- Não é obrigado a fazê-lo, Mister Rushkin.
- Eu sei que não sou obrigado, mas quero fazê-lo. Se
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a senhora alguma vez se cansar do seu trabalho e resolver instalar-se em Nova Iorque, peço-lhe que me contacte. Prometo-lhe que os seus méritos no domínio da investigação serão bem recompensados aqui.
- Muito obrigada. Não o esquecerei - disse Dora. Já na 5ª Avenida, sob uma chuva de granizo gelada,
Dora perguntou a si mesma porque sorria e caminhava com um ar fanfarrão. Depois, concluiu que era pelo facto de a sua actividade profissional ter sido elogiada e lhe terem oferecido emprego. Isso operava maravilhas no seu velho ego e incutia-lhe confiança para a reunião que iria ter com Mike Trevalyan, em Hartford, no dia seguinte. Sabia que aquele tête-à-tête ia ser muito atribulado.
Por graça, foi a pé até Park Avenue. Como Rushkin dissera, a sede da Joalharia Starrett Fine estava fechada, com os tapumes corridos. As montras não tinham jóias e uma tabuleta indicava: ENCERRADO. Mas Dora sorriu ao reparar que nem mesmo a tabuleta impedira uma matrona, com uma estola de marta, de espreitar lá para dentro e de torcer furiosamente o manipulo da porta.
Subiu Madison Avenue de autocarro e depois dirigiu-se, a pé, para o apartamento dos Starrett, na 5ª Avenida. Charles, fúnebre como de costume, abriu-lhe a porta e fê-la esperar no vestíbulo enquanto anunciava a sua chegada.
Mrs. Olivia Starrett partilhava a conversadeira com um homem minúsculo, enfiado numa volumosa túnica branca. O homem levantou-se quando Dora entrou e, através da abertura da túnica, ela viu-lhe os tornozelos ossudos, cobertos por peúgas pretas suspensas de ligas fora de moda.
- Dora! - exclamou Olivia. - Estou tão contente por voltar a vê-la, minha querida! Quero apresentar-lhe o maharíshi Ziggy Gupta, um homem muito sabedor, que está a ensinar-me as verdades espirituais da Sagrada Harmonia.
O homenzinho sorriu e baixou a cabeça a Dora. Ela retribuiu o cumprimento.
- Por favor, perdoe o meu modo de falar, mas estou encantado por... por... - e voltou-se para Olivia, pedindo ajuda.
- Conhecê-la - disse Olivia.
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- Xim - respondeu o maharishi. - Por conhecê-la. Dora sorriu e fez um novo aceno de cabeça.
- Mistress Starrett, passei por aqui apenas para lhe exprimir a minha solidariedade. Sei que os acontecimentos destes últimos dias estão a constituir um fardo terrível para si. Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la?
- Que amabilidade a sua! - disse Olivia. - Mas com os ensinamentos de Ziggy estou a aprender a suportar o que me acontece. Pense na vida como uma grande sinfonia e em todos nós como notas individuais. Para conhecermos a Sagrada Harmonia, temos de contribuir com as nossas alegrias e desgostos pessoais, para que a música sagrada suba ao céu e agrade a Deus.
- Exactamente - disse o guru, a sorrir. - Porque Ele é o grande Pastor que nos guia com a Sua bengala.
- Bordão - corrigiu Olivia. - Não calcula o conforto que o maharishi tem sido para mim. Veio de Bombaim para trazer à América a sua mensagem inspiradora de esperança e redenção. Estávamos justamente a discutir como poderemos criar uma escola em Nova Iorque, a Academia da Sagrada Harmonia, para que mais peregrinos possam atingir a tranquilidade espiritual, e aprender como cada um de nós pode contribuir para o universo sinfónico.
- Pois... - disse Dora, abismada. - Bem, tenho de ir andando. Fico satisfeita por vê-la bem-disposta, Mistress Starrett.
- Estou a contribuir com a minha nota de música para os acordes que integrarão a rapsódia triunfal - disse Olivia com sorriso beatífico. - É assim que se diz, Ziggy?
- Exactamente - disse ele, a sorrir.
Dora escapuliu-se, tirou a parka do armário da entrada e saiu do apartamento. Recusava-se a rir da esperança desesperada de Olivia. Aquela mulher, que já sofrera tanto, tinha direito a qualquer espécie de consolo que se lhe deparasse.
Ao sair do elevador, avistou Eleanor Starrett, no átrio, agarrando num chapéu-de-chuva enrolado como se quisesse torcê-lo. A mulher viu-a, correu para ela e apertou-lhe o braço com força.
- Foi ver Olivia? - perguntou ela. Dora fez um sinal afirmativo.
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- Como está ela?
- A sair-se bem.
- Graças a Deus! - exclamou Eleanor. - Ela tem de me dar dinheiro. Soube o que aconteceu a Clayton?
- Sim, soube.
- Bem podem mandar aquele pateta para a cadeira eléctrica que eu não me importo. Mas o que será de mim?
- perguntou Eleanor, agastada. - O meu advogado diz que o Governo vai alegar que se tratou de um caso de dano dos interesses do Estado e, se Clay for condenado, será sujeito a determinadas penas máximas. Sabe o que isso significa? vou dizer-lhe. Significa que eles podem tirar-lhe tudo o que ele tem: os carros, as casas, as jóias e até o ouro dos dentes. E depois onde é que eu vou parar? Que espécie de acordo é que eu vou conseguir se o Governo deixar aquele imbecil de calças na mão? Sabe o que me acontecerá? Andarei por aí, de saco na mão, a revolver os caixotes do lixo para comer.
Dora olhou para a mulher, espantada, e depois reparou nas jóias que ela trazia, todas da Starrett: o colar de pérolas ao pescoço, o alfinete na lapela, a pulseira de diamantes de dois quilates e vários anéis de esmeraldas, safiras e rubis.
- Coitada! - disse Dora, com ar de troça, voltando-lhe as costas e afastando-se.
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Naquela noite, Dora arranjou-se com um cuidado especial. Escovou o cabelo até ficar brilhante, preparou o seu melhor vestido e pôs a pulseira que Mário lhe oferecera no Natal. Por fim, pôs umas gotas de Obsession, perguntando a si mesma por que razão se aperaltava daquela maneira. Desde o seu primeiro baile que não se sentia tão nervosa, e o facto de ter partido uma unha não contribuiu para acalmá-la.
Wenden quisera ir buscá-la ao hotel, mas, sem saber como o jantar poderia terminar, Dora achou mais sensato ir de transporte próprio. Por isso, levou o Escort para o
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Vito, estacionou-o dois quarteirões mais à frente e voltou para trás.
John já chegara e estava sentado no bar, mesmo junto da porta. Era óbvio que também ele fizera um esforço para ficar mais elegante. Trazia o fato vincado, os sapatos engraxados, uma camisa lavada, uma gravata sem nódoas e até um lenço branco e engomado no bolsinho do casaco. Dora achou-o bastante atraente.
Tomaram um vermute seco no bar e depois levaram uma segunda dose para a parte mais afastada do restaurante. O detective comportou-se o melhor possível, preocupado em saber se ela gostava da mesa, segurando-lhe na cadeira antes de ela se sentar, perguntando-lhe se a sala estava fria. Ou estaria quente de mais? Havia muita luz? Muito barulho?
- John, está tudo óptimo. Eu gosto assim, palavra - disse Dora, a sorrir.
O criado trouxe as ementas e, sem hesitar, ambos escolheram costeletas de vitela, massa com molho picante e salada de endívia. A lista dos vinhos foi deixada ao cuidado de Wenden, mas Dora disse que só beberia um copo.
- Ou dois - acrescentou. - Preciso de me levantar cedo e tenho um longo caminho à minha frente. John, o que está a acontecer com Clayton Starrett?
- Está a cantar como um passarinho - respondeu ele. - Ortiz acha que nós vamos mesmo apanhar Ramon Schnabl desta vez. Ele já foi acusado mas anda a monte. O juiz já o obrigou a devolver o passaporte, mas, pelo sim pelo não, Terry anda de olho nele.
- E Helene Pierce?
- Apresentou-se voluntariamente aos interrogatórios e nem sequer admitiu ter ido ao apartamento de Turner na noite em que ele foi morto. Adorava conseguir uma madeixa de cabelos dela para ver se condiziam com os que descobrimos no quarto de Loftus, mas não sei como fazer.
- Ela não tem uma empregada de limpeza? Wenden olhou para ela.
- Não sei. Porquê?
- Talvez a empregada conseguisse dar-lhe alguns cabelos que tirasse da escova de Helene.
Ele riu-se.
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- O seu cérebro está sempre a trabalhar, não está, Ruiva? Bem, vale a pena tentar. Ah, aqui está a sua salada. Quer vinho agora?
- Um copo de branco com a salada e um copo de tinto com a vitela. E mais nada. Em definitivo - respondeu Dora.
Começaram a comer a salada, acompanhando-a com tostas quentes barradas com manteiga de alho que iam tirando de um cesto tapado com um guardanapo. Estavam com fome e não conversaram muito enquanto comiam. John disse:
- Você está muito bonita esta noite. E Dora respondeu:
- Muito obrigada. E você também.
Ambos se riram e continuaram a comer as tostas.
As costeletas de vitela estavam exactamente como eles queriam: bem passadas por fora e mal passadas, suculentas e tenras, por dentro.
O molho da massa estava um pouco mais picante do que esperavam, mas o vinho tinto chegou a tempo de lhes refrescar a boca. Dora atacou a comida com uma determinação feroz e Wenden também não se mostrou esquisito. Acabaram de comer e recostaram-se na cadeira, observando os ossos descarnados das costeletas.
- Acha que poderíamos entrar no Guinness Book of World Records? Somos os mais rápidos a devorar costeletas de vitela - observou ele.
- É um prato excelente - disse Dora.
- Quer sobremesa?
- Não, não e não! Estou outra vez de dieta - disse ela.
Wenden não disse nada. Dora estava consciente de que ele estava a mirá-la, mas nem levantou o olhar. No entanto, apercebia-se de que a boa disposição da noite estava a desvanecer-se.
Wenden consultou a lista dos vinhos e depois chamou o criado.
- Uma garrafa de Mumm Cordon Rouge, por favor. Bem fria - pediu ele.
Dora olhou para ele.
- Ouça, porquê a celebração? - perguntou.
- Não é uma celebração - respondeu Wenden. -
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É uma chamada de atenção. A resposta é não, não é, Ruiva?
Dora fez um sinal afirmativo.
- Você é um bom detective.
- É uma pena. Pensei que você tinha uma coisa para mim.
Dora aproximou-se e cobriu a mão dele com a sua.
- Eu amo-o, John - disse tranquilamente. - É verdade. Mas também amo o meu marido.
- Não tenho a certeza, mas creio que isso é ilegal - disse ele, tentando sorrir.
Esta resposta, mesmo a brincar, irritou-a.
- Não posso gostar de dois homens ao mesmo tempo? Porque não? Os homens podem gostar de duas mulheres ao mesmo tempo, e fazem-no muitas vezes. Quem sou eu? Uma cidadã de segunda classe?
Ele levantou as mãos num gesto de capitulação. Mas depois o criado trouxe o champanhe gelado e os copos. Mantiveram-se em silêncio enquanto decorreu o cerimonial da rolha. O homem deitou umas gotas no copo de John e ficou à espera. Mas John estendeu-o a Dora.
- Você primeiro - disse. Dora provou.
- Está bom - disse.
O criado encheu-lhes as taças, meteu a garrafa num balde com gelo e afastou-se. Eles ergueram as taças e fizeram um brinde em silêncio.
Dora disse lentamente:
- Quem me dera explicar-lhe o que sinto, de uma forma clara e lógica, mas não consigo. Porque é algo que não tem a ver com a lógica. É uma confusão de emoções, medos, educação e instrução, e sabe Deus lá mais o quê.
- Mas o que subsiste é o não - disse ele.
- Isso é - respondeu Dora, decidida. - Não vou para a cama consigo. Mas você tem de acreditar em mim. Eu amo-o.
Sorriram ambos, tristemente.
- Olhe bem para nós... - disse ela. - Eu, uma dona de casa com peso a mais. Você, um polícia estafado. Gostava de entender isto, mas não consigo.
- Acontece... - disse John. - Mas tem de entender? Não pode limitar-se a aceitar?
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- Eu aceito - respondeu ela. - A parte que respeita aos sentimentos. Mas não a que respeita à infidelidade. Não é tanto eu querer ser fiel a Mário como querer ser fiel a mim própria. Isto faz sentido?
- Não - respondeu ele. Encheu novamente as taças.
- Ouça - disse Dora, à beira do desespero. - Deixe-me atacar a questão. Eu sou católica. Andei na catequese. O meu marido é católico. Mas já não me lembro há quanto tempo nos confessámos pela última vez. O mesmo acontece com os nossos amigos católicos. Por isso, não creio que o medo de pecar tenha qualquer coisa a ver com isto. Mas, no fundo de mim própria, talvez tenha, pela maneira como fui educada, e eu não tenha consciência disso.
- Está bem. Partindo do princípio que não é medo do pecado, então o que é? - perguntou Wenden.
- É uma série de coisas, e tenho a certeza de que vai rir-se de todas elas - respondeu Dora. - Repare nas pessoas com quem temos estado envolvidos: os Starrett e os amigos. Todos eles a enganarem-se uns aos outros como loucos. Tem de admitir que são um bando de patifes; dão ao adultério um nome feio. Tornam-no tão baixo! Alguém disse uma vez que a moralidade é um luxo a que poucos se podem dar. Bem, eu posso dar-me a esse luxo, mesmo que me custe. Isso é uma coisa. A outra é que me assusta. A sério. Eu disse-lhe que o amo, e é verdade. Mas, e se nós levássemos isto por diante e eu gostasse? Depois, separávamo-nos, por qualquer motivo, e eu dizia para mim mesma: "Afinal não foi assim tão mau. Por acaso, até foi giro. Acho que vou arranjar outro amante." Então, lá estava eu no mau caminho. Podia acontecer, John.
- O que você está a dizer é que não confia em si própria.
- Tem toda a razão, não confio em mim própria. Não me atrevo a arriscar. Se, por isso, me considera cobarde, então que o seja.
- Ou esperta - disse ele com um sorriso forçado. Bem, Ruiva, acho que você tem pensado nisto muito a sério, o que constitui uma espécie de cumprimento para mim. Mas também pensou no modo como poderá vir a sentir-se amanhã, na próxima semana, no próximo ano? Não vai arrepender-se?
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Ela inclinou-se sobre a mesa e deu-lhe uma palmadinha na face,
- Você fez a barba por minha causa. Que amor! Deixe-me dizer-lhe uma coisa, John. É como ir a guiar numa auto-estrada. Você sabe para onde vai. Depois, avista um desvio. Parece-lhe o máximo: Cheio de folhas. Uma maravilha. Sente-se tentado a virar e a explorá-lo. Descobre onde ele vai dar. Mas não retrocede caminho. E talvez você pense naquele desvio durante muitos anos. Arrependimento é um termo muito forte, mas a curiosidade está lá. Pode até nunca se esquecer daquele desvio.
Ele pegou na garrafa de champanhe e deitou o resto nos dois copos,
- É o que me vai acontecer - concluiu Dora. E a si?
- Nada - respondeu ele. - É o que costuma acontecer-me. Ora, hei-de sobreviver. Tenho sido infeliz e vou continuar a sê-lo. Você tem sido infeliz, não tem?
- Tenho. Como neste momento - disse Dora. Ouça, John, porque não vai a Hartford visitar-nos e passar um fim-de-semana... Ou o tempo que quiser. Temos um quarto a mais.
Ele fitou-a.
- Não creio que fosse um passo inteligente, Ruiva. E você, acha?
- Não, não acho - respondeu Dora com tristeza. John pegou na garrafa e tentou esvaziá-la. Mas já não
tinha nada e ele meteu-a no gelo, com o gargalo para baixo.
- Já não há mais bolhinhas... - disse.
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Dora regressou a Hartford na manhã seguinte e foi directamente para o escritório. Redigiu o relatório final no seu computador. Depois, pegou em todos os formulários que os avaliadores de perdas e danos teriam de assinar. Deixou os documentos todos em cima da secretária de Mike Trevalyan e voltou para o seu cubículo. Pôs os pés
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em cima da secretária, bebeu uma cola de dieta e fumou muitos cigarros.
Os sermões só chegaram ao fim da tarde e, quando Dora entrou no gabinete atravancado de Trevalyan, soube que ia haver fita. O homem acendera dois charutos ao mesmo tempo.
- Você está pronta a aprovar o pedido? Você está mesmo pronta a aprová-lo? - gritou-lhe ele.
- Claro que estou! - respondeu ela, sem perder a calma. - Nenhum dos beneficiários teve nada a ver com o assassínio de Lewis Starrett. Você quer lutar por isto? Quer ir parar ao tribunal? Por mim, à vontade.
- E olhem para isto! - uivou ele, agitando um molho de notas de despesa trazidas por Dora: - O que andou você a fazer? A dar de comer e de beber a todos os chuis de Nova Iorque?
- Se ler o meu relatório, saberá o que andei a fazer: a ajudar a deslindar uma fraude de lavagem de dinheiro da droga e a resolver quatro homicídios. Não fica satisfeito por se ter feito justiça?
- Que se lixe a justiça! - exclamou Mike Trevalyan, furioso. - O que eu sei é que isto vai custar à companhia três milhões de dólares. E o que pensa você que dirá a Secção de Contabilidade quando eu lhes entregar estas contas astronómicas desse seu perito de computadores, desse Gregor Pinchik? Vão esfolar-me vivo por ter contratado esse gajo.
- Oh, Mike, não seja tão mesquinho. Gregor deu-me a chave para resolver este caso. Ouça, quer sair disto bem-visto?
Trevalyan olhou para ela, desconfiado.
- De que diabo está você a falar?
- Pinchik não facturou os telefonemas regionais nem o tempo de utilização do modern porque utilizou os nossos códigos de acesso aos telefones. Vinham num boletim electrónico que ele assina. Mas ele admitiu que tem andado a farejar nos nossos computadores. Se ele o faz, então qualquer intrujão o pode fazer também. Convença a companhia a contratar Pinchik como consultor, para aumentar a segurança dos nossos computadores através de sistemas mais avançados. Se não o fizermos, é apenas uma questão de tempo e começaremos a pagar indemnizações a algum vigarista que tenha invadido os nossos registos.
Por instantes, Trevalyan ficou a pensar naquilo.
- Sim, você ganhou um ponto, menina. Ouça, e se fôssemos comer qualquer coisa e conversar um bocado sobre o que irei pôr no memorando para a administração?
- Não, obrigada. Quero ir para casa ter com Mário - disse ela.
- O que você quer é comer um jantar feito por ele - resmungou Mike, amuado.
Dora sorriu serenamente e concluiu:
- A cozinha caseira tem muito que se lhe diga.
Lawrence Sanders
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