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O SÉTIMO PAPIRO / Wilbur Smith
O SÉTIMO PAPIRO / Wilbur Smith

 

 

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O SÉTIMO PAPIRO

 

Mestre do romance de aventura, Wilbur Smith conquistou uma legião de fãs em todo o mundo graças à sua peculiar habilidade em combinar conhecimento histórico e emoção. Em O Sétimo Papiro ele retoma os personagens apresentados no best seller O Último Deus do Nilo sob um prisma surpreendente: a ação, aqui, passa-se nos dias atuais e gira em torno de arqueólogos que investigam a história do escravo Taita e da rainha Lostris, protagonistas do livro anterior. O romance, assim, pode ser lido independentemente ou usufruído como uma incomum – mas apaixonante - continuação. A história inicia-se quando um casal de egiptólogos encontra um conjunto de dez papiros que relatam a glória e a tragédia do reinado da rainha Lostris. O sétimo rolo revela a localização exata da riquíssima tumba do faraó Mamose. Mas um misterioso grupo invade o acampamento dos arqueólogos, atira em Duraid e toma-lhe o papiro. Antes de morrer, Duraid pede a Royan, sua esposa, que procure o único homem capaz de encontrar a tumba antes dos criminosos: o controvertido, cínico e erudito aventureiro inglês Nicholas Quentin-Harper. Viajando pelos desertos da Etiópia, Nicholas e Royan se vêem presos a uma irresistível paixão - que só poderá ser vivida plenamente se escaparem das tétricas ciladas que protegem o túmulo de Mamose e da cega violência de seus sanguinários e ávidos inimigos.

 

                      

 

O anoitecer avançava sobre o deserto, tingindo as dunas de púrpura. O manto de veludo emudecia todos os sons e a noite se anunciava tranqüila.

De onde eles estavam, no alto de uma duna, avistavam o oásis e o complexo de vilarejos ao redor. As construções eram brancas, de tetos baixos, e as folhas das palmeiras sobrepunham-se a todas, com exceção da mesquita muçulmana e da igreja cristã copta.

As águas do lago escureciam. Patos em revoada inclinavam-se com as asas fechadas para pousar, borrifando de espuma a vegetação das margens.

O homem e a mulher formavam um casal díspar. Ele era alto, levemente encurvado, e seus cabelos prateados brilhavam no que ainda restava da luz do sol. Ela era jovem, pouco mais de trinta anos, esguia, alerta e vibrante. Seus cabelos grossos e cacheados estavam presos por uma tira de couro na altura da nuca.

— É hora de descer. Alia está esperando.

Ele sorriu orgulhoso. Era sua segunda esposa. Quando perdera a primeira, fora como se a morte tivesse levado a própria luz do dia. Não esperava esse último período de felicidade em sua vida. Tinha, agora, a ela e a seu trabalho. Era um homem feliz e satisfeito.

Ela se afastou e soltou a tira de couro dos cabelos. Sacudiu-os de um lado e de outro, densos e escuros, e riu. Um riso sonoro. Então atirou-se na face íngreme e escorregadia da duna, enquanto a saia longa se enroscava nas pernas ligeiras, morenas e bem-feitas. Ela equilibrou-se até a metade do caminho, quando a força da gravidade a venceu e a fez cair.

Lá do alto ele sorriu complacente. Às vezes ela agia como criança. Outras, era uma mulher séria e nobre. Não sabia bem qual preferia, mas a amava de ambos os jeitos. Ela rolou para o pé da duna e se sentou, sempre rindo, espanando a areia dos cabelos.

— Sua vez! — gritou para o alto. Ele começou a descer tranqüilamente, com certa dificuldade por causa da idade, e manteve o equilíbrio até chegar embaixo. Ajudou-a a se erguer. Não a beijou, embora a tentação de fazê-lo fosse grande. Não era costume entre os árabes demonstrar afeto publicamente, mesmo à esposa amada.

Ela ajeitou a roupa, amarrou outra vez os cabelos, e os dois foram para o vilarejo. Contornaram as moitas de capim do oásis, cruzaram os troncos finos que serviam de ponte sobre os canais de irrigação. Os camponeses voltavam-se para saudá-lo com profundo respeito.

— Salaatn aleikum, Doktari! A paz esteja convosco, doutor.

Eles honravam todos os homens de sabedoria, mas esse especialmente, pela gentileza que há tantos anos dedicava a cada um e a suas respectivas famílias. Muitos tinham trabalhado para seu pai. Pouco importava que a maioria fosse de muçulmanos, ao passo que ele era cristão.

Quando chegaram ao vilarejo, Alia, a velha empregada, saudou-os com cara feia e resmungos:

— Estão atrasados. Estão sempre atrasados. Por que não mantêm horários normais, como gente decente? Temos uma posição a zelar.

— A velha mãe está sempre certa — ele provocou-a sutilmente. — O que faríamos sem você para cuidar de nós? — Mandou-a ir; ela ainda mantinha a cara fechada, tentando disfarçar seu amor e preocupação.

Fizeram uma refeição simples no terraço: tâmaras e azeitonas, pão sem lêvedo e queijo de cabra. Quando terminaram, já estava escuro e as estrelas do deserto brilhavam como velas acesas.

— Royan, minha flor — disse ele, estendendo o braço sobre a mesa e tocando a mão dela —, está na hora de trabalhar. — Saíram da mesa e foram para o escritório, cuja entrada também era pelo terraço.

Royan Al Simma foi até o cofre de aço na parede mais distante e digitou a combinação. O cofre parecia deslocado naquele lugar, em meio a velhos livros e papiros, estatuetas, artefatos e fragmentos de tumbas que compunham o acervo de toda uma vida.

A pesada porta de aço se abriu e Royan parou diante dela por um momento. Era comum sentir respeito e reverência diante de relíquias tão antigas, mesmo que as tivesse visto pela última vez somente há poucas horas.

— O sétimo papiro — ela sussurrou, estendendo a mão para tocá-lo. Tinha quase quatro mil anos de idade e fora escrito por um grande gênio, um homem que já se transformara em pó há milênios, mas a quem ela conhecia e respeitava como a seu próprio marido. Suas palavras eram eternas e lhe falavam com clareza de além-túmulo, dos campos do paraíso, na presença da grande trindade, Osíris, Isis e Hórus, pela qual seu marido tinha tanta devoção. Com a mesma devoção Royan acreditava agora na Trindade cristã.

Ela levou o papiro até a mesa onde Duraid, seu marido, estava trabalhando. Ele ergueu os olhos quando Royan se debruçou à sua frente, e nesse instante ela viu nele a mesma devoção. Queria ver o papiro sempre sobre a mesa, mesmo que não houvesse necessidade. Podiam estar trabalhando nos microfilmes e nas fotografias. Mas era como se precisassem da presença invisível do autor ancestral para estudar seus textos.

Duraid pôs de lado a emoção e voltou a ser o cientista desapaixonado. — Seus olhos são melhores que os meus, minha flor. O que acha deste caractere?

Ela debruçou-se por cima do ombro dele e estudou o hieroglifo na foto do papiro que ele apontava. Não conseguia entender nada, e tirou a lente de aumento da mão de Duraid para examinar melhor.

— Parece que Taita inseriu aqui este outro criptograma só para nos atormentar. — Ela referia-se ao velho autor como a um amigo querido, às vezes irritante, que ainda vivia, respirava e continuava pregando suas peças.

— Vamos ter de decifrá-lo, então — Duraid declarou com claro alívio. Ele amava esse velho jogo. Era o trabalho de sua vida.

Os dois puseram-se a trabalhar no frescor da noite. Era quando o faziam melhor. Às vezes conversavam em árabe, outras em inglês; para ambos, as duas línguas eram uma só. Com menos freqüência usavam o francês, que tinham como terceira língua. Tanto um como outro haviam sido educados em universidades da Inglaterra e dos Estados Unidos, tão distantes deste próprio Egito que lhes pertencia. Royan gostava da expressão "deste próprio Egito" que Taita usava com freqüência em seus papiros.

Ela tinha tantas afinidades com o velho egípcio! Afinal, era sua descendente direta. Era cristã copta, não da linhagem árabe que há tão pouco tempo conquistara o Egito — menos de catorze séculos. Os árabes eram recém-chegados a esse próprio Egito que lhe pertencia, ao passo que seu sangue retrocedia ao tempo dos faraós e das Grandes Pirâmides.

Às dez horas Royan fez café, aquecendo-o num fogão a carvão que Alia acendera antes de voltar para sua casa no vilarejo. Eles beberam a doce e forte infusão em xícaras grossas, cheias pela metade de pó grosso. Beberam e conversaram como bons amigos.

Para Royan, era esse o relacionamento deles: bons amigos. Conhecera Duraid quando voltara da Inglaterra com seu doutorado em arqueologia e conseguira um cargo no Departamento de Antigüidades, que ele dirigia. Era sua assistente quando ele abrira a tumba no Vale dos Nobres, o túmulo da Rainha Lostris, que datava de cerca de 1780 a.C.

Compartilharam a mesma decepção ao descobrir que o túmulo fora roubado em tempos distantes e todos os seus tesouros tinham sido levados. O que restara eram os maravilhosos afrescos que revestiam as paredes e os tetos da tumba.

Royan trabalhava na parede atrás dos plintos sobre os quais outrora estivera o sarcófago, fotografando os afrescos, quando uma parte do reboco caiu e revelou um nicho que escondia dez jarros de alabastro. Cada um deles continha rolos de papiro. Todos tinham sido escritos e colocados ali por Taita, o escravo da rainha.

Desde então, a vida de ambos, a de Duraid e a sua, passou a girar em torno desses fragmentos de papiros. Embora um pouco danificados e deteriorados, em sua maior parte haviam sobrevivido notavelmente intatos por quase 4 000 anos.

Que história fascinante eles continham! Uma nação atacada por um inimigo superior, armados com cavalos e carros de guerra ainda desconhecidos dos egípcios da época. O povo do Nilo, massacrado pelas hordas dos hicsos, foi obrigado a fugir. Conduzido pela Rainha Lostris, seguiu pelo grande rio em direção ao sul, quase até a nascente, nas cruéis montanhas da Etiópia. Foi nessas montanhas proibidas que Lostris enterrou o corpo mumificado de seu marido, o Faraó Mamose, morto numa batalha contra os hicsos.

Muito tempo depois a Rainha Lostris reconduziu seu povo para o norte, a esse próprio Egito. Armados então com carros de guerra e cavalos, forjados pela estepe africana em bravos guerreiros, os egípcios lançaram-se pelas cataratas do grande rio e novamente atacaram o invasor hicso até triunfar, arrancando de suas mãos a dupla coroa do Baixo e Alto Egito.

Era uma história que tocava as fibras de seu ser, e fascinava-a desvendar cada hieroglifo que o velho escravo havia desenhado nos papiros.

Há muitos anos trabalhavam durante a noite na vila do oásis, após terem concluído a rotina diária no Museu do Cairo, e já haviam decifrado os dez pergaminhos — todos, menos o sétimo. Esse era o grande enigma, aquele que o autor tinha ocultado há tanto tempo em níveis iconográficos e alusões obscuras e imperscrutáveis. Alguns dos símbolos usados jamais haviam aparecido nos milhares de textos estudados em sua vida conjunta de trabalho. Era óbvio para ambos que Taita não pretendia que os papiros fossem lidos por mais ninguém além de sua amada rainha. Era seu último presente para ela, para que o levasse para além-túmulo.

Exigira dos dois arqueólogos toda a habilidade, toda a imaginação e engenhosidade, mas ao menos eles estavam se aproximando da conclusão da tarefa. Havia ainda muitas falhas na tradução, e trechos cujo verdadeiro significado eles não sabiam se tinham captado ou não, mas o esqueleto do manuscrito estava destrinchado de tal forma que era possível discernir o perfil da criatura ali representada.

Duraid deu um gole de café e balançou a cabeça, como sempre fazia.

— Isso me assusta — disse. — A responsabilidade... O que fazer com esse conhecimento que recolhemos? Se ele cair em mãos erradas... — Outro gole, e ele suspirou. — Mesmo se o entregarmos à pessoa certa, ela iria acreditar que este material tem quase quatro mil anos?

— Por que temos de mostrá-lo a alguém? — Royan beirava a exasperação. — Por que nós dois não fazemos o que deve ser feito? — Nesses momentos a diferença entre eles ficava mais clara: ele era a própria cautela da velhice; ela, a impetuosidade da juventude.

— Você não entende.

Ela não gostava disso, ser tratada como os árabes tratam suas mulheres, num mundo totalmente masculino. Conhecia outro mundo onde elas exigiam e obtinham o direito de ser tratadas como iguais. Era uma criatura presa entre esses dois mundos, o ocidental e o árabe.

A mãe de Royan era inglesa, e trabalhara na Embaixada britânica do Cairo nos tempos conturbados após a Segunda Guerra Mundial. Conhecera e se casara com ele — o pai de Royan, um jovem oficial egípcio do staff do Coronel Nasser. Uma união improvável, que só persistiu até a adolescência de Royan.

A mãe insistira em voltar à Inglaterra, à sua cidade natal, York, para o nascimento da filha. Queria que tivesse cidadania britânica. Depois da separação dos pais, Royan, novamente por insistência da mãe, voltara à Inglaterra para estudar, mas todos os feriados eram passados com o pai no Cairo. Ele prosperou muito em sua carreira e acabou chegando ao nível ministerial no governo de Mubarak. Por amá-lo muito, Royan considerava-se mais egípcia do que inglesa.

O casamento com Duraid Al Simma fora arranjado por seu pai: a última coisa que ele fez pela filha antes de morrer. Por estar à beira da morte, ela não teve coragem de desafiá-lo. Por sua educação moderna, Royan resistia à tradição copta dos casamentos arranjados, mas tinha contra si suas raízes, a família e a Igreja. Por fim aquiesceu.

Estar casada com Duraid não era tão insuportável quanto ela havia temido. Seria mesmo muito bom e prazeroso se ela nunca tivesse se apaixonado. Entretanto, mantivera um romance com David quando estava na universidade. Ele a arrastara para uma confusão, um delírio mental e, por fim, a uma grande dor de cabeça, quando a abandonara para se casar com uma loira inglesa, bem mais ao gosto de seus pais.

Royan respeitava Duraid e gostava dele, mas às vezes ardia de vontade de ter um corpo firme e jovem sobre o seu.

Duraid falava, mas ela não estava ouvindo. Voltou a dar-lhe atenção.

— Falei outra vez com o ministro, mas não me parece que ele esteja acreditando. Acho que Nahoot o convenceu de que sou meio louco. — Ele sorriu com tristeza. Nahoot Guddabi era seu ambicioso e bem relacionado assessor. — Seja como for, o ministro diz que não há mais recursos do governo disponíveis e que eu deveria buscar outros financiamentos. Então, estou novamente com a lista de possíveis patrocinadores, que já reduzi a quatro. É claro que há o Museu Getty, mas nunca me agradou trabalhar com instituições grandes e impessoais. Prefiro prestar contas a um só homem. As decisões são sempre mais fáceis. — Nada disso era novo para ela; mesmo assim o ouvia.

— Há também Herr Von Schiller. Ele tem dinheiro e se interessa pelo assunto, mas não o conheço bem para confiar nele totalmente. — Ele fez uma pausa; Royan já ouvira suas queixas tantas vezes que podia até se antecipar:

— Por que não o americano? É um colecionador famoso.

— Peter Walsh é um homem difícil de se trabalhar. Sua mania de acumular bens faz dele um inescrupuloso. Isso me assusta um pouco.

— Quem sobra, então? — ela perguntou.

Ele não respondeu, pois ambos conheciam a resposta. Em vez disso, voltaram ao material aberto sobre a mesa.

— Parece tão inocente, tão banal. Um velho rolo de papiro, algumas fotos, anotações, páginas impressas de computador. É difícil acreditar que possa ser tão perigoso se cair em mãos erradas. — Ele suspirou. — Diria até mortalmente perigoso.

Ele riu de si mesmo.

— Já estou começando a fantasiar... Talvez porque já seja tão tarde. Vamos voltar ao trabalho? Podemos nos ocupar desses assuntos depois de decifrarmos os quebra-cabeças que nos foram colocados por esse velho patife, Taita, e concluirmos a tradução.

Ele pegou a primeira foto da pilha que estava à sua frente. Era um trecho da parte central do papiro.

— É muito azar que o fragmento danificado esteja exatamente nesse ponto. — Ele pôs os óculos de leitura e leu em voz alta: — "São muitos os degraus da escada que leva à moradia de Hapi. Com grande dificuldade e esforço alcançamos o segundo, e não fomos adiante, pois foi aí que o príncipe teve a revelação. Em sonho, seu pai, o Deus Faraó morto, visitou-o e ordenou: Venho de muito longe e estou exausto. Aqui descansarei por toda a eternidade'."

Duraid tirou os óculos e olhou para Royan.

— "O segundo degrau." É uma descrição precisa. Taita não está sendo sinuoso como de hábito.

— Voltemos às fotos do satélite — sugeriu Royan, puxando o papel brilhante. Duraid contornou a mesa e ficou atrás dela.

— A mim parece mais lógico que o acidente natural que os bloqueou no desfiladeiro seja uma série de corredeiras ou cachoeiras. Se houvesse uma segunda cachoeira, eles estariam aqui. — Royan pôs o dedo no ponto da foto em que um rio estreito serpenteava por entre maciços de montanhas.

Nesse instante algo chamou sua atenção e ela ergueu a cabeça.

— Ouça! — disse num tom alarmado.

— O que foi? — Duraid também olhou.

— O cachorro.

— Maldito vira-lata! Vive nos assustando com seus latidos. Prometo que ainda vou me livrar dele.

Nesse instante a luz se apagou.

Ele gelaram na escuridão. O barulho constante do velho gerador a diesel, que ficava no barracão atrás do bosque de palmeiras, tinha cessado. Era algo que eles só percebiam quando se fazia silêncio.

Seus olhos ajustaram-se à fraca luminosidade das estrelas que entrava pelo terraço. Duraid atravessou o estúdio e pegou o lampião a querosene na prateleira ao lado da porta, ali colocado exatamente para tais contingências. Acendeu-o e dirigiu-se a Royan com uma cômica expressão de comiseração.

— Vou ter de ir lá embaixo...

— Duraid! — ela o interrompeu. — O cachorro...

Ele parou para ouvir, agora mais interessado. O cachorro não latia mais.

— Tenho certeza de que não é nada sério. — Ele foi para a porta e, sem saber por quê, ela o chamou de volta.

— Duraid, tenha cuidado! — Ele deu de ombros e saiu para o terraço.

Por um momento, Royan achou que fosse a sombra da parreira balançando ao vento do deserto, mas não havia vento. Depois se deu conta de que um homem atravessava o pátio pavimentado sorrateiramente, aproximando-se de Duraid por trás enquanto ele contornava o pequeno tanque de peixes ao centro.

— Duraid! — Ele virou-se ao ouvir o grito e ergueu o lampião.

— Quem é você? O que quer aqui?

O intruso chegou bem perto dele, em silêncio. A tradicional túnica longa, a dishdasha, enrolava-se em suas pernas, e o turbante branco, o ghutrah, cobria-lhe a cabeça. À luz do lampião, Duraid viu que o rosto estava escondido sob o turbante.

Como o homem estava de costas para ela, Royan não viu a faca em sua mão direita, mas percebeu nitidamente o movimento rápido contra a barriga de Duraid. Ele gemeu e curvou-se de dor, enquanto o atacante erguia a lâmina e desferia outro golpe; dessa vez Duraid deixou cair o lampião e segurou a mão do outro.

A chama do lampião espalhou-se pelo chão. Os dois homens lutavam na penumbra, e Royan viu que uma mancha escura cobria a frente da camisa de seu marido.

— Corra! — ele gritou. — Vá procurar ajuda! Não posso dominá-lo. — Duraid era uma pessoa gentil, um homem pacífico, habituado a leituras e estudos. Podia ser vencido facilmente.

— Vá! Por favor! Salve-se, minha flor! — Ele estava perdendo as forças, mas continuava segurando desesperadamente o pulso do agressor.

Ela estivera paralisada pelo choque e pela indecisão durante alguns segundos fatais, mas então saiu do estupor e correu para a porta. Impelida pelo terror e pela necessidade de procurar ajuda para Duraid, atravessou o terraço com a agilidade de um gato, enquanto ele tentava impedir que o intruso lhe bloqueasse o caminho.

Ela saltou a mureta de pedra e praticamente caiu nos braços de um segundo homem. Aos gritos, contorceu-se para escapar, enquanto os dedos do estranho lhe arranhavam o rosto, e só não conseguiu porque eles se engancharam no fino tecido de sua blusa.

Desta vez ela viu a faca, a lâmina brilhante à luz das estrelas, e isso lhe deu novas forças. A blusa rasgou e deixou-a livre, mas não a tempo de escapar da lâmina. Royan sentiu a ferroada no braço e chutou o homem com toda a intensidade de seu pânico e de sua juventude. O pé atingiu-lhe a carne macia do baixo-ventre com uma força que ela sentiu repercutir até o tornozelo e os joelhos; o atacante deu um grito e caiu ajoelhado.

Ela saiu correndo pelo bosque de palmeiras. A princípio corria sem nenhuma direção, simplesmente para se afastar o mais rápido possível dali. Aos poucos o pânico foi sendo controlado. Royan olhou para trás e viu que ninguém a seguia. Ao se aproximar do lago, parou um pouco para recuperar as forças, e só então se deu conta de que o sangue escorria por seu braço e pingava das pontas dos dedos.

Apoiada no caule de uma palmeira, ela rasgou uma tira da própria roupa e tentou desajeitadamente enrolá-la no braço. Tremia tanto que mesmo a mão sadia mostrava-se impotente e canhestra. Conseguiu amarrar a tosca bandagem com a ajuda dos dentes e da mão esquerda, e o sangramento diminuiu.

Sem saber para onde correr, Royan avistou uma fraca luminosidade na janela da choupana de Alia, do outro lado de um canal de irrigação. Com muito esforço, ela desprendeu-se do tronco da palmeira e dirigiu-se para lá. Não tinha dado cem passos quando ouviu uma voz que saía do bosque atrás dela, falando em árabe:

— Yussuf, a mulher passou por você?

Nesse instante, o facho de um farolete iluminou a escuridão e outra voz respondeu:

— Não, não vi ninguém.

Mais alguns passos e Royan teria caído nas mãos dele. Ela abaixou-se e olhou em volta desesperada. A luz de outro farolete projetava-se do bosque atrás, seguindo o caminho que ela acabara de percorrer. Devia ser o homem que ela tinha chutado, mas pela firmeza do facho de luz via-se que estava recuperado e andava sem dificuldade.

Vendo-se cercada por ambos os lados, ela dirigiu-se para a margem do lago. A estrada passava por ali. Talvez encontrasse um carro no caminho. Tropeçou nas raízes, caiu e feriu o joelho, mas levantou-se e continuou correndo. Na segunda vez que tropeçou, sua mão esquerda bateu numa pedra redonda do tamanho de uma laranja. Ao continuar, ela levou a pedra, sentindo certo conforto: era quase uma arma.

O braço ferido doía, mas era Duraid que a preocupava. Pela direção e a força da facada, ele devia estar muito ferido. Ela precisava encontrar ajuda. Os homens que a perseguiam vasculhavam o bosque com faroletes, e não era fácil manter a dianteira. Estavam quase a alcançando — podia ouvi-los falar um com o outro.

Por fim Royan chegou à estrada, e com um gemido de alívio saltou a vala de drenagem para a pista de cascalho. Suas pernas estavam tão trêmulas que ela mal conseguia andar quando tomou a direção do vilarejo.

Não tinha chegado à primeira curva quando luzes de faróis se aproximaram lentamente, bruxuleando por entre as folhas de palmeira. Ela correu para o meio da estrada.

— Ajude-me! — gritou em árabe. — Por favor, ajude-me!

O carro saiu da curva, e antes que os faróis a cegassem deu para ver que era um pequeno Fiat escuro. Ela parou no meio da estrada com os braços levantados, iluminada pelos faróis como se estivesse num palco.

O Fiat parou; ela correu para o lado do motorista e segurou-se no trinco da porta.

— Por favor, o senhor precisa me ajudar...

A porta foi aberta e empurrada com tanta força que a fez perder o equilíbrio. O motorista saltou para a estrada, agarrou-a pelo pulso do braço ferido e tentou arrastá-la para dentro do carro.

— Yussuf! Bacheet! — ele gritou para o bosque. — Eu a peguei. — Royan escutou gritos e viu os fachos de luz mudarem de direção. O motorista forçava sua cabeça para baixo, tentando empurrá-la para o banco de trás, quando ela se lembrou da pedra que tinha na mão. Virou-se ligeiramente para tomar impulso, ergueu o braço e bateu a pedra com força no lado da cabeça do homem. Acertou-o bem na têmpora. Ele caiu sem nenhum ruído no cascalho da estrada e ficou imóvel.

Royan soltou a pedra no chão e começou a correr, mas percebeu que corria em direção aos faroletes e que todos os seus movimentos eram visíveis. Os dois outros homens aproximavam-se aos gritos.

Ao vê-los chegar rapidamente, ela pensou que sua única chance seria sair da estrada e esconder-se novamente na escuridão. Correu para o barranco do lago e saltou na água, que chegava à sua cintura.

Royan estava desorientada e não percebeu que naquele ponto a estrada passava ao lado do barranco. Sabia que não daria tempo para voltar à estrada, mas lembrou-se de que mais adiante havia grossas touceiras de papiro e mato que poderiam lhe dar proteção.

Andou pela água até que deixou de tocar o leito do lago com os pés e teve de nadar. O fôlego lhe faltava, e ainda tinha de lidar com o estorvo da saia e do braço ferido. Entretanto, seus movimentos lentos e ritmados na água mal perturbavam a superfície, e antes que os homens alcançassem o barranco de onde ela saltara, surgiu na sua frente uma densa moita de vegetação.

Royan enfiou-se dentro dela e deixou-se afundar. Seus pés tocaram a superfície lamacenta antes que a água cobrisse o nariz. Ela mergulhou e ficou imóvel, com apenas parte da cabeça fora da água e o rosto virado para o outro lado. Sabia que seu cabelo escuro não refletiria a luz dos faroletes.

Mesmo com as orelhas submersas, podia ouvir as vozes excitadas na estrada. Eles estavam iluminando o lago e dirigiam os faroletes para as touceiras. Por um momento um dos fachos passou sobre sua cabeça; ela inspirou para submergir, mas a luz se desviou e ninguém a viu.

Então criou coragem de erguer um pouco a cabeça, tirar as orelhas da água e tentar ouvir o que diziam.

Falavam em árabe; ela reconheceu a voz do que se chamava Bacheet. Devia ser o líder, pois era quem dava as ordens.

— Vá por ali, Yussuf, e pegue aquela cadela.

Ela ouviu Yussuf escorregar pelo barranco e cair na água.

— Mais adiante — gritou Bacheet. — Naquele mato ali, onde estou iluminando.

— É muito fundo, e não sei nadar. Ali não vai dar pé.

— Lá! Bem na sua frente. Estou vendo a cabeça dela. — Royan temeu que fosse verdade e afundou.

O homem vinha andando em direção à touceira, espirrando água para todos os lados, quando de repente uma ruidosa agitação assustou Yussuf, que gritou:

— Djinns! Deus me proteja! — Um bando de patos alçou vôo e desapareceu na escuridão do céu.

Yussuf voltou correndo para a margem, e nem as piores ameaças de Bacheet o convenceram a continuar a caçada.

— A mulher não é tão importante quanto o pergaminho — ele protestou, escalando o barranco para a estrada. — Sem pergaminho não tem dinheiro. A gente acaba pegando ela.

Royan virou a cabeça e viu os faroletes iluminando a estrada na direção do Fiat, que continuava de faróis acesos. Ouviu bater a porta do carro, o motor funcionar e o carro seguir em direção à casa.

Royan estava trêmula e aterrorizada demais para sair de seu esconderijo. Temia que houvessem deixado alguém do bando esperando que ela aparecesse. Na ponta dos pés, com a água tocando os lábios, que tremiam mais de susto que de frio, ela decidiu permanecer ali em segurança até o dia amanhecer.

Só muito depois, quando viu a luz de um incêndio iluminar o céu, esqueceu-se de sua própria segurança e voltou para a margem. Ajoelhou-se na lama à beira d'água, tremendo e soluçando, enfraquecida pela perda de sangue, pelo susto e pela reação ao medo. Olhou para as chamas através dos cabelos molhados e da água que escorria por seus olhos.

— A casa! — Royan sussurrou. — Duraid! Oh, não! Por favor, Deus, não!

Erguendo-se com dificuldade, ela começou a andar em direção à casa incendiada.

Bacheet desligou os faróis e o motor do Fiat antes de fazer a curva na entrada da vila, deixando que o carro parasse sozinho sob o terraço. Os três homens subiram os degraus de pedra até a casa. O corpo de Duraid permanecia caído ao lado do tanque de peixes, onde Bacheet o deixara. Eles passaram sem olhar e entraram no escritório às escuras. Bacheet depositou uma sacola de náilon fino sobre a mesa.

— Já perdemos tempo demais. Precisamos trabalhar rápido agora.

— É culpa de Yussuf, que deixou a mulher fugir — protestou o motorista do Fiat.

— Você teve sua chance na estrada — Yussuf rosnou de volta — e a desperdiçou.

— Basta — disse Bacheet para ambos. — Se quiserem ser pagos, é melhor não cometer mais erros.

Com o facho da lanterna, Bacheet iluminou o pergaminho que continuava sobre a mesa.

— É esse. — Ele o conhecia, pois havia visto fotos do pergaminho e não podia se enganar. — Eles querem tudo. Mapas e fotografias. Também livros e papéis, tudo o que estiver na mesa e que eles usavam para trabalhar. Não deixem nada.

Rapidamente, eles enfiaram tudo dentro da sacola e Bacheet fechou o zíper.

— Agora o Doktari. Tragam-no aqui.

Os dois saíram para o terraço e pararam ao lado do corpo de Duraid. Segurando-o pelos tornozelos, o arrastaram para dentro do estúdio. A cabeça bateu no degrau de pedra na soleira da porta e o sangue deixou uma longa trilha vermelha nas lajotas iluminadas pelo archote.

— Pegue o lampião! — ordenou Bacheet. Yussuf voltou ao terraço para pegar o lampião a querosene que Duraid tinha deixado cair. A chama se extinguira. Bacheet ergueu o lampião à altura dos olhos e balançou-o.

— Cheio — disse com satisfação, e desenroscou a tampa do tambor. — Muito bem — voltou-se para os outros —, levem a sacola para o carro.

Eles o fizeram, enquanto Bacheet espalhava o querosene sobre a camisa e a calça de Duraid, depois voltou ao estúdio, pegou o resto de combustível na prateleira e o espalhou sobre os livros e manuscritos.

Jogou fora o lampião vazio e procurou uma caixa de fósforos sob a saia de seu dishdasha. Acendeu um e aproximou-o de um fio de querosene que escorria pela prateleira. O fogo pegou instantaneamente e as chamas se espalharam, enrugando e escurecendo as bordas dos papéis. Bacheet voltou para onde estava Duraid. Acendeu outro fósforo e soltou-o sobre o sangue que manchava a camisa. Chamas azuis dançaram sobre o peito de Duraid, mudando de cor ao queimar o tecido da camisa e, por baixo, a carne. Uma fumaça espiralada ergueu-se dos pêlos tostados.

Bacheet saiu correndo, cruzou o terraço, desceu os degraus e entrou pela porta traseira do Fiat no instante em que o motorista ligou o motor e deu a partida.

A dor despertou Duraid. Tinha de ser muito intensa para trazê-lo de volta do limiar da morte, para onde havia flutuado.

Ele gemeu. A primeira coisa que percebeu ao recobrar a consciência foi o cheiro de sua própria carne queimada, e em seguida foi tomado por uma intensa dor. Sacudido por um tremor violento de todo o corpo, ele abriu os olhos e se examinou.

Suas roupas estavam em chamas, e a dor era a pior que já sentira na vida. Percebia vagamente que tudo queimava à sua volta. Sentia a fumaça e as ondas de calor, mas não sabia de onde vinham.

A dor era tanta que ele preferia morrer para não ter mais de suportá-la. Então lembrou-se de Royan. Tentou pronunciar seu nome com os lábios crestados e escurecidos, mas o som não saiu. Pensar nela renovou suas forças. Ele rolou pelo chão, e o fogo atingiu suas costas, que até então estavam protegidas. Gemendo, ele rolou para o outro lado, aproximando-se da porta.

Cada movimento exigia um esforço supremo e evocava novos paroxismos de agonia. Ele caiu de costas novamente e sentiu uma lufada de ar fresco, sugada através da porta atrás de sua cabeça, que alimentava as chamas. Aspirar profundamente o ar fresco do deserto deu-lhe forças para jogar-se nos degraus e alcançar as frias pedras do terraço.

As roupas e o corpo de Duraid ainda ardiam em chamas. Ele tentou bater as mãos no peito para apagá-las, mas elas já se haviam transformado em garras escuras e queimadas.

Então ele se lembrou do tanque de peixes. Tentar jogar o corpo torturado na água fria exigiu-lhe o supremo esforço de se arrastar sobre a laje, como uma cobra de espinha partida.

A densa fumaça que subia da carne cremada o intoxicava e provocava-lhe tosse, mas ele não desistiu. Pedaços de sua pele ficaram na pedra da qual ele rolou para o tanque. Uma nuvem clara de vapor obs-cureceu-lhe a visão e por um momento ele pensou que estivesse cego. A dor provocada pela água na carne em brasa foi tão intensa que mais uma vez ele beirou o limite da inconsciência.

Voltou a si através da fumaça que saía de seu próprio corpo e ergueu a cabeça ao perceber alguém parado nos degraus do outro lado do pátio, que em seguida entrou no jardim.

Por um momento pensou que fossem os fantasmas de sua agonia, mas à claridade do fogo reconheceu Royan. Seu rosto estava coberto pelos cabelos molhados, sua roupa rasgada, enlameada, cheia de mato grudado. O braço direito estava enrolado num trapo imundo e encharcado de sangue e água suja.

Ela não o viu. Parada no meio do pátio, olhava horrorizada para a casa em chamas. Duraid estaria lá? Quis entrar, mas o calor erguia uma barreira sólida e a paralisava de medo. Nesse instante houve um estrondo: o teto ruiu e uma coluna de fagulhas e chamas ergueu-se na escuridão do céu. Ela saltou para trás, protegendo o rosto com o braço.

Duraid tentou chamá-la, mas o som não saiu de sua garganta crestada pela fumaça. Royan voltou-se para descer os degraus. Talvez fosse buscar ajuda. Num esforço sobre-humano, ele emitiu um grasnido por entre os lábios doloridos.

Royan o viu e deu um grito. A cabeça dele não era mais humana. O cabelo desaparecera e a pele pendia de suas faces e do queixo. Pedaços de músculo saíam pelas rachaduras da máscara pavorosa em que se transformara seu rosto. Ela recuou como se tivesse visto um monstro.

— Royan — ele gemeu numa voz irreconhecível, erguendo a mão. Ela correu para segurá-la.

— Em nome da Virgem, o que fizeram com você? — Ela chorava, e ao tentar puxá-lo do tanque arrancou-lhe a pele da mão, inteira, como uma horripilante luva cirúrgica, expondo garras em carne viva.

Royan ajoelhou-se na mureta e abaixou-se para pegá-lo nos braços. Sabia que não teria forças para erguê-lo sem causar mais sofrimento. Só lhe restava segurá-lo nos braços e tentar lhe dar conforto. Ele estava morrendo — ninguém poderia sobreviver àquilo.

— Logo virão nos socorrer — ela sussurrou em árabe. — Devem ter visto o fogo. Seja corajoso, meu marido, a ajuda chegará logo.

Ele se contorcia convulsivamente em seus braços, torturado pelos ferimentos mortais e extenuado pelo esforço para falar.

— O papiro — a voz era pouco inteligível. Royan olhou para o holocausto que envolvia a casa e balançou negativamente a cabeça.

Desapareceu. Queimado ou roubado.

Não desista — ele murmurou. — Todo o trabalho que tivemos...

Desapareceu — ela repetiu. — Ninguém vai acreditar em nós

sem o...

— Não! — disse ele, numa voz débil porém decidida. — Faça-o por

mim, meu último...

— Não diga isso. Você vai ficar bom.

— Prometa — ele exigiu. — Prometa!

— Não temos patrocinador. Estou sozinha. Não posso fazer isso sozinha.

— Harper! — Royan inclinou-se para aproximar o ouvido de seus lábios queimados. — Harper — ele repetiu. — Forte... sério... esperto... — ela entendeu. Harper, é claro, era o quarto e último nome da lista de patrocinadores. Embora fosse a última alternativa, ela sempre soubera que a preferência de Duraid era por ele. Nicholas Quenton-Harper era sua primeira opção. Ele falava muito desse homem, sempre com respeito e admiração, até mesmo com afeto.

— Mas o que devo dizer a ele? Nem me conhece. Como vou convencê-lo? O sétimo papiro desapareceu.

— Confie nele — sussurrou Duraid. — É um bom homem. Confie nele. — Havia um profundo apelo em seu pedido.

Então ela se lembrou das anotações que estavam no apartamento em Giza, um subúrbio do Cairo, e o material de Taita registrado no disco rígido de seu computador.

— Sim — concordou. — Eu prometo, meu marido. Prometo. Mesmo que o rosto mutilado não tivesse mais nada de humano,

havia na voz um débil eco de satisfação quando ele disse:

— Minha flor!

A cabeça caiu para a frente e ele morreu nos braços dela.

Os habitantes do vilarejo ainda encontraram Royan ajoelhada à beira do tanque, com a cabeça de Duraid no colo e falando com ele. As chamas já tinham diminuído e a suave claridade do amanhecer se sobrepunha à luz evanescente do fogo.

Toda a diretoria do museu e do Departamento de Antigüidades compareceu ao serviço fúnebre na igreja do oásis. Até Atalan Abou Sin, o ministro da Cultura e do Turismo chefe de Duraid, veio do Cairo em seu Mercedes preto oficial, com ar-condicionado.

Ele ficou atrás de Royan, e apesar de ser muçulmano participou do ritual. Nahoot Guddabi estava ao lado do tio. A mãe de Nahoot era a irmã caçula do ministro, que, como dizia Duraid, sabia recompensar muito bem a desqualificação e a inexperiência do sobrinho em arqueologia e a sua inépcia como administrador.

O calor era sufocante. Lá fora a temperatura estava acima de trinta graus, e até o interior da nave sombria da igreja copta era opressivo. A densa fumaça dos incensos e o padre pronunciando em tom monótono a cerimônia ancestral faziam Royan sufocar. Sentia os pontos em seu braço repuxar e arder; olhou então para o grande caixão preto diante do altar florido e viu surgir na sua frente a cabeça queimada de Duraid. Teve uma vertigem e precisou segurar-se para não cair.

Por fim tudo terminou; já podia sair ao ar livre sob a claridade do deserto. Mas seus deveres ainda não tinham terminado. Como viúva seu papel era acompanhar o féretro até o cemitério sob um palmeiral onde os antepassados de Duraid o esperavam no mausoléu familiar.

Antes de retornar ao Cairo, Atalan Abou Sin foi cumprimentá-la e oferecer-lhe suas condolências.

— Que coisa terrível, Royan! Conversei pessoalmente com o ministro do Interior. Vão pegar os animais responsáveis por essa tragédia, acredite-me. Tire o tempo que precisar antes de voltar ao museu — disse-lhe.

— Estarei no meu escritório na segunda-feira — ela retrucou. Ele pegou uma agenda no bolso interno do paletó escuro, consultou-a e escreveu alguma coisa. Olhou de novo para Royan.

— Vá me encontrar no ministério à tarde. Às quatro horas.

Ele se despediu, e foi a vez de Nahoot Guddabi cumprimentá-la. Apesar da palidez e das escuras olheiras, era um homem alto e elegante, de cabelos negros e dentes muito brancos. Usava um terno de corte impecável e recendia a uma boa colônia.

— Duraid foi um bom homem. Eu o tinha na mais alta estima — ele disse a Royan, que assentiu sem responder à mentira deslavada. Não existia nenhuma afeição entre Duraid e seu assessor. Ele jamais permitira que Nahoot trabalhasse nos papiros de Taita; e principalmente nunca deixou que ele se aproximasse do sétimo, o que era motivo de um amargo antagonismo entre eles.

— Espero vê-la candidata ao cargo de diretora, Royan. É bastante qualificada para o trabalho.

— Obrigada, Nahoot. É muita gentileza sua. Ainda não tive chance de pensar no futuro. E você, vai se candidatar?

— É claro que sim — ele reforçou. — Mas isso não quer dizer que mais ninguém possa fazê-lo. Talvez você me tire o cargo das mãos. — Ele sorriu complacente. Ela era apenas uma mulher no mundo masculino árabe, e ele, o sobrinho do ministro. Nahoot sabia muito bem que as probabilidades estavam a seu favor. — Adversários amigáveis? — ele perguntou.

Royan sorriu com tristeza.

— Pelo menos amigáveis. Vou precisar de amigos no futuro.

— Sabe que pode contar comigo. Todo mundo no departamento gosta de você, Royan. — Pelo menos isso é verdade, pensou ela, e ele continuou: — Posso oferecer-lhe uma carona para o Cairo? Meu tio não se importará.

— Obrigada, Nahoot, mas estou com meu carro e preciso ficar esta noite no oásis para resolver alguns assuntos de Duraid. — Isso não era verdade. Royan planejava voltar ao apartamento de Giza naquela mesma tarde, mas, não sabia bem por quê, preferia que Nahoot não soubesse de seus planos.

— Então nos veremos no museu na segunda-feira.

Royan saiu do oásis logo que se livrou dos amigos e dos camponeses, muitos dos quais haviam trabalhado para a família de Duraid por quase toda a vida. Entorpecida e distante, ela ouviu condolências e piedosas exortações, todas vazias, que não lhe trouxeram nenhum conforto.

Ainda era cedo, e a estrada que atravessava o deserto já estava cheia, com os carros movendo-se lentamente em ambas as direções. O dia seguinte era sexta-feira — dia de sabá. Ela tirou o braço direito ferido da tipóia para dirigir, e ele não incomodou muito. Conseguiu fazer a viagem num tempo razoável. Eram 5 horas da tarde quando ela avistou a linha verde que demarcava a desolação amarela do deserto e o início da estreita faixa de terra cultivada e irrigada ao longo do Nilo, a grande artéria do Egito.

Como sempre, o tráfego tornou-se mais intenso ao se aproximar da capital, e era quase noite quando Royan chegou ao conjunto de apartamentos em Giza. Dali podiam-se ver o rio e os grandes monumentos de pedra, altos e maciços, erguendo-se no céu do poente; para ela, simbolizavam a alma e a história de sua terra.

Royan estacionou o velho Renault verde de Duraid no andar inferior da garagem e pegou o elevador para o último andar.

Parou estática ao abrir a porta. A sala havia sido invadida — os tapetes tinham sido arrancados, os quadros tirados das paredes. Atordoada, ela começou a andar entre os pedaços de mobília quebrada e ornamentos destruídos. Do corredor, olhou para o quarto e viu que nada tinha escapado. Suas roupas e as de Duraid estavam espalhadas pelo chão, as portas dos armários escancaradas. Uma delas fora arrebentada. A cama estava revirada, os lençóis e travesseiros, jogados pelo chão.

Sentiu o cheiro de cosméticos e perfumes que saía dos vidros quebrados no banheiro, mas não foi até lá. Sabia o que encontraria. Preferiu continuar até o quarto grande, que eles usavam como escritório e ateliê.

No meio do caos, a primeira coisa que viu e lamentou foi o jogo de xadrez antigo que Duraid lhe dera de presente de casamento. O tabuleiro de marfim e âmbar negro estava quebrado ao meio, e as peças, jogadas ao chão com uma violência vingativa e desnecessária. Ela pegou a rainha branca. Haviam-lhe arrancado a cabeça.

Com a rainha na mão, ela andou como sonâmbula até sua mesa, que ficava sob a janela. Seu computador estava destruído. Tinham destroçado o monitor e o gabinete do processador, talvez com um machado. Bastou-lhe ver aquilo para saber que não restara nenhuma informação no disco rígido; estava irrecuperável.

Ela procurou a gaveta em que guardava os disquetes. Essa e todas as outras estavam jogadas no chão, vazias, é claro; junto com os disquetes, todos os seus cadernos de anotações e fotografias haviam desaparecido. Suas últimas conexões com o sétimo papiro estavam perdidas. Depois de três anos de trabalho, desapareciam as provas de sua existência.

Ela caiu ao chão, abatida e exausta. Seu braço doía outra vez; sentia-se sozinha e vulnerável como nunca em sua vida. Jamais pensara que Duraid pudesse lhe fazer tanta falta. Seus ombros começaram a tremer e lágrimas brotaram das profundezas da alma. Tentou controlá-las, mas elas inundaram os olhos e escorreram pelo rosto. Sentada entre os destroços de sua vida, Royan chorou até a última lágrima; então encolheu-se no tapete e mergulhou num sono profundo, de cansaço e desespero.

Na segunda-feira pela manhã, sua vida já havia retomado certa ordem. A polícia estivera no apartamento para tomar seu depoimento, e a desordem já estava quase toda arrumada. A cabeça da rainha branca fora colada. Quando ela saiu do apartamento e entrou no Renault verde, sentiu que o braço estava melhor e que ela própria, se não estava feliz, ao menos sentia-se mais otimista e segura sobre o que tinha de fazer.

Chegando ao museu, foi primeiro ao escritório de Duraid e aborreceu-se ao ver que Nahoot chegara antes. Ele supervisionava dois seguranças que estavam retirando os objetos pessoais do ex-diretor.

— Poderia ter tido a delicadeza de me deixar fazer isso — ela disse com frieza, e recebeu de volta um sorriso vitorioso.

— Desculpe, Royan. Achei que estivesse ajudando. — Ele fumava um de seus charutos turcos. Ela odiou o odor pesado e enjoativo.

Foi para a mesa do marido e abriu a primeira gaveta do lado direito.

— O diário de meu marido estava aqui. Não está mais. Você o viu?

— Não, não havia nada nessa gaveta. — Nahoot olhou para os guardas, esperando a confirmação; eles moveram a cabeça afirmativamente. Não tem importância, ela pensou. O livro não continha nada de interesse vital. Duraid contava com ela para registrar e armazenar todos os dados importantes, a maioria deles em seu PC.

— Obrigada, Nahoot — ela o dispensou. — Eu mesma farei o que faltar. Não quero afastá-lo de seu trabalho.

— Se precisar de ajuda, Royan, por favor, fale comigo. — Ele fez uma ligeira reverência ao sair.

Pouco restava para fazer no escritório de Duraid. Royan pediu aos guardas que levassem as caixas para sua sala e as empilhou contra a parede. Aproveitou a hora do almoço para atualizar os compromissos e terminou uma hora antes de seu encontro com Atalan Abou Sin.

Segunda-feira era um dia movimentado, e as salas de exposição do museu estavam repletas de grupos de turistas. Eles seguiam os guias como carneiros atrás de seu pastor. Rodeavam as obras mais famosas para ouvir os guias recitar seus textos decorados em todas as línguas de Babel.

As salas do segundo andar, que guardavam os tesouros de Tutancâmon, estavam tão cheias que Royan não perdeu muito tempo nelas. Foi logo até o armário envidraçado onde era guardada a máscara mortuária de ouro do faraó-criança. Como sempre, seu esplendor e romantismo fizeram Royan respirar mais rápido e seu coração acelerar-se. Diante da máscara, e mesmo sendo empurrada por duas senhoras gordas e suadas, ela se perguntou mais uma vez: se um rei tão frágil e insignificante foi enterrado com uma criação tão fabulosa sobre suas feições mumificadas, como não estariam os grandes Ramsés em seus templos fúnebres? Ramsés II, o maior de todos eles, reinara 67 anos, e nesse período acumulara seus tesouros funerários, obtidos em todos os territórios conquistados.

Royan foi prestar reverência ao velho rei. Há trinta séculos Ramsés II dormia com uma expressão enlevada e serena nas feições emaciadas. A pele tinha o brilho e a luminosidade do mármore. Os esparsos fios de cabelo eram claros e tingidos com hena. As mãos, também tingidas com hena, eram longas, finas e elegantes. Entretanto, ele estava apenas coberto com um pedaço de linho. Os saqueadores de túmulos haviam desenrolado a sua múmia para chegar aos amuletos e escaravelhos por baixo das faixas de linho, de modo que o corpo estava quase nu. Quando esses despojos foram descobertos, em 1881, num esconderijo de múmias reais na gruta de Deir El Bahari, somente um fragmento de pergaminho preso ao seu peito proclamava sua linhagem.

Havia uma moral nisso, ela acreditava; e diante dos restos patéticos mais uma vez se perguntou o que tantas vezes perguntara a Duraid: se Taita, o escriba, havia dito a verdade, e se no topo das selvagens montanhas africanas outro faraó não dormiria um sono tranqüilo com todos os seus tesouros intactos. Esse pensamento a fez vibrar, arrepiou sua pele e eriçou a penugem do pescoço.

— Eu lhe fiz uma promessa, meu marido — ela sussurrou em árabe. — Vou cumpri-la em sua memória, pois foi quem indicou o caminho.

Ela olhou o relógio de pulso e desceu a escada principal. Tinha quinze minutos para se encontrar com o ministro, e sabia exatamente como ocupá-los. Foi para uma das salas menos freqüentadas. Ali raramente havia grupos de turistas, a não ser para uma rápida olhada na estátua de Amenotep.

Royan parou diante de um armário envidraçado que ia do piso ao teto de uma sala pequena. Continha pequenos artefatos, ferramentas e armas, amuletos, vasos e utensílios, os mais recentes datados da vigésima dinastia do Novo Reino, de 1100 a. C, enquanto os mais antigos vinham de eras indistintas do Velho Reino, quase 5 000 anos atrás. A catalogação desses objetos era bastante rudimentar. Muitos itens não estavam devidamente descritos.

Do outro lado da sala, numa prateleira baixa, estavam expostos jóias, anéis e sinetes. Ao lado de cada sinete havia sua impressão em cera.

Royan ajoelhou-se para se aproximar mais de um deles. Era um pequeno sinete de lápis-lazúli, ricamente trabalhado, colocado no centro da vitrine. O lápis-lazúli era um material raro e precioso para os antigos, pois não existia na natureza do Império Egípcio. A impressão em cera representava uma águia com uma asa quebrada, e a legenda simples era facilmente legível para Royan: "Taita, o escriba da Grande Rainha".

Ela sabia que era o mesmo homem que assinara todos os pergaminhos com a águia aleijada. Quem teria encontrado aquele selo e onde? Talvez um camponês tivesse encontrado o túmulo perdido do velho escravo e escriba, mas isso era impossível saber.

— Está me provocando, Taita? Tudo isso é uma brincadeira bem pensada? Você estará rindo de mim em sua tumba, esteja ela onde estiver? — Ela chegou mais perto, até a cabeça encostar no vidro. — Somos amigos, Taita, ou você é meu adversário implacável? — Ela se levantou e arrumou as roupas. — Isso nós veremos. Vou fazer o seu jogo e veremos quem será o vencedor — ela desafiou.

O ministro a fez esperar apenas alguns minutos antes de pedir ao secretário que a fizesse entrar. Atalan Abou Sin usava um terno de seda escura e estava sentado à sua mesa, mas Royan conhecia sua preferência por túnicas mais confortáveis e almofadas no tapete para sentar-se. Ele percebeu seu olhar e sorriu.

— Tenho uma reunião com americanos esta tarde.

Royan gostava dele. Sempre fora muito delicado, e ela lhe devia seu emprego no museu. A maioria dos homens na sua posição teria recusado o pedido de Duraid por uma assistente mulher, especialmente tratando-se da própria esposa.

Ele perguntou como ela estava, e Royan mostrou o curativo no braço.

— Vou tirar os pontos em dez dias.

Eles conversaram sobre assuntos variados. Somente os ocidentais cometem a indelicadeza de ir direto ao assunto a ser discutido. Entretanto, para evitar constrangimentos, Royan aproveitou a primeira oportunidade e disse:

— Sinto que preciso de um tempo para mim. Quero me recuperar da perda que sofri e decidir o que fazer da minha vida agora que sou viúva. Ficarei agradecida se o senhor aceitar meu pedido de licença não-remunerada de pelo menos seis meses. Quero visitar minha mãe na Inglaterra.

Atalan demonstrou preocupação, e insistiu:

— Por favor, não nos deixe por tanto tempo. O trabalho que tem feito é valioso. Precisamos de você para prossegui-lo do ponto em que Duraid o deixou. — Ele dissimulava muito bem o alívio que sentia. Pensara que ela fosse apresentar sua proposta de candidatura à diretoria.

Já havia conversado sobre isso com o sobrinho. Entretanto, era um homem muito delicado para dizer que ela não seria escolhida para o cargo. O Egito começava a mudar, as mulheres emergiam de seus papéis tradicionais, mas não tanto e nem tão rápido. Ambos sabiam que a diretoria pertencia a Nahoot Guddabi.

Atalan acompanhou-a até a porta do escritório e apertou-lhe a mão. Royan saiu do ministério sentindo-se livre e aliviada. O Renault ficara sob o sol no estacionamento; quando ela abriu a porta, o calor lá dentro era insuportável. Foi preciso abrir os vidros e a porta do lado esquerdo para ventilar, e ainda assim ela queimou as costas e as pernas no forro do banco enquanto manobrava.

Ao cruzar o portão, o carro foi engolido pelo trânsito do Cairo. Royan estava atrás de um ônibus superlotado que soltava uma nuvem azulada de fumaça de diesel. O problema do trânsito era um dos que pareciam insolúveis. Havia tão poucos lugares para estacionar que os carros paravam em filas duplas ou triplas, atrapalhando o fluxo dos demais.

O ônibus freou, obrigando Royan a parar. Ela sorriu ao lembrar-se de uma velha piada: quem estaciona junto ao meio-fio tem de abandonar o carro, porque jamais conseguirá tirá-lo. Tinha algo de verdade, porque se via claramente que alguns carros deviam estar parados há várias semanas: completamente cobertos de pó, muitos deles tinham os pneus vazios.

Ela olhou pelo espelho retrovisor. Havia um táxi parado a poucos centímetros de seu pára-choque traseiro, e mais atrás vinha um bloco compacto de carros. Só os motociclistas tinham liberdade para se mover. Um deles driblava o congestionamento com uma soltura suicida. Era uma Honda 200cc tão empoeirada que não se distinguia a cor. Havia um passageiro na garupa, e tanto ele como o da frente tinham a boca e o nariz cobertos com um lenço para proteger-se da fumaça e da poeira.

Aproximando-se pela direita, a Honda meteu-se no pequeno espaço entre o táxi e os carros estacionados, sem nenhuma proteção lateral. O taxista fez um gesto obsceno com o polegar e o indicador, e evocou Alá como testemunha da loucura e estupidez dos motociclistas.

A moto diminuiu a velocidade quando emparelhou com o Renault de Royan, e o homem da garupa inclinou-se para jogar alguma coisa pelo vidro aberto do outro lado. No mesmo instante o condutor acelerou bruscamente, erguendo a roda dianteira do chão. Fez uma curva fechada em alta velocidade para entrar numa ruela que dava em outra avenida e por pouco não atropelou uma velha que atravessava a rua.

Num momento em que o da garupa olhou para trás, o vento ergueu a ponta do lenço que lhe cobria o rosto e Royan reconheceu instantaneamente o homem que vira sob os faróis do Fiat, na estrada do oásis.

— Yussuf!

Quando a Honda desapareceu, ela olhou o objeto no banco. Era oval, com a superfície segmentada pintada de verde-oliva. Já vira tantos filmes de guerra que reconheceu no mesmo instante a granada; então se deu conta de que a alça tinha sido retirada e a arma explodiria em segundos.

Num ato impensado, Royan puxou o trinco, jogou o corpo contra a porta e caiu na rua. Seu pé escorregou da embreagem e o carro deu um salto para a frente, batendo na traseira do ônibus estacionado.

Caída no chão sob as rodas de um carro, Royan viu a granada explodir e pela porta do motorista sair uma labareda, seguida de fumaça e detritos. O vidro traseiro se estilhaçou, espalhando cacos em toda a volta. Seus ouvidos zuniam.

Seguiu-se um silêncio atordoante, que só era quebrado pelo tilintar dos cacos de vidro caindo no chão, mas logo em seguida começaram os gemidos e gritos. Royan sentou-se, segurando o braço ferido contra o peito. Caíra sobre ele, e os pontos doíam muito.

O Renault estava destruído, mas ela viu que sua bolsa a tiracolo tinha sido atirada para fora e estava caída na rua, não muito longe de seu alcance. Conseguiu levantar-se com dificuldade e foi apanhá-la. Tudo em volta era confusão. Alguns passageiros do ônibus estavam feridos e um estilhaço de granada havia atingido uma menina na calçada. A mãe gritava e enxugava com um lenço o sangue no rosto da filha, que chorava e tentava se soltar.

Ninguém notara Royan, mas ela sabia que a polícia chegaria em poucos minutos, treinada para agir rapidamente em atentados do terror fundamentalista. Sabia também que se a encontrassem ali seria detida para interrogatório. Pendurou a bolsa no ombro e andou o mais rápido que sua perna machucada lhe permitia, em direção ao beco pelo qual a Honda tinha desaparecido.

No fim da rua havia um banheiro público. Ela se trancou em um dos cubículos e encostou-se na porta com os olhos fechados, tentando recuperar-se do choque e ordenar os pensamentos.

Com o sofrimento e a desolação pelo assassinato de Duraid, ainda não pensara em sua própria segurança. A consciência do perigo impusera-se da maneira mais selvagem. Lembrou-se, então, do que dissera um dos assassinos naquela noite: "A gente acaba pegando ela!"

O atentado contra sua vida fracassara por um triz. Era preciso estar atenta, porque haveria outros.

"Não posso voltar ao apartamento", pensou Royan. "A vila foi destruída, e é lá que vão me procurar."

Apesar do cheiro desagradável, ela continuou trancada no cubículo durante uma hora, tentando pensar no que faria em seguida. Por fim, saiu e foi para a fileira de pias. Lavou o rosto, penteou o cabelo, retocou a maquiagem e ajeitou as roupas da melhor maneira possível.

Andou alguns quarteirões, refazendo caminhos que já percorrera e olhando para trás para ter certeza de que ninguém a seguia, e por fim fez sinal para um táxi.

Pediu ao motorista que a deixasse na rua atrás de seu banco e fez o resto do caminho a pé. Foi logo atendida pelo subgerente. Tinha cerca de 5 000 libras egípcias na conta. Não era muito, mas havia um pouco mais na conta do Lloyd's Bank, em York, além de seu Mastercard.

— Devia ter avisado com antecedência que ia retirar um item de seu cofre de segurança — disse-lhe severamente o subgerente. Ela se desculpou e representou tão bem a jovem desinformada que ele a perdoou. Entregou-lhe um envelope contendo seu passaporte britânico e os papéis bancários do Lloyd's.

Duraid tinha vários parentes e amigos que teriam muito prazer em hospedá-la, mas Royan queria ficar fora de vista, longe dos lugares habituais. Escolheu um dos hotéis duas estrelas que ficavam distante do rio, onde esperava não ser reconhecida entre a multidão de anônimos. Nesse tipo de hotel há uma rotatividade muito grande, pois a maioria dos turistas fica apenas algumas noites antes de se mudar para o Luxor ou o Assuã, com vista para os monumentos.

Quando ficou sozinha em seu quarto de solteiro, ligou para o serviço de reservas da British Airways. Havia um vôo para o Aeroporto de Heathrow na manhã seguinte, às 10 horas. Ela reservou um lugar na classe econômica e deu o número do Mastercard.

Já passava das 6 da tarde no Egito, mas no Reino Unido ainda era horário comercial. Royan procurou na agenda o número da Universidade de Leeds, onde completara seus estudos. A ligação foi atendida ao terceiro toque.

— Departamento de Arqueologia. Escritório do Professor Dixon — anunciou uma típica secretária inglesa.

— É a Senhora Higgins?

— Sim, sou eu. Com quem estou falando?

— Sou Royan. Royan Al Simma, Said quando era solteira.

— Royan! Há quanto tempo não ouvimos falar de você! Como vai? Elas conversaram um pouco, mas Royan estava atenta ao preço da ligação.

— O professor está? — interrompeu.

O Professor Percival Dixon tinha mais de setenta anos e já devia estar aposentado.

— Royan? É você mesmo? Minha aluna preferida! — Ela sorriu. Ele ainda não perdera a mania de conquistador. As mais bonitas eram sempre suas preferidas.

— Estou fazendo uma ligação internacional, professor. Quero saber se sua oferta continua de pé.

— Achei que você tinha dito que não podia nos atender.

— As circunstâncias mudaram. Eu lhe contarei pessoalmente, se pudermos nos ver.

— É claro que sim. Vamos adorar recebê-la para conversar um pouco. Quando pretende estar aqui?

— Chegarei à Inglaterra amanhã.

— É muito rápido. Não sei se poderemos recebê-la tão cedo.

— Ficarei na casa de minha mãe em York. Deixe-me falar com a Senhora Higgins para dar o número do telefone. — Ele era um dos homens mais brilhantes que Royan conhecia, mas duvidava de que pudesse anotar corretamente um número de telefone. — Telefonarei dentro alguns dias.

Desligou e deitou-se na cama. Estava exausta, e seu braço ainda doía, mas queria que seu plano previsse todas as eventualidades.

Dois meses atrás o Professor Dixon a havia convidado para dar uma palestra sobre a descoberta e as escavações da tumba da rainha Lostris e os pergaminhos que foram encontrados. É claro que havia sido o livro, e principalmente as notas ao final, que chamara a atenção dele. A publicação despertara muito interesse. Tinham recebido questionários de egiptólogos amadores e profissionais do mundo inteiro, alguns de lugares tão distantes como Tóquio ou Nairóbi, todos questionando a autenticidade da história e de suas bases factuais.

Nessa época, ela se opôs a que um escritor de ficção tivesse acesso às transcrições, principalmente porque ainda estavam incompletas. Temia correr o risco de reduzir o que poderia ser um importante e sério assunto acadêmico ao nível do entretenimento popular, um pouco como o que Spielberg fizera à paleontologia com seu parque cheio de dinossauros.

No final, seus argumentos foram derrotados. Até Duraid ficou contra ela. Por dinheiro, é claro. O departamento jamais dispunha de verbas para dar prosseguimento a seus trabalhos menos espetaculares. Quando se tratava de algum plano grandioso, como o de mudar todo o templo de Abu Simmel para um local que não fosse atingido pela inundação da represa do Alto Assuã, países do mundo todo despejavam milhões de dólares. Entretanto, as despesas operacionais do dia-a-dia do ministério não atraíam tanto apoio.

A metade que lhes coube dos direitos autorais de O Último Deus do Nilo — o título do livro — financiara quase um ano de pesquisas, mas não foi suficiente para diminuir os receios de Royan. O autor tomara muitas liberdades com os fatos contidos no pergaminho e havia acrescentado às personagens históricas personalidades e fraquezas das quais não havia nenhuma prova. Particularmente, ela achava que Taita, o velho escriba, fora retratado como um fanfarrão afetado e vaidoso. Isso a magoou.

Mas era obrigada a admitir que o objetivo do autor fora tornar os fatos mais atraentes e compreensíveis para o grande público, apesar de sua relutância em concordar com isso. Entretanto, sua formação científica revoltava-se contra a popularização de algo que era único e maravilhoso.

Ela suspirou para afastar esses pensamentos. O mal estava feito, e pensar nisso só servia para irritá-la.

Voltou a concentrar-se nos problemas mais prementes. Se fosse mesmo dar a palestra para a qual fora convidada, precisaria dos slides, que ainda estavam em sua sala no museu. Enquanto tentava pensar na melhor maneira de pegá-los sem ter de fazê-lo pessoalmente, o cansaço a venceu e Royan adormeceu totalmente vestida, ao pé da cama.

Afinal, a solução de seu problema foi muito simples. Bastou ligar para o escritório da administração, pedir que alguém pegasse as caixas de slides em sua sala e que um dos funcionários as levasse de táxi ao aeroporto.

Ele entregou-lhe as caixas no balcão da British Airways e disse: — A polícia esteve no museu esta manhã. Queriam falar com a senhora, doutora.

Obviamente haviam conseguido o registro do Renault destruído. Por sorte ela estava com seu passaporte inglês. Se tentasse sair do país com documentos egípcios, seria impedida — provavelmente a polícia já se comunicara com todos os pontos de controle de passaportes. O jornal El Arab trazia na primeira página uma foto dela com Duraid, tirada um mês antes, durante a recepção a um grupo de agentes de turismo franceses.

Ela sentiu uma profunda dor ao ver a foto de seu marido, tão bonito e tão nobre, e ela de braço dado com ele, sorrindo-lhe. Comprou vários jornais e embarcou.

Durante a viagem, passou a maior parte do tempo escrevendo tudo o que conseguia lembrar do que Duraid lhe dissera sobre o homem com quem ia encontrar-se. Escreveu no alto da página: "Sir Nicholas Quenton-Harper (Bart)". Duraid lhe contara que o avô de Nicholas tinha sido recompensado com o título de baronete por seu trabalho como oficial de carreira do serviço colonial britânico. Por três gerações sua família mantivera fortes laços com a África, especialmente com as colônias britânicas e os círculos influentes no norte do continente: Egito, Sudão, Uganda e Quênia.

Segundo Duraid, Sir Nicholas tinha servido na África e nos países do Golfo com o Exército britânico. Era fluente em árabe e suaíle, a língua dos bantos, e notável arqueólogo e zoólogo amador. Como o pai, o avô e o bisavô, também fizera expedições ao norte da África para coletar espécimes e explorar as regiões mais remotas. Escrevera inúmeros artigos para publicações científicas e dera uma palestra na Royal Geographical Society.

Seu irmão mais velho morrera na infância, por isso Sir Nicholas herdou o título e a propriedade da família em Quenton Park. Retirou-se do exército para cuidar de seus bens, mas principalmente para supervisionar o museu da família, que fora inaugurado em 1885 por seu bisavô, o primeiro baronete. Esse museu abrigava uma das maiores coleções particulares de fauna africana, tão famosa quanto seu acervo de artefatos do antigo Egito e do Oriente Médio.

Entretanto, pelo que Duraid contara, concluía-se que devia existir na personalidade de Sir Nicholas um lado selvagem, até mesmo marginal. Era sabido que ele não tinha medo de correr riscos extraordinários para aumentar sua coleção em Quenton Park.

Duraid o conhecera há alguns anos, quando Sir Nicholas o recrutara para agir como espião em uma expedição ilícita cuja finalidade era "liberar" várias peças púnicas da Líbia de Khadafi. Sir Nicholas vendera algumas delas para custear as despesas da expedição e mantivera as melhores em sua coleção particular.

Mais recentemente, participara de outra expedição, dessa vez envolvendo a travessia ilegal da fronteira do Iraque, para retirar um par de frisos de pedra em baixo-relevo, sob o nariz de Saddam Hussein.

Duraid contou a ela que Sir Nicholas vendera um deles por uma grande quantia; chegou a mencionar algo como 5 milhões de dólares. Contou também que ele usara o dinheiro na administração do museu, mas que o segundo friso, o melhor, continuava com ele.

Essas duas expedições aconteceram anos antes de Royan conhecer Duraid, e ela se perguntava por que seu marido se havia comprometido tanto com esse inglês. Sir Nicholas devia ter um fantástico poder de persuasão, pois se fossem apanhados em flagrante sem dúvida seriam executados sumariamente.

Mas Duraid lhe explicara que em ambas as ocasiões haviam contado com os inúmeros recursos de Nicholas e sua rede de amigos e admiradores em todo o Oriente Médio e norte da África, aos quais sempre recorria quando necessário.

— Ele é um demônio. — Duraid balançava a cabeça, demonstrando uma saudade evidente. — Mas o homem certo para empresas arriscadas. Por mais excitante que fosse naquele tempo, hoje, quando me lembro, tremo diante dos perigos que corremos.

Royan sabia muito bem dos riscos que um verdadeiro colecionador era capaz de correr pelo objeto de sua paixão. Quando conseguia acrescentá-lo aos outros que possuía, esses riscos pareciam insignificantes. A aventura em que ela esperava envolver Sir Nicholas não era exatamente segura, e Royan supunha que um grupo de advogados pudesse debater sua legalidade infinitamente.

Sorrindo diante desses pensamentos, ela adormeceu; a tensão dos últimos dias havia atingido seu ponto máximo. A comissária de bordo acordou-a para afivelar o cinto de segurança e preparar-se para a aterrissagem em Heathrow.

Royan ligou do aeroporto para a mãe. — Oi, mamãe, sou eu. — Sim, eu sei. Onde você está, meu amor? Está tudo bem?

— Estou em Heathrow. Vou ficar um tempo com você, pode ser?

— Pensão Lumley, às ordens! Já vou arrumar sua cama. Em que trem chegará?

— Dei uma olhada nos horários. Vem um de King's Cross que me deixará em York às sete da noite.

— Vou buscá-la na estação. O que aconteceu? Você e Duraid brigaram? Ele poderia ser seu pai... Eu disse que não daria certo.

Royan ficou em silêncio. Não era momento para explicações.

— Conversaremos sobre isso depois.

Georgina Lumley esperava na plataforma no final da tarde de novembro cinzenta e fria. Era uma mulher sólida e volumosa, vestida num velho casaco verde; a seu lado estava Magic, um cocker spaniel, sentado obedientemente a seus pés. Os dois formavam um par inseparável, mesmo quando não estavam vencendo competições caninas. Para Royan, os dois compunham a imagem reconfortante e familiar de sua ascendência inglesa.

Georgina deu um beijo superficial no rosto de Royan.

— Nunca fui dada a exageros sentimentais — ela sempre dizia. Pegou a mala de Royan e seguiu na frente para o estacionamento, onde estava o velho Land Rover respingado de lama.

Magic cheirou a mão de Royan e balançou o rabo, reconhecendo-a. Depois, concedeu que ela lhe afagasse a cabeça, mas, como sua dona, também não era dado a sentimentalismos.

Na estrada, depois de algum tempo de silêncio, Georgina acendeu um cigarro.

— O que aconteceu com Duraid?

Royan não conseguiu responder imediatamente; de repente, suas comportas interiores se romperam e tudo transbordou. Era uma viagem de vinte minutos de York ao vilarejo de Brandsbury, durante a qual ela não parou de falar. A mãe apenas emitia sons de encorajamento e conforto, e ao ouvir os detalhes da morte e do enterro de Duraid estendeu a mão e bateu de leve na da filha.

Tudo estava terminado quando chegaram ao chalé em que a mãe morava, no vilarejo. Royan havia chorado o suficiente, e já estava recomposta quando se sentaram para comer o jantar que ficara esperando no forno. Não se lembrava da última vez em que havia comido torta de rim e carne.

— E o que vai fazer agora? — Georgina perguntou, despejando o que restava da garrafa escura de cerveja Guinness em seu copo.

— Para falar a verdade, não sei. — No mesmo instante lhe ocorreu que as pessoas sempre utilizam essa frase para começar uma mentira. — Tenho seis meses de licença no museu, e o Professor Dixon quer que eu dê uma palestra na universidade. É só o que sei até agora.

— Bem — disse Georgina —, há uma bolsa de água quente na sua cama, e o quarto é seu pelo tempo que quiser. — Vindo dela, isso era tão bom quanto uma declaração apaixonada de amor materno.

Nos dias que se seguiram Royan organizou os slides e anotações para a palestra, e todas as tardes acompanhava Georgina e Magic em suas longas caminhadas pelos campos vizinhos.

— Conhece Quenton Park? — ela perguntou à mãe durante um dos passeios que faziam.

— E como! — respondeu a mãe entusiasmada. — Magic e eu vamos lá quatro ou cinco vezes na temporada. Tem caça de primeira. Os melhores faisões e perdizes de Yorkshire. Há uma trilha chamada High Larches, que é muito famosa. Os pássaros voam tão alto que frustram as melhores pontarias da Inglaterra.

— Conhece o proprietário, Sir Nicholas Quenton-Parker?

— Já o vi algumas vezes. Não o conheço. É um bom caçador, sem dúvida — respondeu Georgina. — Conheci o pai dele antes de conhecer seu pai. — Ela sorriu de um modo tão sugestivo que Royan se espantou. — Bom dançarino. Dançamos algumas vezes juntos, e não apenas danças de salão.

— Mamãe, você é terrível! — Royan riu.

— Fui — a mãe concordou prontamente. — Não tenho mais tantas oportunidades.

— Quando você e Magic irão de novo a Quenton Park?

— Daqui a duas semanas.

— Posso ir também?

— É claro, estão sempre querendo novos batedores para assustar a caça. Pagam vinte libras por dia, mais almoço com uma garrafa de cerveja. — Ela parou e olhou curiosa para a filha. — Afinal, por que tudo isso?

— Ouvi dizer que há um museu particular na propriedade. Possui uma coleção egípcia mundialmente famosa. Queria dar uma olhada.

— Não está mais aberto ao público. Somente para convidados. Sir Nicholas é um sujeito estranho e misterioso.

— Você conseguiria um convite para mim? Georgina balançou a cabeça negativamente.

— Por que não pede ao Professor Dixon? Ele também caça lá em Quenton Park, e é muito amigo de Quenton-Harper.

Demorou dez dias para que o Professor Dixon se dispusesse a recebê-la. Royan pegou emprestado o Land Rover da mãe e foi até Leeds. O professor deu-lhe um abraço afetuoso e levou-a para tomar chá em sua sala.

Voltar àquela sala repleta de livros, papéis e objetos antigos deu-lhe saudade dos bons tempos de estudante. Royan contou a Dixon sobre o assassinato de Duraid, o que o deixou triste e chocado, mas logo ela começou a falar dos slides que preparara para a palestra. Ele ficou fascinado com tudo o que ela tinha a mostrar.

Antes de sair, Royan aproveitou uma oportunidade para abordar o assunto da visita ao museu de Quenton Park, e ele reagiu imediatamente:

— Surpreende-me que nunca o tenha visitado quando estudava aqui. É uma coleção impressionante. Pertence à família há mais de cem anos. Acabo de me lembrar que vou caçar na propriedade na próxima quinta-feira. Posso falar com Nicholas. Só que meu pobre amigo não anda muito bem. Há um ano sofreu uma terrível tragédia pessoal. Perdeu a mulher e duas filhas num acidente de carro na rodovia Ml. — Ele balançou a cabeça. — Coisa terrível! Nicholas estava dirigindo. Acho que se culpa por isso. — O professor acompanhou-a até o carro.

— Então a veremos no dia 23 — ele disse ao se despedir. — Espero uma platéia de no mínimo cem pessoas, e um repórter do Yorkshire Post me procurou. Ouviram falar de suas palestras e querem entrevistá-la. É boa publicidade para o departamento. Você dará a entrevista, é claro. Poderia chegar um pouco mais cedo?

— Provavelmente nos veremos antes do dia 23 — disse-lhe Royan. — Mamãe e seu cão estão inscritos em Quenton Park na quinta-feira. Ela me escalou como batedor nesse dia.

— Ficarei de olho em você — ele prometeu, e acenou enquanto ela se distanciava atrás de uma nuvem de óleo queimado.

O vento norte soprava gélido. As nuvens esbarravam umas nas outras, pesadas, azuis e cinzentas, tão perto da terra que tocavam o cume das montanhas. Royan tinha três camadas de roupa por baixo do casaco verde que a mãe lhe emprestara, e mesmo assim tremia de frio quando chegou ao alto da montanha, compondo a linha de batedores. Seu sangue se tornara mais fino ao calor do Vale do Nilo. Dois pares de meias de pescador não eram suficientes para impedir que os dedos dos pés ficassem amortecidos.

Para essa rodada, a última do dia, Georgina fora deslocada de sua posição habitual para trás da linha de tiro, onde ela e Magic deviam recolher os pássaros feridos que viessem na direção deles, depois da linha de batedores.

Deixando o melhor para o fim, agora percorriam High Larches. O coordenador necessitava de muitos homens e mulheres para encontrar os faisões na grande área sobre as colinas e empurrá-los para o vale, onde os atiradores esperavam suas presas.

Royan considerava o exemplo supremo do comportamento ilógico criar e alimentar os faisões desde que nasciam e depois, quando estavam maduros, dar-se a tanto trabalho para matá-los de maneira tão difícil. Georgina lhe explicara que quanto mais alto voassem os pássaros e mais difícil fosse abatê-los, mais os esportistas apreciavam e pagavam por esse privilégio.

— Você não acredita o que eles conseguem arrecadar em um único dia — disse-lhe Georgina. — Só hoje vai render mais de catorze mil libras à propriedade. São vinte e um dias de caça nesta temporada. Basta fazer os cálculos para ver que a caça é a maior fonte de renda da propriedade. Além da diversão de treinar os cães e da perseguição, isso dá a nós, os vizinhos, um bom dinheiro extra.

A essa altura do dia Royan não tinha mais certeza se achava tão divertida a função de batedor. A caminhada era difícil no matagal, e ela já escorregara mais de uma vez. Seus joelhos e cotovelos estavam sujos de lama. Viu então à sua frente uma vala com água pela metade, coberta por uma fina camada de gelo. Ela se aproximou cautelosamente, equilibrando-se com a ajuda de uma bengala. Essa já era a quinta rodada, todas igualmente difíceis. Ela deu uma olhada para a mãe e perguntou-se como alguém conseguia apreciar aquela tortura. Georgina estava feliz da vida e comandava Magic com assobios e sinais.

Ela abriu um sorriso largo para Royan:

— Ultima etapa, querida. Está quase terminando.

Royan sentiu-se humilhada por sua exaustão ser tão óbvia, e apoiou-se na bengala para saltar a vala enlameada. Porém calculou mal a distância e desceu antes da outra margem. Caiu de joelhos e a água gelada escorreu para dentro das botas de cano alto.

Georgina riu e ofereceu-lhe a ponta de sua bengala para ajudá-la a sair da lama. Royan não podia interromper a fila, parando para esvaziar as botas encharcadas, então continuou como estava.

— Alinhar à esquerda! — a ordem foi transmitida pelo coordenador pelo walkie-talkie, e a fila parou imediatamente.

A arte e a habilidade de um batedor de caça consistia em espantar os pássaros que se escondiam no emaranhado de vegetação rasteira, não todo o bando, mas aos poucos, de modo que voassem sobre os atiradores sozinhos ou aos pares, e eles tivessem tempo, depois de dois tiros, de empunhar uma segunda arma carregada e preparar-se para o próximo pássaro que surgisse no céu. A reputação do batedor e sua gorjeta dependiam de como ele "levantava" as aves para os atiradores atentos.

Durante esse intervalo, Royan conseguiu recuperar o fôlego e olhar ao redor. Por uma abertura entre os pinheiros, ela enxergou o vale lá embaixo.

Havia uma clareira no sopé das montanhas, uma extensão de relva verde interrompida por manchas de neve cinzenta que caíra na semana anterior. Ao longo dessa campina o coordenador colocara uma fileira de estacas. No início do dia os atiradores haviam sorteado os números de estacas onde se posicionariam.

Agora cada homem estava junto à sua estaca, acompanhado de seu carregador de munição, que trazia a segunda arma carregada, pronta para ser usada quando a primeira se esvaziasse. Todos olhavam para cima, onde o faisão iria aparecer.

— Qual deles é Sir Nicholas? — Royan perguntou à mãe, e Georgina apontou para o lado mais distante da fila de atiradores.

— O mais alto — disse ela, e nesse momento o coordenador ordenou pelo rádio:

— Bem devagar à esquerda. Comecem a bater outra vez. — Os batedores começaram a bater as bengalas. Ninguém gritava ou fazia ruídos durante a operação delicada e rigidamente controlada.

— Devagar para a frente. Parem quando os pássaros voarem.

Passo a passo, a fila toda se movia; Royan ouvia no meio da vegetação e das samambaias o tumulto furtivo dos faisões fugindo, mas evitando voar até que fossem obrigados.

Havia outra vala no caminho, esta coberta por touceiras quase impenetráveis. Alguns dos cães maiores, como os labradores, não conseguiram atravessar. Georgina assobiou e as orelhas de Magic se ergueram. Ele estava ensopado, e sua capa se transformara num amontoado de lama, gravetos e espinhos. A língua rosada pendia do lado da boca aberta e o toco do rabo abanava freneticamente. Nesse instante ele era o cão mais feliz da Inglaterra. Ia fazer o trabalho para o qual nascera.

— Vá, Magic — ordenou Georgina. — Entre lá. Faça-os sair.

Magic mergulhou no emaranhado de galhos e espinhos e desapareceu totalmente de vista. Passou um minuto cavando e farejando, e em seguida ouviu-se um crocitar violento e um vigoroso bater de asas.

Um par de aves explodiu dos arbustos. A fêmea saiu na frente. Era uma espécie pardacenta e indefinida, do tamanho de uma ave doméstica, diferente do macho magnífico que a seguia de perto. Este tinha a cabeça verde-iridescente, os lados do bico e a papada escarlates. O rabo, em faixas cor de canela e pretas, tinha quase o tamanho do corpo, e sua plumagem era uma profusão de cores maravilhosas.

Ao alçar vôo ele brilhou contra o céu cinzento como uma jóia de valor incalculável atirada pela mão de um imperador. Royan ficou boquiaberta diante de tanta beleza.

— Veja que lindo! — Georgina não conteve a excitação. — Que casal de primeira! O melhor do dia. Aposto que nenhuma dessas armas acertará uma única pena deles.

Alto, cada vez mais alto, os dois pássaros subiam, com a fêmea conduzindo o macho, até que um vento quente no alto das montanhas os levou para o vale.

A fila de batedores desfrutou o momento. Haviam trabalhado duro para consegui-lo. Todos falavam alto para espantar os pássaros. Preferiam ver os faisões fora do alcance das armas.

— Para a frente — gritavam. — Para cima! — E dessa vez a fila parou espontaneamente para acompanhar o casal levado pelo vento.

No fundo do vale, olhando para cima, os atiradores eram pequenas manchas pálidas sobre o fundo verde. A tensão deles era quase palpável ao observar os faisões atingir a velocidade máxima, parar de bater as asas, mantendo-as fechadas, e iniciar a descida para o vale.

Esse era o tiro mais difícil para qualquer atirador. Um belo par de faisões com a ventania a empurrá-los por trás, entrando na linha de tiro na última fase do vôo e passando rente às armas de 12 milímetros. Os homens lá embaixo calculavam a velocidade e a direção nas três dimensões do espaço. O melhor deles podia esperar acertar um pássaro, mas ninguém ousaria cobiçar os dois.

— Aposto uma libra! — declarou Georgina. — Uma libra como eles não vão conseguir. — Mas nenhum dos batedores aceitou o desafio.

O vento empurrava os pássaros para o lado. Eles começaram voando para o centro da linha de atiradores, mas estavam sendo levados para a extremidade mais distante. Royan viu os homens se retesar em suas posições quando as aves pareciam voar na direção deles, e relaxar quando o vento as levou. Foi claro seu alívio quando, um após o outro, eles desistiram do desafio de dar um tiro impossível com tanta gente olhando.

No final, somente uma figura alta, na extremidade da fila, estava no trajeto dos pássaros.

— O pássaro é seu, senhor — um dos atiradores gritou, e Royan prendeu instintivamente a respiração.

Nicholas Quenton-Harper parecia não notar que os faisões se aproximavam. Estava totalmente descontraído, meio curvado para a frente, a arma sob o braço direito, com o cano apontado para baixo.

No momento em que a fêmea alcançou um ponto no céu a 60 graus de sua cabeça, ele finalmente se moveu. Com uma graça natural, desenhou um arco com o cano da arma, e no instante em que o cabo encostou no rosto e em seu ombro, ele completou o arco com um tiro.

Devido à distância, o som demorou a chegar até Royan. Ela só percebeu o coice da arma e uma fumaça azulada saindo do cano. Sir Nicholas baixou o rifle, a cabeça da fêmea dobrou-se para trás e as asas se fecharam. Não haveria falhas de penas em seu corpo, pois ele acertara a cabeça e o pássaro morrera instantaneamente. Só quando ele iniciou seu longo mergulho Royan ouviu o estampido.

O macho estava agora bem acima de Nicholas. Dessa vez, ao se preparar com a mesma naturalidade, ele curvou a cintura para trás e apontou para cima, formando um arco retesado com o corpo longilíneo. Mais uma vez, no ápice do giro a arma deu um coice para trás. Ele errou, pensou Royan, com um misto de satisfação e desapontamento, ao ver que o macho continuava planando, aparentemente intocado. Uma parte dela queria que o belo animal escapasse, enquanto a outra queria que o homem vencesse. Aos poucos o perfil do pássaro se alterou: as asas fecharam-se e ele começou a rolar no céu. Royan não sabia que o coração do pássaro fora atingido, até que segundo depois ele morreu em pleno ar e suas asas, antes bem fechadas, se abriram.

Quando ele caiu ao chão, um coro espontâneo de vivas percorreu a linha de batedores, fraco mas emocionado sob o gélido vento norte. Os atiradores engrossaram o coro com gritos de "Ótimo tiro, senhor!"

Royan não se juntou às comemorações, mas por um momento elas a fizeram esquecer o frio e a fadiga. Conseguia avaliar vagamente a habilidade demonstrada por aqueles dois tiros, mas não podia negar que estivesse impressionada, até mesmo admirada. A sua primeira visão daquele homem preenchera todas as expectativas que as histórias contadas por Duraid haviam suscitado nela.

A caçada terminou quase de noite. Um velho caminhão do Exército apareceu na trilha que atravessava a floresta e parou ao lado dos cansados batedores e seus cães. Todos saltaram para a carroceria. Georgina empurrou Royan por trás e subiu em seguida com Magic. Foi um prazer sentar no banco duro. Georgina acendeu um cigarro e aderiu à conversa animada dos coordenadores e batedores.

Royan ficou quieta em seu lugar, sentindo-se vitoriosa por ter conseguido chegar ao fim daquele dia extenuante. Estava cansada, descontraída e estranhamente feliz. Durante o dia inteiro conseguira não pensar no roubo do pergaminho, nem no assassinato de Duraid, nem no inimigo desconhecido e invisível que a ameaçava.

O caminhão desceu a montanha e no fim diminuiu a velocidade para dar passagem a um Range Rover verde. Quando os veículos ficaram emparelhados, ela se virou para ver quem estava dentro e deu de cara com Nicholas Quenton-Harper ao volante, também olhando para ela.

Pela primeira vez Royan o via suficientemente de perto para distinguir suas feições. Era muito mais jovem do que ela esperava. Pensou que tivesse a idade de Duraid, mas ele não devia ter mais de quarenta anos, pois os fios brancos mal começavam a aparecer nos lados da farta cabeleira. Suas feições eram bem marcadas, típicas de pessoas que se expõem muito ao sol. Grossas sobrancelhas contornavam os penetrantes olhos verdes. A boca era grande e expressiva, e ele estava rindo de alguma coisa que o motorista do caminhão falava num forte sotaque de Yorkshire. Mas havia em seu olhar uma trágica tristeza. Royan lembrou-se do que o professor lhe havia contado sobre a tragédia de sua família, e sentiu-se solidária. Ela não estava sozinha em sua perda e sua dor.

Quando ele a viu, sua expressão mudou. Royan era uma mulher atraente, e sabia quando um homem reconhecia isso. Ele também a impressionara, mas disso ela não gostou. A perda de Duraid era muito recente e ainda lhe doía muito. Royan desviou o olhar e o Range Rover seguiu em frente.

A palestra de Royan na universidade foi um sucesso. Boa oradora e íntima conhecedora do assunto, deixou a platéia fascinada ao relatar a abertura da tumba da rainha Lostris e a subseqüente descoberta dos pergaminhos. Muitos dos presentes haviam lido o livro, e depois da exposição ela foi questionada insistentemente sobre a veracidade da história. Foi preciso ter muito cuidado com as respostas para não ser indelicada com o autor.

Depois da palestra, o Professor Dixon convidou Royan e Georgina para jantar. Ele estava maravilhado com o sucesso, e quis celebrar com o mais caro clarete da carta de vinhos. Mas decepcionou-se quando Royan recusou a taça.

— Oh, esqueci que você é muçulmana — ele se desculpou.

— Copta — ela corrigiu —, e não se trata de princípio religioso. Realmente não gosto.

— Não se preocupe — Georgina avisou-lhe. — Não tenho a mesma tendência ao masoquismo que minha filha. Deve ter herdado isso do pai. Eu o ajudarei a cuidar da garrafa.

Sob a influência do vinho, o professor tornou-se mais expansivo e divertiu-as contando sobre as escavações arqueológicas de que participara. Somente depois do café ele disse a Royan:

— Quase ia me esquecendo. Você pode visitar o museu de Quenton Park em qualquer tarde desta semana. Basta telefonar à Senhora Street na véspera, que ela a deixará entrar. É a assistente de Nicholas.

Royan lembrava-se bem do caminho, e dessa vez foi sozinha a Quenton Park. Pesados portões de ferro ornamentado marcavam a entrada da propriedade. Mais adiante, o caminho se bifurcava, e um poste de sinalização apontava para vários destinos: "Quenton Hall: Particular"; "Administração da Propriedade"; "Museu".

A estrada para o museu passava por dentro do parque dos cervos, onde manadas pastavam sob os carvalhos desfolhados pelo inverno. Através da paisagem brumosa ela vislumbrou a casa grande. De acordo com o guia que o professor lhe dera, Sir Christopher Wren a havia desenhado em 1693, e o grande paisagista Capability Brown criara os jardins sessenta anos depois. O resultado era uma perfeição.

O museu ficava no meio de um bosque de faias acobreadas. Havia outros prédios interligados, que obviamente haviam sido acrescentados posteriormente. A Sra. Street estava esperando por ela na porta e apresentou-se enquanto a introduzia na casa. Era uma mulher de meia-idade, já grisalha e segura de si.

— Ouvi sua palestra na segunda-feira. Foi fascinante! Temos um guia, se precisar, mas as peças estão bem catalogadas e descritas. Passei vinte anos fazendo isso. Não temos outros visitantes hoje. O lugar é todo seu, passeie quanto quiser. Ficarei aqui até as cinco da tarde, portanto tem a tarde toda. Se eu puder ajudá-la em alguma coisa, meu escritório fica no final do corredor. Por favor, não hesite em fazê-lo.

No primeiro instante em que Royan pisou na exposição de mamíferos africanos ficou enfeitiçada. A sala dos primatas abrigava uma coleção completa de espécies de macacos de todo o continente: desde o grande gorila prateado ao delicado colobus, com seu longo manto de pêlos negros e brancos, todos estavam ali representados.

Embora algumas peças tivessem mais de cem anos de idade, estavam muito bem preservadas e lindamente expostas em dioramas que representavam seu habitat. Era óbvio que o museu tinha uma equipe de artistas e taxidermistas habilidosos. Imagine quanto isso não custaria!

Por fim Royan decidiu que os 5 milhões de dólares obtidos pelo friso de pedra tinham sido bem gastos.

Em seguida veio a sala dos antílopes, e ela ficou maravilhada diante dos magníficos animais ali preservados. Parou diante do diorama com uma família de gigantescos antílopes negros, a variedade angolana já extinta dos Hippotragus niger variani. Ao mesmo tempo que admirava o animal de dorso negro e peito alvo como a neve, de chifres longos retorcidos para trás, lamentava sua morte nas mãos de um Quenton-Harper. Então reconsiderou. Não fosse a estranha paixão e dedicação do caçador-colecionador que o matara, talvez as novas gerações não tivessem a oportunidade de ver sua figura régia.

Ela passou então à próxima sala, onde estavam expostos os elefantes africanos, mas parou no meio do aposento diante de um par de presas de marfim tão grandes que era difícil acreditar que pudessem ser carregadas por um animal. Lembravam colunas de mármore de um templo helênico de Diana, a deusa da caça. Ela leu a ficha impressa:

Presas do elefante africano, Loxodonta africana. Abatido no Enclave de Lado em 1899 por Sir Jonathan Quenton-Harper. Presa esquerda: 130 kg. Presa direita: 135 kg. Comprimento da presa maior: 3,40 m. Circunferência: 80 cm. O maior par de presas já obtido por um caçador europeu.

Eram duas vezes mais altas que ela e mais grossas que a circunferência de sua cintura. Enquanto Royan passava à sala egípcia, pensava com espanto no tamanho e na força do animal que as carregava.

Então estancou, quando seus olhos se depararam com a figura que se erguia no centro da sala. Era uma estátua de 5 metros de altura de Ramsés II, representado como o deus Osíris, em granito vermelho polido. O deus-imperador caminhava vigorosamente, de sandálias nos pés e saiote curto. Levava na mão esquerda os vestígios de um arco de guerra, cujas pontas estavam quebradas. Era o único dano que a estátua sofrera em milhares de anos. O resto estava perfeito — o pedestal ainda guardava as marcas do cinzel. Na mão esquerda, o faraó levava um sinete gravado com seu cartucho real. Sobre a majestosa cabeça usava a alta coroa dupla, do Alto e Baixo Reinos. Tinha uma expressão calma e enigmática.

Royan reconheceu a estátua instantaneamente, pois havia uma idêntica no grande átrio do Museu do Cairo, pela qual passava diariamente a caminho de sua sala.

Sentiu a raiva crescer por dentro. Era um dos maiores tesouros do seu Egito, roubada de um dos sítios sagrados do país. Não podia estar naquele lugar. Pertencia à margem do grande Rio Nilo. Ela tremeu de emoção ao se aproximar da estátua, para examiná-la mais de perto e ler a inscrição em hieroglifos na sua base.

O cartucho real destacava-se no centro da arrogante advertência: "Sou o divino Ramsés, mestre de 10 000 carros de guerra. Temei-me, ó inimigos do Egito".

Não foi Royan quem traduziu em voz alta, mas outra voz tranqüila e profunda, atrás dela, que a assustou. Não escutara ninguém se aproximar. Ela virou-se, e ele estava tão perto que podia tocá-la.

Estava com as mãos enfiadas nos bolsos de um cardigã azul, que tinha um buraco no cotovelo. Usava calça de jeans azul desbotado e surrado e sapatilhas com monograma — uma espécie de elegância despojada, cultivada por certos ingleses que pareciam nunca se preocupar com a aparência.

— Desculpe. Não quis assustá-la. — Ele exibiu um sorriso preguiçoso: tinha dentes muito brancos, mas ligeiramente desalinhados. Sua expressão mudou no instante em que a reconheceu.

— Ah, é você! — Ela deveria envaidecer-se por ter sido lembrada após um contato tão fugaz, mas tornou a ver nos olhos dele o mesmo brilho que antes a repelira. Mas não pôde recusar a mão que ele lhe oferecia. — Nick Quenton-Harper — apresentou-se. — Deve ser a ex-aluna de Percival Dixon. Acho que a vi na caçada quinta-feira. Não estava batendo para nós?

Diante de sua amabilidade e espontaneidade, ela sentiu as defesas ruírem.

— Sim, sou Royan Al Simma. O senhor conheceu meu marido, Duraid Al Simma.

— Duraid! E claro que o conheço. Grande e velho amigo. Passamos muito tempo juntos no deserto. É um dos melhores. Como está ele?

— Ele morreu. — Ela não pretendia ser tão fria e tão direta, mas não encontrou outra resposta para dar.

— Sinto muitíssimo! Não sabia disso. Quando e como isso aconteceu?

— Muito recentemente. Há três semanas. Ele foi assassinado.

— Oh, meu Deus! — Ele a olhou com simpatia, e Royan lembrou-se de que também sofria. — Telefonei para ele no Cairo menos de quatro meses atrás. Estava encantador como sempre. Encontraram a pessoa que fez isso?

Ela fez que não com a cabeça e virou-a para o outro lado para não revelar as lágrimas.

— O senhor tem uma bela coleção.

Ele aceitou imediatamente a mudança de assunto.

— Graças ao meu avô, principalmente. Ele fez parte da equipe de Evelyn Baring — chamado por seus muitos inimigos de "o despótico". Foi preposto inglês no Cairo durante...

Ela o interrompeu:

— Sim, ouvi falar de Evelyn Baring, o primeiro Duque de Cromer, cônsul-geral inglês no Egito de 1883 a 1907. Com seus poderes plenipo-tenciários, foi um ditador incontestável de meu país durante esse período. Fez inúmeros inimigos, como o senhor mesmo diz.

Os olhos de Nicholas se estreitaram.

— Percival me disse que você foi uma de suas melhores alunas. Não contou, entretanto, que tinha sentimentos nacionalistas tão fortes. É claro que eu não precisava traduzir Ramsés para você.

— E meu pai pertenceu à equipe de Gamai Abdel Nasser — ela murmurou. Nasser fora o homem que destronara o rei-fantoche Farouk e finalmente rompera com o poderio britânico no Egito. Como presidente, nacionalizou o Canal de Suez, enfrentando a reação dos ingleses.

— Ah! — ele riu. — Estamos em lados opostos do caminho. Mas as coisas mudaram. Espero não ser seu inimigo.

— Absolutamente — ela concordou. — Duraid o estimava muito.

— E eu a ele. — Nicholas mudou de assunto rapidamente: — Temos muito orgulho de nossa coleção de ushabti reais. Temos exemplares das tumbas de todos os faraós do Antigo Reino em diante, até o último dos Ptolomeus. Venha ver. — Ela o seguiu até uma grande vitrine que ocupava toda a extensão de uma das paredes do saguão. Os bonecos, que eram colocados nas tumbas para servir de criados e escravos aos reis mortos no mundo das sombras, estavam expostos em inúmeras prateleiras.

Com a própria chave Nicholas abriu as portas envidraçadas e estendeu o braço para pegar uma das peças mais interessantes.

— Este é o ushabti de Maya, que serviu a três faraós, Tutancâmon, Ay e Horemheb. Estava no túmulo de Ay, que morreu em 1343 a.C.

Ele lhe entregou o boneco, e ela leu em voz alta os hieroglifos de 3 000 anos de idade com a mesma facilidade com que lia as manchetes dos jornais:

— "Sou Maya, tesoureiro dos dois reinos. Responderei ao divino Faraó Ay. Que ele viva para sempre!" — Ela falou em árabe para testá-lo, e a resposta na mesma língua foi fluente e coloquial:

— Acho que Percival Dixon disse a verdade. Você deve ter sido uma discípula excepcional.

Unidos pelo interesse comum e falando alternadamente árabe e inglês, as primeiras fagulhas de antagonismo logo desapareceram. Eles percorreram a sala devagar, demorando-se diante de cada vitrine, examinando minuciosamente seu conteúdo.

Foram transportados há milênios atrás. Horas e dias pareciam insignificantes diante de tanta antigüidade, por isso os dois se assustaram quando a Sra. Street os interrompeu:

— Estou saindo agora, Sir Nicholas. O senhor mesmo trancará a porta e ligará o alarme? Os guardas de segurança já estão a postos.

— Que horas são? — Nicholas perguntou a si mesmo, olhando para o Rolex Submarine de aço em seu pulso. — Quatro e quarenta, já? O que foi que aconteceu com o dia? — Ele suspirou de forma teatral. — Sim, pode ir, Senhora Street. Desculpe mantê-la aqui até agora.

— Não se esqueça de ligar o alarme — ela o advertiu, e voltou-se para Royan: — Ele se esquece de tudo quando sai por aí a cavalo. — O orgulho que ela sentia do patrão era comparável ao de uma tia indul-gente.

— Já me deu ordens suficientes por hoje. Vá agora. — Nicholas estava rindo quando se virou para Royan. — Não pode ir embora sem conhecer o que Duraid e eu conseguimos juntos. Pode ficar mais um pouco? — Ela concordou. Nicholas estendeu a mão para pegar seu braço, mas se conteve. No mundo árabe é um insulto tocar uma mulher, mesmo que seja de maneira casual. Ela percebeu a cortesia.

Passaram por outras salas e chegaram diante de uma porta onde se lia: "Entrada Privativa". Atravessaram um longo corredor e entraram numa sala.

— O santuário. — Ele a fez entrar. — Desculpe a desordem. Estou precisando parar para arrumar tudo isso um dia desses. Minha mulher costumava... — Ele parou bruscamente e olhou para a fotografia da família num porta-retrato de prata sobre a mesa. Nicholas e uma bela morena estavam sentados numa esteira de piquenique sob um carvalho. Havia com eles duas meninas, muito parecidas com a mãe. A mais nova estava sentada no colo de Nicholas e a outra, atrás, segurava as rédeas de seu pônei Shetland. Royan olhou de relance e viu em Nicholas uma tristeza devastadora.

Para não embaraçá-lo, continuou andando pelo escritório e oficina. Era espaçoso e confortável, bastante sóbrio, mas ilustrava bem as contradições de seu caráter — o estudioso e o homem de ação. Em meio aos livros e espécimes de museu havia uma carretilha de pesca e uma vara de pescar. Pendurados em ganchos na parede, um blusão de caça, uma capa de lona para rifle e uma cartucheira de couro, gravada com as iniciais N.Q.-H.

Ela reconheceu alguns dos quadros nas paredes. Eram aquarelas originais do século XIX, do viajante escocês David Roberts, e outras de Vivant Denon, que acompanhara Varmée de VOrient de Napoleão ao Egito. Havia também fascinantes vistas dos monumentos, feitas antes das escavações e restaurações dos tempos modernos.

Nicholas foi até a lareira e depositou um tronco sobre os carvões incandescentes. Atiçou-os o fogo e então levou-a para junto de uma cortina que ocupava metade de uma das paredes, cobrindo-a do chão ao teto. Com o floreio de um mágico, ele puxou o cordão trançado e exclamou com satisfação:

— O que acha disto?

Ela examinou o magnífico baixo-relevo em pedra, fixado à parede. O detalhe era belo e a execução impecável, mas Royan não demonstrou sua admiração. Preferiu manifestar-se num tom informal.

— Hamurábi, sexto rei da dinastia Amorita, cerca de 1780 a.C. — disse ela, fingindo examinar as feições do velho monarca. — Provavelmente retirado de seu palácio a sudoeste do zigurate de Ashur. Deve existir outro friso igual a este. Valem por volta de cinco milhões de dólares cada um. Ouvi dizer que foram roubados do santo governante da moderna Mesopotâmia, Saddam Hussein, por dois trapaceiros sem princípios. E ouvi dizer também que o outro está, neste momento, na coleção de um certo Senhor Peter Walsh, do Texas.

Ele a olhava atônito, e então explodiu numa gargalhada.

— Droga! Pedi segredo a Duraid, mas ele lhe contou essa nossa travessura. — Era a primeira vez que ele ria: um riso natural, agradável, sincero e sem afetação.

— Você está diante do atual proprietário do segundo friso — ele continuava rindo. — Só que o valor é de seis milhões, e não cinco.

— Duraid também me contou que vocês andaram pela região do maciço do Tibesti, no Chade, e pelo sul da Líbia — ela observou, e Nicholas fez um ar zombeteiro.

— Parece que você conhece todos os meus segredos. — Foi então até um armário alto, encostado à parede oposta, uma magnífica peça marchetada, provavelmente francesa do século XVII. Ele abriu as portas duplas. — Foi isto que Duraid e eu trouxemos da Líbia sem o consentimento do Coronel Muamar Al-Khadaffi. — Ele pegou uma delicada estatueta de bronze e deu a ela. Era a figura de uma mãe amamentando o filho, coberta por uma camada de patina esverdeada.

— É Aníbal, filho de Amílcar Barca — disse ele —, cerca de 203 a.C. Estas peças foram encontradas por um grupo de tuaregues em um acampamento perto do Rio Bagradas, no norte da África. Aníbal deve tê-las escondido antes de ser derrotado pelo general romano Cipião. Havia mais de duzentas peças no tesouro, mas ainda tenho as cinqüenta melhores.

— Vendeu as outras? — Ela admirou a estatueta e perguntou num tom desaprovador: — Como conseguiu se separar de algo tão belo?

Ele suspirou.

— Foi preciso. E triste, mas essa expedição custou-me uma fortuna. Tive de vender algumas peças para cobrir as despesas.

Ele foi até um armário, apanhou na prateleira inferior uma garrafa de uísque maltado Laphroaig e colocou-a com dois copos sobre a mesa.

— Posso convidá-la? — ele perguntou, e ela fez que não com a cabeça.

— Não a culpo. Até os escoceses admitem que este destilado deve ser bebido somente em temperaturas abaixo de zero, nas montanhas e sob um vento de quarenta nós. Posso lhe oferecer algo mais fraco?

— Tem Coca-Cola? — ela sugeriu.

— Sim, mas isso realmente faz mal, muito mais que o Laphroaig. É puro açúcar. Um veneno.

Ela pegou o copo que ele lhe oferecia e retribuiu o brinde.

— À vida! — E confessou: — Você tem razão. Duraid me contou tudo. — Ela repôs o bronze púnico na vitrine e foi juntar-se a ele na mesa. — Também foi Duraid quem me mandou vir aqui. Foram suas últimas instruções antes de morrer.

— Ahá! Então nada disso é coincidência. Me parece que sou uma peça involuntária de um grande complô. — Ele apontou para a cadeira diante da mesa. — Sente-se! — ordenou. — E fale!

Nicholas sentou-se no canto da mesa com o copo de uísque na mão e a perna balançando preguiçosamente como a cauda de um leopardo em repouso. Sempre sorrindo, olhava-a de um modo penetrante. Royan achava difícil mentir para aquele homem, e tomou fôlego para começar.

— Já ouviu falar de uma antiga rainha egípcia chamada Lostris, do segundo período intermediário, contemporânea das primeiras invasões dos hicsos?

Ele sorriu derrisoriamente e levantou-se:

— Oh! Agora estamos falando do livro O Último Deus do Nilo, não estamos? — Ele foi até a estante e pegou um exemplar. Embora já manuseando, ainda estava com a sobrecapa transparente sobre a ilustração surrealista das pirâmides sobre a água, em suaves tons verde e púrpura. Ele o depositou na mesa.

— Já o leu? — ela perguntou.

— Sim. Li muita coisa de Wilbur Smith. Ele me diverte. Já caçou aqui em Quenton Park algumas vezes.

— Pelo visto, deve apreciar muito sexo e violência em suas leituras. E o que achou deste livro em particular?

— Devo admitir que me surpreendeu. Ao lê-lo, desejei muito que a história fosse baseada em fatos. Por isso telefonei a Duraid. — Nicholas pegou novamente o livro e folheou-o. — As notas do autor no final são convincentes, mas o que não me sai da cabeça é a última frase. — Ele leu em voz alta: — "Em algum lugar nas montanhas da Abissínia, próximo à nascente do Rio Nilo, a múmia de Tanus ainda repousa na tumba inviolada do Faraó Mamose".

Quase com raiva, Nicholas atirou o livro de volta sobre a mesa.

— Meu Deus! Você não imagina como eu gostaria que isso fosse verdade. Não imagina quanto eu desejava ver a tumba do Faraó Mamose. Senti necessidade de falar com Duraid. Quando ele me garantiu que tudo não passava de conversa fiada, senti-me ludibriado. Minhas expectativas eram tão grandes que a decepção foi terrível.

— Não é conversa fiada — ela o corrigiu. — Bem, pelo menos não tudo.

— Entendo. Duraid mentiu para mim, não foi?

— Não — ela defendeu o marido. — Apenas reteve um pouco a verdade. Ele ainda não estava preparado para contar nada. Não tinha resposta para todas as perguntas que sabia que iria ouvir. Pensava procurá-lo quando estivesse pronto. Seu nome era o primeiro de uma lista de possíveis patrocinadores que ele mesmo preparou.

— Duraid não tinha as respostas. E você, tem? — ele se mostrava cético. — Já me pegaram uma vez. Acho que não vou cair na mesma história duas vezes.

— Os papiros existem. Nove deles já estão no cofre do Museu do Cairo. Fui eu quem os encontrou na tumba da Rainha Lostris. — Royan abriu a bolsa e pegou um maço de fotografias de 18 x 24 centímetros. Escolheu uma e mostrou a ele. — Esta é da parede do fundo da tumba. Dá para ver os jarros de alabastro no nicho. A foto foi feita antes de eles serem removidos.

— Bonita foto, mas pode ter sido tirada em qualquer lugar. Ela ignorou o comentário e mostrou a segunda.

— Os dez papiros no escritório de Duraid no museu. Reconhece os homens que estão em pé atrás do banco?

Ele assentiu.

— Duraid e Wilbur Smith. — O ceticismo começava a dar lugar à dúvida e à confusão. — Afinal, o que está tentando me dizer?

— O que estou tentando lhe dizer é que, apesar da licença poética usada pelo autor, todo o livro tem um fundamento de verdade. Entretanto, o papiro que mais nos interessa é o sétimo, o que foi roubado pelos homens que mataram meu marido.

Nicholas levantou-se e foi até a lareira. Colocou outro tronco e empurrou-o raivosamente com o atiçador, como se isso aliviasse suas emoções. Falou sem se virar:

— Qual é a importância desse pergaminho, comparado aos demais?

— Ele continha o relato do enterro do Faraó Mamose, e, acreditamos, indícios que nos ajudariam a encontrar o local da tumba.

— Vocês acreditam, mas não têm certeza. — Ele virou-se para ela, segurando o atiçador como se fosse uma arma. Ficava assustador nesse estado. A boca se havia estreitado numa linha tensa e os olhos brilhavam.

— Grande parte do sétimo papiro está escrita numa espécie de código, uma série de versos enigmáticos. Duraid e eu estávamos em via de decifrá-los quando... — Ela deu um profundo suspiro — .. quando ele foi assassinado.

— Você deve ter uma cópia de algo tão valioso — ele a olhava de modo intimidante, e ela fez que não com a cabeça.

— Todos os microfilmes, todas as anotações, tudo foi roubado com o papiro original. Depois, a mesma pessoa que matou Duraid foi ao nosso apartamento no Cairo e destruiu meu computador, onde estava armazenada toda a pesquisa.

Ele atirou o atiçador no depósito de lenha e voltou para a mesa.

— Então não há qualquer evidência? Nada que prove que isso seja verdade?

— Nada — disse ela. — Mas está tudo aqui. — Ela bateu na testa com seu longo dedo indicador. — Tenho boa memória.

Nicholas cerrou as sobrancelhas e passou a mão pelos cabelos.

— Por que veio me procurar?

— Vim lhe conceder o prazer de ver a tumba do Faraó Mamose — ela disse simplesmente. — Quer?

Ele mudou subitamente de humor e sorriu como um garoto travesso.

— Neste momento não há nada que eu queira mais.

— Então vamos fazer uma espécie de acordo de trabalho. — Ela curvou-se para a frente, colocando-se na posição de quem vai negociar. — Primeiro, eu lhe digo o que quero e depois você pode fazer o mesmo.

Foi uma negociação difícil, e à 1 hora da manhã Royan admitiu estar cansada.

— Não consigo mais pensar direito. Podemos retomar amanhã de manhã? — Eles ainda não tinham chegado a nenhum acordo.

— Já é amanhã de manhã. Mas você tem razão. Me distraí. Você pode dormir aqui. Afinal, temos vinte e sete quartos.

— Não, obrigada. — Ela se levantou. — Vou para casa.

— A estrada está congelada — ele avisou, mas vendo que Royan estava mesmo determinada ergueu os braços em rendição. — Tudo bem. Não vou insistir. Amanhã, então? Tenho um encontro com meus advogados às dez horas, mas ao meio-dia estarei livre. Por que não fazemos aqui nosso almoço de negócios? Deveria caçar em Ganton à tarde, mas posso cancelar. Assim terei a tarde e a noite livres para você.

Na manhã seguinte, o encontro de Nicholas com os advogados foi na biblioteca de Quenton Park. Não foi uma reunião fácil nem agradável, mas ele não esperava que fosse. Naquele ano parecia que o mundo estava desabando sobre sua cabeça. Ele cerrou os dentes ao lembrar-se de que começara com aquele momento fatal de fadiga e desatenção, exatamente à meia-noite, numa estrada escorregadia e com os faróis do caminhão vindo para cima deles. Ainda não se havia recuperado do golpe quando veio o segundo. Foi o relatório financeiro do grupo de seguros Lloyd's, do qual Nicholas, como seu pai e o avô, era um "nome". Há meio século sua família fazia retiradas substanciais e regulares referentes aos dividendos nos lucros obtidos pelo grupo. Obviamente, Nicholas sabia que tinha responsabilidades ilimitadas em quaisquer perdas que o grupo viesse a sofrer. Essa imensa responsabilidade pouco lhe pesava, pois em cinqüenta anos nunca houvera grandes perdas; até agora.

Com os terremotos na Califórnia, mais os pedidos de indenização por causa da poluição provocada por uma empresa química multinacional, os prejuízos do grupo somavam mais de 26 milhões de libras esterlinas. A parte de Nicholas nesse prejuízo era de 2,5 milhões de libras — que já fora acertada, além do restante que deveria ser pago num prazo do oito meses —, além de outras surpresas desagradáveis que poderiam surgir durante o ano seguinte.

Quase simultaneamente, toda a plantação de beterraba de Quenton Park, num total de quase 400 hectares, foi atacada por uma doença das raízes e a maior parte se perdeu.

— Precisamos conseguir pelo menos os dois milhões e meio — disse um dos advogados. — Isso não vai ser problema, pois a mansão está repleta de peças valiosas, sem falar no museu. O que poderíamos levantar com a venda de algumas delas?

Nicholas franziu o cenho diante da idéia de vender a estátua de Ramsés, os bronzes, o friso de Hamurábi, ou qualquer outro item de suas coleções da mansão ou do museu. Reconhecia que sua venda cobriria os débitos, mas duvidava que pudesse viver sem eles. Qualquer coisa era preferível a separar-se das obras de arte.

— Isso não! — Nicholas o interrompeu, e o advogado olhou para ele com frieza.

— Bem, então vejamos o que mais temos — continuou sem nenhuma compaixão. — O gado leiteiro...

— Isso chegará a cem mil libras, se tivermos sorte — Nicholas resmungou. — Ainda faltam dois milhões e quatrocentos.

— E o plantei de cavalos de corrida — o contador entrou na conversa.

— Tenho apenas seis animais em treinamento. Dariam só duzentos mil. — Nicholas sorriu com amargura. — Faltam dois e duzentos. Estamos indo bem devagar.

— O iate — sugeriu um jovem advogado.

— É mais velho que eu — disse Nicholas, balançando a cabeça. — Pertenceu a meu pai, pelo amor de Deus! Provavelmente vocês não conseguiriam vendê-lo. Seu único valor é sentimental. Minhas armas valem mais que ele.

Os dois advogados mergulharam nas listas.

— Ah, sim. Temos isto: um par de ejetores Purdey em boas condições. Estimados em quarenta mil.

— Eu também tenho meias e cuecas usadas — sugeriu Nicholas. — Por que também não põem na lista?

Eles ignoraram a ironia.

— Há a casa de Londres — o advogado mais velho continuou, impassível, habituado ao sofrimento humano. — Boa localização. Vale um milhão e meio.

— Não neste clima financeiro — Nicholas contestou. — Um milhão é mais realista. — O advogado fez uma anotação.

— Só estamos querendo evitar, se possível, colocar toda a propriedade à venda.

Foi um encontro duro e difícil, que terminou sem qualquer decisão. Nicholas sentia-se mal e frustrado.

Ele despediu-se dos homens e subiu aos seus aposentos para tomar um banho rápido e trocar de camisa. Impensadamente, e sem motivo nenhum, barbeou-se e passou colônia no rosto.

Ele dirigiu até o outro lado do parque e deixou o Range Rover no estacionamento do museu. Royan o esperava na sala da Sra. Street. As duas pareciam se dar muito bem, pensou Nicholas, parado do lado de fora e ouvindo suas risadas. Estava se sentindo melhor agora.

A cozinheira mandara o almoço da casa principal. Para ela, só uma boa refeição era capaz de manter o mau tempo à distância. Havia uma sopeira com um rico minestrone e um cozido de Lancashire, além de meia garrafa de Borgonha tinto para ele e uma jarra de suco de laranja para Royan. Eles comeram diante da lareira, enquanto a chuva batia nas vidraças.

Nicholas pediu a Royan que lhe contasse os detalhes do assassinato de Duraid. Ela contou, inclusive sobre seu próprio ferimento, chegando a erguer a manga para mostrar-lhe o curativo. Ele ouviu atentamente quando ela narrou o segundo atentado contra sua vida em pleno trânsito do Cairo.

— Algum suspeito? Alguém que possa ser responsabilizado? — Ela fez que não com a cabeça.

— Não houve nenhum tipo de ameaça.

Terminaram de comer em silêncio, perdidos em seus pensamentos. Tomaram uma xícara de café, e ele sugeriu:

— Então? Vamos ao nosso acordo? Eles discutiram cerca de uma hora.

— É difícil concordar com sua parte no butim até eu saber qual será sua contribuição — Nicholas protestou enquanto recolhia as xícaras. — Afinal, fui convidado para financiar e chefiar a expedição...

— Tem de confiar que minha contribuição é valiosa, ou não haverá nenhum butim, como você diz. De qualquer forma, esteja certo de que não vou dizer mais nada até fecharmos um acordo e termos apertado as mãos.

— Só isso? — ele perguntou, e ela lhe devolveu um sorriso um tanto desafiador.

— Se não gosta dos meus termos, há mais três nomes de possíveis patrocinadores na lista de Duraid — ela ameaçou.

— Tudo bem — Nicholas concordou com um astuto ar de mártir. — Aceito a proposta. Mas como faremos a divisão em partes iguais?

— Eu escolho o primeiro item de quaisquer artefatos arqueológicos que conseguirmos retirar, você escolhe o seguinte, e assim por diante.

— Que tal eu escolher primeiro? — ele arqueou uma sobrancelha.

— Cara ou coroa? — ela sugeriu. Ele tirou do bolso uma moeda.

— Escolha! — Nicholas jogou a moeda para o alto.

— Cara.

— Droga! — ele exclamou, recolhendo a moeda e guardando-a no bolso. — Então você faz a primeira escolha do butim, se houver algum. — Ele cruzou as mãos sobre a mesa. — Será toda sua, para fazer o que quiser. Pode até doar o que escolher para o Museu do Cairo, se ainda for a sua principal aberração. Negócio fechado? — perguntou, e Royan estendeu-lhe a mão.

— Fechado, sócio!

— Então vamos em frente. Basta de segredos entre nós. Conte-me os detalhes que escondeu até agora.

— Traga o livro — Royan indicou o exemplar de O Último Deus do Nilo. Nicholas foi buscá-lo enquanto ela retirava os pratos da mesa. — A primeira coisa que devemos ver são as partes editadas por Duraid. — Ela folheou as últimas páginas. — Foi onde seu ofuscamento começou.

— Palavra interessante — Nicholas sorriu —, mas vamos simplificar. Você está começando a me ofuscar.

Ela não achou graça.

— Você conhece a história até aqui. A Rainha Lostris e seu povo foram expulsos do Egito pelos hicsos e seus possantes carros de guerra. Subiram o Nilo em direção ao sul, até a confluência do Nilo Branco com o Nilo Azul. Ou seja, até a atual Cartum. Tudo isso é razoavelmente fiel aos pergaminhos.

— Eu me lembro. Continue.

— No porão de uma galé levavam o corpo mumificado do marido da Rainha Lostris, o Faraó Mamose VIII. Doze anos antes, ela jurara ao marido que o enterraria num local seguro, onde pudesse repousar com seu vasto tesouro. Ele morreu em combate com uma flecha no pulmão. Quando chegam a Cartum, ela determina que é hora de cumprir a promessa. Envia seu filho de catorze anos, o Príncipe Memnon, com um esquadrão de bigas, para encontrar o local do túmulo. Memnon vai acompanhado de seu mentor, que é o narrador da história: o infatigá-vel Taita.

— Certo, lembro-me dessa parte. Memnon e Taita consultam os escravos negros, shilluks capturados, e a conselho deles seguem pelo braço esquerdo do rio, o que chamamos de Nilo Azul.

Royan concordou e prosseguiu a história:

— Eles viajam para o leste e se confrontam com fantásticas montanhas, tão altas que são descritas como muralhas azuis. Até aqui, o que se lê no livro é uma interpretação bastante fiel dos pergaminhos, mas neste ponto — ela apontou a página aberta — começa a grande dúvida de Duraid. Na descrição dos contrafortes...

Nicholas interrompeu-a:

— Lembro que, quando li, achei que a região onde o Nilo Azul passa pelas montanhas etíopes não estava acuradamente descrita. Não há colinas. O que há são as escarpas íngremes do maciço ocidental. O rio emerge delas como uma cobra de seu covil. Quem escreveu isso não conhece o curso do Nilo Azul.

— E você, conhece a região? — ela perguntou, e Nicholas assentiu.

— Quando eu era jovem, e muito mais tolo do que hoje, concebi o plano grandioso de descer de bote a garganta do Abbay, desde o lago Tana até a represa de Roseires no Sudão. Abbay é o nome etíope do Nilo Azul.

— Por que queria fazer isso?

— Porque ninguém havia feito ainda. O Major Chessman, cônsul britânico, tentou pela primeira vez em 1932 e quase morreu. Achei que poderia fazer um filme e escrever um livro sobre a viagem, e ganhar uma fortuna. Pedi a meu pai que financiasse a expedição. Era o tipo de travessura que o atraía, e ele também quis ir. Estudei todo o curso do Rio Abbay, não só em mapas. Comprei um velho Cessna 180 e sobrevoei os oitocentos quilômetros de desfiladeiro, desde o lago Tana até a represa. Como se vê, eu tinha vinte e um anos e era louco.

— O que aconteceu? — Ela estava maravilhada. Duraid nunca lhe contara isso, mas de um homem como Nicholas era possível esperar esse tipo de aventura.

— Chamei oito amigos de Sandhurst e fomos para lá nas nossas férias de Natal. A tentativa foi um fiasco. Passamos dois dias em águas indômitas, e a garganta é a coisa mais infernal que já vi nesta terra. E duas vezes mais profunda e acidentada que o Grand Canyon do rio Colorado, no Arizona. Nossos caiaques foram destruídos antes de completarmos cinqüenta quilômetros dos oitocentos que pretendíamos. Tivemos de abandonar todo o equipamento e escalar os paredões do desfiladeiro para chegar novamente à civilização.

Nicholas ficou pensativo.

— Perdemos dois membros da equipe. Bobby Palmer afogou-se e Tim Marshall caiu do penhasco. Não conseguimos recuperar os corpos.

Ainda estão lá, em algum lugar. Tive de contar aos pais deles... — Nicholas não conseguiu dizer mais.

— Alguém já navegou pela garganta do Nilo Azul? — ela perguntou para afastar suas lembranças.

— Sim. Voltei lá anos depois. Dessa vez não era líder, mas membro de uma expedição das forças armadas britânicas. Foi preciso todo o Exército, a Marinha e a Aeronáutica juntos para vencer aquele rio.

Ela o olhava com admiração. Ele realmente navegara o Abbay. Que estranho destino a arrastara para aquele homem! Duraid estava certo. Provavelmente não havia outro no mundo mais bem qualificado para o trabalho.

— Então você conhece como ninguém a verdadeira natureza do Abbay. Tentarei dar uma indicação geral do que Taita descreveu no sétimo papiro. Infelizmente essa parte do pergaminho foi danificada, e tivemos de deduzir a partir de outros trechos do texto. Diga-me até que ponto corresponde ao que você conhece da região.

— Vá em frente — ele se animou.

— Taita descreve os penhascos de forma muito semelhante à sua, como muralhas íngremes de onde surge o rio. Por isso tiveram de abandonar os coches, que não passariam pelo terreno rochoso do cânion. Seguiram a pé, levando cavalos de carga. Então o desfiladeiro tornou-se mais íngreme e perigoso, e eles perderam os animais, que caíram no rio. Mas isso não os deteve, e eles seguiram em frente sob as ordens do Príncipe Memnon.

— É exatamente como ele descreve. É um trecho terrível.

— Taita diz então que eles encontram uma série de obstáculos, que ele descreve como "degraus". Duraid e eu não conseguimos chegar a uma conclusão do que seriam. Mas imaginamos que sejam cataratas.

— É o que não falta na garganta do Abbay — concordou Nicholas.

— Esta é a parte mais importante do depoimento. Taita nos diz que depois de vinte dias de viagem pelo desfiladeiro encontraram um "segundo degrau". Então o príncipe recebeu uma mensagem fortuita do pai, em forma de sonho, comunicando que aquele era o local escolhido para seu túmulo. Taita diz que a viagem pára aí. Se pudermos descobrir o que os fez parar, teremos uma idéia mais precisa de até onde eles avançaram pelo desfiladeiro.

— Antes de continuarmos, vamos ver os mapas e as fotos de satélite das montanhas, e vou dar uma olhada nas anotações e nos diários da expedição — decidiu Nicholas. — Como procuro manter minhas referências atualizadas, devo ter fotos de satélite e mapas recentes no arquivo do museu. Se existirem, a senhora Street irá encontrá-los. Ele se levantou e espreguiçou-se.

— Vou procurar meus diários e relê-los esta noite. Meu bisavô também caçou e viajou pela Etiópia no século passado. Sei que cruzou o Nilo Azul perto de Debra Markos, na década de 1890. Verei também as anotações dele, que estão no arquivo. O velho deve ter escrito alguma coisa que nos ajude.

Voltaram juntos para o Land Rover estacionado no pátio; quando Royan dava a partida, Nicholas falou pelo vidro aberto:

— Ainda acho que deveria ficar aqui. A viagem para Brandsbury leva uma hora e meia... são três horas por dia, para ir e voltar. Teremos muito trabalho pela frente antes de irmos para a África.

— O que as pessoas pensariam? — ela perguntou, soltando o pedal da embreagem.

— Não dou a mínima para o que pensem — disse Nicholas para o carro em movimento. — A que horas virá amanhã?

— Preciso ir ao médico em York para tirar os pontos do braço. Chegarei só depois das onze — ela disse com a cabeça para fora da janela, enquanto o vento espalhava seus cabelos negros.

Nicholas sempre fora atraído por mulheres morenas. Rosalind tinha essa mesma aparência misteriosa. Ele sentiu-se culpado e desleal com a comparação, mas era difícil não notar a presença de Royan.

Era a primeira mulher por quem sentia algum interesse desde que Rosalind partira. Era a mistura do sangue que o atraía. Royan possuía exotismo suficiente para atender seu gosto pelas orientais, mas era bastante inglesa para falar a mesma língua e entender seu senso de humor. Era culta e informada sobre coisas que ele apreciava, e tinha uma segurança admirável. Geralmente as orientais aprendiam desde cedo a ser recatadas e submissas. Royan era diferente.

Georgina havia ligado para o médico em York, marcando uma consulta para Royan. As duas deixaram o chalé em Brandsbury logo após o café da manhã. Georgina foi guiando, e Magic ia sentado entre as duas.

Ao cruzar a rua do vilarejo, Royan notou um grande caminhão MAN estacionado em frente ao correio, mas não deu atenção.

Na estrada para York a neblina estava tão cerrada em alguns trechos que a visibilidade ficava bastante reduzida; mas Georgina não fazia nenhuma concessão ao tempo, e mantinha uma velocidade no Land Rover que, para tranqüilidade de Royan, não ultrapassava os 90 quilômetros.

Virando-se para trás para olhar a estrada, viu que o caminhão MAN as seguia. Apenas a capota emergia da neblina, como a torre de um submarino. Viu-o, então, desaparecer por completo sob a névoa. Ela voltou-se para ouvir o que sua mãe dizia.

— Este governo é um bando de patetas incompetentes. — Ela espremeu os olhos sob a fumaça do cigarro pendurado de seus lábios. Dirigia com uma única mão e com a outra acariciava o pêlo macio da orelha de Magic. — Não me importo que os ministros se comportem como sonâmbulos, mas quando começam a brincar com minha aposentadoria fico enlouquecida. — A aposentadoria era sua única fonte de renda, e não era grande.

— Você não quer realmente um governo trabalhista, quer, mamãe? — Royan provocou a mãe, partidária dos conservadores.

Georgina fez um gesto para mudar de assunto e preferiu não responder.

— Só sei que deviam trazer Maggie de volta!

Royan virou-se ligeiramente no banco e espiou de novo pelo sujo vidro traseiro. O caminhão continuava atrás delas, agora mais visível mesmo sob neblina e a fumaça azulada expelida pelo Land Rover de Georgina, como o rastro de um jato. Até então mantivera-se a uma relativa distância, mas de repente acelerou.

— Acho que ele quer ultrapassar — Royan disse com tranqüilidade. A frente do caminhão estava a poucos metros do pára-choque do

Rover; via-se claramente o emblema "MAN" no radiador, mas não se divisava o rosto do motorista.

— Todo mundo quer me ultrapassar — lamentou Georgina. — Essa é a história da minha vida.

Royan olhou outra vez para o caminhão, que se aproximara ainda mais e ocupava totalmente o vidro traseiro. O motorista acelerava de forma ameaçadora.

— É melhor desistir. Acho que ele não está para brincadeiras.

— Que espere — resmungou Georgina com uma baforada, mantendo-se obstinadamente no meio da estrada. — A paciência é uma virtude. Seja como for, ele não pode nos ultrapassar aqui. Há uma ponte estreita logo à frente. Conheço esta estrada como se fosse meu banheiro.

Nesse instante o motorista acelerou, fazendo um barulho ensurdecedor. Magic saltou para o banco de trás e começou a latir.

— Cretino! — praguejou Georgina. — Com quem ele pensa que está lidando? Anote o número da placa. Vou comunicar à polícia de York.

— A placa está suja de lama. Não consigo enxergar, mas parece que é de outro país. Alemanha, talvez.

Como se tivesse ouvido o protesto, o motorista reduziu um pouco a velocidade. Royan o observava.

— Assim é melhor — disse a presunçosa Georgina. — O grosseirão aprendeu boas maneiras. — Lá está a ponte.

Só então Royan conseguiu ver o interior da cabine do caminhão. O motorista usava um capuz de lã azul que lhe cobria o rosto, com buracos para o nariz e os olhos. Tinha um aspecto sinistro e demoníaco.

— Cuidado! — ela gritou. — Ele está chegando muito perto!

O ronco do motor tragou-as como um mar tempestuoso. Nesse instante Royan viu o brilho das grades cromadas do radiador, e em seguida o caminhão bateu na traseira do carro.

O impacto jogou-a para a frente, mas ela se recompôs e viu o caminhão empurrar o Land Rover como uma raposa com um pássaro na boca. O carro foi arrastado para a frente pelas enormes barras protetoras do radiador.

Georgina lutava com o volante, tentando controlá-lo, mas era um esforço inútil.

— Não consigo dirigir. A ponte! Tente saltar!

Royan soltou o cinto de segurança e alcançou o trinco da porta. Um muro de pedras avançava na direção delas em uma velocidade assustadora, enquanto o Land Rover rodava na estrada, totalmente descontrolado.

A porta estava aberta, mas Royan só conseguiu saltar quando o carro foi atirado contra as sólidas colunas de pedra que protegiam o acesso à ponte.

As duas mulheres gritaram no momento da colisão e foram jogadas para a frente. O vidro do pára-brisa estilhaçou-se, o carro capotou pelo barranco do rio e rolou para baixo.

Royan foi jogada para fora. A queda foi suavizada pela inclinação do barranco, mas ela deu cambalhotas até cair na água gelada.

Antes de afundar, viu o caminhão seguir pela estrada. Estava puxando duas carretas de carga, mais altas que as colunas de proteção da ponte. Ambas estavam carregadas e cobertas por uma lona verde presa nos ganchos laterais. Royan ainda vislumbrou o logotipo da empresa impresso em vermelho na lateral da última carreta, mas antes que pudesse registrar o nome afundou na água, completamente sem fôlego.

Levada pela correnteza, Royan lutou para voltar à superfície. Era difícil nadar com as roupas encharcadas, mas ela conseguiu aproximar-se da margem e agarrar-se num galho para sair da água. Ajoelhada na lama, tossiu para expelir a água que engolira e verificou se havia quebrado alguma parte do corpo. Então ouviu os gritos terríveis da mãe.

Ergueu-se imediatamente e saiu tateando pela relva úmida em direção ao carro capotado na base do barranco. A carroceria estava totalmente destruída e o motor tinha parado de funcionar, mas as rodas ainda giravam quando Royan conseguiu chegar perto.

— Mamãe! Onde você está? — Ela não conseguia localizar de onde vinham os gritos. Apoiando-se no carro para andar, temia o que iria encontrar.

Georgina estava sentada no chão, encostada na lateral do carro, com as pernas abertas e esticadas para a frente. A esquerda estava torcida de um modo que a ponta da bota ficava enfiada na lama num ângulo impossível. A perna estava obviamente quebrada na altura do joelho ou muito próximo.

Mas esse não era o motivo dos gritos de Georgina. Ela segurava Magic no colo, debruçando-se sobre ele, inconsolável; os gritos vinham do fundo de sua alma. O cachorro ficara preso entre as ferragens. Sua língua pendia do canto da boca num último esgar, gotejando sangue, e Georgina usava o lenço para enxugá-lo.

Royan jogou-se ao lado da mãe e passou o braço sobre seus ombros. Era a primeira vez que a via chorar. Abraçou-a com força para confortá-la, mas nada diminuía seu sofrimento.

Ela nunca soube por quanto tempo ficou ali sentada. Por fim, o estado da perna da mãe e o medo de que o motorista do caminhão voltasse para terminar o serviço a fizeram levantar-se. Ela cambaleou até a estrada e parou o primeiro carro que apareceu.

Royan já estava atrasada duas horas para o encontro e Nicholas decidiu telefonar à polícia de York. Por sorte tinha reparado na placa do Land Rover, um número fácil de lembrar. As letras eram as iniciais de sua mãe, seguidas pelo agourento número 13.

Ele esperou a operadora procurar no computador e voltar ao telefone:

— Sinto muito, senhor, mas houve um acidente com o Land Rover esta manhã.

— O que aconteceu ao motorista? — Nicholas estava ansioso.

— O motorista e outro passageiro foram levados para o Hospital York Minster.

— Estão bem?

— Sinto muito, senhor, mas não temos essa informação. Nicholas levou 40 minutos para chegar ao hospital e outros tantos

para localizar Royan. Ela estava na enfermaria feminina da ala cirúrgica, sentada ao lado da cama da mãe, que ainda não voltara da anestesia. Ela levantou a cabeça quando Nicholas se aproximou.

— Você está bem? O que aconteceu?

— Minha mãe... a perna dela foi esmagada. Precisaram pôr um pino na coxa. O fêmur...

— E você?

— Tive apenas alguns arranhões. Nada sério.

— Como aconteceu?

— Um caminhão nos empurrou para fora da estrada.

— De propósito? — Nicholas sentiu uma coisa contrair-se dentro dele, lembrando-se de outro caminhão, em outra estrada...

— Acho que sim. O motorista estava mascarado, usava um capuz de lã que escondia seu rosto. Veio batendo atrás de nós. Só pode ter sido proposital.

— Já avisou a polícia? Ela assentiu.

— Parece que o caminhão foi roubado esta manhã, muito antes do acidente, quando o motorista parou para tomar um café na estrada. É alemão. Não fala inglês.

— Éa terceira vez que tentam matá-la — Nicholas falou por entre os dentes. — Deixe-me cuidar disso agora.

Ele foi para a sala de espera e procurou um telefone. O delegado do condado era seu amigo pessoal, assim como o administrador do hospital.

Quando Nicholas retornou ao quarto, Georgina já se havia recuperado da anestesia. Embora ainda estivesse atordoada, sentiu-se bem melhor quando foi transferida para um quarto particular, a pedido de Nicholas. O cirurgião ortopedista chegou em poucos minutos.

— Olá, Nick, o que faz aqui? — ele o cumprimentou, surpreendendo Royan. Voltou-se então para Georgina: — Está se sentindo melhor? Tivemos aí uma bela fratura. Conseguimos recolocar tudo no lugar, mas terá de ficar conosco pelo menos dez dias.

— Viu só no que deu, moça? — Nicholas disse a Royan, quando saíram do quarto. — O que mais será preciso para convencê-la? Minha governanta já preparou um quarto para você em minha casa. Não permitirei que continue a andar por aí sozinha. Pode ser que da próxima vez eles tenham mais sorte.

Royan ainda estava muito abalada e deprimida para discutir; entrou docemente no banco da frente do Range Rover e deixou-se levar ao médico para retirar os pontos, e depois para Quenton Park. Ao chegarem, ele imediatamente a mandou para o quarto.

— A cozinheira levará o jantar para você. Não se esqueça de tomar o comprimido para dormir que o médico mandou. Mandarei alguém pegar suas coisas em Brandsbury se você der a chave do chalé de sua mãe para a Senhora Street. Por enquanto, a governanta separou roupas de dormir e uma escova de dentes para você. Não quero vê-la por aqui até amanhã cedo.

Royan achou bom ter alguém controlando sua vida. Era a primeira vez, desde a terrível noite no oásis, que ela se sentia em segurança. Ainda assim, fez um último gesto de independência e auto-suficiência: jogou o comprimido de Mogadon na privada e apertou a descarga.

A camisola estendida em seu travesseiro era longa, de seda pura, com aplicações de fina renda de Cambraia nas mangas e na gola. Royan nunca havia vestido algo tão luxuoso e sensual. Imaginava que houvesse pertencido à mulher de Nicholas, e isso lhe provocou emoções confusas. Quando entrou na cama de baldaquim, nem a solidão do imenso acolchoado nem o ambiente desconhecido a impediram de dormir.

Pela manhã, uma jovem criada acordou-a com um exemplar do Times e um bule de chá Earl Grey; retornou minutos depois com sua sacola de viagem.

— Sir Nicholas gostaria que tomasse o desjejum com ele na sala de jantar, às oito e trinta.

Enquanto se banhava, Royan examinou o corpo no grande espelho que revestia uma parede do banheiro. Além do corte de faca no braço, que ainda era bem visível e só estava parcialmente cicatrizado, tinha uma mancha azulada na coxa e outra na altura do quadril e da nádega esquerdos, legadas pelo acidente de carro. O queixo tinha um profundo arranhão; com muito cuidado, ela retirou duas farpas da ferida. Mancava um pouco quando desceu a escadaria para dirigir-se à sala de jantar.

— Por favor, fique à vontade. — Nicholas viu-a hesitar na porta. Mostrou-lhe os pratos do desjejum sobre o aparador lateral. Quando se servia de ovos mexidos, Royan percebeu que a paisagem pendurada na parede era de Constable.

— Dormiu bem? — Ele não esperou a resposta e continuou: — Tenho informações da polícia. Encontraram o caminhão abandonado num acostamento perto de Harrogate. Vão até lá agora, mas não esperam encontrar muita coisa. Parece que essa gente sabe o que está fazendo.

— Preciso telefonar para o hospital — disse Royan.

— Já fiz isso. Sua mãe passou bem a noite. Deixei o recado de que você a visitaria esta tarde.

— À tarde? — ela virou-se para ele. — Por que só à tarde?

— Pretendo mantê-la ocupada até lá. Quero fazer meu dinheiro render o máximo.

Nicholas levantou-se quando ela se aproximou da mesa e afastou a cadeira para que sentasse. Royan sentiu-se ligeiramente incomodada com a cortesia, mas nada disse.

— O ataque a você e a Duraid na vila do oásis... não podemos concluir nada disso, a não ser que os assassinos saibam exatamente o que estão procurando e como fazê-lo. — A súbita mudança de assunto desconcertou-a. — Entretanto, pensemos um pouco mais no segundo ataque, no Cairo. A granada de mão... Quem mais sabia que você iria ver o ministro naquela tarde, além dele próprio?

Ela refletiu enquanto mastigava e engolia os ovos.

— Não tenho certeza. Acho que contei ao secretário de Duraid, e talvez a algum assistente de pesquisa.

Ele franziu a testa e balançou a cabeça.

— Então metade do museu sabia do seu compromisso?

— Mais ou menos isso. Sinto muito. Ele refletiu um pouco.

— Tudo bem. Quem sabe que você saiu do Cairo e está na casa de sua mãe?

— Um funcionário da administração levou os slides para mim, no aeroporto.

— Disse a ele para onde ia?

— Não, isso não.

— Contou a alguém?

— Não. Quer dizer... — ela hesitou.

— Contou?

— Contei ao ministro, durante a entrevista, quando lhe pedi uma licença. Ele não... certamente não... — Sua expressão de horror refletiu o que estava pensando.

Nicholas ergueu os ombros.

Acontecem coisas inesperadas. Certamente o ministro conhecia o trabalho que você e Duraid estavam fazendo sobre o sétimo papiro.

— Não conhecia em detalhes, mas... sim... em termos gerais, sabia o que estava acontecendo.

— Muito bem. Próxima pergunta: chá ou café? — Ele despejou café na xícara e continuou: — Você disse que Duraid tem uma relação de possíveis patrocinadores para a expedição. Será que não nos daria alguma idéia para nossa lista de suspeitos?

— O Museu Getty — disse Royan, e ele riu.

— Risque da lista. Eles não saem por aí atirando granadas em carros. Quem mais está na lista?

— Gotthold Ernst von Schiller.

— Hamburgo. Indústria pesada, refinarias de ligas metálicas, produção de minérios básicos. — Nicholas balançou a cabeça. — O terceiro nome?

— Peter Walsh — disse ela. — O texano.

— É esse. Mora em Fort Worth. Tem franquia de fast-food, catálogos de compras pelo correio.

Eram muito poucos os colecionadores com poder de fogo para competir com as grandes instituições na aquisição de antigüidades ou no financiamento de excursões arqueológicas. Nicholas conhecia a todos, pois pertenciam a um círculo mutuamente antagônico de algumas dezenas de pessoas. Já competira com todos eles em algum momento nas salas de leilão da Sotheby's ou da Christie's, sem mencionar outros foros menos saudáveis onde se vendiam antigüidades "frescas" — no sentido de recém-tiradas do solo.

— Esses dois são sujeitos gananciosos. Provavelmente comeriam os próprios filhos se estivessem famintos. Deus sabe o que fariam se soubessem que você está atrapalhando o caminho deles para o túmulo de Mamose. Sabe se entraram em contato com Duraid depois que o livro foi publicado, como eu fiz?

— Não sei. Pode ser que sim.

— Não consigo imaginar nenhum dos dois sendo tão ingênuos. Vamos partir do princípio de que eles sabem que Duraid estava pesquisando alguma coisa. Os dois vão para nossa lista de suspeitos. — Nicholas olhou para o prato dela. — Quer mais ovos? Não? Muito bem, vamos até o museu ver o que a senhora Street encontrou para nós.

Quando entraram no estúdio de Nicholas, Royan ficou impressionada com a quantidade de coisas que ele havia conseguido organizar em tão pouco tempo. Tudo fora feito na noite anterior: o lugar tinha virado uma espécie de quartel-general. No centro da sala havia um cavalete sobre o qual se assentava um quadro, e nele estavam pregadas as fotos tiradas por satélites. Ela aproximou-se e notou outro material ao lado.

Junto com um mapa em grande escala do sudoeste da Etiópia, a região coberta pelos satélites, havia listas de nomes e endereços, equipamentos e provisões que certamente já haviam sido usados em expedições anteriores pela África, tabelas de distâncias e o que parecia ser um orçamento preliminar. No alto do quadro havia um relatório com o título "Etiópia — Informações Gerais". Eram cinco páginas de papel compactamente datilografadas, quase impossíveis de se ler.

Royan ficou realmente impressionada com tanta meticulosidade. Decidiu que estudaria todo aquele material na primeira oportunidade; enquanto isso, sentou-se numa das duas cadeiras diante do quadro. Nicholas pegou um bastão com ponta de prata sobre a mesa e brandiu-o como um professor.

— Ordem na classe. — Deu pancadinhas no quadro. — Primeira coisa: você terá de me convencer de que conseguiremos encontrar o rastro de Taita depois de vários milhares de anos. Vamos considerar primeiro as características geográficas da garganta do Abbay.

Nicholas descrevia o curso do rio na foto do satélite, com a ajuda de uma ponteira.

— Ao longo deste trecho o rio interrompe seu curso e atravessa o platô basáltico. Em certos pontos os penhascos do desfiladeiro secundário são perpendiculares, com uma altura entre cento e vinte e cento e quarenta metros de cada lado. Onde há intrusão de xistos ígneos mais duros, o rio não consegue erodi-los. Eles formam uma série de degraus no curso do rio. Acho que está certa a sua premissa de que os "degraus" de Taita sejam cachoeiras.

Ele foi até a mesa e pegou uma foto no meio da papelada.

— Tirei esta no desfiladeiro, durante a Expedição das Forças Armadas, em 1976. Pode lhe dar uma idéia de como são essas cachoeiras.

Ele lhe passou uma foto preto-e-branco dos altos penhascos de cada lado do rio e uma cascata que parecia cair do céu; os homens seminus e seus botes, em primeiro plano, pareciam anões.

— Não imaginava que fosse assim! — Royan admirou-se.

— Não faz justiça à esplêndida imensidão do desfiladeiro — ele acrescentou. — Do ponto de vista do fotógrafo, não é possível colocar tudo em perspectiva. Mas ao menos dá para imaginar que a cachoeira deveria impedir a passagem de um grupo de egípcios que subisse o rio a pé, ou pelo menos com cavalos de carga. Em geral existem algumas trilhas acompanhando as cataratas, feitas por elefantes ou qualquer outro animal, em outras eras. Entretanto, é simplesmente impossível atravessar as cachoeiras e contornar esses penhascos. Ela concordou, e Nicholas continuou:

— Tivemos de descer com cordas os botes e todo o equipamento pelas cachoeiras. Não foi fácil.

— Digamos que tenha sido uma das cachoeiras que os impediu de seguir adiante... A segunda, aproximando-se pelo oeste — sugeriu ela.

Nicholas pegou a ponteira e traçou na foto do satélite o curso do rio a partir da escura forma de cunha da represa de Roseires, no centro do Sudão.

— O escarpamento aparece no lado etíope da fronteira; é onde começa a garganta propriamente dita. Não há estradas nem cidades aí, apenas duas pontes mais acima. Nada em oitocentos quilômetros a não ser a água do Nilo e rochas basálticas negras. — Ele fez uma pausa para que isso fosse digerido. — Esta é uma das últimas e verdadeiras regiões inóspitas da terra, com uma terrível reputação de abrigar animais e homens selvagens. Marquei as principais quedas que aparecem aqui no meio da garganta, na foto do satélite — Ele apontou os círculos feitos com caneta vermelha. — Esta é a cachoeira número dois, cerca de cento e noventa quilômetros acima da fronteira sudanesa. Entretanto, há vários fatores que devemos considerar, como o fato de que o rio pode ter alterado seu curso nos últimos quatro mil anos, desde que foi visitado por nosso amigo Taita.

— Certamente ele não poderia ter escapado de um cânion de mil e duzentos metros de profundidade — Royan protestou. — Até mesmo o Nilo ficaria preso num lugar desses.

— Sim, mas é bem possível que o leito original tenha se alterado. Na época da inundação, o volume e a força do rio excedem minha capacidade de descrevê-lo. As águas sobem vinte metros pelos paredões laterais e correm a uma velocidade de dez nós, talvez mais.

— Já navegou nele?

— Não durante a inundação. Nada sobreviveria a isso.

Eles ficaram olhando a foto por algum tempo, imaginando os terrores daquela poderosa extensão de água em toda a sua fúria. Então ela lembrou a Nicholas:

— E a segunda cachoeira?

— Aqui está ela, onde um rio tributário entra no fluxo do Abbay. O afluente é o Dandera, e nasce a três mil e seiscentos metros de altitude, no pico do Monte Saneai da cordilheira de Choke, mais ou menos cento e sessenta quilômetros ao norte do desfiladeiro.

— Você se lembra do ponto em que ele se junta com o Abbay?

— Isso foi há vinte anos, e ficamos menos de um mês naquele desfiladeiro; tudo parece se misturar, como num pesadelo. As lembranças se confundem com o ambiente monótono dos penhascos e a densa selva das laterais; os sentidos são entorpecidos pelo calor, os insetos, o barulho da água e o repetitivo e incessante trabalho com os remos. Mas lembro-me da confluência do Dandera com o Abbay por dois motivos.

— É mesmo? — ela inclinou-se para a frente, ansiosa para saber.

— Foi onde perdemos um homem. A única baixa da segunda expedição. A corda se rompeu e ele despencou trinta metros, de costas numa rocha.

— Sinto muito por isso. E qual é o outro motivo?

— Existe ali um mosteiro copta cristão, encravado na rocha a uma altura de cento e vinte metros do rio.

— No fundo do despenhadeiro? — Royan não podia acreditar. — Por que construiriam um mosteiro ali?

— A Etiópia é uma das nações cristãs mais antigas do mundo. Tem mais de nove mil igrejas e mosteiros, muitos deles em regiões similarmente remotas ou em montanhas quase inacessíveis. Esse no Rio Dandera é famoso porque lá está enterrado São Frumêncio, o santo que introduziu o cristianismo na Etiópia, vindo do Império Bizantino, em Constantinopla, no início do século III. Diz a lenda que ele foi resgatado por um barco numa praia do Mar Vermelho e levado a Aksum, onde converteu o Imperador Ezana.

— Você visitou o mosteiro?

— Claro que não! — Ele riu. — Estávamos ocupados demais cuidando da própria sobrevivência, loucos para escapar do inferno do desfiladeiro. Não tínhamos tempo para fazer turismo. Descemos as cachoeiras e continuamos pelo rio. Tudo de que me lembro desse mosteiro é que é construído na face do penhasco, voltado para o rio, e das distantes figuras de monges trogloditas com túnicas brancas debruçados sobre o parapeito de pedra, impassíveis, vendo-nos passar. Alguns dos nossos acenaram, mas nenhum deles respondeu.

— Como poderemos chegar até lá sem uma grande expedição? — Royan questionou em voz alta, olhando desconsolada para o quadro.

— Já desanimou? — Nicholas riu. — Espere só até ver os insetos que existem lá embaixo. Eles nos agarram e levam para sua toca antes de nos devorar.

— Não brinque! — ela implorou. — Como é que vamos descer?

— Os monges são alimentados pelos aldeões que vivem nas montanhas que circundam a garganta. Parece que existe uma trilha de cabras nos penhascos. Dizem que leva três dias para se chegar por essa trilha, desde a beirada até a margem.

— Você conseguiria encontrar o caminho?

— Não, mas tenho algumas idéias. Falaremos nisso depois. Primeiro temos de imaginar o que poderemos encontrar lá embaixo quatro mil anos depois. — Ele a olhava com expectativa. — Agora é sua vez. Convença-me. — Deu a ponteira para Royan, sentou-se na cadeira ao lado e cruzou os braços.

— Primeiro vamos ver o livro. — Ela mostrou o exemplar de O Último Deus do Nilo. — Lembra-se de Tanus, um personagem da história?

— Claro que sim. Era o comandante dos exércitos egípcios sob as ordens da Rainha Lostris, chamado de Grande Leão do Egito. Ele comandou o êxodo de seu povo na fuga dos invasores hicsos.

— Era também amante secreto da rainha, se pudermos acreditar em Taita, e pai do Príncipe Memnon, o primogênito — Royan completou.

— Tanus foi morto numa expedição punitiva contra um chefe etíope chamado Arkun, nas altas montanhas. Seu corpo foi mumificado e levado de volta à rainha por Taita — Nicholas continuou a história.

— Exatamente. Isso nos leva a outra pista que Duraid e eu encontramos.

— No sétimo papiro? — Ele descruzou os braços e ajeitou-se na cadeira.

— Não, não no pergaminho, mas nas inscrições da tumba da Rainha Lostris. — Royan pegou uma foto na bolsa. — Esta é uma ampliação de um trecho dos afrescos da câmara mortuária, a parte da parede que depois desmoronou e se perdeu quando encontramos os jarros de alabastro. Duraid e eu consideramos importante o fato de Taita ter feito essa inscrição num lugar de honra, sobre o local de esconderijo dos pergaminhos. — Ela passou a fotografia a Nicholas, que apanhou uma lupa na mesa para examiná-la.

Enquanto ele tentava decifrar os hieroglifos, Royan continuou:

— No livro, lembra que Taita gostava de enigmas e jogos de palavras, e que vivia se vangloriando de ser o melhor jogador de bao?

Nicholas afastou os olhos da lente.

— Lembro-me disso. Ainda acho que o bao foi o precursor do xadrez. Tenho uns doze tabuleiros na coleção do museu, alguns dos egípcios, outros do sul da África.

— Sim, eu também acho. Os dois jogos têm vários objetivos e regras semelhantes, embora o bao seja mais rudimentar. É jogado com pedras coloridas, em vez das figuras do xadrez. Bem, acredito que Taita não tenha resistido à tentação de registrar para a posteridade suas habilidades de charadista e sua esperteza. Devia ser tão convencido que, propositadamente, deixou pistas da localização da tumba do faraó tanto nos pergaminhos quanto nos afrescos que ele diz ter pintado na tumba de sua amada rainha.

— Acha que esta é uma das pistas? — Nicholas bateu com a lente na foto.

— Leia — ela o instruiu. — Está em hieroglifos clássicos, facilmente comparáveis aos seus criptogramas.

— "O pai do príncipe que não é pai, doador do azul que o matou"

— Nicholas traduziu com dificuldade —, "guarda eternamente de mãos dadas com Hapi a pedra-testamento do caminho para o pai do príncipe que não é pai, doador do sangue e das cinzas."

Nicholas balançou a cabeça.

— Isto não tem sentido. Deve haver um erro na minha tradução.

— Não se desespere. Você está fazendo seu primeiro contato com Taita, o campeão de bao e charadista notório. Duraid e eu passamos semanas tentando decifrar isso. Para entender, voltemos ao livro. Tanus não era o pai nominal do Príncipe Memnon, mas, por ser amante da rainha, era seu pai biológico. Em seu leito de morte, deu a Memnon a espada azul que causara seu ferimento mortal na batalha contra o chefe etíope. Há uma descrição completa dessa batalha no livro.

— Sim, quando li essa parte, lembro-me de ter pensado que a espada azul era provavelmente uma arma muito antiga, e, na idade do bronze, devia ser uma maravilha da arte da cutelaria. Presente digno de um príncipe. — Nicholas refletiu e continuou: — Então "o pai do príncipe que não é pai" é Tanus? Ele suspirou, resignado. — Por enquanto vou aceitar essa interpretação.

— Obrigada por acreditar e confiar em mim — ela disse com ironia.

— Mas, continuando com o enigma de Taita, o Faraó Mamose era o pai nominal de Memnon, mas não o pai de sangue. Novamente, o pai que não era pai. Mamose passou para o príncipe a coroa dupla do Egito, a branca e a vermelha, do Alto e do Baixo Reinos. O sangue e as cinzas.

— Isso é mais fácil de engolir. E o resto da inscrição? — Nicholas estava realmente intrigado.

— A expressão "de mãos dadas" é ambígua no antigo Egito. Pode significar muito perto de, ou à vista de, ou qualquer coisa assim.

— Continue. Pelo menos você está me deixando curioso — ele a encorajou.

— Hapi é o deus ou a deusa hermafrodita do Nilo, dependendo do gênero masculino ou feminino adotado num dado momento. Em todos os pergaminhos Taita usa "Hapi" como nome alternativo para o rio.

— E se juntarmos o sétimo papiro com a inscrição do túmulo da Rainha Lostris, qual é a sua interpretação? — ele insistiu.

— Simplesmente esta: Tanus é enterrado à vista do, ou muito perto do rio, talvez até dentro dele, e sua tumba indica o caminho para a tumba do faraó.

Nicholas assobiou por entre os dentes.

— Essas conclusões desconexas já estão me deixando exausto. Que pista está tentando esclarecer?

— Esta — disse Royan, e ele fez um ar de perplexidade.

— Esta? E nada mais?

Ela balançou a cabeça negativamente.

— Suponhamos que você esteja certa até aqui. Suponhamos também que o rio permaneceu inalterado em seu curso e sua configuração em quatro mil anos. E suponhamos que Taita realmente esteja nos indicando a segunda cachoeira do Rio Dandera. O que é que vamos procurar quando chegarmos lá? Se for uma inscrição numa pedra, ela continuará intata ou terá sofrido a ação do tempo e do rio?

— Howard Carter tinha um indício igualmente vago da tumba de Tutancâmon — ela lembrou com tranqüilidade. — Um único fragmento de papiro, de autenticidade duvidosa.

— Howard Carter precisou procurar apenas na região do Vale dos Reis. E ainda levou dez anos para encontrar — Nicholas contestou. — Você está me dando a Etiópia, um país que tem o dobro do tamanho da França. Já pensou quanto tempo levaria?

Ela aprumou-se bruscamente.

— Desculpe. Preciso visitar minha mãe no hospital. E evidente que estou perdendo meu tempo aqui.

— Ainda não está no horário de visitas.

— Ela está num quarto particular. — Royan foi até a porta.

— Vou levá-la ao hospital — Nicholas ofereceu.

— Não se incomode. Chamarei um táxi — ela retrucou num tom gélido.

— O táxi levará uma hora para chegar aqui — ele contestou. Sem outra saída, Royan aceitou que a levasse no Land Rover. Viajaram em silêncio durante 15 minutos, até que por fim ele falou:

— Não sou bom para pedir desculpas. Acho que não tenho muita prática, mas sinto muito. Fui muito rude. Não tive a intenção. Fui levado pelo calor do momento.

Royan continuou em silêncio.

— Vai ter de falar comigo, senão vamos ter de nos comunicar por bilhetes. Será um pouco estranho lá na garganta do Abbay.

— Tive a nítida impressão de que você não está mais interessado. — Ela olhava fixamente para a estrada.

— Sou um grosso — ele repetiu, e Royan olhou de lado. Foi sua ruína. A expressão dele era irresistível, e ela começou a rir.

— Acho que ao menos nisso concordamos: você é um grosso.

— Continuamos sócios? — ele perguntou.

— No momento, você é o único grosso que tenho. Acho que não tenho saída.

Ele a deixou na porta do hospital.

— Voltarei para pegá-la às três horas — Nicholas disse, e seguiu em direção ao centro de York.

Em sua época de universidade, havia comprado um pequeno apartamento numa das estreitas alamedas atrás da abadia. O prédio todo estava registrado no nome de uma companhia das Ilhas Cayman, e o telefone não constava do catálogo nem era controlado pelo sistema de PBX. A propriedade não podia ser atribuída a ele pessoalmente. Antes de conhecer Rosalind, o apartamento tivera um papel importante em sua vida social. Mas agora era usado somente para tratar de assuntos confidenciais e negócios clandestinos. As expedições à Líbia e ao Iraque haviam sido planejadas e organizadas nele.

Havia vários meses que Nicholas não entrava no apartamento: estava frio, mofado e pouco convidativo. Ele acendeu a lareira a gás e encheu uma chaleira. Com uma xícara de chá fumegante na sua frente, telefonou para um banco de Jersey e imediatamente depois fez outra ligação para um banco das Ilhas Cayman.

"O rato esperto tem mais de uma saída em sua toca." Esse era o lema de sua família, passado de geração a geração. É preciso ter sempre um ás escondido na manga para o dia em que o céu desabar. A expedição exigia dinheiro, e os advogados já haviam bloqueado a maior parte dele.

Nicholas deu as senhas e os números de contas aos gerentes dos bancos e instruiu-os para fazer determinadas transferências. Sempre o surpreendia a facilidade com que tudo podia ser arranjado, desde que se tivesse dinheiro.

Ele olhou o relógio. Ainda era muito cedo na Flórida, mas Alison atendeu o telefone ao segundo toque. Ela era um dínamo loiro que dirigia a Global Safaris, uma empresa que organizava expedições de caça e pesca a regiões remotas do mundo.

— Alô, Nick, não temos notícias suas há mais de um ano. Será que não gosta mais de nós?

— Andei sumido por uns tempos — ele admitiu. Como dizer que sua mulher e as duas filhas haviam morrido?

— Etiópia? — Alison não se mostrou espantada com o pedido. — Quando quer ir?

— Pode ser na semana que vem?

— Deve estar brincando. Só trabalhamos com um caçador lá, o Nassous Roussos, e ele tem reservas para os próximos dois anos.

— Não há mais ninguém? — ele insistiu. — Preciso chegar lá e sair antes das grandes chuvas.

— De que troféu você está atrás? — ela tergiversou. — Dos nialas da montanha? Dos nêmures de Menelik?

— Estou planejando uma viagem pelo Rio Abbay. — Isso era o máximo que ele podia dizer.

Ela ficou relutante.

— Não é uma recomendação nossa, entenda bem, mas existe um caçador que poderá levá-lo assim, em cima da hora, e nem sei se ele tem acampamento no Nilo Azul. É um russo, e as informações sobre ele são confusas. Dizem que foi membro da KGB e um assassino do bando de Mengistu.

Mengistu era o "Stálin Negro" que depôs e matou o velho imperador Hailé Selassié e fez a Etiópia ajoelhar-se a seus pés em dezesseis anos de despótico governo marxista. Quando seu patrocinador, o império soviético, entrou em declínio, Mengistu foi destronado e fugiu do país.

— Estou decidido a ir e aceito qualquer coisa — disse Nicholas. — Prometo que não farei nenhuma queixa.

— Então, não aceito reclamações! — Alison deu o nome e um número de telefone em Adis Abeba.

— Adoro você, minha querida.

— Me agradaria muito se isso fosse verdade. — Ela desligou.

Nichulas não esperava que fosse fácil falar com Adis Abeba, e realmente não foi. Mas por fim conseguiu. Uma mulher atendeu com o leve ciciar etíope, mas logo mudou para inglês quando ele perguntou por Boris Brusilov.

— No momento ele está num safári — ela disse. — Sou Woizero Tessay, sua mulher. — As mulheres etíopes não usavam o nome do marido, e Nicholas conhecia bem a língua para saber que o nome dela significava Lady Sol. — Mas se for algum assunto ligado a safári, eu posso ajudar — disse Lady Sol.

Nicholas encontrou Royan esperando na porta do hospital. — Como está sua mãe? — A perna está melhorando, mas ela continua inconsolável por Magic.

— Vamos arrumar um filhote para ela. Um dos meus coordenadores de caça cria springers de primeira linha. Posso conseguir um. — Ele fez uma pausa para em seguida perguntar delicadamente: — Seria capaz de deixar sua mãe? Quero dizer, se formos para a África?

Royan virou-se no banco para olhá-lo.

— Você armou alguma coisa desde que nos separamos — acusou-o.

— Posso ver no seu rosto.

Ele fez um sinal árabe contra mau-olhado.

— Alá me salve das bruxas!

— Pare com isso! — Ele a fazia rir com tanta facilidade que Royan não sabia se isso era bom ou ruim. — Mostre-me o que tem guardado na manga.

— Espere até voltarmos ao museu. — Ele não seria demovido, e ela teve de conter a impaciência.

Quando chegaram, ele levou Royan pela sala egípcia em direção à exposição dos mamíferos africanos e a fez parar no diorama dos antílopes montanheses. Eram variedades de tamanhos pequeno e médio — impalas, gazelas de Thompson e de Grant, gerenuks e outros.

— O Madoqua harperii. — Ele mostrou o pequeno animal no canto.

— O "dik-dik de Harper", também conhecido como dik-dik listrado.

Era um animalzinho indefinido, não muito maior que uma lebre grande. A pelagem marrom era listrada nas cores chocolate e preto sobre as espáduas, e o focinho fazia uma curva para cima.

— Meio sem graça — ela deu sua opinião sincera, sem querer ofender Nicholas, que parecia descomedidamente orgulhoso de seu espécime. — É algo especial?

— Especial? — havia surpresa na voz dele. — Ela me pergunta se é especial! — Ele girou os olhos para o teto, e Royan riu de novo de sua histrionice. — É o único da espécie que existe. E uma das criaturas mais raras da terra. Não admira que tantos zoólogos acreditem ser apócrifo, que nunca tenha realmente existido. Eles acreditam que meu santo bisavô, de quem leva o nome, o inventou. Uma referência consagrada sugere que ele tirou a pele de um mangusto listrado e a esticou sobre o corpo de um dik-dik comum. Pode imaginar tão hedionda acusação?

— Estou realmente consternada com tal injustiça — Royan riu.

— E é para estar mesmo. Porque estamos indo para a África caçar outro espécime de Madoqua harperii e limpar a honra da família.

— Não entendi.

— Venha comigo e logo entenderá. — Ele a levou para o estúdio e pegou, entre os papéis espalhados sobre a mesa, um livrinho encadernado em couro marroquino.

A capa estava desbotada, manchada de água e de sol tropical, com os cantos e a lombada desgastados e puídos.

— A agenda pessoal do velho Sir Jonathan — ele explicou, abrin-do-a. Prensadas entre as páginas havia flores e folhas selvagens, já desbotadas, que deviam estar lá há quase um século. O texto era ilustrado em tinta amarela desbotada com desenhos de homens, animais e paisagens agrestes. Nicholas leu a data no alto de uma página:

"Dois de fevereiro de 1902. No acampamento do Rio Abbay. O dia todo seguindo o rastro de dois grandes elefantes. Não encontramos. Calor muito intenso. Meus homens debandaram. Abandonaram a caça e retornaram ao acampamento. No caminho de volta avistei um pequeno antílope pastando na margem do rio, que derrubei com um tiro do meu pequeno rifle Rigby. Um exame mais próximo provou pertencer ao gênero Madoqua. Entretanto, era de uma espécie que eu nunca vira antes, maior que o dik-dik comum, mas possuindo um corpo listrado. Acredito que esta espécie não seja conhecida da ciência".

Nicholas ergueu os olhos do diário.

— Meu bisavô Jonathan nos deu a desculpa perfeita para descermos a garganta do Rio Abbay. — Ele fechou o livro e continuou: — Como você disse, reunir as provisões para nossa expedição levaria meses de planejamento e organização, sem mencionar as despesas. Seria necessário obter a aprovação do governo etíope. Na África, isso pode levar meses, senão anos.

— Imagino que o governo etíope não seria muito cooperativo, se suspeitar de nossas verdadeiras intenções — ela concordou.

— Por outro lado, há inúmeras empresas legítimas de safári operando no país. Têm todas as permissões necessárias, contatos no governo, veículos, material de acampamento e respaldo logístico necessários para se viajar pelas regiões mais remotas. As autoridades estão bastante acostumadas com caçadores estrangeiros que chegam e saem por intermédio dessas empresas, enquanto um par de ferengi isolados atrairia todo o exército local e todo mundo, como uma manada de búfalos raivosos.

— Então vamos viajar como uma dupla de caçadores de dik-dik?

— Já fiz a reserva com um guia de safáris de Adis Abeba. Meu plano é dividir nosso projeto em três estágios distintos e separados. O primeiro é o de reconhecimento. Se encontrarmos a pista que estamos esperando, então voltaremos com nossos próprios homens e equipamentos. Esse será o estágio dois. O estágio três, é claro, é tirar o butim da Etiópia, e isso não será a parte mais fácil da operação, posso lhe garantir por experiência própria.

— Como vai fazer para... — Royan começou, mas ele ergueu as mãos. — Não me pergunte, porque não tenho a mais vaga idéia de como fazer. Um estágio por vez.

— Quando partiremos?

— Antes de responder, quero lhe fazer uma pergunta. Sua interpretação do enigma de Taita... está tudo explicado nas anotações que foram roubadas no oásis?

— Sim, nas anotações e nos microfilmes. Sinto muito.

— Então os malditos receberam tudo mastigadinho, como você as deu para mim.

— Temo que sim.

— Então, respondendo à sua pergunta, a resposta é tout de suite! Temos de chegar antes deles à garganta do Abbay. Os bandidos já estão com suas conclusões e suposições há quase um mês. Pelo que imagino, já estão a caminho.

— Quando partiremos? — ela insistiu, ansiosa.

— Fiz duas reservas no vôo da British Airways para Nairóbi para este sábado. Ou seja, daqui a dois dias. Lá faremos uma conexão com um vôo da Air Kenya para Adis, que nos deixará lá na segunda-feira por volta de meio-dia. Iremos para Londres hoje à noite e ficaremos lá no meu apartamento. Suas vacinas contra febre amarela e hepatite estão válidas?

— Sim, mas não tenho equipamento e trouxe pouca roupa comigo. Deixei tudo no Cairo.

— Veremos isso em Londres. O problema da Etiópia é que faz frio suficiente para emascular um macaco no alto das montanhas, e embaixo, na garganta, é uma verdadeira sauna.

Ele se aproximou do quadro e começou a examinar os itens da lista.

— Iniciaremos imediatamente uma profilaxia de malária. Entraremos numa região de mosquitos P. falciparum, resistentes à cloroquina, então quero que você tome Mefloquine. — Ele mudou rapidamente de item: — É claro que seus documentos de viagem estão em ordem, ou você não estaria aqui. Nós dois precisamos de visto para a Etiópia, mas tenho um contato que pode arranjar isso em vinte e quatro horas.

Tão logo terminou as listas, Nicholas mandou Royan a seu quarto, para arrumar os poucos objetos pessoais que trouxera do Cairo.

Saíram de Quenton Hall quase de noite, e Royan ainda ficou uma hora no York Minster Hospital para se despedir da mãe. Nicholas a esperou no pub Red Lion, do outro lado da rua, e estava recendendo a Theakston's Old Peculier quando ela entrou no Range Rover e sentou-se a seu lado. Era um aroma doce e agradável de bebida fermentada; Royan sentia-se tão à vontade em sua companhia que encostou a cabeça no banco e dormiu.

A casa de Nicholas em Londres ficava em Knightsbridge, mas apesar do endereço elegante era muito menor que Quenton Hall. Royan sentiu-se muito mais à vontade ali, mesmo que só por dois dias. Durante esse tempo viu Nicholas poucas vezes; ele se ocupou dos últimos preparativos para a viagem, visitando várias repartições oficiais em Whitehall. Voltou com um maço de cartas de apresentação a autoridades, embaixadas britânicas e altos comissariados de todo o leste da África.

— Pergunte a qualquer inglês — ela riu consigo mesma. — Não existem mais os privilégios de classe, nem a rede de camaradagem que dirige o país.

Royan ficou encarregada da lista de compras. Mesmo na cidade mais segura do mundo, andava olhando para trás, entrando e saindo de banheiros femininos e estações de metrô, para ter certeza de que ninguém a seguia.

— Você está agindo como uma criança apavorada que se perdeu do pai — ela se repreendia.

Entretanto, sentiu um imenso alívio quando, à noite, ouviu a chave girar na porta da casa vazia onde esperava por Nicholas, controlando-se para não descer correndo a seu encontro.

No sábado pela manhã, quando o táxi os deixou no setor de embarque do Terminal Quatro de Heathrow, Nicholas conferiu a bagagem. Royan levava apenas uma mala simples de lona, não maior que a dele, e a bolsa a tiracolo pendurada no ombro. O rifle de caça ia dentro de uma capa de couro própria para viagem, gravada com as iniciais dele. Cem cartuchos de munição estavam acondicionados numa cartucheira com reforço de cobre, e ele levava uma pasta de couro que lembrava uma antigüidade vitoriana.

— Viajar sem peso é uma grande virtude. Deus nos livre dessas mulheres que carregam pilhas de bagagem — comentou Nicholas, recusando o serviço de um carregador e jogando tudo no carrinho.

Royan precisou acelerar o passo para acompanhá-lo pelos corredores de embarque lotados. Milagrosamente, a multidão se abria diante dele; Nicholas ergueu o chapéu panamá acima da testa e abriu um sorriso luminoso para a moça no balcão de check in; ela o atendeu imediatamente, toda dengosa e agitada.

Foi a mesma coisa quando embarcaram no avião. As duas aeromoças divertiam-se com tudo o que ele dizia, ofereciam-lhe champanhe e o paqueravam descaradamente, para irritação dos demais passageiros e da própria Royan. Mas ela fingiu ignorar e tratou de se acomodar na confortável poltrona de primeira classe, para assistir ao filme que passava numa tela de vídeo em miniatura. Tentava se concentrar nas imagens de Richard Gere, mas sua atenção era atraída para outras imagens do desfiladeiro selvagem e de antigas esteias.

Tanto que, quando Nicholas cutucou seu braço, ela o olhou com certa arrogância. No apoio para braço entre as duas poltronas ele havia montado um pequeno tabuleiro de xadrez e agora a convidava para jogar, indicando o tabuleiro com a cabeça e uma sobrancelha arqueada.

Quando aterrissaram no Aeroporto Jomo Kenyatta, no Quênia, continuavam em acirrada disputa. Estavam empatados em duas partidas cada um, mas Royan tinha um bispo e dois peões à frente no jogo decisivo. Estava orgulhosa de si mesma.

— Esta noite jantaremos com o alto-comissário inglês. É um velho camarada. Traje informal. Pode estar pronta às oito?

"Não se deve passar dificuldades quando se viaja pelo mundo com um homem como esse", ela pensou.

Era um vôo relativamente curto de Nairóbi a Adis Abeba, e a paisagem embaixo descortinava-se em seqüências tão fascinantes que Royan não conseguia desgrudar da janela do avião. O cume esbranquiçado do Monte Quênia finalmente se livrou das nuvens, e os picos duplos cobertos de neves esparsas brilharam sob os raios do sol.

A monotonia marrom dos desertos do Distrito da Fronteira Norte foi quebrada pelo verde das montanhas que circundavam o oásis de Marsabit, e, mais adiante, para os lados do porto, via-se o brilho das águas do Lago Turkana, antigo Lago Rudolf. O deserto finalmente deu lugar às elevações do grande platô central do solo ancestral da Etiópia.

— Na África, somente os egípcios são mais antigos que essa civilização — observou Nicholas, examinando a paisagem junto com Royan. — Já eram uma raça culta quando nós, os povos do norte, ainda vestíamos peles curtidas e morávamos em cavernas. Eram cristãos quando os europeus ainda eram pagãos e cultuavam os antigos deuses Pã e Diana.

— Eram um povo civilizado quando Taita passou por aqui há quatro mil anos — ela concordou. — Ele os descreve como quase iguais em nível cultural, o que é raro fazer. Depreciava todas as demais nações do velho mundo como inferiores, em todos os sentidos.

Do alto, Adis Abeba era como tantas outras cidades africanas, uma mistura de antigo e novo, de estilos arquitetônicos tradicionais e exóticos, telhados de zinco ao lado de aço galvanizado e telhas de barro. As paredes redondas dos velhos tukuls, construções feitas de varas trançadas e barro, contrastavam com as formas retangulares e as linhas geométricas dos edifícios envidraçados, dos blocos de apartamentos, das vilas à margem do rio, dos prédios do governo e do grandioso e embandeirado quartel da Organização da Unidade Africana.

Os traços distintivos no campo ao redor eram as plantações de altos eucaliptos, que forneciam lenha. Era o único combustível disponível para muita gente naquela terra pobre e maltratada, que ao longo dos séculos vinha sendo devastada por exércitos saqueadores e, mais recentemente, por doutrinas políticas alienígenas.

Depois de Nairóbi, na altitude o ar parecia fresco e agradável quando Royan e Nicholas desembarcaram do avião e atravessaram a pista em direção ao terminal. Quando entraram, antes mesmo de chegar à fila para apresentar os passaportes, alguém chamou Nicholas.

— Sir Nicholas! — Ambos se voltaram para uma moça alta, de delicadas feições morenas iluminadas por um sorriso de boas-vindas, que acenava para eles com a graça de uma bailarina.

— Bem-vindos ao meu país. Sou Woizero Tessay. — Ela olhou com interesse para Royan. — Você deve ser Woizero Royan. — Ela estendeu-lhe a mão, e Nicholas percebeu que as duas simpatizavam instantaneamente uma com a outra.

— Se me derem os passaportes, cuidarei das formalidades enquanto descansam na sala VIP. Há alguém da Embaixada britânica esperando para recebê-lo, Sir Nicholas. Não sei como soube que o senhor estava vindo.

Havia uma única pessoa esperando na sala VIP. Usava um terno tropical de bom corte e uma velha gravata da escola militar de Sandhurst, com listras diagonais amarelas e azuis. Levantou-se e veio receber Nicholas no mesmo instante.

— Nicky, como vai? Que bom vê-lo de novo! Deve fazer uns doze anos, não?

— Olá, Geoffrey. Não tinha a menor idéia de que o houvessem mandado para cá.

— Sou o adido militar. Sua Excelência pediu-me para vir recebê-lo no momento em que soube que servimos juntos em Sandhurst. — Geoffrey olhou com nítido interesse para Royan e, com um ar de resignação, Nicholas os apresentou.

— Geoffrey Tennant. Cuidado com ele. É o maior conquistador ao norte do equador. Nenhuma mulher está segura a um quilômetro dele.

— Ora, pare com isso! — Geoffrey protestou, parecendo agradecido pela referência que Nicholas lhe fez. — Não acredite em uma palavra do que ele diz, Doutora Al Simma. É um prevaricador famoso.

Geoffrey puxou Nicholas para o lado e rapidamente fez um resumo das situação do país, particularmente nas áreas afastadas.

— Ele está um pouco preocupado. Não gosta da idéia de você andar por aí sozinho. Há muitos bandidos lá em Gojam. Eu disse a ele que você sabe se cuidar.

Num tempo incrivelmente curto Woizero Tessay voltou.

— Já liberei toda a bagagem, inclusive a arma de fogo e a munição. Esta é a permissão temporária de vocês. Devem mantê-la consigo durante todo o tempo em que ficarem na Etiópia. E aqui estão os passaportes — os vistos estão carimbados e em ordem. Nosso vôo para o Lago Tana sai em uma hora, então temos bastante tempo para o check in.

— Se precisar de trabalho, procure por mim — disse Nicholas, elogiando sua eficiência.

Geoffrey Tennant acompanhou-os até o portão de embarque e lá se despediu.

— Contem comigo para o que precisarem. "Servir para liderar", Nicky.

— Servir para liderar? — Royan perguntou, quando já seguiam para o avião que os esperava.

— É o lema de Sandhurst — ele explicou.

— Gostei, "Nicky" — Royan murmurou.

— Acho Nicholas muito mais digno e apropriado — disse ele.

— É, mas Nicky é mais simpático.

O pequeno avião Twin Otter que os levou para o norte jogava nas altas correntes de ar, formadas pelas montanhas abaixo. Embora estivessem 4 500 metros acima do nível do mar, o solo estava bastante perto para que se distinguissem os vilarejos e as esparsas áreas cultivadas ao redor. Sujeita há tantos séculos aos métodos agrícolas primitivos e ao crescimento descontrolado dos rebanhos domésticos, a terra tinha uma aparência desgastada e as pedras brotavam do chão avermelhado como ossos expostos.

De repente, no platô sobre o qual voavam, surgiu um abismo monstruoso, como se as entranhas da terra tivessem sido expostas por um poderoso golpe de espada.

— O Rio Abbay! — Tessay inclinou-se na poltrona e bateu no ombro de Royan.

O desfiladeiro começava abruptamente, com encostas que despencavam num ângulo de 30 graus ou pouco mais. As planícies áridas do platô deram lugar imediatamente a paredões compactamente cobertos de vegetação. Eles podiam ver a galharia das gigantescas euforbiáceas erguendo-se acima da selva densa. Em certos trechos os paredões tinham deslizado e formado rampas de pedra solta; em outros eram escarpas alcantiladas e agulhas que a erosão esculpira com uma arte monstruosa em forma de humanóides alongados e outras fantásticas figuras de pedra.

O desfiladeiro tornava-se cada vez mais fundo; o avião conduziu-os sobre o espaço vazio, até o ponto em que, quase 2 000 metros abaixo deles, puderam ver o rio refletindo seu brilho como o couro de uma cobra. O afunilamento dos penhascos criava agora uma segunda borda, outro desfiladeiro que se erguia 1 500 metros acima do Nilo. Lá embaixo, entre os terríveis penhascos, o rio formava um canal com poços escuros e violentas corredeiras que se infiltravam por entre o calcário vermelho. Em alguns pontos o desfiladeiro tinha mais de 60 quilômetros de largura, em outros estreitava-se para 10, mas em toda a extensão sua grandiosidade e desolação eram infinitas e eternas.

— Logo estaremos lá embaixo — disse Tessay com tanta admiração que sua voz era quase um sussurro. Ambos ficaram em silêncio. As palavras eram supérfluas diante da natureza bruta e selvagem.

Quase aliviados, viram surgir ao norte as altas montanhas do maciço de Choke erguendo-se contra o céu azul, mais altas que o frágil aparelho que os transportava.

A aeronave adernou para descer, e Tessay apontou para o leste.

— O Lago Tana.

Era uma vasta e bela extensão de água salpicada de ilhas, cada uma com um mosteiro ou uma igreja antigos. Quando baixaram sobre a água para a aproximação final, divisaram os monges de batina branca deslocando-se entre as ilhas em seus tradicionais barcos de papiro.

O Otter tocou a pista de areia paralela ao lago e foi erguendo uma longa trilha de poeira. Fez uma curva e desligou os motores ao lado de uma construção de pau-a-pique e teto de palha.

No alto da escada de desembarque, Nicholas pegou os óculos escuros no bolso da jaqueta caqui e colocou-os no rosto. Parou para olhar as paredes do terminal, com marcas de balas e de estilhaços de granada e um tanque russo T-35 estacionado ao lado da pista. O canhão de sua torre estava apontado para leste, e o mato crescia por entre as esteiras enferrujadas.

Os outros passageiros, ansiosos para descer, tentavam ultrapassá-lo sem muita delicadeza, apressados para encontrar amigos e parentes que os esperavam à sombra dos eucaliptos. Havia apenas um carro parado ali, um Toyota Land Cruiser bege. Na porta do motorista estava pintado um niala da montanha, com longos chifres retorcidos, e abaixo dele uma faixa com a inscrição "Safáris Selvagens". Um homem branco descansava atrás do volante.

Quando Nicholas desceu a escada atrás das duas mulheres, ele saiu do caminhão e foi a seu encontro. Alto e encurvado, ele vestia um conjunto de caça desbotado e caminhava vigorosamente.

"Quarentão", imaginou Nicholas, devido aos pêlos grisalhos que brotavam da barba curta. "É um homem valente", pensou. O cabelo avermelhado estava cortado rente à cabeça e seus olhos eram frios, de um azul pálido. Uma cicatriz repuxava uma das faces e lhe deformava o nariz.

Tessay apresentou-o primeiro a Royan, e ele se curvou levemente quando apertou sua mão.

— Enchanté— disse a ela num francês execrável, e então olhou para Nicholas.

— Este é meu marido, Alto Boris — Tessay apresentou. — Boris, este é Alto Nicholas.

— Meu inglês é ruim — disse Boris. — O francês é melhor. "Não há muito o que escolher", pensou Nicholas, exibindo um sorriso tranqüilo.

— Falemos francês então. Bonjour, Monsieur Brusilov. Encantado em conhecê-lo. — Ele estendeu a mão ao russo.

O aperto de Boris foi firme — firme demais. Ele estava fazendo do cumprimento uma disputa, mas Nicholas já esperava por isso. Conhecia esse tipo de gente, e apertou-lhe a mão com tanta força que Boris não conseguiu fechar os dedos. Nicholas segurou-a sem permitir que qualquer tensão ou esforço transparecesse em seu sorriso indolente. Boris desistiu primeiro, deixando transparecer um traço de respeito no olhar opaco.

— Veio atrás de um dik-dik? — ele perguntou, quase com sarcasmo. — A maioria de meus clientes quer elefantes, ou pelo menos um niala da montanha.

— Um pouco demais para mim — Nicholas riu mostrando os dentes —, são muito grandes. O dik-dik está de bom tamanho.

— Já esteve lá embaixo, na garganta? — Boris desafiou-o. O sotaque russo distorcia as palavras francesas, dificultando o entendimento.

— Sir Nicholas foi um dos líderes da expedição ao rio em 1976 — interveio Royan suavemente, e Nicholas surpreendeu-se com a súbita manifestação. Ela havia captado no mesmo instante o antagonismo entre os dois e viera resgatá-lo.

Boris grunhiu alguma coisa e virou-se para a esposa:

— Trouxe tudo o que pedi?

— Sim, Boris — a mulher respondeu submissa. — Está tudo no avião. — Nicholas logo viu que ela o temia, e, provavelmente, com razão.

— Vamos carregar, então. Temos um longo caminho pela frente.

Os dois homens sentaram-se no banco dianteiro do Toyota e as mulheres foram atrás, rodeadas de caixas e pacotes. O velho protocolo africano, disse Nicholas para si mesmo, os homens na frente e as mulheres que se virem.

— Não vão querer a rota turística, não é? — Boris perguntou, quase em tom de ameaça.

— Rota turística?

— O braço do lago e a hidrelétrica — explicou. — A ponte portuguesa sobre o desfiladeiro e o ponto onde começa o Nilo Azul — acrescentou. Mas, antes que aceitassem, avisou: — Se quiserem, só chegaremos ao acampamento à noite.

— Obrigado pela sugestão — Nicholas respondeu polidamente —, mas já conheço tudo.

— Melhor. Vamos cair fora daqui.

A estrada virava para o oeste e seguia pelo sopé das altas montanhas. Aquilo era Gojam, terra de montanheses arredios. Era uma região populosa, e eles viram muitos homens altos e esguios pela estrada, conduzindo rebanhos de cabras e carneiros, com suas longas varas atravessadas sobre os ombros. Homens e mulheres usavam mantos de lã, os shammas, calças-bombachas brancas e nos pés, sandálias.

Era um povo de feições altivas e belas, com os cabelos espessos formando halos hirsutos e olhos de águia. Algumas jovens que viram nas aldeias que atravessaram eram realmente lindas. A maioria dos homens estava armada, com espadas enfiadas em bainhas prateadas e rifles de assalto AK-47.

— Assim eles se sentem como gente grande — caçoou Boris. — Muito valentes, muito machos.

As cabanas da aldeia eram tukuls circulares, cercadas por plantações de eucalipto e agaves pontiagudos.

Nuvens carregadas encobriam os altos picos do Choke, que eram varridos por rajadas de chuva e vento. Grandes como moedas de prata, gotas grossas explodiam no pára-brisa do Land Cruiser e transformavam a estrada num rio de lama.

As condições da estrada eram assustadoras; em certos trechos se transformara em valas que nem o Toyota com tração nas quatro rodas conseguia superar, e Boris foi obrigado a traçar seu próprio caminho pelas encostas rochosas. Mesmo deslocando-se à velocidade média de um homem, eles sacolejavam de um lado para outro nos bancos quando as rodas saltavam pelo terreno irregular.

— Esses malditos pretos nunca se lembram de consertar a estrada

resmungou Boris. — Gostam de viver como animais. — Ninguém

disse nada, mas Nicholas espiou pelo retrovisor as duas mulheres atrás. Elas estavam impassíveis, contendo qualquer ressentimento provocado pelo comentário.

No meio do caminho a estrada tornou-se ainda pior. Daí para a frente a lama alta da superfície fora rasgada pelos pneus de tráfego pesado, formando sulcos profundos.

— Tráfego militar? — Nicholas ergueu a voz acima do barulho da chuva, e Boris grunhiu.

— Algum. Tem muita atividade shufta pelo desfiladeiro... bandidos e guerreiros dissidentes. Entretanto, o tráfego maior é da prospecção de minério. Uma grande companhia mineradora conseguiu a concessão em Gojam, e estão vindo para as escavações.

— Não cruzamos com nenhum veículo civil — observou Royan —, nem ônibus públicos.

— Acabamos de passar por um longo e conturbado período — Tessay explicou. — Tínhamos uma economia agrária. Já fomos o celeiro da África. Mas Mengistu conseguiu nos levar aos limites da miséria. Usou a fome como arma política. Ainda estamos sofrendo demais. Muito pouca gente pode se dar ao luxo de ter um veículo motorizado. A maioria está preocupada em conseguir comida para as crianças.

— Tessay fez economia na Universidade de Adis — Boris caçoou. — E muito esperta. Sabe de tudo. Basta perguntar que ela responde. História, religião, economia... é só perguntar. — Tessay tinha novamente mergulhado em silêncio.

No meio da tarde a chuva diminuiu e um sol tímido espiou através de blocos de nuvens. Boris parou o Toyota num trecho de campo deserto.

— Pausa para esticar as pernas — anunciou. — Hora do pipi.

As duas moças desceram do caminhão e procuraram um lugar atrás das pedras. Quando voltaram para o carro, tinham trocado de roupa. As duas usavam agora shammas e calças-bombachas, típicas do lugar.

— Tessay me presenteou com este traje tradicional — disse Royan, dando um giro para obter a aprovação de Nicholas.

— Também é muito bonito — ele opinou. — Vai se sentir melhor de calças.

O sol já estava baixo quando a estrada entrou por outro vale rochoso, atravessado por um rio de barrancos íngremes. Do outro lado aninhava-se uma igreja circular, de paredes brancas, com uma cruz copta de madeira acima do telhado de barro vermelho.

— Debra Maryam — Boris anunciou satisfeito —, o monte da Virgem Maria, e o rio é o Dandera. Mandei meus homens na frente de caminhão, para montar o acampamento e esperar por nós. Vamos dormir e amanhã desceremos o rio até a borda do despenhadeiro.

As tendas estavam armadas num bosque de eucaliptos adiante da aldeia.

— A segunda tenda é a de vocês — Boris apontou.

— Está ótima para Royan — concordou Nicholas. — Quero uma tenda só para mim.

— Dik-dik e tendas separadas... — Boris dirigiu-se a ele com um ar entediado. — Que diabo de homem! Você me impressiona.

Ele gritou para os criados armarem uma tenda ao lado da outra, com as paredes laterais quase encostadas.

— Vocês podem arrumar coragem durante a noite — ele olhou de esguelha para Nicholas. — Não quero que tenham de andar muito.

O chuveiro em que se banharam era um tambor pendurado dos galhos mais baixos de um eucalipto, a céu aberto e cercado em toda a volta por uma lona. Royan foi primeiro; voltou com uma aparência jovial e renovada, de toalha enrolada na cabeça.

— Sua vez, Nicky! — ela chamou quando passou pela tenda dele. — A água está uma delícia.

Já estava escuro quando Nicholas terminou o banho e trocou de roupa. Dirigiu-se à tenda de refeições, onde os outros estavam sentados em cadeiras de armar ao redor do fogo. As mulheres conversavam afastadas; Boris, com os pés sobre uma mesa baixa e a cadeira inclinada para trás, tinha um copo na mão.

Ele indicou a garrafa de vodca sobre a mesa quando Nicholas entrou no círculo iluminado pelo fogo.

— Sirva-se. O gelo está no balde.

— Prefiro cerveja — disse Nicholas. — Sede de deserto. — Boris deu de ombros e fez sinal a um dos criados para pegar uma garrafa num refrigerador portátil.

— Vou contar um segredinho. — Ele riu, mostrando os dentes para Nicholas, e pôs mais vodca no copo. — Não existe mais nenhum dik-dik listrado, se é que já existiu algum. Está perdendo seu tempo e seu dinheiro.

— Ótimo — concordou Nicholas tranqüilamente. — O dinheiro e o tempo são meus.

— Só porque um velho caduco atirou num deles, sei lá quando, não quer dizer que vamos encontrar outro agora. Podíamos ir para as plantações de chá atrás de elefantes. Vi três dos bons por lá, há uns dez dias. Presas de mais de cinqüenta quilos de cada lado.

A conversa prosseguia, e o nível da garrafa de vodca baixava como o Nilo depois da inundação. Quando Tessay veio dizer que a comida estava pronta, Boris levou a garrafa junto, já cambaleante no caminho até a mesa. Durante a refeição sua única participação na conversa foram grosserias dirigidas a Tessay.

— O carneiro está cru. Por que não supervisionou o cozinheiro? Você tem de olhar tudo o que eles fazem!

— O seu carneiro está malcozido, Alto Nicholas? — Tessay perguntou sem olhar para o marido. — Posso mandar cozinhar um pouco mais.

— Está perfeito — ele lhe assegurou. — Gosto assim, rosado.

No final do jantar a garrafa de vodca estava vazia e o rosto de Boris vermelho e inchado. Ele saiu da mesa sem dizer uma palavra e desapareceu na noite em direção a sua tenda, tropeçando, trançando as pernas, se desequilibrando.

— Peço desculpas — Tessay disse em voz baixa. — É só à noite. De dia ele fica bem. É uma tradição russa, a vodca. — Ela abriu um sorriso luminoso, mas os olhos continuaram tristes. — A noite está linda e é muito cedo para dormir. Gostariam de ir até a igreja? É muito antiga e famosa. Pedirei a um dos homens que leve lanternas para que possam ver os afrescos.

O criado foi na frente, iluminando o caminho, um velho padre esperava-os sob o pórtico da construção circular. Era magro e tão negro que só os dentes brilhavam ao luar. Ele usava uma magnífica cruz copta de prata maciça, ornamentada com cornalina e outras pedras semipreciosas.

Royan e Tessay ajoelharam-se para pedir-lhe a bênção. Ele tocou levemente o rosto delas com a cruz e fez uma genuflexão, murmurando palavras em amárico. Conduziu-os depois para o interior da igreja.

Nota: amárico, Língua semítica pertencente ao grupo etiópico, falada na parte central do planalto abissínio. (N. do E.)

As paredes eram cobertas com magníficas pinturas em cores primárias muito vivas, que refletiam a luz das lanternas como pedras preciosas. Via-se nelas a forte tendência bizantina; os santos tinham olhos grandes e brilhantes e auréolas douradas sobre a cabeça. Sobre o altar, em meio a ouropéis e ornamentos de prata, a Virgem embalava seu filho rodeada pelos três reis magos e uma hoste de anjos ajoelhados em adoração. Nicholas pegou sua câmera Polaroid no bolso e ligou o flash. Enquanto se preparava, Tessay e Royan ajoelharam-se lado a lado diante do altar.

Quando terminou de fotografar, Nicholas escolheu um lugar num banco de madeira e ficou observando a expressão pacífica das duas mulheres iluminadas pelas velas. A beleza e a tranqüilidade do lugar eram comoventes.

"Gostaria de ter mais fé", ele pensou, como fazia toda vez que entrava numa igreja. "Deve ser um conforto nos momentos difíceis. Gostaria de saber rezar assim por Rosalind e minhas filhas." Ele não conseguiu mais ficar ali e foi se sentar no pórtico da igreja, de onde podia ver o céu estrelado.

Quando finalmente as duas mulheres saíram da igreja, Nicholas deu ao padre uma nota de 100 birr e uma foto Polaroid dele, presente que o velho claramente valorizou mais que o dinheiro. Em seguida os três desceram o monte em silêncio.

Nicky! — Royan o sacudia. Ele se sentou na cama, acendeu a lanterna e viu que ela estava enrolada no xale, por cima do pijama masculino.

— O que foi? — Antes que ela respondesse, Nicholas ouviu uma voz rouca e raivosa berrando impropérios no meio da noite, e em seguida o inconfundível som seco de um punho fechado atingindo um corpo.

— Ele está batendo nela! — Royan estava indignada. — Tem de fazê-lo parar!

Ouviu-se um grito e em seguida choro.

Nicholas hesitou. Só os tolos interferem numa briga de marido e mulher, que em geral acabam se unindo violentamente contra o defensor.

— Precisa fazer alguma coisa, Nicky, por favor!

Relutante, ele tirou as pernas debaixo da coberta e se levantou. Estava de short e nem se lembrou de calçar os sapatos. Royan o seguiu, também descalça, até a tenda de Boris, que estava armada no final do bosque em frente à tenda de refeições.

A luz do lampião do lado de dentro formava sombras gigantescas nas paredes de lona. Deu para ver que ele agarrava a mulher pelos cabelos e a arrastava pelo chão, urrando palavras em russo.

— Boris! — Nicholas gritou o nome três vezes para chamar sua atenção; a sombra se virou, soltou Tessay, e Boris ergueu a lona que fechava a tenda.

Estava apenas de cueca. Seu tronco era esguio e musculoso, o peito largo coberto de pêlos acobreados. Atrás, Tessay estava caída ao chão e cobria o rosto com as mãos. Estava nua, e as curvas de seu corpo eram suaves como as de uma pantera.

— Que diabo está acontecendo aqui? — Nicholas gritou, e sua raiva cresceu ao ver a humilhação daquela meiga e graciosa mulher.

— Estou dando a essa cadela negra uma lição de boas maneiras — Boris vangloriou-se, com o rosto ainda inchado e vermelho de bebida. — Não é da sua conta, inglês, a menos que queira pagar para comer um pedaço do porco. — Ele ria despudoradamente.

— Você está bem, Woizero Tessay? — Nicholas continuou olhando para ele, para poupar a mulher de mais humilhação por outro homem a estar vendo nua.

Tessay sentou-se abraçada aos joelhos para esconder o corpo.

— Está tudo bem, Alto Nicholas. Por favor, voltem para a tenda antes que as coisas piorem. — O sangue escorria de uma das narinas para a boca e tingia-lhe os dentes brancos.

— Ouviu o que ela disse, inglês frouxo! Vá embora! Vá cuidar de seus assuntos, antes que eu também lhe dê uma lição de boas maneiras.

Boris avançou com a mão aberta para o peito de Nicholas, que se desviou com a facilidade e a rapidez de um toureiro que evita o primeiro ataque do touro. Saltou de lado e usou o próprio impulso de Boris para empurrá-lo na direção em que já se movia. Totalmente desequilibrado, o russo rodopiou no espaço entre as tendas, colidiu com uma cadeira e esparramou-se no chão.

— Royan, leve Tessay para a sua tenda! — Nicholas ordenou gentilmente. Royan entrou correndo na tenda e pegou um lençol na esteira mais próxima. Jogou-o sobre os ombros de Tessay e ajudou-a a se levantar.

— Por favor, não faça isso — Tessay soluçava. — Não o conhece quando ele está assim. Pode feri-lo.

Quando Royan tirou a mulher agredida da tenda, Boris já estava novamente em pé. Abaixou-se com raiva e ergueu do chão a cadeira que o havia derrubado. Com um chute, quebrou uma das pernas e segurou-a na mão.

— Quer brigar, inglês? Muito bem, então vamos brigar! — Ele avançou para Nicholas erguendo a perna da cadeira como um bastão Ninja, bem na frente da cabeça. Quando Nicholas se abaixou, Boris inverteu a direção e mirou o lado do peito sob o braço erguido. Teria quebrado algumas costelas de Nicholas, se este não conseguisse se desviar.

Eles se mediram desconfiados, e então Boris atacou outra vez. Se não fosse pelo efeito da vodca sobre os reflexos do russo, Nicholas jamais teria chance contra um adversário de tal calibre, mas Boris estava com os movimentos tão descontrolados que o inglês conseguiu abaixar-se e evitar novamente o golpe. Ao erguer-se, usou todo o seu peso para esmurrar a barriga de Boris logo abaixo do estômago. O ar saiu de dentro do russo num arroto tempestuoso.

A perna da cadeira caiu de sua mão, ele se dobrou e caiu ao chão. Segurando a barriga e respirando com dificuldade, Boris estava todo encolhido. Nicholas parou ao lado dele e disse calmamente em inglês:

— Esse tipo de comportamento não é bom, companheiro. Nós não batemos em mulheres. Por favor, que isso não se repita! — Dirigiu-se então a Royan: — Leve-a para sua tenda e a mantenha lá. — Nicholas afastou os cabelos do rosto e ajeitou-os para trás. — Agora, se ninguém tiver objeção, podemos dormir um pouco?

Voltou a chover nas primeiras horas da manhã. Gotas pesadas batiam na tela de lona, e na fraca claridade do amanhecer o interior da tenda ganhou uma luminosidade lúgubre. Mas quando Nicholas se dirigiu para a tenda de refeições, as nuvens haviam desaparecido e a luz do sol era brilhante e agradável. O ar da montanha recendia a terra úmida e cogumelos. Boris recebeu Nicholas de ótimo humor.

— Bom dia, inglês. A gente se divertiu muito ontem à noite, hem? Ainda dou risada quando me lembro do que aconteceu. Ótimas piadas. Um dia desses vamos beber mais vodca e contar mais piadas. — Ele foi para a tenda-cozinha e berrou: — Ei, Lady Sol, traga algo para seu novo namorado comer. Ele deve estar faminto depois de ontem à noite.

Tessay estava quieta e ensimesmada, supervisionando os criados que preparavam o café da manhã. Tinha um olho inchado e quase fechado, e o lábio cortado. Ela não olhou para Nicholas uma única vez durante a refeição.

— Vamos seguir viagem — Boris explicou jovialmente enquanto tomavam café. — Os criados vão desmontar o acampamento e nos seguir em meu caminhão maior. Com sorte acamparemos esta noite junto do desfiladeiro e amanhã começaremos a descer.

Quando se preparavam para entrar no caminhão, Tessay conseguiu falar baixo para Nicholas, para que Boris não ouvisse:

— Obrigada, Alto Nicholas. Mas não foi sensato. O senhor não o conhece. Agora tome cuidado. Ele não esquece nem perdoa.

Em Debra Maryam, Boris pegou um desvio da estrada que seguia paralelo ao Dandera, na direção sul. A estrada que haviam percorrido no dia anterior aparecia no mapa como a principal. Já era bastante ruim. A que seguiam agora aparecia como secundária, "intransitável com mau tempo". Para piorar a situação, grande parte do tráfego pesado havia sido desviado da estrada principal e seguia o mesmo caminho. Chegaram a um local em que um grande caminhão atolara na terra encharcada, e as tentativas de tirá-lo da lama deixaram buracos que lembravam crateras de bomba, como numa velha fotografia dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.

Por duas vezes o Toyota também ficou preso no terreno enlameado. Em ambas, um grande caminhão que vinha atrás parou para ajudar e os trabalhadores que viajavam na carroceria desceram para empurrar. Nicholas juntou-se a eles para liberar o veículo.

No início da tarde pararam à beira de um rio para uma refeição ao ar livre. Nicholas desceu até a margem, ao lado da estrada, para limpar a lama e a sujeira provocada pelos esforços matinais. Estivera à frente dos trabalhos para manter o caminhão em movimento. Royan o seguiu; sentou-se numa pedra enquanto ele tirava a camisa e se ajoelhava à beira do poço para se lavar com a água fria da montanha. O rio estava amarelado e caudaloso por causa das fortes chuvas.

— Não acho que Boris esteja acreditando nessa história de dik-áík listrado — avisou. — Tessay disse que ele está desconfiado do que viemos fazer. — Ela o olhava com interesse enquanto ele esfregava o peito e os braços. Onde o sol não alcançava, a pele era muito clara e sem qualquer marca. Os pêlos do peito eram grossos e escuros. Ela decidiu que era um corpo bom de se olhar.

— Ele é do tipo que mexeria em nossa bagagem se tivesse chance — concordou Nicholas. — Você não trouxe nada que possa lhe dar alguma pista, não é? Papéis, anotações...?

— Somente a foto do satélite, e todos os meus cadernos de notas. Ele não conseguiria entender nada.

— Tenha muito cuidado com o que conversa com Tessay.

— Ela é diferente. Não há nada de errado com ela — Royan saiu em defesa da nova amiga.

— Pode ser ótima, mas é casada com meu amigo Boris. Sua lealdade é primeiro para com ele. Não importa o que você sinta por ela, não confie em nenhum dos dois. — Nicholas secou-se na própria camisa, vestiu-a e abotoou-a sobre o peito. — Vamos comer alguma coisa.

Quando voltaram para o caminhão estacionado, Boris estava tirando a rolha de uma garrafa de vinho branco sul-africano e enchendo o copo de Nicholas. Resfriado no rio, o vinho estava fresco e com acentuado sabor de fruta. Tessay ofereceu galinha assada fria e pão injera, típico do país, uma fina folha de massa sem levedo, assada em forno de chão. As provações da viagem tornaram-se insignificantes quando Royan se deitou ao lado de Nicholas na grama e os dois ficaram vendo um abutre planar bem alto no céu. O pássaro os viu e voou com curiosidade acima deles, a cabeça voltada para baixo. Uma máscara preta circundava-lhe os olhos, e o vento acariciava suas penas como os dedos de um pianista percorrendo o teclado de marfim.

Na hora de partir Nicholas estendeu a mão para ajudar Royan a levantar-se. Foi um dos raros momentos de contato físico entre eles, e ela segurou a mão um ou dois segundos a mais que o estritamente necessário.

O caminho não melhorou nada à medida que se aproximavam da margem do desfiladeiro; as horas se alongavam dentro do veículo sacolejante, que se arrastava nas subidas e escorregava descontrolado nas descidas. Boris praguejou em russo quando entrou numa curva fechada à beira de um barranco e surgiu na sua frente um caminhão enorme que bloqueou quase toda a estrada.

Embora estivessem na trilha desse comboio de caminhões desde o dia anterior, era a primeira vez que encontravam um deles, e isso pegou Boris de surpresa. Pisou no freio de repente e seus passageiros quase foram atirados dos bancos, mas por estarem numa descida íngreme e sobre a lama a freada não os fez dar um salto completo. Boris engatou a marcha mais lenta e desviou para o pequeno espaço entre o barranco e o caminhão.

Do banco de trás, Royan olhou pelo vidro a lateral direita do caminhão. O nome e a marca da empresa estavam pintados em vermelho sobre fundo verde.

Uma forte sensação de déjà vu prendeu sua atenção ao desenho. Vira aquela marca recentemente, mas sua memória falhava: não se lembrava quando nem onde. Sabia apenas que era de vital importância lembrar.

A lateral do Toyota raspou na lataria do caminhão, mas conseguiu passar. Boris inclinou-se pela janela e sacudiu o punho para o outro motorista.

Era um nativo, provavelmente recrutado pelo proprietário do caminhão. Rindo das caretas de Boris, ele inclinou-se para fora da própria cabine e retribuiu a saudação com um dedo erguido.

— Comedor de cabeças! — Boris rugiu, com ódio por ter levado a pior. — Não costumo falar com essa gente. O que é que eles sabem? Chimpanzés pretos!

Durante o resto da cansativa viagem Royan ficou em silêncio, abalada e preocupada pela convicção de já que vira aquela marca do cavalo alado vermelho encimada pelo nome da empresa: "Mineradora Pégaso".

Quando o dia de viagem já se aproximava do final, eles passaram por um poste de sinalização ao lado da estrada. A base do poste era solidamente fixada em concreto, e a placa era tão bem pintada que só podia ser trabalho de um profissional:

MINERADORA PÉGASO

BASE — 1 KM

ESTRADA PRIVATIVA

PROIBIDA A ENTRADA DE VEÍCULOS NÃO AUTORIZADOS

O cavalo vermelho destacava-se no centro da placa, com as asas abertas, pronto para levantar vôo.

De repente Royan quase sufocou, ao lembrar-se de tudo com uma clareza estonteante. Voltou imediatamente para as águas geladas de um riacho inglês, atirada de dentro do Land Rover, enquanto um caminhão imenso avançava pela ponte e, numa fração de tempo subliminar, o cavalo alado passava diante de seus olhos.

"É o mesmo!", ela quase gritou, mas controlou-se a tempo. O terror do momento voltou com toda a força, e ela se surpreendeu com a respiração entrecortada e o coração acelerado como se tivesse corrido muito.

"Não pode ser coincidência", tentava se certificar em silêncio, "e eu não estou enganada. É a mesma empresa. Mineradora Pégaso."

Ela permaneceu distante e retraída durante os quilômetros seguintes, até que a estrada terminou abruptamente à beira do penhasco. Então Boris puxou o freio de mão e desligou o motor.

— É o mais longe que podemos chegar. Acamparemos aqui esta noite. O caminhão grande deve estar chegando. Os homens vão montar o acampamento. Amanhã desceremos à garganta a pé.

Enquanto eles descarregavam, Royan segurou o braço de Nicholas.

— Preciso falar com você — ela cochichou, e ele levou-a para a margem do rio.

Sentaram-se lado a lado à beira do barranco, com as pernas balançando. O rio lamacento diante deles parecia pressentir o que encontraria pela frente. Suas águas ganhavam velocidade, separavam-se nas pedras, formando redemoinhos, e voltavam a juntar-se para despencar no vazio num giro estonteante. O penhasco era um paredão de pedra de quase 300 metros de altura. Era tão profundo que à luz do entardecer criava um abismo escuro e misterioso, oculto pelas sombras e pelo vapor das cachoeiras. Royan olhou para baixo e teve vertigem. Recuou o corpo instintivamente e apoiou-se ao ombro de Nicholas para recuperar o equilíbrio. Mas quando o tocou percebeu o que estava fazendo e afastou-se, envergonhada.

As águas barrentas do Rio Dandera despencavam no penhasco e milagrosamente se transformavam numa etérea e esvoaçante cortina da mais fina renda; um arco-íris brincava através dela, criando um bordado de pérolas. As colunas de espuma branca assumiam formas belíssimas, porém efêmeras, pois batiam nas saliências da pedra e explodiam em nuvens brancas, que pairavam como um véu opalescente sobre as trevas do abismo profundo.

Foi só com muita força de vontade que Royan se desligou da paisagem e voltou à questão que a perturbava:

— Nicky, lembra-se que lhe contei sobre o caminhão que empurrou nosso Land Rover em cima da ponte?

— É claro que sim. — Ele estudou a expressão dela. — Você está preocupada. O que foi, Royan?

— As carretas que ele estava puxando tinham uma marca nas laterais.

— Sim, você disse isso. Verde e vermelha. Disse que não conseguiu ver o que estava escrito.

— Era igual à do caminhão pelo qual passamos esta manhã. Vi a marca do mesmo ângulo e me lembrei. O Pégaso vermelho, o cavalo voador...

Nicholas ficou olhando para ela.

— Tem certeza?

— Absoluta — Royan concordou com veemência.

Nicholas virou-se para o magnífico panorama do desfiladeiro que se desdobrava à sua frente. Eram 64 quilômetros até o outro lado, mas no ar límpido, lavado pela chuva, parecia tão próximo que podia ser tocado. Uma coincidência? — ele se perguntou.

— Acha que é? Uma estranha e maravilhosa coincidência, então. O Pégaso, em Yorkshire e em Gojam? Você acredita nisso?

— Não tem sentido. O caminhão que bateu em você era roubado...

— Era? — ela insistiu. — Tem certeza?

— Se não era, diga o que está pensando.

— Se você estivesse planejando um assassinato, acharia boa idéia roubar um caminhão e deixá-lo convenientemente abandonado para ser encontrado pela polícia?

Ele fez que não com a cabeça.

— Continue.

— Suponha que alguém tenha deixado o próprio caminhão lá e instruído o motorista a dar queixa do roubo quando ele já estivesse bem longe da polícia.

— É possível. — Ele não parecia entusiasmado.

— Quem matou Duraid e tentou me matar duas vezes sem dúvida tem bons recursos à disposição. É capaz de planejar coisas no Egito e na Inglaterra. E principalmente está com o sétimo papiro. Tem nossas anotações e todo o nosso trabalho de tradução, que aponta claramente este lugar do Rio Abbay. Suponha que essa pessoa possua uma empresa como a Pégaso — não teria motivo suficiente para estar na Etiópia, como nós estamos agora?

Nicholas continuou em silêncio. Pegou uma pedra no chão e atirou-a longe; ela girou no ar e desapareceu nos véus de gotículas. Ele levantou-se e estendeu a mão para Royan.

— Vamos.

— Vamos aonde?

— A base da Pégaso. Vamos lá bater um papo com o encarregado do canteiro de obras.

Boris protestou enraivecido e correu para impedir quando Nicholas subiu no Toyota e ligou o motor.

— Aonde pensa que vai?

— Vou dar um passeio. — Nicholas engatou a marcha. — Volto daqui a uma hora.

— Ei, inglês, esse caminhão é meu! — Boris tentou abrir a porta para entrar, mas Nicholas acelerou.

— Cobre o aluguel! — gritou com a cabeça para fora do veículo. Os dois chegaram ao poste de sinalização e pegaram o caminho que seguia numa subida. O canteiro de obras da Pégaso ficava logo abaixo. Nicholas parou no alto do morro, puxou o freio de mão e os dois ficaram observando em silêncio.

Uma área de uns 4 hectares havia sido desmatada e nivelada. Era toda cercada de arame farpado e tinha um único portão. Três caminhões grandes com a mesma marca estavam parados dentro da cerca. Havia outros veículos menores e grandes máquinas de sondagem enfileirados. O resto eram provisões e muitos equipamentos de prospecção: pilhas de troncos roliços, caixotes de aço, engradados de madeira e centenas de tambores de diesel e gasolina. Tudo isso estava empilhado com uma ordem espantosa naquela paisagem selvagem e árida. Dentro do portão havia um pequeno acampamento de uma dúzia de barracões, feitos com placas de zinco corrugado. Também obedeciam a um alinhamento militar.

— Uma grande organização — Nicholas comentou. — Vamos lá embaixo ver quem é o encarregado.

Havia dois guardas armados no portão, com uniformes camuflados do exército etíope.

Ficaram claramente surpresos com a chegada de um Land Cruiser estranho; Nicholas tocou a buzina e um deles aproximou-se desconfiado, com o rifle AK-47 de prontidão.

— Quero falar com o responsável — Nicholas disse em árabe, com autoridade suficiente para deixar o sentinela inseguro e sem reação.

O soldado resmungou alguma coisa, voltou para consultar o colega, ergueu a antena do rádio e falou no bocal do aparelho. Passaram-se cinco minutos, e então a porta do barracão mais próximo se abriu e um homem branco saiu de dentro dele.

Era baixo e atarracado e usava macacão de brim grosso e boina de lã. Por trás dos óculos espelhados tinha a pele do rosto grossa e curtida pelo sol. Por baixo das mangas arregaçadas os braços eram peludos e musculosos. Ele trocou algumas palavras com os guardas e aproximou-se do Toyota.

— O que está havendo aqui? — perguntou com um sotaque texano, equilibrando um cigarro apagado entre os lábios.

— Meu nome é Quenton-Harper. — Nicholas desceu do caminhão e estendeu a mão para cumprimentá-lo. — Nicholas Quenton-Harper. Como vai?

O americano hesitou, e então apertou a mão como se apertasse uma enguia elétrica.

— Helm — disse ele. — Jake Helm, de Abilene, Texas. Sou o encarregado daqui. — Ele tinha mãos de trabalhador, com calosidades nas palmas, cicatrizes nas juntas e unhas sujas de graxa.

— Sinto muitíssimo termos vindo perturbá-lo. Tive um problema com meu caminhão. Quero saber se seu mecânico pode dar uma olhada. — Nicholas sorria, mas não recebia nenhum incentivo do homem.

96

— É contra a política da empresa... — Ele balançou a cabeça.

— Estou disposto a pagar.

— Olhe, meu amigo, eu disse não. — Jake tirou o cigarro da boca e ficou olhando para Nicholas.

— Sua empresa... a Pégaso. Pode me dizer onde fica a sede? Quem é o proprietário?

— Sou um homem ocupado. Você está me fazendo perder tempo. — Helm voltou o cigarro para a boca e virou-se para ir embora.

— Estaremos caçando nesta área nas próximas semanas. Eu não gostaria de ferir nenhum de seus funcionários com um tiro perdido. Pode me dar alguma idéia de onde estarão trabalhando?

— Sou o encarregado de uma empresa de prospecção, senhor. Não fico anunciando todos o meus movimentos. Se mande daqui!

Ele foi para o portão e deu ordens expressas aos guardas antes de voltar ao barracão que servia de escritório.

— Antena parabólica no telhado — observou Nicholas. — Gostaria de saber com quem nosso amigo Jake está falando agora.

— Alguém no Texas? — aventou Royan.

— Não necessariamente — ele ponderou. — Provavelmente a Pégaso é uma multinacional. Só porque Jake é texano não significa que seu patrão também seja. Não foi uma conversa muito esclarecedora. Sinto muito. — Ele ligou o motor e manobrou o Toyota. — Mas se alguém da Pégaso estiver metido em tudo isso e for um dos suspeitos, vai reconhecer meu nome. Já avisamos que estamos aqui. Vamos ver quanta fumaça vai sair desse fogo.

Quando voltaram à cachoeira do Rio Dandera, o caminhão de Boris havia chegado, as tendas estavam montadas e o cozinheiro os esperava com um chá. Boris foi bem menos receptivo que o cozinheiro e manteve um silêncio soturno quando Nicholas fez algumas tentativas de aplacar sua raiva. Só depois da primeira vodca, à noite, ele se abrandou e voltou a falar.

— As mulas já deviam estar aqui. O tempo não significa nada para essa gente. Não podemos começar a descida sem elas.

— Bem, pelo menos enquanto isso terei a chance de acertar a mira do meu rifle. — Nicholas observou com ar de resignação. — Na África não vale a pena ter pressa. É fatigante para os nervos.

Nicholas fez a refeição matinal tranqüilamente, e, como não havia sinal das mulas, foi buscar o rifle. Retirou a arma da capa de lona verde, e Boris pegou-a da mão dele para examiná-la de perto.

— É um rifle antigo?

— De 1926. Meu avô mandou fabricá-lo.

— Eles sabiam fazer rifles naquela época. Não são como essas porcarias em série que existem hoje. — Seus lábios se retorceram num esgar crítico. — Um Mauser Oberndorf... bonito! Mas o cano foi modificado, não foi?

— O cano original explodiu. Foi substituído por um cano Shillen. Posso acertar as asas de mosquitos a cem passos.

— Calibre 7 x 57, é? — perguntou Boris.

— É um 275 Rigby, na verdade — Nicholas corrigiu-o, mas Boris rebateu.

— É exatamente o mesmo calibre! Só um maldito inglês poderia chamá-lo de outra coisa. — Ele riu mostrando os dentes. — Empurra um cartucho de cento e cinqüenta gramas para fora numa velocidade de oitocentos e quarenta metros por segundo. É um bom rifle, um dos melhores!

— Nunca saberá, meu querido amigo, quanto sua aprovação é importante para mim — Nicholas murmurou em inglês, e Boris continuou rindo ao devolver-lhe o rifle.

— Piada inglesa. Adoro piadas inglesas!

Nicholas saiu do acampamento levando a arma dentro da capa. Royan seguiu-o pela margem do rio e o ajudou a encher de areia branca duas pequenas bolsas de lona. Estas foram colocadas sobre uma pedra, formando um apoio firme e maleável para o rifle.

Usando a encosta do morro como anteparo de fundo, Nicholas adiantou-se uns 200 metros e nessa distância fixou um papelão onde havia colado um alvo do tipo Bisley. Voltou para junto de Royan e posicionou-se atrás da pedra onde estava apoiado o rifle.

Ela não estava preparada para a primeira explosão daquela arma tão refinada, de aparência quase feminina. Deu um pulo para trás, sentindo os ouvidos zunir.

— Que coisa horrível, que violência! — exclamou. — Como consegue matar lindos animais com uma espingarda tão poderosa?

— Rifle — ele corrigiu, olhando o buraco do tiro pelo binóculo. — Você se sentiria melhor se eu usasse uma arma menos potente ou os espancasse até a morte?

O tiro acertou 7 centímetros à direita e 5 abaixo do alvo. Enquanto Nicholas ajustava a mira telescópica, tentou explicar:

— Um caçador ético faz tudo para matar da maneira mais rápida e limpa possível, e isso significa aproximar-se do alvo o máximo que puder, usar uma arma de calibre adequado e mirar com toda a precisão.

O segundo tiro acertou exatamente a linha, mas apenas 2 centímetros acima da mosca. Ele pretendia acertar 7 centímetros acima, àquela distância. Ajustou a mira outra vez.

— Espingarda, rifle... Só não entendo por que matar intencionalmente uma criatura de Deus — Royan protestou.

— Isso eu posso explicar. — Ele mirou e atirou outra vez. Mesmo através da pequena ampliação das lentes deu para ver que a bala acertara exatamente 7 centímetros acima.

— É algo que tem a ver com um impulso atávico que poucos homens conseguem negar totalmente, por mais cultos e civilizados que sejam. — Nicholas atirou outra vez. — Há os que costumam descarregar esse impulso numa sala de diretoria, outros, num campo de golfe, numa quadra de tênis, pescando no rio, no fundo do oceano ou caçando no campo.

Ele deu mais um tiro, só para confirmar os dois anteriores, e continuou falando:

— Quanto às criaturas de Deus, foi Ele quem as deu a nós. Você é a religiosa. Cite-me os Atos 10, versículos 12 e 13.

— Desculpe — ela balançou a cabeça. — Cite você.

— "... e todo tipo de besta de quatro patas sobre a terra, e besta selvagem, e tudo o que se arrasta ou voa pelo ar. Ele ouviu uma voz que disse: Levanta-te, Pedro; mata e come'."

— Você devia ser advogado — ela murmurou, zombando.

— Ou padre — ele sugeriu, andando em direção ao alvo. Descobriu que os últimos três tiros haviam feito uma pequena roseta simétrica 7 centímetros acima do olho: três buracos de bala encostados um ao outro.

Ele bateu na coronha do rifle.

— Esta é a minha bem-amada Lucrécia Bórgia. — O apelido devia-se à beleza e ao potencial mortífero do pequeno rifle.

Ele enfiou a arma na capa e ambos voltaram para o acampamento. Quando já estavam próximos, Nicholas parou.

— Visitas. — Levou o binóculo aos olhos. — Ah! Remexemos alguma coisa que estava enterrada. É o caminhão da Pégaso que está lá, e, a não ser que eu esteja muito enganado, uma das visitas é o nosso simpático rapaz de Abilene. Vamos lá ver o que está acontecendo.

Perceberam, então, que uma dúzia de soldados uniformizados e fortemente armados cercava o caminhão; o tal Jake Helm estava sentado ao lado de um oficial do Exército etíope, na tenda de refeições, ambos envolvidos em séria conversa com Boris.

Nicholas entrou na tenda e foi apresentado por Boris ao oficial, que usava óculos bifocais.

— Este é o Coronel Tuma Nogo, comandante da zona militar sul de Gojam.

— Como vai? — O coronel ignorou o cumprimento.

— Quero ver seu passaporte e seu porte de arma — ordenou com arrogância, enquanto Jake Helm mascava complacentemente um malcheiroso toco de cigarro apagado.

— Sim, claro. — Nicholas entrou em sua tenda para pegar a pasta. Abriu-a sobre a mesa e sorriu para o oficial. — Tenho certeza de que também quer ver minhas cartas de apresentação da Secretaria do Exterior britânica em Londres e da Embaixada britânica em Adis Abeba. Há outra do embaixador egípcio na Corte de St. James, e este salvo-conduto é do seu ministro da Defesa, General Siye Abraha.

O coronel ficou consternado diante da salada de timbres oficiais e carimbos vermelhos. Por trás dos óculos de aro de ouro, seus olhos não sabiam onde se fixar.

— Sir! — Ele se aprumou e bateu continência. — É amigo do General Abraha? Eu não sabia. Ninguém me informou. Peço perdão por minha intrusão.

Bateu continência novamente; seu embaraço tornava-o desagradável e deselegante.

— Só vim avisá-los de que a companhia Pégaso está realizando operações de explosão e perfuração. Pode ser perigoso. Por favor, fiquem alerta. Há também muitos bandidos e fora-da-lei shuftas agindo nesta área. — Ele estava claramente nervoso, e tomou fôlego, tentando se recompor. — Como vê, tenho ordens de dar proteção aos funcionários da Pégaso. Se tiver algum problema enquanto ficar por aqui, ou se precisar de minha assistência por algum motivo, basta me chamar, senhor.

— É extremamente gentil, coronel.

— Não vou incomodá-lo mais, senhor. — Ele bateu uma terceira continência e foi para o caminhão, levando junto o capataz texano. Jake Helm não pronunciou uma só palavra o tempo todo, e agora ia embora sem se despedir.

O coronel fez a quarta e última continência pela janela do caminhão em movimento.

— Ponto! — Nicholas disse a Royan, retribuindo a saudação com um aceno preguiçoso. — Acho que ganhamos essa. Agora já sabemos que, por alguma razão, o Senhor Pégaso definitivamente não nos quer por perto. Acho que devemos aguardar seu próximo ataque para muito breve.

Eles foram até junto de Boris, que continuava sentado, e Nicholas falou:

— Agora só faltam as suas mulas.

— Já mandei três homens ao vilarejo saber o que aconteceu. Deviam estar aqui desde ontem.

As mulas chegaram bem cedo na manhã seguinte. Eram seis animais fortes, montados por muladeiros vestidos e com mantos e culotes. Ao meio-dia já estavam carregadas e prontas para descer o desfiladeiro.

Boris parou antes de entrar na trilha e olhou sobre o vale. Pela primeira vez mostrava-se maravilhado com a imensidão da altura, pelo esplendor da paisagem rude.

— Vocês vão entrar em outro mundo, em outra época — declarou em tom filosófico. — Dizem que essa trilha tem dois mil anos, a idade de Cristo. — Fez um gesto de desprezo. — O velho padre negro da igreja de Debra Maryam diz que a Virgem passou por aqui quando fugiu de Israel depois da crucificação — e balançou a cabeça negativamente. — Essa gente é capaz de acreditar em qualquer coisa. — Então começou a caminhada.

A trilha pendurava-se no penhasco num tal ângulo que cada passo era um profundo degrau de pedra que lhes exigia toda a elasticidade dos tendões e nervos dos joelhos e da virilha. Tinham de usar as mãos para apoiar-se nas partes mais estreitas, de modo que pareciam estar descendo uma escada.

Parecia impossível que as mulas carregadas conseguissem segui-los. Os animais saltavam cada degrau e apoiavam-se com todo o peso sobre as patas traseiras. Na trilha estreita, a carga raspava no paredão de pedra de um lado e do outro ficava pendurada sobre o abismo. Numa curva mais fechada, os animais não conseguiram fazer a volta na primeira tentativa. Suavam, olhando aterrorizados para a borda da trilha, e tiveram de ser instigados pelos condutores aos gritos e chicotadas.

Num certo ponto a trilha entrava pela montanha, passando por trás de agulhas de pedra moldadas no penhasco pelo tempo e pela erosão. As passagens eram às vezes tão baixas e estreitas que as mulas tinham de ser descarregadas. Os muladeiros transportavam a carga nos braços e as recarregavam do outro lado.

— Olhe! — Royan gritou e apontou para a frente. Um abutre negro emergiu das profundezas com as asas abertas, passando quase ao alcance das mãos; virou a cabeça pelada, coberta apenas de pele rosada, e voou para longe.

— Ele está usando o ar quente do vale para subir — Nicholas explicou a ela, e apontou para um contraforte mais ou menos no nível deles. — Aquele é um dos ninhos. — Era um emaranhado de galhos e terra montado sobre uma saliência inacessível. Os excrementos dos pássaros que há anos punham ali seus ovos tingiam a face do penhasco com respingos de um branco brilhante; dava para sentir de longe o mau cheiro de carne decomposta.

Durante todo o dia eles desceram pela trilha íngreme em torno do terrível penhasco. Estavam no meio da tarde e na metade do caminho quando, numa curva, ouviram o barulho de uma cachoeira. O ruído aumentou e transformou-se num estrondo tempestuoso quando saíram da curva e tiveram uma visão total do espetáculo.

O vento provocado pela torrente empurrava-os e os obrigava a se segurar nas saliências. Os respingos de água os envolviam e lhes umedeciam o rosto, mas o guia etíope os conduzia sempre à frente, até parecer que a água os arrastaria para o vale centenas de metros abaixo.

Então, milagrosamente, as águas se dividiram e atrás da grande cortina translúcida surgiu uma caverna de pedras cobertas de musgo, escavada no penhasco ao longo de eras pela força da água. A luz que ali entrava era filtrada pela cachoeira, criando a mesma luminosidade esverdeada e misteriosa de uma gruta submarina.

— É aqui que vamos dormir esta noite — anunciou Boris, apreciando claramente o espanto dos visitantes. Mostrou os restos de fogueiras dentro da gruta e as paredes enegrecidas pela fumaça. — Os muladeiros que levam comida e suprimentos para os padres do mosteiro usam este lugar há muito tempo.

Mais para o fundo da caverna, o barulho da cachoeira era só um ruído distante, e o chão estava seco. Os criados acenderam o fogo e o lugar se transformou num abrigo acolhedor e confortável, para não dizer romântico.

Com a tarimba de um velho soldado ao escolher o melhor lugar, Nicholas estendeu seu saco de dormir num canto, e Royan, naturalmente, desenrolou o dela ao lado. Estavam ambos cansados pelo exercício incomum; depois de tomar sopa esticaram-se nos sacos de dormir, ambos em silêncio, olhando o fogo brincar no teto de pedra.

— Imagine! — sussurrou Royan. — Amanhã estaremos passando pelo mesmo lugar por onde passou Taita.

— Sem falar na Virgem Maria... — Nicholas sorriu

— Você é um cínico — ela se queixou. — E quer saber mais? Acho que você ronca.

— Você vai ficar sabendo da pior maneira possível. — Mas Royan já estava dormindo. Sua respiração era tranqüila e profunda, porém audível. Fazia muito tempo que ele não tinha uma linda mulher dormindo a seu lado. Quando teve certeza de que ela não acordaria, tocou de leve seu rosto.

— Tenha bons sonhos, menina — murmurou baixinho. — Teve um dia difícil. — Era o que sempre dizia às suas filhas.

Os muladeiros levantaram-se muito antes do amanhecer, mas o grupo só se pôs a caminho quando a luz era suficiente para enxergarem onde pisar. Os raios de sol batiam nas paredes do penhasco e revelavam uma vista panorâmica de todo o vale. Nicholas retardou Royan para que ficasse ao seu lado deixando a caravana seguir na frente.

Encontraram um lugar para se sentar e desenrolaram a foto de satélite entre eles. Identificando as maiores elevações e outras características do cenário, tentavam orientar-se e estabelecer certa ordem na paisagem cataclísmica que se estendia abaixo deles

— Daqui ainda não se vê o Rio Abbay — Nicholas notou. — Ainda está no desfiladeiro secundário. Provavelmente só o veremos quando estivermos quase em cima dele.

— Se estivermos certos quanto à nossa atual posição, aqui o rio deve formar dois cotovelos.

— Sim, e a confluência do Dandera com o Abbay fica aqui, neste desfiladeiro. — Ele usava a junta do polegar como medida. — A uns vinte e poucos quilômetros de onde estamos.

— Parece que o Dandera mudou seu curso muitas vezes. Estou vendo pelo menos dois canais que parecem ter sido leitos de rio. — Ela apontou para baixo. — Lá e lá. Estão encobertos pela selva agora. — Royan estava desanimada. — Oh, Nicholas, numa região tão grande e confusa, como vamos encontrar a entrada de um túmulo escondido?

— Túmulo? Que túmulo? — Boris perguntou interessado. Ele voltara para ver por que se haviam atrasado e ninguém o ouviu aproximar-se. — De que túmulo estão falando?

— Ora, do túmulo de São Frumêncio, é claro — Nicholas respondeu tranqüilamente, sem mostrar preocupação.

— O mosteiro não é dedicado ao santo? — Royan perguntou com a mesma tranqüilidade, enrolando a fotografia.

— Ah — ele concordou desapontado, esperando algo mais interessante. — E, São Frumêncio... Mas não vão deixar vocês visitarem o túmulo. E nem conhecer o interior do mosteiro. Só os padres entram lá.

Boris tirou o chapéu e coçou a cabeça. Os fios de cabelo curtos e grossos entravam sob as unhas e espetavam como arame.

— Esta semana tem a cerimônia de Timkat, a Bênção do Tabot. Fica bem animado lá embaixo. Vocês vão achar muito interessante, mas não poderão entrar no Sacrário dos Sacráríos nem ver a tumba. Eu nunca soube que um branco tenha conseguido vê-la.

Ele apertou os olhos na direção do sol.

— Temos de ir. Parece perto, mas só chegaremos ao Abbay daqui a dois dias. O terreno não é fácil lá embaixo. É uma dura caminhada, até para um famoso caçador de dik-dik. — Dando uma gargalhada de sua própria piada, Boris voltou para junto da caravana.

Chegando ao final do desfiladeiro, a inclinação da trilha era menor, e foi possível apressar o passo. A caminhada ficou mais fácil e o avanço mais rápido, mas o ar mudara de qualidade. Não era mais fresco e agradável como nas montanhas, e sim um enervante calor equatorial, com cheiro de selva.

— Que calor! — disse Royan, livrando-se do xale de lã.

— Pelo menos dez graus a mais — concordou Nicholas, tirando o blusão de náilon pela cabeça. — E vai ficar mais quente quando nos aproximarmos do Abbay. Ainda temos de descer uns novecentos metros.

Agora a trilha seguia pelo Dandera. Às vezes eles estavam 100 metros acima do rio e logo em seguida com água na altura do peito; tinham de segurar-se na carga das mulas para não serem arrastados pela correnteza.

Num trecho em que o Rio Dandera era ladeado por rochedos íngremes, tornou-se muito profundo e não foi possível avançar mais. Eles tomaram então um caminho que serpenteava entre barrancos erodidos e ribanceiras de pedra vermelha.

Cerca de 1 000 metros à frente encontraram o rio num humor diferente, penetrando tranqüilo por uma densa floresta. Os cipós dependurados tocavam a superfície da água e musgos das árvores roçavam suas cabeças, emaranhados como a barba do velho monge de Debra Maryam. Macacos guinchavam no alto das árvores, observando desconfiados a intrusão de humanos em seu santuário. De repente, um animal grande atravessou na frente deles, e Nicholas olhou para Boris. O russo meneou a cabeça e riu.

— Não, inglês, não é dik-dík. É só um kudu.

Na encosta, o kudu parou e olhou para trás. De grande porte e chifres retorcidos, era um animal magnífico, com papada peluda e orelhas em forma de trompetes. Boris assobiou e sua atitude mudou no mesmo instante.

— Esses chifres têm mais de um metro e vinte. Pegariam uma boa colocação no Rowland Ward. — Ele se referia ao livro de registro de grandes presas, que era a Bíblia do caçador de troféus. — Não quer pegá-lo, inglês? — Ele correu para a mula mais próxima, tirou o Rigby da capa e ofereceu-o a Nicholas.

— Deixe-o ir. Só quero o dik-dik.

Balançando o pompom branco do rabo, o animal desapareceu entre a vegetação. Boris balançou a cabeça desgostoso e resmungou.

— Por que ele insistiu para que você o matasse? —perguntou Royan.

— Uma foto desse belo par de chifres ficaria ótima num folheto de publicidade. Atrairia clientes.

Eles andaram durante todo o dia e no final da tarde acamparam numa clareira próxima ao rio, onde se via claramente que outras caravanas já haviam parado muitas vezes. Via-se também que o local dividia a viagem em duas etapas: todos os viajantes faziam três dias de caminhada, desde o topo das cachoeiras até o mosteiro, e todos acampavam nos mesmos locais.

— Sinto muito, mas não há chuveiros aqui — Boris disse a seus clientes. — Se quiserem se lavar, há um poço seguro logo depois daquela curva do rio.

Royan olhou para Nicholas.

— Estou suada e com muito calor. Por favor, você montaria guarda para mim a uma distância em que possa me ouvir se eu chamar?

Nicholas deitou-se na margem; não a enxergava de onde estava, mas podia ouvi-la movimentar-se na água. De repente a correnteza levou-a um pouco mais abaixo, e através dos galhos e arbustos ele vislumbrou suas costas nuas e a curva das nádegas brilhando sob a água. Não resistiu a olhar uma segunda vez, embora com certa culpa, e assustou-se com a intensidade da excitação provocada pela visão daquela pele molhada, iluminada pelo sol da tarde.

Royan voltou pela margem cantarolando e enxugando os cabelos molhados.

— Sua vez. Quer que eu fique de guarda?

— Já estou bem crescido. — Nicholas fez que não com a cabeça. Mas, quando ela passou, notou um brilho maroto em seus olhos: teria consciência de que havia descido o rio até onde pudesse ser vista? Nicholas achou essa idéia estimulante.

Ele se afastou pela margem e quando se despiu e olhou para baixo sentiu-se culpado ao ver a excitação que ela lhe provocara. Desde Rosalind nenhuma mulher tivera aquele efeito sobre ele.

— Um bom mergulho na água fria não vai lhe fazer mal, companheiro. — Ele atirou a calça para trás de uma moita e mergulhou na água.

Após a refeição da noite, estavam todos sentados junto ao fogo quando Nicholas inclinou de repente a cabeça. — Estou ouvindo coisas? — perguntou. Tessay riu.

— É um canto. Os padres do mosteiro estão vindo nos receber.

Tochas acesas subiam pela encosta e tremeluziam por entre a vegetação que circundava o acampamento. Os muladeiros e os criados saíram correndo, cantando e batendo palmas, ao encontro da comissão de boas-vindas.

Profundas vozes masculinas erguiam-se na noite e desapareciam num quase sussurro à medida que a procissão se aproximava; em seguida o canto melodioso voltava a ser ouvido, o próprio som da África no meio da noite. Nicholas sentiu um frio percorrer sua espinha e estremeceu.

As túnicas brancas adejavam à luz dos tocheiros na trilha sinuosa, e quando o primeiro religioso entrou no perímetro do acampamento os criados caíram de joelhos. Eram jovens acólitos, de cabeça descoberta e pés descalços. Atrás deles vinham os monges, com longas túnicas e turbantes altos; eles abriram alas e formaram uma guarda de honra para dar passagem às fileiras de diáconos e padres ordenados, que portavam vestimentas e túnicas ricamente bordadas.

Cada um deles carregava uma pesada cruz copta de prata cravejada de pedras, no alto de um cajado. Sempre cantando, dividiram-se novamente em duas fileiras para deixar passar o palanquim com dossel carregado por quatro jovens acólitos, que o depositaram no centro do acampamento. As cortinas de seda carmim e amarelas reluziram sob as lanternas dos viajantes e as tochas da procissão.

— Vamos recepcionar o abade — Boris sussurrou para Nicholas. — O nome dele é Jali Hora. — Quando eles se adiantaram até a liteira, as cortinas foram puxadas para os lados e uma figura esquálida desceu.

Tessay e Royan ajoelharam-se respeitosamente e cruzaram as mãos diante do peito. Nicholas, contudo, continuou ao lado de Boris, observando o abade com muito interesse.

Jali Hora era esqueleticamente magro. Sob as saias da túnica as pernas apareciam como talos de tabaco secos ao sol, negras e tortas, com os músculos e tendões saltando da pele. A túnica era verde e dourada bordada com fios de ouro, e refletia a luminosidade do fogo. O chapéu alto de copa achatada também era bordado, seguindo um padrão de cruzes e estrelas.

O rosto do abade era negro como fuligem, a pele enrugada e profundamente sulcada pelo tempo. Tinha poucos dentes atrás dos lábios franzidos, e mesmo esses eram amarelados e tortos. Uma barba esbranquiçada irrompia tempestuosamente para todos os lados do maxilar. Ele tinha um olho cego, de um azul opaco, devido a uma oftalmia tropical, mas o outro brilhava como o de um leopardo caçando.

Ele começou a falar em voz alta e trêmula:

— Uma bênção — Boris avisou Nicholas, e os dois inclinaram a cabeça respeitosamente. O restante da comitiva respondia a seus cânticos a cada pausa.

Por fim, quando a bênção terminou, Jali Hora fez lentos sinais da cruz na direção dos quatro pontos cardeais, enquanto dois jovens ajudantes balançavam vigorosamente os incensórios e espalhavam nuvens de fumaça perfumada.

As mulheres foram, então, se ajoelhar na frente do abade. Ele parou diante delas e tocou levemente com a cruz cada uma de suas faces entoando uma bênção em falsete.

— Dizem que ele tem mais de cem anos — Boris cochichou. Dois debteras com trajes vermelhos trouxeram um banquinho de ébano africano lindamente entalhado; os olhos de Nicholas brilharam. Imaginava que devia existir há séculos e que seria um belo acréscimo para sua coleção. Os debteras seguraram os cotovelos de Jali Hora e delicadamente o sentaram no banco. Os demais sentaram-se no chão, com o olhar atento nele.

Tessay sentou-se aos pés do abade e, em voz baixa, traduziu para o amárico o que seu marido dizia.

— É um grande prazer e uma grande honra recebê-lo, Santo Padre. — O velho assentiu. — Trouxe um nobre inglês de sangue azul para visitar o Mosteiro de São Frumêncio.

— Vá com calma, companheiro! — Nicholas protestou, mas toda a congregação já o olhava com expectativa. — O que faço agora? — perguntou com o canto da boca.

— Por que você acha que ele veio até aqui? — Boris riu maliciosamente. — Quer um presente. Dinheiro.

— Dólares Maria Theresa? — ele inquiriu, referindo-se à centenária moeda da Etiópia.

— Não necessariamente. Os tempos mudaram, Jali Hora ficará feliz de receber as verdinhas americanas.

— Quanto?

— Você é um nobre de sangue azul. Veio caçar neste vale. Quinhentos, pelo menos.

Nicholas estremeceu e foi pegar a bolsa na anca de uma das mulas. Quando voltou, curvou-se diante do abade e colocou um maço de notas na palma da mão estendida. O velho mostrou os raros dentes amarelos num sorriso e falou.

Tessay foi traduzindo:

— Bem-vindo ao Mosteiro de São Frumêncio e à Estação do Timkat. Ele lhe deseja boa caça nas margens do Rio Abbay.

Imediatamente o ar solene dos devotos transformou-se numa explosão de sorrisos e comentários; o abade olhava para Boris em expectativa.

— O sagrado abade diz que a viagem lhe deu sede — Tessay traduziu.

— Esse velho demônio não dispensa um conhaque. — Boris fez sinal para um criado. Uma garrafa foi trazida cerimoniosamente e deixada sobre a mesa na frente do abade, ao lado de outra garrafa de vodca, que foi posta diante de Boris. Eles brindaram, o abade entornou a dose na boca e seus olhos se encheram de lágrimas. Com a voz rouca, fez uma pergunta a Royan:

— De onde você vem, filha, para seguir o verdadeiro caminho de Cristo, o Salvador dos Homens? — Tessay traduziu.

— Sou egípcia, pertenço à velha religião — respondeu Royan. O abade e todos os padres aprovaram com movimentos de cabeça.

— Somos todos irmãos e irmãs em Cristo, os egípcios e os etíopes — disse-lhe o abade. — A própria palavra egípcia "copta" é derivada do grego. Durante mil e seiscentos anos o Abuna, bispo de Etiópia, foi designado pelo patriarca do Cairo. O Imperador Hailé Selassié alterou isso em 1959, mas ainda trilhamos o antigo caminho de Cristo. Seja bem-vinda, minha filha — Tessay terminou.

Seu debtera serviu mais conhaque, que também foi consumido de um só gole. Até Boris mostrava-se impressionado.

— Onde é que esse cagado preto enfia isso? — perguntou-se em voz alta. Tessay não traduziu; em vez disso, baixou os olhos, visivelmente magoada pelo insulto ao santo homem.

Jali Hora olhou para Nicholas.

— Ele quer saber que animal veio caçar neste vale — disse Tessay. Nicholas aprumou-se para responder. Por um momento pairou uma descrença generalizada, mas o abade deu uma gargalhada e toda a assembléia juntou-se a ele.

— Um dik-dik! Veio caçar um dik-dik! Mas um animal desse tamanho não tem carne.

Nicholas esperou que eles se recuperassem do choque, então pegou uma foto do espécime montanhês do Moquoda harperii que estava no museu e abriu-a na frente de Jali Hora.

— Este dik-dik não é comum; é um dik-dik sagrado — disse em tom solene, sinalizando para que Tessay traduzisse. — Vou contar a lenda. — Todos ficaram em silêncio, na expectativa de uma boa história com implicações religiosas. O abade pôs o copo na mesa e olhava ora para a foto ora para Nicholas.

— Quando João Batista passou fome no deserto — os padres fizeram o sinal-da-cruz ao ouvir o santo nome —, ficou trinta dias e trinta noites sem que nada de bom entrasse em sua boca... — Nicholas levou sua história aos extremos da fome suportada pelo santo, detalhes que eram degustados por uma platéia que valorizava o sofrimento de seus homens sagrados em nome do bem. — No fim, o Senhor compadeceu-se de seu servo e sobre os espinhos de uma moita de acácia colocou um pequeno antílope. E disse ao santo: "Eu trouxe comida para você não morrer de fome. Pegue esta carne e coma". Onde João Batista tocou a pequena criatura, as marcas de seus dedos ficaram gravadas no pêlo para sempre e por todas as gerações seguintes. — Estavam todos calados e impressionados.

Nicholas deu a fotografia ao abade.

— Veja as marcas dos dedos nas costas dele.

O velho abade examinou a foto avidamente, segurando-a diante de seu único olho, e por fim exclamou:

— É verdade. As marcas do dedo do santo são bem claras.

Ele passou a foto aos diáconos. Encorajados pelo endosso do abade, os homens soltavam exclamações maravilhadas diante da insignificante criatura de pêlo listrado.

— Algum dos irmãos não teria visto um desses animais? — perguntou Nicholas, e todos abanaram a cabeça negativamente. A fotografia completou o círculo e foi passada para a ala dos acólitos.

De repente um deles se levantou, brandindo no ar a fotografia, e gritou.

— Eu vi a criatura sagrada! Com meus próprios olhos! Eu vi! — Era um jovem mal saído da adolescência.

Houve risadas e manifestações de descrença. Um deles arrancou a foto da mão do rapaz e, para provocá-lo, desafiou-o a pegá-la.

— A criança não é boa da cabeça; está possuída por demônios e convulsões — fali Hora explicou. — Não dê atenção ao pobre Tamre!

O olhar selvagem de Tamre percorria os acólitos numa tentativa desesperada de não perder de vista a fotografia, que passava de mão em mão em meio a provocações e zombadas.

Nicholas levantou-se para intervir. Tinha achado ofensivo o comentário sobre o problema mental; nesse instante o garoto caiu ao chão como se fosse atingido por um porrete. Suas costas se arquearam, os membros enrijecidos se debatiam incontrolavelmente, os olhos rolaram para trás, expondo totalmente a córnea, e uma baba espumosa saía de sua boca contorcida num ricto.

Antes que Nicholas chegasse até ele, quatro companheiros o ergueram e o tiraram dali. O tumulto aquietou-se e Jali Hora fez sinal a seu debtera para encher o cálice.

Já era tarde quando Jali Hora se despediu e foi ajudado pelos diáconos a subir no palanquim. Levou consigo o resto do conhaque, segurando a garrafa semivazia numa das mãos e abençoando com a outra.

— Causou boa impressão, milorde — disse Boris a Nicholas. — Ele gostou da sua história de João Batista, mas gostou mais do seu dinheiro.

Na manhã seguinte, a caravana seguiu paralelamente ao rio durante um bom tempo. Cerca de 1 500 metros à frente as águas ganhavam velocidade e se espremiam entre dois altos rochedos formando mais uma cachoeira.

Nicholas afastou-se da trilha e se aproximou da beira de um dos rochedos. Uns 60 metros abaixo viu uma fenda profunda, de largura apenas suficiente para permitir a passagem do rio de águas revoltas. Seria possível atirar uma pedra ao outro lado. Não havia qualquer caminho ou local onde se apoiar os pés naquela brecha, e ele voltou a juntar-se ao resto da caravana, que já se distanciara do rio e seguia agora para uma planície arborizada.

— Provavelmente este já foi o curso do Rio Dandera, antes de ele abrir caminho entre os rochedos. — Royan apontou para as elevações de cada lado do terreno e para as pedras desgastadas pela água que se amontoavam pelo caminho.

— Você está certa — concordou Nicholas. — Esses rochedos parecem ser uma intrusão de calcário no basalto e no arenito. Toda a região tem sido severamente corroída pela erosão e a eterna mutabilidade do rio. Você tem razão: esses rochedos de calcário são crivados de grutas e nascentes.

Agora a trilha descia rapidamente para o Nilo Azul e desaparecia nos quilômetros finais. O vale era ladeado por densa vegetação; as muitas nascentes que brotavam do calcário escorriam para o velho leito do rio. O calor aumentava rapidamente, e a blusa grossa de Royan logo ficou manchada de suor nas costas.

Num certo ponto, uma corrente de água pura jorrava de uma área de densas ramagens, rodeava a encosta e engrossava-se num riacho. Ao mudar de direção no vale, tanto eles quanto o riacho retornaram ao fluxo principal do Dandera. Olhando para o alto do desfiladeiro, viram que o rio saía da fenda profunda através de um arco estreito cavado na rocha. Era uma pedra lisa, com um peculiar tom rosado, e dobrava-se sobre si mesma, fazendo lembrar a mucosa interna de lábios humanos.

— A cor e a textura incomuns atraíram ambos os viajantes. Eles afastaram-se dos demais para examiná-la melhor, deixando que as mulas seguissem em frente. O ruído dos cascos misturado às vozes ao longe ecoava e reverberava no espaço confinado e fantasmagórico.

— Parece uma gárgula monstruosa espirrando água pela boca — sussurrou Royan, olhando para o alto. — Posso imaginar o que os antigos egípcios, conduzidos por Taita e o Príncipe Memnon, sentiram ao chegar a este lugar. Quantas conotações místicas não terão dado a um fenômeno tão natural!

Nicholas ficou olhando para ela sem dizer nada. Seus olhos refletiam temor, e o rosto tinha uma expressão solene. Ela o fazia lembrar uma figura de sua coleção em Quenton Park, um fragmento de afresco do Vale dos Reis, que era atribuída a uma princesa egípcia.

— Por que tanta surpresa? — ele perguntou. — O mesmo sangue corre em suas veias.

Royan virou-se para ele.

— Oh, Nicky, diga que não estou sonhando tudo isto. Diga que vamos encontrar o que estamos procurando e que vamos vingar a morte de Duraid.

Seu rosto estava erguido para ele e brilhava sob a pele suada e com a força do juramento. Ele foi tomado por uma necessidade incontrolá-vel de tomá-la nos braços e beijar seus lábios úmidos e entreabertos, mas virou as costas e voltou para a trilha.

Nicholas não ousou olhar para Royan de novo até ter retomado totalmente o controle. Logo em seguida ouviu seus passos rápidos e leves logo atrás. Ele prosseguiu em silêncio, preocupado com que ela não estivesse preparada para a súbita e estonteante paisagem que se abriria diante deles.

Chegaram então a uma saliência sobre o desfiladeiro secundário do Nilo. Embaixo, a uma profundidade de 150 metros, havia um imenso caldeirão de pedra vermelha. O rio legendário despejava uma torrente de água verde dentro do abismo oculto pelas sombras. Era tão profundo que a luz do sol não o alcançava. As águas do Dandera davam o mesmo salto, rodopiavam no ar como as brancas penas de uma garça e então espirravam na ventania do desfiladeiro. Nas profundezas os rios se misturavam formando um rolo de espuma que girava sobre si mesmo como uma grande roda, pesada e viscosa como o óleo, até finalmente encontrar uma brecha no desfiladeiro e por ela jorrar com força e poder irresistíveis.

— Você passou por aí de barco? — Royan perguntou num tom de admiração.

— Éramos jovens e tolos naquela época — Nicholas respondeu com um sorriso nostálgico.

Ficaram em silêncio por um longo tempo, e então Royan falou:

— Posso imaginar que aqui Taita e seu príncipe tenham sido impedidos de prosseguir. — Ela apontou o desfiladeiro na direção oeste. — É impossível que tenham atravessado o desfiladeiro secundário. Certamente vieram por cima dos rochedos, aqui onde nós estamos. — Era uma possibilidade excitante.

— A não ser que tenham vindo pelo outro lado do rio — Nicholas sugeriu, e a expressão dela imediatamente mudou.

— Eu não tinha pensado nisso. É claro que é possível. Como vamos passar para o outro lado se não encontrarmos nada deste?

— Vamos pensar nisso se formos obrigados. Já temos muito para nos contentar, sem precisar de mais dificuldades.

Novamente ficaram em silêncio, ambos considerando a magnitude e a incerteza da tarefa que se haviam colocado. Então Royan se manifestou:

— Onde fica o mosteiro? Não vejo sinal dele.

— Está no penhasco, logo abaixo de onde estamos.

— Vamos acampar lá?

— Duvido. Vamos saber o que Boris pretende fazer.

Eles seguiram pela trilha que contornava o caldeirão e encontraram a caravana de mulas numa bifurcação. Um dos caminhos se afastava do rio e seguia para uma depressão arborizada, enquanto o outro continuava beirando a rocha.

Boris esperava por eles, e indicou a primeira direção.

— Há um bom terreno lá na frente sob as árvores, onde acampei em minha última caçada aqui.

Era uma clareira rodeada por altas figueiras e tinha uma nascente de água fresca. Para diminuir a carga, Boris não descera com as tendas. Depois que as mulas foram descarregadas, ele mandou os homens construir três pequenas cabanas de varas trançadas, para suas acomodações, e cavar uma latrina bem distante da nascente.

Enquanto esse trabalho era feito, Nicholas chamou Royan e Tessay para explorarem juntos o mosteiro. Na bifurcação da trilha Tessay tomou o caminho que contornava o penhasco e descia por uma larga escadaria de pedra.

Um grupo de monges de túnica branca subia a escada. Tessay parou para falar com eles e em seguida foi ter com Nicholas e Royan.

— Hoje é Katera, a véspera do festival do Timkat. Eles estão se preparando. É um dos maiores eventos do ano religioso.

— O que se celebra? — perguntou Royan. — Não faz parte do calendário religioso do Egito.

— É uma epifania etíope que celebra o batismo de Cristo — explicou Tessay. — Na cerimônia, o tabot é levado para o rio para ser novamente dedicado e revitalizado, e os acólitos recebem o batismo como Jesus o recebeu das mãos de João Batista.

Eles continuaram descendo a escada na face do penhasco, pisando nos degraus marcados por muitos séculos de passagem de pés descalços. Alguns metros abaixo, o grande caldeirão do Nilo borbulhava e espumava.

Chegaram a uma ampla sacada encravada na rocha por mãos humanas. A pedra vermelha formava um teto sustentado por arcos de pedras erguidos pelos ângulos construtores. Na parede interior dessa grande sacada ficavam as entradas das catacumbas. Ao longo dos anos a gruta fora escavada, formando salas e celas, vestíbulos, capelas e santuários da comunidade monástica que ali habitava há mais de mil anos. Os monges estavam reunidos em grupos nessa sacada. Alguns ouviam um diácono ler em voz alta uma cópia iluminada das Escrituras.

— Muitos deles são analfabetos — suspirou Tessay. — A Bíblia é lida e explicada até para os monges, pois a maioria não sabe ler.

— Era assim na Igreja de Constantino, a Igreja de Bizâncio — Nicholas observou em voz baixa. — Continua sendo a Igreja da cruz e do livro sagrado, dos rituais elaborados e suntuosos, num mundo predominantemente analfabeto.

Percorrendo lentamente o mosteiro, eles passaram por outros grupos sentados, que, sob a direção de um chantre, entoavam salmos e hinos em amárico. Do interior das celas vinha um rumor de preces e súplicas; a atmosfera densa revelava a ocupação humana de centenas de anos.

Havia um cheiro de madeira queimada e incenso, de comida velha e excrementos, de suor e piedade, de sofrimentos e doenças. Além dos monges, havia ali os peregrinos que tinham feito a mesma viagem e os doentes que foram transportados através do desfiladeiro por seus parentes; lá estavam para fazer pedidos ao santo ou obter a cura de seus males e sofrimentos.

Havia crianças cegas chorando nos braços das mães, leprosos com a carne se despregando dos ossos, pessoas em coma causado por terríveis males tropicais. Seus lamentos e gemidos misturavam-se ao cântico dos monges e ao distante clamor do Nilo caindo no caldeirão.

Por fim chegaram à porta da catedral de São Frumêncio. Era uma abertura circular na rocha, que lembrava a boca de um peixe e cujo portal era contornado por uma faixa de estrelas, cruzes e cabeças de santos. Os retratos eram primitivos, em ocre e tons terrosos, de uma simplicidade infantil. Os olhos dos santos eram grandes e delineados com carvão, sempre com a mesma expressão tranqüila e benigna.

Um diácono de túnica de veludo verde-escura guardava a porta, mas depois de ouvir Tessay, abriu um sorriso e deixou-os entrar. O beiral era baixo, e Nicholas inclinou-se para passar, mas logo depois, quando se ergueu, ficou pasmo.

O teto da caverna era tão alto que desaparecia na obscuridade. As paredes de pedra eram revestidas com pinturas de uma revoada de anjos e arcanjos celestiais, iluminados pelas velas e lamparinas. Estavam parcialmente escondidos por imensas tapeçarias e ofuscados pela fumaça do incenso. Num dos afrescos São Miguel montava um cavalo branco, noutro a Virgem ajoelhava-se aos pés da cruz, onde o corpo de Cristo ferido pelas lanças dos romanos sangrava.

Essa era a nave exterior da igreja. Na parede do fundo da câmara central via-se um par de portas de madeira maciça que se abriam para uma câmara intermediária. Os três cruzaram o chão de pedra, abrindo caminho por entre os suplicantes ajoelhados ou sentados em seus tapetes, em êxtase religioso. Na fraca luminosidade das lamparinas e em meio à fumaça azulada do incenso, pareciam almas penadas vagando eternamente na escuridão do purgatório.

Os visitantes chegaram aos três degraus de pedra diante das portas, mas o caminho estava bloqueado por dois diáconos de túnica e chapéu de copa achatada. Um deles dirigiu-se a Tessay:

— Não vão nos deixar entrar no qiddist, a câmara intermediária — Tessay comunicou. — Depois dela está o maqdas, o Sacrário dos Sacrários.

Eles espiaram atrás dos guardas: na obscuridade do qiddist divisaram a porta que dava para o interior santificado.

— Somente os padres ordenados podem entrar no maqdas, pois lá está o tabot e a entrada do túmulo do santo.

Desapontados, eles iniciaram o caminho de volta para o terraço.

O jantar dessa noite foi feito sob um céu salpicado de estrelas. Ainda fazia calor, e nuvens de mosquitos os sobrevoavam nos limites da ação do repelente que eles haviam espalhado sobre a pele.

— E então, inglês? Eu o trouxe aonde queria chegar. Agora, como vai encontrar esse animal que o trouxe de tão longe para caçá-lo? — A vodca novamente deixara Boris beligerante.

— Quando amanhecer, quero que mande seus mateiros abrir um caminho daqui para baixo. Os dik-diks são mais ativos pela manhã, e, depois, só no final da tarde.

— Você está ensinando seu avô a despelar um gato — disse Boris, deturpando a metáfora. Ele despejou mais vodca no copo.

— Diga a eles que procurem rastros — Nicholas insistiu deliberadamente. — Imagino que os rastros da variedade listrada sejam muito similares aos do dik-dik comum. Se eles encontrarem algum sinal, devem esperar em silêncio atrás da moita mais fechada e aguardar qualquer movimento dos animais. Os dik-diks são territoriais. Nunca se distanciam muito de suas turfas.

— Está bem. Direi a eles. Mas o que é que você vai fazer? Vai passar o dia no acampamento com as moças, inglês? — Boris dissimulou o riso. — Se tiver sorte, talvez não fique muito mais tempo sozinho na cabana. — Seu corpo todo se sacudiu numa gargalhada, e Tessay, envergonhada, pediu licença para ir supervisionar o cozinheiro.

Nicholas preferiu ignorar a grosseria.

— Royan e eu vamos fazer o mesmo na vegetação ribeirinha da margem do Dandera. Me parece um bom habitat para o dik-dik. Avise seu pessoal para ficar longe do rio. Não quero espantar os animais.

Eles saíram do acampamento no dia seguinte sob a luz fraca do amanhecer. Nicholas carregava o rifle Rigby e um pequeno farnel, e conduziu Royan pela margem do rio. Andavam devagar, parando de vez em quando para olhar e escutar. O mato começava a ganhar vida com os sons e movimentos de pequenos mamíferos e pássaros.

— Os etíopes não têm uma tradição de caça, e imagino que os monges jamais perturbem a vida selvagem aqui na garganta. — Ele mostrou as pegadas de um antílope de pequeno porte na superfície úmida do barranco. — É um bushbuck de Menelik. Só existe nesta parte do mundo. É um troféu muito disputado.

— Você espera mesmo encontrar o dik-dik do seu bisavô? — ela perguntou. — Me pareceu bastante determinado quando conversou com Boris.

— É claro que não — Nicholas riu. — Acho que o velho inventou tudo aquilo. Poderia se chamar a Quimera de Harper. Provavelmente ele acabou usando a pele de um mangusto listrado. Nós, os Harpers, não viemos ao mundo para nos atermos literalmente à verdade.

Ele parou para observar um pássaro tacazze tremulando as asas sobre um ramo de botões amarelos que pendia de uma trepadeira. A plumagem do pássaro cintilava como uma tiara de esmeraldas.

— Mesmo assim, é uma ótima desculpa para podermos vasculhar este mato. — Ele olhou para trás para ter certeza de que estavam bem longe do acampamento, e então fez um gesto para ela sentar ao seu lado, sobre um tronco caído. — Agora vamos esclarecer bem o que estamos procurando. Diga você.

— Estamos procurando vestígios de um templo funerário, ou as ruínas da necrópole em que viveram os trabalhadores que escavaram a tumba do Faraó Mamose.

— Algum tipo de alvenaria ou trabalho em pedra — ele concordou —, especialmente algum tipo de coluna ou monumento.

— O testamento de pedra de Taita — ela reforçou com um movimento de cabeça. — Deve estar gravado ou esculpido em hieroglifos. Provavelmente desgastado, quebrado, coberto pela vegetação... não sei. Qualquer coisa. Somos dois cegos pescando em água turva.

— Bem, e por que ainda estamos aqui sentados? Vamos começar a pescar.

No meio da manhã, Nicholas encontrou pegadas de um dik-dik na margem do rio.

Eles se sentaram sob uma grande árvore e esperaram à sombra da floresta, até serem recompensados com o vislumbre das pequenas criaturas. Elas passaram bem perto, retorcendo o focinho empinado, pisando com as pequeninas patas, arrancando folhas de ramagens baixas e mastigando-as ruidosamente. Entretanto, o pêlo era de um cinza uniforme, sem qualquer vestígio de listras.

Os animais desapareceram sob a vegetação, e Nicholas levantou-se.

— Falta de sorte. Variedade comum — ele suspirou. — Vamos em frente.

Pouco depois do meio-dia, chegaram ao lugar em que o rio despencava pelo abismo através dos rochedos rosados. Exploraram o local quanto puderam, até o caminho ser bloqueado pelos rochedos. A rocha descia verticalmente até a correnteza, e não havia apoio para os pés na beira da água que permitisse penetrar mais.

Eles retornaram corrente acima e cruzaram para a outra margem por uma primitiva ponte suspensa, de cipós amarrados com corda grossa, que Nicholas presumiu ter sido construída pelos monges do mosteiro. Novamente tentaram avançar mais pela fenda profunda. Nicholas chegou a rodear o primeiro contraforte de rocha que barrava o caminho, mas desistiu diante da forte correnteza que poderia arrastá-lo.

— Se não conseguimos passar por aí, é altamente improvável que Taita o tenha feito.

Voltaram para a ponte suspensa e procuraram um local sombreado próximo à água para comer o lanche preparado por Tessay. O calor do meio-dia era extenuante. Royan molhou seu lenço de pescoço na água do rio para umedecer o rosto, enquanto se estendia ao lado de Nicholas.

Ele estava deitado de costas, estudando cada centímetro dos rochedos cor-de-rosa através do binóculo. Procurava alguma fresta ou abertura na superfície lisa da pedra.

Ele falou sem baixar o binóculo:

— Em O Ultimo Deus do Nilo, parece que Taita realmente conseguiu trocar os corpos de Tanus, o Grande Leão do Egito, e do faraó. — Ele afastou o binóculo e olhou para Royan. — Isso me intriga, porque teria sido um ato ultrajante na época em que ele viveu e com as crenças que tinha. É uma tradução adequada do pergaminho? Taita realmente trocou os corpos?

Royan riu e virou o rosto para ele.

— Seu velho amigo Wilbur tem uma imaginação muito fértil. A única base para toda essa história é uma única linha dos pergaminhos: "Para mim ele era mais rei do que tinham sido todos os faraós". — Ela tornou a pousar a cabeça no chão. — Esse é um bom exemplo das objeções que faço ao livro. Ele mistura fato e fantasia no mesmo caldo. Até onde sei e acredito, Tanus descansa em sua própria tumba, e o faraó, na dele.

— Que pena! — Nicholas suspirou. — É um toque romântico que me agradou muito. — Ele olhou o relógio de pulso e se levantou. — Venha, quero dar uma espiada no outro lado do vale. Vi um lugar interessante por lá, quando passamos ontem.

Já era final de tarde quando retornaram ao acampamento, e Tessay saiu correndo da tenda-cozinha para recebê-los.

— Estava louca para que vocês chegassem. Recebemos um interessante convite de Jali Hora, o abade. Ele nos chamou para um banquete no mosteiro, em celebração ao Katera, a véspera do Timkat. Os criados já prepararam o banho de vocês, a água está quente. É o tempo de se vestirem.

O abade enviara um grupo de jovens acólitos para escoltá-los até o local do banquete. Eles chegaram durante o rápido crepúsculo africano, portando tochas acesas para iluminar o caminho.

Royan reconheceu um deles como Tamre, o garoto epiléptico. Ao sinalizar com um sorriso afetuoso, ele se adiantou timidamente e ofereceu-lhe um buquê de flores silvestres que colhera na beira do rio. Royan não estava preparada para a cortesia e, sem pensar, agradeceu em árabe.

— Shukran.

— Taffaldi — respondeu imediatamente o garoto, usando o gênero correto e com uma pronúncia que fez Royan reconhecer instantaneamente sua fluência nessa língua.

— Como fala árabe tão bem? — perguntou-lhe, intrigada. O garoto inclinou a cabeça envergonhado e murmurou:

— Minha mãe é de Wassawa, no Mar Vermelho. Foi minha primeira língua.

No caminho para o mosteiro, o pequeno monge seguia Royan como um cachorrinho.

Mais uma vez eles desceram a escadaria no penhasco e chegaram ao terraço iluminado por tochas. Os pequenos claustros estavam cheios de gente, e ao passarem pela multidão entre as duas alas de acólitos, rostos negros os cumprimentavam em amárico e mãos negras estendiam-se para tocá-los.

Eles pararam diante do beiral da nave exterior da catedral. A câmara estava iluminada por tochas e lamparinas, de modo que os anjos e santos agora dançavam sob a luz bruxuleante. O chão de pedra estava recoberto por um tapete de grama e folhas de junco recém-cortadas; o aroma adocicado suavizava o ambiente denso e enfumaçado. Parecia que toda a irmandade de monges estava sentada de pernas cruzadas sobre o tapete macio, e saudou a entrada do pequeno grupo de ferengi com gritos de boas-vindas e bênçãos. Ao lado de cada um havia um frasco de tej, o mel hidratado e fermentado típico do país. Era óbvio, pelas expressões felizes e suadas dos monges, que o conteúdo dos frascos já tinha feito um bom trabalho.

Os visitantes foram conduzidos à antecâmara que tinha sido preparada para eles, bem de frente para as portas de madeira do qiddis, a câmara intermediária. Seus anfitriões os fizeram sentar e espalharam-se pelo espaço. Depois de instalados, outro grupo de acólitos veio do terraço trazendo garrafas de tej; os jovens ajoelharam-se na frente de cada um para depositar os frascos.

Tessay aproximou-se de Royan e disse:

— Deixe-me experimentar este tej antes de você. Sua força, cor e sabor variam de acordo com o lugar em que é servido, e alguns são bastante fortes. — Ela ergueu o frasco e bebeu-o diretamente no pescoço alongado do frasco. Então sorriu. — Este é bom. Se tomar cuidado não terá problemas com ele.

Os monges em volta os incentivavam a beber, e Nicholas ergueu o frasco. Provou a bebida sob palmas e risadas: era leve, agradável, mas com forte buquê de mel selvagem.

— Não é mau! — ele deu sua opinião, mas Tessay avisou: — Mais tarde eles vão oferecer o katikala. Cuidado com ele! É um destilado de cereais fermentados que arranca a cabeça do pescoço.

Os monges estavam concentrados em oferecer hospitalidade a Royan. O fato de ela ser cristã copta, uma autêntica crente, os impressionava. Era óbvio também que sua beleza não tinha passado totalmente despercebida aos santos celibatários.

Nicholas inclinou-se para ela e sussurrou:

— Você vai ter de fingir que bebe. Segure na boca e finja engolir, ou não a deixarão em paz.

Quando ela levou o frasco à boca, os monges soltaram exclamações deliciadas e a brindaram com seus próprios frascos. Ela cochichou para Nicholas:

— É uma delícia. Tem gosto de mel.

— Você quebrou seu voto de abstinência! — Ele riu.

— Só uma gota — ela admitiu —, e além do mais não fiz nenhum voto.

Os acólitos ajoelharam-se na frente de cada convidado e ofereceram água quente para lavar a mão direita, em preparação para o banquete.

De repente ouviram-se uma melodia e o som de tambores: uma banda de músicos entrou pelas portas abertas do qiddist. Iam se posicionando ao longo das paredes da câmara enquanto a congregação olhava expectante para o interior sombrio.

Por fim, Jali Hora, o velho diácono, apareceu no alto dos degraus. Usava uma túnica longa de cetim amarelo e uma estola ricamente bordada sobre os ombros. Trazia na cabeça uma pesada coroa que tinha o brilho do ouro, mas logo se via que era de metal dourado e que as pedras multicoloridas que a adornavam não passavam de vidros e massa vítrea.

Jali Hora ergueu o báculo encimado por uma cruz de prata ornamentada, e um pesado silêncio caiu sobre a congregação.

— Agora ele dará a bênção — disse-lhes Tessay, inclinando a cabeça.

Foi uma bênção longa e inflamada, num falsete esganiçado pontuado pela devota resposta dos monges. Quando finalmente terminou, dois debáeras esplendidamente paramentados ajudaram-no a descer os degraus e sentar-se num trono entalhado, o fimmera, no círculo de diáconos e padres mais velhos.

O fervor religioso dos monges transformou-se em bonomia festiva quando uma procissão de acólitos veio do terraço trazendo na cabeça uma cesta achatada, do tamanho de uma roda de carroça. Colocaram uma na frente de cada círculo de convidados.

Então, a um sinal de Jali Hora, as cestas foram todas destampadas ao mesmo tempo. Uma alegria jovial se apossou dos monges, pois elas continham tigelas cheias até a borda de injera, folhas redondas de pão sem levedo.

Dois acólitos cambaleantes entraram, equilibrando juntos um grande pote fumegante de metal que continha vários litros de wat, um guisado muito temperado de carneiro gordo, que era despejado nas tigelas de injera: um caldo viscoso marrom-avermelhado em cuja superfície via-se o brilho da gordura quente.

A congregação atacou vorazmente a comida. Os monges arrancavam pedaços de injera e molhavam no wat, depois enfiavam a trouxa dentro da boca, que ficava estofada enquanto mastigavam. Lavavam tudo isso com longos goles de tej e faziam a próxima trouxa de wat. Não demorou para que todos ficassem com os braços engordurados até os cotovelos e com restos escorrendo pelo queixo enquanto mastigavam, bebiam, riam e falavam em voz alta.

Os acólitos puseram então grossas fatias de outro tipo de injera ao lado de cada convidado. Era um pão mais duro e menos fermentado, mas quebradiço e friável, diferente da consistência de borracha do injera em folhas.

Nicholas e Royan procuravam demonstrar que estavam apreciando a comida, mas sem lambuzar-se de gordura como os outros. Apesar da aparência, o wat era realmente saboroso, e a secura do injera ajudava a equilibrar a gordura.

As tigelas comunitárias eram esvaziadas com uma rapidez incrível. Restava apenas uma montanha de migalhas misturadas com gordura quando outros acólitos entraram cambaleando sob o peso de outro conjunto de potes transbordantes, estes com wat de galinha ao caril, que despejavam nas cumbucas com restos de carneiro; novamente os monges atacaram. Enquanto devoravam a galinha, os frascos de tej eram preenchidos e os comensais iam ficando mais alterados.

— Acho que não vou agüentar comer mais — Royan disse baixinho para Nicholas.

— Feche os olhos e pense que está na Inglaterra — ele aconselhou. — Você é a estrela da noite. Não vão deixá-la fugir.

Tão logo terminou a galinha, os acólitos entraram com novos potes cheios até a borda com wat de carne de boi, que também foi despejado sobre os restos do carneiro e da galinha.

O monge sentado na frente de Royan esvaziou seu frasco de tej e, quando um acólito ofereceu-se para enchê-lo, recusou e começou a gritar: "Katikala! Katikala!"

E a congregação repetiu aos gritos: "Katikala! Katikala!"

Os acólitos correram para fora e voltaram com dezenas de garrafas com um líquido claro e licoroso, e cuias de metal do tamanho de xícaras de chá.

— Tenham cuidado com esse — Tessay avisou. Nicholas e Royan conseguiram despejar disfarçadamente o conteúdo de suas cuias sob o manto de junco sobre o qual se sentavam, mas os monges não recusaram os seus.

— Boris arrumou companhia — Nicholas comentou com Royan. O russo tinha o rosto vermelho e suava, rindo como um idiota ao esvaziar mais uma cuia.

Revitalizados pelo katikala, os monges iniciaram um jogo. Um deles fazia uma trouxa gorda de wat de carne com injera, e então, segurando-a na mão direita, virava-se para o monge ao lado. A vítima abria a boca, esticando ao máximo o maxilar, e a trouxa era enfiada nela por seu atencioso vizinho. A trouxa era, é claro, maior do que uma boca humana pode suportar, e para que coubesse a vítima arriscava-se a morrer por asfixia.

Parecia ser uma regra do jogo que não se podiam usar as mãos para enfiar a trouxa na boca, nem deixar escorrer pela túnica ou espirrar molho nos que estavam perto. As contorções acompanhadas de engasgos, sufocos e arfagens eram motivo de uma hilaridade incontrolável. Quando finalmente o monge conseguia engolir, uma cuia de katikala era levada ao seus lábios como recompensa. O conteúdo tinha de ser engolido da mesma maneira que o injera.

Jali Hora, embalado por tej e katikala, levantou-se de um salto, segurando uma trouxa gotejante. Com a coroa inclinada sobre a cabeça, iniciou uma instável caminhada para o outro lado da câmara. A princípio, nem Nicholas nem Royan perceberam suas intenções, mas toda a congregação observava-o com interesse.

Então, subitamente, Royan enrijeceu-se e sussurrou horrorizada:

— Não, por favor, não! Nicholas, por favor, não deixe isso acontecer comigo.

— Esse é o preço que você paga por ser uma mulher independente. — Jali Hora prosseguiu em seu caminho errático até onde ela estava sentada. O molho que saía da trouxa escorria pelo seu braço e pingava do cotovelo.

A banda encostada às paredes laterais irrompeu a todo o volume. Quando o abade estava a um passo de Royan, trôpego como uma carruagem antiga, as cordas e as flautas estridularam e os tambores explodiram frenéticos.

O abade ofereceu-lhe o presente e, com um último olhar desesperado para Nicholas, Royan enfrentou o inevitável. Fechou os olhos e abriu a boca.

Sob os urros da assistência, o rufar dos tambores e os trinados das flautas, ela conseguiu enfiar tudo na boca. Seu rosto ficou vermelho e seus olhos encheram-se de lágrimas. Num certo momento, Nicholas achou que ela fosse admitir a derrota e cuspir tudo no chão. Mas, devagar e corajosamente, um bocado por vez, ela conseguiu engolir e caiu exausta.

A platéia, que aplaudia e ovacionava, estava adorando. O abade ajoelhou-se segurando-se nela, quase perdendo a coroa no processo. Ainda segurando-a, caiu sentado de lado e ali ficou.

Parece que você fez outra conquista — Nicholas disse secamente. — Daqui a pouco ele vai estar no seu colo, se não fizer alguma coisa.

Royan reagiu rapidamente. Correu até o outro lado da câmara, pegou uma garrafa de katikala e encheu uma cuia até a borda.

— Beba, Papa! — disse a ele, segurando a cuia em sua boca. Jali Hora aceitou o desafio, mas não a desobrigou de segurar a cuia.

De repente Royan teve um sobressalto tão violento que o conteúdo da cuia derramou-se na túnica do velho. Seu rosto ficou branco, ela começou a tremer febrilmente, olhando para a coroa de Jali Hora, que escorregara para cima dos olhos.

— O que foi? — Nicholas perguntou em voz baixa e preocupada, pondo a mão em seu ombro para acalmá-la. Ninguém mais notara sua comoção, pois só ele estava em plena sintonia com ela.

Olhando aturdida para a coroa, Royan soltou a cuia no chão e segurou o pulso de Nicholas. Ele se surpreendeu com a força. Chegou a doer, pois as unhas se enfiavam na pele a ponto de rompê-la.

— Olhe essa coroa! A jóia! A jóia azul! — ela arquejava.

Então ele a viu entre as contas de vidro, os seixos semipreciosos e os cristais de rocha. Era um selo de cerâmica azul vitrificada, perfeitamente redondo, do tamanho de um dólar de prata. No centro do círculo havia uma gravação de um carro de guerra egípcio e, acima dele, o contorno inconfundível do falcão com a asa quebrada. Ao redor da circunferência, uma legenda em hieroglifos. Nicholas leu em pouquíssimo tempo:

Eu Comando dez mil carros de guerra. Sou Taita, mestre da Cavalaria Real.

Royan queria desesperadamente sair do ambiente opressivo daquela caverna. A trouxa de wat que fora obrigada a comer misturada aos poucos goles de te que tinha tomado lhe provocou um mal-estar que se agravava com o cheiro das tigelas e cuias sujas, de gordura fria e evaporação de katikala, e o cheiro de vômito mesclado com o miasma da fumaça dos incensos.

Entretanto, ela ainda era o centro das atenções do abade. Ele sentou-se a seu lado e lhe tocava o braço, recitando trechos de escrituras amáricas; Tessay já desistira de traduzir há muito tempo. Royan olhava esperançosa para Nicholas, mas ele estava quieto e distante, alheio ao que se passava em volta. Ela sabia que estava pensando no selo de cerâmica da coroa do abade, pois olhava para ela a todo instante.

Royan sabia que não deviam chamar a atenção para o fragmento de cerâmica, mas olhou para Boris do outro lado do círculo e viu que ele estava longe de perceber qualquer coisa além da cuia de katikala que tinha na mão. No fim, foi o próprio Boris quem lhes deu a desculpa de que precisavam sair. Ao tentar ficar em pé, as pernas não o suportaram e ele tombou para a frente de um jeito engraçado, caindo de cara na tigela engordurada de injera, onde ficou roncando estrondosamente. Tessay teve de apelar para Nicholas:

— Alto Nicholas, o que devo fazer?

Nicholas considerou o triste espetáculo do caçador prostrado. Havia migalhas de pão e pedaços de carne espalhados como confetes pelos cabelos curtos.

— Desconfio que o Príncipe Encantado não agüenta mais por esta noite — ele murmurou.

Foi para junto de Boris e segurou-o pelo pulso. Colocou-o sentado e com um impulso ergueu-o sobre um ombro.

— Boa noite a todos! — disse aos monges, que já não conseguiam responder. Saiu com Boris desacordado, pendurado de seu ombro, com a cabeça e as pernas balançando. As mulheres tiveram de apressar o passo para acompanhar Nicholas pelo terraço e depois na escadaria.

— Eu não havia percebido que Alto Nicholas era tão forte — observou Tessay na subida íngreme e difícil.

— Nem eu — admitiu Royan, experimentando uma ridícula sensação de propriedade. Ela sorriu de si mesma na escuridão.

"Não seja tola", pensou. "Ele não é seu, para ficar tão orgulhosa." Quando Nicholas despejou o peso de Boris sobre a cama, o suor escorria de seu rosto.

— Essa é uma ótima receita para um ataque cardíaco — comentou, arfante.

Boris resmungou, virou de lado e vomitou no travesseiro e nos lençóis.

— Diante disso só posso lhe desejar uma boa-noite e bons sonhos — Nicholas disse a Tessay, saindo da cabana e respirando aliviado o perfume da floresta. Virou-se, então, para Royan, que segurava seu braço.

— Você viu — disse ela, excitada. Ele pôs os dedos em seus lábios para silenciá-la e, advertindo-a com um olhar, levou-a para a cabana.

— Você viu? — ela repetiu, sem se conter. — Conseguiu ler?

— "Eu comando dez mil carros de guerra" — Nicholas repetiu.

— "Sou Taita, o mestre da cavalaria real" — Royan completou. — Ele esteve aqui. Oh, Nicky, ele esteve aqui! Era a prova que procurávamos. Agora sabemos que não estamos perdendo tempo.

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Tenho outra opinião. A coroa é um dos tesouros do mosteiro. Acho que o abade não a daria nem a você, sua dama favorita. Seja como for, não é sensato demonstrarmos muito interesse. Jali Hora não tem idéia de sua importância. Além disso, não queremos chamar a atenção de Boris.

— Você está certo. — Ela se afastou um pouco na cama para dar lugar a ele. — Sente-se. De onde acha que veio o selo? Quem o encontrou? Onde? Como?

— Devagar, mocinha. São quatro perguntas numa só, e não sei responder a nenhuma delas.

— Vamos imaginar, então — ela propôs. — Vamos especular. Vamos dizer o que nos passar pela cabeça.

— Muito bem — ele concordou. — O selo foi fabricado em Hong Kong. Existe lá uma fabriqueta que o reproduz aos milhares. Jali Hora comprou-o numa loja de lembranças em Luxor, quando passou férias no Egito no mês passado.

Royan beliscou o braço dele e ordenou:

— Fale sério.

— Vamos ver se você faz melhor — Nicholas desafiou, esfregando o braço.

— Vamos lá. Taita deixou o selo aqui quando veio construir a tumba do faraó. Três mil anos depois, um velho monge, dos primeiros que viveram aqui no mosteiro, encontrou-o. É claro que não conseguiu ler os hieroglifos. Levou-o para o abade, que declarou ser uma relíquia de São Frumêncio e colocou-o numa coroa.

— E todos viveram felizes para sempre — Nicholas concordou. — É um bom palpite.

— Consegue ver alguma falha? — Ele fez que não com a cabeça. — Então concorda que Taita esteve aqui, e que isso prova a nossa teoria?

— "Prova" é uma palavra muito forte. Digamos que aponta nessa direção — ele corrigiu.

Royan virou-se para olhá-lo de frente.

— Oh, Nicky, estou tão excitada! Juro que não vou conseguir pregar o olho esta noite. Mal posso esperar que o dia amanheça para sairmos daqui e começarmos a procurar.

Os olhos dela brilhavam e as faces estavam coradas. A ponta da língua repousava atrás dos lábios entreabertos. Desta vez Nicholas não conseguiu se conter. Foi se inclinando para ela bem lentamente, convi-dando-a, dando-lhe oportunidade para se afastar, se quisesse. Ela não se mexeu, mas o brilho em seu rosto aos poucos foi se transformando em apreensão. Olhava dentro dos olhos de Nicholas como se buscasse alguma coisa, uma certeza. Quando os lábios estavam quase encostados, ele parou, e foi Royan quem fez o último movimento. A princípio foi muito suave, apenas uma respiração, e então tornou-se mais selvagem e faminto. Por longo tempo eles se devoraram mutuamente; os lábios dela tinham um sabor delicado e doce de fruta madura. Então, de repente, Royan soltou um gemido e com muito esforço conseguiu afastar-se dos braços dele.

— Não — murmurou. — Por favor, Nicky, ainda não. Eu não estou pronta.

Ele pegou-lhe as mãos e as colocou sobre as suas. E bem de leve beijou as pontas dos dedos, saboreando o perfume e o gosto de sua pele.

— Nos veremos amanhã cedo. — Ele se levantou. — Bem cedo. Esteja pronta — disse, saindo pela porta da cabana.

Na manhã seguinte, Nicholas vestiu-se ouvindo os movimentos de Royan em sua cabana; quando passou devagar por sua porta, encontrou-a já pronta e ansiosa para começar.

— Boris ainda não acordou — disse Tessay, servindo o café.

— Isso não é surpresa — retrucou Nicholas, sem erguer os olhos do prato. Ele e Royan ainda se sentiam ligeiramente constrangidos na presença de outras pessoas, lembrando-se das circunstâncias em que se haviam separado na noite anterior. Porém, quando Nicholas pendurou o rifle e a mochila no ombro e tomaram o caminho do vale, a excitação e a expectativa substituíram qualquer outro sentimento.

Já andavam havia cerca de uma hora quando Nicholas olhou para trás e avisou-a:

— Estamos sendo seguidos.

Pegou-a pelo braço e levou-a para trás de uma pedra. Encostado à pedra, fez sinal para que Royan fizesse o mesmo. Então preparou-se e, subitamente, deu um salto e bloqueou o caminho de uma figura magricela, vestida num shamma branco imundo, que se esgueirava pelo vale atrás deles. A criatura soltou um uivo e caiu de joelhos, trêmula e aterrorizada.

Nicholas ergueu-o pelo braço e indagou em árabe:

— Tamre! Por que está nos seguindo? O garoto girou os olhos para Royan.

— Não, efêndi, por favor, não me machuque. Eu não queria fazer mal.

— Solte o menino, Nicky. Vai provocar outra crise — Royan interveio. Tamre escondeu-se atrás dela e agarrou-lhe a mão, espiando Nicholas como se corresse perigo de vida.

— Calma, Tamre — Nicholas tranqüilizou-o. — Não vou lhe fazer mal, a menos que minta para mim — acrescentou em tom autoritário. — Se mentir, vou bater em você até arrancar sua pele. Quem o mandou vir atrás de nós?

— Vim porque quis. Ninguém mandou — gaguejou o garoto. — Vim mostrar onde vi o animal sagrado com as marcas dos dedos de São João Batista nas costas.

Nicholas ficou olhando para ele e começou a rir.

— Que me caia um raio na cabeça se esse garoto não acredita mesmo que viu o dik-dik do meu bisavô. — Nicholas fez novamente cara de bravo. — Lembre-se do que prometi se você mentir.

— É verdade, efêndi! — Tamre chorava, e Royan veio em sua defesa.

— Não o amedronte. Ele não faz mal a ninguém. Deixe o pobre garoto.

— Está bem, Tamre, vou lhe dar uma chance. Leve-nos aonde viu o animal.

Tamre resolveu não soltar mais a mão de Royan. Agarrado a ela, puxava-a e saltitava ao seu lado, e não demorou para que o medo desaparecesse, dando lugar a risos contidos.

Eles andaram durante uma hora, afastando-se do rio em direção a um terreno mais alto que o vale, uma região de densos espinheiros entremeados por pedras de calcário descoradas. Os galhos eram tão entrelaçados e cresciam tão perto do chão que parecia impossível atravessá-los.

Mas Tamre levou-os por uma trilha sinuosa, com largura suficiente para que os espinhos não os atingissem. O menino parou de repente, fazendo Royan estancar ao seu lado, e apontou para baixo, quase que para os próprios pés.

— O rio! — anunciou, com ares de importância. Nicholas aproximou-se deles e assobiou baixinho. Tamre fizera um amplo círculo para oeste e os levara de volta ao Rio Dandera, no ponto em que ainda corria numa profunda ravina.

Eles estavam agora no alto de um abismo. Nicholas percebeu imediatamente que, embora a parte superior da ravina rochosa não tivesse mais de 30 metros, o vão alargava-se abaixo da borda. Da superfície da água, lá embaixo, o paredão de pedra formava uma barriga com o formato das garrafas de tej. E estreitava-se novamente ao se aproximar do topo, onde eles estavam.

— Eu vi o bichinho sagrado ali. — Tamre apontou para o outro lado do penhasco, onde um fio de água saía dos arbustos espinhosos. Filetes de limo de um verde brilhante, nutridos pela nascente, penduravam-se do lábio da pedra côncava, e a água gotejava de suas pontas no rio, que corria 70 metros abaixo.

— Se o viu lá, por que estamos deste lado do rio? — Nicholas perguntou em tom autoritário.

Tamre parecia a ponto de chorar.

— Este lado é mais fácil. Não dá para atravessar o espinheiro do outro lado. Os espinhos machucariam Woizero Royan.

— Pare de ser tão malvado! — Royan disse a Nicholas, e passou o braço pelos ombros do menino.

— Agora parece que são dois contra mim. Bem, já que estamos aqui, podemos então nos sentar e esperar que apareça o dik-dik do meu bisavô.

Ele encontrou um lugar à sombra de duas árvores penduradas na beira do penhasco e varreu os espinhos do chão com o chapéu para que os dois se sentassem. Então encostou-se no tronco de uma das árvores e depositou o rifle Rigby no colo.

Já passava do meio-dia e o calor era muito forte. Nicholas ofereceu o cantil para Royan e, enquanto ela bebia, espiou Tamre com o canto do olho e sugeriu em inglês:

— Esta é uma boa hora para descobrir o que o garoto sabe sobre a cerâmica de Taita na coroa. Ele está encantado com você. Vai lhe dizer tudo o que quiser. Pergunte.

Ela começou gentilmente, falando devagar com o menino. De vez em quando passava a mão na cabeça dele, como se fosse um cachorrinho.

Falou do banquete na noite anterior, da beleza da igreja escavada na gruta, da antigüidade das pinturas e das tapeçarias e, por último, mencionou a coroa do abade.

— Sim, sim. É a pedra do santo — ele concordou prontamente. — A pedra azul de São Frumêncio.

— De onde ela veio? — Royan perguntou. — Você sabe? O jovem ficou embaraçado.

— Não sei. É muito velha, acho que mais velha que nosso Cristo, o Salvador. É o que os padres dizem.

— Sabe onde ela foi encontrada?

Ele moveu a cabeça em sinal negativo. Mas, a seguir, só para lhe agradar, sugeriu:

— Talvez tenha vindo do céu.

— Talvez — Royan olhou para Nicholas, que girou os olhos para o alto e puxou o chapéu para cima do rosto.

— Acho que foi São Frumêncio que deu a coroa para o primeiro abade, antes de morrer — Tamre estava ficando animado. — Ou então já estava no caixão com ele quando foi enterrado.

— Tudo isso é possível, Tamre — Royan concordou. — Você já viu o túmulo de São Frumêncio?

Ele olhou em volta com ar de culpa e murmurou de cabeça baixa:

— Só os padres ordenados podem entrar no maqãas, o Sacrário dos Sacrários.

— Você já o viu, Tamre — ela o acusou delicadamente, batendo de leve em sua cabeça. A culpa do garoto a intrigava. — Pode dizer, não vou contar aos padres.

— Foi só uma vez — Tamre confessou. — Os outros meninos me mandaram tocar na pedra tabot. Iam me bater se eu não fizesse. Todos os novatos são obrigados a fazer isso. — Ele começou a gaguejar de medo ao lembrar da sua iniciação. — Eu fui sozinho. Tive muito medo. Era mais de meia-noite e estavam todos dormindo. Escuro. O tnaqdas é assombrado pelo fantasma do santo. Eles disseram que se eu não tivesse coragem o santo ia me matar com luz.

Nicholas tirou o chapéu do rosto e foi se endireitando.

— Meu Deus, o menino está falando a verdade — ele disse baixinho. — Ele esteve no Sacrário dos Sacrários. — Então olhou para Royan. — Continue perguntando. Ele pode dizer alguma coisa que nos interesse. Pergunte sobre o túmulo de São Frumêncio.

— Você viu o túmulo do santo? — O garoto assentiu. — Entrou no túmulo?

— Não, tem grades na entrada. Só o abade pode entrar no túmulo, no aniversário do santo.

— Você olhou pela grade?

— Olhei, mas é muito escuro. Vi o caixão do santo. É de madeira e tem um desenho com o rosto dele.

— Ele é preto?

— Não, é branco e tem barba ruiva. A pintura é muito antiga, já está desbotando, e o caixão de madeira está apodrecendo.

— O túmulo está no chão?

Tamre fez uma careta para pensar e depois de algum tempo abanou a cabeça.

— Não. Está num degrau de pedra na parede.

— Você se lembra de mais alguma coisa desse túmulo? — Royan tentava estimular sua memória, mas ele meneou a cabeça mais uma vez.

— É muito escuro, e a grade é muito estreita — justificou.

— Não faz mal. O túmulo está na parede de trás do maqdas?

— Está, atrás do altar e da pedra tabot.

— Do que é feito o altar? De pedra?

— Não, é de madeira, de cedro. Tem velas e uma cruz grande, as coroas do abade e o cálice.

— É pintado?

— Não, é entalhado com figuras. Mas são diferentes das figuras do túmulo do santo.

— Diferentes como? Me conte, Tamre.

— Não sei. Têm umas caras engraçadas. Usam roupas diferentes. Têm cavalos... — ele parecia confuso. — São diferentes.

Royan ainda tentou fazê-lo dar uma descrição melhor, mas o garoto foi ficando tão confuso e contraditório que ela achou melhor mudar de tática.

— Fale sobre o tabot — sugeriu, mas Nicholas interveio:

— Não, fale-me você sobre o tabot. É semelhante a um tabernáculo judeu?

Royan virou-se para ele.

— Sim, pelo menos na igreja egípcia é. Geralmente fica dentro de uma caixa adornada com pedras preciosas e é coberto por um tecido bordado a ouro. A única diferença é que o tabernáculo judeu tem esculpidos os dez mandamentos, e na nossa igreja estão esculpidas palavras de dedicação da igreja que o abriga. É o coração da igreja.

— O que é a pedra tabot? — Nicholas franziu o cenho, concentrado.

— Não sei — disse ela. — Nossa igreja não tem pedra tabot.

— Pergunte a ele.

— Fale sobre a pedra tabot, Tamre.

— É assim alta e assim quadrada — ele indicou pouco acima de seu ombro e abriu os dois braços.

— E o tabot fica em cima da pedra? Tamre fez que sim.

— Por que eles mandaram você tocar a pedra e não o tabot? — Nicholas perguntou autoritariamente, mas Royan sacudiu a cabeça para silenciá-lo.

— Deixe que eu faça as perguntas. Você é muito rude com ele. — Ela voltou-se novamente para o menino. — Por que a pedra e não a Arca do tabot que está sobre ela?

Tamre encolheu os ombros.

— Não sei, foi o que eles mandaram.

— Como é essa pedra? Também tem pinturas?

— Não sei. — Ele estava triste por não poder satisfazê-la. Queria desesperadamente agradar-lhe. — Não sei. A pedra é embrulhada com um pano.

Nicholas e Royan trocaram olhares, e então ela voltou a perguntar:

— Embrulhada? — Ela inclinou-se mais para ele. — A pedra está embrulhada?

— Ela só é desembrulhada pelo abade no dia do aniversário de São Frumêncio.

Novamente os dois se entreolharam, e então Nicholas sorriu de modo pensativo.

— Eu adoraria poder dar uma olhada no túmulo do santo e na pedra do tabot... desembrulhada.

— Terá de esperar pelo aniversário do santo — disse ela — e ser ordenado. Só os padres... — Royan interrompeu o que dizia e olhou para ele. — Você não está pensando em... ah, não, você não o faria...

— Quem, eu? — Ele riu. — Nem pense nisso.

— Se o pegarem dentro do maqdas, eles o cortarão em pedacinhos.

— Então é melhor não deixar que me peguem.

— Se você for, eu também vou. Como vamos conseguir?

— Mais devagar, minha querida. A idéia só me ocorreu há alguns segundos. Mesmo na minha melhor fase precisaria de pelo menos dez minutos para bolar um brilhante plano de ação.

Os dois ficaram olhando para o penhasco em silêncio, até que Royan disse em voz baixa:

— A pedra embrulhada. Será o testamento de Taita?

— Não fale tão alto — ele rogou, e fez o sinal contra o olho do demônio. — Nem sequer pense alto. O demônio tem ouvidos.

Eles voltaram a ficar em silêncio, ambos pensativos. Então Royan começou:

— Nicky, e se... — mas parou. — Não, isso não daria certo. — Ficou novamente quieta.

Tamre quebrou o silêncio com um súbito chiado de excitação:

— Lá está! Veja!

Os dois levaram um susto.

— O que foi? — Royan virou-se para ele. Tamre batia no braço dela, tremendo de emoção.

— Ele está lá. Eu disse! — E apontava para o outro lado do rio. — Bem ali, naquele espinheiro. Não está vendo?

— O quê? O que é que você está vendo?

— O animal de São João Batista. A criatura da marca sagrada. Seguindo a direção do braço estendido, eles divisaram um leve tremor nas ramagens do espinheiro na margem oposta.

— Não sei, está muito longe...

Nicholas procurou o binóculo na mochila. Focalizou-o e começou a rir.

— Aleluia! Finalmente a reputação de meu bisavô está salva! — Ele passou o binóculo para Royan, que então viu a pequena criatura. Estava a uns 300 metros de distância, mas através das lentes potentes os detalhes ficavam claros.

Era pouco maior que o dik-dik comum que haviam visto no dia anterior, e, em vez de cinza, o pêlo era castanho-avermelhado. Sua característica mais marcante, contudo, eram as nítidas listras cor de chocolate nas omoplatas e nas costas — cinco faixas uniformemente espaçadas, que realmente pareciam as marcas de quatro dedos e um polegar.

— Nada menos que o Madoqua harperü — Nicholas cochichou. — Desculpe, bisavô, por ter duvidado do senhor.

O dik-dik vinha saindo do espinheiro, meneando o focinho e farejando o ar. Estava com a cabeça levantada, desconfiado e alerta. Soprava uma brisa suave, mas de vez em quando um vento mais forte levava até ele um cheiro de humanidade que o alarmava.

Royan ouviu o clique do rifle quando Nicholas abriu o cano para carregar a arma. Ela baixou o binóculo e olhou para ele.

— Você não vai atirar — ordenou.

— Não a essa distância. Mais de trezentos metros, é um alvo pequeno. Vou esperar que chegue mais perto.

— Como pode fazer uma coisa dessas?

— E por que não? Foi isso o que vim fazer aqui, entre outras coisas.

— Mas ele é tão bonito!

— Presumo, então, que se fosse feio seria perfeitamente correto matá-lo.

Ela não respondeu e ergueu novamente o binóculo. O vento devia ter parado, pois o dik-dik baixara a cabeça e esfregava o focinho num tufo de grama queimada. Então levantou-a novamente e começou a sair do espinheiro, pisando delicadamente, parando a cada passo para comer.

— Volte! — Royan implorou, mas ele foi se aproximando da beira do penhasco.

Nicholas deitou-se de bruços, posicionou-se atrás da raiz da árvore e amassou o chapéu para fazer um apoio para o rifle.

— Cento e sessenta metros — murmurou. — É uma boa distância. Não mais que isso. — Apoiando o rifle na raiz sobre o chapéu amassado, ele olhou pela mira telescópica. Então ergueu a cabeça, esperando que o animal entrasse num determinado ângulo de visão.

De repente o dik-dik ergueu a cabeça e parou, tenso e trêmulo.

— Ele não gostou de alguma coisa. Droga, o vento deve ter mudado outra vez — Nicholas resmungou. Nesse instante o pequeno antílope deu um salto, atravessou correndo a clareira e desapareceu dentro do espinheiro.

— Vá, dik-dik, vá! — disse Royan com alegria, e Nicholas, contrariado, voltou a sentar-se.

— Não sei o que o assustou. — Então Nicholas inclinou a cabeça e sua expressão mudou. Estava ouvindo um som estranho, que aumentava a cada segundo — um barulho alto e desagradável, e um assobio estridente.

— Um helicóptero! Que diabo! — Nicholas reconheceu imediatamente o som. Apanhou o binóculo das mãos de Royan e voltou-o para o céu, esquadrinhando a imensidão azul sobre os escarpamentos.

— Lá está ele! — E acrescentou: — É um Bell Jet Ranger. Vem vindo para cá, ao que parece. Não pode nos ver aqui. Vamos nos esconder.

Ele ajudou Royan e o menino a entrar sob os galhos espalhados do espinheiro.

— Fiquem abaixados — disse a ela. — Eles não devem nos ver. Nicholas observou pelo binóculo a aproximação do helicóptero.

— Deve ser da força aérea etíope — disse baixinho. — Patrulha anti-shuftas, para ser mais preciso. Tanto Boris como o Coronel Nogo disseram que há muitos rebeldes e bandidos operando aqui na garganta... — ele parou bruscamente. — Não! Espere! Não é militar. Fuselagem verde e vermelha e o emblema do cavalo vermelho. Nada menos que os seus velhos amigos da Mineradora Pégaso.

O barulho das hélices aumentou, e Royan, a olho nu, pôde ver o cavalo alado pintado na fuselagem, quando a aeronave passou diante deles, uns 800 metros adiante, voando em direção ao Nilo.

Ninguém estava prestando atenção em Tamre, que se agachara atrás de Royan e procurava esconder-se. Seus dentes batiam de medo e seus olhos começaram a virar para cima.

— Parece que nosso amigo Jake Helm tem bons meios de transporte. Se a Pégaso estiver ligada de alguma forma ao assassinato de Duraid e aos atentados contra a sua vida, vamos ter de aturá-los bafejando em nossa nuca daqui para a frente. Estão preparados para nos localizar quando quiserem. — Nicholas ainda vigiava o helicóptero pelo binóculo.

— Quando o inimigo vem pelo ar, a sensação é muito pior. — Royan aproximou-se de Nicholas instintivamente, de olhos grudados no céu.

O aparelho verde e vermelho desapareceu por trás das elevações do desfiladeiro secundário e desceu na direção do mosteiro.

— A menos que seja só um passeio, provavelmente estão procurando nosso acampamento — Nicholas supôs. — Com ordens do chefe de não nos perder de vista.

— Eles não terão dificuldade para nos encontrar. As cabanas estão bem visíveis. — Royan estava intranqüila. — Vamos sair daqui. — Ela se levantou.

— Boa idéia — Nicholas ia segui-la, mas segurou sua mão e puxou-a de volta. — Espere! Eles estão vindo por ali.

O aparelho ergueu-se no ar e avolumou-se por trás das folhas e dos ramos mais altos do espinheiro.

— Agora está seguindo o rio. Procurando alguma coisa, ao que parece.

— Nós? — Royan perguntou, nervosa.

— Se estiverem obedecendo ordens, talvez — Nicholas concordou. O aparelho estava muito próximo, e o barulho das hélices era ensurdecedor.

Foi então que os nervos de Tamre não suportaram.

— É o demônio, veio me buscar — o menino gritou, aterrorizado. — Salve-me, Jesus Cristo, Salvador, salve-me!

Nicholas tentou segurá-lo, mas não foi bastante rápido. Tamre escorregou por baixo de suas mãos e, com medo do fogo do inferno, correu para a trilha que atravessava os espinheiros, com a saia do shamma enro-lando-se nas pernas finas, e olhou apavorado para o monstro voador.

O piloto o viu no mesmo instante e embicou o nariz do helicóptero na direção do menino. Aproximou-se rápido e diminuiu a velocidade quando chegou perto do penhasco. Estava tão baixo que era possível ver os ocupantes da cabine. Sempre desacelerando, o helicóptero pairou sobre o rio; Royan e Nicholas agacharam-se atrás das moitas de espinheiro, procurando se esconder.

— Lá está o americano do campo de prospecção — Royan reconheceu Jake Helm, apesar de ele estar usando fones de ouvido e óculos escuros. Ele e o piloto negro olhavam de um lado para outro, vasculhando as margens do rio.

— Não nos viram... — Mas quando Nicholas disse isso Jake Helm olhou diretamente para eles. Sem que sua expressão se alterasse, bateu no ombro do piloto e apontou para baixo.

O piloto fez o helicóptero descer suavemente sobre o abismo e parar quase no nível deles. Somente 300 metros os separavam agora. Sem se preocupar em esconder-se, Nicholas encostou-se ao tronco de uma árvore, ergueu a aba do chapéu com a ponta do dedo e acenou laconicamente para Helm.

O capataz não respondeu ao cumprimento. Olhou para Nicholas com indiferença, acendeu um fósforo e aproximou a chama da ponta do cigarro entre os lábios. Jogou fora o palito apagado e soprou a fumaça na direção de Nicholas. Com a expressão imutável, disse alguma coisa ao piloto com o canto da boca.

Imediatamente o helicóptero ganhou altura e seguiu para o norte, em direção à encosta onde estava armado o acampamento.

— Missão cumprida. Ele encontrou o que estava procurando — Royan sentou-se. — Nós.

— E deve também ter visto o acampamento. Agora sabe onde nos encontrar — concordou Nicholas.

Royan estremeceu e abraçou a si mesma.

— Esse homem me faz mal. Parece um sapo.

— Ora, que exagero! — Nicholas brincou. — O que você tem contra os sapos? — Ele se levantou. — Acho que hoje não veremos mais o dik- ik do meu bisavô. Ficou bastante assustado com esse helicóptero. Amanhã tentaremos novamente.

— Vamos procurar Tamre. Deve ter tido outra crise, o pobre coitado. Royan estava enganada. O garoto os esperava à beira do caminho,

ainda trêmulo e choroso, mas não sofrera um ataque. Acalmou-se quando viu Royan, e os três voltaram para o acampamento. No bosque de figueiras, o menino seguiu para o mosteiro.

Ao entardecer, quando ainda havia luz, Nicholas levou Royan ao mosteiro. — Acredito que a fraternidade criminosa chamaria esse reconhecimento de "dar uma geral" — ele observou, quando cruzaram a entrada da catedral de pedra e se juntaram aos adoradores na câmara exterior.

— Pelo que disse Tamre, parece que os noviços esperam que os padres encarregados da guarda cochilem durante o turno — Royan disse em voz baixa, espiando pela porta da câmara intermediária.

— Mas isso é algo que não podemos saber — Nicholas lembrou. Eles observavam os padres entrando e saindo por essas portas.

— Parece que não há nenhum procedimento — notou Nicholas —, nenhuma senha ou ritual para entrar.

— Por outro lado, eles cumprimentam os guardas pelo nome. A comunidade é pequena. Devem se conhecer intimamente.

— Acho que não tenho nenhuma chance de me vestir de padre e me enfiar lá dentro — Nicholas concordou. — O que será que eles fazem com quem entra em suas áreas sagradas?

— Atiram o intruso do terraço aos crocodilos do caldeirão do Nilo? — ela sugeriu maliciosamente. — Seja como for, você não vai entrar lá sem mim.

Não é hora de discutir, decidiu Nicholas, procurando enxergar o máximo possível além das portas do qiddist. A câmara intermediária parecia muito menor que a nave exterior, onde eles estavam. E podiam-se ver os afrescos ensombreados que revestiam parte de algumas paredes internas. Na da frente havia outra passagem. Pela descrição de Tamre, devia ser a entrada do maqdas. A passagem era barrada por um pesado portão gradeado com troncos de madeira, cujos encaixes e interseções eram reforçados por barras de ferro forjado.

De cada lado desse portão havia duas tapeçarias, que iam do chão ao teto, representando cenas da vida de São Frumêncio. Numa delas ele pregava diante da congregação ajoelhada, com a Bíblia na mão esquerda e abençoando com a direita. Na outra, batizava o imperador. O soberano usava uma alta coroa de ouro, como a de Jali Hora, e a cabeça do santo era circundada por um halo. Seu rosto era branco, ao passo que o do imperador era negro.

— Politicamente correto? — Nicholas perguntou-se, sorrindo consigo mesmo.

— Do que está rindo? — perguntou Royan. — Encontrou um jeito de entrar?

— Não. Estava pensando no jantar. Vamos embora!

Durante a refeição, Boris não demonstrou sentir qualquer efeito da orgia da noite anterior. De dia, havia pegado sua arma e saíra a caçar pombos verdes. Tessay os colocara de molho no tempero e agora os assava na brasa.

— Diga-me, inglês, como foi a caça hoje? Foi atacado pelo feroz dik-dik listrado? Hem? — Ele explodiu numa gargalhada.

— Seus mateiros viram alguma coisa? — Nicholas perguntou com delicadeza.

— Sim, sim! Eles encontraram kudus, bushbucks e búfalos. Viram até dik-diks, mas não listrados. Sinto muito, não tinham listras.

Royan debruçou-se sobre a mesa e abriu a boca para interferir, mas Nicholas fez sinal para que não dissesse nada. Ela se calou, olhou para o prato e cortou uma fatia de peito de pombo.

— Não precisamos de companhia — Nicholas explicou-lhe em árabe. — Ele pode insistir em ir conosco amanhã.

— Sua mãe nunca lhe deu educação, inglês? É feio falar uma língua que os outros não entendem. Tome uma vodca.

— Pode beber minha parte — Nicholas convidou-o. — Reconheço que fui deselegante.

Durante a refeição, Tessay respondia somente com monossílabos quando Royan tentava iniciar uma conversa. Estava triste e abatida. Jamais olhava para o marido, nem quando ele baixava a voz e ficava menos arrogante. Quando terminaram de comer, os dois a deixaram com Boris, sentada perto do fogo. Havia uma nova garrafa de vodca ao lado dele.

— Do jeito que ele está bombeando essa bebida, acredito que esta noite serei chamado para uma missão de resgate — Nicholas observou quando se dirigiam para as cabanas.

— Tessay ficou com ele no acampamento o dia todo. Houve mais problemas. Ela me disse que quando voltarem para Adis Abeba vai deixá-lo. Não agüenta mais.

— O que acho mais surpreendente é que ela tenha se envolvido com um animal como Boris. É uma mulher adorável. Poderia ter o que quisesse.

— Algumas mulheres têm esse tipo de atração — Royan comentou.

— Deve ser pela emoção do perigo. Enfim, Tessay pediu-me para ir conosco amanhã. Não vai agüentar mais um dia sozinha com Boris no acampamento. Acho que realmente está com medo. Disse que é a primeira vez que o vê beber tanto.

— Diga-lhe que venha — Nicholas resignou-se. — Quantos mais formos, melhor. Com tanta gente, talvez consigamos matar o dik-dik de susto e me poupar munição.

Ainda estava escuro quando os três saíram do acampamento na manhã seguinte. Não havia sinal de Boris e Nicholas perguntou por ele.

— Depois que vocês foram se deitar, ele terminou a garrafa de vodca. Só vai sair daquela tenda à tarde. Não vai sentir minha falta — disse Tessay.

Levando seu Rigby, Nicholas ajudava as mulheres subir e descer as pedras úmidas de orvalho, refazendo o caminho pelo qual Tamre os havia levado. Nicholas as ouvia conversar atrás dele. Royan contava a Tessay que tinham visto o dik-dik e o que pretendiam fazer. O sol já estava alto quando chegaram à árvore de espinhos na beira do abismo e sentaram-se para esperar.

— Como vai buscar a carcaça do pobre animalzinho, se conseguir matá-lo? — Royan perguntou.

— Já resolvi isso antes de sairmos do acampamento — ele explicou.

— Combinei com o chefe dos mateiros: se eles ouvirem um tiro, devem trazer cordas e me ajudar a passar para o outro lado.

— Eu não gostaria de ir até lá — disse Tessay, olhando o penhasco.

— Aprendemos algumas coisas úteis no exército, além de muitas outras dispensáveis — Nicholas retrucou, acomodando-se no tronco da árvore com o rifle pronto no colo.

As mulheres deitaram-se no chão e conversavam em voz baixa. Nicholas permitiu que continuassem porque achou improvável que o tom de voz delas atravessasse a ravina.

Esperava que o dik-dik aparecesse logo, mas se enganou. Ao meio-dia ainda não vira sinal dele. O vale dilatava-se sob o sol a pino. O outro paredão escarpado estava envolto numa bruma azulada, a miragem dançava nas arestas das pedras e tremeluzia como um lago prateado sobre os espinheiros.

As mulheres haviam parado de conversar há muito tempo e adormeceram com o calor. O mundo todo estava em silêncio e modorrento. As pálpebras de Nicholas pesavam. A cabeça caía involuntariamente; ele despertava de um salto e cochilava outra vez. No limiar do sono, ouviu um ruído perto da moita de espinhos.

Era um ruído fraco, mas muito conhecido. Um ruído que açoitou seus nervos e o deixou alerta, com a circulação acelerada e um gosto ácido no fundo da garganta. Era o som metálico do gatilho de um rifle AK-47 sendo puxado para a posição de "fogo".

Num movimento rápido, ele ergueu o rifle do colo e rolou duas vezes, contorcendo-se para proteger as mulheres deitadas ao seu lado. Ao mesmo tempo, levou o rifle ao ombro e mirou o arbusto de onde viera o ruído.

— Deitem-se — sussurrou para as duas. — Mantenham a cabeça baixa!

Ele encostou o dedo no gatilho e preparou-se para atirar, mesmo reconhecendo a insignificância de sua arma diante de um Kalashnikov. Encontrou o alvo imediatamente e apontou o Rigby para ele.

Havia um homem agachado a vinte passos de onde eles estavam, com o rifle apontado para o rosto de Nicholas. Era negro, usava uma farda camuflada de tecido grosso e esfarrapado e um quepe nas mesmas condições. Trazia no cinto um facão para abrir trilhas, granadas, cantil e todo o equipamento de um guerrilheiro.

"Shufta" pensou Nicholas. "Um profissional. Não tenho nenhuma chance com ele."

Mas ao mesmo tempo sabia que, se tivesse a intenção de matá-los, já estariam mortos.

Ele apontou o Rigby três centímetros acima da mira do rifle de assalto, precisamente no olho direito do shufta. O homem reconheceu a intenção de Nicholas, acusando um leve movimento da pálpebra. Então deu uma ordem em árabe:

— Salim, cubra as mulheres. Atire se elas se mexerem. Nicholas ouviu alguma coisa se movimentar do lado e espiou nessa direção, mas sem perder o shufta de vista.

Outro guerrilheiro saiu do arbusto. Também estava fardado como o primeiro, mas sua arma era uma metralhadora leve russa RPD que ele trazia pendurada ao ombro. O cano estava serrado para tornar a arma mais maleável num confronto em matagais, e havia uma cartucheira de munição pendurada no pescoço do homem. Ele avançou devagar, apontando o RPD para as mulheres. Nicholas sabia que se ele tocasse de leve o gatilho elas seriam partidas em pedaços.

Então ouviu outros ruídos nos arbustos em volta. Eles não eram os únicos. Na verdade, era um grande grupo guerreiro. Nicholas poderia dar um único tiro com o Rigby, mas Royan e Tessay já estariam mortas. E não demoraria muito para que ele as acompanhasse.

Muito lentamente, foi baixando o cano do rifle, depositou-o no chão e ergueu os braços.

— Levantem os braços — disse às mulheres. — Façam exatamente o que eles disserem.

O líder reconheceu a rendição, erguendo-se do chão e falando rápido com seus homens, sempre em árabe.

— Peguem o rifle e a mochila.

— Somos ingleses — Nicholas disse em voz alta, e o guerrilheiro se surpreendeu ao ouvir árabe. — Somos apenas turistas. Não somos militares. Nem gente do governo.

— Quieto! Cale essa boca! — o outro ordenou, e a patrulha guerrilheira emergiu do matagal. Nicholas contou cinco ao todo, mas devia haver outros que não tinham se levantado. Eram bastante profissionais na forma de cercar os prisioneiros. Jamais bloqueavam a linha de tiro dos outros nem davam oportunidade a eles de escapar.

— Aonde vai nos levar? — indagou Nicholas.

— Sem perguntas! — A ponta de um AK-47 bateu no meio de suas costas e quase o derrubou.

— Devagar, companheiro — Nicholas murmurou em inglês. — Não há necessidade disso.

Eles foram obrigados a andar sob o calor da tarde. Nicholas mantinha-se atento à posição do sol e aos pontos em que podia ver os escarpamentos. Estavam indo para oeste, seguindo o curso do Nilo em direção à fronteira sudanesa. No meio da tarde e, pela estimativa de Nicholas, uns 15 quilômetros depois, avistaram um grande vale entre encostas densamente arborizadas; os três prisioneiros foram levados por uma trilha na floresta.

Só quando já estavam no perímetro do acampamento da guerrilha é que se deram conta de sua existência. Muito bem camuflado, consistia meramente em uns poucos abrigos rudimentares e um anel de armamentos. As sentinelas estavam bem posicionadas, e nas trincheiras havia atiradores junto às metralhadoras leves.

Eles foram levados a um dos abrigos no centro do acampamento, onde três homens discutiam em volta de um mapa aberto sobre uma mesa baixa. Eram obviamente oficiais, e um deles, sem dúvida, era o comandante. O líder da patrulha que os capturara dirigiu-se a esse homem, saudou-o com deferência e em seguida falou rápido, apontando para os prisioneiros.

O comandante guerrilheiro saiu do abrigo. Não era muito alto, mas estava imbuído de um ar de autoridade que o fazia parecer maior. Tinha ombros largos, o corpo parrudo e exibia o início de uma coleção de medalhas sobre o peito. Usava uma barba curta que já apresentava fios grisalhos, e suas feições eram finas e agradáveis. A pele tinha tonalidades de âmbar e cobre. Havia inteligência em seus olhos negros, rápidos e inquietos.

— Meus homens disseram que fala árabe — ele dirigiu-se a Nicholas.

— Melhor que você, Mek Nimmur — Nicholas respondeu. — Então agora é líder de um bando de bandidos e seqüestradores? Eu sempre disse que não iria para o céu, seu patife.

Mek Nimmur ficou atônito, olhando para ele, e foi abrindo um sorriso.

— Nicholas! Não o reconheci. Você envelheceu. Olhe só quanto cabelo branco!

Ele abriu os braços e envolveu Nicholas num forte abraço.

— Nicholas! Nicholas! — Ele beijou as duas faces do inglês. Quando se afastou para olhá-lo, viu as duas mulheres, que estavam completamente surpresas.

— Ele salvou minha vida — explicou a elas.

— Você está me deixando vermelho, Mek.

— Salvou minha vida duas vezes — disse o guerrilheiro, dando-lhe outro beijo.

— Uma vez — Nicholas o corrigiu. — A segunda foi um engano. Devia ter deixado que atirassem em você.

Mek riu deliciado.

— Há quanto tempo foi isso, Nicholas?

— Não posso nem imaginar.

— Quinze anos, pelo menos — disse Mek. — Ainda está no Exército britânico? Em que batalhão? Deve ser um general agora.

— Apenas reserva — Nicholas balançou a cabeça. — Estou na vida civil já faz bastante tempo.

Ainda abraçado a Nicholas, Mek Nimmur olhou interessado para as mulheres.

— Nicholas ensinou-me a maior parte do que sei hoje sobre a arte militar — disse a elas. Seu olhar saltou de Royan para Tessay e deteve-se no rosto adorável da morena etíope.

— Eu a conheço — disse. — Foi em Adis Abeba, alguns anos atrás. Você era bem mais jovem na época. É filha de Alto Zemen, um bom e grande homem. Foi assassinado pelo tirano Mengistu.

— Eu também o conheço, Alto Mek. Meu pai o estimava muito. Muitos de nós queríamos o senhor como presidente da nossa Etiópia, no lugar daquele outro. — Ela fez uma graciosa mesura e inclinou levemente a cabeça num tímido, porém claro, gesto de respeito.

— Fico orgulhoso com a sua opinião sobre mim. — Ele tomou a mão dela e ajudou-a a levantar-se. Então voltou-se para Nicholas: — Sinto muito pela recepção rude. Alguns de meus homens são exagerada-mente entusiásticos. Eu soube que havia ferengi fazendo perguntas no mosteiro. Mas basta; aqui vocês são meus amigos. Sejam bem-vindos.

Mek Nimmur levou-os para o abrigo; um dos homens pegou uma chaleira enegrecida no fogão e despejou café forte nas xícaras.

Mek e Nicholas mergulharam em reminiscências de uma época anterior à Guerra das Malvinas. Haviam lutado ombro a ombro, Nicholas como conselheiro militar secreto e Mek como jovem amante da liberdade que se opunha à tirania de Mengistu.

— Mas a guerra acabou, Mek — Nicholas por fim protestou. — E a batalha foi ganha. Por que ainda se mantém na clandestinidade com seus homens? Por que não estão ficando ricos e gordos em Adis Abeba, como os outros?

— No governo interino de Adis há inimigos meus, gente de Mengistu. Quando nos livrarmos deles, sairemos da clandestinidade.

Os dois embarcaram numa discussão acalorada sobre a política africana; era uma discussão tão profunda e complicada que Royan conhecia pouquíssimas das personalidades citadas. Mas não conseguia captar as nuances e sutilezas de preconceitos e intolerâncias religiosos e tribais que persistiam havia milhares de anos. Estava, contudo, impressionada com o conhecimento e a compreensão de Nicholas sobre a situação, e a forma como um homem como Mek Nimmur pedia sua opinião e ouvia seus conselhos.

No final, Nicholas perguntou-lhe:

— E agora, você está levando a guerra para além das fronteiras da Etiópia? Também está operando no Sudão?

— A guerra no Sudão já existe há vinte anos — Mek confirmou. — Os cristãos lutam no sul contra a perseguição do norte muçulmano...

— Sei disso, Mek. Mas lá não é a Etiópia. Não é a sua guerra.

— Eles são cristãos e sofrem injustiças. Eu sou soldado e sou cristão. É claro que é minha guerra.

Tessay bebia avidamente cada palavra que Mek dizia, e nesse momento assentiu com um movimento da cabeça e um olhar solene para seu herói.

— Alto Mek é um cruzado de Cristo e dos direitos do homem comum — Tessay falou para Nicholas em tom reverente.

— E adora uma boa briga — Nicholas riu, empurrando o ombro do outro com afeição. Era um gesto familiar que poderia facilmente ser ofensivo, mas Mek aceitou-o prontamente e também riu.

— E o que é que você está fazendo aqui, Nicholas, se já não é mais soldado? Houve um tempo em que também gostava de uma boa briga.

— Estou totalmente mudado. Chega de brigas. Vim para a garganta do Abbay caçar dik-dik.

— Dik-dik? — Mek Nimmur olhou-o com descrença e soltou uma sonora gargalhada. — Não acredito, não você. Não um dik-dik. Está atrás de alguma outra coisa.

— É verdade.

— Está mentindo, Nicholas. Nunca vai conseguir mentir para mim. Conheço-o muito bem. Está procurando outra coisa. Vai me contar quando precisar da minha ajuda.

— E você vai me ajudar mesmo assim?

— É claro. Você salvou minha vida duas vezes.

— Uma só — lembrou Nicholas.

— Já é suficiente — disse Mek Nimmur.

les ainda conversavam quando o sol se pôs no horizonte. — Vocês são meus hóspedes esta noite — Mek Nimmur declarou formalmente. — Pela manhã os escoltarei de volta ao acampamento, no Mosteiro de São Frumêncio. É também o meu destino. Meus homens e eu vamos ao mosteiro para celebrar a festa do Timkat. O Abade fali Hora é nosso amigo e aliado.

— E o mosteiro, provavelmente, é sua base secreta. Você o utiliza para reabastecer-se e planejar. Estou certo?

— Você me conhece muito bem, Nicholas. Se foi você quem me ensinou a maior parte do que sei, como não iria conhecer minha estratégia? O mosteiro é uma base de operações perfeita. E é bastante próximo à fronteira... — Ele parou e sorriu. — Não preciso lhe explicar nada; você sabe tudo.

Mek mandou seus homens construir um abrigo noturno para Nicholas e Royan, e fazer uma cama de grama onde pudessem dormir, eles se deitaram lado a lado sob o frágil teto. Era uma noite abafada, e ninguém sentia falta de cobertor. Nicholas tinha um tubo de repelente na mochila para manter os mosquitos à distância.

Acomodados no acolchoado de grama, estavam bastante próximos para conversar baixinho. Nicholas virou a cabeça para fora e viu as silhuetas de Mek Nimmur e Tessay ainda ao lado do fogo.

— As moças etíopes são diferentes das árabes e da maioria das africanas — disse Royan, que também observava o par. — Uma mulher árabe não ficaria sozinha com um homem desse jeito. Principalmente não sendo casada com ele.

— Seja como for, eles formam um belo par — Nicholas opinou. — Desejo-lhes boa sorte. Tessay não tem tido muita ultimamente... ela merece.

Ele virou a cabeça para Royan.

— E você, o que é? Uma árabe recatada e submissa, ou uma ocidental independente e decidida?

— É muito cedo e também bastante tarde para perguntas de natureza tão íntima — ela respondeu, sentindo-o às suas costas.

— Ah, estamos sendo cerimoniosos hoje! Boa noite, Woizero Royan.

— Boa noite, Alto Nicholas — ela respondeu, mantendo o rosto para que ele não a visse sorrir.

A coluna guerrilheira deslocou-se antes do amanhecer. Os homens marchavam em formação, com batedores à frente e os flancos bem vigiados de ambos os lados do caminho.

— O exército raramente vem até a garganta, mas estamos preparados — explicou Mek Nimmur. — Queremos oferecer aos soldados uma recepção calorosa.

Tessay olhava para ele enquanto o escutava; na verdade, quase não tirava os olhos dele.

— É mesmo um grande homem — sussurrou para Royan. — Somente ele seria capaz de unificar nosso país, talvez pela primeira vez em mil anos. Sinto-me humilde em sua presença e, ao mesmo tempo, volto a ser uma jovem cheia de alegria e esperança.

O retorno ao mosteiro levou quase toda a manhã. Quando avistaram o Rio Dandera, Mek Nimmur ordenou que seus homens se escondessem no mato fechado e enviou apenas um ao mosteiro. Uma hora depois, apareceu um grupo de acólitos, todos carregando grandes trouxas na cabeça.

As trouxas continham batinas, turbantes e sandálias. Os homens de Mek vestiram esses trajes, todos já bem usados para parecer autênticos.

Levavam somente armas brancas sob a túnica. Todas as outras armas e equipamentos ficaram dentro de grutas no penhasco, guardadas por um destacamento.

Agora, como um grupo de monges, eles cobririam os últimos quilômetros até o mosteiro e seriam recebidos com festa pela comunidade local. Na bifurcação do caminho, Nicholas e as mulheres tomaram a trilha para as grandes figueiras. Boris esperava por eles, andando pelo acampamento nervoso e impaciente.

— Onde é que você esteve, mulher? — ele berrou para Tessay. — Esteve dando por aí a noite toda?

— Nós nos perdemos ontem. — Nicholas contou a história combinada com Mek Nimmur. Boris não era uma pessoa confiável. — Fomos encontrados por um grupo de monges esta manhã. Eles nos trouxeram de volta.

— Que grande caçador você é, hem? — Boris riu com desprezo. — Não precisa de guia, não é? Para acabar se perdendo, inglês? Agora entendo por que só quer caçar dik-dik. — Ele deu uma gargalhada e olhou para Tessay com seus olhos pálidos. — Falo com você mais tarde, mulher. Vá cuidar da comida.

Apesar do calor, Nicholas e Royan estavam famintos. Rapidamente, Tessay serviu um saboroso lanche à sombra das figueiras. Nicholas recusou o vinho que Boris lhe oferecia.

— Quero sair para caçar esta tarde. Já perdi quase todo o dia.

— Quer que eu o leve pela mão, inglês? Para não se perder outra vez?

— Obrigado, amigão, mas acho que posso me virar sozinho. Enquanto comiam, Nicholas cutucou Royan:

— Seu admirador chegou.

Ele indicou com a cabeça a figura desengonçada de Tamre, que chegara sorrateiramente e agora estava sentado perto da cabana-cozinha. Quando Royan olhou, seu rosto se abriu num descorado esgar idiota, ele abaixou a cabeça e contorceu-se em estática timidez.

— Não irei com você esta tarde — Royan disse quando Boris não estava ouvindo. — Acho que vai haver problemas entre ele e Tessay. Quero ficar aqui com ela. Leve Tamre com você.

— Meu Deus, que alternativa atraente! Toda a minha vida esperei por este momento.

Mas quando pegou o rifle e a mochila, Nicholas fez sinal para o garoto segui-lo. Tamre procurou ansiosamente por Royan, mas ela já estava em sua cabana. Por fim, ele se decidiu a seguir com Nicholas para o vale.

— Leve-me para o outro lado do rio — ele disse ao menino. — Mostre-me como chegar até onde está a criatura sagrada. — Tamre animou-se com a idéia e partiu num passo trôpego, levando Nicholas para a ponte suspensa nos penhascos rosados.

Durante uma hora eles seguiram pela trilha até ela ir desaparecendo gradualmente e terminar num terreno difícil e acidentado entre os outeiros corroídos pela erosão. Sem se intimidar, Tamre saltou para dentro do espinheiro, e durante duas horas eles escalaram cumes rochosos e atravessaram vales espinhosos.

— Agora entendo por que você não quis trazer Royan aqui — Nicholas resmungou. Seus braços estavam riscados pelos espinhos e a calça rasgada em seis lugares. Mesmo assim, ele memorizava a rota e sabia que encontraria o caminho de volta sem dificuldade.

Por fim, no alto de um outeiro, Tamre parou e apontou para baixo. Nicholas viu então a fenda do abismo e a pequena clareira onde haviam visto o dik-dik. Pôde até reconhecer a árvore espinhosa na outra margem do Dandera, sob a qual os homens de Mek os tinham encontrado.

Ele parou para descansar e beber alguns goles de água do cantil, que em seguida passou para Tamre.

— Ele é um monge, meu Deus. O pequeno demônio não há de ter Aids. — Mesmo assim, limpou bem a boca do cantil quando Tamre o devolveu.

Antes de começar a descer, ele verificou novamente o Rigby e soprou a poeira das lentes do telescópio. Então mirou através dele uma pedra do tamanho de um dik-dik no sopé da encosta e girou o anel do telescópio para a ampliação mínima. Estava preparado para atirar a curta distância. Satisfeito, carregou a arma e levantou-se.

— Fique atrás de mim — disse ao menino. — E faça o que eu fizer. Nicholas descia devagar a encosta, parando de vez em quando para

checar as moitas de espinhos na frente e de ambos os lados. Próximo à nascente a terra estava molhada e lamacenta. Vários animais e pássaros vinham beber ali. Nicholas reconheceu as patas de kudu e bushbuck, mas no meio delas havia as pequeninas pegadas em forma de coração de sua presa.

Ele se deslocava silenciosamente; perto da moita de espinheiro encontrou um monturo com o qual o dik-dik marcava seu território. A pilha de estrumes do tamanho de uma bolinha de chumbo aumentava a cada vez que o pequeno antílope voltava para defecar.

Nicholas estava totalmente absorvido pela caçada. Seus fracassos anteriores só serviram para aumentar o fascínio. Concentrado como se perseguisse um leão assassino, avançava passo a passo, checava o chão antes de pisar nos galhos e folhas secas, os olhos mais rápidos que os pés, atento a tudo o que acontecia em volta.

Foi um movimento da orelha que acusou a presença do animal. Metade dele estava à sombra, e seu pêlo castanho confundia-se com os galhos secos, como se ele próprio fosse feito de mogno. Apenas esse ligeiro movimento o traía. Estava tão próximo que Nicholas podia ver um olho refletir a luz como ônix polido, e o focinho alongado tremendo no ar. Ele percebia o perigo, mas não sabia de onde vinha.

Muito lentamente, Nicholas ergueu o rifle no ombro. Pelas lentes podia divisar cada pêlo, um tufo entre as orelhas de onde saíam dois pequenos chifres pretos. Ele colocou a cruzeta do telescópio na junção entre o pescoço e a cabeça. Queria danificar a pele o mínimo possível para facilitar a montagem e a taxidermia.

— É a criatura sagrada. Salve Deus e São João Batista! — Tamre gritou atrás de Nicholas, e caiu de joelhos com as mãos entrelaçadas na altura dos olhos.

O dik-dik dissolveu-se nas lentes como um lufada de fumaça marrom, deixando apenas um leve farfalhar no espinheiro. Nicholas baixou o rifle e olhou para o menino. Ele continuava ajoelhado, proferindo glórias e preces.

— Bom trabalho. Woizero Royan vai lhe agradecer por isso — disse em inglês. Ele pegou o garoto, arrastou-o para seus pés e falou em árabe: — Fique aqui! Não saia daqui! Não abra a boca para falar. E respire baixo até eu voltar para pegá-lo. Se disser uma única oração, eu mesmo irei, pessoalmente, enviá-lo para encontrar São Pedro nos portões do paraíso. Você entendeu?

Ele avançou sozinho, mas o pequeno antílope estava totalmente alarmado. Nicholas viu-o mais duas vezes, mas ambas não passaram de um rápido vislumbre do movimento de uma mancha castanha quase completamente oculta pelo espinheiro. Ele lançava amargas impre-cações contra o menino-monge, enquanto ouvia o ruído das patinhas na terra seca entrando cada vez mais na vegetação. Viu-se obrigado a desistir mais uma vez de sua caça.

Já estava escuro quando ele e Tamre chegaram ao acampamento. Tão logo Nicholas entrou no círculo iluminado pelo fogo, Royan foi recebê-lo.

— O que aconteceu? Viu novamente o dik-dik?

— Não me pergunte. Pergunte ao seu cúmplice. Ele o assustou tanto que, provavelmente, ainda está correndo.

— Tamre, você é fantástico! Estou muito orgulhosa — Royan disse ao menino, que voltou para o mosteiro saltando e brincando como um cachorrinho, rindo e se abraçando de alegria por ter-lhe agradado.

Royan ficou tão satisfeita com o resultado da caçada que foi pessoalmente servir uma dose de uísque para Nicholas e a levou para ele que descansava ao lado do fogo.

Ele provou e sentiu um arrepio.

— Nunca deixe que uma abstêmia sirva você. Com mão tão pesada, é capaz de fazer a gente virar do avesso. — Mesmo assim, não resistiu a outro gole.

Royan sentou-se ao lado dele; estava irrequieta, mas Nicholas só percebeu depois sua agitação.

— O que foi? O que é que mordeu você?

Ela deu uma espiada na direção em que Boris estava sentado, do outro lado da fogueira, então inclinou-se para Nicholas e falou em árabe, em voz baixa:

— Tessay e eu fomos ao mosteiro esta tarde para ver Mek Minnur. Ela pediu que eu fosse junto, por causa de Boris... você sabe o que quero dizer.

— Tenho uma vaga idéia. Você foi "segurar vela". — Nicholas deu outro gole no uísque e engasgou. Recuperado, disse com a voz rouca: — Continue.

— Em certo momento, antes de eu os deixar sozinhos, conversamos sobre o festival do Timkat. No quinto dia o abade leva o tabot para o Rio Abbay. Mek disse que há um caminho que desce pelo penhasco até a água.

— Sim, nós sabemos disso.

— Esta é a parte mais interessante... É que você não sabe. Todo mundo vai à procissão até o rio. Todos. O abade, os padres, os acólitos, todos os crentes, até Mek e seus homens, todos descem para o rio e passam a noite lá. Durante um dia e uma noite inteiros o mosteiro fica deserto. Vazio. Não há ninguém lá.

Ele a olhou por cima do aro dos óculos e lentamente foi abrindo um sorriso.

— Isso é realmente interessante — admitiu.

— E não esqueça: eu vou com você. Não ouse sequer pensar em me deixar para trás.

Nickk Nicholas foi para a cabana de Royan depois do jantar. Era o único lugar no acampamento em que podiam ter privacidade e estar a salvo de bisbilhoteiros. Só que dessa vez ele não cometeu o erro de sentar ao lado dela na cama. Ela ficou na ponta do acolchoado e ele puxou um banquinho.

— Antes de começarmos a planejar, quero perguntar uma coisa: já considerou as possíveis conseqüências?

— Você quer dizer, o que vai acontecer se formos pegos pelos monges? — Royan perguntou.

— Na melhor das hipóteses podemos esperar que nos expulsem do vale. O abade tem um imenso poder. Na pior delas, podemos ser atacados fisicamente — disse-lhe Nicholas. — É um dos locais mais sagrados na religião deles, e é melhor não subestimar isso. Há muito perigo envolvido. Vai desde uma faca no meio das costelas até veneno na comida.

— Além disso, ficaríamos mal com Tessay. Ela é muito religiosa — acrescentou Royan.

— Mais que isso, poderíamos aborrecer também Mek Nimmur. — Nicholas ficou incomodado com essa idéia. — Não sei o que ele faria, mas não acho que nossa amizade sobreviveria ao teste.

Ambos ficaram quietos algum tempo, avaliando o preço que poderiam pagar. Nicholas falou primeiro:

— E então, já tomou uma posição? Afinal, é a sua igreja que nós vamos profanar. Você é uma cristã comprometida. Pode justificar isso para si mesma?

— Já pensei no assunto — ela admitiu. — Eu também não me sinto feliz, mas não é realmente minha igreja. É um ramo diferente da Igreja Copta. A Igreja Egípcia não nega a ninguém o acesso aos recintos mais sagrados de seus templos. Não me sinto impedida pela proibição do abade. Acredito que como cristã tenho o direito de entrar em qualquer parte da catedral.

Ele assobiou baixinho.

— E você disse que eu devia ser advogado.

— Por favor, Nicky, não brinque. Não faça piada disso. Tudo o que sei é que, não importa o motivo, tenho de entrar lá. Mesmo que ofenda Tessay, Mek e toda a irmandade. Preciso fazê-lo.

— Eu poderia fazê-lo por você — ele sugeriu. — Afinal, sou um velho pecador. Não iria diminuir minhas chances de salvação. Não tenho nenhuma.

— Não — ela sacudiu firmemente a cabeça. — Se houver alguma inscrição ou algo dessa natureza, eu preciso ver. Você lê bem hieróglifos, mas não tão bem quanto eu, e não conhece a escrita hierátíca. Sou especialista e você, só um amador bem-dotado. Precisa de mim. Vou entrar com você.

— Está bem. Então está decidido — ele concluiu. — Comecemos a planejar. É melhor fazer uma lista do equipamento de que vamos precisar. Lanterna, canivete, câmera Polaroid, filmes de reserva...

— Papel fino e lápis macio para decalcar as inscrições — ela acrescentou.

— Diabo! — ele estalou os dedos, envergonhado. — Eu não trouxe isso.

— Viu só? Amador. Eu trouxe.

Eles conversaram até tarde; de repente Nicholas olhou o relógio e levantou-se.

— Já passa da meia-noite. Posso virar abóbora a qualquer momento. Boa noite.

— Ainda faltam dois dias para o tabot ser levado para o rio. Nada a fazer até lá. Quais são seus planos?

— Amanhã irei atrás daquele maldito Bambi. Ele já me fez de bobo duas vezes.

— Vou com você — ela disse com firmeza, e essa simples declaração causou um prazer desproporcional em Nicholas.

— Desde que deixe Tamre em casa — ele avisou quando já saía da cabana.

O pequeno antílope saiu da sombra escura do espinheiro, e seu pêlo sedoso reluziu ao sol da manhã. Ele ia andando tranqüilamente pela estreita clareira. A respiração de Nicholas ficava mais rápida à medida que o seguia através da mira telescópica. Era ridículo seu interesse em caçar um animal tão pequeno, mas os fracassos anteriores incitavam sua ansiedade. Isso e mais a paixão peculiar que move o verdadeiro colecionador. Desde a morte de Rosalind e das meninas ele se dedicava de corpo e alma a aumentar a coleção em Quenton Park; agora, perseguir esse espécime transformara-se numa questão de suprema importância.

Com o dedo encostado ao gatilho, ele esperava o dik-dik ficar imóvel para detonar a arma. Era arriscado disparar com o animal em movimento. A bala tinha de ser precisa, matar rapidamente e, ao mesmo tempo, danificar o mínimo possível a pele.

Por isso ele carregara o Rigby com balas encapadas com metal — das que não explodem com o impacto, mas penetram fundo e não rasgam muito a pele do outro lado. Esse tipo de bala faria um pequeno buraco da espessura de um lápis, que o taxidermista do museu conseguiria deixar invisível.

Seus nervos se contraíram ao pressentir que o dik-dik não pararia na clareira, mas apenas a atravessava. Ia em direção a outra moita de espinhos, do outro lado da clareira. Essa era sua última chance. Mas Nicholas resistiu à tentação de atirar no alvo móvel, e com muito custo afastou mais uma vez o dedo do gatilho.

O antílope chegou ao espinheiro, mas, antes de entrar, parou, enfiou a cabeça numa moita rasteira e começou a farejar os tufos de folhas tenras. A cabeça estava protegida, por isso Nicholas desistiu de atirar. Entretanto, a omoplata estava exposta. Via-se claramente o contorno do osso sob o pêlo castanho. O dik-dik estava a uma boa distância e na posição perfeita para um tiro no coração, na parte inferior da omoplata.

Sem pressa, ele ajustou a retícula da objetiva no ponto exato e apertou o gatilho.

O tiro rasgou o ar quente e pesado; o pequeno antílope deu um salto para cima, pousou no chão e correu em disparada. Mais como um florete do que como um cutelo, o sólido projétil não o atingira com força suficiente para derrubá-lo. Com a cabeça caída, o animal corria numa típica reação frenética a uma bala atravessada no coração. Já estava morto, mas era movido pelos últimos resíduos de oxigênio em seu sangue.

— Oh, não! Assim não! — Nicholas lamentou. A criaturazinha corria em direção à beira do penhasco. Às cegas, lançou-se no vazio, deu um salto mortal no ar e caiu 60 metros no abismo do Rio Dandera.

— Que falta de sorte! — Nicholas saltou por cima da moita que os escondia e correu para a beira do penhasco. Royan foi atrás dele.

— Lá está! — Ela apontou para baixo, e ele concordou.

— E, estou vendo.

A carcaça do animal estava bem embaixo deles, presa numa ponta de pedra suspensa sobre a correnteza.

— O que vamos fazer? — ela perguntou.

— Vou ter de descer para apanhá-lo. — Nicholas afastou-se da borda. — Por sorte, ainda é cedo. Temos muito tempo para fazer o trabalho antes de anoitecer. Voltarei ao acampamento para trazer cordas e gente Para ajudar.

Ele só retornou à tarde, acompanhado de Boris, dois curtidores de peles e dois condutores de mula. Trouxeram também quatro rolos de corda de náilon. Nicholas espiou da beira do penhasco e suspirou aliviado.

— Bom, a carcaça ainda está lá. Temia que fosse arrastada pela água. Ele supervisionou os homens desenrolarem as cordas e esticá-las no chão da clareira.

— Vamos precisar de dois rolos para descer até o fundo. — Nicholas verificou os nós antes de a corda ser jogada no penhasco até a superfície da água e, em seguida, ser recolhida para que sua extensão fosse medida.

— Cinqüenta e quatro metros. Não vou conseguir subir tudo isso — Nicholas disse a Boris. — Vocês vão ter de me puxar para cima.

Ele próprio prendeu a ponta da corda numa saliência do tronco de uma das árvores espinhosas. Testou-a mais uma vez, meticulosamente, pedindo aos quatro homens que a puxassem com toda a força.

— Acho que vai agüentar — Nicholas opinou enquanto despia a camisa e o short de brim caqui e tirava as botas. Na beira do penhasco, virou-se de costas, com a corda enrolada no ombro e a ponta presa entre as pernas, como um alpinista.

— Abra as asas e reze! — ele disse, e saltou de costas no abismo. Controlava a queda, soltando a corda no ombro e freando-a no laço sobre a coxa. Mantinha-se afastado das pedras com as pernas esticadas. A descida foi rápida; seus pés tocaram a água e a correnteza fez seu corpo girar na ponta da corda. Caíra a poucos metros do afloramento sobre o qual estava o dik-dik, e foi obrigado a entrar no rio. Com a ponta da corda presa entre os dentes, ele nadou de volta a pequena distância que o separava da pedra, com braçadas vigorosas para vencer a força da correnteza.

Nicholas alcançou o afloramento e fez uma pausa para tomar fôlego, e só então pôde ver como era belo o animal que havia matado. Um misto de culpa e tristeza apossou-se dele quando se aproximou para examinar a cabeça perfeita, com duas extraordinárias protuberâncias. Entretanto, não era hora para dores de consciência.

Ele amarrou o dik-dik pelas quatro patas, afastou-se e olhou para cima. Boris estava lá.

— Pode puxar — gritou, dando três puxões na corda como tinham combinado. Os homens no alto começaram a içar a carcaça pelo paredão do rochedo. Nicholas assistia, ansioso. Num certo momento, a corda ficou presa em algum lugar, mas soltou-se e continuou a subir.

O dik-dik finalmente desapareceu de vista, mas só mais tarde a corda voltou a surgir. Boris tivera a sensibilidade de amarrar uma pedra na ponta, do tamanho da cabeça de um homem, e agora soltava-a devagar; Nicholas observava seu progresso e controlava a descida sinalizando para seus homens.

Mas a pedra caiu na água, fora do alcance de sua mão. Boris balançou a ponta da corda até Nicholas conseguir pegá-la. Deu nela uma laçada, fez um nó corrediço e passou a corda por baixo dos braços; então gritou para Boris:

— Suspenda! — Ele deu mais três puxões; a corda apertou-se em torno de seu peito e o puxou aos solavancos para cima, em direção à barriga que se formava no paredão. Nicholas mantinha-se longe das pedras com as pernas esticadas, tentando fazer o corpo parar de girar. Faltavam ainda 80 metros quando a corda apertou mais seu peito, ao mesmo tempo que ele sentiu um puxão e ficou pendurado na parede do rochedo.

— O que está havendo? — gritou para Boris.

— A maldita corda ficou presa — Boris gritou de volta. — Dá para ver onde foi?

Nicholas olhou para cima e viu a corda enfiada numa fenda da pedra, provavelmente no mesmo lugar em que se prendera com o dik-dik. Só que ele pesava cinco vezes mais que o pequeno antílope, e a corda entrara muito mais fundo.

Nicholas estava suspenso no ar a uma altura de quase 30 metros.

— Tente balançar para se soltar — Boris gritou para ele. Nicholas deu um impulso para trás e contorceu-se na corda para tentar soltá-la. Experimentou várias vezes; o suor escorria por todo o seu corpo, e a aspereza do náilon lhe feria a pele sob os braços.

— Não adianta — gritou para Boris. — Veja se conseguem puxá-la aí de cima.

Pouco depois ele viu a corda esticar-se acima da fenda como um cabo de aço, puxada pela força de cinco homens. Lá de baixo, Nicholas ouvia o canto de trabalho dos peleiros enquanto aplicavam todo o seu peso sobre a corda.

Mas ele não saiu do lugar, e sabia que não sairia. Olhou para baixo. A água parecia muito mais distante do que imaginara. Lembrou-se então de que a velocidade final do corpo humano em queda livre é de 240 quilômetros por hora. E a essa velocidade a água se transformaria em concreto. "Mas acho que não estarei tão rápido quando chegar lá", ele tentava se convencer.

Olhou outra vez para cima, e os homens continuavam puxando a corda. Nesse instante um dos cordões de náilon se cortou numa aresta da pedra e enrolou-se como um longo caracol esverdeado.

— Pare de puxar! — Nicholas gritou, mas Boris se juntara aos homens para ajudá-los.

O segundo cordão também se rompeu e se soltou. Somente um o prendia agora.

"Vai arrebentar a qualquer momento", Nicholas pensou.

— Boris, seu imbecil, pare de puxar! — Mas sua voz jamais chegou até o russo; o terceiro e último cordão espocou como uma rolha de champanhe.

Nicholas despencou no vazio com a corda partida serpenteando sobre sua cabeça. Com os braços esticados para cima e as pernas para baixo, ele tentava estabilizar o vôo, retesando o corpo para cair em pé.

Pensou no afloramento lá embaixo. Cairia longe dele ou espatifaria todos os seus ossos na pedra? Era melhor não olhar. Se caísse na água, esmagaria as costelas ou quebraria a espinha.

Com a velocidade da queda, as vísceras de Nicholas pareciam sair pela boca; ele respirou pela última vez quando bateu na água, primeiro os pés, com uma força estonteante. Sentiu o impacto subir pela espinha até a nuca, os dentes baterem uns contra os outros, a visão ser ofuscada por luzes brilhantes. O rio o tragou. Ele afundou com tanta força que as pernas pareceram se enterrar nos quadris quando os pés bateram no fundo de pedra. Os joelhos se dobraram, e ele achou que havia quebrado as duas pernas.

O impacto expulsou o ar de seus pulmões; quando deu um impulso para cima, buscando desesperadamente o ar, percebeu aliviado que suas pernas estavam inteiras. Emergiu à superfície, fungando e tossindo, e deu-se conta de que por muito pouco não caíra sobre o afloramento. Entretanto, a correnteza já o distanciara dele.

Movimentando as pernas para manter-se na superfície, Nicholas tirou a água dos olhos e olhou em volta. A correnteza o arrastava para dentro dos penhascos a uma velocidade aproximada de 10 nós — o suficiente para quebrar um osso se batesse numa pedra. No mesmo instante um afloramento passou quase ao alcance de sua mão. Ele virou-se de costas e esticou os pés para a frente, para proteger-se das pedras.

"Esta viagem vai ser completa", pensou. "O único jeito de eu me salvar é ir até o fim."

Nicholas tentava calcular a que distância estava do ponto em que o rio se livrava da ravina através do arco de pedra rosada, e quanto ainda teria de nadar.

"Quatro ou cinco quilômetros, no mínimo, e a queda do rio é de quase trezentos metros. É bem provável que haja cachoeiras à frente. Daqui em diante pode ser perigoso. Eu diria que minhas chances de sair desta são de três para um, sem deixar alguns pedaços presos nessas pedras."

Então olhou para cima. Os paredões eram altíssimos de ambos os lados, e em certos pontos pouco faltava para se encontrarem em cima. Do fundo do abismo úmido e escuro via-se apenas um fiapo de céu. Ao longo dos anos o rio havia limado as pedras e aberto seu caminho no meio delas.

"É uma sorte danada que não esteja chovendo. Como será isto durante as chuvas?", ele se perguntou, olhando a marca da água nas pedras uns 50 metros acima.

Sem pensar mais nisso, ele se concentrou no rio. Já retomara o fôlego e procurava alguma coisa quebrada no corpo. Aliviado, notou que sofrera apenas alguns arranhões, e o que parecia ser um joelho ralado estava inteiro. Todos os membros respondiam; quando deu algumas braçadas para o lado para evitar outro afloramento de rochas, até o joelho machucado parecia estar bastante bom para que pudesse contar com ele.

Aos poucos Nicholas foi percebendo um novo som no desfiladeiro. Era um ronco fraco, mas que foi aumentando à medida que ele avançava para a frente. Os paredões do abismo quase convergiam no alto, as pedras se juntavam embaixo e o fluxo da água se acelerava, espremendo-se entre delas. O ruído transformou-se rapidamente num trovão que reverberou no desfiladeiro.

Nicholas nadou com todas as forças para alcançar o paredão mais próximo. Tentava encontrar algo para se segurar, mas as pedras eram lisas. Escorregavam sob suas mãos onde procurava desesperadamente se agarrar, e o rio bramia sobre sua cabeça. De repente, a superfície da água ficou lisa e sólida como o vidro. Como o cavalo empina as orelhas na iminência do salto, o rio estava pressentindo o que o esperava à frente.

Nicholas tomou impulso numa pedra e ganhou espaço para virar os pés na direção da corrente. Então foi atirado ao espaço. Ao redor, o rio espumava, arrastando-o e jogando como uma folha de árvore. A queda parecia não ter fim, e seus órgãos pareciam soltos dentro do corpo. Mais uma vez ele despencou vertiginosamente e foi sugado para o fundo.

Nicholas subiu com esforço e irrompeu na superfície com um fiapo de fôlego. Através dos olhos molhados viu que caíra num redemoinho embaixo da cachoeira, onde a água se revolvia e ondulava, rodopiando num minueto elegante.

Olhou para cima e a primeira coisa que viu foi o lençol branco da cachoeira em que caíra, e depois a estreita abertura por onde o rio se atirava em sua louca corrida. Por enquanto ele estava a salvo e tranqüilo naquele torvelinho sob a cachoeira. A correnteza o arrastara para o lado da bacia, atrás da queda-d'água. Ele estendeu a mão e segurou-se num tufo de mato que brotava de um orifício na pedra.

Finalmente tinha a oportunidade de descansar e avaliar sua situação. Não levou muito tempo, contudo, para perceber que só havia uma maneira de sair daquele abismo: seguir pelo rio, arriscando-se ao que mais o aguardasse. Podia esperar outras corredeiras e até outras cachoeiras como aquela em que acabara de cair.

Se ao menos houvesse um meio de subir pelo paredão! Ele olhou para cima, mas logo desanimou ao avaliar os penhascos que formavam uma abóbada de catedral sobre sua cabeça.

Mas alguma coisa lhe chamou a atenção. Era algo por demais regular e organizado para ser natural. Havia duas fileiras de marcas escuras dispostas verticalmente no paredão de pedra, que começavam na superfície da água e subiam para a beira do abismo quase 60 metros.

Nicholas chegou mais perto e percebeu que eram pequenos nichos cavados na pedra. As fileiras ficavam distantes uma da outra à extensão de dois braços, e o nicho de uma fileira alinhava-se exatamente com o nicho da outra, na horizontal.

Enfiando a mão na abertura mais próxima, viu que era bastante profunda para acomodar o braço, até o cotovelo. Essa abertura, estando abaixo do fluxo da água, não tinha bordas cortantes, mas quando ele viu as de cima, além da marca da água, a forma era mais definida: eram quadradas e cortantes.

"Meu Deus, quanto tempo isso tem, para estar tão gasto?", perguntou-se maravilhado. "E como foi que alguém conseguiu vir até aqui para cavá-los?"

Apoiando-se no nicho mais próximo, examinou o padrão que eles seguiam.

"Por que alguém se daria a tanto trabalho?" Era difícil saber o motivo, e menos ainda com que propósito. "Quem terá feito tudo isso? O que veio fazer aqui embaixo?" Era um mistério intrigante.

Então outra coisa lhe chamou a atenção. Era uma saliência na pedra, precisamente no meio das duas fileiras e acima da marca da água. De longe pôde ver que era perfeitamente redonda — outra forma que não era natural.

Ele tateou um pouco mais longe, tentando alcançar uma posição de onde pudesse ver melhor. Parecia um tipo de escultura na pedra, uma placa que lhe lembrava muito as marcas nos penedos negros que flanqueavam o Nilo, abaixo das primeiras cataratas de Assuã, que desde a Antigüidade serviam para medir os níveis das águas do rio. Mas o sol já estava bastante baixo, e o ângulo era por demais estreito para lhe dar certeza de que fora feito pelo homem, e muito menos para que ele pudesse reconhecer ou ler qualquer escritura ou letra que tivessem sido incorporadas à forma.

Nicholas pensou num jeito de chegar mais perto, subindo pelos nichos. Foi com muito esforço que, pisando em um e segurando-se em outro, conseguiu erguer-se da água. Mas a distância para o próximo nicho era muito grande, e ele caiu de costas, engolindo mais água.

"Vamos com calma, amigo... você ainda vai ter de nadar muito para sair daqui. Não adianta nada se cansar. Volte outro dia para chegar mais perto e ver o que há ali."

Nesse momento, Nicholas se deu conta de que estava próximo do esgotamento total. As águas desciam geladas das montanhas do Choke, em memória da neve que tinham deixado para atrás. Ele tremia e batia os dentes.

"Não estou longe da hipotermia. Tenho de sair daqui agora, enquanto tenho forças."

Relutante, ele tomou impulso contra o paredão de pedra e nadou para a estreita passagem, onde o Rio Dandera recuperava toda a sua força para juntar-se à mãe Nilo. Quando sentiu que a correnteza o envolvia e atirava para a frente, parou de nadar e deixou-se levar.

"A montanha-russa do inferno!", disse consigo mesmo. "Descendo sempre, e onde termina ninguém sabe."

As primeiras corredeiras o golpearam. Elas pareciam infinitas, mas por fim ele foi jogado em águas mais calmas. Deitou-se de costas e boiou, tirando todo o proveito desse descanso, e olhou para cima. Havia pouquíssima luz, as pedras quase se encostavam no alto. A atmosfera era úmida e opressiva, recendia a morcegos.

Entretanto, houve pouco tempo para explorar os arredores, porque logo em seguida o rio voltou a trovejar. Ele preparou-se para o próximo assalto de águas turbulentas e despencou na encosta íngreme.

Depois de algum tempo Nicholas não sabia mais quanto já fora arrastado e a quantas corredeiras havia sobrevivido. Era uma batalha constante contra o frio e a dor nos pulmões exaustos, nos músculos sobrecarregados e nos nervos extenuados. O rio o espancava.

De repente, a luz se modificou. Depois do lusco-fusco dentro dos penhascos, foi como se uma lanterna se acendesse na frente de seus olhos, ao mesmo tempo que a força e a ferocidade do rio diminuíam. Ele semicerrou os olhos contra a luz, mas quando voltou a abri-los viu que passara pelo arco de pedra rosada; estava agora numa parte conhecida do rio, que já havia explorado com Royan. Viu aproximar-se a ponte suspensa de cipós trançados, mas só teve forças para dar fracas braçadas em direção a uma estreita faixa de areia branca que ficava abaixo dela.

Uma das trancas de cipó pendia na superfície da água; ele conseguiu segurá-la ao passar por baixo, e usou-a para sair da água. Nicholas queria arrastar-se mais para dentro da praia, mas caiu de rosto na areia e vomitou toda a água que havia engolido. Como era bom deitar-se para descansar sem ter de fazer nenhum esforço... As pernas e o quadril ainda estavam dentro do rio, mas suas forças só lhe permitiam ficar onde estava.

— Estou vivo — maravilhou-se, mergulhando num espaço entre o sono e a inconsciência.

Nicholas não soube por quanto tempo ficou ali, até sentir alguém sacudir seu ombro e chamar por ele; preferia não ter seu sono perturbado.

— Efêndi, acorde! Estão procurando o senhor. A bela Woizero procura o senhor.

Com esforço, Nicholas conseguiu soerguer-se e sentar devagar. Tamre estava ajoelhado ao seu lado, rindo e balançando a cabeça.

— Efêndi, venha comigo. Woizero está procurando do outro lado do rio. Ela está chorando e chamando pelo senhor.

Tamre era a única pessoa que Nicholas conhecia que conseguia mostrar-se preocupado e rir ao mesmo tempo. Foi então que ele se deu conta de que estava anoitecendo; o sol era um grande círculo vermelho na borda do escarpamento.

Nicholas sentou-se no chão e examinou o corpo para fazer um levantamento dos danos. Todos os músculos doíam, braços e pernas tinham hematomas e arranhões, mas não havia nenhum osso quebrado. Embora tivesse um galo no lado da cabeça, estava bastante lúcido.

— Ajude-me a levantar! — ordenou a Tamre. O menino passou o ombro sob o braço ferido de Nicholas e ajudou-o a ficar em pé. Os dois subiram o barranco cambaleantes, e ao longo da ponte instável equilibraram-se um no outro.

Mal chegaram do outro lado quando Nicholas ouviu um grito de alegria.

— Nicky! Oh, meu Deus! — Royan veio correndo pela trilha e atirou-se nos braços dele. — Eu já estava ficando maluca. Achei que... — Ela afastou-se para olhá-lo. — Você está bem? Esperava encontrá-lo todo quebrado...

— Você me conhece... — Ele riu, tentando não demonstrar as dores. — Um gigante à prova de bala. Você não vai se livrar tão cedo de mim. Só fiz isso para ganhar esse abraço.

Ela o soltou imediatamente.

— Não tire nenhuma conclusão. Eu sempre me preocupo com os animais abatidos e com quem os abateu. — Mas seu sorriso a traía. — Mesmo assim, que bom que esteja inteiro, Nicky!

— Onde está Boris? — ele perguntou.

— Ele e seus homens estão procurando rio abaixo. Devem estar atrás do seu cadáver.

— O que ele fez com o meu dik-dik?

— Realmente não há nada errado com você, para se preocupar com isso agora. Deve estar nas mãos dos coureiros no acampamento.

— Droga! Preciso estar lá para despelar o animal e eu mesmo preparar o couro. Eles vão estragar tudo! — Nicholas apoiou-se no ombro de Tamre. — Vamos, companheiro! Vamos ver se consigo correr.

A carcaça do pequeno antílope se decomporia rapidamente com o calor, e o pêlo poderia se desprender do couro se não fosse imediatamente tratado. Era imperativo despelar o animal imediatamente. Já passara muito tempo, e soltar o couro inteiro do corpo era um processo que exigia habilidade e paciência.

Já estava escuro quando Nicholas chegou ao acampamento, gritando em árabe para os coureiros:

— Ya, Kif! Ya, Salim! — Eles saíram correndo das cabanas, e ele perguntou ansioso: — Já começaram?

— Ainda não, efêndi. Estamos jantando primeiro.

— Pela primeira vez a gula é uma virtude. Não toquem no animal até eu chegar. Enquanto isso, peguem uns lampiões a gás. — Ele foi mancando para sua cabana o mais rápido que a dor lhe permitiu. Lá, desinfetou com mercurocromo todos os arranhões e cortes, vestiu roupas secas, procurou em sua mala o rolo de lona que continha suas facas e correu para a cabana onde estava a carcaça.

Sob a luz forte do lampião de butano, ele mal fizera as incisões iniciais sob as pernas e a barriga do dik-dik, quando Boris entrou.

— Foi bom o banho, inglês?

— Delicioso, obrigado — disse Nicholas, sorrindo. — Devo esperar que engula suas palavras sobre meu dik-dik listrado ou não? — perguntou delicadamente. — Acho que você disse que não existia esse animal dos infernos.

— Parece um rato. Um caçador de verdade não perde seu tempo com um lixo desses — Boris respondeu grosseiramente. — Agora que já tem seu rato, podemos voltar para Adis, inglês?

— Eu lhe paguei por três semanas. Este safári é meu. Voltaremos quando eu decidir — Nicholas avisou, e Boris saiu resmungando.

Nicholas trabalhou rápido. As facas tinham formatos especiais para facilitar o trabalho; eram afiadas a intervalos regulares em pedra de amolar, de modo que a lâmina cortasse os pêlos do braço a um leve toque.

As pernas tinham de ser despeladas ainda com as patas. Antes de terminar essa parte do trabalho, outra pessoa entrou na cabana. Usava um shamma de padre e turbante, e até ouvi-lo falar Nicholas não reconheceu Mek Nimmur.

— Soube que se meteu em confusão, Nicholas. Quis me certificar de que ainda estava vivo. Lá no mosteiro disseram que você tinha se afogado, mas eu sabia que era impossível. Você não morre tão fácil.

— Espero que tenha razão, Mek. — Nicholas riu. Mek agachou-se do outro lado.

— Empreste-me a faca para eu fazer as patas. Iremos mais depressa se eu o ajudar.

Nicholas não disse nada e deu-lhe uma das facas. Mek sabia fazer aquilo, porque há muitos anos ele próprio ensinara a arte ao outro. Com os dois trabalhando o couro, ia muito mais depressa. Quanto antes a pele fosse tirada, menos chance haveria de se deteriorar.

Nicholas concentrava-se na cabeça. Era a parte mais delicada do processo. A pele devia ser tirada como uma luva, e as pálpebras, os lábios e as narinas, cortados de dentro para fora. Eles trabalhavam em silêncio havia algum tempo quando Mek perguntou:

— Conhece bem esse russo, Boris Brusilov?

— Eu o vi pela primeira vez quando desci do avião. Foi recomendado por uma amiga.

— Que amiga! Vim preveni-lo sobre ele, Nicholas.

— Estou ouvindo.

— Em 1985 fui capturado pelos facínoras de Mengistu. Fiquei um ano no campo de prisioneiros Karl Marx, perto de Adis Abeba. Brusilov era um dos interrogadores do campo. Era da KGB na época. Sua maior diversão era enfiar o tubo de compressor no ânus do homem ou da mulher que interrogava e ligá-lo no máximo. Eles inchavam como balão, até explodir. — Mek parou para mudar de posição e ocupar-se da outra metade do animal. — Fugi antes de ser interrogado. Ele se aposentou quando Mengistu fugiu e virou caçador. Não entendo como convenceu Woizero Tessay a se casar com ele, mas, pelo que pude ver dela, só posso imaginar que não teve escolha.

— Certamente eu já desconfiava dele — admitiu Nicholas. Eles ficaram em silêncio, e Mek cochichou:

— Quero avisar que devo matá-lo.

Eles não conversaram mais até Mek terminar de trabalhar as quatro patas e levantar-se.

— Nos dias de hoje não se tem segurança, Nicholas. Se eu tiver de sair daqui às pressas e não puder me despedir de você, há alguém em Adis que me transmitirá suas mensagens, caso precise de mim. É um amigo meu. Seu nome é Coronel Maryam Kidane, do Ministério da Defesa. Meu codinome é Swallow. Ele vai saber de quem você está falando.

Eles se deram um rápido abraço.

— Vá com Deus! — disse Mek, saindo furtivamente da cabana. Nicholas ficou olhando sua figura negra ser engolida pela noite, e então voltou para continuar o trabalho.

Já era tarde quando terminou de esfregar todo o couro com uma mistura de sal grosso e pasta Kabra, para curá-lo e protegê-lo dos besouros, insetos e bactérias. Por fim, esticou-o no chão da cabana e jogou mais sal nas áreas ainda úmidas.

As paredes da cabana tinham sido rodeadas por armadilhas contra hienas, que poderiam engolir aquele couro em segundos. Nicholas viu se a porta estava bem fechada antes de seguir com o lampião para a cabana de refeição. Todos já haviam comido e dormiam há muito tempo,

mas Tessay deixara seu jantar a cargo do cozinheiro etíope. Nicholas não se deu conta da fome que sentia até sentir o cheiro da comida.

Na manhã seguinte Nicholas estava tão dolorido que se dirigiu curvado e mancando como um velho até a cabana onde deixara o couro. Examinou-o, despejou mais sal sobre ele, e depois ordenou a Kif e a Salim que enterrassem o crânio num formigueiro, para que as formigas retirassem o resto de carne e limpassem a cavidade. Ele preferia esse método a fervê-lo.

Satisfeito com a boa condição de seu troféu, foi para a cabana de refeições, onde Boris o recebeu jovialmente.

— E então, inglês? Vamos voltar para Adis agora? Não tem mais nada a fazer aqui.

— Quero fotografar a cerimônia do Timkat no mosteiro — Nicholas disse. — E depois quero caçar um bushbuck de Menelik. Por que não? E eu já lhe disse: só voltaremos quando eu quiser.

Boris não se mostrou nada satisfeito.

— Você é doido, inglês! Por que ficar neste calorão para ver essa gente?

— Hoje quero pescar, e amanhã vou assistir ao Timkat.

— Você não tem vara de pesca — Boris protestou, mas Nicholas abriu um pequeno rolo de lona, não maior que uma bolsa feminina, e mostrou uma vara Hardy Smugler de quatro seções acondicionada lá dentro.

Ele olhou para Royan, sentada na sua frente.

— Você vem comigo? — perguntou.

Eles subiram o rio até a ponte suspensa, onde Nicholas montou a vara e prendeu uma isca ao anzol.

— Royal Coachman. — Ele a ergueu à altura dos olhos. — Os peixes do mundo todo a adoram, da Patagônia ao Alasca. Vamos ver se também faz sucesso aqui na Etiópia.

Da margem do rio, Royan observou-o soltar a linha, chicoteá-la no ar e lançar o anzol ao meio do rio, onde a bóia flutuou nas ondulações da superfície. No mesmo instante a água se agitou sob a bóia. A vara se arqueou, o carretei girou e Nicholas deu um puxão para trás.

— Nossa, que beleza!

Royan continuava na margem, olhando o que lhe parecia um menino entusiasmado e excitado. Ela sorriu de satisfação, constatando que os ferimentos haviam cicatrizado rapidamente e que Nicholas não mais mancava enquanto corria de um lado para outro sobre a ponte, lutando com o peixe. Dez minutos depois, ele tirou o peixe da água, brilhante como uma barra de ouro e do tamanho de um braço, e soltou-o na areia, onde ele ficou saltando e se debatendo.

— Peixe amarelo — ele gritou triunfante. — Uma delícia! Já temos comida para amanhã.

Ele subiu o barranco e sentou-se na grama ao lado de Royan.

— Pescar foi só uma desculpa para nos afastarmos de Boris. Trouxe você aqui para lhe contar o que vi ontem. — Ele apontou para o arco de pedra além da ponte. Ela soergueu-se nos cotovelos e olhou atentamente para ele.

— Claro que não posso dizer se tem algo a ver com nossa busca, mas alguém andou trabalhando lá em cima. — Ele descreveu os nichos que encontrara nas paredes do penhasco. — Vêm da beira do abismo até a superfície da água. Os que ficam abaixo do nível da cheia estão bem desgastados. Não pude chegar mais alto, mas até onde pude ver os outros estão protegidos do vento e da chuva pela curvatura do rochedo. Parece que estão em estado puro, muito diferentes dos que ficam mais embaixo.

— E o que concluiu disso? — ela perguntou.

— Que são muito antigos — respondeu Nicholas. — Certamente é basalto muito rígido. Deve ter levado um tempo enorme para a água desgastá-los daquela forma.

— Para que você acha que servem os buracos?

— Não sei — ele admitiu.

— Poderiam servir de apoio para algum tipo de andaime? — Royan perguntou, e ele mostrou-se impressionado.

— Boa idéia! E, poderiam ser...

— O que mais lhe ocorre?

— Desenhos ritualísticos? — sugeriu. — Motivos religiosos? — Ele riu ao ver a expressão da companheira. — Está bem, não estou sendo muito convincente.

— Então vamos considerar o andaime. Por que alguém construiria um andaime num lugar daquele? — Royan deitou-se no chão, mordiscando um caule de grama.

Ele deu de ombros.

— Para apoiar uma escada ou um guindaste e ter acesso ao alto do penhasco?

— E por que mais?

— Não consigo pensar em mais nada. Pouco depois ela balançou a cabeça.

— Eu também não — disse, cuspindo o pedacinho de grama. — Se for esse o motivo, então fizeram um bom trabalho. Pelo que você descreveu, devia ser uma estrutura e tanto, planejada para sustentar o peso de muitos homens ou de material pesado.

— Na América do Norte, os peles-vermelhas também construíam plataformas de pesca sobre as cachoeiras.

— Será que se pescava nestas águas? — ela perguntou, e Nicholas novamente ergueu os ombros.

— Não sei dizer... Talvez há muito tempo... quem sabe?

— E o que mais você viu lá?

— No alto do paredão, alinhada com precisão matemática entre as duas fileiras de nichos, havia alguma coisa parecida com um baixo-relevo na pedra.

Ela sentou-se de um salto e olhou-o avidamente.

— Você pôde ver isso? Havia inscrições ou desenhos? Qual era o estilo da escultura?

— Não tive tanta sorte. Estava alto demais, e embaixo havia pouca luz. Não sei nem se era uma imperfeição natural da pedra.

Ela ficou claramente decepcionada, mas em seguida perguntou:

— Havia mais alguma coisa?

— Sim — ele riu. — água por todo lado, correndo numa velocidade louca.

— E o que vamos fazer com esse seu suposto baixo-relevo? — ela perguntou.

— Não gosto muito da idéia, mas terei de voltar para olhar melhor.

— Quando?

— Amanhã é o Timkat, nossa única chance de entrar no maqdas da catedral. Depois faremos um plano para explorar a garganta.

— Estamos correndo contra o tempo, Nicholas, justo agora que as coisas estão ficando interessantes.

— Diga isso de novo! — ele murmurou, e Royan sentiu a respiração dele em seus lábios. Seus rostos estavam próximos como os de conspiradores ou amantes. Então Royan percebeu o duplo sentido de suas palavras e imediatamente se levantou, tirando a areia e a grama de suas roupas.

— Só temos um peixe para alimentar toda aquela gente. Ou você é muito sabido, ou vai ter de pescar mais.

Os dois debteras que haviam sido escalados pelo abade para escoltá-los seguiam na frente, abrindo caminho por entre a multidão, mas foram engolidos por ela quando chegaram ao pé da escadaria. Nicholas e Royan ficaram separados das outras pessoas.

— Fique perto de mim — Nicholas falou, segurando-a pelo braço e usando o próprio ombro para abrir caminho, levando-a bem junto de si. Obviamente, ele se haviam separado propositadamente de Boris e Tessay, e até então tudo o que tinham planejado estava dando certo.

Nicholas conseguiu chegar a uma das colunas de onde tinha uma boa visão da entrada da catedral; teve de escorar-se nela para evitar que a multidão os arrastasse. Royan não tinha altura suficiente para enxergar acima das cabeças, de modo que Nicholas a ajudou a subir na balaustrada da escadaria e segurou-a com firmeza. Ela se apoiou em seus ombros, pois logo atrás a escada começava a descer para o Nilo.

Os religiosos entoavam um canto baixo e monótono, acompanhados por grupos de músicos que tocavam tambores e tangiam os sistros. Cada um desses conjuntos rodeava seu patrono, um líder esplendidamente trajado, que era levado sob uma ampla sombrinha.

Havia um clima de animação e expectativa quase tão forte quanto o calor e o mau cheiro. Logo tudo isso se intensificou, e, à medida que o canto aumentava em volume e estridência, a multidão começou a se balançar para um lado e para outro num movimento ondulante, como uma ameba viva e grotesca.

De repente, no interior da catedral soou um carrilhão de sinos de bronze, e imediatamente uma centena de cornetas e trompetes responderam. No alto da escada eclodiu uma fuzilaria: eram os guarda-costas dos líderes, que disparavam suas armas para o ar.

Alguns usavam rifles automáticos, e o tiroteio dos AK-47 se misturava ao estrondo de antigas armas carregadas pela boca. Nuvens de fumaça azulada erguiam-se no ar, as balas ricocheteavam nos rochedos e se perdiam na garganta. As mulheres gritavam agudamente e ululavam num tom lúgubre de fazer gelar o sangue. Com o rosto iluminado pelo fervor religioso, os homens caíam de joelhos e levantavam os braços em adoração, cantando e implorando as bênçãos divinas. As mães erguiam os filhos sobre a cabeça, com lágrimas de um frenesi religioso derramando-se por suas faces escuras.

Pela porta da catedral subterrânea emergiu uma procissão de monges e padres. Primeiro vinham os debteras com suas túnicas brancas, seguidos pelos acólitos que seriam batizados na margem do rio. Royan reconheceu Tamre, que se destacava em altura dos rapazes a seu redor. Ela acenou por cima da multidão; ele a viu, sorriu timidamente e acompanhou os debteras na descida para o rio.

A tarde caía. O fundo do caldeirão estava oculto pelas sombras, e acima dele já despontavam as primeiras estrelas num céu cor de púrpura. À beira do caminho ardia uma grande fogueira, e os padres que por ali passavam enfiavam uma tocha apagada nas chamas e erguiam-na acesa.

Como uma torrente de lava derretida, a procissão iluminada desenrolava-se pelo penhasco, fazendo ecoar no desfiladeiro o canto lastimoso dos adoradores e a batida dos tambores.

Atrás dos candidatos ao batismo vinham os padres já ordenados, com trajes espalhafatosos, erguendo acima da cabeça cruzes cerimoniais de prata e bronze, e estandartes de seda bordada com imagens de santos na agonia do martírio ou em adoração extática. Tocavam sinos e sopravam pífanos e entoavam um canto monótono, enquanto transpiravam e rolavam os olhos para cima.

Atrás deles, trazido por dois padres em trajes suntuosos, com altos toucados incrustados de pedras preciosas, vinha o tabot. A Arca do Tabernáculo estava coberta por um pano amarelo que chegava até o chão, pois era por demais sagrada para que o olhar profano a contaminasse.

Os crentes atiraram-se ao chão no mais pleno paroxismo da fé. Até os líderes prostravam-se sobre a pedra, alguns derramando lágrimas de fervor.

Por último vinha Jali Hora, não usando a coroa com a pedra azul, mas outra muito mais esplendorosa, a coroa da Epifania, um bloco de metal polido com falsas pedras cintilantes, que parecia muito pesada para seu velho e cansado pescoço. Dois debteras o levavam pelos braços e guiavam seus passos incertos pela escadaria.

A procissão já estava a caminho, de modo que os últimos adoradores paravam próximo à escada, diante de Nicholas e Royan, para acender suas tochas e seguir o abade. Houve uma movimentação geral das pessoas para juntar-se ao fluxo; quando começou a esvaziar, Nicholas ajudou Royan a descer da balaustrada.

— Precisamos entrar na igreja enquanto há gente aqui para nos encobrir — ele cochichou em seu ouvido. Puxando-a pela mão, e com a outra segurando a alça da bolsa onde estava a câmera, Nicholas meteu-se entre os que se dirigiam para a escada. Permitiu que a multidão os empurrasse para a frente, mas o tempo todo tentava cortar por entre a corrente humana em direção à entrada da catedral. Viu Boris e Tessay mais adiante, mas eles não o viram, pois Nicholas abaixou-se logo e conseguiu se esconder.

Na frente do portão da catedral, ele puxou Royan para longe da multidão e ajudou-a a passar pelo pórtico baixo e entrar na igreja deserta e sombria. Com um rápido olhar, conferiu se estavam realmente sozinhos e se não havia mais ninguém guardando as portas internas. Encostado à parede lateral da igreja, Nicholas alcançou rapidamente uma das tapeçarias que iam do teto ao chão. Ergueu as pontas de lã pesada e entrou com Royan atrás da tapeçaria; em seguida soltou as pontas no chão e ali ficaram escondidos.

Foi no momento certo, porque mal se haviam encostado à parede quando ouviram passos saindo do qiddist. Nicholas espiou pela fresta da tapeçaria e viu quatro padres atravessarem a nave externa, saírem pelo portão e fechá-lo em seguida. Eles ouviram o peso da tranca de metal sendo travada e, em seguida, fez-se um profundo silêncio na caverna.

— Não posso acreditar! — Nicholas cochichou. — Eles nos trancaram aqui!

— Pelo menos sabemos que não seremos perturbados — Royan respondeu rispidamente. — Podemos trabalhar agora mesmo.

Eles deixaram o esconderijo e atravessaram a câmara exterior em direção à entrada do qiddist. Aí Nicholas parou e segurou-lhe o braço.

— Daqui para a frente entramos em território proibido. É melhor eu ir sozinho para sondar o terreno.

Ela sacudiu a cabeça com firmeza.

— Você não vai me deixar aqui. Estou junto com você para tudo. — Ele viu que era melhor não discutir.

— Vamos, então. — Nicholas a ajudou a subir os degraus e deixoua entrar na frente.

A câmara intermediária era menor e mais baixa do que aquela em que estavam. As tapeçarias eram mais ricas e mais bem conservadas. Não havia nada no chão, a não ser uma estrutura piramidal de madeira, ornada com fileiras de lamparinas de bronze, cada uma delas com sua pequena chama flutuando numa poça de óleo. Essa fraca luminosidade era a única existente; o teto e o interior da câmara ficavam obscuros.

Quando atravessavam a câmara em direção aos portões do maqdas, Nicholas pegou duas lanternas na bolsa e deu uma para Royan.

— A bateria é nova — avisou —, mas não desperdice. Talvez fiquemos aqui a noite toda.

Eles pararam diante da porta do Sacrário dos Sacrários. Nicholas fez um rápido reconhecimento. As almofadas das portas eram esculpidas com imagens de São Frumêncio, com a cabeça envolta em radiância celestial e a mão direita erguida numa bênção.

— Tranca primitiva — ele murmurou —, deve ter centenas de anos. Seria possível passar um chapéu pelo vão entre o buraco da chave e a lingüeta. — Ele enfiou a mão na bolsa e pegou um canivete de utilidades.

— Coisinha esperta, essa aqui. Com isso se pode fazer qualquer coisa, desde arrancar pedras dos cascos de um cavalo até abrir o cadeado de um cinto de castidade.

Ele ajoelhou-se diante da fechadura de ferro maciço e abriu uma das múltiplas lâminas da ferramenta. Royan esperava ansiosamente, e levou um pequeno susto quando a lingüeta da fechadura cedeu.

— Não sabia que dentre todos os seus talentos você também era arrombador — ela comentou.

— Às vezes é necessário. — Nicholas levantou-se e forçou um lado do portão com o ombro. As dobradiças ressecadas rangeram. Nicholas empurrou o portão o suficiente para passar e fechou-o imediatamente depois.

Eles estavam lado a lado sob o umbral do maqdas, e o olharam num silêncio reverente.

O Sacrário dos Sacrários era uma pequena câmara, muito menor do que ambos imaginavam. Nicholas a atravessaria em dez passos. O teto abobadado era tão baixo que, se ficasse na ponta dos pés, poderia tocá-lo com as mãos esticadas.

Desde o piso até o topo das paredes havia prateleiras onde ficavam os presentes e as oferendas dos fiéis, ícones da Santíssima Trindade e da Virgem em estilo bizantino, emoldurados com prata trabalhada. Havia coleções de estatuetas de santos e imperadores, medalhões e braceletes de metal polido, potes e tigelas com velas votivas que ofereciam uma luminosidade incerta. Era uma extraordinária coleção de tesouros e quinquilharias, de objetos preciosos e bricabraque enfeitado, oferecidos como artigos de fé por imperadores e chefes etíopes ao longo dos séculos.

No meio da câmara havia um altar de cedro cujas laterais eram esculpidas com cenas delirantes da revelação e da criação, da tentação e expulsão do paraíso, e do Juízo Final. As toalhas eram de seda rústica trabalhada, e a cruz e o cálice, de prata maciça. A coroa do abade brilhava à chama das velas, ostentando em seu bojo o selo azul de Taita.

Royan atravessou a câmara e ajoelhou-se diante do altar, baixou a cabeça e rezou. Nicholas esperou respeitosamente na porta até que ela se levantasse e voltasse até ele.

— A pedra do tabot! — Ele apontou para além do altar, e ambos dirigiram-se para lá. Atrás do maqdas havia um volume coberto com um pesado tecido adamascado, bordado com fios de prata e de ouro. Pela forma podiam-se perceber as proporções elegantes e delicadas, da altura de um homem.

Eles rodearam o objeto, examinando atentamente sua forma, mas relutaram em tocar o tecido ou erguê-lo. Temiam que suas expectativas não fossem correspondidas e suas esperanças, arrastadas como as turbulentas águas do caldeirão do Nilo. Nicholas desfez a tensão: afastou-se da pedra do tabot e foi até o portão na parede posterior do santuário.

— O túmulo de São Frumêncio! — disse, segurando-se na grade de madeira. Ela foi para o lado dele e, juntos, ficaram espiando através das molduras escurecidas pelo tempo. Lá dentro estava escuro. Nicholas enfiou a lanterna num dos quadrados e ligou-a.

O túmulo foi iluminado por um arco-íris de cores tão claras ao redor do facho que levou algum tempo para seus olhos se adaptarem. Então Royan deu um grito:

— Oh, meu Deus! — Ela começou a tremer e seu rosto ficou branco. O caixão estava colocado numa prateleira de pedra na parede da

frente. Por fora havia uma pintura do homem que estava lá dentro. Embora estivesse bastante descorada, e parte da tinta descascada, o rosto claro e a barba ruiva ainda podiam ser discernidos.

Mas esse não era o único motivo do espanto de Royan. Seus olhos estavam fixos nas paredes laterais e superior da prateleira em que ficava o caixão. Havia uma profusão de cores, e cada centímetro era coberto por intricados desenhos, milagrosos sobreviventes de milênios.

Nicholas iluminava-os sem dizer palavra; Royan segurou-se nele para não cair. Suas unhas afiadas enfiaram-se na pele, mas ele nem se deu conta da dor.

Eram cenas de grandes batalhas: destemidas galés enfrentando-se em combates terríveis sobre as águas eternas do rio. E cenas de caça: a perseguição de hipopótamos e grandes elefantes com longas presas de marfim. Batalhões com armaduras emplumadas digladiavam-se com fúria e desejo sanguinário. Esquadrões de carros de guerra enfrentavam-se ao longo das paredes estreitas, obscurecidos pela própria poeira que levantavam.

O primeiro plano desses murais era dominado pela mesma figura alta e heróica. Numa das cenas, o homem esticava seu arco, em outra esquivava-se de uma lâmina de bronze. Seus inimigos derrotados ficavam para trás, ele os perseguia ou erguia nas mãos as cabeças arrancadas como um buquê de flores.

Nicholas correu o foco da lanterna sobre toda essa obra de arte e parou num painel central que revestia a parede principal da prateleira, onde a mesma divindade conduzia seu carro de guerra. Numa das mãos levava o arco e na outra um feixe de dardos. Não usava capacete, e seus cabelos esvoaçavam ao vento como a juba dourada de um leão. Tinha feições nobres e altivas, o olhar direto e indômito.

Atrás, uma legenda em hieroglifos clássicos. Num sussurro sepulcral Royan traduziu:

Grande Leão do Egito. O Melhor entre Cem Mil

Portador do Ouro da Bravura Companheiro Único do Faraó Guerreiro de Todos os Deuses Que viva para sempre!

A mão de Royan tremeu no braço de Nicholas e sua voz ficou embargada pela emoção. Ela gemeu baixinho e estremeceu enquanto tentava retomar o controle.

— Conheço o artista. Passei cinco anos estudando seu trabalho. Tenho certeza absoluta de que há quase quatro mil anos Taita, o escravo, decorou estas paredes e desenhou a tumba.

Ela apontou o nome do homem morto esculpido na pedra sobre a prateleira.

— Não é o túmulo de um santo cristão. Séculos atrás, um velho padre deve ter tropeçado nisto e, na sua ignorância, usurpou-o para sua própria religião. — Ela suspirou. — Veja ali! É o selo de Tanus, o Senhor Harrab, comandante de todos os exércitos do Egito, amante da Rainha Lostris e pai natural do Príncipe Memnon, que se tornou o Faraó Tamose.

Ficaram ambos em silêncio, maravilhados pela descoberta. Nicholas foi o primeiro a falar.

— É tudo verdade, então. Os segredos do sétimo papiro estão aqui, se conseguirmos encontrar a chave deles.

— Sim — ela disse baixinho. — A chave. O testamento em pedra de Taita. — Ela virou-se para a pedra do tabot e foi se aproximando devagar, temerosamente.

— Não estou agüentando de vontade de olhar, Nicky, mas morro de medo de que não seja o que esperamos. Faça-o você!

Ele dirigiu-se ao pedestal e, com um floreio de mágico, puxou o tecido adamascado que o revestia. Embaixo havia um bloco de granito cor-de-rosa. Tinha cerca de um 1,80 metro de altura e 30 centímetros quadrados na base, afunilando-se para metade dessa largura até o topo plano. O granito fora polido e depois gravado.

Royan deu um passo e tocou a pedra, correndo os dedos pelos hieroglifos como um cego lendo Braille.

— É a mensagem de Taita para nós — ela sussurrou, destacando o símbolo do falcão de asa quebrada do resto da inscrição e traçando seu contorno com o dedo longo, um pouco trêmulo. — Escrito há quatro mil anos e esperando todo esse tempo para que nós o leiamos e decifremos. Veja como ele o assinou. — Devagar, ela rodeou o pilar de granito, estudando cada um dos lados, sorrindo e balançando a cabeça, franzindo a testa e voltando a sorrir, como se lesse uma carta de amor.

— Leia para mim — ele pediu. — É muito complicado... eu entendo os caracteres, mas não compreendo o significado. Explique-me.

— E puro Taita. — Ela ria do próprio espanto e encantamento, que logo deram lugar à excitação. — Esse é seu típico jeito obscuro e caprichoso. — Ela parecia falar de um velho amigo que, apesar de adorável, sabia ser irritante. — Está todo em versos e, provavelmente, em algum código esotérico. — Royan escolheu uma linha de hieroglifos e seguiua com o dedo, traduzindo em voz alta: — "O abutre voa aos mais altos píncaros para saudar o sol. O chacal uiva e ergue a cauda. O rio corre para a terra. Acautela-te, violador de lugares sagrados, que a ira de todos os deuses se voltará contra ti!"

— Não tem sentido. É uma bobagem — ele protestou.

— Ah, tem sentido sim. Taita sempre tem sentido, se a gente conseguir acompanhar sua mente oblíqua. — Ela o olhou diretamente. — Não seja tão mal-humorado, Nicky. Não vai querer ler Taita como um editorial do Times. Ele nos deu um enigma que pode levar semanas ou meses para ser decifrado.

— Bem, de uma coisa tenho certeza: não vamos poder passar semanas ou meses aqui no maqdas para resolver essa charada. Vamos trabalhar.

— Primeiro as fotos. — Ela tornou-se direta e objetiva. — Depois poderemos decalcar as inscrições.

Nicholas pegou a câmera na bolsa.

— Antes vou tirar dois rolos de filme colorido, depois usarei a Polaroid. Teremos alguma coisa para trabalhar até que as fotos sejam reveladas.

Royan saiu do caminho para que ele rodeasse o pilar de joelhos, mantendo o ângulo certo para não distorcer a perspectiva. Tirou várias fotos de cada lado, com diferentes velocidades e exposições.

— Não gaste todos os filmes — ela avisou. — Precisaremos de algumas fotos do túmulo.

Obediente, ele foi para o portão gradeado e examinou a fechadura.

— É um pouco mais complicada que a das portas externas. Se eu tentar abrir, posso estragar. Não vale a pena arriscar que nos descubram.

— Está bem — ela concordou. — Fotografe através da grade do portão.

Nicholas fotografou o melhor que pôde, estendendo a câmera pelas aberturas o máximo que seus braços permitiam e calculando de longe o foco.

— Isso é o bastante — ele disse por fim. — Agora, as Polaroids. — Trocou de câmera e repetiu todo o processo, mas desta vez Royan segurou uma fita métrica contra o pilar para fornecer a escala.

Ele mostrava a ela cada foto para conferir a seqüência. Em uma ou duas vezes em que o flash automático deixou a foto estourada ou muito escura, ou por outro motivo qualquer Royan não havia ficado satisfeita a foto foi refeita.

Após quase duas horas de trabalho eles já tinham uma coleção de Polaroids; Nicholas guardou as câmeras na sacola e pegou o papel de desenho. Os dois trabalharam juntos, esticando o papel sobre o pilar e fixando-o no lugar com fita adesiva. Então ele começou de um lado e ela do outro. Cada um com um lápis preto, riscavam o papel por cima da forma e dos contornos exatos dos relevos.

— Aprendi como isto é importante quando se trata de Taita. Se a gente não puder trabalharam o original, é melhor ter uma cópia exata. Às vezes um entalhe mínimo no desenho pode alterar um fundo oculto. Você leu em O Último Deus do Nilo que ele se considera o charadista e trocadilhista perfeito, e o maior expoente do jogo de bao que jamais existiu. Bem, nesse aspecto o livro é acurado. Esteja ele onde estiver agora, sabe que o jogo começou e que está sendo revelado a cada movimento que fizermos. Posso imaginá-lo rindo e esfregando as mãos de satisfação.

— Quanta imaginação, mocinha! — Nicholas voltou a trabalhar. — Mas sei o que quer dizer.

A tarefa de transferir os contornos dos desenhos para as folhas de papel era monótona e cansativa; as horas se passaram enquanto eles trabalhavam de joelhos ou debruçados sobre o pilar de granito. Por fim, Nicholas endireitou-se e esfregou as costas doloridas.

— Está feito. Terminamos. Royan ergueu-se ao lado dele.

— Que horas são? — Ele olhou o relógio de pulso.

— Quatro da madrugada. É melhor arrumarmos isto aqui. Não podemos deixar nenhum sinal de nossa visita.

— Uma última coisa — disse Royan, rasgando um pedaço de papel e levando-o para o altar onde estava a coroa do abade. Rapidamente, fixou o papel sobre o selo de cerâmica no centro da coroa e decalcou o desenho do falcão de asa quebrada.

— Só para garantir — ela explicou, voltando para junto de Nicholas e ajudando-o a guardar os papéis dentro da bolsa. Em seguida, recolheram os retalhos de fita adesiva e as embalagens de filmes que haviam deixado pelo local.

Antes de cobrir novamente a peça de granito com o tecido adamascado, Royan acariciou as inscrições sobre a pedra, como se nunca mais fosse vê-las. Então fez sinal para Nicholas.

Ele estendeu o tecido sobre o pilar e os dois ajustaram as pontas como as haviam encontrado. Do umbral da porta, deram uma última olhada para o maqdas e saíram.

— Vamos! — Ela se espremeu na pequena passagem e Nicholas a seguiu para dentro do qiddist. Em poucos minutos ele recolocou no lugar a lingüeta da fechadura.

— Como vamos sair pela porta da frente? — Royan perguntou.

— Acho que não será necessário. Os padres certamente possuem outra entrada que dá diretamente para seus claustros. Raramente os vemos entrar pela porta principal. — Ele parou no meio da nave e olhou ao redor atentamente. — Os claustros devem ficar deste lado... — e exclamou com satisfação: — Ah! Veja como o piso ali está mais gasto. É por ali que eles passam, há muito tempo. — Nicholas apontou para uma área de pedra lisa e desgastada junto à parede. — E veja as marcas de dedos engordurados naquela tapeçaria. — Ele correu para a tapeçaria e afastou um dos lados. — Acertei! — Atrás dela havia uma porta estreita. — Siga-me.

Entraram num corredor escuro escavado na pedra. Nicholas apontava a lanterna para a frente, mas cobria o facho de luz com a mão para iluminar apenas o necessário.

— Por aqui.

O corredor dobrou num ângulo reto e logo à frente surgiu uma fraca luminosidade. Nicholas desligou a lanterna e levou Royan pela mão.

Sentiram cheiro de gente e de comida quando cruzaram o arco de uma cela. Nicholas acendeu a lanterna. Estava deserta e vazia. Havia uma cruz de madeira na parede sobre um catre e nenhum outro móvel. Passaram por dezenas de outros quartos quase idênticos.

Na virada seguinte do corredor, Nicholas parou e sentiu um leve sopro de ar puro no rosto e na língua.

— Por aqui — sussurrou.

Andavam depressa, mas subitamente Royan segurou o ombro dele e obrigou-o a parar.

— O que... — ela começou, mas Nicholas apertou sua mão para silenciá-la. Ele também ouvia uma voz humana ecoando pelo labirinto de corredores.

Logo em seguida, um choro estranho, como que de agonia, com soluços e gemidos. Eles avançaram com cuidado, para sair dali antes que fossem apanhados, mas o som aumentava à medida que prosseguiam.

— Está bem na frente — Nicholas avisou-a em voz baixa. — Vamos ter de passar por ele.

Viram então uma luzinha amarelada saindo de um dos claustros. Logo depois, um gemido feminino ecoou pelo corredor e os fez parar onde estavam.

— É voz de mulher. O que está havendo? — Royan cochichou, mas ele pediu que fizesse silêncio. Tinham de passar pela cela iluminada.

Nicholas avançou nessa direção com as costas coladas à parede, e Royan o seguiu, segurando seu braço.

Quando olharam para dentro da cela, a mulher gritou outra vez, mas agora seu grito se misturava a sons masculinos. Era um dueto sem palavras, torturado pela agonia da paixão.

Viram então um casal despido, sobre uma cama. A mulher estava deitada por baixo, prendendo o quadril do homem entre seus joelhos semi-erguidos. Ela abraçava suas costas, cujos músculos saltavam sob a pele suada. Ele a penetrava selvagemente, contraindo e abaixando as nádegas, arremetendo-se para a frente como um grande aríete negro.

Ela girava a cabeça de um lado para outro, e ao mesmo tempo emitia sons incoerentes. Quando parecia não suportar mais o peso, ele empinou o tronco como uma cobra fulgurante, as ancas ainda coladas às dela, as costas arqueadas para trás como um arco de guerra, e entrou numa série de espasmos. Os nervos de suas pernas se esticaram e os músculos das costas vibravam e saltavam para fora como criaturas independentes.

A mulher abriu os olhos e olhou diretamente para Nicholas e Royan, que estavam transfixados na porta, mas estava cega de paixão. Tinha um olhar esgazeado e ao mesmo tempo chorava para o homem em cima dela.

Nicholas e Royan conseguiram passar pelo claustro sem ser vistos e saíram para o terraço deserto. No alto da escada, aspiraram o ar fresco da madrugada, perfumado pelas águas do Nilo.

— Tessay o escolheu — Royan disse baixinho.

— Pelo menos por esta noite — concordou Nicholas.

— Não — ela protestou. — Eu vi a expressão dela, Nicky. Agora pertence a Mek Nimmur.

aurora coloria os cumes dentados do escarpamento com tonalidades de rosa e vermelho quando eles entraram no acampamento e separaram-se diante da cabana de Royan.

— Estou arrebentada — ela disse a Nicholas. — A emoção acabou comigo. Não me verá até a hora do almoço.

— Bem pensado! Durma quanto quiser. Quero que esteja cintilante e perceptiva quando começarmos a mexer nesse material todo.

Faltava muito ainda para a hora do almoço, contudo, quando Nicholas foi arrancado de um sono profundo pelo vozeirão intromissor de Boris em sua cabana.

— Inglês, acorde! Preciso falar com você. Acorde, homem, acorde! Nicholas virou-se na cama e tirou um braço para fora do lençol

para olhar o relógio.

— Que diabo, Brusilov! O que é que você quer?

— Minha mulher! Viu minha mulher?

— O que é que sua mulher tem a ver comigo?

— Ela se foi! Não a vejo desde ontem à noite.

— Da maneira como você a trata, isso não é nenhuma surpresa. Agora saia daqui e me deixe dormir.

— A cadela fugiu com aquele negro bastardo, o Mek Nimmur. Sei tudo sobre eles. Não tente protegê-la, inglês. Sei tudo o que está acontecendo aqui. Você está querendo encobri-la, admita!

— Saia daqui, Boris. Não queira me envolver em sua sórdida vida privada.

— Vi você e aquele shufta bastardo conversando na cabana, na outra noite. Não tente negar, inglês. Você também está metido nisso.

Nicholas ergueu o mosquiteiro e saltou da cama.

— Modere sua linguagem quando fala comigo, seu grande imbecil. Boris recuou para a porta.

— Sei que ela fugiu com ele. Procurei por eles a noite toda lá no rio. Eles se foram, com a maioria dos homens deles.

— Melhor para Tessay. Ela demonstrou que sabe escolher.

— Está achando que vou deixar a cadela ir embora assim? Pois está errado, muito errado. Vou atrás deles e matar os dois. Sei para que lado foram. Você pensa que sou bobo? Sei tudo sobre Mek Nimmur. Ele é o chefe do serviço secreto... — Boris parou ao perceber o que disse. — Vou atirar na barriga dele, e ela vai assistir à sua morte.

— Se for atrás de Mek Nimmur, meu palpite é que não voltará mais.

— Não me conhece, inglês. Você me derrubou na outra noite quando eu tinha uma garrafa de vodca na barriga, por isso pensa que é fácil, não é? Bem, o Mek Nimmur vai ver como sou bonzinho.

Boris saiu da cabana. Nicholas vestiu uma camisa em cima do short e foi atrás.

— Deixe-os ir, Boris — Nicholas aconselhou-o num tom mais razoável. — Mek é mais forte e tem homens muito bem treinados. Você já tem idade suficiente para saber que nunca se toma uma mulher pela força. Deixe-a ir!

— Não quero ficar com ela. Quero matá-la. O safári terminou, inglês. — Ele jogou aos pés de Nicholas um par de chaves presas a um chaveiro de couro. — São do Land Cruiser. Volte sozinho daqui. Mandarei quatro dos meus melhores homens para cuidar de você e levá-lo pela mão. Quando chegar a Adis, deixe as chaves do caminhão com Aly. Sei onde encontrá-lo. Mandarei o dinheiro que lhe devo pelo cancelamento. Não se preocupe. Sou um homem de princípios.

— Nunca duvidei disso. — Nicholas sorriu. — Adeus, companheiro. Desejo-lhe sorte. Vai precisar de muita quando encontrar Mek Nimmur.

Boris estava várias horas atrás de seu objetivo, e saiu do acampamento a passos rápidos pela trilha que dava no caminho principal para o oeste, na direção da fronteira sudanesa. Marchava como um escoteiro em ritmo constante e decidido.

— Parece que ele continua em forma, apesar da vodca — comentou Nicholas, impressionado. — Mas será que vai conseguir manter esse passo?

Ele voltou para a cabana para dormir mais um pouco, mas ao passar pela de Royan ela enfiou a cabeça pela porta.

— Que gritaria foi essa? Você e Boris tiveram outra discussão?

— Tessay armou uma confusão. Boris adivinhou que ela se foi com Mek e saiu atrás deles.

— Oh, Nicky, não podemos avisá-los?

— Não há nenhuma chance. Mas, se conheço bem Mek, ele sabe que Boris iria segui-los. Na verdade, pensando melhor, ele deve estar mesmo esperando por essa oportunidade. Não, Mek não precisa de nós. Volte para a cama!

— Não vou conseguir dormir. Estou excitada demais. Estive olhando as Polaroids que tiramos ontem à noite. Taita nos deu um prato cheio. Venha dar uma olhada nisso.

— Posso dormir mais uma hora? — implorou Nicholas.

— Venha imediatamente — ela disse rindo.

As Polaroids e os papéis com decalques estavam espalhados sobre uma mesa baixa; Royan convidou-o a sentar-se ao seu lado.

— Enquanto você roncava, fiz alguns progressos. — Ela dispôs quatro Polaroids lado a lado e segurou a lente de aumento sobre elas. Era um modelo profissional de lente, que revelava todos os detalhes da fotografia. — Taita colocou em cada canto do monólito o nome de uma estação do ano: primavera, verão, outono e inverno. O que acha que ele pretendia?

— Numerar as páginas?

— Exatamente o que pensei — ela concordou. — Os egípcios consideravam a primavera o início da nova vida. Ele está nos dizendo em que ordem ler os painéis. Este é a primavera — disse ela escolhendo uma das fotos. — Começa com as quatro citações-padrão do Livro dos mortos. — E citou em voz alta: — "Sou a primeira brisa que sopra suavemente no negro oceano da eternidade. Sou o primeiro raio de sol. O primeiro brilho de luz. Uma pena branca levada pela brisa da aurora. Sou Rá. Sou o início de todas as coisas. Viverei para sempre. Jamais perecerei". — Royan olhou para Nicholas. — Pelo que vejo, não diferem substancialmente do original. Poderemos retomar isso mais tarde.

— Vamos seguir sua intuição — ele sugeriu. — Leia a próxima seção.

Royan segurou a lente sobre a foto.

— Não vou olhar para você enquanto estiver lendo. Taita consegue ser mundano como Rabelais quando tem vontade. Enfim, vamos lá. "A filha da deusa anseia por sua feminilidade. Ruge como uma leoa e corre ao seu encontro. Salta montanhas, e suas presas são brancas. Ela é a meretriz do mundo. De sua vagina jorram fortes torrentes. Sua vagina engoliu um exército de homens. Seu sexo tragou pedreiros e talhadores de pedra. Sua vagina é um polvo que engoliu até um rei."

— Olhe só! — Nicholas zombou. — Bastante suculento, não acha? — Ele inclinou-se para olhar para Royan, que baixara o rosto. — Puxa, mocinha, suas faces estão coradas. Não ficou envergonhada, ficou?

— Este seu sotaque escocês não é nada convincente — ela disse friamente, ainda sem olhar para ele. — Quando terminar de se divertir à minha custa, pode me dizer o que acha do que acabei de ler?

— Além do óbvio, não tenho a menor idéia.

— Quero lhe mostrar uma coisa. — Ela levantou-se e guardou as fotos e os rolos de papel dentro da sacola de lona. — Vai ter de vestir botas. Vou levá-lo para um pequeno passeio.

Uma hora depois, estavam no meio da ponte suspensa, que balançava suavemente sobre as águas do Rio Dandera.

— Hapi é a deusa do Nilo. E este rio não é a filha dela, que anseia por encontrá-la, salta pelas montanhas, ruge como uma leoa, e suas águas não são espumas brancas como presas? — ela perguntou a Nicholas.

Os dois ficaram olhando em silêncio o arco de pedra rosada pelo qual o rio jorrava, e então Nicholas riu lascivamente.

— Acho que sei o que você vai dizer agora. Foi a primeira coisa que pensei quando olhei para aquele rochedo. Você disse que parecia a boca de uma gárgula, mas eu tive outra imagem.

— Só posso dizer que você deve ter amigas extraordinárias — ela disse, e cobriu a boca. — Desculpe, não falei a sério. Estou sendo tão desagradável quanto você e Taita.

— Foi lá que os operários foram engolidos! — Ele começou a se animar. — Os pedreiros e os quebradores de pedra.

— O Faraó Mamose era um deus. O rio também engoliu um deus... em seu arco de pedra. — Ela estava igualmente excitada. — Tenho de confessar que não teria feito essa associação se você não tivesse explorado o interior do abismo e encontrado aqueles nichos no paredão. — Ela sacudiu o braço dele. — Nicky, vamos ter de entrar lá outra vez. Vamos ver mais de perto aquele baixo-relevo que você encontrou na pedra.

— Isso vai exigir alguma preparação. Vou precisar emendar as cordas, fazer um sistema de roldanas para puxá-las e orientar Aly e os outros para que meu fiasco não se repita. Não estaremos prontos para fazer a tentativa até amanhã bem cedo.

— Então comece a se preparar. Tenho muito para me manter ocupada na tradução do monólito. — Royan parou de falar e olhou para o céu. — Ouça! — sussurrou.

Nicholas ergueu a cabeça e, acima do ronco do rio, ouviu um barulho de hélices.

— Droga! — desabafou. — Pensei que nos havíamos livrado da presença da Pégaso. Vamos! — Ele lhe segurou o braço e puxou-a pela ponte. Quando chegaram à margem, saltou para a praia e Royan o seguiu. Os dois esconderam-se embaixo da ponte.

Sentaram-se na areia e ficaram ouvindo o helicóptero se aproximar rapidamente, depois circundar as montanhas além dos rochedos rosados. Dessa vez o piloto não os viu, pois se afastou para patrulhar de um lado e de outro a linha do abismo. De repente o ritmo do motor se alterou drasticamente.

— Parece que vai aterrissar no alto das montanhas — Nicholas disse, engatinhando para fora do esconderijo. — Eu me sentiria muito mais à vontade sem tê-lo por aqui.

— Acho que não precisamos nos preocupar muito com isso — Royan discordou. — Mesmo que estejam ligados ao assassino de Duraid, já estamos muito à frente deles. Pelo jeito, nem imaginam a importância do mosteiro e do monólito.

— Tomara que esteja certa. Vamos voltar ao acampamento. Não podemos deixar que nos vejam na proximidade dos penhascos. Vão achar muita coincidência nos ver por aqui todas as vezes que passarem.

nquanto Royan ficava em sua cabana estudando as fotografias e os decalques, Nicholas trabalhava com os mateiros e os curtidores de pele. Emendaram a ponta de um rolo de corda de náilon a um segundo rolo, obtendo assim 150 metros de corda. Em seguida cortaram um pedaço da cobertura de lona da cabana de refeição e juntaram as pontas para criar uma espécie de funda. Nicholas fez uma proteção na frente, amarrando a corda às duas pontas dianteiras da lona.

Como não havia guindaste, Nicholas construiu um cavalete rústico que seria armado na borda do precipício para manter a corda afastada da pedra. A corda correria por um sulco aberto a ferro quente na ponta da viga central. O sulco foi lubrificado com banha de cozinha.

Já estavam no meio da tarde quando terminaram os preparativos. Nicholas deixou Royan no acampamento e levou seus homens, carregados com as cordas e as peças do cavalete, ao mesmo ponto em que descera na ravina para retirar a carcaça do dik-dik. De lá desceram o rio, beirando o precipício. Não era fácil atravessar os espinheiros à beira do penhasco, e em muitos lugares foi preciso abrir caminho com machados.

O barulho das cachoeiras os guiava. À medida que desciam o rio, o som tornava-se mais alto, até as pedras tremerem sob os pés com as águas trovejantes. Finalmente, inclinando-se sobre o precipício, Nicholas viu o brilho do vapor d'água.

— É aqui — ele murmurou satisfeito, e explicou em árabe a Aly o que queria fazer.

Para encontrar a posição exata do cavalete, Nicholas sentou-se na funda de lona e pediu que o baixassem 6 metros pela parede do rochedo, apenas até o início da saliência abaulada na pedra. Até esse ponto ele pôde manter a corda afastada das asperezas e obteve uma boa visão de sua superfície.

Pendurado sobre a cachoeira e o leito rochoso do rio, 50 metros abaixo, finalmente viu as duas fileiras de nichos na face do rochedo. Entretanto, a escultura em baixo-relevo permanecia oculta pela pedra abaulada. Ele fez um sinal para Aly e foi puxado para cima.

— Temos de armar o cavalete um pouco mais abaixo — disse, dirigindo os homens, que iam cortando o denso matagal à beira do abismo. De repente Nicholas exclamou: — Com mil demônios! — e ajoelhou-se para examinar uma pedra oculta pelos espinhos. — Há mais escavações aqui.

Expostas aos elementos, ao contrário das outras, protegidas pela pedra, estas tinham sofrido forte erosão. Permaneciam vagos traços na rocha, mas Nicholas teve certeza de que as reentrâncias eram pontos de apoio para a antiga plataforma. O cavalete deles tinha sido instalado naquela área plana, com a viga maior estendida sobre o precipício. Eles armaram o cavalete e o fixaram com um rústico sistema em balanço de cordas e vigas mais leves.

Quando terminaram a instalação, Nicholas foi engatinhando até a beira do precipício para testar a estrutura e passar a corda por dentro do sulco. Tudo parecia sólido e firme, mas foi com alívio que ele engatinhou de volta à terra firme.

Levantou-se e olhou por cima dos espinheiros, onde o sol desaparecia no horizonte por trás de uma névoa avermelhada.

— Por hoje basta — decidiu. — O resto pode ficar para amanhã.

No dia seguinte Nicholas e Royan tomaram café ao lado da fogueira quando ainda estava escuro. Aly e seus homens, agachados em volta de outra fogueira, conversavam e tossiam depois do primeiro cigarro do dia. O projeto os deixava intrigados. Não viam sentido em descer pela segunda vez àquele abismo, mas o entusiasmo dos dois ferengi era contagiante.

Quando houve luz suficiente para enxergar o caminho, Nicholas conduziu-os novamente às colinas. O sol já se erguia no lado ocidental do escarpamento quando os homens, conversando alegremente num dialeto próprio, atravessaram os espinheiros e alcançaram a borda do precipício. Nicholas já os instruíra no dia anterior, e à noite planejara com Royan o que fariam; portanto, ambos sabiam qual era seu papel, e perderam pouco tempo preparando-se para a descida.

Nicholas estava só de short e tênis, mas desta vez usava uma velha camiseta de rugby dos Barbarians para manter-se aquecido. Enquanto enfiava a camiseta pela cabeça mostrou de longe a Royan a plataforma que havia sido escavada na rocha sólida.

Ela examinou com atenção.

— É muito difícil ter certeza, mas acho que você tem razão. Provavelmente foi feita pelo homem.

— Quando você descer não terá mais dúvidas. A pedra sofreu pouca erosão abaixo da saliência, e os nichos estão perfeitamente preservados... isto é, os que ficam acima da marca da cheia — ele disse, sentando-se na funda e balançando-se sobre o precipício. Pendurado na viga do cavalete, ele fez sinal para que Aly e seus homens o descessem à garganta. A corda deslizava suavemente pelo sulco lubrificado.

Nicholas notou que seus cálculos estavam corretos, pois desceu paralelamente às duas fileiras de nichos. Quando ficou no mesmo nível do enigmático círculo na face do rochedo, estava a 5 metros de distância, e um líquen multicolorido manchara a pedra, obscurecendo os detalhes. Nicholas não podia garantir que não fosse uma saliência natural. Passou por ela e continuou descendo, enquanto Aly soltava a corda.

Quando alcançou a superfície da água, soltou-se da funda e mergulhou. A água estava fria. Ele movimentou as pernas para manter-se na superfície, meio sufocado, até o corpo se aclimatar. Então deu três puxões na corda. A funda de lona foi erguida ao mesmo tempo que ele nadava em direção ao poço e segurava-se em um dos nichos. Já havia esquecido como era escuro, frio e solitário no fundo do abismo.

Depois de algum tempo virou a cabeça para o alto e viu Royan aparecer por cima da saliência, pendurada na funda de lona, girando lentamente na ponta da corda. Ela olhou para baixo e acenou.

"Nota dez para essa garota", ele sorriu. "Não tem medo de nada." Queria gritar para encorajá-la, mas sabia que o barulho da cachoeira encobriria qualquer outro som. Contentou-se, então, em devolver o aceno.

No meio da descida, ele a viu dar três puxões na corda. Aly estava preparado para isso e parou imediatamente. Ela curvou-se para trás, segurando-se só com a mão esquerda para pegar o binóculo de Nicholas que levava pendurado ao pescoço. Para segurar o binóculo diante dos olhos e tentar, com a mesma mão, manipular o foco, ela se retorceu num ângulo forçado. Nicholas viu que estava com dificuldade para focar a marca redonda na parede e mantê-la no campo de visão das lentes com a funda balançando e girando ao mesmo tempo.

Para ele isso já durava muito, mas, provavelmente, foram só alguns minutos. Então Royan largou o binóculo, virou-se para trás e gritou alguma coisa que, apesar do barulho, chegou até Nicholas claramente. Muito excitada, ela balançava as pernas como uma criança e acenava com a mão, enquanto Aly baixava a corda. Royan não parava de gritar, e seu rosto parecia iluminar a escura garganta.

— Não consigo escutá-la — ele gritou de volta, mas o barulho das águas era maior que todo o esforço que faziam para se comunicar.

Royan remexia-se dentro da funda, gritando e gesticulando, e soltou a corda de proteção para curvar-se mais e enxergar Nicholas lá embaixo. Ela estava a 6 metros da superfície da água e quase perdeu o equilíbrio; por pouco não tombou para trás.

— Cuidado! — ele gritou. — Esse binóculo é um Zeiss. Duas mil pratas na free-shop de Zurique.

Desta vez Nicholas foi ouvido, porque Royan mostrou-lhe a língua como uma garotinha levada. Mas depois disso seus movimentos tornaram-se mais cuidadosos. Quando os pés quase tocavam a água, ela deu um sinal para a corda parar e ficou pendurada a poucos metros de Nicholas.

— O que você achou? — ele gritou.

— Você estava certo, homem maravilhoso!

— É feito à mão? É uma inscrição? Conseguiu lê-la?

— Sim, sim e sim a todas as perguntas. — Ela ria triunfante e provocativa.

— Não seja irritante. Diga logo.

— O ego de Taita deu-se bem mais uma vez. Ele não resistiria a assinar seu trabalho. — Ela ria. — Colocou seu autógrafo: o falcão de asa quebrada!

— Maravilhoso! Diabolicamente maravilhoso! — Nicholas exultava.

— É a prova de que Taita esteve aqui, Nicky. Para esculpir aquele cartucho ele deve ter usado um andaime. Nossa primeira hipótese estava certa. Esse nicho em que você está se segurando é um degrau de uma escada que vem até aqui.

— Sim, mas por quê, Royan? — ele gritou de volta. — Por que Taita desceria aqui? Não há sinais de escavações ou de construções.

Os dois olharam ao redor da caverna escura. Afora as fileiras de nichos, só havia o paredão liso e compacto que entrava dentro do rio.

— E atrás da cachoeira? — ela gritou. — Haveria algum corte na pedra? Você consegue ir até lá?

Ele afastou-se do rochedo e nadou em direção à trovejante queda d'água. Rasgando a superfície turbulenta com vigorosas braçadas e batendo as pernas com força, Nicholas encontrou um degrau de pedra lisa, coberta de algas, ao lado da cachoeira.

A água batia em sua cabeça, mas ele começou a contornar a pedra para o interior da cachoeira. No meio do caminho a torrente o engoliu. Arrancando-o de seu apoio precário, jogou-o de volta à bacia e o arrastou de um lado para outro. Nicholas emergiu no meio do poço e nadou com toda a sua força para livrar-se da correnteza e alcançar a água mais calma sob o paredão. Agarrou-se ao nicho de pedra, resfolegante e aos urros.

— Nada? — Royan perguntou.

Ele fez que não com a cabeça; só conseguiu dizer alguma coisa quando se recuperou um pouco.

— Nada. É rocha sólida atrás da cachoeira. — Ele tomou fôlego e perguntou sarcasticamente: — Mais alguma idéia, madame?

Ela ficou em silêncio e ele se alegrou pela pausa. Mas logo Royan tornou a chamá-lo:

— Nicky, até aonde chegam esses nichos?

— Você está vendo — ele respondeu —, até este em que estou me segurando.

— Será que não há outros sob a superfície?

— Que tolice, mulher. — Aquilo já começava a irritá-lo. — Quem poderia cavá-los embaixo da água?

— Verifique! — ela gritou de volta, igualmente irritada. Ele balançou a cabeça desanimado e inspirou profundamente. Ainda se segurando, esticou ao máximo os membros e o corpo e afundou a cabeça na água escura, com os pés para o fundo.

De repente, saltou resfolegante para fora, com os olhos arregalados.

— Por Júpiter! — gritou. — Você tem razão! Há outros nichos para baixo.

— Odeio dizer que já sabia. — Mesmo à distância, ele notou o ar presunçoso de Royan.

— Quem é você, alguma bruxa? — Ele ergueu os olhos em desespero. — Sei o que vai me pedir agora.

— Até aonde vão os nichos? — ela perguntou em tom sedutor. — Vai mergulhar por mim, meu querido Nicky?

— Eu sabia. Vou me queixar às autoridades. Isto é trabalho escravo! De agora em diante declaro greve.

— Por favor, Nicky!

Ele ficou na água, bombeando ar para os pulmões, hiperventilando-se, enchendo a corrente sangüínea de oxigênio para aumentar ao máximo sua resistência sob a água. Por fim soltou todo o ar dos pulmões, expirando com força uma última vez até senti-los doer, então voltou a inspirar para enchê-los completamente de ar puro. Com o peito expandido, ele mergulhou de cabeça, deixando que seu peso o levasse para baixo. Os nichos estavam a uma distância de 1,80 metro um do outro — uma braça náutica. Usando-os como referência, Nicholas era capaz de calcular precisamente seu avanço.

Afundando mais, encontrou um segundo nicho, depois outro. Quatro fileiras de nichos, 7 metros abaixo da superfície. Seus ouvidos estalavam e chiavam sob a pressão, na medida em que o ar saía de suas trompas de Eustáquio.

Ele continuou afundando e encontrou a quinta fileira de nichos. Agora o ar em seus pulmões estava reduzido à metade do volume inicial, e à medida que a capacidade de flutuação diminuía a descida tornava-se mais rápida e mais fácil.

Mantinha os olhos abertos na água turva e escura, mas só conseguia ver a superfície da pedra que ficava diretamente diante de seu rosto. Viu surgir o sexto conjunto de nichos e segurou-se neles, mas hesitou.

"Já desci 10 metros e não há sinal do fundo", pensou. Tempos atrás, quando ainda entrava em competições com a equipe do exército, Nicholas conseguia mergulhar 18 metros e ficar minuto inteiro sob a água. Mas então era mais jovem e estava no auge de sua capacidade física.

"Só mais um nicho e volto para cima", ele prometeu a si mesmo. Seu peito pulsava e já ardia com a falta de ar, mas ele impulsionou o corpo para baixo e afundou mais. Viu a vaga forma de um sétimo nicho aparecer na escuridão.

"Chegam até o fundo", concluiu, admirado. "Como é que Taita conseguiu fazer isso? Eles não conheciam equipamento de mergulho." Agarrado ao nicho, Nicholas ficou ali por um momento, indeciso se devia arriscar-se a descer mais. Sabia que estava quase em seu limite. Precisava respirar, pois já sentia no peito convulsões involuntárias.

Só mais um! Sua cabeça girava, e ele foi tomado por uma estranha euforia. Reconhecendo os sinais de perigo, olhou para seu corpo e viu que a pele se enrugava e dobrava sob a pressão da água. Eram mais de dois pesos atmosféricos empurrando-o para baixo e esmagando seu peito. O cérebro já faminto de oxigênio o fazia sentir-se afoito e invulnerável.

"Vá até o fundo, amigo", pensou como que embriagado, e continuou descendo.

"Número oito, e o médico está de olho." Ele sentiu o oitavo nicho com os dedos e já não pensava coisa com coisa. "Número oito, vou ganhar um biscoito."

Nicholas virou-se para subir e seus pés tocaram o fundo.

"Quinze metros de profundidade", calculou, apesar do estado de embriaguez. "Demorei muito. Preciso voltar. Preciso de ar."

Ele abraçou o peito para impelir-se para cima quando alguma coisa agarrou suas pernas e puxou-o com força para a pedra.

"Um polvo!", ele pensou, lembrando-se da frase de Taita: Sua vagina é um polvo que engoliu um rei.

Queria chutar, mas suas pernas pareciam presas nos braços de um monstro; um abraço gelado, traiçoeiro, que o mantinha cativo.

— O polvo de Taita! Meu Deus! — ele literalmente falava. — Estou perdido.

Nicholas estava prensado contra a pedra, esmagado, indefeso. O terror o paralisava, e senti-lo em suas veias disparava alucinações no cérebro já carente de oxigênio. Ele percebeu o que acontecia.

"Não é polvo. É a pressão da água." Ele experimentara esse mesmo fenômeno uma vez, durante- um exercício de treinamento no exército, quando mergulhavam perto das turbinas submarinas dos geradores em Loch Arran. Seu parceiro, a quem ele estava amarrado, foi arrastado pela terrível sucção. Ficou preso na boca da turbina com o corpo prensado na grade, e suas costelas rasgaram os músculos do peito e romperam a roupa de neoprene.

Nicholas escapou por pouco da mesma sorte. Por estar alguns centímetros afastado do amigo, ficou fora da violenta sucção da água na boca da turbina. Mesmo assim, quebrou uma perna e foram necessários dois mergulhadores fortes para arrancá-lo da corrente.

Desta vez ele estava no limite de suas forças, e não havia outro mergulhador por perto. Estava sendo sugado para uma estreita fenda na pedra, a boca de um túnel subterrâneo, um veio subaquático que penetrava pelo paredão.

A parte superior do corpo estava livre da maléfica influência da correnteza, mas as pernas estavam inexoravelmente presas nela. Nicholas tinha consciência de que as bordas dessa abertura eram agudamente demarcadas, retas e quadradas, como uma esquadria feita por um pedreiro. Ele estava sendo sugado por cima e em volta desse batente. Com os braços bem abertos sobre a pedra, Nicholas resistia com toda a sua capacidade, mas os dedos escorregavam na superfície lisa e limosa da pedra.

"Este é dos bons", pensou. "É uma armadilha difícil de sair." Seus dedos agarraram-se na pedra e as unhas se partiram. Então, de repente, os dedos se prenderam no nicho anterior ao ralo que o sugava para baixo.

Pelo menos agora tinha onde se apoiar. Agarrado ao nicho com ambas as mãos, ele tentou erguer o corpo. Usou o que lhe restara de forças, e o fazia do fundo da alma, mas suas reservas de ambas as coisas já estavam se esgotando. Ele se esticava a ponto de os músculos dos braços ficarem saltados e os nervos do pescoço retesados como cordas; parecia que algo em sua cabeça ia estourar. Mas conseguiu impedir que o corpo escorregasse traiçoeiramente pelo ralo.

Mais uma, pensou. Só mais uma tentativa. Era só isso o que lhe restava. O ar já havia se esgotado, bem como a coragem e o poder de decisão. Sua mente era um redemoinho e as sombras obnubilavam sua visão.

Em algum lugar no fundo de si mesmo Nicholas encontrou forças para erguer-se, até que na escuridão de sua mente explodiram ondas de luzes coloridas, uma profusão de estrelas e rodas luminosas que o deixaram deslumbrado. Mas ele continuava se debatendo. Sentiu que as pernas começavam a se livrar, que os grilhões de água se soltavam, e subiu mais um pouco com uma força que não sabia que tinha.

Quando conseguiu se livrar e saltar para cima, era tarde demais. Sua mente escurecera totalmente e seus ouvidos trovejavam como a cachoeira no fundo do abismo. Ele estava se afogando. Completamente esgotado. Não sabia mais quem era, nem a que distância estava da superfície, mas sabia que não voltaria mais. Estava liquidado.

Nem sequer percebeu que subira à tona, pois não tinha forças para tirar o rosto da água e respirar. Boiava como um tronco de árvore, de bruços, morrendo. Então sentiu que alguém segurava seus cabelos, e o ar puro tocou seu rosto quando Royan levantou sua cabeça.

— Nicky! — ela gritou. — Respire, Nicky, respire!

Ele abriu a boca, soltando um jato d'água misturado com saliva.

— Você está vivo! Oh, obrigada, Senhor! Ficou lá por tanto tempo! Achei que tivesse morrido.

Enquanto tossia e tentava respirar, Nicholas recobrou a consciência e percebeu vagamente que ela havia descido da funda para ajudá-lo.

— Você ficou lá embaixo muito tempo! Foi terrível! — Royan segurava a cabeça dele para cima e com a outra mão segurava-se ao nicho no paredão. — Você vai ficar bom. Eu o encontrei. Tente ficar calmo. Tudo vai ficar bem.

Era espantoso como a voz dela o encorajava. O ar.tinha um doce sabor, e aos poucos Nicholas sentia as forças retornarem.

— Vamos ter de içá-lo — ela disse. — Mais uns minutos para se recuperar, e vou ajudá-lo a se sentar na funda.

Royan nadou com ele em direção à funda pendurada e fez sinal aos homens para baixá-la até a água. Então segurou as pontas da lona abertas para que Nicholas montasse.

— Você está bem, Nicky? - ela perguntou, ansiosa. — Agüente até chegar lá em cima. — Colocou as mãos dele nas cordas laterais. — Segure-se firme!

— Não posso deixá-la aqui — ele balbuciou roucamente.

— Eu estou bem — Royan tranqüilizou-o. — Peça ao Aly para descer a funda para mim.

Quando estava no meio do caminho, ele olhou para baixo e viu a cabeça de Royan sobre as águas escuras, tão pequenina e indefesa.

— Fibra! — Sua voz estava tão fraca e rouca que ele próprio não a reconhecia. — Você realmente tem fibra... — Mas já estava muito alto para que suas palavras chegassem até ela.

Depois que Royan saiu sem problemas do fundo da garganta, Nicholas ordenou que Aly desmontasse o cavalete e escondesse suas partes no meio dos espinheiros. Do helicóptero seriam claramente visíveis, e ninguém pretendia despertar a curiosidade de Jake Helm.

Como não tinha condições de ajudar, ele deitou-se à sombra de uma árvore espinhosa sob os cuidados de Royan. Era espantoso como aquele quase afogamento o deixara extenuado. A dor de cabeça provocada pela falta de oxigenação era alucinante. O peito também doía terrivelmente a cada respiração: seus esforços deviam ter rompido ou distendido alguma coisa por dentro.

Também o impressionou a paciência de Royan. Em nenhum momento ela tentou questioná-lo sobre suas descobertas no fundo da ravina, e mostrara-se genuinamente mais preocupada com seu bem-estar do que com o progresso das explorações.

Quando ela o ajudou a ficar em pé e começaram a voltar ao acampamento, Nicholas andava como um velho, manco e retesado. Todos os músculos e nervos de seu corpo doíam. Ele sabia que o ácido lático e o nitrogênio que se haviam acumulado em seus tecidos levariam algum tempo para ser reabsorvidos e dispersados.

No acampamento, Royan levou-o para a cabana e, carinhosamente, ajudou-o a entrar sob o mosquiteiro. Nicholas já se sentia muito melhor, mas não quis informá-la disso. Era muito agradável ter uma mulher cuidando dele novamente. Ela lhe trouxe duas aspirinas e uma xícara de chá quente bem açucarado. Mal ele havia começado a beber, ela lhe perguntou se queria mais.

Sentada ao lado da cama, olhava-o beber com um olhar solícito.

— Está melhor? — perguntou.

— A probabilidade de sobrevivência é de dois para um. — Ele sorriu.

— Dá para ver que está melhor. Seu humor voltou. Você me deu um tremendo susto, sabia?

— Faço qualquer coisa para ganhar sua atenção.

— Agora que decidimos que vai sobreviver, conte-me o que aconteceu. Que tipo de problema você teve lá no fundo do poço?

— O que você quer mesmo saber é o que encontrei lá embaixo, certo?

— Isso também — ela admitiu.

Então ele contou o que havia descoberto e como fora apanhado pelo influxo do ralo submerso. Ela ouvia sem interrompê-lo; quando Nicholas terminou de falar, Royan permaneceu em silêncio por mais um tempo, mas com as sobrancelhas franzidas, em absoluta concentração.

Por fim olhou para ele.

— Você está dizendo que Taita conseguiu fazer aqueles nichos de pedra até o fundo do poço, a quinze metros de profundidade? — Nicholas assentiu, e Royan voltou a ficar em silêncio. — Como foi que ele conseguiu? — perguntou então. — O que você acha?

— Há quatro mil anos talvez o nível da água estivesse mais baixo. Pode ter havido um ano de seca, fazendo o rio baixar muito, permitindo que Taita chegasse até lá. Estou indo bem?

— É um bom palpite — ela admitiu. — Mas por que tanto trabalho para construir os andaimes? Por que não usou apenas o leito seco do rio como acesso? Não há dúvida de que, para Taita, a grande atração local fosse o rio. Se estivesse seco, seria como milhares de outros lugares nesta garganta. Não. Tenho um palpite de que o fato de ser tão inacessível é a principal, senão a única razão de ele ter escolhido esse lugar para trabalhar.

— Desconfio que você esteja certa — Nicholas concordou.

— Então, se o rio estava lá, mesmo com um nível tão baixo como agora, como foi que ele conseguiu escavar aqueles nichos sob a água?

— Você venceu. Não tenho a menor idéia — ele admitiu.

— Muito bem, vamos deixar isso de lado por enquanto. Vejamos agora como era esse sugadouro que quase o engoliu. Deu para ver de que tamanho era o buraco?

Ele fez que não com a cabeça.

— Estava muito escuro lá embaixo. Só dava para enxergar um ou dois palmos à frente.

— A fenda ficava bem no meio das duas fileiras de nichos?

— Não, não exatamente — Nicholas tentava se lembrar. — Ficava um pouco mais para um lado. Encostei os pés no fundo do poço e começava a subir quando fiquei preso.

— Então deve ser bem no fundo e um pouco à frente da plataforma. Você disse que o buraco era quadrado?

— Não tenho muita certeza, vi muito pouco. Mas tive essa impressão.

— Então deve ser outra estrutura feita pela mão do homem. Talvez alguma passagem estreita na parede do poço.

— É possível — ele concordou com relutância. — Mas, por outro lado, também pode ser uma falha natural no solo, pela qual o rio está escoando.

Ela levantou-se para sair, e ele perguntou:

— Aonde é que você vai?

— Não demoro. Vou até a cabana pegar minhas anotações e o material do monólito. Volto já.

Royan voltou e ajoelhou-se no chão ao lado da cama, sentando-se de maneira bem feminina sobre os joelhos dobrados. Enquanto espalhava os papéis à sua volta, Nicholas levantou a ponta do mosquiteiro para ver o que ela estava fazendo.

— Ontem, enquanto vocês construíam o cavalete, consegui decifrar a maior parte do que faltava do lado "primavera" do monólito. — Royan virou suas anotações de modo que ele pudesse vê-las.

"Estas são as notas preliminares. Veja que coloquei vários pontos de interrogação — aqui e aqui, por exemplo. É onde não tenho certeza da tradução, ou quando Taita usa um símbolo novo e desconhecido. Terei de rever isso em outro momento."

— Estou acompanhando — ele disse, e Royan continuou:

— Estas partes que sublinhei em verde são citações da versão oficial do Livro dos Mortos. Veja esta aqui: "O universo é desenhado em círculos, os discos do deus-sol, Rá. A vida do homem é um círculo que se inicia no útero e se encerra no túmulo. A roda do carro de guerra esconde em sua sombra a serpente que morre esmagada por ele".

— Sim, reconheço a citação — ele disse.

— Por outro lado, as partes que sublinhei em amarelo são textos originais de Taita, ou pelo menos não são citações do Livro dos Mortos ou de qualquer outra fonte que eu conheça. Quero lhe mostrar este parágrafo em particular.

Ela acompanhou com o dedo indicador enquanto lia em voz alta: "A filha da deusa foi concebida. Foi fecundada por aquele que não possui semente. E gerou sua própria irmã gêmea. O feto repousa eternamente enrolado em seu ventre. Sua irmã gêmea jamais nascerá. Jamais verá a luz de Rá. Viverá para sempre nas trevas. No ventre da irmã o noivo a pede em eterna união. As gêmeas não nascidas tornam-se noivas do deus que já foi homem. Seus destinos estão entrelaçados. Eles viverão para sempre. Jamais perecerão". Royan ergueu os olhos do papel.

— Quando li pela primeira vez, convenci-me de que a filha da deusa é o Rio Dandera, como já havíamos concordado. Também tenho certeza de que o deus que já foi homem é o Faraó Mamose. Ele só foi divinizado ao ascender ao trono do Egito. Antes era um homem.

Nicholas assentiu.

— O que não tem semente é, obviamente, o próprio Taita. Ele faz várias referências ao fato de ser um eunuco. Mas agora — Nicholas sugeriu —, se tiver alguma idéia sobre as misteriosas gêmeas, gostaria de ouvi-la.

— É bem provável que as gêmeas sejam um braço, uma bifurcação do rio, não acha?

— Ah, já sei aonde quer chegar. Está sugerindo que uma delas é o ralo? No fundo da garganta ele jamais vê a luz de Rá. Como Taita, o que não tem semente, reclama sua paternidade, ele está nos dizendo que é o arquiteto.

— Exatamente, e uma das gêmeas se casou com o Faraó Mamose por toda a eternidade. Juntando tudo isso, cheguei à conclusão de que jamais encontraremos o local do túmulo do Faraó Mamose se não explorarmos completamente o ralo que quase o engoliu.

— Tem alguma sugestão de como fazer isso? — ele perguntou, e Royan deu de ombros.

— Não sou engenheira, Nicky. Deixo isso para você. Sei que Taita pensou numa forma de fazê-lo... não só como chegar lá, mas como trabalhar lá embaixo. Se nossa interpretação do monólito estiver correta, ele desenvolveu grandes operações de mineração no fundo do poço. E se pôde fazer isso não há motivo para não conseguirmos.

— Ah! — ele objetou. — Taita era um gênio. Diz isso repetidamente. Eu sou apenas um velho vacilante.

— Apostei todas as minhas fichas em você, Nicky. Não vai me decepcionar, vai?

Não foi necessário procurar muito por pistas. Eles haviam tomado pouquíssimas precauções para ocultar suas pegadas. A maior parte do tempo seguiram a trilha principal até a garganta do Abbay, a oeste, em direção à fronteira sudanesa. Mek Nimmur estava regressando às suas bases.

Boris calculava que houvesse de quinze a vinte homens com ele. Era difícil ter certeza, pois as pegadas se sobrepunham e, certamente, havia batedores à frente, nos flancos e também na retaguarda.

Estavam andando rápido, mas um grupo tão grande não possuía a mesma agilidade de um perseguidor só. Boris tinha certeza de que os alcançaria. Pensou que tivesse saído umas quatro horas depois, mas a julgar pelas marcas recentes não estava a mais de duas atrás deles.

Sem diminuir o ritmo da caminhada, ele viu alguma coisa no caminho. Sempre andando, identificou o que era: um galho partido de kusagga-sagga que crescia ao lado da trilha. Um dos homens devia tê-lo arrancado ao passar. Apesar do calor que fazia no desfiladeiro, o talo quebrado ainda estava úmido. Estavam mais perto do que calculava.

Boris diminuiu um pouco o ritmo, pensando no que faria a seguir. Conhecia muito bem aquela parte do vale. No ano anterior caçara muito na região com um cliente americano que viera atrás da cabeça de um walia, um cabrito montês. Levaram quase um mês atravessando as mesmas valas e ravinas arborizadas para abater um velho e grande carneiro preto, com um belo par de chifres retorcidos, muito maiores que o recorde registrado no Royland Ward.

Boris lembrava-se de que 4 ou 5 quilômetros à frente o Nilo fazia um cotovelo para o sul e mais adiante voltava a se juntar. A trilha principal seguia pelo rio, porque íngremes e altos rochedos guardavam o planalto no centro desse anel. Porém, era possível cortar caminho. Boris já fizera isso quando perseguia o cabrito ferido.

O caçador americano não o matara de forma limpa — a bala atingira o cabrito muito atrás, desviando-se da cavidade do cardiopulmonar e perfurando os intestinos. O cabrito selvagem correu em disparada para o planalto, por um caminho escondido entre os rochedos. Boris e o americano perseguiram o animal pela montanha. Ele se lembrava de como eram perigosos e traiçoeiros esses caminhos, mas quando chegaram do outro lado da montanha haviam cortado uns 15 quilômetros.

Se pudesse encontrar novamente esse caminho, teria possibilidade de passar à frente de Mek Nimmur e esperá-lo adiante. Isso lhe daria uma enorme vantagem. O líder guerrilheiro esperava ser perseguido, e não uma emboscada. Estava protegido pela retaguarda, e era altamente improvável que Boris conseguisse passar pelos soldados sem alertálos. Se o fizesse, estaria cavando a própria sepultura.

Quando a trilha e o fluxo principal do Nilo começaram a virar para o sul, ele ficou olhando o terreno mais alto, procurando algum sinal familiar. Andou mais 800 metros e o encontrou. Havia uma interrupção na linha dos rochedos íngremes, uma reentrância densamente arborizada que atravessava o paredão de basalto.

Boris parou para enxugar o suor do rosto e do pescoço.

— E a vodca — resmungou. — Você está ficando frouxo. — Sua camisa estava molhada como se ele houvesse entrado no rio.

Mudando o rifle de ombro, ele ergueu o binóculo e inspecionou as paredes do sulco arborizado: pareciam íngremes e impossíveis de se escalar, mas encontrou uma pequena árvore que crescia numa estreita rachadura da pedra. Parecia um bonsai, com o tronco e os galhos retorcidos.

O cabrito montês estava numa saliência do rochedo logo acima da árvore quando o americano atirara. Boris ainda se lembrava do animal selvagem sendo impelido para a frente ao ser atingido pela bala, e correndo para o alto do rochedo. Ele examinou mais atentamente e percebeu uma inclinação do rochedo.

"Da, da. É aqui", pensou em sua língua materna. Era um alívio poder fazer isso, depois de tanto tempo falando francês e inglês.

Antes de começar a subir, ele desceu até o rio. Ajoelhou-se à beira do Nilo e jogou água na cabeça, no rosto e no pescoço. Esvaziou e encheu o cantil, bebendo até a barriga ficar cheia. Então lavou o cantil e encheu-o de novo. Não havia água nas montanhas. Por fim, afundou o chapéu no rio e colocou-o ensopado na cabeça, derramando água no pescoço e no rosto.

Seguiu mais uns cem passos pela trilha principal, andando devagar para estudar o terreno. Em certo ponto ela estava quase bloqueada por uma pedra. Os homens que avançavam na frente tinham sido obrigados a escalar essa barreira para retomar a trilha de areia fina. Haviam deixado marcas nítidas de suas pegadas.

A maioria dos homens usava botas pára-militares com solas em ziguezague, e os que iam na retaguarda pisavam nas pegadas dos líderes. Ele se ajoelhou para examinar os sinais atentamente, até encontrar pegadas menores, mais delicadas, sem dúvida alguma femininas. Estavam parcialmente obliteradas por outras masculinas, maiores, mas eram claros os contornos das solas de borracha de um tênis Bata. Ele as reconheceria em meio a milhares de outras.

Tessay continuava com o grupo; ela e seu amante não haviam tomado outro caminho. Mek Nimmur era astucioso e já havia escapado uma vez das garras de Boris. Mas agora não lhe escaparia! O russo balançou a cabeça veementemente: desta vez não.

Ele concentrou-se mais uma vez nas pegadas femininas. Vê-las o animava. Seu ódio voltou com força total. Não que estivesse considerando o que sentia pela mulher. Amor e desejo não entravam na equação. Ela era sua propriedade e lhe fora roubada. Apenas o insulto importava. Fora rejeitado e humilhado, e por isso ela devia morrer.

A idéia de matar causava nele um frêmito de gozo. Sempre fora essa sua tendência e vocação; por mais que exercitasse essa atividade, o impulso jamais arrefecia, o prazer nunca era atingido. Talvez fosse o único prazer verdadeiro que lhe restava, puro e intocado — nem mesmo a vodca conseguia enfraquecê-lo e diluí-lo como fizera com o ato físico da cópula. Teria mais prazer em matar Tessay do que jamais sentira em copular com ela.

Nos últimos anos só caçara animais, mas nunca se esquecia da sensação de perseguir e matar um ser humano, especialmente uma mulher. Ele queria Mek Nimmur, mas queria muito mais a mulher.

Na época do Presidente Mengistu, quando era chefe da contra-inteligência, seus homens conheciam suas preferências e lhe traziam as melhores jovens. Boris só lamentava agora que a satisfação teria de ser rápida. Não podia planejar e desfrutar de seu prazer. Não seria como outras experiências, que haviam durado horas e muitas vezes dias.

— Cadela — ele murmurou, chutando a areia sobre a pegada de Tessay, da maneira que faria com ela própria. — Sua cadela preta.

Com força e determinação renovadas, ele saiu da trilha principal para subir a montanha na altura da árvore deformada, onde o cabrito galgara o rochedo.

Exatamente onde imaginava encontrou a trilha e começou a subir. Quanto mais subia, mais íngreme ela se tornava. Muitas vezes teve de usar as mãos para se apoiar num trecho mais inclinado ou para atravessar uma passagem estreita.

Na primeira vez em que escalara aquelas montanhas seguira a trilha de sangue deixada pelo cabrito, mas como agora não tinha mais isso para guiá-lo, por duas vezes deu de cara com o vazio. Mais um passo e teria caído centenas de metros. Foi obrigado a voltar para reencontrar o caminho. Nas duas vezes em que isso aconteceu ele sabia que estava perdendo tempo e que Mek Nimmur podia ter-se adiantado.

Uma vez encontrou um rebanho de cabras selvagens deitadas numa saliência no alto do rochedo. Elas fugiram pelo paredão, mais parecendo pássaros que animais sujeitos à lei da gravidade. Seguiam um macho de barba comprida e longos chifres espiralados, que ao fugir mostrou a Boris uma rota direta para o alto do rochedo.

Suas mãos se feriram para subir ao último patamar e por fim alcançar o topo, onde ele rastejou pelo chão sem jamais erguer a cabeça. Lá em cima, uma silhueta humana poderia ser vista num raio de quilômetros. Ele procurou uma moita para esconder-se e observar o vale com o binóculo.

Daquela altura o Nilo era uma longa serpente brilhante que se enrolava na curva do cotovelo, com a superfície encrespada por fortes corredeiras e recifes rochosos. Nas partes mais altas formava ondulações permanentes nas elevações basálticas e tornava-se turbulento como o mar atingido por um furacão tropical. O mundo dançava e tremeluzia ao calor do sol, que esmagava o universo de pedras vermelhas a golpes de machado.

Apesar da miragem nas lentes do binóculo, Boris localizou a trilha ao lado do rio e seguiu-a até o vale, no ponto em que ele ficava oculto. Estava deserto, não havia sinal de presença humana; Boris sabia que perderia de vista suas presas. Não podia dizer quanto já teriam avançado, mas sabia que precisava se apressar se quisesse chegar ao outro lado da montanha antes delas.

Pela primeira vez desde que se afastara do rio, ele bebeu do cantil. Percebeu que o calor e o esforço o haviam desidratado. Nessas condições, um homem sem água morreria em poucas horas. Não era de surpreender que nenhum ser humano permanecesse por muito tempo na garganta do rio.

Sentindo-se renovado, começou a atravessar a depressão alongada da montanha. Depois de uma travessia de pouco mais de quilômetro, de repente ele se viu no outro lado da montanha. Se desse mais um passo, teria sido lançado no espaço, caindo centenas de metros abaixo. Novamente procurou um ponto seguro de onde pudesse observar o terreno embaixo.

O rio continuava igual — uma expansão de água turbulenta e selvagem. A trilha seguia paralela à margem mais próxima, exceto onde era obrigada a se desviar para dentro devido às escarpas e agulhas de pedra que emergiam na superfície.

Na grande desolação da garganta não havia qualquer outro movimento além das águas selvagens e da dança incessante da miragem. Sabia que Mek Nimmur não podia ter-se deslocado com rapidez suficiente para ultrapassá-lo; devia continuar contornando o cotovelo.

Boris bebeu mais água e descansou por quase uma hora. Por fim, sentindo-se totalmente recuperado, ainda não decidira se devia descer imediatamente e ficar de tocaia na trilha; preferiu ficar onde estava até localizar suas presas.

Checou cuidadosamente a arma, conferindo se a mira telescópica não havia saído do alinhamento durante a escalada; em seguida esvaziou o depósito de cartuchos e examinou as cinco balas. A capa de metal de uma delas estava amassada e descolorida, então a dispensou e pegou outra na cartucheira. Recarregou o rifle e soltou a trave de segurança.

Em seguida trocou as meias molhadas por outras secas que trazia na mochila e amarrou bem os cordões das botas. Somente um novato se arriscaria a ficar com os pés cheios de bolhas, pois em poucas horas estariam infeccionadas.

Bebeu mais água, levantou-se e pendurou o 30 06 no ombro. Estava pronto para qualquer coisa que a deusa da caça colocasse em seu caminho, seguindo sempre pelo alto da montanha.

Em cada ponto seguro ele parava para observar o vale, mas não havia nada para ver, e a tarde já avançava. Começava a se preocupar com que Mek Nimmur tivesse conseguido ultrapassá-lo, ou atravessado o rio em algum ponto desconhecido, tomando outro caminho pelo vale. Foi então que ouviu um grito melancólico e queixoso no ar. Olhou para cima. Um par de milhafres sobrevoava em círculos um trecho de árvores espinhosas na margem do rio.

O milhafre amarelo é uma ave de rapina muito comum na África. Vive em associação simbiótica com o homem, alimentando-se de seus dejetos, recolhendo seu lixo e sobrevoando as aldeias e os acampamentos temporários em busca de restos, esperando pacientemente que ele se afaste para então descer; é um esgoto sempre à disposição.

Boris observava pelo binóculo os pássaros sobrevoando o mesmo ponto do cerrado ribeirinho. Tinham uma maneira característica de manobrar com suas longas caudas bifurcadas, entortando-as de um lado para outro ao sabor da brisa. Seus bicos amarelos apareciam claramente quando viravam a cabeça para olhar alguma coisa que lhes interessasse.

Boris sorriu. Da! Nimmur apareceu mais cedo do que o esperado. Talvez o calor e a pressa tenham sido excessivos para sua nova mulher, ou talvez tenha parado para brincar um pouco com ela.

Ele seguiu pela borda do rochedo até ficar diretamente sobre o trecho de cerrado. Examinou-o através do binóculo, mas não percebeu qualquer sinal de presença humana. Depois de quase duas horas já começava a duvidar de sua hipótese inicial. A única coisa que chamava a atenção era o par de milhafres, que agora estava pousado num galho de árvore. Tinha de confiar que eles observavam os homens ocultos no cerrado.

Boris olhou ansioso para o sol que já se aproximava da linha do horizonte; o calor não era mais tão forte. Então olhou novamente para o vale.

Adiante do trecho de cerrado havia uma porção de água estagnada, quase um pequeno lago. Durante a cheia devia ficar inundado, mas agora uma faixa de cascalho ficava exposta na margem. Na praia, havia também inúmeras pedras redondas que haviam rolado do rochedo. Algumas pararam ali, mas outras tinham caído no rio e estavam quase submersas. As maiores eram grandes como uma cabana.

Enquanto observava, Boris viu um homem surgir inesperadamente. Sua pulsação se acelerou ao vê-lo subir numa das pedras e pular para a praia de cascalho. Ele ajoelhou-se à beira d'água, encheu uma bolsa e voltou novamente para o matagal.

"Ah! O calor é demais para eles. Estão se traindo pela sede. Não fossem os pássaros, eu jamais saberia onde estavam." Seu rosto contorceu-se num esgar de falsa admiração. "Nimmur é um sujeito cuidadoso. Não admira que esteja vivo até hoje. Mantém rígido controle. Mas até ele precisa de água."

Pelo binóculo, Boris tentava adivinhar o que Nimmur faria em seguida.

"Ele perde muito tempo protegendo-se do calor. Só vai retomar a marcha quando estiver mais fresco. Andará durante a noite", concluiu, olhando novamente para o sol. "Faltam três horas para anoitecer. Preciso me mexer antes deles. Depois que escurecer ficará mais difícil."

Sem se levantar, ele se arrastou pelo chão para manter-se longe de vista. Refez o caminho pela encosta da montanha até um ponto seguro, de onde não seria visto pelas sentinelas de Mek Nimmur. Aí começou a descer. Boris não tinha mais trilhas de cabras para guiar-se; após algumas tentativas frustradas, encontrou uma rocha inclinada que lhe permitia uma descida relativamente fácil pela face do rochedo. Quando chegou embaixo, fez um levantamento cuidadoso do declive e uma marca na pedra para encontrá-la com facilidade em caso de emergência. Era bom ter uma rota de fuga, pois sabia que logo estaria sendo perseguido.

A descida de quase uma hora era uma corrida contra o tempo. Quando alcançou a trilha, começou a voltar por ela em direção ao acampamento de Mek Nimmur. Estava com pressa, mas tomava cuidado para não deixar rastros. Andava por fora da trilha, pisando somente nas pedras, para não deixar sinais de sua passagem. Mas, apesar do cuidado, por pouco não esbarrou neles.

Não completara ainda 200 metros quando sua mente registrou um assobio baixo, quase inaudível, de um estorninho, e quase o ignorou, mas um sinal de alarme soou em sua mente. Não era o momento certo. O estorninho só piava daquela maneira na aurora, quando deixava seu ninho e voava para as montanhas. Mas era fim de tarde nas profundezas da garganta. Devia ser um sinal de que os batedores estavam vindo em sua direção. O grupo de Mek Nimmur se pusera a caminho.

Boris reagiu imediatamente. Voltou correndo pela lateral da trilha até a marca que fizera na pedra e subiu a encosta para olhar de cima a trilha principal. Entretanto, percebeu que perdera a dianteira que havia ganhado cruzando por cima da montanha. Não era a posição ideal para uma tocaia, e sua rota de fuga estava exposta ao fogo inimigo — só com muita sorte conseguiria chegar ao topo. Mas jamais lhe ocorreu desistir da vingança. Tão logo seus alvos ficassem à vista, atiraria de onde pudesse.

Entretanto, reconhecia que Mek Nimmur o surpreendera. Não previra que ele se deslocaria antes do pôr-do-sol. Sua intenção era posicionar-se acima do acampamento e dar dois tiros bem dados antes de fugir.

Também calculara que, com Mek Nimmur morto, seus homens não manteriam o mesmo ânimo. Seu plano era bater em retirada, parando em alguns pontos seguros para atirar em mais um ou dois, e manter uma perseguição circunspecta e cautelosa até que eles acabassem desistindo do jogo e o deixassem ir embora.

Entretanto, tudo isso mudara. Teria de aproveitar a primeira oportunidade que se apresentasse — certamente um alvo móvel —, e quando desse o primeiro tiro ficaria exposto em sua trilha para o alto do rochedo. A única vantagem que possuía agora era a precisão de seu rifle de caça, ao passo que os homens de Mek Nimmur usavam rifles de assalto AK-47, de disparo rápido, mas não muito precisos a longa distância, principalmente nas mãos daqueles shuftas. Bem treinados, os guerreiros africanos formavam as melhores tropas do mundo. Possuíam a habilidade necessária, com uma única exceção: eram maus atiradores notórios.

Ele deitou-se na saliência da pedra, sentindo o calor queimar sua pele através da roupa. Tirou a mochila das costas e colocou-a na frente para apoiar o cano do rifle. Pela lente telescópica, mirou uma pequena pedra na trilha principal e movimentou ligeiramente o cano da arma para garantir um bom raio de fogo.

Isso era o melhor que podia fazer no pouco tempo que lhe restava. Boris deixou o rifle e pegou um punhado de areia, que esfregou no rosto molhado de suor. A lama disfarçaria a pele clara, que podia ser vista de longe. Sua última preocupação foi checar o ângulo do sol e verificar que nem a lente do telescópio nem as partes metálicas do rifle causavam reflexos. Alcançou o galho de uma planta e arrancou-o para cobrir a arma.

Por fim, posicionou-se atrás do rifle e apoiou a coronha no ombro, controlando a respiração para diminuir a pulsação e firmar as mãos. Não esperou muito tempo. Novamente o pássaro piou, agora bem mais perto.

"Os homens que guardam os flancos estão tendo dificuldade de manter sua posição neste terreno. Eles se agrupam e se dispersam." Nesse instante viu um homem surgir na curva da trilha, cerca de 500 metros à frente.

Boris mirou-o pelo telescópio. Era um típico guerrilheiro africano, um shufta, com uma farda surrada e desbotada, carregando mochila, cantil, munição e granadas, e um AK apontado para a frente. Ele parou quando entrou na curva e agachou-se atrás de uma moita ao lado da trilha.

Por um longo tempo ficou inspecionando o terreno, virando a cabeça de um lado e de outro. Num determinado momento pareceu olhar diretamente para Boris, que prendeu a respiração e deitou-se na pedra, tão imóvel quanto ela mesma. Por fim o shufta ergueu-se e fez um sinal com a mão para os que vinham atrás. Em seguida retomou a trilha a passos rápidos. Depois que ele andou uns 50 metros, o restante do regimento apareceu, mantendo um espaçamento preciso como as contas de um colar. Não seria possível derrubar essa fileira mesmo com um RPD em posição privilegiada.

"Ótimo", aprovou Boris. "Uma tropa bem treinada. Mek deve têlos escolhido a dedo." Ele observou os homens pelo telescópio, examinando as feições de cada um em busca de Mek Nimmur. Havia sete deles espalhados em seu campo de visão, mas nenhum era o líder. O homem que estava mais distante ficou no mesmo nível de Boris e passou. Em seguida passou uma dupla de flanqueadores, roçando uma moita a poucos metros de distância. Ele ficou absolutamente imóvel e viu-os seguir em frente. O restante passou a distâncias regulares, sempre mantendo a marcha. Quando passou o último, a garganta ficou completamente deserta. Então vieram outros.

"A retaguarda", Boris resmungou. "Mek está mantendo a mulher atrás. Seu novo brinquedinho. Quer cuidar bem dela."

Ele puxou vagarosamente o gatilho do rifle.

"Que venham agora", suspirou. "Pegarei Mek primeiro. Nada muito divertido; nada de tiros na cabeça. É melhor no meio do peito. Ela vai congelar quando o vir cair. Não tem os reflexos de um guerreiro. Poderei dar o segundo tiro sem nenhuma pressa. Não há como errar a esta distância. Bem no meio daquelas lindas tetas." Ele ficou sexualmente excitado ao pensar no sangue e na morte violenta da graciosa e adorável Tessay. "Talvez eu tenha a chance de pegar mais alguns. Mas não posso garantir. Esses homens são bons. É bem provável que se protejam antes que eu possa matar a mulher."

Ele observou os que vinham na retaguarda. Cada um que passava era uma decepção. Por último vinham três, caminhando tranqüilamente. Mas nem sinal de Mek ou de Tessay. Esses últimos homens desapareceram na trilha, quebrando o silêncio apenas com os leves ruídos de seus passos. Boris sentiu na boca o amargo gosto da decepção.

"Onde estarão eles?", pensou. "Onde, diabos, estará Mek?" E a resposta óbvia para sua pergunta veio imediatamente. Haviam tomado outro caminho. Mek usara aquela patrulha apenas como isca.

Ele continuou imóvel por cinco minutos marcados no relógio, para o caso de haver mais alguns. Pensou rápido. Os últimos sinais de Tessay haviam sido suas pegadas na areia.

Mas desde que isso acontecera várias horas haviam passado, e se ela e Mek tivessem conseguido escapar poderiam estar agora em qualquer lugar. Mek poderia ganhar uma vantagem de um dia ou mais — e Boris teria muito mais trabalho para retomar a pista deles. Cheio de raiva, fechou os olhos, esforçando-se para manter o controle. Precisava pensar com clareza e não atirar-se de cabeça na questão, como um búfalo ferido. Essa era a sua fraqueza, e ele sabia que precisava controlar-se.

Quando abriu os olhos novamente, sua raiva estava mais fria e objetiva. Sabia exatamente o que tinha de fazer e de que maneira o faria. A primeira coisa era descer e examinar a trilha. Precisava encontrar o ponto em que Mek se havia separado do destacamento de shufta.

Desceu a encosta até a trilha principal. Voltando por ela a passos rápidos começou a subir o rio em direção ao trecho de cerrado onde a patrulha shufta tinha parado para descansar. A primeira coisa que notou é que não havia marcas de tênis. Mas não considerou isso uma prova de que a área estivesse deserta, e circundou-a cuidadosamente. Primeiro examinou a trilha que penetrava no lado mais distante do cerrado. Embora se tivesse passado muito tempo, os sinais continuavam claros.

Ele parou subitamente no meio da trilha e arrepiou-se ao ver as marcas na areia. Estava seguindo pelo mesmo caminho de Mek. Eram marcas de tênis Bata.

Mek e a mulher entraram no cerrado, mas não haviam saído. Ainda estavam lá dentro; Boris teve a forte sensação de que Mek o observava naquele momento por trás da mira de seu AK, e sentiu-se totalmente vulnerável.

Jogando-se ao chão, ele rolou como um felino pela grama com o rifle de prontidão. Quando o ritmo das batidas de seu coração voltou ao normal, ele se agachou e começou a circular com cuidado o trecho de cerrado. Seus nervos estavam tensos como as cordas de uma guitarra e seus olhos moviam-se de um lado para outro. Com o dedo no gatilho do 30 06, ele mantinha o cano da arma em movimento, como a cabeça de uma cobra pronta para atacar em qualquer direção.

Boris deslocou-se para a margem do rio, onde o barulho das corredeiras encobriria qualquer ruído que pudesse fazer. Mas quando já estava bem próximo de uma pedra que lhe serviria de abrigo, parou instantaneamente. Ouviu um ruído que suplantava o som das águas do Nilo — um ruído tão estranho àquele ambiente e àquela hora que, por um momento, chegou a duvidar de que estivesse mesmo ouvindo. Era a risada de uma mulher, nítida e clara como o tilintar de pingentes de cristal ao sabor da brisa.

O som vinha de baixo, da margem de cascalho que ficava perto da pedra. Ele esgueirou-se em direção à pedra, pois a usaria como proteção e um ponto do qual pudesse atingir toda a margem. Mas antes ouviu alguma coisa bater na superfície da água e um grito excitado de mulher, ao mesmo tempo divertido e provocante.

Quando alcançou a pedra, mantendo-se sempre colado a ela, moveu-se furtivamente para o lado para espiar a praia de cascalho. Então, cuidando para não ser visto, olhou assombrado. Era difícil acreditar no que via. Não era possível que alguém como Mek Nimmur cometesse uma besteira tão grande. Era um homem corajoso, um guerreiro maduro, um sobrevivente de vinte anos de guerras sanguinárias, e agia como um adolescente apaixonado.

Mek Nimmur mandara seus homens embora para se divertir com a amante. Boris esperou um pouco para ter certeza absoluta de que não era uma armadilha. Parecia por demais fortuito, muito fácil para ser verdade. Ele esquadrinhou cada centímetro da margem em ambas as direções, em busca de atiradores escondidos; então abriu um pequeno sorriso gelado.

Não havia dúvida de que estavam sozinhos. Mek jamais permitiria que seus homens vissem Tessay nua. O sorriso se ampliou quando ele reconheceu o tamanho de sua sorte. "Ele deve ter enlouquecido", pensou. "Não imaginou que eu viria atrás? Deve achar que está muito à frente para se distrair dessa maneira. Há no mundo coisa mais estúpida e mais míope que um pênis ereto?" Boris regozijou-se com a desgraça do outro.

O casal havia tirado as roupas e as deixara sobre um tronco de árvore na praia de cascalho, à sombra de uma grande pedra. Longe da correnteza, atiravam água um no outro. Decididamente estavam nus. Mek Nimmur tinha ombros largos, as costas musculosas e rijas, as nádegas firmes. Ao lado dele, Tessay era esguia como o junco, de cintura fina e quadris estreitos. Sua pele tinha a cor do mel selvagem. Estavam totalmente absorvidos na brincadeira e não viam mais nada ao redor.

"Ele deve ter deixado alguns homens na retaguarda." Boris deu a Mek o benefício da sensatez. "Não espera me ver pela frente. Acha que estão totalmente seguros. Como você é tolo", ele se regozijou, enquanto Mek perseguia a moça e ela se deixava apanhar. Eles caíram na água rasa presos nos braços um do outro, as bocas se procurando quando voltaram à tona, a epítome da beleza masculina e da adorável feminilidade, a imagem de Adão e Eva africanos capturados num momento de seu paraíso particular.

Boris desviou o olhar para onde estavam as roupas. O rifle de Mek repousava descuidadamente sobre a jaqueta camuflada, bem perto dali. Ele cruzou a praia de cascalho, pegou o AK, destravou o pente de munição e guardou-o no bolso, liberou o tambor e o jogou ao chão. Em seguida repôs o rifle descarregado no mesmo lugar e voltou rapidamente para seu esconderijo. Mek e Tessay nada perceberam.

Boris permaneceu à sombra da pedra, observando-os brincar no rio. Eram quase infantis em seu amor, num envolvimento mútuo e completo.

Finalmente, Tessay soltou-se do abraço de Mek e saiu da água. Correu para a praia de cascalho, com os seios sedosos e úmidos balançando e esbarrando um no outro a cada passo. Ela olhou para trás num convite explícito. Mek seguiu-a, com as gotas d'água brilhando nos densos pêlos de seu peito, o órgão genital pesado e poderoso.

Ele a alcançou antes que Tessay pegasse as roupas; brincando, ela tentou soltar-se de seus braços até que as bocas se encontraram. Então entregou-se a ele completamente. Enquanto Mek a beijava, suas mãos corriam pelas costas dela e sobre as nádegas úmidas. Pressionada contra o corpo dele, ela abriu ligeiramente as pernas, convidando-o a explorar os segredos de seu corpo. Gemeu de desejo quando ele lhe apalpou gentilmente o sexo.

A raiva de Boris misturou-se a um perverso ímpeto de voyeur enquanto olhava sua própria esposa ser tomada por outro homem. Emoções demoníacas borbulhavam dentro dele. Ele sentiu seu sexo ingurgitar-se e enrijecer quase dolorosamente, mas ao mesmo tempo a raiva o fazia tremer como os galhos de uma árvore ao vento.

Os amantes caíram de joelhos. Ainda abraçados, Tessay deitou-se de costas no cascalho e puxou Mek para cima de seu corpo.

Boris disse em voz alta:

— Por Deus, Mek Nimmur, você não imagina como fica ridículo com a bunda exposta desse jeito.

Mek reagiu como um leopardo surpreendido. Num movimento rápido, deu um salto e alcançou o AK-47. Embora Boris estivesse preparado, apontando seu 30 06 para a nuca de Mek, este foi tão rápido que conseguiu apanhar a arma e apontá-la para a barriga de Boris antes que ele conseguisse se mexer. Mek apertou o gatilho no mesmo instante em que erguia o cano da arma.

A agulha de disparo bateu no tambor vazio com um clique inútil, e os dois homens se encararam, ambos com as armas erguidas. Tessay estava encolhida onde Mek a deixara, com os límpidos olhos azuis, repletos de dor e pavor, voltados para o marido que estava prestes a matar Mek.

Boris deu uma risada rouquenha.

— Onde vai querer o tiro, Mek? Que tal eu arrancar a cabeça dessa sua ferramenta preta enquanto ela ainda está em pé?

Mek Nimmur desviou o olhar do adversário e dirigiu-o para a montanha; Boris se deu conta de que seu palpite estava certo. Os homens estavam lá em cima, mas não poderiam ver a praia onde seu comandante se distraía.

— Não se preocupe com eles. Vocês dois estarão mortos muito antes que seus chimpanzés desçam para socorrê-lo. — Boris riu de novo. — Estou adorando isto. Nós dois já marcamos um encontro antes, mas você não compareceu. Não importa... isto vai ser mais divertido. — Ele sabia que não devia se estender muito com um homem como aquele. Mek havia cometido um erro e era altamente improvável que cometesse outro. O melhor era estourar sua cabeça naquele momento, o que lhe daria mais alguns minutos para cuidar de Tessay. Mas a tentação de se divertir com a situação era forte demais.

— Tenho boas notícias, Mek. Você viverá mais alguns segundos. Primeiro vou matar a puta e deixar você assistir. Espero que se divirta tanto quanto eu. — Ele saiu de trás da pedra e dirigiu-se para Tessay, que continuava encolhida sobre o cascalho. Ela estava meio de costas, tentando cobrir os seios e a região púbica com suas mãos pequenas e delicadas. Boris aproximou-se da mulher, mas sem desviar os olhos de Mek. Esse foi seu erro. Ele a subestimou.

Enquanto fingia esconder-se dele humildemente, Tessay alcançou no chão, entre suas pernas, uma pedra redonda que cabia perfeitamente na mão pequena. De repente, ela desenrolou o corpo esguio e usou toda a força para atirar a pedra na cabeça de Boris. Ele percebeu o movimento com o canto dos olhos e ergueu o braço para se proteger. A pedra, atirada com uma força surpreendente a curta distância, não atingiu o alvo. Mas acertou o cotovelo erguido de Boris. As mangas da camisa estavam enroladas acima dos bíceps e não havia nada para amenizar o impacto; seu braço estava flexionado, a pele fina esticada sobre o osso do cotovelo. A cabeça do osso cúbito se partiu como vidro, e Boris gemeu numa agonia excruciante. A mão abriu-se involuntariamente e o dedo saltou para fora do gatilho, sem força para disparar o tiro cujo alvo era a barriga de Mek.

Este saltou para o lado, e antes que Boris pudesse mudar o rifle de mão desapareceu atrás da grande pedra redonda.

Com a mão esquerda, Boris apontou o cano do rifle para a cabeça de Tessay, jogando-a de costas na areia. Então encostou o cano em sua garganta, prendendo-a no chão enquanto gritava raivosamente.

— Vou natá-la, seu bastardo negro! Se quer sua cadela, é melhor vir buscá-la. — A dor do cotovelo quebrado deixava sua voz rouca e embrutecida.

De trás da pedra a voz de Mek Nimmur soou alta e clara, pronunciando uma única palavra em amárico que ecoou pelas montanhas. Então falou em inglês:

— Meus homens estarão aqui em alguns segundos. Deixe a mulher e o pouparei. Machuque-a e farei você implorar por sua morte.

Boris se aproximou de Tessay e a fez levantar-se, segurando-a pelo pescoço com seu braço bom. Segurava o rifle na mesma mão, apontando-o por cima do ombro dela. A mão do braço ferido havia-se recuperado o suficiente do primeiro choque para segurar o cano da pistola e manipular o gatilho.

— Ela estará morta muito antes que seus homens cheguem aqui — ele gritou, enquanto a arrastava para longe da pedra. — Venha pegá-la você mesmo, Mek. Ela está aqui, se você a quiser.

Apertou o braço em torno do pescoço de Tessay, estrangulando-a até ela começar a se debater e a engasgar, arranhando o braço de Boris e deixando longos riscos vermelhos na pele queimada.

— Ouça! Estou esmagando o pescocinho dela. Ouça o barulho. — Ele apertou mais o braço.

Boris olhava para o canto da pedra onde Mek se havia escondido. Ao mesmo tempo se afastava, ganhando espaço para trabalhar. Tinha de ser rápido, pois sabia que não poderia escapar. Seu braço direito era pouco útil, e Mek tinha muitos homens. Ele já tinha a mulher, mas também queria o homem. Era o melhor troféu que poderia conseguir — os dois; tinha de conseguir os dois.

Ouviu um grito, uma voz estranha no alto de uma elevação. Os homens de Mek estavam a caminho. Boris já se desesperava. Não conseguiria atrair Mek; fazia quase dois minutos que não o ouvia falar ou mover-se. Já o perdera — a essa hora poderia estar em qualquer lugar.

"Tarde demais", Boris se deu conta. "Não vou pegá-lo. Só a mulher. Mas tenho de fazer isso agora." Ele a obrigou a ficar de joelhos e inclinou-se sobre ela, apertando ainda mais o braço em torno do pescoço.

— Adeus, Tessay — sussurrou, iniciando a pressão final. Conhecia, por sua longa experiência, o som de vértebras quebradas, e preparou-se para ouvir o estalo e sentir o peso do cadáver em seu braço.

Então alguma coisa lhe atingiu as costas com uma força que pareceu estourar os ossos e esmagar as costelas. Tanto o impacto quanto a direção de onde veio foram totalmente inesperados. Era impossível que Mek Nimmur pudesse se deslocar com tamanha rapidez. Devia ter saído de trás da pedra e contornado o cerrado, atacando Boris pelas costas.

Seu golpe foi tão selvagem que o braço no pescoço de Tessay se soltou. Ofegante e respirando com dificuldade, ela se livrou dele. Boris tentou virar o rifle, mas Mek já estava de novo sobre ele, segurando a arma e tentando arrancá-la de suas mãos.

O dedo do russo ainda estava no gatilho e disparou um tiro quando o cano estava acima da cabeça de Mek. A detonação pegou-o de surpresa, fazendo-o soltar o rifle e cambalear para trás com os ouvidos zunindo.

Boris afastou-se, tentando soltar o ferrolho da arma para colocar outra bala no pente, mas seu braço ferido tornava os movimentos desajeitados e canhestros. Mek recuperou-se e saltou para a praia. Avançou sobre Boris com todo o seu peso, e o rifle voou das mãos dele. Lutando corpo a corpo, os dois rodopiaram numa dança macabra, tentando derrubar-se, buscando uma vantagem, quando tropeçaram e caíram de costas na água.

Voltaram à tona ainda atracados e rolando um sobre o outro alternadamente, numa terrível paródia do ato de amor a que Boris havia assistido pouco antes. Esmurrando, apertando e empurrando um ao outro, eles lutavam na parte rasa do poço. Mas toda vez que caíam o barranco sob seus pés os obrigava a entrar mais no rio, até que, com água pelo peito, a correnteza do Nilo subitamente os apanhou e arrastou rio abaixo. Eles ainda lutavam, com a cabeça submersa e os braços espalhando espuma ao redor, gritando com ódio primitivo.

Tessay ouviu os homens que Mek chamara atravessar o cerrado. Ela apanhou seu shamma e enfiou-o pela cabeça enquanto corria ao encontro deles. Quando o primeiro surgiu na praia de cascalho com seu AK apontado, ela gritou em amárico:

— Lá! Mek está na água. Está lutando com o russo. Ajude-o! — Ela correu com ele até a margem. Quando chegaram na altura em que eles lutavam no meio da correnteza, um dos homens parou e apontou o AK, mas Tessay correu para ele e desviou o cano da arma.

— Seu tolo! — gritou com raiva. — Vai matar Mek!

Saltando para cima de uma pedra junto ao rio, ela protegeu os olhos do reflexo do sol na água. Com uma terrível sensação no estômago, viu que Boris estava por trás de Mek e lhe empurrava a cabeça para dentro da água. Mek lutava como um salmão fisgado enquanto ambos eram arrastados para uma longa queda-d'água.

Tessay saltou de cima da pedra e correu pela margem até o ponto seguinte, de onde só podia olhar sem fazer nada.

Boris ainda segurava a cabeça de Mek sob a água. Pontas de pedras passavam ao lado deles enquanto ganhavam velocidade. Mek era um homem forte, e Boris tinha de usar toda a sua força para segurá-lo, mas sabia que não poderia continuar por muito tempo. De repente Mek empinou-se como um cavalo e, por um momento, tirou a cabeça da água. Inspirou rápido antes que Boris o afundasse novamente, mas o ar renovou suas forças.

Boris olhou em desespero a cachoeira para onde eram arrastados. Havia muitas pedras em volta. Viu uma grande lâmina de pedra preta sobre uma ondulação a metro de distância. Dirigiu-se para ela, chutando e empurrando o corpo de Mek com o que lhe restava de forças.

Eles entraram no declive, onde a lâmina de pedra os esperava como um monstro aquático. Boris continuou a lutar com Mek para colocar-se adiante dele. Seu plano era empurrá-lo para a pedra e usar o corpo do outro para amortecer o impacto.

No último instante antes de baterem, Mek tirou a cabeça da água e, ao mesmo tempo que sorvia o precioso ar, viu a pedra e percebeu o perigo. Com um esforço violento, impeliu-se para a frente sob a superfície e deu uma cambalhota, tão forte e inesperada que Boris não resistiu. Com o braço ainda preso no pescoço de Mek, ele foi jogado de costas e as posições se inverteram. Mek conseguiu colocar Boris entre si e a pedra, de modo que quando foram atirados de encontro a ela o russo recebeu todo o impacto. -

O ombro de Boris foi esmagado como uma noz nos mordentes de um quebrador de aço. Embora estivesse com a cabeça sob a superfície, gritou de dor e seus pulmões se encheram de água. Seu braço se soltou e ele foi arremessado para longe de Mek. Quando voltou à tona, debatia-se como um inseto, com os pulmões encharcados, o braço direito quebrado em dois lugares e o braço bom golpeando debilmente.

Mek emergiu de um salto alguns centímetros atrás. Olhando rapidamente ao redor enquanto respirava, viu a cabeça de Boris quase no mesmo instante, e com algumas braçadas se colocou atrás dele.

Boris já estava depauperado e só percebeu as intenções de Mek quando ele agarrou a gola de sua camisa por trás e torceu-a como o garrote de um estrangulador. Com a outra mão, por baixo da água, Mek segurou o cinto de Boris e usou-o como se fosse um leme para conduzi-lo na direção do próximo recife de pedras em volta do qual a água borbulhava.

Com os pulmões cheios de água, Boris tentava gritar impropérios contra ele.

— Canalha! Porco preto! Asqueroso! — Mas sua voz era quase inaudível por causa da correnteza do rio e do ronco do aguilhão rochoso que os aguardava em seu caminho. Mek empurrou-o de cabeça contra a pedra e sentiu o impacto no crânio de Boris percorrer os músculos tensos de seus braços. Instantaneamente, o russo o largou, sua cabeça tombou e os membros tornaram-se flácidos e inertes.

Quando caíram na corredeira seguinte, Mek, que ainda segurava o colarinho de Boris, ergueu a cabeça para fora da água. Por um momento ele próprio ficou chocado com o ferimento que havia provocado. A testa de Boris estava afundada. A pele não se rompera, mas havia uma profunda depressão no crânio na qual Mek podia enfiar o polegar. E os olhos esbugalhados haviam saltado das órbitas como os de uma boneca quebrada.

Mek arrastou o cadáver inerte e olhou a cabeça quebrada a poucos centímetros de distância. Estendeu a mão e tocou a região afundada do crânio com a ponta dos dedos, sentindo os fragmentos do osso quebrado sob a pele.

Mais uma vez mergulhou a cabeça na água e segurou-a, enquanto tentava nadar contra a correnteza em direção à margem. Boris não oferecia resistência, mas Mek manteve sua cabeça submersa durante a longa e tortuosa travessia.

"Como se mata um monstro?", Mek pensou. Enterrando-o numa encruzilhada com uma estaca enfiada no coração. Mas, em vez disso, ele o afundou mais quinze vezes, e na curva seguinte do rio foram atirados à margem.

Os homens de Mek o esperavam. Sustentaram-no quando suas pernas fraquejaram sob o próprio peso e ajudaram-no a sair do rio. Quando começaram a puxar o corpo de Boris da água, Mek os fez parar.

— Deixem-no para os crocodilos. Depois do que ele fez ao nosso povo e ao nosso país, é só isso que merece. — Mas, mesmo com todo o ódio que sentia, não quis que Tessay visse a cabeça mutilada. Ela não conseguira acompanhar os homens, mas já estava chegando pela margem.

Um dos homens empurrou o cadáver para a corrente a e, enquanto ele era levado, tirou o rifle do ombro e atirou. As balas ricochetearam na superfície em volta da cabeça de Boris e entraram em suas costas, abrindo buracos na camisa molhada. Os outros homens gritavam e riam na margem do rio, juntando-se ao primeiro numa fuzilaria, esvaziando as armas no corpo sem vida. Mek não tentou impedi-los. Alguns de seus parentes haviam morrido de forma terrível nas mãos do russo. O cadáver rolou no borrifo rosado de seu próprio sangue, e, por um momento, os olhos arregalados de Boris voltaram-se para o céu. Em seguida o corpo afundou.

Mek levantou-se devagar e foi ao encontro de Tessay. Tomou-a nos braços e, encostando-a ao peito, sussurrou em seu ouvido:

— Está tudo bem. Ele nunca mais vai magoá-la. Você é minha agora... para sempre.

Desde que Boris e Tessay haviam deixado o acampamento não havia razão para manter tanto sigilo; Nicholas e Royan não precisavam mais esconder-se quando queriam conversar sobre suas descobertas.

Nicholas transferiu suas coisas para a cabana de refeições e pediu aos homens que construíssem outra mesa grande sobre a qual pudesse espalhar as fotos de satélite e todos os outros mapas e materiais já acumulados. O cozinheiro serviu café enquanto eles se debruçavam sobre os papéis e discutiam as descobertas feitas no poço de Taita e todas as hipóteses formuladas, por mais descabidas que parecessem.

— Jamais saberemos com certeza se aquela abertura foi feita por Taita ou se é um buraco natural, se não voltarmos lá com o equipamento adequado.

— De que tipo de equipamento você está falando? — Royan perguntou, curioso.

— Tanques de mergulho, não galões de oxigênio. Embora esses galões sejam muito mais leves e compactos, não podem ser usados a uma profundidade maior que dez metros. O equivalente a uma atmosfera de água. Depois disso o oxigênio puro se torna letal. Você já usou equipamento de mergulho?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Quando Duraid e eu passamos nossa lua-de-mel no mar Vermelho. Tive algumas aulas e dei três ou quatro mergulhos em mar aberto, o suficiente para perceber que não sou boa nisso.

— Prometo não mandá-la lá para baixo — Nicholas sorriu —, mas acho que podemos dizer com segurança que encontramos evidências suficientes, tanto no túmulo de Tanus quanto no poço de Taita, que tornam imperativo o planejamento da segunda fase desta operação.

Ela concordou com um gesto de cabeça.

— Vamos ter de voltar com uma variedade muito maior de equipamentos e conseguir a ajuda de peritos. Mas não vamos poder passar por turistas da próxima vez. Que desculpa daremos para voltar aqui, que não dispare todos os alarmes na cabeça dos burocratas etíopes?

— Você está falando com quem já fez visitas não-oficiais e sem convite àquelas adoráveis criaturas, Saddam e Khadafi. Comparada a eles, a Etiópia é um piquenique de escola dominical.

— Quando começa a estação chuvosa nas montanhas? — ela perguntou inesperadamente.

— Exatamente! — Nicholas ficou sério. — Esse é o xis da questão. Teremos de ver as marcas das enchentes nas paredes do poço de Taita para termos uma idéia de como fica o rio nessa época. — Ele folheou as páginas de sua agenda de bolso. — Por sorte, ainda temos tempo... não muito, mas o suficiente. Vamos ter de andar rápido. Voltaremos para casa e começaremos a trabalhar no planejamento da segunda fase.

— Então deveríamos fazer logo as malas.

— Sim, deveríamos. Mas acho uma pena não aproveitarmos ao máximo cada momento que estamos aqui, depois de tanto trabalho para chegar. Acho que devemos esperar mais alguns dias para checar algumas idéias que tive sobre o poço de Taita e o ralo, e decidir o que precisaremos trazer.

— Você é quem manda.

— Meu Deus, como é bom ouvir isso de uma mulher! Royan sorriu com doçura.

— Aproveite; pode ser que nunca mais aconteça. — Então voltou a ficar séria. — Que idéias são essas que você teve?

— Tudo o que sobe tem de descer, e tudo o que entra tem de sair — ele disse, misteriosamente. — A água entra naquele ralo com tanta pressão que deve sair em algum lugar. A menos que se junte a algum veio subterrâneo e por ele chegue até o Nilo, deve voltar à superfície onde possamos encontrá-la.

— Continue — ela pediu.

— Uma coisa é certa: ninguém vai entrar naquele buraco no fundo do poço. A pressão será fatal. Mas se conseguirmos achar a saída talvez possamos explorar pelo outro lado.

— É uma possibilidade tentadora. — Ela estava impressionada, e voltou-se para a fotografia de satélite. Nicholas havia identificado o mosteiro na foto e o havia circulado. Marcara o curso aproximado do rio através do desfiladeiro, mas a garganta propriamente dita era muito estreita e coberta de vegetação para aparecer na foto pequena, mesmo sob lentes de aumento poderosas.

— Este é o ponto em que o rio entra no abismo — Royan apontou. — E aqui está o lado do vale onde a trilha se desvia para o interior. Certo?

— Certo — ele concordou. — Aonde pretende chegar?

— Quando passamos por lá, notamos que esse vale deve ter sido o curso original do Rio Dandera e que ele deve ter criado um novo leito ao longo do abismo.

— Concordo — disse Nicholas. — Continue.

— O declive do terreno até o Nilo é muito pronunciado neste ponto, não é? Bem, você lembra que nós atravessamos outro pequeno rio, mas ainda substancial, quando descíamos pelo vale seco? Ele parecia brotar em algum lugar no lado leste do vale.

— Certo, estou entendendo agora. Você está sugerindo que pode ser o escoamento do ralo. Você é esperta, hem?

— Estou apenas me aproveitando da sua genialidade — Royan baixou os olhos timidamente, depois os ergueu e olhou-o por trás dos cílios. Era uma brincadeira, mas seus cílios eram longos, densos e curvos, sobre os olhos caramelados com leves traços dourados no fundo. À distância em que estavam, Nicholas achou-os perturbadores.

Ele se levantou e sugeriu:

— Por que não vamos dar uma olhada?

Foi até a cabana pegar a sacola com a câmera e uma mochila leve, e quando voltou encontrou Royan pronta para sair. Mas ela não estava só.

— Vejo que vai levar sua dama de companhia — observou Nicholas, resignado.

— A menos que você seja grosseiro o suficiente para mandá-lo embora. — Royan deu um sorriso encorajador para Tamre, que estava a seu lado, mostrando os dentes numa risada, saltitando e abraçando os próprios ombros em êxtase, por estar na presença de seu ídolo.

— Ah, está bem — Nicholas cedeu sem resistir. — Vamos deixar que esse diabinho venha conosco.

Tamre dançava pelo caminho na frente deles, com o shamma encardido esvoaçando em volta das pernas; entoava o coro repetitivo de um salmo amárico, e a cada instante olhava para trás para certificarse de que Royan ainda estava lá. Era uma dura estirada até o alto do vale, e o calor do meio-dia era debilitante. Embora Tamre não parecesse afetado, os outros dois suavam tanto que tinham a camisa manchada sob os braços quando chegaram ao ponto em que o riacho desembocava no vale. Agradecidos, foram para a sombra de umas acácias e, enquanto descansavam, Nicholas perscrutou esse lado do vale pelo binóculo.

— Como está depois do banho que dei nele? — Royan perguntou.

— É à prova d'água — ele murmurou. — Nota dez para Herr Zeiss.

— O que está vendo lá em cima?

— Pouca coisa. O mato está muito alto. Vamos ter de marchar até lá. Sinto muito.

Eles deixaram a sombra e começaram a subir pelo lado do vale em direção ao sol ardente. O riacho descia numa série de pequenas cascatas, cada uma delas com um poço a seus pés. O mato invadia o barranco das margens, abundante e viçoso onde as raízes alcançavam a água. Nuvens de borboletas negras e amarelas dançavam sobre os poços, e uma libélula preta e branca patrulhava as pedras cobertas de musgo ao longo do barranco, com suas longas caudas vibrando como a agulha de um metrônomo.

No meio da subida eles pararam em um poço para descansar, e Nicholas usou o chapéu para espantar um pequeno grilo marrom e amarelo. Atirou o inseto na água e enquanto o via espernear debilmente e flutuar em direção à saída, uma grande sombra se ergueu do fundo. A água se agitou, um dorso prateado brilhou como um espelho e o grilo desapareceu.

— Quatro quilos e meio... — Nicholas lamentou. — Por que não trouxe minha vara?

Tamre estava agachado perto de Nicholas à beira do poço e, de repente, ergueu a mão. Quase ao mesmo tempo uma borboleta pousou em seu dedo. Ficou ali pousada abanando delicadamente as asas aveludadas pretas e amarelas. Eles ficaram admirados, pois era como se o inseto tivesse vindo a seu convite. Tamre deu um risinho contido e ofereceu a borboleta a Royan. Quando ela estendeu o braço, o rapaz transferiu gentilmente o belo inseto para a palma da mão dela

— Obrigada, Tamre. É um presente maravilhoso. Agora o meu presente para você é libertá-la de novo. — Ela fechou os lábios e soprou a borboleta. Eles a olharam voar para o alto, por cima do poço, enquanto Tamre juntava as mãos e ria deliciado.

— É estranho — Nicholas murmurou. — Parece que ele tem uma empatia especial por todos os animais selvagens. Acho que Jali Hora, em vez de controlá-lo, deixa-o fazer tudo o que dita a sua inocente fantasia. Um tratamento especial para uma alma ingênua que ouve uma melodia diferente e a dança. Devo admitir que, apesar de tudo, estou gostando do garoto.

Somente depois de subir mais uns 20 metros eles chegaram à nascente. Havia um rochedo baixo de arenito vermelho que formava uma gruta, em cuja base brotava o riacho. A entrada era recoberta por touceiras de samambaias, e Nicholas ajoelhou-se para afastá-las e espiar pela abertura baixa.

— O que está vendo? — Royan perguntou atrás dele.

— Pouco. É escuro aqui, mas parece continuar para algum lugar.

— Você é muito grande para entrar aí. É melhor eu tentar.

— É um bom lugar para cobras — ele lembrou. — Há muitos sapos para alimentá-las. Tem certeza de que quer entrar?

— Eu nunca disse que queria. — Ela sentou-se para desamarrar os sapatos, então desceu o barranco e entrou no riacho. A água batia no meio de suas coxas, e ela avançava com dificuldade contra a correnteza.

Teve de encolher-se para rastejar sob o teto da gruta. Quando estava lá dentro, sua voz chegou até Nicholas.

— O teto fica mais baixo.

— Tome cuidado, querida menina. Não se arrisque muito.

— Gostaria que não me chamasse de "querida menina" — a voz de Royan soava estranhamente pela boca da gruta.

— Bem, você é as duas coisas: querida e menina. Prefere que a chame de "jovem senhora"?

— Também não. Meu nome é Royan. — Fez-se silêncio por um tempo, então ela chamou-o outra vez: — Isto é o mais longe que posso ir. Tudo se estreita numa espécie de funil.

— Um funil?

— Bem, pelo menos não é nenhuma abertura claramente retangular.

— Acha que é feita pelo homem?

— Não dá para saber. A água jorra de dentro dela como de uma mangueira larga. É um jato forte.

— Algum sinal de escavação? Marcas de ferramenta na pedra?

— Nada. É lisa e gasta pela água, e está coberta de musgo e algas.

— Daria para entrar nessa abertura, apesar da pressão da água?

— Só se for um pigmeu ou um anão.

— Uma criança? — ele sugeriu.

— Ou uma criança — Royan concordou. — Mas quem mandaria uma criança lá dentro?

— Os antigos costumavam usar crianças escravas. Taita deve ter feito o mesmo.

— Não diga isso. Está destruindo o alto conceito que tenho dele — ela disse, já saindo pela boca da gruta. Havia folhas de samambaia e musgo em seus cabelos, e Royan estava molhada da cintura para baixo. Nicholas estendeu-lhe a mão e puxou-a para o barranco. As curvas de suas nádegas eram claramente visíveis através da calça molhada, e Nicholas obrigou-se a não se deter nessa visão.

— Então devemos concluir que a abertura é um acidente natural no calcário e não um túnel feito pelo homem?

— Eu não disse isso. Não, o que eu disse é que não tinha certeza. Você provavelmente tem razão. Eles podem ter usado crianças para escavá-lo. Afinal, elas foram usadas nas minas de carvão durante a Revolução Industrial.

— Mas não há jeito de explorar o túnel por este lado?

— Impossível — Royan foi veemente. — A água sai sob forte pressão. Tentei enfiar o braço pela abertura, mas não tive força.

— Que pena! Estava esperando uma evidência irrefutável, ou pelo menos outra pista. — Nicholas sentou-se ao lado dela no barranco e procurou alguma coisa na mochila. Royan fez um ar de curiosidade quando o viu tirar um pequeno instrumento de aço anodizado e abrir a tampa.

— É um barômetro aneróide — ele explicou. — Todo navegador devia ter um. — Estudou-o por um momento e anotou a leitura.

— Explique melhor — ela pediu.

— Quero saber se esta nascente está abaixo do nível da boca do ralo que encontrei no poço de Taita. Se não estiver, poderemos cortá-la de nossa lista de possibilidades.

Nicholas levantou-se.

— Quando estiver pronta, podemos ir.

— Aonde?

— Ora, para o poço de Taita, é claro. Preciso fazer uma leitura lá de cima para estabelecer a diferença de altitude entre os dois pontos.

Quando Tamre ficou sabendo para onde eles iam, mostrou-lhes um atalho, de modo que levaram apenas duas horas desde a nascente até o alto do penhasco que dominava o poço de Taita.

Enquanto descansavam, Royan observou:

— Tamre deve passar a maior parte do tempo andando pelo mato. Conhece todos os caminhos e atalhos. É um excelente guia.

— Pelo menos é melhor que Boris — Nicholas concordou, enquanto olhava o barômetro e fazia outra leitura.

— Você me parece particularmente satisfeito — notou Royan.

— Tenho todos os motivos para estar. Considerando os cinqüenta e quatro metros de altura do penhasco e mais quinze de profundidade do poço, a boca do ralo ainda está trinta metros acima da boca da gruta, do outro lado do vale.

— O que significa...?

— Significa que existe uma clara possibilidade de que os cursos sejam exatamente o mesmo. A entrada é aqui, no poço de Taita, e o escoamento lá na gruta.

— Como foi que Taita fez isso? — ela perguntou. — Como chegou ao fundo do poço? Você, que é bom em engenharia, diga-me como se faz isso.

Nicholas ergueu os ombros, mas Royan persistiu:

— O que estou querendo dizer é que deve haver alguma maneira de fazê-lo, de se trabalhar sob a água. Como foi que eles construíram as pilastras de uma ponte, as fundações da represa ou... como foi que Taita fez aquela abertura abaixo do nível do Nilo para medir o fluxo do rio? Lembra-se da descrição que ele faz de seu hidrógrafo em O Último Deus do Nilo?

— A técnica tradicional é construir câmaras de eclusa — Nicholas disse casualmente, então parou e olhou para ela. — Meu Deus, você é mesmo formidável! Uma represa! Acho que o velho rufião, Taita, represou todo este maldito rio!

— Será possível?

— Começo a acreditar que para Taita tudo é possível. Certamente ele possuía poderes ilimitados à disposição, e se conseguiu construir o hidrógrafo do Nilo em Assuã é porque conhecia muito bem os princípios da hidrodinâmica. Afinal, a vida dos antigos egípcios estava totalmente vinculada às inundações sazonais do rio e ao controle delas. Por tudo o que já vimos do velho Taita, não duvido.

— E como poderemos provar isso?

— Encontrando vestígios de sua represa. Deve ter sido um trabalho infernal conter o Rio Dandera. Há chances de que alguma evidência ainda permaneça.

— Onde ele teria construído a represa? — ela se animou. — Para ser mais clara, onde você colocaria a represa, se fosse construí-la?

— Existe um lugar ideal — Nicholas respondeu prontamente. — O ponto em que a trilha se desvia para entrar no vale e o rio despenca no abismo. — Os dois viraram a cabeça ao mesmo tempo e olharam rio acima.

— O que estamos esperando? — ela perguntou, já se levantando. — Vamos dar uma olhada!

O entusiasmo deles era contagiante, e Tamre saiu na frente, saltitando e dançando por todo o caminho através dos espinheiros, depois pelo vale, até o ponto em que este voltava a encontrar o rio. O sol já não era tão forte quando eles novamente se encontraram sobre as cachoeiras do Dandera, no ponto em que o rio despencava no abismo, dando seu último salto em direção ao Nilo.

— Se Taita construiu a represa do outro lado... — Nicholas descreveu uma curva com os braços na boca da garganta —, pode ter desviado o rio para este vale aqui.

— Não é impossível. — Royan riu. Tamre também deu um riso contido, sem entender uma única palavra do que diziam, mas divertindo-se imensamente.

— Eu precisaria de um nível de telescópio fixo para medir o declive real do terreno. Pode enganar muito, mas a olho nu não parece impossível, como você diz. — Nicholas protegeu os olhos com as mãos e olhou para o alto dos penhascos que ladeavam a cachoeira. Formavam dois portais alcantilados de calcário, entre os quais o rio bramia quando passava pela embocadura.

— Gostaria de subir lá para ter uma noção mais clara do terreno. Você tem coragem?

— Tente me impedir — ela o desafiou, e começou a subir. Era uma dura escalada; em alguns pontos o calcário estava gasto e se desmanchava perigosamente. Entretanto, quando chegaram ao topo do portal ocidental, foram recompensados com uma vista esplêndida do terreno abaixo.

Diretamente ao norte, o escarpamento erguia-se num paredão íngreme, com ameias dentadas e serrilhadas. Acima e além dele divisavam-se as montanhas, os altos picos do Choke, azuladas como a plumagem das garças contra o azul mais claro e distante do céu africano.

Tudo em volta eram as terras áridas da garganta, um vasto emaranhado de espinheiros e pedras de cinqüenta matizes diferentes, algumas cinza e brancas, outras negras como couro de búfalo ou vermelhas como sangue. A vegetação ribeirinha era verde, o mesmo verde-vivo e venenoso das cobras mamba na copa das árvores, enquanto os espinheiros distantes da água eram cinzentos e ressequidos, destacando-se no meio deles a silhueta rígida de velhas árvores secas, com seus galhos torturados.

— A imagem da devastação — Royan sussurrou. — Selvagem e indomável. Não admira que Taita tenha escolhido este lugar. Afasta qualquer intruso.

— Agora já podemos ter uma boa noção — observou Nicholas mostrando o vale embaixo. — Há uma clara linha divisória lá onde o vale se bifurca. Dá para notar a inclinação natural do terreno. É a parte mais estreita fica daquele lado da garganta até este ponto onde nós estamos. É o funil por onde passa o rio... um local natural para uma represa. — Ele apontou para baixo, à esquerda de onde estavam. — Não custaria muito desviar o rio para o vale. Quando ele terminasse de fazer o que pretendia no penhasco, seria muito mais fácil demolir a barragem e deixar que o rio retomasse seu curso natural.

Tamre não desviava os olhos deles, voltando-os ora para um ora para outro; não entendia nada do que escutava, mas reproduzia as expressões de Royan como um espelho. Se ela assentia com a cabeça, ele fazia o mesmo; se ela franzia as sobrancelhas, ele também franzia; e quando ela ria, ele a imitava.

— É um grande rio... — Royan balançou a cabeça, enquanto Tamre fazia o mesmo com ares de sábio. — Que método ele terá usado? Uma barragem de terra? Será?

— Os antigos egípcios abriam canais na terra e construíam represas para irrigação — Nicholas refletiu. — Por outro lado, quando tinham pedras, eles as usavam para tudo. Eram exímios pedreiros. Você já deve ter visto as pedreiras de Assuã.

— Não há muito solo arável aqui na garganta — ela observou. — Mas está cheio de pedras. É um museu geológico. Todo tipo de rochas que se queira.

— Concordo. É bem provável que Taita tenha usado pedras para construir a parede da represa. Os antigos egípcios fizeram isso há muito tempo. Se for esse o caso, é possível que restem alguns vestígios.

— Muito bem, vamos trabalhar com essa hipótese. Taita construiu uma represa com blocos de pedra e depois a destruiu. Onde poderíamos encontrar seus restos?

— Devemos começar a procurar no terreno mais adequado — ele respondeu. — Lá onde a garganta se afunila. Depois seguiremos procurando rio abaixo.

Eles desceram novamente; Tamre indicava o melhor caminho a Royan, parando para esperá-la sempre que ela fazia uma pausa para respirar. Saíram no afunilamento do vale e pararam no barranco rochoso do rio.

— Que altura deviam ter as paredes?

— Não eram muito altas. Não posso ter uma resposta precisa até verificar os níveis. — Nicholas subiu mais um pouco pela encosta da montanha. Lá ele se agachou e olhou para trás e para a frente, primeiro para o vale, depois para o lado da cachoeira, onde o rio saltava sobre o abismo.

Por três vezes Nicholas mudou de posição, cada uma delas subindo mais um pouco no rochedo, que a cada passo se tornava mais íngreme. No final, ele escalava com dificuldade a encosta, mas parecia satisfeito. Então chamou Royan.

— Eu diria que é mais ou menos aqui, onde eu estou. Esta devia ser a altura da parede da represa: uns cinco ou seis metros.

Ainda no barranco do rio, Royan olhou para a outra margem, calculando a que distância ficavam os rochedos de calcário.

— É mais ou menos uns trinta metros de largura — ela gritou para Nicholas.

— Mais ou menos — ele concordou. — Muito trabalho, mas não impossível.

— Taita nunca se intimidou com tamanhos e dificuldades. — Ela fechou as mãos em torno da boca para gritar: — Já que está aí em cima, consegue ver algum sinal de construção? Taita teria de fixar a barragem no rochedo.

Nicholas andou mais pela encosta, sempre no mesmo nível, até ficar diretamente sobre a cachoeira e não poder continuar. Então escorregou até onde Royan estava.

— Nada? — ela perguntou, e ele fez que não com a cabeça.

— Mas não se pode querer que reste alguma coisa, depois de quase quatro mil anos. Estas montanhas ficaram expostas ao vento e à intempérie por todo esse tempo. Acho melhor procurarmos pelos blocos das paredes da represa que possam ter sido arrastados quando Taita a destruiu para inundar novamente o abismo.

Eles andavam pelo vale, quando Royan encontrou um pedaço de pedra que parecia diferente das outras. Tinha o tamanho de um antigo baú. Embora estivesse encoberta pela vegetação, a parte superior estava exposta e tinha um canto com ângulo bem definido. Ela chamou Nicholas para ver.

— Olhe isto. — Royan batia na pedra orgulhosamente. — O que acha?

Ele aproximou-se e alisou a superfície da pedra.

— É possível — concordou. — Mas para ter certeza precisaríamos encontrar as marcas da talhadeira, onde os antigos pedreiros começavam a fraturar a pedra. Como você sabe, eles talhavam um buraco, depois o aprofundavam até a pedra se partir.

Os dois examinaram detalhadamente a superfície, e embora Royan tivesse encontrado alguns dentes que lhe pareceram marcas de talhadeira, Nicholas só aceitou em parte.

— Estamos correndo contra o tempo — ele disse, obrigando-a a se afastar de sua descoberta —, e ainda temos muito para olhar.

Procuraram pelo vale mais uns 500 metros à frente, e então Nicholas desistiu.

— Mesmo com a maior das inundações é improvável que os blocos tenham sido carregados até aqui. Vamos voltar e ver se alguma coisa teria rolado pelas cachoeiras para dentro do abismo.

Voltaram para a margem do Dandera e desceram o rio até as cachoeiras.

— Não parece tão profundo aqui como mais à frente — Nicholas calculou. — Acho que tem menos de trinta metros.

— Acha que poderia descer lá? — Royan perguntou, duvidosa. A água espirrava em seu rosto, e eles tinham de gritar para serem ouvidos.

— Só com uma corda forte e homens para me puxar de volta. — Ele inclinou-se na beirada da pedra e focalizou o binóculo lá embaixo. Era uma miscelânea de pedras soltas — pequenas, arredondadas, e uma ou duas bem maiores. Algumas eram angulosas, e outras, com um pouco de imaginação, poderiam ser consideradas retangulares. Entretanto, a superfície delas fora alisada pela ação da água. A maioria estava parcialmente submersa ou era escondida pelos borrifos da cachoeira.

— Não acredito que possamos chegar a uma conclusão daqui de cima, e, para dizer a verdade, não me imagino descendo lá embaixo... pelo menos não esta noite.

Royan sentou-se ao lado dele, abraçando os joelhos recolhidos contra o peito. Estava desanimada.

— Então não podemos ter certeza de nada. Taita represou o rio, ou não?

Com muita naturalidade, Nicholas passou o braço pelos ombros dela para consolá-la; logo em seguida Royan relaxou e descansou a cabeça em seu peito. Eles olhavam em silêncio para o abismo. Por fim, ela afastou-se delicadamente e se levantou.

— Acho que devemos voltar para o acampamento. Quanto tempo levaremos para chegar?

— Pelo menos três horas — ele disse, também se levantando. — Você tem razão. Estará escuro antes de chegarmos, e hoje não há lua.

— É estranho como a gente se sente cansada quando se decepciona — ela disse, espreguiçando-se. — Eu poderia me deitar e dormir aqui mesmo, num dos blocos de pedra de Taita. — Royan fez uma pausa e olhou para ele. — Nicky, onde foi que ele os conseguiu?

— Onde os conseguiu? — ele repetiu, confuso.

— Não percebe? Estamos indo pelo caminho errado. Até agora tentamos descobrir o que aconteceu com os blocos. Esta manhã você mencionou as pedreiras de Assuã. Não deveríamos considerar onde Taita encontrou os blocos de sua represa, em vez do que aconteceu com eles?

— A pedreira! — Nicholas exclamou. — Meu Deus, você está certa! Pelo início, não pelo fim. Deveríamos estar procurando a pedreira, não os restos da represa.

— Por onde começamos?

— Pensei que você soubesse. — Ele deu uma risada e imediatamente Tamre também riu. Os dois olharam para o garoto.

— Acho que devemos começar por Tamre, nosso fiel guia — ela disse, e pegou a mão dele. — Ouça, Tamre, ouça bem o que vou lhe dizer. — Obediente, ele inclinou a cabeça e olhou para ela, buscando sua errática concentração.

— Estamos procurando o lugar de onde vêm estas pedras quadradas. — Ele parecia aturdido, então Royan tentou novamente: — Há muito tempo existiam homens que cortavam pedras nas montanhas. Em algum lugar perto daqui eles fizeram um grande buraco. Será que ainda existem esses blocos quadrados de pedra no buraco?

De repente o rosto do menino se iluminou num sorriso beatífico.

— A pedra de Jesus! — ele gritou alegremente, e levantou-se sem soltar a mão dela. — Vou mostrar a pedra de Jesus — e começou a puxá-la, já descendo para o vale.

— Espere, Tamre! — Royan pediu. — Mais devagar. — Não adiantou. Tamre não diminuiu o passo e começou a cantar um hino em amárico. Nicholas seguiu-os e só os alcançou mais adiante.

Encontrou Tamre de joelhos, com a cabeça encostada no paredão de pedra do vale, de olhos fechados e orando. Royan estava ao lado dele.

— Que diabo vocês estão fazendo? — Nicholas inquiriu.

— Rezando — ela respondeu naturalmente. — Instruções de Tamre. Temos de rezar antes de irmos à pedra de Jesus.

Ela afastou-se de Nicholas, fechou os olhos, pousou as mãos sobre eles e começou a rezar em voz baixa.

De repente, Tamre se pôs em pé de um salto e executou uma dança, balançando os braços e girando até a poeira erguer-se do chão. Então parou e cantou.

— Pronto. Vamos entrar na pedra de Jesus.

Novamente, pegou a mão de Royan e levou-a até o paredão de pedra. Eles desapareceram diante dos olhos de Nicholas, deixando-o levemente alarmado.

— Royan! — ele chamou. — Onde está você? O que está havendo? Ele se aproximou do paredão e exclamou assombrado:

— Meu Deus! Jamais encontraríamos isto em um ano de busca!

A face do rochedo dobrava-se sobre si mesma, formando uma passagem oculta. Ele cruzou essa abertura olhando as paredes verticais, e trinta passos à frente saiu num grande anfiteatro, com pelo menos 100 metros de diâmetro, a céu aberto. As paredes eram rocha sólida, e Nicholas viu de relance que eram do mesmo xisto micáceo do bloco que Royan havia encontrado no chão do vale.

Era evidente que a cavidade tinha sido esculpida na pedra viva, em camadas que subiam até o alto do paredão. Os nichos de onde os blocos haviam sido arrancados ainda eram visíveis, como degraus profundos com bordas em ângulo reto. Um pouco de capim e de vegetação rasteira havia encontrado um apoio precário nas rachaduras, mas a pedreira não fora encoberta por essa vegetação, e Nicholas viu que um estoque de blocos de granito trabalhados permanecia espalhado no fundo da escavação. Estava tão assombrado pela descoberta que não encontrava palavras para se expressar. Ficou parado na entrada, girando lentamente a cabeça de um lado para outro, tentando assimilar tudo.

Tamre conduzira Royan para o centro da pedreira, onde repousava uma grande lousa isolada. Era óbvio que os antigos iriam removê-la e transportá-la para o vale, porque estava lavrada na forma de um retângulo perfeito.

— A pedra de Jesus! — entoou Tamre, ajoelhando-se diante da rocha e puxando Royan para seu lado. — Jesus me trouxe aqui. Na primeira vez, ele estava em pé nessa pedra. Tinha uma longa barba branca e olhos tristes e gentis. — Ele fez o sinal-da-cruz e começou a entoar um salmo, balançando o corpo no ritmo.

Enquanto Nicholas se aproximava silenciosamente, notou que Tamre visitava regularmente aquele lugar, para ele sagrado. A pedra de Jesus era seu altar privativo, e suas patéticas oferendas estavam onde ele as havia deixado. Eram velhos frascos de tej e potes de cerâmica, na maior parte rachados e quebrados. Dentro deles havia flores silvestres, colhidas há muito tempo. Havia outros tesouros que ele recolhera e levara para seu altar: cascos de tartaruga e espinhos de ouriço, uma cruz de madeira feita à mão, decorada com retalhos de tecidos coloridos, colares e contas, animais e pássaros moldados no barro azul do rio.

Nicholas parou e ficou olhando os dois ajoelhados e rezando juntos diante daquele altar primitivo. Emocionava-o profundamente a fé do menino e a confiança de levá-los àquele lugar.

Por fim, Royan se levantou e aproximou-se dele. Juntos, começaram a circular pela pedreira. Falavam pouco, e mesmo assim em sussurros, como se estivessem numa catedral ou num local sagrado. Ela tocou-lhe o braço e apontou. Inúmeros blocos quadrados permaneciam em sua posição original nas paredes da pedreira. Não haviam sido totalmente removidos da pedra-mãe, como um feto ligado pelo cordão umbilical que nunca fora cortado pelos antigos pedreiros.

Era uma ilustração perfeita dos métodos de escavação usado pelos antigos. Podia-se ver o progresso do trabalho em seus vários estágios, desde os contornos chanfrados do bloco, feitos pelo artesão-mestre, as perfurações da broca, até o produto final arrancado da parede e pronto para ser transportado ao local da obra.

O sol se punha e estava quase escuro quando terminaram a volta completa da pedreira. Sentaram-se lado a lado num dos blocos trabalhados, com Tamre a seus pés como um cachorrinho, olhando para o rosto de Royan.

— Se tivesse rabo, ele o estaria abanando — Nicholas sorriu.

— Jamais traia sua confiança ou desrespeite este lugar de alguma maneira. Ele fez daqui seu templo particular. Acho que nunca trouxe outra pessoa aqui. Promete que vai respeitá-lo sempre, aconteça o que acontecer?

— É o mínimo que posso fazer — Nicholas concordou, e voltou-se para Tamre: — Você fez uma coisa muito boa nos trazendo aqui. Estou muito agradecido. A moça também está muito agradecida a você.

— Devíamos voltar para o acampamento agora — Royan sugeriu, olhando para o céu. Já estava púrpura e anil, colorido pelos últimos raios do crepúsculo.

— Não acho que seria muito sábio — ele discordou. — Porque é uma noite sem lua e poderíamos facilmente quebrar uma perna no escuro. Isso não é recomendável aqui em cima. Poderia levar uma semana para receber atendimento médico adequado.

— Pretende dormir aqui? — Royan perguntou, surpresa.

— Por que não? Posso acender um fogo em um minuto, e trouxe um pacote de ração de sobrevivência para o jantar... Já fiz isso antes como você sabe. E está com seu protetor ao lado, portanto sua honra está salva. Por que não?

— É, por que não? — Ela riu. — Poderemos fazer uma inspeção mais detalhada da pedreira amanhã cedo.

Ela se levantou para começar a juntar os gravetos, mas parou e olhou para cima. Também tinha ouvido aquele silvo de hélices no ar.

— O helicóptero da Pégaso — Nicholas disse desnecessariamente. — O que é que estão procurando a uma hora dessas?

Ambos ficaram olhando para o céu escuro e viram as luzes de navegação do aparelho piscando 300 metros acima — vermelha, verde e branca — e seguir para o sul, na direção do mosteiro.

icholas fez uma pequena fogueira num canto da pedreira, perto da entrada; todos sentaram-se ao redor do fogo enquanto ele dividia um pacote de ração desidratada

em três porções. Os tabletes foram umedecidos e amaciados com a água dos cantis.

O fogo criava reflexos fantasmagóricos nos paredões de pedra e ampliava as sombras. Quando um bacurau gorjeou em um nicho no

alto do paredão, foi tão lúgubre e evocativo que Royan ficou arrepiada

e sentou-se mais perto de Nicholas.

— Será que Taita está assistindo ao nosso progresso em algum lugar do além? — ela perguntou. — Tenho a sensação de que agora o estamos deixando mais preocupado. Desenredamos a primeira parte do quebra-cabeça criado para nós, mas aposto que ele nunca imaginou que alguém conseguisse fazê-lo.

— O próximo passo será chegar ao fundo daquele poço. Isso sim vai ser um golpe para o velho demônio. O que acha que encontraremos lá embaixo?

— Reluto em falar — Royan respondeu. — Prefiro não dizer qualquer coisa que possa dar azar.

— Não sou supersticioso. Bem, pelo menos não a esse ponto. Posso dizer? — Nicholas sugeriu, e ela riu em assentimento. — Esperamos encontrar a entrada da tumba do Faraó Mamose. Nada de pistas, enigmas e arenques vermelhos. A verdadeira tumba.

Ela cruzou os dedos.

— Que Deus o ouça! — Então ficou mais séria. — Quais serão as nossas chances de encontrar o túmulo intato?

Nicholas ergueu os ombros.

— Responderei a essa pergunta quando chegarmos ao fundo do poço.

— E como faremos isso? Você falou em usar cilindros de oxigênio.

— Não sei — ele confessou. — A esta altura, simplesmente não sei. Talvez consigamos entrar lá com escafandros.

Royan ficou em silêncio enquanto considerava a aparente impossibilidade da tarefa que tinham pela frente.

— Ânimo! — ele passou o braço pelos ombros de Royan, que fez um movimento para se afastar. — Ao menos temos um consolo: se Taita dificultou tanto para nós, fez o mesmo para qualquer um que já tenha tentado. E acho que, se a tumba estiver mesmo lá embaixo, nenhum ladrão de túmulos chegou na nossa frente.

— Se a entrada for no fundo do poço, então as descrições de Taita nos pergaminhos são propositalmente confusas. As informações que nos chegaram foram deturpadas por Taita, depois por Duraid e, finalmente, por Wilbur Smith. Estamos diante da tarefa de encontrar nosso próprio caminho por esse labirinto de informações totalmente desencontradas.

Eles ficaram em silêncio novamente, então Royan sorriu e seu rosto iluminou-se à claridade da fogueira.

— Oh, Nicky, que desafio mais excitante! — Então seu tom de voz baixou uma oitava: — Mas haverá um meio? Será possível entrar lá?

— Nós vamos descobrir.

— Quando?

— Na devida hora. Ainda não pensei muito nisso. A única coisa que sei é que vai exigir muito planejamento e trabalho duro.

— Você ainda está disposto, então? — Royan queria sua garantia, pois sabia que jamais faria isso sozinha. — Não está desanimado com o projeto?

Nicholas riu.

— Confesso que não esperava que Taita nos levasse a uma caçada tão animada. Pensei que simplesmente fôssemos quebrar uma pedra e encontrar tudo lá, esperando por nós, como Howard Carter na tumba de Tutancâmon. Entretanto, a resposta à sua pergunta é sim, embora eu esteja muito apreensivo com tudo o que isso implica — mas nada me deteria agora! Sinto o cheiro de glória nas narinas, e vejo o ouro brilhando sob os olhos.

Enquanto conversavam, Tamre havia-se deitado na areia do outro lado da fogueira, com a cabeça coberta pelo shamma. Seu sono deve ter sido interrompido por sonhos e fantasias, porque ele murmurava, rangia os dentes e dava risadinhas sem parar.

— Gostaria de saber para onde vai essa pobre cabeça demente e o que será que ele vê — Royan sussurrou. — Ele disse que viu Jesus aqui na pedreira, e tenho certeza de que acredita nisso piamente.

As vozes tornavam-se sonolentas enquanto o fogo queimava, e Royan murmurou antes de adormecer no ombro de Nicholas:

— Se o túmulo do Faraó Mamose estiver abaixo do nível do rio, seu conteúdo não terá sido danificado pela água?

— Não acredito que Taita tenha construído uma represa e trabalhado quinze anos para fazer o túmulo, como ele diz nos pergaminhos, para deixar que a água estragasse a múmia de seu rei e arruinasse seu tesouro — murmurou Nicholas, sentindo o cabelo de Royan fazer cócegas em seu queixo. — Não, isso impossibilitaria a ressurreição do faraó no outro mundo, e seu trabalho seria totalmente inútil. Acho que Taita calculou muito bem tudo o que fez.

Ela aconchegou-se mais a ele e suspirou satisfeita. Pouco depois, Nicholas disse suavemente:

— Boa noite, Royan. — Mas ela não respondeu, e ele deu um suave beijo em sua cabeça.

Nicholas não teve certeza do que o acordou. Levou algum tempo para se localizar e ver que ainda estava na pedreira. Não havia lua, mas as estrelas brilhavam próximo da terra, gordas e inchadas como cachos de uva madura. Viu Royan dormindo no chão ao seu lado.

Levantou-se com cuidado para não perturbá-la e afastou-se das brasas da fogueira para esvaziar a bexiga. A noite estava mortalmente silenciosa. Não se ouviam pássaros noturnos ou o som de qualquer outro animal. As pedras em volta ainda irradiavam o calor do dia anterior.

De repente, o ruído se repetiu. Era um leve e distante sussurro que ecoou pelos paredões de pedra, de modo que ele não podia localizar de onde vinha. Mas conhecia muito bem aquele som. Já o ouvira muitas vezes. Eram disparos distantes de uma arma de fogo automática, provavelmente um rifle de assalto AK-47, não numa longa seqüência, mas em detonações curtas de três rodadas, uma arte que exigia prática e perícia. Ele tinha certeza de que o atirador era um profissional treinado.

Nicholas ficou ouvindo durante algum tempo, mas os tiros não se repetiram. Por fim, voltou para junto de Royan e acomodou-se novamente ao lado dela. Entretanto, seu sono era superficial e intermitente, pronto para ser interrompido a qualquer momento se ele ouvisse novos disparos.

Royan começou a se espreguiçar aos primeiros reflexos alaranjados da aurora no céu do oriente; enquanto comiam o resto da ração de sobrevivência na refeição matinal, Nicholas contou sobre os tiros que o despertaram durante a noite.

— Acha que foi Boris? — ela perguntou. — Deve ter encontrado Mek e Tessay.

— Duvido muito. Boris saiu atrás deles já faz alguns dias. A essa hora estará muito mais longe do que o local daqueles tiros, ou do alcance do som de armas mais pesadas.

— O que acha que foi, então?

— Nem imagino. Mas não gostei. Devemos voltar para o acampamento depois que dermos outra olhada na pedreira. Depois, não há mais nada que possamos fazer por aqui no momento. Vamos arrumar nossas coisas e voltar para casa e para a mamãe.

Tão logo a luz permitiu, Nicholas começou a tirar fotos da pedreira. Para comparar a escala, Royan posou diante do paredão no qual ainda havia blocos embrionários. Imbuída de seu papel de modelo, começou a brincar com Nicholas. Subiu numa laje e posou como se a golpeasse com um machado, ou com um braço atrás da cabeça, como Marilyn Monroe.

Quando, por fim, desciam o vale em direção ao mosteiro, estavam ambos exultantes e excitados com seus sucessos. Conversavam animadamente sobre idéias que iam e vinham, traçando planos para a futura exploração dessas maravilhosas descobertas. Quando chegaram aos rochedos rosados, no lado mais baixo do abismo, a manhã estava alta. Foi quando viram um pequeno grupo de monges subindo pela trilha. Mesmo de longe percebia-se que algo terrível acontecera na ausência deles: os lamentos ululantes dos religiosos deixaram Royan arrepiada. Era o som de lamentação habitual na África, anúncio de morte e de tragédia. Quando chegaram mais perto, viram os monges pegando punhados de areia da trilha e jogando sobre a cabeça, aos prantos e lamúrias.

— O que é isso, Tamre? — Royan perguntou. — Vá perguntar o que foi.

Tamre correu para seus irmãos. Parados no meio do caminho, eles conversavam em altos brados, chorando e gesticulando. Então ele voltou.

— As pessoas do seu acampamento. Uma coisa terrível aconteceu. Homens maus vieram durante a noite. Muitos criados morreram — ele gritou.

Nicholas agarrou a mão de Royan.

— Venha! — disse imediatamente. — Vamos ver o que aconteceu.

Correram os últimos 800 metros e encontraram mais um grupo de monges em volta de alguma coisa diante da tenda de refeições. Nicholas empurrou-os para poder passar. Parou diante do que viu, com uma expressão de horror e sentindo um profundo mal-estar. Sob o zumbido de um enxame de moscas azuis, os corpos do cozinheiro e de mais três criados estavam caídos ao chão. Tinham as mãos amarradas nas costas e haviam sido obrigados a ajoelhar-se para receber um tiro à queima-roupa atrás da cabeça.

— Não olhe! — Nicholas advertiu Royan, que estava chegando. — Não é nada bonito.

Mas ela ignorou o conselho e parou a seu lado.

— Oh, meu Deus! Foram chacinados como gado no abatedouro.

— Isso explica os tiros que ouvi ontem à noite — Nicholas respondeu amargamente. Ele adiantou-se para identificar os cadáveres. — Aly e Kif não estão aqui. Onde estarão? — Então gritou em árabe: — Aly, onde está você?

O mateiro adiantou-se entre o grupo de pessoas.

— Estou aqui, efêndi. - Sua voz estava trêmula e o rosto, pálido. Havia sangue em sua camisa.

— Como isso aconteceu? — Nicholas segurou o braço dele para acalmá-lo.

— Vieram uns homens armados de noite. Shufta. Atiraram nas cabanas onde vocês dormem. Não deram nenhum aviso. Já chegaram atirando.

— Quantos eram? Quem eram? — Nicholas exigiu.

— Não sei quantos eram. Estava escuro e eu dormia. Fugi quando começaram a atirar. Eram shuftas, bandidos, assassinos. São umas hienas, uns chacais... não tinham motivo para fazer isso. Eram meus irmãos, meus amigos — ele começou a soluçar, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Royan virou-se, nauseada e horrorizada. Foi para a sua cabana e parou na porta. O lugar fora revirado. Suas malas estavam abertas no chão, os lençóis rasgados e o acolchoado de dormir jogado a um canto. Como uma sonâmbula, ela entrou na cabana e pegou o envelope de lona onde guardava seus papéis. Virou-o para baixo e o sacudiu. Estava vazio. As fotos de satélite e os mapas, todos os decalques do monólito e as Polaroids tiradas por Nicholas no túmulo de Tanus haviam desaparecido.

Royan ergueu a cama de campanha e colocou-a no lugar. Sentou-se para tentar ordenar os pensamentos, pois sentia-se perdida e abalada. A imagem daqueles cadáveres ensangüentados com buracos de balas no corpo, caídos no chão, não lhe saía da cabeça, embotando a concentração e o raciocínio.

Nicholas entrou na tenda e olhou ao redor.

— Fizeram a mesma coisa comigo. Revistaram minha cabana. Levaram meu rifle e todos os meus papéis. Ao menos o passaporte e os cheques de viagem ficaram na minha mochila. — Ele parou quando viu o envelope de lona caído aos pés de Royan. — Eles levaram os...

— Sim — ela se antecipou. — Levaram todo o nosso material de pesquisa, inclusive as Polaroids. Graças a Deus os rolos de filme ficaram com você. Aconteceu tudo de novo. Nunca vou me livrar deles, nem aqui nem nos lugares mais remotos do mundo. — Sua voz beirava a histeria. Royan levantou da cama e correu para ele.

— Oh, Nicky, o que teria acontecido se estivéssemos aqui ontem à noite? — Ela atirou-se ao pescoço dele. — Estaríamos deitados sob o sol, cobertos de sangue e de moscas.

— Calma, minha querida. Não vamos nos ater à primeira impressão. Podem muito bem ter sido bandidos.

— Por que roubariam nossos papéis? Que valor teriam para um shufta os decalques e fotos? Lembra-se de que escutamos o helicóptero da Pégaso pouco antes do ataque? Estavam atrás de nós, Nicky, eu tinha certeza disso. Querem nos matar como fizeram com Duraid. Podem voltar a qualquer momento, e agora estamos desarmados e desprotegidos.

Está bem, concordo que aqui estaremos muito vulneráveis. Temos de sair o mais rápido possível. Não temos mais nada a fazer por aqui no momento. — Ele a abraçava na tentativa de acalmá-la. — Anime-se!

Vamos salvar tudo o que pudermos dessa bagunça e pegar logo os caminhões.

— E os homens que morreram? — Ela se afastou e pôs-se a enxugar as lágrimas do rosto e recuperar o controle. — Quantos dos nossos sobreviveram?

— Aly, Salim e Kif escaparam. Conseguiram fugir da cabana e esconder-se no mato quando o tiroteio começou. Já disse para se aprontarem para paitirmos imediatamente. Conversei com os monges. Eles cuidarão do enterro dos homens e comunicarão às autoridades quando puderem. Mas concordam que o ataque era contra nós, que ainda corremos perigo e que devemos sair logo daqui.

Em uma hora eles estavam prontos para partir. Nicholas decidiu deixar todo o equipamento e o caminhão de Boris a cargo de Jali Hora. Como as mulas não tinham muita carga, o plano era subir a pé até o alto da garganta.

O abade lhes deu uma escolta de monges até o topo do escarpamento.

— Somente um verdadeiro ateu atacaria vocês sob a proteção da cruz — ele explicou.

Nicholas encontrou o couro seco do dik-dik ainda na cabana de despela. Enrolou-o e o amarrou ao cesto de uma mula; em seguida deu ordem para que a pequena caravana começasse a subida.

Tamre se insinuara no grupo de monges que os acompanhava. Manteve-se perto de Royan quando se puseram a caminho, seguidos durante um quilômetro pelos acenos e despedidas da comunidade monástica.

O calor do meio-dia era abrasador. O ar não se movimentava para aliviá-lo, e os paredões do vale sugavam o calor do sol inclemente, cuspindo-o de volta enquanto escalavam seus rochedos. O suor que brotava dos poros deixava manchas de cristais de sal na pele e nas roupas. Os muladeiros, apavorados, mantinham um passo desesperado, marchando atrás dos animais e cutucando-os por baixo das pernas com uma vara pontuda, para que não perdessem o trote.

No meio da tarde haviam refeito o mesmo caminho do dia anterior e novamente chegaram ao suposto local da represa de Taita. Nicholas e Royan pararam um pouco para molhar a cabeça no rio e tirar o sal e o suor do rosto e do pescoço. Então ficaram lado a lado no alto das cachoeiras e deram um breve adeus ao abismo no qual repousavam todos os seus sonhos e suas esperanças.

— Quando voltaremos? — ela perguntou.

— Não ficaremos longe por muito tempo. As grandes chuvas chegarão logo e as hienas já farejaram o cheiro e estão se aproximando. De agora em diante, cada dia será precioso e cada hora que perdermos poderá ser crucial.

Ela olhou para o fundo do abismo e disse baixinho:

— Você ainda não venceu, Taita. O jogo mal começou.

Eles voltaram juntos e seguiram as mulas pela trilha que levava ao desfiladeiro. Nessa noite não pararam no local tradicional de acampamento, mas continuaram por vários quilômetros até que a escuridão os obrigou a parar. Ninguém pensou em armar um acampamento confortável. Comeram bolos de pão injera molhados no pote de wat, que haviam sido levados pelos monges. Depois Nicholas e Royan estenderam seus sacos de dormir lado a lado e caíram num sono exausto e profundo.

Ia manhã seguinte, enquanto as mulas eram carregadas ao lusco-fusco do amanhecer, eles beberam uma xícara do café etíope, forte e amargo. Então puseram-se novamente a caminho.

Quando o sol nascente clareou os paredões íngremes do desfiladeiro, os penhascos pareciam bastante próximos. Nicholas comentou com Royan, que se apressou para alcançá-lo:

— Neste ritmo vamos chegar ao alto do desfiladeiro esta tarde, e é possível que tenhamos de dormir na gruta atrás da queda-d'água.

— Isso quer dizer que vamos economizar alguns dias de viagem e alcançaremos os caminhões amanhã.

— Possivelmente. Não vejo a hora de cair fora daqui.

— Parece uma armadilha — Royan concordou, olhando os paredões de pedras rachadas que se erguiam de ambos os lados, confinando-os numa estreita passagem ao lado do Rio Dandera.

"Andei pensando algumas coisas, Nicky."

— Vamos ouvir suas conclusões.

— Não são conclusões, apenas algumas idéias perturbadoras. Suponhamos que alguém da Pégaso esteja agora com nossos decalques e fotos, e que consiga entendê-los. Como irá reagir quando vir os progressos que já fizemos em nossa busca?

— Realmente, não são bons pensamentos — ele concordou. — Por outro lado, não há muito que possamos fazer até voltarmos à civilização, exceto manter os olhos bem abertos e nossa boa intuição. Diabo, não tenho nem mesmo meu pequeno Rigby. Somos um bando de patos sentados.

Aly, os muladeiros e os monges pareciam ter a mesma opinião, pois jamais diminuíam o passo. Somente ao meio-dia fizeram a primeira parada para esquentar o café e dar água às mulas. Enquanto os homens faziam fogo, Nicholas pegou o binóculo no cesto de uma mula e começou a subir uma encosta. Não havia andado muito quando olhou para trás e viu que Royan o seguira. Esperou que ela o alcançasse.

— Devia aproveitar para descansar — ele disse num tom sério. — Uma insolação pode ser muito perigosa.

— Não confio em você andando por aí sozinho. Quero saber o que está pretendendo.

— Vim dar uma espiada. Devíamos ter mandado alguém na frente, e não andar cegamente pela trilha como estamos fazendo. Se me lembro bem das marchas para o interior, os piores lugares estão bem à nossa frente. Só Deus sabe aonde é que estamos indo.

Eles continuaram subindo, mas não puderam chegar ao topo porque um rochedo vertical impossível de se escalar lhes barrou o caminho. Nicholas procurou o melhor ponto sob essa barreira para enxergar o vale à frente. O terreno era como ele lembrava. Estavam chegando aos paredões do desfiladeiro, e o terreno tornava-se mais acidentado e difícil, como um oceano se avoluma ao pressentir a terra e, assustado, enrola-se numa onda antes de quebrar na praia. A trilha seguia bem próximo ao rio. Os rochedos que se penduravam sobre o corredor entre os dois barrancos haviam sido esculpidos pela ação da intempérie nas formas mais estranhas e ameaçadoras, lembrando ameias de um terrível castelo de bruxa num velho desenho de Disney. Em certo ponto, um contraforte de arenito avançava sobre a trilha e obrigava o rio a desviar-se, reduzindo o caminho de tal forma que uma mula carregada dificilmente passaria sem derrubar o barranco na água.

Nicholas examinou atentamente o vale com o binóculo. Como não havia nada que parecesse suspeito ou deslocado, ele ergueu o instrumento para examinar o alto dos rochedos.

Nesse momento a voz de Aly se fez ouvir, ecoando pela encosta:

— Depressa, efêndi! As mulas estão prontas para seguir. Nicholas acenou para baixo, mas voltou a erguer o binóculo a fim de vasculhar uma última vez o terreno. De repente, viu um reflexo luminoso — um brilho efêmero, como um sinal de heliógrafo. Voltou toda a sua atenção para o ponto de onde viera o reflexo.

— O que é? O que está vendo? — Royan perguntou.

— Não tenho certeza. Provavelmente nada — ele respondeu, sem afastar o binóculo. Pensou que talvez fosse o reflexo de metal polido, de lentes de outro binóculo ou do cano de um rifle. Por outro lado, uma lâmina de mica ou um seixo de cristal rochoso refletiriam a luz do sol da mesma maneira, além de algumas babosas ou outras plantas suculentas com folhas luminescentes. Nicholas observou o ponto durante alguns minutos, até ouvir novamente a voz de Aly:

— Vamos, efêndi. Os condutores de mula não vão esperar. Nicholas baixou o binóculo.

— Tudo bem. Não é nada. Vamos.

Pegou o braço de Royan para ajudá-la a descer pelo terreno acidentado. Nesse instante, ouviu um ruído de pedras rolando no alto da encosta e apertou o braço dela para fazê-la parar. Esperaram, olhando para cima.

De repente, um par de longos chifres retorcidos apareceu sobre o rochedo — era um velho kudu, com orelhas de trompete empinadas e as franjas da papada brilhando ao sol. Estava parado à beira do rochedo, bem acima de onde eles estavam agachados, por isso não os vira. O kudu virou a cabeça e olhou para trás. Seu olho visível brilhava e a posição de sua cabeça, juntamente com a postura tensa e alerta, deixava claro que alguma coisa o perturbara.

Por um longo tempo ele ficou nessa posição, então resfolegou e, ainda sem perceber a presença de Nicholas e Royan, disparou numa corrida. Sumiu de vista, mas no silêncio do lugar ouvia-se de longe o som de suas patas.

— Alguma coisa o assustou.

— O quê? — perguntou Royan.

— Qualquer coisa... um leopardo, talvez — Nicholas respondeu hesitante, olhando para baixo. A caravana de mulas e de monges já tinha partido e subia pela trilha ao longo da margem do rio.

— O que vamos fazer? — Royan perguntou.

— Devíamos fazer um reconhecimento do terreno... se tivéssemos tempo, o que não temos. — A caravana se distanciava rapidamente. A menos que descessem logo, ficariam para trás, sozinhos e desarmados. Nicholas não tinha nenhum motivo concreto para agir, mas ao mesmo tempo precisava tomar uma decisão.

— Vamos! — Ele pegou a mão de Royan e os dois escorregaram pela encosta. Quando alcançaram a trilha, tiveram de correr para alcançar o final da caravana.

Agora que novamente faziam parte da coluna, Nicholas podia voltar sua atenção para os rochedos com mais cuidado. As pedras que se inclinavam sobre a cabeça bloqueavam a metade do céu. O rio à esquerda encobria qualquer outro som com sua correnteza ruidosa e borbulhante.

Nicholas não estava realmente alarmado. Orgulhava-se de sentir o perigo de longe, um sexto sentido que salvara sua vida mais de uma vez. Considerava-o um sistema de pré-alarme, mas que agora não enviava nenhuma mensagem. Havia inúmeras explicações para o reflexo que vira no alto do rochedo e para a reação do kudu.

Entretanto, nada disso o convencia, e ele permanecia atento aos terrenos elevados sob os quais passavam. Percebeu um movimento mínimo no alto de um penhasco, alguma coisa girando no ar e caindo — uma folha seca levada pela brisa. Era muito pequena e insignificante para oferecer algum perigo, mesmo assim ele a seguiu com o olhar, concentrado.

A folha marrom desceu em espiral e por fim tocou de leve seu rosto. Num ato reflexo, Nicholas ergueu a mão e pegou-a. Esfregou as faces marrons com os dedos, esperando que se quebrassem. Em vez disso, eram macias e tinham uma textura lisa.

Abriu a mão para examinar melhor. Não era uma folha, mas um pedaço de papel impermeável, marrom e translúcido. De repente todos os seus alarmes interiores soaram. Não se tratava apenas da incoerência daquele papel industrializado num local tão remoto. Ele reconhecia a qualidade e a textura daquele tipo particular de papel. Aproximou-o do nariz e cheirou. Um cheiro forte de ácido nitroso se concentrou no fundo de sua garganta.

— Gelatina! — ele exclamou em voz alta, reconhecendo imediatamente o odor.

A gelatina explosiva raramente era empregada com fins militares, agora que existiam o Semtex e os explosivos plásticos, mas ainda era amplamente usada na indústria de mineração. Em geral, bastões de nitroglicerina em polpa de madeira e uma base de nitrato de sódio eram embrulhados com esse papel impermeável. Antes de se colocar o detonador na ponta do bastão, era comum rasgar um pedaço do papel para expor o explosivo. Nicholas já usara muito esse material em outras épocas, e jamais esqueceria seu cheiro.

Ele pensou rápido. Se alguém que os espreitava houvesse minado o penhasco com explosivos, o reflexo que vira só podia ser dos fios de cobre ligados ao equipamento. Se fosse isso, então o operador devia estar agora escondido lá em cima, pronto para apertar o botão da caixa de circuito. O kudu tinha fugido ao perceber a presença humana.

— Aly! — ele gritou. — Faça-os parar! Mande-os voltar! Nicholas começou a correr em direção ao início da caravana, mas

sabia que era tarde demais. Se houvesse alguém no alto do penhasco, estaria observando todos os movimentos do grupo. Jamais chegaria ao início da coluna a tempo de fazer as mulas voltar pela estreita trilha e deixá-las em segurança, antes que... Nesse instante ele parou e olhou para Royan. A segurança dela era sua principal preocupação. Voltou correndo e puxou-a pelo braço.

— Venha! Vamos sair da trilha!

— O que é isso, Nicky? Você ficou louco? — Ela resistiu, tentando soltar-se.

— Explico depois — ele devolveu bruscamente. — Confie em mim agora.

Ele a arrastou alguns passos até que ela cedeu e o acompanhou. Não haviam corrido 50 metros quando a face do penhasco explodiu. Um forte deslocamento de ar quase os derrubou. Golpeou-lhes a cabeça dolorosamente, ameaçando implodir a delicada membrana de seus ouvidos. Então a principal força da explosão os envolveu, não apenas uma única explosão, mas uma detonação demorada como um trovão rolando pelos céus. Atordoados, eles se chocaram e perderam a orientação da fuga.

Apesar do horror, Nicholas pôde apreciar a perícia com que o explosivo fora colocado. Tratava-se de um especialista em bombas. As colunas de pedra fragmentada precipitavam-se sobre eles, erguendo uma nuvem fulva e espiralada de terra contra o céu azul; a princípio a destruição pareceu ser total. Então a silhueta do rochedo começou a se modificar.

Lentamente a princípio, o paredão de pedra se inclinou para fora e a superfície se abriu em rachaduras que lembravam bocas famintas. Camadas de pedra rolavam em câmara lenta. A rocha rugia, quebrava-se e estrondava ao rolar para dentro do rio.

Como que hipnotizado pela terrível visão, o cérebro de Nicholas parecia insensibilizado. Foi preciso muito esforço para pensar e agir. Ele viu que o centro da explosão havia ocorrido mais adiante, próximo ao início da caravana. Tamre estava lá, ao lado de Aly. Ele e Royan encontravam-se na outra extremidade. Quem detonara a bomba obviamente esperava que chegassem ao epicentro da armadilha explosiva, mas fora obrigado a acionar o detonador quando os vira correr de volta pela trilha, percebendo que tinham sido alertados e poderiam escapar.

Mesmo assim não estavam livres — poderiam ser alcançados pela força periférica do deslocamento de terra que deslizava acima deles. Sempre puxando Royan, Nicholas levantou a cabeça para o rochedo e fez um cálculo desesperado.

Olhou petrificado para a grande onda que rolava sobre a trilha, atingindo homens e mulas e arrastando-os para o rio. Engolia-os como a língua de um terrível monstro, para mastigá-los até os ossos com suas presas afiadas de pedra vermelha. Os gritos desesperados podiam ser ouvidos sobre os estrondos.

A onda de destruição espalhou-se até ele e Royan. Se estivessem no local da explosão, teriam as mesmas chances que os outros, mas a força destrutiva se dissipava à medida que descia o rochedo. Por outro lado, Nicholas viu que não havia como fugir, pois o que quer que os atingisse ainda seria devastador.

Não houve tempo para explicar a Royan o que fariam — tinha apenas alguns segundos para agir. Pegando-a nos braços, Nicholas saltou na ribanceira. Os dois afundaram na água, mas 10 metros abaixo da superfície havia uma imensa pedra que deteve seu mergulho.

Meio atordoado, Nicholas puxou Royan para a superfície e arrastou-a para uma saliência protegida do barranco. Havia ali uma reentrância; eles se enfiaram ali e ficaram agachados. Encostados ao paredão, ambos prenderam a respiração quando o primeiro pedaço resvalou e passou por cima deles como uma gigantesca bola de borracha, ganhou velocidade com a força da gravidade e estilhaçou-se com uma violência tal que a pedra sob a qual se protegiam ressoou como o sino de uma catedral. O projétil caiu no rio, erguendo uma onda na superfície que arrebentou em ambas as margens.

Isso foi apenas o começo. Era como se metade da montanha estivesse despencando. Quando cada pedaço caía sobre o abrigo, lascas e pedaços de pedra espirravam para dentro do buraco, enchendo o ar que eles respiravam com uma poeira fina e um odor sulfuroso.

Nicholas cobria Royan com seu corpo. Uma pedra atingiu o lado de sua cabeça, causando-lhe um zumbido no ouvido, mas ele cerrou os dentes e resistiu ao impulso de ver o que havia sofrido. Sentiu um líquido quente e grosso escorrer por trás de sua orelha direita, descendo pelo rosto como algo com vida própria. Só ao lhe atingir o canto da boca ele pôde reconhecer que era um filete de sangue.

A poeira fina causava irritação na garganta, provocando tosse e sufocação. Entrava também nos olhos, obrigando-os a cerrá-los com força.

Um bloco de pedra do tamanho de uma carroça voou pelo ar e caiu bem perto de onde eles estavam. O impacto foi tão violento que Royan, debaixo de Nicholas, sentiu-se esmagar contra o chão enquanto o ar era expulso de seus pulmões. Achou que havia quebrado as costelas.

Então, gradativamente, o desmoronamento de terra e pedras começou a diminuir. A queda de pedaços grandes dentro do abrigo era menos freqüente e a poeira fina começava a assentar. Os estrondos foram parando aos poucos, até restar apenas o som da terra deslizando e o burburinho do rio.

Cautelosamente, Nicholas ergueu a cabeça e tentou abrir os olhos empoeirados. Royan mexeu-se sob ele, que se afastou para ela poder sentar. Olharam um para o outro. Seus rostos estavam brancos como máscaras kabuki e os cabelos pareciam perucas de aristocratas franceses do século 18.

— Você está sangrando — Royan sussurrou com a voz rouca por causa da poeira e do pavor.

Nicholas pôs a mão no rosto e sentiu a pasta de pó e sangue.

— É só um corte — ele disse. — E você?

— Acho que torci o joelho. Senti alguma coisa quando caímos. Não acho que seja grave. Dói um pouco.

— Tivemos uma sorte incrível. Ninguém sobreviveria a isso. Ela tentou se levantar, mas ele a impediu.

— Espere! Este barranco está abalado e instável. Vamos esperar um pouco. Ainda há pedras soltas. — Ele desamarrou o lenço que tinha no pescoço e o deu a ela. — Além disso, não queremos...

Ela limpou o rosto e perguntou com voz trêmula:

— O que ia dizer?

— Além disso, não queremos que aqueles canalhas lá em cima saibam que sobrevivemos à sua festinha. Vão querer descer aqui para terminar o serviço e cortar nossa garganta. É melhor deixá-los pensar que desaparecemos, como pretendiam.

Ela olhou assustada.

— Você acha que eles continuam nos observando?

— Pode apostar — Nicholas respondeu ironicamente. — Devem estar satisfeitos por terem finalmente se livrado de você. Não vamos aparecer agora e acabar com a alegria deles.

— Como soube o que ia acontecer? — ela perguntou. — Se você não tivesse me puxado...

Rapidamente, ele contou sobre o pedaço de papel de gelatina.

— Muito simples: eles escolheram a parte mais estreita da trilha e minaram o rochedo... — Ele interrompeu a explicação quando, fraco mas inquestionável, chegou até eles o ruído de um motor de aeronave e de hélices girando.

— Rápido! Encoste-se o máximo que puder na pedra. — Ele a puxou para dentro. — Deite-se no chão! — Royan obedeceu sem questionar, e ele se deitou ao seu lado, cobrindo-se com o entulho.

— Fique quieta. Não se mexa de jeito nenhum.

Ouviram o helicóptero aproximar-se e circular o local. O aparelho subia e descia sobre o vale, voando a poucos metros da superfície do rio. Num momento ficou exatamente sobre a saliência do barranco que os escondia, tão próximo que o vento das hélices os fustigou.

— Procuram sobreviventes — disse Nicholas com ironia. — Não se mexa. Ainda não nos viram.

— Se estivessem nos vendo antes da explosão, teriam vindo diretamente para cá — ela sussurrou. — Acho que não sabem onde procurar.

— Devem ter-nos perdido na poeira erguida pela avalanche, por isso não sabem onde estamos. — O barulho do helicóptero se distanciou aos poucos. — Vou arriscar uma espiada para ter certeza de que foi serviço da Pégaso... apesar de ser o único helicóptero que há por aqui. Mantenha a cabeça abaixada.

Ele ergueu-se divagar e cuidadosamente, bastando uma única olhada para que suas especulações se confirmassem. Oitocentos metros à frente, o Jet Ranger da Pégaso sobrevoava o rio. Afastava-se devagar, mas num ângulo tal que lyicholas não conseguia ver quem estava na cabina. Nesse instante, o barulho do motor mudou e o piloto inclinou o aparelho.

A aeronave subiu verticalmente e rumou para o norte. Nicholas teve uma visão melhor dos passageiros. Jake Helm estava na frente, ao lado do piloto, e o Coronel Nogo, no banco de trás. Ambos olhavam para o rio, mas em seguida o helicóptero levou-os para longe e desapareceu no alto do rochedo, seguindo para o desfiladeiro. O ruído do motor foi tragado pelo silêncio. Nicholas engatinhou para fora da pedra e ajudou Royan a se levantar.

Não há mais dúvidas. Agora sabemos com quem estamos lidando. Helm e Nogo estavam no helicóptero. Tenho quase certeza de que Helm colocou a gelatina e que Nogo comandou o ataque de ontem à noite ao nosso acampamento. Cada um na sua especialidade — disse Nicholas.

— Então está confirmado: seja quem for o proprietário da Pégaso, é o vilão que está por trás de tudo. Helm e Nogo são meros paus-mandados.

— Mas Nogo é um oficial do Exército etíope — ela protestou.

— Bem-vinda à África! — Ele não riu ao dizer isso. — Aqui tudo está à venda, inclusive os membros do governo e oficiais do Exército.

— Ele esfregou o rosto, descolando a crosta de poeira que se desfazia num pó fino. — Contudo, ainda temos de cair fora daqui e voltar à civilização.

Ele olhou para o alto da ribanceira. A trilha estava totalmente obstruída.

— Não podemos voltar por ali — ele disse a Royan, pegando sua mão. Quando ela se levantou, deu um grito e apoiou-se imediatamente na perna direita.

— Meu joelho! — E em seguida sorriu corajosamente. — Vai ficar bom.

Eles desceram com muito cuidado até o rio, temendo que seus movimentos provocassem outro deslizamento. A água lhes chegava à cintura, junto do barranco.

Royan ficou atrás de Nicholas e lavou o sangue e a terra do ferimento em sua cabeça.

— É pouca coisa — comentou. — Não precisa levar pontos.

— Tenho um tubo de pomada anti-séptica na bolsa — ele disse. Royan espalhou o ungüento cor de mostarda sobre o corte e amarrou o lenço de pescoço em torno da cabeça.

— Isso vai resolver — ela concluiu, dando um tapinha no ombro dele.

— Graças a Deus ainda tenho minha bolsa — Nicholas observou, fechando o zíper da bolsa presa ao cinto. — Pelo menos temos o essencial. Nossa tarefa agora é ver se há sobreviventes.

— Tamre! — Royan exclamou.

Subiram para a margem patinhando na água. O chão estava escorregadio por causa das pedras e da terra que caíra da montanha. Nos lugares mais profundos a água chegava à metade de seu peito, e Nicholas teve de erguer a mochila acima da cabeça. As pedras soltas eram muito traiçoeiras e cediam sob os pés quando tentaram sair da água para procurar os membros da caravana.

Acharam os corpos de dois monges, ambos encolhidos e meio soterrados. Nem sequer tentaram desenterrá-los. Uma das mulas estava caída de pernas para cima, com o corpo totalmente recoberto de pedras. A carga que ela levava estava virada e o conteúdo espalhado pelo chão. A pele enrolada e os chifres do dik-dik estavam enfiados em suas fezes. Nicholas recuperou-os e os amarrou ao cinto.

— Mais coisa para carregar — Royan avisou.

— Um quilo, mais ou menos; vale a pena — ele respondeu. Seguiram em direção ao ponto em que haviam perdido de vista

Aly e Tamre. Procuraram durante uma hora, mas não viram sinal deles. O penhasco acima deles era pura devastação: o solo rasgado, grandes pedras despedaçadas, arbustos e árvores arrancados do chão.

Royan subiu o máximo que seu joelho machucado lhe permitiu, então fechou as mãos em torno da boca e gritou:

— Tamre! Tamre! Tamre! — Seus gritos ecoaram pelos paredões do vale.

— Acho que ele não escapou. O pequeno demônio foi soterrado — Nicholas respondeu. — Já estamos aqui há uma hora. Não podemos ficar mais, se quisermos nos salvar. Vamos ter de deixá-lo.

Royan o ignorou e continuou andando pelo declive, fazendo as pedras soltas rolar sob seus pés; os joelhos lhe doíam muito.

— Tamre! Responda! — ela chamou em árabe. — Tamre! Onde está você?

— Royan! Chega disso! Você vai piorar desse joelho. Está nos pondo em risco, agora. Desista!

Nesse instante ambos ouviram um gemido no alto do deslizamento. Royan andou como pôde em direção ao som, escorregando para baixo enquanto subia, e por fim deu um grito de pavor. Nicholas soltou a mochila no chão e a seguiu. Chegou ao seu lado e caiu de joelhos.

Tamre estava soterrado. Seu rosto estava irreconhecível, a pele fora quase toda arrancada. Royan havia colocado a cabeça dele no colo e usava a manga da blusa para enxugar a secreção que lhe escorria pelas narinas, para que pudesse respirar mais livremente. O sangue vazava pelo canto de sua boca, e quando ele gemeu novamente esguichou numa golfada. Royan o acariciou, espalhando o sangue pelo rosto.

A parte inferior do corpo de Tamre estava enterrada, mas Nicholas tentava remover a pedra de cima; logo percebeu que era inútil. Uma pedra do tamanho de uma mesa de bilhar estava atravessada sobre o rapaz. Pesava muitas toneladas e certamente devia ter esmagado sua espinha e seu quadril. Um homem sozinho seria incapaz de mover aquele peso. E, mesmo que conseguisse, qualquer movimento sem dúvida agravaria o terrível sofrimento que Tamre suportava.

— Faça alguma coisa, Nicky — Royan murmurou. — Temos de fazer algo por ele.

Nicholas olhou para ela e balançou a cabeça. Os olhos de Royan encheram-se de lágrimas, que rolaram de suas pálpebras e caíram como gotas de chuva no rosto do menino.

— Não podemos ficar aqui esperando que ele morra — Royan protestou. Ao ouvir sua voz, Tamre abriu os olhos e voltou-os para ela.

Ele sorriu, e o sorriso iluminou o rosto destruído.

— Ummeel Você é minha mãe. É tão boa! Eu amo você, mamãe. As palavras se calaram e o corpo enrijeceu-se num espasmo. Com uma expressão de agonia, ele soltou um grito baixo, sufocado, e então relaxou. A rigidez desapareceu de seus ombros e a cabeça rolou para o lado.

Royan ficou muito tempo segurando a cabeça de Tamre, chorando baixo, mas amargamente, até que Nicholas tocou sua mão.

— Ele está morto, Royan. Ela assentiu com a cabeça.

— Eu sei. Esperou para se despedir de mim. Nicholas deixou-a chorar mais um pouco, então disse:

— Precisamos ir, minha querida.

— Você tem razão. Mas é difícil deixá-lo aqui. Ele nunca teve ninguém. Era tão sozinho... Chamou-me de mãe. Acho que me amava de verdade.

— Tenho certeza disso — Nicholas assegurou-lhe, erguendo a cabeça de seu colo e ajudando-a a se levantar. — Vá descendo na frente. Vou enterrá-lo da melhor maneira possível.

Nicholas cruzou as mãos de Tamre sobre seu peito, em torno do crucifixo de prata que ele trazia pendurado no pescoço. Depois espalhou pedras sobre o corpo, cobrindo a cabeça de modo que os corvos e urubus não o encontrassem.

Escorregou pelo barranco onde Royan o esperava na água e ergueu a mochila sobre o ombro.

— Precisamos ir — disse a Royan.

Ela secou as lágrimas do rosto com as costas da mão.

— Estou pronta.

Avançaram com muita dificuldade contra a corrente. As pedras haviam bloqueado metade do leito do rio e a água se espremia nos espaços deixados livres. Quando finalmente alcançaram o ponto da ribanceira que sofrera a avalanche, saíram do rio e tomaram o caminho por cima do barranco até chegarem à parte da trilha que nada sofrera.

Pararam um tempo para se recuperar e olharam para trás. A água do rio estava avermelhada por causa da lama. Mesmo que a explosão não tivesse chegado ao mosteiro, os monges perceberiam a cor da água e viriam investigar. Encontrariam os corpos e providenciariam um enterro decente. Esse pensamento confortou Royan. Quando retomaram a trilha, ainda tinham dois dias de viagem pela frente.

Royan mancava muito agora, mas toda vez que Nicholas tentava ajudá-la, recusava sua mão.

— Estou bem. Só estou mancando um pouco. — Ela não o deixava ver seu joelho e caminhava teimosamente à frente dele.

Andaram em silêncio a maior parte do tempo. Nicholas respeitava o luto de Royan, que agradecia por sua reserva. A capacidade que ela tinha de se calar e ao mesmo tempo não dar a impressão de estar distante do que a rodeava era uma de suas qualidades que ele mais admirava. Pouco conversaram mais tarde quando pararam para descansar.

— O único consolo que nos resta é que agora a Pégaso acredita que estamos seguramente enterrados sob o deslizamento e não nos incomodará mais. Podemos seguir sem perder tempo para vigiar o caminho à frente — disse-lhe Nicholas.

Acamparam nessa noite sob o escarpamento, imediatamente antes de o caminho subir pelo paredão vertical. Nicholas conduziu-a para fora da trilha e entrou numa área arborizada; ali fez uma pequena fogueira, que não pudesse ser vista de longe.

Por fim Royan cedeu e permitiu que ele examinasse seu joelho. Estava machucado e inchado.

— Você não devia ter andado com esse joelho.

— Tive alguma opção? — ela perguntou, e não teve resposta. Nicholas umedeceu o lenço de pescoço com água do cantil e amarrou-o apertado em torno da perna de Royan. Então encontrou um envelope de antiinflamatórios na bolsa presa ao cinto e a fez tomar dois comprimidos.

— Já está melhor — ela disse.

Dividiram o último pacote de ração, sentados ao lado do fogo e conversando em voz baixa.

— O que acontecerá quando chegarmos lá em cima? — Royan perguntou. — Os caminhões ainda estarão onde os deixamos? Será que os homens de Boris continuam lá? O que acontecerá se cairmos nas mãos do pessoal da Pégaso outra vez?

— Não posso dar essas respostas. Vamos ter de enfrentar os problemas à medida que aparecerem.

— Uma coisa vou fazer quando chegarmos a Adis Abeba: darei queixa à polícia etíope do massacre de nossos amigos. Quero que Helm e seus comparsas paguem pelo que fizeram.

Ele não respondeu imediatamente.

— Não sei se você deve fazer isso — aconselhou.

— O que quer dizer? Nós testemunhamos o assassinato. Não podemos nos omitir.

— Lembre-se de que queremos voltar à Etiópia. Se fizermos muito barulho agora, o vale logo ficará repleto de soldados e policiais. Isso poderia prejudicar nossas futuras tentativas de resolver o enigma de Taita e procurar a tumba de Mamose.

— Não havia pensado nisso. Mas foi um assassinato, e Tamre...

— Eu sei, eu sei — ele a tranqüilizou. — Mas há outras maneiras mais seguras de nos vingarmos da Pégaso do que entregá-la à justiça etíope. Pense no fato de que Nogo está trabalhando com Helm. Nós o vimos no helicóptero. Se a Pégaso tem um coronel do Exército em sua folha de pagamento, quem mais não terá? Toda a polícia? Outros oficiais? Membros do ministério? Até agora não sabemos de nada.

— Também não havia pensado nisso — ela admitiu.

— Vamos pensar em africano de agora em diante e aprender alguma coisa com os pergaminhos de Taita. Como ele, devemos ser astutos e simulados. Não vamos sair por aí gritando acusações. Seria muito melhor que conseguíssemos sair despercebidos do país, deixando que todos acreditem que fomos enterrados por aquela avalanche. Infelizmente sabemos que não vai ser assim. Mas, de agora em diante, devemos ser o mais cuidadosos e atentos que as circunstâncias permitirem.

Ela ficou com o olhar perdido nas chamas da fogueira por um longo tempo, então deu um suspiro e perguntou:

— Você disse que há uma maneira melhor de nos vingarmos da Pégaso. O que quer dizer?

— Ora, simplesmente que vamos surrupiar o tesouro de Mamose bem debaixo das barbas deles.

Royan riu pela primeira vez naquele dia terrível.

— Você está certo, é claro. Seja quem for o dono da Pégaso, quer tanto o tesouro que é capaz de matar por ele. Sem dúvida, arrancá-lo de suas mãos vai machucá-lo tanto quanto ele nos machucou.

Ambos se encontravam tão cansados que o dia já estava claro quando acordaram na manhã seguinte. Royan tentou se levantar, mas soltou um gemido e caiu sentada. Nicholas atendeu-a imediatamente, e dessa vez ela não protestou quando ele pôs sua perna no colo.

Ele desamarrou o lenço e examinou o joelho; tinha quase o dobro do tamanho normal, e os arranhões estavam inchados e vermelhos. Nicholas lavou o lenço e amarrou-o novamente. Deu a ela mais dois antiinflamatórios e ajudou-a a ficar em pé.

— Como está se sentindo? — perguntou, ansioso. Royan ensaiou alguns movimentos e riu corajosamente.

— Vai ficar bom depois que eu andar um pouco, tenho certeza. Ele olhou para o escarpamento que se erguia sobre eles. Assim tão

perto, o paredão parecia mais baixo, mas Nicholas não se esquecera dos caminhos tortuosos. Haviam levado um dia inteiro para descê-lo.

— É claro que vai. — Nicholas deu-lhe um sorriso encorajador e pegou seu braço. — Apóie-se em mim. Vamos dar um passeio pelo parque.

Assim, eles subiram durante toda a manhã a trilha, que ficava mais íngreme a cada passo. Ela jamais se queixava, embora estivesse pálida e suasse de dor. Ao meio-dia ainda não haviam alcançado a cachoeira, e Nicholas fez uma parada para descanso. Como não havia nada para comer, Royan bebeu avidamente no cantil. Ele não a alertou para a dificuldade de encontrar mais água, mas limitou-se a um único gole.

Quando Royan tentou se levantar, seu rosto contorceu-se de dor, e teria caído ao chão se Nicholas não a segurasse.

— Droga, droga, droga! — ela praguejou. — Não consigo andar.

— Não importa — ele disse rapidamente, esvaziando a bolsa de todo o conteúdo supérfluo e deixando apenas os itens essenciais. A pele de dik-dik foi amassada numa bola e enfiada dentro dela. — Você é leve. Suba no meu ombro.

— Você não pode me carregar até o topo. — Ela olhou consternada para a trilha íngreme como uma escadaria.

— É o único trem que parte desta estação — ele disse, oferecendo-lhe as costas. Royan subiu.

— Não acha que devia se livrar da pele do dik-dik? — ela perguntou.

— Nem pense nisso! — Nicholas respondeu, começando a subir. Era uma caminhada penosa. Depois de algum tempo não tinham mais nada para falar, e a escalada seguiu num silêncio mortal. O suor ensopava a camisa de Nicholas, mas Royan não se incomodava com a umidade quente que sentia através da blusa nem com o forte odor masculino. Pelo contrário, achava reconfortante e tranqüilizador.

A cada meia hora ele parava, colocava-a no chão e deitava-se em silêncio, de olhos fechados, até a respiração se normalizar. Então os abria e dizia:

— Hi ho, Silver! — Punha-se de pé e se agachava para ela subir.

À medida que o dia avançava, suas piadas foram se tornando mais forçadas e menos engraçadas. No meio da tarde, a subida tornou-se muito mais exaustiva, e nos locais mais difíceis Nicholas tinha de parar para dar o próximo passo. Royan tentava ajudá-lo, descendo de suas costas e apoiando-se em seu ombro nos pontos mais árduos, mas sabia que ele estava no limite de suas forças.

Nem um nem outro conseguiam acreditar na própria façanha quando saíram de uma curva e viram-se diante da cachoeira, jorrando como uma cortina de renda ao lado da trilha. Nicholas enfiou-se na gruta atrás da queda-d'água e colocou Royan no chão. Em seguida, jogou-se ao chão e lá ficou como morto.

Já estava escuro quando ele sentiu condições de abrir os olhos e se sentar. Enquanto ele descansava, Royan havia juntado gravetos e acendera uma pequena fogueira.

— Muito bem! — ele disse. — Se quiser um emprego de governanta...

— Não me tente. — Ela aproximou-se dele para ver como estava o corte na cabeça. — Bonita cicatriz. — Inesperada e impulsivamente, abraçou a cabeça dele em seu peito e acariciou-lhe a testa suada.

— Oh, Nicky! Como poderei recompensá-lo pelo que está fazendo por mim?

A resposta óbvia quase lhe escapou dos lábios, mas diante de seu estado de fraqueza Nicholas preferiu se calar. Não tinha condições de outras intimidades. Queria relaxar nos braços de Royan, sentir seu corpo, e não correr o risco de assustá-la com um movimento mais afoito.

Por fim, ela o deixou e sentou ao seu lado.

— Sinto muito, senhor, mas sua governanta não pode lhe oferecer salmão defumado e champanha no jantar. Que tal uma caneca de água da montanha, pura e nutritiva?

— Acho que podemos ter mais que isso. — Ele pegou a lanterna dentro da mochila e procurou no chão da gruta uma pedra redonda do tamanho de sua mão. Virou então o facho para cima e passou-o pelo teto da gruta. Imediatamente ouviu-se um farfalhar de asas e o arrulho assustado de pombos da montanha, que se empoleiravam nas saliências das pedras. Nicholas colocou-se por baixo deles e agitou o facho da lanterna, para deixá-los atordoados.

Na primeira pedrada conseguiu que vários pombos descessem para o chão, enquanto outros fugiam num alvoroço de asas. Nicholas saltou sobre uma das aves e com um movimento ágil torceu-lhe o pescoço.

— Que tal uma suculenta fatia de pombo assado? — ele perguntou a Royan.

Ela ficou deitada no chão, apoiada sobre o cotovelo, e ele sentado à sua frente com as pernas cruzadas, enquanto os dois arrancavam as penas marrons e cinza das aves mortas. Quando chegou a hora de estripá-las, Royan não sentiu nojo, como muitas mulheres diante dessa tarefa. Isso, juntamente com seu estóico desempenho durante a subida da montanha, confirmou a opinião de Nicholas a respeito dela — uma mulher que já provara muitas vezes ser corajosa e combativa. Os sentimentos de Nicholas se fortaleciam e amadureciam a cada dia.

Concentrada na remoção da penugem do peito das aves, Royan disse:

— Não tenho mais nenhuma dúvida de que o material roubado do acampamento está nas mãos do pessoal da Pégaso.

— Eu estava pensando a mesma coisa. E também sabemos, por aquela antena que vimos no canteiro de obras, que eles se comunicam por satélite. Pode apostar que Jake Helm já informou a seu chefe, seja ele quem for.

— E pode apostar que já tem todos os detalhes do monólito de Tanus. Sabemos também que está com o sétimo papiro. Se não for um especialista em egiptologia, deve ter contratado algum, concorda?

— Eu diria que ele mesmo sabe ler hieroglifos. Acho que deve ser um ávido colecionador. Conheço bem o tipo: um obcecado.

— Também conheço muito bem — ela sorriu. — Há um deles sentado na minha frente neste momento.

— Touché! — ele riu, erguendo as mãos em rendição. — Mas sou um pouco mais inofensivo que outros que posso citar. Aqueles dois da lista de Duraid, por exemplo.

— Peter Walsh e Gotthold von Schiller.

— São dois colecionadores homicidas — ele confirmou. — Tenho certeza de que nenhum deles hesitaria em matar para conseguir o tesouro do Faraó Mamose.

— Pelo que sei, são ambos milionários, ao menos em termos de dólares.

— Dinheiro não tem nada a ver com isso. Se eles colocarem as mãos no tesouro, jamais pensarão em vender um único objeto. Trancariam tudo num grande cofre e não deixariam ninguém pôr os olhos neles. Têm uma paixão bizarra, masturbatória.

— Que palavra estranha... — ela protestou.

— Mas é precisa, eu lhe asseguro. Trata-se de algo sexual, de uma compulsão, como a dos assassinos seriais.

— Eu adoro tudo o que é egípcio, mas sou incapaz de imaginar um desejo tão intenso.

— Lembre-se de que não se trata de homens comuns. A fortuna que possuem permite-lhes saciar todos os seus apetites. Os desejos humanos normais, naturais, logo se tornam desinteressantes. Eles podem ter tudo o que quiserem. Todos os homens e todas as mulheres. Todas as coisas, todas as perversões, legais e ilegais. No fim, precisam ter algo que ninguém mais possa ter. É a única coisa que ainda lhes dá um pouco de emoção.

— Então estamos lidando com um louco?

— Muito mais que isso — ele a corrigiu. — Estamos lidando com um maníaco imensamente rico e poderoso, que não se deterá diante de nada.

Eles reservaram restos de pombos assados para o café da manhã. Em seguida, enquanto um ia discretamente até o fundo da gruta e desviava o olhar, o outro se despia e se banhava sob a cachoeira.

Depois do calor da garganta, a água estava gélida e os atingia com a força de uma mangueira de incêndio. Royan entrou na água pulando numa perna só, ofegando e reclamando sob a torrente; saiu arrepiada e tremendo de frio. Entretanto, sentiu-se revigorada, e, apesar de vestir as mesmas roupas sujas e suadas, disposta a iniciar o último e mais árduo trecho para o cume do penhasco.

Antes de sair da caverna, eles examinaram novamente os ferimentos. O corte na cabeça de Nicholas estava sarando rapidamente, mas o joelho de Royan não havia melhorado desde o dia anterior. Os arranhões já começavam a apresentar uma coloração marrom-arroxeada, como um fígado em decomposição, e o inchaço aumentara. Pouco havia a fazer senão amarrá-lo outra vez com o lenço de pescoço.

Por fim, Nicholas cedeu e abandonou a bolsa de cinto e a pele do dik-dik. Estava chegando ao limite de sua resistência e sabia que, por mais leves que fossem esses objetos, cada grama extra que carregasse poderia significar a diferença entre alcançar o topo ou sucumbir no caminho. Manteve apenas os três rolos de filme em embalagens plásticas. Eram os únicos registros dos hieroglifos do túmulo de Tanus. Para não correr o risco de perdê-los, guardou-os no bolso da camisa e abotoou a lapela. Escondeu a bolsa e a pele do dik-dik numa rachadura da parede da gruta, para recuperá-las quando voltasse.

Então puseram-se a caminho para enfrentar o trecho mais difícil. No começo Royan conseguiu andar, mas apoiando o peso no ombro de Nicholas. Entretanto, uma hora depois o joelho não suportou mais o esforço e ela se sentou numa pedra à beira da trilha.

— Estou sendo terrivelmente inconveniente, não estou?

— Suba a bordo, moça. Há sempre lugar para mais um.

Com Royan montada nas costas de Nicholas, a perna machucada esticada para a frente, eles subiam penosamente, mas o progresso era mais lento que no dia anterior. Nicholas era obrigado a parar e descansar mais vezes. Nos trechos menos árduos, ela desmontava e andava numa perna só ao lado dele, apoiando-se em seu ombro. Mas logo caía, e Nicholas tinha de levantá-la e colocá-la nas costas novamente.

A viagem se tornava um pesadelo; ambos haviam perdido a noção do tempo. As horas se prolongavam numa agonia incessante. Num ponto do caminho eles se deitaram lado a lado no chão, nauseados de sede, exaustão e dor. Haviam esvaziado o cantil uma hora antes e não havia água nesse trecho — nada para beber até alcançar o topo e chegar ao Rio Dandera.

— Vá e deixe-me aqui - ela sussurrou com voz rouca. Nicholas sentou-se repentinamente e olhou para Royan.

— Não diga besteiras. Preciso do meu par para o baile.

— Não vou conseguir chegar ao topo — ela insistiu. — Traga os homens de Boris para me carregar.

— Se eles ainda estiverem lá e se a Pégaso não a encontrar antes. — Ele se levantou com dificuldade. — Nem pense nisso. Estamos juntos nisto, o tempo todo — e ajudou-a a ficar em pé.

Ele a fazia contar cada passo em voz alta, e no centésimo parava para descansar. Então recomeçava os próximos cem, com Royan contando baixinho em seu ouvido, os braços em torno de seu pescoço. O universo parecia limitar-se ao chão em que pisavam. Já não viam mais o penhasco de um lado nem o imenso vazio do outro. Quando Nicholas tropeçava ou dava um solavanco, ela fechava os olhos, tentava disfarçar a dor em sua voz e seguia contando.

Ele descansava encostado à parede do penhasco, pois não confiava que as pernas o sustentassem se acaso se deitasse. Não ousava colocar Royan no chão. O esforço para erguê-la novamente seria demasiado. Já não tinha forças para tanto.

— É quase noite — ela sussurrou ao ouvido dele. — Vamos dormir aqui. Já basta por hoje. Você está se matando, Nicky.

— Só mais cem — ele murmurou.

— Não, Nicky! Ponha-me no chão.

Em resposta, ele deu um impulso na pedra com o ombro e continuou a subir.

— Conte! — ordenou.

— Cinqüenta e um, cinqüenta e dois... — ela obedeceu. De repente, numa saliência mais pronunciada do rochedo Nicholas tropeçou e quase caiu. Havia um desnível do caminho, e como um bêbado ele desceu um degrau que não existia.

Nicholas oscilou, mas logo se recuperou. Reequilibrando-se na borda do precipício, ele espreitou a escuridão à frente e, a princípio, não soube se via luzes ou estava tendo uma alucinação. Em seguida ouviu vozes. Sacudiu a cabeça para voltar à realidade.

— Oh, meu Deus! Nós conseguimos. Estamos no topo, Nicky, estou vendo os veículos. Você conseguiu, Nicky! Você conseguiu!

Ele tentou falar, mas sua garganta estava fechada e a voz não saiu. Continuou andando na direção das luzes enquanto Royan gritava fracamente em suas costas.

— Ajudem-nos aqui! Por favor, nos ajudem — primeiro em inglês, depois em árabe.

Os homens ouviram os gritos e vieram correndo. Nicholas deixouse cair lentamente na grama macia do planalto e Royan escorregou de suas costas. As sombras agruparam-se em torno deles, falando em amárico, e mãos amistosas os pegaram e os levaram, meio arrastados, meio carregados, na direção da luz. Então alguém acendeu uma lanterna no rosto de Nicholas e pronunciou no mais puro inglês:

— Alô, Nicky. Que boa surpresa! Vim de Adis para procurar o seu cadáver. Ouvi dizer que estava morto. Um pouco prematuro, não?

— Alô, Geoffrey. Bondade sua se dar ao trabalho.

— Eu acho que você precisa tomar uma xícara de chá. Parece bem derrubado — disse o Tenente Geoffrey. — Não sabia que sua barba estava ficando branca. Assim, por fazer, está bem na moda. E combina com você.

Só então Nicholas se deu conta de como devia estar sua aparência: barbudo, sujo e abatido pelo cansaço.

— Lembra-se da Doutora Al Simma? Está com o joelho bem machucado. Poderia cuidar dela?

Mas suas pernas fraquejaram e o Tenente Geoffrey teve de segurálo para não cair.

— Agüente firme, meu amigo. — Ele levou-o até uma cadeira de lona e ajudou-o a sentar-se. Outra cadeira foi trazida para Royan.

— Letta chai hapa! — Geoffrey emitiu o chamado habitual de um inglês na África, e em poucos minutos grossas xícaras de chá fumegante e adoçado chegaram às mãos deles.

Nicholas ergueu sua xícara para Royan.

— A nós. Não há ninguém como nós.

Eles sorveram o líquido escaldante, e a cafeína e o açúcar entraram na corrente sangüínea como uma carga elétrica.

— Agora sei que estou vivo — suspirou Nicholas.

— Não quero ser intrometido, Nicky, mas se importa de me dizer que diabo está acontecendo aqui? — indagou Geoffrey.

— Por que você não me diz? — Nicholas contra-atacou. Precisava ganhar tempo para avaliar a situação. O que Geoffrey sabia e quem teria lhe contado? O tenente condescendeu imediatamente.

— Primeiro, ouvi dizer que o caçador branco seu amigo, o Brusilov, foi retirado do rio perto da fronteira sudanesa, com o corpo crivado de balas. Os peixes comeram seu rosto, mas a polícia o identificou pelos documentos na carteira.

Nicholas olhou para Royan e advertiu-a com um leve franzir de sobrancelhas.

— Na última vez em que o vimos ele saiu sozinho numa expedição de busca — Nicholas explicou. — Provavelmente encontrou o mesmo bando de shuftas que atacaram nosso acampamento quatro noites atrás.

— Sim, também soube disso. O Coronel Nogo comunicou às autoridades por rádio.

Nenhum dos dois havia visto Nogo até então. Quando ele entrou na área iluminada das lanternas, Royan estremeceu e seus olhos exibiram tanto ódio que Nicholas pegou sua mão disfarçadamente para impedi-la de cometer uma indiscrição. Ela relaxou e logo se recompôs.

— Que bom vê-lo, Sir Quenton-Harper. O senhor nos deu muitos dias de preocupação — disse Nogo.

— Peço desculpas — disse Nicholas tranqüilamente.

— Por favor, sir, não quero ofendê-lo, mas recebemos um relatório da Empresa de Mineração Pégaso de que o senhor e a Doutora Al Simma haviam morrido numa explosão acidental. Eu estava presente quando o Senhor Helm, da mineradora, avisou-lhes que estava realizando explosões na garganta.

— Mas o senhor... — Royan inflamou-se, e Nicholas apertou com força sua mão para que ela não continuasse.

— Deve ter sido um descuido nosso, como o senhor sugere. Mesmo assim, a Doutora Al Simma se feriu e estamos profundamente abalados com o acidente. O pior, contudo, é que várias outras pessoas, empregados do acampamento e monges do mosteiro foram assassinados no ataque shufta e na explosão. Tão logo voltarmos a Adis, darei meu depoimento completo às autoridades.

— Espero que não esteja pensando em responsabilizar... — Nogo começou, mas Nicholas o interrompeu:

— É claro que não! Não foi culpa sua. Fomos avisados da presença de shuftas na garganta. Como o senhor não estava lá, nada pôde fazer para impedir. Acho que o senhor cumpriu seu dever de modo exemplar.

Nogo mostrou-se aliviado.

— Muita delicadeza de sua parte, Sir Quenton-Harper. Nicholas ficou olhando para ele durante algum tempo. Parecia o mais amável dos homens por trás dos óculos de aros metálicos, tão solícito e preocupado em agradar. Por um momento quase acreditou que cometera um engano e que vira outra pessoa no Jet Ranger, sobrevoando o rio como um abutre à procura de seus corpos.

Nicholas forçou-se a sorrir da maneira mais simpática.

— Eu agradeceria muito se me fizesse um favor, coronel.

— É claro — Nogo concordou prontamente. — O que quiser.

— Deixei uma sacola e meus troféus de caça na gruta sob a cachoeira do Dandera. Na bolsa estão nossos passaportes e os cheques de viagem. Agradeceria se mandasse um de seus homens lá embaixo para buscá-la.

Enquanto dava as instruções de como encontrar suas posses, Nicholas extraía um perverso prazer em confiar a seu quase assassino uma missão tão trivial. Então voltou-se para o amigo para evitar que Nogo percebesse sua vingança.

— Como chegou até aqui, Geoffrey?

— Num avião leve até Debra Maryam. Há uma pista de emergência lá. O Coronel Nogo foi ao nosso encontro e nos trouxe até aqui num jipe do Exército — Geoffrey explicou. — O piloto e a aeronave estão nos esperando em Debra Maryam.

Geoffrey falou com os empregados do acampamento num amárico execrável e em seguida virou-se para Nicholas:

— Já mandei preparar um banho para você e a Doutora Al Simma. Depois, uma refeição e uma boa noite de sono poderão fazer milagres. Amanhã voaremos para Adis. Não há motivo para vocês não estarem lá amanhã à noite, no máximo.

Ele deu um tapinha no ombro de Royan, disfarçando seu interesse por ela atrás de um sorriso benigno.

— Preciso dizer que estou bastante aliviado por não ter de me enfiar lá embaixo, na garganta do Abbay, para procurar vocês dois. Ouvi dizer que é com certeza o pior lugar do mundo.

Importa-se que eu me sente na frente, doutora Al Simma? É terrivelmente rude de minha parte, mas sou propenso a enjoar em aviões. Ha, ha! — Geoffrey explicou a Royan enquanto esperavam três garotos espantar os bodes da pista de emergência de Debra Maryam. Nesse ínterim, Nicholas acomodara o rolo de pele sob um banco no fundo da aeronave. Um dos sargentos de Nogo descera o escarpamento na noite anterior e trouxera a sacola e a pele.

Nogo acenava para eles enquanto o avião taxiava na pista, levantando uma nuvem de poeira. Nicholas acenou de volta, sorriu e murmurou por trás do vidro:

— Vá se foder, Nogo.

Quando o avião decolou na faixa gramada, o horizonte sobre a garganta do Abbay assemelhava-se a um campo de cogumelos cósmicos, com imensas nuvens de trovoada alcançando a estratosfera. O espaço embaixo estava turbulento como um mar tempestuoso, sacudindo-os sem misericórdia nos bancos do avião. Mais à frente, Geoffrey parecia não estar se divertindo muito. Estava calado e não se interessava pela conversa.

Nicholas e Royan não haviam tido oportunidade, na noite anterior, de conversar em particular, porque Geoffrey e Nogo os tinham rodeado o tempo todo. Naquele momento, sentados lado a lado, com o barulho do motor encobrindo suas vozes e Geoffrey ocupado com seus pensamentos nauseados, tinham chance de preparar uma história.

Geoffrey deixara claro que o embaixador britânico em Adis Abeba não estava nada satisfeito com os inconvenientes que eles lhe haviam causado. Aparentemente, havia uma longa tira de faxes de Whitehall, que só aumentava desde que os dois haviam sido dados como desaparecidos. Para acrescentar, o comissário de polícia etíope devia estar louco para interrogá-los. Precisavam ter certeza de que não implicariam Mek Nimmur no assassinato de Boris Brusilov, e, ao mesmo tempo, não podiam de maneira alguma acionar o alarme da Pégaso. A reação dessa ala seria rápida e, provavelmente, letal, se permitissem a mínima suspeita de que sabiam quem era seu adversário no jogo de Taita.

Acima de tudo, precisavam evitar antagonismos com as autoridades etíopes ou dar-lhes algum motivo para cancelar seus vistos e declarálos imigrantes indesejáveis. Concordaram em fingir ignorância e fazer o papel de inocentes apanhados por acontecimentos imprevistos, que não compreendiam.

Quando desembarcaram em Adis Abeba, a história estava pronta e fora repassada muitas vezes, do começo ao fim. Tão logo o Cessna freou diante dos edifícios do aeroporto e o piloto desligou o motor, Geoffrey recobrou o ânimo, apenas com as olheiras mais esverdeadas, e estendeu a mão para ajudar Royan a descer do avião.

— Vocês ficarão na residência — disse a ela. — Os hotéis da cidade não são fáceis de encarar, e ELE tem um cozinheiro razoável e uma adega de vinhos aceitável. Vou arrumar algumas roupas para vocês. Minha patroa tem mais ou menos o seu tamanho, Doutora Al Simma, e as minhas caberão em Nicky como uma luva. Felizmente tenho um smoking extra. ELE tem certa tendência ao formalismo.

residência oficial do embaixador britânico fora construída no reinado do velho Imperador Hailé Selassié, antes da invasão de Mussolini, nos anos 30. Localizada nos arredores da cidade, era um exemplo da melhor arquitetura colonial, com telhado de palha e amplas varandas. Os gramados, cuidados por uma equipe de jardineiros, eram amplos e verdes, contrastando com o vermelho-vivo dos bicos-de-papagaio. A mansão sobrevivera a duas revoluções e à guerra de libertação que a elas se seguiu.

Na entrada principal, Geoffrey entregou-os a um mordomo negro, usando um shamma impecavelmente branco, que os conduziu a quartos vizinhos no andar superior. Nicholas ouvia o chuveiro correndo na suíte de Royan enquanto relaxava na banheira, bebendo uísque com soda e coçando os dedos dos pés nas torneiras. Ouvia o murmúrio da voz do médico examinando o joelho de Royan.

O smoking de Geoffrey ficou largo nos ombros e curto nos braços e nas pernas de Nicholas, e o sapato estava apertado; além disso, precisava de um corte de cabelo, constatou Nicholas ao se examinar no espelho.

— Agora não tem jeito — ele se resignou, e foi bater na porta de Royan.

— Que beleza! — exclamou quando ela abriu. Sylvia Tennant lhe emprestara um vestido de coquetel verde-limão que combinava maravilhosamente com o tom azeitonado de sua pele. Royan havia lavado a cabeça e tinha os cabelos soltos sobre os ombros. Ele sentiu o coração acelerar como o de um adolescente no primeiro encontro, e riu de si mesmo.

— Você está absolutamente deslumbrante — disse a ela, e falava sério.

— Obrigada, sir. — Royan sorriu de volta. — E o senhor está muito atraente. Posso tomar-lhe o braço?

— Eu esperava carregá-la. É uma atividade viciadora.

— Aquele tempo terminou — Royan disse, e apoiou-se na bengala de ébano entalhado que o mordomo providenciara. Usava-a do lado machucado. Quando cruzavam o longo corredor, ela cochichou de lado: — Quem é nosso anfitrião?

— O embaixador de Sua Majestade britânica, Sir Oliver Bradford, KCMG.

— Isso quer dizer Cavaleiro Comandante da Ordem de São Miguel e São Jorge, certo?

— Não — ele corrigiu. — "Favor chamar-me de Deus".

— Você é impossível — ela riu, mas logo voltou a ficar séria. — Conseguiu mandar o fax para a Senhora Street?

— Consegui na primeira tentativa e ela respondeu. Envia-lhe salamaleques e promete conseguir rapidamente informações sobre a Pégaso.

A noite estava agradável e Sir Oliver os recebeu na varanda. Geoffrey adiantou-se para fazer as apresentações. O embaixador tinha tufos de cabelos brancos e o rosto vermelho. Geoffrey já os prevenira de que os considerava turistas incômodos, mas o cenho hostil começou a se desanuviar no momento em que ele pôs os olhos em Royan.

Havia outras pessoas para jantar além dos Tennant, e Sir Oliver conduziu Royan pelo braço para apresentá-la aos grupos de convidados. Nicholas seguiu atrás, resignado com a constatação de que Royan causava boa impressão aos homens.

— Quero apresentar-lhe o General Obeid, comissário de polícia — disse Sir Oliver. O chefe da força policial etíope era alto, tinha traços marcantemente negros e ficava muito elegante em sua vistosa farda azul. Ele inclinou-se para beijar a mão de Royan.

— Temos um compromisso marcado para amanhã de manhã. Aguardo esse encontro com o maior prazer.

Royan lançou um olhar inquisitivo para Sir Oliver, pois não sabia disso.

— O General Obeid quer saber um pouco mais sobre o que aconteceu na garganta do Abbay — explicou Sir Oliver. — Tomei a liberdade de pedir a minha secretária que marcasse o encontro.

— Apenas uma entrevista de rotina, eu lhes asseguro, Doutora Al Simma e Sir Nicholas. Tomarei pouco tempo de vocês, prometo-lhes.

— É claro que faremos tudo o que pudermos para ajudá-lo — Nicholas respondeu polidamente. — A que horas devemos ir?

— Pode ser às onze horas, se estiver bom para vocês.

— Uma hora muito civilizada — concordou Nicholas.

— Meu motorista estará pronto às dez e meia para levá-los ao quartel — prometeu Sir Oliver.

À mesa, Royan sentou-se entre Sir Oliver e o General Obeid. Linda e charmosa, recebia toda a atenção dos dois homens. Nicholas teria de se acostumar a dividir sua companhia com outros homens; já a tivera só para si por muito tempo.

Ele, por sua vez, achou que Lady Braoford, na outra ponta da mesa, tinha muitos quilos a mais. Era a segunda esposa do embaixador, trinta anos mais jovem que ele; tinha pronunciado sotaque londrino e uma aparência ainda mais acentuadamente vulgar, com uma juba loira tingida e um busto improvável que transbordava de seu décolletage de lantejoulas. Folias de velho, concluiu Nicholas. Aparentemente, ela se considerava perita em genealogia da aristocracia britânica — em outras palavras, era uma esnobe deslavada. Questionou-o minuciosamente sobre seus antepassados, insistindo em remontar a várias gerações.

Quando terminou, ela dirigiu-se ao marido do outro lado da mesa:

— Sir Nicholas é proprietário de Quenton Park, você sabia, querido? — Então voltou-se para Nicholas: — Meu marido é um excelente atirador.

Sir Oliver mostrou-se muito impressionado com a inteligência da esposa.

— Quenton Park? Li um artigo outro dia no Shooting Times. Tem lá um campo de caça que se chama Faias Altas, não é?

— Pinheiros Altos — Nicholas corrigiu-o.

— Dizem que lá estão os melhores pássaros da Grã-Bretanha. — Sir Oliver estava entusiasmado e parecia interessado na resposta.

— Não sei nada sobre isso — Nicholas protestou com modéstia. — Mas temos orgulho deles. Venha para uma caçada na próxima vez em que for para a Inglaterra... como meu convidado, é claro.

A partir daí a atitude de Sir Oliver para com Nicholas mudou drasticamente. Ele tornou-se afável e solícito, a ponto de pedir ao mordomo para trazer uma garrafa de Lafite 1954.

— Você causou boa impressão — Geoffrey murmurou ao lado de Nicholas. — Ele só divide seu 1954 com poucos privilegiados.

Passara da meia-noite quando Nicholas finalmente conseguiu se livrar de sua anfitriã e resgatar Royan de Sir Oliver e do General Obeid. Amparando-a em seu encantador coxear, ele a conduziu pela casa, evitando os olhares gulosos e especulativos do Tenente Geoffrey, que os acompanhou até o pé da escada.

— Definitivamente, você foi a estrela da noite — Nicholas disse a Royan diante da porta do quarto.

— E você ficou com Lady Bradford ronronando no seu ouvido — ela contra-atacou, e Nicholas adorou perceber um leve ciúme em sua voz. Pelo menos não estava sozinho.

Diante do quarto, Royan resolveu o impasse oferecendo-lhe o rosto, que ele beijou timidamente.

— Que peitos! — ela murmurou. — Não tenha pesadelos com eles à noite. — E fechou a porta atrás de si.

Nicholas sentia-se lépido quando foi para o quarto. Ao abrir a porta, encontrou um envelope no chão. Durante o jantar algum empregado devia tê-lo enfiado sob a porta. Rapidamente ele rasgou o envelope e desdobrou as páginas. Sua expressão mudava à medida que as lia; em seguida, foi bater à porta de Royan.

Ela abriu logo e espiou por um vão.

— A resposta do fax. — Ele mostrou as páginas. — Posso entrar?

— Um momento. — Ela fechou a porta e abriu um segundo depois.

— Entre.

Então mostrou as garrafas de bebida dentro do armário. i

— Quer um digestivo?

— Acho que estou precisando. Agora já sabemos de quem é a Pégaso.

— Diga-me! — Mas Nicholas foi se servir de uma dose de scotch, oferecendo-lhe por cima do ombro: — Água com gás para você?

— Que merda, Nicholas Quenton-Harper! Por que está fazendo isso? Fale logo!

— Quando nos conhecemos, você era uma delicada mocinha árabe, que reconhecia a superioridade da espécie masculina. Ouvindo-a agora, acho que a estraguei.

— Cuidado! Você está brincando com fogo. — Ela disfarçou um sorriso. — Por favor, Nicky, diga logo!

— Sente-se — ele ordenou, sentando-se na poltrona em frente. — A senhora Street trabalhou rápido. No meu fax, sugeri que ela ligasse para o meu corretor na cidade. Estamos três à frente do horário de Greenwich, portanto deve tê-lo encontrado ainda no escritório. Enfim, conseguiu todas as informações que pedi!

— Pare com isso, Nicky, senão vou começar a gritar e provocar um escândalo. Diga de uma vez!

Ele abriu o papel e leu:

— A mineradora Pégaso está registrada na Bolsa de Valores de Sydney, Austrália, com um capital de vinte milhões...

— Poupe-me os detalhes — ela implorou. — Basta o nome do homem.

— Sessenta e cinco por cento do capital da Pégaso pertence à Companhia de Mineração Valhalla — ele continuou, imperturbável —, e os restantes trinta e cinco por cento à Metais Anaconda, da Áustria.

Royan desistiu de implorar e reclinou-se na poltrona, de onde o olhava fixamente.

— A Valhalla e a Anaconda são ambas subsidiárias da HMI — Indústrias Manufatureiras de Hamburgo. A HMI pertence ao fruste da família Von Schiller, cujos únicos proprietários são Gotthold Ernst von Schiller e sua esposa, Ingemar.

— Von Schiller... — ela repetiu em voz baixa, olhando para Nicholas. — E Duraid o incluiu na lista dos possíveis patrocinadores. Ele deve ter lido o livro de Wilbur Smith. Sei que foi traduzido para o alemão. Provavelmente entrou em contato com Duraid pouco antes de sua morte. Mas ele não foi dissuadido tão facilmente quanto você pelas negativas de Duraid.

— Também entendo assim — Nicholas concordou. — Deve ter sido fácil farejar pelo Museu do Cairo e descobrir que Duraid e você estavam trabalhando em algo grandioso. O resto nós já sabemos bem.

— Mas como ele instalou a Pégaso na Etiópia com tanta rapidez? — Royan perguntou.

— Foi um golpe de sorte, uma sorte dos diabos. Geoffrey me contou que a Pégaso obteve do Presidente Mengistu a concessão para fazer prospecção de cobre, cinco anos antes de ele ser deposto. Von Schiller já estava instalado muito antes de ouvir falar nos pergaminhos. Só precisou transferir o canteiro de obras do norte, onde estavam trabalhando, para o escarpamento da garganta do Abbay e esperar pelas novidades. É provável que Jake Helm seja um de seus capangas, um especialista em golpes baixos, que ele envia a qualquer lugar do mundo onde apareçam problemas. É óbvio que tem Nogo em suas mãos. Nós rolamos diretamente para os braços deles. Royan prestava muita atenção.

— Tem sentido. Quando Helm relatou nossa chegada ao patrão Von Schiller deve ter ordenado o ataque shufta ao acampamento. Oh, meu Deus, eu o odeio. Jamais pus os olhos nele, mas o odeio mais que tudo neste mundo.

— Bem, ao menos sabemos com quem estamos lidando.

— Não todos — ela objetou instantaneamente. — Von Schiller deve ter alguém no Cairo. Alguém de dentro.

— Qual é o nome do seu ministro? — Nicholas quis saber.

— Não — ela negou prontamente. — Não Atalan Abou Sin. Conheço-o há muito tempo. É um pilar de integridade.

— É surpreendente o efeito que milhares de dólares podem causar nos alicerces dos pilares mais bem construídos — Nicholas observou calmamente. Royan estava chocada.

Eles estavam sozinhos à mesa do café da manhã. Sir Oliver havia ido para o escritório uma hora antes e Lady Bradford ainda não se levantara para saudar a manhã luminosa e refrescante.

— Mal dormi ontem à noite pensando em Atalan. Oh, Nicky, não posso admitir sequer a suspeita de que ele esteja envolvido no assassinato de Duraid.

— Desculpe ter sido o responsável por sua insônia, mas temos de olhar de todos os ângulos. — Ele quis mudar logo de assunto. — Já perdemos tempo demais. Enquanto estamos aqui, a Pégaso está ganhando terreno. Quero voltar para casa e começar os preparativos de nossa força expedicionária.

— Quer que eu ligue para a companhia aérea e faça as reservas? — Royan levantou-se da mesa. — Vou procurar um telefone.

— Termine de comer primeiro.

— Já estou satisfeita. — Ela ia saindo quando ele a chamou.

— Não admira que esteja tão magra. Disseram-me que a anorexia nervosa é um mau caminho a seguir — ele brincou, passando geléia em mais uma fatia de torrada.

Royan voltou em quinze minutos.

— Amanhã às três e meia da tarde. Kenya Airways para Nairóbi, com conexão na mesma noite com a British Airways, para Heathrow.

— Muito bem. — Nicholas limpou a boca com o guardanapo e se levantou. — O carro está nos esperando para nos levar ao quartel de polícia. Nosso novo admirador, o General Obeid, está a nossa espera. Vamos.

Havia um oficial de polícia para recebê-los na entrada privativa dos prédios do quartel. Apresentou-se como Inspetor Galla e tratou-os com grande deferência ao conduzi-los à sala do comissário.

O General Obeid levantou-se ao vê-los entrar e rodeou a mesa para cumprimentá-los. Era delicado e afável, e cumulou Royan de atenções enquanto os conduzia a uma saleta particular. Quando todos estavam acomodados, o Inspetor Galla serviu as inevitáveis cuias de café amargo.

Após um pequeno intervalo de conversa generalizada, o general entrou diretamente no assunto:

— Como prometi, não quero detê-los mais que o estritamente necessário. O Inspetor Galla vai registrar o depoimento. Primeiro gostaria de tratar do desaparecimento e da morte do Major Brusilov. Presumo que já soubessem que ele foi um oficial da antiga polícia secreta russa, a KGB.

A entrevista demorou mais do que eles esperavam. O general foi meticuloso, mas infalivelmente delicado. Por fim, depois que o depoimento foi anotado por um estenógrafo da polícia, lido e assinado, o general os acompanhou até o carro. Nicholas reconheceu isso como uma atenção especial.

— Se houver alguma coisa que eu possa fazer por vocês, o que precisarem, por favor, não hesitem em me procurar. Foi um grande prazer conhecê-la, Doutora Al Simma. Voltem logo à Etiópia para nos visitar.

— Apesar dos pequenos contratempos por que passamos, apreciei muitíssimo seu belo país — ela respondeu com doçura. — O senhor nos verá mais cedo do que espera.

— Que homem encantador! — ela observou, quando já estavam sentados no Rolls de Sir Oliver. — Gostei muito dele.

— Parece que foi mútuo — observou Nicholas.

As palavras de Royan foram proféticas. Havia envelopes idênticos, endereçados a cada um deles, esperando-os em seus lugares à mesa quando desceram no dia seguinte

para o café da manhã.

Nicholas abriu o seu enquanto pedia ao garçom que trouxesse o café. Sua expressão mudou quando leu o que estava escrito.

— Veja só! — exclamou. — Impressionamos os rapazes de azul muito mais do que imaginávamos. O General Obeid quer me ver outra vez. — Ele leu em voz alta: "Apresente-se ao quartel de polícia antes do meio-dia". — Nicholas assobiou baixinho. — Linguagem forte. Nem por favor nem obrigado.

— O meu é idêntico. — Royan mostrou o timbre oficial da polícia. — O que será que isso significa?

— Logo Saberemos. Mas achei um tanto rude. Parece que o namoro terminou.

Quando chegaram ao quartel de polícia, não havia qualquer comitê de recepção. O guarda da entrada privativa mandou-os entrar pela recepção geral, onde eles se envolveram numa discussão longa e confusa com o recepcionista, cujo inglês era bastante rudimentar. Por experiência anterior, Nicholas sabia que, na África, o melhor era não perder a paciência, pelo menos não demonstrar irritação. Por fim, o recepcionista manteve uma longa conversa telefônica sussurrada com alguém e, quando terminou, apontou para um banco de madeira encostado à parede.

— Esperem ali. Ele virá logo.

Durante os quarenta minutos seguintes eles dividiram o banco com uma seleção multicolor de queixosos, requerentes, suplicantes e pequenos criminosos. Dois deles sangravam copiosamente após sofrer um assalto de desconhecidos, e havia outros algemados.

— Acho que nossa estrela se apagou — observou Nicholas, segurando o lenço contra o nariz. Era óbvio que um de seus vizinhos de banco não via sabão e água há muito tempo. — Acabou-se o tratamento VIP.

Por fim, o Inspetor Galla, que os tratara com tanta cerimônia no dia anterior, espiou por cima de uma divisória e chamou-os com um gesto da mão.

Ignorando a mão estendida de Nicholas, ele os levou para uma sala nos fundos. Não os convidou a sentar e dirigiu-se a Nicholas com frieza:

— Você é responsável pela perda de uma arma de fogo que lhe pertencia.

— Está certo. Como já expliquei no depoimento que dei ontem... O Inspetor Galla o interrompeu:

— Perder uma arma de fogo por negligência é uma ofensa muito séria — disse severamente.

— Não houve negligência de minha parte — Nicholas objetou.

— O senhor descuidou-se da arma de fogo. Não a manteve trancada em caixa de aço adequada. Isso é negligência.

— Com todo o respeito, inspetor, há uma falta terrível de caixas de aço na garganta do Abbay.

— Negligência — Galla repetiu. — Negligência criminosa. Como podemos ter certeza de que a arma não caiu em mãos de elementos que se opõem ao governo?

— Acha que alguém vai derrubar o governo com um Rigby 275? — Nicholas sorriu.

O inspetor ignorou a ironia e tirou dois documentos de dentro da gaveta.

— É meu dever entregar estas ordens de deportação ao senhor e à Doutora Al Simma. Têm vinte e quatro horas para deixar a Etiópia. Depois disso serão considerados imigrantes proibidos, os dois.

— A Doutora Al Simma não perdeu nenhuma arma — Nicholas observou delicadamente. — Na verdade, até onde sei, ela nunca demonstrou a mais leve negligência em toda a sua vida. — Novamente, foi ignorado.

— Queiram assinar a declaração de que receberam e estão cientes das ordens.

— Gostaria de conversar com o General Obeid, o comissário de polícia — disse Nicholas.

— O General Obeid viajou esta manhã para uma inspeção aos distritos fronteiriços do norte. Ficará fora de Adis Abeba durante algumas semanas.

— Enquanto isso, nós estaremos seguros e a salvo na Inglaterra.

— Exatamente. — O Inspetor Galla sorriu pela primeira vez. — Queiram assinar aqui e aqui.

— O que terá acontecido? — Royan perguntou, quando o motorista abriu a porta do Rolls e eles entraram no carro. — Foi tudo tão rápido e inesperado! Num momento todos nos amavam, de repente somos chutados do alto da escada.

— Quer ouvir meu palpite? — Nicholas não esperou a resposta. — Nogo não é o único no bolso da Pégaso. Obeid teve insônia ontem à noite e se comunicou com Von Schiller, que deu as ordens.

— Percebe o que isso significa, Nicky? Que talvez não possamos voltar à Etiópia. E o túmulo de Mamose escapará de nossas mãos. — Ela estava consternada.

— Quando estive com Duraid na Líbia, que eu me lembre nenhum dos dois foi convidado por Saddam ou Khadafi.

— Você parece estar adorando a perspectiva de ir contra a lei — ela o acusou. — Não pára de rir um só momento.

— Afinal, é apenas a lei etíope — ele observou virtuosamente. — Não pode ser levada muito a sério.

— Mas será dentro de uma prisão etíope que vão jogá-lo. Isso você deveria levar mais a sério.

— Você também. — Ele riu. — Se nos pegarem.

E

stejam certos de que ELE já registrou queixa oficial no gabinete do presidente — disse Geoffrey, a caminho do aeroporto. — Está profundamente aborrecido com tudo isso, com a ordem de deportação e o resto. Nunca o vi desse jeito.

— Não fique preocupado, companheiro — Nicholas tranqüilizouo. — Afinal, nenhum de nós pretende voltar aqui novamente. Não há o menor problema.

— É o princípio da coisa. Um cidadão britânico preeminente ser tratado como um criminoso comum. Que falta de respeito! — Ele suspirou. — Às vezes gostaria de ter nascido cem anos atrás. Não teríamos de passar por esse tipo de contra-senso. Simplesmente enviaríamos uma canhoneira.

— Sem dúvida, Geoffrey. Mas, por favor, não se aborreça com isso. Geoffrey ficou em volta deles como uma gata com seus filhotes

quando se apresentaram no balcão da Kenya Airways. Levavam apenas bagagem de mão, duas sacolas de náilon baratas que haviam comprado de manhã no comércio. Nicholas dobrara a pele do dik-dik e a embrulhara num shamma bordado, comprado na mesma ocasião.

Geoffrey aguardou o vôo ser anunciado e acenava atrás deles no corredor de embarque, dirigindo suas demonstrações de afeto mais para Royan do que para Nicholas.

Eles tinham lugares reservados atrás da asa, e Royan sentou-se ao lado da janela. O avião ligou os motores e começou a taxiar lentamente pelo pátio do aeroporto. Nicholas discutia com a aeromoça, que queria que ele guardasse a preciosa pele e sua sacola de náilon vermelha no bagageiro; Royan aproveitoupara dar uma última olhada em Adis durante a decolagem.

De repente ela se esticou na cadeira e segurou o braço de Nicholas.

— Veja! — disse, com tanto rancor que ele se inclinou para ver o que era.

— Pégaso! — ela exclamou, apontando o jato executivo Falcon que acabava de estacionar do outro lado da pista.

O pequeno e elegante avião tinha a cauda pintada de verde e exibia o cavalo vermelho com as patas dianteiras erguidas, numa pose estilizada. Eles viram a porta da fuselagem se abrir e um pequeno grupo de pessoas na pista aproximar-se para recepcionar os passageiros.

O primeiro a aparecer foi um homem baixo, bem-vestido, usando terno claro e chapéu-panamá. Apesar de pequeno, tinha um ar de confiança e de comando, a aura especial dos poderosos. A pele branca, de quem vinha do inverno europeu, parecia deslocada naquele ambiente. Seu queixo era forte e decidido, o nariz grande e os olhos penetrantes sob as sobrancelhas grossas.

Nicholas reconheceu-o imediatamente. Já o vira muitas vezes nas salas de leilão da Sotheby's e da Christie's. Não era uma pessoa que se esquecesse facilmente.

— Von Schiller! — ele exclamou, enquanto supervisionava com atitude imperial os homens que o esperavam na pista.

— Parece um galo garnisé — murmurou Royan —, uma cobra pronta para o bote.

Von Schiller tirou o chapéu para descer a escada do Falcon com passos firmes e atléticos, e Nicholas comentou em voz baixa:

— Ninguém diz que ele tem quase setenta anos.

— Parece ter quarenta — Royan concordou. — Deve tingir o cabelo e as sobrancelhas... veja como são escuros.

— Meu Deus! Olhe quem veio recebê-lo.

As insígnias brilhavam à luz do sol. A figura alta de farda azul destacou-se do grupo e tocou a aba do quepe numa saudação respeitosa, antes de estender a mão para Schiller e cumprimentá-lo cordialmente.

— O seu grande admirador, General Obeid. Não admira que não tenha podido nos ver. Estava ocupado demais.

— Veja, Nicky! — Royan exclamou, mas já não olhava para os dois ao pé da escada, que ainda se cumprimentavam, conversando animadamente. Sua atenção estava voltada para a porta do Falcon, onde surgira outro homem, mais jovem. Não usava chapéu, tinha um tom de pele amarelado e os cabelos escuros e fartos.

— Nunca o vi na vida. Quem é? — perguntou Nicholas.

— Nahoot Guddabi. O assistente de Duraid no museu. Está ocupando o cargo dele agora.

Enquanto Nahoot descia a escada, o avião de Nicholas e Royan entrou na pista de decolagem e já não puderam ver o jato da Pégaso. Ambos acomodaram-se nas poltronas e ficaram se olhando. Nicholas recuperou-se primeiro.

— Um sabá de bruxas. Uma convocação de malignos. Tivemos sorte de ver isso. Agora não há mais segredos. Já sabemos quem é a oposição.

— Von Schiller é o mandachuva — Royan concordou, quase sem fôlego. — Mas Nahoot Guddabi é seu cão de guarda. Deve ter contratado os assassinos no Cairo, mandando-os atrás de nós. Oh, Nicky, você precisava tê-lo ouvido dizer no enterro que admirava e respeitava Duraid. Assassino hipócrita e sujo!

Ficaram em silêncio enquanto o avião ganhava altura; então Royan disse baixinho:

— Estávamos certos sobre Obeid. Ele também está no bolso de Schiller.

— Ele pode simplesmente estar representando o governo etíope; veio receber o grande empresário estrangeiro que vai encontrar uma fabulosa reserva de cobre neste país miserável.

Royan negou veementemente.

— Se fosse só isso, alguém do gabinete ministerial teria vindo recebê-lo, não o chefe de polícia. Não, Obeid cheira a traição, assim como Nahoot.

Ver os assassinos de seu marido em carne e osso reabrira as feridas ainda não cicatrizadas de Royan. Emoções amarguradas acenderam uma chama dentro dela, e Nicholas sabia que não podia apagá-la — por ora, só podia distraí-la. Tentava conversar calmamente, desviando seus pensamentos de morte e vingança para o desafio do jogo de Taita e o enigma da tumba perdida.

Quando aterrissaram em Heathrow na manhã seguinte, depois de trocar de avião em Nairóbi, já tinham esboçado um plano de ação para retornar à garganta do Nilo e explorar o poço de Taita no fundo do abismo. Embora Royan aparentemente tivesse recuperado a calma e o bom humor costumeiros, Nicholas sabia que a dor da perda continuava lá, por trás de tudo.

Era tão cedo quando desembarcaram em Heathrow que eles seguiram direto para os portões de imigração sem entrar em fila, e como não tinham bagagem não passaram pela habitual roleta do carrossel de inspeção — como se não houvessem desembarcado.

Com a sacola de náilon contendo a pele do dik-dik pendurada de um braço e Royan apoiada no outro, Nicholas passou pela luz verde da inspeção de bagagens como um inocente querubim do teto da Capela Sistina.

— Você é tão cara-de-pau! — ela sussurrou, quando passaram ilesos. — Se consegue enganar até a alfândega, como vou poder confiar em você?

Eles continuavam com sorte. Não havia ninguém esperando na fila de táxis, e depois de uma hora e pouco o carro os deixou na calçada diante da casa de Nicholas em Knightsbridge. Eram apenas 8h30 da manhã de uma segunda-feira.

Enquanto Royan se banhava, Nicholas foi até a mercearia da esquina comprar comida. Dividiram a tarefa de preparar a refeição: Royan cuidou das torradas e Nicholas fez sua especialidade: omelete de ervas.

— Vamos precisar da ajuda de um perito para voltar à garganta do Abbay, não é? — Royan perguntou, derretendo manteiga sobre a torrada quente.

— Tenho uma pessoa certa para isso. Já trabalhamos juntos — disse Nicholas. — Um ex-engenheiro real. Especialista em mergulho e construções subaquáticas. É aposentado e mora num pequeno chalé em Devon. Suspeito que esteja meio entediado e louco para sair daquela vidinha. Espero que se agarre à primeira oportunidade de se livrar das duas coisas.

Quando terminaram de comer, Nicholas disse a ela:

— Vou lavar os pratos. Leve os filmes do monólito para revelar. Há uma loja de revelação rápida na frente da Harrods.

— É isso que chamo de distribuição de trabalho eqüitativa — ela observou com um longo suspiro. — Você tem máquina de lavar pratos e está chovendo lá fora.

— Tudo bem — ele riu. — Para adoçar a pílula, empresto minha capa de chuva. Enquanto espera a revelação, compre algumas roupas para substituir as que perdeu naquelas pedras. Preciso dar uns telefonemas importantes.

Imediatamente depois que ela saiu, Nicholas sentou-se diante da escrivaninha com a agenda de telefones na mão e o fone na outra. Primeiro ligou para Quenton Park, onde a Sra. Street tentou disfarçar a alegria de tê-lo novamente em casa.

— Em sua mesa há uma pilha de envelopes esperando para ser abertos. Na maioria, contas.

— Que bom, não?

— Os advogados têm me importunado, e o Senhor Markham, do Lloyd's, liga todas as manhãs.

— Seja boazinha, não diga a ninguém que voltei. — Nicholas sabia muito bem o que eles queriam — o mesmo que os insistentes sempre querem: dinheiro. No caso, não se tratava apenas de 500 guinéus para pagar a conta do alfaiate, mas 2,5 milhões de libras. — Acho que ficarei em York e não irei para Quenton — ele disse à Sra. Street. — Não vão conseguir me encontrar no apartamento.

Ele afastou as dívidas para o fundo da memória e concentrou-se na tarefa que tinha a fazer.

— Tem papel e caneta à mão? Muito bem, eis o que quero que faça. Nicholas levou dez minutos para terminar o ditado, e então a Sra.

Street releu o que havia escrito.

— Muito bem. Trate disso, sim? Viajaremos esta noite. A Doutora Al Simma ficará em casa definitivamente. Peça à governanta que prepare o segundo quarto da casa para ela, no andar de baixo.

Em seguida ele ligou para Devon, e enquanto o telefone tocava imaginou o rhalé da Guarda Costeira escondido no alto das colinas, sobre o mar cinzento varrido pela tempestade. Daniel Webb provavelmente estaria em sua oficina no quintal, mexendo no Jaguar 1935, o grande amor de sua vida, ou defumando filés de salmão. Pescar era a paixão comum que os unira.

— Alô? — A voz de Daniel era precavida e desconfiada. Nicholas podia vê-lo com sua careca brilhante como um ovo descascado, segurando o fone com a mão peluda e calejada.

— Tenho um trabalho para você. Está disponível?

— Aonde vamos, major? — Embora três anos tivessem se passado, ele reconheceu imediatamente a voz de Nicholas.

— Clima tropical e bailarinas. O mesmo salário da vez anterior.

— Estou pronto. Onde nos encontraremos?

— No apartamento. Você sabe onde fica. Amanhã. Traga sua régua de cálculo. — Nicholas sabia que Danny não confiava nos modernos computadores de bolso.

— O Jaguar continua em forma. Sairei amanhã cedo para chegar na hora do almoço.

Nicholas desligou e fez mais dois telefonemas: um para seu banco em Jersey, outro para as Ilhas Cayman. O saldo de suas duas contas de emergência estava diminuindo. A previsão de gastos da expedição que fizera com Royan durante a viagem era de 230 000 libras. Como todos os orçamentos, sabia que era otimista.

— Acrescente sempre cinqüenta por cento — preveniu-se. — Isso significa que, no final, o cofre estará vazio. Rezo para que você não esteja nos pregando uma peça, Taita.

Ele deu a senha para os respectivos gerentes e instruiu-os a transferir o dinheiro para sua conta particular, para ser sacado imediatamente.

Havia mais dois telefonemas para dar antes de ir para York. O destino de seus planos dependia deles, e os contatos com ambos os números eram no mínimo tênues, para não dizer quiméricos.

O primeiro número estava ocupado. Nicholas discou cinco vezes e em todas deu com o irritante sinal. Tentou uma última vez e foi atendido por um inconfundível sotaque interiorano do oeste.

— Boa tarde. Embaixada britânica. Posso ajudá-lo? — Nicholas olhou o relógio de pulso. Havia três horas de diferença. Já era de tarde em Adis Abeba.

— Aqui é Sir Nicholas Quenton-Harper, ligando do Reino Unido. Posso falar com o Senhor Geoffrey Tennant, seu adido militar, por favor?

Geoffrey atendeu imediatamente.

— Meu querido! Então já está em casa! Felizardo.

— Achei que o encontraria dormindo. Soube que andou perdendo Ô sono.

— Como está a encantadora Doutora Al Simma?

— Manda-lhe lembranças.

— Gostaria de acreditar em você — Geoffrey foi dramático.

— Preciso de um grande favor, Geoff. Conhece o Coronel Maryam Kidane, do Ministério da Defesa?

— Amigão de primeira — Geoffrey afirmou no mesmo instante. — Conheço bem. Jogamos tênis na última sexta-feira, para falar a verdade. Tem uma direita terrível.

— Por favor, peça-lhe para falar comigo imediatamente. — Ele deu o telefone do apartamento em York. — Diga-lhe que se relaciona a um gênero raro de andorinha etíope para a coleção do museu.

— De novo com essas bobagens, Nicky? Não bastou ser expulso da Etiópia pelas orelhas, e agora quer perseguir pássaros raros? Pode ser perigoso.

— Fará isso por mim, Geoff?

— Claro. "Servir para liderar", companheiro.

— Fico lhe devendo essa.

— Mais uma. Acho que já me deve uma meia dúzia.

Nicholas teve menos sorte com o segundo telefonema. As Informações Internacionais lhe forneceram um número em Malta. Na primeira tentativa, recebeu um animador sinal de chamada.

— Atenda, Jannie — ele implorou baixinho, mas no sexto sinal atendeu uma secretária eletrônica: "Você ligou para o escritório central da Africair Services. Não há ninguém para atendê-lo no momento. Por favor, deixe seu nome e número de telefone, e uma mensagem após o sinal. Retornaremos assim que possível. Obrigado". O forte sotaque sulafricano de Jannie Badenhorst era inconfundível.

— Jannie, é Nicholas Quenton-Harper. Aquele seu velho Herc ainda voa? O trabalho vai ser uma pândega. Além disso, o dinheiro é bom. Ligue para meu apartamento no Reino Unido. Já. Ontem, anteontem, se puder.

Royan tocou a campainha quando ele acabou de desligar.

— Sua noção de tempo é impecável — Nicholas lhe disse quando ela entrou, com a ponta do nariz vermelha de frio, sacudindo a capa molhada. — Revelou os filmes?

Ela retirou o envelope amarelo do bolso do casaco e brandiu-o triunfante.

— Você é um mestre da fotografia — ela lhe disse. — Ficaram perfeitas. Consigo ler todos os caracteres do monólito a olho nu. Estamos de volta ao jogo de Taita.

Eles espalharam a pilha de fotos sobre a mesa do escritório e se deliciaram com elas.

— Fez cópias? Um conjunto para cada um. Excelente — Nicholas aprovou. — Os negativos vão para um cofre de segurança no banco. Não vamos correr o risco de perdê-los outra vez.

Com uma grossa lente de aumento, Royan examinou uma foto por vez e escolheu as mais nítidas das quatro faces do monólito.

— Vou trabalhar nestas cópias. Não acho que vá sentir falta dos decalques que tiramos da pedra. As fotos devem bastar. — Ela leu em voz alta um trecho de um dos blocos de hieroglifos: "A cobra se desenrola e se ergue em seu precioso capuz. As estrelas da madrugada brilham em seus olhos. Três vezes sua língua negra e escorregadia beija o ar". Ela estava corada de excitação. — O que será que Taita quis dizer com esse verso? Oh, Nicky, é tão emocionante voltar a esses mistérios ocultos!

— Deixe isso por agora — ele ordenou rigidamente. — Eu conheço você. Quando começa, passa toda a noite acordada. Vamos carregar o Range Rover. É uma longa e difícil subida até York, e há previsão de gelo na estrada. Uma ligeira mudança de clima, depois da garganta do Abbay.

Ela deixou a lente e juntou as fotografias.

— Você tem razão. Às vezes tenho tendência a me distrair. — Ela se levantou. — Antes de irmos, posso ligar para casa?

— Imagino que sua "casa" seja no Cairo.

— Desculpe. Sim, quero telefonar para a família de Duraid no Cairo...

— Por favor! Não precisa dar explicações. Lá está o telefone. Fique à vontade. Esperarei lá embaixo, na cozinha. Vamos tomar um chá antes de sair.

Royan desceu para a cozinha meia hora depois com um ar de culpa e disse diretamente:

Temo causar mais aborrecimentos, mas tenho uma confissão a fazer.

— Fale — Nicholas convidou.

— Preciso voltar para casa... para o Cairo. — Ele fez uma cara de espanto. — Por alguns dias, apenas — Royan explicou rapidamente. — Falei com o irmão de Duraid, e há algumas questões que preciso resolver.

— Não me agrada que volte para lá sozinha depois das últimas experiências.

— Se você estiver certo e Nahoot Guddabi for a ameaça, agora ele está na Etiópia. Não correrei perigo.

— Mesmo assim, não gosto. Você é a chave do jogo de Taita.

— Agradeço a gentileza, senhor. — Ela fingia indignação. — É só por isso que não me quer longe?

— Assim, prensado contra a parede, tenho que admitir que já avancei muito com você por perto.

— Estarei de volta antes que se dê conta. Além disso, você terá muita coisa com que se ocupar enquanto eu estiver fora.

— Espero que não vá mudar de idéia — ele resmungou. — Quando pretende viajar?

— Há um vôo esta noite, às oito e meia.

— Que rápido! Quer dizer, mal chegamos aqui! — Ele tentou um último protesto e acabou desistindo. — Vou levá-la ao aeroporto.

— Não, Nicky. Heathrow está fora do seu caminho. Posso pegar um trem.

— Eu insisto.

O tráfego era relativamente tranqüilo na noite de segunda-feira, e depois de deixar as áreas mais habitadas eles moviam-se rapidamente. Pelo caminho, conversaram animadamente e Nicholas contou sobre os telefonemas que fizera na ausência de Royan.

— Através de Maryam Kidane espero entrar em contato com Mek Nimmur logo, logo. Mek é o eixo de todo o plano. Sem ele, não faremos nenhuma jogada no tabuleiro de bao de Taita.

Nicholas deixou-a no setor de embarque do Aeroporto de Heathrow.

— Telefone-me do Cairo amanhã de manhã para me dizer como chegou e quando voltará. Estarei no apartamento.

— Ligarei a cobrar — ela lhe avisou, oferecendo-lhe o rosto para um beijo. Então saiu do carro e fechou a porta.

Ele a viu distanciar-se pelo espelho retrovisor com profunda melancolia e uma sensação de perda. Então, no mesmo instante, ficou inquieto. Seu sistema de pré-alarme fora acionado. Havia alguma coisa desagradável pela frente. Algo terrível aconteceria a Royan quando chegasse ao Egito. Outra fera perigosa escapara de sua jaula e espreitava nas trevas a oportunidade de atacar; mas como era essa fera Nicholas ainda não sabia.

— Por favor, que nada de mal aconteça a ela — ele pediu em voz alta, sem saber a quem dirigir o pedido. Pensou em parar o carro e obrigá-la a ficar, mas não tinha esse direito e sabia que ela não lhe obedeceria.

Exceto pela força física, não havia como impor sua vontade. Precisava deixá-la ir.

— Mas não estou gostando nem um pouco disso — Nicholas afirmou outra vez.

secretária particular e os empregados sabiam exatamente o que deviam fazer. Estava tudo a seu gosto. Gotthold von Schiller correu os olhos pelo barracão de aço corrugado e aprovou. Helm preparara muito bem a base para a chegada do patrão.

Seus aposentos particulares ocupavam metade do longo barracão desmontável. Eram espartanos, mas muito limpos e bem-arrumados. As roupas estavam penduradas no armário de vestir e os cosméticos e remédios, enfileirados no armário do banheiro. A cozinha particular era bem-equipada e tinha bom estoque de provisões. Seu cozinheiro chinês viera no mesmo avião, trazendo o necessário para providenciar as refeições exigidas pelo patrão.

Von Schiller era vegetariano, antitabagista e abstêmio. Há vinte anos fora um conhecido apreciador dos gordurosos pratos da Floresta Negra, dos vinhos do Vale do Reno e dos tabacos negros de Cuba. Nessa época era um homem obeso, e seu queixo e pescoço formavam pregas sobre o colarinho. Agora, apesar da idade, era magro, ágil e vital como um cão de corrida.

No outono da vida, seus prazeres eram os da mente e das emoções, muito mais que dos sentidos. Dava mais valor aos objetos inanimados que aos seres vivos, humanos ou animais. Um pedaço de pedra talhada por pedreiros mortos há milhares de anos excitava-o mais que o corpo quente e macio da mais adorável das jovens. Ele gostava de ordem e controle. O poder sobre os homens e os acontecimentos alimentava-o mais que os prazeres da mesa. Possuir objetos belos e únicos era a sua paixão, agora que seu corpo se tornara mais lento e os apetites animais tinham perdido a força.

Cada item da ampla e incalculável coleção de tesouros antigos que ele reunira fora encontrado por outras pessoas. Essa era a sua chance, a última e definitiva, de fazer sua própria descoberta: romper o selo da porta do túmulo do faraó e ser o primeiro homem, em 4 000 anos, a pôr os olhos em seu conteúdo. Talvez fosse essa a verdadeira busca da imortalidade, e não havia preço em ouro ou vida humana que não estivesse disposto a pagar por isso. Muitos homens já haviam morrido pela mesma paixão, e pouco lhe importava que outros fossem sacrificados. Nenhum preço era alto demais.

Ele examinou sua imagem de corpo inteiro no espelho pendurado em frente à cama. Alisou o cabelo revolto, ralo e escuro. É claro que os tingia, mas essa era uma das únicas vaidades que lhe restavam. Então ele atravessou o piso de madeira de seus aposentos e abriu a porta da sala de reuniões, onde ficaria instalado seu quartel-general nos próximos dias.

As pessoas que lá estavam puseram-se imediatamente em pé, numa atitude servil e com expressões obsequiosas. Von Schiller dirigiu-se para a cabeceira da longa mesa e subiu num tablado de madeira acarpetada, colocado ali por sua secretária. Essa peça seguia-o a todos os lugares. Sobre ela, ficava alguns centímetros mais alto. Von Schiller percorreu com os olhos os homens e a mulher. Fez isso sem pressa, deixando-os continuar em pé por algum tempo. De seu ponto privilegiado ficava maior que todos eles.

Primeiro olhou para Helm. O texano trabalhava para ele havia mais de dez anos. Totalmente confiável, era física e mentalmente forte e obedecia às suas ordens sem jamais questioná-las. Von Schiller aprendera a confiar nele. Mandava-o a todas as partes do mundo, do Zaire a Queensland, do Ártico às florestas tropicais — Helm fazia seu trabalho sem criar problemas e com o mínimo de conseqüências desagradáveis. Era rude mas discreto, e, como um bom cão de caça, conhecia bem seu amo.

Depois de Helm ele olhou para a mulher. Utte Kemper era sua secretária particular. Organizava e dirigia todos os detalhes de sua vida, desde sua comida ao tablado de madeira, dos remédios à agenda social. Ninguém se aproximava dele sem antes passar por ela. Também era perita em comunicações. A parafernália eletrônica que ocupava toda uma parede do barracão era responsabilidade dela. Utte era capaz de encontrar seu caminho através do espaço celeste com o instinto infalível de uma pomba domesticada. Da arte arcaica do código Morse às transmissões e interceptações de mensagens em código, ele jamais conhecera ninguém, homem ou mulher, que se comparasse a ela. Na melhor fase da mulher, com seus quarenta anos, era loura e esguia, de olhos verdes oblíquos sobre as maçãs do rosto proeminentes; lembrava Dietrich quando jovem.

A esposa de Von Schiller, Ingemar, estava inválida havia vinte anos, e Utte havia preenchido o vazio que ela deixara em sua vida. Mas era mais que secretária e esposa. Quando a conhecera, ela ocupava um cargo muito importante na seção técnica da rede de telecomunicações alemã, e nas horas vagas era atriz pornográfica — não pelo dinheiro, mas pelo amor ao trabalho. As cópias dos vídeos que ela fizera naquela época estavam entre os tesouros mais preciosos de Von Schiller, depois de sua coleção de antigüidades egípcias. Assim como Helm, Utte não tinha escrúpulos. Não havia nada que não fizesse por ele, ou que não lhe permitisse fazer com ela para realizar suas fantasias mais bizarras. Era a única mulher que ainda o levava ao orgasmo, enquanto assistia a seus vídeos fazendo as mesmas coisas com ela. Mas isso acontecia menos, à medida que os anos se passavam, e os espasmos de alívio sexual que ela arrancava de seu corpo envelhecido eram cada vez menos intensos.

Utte tinha um equipamento de gravação instalado à sua frente. Fazia parte de seus múltiplos deveres manter registros precisos e atualizados de todas as reuniões e conversas. Em seguida, Von Schiller desviou o olhar para os outros dois homens que permaneciam em pé diante da mesa.

Ele conhecera o Coronel Nogo naquela manhã, quando ele desembarcara do helicóptero Jet Ranger que viera de Adis Abeba e aterrissara no acampamento-base instalado no alto do desfiladeiro do Abbay. Pouco sabia sobre ele, exceto que Helm o havia escolhido e estava satisfeito com seu desempenho. Von Schiller também estava impressionado. Mas cometera algumas falhas. Nogo deixara que Quenton-Harper e a egípcia escapassem de suas mãos. Depois de operar a vida toda na África, Von Schiller pouco confiava nos negros, preferindo trabalhar com europeus. Entretanto, sabia que no momento os serviços de Nogo eram indispensáveis. Afinal, era o comandante militar da região sul de Gojam. Obviamente, depois que servisse a seus propósitos, poderia sumir do mapa. Helm cuidaria disso. Von Schiller não teria de se aborrecer com os detalhes.

Ele olhou, então, para o último homem à mesa. Também era indispensável no momento. Fora Nahoot Guddabi quem chamara sua atenção para a existência do sétimo papiro. Ao que parecia, um autor inglês havia escrito uma versão ficcional dos pergaminhos, mas Von Schiller jamais lia ficções de nenhuma espécie, fossem em alemão ou em qualquer outra das quatro línguas em que era fluente. Se Nahoot Guddabi não lhe tivesse contado sobre os pergaminhos de Taita, teria perdido a maior oportunidade de sua vida.

O egípcio o procurara tão logo a tradução original dos papiros fora concluída por Duraid Al Simma e a existência de um faraó desconhecido e sua tumba trazida à baila. Desde então, mantinham contato permanente, e quando Al Simma e sua mulher começaram a progredir muito em suas investigações, Von Schiller contratou Nahoot para livrar-se deles e trazer-lhe o sétimo papiro.

O pergaminho era agora a grande estrela de sua coleção, mantido em segurança juntamente com outros tesouros antigos em cofres de aço e concreto no castelo das montanhas que era seu retiro particular, o Ninho da Águia.

Apesar disso, a escolha de Nahoot para assumir o trabalho mais delicado de livrar-se de Al Simma e sua mulher fora um erro. Deveria ter mandado um profissional cuidar deles, mas Nahoot argumentara que daria conta do recado, e fora muito bem pago pelo trabalho tão mal administrado. Ele também seria dispensado no devido tempo, mas por ora ainda era necessário.

Era inquestionável que os conhecimentos que Nahoot tinha de egiptologia e hieroglifos não se comparavam aos de Von Schiller. Afinal, Nahoot passara grande parte de sua vida estudando-os, enquanto Von Schiller era apenas um amador e entusiasta relativamente recente. Nahoot lia os pergaminhos e o novo material adquirido como se fossem cartas de amigos, enquanto Von Schiller era obrigado a quebrar a cabeça em cima deles e recorrer freqüentemente a obras de referência. Mas não era capaz de captar as nuances sutis do significado do texto. Sem a assistência de Nahoot, ele não solucionaria os enigmas que o confrontariam na busca da tumba do Faraó Mamose.

Essa era a equipe que estava reunida diante dele, esperando que desse início aos procedimentos.

— Sente-se, por favor, Fràulein Kemper — ele disse, por fim. — Os senhores também, cavalheiros. Vamos começar.

Von Schiller permaneceu sobre o tablado à cabeceira da mesa. Gostava de sentir-se num nível superior aos outros. Sua pequena estatura fora motivo de humilhação desde seu tempo de escola, quando os colegas o apelidaram de "Pipa".

— Fràulein Kemper gravará tudo o que for dito aqui esta tarde. Ela também distribuirá uma pasta de documentos a cada um, que será recolhida no final da reunião. Quero deixar claro que esse material jamais sairá desta sala. É altamente confidencial e pertence somente a mim. Serei extremamente rigoroso com quem violar essa instrução.

Enquanto Utte distribuía as pastas, Von Schiller ia olhando o conteúdo de cada uma. Sua expressão deixava claro qual seria a penalidade para contravenções de qualquer tipo.

Então Von Schiller abriu o dossiê que estava sobre a mesa à sua frente. Inclinou-se sobre ele, apoiando-se nos punhos fechados.

— Nas pastas vocês verão cópias de fotografias Polaroid que foram encontradas no acampamento de Quenton-Harper. Olhem para elas agora.

Todos abriram as pastas.

— Desde que chegamos, o Doutor Nahoot teve oportunidade de examinar essas cópias, e é de opinião de que são genuínas; o monólito que aparece nelas é um artefato autêntico, originário do antigo Egito, quase certamente datado do Segundo Período Intermediário, cerca 1790 a.C. Há alguma coisa que queira acrescentar, doutor?

— Obrigado, Herr Von Schiller. — Nahoot sorriu untuosamente, mas seu olhar era nervoso. Havia uma frieza desapaixonada naquele velho alemão que o aterrorizava. Não demonstrara nenhum tipo de emoção quando lhe ordenara que planejasse a morte de Duraid Al Simma e sua esposa. Nahoot sabia que ele seria igualmente impassível se ordenasse seu próprio assassinato. E também sabia que estava cavalgando no dorso de um tigre.

— Gostaria apenas de fazer uma ressalva a essa afirmação. Eu disse que o monólito aqui retratado parece ser autêntico. É claro que não posso ter uma opinião definitiva antes de examinar a pedra verdadeira.

— Sua ressalva é procedente — Von Schiller concordou —, e estamos aqui reunidos para pensar nos meios de obter o monólito que será submetido ao seu exame e veredicto. — Ele pegou uma cópia fotográfica em papel brilhante que Utte havia feito pela manhã, na câmara escura do laboratório instalado no barracão ao lado. Fotografia não era seu único talento e habilidade, e o trabalho que fizera era muito competente. As cópias das fotos que Helm lhe enviara a Hamburgo estavam desfocadas e distorcidas, mas mesmo assim bastaram para fazê-lo atravessar continentes com toda a presteza. Agora que tinha nas mãos uma imagem nítida e colorida, corria o risco de sufocar de tanta excitação.

Enquanto todos aguardavam em silêncio, ele acariciava a foto com o mesmo amor que se estivesse diante do objeto real. Se fosse genuíno, e instintivamente sabia que o era, só isso compensaria os custos em tempo, dinheiro e vidas humanas que já haviam sido pagos. Era um tesouro tão maravilhoso quanto o sétimo papiro original que já estava em sua coleção. A condição e o estado de conservação do monólito, após 4 000 anos, pareciam extraordinários. Queria-o para si como quisera poucas coisas em sua longa vida. Era um esforço pôr de lado esse profundo desejo e dedicar-se somente à tarefa que tinha pela frente.

— Se, por acaso, o monólito for autêntico, o doutor poderia nos dizer, ou antes, sugerir, onde estaria situado e para onde devemos dirigir nossas buscas?

— Acredito que não devemos considerar o monólito isoladamente, Herr Von Schiller. Temos de ver as outras Polaroids que o Coronel Nogo conseguiu para nós e que Fràulein Kemper copiou com tanta engenhosidade. — Nahoot pôs de lado a primeira foto e selecionou outra em sua pasta. — Esta, por exemplo.

Os demais procuraram em suas pastas e pegaram a mesma cópia.

— Se observarmos o fundo da foto, veremos que na parte escura atrás do monólito parece haver a parede de uma espécie de gruta ou caverna. — Ele olhou para Von Schiller e foi autorizado a prosseguir. — Parece haver também um tipo de portão. — Nahoot pôs a foto de lado e pegou outra. — Agora vejam esta aqui. É uma foto de outro ângulo. Acredito que seja um mural decorativo, pintado sobre uma parede ou uma rocha de caverna, possivelmente numa tumba escavada. Parece ter sido tirada através da grade do portão que lhes mostrei na primeira fotografia. Tenho quase certeza de que o mural tem estilo e influência egípcios. Na verdade lembra muito os murais que decoram o túmulo da Rainha Lostris no Alto Egito, onde os papiros originais de Taita foram encontrados.

— Sim, sim, continue — encorajou-o Von Schiller.

— Muito bem, então. Usando o portão gradeado como fator de conexão, tenho todos os motivos para acreditar que o monólito e os murais estão localizados na mesma caverna ou tumba.

— Se for assim, que indícios temos de onde Quenton-Harper fez essas fotos? — Von Schiller ainda franzia as sobrancelhas raivosamente enquanto olhava para cada um deles. Todos tentavam evitar seu olhar penetrante.

— Coronel Nogo — Von Schiller escolheu-o. — Este é seu país. Conhece o terreno intimamente. Vamos ouvir o que acha do assunto.

O Coronel Nogo balançou a cabeça.

— Este homem, o egípcio — ele usou o epíteto depreciativamente —, está errado. A tumba da foto não é egípcia.

— Por que diz isso? — Nahoot desafiou-o. — O que sabe sobre egiptologia? Passei vinte e cinco anos...

— Espere! — Von Schiller calou-o peremptoriamente. — Deixe-o terminar. — Olhou para Nogo. — Continue, coronel.

— Concordo que nada sei sobre túmulos egípcios, mas estas fotos foram tiradas numa igreja cristã.

— O que o faz ter tanta certeza? — Nahoot sentiu sua autoridade ameaçada.

— Há quinze anos fui ordenado padre. Desiludi-me com o cristianismo e todas as outras religiões e abandonei a Igreja para tornar-me soldado. Digo isso para que acreditem que sei do que estou falando. — Ele sorriu maliciosamente para Nahoot, antes de continuar. — Olhem outra vez a primeira cópia e prestem atenção à parede do fundo, próximo ao canto do portão gradeado; há o contorno de uma mão humana e a figura estilizada de um peixe. São símbolos da Igreja Copta. Podem ser vistos em todas as capelas e catedrais.

Cada um deles olhou sua cópia da mesma fotografia, mas ninguém se aventurou a dar uma opinião até que Von Schiller manifestasse a sua.

— Você está certo — Von Schiller disse tranqüilamente. — Há, como está dizendo, a mão e o peixe.

— Mas eu lhes asseguro que os hieroglifos do monólito, os murais e o caixão de madeira são egípcios — Nahoot defendeu-se com firmeza. — Apostaria minha vida nisso.

Nogo balançou a cabeça e começou a discutir:

— Sei o que estou dizendo...

Von Schiller ergueu a mão para calá-los enquanto considerava a questão. Por fim, tomou uma decisão.

— Coronel Nogo, mostre-me na foto do satélite onde ficava o acampamento de Quenton-Harper.

Nogo levantou-se e rodeou a mesa para ficar ao lado de Von Schiller. Curvou-se sobre a foto de satélite e pôs o dedo indicador no ponto próximo ao local em que o Dandera se juntava ao Nilo. Essa foto pertencia a Quenton-Harper e desaparecera no ataque a seu acampamento. Havia inúmeras marcas de caneta colorida, que Nogo presumia terem sido feitas pelo inglês.

— Foi aqui, senhor. Veja que Quenton-Harper marcou o ponto com um círculo verde.

— Agora mostre-me onde está localizada a Igreja Copta mais próxima.

— Ora, Herr Von Schiller, está bem aqui. Novamente, QuentonHarper circulou-a com caneta vermelha. Situa-se a quase dois quilômetros do acampamento. É o Mosteiro de São Frumêncio.

— Está respondido, então. — Von Schiller ainda franzia a testa. — Símbolos coptas e egípcios juntos. O mosteiro.

Todos o olhavam, sem ousar questionar sua conclusão.

— Quero que esse mosteiro seja revistado — ele disse tranqüilamente. — Que cada sala, cada centímetro, cada parede seja examinada. — Voltou-se para Nogo. — Pode colocar seus homens lá dentro?

— Certamente, Herr Von Schiller. Já tenho um de meus melhores homens no mosteiro — um monge. Além disso, uma lei marcial ainda está em vigor aqui em Gojam. Sou o comandante militar. Tenho poderes para procurar rebeldes, dissidentes e bandidos onde suspeitar que possam estar se escondendo.

— Seus homens entrarão na igreja no cumprimento do dever? — Helm quis saber. — Pessoalmente, o senhor tem escrúpulos religiosos? Pode ser necessário... como direi?... profanar certos recintos.

— Já lhes expliquei que renunciei à religião por crenças mais mundanas. Terei muito prazer em destruir esses símbolos supersticiosos e perigosos que certamente serão encontrados no Mosteiro de São Frumêncio. Quanto aos meus homens, selecionarei apenas muçulmanos e animistas, que são hostis à cruz, e todos aceitarão. Eu os liderarei pessoalmente. Garanto-lhes que não teremos nenhuma dificuldade.

— Como irá se explicar aos seus superiores em Adis Abeba? Não quero estar associado de forma alguma a suas ações no mosteiro — disse Von Schiller.

— Recebi ordens do Alto Comando em Adis para tomar qualquer medida contra rebeldes dissidentes que estejam operando na garganta do Abbay. Poderei justificar prontamente qualquer busca no mosteiro.

— Eu quero aquele monólito. Quero-o a qualquer custo. Entendeu bem, coronel?

— Entendi perfeitamente, Herr Von Schiller.

— Como o Senhor já sabe, sou generoso com aqueles que me servem bem. Traga-o até mim em boas condições e será bem recompensado. Chame o Senhor Helm para qualquer assistência que ele puder lhe dar, incluindo-se o uso do equipamento da Pégaso e seu pessoal.

— Se pudermos usar seu helicóptero, vamos economizar muito tempo. Posso levar meus homens lá para baixo amanhã, e se a pedra estiver no mosteiro o senhor a terá logo à noite

— Excelente. Leve também o Doutor Guddabi. Ele deve procurar outras peças valiosas na área e traduzir as inscrições ou entalhes que houver no mosteiro. Por favor, providencie uma farda para ele. Deve se confundir com seus homens. Não quero me envolver em recriminações mais tarde.

— Partiremos amanhã bem cedo, quando houver luz suficiente. Iniciarei os preparativos agora mesmo. — Tuma Nogo saudou Von Schiller e saiu ansioso do barracão.

mbora o Coronel Nogo nunca tivesse entrado no qiddist ou no macjdas, fazia visitas freqüentes ao Mosteiro de São Frumêncio. Por isso tinha plena consciência da magnitude de sua tarefa e da provável reação dos monges e da congregação quando forçasse a entrada em seus recintos sagrados. Além disso, conhecia várias catedrais de pedra semelhantes em outras partes do país. Na verdade, fora ordenado na catedral de Lalibelela, e conhecia muito bem seus intricados labirintos subterrâneos.

Necessitaria de pelo menos vinte homens para assegurar a busca no mosteiro e resistir à enfurecida reação do abade e seus monges. Escolheu pessoalmente os melhores, todos implacáveis.

Duas horas antes do amanhecer, colocou-os em formação na segurança do complexo da Pégaso, sob as luzes de holofotes, para instruílos cuidadosamente. No final da explanação, fez cada um destacar-se do pelotão e repetir suas ordens, para ter certeza de que não haveria mal-entendidos. Em seguida inspecionou meticulosamente as armas e o equipamento.

Tuma Nogo reconhecia sua culpa por deixar que o inglês e a egípcia escapassem, e antevia as perigosas retaliações de Herr Von Schiller contra si. Não se iludia quanto às conseqüências se viesse a falhar outra vez. No curto espaço de tempo desde que conhecia Gotthold von Schiller, aprendera a temê-lo como jamais temera a Deus ou ao diabo quando era um homem religioso. Esse ataque era uma oportunidade de se redimir diante do formidável alemãozinho.

O Jet Ranger estava estacionado, com o piloto a postos, os motores ligados e as hélices girando lentamente, mas não levaria um número tão grande de homens equipados. Seriam necessárias quatro viagens para transportar tudo ao local em que voltariam a se reunir na garganta. Nogo foi no primeiro vôo com Nahoot Guddabi. O helicóptero deixou-os a 5 quilômetros do mosteiro, numa clareira às margens do Rio Dandera, a mesma área de desembarque usada para o ataque ao acampamento de Quenton-Harper.

Essa área ficava longe o suficiente para que os monges não ouvissem o barulho do helicóptero e não se alarmassem. E mesmo que ouvissem, Nogo contava com a possibilidade de que já estivessem condicionados às freqüentes surtidas da máquina para não associá-la a uma ameaça contra eles.

Os homens esperavam no escuro, instruídos a permanecer em silêncio e sem poder sequer fumar, enquanto o Jet Ranger trazia todos os soldados. Quando chegou o último vôo, Nogo ordenou ao destacamento que entrasse em forma e liderou seus homens em fila indiana na descida que margeava o rio. Eram homens treinados para lutar no mato, e estavam no auge de sua condição física, por isso deslocavam-se rápida e decididamente na escuridão. Somente Nahoot era claramente urbano, e 800 metros à frente já ofegava e ansiava por um descanso. Nogo sorriu vingativamente ao ouvir os patéticos gemidos de Nahoot, que era empurrado pelos homens que vinham atrás.

Nogo planejara sua chegada ao mosteiro de modo a coincidir com a hora das matinas e louvores, ao raiar do dia. Conduziu seu contingente pela escadaria em passo de marcha. As armas eram carregadas no alto, e todo o equipamento fora cuidadosamente camuflado para evitar que batesse nas pedras; as botas com sola de borracha não faziam qualquer barulho enquanto marchavam ao longo dos claustros desertos até a entrada da catedral subterrânea.

De seu interior chegava o eco monótono dos cânticos e tambores, pontuado a intervalos regulares pela voz trêmula do abade, que dirigia a cerimônia. O Coronel Nogo parou do lado de fora das portas, e seus homens alinharam-se em duas fileiras. Não havia necessidade de dar ordens, pois sua explanação abrangera todos os aspectos do ataque. Ele correu os olhos pela tropa e fez um sinal para seu tenente.

A câmara exterior da igreja estava vazia, pois os monges se reuniam na câmara intermediária, o qiddist. Nogo cruzou a nave principal a passos rápidos, seguido de perto por seu destacamento. Então subiu os degraus diante das portas de madeira do qiddist, que estavam abertas. Os homens posicionaram-se junto às paredes laterais da câmara, com os rifles de assalto armados, as baionetas prontas, apontados para a congregação ajoelhada.

Tudo foi feito em silêncio e com tal rapidez que somente aos poucos os monges notaram a presença de pessoas estranhas em seu recinto sagrado. O cântico e os tambores foram se calando, e os rostos negros voltaram-se apreensivos para o pelotão armado. Somente Jali Hora, o velho abade, não percebera o que estava acontecendo. Completamente absorto em suas devoções, continuou ajoelhado diante da porta do maqdas, o Sacrário dos Sacrários, e sua voz trêmula soava como o grito solitário de uma alma perdida.

Em silêncio, Nogo dirigiu-se ao centro da nave, chutando no caminho os monges ajoelhados. Ao chegar diante de Jali Hora, empurrou-o pelo ombro magro e jogou-o rudemente ao chão. A coroa espalhafatosa voou de sua cabeça e rolou ruidosamente pelas pedras.

Nogo deixou-o no chão e virou-se para os monges vestidos de shammas brancos, dirigindo-se a eles imperiosamente em amárico:

— Vamos revistar esta igreja e os outros recintos do mosteiro; suspeitamos que existam rebeldes e bandidos escondidos aqui. — Ele fez uma pausa e inspecionou os monges encolhidos no chão. — Qualquer tentativa de impedir meus homens de cumprir seu dever será considerada ato de banditismo e provocação. Meus homens têm ordem de reagir.

Jali Hora conseguiu ajoelhar-se, e então, segurando-se numa tapeçaria, foi se erguendo devagar. Sempre agarrado à tapeçaria da Virgem com a Sagrada Criança, fez um grande esforço para se recompor.

— Estes recintos são sagrados — ele gritou, numa voz surpreendentemente clara e firme. — Nós nos dedicamos a servir e adorar a Deus Todo-Poderoso, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

— Cale-se! — Nogo interrompeu-o. Ele abriu a tampa do coldre no quadril e, ameaçadoramente, levou a mão ao cabo da pistola Tokarev.

Jali Hora ignorou a ameaça.

— Somos homens de Deus. Aqui não há shufta. Não existem fora-da-lei entre nós. Em nome do Santíssimo, exijo que saiam, que nos deixem fazer nossas orações e não profanem...

Nogo sacou a pistola e, num só movimento, golpeou com o cano de aço o rosto do abade. A boca de Jali Hora abriu-se como uma romã madura; um líquido vermelho jorrou dos lábios esmagados e escorreu por suas vestes aveludadas. Um gemido baixo de horror ergueu-se dos monges encolhidos no chão.

Jali Hora continuou em pé, mas sem nenhuma firmeza. Abriu a boca ferida para falar, mas o único som que dela saiu foi um grasnido alto, como o de um corvo agonizante, com o sangue vivo gotejando de seus lábios.

Nogo riu e chutou suas pernas. Jali Hora caiu como um saco de roupa suja, gemendo, sobre seu próprio sangue.

— Onde está seu Deus agora, velho caduco? Pode berrar quanto quiser que ele nunca ouvirá — zombou.

Ele fez um sinal para o tenente. Deixaram seis homens vigiando os monges, quatro na porta e um de cada lado da parede. Os demais o seguiram para as portas do maqdas. Estavam trancadas. Nogo forçou a velha fechadura com impaciência.

— Abra isto imediatamente, seu velho corvo! — gritou para Jali Hora, que continuava caído ao chão, gemendo e sangrando.

— Ele está para lá de senil — O tenente balançou a cabeça. — A cabeça já se foi, coronel. Não entende sua ordem.

— Tente abri-la, então — Nogo ordenou. — Não, não perca mais tempo. Atire na fechadura, madeira está podre.

Obediente, o tenente aproximou-se e mandou os homens se afastarem. Encostou o AK-47 na madeira e disparou uma rajada longa e contínua.

Uma nuvem de poeira se ergueu, lascas de madeira, pedra e estilhaços de balas espalharam-se pelo chão. O barulho da arma e do ricochetear das balas era ensurdecedor na câmara do qiddist; os monges se lastimavam e uivavam, tapando os ouvidos e os olhos. O tenente afastou-se da porta destruída, com a fechadura e a argola de ferro entortadas e os batentes quase arrancados.

— Derrubem isso! — Nogo ordenou, e cinco homens forçaram os ombros na porta abalada. Sob a pressão conjunta ouviu-se algo se quebrando; os monges começaram a chorar. Alguns cobriram a cabeça com a saia do shamma para não testemunhar o sacrilégio; outros arranhavam o rosto com as unhas, deixando riscos ensangüentados na pele.

— Outra vez! — berrou Nogo. Seus homens tornaram a avançar para a porta, e dessa vez a tranca cedeu. Eles viram-se diante do sombrio recinto do maqdas, iluminado apenas por algumas lamparinas.

Até os infiéis relutavam em cruzar o umbral daquele local sagrado. Eles recuaram, Tuma Nogo inclusive, apesar de seus desafiadores protestos de descrença.

— Nahoot! — Ele olhou por cima do ombro para o egípcio, que estava ensopado de suor. — Agora o trabalho é seu. Herr Von Schiller ordenou que encontrasse o que queremos. Entre.

Nahoot aproximou-se relutante e Nogo o empurrou para dentro.

— Entre logo, seguidor do Profeta. A Santíssima Trindade não vai lhe fazer mal.

Ele entrou no maqdas imediatamente atrás de Nahoot e passou a lanterna acesa pela câmara baixa. O facho de luz dançou nas prateleiras das oferendas votivas, refletindo nos vidros e nas pedras preciosas, na prata, no ouro e no cobre. Foi então para o altar de cedro e iluminou a coroa da Epifania, os cálices e a grande cruz copta de prata.

— Atrás do altar — Nahoot gritou excitado. — O portão de grade! Ali foram tiradas as fotos.

Ele adiantou-se para atravessar a câmara. Fechou as mãos nas barras da grade e espiou por entre elas como um prisioneiro condenado à prisão perpétua.

— É o túmulo. Traga a luz! — sua voz soou alta e esganiçada. Nogo seguiu-o rapidamente, esbarrando na pedra do tabot coberta

com o tecido adamascado, e aproximou a lanterna.

— Pela sublime compaixão divina e pelo sopro eterno do Profeta! — Nahoot passou do grito ao sussurro. — São os murais do antigo escriba. É trabalho do escravo Taita. — Tal como Royan, ele reconheceu imediatamente o estilo do autor. O traço de Taita era inconfundível, e seu talento atravessara eras.

— Abram esse portão! — Nahoot gritou novamente, agora com a voz estridente e nervosa.

— Aqui, homens! — Nogo respondeu, e eles se juntaram ao redor da antiga estrutura, tentando antes arrancá-la à força da parede de pedra. Era um esforço inútil, e Nogo os fez parar.

— Voltem — ordenou ao tenente — e tragam ferramentas apropriadas.

Um oficial saiu correndo da câmara, levando com ele a maioria dos homens. Nogo afastou-se do portão e examinou o resto do maqdas.

— O monólito! — disse num tom estridente. — Herr Von Schiller quer a pedra acima de tudo! — Ele passou a lanterna pela câmara. — As fotos foram tiradas deste ângulo...

Então parou bruscamente e ergueu o facho sobre a pedra do tabot coberta com o pano, na qual ficava o tabernáculo revestido de veludo.

— Veja — ele chamou Nahoot. — É esta aqui.

Tuma Nogo deu meia dúzia de passos e aproximou-se da coluna. Pegou a ponta do tecido bordado a ouro que cobria o tabernáculo e o puxou. O tabernáculo era um simples baú de madeira já manchada pela patina de mãos piedosas ao longo de séculos.

— Superstições primitivas — Nogo murmurou, e, pegando-o com ambas as mãos, atirou-o contra a parede. A madeira se quebrou e a tampa do baú abriu. Uma fieira de peças de barro inscritas espalhou-se pelo chão, mas nem Nogo nem Nahoot perceberam esse itens sagrados.

— Descubra — Nahoot encorajou-o. — Descubra a pedra.

Nogo puxou uma ponta do tecido adamascado, mas ele ficou preso numa quina do pilar. Impaciente, puxou com mais força e o velho e apodrecido tecido se rasgou.

O testamento de pedra de Taita, o monólito entalhado, se revelou. Até Nogo ficou impressionado com a descoberta. Afastou-se dela com o pano rasgado na mão.

— É a pedra da fotografia — ele sussurrou. — Foi isso que Herr Von Schiller nos mandou encontrar. Estamos ricos!

Suas palavras avarentas quebraram o encantamento. Nahoot adiantou-se e caiu de joelhos diante do monólito. Abraçou-o como um amante carente, chorando baixinho. Nogo olhava com espanto as lágrimas escorrerem livremente pelo rosto do outro, pois só o que lhe interessava era a recompensa que lhe traria. Não entendia como alguém pudesse desejar tanto um objeto inanimado, principalmente algo tão comum como um pilar de pedra ordinária.

Eles estavam assim, Nahoot ajoelhado diante do monólito como um adorador, e Nogo em pé atrás dele, quando o tenente entrou correndo na caverna. Havia encontrado em algum lugar uma picareta enferrujada com cabo rústico de madeira.

Sua chegada tirou-os de seu transe, e Nogo ordenou-lhe:

— Abra o portão!

Embora fosse um portão antigo e a madeira estivesse velha, foram necessários vários homens para arrancar os pilares de suas bases no chão da gruta.

Por fim, o pesado portão tombou para a frente. Os homens saltaram de lado e ele caiu com um estrondo, erguendo uma nuvem de poeira vermelha que ofuscou a luz das lamparinas e da lanterna elétrica.

Nahoot entrou primeiro. Atravessou a névoa de poeira e novamente caiu de joelhos ao lado do antigo caixão de madeira.

— Traga luz — gritou impaciente. Nogo parou atrás dele e iluminou o caixão com a lanterna.

Os retratos eram tridimensionais, não somente nas laterais do caixão, mas também sobre a tampa. Tinham sido feitos pelo mesmo artista que executara os murais. O retrato da tampa estava em excelentes condições. Representava um homem no auge da vida, com a expressão forte e orgulhosa de um guerreiro, mas de olhos calmos e serenos. Era um homem bonito, com grossas tranças loiras; fora habilmente pintado por alguém que devia tê-lo conhecido bem e o amara muito. O artista conseguira captar seu caráter e salientar suas aparentes virtudes.

Nahoot passou do retrato às inscrições da parede superior do túmulo. Leu-as em voz alta, e então, ainda com os olhos cheios de lágrimas, olhou para o caixão novamente e leu o cartucho pintado abaixo do retrato do general loiro.

— "Tanus, Senhor Harrab." — Sua voz estava embargada pela emoção; ele engoliu ruidosamente e limpou a garganta. — Isto corresponde exatamente à descrição do sétimo papiro. Temos o monólito e o caixão. São tesouros incalculáveis. Herr Von Schiller vai adorar.

— Espero poder acreditar no que está dizendo — Nogo duvidou. — Von Schiller é um homem perigoso.

— Você trabalhou bem até agora — Nahoot assegurou-lhe. — Falta tirar o monólito e o caixão do mosteiro e levá-los para o helicóptero, para que sejam transportados ao acampamento da Pégaso. Se conseguir isso, será um homem rico. Mais rico do que imagina.

O incentivo bastou para Nogo. Ele supervisionou os homens que cavavam ao redor da base do monólito, erguendo nuvens de poeira e arrancando os blocos de pedra do chão. Por fim, a base do monólito soltou-se e todos juntos removeram do lugar a pedra que lá estava havia quase 4 000 anos.

Só então se deram conta do peso. Embora não fosse grande, a pedra pesava quase meia tonelada. Nahoot voltou para o qiddist e, ignorando os monges, arrancou várias tapeçarias das paredes e mandou que os homens as levassem para dentro do maqdas.

Eles embrulharam o monólito e o caixão nas longas tiras de lã crua. Eram firmes como lona e forneceram aos carregadores um apoio seguro. Dez homens fortes conseguiram erguer e carregar o monólito, enquanto outros três se encarregavam do caixão de madeira e seu conteúdo preservado. Sete homens armados os escoltavam. O grupo saiu pela porta arruinada do Sacrário dos Sacrários e entrou no qiddist central onde estavam os monges.

Tão logo a congregação percebeu o que estava acontecendo, um comovente burburinho de vozes, lamentações e exortações se ergueu do chão, onde os monges se encolhiam.

— Quietos! — Nogo berrou. — Silêncio! Façam esses tolos calar-se. Os guardas avançaram sobre a massa humana, abrindo passagem

para os tesouros que carregavam, pisando entre eles com suas botas e apontando os rifles, gritando para que saíssem do caminho e os deixassem passar. O rumor aumentou; os monges se encorajavam mutuamente com gritos de protesto e se autoflagelavam num frenesi de ultraje religioso. Alguns deles se levantaram, desafiando as ordens de permanecer sentados. Chegavam cada vez mais perto dos soldados armados, segurando suas fardas, cantando e girando em torno deles numa exibição de desafio e de crescente hostilidade.

No meio do bulício, de repente a figura espectral de Jali Hora reapareceu. A barba e as vestes estavam manchadas de sangue, os olhos injetados e arregalados. De seus lábios feridos e da boca arruinada saiu um grito longo e estridente. Os monges abriram caminho e ele avançou para o Coronel Nogo como um corvo assustado, com as saias enrolando-se nas pernas finas.

— Pare, velho louco! — Nogo avisou-o, e ergueu o cano da arma para impedir sua passagem.

Nada neste mundo deteria Jali Hora, que nem sequer viu a ponta de uma baioneta apontada para sua barriga.

A lâmina de aço atravessou os paramentos e enfiou-se na carne com a mesma facilidade de um arpão na barriga de um peixe. A ponta emergiu no meio das costas, rasgando o manto de veludo e manchando-o com o sangue do ancião. Espetado no aço, Jali Hora retorceu-se, soltando um apavorante chiado através dos lábios ensangüentados.

Nogo tentou puxar a baioneta, mas a sucção úmida das vísceras do abade a impediu de sair; deu um puxão mais forte, e Jali Hora foi jogado de um lado para outro, balançando braços e pernas numa dança tragicômica.

Só havia um meio de retirar a baioneta assim presa. Nogo mudou o seletor de disparos do AK-47 para "disparo único" e deu um tiro.

A detonação, apesar de abafada pelo corpo de Jali Hora, foi tão forte que por um momento silenciou a gritaria dos monges. A força do disparo estourou a ponta do cano onde a lâmina estava fixada. Três vezes mais veloz que o som, a explosão criou uma onda de choque hidrostático que transformou os intestinos do velho em gelatina e liquidificou os músculos. A sucção que retinha a baioneta se desfez, e a carcaça de Jali Hora foi arrancada da lâmina e jogada nos braços dos monges que estavam atrás.

Por longo tempo o silêncio forçado persistiu, mas foi logo quebrado por uma gritaria mais alta e enfurecida. Os monges pareciam movidos por uma intenção única, um só instinto. Como um bando de pássaros brancos, voaram para cima dos homens armados e atiraram-se sobre eles, dispostos a vingar-se do crime cometido. Não pensavam em si mesmos; de mãos vazias, agrediam-nos violentamente, buscando os olhos com os dedos ou segurando os canos dos rifles erguidos. Alguns seguravam a lâmina das baionetas e o aço lhes penetrava a pele, cortando os tendões.

Por um breve tempo pareceu que os soldados seriam dominados e asfixiados pelo número de religiosos, mas os que carregavam o monólito e o caixão abandonaram a carga e sacaram as armas.

Os monges estavam tão próximos que eles não podiam mover os rifles; foram obrigados a usar as baionetas para abrir caminho e executar o trabalho. Não precisavam de muito espaço, pois o AK-47 tem cano curto e ação compacta. Os primeiros disparos automáticos à altura dos ventres dos monges, à queima-roupa, abriram um sulco no meio deles. Cada uma das balas atravessava o peito de um monge e matava o que vinha atrás.

Agora os soldados atiravam à altura do quadril, atravessando de um lado ao outro, pulverizando o grupo de monges como jardineiros regando um canteiro de margaridas. Quando um cartucho de 28 balas se esvaziava, era substituído por outro cheio.

Nahoot escondeu-se atrás do pilar, usando-o como proteção. O tiroteio deixava-o surdo e confuso. Olhava ao redor e não acreditava na carnificina que presenciava. A pouca distância um projétil 7.62 é um míssil tão terrível que pode arrancar um braço ou uma perna com a mesma eficácia de um golpe de machado, mas com menos precisão. Na arnga, pode estripar um homem como um peixe.

Nahoot viu um monge ser atingido na testa. O cérebro foi expelido Uma nuvem de sangue, enquanto o atirador ria e disparava. Estavam todos tomados pela loucura do momento. Como um bando de cães enluquecidos atrás da presa, eles não paravam de atirar, recarregar e

atirar novamente.

Os monges que estavam na frente correram para trás. Em pânico soltavam uivos de agonia e terror, até serem atingidos pela tempestade de balas que os matava e mutilava, derrubando-os uns sobre os outros O chão da câmara estava forrado de mortos e feridos. Ao tentar escapar da saraivada de balas, alguns monges bloquearam a saída, pressionados contra a soleira da porta. Os soldados posicionaram-se no meio do qiddist e viraram as armas para essa massa humana encurralada. Atingidos pelas balas, eles balançavam como árvores sob um vendaval. Agora já não se ouviam tantos gritos; as armas eram as únicas vozes que ainda clamavam.

Minutos depois também as armas se calaram restando apenas os gemidos e lamentos dos feridos. A câmara estava envolta numa fumaça azulada e impregnada pelo cheiro de pólvora queimada. Até os soldados pararam de rir quando olharam em volta e perceberam a enormidade do estrago. O chão estava forrado de corpos, os shammas enodoados de vermelho, as pedras sob eles lavada pelo sangue sobre o qual cintilavam como jóias os cartuchos vazios das balas.

— Cessar fogo! — Nogo deu a ordem atrasada. — Peguem a carga! Adiante, marchem!

Sua voz despertou os homens, que penduraram as armas e ergueram os grandes pesos enrolados nas tapeçarias. Seguiram em frente cambaleando, chafurdando no sangue, passando por cima de cadáveres, pisando em corpos agonizantes ou inertes. Em meio ao mau cheiro de fumaça e de sangue, de intestinos e vísceras expostas, eles atravessaram a câmara.

Quando chegaram à porta e desceram com dificuldade os degraus para a deserta câmara externa da igreja, Nahoot viu no rosto daqueles veteranos de longas batalhas o alívio por abandonar a terrível carnificina. Mas para ele fora demais. Nem nos piores pesadelos tivera visões como aquela.

Com dificuldade, foi até a parede lateral e segurou-se numa das tapeçarias. Então abriu a boca e vomitou a bílis amarga. Quando olhou novamente à sua volta, não havia mais ninguém, exceto um monge ferido que se arrastava em sua direção, com a espinha atravessada por uma bala e as pernas paralisadas arrastando-se atrás do corpo, deixando uma trilha de sangue no chão de pedra.

Nahoot deu um grito, afastou-se do monge ferido e saiu correndo da igreja. Passou pelas clausuras sobre a garganta do Nilo e seguiu o grupo de soldados que carregavam seus fardos para o alto da escadaria. Estava tão horrorizado que não ouviu o helicóptero se aproximar.

Otthold von Schiller esperava na porta do barracão de aço corrugado, com Utte Kemper logo atrás. O piloto avisara pelo rádio que estavam a caminho, e tudo estava pronto para receber a preciosa carga. O helicóptero ergueu uma nuvem de poeira ao pousar no círculo de aterrissagem. A grande carga embrulhada em tapeçaria não coubera na cabine e era amarrada nos trens de pouso da aeronave. No momento em que eles tocaram o chão e o piloto desacelerou, Jake Helm liderou um grupo de doze homens para desamarrar as cordas de náilon e retirar o pesado embrulho. Os trabalhadores carregaram o monólito para o barracão. Helm não saiu de perto deles.

Um espaço havia sido aberto no meio da sala de reunião, a mesa grande fora afastada contra a parede. Com todo o cuidado, o monólito foi colocado ali, e logo depois, a seu lado, o caixão de Tanus, o Grande Leão do Egito.

Helm dispensou o grupo e trancou a porta quando os homens saíram. Somente os quatro permaneceram na sala. Nahoot e Helm aga-charam-se ao lado do monólito para retirar a tapeçaria de lã. Von Schiller ficou na frente deles, com Utte a seu lado.

— Podemos começar? — Helm perguntou tranqüilamente, olhando para Von Schiller como um cão fiel olha para seu amo.

— Com cuidado — Von Schiller advertiu-o em tom abafado. — Não estrague nada. — Ele suava em bicas na testa e estava pálido. Utte ficava por perto para protegê-lo, mas ele não olhava para ela. Seus olhos não se afastavam do tesouro.

Helm abriu o canivete e cortou as cordas que prendiam o embrulho. A respiração de Von Schiller ficou mais forte. Seu peito chiava como um homem em estágio terminal de um enfisema.

— Sim — ele sussurrou roucamente —, é assim que se faz. — Utte Kemper observava-o. Sempre ficava desse jeito quando fazia uma aquisição importante para sua coleção de antigüidades. Parecia à beira de um ataque, um infarto fulminante, mas ela sabia que seu chefe tinha um coração de touro.

Helm foi para a parte de cima da coluna e, com cuidado, abriu um pedaço do tecido. Enfiou a ponta da lâmina na abertura e desceu devagar em direção à base, como se abrisse um zíper. O tecido rompeu-se sob a lâmina e revelou a pedra com as inscrições.

O suor brotava como orvalho na pele de Von Schiller, pingando de seu queixo na camisa de brim grosso. Ele deu um gemido quando viu os hieroglifos entalhados. Utte o observava, vendo crescer sua própria excitação. Sabia o que esperar quando ele atingia esse paroxismo emocional.

— Veja aqui, Herr Von Schiller. — Nahoot ajoelhou-se ao lado do obelisco e mostrou o falcão de asa quebrada. — É a assinatura do escravo Taita.

— É genuína? — Von Schiller parecia agonizar.

— É genuína. Dou minha vida como garantia.

— É bom que seja mesmo — Von Schiller advertiu-o. Seus olhos brilhavam como duas safiras.

— Esta coluna foi esculpida há quase quatro mil anos — Nahoot repetiu. — É o autêntico selo do escriba. — Com um brilho no rosto quase de êxtase místico, ele traduziu com facilidade os blocos de figuras: "Anúbis, cabeça de chacal, deus dos cemitérios, prende entre suas patas o sangue e as vísceras, os ossos, os pulmões e o coração, que são minhas partes isoladas. Movimenta-os como as pedras do tabuleiro de bao, meus membros servem-lhe de contadores, minha cabeça é o grande touro do grande tabuleiro..."

— Basta! — Von Schiller ordenou. — Teremos tempo para isso mais tarde. Agora saiam. Deixem-me sozinho. Não voltem até eu chamá-los.

Nahoot olhou-o espantado e se levantou com dificuldade. Não esperava ser dispensado tão bruscamente no momento de seu triunfo. Helm ajudou-o a sair do barracão.

— Helm — Von Schiller chamou. — Cuide de que eu não seja perturbado.

— É claro, Herr Von Schiller. — Ele olhou para Utte Kemper.

— Não — disse Von Schiller. — Ela fica.

Os dois homens saíram da sala e Helm fechou a porta. Utte trancou-a por dentro. Então, com as mãos nas costas e encostada na porta, olhou para Von Schiller.

Seus seios apontavam firmes para cima. Os mamilos eram claramente visíveis através da blusa de algodão, rijos como mármore.

— O traje? — ela perguntou. — Você quer o traje? — Sua voz era tensa. Ela gostava desse jogo tanto quanto ele.

— Sim, o traje — ele sussurrou.

Ela desapareceu pela porta dos aposentos privativos. Quando saiu, Von Schiller começou a se despir. Ficou nu no centro da sala e atirou as roupas num canto, virando-se para a porta por onde ela sairia.

De repente Utte apareceu, e a respiração dele tornou-se entrecortada. Ela usava a peruca egípcia de tranças grossas e sobre ela o uraeus, o círculo dourado com a cobra ereta sobre a testa. A coroa era verdadeira e muito antiga — Von Schiller pagara por ela 5 milhões de marcos alemães.

— Sou a reencarnação da rainha egípcia Lostris — ela ronronou. — Minha alma é imortal. Minha carne é incorruptível. — Usava as sandálias douradas encontradas no túmulo de uma princesa e braceletes, anéis e brincos do mesmo túmulo. Todos eram relíquias reais autênticas.

— Sim — a voz dele saía com dificuldade, seu rosto estava pálido como a morte.

— Nada pode me destruir. Viverei para sempre — ela disse. A saia, de diáfana seda amarela, era presa com um cinto de ouro e pedras preciosas.

— Para sempre — ele repetiu.

Ela estava nua da cintura para cima. Tinha seios grandes e brancos como o leite. Ela os envolvia com as mãos.

— Eles são jovens e macios há quatro mil anos. Ofereço-os a você. Ela tirou as sandálias douradas, e seus pés eram finos e graciosos.

Separou as faldas dianteiras da saia amarela e segurou-as de modo que a parte inferior de seu corpo ficasse exposta. Todos os movimentos eram lentos e calculados. Era uma excelente atriz.

— Esta é a promessa da vida eterna. — Ela pôs a mão direita sobre o denso tufo de pêlos castanhos. — Ofereço-a a você.

Ele gemia baixinho e a observava avidamente.

Utte ondulava os quadris, lenta e lascivamente como uma cobra se desenrolando. Separou os pés e abriu as pernas. Com os dedos separou os lábios de sua vulva.

— Este é o portão da eternidade. Abro-o para você.

Von Schiller gemeu em voz alta. Por mais que se repetisse, o ritual jamais falhava. Como em transe, ele dirigiu-se a ela. Seu corpo era franzino e ressecado como uma múmia de milhares de anos. Os cabelos do peito eram prateados, a pele da barriga, enrugada e esfriada, mas os pêlos púbicos eram escuros e grossos como os da cabeça. Tinha pênis grande, desproporcional para a magra moldura sobre a qual se balançava. Enquanto ela se movimentava lentamente para encontrá-lo, o pênis cresceu e ergueu-se num ângulo diferente, e por conta própria a pele murcha e enrugada retraiu-se para revelar a glande vermelha.

— No monólito — ele grunhiu. — Depressa! Na pedra.

Ela virou-se de costas para ele e ajoelhou-se na pedra, observando-o por cima do ombro enquanto ele chegava por trás. Suas nádegas eram redondas e brancas como dois ovos de avestruz.

Helm e seus homens trabalharam até tarde da noite na oficina da Pégaso, construindo os engradados de madeira que abrigariam em segurança o caixão e o monólito. Ao raiar do dia, esses engradados foram levados para os pesados caminhões, colocados sobre grossas mantas emborrachadas e amarrados sobre apoios especiais.

Por sua própria sugestão, Nahoot foi na carroceria do caminhão que levou mais de trinta horas para percorrer o árduo e longo caminho para Adis Abeba. O Falcon da Pégaso estava estacionado na pista do aeroporto quando o caminhão empoeirado cruzou os portões de segurança e parou ao lado dele.

Von Schiller e Utte Kemper fizeram a viagem no helicóptero da companhia. O General Obeid estava com eles. Estava lá para se despedir e desejar-lhes boa viagem.

Enquanto os caixotes de madeira eram levados para o jato, Obeid conversava com o oficial da alfândega. Ele carimbou os documentos liberando os dois volumes como "amostras geológicas" para exportação, e em seguida se retirou.

— Carregado e pronto para decolar, Herr Von Schiller — disse o comandante do avião da Pégaso.

Von Schiller despediu-se de Obeid e subiu a escada de embarque. Utte e Nahoot Guddabi o seguiram. As olheiras de Nahoot estavam mais escuras que de costume. A viagem quase o exauriu, mas ele não permitiria que os caixotes ficassem longe de sua vista.

O Falcon decolou sob um céu claro para o alto das montanhas e dirigiu-se para o norte. Logo depois que o piloto desligou a luz do cinto de segurança, Utte Kemper enfiou sua linda cabeça loira pela porta da cabine do piloto e pediu ao comandante:

— Herr Von Schiller gostaria de saber o horário de chegada previsto.

— Espero estar em Frankfurt às nove da noite. Por favor, informe-lhe que já comuniquei ao escritório central para que o transporte esteja nos esperando no aeroporto.

O Falcon aterrissou poucos minutos antes do previsto e taxiou para o hangar particular. Os oficiais graduados da alfândega e imigração que esperavam por eles eram velhos conhecidos que estavam sempre a disposição quando o Falcon trazia cargas especiais. Depois de cumprir as formalidades, eles beberam um schnapps com Gotthold von Schiller no pequeno bar do Falcon e discretamente puseram no bolso os envelopes que os esperavam sobre o balcão, ao lado de cada copo de cristal.

A viagem para as montanhas levou quase o resto da noite. O motorista de Von Schiller seguia o caminhão da Pégaso pela estrada gelada, sem jamais perder a carga de vista. Às 5 da manhã eles atravessaram o portal de pedra do castelo, onde a neve tinha meio metro de altura. O "Schloss", com ameias de pedras escuras e janelas estreitas, parecia saído de um romance de Bram Stoker. Entretanto, apesar da hora, o mordomo e toda a criadagem estavam prontos para receber o patrão.

Herr Reeper, curador da coleção de Von Schiller, e seus assistentes mais fiéis também os esperavam, prontos para retirar os dois caixotes de madeira e levá-los para o cofre. Reverentemente, eles foram retirados com guincho e empurrados para um elevador especial.

Enquanto os engradados eram abertos, Von Schiller foi para a sua suíte na torre norte. Banhou-se e fez uma refeição leve, preparada pelo cozinheiro chinês. Depois de comer, foi ao quarto de sua esposa. Ela estava mais frágil desde a última vez que a vira. O cabelo ficara completamente branco, o rosto murcho e ceroso. Ele dispensou a enfermeira e beijou ternamente a testa da mulher. O câncer a consumia lentamente, mas era a mãe de seus dois filhos, e, à sua maneira, ele ainda a amava.

Ficou uma hora com ela, depois voltou para seu quarto e dormiu durante quatro horas. Na sua idade não precisava dormir mais que isso, por mais cansado que estivesse. Trabalhou até o meio da tarde com Utte e dois outros secretários, e então o curador o chamou pelo interfone para dizer que estavam prontos para recebê-lo no cofre.

Von Schiller e Utte desceram juntos pelo elevador; quando a porta se abriu, Herr Reeper e Nahoot os esperavam. Bastava olhar para perceber que estavam muito excitados e tinham ótimas notícias.

— Os raios X estão prontos? — Von Schiller perguntou, enquanto os outros corriam atrás dele pelo corredor subterrâneo.

— Os técnicos já terminaram — Reeper disse a ele. — Fizeram um bom trabalho. As chapas estão maravilhosas. Ja, wunderbar!

Von Schiller havia montado a clínica, de modo que todos os seus pedidos eram considerados exigências reais. O diretor enviara seu equipamento portátil de raios X mais moderno, dois técnicos para fotografar a múmia do Senhor Harrab e uma radiologista para interpretar as chapas.

Reeper enfiou seu cartão de plástico no vão da fechadura do cofre e imediatamente a porta se abriu. Todos se afastaram para dar passagem a Von Schiller. Ele parou na porta e ficou olhando para dentro. O prazer jamais diminuía. Pelo contrário, parecia ficar mais intenso a cada vez que entrava naquele lugar.

As paredes eram revestidas de dois metros de aço e concreto, e o local era guardado pelos mecanismos eletrônicos mais requintados. Mas nada disso se via na sala principal, que tinha uma iluminação suave e era decorada com elegância. Fora planejada por um dos mais importantes decoradores da Europa. A cor básica era azul. Cada item da coleção tinha sua própria vitrine, e cada uma delas era especialmente disposta para se obter a melhor visão.

Em toda parte, ouro e pedras preciosas brilhavam sobre almofadas de veludo azul-escuro. Luzes artisticamente dispostas iluminavam alabastros e pedras ricamente polidos, bem como os marfins e as pedras de obsidiana. Eram estátuas maravilhosas. O panteão dos antigos deuses também estava presente: Thot e Anúbis, Hapi e Set, e a gloriosa trindade de Osíris, ísis e Hórus, seu filho. Do alto de seu pedestal contemplavam a passagem das eras.

Sobre seu plinto temporário no centro da sala estava a última aquisição desse acervo extraordinário, a bela e grande pedra do testamento de Taita. Von Schiller parou para acariciar a pedra polida, antes de passar para a segunda sala.

Ali, o caixão de Tanus, Senhor Harrab, estava sobre um par de cavaletes. A radiologista de avental branco curvava-se sobre uma mesa luminosa sobre a qual estavam fixadas as chapas de raios X. Von Schiller foi diretamente para essa mesa e examinou as chapas escuras. Dentro do contorno do caixão de madeira, a forma humana reclinada com as mãos cruzadas sobre o peito era muito clara. Lembrava-lhe a efígie entalhada na tampa de um sarcófago de um antigo cavaleiro, numa catedral medieval.

— O que pode me dizer sobre o corpo? — ele perguntou sem olhar para ela.

— É um homem — ela respondeu imediatamente. — Avançado na meia-idade. Mais de cinqüenta e menos de sessenta e cinco anos na hora da morte. Baixa estatura. — Todos os ouvintes estremeceram e olharam para Von Schiller. Ele parecia não ter notado a impropriedade. — Cinco dentes faltando. Um frontal superior, um canino e três molares. Dentes do siso inclusos. Evidência de infecção biliar crônica. Possível poliomie-lite na infância, afetando a perna esquerda. — Ela recitou suas descobertas durante cinco minutos e por fim concluiu: — A causa provável da morte foi um ferimento por perfuração no lado direito superior do tórax. Lança ou flecha. Extrapolando desde o ângulo de entrada, a ponta da lança ou da flecha teria transfixado o pulmão direito.

— Mais alguma coisa? — Von Schiller perguntou quando ela silenciou. A radiologista hesitou, mas prosseguiu:

— Herr Von Schiller deve se recordar de que já examinei várias múmias para o senhor. Neste caso, as incisões pelas quais foram removidas as vísceras parecem feitas com mais habilidade e precisão do que em outros cadáveres. O cirurgião deve ter sido um médico treinado.

— Obrigado. — Von Schiller voltou-se para Nahoot: — Tem algum comentário, neste estágio?

— Somente que as descrições não correspondem às que estão no sétimo papiro em relação a Tanus, Senhor Harrab, no momento de sua morte.

— De que maneira?

— Tanus era um homem grande, e muito mais jovem. Veja o retrato na tampa do caixão.

— Continue — Von Schiller pediu.

Nahoot aproximou-se da mesa de luz e apontou nas chapas de raios X vários objetos sólidos, todos eles com contornos claros, que adornavam o corpo.

— Jóias — ele disse. — Amuletos. Braceletes. Peitorais. Vários colares. Anéis e brincos. — Nahoot encostou o dedo num círculo escuro acima das sobrancelhas. — A coroa uraeus. O contorno da serpente sagrada é quase inconfundível, por baixo das bandagens.

— O que isso indica? — Von Schiller estava confuso.

— Que não é o corpo de uma pessoa comum, nem de um nobre. A quantidade de ornamentos é muito grande. Mas o mais importante é a coroa uraeus. A serpente sagrada. Só era usada pela realeza. Acredito que temos aqui uma múmia real.

— Impossível — respondeu asperamente Von Schiller. — Veja a inscrição do caixão. E as pinturas das paredes do túmulo. Sem dúvida é a múmia de um general egípcio.

— Com todo o respeito, Herr Von Schiller, é uma explicação possível. No livro escrito pelo inglês, O Ultimo Deus do Nilo, há uma interessante sugestão de que o escravo Taita trocou as duas múmias, a do Faraó Mamose e a de seu amigo Tanus.

— E por que ele faria isso? — Von Schiller parecia incrédulo.

— Não por motivos terrenos, mas espirituais e sobrenaturais. Taita desejava que seu amigo usasse e possuísse todos os tesouros do faraó no outro mundo. Foi seu último presente ao amigo.

— Acredita nisso?

— Não deixo de acreditar. Há outro fato que tende a sustentar essa teoria. É bastante claro pelos raios X que o caixão é grande demais para o corpo. Para mim, parece óbvio que foi desenhado para acomodar um homem maior. Sim, Herr Von Schiller, acredito que há uma excelente probabilidade de que seja uma múmia real.

Von Schiller empalidecia à medida que escutava. O suor escorria-lhe da testa e sua voz estava rouca quando perguntou:

— Uma múmia real?

— Pode muito bem ser.

Lentamente, Von Schiller aproximou-se do caixão selado sobre os cavaletes e olhou o retrato do morto sobre a tampa.

— O uraeus dourado de Mamose. A jóia pessoal do faraó. — Sua mão tremia sobre a tampa do caixão. — Se for mesmo, então a descoberta excede nossas esperanças mais extravagantes.

Von Schiller deu um profundo suspiro.

— Abram o caixão. Desenrolem a múmia do Faraó Mamose.

Era um trabalho dificílimo. Nahoot já havia executado a mesma tarefa muitas vezes, mas nunca em restos mortais de um personagem tão ilustre quanto um faraó egípcio.

Primeiro precisou encontrar a junta da tampa, por baixo da pintura. Feito isso, retirou o antigo verniz e a cola que fixava a tampa no lugar. Teve de ser muito cuidadoso para danificá-la o mínimo possível: o frágil caixão era em si um tesouro inestimável. Esse trabalho lhe ocupou quase dois dias.

Quando a tampa se soltou e estava pronta para ser erguida, Nahoot enviou uma mensagem a Von Schiller, que estava em reunião executiva com seus filhos e outros diretores da companhia na biblioteca do castelo. Ele se recusara a fazer a reunião na cidade; não suportaria se afastar de seu novo tesouro. Imediatamente após receber o recado de Nahoot, adiou a reunião para a segunda-feira seguinte e dispensou os diretores e seus filhos sem a menor cerimônia. Não esperou para vê-los entrar em suas limusines e desceu correndo para os cofres.

Nahoot e Reeper haviam instalado um painel luminoso sobre o caixão, no qual estavam suspensos dois conjuntos de talhas. Quando Von Schiller entrou no cofre, Reeper dispensou os assistentes. Somente os três estariam presentes para testemunhar a abertura do caixão.

Reeper colocara o tablado acarpetado na cabeceira do caixão, de modo que Von Schiller pudesse vê-los trabalhar lá dentro. O velho subiu no tablado e fez sinal para que prosseguissem. As catracas estalaram, uma por vez, enquanto os dois, Nahoot e Reeper, faziam uma leve pressão no guindaste. Ouviu-se um pequeno estalo e o som de algo se rasgando, diante do qual Von Schiller estremeceu.

— São somente os últimos restos de cola que seguram a tampa Nahoot assegurou-lhe.

— Continue — Von Schiller ordenou, e eles ergueram a tampa mais alguns centímetros acima do caixão. Os cavaletes estavam montados sobre roldanas de náilon que deslizavam suavemente pelo chão de lajotas-Eles empurraram a estrutura, com a tampa do caixão ainda suspensa.

Von Schiller espiou lá dentro. Imediatamente fez uma expressão de espanto. Esperava ver uma forma humana enfaixada, dormindo serenamente na tradicional posição fúnebre. Em vez disso, o interior caixão estava recheado com uma desordem de bandagens de linho soltas, que ocultavam completamente o corpo.

— Que diabo... — Von Schiller exclamou assustado. Ele enfiou a mão e apanhou um punhado dos velhos trapos desbotados, mas Nahoot o fez parar.

— Não! Não toque nisso! — gritou nervosamente, mas logo se conteve. — Desculpe, Herr Von Schiller, mas isto é fascinante. É uma forte confirmação da teoria da troca de corpos. Acho que devemos examiná-los antes de proceder ao desenrolamento. Com sua permissão, é claro, Herr Von Schiller.

O velho hesitou. Estava ansioso para saber o que havia por baixo da maçaroca de trapos velhos, mas reconheceu a necessidade de ter cuidado e prudência. Um movimento mais brusco poderia causar danos irreparáveis. Ele aprumou-se e desceu do tablado.

— Muito bem — resmungou. Tirou o lenço do bolso do paletó azul e secou o suor do rosto. Sua voz estava trêmula quando perguntou: — Pode ser o Faraó Mamose?

Quando guardou o lenço no bolso da calça, descobriu com surpresa que tinha uma dolorosa ereção. Com a mão no bolso, ajeitou o pênis ereto sobre a barriga.

— Remova as bandagens soltas.

— Com sua permissão, Herr Von Schiller, primeiro devemos fazer as fotografias — Reeper sugeriu diplomaticamente.

— E claro — o velho concordou de imediato. — Vocês são cientistas e arqueólogos, e não saqueadores vulgares. Façam as fotos.

Eles trabalhavam devagar, e para Von Schiller a demora era torturante. Não se via o tempo passar dentro daquele cofre, mas a certa altura Von Schiller, agora em mangas de camisa, olhou para seu relógio de ouro e surpreendeu-se ao ver que passava de 9 da noite. Desamarrou o nó da gravata, jogou-a num banco onde já estava o paletó e voltou a se aplicar à tarefa.

Aos poucos a forma de um corpo humano foi emergindo da massa compacta de antigas bandagens, mas já passava de meia-noite quando Nahoot retirou a última ponta desamarrada do torso na múmia. Eles foram ofuscados pelo ouro visível através das camadas de tecido enroladas no cadáver pelas mãos meticulosas e hábeis dos embalsamadores.

— Originalmente devem ter existido vários outros caixões externos, que se perderam, assim como as máscaras. Devem continuar no sarcófago original do faraó, cobrindo o corpo de Tanus, no túmulo real que ainda não foi encontrado. O que temos aqui é somente o revestimento interno da múmia real.

Com grandes fórceps ele desenrolou a camada superior da bandagem, enquanto Von Schiller, trepado no tablado, gemia e apoiava-se ora num pé ora no outro.

— O medalhão peitoral da casa real de Mamose — Nahoot murmurou reverentemente. A grande jóia reluziu sob o arco de luz. Lápis-lazúlis resplandecentes, cornalinas vermelhas e ouro recobriam completamente o peito da múmia. O motivo central era um abutre voando pairando nas alturas de asas abertas e levando nas garras o cartucho dourado do rei. O trabalho de ourivesaria era maravilhoso e o desenho esplêndido.

— Não há mais dúvida agora — Von Schiller sussurrou. — O cartucho prova a identidade do corpo.

Em seguida desenfaixaram as mãos do rei, cruzadas sobre o grande medalhão. Os dedos eram longos e delicados, cada um deles coberto por diversos anéis magníficos. Entre as mãos, a chibata e o cetro da majestade; Nahoot exultou quando os viu.

— Os símbolos da realeza. Outra prova de que é Mamose VIII, soberano do Alto e Baixo Reinos do antigo Egito.

Eles se dirigiram para a cabeça ainda recoberta do rei, mas Von Schiller os impediu.

— Deixem isso para o fim! — ordenou. — Ainda não estou pronto para ver o rosto do faraó.

Então Nahoot e Reeper concentraram a atenção na parte inferior do corpo do rei. A medida que retiravam as camadas de linho, eram revelados os amuletos que os embalsamadores haviam colocado sob as bandagens para proteger o cadáver. Eram jóias de ouro com incrustações de pedras preciosas e esmalte, em cores vivas e formas esplêndidas — todos os pássaros e criaturas terrestres e os peixes das águas do Nilo. Eles fotografaram todos os amuletos antes de retirá-los e colocá-los em bandejas com divisões numeradas, que estavam dispostas sobre a bancada de trabalho.

Os pés do faraó eram pequenos e delicados como as mãos, e todos os dedos adornados com preciosos anéis. Somente sua cabeça ainda estava coberta, os homens olharam inquisitivamente para Von Schiller. Reeper disse:

— Se quiser manter...

— Continuem — ele ordenou bruscamente. Então os dois puseram-se de cada lado da cabeça, enquanto Von Schiller permanecia entre eles, em cima de seu tablado.

Pouco a pouco o rosto do rei foi exposto à luz, pela primeira vez em 4 000 anos. O cabelo era ralo e fino, ainda tingido pela hena que usara durante toda a vida. A pele fora curada com resinas aromáticas até ficar como âmbar polido. O nariz era fino e aquilino. Os lábios estavam repuxados num sorriso suave, quase sonhador, deixando exposto um espaço entre os dentes da frente.

A resina cobria os cílios, de modo que pareciam úmidos de lágrimas, e as pálpebras estavam entreabertas. A vida ainda parecia presente, e quando Von Schiller se aproximou mais notou que o brilho dos olhos era o reflexo dos discos de porcelana branca que os agentes funerários haviam colocado nas órbitas vazias durante o embalsamamento.

Sobre a testa o faraó usava o uraeus, a coroa sagrada. Os detalhes da cabeça da serpente ainda estavam intatos. Não havia corrosão no metal. As presas eram afiadas e curvas, e a língua bifurcada enrolava-se no meio delas. Os olhos eram azuis e brilhantes. Na tiara de ouro estava gravado o cartucho real de Mamose.

— Eu quero essa coroa — a voz de Von Schiller soou apaixonada.

— Retirem-na; quero segurá-la em minhas mãos.

— Não poderemos erguê-la sem danificar a cabeça da múmia real

— Nahoot protestou.

— Não discuta. Faça o que estou dizendo.

— Imediatamente, Herr Von Schiller — Nahoot capitulou. — Mas levará tempo para retirá-la. Se Herr Von Schiller quiser descansar agora, nós lhe informaremos quando soltarmos a coroa.

O círculo de ouro estava colado à pele da testa do rei, coberta de resina. Para removê-lo, Nahoot e Reeper precisavam antes erguer o corpo do caixão e colocá-lo na mesa de aço inoxidável que esperava para recebê-lo. Em seguida a resina seria dissolvida e removida com solventes especialmente preparados. O processo durou o tempo que Nahoot previra, mas finalmente terminou.

Eles puseram o uraeus de ouro sobre uma almofada de veludo azul, como numa cerimônia de coroação. Diminuíram todas as luzes na câmara principal do cofre e providenciaram que um único refletor incidisse sobre a coroa. Em seguida subiram para informar Von Schiller.

Ele não permitiu que os arqueólogos o acompanhassem aos cofres para ver a coroa. Somente Utte Kemper estava com ele quando a porta blindada foi trancada e a corrediça, aberta.

A primeira coisa que chamou a atenção de Von Schiller foi a coroa em seu ninho de veludo.

Imediatamente seu peito começou a chiar como o de um asmático; ele pegou a mão de Utte e apertou-a com tanta força que a fez gemer. Mas a dor a excitava. Von Schiller despiu-a, pôs a coroa de ouro em sua cabeça e a fez deitar-se no caixão aberto.

— Sou a promessa de vida — ela sussurrou de dentro do caixão. — Minha face é a da imortalidade.

Ele não a tocou. Nu, colocou-se sobre o caixão, com o membro inflamado projetando-se da base do ventre como uma criatura com vida Própria.

Ela passava as mãos lentamente pelo próprio corpo; quando tocou seu monte de Vênus, entoou gravemente:

— Que você viva para sempre.

A eficácia lascíva da coroa de Mamose se comprovava. Nada até então produzira esse efeito em Gottnold von Schiller. Porque, às palavras dela, a cabeça vermelha de seu pênis entrou em erupção por conta própria e os filamentos prateados do sêmen escorreram e espalharam-se sobre o ventre esguio de Utte.

No caixão aberto, as costas de Utte Kemper arquearam-se e ela se contorceu num orgasmo.

Parecia que Royan estava longe do Egito havia muito mais tempo que apenas algumas semanas. Só então se deu conta da falta que sentia das ruas movimentadas e barulhentas da cidade, dos aromas exóticos de temperos e comidas, dos perfumes dos bazares, do som lamurioso dos almuadens nos minaretes das mesquitas, chamando os fiéis à prece.

Ainda não amanhecera totalmente quando ela saiu de seu apartamento em Giza. Como o joelho machucado continuava inchado e dolorido, usou uma bengala para caminhar pelas margens do Nilo. As cores da aurora tingiam as águas do rio de ouro e cobre, as velas triangulares das feluccas pareciam estar em chamas.

Era um Nilo muito diferente daquele que encontrara na Etiópia. Não era o Abbay, mas o verdadeiro Nilo: mais largo e mais calmo, com o mau cheiro tão conhecido e ao mesmo tempo tão amado. Era o seu rio e a sua terra. Ela estava pronta para fazer o que havia ido fazer ali. Suas dúvidas não a atormentavam; tinha a consciência tranqüila. Quando se afastou do rio, sentiu-se mais forte e mais segura do caminho que escolhera.

Royan foi visitar a família de Duraid. Precisava justificar sua partida súbita e a longa e inexplicável ausência. A princípio sentiu o cunhado frio e distante; mas quando sua esposa chorou ao abraçá-la e os filhos não saíram de perto dela — era a ammah favorita deles —, tornou-se mais afetivo e até se ofereceu para levá-la ao oásis. Quando ela explicou que preferia ir sozinha ao cemitério, ele até lhe emprestou seu adorado Citroen.

Junto ao túmulo de Duraid, o cheiro do deserto enchia suas narinas e a brisa quente brincava em seus cabelos. Duraid amara o deserto. Royan estava feliz porque agora ele estaria lá para sempre. O túmulo era simples e tradicional: apenas o nome e as datas, embaixo de uma cruz. Ela ajoelhou-se para limpá-lo e trocar as flores secas dos vasos por outras que trouxera do Cairo.

Então ficou ali sentada por um longo tempo. Não fez as orações formais, mas simplesmente lembrou-se dos inúmeros momentos tranqüilos que haviam passado juntos. Lembrou-se de sua gentileza e compreensão, da segurança e do carinho de seu amor. Arrependia-se de não ter sido capaz de retribuí-los na mesma medida, mas sabia que ele aceitara e compreendera isso.

Esperava que ele também entendesse por que havia voltado. Fora se despedir. Estava lá para dizer-lhe adeus. Lamentava sua morte, mas, sem jamais esquecê-lo, chegara a hora de partir. Ele precisava deixá-la ir. Royan saiu do cemitério sem olhar para trás.

Tomou a estrada que contornava o lado sul do lago para evitar passar pela vila queimada; não queria se lembrar da noite em que Duraid morrera. Já havia escurecido quando ela chegou à cidade; a família ficou aliviada ao vê-la. Seu cunhado deu três voltas ao redor do Citroen, procurando alguma batida ou arranhões na pintura, antes de segui-la para a casa, onde sua mulher havia preparado um banquete.

Ministro Atalan Abou Sin, a quem Royan queria encontrar especificamente, estava fora do Cairo, em visita oficial a Paris; voltaria em três dias. E como ela sabia que Nahoot Guddabi não estava no Cairo, sentiu segurança para passar a maior parte de seu tempo no museu. Tinha lá muitos amigos, que adoraram revê-la e atualizá-la sobre tudo o que acontecera durante sua ausência.

Royan passou o resto do tempo na biblioteca do museu, revendo os microfilmes dos pergaminhos de Taita e buscando pistas que porventura tivesse deixado passar em observações anteriores. Leu uma parte do segundo pergaminho com mais cuidado e fez várias anotações. Agora que a perspectiva de encontrar a tumba do Faraó Mamose intata tornara-se uma possibilidade real, seu interesse pelo que ela pudesse conter fora estimulado.

A parte do pergaminho em que mais se concentrou foi a descrição que o escriba Taita fizera de uma visita do faraó às oficinas na necrópo-le, onde seus tesouros funerários eram fabricados e reunidos num grande templo especialmente construído para o embalsamamento. Segundo Taita, eles visitaram as oficinas separadamente, primeiro a de armaria, com sua coleção de utensílios de guerra e de caça; depois, a de movelaria, que abrigava requintados artesãos. No ateliê dos escultores, Taita descrevera o trabalho de estatuária de deuses e imagens do rei em tamanho original, em diferentes atividades de sua vida, que ficariam alinhadas na longa estrada desde a necrópole até a tumba no Vale dos Reis. Nessa oficina, os artífices também se dedicavam a esculpir o pesado sarcófago de granito que abrigaria o esquife do rei ao longo das eras. Entretanto, segundo relatos posteriores de Taita, a história privara o Faraó Mamose dessa parte de seu tesouro, pois todos os pesados objetos de pedra foram abandonados no Vale dos Reis quando os egípcios fugiram para o sul do Nilo, para uma terra que chamavam de Cush, escapando da invasão dos hicsos a sua terra natal.

Quando Royan leu a narrativa do ateliê dos ourives, a frase que o escriba usou para descrever a máscara mortuária do faraó chamou-lhe a atenção: "Era o pico e o zênite. As eras não nascidas um dia irão maravilhar-se com seu esplendor". Royan ergueu os olhos do microfilme e perguntou-se se não seria uma profecia. Estaria destinada a maravilhar-se com o esplendor da máscara mortuária? Seria a primeira pessoa a fazer isso em 4 000 anos? Poderia tocar essa maravilha, tomá-la nas mãos e fazer dela o que ditasse sua consciência?

A leitura dos relatos de Taita despertou em Royan a sensação de um sofrimento muito antigo, uma compaixão pelo povo daquela época. Era, afinal — por mais distante que estivesse no tempo —, seu próprio povo. Como egípcia copta, descendia diretamente dele. Talvez sua empatia fosse a principal razão de ter dedicado sua vida ao estudo desse antigo povo e seu destino.

Entretanto, tinha muito mais em que pensar enquanto esperava pelo retorno de Atalan Abu Sin. Dentre inúmeras coisas, seus sentimentos por Nicholas Quenton-Harper. Desde que fora ao cemitério no oásis e fizera as pazes com a memória de Duraid, Nicholas ganhara nova importância em seus pensamentos. Havia tanta coisa de que ela ainda não tinha certeza e tantas escolhas difíceis a fazer... Não era possível realizar todos os seus planos e desejos sem sacrificar outras necessidades igualmente prementes.

Quando, por fim, chegou a hora de ver Atalan, ela sentia dificuldade de concentrar-se nesse encontro. Como que em transe, passou pelos bazares, usando a bengala para proteger o joelho machucado, quase sem ouvir os mercadores que ofereciam seus produtos. Pelo seu tom de pele e as roupas européias, deviam considerá-la uma turista.

Royan hesitou tanto em dar esse passo irrevogável que se atrasou quase uma hora para o encontro. Felizmente, era egípcia, e Atalan, árabe, e para eles a pontualidade não tinha tanta importância.

Como sempre, ele foi cortês e encantador. Na privacidade de seu escritório vestia um confortável dishdasha branco e turbante. Recebeu-a calorosamente. Se estivesse em Londres, teria beijado seu rosto, mas não no Oriente, onde um homem jamais beija uma mulher que não seja sua esposa, e mesmo assim na privacidade do lar.

Ele conduziu-a para a sala de visitas privativa, onde seu secretário lhes serviu pequenas xícaras de café forte e ficou por ali para garantir o decoro do encontro. Depois de trocarem cumprimentos e do intervalo obrigatório de conversa amena, Royan abordou obliquamente o assunto de sua visita:

— Passei muito tempo no museu nestes últimos dias, trabalhando na biblioteca. Encontrei vários de meus antigos colegas e fiquei surpresa quando soube que Nahoot renunciou ao cargo de diretor.

Atalan suspirou.

— Meu sobrinho é um cabeça-dura. O cargo era dele, mas na última hora procurou-me para dizer que havia recebido uma oferta de trabalho na Alemanha. Tentei dissuadi-lo. Disse-lhe que por ter nascido no Vale do Nilo não se acostumaria com o clima do hemisfério norte. Disse também que há muitas outras coisas importantes na vida, como o país e a família, que dinheiro nenhum pode compensar. Mas... — Atalan abriu os braços num gesto eloqüente.

— Quem foi escolhido para o cargo? — ela perguntou inocentemente.

— Ainda não fizemos uma nomeação definitiva. Não consigo pensar em ninguém de imediato. Talvez eu seja obrigado a colocar um anúncio internacional. Para ser sincero, não gostaria muito de recorrer a um estrangeiro, por mais qualificado que seja.

— Excelência, posso conversar com o senhor em particular? — Royan perguntou, indicando com o olhar o secretário que estava perto da porta. Atalan hesitou momentaneamente.

— É claro. — Fez um gesto para que o secretário se retirasse e, quando ficaram a sós, aproximou-se dela e baixou o tom de voz.

— O que quer conversar, minha bela senhora?

Royan deixou-o uma hora depois. Ele a acompanhou até os elevadores.

Quando se despediram, ele disse num tom baixo e melífluo:

— Logo nos reencontraremos, inshallah.

uando o avião da Egyptair aterrissou em Heathrow e Royan saiu do aeroporto para entrar na fila para o táxi, a diferença de temperatura do Cairo era, no mínimo, de quinze graus. Seu trem chegou a York em meio a uma névoa fria de final de tarde. Da estação ela ligou para o telefone que Nicholas lhe havia dado.

— Por que não me avisou? — ele ralhou com ela. — Por que não disse que estava a caminho? Eu teria ido buscá-la no aeroporto.

Royan se surpreendeu com o prazer de revê-lo e com a falta que sentira dele, quando ele desceu do Range Rover e veio em sua direção. Nicholas estava sem chapéu e ainda não havia cortado o cabelo.

— Como está seu joelho? — ele perguntou. — Ainda precisa ser carregada?

— Está quase bom. Logo vou me livrar desta bengala. — Ela sentiu uma vontade louca de se atirar em seus braços, mas conseguiu reprimir a demonstração; apenas lhe ofereceu a face fria e rosada para um beijo. O cheiro dele era bom — de couro e colônia após-barba, um puro aroma viril.

Atrás do volante, ele demorou para dar a partida porque ficou olhando para o rosto de Royan iluminado pelas luzes da cidade.

— Está muito bem, madame. O gato estava bem alimentado?

— Foi bom rever os amigos — ela sorriu. — E voltar ao Cairo é sempre um prazer.

— Não temos jantar em casa. Pensei em parar num pub. Gostaria de um bom bife e torta de rim?

— Quero ver minha mãe. Estou me sentindo culpada. Nem sei como ficou a perna dela.

— Fui visitá-la anteontem. Ela está ótima. E adorando o novo cachorro. Chama-se Taita, acredita?

— Você é mesmo muito gentil... quer dizer, dar-se ao trabalho de visitá-la.

— Eu gosto dela. É uma boa amiga. Já não se encontram amigos como ela. Sugiro que a gente vá jantar primeiro, depois compraremos uma garrafa de Laphroaig e iremos visitá-la.

Passava de meia-noite quando eles saíram do chalé de Georgina. Ela se dedicou com afinco ao uísque que Nicholas lhe trouxe de presente, e agora acenava para eles da porta da cozinha, segurando o novo bichinho de estimação no colo avantajado e balançando no ar a perna engessada.

— Você é uma má influência para minha mãe — Royan disse a ele.

— Quem é má influência para quem? — Nicholas protestou. — As piadas dela não são as mais inocentes.

— Eu deveria ficar aqui.

— Ela tem a companhia de Taita agora. E eu preciso de você perto de mim. Temos muito trabalho pela frente. Estou louco para lhe mostrar o que já fiz enquanto você passeava no Egito.

A governanta de Quenton Park havia preparado o quarto de Royan no apartamento, que tinha vista para a Abadia de York.

Enquanto Nicholas subia a escada com suas malas, Royan ouviu um ronco saindo de um quarto no segundo patamar e olhou para ele inquisitivamente.

— Sapper Webb — ele disse. — A última aquisição da nossa equipe. Nosso engenheiro. Você o conhecerá amanhã, e acho que vai gostar dele. É pescador.

— O que isso tem a ver com gostar dele?

— As melhores pessoas são pescadores.

— Excluindo alguns — ela riu. — Você está em Quenton Park?

— Resolvi ficar longe de lá por algum tempo — Nicholas meneou a cabeça. — Não quero que saibam que estou na Inglaterra. Há um pessoal da Lloyd's que prefiro não encontrar por enquanto. Estou no quartinho do sótão. Me chame se precisar.

Quando ficou só, Royan olhou ao redor do pequeno quarto com banheiro; a cama de casal ocupava quase todo o espaço. Lembrou-se de que Nicholas dissera para chamá-lo se fosse preciso e olhou para o teto ao ouvi-lo tirar o sapato.

— Não me tente — sussurrou. O cheiro dele ainda estava presente; ela se lembrava da sensação do corpo molhado de suor encostado ao seu quando ele a tirara da garganta do Abbay. Desejo e necessidade eram duas palavras que não lhe ocorriam há muito tempo. Mas agora começavam a avolumar-se em sua vida.

— Pare com isso — ela se repreendeu, e foi tomar banho.

Nicholas bateu na porta de seu quarto quando acordou na manhã seguinte. — Vamos logo, Royan. A vida está chamando. A vida tem pressa! Ainda não havia amanhecido lá fora, e ela perguntou, meio dormindo: — Que horas são? — Mas ele já havia descido, e de longe Royan ouviu-o assobiar The Big Rock Candy Mountain no andar de baixo. Ela olhou o relógio e resmungou outra vez.

— Assobiar às seis e meia da manhã, depois de todo aquele uísque que eles tomaram ontem... Não acredito. Esse homem é um monstro.

Vinte minutos depois, ela o encontrou de suéter azul de pescador e eans, lidando na cozinha com avental de açougueiro.

— Fatias de torrada para três. — Ele apontou para o pão de fôrma ao lado da torradeira elétrica. — Omeletes saindo em cinco minutos.

Havia outro homem na cozinha. Era um senhor forte, de ombros largos, mangas da camisa arregaçadas sobre os bíceps musculosos e careca como uma bala de canhão.

— Olá — ela disse —, sou Royan Al Simma.

— Desculpe — Nicholas ergueu o batedor de ovos. — Ele é Danny — Daniel Webb; Sapper para os amigos.

Danny levantou-se segurando a xícara de café na grande mão calejada.

— Prazer em conhecê-la, Senhorita Al Simma. Quer café? — A careca dele tinha sardas, e ela notou como seus olhos eram azuis.

— Doutora Al Simma — Nicholas corrigiu-o.

— Por favor, me chame de Royan — ela o interrompeu rapidamente. — Sim, aceito café.

Não se falou em Etiópia ou em jogo de Taita durante a refeição, e Royan comeu sua omelete enquanto ouvia com todo o respeito uma apaixonada dissertação de Sapper sobre como pescar tubarão com isca artificial, enquanto Nicholas o contestava sem compaixão, questionando quase tudo o que ele dizia. Sem dúvida eles tinham um bom relacionamento, e ela imaginou que se acostumaria com todo aquele jargão.

Quando acabaram de comer, Nicholas pegou o bule de café e se levantou.

— Pegue sua xícara e venha comigo. Ele levou Royan para a sala de estar.

— Tenho uma surpresa para você. Meu pessoal lá do museu trabalhou sem parar para aprontá-lo antes de sua chegada. — Nicholas abriu a porta da sala de visitas com um floreio. — Tcha-rã!

No centro da mesa havia um modelo pronto do dik-dik listrado, coroado com seus pequenos chifres e montado sob a pele que Nicholas trouxera clandestinamente da África. Era tão real que por um momento ela pensou que fosse saltar da mesa e fugir.

— Oh, Nicky. Que trabalho bem-feito! — Royan observava admirada. — O artista trabalhou muito bem.

A reprodução havia captado o calor e o cheiro de mato da garganta, e ela sentiu uma ponta de nostalgia e tristeza pela delicada e bela criatura. Seus olhos de vidro pareciam ter vida e a ponta do focinho estava úmida e brilhante como se ele ainda farejasse o ar.

— Também achei esplêndido. Que bom que concorda comigo! — Nicholas afagou o lombo fofo e macio. Royan achou melhor não estragar seu prazer infantil. — Quando tivermos decifrado o enigma de Taita, pretendo escrever um artigo sobre o dik-dik para o Museu de História Natural, que chamou meu bisavô de mentiroso. Lavarei a honra da família. — Ele riu e cobriu o animal empalhado com um lençol. Cuidadosamente, retirou-o da mesa e o colocou num canto da sala onde não corresse nenhum perigo.

Essa foi a primeira surpresa que preparei para você. Mas agora

tenho outra muito maior. — Nicholas apontou para o sofá encostado à parede. — Sente-se. Não quero que caia outra vez.

Ela riu do disparate, mas sentou-se obedientemente numa ponta do sofá e cruzou as pernas. Sapper Webb sentou-se na outra ponta, obviamente incomodado pela proximidade de ambos.

— Vamos discutir como entraremos no abismo do Rio Dandera — Nicholas sugeriu. — Sapper e eu só falamos disso enquanto você esteve fora.

— Disso e de pescaria, garanto — ela riu.

— Bem, ambos os assuntos envolvem água. Está justificado. — Ele ficou sério. — Lembra-se de que conversamos sobre explorar o fundo do poço de Taita com equipamento de mergulho e eu lhe expliquei as dificuldades?

— Eu me lembro — Royan concordou. — Você disse que a pressão na abertura era muito forte e que devíamos encontrar outro método para entrar lá.

— Correto — Nicholas sorriu misteriosamente. — Bem, o Sapper já fez por merecer a quantia exorbitante que lhe prometi. Prometi, insisto, mas ainda não paguei. Ele tem um método alternativo.

Royan descruzou as pernas e prestou atenção. Pôs os dois pés no chão, os cotovelos sobre os joelhos e apoiou o queixo nas mãos.

— Deve ter sido esse cérebro brilhante que arrancou todo o cabelo dele. É uma coisa muito simples. Estava na nossa cara, mas nenhum de nós pensou nisso.

— Pare, Nicky — ela disse num tom ameaçador. — Você está fazendo isso novamente.

— Vou lhe dar uma dica — disse ele, ignorando o aviso e continuando a brincadeira. — Às vezes os métodos antigos são os melhores. Essa é a dica.

— Se é tão esperto, por que ainda não é famoso? — Royan começou, mas parou quando percebeu a solução. — Os métodos antigos? Quer dizer, o mesmo que Taita usou? Chegar ao fundo do poço do mesmo jeito que ele, sem equipamento de mergulho?

— Acho que você pegou! — Nicholas fez uma imitação perfeita de Rex Harrison.

— Uma represa... — Royan cruzou as mãos. — Você propõe que represemos o rio novamente, no mesmo ponto em que Taita o fez há quatro mil anos!

— Ela pegou! — Nicholas riu. — Mostre-lhe os desenhos, Sapper. Sapper Webb não disfarçava a satisfação consigo mesmo quando se dirigiu ao quadro que estava montado na parede em frente. Royan percebeu isso, mas não deu muita atenção até vê-lo erguer a capa e, orgulhoso, apresentar as ilustrações que estavam embaixo.

Reconheceu de imediato as ampliações das fotos que Nicholas havia tirado no suposto local da represa de Taita no Rio Dandera, e outras da antiga pedreira que Tamre lhes havia mostrado. Estavam rabiscadas com cálculos e linhas feitos com caneta preta.

— O major deu as dimensões estimadas do leito do rio neste ponto e calculou a altura que a parede deve ter para desviar o fluxo para seu antigo curso. É claro que são cálculos aproximados. Mesmo que o erro seja da ordem de trinta por cento, acredito que o projeto seja exeqüível com o limitado equipamento que teremos à disposição.

— Se os antigos egípcios conseguiram, vai ser sopa para você, Sapper.

— É muita gentileza de sua parte, major, mas "sopa" não seria a palavra que eu escolheria.

Ele voltou aos desenhos presos ao lado das fotografias no quadro; eram plantas baixas e elevações do projeto, baseadas nas fotos e nas estimativas de Nicholas.

— Existem inúmeros métodos diferentes de construção de represas, mas hoje em dia a maioria pressupõe a disponibilidade de concreto armado e equipamento pesado de remoção de terra. Imagino que não teremos esses auxílios modernos.

— Lembre-se de Taita — Nicholas lembrou-lhe. — Ele fez isso sem máquinas de terraplenagem.

— Por outro lado, os egípcios provavelmente dispunham de um número ilimitado de escravos à disposição.

— Escravos eu posso lhe prometer. Ou o equivalente atual. Um número ilimitado? Bem, isso talvez não.

— Quanto mais mão-de-obra puder arrumar, mais rápido poderei desviar o curso do rio. Estamos de acordo em que isso deve ser feito antes do início da estação de chuvas.

— Temos no máximo dois meses. — Nicholas abandonou sua atitude irreverente. — Quanto à mão-de-obra, espero arregimentar ajuda na comunidade monástica de São Frumêncio. Ainda estou pensando num motivo teológico convincente para que participem da construção da represa. Não acho que se deixem seduzir pela idéia de que descobrimos o local do Santo Sepulcro na Etiópia, e não em Jerusalém.

— Consiga a mão-de-obra, e eu construirei a represa — Sapper resmungou. — Como você disse, os velhos métodos são os melhores. Tenho quase certeza de que os antigos usaram um sistema de gabiões e ensecadeiras para fazer as fundações da represa original.

— Desculpe — Royan interrompeu. — Gabiões? Não me formei em engenharia.

— Eu é que devo me desculpar. — Sapper ensaiou um cavalheirismo canhestro. — Vou lhe mostrar os desenhos. — Ele voltou ao quadro.

O que esse tal de Taita provavelmente fez foi tecer grandes cestos de bambu e colocá-los no rio, cheios de pedras e rochas. — Ele indicou os desenhos no quadro. — Depois deve ter usado madeira para construir paredes circulares entre os gabiões... as ensecadeiras. Isso também devia estar cheio de pedras e terra.

— Entendi mais ou menos — disse Royan. — Mas não preciso entender todos os detalhes.

— Certo! — Sapper concordou sinceramente. — Embora o major garanta que há muita madeira no local, penso em usar tela de arame para construir os gabiões e mão-de-obra humana para encher as telas com pedra e agregados.

— Tela de arame? — Royan se espantou. — Onde espera encontrar tela de arame no Vale do Abbay?

Sapper ia responder, mas Nicholas adiantou-se:

— Explicarei isso depois. Deixe Sapper concluir sua explanação. Não estrague a diversão dele. Conte a Royan sobre as pedras da pedreira. Ela vai gostar.

— Embora eu tenha projetado a represa como uma estrutura temporária, precisamos garantir que ela contenha o rio o tempo necessário para que nosso pessoal consiga entrar em segurança no túnel submerso...

— Nós o chamamos de "poço de Taita" — Nicholas disse, e ele assentiu com a cabeça.

— Precisamos ter certeza de que a represa não rebentará enquanto o pessoal estiver lá dentro. Imagine as conseqüências que isso poderia ter.

Ele ficou em silêncio por um momento para que os outros também imaginassem. Royan estremeceu e cruzou os braços.

— Não será nada agradável — Nicholas concordou. — Então, está pensando em usar os blocos de pedra?

— Estou. Examinei as fotos da pedreira. Calculo que lá existam mais de cento e cinqüenta blocos de granito prontos, ou quase, e acho que, se os usarmos combinados aos gabiões de tela de arame e às ensecadeiras de madeira, teremos um alicerce firme para a parede principal da represa.

— Esses blocos devem pesar várias toneladas cada um — Royan observou. — Como vai removê-los? — Então, quando Sapper abriu a boca para explicar, ela mudou de idéia. — Não, não me diga. Se disser que é possível, vou acreditar na sua palavra.

— É possível — Sapper garantiu.

— Taita conseguiu — disse Nicholas. — Faremos do jeito dele. Você devia se alegrar, Royan. Afinal, ele é parente seu.

— Sabe, você tem razão. Por estranho que pareça, isso me dá prazer — ela disse sorrindo. — É bom sinal. Quando tudo isso vai acontecer?

— Já está acontecendo. Sapper e eu encomendamos as provisões e o equipamento que levaremos conosco. O arame para os gabiões está sendo cortado no tamanho certo numa pequena oficina perto daqui. Graças à recessão, as máquinas estão ociosas.

— Tenho ido pessoalmente à oficina supervisionar o corte e a embalagem — Sapper interrompeu. — Metade do carregamento já está a caminho. O resto seguirá antes do fim de semana.

— Sapper está partindo esta tarde para cuidar de tudo. Nós dois cuidaremos dos últimos preparativos e seguiremos no final da semana. Não esperávamos que você voltasse tão depressa do Cairo, ou viajaríamos todos juntos para Valeta.

— Valeta? — Royan não entendeu. — Em Malta? Pensei que fôssemos à Etiópia.

— Malta é onde Jannie Badenhorst tem sua base.

— Jannie o quê?

— Badenhorst. Da Africair.

— Agora é que não entendo mais nada.

— A Africair é uma empresa de transporte aéreo que pertence a um amigo, ex-aviador da RAF. O avião é pilotado por Jannie e seu filho Fred. Eles usam Malta como base. É um pequeno país estável e pragmático... Sem políticos africanos, sem corrupção, mas também é a porta para a maior parte dos países do centro-leste e do norte da África, onde Jannie e Fred atuam mais. Sua principal atividade é contrabandear bebidas alcoólicas para os países islâmicos, onde, é claro, são proibidas. E o Al Capone do Mediterrâneo. O contrabando é um ótimo negócio nessa parte do mundo, mas ele também faz outras coisas. Duraid e eu fomos para a Líbia com Jannie naquela pequena excursão que fizemos ao maciço do Tibesti. Jannie vai nos levar até lá embaixo, ao Abbay.

— Nicky, não quero ser desmancha-prazeres, mas nós dois somos visitantes indesejáveis na Etiópia. Você se esqueceu desse pormenor. Como pretende entrar lá?

— Pela porta dos fundos. — Nicholas riu — E meu velho amigo Mek Nimmur será nosso porteiro.

— Entrou em contato com Mek?

— Com Tessay. Agora ela é sua porta-voz. Deve ser bastante conveniente para Mek tê-la a bordo. Ela tem todas as conexões certas e trânsito livre em Cartum e Adis, e em vários outros lugares em que seria inconveniente ou mesmo perigoso que ele fosse visto.

— Ora, ora — Royan estava impressionada —, você esteve bem ocupado.

— Nem todo mundo pode passar um feriado no Cairo toda vez que tem vontade — ele disse em tom mordaz.

— Mais uma perguntinha. — Ela ignorou a provocação, embora notasse que apesar do riso fácil sua ausência o havia perturbado. — Mek sabe do jogo de Taita?

— Não em detalhes. — Nicholas balançou a cabeça negativamente.

— Mas desconfia de alguma coisa; sei que podemos confiar nele. — Ele hesitou, mas prosseguiu: — Tessay foi muito cautelosa ao telefone, mas parece que atacaram o Mosteiro de São Frumêncio. Jali Hora e trinta ou quarenta monges foram massacrados, e a maior parte das relíquias sagradas da igreja foi roubada.

— Oh, meu Deus, não! — Royan estava chocada. — Quem faria uma coisa dessas?

— As mesmas pessoas que mataram Duraid e tentaram tirar você do mapa.

— A Pégaso.

— Von Schiller — ele acrescentou.

— Somos diretamente responsáveis por isso — Royan murmurou.

— Fomos nós que os levamos ao mosteiro. As Polaroids que nos roubaram quando atacaram o acampamento indicaram a direção do monólito e do túmulo de Tanus. Von Schiller não é clarividente para adivinhar onde foi que fizemos as fotos. Nossas mãos estão manchadas de sangue.

— Que diabo, Royan, como você pode se responsabilizar pela loucura de Von Schiller? Não vou permitir que se puna por isso — disse Nicholas num tom zangado e irritado.

— Fomos nós que começamos tudo.

— Não concordo, mas admito que foi Von Schiller quem roubou o waqdas de São Frumêncio, e tenho quase certeza de que agora o monólito e o caixão fazem parte de sua coleção.

— Oh, Nicky, sinto-me tão culpada! Nunca imaginei o perigo que apresentávamos para aqueles pobres cristãos.

— Quer cancelar tudo? — ele perguntou cruamente. Royan considerou a proposta, mas fez que não com a cabeça.

Não. Quando voltarmos, o que encontrarmos no poço de Taita talVez possa compensar os monges por suas perdas.

— Espero que sim — Nicholas concordou. — Espero sinceramente que sim.

O gigantesco Hércules C-Mkl de quatro motores turboéli-ces era pintado num tom indefinível de marrom empoeirado, e as letras de identificação na fuselagem estavam desbotadas e ilegíveis. Não se via a palavra "Africair" em lugar algum do avião, cuja aparência cansada e envelhecida traduzia com eloqüência seus quarenta anos de idade e meio milhão de milhas de vôo, antes de pertencer a Jannie Badenhorst.

— Isso ainda voa? — Royan perguntou quando viu o avião abandonado num canto da pista do Aeroporto de Valeta. O ventre caído dava-lhe o ar de uma triste mendiga, posta na rua por causa de uma gravidez inesperada e indesejável.

— Jannie deixa-o assim de propósito — Nicholas garantiu-lhe. — Nos locais por onde voa é melhor não atrair olhos invejosos.

— Sem dúvida ele deve fazer sucesso.

— Mas tanto Jannie quanto Fred são engenheiros aeronáuticos de primeira linha. Os dois mantêm Big Dolly em perfeitas condições sob as tampas dos motores.

— Big Dolly?

— Dolly Parton, a cantora. Jannie é louco por ela. — O táxi deixou-os com a escassa bagagem em frente à porta do hangar. Nicholas pagou ao motorista enquanto Royan ficava com as mãos nos bolsos do casaco de capuz, tremendo sob o vento frio que soprava do Mediterrâneo.

— Lá está Jannie. — Nicholas mostrou uma figura corpulenta de sobretudo cinzento que descia a rampa de carga do Hércules. Quando os viu, saltou para o chão.

— Olá, rapaz! Eu já estava desistindo de você — ele disse, atravessando a pista. Parecia um jogador de rúgbi, o que fora na juventude, e seu leve coxear devia-se a uma antiga contusão em campo.

— Demoramos para sair de Heathrow. Greve no controle de tráfego aéreo francês. As alegrias das viagens internacionais. — Em seguida Nicholas apresentou Royan.

— Venham conhecer minha nova secretária — Jannie convidou. Talvez ela arrume um café para vocês.

Ele os conduziu por um portão pequeno no meio da porta principal do hangar e introduziu-os no interior escuro. Havia lá um cubículo que servia de escritório, ao lado de uma entrada encimada por uma placa onde se lia "Africair" e o logotipo da empresa, uma acha-d armas alada. Mara, a secretária, era uma senhora maltesa pouco mais nova que Jannie. O que lhe faltava em juventude e beleza ela compensava no busto.

— Jannie sempre gostou delas maduras e bem fartas — Nicholas murmurou pelo canto da boca.

Mara serviu café enquanto Jannie examinava o plano de vôo com Nicholas.

— Vai ser um pouco complicado — ele se desculpou. — Como pode imaginar, vamos ter de fazer alguns desvios. Muamar Khadafi não morre de amores por mim, e por enquanto prefiro evitar seu território. Vamos atravessar o Egito, mas não desceremos lá. — Ele mostrava as rotas de vôo no mapa aberto sobre a mesa. — O Sudão está cheio de problemas. Há uma guerrinha civil por lá. — Ele piscou para Nicholas. — Entretanto, os governos do norte não estão equipados com os radares mais modernos do mundo. A maioria é equipamento russo ultrapassado. É um país enorme, e nós já localizamos seus pontos cegos. Vamos ficar bem longe das principais instalações militares.

— Qual é o tempo de vôo? — Nicholas quis saber. Jannie fez uma careta.

— Big Dolly não é um velocista, e eu já disse que não vamos cortar caminho.

— Quanto tempo? — Nicholas insistiu.

— Fred e eu improvisamos beliches e cozinha a bordo; teremos todos os confortos durante o vôo. — Ele ergueu o boné, coçou a cabeça e admitiu: — Quinze horas.

— O Big Dolly tem essa autonomia de vôo? — Nicholas quis saber.

— Temos tanques extras. Setenta mil litros de combustível. Mesmo com o peso da sua carga, faremos a viagem de ida e volta sem precisar reabastecer. — Ele se interrompeu quando as grandes portas do hangar se abriram e um grande caminhão entrou. — Aí estão Fred e Sapper. — Jannie bebeu a última gota de café e abraçou Mara. Ela deu uma risadinha, e seu busto balançou como uma montanha de neve prestes a despencar em avalanche.

O caminhão estacionou no fundo do hangar, onde pilhas de equipamento e provisões esperavam para ser carregadas. Quando Fred desceu do caminhão, Jannie apresentou-lhe Royan. Ele era uma versão mais nova do pai, já começando a engrossar a cintura e com um rosto bucólico que mais lembrava um criador de carneiros que um piloto comercial.

— Este é o último carregamento. — Sapper deu a volta ao caminhão e apertou a mão de Nicholas. — Já podemos carregar o avião.

— Quero sair bem cedo, antes das quatro da madrugada, para chegar ao local combinado no máximo amanhã à noite — Jannie interveio. — Temos muito trabalho para fazer, se quisermos dormir um pouco antes de partir. — Ele mostrou os estrados de carga esperando para serem carregados. — Eu queria chamar um pessoal para ajudar, mas Sapper não quis saber.

— Está certo — Nicholas concordou. — Quanto menos pessoas metidas nisso, melhor. Mexam-se, vamos trabalhar.

A carga era colocada sobre estrados de aço, amarrada com cordas de náilon e coberta de lona. Havia 36 estrados lotados; sacos de lona com os pára-quedas completavam cada um deles. O equipamento todo seria transportado para a África em duas viagens.

Royan leu o conteúdo dos estrados na lista datilografada, enquanto Nicholas os conferia. Junto com Sapper, ele havia organizado cuidadosamente os pacotes para garantir que os itens mais necessários fossem no primeiro vôo. Somente quando se certificou de que tudo estava correto em todos os detalhes, ele fez um sinal para Fred, que operava a empilhadeira, para remover os estrados do hangar e subir a rampa do Hércules.

Dentro da imensa aeronave, Jannie e Sapper ajudaram Fred a colocar os estrados sobre os cilindros e amarrá-los firmemente. A última parte da carga a subir foi um pequeno trator com escavadeira. Sapper o encontrara numa loja de segunda mão em York; depois de testá-lo exaustivamente, declarou-o uma "pechincha". Ele próprio o conduziu para a rampa e com muito cuidado fixou-o nos cilindros.

O trator tinha quase um terço do peso total do equipamento, mas Sapper considerava-o essencial para efetuar os trabalhos de remoção de terra da represa no tempo que Nicholas havia estipulado. Calculou que seriam necessários cinco pára-quedas de carga para colocar o trator no chão sem danificá-lo. O combustível seria, é claro, um problema, mas no segundo carregamento o diesel seguiria em tanques especiais de náilon que suportariam o impacto da queda.

Passava de meia-noite quando terminaram de carregar o avião. Os demais estrados permaneceriam no fundo do hangar, esperando pela segunda viagem do Big Dolly. Agora eles já podiam se dedicar totalmente ao banquete de despedida, com especiarias da ilha que Mara havia preparado no pequeno escritório da Africair.

— Ela é ótima cozinheira — Jannie garantiu-lhes, dando um carinhoso apertão em Mara, cujo busto descansava no ombro dele, quando ela se debruçou para servir-lhe mais um prato de mariscos.

— Boas viagens! — Nicholas ergueu um brinde de vinho Chianti.

— Oito horas entre o manche e a garrafa — Jannie desculpou-se, brindando com Coca-Cola.

Eles deitaram-se vestidos para algumas horas de sono, nos beliches aparafusados no convés de vôo; Royan pensou ter dormido apenas alguns minutos quando despertou com as vozes dos dois pilotos, que terminavam os procedimentos de pré-decolagem, e o assobio de partida das imensas turboélices. Enquanto Jannie falava pelo rádio com a torre de controle e Fred taxiava na pista, os três passageiros desceram de seus beliches e prenderam os cintos de segurança das poltronas próximas à cabine principal. Big Dolly decolou sob o céu noturno; as luzes da ilha se distanciaram e rapidamente ficaram para trás. Havia somente o mar abaixo e as estrelas brilhando no céu. Royan virou-se sorrindo para Nicholas sob a tênue iluminação do avião.

— Bem, Taita, estamos de volta ao jogo para a partida final. — Sua voz estava tensa de excitação.

— Uma coisa boa de sermos obrigados a sair assim, sorrateiramente, é que a Pégaso vai levar algum tempo para descobrir que estamos voltando à garganta do Abbay — Nicholas comentou.

— Tomara que você tenha razão. — Royan ergueu a mão direita e cruzou os dedos. — Já temos muita coisa com que nos preocupar com o que Taita nos reserva, sem que a Pégaso use sua força contra nós.

Eles estão voltando para a Etiópia — afirmou Von Schiller com absoluta segurança. — Como pode estar tão certo disso? — perguntou Nahoot.

Von Schiller arregalou os olhos para ele. O egípcio irritava-o intensamente, e começava a arrepender-se de tê-lo contratado. Nahoot havia feito poucos progressos na decifração do significado dos entalhes do monólito retirado do mosteiro.

A tradução apresentava sérios problemas. Von Schiller estava convencido de que poderia ter feito o trabalho sozinho, sem a assistência de Nahoot, com tempo e usando sua vasta biblioteca de trabalhos de referência. Envolvia, em sua maior parte, rimas sem sentido e dísticos estranhos, fora de lugar e de contexto. Um dos lados do monólito era quase totalmente coberto por colunas de letras e figuras que não apresentavam qualquer relação com o texto dos três outros lados da coluna.

Embora Nahoot não admitisse, era evidente que a maior parte dos Significados ocultos lhe escapava. A paciência de Von Schiller estava chegando ao fim. Cansara-se de ouvir desculpas e promessas nunca cumpridas. Tudo nele o aborrecia, desde seu desagradável tom de voz aos olhos tristes por trás das profundas olheiras. Mas, especialmente exasperava-o a mania irritante de questionar afirmações que ele, Gotthold von Schiller, fazia.

— O General Obeid conseguiu informações sobre eles depois que saíram de Adis Abeba. Foi fácil segui-los quando chegaram ao aeroporto da Inglaterra. Nem Harper nem a mulher são pessoas que passem despercebidas no meio de uma multidão. Meus homens seguiram a mulher ao Cairo...

— Desculpe-me, Herr Von Schiller, mas por que não acaba logo com ela, se conhece todos os seus movimentos?

— Dummkopf! — Von Schiller respondeu bruscamente. — Porque acho que ela tem muito maior probabilidade de me levar ao túmulo do que você.

— Mas, senhor, eu fiz... — Nahoot protestou.

— Você não fez nada além de arrumar desculpas para seus fracassos. Graças a você o monólito continua sendo um enigma.

— É muito difícil...

— E claro que é difícil. É por isso que estou lhe pagando tanto dinheiro. Se fosse fácil, eu o faria sozinho. Se são realmente as instruções para encontrar o túmulo de Mamose, é óbvio que o escriba Taita iria dificultar.

— Se me der um pouco mais de tempo, acho que estou perto de encontrar a chave...

— Você não tem mais tempo. Não ouviu o que acabei de dizer? Harper está voltando para a garganta do Abbay. Eles decolaram de Malta ontem à noite num vôo fretado, lotado de carga. Meus homens não conseguiram identificar a natureza da carga, exceto um equipamento para revolver a terra, uma escavadeira. Para mim isso significa apenas uma coisa: eles localizaram o túmulo e estão voltando para começar as escavações.

— Poderá livrar-se deles logo que chegarem ao mosteiro. — Nahoot deliciou-se com a idéia. — O Coronel Nogo irá...

— Por que tenho de ficar repetindo o que já disse? — A voz de Von Schiller era áspera, e sua mão bateu no tampo da mesa. — Eles são nossa única chance de encontrar o túmulo. A última coisa que quero e que algo de mau lhes aconteça. — Ele arregalou os olhos para Nahoot. — Você vai voltar à Etiópia imediatamente. Talvez ainda sirva para alguma coisa. Aqui certamente não serve para nada.

Nahoot não gostou da idéia, mas achou melhor não discutir. Caiu sentado numa cadeira quando Von Schiller continuou:

— Você vai voltar para o acampamento-base e ficar sob as ordens de Helm. Receberá instruções dele. É como se fossem minhas, entendeu?

— Sim, Herr Von Schiller — ele murmurou.

— Não interfira de maneira alguma nos movimentos de Harper e da mulher. Eles não devem saber que você está lá. A equipe de geólogos da Pégaso prosseguirá com suas atividades. — Ele parou e sorriu friamente. — Por sorte, Helm já encontrou evidências promissoras de grandes depósitos de galena, que, como você deve saber, é o minério de onde se obtém o chumbo. Ele continuará o trabalho exploratório nesses depósitos, e, se as promessas se confirmarem, a operação será altamente lucrativa.

— Quais são exatamente as minhas obrigações? — Nahoot quis saber.

— Você vai apenas esperar. Quero que esteja lá para se aproveitar dos progressos que Harper fizer. Entretanto, deve lhe dar espaço para trabalhar. Não irá alertá-lo com vôos de helicóptero, ou aproximando-se de seu acampamento. Nada de ataques no meio da noite. Qualquer movimento que você fizer terá de me consultar antes. Repito: não faça absolutamente nada.

— Se vou trabalhar sob tantas restrições, como saberei se Harper e a mulher fizeram algum progresso?

— O Coronel Nogo já tem um homem de confiança no mosteiro, um espião. Ele nos informará de todos os movimentos de Harper.

— Mas, e eu? Qual será meu trabalho?

— Você avaliará as informações que Nogo conseguir. Tem conhecimento dos métodos arqueológicos. Poderá julgar o que Harper encontrar e tentará saber que sucesso ele estará comemorando.

— Entendo — Nahoot murmurou.

— Se fosse possível, eu mesmo iria à garganta do Abbay. Mas é impossível. Pode levar muito tempo, talvez meses, até Harper conseguir alguma coisa. Você sabe melhor que ninguém que essas coisas levam tempo.

— Howard Carter trabalhou durante dez anos em Tebas para encontrar o túmulo de Tutancâmon — Nahoot lembrou maliciosamente.

— Espero que não demore tanto — Von Schiller disse friamente. — Se for tudo isso, é muito improvável que você ainda esteja envolvido nessa busca. Quanto a mim, tenho várias negociações importantes a fazer aqui na Alemanha, além das reuniões anuais da companhia. Não Posso perdê-las.

— Não voltará à Etiópia, então? — Nahoot anteviu a possibilidade de se livrar da presença perniciosa de Von Schiller.

— Irei assim que houver alguma coisa para mim. Confio em você para saber quando minha presença será necessária.

— E o monóüto? Eu poderia...

— Continue trabalhando na tradução. — Von Schiller antecipou-se a suas objeções. — Levará fotografias para a Etiópia e trabalhará enquanto estiver lá. Quero que mande notícias de seus progressos por satélite, ao menos uma vez por semana.

— Quando quer que eu parta?

— Imediatamente. Hoje, se possível. Fale com Fráulein Kemper. Ela providenciará sua viagem.

Pela primeira vez durante toda a conversa, Nahoot estava feliz.

Enquanto o Big Dolly rumava monotonamente para sudoeste, pouco havia para se fazer dentro do avião. Eles entraram na África ao romper da aurora, sobre uma praia deserta e solitária que Jannie escolhera exatamente por esse motivo. No continente não havia nada para se ver. O deserto estendia-se a perder de vista em todas as direções.

De tempos em tempos, ouviam Jannie conversar na cabine com o controle de tráfego aéreo, mas como só se ouvia um lado da conversa, não era possível identificar a nacionalidade da estação. Ocasionalmente, Jannie abandonava seu forte sotaque inglês e falava em árabe. Royan surpreendeu-se com sua fluència em línguas, mas é que como africânder os sons gururais eram familiares para ele. Também conseguia reproduzir de modo convincente os diversos sotaques e dialetos da Líbia e do Egito. Durante as primeiras horas de viagem Sapper estudou seus projetos da represa; mas, como não podia fazer mais nada enquanto não tivesse as medidas exatas do local, encolheu-se em seu beliche para ler um romance. Mas o pobre autor não conseguiu prender sua atenção por muito tempo. O livro ficou aberto sobre seu rosto e as páginas tremulavam a cada ronco mais prolongado.

Nicholas e Royan ficaram sentados em outro beliche com um tabuleiro de xadrez entre eles, até sentirem fome e irem para a pequena cozinha do avião. Royan assumiu o papel subserviente de cortadora de pão e fazedora de café, enquanto Nicholas exercitava sua arte de criar sanduíches colossais. Levaram alguns para Jannie e Fred, e ficaram na cabine, olhando por trás das poltronas dos pilotos.

— Ainda estamos em território egípcio? — Royan perguntou. Com a boca cheia, Jannie apontou por cima do bico do Big Dolly-

— A cinqüenta milhas náuticas daqui fica Wadi Halfia. Meu pai morreu lá em 1943. Ele estava na Sexta Divisão do Sul-Africano. Era chamado de Demônio Wadi. — Ele mordeu um pedaço enorme do sanduíche. — Nunca conheci meu velho. Nós já descemos lá uma vez para procurar o túmulo dele. — Jannie ergueu os ombros de forma eloqüente Mas o lugar é muito grande e há poucos referenciais.

Ninguém falou durante algum tempo, comendo os sanduíches e ocupados com os próprios pensamentos. O pai de Nicholas também lutara no deserto contra Rommel, mas tivera mais sorte que o de Jannie.

Nicholas olhou para Royan, que contemplava pela janela a sua terra natal; havia em seu olhar uma paixão que o deixou espantado. A tentação de considerá-la uma inglesa, como sua mãe, era às vezes irresistível. Somente em momentos especiais como esse é que ele se dava conta de sua outra faceta.

Royan parecia não notar o escrutínio. Estava totalmente concentrada. Nicholas se perguntou o que ela estaria pensando — que pensamentos obscuros e misteriosos haveria lá dentro? Lembrou-se de que ela aproveitara a primeira oportunidade para voltar correndo ao Cairo, e novamente sentiu-se inquieto. Existiriam outros laços emocionais que transcendiam a lealdade que ele tinha como certa? Só então se deu conta, um pouco chocado, de que estavam juntos havia apenas algumas semanas, e apesar da forte atração que sentia por ela pouco sabia a seu respeito.

Nesse momento Royan virou-se e olhou rapidamente para ele. Seus olhos se encontraram a uma distância de poucos centímetros. Foi apenas um instante, mas bastou para Nicholas se convencer de que suas dúvidas não tinham fundamento.

Ela voltou-se para Jannie:

— Quando cruzaremos o Nilo?

— Do outro lado da fronteira. O governo sudanês concentra toda a sua atenção nos rebeldes mais ao sul. Há trechos do rio completamente desertos aqui no norte. Logo, logo, desceremos mais para escapar dos radares sudaneses perto de Cartum. Vamos sair por uma das brechas.

Jannie ergueu dos joelhos a carta aeronáutica presa a uma prancheta e segurou-a para que ela visse. Com o dedo grosso mostrou-lhe a rota pretendida. Estava marcada com lápis de cera azul.

— Big Dolly já voou tanto por aqui que iria sozinha, não é, garota? Ele deu um tapinha afetivo no painel de instrumentos.

Duas horas depois, quando Nicholas e Royan haviam voltado ao tabuleiro de xadrez, Jannie chamou-os pelo rádio interno.

— Ok, companheiros, nada de pânico. Vamos perder altitude agora- Venham até aqui para ver o espetáculo.

Presos aos cintos de segurança das poltronas no fundo da cabine de comando, eles assistiram à soberba exibição do vôo rasante de Fred. A descida foi tão rápida que Royan se sentiu jogada para o alto, deixando o estômago em algum lugar a 1 000 metros abaixo. Fred nivelou o Big Dolly a poucos metros acima do deserto, tão baixo que mais parecia estar dirigindo um ônibus. Erguia levemente o avião conforme as ondulações do terreno ressecado, passando rente às cristas de rochas escuras e mudando de direção quando avistava alguma colina.

— Vamos cruzar o Nilo em sete minutos e meio. — Jannie apontou para o relógio no painel de controle. — E se minha navegação não foi para o inferno, vamos ver uma ilha com forma de tubarão bem abaixo de nós.

Quando o ponteiro do relógio marcou a hora exata, a vasta expansão de água brilhou sob eles. Royan logo avistou a ilha verde com algumas cabanas e dezenas de canoas ancoradas na praia.

— Bem, o velho ainda não perdeu o faro — Fred observou. — Ainda pode voar algumas milhas antes de ir para o sanatório.

— Você ainda não viu nada, rapazinho atrevido. Tenho alguns truques na manga que você nem imagina.

— Pergunte a Mara — Fred riu afeiçoadamente para o pai, enquanto fazia uma curva para sudoeste com o avião tão próximo ao chão que chegou a assustar os camelos que pastavam nos esparsos arbustos espinhosos.

— Mais três horas de vôo até o local combinado. — Jannie ergueu os olhos do mapa. — Vamos chegar quarenta minutos antes do pôr-do-sol. Não poderia ser melhor.

— É melhor eu me trocar e me preparar para a marcha. — Royan foi para a cabine principal, tirou a mala de baixo do beliche e entrou no lavatório. Saiu vinte minutos depois, com culote de brim e blusa de algodão.

— Estas botas foram feitas para andar — ela mostrou-as a Nicholas.

— São ótimas — disse ele do beliche. — Como está esse joelho?

— Vou conseguir chegar lá.

— Quer dizer que não terei o prazer de carregá-la nas costas outra vez?

As montanhas da Etiópia surgiram tão inesperadamente a leste que Royan não as havia percebido quando Nicholas mostrou os contornos azulados sob o céu claro da África.

— Quase chegando. — Ele olhou o relógio de pulso. — Vamos la para a frente.

Não havia qualquer ponto de referência nas vastas savanas pontilhadas de acácias.

— Dez minutos — Jannie anunciou. — Alguém está vendo alguma coisa? — Ninguém disse nada.

— Cinco minutos.

— Ali! — Nicholas apontou sobre o ombro dele. — É o curso do Nilo Azul. — O arvoredo mais denso formava uma linha escura à frente. — E lá está a chaminé da usina de açúcar abandonada à margem do rio. Mek Nimmur disse que a pista fica cinco quilômetros adiante da usina.

— Bem, se for verdade, não está marcada no nosso mapa — Jannie resmungou. — Um minuto antes estávamos nas coordenadas. — Os minutos avançavam lentamente no visor do relógio.

— Ainda nada... — Fred calou-se quando um sinalizador vermelho foi disparado do chão e passou bem à frente do nariz de Big Dolly. Todos riram na cabine e relaxaram aliviados.

— Direto no nariz. — Nicholas bateu de leve no ombro de Jannie, cumprimentando-o. — Eu não teria feito melhor.

Fred subiu algumas centenas de metros e fez uma volta de 180 graus. Havia agora duas fogueiras num local mais plano — uma soltava uma fumaça escura, a outra, uma coluna branca que subia para o céu de poente. Somente quando estavam a 1 quilômetro conseguiram vislumbrar a faixa de grama para aterrissagem. A pista de Roseires tinha sido aberta vinte anos antes, quando a usina tentara fazer uma plantação de cana-de-açúcar irrigada pelo Nilo Azul. Mas a África venceu novamente e a usina caiu no esquecimento, deixando como epitáfio suas marcas indistintas na planície. Mek Nimmur escolhera esse lugar remoto e deserto para o encontro.

— Não vejo ninguém — Jannie resmungou. — O que quer que eu faça?

— Continue a aproximação — Nicholas disse. — Deve haver outro sinal luminoso... Ah, lá está. — A bola de fogo saiu de dentro de uma moita de árvores no final da pista, e pela primeira vez eles viram figuras humanas na paisagem árida.

— É Mek, tudo bem. Vá em frente e desça.

Quando Big Dolly concluiu a arremetida e desceu numa extremidade da pista rústica, uma figura de farda camuflada apareceu na frente deles. Com um par de bandeiras, sinalizava o espaço entre duas árvores mais altas.

Jannie desligou os motores e riu para eles por sobre o ombro.

— Bem, minha gente, parece que deu tudo certo!

Da cabine do Big Dolly, todos reconheceram a figura imponente de Mek Nimmur saindo de um bosque de acácias. Só então eles perceberam que as árvores estavam camufladas por uma rede; por isso não viam ninguém lá de cima. Quando a rampa do avião foi baixada, Mek Nimmur começou a subi-la.

— Nicholas! — Eles se abraçaram depois que Mek o beijou em cada lado do rosto. Estava encantado por rever Nicholas. — Então eu estava certo. De novo com seus velhos truques. Não era apenas um dik-dik, não é?

— Como posso mentir a um amigo? — Nicholas ergueu os ombros.

— Isso sempre foi fácil para você — Mek riu —, mas estou feliz por reencontrá-lo. Hoje em dia a vida não anda muito animada.

— Posso apostar! — Nicholas empurrou afetivamente o ombro dele. Uma silhueta esguia e graciosa seguiu Mek pela rampa. De farda

verde-oliva, Nicholas não reconheceu Tessay até ouvi-la falar. Ela estava de botas de lona e boné, e mais parecia um rapazinho.

— Nicholas! Royan! Sejam bem-vindos! — Tessay gritou. As mulheres se abraçaram carinhosamente, como os homens tinham feito.

— Bem, pessoal—Jannie protestou —, não estamos em Woodstock. Tenho de voltar a Malta ainda esta noite. Quero decolar antes que esteja escuro.

Rapidamente, Mek encarregou-se da carga. Seus homens subiram a bordo para empurrar os engradados nos cilindros, enquanto Sapper descia sua adorada escavadeira e a usava para descarregar e esconder a carga entre as acácias sob a rede de camuflagem. Com tanta gente para ajudar, a operação foi rápida, e o compartimento de carga do Big Dolly ficou vazio antes de o sol se pôr no horizonte e o rápido lusco-fusco africano roubar todo o colorido da paisagem.

Jannie e Nicholas tiveram uma rápida conversa na cabine de vôo enquanto Fred completava as verificações. Os planos e os procedimentos de rádio foram repassados pela última vez.

— Daqui a quatro dias — Jannie confirmou quando eles apertaram as mãos um do outro.

— Vamos logo, Nicholas — Mek disse lá de baixo. — Precisamos cruzar a fronteira antes do amanhecer.

Eles viram o Big Dolly seguir até o final da pista e fazer a volta. O motor roncou quando o avião passou arrastando uma nuvem de poeira e decolou sobre a cabeça deles. Jannie balançou as asas em despedida, com as luzes de navegação apagadas, e a grande aeronave diluiu-se como um morcego negro na escuridão do céu, desaparecendo quase por completo.

— Venha cá. — Nicholas levou Royan até um banco embaixo das acácias. — Não quero que esse joelho nos pregue outra peça. — Ele ergueu a calça dela até a metade da perna e envolveu o joelho numa faixa elástica, tentando não deixar muito evidente o seu prazer. Tranqüilizou-se ao ver que as escoriações quase haviam desaparecido e não havia mais inchaço.

Ele apalpou o joelho de Royan delicadamente. A pele era aveludada e os músculos, firmes e cálidos ao toque. Ele a olhou, e pela expressão em seu rosto percebeu que também estava gostando daquela intimidade. Quando os olhares se cruzaram, Royan enrubesceu levemente e logo baixou a perna da calça.

Royan ergueu-se de um salto e disse:

— Tessay e eu temos muito o que conversar. — E correu para encontrá-la.

— Vou deixar uns homens aqui para cuidar das suas coisas — Mek disse a Nicholas quando Tessay e Royan saíram. — Vamos viajar num grupo muito pequeno até a fronteira. Não acho que teremos problemas. No momento há pouca atividade inimiga neste setor. Muitas batalhas ao sul, mas por aqui está tudo calmo. Por isso escolhi este lugar.

— A fronteira etíope fica longe? — Nicholas quis saber.

— Cinco horas de marcha — Mek lhe disse. — Deslizaremos junto a um dos oleodutos depois que a lua se esconder. O resto de meus homens está esperando na entrada da garganta do Abbay. Deveremos encontrá-los antes da madrugada.

— E dali até o monastério?

— Mais dois dias de caminhada — Mek respondeu. — Chegaremos lá a tempo de receber notícias de seu amigo gordo do avião barrigudo.

Ele saiu e deu as últimas ordens ao comandante do pelotão que permaneceria em Roseires para guardar a carga. Em seguida reuniu um grupo de seis homens para escoltá-los na travessia da fronteira. Mek dividiu a bagagem entre eles. O item mais importante era o rádio, um modelo militar moderno e muito leve, que o próprio Nicholas carregava.

— Essas suas sacolas são difíceis de carregar. Vamos refazê-las — Mek disse a Nicholas e a Royan. Esvaziaram as sacolas e colocaram o conteúdo em duas mochilas de lona que Mek havia trazido. Dois homens puseram as mochilas nas costas e desapareceram na escuridão.

— Ele não vai levar isso! — Mek olhava para as longas pernas do teodolito que Sapper retirou de um dos engradados. Sapper não falava árabe, então Nicholas traduziu:

— Sapper disse que é um instrumento delicado. Não pode permitir que seja lançado de pára-quedas. Disse que, se se quebrar, não poderá fazer o trabalho para o qual foi contratado.

— Quem vai carregar isso? — Mek quis saber. — Meus homens farão um motim se eu os obrigar a isso.

— Diga a esse patife rabugento que eu mesmo vou carregar.

Sapper empertigou-se. — Eu não deixaria nenhum daqueles marmanjos encostar um dedo nele. — Ergueu o instrumento, colocou-o sobre o ombro e seguiu de peito empinado.

Mek deixou que os guardas se adiantassem cinco minutos e então ordenou:

— Agora podemos ir.

Trinta minutos depois de Big Dolly ter decolado, eles deixaram o campo de pouso e começaram a atravessar a planície escura e silenciosa, em direção ao leste. Mek tinha um passo firme. Ele e Nicholas pareciam ter olhos de gato, pensou Royan, logo atrás deles. Enxergavam no escuro, e bastaria um aviso sussurrado de um deles para evitar que ela caísse num buraco ou tropeçasse em pedras na escuridão. Mas, se isso acontecesse, Nicholas estaria sempre por perto, ajudando-a a equilibrar-se com a firmeza e a força de sua mão.

Eles marchavam em disciplinado silêncio. De hora em hora, quando paravam para descansar por cinco minutos, Mek e Nicholas sentavam-se ombro a ombro e, pelas poucas palavras que conseguia ouvir, Royan percebeu que Nicholas lhe explicava por que estavam voltando à garganta do Abbay. Ouviu-o repetir com freqüência os nomes de Mamose e Taita, e Mek questioná-lo longamente. Então eles se levantavam e voltavam a andar.

Depois de algum tempo Royan perdeu a noção da distância que haviam caminhado. Somente os períodos de repouso de hora em hora a orientavam no tempo. Aos poucos, foi sentindo os sinais de cansaço, que lhe exigia um grande esforço para erguer o pé a cada passo. E o joelho começou a doer. Às vezes Nicholas pegava seu braço e a orientava nos lugares mais difíceis. Outras, eles paravam de repente, ao ouvir um assobio vindo da frente. Ficavam em silêncio e esperavam na escuridão, com os nervos tensos, até que outro assobio os fizesse retomar a viagem. Quando ela sentiu as frescas e sutis emanações do rio no ar seco da noite quente, percebeu que o Nilo estava muito próximo. Eles nada disseram, mas Royan sentiu que os homens à sua frente ficaram mais tensos, alertas a cada passo.

— Vamos cruzar a fronteira agora — Nicholas sussurrou perto de seu rosto, e ela foi contagiada pela tensão. Esqueceu o cansaço e ouviu as pulsações em seu ouvido.

Dessa vez eles não pararam para descansar e continuaram por mais uma hora; aos poucos ela sentiu que o humor dos homens foi mudando. Um deles riu, e seus passos eram mais leves quando penetraram na luminescência do céu a oeste. Inesperadamente, a lua crescente mostrou suas pontas por cima da distante silhueta da cadeia de montanhas.

Tudo limpo. Passamos — Nicholas disse-lhe num tom de voz

normal. — Bem-vinda à Etiópia. Como se sente?

— Estou bem.

— E cansada também. — Ele riu sob o luar. — Logo vamos parar para descansar. Não está muito longe.

Ele estava mentindo, é claro; a marcha continuou sem parar, e Royan tinha vontade de chorar. Então voltou a ouvir o barulho do rio, o suave fluxo do Nilo sob o frescor da aurora. Mais à frente, ouviu Mek falar com seus homens, que esperavam por ele. Nicholas tirou-a do caminho, a fez sentar e ajoelhou-se à sua frente para lhe tirar as botas.

— Você foi ótima. Estou orgulhoso — ele disse, enquanto lhe tirava as meias e procurava por bolhas em seus pés. Depois removeu a faixa do joelho. Estava um pouco inchado; ele a massageou com um toque hábil e delicado.

Royan suspirou baixinho:

— Não pare. Está tão bom...

— Vou lhe dar um antiinflamatório. — Ele apanhou comprimidos na bolsa e em seguida estendeu sua jaqueta para que ela se deitasse.

— Desculpe, mas os sacos de dormir estão no outro carregamento. Precisa agüentar até que Jannie traga o resto.

Ele lhe ofereceu o cantil, e enquanto Royan engolia o remédio pegou um pacote de ração de emergência.

— Não é exatamente um banquete. — Nicholas cheirou o conteúdo. — No exército chamávamos isto de comida para ratos. — Ela começou a dormir com a boca ainda cheia de cubinhos de carne insossa e queijo que parecia plástico.

Quando Nicholas a despertou com uma caneca de chá adoçado, já amanhecera. Ele sentou-se do lado dela para beber, soprando a fumaça na xícara entre um gole e outro.

— Mek está a par de quase tudo. Concordou em nos ajudar.

— O que você lhe contou?

— O suficiente para mantê-lo interessado. — Nicholas riu. — A teoria da revelação. Nunca conte tudo de uma vez, mas aos poucos. Sabe o que estamos procurando, e que vamos construir uma represa.

— E os homens para trabalhar na represa?

— Os monges de São Frumêncio farão o que Mek pedir. É o grande herói deles.

— O que você lhe prometeu em troca?

— Ainda não falamos disso. Eu disse que não sabemos o que vamos encontrar; ele riu e disse que confia em mim.

— Que bobo, não?

— Não é exatamente assim que eu descreveria Mek Nimmur — Nicholas murmurou. — Quando chegar a hora, tenho certeza de que vai dizer qual é o preço de sua cooperação. — Ele ergueu os olhos nesse momento. — Estávamos falando de você, Mek.

Mek aproximou-se e agachou-se ao lado de Nicholas.

— E o que diziam?

— Royan disse que você é um patife, por forçá-la a andar durante toda a noite.

— Nicholas está mimando você. Pensa que não vi como ele fica quando está por perto? — ele brincou. — Meu conselho é que seja duro com ela. As mulheres adoram isso. — Então ficou sério. — Desculpe, Royan. A fronteira é sempre um mau lugar. Você vai gostar mais de mim quando estivermos no meu território.

— Quero lhe agradecer pelo que tem feito por nós. Mek inclinou levemente a cabeça.

— Nicholas é um velho amigo, e espero que você seja minha nova amiga.

— Estou muito chocada. Tessay contou-me ontem à noite sobre o que aconteceu no mosteiro.

Mek franziu as sobrancelhas e cofiou a barba curta, arrancando alguns pêlos do queixo com a força de sua raiva.

— Nogo e seus assassinos. Esse é apenas um exemplo do que estamos combatendo. Fomos resgatados da tirania de Mengistu para mergulhar nesse clima de horror.

— O que aconteceu, Mek?

De forma concisa mas vivida, ele descreveu o massacre e o saque aos tesouros do mosteiro.

— Não há dúvida de que foi Nogo. Todos os monges que escaparam o conhecem muito bem.

Seu ódio era forte demais para ser contido, e ele ergueu-se bruscamente.

— O mosteiro significa muito para o povo de Gojam. Fui crismado lá, pelo próprio Jali Hora. O assassinato do abade e a profanação da igreja são ofensas terríveis. — Ele ajeitou o boné na cabeça. — Agora precisamos ir. O caminho é íngreme e difícil.

Uma vez cruzada a fronteira, eles puderam caminhar com segurança durante o dia. O segundo período de marcha os levou ao fundo da garganta. Não havia contrafortes: foi como se entrassem pelo portão de um grande castelo. Os paredões do imenso maciço central erguiam-se 1 200 metros de ambos os lados, com o rio serpenteando entre eles em fortes corredeiras e quedas por toda a extensão. Ao meio-dia Mek interrompeu a marcha para descansar sob um arvoredo na margem. Havia uma praia mais abaixo, protegida por pedras redondas desprendidas dos penhascos que se curvavam como parapeitos sobre o rio.

Os cinco sentaram-se afastados uns dos outros. Sapper ainda remoía a altercação que tivera com Mek sobre o teodolito e se mantinha distante. Deixou o instrumento bem à vista e, ostensivamente, sentou-se ao lado dele. Mek e Tessay estavam estranhamente silenciosos e recolhidos; de repente Tessay segurou a mão de Mek.

— Vou contar a eles — disse num impulso. Mek ficou olhando para o rio por um momento.

— E por que não? — concordou por fim.

— Quero que eles saibam — Tessay insistiu. — Conheciam Boris. Irão entender.

— Prefere que eu conte? — Mek perguntou com tranqüilidade, ainda segurando a mão dela.

— Quero — Tessay assentiu. — Prefiro que saibam por você. Mek escolheu as palavras com cuidado e então começou a falar em

seu tom de voz grave, sem olhar para os outros, mas observando o rosto de Tessay:

— A primeira vez em que vi esta mulher, soube que Deus a pusera no meu caminho.

Tessay chegou mais perto dele.

— Nós dois fizemos nossos votos na noite do Timkat e pedimos perdão a Deus; então eu a tomei como esposa.

Ela apoiou a cabeça em seu musculoso ombro.

— O russo nos seguiu. Encontrou-nos exatamente neste lugar. Tentou nos matar.

Tessay contemplou a praia em que ela e Mek por pouco não tinham perdido a vida e estremeceu.

— Nós lutamos — ele disse apenas —, e quando ele morreu deixei seu corpo no rio.

— Sabíamos que ele havia morrido — disse Royan. — O pessoal da embaixada nos contou que a polícia encontrou o corpo rio abaixo, perto da fronteira. Só não sabíamos como tinha sido.

Ficaram todos em silêncio, e então Nicholas falou:

— Gostaria de estar lá para ver. Deve ter sido uma boa luta. — Ele balançou a cabeça, admirado.

— O russo era bom. Fico feliz por não ter de enfrentá-lo de novo

Mek admitiu, e levantou-se. — Se partirmos agora, poderemos chegar ao mosteiro antes de escurecer.

Mai Metemma, recém-eleito o novo abade de São Frumêncio, recebeu-os na sacada do mosteiro, que ficava acima do rio. Pouco mais novo que fali Hora, era alto, tinha uma nobre cabeça prateada e estava usando a coroa azul em honra à importante visita de Mek Nimmur.

Depois que os hóspedes se banharam e descansaram por uma hora em celas especialmente preparadas, os monges foram buscá-los para o banquete de boas-vindas. Quando os frascos de tej foram completados pela terceira vez, e o abade e os monges já estavam semi-embriagados, Mek segredou-lhe ao ouvido:

— Lembre-se da história de São Frumêncio... Deus o retirou do mar tempestuoso e o levou à praia para nos brindar com sua fé.

Os olhos do abade encheram-se de lágrimas.

— Seu corpo sagrado foi enterrado aqui, no nosso maqdas. Vieram os bárbaros e nos roubaram a sagrada relíquia. Somos órfãos de nosso pai. A razão da existência desta igreja e deste mosteiro desapareceu — ele lamentou. — Os peregrinos não virão mais de todas as partes da Etiópia para rezar em seu trono. Seremos abandonados pela Igreja. Estamos perdidos. Nosso mosteiro perecerá e os monges serão levados pelo vento como folhas secas.

— Quando São Frumêncio veio para a Etiópia, não estava sozinho. Outro cristão da Alta Igreja de Bizâncio estava com ele — Mek lembrou-lhe, falando suavemente.

— Santo Antônio.

O abade recorreu ao frasco de tej para salientar a intensidade de sua dor.

— Santo Antônio — Mek concordou. — Ele morreu antes de São Frumêncio, mas não era menos santo que seu irmão.

Santo Antônio também era muito piedoso. Merece nosso amor e veneração. — O abade bebeu um longo gole do frasco.

Nota: Santo Antônio, Eremita egípcio (c. 251-355), foi o fundador do monasticismo cristão, ao isolar-se no deserto aos vinte anos; também conhecido como Santo Antônio, o Grande. Não se trata do Santo Antônio que era monge franciscano (Lisboa, 1190-95 — Pádua, 1231), mais cultuado no Ocidente. (N. do E.)

Os caminhos de Deus são misteriosos, não são? — Mek balançava a cabeça diante dos mistérios da vida.

— Sim, seus caminhos são misteriosos, e não cabe a nós questioná-los ou tentar entendê-los.

— Mesmo assim, ele tem compaixão e recompensa toda a devoção.

— Ele é pura compaixão. — As lágrimas escorriam pelo rosto do abade.

— Vocês e o mosteiro sofreram uma perda lamentável. As relíquias de São Frumêncio foram roubadas... e infelizmente jamais serão recuperadas. Mas e se Deus lhes mandasse outras? E se Ele lhes enviasse o sagrado corpo de Santo Antônio?

O abade olhou-o por entre as lágrimas, mudando subitamente de expressão.

— Sem dúvida, seria um milagre.

Mek Nimmur passou o braço sobre os ombros do velho e cochichou em seu ouvido; Mai Metemma parou de chorar e escutou com muito interesse.

Consegui os trabalhadores para você — Mek disse a Nicholas quando caminhavam pelo vale na manhã seguinte. — Mai Metemma nos prometeu cem homens dentro de dois dias e mais quinhentos na semana que vem. Está oferecendo indulgências a todos os voluntários que trabalharem na represa. Eles se livrarão do fogo do purgatório se participarem de um projeto glorioso como recuperar a sagrada relíquia de Santo Antônio.

As duas mulheres pararam de caminhar e olharam para eles.

— O que você prometeu ao pobre velho? — Tessay indagou.

— Um corpo para substituir o que Nogo levou da igreja. Se encontrarmos o túmulo, a parte do mosteiro será a múmia de Mamose.

— Isso é uma coisa muito séria — Royan não se conteve. — Você o enganou para nos ajudar.

— Não enganei. — Os olhos profundos de Mek brilharam diante da acusação. — A relíquia que eles perderam não era o corpo de São Frumêncio, mas assim mesmo serviu ao propósito de unir a comunidade de monges e atrair cristãos de todo o país. Agora que desapareceu, a própria existência do mosteiro está ameaçada. Eles não têm mais motivo para existir.

— Por isso você os seduz com falsas promessas! — disse Royan, indignada.

— O corpo de Mamose é, em todos os sentidos, tão autêntico quanto o que eles perderam. Que diferença faz se é o corpo de um antigo egípcio e não o de um antigo cristão, desde que sirva como objeto de fé para a sobrevivência do mosteiro por mais quinhentos anos?

— Acho que Mek tem razão — Nicholas opinou.

— Desde quando entende de cristianismo? Você é ateu — disse Royan, irritada, e Nicholas ergueu a mão como que para se proteger de um golpe.

— Você está certa. O que é que eu entendo disso, afinal? Discuta com Mek. Eu vou discutir a teoria da construção da represa com Sapper Webb. — Ele adiantou-se para o início da fila de homens e ficou ao lado do engenheiro.

De tempos em tempos Nicholas ouvia vozes acaloradas às suas costas e ria. Conhecia Mek, mas também estava começando a entender a moça. Adoraria saber quem ganharia a discussão.

Chegaram à entrada do abismo no meio da tarde, e enquanto Mek procurava um local para acampar Nicholas levou Sapper até o ponto em que o rio se afunilava, antes de despencar na cachoeira. Enquanto Sapper armava o teodolito, Nicholas pegava a vara graduada para medir os níveis. Sapper mandava-o subir e descer pela face do penhasco com sinais peremptórios da mão sem deixar de olhar através das lentes do instrumento, enquanto o pobre Nicholas tentava se equilibrar e firmar os pés no terreno para manter a vara reta.

— Ok! — Sapper berrou, depois de tomar a vigésima medida. — Agora quero que vá para o outro lado do rio.

— Ótimo! — Nicholas berrou de volta. — Prefere que eu voe ou que nade?

Nicholas caminhou quase 5 quilômetros rio acima, até o baixio onde a trilha cruzava o Dandera; em seguida voltou com dificuldade pela outra margem, através da emaranhada vegetação ribeirinha, até o ponto em que Sapper, deitado à sombra, fumava um cigarro.

— Não vá se arrebentar, está bem? — gritou Nicholas, com o rio entre eles.

Já era quase noite quando Sapper acabou de medir tudo o que queria, e Nicholas ainda encarava o longo caminho de volta pelo baixio. Ele completou o último quilômetro na escuridão quase total, guiando-se apenas pelas fagulhas que saíam das fogueiras do acampamento. Chegou quase se arrastando.

— É melhor explicar para que serviu tudo isso — rosnou para Sapper, que não ergueu os olhos da régua de cálculo. Ele trabalhava em seus desenhos sob a luz de um pequeno lampião a gás.

— As estimativas que você fez não estavam muito erradas — ele cumprimentou Nicholas. — O rio tem trinta e sete metros de largura no ponto crítico sobre as cachoeiras, onde quero colocar a estrutura.

— Só quero saber se você vai conseguir encaixar uma represa no meio dele.

Sapper riu e coçou o nariz.

— Traga a minha escavadeira e represarei até o maldito Nilo.

Depois do jantar — outro pacote de "comida de rato" — Royan olhou para Nicholas, que estava sentado do outro lado da fogueira. Quando os olhares se cruzaram, ela meneou a cabeça, convidando-o. Então se levantou e foi saindo do acampamento, mas olhou para trás para ter certeza de que ele a seguia. Nicholas iluminou com uma lanterna o caminho até o local da represa, e aí eles procuraram uma pedra ao lado do rio para se sentar.

Ele desligou a lanterna; os dois ficaram em silêncio enquanto se acostumavam à luminosidade das estrelas. Royan suspirou.

— Cheguei a pensar que jamais voltaríamos aqui... que tudo foi um sonho e o poço de Taita nunca existiu.

— Talvez não exista mesmo, se não contarmos com a ajuda dos monges. — Havia um tom de dúvida na voz dele.

— Você e Mek venceram. — Ela riu baixinho. — Vamos aceitar a ajuda deles. Os argumentos de Mek me convenceram.

— Então concorda que eles fiquem com a múmia de Mamose?

— Concordo que fiquem com qualquer múmia que nós encontrarmos, se é que vamos encontrá-la. Que eu saiba, a verdadeira múmia de Mamose pode ser a que Nogo roubou.

Com toda a naturalidade, Nicholas passou o braço pelos ombros de Royan e ela encostou-se nele.

— Oh, Nicky, estou com medo e emocionada. Com medo de que todas as nossas esperanças sejam em vão, e emocionada por talvez termos encontrado a chave do jogo de Taita. — Ela virou o rosto para Nicholas, que sentiu nos lábios sua respiração.

Ele beijou-a ternamente. Então afastou-se, ainda sentindo na boca seu calor, e olhou-a sob a luz das estrelas. Royan não fez qualquer movimento para evitar. Pelo contrário, aconchegou-se mais e beijou-o de volta. No princípio foi um beijo fraternal, com a boca fechada. Ele passou a mão por trás da cabeça de Royan, com os dedos entre seus cabelos, puxando-a em sua direção. Abriu a boca sobre a dela, e Royan emitiu um leve som de protesto através dos lábios fechados.

Lenta e voluptuosamente, os lábios foram se abrindo e os protestos se desvanecendo, enquanto a língua dele sondava profundamente a boca de Royan. Ela ronronou como um gatinho procurando a teta da mãe, e passou os braços em torno dele. Acariciou-lhe as costas com seus dedos fortes, a boca aberta ao seu beijo, a língua sinuosa e escorregadia enrolando-se na dele.

Nicholas enfiou a outra mão entre os dois corpos e desabotoou a blusa dela até a cintura. Royan inclinou-se levemente para trás, facilitando os movimentos dele. Deliciosamente chocado, Nicholas descobriu que os seios estavam nus sob a fina camisa de algodão. Pegou um deles; era pequeno e firme, cabendo perfeitamente em sua mão. Tocou de leve o mamilo e sentiu-o endurecer entre seus dedos como um pequeno morango maduro.

Nicholas parou de beijá-la e inclinou a cabeça para o busto. Royan gemeu baixinho e conduziu-o mais para baixo. Quando ele tomou o mamilo entre os lábios, ela arfou e arranhou-lhe as costas com as unhas, como um gato reagindo a uma carícia. Todo o seu corpo ondulava nos braços de Nicholas; pouco depois ela se retraiu. Por um momento Nicholas sentiu-se rejeitado, mas ergueu a cabeça e tomou o outro mamilo em sua boca. Novamente, ela arfou enquanto ele a sugava.

Os movimentos de Royan tornaram-se mais soltos, acompanhando sua própria excitação. Ele não se conteve e enfiou a mão no culote pou-sando-a nas formas arredondadas de seu sexo. Então, com um movimento rápido e delicado, ela o repeliu e se levantou. Afastou-se de Nicholas, arrumando o culote e abotoando a blusa com dedos trêmulos.

— Sinto muito, Nicky. Eu quero... Oh, Deus, você nem imagina quanto! Mas... — Ela balançou a cabeça. — Ainda não. Nicky, me perdoe. Estou presa entre dois mundos. Um lado quer demais, mas o outro não me permite...

Ele se levantou e beijou-a.

— Não há pressa. Vale a pena esperar pelas coisas boas — disse, com a boca encostada na dela. — Venha! Vou levá-la para casa.

Na manhã seguinte, enquanto ainda estava escuro, a primeira leva de monges que Mai Metemma havia prometido entrou em fila pelo vale. Seu canto despertou o acampamento; sonolentos, todos saíram dos abrigos cobertos de colmo para receber a longa coluna de religiosos.

Meu Deus! — Nicholas bocejou. — Parece que iniciamos outra cruzada. Eles devem ter saído do mosteiro no meio da noite para chegar aqui a esta hora. — Ele foi ao encontro de Tessay e disse-lhe: — De agora em diante você é a tradutora oficial. Sapper não fala uma palavra de árabe nem de amárico. Fique perto dele.

Tão logo clareou, Mek e Nicholas saíram do acampamento para procurar um local onde lançar a carga. Ao meio-dia estavam de acordo que só havia uma possibilidade: teria de ser no próprio vale. Comparado aos penhascos rochosos que o circundavam, o terreno do vale era plano e razoavelmente desimpedido. Era imperativo que o lançamento fosse o mais perto possível do local da represa, pois cada quilômetro que o equipamento tivesse de ser carregado tomaria tempo e esforços incomensuráveis, necessários ao trabalho.

O tempo é o fator principal — Nicholas disse a Mek na manhã seguinte, quando estavam na zona escolhida para o lançamento. — Cada dia é importante de agora em diante, antes que as chuvas comecem.

Mek olhou para o céu.

— Peça a Deus que elas se atrasem. O local do lançamento ficava a 2 quilômetros do rio, ao longo de um trecho onde o vale se alargava e permitia a aproximação do avião num espaço entre as montanhas. Jannie teria de voar em linha reta e nivelar durante 5 milhas com os flaps totalmente acionados e com a rampa de carga abaixada.

— Cálculo preciso — observou Mek, examinando os declives irregulares e os picos ameaçadores que os rodeavam. — Seu amigo gordo sabe voar?

— Se sabe? Ele é quase um pássaro. Percorreram pelo vale para verificar a localização dos sinalizadores luminosos e das balizas. Estas consistiam em cruzes de quartzo branco dispostas no meio do vale, que seriam claramente visíveis do alto. Sapper estava no terreno mais alto, na entrada do vale. Eles o viram andando na linha do horizonte, instalando os sinalizadores que determinariam a aproximação da zona de lançamento.

Nicholas virou-se para o outro lado e viu as mulheres, que agora estavam sentadas numa pedra. Sapper as ajudara a instalar seus sinais luminosos, que marcariam o limite mais distante da área e serviriam como referência para Jannie sair do vale.

Nicholas voltou a atenção para os homens de Mek, que terminavam de colocar as marcas de quartzo. Quando tudo estava em seu lugar, Mek ordenou que deixassem a área. Então, levando o rádio, subiram para onde estava Sapper. Mek ajudou Nicholas a instalar a antena. Nicholas ajustou a sintonia com cuidado antes de bater no microfone.

— Big Dolly. Responda, Big Dollyl — ele chamou, mas só ouviu estática.

— Eles devem ter-se atrasado. — Nicholas tentava não demonstrar sua inquietação. — Jannie virá direto de Malta nesse vôo. Depois do primeiro lançamento, voltará a sua base em Roseires e pegará o segundo carregamento. Com sorte, os dois carregamentos estarão aqui antes de amanhã ao meio-dia.

— Se é que ele virá — Mek observou.

—Jannie é confiável — Nicholas resmungou. — Ele virá. — Segurou o microfone na frente da boca. — Big Dolly, está me ouvindo? Câmbio.

De dez em dez minutos ele voltava a tentar. E a cada vez que não obtinha resposta, tinha visões de Migs interceptadores sudaneses soltando seus mísseis e o velho Hércules mergulhando em chamas na terra.

— Vamos lá, Big Dolly — ele implorou, até que uma voz distante e abafada soou em seus fones de ouvido.

— Faraó, aqui é Big Dolly. Hora de chegada prevista, quarenta e cinco minutos. Na escuta. — A transmissão de Jannie era concisa. Era um homem calejado no jogo do contrabando para dar tempo para que um ouvinte hostil localizasse sua posição.

— Big Dolly. Faraó na escuta. — Nicholas riu para Mek. — Parece que afinal conseguimos.

Mek ouviu primeiro. Seus ouvidos eram treinados em batalhas. Nesta terra, quem quisesse continuar vivo tinha de ouvir um avião muito antes de ele se aproximar. Nicholas estava fora de forma, de modo que somente depois de cinco minutos captou o inconfundível ronco dos turboélices ecoando nos penhascos. Era impossível ter certeza de que direção vinha o som, mas eles protegeram os olhos do sol e viraram-se para oeste.

— Lá está. — Nicholas ficou aliviado quando avistou o pequenino ponto escuro, tão baixo que parecia se misturar aos paredões do escarpamento, ao fundo. Ele fez sinal para Sapper, que correu para os sinalizadores e os acionou rapidamente. Quando se afastou, densas nuvens de fumaça amarela se ergueram e dispersaram na brisa suave. A fumaça informaria a Jannie a velocidade e a direção do vento, bem como a orientação da zona de lançamento.

Nicholas ergueu o binóculo e olhou para o outro lado do estreito vale. Viu que Royan e Tessay estavam ocupadas com seus sinalizadores. De repente, uma fumaça amarela surgiu entre elas; as mulheres se afastaram e ficaram olhando para o céu.

Nicholas chamou ao microfone:

Big Dolly. A fumaça subiu. Está visível?

- Afirmativo. Contato visual. Não se esqueça de agradecer pelo que vai receber. — O sotaque africâner de Jannie era inconfundível.

Eles viram o avião crescer e suas asas ocuparem quase todo o céu; então o perfil se alterou quando os grandes flaps da asa baixaram e a rampa se abriu sob a barriga. Big Dolly diminuiu a velocidade de vôo de modo tão drástico que pareceu suspenso por um fio no céu africano. Fez uma volta lenta, inclinando-se lateralmente na direção da fumaça dos sinalizadores, descendo mais e mais no rumo do local em que eles estavam.

Com um ronco furioso que fez todo mundo se abaixar, o avião passou rente à cabeça deles, como se quisesse varrê-los do alto da montanha. Nicholas viu Jannie espiando-os da cabine de vôo; com um sorriso no rosto e uma das mãos erguida num aceno lacônico, ele passou.

Nicholas levantou-se quando Big Dolly cruzou majestosamente o centro do vale. O primeiro engradado saiu de dentro de sua barriga e despencou em direção à terra; no último minuto o pára-quedas se abriu como um buquê de noiva. A queda do pesado contêiner foi contida abruptamente. Ele oscilou no ar e segundos depois caiu no chão sob uma nuvem de poeira e com um estrondo que pôde ser ouvido na beira do rio. Outros dois engradados foram lançados e também eles ficaram por um tempo pendurados nos pára-quedas antes de cair.

Os motores de Big Dolly roncavam, sob aceleração total; o bico se ergueu para passar sobre as nuvens de fumaça amarela e escapar da armadilha mortal do vale. Fez outra volta ampla e preparou-se para uma segunda investida. Novamente, os engradados caíram sobre as marcas de quartzo e o avião subiu em direção ao paredão do vale, passando rente aos picos rochosos que poderiam derrubá-lo.

Seis vezes Jannie repetiu a manobra perigosa e em cada uma lançou três cargas retangulares. Os engradados ficaram espalhados por todo o vale, cobertos pela seda branca de seus pára-quedas.

Quando Jannie ganhou altitude pela última vez, sua voz ecoou nos fones de Nicholas:

— Não vá embora, Faraó! Eu voltarei.

Então o Big Dolly recolheu a rampa em sua barriga como uma velha vestindo as calcinhas e voou para o oeste.

Nicholas e Mek correram para o vale, onde os monges já estavam saltando e rindo em volta dos engradados. Rapidamente eles assumiram o controle: separaram os homens em grupos e dirigiram o recolhimento das cargas.

Nicholas e Sapper haviam planejado que os engradados fossem lançados na ordem em que seu conteúdo seria usado. O primeiro deles continha comida enlatada e desidratada, objetos pessoais e material de acampamento, além de pequenos luxos, como mosquiteiros e uma caixa de uísque. Nicholas viu aliviado que a preciosa caixa estava intata-nenhuma garrafa se quebrara na queda.

Sapper encarregou-se do material de construção e do equipamento pesado. Com Tessay traduzindo suas ordens, tudo foi levado para a antiga pedreira, onde ficaria estocado até que fosse necessário. Quando a noite caiu, ainda faltava carregar mais da metade dos engradados que ficaram onde estavam. Mek deixou um guarda armado no local e todos voltaram ao acampamento.

Nessa noite, com uma dose de uísque e comida decente aquecendo o estômago, um mosquiteiro a proteger sua cabeça e um grosso acol-choado para se deitar, Nicholas adormeceu com um sorriso nos lábios. Estavam quase prontos para começar.

O canto dos monges nas matinas o despertou.

— Não precisamos de despertador aqui — ele resmungou, descendo ao rio para se lavar e barbear.

Quando o sol bateu nos paredões do escarpamento, ele e Mek já estavam a postos nas montanhas, observando o céu a oeste. O plano era que Jannie passasse a noite em Roseires e fosse ajudado pelos homens de Mek que haviam ficado lá com o primeiro carregamento. Esse era um dos estágios mais vulneráveis de toda a operação. Embora Mek garantisse que havia pouca presença militar naquela área, bastaria que uma patrulha sudanesa extraviada tropeçasse no Big Dolly para acontecer um desastre. Por isso, foi com grande alívio que eles ouviram o ronco familiar dos turboélices reverberando nas montanhas.

O Big Dolly preparou-se para a primeira passagem pelo vale; quando sobrevoou as cruzes de quartzo, a escavadeira soltou-se do avião. Instintivamente, Nicholas prendeu a respiração ao vê-la despencar do alto e dar um solavanco na ponta das cordas dos pára-quedas. Balançou selvagemente no céu como um ioiô com cordas de náilon, enquanto os monges urravam de espanto e emoção. Ela pousou, erguendo uma nuvem de poeira.

Sapper, ao lado de Nicholas, gemeu e cobriu os olhos para não ver o que havia acontecido com a máquina.

— Merda! — ele soltou em voz baixa.

— Isso é uma ordem ou apenas um pedido? — Nicholas perguntou, mas não estava realmente achando graça.

Quando o último engradado caiu e o avião subiu com aceleração total, Nicholas chamou Jannie pelo rádio.

Muito obrigado, Big Dolly. Volte em segurança para casa.

Inshallah! Se Deus quiser! — Jannie respondeu.

— Vou chamá-lo quando for hora de voltar.

— Estarei esperando. — Big Dolly desapareceu no céu. — Quebre uma perna!

— Vamos lá — Nicholas bateu nas costas de Sapper. — Vamos descer e ver se ainda temos uma escavadeira.

A máquina amarela estava caída de lado e o óleo escorria de seu interior como o sangue de um dinossauro ferido.

— Saiam todos daqui. Deixem só uma dúzia desses negros para me ajudar — Sapper disse-lhes pesarosamente, como se estivesse diante do túmulo de sua bem-amada.

Sapper não voltou ao acampamento para jantar, então Tessay mandou-lhe uma tigela de wat e alguns pães injera para comer enquanto trabalhava. Nicholas pensou em oferecer-se para ajudá-lo no conserto do trator, mas achou melhor que não. Por experiência própria, sabia que em certas ocasiões Sapper preferia ficar sozinho, e essa era uma delas.

No lusco-fusco das primeiras horas da manhã o acampamento foi iluminado pelas luzes dos faróis dianteiros e o ronco de um motor a diesel reverberou pelas montanhas. Com a careca suja de graxa e terra, os olhos fundos porém triunfantes, Sapper entrou com o trator amarelo no acampamento e gritou do alto do banco do motorista:

— Muito bem, damas e cavalheiros! Saiam da cama e calcem os sapatos. Vamos construir uma represa.

Foram necessários mais dois dias para recolher todos os engradados que estavam espalhados pelo vale e levá-los para a antiga pedreira. Lá, foram estocados cuidadosamente de acordo com a lista que Nicholas e Sapper haviam feito na Inglaterra. Era essencial que eles soubessem onde estava cada item e que tivessem acesso imediato a eles quando necessitassem. Nesse meio-tempo, Sapper trabalhava no local da represa, instalando suas bases, distribuindo inúmeras estacas de madeira ao longo das margens do rio e tirando as últimas medidas com sua longa fita de topógrafo.

Durante os trabalhos iniciais, Nicholas observou o desempenho dos monges e procurou conhecê-los individualmente. Conseguiu localizar os líderes naturais e os homens mais inteligentes e dispostos. Também conseguiu identificar os que falavam árabe ou um pouco de inglês. O mais promissor de todos era um monge chamado Hansith Sherif, que foi escolhido para ser seu assistente e intérprete pessoal.

De volta ao acampamento e depois de terem estabelecido um relacionamento com os monges, Mek Nimmur levou Nicholas a um canto para uma conversa longe das mulheres.

— Daqui para a frente meu trabalho será a segurança do local. Precisamos estar preparados para outro ataque como aquele a seu acampamento e o saque de São Frumêncio. Nogo e seus capangas ainda estão por aí. Logo vão saber que você voltou à garganta. Quando vier, estaremos à espera.

— Você é melhor com um AK-47 do que com uma picareta — Nicholas concordou. — Deixe Tessay comigo. Preciso dela.

— Eu também — Mek sorriu e balançou a cabeça pesarosamente. — Só agora sei quanto. Cuide dela por mim. Voltarei todas as noites para vê-la.

Mek levou seus homens para o mato e distribuiu-os em posições defensivas ao longo da trilha e ao redor do acampamento. Nicholas via constantemente uma sentinela nos terrenos vizinhos mais elevados. Era uma tranqüilidade saber que estavam por ali.

Entretanto, como prometera, Mek voltava ao acampamento quase todos os finais de tarde, e geralmente à noite Nicholas ouvia, do abrigo que Mek dividia com Tessay, sua risada profunda misturada a uma voz mais suave. Então despertava e ficava pensando em Royan na cabana ao lado, porém ainda tão distante.

No quinto dia, para espanto de Nicholas, chegou a segunda leva de trezentos trabalhadores que Mai Metemma recrutara. Raramente as coisas funcionavam assim na África. Nada acontecia antes do tempo prometido. Ele se perguntava o que Mek teria dito ao abade, mas decidiu que era melhor não saber, pois agora o trabalho de construção poderia começar.

Esses homens não eram monges, porque São Frumêncio já enviara todo o seu contingente religioso, e sim aldeões que moravam nos planaltos. Mai Metemma os convencera com promessas de indulgências plenárias e ameaças de irem para o inferno.

Nicholas e Sapper dividiram a força de trabalho em grupos de trinta homens, cada um deles com seu respectivo monge capataz. Tiveram o cuidado de selecionar os homens pela força física, de modo que os maiores e mais fortes foram agrupados como a tropa de frente do projeto, e os menores e mais fracos ficaram na reserva para tarefas que não necessitassem de força bruta.

Nicholas deu um nome a cada grupo: os Búfalos, os Leões, os Áxis e assim por diante. Além de exercitar a criatividade, queria inspirar neles um senso de orgulho e, em benefício próprio, incentivá-los à competição. Reuniu os grupos na pedreira, cada um deles encabeçado pelo capataz eclesiástico recém-nomeado. Usando um dos blocos de pedra como púlpito, e com Tessay traduzindo o que dizia, Nicholas fez um discurso bombástico, e no final prometeu-lhes o pagamento em dólares de prata. Estabeleceu prêmios de três vezes o valor do salário combinado.

Até esse ponto, os homens o ouviam com ar resignado, mas a partir daí a transformação foi notável. Nenhum deles esperava receber pelo trabalho, e a maioria só estava interessada em saber quando poderia desertar e voltar para casa. Nicholas prometia-lhes agora não apenas dinheiro, mas dólares de prata. Nos últimos duzentos anos, o dólar Maria Theresa era considerado a única moeda de valor na Etiópia. Por essa razão ainda era cunhado com a data original de 1780 e o retrato da antiga imperatriz, com seu queixo duplo e o decote expondo a metade o busto farto. Uma única dessas moedas era mais valorizada que um saco cheio de notas sem valor emitidas pelo regime de Adis Abeba.

Para cumprir a promessa, Nicholas incluíra um cofre cheio dessas moedas no primeiro engradado que Jannie descarregara.

Sorrisos celestiais e dentes brancos brilharam nos rostos de ébano. Alguém começou a cantar e os demais batiam os pés e dançavam à medida que iam saindo da pedreira para pegar as ferramentas. Com picaretas e pás, começaram a subir o vale para o local da represa, cantando e dançando.

— Sir Nicholas, o Papai Noel. — Tessay riu. — Eles jamais vão esquecer o senhor.

— Vão canonizá-lo e erguer uma igreja em sua homenagem — Royan sugeriu.

— O que eles não sabem é que vão merecer cada dólar que ganharem, da maneira mais dura.

Desse momento em diante, o trabalho se iniciava ao nascer do dia e só parava ao escurecer. Os homens retornavam todas as noites sob a luz dos tocheiros, cansados demais para cantar. Entretanto, Nicholas contratara os líderes das aldeias do planalto para fornecer carne diariamente. Os homens viam as mulheres trazendo os animais para serem sacrificados, equilibrando grandes potes de tej na cabeça.

Nos dias que se seguiram não houve nenhuma deserção entre o pequeno exército de trabalhadores.

Do alto de sua escavadeira, Sapper ergueu o primeiro gabião de tela nos braços hidráulicos. A grade cheia de pedras pesava várias toneladas; os homens interromperam o trabalho e se agruparam na margem do Rio Dandera para assistir. Um murmúrio de espanto se ergueu quando Sapper soltou o trator amarelo no barranco íngreme e, com o gabião suspenso no alto, entrou com o veículo na água. A correnteza, indignada com a invasão, golpeava furiosamente as grandes rodas da máquina, mas Sapper moveu-a mais para dentro.

A multidão enfileirada no barranco começou a cantar e a bater palmas quando a água alcançou a barriga da máquina e nuvens de espuma brotaram silvando do cano de escapamento quente. Sapper travou os freios e enfiou o pesado gabião no leito do rio antes de dar marcha à ré para subir o barranco. Os homens aplaudiram animados quando o primeiro gabião submergiu e um redemoinho acusou sua posição. Outro gabião já estava cheio. Os braços da escavadeira bamboleavam acima dele, desceram e o pegaram com a ternura de uma mãe erguendo o filho do berço.

Nicholas gritou para que os capatazes mandassem seus homens retornar ao trabalho. Longas filas de homens seminus, usando apenas tangas, subiram o vale. Suando muito sob o calor da garganta, a pele deles luzia como antracito, o carvão vitrificado. Cada um deles carregava na cabeça um cesto de pedra agregada e o despejava no próximo gabião. Então desciam a montanha com os cestos vazios e voltavam à pedreira. Quando um gabião ficava cheio, outro grupo aprontava outra tela, amarrando-a firmemente com arame grosso.

— Vinte dólares para o grupo que encher mais cestos! — Nicholas ofereceu. Os homens deram gritos de alegria e redobraram os esforços, mas não conseguiam competir com Sapper e seu trator. Ele colocava os alicerces com muita arte, distribuindo-os ao longo da margem de modo que cada gabião ficasse encostado no seguinte, e os fixava no barranco para que um sustentasse o outro.

A princípio o progresso foi pouco visível, mas à medida que um sólido recife foi sendo erguido sob a superfície, o rio começou a reagir enfurecido. O barulho da correnteza passou de um murmúrio para um rugido melancólico, ao dar com o muro de Sapper.

Não demorou para que o paredão de gabiões mostrasse seu topo acima da superfície, restringindo o rio à metade de sua largura original. Agora seu humor era truculento. Ele jorrava no estreito espaço numa sólida torrente e subia nos barrancos ao ser contido atrás da barreira. A água batia nos alicerces da represa, tentando encontrar os pontos fracos, e à medida que esta subia, o trabalho progredia mais lentamente.

Na floresta ribeirinha os homens continuavam a trabalhar, e Nicholas fremia cada vez que uma das grandes árvores era derrubada, gritando e queixando-se como criaturas vivas. Ele se considerava um conservacionista, e algumas daquelas árvores haviam levado séculos para alcançar aquele porte.

— Você prefere sua represa ou essas lindas árvores? — Sapper perguntou indignado, quando Nicholas lhe segredou sua contrariedade. Nicholas afastou-se sem responder.

Todo mundo estava se cansando do trabalho ininterrupto. Os nervos estavam a ponto de explodir e os humores, suscetíveis. Já tinham acontecido várias brigas perigosas entre os trabalhadores, e Nicholas fora obrigado a se enfiar entre as picaretas para separar os combatentes.

Pouco a pouco, eles foram espremendo o rio em seu leito, e chegou a hora de transferir o trabalho para a outra margem. Foi necessário o esforço conjunto de toda a mão-de-obra para construir uma nova estrada sobre o barranco até o baixio. Aí eles empurraram o trator para dentro da água e, com cem homens puxando-o com cordas e suas rodas girando e esburacando o leito do rio, conseguiram fazer atravessar a máquina para o outro lado.

Então tiveram de construir outra estrada para chegar ao local da represa. Cortaram as árvores que ficavam no caminho e retiraram as pedras para fazer passar o trator. Quando ele chegou ao local da represa, os homens reiniciaram o processo de fixar os gabiões na outra margem.

Lentamente, alguns metros por dia, as duas paredes iam-se erguendo e, à medida que o espaço se estreitava, a água subia com mais violência e dificultava muito o trabalho.

Enquanto isso, 200 metros acima do local da represa, os Falcões e os Escorpiões entraram em ação. Esses dois grupos construíam uma balsa com os troncos das árvores cortadas na floresta. Os troncos foram amarrados, formando um gradil. Por cima dele foi aplicada uma grossa camada de resina plástica para torná-lo impermeável, e um segundo gradil de troncos foi colocado por cima, formando um gigantesco sanduíche. Tudo foi amarrado com arame grosso. Por fim, uma das extremidades foi lastreada com pedras.

Sapper providenciou o lastro de pedras para tornar a balsa mais pesada numa das pontas, de modo que flutuasse na água quase na vertical: uma ponta raspava o fundo do rio e a outra erguia-se bem acima da superfície. As dimensões da balsa estavam cuidadosamente relacionadas ao espaço entre os dois contrafortes da represa. Enquanto a balsa era construída, Sapper instalava uma pilha de gabiões cheios nas margens, abaixo do local da represa.

Três grupos de trabalho, os Elefantes, os Búfalos e os Rinocerontes formados pelos homens mais fortes, trabalhavam na entrada do vale. Eles cavavam um profundo canal para o qual o rio seria desviado.

— Seu grande engenheiro Taita não pensou nesse detalhe — Sapper vangloriou-se para Royan quando estavam os dois à beira da vala. — Isso significa que vamos precisar elevar o nível da água menos de dois metros para que o rio comece a correr pelo canal e entre no vale. Sem isso, teríamos de subir o nível uns seis metros para conseguir desviá-la.

— Talvez os níveis do rio fossem diferentes há quatro mil anos. — Royan, que sentia uma estranha lealdade para com o antigo egípcio, defendeu-o. — Talvez ele tenha aberto o canal, mas os vestígios desapareceram.

— É improvável — Sapper resmungou. — Aquele doido não pensou nisso. — Ele tinha um ar presunçoso e vaidoso. — Acho que superamos o senhor Taita.

Royan sorriu consigo mesma. Era estranho que até Sapper, tão prático e pé-na-terra, também considerasse um desafio pessoal lançado ao longo das eras. Também ele havia caído no jogo de Taita.

Não havia ameaça ou recompensas celestiais que fizessem os monges trabalhar aos domingos. Nas tardes de sábado, eles paravam uma hora mais cedo e tomavam a trilha para o mosteiro, pois queriam estar lá no dia seguinte, para a Santa Comunhão. Embora isso deixasse Nicholas enfurecido no fundo era um alívio, pois todos podiam descansar. Estavam exaustos, e não seriam despertados às 4 horas pelos cânticos das matinas.

Então, na noite de sábado, eles juraram que dormiriam até mais tarde na manhã seguinte, mas por força do hábito Nicholas acordou e estava completamente desperto a essa hora. Não conseguiu ficar na cama; quando voltou do rio depois de suas abluções matinais, encontrou Royan também acordada e já vestida.

— Quer café? — Ela tirou o bule do fogo e encheu uma xícara para ele. — Dormi muito mal esta noite. Tive um sonho absurdo. Eu estava no túmulo de Mamose, perdida num labirinto de corredores. Procurava a câmara mortuária, abria portas, mas em todas as salas onde olhava havia gente. Duraid estava trabalhando numa delas e me disse: "Lembre-se do protocolo dos quatro bois. Comece do início". Ele estava tão vivo e tão real! Quis me aproximar dele, mas a porta fechou-se na minha cara e eu sabia que nunca mais o veria. — Seus olhos encheram-se de lágrimas e brilharam à luz da fogueira.

Nicholas quis afastar essas lembranças dolorosas.

— Quem estava nas outras salas? — perguntou.

— Na próxima estava Nahoot Guddabi. Ele riu com desdém e disse: "O chacal caça o sol", e sua cabeça se transformou na cabeça de Anúbis, o deus-chacal dos cemitérios; ele latia e rosnava. Fiquei com tanto medo que fugi.

Royan bebeu um gole de café.

— Não tem sentido. Mas Von Schiller estava em outra sala. Ele ergueu-se no ar, batendo asas, e disse: "O abutre alça vôo e a pedra despenca". Senti tanto ódio que desejei atacá-lo, mas ele desapareceu.

— Então você acordou? — Nicholas sugeriu.

— Não, havia mais uma sala.

— Quem estava lá?

Ela baixou os olhos e a voz.

— Você.

— Eu? E o que eu disse? — Ele sorriu.

— Você não disse nada — Royan murmurou, e de repente ficou tão enrubescida que o deixou intrigado.

— Então o que foi que fiz? — Ele continuava sorrindo.

— Nada. Quer dizer... Não posso contar. — O sonho voltou-lhe à memória, vivido e real como a própria vida, e ela reviu detalhadamente o corpo nu de Nicholas, lembrando até o cheiro e a sensação do toque. Ela se forçou a pensar em outra coisa. Sentia-se tão vulnerável quanto no sonho.

— Conte-me isso — ele insistiu.

— Não! — ela levantou-se de um salto, atrapalhada e envergonhada, tentando afastar essa imagem.

A noite anterior havia sido a primeira vez na vida em que sonhara com um homem dessa forma e tivera um orgasmo enquanto dormia. Pela manhã, ao despertar, descobriu que o pijama estava molhado.

— Temos um dia inteiro de trabalho pela frente — Royan disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

— Pelo contrário — Nicholas também se levantou. — Ainda temos que planejar como vamos sair daqui. Quando chegar a hora, terá de ser o mais rápido possível.

— Posso ir junto? — ela perguntou.

Dois grupos, os Búfalos e os Elefantes, faltando apenas os respectivos capatazes, esperavam por eles na pedreira. Eram sessenta homens dos mais fortes. Nicholas tirou os botes infláveis Avon de um dos engradados. Estavam vazios e dobrados, com os remos amarrados por cima. Eram botes especialmente desenhados para águas turbulentas, com capacidade para dezesseis pessoas e 1 tonelada de carga.

Nicholas supervisionou enquanto os homens amarravam os pesados volumes em varas cortadas para esse propósito. Cinco homens em cada extremidade das longas varas as carregavam com o pacote preso no centro. Começaram a descer pela trilha; quando um grupo se cansava, havia outro pronto para substituí-lo. A troca era feita em movimento: os novos carregadores enfiavam os ombros por baixo da vara enquanto os cansados livravam-se dela.

Nicholas pusera o rádio numa sacola de fibra de vidro, à prova de choque e de água. Não confiaria seu precioso instrumento a um carregador. Ele e Royan seguiam atrás da caravana, engrossando o coro do canto de trabalho dos carregadores que transportavam a carga para o mosteiro.

Mai Metemma recebeu-os no pátio do Mosteiro de São Frumêncio. Acompanhou-os pela escadaria talhada na rocha do penhasco por 60 metros, até a beira d'água. Havia uma estreita saliência rochosa lavada pela água do Nilo, onde os respingos da alta cachoeira chegavam como uma garoa perpétua. Depois do calor e do sol forte no alto, lá embaixo estava frio, escuro e úmido. A água que minava dos penhascos tornava a saliência úmida e escorregadia.

Royan tremeu diante do rio, que formava um grande vórtice ao redor da profunda bacia de pedra e depois entrava pela estreita garganta, em sua longa e agitada jornada em direção ao norte e ao Egito.

— Se eu soubesse que esse era o caminho pelo qual você pretendia ir para casa... — Ela fez um olhar de dúvida.

— Se prefere ir andando, por mim tudo bem — Nicholas respondeu. — Mas, se tudo der certo, vamos ter muita bagagem. O rio é a saída mais lógica.

— Imagino que seja, mas não é muito convidativo. — Royan quebrou um galho que ficara preso na margem e atirou-o à água. Ele foi arrastado e subiu numa grande onda que se formava sobre um obstáculo submerso.

— Qual é a velocidade da correnteza? — ela perguntou com a voz atemorizada quando o galho foi levado para o fundo.

— Ah, não mais que 8 ou 9 nós — ele disse sem muita convicção —, mas isso não é nada. O rio está muito lento. Espere até começar a chover nas montanhas, então verá o que é água. Vai ser muito divertido. Muita gente pagaria caro pela chance de descer um rio como esse. Você vai adorar.

— Obrigada — ela disse sem entusiasmo. — Mal posso esperar. Quinze metros acima da saliência, fora do alcance do nível mais alto do Nilo, havia uma pequena gruta — o trono da Epifania. Muito tempo antes os monges haviam aberto uma profunda passagem na pedra, que terminava numa câmara espaçosa, iluminada por velas, e abrigava uma estátua da Virgem em tamanho natural, com um manto de veludo desbotado e o Menino Jesus nos braços. Mai Metemma dera-lhes permissão para guardar os botes ali. Quando os carregadores saíram, Nicholas mostrou a Royan como operar as alças para soltar os volumes e os cilindros de gás carbônico para inflar os botes em poucos minutos. Ele colocou a caixa com o rádio dentro de uma bolsa de emergência, embrulhou tudo em plástico e pôs dentro de um dos botes dobrados, mas com fácil acesso, caso necessitasse dele.

— Você pretende me acompanhar nesse delicioso passeio? — ela perguntou ansiosa. — Não está pensando em me mandar sozinha, está?

— É melhor que você saiba como funciona — ele lhe disse. — Se as coisas se complicarem quando chegar a hora de sair daqui, posso precisar de sua ajuda com esses botes.

Quando subiram novamente a escada para o calor e a luz do sol, o humor de Royan havia mudado.

— Ainda não é meio-dia e temos o dia todo para nós. Vamos voltar ao poço de Taita — ela sugeriu, e Nicholas aceitou.

Os Búfalos e os Elefantes os acompanharam até a bifurcação da trilha. Lá, os grupos tomaram a direção da represa, gritando adeus e acenando para Nicholas e Royan.

Pouco tempo se passara desde a última vez em que haviam estado lá, mas o mato crescera muito. Nicholas precisou usar uma machadinha para encontrar a trilha sob os espinheiros. No meio da tarde eles cruzaram o pico mais alto e novamente chegaram ao penhasco, diretamente sobre o poço de Taita.

— Parece que ninguém esteve aqui — Nicholas notou aliviado. — Não há sinal de visitantes.

— Você esperava algum?

— Nunca se sabe. Von Schiller é uma figura imprevisível, e tem pessoas adoráveis trabalhando para ele. Helm é o que mais me preocupa; tive a desagradável sensação de que ele já andou por aqui. Vou dar uma olhada com mais cuidado.

Ele andou rapidamente pela área, procurando sinais de intrusos. Então voltou para onde Royan estava, à beira do precipício, e sentou-se ao seu lado.

— Nada — ele admitiu. — O lugar ainda é nosso.

— Quando Sapper bloquear o rio lá em cima, esta será nossa área de operação, não é? — ela perguntou.

— Sim, mas antes que Sapper feche a represa, quero trazer da pedreira todo o equipamento de que vamos precisar, para tê-lo à mão quando iniciarmos a exploração do poço.

— Como vamos entrar no poço? Pelo leito do rio, depois de seco?

— Imagino que possamos usar o leito seco do rio como estrada para transporte e entrar nele por baixo, pela represa, ou por cima, pelo mosteiro, por entre os rochedos rosados.

— Mas não era assim que você pretendia entrar, não é? — ela indagou.

— Mesmo sem água, o leito do rio é muito longo. São cinco ou seis quilômetros de uma extremidade à outra do abismo, além de a estrada ser bastante precária. — Nicholas riu. — Você está falando com um perito no assunto. Já desci esse rio da pior maneira, e não pretendo repetir a proeza. Há pelo menos cinco quedas e afloramentos de rocha, que eu me lembre.

— No que está pensando, então?

— A idéia não é minha. Na verdade, é de Taita. Royan olhou por cima do abismo.

— Quer dizer, construir uma plataforma no penhasco, como ele fez?

— O que serviu para Taita pode servir para mim — Nicholas admitiu. — Provavelmente, o velho escriba considerou a alternativa de usar o leito do rio como acesso e desistiu da idéia.

— Quando vai começar a trabalhar na plataforma?

— Um dos grupos já está cortando varas de bambu lá no alto da garganta. Amanhã começaremos a trazê-las para cá e a instalá-las. Não podemos desperdiçar nenhum dia. Quando a represa estiver completa, teremos de entrar no poço seco o mais rápido possível.

Como que para reforçar suas palavras, um trovão soou ao longe. Os dois ergueram a cabeça para o céu. Cerca de 180 quilômetros ao norte, sobrepostas às silhuetas azuladas das escarpas, altas torres de cúmulos-nimbos tingiam o céu de uma tonalidade sépia. Ninguém disse nada, mas ambos sabiam que as nuvens de tempestade estavam sobre as montanhas distantes.

Nicholas olhou o relógio e levantou-se.

— Vamos voltar ao acampamento antes que escureça.

Ele estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se. Royan espanou a terra das roupas e parou à beira do abismo.

— Acorde, Taita. Já estamos no seu encalço — ela chamou nas sombras.

— Não o desafie. — Nicholas pegou-lhe o braço e puxou-a para trás. — Esse velho rufião já está nos dando trabalho suficiente.

Os madeireiros haviam deixado grossos troncos de árvores na margem do Dandera, acima da represa. Sapper usou-os para amarrar os pesados cabos que foram esticados de um lado ao outro do rio. Nesses cabos ele havia instalado uma série de roldanas. Dois outros cabos foram esticados, um em cada margem para serem manipulados pelos Búfalos e os Elefantes. Um dos grupos era dirigido por Nicholas e o outro por Mek Nimmur, que descera das montanhas para ajudar nessa parte crucial da obra.

A balsa de troncos maciços estava na margem do rio, com metade já dentro da água. Muito pesada por causa das pedras, era uma estrutura desajeitada, que exigia um esforço conjunto para ser colocada na posição. Sapper examinou a disposição por entre os olhos semicerrados e depois olhou para baixo, para a represa parcialmente acabada. As paredes de gabiões estendiam-se pelas duas margens, mas havia entre uma e outra um espaço de 6 metros, onde a água volumosa bramia.

— O que não queremos é que o maldito tampão escape e bata na maldita parede — ele advertiu Nicholas e Mek. — Caso contrário, perderemos a maior parte do que fizemos até agora. Quero enfiá-lo ali, suavemente, e fazer com que fique quietinho naquele espaço. Alguma pergunta? É a última oportunidade que vocês têm. Todos já conhecem os sinais.

Sapper deu uma última tragada no cigarro e atirou o toco ao rio com um piparote.

— Ótimo, pessoal. O último a entrar na água é um maricás.

Comparados ao resto dos homens, Nicholas e Mek estavam completamente vestidos, com os shorts de brim grosso. Os demais estavam quase nus. Quando a ordem foi dada, eles se atiraram no rio, com a água pelo peito, e posicionaram-se ao longo dos cabos.

Antes de entrar no rio, Nicholas olhou em volta. Pela manhã Royan lhe havia pedido emprestado o binóculo, e agora ele entendia por quê. Ela e Tessay estavam no alto de uma colina sobre a garganta. Quando Nicholas olhou, viu Royan passando o binóculo para Tessay. Não queriam perder nada da temível operação.

Nicholas olhou para os homens nus, fechou a cara e murmurou:

— Puxa, há belos espécimes aqui. Espero que Royan não comece a fazer comparações.

Sapper montou no trator; soltando um rugido e uma nuvem de fumaça de óleo, a máquina ganhou vida. Ele ergueu o punho fechado acima da cabeça e Nicholas transmitiu a ordem a seu grupo:

— Esticar!

O capataz repetiu a ordem em amárico, e os homens inclinaram-se sobre os cabos. Sapper engrenou a marcha lenta e empurrou o trator para a frente. As rodas guincharam, a grade de madeira escorregou pelo barranco e caiu no rio. A extremidade lastreada com pedras afundou no mesmo instante, enquanto a outra se erguia sobre a superfície. Devagar, eles a arrastaram para o meio da correnteza, até deixá-la na vertical.

A correnteza começou a arrastá-la para a parede de gabiões, em velocidade alarmante. O trator resfolegou e soltou nuvens de fumaça negra quando Sapper engrenou a ré e estirou os cabos. Os negros nus arfavam e cantavam — alguns já com a água pelo pescoço.

A grade estabilizou-se na correnteza e os homens a soltaram, agora num ritmo mais lento, em direção à abertura da parede. Quando começou a desviar-se para uma das margens, Sapper balançou o braço no ar. O grupo de Mek, na margem mais distante, soltou a corda, e o de Nicholas, na mais próxima, puxou. Novamente a grade ficou centralizada.

— Agora! Fechem o buraco! — Sapper berrou, e então a correnteza ficou poderosa demais para resistir. Os dois grupos foram arrastados para dentro do rio; alguns homens ficaram imersos na água e tiveram de soltar as cordas para nadar. Entretanto, os outros que ainda as seguravam conseguiram retardar a grade a tempo de impedir que se desgovernasse. Ela entrou firmemente no espaço, como uma tampa no ralo de uma banheira gigantesca, e instantaneamente o fluxo da água foi interrompido.

Enquanto os homens lutavam dentro do rio, com os corpos molhados reluzindo ao sol, Sapper soltou os cabos do guincho e seguiu pelo barranco com a escavadeira na posição mais alta. Quando passou por Nicholas, este agarrou o pára-choque e subiu no trator.

— Temos de fixá-la agora, antes que a grade arrebente — Sapper gritou.

De seu local vantajoso, atrás do banco de Sapper, Nicholas pôde ver qual era a situação. A represa estava agüentando, mas por pouco. Jatos de água surgiam por todos os vãos entre a grade e os gabiões. A pressão da água contra as camadas de resina da grade era fortíssima. Ela resistia à força do rio, mas vergava-se como uma ponte levadiça atingida por um aríete.

Sapper ergueu um gabião que estava pronto na margem e o conduziu para o leito do rio abaixo da represa. O fluxo havia-se encolhido a um mero fio d'água. Os jatos espirravam através das frestas da parede; como os gabiões não eram impermeáveis, a água encontrava passagem entre as pedras.

Enquanto o guincho se sacudia e guinava sobre o leito acidentado atrás da parede, Nicholas e Sapper foram ensopados pelos jatos d'água. Era como trabalhar sob uma ducha gelada. Sapper aproximou-se por trás da grade e colocou o pesado gabião encostado a ela. Engatou a ré e subiu o barranco para apanhar mais um gabião. Devagar, foi erguendo uma parede de retenção por trás da grade, enfileirando os gabiões até que esse muro de arrimo ficasse tão resistente quanto as pilastras laterais.

Nicholas saltou do trator e voltou correndo para o canal que havia sido cavado na entrada do vale. Os trabalhadores já estavam nas bordas da vala, com Royan e Tessay na primeira fila da animada multidão.

Nicholas abriu caminho entre os homens até chegar ao lado de Royan.

— Está funcionando, Nicky. A represa está agüentando.

Eles podiam ver o nível das águas represadas subindo pelo muro formado pela grade e os gabiões. Enquanto os homens conversavam e riam, o rio saltava pela boca do canal.

Cinqüenta homens com ferramentas desceram para o leito da vala. Nuvens de poeira erguiam-se no ar enquanto eles jogavam a terra para o lado, para conduzir o primeiro fio d'água para a boca do canal. Os homens postados nas margens cantavam e gritavam para incentivá-los, e um fiapo de água penetrou na vala. Picaretas e pás iam na frente, abrindo caminho.

Por fim, o fiapo de água sentiu o forte declive do vale que se estendia diante dele. Imediatamente se transformou num regato e logo em seguida numa forte enxurrada.

Os homens que estavam dentro do canal gritaram assustados com a súbita ferocidade do rio e saltaram para os lados. Mas alguns não conseguiram sair a tempo e foram arrastados pela água, debatendo-se e gritando por socorro. Os outros que estavam nas margens atiraram cordas e os puxaram para fora, encharcados e enlameados.

Agora o rio bramia pelo canal e rasgava o vale, reencontrando o antigo curso que há milhares de anos não fazia. Por quase uma hora eles ficaram na margem olhando, pois o espetáculo provocava neles o fascínio que águas turbulentas sempre despertam nos homens. Eram obrigados a recuar à medida que o rio ia corroendo as margens sob seus pés.

Por fim, Nicholas levantou-se e voltou para onde Sapper ainda escorava a parede da represa. Agora ele erguera um muro de arrimo no paredão, com quatro fileiras de gabiões fincados no leito, que gradualmente se iam estreitando em direção ao topo da parede de contenção Por enquanto a represa estava segura, a grade vulnerável escorada pelos pesados cestos de tela de arame, e o fluxo desviado para o canal diminuíra bastante a pressão contra ela.

— Acha que vai suportar? — Royan olhou de maneira desconfiada para a estrutura.

— Até que comece a chover, acho que sim — Nicholas respondeu. — Não podemos mais perder tempo aqui. É hora de descer o rio e trabalhar no poço de Taita.

Eles seguiram pelas margens do novo rio ao longo do grande vale. Em alguns lugares eram obrigados a se desviar para as montanhas, porque o transbordamento da represa interrompera e cobrira a antiga trilha. Por fim chegaram à confluência do riacho e à fonte das borboletas que haviam explorado com Tamre. Parados no barranco, Nicholas e Royan se entreolharam e nada disseram. O riacho estava seco.

Seguiram o leito vazio até as montanhas, e então escalaram a saliência rochosa da qual brotava a fonte das borboletas. A gruta continuava rodeada de samambaias, mas parecia a órbita do olho de uma caveira, escura e vazia.

— A fonte secou! — Royan sussurrou. — A represa acabou com ela. Isso prova que a fonte era alimentada pelo poço de Taita. Quando desviamos o rio, acabamos com ela. — Seus olhos brilhavam de emoção. — Venha. Não percamos mais tempo aqui. Vamos subir ao poço de Taita.

Nicholas foi o primeiro a descer ao poço. Desta vez tinha uma cadeira de contramestre para se sentar e um guindaste apropriado para baixá-lo. Quando ele se dependurou da borda do penhasco, a cadeira balançou violentamente e seu polegar ficou preso entre a madeira do assento e o paredão de pedra. Nicholas gritou de dor; ao tirar o dedo, viu que a pele da junta estava cortada, o sangue escorria e pingava em suas pernas. Doía, mas não era grave; ele levou o polegar à boca para limpar o ferimento. Sangrava muito, mas não havia tempo para se preocupar com isso.

Suspenso sobre o abismo sombrio e assustador, seu olhar foi irresistivelmente atraído para o relevo gravado entre as fileiras verticais de nichos. Agora que sabia o que estava procurando, distinguiu os contornos do falcão de asa quebrada. Isso o animou. Desde que haviam deixado a garganta, cerca de um mês antes, um estranho sentimento o assaltava: talvez tivessem imaginado tudo, o cartucho de Taita fosse uma alucinação, e quando voltassem não encontrariam nada na parede do penhasco. Mas lá estavam a marca e uma promessa.

Ele olhou para o fundo da garganta e viu que a cachoeira acima do poço estava reduzida a um filete. A água que ainda caía pelo declive de rocha lisa era apenas a que escapava pelas fendas da represa e a última drenagem dos bancos de areia e poças rio acima.

O nível do grande poço havia baixado drasticamente. Percebia-se o nível anterior pelas marcas ainda úmidas no paredão de pedra. Os quinze metros antes submersos estavam agora expostos. Viam-se claramente os oito pares de nichos. Onde antes Nicholas tivera de mergulhar para vê-los, agora estava seco.

Entretanto, o poço não estava completamente drenado. Havia formado um reservatório abaixo do nível do buraco, e a água não escorrera completamente com o fluxo gravitacional. Permanecia uma poça escura no centro, cercada por uma saliência da pedra. Nicholas pisou nessa saliência e desceu da cadeira. Era estranho apoiar-se numa pedra no mesmo lugar em que antes havia lutado para sobreviver.

Ele olhou para cima, onde os raios de sol iluminavam as partes superiores do abismo. Era como estar no fundo de uma mina; ele estremeceu ao sentir os braços pegajosos e uma estranha sensação na boca do estômago. Deu um puxão na corda para que a cadeira fosse erguida e então foi se equilibrando pela pedra escorregadia para chegar à face do rochedo, onde os nichos eram agora claramente visíveis.

Conseguia ver os contornos do buraco que por pouco não o engolira com sua boca escura e limosa. Estava quase submerso do lado mais fundo, onde a água refluía para o rochedo. Acima da água ficava apenas a curva irregular do arco da entrada, ao pé das fileiras de nichos. O resto permanecia sob a água.

A saliência de pedra se estreitava à medida que Nicholas se aproximava do paredão; ele andava de lado, encostado à pedra e com os dedos dos pés dentro da água. Por fim, só poderia continuar se entrasse na água. Não era possível calcular sua profundidade; estava escura e nada convidativa.

Na ponta dos pés, ele agachou-se na saliência e quase perdeu o equilíbrio. Conseguiu se firmar, segurando-se à parede com uma das mãos, e esticou a outra para alcançar o buraco parcialmente submerso.

O contorno da boca era liso, como ele lembrava, e novamente achou regular demais para não ter sido feito pelo homem. Nicholas arregaçou a manga da camisa e notou que seu dedo ainda sangrava. Sem dar importância a isso, enfiou o braço na água. Inclinou-se para passar os dedos pelo perímetro da abertura. Ao sentir os blocos grosseiramente talhados, enfiou mais o braço até a água atingir seu bíceps.

De repente, uma criatura viva, rápida e pesada, movimentou-se na sua frente e, num reflexo imediato, Nicholas recolheu o braço. A coisa seguiu seu braço até a tona e atingiu a pele com presas longas e pontiagudas; Nicholas conseguiu ver a cabeça maligna e perigosa de uma barracuda. Instintivamente, ele percebeu que o peixe fora atraído pelo cheiro do sangue que escorria de seu dedo.

Nicholas deu um salto para trás e quase se desequilibrou na estreita saliência. Somente uma das presas da criatura o havia tocado, mas rasgara a pele como uma lâmina, fazendo um longo corte superficial sobre a mão esquerda, por onde o sangue pingava e se espalhava pelo poço.

No mesmo instante a água pareceu ganhar vida, revolvendo-se numa frenética movimentação de monstros aquáticos. Nicholas, com as costas coladas à pedra, ficou apavorado. Pôde vislumbrar formas sinuosas e alongadas, negras e luzidias, algumas grossas como uma perna humana.

Uma delas ergueu a cabeça fora da água para abocanhá-lo. Os olhos eram grandes e assustadores, o bico comprido, com imensas presas escapando pela mandíbula. O corpo tinha mais de 1 metro de comprimento e brandia como um chicote contra a pedra, tentando alcançar a perna de Nicholas. Ele deu um grito e encostou-se ainda mais, tentando firmar-se. Segurando a mão ensangüentada, procurou a cabeça maligna, que agora desaparecera, mas sob a superfície havia uma centena de repelentes formas ofídicas.

— Enguias! — ele reconheceu. — Enguias tropicais gigantescas!

Certamente haviam sido atraídas pelo sangue. A queda do nível da água as prendera no poço, e eram tantas que provavelmente teriam devorado todos os peixes do local. Agora estavam vorazes. Todos os poços que restavam no abismo deviam estar infestados dessas terríveis criaturas. Por sorte, da última vez que lá estivera, Nicholas não se ferira na água.

Ele desamarrou o lenço do pescoço e o enrolou na mão machucada. As enguias eram um perigo mortal para quem fosse explorar a abertura no penhasco. Mas ele já pensava numa forma de tirá-las de lá e chegar aonde queria.

Devagar, o tumulto foi se acalmando e a água voltou a ficar tranqüila. Nicholas olhou para cima e viu a cadeira descendo, com as pernas de Royan balançando no ar.

— O que encontrou? — ela perguntou animadamente. — Há um túnel..- — ela parou ao ver a roupa dele suja de sangue e a mão enrolada no lenço.

— Oh, meu Deus! — exclamou. — O que aconteceu? Está ferido. É grave? — Seus pés tocaram a pedra; ela desceu da cadeira ao lado dele e segurou a mão machucada delicadamente. — O que foi isso?

— Não é tão grave quanto parece. Bastante sangue, mas nada muito profundo.

— Como foi que aconteceu? — ela insistiu.

Como resposta, Nicholas rasgou um pequeno pedaço do lenço ensangüentado.

— Veja! — Ele amassou o pano e atirou-o no poço.

Royan gritou horrorizada quando a água borbulhou sobre as longas formas escorregadias. Uma delas saltou para a saliência, mas caiu de costas, deixando um filete de muco prateado na pedra escura.

— Taita deixou cães de guarda para nos manter afastados — Nicholas observou. — Vamos ter de tomar cuidado com essas lindezas para explorar o buraco submerso.

A plataforma de bambu que Sapper e Nicholas construíram no penhasco estava apoiada nos nichos talhados há 4000 anos na pedra. Provavelmente, Taita havia fixado sua estrutura com cordas, mas Sapper usou arame grosso galvanizado, de modo que era bastante forte para sustentar o peso de muitos homens. Os Búfalos formaram uma corrente e transferiram para baixo, de mão em mão, todo o equipamento que estava sobre a plataforma.

A primeira coisa que chegou ao fundo da caverna foi um gerador portátil Honda EM350. Sapper equipou-o com fios e lâmpadas que foram estendidos na base do penhasco. O pequeno motor era silencioso, mas a quantidade de energia que gerava era impressionante. A iluminação perseguiu as sombras dos cantos mais remotos do abismo e clareou a profunda concavidade da rocha como se fosse um palco.

O clima mudou imediatamente. Todos ficaram mais alegres e confiantes. Royan ouviu risadas e conversas animadas ao longo da corrente humana quando desceu para juntar-se a Sapper e Nicholas no poço.

— Está tudo funcionando; agora apaguem as luzes — Nicholas ordenou.

— Vai ficar muito escuro — Royan protestou.

— Economia de combustível — Nicholas explicou. — Não temos uma usina de força aqui ao lado. Temos apenas 200 litros de combustível de reserva, e por mais econômico que seja o Honda, é melhor prevenir. Não sabemos quanto tempo ficaremos no túnel.

Royan aceitou resignada, e quando Sapper desligou o gerador a caverna voltou a mergulhar nas trevas. Ela fez uma careta.

— O que vamos fazer com seus terríveis amigos? — perguntou olhando para a mão dele enfaixada.

— Sapper e eu já bolamos um plano. Pensamos em esvaziar o poço fazendo uma corrente de baldes, mas com a quantidade de água que ainda passa por aqui, não vai dar.

— Teremos muita sorte de não sermos arrastados pela água, além do tempo que vai levar com esses baldes. — Sapper observou. — Se ao menos o major tivesse se lembrado de trazer uma bomba de sucção...

— Não posso pensar em tudo, Sapper. O que vamos fazer é construir uma pequena comporta em forma de meia-lua na frente da abertura e retirar a água com baldes.

Royan ficou assistindo aos preparativos. Meia dúzia de gabiões vazios foram levados para baixo e colocados ao redor do poço. Lá, foram parcialmente enchidos com pedras que os homens recolhiam do leito do rio. Entretanto, não os enchiam tanto ao ponto de não poder carregá-los. Lá embaixo não tinham o trator para movimentá-los, e só podiam contar com os antiquados braços humanos. Havia sobrado resina plástica suficiente para impermeabilizar os gabiões.

— E as enguias? — Royan estava fascinada por aquelas terríveis criaturas. — Você não pode mandar ninguém lá para baixo.

— Você vai ver! — Nicholas riu. — Tenho uma surpresa guardada para seus peixes favoritos.

Terminados os preparativos para a construção da comporta, Nicholas iluminou as paredes da caverna e mandou que Royan, Sapper e os trabalhadores subissem para a plataforma. Ele ficou sozinho no fundo do poço, com a sacola onde levava as granadas de fragmentação obtidas por Mek Nimmur.

Com uma granada em cada mão, ele hesitou.

— Sete segundos de retardo — lembrou-se. — Iscas Quenton-Harper. Mais eficientes que as Royal Coachman!

Nicholas arrancou os pinos das granadas e atirou-as no centro do poço. Correu e protegeu-se no fundo da caverna. Ajoelhou-se com o rosto virado para a pedra e cobriu os ouvidos com as mãos. Fechou firmemente os olhos e encolheu-se. A pedra tremeu sob seus pés e as duas ondas de choque das explosões passaram por ele numa sucessão rápida e com uma potência selvagem que ele sentiu no peito, cortan-do-lhe a respiração. Nos confins do abismo as detonações foram fortíssimas, mas seus ouvidos estavam protegidos, e as águas profundas do poço absorveram grande parte delas. A água esguichou para o alto e bateu contra o rochedo acima de Nicholas, deixando-o completamente molhado.

Quando os ecos da explosão desapareceram, ele se levantou. Seus ouvidos não haviam sido muito afetados e nada mais lhe acontecera além do banho gelado. Voltando à borda do poço, viu a água agitada. Bandos de enguias enormes subiam à tona, mostrando as barrigas brancas enquanto se contorciam. Muitas já estavam mortas, flutuando inertes com os ventres abertos, enquanto outras ficaram meramente atordoadas com a explosão. Reconhecendo a tenacidade com que se agarravam à vida, Nicholas desconfiou que não demorariam para se recuperar, mas por enquanto não ofereciam perigo.

Ele gritou para o alto do penhasco:

— Área limpa, Sapper. Mande-os para baixo.

Os homens desceram em bandos da plataforma e espantaram-se com a carnificina provocada dentro do poço. Eles se juntaram no barranco e começaram a retirar as enguias mortas.

— Vocês comem isso? — Nicholas perguntou a um dos monges.

— É muito bom. — O monge esfregou a barriga com apetite.

— Parem com isso, seus glutões — Sapper chamou-os de volta ao trabalho. — Vamos colocar esses gabiões no lugar antes que elas despertem e comam vocês.

Com uma vara de bambu Nicholas sondou a profundidade da água na entrada do buraco e descobriu que era bem maior que a altura de um homem. Eles teriam de enfiar os gabiões e completá-los com pedras já no lugar. Foi um trabalho difícil e cansativo, que demorou quase dois dias para ser concluído, mas por fim ergueu-se uma barragem em forma de meia-lua na frente da entrada submersa, isolando-a da água do poço.

Usando baldes de couro e potes de barro, os Búfalos começaram a secar a comporta e despejar a água por cima da barreira, de volta para o poço. Nicholas e Royan viram o nível da água baixar dentro da comporta, e a abertura na pedra revelar-se aos poucos.

Logo puderam ver que era quase retangular, com uns 3 metros de comprimento por 2 de altura. As paredes laterais e superior da boca haviam sofrido a erosão da água que entrava por ela, mas à medida que a água baixou mais puderam reconhecer o que restara dos blocos de pedra que, provavelmente, outrora selavam a abertura. Três deles permaneciam onde os antigos pedreiros os haviam deixado, no umbral da abertura, mas os outros foram revirados pelos milhares de inundações e jogados dentro do túnel, bloqueando-o parcialmente.

Ansioso, Nicholas saltou a barragem. Ainda não estava seco lá dentro, mas sua impaciência era incontrolável. Com água pelos joelhos, ele se agachou para entrar na abertura e tentou tirar os detritos que a obstruíam.

— Não há dúvida de que é uma espécie de entrada de mina — ele gritou para Royan, que também não se conteve.

Ela saltou para dentro da comporta, enfiando-se na abertura ao lado de Nicholas.

— Está obstruída — gritou desapontada. — Será que Taita fez isso de propósito?

— Talvez — Nicholas opinou. — Difícil saber. Grande parte desse cascalho e desses destroços vieram do próprio rio, mas ele deve ter bloqueado o túnel antes de sair.

— Vai dar muito trabalho limpar tudo isso e descobrir aonde leva essa passagem. — Royan não parecia mais tão animada.

— Acho que sim — Nicholas concordou. — Vamos ter de retirar com as mãos e não teremos tempo para os prazeres de uma escavação arqueológica formal. Vamos simplesmente arrancar tudo. — Ele saltou para fora e estendeu a mão para ajudá-la a sair. — Bem, pelo menos teremos luz — acrescentou. — Podemos manter os homens trabalhando em turnos, dia e noite, até desobstruir tudo isso.

Eles represaram o Rio Dandera — disse Nahoot Guddabi, e Gotthold von Schiller olhou-o com espanto.

— Represaram o rio? Tem certeza? — perguntou.

— Tenho, Herr Von Schiller. Recebemos um relatório do espião colocado no acampamento de Harper. Há mais de trezentos homens trabalhando na garganta. E isso não é tudo. Uma grande quantidade de equipamentos e provisões foi lançada do avião. E uma operação militar. O espião disse ainda que ele tem uma máquina para revolver a terra, uma espécie de trator.

Von Schiller olhou para Jake Helm, do outro lado da mesa, esperando confirmação. Helm assentiu.

— É isso mesmo, Herr Von Schiller. É tudo verdade. Harper gastou muito dinheiro. Só o frete do avião deve ter-lhe custado uns cinqüenta mil.

Von Schiller sentiu a paixão começar a agitar-se, o que não lhe acontecia desde que a mensagem urgente via satélite chegara a Frankfurt. Viajara direto para Adis Abeba, onde o Jet Ranger o esperava para levá-lo à base da Pégaso sobre a garganta do Rio Abbay.

Se fosse verdade, e ele não duvidava da palavra de Helm, Harper devia estar atrás de algo muito importante. Ele olhou pela janela do barracão e viu o Dandera entrando pelo vale, logo abaixo do acampamento. Era um grande rio. Uma represa para conter toda aquela água devia ser uma obra caríssima e difícil, num local remoto e em situações tão primitivas — um projeto que ninguém levaria adiante sem a perspectiva de uma recompensa substancial.

Não foi sem relutância que ele admitiu sua admiração pela conquista do inglês.

— Mostre-me onde ele construiu a represa! — ordenou, e Helm contornou a mesa para ficar ao lado dele. Von Schiller estava sobre o tablado, de onde se olhavam no mesmo nível.

Helm debruçou-se sobre a fotografia de satélite e apontou o local da represa. Eles o examinaram durante algum tempo, e então Von Schiller perguntou:

— O que acha disso, Helm?

Helm balançou a cabeça entre os ombros largos.

— Tenho só um palpite.

— Que palpite é esse? — perguntou Von Schiller, mas Helm hesitou. — Vamos!

— Ou ele quer desviar a água para outra área mais abaixo, para lavar um depósito, pepitas de ouro ou artefatos feitos com metais preciosos, talvez usá-la para esguichar a terra de dentro do túmulo...

— Altamente improvável! — interpôs Von Schiller. — Seria uma forma de escavação ineficiente e cara.

— Concordo que seria um exagero — Nahoot aprovou obsequiosa-mente o raciocínio de Von Schiller, mas ninguém lhe deu atenção.

— E qual é a outra alternativa? — Von Schiller arregalou os olhos para Helm.

— Acho que o único motivo para represar o rio seria alcançar alguma coisa submersa. Algo que esteja no leito do rio.

— Isso é mais lógico — Von Schiller refletiu e voltou a atenção para a fotografia. — O que existe abaixo do local da represa?

— Aqui o rio entra numa estreita e profunda ravina. — Helm mostrou onde. — Logo abaixo da represa. A ravina se estende por uns treze quilômetros, até este ponto, logo acima do mosteiro. Passei sobre ela de helicóptero e me pareceu intransponível, mas... — ele parou.

— Sim, continue. Mas o quê?

— Numa das vezes em que sobrevoei a área, encontramos Harper e a moça no planalto sobre a ravina. Eles estavam aqui. — Ele encostou o dedo na fotografia e Von Schiller inclinou-se para ver.

— O que estavam fazendo aí? — perguntou, sem erguer os olhos.

— Nada. Só estavam sentados no alto do penhasco.

— Mas eles perceberam sua presença?

— É claro. Estávamos no helicóptero. Ouviram a gente se aproximar. Olharam para nós e Harper até acenou.

— Pode ser que tenham interrompido o que faziam quando ouviram o helicóptero.

Von Schiller ficou tanto tempo em silêncio que os demais começaram a se sentir incomodados e a trocar olhares. Quando voltou a falar, foi de modo tão inesperado que Nahoot se assustou.

— Obviamente, Harper deve ter motivos para acreditar que o túmulo esteja na garganta, abaixo da represa. Quando e como você faz contato com o espião que está no acampamento de Harper?

— Harper está recebendo suprimentos das aldeias aqui do escarpamento. As mulheres levam carne e potes de tej para alimentar os homens. Nosso homem manda recados por elas.

— Chega, chega! — Von Schiller fez sinal para que Helm se calasse. — Não quero saber a história da vida dele. Só quero saber por que Harper está trabalhando nessa ravina. Quando pode obter essa informação?

— No máximo depois de amanhã. — Helm prometeu.

Von Schiller virou-se para o Coronel Nogo, na outra extremidade da mesa. Até agora ele não dissera nada, mas observava e ouvia a conversa.

— De quantos homens você dispõe nessa área? — o alemão perguntou.

— Três pelotões completos, mais de trezentos homens. Todos bem treinados. Muitos são veteranos de guerra.

— Onde eles estão? Mostre no mapa. O coronel se aproximou.

— Um pelotão está aqui, o outro, acantonado na aldeia de Debra Maryam e o terceiro, ao pé do escarpamento, pronto para avançar e atacar o acampamento de Harper.

— Acho que devem atacar agora. Livre-se deles antes que encontrem o túmulo — Nahoot interveio novamente.

— Cale a boca — Von Schiller disse asperamente, sem dirigir-lhe o olhar. — Pedirei sua opinião quando precisar.

Ele estudou o mapa por mais um tempo e perguntou a Nogo:

— Quantos homens tem esse guerrilheiro que se aliou a Harper, qual é mesmo o nome dele?

— Mek Nimmur, e não é um guerrilheiro. É um bandido, um conhecido terrorista shufta — Nogo corrigiu-o.

— Quem luta pela liberdade de alguns é o terrorista de outros — Von Schiller observou secamente.

— Quantos homens ele tem sob seu comando?

— Poucos. Menos de cem, talvez mas não mais que cinqüenta. Estão todos guardando o acampamento de Harper e a represa.

Von Schiller pensou, coçando o lóbulo da orelha.

— Quando Harper e sua gangue voltaram à Etiópia? — ele refletiu. — Sei que vieram de Malta, mas o avião não pode ter descido na garganta.

Ele desceu do estrado e foi olhar pela janela do barracão, cuja vista se estendia ao longe. Contemplou a garganta, os penhascos, as montanhas e os chapadões encobertos pela névoa azulada.

— Como conseguiram entrar sem ser vistos pelas autoridades? Teriam saltado de pára-quedas do mesmo jeito que desembarcaram as provisões?

— Não — disse Nogo. — Meu informante disse que eles chegaram a pé com Mek Nimmur e dias depois receberam os carregamentos.

— Mas de onde vieram? — ponderou Von Schiller. — Onde fica o campo de pouso mais próximo, que permita a aterrissagem de um avião pesado?

— Se eles vieram com Mek Nimmur, provavelmente entraram pelo Sudão. É de lá que Nimmur opera. Há vários campos de pouso abandonados perto da fronteira. A guerra... — Nogo ergueu os ombros de modo expressivo —... os exércitos estão sempre se deslocando; essa guerra já dura vinte anos.

— Do Sudão? — Von Schiller olhou para o mapa. — Então devem ter seguido pelo rio.

— Tenho quase certeza — Nogo concordou.

— Então provavelmente Harper planeja sair da mesma maneira. Quero que você desloque seus homens de Debra Maryam e os distribua aqui e aqui. Nas duas margens do rio, abaixo do mosteiro. Devem ficar de prontidão para impedir que Harper cruze a fronteira sudanesa, se ele tentar escapar por lá.

— Ótimo! Entendi. É uma boa tática — Nogo aprovou, balançando vigorosamente a cabeça, com os olhos brilhando por trás dos óculos.

— Depois quero que o resto dos homens se desloque para a base do escarpamento. Diga-lhes para evitar contato com os homens de Mek Nimmur, mas que estejam numa posição da qual possam avançar rapidamente, ocupar a área da represa e bloquear a ravina assim que eu dê as ordens.

— Quando será isso? — Nogo perguntou.

— Continuaremos a vigiá-lo com muito cuidado. Se ele encontrar alguma coisa, vai começar a retirar os objetos. Muitos serão grandes demais para esconder. Seu informante saberá. É aí que entraremos em ação.

— O senhor deveria começar agora, Herr Von Schiller — Nahoot aconselhou-o —, antes que ele consiga abrir o túmulo.

— Não seja idiota — Von Schiller contra-atacou. — Se fizermos isso agora, jamais descobriremos o que ele sabe sobre o túmulo.

— Poderíamos obrigá-lo a...

— Se aprendi alguma coisa nesta vida, é que ninguém obriga um homem como Harper a fazer alguma coisa. Há um certo tipo de ingleses... lembro-me bem da guerra... — Ele parou de falar e franziu o cenho. — Não. É um povo muito difícil. Nada de pressa. Quando Harper encontrar o que procura na ravina, nós agiremos. — Seu cenho relaxou e ele abriu um sorrisinho gelado. — Vamos esperar. Por enquanto, vamos só esperar.

Os detritos que bloqueavam a abertura não estavam tão compactados que impedissem completamente o fluxo de água para seu interior. Caso contrário, Nicholas jamais seria sugado pela correnteza como fora em seu primeiro mergulho no poço. Deviam existir vãos nesse bloqueio, onde pedras grandes tivessem ficado alojadas, ou mesmo um grande tronco de árvore atravessado no túnel. Por esses vãos a água havia encontrado caminho, mantendo-os desimpedidos.

Mesmo assim, os detritos haviam levado séculos para se acumular, e sua retirada exigia grande esforço. A operação limpeza era dificultada pela falta de espaço. Somente três ou quatro homens fortes do grupo dos Búfalos conseguiam trabalhar dentro da comporta de cada vez. O resto do grupo se ocupava de retirar o entulho à medida que ia saindo.

Nicholas mudava os turnos a cada hora. Havia trabalho em excesso, e um revezamento freqüente permitia que os homens estivessem sempre descansados e dispostos, além de ansiosos para ganhar o bônus em dólares de prata. A cada mudança de turno Nicholas desaparecia pela boca do túnel com a trena de Sapper, para medir o avanço.

— Quarenta e cinco metros! Bom trabalho, Búfalos — ele disse a Hansith Sherif, o monge capataz, e então notou a água escorrendo sob seus pés. O piso descia num ângulo constante. Ele olhou para trás, na direção do poço, e agora, com as luzes acesas, a forma retangular das paredes era bem nítida. Evidentemente, aquele túnel fora projetado e supervisionado por um engenheiro.

Ele voltou a olhar para o chão. Vendo a água correr, tentou calcular a quantos metros de profundidade estava do nível original do rio.

— Quase três metros — estimou. — Não admira que a pressão quase tenha me esmagado... — ele parou de falar quando um fragmento de forma incomum prendeu-se em seus pés e lhe chamou a atenção. Então pegou uma lâmpada para examiná-lo de perto. Esfregou-o entre os dedos para limpá-lo e começou a rir.

Voltou correndo para a boca do túnel e gritou:

— Royan! — Ele brandia triunfalmente o fragmento no ar. — O que acha disto, hem?

Ela estava sentada sobre a barragem e esticou-se para pegar o objeto da mão dele.

— Oh, minha Nossa Senhora! Onde encontrou isso, Nicky?

— Caído no chão. Bem ali na entrada, onde esteve nos últimos quatro mil anos. No lugar onde um operário de Taita o deixou cair e se quebrou, provavelmente quando dava um gole de vinho escondido do capataz.

Royan aproximou o fragmento de cerâmica de uma lâmpada.

— Você está certo, Nicky — ela exclamou. — É um pedaço de jarro de vinho. Veja o pescoço e a boca curva. Mas se houvesse alguma dúvida, o que não há, a marca preta da queima ao redor do gargalo o situa perfeitamente do nosso período. Não é anterior a 2000 a.C.

Com o fragmento na mão, Royan saltou para a lama e abraçou-o pelo pescoço.

— Mais uma prova confirmatória, Nicky. Estamos na pista de Taita. Será que eles não conseguem limpar mais depressa? Estamos nos calcanhares do velho patife.

Numa mudança de turno, um grito ecoou na boca do túnel e Nicholas voltou correndo para o rochedo.

— O que foi, Hansith? — perguntou em árabe ao monge capataz. — Por que está gritando?

— Conseguimos passar, efêndi — Hansith ria, com os dentes brancos brilhando no rosto negro e enlameado. Nicholas abriu caminho entre os homens. Eles haviam erguido uma grande pedra redonda e sob ela deram com uma passagem. Nicholas enfiou uma lâmpada por esse buraco na parede, mas conseguiu ver pouco além de um espaço escuro e vazio.

Afastando-se, Nicholas bateu nas costas do monge.

— Bom trabalho, Hansith. Um dólar de bônus para cada homem do grupo. Continuem trabalhando! Tirem todos os detritos. — Mas o trabalho não era tão fácil. Foram necessários mais dois rodízios para limpar completamente o que restava da extenuante montanha de entulho e pedra quebrada. Só então Nicholas e Royan puderam se aproximar da entrada da caverna no final do túnel.

— O que aconteceu aqui? O que teria provocado isso? — Royan pareceu confusa quando Nicholas apontou a lanterna para o espaço vazio.

— Acho que houve um desabamento. Provavelmente devido a uma falha no estrato de rocha que passa por aqui e aqui. — Ele apanhou fragmentos do teto da caverna.

— Você acha que a água que entra pelo buraco provocou a erosão? — Royan perguntou.

— Eu diria que sim. — Nicholas virou a lanterna para baixo. — O piso também foi afetado.

A rocha havia cedido na frente deles, fazendo um profundo buraco. Três metros abaixo o buraco estava cheio de água, formando um grande poço circular com paredes de pedra verticais. Acima deles, o teto desabara e formava um domo de pedra alto e irregular; o outro lado do poço estava imerso em sombras, cerca de 30 metros à frente deles.

Aparentemente não havia jeito de circular o obstáculo sem entrar na água. Nicholas gritou para Hansith trazer uma vara comprida de bambu. A vara tinha 10 metros de comprimento, e tiveram que manobrá-la para descer pelo túnel. Nicholas sondou a profundidade do poço com o bambu, enfiando-o na água o máximo possível.

— Não tem fundo. — Ele balançou a cabeça. — Sabe o que acho? — Ele tirou a vara e entregou-a a Hansith.

— Diga — Royan pediu.

— Acho que é um túnel natural que leva a água ao outro lado das montanhas e volta à superfície na fonte das borboletas. O rio cavou seu próprio caminho.

— Então, por que não drenou? — Royan olhava desconfiada para o poço.

— A inclinação na entrada, provavelmente. A água fica presa aqui, como na cuba de um lavatório.

Ele passou o facho da lanterna pela superfície da água, e Royan exclamou horrorizada quando uma enguia gigantesca subiu à tona, atraída pela luz:

— Criaturas nojentas! — Ela recuou involuntariamente. — O rio deve estar infestado delas.

A longa forma escura deu uma volta rápida pelo poço e desapareceu nas profundezas da mesma forma que havia surgido.

— Você tem razão, uma parte do túnel de Taita desabou; deve continuar do outro lado. — Ela apontou para a frente e Nicholas ergueu a lanterna para iluminar.

— Veja, Nicky! — ela gritou. — Lá está.

Uma grande boca retangular abria-se do outro lado do poço.

— Como vamos atravessar? — ela estava desconsolada.

— Não vai ser muito fácil. Maldição! Isso vai nos tomar alguns dias que não podíamos perder. Vamos ter de construir uma espécie de ponte por cima.

— Que tipo de ponte?

— Traga Sapper aqui. Isso é do departamento dele.

Sapper parou à beira do ralo e olhou para o lado mais distante.

— Pontões — ele resmungou. — Quantos daqueles botes infláveis você escondeu?

— Esqueça, Sapper — Nicholas balançou a cabeça. — Você não vai pôr essas mãos sujas nos meus botes.

— Como quiser — Ele abriu as mãos resignado. — Seria mais fácil e mais rápido com eles, ancorar um bote no meio e construir uma passarela por cima. Preciso de algo que flutue...

Nicholas estalou os dedos.

— Baobá! Vai funcionar perfeitamente. Quando seca, a madeira do baobá é leve como balsa. Flutua tão bem quanto meus botes infláveis.

— Há muito baobá nessas montanhas — Sapper concordou. — Todas as árvores deste vale parecem ser baobás.

300 metros do topo do penhasco havia um enorme espécime de Adansonia digitata. Sua casca lisa lembrava a pele dos grandes répteis do Período Jurássico. O tronco era imenso — vinte homens de braços abertos não conseguiriam circundá-lo. Os galhos superiores, lisos e retorcidos, pareciam mortos há centenas de anos. Somente grossas vagens aveludadas eram a prova de que ainda viviam; ficavam penduradas dos galhos mais altos e ao abrir-se espalhavam sementes negras revestidas por uma grossa camada branca de creme de tártaro.

— Os zulus dizem que Nkulu Kulu, o Grande Espírito, plantou o baobá de ponta-cabeça, com as raízes para cima, como punição — Nicholas contou a Royan sob a imensa copa esgalhada.

— Por que será? — ela quis saber. — O que terá feito de tão grave o pobre baobá?

— Vangloriava-se de ser a maior e mais grossa árvore da floresta então Nkulu Kulu decidiu dar-lhe uma lição de humildade.

Um galho gigantesco havia-se quebrado sob o próprio peso e estava caído no chão sob o tronco. A madeira era branca e fibrosa como cortiça. Sob a direção de Nicholas, os homens o cortaram em pedaços que pudessem ser transportados. Depois que todos voltaram ao poço, Sapper amarrou os troncos e atravessou-os sobre a água para formar uma base elevada. Prendeu as duas extremidades nas pedras e, por cima, colocou uma passarela de varas de bambu. A ponte de troncos de baobá flutuava na água, e, embora balançasse muito, suportava facilmente o peso de dezenas de homens.

Nicholas foi o primeiro a cruzar para o outro lado. Apoiou uma escada rústica na parede vertical do poço e subiu até a boca do túnel. Royan veio logo atrás.

Os dois ficaram parados na entrada do túnel vertical; Nicholas iluminou-o com sua lanterna e notou que o tipo da construção havia mudado. Essa parte não estava tão danificada nem sofrera tanta erosão pela força da água. O fluxo principal da água devia ter escoado pelo ralo. As dimensões eram as mesmas, 3 metros de largura por 2 de altura, mas a forma retangular era mais precisa; embora as paredes e o teto estivessem em estado bruto, como numa mina, as marcas das ferramentas eram claramente visíveis. O piso do túnel era grosseiramente pavimentado com lajes de pedra.

Esse túnel também ficava submerso em toda a sua extensão, pois se situava abaixo do nível natural do rio antes de ser represado. O piso estava molhado e coberto de limo, que ainda não tivera tempo de secar. O teto e as paredes, também úmidos, faziam com que o interior fosse frio, cheirando a lama e a putrefação.

Eles esperaram que Sapper esticasse os fios para instalar lâmpadas nesse túnel. Uma vez acesas, imediatamente eles perceberam que, na frente, a passagem começava a subir num ângulo de mais ou menos 20 graus.

— Vê-se bem que o velho Taita passou por aqui. Ele nos fez descer muito abaixo do nível do rio e inundou o túnel para que ninguém pudesse atravessá-lo a nado. Agora está subindo novamente — Nicholas mostrou a Royan. Eles andavam lentamente pelo túnel ascendente. Nicholas contava os passos dados.

— Cento e oito, cento e nove, cento e dez. — Nesse ponto o nível da água era bem baixo, o que se via claramente pela marca nas paredes do túnel. O piso também estava seco e não mais escorregadio. Cinqüenta passos mais e eles passaram pelo nível de inundação do rio, também visível no piso e nas paredes. Além dali, o túnel não ficava mais submerso, e as paredes permaneciam nas mesmas condições em que os escravos egípcios as haviam deixado há milhares de anos. As marcas dos cinzéis de bronze eram nítidas como se tivessem sido feitas no dia anterior.

Apenas 3 metros além do ponto máximo alcançado pelas águas, havia uma plataforma de pedra. Aí o piso se elevava e o túnel fazia uma curva fechada.

— Vamos parar um pouco para pensar nisto como uma obra de engenharia. — Nicholas pegou o braço de Royan e mostrou o túnel que ficara para trás. — Taita colocou esta plataforma sobre a qual estamos exatamente acima do nível mais alto do rio. Como conseguiu calcular com tamanha precisão? Não tinha um nível telescópico, apenas instrumentos de medida rudimentares. Mesmo assim, calculou com precisão. Realmente, é um trabalho e tanto!

— Bem, ele diz repetidamente nos pergaminhos que é um gênio. Acho que podemos acreditar nisso agora. — Ela soltou o braço da mão de Nicholas. — Vamos continuar. Preciso ver o que há depois dessa curva.

Lado a lado, eles entraram na curva de 180 graus, e Nicholas ergueu a lâmpada no alto. Com o caminho iluminado, Royan soltou uma exclamação e segurou a mão dele. Os dois pararam de andar.

Taita tinha desenhado a curva numa rampa ascendente para causar um efeito dramático. A parte mais baixa, que haviam acabado de cruzar, era de construção rudimentar, com paredes irregulares e nuas, o teto áspero e rachado. Taita calculara tão bem os níveis que sabia que, abaixo, o túnel ficaria submerso e seria danificado pela água. Não fizera nenhuma questão de embelezá-lo.

Surgiu diante deles uma larga escada. O ângulo era tal que, de onde eles estavam, sobre a plataforma, não se via o topo. Cada degrau ocupava toda a largura do túnel. O revestimento era de lâminas de gnaisse colorido, polidas e tão bem assentadas que quase se viam as juntas. O teto era três vezes mais alto que o restante do túnel formando um domo de proporções perfeitas. As paredes e o teto curvo eram revestidos com blocos de granito azul, assentados uns contra os outros com precisão e simetria maravilhosas. Era uma obra-prima de artesanato, majestosa e portentosa. Esse vestíbulo para o desconhecido era uma promessa e, ao mesmo tempo, uma ameaça. Sua simplicidade e falta de ornamentos tornavam-no ainda mais impressionante.

Royan segurou a mão de Nicholas e, juntos, subiram o primeiro degrau. Estava coberto por uma fina camada de poeira, macia e branca como talco. A poeira subia em torvelinhos e pequenos tufos ao redor de suas pernas e voltava a assentar quando passavam. Suavizava o brilho agressivo da lâmpada elétrica que Nicholas carregava no alto.

À medida que subiram, puderam enxergar o topo da escada. Royan cravou as unhas na palma da mão de Nicholas ao ver o que surgiu à sua frente. A escada terminava em outra plataforma, diante da qual havia uma passagem retangular. Eles subiram na plataforma e pararam diante da passagem. Nenhum dos dois teve palavras para comentar aquele momento supremo. O silêncio durou uma eternidade e as mãos apertaram-se com força.

Por fim, Nicholas olhou para Royan. Viu sua própria emoção espelhada no rosto dela, cujos olhos brilhavam numa paixão incandescente. Não havia mais ninguém no mundo com quem ele desejasse compartilhar aquele instante. Desejou que durasse para sempre.

Royan virou a cabeça para ele. Olharam-se solenemente, no fundo dos olhos. Ambos sabiam que era um momento importantíssimo na vida de cada um, que jamais se repetiria. Ela soltou lentamente a mão de Nicholas e voltou-se para a passagem. Era revestida de barro branco do rio e adquirira a tonalidade do marfim. Não havia qualquer rachadura em toda a superfície, que se mostrava lisa e imaculada como a pele de uma bela virgem.

Royan olhou avidamente para os dois selos gravados no barro. O de cima tinha a forma de um cartucho real: o nó retangular encimado pelo escaravelho, o besouro de chifres que representava o grande ciclo da eternidade.

Os lábios de Royan formaram as palavras que lia nos hieroglifos, mas não emitiam som. "O Todo-Poderoso. O Divino. Soberano do Baixo e Alto Reinos do Egito. Filho do deus Hórus. Bem-amado de Osíris e de Isis. Que Mamose viva para sempre!"

Embaixo do magnífico selo real havia um desenho menor e mais simples, de um falcão com a asa quebrada dobrada sobre o peito, e a legenda: "Eu, Taita, o escravo, obedeci às suas ordens, Divino Faraó". Por trás do falcão havia uma coluna de hieroglifos com a implacável advertência: "Estranho! Os deuses estão vendo. Não perturbe o repouso eterno do rei!"

Romper os selos na passagem era um ato solene, e apesar de faltar tão pouco tempo para a temporada de chuvas, nenhum dos dois queria fazer isso levianamente. Estavam decididos a manter um registro constante de tudo o que descobrissem, e a causar o mínimo de danos possível durante a exploração.

Passaram um dos preciosos dias que lhes restavam preparando-se para entrar na tumba. Naturalmente, a principal preocupação de Nicholas era a segurança na área do túmulo. Pediu a Mek Nimmur que colocasse guardas armados na beira do poço e interditou o acesso além desse ponto. Somente Nicholas, Royan, Sapper, Mek, Tessay e quatro monges escolhidos tinham permissão para cruzar a ponte.

Hansith Sherif, que se destacara repetidamente durante a limpeza da parte inferior do túnel, era um homem forte, bem-disposto e inteligente, e tornara-se o primeiro assistente de Nicholas. Foi Hansith quem armou os tripés e preparou as câmeras para Nicholas fotografar o túnel e a passagem selada. Ele usou três rolos de filmes de alta sensibilidade para garantir o registro completo dos selos inteiros e das paredes da passagem. Somente quando deu esse trabalho por terminado permitiu que Hansith e mais três monges trouxessem as ferramentas necessárias para atravessá-la.

Sapper transferiu o gerador até o poço para diminuir a voltagem perdida pela distância que a corrente percorria através do cabo. Então instalou refletores na plataforma sobre a escada e focalizou-os na superfície de barro branco do portão.

Reunidos sob o umbral da passagem, todos estavam cabisbaixos. A tumba tinha 4 000 anos de idade, mas ainda assim o que estavam prestes a fazer era uma profanação. Royan traduzira para Sapper, Mek e Tessay a advertência gravada em hieroglifos no selo, e nenhum deles estava disposto a brincar com isso.

Nicholas marcou o quadrado que pretendia abrir no revestimento de barro. Era largo o suficiente para permitir o acesso e incluir o cartucho real e o falcão mutilado de Taita. Ele pretendia retirá-los numa só peça e preservá-los intatos. Já os via expostos em lugar de destaque no museu de Quenton Park.

Nicholas começou pelo canto direito superior da passagem. Primeiro usou um furador longo, de ponta afiada, como sonda. Pressionou e girou a ponta através do reboco para saber exatamente o que havia por baixo. Logo descobriu que o barro fora posto sobre ripas de junco sutilmente trançadas.

— Isso vai facilitar muito — disse a Royan. — A esteira de junco ajudará a segurar o reboco, evitando que se quebre.

Ele continuou enfiando a ponta do furador e de repente não senti mais resistência; a lâmina atravessou inteira.

— Quinze centímetros — disse, medindo a espessura da pared com a lâmina. — Taita nunca economiza, não? Isso deve ter dado um trabalho danado.

Ainda com o furador, Nicholas perfurou os quatro ângulos da abertura que pretendia cortar. Então afastou-se e fez sinal para que Hansith pegasse uma verruma de 1 centímetro de espessura para alargá-los Era uma ferramenta que os pescadores europeus usavam para cortar o gelo na superfície dos lagos no inverno.

Tão logo a verruma atravessou a parede, Nicholas afastou Hansith e espiou para dentro. Do outro lado estava completamente escuro, mas um sopro de ar envelhecido passou pelo buraco. Era um cheiro seco morto e austero, o cheiro de épocas muito antigas.

— O que está vendo? — perguntou Royan, atrás dele.

— Luz! Tragam luz! — Nicholas ordenou, e quando Sapper lhe passou a lâmpada enfiou-a pela abertura.

— Diga logo! — Royan saltava a seu lado com impaciência. — O que está vendo agora?

— Cores — ele murmurou. — As cores mais maravilhosas e indescritíveis. — Nicholas afastou-se e pegou-a pela cintura, erguendo-a para que pudesse ver.

— Lindo! — ela gritou. — Que coisa maravilhosa!

apper instalou um pesado ventilador para fazer circular o ar no interior do túnel, enquanto Nicholas preparava a serra elétrica. Quando terminou, deu a Royan óculos de proteção e máscara contra poeira, e a ajudou a ajustá-la. Fez com que ela também usasse um par de tampões de cera nos ouvidos.

Antes de ligar a serra, mandou que os outros voltassem para o ralo e ficassem sobre a passarela. Naquele espaço confinado, a descarga de fumaça que sairia da serra e a poeira, além do barulho do motor, seriam excessivos, e Nicholas queria que somente Royan estivesse presente no momento em que entrassem.

Uma vez sozinhos, Nicholas ligou o ventilador na velocidade máxima, colocou máscara, óculos e tampões de ouvido. Ligou o motor da serra, que ganhou vida expelindo uma nuvem de fumaça azulada.

Nicholas pressionou o disco giratório contra as perfurações que fizera no reboco. A grossa camada de barro e a manta de bambu foram atravessadas com facilidade. Tomando muito cuidado, ele percorreu as marcas com a serra.

Uma nuvem de fragmentos do reboco branco ergueu-se no ar. Em poucos segundos não se via quase nada. Nicholas continuou cortando,

lado direito, a parte inferior, depois o lado esquerdo. Por fim, cortou a parte de cima; o pedaço de parede começou a tombar para a frente

sob seu próprio peso. Ele desligou o motor e pôs a serra de lado.

Royan correu para ajudá-lo e, em meio à fumaça e à poeira, seguraram juntos o quadrado de reboco, impedindo que caísse ao chão e se quebrasse em mil pedaços. Delicadamente, retiraram-no da abertura e, com os selos ainda intatos, puseram-no encostado à parede da plataforma.

A abertura era um quadrado escuro. Nicholas entrou com o refletor e instalou-o, mas ainda havia muita poeira lá dentro, escondendo tudo sob uma densa nuvem que nem as lâmpadas conseguiam perfurar.

Ele não tentou avançar; em vez disso, voltou imediatamente para ajudar Royan a passar pela abertura quadrada. Reconhecia que ela tinha o direito de participar de cada momento da descoberta. Do outro lado da parede, eles ficaram em silêncio, esperando que o ventilador movimentasse o ar. A medida que a poeira se dissipou, a primeira coisa que notaram foi onde estavam pisando.

O piso não era mais de lajes de pedra, mas revestido de ladrilhos de ágata amarela polidos e muito bem assentados. Era como uma peça única de um maravilhoso vidro opaco, coberta por uma fina camada de poeira. Onde os pés deles tinham retirado a poeira, a ágata brilhava à luz do refletor.

Quando a poeira baixou, um milagroso esplendor de cores e formas surgiu aos poucos através da névoa. Royan tirou a máscara do rosto e deixou-a cair ao chão. Nicholas fez o mesmo e respirou o ar estagnado, que não se movimentava havia milhares de anos e tinha o odor de muita antigüidade, do bolor das bandagens de linho de um cadáver embalsamado.

O miasma desapareceu e diante deles abriu-se um longo corredor em linha reta, que estivera oculto pela escuridão. Nicholas voltou à passagem na porta selada e pegou do outro lado um projetor de luz com suporte. Rapidamente ajustou-o de modo a iluminar todo o corredor.

Eles começaram a caminhar com as imagens de antigos deuses pairando a seu redor. Das paredes, eles observavam os intrusos e se de-penduravam do teto para observá-los com seus olhos grandes e hostis. Nicholas e Royan passavam por eles lentamente. Seus passos sobre os ladrilhos de ágata eram abafados pela fina camada de poeira; o pó que permanecia no ar difundia a luz num véu luminoso de uma qualidade onírica e etérea.

Em cada centímetro das paredes e do teto havia inscrições. Eram citações de todos os escritos místicos, do Livro das Respirações, do Livro das Torres e do Livro da Sabedoria. Outros blocos de hieroglifos reproduziam a história do Faraó Mamose na terra e exaltavam suas virtudes que o tornaram amado pelos deuses.

Mais adiante, chegaram ao primeiro dos oito santuários dispostos na parede da extensa galeria funerária. O primeiro era o de Osíris. A câmara circular era decorada com textos em louvor ao deus; a estatueta de Osíris com seu alto coçar de penas estava no nicho. Os olhos de ônix e cristal de rocha os fitavam de modo tão implacável que Royan estremeceu. Nicholas estendeu a mão e tocou os pés do deus. Disse uma única palavra:

— Ouro!

Então ergueu a cabeça para o mural que revestia a parede e metade do domo acima e em torno do santuário. Era outra figura gigantesca do pai Osíris, deus do Mundo Subterrâneo, com seu rosto verde e a barba falsa, os braços cruzados sobre o peito segurando o açoite e o gancho, com seu coçar de penas e a cobra ereta na fronte. Eles o contemplaram com um sentimento de temor. Sob a luz difusa, o deus parecia ganhar vida.

Não se demoraram no primeiro santuário, porque a galeria prosseguia em linha reta como uma seta lançada contra o alvo. O santuário seguinte era dedicado à deusa ísis. A imagem dourada estava no trono que a simbolizava. O infante Hórus sugava-lhe o seio. Os olhos eram de marfim e lápis-lazúli.

As paredes do nicho também eram forradas de murais. Ali estava ela, a mãe, com seus grandes olhos delineados com khol, negros como a noite, com o disco solar e os chifres da vaca sagrada sobre a cabeça. Em toda a volta, símbolos hieroglíficos recobriam a parede, tão brilhantes que reluziam como uma nuvem de vaga-lumes; é que ela possuía centenas de nomes. Dentre eles, Ast, Net e Bast. Era também Ptah e Seker, Mesekert e Rennut. Todos esses nomes significavam poder, pois sua santidade e sua aura de benevolência haviam sobrevivido quando a maioria dos antigos deuses foram esquecidos por falta de adoradores que repetissem e mantivessem vivos seus nomes místicos.

Na antiga Bizâncio e, mais tarde, no Egito cristão, as virtudes e os atributos da antiga deusa foram transferidos para a Virgem Maria. A imagem da mãe amamentando o filho Hórus foi perpetuada nos ícones da Madona com seu filho. Por isso Royan respeitava a deusa em todas suas entidades; o sangue dos antepassados que corria em suas veias conhecia tanto ísis quanto Maria; heresia e verdade estavam inextrincavelmente fundidas em seu coração, provocando nela um misto de culpa e exaltação religiosa.

No santuário seguinte havia uma imagem dourada de Hórus, com a cabeça de falcão, completando a trindade sagrada. Na mão direita ele segurava o arco de guerra e na esquerda o ankh, pois a ele cabia decidir sobre vida e morte. Seus olhos eram de cornalina vermelha.

Imagens de outras entidades circundavam a estátua: Hórus, o infante, sugando o seio de ísis; Hórus, como o divino jovem Harpócrates, altivo, ágil e belo, tocando o queixo com o dedo num gesto ritual, caminhando de sandálias e saiote curto engomado. Depois Hórus, o cabeça de falcão, às vezes no corpo de um leão, outras no de um jovem guerreiro, usando a grande coroa do sul e do norte unificados. Embaixo dele havia uma inscrição: "Grande Deus e Senhor do Paraíso, de poder manifesto, Soberano dentre todos os deuses, cuja força venceu os adversários de seu divino pai, Osíris".

No quarto santuário estava Set, o arquidemônio, deus da violência e da discórdia. Seu corpo era de ouro, mas a cabeça era a de uma hiena negra.

No quinto santuário estava o deus da morte e dos cemitérios, Anúbis, o cabeça de chacal. Era quem estava presente nos embalsamamentos e cujo dever era examinar o fiel da grande balança quando o coração do morto era pesado. Se o ponteiro ficasse exatamente na horizontal, o morto era declarado digno; mas se pendesse em sua direção, Anúbis atirava o coração aos crocodilos para que o devorassem.

O sexto santuário era dedicado ao deus da escrita, Thot. Tinha a cabeça de um íbis sagrado e segurava o estilo. No sétimo santuário estava a vaca sagrada Hathor, sobre as quatro patas, com seu corpo malhado de branco e preto, e o rosto benignamente humano mas com grandes orelhas em forma de cometa. O oitavo santuário era o maior e mais esplêndido, porque pertencia a Amon-Rá, pai de toda a criação. Ele era o sol, um imenso disco dourado do qual emanavam raios cintilantes.

Nicholas se deteve e admirou a extensa galeria. Essas oito estátuas sagradas formavam um tesouro equivalente a tudo o que Howard Carter e Lorde Carnarvon haviam descoberto na tumba de Tutancâmon. Reconhecia sinceramente que era grosseiro pensar em valores monetários mas a verdade é que uma só daquelas extraordinárias obras de arte bastaria para liquidar muitas vezes todas as suas dívidas. Ele afastou esse pensamento e voltou-se novamente para a espaçosa câmara no final da galeria.

— A câmara funerária — Royan murmurou com temor. — A cripta A medida que se aproximavam da câmara, as sombras iam se retraindo, como o fantasma do faraó morto fugindo para seu último local de repouso. As paredes da câmara reluziam com murais ainda mais magníficos. Embora os dois intrusos já tivessem contemplado tantos outros, seus olhos ainda não haviam visto tal profusão.

Uma única figura alongada erguia-se na parede mais distante e continuava pelo teto. Era o corpo flexível e sinuoso da deusa Nut, dando à luz o sol. Raios dourados emanavam de seu útero aberto, derramando-se sobre o sarcófago do faraó e dotando o rei morto de uma nova vida.

O sarcófago real, no centro da câmara, era uma grande urna funerária talhada num sólido bloco de granito. Quantos escravos não teriam sido necessários para trazer esse bloco de pedra pelas passagens subterrâneas?, perguntava-se Nicholas. Podia ver os corpos suados luzindo sob as tochas e ouvir o rangido dos rolos de madeira sob o imenso peso.

Quando Nicholas olhou dentro do esquife, sentiu um golpe no peito ao pressentir que estava vazio. A maciça tampa de granito fora erguida de seu encaixe e fora atirada de lado com tamanha violência que se partira ao meio e estava caída em dois pedaços, ao lado do caixão.

Eles avançaram lentamente, com o gosto amargo da decepção misturando-se à poeira na língua, e olharam para o interior do sarcófago aberto. Continha somente os fragmentos de quatro vasos de alabastro, usados para guardar os intestinos, o fígado e outros órgãos internos do rei. As tampas quebradas eram decoradas com cabeças de deuses e criaturas fabulosas de além-túmulo.

— Vazio!... — Royan murmurou. — O corpo do rei desapareceu.

Nos dias que se seguiram, enquanto fotografavam os murais e embalavam as estátuas dos oito deuses e deusas da galeria fúnebre, Royan e Nicholas discutiram o desaparecimento da múmia real de seu sarcófago.

— Os selos da entrada da tumba estavam intatos — Royan repetia sem se cansar.

— Provavelmente há uma explicação para isso — Nicholas argumentou. — O próprio Taita deve ter removido o tesouro e o corpo. Muitas vezes, ao longo do sétimo papiro, ele lamenta o desperdício de tal tesouro. Observa que poderia ser mais bem usado para proteger e alimentar a nação e seu povo.

Não, isso não tem sentido — rebateu Royan —, chegar ao ponto

de represar o rio, abrir um túnel sob o poço e construir um túmulo tão elaborado para depois remover e destruir a múmia do rei. Taita sempre foi muito lógico. À sua maneira reverenciava os deuses do Egito. Isso fica claro em todos os seus escritos. Ele jamais zombaria de tradições religiosas nas quais tanto acreditava. Alguma coisa nesse túmulo não soa bem... o misterioso e quase impossível desaparecimento do corpo, até mesmo as pinturas e inscrições em suas paredes.

— Concordo com você sobre a múmia desaparecida, mas o que há de ilógico nas decorações? — Nicholas quis saber.

— Bem, em primeiro lugar, as pinturas. — Ela mostrou a imagem de ísis. — São lindas, trabalho de um artista clássico competente, mas são simplificadas e estilizadas quanto à forma e à escolha das cores. São figuras rígidas, elas não se movimentam nem dançam. Falta-lhes o brilho da genialidade que encontramos na tumba da rainha Lostris, onde estavam escondidos os pergaminhos originais e os vasos de alabastro.

Nicholas contemplou pensativamente os murais.

— Entendo o que quer dizer. Os murais do túmulo de Tanus no mosteiro eram bem diferentes destes.

— Exatamente! Aqueles eram obras de Taita. Estes não. Ele contratou alguém para fazê-los.

— E nos escritos, o que é que você não gosta?

— Você já ouviu falar de algum túmulo que não tenha trechos do Livro dos Mortos inscritos nas paredes, ou que não descreva a jornada do morto pelas sete torres para alcançar o paraíso?

Nicholas estava espantado; jamais pensara nisso. Ele não respondeu e voltou sozinho para a longa galeria com a desculpa de supervisionar a embalagem das estátuas sagradas, mas na verdade queria tempo para pensar no que acabara de ouvir.

Antes de sair da Inglaterra, ele cuidara de que todo o equipamento mais frágil que fosse lançado do avião fosse embalado em baús metálicos reforçados. Todos os baús tinham uma capa de borracha impermeável e fortes correias para serem carregados. Os conteúdos originais foram revestidos com embalagens de poliestireno. Quando saíssem da Etiópia, o equipamento seria abandonado, mas os baús e o material de embalagem seriam cuidadosamente preservados para transportar os tesouros que encontrassem no túmulo.

Seis estátuas sagradas couberam perfeitamente nos baús, mas as imagens da vaca Hathor e do satânico Seth eram muito grandes. Entretanto, Nicholas descobriu que tinham sido talhadas em partes separadas. As cabeças eram destacáveis, e as patas de Hathor fixavam-se ao corpo com pinos de madeira que já estava apodrecida. Separando as partes, as estátuas grandes também couberam nas caixas de metal.

Nicholas ajudou Hansith a acondicionar a feroz cabeça de ébano e resina negra de Seth num baú. Depois voltou até Royan, que trabalhava nas inscrições da parede diante do sarcófago vazio.

— Tudo bem, eu concordo. Você tem razão sobre a falta de citações do Livro dos Mortos. É realmente estranho. Mas o que podemos fazer além de aceitar isso como um mistério que jamais poderemos revelar?

— Nicky, há mais alguma coisa aqui. Isso não é tudo. Sinto em cada fibra de meu ser. Estamos esquecendo alguma coisa.

— Quem sou eu, um mero homem, para questionar a validade do instinto feminino?

— Pare de bancar o superior — ela contra-atacou. — Quanto tempo tenho para trabalhar nas inscrições do monólito?

— Uma ou duas semanas no máximo. Preciso marcar um encontro com Jannie. Temos de estar no campo de pouso de Roseires quando ele vier nos recolher. Não podemos faltar.

— Meu Deus... Achei que isso já estivesse combinado há muito tempo. Como vai entrar em contato com Jannie daqui?

— É muito fácil. — Nicholas riu. — Há um telefone público no correio de Debra Maryam. Tessay pode circular livremente em Gojam. Ela subirá o escarpamento com uma escolta de monges e telefonará para Geoffrey Tennant, na Embaixada britânica em Adis. Ele transmitirá a mensagem a Jannie.

— Tessay faria isso?

Ele fez que sim com a cabeça.

— Ela vai a Debra Maryam amanhã. Jannie precisa ter o máximo de tempo possível para preparar-se para voar de Malta. Temos de estar bem afinados para chegarmos todos juntos à pista de pouso. Teremos muitos problemas se um grupo ficar em Roseires esperando que o outro chegue.

— Na madrugada de primeiro de abril — Nicholas passou a mensagem a Tessay. — Diga a Jannie que estaremos lá no Dia da Mentira. É fácil de lembrar.

Eles ficaram olhando Tessay tomar a trilha com a escolta de monges, e Royan perguntou a Mek Nimmur:

— Você não se preocupa que ela vá sozinha?

— Ela é muito esperta e muito conhecida e admirada em Gojam. gstá segura como qualquer pessoa nesta terra perigosa. — Mek olhava a figura esguia de Tessay, com seu shamtna e a calça jodhpur desaparecendo à distância. — Eu gostaria de ir junto, mas...

De repente Royan exclamou:

— Esqueci de pedir uma coisa a ela! — E saiu correndo pela trilha chamando Tessay. Mek e Tessay ficaram onde estavam.

— Tessay! Espere! Volte!

Ela se virou e esperou Royan alcançá-la. Enquanto conversavam, Nicholas se desinteressou e virou-se para examinar a silhueta do escarpamento ao longe. Com uma desagradável sensação no estômago, viu as nuvens negras no alto das montanhas. As chuvas aproximavam-se com rapidez. Ele se perguntou por quanto tempo ainda demorariam a chegar e se eles não seriam arrastados da garganta pelas enchentes.

Olhou de volta para a trilha no momento em que Royan passava alguma coisa para Tessay, que assentiu com a cabeça e a enfiou no bolso da calça. Por fim, as duas se abraçaram e Tessay afastou-se. Royan ficou parada na trilha, vendo a outra fazer a curva e desaparecer. Em seguida voltou devagar.

— Do que se trata? — Nicholas quis saber, e ela sorriu misteriosamente.

— Segredo de moças. Existem certas coisas que é melhor os homens não saberem. — Mas quando Nicholas ergueu uma sobrancelha inquisidoramente, ela cedeu. — Pedi a Tessay que desse um recado à minha mãe através de Geoffrey Tennant. Apenas para lhe dizer que estou bem. Não quero que se preocupe.

Quando desceram novamente a plataforma na face do penhasco, até o poço de Taita, Nicholas achou estranho que Royan já tivesse o número do telefone da mãe escrito num papel para dar a Tessay, e perguntou-se por que a súbita pressa de mandar notícias.

"Seria isso mesmo?", duvidou. "Vou tentar saber de Tessay quando ela voltar."

Royan preferiu acampar dentro do próprio túmulo, para ficar no meio das inscrições em que trabalhava. Mas Nicholas insistiu em que dormissem ao ar livre.

— O cheiro de mofo na tumba não é bom para a saúde — disse. — O mal das cavernas é um perigo real nesses lugares fechados. Dizem que algumas pessoas que trabalharam para Carter na tumba de Tutancâmon morreram disso.

— Só há fungos em cavernas quando existem morcegos — Royan lembrou. — Não há morcegos lá dentro. Taita fechou muito bem o túmulo.

— Por favor, ouça o que estou dizendo — ele pediu. — Você não pode ficar trabalhando lá dentro dias seguidos. Quero que saia pelo menos por algumas horas.

Ela deu de ombros.

— Faço isso como um favor especial a você — concordou, mas quando chegaram à plataforma ela apenas olhou para o local onde dormiriam e seguiu para o túnel.

Eles haviam convertido em oficina a plataforma no alto da escada, diante da entrada da tumba. Royan espalhou desenhos, fotos e livros de referência numa mesa rústica que Hansith fizera para ela. Sapper colocara um refletor sobre a mesa para que ela tivesse boa iluminação para trabalhar. Encostados a uma parede da plataforma estavam os baús com as oito estátuas sagradas. Nicholas fizera questão de guardar suas descobertas num local seguro e adequado. Os homens de Mek ficavam de guarda 24 horas na passarela sobre o poço.

Enquanto Nicholas concluía as fotos das paredes da galeria e da câmara vazia, Royan passava horas em sua mesa, em meio aos papéis, anotando e fazendo cálculos num caderno. De vez em quando levantava-se da mesa e entrava na galeria para estudar um detalhe das paredes decoradas.

Sempre que isso acontecia, Nicholas afastava a cabeça da câmera montada no tripé e a olhava com um misto de orgulho e resignação. Ela ficava tão concentrada que se esquecia completamente dele e de todo mundo. Nicholas jamais a vira dessa maneira; sua capacidade de concentração deixava-o impressionado.

Depois de quinze horas ininterruptas de trabalho, ele foi buscá-la, sob protestos, para lhe oferecer uma comida quente. Depois de comer, ele arrastou Royan para o abrigo e insistiu que se deitasse um pouco no colchão inflável.

— Você vai dormir agora, Royan — ordenou.

Nicholas acordou quando ela saiu sorrateiramente do abrigo ao lado do seu e seguiu para a entrada do túnel. Olhou o relógio e não acreditou que tivesse dormido apenas três horas e meia. Barbeou-se rapidamente e engoliu um pedaço de injeta torrado e uma xícara de chá antes de segui-la.

Encontrou-a na grande galeria, diante do santuário de Osíris. Estava tão concentrada que não o ouviu chegar. Olhou-o espantada quando ele tocou seu braço.

Você me assustou — disse, zangada.

O que está olhando? O que descobriu?

Nada — ela negou rapidamente, mas em seguida completou: —

Não sei, é só uma idéia...

Vamos lá! O que está havendo?

É mais fácil eu lhe mostrar. — Ela levou-o de volta à mesa e

arrumou cuidadosamente suas anotações antes de falar.

— O que tenho feito nesses últimos dias é repassar o material do monólito, selecionando todas as citações que reconheço de livros clássicos, como o Livro das Respirações, o Livro das Torres e o Livro de Toth. — Ela mostrou quinze páginas repletas de sua letra miúda. — Tudo isto é material antigo, e nada é composição original de Taita. Eu as descartei por enquanto.

Ela separou o primeiro caderno e pegou outro.

— Este inteiro é sobre as quatro faces do monólito. Nada que eu identifique, mas parecem ser apenas longas listas de números e figuras. Talvez algum tipo de código? Não tenho certeza, mas tenho algumas idéias às quais voltarei mais tarde.

— Agora isto. — Ela mostrou outro livro. — Tudo isto é material novo, que não me lembro de ter lido em nenhum dos antigos clássicos. A maior parte, senão tudo, devem ser textos originais de Taita. Se ele nos deixou mais algumas chaves, acredito que estejam aqui, nestas seções.

Nicholas riu.

— Como aquelas maravilhosas citações que descrevem as partes rosadas e privadas da deusa? É a isso que você se refere?

— Sabia que não se esqueceria disso. — Royan corou levemente e evitou erguer os olhos do livro. — Veja esta citação do início da terceira face do monólito, o lado que Taita chamou de "outono". Foi a primeira coisa que me chamou a atenção.

Nicholas inclinou-se sobre a mesa e leu os hieroglifos em voz alta: "O grande deus Osíris faz o lance inicial com deferência ao protocolo dos quatro touros. Na primeira coluna ele presta pleno testemunho à imutável lei do tabuleiro". — Ele olhou para Royan. — Sim, lembro-me dessa citação. Taita refere-se ao bao, o jogo de que o velho demônio tanto gostava.

— Correto. — Royan parecia um pouco constrangida. — Você se lembra do sonho que tive no qual vi Duraid numa das câmaras do túmulo?

— Lembro. — Nicholas riu ao notar o constrangimento. — Ele lhe disse alguma coisa sobre o protocolo dos quatro touros. Vamos agora entrar pela interpretação dos sonhos?

Ela se aborreceu com a leviandade.

— O que estou tentando sugerir é que meu subconsciente andou digerindo essa citação e me deu a resposta, que me foi revelada por Duraid em sonho. Será que você não pode me levar a sério pelo menos uma vez?

— Desculpe. Conte-me de novo o que Duraid disse.

— Ele me disse: "Lembre-se do protocolo dos quatro touros. Comece pelo início".

— Não sou bom jogador de bao. O que ele quis dizer?

— As regras e sutilezas do jogo se perderam na antigüidade. Mas, como você sabe, encontramos exemplos do tabuleiro de bao entre os objetos das tumbas da décima primeira à décima sétima dinastias, e só pudemos supor que fosse uma antiga forma de xadrez. — Royan começou a rabiscar numa página em branco de seu caderno.

— O tabuleiro de madeira era disposto como um tabuleiro de xadrez: oito fileiras de casas na horizontal e oito na vertical. Assim. — Ela desenhou rapidamente com uma esferográfica. — As peças eram pedras coloridas que se moviam de modo predeterminado. Não quero entrar em detalhes, mas o protocolo dos quatro touros era uma das aberturas preferidas dos grandes mestres do calibre de Taita. Consistia em fazer sacrifícios para juntar as pedras do alto na primeira casa, de onde dominassem as importantes fileiras centrais do tabuleiro.

— Não entendo aonde você quer chegar, mas continue. Estou ouvindo.

— A primeira casa do tabuleiro. — Ela indicou o desenho como se ensinasse a uma criança. — O início. Duraid disse: "Comece pelo início". Taita diz: "O grande deus Osíris faz o lance inicial".

— Continuo sem entender. — Nicholas balançou a cabeça.

— Venha comigo. — Carregando os cadernos, ela o levou ao santuário de Osíris. — A casa de abertura. O início.

Royan olhou para o resto da galeria.

— Este é o primeiro santuário. Quantos santuários temos?

— Três para a trindade, depois Seth, Toth, Anúbis, Hathor e Rá — ele enumerou. — Oito ao todo.

— Pois é! — Ela riu. — Meu amigo sabe contar. Quantas fileiras de casas existem no tabuleiro de bao?

— Oito horizontais e oito verticais... — Nicholas parou de falar e olhou para ela. — Você acha...?

Royan não respondeu e abriu o caderno.

— Todos esses números são símbolos estranhos... não formam palavras. Não se relacionam entre si de maneira alguma, mas nenhum número da lista é maior que oito.

— Achei que tinha entendido, agora me perdi outra vez.

— Se alguém lesse as anotações de um jogo de xadrez há quatro mil anos, o que pensaria? — ela perguntou. — Não seriam apenas listas de números e símbolos estranhos a essa pessoa? Você está sendo extremamente burro, não está? Pareço estar arrancando dentes...

— Oh, meu Deus, meu Deus! — O rosto de Nicholas se iluminou. Que moça esperta! Taita está jogando bao conosco.

— E esta é a primeira torre, onde ele começa. — Ela apontou para o santuário. — É aqui que o grande Osíris faz o primeiro lance. É aqui que nós registramos seu lance inicial.

Os dois ficaram olhando para o santuário, examinando as paredes curvas e o domo, então Nicholas quebrou o silêncio:

— Apesar do risco de ser chamado de extremamente burro e ter meus dentes arrancados, posso fazer uma pergunta? Como podemos jogar um jogo cujas regras sequer conhecemos?

O Coronel Nogo exalava arrogância e prepotência quando chegou à sala de reuniões para atender ao chamado de Von Schiller. Nahoot Guddabi entrou alvoraçado atrás dele, decidido a não perder nada. Ele também procurava aparentar autoconfiança e autoridade, mas na verdade sentia que sua posição era bastante insegura e que precisava justificar-se perante o chefe.

Von Schiller estava ditando uma correspondência para Utte Kemper, mas quando eles entraram parou imediatamente e subiu em seu tablado.

— Você me prometeu que entregaria um relatório ontem — ele dirigiu-se a Nogo, ignorando Nahoot. — Já recebeu notícias de seu informante lá na garganta?

— Peço desculpas por deixá-lo esperar, Herr Von Schiller. — Nogo murchou imediatamente sob o ataque inesperado e calou-se. O alemão o assustava. — As mulheres demoraram um dia para retornar do acampamento de Harper. Essa gente não é confiável. O tempo não significa nada para eles.

— Sim, sim — Von Schiller impacientou-se. — Conheço os defeitos do seu povo e devo acrescentar que isso não o isenta de culpa, Nogo. Que notícias tem para mim?

— Harper terminou o trabalho na represa há sete dias e imediatamente deslocou o acampamento rio abaixo, para um novo local nas montanhas sobre a ravina. Ele construiu uma espécie de escada de bambu para descer à ravina. Meu informante disse que estão limpando um buraco no fundo do poço vazio...

— Um buraco? Que tipo de buraco? — Von Schiller empalideceu e o suor começou a brilhar em sua testa.

— O senhor está bem, Herr Von Schiller? — Nogo ficou alarmado Parecia que o alemão ia ter um colapso.

— Estou perfeitamente bem — berrou Von Schiller. — Que buraco era esse? Descreva-o.

— A mulher que trouxe a mensagem era uma aldeã ignorante. — Nogo não se sentia à vontade sob o interrogatório de Von Schiller. — Ela disse apenas que, quando o nível da água baixou, apareceu um buraco no fundo do rio, cheio de pedra e detritos, e que eles tiveram de limpar tudo.

— Um túnel! — Nahoot não se conteve. — Deve ser o túnel de entrada para o túmulo.

— Cale a boca! — Von Schiller voltou-se furioso para ele. — Você não tem provas que sustentem essa suposição. Deixe Nogo terminar. — Ele dirigiu-se a Nogo: — Continue, coronel. O que mais?

— A mulher disse que havia uma caverna no fundo do buraco. Falou num santuário de pedra, com desenhos nas paredes...

— Desenhos? Que desenhos?

— Ela disse que eram desenhos de santos. — Nogo fez um gesto depreciativo. — É uma ignorante. Uma estúpida...

— Santos cristãos? — Von Schiller insistiu. Nahoot interpôs-se:

— E impossível, Herr Von Schiller. Garanto que Harper encontrou o túmulo de Mamose. O senhor deve agir depressa agora.

— Não vou avisá-lo mais uma vez, imbecil — Von Schiller atacou. — Cale a boca! O que mais havia na caverna? Conte tudo o que a mulher disse.

— Desenhos e estátuas de santos. — Nogo abriu os braços. — Sinto muito, Von Schiller, ela contou isso. Sei que é absurdo, mas foi o que disse.

— Eu julgo o que é ou não é absurdo — Von Schiller cortou-o. — O que aconteceu com essas estátuas?

— Não sei, Herr Von Schiller. A mulher não disse.

O alemão desceu do tablado e começou a andar de um lado para outro pela sala, pensando em voz alta.

Herr Von Schiller... — Nahoot começou, mas o outro fez sinal para que se calasse. Por fim, parou na frente de Nogo e ficou olhando para ele.

Encontraram uma múmia, um corpo no santuário? — perguntou.

— Não sei, senhor. A mulher não disse.

— Onde está ela? — Von Schiller estava tão agitado que agarrou a gola da farda de Nogo e ergueu-se na ponta dos pés para encará-lo no mesmo nível. — Onde está essa mulher? Você a deixou ir embora? — Os perdigotos saltavam para o rosto de Nogo, que piscava e tentava se soltar, mas Von Schiller o mantinha preso.

— Não, senhor. Ela ainda está no acampamento. Eu não quis trazê-la aqui...

— Imbecil! Tudo o que está me contando é o que ouviu dizer. Traga-a imediatamente! Quero interrogá-la pessoalmente. — Ele deu um empurrão em Nogo. — Vá buscá-la!

Nogo voltou logo depois, arrastando a mulher pelo braço. Era jovem e, apesar das tatuagens azuis nas faces e no queixo, bonita. Usava túnicas longas, tinha a cabeça coberta como as mulheres casadas e trazia uma criança no colo.

Quando Nogo a soltou, ela caiu no chão, gritando aterrorizada. A criança também chorava. Suas narinas tinham crostas brancas de muco ressecado. A mulher abriu a túnica com os dedos trêmulos, pegou um seio cheio de leite e enfiou o mamilo na boca da criança. Filho e mãe olharam assustados para Von Schiller.

— Pergunte a ela se havia um caixão ou um corpo no santuário — Von Schiller ordenou, enojado da mulher.

Nogo questionou-a e fez que não com a cabeça.

— Ela disse que as estátuas continuam no santuário. A moça branca guardou-as em caixas e tem soldados vigiando-as.

— Soldados? Que soldados?

— Homens de Mek Nimmur, o comandante shufta de quem lhe falei. Ele ainda está com Harper.

— Quantas caixas são? — Em sua impaciência, Von Schiller aproximou-se da mulher sentada e cutucou-a com o bico da bota. — Quantas estátuas existem?

A mulher encolheu-se de medo. Von Schiller também recuou, com uma expressão de nojo.

— Gott im Himmel! — Ele puxou um lenço do bolso e tapou a boca e o nariz. — Ela fede como um animal. Pergunte quantas caixas são

— Poucas — Nogo traduziu —, umas cinco ou seis. Ela não tem certeza.

— De que tamanho? São grandes?

Quando Nogo fez a pergunta, a mulher abriu os braços para mostrar. O desapontamento de Von Schiller apareceu em seu rosto.

— Poucas peças, e insignificantes. — Ele afastou-se da mulher e foi olhar pela janela da face sul do barracão, para a orla do escarpamento que se perdia na vastidão da garganta. — Se essa criatura está dizendo a verdade, Harper ainda não encontrou o tesouro de Mamose. Deve existir mais, muito mais.

Nogo conversava com a mulher de costas para Von Schiller.

— Ela disse que uma pessoa de Harper deixou o acampamento e foi para Debra Maryam.

Von Schiller olhou para ela.

— Uma pessoa? Que pessoa?

— Uma mulher etíope, a concubina de Mek Nimmur. Uma mulher chamada Woizero Tessay. Eu a conheço. Foi casada com o caçador russo antes de se tornar amante de Mek Nimmur.

Von Schiller atravessou a sala e puxou a mulher pela túnica. Ela caiu aos pés dele com tanta violência que a criança rolou de seus braços.

— Pergunte a ela onde está essa mulher agora — ele instruiu Nogo. A mulher soltou-se dele e correu para acudir o filho, que chorava.

Nogo impediu-a com um sonoro tapa no rosto. Ela pegou a criança no colo e murmurou alguma coisa.

— Ela não sabe — Nogo admitiu. — Acha que ainda está em Debra Maryam.

— Tire essa cadela imunda daqui! — Von Schiller indicou com a cabeça a mulher e o filho. Nogo arrastou-a para fora do barracão.

— O que mais você sabe sobre a mulher de Mek Nimmur? — Von Schiller já estava mais calmo agora.

— Ela é de uma família tradicional de Adis Abeba, parente do Ras Tafari Makonnen, o velho Imperador Hailé Selassié.

— Se ela é a mulher de Mek Nimmur e está no acampamento de Harper, deve ter respostas que outros não têm.

— É verdade, Herr Von Schiller. Mas talvez não queira responder.

— Eu a quero — disse Von Schiller. — Traga-a aqui. Helm conversará com ela. Tenho certeza de que ele vai conseguir que ela seja sensata.

Ela é uma pessoa importante. Sua família é muito influente. —

Nogo pensou por um momento. — Mas, por outro lado, é amante de bandido conhecido. É tudo de que preciso para pegá-la. Enviarei destacamento de soldados sob as ordens de um oficial de confiança

mandarei prendê-la imediatamente. — Ele hesitou. — Mas se ela for severamente interrogada é melhor que não volte para seus amigos em

Adis. Poderiam nos criar problemas. Até para o senhor, Herr Von

Schiller.

— O que sugere? — Von Schiller quis saber.

— Depois que ela disser o que sabe, poderá sofrer um pequeno acidente, por exemplo.

— Faça o que for preciso — Von Schiller ordenou. — Poupe-me dos detalhes; se for necessário dispor da mulher, que isso seja feito adequadamente. Já tenho aborrecimentos demais — disse ele, olhando para Nahoot Guddabi, que baixou os olhos e ficou vermelho de raiva.

Eles já estavam há dois dias no santuário de Osíris. Nenhum adorador de outras épocas jamais estudara os textos daquelas paredes ou examinara os majestosos murais do grande deus com a mesma atenção e avidez que Royan e Nicholas.

Eles se alternavam na leitura em voz alta dos extratos do monólito de Tanus, escolhidos e anotados por Royan em seus cadernos, repetindo cada citação até decorá-la. Enquanto um lia, o outro concentrava-se nas paredes, tentando encontrar alguma ligação.

— "Meu amor é um frasco de água fresca no deserto. Meu amor é um estandarte ao sabor da brisa. Meu amor é o primeiro grito da criança recém-nascida" — Nicholas leu.

Royan desviou os olhos da pintura do santuário, olhou para ele e sorriu.

— Às vezes Taita é mesmo uma gracinha, não é? — perguntou. — Tão romântico!

— Concentre-se, pelo amor de Deus. Não estamos numa aula de poesia. Estamos fazendo um trabalho sério aqui.

— Grosseiro! — ela murmurou num suspiro e voltou-se para o mural.

— Vejamos este mais uma vez. — Nicholas leu em voz alta: — "Deitamo-nos no vale dos mil encontros, da criança com a mãe, do homem com a mulher, do amigo com o amigo, do mestre com o discípulo, do sexo com o sexo".

— Essa é a terceira vez nesta manhã que você lê essa citação. Por que gosta tanto dela? — Royan estava de costas para Nicholas, mas a pele de sua nuca ganhou um tom avermelhado.

— Desculpe! Pensei que achasse esta tão romântica quanto a outra — ele murmurou. — Vamos tentar outra, então. "Eu sofri e amei. Resisti ao vento e à tempestade. A flecha perfurou minha carne, mas não me feriu. Fugi do falso caminho que se estendia à minha frente. Galguei os degraus ocultos para o trono dos deuses."

Royan virou-se de frente e contemplou a galeria.

— Talvez haja alguma coisa aí. "O falso caminho que se estendia à minha frente. Os degraus ocultos"?

— Agora estamos forçando um pouco. Procurando chifre em cabeça de cavalo.

Ela suspirou e afastou uma mecha de cabelos suados da testa.

— Oh, Nicky. É bastante desanimador. Nunca vamos saber por onde começar.

— Coragem, menina. — Ele simulava um ânimo que não sentia. — Começaremos do início, como seu amigo Taita nos mandou fazer. Vamos tentar esta. — Ele pôs a mão sobre o peito, imitando um ator vitoriano. — "O abutre sobe aos mais altos picos para reverenciar o sol"...

Ela riu de seu histrionismo, e então correu os olhos pelo rosto e baixou-os para os ombros de Nicholas. De repente, Royan foi tomada de um sobressalto.

— O abutre! — gritou, apontando para a parede atrás de Nicholas. Havia um abutre, a figura magnífica de um pássaro com olhos de um brilho feroz, de bico curvo apontado para a frente. Suas asas estavam abertas e cada uma das penas era contornada em cores brilhantes. Tinha o tamanho de Nicholas e suas asas ocupavam metade da parede. Eles ficaram olhando, e então Royan ergueu os olhos para o teto. Tocou no braço dele e o puxou para perto.

— O sol! — sussurrou. O disco dourado de Rá ocupava a maior parte do teto. Seu resplendor parecia iluminar as sombras. Os raios espalhavam-se em todas as direções; um deles seguia a curva da parede e incidia sobre a figura do abutre com sua radiante luminosidade.

— "O abutre voa para reverenciar o sol" — ela repetiu. — Será que Taita está sendo literal?

Royan aproximou-se do mural e examinou-o minuciosamente, acompanhando as asas com a mão, descendo pelo peito até as garras curvas. Sob a pintura, a parede era lisa. Não havia nenhuma saliência ou irregularidade.

— A cabeça, Nicky. Veja a cabeça do pássaro! — Ela saltou com a mão estendida, mas seus dedos não conseguiram alcançar; então virou-se para ele e pediu-lhe com uma ponta de desespero na voz: — Tente você... é muito mais alto que eu.

Só então ele viu uma pequena sombra de um dos lados da cabeça do pássaro, onde a lâmpada do refletor incidia. Ao tocá-la, percebeu que a cabeça era em relevo, destacando-se levemente da superfície da parede. Nicholas percorreu a cabeça com as pontas dos dedos e descobriu que o bico também fazia parte do relevo.

— Consegue sentir alguma emenda no reboco? — Royan perguntou. Ele balançou a cabeça.

— Não. É liso. Parece que faz parte da parede.

— "O abutre voa para reverenciar o sol" — ela insistiu. — Consegue perceber algum movimento? Tente erguer a cabeça na direção do sol.

Ele apoiou o polegar sob a cabeça e empurrou-a para cima.

— Nada! — murmurou.

— Isso está aí há quatro mil anos. — Inquieta, Royan apoiava-se ora num pé ora no outro. — Droga, Nicky! Se existe alguma parte móvel, deve estar colada. Empurre com força!

Ele se apoiou melhor e pôs as duas mãos sob a saliência da cabeça. Devagar, empurrou com tanta força que as veias de seu pescoço saltaram e o rosto ficou vermelho.

— Mais força! — Royan implorou, mas afinal ele baixou os braços e recuou.

— Não dá. — Ele estava rouco e cansado. — É sólida. Não se mexe.

— Levante-me. Quero ver.

— Com o maior prazer. Faço qualquer coisa para pôr as mãos em você. — Ele se posicionou atrás dela e segurou-a pela cintura; então ergueu-a até que conseguisse tocar a cabeça do pássaro.

Bem rapidamente, Royan explorou os contornos e soltou um grito cheio de triunfo.

— Nicky! Você começou alguma coisa. A pintura está rachada em volta da cabeça. Eu senti. Levante-me mais!

Ele gemeu, mas ergueu-a mais alguns centímetros.

— Não há dúvida! — ela exclamou. — Alguma coisa se moveu. Há uma rachadura fina sobre a cabeça também. Dê uma olhada.

Ele pegou um dos baús na plataforma e colocou-o sob a imagem do abutre. Em cima dele, ficava no mesmo nível dos olhos do pássaro.

A expressão de Nicholas mudou. Ele enfiou a mão no bolso e pegou o canivete. Abriu uma lâmina e passou-a com cuidado ao redor da cabeça. Lascas de tinta seca e reboco se soltaram enquanto ele trabalhava.

— Parece que a cabeça é uma peça destacável — ele admitiu.

— Olhe no alto dela, mais para cima. Ali, na linha do raio de sol Consegue ver alguma fissura no reboco?

— Você está certa, sabia? — Nicholas admitiu. — Mas, se eu tentar abrir, vou danificar o mural. Quer que faça isso?

Royan hesitou apenas por um instante.

— Este túmulo será inundado quando o rio subir; vamos perdê-lo do mesmo jeito. Vale a pena arriscar. Abra, Nicky.

Ele pressionou a ponta do canivete na fissura e torceu devagar. Um pedaço de reboco colorido soltou-se da parede e despedaçou-se sobre os ladrilhos de ágata.

Nicholas examinou o buraco que fez na parede.

— Parece uma fenda ou um sulco — disse. — Vou tentar aprofundar mais. — Com cuidado, ele perfurou a cavidade que havia aberto e removeu mais reboco.

Royan espirrou com a poeira, mas não desistiu. Pedacinhos de tinta alojavam-se em seus cabelos como confetes.

— Sim — ele disse por fim. — Há um sulco vertical passando por aqui.

— Descasque a tinta ao redor da cabeça — ela ordenou. Nicholas limpou a lâmina na perna da calça e atacou novamente a parede.

— Está solta. Parece que a cabeça desliza pelo sulco. Vou tentar. Afaste-se e me dê espaço para trabalhar.

Ele apoiou as duas mãos sob a cabeça do abutre e empurrou com força para cima. Royan fechou as mãos com força, contorcendo o rosto para lhe dar apoio moral.

Ouviu-se um ruído de algo se soltando, e a cabeça começou a se mover, correndo até o fim do sulco. Nicholas desceu do baú. Eles ficaram olhando para a cabeça separada do corpo, agora desfigurada pelo estrago feito na pintura.

Depois de uma espera longa e cansativa, Royan murmurou desalentada:

— Nada! Não mudou nada.

— Como é o resto da citação? — ele lembrou-a. — Há mais alguma coisa além do abutre e do sol.

— Tem razão. — Ela procurou pela parede, ansiosa. — "O chacal rosna e corre atrás de sua cauda."

Royan apontou com o dedo trêmulo a figura pequena, quase insignificante, de Anúbis, o deus com cabeça de chacal dos cemitérios, na parede oposta ao abutre agora mutilado. Aos pés da imensa e portentosa pintura de Osíris, ele era um pouco maior que o dedo do pé ornamentado com jóias do esposo de Isis e pai de Hórus.

Royan correu para essa parede; no momento em que encostou em Anúbis sentiu que a imagem também estava em relevo. Ela empurrou a figura com toda a força, tentando deslocá-la para um lado, depois para o outro.

— "O chacal corre atrás de sua cauda" — recitou enquanto o empurrava. — Tem de virar!

— Deixe-me tentar. — Delicadamente, Nicholas afastou-a e ajoelhou-se diante da imagem do deus de cabeça negra. Novamente usou a lâmina do canivete para descascar o reboco e a grossa camada de tinta ao redor.

— Parece esculpido em algum tipo de madeira dura e depois chumbado na parede — ele disse, enquanto examinava a figura com a ponta do canivete.

Por fim, quando conseguiu limpá-la, tentou girá-la no sentido horário, gemendo de força.

— Não consigo... — Ele desistiu.

— Eles não tinham relógio no antigo Egito — Royan lembrou. — Para o outro lado. Gire do outro lado.

Ele experimentou no sentido anti-horário e novamente ouviu um ruído de algo se descolando e raspando na parede. A figura deslocou-se lentamente sob suas mãos e a cabeça negra apontou para baixo, para os ladrilhos amarelos.

Os dois mantiveram-se bem afastados da parede, olhando-a com expectativa, e depois de muito esperar Nicholas se mostrou desanimado.

— Não sei o que estou esperando, mas seja o que for não está acontecendo.

— Há ainda uma última parte da citação — Royan sussurrou. — "O rio corre para a terra. Cuidado, violadores de locais sagrados, que a ira de todos os deuses recaia sobre vós."

— O rio? — Nicholas perguntou. — Como diz Sapper, não estou vendo nenhum maldito rio.

Royan nem sequer sorriu diante do sotaque cockney. Em vez disso, perscrutou a profusão de escrituras e imagens que recobriam todas as paredes. Então ela viu.

— Hapi! — sua voz tremia. — O deus do Nilo! O rio!

No alto da parede, no mesmo nível da cabeça do grande Osíris, o deus do rio olhava para eles. Hapi era hermafrodita, com seios de mulher e órgãos genitais de homem projetando-se sob o ventre. Em sua cabeça de hipopótamo a boca estava escancarada, exibindo as imensas arcadas das cavernosas mandíbulas.

Nicholas subiu numa pilha de baús e, com os braços esticados, conseguiu alcançar a imagem de Hapi. Ao tocá-la, exultou:

— Também está em relevo.

— "O rio corre para a terra" — ela repetiu. — Deve se mover para baixo. Experimente, Nicky!

— Espere até eu limpar em volta. — Quando ele raspou toda a tinta, sondou o reboco por baixo e encontrou outro sulco vertical que descia até o chão. — Pronto para girar agora. — Fechou o canivete e enfiou-o no bolso. — Prenda a respiração e reze por mim.

Ele segurou a imagem com as duas mãos e começou a puxá-la para baixo. Aos poucos, foi pressionando com mais força, até ficar dependurado nela. Não se mexeu.

— Não está funcionando — resmungou.

— Espere! Vou até aí.

Royan subiu nas caixas por trás dele e apoiou as mãos em seus ombros.

— Segure firme — ordenou.

— Toda ajuda é bem-vinda, eu acho — ele concordou, e Royan pendurou-se dos ombros dele.

— Está se mexendo — Nicholas gritou. De repente, a imagem de Hapi cedeu sob suas mãos e, com um som estridente, desceu até o final do sulco na parede.

Nicholas soltou a imagem arredondada quando encostou embaixo. Os baús escorregaram e os dois caíram ao chão. Royan continuou de-pendurada do pescoço de Nicholas, que se desequilibrou ao ser puxado para trás. Ambos se esparramaram sobre o piso de ágata num emaranhado de pernas e braços. Nicholas levantou-se primeiro e estendeu a mão para ajudá-la.

— O que aconteceu? — ela perguntou, olhando para a imagem danificada e depois para as paredes da galeria.

— Nada — ele disse. — Nada se mexeu.

— Talvez outra... — ela começou, mas parou ao ouvir um som que vinha do teto. Eles olharam para cima, assustados e curiosos ao mesmo tempo. Sobre o teto rebocado percebia-se um movimento pesado.

— O que é isso? — Royan sussurrou. — Não há nada lá em cima. Parece alguma coisa viva.

Um gigante se movia, acordando de um sono de 4 000 anos, espreguiçando-se e virando-se para despertar.

— É...? — ela não pôde concluir a pergunta. Veio-lhe a imagem do grande deus despertando numa câmara oculta na pedra, abrindo os olhos oblíquos e maléficos, soerguendo-se para descobrir quem o perturbava em seu sono eterno.

Houve então outro ruído, um rangido surdo e prolongado, como se o braço da suprema balança pendesse lentamente sob seu equilíbrio alterado. A princípio fraco, depois mais forte, o movimento ganhou força, como o princípio de uma avalanche. Então ouviu-se como que um tiro de canhão.

Uma rachadura abriu-se no teto e correu por toda a extensão da galeria. Caía terra dessa abertura, e então, lento como um pesadelo, o teto começou a ceder. Ambos estavam paralisados; não conseguiam tirar os olhos do inexorável desmoronamento do teto sobre eles. Então um pedaço de reboco atingiu o rosto de Nicholas, rasgando-lhe a pele e jogando-o de costas contra a parede. O golpe e a dor tiraram-no do torpor.

— A advertência — ele gritou. — O aviso de Taita. A ira dos deuses! — Ele saltou para o lado de Royan e agarrou-a pela mão. — Corra! — E arrastou-a atrás de si.

Os dois correram pela galeria em direção à entrada. Blocos de pedra e reboco começaram a cair e a poeira encheu o corredor, quase os cegando. O rangido transformou-se num estrondo que aumentava progressivamente à medida que o teto ruía. Eles não ousaram olhar para trás quando ouviram outro estrondo.

Um bloco de pedra do tamanho de sua cabeça atingiu Royan no ombro, e suas pernas cederam. Ela teria caído se Nicholas não tivesse passado o braço por sua cintura, ajudando-a a se levantar e arrastando-a pela galeria. A espessa nuvem de poeira havia encoberto a passagem de modo que a abertura quadrada, a única chance que tinham de sair, estava invisível.

— Não pare! — Nicholas gritou. — Estamos quase chegando. — Nesse instante, um bloco de reboco atingiu o tripé do refletor e instantaneamente a galeria mergulhou na escuridão total.

Sem enxergar nada, a primeira reação de Nicholas foi tentar se orientar. Mas o teto desmoronava em toda a volta, cada vez mais rápido. Ele sabia que em poucos segundos tudo viria abaixo e os soterraria. Correndo sem saber para onde, ele arrastava Royan pela escuridão. Chegou à parede com grande impulso e chocou-se com ela com tanta força que o impacto cortou sua respiração. Agora, em meio ao torvelinho de poeira, Nicholas conseguiu distinguir o retângulo aberto na parede, iluminado pelas lâmpadas na plataforma exterior.

Ele afastou-se e segurou Royan pela cintura para erguê-la. Enfiou-a pelo buraco e ouviu-a gritar ao cair do outro lado. Outro pedaço de reboco atingiu-o atrás da cabeça e o fez cair de joelhos. Ele sentiu que ia perder a consciência, mas arrastou-se para a frente com as mãos estendidas até conseguir tocar a borda da abertura. Com esse apoio, conseguiu se arrastar pela brecha, no exato instante em que o teto de toda a galeria desabou.

Royan estava de quatro na plataforma, no topo da escadaria. Engatinhou até onde ele estava, novamente orientando-se pelas lâmpadas.

— Você está bem? — Ela arfava. Um fio de sangue escorria por seu queixo, e a testa estava cortada.

Nicholas não respondeu; conseguiu levantar-se e puxou Royan para perto.

— Não podemos ficar aqui — falou com voz rouca, no exato momento em que uma densa nuvem de poeira saiu pelo buraco e encobriu-os. — Não é seguro. — Ele a afastou do buraco. — Tudo pode desmoronar. — Ele sentiu a garganta fechar-se com a poeira.

Puxou-a para a escada e ambos desceram cambaleantes, apoiando-se um no outro, até o piso de limo escorregadio. Em meio à névoa de poeira conseguiram enxergar a ampla figura de Sapper.

— Que diabo está havendo? — ele berrou, aliviado por vê-los.

— Ajude-me aqui! — Nicholas gritou. Sapper ergueu Royan nos braços e juntos correram pelo túnel, parando para respirar só quando chegaram à passarela sobre o poço.

O correio da aldeia de Debra Maryam era um prédio pequeno numa rua de terra atrás da igreja. Suas paredes eram de tijolos expostos, e o telhado de ferro galvanizado refletia como um espelho o sol da montanha. O telefone público deveria estar numa cabine em frente à porta. Entretanto, há muito tempo tinha desaparecido — fora roubado, depredado ou, o que era mais provável, retirado pelos militares para evitar que dissidentes políticos e rebeldes o usassem.

Tessay já esperava por isso e nem olhou para o interior da cabine antes de entrar na pequena sala do correio. Estava cheia de aldeões e camponeses, que esperavam em fila para serem atendidos pelo velho funcionário, a única pessoa atrás do balcão. Alguns haviam posto suas trouxas no chão e preparavam-se para uma longa espera, conversando e fumando, com as crianças brincando em volta.

A maior parte das pessoas reconheceu Tessay. Todos os que estavam na fila desde cedo cumprimentaram-na respeitosamente e se afastaram para deixá-la passar. Apesar de duas décadas de socialismo, o instinto feudal da população rural ainda era forte na África. Tessay era nobre e tinha a preferência.

— Obrigada, amigos — ela sorriu e balançou a cabeça. — Vocês são muito gentis, mas vou esperar minha vez.

Eles ficaram constrangidos com a recusa; quando o velho funcionário se aproximou do balcão para atender o próximo, uma mulher pegou o braço de Tessay e empurrou-a para a frente.

— Jesus e todos os santos a abençoem, Woizero Tessay. — O funcionário bateu as mãos num cumprimento respeitoso. — Seja bem-vinda a Debra Maryam. O que deseja Vossa Senhoria?

Todos os presentes juntaram-se ao redor de Tessay para não perder nenhum detalhe da transação.

— Quero fazer um telefonema para Adis — ela disse ao funcionário; em seguida ouviu-se um murmúrio de comentários. Tratava-se realmente de algo importante e incomum.

— Eu a levarei até o telefone — disse o funcionário solenemente, vestindo para a ocasião o quepe azul oficial. Ele saiu de trás do balcão, gritando com prepotência e empurrando as pessoas para que deixassem Lady Sol passar. Levou-a para uma sala nos fundos, onde o telefone ocupava um cubículo com as dimensões de um lavatório.

Tessay, o funcionário e um número de pessoas que o espaço exíguo permitia amontoaram-se nessa sala. O telefonista, emocionado pela honra de atender a uma bela moça como Tessay, gritava no aparelho como um sargento comandando seu pelotão.

— É rápido. — Ele sorriu exultante para Tessay. — Só uma pequena demora. Então a senhora falará com a Embaixada britânica em Adis.

Tessay, que sabia o que significava essa pequena demora, voltou para a varanda do correio e mandou comprar comida e frascos de tej na loja da aldeia. Convidou sua escolta de monges, bem como metade da população de Debra Maryam, para um alegre piquenique enquanto esperava que a ligação passasse por meia dúzia de aldeias e chegasse à capital. Graças ao tej, todos estavam animados quando finalmente, uma hora depois, o funcionário veio correndo avisar que a ligação fora completada e que a pessoa já esperava na linha.

Tessay, os monges e cinqüenta aldeões seguiram o funcionário e amontoaram-se no cubículo. O excedente voltou para a sala da frente.

— Geoffrey Tennant falando. — O sotaque inglês se confundia com a estática e a distância.

— Senhor Tennant, aqui é Woizero Tessay.

— Estava esperando seu telefonema. — A voz de Geoffrey suavizou-se ao perceber que estava falando com a linda moça. — Como vai minha querida?

Tessay transmitiu o recado de Nicholas.

— Diga a Nicholas que darei o recado. — Geoffrey desligou.

— Agora — Tessay dirigiu-se ao funcionário — quero fazer outra ligação para Adis; para a Embaixada do Egito.

Um murmúrio de prazer percorreu a audiência, pois a diversão do dia não havia terminado. Todos dirigiram-se para a varanda para tomar mais tej e conversar.

O segundo telefonema levou o mesmo tempo para ser completado, e já passava das 5 da tarde quando Tessay conseguiu fazer contato com o adido cultural egípcio. Se não o tivesse conhecido durante um coquetel no circuito diplomático de Adis, causando ótima impressão, provavelmente ele não teria atendido ao telefonema.

— Teve sorte de me encontrar aqui — ele disse. — Geralmente encerramos o expediente às quatro e meia, mas está havendo uma reunião da Organização da Unidade Africana e fiquei até mais tarde. Em que posso ajudá-la, Woizero Tessay?

Quando ela lhe disse o nome da pessoa no Cairo para quem Royan enviara o recado, a atitude de superioridade e condescendência do homem mudou dramaticamente, tornando-o efusivo e disposto a agradar. Ele anotou em detalhes tudo o que ela disse, pedindo que repetisse e soletrasse o nome das pessoas e dos lugares. Por fim, releu o que havia anotado para confirmar.

No final da longa conversa, baixou o tom de voz para um nível mais íntimo e disse:

— Fiquei profundamente chocado com o que lhe aconteceu recentemente, Lady Sol. O Coronel Brusilov era um homem da minha mais alta estima. Quando retornar a Adis, gostaria que me desse a honra e o prazer de jantar comigo uma noite.

— Muito gentil de sua parte. Terei muito prazer em reencontrar sua adorável esposa. — Ela desligou enquanto ele emitia sons confusos e justificativas.

A essa hora o sol já se punha por trás dos castelos de cúmulos-nimbos e havia um cheiro de chuva no ar. Como já era tarde para empreender a viagem de volta, Tessay aceitou prontamente quando o líder da aldeia de Debra Maryam enviou sua filha com um convite para que passasse a noite hospedada em sua casa.

A casa do líder era a melhor da aldeia; não era como as tukuls circulares, mas uma casa de tijolos com telhado de ferro. Sua esposa e as filhas haviam preparado um banquete para Tessay e todas as pessoas importantes da aldeia, inclusive os padres da igreja. Tessay só conseguiu fugir para o quarto principal, que os donos da casa lhe haviam cedido, depois da meia-noite.

Logo que se deitou, ouviu as gotas de chuva no telhado de ferro corrugado. Era um som agradável, mas ela se lembrou da represa e esperou que não passasse de um chuvisco.

Muito depois, despertou e viu que a chuva havia passado. Pela janela, no silêncio da noite sem lua, ouviu apenas os latidos esparsos dos cachorros da vila. Ela se perguntou por que teria despertado, e foi tomada por uma súbita premonição de desastre, um legado da época de Mengistu, quando qualquer ruído na noite advertia da chegada das forças de segurança. A sensação era tão forte que ela não conseguiu voltar a dormir. Saiu em silêncio de sua cama e começou a vestir-se. Estava decidida a chamar pelos monges e retomar a trilha, mesmo na escuridão. Só se sentiria segura quando estivesse novamente ao lado de Mek Nimmur.

Mal havia vestido seu jodhpur e procurava as sandálias sob a cama quando ouviu um distante ruído de caminhão. Foi até a janela e ficou escutando. Aproximava-se depressa, e a sensação de intranqüilidade aumentou. Os aldeões haviam conversado com os monges e todos já sabiam que ela era a mulher de Mek Nimmur. Mek era um homem procurado, e ela se sentiu só e vulnerável.

Rapidamente, Tessay enrolou-se no shamma de lã e enfiou os pés nas sandálias. Quando saiu do quarto, ouviu o líder roncando na sala da frente, onde ele e a mulher estavam dormindo. Foi para o estreito corredor que levava à cozinha. O fogo estava baixo, mas mesmo assim ela conseguia enxergar os monges deitados no chão de terra. Dormiam com os shammas envolvendo as cabeças, completamente cobertos. Ela ajoelhou-se ao lado do primeiro e sacudiu-o, mas ele devia ter tomado muito tej durante o jantar, pois não acordou.

O caminhão estava agora muito próximo, e sua intranqüilidade já beirava o pânico. Sabendo que numa emergência os monges não serviriam para muita coisa, Tessay levantou-se e se dirigiu para a porta.

O caminhão estava bem em frente à porta da casa. A luz dos faróis atravessou as janelas e atingiram fracamente o corredor. O motor foi desligado e ela ouviu o rangido do freio de mão. Em seguida, gritos e passos de vários homens saltando da carroceria.

Tessay parou no meio da cozinha. Então bateram com força na frágil porta da frente e gritaram:

— Abram a porta! Central de Inteligência! Abram a porta! Ninguém saia da casa!

Tessay correu para a porta dos fundos, mas, no escuro, esbarrou na mesa sobre a qual estavam os pratos usados no jantar. As tigelas e frascos de tej caíram ao chão e se quebraram. No mesmo instante os homens arrebentaram a porta, arrancando-a das dobradiças. Entraram na casa aos berros e quebrando móveis, vasculhando com lanternas os quartos da frente. Os moradores da casa acordaram assustados; Tessay ouvia os golpes de cassetetes e canos de rifles, seguidos de gritos de dor e pavor.

Tentou abrir a porta, mas seus dedos tremiam. Ela forçava a fechadura, ouvindo do lado de fora os homens que cercavam a casa. Por fim a porta se abriu. Estava escuro, ela não conhecia o lugar e não sabia em que direção correr, mas ouviu o rio, que passava perto.

"Se conseguir chegar lá...", ela pensou, e começou a atravessar o quintal.

Mas uma lanterna a cegou e uma voz rouca berrou:

— Lá está ela!

Tessay não teve mais dúvida de que era a ela que procuravam, e correu como uma égua assustada no facho da lanterna. Eles a perseguiram como uma matilha de cães de caça. Tessay alcançou a margem do rio e saiu correndo para a direita, rio abaixo. Uma pistola detonou e a bala zuniu sobre sua cabeça.

— Não atire, imbecil! — alguém gritou em tom de comando. — Ela tem de ser interrogada.

Sob o facho das lanternas, seu shamma adejava como as asas de uma mariposa em torno da luz de uma vela.

— Peguem a mulher! — gritou um oficial. — Não a deixem fugir. Mas Tessay era veloz como uma gazela, e seus pés leves voavam

sobre o terreno acidentado enquanto os soldados fortemente armados se arrastavam. Ela se animou ao perceber que os deixava para trás.

Os homens se distanciaram, e Tessay já ultrapassara o limite do alcance da lanterna, quando se chocou com uma cerca de arame farpado. Três arames enferrujados a feriram na altura dos joelhos, da cintura e do pescoço. Por pouco não foi degolada pelas farpas que lhe atravessaram a roupa e a pele. Tessay ficou emaranhada como um peixe na rede e ficou se debatendo, sem conseguir soltar-se. Mãos bruscas a seguraram e a arrancaram da cerca; ela chorava de desespero e de dor. Um soldado agarrou seu pulso e riu sadicamente ao ouvi-la gritar.

Um oficial aproximou-se pelo terreno acidentado. Era muito gordo e suava profusamente. Suas bochechas engorduradas de suor brilhavam à luz das lanternas.

— Não a machuque — ele ofegava. — Ela não é uma criminosa. É uma dama muito fina. Leve-a para o caminhão e trate-a com respeito.

Com um homem de cada lado, Tessay foi levada para o caminhão e jogada na cabine ao lado do motorista fardado. O oficial gordo entrou em seguida, pressionando-a entre os dois. Os soldados montaram na carroceria e o caminhão partiu.

Tessay chorava, e o oficial olhou-a de lado. Ela viu pelo reflexo dos faróis que ele tinha um rosto simpático e uma expressão gentil, algo muito incomum nesse tipo de operação.

— Para onde estão me levando? — perguntou em voz baixa, reprimindo os soluços. — O que eu fiz de errado?

— Recebi ordens para levá-la ao Coronel Nogo, o comandante do distrito, para ser interrogada sobre as atividades dos shuftas em Gojam — ele disse sacudindo-se dentro do caminhão.

Ficaram ambos em silêncio, até que o oficial disse em inglês:

— O motorista só fala amárico. Quero que saiba que conheci seu pai, Alto Zemen. Era um bom homem. Sinto muito pelo que aconteceu esta noite, mas sou apenas um tenente e cumpro ordens.

— Entendo que o senhor não tem culpa e não teve escolha.

— Meu nome é Hammed. Se puder, a ajudarei. Em nome de Alto Zemen.

— Obrigada, Tenente Hammed. Vou precisar de amigos.

Enquanto esperavam que a poeira assentasse, ou que as pedras soltas caíssem ou se estabilizassem, Nicholas desinfetou os leves ferimentos de Royan. O corte na testa não era profundo, pouco mais que um arranhão. Não precisava de curativo. Ele apenas o desinfetou e cobriu com band-aid. O ombro, contudo, que fora atingido por uma pedra, estava mais machucado. Ele a massageou com pomada de arnica.

Seus próprios ferimentos foram tratados com menos cerimônia. Uma hora depois do desabamento, ele já estava pronto para entrar no túnel. Mandou que Royan e Sapper permanecessem na passarela sobre o ralo e voltou sozinho para a plataforma no topo da escada. Levava uma vara de bambu e uma lâmpada conectada ao motor Honda.

Nicholas procedia com suprema cautela, procurando a cada passo rachaduras no teto do túnel. Quando alcançou a plataforma, viu que uma pedra havia esmagado o que restara do reboco branco que originalmente selava a entrada da tumba. Os oito baús que continham as estátuas haviam sido atingidos e amassados, e alguns parcialmente enterrados sob o entulho. Ele os retirou e abriu cada um para ver as condições do conteúdo. Com imenso alívio viu que as caixas de metal haviam suportado o rude tratamento e as estátuas não estavam danificadas. Uma por vez, levou-as para a passarela e deixou-as aos cuidados de Sapper.

Quando voltou à plataforma, Royan insistiu em acompanhá-lo. Nem a dramática descrição do perigo de um novo desabamento demoveu-a da idéia. Sua tristeza diante da galeria destruída era insuportável.

— Não restou mais nada — sussurrou. — Todas aquelas maravilhosas obras de arte... Não acredito que Taita tenha feito isso.

— Não — Nicholas concordou asperamente. — Seu plano era nos oferecer um inesquecível bota-fora no caminho das sete torres e nos desejar uma boa caçada. E o velho demônio conseguiu.

— Vai dar muito trabalho limpar tudo isso — ela disse.

— Do que é que você está falando? — Ele virou-se para Royan realmente alarmado. — Salvamos as estátuas e basta. Acho que é hora de calcular os prejuízos e cair fora daqui.

— Cair fora? Você ficou louco? — ela reagiu furiosamente.

— Pelo menos as estátuas pagarão nossos custos — ele explicou — e talvez ainda sobre alguma coisa para dividirmos, conforme combinamos.

— Nem sonhe em desistir, agora que estamos tão perto. — Seu tom de voz revelava agitação.

— A galeria está destruída...

Nicholas tentava convencê-la, mas ela batia o pé no chão e gritava:

— O túmulo ainda está lá! Droga, Nicky, Taita não iria tão longe se não estivesse. Estamos muito perto agora... Foi por isso que ele disparou esse alarme, não percebe? Conseguimos deixá-lo realmente preocupado. Não podemos desistir agora que temos o prêmio quase nas mãos.

— Royan, seja razoável...

— Não, não, seja razoável você! — Ela se recusou a ouvi-lo. — Comece a limpar essa galeria imediatamente. Sei que agora a entrada está aberta. Basta limpar. Tenho certeza de que encontrarei a entrada do túmulo por trás do entulho que Taita derrubou intencionalmente sobre nós.

— Acho que o golpe na sua testa a fez perder o juízo. — Ele fez um ar de resignação. — Mas de que adianta discutir com uma louca? Vamos limpar apenas o suficiente para provar que não há nada lá dentro.

— A poeira será nosso maior problema. — Sapper espiou pela entrada da galeria quando eles disseram o que pretendiam. — Quando remexermos esse entulho, muitas nuvens vão se levantar... muito mais do que um ventilador poderia suportar.

— Certo — Nicholas concordou rispidamente. — Vamos ter de molhar tudo. Duas fileiras de homens até o ralo. Uma corrente passa os baldes cheios e a outra retira o entulho do desmoronamento.

— Vai dar muito trabalho... — Pensativo, Sapper mordia o lábio inferior.

— Vai — concordou Nicholas. — Mas não há tempo a perder.

Os monges, convencidos de que trabalhavam para o Senhor, aceitaram animadamente a nova tarefa. Cantavam ao passar os blocos de reboco e pedra numa direção e os potes de barro com água na outra. Nicholas trabalhava no entulho com o grupo dos Búfalos, liderado por Hansith. Era um trabalho difícil, sujo e perigoso, porque cada bloco precisava ser umedecido antes de ser retirado do monte e passado pela corrente. A escada logo ficou cheia de lama e os degraus se tornaram perigosos. As pedras estavam soltas e instáveis, e sempre havia o perigo de outro desabamento.

Com tantos homens trabalhando nos espaços confinados da galeria e do túnel, o pequeno ventilador não dava conta da circulação de ar; lá dentro começou a ficar quente e opressivo. Os homens trabalhavam só de tanga, e seus corpos suados brilhavam. O entulho era jogado no ralo. Nem com todo aquele volume o nível da água se alterava. O buraco simplesmente engolia tudo e não deixava o menor vestígio.

Para Nicholas, o trabalho era tão claustrofóbico que na primeira mudança de turno ele precisou de ar puro, nem que fosse por alguns minutos. O escuro e ameaçador abismo do poço de Taita transformou-se num paraíso depois do confinamento subterrâneo. Mek Nimmur esperava por ele quando saltou a barreira da comporta para a saliência ao lado do poço.

— Nicholas! — Mek estava sério. — Tessay não voltou de Debra Maryam? Deveria ter chegado ontem.

— Eu não a vi, Mek. Achei que estivesse com você. Mek fez que não com a cabeça.

— Eu queria ter certeza de que ela não havia voltado antes de mandar uma patrulha procurá-la.

— Sinto muito, Mek. Não imaginei que houvesse algum perigo em mandá-la subir ao escarpamento. — Nicholas sentiu uma ponta de culpa.

— Também achei que não houvesse perigo, ou não teria permitido que fosse — Mek concordou. — Vou mandar meus homens atrás dela

Mas a ausência de Tessay era só mais uma preocupação para Nicholas. Ele não pensou mais nisso nos dias que se seguiram, enquanto a limpeza da extensa galeria funerária progredia com lentidão insuportável.

Royan ficou o tempo todo ao lado de Nicholas, e ambos já estavam tão enlameados quanto os Búfalos que ali trabalhavam. Ela lamentava cada fragmento dos murais destruídos. Antes de serem atirados ao poço, tentava reservar aqueles cujas porções mais significativas permaneciam intatas. Havia uma grande peça de reboco com a bela cabeça de ísis ainda inteira; noutro fora preservada a figura de Toth, o deus da escrita. A grande maioria, contudo, nunca mais poderia ser restaurada.

Não se percebia o tempo passar dentro da galeria, e era impossível distinguir o dia da noite. Era sempre uma surpresa sair dos recintos da tumba e ver as estrelas brilhando no pedaço de céu que aparecia sobre o poço de Taita, ou o forte sol africano ardendo no céu sem nuvens. Eles dormiam ou comiam somente quando o corpo exigia, e não de acordo com a passagem das horas.

Um dia, quando atravessavam a passarela por cima do ralo, um grito reverberou em seus ouvidos. Imediatamente ouviram um burburinho de perguntas e respostas, e gritos animados dos homens que trabalhavam nos níveis mais altos do túnel.

— Hansith encontrou alguma coisa! — Royan gritou. — Droga, Nicky, eu deveria estar lá... — Ela saiu correndo e ele seguiu-a.

Chegaram à plataforma na frente da galeria e encontraram-na cheia de trabalhadores seminus, falando e gesticulando. Nicholas abriu caminho entre eles com Royan logo atrás. Viram que Hansith havia limpado a galeria até onde outrora ficava o santuário de Osíris. Sob o teto desmoronado e no meio do entulho amontoado sobre os ladrilhos de ágata quebrados, Nicholas viu os restos do mecanismo que Taita havia colocado no teto e que devia ter sido acionado. A parte principal era uma enorme roda de pedra, semelhante a uma roda de moinho, pesando várias toneladas. Nicholas parou para examiná-la.

— Percebe-se em O Último Deus do Nilo que Taita tinha obsessão por rodas — disse para Royan. — Rodas de carros, rodas-d'água, e esta parece ser a roda da balança de sua armadilha. Quando movemos os braços da balança, alteramos o equilíbrio que mantinha essa monstruosidade no lugar. Quando começou a rolar, moveu todas as pedras que ele deixou sobre o teto da galeria. — Ele olhou para o teto abalado.

— Agora não, Nicky! — Royan estava impaciente. — Deixe as explicações para mais tarde. A armadilha de Taita não foi o que chamou a atenção de Hansith. Ele encontrou outra coisa. Vamos.

Passaram entre os trabalhadores até chegarem a Hansith.

— O que foi que encontrou? — Nicholas perguntou ao monge.

— Aqui, efêndi. Venha depressa.

Eles atingiram o final da galeria bloqueada.

— Lá — Hansith apontou, orgulhoso.

Nicholas ajoelhou-se sobre os restos do santuário. Fragmentos de pintura continuavam presos à parede fraturada. Hansith empurrou um bloco e mostrou o espaço que ele encobria. Nicholas espiou para dentro e sentiu o coração acelerar-se. Havia uma abertura na parede lateral. À primeira vista parecia a boca de outro túnel, que se afastava da galeria e ficava escondido atrás da imagem pintada do grande deus.

Enquanto olhava admirado, Nicholas sentiu a mão de Royan em seu braço e a respiração dela em seu rosto.

— Aí está, Nicky. A entrada para o verdadeiro túmulo de Mamose. Esta galeria é apenas um disfarce. O arenque vermelho de Taita. Este é o verdadeiro túmulo.

— Hansith! — Nicholas chamou com a voz emocionada. — Peça a seus homens que limpem aqui.

Enquanto os trabalhadores removiam as pedras, Nicholas e Royan esperavam, impacientes para ver a passagem. Era um retângulo escuro, com as mesmas dimensões dos túneis anteriores — 3 metros de largura por 2 de altura. Os dintéis e os batentes eram de pedra lindamente talhada e decorada, e quando Nicholas aproximou a lâmpada da entrada viu um lance de escada.

Transferiram o fio e as lâmpadas para a galeria e as instalaram na entrada do novo túnel; quando Nicholas pisou no primeiro degrau, Royan estava ao seu lado.

— Vou com você — ela disse com firmeza.

— Provavelmente é outra armadilha — ele a preveniu. — Taita estará esperando na primeira curva.

— Pare com isso, que não vai adiantar. Eu vou.

Subiram lentamente os degraus, parando em cada um para examinar as paredes à frente. Depois de vinte degraus, chegaram a outro patamar. Havia duas passagens, uma de cada lado, mas a escada continuava em frente.

— Qual das duas? — Nicholas perguntou.

— Continue subindo — Royan apressou-o. — Exploraremos essas entradas depois.

Com muito cuidado, continuaram a subir. Mais vinte degraus e chegaram a outro patamar idêntico, com uma porta de cada lado e a escada seguindo em frente.

— Continue — Royan ordenou, antes que ele perguntasse. Mais vinte degraus e a mesma coisa.

— Isso não tem sentido — Nicholas protestou, mas ela o empurrou.

— Temos de continuar subindo — disse, e ele não contestou. Chegaram a outro patamar e mais outro, cada um exatamente igual ao anterior.

— Finalmente! — Nicholas exclamou quando chegaram ao final da escada, com as mesmas portas de cada lado, mas agora com uma parede branca na frente. — Só chega até aqui.

— Quantos patamares foram? — ela perguntou. — Quantos ao todo?

— Oito — ele respondeu.

— Oito — ela concordou. — É um número bem familiar. Nicholas virou a lâmpada para Royan.

— Está dizendo que...

— Os oito santuários da galeria, os oito patamares e as oito fileiras do jogo de bao.

Eles ficaram em silêncio, sem saber o que fazer no alto da escada.

— Muito bem — ele disse por fim —, já que é tão esperta, diga agora que caminho devemos tomar.

— Mamãe, papai, mandou bater... — ela recitou. — Vamos tentar a passagem da direita.

Entraram à direita e logo adiante encontraram uma junção em "T" — uma parede branca com as mesmas portas de cada lado.

— Pegue a da direita outra vez — ela aconselhou, e Nicholas obedeceu. Mas ao dar com outra parede parou e olhou para Royan.

— Sabe o que está acontecendo aqui, não sabe? É mais um truque de Taita. Ele nos trouxe a um labirinto. Se não fosse pelo cabo de luz já estaríamos perdidos.

Royan olhou assustada para o corredor e depois para as passagens ainda inexploradas.

— Quando Taita construiu isto, não poderia imaginar que existiria eletricidade. Supunha que os ladrões de túmulo tivessem os mesmos equipamentos que ele. Imagine ficar preso aqui sem um fio elétrico para saber de onde viemos — Nicholas disse tranqüilamente. — Imagine ter apenas uma lamparina. Imagine o que aconteceria quando o óleo acabasse e a luz se apagasse: a pessoa ficaria presa aqui na total escuridão.

Royan estremeceu e segurou no braço dele.

— É assustador — ela sussurrou.

— Taita começou a jogar pesado — Nicholas disse em voz baixa. — Até que eu tinha uma boa impressão do velho, mas agora começo a mudar de idéia.

Ela estremeceu novamente.

— Vamos voltar. Não deveríamos jamais ter entrado aqui dessa maneira. Precisamos voltar com mais cuidado. Estamos despreparados. Tenho a sensação de que corremos perigo... perigo real, o mesmo que corremos na galeria.

Quando retomaram as curvas e voltas, seguindo o fio pelas passagens de pedra, a tentação de sair correndo ficava mais forte a cada degrau. Royan segurava firmemente o braço de Nicholas. Era como se uma presença inteligente e maligna os perseguisse na escuridão, observando-os, apenas esperando.

O caminhão do Exército que levava Tessay atravessou a aldeia de Debra Maryam e em seguida tomou a estrada paralela ao Rio Dandera, seguindo para o escarpamento na garganta do Abbay.

— O quartel do Exército não é por aqui — Tessay disse ao tenente, e ele se mexeu desajeitadamente ao lado dela.

— O Coronel Nogo não está no quartel. Tenho ordens para levá-la a outro lugar.

— Só existe um lugar nesta direção — ela disse. — É a base da companhia estrangeira de mineração, a Pégaso.

— É lá que o coronel instalou sua base avançada nesta campanha contra os shuftas no vale — ele explicou. — É para onde vou levá-la.

Ninguém mais falou durante a longa e incômoda viagem. Era quase meio-dia quando finalmente chegaram ao escarpamento e entraram na bifurcação que os levaria ao acampamento da Pégaso. No portão, guardas fardados bateram continência para Hammed. O caminhão entrou e estacionou diante de um dos longos barracões de chapa corrugada.

— Por favor, espere aqui. — Hammed desceu e entrou no barracão, mas logo em seguida estava de volta.

— Por favor, venha comigo, Lady Sol. — Ele parecia constrangido e não conseguia olhá-la nos olhos quando a ajudou a descer da cabine. Acompanhou-a até a porta e deixou que entrasse primeiro

Tessay olhou ao redor da sala quase vazia e percebeu que era o centro administrativo da empresa. Uma mesa de reuniões ocupava quase todo o espaço, e apenas alguns armários e duas mesas estavam encostados às paredes. Um mapa da região e outros mapas técnicos eram tudo o que havia nas paredes. Ela reconheceu imediatamente os dois homens que estavam sentados às mesas.

O Coronel Nogo a fitava com seus olhos frios por trás dos óculos Como sempre, estava impecavelmente uniformizado. Sua boina marrom estava sobre a mesa. Jake Helm inclinara a cadeira para trás e tinha os braços cruzados. À primeira vista, o cabelo cortado rente o fazia parecer um menino. Somente quando se aproximou, Tessay percebeu a pele envelhecida e as rugas nos cantos dos olhos. Ele usava a camisa aberta sobre o peito e calças jeans quase brancas. A fivela do cinto era de prata indiana, ornamentada com a cabeça de um cavalo selvagem. As mangas da camisa estavam arregaçadas sobre os grossos bíceps. Ele mascava a ponta de um charuto barato, e o cheiro forte de tabaco era abrangente e enjoativo.

— Muito bem, tenente — Nogo dispensou Hammed em amárico.

— Espere lá fora. Chamarei quando precisar.

Quando Hammed saiu da sala, Tessay perguntou:

— Por que me prenderam, Coronel Nogo?

Os homens não consideraram a pergunta e a olharam de modo inexpressivo.

— Exijo saber a razão desse tratamento — ela insistiu.

— A senhora está ligada a um bando de terroristas — Nogo disse tranqüilamente. — Portanto, também é um deles, um shufta.

— Isso não é verdade.

— Vocês ultrapassaram os limites da concessão mineral no Vale do Abbay — disse Helm. — A senhora e seus cúmplices iniciaram operações com minas em área pertencente a esta empresa.

— Não há operações com minas — ela protestou.

— Temos outras informações. Temos provas de que construíram uma represa no Rio Dandera.

— Não tenho nada a ver com isso.

— Então nega que existe uma represa?

— Não tenho nada a ver com isso — ela repetiu. — Não pertenço a qualquer grupo terrorista e não participei de operações com minas.

Os dois voltaram a ficar em silêncio. Nogo anotou alguma coisa num caderno. Helm levantou-se e foi até uma janela atrás de Tessay. O silêncio se prolongou até que ela não suportou mais a tensão. Mesmo sabendo que estavam tentando abalar seus nervos, tinha de rompê-lo:

— Viajei quase toda a noite num caminhão do Exército — ela disse.

— Estou cansada e preciso ir ao banheiro.

— Se for urgente, pode fazer aí mesmo. Nem eu nem o senhor Helm ficaremos ofendidos. — Nogo deu uma risadinha abafada, surpreendentemente feminina, mas não ergueu os olhos do caderno.

Tessay olhou para a porta por cima do ombro, mas Helm foi até lá e trancou-a, guardando a chave no bolso. Ela sabia que não devia demonstrar fraqueza e, apesar de cansada, amedrontada e com os ombros doloridos, dirigiu-se, decidida e segura, para a cadeira mais próxima. Afastou-a da mesa e sentou-se tranqüilamente.

Nogo olhou para ela e franziu o cenho. Não esperava que tivesse essa reação.

— A senhora conhece o bandido shufta Mek Nimmur — ele a acusou.

— Não — Tessay respondeu friamente. — Conheço o patriota e líder democrata Mek Nimmur. Ele não é um shufta.

— A senhora é a concubina dele, uma prostituta. Certamente confirma isso.

Ela desviou o olhar com desprezo, e Nogo perguntou em tom estridente:

— Onde está Mek Nimmur? Quantos homens ele tem? — A arrogância de Tessay o deixava irritado.

Ela ignorou a pergunta e Nogo ameaçou:

— Se não cooperar conosco, teremos de usar métodos mais rudes para que responda às nossas perguntas — ele avisou.

Tessay virou o rosto para a janela. No longo silêncio que se seguiu, Jake Helm atravessou a sala e dirigiu-se à porta que havia atrás de Nogo. Passou e fechou-a atrás de si. Através das finas paredes do barracão, Tessay ouviu vozes na sala ao lado. A cadência e a inflexão não eram nem inglesas nem amáricas. Estavam falando uma língua estrangeira. Supôs que Helm recebia instruções de um superior que não queria ser reconhecido mais tarde.

Minutos depois Helm voltou e fechou a porta, sem trancá-la. Fez um sinal com a cabeça para Nogo, que imediatamente se levantou.

— É melhor para todos nós que isto termine o mais rápido possível — disse Helm calmamente. — Depois a senhora pode ir ao banheiro e eu, terminar meu café.

Ela empinou o queixo, encarou-o com ar desafiador e não respondeu.

— O Coronel Nogo tentou ser razoável. Ele se conduz por certas delicadezas impostas por sua posição. Felizmente não tenho as mesmas restrições. Vou fazer as mesmas perguntas que ele fez, mas agora a senhora vai respondê-las.

Ele tirou o charuto apagado da boca e examinou a ponta. Então jogou-o para um canto da sala e tirou uma caixa achatada do bolso da camisa. Pegou um charuto novo, longo, e acendeu-o com cuidado, segurando o fósforo na ponta até ficar totalmente acesa. Então, em meio à forte fumaça, apagou o fósforo e perguntou:

— Onde está Mek Nimmur?

Ela ergueu os ombros e olhou pela janela.

Sem que ninguém esperasse, ele atingiu o rosto de Tessay com a mão espalmada. Foi um tapa pesado, dado com tanta força que a cabeça virou para o outro lado. Antes que ela se recuperasse, o queixo foi atingido com os nós dos dedos. A cabeça foi jogada na direção oposta e Tessay voou da cadeira.

Helm parou ao lado dela no chão, pegou os braços e torceu-os nas costas. Colocou-a novamente na cadeira e postou-se por trás. Segurava-a com tanta força que ela sentia a pele dos braços machucada sob os dedos dele.

— Não tenho tempo a perder — Helm disse em voz baixa, tirando o charuto da boca para examinar a ponta. — Vou começar outra vez. Onde está Mek Nimmur?

O ouvido de Tessay doía como se tivesse sido perfurado pela violência dos golpes. Apitava e zunia. Os dentes haviam cortado profundamente a mucosa da boca, e aos poucos o sangue começou a escorrer.

— Onde está Mek Nimmur? — Helm repetiu, aproximando-se do rosto dela. — O que seus amigos estão fazendo na represa do Rio Dandera?

Ela juntou sangue e saliva dentro da boca e cuspiu explosivamente no rosto dele.

Helm recuou violentamente e limpou o sangue dos olhos com a palma da mão.

— Segure-a — gritou para Nogo, e pegou-a pela blusa. Com um puxão, rasgou-a até a cintura. Nogo deu uma risadinha e inclinou-se por cima dela para ver-lhe os seios. Riu novamente quando Helm pegou um deles e apertou o mamilo entre o indicador e o polegar. Era de um vermelho profundo, como amora.

Ele continuou apertando e enfiou as unhas na pele até o sangue explodir e escorrer por seus dedos. Com a outra mão, tirou o charuto aceso da boca e soprou a ponta para avivar a brasa.

— Onde está Mek Nimmur? — perguntou, aproximando o charuto do seio. — O que estão fazendo no Rio Dandera?

Ela olhou aterrorizada o charuto se aproximando e tentou afastar-se. Mas Nogo a segurava por trás. Tessay deu um grito agoniado quando a brasa ardente encostou em seu mamilo e a pele delicada começou a queimar.

Inverno — disse Royan, abrindo a ampliação fotográfica da quarta face do monólito embaixo de um refletor. — É o lado que contém as anotações de Taita, as quais acredito que sejam as do tabuleiro de bao. Não entendo todas, mas por eliminação determinei que o primeiro símbolo denota um dos quatro lados ou, como ele os chama, os castelos do tabuleiro.

Ela mostrou a Nicholas as páginas de seu caderno onde fizera os cálculos.

— Veja aqui: o mandril sentado é o castelo norte, a abelha é o sul, o pássaro é o oeste e o escorpião, o leste. — Ela mostrou os mesmos símbolos na foto do monólito. — A segunda e a terceira figuras são números. Acredito que designem a fileira e a jogada. Com elas podemos seguir os movimentos de suas pedras vermelhas imaginárias. O vermelho é a cor de maior valor no tabuleiro.

— E os versos entre cada conjunto de notações? — Nicholas perguntou. — Como estes aqui, sobre o vento norte e a tempestade?

— Não estou bem certa a respeito deles. Provavelmente são apenas cortinas de fumaça, se conheço Taita. Ele nunca facilita a vida para nós. Pode ser que tenham importância, mas poderemos examiná-los quando movimentarmos nossas pedras.

Nicholas olhou para as figuras e riu, desanimado.

Imagine como é remota a possibilidade de alguém conseguir decifrar as pistas que ele deixou. O primeiro requisito é que o decifrador tenha acesso a ambas as crônicas, ao sétimo papiro e ao monólito de Tanus para entender o segredo da tumba.

Royan também riu, mas um riso aberto de satisfação.

— É, ele achou que estava em total segurança. Vamos ver agora, Senhor Taita. Vamos ver se é mesmo esperto. — Então, novamente séria, ela olhou para a escada de pedra que conduzia ao labirinto.

— Agora vamos ver se meus desenhos e minhas teorias batem com as pedras e as paredes da arquitetura de Taita. Mas por onde devemos começar?

— Pelo início — Nicholas sugeriu. — O deus da primeira casa. Foi o que Taita nos disse. Se começarmos por aqui, o santuário de Osíris, ao pé da escada, talvez isso nos dê a posição de seu tabuleiro de bao imaginário.

— Também pensei nisso — Royan concordou no mesmo instante. — Vamos partir do princípio de que este é o castelo norte do tabuleiro. Depois examinaremos o protocolo dos quatro touros a partir daqui.

Era um trabalho lento e cansativo tentar penetrar a mente do antigo escriba, sondando o labirinto de passagens e túneis que ele construíra havia tanto tempo. Desta vez eles entraram no labirinto com mais precaução. Nicholas enchera os bolsos com pedaços de barro branc seco e usou-os como giz para marcar as paredes de pedra em cada ramal e bifurcação dos túneis, a partir das notações da face norte do monólito, fazendo símbolos que lhes permitissem não só encontrar o caminho de volta, mas relacioná-lo ao modelo que Royan desenhava em seu caderno.

Descobriram que a primeira hipótese — que o santuário de Osíris era o castelo norte do tabuleiro — parecia correta. Estavam otimistas: se essa fosse a chave, seria mais simples seguir os movimentos do jogo e chegar a algumas conclusões. Mas suas esperanças logo ruíram quando se deram conta de que Taita não raciocinava apenas nas duas dimensões do tabuleiro convencional. Acrescentara uma terceira dimensão à equação.

A escada que partia do santuário de Osíris não era o único vínculo entre os oito patamares. Cada uma das passagens subia ou descia sutil-mente. Enquanto seguiam pelas curvas e voltas dos túneis, não notaram que os níveis também mudavam. De repente voltaram à escada central, mas num nível superior ao que estavam antes.

— Não percebi que estávamos subindo — disse Royan, perplexa. — É muito mais complicado do que imaginei.

— Parece os modelos nucleares de alguns átomos de carbono — Nicholas concordou, admirado. — Interliga todos os oito planos. Francamente, é assustador.

— Mas agora tenho um indício do que significam aqueles estranhos símbolos — ela murmurou. — Referem-se aos vários níveis. Vamos ter de repensar todo o conceito.

— Um bao tridimensional jogado com regras enigmáticas. Que chances nós temos contra ele? — Nicholas balançou a cabeça pesarosamente. — Precisamos de um computador. Taita não se vangloria à toa de suas virtudes. O velho patife era um gênio da matemática. — Ele ergueu a lâmpada para iluminar o túnel. — Mesmo sabendo que existe, não se percebe o declive do piso. Ele desenhou e construiu tudo sem ter sequer uma régua de cálculo ou um nível de bolha de ar. Este labirinto é uma obra de engenharia.

— Deixe o fã-clube para mais tarde — Royan sugeriu. — Agora vamos repensar esses números mais uma vez.

— Vou trazer as lâmpadas e as mesas para cá, a plataforma central da escada — Nicholas concordou. — Acho que devemos trabalhar a partir do centro do tabuleiro. Talvez isso ajude a visualizá-lo. Porém estou totalmente confuso.

Os únicos sons que se ouviam na sala eram os soluços de uma mulher encolhida no chão, caída na poça de seu próprio sangue e sua urina. Tuma Nogo estava sentado à grande mesa de reuniões e acendeu um cigarro. Suas mãos tremiam e ele se sentia nauseado. Era um soldado e vivera durante o regime de terror de Mengistu. Apesar de ser um homem resistente e acostumado à violência e à crueldade, o que acabara de presenciar deixara-o abalado. Sabia agora por que Von Schiller contava tanto com Helm: o homem não era humano.

Do outro lado estava Jake Helm, lavando as mãos numa pequena pia. Enxugou-as fastidiosamente e então esfregou a toalha sobre as manchas da roupa, aproximando-se de Tessay.

— Ela não tem mais nada para nos contar — disse calmamente. — Acho que não está escondendo nada.

Nogo olhou para a mulher; as queimaduras em seu peito e no rosto eram como as ulcerações de uma terrível varíola. Seus olhos estavam fechados e os cílios tinham desaparecido. Ela agüentara bem. Somente quando Helm encostou o charuto aceso em suas pálpebras foi que ela capitulou e gritou as respostas que ele queria ouvir.

Nauseado, Nogo ficou aliviado por não ter de segurar os olhos dela abertos, como Helm ordenara, e assisti-lo apagar a brasa nas retinas úmidas.

— Fique de olho nela — Helm ordenou, baixando as mangas da camisa. — É muito corajosa. Não se distraia.

Helm passou por ele e foi para a porta por onde entrara na última vez. Deixou-a aberta. Nogo ouviu vozes do outro lado, mas falavam em alemão, e ele não conseguiu captar o que diziam. Agora compreendia por que Von Schiller não quisera estar presente ao interrogatório. Conhecia muito bem os métodos de Helm.

Jake Helm voltou e fez um sinal para Nogo.

— Muito bem, terminamos com ela. Você sabe o que deve fazer. Nogo levantou-se incomodado e levou a mão ao coldre.

— Aqui? — perguntou. — Agora?

— Não seja tolo — disse Helm rispidamente. — Leve-a para bem longe daqui. E mande alguém limpar essa sujeira. — Helm deu-lhe as costas e voltou para a outra sala.

Nogo recompôs-se e dirigiu-se à porta do barracão. Passou bem longe de Tessay para não sujar a lona das botas.

— Tenente Hammed! — chamou da porta.

Hammed e Nogo puseram Tessay em pé. Não diziam uma palavra Estavam amortecidos, sentindo-se quase culpados, quando a ajudaram a vestir as roupas rasgadas e ensangüentadas. Hammed desviou o olhar do corpo nu, das queimaduras e dos ferimentos que marcavam a pele cor de âmbar. Enrolou o shamma nos ombros dela e levou-a para a porta. Quando as pernas de Tessay fraquejaram, ele não a deixou cair, amparando-a em seu braço. Ajudou-a a descer os degraus; ela andava devagar, como uma velha. Tessay sentou-se no banco do caminhão e cobriu o rosto queimado com as mãos.

Nogo fez um sinal para Hammed e puxou-o de lado. Ele falou em voz baixa e, à medida que Hammed ouvia as ordens, sua expressão foi mudando. Em certo momento começou a protestar, mas Nogo gritou violentamente para que calasse a boca.

— Lembre-se—Nogo repetiu. — Bem longe de qualquer aldeia. Não pode haver testemunhas. Volte imediatamente para fazer o relatório.

Hammed endireitou os ombros, bateu continência e voltou para o caminhão, sentando-se ao lado de Tessay. Deu uma ordem ao motorista e o caminhão saiu do acampamento na direção de Debra Maryam.

Tessay sentia tanta dor que perdeu a noção de tempo. Quase inconsciente, era jogada de um lado para outro quando o caminhão passava pelos buracos da estrada; a cabeça lhe pendia solta sobre o peito. O rosto estava tão inchado que os olhos mal se abriam; num instante em que conseguiu abri-los, achou que sua visão falhava e estava ficando cega. Então percebeu que o sol se punha; estava anoitecendo. Passara o dia todo no barracão com Helm.

Felizmente, as queimaduras nos olhos não haviam provocado grandes danos. Pelo menos conseguia enxergar. Ela olhou pela janela e não reconheceu a estrada.

— Para onde estão me levando? — ela murmurou. — Não é este o caminho para a vila.

O Tenente Hammed não respondeu, e ela voltou a cair no torpor provocado pelas dores e pelo cansaço.

Tessay foi despertada quando o caminhão freou bruscamente e o motorista desligou o motor. Os homens tiraram-na da cabine e a puseram na frente dos faróis. Suas mãos foram amarradas às costas.

— Está me machucando. Está cortando meus pulsos.

Tessay procurou o que lhe restava de forças e coragem. Sentia-se derrotada e patética, sem nenhum espírito de luta.

Um soldado puxou-a pela corda que amarrava os pulsos e tirou-a da estrada. Dois outros os seguiram, carregando pás. Havia luar suficiente para enxergar um bosque de eucaliptos a cerca de 100 metros da estrada, e foi para lá que a levaram. Eles a puseram sentada ao pé de uma árvore, com um rifle apontado em sua direção. Com a mão livre, o soldado fumava um cigarro. Os outros começaram a cavar, discutindo o campeonato de futebol africano, que acontecia em Lusaka, e as chances de o time etíope chegar às finais

Só então Tessay se deu conta de que estavam cavando uma cova. A saliva secou em sua boca ferida enquanto ela procurava o Tenente Hammed desesperadamente. Mas ele ficara no caminhão.

— Por favor — ela sussurrou ao guarda, mas antes de dizer qualquer coisa levou um chute na barriga.

— Quieta! — Ele usou o termo depreciativo usado só para um animal ou um ser inferior. Encolhida no chão, Tessay percebeu que era inútil apelar para eles. Tomada por uma sensação de fraqueza e resignação, chorou baixinho na escuridão.

Quando abriu novamente as pálpebras inchadas, viu que a cova estava tão profunda que já não se viam os homens dentro dela. A terra voava de dentro do buraco e amontoava-se em volta. O guarda havia-se afastado dela e estava ao lado do buraco. Olhou para dentro e disse:

— Já está bem fundo. Chamem o tenente.

Os dois soldados saltaram para fora da cova, recolheram as ferramentas e as armas e desapareceram na escuridão do bosque. Conversando animadamente, voltaram para o caminhão, deixando Tessay só com o guarda.

Ela tremia de frio e de medo enquanto ele permanecia ao lado do buraco, fumando seu cigarro. Se conseguisse se levantar, poderia empurrá-lo para dentro e sair correndo para o bosque. Mas quando tentou se sentar, seus movimentos estavam lentos e rígidos, os pés e as mãos amortecidos. Ela esforçou-se para realizar algum movimento, mas o Tenente Hammed estava chegando.

Hammed iluminou o buraco com sua lanterna.

— Ótimo — disse em voz alta. — Está bem fundo. — Apagou a lanterna e disse ao guarda:

— Sem testemunhas. Vá e espere no caminhão. Quando ouvir os tiros, volte com os outros para fechar o buraco.

O guarda apoiou o rifle no ombro e desapareceu no meio das árvores. Hammed esperou que o homem se distanciasse, aproximou-se de Tessay e ajudou-a a se levantar. Levou-a para o lado da cova, e então ela sentiu que ele mexia em sua roupa. Quis empurrá-lo, mas seus braços estavam amarrados.

— Quero o seu shamma. — Ele tirou o xale de seus ombros e entrou com ele no buraco.

Ela escutava do lado de fora.

— Eles precisam ver alguma coisa aqui. Um corpo.... Hammed saltou para fora, arfando com o esforço, e foi para trás dela. Tessay sentiu o toque de metal entre seus pulsos e as cordas se soltaram. Gemeu de dor quando o sangue circulou novamente em suas mãos adormecidas.

— O que está fazendo? — ela sussurrou. Olhou para dentro da cova e viu o shamma cobrindo alguma coisa com a forma de um corpo. — Vai...

— Por favor, não fale — ele a instruiu delicadamente, pegando seu braço e levando-a para o meio das árvores. — Deite-se aqui. — Ajudou-a a deitar-se no chão, de rosto para baixo, e em seguida espalhou folhas secas e galhos por cima de seu corpo.

— Fique aí! Não tente fugir. Não se mexa até irmos embora.

Ele iluminou rapidamente os galhos secos para ter certeza de que ela estava bem escondida, então afastou-se e voltou para a cova. Dois tiros de pistola explodiram na escuridão, tão altos e inesperados que ela deu um pulo e seu coração começou a bater mais rápido.

Então ouviu Hammed gritar:

— Podem vir. Vamos acabar com isto.

Os homens entraram no bosque e começaram a fechar a cova.

— Não consigo enxergar o que estou fazendo, tenente. Onde está sua lanterna? — disse um dos soldados.

— Não precisa de luz para tapar um buraco — Hammed respondeu. — Faça seu trabalho. Soquem bem a terra. Ninguém pode desconfiar de nada.

Tessay tentava controlar os tremores que sacudiam seu corpo. Por fim, o ruído das pás cessou e novamente Hammed falou:

— Está bom. Vejam se não esqueceram nada. Vamos voltar para o caminhão!

Os passos e as vozes desapareceram. Ela ouviu ao longe o caminhão sendo ligado. Os faróis passaram pelas árvores quando fez a manobra e virou-se na direção de onde tinha vindo.

Muito tempo depois Tessay continuava deitada sob os galhos secos. Tremia de frio e chorava baixinho de dor e de cansaço, mas também de alívio. Então, devagar, foi retirando os galhos de cima do corpo e arrastou-se até a árvore mais próxima. Apoiou-se ao tronco e conseguiu ficar em pé.

Só então foi tomada pela culpa.

— Eu traí Mek. Contei tudo a seus inimigos. Preciso avisá-lo. Tenho de voltar e contar tudo a ele.

Tessay afastou-se do tronco para tentar encontrar na escuridão o caminho de volta.

A única maneira de saber se haviam decifrado corretamente os códigos de Taita era fazer os movimentos que ele havia enumerado. Entraram com muito cuidado nos túneis do labirinto, dando os passos indicados e marcando com giz as paredes de pedra.

Eram dezoito os movimentos expostos na face "Inverno" do monólito. Utilizando a primeira interpretação dos símbolos feita por Royan, conseguiram avançar doze. Então chegaram a um beco sem saída, diante de uma parede de pedra lisa e sem saber para onde ir.

— Maldição! — Nicholas chutou a parede e, como de nada adiantasse, esmagou o giz contra ela. — Adoraria pôr as mãos naquele velho demônio. A castração seria a coisa mais simples com que ele teria de se preocupar.

— Sinto muito. — Royan afastou o cabelo dos olhos. — Pensei que estivesse certa. Devem ser as figuras da segunda coluna. Vamos invertê-las.

— Começaremos outra vez — Nicholas resmungou.

— Pelo princípio — ela concordou.

— Como vamos saber se estamos no caminho certo? — perguntou Nicholas.

— Se, seguindo as pistas, chegarmos a uma combinação vencedora, o equivalente do xeque-mate no bao, exatamente no décimo oitavo movimento. Como não há nenhum lance lógico depois disso, significará que fizemos os movimentos corretos.

— E o que encontraremos se chegarmos a essa posição?

— Eu lhe direi quando chegarmos lá. — Ela sorriu com doçura. — Ânimo, Nicky. Estamos apenas começando.

Royan inverteu os valores dos segundo e terceiro números das notações de Taita, e considerou o primeiro como correspondente à casa e o segundo, à coluna. Desta vez eles fizeram somente cinco movimentos e viram-se encurralados, sem ter para onde ir.

— Será que nossa premissa de que o terceiro símbolo corresponde à mudança de nível está errada? — Nicholas sugeriu. — Vamos começar outra vez e considerar o terceiro valor.

— Nicky, você já se deu conta do número de combinações posssíveis com três variáveis? — Royan começava a duvidar. — Taita partiu de um conhecimento profundo do jogo. Nós temos apenas uma noção rudimentar de como era jogado. É como se um grande mestre tentasse explicar a um noviço as complexidades da Defesa Indiana do Rei.

— Em russo! — Nicholas enfatizou a comparação. — Nesse ritmo não chegaremos a lugar algum. Deve haver outra abordagem. Vamos voltar aos epigramas que Taita colocou entre as notações.

— Tudo bem. Eu leio e você ouve. — Royan mergulhou em suas notas. — O problema é que a mais sutil variação na tradução pode mudar todo o sentido. Taita adorava fazer trocadilhos, e um trocadilho pode ser apenas uma palavra de efeito. Basta distorcer uma delas para que tudo se perca.

— Tente assim mesmo — Nicholas encorajou-a. — Lembre-se de que Taita também nunca tinha jogado bao em três dimensões. Se deixou alguma pista, deve estar bem no início do monólito. Concentre-se no primeiro par de notações e nos epigramas que as separam.

— Vamos ver — Royan concordou. — A primeira notação é a abelha seguida pelos números cinco e sete, e o sistro.

Nicholas riu.

— Tudo bem, já ouvi isso tantas vezes que jamais me esquecerei. E depois?

— A primeira citação. — Ela seguia os hieroglifos com o dedo. — "Tudo a que se dá nome pode ser conhecido. O que não tem nome só pode ser sentido. Eu navego com a maré por trás e o vento em meu rosto. Oh, bem-amada, é doce o seu sabor em meus lábios."

— Só isso? — ele perguntou.

— Só. Agora a notação seguinte. O escorpião, os números dois e três, e novamente o sistro.

— Devagar! Devagar! Uma coisa por vez. O que podemos deduzir de "navegar" e "bem-amada"?

Assim, foram e voltaram sobre o texto do monólito, até seus olhos arderem e eles perderem a noção do tempo. Finalmente, foram chamados à realidade quando a voz de Sapper ecoou na escadaria. Nicholas levantou-se da mesa, espreguiçou-se e olhou o relógio.

— Oito horas. Só não sei se da manhã ou da noite.

Sapper subia a escada, com a careca brilhando e a camisa ensopada.

— O que aconteceu? — Nicholas perguntou. — Caiu dentro do poço? Sapper enxugou o rosto com a palma da mão.

— Ninguém lhe avisou? Está chovendo a cântaros lá fora.

Nicholas e Royan olharam-no espantados.

— Já? — Royan murmurou. — Ia começar só daqui a algumas semanas.

Sapper deu de ombros.

— Alguém se esqueceu de avisar São Pedro.

— E como está? — Nicholas perguntou. — Como está o rio? O nível da água já começou a subir?

— É o que vim dizer. Vou subir para a represa e levarei os Búfalos comigo. Quero ficar de olho nela. Se ficar perigosa, mandarei alguém avisar. Quando isso acontecer, não pare para discutir. Saia daqui rápido. É que a represa vai se romper a qualquer momento.

— Não leve Hansith. Preciso dele — Nicholas pediu.

Quando Sapper se foi, levando consigo a maior parte dos homens, Royan e Nicholas entreolharam-se com gravidade.

— Estamos correndo contra o tempo, e Taita ainda nos mantém amarrados — disse Nicholas. — Quero lhe avisar uma coisa: quando o rio começar a subir...

Ela não o deixou concluir.

— Rio! E não mar! Eu me enganei na tradução. Traduzi como "maré". Achei que Taita se referisse ao mar, mas deve ser a "correnteza". Os egípcios não faziam distinção entre as duas coisas.

Eles correram para a mesa.

— "A correnteza por trás e o vento em meu rosto" — disse Nicholas, mudando a citação. Royan exultava.

— No Nilo, o vento que prevalece é sempre o do norte, e a correnteza vem sempre do sul. Taita estava voltado para o norte. O castelo norte.

— Consideramos o símbolo do norte como sendo o mandril — ele lembrou.

— Não! Eu estava enganada. — Seu rosto estava iluminado pelas chamas da inspiração. — "Oh, bem-amada, é doce seu sabor em meus lábios." Mel! A abelha! Eu havia invertido os símbolos do norte e do sul.

— E o leste e oeste? Onde estarão? — Nicholas citou o texto com entusiasmo renovado: — "Meus pecados são rubros como a cornalina. Eles me amarram como correntes de bronze. Aguilhoam meu coração e atraem meus olhos para a estrela da tarde."

— Não consigo ver...

— "Aguilhoar" é a tradução errada — ele gaguejou ansioso. — Deve ser "ferroar". O escorpião olhando para a estrela da tarde. Vésper está sempre a oeste. O escorpião é o castelo oeste, e não leste.

— Nós invertemos o tabuleiro! — Royan pulava de contentamento. — Vamos jogar assim!

— Ainda não determinamos os níveis — Nicholas objetou. — O que fica em cima, o sistro ou as três espadas?

— Agora que entramos por esse caminho, resta uma única variável. Ou estamos certos ou errados. Jogamos primeiro no sistro como nível superior e, se não funcionar, jogamos do outro modo.

Era muito mais fácil agora. As complicações do labirinto haviam-se tornado menos perigosas com o tempo. Havia os grandes sinais de giz feitos por Nicholas a cada curva e bifurcação. Eles percorriam depressa as curvas e voltas, muito mais animados à medida que seguiam as notações e o caminho se abria.

— O décimo oitavo movimento — a voz de Royan tremeu. — Faça figas com as duas mãos. Se nos levar a uma das colunas abertas, que ameaçam o castelo sul do adversário, será a casa do xeque. — Ela deu um profundo suspiro e leu em voz alta: — O pássaro. Os números três e cinco. Com o símbolo das três espadas embaixo.

Eles ultrapassaram as cinco junções no nível inferior do labirinto, reconhecendo suas posições pelas marcas de giz em cada bifurcação.

— Aí está! — disse Nicholas. Os dois pararam e ficaram olhando.

— Não há nada além deste ponto. — Royan estava claramente decepcionada. — Já passamos por aqui cinqüenta vezes. É só mais uma curva.

— Exatamente o que Taita pretendia. Droga! Ele não poria uma placa avisando: "O ponto está marcado com X"; poria?

— O que faremos, então? — Royan estava completamente perdida.

— Leia o último epigrama do monólito. Ela abriu o caderno.

— "Na terra oca e escura deste meu próprio Egito, a colheita é abundante. Chicoteio os flancos de meu burro, e o ferrão do arado rasga o chão. Planto a semente e colho uvas e espigas de milho. No momento certo bebo o vinho e como o pão. Sigo o ritmo das estações e cultivo a terra."

Royan olhou para Nicholas.

— O ritmo das estações? Estaria nos remetendo às quatro faces do monólito? A terra? — Ela olhou para as pedras sob seus pés. — A promessa de recompensa da terra? Sob nossos pés, talvez?

Ele bateu os pés nas lâminas de pedra, mas o som era sólido e seco.

— Só há um meio de saber. — Nicholas gritou e sua voz ecoou pelo labirinto. — Hansith! Venha até aqui.

Sapper estava em cima do trator, sob a chuva, xingando o grupo dos Búfalos, certo de que não entenderiam seus palavrões. A chuva o açoitava com golfadas intermitentes, mas ainda não era uma tempestade típica da estação chuvosa. O rio, contudo, começava a subir lentamente, ganhando uma tonalidade escura por causa da lama e dos sedimentos depositados no fundo.

Ele sabia que ainda não era uma inundação. O trovão que ribom-bou nos picos das montanhas, com a fúria de um leão perseguido, era apenas o prelúdio de uma furiosa investida celestial que ainda estava por vir. Embora as águas alcançassem a fileira de gabiões e corressem furiosamente pelo canal aberto no vale, ainda estavam sob controle.

Os Búfalos preparavam mais cestos de pedra, utilizando as últimas que restavam na pedreira. Assim que ficavam prontos e bem amarrados, Sapper os erguia com o trator e os colocava no barranco do Dandera. Reforçou os pontos fracos da parede da represa e começou a erguer outra fileira. Tinha plena consciência da reviravolta que o rio provocaria quando começasse a passar por cima do paredão. Nada poderia conter sua força quando isso acontecesse. Arrastaria a fileira de gabiões como se fossem galhos de baobás. Bastaria uma única brecha na parede para que toda a estrutura tombasse e rolasse com as águas.

Sapper não ousaria esperar por isso para avisar Nicholas e Royan no fundo do abismo. O rio seria mais rápido que qualquer mensageiro; quando a parede começasse a se romper já seria tarde demais. Era apenas uma questão de avaliação, pensou ele, fechando os olhos sob uma golfada de chuva que atingiu seu rosto. Sua vontade era mandar que saíssem agora mesmo daquele abismo — faltava pouco mais de um metro para as águas alcançarem o topo da parede.

Sabia, contudo, que Nicholas ficaria furioso se fosse obrigado a abandonar o trabalho prematuramente e todos os esforços resultassem em nada. Sapper bem conhecia os grandes riscos que ele havia assumido e os imensos gastos que tivera para chegar a esse estágio. Antes de saírem da Inglaterra havia lhe revelado as condições financeiras em que se encontrava. Embora Sapper não entendesse as complexidades ou responsabilidades de ser um "nome" do Lloyd's, o assunto fora tão divulgado pela imprensa britânica que podia apenas imaginar que, se os planos falhassem, o próximo lugar de Nicholas seria nos tribunais de falências — e Nicholas era seu amigo.

A pancada de chuva diminuiu e o sol reapareceu por trás das nuvens baixas. O rio não se tornou mais lento, mas ao menos o nível das águas parou de subir na parede da represa.

— Dou mais uma hora — Sapper resmungou, engatando a marcha do trator e descendo o barranco para colocar mais um gabião.

Nicholas trabalhava ombro a ombro com o grupo de Hansith para arrancar as lajes do piso no nível inferior do labirinto. As juntas eram tão apertadas, mesmo usando pés-de-cabra, que era difícil separá-las. Para ganhar tempo, Nicholas fez a difícil opção de destruí-las. Colocou quatro homens fortes trabalhando com marretas para quebrar as lajes e erguê-las com mais facilidade. Sentia-se culpado pelos estragos que estavam fazendo, mas o trabalho andou muito mais rápido.

O ânimo e o entusiasmo dos homens estavam começando a murchar. Haviam trabalhado muito tempo no confinamento opressivo do labirinto, sabiam que o rio estava subindo na cabeceira da garganta e conheciam o perigo que isso representava. Já não riam e cantavam com a mesma facilidade. Mas o que mais preocupava Nicholas era o fato de que Hansith relatara as primeiras deserções. Dezesseis homens não haviam comparecido à chamada matinal. Tinham feito suas trouxas durante a noite e fugido na escuridão.

Nicholas sabia que era inútil mandar alguém atrás deles — estavam muito à frente, talvez a meio caminho do escarpamento. Assim era a África. Ele também sabia que a moda se espalharia rapidamente.

Fazia piadas e procurava animá-los, impedindo que percebessem seus verdadeiros sentimentos. Trabalhava e suava junto com eles na escavação, tentando mantê-los lá. Mas sabia que, a menos que descobrissem alguma coisa sob aquelas lajes, para manter vivos o interesse e a expectativa, poderia acordar na manhã seguinte e descobrir que outros monges tão fiéis quanto Hansith haviam ido embora.

Nicholas começou a erguer uma pedra num canto do labirinto, e os homens trabalharam a partir dali em ambas as direções do túnel. Ele sentia o coração apertado quando uma laje era quebrada a marteladas, e sob ela só encontravam estrato de rocha sólida e nenhum sinal de abertura ou junção.

— Não é muito animador — ele segredou a Royan quando parou para beber um pouco de água.

Ela também estava infeliz quando despejou a água de um frasco nas mãos em concha, para lavar o suor e a sujeira do rosto.

— Posso ter entendido errado os símbolos dos níveis — Royan sugeriu. — Talvez tenha sido mais um dos truques de Taita, fazer combinações com ambas as soluções lógicas. — Ela hesitou em pedir-lhe ajuda. — Acha que deveríamos voltar a outra combinação...?

Sua pergunta foi interrompida por um grito de Hansith.

— Em nome da Virgem Maria, efêndi, venha depressa!

Os dois saíram correndo. Na pressa, Royan derrubou o frasco no chão e só percebeu porque a água espirrou em suas pernas. Mas correu para onde estava Hansith, com a marreta pronta para outro golpe.

— O que é...? — Ela parou de falar quando viu que por baixo da laje Hansith havia descoberto mais uma camada de pedras revestidas.

Estavam cuidadosamente dispostas no piso do túnel, de uma parede a outra, encravadas na rocha e tão juntas que a lâmina de uma faca não entraria entre elas. A superfície era lisa e plana, sem entalhes ou marcas de qualquer tipo.

— O que é isso, Nicky? — ela perguntou.

— Ou é outra camada de pavimentação, ou é a tampa de um alçapão no piso. Só vamos saber quando erguermos uma delas.

As pedras eram muito grossas e difíceis de quebrar com martelos primitivos, por mais que Hansith se esforçasse. No fim, tiveram de cavar em volta da primeira e soltá-la. Cinco homens foram necessários para erguer um dos lados e arrancá-la da base.

— Há uma abertura por baixo — Royan ajoelhou-se para olhar. — Será outro túnel?

Removida a primeira pedra, ficou mais fácil arrancar as outras que bloqueavam a abertura retangular. Quando retiraram todas, Nicholas enfiou uma lâmpada no buraco escuro que se revelou. Ele se esticou de uma parede à outra, e o espaço era suficiente para ficar em pé nos degraus, que desciam num ângulo de 45 graus.

— Outra escada — ele exultou. — Sem dúvida é aqui. Taita deve ter esgotado todas as suas falsas indicações.

Os homens juntaram-se atrás deles e o desânimo evaporou com a nova descoberta e a certeza de bônus adicionais em merecidos dólares de prata.

— Você vai descer? — Royan perguntou. — Acho que devíamos ter cuidado e procurar outras armadilhas, só que não temos mais tempo, Nicky.

— Você está certa, como sempre. Chegou a hora de não termos mais cuidado.

— Basta de cuidados. — Ela apertou-lhe a mão. — Vamos juntos. Desceram lado a lado, um degrau de cada vez, com a lâmpada no alto e as sombras retraindo-se na frente deles.

— Há uma câmara no fundo — Royan exclamou.

— Parece um depósito... que objetos são aqueles encostados nas paredes? São centenas! Seriam caixões, sarcófagos? — As formas escuras eram quase humanas, dispostas lado a lado, enfileiradas nas paredes da câmara quadrada.

— Não, acho que são cestos de milho de um lado — ela reconheceu — Do outro parecem ânforas de vinho. Provavelmente oferendas aos mortos.

— Se for um depósito funerário — disse Nicholas, animado —, estamos muito perto do túmulo agora.

— Sim! — ela gritou. — Veja... há outra passagem no fundo do depósito. Ilumine ali.

A luz alcançou a abertura que estava na frente. Era convidativa e os atraía de modo quase sedutor. Por pouco não entraram correndo na câmara. Quando pisaram dentro do depósito, deram com uma barreira invisível que os fez parar imediatamente e recuar.

— Céus! — Nicholas sentiu a garganta se fechar e a voz sair sufocada. — Volte. Temos de voltar.

Royan caiu de joelhos, também precisando de ar.

— Nicky! — ela tentou gritar, mas o ar estava preso nos pulmões. Era como se uma corrente de aço encerrasse seu peito, e, quanto mais apertava, mais o ar saía de dentro dela.

— Nicky! Ajude-me! — Royan estava sufocando como um peixe atirado à praia. Seus membros perdiam a força e sua visão começou a ficar obscurecida. Ela não tinha forças para se levantar.

Nicholas tentou erguê-la, mas estava tão fraco quanto ela. Sentiu que suas pernas enfraqueciam e mal suportavam o próprio peso.

"Quatro minutos", ele pensou desesperadamente. "E só isso que temos. Quatro minutos para morrer. Precisamos de ar."

Passou os braços sob as axilas de Royan e cruzou as mãos com força na frente. Tentou erguê-la, mas não tinha mais forças. Começou a andar para trás em direção à escada que tinham descido com tanta facilidade e cada passo lhe exigia um esforço enorme. Royan já estava inconsciente e inerte em seus braços, arrastando as pernas pelo chão de pedra enquanto ele a puxava para fora.

O calcanhar de Nicholas encostou no último degrau e ele quase caiu. Esforçando-se para retomar o equilíbrio e erguê-la para cima, seus pés escorregavam e viravam sob os tornozelos. Queria gritar para que Hansith os ajudasse, mas não havia ar em seus pulmões para emitir som.

"Se você a soltar agora, ela morre", ele disse para si mesmo, e tentou subir mais cinco degraus, com os pulmões necessitando de ar e não encontrando nada. A força esvaía-se gota a gota, a visão estava distorcida, desfocada, trêmula.

"Deixe-me respirar", ele pedia. "Oh, Deus, deixe-me respirar." Milagrosamente, como uma resposta direta à sua prece, sentiu o precioso oxigênio descer pela garganta ressecada e encher os pulmões. No mesmo instante sua força começou a voltar e seus braços se apertaram em torno de Royan. Ele carregou-a no colo pelos degraus que faltavam e estatelou-se no chão aos pés de Hansith.

— O que foi, efêndi? O que aconteceu ao senhor e à moça? Nicholas não tinha fôlego para responder. Colocou Royan na posição de respiração boca a boca e bateu no rosto dela.

— Vamos! — pedia-lhe. — Fale! Converse comigo!

Royan não reagia. Ele ajoelhou-se ao lado dela, cobriu a boca com a sua e soprou até ver com o canto dos olhos que seu peito subia e descia. Nicholas sentou-se e contou até três.

— Por favor, minha querida, respire! — O rosto de Royan estava amarelado como o de um cadáver.

Nicholas curvou-se sobre ela para tentar novamente; quando encheu os pulmões com seu próprio ar, sentiu que ela se mexia.

— Isso mesmo, minha querida — disse-lhe. — Respire. Respire por mim.

Na respiração seguinte, ela o empurrou e sentou-se atordoada, olhando o círculo de rostos que a fitavam ansiosamente. Encontrou o rosto branco de Nicholas no meio de todos os outros, negros.

— Nicky! O que aconteceu?

— Não tenho certeza... Mas seja o que for, quase acabou com nós dois. Como está se sentindo?

— Foi como se uma mão invisível apertasse minha garganta e me estrangulasse. Eu não podia respirar e desmaiei.

— Acho que há algum tipo de gás lá embaixo no túnel. Ficamos somente dois minutos. São necessários quatro minutos para o cérebro morrer por falta de oxigênio.

— Estou com muita dor de cabeça. — Royan apertou as têmporas com as pontas dos dedos. — Ouvi você me chamando. Ouvi dizer "minha querida". — Ela baixou os olhos.

— A língua escorregou. — Nicholas ajudou-a a ficar em pé; ela vacilou em seus braços, com os seios macios e quentes encostados em seu peito.

— Mais uma vez, obrigada, Nicky. Devo-lhe mais essa, e não sei como poderei retribuir.

— Tenho certeza de que vai pensar em alguma coisa.

De repente, ela se deu conta de que os homens estavam olhando e se afastou dele.

— Que tipo de gás? Como foi colocado lá? Acha que foi mais um truque de Taita, Nicky?

— Gases de decomposição, imagino — ele opinou. — Por ficar preso lá embaixo, deve ser um tipo mais pesado que o ar. Provavelmente dióxido de carbono, ou talvez metano. Acho que o metano é mais pesado que o ar, não é?

— Taita teria feito isso de propósito? — Seu rosto voltava a ganhar cor e ela se recuperava rapidamente.

— Não sei, mas aqueles jarros e cestas são suspeitos. Só poderei responder quando examinar de perto seu conteúdo. — Nicholas encostou a mão no rosto de Royan. — Como está se sentindo? E a dor de cabeça?

— Melhor. O que faremos agora?

— Tirar o gás daquela câmara o mais rápido possível.

Ele usou uma vela que havia em sua caixa de primeiros socorros para testar o nível de gás no túnel. Com a vela acesa, desceu os degraus, segurando-a rente ao chão. A chama ardia vivamente, dançando no ar à medida que ele descia. De repente, no sexto degrau, a chama ficou amarela e se apagou.

Nicholas marcou o nível na parede com giz branco e chamou Royan na boca do túnel.

— Bem, ao menos não é metano. Ainda estou aqui. Deve ser dióxido de carbono.

— Belo teste conclusivo... — ela riu. — Se fizesse bum seria metano.

— Hansith, traga o ventilador — Nicholas gritou.

Prendendo a respiração como se estivesse debaixo d'água, Nicholas levou o ventilador até o último degrau e virou-o para o chão da câmara. Ligou-o na velocidade máxima e correu para cima, respirando profundamente ao alcançar a marca de giz.

— Quanto tempo levará para retirar o gás? — Royan perguntou, ansiosa, olhando o relógio de pulso.

— Vou testar com a vela a cada quinze minutos.

Levou uma hora para que todo o gás se dispersasse, permitindo que eles descessem e respirassem lá embaixo. Nicholas pediu a Hansith que arrumasse madeira e acendesse um fogo no centro do piso de pedra, para o ar se aquecer e circular mais rapidamente.

Enquanto ele fazia isso, Nicholas e Royan examinaram uma das cestas que ficava encostada à parede.

Atravessaram a câmara, viraram um dos jarros de barro e examinaram o pó que saía de dentro. Nicholas pegou um punhado, esfregou-o entre os dedos e cheirou.

— Pó de calcário — murmurou —, embora esteja aqui há muito tempo e já tenha perdido o odor. Provavelmente Taita triturou o calcário com algum tipo de ácido. Vinagre, talvez, até urina daria certo. Misturado ao calcário, formou dióxido de carbono.

— Então foi outra armadilha proposital! — exclamou Royan.

— Há quatro mil anos Taita já conhecia o processo de decomposição. Sabia que gases essa mistura poderia produzir. Dentre todas as qualificações de que tanto se gaba, deve ter sido também um excelente químico.

— Além disso, devia saber que sem corrente ou qualquer movimentação do ar esses pesados gases inertes ficariam presos no fundo da câmara indefinidamente — Royan concordou. — Aposto que esse túnel sobe outra vez. — Apontou para a misteriosa passagem na parede. — Na verdade estou vendo os degraus daqui.

— Logo saberemos se você está certa, porque é exatamente para lá que estamos indo.

Sapper colocara balizas de pedra nas margens do rio para controlar o nível da água. Observava-os como um corretor da Bolsa de Valores controla seu registrador automático de cotações.

Já fazia seis horas que havia chovido. As nuvens que cobriam o vale dispersaram-se com o sol quente mas ainda cobriam o horizonte ao norte. Os cúmulos de tempestade tinham recuado, ameaçadores e nefastos, formando poderosas cadeias sobre as montanhas. A qualquer momento choveria no planalto. Quando isso acontecesse, Sapper não sabia quanto tempo levaria para as águas transbordarem e chegarem à garganta do Abbay.

Ele desceu do trator e foi até o barranco para inspecionar os marcos de pedra. O nível da água havia baixado 30 centímetros na última hora. Não quis se animar nem ser otimista — afinal, bastariam quinze minutos de chuva para o rio subir o mesmo tanto. O resultado final era inevitável. As chuvas viriam. O rio transbordaria e a represa se romperia. Sapper olhou para a barragem e balançou a cabeça, resignado.

Fizera todo o possível para adiar esse momento. Aumentara a altura da represa mais de 1 metro e enfiara outros pilares atrás da parede para escorá-la. Não havia mais nada a fazer, apenas esperar.

Sapper subiu o barranco, debruçou-se sobre o aço amarelo de sua máquina e olhou para o grupo de Búfalos, espalhados ao longo da margem, caídos como mortos num campo de batalha. Haviam trabalhado durante dois dias para segurar a água, e agora estavam exaustos. Não poderia mais convocá-los para novos esforços; na próxima vez em que o rio atacasse, eles não suportariam.

Alguns homens sentaram-se e se voltaram para o lado de baixo do rio. Sapper ouvia suas vozes trazidas pelo vento. Alguma coisa chamava a atenção deles. Sapper subiu no trator e protegeu os olhos com a mão. A inconfundível figura de Mek Nimmur aproximava-se pela trilha, vindo da direção do escarpamento. Estava acompanhado por dois comandantes de pelotão.

Mek acenou para Sapper.

— Como está a represa? — perguntou em árabe, que Sapper não entendia. — Logo vai começar a chover nas montanhas. Você não conseguirá contê-lo por muito tempo. — Mas seus gestos para o céu e o rio foram imediatamente entendidos.

Sapper pulou da máquina para cumprimentá-lo e apertar sua mão cordialmente. Ambos reconheciam reciprocamente as qualidades de força e profissionalismo que tanto admiravam.

Mek chamou um comandante de pelotão que falava inglês para servir de intérprete.

— Não é só o tempo que me preocupa — Mek confidenciou em voz baixa, e o intérprete transmitiu a Sapper. — Tenho informações de que tropas do governo estão se deslocando para nos atacar. Um batalhão está vindo de Debra Maryam para cá e outro vai para o Mosteiro de São Frumêncio, subindo pelo Rio Abbay.

— Um cerco, hem? — disse Sapper. Mek ouviu a tradução e concordou.

— Tenho poucos homens, e não sei por quanto tempo conseguirei resistir ao ataque. Meus homens são guerrilheiros. Não é nosso papel combater em campo aberto. Nossa guerra é atacar e correr. Vim avisá-lo para que esteja pronto para fugir a qualquer momento.

— Não se preocupe comigo — Sapper riu. — Sou velocista. Cem metros rasos é minha especialidade. Deve se preocupar com Nicholas e Royan, que não saem daquela toca.

— Estou indo para lá agora. Mas temos uma alternativa: se tivermos de nos separar, Nicholas escondeu os botes no mosteiro. Vamos nos reunir lá.

— Certo, Mek. — Sapper parou de falar e os três olharam para a trilha, onde havia uma nova movimentação. — O que está havendo?

— Vem chegando uma patrulha — Mek estreitou os olhos. — Devem ter novidades. — Ele parou de falar porque se lembrou de que Sapper não o entendia, mas no mesmo instante mudou de expressão ao reconhecer a pessoa que estava sendo carregada numa liteira improvisada pelos seus patrulheiros.

Tessay o viu aproximar-se correndo e sentou-se na liteira. Os homens puseram a liteira no chão e Mek ajoelhou-se ao lado dela para abraçá-la. Ficaram abraçados em silêncio por longo tempo. Então Mek tomou o rosto dela nas mãos e examinou os ferimentos. Algumas queimaduras estavam infeccionadas, e os olhos eram duas fendas sob os cílios queimados.

— Quem fez isso com você? — ele perguntou suavemente. Ela murmurou palavras desconexas entre os lábios feridos.

— Eles me obrigaram...

— Não, não diga nada. — Ele mudou de idéia quando o corte no lábio inferior se abriu e o sangue escorreu pelo queixo.

— Preciso dizer — ela insistiu entre soluços. — Obrigaram-me a contar tudo. Quantos homens você tem. O que você e Nicholas estão fazendo aqui. Tudo! Eu sinto muito, Mek. Traí vocês

— Quem era? Quem fez isso com você?

— Nogo e o americano Helm — ela disse. Embora ele a abraçasse como um pai segura o filho nos braços, seus olhos eram terríveis.

A câmara sob o túnel estava finalmente livre do gás. Com a fogueira feita por Hansith ardendo no centro da câmara o ar quente subia e dispersava os vapores nocivos para os níveis mais altos do labirinto, onde se misturavam ao ar rico em oxigênio e perdiam a toxicidade. Royan estava totalmente recuperada da intoxicação, mas com a confiança abalada. Deixou que Nicholas fosse na frente pelos degraus que subiam do outro lado da câmara.

— É uma perfeita armadilha de gás — Nicholas observou enquanto subiam com cuidado. — Não há a menor dúvida de que Taita sabia muito bem o que fazia quando construiu esta parte do túnel.

— Devia esperar que algum intruso daquela época sucumbisse ao seus truques diabólicos, perdendo-se dentro do labirinto, ou desistisse logo — ela imaginou.

— Você está querendo me convencer de que essa foi a última linha de defesa de Taita e que não há mais truques nos aguardando? — Nicholas perguntou, subindo mais um degrau.

— Não. Na verdade, tento convencer a mim mesma e não obtenho muito sucesso. Não confio mais nele. Só posso esperar pelo pior, que o teto desabe em cima de mim a qualquer momento, ou que o chão se abra e nos atire numa fornalha.

Eles haviam descido quarenta degraus até a câmara, e a escada que subiam agora era idêntica à anterior. Inclinava-se no mesmo ângulo para cima e os degraus eram da mesma profundidade e largura. Quando ergueram a cabeça no quadragésimo degrau, Nicholas iluminou a arcada espaçosa que se estendia diante deles e os deslumbrava com a profusão de cores e desenhos, belos e brilhantes como flores do deserto depois da chuva. As pinturas recobriam as paredes e o teto da arcada atordoantes pela profusão, maravilhosas pela execução.

— Taita! — Royan gritou com voz trêmula. — Esses desenhos são dele. Não há outro artista igual. Eu nunca me enganaria. Reconheceria seu trabalho em qualquer lugar.

Pararam no último degrau e olharam ao redor, maravilhados. Comparados àquilo, os murais da galeria não passavam de falsificações grosseiras. Esses eram trabalhos de um grande mestre, um gênio cuja arte conseguia hoje encantar e arrebatar da mesma maneira que há 4 000 anos.

Eles andavam lentamente, quase sem vontade própria, pela arcada. Havia arcos de celas em toda a extensão, como num bazar oriental. As colunas que sustentavam a abóbada eram estátuas de entidades do panteão dos deuses.

Na segunda cela, Nicholas apertou o braço de Royan.

— As câmaras do tesouro do faraó — sussurrou.

Todas as celas eram ornamentadas do chão ao teto com objetos maravilhosos.

— O depósito de móveis — Royan disse em tom reverente, reconhecendo cadeiras, bancos, camas e divãs. Na câmara seguinte, ela encostou a mão no trono real. Os braços eram serpentes entrelaçadas, de bronze e lápis-lazúli. As pernas, leões com garras de ouro. O assento e o encosto, entalhados com cenas de caça, eram encimados pelas asas do deus.

Atrás do trono havia uma grande profusão de móveis. Royan reconheceu um divã decorado cujas laterais eram um fantástico rendado de ébano e marfim. Mas havia dezenas de outros móveis, muitos deles desmontados, de modo que era impossível reconhecê-los. Reluziam com metais preciosos e pedras coloridas, em tal profusão e variedade que era difícil ver tudo de uma só vez. Duas alcovas, uma a cada lado da arcada, continham essas maravilhosas coleções. Royan balançava a cabeça extasiada, e Nicholas puxou-a para a frente. As paredes que separavam as alcovas eram decoradas com painéis ilustrativos do Livro dos Mortos e a jornada do faraó pelas sete torres, os perigos e as provações, os demônios e monstros que o aguardavam no caminho.

— Essas são as pinturas que estavam faltando no túmulo falso da galeria — disse Royan. — Olhe só o rosto do rei. Vê-se sua realeza. São verdadeiros retratos reais.

O mural ao lado representava o grande deus Osíris conduzindo o faraó pela mão, protegendo-o dos monstros que o cercavam, esperando uma oportunidade para devorá-lo. O semblante do rei era como devia mesmo ter sido: doce e suave, para não dizer delicado.

— Veja essas figuras — Nicholas comentou. — Não são bonecos rígidos, sempre dando um passo com o pé direito. São homens e mulheres de verdade. São anatomicamente corretos. O artista conhecia perspectiva e estudou o corpo humano.

Na dupla seguinte de alcovas eles pararam para olhar.

— Armas — disse Nicholas. — Veja só aquele coche de guerra. As laterais do carro eram revestidas com uma folha de ouro ofuscante. Os arreios pareciam estar esperando que os cavalos fossem conduzidos ao campo de batalha. O cartucho de Mamose adornava os painéis laterais.

Ao lado do magnífico veículo havia arcos de guerra cujas hastes eram revestidas por uma liga de ouro e prata, bronze e ouro. Havia adagas com cabos de marfim e espadas com lâminas de bronze. Havia armações para lanças e piques; escudos de bronze, alvos decorados com cenas de guerra e o nome do divino Mamose; havia elmos e peitorais feitos de pele de crocodilo; uniformes e insígnias reais dos famosos regimentos do Egito vestiam as estátuas do rei em tamanho natural, enfi-leiradas nas paredes das alcovas.

Eles continuaram andando por entre pinturas e murais que representavam a vida e a morte do rei. Viram-no brincando com as filhas e embalando o infante. Viram-no pescando, caçando e falcoando, em conselho com seus ministros e nomarcas, divertindo-se com suas esposas e concubinas, celebrando com os sacerdotes do templo.

— Que crônica de vida dos tempos antigos! — Royan suspirou extasiada. — Até hoje nunca se encontrou nada semelhante.

Os desenhos dos painéis eram realistas. As figuras de homens e mulheres pareciam existir realmente; cada rosto, cada expressão eram diferentes entre si, captados pelos olhos aguçados, pela genialidade e a grande sensibilidade do artista.

— Este deve ser Taita — Royan mostrou um auto-retrato do eunuco, num dos painéis centrais. — Será uma licença poética ou ele era mesmo tão nobre e belo?

Eles pararam para admirar o semblante de Taita, olhando atentamente para seus olhos inteligentes. Sua habilidade fora tal que a imagem devolvia o olhar com a mesma profundidade com que era olhada.

O sorriso enigmático estava perfeitamente preservado, como se tivesse sido feito no dia anterior. Os lábios de Taita pareciam úmidos, e os olhos transmitiam vida.

— Ele é bonito e tem olhos azuis — exclamou Royan. — O cabelo vermelho certamente é tingido com hena.

— É engraçado pensar que, mesmo tendo vivido há tanto tempo, ele quase nos matou — Nicholas disse num tom tranqüilo.

— Onde foi que ele nasceu? Nunca nos contou isso nos pergaminhos. Foi na Grécia ou na Itália? Seria de um tribo germânica ou era um viking? Nunca vamos saber; talvez nem ele conhecesse sua origem.

— Aqui está ele novamente — Nicholas mostrou mais abaixo, onde o rosto inconfundível do eunuco aparecia no meio de uma multidão ajoelhada diante de tronos nos quais estavam o faraó e sua rainha.

— Como Hitchcock, ele gosta de aparecer em suas obras.

Continuaram passando por celas que continham pratos, taças e tigelas de alabastro e bronze entalhados com prata e ouro, espelhos de bronze polido e rolos de sedas e linhos preciosos, peças de lã que há muito tempo haviam apodrecido, virando trapos escuros e amorfos. Nas paredes que separavam isso do próximo conjunto de celas, eles viram a reencenação da batalha com os hicsos em que o faraó foi abatido, com a seta inimiga fincada no peito. No painel seguinte, Taita, o cirurgião, curvava-se sobre ele segurando os instrumentos cirúrgicos, removendo a seta ensangüentada de dentro de seu corpo.

Chegaram então às alcovas que continham centenas de arcas de cedro. As tampas eram ornadas com o cartucho real de Mamose e cenas do rei em sua toalete: contornando os olhos com khol, colorindo a face com antimônio branco e ruge escarlate, sendo barbeado por seus barbeiros e vestido por seus criados.

— Algumas arcas devem conter os cosméticos reais — Royan murmurou —, outras, as roupas do faraó. Deve haver trajes para cada ocasião da vida após a morte. Gostaria de poder abrir e examinar tudo.

Outro conjunto de painéis mostrava o casamento do rei com uma virgem, a amada de Taita. O rosto da Rainha Lostris era adoravelmente detalhado. O artista cobiçava sua beleza e exagerou nela; as pinceladas acariciavam-lhe os seios nus e retardavam-se em todas as suas virtudes, sintetizando a perfeição feminina.

— Como Taita a amava! — murmurou Royan com inveja. — Nota-se isso em cada traço.

Nicholas sorriu e passou o braço em seus ombros. Havia centenas de arcas de cedro na alcova seguinte. As tampas eram decoradas com miniaturas do rei adornado com suas jóias, o peito coberto com medalhões, aros de ouro nos braços e braceletes nos punhos. Num dos retratos ele usava a coroa dupla dos dois reinos unidos do Egito, a coroa vermelha e a branca, com as cabeças do abutre e da cobra ereta, respectivamente. Noutro usava a coroa azul e num terceiro a coroa de Nemes, de ouro e lápis-lazúli, que lhe cobria as orelhas.

— Se essas arcas contiverem os tesouros representados nas tampas... — Nicholas não conseguiu continuar seu pensamento. As riquezas eram incalculáveis, e a imaginação não alcançava sua magnitude.

— Lembra-se do que Taita escreveu nos papiros? "Não posso crer que tesouro semelhante tenha sido acumulado em qualquer lugar ou em qualquer época"? — Royan lembrou. — Parece que está tudo aqui, cada pedra e cada grão de ouro. O tesouro de Mamose está intato.

Mais adiante havia outra alcova com prateleiras, onde ficavam as figuras ushabti: bonecos de porcelana verde esmaltada ou esculpidos em ébano. Havia um exército de pequenas figuras, homens e mulheres de todas as profissões: sacerdotes e escribas, criadas e bailarinas, costureiras e lavadeiras, soldados, barbeiros e trabalhadores comuns. Cada uma carregava o utensílio próprio de sua profissão. Elas acompanhariam o rei na outra vida e substituiriam o faraó se ele fosse chamado a trabalhar para demais deuses.

Finalmente Nicholas e Royan chegaram ao fim dessa arcada fabulosa e foram impedidos de seguir por uma série de telas grandes de-penduradas, tabernáculos do que outrora fora uma fina trama de linho, mas agora estava apodrecida e suja. Mesmo assim, as estrelas e rosetas de ouro que decoravam essas cortinas ainda existiam e pendiam delas como peixes da vara do pescador. Através dessa teia etérea de farrapos e estrelas douradas, eles visualizaram outra passagem.

— Deve ser o acesso ao túmulo — Royan sussurrou. — Agora só existe um véu entre nós e o rei.

Eles hesitaram antes de entrar, freados por uma estranha relutância em dar o próximo passo.

Sendo um velho guerreiro, Mek Nimmur já havia visto e tratado a maioria dos ferimentos que os homens podem sofrer num campo de batalha. Seu pequeno grupo guerrilheiro não tinha médico nem recursos. O próprio Mek cuidava das feridas e sempre tinha à mão uma caixa de primeiros socorros.

Mandou os homens levar Tessay para uma das cabanas na pedreira, entre cujas paredes de galhos tirou suas roupas ensangüentadas e tratou suas feridas. Limpou queimaduras e cortes com desinfetante e cobriu os mais sérios com gaze. Depois deitou-a delicadamente de bruços e tirou o protetor da agulha de uma seringa contendo antibiótico de amplo espectro.

Tessay olhou para a agulha, e ele lhe disse:

— Não sou muito bom médico.

— É o único que tenho. Oh, Mek, pensei que nunca mais o veria. Jamais tive tanto medo da morte como desta vez.

Ele ajudou-a a vestir suas próprias roupas — uma camiseta e a jaqueta da farda —, muito grandes para ela. Enrolou os punhos da jaqueta, tocando-lhe o braço com cuidado. Era o toque de um amante, e não de um soldado.

— Devo estar horrível — ela murmurou por entre os lábios inchados e feridos.

— Você está linda — ele corrigiu-a. — Para mim é sempre linda. — Ele encostou os dedos no rosto de Tessay, sem tocar as queimaduras.

Nesse momento ouviram um tiro. Ainda distante, trazido do norte pelo vento.

Mek levantou-se no mesmo instante.

— Começou. Nogo vai atacar.

— A culpa é minha, eu contei a ele...

— Não — ele a interrompeu com firmeza. — Não é sua culpa. Você fez o que tinha de fazer. Se não fizesse, eles a teriam machucado muito mais do que isso. Atacariam mesmo que você não dissesse nada.

Ele vestiu o cinturão e fechou-o na cintura. Ouviam-se ao longe as detonações secas de granadas e morteiros.

— Preciso ir agora — Mek disse.

— Eu sei. Não se preocupe comigo.

— Sempre vou me preocupar com você. Meus homens a levarão para o mosteiro. É onde vamos nos encontrar. Espere por mim lá. Não posso segurar Nogo por muito tempo. Ele é muito forte. Logo irei ao seu encontro.

— Eu o amo, Mek — ela sussurrou. — Sempre esperarei por você.

— Minha mulher! — ele disse com sua voz profunda e suave, e então desapareceu pela porta da cabana.

Quando Nicholas tocou nas telas penduradas, o tecido se desfez em sua mão e tombou nos ladrilhos. As rosetas douradas aplicadas à trama tilintaram na pedra. Havia agora na cortina uma passagem com tamanho suficiente para que ele e Royan pudessem passar. Era uma passagem interna, guardada de um lado por uma imensa estátua do rei Osíris com as mãos cruzadas sobre o peito, segurando a chibata e o gancho; do outro via-se sua esposa ísis, com a coroa e os chifres lunares na cabeça. Com um olhar vago e semblante sereno, fitava a eternidade. Nicholas e Royan passaram entre essas estátuas de 3 metros de altura e entraram finalmente na verdadeira tumba do faraó.

O teto era abobadado, e os murais sobre a abóbada e as paredes tinham uma qualidade diferente — eram clássicos e formais com cores mais fortes e profundas e desenhos mais intricados. A câmara era menor do que eles haviam imaginado; continha apenas o imenso sarcófago de granito do Faraó Mamose.

O sarcófago chegava à altura do peito deles. Os desenhos das paredes laterais, esculpidos em baixo-relevo, mostravam cenas do faraó com outros deuses. A tampa de pedra tinha a forma de uma efígie de corpo inteiro do rei inerte. Nicholas e Royan viram imediatamente que ainda estava na posição original e que os selos de cerâmica dos sacerdotes de Osíris permaneciam intatos. A tumba não fora violada. A múmia estava ali havia milênios.

Mas isso não era o mais surpreendente. Havia também dois objetos estranhos na tumba, que, afora isso, seria classicamente correta. Sobre a tampa do sarcófago via-se um magnífico arco de guerra. Quase do tamanho de Nicholas, toda a sua haste era envolta com fios de uma liga de ouro e prata, cuja fórmula se perdera na Antigüidade

O outro objeto que não deveria estar num túmulo real encontrava-se aos pés do sarcófago. Era uma pequena figura humana, um ushabti. Bastou um olhar para confirmar a qualidade superior da efígie esculpida; Royan e Nicholas reconheceram as feições no mesmo instante. Poucos minutos antes haviam visto o mesmo rosto pintado nas paredes da arcada.

As palavras de Taita, escritas nos papiros, pareciam reverberar nos confins do túmulo e pairar como vagalumes sobre o sarcófago:

"Quando fiquei pela última vez ao lado do sarcófago real, mandei todos os trabalhadores sair. Eu seria o último a deixar a tumba, e a entrada seria selada atrás de mim.

"Só, abri o fardo que carregava. Dele tirei o grande arco Lanata. Tanus dera-lhe o nome de minha amada, pois Lanata era seu nome de infância. Fiz o arco para ele. Foi o último presente de nós dois. Depositei-o sobre a tampa de pedra deste caixão. "Havia outro objeto em meu fardo. Era um ushabti de madeira, que eu mesmo esculpi. Depositei-o aos pés do sarcófago. Para esculpi-lo, usei três espelhos de cobre para estudar minhas feições de todos os ângulos e reproduzi-las fielmente. O boneco é uma miniatura de Taita.

"Em sua base escrevi as palavras..."

Royan ajoelhou-se aos pés do caixão e pegou o ushabti. Reverentemente, girou-o nas mãos e estudou os hieroglifos entalhados em sua base. Nicholas ajoelhou-se ao lado dela.

— Leia para mim — pediu. Royan obedeceu prontamente.

— "Meu nome é Taita. Sou médico e poeta. Sou arquiteto e filósofo. Sou seu amigo. Responderei por você."

— Então é tudo verdade... — Nicholas sussurrou.

Royan recolocou a estátua no lugar e, ainda de joelhos, virou o rosto para Nicholas.

— Jamais vivi um momento como este — sussurrou. — Não quero que acabe nunca.

— Não acabará, minha querida — ele respondeu. — Nós dois estamos apenas começando.

Mek Nimmur observava-os aproximar-se do alto da encosta de uma montanha. Graças a seus olhos treinados de guerrilheiro, viu-os deslocar-se por entre o matagal e os espinheiros. Ao examiná-los, sentiu uma ponta de desânimo. Eram tropas de assalto, treinadas em longos anos de guerra. Já as havia enfrentado contra a tirania de Mengistu, e ele próprio treinara boa parte daqueles homens. Agora eles o atacavam. Assim era o ciclo de guerra e violência naquele continente atormentado, onde as disputas infindáveis eram alimentadas por inimizades tribais que se perdiam no tempo, pela ganância e pela corrupção dos novos políticos e suas ideologias anacrônicas.

Não é hora para filosofar, ele pensou amargurado, e concentrou-se nas táticas de batalha. Sim, aqueles homens eram bons. Podia percebê-lo pelo modo como avançavam, parecendo lagartos entre os espinhos. Para cada um visível, havia dezenas escondidos.

Mek olhou ao redor para a pequena força que possuía. Os catorze homens espalhados pelas pedras só atingiriam o adversário enquanto contassem com a vantagem da surpresa, e teriam de fugir em seguida antes que Nogo disparasse seus morteiros para o topo da montanha, onde estavam.

Ele olhou para o céu e perguntou-se se Nogo atacaria pelo ar. Eram 35 minutos de vôo nos Tupolev soviéticos desde a base de Adis; podia sentir no ar o cheiro adocicado do napalm sob o vento úmido e ver fogo e colunas de fumaça alcançando-os. Era a única coisa que seus homens realmente temiam. Mas não haveria ataque aéreo... não desta vez, ele decidiu. Nogo e seu patrão, o alemão Von Schiller, queriam os espólios do túmulo que Nicholas Quenton-Harper havia descoberto na garganta. Não queriam dividir nada daquilo com os políticos barrigudos de Adis. E não pretendiam atrair a atenção governamental para si e sua pequena campanha particular na garganta do Abbay.

Ele tornou a olhar para baixo. O inimigo avançava rapidamente, espalhando-se por toda a encosta para interceptar a trilha ao longo do Dandera. Logo enviariam uma patrulha para cima, para bloquear os flancos. Sim, lá estava a patrulha. Oito... não, dez homens destacados do batalhão subiam cuidadosamente a encosta.

"Vou deixar que se aproximem", Mek decidiu. "Gostaria que fossem todos, mas isso seria esperar demais. Vou me contentar com quatro ou cinco, e pretendo deixar alguns chorando nos espinheiros." Ele deu uma risada cruel. "Nada como deixar um homem berrando com a barriga aberta para distrair seus companheiros e obrigá-los a baixar a cabeça."

Ele olhou para a crista da rocha e viu que a metralhadora RPD estava perfeitamente posicionada contra o inimigo. Salim, o homem que a operava, era um artista com a arma. Talvez derrubasse mais de cinco. "Vamos ver", Mek pensou, "mas preciso usá-la na hora certa."

Viu que existia uma brecha na crista da rocha mais abaixo.

"Eles não vão querer se expor, atravessando pela crista", avaliou. "Acredito que ficarão agrupados e passarão por aquela brecha. Será esse o momento."

Olhou mais uma vez para a metralhadora. Salim observava-o, esperando o sinal. Mek voltou-se para a encosta.

"Sim", pensou, "eles estão se juntando. O mais alto à esquerda já está na posição. Os outros dois na frente estão se posicionando para passar pelo vão."

A camuflagem dos uniformes de Nogo confundia-os perfeitamente com a vegetação; os cabos das armas eram enrolados com tecido camuflado para evitar o reflexo do sol. Eram quase invisíveis dentro do mato; somente os movimentos e a cor da pele os traíam. Estavam tão perto agora que Mek podia ver os olhos de um deles brilhando, mas ainda não encontrara o homem de metralhadora.

Precisava silenciar a arma na primeira investida.

"Ah, lá está", ele pensou, aliviado. "No flanco direito. Quase o perdi."

O homem era simiesco, baixo e atarracado, de ombros e braços longos, e carregava a arma no quadril com facilidade. Era uma RPD 7.62 mm, soviética. O reflexo no metal dos cartuchos no cinto de munição cruzado sobre seu peito o traíra.

Mek abaixou-se e rastejou ao redor da rocha que o protegia. Mudou para rápido o seletor de velocidade de tiro em seu AKM e encostou o rosto à coronha de madeira. Era sua arma pessoal. Um armeiro de Adis havia-o preparado especialmente, melhorando a eficácia do rifle de assalto notoriamente impreciso. Ainda não era um rifle de atirador de elite, mas as modificações permitiam-lhe acertar um círculo de 5 centímetros a 100 metros de distância.

O homem que subia com a RPD estava a apenas 50 metros de distância. Mek olhou à direita para certificar-se de que os três outros homens estavam passando pelo vão; Salim livrou-se deles com uma única rajada de tiros, em seguida mirou no centro da barriga do homem da metralhadora, usando como alvo a fivela do cinturão, e disparou três tiros.

O AKM saltou viciosamente e as três detonações feriram seus tímpanos, mas Mek viu as balas rasgar o torso do homem. Um tiro acertou-o na barriga, o segundo no peito e o terceiro na base do pescoço. Ele rodopiou com os braços estendidos e caiu de costas dentro do mato rasteiro.

Todos os homens de Mek atiravam. Ele queria saber quantos Salim teria eliminado no primeiro ataque, mas não se via mais nada. Uma névoa de fumaça escondia a reação deles, e o mato agitava-se sob as explosões de suas armas.

Então, em pleno tiroteio, entre os zunidos das balas que ricocheteavam nas pedras, um deles começou a gritar.

— Estou ferido. Em nome de Alá, me ajudem! — Os gritos cruzaram a montanha e o fogo inimigo diminuiu perceptivelmente. Mek renovou a munição de seu AKM.

— Cante, passarinho, cante! — ele murmurou em meio a uma risada.

Foi necessária a força de Nicholas, Hansith e mais oito homens para erguer a tampa de pedra do sarcófago. Oscilando sob o peso, eles a encostaram cuidadosamente à parede da tumba. Então Royan e Nicholas subiram no plinto do sarcófago e olharam seu interior. No receptáculo de pedra cabia perfeitamente um enorme caixão de madeira. Essa tampa também tinha a forma do faraó deitado. Estava na posição dos mortos, com as mãos cruzadas sobre o peito, segurando o chicote e o gancho. O caixão era folheado a ouro e incrustado de pedras preciosas. A expressão da efígie do rei era serena.

Eles retiraram o caixão de dentro do sarcófago; era menos pesado que a tampa. Cuidadosamente, Nicholas removeu os selos dourados e a camada de resina seca que colava a tampa ao caixão. Dentro havia um novo caixão e depois mais outro. Era como as bonecas russas, uma dentro da outra em tamanho decrescente.

No final havia sete esquifes, cada qual mais ricamente decorado que o anterior. O sétimo caixão, pouco maior que um homem, era todo de ouro. As lâmpadas se refletiam no metal como se fossem mil espelhos, espalhando setas e dardos brilhantes nos recessos da tumba.

Quando abriram o caixão de ouro, descobriram que estava cheio de flores. Já murchas e secas, tinham um tom sépia. O aroma evaporara há muito, de modo que somente o cheiro almiscarado de antigüidade brotava dele. As pétalas estavam tão secas que se desfizeram ao primeiro toque. Sob as flores desbotadas havia uma camada de linho fino; devia ter sido branco como a neve, mas agora estava marrom, manchado pela selva das flores. Por entre as dobras via-se novamente o brilho do ouro.

Parados junto ao caixão, Nicholas e Royan afastaram o linho. Rasgava-se e desfazia-se facilmente sob os dedos, e quando o recolheram ambos arfaram involuntariamente ao revelar a magnífica máscara mortuária do faraó. Suas feições estavam preservadas para toda a eternidade numa soberba obra de arte. Eles olharam em silêncio para os olhos de obsidiana e cristal do faraó, e estes os contemplavam com tristeza, quase acusadores.

Passou-se muito tempo até que reuniram coragem e ousadia para retirar a máscara da cabeça da múmia. Mas quando o fizeram descobriram novas evidências de que, na Antigüidade, o corpo do rei e de seu general, Tanus, realmente haviam sido trocados. A múmia que ali estava era claramente maior que o caixão que a continha. Fora parcialmente desenfaixada e comprimida em seu interior.

— Uma múmia real teria centenas de amuletos sob as bandagens — Royan sussurrou. — Este corpo é de um nobre, mas não de um rei.

Nicholas ergueu delicadamente a camada inferior das faixas da cabeça e uma grossa trança de cabelo se revelou.

— Os retratos do Faraó Mamose nas paredes da arcada mostram que seus cabelos eram tingidos com hena — Nicholas murmurou. — Olhe para este.

A trança era da cor da grama das savanas africanas no inverno: dourada e prateada.

— Não tenho mais dúvida de que este é o corpo de Tanus, o amigo de Taita e amante da rainha.

— Sim — Royan concordou, com lágrimas nos olhos. — É o verdadeiro pai do filho da Rainha Lostris, que depois se tornou o faraó Tamose ancestral de uma grande linhagem de reis. Este é o homem cujo sangue permeia a história do antigo Egito.

— A sua maneira, era tão grandioso quanto qualquer faraó — disse Nicholas em voz baixa.

Foi Royan quem primeiro despertou: — O rio! Não podemos perder tudo isto quando o rio voltar a subir. — E nem poderemos salvar tudo. É muita coisa. Um imenso tesouro. Nosso tempo aqui está quase terminando, por isso escolheremos as peças mais belas e importantes para colocá-las nos baús. Só Deus sabe se teremos tempo para isso.

Trabalharam freneticamente no curto tempo que lhes restava. Não podiam nem pensar em salvar as estátuas e os murais, os móveis e as armas, os utensílios, roupas e adornos. O grande carro de guerra devia permanecer onde estava há milhares de anos.

Removeram a máscara mortuária da cabeça de Tanus, mas deixaram sua múmia no interior dos caixões dourados. Então Nicholas mandou chamar Mai Metemma. O velho abade chegou com vinte monges para retirar a relíquia sagrada que lhe havia sido prometida como recompensa. Eles entoaram um canto profundo e lento quando levaram o caixão de Tanus para seu novo repouso no maqdas do mosteiro.

— Pelo menos o velho herói será tratado com respeito — Royan disse suavemente. Então olhou ao redor do túmulo. — Não podemos deixar o lugar assim, com os caixões espalhados e a tampa fora do lugar — protestou. — Parece que ladrões de túmulos andaram por aqui.

— É exatamente isso o que somos — Nicholas riu.

— Não, somos arqueólogos — ela negou veementemente —, e devemos agir como tal.

Eles repuseram os seis caixões um dentro do outro, colocaram-nos no sarcófago e, por fim, tornaram a cobri-lo com a volumosa tampa de pedra. Só então Royan aceitou que começassem a escolher e embalar os tesouros que levariam.

A máscara mortuária foi, sem sombra de dúvida, a primeira peça do túmulo. Coube perfeitamente em uma caixa, com o ushabti de madeira de Taita deitado a seu lado e calçados com isopor para mantê-los firmemente seguros. Royan escreveu na tampa com lápis à prova d'água: "Máscara e Ushabti de Taita".

A última seleção foi, por força, apressada e superficial. Não havia tempo para abrir as arcas de cedro que estavam empilhadas nas alcovas. As arcas pintadas e ornamentadas eram, em si, objetos de valor incalculável, e deviam ser tratadas com respeito. Eles se orientaram pelas ilustrações da tampa de cada uma. Descobriram imediatamente que se tratava de um minucioso catálogo do conteúdo. Na arca que mostrava o faraó usando a coroa azul de guerra, encontraram a coroa apoiada em almofadas de couro do tamanho exato para acomodá-la e protegê-la.

Mesmo com o pouco tempo que tinham, fartaram-se com a suntuosidade dos objetos quando selecionavam e abriam as arcas. Não somente a coroa azul, mas a vermelha e a branca dos reinos unidos também estavam lá, bem como a esplêndida coroa Nemes, todas em milagroso estado de preservação, parecendo ter sido usadas pelo faraó naquela manhã.

Desde o início havia o pré-requisito de que os artefatos deviam ser pequenos, para caberem nos baús de provisões. Se fossem muito grandes, por mais valor e importância que tivessem, deviam ser rejeitados e deixados no túmulo. Felizmente, a maioria das arcas de cedro continha as jóias reais acondicionadas em caixas de metal, de modo que não só seu conteúdo como também as caixas puderam ser levados. Os objetos maiores, contudo, como as coroas e os grandes medalhões de ouro, foram deixados.

Quando todos os baús estavam cheios, foram levados para a passagem selada, prontos para serem retirados. Incluindo os baús que continham as oito estatuetas dos deuses da grande galeria, foram catalogados 48 volumes. Nesse instante ouviram o sotaque inconfundível de Sapper ecoando na escada:

— Major, onde você está, diabo? Não pode continuar aqui. Vamos logo, homem! Tire o seu traseiro peludo daqui. O rio está no seu nível máximo, e a represa vai se romper a qualquer momento.

Sapper subiu a escada até ele e parou maravilhado diante do esplendor da arcada fúnebre do Faraó Mamose. Levou algum tempo para se recuperar do choque e retomar sua atitude prosaica.

— Estou falando sério, major! É uma questão de minutos, não de horas. Aquela represa vai estourar. Além disso, Mek está lutando nas montanhas na cabeceira do penhasco. Dá para ouvir os tiros no fundo do abismo do poço de Taita. Você e Royan precisam sair daqui depressa.

— Está bem, Sapper. Já vamos embora. Volte para a câmara no final dessa escada. Está vendo aqueles baús? — Sapper fez que sim com a cabeça, e Nicholas continuou rapidamente: — Mande os homens tirá-los daqui. Devem levá-los para o mosteiro. Quero que cuide dessa parte. Nós seguiremos com o resto.

— Não faça isso, major. Sua vida vale mais que essa pilha de lixo velho. Vamos sair já.

— Vá você, Sapper. Mas que Royan não o ouça chamar isso de lixo velho. Aí sim, você estaria realmente encrencado.

Sapper deu de ombros.

— Não diga que não avisei. — E virou-se para descer a escada.

— Você sabe onde os botes estão escondidos — Nicholas gritou atrás dele. — Chegando antes de mim, deixe-os inflados e ponha os baús dentro. Eu chegarei logo.

Em seguida Nicholas voltou correndo pela arcada, onde Royan ainda olhava o tesouro.

— Chega! — gritou. — Não há mais tempo. Vamos embora.

— Nicky, não podemos deixar isto...

— Fora! — ele segurou-lhe o braço. — Estamos indo agora. A menos que pretenda dividir o túmulo com Tanus para sempre.

— Não podemos só...

— Não, sua louca! Agora! A represa vai estourar a qualquer momento.

Royan soltou-se dele e um punhado de jóias se espalhou a seus pés; ela começou a enfiá-las nos bolsos.

— Não posso deixar isto.

Nicholas ergueu-a pela cintura e a jogou sobre o ombro.

— Eu estou falando sério! — E saiu correndo pela arcada.

— Nicky! Ponha-me no chão — Ela o chutava furiosamente, mas Nicholas continuou correndo pela câmara aos pés da escada.

Hansith e seus homens subiam com os últimos baús do outro lado da câmara. Equilibravam a preciosa carga na cabeça e subiam os degraus com facilidade.

Nicholas depositou Royan no chão.

— Promete se comportar agora? Não estamos mais brincando. Isto é mortalmente sério. Mortalmente, se ficarmos presos aqui!

— Eu sei — ela parecia arrependida —, mas não suporto deixar tudo aquilo lá.

— Chega disso! Vamos! — Nicholas pegou-a pela mão e a arrastou atrás de si. Logo Royan se soltou para correr livremente, ultrapassan-do-o e alcançando o alto da escada alguns passos na frente.

Mesmo com o peso, os carregadores iam depressa. Presos entre a longa fila de homens, Nicholas e Royan faziam o caminho de volta pelo labirinto, e graças aos sinais de giz em cada curva, desceram a escadaria central até as ruínas da grande galeria sem errar o caminho. Sapper esperava nas ruínas da abertura que estivera selada, e resmungou aliviado quando os viu no meio dos carregadores.

— Eu disse para você ir na frente e aprontar os botes — Nicholas gritou para ele.

— Não confiei que você não fosse um maldito teimoso. Quis ter certeza de que não ficaria preso lá dentro.

— Estou comovido, Sapper. — Nicholas bateu no ombro dele, e então saíram correndo pelo túnel e cruzaram a ponte sobre o ralo.

— Onde está Mek? — perguntou Nicholas, batendo nas costas de Sapper, que seguia à frente. — E Tessay?

— Ela voltou. Teve uma experiência desagradável. Meteu-se numa confusão. Parece que foi seriamente agredida.

— O que aconteceu? — Nicholas estava estarrecido. — Como ela está?

— Parece que caiu nas mãos dos gorilas de Von Schiller, que deram uma surra nela. Os homens de Mek a estão levando para o mosteiro. Ela nos esperará nos botes.

— Graças a Deus — Nicholas murmurou, e então disse em voz alta: — E Mek?

— Está tentando conter o ataque de Nogo. Andei ouvindo tiros de rifles, granadas e morteiros durante toda a manhã. Ele também vai bater em retirada e nos encontrará nos botes.

Correram os últimos metros pelo túnel em declive sobre lama e água e, por fim, saltaram a barreira da comporta na rocha que rodeava o poço de Taita. Nicholas olhou para cima e viu os carregadores de Hansith subindo as escadas da plataforma de bambu em direção ao topo do penhasco, cada um levando um baú.

Nesse momento ouviu um ruído que reconheceu instantaneamente. Virou a cabeça e disse para Royan:

— Tiros. Mek está resistindo, mas está perigosamente perto.

— Minha sacola! — Royan olhou para o abrigo de junco aos pés do penhasco. — Preciso pegar minhas coisas.

— Não vai precisar de maquiagem nem de pijama, e estou com o seu passaporte. — Ele segurou o braço dela e virou-a para a escada da plataforma. — Na verdade, a única coisa de que precisa agora é uma boa distância entre você e o Coronel Nogo. Vamos logo, Royan!

Subiram à plataforma de bambu; quando chegaram ao alto do penhasco, Royan surpreendeu-se ao descobrir que, embora o chão estivesse úmido sob seus pés, o sol estava alto e quente. Perdera a noção do tempo dentro dos corredores frios e úmidos da tumba, e agora erguia o rosto para o sol e bebia seu calor com gratidão, enquanto Nicholas contava os carregadores para ter certeza de que ninguém ficara no abismo.

Sapper ia na frente, em direção às florestas de espinhos, e os carregadores atrás. Nicholas e Royan esperaram que todos os homens se pusessem a caminho e entraram no final da coluna. O tiroteio parecia agora assustadoramente próximo, na borda do penhasco atrás deles, a menos de 1 quilômetro de distância. Os estampidos das armas automáticas davam vida aos pés dos carregadores, que corriam pela floresta para alcançar a trilha principal do mosteiro antes que fossem interceptados pelo avanço de Nogo.

Na bifurcação dos caminhos encontraram outro grupo de carregadores, que levavam uma liteira. Também seguiam para o mosteiro. Nicholas pensou que estivessem levando um guerrilheiro ferido. Mas quando chegou perto levou algum tempo para reconhecer o rosto dilacerado.

— Tessay! — Ele parou ao seu lado. — Quem fez isso com você? Ela o olhou com seus grandes olhos negros de criança ferida e contou-lhe, com palavras entrecortadas.

— Helm!... — Nicholas deixou escapar. — Adoraria pôr as mãos naquele canalha.

Nesse momento Royan aproximou-se deles e ficou horrorizada com o estado de Tessay. Em seguida passou a cuidar dela.

Nicholas conversou rapidamente com um guerrilheiro que conhecia.

— Mezra, o que está acontecendo lá em cima?

— Nogo entrou com o exército pelo leste da garganta. Estamos cercados e resistindo. Não é assim que lutamos.

— Eu sei — Nicholas observou. — Os guerrilheiros estão sempre se movendo. Onde está Mek Nimmur?

— Está recuando pela margem leste do penhasco. — Quando Mezra disse isso, ouviram um novo tiroteio vindo de trás. — E ele. Nogo está empurrando com força.

— Que ordens você recebeu?

— Levar Lady Sol para os botes e esperar lá por Mek Nimmur.

— Ótimo! — Nicholas disse. — Iremos com vocês.

O Jet Ranger voava baixo pelos contornos do terreno, jamais subindo para o planalto. Helm sabia que Mek Nimmur estava munido de dispositivos lança-foguetes. Nas mãos de um homem treinado, eram armas mortais contra aeronaves desarmadas e lentas como o Jet Ranger. A defesa do piloto era usar o terreno como cobertura, desviando e subindo pelos vales para não se expor aos lança-foguetes.

Embora as nuvens descessem pelo escarpamento para a garganta do Abbay, o helicóptero mantinha-se abaixo delas. Entretanto, as rajadas de vento atingiam perigosamente a aeronave já bombardeada pelos grossos pingos de chuva. O piloto avançava para a frente em seu banco, inclinan-do-se no cinto de segurança para se concentrar no vôo arriscado em condições adversas. Von Schiller e Nahoot Guddabi estavam nos bancos de passageiros, ambos olhando pelos vidros laterais as encostas densamente arborizadas do vale, que pareciam ao alcance da mão.

A cada minuto o rádio ganhava vida. Eram as transmissões concisas dos homens de Nogo em terra, pedindo informações ou relatando os objetivos alcançados. O piloto traduzia as comunicações para o alemão:

— Há um forte tiroteio acontecendo no alto do abismo, mas os shuftas estão recuando. Nogo está dando conta. Acabou de deslocar um grande exército da encosta para leste. — Ele apontou para esquerda. — Está bombardeando os shuftas com morteiros.

— Já alcançaram o ponto do penhasco em que Quenton-Harper estava trabalhando?

— Não está claro. Há muita confusão. — O piloto ouviu a comunicação em árabe. — E o próprio Nogo falando.

— Chame-o! — Von Schiller ordenou a Helm, inclinando-se sobre o encosto do banco. — Pergunte se já ocupou o local do túmulo.

Helm tirou o microfone do gancho sob o painel de instrumentos.

— Pétala de Rosa, aqui é Bismarck. Está ouvindo?

Ouviu-se uma pausa com estática e então Nogo falou em inglês:

— Fale, Bismarck.

— Já garantiu o primeiro objetivo? Câmbio.

— Afirmativo, Bismarck. Está garantido. Todas as posições ocupadas. Mandei os homens retirar o material lá embaixo.

Helm virou-se para trás e olhou para Von Schiller.

— Nogo já tem homens no abismo. Podemos descer.

— Diga a ele que não deixe os homens entrar antes de eu chegar — Von Schiller ordenou severamente, mas com ar triunfante. — Preciso ser o primeiro a entrar. Faça-o entender isso.

Enquanto Helm transmitia as ordens a Nogo, Von Schiller bateu no ombro do piloto.

— Quanto falta para o objetivo?

— Uns cinco minutos, senhor.

— Circule o local quando chegar. Não desça enquanto não tivermos certeza de que Nogo tem tudo sob controle.

O piloto puxou uma alavanca e o ruído das hélices se alterou. O helicóptero diminuiu a velocidade e parou no ar, enquanto o piloto apontava para baixo.

— O que foi? — Von Schiller acompanhou o gesto. — O que está vendo?

— A represa — Helm respondeu. — A represa de Quenton-Harper. Ele fez um trabalho e tanto lá embaixo.

A vastidão de água represada estava cinzenta e turva sob as nuvens, tingida pela terra trazida do planalto. As águas desviavam-se para o canal e corriam borbulhantes e ferozes para o grande vale.

— Deserta! — Helm comentou. — Os homens de Harper se mandaram.

— O que é aquele objeto amarelo lá embaixo? — Von Schiller quis saber.

— É o trator. Lembra-se? Meu informante falou dele.

— Não perca mais tempo — ordenou Von Schiller. — Não há nada para ver aqui. Vamos embora!

Helm bateu no ombro do piloto e apontou rio abaixo.

Sapper os esperava na bifurcação da trilha, onde o rio desviado era agora uma torrente de água e inundara grande parte da trilha original. Os carregadores, que cruzavam o vale numa longa fila, escolhiam caminhos pelos terrenos mais altos.

A liteira de Tessay estava quase no fim da fila, com Royan e Nicholas andando de cada lado e ajudando nos trechos mais difíceis.

— Onde está Hansith? — Nicholas gritou para Sapper, protegendo os olhos para enxergar os homens e tentando distinguir o monge mais alto entre os demais.

— Pensei que estivesse com você — Sapper gritou de volta. — Não o vejo desde que saímos do abismo.

Nicholas virou-se para olhar o caminho pela floresta de espinhos.

— Maldição — resmungou. — Não podemos voltar para procurá-lo. Ele encontrará o caminho para o mosteiro.

Nesse momento ouviram o ruído distante porém conhecido das hélices, no ar úmido e quente sob a massa de nuvens.

— O helicóptero da Pégaso! Parece que Von Schiller está indo para o abismo. Ele sabia o tempo todo onde estávamos trabalhando — disse Nicholas com raiva. — Não perdeu tempo. É um abutre farejando carne fresca.

Royan também olhou para cima, tentando visualizar a aeronave entre as nuvens escuras. Seu rosto estava molhado de chuva, e mechas de cabelo lhe caíam pelo rosto.

— Se aqueles bandidos conseguirem entrar no túmulo, será uma terrível profanação de um lugar sagrado — disse com amargura.

Nicholas estendeu o braço sobre a liteira e tocou-lhe o braço. Tinha um ar determinado e inflexível.

— Você tem razão. Vá para o mosteiro com Tessay. Eu irei mais tarde. — Antes que ela protestasse ou questionasse, ele se adiantou até onde estava Sapper.

— Deixarei as mulheres a seu cuidado, Sapper. Cuide delas.

— Aonde você vai, Nicky? — Royan, que estava atrás dele, escutou as ordens dadas a Sapper. — Que vai fazer?

— Um servicinho. Não vou demorar.

— Você não vai voltar lá! — Ela estava apavorada. — Vai se matar, ou ainda pior. Viu o que Helm fez com Tessay...

— Não se preocupe, meu amor — ele riu, e antes que ela se desse conta, deu-lhe um longo beijo na boca. Enquanto Royan ficava aturdida com a demonstração pública, ele a puxou gentilmente para si.

— Cuide de Tessay. Encontrarei vocês nos botes.

Ela não teve tempo de protestar. Nicholas fez meia-volta e seguiu para o vale a passos tão rápidos que não houve tempo para impedi-lo.

— Nicky! — Royan gritou desesperada, mas ele fingiu não ouvir e continuou em frente, seguindo o canal em direção à represa.

OJet Ranger seguiu o curso sinuoso do rio abaixo da represa. Em certos pontos conseguiam enxergar pelo estreito espaço entre os altos penhascos as profundezas do abismo, agora quase secas, apenas com algumas poças aqui e ali.

— Lá estão eles! — Helm apontou para a frente. — Há alguns homens na borda do abismo.

— Veja se não são shuftas. — Havia medo na voz de Von Schiller.

— Não! — Helm garantiu. — Reconheço Nogo, e aquele mais alto ao lado dele, de shatnma branco, é o monge Hansith Sherif, nosso informante — ele gritou para o piloto. — Pode descer. Veja! Nogo está acenando.

No momento em que as bequilhas do helicóptero tocaram o chão Nogo e Hansith aproximaram-se correndo. Ajudaram Von Schiller a desembarcar da cabine e o retiraram de sob as hélices.

— Ele fala inglês? — Von Schiller ergueu a cabeça para olhar o monge.

— Um pouco — Hansith respondeu por si mesmo.

— Muito bom, muito bom! — Von Schiller estava exultante. — Mostre o caminho. Eu o seguirei. Venha, Guddabi, chegou a hora de trabalhar um pouco pelo dinheiro que estou lhe pagando.

Hansith levou-os rapidamente para a plataforma, onde Von Schiller parou e olhou com nervosismo para as escuras profundezas do abismo. A estrutura de bambu parecia frágil e inconsistente, a descida, profunda e aterrorizante. O alemão ia protestar quando Nahoot Guddabi choramingou às suas costas:

— Ele não espera que a gente desça até lá, não?

Seu medo reanimou Von Schiller, que se virou prazerosamente para Nahoot:

— É o único acesso para o túmulo. Siga o homem. Eu irei atrás de vocês.

Nahoot continuou hesitante; Helm apoiou a mão calosa nas suas costas e o empurrou.

— Vá em frente! Não perca tempo.

Relutante, Nahoot começou a descer da plataforma atrás do monge, seguido por Von Schiller. A estrutura de bambu se balançava sob o peso dos homens, e as pedras rolavam por trás dela, mas por fim eles alcançaram a saliência de pedra ao lado do poço de Taita. O pequeno grupo ficou olhando ao redor, num misto de admiração e medo.

— Onde está o túnel? — Von Schiller perguntou quando recuperou o fôlego, e Hansith convidou-o a segui-lo até a barragem da pequena represa.

Von Schiller parou e olhou para os outros.

— Quero que fiquem aqui, de guarda. Entrarei no túmulo com Guddabi e o monge. Mandarei chamá-los quando for preciso.

— Eu preferia estar com o senhor, Herr Von Schiller, para protegê-lo... — Helm começou, mas o homem franziu o cenho.

— Faça o que lhe mandei! — E com a ajuda de Hansith ele galgou com dificuldade a parede da comporta e chegou à boca do túnel. Nahoot Guddabi seguia-o de perto.

— E essas luzes? Onde arrumaram energia? — Von Schiller quis saber.

— Há um gerador — Hansith explicou, e nesse momento eles ouviram o ruído baixo do motor, mais adiante. Ninguém mais falou enquanto seguiam Hansith pelo primeiro túnel, até chegarem à ponte sobre as águas escuras do ralo.

— É uma construção muito rudimentar — Nahoot murmurou, e, por fim, sua inquietação cedeu ao interesse profissional. — Não me lembra nenhuma tumba egípcia que já inspecionei. Acho que fomos ludibriados. É provavelmente uma obra etíope.

— Está fazendo um julgamento prematuro — Von Schiller admoestou-o. — Espere até vermos o que mais o homem vai nos mostrar.

Von Schiller apoiou-se no ombro de Hansith para cruzar os pontões flutuantes de troncos de baobá e chegou aliviado ao outro lado. Entraram no túnel seguinte e passaram pela marca da cheia do rio.

Quando a parede construída se transformou em pedras lisas, Nahoot observou:

— Ah, a princípio fiquei desconfiado. Achei que tivessem nos enganado, mas agora estou reconhecendo a influência egípcia.

Alcançaram a plataforma diante da galeria arruinada, onde estava o gerador Honda. Von Schiller e Nahoot suavam por causa do esforço e tremiam de excitação.

— Isto me parece cada vez mais promissor. Pode muito bem ser uma tumba real — Nahoot exultava. Von Schiller mostrou os selos de reboco encostados à parede, onde Nicholas e Royan os haviam deixado. Nahoot ajoelhou-se diante deles, examinou-os e disse com voz trêmula:

— O cartucho de Mamose e o selo do escriba Taita! — Seus olhos brilhavam para Von Schiller. — Não tenho mais dúvida. Eu o trouxe ao túmulo que lhe prometi.

Von Schiller encarou-o, e por um momento não soube o que dizer diante de tanta presunção. Então, com ar de desprezo, saiu da plataforma pela passagem aberta para a grande galeria.

— Isto foi destruído! — ele gritou apavorado. — A tumba foi devassada!

— Não, não! — Hansith garantiu. — Venha por aqui. Há outro túnel mais adiante.

Enquanto atravessavam o entulho e as ruínas, Hansith contou em inglês precário que o teto da galeria havia desmoronado e que ele mesmo tinha descoberto a outra passagem.

Nahoot parava a cada instante para examinar e exclamar diante das sobras de reboco pintado que haviam sobrevivido ao desmoronamento.

— Isto deve ter sido magnífico! Uma obra clássica de primeira...

— Há mais coisas para mostrar. Muito mais — Hansith prometeu-lhes, e Von Schiller rosnou para Nahoot:

— Esqueça isso agora. Não temos muito tempo. Precisamos chegar logo à câmara funerária.

Hansith levou-os para a escada que entrava no labirinto do bao e pelas curvas e interseções do plano inferior.

— Como foi que Nicholas e a mulher conseguiram passar por aqui? — Von Schiller estava maravilhado. — É um caminho de ratos

— Outra escadaria escondida! — Nahoot estava espantado e tremia de excitação quando entraram na câmara da armadilha de gás onde estavam as ânforas de 4 000 anos, e subiram o último lance de escada até o início da arcada funerária.

Ambos ficaram abismados com o esplendor dos murais e das imagens divinas e majestosas que guardavam a arcada. Lado a lado, eles não se moviam, paralisados pela emoção.

— Nunca imaginei algo parecido... — Von Schiller sussurrou. — É muito mais do que eu esperava.

— As salas de ambos os lados estão repletas de tesouros — Hansith mostrou-lhes. — Há coisas que vocês nunca sonharam. Harper conseguiu pegar muito pouco... apenas algumas caixas. Deixou muita coisa, muitas arcas.

— Onde está o caixão? Onde está a múmia deste túmulo? — Von Schiller perguntou.

— Harper deu o corpo e o caixão dourado para o abade. Eles levaram para o mosteiro.

— Nogo os tirará de lá para nós. Não se preocupe com isso, Herr Von Schiller — Nahoot garantiu.

Quando o encantamento que os mantinha paralisados foi quebrado pela promessa, eles continuaram andando juntos, a princípio lentamente, depois começaram a correr. Von Schiller entrou no depósito mais próximo com suas pernas rígidas e velhas, e riu como uma criança na noite de Natal diante dos tesouros guardados.

— Incrível! — Puxou uma arca de cedro da pilha mais próxima e arrancou-lhe a tampa com dedos trêmulos. Quando olhou para seu interior ficou sem voz. Ajoelhou-se diante da arca e começou a chorar baixinho de emoção.

icholas apostava no fato de que os homens de Nogo seguissem pelo topo do penhasco até o poço de Taita, e de que pudesse acompanhar em segurança o curso do rio até a represa. Não tomou nenhuma precaução, além de parar de tempos em tempos para ouvir algum ruído. Sabia que tinha de ser rápido.

Não gostaria que o resto do grupo ficasse esperando nos botes e arriscasse a vida por sua causa.

Por duas vezes ouviu disparos de arma automática ao longe, vindos do lado do abismo. Entretanto, a sorte estava do seu lado, e conseguiu chegar à represa sem encontrar os homens de Nogo. Mas não queria contar demais com a sorte. Antes de se aproximar da represa, ele subiu numa encosta e perscrutou a área. Isso lhe permitiu recuperar-se da longa corrida pelo vale e ver se Nogo não teria deixado guardas embaixo, mesmo que considerasse isso improvável.

O trator amarelo continuava estacionado no barranco onde Sapper o deixara. Não havia sinal de presença humana ou de soldados do Exército etíope. Aliviado, Nicholas enxugou os olhos suados com a manga da camisa.

De longe podia ver que a água passava por cima da parede e penetrava pelas brechas entre os gabiões. De onde ele estava, a represa ainda continha bem o rio, que ainda teria de subir trinta centímetros para transbordar.

"Bom trabalho, Sapper", Nicholas pensou com satisfação.

Ele examinou o nível do rio e a condição das águas retidas pela barragem. O fluxo que vinha das montanhas era muito mais forte do que na última vez em que estivera lá. O leito do rio estava cheio até a borda e submergira parcialmente algumas árvores e arbustos da margem. As águas eram barrentas e escuras, rápidas e hostis; formavam redemoinhos dentro da represa, buscando uma saída para o canal lateral, rosnando como um animal selvagem dentro da jaula e jorrando numa espuma branca ao sentir a queda brusca para o vale.

Nicholas olhou para o escarpamento da garganta. Estava coberto por nuvens escuras e ameaçadoras no horizonte ao norte. Isso bastou para que ele descesse correndo a encosta, escorregando e derrapando na pressa. Antes de chegar embaixo, o vento se transformou em chuva fria. A água que batia em seu rosto encharcou-lhe as roupas e o corpo.

Ele chegou ao trator e subiu no banco do motorista. Sentiu um pânico repentino quando pensou que Sapper pudesse ter tirado a chave do esconderijo sob o banco. Procurou por alguns segundos até que seus dedos se fecharam sobre ela, e então respirou aliviado.

— Sapper, por um momento você esteve muito perto da morte. Eu teria quebrado seu pescoço com minhas próprias mãos.

Enfiou a chave na ignição e deu a primeira volta, esperando que a luz do painel mudasse de vermelho para verde.

— Vamos! — murmurava impaciente. Esses segundos de espera pareciam eternos. Então a luz verde se acendeu e ele deu a partida.

O motor pegou na primeira tentativa.

"Nota dez, Sapper. Está perdoado."

Nicholas esperou um pouco que o motor esquentasse, estreitando os olhos contra a chuva para olhar as montanhas, pois temia que o barulho do motor atraísse os gorilas de Nogo. Não havia, contudo, qualquer sinal de vida no planalto encharcado pelas chuvas.

Engatou marcha lenta e manobrou o trator para descer o barranco. Sob a parede da represa, a água que entrava pelos vãos era menos barrenta. O trator sacudia, abrindo caminho entre as pedras espalhadas pelo leito. Nicholas parou a máquina no meio do rio, enquanto procurava na parede da represa os pontos mais fracos. Alinhou o trator com o centro da barragem, no ponto em que Sapper havia colocado os troncos atrás da fileira de gabiões.

"Sinto muito pelo seu trabalho", ele desculpou-se com Sapper, enquanto alinhava o pára-choque de aço do trator na altura e no ângulo certos para investir contra a parede. Mirou o gabião que tinha escolhido e moveu a máquina para a frente e para trás, até conseguir cavar por baixo e soltá-lo.

Era uma operação lenta. A pressão da água havia empurrado os gabiões, comprimindo-os contra a parede, de modo que Nicholas levou mais dez minutos para soltar a segunda cesta. Quando esta rolou cachoeira abaixo, ele olhou pela primeira vez o marcador de combustível no painel do trator e levou um susto. O tanque estava vazio. Sapper não se preocupara em reabastecer: ou havia esgotado a reserva de combustível, ou achou que nunca mais usariam a máquina.

No mesmo instante o motor engasgou. Nicholas reverteu drasticamente o ângulo de inclinação, para que o combustível restante se acumulasse na saída do tanque. O motor pegou novamente. Mais que depressa, ele mudou a marcha e voltou para a parede.

"Basta de delicadeza", disse para si mesmo. "De agora em diante é força bruta."

Retirando os dois gabiões, ele expôs um canto da parede de troncos que escorava os gabiões. Era uma parte vulnerável da represa. Nicholas usou os controles hidráulicos e ergueu a escavadeira ao ponto mais alto. Então baixou-a com cuidado, lentamente, até pousá-la sobre o tronco mais grosso. Travou as alavancas e engatou a ré, acelerando gradualmente até que o motor, a plena potência, soltou uma fumaça espessa de óleo.

Não adiantou. O tronco continuava firme e a parede resistia, com os gabiões firmados um contra o outro e a enorme pressão da água por trás. Desesperado, Nicholas manteve o acelerador totalmente apertado.

Os pneus patinavam nas pedras, espirrando água para cima e espalhando pedras e seixos soltos.

"Vamos!", Nicholas implorou. "Não faça isso comigo!" O motor falhou novamente, com falta de combustível.

— Por favor — suplicou em voz alta. — Só mais uma vez... Como se a máquina o ouvisse, o motor voltou a pegar e ganhou

força total.

— Isso, lindeza! — ele gritou, investindo e martelando contra a parede.

Como um tiro de canhão, o tronco soltou-se e saltou por cima da barragem, deixando um grande e profundo buraco por onde o rio passou triunfante, numa sólida coluna de água cinzenta.

— Estourou! — Nicholas gritou, saltando do trator. Apesar de ainda ter tempo de tirar o trator do rio, sabia que iria mais rápido a pé.

A correnteza segurava suas pernas, parecendo querer arrancá-las. Era como um pesadelo da infância em que os monstros perseguem a criança e ela corre em câmara lenta. Ele olhou para trás no momento em que a parte central da represa explodiu e foi atirada para a frente numa violenta erupção das águas furiosas. Com dificuldade, Nicholas deu mais alguns passos em direção à margem, quando foi atingido por uma onda turbulenta. Não tinha onde se segurar. A onda arrastou-o por cima da cachoeira e para dentro do estômago faminto do abismo.

Estes são o gancho real e o cetro do faraó — Von Schiller disse com a voz enfraquecida pela emoção, pegando os objetos na arca de cedro. — E estes são a barba falsa e o medalhão cerimonial.

Nahoot estava ajoelhado ao lado dele sob a grande estátua de Osíris. Todas as mágoas foram esquecidas na magia do momento, diante dos fabulosos tesouros do Egito.

— É a maior descoberta arqueológica de todos os tempos — Von Schiller sussurrou com voz trêmula. Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor que escorria por seu rosto.

— Foram anos de trabalho aqui dentro — Nahoot disse em tom sério. — Esta incrível coleção deve ser catalogada e avaliada. Ficará conhecida para sempre como o tesouro de Von Schiller. Seu nome será perpetuado. É o sonho egípcio da imortalidade. O senhor jamais será esquecido. Viverá eternamente.

O êxtase iluminou as feições de Von Schiller. Ele não havia pensado nisso. Até o momento, não considerara dividir esse tesouro com ninguém, exceto a seu modo pessoal com Utte Kemper, mas as palavras de Nahoot despertaram o velho sonho impossível da eternidade. Talvez devesse tomar algumas providências para torná-lo acessível ao público — só depois de sua morte, naturalmente.

Mas logo abandonou a idéia. Não degradaria o tesouro, tornando-o acessível à ralé. Fora reunido para o funeral de um faraó. Von Schiller considerava-se um faraó dos tempos modernos.

— Não! — ele reagiu violentamente. — Isto é meu, é tudo meu. Quando eu morrer, tudo irá comigo. Já providenciei em meu testamento. Meus filhos sabem o que fazer. Irá comigo para o túmulo. Minha tumba real.

Nahoot olhou-o assustado. Não percebera até então que o homem era louco, que sua obsessão o levara à beira da insanidade. Mas o egípcio sabia que de nada adiantava discutir agora — mais tarde encontraria um meio de salvar o maravilhoso tesouro. Baixou a cabeça e disfarçou a risada.

— O senhor está certo, Herr Von Schiller. É a melhor forma de dispor de tudo isso. O senhor merece um enterro assim. Contudo, nossa preocupação agora é colocar tudo em segurança. Helm nos avisou sobre o perigo do rio, o rompimento da represa. Temos de chamá-lo. Os homens de Nogo limparão o túmulo. Podemos transportar o tesouro no helicóptero até o acampamento da Pégaso, onde o embalarei de forma segura para a viagem à Alemanha.

— Sim, sim. — Von Schiller levantou-se com dificuldade, aterrorizado pela perspectiva de ser privado daquela maravilha pela inundação do rio. — Mande o monge... como é o nome dele?... Hansith... chamar Helm. Que venha imediatamente.

Nahoot ergueu-se de um salto.

— Hansith! — chamou. — Onde você está?

O monge os esperava na entrada da câmara funerária, ajoelhado diante do sarcófago vazio que contivera o corpo do santo. Estava dividido entre a convicção religiosa e a ambição. Quando ouviu seu nome, fez uma rápida genuflexão e foi juntar-se a Von Schiller e Nahoot.

— Volte para o poço onde estão os outros... — Nahoot dava as ordens, mas subitamente uma expressão estranha, distante, cruzou as belas feições do monge, que ergueu a mão e pediu silêncio.

— O que foi? — Nahoot perguntou num tom severo. — O que foi que ouviu?

Hansith balançou a cabeça.

— Fique quieto! Ouça! Está ouvindo?

— Não ouço nada... — Nahoot começou, mas então parou bruscamente e seus olhos se encheram de terror.

Era um som suave, delicado como o zéfiro de verão, baixo e tranqüilo.

— O que está ouvindo? — Von Schiller perguntou. Há muito tempo sua audição se deteriorara, e o som era muito distante para ser captado por seus ouvidos velhos

— Água! — Nahoot sussurrou. — Água correndo!

— O rio! — gritou Hansith. — O túnel está sendo inundado! — Ele girou sobre os calcanhares e saiu correndo pela arcada funerária com passadas longas e leves.

— Estamos presos aqui! — gritou Nahoot, correndo atrás dele.

— Esperem por mim! — berrou Von Schiller, tentando acompanhá-los. Mas logo ficou muito atrás dos homens mais jovens.

O monge, contudo, estava bem adiante de ambos e já subia os degraus de dois em dois.

— Hansith! Volte! É uma ordem! — Nahoot gritou desesperado quando viu a túnica branca do monge na primeira curva do labirinto.

— Guddabi! Onde está você? — a voz de Von Schiller ecoava pelos corredores. Mas Nahoot não respondeu, correndo na direção em que achava que o monge seguira; mas entrou na primeira interseção do labirinto, sem perceber a marca de giz na parede. Pensou ouvir os passos de Hansith à sua frente, mas quando fez a terceira curva viu que estava perdido.

Parou, com o coração saindo pela boca e um gosto amargo de pavor no fundo da garganta.

— Hansith! Onde se meteu? — gritou desesperado. A voz de Von Schiller vinha atrás, soando esganiçada pelos corredores:

— Guddabi! Guddabi! Não me deixe aqui.

— Cale a boca — gritou o outro. — Fique quieto, velho imbecil! Ofegante, com o sangue pulsando nos ouvidos, ele tentava ouvir os passos de Hansith. Mas só havia o barulho do rio. O sussurro delicado parecia emanar das paredes que os cercavam.

— Não! Não me deixe aqui! — gritou, e começou a correr sem direção, empurrado pelo pânico, através do labirinto.

Guiado pelo terror da morte, Hansith andava pelo labirinto com segurança. Mas, no topo da escada central, torceu o tornozelo e desabou. Rolando pelo poço íngreme, foi ganhando velocidade até chegar ao fundo, onde se estatelou contra os ladrilhos de ágata da longa galeria.

Com esforço, pôs-se de pé, machucado e trêmulo com a queda, e tentou correr. Mas sua perna o traiu e ele tropeçou. Mesmo assim, ergueu-se novamente e saiu mancando, apoiando-se à parede estilhaçada.

Ao chegar à porta e arrastar-se para junto do gerador, o som da água subiu pelo túnel. O barulho era mais audível agora — um rosnado alto e reverberante que quase encobria o ruído suave do gerador.

"Meu bom Jesus, Virgem santíssima, salvem-me!", implorou enquanto cambaleava pelo túnel; caiu mais duas vezes antes de chegar ao nível inferior.

De joelhos, perscrutou o local à sua frente, e, com a ajuda das lâmpadas elétricas presas ao longo do teto, percebeu o sumidouro logo abaixo. A princípio não o reconheceu, pois havia mudado muito. Dessa vez o nível da água não estava abaixo do piso pavimentado em que ele se encontrava. Subindo até a borda, a água formava um enorme turbilhão antes de ser tragada pelas saídas escondidas. A ponte flutuante ainda estava presa, mas meio submersa, balançando-se, incli-nando-se e lutando como um cavalo selvagem contra os cabos que a sustentavam.

Do poço de Taita, uma enxurrada ensurdecedora corria pelo braço mais distante do túnel, em direção ao ralo. O local estava sendo inundado velozmente, a água já chegava à metade das paredes, mas ele sabia que aquela era a única rota para fugir da tumba. A cada minuto a enxurrada era mais forte.

"Tenho de sair por aqui." Pôs-se em pé novamente.

Alcançou o primeiro estrado da ponte, mas ela adernava com tanta violência que Hansith não ousou continuar de pé. Ajoelhou-se e engatinhou até a frágil estrutura, conseguindo arrastar-se de um pon-tão a outro.

— Meu Deus e São Miguel, por favor me ajudem. Não me deixem morrer assim — rezou em voz alta. Chegando à outra extremidade do poço, tateou as rachaduras das paredes em busca de apoio.

Agarrou-se a uma saliência na boca do túnel, mas a força da torrente que vertia pelo poço desequilibrou suas pernas. Ficou dependurado ali por um momento, açoitado pela fúria da água, incapaz de dar um passo adiante. Sabia que, ao menor descuido, seria jogado de volta ao ralo e tragado para aquelas terríveis e escuras profundezas.

As lâmpadas ainda brilhavam sobre sua cabeça, de modo que ele podia enxergar quase até o ponto do poço em que se erguia o estrado de bambu. Por ali, escaparia para o topo do abismo. Estava a apenas 60 metros. Juntou todas as forças de que ainda dispunha e foi em frente, segurando-se em qualquer saliência que encontrava pelo caminho. Com as unhas quebradas e os dedos ralados de bater nas rochas, ele abria passagem.

Afinal, conseguiu vislumbrar a luz do dia, que vinha do poço de Taita. Faltava pouco mais de 1 metro, e numa onda de alívio e alegria Hansith se deu conta de que sobreviveria à armadilha mortal do poço. Nesse momento ouviu um novo som — o estrondo brutal da represa se rompendo, e da massa de água despencando no poço. Ela passou pela entrada do túnel e caiu num bloco sólido, enchendo a passagem até o teto, arrancando os fios das lâmpadas e mergulhando Hansith na escuridão.

O impacto foi tão terrível que ele teve a impressão de haver sido atingido pelas pedras de uma avalanche. A vaga tirou-o de seu abrigo precário e empurrou-o para trás, jogando-o novamente no abismo que escalara com tanto esforço. Em meio à escuridão e à confusão, ele rodopiou nas águas enlouquecidas do sumidouro. Perdeu o senso de direção, mas isso não fazia a menor diferença, pois não podia nadar contra o turbilhão.

Então foi inexoravelmente sugado para baixo. A pressão da água começou a esmagá-lo. Um dos tímpanos se rompeu, e quando ele abriu a boca para gritar de dor, a água invadiu-lhe a garganta e encheu seus pulmões. Por fim, sentiu os ossos do ombro direito serem esmagados contra uma das paredes de pedra. Por conta dos pulmões inundados, não conseguiu gritar outra vez, mas logo a dor se perdeu no esquecimento.

A medida que era carregado através dos subterrâneos, seu corpo ia sendo destroçado pelas rochas, e quando finalmente foi cuspido na fonte das borboletas, na extremidade mais afastada da montanha, nada mais havia de humano. Dali os fragmentos foram levados pelo serpeante Rio Dandera até se juntarem às águas imponentes do Nilo Azul.

Amassa líquida que jorrava pelo buraco aberto na barragem arrastou o trator e empurrou-o cachoeira abaixo como se fosse um brinquedo de criança. Nicholas o viu flutuar no ar logo abaixo de si. Também estava caindo, mas se tivesse permanecido com a máquina ela o teria esmagado. O enorme veículo atingiu a superfície do poço e desapareceu em meio a um jorro branco. Nicholas seguiu-o em queda livre, mas conseguiu manter a cabeça para cima. Teria se espatifado contra as pedras expostas no fundo, mas a torrente que o arrastava amorteceu o impacto. Subiu à superfície 50 metros à frente, tirou o cabelo molhado do rosto e deu uma rápida olhada em volta.

O trator havia desaparecido nas profundezas do poço embaixo da catarata; logo à frente, avistou uma pequena ilha de pedras no meio do rio. Nadou até ela com algumas braçadas e agarrou-se a um esporão da rocha. Dali observou as paredes escarpadas do abismo e lembrou-se da última vez em que ficara preso lá embaixo. A exultação que sentira pela destruição da represa e pela inundação da tumba do faraó se evaporou.

Sabia que não seria capaz de escalar aquele penhasco escorregadio, que, além de não ter nenhuma reentrância na qual se apoiar, formava uma barriga acima dele. Em vez disso, considerou as chances que tinha de retornar ao sopé da catarata. Do ponto em que estava, Nicholas teve a impressão de vislumbrar uma espécie de funil ou fissura que, subindo pelo lado leste da encosta, poderia formar uma escada até o alto, mas a empreitada era difícil e perigosa.

O volume de água que vinha da catarata não era tão pesado quanto ele esperara, considerando a vasta massa líquida que era retida pela represa. Ele percebeu que a maior parte das pilastras da barragem ainda devia estar no lugar, e que essa torrente era formada apenas pela água que escapava do pequeno buraco que se havia aberto no centro da parede de pedra. No entanto, tinha consciência de que as pilastras não agüentariam muito mais; o rio passaria por cima delas com toda a sua força. Assim, pôs de lado a idéia de nadar de volta ao sopé da cachoeira.

"Tenho que sair do seu caminho", pensou, desesperado, ao se imaginar presa daquela terrível torrente que certamente surgiria a qualquer momento. "Se puder chegar à lateral, talvez ache um jeito de passar por cima da água." Mas Nicholas sabia que essa era uma esperança tola. Já havia nadado por toda a extensão da garganta sem encontrar uma única saliência nas rochas.

"Sair nadando antes da enchente?", ponderou. "Uma chance remota, mas é a única que tenho." Arrancou as botas e tentou juntar coragem. Quando estava prestes a saltar do abrigo temporário, ouviu o resto da represa desabar.

O barulho era ensurdecedor; troncos se partiam, as pilastras eram arrancadas e atiradas para todos os lados como latas de lixo vazias, e então, de repente, uma aterrorizante massa líquida cinzenta despencou do alto da catarata, trazendo consigo um bloco de lixo e entulho.

"Santo Deus! Tarde demais. Aí vem ela!"

Nicholas saltou da pedra e nadou com todas as forças, agitando-se em braçadas furiosas. Ao ouvir o estrondo da onda que se aproximava, olhou para trás. Ela o estava alcançando rapidamente, preenchendo o abismo de lado a lado; tinha 5 metros de altura e uma crista enorme. Nicholas vislumbrou num relance seus anos de juventude, quando surfava nas famosas ondas de Cape St. Vincent. Ficava ali esperando e a via arqueando-se acima de sua cabeça, uma grande parede de água, gigantesca e avassaladora.

"Cavalgue-a!", disse a si mesmo, analisando rapidamente a situação. "Pegue-a como se tivesse uma prancha."

Ele deu braçadas possantes, tentando ganhar velocidade para subir na onda. Foi apanhado e erguido com tanta violência que suas entranhas se reviraram, e então ficou sobre a crista. Arqueou as costas e pôs os braços para trás, na posição clássica do surfista, com a cabeça ligeiramente para baixo e a metade dianteira do corpo fora d'água, ao mesmo tempo que manobrava com os pés. Depois dos primeiros segundos aterradores, percebeu que tinha certo controle da situação; o pânico diminuiu e ele foi invadido por uma espécie de alegria selvagem.

"Vinte nós!" As paredes da garganta não eram mais que borrões que surgiam e desapareciam vertiginosamente. Nicholas se desviou de uma muralha próxima e depois aprumou-se no centro da onda. Era transportado pela água e pela excitante sensação de velocidade e perigo.

A medida que a água subia no abismo, encobria as rochas aguçadas ameaçadoras, impedindo que ele se ferisse. A torrente projetava-se além das cachoeiras, de modo que, em vez de mergulhar verticalmente no poço, ele deslizou junto com ela, mantendo-se adiante da onda com algumas braçadas e pernadas rápidas.

"Caramba! Isto é divertido!", ele riu. "As pessoas pagariam para viver isto. É muito melhor que bungee jumping."

Um quilômetro depois, ao se espalhar pelo desfiladeiro, a vaga começou a perder o volume e o ímpeto. Logo ele não conseguiria mais se manter em posição de surfá-la, e deu uma rápida olhada em volta. Ali estava um dos troncos que fazia parte da jangada com a qual Sapper havia feito o buraco na barragem, flutuando em meio aos destroços.

Aproximou-se do pesado pedaço de madeira. Tinha 9 metros de comprimento e estava semi-afundado, como uma baleia à tona. Seus galhos haviam sido grosseiramente aparados pelos lenhadores, e as pontas que sobraram ofereciam um apoio seguro. Nicholas içou-se para cima do tronco e ficou deitado sobre a barriga, olhando para a correnteza enquanto suas pernas balançavam dentro da água. Recuperou o fôlego rapidamente e sentiu as forças retornarem.

Embora tivesse se abrandado, a torrente ainda corria pelo abismo com uma velocidade espantosa. "Pouco menos de dez nós", ele avaliou. "Quando ela chegar ao poço de Taita, vou sentir pena de Von Schiller e dos que ainda estiverem na tumba. Vão ficar lá pelos próximos quatro mil anos." Jogou a cabeça para trás e desatou a rir.

"Funcionou! Raios me partam se a coisa não funcionou do jeito que planejei!"

Parou de rir subitamente ao sentir o tronco se virar na direção de uma das paredes do cânion.

— Essa não! Mais problemas.

Nicholas rolou para a lateral do tronco e chutou-o com força. O desajeitado bote respondeu, oscilando através da corrente. Ele virou-se devagar, não o suficiente para evitar a colisão com a rocha, mas em vez de acertá-la em cheio, bateu de lado e voltou para o centro da correnteza.

A cada segundo, Nicholas ganhava confiança e destreza.

"Posso controlar esta coisa até chegar ao monastério!", exclamou em êxtase. "Nesta velocidade, posso até chegar aos barcos antes de Royan e Sapper."

Olhando em frente, reconheceu o trecho do abismo em que se encontrava.

"Esta é a curva que fica acima do poço. Chegarei lá em um ou dois minutos. Espero que o andaime de bambu já tenha sido arrastado."

Pôs-se de pé sobre o tronco e esticou-se o máximo possível, limpou os olhos e perscrutou o horizonte. Viu a cabeceira da cachoeira do poço de Taita se aproximar e retesou o corpo para a queda.

A comprida e suave cachoeira abriu-se à sua frente, e um segundo antes de cair ele viu a bacia de rochas lá embaixo. Logo entendeu que suas expectativas haviam sido prematuras. O andaime de bambu não fora arrastado pelas águas, embora estivesse bem danificado. A porção inferior havia desaparecido, mas a parte de cima continuava presa à rocha, tocando de leve a correnteza. Oscilava de um lado para outro e, quase sem acreditar, Nicholas percebeu que pelo menos dois homens estavam encarapitados na precária estrutura, agarrando-se desesperadamente aos postes balouçantes. Ambos tentavam alcançar a borda do penhasco.

Nessa fração de segundo, Nicholas notou o brilho dos óculos de aro metálico sob a boina marrom, e percebeu que o homem mais próximo do topo era Tuma Nogo. A seguir, Nogo conseguiu alcançar a parte de cima do andaime e desapareceu pela encosta. Nicholas só teve tempo para esse relance antes de despencar pela cachoeira e atingir a superfície do poço. O tronco quase deu uma volta sobre si mesmo, mas Nicholas conseguiu segurar-se, e aos poucos o pedaço de madeira se endireitou.

Durante alguns segundos o tronco ficou preso no vórtice formado pela catarata, mas logo foi arrastado novamente pela corrente, percorrendo velozmente toda a extensão do poço de Taita com a mesma imponência de uma belonave de madeira.

Nicholas teve um momento de trégua para olhar em volta. Imediatamente, viu que a entrada do túnel estava totalmente submersa e que, a julgar pelo nível da água nas paredes do penhasco, encontrava-se mais de 1 metro abaixo da superfície. Sentiu o gosto do triunfo. A tumba estava uma vez mais protegida das depredações dos arrombadores de túmulos.

Então voltou a atenção para os restos do andaime de bambu danificado, semi-arrancados dos antigos nichos que ocupavam nas pedras, e notou que o outro homem ainda estava lá, pendurado. Encontrava-se meio metro acima da superfície da água, e parecia congelado, como um gato apavorado no alto de uma árvore sacudida pelo vento.

Nesse momento Nicholas percebeu que o tronco continuava boiando ao sabor da correnteza e seguia em direção ao andaime. Estava prestes a desviá-lo quando o homem olhou para baixo. Era branco e seu rosto pálido criava um clarão no meio da escuridão do cânion; um segundo depois Nicholas reconheceu-o com uma ponta de ódio.

— Helm! — exclamou. — Jake Helm.

Lembrou-se de Tamre, o jovem monge epilético, esmagado sob a rocha, e da face queimada de Tessay. Foi invadido pela indignação e pelo ódio. Em vez de fazer o tronco se desviar do andaime, empurrou-o de encontro ao penhasco. Por um instante Nicholas pensou que fosse errar o alvo, mas no último instante a ponta da madeira colidiu com a estrutura de bambu, enganchando-se nela.

A força do impacto foi irresistível. Os postes de bambu racharam e estalaram como gravetos secos, e o andaime se desprendeu das rochas e desabou sobre o tronco. Helm oscilou e afundou na água. Enquanto permanecia submerso, Nicholas montou no tronco, com uma perna de cada lado, e pegou um pedaço de bambu que havia se partido e estava flutuando a seu lado.

O tronco fora parar numa contracorrente do rio espesso, e agora começava a girar vagarosamente na água parada junto à corrente principal. Nicholas mantinha-se firme sobre ele. Agitou o bambu para a frente e para trás como se fosse um taco de beisebol, só para sentir seu peso. Então apoiou-o sobre o ombro e esperou Helm emergir.

Um segundo depois, a cabeça do texano aflorou à superfície. Tinha os olhos bem fechados, cuspiu um pouco d'água e tentou respirar. Nicholas apontou o bambu para a cabeça e brandiu-o com toda a força, mas no mesmo instante Helm abriu os olhos e percebeu o golpe.

Rápido como uma enguia, desviou-se do bastão, de modo que ele apenas tocou a lateral de sua cabeça loira. Nicholas perdeu o equilíbrio, e antes que pudesse se recuperar Helm já havia enchido os pulmões de ar e mergulhado outra vez.

Nicholas ergueu novamente o bastão, pronto para voltar a usá-lo. Observando a superfície escura da água, praguejava por ter desperdiçado o primeiro golpe, quando ainda tinha a vantagem do elemento surpresa. Sabia muito bem o que o esperava, agora que Helm estava de sobreaviso.

Vários segundos se passaram sem que o inimigo desse sinal de vida. Nicholas olhava para trás ansioso, tentando adivinhar onde o outro surgiria. Mas nada acontecia. Nervoso, baixou o bastão e segurou-o de modo a poder usá-lo como um punhal, golpeando em todas as direções.

De repente sentiu o tornozelo esquerdo ser agarrado embaixo da água, e, antes que pudesse se segurar, Nicholas foi arrancado do tronco e caiu de costas no rio. Debaixo d'água, sentiu as mãos de Helm em seu rosto. Agarrou-lhe um dos dedos e dobrou-o para trás. Mas Helm, galvanizado pela dor, passou o braço musculoso em torno do pescoço de Nicholas, como os tentáculos de um polvo.

Quando os dois subiram à superfície para respirar, Helm empurrou a cabeça de Nicholas para trás e o fez engolir muita água. Era o abraço da morte. Com o pescoço firmemente preso, Nicholas sentiu todas as vértebras tensas. Se Helm tivesse um apoio sólido, poderia lhe quebrar a espinha. Mas Nicholas começou a se virar, impedindo que Helm usasse toda a sua força. Logo se viu diante do rosto do adversário, distorcido e ampliado pela água suja. Parecia monstruoso, demoníaco.

Quando Helm tentou rolar para cima dele, Nicholas segurou-o com firmeza pela cintura e deu-lhe uma forte joelhada entre as pernas. Helm se contorceu e afrouxou o braço, e Nicholas aproveitou para agarrar seus testículos e torcê-los com fúria. Ele viu o rosto do homem franzir-se de dor. Num ato reflexo, Helm largou o pescoço do oponente e lhe agarrou o punho com ambas as mãos.

Ao voltarem novamente à superfície, ao lado do tronco flutuante, Nicholas percebeu que a corrente os estava expulsando do poço e que iriam desaguar diretamente no leito principal do rio. Soltando os testículos de Helm, Nicholas desferiu-lhe um soco no rosto. Mas como estavam muito próximos o golpe saiu sem força e acertou apenas de raspão o queixo do outro. Nicholas tentou então passar o braço em torno do pescoço de Helm, mas este afundou a cabeça no peito e escorregou para o lado. Rápido como uma víbora, cravou os dentes no queixo de Nicholas.

A surpresa foi completa, e a dor, excruciante. Urrando, Nicholas agarrou o rosto de Helm, tentando enfiar os dedos em seus olhos. Mas o outro cerrou as pálpebras e mordeu com mais força, de modo que o sangue de Nicholas começou a escorrer pelos cantos da boca.

O tronco de madeira ainda flutuava por ali, alguns centímetros atrás da cabeça de Helm. Nicholas segurou-o pelas orelhas e pôs-se a arrastá-lo pela água. Ele podia enxergar por cima da cabeça de Helm, enquanto a deste estava bloqueada. Havia uma lasca de madeira saliente no tronco, no local onde um galho havia sido extirpado. Chorando de dor, Nicholas apontou a cabeça de Helm para a farpa. O sangue que escorria de seu lábio inferior começou a encher a boca de Helm, que se comportava como um touro ferido na arena, agitando-se violentamente de um lado a outro. Logo iria arrancar um pedaço do rosto de Nicholas.

Fortalecido pela dor e pelo desespero, Nicholas arremeteu para a frente e empurrou Helm contra o tronco. A farpa de madeira penetrou-lhe entre as vértebras, bem na base do crânio, rompendo parcialmente sua medula. Suas mandíbulas se abriram num espasmo. Nicholas libertou-se. O embate produzira nele um ferimento feio, que sangrava copiosamente.

Fixado na farpa de madeira, Helm parecia a carcaça de um boi presa ao gancho do açougue. Tinha os lábios repuxados e os músculos do rosto convulsionados; as pálpebras estavam deformadas como as de um epilético e os olhos revirados, de modo que apenas a parte branca aparecia, lançando um brilho grotesco na escuridão do abismo.

Ofegante, Nicholas montou no tronco, ao lado do corpo do texano. Seu queixo sangrava e tingia-lhe o peito. Vagarosamente, sob a pressão do peso mal distribuído, o tronco girou e Helm começou a escorregar. Sua pele se rasgou e produziu um estranho rangido. Então, inerte, seu corpo começou a afundar.

Mas Nicholas não o deixaria ir assim facilmente.

— Quero ter certeza, garoto — grunhiu em meio ao sangue que lhe jorrava da boca.

Esticando-se, segurou Helm pelo colarinho, mantendo sua cabeça debaixo da água. Eles ganhavam velocidade rapidamente naquele trecho da garganta, mas Nicholas prendia o cadáver obstinadamente, destruindo qualquer resquício de vida que ainda pudesse existir no homem, até que a corrente o levou, submergindo-o na massa turva.

— Mandarei suas lembranças a Tessay — Nicholas gritou enquanto o corpo desaparecia. Então voltou a se concentrar na manobra do tronco. Por fim, foi expelido através dos portais rosados do penhasco para o Rio Dandera. Ao passar sob a ponte suspensa, escorregou do tronco e nadou até a margem ocidental, totalmente consciente do terrível salto dado pelo rio ao desaguar no Nilo, meio quilômetro à frente.

Já a salvo, rasgou um pedaço da camisa. Enfaixou o queixo ferido da melhor maneira possível, passando o pano em torno da cabeça. O sangue ensopou o tecido, mas ele fez um nó firme e a hemorragia começou a ceder.

Ainda um pouco atordoado, levantou-se e tentou abrir caminho através dos arbustos que margeavam o rio; finalmente encontrou a trilha que levava ao monastério e desceu por ela, descalço. Parou apenas uma vez, ao ouvir o barulho do helicóptero que decolava do topo do penhasco, logo atrás de si.

Olhou para trás.

"Parece que, infelizmente, Tuma Nogo conseguiu se safar. O que será que aconteceu a Von Schiller e ao egípcio?", perguntou-se, tateando o rosto ferido. "Pelo menos nenhum deles vai chegar à tumba, não até reconstruírem a represa."

De repente, um pensamento o assaltou:

"Meu Deus, e se Von Schiller já estivesse lá dentro?" Abriu um sorriso de satisfação e sacudiu a cabeça. "Bom demais para ser verdade. A justiça nunca anda tão rápido." Balançou a cabeça outra vez, e o movimento produziu uma dor intensa no ferimento. Apertou a atadura com a mão e voltou a caminhar, apressando o passo quando alcançou a estrada pavimentada que conduzia ao monastério.

Nahoot Guddabi correu diretamente para Von Schiller, contornando um dos cantos do labirinto; de algum modo, sua presença acalmou o alemão e afastou o pânico que ameaçava dominá-lo a qualquer momento, muito embora o velho não fosse de grande valia nessa crise. Sem Hansith, o labirinto era um lugar sobrenatural e solitário. Qualquer companhia humana seria uma bênção. Por um instante, os dois se abraçaram como crianças perdidas na floresta.

Von Schiller ainda carregava parte do tesouro que estavam examinando quando Hansith se desesperou e saiu correndo. Segurava o cajado de ouro do faraó numa das mãos e a chibata cerimonial na outra.

— Onde está o monge? — gritou para Guddabi. — Por que você fugiu e me deixou sozinho? Temos de encontrar a saída deste labirinto, idiota. Não vê que corremos perigo?

— E acha que eu sei sair daqui? — Nahoot começou a falar enraivecido, mas calou-se ao notar as marcas de giz na parede atrás de Von Schiller; pela primeira vez entendeu seu significado.

— É isso! — bradou com alívio. — Harper ou a egípcia fizeram isso para nós. Venha! — Começou a descer pelo túnel, seguindo as inscrições. No entanto, quando alcançaram a escada central, já fazia uma hora que Hansith os havia abandonado. A medida que desciam os degraus na direção da longa galeria, o som sibilante do rio se fazia ouvir, como a respiração de um dragão adormecido.

Nahoot desatou a correr, e Von Schiller seguiu-o cambaleante, trêmulo de medo.

— Espere! — implorou a Nahoot, que ignorou o pedido e enfiou-se pela abertura feita na porta selada. Na plataforma, o gerador ainda funcionava, mas Nahoot sequer o notou; desceu correndo pelo poço íngreme à luz ofuscante das lâmpadas do teto.

Virou a esquina ainda correndo e parou abruptamente ao perceber que o túnel inferior estava inundado, cheio até a antiga marca d'água desenhada nas paredes. Não havia sinal do sumidouro e da ponte flutuante, que se encontravam submersos mais de 1,5 metro.

O Rio Dandera, guardião da tumba através dos tempos, havia cumprido seu dever. Escuro e implacável, vedava agora a entrada da tumba tal como fizera nos últimos 4 000 anos.

— Alá! — murmurou Nahoot. — Alá, tende piedade de nós. Virando a esquina do túnel, Von Schiller aproximou-se de Nahoot.

Os dois olharam aterrorizados para o poço inundado. Então, num movimento lento, o alemão encostou-se à parede.

— Estamos presos — concluiu, e a essas palavras Nahoot choramingou e caiu de joelhos. Começou a rezar em tom alto e monocórdio. Aquilo enfureceu Von Schiller.

— Isso não vai nos ajudar. Pare! — Passou o chicote real para a mão direita e vibrou-o nas costas de Nahoot, que, gritando de dor, arrastou-se para um canto.

— Temos que achar um jeito de sair daqui — Von Schiller comandou, já mais calmo. Estava acostumado a mandar, e era o chefe ali.

— Deve haver outra passagem — decidiu. — Vamos procurar. Se ela existir, sentiremos uma corrente de ar. — Sua voz tornou-se mais firme e confiante. — Sim! É isso! Vamos desligar aquele ventilador e tentar detectar o movimento do ar.

Nahoot reagiu prontamente à sua autoridade e foi desligar o ventilador.

— Pegue o isqueiro — ordenou Von Schiller. — Vamos fazer algumas velas. — Apontou para os papéis e as fotografias que Royan havia deixado sobre o cavalete. — Usaremos a fumaça para localizar a corrente de ar.

Nas duas horas seguintes vagaram por todos os níveis da tumba, segurando os papéis em chamas e observando o movimento da fumaça. Não conseguiram localizar a mais leve brisa, e afinal voltaram para o poço e ficaram ali, estarrecidos e desesperados, observando as águas imóveis que o bloqueavam.

— Essa é a única saída — murmurou Von Schiller.

— Será que o monge saiu por aí? — perguntou Nahoot, encolhendo-se.

— Não existe outro caminho.

Ficaram em silêncio por um instante; era difícil estimar a passagem do tempo lá dentro. Agora que o rio retomara seu nível, a água estava imóvel, e o som distante e tênue da corrente que passava pelo sumidouro parecia apenas aumentar o silêncio. Um silêncio tão profundo que podiam escutar a própria respiração.

Por fim, Nahoot falou:

— O combustível do gerador. Deve estar quase no fim. Não vi nenhuma reserva...

Pensaram no que aconteceria quando o pequeno tanque se esvaziasse. Pensaram na escuridão que sobreviria. De repente, Von Schiller gritou:

— Você tem de sair daqui e buscar ajuda. Ordeno que vá! Nahoot fitou-o, incrédulo.

— São mais de cem metros de túneis, e o rio está cheio.

Von Schiller levantou-se de um salto e agarrou Nahoot ameaçadoramente.

— O monge escapou por aí. E o único caminho. Você tem de nadar pelo túnel e alcançar Helm e Nogo. Helm saberá o que fazer. Ele encontrará um jeito de me tirar daqui.

— Você está louco! — Nahoot afastou-se, mas Von Schiller o seguiu.

— Ordeno que vá!

— Velho maluco! — Nahoot tentou se erguer, mas Von Schiller brandiu o chicote e acertou-lhe um golpe inesperado no rosto, que rachou seus lábios, quebrou-lhe dois dentes e o fez cair para trás.

— Você está louco! — choramingou. — Não pode fazer isso... — Mas Von Schiller golpeou-o seguidamente, lacerando-lhe o rosto e os ombros. A ponta das correias cortava como navalha a camisa de algodão.

— Eu o mato! — gritou Von Schiller. — Se não me obedecer, eu o mato!

— Pare! — Nahoot implorou. — Por favor, pare. Eu irei, mas pare.

Arrastando-se para longe de Von Schiller, ele percorreu o túnel e entrou na água.

— Me dê algum tempo para me preparar — pediu.

— Vá imediatamente! — Von Schiller ergueu o chicote numa ameaça. — É bem provável que encontre correntes de ar no túnel. Vai achar a passagem. Vá!

Nahoot apanhou um pouco d'água com as mãos e lavou o sangue que escorria de um dos cortes profundos no rosto.

— Tenho que tirar as roupas e os sapatos. — Queria ganhar tempo, mas Von Schiller não o deixou sair da água.

— Tire as roupas aí mesmo — ordenou, agitando o pesado chicote. Na outra mão segurava o gancho de ouro. Nahoot percebeu que um único golpe daquela arma seria suficiente para lhe estilhaçar o crânio.

Com água pelos joelhos, Nahoot começou a tirar os sapatos. Então, devagar e com relutância, ficou só de cuecas. Os ombros apresentavam muitas escoriações, e o sangue lhe escorria pelas costas como serpentes escarlates.

Ele sabia que precisava acalmar a ira do velho. Percorreria uma pequena extensão do túnel debaixo d'água e esperaria junto à parede lateral tanto quanto pudesse agüentar; depois voltaria.

— Vá! — berrou Von Schiller. — Está desperdiçando tempo. Não pense que vou deixá-lo sair dessa.

Nahoot avançou pelo poço até a água lhe bater no peito. Parou por alguns instantes para tomar fôlego. Por fim, prendeu a respiração e mergulhou. Von Schiller ficou esperando na borda do poço, incapaz de enxergar o que se passava sob a superfície negra e sinistra. A luz das lâmpadas, o sangue de Nahoot manchava a água.

Depois de um interminável minuto, um braço se ergueu dentro do poço, mãos e dedos esticados numa súplica. Em seguida eles voltaram a afundar.

Von Schiller inclinou-se para a frente:

— Guddabi! — chamou com raiva. — O que está tentando fazer? As águas agitaram-se mais uma vez, e algo brilhou como espelho

nas profundezas.

— Guddabi! — a voz de Von Schiller era de indignação.

Como se respondesse à intimação, a cabeça de Nahoot aflorou à superfície. Sua pele estava amarela, exangue, e a boca se abriu num grito terrível e silencioso. A julgar pelo movimento da água, parecia haver um cardume de peixes grandes ali embaixo. Enquanto Von Schiller tentava entender o que estava acontecendo, uma maré negra se ergueu sobre a cabeça de Nahoot e coloriu a superfície de vermelho. O alemão levou um instante para perceber que aquele era o sangue do companheiro.

Então viu as formas sinuosas contorcendo-se no fundo, rodeando Nahoot, alimentando-se de seu sangue. Nahoot ergueu a mão outra vez e estendeu-a na direção de Von Schiller, suplicante. O braço estava descarnado, mutilado.

Com um grito de horror, Von Schiller afastou-se do poço. Nahoot encarou-o com uma expressão acusadora antes de soltar um uivo bestial.

Enquanto o alemão olhava, a cabeça de uma das gigantescas enguias tropicais assomou à superfície; seus dentes brilharam no momento em que cerrou as mandíbulas na garganta de Nahoot. O homem não fez nenhum esforço para se livrar da criatura. Já estava morto. Ficou ali fitando Von Schiller, enquanto a enguia, retorcendo-se num emaranhado brilhante e viscoso, mastigava seu pescoço.

Aos poucos, Nahoot afundou. Durante alguns minutos o poço foi sacudido pela agitação em suas profundezas e pelo brilho ocasional das enguias. Então, gradualmente, a superfície voltou a ficar imóvel como uma lâmina de vidro negro.

Von Schiller virou-se e correu de volta pelos túneis íngremes, passando pela plataforma na qual o gerador ainda ronronava baixinho, desesperado para se afastar ao máximo daquele lugar aterrador. Não sabia aonde estava indo, mas embarafustou por todas as passagens que surgiam à sua frente. Aos pés da escada central, correu para o canto da parede, e, desorientado, desabou nos ladrilhos de ágata; ficou ali soluçando, enquanto um inchaço roxo surgia em sua testa.

Passado um momento, levantou-se e pôs-se a subir os degraus. Estava confuso e desorientado, à beira da loucura. Caiu de novo e engatinhou até a próxima curva do labirinto. Só então conseguiu se erguer e sair cambaleando.

O corredor inclinado que dava acesso ao poço de Taita abriu-se sob seus pés sem que ele percebesse. O velho despencou pelos degraus, machucando o peito e as pernas. Logo se reergueu; tropeçando pelo depósito, entre as fileiras de ânforas, subiu a escada mais distante até a arcada com afrescos que conduzia à tumba do Faraó Mamose.

Já havia percorrido metade dela, desgrenhado e com um olhar demente, quando de súbito as luzes se apagaram com um fulgor amarelo. Enquanto o gerador sugava as últimas gotas de combustível que havia no tanque, elas voltaram a se acender. Von Schiller estacou no meio da arcada e olhou desesperado para as lâmpadas. Sabia o que estava por vir. Os bulbos brilharam por mais alguns minutos e em seguida apagaram-se de vez.

A escuridão o envolveu como pesadas vestes mortuárias de velu-do. Era tão intensa e completa que parecia ter peso e textura. Von Schiller sentiu-se sufocar.

Desatou a correr às cegas, totalmente perdido. Bateu com a cabeça numa rocha e foi ao chão outra vez. Atordoado, sentiu um fio de sangue quente escorrer-lhe pelo rosto. Não conseguia respirar. Engasgado, deitou-se de lado e enrodilhou-se como um feto no útero.

Ficou imaginando quanto tempo levaria para morrer; alguns dias, ou semanas?, pensou desanimado. Lentamente começou a se mexer, tateando o objeto de pedra com o qual havia colidido. Naquela escuridão não poderia saber que estava embaixo do grande sarcófago de Mamose. Assim, permaneceu no negrume da tumba, cercado pelos tesouros fúnebres do faraó, e esperou pela morte lenta e inexorável.

O Mosteiro de São Frumêncio estava deserto. Ao escutar o tiroteio e os sons da batalha que ecoavam pelo desfila-deiro, os monges juntaram seus tesouros e partiram. Nicholas atravessou correndo o claustro vazio, parando para recuperar o fôlego no topo da escadaria que descia até o Nilo e o santuário da Epifania, onde havia guardado os botes. Arquejante, vasculhou a escuridão do local, que raramente era iluminado pela luz do sol; mas a nuvem de água produzida pelas cachoeiras gêmeas encobria as profundezas. Não conseguia distinguir se Sapper e Royan já estavam lá embaixo à sua espera ou se haviam tido problemas na trilha.

Ajeitou a bandagem esfarrapada e ensangüentada e seguiu em frente. Então ouviu em meio à névoa prateada a voz de Royan, que subia às pressas os degraus escorregadios, chamando-o.

— Nicholas! Graças a Deus! Pensei que não viria. — Teria corrido para abraçá-lo, mas estacou apavorada diante da visão de tanto sangue.

— Minha Nossa Senhora! — murmurou. — O que lhe aconteceu, Nicky?

— Uma pequena desavença com Jake Helm. Foi só um arranhão, mas acho que não vou poder beijá-la — ele resmungou, tentando sorrir através da atadura. — Vamos ter de deixar para mais tarde.

Passou o braço em torno de seus ombros e empurrou-a escada abaixo, quase fazendo-a cair.

— Onde estão os outros? — perguntou.

— Estão todos aqui. Sapper e Mek estão inflando e carregando os botes.

— E Tessay?

— Ela está bem.

Saltaram os últimos degraus e aterrissaram no santuário da Epifa-nia. O Nilo havia subido 3 metros desde que Nicholas estivera ali pela última vez. Estava cheio e nervoso, lamacento e agitado. Mal se podiam divisar os penhascos à distância, através da nuvem de água.

Os cinco botes Avon foram arrastados para a água. Quatro já estavam totalmente inflados, e o último tomava forma à medida que o cilindro de ar comprimido o enchia. Mek e Sapper colocavam as caixas de munição nos barcos que já estavam prontos, amarrando-as com redes de náilon verdes.

Sapper fitou Nicholas e fez uma careta engraçada.

— Que diabos aconteceu com seu rosto?

— Qualquer dia eu conto — Nicholas prometeu, e virou-se para abraçar Mek.

— Obrigado, amigo — disse com sinceridade. — Seus homens lutaram bem e esperaram por mim. — Nicholas olhou de relance para a fila de guerrilheiros postados aos pés do penhasco. — Quantas baixas?

— Três mortos e seis feridos. Teria sido pior se os homens de Nogo tivessem pressionado mais.

— Mesmo assim, foi muito.

— Uma baixa já seria muito — Mek concordou de mau humor.

— Onde estão os outros?

— Correndo para a fronteira. Retive apenas os necessários para manobrar os barcos. — Mek afastou a atadura imunda do queixo de Nicholas. Royan engasgou quando viu o ferimento, mas Mek sorriu.

— Parece que foi mordido por um tubarão.

— Foi isso mesmo — Nicholas aquiesceu. Mek encolheu os ombros.

— Precisa de uns dez pontos, pelo menos. — Gritou para um dos homens que lhe trouxesse a maleta.

— Desculpe, mas não tenho anestésicos — avisou Nicholas, enquanto o forçava a sentar-se numa das vergas do barco e lhe aplicava um anti-séptico.

Nicholas soltou um grunhido de dor.

— Arde, não é? Espere só até eu começar a costurar.

— Esse ato de caridade vai constar ao lado de seu nome no livro de ouro — disse Nicholas. Com um olhar maldoso, Mek abriu um pacote de sutura.

Enquanto trabalhava na ferida, falou ao ouvido de Nicholas:

— Nogo tem pelo menos um pelotão de homens guardando o rio. Meus patrulheiros disseram que ele os distribuiu de modo a cobrir as duas margens.

— Ele não sabe que temos barcos para descer o rio, sabe? — Nicholas perguntou entre dentes.

— Acho improvável, mas ele conhece bem nossos movimentos. Talvez tivesse um informante entre seus operários. — Mek fez uma pausa ao espetar a agulha na carne de Nicholas, e então continuou: — E Nogo ainda conta com o helicóptero. Vai nos localizar no rio assim que as nuvens se dispersarem.

— O rio é nossa única rota de fuga. Vamos rezar para que o tempo continue nublado.

Quando Mek deu o derradeiro ponto na ferida, Sapper havia terminado de carregar o último barco.

Quatro homens transportaram a maca de Tessay para um deles. Mek ajudou-a a se acomodar ao lado de uma correia de segurança. Então correu para auxiliar no embarque dos outros feridos. A maioria podia andar, mas dois tiveram de ser carregados.

A seguir, voltou para junto de Nicholas.

— Vejo que encontrou seu rádio — concluiu, ao perceber a caixa de fibra de vidro que Nicholas carregava no ombro.

Sem ele estaríamos perdidos. — Deu um tapinha carinhoso na caixa.

— Vou pilotar o bote de Tessay.

— Ótimo! — concordou Nicholas. — Royan vem comigo no barco da frente.

— É melhor eu ir na frente.

— O que você entende disso? — perguntou Nicholas. — Sou o único que já atravessou este rio antes.

— Isso foi há vinte anos — Mek ressaltou.

— Sou muito melhor agora — Nicholas sorriu. — Não discuta, Mek. Você me seguirá, e Sapper virá logo atrás. Homens, algum de vocês conhece o rio o suficiente para comandar os outros dois barcos?

— Todos conhecem o rio — respondeu-lhe Mek antes de dar as ordens.

Cada um se dirigiu ao Avon que lhe fora destinado. Nicholas ergueu Royan e colocou-a no bote; depois, ajudou os homens a empurrá-lo para a água. Assim que a quilha se soltou, todos pularam para dentro e pegaram os remos.

Nesse momento, Nicholas percebeu que sua tripulação era de fato experiente. Os homens remavam com firmeza e cadência, e o bote inflável encaminhou-se para a corrente principal do Nilo.

Os Avons haviam sido projetados para acomodar dezesseis pessoas, e estavam pouco carregados. Os baús de munição que guardavam as peças funerárias retiradas da tumba eram grandes, mas pesavam pouco, e não havia mais que uma dezena de pessoas a bordo. Todos os barcos navegavam bem.

— Trecho ruim pela frente — Nicholas informou Royan. — Até a fronteira sudanesa. — Ele ficou em pé na popa, de onde tinha uma boa visão do que vinha pela frente. Royan agachou-se a seus pés, seguran-do-se numa das correias de segurança e tentando manter-se fora do caminho dos remadores.

Atravessaram a corrente que polia a grande bacia de pedra abaixo da catarata, e Nicholas apontou a embarcação para os estreitos pelos quais o rio rumava para oeste. Olhando para o céu, viu que nuvens baixas e púrpura encobriam o topo dos gigantescos penhascos.

— A sorte começa a soprar a nosso favor — confidenciou para Royan. — Com este tempo, nem com o helicóptero conseguirão nos encontrar. — Nicholas fitou o vidro embaçado do Rolex. — Faltam algumas horas para anoitecer. Vamos percorrer poucos quilômetros antes de sermos obrigados a parar.

Olhou para trás e viu o restante da flotilha oscilando na água. Os Avons eram amarelos e brilhavam mesmo em meio à névoa e às trevas do desfiladeiro. Nicholas levantou o punho cerrado, o sinal para avançar; do outro barco, Mek repetiu o gesto e sorriu-lhe.

Passando por vários portais, chegaram a um trecho estreito e sinuoso. Os homens largaram os remos e deixaram que o rio os conduzisse. Tudo o que podiam fazer agora era ajudar Nicholas a manobrar o Avon caso houvesse algum problema. Por isso postaram-se na amurada, de prontidão.

Nesse ponto o Nilo encobria vários recifes de pedra, mas eles podiam ser facilmente localizados pelas ondas que se quebravam neles e pela espuma que se formava a seu redor. O nível da água estava alto nas duas margens. Se um dos barcos virasse ou se um membro da tripulação caísse no rio, não haveria como resgatar os sobreviventes.

Nicholas se esticou e perscrutou o horizonte. Precisava determinar a rota de antemão. Tudo dependia de sua habilidade em decifrar o rio e julgar seus humores. Estava fora de forma, e sentiu um peso no estômago ao manobrar o inflável na direção da primeira corredeira de águas verdes. Passaram por ela rapidamente; Nicholas manteve a proa aprumada com delicados toques de comando no leme, e os outros barcos o seguiram tranqüilamente.

— Fácil! — Royan sorriu para ele.

— Não diga isso! — Nicholas pediu. — O anjo mau está ouvindo. — E preparou-se para a próxima seqüência de corredeiras, que os apanharia com velocidade aterradora.

Nicholas conduziu o barco pela passagem que se abria entre duas saliências de rocha, e ele ganhou velocidade. No meio da descida, percebeu a grande onda que se formava. Mudou a direção do leme na tentativa de contorná-la, mas o rio era implacável.

Como um caçador saltando uma cerca, eles bateram de frente com a onda, e então, com uma guinada, mergulharam no enorme vácuo. O barco dobrou-se ao meio e a proa quase se juntou à popa quando ele passou pelo buraco aberto na superfície do rio.

Os homens foram jogados uns sobre os outros, e Nicholas teria caído na água se não estivesse bem postado e segurando o leme com firmeza. Royan deitou-se no chão e agarrou o cinto de segurança. O Avon saltou no ar, recobrou a forma original, flutuou por um instante e quase emborcou antes de colidir com a superfície do rio.

Um dos tripulantes foi arremessado para fora e ficou pendurado da embarcação; seus companheiros conseguiram debruçar-se para fora e puxá-lo de volta. As caixas de munição foram reviradas, mas as redes evitaram que elas se perdessem.

— Por que fez isso? — Royan gritou. — Logo agora que eu estava começando a confiar em você!

— Foi só um teste — ele respondeu. — Queria ver se é mesmo durona.

— Sou uma covarde, confesso. Não precisa fazer isso de novo. Voltando-se para trás, Nicholas viu o barco de Mek colidir com a

onda, como ele fizera, mas os outros tiveram tempo de se desviar e sair pelos flancos da corredeira.

Tornou a olhar para a frente e sentiu que sua vida dependia do comportamento selvagem do rio. Todo o seu universo estava agora contido entre as altíssimas paredes do desfiladeiro. Não sabia se era a chuva ou o borrifo produzido pelo movimento do bote que lhe molhava o rosto e o queixo ferido, deixando-o meio cego. Por vezes era uma mistura dos dois.

Uma hora mais tarde, Nicholas novamente avaliou mal as corredeiras e eles quase emborcaram. Dois homens foram atirados pela amurada. Com perícia, conseguiram resgatar um deles, mas o outro se chocou com uma rocha antes que pudessem socorrê-lo. Afundou para nunca mais voltar. Ninguém disse palavra nem chorou por ele, pois estavam todos ocupados demais em manter-se vivos.

Em certo momento Royan gritou para Nicholas, através do barulho ensurdecedor do rio:

— O helicóptero! Está ouvindo?

Meio ensurdecido, ele olhou para a massa de nuvens suspensa acima dos penhascos e distinguiu vagamente o zunido dos rotores.

— Acima das nuvens! — ele respondeu aos berros, tirando a água dos olhos com o dorso da mão. — Não vão conseguir nos achar.

A noite africana caiu sobre eles mais depressa, por causa das nuvens baixas. Nessa escuridão, um outro obstáculo se ergueu diante deles sem aviso prévio. Num instante deslizavam rápida e suavemente por um trecho tranqüilo do rio; no seguinte, as águas abriram-se à sua frente e eles foram arremessados para o espaço. Pareceram cair por uma eternidade, embora a queda não tivesse mais que 9 metros, antes de se chocar contra o fundo e ver-se flutuando num emaranhado de homens e barcos, no poço que se estendia embaixo da cachoeira. O rio ficou represado por um minuto, revirando-se sobre si mesmo enquanto ganhava força para a próxima queda enlouquecida pelo desfiladeiro.

Um dos Avons havia emborcado e estava flutuando com o ventre para cima — sua quilha estável não fora capaz de resistir à violência das águas. A tripulação dos outros barcos começou a remar na tentativa de resgatar os sobreviventes e salvar os remos e os outros equipamentos de navegação. Foi preciso o esforço de todos para endireitar o barco virado, e quando terminaram a tarefa a escuridão era completa.

— Contem as caixas! — Nicholas ordenou. — Quantas perdemos? Mal conseguiu acreditar em sua sorte quando Sapper gritou:

— Há onze a bordo. Estão todas em ordem.

As redes estavam dando conta do recado. Mas todos, homens e mulheres, estavam exaustos e ensopados, tremendo de frio. Seria suicídio seguir viagem durante a noite. Nicholas olhou para Mek e balançou a cabeça.

— Há um trecho de águas mais calmas naquele canto do penhasco. — Mek apontou para a extremidade do poço. — Talvez encontremos um ancoradouro.

Havia uma árvore mirrada mas forte plantada numa fissura vertical das rochas, que foi usada como poste de amarração. Eles prenderam todos os botes em fila e acomodaram-se para a noite. Como não era possível esquentar a comida, tiveram de se contentar com enlatados frios, que comeram na ponta da baioneta, e alguns pedaços de pão injera molhado.

Mek pulou por cima da amurada de seu barco e aproximou-se de Nicholas. Passou o braço por seus ombros e colou a boca em seu ouvido.

— Fiz mais uma chamada. Perdemos outro homem quando passamos pela cachoeira. Não podemos achá-lo agora.

— Não estou indo muito bem — Nicholas admitiu. — Talvez seja melhor você liderar o comboio amanhã.

— Não foi sua culpa. — Mek encolheu os ombros. — Ninguém teria feito melhor. Foi essa última cachoeira... — Ficaram a escutá-la, tro-vejando na escuridão.

— Quanto já percorremos? — Nicholas quis saber. — E quanto falta ainda?

— Não tenho certeza, mas acho que estamos a meio caminho da fronteira. Devemos alcançá-la amanhã à tarde.

Ficaram em silêncio por um instante, e então Mek perguntou:

— Que dia é hoje? Perdi a conta.

— Eu também. — Nicholas apertou um botão no relógio de pulso para enxergar o mostrador. — Bom, bom! Ainda é dia 13 — revelou.

— O avião deve estar na pista de pouso de Roseires depois de amanhã.

— Primeiro de abril — Nicholas assentiu. — Acha que vamos conseguir?

— Me diga você! — Mek sorriu mal-humorado. — Quais são as chances de seu amigo gordo se atrasar?

— Jannie é um grande profissional. Nunca se atrasa — respondeu Nicholas. De novo o silêncio se interpôs entre os homens, e então Nicholas perguntou:

— Quando chegarmos a Roseires, o que quer que eu faça com sua parte do butim? — Chutou uma das caixas de munição. — Vai levá-la com você?

— Depois que você decolar naquele avião com o gorducho vamos ter de correr de Nogo. Não quero carregar excesso de bagagem. Leve minha parte com você. E trate de vendê-la... vou precisar de dinheiro para continuar lutando aqui.

— Confia em mim?

— Você é meu amigo.

— É fácil ser enganado pelos amigos... ninguém suspeita deles — disse-lhe Nicholas, e Mek deu um soco em seu ombro, rindo.

— Vá dormir um pouco. Teremos de remar bastante amanhã. — Mek ficou em pé no bote, que arfava suavemente ao sabor da corrente. — Durma bem, amigo — disse ele antes de se deitar ao lado de Tessay.

Acomodando as costas contra a amurada macia do Avon, Nicholas tomou Royan nos braços. Ela sentou-se entre suas pernas e encostou-se em seu peito, tremendo de frio nas roupas encharcadas.

Quando os tremores diminuíram, ela murmurou:

— Você é um bom aquecedor.

— Essa é uma boa razão para me manter sempre por perto — ele respondeu, alisando seus cabelos molhados. Royan nada disse, mas se aconchegou ainda mais e logo adormeceu.

Embora estivesse enregelado, com dor nos ombros e as mãos esfoladas pelo comando do leme, Nicholas não conciliou o sono tão depressa. Agora que a perspectiva de chegar à pista de pouso de Roseires se aproximava, a viagem pelo rio e a luta com os homens de Nogo não eram suas únicas preocupações. Esses inimigos ele podia reconhecer e enfrentar; entretanto, havia mais.

Royan mexeu os braços e murmurou alguma coisa que ele não entendeu. Ela falava enquanto dormia.

Nicholas abraçou-a e ela se acalmou novamente. Começava a se afastar quando Royan falou outra vez:

— Desculpe, Nicky. Não fique bravo comigo. Não poderia deixá-lo... — Sua voz se engrolou e ele não pôde entender as outras frases.

Estava plenamente desperto agora. Durante o resto da noite dormiu mal, assaltado por pesadelos perturbadores como os dela.

Um pouco antes do amanhecer, Nicholas sacudiu Royan com suavidade. Ela gemeu e despertou devagar e com relutância.

Engoliram um pouco da comida fria que sobrara da noite anterior. Então, quando a aurora iluminou o desfiladeiro o suficiente para que eles enxergassem a superfície do rio e os obstáculos postados à frente, desamarraram os barcos e puseram-se a navegar. A batalha contra o rio teve início mais uma vez.

A camada de nuvens continuava baixa e compacta, e a chuva os atingia intermitentemente. A manhã transcorreu e, lentamente, o humor do rio começou a melhorar. A corrente não se apresentava tão caprichosa e traiçoeira como antes, e as margens não eram tão altas e irregulares.

No meio da tarde, quando os barcos atingiram um estreito no qual o rio serpenteava por uma série de escarpas e promontórios, as nuvens ainda formavam um manto sólido no céu. Nesse momento toparam com outra série de corredeiras. Nicholas já dominava melhor a situação, pois passaram por elas sem nenhum revés. Para ele, as águas claras eram cada vez menos perigosas.

— Acho que já passamos pelo pior — disse a Royan quando ela se sentou no convés a seu lado. — O declive do rio está definitivamente mais suave. Acho que está se acalmando à medida que nos aproximamos das planícies do Sudão.

— Quanto falta para chegarmos a Roseires? — ela indagou.

— Não sei, mas a fronteira não deve estar longe.

Nicholas e Mek mantinham a flotilha alinhada à popa de modo que as ordens pudessem ser transmitidas de um barco a outro sem dificuldade.

Nicholas dirigiu o barco para as águas mais profundas da parte externa da curva seguinte e percebeu que o trecho à frente parecia desimpedido, livre de corredeiras e bancos de areia. Relaxou e sorriu para Royan.

— Que tal jantarmos em Dorchester no próximo domingo? Eles fazem a melhor carne grelhada de Londres.

Ele teve a impressão de ver uma sombra cruzar-lhe o rosto antes de Royan sorrir e responder:

— Ótima idéia.

— Depois voltamos para casa e nos aconchegamos na frente da televisão, ou então jogamos alguma coisa...

— Você é bem sugestivo — ela riu. — Mas gostei da idéia. Nicholas estava prestes a curvar-se sobre ela e beijá-la apenas pelo prazer de vê-la corar, quando viu logo à frente pequenos jorros d'água na superfície do rio, caminhando em sua direção. Um segundo depois ouviu o estampido de uma automática, o som inconfundível de uma RPD soviética.

Atirou-se sobre Royan para protegê-la e ouviu Mek urrar no barco de trás.

— Atirem de volta! Abaixem-se!

Os homens largaram os remos e pegaram as armas. Abriram fogo na direção dos tiros.

Os agressores estavam totalmente encobertos pelas rochas e pela vegetação, e não havia um alvo claro. No entanto, nesse tipo de emboscada era essencial atirar o máximo possível para manter os agressores abaixados e confusos.

Uma bala atravessou a carcaça de náilon do Avon, perto da cabeça de Royan, e ricocheteou num dos baús. A amurada do barco não oferecia nenhuma proteção contra a saraivada de balas que os atingia. Um dos tripulantes feriu-se na cabeça. A bala cortou-lhe o topo do crânio como se fosse a casca de um ovo cozido, e o homem tombou. Royan gritou, mais pelo horror da cena do que de medo, enquanto Nicholas apanhava o rifle que o morto deixara cair e esvaziava a cartucheira contra a margem, varrendo os arbustos que protegiam os atiradores.

O bote ainda deslizava pelo rio, completamente desorientado. Levou apenas um segundo para que eles escapassem da emboscada e desaparecessem na próxima curva do rio.

Nicholas baixou o rifle e gritou para Mek:

— Você está bem?

— Tenho um homem ferido — ele respondeu. — Mas não é muito sério.

Todos os barcos relataram as baixas: um morto e três feridos. Nenhum dos ferimentos era grave, e embora três barcos estivessem furados, as quilhas eram feitas de compartimentos estanques, por isso continuavam flutuando.

Mek colocou seu barco ao lado do de Nicholas e berrou:

— Estava começando a achar que havíamos escapado de Nogo.

— Saímos dessa por pouco — Nicholas respondeu. — Acho que os pegamos de surpresa. Não esperavam que estivéssemos na água.

— Bem, não haverá mais surpresas agora. Pode apostar que já fizeram contato pelo rádio. Nogo sabe exatamente onde estamos e para onde vamos. — Olhou para o céu. — Vamos rezar para que as nuvens continuem densas e baixas.

— Quanto falta para a fronteira sudanesa?

— Não sei ao certo, mas não deve faltar mais que uma ou duas horas.

— Ela está guardada?

— Não, não há nada lá. Apenas mato de ambos os lados.

— Espero que continue assim — Nicholas murmurou.

Trinta minutos depois eles tornaram a ouvir o helicóptero. Voando acima das nuvens, passou por eles e dirigiu-se rio abaixo. Vinte minutos depois escutaram-no outra vez, vindo no sentido contrário. Logo em seguida, mudou de direção novamente, sempre acima das nuvens.

— Que diabos Nogo está fazendo? — Mek gritou para Nicholas.

— Parece que está patrulhando o rio, mas não consegue passar pelas nuvens.

— Meu palpite é que ele está deslocando homens para nos barrar. Agora que sabe que estamos usando barcos, também sabe que só podemos seguir numa direção. Nogo não iria respeitar fronteiras internacionais. É possível que já tenha se dado conta de que estamos seguindo para Roseires. É a pista de pouso abandonada mais próxima ao longo do rio. Pode ser que fique nos esperando lá.

Mek manobrou o barco e amarrou-o ao de Nicholas para que pudessem conversar sem gritar.

— Não estou gostando disso, Nicholas. Vamos cair direto nas garras deles outra vez. O que sugere?

Nicholas ponderou por um bom tempo.

— Não está reconhecendo este trecho do rio? Ainda não sabe onde estamos?

Mek balançou a cabeça.

— Sempre fico bem longe do rio quando cruzo a fronteira, mas vou reconhecer o velho moinho de Roseires quando o vir. Fica a cerca de dois quilômetros da pista de pouso.

— Está abandonado? — Nicholas perguntou.

— Sim. Desde o início da guerra, há vinte anos.

— Com esta capa de nuvens, vai escurecer em uma hora — Nicholas disse. — O rio está mais lento agora e não oferece tanto perigo. Podemos arriscar e continuar navegando à noite. Talvez Nogo não esteja contando com isso. Poderíamos deixá-lo para trás.

— Não consegue pensar em nada melhor? — Mek riu. — Isso é o mesmo que fechar os olhos e esperar pelo melhor.

— Bem, se alguém soubesse me dizer em que raio de lugar estamos e a que horas Jannie vai chegar amanhã, talvez eu pudesse planejar algo mais eficaz. — Nicholas devolveu o sorriso. — Enquanto isso não acontece...

Tensos, eles avançaram em meio ao crepúsculo prematuro causado pelas nuvens e pela chuva. Mesmo no escuro os tripulantes mantinham as armas preparadas e apontadas para as margens do rio, prontos para responder a um tiroteio.

— Devemos ter cruzado a fronteira uma hora atrás — Mek gritou para Nicholas. — O velho moinho não deve estar longe.

— Como vamos encontrá-lo no escuro?

— Ainda existem os restos de um cais de pedra, usado antigamente para carregar os barcos que transportavam açúcar para Cartum.

A noite caiu sobre eles abruptamente, e Nicholas sentiu-se aliviado ao se ver protegido de olhos hostis que por acaso os observassem das margens. Amarraram os barcos para evitar que se separassem e deixaram que o rio os transportasse em silêncio. Estavam tão próximos da margem direita que encalharam várias vezes. Nessas horas, tinham de descer e empurrá-los de volta para águas mais profundas.

O cais de Roseires surgiu à frente inesperadamente, e o barco de Nicholas colidiu com ele. Entretanto, os homens estavam a postos. Jogaram-se na água e puxaram o Avon para a margem. No mesmo instante, Mek e vinte homens saltaram em terra e espalharam-se pelo canavial a fim de dominar a área e impedir um ataque-surpresa de Nogo.

Fizeram mais barulho do que Nicholas considerava seguro, ao atracar o resto da flotilha e descarregar os feridos e os baús de munição. Nicholas carregou Royan para a margem e voltou para pegar Tessay. Ela já estava bem melhor. O descanso forçado durante a viagem lhe havia dado a oportunidade de se recuperar. Sozinha, ergueu-se no barco e pendurou-se às costas de Nicholas.

Já em solo firme, ele a pôs de pé e perguntou-lhe com gentileza:

— Como está se sentindo?

— Estou melhor, obrigada, Nicholas.

Ele a apoiou por um instante, enquanto ela recuperava o equilíbrio, e disse rapidamente:

— Não tive chance de perguntar antes. E a mensagem que Royan lhe pediu para passar por telefone? Você conseguiu?

— Claro! — Tessay respondeu com franqueza. — Eu disse a Royan que havia dado seu recado a Moussad na Embaixada egípcia. Ela não lhe contou?

Nicholas recuou como se tivesse levado um soco, mas sorriu e respondeu em tom casual:

— Ela deve ter esquecido. Mas não importa. De qualquer modo, obrigado, Tessay.

Nesse momento, Mek saiu da escuridão e comentou num sussurro áspero:

— Isso aqui está parecendo uma feira de camelos. Nogo vai nos ouvir a cinco quilômetros de distância. — Rapidamente, ele assumiu o comando e passou a organizar o grupo.

Assim que o último baú foi descarregado, eles puxaram os barcos para o canavial e abriram as válvulas para desinflar os pontões. Então cobriram tudo com canas. Ainda trabalhando no escuro, distribuíram as caixas entre os homens de Mek. Sapper levou uma embaixo de cada braço. Nicholas pousou o rádio num ombro, a maleta de primeiros socorros no outro e equilibrou na cabeça a caixa que continha a máscara mortuária do faraó e o ushabti de Taita.

Mek enviou patrulheiros para vasculhar o caminho que conduzia ao campo de pouso. Queria ter certeza de que não haveria emboscadas. Então tomou a dianteira na trilha, seguido pelos outros em fila indiana. Antes que percorressem um quilômetro, as nuvens abriram-se de repente e a lua e as estrelas brilharam o suficiente para que distinguissem o grupo de chaminés do velho moinho recortadas contra o céu.

Entretanto, mesmo com o auxílio do luar, progrediam devagar, pois os homens que carregavam as macas dos feridos tinham dificuldade para se manter em pé. Só chegaram à pista de pouso às 3 da manhã, e a lua já havia desaparecido. Empilharam os baús no mesmo bosque de acácias em que haviam escondido os estrados com o equipamento de construção da represa e o trator amarelo na viagem de ida.

Embora todos estivessem exaustos, Mek postou um piquete em torno do acampamento. As duas mulheres cuidaram dos feridos à luz de uma pequena fogueira e acabaram com os suprimentos médicos de Mek.

Com a lanterna elétrica que ainda funcionava, Sapper iluminou o rádio, enquanto Nicholas esticava a antena. Ele soltou um suspiro de alívio ao notar que, apesar de a caixa de fibra ter caído no Nilo, a borracha de vedação da tampa havia conservado o equipamento seco. Quando ligou o rádio, a luz-piloto se acendeu. Sintonizou a freqüência de ondas curtas e captou a transmissão comercial matutina da Rádio Nairóbi.

Yvonne Chaka Chaka estava cantando; ele gostava de sua voz e seu estilo. Mas desligou o aparelho rapidamente para poupar a bateria. Recostou-se num tronco de acácia para descansar um pouco antes que o dia raiasse. No entanto, adormeceu — a raiva e o sentimento de ter sido traído eram fortes demais.

Tuma Nogo observou o sol projetar sua cabeça ardente na superfície do Nilo logo à sua frente. Voavam a apenas 30 centímetros da água para se manter fora do alcance do radar. Nogo sabia que em Cartum havia uma estação que poderia captá-los, mesmo a essa distância. Estava estremecido com os sudaneses, e esperava uma resposta rápida e furiosa se eles descobrissem que estava violando a fronteira.

Nogo era um homem confuso e preocupado. Desde a derrota no desfiladeiro do Rio Dandera, tudo dava errado. Até eles terem partido, não percebera quanto havia confiado em Helm e Von Schiller. Agora estava só, e já havia cometido vários erros.

Mas, apesar de tudo, estava determinado a perseguir e capturar os fugitivos, mesmo que para isso precisasse invadir o território sudanês. Nas últimas semanas, bisbilhotando as conversas entre Von Schiller e o egípcio, Nogo se inteirara de que Harper e Mek Nimmur tinham nas mãos um imenso tesouro. Mal podia imaginar seu valor, mas ouvira falar em dezenas de milhões de dólares. Um milhão de dólares já era uma quantia que ele assimilava com dificuldade, mas tinha uma vaga idéia do que significava em termos mundanos, dos bens e das mulheres que poderia comprar.

Aos poucos também se havia convencido de que esse tesouro poderia ser só seu, agora que Von Schiller e Helm haviam desaparecido; ninguém mais se interpunha em seu caminho, a não ser os shuftas liderados por Mek Nimmur e pelo inglês. E ele tinha a seu dispor uma força descomunal e o helicóptero.

Se conseguisse localizar os fugitivos, tinha certeza de exterminá-los. Mas não poderia deixar sobreviventes, ninguém para contar histórias em Adis. Quando Mek, o inglês e todos os seus seguidores estivessem mortos, seria fácil levar o butim para fora do país. Havia um homem em Nairóbí e outro em Cartum com os quais já negociara, vendendo-lhes marfim e haxixe contrabandeados. Eles saberiam o que fazer com o tesouro. Já decidira que não o confiaria a uma única pessoa, que o melhor seria dividir os riscos, de modo que, se fosse traído por alguém...

Ficou ali fazendo planos, e saboreou o pensamento das riquezas que conquistaria. Teria roupas finas e automóveis, terra, gado e mulheres — brancas, negras e mulatas —, todas as mulheres que pudesse usar, uma para cada dia de vida. Mas primeiro precisava descobrir onde se haviam metido os fugitivos.

Não se havia dado conta de que Harper e Mek Nimmur haviam escondido barcos infláveis perto do monastério. Hansith deixara de informá-lo a esse respeito. Ele e Helm achavam que tentariam fugir a pé, e todos os planos elaborados com o propósito de apanhá-los antes que alcançassem a fronteira sudanesa partiram dessa premissa. Sob as ordens de Helm, chegou a montar um depósito de combustível no ponto da fronteira em que aguardavam Mek Nimmur; ali reabasteceria o helicóptero. Sem essa reserva, há muito tempo teria sido forçado a abandonar a caçada.

Nogo posicionara seus homens ao longo das trilhas que margeavam o rio na direção oeste, e nem sequer pensou em patrulhar o próprio rio. Foi por puro acaso que um dos batedores vislumbrou a flotilha de barcos amarelos descendo o Nilo a toda a pressa. Entretanto, não tiveram tempo de montar uma emboscada eficaz, e os adversários escaparam em meio a um rápido tiroteio. Nenhum dos barcos foi seriamente danificado — pelo menos não o suficiente para que a viagem fosse interrompida.

Assim que o comandante da companhia relatou por rádio o embate com Mek Nimmur, Nogo deslocou uma tropa para cortar o avanço da flotilha. Infelizmente, o Jet Ranger não podia levar mais de seis homens armados por vez, de modo que seu transporte consumiu muito tempo. Conseguiu posicionar apenas sessenta homens antes de escurecer.

Durante a noite, entendeu que a flotilha havia passado por ele, e quando o dia nasceu levantou vôo outra vez. Para sua sorte as nuvens haviam-se dispersado ligeiramente. Alguns cúmulos ainda flutuavam acima de sua cabeça, mas já podia voar próximo à superfície do rio e identificar qualquer indício da presença de Mek Nimmur.

Primeiro seguiu o rio pela margem etíope até o local da emboscada. Como não viu nenhum sinal dos barcos, Nogo obrigou o piloto a voltar, cruzar a fronteira e vasculhar a margem sudanesa do Nilo. Mas o homem se rebelou e consentiu em avançar apenas 60 milhas náuticas dentro do Sudão. Apesar da pistola Tokarev apontada para sua cabeça, ele manobrou o Jet Ranger num ângulo de 180 graus e começou a voltar.

Nesse momento, Nogo soube que havia sido derrotado. Pôs-se a resmungar no banco dianteiro do helicóptero, ao lado do piloto, tentando compreender o que havia acontecido com suas presas. Vislumbrou no céu matutino a chaminé maior do moinho abandonado de Roseires e fez uma careta. Haviam passado pelo moinho alguns instantes antes.

— Dirija-se para a margem norte — ordenou ao piloto. Antes de obedecer, o homem lançou-lhe um olhar de soslaio e hesitou.

Sobrevoaram a construção bem abaixo da extremidade da chaminé. A fábrica estava destelhada e as janelas não passavam de retângulos vazios presos a paredes quebradas. As caldeiras e as máquinas haviam sido removidas vinte anos antes, e Nogo pôde inspecionar aquela construção deserta. O piloto parou o helicóptero no ar para que Nogo perscrutasse o interior das ruínas. Como não visse ninguém, balançou a cabeça.

— Nada! Nós os perdemos. Suba o rio.

O piloto ergueu o nariz da máquina e virou na direção do rio, obedecendo à ordem com alegria. Enquanto o helicóptero se inclinava, Nogo olhava diretamente para o canavial crescido que beirava o rio, e então notou um brilho amarelo.

— Espere! — gritou pelo microfone. — Há algo ali. Volte!

O helicóptero sobrevoou o campo e Nogo gesticulou para que pousassem imediatamente.

— Desça! Ponha-me no chão!

No exato momento em que as bequilhas tocaram o solo, seis homens fortemente armados saltaram pela porta traseira da cabine e correram para tomar posição defensiva. Nogo cambaleou pela porta da frente e saiu correndo na direção do canavial. Só precisou de uma olhada. Os barcos amarelos haviam sido desinflados, dobrados e encobertos. A seu lado, a terra fora revolvida por pés calçados de botas. As pegadas levavam para dentro da mata. Haviam sido feitas por homens muito carregados, pois o solo arenoso estava bem afundado.

Nogo voltou ao helicóptero e enfiou a cabeça pela porta aberta da cabine.

— Existe alguma pista de pouso perto daqui? — gritou para o piloto, que negou com a cabeça.

— Não há nada assinalado nas cartas.

— Deve existir. O moinho precisaria de uma.

— Se um dia ela existiu, deve ter sido abandonada há muitos anos.

— Vamos achá-la — Nogo declarou. — As pegadas de Mek Nimmur vão nos levar até lá. — Em seguida ponderou: — Mas terei de levar mais homens. A julgar pelos rastros, Mek Nimmur conta com pelo menos cinqüenta shuftas.

Deixou os homens no moinho e voou de volta à fronteira com o aparelho vazio, a fim de buscar reforços.

Big Dolly! Responda, Big Dolly. Aqui é Faraó. Está ouvindo? — Nicholas enviou a primeira mensagem uma hora antes de o sol nascer. — Se eu conheço bem a cabeça de Jannie, e acho que conheço, ele planeja fazer um vôo de aproximação no escuro e chegar aqui assim que houver luz suficiente para enxergar a pista de pouso.

— Isso se o Gordo vier — Mek Nimmur ressaltou.

— Ele virá — Nicholas respondeu com confiança. — Jannie nunca me decepcionou. — Bateu o polegar no microfone e continuou: — Big Dolly! Responda, Big Dolly.

Ao ouvir a estática, Nicholas sintonizou novamente o aparelho. A cada quinze minutos eles se agachavam em torno do rádio, que fora colocado embaixo de uma acácia, e chamavam outra vez.

De repente, Royan levantou-se e exclamou animada:

— Aí vem ele! Estou escutando os motores de Big Dolly. Ouçam! Nicholas e Mek correram para a clareira e olharam para cima na direção norte.

— Esse não é o Hércules — Nicholas concluiu rapidamente. — É outro aparelho. — Ele virou-se para o sul, onde ficava o rio.

— Seja como for, está vindo da direção errada.

— Tem razão — Mek concordou. — Esse aí tem motor simples e as asas não são fixas. Dá para ouvir os rotores.

— O helicóptero! — Nicholas exclamou com amargura. — Estão atrás de nós outra vez.

Mas o ruído dos rotores sumiu.

— Não nos viram — disse Nicholas, aliviado. — Não podem ter localizado os barcos.

Voltaram para a proteção das acácias, e Nicholas testou o rádio novamente, mas Jannie não respondeu.

Vinte minutos mais tarde escutaram mais uma vez o som do Jet Ranger, e puseram-se a monitorá-lo ansiosamente.

— Passou — proferiu Nicholas depois de um instante, mas vinte minutos depois tornaram a escutá-lo.

— Nogo está planejando alguma coisa — comentou um inquieto Mek.

— O quê, por exemplo? — quis saber Nicholas, já contaminado pelo estado de espírito do companheiro. Quando Mek se preocupava, havia sempre uma boa razão para isso.

— Não sei — ele admitiu. — É possível que Nogo tenha avistado os Avons e agora esteja juntando mais homens antes de sair em nosso encalço. — Dirigiu-se à clareira e apurou os ouvidos; depois voltou para junto de Nicholas.

— Continue chamando — disse. — Vou deixar os homens de prontidão para repelir Nogo, se ele vier.

O helicóptero continuou sobrevoando o Nilo a curtos intervalos durante as três horas seguintes, mas como nada mais sério acontecesse, eles permaneceram calmos, e Nicholas sequer tirava os olhos do rádio a cada vez que escutava a batida distante dos rotores. De repente, o aparelho deu um estalo e Nicholas sob ressaltou-se.

— Faraó! Aqui é Big Dolly. Está na escuta?

A voz de Nicholas transbordava alívio quando ele respondeu:

— Aqui é Faraó. Dê-me boas notícias, Big Dolly.

— Tempo estimado de chegada, uma hora e meia. — O sotaque de Jannie era inconfundível.

— Será muito bem-vindo! — Nicholas prometeu com entusiasmo. Desligou o microfone e sorriu para as duas mulheres.

— Jannie está a caminho e...

Interrompeu-se abruptamente, e seu sorriso se transformou numa expressão de desalento. Da direção do rio veio o estrépito inconfundível dos disparos contínuos do AK-47, seguido segundos depois pela explosão de uma granada.

— Maldição! — ele gemeu. — Estava bom demais para ser verdade. Nogo chegou.

Pegou novamente o microfone e comunicou sem nenhuma emoção:

— Big Dolly! Os bandidos entraram em cena. Vai ter que fazer um resgate emocionante.

— Agarre-se à sua coroa, Faraó! — Jannie respondeu. — Estou chegando.

Na meia hora seguinte, os ruídos da luta ao longo do rio se intensificaram e, gradualmente, aproximaram-se da extremidade da pista de pouso. Estava claro que os homens de Mek, escassamente espalhados pelos arredores, cediam ao avanço da tropa de Nogo. E a cada vinte minutos podia-se ouvir o helicóptero trazendo mais homens para aumentar a pressão sobre a deficiente linha de defesa de Mek.

Nicholas e Sapper eram os únicos em condições de lutar no acampamento, pois todos os outros haviam seguido com Mek. Os dois colocaram os baús com o tesouro perto da clareira, de onde poderiam ser embarcados no Hércules com maior rapidez.

Nicholas separou a carga, lendo o conteúdo de cada caixa nas anotações que Royan havia feito nas tampas. A que continha a máscara mortuária e o ushabti de Taita seria a primeira a embarcar, seguida pela das três coroas: a coroa de guerra branca, a de Nemes e a branca e vermelha dos reinos unidos do Alto e Baixo Egito. Essas três caixas eram provavelmente mais valiosas que todo o resto do tesouro.

Depois de cuidar da carga, Nicholas acercou-se da fileira de feridos e falou com um de cada vez. Primeiro, agradeceu-lhes a ajuda e o sacrifício, e então ofereceu-se para levá-los no Hércules a um local em que pudessem receber tratamento médico adequado. Prometeu-lhes que, se aceitassem a oferta, providenciaria para que retornassem à Etiópia tão logo estivessem recuperados.

Sete deles — os que estavam menos feridos e conseguiam falar — recusaram-se a deixar Mek Nimmur. Essa lealdade era uma demonstração tocante do respeito que tinham por Mek. Relutantemente, os outros concordaram em ser removidos, mas apenas depois da intervenção de Tessay, que confirmou as promessas de Nicholas. Então, junto com Sapper, ele transportou os homens para a borda do bosque, onde Jannie aterrissaria.

— E você? — Nicholas perguntou a Tessay. — Vai conosco? Ainda não está em sua melhor forma.

Tessay riu.

— Enquanto puder me manter em pé, jamais deixarei Mek Nimmur.

— Não consigo entender o que você vê naquele patife — Nicholas brincou com ela. — Conversei com Mek. Ele quer que eu fique com sua parte do butim. Não está em condições de carregar excesso de peso neste momento.

— Eu sei. Mek e eu já discutimos isso. Precisamos do dinheiro para continuar a luta.

Ela parou de falar e abaixou-se num movimento involuntário; uma explosão colossal ressoou em seus ouvidos e uma grande coluna de poeira ergueu-se na orla do arvoredo. Granadas zuniram no ar, provocando uma chuva de galhos e folhas.

— Virgem santa! Que foi isso? — Tessay gritou.

— Morteiros de duas polegadas — respondeu Nicholas. Ele não havia se mexido nem tentara encontrar abrigo. — Latem mais do que mordem. Nogo deve tê-los disparado no último sobrevôo.

— Quando o Hércules chega?

— Vou chamar Jannie e perguntar.

Enquanto Nicholas voltava para o rádio, Tessay indagou a Royan:

— Vocês, ingleses, são sempre assim tão frios?

— Não pergunte a mim. Sou mais egípcia que inglesa, e estou apavorada. — Royan sorriu e enlaçou Tessay. — Vou sentir sua falta, Lady Sol.

— Talvez a gente volte a se encontrar numa situação mais agradável. — Tessay virou a cabeça e, num impulso, beijou-a. Royan retribuiu com um abraço apertado.

— Assim espero. Do fundo do coração. Nicholas falou ao microfone.

— Big Dolly, aqui é Faraó. Qual é sua posição?

— Faraó, estamos a vinte minutos, e correndo. Vocês jantaram feijão em lata ou estou ouvindo tiros de morteiro aí no fundo?

— Com tanta espirituosidade você deveria ter tentado a carreira artística — Nicholas retorquiu. — Os bandidos controlam a extremidade sul da pista. Aproxime-se pelo norte. O vento sopra de oeste, a cerca de cinco nós. Estará contra o vento, de qualquer maneira.

— Entendido, Faraó. Quantos passageiros e quanta carga tem para mim?

— Nove passageiros, três feridos. Cinqüenta e duas caixas com mais ou menos duzentos e cinqüenta quilos.

— Nem vale a pena viajar tanto por tão pouco, Faraó.

— Big Dolly, preste atenção. Há outra aeronave no circuito. Um helicóptero Jet Ranger. Verde e vermelho. Hostil, mas desarmado.

— Entendido, Faraó. Chamo mais tarde.

Nicholas voltou para o local em que as duas mulheres esperavam com os feridos.

— Falta pouco agora — disse-lhes, animado. Precisou levantar a voz para se fazer ouvir em meio aos tiros. — Tempo suficiente para uma xícara de chá — completou. Juntou alguns gravetos às brasas da fogueira da noite anterior e foi buscar os últimos saquinhos de chá, enquanto Sapper colocava sobre as chamas o bule enegrecido de fumaça.

Havia apenas uma caneca.

— As mulheres primeiro — disse Nicholas, passando-a a Royan. Ela tomou um gole e queimou a boca.

— Que delícia! — suspirou, e em seguida olhou para cima. — Desta vez é mesmo Big Dolly.

Nicholas apurou os ouvidos e assentiu.

— Acho que tem razão. — Levantou-se e foi para o rádio. — Big Dolly. Já posso ouvi-lo.

— Cinco minutos para a aterrissagem, Faraó.

Do local em que se encontrava, Nicholas via a longa pista de pouso. Os homens de Mek estavam se retirando, espalhando-se como fumaça pela vegetação e respondendo aos tiros que vinham do rio. Nogo os estava pressionando.

— Depressa, Jannie — ele murmurou, mas logo assumiu outra expressão ao voltar-se para as mulheres. — Há tempo de sobra para o chá.

O ronco dos turboélices de Big Dolly encobria o barulho dos tiros. Logo despontou no horizonte, enorme, e voava tão baixo que parecia tocar a copa dos espinheiros. Jannie pousou-o rapidamente, e o Hércules levantou uma nuvem de poeira marrom antes que suas turbinas fossem revertidas.

Big Dolly passou pelas acácias e Jannie lhes acenou da cabine. No momento apropriado, ele acionou os freios e o leme de direção. O avião girou na pista e se encaminhou para o grupo, com as rampas de embarque já baixadas.

Fred esperava na escotilha, e correu para ajudar Sapper e Nicholas com os feridos. Foram precisos apenas cinco minutos para transportá-los pelas rampas. A seguir, começaram a carregar os baús de munição com as preciosas antigüidades. Royan também ajudou, subindo com uma das caixas mais leves de encontro ao peito.

Um tiro de morteiro explodiu a cento e cinqüenta metros do Hércules, seguido de outro, que caiu ainda mais perto.

— Estamos na linha de fogo — Nicholas grunhiu, colocando uma caixa embaixo de cada braço e subindo a rampa.

— Estão muito perto agora — Fred gritou. — Temos que sair daqui. Deixe o resto da carga. Vamos! Vamos!

Havia apenas mais quatro baús sob as acácias, e tanto Nicholas quanto Sapper ignoraram a ordem e correram para elas. Pegaram-nas e voltaram para o avião. A rampa estava começando a ser erguida, e as turbinas de Big Dolly roncaram. Eles arremessaram as caixas pela escotilha, jogaram-se sobre a extremidade da rampa e arrastaram-se para dentro da aeronave. Nicholas entrou primeiro e abaixou-se para ajudar Sapper.

Quando olhou para trás, a figura de Tessay já se recortava pequena e solitária contra as árvores.

— Agradeça a Mek por mim — ele berrou.

— Você sabe como nos achar — ela gritou de volta.

— Adeus, Tessay. — A voz de Royan perdeu-se em meio ao barulho dos motores turbinados. Uma nuvem de poeira fez Tessay cobrir o rosto com as mãos e se afastar. A escotilha fechou-se de vez.

Nicholas passou o braço em torno de Royan e empurrou-a pelo com-partimento de carga até um dos assentos ejetáveis postados à entrada da cabine.

— Feche o cinto de segurança — ordenou, e subiu os degraus que conduziam à cabine.

— Pensei que tivesse decidido ficar para trás — Jannie cumprimentou-o sem tirar os olhos do painel de controle. — Segure-se! Lá vamos nós.

Nicholas agarrou-se ao encosto do assento do piloto enquanto Jannie e Fred acionavam os comandos e Big Dolly acelerava pela pista.

Olhando por cima dos ombros de Jannie, Nicholas viu as formas imprecisas de homens camuflados entre os espinheiros no final da pista. Alguns estavam atirando contra o gigantesco avião.

— Essas espingardas não vão machucá-la muito. Big Dolly é duro-na. — Jannie resmungou, erguendo o aparelho no ar.

Passaram rapidamente sobre as tropas inimigas e logo ganharam altitude.

— Bem-vindos a bordo, passageiros, e obrigado por voarem com a Africair. A próxima escala será Malta. — Jannie arrastava as palavras, mas logo estava gritando: — Essa não! De onde surgiu essa coisa?

Levantando-se da vegetação que margeava o rio, o Jet Ranger surgiu bem à sua frente. Pelo ângulo de inclinação, percebia-se que o piloto não estava vendo o Hércules se aproximar, e por isso continuava subindo.

— Está a quinhentos pés e trafega a dez nós — Fred, na poltrona ao lado, avisou ao pai. — Baixo demais para virar.

O Jet Ranger estava tão perto que Nicholas distinguiu claramente Tuma Nogo sentado na cabine dianteira. Seus óculos refletiam a luz do sol, dando-lhe o aspecto de um cego. Quando percebeu o enorme avião, seu rosto se contraiu numa expressão de terror. No último momento, o piloto fez o helicóptero mergulhar. Parecia impossível evitar a colisão, mas ele conseguiu manobrar o aparelho, fazendo-o deslizar por baixo do Hércules. Jannie e os outros passageiros mal sentiram o leve toque das duas fuselagens.

No entanto, o impacto foi suficiente para fazer o helicóptero perder altitude. Enquanto Big Dolly continuava subindo em velocidade constante, o piloto do Jet Ranger lutava para controlar sua máquina enlouquecida. Duzentos pés acima do solo, a turbulência causada pelas potentes turbinas T56-A-15 do Hércules — cada uma com 4 900 cavalos de força — atingiram o helicóptero com a força de uma avalanche.

Parecendo uma folha seca flutuando ao vento do outono, ele foi varrido num turbilhão. Quando se chocou contra o chão, seus motores continuavam guinchando a toda potência. Com o impacto, a fuselagem retorceu-se como uma folha de papel-alumínio. Nogo morreu antes que os tanques explodissem e o Jet Ranger fosse engolido por uma bola de fogo e fumaça.

Assim que atingiu uma altitude segura, Jannie apontou Big Dolly para o norte, deixando para trás a pista de Roseires. A coluna de fumaça negra e espessa produzida pelo helicóptero em chamas era levada pelo vento oeste.

— Eram os bandidos? — Jannie perguntou. — Antes eles do que nós, não?

Assim que Jannie acertou o curso de Big Dolly, que agora voava baixo sobre as desertas planícies sudanesas, Nicholas voltou ao compartimento principal.

— Vamos cuidar dos feridos — sugeriu. Sapper e Royan desafivelaram os cintos e juntaram-se a ele para acomodar os homens que jaziam nas macas.

Em seguida Nicholas deixou-os sozinhos e dirigiu-se à pequena e bem-abastecida cozinha, localizada na cauda do avião. Abriu uma lata de sopa e cortou algumas fatias de pão fresco, que encontrou na geladeira. Enquanto esquentava água para o chá, abriu a maleta de emergência, tirou dela a bolsa de náilon que continha os remédios e pegou cinco comprimidos brancos. Preparou duas canecas de chá e dissolveu nelas os comprimidos. Royan tinha a quantidade de sangue inglês necessária para não recusar um bom chá quente.

Depois de servir sopa e torradas aos feridos, Royan aceitou agradecida a bebida que Nicholas lhe ofereceu. Enquanto ela e Sapper bebericavam o chá, Nicholas voltou para a cabine e inclinou-se sobre a poltrona de Jannie.

— Qual o tempo de vôo até a fronteira egípcia? — perguntou.

— Quatro horas e vinte minutos — informou o comandante.

— É possível evitar o espaço aéreo egípcio? — Nicholas quis saber. Jannie virou-se para trás e encarou-o atônito.

— Acho que podemos rumar para oeste e passar pelas terras de Khadafi. Mas é claro que isso significaria sete horas a mais de viagem. Provavelmente ficaríamos sem combustível e seríamos obrigados a fazer um pouso de emergência em algum ponto do Saara. — Jannie arqueou as sobrancelhas. — Agora me diga: por que fez essa pergunta estúpida?

— Estava apenas pensando... — disse Nicholas.

— Pois pare de pensar — Jannie avisou. — E não me venha com idéias malucas.

Nicholas deu um tapinha em seu ombro.

— Esqueça.

Quando voltou ao compartimento principal, Sapper e Royan estavam sentados nos beliches que ficavam presos à fuselagem. A caneca de Royan, vazia, estava no chão. Nicholas sentou-se a seu lado e ela tocou o curativo que ainda cobria seu queixo.

— É melhor eu dar uma olhada nisso. — Seus dedos ágeis e frios tocaram a pele quente e inflamada. Royan limpou os pontos com álcool e cobriu-os novamente. Enquanto se submetia a seus cuidados, Nicholas sentiu uma ponta de culpa.

No entanto, Sapper foi o primeiro a apresentar os efeitos da droga colocada no chá. Deitou-se, fechou os olhos e logo estava ressonando. Minutos depois, Royan aninhou-se nos braços de Nicholas. Quando estava totalmente adormecida, ele a ajeitou na cama e cobriu-a. Ela nem sequer se mexeu, e por um momento Nicholas duvidou da força dos comprimidos.

Então beijou-lhe a testa carinhosamente.

— Não consigo odiá-la — murmurou. — Seja lá o que tenha feito. Entrou no banheiro e trancou a porta. Tinha muito tempo. Sapper e

Royan iriam dormir durante algumas horas, e Jannie e Fred estavam entretidos na cabine, escutando fitas de Dolly Parton.

Quando terminou, Nicholas deu uma olhada no relógio de pulso e percebeu que se haviam passado quase duas horas. Baixou a tampa do vaso sanitário e lavou as mãos cuidadosamente. Por fim, checou mais uma vez o local e abriu a porta.

Sapper e Royan ainda dormiam. Tirando os fones do ouvido, Fred endereçou-lhe um sorriso.

— A água do Nilo é venenosa! Você ficou duas horas trancado no banheiro. Estou surpreso por ainda estar vivo.

Nicholas ignorou a piada e inclinou-se sobre a poltrona de Jannie.

— Onde estamos?

Jannie apontou para um ponto no mapa que havia aberto sobre a barriga protuberante.

— Quase a salvo — disse com complacência. — A fronteira egípcia está a uma hora e doze minutos.

Nicholas permaneceu em pé atrás de Jannie até este resmungar e pegar o microfone.

— Hora de entrar em ação. Torre de Abu Simbel, aqui é ZWU 500 — disse.

Não houve resposta da torre de controle. Jannie grunhiu:

— Deve estar com alguma garota. Tenho que lhe dar tempo para levantar as calças.

O controlador de Abu Simbel respondeu na quinta chamada. Jannie deu início aos procedimentos de rotina, fingindo pouco conhecimento do árabe.

Após cinco minutos, Abu Simbel deu-lhe permissão para seguir para norte e instruiu-o a "chamar outra vez de Assuã". Viajaram tranqüilamente por mais uma hora, mas Nicholas ficava mais tenso a cada minuto.

De repente, sem o menor aviso, vislumbraram um brilho prateado. Um caça surgiu à frente do Hércules. Jannie soltou um grito de surpresa e raiva quando outros dois aviões de guerra interceptaram seu caminho. Estavam tão perto que Big Dolly chacoalhou no turbilhão de ar produzido por suas turbinas.

Todos reconheceram os intrusos. Eram Migs 21 da Força Aérea egípcia, e estavam equipados com ameaçadores mísseis.

— Aeronave não-identificada! —Jannie gritou ao microfone. — Está em rota de colisão. Informe seu prefixo!

Todos esticaram o pescoço e olharam pela cobertura de acrílico da cabine. Logo acima, podiam distinguir os três Migs 21 voando em círculos no céu azul da África.

— ZWU 500. Aqui é o Líder Vermelho da Força Aérea egípcia. Você está sob minhas ordens.

Jannie olhou para Nicholas com expressão de desespero.

— Algo deu errado. Como nos encontraram?

— É melhor obedecer, pai — Fred aconselhou — ou vão acabar com a gente.

Desconsolado, Jannie encolheu os ombros e então respondeu:

— Líder Vermelho, aqui é ZWU 500. Vamos cooperar. Por favor, diga quais são suas intenções.

— Sua nova rota é 053. Siga-a imediatamente.

Jannie apontou Big Dolly para leste e deu uma olhada no mapa.

— Assuã! — concluiu com pesar. — Os caras vão nos levar para Assuã. Mas que diabo! Acho que vou avisar à torre de Assuã que temos feridos a bordo.

Nicholas acercou-se de Royan e sacudiu-a. Ainda sob o efeito da droga, ela cambaleou até o banheiro. Dez minutos depois, no entanto, já estava penteada e alerta.

Mais uma vez o Nilo surgiu à frente deles, desta vez cortando a cidade de Assuã que se aninhava abaixo da primeira catarata e das águas aprisionadas pela grande represa. A Ilha de Kitchener flutuava como um pássaro verde no meio da correnteza.

Assim que a voz do controlador militar do campo de pouso da cidade deu as ordens a Jannie, Big Dolly aprontou-se com serena dignidade e alinhou-se para fazer a aproximação direta da pista asfaltada. Os caças Migs que os haviam escoltado pelo deserto não estavam mais visíveis, mas sua presença era assinalada pelas transmissões de rádio concisas que enviavam enquanto entregavam os prisioneiros à torre de controle.

Quando Big Dolly tocou o solo, o controlador ordenou:

— Pegue a primeira pista de taxiamento à direita.

Jannie obedeceu, e assim que saiu da pista principal viu um pequeno veículo que trazia na capota, em inglês e em árabe, a inscrição "SIGA-ME".

O veículo conduziu-os por uma fileira de hangares de concreto camuflados, à frente dos quais homens vestidos de sobretudos caqui sinalizavam a parada. Assim que Jannie pisou nos freios e Big Dolly se imobilizou, um grupo de quatro tanques armados correu e cercou a imensa aeronave, apontando-lhe os canhões.

Obedecendo às ordens dadas pela torre, Jannie desligou as turbinas e baixou a rampa traseira do avião. Dentro da cabine todos estavam em silêncio, olhando pelas janelas com semblantes tristes.

De repente, um Cadillac branco escoltado por motociclistas armados e seguido de uma ambulância do exército e enormes caminhões de carga passaram pelo portão e postaram-se aos pés da rampa do Hércules. O motorista saltou e abriu a porta para o passageiro, que desembarcou ao sol do final da tarde. Visivelmente, era uma autoridade qualquer, grave e bem-composta. Usava terno leve e sapatos brancos, chapéu-panamá e óculos escuros. Quando subiu a rampa e juntou-se aos ocupantes do avião, foi seguido por dois secretários.

Tirou os óculos e colocou-os no bolso da lapela. Ao reconhecer Royan, sorriu-lhe e ergueu o chapéu:

— Doutora Al Simma... Royan! Você conseguiu. Parabéns! — Apertou sua mão efusivamente. Sem soltá-la, olhou diretamente para Nicholas. — O senhor deve ser Sir Nicholas Quenton-Harper. Estava ansioso por conhecê-lo. Não vai nos apresentar, Royan?

Incapaz de encarar os olhos acusadores de Nicholas, Royan disse:

— Deixe-me apresentar-lhe Sua Excelência Atalan Abou Sin, ministro da Cultura e do Turismo do governo egípcio.

— Deixo — respondeu Nicholas com frieza. — Que prazer mais inesperado, ministro...

— Gostaria de expressar os agradecimentos do presidente e do povo do Egito por ter trazido de volta ao país estas preciosas relíquias de nossa antiga e gloriosa história. — Fez um gesto que abarcou a pilha de baús de munição.

— Nem pense nisso — Nicholas respondeu, sem tirar os olhos de Royan. Ela manteve o rosto ligeiramente virado na outra direção.

— Temos plena consciência da enormidade da tarefa que acaba de desempenhar, Sir Nicholas. — Os lábios de Abou Sin abriram-se num sorriso charmoso e cortês. — Sabemos a enorme despesa que teve, e não gostaríamos que tivesse prejuízo com esse extraordinário gesto de generosidade. Segundo a Doutora Al Simma, a expedição para recuperar estes tesouros custou-lhe duzentas e cinqüenta mil libras esterlinas. — Tirou um envelope do bolso e entregou-o a Nicholas.

— Aqui tem um cheque do Banco Central do Egito. Ele é irrevogável e pode ser sacado em qualquer parte do mundo. São duzentas e cinqüenta mil libras.

— E muita generosidade, Excelência. — A voz de Nicholas saiu carregada de ironia, e ele guardou o cheque no bolso. — Entendo que foi uma sugestão da Doutora Al Simma?

— Naturalmente — concluiu Abou Sin. — Royan o tem em alta conta.

— É mesmo? — Nicholas murmurou, ainda encarando-a.

— No entanto, esta outra prova de nosso agradecimento foi sugestão do próprio presidente. — O ministro estalou os dedos e um dos secretários deu um passo à frente, segurando uma caixa de couro, que abriu antes de entregar a Abou Sin.

Emoldurada por veludo vermelho, jazia uma jóia magnífica, uma estrela incrustada de pérolas miúdas e pequenos diamantes. No centro da estrela, um leão rampante de ouro.

Abou Sin retirou a estrela da caixa e aproximou-se de Nicholas.

— A Ordem do Grande Leão do Egito — anunciou, passando a fita escarlate pelo pescoço do inglês. A estrela resplandeceu contra a camisa encardida de Nicholas, manchada de suor, poeira e lama do Nilo.

Então o ministro se pôs de lado e fez um gesto para o coronel do Exército que estava de prontidão aos pés da rampa. Imediatamente, uma fila de homens uniformizados entrou no avião. Era óbvio que o destacamento de soldados já sabia o que fazer. Primeiro pegaram as macas que acomodavam os feridos etíopes.

— Ainda bem que seu piloto teve o bom senso de nos avisar que havia feridos a bordo. Fique descansado, eles receberão o melhor tratamento possível — Atalan Abou Sin prometeu, enquanto eles eram transportados para a ambulância.

A seguir os soldados retornaram e começaram a levar as caixas de munição cheias de tesouros, que foram colocadas nos caminhões. Em dez minutos Big Dolly ficou vazia. As caixas foram cobertas com uma lona, e uma escolta de motociclistas fortemente armados cercou os veículos. Com as sirenes ligadas, o comboio se afastou.

— Muito bem, Sir Nicholas. — Abou Sin estendeu a mão e Nicholas apertou-a com ar resignado. — Sinto tê-lo desviado de seu caminho. Sei que deve estar ansioso para continuar a viagem, por isso não o deterei mais. Posso fazer-alguma coisa pelo senhor antes que parta? Tem combustível suficiente?

Nicholas olhou para Jannie, que deu de ombros.

— Estamos bem abastecidos. Obrigado, senhor. Abou Sin voltou-se para Nicholas:

— Estamos planejando a construção de um anexo ao Museu de Luxor para abrigar os artefatos do Faraó Mamose, que o senhor restituiu ao Egito. No devido tempo, receberá um convite pessoal do presidente para comparecer como convidado de honra à inauguração. A Doutora Al Simma, que como sabe foi nomeada diretora do Departamento de Antigüidades, ficará encarregada do museu. Tenho certeza de que ela ficará encantada em mostrar-lhe novamente essas preciosidades.

Ele se curvou diante de Sapper e dos dois pilotos.

— Vão com Deus — desejou, e deixou o Hércules. — Royan começou a segui-lo, mas Nicholas chamou-a.

— Royan! — Ela congelou; com relutância, virou a cabeça para encarar Nicholas pela primeira vez desde a aterrissagem.

— Eu não merecia isto — ele começou, mas logo percebeu, com uma ponta de emoção, que ela estava chorando. Seus lábios tremiam e uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto.

— Sinto muito, Nicky — murmurou —, mas você devia saber que não sou ladra. Essas coisas pertencem ao Egito, e não a nós.

— Então tudo o que pensei haver entre nós era pura mentira? — ele indagou.

— Não! — Royan respondeu. — Eu... — Mas interrompeu-se antes de concluir a frase. Desceu a rampa correndo e dirigiu-se à limusine, cuja porta de trás o motorista segurava aberta. Depois de sentar-se ao lado de Abou Sin, sem olhar para trás, o Cadillac arrancou e sumiu pelo portão.

— Vamos sair daqui antes que esses caras mudem de opinião — Jannie disse.

— Que idéia esplêndida! — Nicholas proferiu com amargura.

Assim que decolaram, a torre de Assuã os liberou para seguir para o norte, em direção à costa mediterrânea. Os quatro — Jannie e Fred, Sapper e Nicholas — permaneceram juntos na cabine e observaram os meandros verdes do Nilo desaparecer na distância. Conversaram pouco durante esse trecho da viagem. Jannie fez uma única pergunta:

— Acho que posso dar adeus ao meu pagamento, certo?

— Não vim pelo dinheiro — acrescentou Sapper —, mas não ficaria triste se recebesse meu pagamento. Minha mulher está precisando de sapatos novos.

— Alguém gostaria de uma xícara de chá? — perguntou Nicholas, como se não os tivesse escutado.

— Eu gostaria — respondeu Jannie. — Não tanto quanto gostaria das sessenta mil libras que você me deve, mas tudo bem...

Eles sobrevoaram os campos de batalha de El Alamein, e, mesmo a 6 000 metros de altitude, puderam identificar os dois monumentos gêmeos em homenagem aos alemães e aos aliados mortos. Logo a seguir, a imensidão azul do mar estendeu-se à sua frente.

Nicholas esperou a costa egípcia desaparecer e soltou um longo suspiro.

— Homens de pouca fé! — ele os acusou. — Quando foi que os decepcionei? Vocês receberão o pagamento integral.

Todos o encararam por um bom tempo, e então Jannie deu voz às suas dúvidas.

— Como? — quis saber.

— Ajude-me aqui, Sapper — Nicholas pediu, e começou a descer as escadas. Sem poder controlar a curiosidade, Jannie passou o comando a Fred. Seguiu os dois ingleses ao banheiro do compartimento principal.

Sapper e Jannie ficaram na porta, observando Nicholas tirar uma ferramenta do bolso e com ela levantar a tampa do reservatório da descarga do vaso. Jannie sorriu quando o companheiro passou a desaparafusar o painel escondido. Big Doüy era uma aeronave de contrabando, e essas pequenas modificações eram uma prova do trabalho que Jannie e Fred haviam tido para adaptá-la a essa função. Havia uma série desses esconderijos na casa de motores e em outras partes da fuselagem.

Quando voltaram da Líbia, os bronzes de Aníbal haviam sido guardados no compartimento secreto encoberto por esse painel. Como ele se localizava atrás do vaso, era muito improvável que os seguidores do Islã se dispusessem a investigar um local tão imundo.

— Então foi por isso que ficou trancado aqui dentro tanto tempo!

— Jannie riu quando o painel foi retirado. O sorriso morreu em seus lábios quando Nicholas enfiou o braço no buraco e dele extraiu um objeto extraordinário. — Meu Deus, o que é isso?

— A coroa azul do antigo Egito — respondeu. Passou-a a Sapper.

— Coloque-a na cama, mas tenha cuidado.

Enfiou a mão no compartimento mais uma vez.

— E esta é a coroa Nemes — informou, entregando-a a Jannie. — E esta é a coroa vermelha e branca dos dois reinos. E aqui está a máscara mortuária do Faraó Mamose. E, finalmente, o ushabti do escriba Taita.

As relíquias foram depositadas sobre a cama de armar, e todos olharam para elas com reverência.

— Já o ajudei a carregar frisos de pedra e estátuas de bronze — comentou Jannie —, mas nada parecido com isto.

— Mas... — Sapper balançou a cabeça — e as caixas de munição que os egípcios levaram em Assuã? O que havia nelas?

— Cinco galões de produtos químicos para desinfetar o vaso sanitário — respondeu Nicholas — e uma dezena de cilindros de oxigênio para disfarçar o peso.

— Você os engambelou! — Sapper o encarou. — Mas como sabia que Royan ia nos trair?

— Ela tinha razão quando disse que eu devia saber que ela não era ladra. O negócio todo não tinha nada a ver com seu caráter. Ela é... — interrompeu-se para achar as palavras certas — íntegra e honesta. Nem um pouco parecida com este grupo.

— Obrigado pela parte que me toca — Jannie agradeceu com secura —, mas ela deve ter feito alguma outra coisa para lhe despertar suspeita.

— É claro que sim. — Nicholas virou-se para ele. — A primeira desconfiança surgiu quando voltamos da Etiópia pela primeira vez, e ela logo partiu para o Cairo. Imaginei que estivesse metida em alguma coisa. Mas só tive certeza absoluta quando descobri que havia passado uma mensagem, através de Tessay, para a embaixada egípcia em Adis. Percebi imediatamente que ela os tinha avisado de nossa volta.

— Aquela puta traiçoeira! — Jannie gargalhou.

— Cuidado com o que diz! — Nicholas avisou. — Ela é uma mulher decente, honesta e patriótica, tem bom coração e...

— Bem, bem! — Jannie piscou para Sapper. — Com sua licença, estou caindo fora.

Apenas duas das grandes coroas do antigo Egito encimavam a brilhante mesa de nogueira. Nicholas as havia colocado na cabeça dos dois bustos romanos genuínos emprestados de um negociante com o qual tratava regularmente em Zurique. Puxara as persianas das janelas do décimo andar e arranjara a iluminação de modo que as coroas produzissem o melhor efeito. A sala de reuniões privativa que alugara para a ocasião ficava no edifício do Banco Leu, na Bahnhofstrasse.

Sozinho, enquanto esperava a chegada do convidado, revisou todos os preparativos e deu-se por satisfeito. Postou-se na frente do grande espelho dependurado numa das paredes e apertou o nó da velha gravata de Sandhurst. Removera os pontos do queixo. Mek Nimmur havia feito um trabalho de primeira, e a cicatriz era quase invisível. O terno, cortado em tecido risca-de-giz pelo alfaiate de Saville Row, já fora usado o suficiente para que adquirisse certa aparência de casualidade. Os únicos itens novos em folha de sua indumentária eram os sapatos feitos à mão pela Lobb de St. James Street. O interfone soou baixo e Nicholas atendeu.

— O Senhor Walsh acaba de chegar, Sir Nicholas — disse a recepcionista do banco.

— Mande-o subir, por favor.

Nicholas abriu a porta ao primeiro toque da campainha e Walsh resplandeceu na soleira.

— Espero que não esteja desperdiçando meu tempo, Harper. Estou vindo de Fort Worth. — Apenas trinta horas haviam-se passado desde que Nicholas telefonara para sua fazenda no Texas. Walsh devia ter pulado para o jatinho imediatamente para chegar tão depressa.

— Harper não. Quenton-Harper — corrigiu-o Nicholas.

— Muito bem, Quenton-Harper. Mas deixe a conversa fiada de lado — Walsh retrucou nervoso. — O que tem para mim?

— Estou muito feliz por revê-lo, Senhor Walsh. — Nicholas colocou-se de lado. — Entre, por favor.

Walsh passou para a sala. Era alto e tinha ombros caídos, papada pronunciada e enrugada, o nariz adunco. Com as mãos atrás das costas, parecia um abutre empoleirado numa cerca. A revista Forbes avaliava sua fortuna em quase 2 bilhões de dólares.

Dois homens seguiram-no para dentro da sala, e Nicholas os reconheceu. O mundo das antigüidades era muito pequeno e promíscuo. Um deles era o professor de história antiga da Universidade de Dallas. Walsh o colocara lá. O outro era um dos mais respeitados e cultos antiquários dos Estados Unidos.

Walsh estacou tão repentinamente que foi atropelado pelos dois, mas nem pareceu notar.

— Filho da puta! — disse com suavidade, e seus olhos foram iluminados por um brilho fanático. — São falsas?

— Tão falsas quanto os bronzes de Aníbal e o baixo-relevo de Hamurábi que comprou de mim — retrucou Nicholas.

Walsh aproximou-se das peças como se elas fossem a hóstia sagrada e ele, o arcebispo.

— Devem ser novas — murmurou —, ou então já teria ouvido falar delas.

— Acabaram de sair do forno — Nicholas confirmou. — É o primeiro a pôr os olhos nelas.

— Mamose! — Walsh leu no cartucho no uraeus da coroa de Nemes. — Então os rumores têm fundamento. Você abriu uma nova tumba.

— Se é que se pode dizer que algo de quase 4 000 anos é novo! Walsh e seus conselheiros agruparam-se em torno da mesa, pálidos e mudos de espanto.

— Deixe-nos a sós, Harper — disse Walsh. — Chamarei quando estiver pronto para conversar com você.

— Sir Nicholas — ele lembrou ao americano. Nicholas sabia que dava as cartas agora.

— Por favor, deixe-nos a sós, Sir Nicholas — Walsh pediu.

Uma hora mais tarde, Nicholas voltou para a sala de reuniões. Os três homens estavam sentados ao redor da mesa como se não conseguissem se separar das duas grandes coroas. Walsh fez um sinal aos lacaios, que, relutantes mas obedientes, saíram da sala.

Quando a porta se fechou, Walsh perguntou abruptamente:

— Quanto? — Quinze milhões de dólares — Nicholas respondeu.

— Isso dá sete e meio para cada uma.

— Não, quinze milhões cada uma. Trinta milhões pelas duas. Walsh girou na poltrona.

— Por acaso está louco?

— Há quem pense assim — Nicholas sorriu.

— Sugiro racharmos a diferença — falou Walsh. — Vinte e dois milhões.

Nicholas balançou a cabeça.

— Nem um centavo a menos.

— Seja razoável, Harper!

— Esse nunca foi um dos meus vícios. Sinto muito. Walsh levantou-se.

— Também sinto muito. Fica para a próxima vez, Harper.

Segurou as mãos atrás das costas e dirigiu-se para a porta. Ao abri-la, Nicholas chamou-o.

— Senhor Walsh!

Ele virou-se ansiosamente.

— Sim?

— Da próxima vez pode me chamar de Nicholas, e eu o chamarei de Peter, como convém a velhos amigos.

— É tudo o que tem a dizer?

— Claro. O que mais queria ouvir? — Nicholas fez um ar de pura surpresa.

— Maldito! — Walsh disparou antes de voltar para a mesa e desabar na cadeira. — Desejo que vá para o inferno!

Suspirou e retorceu os lábios.

— Muito bem. Como quer receber? — Dois cheques administrativos. De quinze milhões cada.

Walsh pegou o interfone e falou com alguém:

— Por favor, diga a Monsieur Montfleuri, o contador-chefe, que venha até aqui — ordenou com pesar.

Nicholas sentou-se à escrivaninha do pequeno apartamento de Quenton Park. Ficou olhando para o painel que cobria a parede em frente. Embora originariamente ele fizesse parte de uma das igrejas católicas desmontadas por Henrique VIII, em 1536, e tivesse sido comprado por seu avô quase cem anos antes, acabara de ser instalado ali.

Estendeu o braço por baixo da escrivaninha e apertou o botão do controle eletrônico. Uma parte do painel deslizou suave e silenciosamente, revelando a armação de vidro do mostruário embutido na parede. Ao mesmo tempo, os refletores do teto acenderam-se automaticamente, iluminando seu conteúdo. As lâmpadas haviam sido dispostas de modo a não produzir reflexos que atrapalhassem a visão, e sua luz ressaltou toda a glória da coroa e da máscara mortuária de Mamose.

Despejando um pouco de uísque num copo de cristal, saboreou o prazer da posse. Mas logo em seguida se deu conta de que estava faltando alguma coisa. Pegou o ushabti de Taita da escrivaninha e conversou com ele como se estivesse se dirigindo a seu dono.

— Você conheceu a verdadeira solidão, não? — perguntou com suavidade. — Soube o que é amar alguém que nunca poderia ter.

Pousando a estatueta na mesa, pegou o telefone e discou um número. Do outro lado, a campainha soou três vezes antes que um homem atendesse a ligação, em árabe:

— Escritório do Departamento de Antigüidades. Em que posso servi-lo?

— A Doutora Al Simma está? — Nicholas perguntou na mesma língua.

— Um minuto, por favor. Vou transferir a ligação.

— Doutora Al Simma.

Nicholas sentiu um arrepio ao ouvir a voz dela.

— Royan... — disse. O silêncio prolongado foi a prova de que ela sofrera um choque.

— Você...! — murmurou finalmente. — Pensei que nunca mais teria notícias suas.

— Queria apenas cumprimentá-la pelo seu trabalho.

— Você me enganou — ela respondeu. — Trocou o conteúdo das três caixas.

— Como disse um sábio certa vez, é muito fácil ser enganado por um amigo, pois nunca esperamos por isso. Você devia saber disso melhor que ninguém, Royan.

— Você vendeu as peças, é claro. Ouvi dizer que Peter Walsh pagou vinte milhões por elas.

— Trinta milhões — Nicholas corrigiu-a. — Mas apenas pela coroa azul e a Nemes. Neste exato momento estou olhando para a coroa vermelha e branca e para a máscara mortuária.

— Então poderá se ressarcir dos prejuízos com o Lloyd's. Deve estar aliviado.

— Não vai acreditar, mas a corporação se saiu muito melhor que o esperado. Afinal, eu não estava quebrado.

— Como diria minha mãe, bravo!

— Metade do dinheiro já seguiu para Mek Nimmur e Tessay.

— Pelo menos essa é uma boa causa. — A voz de Royan vibrou cheia de hostilidade. — Foi para isso que me ligou?

— Não. Tenho uma informação que pode diverti-la. Seu autor favorito, Wilbur Smith, concordou em escrever a história da descoberta da tumba. O livro vai se chamar O Sétimo Papiro. Deve sair no ano que vem. Mando um exemplar autografado.

— Espero que desta vez ele se atenha aos fatos — ela retrucou secamente.

Os dois ficaram em silêncio por um instante, então Royan disse:

— Tenho uma montanha de coisas para fazer. Se não tiver mais nada a me dizer...

— Na verdade, tenho.

— O quê?

— Quero que se case comigo.

Depois de um suspiro e uma longa pausa, ela perguntou gentilmente:

— Por que deseja algo tão inusitado?

— Porque percebi que a amo muito.

Mais um silêncio, seguido de uma resposta breve:

— Muito bem.

— O que quer dizer com "muito bem"?

— Quero dizer "muito bem, caso com você".

— Por que concorda com algo tão inusitado? — ele quis saber.

— Porque percebi que, apesar de tudo, também o amo muito.

— Há um vôo da Air Egypt saindo de Heathrow às cinco e meia da tarde. Se correr como um louco, acho que conseguirei pegá-lo. Mas vou chegar tarde ao Cairo.

— Estarei esperando no aeroporto.

— Estou a caminho! — Nicholas desligou e dirigiu-se à porta. Subitamente, voltou para pegar o ushabti de Taita de cima da escrivaninha.

— Vamos lá, moço. — Riu em triunfo. — Vai voltar para casa, como presente de casamento.

 

Eles caminhavam pela estrada sinuosa à luz cor de malva do fim da tarde. Lá embaixo o Nilo corria eternamente verde, vagaroso e inescrutável, guardando seus segredos milenares. No ponto da margem em que a barcaça do grande Faraó Mamose havia atracado com Taita e sua amada, abaixo das ruínas do templo de Ramsés, em Luxor, eles fizeram uma pausa e debruçaram-se no murO de proteção. Contemplaram as negras colinas do outro lado do rio.

O tempo, havia muito, destruíra o templo funerário e a grande passarela de Mamose, e outros monarcas haviam construído monumentos próprios sobre suas fundações. Nenhum homem encontrara a tumba que ele jamais ocupara, mas ela devia se situar perto da abertura secreta pela qual Duraid Al Simma entrara no túmulo de Lostris, descobrindo os pergaminhos de Taita nas jarras de alabastro.

Os quatro permaneceram em silêncio na noite que caía, o silêncio de uma amizade sólida. Observaram a passagem de um barco que subia o rio com turistas ainda deslumbrados depois de dez dias de viagem por aquelas águas enigmáticas. Eles apontavam para as grandiosas torres e para as paredes gravadas do templo de Ramsés, e suas vozes excitadas perdiam-se na quietude da noite deserta.

Então Royan pegou o braço de Tessay e as duas se puseram a caminhar na frente. Formavam um lindo quadro: esguias, jovens, de pele lisa, seus cabelos agitavam-se à brisa abafada que vinha do Saara. Nicholas e Mek Nimmur seguiam logo atrás, olhando-as com orgulho.

— Quer dizer que agora você é um dos pistolões de Adis; você, o durão, o guerrilheiro, é agora político! Não consigo acreditar, Mek.

— Há momentos em que é preciso lutar, e outros em que devemos viver em paz. — Mek pareceu sério por um instante, mas Nicholas continuou a zombar dele.

— Vejo que, como bom político, está treinando seus clichês — disse, desferindo-lhe um leve golpe no braço. — Mas como fez isso, Mek? De bandido sujo a ministro da Defesa!

— O dinheiro da venda da coroa azul ajudou um pouco. Proporcionou-me a influência necessária — Mek admitiu. — Mas eles sabiam que não poderiam fazer uma eleição democrática sem que eu fosse candidato. Afinal ficaram felizes por poder contar comigo.

— Minha única censura é por você lhes ter dado esse dinheiro tão suado — Nicholas lamentou. — Droga, Mek, quinze milhões de dólares não caem do céu a toda hora.

— Não dei nada a eles — Mek corrigiu-o. — O dinheiro foi repassado aos cofres públicos, e eu posso fiscalizar o que farão com ele.

— Ainda assim, quinze milhões é muito dinheiro — Nicholas suspirou. — Por mais que tente, não posso concordar com essa extravagância, mas devo admitir que aprovo o companheiro de chapa que escolheu para a campanha à presidência.

Ambos olharam para Tessay. De costas para eles, ela seguia em frente, com as pernas morenas e torneadas encobertas por uma saia branca.

— Não sei se você é bom no cargo que ocupa, mas acho que ela acrescenta charme ao Ministério da Cultura e do Turismo do governo interino.

— Será ainda melhor como vice-presidente, pois vamos vencer em agosto — Mek predisse, e nesse momento Royan olhou para trás.

— Vamos atravessar a estrada aqui — gritou. Nicholas estivera tão absorvido que não notara que haviam saído do lado oposto ao novo anexo do Museu de Antigüidades de Luxor. Quando os dois se aproximaram, foram enlaçados pelas respectivas mulheres.

Enquanto cruzavam a ampla alameda, em meio ao tilintar dos carros de aluguel puxados a cavalo, Nicholas inclinou-se e deu um beijo no rosto de Royan.

— A senhora é mesmo deliciosa, Lady Quenton-Harper.

— E o senhor me deixa constrangida, Sir Nicky — ela riu. — Sabe que ainda não me acostumei a esse tratamento.

Chegando ao outro lado da rua, pararam diante da entrada do anexo. O telhado era sustentado por altas colunas, cópias em miniatura das que existem no templo de Karnak. As paredes eram feitas de blocos maciços de arenito amarelo, e as linhas da construção eram limpas e imponentes.

Royan conduziu-os à porta de entrada do museu, que ainda não fora aberto ao público. O presidente chegaria na segunda-feira para a inauguração oficial, e Mek e Tessay seriam os representantes do governo etíope na cerimônia. Os guardas cumprimentaram Royan respeitosamente e apressaram-se em abrir as pesadas portas emolduradas de bronze.

O local estava silencioso e frio, pois o ar-condicionado fora cuidadosamente regulado para preservar os antigos objetos ali expostos. Os mostruários haviam sido escavados nas paredes de arenito, e a iluminação, suave e engenhosa, realçava ao máximo os maravilhosos tesouros funerários de Mamose. As peças, arrumadas em ordem crescente de beleza e importância arqueológica, brilhavam em seu nicho de cetim azul, o azul-real do faraó.

Os visitantes lançavam a tudo um olhar reverente, enquanto questionavam Royan em voz baixa. Estavam enfeitiçados. Pararam à entrada da última sala, aquela que abrigava os itens mais extraordinários e valiosos da cintilante coleção.

— E pensar que esta é apenas uma pequena parte dos tesouros que ainda estão na tumba de Mamose, guardados pelas águas do Rio Dandera — murmurou Tessay. — É tão emocionante que mal posso esperar pelo resto!

— Esqueci de lhe contar! — Mek exclamou, mas seu sorriso deixava claro que não havia esquecido nada, apenas esperara o momento adequado para dar a notícia. — O Instituto Smithsoniano confirmou a doação do dinheiro necessário para represarmos novamente o Dandera e reabrir a tumba. O trabalho será executado em conjunto com os governos do Egito e da Etiópia.

— Que ótima notícia! — Royan exclamou. — A tumba será um dos grandes sítios arqueológicos do mundo, e um enorme centro de turismo na Etiópia...

— Mas há um detalhe — Mek interrompeu-a. — Eles estipularam uma condição.

Royan pareceu desanimada.

— E qual é?

— Eles insistem que você seja a diretora do projeto.

Royan aplaudiu a idéia entusiasmada, mas logo franziu o cenho numa falsa expressão de seriedade.

— Mas só aceito sob uma condição — começou.

— Qual?

— Quero autonomia para nomear meu assistente nas escavações. Mek soltou uma gargalhada.

— E é claro que já sabemos quem será — Mek concluiu, com um tapinha nas costas de Nicholas. — Mas tenha cuidado para que nenhum dos preciosos artefatos fique grudado em seus dedos pegajosos! — ele avisou.

 

                                                                                            Wilbur Smith

 

 

                      

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