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O SÉTIMO SEGREDO / Irving Wallace
O SÉTIMO SEGREDO / Irving Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SÉTIMO SEGREDO

 

        No dia 30 de abril de 1945, Adolf Hitler e Eva Braun suicidaram-se no Führerbunker, construído a quase 20 metros sob o solo de Berlim, àquela altura devastada pela guerra. Os vitoriosos soldados russos alegaram que os corpos haviam sido queimados, mas os verdadeiros detalhes desses dias finais sempre foram extremamente obscuros.

        Quando o Dr. Harrison Ashcroft, famoso historiador e professor da Universidade de Oxford, que está completando a biografia definitiva de Hitler, recebe de fonte fidedigna uma informação de que o Führer e Eva provavelmente não se mataram, voa para Berlim a fim de examinar a prova apresentada. Os indícios são convincentes, e justificam investigações mais extensas. No entanto, antes que possa começar a seguir as novas pistas, Ashcroft morre num estranho acidente de rua em que o culpado foge.

        Assim começa este novo romance de Irving Wallace — com a descoberta de um segredo tão mortífero que mesmo 40 anos passados não conseguem diminuir o perigo que ele representa. 0 que realmente aconteceu naqueles dias finais no Führerbunker?

        Ambientado na Berlim de nossos dias, uma fulgurante cidade cuja prosperidade, porém, mal encobre os traços do seu passado trágico, O Sétimo Segredo reúne um elenco de personagens para quem os segredos do Führerbunker tornam-se, literalmente, questões de vida ou morte:

 

        —   Emily Ashcroft, cujas pesquisas sobre o passado ameaçam provocar abalos de conseqüências imprevisíveis;

       

        —   Rex Foster, arquiteto de Los Angeles, que descobre uma misteriosa planta que se achava perdida;

       

        —   Nicholas Kirvov, um curador de museu que adquire um quadro de Hitler, cuja procedência dá início a uma discutida questão;

       

        —   Tovah Levine, agente israelense para quem a procura de fugitivos nazistas se torna mais do que uma missão de rotina; e

       

        —   Evelyn Hoffmann, uma berlinense ainda bastante atraente, extraordinariamente parecida com Eva Braun.

       

        Na terra de ninguém do Muro de Berlim, cada um desses personagens terá a sua vida alterada pela descoberta do sétimo segredo.

        

    

        Ao deixar a pequena sala particular e a entrevista coletiva, atravessando o apinhado restaurante Café Kranzler e saindo para a ensolarada Kurfürstendamm, ele se sentia exultante.

        Parando na calçada larga da movimentada Ku'damm naquele início de tarde, ao final de julho, o Dr. Harrison Ashcroft — e agora, desde o ano passado, Sir Harrison Ashcroft — pensou em adiar o trabalho adicional a fim de desfrutar de um breve descanso. Naquela sua décima visita a Berlim Ocidental, em cinco anos, ele sabia que alcançara o momento culminante de sua obra monumental. Estava prestes a solucionar o grande mistério e levar o seu projeto a uma conclusão bem-sucedida — e que provavelmente abalaria o mundo.

        Obtivera uma licença de seu posto de professor de história moderna no Christ Church College, na Universidade de Oxford, a fim de se dedicar à impressionante biografia. Nos quarenta anos desde o fim de Adolf Hitler, a história extraordinária de Der Führer suplicara para ser escrita por ele. Finalmente, como seu 14º. livro, talvez o mais memorável, o Dr. Ashcroft resolvera escrever a biografia definitiva, Herr Hitler. Mas compreendera logo no início que na sua idade — então 67 anos — não poderia assumir sozinho toda pesquisa e redação. Por isso convidara a sua dinâmica filha de 34 anos, Emily, brilhante professora de história em Oxford, a colaborar na obra. E desde o princípio ficara convencido de que não poderia ter feito uma escolha melhor.

        Emily Ashcroft estava incomparavelmente qualificada para ajudar o pai no gigantesco esforço. Depois da morte da esposa, num acidente quando escalavam uma montanha, há mais de vinte anos, o Dr. Ashcroft criara sozinho a filha. Parecia agora inevitável que a menina, vivendo num clima de curiosidade acadêmica, com milhares de livros e viagens constantes, se tornasse historiadora como o pai. Ela se especializara também na história moderna da França e Alemanha, falava fluentemente as línguas desses dois países. Também era fascinada pela agora distante e romântica Segunda Guerra Mundial e o papel dominante desempenhado pelo estranho e enigmático Adolf Hitler. Por duas vezes, durante os estágios iniciais da pesquisa, Emily acompanhara o pai a Berlim. Desta vez, na que poderia ser a última e mais crucial visita à principal cidade da Alemanha Ocidental, O Dr. Ashcroft deixara Emily em Oxford, com a incumbência de organizar as anotações para o esforço final.

        O objetivo era solucionar o último mistério da morte de Adolf Hitler com Eva Braun, sua esposa de uma dia, nas profundezas do Führerbunker, ao lado da Chancelaria do Reich, a 30 de abril de 1945.

        Dois meses antes, depois de consideráveis pesquisas diretas — em Berlim Ocidental, conversando com testemunhas sobreviventes, e em Berlim Oriental, examinando os relatórios médicos e fotografias postos à sua disposição pela União Soviética, através de seu amigo e colega Professor Otto Blaubach — o Dr. Ashcroft, assim como Emily, estava disposto a aceitar a versão comum e autorizada, formulada pelos biógrafos e historiadores, sobre a morte de Hitler.

        Retornando a Oxford de sua visita anterior a Berlim Ocidental, onde a sua biografia definitiva de Hitler merecera ampla divulgação, prestes a empreender a parte final de sua longa obra, o Dr. Ashcroft recebera uma carta surpreendente e desconcertante de Berlim Ocidental, uma carta inesperada, que o obrigara a suspender o trabalho.

        A carta fora escrita por um certo Dr. Max Thiel, que se identificara como o último dentista de Hitler. O Dr. Thiel lera as notícias sobre a importante biografia de Ashcroft. Como um dos poucos sobreviventes entre as pessoas que conheceram Hitler pessoalmente, o Dr. Thiel queria que o livro fosse mais acurado do que qualquer outro que o precedera.

        E fora ao final de sua carta que o Dr. Thiel lançara a bomba atordoante.

        Todas as histórias contadas até aquele momento sobre Hitler e Eva Braun podiam estar erradas. Era possível que Hitler e Eva não houvessem cometido suicídio no Führerbunker, em 1945. Talvez os dois tivessem enganado o mundo. Talvez tivessem sobrevivido. Na verdade, o Dr. Thiel tinha provas de que isso acontecera.

        Depois do choque inicial, Ashcroft começara a recuperar a objetividade. Como a filha Emily ressaltara, as teorias de sobrevivência e as pistas sobre Hitler e Eva haviam sido incontáveis desde suas mortes. Os lunáticos abundavam e persistiam, o Dr. Max Thiel parecia apenas mais um deles. Com toda certeza, Emily comentara, o Dr. Thiel comunicara as suas supostas provas a biógrafos anteriores. E, obviamente, todos haviam chegado à conclusão de que deveriam ignorá-las. Emily exortara o pai a assumir a mesma atitude, jogando fora a absurda carta e retomando o trabalho, a fim de levar a biografia à conclusão.

        Mas a carta continuara a importunar Ashcroft. Ele sempre fora um perfeccionista. Trabalhara com muito empenho e por tempo demais para ignorar qualquer desafio à sua competência acadêmica. Relendo várias vezes a carta simples do Dr. Thiel, Ashcroft acabara se convencendo de sua sinceridade. O importante agora era confirmar se aquele Dr. Thiel era de fato a pessoa que se declarava ser.

        Fora mesmo o último dentista de Hitler? Uma investigação de uma semana proporcionou a Ashcroft a resposta desconcertante: o Dr. Thiel fora realmente o último dentista de Hitler, um especialista de Berlim, na verdade um cirurgião oral, tratara do Führer várias vezes nos últimos seis meses da vida do ditador alemão. Além disso, o Dr. Thiel escrevera pessoalmente a carta espantosa, ainda estava vivo, aos oitenta anos de idade, em Berlim Ocidental.

        Abaixo da assinatura, na carta fatídica, o Dr. Thiel escrevera ousadamente o número de seu telefone.

        O Dr. Harrison Ashcroft não tivera alternativa senão telefonar para o número indicado.

        O Dr. Thiel atendera pessoalmente. Sua voz era profunda, firme, segura. O que ele tinha a dizer era lúcido e objetivo. Não havia qualquer indício de senilidade. Era verdade, ele dispunha da prova sobre a qual escrevera. Não, não podia discutir os detalhes pelo telefone. Mas teria a maior satisfação em receber o Dr. Ashcroft em sua casa, em Berlim, permitindo-lhe vê-la pessoalmente para tirar as suas conclusões.

        O convite era irresistível, a curiosidade do Dr. Ashcroft aumentara ainda mais.

        Ashcroft chegara a Berlim Ocidental três dias antes, sozinho, hospedara-se no Bristol Hotel Kempinski, perto da Kurfürstendamm, e fora imediatamente procurar o Dr. Max Thiel. O encontro fora amistoso, fascinante e persuasivo, seu coração acadêmico disparara pela oportunidade de chegar ao âmago da verdade.

        Para isso, no entanto, teria de escavar no que fora outrora o jardim ao lado do Führerbunker, o jardim em que os corpos de Hi-tler e Eva Braun haviam sido enterrados, em 1945, segundo registravam os livros de história. Havia um problema. A área do Führerbunker ficava no lado de Berlim Oriental do muro que dividia a cidade, numa faixa de terra-de-ninguém, cercada por um muro de cimento, uma cerca de arame e soldados de Berlim Oriental. Para entrar na Zona de Segurança e escavar, Ashcroft precisaria de uma autorização do governo comunista de Berlim Oriental e, por extensão, do governo da União Soviética, que há muito considerava encerrada a questão da morte de Hitler. Felizmente, Ashcroft tinha um amigo influente em Berlim Oriental.

        Anos antes, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, numa conferência internacional de historiadores modernos, realizada no Savoy, em Londres, Ashcroft participara de um painel junto com o Professor Otto Blaubach, da Alemanha Oriental. Ashcroft e Blaubach logo descobriram que tinham muito em comum, inclusive o interesse partilhado pela ascensão e queda do Terceiro Reich e de Adolf Hitler. Ashcroft recebera Blaubach em sua casa em Oxford e depois disso haviam se encontrado várias vezes em Berlim Oriental. A amizade desabrochara pela correspondência. À medida que o tempo passava, o Professor Blaubach fora adquirindo influência cada vez maior na República Democrática Alemã. Era agora um dos onze vice-primeiros-ministros do Conselho de Ministros da Alemanha Oriental.

        Se alguém queria desenterrar alguma coisa numa área proibida e fortemente vigiada de Berlim Oriental, o Professor Blaubach era obviamente uma pessoa influente para se procurar. Assim, Ashcroft entrara em contato com seu velho amigo Blaubach, que o saudara efusivamente, considerando o pedido excepcional, mas possível de atender, e prometendo tentar obter a aprovação de seus colegas no conselho para a realização das escavações.

        Duas noites antes, Blaubach comunicara a resposta: permissão concedida. Ashcroft podia fazer as escavações.

        Na maior emoção, Ashcroft telefonara para a filha Emily, em Oxford, contando tudo. Igualmente excitada pelas notícias do pai, Emily quisera detalhes da prova apresentada pelo Dr. Thiel de que Hitler não morrera no Führerbunker. Ashcroft se conteve, preferindo não falar pelo telefone. Era melhor esperar e explicar tudo quando voltasse de Berlim, com o que poderia ser um novo e espantoso final para o livro.

        —  Vou começar a escavar depois de amanhã. Antes, quero ter uma entrevista coletiva...

        —  Uma o quê?

        —  Uma entrevista coletiva. Apenas as principais emissoras de televisão e rádio, assim como alguns repórteres de jornais e revistas, em Berlim Ocidental.

        —  Mas por que, papai? Nunca teve o hábito de anunciar prematuramente ao público as suas descobertas.

        —  É fácil explicar — respondera o Dr. Ashcroft pacientemente. — Agora que a teoria do Dr. Thiel está para ser conferida, depois de tantos anos, ocorreu-me que pode haver outras pessoas como ele. Pessoas que conheceram Hitler, acompanharam seus últimos dias, que podem ser encorajadas a se apresentarem com novas informações. Quero que o nosso livro seja a última palavra, Emily, a verdade absoluta. Só por isso.

        — Eu gostaria que não fizesse isso, papai.

        —  Como assim?

        —  Não divulgue nada. Não sei direito como explicar, mas vou tentar. Tem uma reputação internacional de historiador objetivo. A sua característica é comedimento no que escreve e acurácia nos fatos que apresenta. O livro sobre Hitler será o ponto alto de sua carreira. Não o prejudique com especulações. Sei que esteve com o Dr. Thiel e viu ou ouviu alguma prova. Mas pode ser falsa, pode estar errada. E faria com que você... nós... parecêssemos tolos. As conjeturas do Dr. Thiel vão contra todos os fatos conhecidos. Hitler matou-se com um tiro e deu cianureto a Eva Braun no Führerbunker, em 1945. E há testemunhas da cremação dos corpos. Estes são os fatos.

        Ashcroft hesitara. Nos cinco anos de colaboração no livro, raramente discordara da filha. Mas, depois, dissera:

        — É possível, Emily, é possível. Mas, para termos certeza, preciso ir em frente.

        E ele fora em frente, rapidamente, com a determinação de acabar com o último fantasma.

        Para as escavações, procurara a Companhia Construtora Obers-tadt, que lhe fora muito recomendada. E depois providenciara tudo para a entrevista coletiva — limitada a doze pessoas, quatro de emissoras de televisão e rádio, o resto dos mais importantes jornais e revistas.

        Do seu Guten Tag ao Auf Wiedersehen, a entrevista coletiva correra muito bem. Falara durante uma hora, sem qualquer interrupção dos repórteres, e ao final aceitara as perguntas. Todos estavam a par de seu livro sobre Hitler. Mas ele estava ali, anunciara à imprensa, para efetuar uma investigação final sobre as mortes de Adolf Hitler e Eva Braun. Uma "prova nova" exigia uma escavação no local onde os restos mortais dos dois haviam sido enterrados. Apesar das perguntas insistentes, ele não revelara qual era a "prova nova" e como a obtivera. Não mencionara o nome do Dr. Max Thiel.

        Agora, a entrevista fora concluída, um sucesso; se houvesse mais sobreviventes da era nazista, testemunhas dos acontecimentos, a publicidade poderia persuadi-los a se apresentarem.

        Ashcroft ficou parado na frente do restaurante, apreciando a atividade da movimentada Kurfürstendamm. Era uma de suas ruas prediletas no mundo inteiro. Fazia com que Piccadilly e Piccadilly Circus parecessem insignificantes. Possuía a grandeza da Champs Elysées, só que muito mais animada. Contemplou as calçadas largas, as vitrines numerosas, as árvores verdes e frondosas erguendo-se como sentinelas nos dois lados da rua.

        Pensou por um instante em fazer um passeio até a Breitscheid-platz, com sua Igreja Memorial do Kaiser Guilherme, uma construção moderna, baixa, octangular, de vidro e aço, surgindo incongruentemente ao lado da torre do relógio da igreja original, avariada pela guerra e não reparada. Talvez fizesse uma visita ao Centro Europa, com seus três andares de lojas, casas de espetáculos e cafés, seus dezenove andares de escritórios, encimados pelo imenso logotipo circular da Mercedes-Benz. Podia parar por um momento no novo Café Romanisches, que não chegava a ser tão bom quanto o antigo, que conhecera na juventude, mas mesmo assim oferecia um clima nostálgico e o Kaffee não era dos piores.

        Ou, mais sensatamente, podia se voltar e caminhar a curta distância até seu quarto no Kempinski. E examinar mais uma vez a planta arquitetônica do Führerbunker de Hitler, antes de começar a escavar em busca da verdade, no dia seguinte.

        A verdade e Hitler prevaleceram. Não havia tempo para se distrair agora.

        Harrison Ashcroft aspirou fundo o ar quente do verão, começou a descer a Kurfürstendamm, a caminho do Café Kempinski, um restaurante com uma varanda na frente, cadeiras e mesas ao ar livre. O café ficava na esquina da Fasanenstrasse, a rua transversal em que se encontrava a fachada de mármore do Bristol Hotel Kempinski.

        Andando depressa, gozando de excelente saúde aos 72 anos e com muita determinação, Harrison Ashcroft encaminhou-se para a esquina. Pensava na prova extraordinária que o Dr. Thiel lhe apresentara, na escavação do dia seguinte, no último dia de Hitler.

        Chegou à esquina, atravessou a rua para o Café Kempinski, virou à direita, seguindo para o hotel.

        E foi nesse momento, quando se virava, que ouviu seu nome ser chamado em voz alta. Ou pelo menos teve essa impressão. Olhou para trás, instintivamente, a fim de descobrir quem o chamava.

        Mas nada havia além da enorme grade de metal do caminhão entrando na rua transversal, a bloquear sua visão. Subitamente, o caminhão derrapou e subiu no meio-fio, derrubando uma jardinei-ra na esquina, levando os fregueses do restaurante a saírem correndo, com gritos frenéticos.

        Depois, momentaneamente descontrolado, o caminhão afastou-se do café, avançando ruidosamente pela calçada, na direção de Ashcroft.

        A grade e os pneus gigantescos assomavam à sua frente, e o pavor inesperado deixou-o paralisado.

        A grade do caminhão atingiu-o em cheio, como um golpe do punho de Sansão, levantando-o pelo ar, arremessando-o para o meio da rua.

        Caiu de cara no chão, meio cego, meio inconsciente, todo quebrado, sangrando. Tentou levantar a cabeça, a fim de protestar contra a indignidade, e nesse instante deparou com a grade e os pneus do caminhão assomando outra vez por cima dele, derrapando de volta à rua.

        Debilmente, tentou erguer a mão para desviar o caminhão, mas os pneus já estavam em cima dele, a última coisa que veria nesta vida.

        Os pneus passaram por cima de seu corpo, esmagando-o, triturando-o.

        A escuridão foi instantânea. A escuridão foi eterna.

        Depois do enterro, sentada desolada no banco traseiro do Daimler preto da agência funerária, o primeiro instinto e desejo de Emily, ao iniciar a viagem de volta do cemitério para Oxford, foi relatar ao pai o funeral. Queria descrever-lhe a cerimônia, o comparecimento maciço de pessoas proeminentes da universidade, amigos incontáveis, todos os seus parentes, várias autoridades de Londres, até mesmo o seu vendedor predileto da livraria Blackwell's. Queria partilhar tudo com o pai, falar-lhe a respeito, como sempre fazia com tudo. Mas depois, com um sobressalto, compreendeu que não poderia, pois ele não mais existia. Estava debaixo da terra. Morrera. Era inacreditável. Pela primeira vez na vida de Emily, o pai não se encontrava disponível, não estava ali.

        E ela percebeu então quem estava ali. Ao seu lado, no banco traseiro do Daimler, sentava Pamela Taylor, a secretária e datilografa ruiva, comprimindo mais um lenço de papel contra o nariz, os olhos inchados. No outro lado de Emily, rígido e olhando fixamente para a frente, para o motorista e a paisagem, estava seu tio Brian Ashcroft, de 69 anos, irmão mais moço do pai, diretor de uma firma de contabilidade em Birmingham.

        Estavam todos sem lágrimas agora, já haviam chorado tudo, esgotado a emoção, guardando o que restava para a recepção pós-funeral na casa do pai — a sua casa — a alguns quarteirões da universidade, onde o pai residira durante a vida inteira.

        A terrível notícia fora transmitida ao cair da noite, por um telefonema da polícia de Berlim Ocidental. Srta. Emily Ashcroft? Houve um lamentável acidente. Seu pai, Sir Harrison Ashcroft, foi atropelado e morto por um caminhão. O motorista fugiu. Seu pai teve morte instantânea. Lamento profundamente.

        Houvera mais coisas, mas Emily fora incapaz de compreender. Em choque total, um tanto incrédula, ela conseguira telefonar para o velho médico da família, pensando irracionalmente que ele poderia salvar o pai. Mas o médico compreendera a realidade, fora procurá-la imediatamente, dera-lhe um sedativo, depois chamara Pa-mela, que por sua vez chamara alguns dos amigos mais íntimos do Dr. Ashcroft na universidade.

        Fora um momento terrível, o pior em toda a vida de Emily.

        E ela não pudera recorrer a Jeremy. Fora outra morte — não comparada com aquela, a morte do pai —, mas de certa forma um prelúdio ao sofrimento. Acontecera quase seis meses antes, depois que Jeremy Robinson fora parte de sua vida por um ano. Começara quando Emily fora chamada a Londres para escrever e apresentar um novo documentário de televisão da BBC sobre a ascensão e queda do Terceiro Reich. As filmagens de suas cenas transcorreram sem qualquer dificuldade, profissionalmente. Ao final, aceitara com a maior satisfação um convite de Jeremy para um jantar de despedida, a dois.

        Jeremy a atraíra desde o início. Era um homem de meia-idade, muito bonito e charmoso. Um homem casado, é verdade. Com dois filhos pequenos. Jeremy queria uma ligação extraconjugal, mas Emily hesitara. Já passara por isso antes e sabia que era um beco sem saída. Mas quando Jeremy garantira que estava em processo de divórcio da esposa e casaria com ela assim que fosse possível, Emily abandonara a resistência e se tornaram amantes, embora preferisse não ir viver com ele.

        O romance, conduzido no pequeno apartamento de Jeremy, perto do estúdio, fora emocionante e promissor. Desde o início Emily falara ao pai sobre Jeremy. O Dr. Ashcroft aprovara imediatamente. Seu único desejo era a felicidade da filha. E de repente, seis meses antes, Jeremy telefonara para cancelar o fim de semana habitual que passavam no campo. Fora designado para produzir uma dramatização de Moll Flanders para a BBC, estrelando uma jovem atriz em ascensão, Phoebe Ellsmore. Era uma missão extraordinária, mas o trabalho preparatório iria ocupá-lo durante o fim de semana. Depois disso, Jeremy cancelara mais três fins de semana e finalmente deixara de telefonar. E mais tarde o chocante anúncio na imprensa: Jeremy Robinson, consumado o seu divórcio, estava prestes a casar com Phoebe Ellsmore.

        Fora a mais terrível humilhação pessoal. Por vários dias Emily não fora capaz de encarar o pai. E quando finalmente o fizera, ele a consolara, comentando que era melhor assim, pois agora ela sabia em que teria se metido.

        O ressentimento de Emily persistira, embora se desvanecendo gradativamente. Em termos realistas, sabia que o sofrimento não fora causado pela perda do amor, mas sim pelo orgulho ferido. E logo, olhando para o passado, pudera compreender que o que realmente desejara não fora Jeremy em si, mas o conformismo do casamento, um lar, filhos, principalmente uma mudança de cenário. A perspectiva de se afastar da vida acadêmica, aulas, pesquisas, muito escrever, atraíra-a muito mais do que Jeremy. Gostara dele, é claro. E depois que o ar desanuviara, chegara à conclusão de que uma união com Jeremy seria um desastre. Depois que a mágoa se transformara em repulsa, a recordação de Jeremy começara a se dissipar, na euforia mais feliz de ter se livrado dele.

        Graças a Deus, ela tinha uma posição de recuo. Lançara-se com renovada energia à conclusão da biografia de Hitler. Cada vez mais, o livro e seu pai tornaram-se as coisas mais importantes em sua vida.

        E agora acontecia aquilo, a mais devastadora de todas as perdas.

        Depois do telefonema com a notícia da morte do pai, os vivos haviam feito o que deviam pelo morto. O primeiro impulso de Emily fora o de pegar o primeiro avião para Berlim, ficar ao lado do pai, acompanhá-lo na viagem de volta à Inglaterra. Mas cabeças mais sensatas prevaleceram. Alguém a ajudara a telefonar para a chefatura de polícia em Berlim. Depois que se identificara, transferiram a ligação para o chefe de polícia, Wolfgang Schmidt, que lhe falara em inglês. O chefe se comportara de maneira afetuosa, sempre cortês. Reiterara os fatos do acidente, tentara fornecer mais detalhes. O caminhão descontrolado, subindo no meio-fio, atingindo o Dr. Ashcroft na calçada, lançando-o para o meio da rua, por acaso o atropelando. O Dr. Ashcroft tivera morte imediata. O motorista bêbado do caminhão — não podia deixar de estar bêbado — fugira.

        As descrições do veículo eram contraditórias, por causa da confusão, mas estavam sendo envidados todos os esforços para localizá-lo. Mas o chefe Schmidt não tinha muita esperança de sucesso. E lamentava profundamente o acidente.

        Depois disso, o tio obrigara Emily a descansar. Pamela pegara o telefone para cuidar das últimas providências, o corpo finalmente partira de avião de Berlim Ocidental para Oxford.

        Agora, estava tudo acabado. O pai dormia, pacificamente, debaixo da terra. Sua grande obra estava inacabada. E ela, sozinha.

        Olhos secos, fraca, desprovida de toda e qualquer energia, Emily sentava rígida no banco traseiro da limusine silenciosa, tentando olhar para a frente. Mas não podia ver coisa alguma além da apresentação de pêsames, que se prolongaria pelas próximas duas horas.

        Querendo assoar o nariz, procurou o lenço, dentro da bolsa que estava a seus pés. Puxou a bolsa para o colo, abriu-a, e ficou surpresa ao deparar com dois envelopes por cima da carteira e do estojo de cosméticos. Encontrou o lenço por baixo, usou-o, tornou a guardá-lo. Experimentou alguma curiosidade pelos dois envelopes. E foi então que lembrou. Ao sair de casa para o funeral, naquela manhã, notara que a correspondência do dia fora deixada em sua mesa por Pamela. Sem qualquer interesse, folheara distraidamente, compreendendo que a maioria dos envelopes pequenos e quadrados continha mensagens de condolências. Havia também dois envelopes mais compridos, ambos com selos alemães, um despachado de Berlim Oriental, outro de Berlim Ocidental. Muito estranho. Ela se perguntara quem poderia lhe escrever da Alemanha. Mas não havia tempo para abrir os envelopes e ler as cartas, pois tio Brian e Pamela já estavam na porta, esperando para escoltá-la ao funeral. Emily metera os dois envelopes na bolsa e partira apressadamente.

        Agora, os dois envelopes permaneciam em sua bolsa, esperando o momento de serem abertos. Um pouco hesitante, ela tirou-os, pôs a bolsa de lado, abriu o primeiro, o que fora despachado de Berlim Oriental.

        A carta, uma única folha, fora escrita à mão no papel timbrado do Professor Otto Blaubach. Ela se lembrava de Blaubach. O grande amigo do pai, o historiador, especialista no Terceiro Reich e Hitler, agora um vice-primeiro-ministro da Alemanha Oriental. O pai falara com Blaubach um dia antes de morrer, obtendo por seu intermédio a autorização para escavar a área em torno do velho Führerbunker de Hitler. Ela só se encontrara com Blaubach uma vez, um alemão formal, ao estilo de Thomas Mann, mas a própria essência da cortesia e gentileza. Sua carta estava em inglês.

        "Minha cara Emily Ashcroft,

        "Quando ouvi na televisão e vi confirmada nos jornais a notícia da morte prematura e acidental de seu pai fiquei cheio de incredulidade. Conversamos na noite anterior. Ele nunca me pareceu tão vigoroso e se tornou ainda mais quando o informei de que obtivera autorização para que efetuasse escavações no Führerbunker.

        "Meu coração está confrangido. Por vários dias não fui capaz de pegar uma caneta para escrever. Mas tenho de fazê-lo agora. Quero lhe transmitir meu profundo pesar pessoal e oferecer minhas condolências. Ambos temos pelo menos a memória íntima de um homem grande e modesto.

        "Ainda não posso acreditar e aceitar a maneira pela qual seu pai encontrou o fim. Foi um acidente inadmissível. Atropelamentos em que o motorista foge estão sempre acontecendo, mas devo dizer que nesse caso em particular foi um acidente quase estatisticamente impossível. Mas sabemos que o impossível acontece na vida.

        "O que aumenta ainda mais o meu pesar é que seu pai me informara que vocês estavam no limiar de concluir o livro que ele julgava ser a obra que lhe proporcionaria mais orgulho. Não ignoro o papel importante que você vem desempenhando, como filha de seu pai e historiadora respeitada por si mesma, na produção da biografia de Hitler. Recordo afetuosamente a ocasião em que você acompanhou seu pai a um almoço comigo, no Café Opern, em Berlim Oriental, há três anos, a conversa estimulante que tivemos sobre a biografia. Sei que só falta escrever o final para completar o projeto de Herr Hitler. Tenho muita esperança de que, no momento oportuno, você conclua a obra sobre Hitler. O mundo merece conhecê-la. Seu pai merece tê-la impressa, como um monumento a seu gênio e erudição.

        "Caso precise de minha ajuda em qualquer coisa, não hesite em me procurar.

        Atenciosamente,

        Otto Blaubach."

       

        Emily piscou os olhos, contemplando a carta, comovida, sentindo que de alguma forma a trazia de volta ao mundo dos vivos.

        Blaubach queria que ela terminasse o livro, achava que isso deveria ser feito e que ela tinha competência para tanto. O pedido e a esperança deixaram-na um pouco abalada. Desde a morte do pai não pensara na biografia, pelo menos não conscientemente. Sem o pai, não podia conceber a existência da obra.

        Mas Blaubach tinha razão. A obra não estava morta. Ela fora uma das artérias que lhe incutira vida. E ainda estava aqui, viva, vigorosa.

        Lentamente, Emily tornou a dobrar a carta de Blaubach. Não podia mais pensar a respeito, não podia lhe conferir uma consideração séria, pelo menos agora, em seu desconsolo. Haveria de relê-la em outra ocasião.

        Guardou a carta na bolsa e pegou o outro envelope.

        Abriu-o e tirou uma carta datilografada no papel timbrado do Berliner Morgenpost, o respeitado jornal de Berlim Ocidental. Os olhos de Emily procuraram a assinatura. Era de um certo Peter Nitz, que ela não conhecia.

        "Prezada Srta. Ashcroft,

        "Embora não me conheça, tomo a liberdade de transmitir meu pesar pela morte do Dr. Ashcroft.

        "Nunca tive a sorte de conhecer pessoalmente o Dr. Ashcroft, mas o vi e pude ouvir o seu último pronunciamento em público, poucos minutos antes de sua morte. Como repórter especial de um importante jornal de Berlim Ocidental, fui destacado para cobrir a última entrevista coletiva do Dr. Ashcroft.

        "Depois de falar rapidamente sobre Herr Hitler, a importante biografia que vocês vinham escrevendo, o Dr. Ashcroft anunciou que suspendera a redação do capítulo final do livro, na dependência de novas investigações sobre as últimas horas de Adolf Hitler em seu bunker. O Dr. Ashcroft declarou que todas a biografias e histórias de Adolf Hitler declaravam taxativamente que o Führer cometera suicídio, juntamente com sua esposa Eva Braun, no Führerbunker, em 1945, mas ele se deparara com um fato novo que indicava alguma possibilidade de Hitler não ter morrido nessa ocasião, tendo conseguido escapar. O Dr. Ashcroft acrescentou que, para confirmar essa possibilidade, obtivera autorização para efetuar escavações na área do bunker, na Alemanha Oriental, à procura de uma prova específica. Tinha a esperança de que alguém em Berlim que ouvisse falar ou lesse sobre o seu empreendimento e conhecesse mais fatos sobre as últimas horas de Hitler poderia procurá-lo no hotel Bristol Kempinski, durante a semana subseqüente.

        "Logo depois de concluir o seu comunicado, o Dr. Ashcroft disse que estava pronto a responder às perguntas dos repórteres. Claro que tínhamos muitas perguntas a fazer. Envolviam principalmente a identidade da pessoa que lhe fornecera o fato novo e qual era esse fato. O Dr. Ashcroft, compreensivelmente, não nos respondeu com objetividade, assim como também se recusou a fornecer os nomes das autoridades de Berlim Oriental que lhe concederam autorização para escavar na área do antigo Führerbunker.

        "Concluída a entrevista coletiva, o Dr. Ashcroft deixou o restaurante, alegando que precisava voltar ao Kempinski para retomar seus preparativos. Enquanto os outros repórteres se preparavam para ir embora, ocorreu-me que esquecera de fazer uma pergunta importante ao Dr. Ashcroft. Saí à rua para alcançá-lo. Não me recordo agora qual era a pergunta — certamente não era tão importante — e não é por esse motivo que lhe escrevo, mas sim para informar o que testemunhei depois que saí correndo do restaurante à procura do Dr. Ashcroft.

        "Desci apressadamente a Kurfürstendamm, naquele momento apinhada de pessoas fazendo compras. Tive a impressão de vislumbrar o Dr. Ashcroft atravessando a rua transversal seguinte. Quando cheguei lá, avistei-o claramente na esquina oposta, prestes a entrar na Fasanenstrasse, a caminho da entrada do Kempinski. Chamei-o, gritei para atrair sua atenção, talvez ele tenha me ouvido. Não tenho certeza. Os acontecimentos que se sucederam foram muito rápidos.

        "No instante em que eu acabava de tentar atrair a atenção do Dr. Ashcroft, divisei um caminhão relativamente grande, com grade e pára-choques enormes — creio que estava pintado de azul e tinha pneus radiais —, que entrou na rua transversal, derrapou subitamente para a esquerda e subiu no meio-fio, como se fosse entrar pelo café da esquina. A grade da frente atingiu seu pai no lado e projetou-o pelo ar, jogando-o no meio da rua. O Dr. Ashcroft ficou obviamente bastante ferido, mas fazia um esforço para levantar quando o caminhão tornou a derrapar e avançou diretamente para cima dele. O caminhão passou por cima do seu corpo, depois acelerou e se afastou velozmente pela rua transversal. Quando qualquer das pessoas ali presentes compreendeu o que acabara de acontecer, o caminhão já desaparecera.

        "Fui um dos primeiros, entre várias testemunhas, a correr para o corpo de seu pai. Era evidente para todos que ele morrera ao ser atingido pela segunda vez. Estava morto antes da chegada da polícia e da ambulância.

        "Sei que se trata de uma história dolorosa para relatar-lhe, mas acho que devo fazê-lo por um motivo especial.

        "A morte do Dr. Ashcroft foi considerada um acidente e até noticiada assim por meu jornal. Mas, pelo que observei pessoalmente, pareceu algo mais que um mero acidente. Minha impressão é de que o Dr. Ashcroft foi atropelado e morto com uma deliberação implacável.

        "Ao subir no meio-fio, o caminhão avançava muito devagar para estar descontrolado. Quando atingiu seu pai na primeira vez, dava a impressão de avançar propositalmente para cima dele, acelerando. Quando desceu da calçada e foi para o meio da rua, o motorista deve ter visto que seu pai se encontrava caído ali e poderia evitar atropelá-lo de novo. Em vez disso, ele seguiu direto para o Dr. Ashcroft, esmagando-o, e depois se afastou velozmente, com controle absoluto do veículo.

        "Claro que não posso jurar que foi um ato deliberado de um motorista assassino. Nada posso provar. E talvez, no final das contas, tenha sido apenas um desses acidentes incríveis, que só acontecem raramente. Mas me sinto na obrigação de lhe relatar o que testemunhei e o que penso neste momento.

        "Não apresentei minhas suspeitas à polícia. Não havia sentido. Não tenho qualquer indício de que possa ter ocorrido um assassinato. Como sou jornalista, a polícia ficaria convencida de que eu estava inventando alguma história sensacionalista para meu jornal. Foi por isso que me mantive em silêncio.

        "Mas achei necessário lhe contar tudo isso, na possibilidade de que minhas suspeitas possam ter algum sentido para você. Não posso deixar de especular. O Dr. Ashcroft tinha inimigos?

        "Lamento profundamente estar, com esta carta, contribuindo para agravar seu sofrimento. Se algum dia vier a Berlim, procure-me no jornal. Eu ficaria agradecido pela oportunidade de conversarmos.

       

        Atenciosamente,

        Peter Nitz."

       

        "P.S. Escrevi o obituário de seu pai no Morgenpost. Mando um recorte em anexo."

       

        Abalada, Emily tateou automaticamente o envelope, encontrou o recorte sobre a morte do pai, correu os olhos pelo texto em alemão. Depois, baixou-os para a carta em seu colo, olhou pela janela do carro para a primeira visão dos prédios de Oxford.

        As suspeitas do homem haviam-na deixado completamente abatida.

        Assassinato.

        Era inconcebível. O pai era o mais manso e delicado dos homens. Um estudioso introvertido. Não tinha um único inimigo no mundo, ao que ela soubesse.

        Mas um jornalista profissional testemunhara sua morte acidental e achava que podia ter sido deliberada.

        Seria possível? Ou fora algum louco que lhe escrevera? Mas a carta era objetiva e sincera, parecia de um homem decente.

        Que motivo alguém poderia ter para matar seu pai? Ele não tinha bens. Não tinha inimigos... Uma lembrança súbita ocorreu a Emily nesse instante. O pai possuía algo precioso e que poderia levar outras pessoas a querer tirar-lhe. Harrison Ashcroft tinha um indício e a fervorosa convicção de que Adolf Hitler não morrera a 30 de abril de 1945.

        Talvez alguém não quisesse que isso fosse comprovado.

        O Daimler se aproximava de sua casa em Oxford quando Emily tomou a decisão. Até aquele momento, fora apenas a colaboradora subalterna do pai, dependendo dele, encaminhando-lhe tudo, baseando-se em suas decisões. Agora estava sozinha, todas as decisões presentes ou futuras lhe caberiam. Substituiria o pai. Continuaria a sua obra. E haveria de levá-la a uma conclusão bem-sucedida.

        Iria a Berlim Ocidental. Conversaria com o Dr. Max Thiel, o Professor Otto Blaubach e o repórter Peter Nitz.

        Descobriria a verdade. Se Nitz estivesse certo, ela poderia se tornar um alvo dos assassinos. Talvez alguém tentasse detê-la, como haviam feito com seu pai.

        Era possível que tentassem assassiná-la também. Ao se expor, no entanto, poderia impedi-lo e resolver dois mistérios.

        A morte de Harrison Ashcroft.

        A sobrevivência de Adolf Hitler.

       

        Na semana seguinte ao funeral, a morte de Sir Harrison Ashcroft e a determinação da filha de concluir a biografia épica de Adolf Hitler foram notícia no mundo inteiro. Não chegou a ser uma grande notícia, mas foi uma informação que mereceu atenção quase em toda parte.

        Por trás de sua mesa, no gabinete que ocupava no Hermitage, o enorme museu de arte de Leningrado, Nicholas Kirvov, o curador recentemente designado, deu uma mordida em seu Pirozhki quente, enquanto corria os olhos pelas páginas do Pravda. E deparou com a notícia:

        "Em Berlim Ocidental, um dos desordeiros decadentes locais provocou um acidente fatal. Um motorista de caminhão desconhecido, completamente embriagado, perdeu o controle do veículo e atropelou um pedestre. Sir H. Ashcroft, da Universidade de Oxford, o eminente estudioso britânico de Adolf Hitler, foi morto quase que instantaneamente, no momento em que atravessava a Kurfürstendamm. O culpado não foi descoberto. Ashcroft estava concluindo uma longa biografia de Hitler, em colaboração com a filha, Srta. E. Ashcroft, também historiadora. A Reuters informa que a Srta. Ashcroft está decidida a concluir a obra."

        Nicholas Kirvov mastigou o último pedaço de pastelão de carne e reprimiu um bocejo. Não tinha qualquer interesse em particular pela breve notícia que acabara de ler. Não tinha a menor idéia de quem era o tal de Ashcroft, exceto que ele vinha pesquisando e escrevendo sobre Hitler. A coincidência da menção de Hitler no Pravda, naquele dia específico, entre todos os dias, fora o que despertara a atenção de Kirvov, o suficiente para levá-lo a ler a notícia.

        Kirvov sempre se sentira fascinado pelo monstro fascista, Hitler, desde os primeiros dias de escola, logo depois da Segunda Guerra Mundial, até hoje. Como Kirvov era um estudioso de arte, sempre o intrigara que um homem tão louco e torpe quanto o líder nazista pudesse outrora ter sido um pintor, produzindo muitas aquarelas e óleos, além de amar a arquitetura e a música. Como era possível que o assassino que encharcara o solo da Rússia com o sangue de milhões de pessoas pudesse ter sido um artista? Era uma contradição inacreditável. À procura de algum sentido na esquizofrenia de Hitler, Kirvov começara a pesquisar amostras de sua arte.

        Assim como outros homens colecionam selos, moedas ou livros raros, Kirvov adquirira o hobby de colecionar desenhos e quadros de Hitler. Localizara oito obras de arte de Hitler mofando nos depósitos do Exército Vermelho, encontrara mais três em Berlim Oriental e quatro em Viena, providenciara fotografias de todas para estudo e finalmente, quando fora nomeado para diretor do Hermitage, há seis meses, obtivera por empréstimo as telas esquecidas. Não sabia explicar com que finalidade as guardara nos armários de sua sala particular, que ficava ao lado do gabinete público. Possivelmente para algum artigo ou panfleto futuro. Talvez mesmo para alguma exposição. Seu objetivo ainda não estava definido. Sabia apenas que cobiçara as quinze obras e, com uma ganância de colecionador, queria ainda mais.

        Por isso é que aquele dia era emocionante. Pois hoje, por puro acaso, Nicholas Kirvov teria a oportunidade de contemplar um 16? quadro de Hitler, uma obra que nunca vira antes.

        A carta lhe fora enviada de Copenhague, uma semana antes. Escrita num inglês perfeito, estava assinada por um tal de Giorgio Ricci, que se dizia ítalo-americano, com um apartamento em San Francisco. O Sr. Ricci se apresentara como comissário de bordo de um luxuoso navio de cruzeiro, o Royal Viking Sky, uma embarcação norueguesa baseada em San Francisco, que realizava uma excursão de verão, com escalas em Copenhague, Leningrado, Helsínqui, Estocolmo, Oslo e Londres. O Sr. Ricci declarara possuir uma modesta coleção de arte; em recente visita a Berlim Ocidental, ele  adquirira de uma galeria respeitável um quadro a óleo não-assinado que era atribuído a Adolf Hitler. O Sr. Ricci não sabia se o quadro era autêntico. Pouco depois da aquisição, deparara com um artigo de revista sobre a arte nazista, inclusive com referências aos primeiros quadros de Hitler. Também mencionava várias pessoas que eram consideradas especialistas nos esforços artísticos de Hitler, entre as quais o Sr. Nicholas Kirvov, antigo diretor-assistente do Museu de Belas-Artes Pushkin, de Moscou, recentemente nomeado diretor do Hermitage, em Leningrado.

        Como o navio do Sr. Ricci passaria dois dias atracado em Leningrado, ele achava que era uma oportunidade maravilhosa de mostrar seu óleo duvidoso de Hitler a Nicholas Kirvov, no Hermitage. O Sr. Ricci comunicara a data da chegada do navio e esperava que o Sr. Kirvov se encontrasse na cidade e dispusesse de tempo para recebê-lo.

        Desapontado porque Ricci não descrevera o óleo atribuído a Hitler, mas excitado por saber que ainda existia outra tela desconhecida, Kirvov telegrafara para o comissário, aos cuidados do escritório da Royal Viking em Copenhague, informando que teria a maior satisfação em recebê-lo. Depois, Kirvov avisara à alfândega de Leningrado que deixasse Ricci passar com seu quadro.

        O encontro estava marcado para aquele dia. Chegando ao museu pela manhã, Kirvov visualizara a chegada do Royal Viking Sky, branco e elegante, que já vira em outra ocasião entrar no porto de Leningrado. Se nada saíra errado, Giorgio Ricci deveria estar em seu gabinete, com a tela de Hitler, dentro — ele olhou para o relógio na parede — de quinze minutos.

        Jogando na cesta o papel do Pirozhki e limpando as migalhas da mesa, Kirvov tentou pensar se havia algum problema urgente do museu que precisasse resolver antes da chegada do visitante. Era extremamente meticuloso em seu trabalho, pois a nomeação para diretor fora uma surpresa e uma grande honra. Ele estava indo muito bem em seu posto num museu secundário de Moscou, levando uma vida confortável com a mulher e o filho pequeno, quando acontecera o golpe de mágica. Diretor do Hermitage aos quarenta anos! O ministro da Cultura transformara Kirvov, da noite para o dia, num dos destaques intelectuais da União Soviética.

        Kirvov amara o Hermitage desde o dia de sua chegada. Amara os cinco prédios que constituíam o museu — o Palácio de Inverno original, o Pequeno Hermitage, o Grande Hermitage, o Teatro Her-mitage e o Novo Hermitage — os quatro primeiros na margem esquerda do Rio Neva. Gostaria que houvesse mais recursos para arrumar o prédio principal, o Palácio de Inverno, em que estava seu gabinete, dinheiro para uma pintura nova, consertar o reboco em vários pontos, providenciar uma iluminação melhor. Mas todo o dinheiro disponível estava destinado a novas aquisições. Não que já não houvesse ali o melhor de tudo. Desde 1764, quando a Rainha Catarina a Grande autorizara a primeira grande aquisição — 225. telas do mercador alemão Johann Gotzkowsky, inclusive um Franz Hals —, a conquista de novas obras fora incessante. Em 1772 começara a entrar a arte italiana, Ticiano, Rafael, Tintoretto, seguindo-se os mestres franceses Watteau e Chardin. Em 1865 viera um Leonardo da Vinci. Depois de 1931, os pós-impressionistas, povoando os salões superiores do Hermitage com trinta e sete Matisses, trinta e seis Picassos, quinze Gauguins, onze Cézannes, quatro Van Goghs e incontáveis outros tesouros.

        O primeiro organizador desse mundo de arte fora conhecido como um Guardião, em 1797. Em 1863, fora acrescentado um curador, e logo depois dois peritos assistentes. Gradativamente, foram se produzindo catálogos para popularizar a coleção e mais tarde se adquirira equipamentos sofisticados, como um aparelho de raiosX, para determinar falsificações ou autenticar obras-primas. Fora assim que se provara que a Adoração dos Magos, de Rembrandt, que se julgava ser a cópia do original na Suécia, era na verdade o próprio original.

        Agora, Nicholas Kirvov era o novo curador e estava no controle de tudo. Consumira os seis primeiros meses de sua administração para localizar melhor as obras-primas e iniciar o preparo de um novo catálogo, que projetaria o melhor das mais de oito mil obras de arte que havia no Hermitage. Um catálogo acompanharia a sua primeira exposição. Ele gostaria de encontrar algum meio, alguma maneira insólita, de popularizar ainda mais a exposição. Cerca de três milhões de pessoas visitavam o Hermitage a cada ano, mas Kirvov queria mais, muito mais.

        Seus olhos fixaram-se no relógio na parede e compreendeu que o devaneio consumira a maior parte do tempo de espera e que o visitante deveria chegar a qualquer minuto. E nesse instante ouviu uma batida na porta, a secretária abriu-a e informou:

        —  O Sr. Giorgio Ricci está aqui.

        —  Mande-o entrar — disse Kirvov, levantando-se.

        O visitante entrou na sala meio contrafeito, com um embrulho debaixo do braço. Era franzino, quase insignificante, provavelmente com trinta e poucos anos, olhos italianos, grandes e redondos, o queixo saliente. Usava uma suéter azul clara  e jeans desbotados. Algum ouro faiscou em seus dentes quando sorriu.

        —  Sr. Kirvov, sou Giorgio Ricci, do Royal Viking Sky. Kirvov adiantou-se prontamente, a corpulência de l,78m

        fazendo-o parecer muito maior do que o visitante, e apertou efusivamente a mão de Ricci.

        —  Estou muito satisfeito que tenha podido vir me visitar — declarou ele, conduzindo o visitante a uma cadeira ao lado da mesa. — Sente-se, por favor. Fique à vontade. Deseja beber alguma coisa... Pepsi, vodca, café, ou qualquer outra coisa?

        —  Não, obrigado. Não quero tomar muito o seu tempo. E também não disponho de muito tempo.

        —  Muito bem — disse Kirvov, sentando-se também. — Vamos direto ao que interessa. Deixe-me ver o seu quadro atribuído a Hitler.

        Ricci ergueu o embrulho para o colo.

        —  Garantiram-me na galeria de Berlim Ocidental que foi pintado por Hitler. Mas como não estava assinado, venderam-me por um bom preço. Talvez tenham me enganado. Ainda não pude chegar a uma conclusão. Espero que possa me ajudar.

        —  Talvez. — A curiosidade de Kirvov estava mais aguçada do que nunca. — É melhor me mostrar logo.

        Ricci tirara o papel pardo e levantou o quadro.

        —  Tirei da moldura — explicou ele. — Mas a tela está reforçada por essas ripas de madeira.

        Era aparentemente leve, porque ele só precisou de uma mão para estender por cima da mesa para Kirvov.

        Kirvov ajeitou a tela à sua frente, sob a claridade intensa das lâmpadas fluorescentes. Calculou que tinha quarenta centímetros de largura por trinta de altura. Era um óleo escuro sobre tela, um quadro um tanto sombrio do que parecia ser a fachada de algum prédio do governo, maltratada pelo tempo. O artista postara-se no outro lado de uma rua larga, de tal forma que se podia ver as colunas à entrada do prédio de pedra de seis andares. A entrada e a parede ornamentada à esquerda eram escuras, perdidas nas sombras. Não havia assinatura.

        —  Eu diria que se trata de um prédio governamental — comentou Kirvov. — Pode ter sido feito por Hitler. Ele gostava de pintar prédios de Linz, Viena e Munique. Mas não reconheço este prédio em qualquer dessas cidades ou no resto da obra de Hitler.

        Fez uma pausa, levantou os olhos e perguntou:

        —  Tem alguma idéia do local deste prédio e o que é?

        —  Não. E a galeria também não sabia. Mas garantiram-me, pela procedência, que era de Hitler.

        —  E qual era a procedência?

        —  Disseram que não podiam revelar. Foi parte do acordo de aquisição. Mas tinham certeza absoluta que era de Hitler. — Ricci hesitou por um instante. — Acho que alguém não queria admitir que possuía um Hitler original dos velhos tempos. É autêntico?

        —  Hum... possivelmente — murmurou Kirvov, estudando o quadro com toda atenção. — Em geral, ele não pintou telas tão grandes. Calcula-se que tenha feito 300 quadros. Só uns poucos sobreviveram. Ele também desenhava na juventude, em Linz, onde cursou a Realschule, o que os americanos chamariam de escola secundária. Foi para Viena em 1907, com a intenção de ingressar na Academia de Belas-Artes. Havia um teste dividido em duas partes. Na primeira, Hitler teve de desenhar, entre outros temas, Caim matando Abel. Na segunda, teve de pintar ou desenhar O Bom Samaritano e o Dilúvio de Noé. O resultado foi sumário: "Teste de desenho insatisfatório." Hitler voltou um ano depois para outra tentativa de entrar na Academia. Seus novos trabalhos foram considerados deficientes e não lhe permitiram fazer outro teste.

        —  E aí ele se tornou um político.

        —  Ainda não. Ficou amargurado com a rejeição da Academia de Belas-Artes e atribuiu seu fracasso aos burocratas judeus que alegou dominarem a academia. Mas não entrou na política imediatamente. Continuou a pintar para se sustentar, com muita dificuldade. Fazia aquarelas do tamanho de cartões-postais, copiadas de cartões-postais, tinha um amigo que as vendia, em troca de metade da receita. O amigo vendia a negociantes de artes que precisavam de quadros inócuos para preencher molduras vazias em exposições e a negociantes de móveis que as ajustavam em poltronas e sofás, envernizando-as.

        —  Ele não pintava quadros maiores?

        —  De vez em quando. Alguns com o dobro do tamanho dos cartões-postais. Uns poucos óleos do tamanho deste que me trouxe. E até alguns cartazes. Assinava todos como "A. Hitler". Geralmente ganhava o equivalente a dez a quinze dólares em cada quadro vendido.

        —  E ele preferia reproduzir prédios a fazer retratos?

        —  Isso mesmo. Não tinha sensibilidade para pessoas. Alguém disse certa vez que ele desenhava figuras humanas como se fossem sacos estufados. Mas tinha sensibilidade para arquitetura. Registrou-se como "pintor arquitetônico" quando se mudou para Munique.

        Kirvov fez uma pausa para examinar outra vez a tela em sua mesa.

        —  Levando-se em consideração o gosto de Hitler, é bem possível que esta obra seja sua. — Kirvov levantou-se, com a tela na mão. — Espere um instante, por favor.

        Foi até a porta da sala da secretária e abriu-a.

        —  Sonya, peça ao Camarada Zorin para dar uma olhada nesta tela. — Entregou o quadro à secretária. — Diga a ele que este óleo sem assinatura é atribuído a Adolf Hitler. Eu gostaria de ouvir a sua opinião.

        Voltando a sentar-se atrás da mesa, Kirvov explicou:

        —  O Camarada Zorin é um dos expertos que partilham meu interesse pelas loucuras artísticas da juventude de Hitler. Quase sempre prédios. Em 1911 ele desenhou a Igreja Minorita em Viena. Antes, desenhou ou pintou o Teatro Burg de Viena, a Catedral de Santo Estêvão, o Palácio Schõnbrunn, o Feldherrnhalle, uma aquarela a que deu o nome de Rua em Viena. Depois que se mudou para Munique, ele pintou o Alter Hof... creio que em 1914... e o Velho Tribunal, mostrando uma casa enorme, com um pátio na frente. Mais tarde, depois que subiu ao poder, Hitler descobriu e destruiu muitas de suas obras antigas. Apesar disso, Hitler nem sempre se mostrou insatisfeito com seu trabalho. Deu a Albert Speer, seu arquiteto, uma tela de uma igreja gótica, que pintara em 1909. E deu algumas outras telas de que gostava a Gõring e a Mussolini.

        Ricci inclinou-se para a frente.

        —  Acha então que a tela que lhe mostrei é um Hitler autêntico?

        —  Não há dúvida de que apresenta algumas das características da pintura de Hitler. Primeiro, um prédio governamental como tema. Depois, o estilo. Hitler gabava-se de sua mestria no que chamava "exatidão fotográfica". É isso o que seu quadro mostra... uma qualidade fotográfica bastante real, mas comum, sem qualquer imaginação. Possui o que Hitler muito admirava num pintor que ele próprio colecionava, um certo Adolf Ziegler, um pintor de segunda categoria de Munique... uma espécie de imponência empolada. É verdade, o quadro que me mostrou pode ser de fato um autêntico Hitler.

        —  Espero que seja mesmo — murmurou Ricci, nervoso. Ele olhava a todo instante para a porta, obviamente consciente

        de que o veredicto seria apresentado em breve. Abruptamente, como se quisesse preencher o tempo, perguntou:

        —  Conhece alguma coisa sobre o gosto de Hitler, não como um pintor, mas como um colecionador?

        Kirvov torceu o enorme nariz.

        —  Hitler não tinha um verdadeiro gosto artístico. Quando se tornou chanceler da Alemanha, tentou eliminar todos os pintores e quadros modernos e de vanguarda. Classificou-os de degenerados. Desprezava Picasso e Kandinsky. Gostava da arte clássica, qualquer coisa derivada da arte greco-nórdica. Dizia que o erotismo moderno na pintura era "arte de porco", embora admirasse os nus clássicos, saudáveis e inocentes. Nosso Hitler artístico era obtuso e medíocre. Apesar disso, é indefinível e misterioso como pessoa e diverte-me colecionar a sua arte.

        Kirvov discorreu durante dez minutos sobre a arte alemã no tempo de Hitler, até que se ouviu uma batida na porta. Kirvov levantou-se de um pulo, abriu a porta, pegou o óleo de volta da secretária, junto com um bilhete.

        Sentando, Kirvov largou o quadro na mesa e leu o bilhete. Acenou com a cabeça para si mesmo e olhou outra vez para o visitante, dizendo:

        —  O que eu já esperava. Meu perito acha que pode ser uma obra de Hitler. Claro que ele não pode ter certeza absoluta, com um exame tão sumário. Precisaria de mais algum tempo para estudar. Seja como for, pode estar certo de que meu colega e eu achamos que provavelmente é autêntica.

        Kirvov levantou-se para devolver a tela ao visitante. Ricci também se levantou.

        —  Gostaria de agradecer-lhe e pagar por todo o incômodo... Kirvov sorriu.

        —  Não precisa pagar nada. Foi por conta da casa. Na verdade, agradeço a oportunidade de conhecer uma tela desconhecida de Hitler. — Começou a estender a tela para Ricci. — Ficará satisfeito em poder acrescentar esta tela à sua coleção de Hitler.

        Ricci não pegou o quadro.

        —  Não tenho nenhuma coleção de Hitler. Para dizer a verdade, não tenho o menor interesse pela arte de Hitler.

        —  Mas então por que... — Kirvov olhava aturdido para o visitante. — Quer vender? É isso?

        —  Não, não é bem isso. Comprei a tela para trocar por outra coisa que prefiro ter, algo que venho colecionando há alguns anos.

        Kirvov levantou as sobrancelhas, numa expressão inquisitiva.

        —  E o que coleciona?

        —  ícones. Velhos ícones russos. Eu os adoro. Já estive na Rússia em outras viagens, fiz alguns contatos, consegui obter três até agora. Gostaria de adquirir mais. O problema é que são um tanto dispendiosos. — Ricci hesitou por um instante. — Eu... eu deixaria que ficasse com esse quadro de Hitler em troca de um ícone genuíno, se por acaso tiver algum de sobra.

        Kirvov pensou na proposta. Mas não por muito tempo. Queria o quadro de Hitler em sua mesa. Podia ser uma raridade e certamente enriqueceria sua coleção. Não tinha muita dúvida sobre a autenticidade. Quanto aos ícones, tinha dezenas de sobra guardados, vários que poderiam agradar a Ricci e que eram medíocres demais para serem expostos no Hermitage. Como curador, tinha autonomia absoluta para trocar obras menores. Ele sorriu:

        —  Está certo. Fico com o seu Hitler. E você recebe meu Jesus Cristo.

        Cinco minutos depois Ricci tinha o seu ícone — pequeno, reluzente, uma moldura prateada com uma miniatura da cabeça de Jesus pintada, a túnica com um acabamento de metal dourado. Ricci estava emocionado e exultante.

        Acompanhando o comissário de bordo até a porta, Kirvov deteve-o ali por um momento.

        —  Só mais uma coisa. Qual é o nome da galeria de Berlim Ocidental em que comprou o quadro?

        O rosto de Ricci manteve-se impassível.

        ~- Não estou lembrando... Quase no centro de Berlim. Hum...

        — Tentou recordar, sem qualquer sucesso aparente, deu de ombros.

        — Não importa. Está no recibo que guardei em casa. Mandarei assim que voltar.

        —  Não se esqueça, por favor.

        Depois que Giorgio Ricci saiu, de volta a seu navio, Kirvov ficou sozinho na sala. Pegou o óleo de Hitler, estudando-o, com expressão radiante.

        Pois lhe ocorrera uma idéia enquanto acompanhava Ricci até a porta, a maneira perfeita e excepcional de divulgar e popularizar a sua primeira grande exposição no Hermitage. Tudo estava agora bem definido em sua mente. Reservaria um salão no último andar e intitularia de "A Arte de Adolf Hitler". Penduraria nas quatro paredes as quinze obras de Hitler que já tinha em seu poder e acrescentaria, talvez mesmo com destaque, aquela descoberta recente. Poderia também incluir ampliações de fotografias de Stalingrado arrasada pela guerra e da queda de Berlim, como contrapontos irônicos à obra anterior do ditador alemão.

        Isso mesmo, aquele último óleo, juntamente com as outras obras de Hitler que obtivera por empréstimo, seria o trampolim para o seu primeiro grande sucesso como curador do Hermitage.

        Mas depois, estudando o tenebroso óleo do prédio escuro, Kirvov teve um momento de apreensão. Milhões de pessoas veriam aquela tela e a aceitariam como sendo de Hitler. Mas poderia haver alguém que questionasse a sua autenticidade. Kirvov sabia que precisava ter certeza absoluta de que aquele óleo era de Hitler e, se possível, descobrir que prédio era aquele e a sua localização.

        Como autenticá-lo o mais depressa possível? Kirvov lembrou-se então de um artigo recente que lera, do Professor Otto Blaubach, o ministro do governo de Berlim Oriental, um eminente historiador do Terceiro Reich e da vida de Der Führer. Se alguém podia lhe falar sobre aquele quadro, era certamente Blaubach. Kirvov consultou sua agenda, verificando as anotações que fizera. Na semana seguinte, iria com a mulher e o filho a Sochi, no Mar Negro, para suas férias anuais. De certa forma, isso facilitaria tudo. Mandaria a mulher e o filho na frente, enquanto passava uma semana em Berlim Oriental, conversando com Blaubach. E depois iria ao encontro da família no balneário.

        Perfeito.

        Nicholas Kirvov nunca se sentira tão feliz. Providenciaria tudo para sua exposição espetacular no Hermitage.

        O futuro seria maravilhoso. Mas, primeiro, tinha de ir a Berlim Oriental.

        Em West Los Angeles, Rex Foster estacionou seu cupê esporte Chevrolet, vermelho, compacto, na vaga que lhe era reservada, nos fundos de seu pequeno prédio de escritórios, no San Vicente Boulevard. Depois das contorções habituais para tirar o corpo esguio de mais de 1,80m do apertado assento, avançou pela estreita calçada que passava pelo lado do prédio até a porta da frente.

        Havia ali uma placa cinza, as letras em dourado anunciando: FOSTER ASSOCIADOS — ARQUITETOS.

        A porta, como sempre, estava destrancada, indicando que sua equipe de três pessoas já se encontrava ali e provavelmente trabalhando. Sempre chegavam às nove e meia da manhã, e Foster se esforçava para chegar pontualmente às dez horas. A sala de recepção estava momentaneamente vazia, o que informou a Foster que a recepcionista-guarda-livros-secretária, Irene Myers, se achava quase que certamente em sua sala, preparando o café na pequena cozinha.

        Havia três salas no corredor sem qualquer adorno, a primeira ocupada por seu desenhista, Frank Nishimura, a segunda por seu homem de produção, Don Graham. A última e maior era o seu próprio gabinete, uma sala arejada, com uma prancheta de madeira numa extremidade e na outra a enorme mesa de pinho, encerada, cercada por diversas cadeiras.

        Ao entrar na sala Foster deparou com Irene Myers à sua mesa, largando ali a caneca de café preto quente, estendendo a edição matutina do Los Angeles Times.

        — Bom dia, Sr. Foster — cumprimentou Irene jovialmente.

        Era uma morena baixa, de corpo atraente, invariavelmente exuberante.

        —  Oi, Irene — respondeu ele, falando muito pouco pela manhã, antes de tomar o primeiro café.

        Ela hesitou por um instante.

        —  Eu esperava dar uma arrumação em sua mesa antes da chegada daquela mulher.

        —  Que mulher?

        —  A repórter da revista Los Angeles, Joan Sawyer. Às dez e quinze. Ela está fazendo uma reportagem sobre os principais arquitetos da Califórnia Meridional. Estará aqui dentro de dez a quinze minutos.

        —  Eu tinha esquecido — resmungou Foster. — Mas pode deixar a mesa. Já me parece bastante arrumada. Só quero que me deixe tomar o café antes de ela chegar.

        Esperou que Irene se retirasse, depois foi sentar atrás da mesa, com o café fumegante e o jornal.

        Tomando um gole, satisfeito, refletiu por um momento sobre a loura com quem jantara no Matteo's, em Westwood, na noite anterior. Uma jovem atriz, talvez com 24 anos, Cindy qualquer coisa, que conhecera num coquetel. Impressionado por seus seios e nádegas, ele a convidara para jantar. Um erro. Era uma mulher muito estúpida e desinformada, mas melhor na cama depois, onde se mostrara inovadora, acrobática e escandalosa. Na verdade, bastante desfrutável para um bis à meia-noite. Mas se sentira aliviado quando finalmente a levara a seu apartamento, às duas horas da madrugada. Prometera a si mesmo que não haveria repetição. Tinha coisas mais importantes em que pensar.

        Tomando o café, relaxando, acendeu o primeiro cachimbo do dia e começou a folhear o Los Angeles Times, como era seu costume, antes de iniciar o trabalho. Um mundo terrível, pensou, correndo os olhos pelas manchetes, absolutamente pavoroso por toda parte. Encontrou na página cinco uma pequena notícia que lhe atraiu a atenção e começou a ler a matéria da Associated Press:

        "Sir Harrison Ashcroft, o historiador de fama internacional e catedrático de História Moderna da Universidade de Oxford, na Inglaterra, foi sepultado no jazigo perpétuo da família, nos arredores de Oxford, na manhã de ontem. Ashcroft sofreu um acidente fatal em Berlim Ocidental, quando fazia as últimas pesquisas para sua biografia definitiva de Adolf Hitler. Um motorista supostamente embriagado que fugiu..."

        O botão no aparelho telefônico de Foster brilhou amarelo e a voz de Irene anunciou:

        —  Está disponível agora, Sr. Foster? A Srta. Sawyer, da revista Los Angeles, está aqui.

        Ele pegou o telefone.

        —  Sabia que o Dr. Ashcroft foi morto em Berlim na semana passada, Irene? Acabo de ler a notícia...

        —  Morto? Não, eu não sabia...

        —  É incrível... — Foster fez uma pausa. — Isso muda tudo. Eu tinha um encontro marcado com ele em Oxford, dentro de uma semana, a contar de sexta-feira.

        —  É verdade. Já fiz a reserva do avião.

        —  O que vou fazer agora? — murmurou Foster, desolado. — Muito bem, falaremos sobre isso depois que eu concluir a entrevista. Dê-me só mais um minuto para ordenar os pensamentos e depois pode mandar a Srta. Sawyer entrar.

        Tentou definir o seu problema. Trabalhava há três anos, nas horas de folga, preparando um enorme livro fotográfico, um típico livro de mesinha de centro, intitulado Arquitetura do Terceiro Reich dos Mil Anos. Era uma idéia que o fascinava, reproduzindo fotografias de todos os prédios construídos na Europa durante o reinado de Adolf Hitler (muitos haviam sido reduzidos a escombros, mas ainda existiam fotografias antigas), além de modelos ou projetos de prédios que Hitler planejara e esperava construir depois de ganhar a guerra. Foster voara para a Alemanha e, por intermédio de um antigo companheiro do exército americano, estacionado em Berlim, obtivera a maior parte do que precisava dos arquivos do arquiteto de Hitler, Albert Speer, no Bundesarchiv, em Koblenz, assim como da mulher de Speer, em Heidelberg. E voltara a Los Angeles para preparar o livro. Tinha um bom contrato com uma editora de Nova York e um prazo inadiável para entregar o original. Foster sentira-se exultante com o livro, não apenas porque o assunto o atraía, mas também porque projetaria sua imagem na comunidade arquitetônica internacional.

        Em sua casa, em Beverly Hills, revisando as anotações, deparara-se com a informação de que Speer destacara um dos seus colegas de confiança para construir sete prédios especiais para Hi-tler. Ao repassar o livro, Foster constatara que não possuía fotografias e muito menos as plantas desses sete prédios. Sem isso, sua obra estaria incompleta... e o editor queria vender o livro como o primeiro e o único completo sobre a arquitetura na Alemanha nazista sob Hitler. E, o que era pior, faltavam apenas três meses para a entrega do original.

        Sua única possibilidade de obter as sete peças desaparecidas era descobrir quem fora o associado de Speer. Por mais que pesquisasse, no entanto, Foster não fora capaz de encontrar o nome do arquiteto.

        E de repente, por puro acaso, descobrira que o único historiador que sabia de tudo sobre Hitler era Sir Harrison Ashcroft, de Oxford. Foster lhe escrevera imediatamente, indagando se poderia encontrá-lo em Oxford e solicitar sua ajuda num problema relativo a Hitler. Esperava examinar pessoalmente as fichas arquitetônicas de Ashcroft, a fim de não incomodar o historiador. Este respondera prontamente que teria o maior prazer em receber Foster, marcando dia e hora para o encontro. Aliviado, Foster fizera reserva para um vôo à Inglaterra na semana seguinte. Depois que descobrisse o nome do arquiteto, ele planejava voar até a Alemanha e se encontrar com o homem, se ainda estivesse vivo, ou com sua família, convencido de que o alemão ou seus herdeiros lhe forneceriam as sete plantas desaparecidas.

        Era um problema praticamente resolvido até aquela manhã. Agora, tudo mudara. Ashcroft estava morto. Mais uma vez, Foster se encontrava no limbo.

        A porta da sala se abriu nesse momento e Irene Myers anunciou:

        —  Sr. Foster, Joan Sawyer, da revista Los Angeles. Foster murmurou um agradecimento e fez um esforço para se

        concentrar na repórter. Era uma jovem alta, de seios achatados, olhos castanhos apertados, por trás de óculos de lentes grossas, nariz comprido, lábios finos, usando uma calça comprida fulva e carregando um gravador.

        —  Como vai? — disse ela, avançando para a mesa e largando o gravador em cima. — Espero que não se importe se eu gravar.

        É a melhor maneira de registrar tudo direito. Sou exigente em matéria de precisão.

        —  Eu também — declarou Foster jovialmente, acenando para que ela sentasse em uma cadeira com estofamento de couro, à sua frente. — Deixarei que grave, se me permitir fumar.

        —  O funeral é seu — disse ela, séria.

        A mulher mexeu no gravador, ligou-o, testou, depois se refestelou na cadeira e tirou da bolsa um questionário datilografado.

        —  Eu disse à sua secretária, quando marquei a entrevista, que estava fazendo uma reportagem extensa sobre os mais importantes arquitetos da Califórnia Meridional. Fiz uma pequena pesquisa sobre você e parece que está incluído entre eles.

        —  É muita generosidade sua — comentou Foster em tom jovial.

        —  Sei que é um homem ocupado. Por que então não começamos logo?

        —  Por mim não há problema.

        —  Por falar nisso, tiramos fotografias de algumas de suas obras recentes. O Cornell Theater, no Sunset Boulevard. O Condomínio Internacional, em Westwood. A Casa de Netuno, aquele restaurante de frutos do mar em Malibu. Tudo muito original e impressionante.

        —  Obrigado, Srta. Sawyer.

        —  Quando resolveu se tornar arquiteto? Não o era quando entrou no exército.

        —  Interessei-me depois que saí. Foi quando voltei a estudar.

        —  Por que não começamos antes disso, quando estava no exército? Passou dois anos no Vietnã?

        Foster não fez qualquer esforço para esconder o cenho franzido.

        —  Sim.

        —  Quantos anos tinha quando se alistou?

        —  Vinte. Não era muito patriota. Nem mesmo sabia direito o que estava acontecendo no Vietnã. Sabia apenas que não tinha propósito ou rumo, era um garoto estúpido tentando imaginar o que fazer com a própria vida. O Vietnã parecia uma aventura exótica, alguma coisa para preencher o tempo. E por isso fui para lá.

        —  E o que aconteceu depois?

        —  Depois... — Foster franziu ainda mais o rosto. — Eu era piloto de helicóptero, adido a um grupo de engenharia, na 24? Corporação, sob o comando do General James W. Sutherland. Houve alguns combates. Juntamente com a artilharia e um batalhão da polícia militar, testemunhamos lutas na Província de Quang Twi, perto da fronteira laociana. Houve algumas baixas. O fogo antiaéreo não me permitia decolar e por isso eu passava mais tempo com um rifle M16 nas mãos do que voando. Acabei ganhando alguns estilhaços na perna e tive baixa depois da cirurgia. Isso aconteceu no final de 1971.

        —  Como está sua perna agora?

        —  Não há qualquer problema. Corro oito quilômetros, três vezes por semana. Estou em boa forma para 36 anos... isto é, quase 37. Depois da guerra, vagueei por algum tempo e depois voltei a estudar, dentro do programa de ajuda aos veteranos. Entrei para a Universidade da Califórnia, em Berkeley. Foi lá que me interessei pela arquitetura.

        —  E como chegou à arquitetura?

        —  Meu pai era engenheiro... — Foster hesitou, refletiu a respeito. — Não, não foi isso. Tive uma sensação estranha. Passei dois anos na guerra me dedicando a destruir coisas. E senti então o impulso de construí-las.

        Percebeu que a repórter o observava atentamente. Ela então perguntou:

        —  Está falando sério?

        —  Claro que estou. A civilização é assim mesmo. Depois de cada orgia de destruição, os seres humanos se sentem na obrigação de reconstruir, progredir, seguir em frente, de maneira ordenada. De certa forma, a guerra me encaminhou para a arquitetura. Havia uma escola de arquitetura em Berkeley... nós a chamávamos de A Arca. Eu gostava de Berkeley e estudava com afinco. E ao final de quatro anos recebi o meu diploma de arquiteto.

        —  E então abriu o seu escritório?

        —  Não logo. Todo bacharel deve cumprir um estágio de dois anos. Fiz o meu em uma firma grande, em Laguna Beach. Depois disso, o arquiteto ainda tem de prestar um exame de habilitação na comissão estadual. Uma semana de testes, envolvendo projeto, desenho, meio dia de prova oral. Tudo muito rigoroso, e na Califórnia é excepcional, ainda mais exigente. Temos aqui fatos extras, como o problema sísmico, que exige construções à prova de terremotos. De qualquer modo, passei nos testes e me tornei um arquiteto autorizado.

        —  Quais foram os seus primeiros projetos?

        —  Muito fáceis, para começar. Um centro comunitário e uma agência bancária, por exemplo. Os projetos envolviam muitos aspectos de engenharia, mas também se aprende as necessidades práticas, importantes, embora sem qualquer encanto, como iluminação e encanamento de banheiros. Acabei encontrando alguém que me encomendou uma casa de praia, relativamente modesta. Por fim eu me estabelecia no ofício. E por conta própria.

        Joan Sawyer olhou ao redor.

        —  E esta é a sua firma. Há quanto tempo está, como disse, estabelecido por conta própria?

        —  Deixe-me ver... Há cerca de seis anos.

        Foster observou Joan Sawyer tirar da bolsa uma folha de papel que parecia cheia de anotações. Ela as estudou por um momento.

        —  Nossos arquivos dizem que se casou quatro anos depois de abrir sua firma.

        Foster hesitou.

        —  É verdade. Estou vendo que se preparou muito bem para a entrevista.

        —  Valerie Granich. Filha de Charles Granich. Um incorporador. Bilionário. Bel-Air. É isso mesmo?

        —  É sim — respondeu ele, friamente.

        —  Divorciou-se no ano passado.

        —  Consta dos registros públicos. Joan Sawyer levantou os olhos.

        —  Casou de novo?

        —  Não, obrigado.

        —  Importa-se de me falar um pouco sobre o seu casamento? E o divórcio. Detalhes humanos. Informações pessoais sempre ajudam numa reportagem. Pode me contar qualquer coisa?

        Foster apertou os lábios.

        Havia muita coisa que poderia contar, mas não era para o consumo público. Desde o divórcio jurara que nunca falaria sobre o seu curto casamento, não mencionaria o nome de Valerie a qualquer pessoa, nem mesmo pensaria nela.

        Apesar disso, pensou nela agora. Achara Valerie deslumbrante quando a conhecera. Uma morena linda e esbelta, refinada, inteligente, sofisticada, sentira-se lisonjeado porque ela o escolhera entre muitos, um arquiteto praticamente insignificante.

        Mas deveria ter percebido que estava errado desde o início. Uniram-se pelos motivos errados. Valerie nada tinha de sincero para oferecer, na cama ou fora dela. Não tinha o menor afeto. Só queria saber de diversão, tudo superficial, sem qualquer intimidade. Seus interesses mal se estendiam além de festas, promovendo-as e comparecendo às de outros. E os acontecimentos pseudoculturais, uma estréia teatral, um concerto, uma exposição de velhos mestres. A vida era uma noite de première. Era totalmente a filhinha de papai, mimada, inconseqüente, egocêntrica. Um prato cheio para as colunas sociais.

        Quando o sogro propôs instalá-lo num escritório maior, arrumar novos clientes e convertê-lo num grande sucesso (e dependente), Foster recusou. Queria continuar por si mesmo e queria que Valerie vivesse de seus rendimentos. Valerie se mostrara irritada e impaciente com tamanho absurdo. Não queria viver como uma esposa preocupada com o orçamento doméstico no Vale San Fernando.

        E havia outra coisa. Ser casada com um arquiteto lutando para vencer na profissão parecia, para uma mulher como ela, uma situação secundária e aviltante. Se ele tivesse se formado em Bauhaus, fosse um Gropius ou Le Corbusier, um autêntico ornamento no mundo de Valerie, seria diferente. Mas um principiante que insistia em subir por seus próprios esforços era quase um embaraço. Não demorara muito para que ela insistisse em que Foster abandonasse a arquitetura e se dedicasse à arte, à pintura. Um pintor sem renome era pelo menos mais respeitável; afinal, muitos só foram reconhecidos depois de mortos.

        Por fim, enquanto ele continuava a trabalhar arduamente para se firmar na profissão, Valerie passara a circular com um grupo de artistas de Pasadena. Ao saber que ela estava muito interessada num jovem pintor louro, abstrato, arrogante e pretensioso, dez anos mais moço, que se tornara sua patrocinadora e depois parceira de cama, Foster decidira que já era demais. Num acesso de raiva, expulsara-a de casa. O pai de Valerie cuidara do divórcio.

        Depois disso, Foster nada tivera para se devotar além do seu trabalho, até que surgira o projeto do livro de Hitler. Depois de Valerie e seu pai, Hitler parecia até bom. Durante o último ano, Foster se concentrara no livro sobre a arquitetura nazista e continuara a desconfiar de seu julgamento das mulheres. Para ele, cada mulher que encontrava não passava da possibilidade de mais uma aventura sem conseqüências. Não gostava de sua atitude, mas não havia outro jeito.

        Para sua surpresa, Foster ouviu a voz de Joan Sawyer mais uma vez:

        —  Ainda não me respondeu, Sr. Foster. Gostaria de falar alguma coisa a respeito?

        —  A respeito de quê?

        —  De seu casamento, é claro. Pode ser um pano de fundo pitoresco.

        Foster não estava mais recostado comodamente na cadeira. Empertigara-se. E começava a se sentir irritado com aquela jovem repórter agressiva, à procura de uma reportagem sensacionalista.

        —  Foi convidada a vir até aqui para conversar sobre o meu papel como arquiteto, não como marido — disse ele. — Chega de diversões. Atenha-se ao que interessa ou vamos encerrar a entrevista.

        Ela ficou atordoada e Foster compreendeu que temia perder a reportagem.

        —  Desculpe, Sr. Foster. Tem toda razão. Às vezes me deixo levar pelo entusiasmo. Estava apenas tentando melhorar a matéria... acrescentar um toque pessoal. Mas prometo que não haverá mais desvios. Estou perdoada? Podemos continuar?

        Ele relaxou um pouco. A moça se mostrava bastante decente.

        —  Claro.

        —  Estávamos falando sobre o seu trabalho aqui durante os últimos seis anos. Faz tudo sozinho?

        —  Oh, não. É trabalho demais. Graças a Deus. Conheceu Irene, minha secretária e contadora. E há mais duas pessoas no escritório. Eu é que faço os contatos com os clientes. E também faço o projeto de criação original. Frank Nishimura entra em ação a seguir. É projetista profissional, e não um mero desenhista. Don Graham é como um empreiteiro. Acompanha a execução da obra, a produção de uma estrutura, depois que o projeto está pronto e as plantas aprovadas.

        —  A produção de uma estrutura — repetiu Joan Sawyer. — O que isso significa?

        —  A construção de um prédio pode ser comparada à feitura de um ser humano... o exterior, a fachada, é importante... porem ainda mais importante é o interior, os músculos e ossos. Assim, quando falo na produção de um prédio estou me referindo à criação de sistemas mecânicos, impermeabilização, resistência do material, essas coisas.

        —  Certo — murmurou a repórter, acenando com a cabeça. — Vamos supor que eu quisesse construir uma casa. Como começaria?

        Foster pensou por um momento.

        —  Sempre acho melhor não iniciar o processo. Como arquiteto, prefiro responder a um programa, ao que você pessoalmente imagina numa casa, a seus desejos. — Tentou deixar esse ponto bem claro. — A arquitetura deve ser desenvolvida em resposta a um pedido. Gosto de complementar o que o meu cliente tem em mente.

        —  Pensei que houvesse mais criatividade na arquitetura — comentou Joan Sawyer, bruscamente.

        —  E há mesmo, não tenha a menor dúvida quanto a isso. Depois que tenho uma noção do que você deseja, fico esperando por uma centelha criativa. Gosto de ocupar um espaço e editá-lo mentalmente numa composição. Ao mesmo tempo, procuro libertar as pessoas de suas fixações ou do que pensam que querem, levando-as a aceitarem um espaço melhor. Pergunto a mim mesmo: o que mais posso fazer com o que elas querem? Depois que encontro essa resposta, começo a trabalhar. Eu diria que 99 por cento do meu trabalho são realizados sem que o cliente participe. Depois de quatro semanas, de um modo geral, tenho as minhas idéias e as plantas de Frank no papel. Os desenhos representam 80 por cento do trabalho. E recebo 80 por cento dos honorários nessa ocasião. Isso lhe dá uma idéia do processo?

        —  Acho que sim. — Joan Sawyer inclinou-se para verificar o gravador, mais uma vez, depois tornou a se recostar. — Está ótimo. Além de conceder entrevistas, costumava se promover ou a seu trabalho? Faz conferências?

        Foster torceu o nariz.

        —  Quase nunca. Mas gosto de escrever, quando posso.

        —  Escrever? Sobre o quê? Já publicou algum livro?

        Foster respondeu com a maior satisfação:

        —  Estou prestes a publicar. Meu primeiro livro já está quase pronto.

        —  Posso perguntar qual é o tema?

        —  O título lhe dirá. É Arquitetura no Terceiro Reich dos Mil Anos.

        Foster ficou esperando pela reação. Ela empertigou-se na cadeira.

        —  Esta é uma boa notícia. Está se referindo às construções no tempo de Hitler?

        —  Exatamente. O que ele construiu e o que planejava construir, se a Alemanha vencesse a guerra. Vou lhe mostrar.

        Levantou-se e começou a atravessar a sala. Joan Sawyer pegou o gravador e seguiu-o. Havia um portfólio em cima da prancheta. Antes de abri-lo, Foster disse:

        —  Sempre me senti atraído pela Segunda Guerra Mundial. Como arquiteto, concentrei-me no que Hitler construiu e planejava construir. Queria saber mais e tentei encontrar livros sobre o assunto. Não havia nenhum. Por isso resolvi escrever um livro a respeito.

        —  Não porque gostava da arquitetura nazista?

        —  Ao contrário, sempre a detestei. Mas achei que um registro visual do período deveria ser preservado. O programa de construção de Hitler constitui o que chamamos de Arquitetura Fascista. É anônima e muito feia. A Arquitetura Fascista é como uma batata cozida ou um bolo inglês. Tudo muito claro, certinho. Não há qualquer leveza, não há personalidade, romance, emoção ou paixão. Vou lhe mostrar.

        Ele abriu o portfólio.

        —  Estas fotografias são de prédios construídos no reinado de Hitler e modelos em miniatura ou desenhos de prédios que ele queria construir, depois de vencida a guerra. Felizmente, a maioria jamais saiu das plantas. Aqui está uma fotografia da Nova Chancelaria que Hitler mandou Albert Speer construir, em Berlim. E aqui estão os comentários de Speer. — Foster passou a ler a legenda: — "A rigor, o que Hitler adorava no classicismo era a oportunidade para o monumentalismo. Era obcecado pelo gigantismo."

        Foster fez uma pausa e depois continuou:

        —  Hitler "detestou a Velha Chancelaria quando a viu pela primeira vez. Achou que era uma coisa "digna de uma companhia de sabão". Queria que sua Nova Chancelaria, ali perto, fosse imponente. E foi exatamente o que Speer providenciou. Um diplomata visitante entrou no prédio na Wilhelmsplatz através de um Pátio de Honra. Subiu uma escadaria externa para uma sala de recepção de tamanho médio, passou por uma porta dupla com mais de cinco metros de altura, entrou num enorme salão, decorado em mosaicos. Subiu outra escada, para uma galeria imensa, com 150 metros de comprimento... duas vezes maior que o Salão dos Espelhos, em Versalhes... passou por salas que pareciam intermináveis, somando mais 220 metros. Só depois é que alcançou a sala de recepção de Hitler e finalmente o seu vasto gabinete pessoal, sua escrivaninha com a gravação de uma espada fora da bainha, uma mesa de reunião de tampo de mármore ao lado da janela... usada para conferências, depois de 1944... painéis dourados por cima das quatro portas. Esses painéis representavam quatro das Virtudes: Sabedoria, Prudência, Coragem e Justiça. Os chãos eram todos de mármore. Hitler não permitia a colocação de carpetes. "É exatamente assim que deve ser", dizia ele. "Os diplomatas devem estar habituados a se deslocar sobre superfícies escorregadias."

        Foster virou lentamente as páginas com fotografias do exterior e do interior da Nova Chancelaria.

        —  A verdade é que Hitler adorou — continuou Foster. — "Muito bom, muito bom", disse ele a seu arquiteto. "Quando contemplarem isto, os diplomatas vão saber o que é o medo." Mais tarde, Speer escreveu o seguinte sobre os prédios que fez para Hitler: "Eles foram a própria expressão da tirania."

        Foster recomeçou a folhear as páginas.

        —  Vou lhe mostrar agora um exemplo de algo grandioso que Hitler nunca teve a possibilidade de executar. Este é o seu projeto para a Prachtalle... A Avenida do Esplendor... no centro de Germânia, como ele tencionava rebatizar Berlim. Hitler era um admirador de Georges Hausmann, que projetou os grandes bulevares de Paris. E queria superá-lo. Esta Avenida do Esplendor deveria ser 22 metros mais larga do que a Champs Elysées e três vezes mais comprida, levando ao Palácio de Der Führer. Para o topo do palácio, Speer sugeriu uma águia alemã em ouro, segurando uma suástica nas garras. Hitler gostou, mas poucos anos depois sugeriu que a águia de ouro segurasse nas garras o globo terrestre.

        A repórter apontou para a fotografia de uma vasta sala.

        —  O que é isso?

        —  O salão de jantar do palácio, grande o bastante para alojar duas mil pessoas de uma só vez.

        —  Que coisa! — murmurou Joan Sawyer.

        —  E assim continua, páginas e mais páginas de plantas que jamais foram executadas. Speer comentou ironicamente que era a sua "arquitetura de prancheta". Olhe só para isto. É a citação que tenciono usar para encerrar esta parte, talvez mesmo o livro. Um comentário muito objetivo extraído dos diários secretos que Albert Speer escreveu na prisão em Spandau.

        Joan Sawyer inclinou-se e leu a citação em voz alta:

        —  Albert Speer escreveu: "Pois o que nunca construímos é também uma parte da história da arquitetura. E provavelmente o espírito de uma era, seus objetivos arquitetônicos especiais, pode ser melhor analisado por esses projetos não-realizados do que pelas estruturas que chegaram a ser construídas. Pois as últimas foram muitas vezes distorcidas pela escassez de recursos, clientes obstinados ou inflexíveis e preconceitos. O período de Hitler é rico também em arquitetura não-construída. Vai emergir uma imagem muito diferente se algum dia eu tirar das minhas gavetas as plantas e fotografias de maquetes que foram feitas durante aqueles anos."

        Joan Sawyer empertigou-se e fitou Foster com um novo respeito.

        —  E foi exatamente o que você fez.

        —  Pelo menos é o que espero. — Foster pensou por um instante, olhando para o portfólio. — Esse palácio de Hitler seria imenso, com colunatas da altura de dois andares, ornamentos de ouro e bronze. Mas não se deixe iludir por isso. Embora gostasse que seus prédios intimidassem os visitantes, tanto pelo tamanho quanto pela ostentação, Hitler preferia... lá no fundo... estruturas austeras, simples, tipicamente alemãs, com apenas uns poucos toques internacionais. Pode não acreditar, ao ver estas maquetes, mas era assim mesmo. Apesar disso, tendo o mundo em suas garras, acho que ele se deixou arrebatar pelo delírio.

        Foster fechou o portfólio.

        —  Assim é o meu livro.

        Os olhos de Joan Sawyer brilhavam intensamente.

        —  Tem toda razão, seu projeto é fascinante. Foster exibiu um meio sorriso.

        —  Como olhar para uma fileira de cobras.

        —  Quando o livro vai ser publicado?

        —  Assim que eu o concluir. Ainda tenho mais algumas páginas para escrever. É por isso que espero viajar para o exterior esta semana. A fim de concluí-lo. Espero que o livro saia na próxima primavera.

        —  Eu lhe desejo boa sorte. — Joan Sawyer desligou o gravador. — Importa-se que eu volte na próxima semana com um fotógrafo para tirar algumas fotos de seu livro? Sei que não estará aqui...

        —  E levarei isto na viagem. Mas minha secretária tem uma cópia. Pode falar com ela.

        A repórter fora buscar a sua bolsa enorme e estava guardando o gravador lá dentro.

        —  Serão ilustrações maravilhosas para a minha matéria. — Uma pausa e ela acrescentou, como se Foster pudesse mudar de idéia: — Será uma grande publicidade para o seu livro.

        Foster sorriu.

        —  Por que acha que lhe dediquei tanto tempo? Agradecendo, ela apertou-lhe a mão e deixou a sala, apressada.

        Foster permaneceu na prancheta por mais alguns minutos, abrindo o portfólio e virando as páginas.

        E tornou a se sentir satisfeito com o que viu. Um bom trabalho. Mas ainda restavam as várias páginas vazias do final. As sete plantas desaparecidas que ele sabia existirem, mas não conseguira encontrar.

        Isso fez com que se lembrasse que o Dr. Harrison Ashcroft prometera ajudá-lo a localizar as plantas. E depois se lembrou que o Dr. Ashcroft morrera.

        Voltou à mesa para procurar a notícia do Los Angeles Times que estava lendo mas não acabara, por causa da interrupção da repórter. Lamentava a morte do homem e também a sua oportunidade perdida de encontrá-lo.

        Chegou ao final da notícia e empertigou-se, subitamente reanimado. "A Srta. Emily Ashcroft, filha do falecido, vinha colaborando com o pai no livro e anunciou que concluirá sozinha a biografia de Hitler, segundo o seu editor de Londres."

        Rex Foster sentiu outra vez um ímpeto de esperança. Claro que seu problema podia ser resolvido. Emily Ashcroft devia conhecer todas as fontes do pai. Tinha condições de informar a Foster quem dentre os dez arquitetos que trabalhavam com Speer podia estar com as plantas desaparecidas.

        O instinto de Foster foi o de pegar o telefone no mesmo instante, ligar para a Srta. Ashcroft em Oxford, marcar um encontro, descobrir a quem procurar na Alemanha Ocidental e ir até lá para concluir sua obra. Antes de estender a mão para o telefone, Foster olhou para o relógio em cima da mesa. Era o final da manhã, o que significava que estava anoitecendo em Oxford. Uma hora aceitável para ligar. Ainda hesitou por um instante, pensando que talvez estivesse ainda muito em cima da morte do pai para incomodá-la. Mas depois lembrou que tinha um prazo inadiável para entregar o livro.

        Chamando Irene Myers pelo interfone, Foster pediu-lhe que ligasse para a casa do Dr. Ashcroft em Oxford.

        Irene tornou a chamá-lo alguns minutos depois:

        —  Sr. Foster, estou na linha com uma pessoa em Oxford. Mas não é a Srta. Emily Ashcroft. Ao que parece, ela não está em casa. Falei com a Srta. Pamela Taylor...

        —  Quem?

        —  Ela é a secretária e está na casa desde a morte do Dr. Ashcroft. Quer falar com ela?

        —  Quero.

        Foster pegou o fone.

        —  Srta. Taylor? Aqui é Rex Foster, ligando de Los Angeles. Não sei se está reconhecendo meu nome...

        A suave voz britânica mostrou-se indecisa ao responder:

        —  Ahn... não estou lembrando...

        —  Mantive uma correspondência recente com o Dr. Ashcroft. Sou o arquiteto que precisava de algumas informações sobre Adolf Hitler. Ele concordara em me receber. Na próxima semana, para ser mais exato. Eu tinha um encontro marcado. Mas agora... — Foster hesitou. — Acabei de saber o que aconteceu com o Dr. Ashcroft. Não tenho palavras para expressar o meu pesar.

        —  Foi uma perda terrível — murmurou Pamela Taylor. — Sr. Foster, não é mesmo? Lembro agora do nome... o encontro...

        —  Como a Srta. Ashcroft trabalhava na biografia junto com o pai...

        —  Hum, hum.

        —  ... ocorreu-me que talvez ela disponha das mesmas informações e poderia me ajudar, como o Dr. Ashcroft concordara em fazer. Sei que ela deve estar abalada pela tragédia...

        —  Tenho certeza de que ela terá o maior prazer em cooperar.

        —  Pode me informar a que horas ela voltará esta noite? Pamela Taylor respondeu em tom pesaroso:

        —  Lamento, mas ela não voltará esta noite. Deixou Londres esta manhã, com destino a Berlim Ocidental.

        —  Berlim Ocidental?

        —  A fim de concluir o projeto em que trabalhava com o pai.

        —  E quanto tempo ficará em Berlim?

        —  Não sei. A visita não tem prazo determinado. Mas calculo que ficará pelo menos duas semanas.

        —  Pode me informar onde ela está hospedada em Berlim, Srta. Taylor? Talvez eu possa procurá-la lá.

        Houve um breve silêncio e depois Pamela Taylor respondeu:

        —  Isso deveria ser confidencial...

        —  Tenho certeza de que ela não se importaria, Srta. Taylor — assegurou Foster, pacientemente. — Afinal, o pai concordou em me receber e é natural que ela também aceite.

        —  Tem razão. Ela está no Bristol Hotel Kempinski, em Berlim. Já deve ter chegado lá, a esta altura.

        —  Obrigado, Srta. Taylor. Agradeço a sua atenção. Entrarei em contato com a Srta. Ashcroft. E quero dizer mais uma vez que lamento profundamente o acidente. E espero conhecê-la pessoalmente um dia desses.

        Desligando, Foster levantou-se e seguiu apressadamente até a sala de recepção. Irene Myers levantou os olhos da máquina de escrever.

        —  Teve sorte?

        —  Tive, sim. Emily Ashcroft está em Berlim Ocidental. O lugar perfeito para encontrá-la e obter a informação de que preciso. Assim, Irene, vamos entrar em ação agora mesmo. Providencie uma passagem no primeiro voo disponível para Berlim amanhã. Se amanhã for de todo impossível, então que seja no dia seguinte. E depois ligue para o Bristol Hotel Kempinski, em Berlim. Reserve-me um quarto, de solteiro ou de casal, o que quer que eles tenham.

        —  Por quanto tempo devo fazer a reserva?

        —  Quem sabe? Diga-lhes que ficarei uma semana. Mas será pelo tempo que for necessário. E reze para que Emily Ashcroft permaneça sã e salva até eu encontrá-la. Ela é a minha grande esperança.

        Instalada num quarto pequeno, moderno, com ar-condicionado, no 11º. andar do Hotel Guarani, em Asunción, Tovah Levine estava sentada, lendo La Tribuna e tomando o resto do café da manhã.

        Sentindo-se revigorada depois do banho de chuveiro, e relaxada por estar mais uma vez na capital, depois de quatro semanas extenuantes no interior do Paraguai, Tovah tentava se pôr em dia com o mundo, desde que saíra de circulação. O nome de Hitler destacou-se na terceira página, atraindo-lhe a atenção. Leu a pequena notícia em espanhol. Qualquer coisa que mencionasse um nazista era importante.

        "Sir Harrison Ashcroft, o famoso historiador da Universidade de Oxford, foi sepultado ontem, num cemitério metodista nos arredores de Oxford. Ashcroft, co-autor de uma biografia de Adolf Hitler, prestes a sair, sofreu ferimentos fatais ao ser atropelado na semana passada por um motorista desconhecido, em Berlim Ocidental, onde concluía as pesquisas para seu livro, Herr Hitler."

        Tovah teve a impressão de que o nome Ashcroft lhe despertava alguma recordação. Talvez tivesse lido um dos seus livros anteriores, quando estava na Universidade em Jerusalém. Não tinha certeza. De qualquer forma, não estava muito interessada em mais um livro sobre Hitler. Passou à leitura do resto do jornal.

        Não demorou muito para acabar o jornal e o café. Recostou-se na cadeira por um momento, a fim de organizar os pensamentos, antes do almoço às duas horas da tarde com Ben Shertok, que vinha de Buenos Aires para encontrá-la. Só estivera com Shertok uma vez, quando chegara à América do Sul, há cerca de um mês. Ficara impressionada com ele, por sua sagacidade e importância. Shertok era um dos homens mais destacados do serviço secreto de Israel, o chefe do Mossad para quatro países da América do Sul. Ela sabia que se tratava de um posto crucial. Somente os agentes do Mossad em Berlim Ocidental, em sua interminável caça a nazistas — e na Síria, empenhados na persistente caçada a terroristas palestinos —, tinham mais responsabilidades e maiores equipes. Paraguai, Chile, Argentina e Brasil ainda eram alvos importantes, como esconderijos prediletos de muitos líderes proeminentes do Terceiro Reich. Mas Tovah tinha a impressão de que toda a região estava sendo gradativamente relegada a um segundo plano. Afinal, a maioria dos nazistas procurados estava agora na casa dos setenta e oitenta anos, morrendo um a um. Em breve restariam muito poucos a perseguir, prender e processar. Apesar disso, embora Walter Rauff, o inventor das câmaras de gás móveis, tivesse lhes escapado através da morte natural, ainda havia de vez em quando um Klaus Barbie a ser encontrado por lá e extraditado para a França, a fim de ser submetido a julgamento. Essa lembrança atenuava o desânimo.

        Tovah pegara um vôo da LATN de Concepción para Asunción, percorrendo de ônibus os quinze quilômetros entre o Aeroporto Presidente General Stroessner e a capital. Estava combinado que se hospedaria num quarto de solteiro no Hotel Guarani naquele dia, se encontraria com Shertok no saguão e sairiam juntos para almoçar num restaurante, onde apresentaria seu relatório. Contudo, ao chegar à recepção do Guarani, onde tinha uma reserva como Helga Ludwig (o nome em seu passaporte, já que um nome alemão era mais conveniente num país latino hospitaleiro com alemães e cautelosos com judeus), encontrara um telex à sua espera. Ben Shertok sugeria que almoçassem em seu quarto e conversassem lá. Parecera-lhe uma mudança sensata, pois no quarto teriam mais privacidade.

        Agora, considerou o que fazer. Eram onze e dez. Shertok não chegaria antes das duas da tarde. Isso lhe proporcionava pelo menos duas horas para fazer o que bem quisesse. Não conhecia Asunción muito bem. Já estivera na capital duas vezes antes. A primeira por uma semana, há oito anos, quando tinha dezenove anos de idade e tentava aperfeiçoar seu espanhol, durante uma excursão de seis meses pela América do Sul. A outra recentemente, por dois dias apenas, antes de iniciar suas viagens pelo Paraguai como agente do Mossad. Sentiu agora o impulso de andar a esmo pelo centro da cidade, para conhecê-la um pouco melhor. E talvez comprasse algumas lembranças para seus pais e irmãos, que viviam em Tel Aviv e com os quais se encontraria dali a dois dias.

        Pegou a mala para tirar algumas roupas, algo bem leve, uma blusa sem mangas, saia de algodão, sandálias, pois fazia calor lá fora, a umidade era cada vez maior. Deixando o hotel, entrou no Parque Independência. As árvores palacha estavam rosa naquele dia, as ruas de prédios de estilo colonial espanhol eram lindas, com suas laranjeiras e jacarandás. Havia edifícios por toda parte, junto com pequenos prédios caiados de branco, quase todos lojas, os telhados de telhas vermelhas. Tovah estudou alguns restaurantes novos e prédios do governo reformados, parou para examinar as mercadorias à venda em diversas lojas. Comprou alguns lenços para a mãe e a tia predileta.

        Dando uma volta, seguiu para a Plaza Constitución, examinou atentamente o Palácio do Congresso. Sentou num banco à sombra, a fim de descansar um pouco e observar os transeuntes, que haviam diminuído consideravelmente depois que começara o período da siesta, ao meio-dia.

        Imersa em devaneios, Tovah sentiu-se propensa a reconstituir os últimos três anos, que a haviam levado àquela cidade quente e remota. Na escola, suas línguas haviam sido o inglês (todos os jovens de Israel falavam inglês), espanhol (porque era um desafio) e alemão (porque seus avós, dos dois lados, nasceram na Alemanha, lá viveram e morreram — em campos de concentração ou câmaras de gás —, mas seus filhos foram despachados para a Palestina, cresceram, conheceram-se, casaram e tornaram-se os pais de Tovah).

        A fim de melhorar seu espanhol, passara aquelas primeiras férias na América do Sul. Acompanhara o pai duas vezes a Berlim Ocidental, quando ele fora tratar de problemas de reparações de guerra. Seu avô paterno fora proprietário de uma próspera loja de departamentos, confiscada por Hitler, e encontrara a morte na Solução Final dos nazistas. Berlim Ocidental parecera um lugar muito estranho para Tovah, e apesar da animação e excitamento, ela desprezara a cidade, desprezara todo o seu passado. Mas ali conhecera jovens decentes e cordiais, muito parecidos com ela e seus amigos israelenses. Quando comentara a respeito com o pai, ele rira e dissera:

        — Não se preocupe com os jovens. Eles não são seus inimigos. Preocupe-se, isso sim, com os homens de sessenta a oitenta anos.

        Pode estar certa de que quase todos foram nazistas. São eles que dizem: "Ah, como era bom o tempo de Der Führerl Agora, nossa Berlim está repleta de estranhos, nossos jovens são estúpidos e vivem drogados pelos americanos e outros estrangeiros. Precisamos ser mais duros com eles. Precisamos remover todo o lixo." São esses, Tovah, que desejam ter novamente uma nação só de louros. Tirando as línguas, Tovah concluíra o curso de jornalismo na universidade. Desde o início manifestara a curiosidade e a perspicácia de repórter. Obtivera boas notas e depois de se formar e servir o período de exército, começara a trabalhar no Post de Jerusalém, como repórter especial. Quase ao final do primeiro ano fora chamada ao gabinete do editor executivo, um acontecimento raro.

        —  Tovah — dissera ele —, tenho uma missão excepcional para você. Realmente excepcional.

        —  Como assim?

        —  O diretor da Mossad quer lhe conceder uma entrevista. A Mossad nunca fez isso antes, nunca sequer permitiu que um dos nossos repórteres entrasse em seu prédio, nos arredores de Tel Aviv. Mas esta manhã o diretor formulou o convite. E indicou o seu nome expressamente.

        Tovah ficara espantada. Sempre conhecera o sigilo que envolvia esse setor do governo israelense, o serviço secreto fundado em 1951 e conhecido como Mossad.

        —  Por que logo eu?

        —  Provavelmente eles leram algumas de suas matérias assinadas e gostaram.

        —  O que eles poderiam me dizer?

        —  É o que você vai descobrir. Seu encontro é com o Memuneh... o pai... o próprio diretor. Amanhã de manhã, às dez horas. Descobrirá tudo então.

        Cinco minutos depois de reunida a sós com o diretor da Mossad, um homem incisivo e direto, que não desperdiçava palavras, Tovah já sabia o que ele tinha a dizer. Ele não queria lhe dar uma reportagem. Queria lhe oferecer um trabalho.

        —  Nossa missão é ficar de olho nas pessoas — explicara o diretor do Mossad. — E estivemos de olho em você durante os últimos seis meses. Temos 900 agentes e outros funcionários... cem aqui, no quartel-general, o resto espalhado pelo mundo... mas as mulheres são bem poucas. Como nosso diretor anterior, Meir Amit, sinto-me constrangido em usar mulheres no serviço. Mais cedo ou mais tarde, uma mulher pode descobrir que é necessário recorrer ao sexo para obter o que deseja. É uma situação que não me agrada, mas...

        Ele dera de ombros, parando por aí. Mas Tovah percebera que ele avaliava a sua aparência. Ela sabia — sempre soubera — que era atraente, num estilo goy. Cabelos louros compridos. Olhos azuis. Nariz aquilino. Boca pequena. Seios cheios e firmes. Pernas bem torneadas. Nada obviamente judeu. Os alemães arianos poderiam considerá-la um de seus espécimes perfeitos.

        Agora, o diretor do Mossad analisava a sua feminilidade. Ela se sentira forçada a falar:

        —  Não me importo. Com a parte do sexo. Não sou criança. E na vida deve-se fazer o que é preciso.

        O diretor soltara um grunhido.

        -— O trabalho do agente pode ser muito perigoso. Não encorajamos o assassinato. Mas encorajamos a autodefesa. Cada agente é treinado a usar uma arma... muitas armas. Cada agente é ensinado a mentir e trapacear, quando necessário. Só estamos interessados nos resultados. Nossos agentes são servidores civis, recebem um salário do governo. Por três anos, é o equivalente a 800 dólares mensais. Nenhum ficará rico. Todos sabem que estão ajudando Israel a sobreviver. Se está interessada, podemos acertar tudo com seu editor. Continuará a trabalhar para o Post, aqui e no exterior. Será o seu disfarce. Mas seu trabalho principal será para o Mossad.

        —  Fazendo o quê?

        —  Muitas coisas. Receberia missões no exterior. Primeiro, receberá o treinamento adequado, tirando uma licença de um ano do jornal. Aprenderá a se comunicar por código, a seguir um suspeito e se livrar de um perseguidor, aprenderá o combate corpo a corpo e a usar uma Beretta 22. Só depois estará pronta para entrar em ação.

        —  Por que eu? — insistiu ela.

        —  Falei que estávamos de olho em você. Gostamos de sua aparência e tenacidade. E também de sua capacidade de observação. Gostamos do seu conhecimento de alemão, espanhol e inglês. — Ele fizera uma pausa. — E então, o que me diz?

        O diretor do Mossad fizera outra pausa, antes de acrescentar:

        —  Ou quer pensar um pouco a respeito?

        Sentada ali, escutando, Tovah estivera pensando a respeito, pensando em sua vida. O trabalho de jornal era bom, mas se tornara um tanto monótono e cansativo. Sua vida amorosa nada tinha de excepcional, embora houvesse encontrado alguém especial recentemente. De qualquer forma, haveria tempo para isso mais tarde. Ansiava por uma participação emocionante em algo que tivesse um significado importante. Além disso, queria também viajar, sair daquela rígida comunidade de sofredores, conhecer novos lugares, outras pessoas. Ela fitara o diretor nos olhos e respondera:

        — Já pensei. Quando começo?

        Tovah já estivera no exército israelense. O treinamento do Mossad fora um pouco parecido, talvez mais rude, mais rigoroso, mais variado, embora sempre fascinante. Depois, trabalhara o resto do ano em Tel Aviv, no quartel-general, decodificando mensagens cifradas, colhendo as informações de agentes, interrogando possíveis contatos.

        Sua primeira missão no exterior, como Helga Ludwig, fora a de pesquisar e escrever uma reportagem turística sobre o Paraguai. Na verdade, o Mossad obtivera uma nova pista sobre o Dr. Josef Mengele, o médico da SS do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, que mandara 180 mil pessoas inocentes para a morte, durante o reinado de terror de Hitler. Mengele escapara da Zona Americana da Áustria para a Argentina, em 1951. Com a ajuda de imigrantes alemães, ali e no Paraguai, esquivara-se a todos os caçadores de nazistas. Agora, o Mossad recebera nova informação sobre o seu paradeiro. O Dr. Mengele fora visto em Nueva Germania, uma pequena cidade na região central do Paraguai. Tovah recebera a ordem de confirmar a informação e descobrir o que pudesse sobre cinco outros nazistas procurados, vários dos quais podiam estar escondidos no Paraguai. Ela descobrira muita coisa, mas a presa principal se mostrara tão esquiva quanto antes. Agora, a missão estava quase concluída e poderia deixar aquele país desolado. Tovah retornou ao presente, ao banco de praça em Asunción.

        O relógio indicava que era uma e meia, estava na hora de voltar ao hotel, a fim de almoçar com Ben Shertok em seu quarto e apresentar-lhe o relatório.

        Ao sair do elevador e encaminhar-se para o quarto, descobriu que Ben Shertok já estava ali, encostado na parede, ao lado da porta, com uma expressão satisfeita, fumando um charuto. Parecia um professor, os cabelos desgrenhados, óculos de aros de chifre, nariz aquilino. Um dos chefes do serviço secreto israelense, suave e dedicado.

        Ele plantou um beijo casto nas faces de Tovah e pediu desculpas por chegar tão cedo.

        —  O avião não estava no horário. Chegou antes do tempo. Por isso, eu a desculparei se quiser ir ao banheiro.

        Tovah deixou-se entrar no quarto.

        —  Sinto-me culpada por ficar neste hotel de luxo, mesmo que seja por um dia apenas. Mas posso lhe garantir, Ben, que não foi assim que vivi nas últimas quatro semanas.

        —  Pode apostar que sei disso. Tomei a liberdade de pedir o almoço quando estava lá embaixo. Não disponho de muito tempo e não queria comer às pressas. Preciso estar no Chile ainda esta noite.

        —  Vou apenas lavar as mãos e o rosto, Ben. Está muito quente lá fora. O que vou almoçar?

        —  Lembrei que você comentou, quando jantamos em Buenos Aires, que gostou muito daqueles bolinhos de milho e cebola na primeira vez em que esteve aqui.

        —  Sopa paraguaya — disse Tovah. — Não poderia ter pedido melhor.

        —  E também um vinho tinto.

        —  Ótimo. Não vou demorar mais que cinco minutos.

        Ao sair do banheiro, vinte minutos depois, constatou que a comida já fora servida, num carrinho, entre a janela e a cama. Percebeu que Shertok levava alguém para o corredor, um homem atarracado, de macacão, carregando uma caixa.

        Olhou para Shertok com uma expressão inquisitiva, quando ele sentou à frente do carrinho.

        —  Apenas um colega — explicou Shertok. — Verificou se havia microfones ocultos no quarto. Está limpo.

        Shertok pôs-se a tomar o vinho, continuando a fumar o charuto. Tovah pegou a bolsa, tirou um caderninho de anotações, abriu-o, pôs em cima da mesa, enquanto sentava em frente a Shertok.

        —  Se não tem muito tempo, é melhor eu começar logo — disse ela, cortando o primeiro bolinho, mastigando, engolindo e tomando um gole do vinho seco.

        —  Como foi a viagem? — perguntou ele.

        —  Pelos meus padrões, eu diria que um fracasso. Não encontrei uma única pista concreta do paradeiro de Josef Mengele.

        —  Ele está aqui, neste país?

        —  Todo mundo diz que sim, mas não tenho certeza, Ben. Tornou-se chique dizer... e estou me referindo aos paraguaios... que se viu ou se encontrou pessoalmente o "renomado" Mengele. Um grande tema de conversa, dá prestígio, se me entende.

        —  Compreendo perfeitamente.

        Tovah consultou seu caderninho de anotações, enquanto comia.

        —  Todos os nativos sabem que, depois que os Aliados invadiram a Alemanha e a Áustria, Mengele usou uma das redes de fuga nazistas para chegar a Roma, onde se escondeu num mosteiro, na Via Sicilia, obteve um passaporte falso na Espanha e chegou à Argentina em 1951. Não é novidade para ninguém aqui que Mengele, quando compreendeu que os perseguidores estavam fechando o cerco, veio para o Paraguai, deu um jeito de se tornar cidadão paraguaio e viveu às claras, com toda segurança, em Asunción.

        Shertok acenou com a cabeça.

        —  Pedimos ao presidente americano Carter que tomasse alguma providência. Carter pressionou o Presidente Stroessner, que relutantemente revogou a cidadania de Mengele. Depois disso, Mengele desapareceu, deixou a capital, e desde então tem vivido no interior.

        Tovah reviu suas anotações rapidamente.

        —  E foi então que o diretor recebeu essa informação nova. Ele achou...

        —  Tem havido muitas indicações ultimamente — interrompeu-a Shertok —, desde que passamos a contar com o apoio do governo da Alemanha Ocidental e de um grupo de americanos oferecendo quase quatro milhões de dólares como recompensa pela captura de Mengele. Em junho surgiu a informação de que Mengele fora para o Brasil, vivera ali com o nome de Wolfgang Gerhard e morrera afogado, tendo sido enterrado em 1979.

        —  Sabe muito bem que o Mossad nunca aceitou a idéia de que Mengele morreu e foi enterrado no Brasil. Concluíram que o relatório dos legistas foi baseado numa trama bem urdida. Tudo não passou de uma conspiração perfeita para suspender as investigações e permitir que Mengele vivo continuasse a viver em segurança no Paraguai. Seja como for, o diretor achava que Mengele continuava vivo. E mais do que isso, segundo ele, Mengele fora visto recentemente, gozando de ótima saúde, numa pequena cidade paraguaia chamada Nueva Germania, uma miserável colônia de imigrantes alemães, fundada por um professor alemão que odiava os judeus, no final do século passado. Mengele foi até lá para tratar de alguns remanescentes nazistas que estavam doentes. Em agradecimento, recebeu a proteção da cidade. E mandaram-me descobrir se ele ainda estava lá.

        Shertok tomou um gole do café.

        —  Sabia que era perigoso, Tovah?

        —  Claro que sabia.

        —  Mas sabia até que ponto? Dois de seus antecessores, que não eram agentes do Mossad, chegaram muito perto de Mengele e pagaram por sua curiosidade.

        —  Não sabia disso — respondeu Tovah, lentamente. — O que aconteceu?

        —  Em 1961, uma atraente judia chamada Nora Eldoc, que fora esterilizada por Mengele em Auschwitz, seguiu a sua pista até um balneário aqui. Fez contato com ele. Mas antes que pudesse agir, Mengele descobriu quem ela era. Encontraram seu cadáver pouco depois no Brasil. Posteriormente, Herbert Cukur, um nazista reabilitado, localizou Mengele num esconderijo argentino. O cadáver de Cukur foi encontrado na mala de um carro no Uruguai.

        —  De qualquer modo, ele já tinha ido embora quando cheguei a Nueva Germania. Partira na semana anterior. Tentei descobrir para onde fora e recebi várias indicações. Circulei pela região, fingindo ser uma repórter de turismo. Fui a Hernandarias, Mbaracayu, San Lorenzo e assim por diante, terminando em Concepción. Não havia o menor sinal de Mengele em qualquer parte. Encontrei muitos alemães paraguaios em todas as cidades, grandes e pequenas. Alguém me garantiu que eles chegam a 70 mil, o maior grupo étnico daqui. Uns poucos admitiram terem visto Mengele, mas ninguém me disse onde.

        —  Em outras palavras, não teve sorte.

        —  Absolutamente nenhuma. Lamento muito, Ben.

        —  Você tentou. Isso é o máximo que podemos pedir. — Sherok pensou por um momento. — Às vezes fico em dúvida... Acha que alguém descobrirá Mengele algum dia?

        —  Acho que sim. Com toda certeza. Não acredito que ele esteja enterrado no Brasil. Nenhuma das pessoas com quem fiz contato se deixaria tentar por uma recompensa. Eram nazistas inflexíveis. Mas um dia alguém mais fraco vai querer os quatro milhões de dólares. E essa pessoa é que o denunciará. Estou convencida de que Mengele será encontrado, mais cedo ou mais tarde. Para dizer a verdade, conto com isso.

        Shertok apontou para o caderninho de anotações de Tovah.

        —  O que me diz dos outros?

        Depois de tomar o resto do seu café, Tovah disse:

        —  Pediram-me que ficasse de olhos e ouvidos abertos para Heinrich Müller, um dos chefes da Gestapo de Himmler. Não consegui descobrir se ele está no Paraguai. Alguém comentou que ele pode ter ido para a União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial, a fim de trabalhar para a KGB. Mas não passa de boato.

        —  Descobriu alguma coisa sobre Josef Schwammberger e Wal-ter Kutschmann?

        Tovah voltou a consultar suas anotações.

        —  Schwammberger. Comandante da SS no campo de concentração de Przemysl, na Polônia. Agora com 73 anos. Ele não está no Paraguai. Encontra-se certamente na Argentina, mas invisível. Quanto a Kutschmann, o carrasco nazista na Polônia, também esteve na Argentina, mas várias pessoas acham que se encontra agora no Paraguai. Mas não há qualquer pista do seu paradeiro.

        Terminada a refeição, Shertok recostou-se na cadeira, acendendo outro charuto.

        —  Mais alguma coisa?

        —  Só uma. Não cheguei a vê-lo, mas recebi a informação segura de que ele está aqui.

        —  Quem?

        —  Não é um criminoso de guerra, mas sim um cientista nazista. Professor Dieter Falkenheim. Nós o temos em alguma lista como desaparecido.

        —  E agora você o descobriu?

        —  Exatamente. Falkenheim se encontra em algum lugar do norte do Paraguai. Quer saber como escapou da Alemanha? A missão americana conhecida como Alsos, encarregada de reunir os cientistas nazistas e levá-los para os Estados Unidos, descobriu que esse físico nuclear, que tentava fabricar uma bomba nuclear, estava na pequena cidade de Ilm. Quando os homens da Alsos chegaram a seu laboratório em Ilm, descobriram que estava vazio, abandonado às pressas. Sei agora o que aconteceu. Falkenheim foi levado para a Dinamarca, e de lá Juan Perón o trouxe de avião para a Argentina. Ele trabalhou para Perón, até que o ditador argentino foi exilado. Falkenheim seguiu então para o Paraguai. Está aqui desde então. Há especulações de que ele pode ter contrabandeado uma tonelada de minério de urânio para fora da Alemanha, durante a derrocada dos nazistas. Lembra que os americanos encontraram 1.100 toneladas de minério de urânio escondidas numa mina de sal, nos arredores de Stassfurt? Pois podia haver mais. É possível que Falkenheim tenha levado o resto.

        —  É improvável. Desconfio que houve apenas uma falha aritmética dos americanos. Seja como for, Falkenheim não é um dos nossos alvos primários.

        —  Mas ainda assim é um nazista. Achei que a informação era interessante.

        —  Talvez, mas não posso saber. Fale com o diretor, quando voltar. E já que estamos falando do diretor, ele lhe pediu para ficar atenta a Martin Bormann durante a sua permanência no Paraguai?

        —  Não, não houve qualquer menção a Bormann. Creio que o Mossad está convencido de que ele morreu numa explosão, quando tentava escapar de Berlim. Acho que já o consideram assunto liquidado.

        —  É possível. — Por trás de uma nuvem de fumaça, Shertok formulou casualmente outra pergunta: — O que me diz de Adolf Hitler?

        Tovah ficou aturdida.

        —  Adolf Hitler?

        —  No Paraguai. Alguém lhe disse que o tinha visto?

        —  Essa não, Ben. Está querendo zombar de mim. Hitler matou-se com um tiro no Führerbunker, em 1945. Todos sabem disso.

        —  Nem todos, Tovah, nem todos. — Shertok empertigou-se na cadeira. — Já ouviu falar de Sir Harrison Ashcroft?

        —  Ashcroft, Ashcroft... — Ela tentou se lembrar. — Não saiu uma notícia a respeito dele no jornal de hoje?

        —  Isso mesmo. A filha Emily Ashcroft e alguns amigos enterraram-no em Oxford.

        —  E daí?

        —  E daí que os Ashcrofts estavam concluindo uma biografia de Adolf Hitler, intitulada HerrHitler. E de repente o Dr. Ashcroft recebeu a informação de alguém em Berlim de que Hitler não se matou no bunker, como todos acreditam. O informante garantiu que não foram os restos mortais de Hitler que os russos desenterraram. Não havia restos mortais de Hitler. O Dr. Ashcroft foi a Berlim Ocidental para conferir a informação. Um dia antes de iniciar as escavações no bunker, ele foi morto por um motorista que fugiu, num estranho acidente.

        —  Foi mesmo um acidente?

        —  Não temos certeza.

        Tovâh estudou atentamente o rosto sério de Shertok.

        —  Obrigada pela informação, mas o que isso tem a ver comigo?

        —  Talvez alguma coisa. — Shertok mudou de posição na cadeira, irrequieto. — Esta manhã recebi uma mensagem cifrada de Chaim Golding, que chefia o Mossad em Berlim Ocidental. Ele diz que Emily Ashcroft tenciona concluir a obra sozinha. Ela chegou hoje a Berlim Ocidental. Hospedou-se no Bristol Hotel Kempinski.

        —  Como sabe de tudo isso?

        —  Chaim sabe de tudo o que acontece em Berlim, nas duas Ber-lins, especialmente o que se relaciona com Hitler. — Shertok hesitou por um instante. — Sei que você teve uma missão árdua aqui e está cansada. Tem direito a umas férias. Sei que planeja voltar a Tel Aviv, reunir-se com a família e o namorado. Mas... bem...

        —  Você me quer em Berlim.

        —  Golding quer. E também o diretor. Você conhece a cidade. Fala alemão fluentemente. Sabe o quanto queremos descobrir a verdade... qualquer que seja... a respeito de Hitler. O Mossad gostaria que você adiasse o retorno a Tel Aviv. E passasse pelo menos uma semana em Berlim.

        —  Para fazer o quê?

        —  Encontrar-se com Emily Ashcroft. Descubra o que o pai dela sabia ou o que ela sabe agora sobre a possibilidade de Hitler não ter morrido no bunker. Pode voltar a ser Tovah Levine, usando o seu antigo disfarce de repórter do Post de Jerusalém. Talvez possa tentar... entrevistá-la.

        —  Você sabe que isso não daria certo, Ben. Ela não vai querer falar com repórteres.

        —  O pai dela falou.

        —  Mas lembre-se do que aconteceu com ele, Ben.

        —  Talvez você tenha razão. Mas não importa como vai fazer, qual o pretexto que usará para entrar em contato com ela. Descubra tudo o que ela sabe. Não creio que possa resultar algo de útil, mas nunca se sabe. Precisamos ter certeza absoluta, Tovah, de que o maior de todos não escapou vivo.

        —  Como achar melhor. Quando?

        —  Parte amanhã de manhã para Buenos Aires. E de lá segue direto para Berlim Ocidental.

        —  Que hotel?

        —  Já tem um quarto reservado no Bristol Hotel Kempinski.

        —  Ótimo.

        —  Como eu lhe disse, queremos que fique o mais perto possível de Emily Ashcroft. — Ele entregou as passagens de avião. — Talvez desta vez você encontre rosas.

        Tovah sorriu.

        —  Espero que em minhas mãos, e não na minha sepultura.

        Em Berlim Ocidental, às dez horas da manhã de um dia nublado, Evelyn Hoffmann saiu do Café Wolf, parou por um instante ao lado da livraria na esquina da Stresemannstrasse e Anhalter Strasse, aspirou o fresco ar da manhã.

        O que fazia agora e o que faria pelo resto da manhã e parte da tarde era uma rotina que seguia há 22 anos, quase sem variação durante os últimos dez anos.

        Mas naquela manhã, antes de iniciar a rotina, Evelyn Hoffmann deteve-se por um instante a estudar seu reflexo na janela do Café Wolf. E o que viu não a desagradou. Aos 73 anos não se podia esperar que tivesse a mesma aparência dos 23 anos. Fora uma beldade, todos concordavam. Era mais alta que a média, os cabelos muito louros, esbelta, sofisticada, reservada, com muito orgulho pelas pernas compridas e bem torneadas. Ainda lembrava com prazer uma descrição que o querido Keitel — Marechal-de-Campo Wilhelm Keitel — lhe concedera depois da guerra: "Muito esbelta, aparência elegante, pernas lindas — logo se percebia. Parecia ser não tímida, mas sim reticente e retraída — uma pessoa muito simpática, mas muito mesmo." Fora modelo de nu para o grande escultor Otto Brecker, acalentara a esperança de se tornar estrela do cinema em Hollywood, depois que passasse a confusão. Isso acontecera há muito tempo. Mas não tinha importância. Agora, aos 73 anos, concluiu que ainda possuía uma presença imponente. Curvara-se muito pouco à passagem do tempo, ainda tinha um porte empertigado, os cabelos agora pintados de castanho, o rosto cruzado por pequenas rugas, mas não de todo ruim para uma mulher de sua idade. A mente e a memória continuavam tão aguçadas como antes. Apenas o andar pagara um tributo aos anos. Tornara-se mais lento, mais hesitante, o fôlego diminuíra.

        E agora a rotina.

        Evelyn Hoffmann afastou-se da janela do café e foi para a loja estreita ao lado, com uma placa por cima da porta que dizia Konditorei. Esperou sua vez e recebeu uma caixa cheia de nurskirchen frescos, mandou embrulhar com uma fita, a fim de parecer um presente.

        Deixando a loja, foi andando devagar pela rua, a bolsa numa das mãos, a caixa de bolinhos na outra, até a Askanischer Platz, parando por um instante na Schõneberger Strasse, a fim de comprar um exemplar do Berliner Morgenpost. Descobrindo que estava esgotado, contentou-se com o tablóide BZ — o Berliner Zeitung —, que raramente lia, depois foi se postar no abrigo de ônibus, a fim de esperar pelo 29, que a levaria à Ku'damm em vinte minutos.

        No ônibus, pôs-se a ler o jornal. A fotografia e a notícia principais eram do presidente cowboy americano, que despachara mais mísseis nucleares para a Alemanha Ocidental, as ogivas apontando para a União Soviética. Isso a deixou satisfeita, já que odiava os russos ainda mais que os americanos. Enquanto o ônibus corria, Evelyn folheou distraidamente o jornal. Uma notícia menor atraiu sua atenção e notou que o primeiro parágrafo era um despacho de Londres:

        "Uma editora britânica, a Ryan & Maxwell, Ltd., anunciou ontem que prosseguirá nos planos para a publicação da tão discutida biografia de Adolf Hitler, Herr Hitler, de autoria de Sir Harrison Ashcroft e sua filha, Emily Ashcroft, de Oxford. Houve dúvidas sobre o futuro do livro inacabado quando o Dr. Ashcroft, efetuando pesquisas sobre os últimos dias de Hitler em Berlim, encontrou a morte prematura num acidente de trânsito. Mas a editora britânica anunciou ontem que Emily Ashcroft concordara em concluir sozinha a biografia que vinha preparando em colaboração com o pai há cinco anos."

        Franzindo involuntariamente o rosto, Evelyn continuou a ler, perdeu a paciência com o resto da notícia, dobrou o tablóide, metendo-o na bolsa.

        Desceu do ônibus na movimentada Ku'damm e percorreu devagar os seis quarteirões até a Knesebeckstrasse, chegando ao prédio de apartamentos de seis andares em que residiam seus parentes mais próximos. No terceiro andar, num apartamento grande e moderno, morava uma mulher a quem Evelyn muito amava, Klara. Fiebig, que trabalhava como diretora de arte autônoma para agências de propaganda, e seu marido, Franz Fiebig, um professor um tanto ríspido, mas inteligente, que ensinava história moderna na Schliesion Oberschule, no distrito de Charlottenburg. A mãe de Klara, Liesl, inválida e quase sempre numa cadeira de rodas, vivia com os Fiebigs. Liesl fora a criada de Evelyn Hoffmann em tempos melhores — a primeira de duas criadas com o mesmo nome —, três anos mais jovem do que Evelyn e prima distante. Liesl comprara o luxuoso apartamento para a filha e o genro em retribuição a seus cuidados.

        Evelyn geralmente se mostrava animada, aguardando com ansiedade a visita semanal, o chá e a conversa com a família — uma família remota, é verdade, mas a única que lhe restara —, mas de alguma forma a viagem de ônibus naquela manhã mudara e arrefecera sua disposição. Assim, ao chegar ao apartamento, estava perdida em seus pensamentos, melancólica.

        Na sala de estar do apartamento havia um clima inexplicável de alegria. Franz estava fora àquela hora, dando suas aulas, mas a atraente Klara, abraçando Tia Evelyn, e Liesl na cadeira de rodas estavam radiantes, com alguma notícia secreta maravilhosa.

        — Conte a ela — disse Liesl, a voz rouca, da cadeira de rodas. — Conte à sua Tia Evelyn.

        Klara virou-se para Tia Evelyn, o rosto exibindo o sorriso mais largo.

        —  Tia, estou grávida.

        Sentindo-se tonta, Evelyn apoiou-se na sobrinha e cobriu-a de beijos.

        —  Grávida, grávida — murmurou ela. — Graças a Deus, finalmente.

        Evelyn já começara a perder a esperança. Klara casara tarde, aos trinta anos, e depois de cinco anos ainda não havia qualquer sinal de um filho. Mais uns poucos anos e poderia ser difícil conceber, talvez mesmo impossível. Mas agora, aos 35 anos, Klara estava grávida, já na sexta semana, e tudo corria bem.

        Enquanto Klara preparava o chá, transbordando de otimismo, Evelyn deu o seu simbólico presente semanal, a caixa de bolinhos, desejando ter sabido antes, a fim de poder trazer alguma coisa mais permanente e memorável. Lembrou-se então por que não mais levava presentes dispendiosos para Klara e Franz: por causa da maneira como fora recebido seu último presente importante, no seu primeiro aniversário de casamento. Dera-lhes um dos seus bens mais prezados, uma valiosa herança de família, o quadro a óleo magnífico e realista de um imponente prédio do governo. Klara o apreciara, mas o marido Franz não escondera a sua aversão.

        —  Muito bonito, é claro — dissera ele polidamente —, mas um pouco sombrio. Lembra-me todos aqueles quadros sinistros do Terceiro Reich. De qualquer forma, obrigado, Tia Evelyn. É muita gentileza sua.

        Evelyn notara depois que o óleo nunca estava pendurado na sala de estar ou na sala de jantar, tendo sido relegado ao quarto dos fundos, ocupado pela prima Liesl.

        Fora por isso que Evelyn deixara de trazer presentes valiosos. Depois disso e desde então limitava-se a bombons, pasteizinhos ou águas-de-colônia.

        Naquela manhã eram bolinhos, e Klara, cantarolando alegremente, estendia a travessa para a mãe e para a Tia Evelyn. Klara sentou e Evelyn regalou-se com a mulher mais jovem, extraindo sua própria satisfação da satisfação da sobrinha. Klara desatou a falar sobre a vida nova dentro de seu corpo, como deixara Franz feliz, discutiu os nomes que estavam sendo considerados, caso o bebê fosse menino ou menina.

        Evelyn, sempre atenta ao relógio no consolo da lareira (não gostava de deixar Wolfgang Schmidt esperando para seu almoço semanal, sabendo como ele era ocupado), ficou escutando e decidiu que na semana seguinte compraria sapatinhos de bebê brancos, convencida de que tal presente seria aceito favoravelmente, tanto pelo pai quanto pela mãe.

        Saindo quando faltavam exatamente quinze minutos para o meio-dia, Evelyn voltou à Ku'damm e desceu para o restaurante Mampes Gute Stube, onde ela e Schmidt se encontravam para aqueles almoços semanais há muitos anos.

        Aproximando-se do restaurante, Evelyn constatou que Wolfgang Schmidt já estava lá. O Mercedes preto usado pelo chefe de polícia de Berlim, com o motorista cochilando por trás do volante, estava estacionado numa vaga reservada. A visão do carro levou Evelyn a compreender mais uma vez como era afortunada por ter como amigo querido e de confiança um homem tão poderoso, no que se tornara uma metrópole nova e atordoante.

        Evelyn recordou que Schmidt começara de baixo e subira até o topo por seu próprio esforço e competência. Dando baixa do derrotado Schutzstafeel, procurando um emprego que lhe fosse apropriado, Schmidt voltara à Berlim natal e se candidatara ao cargo na polícia. Os candidatos eram meticulosamente investigados pelo novo governo democrático, mas as credenciais de Schmidt, tanto como um Camisa-Preta da SS quanto como um antigo antinazista secreto, eram de fato extraordinárias. Entre os muitos oficiais que trabalharam com o Conde von Stauffenberg — que tentara matar Hitler em Rastenburg, em julho de 1944 —, Schmidt fora o único grande conspirador a escapar à punição. Livrara-se de todas as armadilhas que os nazistas armaram para os conspiradores, sobrevivendo para se tornar um herói antinazista. A prova disso era tudo o que a cidade de Berlim precisava para lhe dar um posto na polícia municipal. Dez anos antes ele se tornara chefe de polícia e ainda ocupava o cargo. Além da prima Liesl e de Klara, ele era a pessoa em que Evelyn Hoffmann mais confiava no mundo exterior.

        Entrando no Mampes Gute Stube, através da área de café envidraçada na calçada, Evelyn encaminhou-se para a fresca semi-obscuridade do restaurante. Passou pelas cadeiras estofadas em marrom e pelas mesas com tampos de azulejos, em direção à mesa solitária ao lado da estufa de porcelana decorativa no canto do salão, isolada pela gerência da casa em respeito ao freguês assíduo que era o chefe de polícia.

        Avistando Evelyn, o Chefe Wolfgang Schmidt levantou-se abruptamente, com a graça de um elefante. Seu semblante tinha a aparência prussiana de Erich von Stroheim, pensou Evelyn, só que Schmidt era maior, muito maior, a cabeça calva reluzente, os músculos salientes, a barriga estufada. Como de hábito, não estava de uniforme, usando um terno azul simples.

        Evelyn sentou-se em frente a ele.

        —  Já pediu? — perguntou ela, como sempre.

        —  Já cuidei disso — respondeu ele.

        O que significava que ela teria sua Gemischter Salat, Rühreier mit Speck, Wecke e o segundo chá do dia, enquanto ele teria seu prato de Rinderroulade ou Leberwurst, Bratkartoffeen e uma caneca da cerveja Weihenstephan.

        —  Como tem passado, Wolfgang?

        —  Nunca me senti tão bem. E você, Effie, como está?

        Ele era a única pessoa viva que se atrevia a chamá-la pelo antigo apelido íntimo, o que sempre a deixava feliz.

        —  Tive uma manhã animada. E tenho uma boa notícia para lhe dar. Klara está grávida.

        Schmidt reagiu com um largo sorriso e pegou a mão de Evelyn.

        —  Parabéns, Effie. Sei o quanto isso significa para você.

        —  Significa tudo. E obrigada, Wolfgang. Schmidt sacudiu a cabeça enorme.

        —  Eu já começava a duvidar que isso pudesse acontecer algum dia. Então finalmente você vai ser avó.

        Evelyn olhou ao redor furtivamente.

        —  Vou ser tia-avó.

        —  Se insiste...

        —  Sabe que é melhor assim, Wolfgang. Ele balançou a cabeça.

        —  Acho que tem razão.

        Os dois ficaram em silêncio, enquanto um garçom de avental servia a Schmidt o bife rulê e as batatas fritas, a salada mista de Evelyn, ovos mexidos com bacon e uma cesta com pãezinhos. Metendo um pedaço de carne na boca, Schmidt indagou:

        —  Já leu o jornal de hoje?

        —  Quer saber se li a notícia da biografia de Hitler que está sendo escrita em Londres? Li, sim. E também li que a filha do Dr. Ashcroft vai concluir o livro por ele. O que não é de surpreender. Era de se esperar que ela ou outra pessoa cuidasse disso.

        Schmidt observou Evelyn atentamente por baixo de suas sobrancelhas espessas.

        —  Essa não é a última notícia, Effie.

        —  Não?

        —  A última notícia é que Emily Ashcroft chegará a Berlim em breve. Ficará no Kempinski. — Fez uma pausa. — E você sabe que não se trata de uma visita social.

        Evelyn esperou.

        —  Claro que ela vem para descobrir se Der Führer sobreviveu à guerra e, se isso aconteceu, onde terminou sua vida.

        Evelyn acenou com a cabeça bruscamente, murmurando:

        —  Uma tolice da parte dela.

        Os dois terminaram de almoçar em silêncio, sem aludirem outra vez ao assunto, até que estavam prestes a se despedirem. Levantando-se, Evelyn falou, quase como se fosse uma lembrança súbita:

        —  Emily Ashcroft... Creio que seria interessante saber o que ela vai descobrir.

        Schmidt também estava de pé, sorrindo.

        —  Não se preocupe, Effie. Saberemos exatamente com quem ela vai falar e sobre o quê. Deixe tudo comigo. Sempre pôde confiar em mim. Pois continue a confiar agora.

        Ela apertou os dedos do chefe de polícia e murmurou, antes de se afastar:

        —  Meu amigo.

        Meia hora depois, descendo do ônibus na Askanisher Platz, ela esperou que o sinal de trânsito abrisse, atravessou a rua, passou pela livraria na esquina e entrou no Café Wolf. As poucas mesas espalhadas estavam vazias, mas no balcão à esquerda uma secretária de um escritório do quarteirão pagava um sanduíche de presunto para levar ao patrão.

        Evelyn seguiu devagar para o outro lado do café e entrou na cozinha por uma porta de vaivém. Como sempre, dois guardas discretos mas fortes estavam postados ali, vestidos como cozinheiros. Ela conhecia o mais velho, mas não o mais jovem. Presenteou-os com um sorriso ao passar.

        O mais jovem estendeu a mão, como se quisesse interceptá-la, mas o mais velho segurou-lhe o braço, enquanto acenava respeitosamente com a cabeça para Evelyn. Ela abriu uma porta no outro lado da cozinha, revelando uma escada, e desapareceu em seguida. O guarda mais jovem protestou com o colega:

        —  Mas ela não mostrou o cartão de identidade! O guarda mais velho sacudiu a cabeça.

        —  Você é novo aqui, Hans. Veio com a última turma que chegou da América do Sul, não é mesmo?

        —  É sim. E fui avisado que qualquer pessoa tinha de mostrar o cartão de identidade para entrar aqui.

        —  Menos ela. Ela não.

        —  Por que não? Quem é ela? O guarda mais velho sorriu.

        —  Bem, sem ela saber, é claro, sempre teve o apelido de A Viuva Alegre.

        —  A Viúva Alegre?

        —  Porque nos velhos tempos seu apaixonado raramente estava em sua companhia, e ela ficava sozinha a maior parte do tempo.

        —  Mas qual é o seu nome?

        O guarda mais velho inclinou-se para o companheiro e disse em voz baixa:

        —  Você acaba de conhecer Eva Braun. Mais precisamente, Frau Eva Braun Hitler. Isso mesmo, meu amigo, seja bem-vindo ao Terceiro Reich.

    

        Depois de se registrar na recepção do Bristol Hotel Kempinski, Emily Ashcroft acompanhou o empregado até o elevador, subiu para o terceiro andar e foi conduzida à suíte 229. Era uma suíte excelente, com uma sala pequena mas confortável para o seu trabalho, um quarto grande, com uma cama de casal, um banheiro todo azulejado. Havia vasos de flores frescas na cômoda do quarto e na mesinha da sala. Em cima do aparelho de televisão havia três garrafas — de scotch, vodca e vinho rosado Tavel —, além de copos, guardanapos e um balde de gelo. Na escrivaninha, ao lado de uma travessa de queijo e biscoitos, um cartão: "Com os cumprimentos da gerência."

        Um começo hospitaleiro.

        Pegando o folheto verde em que estava impresso o número da suíte, ela leu o título na primeira página: "Herzlich Wülkommen im Bristol Hotel Kempinski Berlin." As outras páginas continham fotografias e informações sobre os confortos e serviços oferecidos pelo hotel. Só depois é que Emily percebeu que por baixo do folheto havia um recado telefônico para ela.

        Era de Peter Nitz, o repórter do Bertiner Morgenpost, que lhe escrevera na semana passada para contar que testemunhara o acidente sofrido por seu pai. Ela respondera, informando que iria a Berlim para concluir a pesquisa que o pai iniciara e dizendo que esperava encontrá-lo logo depois de sua chegada, não apenas para agradecer pessoalmente por sua gentileza, mas também para obter uma análise do que podia esperar na cidade. O recado, anotado na recepção naquela manhã, avisava que Peter Nitz teria o maior prazer em procurá-la às duas horas da tarde. Se não recebesse qualquer notícia dela até lá, iria direto para a sua suíte.

        Isso lhe dava tempo para arrumar suas coisas, tomar um banho, vestir roupas limpas. Depois que a bagagem foi trazida para o quarto, Emily abriu a mala maior e pendurou as roupas no armário. Cuidou em seguida das duas valises. Uma continha blusas, roupas de baixo, sapatos e um pequeno estojo de toalete para viagem. A outra continha livros e fichas que eram parte do material de referência para os capítulos finais de Herr Hitler.

        Pegando o estojo de toalete, Emily foi para o banheiro. Havia espelhos por toda parte. Enquanto se despia, Emily contemplou o corpo nu. Não era tão ruim assim para uma professora — apesar de Jeremy Robinson, o desgraçado. Os cabelos castanho-avermelhados, olhos verdes, o nariz arrebitado e sardento, com narinas delicadas, e os lábios cheios podiam não ser considerados desgraciosos por algum homem decente, algum dia. Os seios podiam ser pequenos para alguns gostos, mas eram firmes. A barriga era lisa — os extenuantes exercícios diários compensavam —, a cintura era fina e flexível, o triângulo castanho por baixo do umbigo era atraente, os quadris aceitavelmente femininos, as coxas cheias, mas ainda assim as pernas compridas e bem torneadas. O problema é que sua atração nunca encontrara o homem certo. Depois de se formar na universidade, apaixonada por um professor de literatura quinze anos mais velho, ela fugira para casar. Fora uma união malfadada. Ele era imaturo, arrogante, metido a conquistador e, pior de tudo, um bêbado. O casamento durara apenas seis meses. Depois disso, houvera várias ligações ligeiras, mas nenhuma com qualquer profundidade ou compromisso real.

        Gradativamente, ela encontrara a maior satisfação em ensinar e escrever. Cinco anos antes, quando o pai a convidara para ajudá-lo na preparação de Herr Hitler, pesquisando e escrevendo capítulos alternados, ela se sentira emocionada. Mas às vezes, com mais freqüência do que antes, ansiara pelo amor, companhia e calor de um companheiro maravilhoso. O encontro na BBC com Jeremy lhe proporcionara a esperança, mas agora compreendia que fora a sua necessidade de um companheiro, e não os sentimentos por Jeremy, que a impelira ao relacionamento. Às cegas, não se permitira ver que Jeremy era uma esperança indigna. Depois desse desastre, sua concentração em Adolf Hitler e sua incrível corte de bufões nazistas a satisfazia mais do que nunca.

        Agora, com um último olhar para o seu corpo nu, Emily entrou no banho morno, ponderando se conseguiria decifrar sozinha o enigma do fim de Hitler. Peter Nitz era um bom começo. Como jornalista, ele poderia fornecer algumas indicações. E havia também o Dr. Max Thiel, que achava que Hitler sobrevivera à guerra, além do alemão oriental, Professor Otto Blaubach, que poderia lhe obter permissão para escavar no local do Führerbunker,

        Depois de terminar o banho e enxugar-se com a felpuda toalha do hotel, Emily pôs um sutiã cor da pele e um biquíni de náilon (não gostava de calcinhas grandes), vestiu uma blusa branca simples, saia azul pregueada e sapatos de saltos baixos. Sem meias. Acabava de se maquilar quando ouviu a campainha, e notou que Peter Nitz era pontual.

        Era um homem baixo, atarracado, os cabelos pretos começando a escassear, entradas grandes, olhos pequenos e brilhantes, bigode irregular. Tinha um cigarro na mão e exibia um vestígio de sorriso, mas Emily compreendeu que se tratava de um homem sério.

        Nitz parou no meio da sala, fitando-a.

        —  Fico satisfeita que tenha vindo, Sr. Nitz. Já almoçou? Posso chamar o serviço de quarto.

        —  Já almocei, obrigado. Mas pode pedir para você.

        —  Comi alguma coisa no avião. Dá para agüentar por mais algum tempo. Não gostaria de beber algo?

        —  Bom...

        —  Há garrafas e gelo em cima da televisão.

        Sem qualquer cerimônia, ele adiantou-se, despejou gelo num copo, abriu a garrafa de scotch e, servindo-se de dois dedos, tomou um gole. Estalando os lábios, alisou o bigode molhado e aproximou-se do sofá em que Emily sentara. Acomodou-se do outro lado do sofá.

        —  Acima de tudo — começou Emily —, eu queria agradecer-lhe pessoalmente por sua gentileza em me enviar aquela carta.

        —  Senti-me na obrigação de fazê-lo. Espero que não a tenha transtornado.

        —  Ao contrário.

        —  Estou me referindo ao testemunho sobre a morte de seu pai.

        —  Estou contente por ter sido tão franco. Eu queria mesmo saber o que realmente aconteceu. — Emily hesitou por um momento. — Insinuou que talvez não tenha sido um acidente.

        Nitz deu de ombros.

        —  Pode ter sido. E pode não ter sido. Como saber? Tive a impressão de que o atropelamento foi... deliberado. Mas não posso ter certeza. Falou com a polícia de Berlim?

        —  Com um homem chamado Schmidt. O chefe de polícia. Ele não tinha muito para dizer, exceto que estavam procurando o caminhão. Mas nem ao menos sabia de que marca era o caminhão. Não creio que a polícia seja capaz de fazer muita coisa.

        —  E não vai fazer.

        Emily deixou transparecer seu espanto.

        —  Mas se o acidente foi deliberado, quem poderia querer fazer isso e por quê? Meu pai conhecia algumas pessoas aqui. Mas, até onde sei, não tinha inimigos.

        Nitz sacudiu o gelo no copo e tomou outro gole.

        —  Não tinha inimigos... a menos que Adolf Hitler tenha de fato sobrevivido, em vez de morrer, como todos acreditam.

        —  Alguém acha mesmo que ele sobreviveu?

        Nitz tomou o resto do uísque e pôs o copo na mesinha.

        —  Desde a tarde de 30 de abril de 1945, quando Hitler supostamente cometeu suicídio, disparando uma bala na cabeça, e sua esposa Eva Braun teria se matado com cianureto de potássio, as especulações jamais cessaram. O próprio Josef Stalin sempre achou que Hitler escapara num submarino, provavelmente para o Japão. O General Eisenhower disse aos repórteres que havia motivos para acreditar que Hitler escapara ileso. O serviço secreto britânico declarou várias vezes que um sósia de Hitler fora incinerado no jardim da Chancelaria. A identificação russa dos ossos queimados, crânio e mandíbula, recuperados ao lado do Führerbunker, sempre foi contraditória e incerta. Mas já sabe de tudo isso, Srta. Ashcroft.

        —  Sei de uma coisa — disse Emily. — Como Hitler não pôde ser julgado em Nuremberg, houve um julgamento in absentia por um tribunal de desnazificação de Munique, no outono de 1947, a fim de definir a questão dos seus bens. Houve 42 testemunhas que confirmaram a morte de Hitler. O Ministro da Justiça da Baviera anunciou a conclusão em outubro de 1956. O tribunal declarou:

        "Não pode haver mais qualquer dúvida de que Hitler acabou com a própria vida em 30 de abril de 1945, no Führerbunker da Chancelaria do Reich, em Berlim, disparando um tiro na têmpora direita."

        —  Correto.

        Emily fitou o jornalista alemão nos olhos.

        —  Diante disso, Sr. Nitz, acha que é possível que Hitler tenha sobrevivido? Acredita que ele escapou?

        Sem qualquer hesitação, Nitz respondeu:

        —  Não, não acredito que ele tenha escapado. — Nitz fez uma pausa. — Mas seu pai certamente aceitou essa possibilidade. Pessoalmente, ouvi-o dizer isso, na entrevista coletiva, pouco antes de sua morte. Deixe-me lembrá-la de que seu pai aludiu a alguma prova de que não foram a mandíbula e os dentes de Hitler que os russos encontraram. Ele achava que a informação podia ser confirmada ou contestada quando escavasse a área do Führerbunker. Sabe o que seu pai procurava?

        —  Lamento, mas não sei. Estávamos prestes a iniciar a conclusão da biografia quando meu pai recebeu uma carta de alguém de Berlim que fora muito ligado a Hitler. Essa pessoa declarou que era falsa a versão aceita da morte de Hitler. Meu pai constatou que o informante não era um lunático e por isso veio a Berlim para encontrá-lo. Telefonou-me para Oxford na noite anterior à sua morte. Estava exultante. O informante o aconselhara a escavar à procura de alguma coisa no jardim da Chancelaria e meu pai comentou que já obtivera permissão para isso. Tencionava iniciar as escavações no dia seguinte à entrevista coletiva.

        —  Tenho certeza que sabe quem era o informante... quem é.

        —  Sei sim. Mas prefiro não mencionar qualquer nome enquanto não tiver permissão para isso.

        —  Sabe o que ele aconselhou seu pai a procurar na escavação?

        —  Não. Meu pai não quis me dizer pelo telefone. Mas espero agora descobrir pessoalmente. — Emily sustentou o olhar de Nitz. — Mas você acha que tudo isso é inútil. Está convencido de que não existe a menor possibilidade de Hitler ter sobrevivido.

        Nitz tirou um maço de cigarros do bolso do paletó, pegou um, acendeu-o com um isqueiro.

        —  Não quero desencorajá-la, Srta. Ashcroft. O mais sensato é que verifique tudo pessoalmente. Ao mesmo tempo, como um jornalista que já viu e ouviu muitos absurdos, sou um cético... e permaneço um cético nessa questão. Acho que Hitler e sua mulher morreram mesmo, como nos conta a história. Antes de se encontrar com seu homem discordante e talvez ir até o fim da investigação, talvez seja melhor conversar com uma testemunha que estava no Führer-bunker quando Hitler se matou. Ainda há algumas testemunhas vivas, espalhadas pela Alemanha, pessoas já idosas agora, mas a maioria com uma lembrança nítida dos acontecimentos de 30 de abril de 1945. E uma delas vive bem perto daqui. Emily inclinou-se para a frente.

        —  Quem?

        —  Ernst E. Vogel. Era um guarda da SS no Führerbunker quando os corpos de Hitler e Eva Braun foram levados para o jardim e cremados. Entrevistei-o para uma reportagem especial há cerca de dois anos. Ele foi muito convincente ao relatar os fatos de que se lembrava.

        —  Esse Herr Vogel ainda está vivo?

        —  Acho que sim. Parecia bastante saudável quando o entrevistei. Você pode começar por procurá-lo, antes de seguir adiante. Terá então condições para julgar. Tenho o telefone e o endereço de Vogel no jornal. Ligarei para você assim que chegar lá.

        —  Eu ficaria muito agradecida, Sr. Nitz.

        —  Depois de conversar com Vogel, poderá procurar seu informante e avaliar as opiniões contrárias.

        Emily ficou em silêncio por um instante, observando Nitz fumar um cigarro. Depois, tossiu, embaraçada.

        —  Tenho uma confissão a fazer, Sr. Nitz. Quero ser sincera. Não tenho um encontro marcado com o informante alemão que meu pai encontrou, o que era muito ligado a Hitler. Até agora ele tem se recusado a me receber.

        As orelhas de Nitz pareceram aguçar-se.

        —  Ele não quer recebê-la? Mas por que não? Afinal, conversou com seu pai.

        —  Escrevi para ele depois da morte de meu pai, informando que viria a Berlim para continuar a pesquisa e solicitando que me recebesse e fornecesse a mesma cooperação e informação que dera a meu pai. Ele me respondeu com uma frase: não poderia receber-me ou a qualquer outra pessoa para tratar do assunto. — Emily fez uma pausa. — Por que será que ele mudou de idéia? Nitz pensou por um instante.

        —  Talvez tenha ficado apavorado com a morte suspeita de seu pai e achado melhor se calar. Talvez esteja preocupado com os neonazistas fanáticos... isso mesmo, ainda existem alguns... — Percebendo a curiosidade no rosto de Emily, Nitz resolveu desenvolver o tema. — Srta. Ashcroft, está a par da Unternehmen Werwolf, criada nos últimos dias da guerra?

        Emily acenou com a cabeça.

        —  Missão Lobisomem, grupo de guerrilheiros formados por Himmler, integrados por soldados alemães e treinados pela Waffen SS, depois do Dia D. Vestiam-se à paisana e deviam se infiltrar nas linhas Aliadas para assassinar quaisquer alemães importantes que colaborassem com o inimigo. Acha que ainda existem alguns?

        —  Não é improvável. Eram fanáticos disfarçados, determinados a proteger a imagem de Hitler... e sua vida. Seu informante pode estar preocupado com esses neonazistas, pode temer que o encontrem e também o matem. Desconfio que está simplesmente com medo de recebê-la.

        —  Pois vou persuadi-lo a se encontrar comigo — declarou Emily, resoluta. — Usarei todos os recursos ao meu alcance para conseguir isso.

        Nitz apagou o cigarro e levantou-se.

        —  Eu lhe desejo boa sorte. E não se esqueça de que posso ser útil se descobrir alguma coisa.

        Emily também se levantou.

        —  Não esquecerei. Eu lhe devo muito. Não apenas por sua gentileza, mas também pela sugestão sobre Vogel.

        —  Não deixe que Vogel a desestimule com sua história. Depois de escutá-lo, tente conversar com seu indeciso informante com empenho ainda maior. Use o testemunho de Vogel para arrancar toda a verdade do outro homem. Essa tática muitas vezes dá certo. E se tiver sorte, efetue as escavações no hunker.

        À porta, com a mão na maçaneta, Nitz hesitou por um instante, avaliando-a, depois acrescentou:

        —  Por favor, aceite um conselho meu. Se vai mesmo seguir em frente, se decidir realizar as escavações, não anuncie publicamente, como seu pai fez. Não corra qualquer risco. Os atropelamentos em que o motorista foge não são tão raros assim em Berlim. Descubra a verdade... mas também trate de permanecer viva.

        Emily esperou impacientemente na suíte que o telefone tocasse. Cerca de 45 minutos depois, Peter Nitz cumpriu a palavra, ligando da redação do Berliner Morgenpost. Deu o telefone e o endereço de Vogel. Emily começou a agradecer, mas o repórter interrompeu-a:

        —  Antes de falar com Vogel, acho que deve saber alguma coisa a respeito do homem. Peguei as anotações da minha entrevista há dois anos para refrescar a memória. Ernst Vogel tinha 24 anos no dia em que alega ter visto Hitler morrer. Isso quer dizer que tem agora 64 anos. Vogel era sargento da SS e integrava a guarda de honra, em turnos de doze horas. Tinha muito orgulho da faixa preta na manga com o nome "Adolf Hitler" bordado em prateado. Em serviço, ficava armado com uma metralhadora e granada de mão. Ficou de sentinela na entrada do Führerbunker durante os últimos dez dias em que Hitler esteve lá, os dez dias entre o 56? aniversário de Hitler e seu anunciado suicídio. Vogel devia merecer muita confiança, porque desceu para o bunker em vários momentos cruciais, perto do fim. No último dia foi um dos que testemunharam a cremação de Hitler e Eva Braun. Ele lhe contará toda a história. Gosta de falar e tem boa memória. Aqueles dez dias foram o ponto alto de sua vida. Se ainda estiver vivo, deverá encontrá-lo em casa. Ele costumava trabalhar no próprio apartamento.

        —  Fazendo o quê?

        —  Tem um serviço de venda por reembolso posta!. Livros raros. Alemães, é claro. E mais uma coisa: terá de falar alto quando conversar com ele. O homem tem um problema de audição. Nos dois ouvidos. De lesões sofridas quando estava no Führerbunker, devido ao constante bombardeio russo na área da Chancelaria. De qualquer modo, tente. Se ele estiver vivo, tenho certeza de que a receberá. Pode mencionar meu nome.

        —  Não sei como agradecer, Sr. Nitz.

        —  Não se preocupe com isso. Converse com Vogel para saber de todos os detalhes da versão oficial.

        Emily desligou e telefonou em seguida para Ernst Vogel. A campainha tocou umas poucas vezes e uma voz de homem atendeu. Pensando no problema de audição, Emily alteou a voz. Seria Ernst Vogel ? Era. Emily apresentou-se e explicou que Peter Nitz, um repórter do Berliner Morgenpost que o entrevistara há dois anos sobre a morte de Hitler, indicara-o como uma testemunha de confiança dos acontecimentos. Acrescentou apressadamente que viera a Berlim para concluir as pesquisas para uma biografia definitiva de Adolf Hitler. E apresentou a Vogel as suas credenciais acadêmicas.

        —  Um livro? — gritou Vogel. — Está escrevendo um livro sobre a morte de Hitler?

        —  Sobre toda a sua vida, inclusive a morte. E quero que o relato seja acurado. Espero que possa me ajudar.

        Houve uma pausa.

        —  Posso sim. Procurou a pessoa certa. — Outra pausa. — Creio que devo isso à posteridade. Muito bem, eu a receberei. Tem meu endereço?

        Emily leu-o em voz alta.

        —  Exato. Esteja aqui às quatro horas.

        Depois disso, com algum tempo de sobra, Emily pensou em ligar também para o Dr. Max Thiel, o dentista cujas dúvidas sobre a morte de Hitler haviam trazido seu pai e agora ela mesma a Berlim. Ansiosa por fazê-lo, ela hesitou, recordando o conselho de Nitz para usar o depoimento de Vogel como um meio de forçar o contato com o Dr. Thiel.

        Em vez disso, porém, pegou a valise com o material de referência, tirou as fichas de pesquisa e separou-as. Reviu as listas dos alemães que haviam conhecido Hitler ou estavam no Führerbunker durante os dias finais, pessoas que o pai já entrevistara em suas várias visitas a Berlim. Ernst Vogel não constava da relação. Curioso, pensou Emily. Mas ela corrigiria em breve a omissão.

        Pegou um táxi para uma viagem de oito minutos a um prédio de apartamentos de cinco andares, na Dahlmannstrasse, cerca de um quarteirão e meio ao norte da Ku'damm. A caixa de correspondência no pequeno saguão revelou que o apartamento de Ernst Vogel era no segundo andar. Emily subiu a escada, entre corrimãos de mogno escalavrados e paredes de um verde horrível, precisando de uma nova camada de tinta.

        Para sua surpresa, o homem que a recebeu era pequeno, cabelos grisalhos escassos, com um aparelho de audição num dos ouvidos, um rosto emaciado, parecido com o de Goebbels. Ela imaginara que todos os guardas da SS no Führerbunker eram gigantes.

        Sentando ao lado de Ernst Vogel numa velha poltrona, enquanto ele se instalava numa cadeira de balanço, Emily decidiu descobrir por que o pai não entrevistara aquele homem.

        —  Outro livro sobre Hitler, hein? — disse Vogel. — Já saíram muitos. Tornou-se uma indústria.

        —  Tem razão — respondeu Emily calmamente. — Mas a maioria foi escrita nas décadas de 40 e 50, ainda no início, quando alguns dos membros do círculo íntimo de Hitler não estavam disponíveis para serem entrevistados. Deve estar lembrado que muitos foram levados para a União Soviética, a fim de serem interrogados e depois detidos. Os soviéticos não permitiam que estrangeiros lhes falassem. Só foi possível conversar com eles depois que foram libertados, gradativamente, recebendo permissão para retornar à Alemanha. E meu pai achou que o momento era oportuno para uma biografia de Hitler mais completa e atualizada.

        —  Acho que tem razão.

        Emily pôs a valise no colo e tirou uma de suas listas.

        —  Estas são as pessoas que meu pai entrevistou. — Entregou a relação a Vogel. — Não encontrei seu nome.

        Vogel correu os olhos pela lista. Devolvendo-a, perguntou:

        —  Quando foi que seu pai entrevistou essas pessoas?

        —  Ele começou há dez anos. E nós dois começamos a escrever a biografia há cinco anos. Mas meu pai morreu recentemente e por isso estou concluindo a obra sozinha.

        Vogel inclinava-se para a frente, a fim de escutá-la melhor.

        —  Há dez anos, há cinco anos eu não recebia entrevistadores. Provavelmente ele me escreveu e não respondi. Naquele tempo eu pensava em escrever pessoalmente um relato da minha experiência. E por isso não queria contar a minha história a ninguém. Mas acabei descobrindo, apesar de todas as minhas anotações, que não sou um escritor, mas apenas um leitor e um vendedor de livros. Contudo, queria que a história fosse contada e comecei a procurar entrevistadores. O jovem do Morgenpost...

        Fez uma pausa, tentando recordar o nome.

        —  Peter Nitz.

        —  isso mesmo, Nitz. Ele foi um dos primeiros que recebi, há poucos anos. Quer dizer que está escrevendo um livro sobre Hitler? Nunca dei uma entrevista para um livro. Imagino que será editado também em alemão. Vai me mandar alguns exemplares?

        Ele acenou para trás, na direção da sala de jantar. As paredes estavam cobertas por prateleiras com livros, havia caixotes fechados pelo chão.

        —  Alguns são livros populares, publicados recentemente. Mas meu negócio principal é a venda de livros antigos e raros pelo reembolso postal. Herdei a firma de meus pais. Eles morreram num bombardeio aéreo de Berlim pelos americanos, quando eu estava no exército. Os livros são a minha vida, mas também tenho um hobby. A caça. Sou um exímio atirador. Sempre atirei muito bem desde pequeno. Foi por isso que me dei muito bem na SS.

        E foi por isso que se tornou um guarda da SS no Führerbunker, pensou Emily. Queriam não apenas gigantes, mas também exímios atiradores.

        —  Podemos falar sobre Hitler? — indagou ela.

        —  Tenho de dizer uma coisa a respeito de Hitler. À sua maneira, ele foi um grande homem, não resta a menor dúvida. Eu só tinha duas coisas contra ele. Não concordava com o seu anti-semitismo. Alguns dos melhores clientes dos meus pais eram judeus. Sempre foram pessoas decentes e honestas. A outra coisa que eu tinha contra Hitler foi a sua tentativa de conquistar a Rússia. Foi o começo da queda. Mas antes disso ele foi um grande homem. Quer dizer que deseja saber mais coisas sobre a sua morte?

        —  Sobre os últimos dois dias de sua vida. Tenho bastante material sobre o que aconteceu no bunker. Mas o material a respeito da morte de Hitler é muito contraditório.

        —  Cada um vê o que quer — declarou Vogel. — Só posso lhe contar o que vi e ouvi.

        —  É exatamente o que me interessa.

        Vogel balançou levemente na cadeira, enquanto ajustava o aparelho de audição.

        —  Desculpe, mas o que foi mesmo que você disse?

        —  Eu disse que tudo o que está disposto a me contar é exatamente o que quero saber.

        Emily falou devagar, incisivamente. Depois, tornou a guardar a lista e pegou uma caneta e um bloco de papel amarelo. Vogel estava mexendo outra vez no aparelho de audição.

        —  Este problema... aconteceu no último dia... o bombardeio soviético da área da Chancelaria foi terrível... fui derrubado por uma explosão... a concussão... acho que havia ali perto um caminhão que disparava os foguetes Katyusha. Fiquei com uma zoeira nos ouvidos meses depois, até que pude consultar um médico.

        Satisfeito com o ajuste do aparelho de audição, virou o rosto para fitar Emily.

        —  Hitler compreendeu que era o fim cinco dias antes de acontecer. Sabíamos que os russos haviam cercado Berlim e começavam a penetrar em seus perímetros. Foi quando ele disse a Linge... Heinz Linge, o coronel da SS que era seu acompanhante e chefe da guarda pessoal... que não tencionava ser capturado vivo. "Eu me matarei com um tiro. Quando isso acontecer, leve meu corpo para o jardim da Chancelaria. Depois da minha morte, ninguém deve me ver e reconhecer. E assim que eu for cremado, vá a meus aposentos particulares no bunker, recolha todos os meus papéis e queime-os também." Hitler reiterou essa decisão para Otto Günsche, seu ajudante-de-ordens da SS e motorista. "Quero que meu corpo seja queimado", disse ele. "Depois de morto, não quero ser exposto num jardim zoológico russo."

        Emily estava tomando notas. Vogel esperou. Ela levantou os olhos.

        —  Foram essas as palavras de Hitler?

        —  Foi o que me contaram. Você diz que conhece a maior parte dos acontecimentos no bunker. E está mais interessada nos detalhes do último dia.

        —  Dos dois últimos dias.

        —  Muito bem. Vamos começar pela noite de 28 de abril de 1945. Hitler anunciou que ia se casar com Eva Braun. Para legitimar a ligação antiga e recompensar a sua lealdade, depois que ela jurou que morreria no bunker junto com ele. Josef Goebbels providenciou um juiz de paz, o mesmo que celebrara o seu casamento com Magda. O juiz foi designado de um destacamento do Volkssturm que lutava na Friedrichstrasse. A certidão de casamento foi preparada e assinada por duas testemunhas, Goebbels e Martin Bormann. A cerimônia de casamento foi realizada depois de meia-noite.

        Já na madrugada de 29 de abril. Havia oito convidados. Todos comemoraram com um pequeno banquete. Eva ficou um pouco embriagada com o champanhe. Hitler também bebeu e tentou aderir ao clima de alegria. Mas ouviram-no murmurar em determinado momento: "Está tudo acabado. A morte será um alívio para mim. Fui traído e enganado por todos." Ele se referia a Gõring e Himmler, que... sem autorização... tentaram promover a paz e salvar suas vidas. Referia-se também a alguns generais, que lhe mentiram.

        Vogel observou Emily escrever suas anotações.

        E depois recomeçou. Pela fluência do relato, Emily compreendeu que ele já contara a história muitas vezes e quase a conhecia de cor e salteado.

        —  Não havia dia ou noite dentro do bunker — disse Vogel. — Hitler geralmente trabalhava à noite e dormia durante toda a manhã. Antes do casamento ele procurou sua secretária predileta, Traudl Junge, e ditou-lhe dois testamentos... um curto, em que explicava por que estava casando com Eva Braun, outro maior, um testamento político, repetindo aquelas mesmas bobagens sobre a maneira como a guerra lhe fora imposta pelo judaísmo internacional. Esperou até Frau Junge datilografar o testamento pessoal de três páginas e depois o político de dez páginas, assinou-os, pegou as assinaturas das testemunhas. Só então é que se preparou para dormir. Mas já sabe de tudo isso, não é mesmo, Fraulein Ashcroft?

        —  A maior parte. O que aconteceu em seguida é o mais importante para mim. Espero que não omita coisa alguma, Herr Vogel.

        Vogel continuava a se balançar na cadeira.

        —  Aquela manhã e entre quatro e meia e cinco e meia da madrugada de 30 de abril foram as únicas ocasiões em que Hitler e Eva dormiram juntos como marido e mulher. Eles foram acordados às onze horas da manhã de 29 de abril. Por volta de meio-dia Hitler realizou a sua última conferência de guerra, por uma questão de hábito, uma reunião inútil. Em seguida despachou mensageiros para tirarem seus testamentos de Berlim. E começou a se aprontar para a morte.

        —  Conte-me como foi.

        —  Ele estava preocupado com a eficácia das cápsulas de cianureto de potássio que Himmler lhe dera há algum tempo.

        Perguntava-se se as cápsulas ainda tinham potência e se Himmler lhe dera as certas. Queria ter certeza absoluta.

        —   E foi então que Hitler experimentou uma cápsula de veneno em seu cachorro.                                                                                                                

        —  Ahn, já sabe disso.

        Emily não pôde definir se ele estava satisfeito por seu conhecimento ou irritado por ela se ter antecipado. Resolveu não mais revelar seu conhecimento, deixando-o contar toda a história com suas próprias palavras.

        —  Isso mesmo, com o cachorro — continuou Vogel. —- Hitler convocou um dos seus quatro médicos no bunker, o Dr. Werner Haase. Com relutância considerável, Hitler disse que queria saber se as cápsulas ainda mereciam confiança e queria experimentar uma com seu alsaciano predileto, Blondi. O Dr. Haase forçou uma cápsula pela boca do cachorro. E comunicou a Hitler: "A morte foi quase instantânea." Hitler também se separou nesse dia do objeto que mais prezava. Era um retrato oval de Frederico o Grande, pendurado acima de sua escrivaninha no bunker. Hitler sempre idolatrara Frederico, porque em 1762, quase ao final da Guerra dos Sete Anos e quando estava prestes a ser derrotado por russos, saxões e austríacos, Frederico conseguira sobreviver milagrosamente, quando a aliança desmoronara pela morte da czarina. Hitler entregou o retrato de Frederico a seu piloto favorito, Hans Bauer. Pediu-lhe que o guardasse ou desse a um museu. Mais tarde, ao tentar escapar, Bauer tirou o quadro da moldura e escondeu-o por baixo da camisa. Mas os russos apanharam-no e levaram-no para a prisão... e presumivelmente ficaram com o retrato.

        Vogel passou a recordar os eventos importantes que ocorreram em seguida.

        —  Por volta das nove horas daquela noite... domingo, dia 29. Hitler recebeu a notícia, transmitida pela rádio de Estocolmo, de que Mussolini fora capturado por guerrilheiros no norte da Itália e executado, juntamente com sua amante, Clara Petacci. É improvável que Hitler tenha tomado conhecimento da horrível seqüência               de fatos. Seja como for, ele não pareceu muito interessado. À meia-noite soube que Berlim não poderia ser defendida por mais tempo e que os soldados russos alcançariam a Chancelaria durante o dia que estava para começar. Às duas e meia da madrugada Hitler quis se despedir de sua equipe imediata. Vinte pessoas entraram em fila no corredor do bunker, e Hitler, acompanhado por Bormann, foi apertar a mão de cada uma. Quase ao romper do dia Hitler foi dormir, com Eva.

        —  Quando disse que ele acordou?

        —  Às cinco e meia da manhã de 30 de abril. Seu último dia. Foi informado de que os russos se aproximavam pelo Tiergarten, haviam alcançado a Potsdamer Platz, e de que uma unidade soviética se encontrava a menos de um quarteirão da Chancelaria e do bunker propriamente dito.

        —  Ele estava apavorado?

        —  Bastante calmo — declarou Vogel. — Talvez catatônico. Sabia que o fim chegara. Ordenou que Günsche reunisse 200 litros de gasolina ou combustível...

        —  Tanto faz — disse Emily, escrevendo.

        —  Günsche telefonou para Kempka, o motorista que estava no comando dos suprimentos de transporte, e pediu 200 litros. Kempka não podia conceber por que havia necessidade de tanto. Respondeu que não havia tal quantidade disponível e que seria arriscado procurar por mais. Günsche declarou que providenciasse o que fosse possível e levasse os latões cheios para a saída do Führerbunker, no jardim. Kempka deu um jeito de obter 180 litros e recrutou três corpulentos guardas da SS para ajudá-lo a levar os latões para o jardim. Enquanto isso acontecia, Hitler decidiu, por volta das duas e meia da tarde, calmamente, ter o seu último almoço. Convidou suas duas secretárias prediletas, Frau Trudl Junge e Frau Gerda Christian, assim como a sua tímida cozinheira vegetariana, Fraulein Konstanze Manzialy, a acompanharem-no. Eva Braun Hitler não participou do almoço. Comeram espaguete ao molho e uma salada mista. Enquanto isso, a artilharia russa continuava a bombardear incessantemente a área. Uma bomba explodiu perto da entrada do bunker, onde eu estava de guarda, e o impacto me derrubou. Fiquei apavorado. Desci rastejando os degraus para o corredor, a fim de me proteger. E foi assim que vi, com meus próprios olhos, a segunda e última despedida de Hitler, ao fina! do corredor. Ele acabara de sair de seus aposentos particulares, com Eva atrás. Usava o seu quepe de pala habitual, uma túnica cinzenta com a Cruz de Ferro, calça e sapatos pretos. Frau Hitler usava um vestido azul de bolinhas e sapatos italianos de salto alto. Desta vez havia doze homens e cinco mulheres no corredor. Hitler apertou as mãos de todos debilmente. Eva abraçou as mulheres e permitiu que os homens lhe beijassem a mão. Depois, Hitler e Eva voltaram a seus aposentos, enquanto os outros se dispersavam. A esta altura, Magda Goebbels saiu de seus aposentos e tentou falar com Hitler. Günsche bloqueou-lhe a passagem. Magda gritou mais ou menos o seguinte: "Tenho de falar com ele! Ele não pode se suicidar! Ainda há tempo para escapar até Berchtesgaden!" Magda foi tão insistente que Günsche abriu a porta de Hitler e enfiou a cabeça para dentro. Viu Hitler de pé junto a uma mesa. Eva estava no banheiro. Günsche repetiu a mensagem de Magda. Hitler murmurou: "É tarde demais... tarde demais para qualquer coisa." Linge se juntara a Günsche, e Hitler lhe disse: "Linge, velho amigo, quero que se junte ao grupo de fuga e saia daqui." Linge perguntou: "Por que, meu Führer?" Hitler respondeu: "Para servir ao homem que virá depois de mim." Uma pausa e ele acrescentou: "Feche a porta. Espere na ante-sala. Depois de dez minutos, abra a porta e entre." E foi então que Hitler e Eva se mataram.

        Emily interrompeu o relato:

        —  Mas ninguém viu? Vogel mostrou-se irritado:

        —  Como alguém poderia? As últimas instruções de Hitler foram para que o deixassem só.

        —  Como souberam que ele e Eva haviam se matado?

        —  Porque depois de dez minutos abriram a porta e encontraram os dois mortos no sofá de veludo azul e branco.

        —  Ouviram o tiro?

        —  Não ouviram nada. A porta dupla de aço que dava para os aposentos particulares de Hitler não era apenas à prova de fogo e de gás, mas também à prova de som.

        —  Alguns historiadores escreveram que foi ouvido um tiro. Vogel sacudiu a cabeça vigorosamente.

        —  Não, não. Foi um erro. Depois, quando Kempka entrou correndo no bunker a fim de saber o que estava acontecendo, Günsche comunicou-lhe que Hitler estava morto. Günsche usou um gesto familiar, apontando um dedo para a boca, como se fosse uma pistola, embora soubesse que Hitler se matara com um tiro na têmpora.

        Mais tarde, quando Kempka foi interrogado por agentes dos serviços secretos americano e britânico, perguntaram-lhe se ouvira o estampido do tiro do suicídio. Kempka sabia qual era a resposta que eles queriam e por isso respondeu que todos tinham ouvido o tiro. Mas na verdade ninguém o ouviu.

        —  Depois de dez minutos, quando os assessores de Hitler entraram nos aposentos, você se encontrava junto?

        —  Não — respondeu Vogel, em tom pesaroso. — Recebi ordens para voltar ao meu posto lá fora, na entrada do bunker. Mas vi outras coisas depois e lhe contarei a respeito. De qualquer maneira, soube o que aconteceu quando os outros entraram na sala de estar de Hitler. Linge foi o primeiro e sentiu-se nauseado pelo intenso cheiro de amêndoa e cordite. Foi seguido por Bormann, Günsche, Goebbels e Artur Axmann, líder da Juventude Hitlerista, que acabara de chegar.

        —  E todos viram Hitler morto? — perguntou Emily.

        —  Viram os dois mortos. Hitler estava caído no lado esquerdo do sofá. Mordera uma cápsula de cianureto e também, com a mão direita, encostara o cano da pistola preta Walther 7.65 na têmpora direita, na altura da sobrancelha, puxando o gatilho. O tiro abrira um buraco na têmpora e o sangue escorria do ferimento. A pistola escorregara de sua mão para o tapete.

        —  E Eva Braun Hitler?

        —  Estava a meio metro de Hitler. Tirara os sapatos e ajeitara as pernas por baixo do corpo. Mordera a cápsula de cianureto e caíra contra Hitler, as pernas derrubando um vaso branco de Dresden com tulipas sobre a mesinha. Aparentemente, também cogitara de usar uma pistola, uma Walther menor, mas Linge encontrou a arma na mesinha, intacta, todas as câmaras ainda carregadas. O Dr. Ludwig Stumpfegger, um cirurgião ortopédico, foi chamado. Examinou os dois e declarou-os mortos.

        —  Declarou-os mortos — repetiu Emily. — E como foi a cremação?

        —  Testemunhei essa parte pessoalmente. Uma coisa horrível. — Vogel ficou em silêncio por um momento, imerso em seus pensamentos, depois continuou: — Junto com vários outros guardas, fui um dos Zaungasíe... o que se poderia traduzir por abelhudos. Fui informado de que o assessor imediato Linge cobriu a parte superior  do corpo de Hitler com um cobertor militar marrom, escondendo o rosto ensangüentado. Linge carregou o corpo de Hitler da sala particular, passando pela ante-sala e atravessando o corredor até a base da escada da saída de emergência, que dava para o jardim. Mas Hitler pesava cerca de 80 quilos e era muito pesado para Linge sozinho. Ele entregou o corpo a três homens da SS, que o levaram com a cabeça virada para a frente pelos quatro lances de escada. Bormann subiu em seguida, carregando Eva, parcialmente coberta por um lençol, mas o rosto claramente visível. Kempka me disse que Bormann a carregou como a um "saco de batatas". Kempka sabia o quanto Eva detestara Bormann em vida, por isso tirou seu corpo das mãos de Bormann e entregou-o a Günsche, que o carregou escada acima, com a ajuda de outros dois homens da SS. Entre as explosões das granadas russas, pude ouvir ou sentir que alguma coisa estava acontecendo junto ao Führerbunker. Deixei meu posto e dei uma volta para ver o que estava ocorrendo.

        —  Viu quando enterraram os dois?

        —  Testemunhei tudo — garantiu Vogel. — Os três homens da SS saíram do bunker com o corpo de Hitler.

        —  Pôde ver o rosto dele?

        —  Ainda estava coberto. Mas vi claramente a calça preta familiar e os sapatos de solas grossas aparecendo por baixo do cobertor. Havia uma cova rasa a cerca de dez metros da saída. O corpo de Hitler foi posto ali. E depois trouxeram Eva Braun. Pude ver seu rosto. Parecia muito sereno. E vi também os pés saindo do lençol, com os sapatos Ferragamo. Puseram seu corpo na cova, ao lado do de Hitler. Nove pessoas saíram do bunker para assistir tudo, naquela tarde de muito vento. Reconheci Linge, Goebbels e Bormann, além do Dr. Stumpfegger.

        Vogel estremeceu à recordação daqueles momentos, antes de continuar:

        —  Dois homens da SS se adiantaram com os latões e começaram a derramar gasolina sobre os corpos... eu diria que foram uns 50 galões. Linge tentou acender alguma coisa para atear fogo aos corpos, mas uma sucessão de explosões de granadas russas levou-os a voltarem pela saída de emergência do bunker, Linge conseguiu finalmente acender uma tocha improvisada, um jornal enrolado ou um pano, adiantou-se e jogou nos corpos encharcados de gasolina.

        No mesmo instante elevou-se uma chama azulada e muita fumaça. As nove testemunhas ergueram os braços na velha saudação nazista. As chamas se tornaram ainda mais altas. As testemunhas voltaram para o bunker, e eu retornei a meu posto.

        —  A cremação acabara?

        —  Não inteiramente. Não era fácil queimar dois corpos numa cova rasa. Deram ordens para que se continuasse a despejar gasolina sobre os corpos. Por três ou quatro horas guardas da SS voltaram à cova para derramar mais e mais latões de gasolina sobre os cadáveres. Pouco antes do anoitecer, quando ainda havia claridade, resolvi dar outra olhada.

        —  E viu os restos mortais de Hitler e Eva Braun. Vogel balançou a cabeça.

        —  Não havia ninguém à vista, e por isso me aproximei da cova. As chamas estavam baixas. Tive a impressão de divisar os contornos do rosto de Hitler. O calor era terrível. Os dois corpos fumegavam, a carne se desmanchando. A parte inferior do corpo de Hitler já queimara por completo. Só pude ver suas tíbias. Não dava para reconhecer o corpo de Eva Braun, apenas que era o corpo queimado de uma mulher. Virei para o lado e vomitei. Mais tarde, disseram-me que os dois corpos queimados foram enterrados.

        —  E lhe disseram onde?

        —  Contaram-me que o Brigadeführer SS Johann Rattenhuber, chefe da segurança do bunker, ordenou que três outros guardas da SS retirassem os corpos da cova rasa e os enterrassem ali perto. Os guardas da SS pegaram um pedaço de lona, ali puseram o que restava dos corpos, ossos e cinzas, levaram para uma cratera aberta por uma bomba, não muito longe dali. Cobriram a cratera com terra solta e escombros, depois socaram com um soquete de madeira ou uma pá. Ouvi dizer que Axmann procurou os guardas, pediu-lhes que pegassem um pouco das cinzas de Hitler, guardou-as numa caixa e levou-as embora, só Deus sabe para onde. Depois disso, as outras pessoas no bunker saíram, tentando salvar suas vidas. Recebi a ordem de ficar, junto com mais três guardas da SS, a fim de eliminarmos todo o material de segurança que ainda restasse no interior do bunker. Bebemos e dormimos um pouco, e pela manhã começamos a dar cabo de documentos e pertences pessoais. Ao final da manhã os primeiros russos apareceram no bunker. Eram do NKVD. Queriam saber onde estava Hitler. Contei o que acabei de lhe relatar. Eles quiseram ver o local em que estavam os corpos. Um dos nossos homens conduziu-os à cratera cheia de terra. Os russos escavaram e tiraram as mandíbulas de Hitler. Conseguiram comparar os dentes com as radiografias dos dentes de Hitler que encontraram numa ficha dentária. Ficaram convencidos de que Hitler morrera e fora enterrado no jardim do Führerbunker. Aí está toda a história, Fraulein Ashcroft.

        Emily continuou sentada, imóvel, descansando a mão que tanto escrevera. Parecia uma história muito real, absolutamente autêntica, como se fosse um evento acima e além de qualquer dúvida. Apesar disso, Emily tinha uma missão a cumprir, a missão de seu pai, foi por isso que indagou abruptamente:

        —  Os restos mortais... as mandíbulas... podiam ser de outra pessoa que não Hitler?

        Vogel ficou aturdido.

        —  Como poderiam ser de outra pessoa?

        Emily lembrou-se que o suicídio de Hitler fora o ponto central da vida de Vogel, de toda a sua vida, a sua história muitas vezes contada, e que ele jamais admitiria suspeitas sobre a sua veracidade.

        E parecia mesmo verdadeira. Era algo que ela não podia deixar de reconhecer. Houvera muitas testemunhas, até demais. Seria possível que todas tivessem concordado em mentir? Não, era impossível. Ou teriam sido enganadas? Era improvável. Ou queriam acreditar porque fora, como no caso típico de Vogel, um grande momento histórico em suas vidas, e queriam que fosse verdade? Tudo acontecera realmente como acabara de ser relatado? Seria toda a verdade?

        Emily perguntou-se se aquela história seria mais verídica do que as suspeitas de um dentista possivelmente lunático. A menos que se encontrasse pessoalmente com o dentista e ele se mostrasse absolutamente persuasivo, ela teria de aceitar a história de Vogel, a versão oficial, para o clímax do livro. Era possível que o pai estivesse errado, tivesse sido enganado. Era provável que tivesse acabado de ouvir toda a verdade, que não precisasse investigar ainda mais. Podia seguramente concluir o livro com aquele relato.

        Mas a divergência ainda a apoquentava. Sempre respeitara o pai, sua diligência, firmeza, objetividade, e havia alguma coisa que o desconcertava na versão histórica. Além disso, o repórter Nitz a advertira: Não deixe que Vogel a desestimule com a sua história. Depois de escutá-lo, tente conversar com seu indeciso informante com empenho ainda maior. Use o testemunho de Vogel para arrancar toda a verdade do outro homem.

        Ela chegou à conclusão de que deveria dar um passo em frente. Era indispensável. Se aquela não era a verdade, então a outra versão seria.

        Emily levantou-se, agradecendo a Vogel e prometendo que lhe mandaria um dos primeiros exemplares do livro.

        De volta à suíte no Kempinski, Emily descobriu-se a hesitar mais uma vez.

        Ernst Vogel fora tão convincente em sua certeza da morte e sepultamento de Hitler em 1945 que qualquer esforço de contestar sua história parecia rematada tolice. Talvez a última investigação do pai em Berlim fosse quixotesca, um deslize de sua estabilidade normal, o desejo inexplicável de produzir em seus derradeiros anos uma revelação sensacional. Talvez ela, como a maioria das filhas, estivesse agindo sob o impulso inconsciente do relacionamento freudiano que liga as filhas aos pais. Afinal, era bem possível que o pai estivesse enganado. E nessa guerra civil de incerteza ela estava quase preparada para bater em retirada. Faria as malas, deixaria Berlim, voltaria a Oxford e terminaria o livro.

        Mas o fantasma paterno ainda a vigiava. Hesitou. Era difícil repudiar sua herança tão abruptamente.

        Embora dominada pela dúvida, entrou no quarto lentamente, pegou a pasta de correspondência recente que trouxera de Oxford, sentou na beira da cama e folheou-a. Tirou a carta para o pai que desencadeara tudo aquilo — a carta do dentista, Dr. Max Thiel, de Berlim Ocidental. Começou a relê-la. "Todas as histórias contadas até hoje sobre Adolf Hitler e Eva Braun podem estar erradas num ponto importante. É bem possível que Hitler e Braun não tenham cometido suicídio no Führerbunker em 1945. Os dois podem ter sobrevivido. E creio que disponho da prova disso." Dobrou a carta e pensou que o pai se encontrara com o Dr. Thiel, devendo ter ficado bastante impressionado para providenciar escavações na área do Führerbunker em busca de novos indícios, ignorados até então.

        Continuou a folhear a pasta de correspondência. Encontrou a cópia da carta que enviara ao Dr. Thiel, declarando que tencionava prosseguir na investigação do pai e que para isso precisava de sua ajuda. Era crucial para sua pesquisa, ela escrevera, era indispensável que se encontrassem. Presa por um clipe à cópia da carta.estava a lacônica resposta do Dr. Thiel: "Prezada Srta. Ashcroft: Lamento não poder recebê-la ou a qualquer outra pessoa para tratar desse assunto."

        E foi então que se lembrou do que o pai lhe dissera na última vez em que conversaram pelo telefone: "Emily, nosso livro deve ser a última palavra, a verdade absoluta, a palavra final."

        Quixotesco? Não. O pai descobrira alguma coisa.

        Emily largou a pasta de correspondência e encaminhou-se resoluta para a sala da suíte. Postou-se diante do telefone na mesa e discou o número do Dr. Max Thiel.

        Um toque da campainha. Dois. E atenderam. Uma voz de velha, dizendo em alemão:

        —  Alô?

        —  É da residência do Dr. Max Thiel? Um breve silêncio.

        —  Quem está falando?

        —  Sou a filha do Dr. Harrison Ashcroft. Preciso falar com o Dr. Thiel. Vim da Inglaterra para me encontrar com ele.

        —  Um momento, por favor.

        Emily pôde ouvir vozes abafadas ao fundo. Esperou, muito tensa.

        O pai lhe dissera, depois de falar com o Dr. Thiel pelo telefone, que a voz profunda do dentista era firme e convincente. Depois do encontro, o pai comentara que o dentista também se mostrara muito cordial.

        Contudo, a voz que ela ouviu agora, uma voz de homem, não era tão cordial, mas ríspida.

        —  Quem está falando?

        —  Dr. Thiel? Meu nome é Emily Ashcroft. — Explicou rapidamente quem era, lembrou-o do pai e do livro. — Convidou meu pai a procurá-lo. Ele assim o fez, e achou-o prestativo e gentil. Vim a Berlim para continuar a pesquisa de meu pai, Dr. Thiel...

        —  Por favor, não torne a falar meu nome pelo telefone — disse ele cortante.

        —  Desculpe. Não tornarei a fazê-lo, se assim deseja.

        —  Não é o que desejo. Apenas é imprudente.

        Emily percebeu medo na voz e receou que ele desligasse. Por isso apressou-se em acrescentar:

        —  Vim a Berlim para conversar com o senhor.

        —  Impossível.

        —  Mas  recebeu meu pai. Estava disposto a ajudá-lo.

        —  E veja o que aconteceu com ele — respondeu o Dr. Thiel, ainda mais rispidamente.

        —  Foi um acidente.

        A voz do Dr. Thiel abrandou um pouco quando disse:

        —  É possível. Talvez tenha sido mesmo um acidente. Mas não posso ter certeza. — Hesitou. — Lamento a morte de seu pai. — Uma pausa e acrescentou, obstinado: — Seja como for, não quero correr riscos. Não torne a me incomodar, por favor. Escreva o que achar melhor.

        —  Quero escrever a verdade — declarou Emily, em tom emocionado. Lembrou-se então da sugestão de Nitz. Use o relato de Vogel para arrancar a verdade do outro informante. — Talvez eu possa usar apenas o que Ernst Vogel me contou...

        —  Quem?

        —  Ernst Vogel. Era um sargento da SS e integrava a guarda de honra no Führerbunker. Testemunhou os últimos dias de Hitler. Conversei com ele hoje. Confirmou o que Linge, Günsche e Kempka disseram em seus depoimentos. Vogel afirma que Hitler se matou com um tiro, que viu o corpo ser levado para o jardim do bunker e cremado. Reiterou a versão oficial. Insinuou que qualquer outra versão da morte de Hitler só podia vir de lunáticos.

        O Dr. Thiel engoliu a isca.

        —  Vogel é um rematado idiota — disse, irritado. — Acredita no que lhe foi impingido, numa lavagem cerebral. Sei quem ele é. Não passa de um guarda imbecil que jamais conheceu Hitler.

        —  Mas o senhor conheceu Hitler pessoalmente? — perguntou Emily, em tom inocente.

        —  Claro. E muito bem.

        —  E sabe de mais alguma coisa, que transmitiu a meu pai. É uma pena que não queira contar a mim também. Serei agora obrigada a perpetuar a mentira, a não contar a verdade, a deixar que a história permaneça distorcida. Houve um breve silêncio.

        —  Será que isso tem realmente alguma importância, depois de quarenta anos? É melhor não mexer em casa de marimbondo.

        —  Mas insinua que os marimbondos ainda podem picar — disse Emily fervorosamente. — E se quer saber, acho que é da maior importância que tudo a respeito de Hitler seja finalmente conhecido. Para que nunca mais possa surgir um homem como ele. Se Hitler ainda está vivo, deve ser denunciado e punido. Não podemos permitir que continue impune. A verdade importa, e muito. Meu pai pensava assim. Sou sua filha e também penso. Acha que os Vogels deste mundo devem continuar a perpetuar seus falsos mitos, se é que são mesmo mitos? Se há algo mais na história, eu gostaria que me ajudasse. Em nome de meu pai. Ele era um homem de bem que...

        —  É verdade, ele era um homem de bem — concordou o Dr. Thiel. — Achei-o muito simpático. Mas era também imprudente e talvez tenha pago por isso. — Hesitou. — Mas talvez eu também seja imprudente. Provavelmente possa recebê-la. Mas tem de ser um encontro discreto, e desta vez sem qualquer publicidade.

        —  Prometo que não haverá. E tomarei todo cuidado.

        —  Está certo. Tem o meu endereço. Ainda disponho de uma hora antes do jantar. Pode vir até aqui imediatamente?

        —  Claro.

        Emily inclinou-se para a frente, na única cadeira do pequeno laboratório odontológico, na parte profissional da espaçosa casa de dois andares do Dr. Thiel, bem recuada numa rua larga, a Heerstrasse, a oeste do Rio Havei e a cerca de 25 minutos de táxi do Hotel Kempinski. O Dr. Max Thiel estava sentado à sua frente, num banco branco e alto, um cotovelo sobre o balcão de fórmica por trás.

        Mostrava-se amistoso e cortês desde o instante em que ela chegara. Era um homem alto, encurvado, lembrando uma garça, os cabelos grisalhos penteados para o lado, olhos azuis vivos por trás de óculos de aros de ouro, rosto comprido. Usava um terno escuro e leve, camisa branca, gravata azul-marinho, colarinho engomado. Emily calculou que ele devia estar na casa dos oitenta anos.

        Depois de levá-la ao laboratório, ele desaparecera, voltando pouco depois com uma bandeja contendo duas xícaras de chá e uma travessa de bolinhos, enviados pela esposa, que não se dera a conhecer.

        Ele se instalara no banco, tomando o chá ruidosamente; depois largou a xícara no balcão e disse:

        —  Então aqui estamos, Srta. Ashcroft. Seu pai lhe falou alguma coisa de nosso encontro há poucas semanas?

        —  Nada, exceto que a sua informação deixou-o excitado, levando-o a providenciar uma escavação. Comentou que não podia entrar em detalhes pelo telefone e que só me contaria tudo quando voltasse a Oxford. Portanto, não sei o que aconteceu entre vocês dois. Só sei que foi da maior importância.

        —  Pois saberá de tudo agora. Emily ficou na maior expectativa.

        —  Já deve saber que os soviéticos foram os únicos que investigaram a suposta morte e sepultamento de Hitler.

        —  Sei sim. Temos arquivada em Oxford uma cópia da autópsia. Não a revisei recentemente. Estava deixando para estudá-la de novo quando chegasse ao capítulo final da biografia de Hitler.

        —  Para aproveitar melhor o nosso tempo, vou resumir as descobertas dos diversos investigadores soviéticos. Em primeiro lugar, deve compreender que há uma omissão vital em todos os depoimentos. Ninguém viu Hitler se matar. Ninguém viu Eva Braun se matar. Nenhuma pessoa jamais alegou ter testemunhado isso. Conhecemos apenas a história que os investigadores soviéticos, assim como os britânicos, americanos e franceses, ouviram dos alemães que se encontravam no Führerbunker ou por perto em abril de 1945. Ouvimos depoimentos de que Hitler, com sua causa perdida e o Terceiro Reich desmoronando, planejava se matar. Depois disso, os depoimentos dizem que ele e a mulher se suicidaram na privacidade, diversas pessoas viram os cadáveres, que foram levados para o jardim e cremados. Mas, além da palavra de seus assessores e dos guardas, nunca houve qualquer prova científica de que o homem e a mulher que se mataram no bunker eram mesmo Adolf e Eva. Para provar um crime, auto-infligido ou não, é regra geral de todos os tribunais invocar a necessidade de um corpus delicti — a prova material ou corpo da vítima de violência. Neste caso, não houve corpos — cadáveres — para examinar. Os corpos foram queimados às pressas, reduzidos a cinzas e ossos carbonizados. Sem os corpos, como poderiam os investigadores estar cientificamente certos de que Hitler e sua mulher se mataram?

        —  Mas houve algumas evidências materiais — protestou Emily. O Dr. Thiel assentiu.

        —  Algumas. Os investigadores soviéticos convenceram-se de que Hitler e Eva haviam morrido. Mas eu jamais fiquei convencido de que isso acontecera de fato.

        O coração de Emily disparou com as últimas palavras. Não era de admirar que o pai ficasse tão excitado. Era o que também começava a lhe acontecer. Apesar disso, ainda tentou se controlar, fez uma última e débil tentativa de bancar o advogado do diabo:

        —  O que está querendo dizer, Dr. Thiel, é que Hitler pode ter sobrevivido. Se isso ocorreu, como poderia ele ter escapado? Pelas transcrições que li sobre o último dia, quando os soviéticos cercavam o bunker, ele não poderia escapar de carro ou a pé. Talvez fosse possível de avião. Mas fomos informados por Hanna Reitsch, a mulher piloto que o visitou à noite, que ela mesma saiu de Berlim com o último avião disponível, um Arado-96. Até mesmo o Oberführer Hans Bauer, o piloto pessoal de Hitler, não foi capaz de encontrar um avião, quando estava querendo fugir. Teve de escapar a pé, foi capturado pelos russos e ficou preso na União Soviética até 1955. Além disso, não restavam pistas para se decolar. O Coronel SS Otto Skorzeny, do comando, declarou que não restava uma única pista que os nazistas pudessem usar. — Emily levantou as mãos. — Se Hitler sobreviveu, como poderia ter escapado?

        A resposta do Dr. Thiel foi simples:

        —  Não sei, Fraulein Ashcroft. Cabe-lhe descobrir isso. Tudo o que sei, tenho certeza, é que Hitler sobreviveu a seu suposto suicídio. Ele não foi cremado naquele dia fatídico. Os soviéticos estavam enganados e creio que posso prová-lo.

        Mais uma vez, Emily experimentou uma onda de esperança e um ímpeto de curiosidade. Em silêncio, ficou esperando que o Dr. Thiel apresentasse a tal prova.

        —  Contarei primeiro o que os soviéticos descobriram e depois lhe direi o que eu descobri, Fraulein Ashcroft. No dia anterior à suposta morte de Hitler, o comando soviético já em Berlim organizouum pequeno grupo especial de oficiais do NKVD, do Terceiro Exército russo, com a participação de uma intérprete feminina, Yelena Rzhevskaya, com a missão de descobrir o paradeiro de Hitler, localizá-lo vivo ou morto. O Tenente-Coronel Ivan Klimenko, um interrogador soviético, levou oficialmente sua equipe ao Führerbunker. Os russos sabiam que aquele Führerbunker profundo existia e que Hitler já passara 105 dias lá dentro. Pouco antes de Klimenko iniciar sua pesquisa, outros russos já se haviam encaminhado para o Führerbunker, inclusive doze médicas do Corpo Médico do Exército Vermelho e cerca de vinte oficiais soviéticos. Eles não estavam à procura de Hitler, mas apenas de souvenirs. Esses saqueadores confiscaram tudo, de abajures e talheres com monograma aos sutiãs franceses de seda preta de Eva Braun. Em 2 de maio de 1945, dois dias depois da anunciada morte de Hitler, Klimenko chegou ao Führerbunker e iniciou sua investigação. Ao cair da noite já examinara um corpo de homem, que outra equipe encontrara num tonel de carvalho de água. Ordenou que fosse posto no chão de um salão na Velha Chancelaria, ao lado, e identificou-o em princípio como o cadáver de Hitler. Apesar disso, Klimenko voltou ao Führerbunker dois dias depois. Numa cratera de bomba, no jardim da Chancelaria, um soldado chamado Ivan Churakov descobrira os restos mortais de um homem e uma mulher. Klimenko declarou: "Claro que a princípio nem me passou pela cabeça que poderiam ser os restos de Hitler e Eva Braun, pois acreditava que o cadáver de Hitler já se encontrava na Chancelaria, faltando apenas a identificação definitiva. Por isso, ordenei que os restos fossem enrolados em mantas e enterrados novamente." Enquanto isso, na Chancelaria, oficiais e diplomatas alemães que haviam conhecido Hitler pessoalmente concordavam que o primeiro corpo, no chão do salão, não era o de Hitler. Possivelmente um sósia. Mas não Der Führer. Klimenko lembrou-se então dos dois corpos que mandara enterrar outra vez na cratera de bomba, a três metros da saída de emergência do Führerbunker. Acompanhado por sua equipe, Klimenko seguiu rapidamente de jipe para o local. Deixe-me agora ler o relatório do que aconteceu em seguida.

        O Dr. Thiel abriu uma gaveta a seu lado e tirou um maço de papéis e alguns negativos de fotografias.

        — E eles tornaram a desenterrar os dois corpos — disse Emily.

        O Dr. Thiel assentiu, enquanto examinava os papéis.

        —  Isso mesmo. Os corpos ainda estavam enrolados nas mantas. Os russos colocaram-nos em caixas de madeira e mandaram-nos de caminhão para um hospital de campanha em Berlim-Buch, um subúrbio da capital, ao norte. E foi lá que os especialistas soviéticos iniciaram autópsias meticulosas.

        —  Nos corpos? — interrompeu-o Emily. — Mas não havia mais corpos.

        —  Não eram corpos no sentido mais rigoroso — explicou o Dr. Thiel. — Na verdade, eram restos de corpos. Vou ler o relatório soviético. Sobre o corpo masculino: "Tendo em vista que o cadáver está bastante danificado, torna-se difícil avaliar a idade do falecido. Presumivelmente, situa-se entre 50 e 60 anos. O cadáver está bastante carbonizado e cheira a carne queimada. Parte do crânio está faltando. Partes do osso occipital, o osso temporal esquerdo, as mandíbulas superior e inferior estão preservados. A pele está completamente ausente do rosto e do corpo; estão preservados apenas remanescentes de músculos carbonizados."

        O Dr. Thiel fez uma pausa, levantando os olhos.

        —  Não há pele, portanto não há impressões digitais. — Consultou os papéis em suas mãos, antes de continuar: — Vamos ao relatório seguinte. "Tendo em vista que partes do corpo estão extensamente carbonizadas, é impossível descrever as feições da mulher morta. A idade se situa entre 30 e 40 anos." Também não há impressões digitais. Entretanto, os especialistas soviéticos concluíram que dispunham de um meio igualmente seguro de identificação. Tinham as mandíbulas superior e inferior dos dois cadáveres, com os dentes e serviços odontológicos intactos.

        —  O que exatamente eles tinham para trabalhar?

        —  As pontes superior e inferior do corpo do homem. Uma era antiquada, uma coroa de metal amarelo, ouro, que se ajustava nos molares. E havia também uma ponte de ouro na mandíbula de Eva Braun. A intérprete soviética, Yelena Rzhevskaya, falou com Fraulein Káthe Heusemann, que fora assistente do dentista de Hitler, Dr. Hugo Blaschke, e Fritz Echtmann, o protético que fizera as pontes. Fraulein Heusemann levou os investigadores ao consultório do Dr. Blaschke, nas ruínas da Chancelaria. Encontraram ali as últimas radiografias dos dentes de Hitler e Eva Braun. Foram comparadas com as pontes nas mandíbulas que os soviéticos guardavam numa velha caixa de charuto, dentro de um saco. As pontes correspondiam às radiografias anteriores dos dentes de Hitler e Braun. A Comissão Legista Soviética exigia apenas dez pontos de similaridade para uma identificação positiva, mas alegaram ter encontrado vinte e seis pontos coincidentes. Com base nessa autópsia, os soviéticos anunciaram a 9 de julho de 1945 que haviam finalmente encontrado os restos mortais de Adolf Hitler e Eva Braun.

        —  Mas o senhor discorda — disse Emily. — Não acredita que tenham encontrado Hitler e Eva Braun. Por quê?

        —  Porque também fui um dos dentistas de Hitler. Ele me chamou quando não confiava mais no Dr. Blaschke para certos trabalhos especializados. Mas como ele não queria problemas com o Dr. Blaschke, meus serviços foram mantidos em segredo. Em conseqüência, como a minha atuação era praticamente desconhecida, não fui interrogado pelos soviéticos. Consegui obter cópias dos relatórios em que os russos explicaram sua identificação positiva. Eu tinha condições de comparar suas descobertas com meu trabalho em Hitler. As pontes eram as mesmas, com uma pequena diferença. Quando ajustei as pontes de Hitler, acrescentei um pequeno gancho, quase invisível, à placa superior, a fim de ajustá-la melhor à coroa de ouro. Esse gancho não estava na ponte que os soviéticos tinham, segundo os relatórios da autópsia. O que me deixou desconfiado.

        —  Talvez o gancho que acrescentou à ponte tenha se derretido — sugeriu Emily.

        O Dr. Thiel gesticulou impacientemente.

        —  Não, não, é impossível. O gancho era de ouro. Se tivesse se derretido, o mesmo teria acontecido com toda a ponte. Tenho certeza de que o cadáver masculino que os russos identificaram como o de Hitler era de um sósia, com os dentes trabalhados para ficarem iguais aos de Hitler. Só que o meu gancho estava faltando. Mas se o corpo cremado era de um sósia de Hitler, eu ficava com um problema. Se era um falso Hitler, o que acontecera com o verdadeiro?

        —  Foi por isso que sugeriu a meu pai que tornasse a escavar no jardim do Führerbunkerl

        —  Sugeri que ele procurasse pela última vez por duas provas... outra mandíbula, com outra ponte dentária, a mesma que fiz para Hitler, a verdadeira. Se descobrisse isso, Fraulein Ashcroft, saberia com certeza que Hitler morreu mesmo e foi cremado, como tantos alegam.

        —  Só falou até agora numa coisa para procurar, Dr. Thiel. Mas disse que havia duas provas. Qual é a outra?

        O Dr. Thiel estava folheando os papéis. Levantou uma folha.

        —  Está vendo isto?

        Emily inclinou-se para a frente, a fim de olhar melhor. Era um desenho tosco, a caneta, parecendo uma espécie de camafeu com o rosto de um homem.

        —  O que é isso?

        —  A segunda coisa que deve procurar, se conseguir autorização para escavar na área do Führerhunker. É um camafeu que Hitler usava, pendurado de uma corrente no pescoço, caindo sobre o peito. Provavelmente ninguém sabia que Hitler o usava, com exceção de Eva, que dormia com ele. Só o vi por puro acaso. Submeti Hitler a uma anestesia geral na última vez em que lhe fiz um trabalho. Para deixá-lo mais confortável, desabotoei-lhe o primeiro botão da camisa. E ali estava, contra o peito, este camafeu, obviamente um amuleto.

        —  De quem é esse rosto no camafeu?

        —  Conhece o quadro a óleo que Hitler levava a qualquer lugar onde fosse, durante seis anos, o que estava pendurado em cima de sua escrivaninha no Führerhunker até quase o final, quando ele o entregou a seu piloto particular Bauer para levá-lo a um lugar seguro, antes da chegada dos russos? O camafeu era uma reprodução do rosto do seu quadro predileto.

        —  O rosto de Frederico o Grande.

        O comprido rosto do Dr. Thiel ofereceu um sorriso de aprovação.

        —  Exatamente. Todos os depoimentos dizem que Hitler morreu e foi cremado completamente vestido. Se isso de fato aconteceu, ele ainda estaria usando este camafeu por baixo da túnica e da camisa, quando foi enterrado. Ninguém teve tempo de procurar. Mas os soviéticos nunca o encontraram, provavelmente jamais tiveram conhecimento de sua existência. Portanto, se foi de fato o corpo de Hitler que os soviéticos encontraram, o camafeu ainda estaria lá, perdido entre a terra e os escombros. Se escavar e conseguir encontrar o camafeu ou a ponte de ouro em que trabalhei, terá descoberto o verdadeiro Adolf Hitler e poderá confirmar que os soviéticos estavam corretos ao presumirem que Hitler foi cremado e enterrado no jardim. Mas deve escavar mais meticulosamente do que qualquer outro já o fez antes. Se terminar de mãos vazias, então é bem provável que Hitler não tenha morrido, ao contrário do que anunciaram os soviéticos. Teria uma prova concreta de que Hitler sobreviveu a seu suposto fim e escapou do Führerbunker. Emily só tinha uma dúvida.

        —  E se Hitler tirou o seu camafeu de Frederico o Grande e pôs a corrente no pescoço do sósia?

        —  Não creio que ele pudesse sequer cogitar disso. Se escapasse, seria com o camafeu ainda pendurado no pescoço. Era o seu eterno amuleto. E se não houver o camafeu, há ainda a ponte de ouro que ajustei.

        Os olhos de Emily fixaram-se nos do Dr. Thiel.

        —  Acha então que eu deveria escavar o local?

        O Dr. Thiel balançou a cabeça devagar, em assentimento.

        —  Escave, Fraulein Ashcroft, escave fundo, se quer descobrir a verdade. E caso a encontre, não conte a ninguém... até que esteja longe de Berlim e pronta para revelar ao mundo. É isso mesmo, Fraulein, escave e se mantenha em silêncio.

    

        E ali estava ela, finalmente, sentada no banco traseiro do Mercedes com ar-condicionado, ao lado de Peter Nitz, seguindo para o muro que dividia os dois mundos de Berlim Ocidental e Berlim Oriental.

        Emily Ashcroft acordara cedo, inspirada pelo encontro com o dentista de Hitler e firmemente determinada a elucidar o mistério dos últimos dias de Hitler em seu esconderijo.

        Sua primeira iniciativa, depois de pedir o café da manhã, fora entrar em contato com uma telefonista especial e ligar para o Professor Otto Blaubach, em seu gabinete oficial, em Berlim Oriental. Ele a atendera imediatamente e se mostrara um modelo de cordialidade. Sim, recebera a carta de Emily e ficara aguardando o seu telefonema, estava ansioso por encontrá-la. Teria o maior prazer em revê-la, em Berlim Oriental. Duas horas da tarde seria conveniente para ela? Emily respondera que aquela hora estava perfeita.

        Depois de comer, lembrara-se de que só estivera uma vez no setor oriental, três anos antes, acompanhando o pai. O Dr. Ashcroft cuidara de tudo, e a travessia da fronteira parecera muito simples. Naquela tarde, porém, estaria sozinha. Seu destino parecia mais estranho do que nunca, e desejara um acompanhante, alguém que conhecesse Berlim Oriental.

        Prestes a ligar para a portaria e pedir um carro particular com um motorista que conhecesse bem as duas partes da cidade, ela se lembrara de outra pessoa. Ligara para o Berliner Morgenpost e encontrara Peter Nitz à sua mesa.

        — Estou procurando um guia — explicara ela. — Vou a Berlim Oriental e isso me deixa nervosa. Sei que é bobagem, mas...

        —  Tem toda razão em se sentir apreensiva. E posso ajudá-la. Tenho alguém de confiança. È um motorista autônomo, chamado Irwin Plamp.

        —  Plamp?

        —  Talvez o nome lhe pareça insólito. É como uma pronúncia errada da palavra inglesa plump2 E ele realmente é. Vai a Berlim Oriental quase todos os dias. Meu jornal sempre usa seus serviços. Ele guia um seda Mercedes novo. Quando vai querê-lo?

        —  Esta tarde. Tenho um encontro às duas horas com o Professor Otto Blaubach, o vice-ministro, em seu gabinete.

        —  Vou verificar se Plamp está livre. Se não estiver, ligarei para você. Mas se ele estiver disponível, irá encontrá-la no hotel. Eu diria que você deve estar pronta à uma hora.

        —  Certo.

        —  Posso presumir que vai tentar obter permissão para efetuar uma escavação no jardim perto do Führerbunkerl

         —  Exatamente.

        —  Já viu o Führerbunker depois de 1961, quando foi fechado pelo muro, Srta. Ashcroft?

        —  Já, sim. Passei por lá há três anos. E estou bem informada sobre a Alemanha Oriental, através das pesquisas de meu pai.

              :— Talvez eu possa pô-la a par de mais alguns fatos, antes de seu encontro com o Professor Blaubach. E se quiser, terei o maior prazer em servir como seu guia em Berlim Oriental.

        —  É mesmo? Seria maravilhoso, Sr. Nitz.

        E agora estavam ali, no banco traseiro do Mercedes de Plamp, Nitz concordando em chamá-la de Emily e ela concordando em chamá-lo de Peter, aproximando-se de uma barreira cinzenta de concreto, de aspecto sujo, à esquerda. Nitz mandou que o motorista parasse.

        —  Die Mauer — disse Nitz. — O muro.

        —  Assustador! — exclamou Emily.

        Ela ficou olhando fixamente para a agressiva barreira de concreto.

       

        —  É difícil crer que foi levantado da- noite para o dia — comentou Nitz. — A Deutsche Demokratische Republik — o governo alemão oriental — insistiu na construção para proteger a sua população de invasão ocidental. Mas nós sabemos que o problema não é bem este. Nos doze anos anteriores à construção do muro, um quinto da população de Berlim Oriental deixou suas casas e cruzou a fronteira para a Alemanha Ocidental. No último mês antes da construção do muro, mais de 140 mil alemães orientais fugiram para a Alemanha Ocidental. Nos anos que transcorreram desde então, setenta e dois berlinenses orientais foram mortos quando tentavam escalar o muro e passar para a Alemanha Ocidental.

        Nitz fez uma pausa, enquanto ordenava a Plamp que tornasse a partir. Assim que estavam em movimento outra vez, ele voltou a falar:

        —  Todo o muro entre as duas Alemanhas estende-se por cerca de 120 quilômetros, mais de 85 por cento originalmente em concreto sólido, o resto composto por cercas de arame. O muro entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental tem cerca de 46 quilômetros. A altura média é de três metros e meio. Bem aqui...

        Emily percebeu que haviam feito uma curva e seguiam agora num curso paralelo ao muro. Tornou a ver o que já contemplara na visita anterior. O muro era uma confusão de graffiti — slogans e desenhos — pintados em cada palmo. Tinha por cima, em toda a extensão, uma espécie de cano de concreto.

        —  Além do muro, no lado alemão oriental, como já viu pessoalmente — disse Nitz —, ainda há uma zona desmilitarizada, com muito arame farpado e barreiras antitanque. Com abrigos subterrâneos profundos. Essa chamada Zona de Segurança de Fronteira tem torres de vigia de concreto a intervalos, cada uma ocupada por três soldados alemães orientais empunhando metralhadoras ou usando binóculos. O que restou do Führerbunker está dentro dessa zona. Não há muito para ser ver, como sabe.

        Emily notou que estavam diminuindo a velocidade, ao se aproximarem de um terreno baldio, invadido pelo mato, com muitos ônibus e carros de turistas por perto, um mercado de barraquinhas, um bar, uma loja de souvenirs com estantes giratórias de cartões-postais, transparências coloridas e mapas à venda. À direita, a apenas uns doze metros do muro, havia uma estrutura de observação, com uma plataforma por cima, apinhada de turistas, espiando por cima do muro para a área que era a Zona de Segurança de Berlim Oriental.

        —  Vamos estacionar aqui, na velha Potsdamer Platz, se quiser — disse Nitz. — Achei que gostaria de dar uma olhada no local do Führerbunker lá da plataforma.

        —  Acertou em cheio — respondeu Emily. — Minha última olhada foi muito rápida. Mas agora que o Führerbunker é meu destino final... ora, vamos lá!

        Eles saíram do Mercedes e Emily seguiu Nitz até a base das duas escadas de madeira e canos que subiam acima do muro. Juntos, foram até a plataforma de observação. Tiveram que passar por meia dúzia de turistas para chegarem à beira da plataforma. Mais uma vez, Emily contemplou a terra de ninguém.

        Havia uma torre de vigia guarnecida a alguma distância à direita. Uma motocicleta cinza-marrom com um motorista e sidecar ocupado se aproximava da torre, levando guardas para a troca, em uniformes de um verde escuro. Havia ruas abandonadas, agora intransponíveis pela instalação de cruzes de aço pontiagudas, e a distância podia-se divisar uma cerca baixa e um portão, que dava passagem aos soldados de Berlim Oriental. Nitz apontou para a frente e anunciou:

        —  O Führerbunker.

        Emily estreitou os olhos para observar. Nitz orientou-a.

        —  Está lembrada? Aquele monte de terra, como se fosse uma corcova, seis ou sete metros de altura, à esquerda da estrada estreita que os guardas usam, a cerca de 400 metros daqui de onde estamos.

        —  Estou vendo — murmurou Emily impressionada.

        —  Os russos meteram tratores na área em 1947, mas não conseguiram nivelar por completo — comentou Nitz. — Aparentemente, limitaram-se a cobrir tudo, porque uma vez um alemão oriental pegou uma pá e cavou tentando chegar ao bunker. Ele achava que poderia criar um túnel para os refugiados alemães orientais que tentavam fugir. O alemão foi detido, mas antes disso descobriu que uma parte dos antigos aposentos de Hitler estava intacta, por baixo da terra. O jardim da Chancelaria, onde você quer escavar, fica deste lado do monte de terra. O que lhe parece?

        Emily observava o monte de terra, fascinada.

        —  Parece difícil, mas pode-se fazer. Primeiro porém tenho de obter uma autorização.

        —  Pois então vamos seguir viagem — disse Nitz, segurando-a pelo cotovelo.

        Depois que deixaram o posto de observação e voltaram ao banco traseiro do Mercedes, o motorista Plamp virou o corpo rechonchudo por trás do volante e fitou-os com uma expressão interrogativa, por trás dos óculos de lentes marrom.

        —  Vamos agora para Checkpoint Charlie?

        —  Exatamente — declarou Emily.

        Só quando chegaram à Friedrichstrasse é que Nitz voltou a falar:

        —  Há seis outros pontos de acesso a Berlim Oriental, mas este, conhecido como Checkpoint Charlie, é o principal para os não-alemães.

        Aproximaram-se de uma placa que dizia: Você está agora deixando o setor americano. Em dois galpões de metal ao lado havia três soldados. Nitz identificou-os como membros das polícias militares dos exércitos britânico, francês e americano. Os guardas não lhes deram a menor atenção e Plamp seguiu em frente, freando diante de uma barreira com uma placa de Pare.

        Um guarda alemão oriental magro e taciturno aproximou-se da janela do motorista. Plamp mostrou os passaportes. O guarda levantou a barreira e o Mercedes seguiu adiante. Do abrigo envidraçado, no alto de uma torre de vigia e concreto, pintada de um amarelo desbotado, dois outros guardas alemães orientais os observavam. Emily notou que três caminhos com calçamento parcial de pedras saíam da barreira e que Plamp pegara o caminho interno. Parou o Mercedes um momento depois e saltou, encaminhando-se para o primeiro dos três galpões amarelos ao lado da rua, à direita. Nitz virou-se para Emily.

        —  Teremos de esperar uns quinze minutos — comentou ele. — Já conhece a rotina. Plamp está mostrando outra vez nossos passaportes, comprando setenta e cinco marcos alemães para nós três e entregando ao controle alfandegário as declarações que preenchemos. Certamente se lembra.

        —  Claro.

        Plamp voltou em menos de quinze minutos e tornou a sentar ao volante. Dois guardas alemães orientais surgiram no mesmo instante, um em cada lado do Mercedes. Um deles abriu a porta para inspecionar o interior do carro, espiando no porta-luvas, verificando as bolsas nas portas, por baixo dos bancos. Emily observou o segundo guarda, que ficara lá fora, levantar o capo do carro, fechá-lo, dar a volta abrir a mala, fechar, depois pegar um cabo de vassoura com um espelho retangular na extremidade, esticando-o por baixo do carro. Ela sacudiu a cabeça, com uma expressão triste.

        —  Por que fazem isso? Sabem muito bem que as pessoas não são contrabandeadas para dentro da Alemanha Oriental, mas apenas para fora.

        —  Estão procurando contrabando de mercadorias. Sabem que existe um enorme mercado negro na Alemanha Oriental, como não podia deixar de ser.

        A segunda barreira foi levantada. Plamp conduziu o Mercedes devagar até uma terceira barreira. Outro guarda pegara os passaportes e impassivelmente comparava as fotografias com seus rostos. Satisfeito, devolveu os passaportes a Plamp, e a última barreira foi levantada.

        O Mercedes seguiu em frente. Ainda estavam na Friedrichstrasse, só que em Berlim Oriental. Emily deixou escapar um suspiro.

        —  Peter, será que o Professor Blaubach sabe o que acontece nesta passagem?

        —  Deve saber — respondeu Nitz, sorrindo. — Afinal, é um dos líderes do governo da Alemanha Oriental.

        —  Mas ele parece tão simpático...

        —  E tenho certeza de que é mesmo simpático. Acontece apenas que seu país é paranóico.

        Ao se aproximarem de um sinal de trânsito vermelho, na Leipziger Strasse, Emily inclinou-se para a frente e disse ao motorista:

        —  Leve-nos ao Portão de Brandemburgo. Depois, quero descer devagar pela Unter den Linden, para poder contemplá-la de novo. Em seguida vamos para o endereço que lhe dei, na Marx-Engels Platz, onde fica o gabinete do Professor Blaubach.

        —  Mas antes deixe-me no Café am Palast — interveio Nitz. — Depois, leve Fraulein Ashcroft para o seu encontro, fique esperando e me pegue na volta.

        Plamp assentiu.

        Poucos minutos depois Emily viu e reconheceu o Portão de Brandemburgo, pela janela do carro. As três partes do monumento, as menores e a central enorme, podiam ser vistas além da curva de uma cerca baixa de madeira.

        —  É realmente imponente — comentou ela. — E é irônico que a escultura esverdeada lá em cima seja chamada de Deusa da Paz.

        Ao virarem à direita, numa artéria larga, Emily murmurou, emocionada:

        —  Como é linda a Unter den Linden...

        E era mesmo linda, uma das avenidas mais sombreadas e graciosas que ela já conhecera. As calçadas eram largas e havia lojas atraentes nos dois lados, com um canteiro central estreito e todo plantado, árvores frondosas por toda a sua extensão. Emily voltou o rosto para Nitz.

        —  Estou sempre esquecendo que aqui era o coração da Berlim de Hitler, como descrevemos em nosso livro, antes de Berlim se tornar uma cidade dividida e os berlinenses orientais ficarem com a principal artéria.

        —  Mas os berlinenses ocidentais ficaram com a parte maior da indústria, parques, lagos, habitantes.

        —  Tem razão — admitiu Emily.

        Enquanto o Mercedes avançava pela Unter den Linden, Emily pôde constatar que a avenida estava desimpedida à frente.

        —  Quase não há carros por aqui — comentou ela.

        —  Porque os carros ainda são muito caros, exceto para os diplomatas e autoridades da DDR. — Nitz apontou para os automóveis estacionados ao longo do canteiro central, fixando-se num modelo compacto. — Aquele é o mais popular, o Prabant. Sabia que a carroceria é feita de papel prensado? Funciona com um motor de motocicleta de dois cilindros. Custa o equivalente a 5.400 libras. O alemão oriental médio ganha em torno de mil marcos por mês, o que dá cerca de 150 libras. Mas quase não tem em que gastar dinheiro e por isso pode economizar para comprar um carro assim. Pode levar seis anos de economia e espera para obter um Prabant. Levaria ainda mais tempo para ter o Eisenach, que é aquele ali, e o Wartburgh, aquele outro. Estes têm a carroceria de metal, e também são fabricados neste lado do muro. Quanto aos outros carros... Aquele é um Skoda tcheco, e o que está ao lado é um Landa, produzido pela Fiat na Itália para a União Soviética.

        —  Não estou vendo nenhum soldado russo.

        — Nem vai ver. Não na cidade. Estão todos fora de Berlim Oriental, um vasto exército.

        Enquanto o Mercedes continuava a seguir pela Unter den Linden, Emily estudou mais atentamente os prédios nos dois lados. À esquerda, ficavam, a embaixada húngara e a embaixada polonesa, à direita a embaixada soviética, com um busto em mármore branco de Lênin no pátio. Depois, uma loja de Meissner Porzellan, uma agência da Aeroflot, uma loja de alimentos importados, exibindo na vitrine produtos do Vietnã e da China.

        Gradativamente, as estruturas foram se tornando mais grandiosas. A Universidade Humboldt, estudantes entrando e saindo. O Neve Waches — o Monumento às Vítimas do Fascismo e Militarismo — com sua chama eterna no interior, a troca de guarda em passo de ganso no exterior.

        —  Se não se importa, Plamp — disse Nitz de repente —, vou saltar na esquina.

        —  Por quê? — indagou Emily surpresa. — Para onde vai?

        —  Atravessarei a rua até o Café em Palast. Fica na esquina do novo Palast Hotel, com 600 quartos, construído pelos suecos para os alemães orientais. Não se preocupe comigo, Emily. Ficarei lendo os jornais locais e tomando chá, talvez coma algum doce. E Irwin a levará ao seu gentil Professor Blaubach.

        Nitz abriu a porta do carro e saltou na esquina. Antes de fechar a porta, no entanto, acrescentou:

        —  Não se esqueça, Emily, que você se encontra agora no meio do setor que foi outrora o orgulho e a alegria de Adolf Hitler. A Velha Chancelaria do Reich ficava por aqui; agora é um estacionamento. E dentro da Zona de Fronteira ficava o Führerbunker. As ruínas do poderoso Terceiro Reich, o Reich de Hitler destinado a durar mil anos, mas que sobreviveu apenas por doze anos e três meses.

        Ele fez uma pausa, sorrindo, antes de arrematar:

        —  O Terceiro Reich com seus mistérios. Não deixe de aproveitar a oportunidade para deslindá-los.

        Recostando-se na cadeira, em frente à mesa de carvalho envernizado do Professor Otto Blaubach, Emily compreendeu que aquele era o seu lance inicial para resolver um dos maiores mistérios do século XX, e que teria de dar certo, se quisesse seguir adiante.

        Observou o Professor Blaubach encaminhar-se para a cadeira giratória de couro preto por trás da mesa. Ele quase não mudara desde a última vez em que o vira, há três anos. Parecia um pouco mais velho, um pouco mais lento, porém os cabelos grisalhos estavam impecavelmente penteados, a gravata-borboleta, o colete e o terno cinza-escuro eram imaculados. Usava os óculos de aros de ouro sobre o nariz estreito e pontudo. Ao cumprimentá-la, sua expressão era gentil como sempre, vincada por linhas de simpatia, embora sua atitude ainda fosse reservada. Ele estava se sentando agora, puxando a cadeira para perto da mesa.

        —  Quer beber alguma coisa, Srta. Ashcroft? Uma bebida alcoólica ou um refresco, como quiser.

        —  Não, obrigada. Não quero tomar muito do seu tempo. — Emily sorriu. — Chamou-me de Emily nas outras vezes em que nos encontramos.

        —  É mesmo? Devia ser porque estava com seu pai e me pareceu uma pessoa mais jovem. Agora... agora já é uma mulher adulta, conquistando a sua própria reputação na televisão. Mas tem toda razão. Usar Srta. Ashcroft parece mesmo impróprio, levando-se tudo em consideração. Será Emily. — Ele pegou da escrivaninha uma espátula de aço espanhol de Toledo, com a forma de um florete em miniatura, enquanto acrescentava: — Quer dizer que tenciona prosseguir do ponto em que seu pai parou?

        —  Foi o que me trouxe a Berlim e até aqui. Meu pai estava muito grato por o senhor ter obtido permissão para ele escavar, antes do acidente.

        —  E deseja agora fazer o que ele havia planejado. Quer escavar o jardim ao lado do Führerbunker.

        —  Isso mesmo, o jardim. — Num súbito impulso, Emily acrescentou: — E também o bunker.

        O Professor Blaubach alteou as sobrancelhas.

        —  O Führerbunker também?

        Emily fez um esforço para compreender o impulso que a levara a acrescentar o bunker. Concluiu que fora algo mais que um mero impulso. Lembrou as duas provas que o Dr. Max Thiel lhe sugerira que procurasse. A verdadeira ponte de ouro de Hitler, com seu pequeno gancho. E o camafeu, com o rosto de Frederico o Grande. Se não estivessem na cova rasa ou na cratera de bomba no jardim, havia ainda a possibilidade de Hitler tê-los deixado em algum lugar dos seus aposentos particulares, no bunker subterrâneo. Se nada descobrisse no jardim, uma busca no bunker soterrado poderia ser útil.

        —  Isso mesmo. Seria uma boa idéia tentar o bunker depois de escavar o jardim.

        —  Hum... O bunker pode nos causar algum problema. Nós o soterramos... ou melhor, os soviéticos o fizeram... passando tratores por cima, a fim de escondê-lo do público. Eles receavam que nazistas empedernidos pudessem procurá-lo como o santuário de um mártir. Uma escavação no bunker deixaria alguns dos meus colegas apreensivos.

        —  Deixarei apenas uma pequena área descoberta, Professor, por um ou dois dias, apenas para a minha busca. E depois cobriria tudo. Voltaria a ser o que é, um monte de terra. Não haveria santuário algum.

        Blaubach aceitou a explicação.

        —  Comunicarei suas intenções a meus colegas no conselho. Provavelmente superarão as objeções. — Ele virou a espátula, lentamente. — Imagino que não está procurando mais pelos corpos de Hitler e Eva Braun? Imagino que há algo mais.

        —  Meu pai lhe contou o que estava procurando?

        —  Devo confessar que não. Foi reticente nesse ponto. Falou apenas em termos gerais. Comentou que alguns antigos ocupantes do bunker haviam revelado recentemente outros meios para determinar o momento da morte de Hitler. Não pressionei seu pai. Éramos velhos amigos. Ele merecia a minha confiança absoluta. Mas se mostrou reticente.

        Ela então também devia se comportar assim, pensou Emily. O pai não revelara o nome do informante, Dr. Thiel, ela também não devia revelá-lo. É claro que Blaubach merecia confiança, mas prometera ao Dr. Thiel que não divulgaria a fonte das suspeitas do pai e suas sobre a morte de Hitler.

        —  Quero apenas procurar alguns artefatos, como meu pai planejava fazer — disse Emily, evasiva. — É provavelmente um tiro no escuro, mas se eu tiver alguma sorte, pode confirmar que Hitler e sua Eva morreram exatamente como a história nos conta... ou que ambos enganaram a todos e sobreviveram. Blaubach largou a espátula na mesa.

        —  Claro que vou cooperar com você, Emily, como deseja. Não me agrada a idéia de vê-la desapontada. Mas, para ser franco, acho que seu empreendimento... essa escavação... será inútil.

        —  Por quê?

        —  Depois de tomar Berlim, o exército soviético despachou cinco grupos dos seus melhores soldados para vasculhar a área, à procura dos restos mortais de Hitler. Examinaram a cova rasa, a cratera da bomba, os aposentos no Führerbunker. O que encontraram de Hitler e Eva Braun... o que restava de seus corpos... e alguns documentos... foi devidamente divulgado. Duvido que os russos tenham deixado passar alguma coisa desapercebida.  

        Era difícil, mas Emily manteve-se firme.

        —  Se me permite dizer, Professor Blaubach, as pesquisas de meu pai sobre as conclusões soviéticas foram meticulosas. Estudei todas as suas anotações. E estou convencida de que os soviéticos realizaram uma investigação apressada e fortuita em torno e dentro do bunker. E acho que o assunto merece mais um esforço.

        —  Talvez você tenha razão sobre os nossos amigos russos. Eles nem sempre são tão eficientes quanto gostam de aparentar. Mas sabia que eles não foram os últimos a investigar a área do Führerbunker!

        —  Pela nossa documentação, sei que houve outros.

        —  Exatamente. Não são muitas as pessoas que sabem que, depois que os russos concluíram suas investigações, em maio e junho de 1945, os outros Aliados, principalmente membros dos serviços secretos britânico e americano, solicitaram permissão, a 3 de dezembro de 1945, para examinar de novo a área. A 30 de dezembro os russos concederam permissão para que escavassem por um ou dois dias. Usando oito trabalhadores alemães, os Aliados ocidentais vasculharam o local, mas não encontraram novos corpos que parecessem com Hitler e Eva Braun. Descobriram algumas peças de roupa com o monograma "E.B.", obviamente do guarda-roupa de Eva Braun. Desenterraram ainda alguns documentos pertencentes a Josef Goebbels, que também se suicidou, com a mulher, tendo sido enterrado ali perto.

        —  Mas os americanos e ingleses só procuraram por um ou dois dias? Eu diria que foi uma busca um tanto superficial.

        —  Para dizer a verdade, eles queriam escavar por mais tempo, mas os russos não deixaram — disse Blaubach, contrafeito. — Os soviéticos acusaram-nos de se apropriarem de documentos importantes, que por direito pertenciam à União Soviética. Os russos suspenderam as escavações e não deram mais qualquer permissão.

        —  Ahn...

        —  Mas para que não pense que os russos são completamente mesquinhos, devo dizer que cerca de um mês depois, creio que em janeiro de 1946, eles convidaram um grupo de militares franceses estacionados em Berlim e retomar as escavações no jardim do Fürerbunker. Os franceses assim o fizeram. Não obtiveram permissão para descobrir a cova rasa e a cratera de bomba, mas escavaram ao redor. Não encontraram absolutamente nada que pudesse ser útil. Outras pessoas efetuaram mais investigações dentro do bunker, antes que uma parte fosse finalmente explodida e todo o conjunto soterrado.

        Blaubach fez uma breve pausa e depois se apressou em acrescentar:

        —  Mas não deixe que as minhas palavras a desencorajem, Emily. Pode descobrir que as autoridades alemãs orientais são mais indulgentes que os russos. Terá a oportunidade de conferir pessoalmente. Vou recomendar, através dos canais competentes, que lhe seja concedida permissão para as escavações.

        —  Agradeço muito a sua gentileza, Professor Blaubach. — Emily levantou-se. — Acha que vai demorar muito?

        —  Creio que não. Pode esperar uma resposta minha dentro de dois ou três dias, no máximo.

        Emily estendeu a mão e Blaubach inclinou-se para beijá-la. Ela virou-se para sair, mas a voz de Blaubach soou antes que chegasse à porta:

        —  Emily...

        Ela parou e tornou a se virar, vendo Blaubach se adiantando.

        —  .. .há só mais uma coisa — continuou ele. — Se tiver algum momento de folga, eu gostaria que me fizesse um favor.

        Surpresa por descobrir que poderia ajudá-lo de alguma forma, ela se mostrou prontamente receptiva.

        —  Mas é claro! Qualquer coisa... Blaubach hesitou.

        —  Como uma autoridade em Hitler, você pode ajudar num problema que me chegou às mãos.

        —  Sinto-me lisonjeada, Professor Blaubach, mas tenho certeza de que os seus conhecimentos sobre Hitler são muito maiores que os meus.

        —  Não é verdade, Emily. Sou um estudioso do Terceiro Reich e da história moderna da Alemanha, o que inclui algum conhecimento do falecido e não lamentado Führer. Mas estou certo de que você tem mais conhecimentos do que eu.

        —  Não estou tão certa assim. De qualquer maneira, se eu puder lhe ser útil em alguma coisa...

        —  Não é para mim, e sim para outra pessoa — explicou Blaubach. — Tenho na sala ao lado, examinando alguns dos meus arquivos, um cavalheiro da União Soviética. É um eminente estudioso em seu campo, as artes plásticas. Seu nome é Nicholas Kirvov, recentemente designado para curador do Hermitage, em Leningrado.

        —  O que significa que é mesmo um homem eminente — comentou Emily, impressionada.

        —  O hobby de Kirvov é colecionar quadros que Hitler pintou quando jovem. Tenho certeza de que você domina essa fase da vida de Hitler.

        —  Bastante.

        —  Herr Kirvov está planejando montar uma exposição dos quadros de Hitler no Hermitage, como um espetáculo secundário para atrair atenção. E há pouco tempo adquiriu mais um quadro a óleo, sem assinatura. Está convencido de que é de Hitler. Como se trata de uma obra desconhecida, Herr Kirvov quer incluí-la em sua exposição de Hitler. Mas como a exposição certamente atrairá grande atenção dos meios de comunicação e do público, Herr Kirvov acha que deve fazer todo o possível para confirmar a autenticidade de cada obra que será exposta. Trouxe esse quadro atribuído a Hitler para que eu desse minha opinião. Analisei-o e, felizmente, graças ao estudo das pinceladas e outros pequenos detalhes, pude garantir a Herr Kirvov que o óleo é de fato obra de Adolf Hitler. Mas resta um pequeno problema. E é um problema que você poderia resolver para ele.

        —  Não creio, Professor, que eu tenha qualquer conhecimento de uma obra de arte, de Hitler ou outro pintor, que possa se comparar com os conhecimentos do próprio Kirvov. Mas... — Deu de ombros. — Quem sabe? Meu pai e eu fizemos algumas pesquisas sobre a fase artística de Hitler. — Ela tocou no braço de Blaubach, antes de acrescentar: — Claro que terei o maior prazer em conhecer o Sr. Kirvov.

        O rosto sisudo de Blaubach adquiriu uma expressão de satisfação. Ele abriu a porta, conduziu Emily para o corredor e depois à sala adjacente. Havia ali apenas alguns arquivos marrons, ao longo de uma parede, e uma comprida mesa de reuniões, flanqueada por uma dúzia de cadeiras. Na outra extremidade da mesa estava sentado um homem corpulento, de meia-idade, concentrado numa pilha de fotografias. Quando Blaubach e Emily entraram, ele empurrou prontamente a cadeira para trás e levantou-se, com expressão de surpresa.

        Blaubach segurava Emily pelo braço e levou-a pela sala, dizendo:

        —  Herr Nicholas Kirvov, quero apresentar-lhe Fraulein Emily Ashcroft, de Oxford, Inglaterra.

        Emily adiantou-se e apertou cordialmente a mão estendida de Kirvov.

        —  Fraulein Ashcroft é uma eminente historiadora na Universidade de Oxford — continuou Blaubach. — Sua especialidade, nos últimos anos, tem sido a vida de Adolf Hitler. Ela está concluindo uma biografia de Hitler e acaba de chegar a Berlim para as pesquisas finais.

        —  Eu a conheço de nome — disse Kirvov, cortesmente. — Já o vi impresso, até mesmo na União Soviética.

        —  Sente-se, Emily — disse Blaubach, puxando uma cadeira. — Sente-se também, Herr Kirvov.

        Blaubach instalou-se numa cadeira ao lado de Emily e esperou que Kirvov tornasse a sentar.

        —  Herr Kirvov, tomei a liberdade de informar a Fraulein Ashcroft de sua investigação do quadro de Hitler. É sorte nossa que Fraulein Ashcroft se encontre em Berlim agora.

        Emily interveio:

        —  Se houver alguma coisa que eu possa fazer, Sr. Kirvov, terei o maior prazer em cooperar.

        —  É muito gentil, Srta. Ashcroft.

        Emily simpatizou imediatamente com Kirvov. Apesar das características físicas de camponês eslavo — como uma obra de arte, ele era todo quadrados e cubos, os cabelos castanhos cortados bem rente, o queixo quadrado, os ombros largos e quadrados —, ela gostou do homem por causa dos olhos. Muitas vezes julgava as pessoas pelos olhos. Os de Kirvov eram escuros, sensíveis, quase tristes, e a boca era de um poeta.

        —  O Professor Blaubach acaba de me falar sobre o seu quadro de Hitler — disse ela. — Devo dizer que também me interessa. Como conseguiu obtê-lo?

        A pergunta de Emily animou Kirvov. A ansiedade em debater o assunto iluminou seu rosto.

        —  Terei o maior prazer em contar-lhe.

        Pôs-se então a falar de sua coleção de quadros de Hitler, a carta de um comissário de bordo de um navio, Giorgio Ricci, que queria autenticar um quadro de Hitler que Comprara, a visita de Ricci ao Hermitage, sua aquisição do óleo de Hitler em troca de um ícone russo.

        —  E agora quer exibir essa nova aquisição de Hitler numa exposição no Hermitage? — indagou Emily.

        —  Exatamente. A inclusão seria um motivo de orgulho para mim. Mas primeiro eu precisava confirmar a autenticidade. Sabia que o Professor Blaubach era um experto famoso. E vim a Berlim Oriental com o quadro, as radiografias que tiramos dele, assim como as minhas outras obras de Hitler, para apresentar a ele.

        —  Já soube que o Professor Blaubach confirmou a autenticidade — disse Emily. — Mas ainda há um problema, não é mesmo?

        —  Sim. Eu lhe mostrarei qual é esse problema, e talvez então possa me ajudar.

        Enquanto falava, Kirvov foi até a parede, onde o quadro estava encostado, coberto por um saco de feltro. Tirou-o, revelando a pintura de um prédio de pedra, grande, antiestético. Suspendeu a pintura na frente de Emily, dizendo:

        —  Obviamente, trata-se de um prédio oficial. Não parece uma residência ou um dos teatros e museus que Hitler tanto gostava de pintar na juventude. A estrutura sugere um típico prédio do governo. Não concorda?

        Emily acenou com a cabeça.

        —  Estou propensa a concordar.

        —  Como se pode autenticar uma obra? — indagou Kirvov, mais para si mesmo do que para Emily ou Blaubach. — Através de uma análise científica. Isso já foi feito. Procura-se determinar a sua proveniência. O que não pudemos fazer. E, finalmente, quando possível é necessária a identificação do tema da obra. O conhecimento do tema, sua localização, pode rechaçar o desafio dos críticos céticos.

        Kirvov tornou a guardar a pintura no saco de feltro e colocou-o sobre a mesa.

        —  É justamente esse o meu problema, Srta. Ashcroft. Não sei o que é o tema deste quadro, onde fica ou quando a obra foi feita. Posso situar os temas de todas as obras de arte de Hitler que adquiri anteriormente. Quase tudo o que ele desenhou ou pintou na juventude foi em sua cidade predileta de Linz, ou em Viena ou em Munique. Examinei tudo o que Hitler fez nessas cidades. Também examinei fotografias ou desenhos de prédios antigos nas mesmas cidades. E não encontrei qualquer sinal desta estrutura. — Os olhos suaves de Kirvov encontraram-se com os de Emily. — Talvez tenha a informação. Sabe se Hitler pintou alguma coisa em qualquer outro lugar?

        —  Pintou... e não pintou. Quando era soldado da infantaria, na Primeira Guerra Mundial, Hitler fez alguns desenhos na frente ocidental, principalmente na Bélgica. Mas nenhum desses desenhos parece com o seu quadro. Eu gostaria de examiná-lo melhor, para as minhas próprias pesquisas. Tem alguma fotografia dele que possa me ceder?

        —  Tenho várias — disse Kirvov timidamente. — Tirei cópias para distribuir, como os cartazes de Procura-se de criminosos conhecidos.

        Ele meteu a mão no bolso interno do paletó e tirou um envelope retangular, onde pegou uma fotografia de 12cm x 18cm, estendendo-a para Emily. Ela examinou a cópia do quadro.

        —  Parece um daqueles horríveis prédios públicos que os nazistas construíram em Berlim no início da década de 1930. Mas é claro que isso seria impossível. Hitler nunca os pintou. Eu diria que  um prédio público em outra grande cidade alemã. Mas deixe-me pesquisar um pouco. Ligarei para a minha secretária em Oxford e pedirei que tire uma fotocópia de nosso arquivo sobre a arte de Hi-tler, assim como dos prédios oficiais nas principais cidades alemãs, durante o Terceiro Reich. Veremos então se descobrimos alguma coisa. Onde poderei encontrá-lo, Sr. Kirvov?

        —  Estou no momento em Berlim Oriental. Mas tenciono ir para Berlim Ocidental amanhã e lá passar alguns dias. Planejava visitar alguns prédios públicos. Presumo que está hospedada em Berlim Ocidental, Srta. Ashcroft?

        —  Estou no Hotel Kempinski.

        —  Ficarei no Palace Hotel, não muito longe, onde já estive antes.

        Emily levantou-se, guardando a fotografia na bolsa.

        —  Eu o procurarei no Palace assim que receber o material de Oxford e o examinar. Vamos torcer para que tenhamos sorte.

        Kirvov levantou-se de um pulo.

        —  Não tenho palavras para expressar meu agradecimento. Ela sorriu.

        —  Deixe para agradecer depois que eu puder ajudá-lo de alguma forma.

        O Professor Blaubach foi até a porta e abriu-a. Baixou a voz ao se despedir de Emily e disse:

        —  Agradeço a sua atenção. E não esquecerei o seu pedido. Veremos o que posso fazer.

        A tarde estava terminando quando o Mercedes alugado deixou Emily diante das portas envidraçadas do Kempinski.

        Depois de agradecer a Peter Nitz, Emily disse ao motorista Plamp:

        —  Se não estiver ocupado, precisarei de novo de seus serviços dentro de poucos dias.

        Plamp levou a mão à pala do seu quepe de motorista.

        —  Estou pronto para servi-la no momento em que precisar, Fràulein.

        Emily despediu-se de Nitz e entrou apressadamente no hotel, atravessando o saguão até o balcão da recepção. Estava ansiosa para pegar a chave e subir para a suíte, a fim de ligar para os escavadores de Berlim Ocidental que o pai planejara contratar e telefonar para sua secretária, Pamela Taylor, em Oxford, na tentativa de ajudar Kirvov. O prédio no quadro a óleo era um daqueles pequenos enigmas que sempre faziam com que a pesquisa se tornasse mais atraente para ela.

        —  Suíte 229 — disse ela ao recepcionista.

        Ele entregou-lhe a chave e um pedaço de papel, dizendo:

        —  Há uma pessoa à sua espera, Srta. Ashcroft.

        —  Uma pessoa? — repetiu Emily, distraída.

        Ela leu o bilhete: "Srta. Ashcroft, espero que possa dispensar um momento para me falar. Vim de Los Angeles para encontrá-la. Estou no Bristol Bar." Estava assinado "Rex Foster", um nome que lhe era totalmente desconhecido.

        Aturdida, Emily virou-se, a fim de atravessar o saguão até o bar do hotel.

        Parando à entrada, olhou em redor, para verificar quem eram os ocupantes. Não havia qualquer homem sozinho à sua espera. Ali estavam três pares, em diferentes locais do bar, sentados em cadeiras de estofamento preto, com copos nas mesas. Havia duas mulheres, absorvidas numa conversa. Havia também um casal de idosos, que pareciam casados há muito tempo. E as duas últimas pessoas eram um homem atraente, na casa dos trinta anos, e uma jovem loura e bonita, sentados a uma mesinha, perto de um antigo piano de cauda Steinway. O homem olhou além de sua companheira e percebeu a presença de Emily. Murmurando algo para a loura, ele se levantou, encaminhando-se para ela.

        Emily ficou olhando enquanto ele se aproximava, em passadas largas:

        Seria aquele o inesperado visitante da Califórnia? Um homem de aparência muito interessante, pensou ela.

        Ele chegou perto, com um sorriso meio torto no rosto magro, indagando:

        —  Por acaso é Emily Ashcroft?

        —  Sou, sim.

        Ele apontou para o recado que Emily ainda tinha na mão.

        —  Se está procurando por Rex Foster, de Los Angeles, acaba de encontrá-lo. E se a ocasião é inoportuna, podemos marcar outro encontro. De qualquer forma, espero que não se incomode com a minha intromissão.

        Os olhos fixos nele, Emily resolveu que não se importava absolutamente. Torcia apenas para que os seus cabelos não estivessem muito desgrenhados nem a saia amarrotada. Sua relutância automática original em conhecer um estranho, possivelmente abusado, fora rapidamente dissipada pela personalidade daquele homem. Ela compreendeu que a atração pelo americano fora quase imediata. E não era apenas pelos olhos castanhos ansiosos. Ele tinha mais de l,80m, pairando muito acima dela, cabelos pretos rebeldes, um rosto rude, covinha no queixo, corpo esguio e atlético. Emily descobriu-se fazendo o que os homens sempre dizem que fazem com as mulheres de aparência sensual: despindo-o mentalmente. Fizera-o involuntariamente — nunca acontecera antes, com Jeremy ou qualquer outro — e ela ficou aturdida com a sua loucura. A fim de encobrir seus pensamentos e apreensão, ela se mostrou anormalmente brusca:

        —  Em que posso servi-lo, Sr. Foster?

        —  Poderíamos até ter uma conversa aqui mesmo. Mas se está com pressa, podemos deixar para outro dia, à sua conveniência.

        Os sentimentos instintivos de Emily afloraram. Não queria repeli-lo. Ao contrário, queria a companhia dele, ali e agora, queria saber mais a seu respeito e do interesse que tinha por ela.

        —  Eu... eu disponho de algum tempo — murmurou cautelosamente.

        —  Isso é ótimo. Não gostaria de sentar e nos acompanhar num drinque? — Ele indicou sua companheira loura. — Poderei então explicar tudo.

        Emily contemplou a jovem que esperava e por um instante sentiu um aperto no coração. Ela era muito mais jovem e certamente mais bonita. Seria a esposa? Amante? A namorada em Berlim? Passando a mão pelos cabelos castanho-avermelhados, Emily disse, hesitante:

        —  Eu estava trabalhando...

        Depois, empertigando-se, seguiu-o pela pequena pista de dança até a mesa. Foster indicou a cadeira vazia ao lado da sua. Antes que Emily pudesse ocupá-la, ele apresentou-a à loura deslumbrante.

        —  Srta. Ashcroft... Srta. Tovah Levine, de Israel. Acabamos de nos conhecer e estávamos ambos à sua espera.

        Aliviada, Emily pôde reagir à apresentação com um sorriso. Tornando a sentar, Foster chamou um garçom.

        —  O que vai querer, Srta. Ashcroft?

        Ela queria tomar o que ele estivesse bebendo, a fim de mostrar-lhe que eram iguais. Mas depois concluiu que deveria demonstrar sua independência e afirmar-se. Afinal, ele percorrera uma vasta distância para conhecê-la.

        —  Uísque e soda — disse ela. — Sem gelo.

        Resolveu que era melhor enfrentar Foster logo de uma vez; virou-se para ele e indagou:

        —  Veio até aqui só para falar comigo? — Ela compreendeu que deveria incluir também a loura na conversa. — E devo presumir que é esse também o seu caso, Srta. Levine?

        —  Não precisa se preocupar comigo — respondeu Tovah prontamente. — Posso esperar minha vez. Rex chegou primeiro.

        Foster acenou com a cabeça.

        —  Obrigado, Tovah. — Ele fitou Emily de novo. — É verdade, Srta. Ashcroft, vim a Berlim basicamente para vê-la.

        —  Não posso imaginar por quê.

        —  Vou explicar. Para começar, sou arquiteto.

        —  Arquiteto?

        Emily jamais conhecera pessoalmente um arquiteto. De alguma forma, desconfiara, pela aparência de Foster, que ele devia ser o filho indolente de um banqueiro rico. Parecia descontraído e à vontade, um homem confiante. Não, corrigiu-se ela, não havia nada de indolente. Não havia o menor sinal de indolência na segurança e vigor de seu comportamento. Imaginou que, em vez disso, havia uma força contida.

        —  O que... o que faz como arquiteto? — balbuciou ela tolamente, porque se sentia desorientada, sem saber o que dizer.

        Foster respondeu muito sério:

        —  Tento fazer coisas adoráveis.

        Por um instante, Emily especulou se era uma resposta intencional de duplo sentido ou um comentário ingênuo. Ela adoraria saber. O que quer que fosse.

        —  Prédios?

        —  Prédios, é claro. Trabalho com afinco, porque gosto da criatividade. Gosto de ver as coisas crescerem sob os meus dedos.

        Seus dedos, Emily notou pela primeira vez, eram delgados e compridos. Ela imaginou como seria o contato daqueles dedos.

        —  E isso o tornou um homem bem-sucedido?

        —  Mais ou menos. Mas até isso não é suficiente. Na América, não são apenas os professores que se vêem na obrigação de publicar. Estou fazendo a mesma coisa que, creio, está fazendo, Srta. Ashcroft, embora não me atreva a comparar a importância do meu projeto com a do seu. O livro que preparo intitula-se Arquitetura do Reich dos Mil Anos. Sobre o que Hitler construiu na Alemanha... e o que planejava construir se ganhasse a guerra. É nisso que os nossos interesses se encontram: Adolf Hitler.

        —  Ahn...

        —  Para ser franco, também vim a Berlim para concluir minha pesquisa e completar o livro. Infelizmente, terei alguma dificuldade para consegui-lo sem a sua ajuda.

        Emily estava adorando os olhos do americano e se dispunha a fazer qualquer coisa por ele.

        —  E como posso ajudá-lo, Sr. Foster?

        —  Muito bem, vamos lá. Meu livro de fotografias e legendas ainda tem uma parte incompleta. Há algumas plantas desaparecidas que eu esperava localizar através da família do principal arquiteto de Hitler, Albert Speer. Mas fui obrigado a procurar em outros locais pelas plantas desaparecidas. Estava a par da biografia que seu pai elaborava e cheguei à conclusão de que ele era o único que poderia me ajudar a descobrir os colegas ou assistentes de Speer. Reduzi a minha busca das plantas a um dos dez associados a que Speer poderia tê-las encaminhado, mas não tinha a menor idéia de onde poderia encontrá-lo. Achei que seu pai talvez conhecesse o homem. Por isso lhe escrevi, indagando se poderia ir a Oxford para conversarmos. Ele foi bastante gentil em marcar um encontro para a próxima semana. Mas... — Foster fez uma pausa. — ...li a notícia do acidente...

        Foster fez outra pausa, fitando Emily nos olhos.

        —  Não tenho palavras para dizer o quanto lamento, Srta. Ashcroft. Não por mim, é claro. Por você.

        —  Obrigada. Continue, por favor.

        —  Há dois dias, lendo a notícia sobre seu pai no jornal, descobri que vinha colaborando com ele no livro e resolvi procurá-la.

        Emily sentiu-se desconcertada por um momento.

        —  Mas como me descobriu aqui?

        —  Telefonei para sua casa em Oxford. Planejava voar até Londres e visitá-la. Sua secretária atendeu, conversamos um pouco e ela acabou informando que você estava em Berlim Ocidental, hospedada no Kempinski.

        Emily franziu o rosto.

        —  Fiz Pamela prometer que não contaria a ninguém que eu estava aqui.

        —  Eu a persuadi a me dar a informação. Aleguei que já tinha um encontro marcado com o Dr. Ashcroft e tinha certeza de que a filha não se importaria de me receber. Sua secretária achou então que não havia problema em me contar onde você estava. Espero que não se incomode.

        —  Deve ter muita experiência em persuadir secretárias, não é mesmo? — Emily sorriu. — Seja como for, agora está aqui.

        —  Vim ao Kempinski na esperança de encontrá-la e marcar um encontro. Mas havia saído. Resolvi esperar. E foi então... — Foster apontou para Tovah Levine — ...no momento mesmo em que eu perguntava ao recepcionista por você, que a Srta. Levine se aproximou do balcão e me ouviu. E ela também viera ao Kempinski à sua procura. Decidimos então esperar juntos.

        Aturdida Emily desviou sua atenção para a bonita loura.

        —  E por que queria me falar, Srta. Levine?

        Tovah Levine, que até aquele momento se limitara a escutar e beber, largou o copo na mesa.

        —  Para dizer a verdade, Srta. Ashcroft, sou jornalista. Recentemente fui enviada a Berlim Ocidental para fazer uma série de reportagens para o Post de Jerusalém. Quando soube que você viria para cá, achei que seria um excelente tema. Hitler ainda vende jornal. É lamentável, mas é a verdade.

        Emily piscou os olhos para a jornalista, espantada.

        —  E como soube que eu estava no Kempinski?

        —  Muito fácil. Assim que cheguei, fui ao clube dos correspondentes estrangeiros em Berlim. Há ali um registro da chegada de todas as celebridades a Berlim. O clube tem contato com todos os hotéis da cidade... com os porteiros, recepcionistas, assistentes de gerência. .. que informam os nomes das celebridades estrangeiras que acabaram de chegar. Resolvi vir até aqui para lhe falar e descobrir se pode me proporcionar uma boa reportagem.

        —  Não sou uma celebridade e certamente não posso lhe oferecer uma boa história — respondeu Emily. — Quero que saiba, Srta. Levine... e isso também lhe. interessa, Sr. Foster... que eu tencionava manter minha presença aqui em segredo. Se a notícia se espalhar, de que estou trabalhando aqui, pode ser perigoso para mim, na pior das hipóteses... ou para o meu projeto, no mínimo.

        —  Prometo que não contarei a ninguém — disse Foster, levantando a mão direita.

        —  Muito obrigada — murmurou Emily. — E espero poder ajudá-lo com a informação de que precisa para o seu livro de arquitetura. Quando poderíamos nos encontrar?

        —  Esta noite — sugeriu Foster. — Antes de sua chegada, eu havia convidado Tovah a jantar comigo num restaurante aqui perto. Teria a maior satisfação se quisesse nos acompanhar.

        Emily se regalou em contemplá-lo. Ele era cativante, irresistível sob todos os aspectos. Claro que ela gostaria de conhecê-lo melhor e o mais depressa possível. Se Blaubach desse a resposta depressa, ela ficaria muito ocupada.

        —  Por que não? Eu ia jantar em meu quarto e a perspectiva que me oferece é bem melhor. Obrigada.

        —  Maravilhoso! — exclamou Foster, exultante. Emily hesitou, olhando para a jornalista loura.

        —  Mas só posso aceitar o convite se a Srta. Levine prometer que tudo o que conversarmos será estritamente social e que não divulgará coisa alguma.

        —  Prometo qualquer coisa — concordou Tovah Levine, levantando a mão direita, com expressão solene — porque estou fascinada... e porque estou faminta.

        Emily riu.

        —  As regras do jogo estão definidas. Ótimo. — Consultou seu relógio de pulso de ouro. — São quase sete horas. Preciso de uma hora para dar alguns telefonemas, tomar banho e trocar de roupa.

        Ela virou-se para Foster com um sorriso total.

        —  Às oito horas no saguão?

        Foster ergueu o corpo esguio.

        —  Estarei aqui embaixo cinco minutos antes das oito horas, Srta. Ashcroft, de olho no elevador.

        —  Emily — disse ela, levantando-se.

        —  E eu sou Rex — respondeu ele, sorrindo. — Estarei esperando.

        O Berliner Gasthaus ficava na Schlüterstrasse, a cinco quarteirões do Hotel Kempinski. Os três foram ocupar uma mesa nos fundos. Foster fizera a reserva naquele restaurante de luxo porque, apesar de anunciar um espetáculo de cabaré ao estilo dos anos 20, inclusive com números de travestis, descobrira em sua visita anterior que se podia comer tranqüilamente na sala dos fundos, longe do show.

        Emily observou Foster através das velas tremeluzentes da mesa, enquanto ele estudava o cardápio e escolhia o jantar para todos. Ela ouviu-o pedir sopa de tomate, filé, saladas mistas e um vinho tinto. Bebendo devagar o seu terceiro uísque da noite, ela disse a si mesma que não tomaria mais nada antes de comer. Queria manter toda a sua lucidez e descobrir o máximo que pudesse sobre Foster.

        Depois do dia movimentado em Berlim Oriental e do encontro, casual com Foster, ela sentia-se animada, ansiosa. Na suíte, antes do jantar, estivera ocupada ao telefone. Ligara primeiro para Oxford, instruindo Pamela Taylor a tirar fotocópias da ficha artística de Hitler para Nicholas Kirvov e da ficha da arquitetura do Terceiro Reich, para Kirvov e Rex Foster, tentando enviar tudo para Berlim ainda pelo correio noturno.

        Depois, Emily entrara em contato com os escavadores que o pai planejara contratar para a área do Führerbunker. Encontrara o nome da Companhia Construtora Oberstadt entre os papéis do pai. Falara com Andrew Oberstadt, que se lembrava do acerto com seu pai.

        —  Seria uma escavação fascinante e estávamos ansiosos em realizá-la — comentara Andrew Oberstadt. — Lamentei profundamente o que aconteceu com seu pai e também não ter tido a oportunidade de consumar os planos.

        Emily lhe dissera que a oportunidade ainda podia existir. Tudo dependeria da autorização do governo de Berlim Oriental.

        —  Se eu obtiver a permissão, pode ser de um momento para outro. Teria uma equipe imediatamente disponível?

        Andrew Oberstadt lhe garantira que para um trabalho assim providenciaria uma equipe experiente o mais depressa possível e supervisionaria pessoalmente a escavação.

        Sentindo-se melhor, Emily verificara que não lhe restava muito tempo antes de se encontrar no saguão com Rex Foster e Tovah Levine e trocara um relaxante banho de banheira por uma chuveirada rápida. Quando estava pronta para se vestir, estendera a mão automaticamente para um dos seus conjuntos, mas depois hesitara.

        A única coisa que não queria era parecer uma acadêmica enfadonha. Sentira-se mulher e, pela primeira vez desde a morte do pai, com uma vibração de vida. Por isso, abrira a gaveta e pegara uma blusa branca, com botões até a gola, depois vestira uma saia azul-marinho curta e um blusão rosa. Era melhor do que um costume, proporcionava-lhe uma aparência bastante feminina, mas não ainda a aparência que desejava. Abrira o botão de cima da blusa e depois, especulativamente, o segundo botão, para acabar abrindo também, num gesto de mais audácia, o terceiro. Mexendo os braços, constatara que a curva dos seios era ligeiramente visível.

        Ficara satisfeita. Recatada e natural, mas ao mesmo tempo bastante sensual para que Rex Foster, ao vê-la, deixasse que os olhos perdurassem na abertura do terceiro botão e contemplassem a suave elevação dos seios, cumprimentando-a por sua aparência. Lançando um rápido olhar para Tovah, ao descer, Emily constatara que a jovem israelense estava espetacular num vestido vermelho de jérsei que não escondia nenhuma das curvas do seu corpo bem-dotado. Mas Emily não se importara, já que Foster parecia ter olhos apenas para ela.

        Agora, ao seu lado, no Berliner Gasthaus, Emily resolveu ser mais profissional e, com isso, atrair Foster ainda mais.

        —  Eu gostaria de saber o que está realmente procurando, Rex — disse ela. — Estou disposta a ajudá-lo, se puder. Qual é exatamente o seu problema com o livro?

        —  Não se importa de falar de trabalho? Está bem. Falei que Albert Speer usou diversos arquitetos associados. Dez, para ser mais preciso. Localizei a maior parte de seus prédios e projetos. Estava tudo nos arquivos de Speer. Mas faltam as obras de um arquiteto, o que se dedicou a construir por toda a Alemanha os esconderijos que Hitler usava em suas viagens durante a guerra.

        —  Creio que conheço os refúgios a que está se referindo — disse Emily, lançando um olhar para Tovah, a fim de incluí-la na conversa. — Hitler preferia viver no fundo da terra, enquanto a guerra se intensificava na superfície. Speer destacou um dos seus colegas mais competentes, um jovem arquiteto chamado Rudi Zeidler, para projetar e construir esses abrigos antiaéreos e bunkers particulares por toda a Alemanha.

        —  Rudi Zeidler... — repetiu Foster. — Ele pode ser o arquiteto cujas plantas estou procurando.

        —  Foi Zeidler quem projetou um abrigo subterrâneo na encosta de uma colina, por baixo de uma floresta, em Ziegenberg, perto de Bad Nauheim. Havia um quartel-general similar em Friedberg. — Emily voltou-se inteiramente para Foster. — Tem informações sobre essas construções?

        —  Não, Emily. São novidades para mim.

        —  Zeidler também projetou o Führerbunker, onde Hitler e Eva Braun passaram os últimos dias da guerra. O Führerbunker tinha dois níveis. Hitler e Eva tinham uma suíte particular de seis cômodos lá no fundo. Por cima do Führerbunker havia mais de três metros de concreto e quase dois metros de terra. Considerando-se a concisão, foi um projeto brilhante.

        —  Tem razão — disse Foster. — Estudei várias plantas do Führerbunker. Mas não sabia que Rudi Zeidler era o arquiteto. No entanto, o que quero mesmo são as plantas das outras sete estruturas subterrâneas que ele projetou. Acha que Zeidler ainda vive?

        —  Provavelmente. Sei que estava vivo há um ano e meio, quando meu pai entrevistou-o aqui, em Berlim Ocidental.

        —  Seu nome estaria na lista telefônica?

        —  Não. A maioria desses antigos nazistas não consta dá lista. Lembro que meu pai teve alguma dificuldade para localizá-lo. Mas Zeidler se mostrou muito cooperativo.

        —  Tem alguma idéia de onde eu poderia encontrá-lo?

        —  Não há problema. O endereço e telefone estão em nossos arquivos em Oxford.

        —  Posso telefonar para sua secretária e pedir? Emily sorriu.

        —  Já mandei que ela me enviasse. Todo o nosso fichário de arquitetura. Não sabia exatamente o que você queria. Zeidler está incluído. Devo receber até a tarde de amanhã.

        Numa reação impulsiva, Foster inclinou-se e cobriu a mão de Emily com a sua.

        —  Não sabe como me sinto agradecido, Emily. Embaraçada, excitada, ela murmurou:

        —  Lá vem o garçom com a nossa comida.

        Enquanto a sopa era servida, Foster continuou a fitar Emily com satisfação.

        —  Eu gostaria de poder fazer alguma coisa por você, para retribuir o favor.

        Emily sentiu vontade de dizer-lhe exatamente o que podia fazer, mas se conteve. Em vez disso, murmurou:

        —  Ora, não se preocupe... — E foi nesse instante que uma idéia prática lhe ocorreu. — Pensando bem, creio que pode me fazer um favor. Não para mim, mas para um amigo.

        —  Tudo o que eu puder fazer, terei o maior prazer...

        —  Hoje, em minhas pesquisas, fui a Berlim Oriental para falar com um alto funcionário do governo, Professor Otto Blaubach, antigo colega e amigo de meu pai, a quem eu já conhecia. Ele está tentando arranjar uma coisa para mim, e assim eu gostaria de fazer algo por ele. O Professor Blaubach apresentou-me a um visitante a quem desejava ajudar e perguntou se eu não poderia dar uma mão. O visitante era um russo muito simpático, Nicholas Kirvov, o atual curador do Museu Hermitage, em Leningrado.

        Pela primeira vez, desde que os drinques haviam sido servidos, Tovah manifestou-se:

        —  Ah, quanto eu não daria para conhecer esse museu! Emily virou-se para ela.

        —  Talvez você possa conhecer Kirvov e ele a convide a visitar Leningrado.          

        —  Espero que sim — disse Tovah, mergulhando a colher na sopa. — Desculpe a interrupção. Você falava sobre o seu encontro com Kirvov.

        Emily voltou a se concentrar em Foster.

        —  Kirvov coleciona desenhos e quadros de Hitler. Quer expô-los no Hermitage.

        —  São horríveis — comentou Foster. — Absolutamente banais.

        —  Concordo plenamente. Mas não é isso o importante. Ainda assim seria uma exposição que despertaria curiosidade.

        —  É verdade — disse Foster.

        —  O problema é que Kirvov acaba de adquirir um quadro de Hitler não-assinado, mostrando algum prédio do governo que ninguém consegue identificar. Kirvov quer saber que prédio é esse, antes de expor o quadro. Eu disse que tentaria ajudá-lo. Quando telefonei para Oxford, pedi à minha secretária que enviasse também uma cópia do fichário artístico de Hitler... além do fichário de arquitetura, para você e Kirvov. Mas como você é arquiteto, e conhece tanto a arquitetura nazista, talvez saiba qual é o prédio que aparece no quadro de Kirvov. Deixe-me mostrá-lo.

        Emily abriu a pequena bolsa e tirou a fotografia que Kirvov lhe dera do óleo de Hitler. Entregou-a a Foster. Enquanto Tovah se inclinava para o lado, a fim de ver também, Foster estudou a fotografia.

        —  Tem certeza de que é de Hitler?

        —  É o que dizem os peritos. Foster sacudiu a cabeça, devagar.

        —  Não é nenhum prédio que eu me lembre de ter visto em Munique, Frankfurt, Hamburgo ou qualquer outro lugar... e tenho uma grande coleção de fotografias de todos os prédios que Hitler construiu em sua época. Mas parece com muitos daqueles horríveis prédios oficiais que surgiram depois que ele se tornou Chanceler. Posso ter visto alguma coisa assim uma dúzia de vezes... mas onde?

        Fez uma pausa, estreitando os olhos para observar melhor a fotografia.

        —  Parece um dos muitos prédios que Hitler mandou fazer em Berlim nos seus primeiros dias como líder da Alemanha.

        —  Berlim? — disse Emily. — Mas esse quadro é de Hitler, e pelo que sabemos ele pintou exclusivamente em Linz, Viena e Munique. Nunca em Berlim.

        Os olhos de Foster estavam fixos na fotografia.

        —  Apesar de tudo, ainda acho que é um prédio em Berlim.

        —  Talvez Kirvov possa procurar pela cidade — sugeriu Tovah.

        —  Seria inútil — explicou Foster. — Os bombardeios Aliados, ao final da guerra, e a ofensiva por terra do marechal Zhukov destruiram por completo ou deixaram em ruínas a maioria dos prédios públicos e industriais da cidade. Havia 250 mil prédios em Berlim ao final da guerra. Trinta mil foram totalmente demolidos, vinte mil bastante danificados e 150 mil parcialmente danificados. Quase todos os prédios do governo estavam entre os que foram totalmente destruídos. É improvável que este prédio ainda exista. Ele levantou a fotografia para Emily, indagando:

        —  Importa-se que eu fique com isto por um ou dois dias? Quero verificar meu portfólio para saber se há alguma fotografia antiga que se pareça com o quadro.

        —  Pode ficar. Mas vamos comparar também com o meu fichado, quando chegar amanhã.

        Emily tomou apressadamente um pouco de sopa, mas fez sinal ao garçom para levá-la, quando ele retirava os outros pratos. Antes que pudessem continuar a conversa, o garçom trouxe os filés e eles esperaram até que terminasse de servir. Depois, foi Tovah a primeira a falar:

        —  Emily, você tem se mostrado muito generosa, dando informações a Rex e tentando ajudar Kirvov. Mas você ainda é o ponto principal. E quase não nos falou a seu respeito.

        Emily tornou-se evasiva no mesmo instante.

        —  Sabe por que estou aqui. Para dar os retoques finais numa biografia que meu pai e eu estávamos quase concluindo.

        —  Que retoques finais? — insistiu Tovah.

        Foster presenteou Emily com um dos seus sorrisos incríveis, os que ela achava irresistíveis.

        —  Eu bem que gostaria de saber mais sobre o que você está fazendo.

        Foi o suficiente para Emily. Ela queria contar a Rex qualquer coisa que ele quisesse saber a seu respeito. O sorriso ainda o iluminava quando ele acrescentou:

        —  O que me diz?

        Emily olhou para a jornalista israelense.

        —  Mas posso confiar em você? O que estou fazendo aqui é confidencial. Lembre-se que prometeu que não divulgaria nada do que conversássemos esta noite, Tovah.

        —  Dei a minha palavra — respondeu Tovah. — E torno a dá-la. Não violarei uma confidência.

        —  Muito bem. — Emily sentia-se pressionada pelo sigilo que impusera a si mesma. Queria conquistar a confiança de Rex. E queria a amizade de Tovah. — Vou contar o que me trouxe a Berlim.

        Ela estava pronta para falar e foi o que fez. Discorreu sobre os cinco anos de trabalho em Herr Hitler, com seu pai. Quase ao final do relato, Foster interrompeu-a para comentar:

        —  Deve ser muito difícil escrever uma biografia tão complexa.

        —  Para ser franca, é fascinante — declarou Emily. — E não foi absolutamente difícil... exceto numa coisa.

        Ela pensou em algo que estava em sua mente há muito tempo, sentindo agora que podia exprimi-lo. E continuou, dirigindo-se especialmente a Foster:

        —  Isto é, imagino que de certa forma foi mesmo difícil. Quando se envolve tão profundamente nas minúcias da vida de outra pessoa, sempre há o risco de se pensar que é um ser humano igual a você. Mas sabe-se que o homem era desumano, uma besta terrível. Sabe-se o que ele fez com os outros ao longo de sua vida. Tenta-se conciliar a verdade de suas atividades com os fatos normais de uma vida que se descobriu. E não é possível, pois nos descobrimos incapazes de conciliar as tremendas contradições. É incontestável que os Vernichtungslager de Hitler existiram. Os campos de extermínio. Auschwitz, Buchenwald, Dachau, Mauthausen, Treblinka, num total de trinta campos de morte nazistas. E se toma conhecimento de Auschwitz, o mais eficientes com suas quatro enormes câmaras de morte, duas mil vítimas desamparadas e nuas sufocando e se contorcendo nos estertores da morte em cada uma, todos os dias, sendo tiradas para se remover os anéis e obturações de ouro, que eram depositados no Reichsbank, os fornos crematórios queimando os corpos, as cinzas vendidas como fertilizantes. Os seis milhões de judeus que foram mortos e cremados, os vinte milhões cuja morte ele causou, durante a Segunda Guerra Mundial, a sua total indiferença aos sofrimentos dos próprios seguidores, como as milhares de pessoas que morreram afogadas quando ele mandou inundar o metrô de Berlim, os milhões de soldados que permitiu que fossem mutilados ou mortos durante a defesa absolutamente inútil de Berlim por 16 dias. Tudo isso foi obra de Adolf Hitler, e de ninguém mais.

        Distraidamente, Emily cortou um pedaço de seu filé, mas não o levou à boca, fitando de novo os olhos atentos de Foster.

        —  Mas ao se escrever uma biografia detalhada de um homem não se pode deixar de ficar absorvida em seu comportamento normalmente humano e em suas fragilidades. E se fica desconcertada com esse apaixonado por cães alsacianos e os filhos pequenos dos outros, esse vegetariano que não fumava, um homem que adorava a mãe e que gostava de assistir, muitas vezes, a filmes como Aconteceu Naquela Noite. A confusão aumenta porque essa besta humana também tinha vulnerabilidades humanas, a mão e o braço esquerdo que tremiam, a perda da visão no olho direito, todos os remédios que tomava para o mal de Parkinson.

        Emily fez uma pausa, respirou fundo e depois continuou:

        —  Há dificuldade para se resolver outra contradição... sua atenção para com os detalhes femininos que envolviam Eva Braun. Ele gostava de sexo com ela, faziam amor sempre que não estava muito cansado ou doente. Sua doce Eva, a quem não permitia esquiar para que não quebrasse uma perna, a quem não permitia tomar banho de sol para que não ficasse com câncer de pele. Sua doce Eva, que gostava de ouvir Tea for Two e usar o relógio de platina com diamantes que ele lhe dera, ligas de seda e o perfume Air Bleu da Worth, que ele confiscara na Paris conquistada.

        Emily sacudiu a cabeça.

        —  Todos esses microscópicos fatos humanos situam-se num lado. Mas no outro há seis milhões de homens, mulheres e crianças que ele condenou a serem despidos e mortos nas câmaras de gás... cada um deles um pai, uma mãe, um filho, uma neta, querendo envelhecer, desfrutar a vida, mas todos impotentes, todos assassinados, até que finalmente a carnificina foi detida por milhões de pessoas melhores e mais decentes que Hitler, pessoas que sacrificaram anos e até suas próprias vidas para eliminá-lo da face da terra.

        Emily olhava fixamente para Foster.

        —  Desculpe, Rex... Tovah... por falar assim. Mas vocês perguntaram e eu tinha de responder. Essa foi a dificuldade para escrever o livro. Ficar absorvida nas minúcias humanas que fazem com que um dos maiores demônios da história pareça um ser meio humano. Contudo, ele não era humano, não era absolutamente humano. Era um selvagem implacável por dentro, espojando-se no próprio ego, não se importando com qualquer outra pessoa no mundo além das que lhe estavam mais próximas. E agora... agora preciso descobrir se ele enganou o mundo inteiro, se fingiu cometer suicídio mas na verdade escapou para evitar a punição que tanto merecia, e sobreviveu. Vale a pena tentar descobrir, não apenas para um simples livro, mas pela oportunidade de levá-lo à justiça, se realmente ainda estiver vivo. Creio que tudo o que sinto foi muito bem enunciado pelo promotor americano, nos Julgamentos de Nuremberg, Robert Jackson, ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Ele disse: "Os erros que procuramos condenar e punir foram tão calculistas, tão malignos e tão devastadores que a civilização não pode se dar o luxo de ignorá-los, pois não seria capaz de sobreviver à sua repetição."

        Rex Foster a fitava agora com expressão aturdida.

        —  Emily, está querendo dizer que Hitler não morreu em 1945? Acha mesmo que ele conseguiu escapar impune?

        Emily levantou os olhos.

        —  É bem possível, mas não tenho certeza. Vou explicar tudo.

        Ela relatou a inesperada interrupção da biografia de Herr Hitler. Falou da carta do Dr. Thiel, embora não mencionasse seu nome. E continuou daí. A morte do pai. As suspeitas de que não fora um mero acidente. Sua decisão de investigar a possibilidade de que Hitler e Eva Braun não tivessem morrido no Führerbunker, como a história declarava. Seu encontro com o Dr. Thiel, outra vez sem mencionar o nome. A sugestão para que procurasse duas provas. Uma, a ponte dentária de Hitler. Outra, o seu camafeu com a efígie de Frederico o Grande. E finalmente o seu pedido ao Professor Otto Blaubach para que lhe permitissem escavar a área do Führerbunker.

        —  Pronto, aí está — concluiu Emily, a voz reduzida a um sussurro. — É por isso que estou aqui.

        Ela podia ver que Rex Foster estava sinceramente fascinado.

        —  Mas que história fantástica... — murmurou ele. Tovah se mostrava igualmente fascinada pelo relato de Emily,

        mas perturbada por um ponto.

        —  Viram Hitler e Eva Braun mortos no sofá, os corpos foram levados para o jardim e cremados, diante de muitas testemunhas. Como pode explicar isso?

        —  Sósias morreram no lugar deles — respondeu Emily. —

        Mataram-se ou foram liquidados e cremados, enquanto os verdadeiros Hitler e Eva sobreviviam e escapavam.

        —  Um sósia de Adolf Hitler — murmurou Tovah, saboreando a perspectiva. — Não seria fácil provar.

        —  Tenciono tentar demonstrar que pode ter acontecido assim com a escavação no Führerbunker, se me derem permissão.

        Tovah se soerguera na cadeira.

        —  E eu quero escavar também... escavar em outras partes... tentar descobrir mais alguma coisa sobre os sósias de Hitler. — Como se tivesse medo que Emily pudesse protestar, apressou-se em acrescentar: — Sou uma jornalista, uma repórter investigadora. Estou acostumada a procurar a verdade.

        Emily contraiu os lábios.

        —  Esta não é uma história para os meios de comunicação. Ainda não. Lembre-se do que aconteceu com meu pai.

        —  Eu não lhe acarretaria qualquer risco — garantiu Tovah.

        —  Gostaria simplesmente de ajudá-la a descobrir a verdade, mas também quero ajudar meu país. Sabe que metade de Israel vem caçando os nazistas desaparecidos... Martin Bormann e os outros. Mas encontrar Adolf Hitler, o maior dos monstros, o homem que os israelenses mais gostariam de levar à forca...

        —  Se ele sobreviveu — disse Foster, com expressão pensativa.

        — Emily... eu também gostaria de ajudá-la.

        —  Obrigada, Rex. Precisarei de toda ajuda que puder arrumar.

        — Emily fez uma pausa. — Mas devo lembrar uma coisa. Meu pai também veio para cá em busca da verdade. E agora está morto. Assim... — Ela fitou Foster nos olhos e depois Tovah. — ...devemos tomar muito cuidado. Mas muito mesmo.

    

        Na manhã seguinte, bem cedo, exatamente quando o despertador começava a soar, o telefone tocou. Meio desperta ainda, Emily tirou o fone do gancho... e um instante depois estava inteiramente desperta.

        Era o Professor Otto Blaubach.

        —  Emily, sobre a sua permissão para escavar no Führerbunker...

        Ela sentiu o coração disparar enquanto esperava pela continuação.

        —  ...parece que há necessidade de mais uma coisa. Os membros do conselho querem saber até que ponto você tenciona escavar. Devo apresentar-lhes uma informação completa. E só depois a decisão será tomada.

        Emily ficou aturdida.

        —  Como posso saber o quanto terei de escavar antes de examinar o local?

        —  É justamente o que queremos que faça. Se quiser se encontrar comigo logo depois do almoço, poderemos ir juntos à Zona de Segurança. Poderá examinar o local, indicar onde planeja escavar. Transmitirei tudo ao conselho.

        Sentando na cama, Emily experimentou uma pontada de pânico. E manifestou sua preocupação.

        —  Claro que estarei aí no momento em que quiser. Mas há uma coisa que me preocupa. Jamais estive antes no local. Lembro das fotografias que os russos tiraram, ao chegarem, em 1945. Mas não sei agora quais eram as dimensões subterrâneas do bunker ou onde ficavam no jardim a cova rasa e a cratera da bomba.

        —  Traga um mapa ou uma planta para orientá-la — aconselhou Blaubach, paciente. — Deve ter alguma coisa em que se basear. Ou tenho uma idéia melhor. Conhece alguém em Berlim que conheça o local melhor do que eu e possa lhe indicar onde escavar?

        Emily lembrou-se no mesmo instante de Rex Foster, com seus conhecimentos de arquitetura nazista.

        —  Conheço, sim — respondeu ela confiante.

        Mas Blaubach já estava lhe dando instruções sobre a maneira como deveria encontrá-lo em Berlim Oriental. Emily anotou tudo no bloco ao lado do telefone.

        —  Estarei lá às três horas da tarde — prometeu Blaubach. — Iremos juntos ao local.

        Ela tentou controlar o excitamento com um esforço para agir de maneira ordenada.

        Primeiro precisava de um banho de chuveiro para desanuviar a cabeça.

        Depois, vestindo as roupas de trabalho, um macacão azul por cima da blusa vermelha de algodão, um lenço vermelho e branco amarrado no pescoço, ela pensou em sua pesquisa. Foi vasculhar as pilhas de pastas à procura de uma planta da área do Führerbunker. Encontrou-a e estudou-a, chegando à conclusão de que não era suficiente para determinar os pontos exatos em que precisaria escavar. Com Nitz, no dia anterior, da plataforma de observação, vira como o local estava agora. Um monte de terra cercado de relva. O anonimato da superfície não lhe proporcionaria muita orientação. Blaubach estava certo. Precisava de alguém que conhecesse muito bem o lugar e pudesse indicar onde tudo se encontrava em 1945 e onde devia escavar em 1985.

        Pedindo que levassem o café da manhã ao quarto, ela tentou se acalmar, antes de acordar Rex. Ele certamente conhecia os detalhes exatos do Führerbunker. Mas a perspectiva de tê-lo a seu lado já era excitante por si mesma. Ligou para o quarto de Rex. O telefone tocou e tocou. Ninguém atendeu. Ele saíra cedo. Poderia passar o dia inteiro fora.

        Droga. Haveria outra pessoa? Quem mais poderia procurar?

        E, de repente, alguém lhe ocorreu. Sem perder mais tempo, ligou para Ernst Voge. O antigo guarda da SS estivera no Führerbunker, fora preciso e meticuloso na descrição dos acontecimentos e do cenário da suposta morte de Hitler, poderia ser mais útil do que Rex ou Blaubach.

        Por sorte, Vogel estava em casa e atendeu o telefone.

        Emily começou a se apresentar de novo, mas não foi necessário. Ele se lembrava da entrevista. Ela explicou o que deveria fazer naquela tarde, mas sem explicar o verdadeiro motivo de sua exploração. Disse apenas que era algo que não podia deixar de fazer para concluir seu livro e precisava de alguém para ajudá-la. Seu contato em Berlim Oriental a aconselhara a levar uma pessoa que tivesse conhecido o bunker no passado.

        —  E pensou em mim? — indagou Vogel. — Quer que eu a acompanhe?

        —  Isso mesmo. Achei que se lembra nitidamente de tudo o que aconteceu ali em 1945 e pensei...

        —  Claro que me lembro de tudo. Jamais esquecerei. E será memorável visitar o lugar, depois de tanto tempo. Terei o maior prazer em acompanhá-la.

        —  Tenho uma planta do Führerbunker e da área do jardim. Posso levá-la.

        —  Não é necessário — respondeu Vogel. — Levarei a minha que sei que é precisa...

        —  Providenciarei um carro com motorista. E irei buscá-lo às duas e meia.

        —  Estarei pronto.

        Agora, o carro e o motorista. Não houve qualquer dificuldade. Irwin Plamp e seu Mercedes estariam no Kempinski às duas horas.

        Irwin Plamp parou o Mercedes perto de uma cerca alta na Niederkirschenerstrasse, em Berlim Oriental. Emily avistou o Professor Otto Blaubach parado na frente de um jipe, ao lado de uma guarita de sentinela, junto ao portão eletrônico, esperando. Acenou para Blaubach, que acenou em resposta. Emily virou-se para Ernst Vogel.

        —  É aqui que saltamos.

        Ela abriu a porta traseira para saírem, mas Plamp já contornara apressadamente o carro para ajudá-la a descer.

        —  Obrigada, Herr Plamp — disse Emily. — Fique esperando aqui. Não devemos demorar mais do que uma hora... Herr Vogel, venha comigo.

        Encaminharam-se para o portão. O Professor Blaubach cumprimentou Emily efusivamente e depois olhou para Ernst Vogel com expressão inquisidora. Emily apresentou-os. Enquanto Blaubach os conduzia ao jipe, onde um soldado alemão oriental aguardava ao volante, Emily explicou as credenciais de Vogel.

        —  Herr Vogel foi da guarda de honra da SS, dentro e fora do Führerbunker, durante os últimos dez dias, antes dos russos chegarem. Lembra nitidamente a disposição interior, testemunhou a cremação e sepultamento de Hitler no jardim.

        Blaubach ajudou Emily a subir para o banco traseiro do jipe, lançou um olhar frio para Vogel, e deixou-o subir sozinho. Depois, com agilidade inesperada para um homem de sua idade, Blaubach subiu na frente do jipe e sentou-se ao lado do motorista.

        —  Vamos para o Führerbunker — ordenou ele em alemão.

        Entraram na Zona de Segurança fechada, seguindo por um caminho de terra ao longo dê uma cerca de arame, fixada em postes de concreto, com sinistros cartazes a intervalos: GRENGEBIET — "Área de Fronteira" — também escrito em inglês, francês e russo. Por baixo, também em quatro línguas, o aviso: PASSAGEM PROIBIDA.

        Enquanto avançavam pelo sujo caminho, passando por obstáculos antitanques e uma torre de vigia guarnecida, Emily percebeu que se aproximavam cada vez mais do monte de terra que se elevava acima do campo, não muito longe do muro. Inexplicavelmente, estremeceu. Logo estavam paralelos à elevação, e o jipe virou abruptamente para a esquerda, deixando o caminho e seguindo devagar pelos dez metros de terreno cheio de pedras e mato, até o monte de terra. Emily estava hipnotizada demais pela visão para falar. A elevação retangular, terra misturada com pedras e entulho, erguia-se uns seis ou sete metros acima do jipe.

        Abruptamente, o jipe parou. Blaubach fez sinal para que saltassem e todos andaram sob o sol até a base da elevação.

        —  Esta é a sepultura do Führerbunker — anunciou Blaubach. Uma pausa e acrescentou, desdenhosamente:

        —  A catacumba de Hitler. — Virando-se para Vogel, indagou, um tanto zombeteiro: — Pode reconhecer?

        Vogel estava parado, indeciso, olhando ao redor, enquanto ajustava o aparelho de audição. Emily observou-o, com expressão preocupada.

        —  Faz algum sentido, Herr Vogel? Preciso saber onde fica exatamente o Führerbunker por baixo deste monte de terra, preciso saber o local da cova rasa em que Hitler e Eva foram cremados, a cratera de bomba em que foram sepultados e os russos os encontraram.

        Ernst Vogel pusera óculos escuros e agora tirava um papel dobrado do bolso do paletó. Desdobrou-o e Emily constatou que era uma planta meticulosa do bunker e um mapa da área ao redor. Vogel estudou por um momento. Levantou os olhos, esquadrinhou outra vez a área, olhou fixamente para a frente. E de repente seu rosto se iluminou.

        Apontou para longe do monte, na direção sul.

        —  Tenho certeza de que ali Ficava a Nova Chancelaria do Reich, estendendo-se por 400 metros, pela Voss Strasse. — Ele virou-se para Blaubach. — Não é isso mesmo?

        Blaubach acenou com a cabeça bruscamente.

        —  É sim. Era o lugar em que ficava.

        —  Pois o resto é muito simples — declarou Vogel, com crescente confiança. — A Velha Chancelaria ficava ao lado. Portanto... — começou a rodear a elevação. — Venham comigo. Vou mostrar onde o Führerbunker ficava exatamente, por baixo deste monte de terra. Acompanhem-me, por favor.

        Vogel parou no outro lado do monte e esperou que Blaubach e Emily o alcançassem. Por um momento, a animação de Vogel se desvaneceu. Ele parecia transportado no tempo. Finalmente, gesticulou e disse:

        —  Estão agora na Nova Chancelaria, no salão cerimonial. Têm um encontro marcado com Hitler e por isso seguem por um túnel comprido até a Velha Chancelaria, passam pela Kannenbergalley... a copa, assim chamada em homenagem ao gordo mordomo de Hitler, Arthur Kannenberg... descem por uma escada circular para três portas reforçadas com aço, a terceira guardada por dois soldados da SS. É a que dá para o nível superior do Führerbunker...

        Vogel voltou ao presente e deu alguns passos, chegando ao lado do monte de terra.

        —  ...bem aqui — disse ele, traçando uma linha na relva com o bico do sapato.

        Emily foi postar-se ao lado de Vogel, perguntando:

        —  Quando o Führerbunker ficou pronto para ser usado?

        —  O nível superior, ou Vorbunker, foi escavado e construído sob a Velha Chancelaria do Reich, e seu jardim, em 1936. Tinha na ocasião apenas dez metros de profundidade. Dois anos depois Hitler decidiu que não era suficientemente grande. Ordenou a ampliação, que foi executada. Em 1943, quando a guerra começou a se tornar desfavorável, Hitler determinou que o bunker fosse reforçado pela Companhia Construtora Hochtief. Ao final de 1944 ele ordenou que um segundo bunker, mais profundo, fosse construído por baixo do Vorbunker. Assim, o Führerbunker tem dois andares ou níveis. O inferior, usado por Hitler e Eva Braun, ficava dezessete metros abaixo da superfície.

        —  Onde era a entrada do bunker? — quis saber Emily. Vogel passou sobre a linha que traçara com a ponta do sapato.

        —  Bem aqui embaixo havia um pequeno lance de degraus de concreto para o nível superior do bunker. Havia treze salas pequenas no nível superior, sem quaisquer adornos, o reboco inacabado. Seis salas num lado, seis no outro, o refeitório nos fundos. Eram usadas como alojamentos para os criados, depósito de lenha, uma despensa, adega para vinhos, um escritório para a agência de notícias nazista, a Deutsches Nachrichíenburo, uma sala de rádio que captava as transmissões da BBC, uma Diätküche, ou cozinha vegetariana. O refeitório tinha uma mesa de carvalho em que todos comiam. Depois que Hitler instalou-se no Führerbunker, ficou no nível inferior, raramente subindo ao outro.

        —  Como se descia para falar com Hitler? — perguntou Emily. Vogel subiu pelo monte de terra.

        —  Havia aqui uma escada de concreto, com doze degraus, descendo para o nível inferior. Era lá embaixo que se desenvolvia a atividade principal.

        Emily subiu pelo monte de terra para se juntar a Vogel, enquanto o Professor Blaubach permanecia lá embaixo.

        —  Herr Vogel — disse ela —, poderia me explicar a disposição do nível inferior?

        Vogel tornou a desdobrar sua planta. Balançou a cabeça e murmurou:

        —  Tentarei. Siga-me. — Ele avançou pelo lado direito da elevação, descrevendo o que havia lá no fundo. — Havia cerca de dezoito cômodos apertados no nível inferior, quase todos pintados de cinza, divididos por um corredor de aproximadamente quatorze metros e três metros de largura. O corredor tinha revestimento de madeira e pequenos quadros italianos pendurados nas paredes. Hitler escolheu-os pessoalmente. Enquanto andamos por aqui, no lado direito do monte, tente imaginar o que veria lá embaixo.

        Avançando devagar, com Emily em seus calcanhares, Ernst Vogel continuou a falar:

        —  Aqui era a sala da caldeira. Ao lado ficava o gabinete de Martin Bormann e por trás o posto telefônico. Em seguida vinha a sala de Josef Goebbels e por trás um cubículo para o oficial de plantão. Em seguida vinha o quarto de Goebbels, tendo por trás uma pequena sala de operações e o quarto dos médicos pessoais de Hitler. Agora, vamos à parte mais importante, o lado esquerdo do corredor. Vou lhe mostrar.

        Vogel voltou pelo monte e passou para o lado esquerdo. Emily alcançou-o e tornaram a avançar, juntos.

        —  Por baixo de nós estão os banheiros coletivos, com três reservados, e o canil — disse Vogel. — Ao lado está o quarto de vestir de Eva Braun, seu quarto de dormir e um banheiro, que ela partilhava com Hitler.

        Vogel deu mais alguns passos e depois parou.

        —  Lá embaixo ficava a suíte particular de Hitler, com quatro cômodos. Mais ou menos aqui era a sala de estar em que ele e Eva Braun morreram. Havia depois uma sala de espera ou ante-sala, dando para o corredor. Ao lado ficava o quarto particular de Hitler. Ao lado havia uma pequena sala de mapas e no outro lado do corredor, a sala de conferências em que ele se reunia com seus generais, orientando a defesa final de Berlim.

        —  O que havia na sala de estar de Hitler? — perguntou Emily. Vogel pensou por um momento e depois fez unia descrição

        apressada dos móveis;

        —  A sala era estreita, tinha um sofá para duas pessoas, uma escrivaninha com uma fotografia emoldurada da mãe de Hitler. Por cima, na parede, numa moldura dourada circular, estava o retrato de Frederico o Grande, pintado por Anton Graff. Havia também três- cadeiras da Chancelaria. As paredes eram revestidas com madeira e o chão acarpetado, mas ainda assim, pelo que me disseram, era uma sala fria.

        —  Está ótimo, Herr Vogel. Disse que depois que Hitler e Eva se suicidaram os corpos foram carregados pelo corredor e por uma escada até o jardim. Pode me apontar onde ficava essa escada?

        —  Posso tentar. — Vogel foi até a frente do monte e desviou-se para um lado. — Aqui, no outro lado da sala de conferência, havia quatro lances de degraus de concreto que levavam do nível inferior do bunker a uma saída de emergência especial. Passava-se por uma espécie de casamata externa retangular, dando para o jardim da Chancelaria. Depois de carregarem Hitler pela saída... venha, vou lhe mostrar...

        Vogel desceu cautelosamente o monte de terra até o campo relvado ao lado. Esperou que Emily o alcançasse. Consultou sua planta mais uma vez e recuou alguns passos.

        —  A saída de emergência ficava perto deste ponto — disse ele. — Entre a saída e uma torre de vigia redonda... a cerca de um metro do lugar em que você está... havia um pequeno fosso, uma cova rasa. Foi o lugar em que largaram os dois corpos e os cremaram.

        —  E onde os corpos foram enterrados de novo?

        —  Vire-se um pouco para a direita... e agora calcule três metros. Emily apontou para a frente.

        —  Ali?

        —  Isso mesmo. Era o local da cratera com os corpos.

        —  Obrigada, Herr Vogel. — Emily descobriu que o Professor Blaubach estava parado ao seu lado. Fitou-o nos olhos. — Ouviu tudo? Deve poder me dizer se está razoavelmente preciso.

        —  Ao que eu saiba, seu amigo está totalmente exato. Aparentemente sua memória está perfeita.

        —  Foi uma experiência inesquecível para mim — explicou Vogel.

        —  E um momento feliz para o resto do mundo — comentou Blaubach secamente. Puxando Emily para um lado, indagou: — Sabe agora onde deseja escavar?

        Emily acenou com a cabeça, confiante.

        —  Em três lugares. Os locais da cova rasa e da cratera, na área do jardim. Quanto ao Führerbunker, não precisarei descobrir tudo. Apenas uma parte da elevação. Quero descer até a suíte de Hitler.

        Blaubach mostrou-se satisfeito.

        —  A limitação da escavação aumenta a possibilidade de obter permissão do conselho. De quanto tempo vai precisar?

        —  Tenho uma equipe experiente de sobreaviso. Creio que três dias serão suficientes.

        —  Levando-se tudo em consideração, calculo que cinco ou seis dias seria um prazo mais realista. Pedirei ao conselho que autorize as escavações por uma semana. Está bom assim?

        —  Eu ficaria muito grata, Professor Blaubach.

        —  Se a permissão for concedida, gostaria que aceitasse um pequeno conselho.

        —  Qual?

        —  Mantenha em segredo o propósito da escavação. Creio que é o melhor para o seu sucesso e bem-estar.

        

        Werner Demke, jovem e espinhento repórter do BZ, o tablóide de grande circulação de Axel Springer, fez sua escala rotineira na plataforma de observação na Potsdamer Platz, ao final da tarde, quando voltava à redação. Uma de suas obrigações era providenciar uma relação das celebridades estrangeiras que visitavam Berlim, todas as semanas. Geralmente a polícia e meia dúzia dos melhores hotéis eram as suas fontes mais produtivas. A plataforma de observação era uma fonte menos produtiva, mas às vezes algum político ou artista de cinema era levado até ali para espiar por cima do muro para a terra de ninguém no lado de Berlim Oriental. Como um repórter principiante, Demke achava que não devia ignorar qualquer possibilidade para uma notícia breve ou uma reportagem maior.

        Estacionando seu Volkswagen, foi até a loja de souvenirs, meteu a cabeça pela porta e perguntou à proprietária:

        —  Alguma pessoa importante apareceu por aqui esta tarde?

        —  Nenhuma, Herr Demke. Sinto muito. Apenas um pequeno grupo de turistas ingleses de Manchester. Provavelmente estão lá em cima da plataforma neste momento.

        —  O que não chega a ser uma notícia quente. Muito obrigado. Demke voltou para o seu carro, desolado. Fora um dia vazio.

        Ascher, o editor de assuntos locais, não ficaria muito satisfeito. Ele ouviu um grito alto e jovial e olhou para a plataforma de observação. Duas mulheres gorduchas de meia-idade estavam lá em cima, na grade da plataforma, com binóculos nos olhos, virados para a Zona de Segurança dos alemães orientais. Uma das mulheres soltou um grito excitado. Demke viu então o terceiro membro do grupo, um homem idoso, correr para a grade, focalizar a máquina fotográfica em alguma coisa na Zona de Fronteira e começar a gritar.

        Werner Demke especulou sobre o que teria atraído a atenção dos turistas. Num súbito impulso, desviou-se do carro e se encaminhou para os degraus da plataforma.

        Quando chegou à base da escada de madeira, os três turistas já estavam descendo, exultantes. Conversavam em inglês, e Demke teve certeza de que eram os turistas ingleses a que se referira a proprietária da loja de souvenirs.

        Deu um passo para o lado, enquanto os três deixavam a escada e paravam um pouco adiante.

        —  Têm certeza de que era mesmo Emily Ashcroft? — indagou o homem. — Bati todo um filme dela e dos dois homens, até embarcarem no jipe.

        A mulher mais corpulenta respondeu:

        —  James, eu poderia reconhecê-la como reconheço você. Tenho certeza absoluta de que era a mulher que apareceu no programa de televisão da BBC.

        —  Ótimo — disse o homem, passando a mão pela câmara. — Encontramos pelo menos uma celebridade nesta viagem, isto é, mais ou menos urna celebridade.

        Escutando, Werner Demke tentou lembrar quem era Emily Ashcroft. Uma campainha soou vagamente em sua cabeça. E de repente o barulho foi ensurdecedor. Ashcroft, o pai, morrera atropelado na Ku'dâmm há algumas semanas, e a filha viera a Berlim para concluir a biografia de Hitler.

        Prontamente Demke percebeu a possibilidade de uma história. Aproximou-se do grupo britânico e interrompeu a conversa, polidamente:

        —  Com licença. Não pude deixar de ouvir o que estavam dizendo... que alguma coisa aconteceu na Zona de Segurança no lado alemão oriental. Apenas por curiosidade, eu gostaria de saber o que foi.

        À mulher mais corpulenta respondeu, com um ar de orgulho:

        —  Deixou de ver uma das celebridades da televisão britânica. Ela estava lá embaixo, no meio das torres de vigia e dos guardas comunistas, acompanhada por dois homens.

        —  Isso é muito estranho — comentou Demke. — Há anos que ninguém tem permissão para entrar na área, a não ser os soldados.

        O homem se adiantou, alisando de novo a câmara.

        —  Posso lhe dizer o que ela e seus amigos estavam fazendo. Contornaram aquele monte de terra que todos dizem ser o lugar em que Hitler e sua mulher se esconderam, antes de se matarem. A tal de Ashcroft e um dos homens subiram pela elevação, falando sem parar. Depois desceram e começaram a olhar ao redor no outro lado...

        —  O jardim da Chancelaria — murmurou Demke.

        —  O que quer que fosse. Ficaram parados, falando, o outro homem se aproximou. Depois de um momento, os três se encaminharam para o jipe e foram embora. — O homem suspendeu a câmara. — Registrei tudo. Uma boa lembrança.

        A mente de Werner Demke trabalhava acelerada.

        —  Tirou fotografias dos três?

        —  Um filme inteiro. Demke engoliu em seco.

        —  Gostaria de me vender esse filme? O homem ficou espantado.

        —  Vender?

        —  Isso mesmo. Eu gostaria de comprar o filme inteiro. O homem sacudiu a cabeça vigorosamente.

        —  Estou tirando fotografias da viagem para o meu álbum e não quero perdê-las.

        —  Não as perderia — Demke apressou-se em dizer. — Teria cópias de todas. Garanto. Só que eu também quero cópias.

        Calculou quanto tinha na carteira. Provavelmente uns cem marcos. Era uma jogada. Ascher poderia rejeitar tudo. Por outro lado, era possível também que ele ficasse impressionado.

        —  Eu lhe darei cem marcos pelos negativos e um jogo de cópias, O homem tornou a sacudir a cabeça.

        —  Não.

        A mulher mais corpulenta foi postar-se na frente do homem, obviamente seu marido.

        —  Espere um pouco, James. — Ela virou-se para Demke. — Que história é essa? Quem é você?

        —  Sou repórter de um jornal alemão. Talvez vocês tenham testemunhado um incidente que pode ser notícia. Há muito tempo, até onde posso me lembrar, que alguém não tem permissão para entrar na Zona de Segurança alemã oriental para examinar o que sobrou do bunker de Hitler. A presença da Srta. Ashcroft dá à fotografia certo valor de curiosidade. Talvez eu esteja enganado. Talvez meu editor não queira usar nenhuma das fotografias. Apesar disso, vale a pena gastar todo dinheiro que tenho comigo, pelo menos para que ele veja as fotografias. E vocês ganhariam cem marcos e ainda receberiam um jogo de cópias.

        A mulher refletiu por um momento sobre a proposta.

        —  Quanto valem cem marcos? — perguntou o marido.

        Ela cochichou para ele a resposta. Os olhos do homem se arregalaram.

        —  Só por este filme?

        A mulher corpulenta pegou a máquina.

        —  Muito bem, meu jovem, pode ficar com o filme. Mas primeiro vamos ver seu dinheiro e um recibo.

       

        No final da manhã seguinte, Evelyn Hoffmann estava no ponto do encontro familiar, a mesa particular nos fundos do Mampes Gute Stube, já pedira Bratwurst e cerveja para o Chefe Wolfgang Schmidt e uma Gemischter Salat e chá para si.

        Aquele encontro era excepcional. Há anos que só se reuniam uma vez por semana, a fim de desfrutar a companhia um do outro, falar dos velhos tempos, trocar mexericos. A rotina era invariável. Naquela manhã, porém, houvera um recado de Schmidt, convocando-a para um encontro às onze horas, embora tivessem se encontrado apenas poucos dias antes.

        Muito estranho.

        Chegando à Ku'damm de ônibus, ela especulara sobre o motivo para aquela súbita reunião. Não lhe ocorrera coisa alguma que pudesse ser urgente. Contudo, por ser inesperada, a mensagem tinha um cunho de urgência. Em conseqüência, ela se descobrira no centro quase uma hora mais cedo. As opções eram ir para o restaurante e esperar, olhar as vitrines ou fazer uma visita a Liesl e Klára para passar o tempo.

        Acabara entrando na Knesebeckstrasse e se encaminhara para o apartamento dos Fiebigs, visitar as pessoas que lhe eram mais chegadas. E só então percebera uma omissão rara. Em sua confusão, Evelyn esquecera de levar um pequeno presente para Klara. Mas Klara não estava. Liesl se encontrava sozinha no apartamento, e Evelyn se sentira aliviada. Era difícil falar dos tempos antigos na presença de Klara e impossível quando Franz lá estava. Ele era um jovem radical que detestava o passado recente da Alemanha, a Alemanha que fora a glória de Evelyn. Ela e Liesl haviam aprendido depressa a jamais discutir os tempos antigos na frente de Franz ou mesmo de Klara.

        —  Mas que surpresa! — exclamara Liesl. — O que a traz aqui hoje?

        Dispensando a empregada diarista dos Fiebigs, Evelyn empurrara a cadeira de rodas de Liesl para a sala de estar, enquanto lhe falava sobre o recado de Schmidt. Evelyn estava ansiosa em conversar com Liesl e mal começara a fazê-lo quando ouvira o barulho de uma chave na porta da frente.

        —  Klara — explicara Liesl. — Ela tinha uma consulta com o obstetra esta manhã.

        Klara entrara na maior animação e também demonstrara surpresa com a presença de Evelyn.

        —  Tia Evelyn! Que prazer vê-la aqui! — Ela beijara Evelyn afetuosamente. — Qual o motivo desta visita de surpresa?

        —  Tenho de me encontrar com alguém daqui a pouco — respondera Evelyn vagamente. — Mas há outra coisa mais importante: o que disse o médico?

        —  Está tudo perfeito — garantiu Klara, os olhos brilhando. Depois, fizera uma careta e acrescentara: — Mas devo esperar mais enjôo pela manhã.

        Ela começara a deixar a sala, dizendo:

        —  Tenho de trocar de roupa e ir para a cozinha. Franz vem almoçar em casa. Quer saber das últimas notícias. Espero que fique aqui para vê-lo, Tia Evelyn.

        Mas Evelyn já estava se levantando.

        —  Obrigada, querida. Eu bem que gostaria, mas não posso. Tenho de comparecer ao meu encontro.

        Acima de tudo, ela queria escapar do apartamento antes da chegada de Franz Fiebig.

        E conseguira.

        Agora, estava sentada à mesa do restaurante, esperando o Chefe de Polícia Wolfgang Schmidt.

        A salada, o pão e o chá, que pedira para si mesma, foram servidos primeiro, junto com a cerveja de Schmidt. Acabara de adoçar o chá e estava prestes a pegar um pão quando sentiu a presença do corpulento Schmidt, que parou à sua frente, pegou sua mão e a beijou.

        —  Como vai, Effie? — disse ele, sentando na cadeira em frente a ela.

        —  Muito bem, Wolfgang. Mas fiquei curiosa com o seu recado.

        —  Não queria assustá-la, mas há um problema que precisamos discutir. —- Ele provou a cerveja, depois tomou um gole grande. — Quase não disponho de tempo essa manhã e por isso não poderei demorar. Mas é uma coisa importante.

        —  E o que pode ser tão importante?

        —  Isto. — Schmidt tirou um tablóide dobrado do bolso do paletó e começou a abri-lo. — O BZ desta manhã. Não creio que já o tenha visto.

        —  Sabe muito bem que raramente leio esse jornal.

        —  Pois deveria ler hoje. — Ele virou a primeira página, estendendo o jornal na página três para que Evelyn visse. — A fotografia na metade de cima. Dê uma olhada.

        Evelyn pegou o tablóide e examinou a fotografia grande com curiosidade.

        Era bastante nítida, tirada da plataforma de observação na Potsdamer Platz, em Berlim Ocidental, focalizando o monte de terra que cobria o antigo Führerbunker, no outro lado do muro. Três pessoas podiam ser vistas claramente na ampliação, uma mulher ainda jovem e dois homens idosos, conversando ao lado da elevação do bunker.

        A manchete dizia:

         SERÁ QUE ELES VÃO ESCAVAR DE NOVO À PROCURA DE HITLER?

        Ouviu Schmidt acrescentar:

        —  Leia a legenda, Effie.

        Evelyn baixou os olhos para a legenda. E leu-a rapidamente. As três pessoas na fotografia eram identificadas como Emily Ashcroft, proeminente historiadora britânica que se encontrava em Berlim para completar a biografia definitiva de Adolf Hitler, Herr Ernst Vogel, antigo guarda de honra da SS que estivera de sentinela no Führerbunker nos últimos dias, e o Professor Otto Blaubach, um profundo conhecedor do Terceiro Reich e vice-ministro do governo da Alemanha Oriental. A legenda acrescentava que eram os primeiros visitantes ao local do histórico Führerbunker em pelo menos uma década e especulava se a Srta. Ashcroft ali estaria como um prelúdio a mais uma escavação da área, em busca de uma nova pista para o fim de Der Führer. Evelyn levantou a cabeça, momentaneamente aturdida.

        —  Essa é a moça de quem me falou no outro dia? Schmidt esmagou uma bolacha na mão e engoliu as migalhas.

        —  Emily Ashcroft, a historiadora britânica que se hospedou no Kempinski. Achei que deveria saber que ela parecia disposta a seguir em frente.

        Evelyn não escondeu sua preocupação.

        —  Acha que ela receberá permissão para escavar?

        —  O pai recebeu, pouco antes de sofrer o acidente fatal. E por isso calculo que ela também terá autorização. O tal de Blaubach, que aparece na fotografia, é um homem muito importante no governo de Berlim Orientai. Ele pode obter a permissão.

        —  Mas por que agora, depois de tanto tempo? Todos sabem que Der Führer e Eva Braun morreram no bunker e lá foram enterrados.

        —  Mas é evidente que nem todos acreditam nisso, Effie. Evelyn estava estudando outra vez a fotografia. Sacudindo a

        cabeça, ela disse:

        —  É um absurdo. O que será que ela está procurando?

        —  Isso não importa — respondeu Schmidt, pegando o jornal, dobrando-o e tornando a guardá-lo no bolso. — Eu só queria tranqüilizá-la, Effie, caso já tivesse tomado conhecimento da notícia. Prometo que não haverá uma nova escavação no bunker, nenhuma investigação do passado.

        —  Promete mesmo?

         Schmidt levantou o corpo enorme da cadeira, os lábios grossos se contraindo num sorriso.

        —  Claro que prometo. Não precisa se preocupar nunca mais com a Srta. Ashcroft.

       

        Emily tivera uma manhã movimentada em sua suíte no Kempinski. As cópias dos arquivos que Pamela enviara de Oxford finalmente haviam chegado. As pastas de cima continham informações sobre a carreira de Hitler como pintor e as demais eram o fichário fotográfico de todos os prédios do governo construídos nas principais cidades alemãs durante o Terceiro Reich. Emily não perdeu tempo, ligando para o Palace Hotel, a fim de verificar se Kirvov já estava lá. O russo já chegara e ela falou-lhe pelo telefone:

        —  Recebi o material de Oxford. Talvez forneça alguma informação sobre o prédio em seu quadro de Hitler.

        —  Não sei como agradecer tanta gentileza. Está livre para almoçar? Podemos nos encontrar aqui, no restaurante do hotel, e depois examinaremos juntos o material.

        Emily acertou o encontro. Mal desligara quando o telefone tocou. Atendeu prontamente.

        Era Rex Foster, e Emily experimentou uma satisfação juvenil ao ouvir sua voz.

        —  Sei que não é da minha conta, mas onde esteve ontem à noite? — indagou ele. — Devo ter ligado uma meia dúzia de vezes.

        Ela ficou satisfeita.

        —  Estava inspecionando o local de escavação, até quase a hora do jantar. E depois fui jantar com o homem que vai supervisionar a escavação para mim... desde que eu obtenha a permissão. Fiquei conversando com ele e a mulher, relatando o que vi no bunker.

        Fez uma pausa, antes de perguntar:

        —  Mas por que me telefonou? Ah, sim... imagino que foi para descobrir se eu poderia ajudá-lo a localizar o tal arquiteto Zeidler.

        —  Não, Emily, não foi por isso. Eu só queria saber se você estava... talvez se não tivesse outra coisa para fazer...

        —  Se quer saber como estou, por que não vai comigo ao Palace Hotel? Vou almoçar lá com Nicholas Kirvov. Está lembrado? O curador do Hermitage, em Leningrado. Quero ajudá-lo a descobrir tudo sobre o quadro de Hitler. E você também poderia ajudar, Leve o seu portfólio da arquitetura do Terceiro Reich. E tenho a impressão de que vai gostar de conhecer Kirvov. Vocês dois têm muita coisa em comum.

        —  Estou mais interessado no que você e eu temos em comum — declarou Foster. — Muito bem, vamos ao almoço.

        Combinaram a hora para se encontrarem no saguão.

        Ao chegarem ao restaurante do Palace, ao meio-dia e meia, encontraram Kirvov à espera de Emily, um tanto consternado. Depois de cumprimentar Foster, ele pediu desculpas a seus convidados. O restaurante estava lotado e não poderiam ter a reserva antes de meia hora.

        —  Por que não aproveitamos esse tempo para tentar descobrir a localização do prédio em seu quadro de Hitler? — sugeriu Emily. Ela olhou ao redor. — Poderíamos ir para o seu quarto, a fim de termos mais privacidade, se não se importa.

        —  É melhor mesmo — concordou Kirvov prontamente. — Acompanhem-me, por favor.

        Poucos minutos depois, Emily e Foster, com o arquivo fotográfico e o portfólio de arquitetura, estavam no quarto de Kirvov, no quarto andar. Emily notou que era um quarto agradável, com cortinas claras de belbutina nas janelas, o papel de parede de um castanho-amarelado, um aparelho de televisão a cores, com um vaso de rosas amarelas em cima, uma colcha na cama de casal.

        —  Vamos ver logo o seu quadro — propôs Emily.

        —  Sentem-se, por favor — disse Kirvov, puxando duas cadeiras para uma mesa no canto, enquanto Foster pegava uma terceira cadeira.

        Depois que se sentaram, Kirvov pegou o quadro e colocou-o diante dos convidados.

        Comparando a todo instante com o quadro, Emily examinou o seu fichário de fotografias dos prédios do governo em Berlim no Terceiro Reich. Enquanto isso, também olhando o óleo, Foster virava as páginas de seu portfólio, aberto no chão, ao lado de sua cadeira. E de repente Emily exclamou:

        —  Acho que descobri, Nicholas! — Ela tirou uma fotografia da pasta e suspendeu-a ao lado do quadro. — Não é o mesmo?

        Foster tirou uma folha de seu portfólio e pôs ao lado da fotografia, estudando atentamente. Era outra imagem do enorme prédio, só que de um ângulo diferente. Emily não teve mais qualquer dúvida e declarou:

        —  É isso mesmo. A diferença é que nenhum dos dois tem um ângulo da porta da frente exatamente igual ao que está no quadro. Ligarei para Pamela, a fim de verificar se ela tem mais alguma coisa nos arquivos, só para confirmar.

        —  Boa idéia. — Foster virou-se para Kirvov. — Mas já estou convencido de que encontramos o seu prédio, Nicholas.

        O russo estava sorrindo.

        —  Também tenho certeza. Mas... eu gostaria de saber de uma coisa: que prédio é esse?

        —  O Reichsluftfahrtministerium — informou Emily. — O Ministério do Ar do Reich, também conhecido como Ministério do Ar Göring. — Ela leu a legenda no verso. — Construção iniciada em 1933 e concluída em 1935.

        —  Uma descoberta extraordinária! — exclamou Kirvov, entusiasmado. — O único quadro de Hitler feito em Berlim, ao que eu saiba!

        —  Ele deve ter pintado depois de 1935, mas não muito depois do início dos anos 40 — comentou Emily. — Porque depois disso não poderia pintá-lo. Simplesmente porque o prédio não existia mais. Todos os prédios do governo do Terceiro Reich foram destruídos, completamente arrasados, pelos intensos bombardeios aéreos dos americanos e ingleses, no princípio da década.

        Foster estava relendo a legenda em seu portfólio. Então levantou a cabeça e disse:

        —  Espere um pouco, Emily. O que está dizendo não corresponde exatamente à verdade.

        Emily ficou desconcertada.

        —  Como assim?

        —  Nem todos os prédios governamentais do Terceiro Reich foram totalmente destruídos pelos bombardeios Aliados sobre Berlim no início dos anos 40. Um prédio resistiu, quase intacto. Apenas um.

        —  Qual deles? — indagou Emily.

        Foster indicou a foto anexada à folha de seu portfólio.

        —  Exatamente este. O Ministério do Ar Göring foi o único que resistiu aos bombardeios. Foi danificado em 35 por cento, mas a estrutura nunca foi destruída. Somente o Ministério do Ar, entre toda a arquitetura de Hitler, resistiu em Berlim. Estava nos anos 30 e 40 onde se encontra hoje, nos anos 80.

        —  Mas o que está querendo dizer? — interveio Kirvov.

        —  Que Adolf Hitler pode ter pintado o seu óleo nos anos 30... e pode também ter pintado no início dos anos 40, talvez mesmo nos anos 60, 70 ou 80. Porque o prédio continua de pé, pronto para ser pintado por qualquer um. Hitler poderia tê-lo pintado em qualquer época posterior a seu suposto suicídio em 1945.

        —  Se ele sobreviveu — comentou Emily baixinho.

        —  Exatamente — concordou Foster.

        Emily olhou rapidamente para os dois e sugeriu:

        —  Acho que devemos almoçar antes de tentarmos digerir essa informação.

        —  E tomar um bom drinque — acrescentou Foster pensativo.

       

        Eles passaram a maior parte da tarde no restaurante do Palace, almoçando e especulando sobre a possibilidade de a identificação do Ministério do Ar Göring lhes revelar alguma coisa sobre o verdadeiro destino do Führer. Emily foi obrigada a lembrar a si mesma que ainda careciam de fatos concretos e se empenhavam num jogo de adivinhação. Kirvov mostrou-se mais prático. Achou que seria uma boa idéia dar uma olhada no prédio apresentado no óleo de Hitler. Emily e Foster prometeram levá-lo ao local, em Berlim Oriental, assim que estivessem livres. Enquanto isso, Kirvov tentaria descobrir a galeria de arte que vendera o quadro de Hitler, já que ainda não recebera a informação do homem que lhe trouxera a obra. De volta ao saguão do Kempinski, Foster disse a Emily:

        —  Você falou de Rudi Zeidler esta manhã. Sua secretária enviou alguma informação sobre ele?

        —  Zeidler, o arquiteto nazista que você queria encontrar. O que tem as plantas desaparecidas. Claro que sim. Desculpe, Rex, eu tinha esquecido. A remessa de Pamela incluía pastas sobre os arquitetos de Hitler. Tenho certeza de que Zeidler está lá. Vou examiná-las agora mesmo e ligarei para você. — Ela começou a se encaminhar para o balcão da recepção, acrescentando: — Vou pegar minha chave e ver se tem algum recado.

        —  Está certo — disse Foster. — Eu estou com a minha chave. E quero comprar alguma coisa para ler. Encontro-a no elevador.

        Emily observou Foster se afastar para a esquerda, parando na banca que exibia diversos jornais e revistas, locais e estrangeiros. Quando se virou, viu Foster avançar devagar em sua direção. Ele passara os olhos pela primeira página do que parecia ser um tablóide alemão, abrindo-o na segunda e terceira páginas. E parou abruptamente.

        Enquanto Emily especulava sobre o que poderia ter atraído a sua atenção, ele recomeçou a andar.

        Segurou-a pelo cotovelo, afastando-a do elevador, na direção de uma mesa e três cadeiras no saguão.

        —  Quero lhe mostrar uma coisa — disse Foster enigmaticamente.

        Aturdida, Emily se sentou, os olhos fixos nele. Foster puxou uma cadeira para junto dela.

        —  O que foi, Rex?

        —  Você não queria manter sua visita em segredo?

        —  Você sabe que sim.

        —  E quem estava a par de seu segredo... aqui em Berlim?

        —  Apenas as pessoas com quem tenho de trabalhar, como o Professor Blaubach e mais duas ou três pessoas. E mais alguns em que achei que podia confiar, como você, Tovah Levine, Nicholas Kirvov.

        —  Mas não contou a ninguém de jornal?

        —  Claro que não. Isto é, há um homem que sabe, Peter Nitz, do Morgenpost. Mas ele foi o primeiro a me advertir para manter tudo em segredo. — Emily franziu o rosto. — Por que está me perguntando tudo isso, Rex?

        Ele abriu o tablóide que tinha nas mãos.

        —  Porque agora todos em Berlim conhecem o motivo de sua presença aqui.

        —  Eu... eu não compreendo...

        Foster abrira o tablóide na terceira página e colocara no colo de Emily.

        —  Veja você mesma.

        Ela levantou a edição matutina do BZ e contemplou a sua fotografia, junto com Blaubach e Vogel, no monte de terra sobre o Führerbunker. Por alguns segundos, ficou completamente consternada. Depois, seus olhos desviaram-se para a legenda.

        —  Publicaram até meu nome e o que estou querendo fazer — murmurou ela, levantando os olhos. — Como conseguiram essa fotografia, Rex?

        —  Não sei. Parece evidente que foi tirada de uma plataforma de observação ao lado do muro. Talvez a imprensa tenha alguém ali em vigia permanente para registrar qualquer coisa que aconteça.

        Emily baixou o jornal.

        —  É uma coisa horrível, mas não vou me preocupar. Tenho muito o que fazer. Continuarei na investigação, depois voltarei para casa e terminarei o livro.

        —  Uma atitude admirável, só que acho que deve ficar prevenida. Vamos enfrentar a situação, Emily. Não quero assustá-la, mas você precisa ser realista. Esse tipo de exposição pode pô-la em perigo. Talvez incite fanáticos neonazistas que podem querer detê-la... cuidar para que sofra um acidente... como aconteceu com seu pai.

        Emily endireitou os ombros.

        —  Tenho certeza de que não vai acontecer nada. Afinal, meu pai pode ter morrido num acidente verdadeiro. Não posso acreditar que ainda existam tantos nazistas, depois de quase meio século.

        —  Não mesmo? — disse Foster. — Então por que está tentando escavar o Führerbunker? Para provar que todos morreram como a história nos conta? Ou para descobrir se alguns ainda estão vivos?

        —  É diferente — insistiu ela, obstinada. — É simplesmente uma pesquisa histórica, uma verificação do passado. E, para ser franca, não creio que resulte algum fato novo da escavação.

        Ela levantou-se, acrescentando:

        —  Acho que nós dois devemos continuar em nossos trabalhos. E a primeira coisa que vou fazer será examinar as fichas de arquitetura e descobrir todas as informações possíveis sobre Rudi Zeidler.

        Foster também se levantou.

        —  Se você insiste, está certo. Mas não há pressa em relação a Zeidler.

        —  Sei que você não vai querer ficar aqui para sempre. Terei alguma coisa sobre Zeidler antes do jantar. Se quiser, pode dar um pulo à minha suíte para tomar um drinque, antes de eu comer alguma coisa. Até lá já deverei ter o que você quer.

        —  Tem algum compromisso para o jantar?

        —  Não. Ia pedir um sanduíche.

        —  Importa-se de ter companhia? — Ele a conduzia para o elevador. — Eu gostaria muito de jantar com você. Não apenas esta noite. Em qualquer noite. Sempre que estiver disponível.

        No elevador, Emily apertou o botão e fitou-o.

        —  Um convite atraente. O que há por trás? Está tentando me proteger?

        —  Este pode ser um motivo. Mas a verdadeira razão é que... quero ficar junto de você.

        Emily relaxou no mesmo instante e sorriu.

        —  Assim é melhor. Venha às oito horas.

        Faltavam quinze minutos para oito horas e Foster, em seu quarto, sentia-se cada vez mais inquieto.

        Emily Ashcroft ocupava plenamente os seus pensamentos. O fato de que ela podia correr perigo levava-o a compreender mais intensamente o quanto se importava com ela. Na verdade, apesar de sua cautela em relação a vínculos emocionais, Foster não podia deixar de admitir para si mesmo que sentia algo mais do que mera preocupação. Jamais experimentara aquele sentimento em relação a qualquer outra mulher, querendo a sua companhia a cada instante, querendo que lhe pertencesse.

        Terminou de ajeitar a gravata e pôs o paletó. O relógio no consolo indicava que faltavam agora quatorze minutos para as oito. Resolveu chegar mais cedo ao encontro. Se Emily ainda não estivesse pronta, ele tomaria um drinque sozinho, enquanto ela acabava de se vestir. Pelo menos estaria perto dela.

        Deixando seu quarto, ele esperou pelo elevador. Quando chegou, apertou o botão para o segundo andar. Assim que as portas do elevador se abriram, ele verificou que a suíte 229 ficava no corredor em frente.

        Ao sair do elevador, notou um garçom, ainda jovem e corpulento, carregando uma bandeja com drinques, surgir de outro corredor, encaminhar-se até a porta de Emily e, sem bater, usar uma chave mestra para entrar.

        O primeiro pensamento de Foster foi o de que Emily se lembrara de pedir coquetéis para tomarem na suíte, antes do jantar, e que o garçom os estava entregando. Satisfeito, avançou pelo corredor, esperando ver o garçom sair a qualquer momento. Mas o garçom não saiu. Foster percebeu que a porta da suíte estava entreaberta e resolveu entrar sem bater.

        E ficou espantado ao descobrir que a sala se achava vazia. O garçom não estava à vista, embora tivesse deixado a bandeja com as bebidas na mesa. Curioso, Foster deu uma olhada no quarto, pensando em ver o garçom à espera, enquanto Emily assinava a nota. Mas também não havia ninguém à vista no quarto. Era desconcertante. Hesitante, Foster avançou pelo quarto, encaminhando-se para o banheiro, tencionando chamar Emily.

        E foi então que, para sua surpresa, descobriu que a porta do banheiro se encontrava escancarada. Adiantou-se mais depressa, perguntando-se o que estaria acontecendo. Descobriu no instante seguinte, e o choque deixou-o paralisado junto à porta aberta.

        Pois o banheiro não estava vazio.

        Podia-se ouvir o barulho de água correndo, Emily obviamente ainda estava debaixo do chuveiro... e do lado de fora da porta de vidro do boxe, de costas para Foster, o corpulento garçom estava completamente imóvel.

        Por um momento, Foster pensou que se tratava de um voyeur, talvez alguém disposto a tentar um estupro. Foi nesse instante que Emily fechou o chuveiro... e o garçom tirou uma faca debaixo do paletó, abrindo bruscamente a porta do boxe.

        Foster pôde ouvir o grito abafado de incredulidade de Emily. O garçom, a faca levantada, estava prestes a entrar no boxe.

        E nesse segundo Foster pôde sentir todos os seus instintos de ataque do Vietnã explodirem em seu íntimo, levando-o a se projetar para a frente com um grito de raiva.

        Aturdido, o garçom parou e virou-se, a faca ainda levantada, tentando entender o que estava acontecendo. Foster lançou-se em cima dele como um louco, agarrando e torcendo o pulso levantado do garçom, até que a faca caiu no chão. Num rápido movimento de judô, Foster agachou-se, puxando o garçom e jogando-o pelo ar, por cima de sua cabeça. O homem foi se esborrachar no chão ladrilhado do banheiro, por trás dele.

        Prestes a se virar e agarrar o homem de novo, Foster olhou por um instante para Emily no boxe. Ela estava nua, molhada, encostada num dos lados do boxe, olhos fechados, sufocada pelo medo, tentando manter o equilíbrio.

        Vendo que ela estava ilesa, Foster virou-se para enfrentar o atacante. Mas o corpulento garçom conseguira se levantar, cambaleando, e correu para o quarto, sem olhar para trás. A respiração ofegante, Foster foi em seu encalço. Mas o garçom já desaparecera quando ele chegou à porta da sala. Foster ainda correu até a porta aberta da suíte e olhou pelo corredor. Avistou o garçom, em disparada, no instante em que desaparecia numa curva.

        Ele queria perseguir o homem, mas sabia que o desgraçado planejara meticulosamente a fuga. Não conseguiria apanhá-lo. Pensou por um momento se deveria ligar para o saguão, mas concluiu que a interceptação também seria impossível. O assassino encontraria outros meios de entrar e sair do hotel.

        E tudo com que Foster se importava realmente naquele momento era Emily e sua segurança.

        Voltou correndo ao banheiro para ajudá-la. Ela ainda estava no boxe. Escorregara pela parede e estava encolhida no chão, sob o chuveiro a pingar, em estado de choque.

        Foster entrou no boxe. Ajoelhando-se, estendeu as mãos para Emily, tentando segurar seu corpo molhado e escorregadio. Quando seus braços passaram por debaixo dela, tentando segurá-la firme, Emily compreendeu que era Foster quem estava ali e que se achava segura agora, e encostou a cabeça em seu ombro com um gemido de gratidão.

        Com alguma dificuldade, Foster levantou-a do chão ladrilhado e saiu do boxe, enquanto ela se enroscava contra ele. Foster pegou um dos roupões felpudos do hotel e cobriu-a. Com extremo cuidado, levou-a pelo banheiro até o quarto.

        —  Como você está? — ele sussurrou, ansioso. — Como você está?

        —  Graças a Deus que você apareceu!

        —  Está tudo bem agora — murmurou Foster, ainda segurando-a e tentando ao mesmo tempo, meio desajeitado, puxar a colcha e o lençol.

        Conseguiu finalmente e ajeitou-a na cama, puxando as cobertas por cima de seu corpo. Emily começou a recuperar o controle, piscando para ele várias vezes.

        —  O que aconteceu, Rex? Quem era aquele homem?

        —  Era um garçom que trazia o pedido de bebida ou pelo menos foi o que pensei quando o segui até a suíte.

        —  Mas não pedi nada! — Ela sentou na cama, segurando as cobertas sobre os seios. — Já havia drinques para nós aqui. Não deveria vir garçom algum.

        —  E ele não era mesmo um garçom. Veio aqui para matá-la. Fiquei transtornado quando o vi no banheiro. — Fez uma pausa, fitando-a nos olhos. — Você está bem?

        —  Estou viva... e acho que isso é estar bem. Quem poderia ser, Rex?

        Ele sorriu.

        —  Ao que tudo indica um Leitor Constante, que viu uma fotografia no jornal desta manhã, alguém que não gostou de saber que você está querendo bisbilhotar o passado nazista.

        Ela sacudiu a cabeça, os cabelos molhados e emaranhados, uma expressão de incredulidade.

        —  Mas assassinato...

        —  Conhece uma maneira melhor de desencorajar as pessoas intrometidas? — A expressão de Foster se tornou ainda mais preocupada. — Como se sente, Emily?

        —  Ainda um pouco assustada, mas me recuperando. Estarei bem daqui a pouco. Mas, infelizmente, acho que não terei condições para jantar. Perdi o apetite. Quer saber de uma coisa? Tudo o que preciso agora é de companhia, se você puder agüentar um estômago vazio. Companhia e um drinque. Talvez um scotch. O que me diz?

        —  Muito bem, Emily, companhia e um bom drinque... e que se dane o jantar. Este lugar é aconchegante. Acho que devemos ambos celebrar a sobrevivência e a união, tomando um pequeno porre. Vou servir dois scotches, para começar. — Foster fez uma pausa, antes de passar para a sala. — Eu tencionava lhe dizer uma coisa esta noite, Emily. No primeiro momento em que nos encontrássemos.

        —  O que era?

        — Que acho que a amo, só isso. E agora vamos beber a essa descoberta.

       

        Era quase meia-noite. No quarto da suíte de Emily eles estavam bebendo e conversando há mais de duas horas, quase três. Emily conseguira pôr o roupão sem cinto e empurrara as cobertas para o lado. Ainda estava sentada na cama, o roupão mal escondendo os seios. Foster não demorara a se transferir de uma cadeira para sentar na beira da cama. Ela já tomara três doses de scotch e ele terminava a quarta.

        A conversa se tornara mais íntima durante a última hora. Sonolenta, um pouco tonta, Emily falara de seu breve casamento, o equívoco juvenil. E sentindo-se segura com Foster, relatara alguns detalhes da humilhante ligação com Jeremy Robinson. Ele, por sua vez, falara de seus encontros com várias mulheres e a insatisfação com todas. E, finalmente, pela primeira vez desde então, Foster discorrera voluntariamente sobre o fracasso que fora o seu casamento com Valerie Granich. Emily escutara com uma expressão de compreensão.

        —  Então somos ambos baixas — murmurara ela. — Baixas... do quê? Da guerra entre os sexos?

        Ele sorrira.

        —  Eu exprimiria de uma maneira mais afirmativa. Sobreviventes do mau julgamento que aprenderam o que querem.

        Pensando a respeito, Emily especulara em voz alta:

        —  O que queremos? O que você quer de uma mulher, Rex? Hesitante, ele tentara explicar. Depois, Emily passara a dizer

        o que esperava de um homem. As palavras intimidade, empatia e ternura foram constantemente repetidas.

        Agora, os dois estavam em silêncio, além do reino das palavras.

        Foster sentia-se inebriado, tremendo interiormente de desejo, excitado pelo perfume natural dos seios e da pele de Emily, mas incapaz de efetuar a transição da intimidade verbal para a física. Resolveu não pressionar, deixar que o relacionamento amadurecesse, esperar por outra ocasião. E começou a se levantar da cama,

        —  Acho que é melhor eu ir agora. Emily fitou-o nos olhos, espantada.

        —  Por quê?                        

        Confuso, ele murmurou:

        —  Para deixar que você descanse um pouco.

        Os olhos de Emily continuaram fixos nos dele, ela parecia estar tomando alguma decisão. Pôs o copo na mesinha-de-cabeceira, com um gesto determinado.

        —  Pensei que você havia dito, no início da noite, que me amava. Disse mesmo?

        —  Disse.

        —  E disse que eu não deveria mais ficar sozinha. Espero que tenha falado sério. Não quero ficar sozinha, Rex. Quero ficar com você. — Ela afastou o roupão que lhe cobria parcialmente os seios. — Já me viu nua...

        —  Não realmente... — Foster tinha dificuldade para falar, contemplando os seios pequenos, firmes, redondos, os círculos marrons acentuando os mamilos endurecidos e pontudos. — Não tinha visto direito...

        Ela empurrou o roupão todo para o lado.

        —  Pode ver agora. E acho que o inverso é justo. Também quero vê-lo nu. Pelo amor de Deus, Rex, tire logo as roupas... isto é, se você quiser.

        —  Quero e muito — murmurou ele, também largando seu copo. — Mas você tem certeza?

        —  Absoluta. O problema é só um: você também tem?

        Ele nunca se despira tão depressa, jogando as roupas para o lado, até ficar inteiramente nu.

        Os olhos de Emily não se desviaram dele por um momento sequer, e os dois sabiam que ele estava de fato querendo. Ela estendeu a mão para acariciar a dureza de sua ereção, murmurando:

        —  Que lindo...

        Foster sentiu que a cabeça se dissolveria e o corpo também se não a possuísse logo.

        Estendeu-se na cama ao lado de Emily, que continuava a acariciar o pênis com os dedos macios, contemplando-o com um meio sorriso.

        —  Gosto do que vejo — disse ela, suavemente. — E o que vejo parece muito sério.

        —  É tão sério quanto pode ser, e quer companhia.

        Ela soltou-o, ainda com o meio sorriso, recostou-se no travesseiro, sussurrando:

        —  Pois está convidado.

        Ficando de joelhos, ele pôde finalmente admirar toda a nudez de Emily. Por baixo dos seios leitosos, de bicos marrons, a barriga era lisa, as costelas delineadas, o umbigo mínimo, os pêlos púbicos de um castanho-avermelhado, um botão maravilhoso que revelava o clitóris e as dobras estreitas e rosadas da vulva.

        Emily abriu as pernas e ele se inclinou pelo meio, a fim de beijar o clitóris com a ponta da língua.

        —  Oh, querido... — gemeu ela.

        E depois Foster estava por cima dela, entre as coxas, o pênis penetrando-a, experimentando a sensação fantástica da umidade a se entreabrir, o aconchego e calor da vulva, numa união profunda.

        —  Oh, Deus... — repetiu Emily, muitas vezes. Ele tentou encontrar a voz e conseguiu balbuciar:

        —  Nunca... nunca... senti nada assim, em toda a minha vida. Eu a amo, Emily.

        E depois ele estava em movimento dentro dela, arremetidas profundas e suaves, acelerando pouco a pouco, mais firmes, incessantes.

        Podia contemplar o rosto deslumbrante de Emily, os olhos fechados, a cabeça se deslocando de um lado para outro do travesseiro, os lábios murmurando alguma coisa que ele não podia ouvir. Podia contemplar a subida e descida dos seios, sentir os movimentos circulares de suas nádegas. Ela erguia os quadris cada vez mais alto, erguia as coxas trêmulas, enquanto ele penetrava ainda mais fundo, infatigável. As mãos de Emily procuraram e encontraram seus testículos, apertando-os. Ele suspirou e se abateu plenamente sobre ela, sentindo o ceder dos seios, procurando e encontrando seus lábios polpudos, ouvindo seu coração e o dela baterem em uníssono.

        A umidade de Emily engolfou-o, mas ele não diminuiu o ritmo, continuou a arremeter, puxar, arremeter.

        Abruptamente, ela arqueou o tronco, as nádegas levantando, as coxas se comprimindo em torno de Foster numa tenaz de carne, numa prolongada convulsão.

        —  Oh, querido... — balbuciou ela.

        Mas ele continuou, até que ela teve outro orgasmo que a sacudiu toda. Um momento depois ele também gozava.

        E ficaram imóveis, nos braços um do outro, pelo que pareceram minutos incontáveis. Depois de algum tempo, Foster percebeu que Emily estava de olhos fechados, dormindo, e ouviu a sua respiração relaxada.

        Gentilmente, saiu de cima dela, retirando o pênis flácido e saciado.

        Sentou na cama, as pernas cruzadas, contemplando-a no sono. Jamais se sentira tão contente, tão satisfeito, tão em paz. Observando-a com amor, não pôde mais se lembrar direito como era aquela mulher ao se encontrarem pela primeira vez. Recordava-a vagamente como uma pessoa muito controlada, segura, confiante, intimidativa em sua erudição e independência, desejável, mas aparentemente inatingível.

        E agora ela se despojara totalmente para ele, entregara sua paixão à dele, fundira-se com ele, tornando-se uma parte dele, assim como ele se tornara uma parte dela.

        O amor que sentia por ela era quase insuportável. E também a sua felicidade.

        Puxando as cobertas por cima de Emily, ele compreendeu mais do que nunca como ela lhe era preciosa. E sentiu um sobressalto ao recordar o que acontecera poucas horas antes. Alguém tentara matá-la. Alguém poderia tentar outra vez. Ele não devia permiti-lo. Não podia perdê-la.

        Mas sabia que ela só estaria sã e salva se abandonasse a busca pela verdade de Hitler e ignorasse o enigma da morte de seu pai.

        Foster sabia, no entanto, com certeza absoluta, que Emily não abandonaria qualquer das buscas, por mais que o amasse e quisesse a sua companhia.

        Estendendo-se ao lado dela, sob as cobertas, ele sentiu-a se remexer um pouco, depois estender um braço sobre seu peito. Contemplou o rosto adorável em repouso, estendeu a mão para apagar o abajur, tentou pensar no que poderia fazer para protegê-la, garantir o futuro comum. Na escuridão, o problema parecia insolúvel. E logo mergulhou no sono.

    

        Quando acordou no meio da manhã e focalizou os olhos no teto, Foster compreendeu que não estava em seu quarto e por um instante não pôde determinar onde dormira. Mas lembrou-se prontamente e estendeu a mão à procura de Emily na outra metade da cama. Nada encontrou. Virando a cabeça no travesseiro, descobriu que o lugar estava vazio. E sentou-se na cama bruscamente.

        Ela estava de pé junto à cômoda, fechando uma pasta parda. Tinha os cabelos soltos, despenteados, usava o roupão que não lhe cobria inteiramente os seios, as pernas e os pés nus.

        Começou a sentir um intumescimento entre as pernas.

        —  O que está fazendo, Emily? Ela virou-se, sorrindo.

        —  Encontrei o endereço e o telefone de Rudi Zeidler, que não consta da lista. Não é isso o que você veio procurar aqui?

        Rex também sorriu.

        —  Quem é Rudi Zeidler?

        —  Quer dizer que já encontrou o que procurava, hem? Mas não acha que agora é melhor se levantar e procurar as plantas desaparecidas?

        —  Estou apaixonado por você, Emily. Jamais conheci outra pessoa como você. E nunca mais quero conhecer outra mulher.

        O rosto de Emily estava compenetrado.

        —  Fala sério, Rex?

        —  Quero estar com você em cada segundo de minha vida, daqui por diante. — O desejo que sentia por ela o consumia por completo. — Quero você agora, Emily.

        —  Agora?

        —  Neste segundo — insistiu ele, ansioso, abrindo espaço para ela na cama.

        —  Por que não?

        Largando a pasta, ela abriu o roupão e deixou-o cair pelas costas.

        Foi postar-se nua ao lado de Foster, os braços inertes nos lados do corpo, mas ele podia ver a subida e a descida dos seios, em ritmo cada vez mais acelerado.

        Entre as suas pernas, Foster sentiu a rigidez aumentar.

        Jogou as cobertas para o lado e recostou-se, estendendo os braços para recebê-la, a ereção apontando para ela.

        Com um grito de prazer, Emily lançou-se na cama, imobilizando os seus ombros, montando-o. Graciosamente, desceu por cima dele, até que a ponta da ereção encostou na vagina. Ela ajustou-se para que a abertura recebesse a dureza da ereção. E depois foi baixando, a vulva se enchendo na penetração.

        E agora ela subia e descia, balançava, enquanto os dois se enlaçavam, se apertavam.

        Depois de muitos minutos, gradativamente, rolaram de lado, e Foster foi assumindo o papel dominante.

        Não demorou muito para ficar por cima, o ritmo do intercurso se acelerando.

        Pelo menos meia hora transcorreu antes que ele se soltasse,  enchendo-a com seu orgasmo. Emily gozou quando ele terminava, freneticamente, tremendo toda. Depois de um intervalo, Foster saiu de cima, constatou que os olhos de Emily continuavam fechados e os quadris se mexiam, por isso inclinou-se e começou a acariciar-lhe o clitóris. Ela tornou a gozar rapidamente. E depois pela terceira e quarta vezes.

        Finalmente acabaram e ele abraçou-a, Emily comprimiu-se contra o seu corpo, encostando a cabeça no peito cabeludo.

        Ao se desvencilhar, depois de um longo tempo, Emily passou a mão por seus cabelos compridos e soergueu-se, apoiada num cotovelo, estudando-o.

        —  Poderíamos continuar assim o dia inteiro — murmurou ela.

        —  E também a noite inteira.

        —  Mas um de nós precisa ser prático, Rex. Como o homem da família, é melhor você começar a trabalhar. Trate de sair agora para procurar Zeidler.

        Ele sentou-se na cama.

        —  E o que você vai fazer?

        —  Primeiro, tomarei um lauto café da manhã com o homem que amo. Em seguida vou despachá-lo ao encontro de Herr Zeidler.

        —  E depois que eu sair?

        —  Vou pegar sua chave e irei a seu quarto. Arrumarei suas coisas e trarei para cá. Nós dois podemos ficar na mesma suíte, pagar uma só. Nunca é cedo demais para economizar. Isto é, se você concordar.

        —  Insisto que faça isso.

        —  E depois que todas as suas coisas estiverem aqui, recomeçarei minha busca a Herr Hitler.

        —  Mas tome cuidado.

        —  Muito cuidado. Foster saiu da cama.

        —  Vou tomar um banho de chuveiro e me vestir. E depois de comermos, antes de tentar falar com Zeidler, informarei à gerência sobre o homem com a faca. Não quero correr mais riscos com você, meu amor.

        Emily sorriu-lhe, ele se inclinou e beijou-a, e descobriu que era mais difícil do que nunca parar.

        Em seu quarto simples no quarto andar, Foster discou o número que Emily lhe dera, torcendo para que Rudi Zeidler estivesse em casa. A voz do homem que atendeu parecia jovem e exuberante; Foster duvidou que fosse Zeidler, já que por seus cálculos o arquiteto associado de Speer devia estar agora com 65 anos. A voz confirmou que era mesmo Rudi Zeidler e indagou, em alemão:

        —  Quem está falando?

        —  Meu nome é Rex Foster e venho tentando localizá-lo há algum tempo — respondeu Foster, também em alemão.

        —  Seu sotaque é americano.

        —  Porque sou um arquiteto de Los Angeles.

        —  Isso é ótimo — disse Zeidler, passando a falar em inglês.

        — Sou fascinado pela arquitetura californiana primitiva, especialmente o Colonial Espanhol e o estilo Missão. — Tossiu. — Por que estava tentando me localizar, e quem lhe deu meu telefone?

        —  Obtive seu telefone com uma amiga inglesa... A Srta. Ashcroft. Ela e o pai, o Dr. Harrison Ashcroft, estavam trabalhando numa biografia de Adolf Hitler. O Dr. Ashcroft chegou a entrevistá-lo.

        Houve uma pausa.

        —  Estou lembrando agora. Um homem muito inteligente. Passei uma tarde inteira com ele. Mas por que está me procurando agora?

        —  Também quero conversar com o senhor. Estou concluindo um livro sobre a arquitetura... — Foster hesitou, não querendo usar a palavra nazista — ... sobre a arquitetura alemã durante o Terceiro Reich. E sei que desempenhou um papel importante.

        —  Nem tanto. — Zeidler fez outra pausa, resolveu reconsiderar a sua avaliação. — Talvez, à sua maneira, tenha sido vital. Foi uma loucura o que tive de fazer para aquele lunático do Hitler.

        —  Eu gostaria que me contasse tudo, gostaria de encontrá-lo o mais depressa possível.

        —  O mais depressa possível é hoje. Está disponível hoje?

        —  A qualquer hora que lhe seja mais conveniente. Eles combinaram um encontro para o almoço.

        Satisfeito com a conversa e agradecido a Emily por torná-la possível, Foster resolveu aproveitar a maior parte da hora seguinte ajudando Emily a transferir suas coisas para a suíte.

        Cantarolando na maior felicidade enquanto pensava em Emily e reconstituía os momentos de amor, tirou das gavetas da cômoda as poucas roupas que trouxera e ajeitou-as na cama. Tirou os paletós e calças dos cabides, colocando na mala, pegou os artigos de toalete e pôs no estojo de couro; finalmente, arrumou na valise as roupas que estavam na cama. Tudo estava pronto. Deixaria a bagagem para Emily buscar, levar até a suíte e arrumar lá.

        Foster ligou então para a recepção e disse que desejava falar com o gerente do Kempinski imediatamente. Acrescentou que era para comunicar um incidente dos mais graves. Como se recusou a dar qualquer outra explicação, foi aconselhado a descer ao saguão para falar com o gerente.

        Vestindo um casaco esporte axadrezado, Foster pegou o portfólio de seu livro de arquitetura e encaminhou-se para o elevador.

        No saguão, encontrou um homem já à sua espera na frente do balcão de recepção.

        Era baixo e elegante, um suíço, não o gerente, mas sim um assistente. O gerente passava alguns dias em Baden Baden, e o assistente o substituía no comando.

        —  Tem algum problema, senhor?

        —  Tenho sim.., e acho que você também.

        Em poucas palavras, Foster relatou o que acontecera na suíte de Emily Ashcroft na noite anterior, durante o atentado contra a vida dela. O assistente da gerência escutou com um crescente horror.

        —  Um garçom com uma faca? — balbuciou ele. — Tem certeza de que era um garçom?

        Foster descreveu o traje do atacante.

        —  Poderia reconhecê-lo se o visse outra vez?

        —  Só o vi de relance, tudo aconteceu muito depressa. Mas creio que eu poderia reconhecê-lo.

        —  Muito bem, Sr. Foster. Espere aqui, por favor. Temos fotografias de todos os nossos empregados, inclusive dos garçons que atendem os quartos. Vou buscá-las. — Ele já ia se afastar quando mudou de idéia e acrescentou: — Importa-se de repetir sua história ao recepcionista-chefe? Talvez ele tenha visto alguém suspeito deixando o hotel ontem à noite. A que horas aconteceu?

        —  Por volta das oito horas.

        —  Conte ao recepcionista, por favor. Estarei de volta dentro de um minuto.

        Foster foi até o balcão, por trás do qual se postava o recepcionista, uniformizado. Em voz baixa, repetiu-lhe a história do atentado contra Emily Ashcroft. O rosto avermelhado do homem empalideceu.

        —  Uma coisa horrível... — murmurou ele. — O garçom tentou mesmo apunhalá-la?

        —  Exatamente.

        —  Deveria ter-nos comunicado imediatamente.

        —  Não foi possível. A Srta. Ashcroft estava muito assustada e achei melhor acalmá-la. — Foster fez uma pausa. — O problema é o seguinte: ontem à noite, por volta das oito horas, talvez um pouco depois, viu alguém passar apressadamente pelo saguão e sair? O homem era relativamente jovem, corpulento, pele morena, musculoso. O recepcionista levantou as mãos.

        —  Tantas pessoas entram e saem a essa hora, Sr. Foster... e estou sempre muito ocupado no início da noite, é difícil notar alguém. Não me lembro de qualquer pessoa ontem à noite que demonstrasse uma pressa suspeita, mas...

        Foram interrompidos pela volta do assistente da gerência, que trazia um álbum fotográfico retangular, de capa laranja.

        —  Nosso registro do pessoal que serve aos quartos — explicou ele, abrindo o álbum e estendendo para Foster.

        Eram fotografias do tamanho de fotos de passaporte mostrando os diversos garçons, com os nomes e registros profissionais escritos abaixo.

        —  Pode verificar — disse o assistente da gerência. — Veja se consegue encontrar o homem que esteve no banheiro da Srta. Ashcroft.

        Meticulosamente, Foster examinou as fotografias, que se encontravam em bolsas de plástico transparente. Foi virando as páginas, torcendo para que algum rosto lhe parecesse familiar. Ao final, porém, sabia que o atacante não fora nenhum daqueles garçons.

        —  Não é nenhum desses — declarou Foster, devolvendo o álbum. — É evidente que ele veio de fora, deu um jeito de entrar no hotel e disfarçou-se de garçom.

        —  Estou tentando pensar nas precauções que podemos adotar — comentou o preocupado assistente da gerência.

        O recepcionista-chefe estava debruçado sobre o balcão, virado para Foster.

        —  Posso fazer uma sugestão, senhor? Não creio que seja exclusivamente um problema do hotel. Talvez precisemos de uma ajuda superior.

        —  Como assim?

        —  Acho que o incidente deve ser comunicado imediatamente ao chefe de polícia de Berlim Ocidental. E por acaso conheço pessoalmente o Chefe Woifgang Schmidt. Posso telefonar para ele agora, pedindo que o receba. É o melhor homem que pode ter do seu lado, um inimigo implacável do crime, como a televisão americana gosta de dizer. E se o atentado tem implicações políticas, como insinuou, pode estar certo de que o Chefe Schmidt vai se interessar ainda mais. Ele devota um ódio total aos neonazistas. Está sempre tentando eliminar até o último de nossa sociedade. O Chefe Schmidt foi um herói da resistência alemã antinazista... o único conspirador importante a sobreviver ao expurgo de Hitler, depois que fracassou o atentado de Von Stauffenberg. Telefonarei para ele e avisarei que vai procurá-lo. Por favor, comunique o incidente sem mais demora.

       

        Foster pegou um táxi e seguiu direto para a Polizei Präsdium de Berlim, na Platz des Luftbrücke, 6. Dispunha de bastante tempo antes do encontro com Rudi Zeidler, e sua prioridade era a segurança de Emily. Se a polícia não conseguisse descobrir o atacante, poderia pelo menos determinar o que motivara o ataque e proporcionar alguma proteção.

        Depois de identificar-se na recepção, Foster entrou no enorme saguão do prédio de quatro andares e foi conduzido a uma porta em que estava escrito Der Polizeispräsidente. Introduzido no despretensioso gabinete do chefe de polícia, Foster descobriu que Wolfgang Schmidt e sua mesa larga eram as duas únicas coisas grandes na sala. Na parede por trás do chefe, entre duas janelas fechadas, havia uma fotografia autografada, numa moldura simples, de Konrad Adenauer.

        Ao que tudo indicava, Schmidt fora informado pelo recepcionista do Kempinski sobre o que acontecera na noite anterior e estava pronto para discutir o problema com Foster.

        Fazendo sinal para que Foster se sentasse, ele ajeitou um bloco de papel amarelo e tirou uma caneta esferográfica de um pote.

        —  Já tenho uma descrição resumida do que ocorreu ontem à noite na suíte 229 do Bristol Kempinski — disse Schmidt. — Eram oito da noite, não?

        —  Aproximadamente.

        —  Muito bem — disse o Chefe de Polícia. — É melhor você me contar com suas próprias palavras o que aconteceu. Procure não omitir coisa alguma, mesmo que algum detalhe pareça irrelevante.

        Enquanto Foster falava, em tom objetivo, sem qualquer inflexão, Schmidt tomava notas no bloco amarelo. Quando Foster terminou, Schmidt levantou os olhos e perguntou:

        —  Tem certeza de que ele brandia uma faca?

        —  Eu trouxe a faca.

        Durante a noite com Emily, Foster fora ao banheiro para pegar a faca no chão, enrolara-a numa toalha de rosto e a guardara no bolso do paletó. E naquela manhã transferira a faca para seu porftólio. Abrindo-o, tirou a arma enrolada e pôs na mesa do chefe de polícia. Schmidt desenrolou a toalha, pegou a faca cautelosamente, pela ponta da lâmina, e suspendeu-a.

        —  Uma faca de caça comum, de um marca popular. Deve haver milhões assim em circulação. Receio que não descobriremos muita coisa pela marca. Mas talvez haja impressões digitais.

        —  Talvez eu as tenha manchado. Peguei a faca com a mão nua. Não estava pensando direito.

        —  Nesse caso vamos tirar as suas impressões digitais, para comparação. E vamos torcer para que tenha deixado pelo menos uma impressão clara do atacante. Entregarei esta arma aos peritos. — Colocou a faca sobre a toalha e empurrou-a para o lado. — Pode descrever o atacante?

        —  Infelizmente, não muito bem. Tudo aconteceu depressa demais. Ele era mais baixo do que eu. Em torno de l,70m. Joguei-o por cima do ombro e posso garantir que era pesado e musculoso. Calculo que pesa pelo menos 80 quilos. Tinha cabelos pretos, olhos escuros, nariz largo, meio achatado. A pele um tanto trigueira.

        Schmidt estava escrevendo.

        —  Acha que era alemão?

        —  Não tenho a menor idéia.

        Schmidt largou a caneta, recostou-se na cadeira giratória baixa.

        —  A vítima visada, Emily Ashcroft... pode me falar mais alguma coisa a seu respeito?

        —  O que gostaria de saber?

        —  Ela tem inimigos em Berlim Ocidental, ao que saiba?

        —  Inimigos? — repetiu Foster. — Ela não conhece ninguém aqui direito. É uma professora da Inglaterra, absolutamente inofensiva. Não posso imaginar qualquer motivo para alguém tentar matá-la.

        —  Quer dizer que ela está aqui como turista?

        Foster pensou por um momento na resposta. Se queria ajuda, era melhor ser sincero.

        —  Não... ela não veio a Berlim como turista. Ela e o pai estavam escrevendo em colaboração uma biografia definitiva de Adolf Hitler. O pai, Dr. Harrison Ashcroft, foi morto num acidente de tráfego em Berlim...

        —  Bem que achei que o nome me parecia familiar — interrompeu Schmidt. — Falei com a filha pelo telefone. Lembro que investiguei o lamentável acidente.

        —  ...e depois Emily Ashcroft veio sozinha a Berlim para investigar algumas informações sobre as últimas horas de Hitler.

        —  O que mais se poderia descobrir a respeito? — indagou Schmidt, dando os ombros. — Todos sabem que Hitler se suicidou no bunker em 1945. Os soviéticos provaram isso.

        —  A Srta. Ashcroft é uma historiadora meticulosa. Quer verificar todos os detalhes. Há uma possibilidade de que Hitler tenha sobrevivido e escapado.

        Schmidt soltou uma risada rouca.

        —  Estou a par de todos os boatos absurdos. O último que ouvi foi o de que Hitler deixou a Alemanha e foi levado de submarino para o Japão. — Soltou outra risada. — Talvez fosse melhor a Srta. Ashcroft pesquisar no Japão.

        Foster descobriu-se irritado com a zombaria do Chefe de Polícia. Instintivamente, começou a sentir antipatia pelo enorme policial.

        —  Alguém tentou matá-la deliberadamente aqui em Berlim — disse ele, sem sorrir. — Fui informado de que ainda existem na Alemanha Ocidental grupos de veteranos da SS que idolatram Hitler e os bons tempos que tinham com ele. Como deve saber, a fotografia da Srta. Ashcroft apareceu ontem num dos jornais de Berlim. Ela foi vista na Zona Oriental, visitando o local do bunker. Talvez um desses grupos de veteranos da SS a tenha notado e resolveu que não queria nenhuma estrangeira bisbilhotando o fim heróico de Hitler, tomando a decisão de impedir a pesquisa.

        O rosto forte de Schmidt tornou-se sério outra vez.

        —  É uma possibilidade, embora improvável. Claro que existe por aqui um punhado de sonhadores nazistas, alguns neonazistas que relembram a glória do Terceiro Reich. Meu departamento está sempre alerta para descobri-los. Mas os intransigentes são muito poucos, já idosos, totalmente ineficazes. Apesar disso, pode haver um lunático entre eles.

        —  E talvez esse lunático tenha contratado alguém para liquidar a Srta. Ashcroft.

        Schmidt empertigou-se.

        —  Também pensando nessa possibilidade, Sr. Foster, continuaremos a nos infiltrar nos grupos neonazistas nesta área e descobriremos se estão tramando alguma coisa. Mas, sinceramente, eu não me preocuparia com essa fonte.

        —  E com que então a Srta. Ashcroft deve se preocupar? — insistiu Foster. — Afinal, alguém tentou matá-la ontem à noite.

        —  O que aconteceu parece ter sido um ataque sem propósito de um sádico transtornado. Mas está certo. Houve um ataque a uma distinta visitante estrangeira e é nosso dever prender o agressor e levá-lo à justiça. Assumirei pessoalmente o comando das investigações.

        Com algum esforço, o Chefe de Polícia levantou-se.

        —  Pode assegurar à Srta. Ashcroft que ela receberá uma proteção especial daqui por diante. Providenciarei imediatamente para que o hotel adote melhores medidas de segurança durante toda a permanência da Srta. Ashcroft em Berlim. Prometo que ela não precisará mais temer a ocorrência de um incidente similar. — Schmidt levantou-se. — Agora, mandarei alguém encontrá-lo no elevador, a fim de tirar as suas impressões digitais. E, por favor, informe à Srta. Ashcroft que estaremos vigilantes.

        —  Obrigado, Chefe.

        Mas ao deixar a Chefatura de Polícia, Foster ainda sentia uma profunda apreensão.

       

        Foster seguiu Rudi Zeidler por sua casa ampla e bem-projetada, de um só andar, cerca de um quilômetro a oeste da Grunewald.

        Zeidler, usando uma camisa esporte branca, calça branca e tênis, era tão alto quanto Foster, embora mais magro, ossudo, um homem vigoroso, na casa dos sessenta anos. Seu inglês era excelente, e ele usou-o para descrever as diversas esculturas e quadros de expressionistas franceses, enquanto atravessavam sua casa ultramoderna, repleta de móveis dinamarqueses de teca.

        Chegaram a um estúdio arejado nos fundos, inundado pela luz do sol, que entrava por uma clarabóia. Exceto por uma escrivaninha de tampo liso e diversas cadeiras tubulares, com encostos entrelaçados, o estúdio era mobiliado por pranchetas usadas para se desenhar projetos. Zeidler acenou com o braço pelo estúdio.

        —  Parte da minha suíte de trabalho. — Ele indicou as pranchetas. — Ainda cuido de vez em quando de alguns trabalhos de arquitetura.

        Puxou uma cadeira para Foster sentar e foi instalar-se por trás da escrivaninha de metal. Foster notou que o único equipamento na mesa era um computador verde.

        —  Está fazendo um livro sobre a arquitetura alemã — disse Zeidler. — Quer me falar a respeito?

        —  Prefiro mostrá-lo. — Foster levantou o portfólio e entregou-o a Zeidler. — Pode ver que tem o título de Arquitetura do Terceiro Reich dos Mil Anos. O que foi feito e o que se planejava, mas nunca foi realizado. Não precisa se dar o trabalho de examinar o livro inteiro. Quero apenas lhe dar uma idéia do que estou preparando. E também do que ainda me falta.

        Zeidler começara a folhear as páginas de fotografias e desenhos no portfólio. Sem levantar os olhos, perguntou:

        —  O que lhe falta?

        —  Os prédios e projetos com que você contribuiu para Albert Speer e Hitler, quando era sócio de Speer. Pelo que me disse ao telefone, deve ter sido uma época de loucura total.

        —  Exatamente. — Zeidler continuou absorvido no portfólio. Terminou de folheá-lo, fechou-o e devolveu-o a Foster. — É verdade, parece que você tem tudo, exceto o que eu fiz.

        —  Quero que o livro seja completo, Sr. Zeidler. Preciso saber o que fez.

        —  Muito pouco. Mas, apesar disso, de alguma importância.

        —  Pelo que pude descobrir, projetou e construiu sete prédios para Hitler.

        Zeidler balançou a cabeça esquelética em assentimento.

        —  Precisamente sete.

        —  Não encontrei fotografias ou mesmo as plantas dessas obras entre os documentos de Speer.

        Zeidler torceu o nariz pontudo.

        —  Speer não se orgulhava delas. E por isso não guardou cópias. Não encontraria em parte alguma, porque os projetos eram secretos.

        —  Secretos? Por quê?

        —  Porque as estruturas eram os quartéis-generais subterrâneos de Hitler, espalhados pela Alemanha, onde ele ficava ao viajar pelo país, durante a guerra.

        —  E foram mesmo mantidos em segredo? — quis saber Foster.

        —  Tanto quanto se pode manter segredo de alguma coisa em matéria de construções — comentou Zeidler. — Afinal, há sempre muitas pessoas envolvidas em cada construção. Há os operários, embora na maioria dos casos Hitler tenha destacado trabalhadores-escravos... judeus, poloneses, tchecos... que foram executados depois de concluída a obra. Depois que terminávamos, Hitler instalava um general e vários oficiais da Wehrmacht em cada abrigo subterrâneo. A existência dessas estruturas só chegou ao conhecimento dos inimigos do Reich depois da guerra.

        —  E são as que você projetou e construiu?

        —  Todas elas — declarou Zeidler, com evidente orgulho.

        —  Tem fotografias?

        —  Muito poucas, infelizmente. Enquanto eram construídas e depois que passaram a ser usadas, eram secretas, não se esqueça. Quando a guerra estava sendo perdida e a Alemanha invadida, Hitler ordenou que alguns desses bunkers fossem evacuados e explodidos. Outros foram descobertos pelos russos, ingleses, americanos e franceses, e também destruídos. Talvez eu tenha algumas fotografias das ruínas, mas não mostram a arquitetura original. De qualquer forma, posso mandar-lhe o que tenho. Onde está hospedado?

        —  No Kempinski.

        —  Receberá o material dentro de um ou dois dias.

        Abriu uma gaveta da escrivaninha de metal, tirou um pedaço de papel e escreveu uma anotação. Depois, tateando pelo interior da gaveta, pegou um cachimbo Meerschaum e uma bolsa de couro. Enchendo o cachimbo, perguntou:

        —  Não se incomoda, não é?

        Foster tirou do bolso do paletó seu cachimbo de urze-branca e um pacote de fumo.

        —  Vou acompanhá-lo.

        Zeidler empurrou sua bolsa para Foster.

        —  Experimente esse tabaco holandês. Muito suave. Pondo o fumo em seu cachimbo, Foster disse:

        —  Se não tiver fotografias adequadas do seu trabalho, poderia me arrumar os projetos originais das sete estruturas subterrâneas?

        —  Eu já ia falar sobre isso — comentou Zeidler, com entusiasmo. — Ainda tenho todas as plantas originais.

        —  Servirão tão bem quanto as fotografias. Isto é, se me permitir reproduzi-las. Completariam meu livro.

        Zeidler estava tendo dificuldade para manter o seu Meerschaum aceso. Finalmente conseguiu e, depois de algumas baforadas, disse:

        —  Não há problemas. Gostaria de vê-las agora?

        —  Se não se incomoda. Zeidler acenou com a cabeça.

        —  Posso pegá-las em minha sala de arquivo. Vou verificar onde estão exatamente. Tenho tudo registrado no computador.

        Ele fez a cadeira deslizar ao longo da escrivaninha até o computador, e começou a bater nas teclas, com dedos obviamente experientes. Depois de um breve intervalo, olhou para a tela por cima do computador.

        —  Ai estão... "Bunkers Subterrâneos". Poderei pegar num instante. Não preciso de mais de cinco minutos.

        Zeidler já estava de pé, encaminhando-se para uma sala ao lado. Foster recostou-se, satisfeito porque sua busca chegara a uma conclusão bem-sucedida. Aqueles bunkers subterrâneos, com as legendas adequadas, seriam um clímax dramático para o seu levantamento arquitetônico do Terceiro Reich. Por um momento, pensou na estranha criatura que ordenara a construção daqueles bunkers. Era possível compreender os que haviam sido construídos nos últimos dias do Reich desmoronado, como proteção contra os bombardeios Aliados. Mas os outros indicavam que Hitler fora um animal noturno, uma criatura das trevas, que queria se enterrar no fundo da terra, longe da confusão e destruição que semeara na superfície.

        Foster soprou alguns anéis de fumaça, contente, aguardando as últimas ilustrações para o seu projeto. Zeidler voltou poucos minutos depois, carregando tubos de plantas debaixo do braço.

        —  Aqui estão, todas as sete. — Largou-as em cima da mesa. — Chegue mais perto para eu lhe mostrar tudo.

        Foster levantou-se de um pulo, esvaziou o cachimbo num cinzeiro e deu a volta pela escrivaninha, indo se postar ao lado de Zeidler, enquanto o alemão tirava a primeira planta de um tubo e começava a abri-la.

        —  Este é o bunker Doric, construído numa caverna nas Montanhas Eifel — explicou Zeidler. — Foi Speer quem iniciou o projeto, no final de 1939. Mas Speer não gostava dele, porque Hitler queria que fosse uma coisa simples, sem qualquer inspiração. Por isso, Speer incumbiu-me da conclusão. Terminei o projeto e supervisionei a construção em 1940.

        O dedo ossudo de Zeidler deslizava pela planta.

        —  Observe as inúmeras salas para equipamentos eletrônicos. O custo desse único bunker seria o equivalente a dois milhões de dólares americanos, naquele tempo.

        Zeidler abriu outra planta e estendeu-a por cima da primeira.

        —  Este é o bunker Felsennest, também nas Montanhas Eifel, dentro da Alemanha, mas não muito longe da Bélgica. Tornei a usar uma caverna. Tivemos de remover os morcegos antes do início das obras.

        Zeidler estava desdobrando uma terceira planta, informando:

        —  Bunker Tannenberg. Por baixo da Montanha Kniebis, na Floresta Negra.

        Foster observava, fascinado, enquanto as plantas restantes lhe eram mostradas. Zeidler continuava a fazer os comentários:

        —  O maior e mais complexo de todos, bunker Baluarte, dentro da Montanha Obersalzberg, em Berchtesgaden. Pode notar as muitas ramificações, para abrigar outros elementos proeminentes do partido... Aqui está o bunker Pullach, perto de Munique... E, finalmente...

        Zeidler estava desenrolando a última planta, com evidente aversão.

        —   ...a planta de que menos me orgulho, mas que se tornou a mais conhecida. Este é o Führerbunker de concreto, ao lado da Chancelaria do Reich, no jardim, onde Hitler ficou até o fim. Speer iniciou-o em 1936. Reformulei o projeto e ampliei-o em 1938, usando uma empresa particular de confiança, a Companhia Construtora Hochtief. O Führerbunker foi o mais difícil e inconveniente de todos os bunkers, algumas partes ficaram inacabadas, porque nunca acreditamos realmente que seria usado, jamais imaginamos que Hitler veria a Alemanha desmoronar ao seu redor e teria de se esconder ali durante os últimos meses. Seja como for, Sr. Foster, aí está tudo, as suas plantas desaparecidas.

        —  Disse que eram sete plantas, Sr. Zeidler. Contei apenas seis.

        —  São mesmo sete. Vou mostrar. — Zeidler folheou as plantas, contando. — ...quatro, cinco, seis. — Levantou os olhos, surpreso. — Tem razão. Só há seis aqui. Mas eram sete. Lembro perfeitamente, e o computador confirma. Parece que uma sumiu.

        —  Talvez tenha deixado na sala de arquivo.

        —  Vou verificar.

        Zeidler desapareceu na outra sala e voltou quase no instante seguinte.

        —  Não está lá. — Parou junto à mesa, franzindo o rosto. — Não posso imaginar o que aconteceu.

        —  Alguma vez as plantas saíram de suas mãos?

        —  Nunca. Fiz um jogo para Hitler, que ele guardou, mas fui informado de que queimou no bunker, antes de morrer. O único outro jogo que sobreviveu é este que guardei para mim.

        —  Não teria emprestado as plantas a alguém?

        —  Não haveria razão para isso. Nunca... — Parou de falar abruptamente, lembrando-se de algo. — Tem razão. Houve uma ocasião em que emprestei minhas plantas. Recebi o aviso de Albert Speer, através de sua família, de que ele pensava em fazer um livro de arquitetura do Reich parecido com o seu, mais uma memória técnica de seu trabalho, em vez de um livro pictórico como o seu. E queria revisar o trabalho que fiz para ele. Speer ainda estava preso em Spandau como um criminoso de guerra. Faltava apenas um ano para terminar a sua sentença de vinte e um anos. Levei as sete plantas à prisão e deixei-as lá para ele. Depois que saiu de Spandau, Speer devolveu-me tudo.

        —  O jogo inteiro menos uma — lembrou Foster.

        —  Não resta a menor dúvida de que este jogo está incompleto. Falta a planta do sétimo bunker. Speer pode me ter devolvido seis e se esquecido da última, deixando-a em Spandau. Talvez com seu amigo Rudolf Hess, a quem ele às vezes consultava. É uma possibilidade.

        Começou a enrolar e a prender as plantas na escrivaninha, enquanto continuava a falar:

        —  Posso mandar copiar estas seis plantas para o seu livro.

        Quanto à sétima, sugiro que procure a prisão de Spandau e pergunte... — Zeidler parou de falar de repente e pegou sua agenda. — Espere três dias antes de ir até lá. Spandau ainda é controlada pelas quatro potências vitoriosas, que exercem a sua supervisão em turnos. Os russos se encontram no comando neste momento, Mas dentro de três dias entregarão Spandau aos americanos, Os russos nem mesmo o receberão. Não posso falar pelos franceses ou ingleses, mas tenho certeza de que os americanos se mostrarão amáveis e cooperativos. Procure-os e descubra se a sétima planta ainda está por lá, Se estiver... e tudo indica que a planta ainda se encontra em algum lugar da prisão... poderá recuperá-la e terá assim o jogo.completo para o seu portfólio. Vou escrever um bilhete dando-lhe permissão para pegar a planta.

        Zeidler escreveu rapidamente e entregou o bilhete a Foster. Depois de agradecer, mas antes de se retirar, Foster fez mais uma pergunta:

        —  Lembra de alguma coisa sobre esse sétimo bunker?

        —  Não muito, Eu fizera outra fortaleza subterrânea, bunker Riese, perto de Charlottenborn, uma pequena cidade de águas minerais. Foi o bunker mais caro — custou pelo menos sessenta milhões em seu dinheiro na ocasião. Era o maior de todos. Hitler não gostou e nunca o usou. Pensava em destruí-lo, junto com a planta. Mas depois, creio que em 1943, mudou de idéia e decidiu duplicá-lo, em outro lugar. Seria chamado de bunker Grosse Riese. Mas nunca recebi a ordem de construí-lo. Assim, só existe a planta, não o bunker,

        —  Ainda seria valiosa para o meu livro.

        —  Pois então vá a Spandau daqui a três dias e tente descobri-la.

       

        Tovah Levine estava tão preocupada em não se atrasar ao encontro com seu superior que chegara quinze minutos mais cedo ao Im Café Carré. Não se importara, porque o café ao ar livre, na Savignyplatz, um pouco afastada do distrito comercial de Berlim, era um refúgio sossegado e proporcionava alguma privacidade. A cadeira de aço em que se instalara, à mesa branca, no pátio de cascalho, ficava completamente oculta da rua por uma sebe alta. Tovah estava desfrutando da sensação de isolamento e ficou um pouco surpresa quando Chaim Golding sentou-se de repente à sua frente.

        Ele ofereceu-lhe um bom-dia brusco e pediu um sorvete. Como já era muito tarde para o café da manhã e ainda cedo para o almoço, Tovah, embora não gostasse, também pediu um sorvete.

        Golding ocupou-se nos minutos seguintes em esvaziar os bolsos de seu paletó e examinar suas anotações.

        Sentada à sua frente, Tovah pensou, com uma intensidade maior do que no primeiro encontro, que Chaim Golding parecia mais um perfeito alemão ariano do que um israelense que dirigia as operações do Mossad em Berlim Ocidental.

        Depois que os sorvetes foram servidos, Tovah estudou Golding, que se levantara por um instante para tirar o paletó. Na primeira vez em que o encontrara, logo depois de sua chegada a Berlim, ele estava ocupado por trás de sua mesa de trabalho. Superficialmente, explicara qual era a missão: ela deveria entrar em contato com uma mulher que acabara de chegar a Berlim, a historiadora Emily Ashcroft, e descobrir mais sobre as pistas que a inglesa possuía de que Hitler e sua mulher haviam sobrevivido à queda da cidade.

        Agora, tendo solicitado aquele segundo encontro, Tovah podia obter uma impressão melhor de Chaim Golding. Ele parecia ter quase l,80m de altura, esguio, corpo atlético, feições enganadora-mente nórdicas, olhos castanho-claros, nariz reto. Quando ele tornou a se sentar, Tovah percebeu que se encontrava relaxado, mais à vontade do que no escritório do Mossad, durante o primeiro encontro.

        —  Portanto, já fez contato com a Srta. Ashcroft de Oxford no Hotel Kempinski — disse ele, suavemente, passando a colher pelo creme no topo do sorvete de baunilha.

        Tovah ficou surpresa.

        —  Ah, então já sabe...

        —  Meu ofício é saber das coisas — disse ele sem sorrir. — Simpatizou com ela?

        —  Muito.

        —  E ela simpatizou com você?

        —  Acho que sim. Até jantamos juntas.

        —  Em companhia do californiano, o arquiteto Foster.

        —  Como sempre, você sabe de tudo.

        —  Mas não o bastante. — Golding fitou Tovah nos olhos. — Quero saber mais. O que ela está procurando a respeito de Hitler?

        —  Viu a fotografia na elevação do bunker que saiu no BZ1

        —  Claro. Ela quer fazer uma escavação. Mas escavar à procura do quê?

        Em termos sucintos e objetivos, como aprendera durante o treinamento do Mossad, Tovah relatou tudo o que ouvira de Emily Ashcroft, as duas pistas que poderiam provar que Hitler e Eva Braun haviam sobrevivido. Tovah explicou:

        —  Ela soube que uma das arcadas dentárias que os russos identificaram como sendo de Hitler não era a verdadeira. E descobriu também que Hitler sempre usava por baixo da túnica um camafeu de marfim em que estava esculpida a cabeça de Frederico o Grande. É o que ela espera encontrar na escavação: a verdadeira arcada dentária e o camafeu, entre os destroços na Zona de Segurança alemã oriental. Se não estiverem lá... seria uma indicação de que Hitler e Eva Braun teriam escapado.

        —  Quem forneceu essas pistas?

        —  Não sei, Chaim. Foi um detalhe que Emily não quis revelar. E fiquei surpresa que ela revelasse tanto, dizendo quais eram as duas pistas. — Tovah inclinou-se para o diretor ao acrescentar:

        — Estou quebrando a promessa que fiz a ela, Chaim. Emily confia em mim.

        —  E pode mesmo confiar. Assim como você também deve confiar em mim. Não repetirei coisa alguma do que está me contando.

        —  Ficou em silêncio por um momento. — Portanto, a Srta. Ashcroft acredita que Hitler e Braun usaram sósias, que os sósias foram cremados e os russos se deixaram enganar.

        —  Exatamente. Ofereci-lhe ajuda na pesquisa. Senti-me atraída pela idéia de Hitler usar um sósia. E declarei que gostaria de acompanhar a investigação. Acha que há alguma possibilidade de que essa história seja verdadeira?

        Com um movimento neutro dos ombros, Golding respondeu:

        —  A suspeita de um sósia é uma das fantasias prediletas das pessoas que vivem imaginando conspirações.

        —  Quer dizer que não acredita?

        —  Poderia acreditar. Historicamente, a teoria conta com muito apoio. A utilização de sósias por líderes mundiais e celebridades menores não é tão rara. O Rei Ricardo II da Inglaterra usava um sósia, ao que tudo indica. O Presidente Franklin D. Roosevelt, com toda certeza, tinha um sósia. O mesmo acontecia com o Marechal-de-Campo Montgomery de Alamein... um antigo ator, Tenente Clifton James. Há especulações de que Napoleão também tinha um sósia. No Terceiro Reich, há a convicção de que Rudolf Hess usava um sósia. Mas nunca ouvi falar de que Adolf Hitler também tivesse o seu.

        —  Apesar de tudo, estou investigando.

        —  O que descobriu?

        —  Por enquanto nada. Verifiquei em todas as biografias de Hitler na biblioteca estadual, no Centro Cultural, perto do Tiergarten. Nada encontrei. Mas ainda posso descobrir alguma coisa. Conversei esta manhã com Emily Ashcroft. Ela sugeriu que eu procurasse um repórter bem-informado e cooperativo do Berliner Morgenpost, um tal de Peter Nitz, que ela conheceu há pouco tempo. Vou me encontrar com ele dentro de uma hora.

        —  Boa sorte.

        Tovah estudou o rosto do diretor à procura de qualquer sinal de aprovação ou desaprovação.

        —  Estou sendo tola, Chaim? — indagou ela, ansiosamente. — Estou desperdiçando meu tempo?

        Ele pagou a conta e levantou-se.

        —  Não pare, Tovah. Continue a investigar e se mantenha em contato constante.

       

        O edifício Axel Springer Verlag, de vidro e aço, na Kochstrasse, 50, erguia-se naquele canto de Berlim Ocidental como um Brobdingnagian na terra do liliputianos. Ali estavam os escritórios do Berliner Morgenpost, assim como os de outros jornais. Tovah Levine entrou no edifício na hora marcada para o seu encontro com Peter Nitz.

        As paredes do vasto saguão eram cobertas por painéis de madeira. Os guardas de segurança detiveram Tovah e pediram a apresentação de seu passaporte israelense. Examinaram-no e devolveram, junto com um papel rosa que lhe permitia seguir até os elevadores.

        No estreito corredor que se estendia além do elevador, no sexto andar, Peter Nitz estava à espera. Conduziu Tovah à sua sala no Morgenpost, onde havia seis escrivaninhas desocupadas, cada uma flanqueada por uma mesinha com uma máquina de escrever elétrica, prateleiras com livros, uma geladeira pequena, um aparelho de televisão. Convidou-a a sentar-se ao lado de sua mesa, a que ficava mais perto da porta.

        Recebendo-a como uma colega jornalista e ainda por cima amiga de Emily Ashcroft, Nitz mostrou-se prontamente cooperativo. Ouvindo o pedido de Tovah de informações sobre um sósia de Hitler, Nitz admitiu que jamais escrevera a respeito nem ouvira falar de nenhum. Apesar disso, ressalvou ele, valia a pena investigar o assunto, descobrir se alguém escrevera sobre isso, proporcionando uma pista a Tovah.

        —  Se me der licença por um momento — disse Nitz levantando-se — vou até a seção de arquivo consultar os recortes.

        Tovah ficou esperando ao lado da mesa, ocupando-se irrequieta em estudar as prateleiras com livros de referências na parede do outro lado. Depois de um breve período, descobriu que Nitz voltara, trazendo uma pasta parda do arquivo. Voltou apressadamente a seu lugar, enquanto Nitz sentava atrás da mesa, com uma expressão infeliz. Ele abriu a pasta.

        —  Infelizmente, não há muita coisa. Esta pasta quase nada contém.

        —  Mas o que tem aí?

        —  Vamos ver. — Ele estava verificando meticulosamente os recortes, enquanto sacudia a cabeça. — Principalmente alarmes falsos. Em 1950 a polícia militar americana descobriu um enfermeiro alemão num hospital de Frankfurt-am-Main, um homem chamado Heinrich Noll, que parecia muito com Hitler. Interrogaram-no, constataram que não era Hitler e soltaram-no. Temos outra história em 1951, despachada de Viena. Hitler teria morrido em 1944, num atentado a bomba, Martin Bormann substituiu-o por um sósia chamado Strasser. Não há indicação do primeiro nome. Não há qualquer base concreta para essa história, e assim é melhor esquecê-la. A última notícia data de 1969, quando um mineiro de carvão, alemão, aposentado, Albert Pankla, foi detido e solto pela 300º. vez porque se parecia com Hitler. Ao que parece, não há absolutamente nada... espere um pouco, tem aqui um pedaço de papel com uma anotação que já ia deixando passar...

        Nitz leu a anotação, franzindo a testa.

        —  O que tem aí? — indagou Tovah, esperançosa.

        —  Não estou entendendo. Alguém escreveu aqui: "Sobre o assunto dos sósias de Hitler, ver a ficha de Manfred Müller."

        —  Quem é ele?

        —  Não tenho a menor idéia. Mas tenciono descobrir. — Nitz tornou a se levantar. — Há uma geladeira ali com Coca-Cola, Srta. Levine. Tome uma. Voltarei num instante.

        Tovah não estava com paciência para um refrigerante. Continuou esperando, um pouco desanimada, mas ainda curiosa sobre o que Peter Nitz poderia descobrir.

        Ele voltou com um único recorte, comprido, lendo-o enquanto se encaminhava para a mesa.

        —  Uma notícia mais recente. Uma reportagem sobre alguns dos restaurantes e boates mais antigos de Berlim Ocidental, que existiam desde os anos 20. Manfred Müller era um artista popular numa dessas casas noturnas. Tinha uma semelhança fantástica com Hitler e costumava deliciar o público com imitações de Der Führer durante o Terceiro Reich. Um dia não apareceu. E nunca mais foi visto. Não se tem idéia do que aconteceu. Talvez tenha se aposentado.

        —  Será que Manfred Müller ainda está vivo?

        —  A matéria não informa. Mas menciona a casa em que ele costumava se apresentar. Era o Lowendorff Club. Agora se chama Lowendorfs Kneipe. Por que não vai até lá e descobre se alguém sabe alguma coisa sobre Müller? É um tiro no escuro, mas vale a pena tentar. Vou lhe dar o endereço.

       

        Tovah constatou que era na verdade uma cervejaria de classe média ao ar livre.

        O lugar era cercado e coberto por treliças com trepadeiras, o que proporcionava algum isolamento da rua. As mesas estavam ocupadas por jovens que tomavam refrigerantes, cerveja, uísque. Por cima da entrada para a parte interna havia um cartaz em neon, ainda não aceso, que anunciava em letras grandes LOWENDORFF'S, tendo por baixo, em letras menores, FRUHSTUCKKNEIPE.

        Tovah interceptou um garçom que se afastava de uma mesa e apresentou-se como jornalista que queria entrevistar o proprietário.

        —  Está falando de Herr Bree... Fred Bree — disse o garçom, impressionado. — Ele está lá dentro. Venha comigo. Vou chamá-lo.

        Tovah seguiu o garçom do sol para a escura sala interna da cervejaria. As mesas ali estavam alinhadas formalmente, nenhuma ocupada àquela hora, no meio da tarde. Mais além havia uma pista encerada — Tovah calculou que era para dançar e para apresentação de artistas — e mais ao fundo os cinco músicos de um conjunto se aprontavam para ensaiar. Um jovem magro mas forte conversava com os músicos, em mangas de camisa, com um lederhosen bávaro preso por suspensórios vermelhos.

        Entrando no salão, à beira das mesas, o garçom estendeu a mão para deter Tovah e disse:

        —  Espere aqui.

        Encaminhou-se apressadamente para o jovem de lederhosen que conversava com os músicos e sussurrou-lhe algumas palavras, apontando para a entrada. O jovem virou-se para fitar Tovah, acenou com a cabeça em cumprimento e avançou em sua direção.

        —  Sou Fred Bree — disse ele. — Deseja falar comigo?

        —  Meu nome é Tovah Levine. Sou do Post de Jerusalém e estou fazendo uma série de reportagens sobre as diversões que se encontravam em Berlim antes da guerra. Temos muitos leitores que emigraram de Berlim e se interessam por essas matérias nostálgicas. Fui informada de que um certo Herr Lowendorf f outrora dirigia esta casa.

        —  Isso mesmo... Walter Lowendorff. Ele tornou a casa muito popular nos anos 30.

        —  Também me disseram que ele tinha um número aqui que era uma atração especial. Um show de mímica de Manfred Müller. Eu gostaria de saber mais alguma coisa a respeito desse Müller.

        —  Manfred Müller... — repetiu Bree. — O nome me parece familiar, mas nada sei a seu respeito. Eu ainda não havia nascido na ocasião. Só mesmo Herr Lowendorff ou meu pai teriam esse tipo de informação. O bairro foi bastante avariado pelos bombardeios Aliados, nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, Lowendorff não teve ânimo para reconstruir a casa. Vendeu a meu pai, que já possuía diversas Kneipes. Depois da morte de meu pai, em 1975, herdei a casa e a venho dirigindo desde então.

        —  Quer dizer que não sabe nada sobre Manfred Müller?

        —  Meu pai poderia saber, mas ele não existe mais. Ora, mas é claro! — O jovem proprietário da cervejaria mostrou-se animado. — Walter Lowendorff pode lembrar alguma coisa de seus velhos atos. Por que não pergunta a ele diretamente?

        Tovah, já desanimada, sentiu um ímpeto de esperança.

        —  Então o Lowendorff original ainda existe?

        —  Ele é indestrutível — comentou Bree com um sorriso. — Está muito velho, meio entrevado, a memória lhe falta de vez em quando, mas ainda se lembra de aparecer por aqui para a sua cerveja diária.

        Pegou Tovah pelo braço, acrescentando:

        —  Vamos até o jardim para ver se ele já chegou.

        Saíram para o jardim e Bree correu os olhos pelos vários fregueses às mesas.

        —  Ainda não. — Consultou o relógio de pulso. — Lowendorff geralmente aparece por volta das três horas. Ainda faltam dez minutos. Por que não senta a uma mesa, Fraulein Levine, e espera por ele? Tome uma cerveja. Ficarei atento e levarei o velho Lowendorff à sua mesa assim que ele chegar.

        —  Obrigada, Herr Bree.

        O proprietário levou Tovah até uma mesa vazia, estalou os dedos para chamar um garçom, pediu um chope e depois se afastou para conversar com os outros fregueses.

        Tovah, tomando o chope com bastante espuma, esperou por quinze minutos e começou a ter dúvidas de que alguma coisa pudesse resultar daquela visita. Mas pouco depois avistou Bree voltando, trazendo a reboque um homem idoso e trêmulo. Ajudando o velho a sentar à mesa de Tovah, Bree fez as apresentações.

        —  Fraulein Levine, este é o renomado Walter Lowendorff. Já o informei de sua missão. Fiquem conversando, enquanto mando trazer outro chope.

        Tovah contemplou o velho encarquilhado com alguma apreensão. Os olhos eram remelentos e ele olhava para as pessoas da outra mesa com uma expressão vazia, um sorriso idiota no rosto enrugado.

        Ele não reconheceu a presença de Tovah até que o chope foi posto à sua frente. Só então, depois de lamber a espuma, é que a focalizou.

        —  Estou escrevendo uma reportagem sobre os shows e artistas mais memoráveis de Berlim nos anos 30 — começou Tovah. — E me disseram que o senhor promoveu alguns dos melhores.

        —  É verdade — concordou Lowendorff. — Os melhores. Ele tomou um gole do chope, observando Tovah por cima da caneca de vidro.

        —  Estou especialmente interessada num ato que havia aqui e se tornou famoso. Contaram-me que obteve o maior sucesso com Manfred Müller, um mímico que fazia sensacionais imitações de Hitler.

        —  Ah, Müller, Müller... — murmurou Lowendorff, a espuma aderindo aos lábios, enquanto tomava o chope. — O melhor... o melhor de todos.

        —  Quero saber mais a respeito de Müller — continuou Tovah. — Pelo que sei, ele poderia passar por Adolf Hitler.

        O chope ou a recordação de Müller pareceu devolver a lucidez ao velho.

        —  Parecia exatamente com Hitler. A imagem escrita e escarrada, os mesmos cabelos castanhos caindo na testa, os olhos azuis fanáticos, o bigodinho. Absolutamente Hitler. E também um mímico muito engraçado. Podia imitar Hitler com perfeição, mas era satírico, muito satírico. Não cruel. Apenas divertido. Contratei-o no mesmo instante em que ele me mostrou do que era capaz.

        A mente de Lowendorff vagueou, ele tomou outro gole do chope, enquanto retornava ao passado. Tovah fez uma tentativa de trazê-lo de volta ao presente:

        —  Contratou Manfred Müller. Ele apresentava o seu número aqui. Era um sucesso.

        —  Um tremendo sucesso. A casa lotada todas as noites. Espectadores de todas as classes, vindos de todos os cantos. Manfred fazia pequenas representações. Imitava Hitler na cervejaria de Munique, dando ordens. Fazia Hitler na cela da prisão, ditando Mein Kampf para Hess. Hitler ordenando o incêndio do Reichstag. Uma coisa afrontosa, mas de morrer de rir. Os negócios nunca foram melhores.

        —  Mas de repente ele parou — interveio Tovah. — Sei que suspendeu o número quando se encontrava no auge. Por que ele o deixou?

        O velho fez um esforço para entender o que Tovah estava dizendo.

        —  Deixou? Deixou? Não, ele não deixou. Manfred Müller estava no auge, Berlim inteira falava dele. E foi então que o obrigaram a parar.

        —  Quem o obrigou?

        —  O bando de Hitler, é claro. Uma noite, depois de sua apresentação, eles estavam à sua espera. Quatro homens fortes da Gestapo de Göring... ou era de Himmler naquele tempo, já esqueci. Agarraram Manfred, meteram-no num carro e foram embora. Isso aconteceu na primavera de 1936. Foi a última vez que vi Manfred Müller.

        Tovah estava na beira da cadeira.

        — Mas o que aconteceu com ele?

        —  Nunca mais ouvi falar dele. Desapareceu completamente. Talvez tenha sido fuzilado por sua ousadia. Ou talvez não. Talvez apenas o tenham forçado a viver de boca fechada.

        Ou talvez, apenas talvez, o tenham usado de outra forma, pensou Tovah. Um homem que parecia com Hitler, que podia imitar Hitler com tanta perfeição, seria útil de muitas formas.

        —  Se ele não morresse na ocasião, ainda poderia estar vivo? — especulou Tovah.

        —  É possível. Era jovem, tinha vinte e poucos anos quando foi preso.

        Tovah persistiu:

        —  Pode pensar em alguém que talvez saiba o que aconteceu com ele?

        —  Não, ninguém... a não ser...

        Lowendorff tremia um pouco do esforço de rebuscar em algum recesso da memória. Tovah tentou estimulá-lo:

        —  A não ser...

        Lowendorff aparentemente fez alguma descoberta em sua exploração do passado.

        —  Anneliese Raab. Foi assistente de Leni Riefenstahl nas fotografias dos Jogos Olímpicos de Berlim. Anneliese Raab conheceu Hitler pessoalmente, através de Riefenstahl. Anneliese devia ter seus dezoito anos. Vinha com freqüência à minha casa para rir com Manfred Müller. Talvez tenha falado a Hitler das imitações de Müller. E talvez Hitler tenha lhe contado o que fez com Müller. Isso mesmo, deve falar com Fräulein Raab.

        —  Sabe onde posso encontrá-la?

        —  Qualquer um pode lhe dizer onde encontrá-la. Ela ainda é famosa. Isso mesmo, Anneliese Raab é a pessoa que pode saber o que aconteceu com o nosso imitador de Hitler.

        —  Claro que sei o que aconteceu com Manfred Müller — disse Anneliese Raab, enquanto avançava com passos vigorosos pelo corredor do Edifício Éden, ao lado do Palace Hotel, no Centro Europa.

        Anneliese admitiu orgulhosa que possuía o luxuoso apartamento de cobertura que haviam acabado de deixar, assim como o apartamento que iam visitar agora e que ela convertera em sua sala de projeção particular. E garantiu a Tovah:

        —  Müller era um artista absolutamente maravilhoso. Tovah não tivera dificuldade para encontrar Anneliese Raab, uma mulher baixa e socada, que usava uma peruca loura, cacheada, e um conjunto cinza. A mulher era bastante conhecida na cidade e convidara Tovah a entrevistá-la com a maior cordialidade.

        Assim que Tovah explicara o motivo de sua visita, Anneliese telefonara para alguém em sua sala de projeção e depois, misteriosamente, sugerira a Tovah que deviam assistir a um ou dois rolos do filme dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, que ela ajudara Leni Reifenstahl a produzir.

        —  Mas o que aconteceu com Manfred Müller depois que a Gestapo o prendeu no Lowendorff Club, naquela noite de 1936?

        Anneliese fitou Tovah com uma expressão divertida.

        —  Ora, ele se tornou o sósia de Adolf Hitler. É o que vou lhe mostrar.

        Excitada pela revelação inesperada, Tovah Levine seguiu a cineasta alemã para a sala de projeção, pequena mas muito bem decorada, com fileiras de poltronas de couro marrom.

        Anneliese instalou-se numa poltrona ao lado de um painel de controle e chamou Tovah para sentar a seu lado. Anneliese apertou um botão ao lado de um microfone e falou com alguém na sala de projeção lá em cima:

        —  Pode começar quando estiver pronto.

        —  Preciso de mais cinco minutos para preparar o rolo — informou a voz desencarnada da cabine de projeção.

        Anneliese recostou-se, virando o rosto para Tovah.

        —  Portanto, temos cinco minutos para explicações. Eu lhe direi o que sei.

        —  Sobre o sósia de Hitler — murmurou Tovah, emocionada. A simples confirmação dessa possibilidade validava subitamente a busca de Emily Ashcroft pela verdade.

        —  Isso mesmo. Manfred Müller tornou-se o sósia de Hitler por minha causa. Pelo que relatei a Hitler num banquete que Der Führer ofereceu ao aviador e herói americano Charles A. Lindbergh. Antes do banquete, os convidados ficaram reunidos em grupos, conversando. Eu já fora apresentada antes a Hitler, em outra solenidade, por Leni Riefenstahl. Goebbels viu-me sozinha, bebendo, e levou-me para o círculo de Hitler. Eu era bem jovem na ocasião e bastante bonita. Goebbels sabia que Hitler gostava de estar cercado por moças bonitas, e por isso me levou para junto das outras mulheres que adulavam Der Führer. Não me lembro direito como aconteceu, mas por um momento fiquei parada ao lado de Hitler, sentindo-me um pouco inebriada. Acho que tomara muito vinho. Seja como for, descobri-me a falar a Hitler sobre o maravilhoso mímico Manfred Müller, que se parecia incrivelmente com ele e que estava se apresentando todas as noites no Lowendorff Club. Depois que falei, tive medo de que Hitler se sentisse ofendido. Em vez disso, no entanto, ele se mostrou fascinado. Pôs a mão sob meu cotovelo e puxou-me para o lado, até que ficamos quase a sós. "Está querendo dizer que esse ator, o tal de Müller, parece comigo?", disse Hitler. Compreendi que ele estava realmente interessado e respondi: "Não apenas parece, Mein Führer. É o próprio Führer, uma réplica exata na altura, feições, movimentos. Não creio que ele use artifícios ou maquilagem para ficar parecido. É um desses acidentes da natureza, uma coisa inacreditável." Hitler pediu-me então para repetir onde Manfred Müller estava se apresentando. Dei a informação e tive a certeza de que ele não esqueceria. A comida foi servida pouco depois e todos se encaminharam para seus lugares às mesas. E na vez seguinte em que fui ao Lowendorff Club, soube que Manfred Müller não estava mais se apresentando ali. Disseram-me que se aposentara. O que não fazia sentido, porque ele era muito jovem para se aposentar.

        —  Quando soube que Müller fora apanhado pela Gestapo?

        —  Pouco depois — respondeu Anneliese. — Meses antes dos Jogos Olímpicos, em agosto de 1936, Leni Riefenstahl fora escolhida para fazer o filme oficial da competição, Olympia. A fim de cobrir os eventos nos dezesseis dias, Leni reunira uma equipe de 160 especialistas, metade de cinegrafistas e assistentes de cinegrafistas, preparando-os nos Estúdios Geyer. Eu era assistente de produção de Leni. Antes, todos os filmes olímpicos eram insípidos, monótonos, meras reproduções de cada prova. Leni foi a primeira a transformar um filme das Olimpíadas numa obra de arte, introduzindo em 1936 as técnicas que hoje se tornaram comuns... buracos para câmaras filmarem de ângulos baixos, câmaras se deslocando em trilhos para acompanhar os corredores, filmagens debaixo d'água, cenas de atividades no solo filmadas do Graf Zeppelin no céu. Poucos dias antes de os preparativos começarem, Leni e eu comíamos alguma coisa no Haus Ruhwals, conversando sobre as atividades sociais em Berlim. Comentei que deixara de freqüentar o Lowendorff Club porque a atração principal, Manfred Müller, não estava mais se apresentando lá. Leni balançou a cabeça e disse: "Já sei. Müller foi trabalhar para Unser Führer." Fiquei atônita. "Foi trabalhar para Hitler?" Leni explicou: "Hitler mandou que trouxessem Müller à sua presença, a fim de verificar se a semelhança era verdadeira. E constatou que Müller era mesmo seu doppelgànger. E por isso tirou Müller do Lowendorff. Contratou-o para trabalhar como seu sósia."

        —  Tem certeza disso? — indagou Tovah. Anneliese apertou a campainha no painel do controle.

        —  Vai ver pessoalmente.

        A sala de projeção escureceu.

        —  O copião do nosso Olympia tinha 1.300.000 pés. Vou lhe mostrar apenas os dois primeiros rolos, a cerimônia de abertura. Ignore as festividades, as 110 mil pessoas aclamando as dez mil mulheres que se apresentavam no campo, Richard Strauss conduzindo a orquestra que tocava Deutschland über alies. Concentre-se no próprio Hitler, na tribuna de honra, observando a entrada dos competidores dos diversos países.

        Tovah ficou olhando para a tela, hipnotizada.

        —  Aí está, Hitler assistindo à entrada da delegação austríaca, que lhe deu a saudação nazista de Sieg Heil. E depois vieram os franceses, fazendo quase a mesma coisa. — Anneliese continuou a fazer os comentários, enquanto era projetado o filme sem trilha sonora. — Espere pelos americanos, que são os últimos. Eles não farão a saudação nazista nem baixarão a bandeira americana para Hitler. Verá Hitler escondendo o seu ressentimento, mas também notará o desprazer dos espectadores. Agora. Fique de olho em Hitler. Veja se é Hitler ou seu sósia. Posso lhe dar a resposta: é mesmo Hitler no dia da abertura. Ele apareceu pessoalmente. Porque achou que podia ser um grande golpe promocional. Foi a única ocasião em que Hitler apareceu nos Jogos Olímpicos. Mas vai vê-lo outras quatro vezes.

        Enquanto o filme tremia na tela, Tovah concentrou-se no que via. Anneliese recomeçou os comentários:

        —  Este é o segundo dia dos Jogos Olímpicos de Berlim, mas o primeiro das competições propriamente ditas. Aí está Hitler de novo. Ele dá os parabéns a Hans Wöllke, o lançador de peso alemão e o primeiro a ganhar uma medalha de ouro. Aí está Hitler dando os parabéns a três atletas da Finlândia que ganharam todas as medalhas na prova de corrida de dez mil metros. E aí ele aparece mais uma vez, cumprimentando as nossas atletas que ganharam as medalhas de ouro e prata no arremesso de dardos para mulheres. Um Adolf Hitler muito simpático.

        Anneliese fez uma pausa dramática e depois acrescentou, com a maior ênfase:

        —  Só que o Führer que estava cumprimentando os vencedores no segundo dia não era Hitler. Era seu sósia, Manfred Müller.

        —  Como pode saber?

        —  Tenho certeza. E se tivesse alguma dúvida, bastava estudar as orelhas do verdadeiro Hitler e do falso. As configurações variam, embora ligeiramente.

        Mais tarde, depois que a projeção terminou e as luzes foram acesas, Anneliese explicou:

        —  Hitler estava orgulhoso por promover os Jogos Olímpicos, mas não nutria qualquer interesse pelos esportes. Tinha muitas outras coisas em que pensar. Por isso, depois de comparecer à cerimônia de abertura, ele não tornou a aparecer. Mandou que Manfred Müller se apresentasse em seu lugar. E o desempenho de Müller foi tão perfeito que ninguém jamais percebeu a diferença. Mas não me entenda mal. Quando se tratava de um acontecimento político importante, como o gigantesco comício em Nuremberg que filmamos em 1934 e exibimos como Triumph des Willens, além de outras reuniões políticas, depois da contratação de Müller, Hitler sempre aparecia pessoalmente. Mas quando era convidado a comparecer a alguma cerimônia não-política de importância menor, ele muitas vezes enviava Manfred Müller em seu lugar.

        —  É muito difícil de acreditar — comentou Tovah.

        —  Mas é verdade. E vou lhe dizer uma coisa que é ainda mais difícil de acreditar. Um atleta americano chamado Carson Thompson publicou recentemente um livro de memórias em que alega que Eva Braun visitou a Vila Olímpica em Berlim para se encontrar com os jogadores de beisebol americanos.

        —  Como isso poderia ter acontecido? Sempre pensei que Hitler mantinha Eva Braun segregada.

        —  Era isso mesmo que acontecia na maior parte do tempo. Mas Eva adorava tudo o que era americano. Deve ter assistido a E o Vento Levou... pelo menos meia dúzia de vezes. Adorava também tudo o que sabia sobre os esportes americanos, especialmente o beisebol. Esperava fazer alguns comentários do filme olímpico de Leni Riefenstahl e para isso queria saber de mais detalhes sobre o beisebol. Promoveu um encontro com a equipe olímpica americana de beisebol, que se encontrava em Berlim para uma partida de exibição. No último momento, porém, Hitler não lhe permitiu comparecer pessoalmente. Mas o encontro já estava marcado e Hitler resolveu enviar em seu lugar para a reunião com os americanos outra pessoa, Hannah Wald, sósia de Eva. Hannah era uma atriz jovem e secundária que posava como Eva Braun.

        —  E o que aconteceu com Hannah Wald?

        —  Eu bem que gostaria de saber, mas não consegui encontrar qualquer vestígio seu depois da década de 1930. Ela evaporou, desapareceu por completo.

        —  E o que aconteceu afinal com Manfred Müller? Onde ele foi parar?

        Anneliese fez um gesto desolado.

        —  Confesso que também não consegui descobrir nada. Sei que Hitler continuou a usá-lo pelo menos até 1942. Depois disso, especialmente com a guerra começando a correr mal, Hitler vivia muito ocupado com seus generais para receber e conversar com Leni ou comigo.

        —  Haveria alguém que pudesse saber se Manfred Mülier ainda está vivo?

        —  Ele tinha família... ao que eu saiba tinha um filho. Lembro como descobri. Foi há poucos anos, quando li uma reportagem sobre os filhos dos grandes artistas alemães, E, para minha surpresa, havia uma breve referência a Manfred Wüller. Com um comentário de seu filho, Josef Mülier, que trabalhava como controlador de tráfego aéreo para a Lufthansa. Josef dizia que gostaria de ter conhecido o pai no auge da carreira. O que me deu uma idéia sentimental. Fiz uma cópia de Mülier representando Hitler em Olympia e mandei para Josef Mülier, com um bilhete: "Se quer saber como seu pai parecia no auge da carreira, aí está ele." Josef ficou emocionado ao receber o filme e me mandou um bilhete de agradecimento, em papel pessoal timbrado. Terei o maior prazer em encontrá-lo, entrar em contato com ele e pedir que se encontre com você no Bristol Kempinski.

        —  Não tem idéia de como eu ficaria agradecida se me fizesse esse favor — disse Tovah.

        Depois, quando já estavam prestes a se despedirem, na porta do apartamento de cobertura de Anneliese Raab, Tovah se demorou por mais algum tempo, a fim de falar uma coisa que lhe ocorrera. Era arriscado, mas decidiu falar assim mesmo:

        —  Só mais uma coisa, Fräulein Raab... algo que fiquei imaginando enquanto conversávamos.

        —  O que é?

        —  Se Hitler tinha um sósia, não poderia ter sido o sósia que morreu no Führerbunker e foi cremado... o sósia, e não o próprio Hitler?

        Anneliese ficou absolutamente imóvel por um momento, antes de murmurar:

        —  Que idéia espantosa...

        —  Mas possível.

        —  Improvável. — Dando de ombros, Anneliese acrescentou: — Mas tudo é possível, é claro. Só tem uma coisa. Se Hitler não morreu no bunker... então o que aconteceu com ele?

    

        O Chefe de Polícia Wolfgang Schmidt estava sentado em frente a Evelyn Hoffmann, à mesa habitual, esperando por sua salsicha com cerveja e o chá de Evelyn, que logo foram servidos, tendo a cesta de pão sido posta entre os dois.

        Com expressão sombria, Schmidt reprimiu o que tinha a dizer até que Evelyn pegou um pãozinho, partiu-o, passou manteiga e começou a tomar seu chá. Foi então que Schmidt limpou a garganta e disse:

        —  Effie, tenho notícias que não são muito boas, mas também não são das piores.

        Ela largou a xícara.

        —  Pode falar, Wolfgang.

        —  Prometi a você que deteria a mulher inglesa, Emily Ashcroft, que não lhe permitiria bisbilhotar o passado. Mas infelizmente o meu esforço inicial para detê-la fracassou.

        —  Tentou assustá-la?

        —  Não, Effie, tentei liquidá-la. Mas o trabalho foi interrompido por acaso. Designei um homem muito bom, bastante eficiente. Ele entrou na suíte no Kempinski. E foi então que ocorreu algo inesperado. Meu agente estava prestes a fazer contato com a mulher Ashcroft quando um homem, um americano chamado Foster, apareceu. Foster demonstrou ser muito rápido e ágil, além de forte. Soube depois que ele foi treinado pelos militares americanos para a aventura no Vietnã e tem se mantido em boa forma desde então. Ele interferiu.. Atribuo a um golpe de sorte ele não ter apagado e capturado meu agente. Meu homem conseguiu escapar.

        —  Graças a Deus.

        —  Isto torna o nosso próximo movimento mais arriscado. Porque agora a mulher Ashcroft foi alertada e está cautelosa. Não ficará sozinha por um momento sequer. Providenciou até para que Foster deixasse o seu quarto e se instalasse em sua suíte.

        —  É mesmo?

        Schmidt soltou um grunhido de insatisfação.

        —  Imagino que estão dormindo juntos, embora não sejam casados. Mas o que se poderia esperar das mulheres inglesas de moral duvidosa?

        Uma expressão divertida insinuou-se no rosto de Evelyn Hoffmann.

        —  Não são apenas as mulheres inglesas, Wolfgang.

        —  Como? — murmurou Schmidt, sem entender.

        —  Vivi com o Feldherr por quase dezessete anos, antes de casarmos. Não éramos casados quando começamos a dormir juntos, em Viena.

        As faces de Schmidt ficaram avermelhadas de embaraço. Com muito esforço, ele tentou se defender da suave censura.

        —  Por Deus, Effie, como pode haver qualquer comparação? Você e o Feldherr eram um casal especial. Foi como se você tivesse sido escolhida pelo Senhor para proporcionar conforto e amparo a um nobre líder, o maior da história alemã.

        Evelyn respondeu com um aceno solene.

        —  Foi o que sempre pensei, desde o momento em que o conheci. — Ela raramente falava do passado num lugar público, mas agora seus pensamentos retornaram ao passado. — Lembro muito bem da primeira vez em que o vi. Começara a trabalhar para o gordo, Heinrich Hoffmann, na sua loja de fotografia, em Munique. Mais precisamente, era a minha quarta semana no emprego. Não sabia que meu patrão era membro do Partido Nacional Socialista e que muitos dos fregueses que o visitavam eram seus companheiros de partido. Eu estava na escada, tentando pegar uma pasta numa prateleira alta. Aquele amigo de Heinrich entrou, achei que era uma pessoa indefinida, exceto pelos olhos que brilhavam e o bigode engraçado. Usava uma capa clara e carregava um imenso chapéu de feltro. Sentou em frente à escada e surpreendi-o a olhar as minhas pernas. Eu encurtara o vestido naquela manhã. Quando desci da escada, Heinrich apresentou-nos. "Herr Fulano de Tal", disse ele, "quero que conheça a nossa pequena Frãulein Eva." Claro que eu soube logo depois qual era o verdadeiro nome de Herr Fulano de Tal. E depois nos encontramos muitas vezes. Ele sempre foi extremamente gentil. Inclinava-se com muita cortesia, beijava-me a mão, fazia elogios à minha pele. — Evelyn deixou escapar um pequeno suspiro. — Foi lá que começou, na loja de material fotográfico.

        —  Uma história muito romântica — comentou Schmidt, embora Evelyn soubesse que ele já a ouvira antes.

        Tomando o chá, ela olhou por cima da borda da xícara, fitando-o nos olhos.

        —  Wolfgang, você se lembra de quando nós dois nos conhecemos?

        —  Não foi em 1940?

        —  Em 1941, no Berghof, quando o Feldherr e eu partilhávamos a mesma cama. — Evelyn riu. — Uma manhã o camareiro apareceu com algum problema de urgência e nos encontrou enlaçados na cama. Foi a única ocasião em que alguém teve certeza de que tínhamos mesmo uma ligação amorosa.

        —  De qualquer maneira — ressaltou Schmidt, a fim de se recuperar de sua gafe — vocês casaram.

        —  O momento mais feliz da minha vida — admitiu Evelyn. — Mas eu o conheci quatro anos antes disso. Lembro muito bem do dia em que você apareceu no Berghof, um jovem e empertigado guarda da SS designado para bancar a minha ama-seca.

        —  Para protegê-la, Effie, quando saísse para passear sozinha no bosque. O Feldherr não permitiria que você fosse a parte alguma desprotegida.

        —  E tive a sorte de encontrar um amigo tão bom e leal como você, Wolfgang. Não posso imaginar o que eu faria hoje se não tivesse alguém como você.

        —  Fiz o juramento perpétuo de protegê-la, Effie. O rosto de Evelyn ficou anuviado.

        —  E agora essa mulher Ashcroft da Inglaterra está bisbilhotando o nosso passado.

        Schmidt não podia negar, mas obstinadamente garantiu:

        —  Eu protegerei você dessa mulher, como prometi. — Pensou por um momento no que diria em seguida. — Não será fácil agora, como pensei antes. Ela já não fica mais sozinha em momento algum, como falei. O tal de Foster está sempre ao seu lado. E descobri que também há outros no grupo. Um russo de Leningrado, Nicholas Kirvov, e uma mulher israelense, Tovah Levine, uma judia alemã que diz ser jornalista. Qualquer um e todos a defenderiam, se for necessário. Devo ser franco: eles aumentam a ameaça contra tudo o que prezamos e consideramos sagrado. Formam um grupo de investigadores amadores, mas dedicados. Claro que sabemos qual é o objetivo da mulher Ashcroft. Rex Foster é um arquiteto de Los Angeles que está tentando reconstituir a arquitetura do Terceiro  Reich para um livro ilustrado. Nicholas Kirvov adquiriu de alguma forma um quadro antigo do Feldherr e tenta confirmar sua autenticidade. Tovah Levine está empenhada em explorar a história de um "sósia de Hitler". Isoladamente, cada um dos três parece inofensivo. Mas quando se unem à busca mais perigosa da mulher Ashcroft, tornam-se bem mais formidáveis.

        —  Eles sabem alguma coisa de nosso principal legado do Feldherr'!

        —  Posso lhe garantir, Effie, que eles não têm a menor idéia. Continua a ser um segredo nosso.

        Por um instante, o semblante de Evelyn refletiu algum pesar interior.

        —  Às vezes, eu gostaria que não fosse assim... tudo secreto.

        —  O que está querendo dizer, Effie?

        —  Meus críticos, historiadores estúpidos, sempre me descartaram como frívola e imbecil. Ainda a amarguravam algumas das coisas que haviam escrito a seu respeito. — Especialmente aquele juiz de Nuremberg que escreveu o livro a nosso respeito em 1950. Ao falar de mim, ele disse que eu era "totalmente desprovida de interesses políticos e econômicos" e devotava todo o meu tempo a "pensar em roupas, fazer piqueniques e me divertir".

        —  Arschlo! — A imprecação significava idiota, e Schmidt apressou-se em acrescentar: — Perdoe a minha rudeza, mas é a única expressão que me ocorre. Não seria assim se aquele idiota e os outros soubessem como o Feldherr freqüentemente lhe confidenciava seus pensamentos políticos e pedia suas opiniões. Como ele discutiu com você o Anschluss austríaco antes de realizá-lo, como em 1938 ele quis que a acompanhasse a Itália para as conferências políticas com Mussolini.

        —  E como o seu último ato foi confiar-me o que estamos fazendo agora.

        —  Um segredo que permanecerá a salvo da turma de Ashcroft — prometeu Schmidt, mais uma vez. — Enquanto eu continuar a saber o que eles estão fazendo, não ficarei preocupado... e você também não precisa se preocupar.

        —  Mas como sabe o que eles estão fazendo? — indagou Emily abruptamente. — Como já descobriu tanta coisa a respeito dessa gente?

        Schmidt exibiu um sorriso de satisfação.

        —  Depois do atentado contra a mulher Ashcroft, Foster foi me procurar, como o Chefe de Polícia, para comunicar o incidente. Garanti-lhe proteção absoluta para Emily Ashcroft. Disse que cuidaria para que o hotel pusesse guardas de vigia em todas as entradas para o segundo andar.

        —  Já fez isso?

        —  Claro. Como Chefe de Polícia, era a única coisa que eu podia fazer.

        —  Tem razão.

        —  Também providenciei outra coisa, Effie. A pretexto de mandar um técnico de meu departamento para verificar a segurança na suíte da Srta. Ashcroft... janelas e assim por diante... instalei escutas em cada telefone.

        —  Conseguiu mesmo isso, Wolfgang? — murmurou Evelyn, num tom de admiração.

        —  No primeiro momento em que a mulher Ashcroft e Foster saíram. Os aparelhos de escuta estão bem escondidos. Nunca serão descobertos. E já começaram a oferecer resultados.

        Schmidt meteu a mão no bolso direito do paletó, tirou uma caixa amarela e entregou a Evelyn, acrescentando:

        —  O primeiro dia e noite de telefonemas de Emily Ashcroft, tudo gravado. Pode ouvir quando voltar para casa. Não ouvirá nada de interessante, pelo menos por enquanto. Ela se mostra cautelosa com as palavras. Mais cedo ou mais tarde, porém, deixará escapar alguma coisa. — Schmidt olhou para o relógio. — Neste momento a mulher Ashcroft e Foster estão levando o russo Kirvov numa visita ao que foi o Ministério do Ar de Hermann Göring. Evelyn franziu o rosto.

        —  Por quê? Não posso imaginar o motivo.

        —  Também não posso... ainda — disse Schmidt confiante. — Mas pode estar certa... eu prometo... de que saberemos de tudo muito em breve. E se surgir algum perigo para nós, estarei preparado para evitá-lo. Vou lhe repetir, Effie: não precisa se preocupar. Não há motivo para medo.

        Evelyn recostou-se, deixando escapar um suspiro de alívio.

        —  Não tenho medo, Wolfgang. Não enquanto eu puder contar com você. — Guardou a fita gravada em sua dispendiosa bolsa de crocodilo. — Eu... meu marido e eu... ambos agradecemos pelo que você está fazendo para preservar o futuro da Alemanha.

        Irwin Plamp, guiando seu seda Mercedes, levara-os a seu destino em Berlim Oriental.

        Estacionou perto da Leipziger Strasse, a um quarteirão do prédio cinza retangular. Aos pares, os passageiros saltaram do seda e começaram a descer a rua. Embora fosse início da tarde, quase não havia veículos trafegando, e os pedestres eram poucos.

        Na claridade do dia quente, o prédio que eles procuravam era o único ponto na paisagem que parecia sombrio e intimidativo.

        Nicholas Kirvov, segurando o óleo de Hitler, foi o primeiro a atravessar a Leipziger Strasse e estudar a estrutura de perto. Levantou os olhos da fachada do térreo para os quatro andares acima.

        Foster veio postar-se ao seu lado, seguido por Emily e Tovah.

        —  O antigo Reichsluftfahrtministerium — disse Foster. — O Ministério do Ar Göring, a única estrutura do Terceiro Reich que sobreviveu aos maciços ataques aéreos dos Aliados.

        —  Hoje é o Haus der Ministerien — comentou Emily. — A Casa dos Ministérios de Berlim Oriental.

        Kirvov permaneceu em silêncio, enquanto seus olhos se desviavam da fachada do prédio para o quadro. Ele comparou por um minuto pelo menos e depois virou-se para os outros, anunciando:

        —  São exatamente o mesmo... o prédio que vemos à frente e o prédio que Hitler pintou.

        —  Agora já confirmou pessoalmente — disse Foster. — Quando puser a tela em exposição no Hermitage, poderá explicá-la acuradamente a todos os visitantes.

        —  Não se deve esquecer que 35 por cento do prédio original foram danificados pelos bombardeios — interveio Emily. — Assim, mais de um terço foi reparado e restaurado.

        Ela fez uma pausa, abrindo a bolsa.

        —  Talvez queira ver uma boa fotografia da entrada. Tenho uma tirada em 1935. Acabei de recebê-la de Oxford. Mostra como era o ministério antes de ser danificado e restaurado.

        Ela finalmente encontrou a fotografia do prédio e entregou-a a Kirvov.

        O russo tornou a ficar em silêncio, examinando a fotografia da entrada em 1935, depois o prédio agora e finalmente a tela de Hitler. Observando Kirvov, Emily comentou distraidamente com Tovah, a seu lado:

        —  Gostaria de saber por que essa expressão estranha no rosto de Kirvov.

        Porque a expressão do russo era de fato muito estranha. Abruptamente, ele levantou os olhos para os outros, exclamando:

        —  Muito esquisito! Muito esquisito!

        Kirvov fez sinal para que os outros chegassem mais perto e todos se agruparam ao seu redor.

        —  Olhem ali — disse ele, apontando para um ponto na fachada do prédio. — Estão vendo o mural de cerâmica, quase perdido nas sombras, por trás das doze colunas? E agora vejam isto.

        Levantou o quadro de Hitler e apontou para o mesmo lugar na tela.

        —  Aqui está outra vez o mural, quase perdido nas sombras, mas ainda visível. E agora...

        Ele baixou o quadro, encostando-o na perna, e suspendeu a fotografia antiga do ministério, tirada em 1935.

        —  E agora observem a fotografia do prédio antes de ele ser bombardeado e restaurado. O que é que não se vê? Não havia qualquer mural quando o prédio foi construído. Só foi acrescentado à fachada na restauração. E o mural também aparece no quadro que Hitler pintou!

        —  Deixe-me ver a foto — pediu Foster, pegando-a e estudando-a. — Tem razão. Eu não tinha percebido antes.

        —  Isso significa que Hitler não pintou o prédio original! — exclamou Emily. — Pintou-o depois que foi reparado!

        —  Mas quando ele foi reparado? — indagou Kirvov, aturdido. Emily não podia controlar seu excitamento.

        —  Sei exatamente como descobrir. Vamos procurar um telefone.

        Ela seguiu apressadamente na frente, de volta ao Mercedes.

        —  Her Plamp — disse ela ao motorista à espera — preciso encontrar imediatamente um telefone público. Existe algum aqui por perto?

        O motorista pensou por um instante.

        —  Há alguns — respondeu ele, hesitante. — Creio que o mais fácil é tentar os telefones no Café am Palast.

        —  Leve-me até lá — ordenou Emily.

        Depois que todos embarcaram, Plamp deu a partida e seguiu pelas ruas de Berlim Oriental até alcançarem a larga Unter den Linden. Parou um instante depois por trás do Palast Hotel.

        —  Aqui estamos. O Café am Palast fica na esquina. Há telefones públicos na entrada.

        Os quatro deixaram o carro, viraram a esquina e entraram no café. Emily gesticulou para o salão.

        —  Peguem uma mesa. Estarei com vocês dentro de um minuto. Vou ligar para o Professor Otto Blaubach.

        Pelo canto de um olho, Emily observou os outros serem conduzidos a uma mesa vaga, enquanto vasculhava a bolsa à procura do caderninho que preparara com telefones locais. Encontrou-o, abriu no B, e lá estava o telefone do Professor Blaubach.

        Rezou silenciosamente para que Blaubach estivesse em seu gabinete. Em menos de um minuto o professor atendeu, dizendo imediatamente:

        —  Não tenho nenhuma notícia para você sobre a permissão para escavar. Mas espero poder lhe informar alguma coisa ao final desta tarde.

        —  Isso é ótimo. Estarei no Kempinski à espera de seu chamado. — Emily fez uma pausa. — Mas não é por isso que estou telefonando, Professor. É por outro motivo. Explicarei tudo na próxima vez em que nos encontrarmos. O que preciso neste momento é de uma informação sobre um dos prédios de seu governo.

        —  Que prédio?

        —  A Haus der Ministerien, perto do muro.

        —  O prédio que era antigamente o quartel-general da Luftwaffe de Göring?

        —  Esse mesmo.

        —  O que deseja saber a respeito?

        —  Pelo que sei, um terço do prédio foi danificado por um ataque aéreo Aliado antes de 1945. E foi reparado quando o governo alemão oriental o assumiu.

        —  Creio que foi isso mesmo.

        —  É possível descobrir quando foi restaurado?

        —  É, sim. Posso saber com precisão em poucos minutos. Onde poderei encontrá-la?

        —  Eu ligarei de novo.

        —  Está certo. Telefone dentro de cinco minutos.

        Emily ficou esperando junto ao telefone, impaciente, observando Foster, Kirvov e Tovah estudarem os cardápios. O perfil de Foster se destacava e mais uma vez ela sentiu o calor de seu rosto e corpo. Mas não permitiria que o sentimento a desviasse do outro excitamento que experimentava, aguardando o momento de ligar de novo para Blaubach.

        Cinco minutos se passaram. Ela esperou mais um minuto e depois discou outra vez para o gabinete de Blaubach. Ele atendeu no mesmo instante.

        —  Creio que já tenho o que você quer. Quando o ministério foi reparado e voltou a ser usado, não é mesmo?                    

        —  Exatamente.

        —  Foi reconstruído em 1952. Emily precisava ter certeza absoluta.

        —  Disse 1952. Não há qualquer dúvida?

        —  Absolutamente nenhuma. O prédio foi construído por Göring em 1935. Foi parcialmente danificado em 1944, sendo reconstruído em 1952. Dá para perceber que os blocos de pedra são mais claros nos trechos reconstituídos.

        —  E também se acrescentaram alguns ornamentos, como um mural de cerâmica na entrada.

        —  Não me lembro. Mas uma coisa é certa: todos os acréscimos e reparos foram feitos em 1952.

        O coração de Emily estava novamente disparado.

        —  Muito obrigada, Professor.

        —  Foi um prazer ajudá-la. E pode estar certa de que terei alguma coisa para lhe dizer ainda hoje.

        Emily desligou, virou-se e entrou apressadamente no café. Podia notar que os três aguardavam ansiosamente suas notícias, enquanto se aproximava da mesa. Não sentou. A notícia era tão sensacional que permaneceu de pé.

        —  Uma coisa incrível! — anunciou ela — O velho Ministério Göring só foi reparado em 1952. Foi nessa ocasião que se acrescentou o mural à entrada. Mas Hitler pintou-o e incluiu o mural.

        Fez uma pausa, a fim de recuperar o fôlego, e depois acrescentou:

        —  Isso significa que Hitler só poderia ter pintado o quadro depois de 1952. Quando a Segunda Guerra Mundial já havia terminado há sete anos. O que só pode significar uma coisa.

        Kirvov balançava a cabeça, o semblante eslavo afogueado pela revelação.

        —  Significa que Hitler não morreu na ocasião em que todos acreditam que ele se matou. Significa que Hitler continuava vivo sete anos depois da guerra, talvez dez, talvez vinte ou mais. Significa que Hitler pode estar vivo hoje.

       

        Às oito e meia da noite os quatro estavam sentados a uma mesa no meio do Restaurante Kempinski, um dos melhores de Berlim Ocidental.

        —  Deve ser mesmo um dos melhores — comentou Foster, apontando para o cardápio. — Dêem uma olhada nos preços.

        —  E no cenário  — acrescentou Tovah.

        Sobre a toalha de mesa branca, por baixo de um candelabro de ouro, o serviço de porcelana faiscava, os talheres pesados cintilavam. Foster pegou o copo com scotch que acabara de ser posto à sua frente.

        —  Proponho um brinde a Emily. Todos levantaram seus copos.

        —  A seu sucesso amanhã no Führerbunker. Todos bateram os copos alegremente.

        Emily sentia-se inebriada com sua sorte. Três horas antes, pouco depois que retornara à suíte com Foster, o telefone na sala tocara. Era o Professor Otto Blaubach, com boas notícias. O conselho acabara de conceder permissão a Emily para escavar, não apenas no jardim da Velha Chancelaria, mas também no monte por trás, que há quase quarenta anos escondia o que restara do Führerbunker pessoal de Hitler. A escavação poderia começar no dia seguinte e se prolongar por uma semana. Blaubach lembrara a promessa de ela partilhar com ele e o governo alemão oriental qualquer coisa que descobrisse e que pudesse ser de interesse histórico ou político.

        Assim que terminara a ligação, Emily sugerira o jantar de comemoração, e os dois prontamente chamaram os outros.

        Depois que todos brindaram ao sucesso de seu empreendimento, Emily recostou-se, com um pouco de esgotamento nervoso.

        —  Não posso deixar de admitir que estou apavorada — murmurou ela.

        —  Não tem motivo para se preocupar — disse Foster.

        —  E se houver alguma coisa lá?

        —  Desconfio que não tem nada, Emily, nem a arcada dentária de Hitler nem o camafeu. Estou convencido de que você se encontra na pista certa. O que aconteceu esta tarde no Ministério Göring confirma isso.

        Emily olhou para Nicholas Kirvov, sentado à sua esquerda. Não era um homem expansivo, embora sua voz se mostrasse perceptivelmente excitada no carro, ao voltarem de Berlim Oriental. Agora, Emily notou, seu rosto estava outra vez impassível.

        —  Como se sente, Nicholas, desde a descoberta desta tarde? Seu trabalho aqui está concluído?

        Ele pareceu avaliar as perguntas por um momento, refletir sobre as respostas.

        —  Ainda não acabou inteiramente. Quer que eu lhe diga o que estou pensando?

        —  Claro.

        —  É verdade que descobrimos que Hitler, para pintar o meu quadro, não poderia ter morrido em 1945. Precisava estar vivo em 1952 ou depois. O que é um fato sensacional, da maior importância. Mas tudo fica na dependência de uma coisa: que o próprio Adolf Hitler tenha pintado o quadro.

        —  Examinou a tela com todo cuidado, depois de adquiri-la — comentou Foster. — E ficou absolutamente convencido de que era da autoria de Hitler.

        —  E ainda acredito nisso. Mas o que aconteceu hoje abala um pouco a minha fé na autenticidade da obra. Se Hitler pintou o quadro, o anacronismo indica que ele estava vivo em 1952 ou depois, quando supostamente se encontrava morto há sete anos.

        Kirvov fez uma pausa e depois continuou:

        —  Se o que descobrimos é verdade, significa que Hitler ficou escondido depois de sua suposta morte. Também significa que, em algum momento, Hitler saiu de seu esconderijo e foi se postar diante do Ministério do Ar reconstruído, pintando o quadro. Não posso imaginá-lo correndo tamanho risco. E isso me leva a especular se foi realmente ele o autor.

        —  E se ele não foi se postar diante do prédio para pintá-lo, Nicholas? — sugeriu Emily. — E se fez o quadro baseado numa fotografia tirada por algum amigo? Você mesmo disse que nos seus primeiros tempos como artista, Hitler fazia a maioria de suas obras usando cartões-postais, limitando-se a copiá-los.

        —  É verdade.

        —  Talvez ele tenha feito de novo a mesma coisa.

        —  É possível — admitiu Kirvov. — Mas, para o meu propósito, preciso ter certeza absoluta de que a obra é de Hitler. Preciso de uma prova incontestável.

        Foster interveio na conversa:

        —  A esta altura, Nicholas, já deve saber qual é a galeria de Berlim que vendeu o quadro. Pode ir até lá para descobrir a proveniência.

        Kirvov suspirou, infeliz.

        —  Sinto-me envergonhado em confessar, Rex, mas não tenho o nome da galeria. É esse o meu problema. O tal comissário de bordo ficou de me enviar a informação assim que voltasse para casa. Mas não o fez. — Tirou um charuto cubano do bolso do paletó. — Mas ainda não desisti. E resolvi passar mais uma semana aqui. E vou devotar todo o meu tempo a confirmar a autenticidade do quadro de Hitler.

        —  Como? — indagou Emily.

        —  Continuando a procurar pela galeria de arte que o vendeu.

        —  Deve haver centenas de galerias de arte em Berlim Ocidental — comentou Foster.

        —  E há mesmo — confirmou Kirvov. — Já verifiquei na lista telefônica e visitei muitas. O problema é que são várias colunas. Por sorte, não preciso perder tempo visitando cada uma. O homem me disse que comprou o quadro em uma galeria no centro de Berlim Ocidental, não muito longe da avenida principal. Imagino que ele estava se referindo à Kurfürstendamm.

        —  É o que parece — disse Foster.

        —  O que restringe a área em que devo procurar. Voltarei a percorrer galerias de arte amanhã de manhã, mostrando o quadro. Mais cedo ou mais tarde encontrarei a galeria certa. Se me convencer da autenticação que eles apresentarem, isso significa que vocês também estão no caminho certo.

        —  Seria muito importante para mim — murmurou Emily. — Se eu puder ajudar em alguma coisa...

        —  Não precisa se preocupar comigo — disse Kirvov, incisivamente. — Todos vocês podem continuar em suas investigações. Cuidarei sozinho da minha parte.

        Fez uma pausa, fitando a jovem loura israelense, e lhe perguntou:

        —  E você, Tovah, o que vai fazer?

        —  Isso mesmo, Tovah — interveio Emily. — Está querendo me contar uma coisa desde a noite passada. Desculpe termos nos ocupado com outras coisas. Quer contar agora ou prefere...

        Tovah falou com a maior animação:

        —  Não é segredo que estou ansiosa em contar a todos vocês. É sobre o sósia de Hitler. — Ela olhou para as outras mesas e baixou a voz ao continuar: — Se a sua teoria está correta e puder provar que Hitler sobreviveu, Emily, teria de haver um sósia que morreu em seu lugar. Eu lhe disse que investigaria essa parte. Foi o que fiz. — Ela sorriu, feliz. — Hitler tinha mesmo um sósia, acredite ou não. Mas acho melhor acreditar, porque é verdade.

        Emily piscou os olhos, aturdida, para a jovem israelense.

        —  Pode provar?

        —  Claro.

        Com indisfarçável satisfação, Tovah relatou a sua busca por um sósia de Hitler e a descoberta de Manfred Müller, o satírico imitador do Führer, concluindo com o encontro com Anneliese Raab, que ajudara a fazer o filme sobre os Jogos Olímpicos de Berlim.

        —  Anneliese me contou que Müller tem um filho em Berlim — acrescentou Tovah. — Ela está promovendo um encontro meu com esse filho, Josef Müller. Talvez ele possa me dar a última palavra sobre o que aconteceu com o sósia de Hitler.

        Emily estava satisfeita, mas pensativa.

        —  Um trabalho maravilhoso, Tovah. Mas... — Refletiu por um instante. — ... e se Josef Müller declarar que o pai está vivo e levá-la à sua presença?

        —  Nesse caso, nós perdemos — respondeu Tovah. — Um sósia de Hitler ainda vivo não nos dá um sósia sendo cremado ao lado do Führerbunker, no lugar de Hitler. Por outro lado, Josef também pode me dizer que o pai morreu em 1945, em circunstâncias estranhas e inexplicáveis.

        Emily virou-se para Foster a seu lado, cobrindo-lhe a mão com a sua.

        —  Rex, conte a Nicholas e Tovah sobre o seu encontro com Zeidler.

        Sem precisar de mais estímulo, Foster passou a relatar os pontos principais de sua entrevista com Zeidler, revelou a sugestão do arquiteto alemão para que procurasse na prisão de Spandau a planta desaparecida do misterioso sétimo bunker. Foster tencionava procurar o diretor americano da prisão dali a dois dias. Voltando a concentrar sua atenção em Emily, acrescentou:

        —  Mas é claro que a investigação mais crucial é a que começa amanhã de manhã junto ao Führerbunker. Já está com tudo preparado, Emily?

        —  Espero que sim. O Professor Blaubach prometeu que todas as autorizações estariam em ordem para que o motorista Plamp e eu entremos de carro na Zona de Segurança no setor oriental e para que o caminhão da Companhia Construtora Oberstadt me acompanhe. O próprio Andrew Oberstadt vai supervisionar o trabalho de escavação da equipe de três homens. Começaremos às dez horas da manhã.

        —  E a partir desse momento as fichas estarão na mesa. — Foster fez sinal ao garçom para que tornasse a encher os copos. — Vamos beber a isso e torcer para que Emily acerte na sorte grande.

        Era a metade da manhã, e eles estavam em Berlim Oriental.

        A tensão dominava Emily, sentada sozinha no banco traseiro do Mercedes de Plamp, enquanto avançavam cautelosamente pela Niederkurchner Strasse, a caminho da casa de guarda ao lado do portão eletrônico que dava acesso à Zona de Segurança.

        Embora já tivesse passado por ali antes, em companhia de Ernst Vogel, encontrando-se com o Professor Blaubach à entrada, desta vez ela se sentia mais insegura, sozinha e vulnerável. Inclinando-se para a frente, estreitando os olhos ao observar através do pára-brisa do carro, compreendeu que a recordação da visita anterior era vaga e que tudo parecia agora adquirir um foco mais claro.

        Enquanto o carro avançava pela rua, aproximando-se do portão, diminuindo a velocidade, Emily constatou que havia à vista meia dúzia de guardas com o uniforme verde da Alemanha Oriental. Mais além estava a cerca, que logo se fundia com o muro. Aproximando-se do portão, procurou por Andrew Oberstadt e o caminhão com equipamento que ele ficara de trazer, junto com três dos seus melhores operários. O caminhão não estava à vista, e Emily sentiu uma pontada de apreensão.

        Passaram a poucos metros da linha de soldados à espera — todos armados, notou Emily, com o que pareciam ser metralhadoras, penduradas nos ombros. Plamp saltou do carro apressadamente para ajudar Emily a desembarcar.

        Foi nesse instante que ela avistou uma pickup Toyota azul se aproximar. Reconheceu o motorista musculoso, de sobrancelhas espessas: Andrew Oberstadt. Estava acompanhado por dois homens de sua equipe, espremidos no banco, enquanto um terceiro operário agachava-se lá atrás.

        Quando o veículo emparelhou com o Mercedes, Oberstadt inclinou-se pela janela da cabine e gritou para Emily:

        —  Desculpe o atraso. Detiveram-me em Checkpoint Charlie. Praticamente desmontaram o meu carro. Mas aqui estamos, e prontos para começar o trabalho. — Ele acenou com a cabeça para os guardas. — Imagino que teremos de passar por tudo novamente.

        —  É bem possível — respondeu Emily. — Vamos ver se eles receberam nossas permissões de entrada do Professor Blaubach.

        Emily encaminhou-se para os soldados. Divisou ao lado um ameaçador cartaz de madeira: CUIDADO! NÃO SE APROXIME! ESTA ÁREA DE FRONTEIRA É ZONA PROIBIDA!

        Um dos soldados, mais alto do que os outros, de óculos, em uniforme de gala, adiantou-se. Emily percebeu que era um oficial.

        —  Fräulein Emily Ashcroft?

        —  Exatamente. O Professor Otto Blaubach ficou de enviar permissões de acesso para mim e para os outros. Recebeu-as?

        O oficial não confirmou, estendendo a mão em vez disso e pedindo:

        —  Pode me entregar seu passaporte, Fräulein?

        Emily tirou o passaporte inglês da bolsa pendurada no ombro e entregou-o. O oficial estudou a foto, comparou-a com o rosto de Emily. Sem dizer nada, devolveu o passaporte. Olhou para o Mercedes e depois para a pickup Toyota.

        —  Há cinco homens a acompanhando.

        —  Isso mesmo.

        —  São todos alemães ocidentais?

        —  De Berlim Ocidental. Estão com seus passaportes. Se quiser...

        O oficial dispensou os passaportes com um aceno de mão.

        —  Antes de passarem, temos de fazer uma revista meticulosa nos veículos.

        —  Não há problema — disse Emily, virando-se.

        Ela fez sinal para que Oberstadt e seus homens saltassem. Plamp recuou, enquanto Oberstadt saltava e gesticulava para que seus homens o imitassem.

        Enquanto isso ocorria, o oficial alemão oriental gritava uma ordem para os outros guardas. Todos entraram rapidamente em ação. Um soldado pegou um cabo comprido com um espelho na extremidade e se encaminhou para o Mercedes. O oficial alto levou dois outros guardas para a pickup.

        Emily foi postar-se ao lado de Oberstadt, que era três ou quatro centímetros mais baixo do que ela e cinco ou seis mais largo, enquanto ele observava o movimento em torno de seu Toyota.

        —  Desta vez é para valer — sussurrou ele. — Não vão se limitar aos espelhos. Receberemos o tratamento completo.

        Dois soldados se deitaram de costas, entrando por baixo da pickup.

        —  O que eles esperam encontrar? — perguntou Emily.

        —  Devem estar procurando por armas. — Uma pausa e Oberstadt acrescentou: — Ou por Martin Bormann.

        A revista dos dois veículos levou dez minutos. Depois que acabou e os soldados se reuniram na frente da casa da guarda, o oficial aproximou-se de Emily. Entregou-lhe seis cartões rosa.

        —  Aí estão as permissões para os seis passarem, durante sete dias — disse ele. — Entrarão às dez horas da manhã. Os veículos serão revistados ao chegarem e ao partirem. Terão que se retirar o mais tardar até cinco horas da tarde, por este portão. Deve seguir para o seu destino declarado, diretamente, sem ir a qualquer outro lugar.

        —  O monte de terra e a área imediatamente ao redor — disse Emily.

        —  A área do Führerbunker — declarou o oficial, mais específico. — Podem passar agora.

        Tornaram a embarcar nos veículos, o Mercedes avançando devagar, à frente da pickup de Oberstadt, passando pelo portão e os obstáculos na terra de ninguém dos alemães orientais.

        Passaram pela torre de vigia, de onde dois soldados curiosos da Alemanha Oriental observavam o progresso, depois entraram no caminho de terra, ziguezagueando aos solavancos.

        Ao chegarem à base do alongado monte de terra. Emily confirmou para si mesma que devia ter pelo menos seis metros no ponto mais alto, cercado por um campo irregular, mas relativamente plano.

        Emily saltou do Mercedes e parou, as mãos nos quadris, estudando atentamente a disposição da elevação, bastante isolada, a alguma distância da torre de vigia mais próxima. Não muito longe, à direita, havia um trecho da cerca de arame de um metro e meio e mais além, no setor de Berlim Oriental, ficava o estacionamento em que outrora se erguia a Velha Chancelaria do Reich de Hitler, totalmente destruída por aviões americanos e ingleses e pela artilharia russa.

        Andrew Oberstadt descera da pickup e estava dando ordens a seus homens, que pegavam pás, picaretas e peneiras. Dali a pouco Oberstadt se aproximou de Emily e juntos, ao sol, examinaram o local. Oberstadt sacudiu a cabeça.

        —  Parece uma pilha de nada. E pensar que o líder do Terceiro Reich viveu por baixo desses escombros todos os dias durante... quanto tempo... dois ou três meses?

        —  Pelo menos durante os últimos três meses e meio.

        —  E aqui morreu como um rato acuado.

        —  Talvez — disse Emily, de forma quase inaudível, para depois acrescentar, mais firmemente: — Sabe o que estamos procurando?

        —  Sei, sim. Um camafeu com o rosto de Frederico o Grande. Uma mandíbula, com dentes e uma ponte possivelmente intacta.

        —  Exatamente. E também qualquer outra coisa importante que possamos encontrar.

        —  Não perderemos coisa alguma. Mas, primeiro, você tem de nos mostrar por onde começar. Sei que é no antigo jardim da Chancelaria, mas terá de apontar o local exato para o início da escavação e as dimensões aproximadas. Pode ser agora?

        —  Claro.

        Emily vasculhou a bolsa à procura do desenho que fizera com Ernst Vogel, um diagrama do Führerbunker e da área adjacente do jardim, que Foster desenvolvera com base em sua planta da estrutura subterrânea e fotografias tiradas pelas primeiras equipes soviéticas encarregadas das investigações.

        Encaminhando-se lentamente para o lado esquerdo do monte, Emily estudou o diagrama, com Oberstadt ao lado e espiando por cima de seu ombro. Emily parou de repente, um pouco além do meio do monte.

        —  Aqui — disse ela. — Do nível inferior, dezessete metros abaixo, eles carregaram o corpo de Hitler por quatro lances de escada, depois o corpo de Braun, até a saída de emergência, situada bem aqui. Havia neste ponto uma espécie de casamata ou vestíbulo, com uma porta para o que restava do jardim.

        Emily deu alguns passos para a esquerda, com Oberstadt em seu encalço.

        —  Mais ou menos aqui faremos a primeira escavação. É o lugar em que os russos encontraram uma cova rasa. — Ela pegou duas fotografias que estavam presas por um clipe ao diagrama. — Estas fotos foram tiradas por um russo, um dia depois que os soviéticos capturaram o lugar.

        Oberstadt examinou as fotografias e depois estudou o local da escavação.

        —  Não parece muito profundo.

        —  Não se esqueça de que se passaram quarenta anos, Andrew. Na ocasião os tratores russos passaram por aqui e empurraram mais terra sobre a cova. Não está agora tão rasa e próxima da superfície. Pode estar a alguns metros de profundidade.

        —  Não se preocupe — disse Oberstadt. — Escavaremos bem fundo, por precaução.

        Ele chamou os seus homens e deu ordens incisivas. Traçando os contornos da cova com a ponta da bota, mandou que os homens cravassem estacas em torno do perímetro, delimitando a área que seria escavada. Emily observou os homens se afastarem e depois tornou a se virar para Oberstadt.

        —  Quero lhe mostrar agora a cratera da bomba em que os corpos foram enterrados, depois de cremados. — Ela apontou para o diagrama e acrescentou: — Neste ponto. A três metros de distância.

        Emily percorreu essa distância. Oberstadt franziu o rosto.

        —  Este é o ponto exato?

        —  A localização aproximada da cratera. Os restos mortais de Hitler e Braun foram levados para este ponto numa lona, baixados a uma profundidade de três metros e cobertos com terra. Pouco depois, testemunhas trouxeram os russos a esta cratera. Os russos descobriram os corpos e posteriormente identificaram-nos como sendo o que restava de Hitler e Braun.

        —  Mas tem dúvida se eles encontraram os corpos certos, não é mesmo?

        —  Quero confirmar que os russos estavam corretos ou provar que se enganaram. Espero que a escavação nos dê a resposta. — Emily baixou os olhos para a área relvada. — Como não temos a circunferência exata da cratera, seria melhor ampliar a área da escavação.

        Oberstadt estava outra vez marcando o solo com a ponta da bota. E disse, ao terminar:

        —  Isto deve ser suficiente. Vamos marcar com estacas. Teremos bastante espaço.

        —  Seus homens sabem o que estamos procurando? — indagou Emily, mais uma vez.

        Oberstadt tranqüilizou-a com um sorriso.

        —  Foram instruídos a filtrar toda terra pelas peneiras. Chamaremos sua atenção para qualquer coisa que encontrarmos. Estará aqui para examinar tudo e decidir sobre sua importância.

        —  Onde e quando começamos? — perguntou Emily.

        Oberstadt virou-se e constatou que seus homens já haviam delimitado com estacas a área da trincheira. Um deles estava agora trazendo pás e peneiras.

        —  Começaremos pela velha cova, o local da pira fúnebre.

        Ele se encaminhou para o local estaqueado. Olhou ao redor, abaixou-se e pegou uma pá de cabo comprido. Aproximando-se da beira da área delimitada, comprimiu o pé na pá e cravou a ponta na terra.

        —  Quando começamos? Agora. — Empurrou a pá ainda mais. — A escavação já está em andamento.

        Emily engoliu em seco com alguma dificuldade e ficou observando.

    

        Era uma manhã nublada em Berlim Ocidental, e Tovah Levine estava sentada à mesa da sala de jantar com Josef Müller, esperando que a mulher dele terminasse de servir o café da manhã. Tovah não podia deixar de olhar para o anfitrião, enquanto tentava determinar se Josef Müller tinha algum dos maneirismos do pai, Manfred Müller, o sósia de Hitler. Tovah não foi capaz de perceber qualquer semelhança. Josef Müller, que ela calculava ter em torno de 48 anos, possuía um rosto cheio, um pouco inchado, cabelos grisalhos, sem bigode, não se distinguindo de um milhão de outros funcionários de escritórios alemães.

        No início, Tovah tentara localizá-lo por conta própria, através da Lufthansa, mas fora informada de que ele se encontrava em férias. Não quiseram fornecer o telefone ou endereço e ela não o encontrara na lista telefônica. Mas depois Anneliese Raab cumprira o prometido e dera a Tovah o telefone da residência do Müller mais moço.

        Quando Tovah fizera o contato, ele acabara de voltar das férias com a família na região da Floresta Negra. Ela se identificara como uma jornalista israelense que estava fazendo uma reportagem sobre a famosa atuação de Manfred Müller como imitador de Hitler. O filho parecera satisfeito, até mesmo cordial, convidara Tovah a tomar o café da manhã em sua companhia, no dia seguinte, em sua casa em Waragerweg, não muito longe de Gatow.

        Tudo servido, Tovah e Josef Müller ficaram a sós, com as fatias de frios e o café. Uma chuva miúda começara a cair lá fora, e Josef Müller contemplava as pequenas gotas de chuva que salpicavam os vidros da janela.

        Antes do café, o filho já respondera a perguntas sobre a carreira artística do pai, falando de seu sucesso como imitador de Der Führer. Também mostrara um álbum com recortes amarelados sobre os desempenhos de Manfred Müller, além de anúncios de sua longa apresentação no Lowendorff Club. Depois, conversaram sobre a noite em que os camisas-pretas da Gestapo pegaram Manfred Müller, depois de um espetáculo.

        —  Sempre foi um momento memorável em nossa família — admitira Josef Müller, ainda impressionado. — Meu pai foi levado a um encontro pessoal com Hitler.

        —  Ao que tudo indica porque Hitler tinha necessidade de um sósia. Sabia disso antes de Fräulein Raab confirmar e lhe enviar o filme dos Jogos Olímpicos, mostrando seu pai como sósia de Hitler?

        —  Nunca soube com certeza. Sabia apenas que meu pai se encontrara com Hitler e cumpria algumas missões para ele. Mas creio que desconfiava vagamente do papel que meu pai desempenhava, pelas insinuações que mamãe fazia de vez em quando. Nunca entendi exatamente o que meu pai fazia para Hitler. Ele se recusava a falar a respeito. Eu era muito novo, devia ter sete ou oito anos, ao final da guerra. Nada compreendia de política.

        Isso fora parte da conversa antes do café da manhã. E agora Tovah apresentou a sua nova pergunta:

        —  Manfred Müller apresentou-se como sósia de Hitler durante a maior parte dos Jogos Olímpicos de 1936. O que eu gostaria de saber é o seguinte: ele continuou a aparecer como Hitler depois disso?

        Josef Müller concentrou-se nos filetes de chuva que escorriam pela janela, refletindo sobre a pergunta. Mudando de posição na cadeira, ele pegou o garfo e começou a cortar e comer algumas fatias de frios.

        —  Enquanto crescia, sempre desconfiei de que meu pai continuou a trabalhar como sósia de Hitler.

        —  Mas nunca soube com certeza?

        —  Nunca. Entretanto o filme dos Jogos Olímpicos não permite mais qualquer dúvida.

        Tovah recomeçou o interrogatório:

        —  Entre 1936, a época dos Jogos Olímpicos, e 1939, quando a Segunda Guerra Mundial começou, o que seu pai fazia? Voltou a trabalhar como artista?

        —  Não. Minha irmã me contou que ele passava muito tempo em casa, como se estivesse à espera de um chamado. Mas vivíamos bem. Presumo que Hitler o mantinha sob contrato, com alguma recompensa financeira. Ele devia ganhar muito bem, porque levávamos uma vida bastante confortável. Mas depois que a guerra ganhou intensidade, talvez em 1940, meu pai começou a sair de casa e se ausentar com mais freqüência. Havia ocasiões em que passava vários dias fora. Minhas irmãs sempre pressionavam mamãe para saber onde o pai estava. Mamãe dizia que ele trabalhava para o governo, às vezes realizando missões especiais para Der Führer. Dava a impressão de que meu pai era um mensageiro especial. Mas sabendo da carreira teatral de meu pai, acabei adivinhando que ele servia como substituto ou sósia de Hrtler.

        —  Mas não tem provas de qualquer caso concreto em que ele tenha aparecido como sósia de Hitler?

        —  Não, não tenho — respondeu Josef Müller, um pouco infeliz. — Só posso dizer uma coisa. À medida que a guerra se intensificava, meu pai se ausentava com mais freqüência e por períodos mais prolongados. Em 1944 só esteve em casa umas poucas vezes e sempre de boca fechada. A última vez em que o vi... eu tinha mais ou menos oito anos na ocasião... foi nos últimos meses da guerra. Ele veio em casa para providenciar que minha mãe, minhas irmãs e eu fôssemos levados para um lugar seguro. Resolveu levar-nos para o Obersalzberg. Tenho uma vaga recordação de que ele se encontrava lá conosco quando uma tarde apareceram quatro agentes da Gestapo e o levaram mais uma vez. Eram ordens expressas de Hitler. Nunca mais tornei a ver meu pai. Ele jamais apareceu de volta no Obersalzberg. E não tenho a menor idéia do que lhe tenha acontecido.

        Controlando seu excitamento, Tovah perguntou:

        —  Lembra-se da data em que seu pai foi levado pela última vez?

        —  Não a data exata, mas creio que foi ao final de abril de 1945. A guerra terminou cerca de uma semana depois. Mas meu pai desaparecera, e nunca mais tivemos notícias dele.

        Tovah inclinou a cabeça, num gesto de compreensão. Tudo combinava. Tudo parecia se ajustar em sequência. Ela estudou o rosto perturbado de Josef Müller e depois formulou abruptamente a sua pergunta seguinte:

        —  Seu pai poderia ter sido levado à presença de Hitler no Führerbunker e ficado em sua companhia até o fim?

        Josef Müller ficou surpreso.

        —  Meu pai e Adolf no bunker! Não acredito. Não haveria explicação para dois Hitlers. Alguém veria e saberia. Mas o que está tentando insinuar?

        Tovah empertigou-se.

        —  Que talvez seu pai tenha sido obrigado a se apresentar como Hitler e forçado a se matar, a fim de que o verdadeiro Hitler sobrevivesse e escapasse.

        A possibilidade congelou as feições do Müller mais jovem.

        —  Eu... eu acho que isso não seria possível. Não posso conceber uma coisa dessas.

        —  Há algumas pessoas que concebem. Josef Müller tentou recuperar o controle.

        —  Está querendo dizer que meu pai foi obrigado a passar por Hitler e se matou... ou foi morto... sendo depois cremado para enganar os vencedores? E que foi uma trama arquitetada para que Hitler pudesse sobreviver? Acha mesmo que é possível?

        Tovah deu de ombros.

        —  Não sei. Creio pelo menos que poderia ter acontecido assim. Mas ainda não fui capaz de provar.

        Josef Müller levantou-se agitado.

        —  Duvido que algum dia consiga provar. Tenho lido muito sobre o último período de Hitler no bunker. Ele passou várias semanas debaixo da terra, nunca saindo. Se Manfred Müller entrou no bunker como Hitler, deve-se presumir que Hitler saíra antes e estava agora voltando. Isso nunca aconteceu.

        —  Tem certeza de que Hitler não deixou o bunker na última semana de sua vida? Ou que não foi visto por alguém voltando para o bunker!

        A agitação de Josef Müller tornou-se ainda maior.

        —  Não tenho certeza de nada, é claro. Só um guarda da SS ou da polícia que estivesse de sentinela fora do bunker naqueles últimos dias é que poderia jurar ter visto Hitler... ou alguém parecido com ele... entrar no bunker quase no final. Se conseguisse encontrar alguém assim, poderia provar o que está imaginando... que Manfred Müller foi para o bunker quando Hitler ainda se encontrava lá e que Manfred Müller morreu no lugar de Hitler. Se encontrar tal pessoa...

        —  Talvez eu possa encontrá-la.

        —  Nesse caso poderá descobrir, de uma vez por todas, o que aconteceu com Adolf Hitler... e também o que aconteceu com meu pai. Eu lhe desejo boa sorte.

        Uma hora depois, voltando ao Hotel Kempinski, Tovah Levine foi diretamente para o segundo andar e tocou a campainha da suíte de Emily. A porta foi aberta quase que no mesmo instante.

        —  Fiquei com receio de que você já estivesse na escavação — murmurou Tovah, recuperando o fôlego.

        —  Eu já estava de saída — disse Emily, abotoando a capa. Inquieta, ela foi até a janela e estudou a rua molhada lá embaixo, com expressão sombria.

        —  Minha equipe já está escavando. Tenho a impressão de que a chuva diminuiu. Talvez pare por completo. — Virou-se para fitar Tovah, que estava parada no meio da sala. — Você parece que tem alguma idéia, Tovah. Por que veio aqui?

        —  Preciso de sua ajuda. Creio que podemos ser úteis uma à outra. Vamos conversar um pouco?

        —  Claro. Sente-se, por favor.

        Tovah arriou no sofá e esperou que Emily também sentasse. Mal conseguindo se conter, Tovah anunciou:

        —  Acabei de conversar com Josef Müller. Emily ficou completamente aturdida.

        —  Quem?

        —  O filho de Manfred Müller, o sósia de Hitler. O homem que se apresentou como Hitler nos Jogos Olímpicos.

        —  Mas é claro! Minha mente está em dez lugares diferentes ao mesmo tempo. Quer dizer que viu o filho de Müller? Descobriu alguma coisa? O que aconteceu com o pai?

        Ofegante, Tovah relatou os detalhes de sua conversa com Josef Müller. Emily escutou atentamente e indagou:

        —  Mas o filho não sabe realmente o que aconteceu com o pai?

        —  Sabe apenas que a Gestapo o pegou em algum momento daquela que a história nos diz ter sido a última semana da vida de Hitler.

        —  Quando Hitler já estava no bunker.

        —  É justamente essa a questão, Emily. Se o verdadeiro Hitler esteve lá embaixo durante todo o tempo, sem sair nem voltar... mas apesar disso Hitler foi visto entrando no bunker, isso significaria que outro Hitler desceu para se juntar ao verdadeiro. Se for verdade, todas as suas conjeturas se tornam possíveis.

        Tovah fez uma pausa dramática, antes de acrescentar:

        —  O que precisamos é de alguém que tenha visto Hitler entrar no bunker... quando Hitler já estava lá. Um guarda da SS na entrada do bunker poderia saber. E você comentou que se encontrara com um desses guardas.

        —  É verdade. Ernst Vogel estava lá de serviço.

        —  Posso falar com ele? Ou você pode falar com Vogel para mim?

        Emily já se encaminhava para o telefone.

        —  Vou ligar para ele agora e descobrir. Saberemos então. Emily consultou o seu caderninho de telefones e um momento

        depois ligou para Ernst Vogel.

        Ele atendeu, enquanto Tovah se deslocava pelo sofá para ficar mais perto. Depois de identificar-se, Emily foi direto à questão principal:

        —  Herr Vogel, surgiu uma pequena dúvida sobre o tempo em que Hitler permaneceu no Führerbunker, antes de se matar. Achei que poderia me esclarecer.

        —  Farei o que puder — respondeu Vogel. — Mas fale mais alto, por favor.

        Emily alteou a voz ao acrescentar:

        —  Segundo as informações que obtivemos de pelo menos vinte testemunhas, Hitler deixou a Velha Chancelaria e foi para a segurança do Führerbunker a 16 de janeiro de 1945.

        —  Mais ou menos nessa ocasião — concordou Vogel.

        —  Sabemos também que o último dia em que Hitler foi visto com vida no bunker foi 30 de abril de 1945.

        —  Correto.

        —  Muito bem. A questão é a seguinte: quando foi a última vez em que viram Hitler deixando o bunker... por qualquer motivo, talvez um simples passeio... e depois voltando para sempre?

        —  Ah, essa pergunta... não é difícil de responder. Eva Braun saiu para o seu último passeio fora do bunker, pelo Tiergarten, a 19 de abril. Mas estava muito perigoso lá fora e ela voltou apressadamente, para nunca mais sair.

        —  É sobre Adolf Hitler que estou querendo saber, Herr Vogel — disse Emily, impaciente. — Quando foi a última vez que ele saiu e depois voltou ao bunker? Segundo os nossos melhores informantes, Hitler saiu do bunker à noite para passear com seu cachorro Blondi ou para observar Eva e duas de suas secretárias praticarem tiro ao alvo com pistolas a 10 de abril. E depois, a 20 de abril, ele passou pelo túnel para o Salão de Honra da Nova Chancelaria, a fim de se apresentar numa recepção por seu 56º. aniversário. As câmaras dos jornais cinematográficos cobriram o acontecimento. Em seguida, ele saiu para o jardim ao lado do Führerbunker para condecorar por heroísmo vinte órfãos que pertenciam à Juventude Hitlerista. E depois desceu ao bunker para ficar. Isso significa que permaneceu no bunker de 20 de abril em diante, sem tornar a sair, um período de dez dias até sua morte. Ou pelo menos é o que dizem todos os nossos informantes. Isso está correto?

        Emily esperou tensamente pela confirmação ou contestação. E ouviu Vogel responder, em tom irritado:

        —  Todos os seus informantes estão errados. Diz que a última vez que Hitler saiu e voltou foi 20 de abril? Pois está redondamente enganada. Eu mesmo vi Der Führer voltar de um passeio fora do bunker em companhia de uma moça, provavelmente uma de suas secretárias... não pude ver seu rosto... e entrar na noite de 28 de abril, já muito tarde.

        Emily trocou um olhar triunfante com Tovah, que estava com o ouvido quase encostado no fone.

        —  Espere um instante, Herr Vogel. Apesar de todas as minhas fontes garantirem que Hitler não foi visto em momento algum deixando o Führerbunker durante os últimos dez dias de sua vida, está querendo dizer que ele saiu e voltou apenas dois dias antes de sua morte?

        —  É exatamente o que estou dizendo. Eu me encontrava de guarda lá fora. Hitler em pessoa voltava de algum lugar, talvez um pequeno passeio, e descia para o bunker. Já era muito tarde e quase todos lá embaixo estavam dormindo. Assumi posição de sentido e ofereci uma saudação a Der Führer. Ele acenou-me com a mão distraidamente e entrou. Foi a última vez.

        —  Dois dias antes de sua morte. Viu-o sair para esse passeio?

        —  Não. Só entrei de serviço pouco antes de Hitler voltar e entrar.

        —  Não o viu sair, mas viu-o voltar e entrar. Tem certeza absoluta de que era Adolf Hitler, Herr Vogel?

        —  Tão absoluta quanto tenho de que eu sou eu quando me olho no espelho. Pode estar certa de que era mesmo Adolf Hitler, Fräulein Ashcroft. Posso provar que todas as minhas palavras são verdadeiras. Eu mantinha um registro de todas as chegadas e saídas importantes no Führerbunker, com as horas exatas. Se tem alguma dúvida, posso lhe mostrar esse registro. Está guardado com meus livros extras no porão. Se me der algum tempo... umas duas horas... posso lhe mostrar.

        Emily não tinha mais qualquer dúvida, mas disse assim mesmo:

        —  Obrigada, Herr Vogel. Passarei por aí dentro de duas horas. Ela desligou, um sorriso largo no rosto, virando-se para Tovah.

        —  Sabe quem foi a pessoa que Vogel viu entrar no bunker dois dias antes do fim de Hitler, não é mesmo, Tovah?

        —  Manfred Müller, com toda certeza — respondeu Tovah, na maior felicidade.

        Rex Foster telefonara para a prisão de Spandau, pedindo para falar com o diretor americano do mês. A ligação fora transferida para o Major George Elford, que falava com um sotaque do Meio-Oeste dos Estados Unidos. Depois de identificar-se, Foster explicou o que desejava:

        —  Albert Speer pode ter deixado uma de suas plantas arquitetônicas na prisão, uma planta que ele tomou emprestada e possivelmente mostrou a Rudolf Hess, antes de sua libertação, em 1966. Eu gostaria de encontrá-la. Preciso dela para um livro.

        —  Temos aqui muitas coisas que os prisioneiros deixaram.

        —  Fui autorizado a procurar essa planta pelo proprietário legítimo, o homem que a emprestou a Speer. Trata-se de Rudi Zeidler, que foi um dos dez assistentes de Speer. Posso pedir que ele lhe telefone...

        —  Ele já telefonou — interrompeu-o o Major Elford. — E pediu que eu deixasse você entrar.

        —  E eu também gostaria de encontrá-lo — acrescentou Foster.

        —  Tem alguma idéia especial?

        —  Tenho, sim. Mas é melhor falar pessoalmente.

        —  Está certo. Pode ser às onze e meia de hoje?

        —  Claro. Estarei aí.

        Deixando o telefone no quarto da suíte, Foster disse a Emily, que estava se vestindo:

        —  Eu gostaria de saber mais sobre a prisão de Spandau. Nada sei a respeito, exceto que os sete líderes nazistas que escaparam à pena de morte em Nuremberg foram condenados a cumprirem sentença em Spandau, em Berlim Ocidental, em julho de 1947. Detesto ir a qualquer lugar desinformado.

        —  Não precisa continuar desinformado — respondeu Emily. — Se quiser saber alguma coisa sobre Spandau, procure o meu amigo Peter Nitz no Morgenpost.

        E foi o que Foster fez. Nitz o recebeu em sua mesa de trabalho no edifício Axel Springer Verlag, foi aos arquivos do jornal e voltou com uma volumosa pasta de recortes.

        Foster ficou lendo até a hora de ir para o encontro com o Major George Elford, em Spandau.

        Agora, recostado no banco traseiro de um táxi, estava sendo conduzido ao setor britânico, nos arredores de Berlim Ocidental, onde ficava a mais estranha de todas as prisões, Spandau.

        Enquanto o táxi avançava, Foster reviu o que absorvera dos recortes que lera da pasta sobre Spandau.

        A esta altura, Foster já tinha alguma noção e sentia-se mais confiante. Spandau era uma prisão antiga, construída em 1881. Quando os nazistas a ocuparam, depois de subirem ao poder em 1933, deram-lhe o apelido de Castelo Vermelho. Pouco depois, tornara-se o lugar em que ficavam detidos os prisioneiros políticos do Reich, antes de serem enviados para campos de concentração. Era uma prisão com 132 celas para 132 presos, mas quando os quatro Aliados a ocuparam, em 1947, a fim de encarcerarem ali os sete criminosos de guerra nazistas, Spandau estava apinhada com 600 prisioneiros.

        Os Aliados transferiram todos, reformaram a prisão úmida para garantir uma segurança máxima, e depois levaram para lá os sete criminosos de guerra.

        O controle de Spandau fora uma operação das quatro potências desde o início. Uma junta de quatro diretores — dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética — dirigia a prisão, reunindo-se todas as semanas. Havia guardas permanentes na prisão representando as quatro potências. Os guardas externos, trinta soldados de cada potência, revezavam-se na proteção, em turnos mensais.

        Os sete condenados nazistas entraram em Spandau a 18 de julho de 1947. Foster tentou lembrar seus nomes: Rudolf Hess, o segundo homem de Hitler; Albert Speer, o principal arquiteto de Hi-tler e também Ministro dos Armamentos; Erich Raeder, o almirante nazista; Karl Donitz, comandante da Marinha nazista e governante da Alemanha derrotada na semana seguinte à morte de Hitler; Walther Funk, que presidia o Reichsbank; Baldur von Schirach, líder da Juventude Hitlerista; Constantin von Neurath, antigo Ministro do Exterior nazista.

        Foster recordou que Reader, Funk e Von Neurath foram soltos sob liberdade condicional logo no começo, por causa da idade avançada e crescentes enfermidades. Donitz cumprira a pena de dez anos e fora solto. Depois foram libertados Speer e Von Schirach, ao concluírem suas penas de vinte anos.

        Restara um prisioneiro, Rudolf Hess, cumprindo pena de prisão perpétua. Todo o aparato das quatro potências fora mantido para vigiar um impenitente nazista de noventa anos.

        O táxi de Foster seguiu ruidosamente por uma rua estreita e um instante depois parou diante do prédio 23 da Wilhelmstrasse, que era a prisão de Spandau.

        Depois de saltar do táxi e pagar ao motorista, Foster virou-se devagar e contemplou o local do encontro. A chuva fina cessara, mas a prisão de tijolos vermelhos ainda brilhava, molhada.

        O lugar era cercado por um muro de tijolos e uma cerca de arame. O sólido portão duplo na entrada e a fachada de tijolos tinham uma aparência medieval. Além do muro, havia torres de vigia de concreto, guarnecidas por soldados armados e equipadas com enormes refletores. A cerca de arame ostentava um cartaz em alemão e inglês: CUIDADO — PERIGO — NÃO SE APROXIME — OS GUARDAS TÊM ORDENS PARA ATIRAR.

        Foster pôde divisar a parte superior do que parecia ser uma prisão de três andares, além da casa da guarda de um só andar.

        Sentindo-se um pouco intimidado, Foster atravessou a calçada para o portão principal e apertou a campainha. Um postigo gradeado foi aberto. Foster deu seu nome e o objetivo de sua visita.

        Um carcereiro e dois soldados americanos, em uniformes azuis, metralhadoras penduradas dos ombros, estavam à sua espera. Pediram-lhe que apresentasse algum documento de identidade. Ele mostrou o passaporte. Foi revistado. E finalmente o entregaram a um soldado que o levaria ao Major George Elford.

        Acompanhando o soldado, Foster passou por um pátio fechado e entrou no prédio administrativo da prisão. O soldado virou para a esquerda e apontou.

        —  O gabinete do diretor da prisão, senhor.

        Foster bateu na porta, uma voz abafada respondeu e ele foi introduzido na sala.

        O gabinete do diretor era simples, sem qualquer adorno. O Major George Elford estava de pé, ao lado de um saco de golfe encostado na parede. Um homem magro e vigoroso, rosto curtido, na casa dos quarenta anos, Elford largou na bolsa o taco que segurava, adiantou-se, apertou a mão de Foster e indicou uma cadeira de madeira. Puxou outra cadeira para a frente de Foster e também se sentou. Foster apontou para a janela.

        —  Estou espantado com toda a segurança que tem lá fora. Elford deu de ombros, embaraçado.

        —  Não sei se isso continua a se justificar. Talvez houvesse motivo em 1947, quando trancafiaram aqui aqueles sete nazistas. As quatro potências meteram-nos aqui, a fim de escondê-los da população alemã, que poderia encará-los como mártires. Na ocasião houve ameaças de que alguns dos fanáticos nazistas sobreviventes poderiam tentar resgatá-los. E isso continuou ao longo dos anos.

        —  Ameaças concretas?

        —  Isso mesmo. O serviço secreto Aliado descobriu um plano:., creio que foi em 1955... de um coronel nazista, Otto Skorzeny, que esperava resgatar vários criminosos de guerra. Ele era muito eficiente nessas coisas. Foi o homem que tirou Mussolini das mãos dos nossos soldados na Itália. Skorzeny tencionava descer com dois helicópteros no pátio de exercícios da prisão, quando os presos estivessem lá fora. De um aparelho desceria um punhado de fanáticos nazistas que tentariam repelir os guardas, enquanto o outro levaria os prisioneiros para longe. Felizmente a trama foi descoberta e reforçamos a segurança. A tentativa de resgate jamais foi realizada. Mas a coisa continua. Não faz muito tempo, em 1981, cinco nazistas incuráveis foram apanhados em Karlsruhe com um depósito de explosivos. A intenção era penetrarem em Spandau e tirarem Hess. Todos os cinco foram presos.

        —  Deve ser mais fácil agora, em 1985, com apenas Hess para vigiar, neste lugar imenso.

        —  O segundo homem do Führer, agora com noventa anos. Hess não serve para mais nada. O único problema é que pode se tornar um símbolo vivo para os bandos de neonazistas. Imagino que o seu principal interesse em Spandau seja Rudolf Hess.

        —  Não Hess propriamente, como já expliquei — disse Foster. — O que procuro é a planta desaparecida do bunker, que pode estar com Hess. Prometi que lhe contaria toda a história. É o que farei agora, o mais sucintamente possível. E espero que depois possa me ajudar.

        O Major Elford cortou com os dentes a ponta de um charuto e depois acendeu-o.

        —  Pode falar. Estou escutando.

        Foster falou rapidamente ao oficial americano sobre si mesmo, o projeto do livro e a planta desaparecida.

        —  Zeidler lembrou que emprestara as sete plantas a Speer, quando Speer ainda cumpria pena em Spandau — informou Foster. — Ao que parece, Speer ainda se interessava por arquitetura e pensava em escrever um livro sobre a sua obra.

        —  É verdade — confirmou o Major Elford. — Speer foi o único prisioneiro que manteve a sanidade total, porque passava todo o seu tempo livre lendo e escrevendo sobre arquitetura.

        —  Ao terminar de cumprir a pena, Speer deve ter deixado a prisão com as plantas, junto com seus outros pertences. E devolveu todas as plantas a Zeidler... ou pelo menos assim pensou. Mas, na verdade, devolveu apenas seis. Imaginamos que ele poderia ter deixado a sétima planta do bunker aqui em Spandau.

        —  Por quê?

        —  Zeidler presumiu que foi um esquecimento. Achou que Speer, ao tentar determinar a localização de cada bunker, teve dificuldade para situar o sétimo. Por isso, quando ainda estava aqui, emprestou a planta a Hess, esperando que o velho Vice-Führer pudesse lembrar as intenções de Hitler para com esse bunker, onde queria construí-lo ou mesmo o construiu. Imagino que Hess não pôde ajudar.

        —  E está absolutamente certo. Há muito e muito tempo que Hess se encontra mentalmente perturbado.

        —  De qualquer forma, Speer nunca pegou de volta a sétima planta que entregara a Hess. — Foster fez uma pausa. — Zeidler espera que ainda esteja entre as coisas de Hess, que eu possa recuperá-la, para o meu livro e para seus arquivos. O que acha?

        O Major Elford soprou uma nuvem de fumaça e depois apagou a ponta do charuto num cinzeiro de bronze.

        —  Se a planta está aqui, você pode levá-la. Não damos a menor importância a plantas antigas.

        —  Onde devemos procurar? Na cela de Rudolf Hess?

        —  Claro que não. A cela está tão nua quanto os peitos de uma dançarina de striptease. Tem apenas uma cama, cadeira, mesa, aparelho de televisão, algumas roupas, pouco mais. Tiramos todos os seus pertences desnecessários há mais de uma década. — O Major Elford levantou-se. — Se está em algum lugar, só pode ser na biblioteca da prisão. Vamos dar uma olhada.

        Deixaram a sala, passaram pelo gabinete do chefe da guarda e pela enfermaria.

        —  Bem em frente fica o bloco das celas, e também a biblioteca — informou Elford.

        Os dois seguiram pelo corredor até a cela adaptada que guardava os livros dos prisioneiros e entraram. Elford gesticulou para as estantes cheias de livros.

        —  Os criminosos de guerra tinham permissão para levar quatro livros de cada vez... uma Bíblia, um segundo livro religioso, um dicionário e um romance não-político. Às vezes podiam ler livros de história, mas nada militar. Houve uma ocasião em que entrou aqui, por engano, uma história da guerra russo-japonesa de 1901. Foi a guerra em que os japoneses desancaram os russos. Quando os russos reassumiram para o seu mês de comando, descobriram o livro e jogaram-no fora. Por baixo da mesa, nas três caixas, estão guardados os pertences dos prisioneiros. Praticamente não resta mais nada dos seis que saíram. Quase tudo o que está aí pertence a Rudolf Hess.

        O Major Elford ajoelhou-se e puxou as três caixas de baixo da mesa. Não havia muita coisa nelas. Elford começou a esvaziar a primeira dizendo:

        —  Aqui está principalmente o excedente da coleção sobre espaço exterior de Hess. Tornou-se o seu hobby, depois que assistiu na televisão a um lançamento para a lua. Pediu-nos para escrever para a NASA, no Texas, solicitando material de leitura. E a NASA despachou todas essas brochuras e folhetos para ele. Também mandaram quatro fotos coloridas da lua, tiradas lá mesmo. Ainda estão nas paredes da cela dupla de Hess. Não tem nada nesta primeira caixa.

        Foster ajudou o major a repor as coisas e depois se concentraram na segunda caixa. Esta parecia conter peças de roupa. Elford  tirou um par de sapatos de lona com solas de madeira que os prisioneiros inicialmente eram obrigados a usar.

        —  Tenho uma história engraçada para contar — disse Elford, examinando os sapatos. — Albert Speer projetou estes sapatos para os prisioneiros nos campos de concentração, quando os nazistas estavam no poder. Depois, em Spandau, teve de usá-los. Um dia, como exercício, ele correu com estes sapatos. Ao terminar, Speer soltou um grunhido e disse: "Se eu soubesse que um dia seria forçado a usá-los, teria acrescentado um pouco de couro."

        Foster tirou da caixa um gorro azul esfiapado e um blusão azul bastante sujo, indagando:

        —  O que é isto?

        —  O uniforme da prisão que todos os criminosos de guerra eram obrigados a usar no início. Este era de Hess.

        Foster estava tirando o que parecia ser uma peça de uniforme militar.

        —  E isto aqui?

        —  Uma coisa histórica. Hess quis que o guardássemos. É o uniforme de tenente-coronel da Luftwaffe que Hess usou quando voou da Alemanha para a Inglaterra em maio de 1941. Ele pousou para tentar negociar a paz com a Inglaterra. Creio que ele fez isso porque sabia que Hitler atacaria a União Soviética. Queria arrumar as coisas com a Inglaterra para que Hitler só precisasse lutar em uma frente. — Elford deu uma espiada na caixa. — Parece que não tem nenhuma planta aqui dentro.

        —  E aquele papel enrolado lá no fundo? — disse Foster.

        O Major Elford pegou-o e desdobrou-o com todo cuidado. Era uma planta arquitetônica com a assinatura de Rudi Zeidler.

        —  O sétimo bunker — disse Elford. — Calculo que é isso o que você quer.

        —  Exatamente.

        Elford levantou-se com um grunhido.

        —  Vamos levá-la para a minha sala e abri-la direito. Poderá então dar uma olhada melhor.

        Depois de empurrar as caixas para baixo da mesa, ele saiu apressadamente, acompanhado por Foster, retornando a seu gabinete. Ali, Elford abriu a planta em cima de sua escrivaninha, com Foster de pé ao seu lado. Os dois examinaram-na.

        —  Não tem qualquer identificação — comentou Foster.

        —  Absolutamente nenhuma.

        —  O que é muito estranho — acrescentou Foster, perplexo. — As outras seis plantas... todas tinham a indicação da localização. Esta não tem nada.

        —  Tem certeza de que é um bunker subterrâneo?

        —  Não há a menor dúvida quanto a isso. Pode-se confirmar pela posição dos geradores e ventiladores para a troca de oxigênio. É mesmo um dos bunkers subterrâneos de Hitler, a planta desaparecida. E um bunker enorme. Mas onde ele o construiu... se é que chegou a fazê-lo?

        —  Imagino que era um grande segredo — disse Elford, tornando a enrolar a planta e entregando-a a Foster. — Calculo que Speer a estudou e não conseguiu chegar a qualquer conclusão. Resolveu então entregá-la a Hess, na esperança de que este pudesse reconhecê-la, como você sugeriu. Mas posso lhe garantir que, àquela altura, Hess quase não lembrava de nada. Ao ser solto, Speer deve ter esquecido de pegar a planta de volta com Hess. E agora você a tem. Creio que a sua única esperança agora é voltar a Rudi Zeidler com a planta. Talvez ele se lembre de mais alguma coisa.

        —  É possível. Seja como for, Zeidler será a minha próxima parada. Obrigado por tudo, Major.

        —  Obrigado por quê? A única coisa que posso fazer é torcer para que você possa acertar todas as tacadas até o fim.

        —  Como assim?

        —  Não erre o sétimo buraco, meu jovem! — disse Elford enfaticamente. — Não erre!

       

        Quando Rudi Zeidler abriu a porta da frente, Foster levantou a planta enrolada, sacudindo-a num gesto triunfante.

        —  O bunker número sete! — anunciou ele. — Descobri!

        —  Bom trabalho — comentou Zeidler, jovialmente. Puxando Foster para dentro da casa, ele acrescentou: — Onde? Em Spandau?

        —  Justamente como você desconfiava. E gostaria que desse uma olhada agora.

        —  Claro — concordou Zeidler, abotoando o casaco cinza que usava, com uma calça branca e os velhos tênis. — Vamos para o meu estúdio.

        Seguindo na frente pela casa, Zeidler indagou como Foster encontrara a planta desaparecida. Foster relatou os detalhes de seu encontro com o Major George Elford, em Spandau, e a descoberta da planta na caixa com os pertences de Hess.

        Entrando no estúdio, o arquiteto alemão acendeu as lâmpadas fluorescentes. Juntos, eles foram para a mesa mais próxima. Zeidler pegou a planta, abriu-a e estendeu-a sobre a mesa. Examinou-a com todo cuidado, depois franziu o rosto, levantou-a, olhou atrás, à procura de alguma coisa. Finalmente, sacudindo a cabeça, Zeidler tornou a enrolar a planta e devolveu-a a Foster.

        —  Você tem razão — disse ele. — Não há qualquer indicação da localização.

        Foster fitou o alemão nos olhos.

        —  Mas a planta... não o faz lembrar de alguma coisa?

        —  Quase nada. É mesmo minha. Não resta a menor dúvida. Eu a desenhei e assinei. De um modo geral, quando eu fazia esses projetos, Hitler me mandava indicar o local em que o bunker seria construído. Mas, obviamente, ele não fez isso neste projeto. — Como a se tranqüilizar, Zeidler repetiu: — Não, ele não o fez neste projeto. E não sei por quê. Não consigo lembrar.

        —  Talvez Hitler ainda não tivesse decidido onde este bunker seria construído — sugeriu Foster. — Ou talvez já soubesse, màs não queria que você ou qualquer outra pessoa tomasse conhecimento do local.

        Zeidler continuava aturdido.

        —  É possível. Mas todos os outros bunkers que fiz para Hitler eram também secretos e mesmo assim eu conhecia a localização de cada um. Menos do bunker sete. Aparentemente, ele esqueceu de me informar... ou não quis me contar.

        —  Considero muito estranho preparar um projeto sem ter a menor idéia do local em que será construído — comentou Foster.

        —  Não é tão estranho assim. Por um lado, eu sabia que estava projetando uma estrutura subterrânea, como todas as outras. Por outro, muitas vezes eu recebia ordens expressas de Hitler sobre as dimensões e cômodos que ele desejava, e todo o resto. Hitler era muito bom nisso. Lembre-se de que ele tinha experiência como pintor. Para o bunker sete, com toda certeza, ele especificou que queria uma estrutura enorme, informou em que tipo de solo estaríamos trabalhando. Eu diria que ele sabia desde o começo qual o lugar da Alemanha em que faria a construção. Se não disse a mim, então pode estar certo de que não revelou a mais ninguém. E a idéia morreu com ele em 1945.

        —  Quer dizer que não sabe se Hitler chegou a usar seu projeto e construiu este bunker?

        —  Não, não sei. É uma informação que só poderia ser do conhecimento dos trabalhadores-escravos utilizados na construção.

        —  Está querendo dizer que todos os bunkers subterrâneos que projetou foram construídos por trabaihadores-escravos? Por judeus, tchecos, ciganos, poloneses e ucranianos capturados?

        Zeidler hesitou por um instante.

        —  Talvez nem todos tenham sido construídos por trabalhadores-escravos. Sabemos com certeza que o Führerbunker foi feito por uma antiga companhia construtora de Berlim. Mas eu diria que a maioria dos outros quartéis-generais militares subterrâneos foi escavada e construída por trabalhadores-escravos, por causa da escassez de mão-de-obra alemã.

        —  E está sugerindo que um desses trabalhadores-escravos poderia se lembrar de ter escavado este bunker, se é que foi escavado, revelando então onde se pode encontrá-lo? Zeidler sacudiu a cabeça vigorosamente.

        —  Não, não, Sr. Foster, não posso sugerir isso como uma possibilidade séria. Simplesmente porque não restaram trabalhadores-escravos. Hitler mandava exterminá-los depois que concluíam uma obra. Não queria que algum deles sobrevivesse para revelar onde ficavam seus vários bunkers secretos. Quando terminavam uma construção, os trabalhadores-escravos eram recompensados com uma viagem a Dachau, Auschwitz ou alguma outra câmara de gás. Por isso, infelizmente, você terá de escrever na legenda em seu livro para a planta do sétimo bunker: "Desconhecido."

        —  A menos que eu consiga descobrir alguns trabalhadores-escravos que sobreviveram à guerra e possam reconhecer esta planta — murmurou Foster.

        —  Claro, claro. E pode começar a busca praticando condo achar uma agulha num palheiro.

       

        Quando Irwin Plamp parou o Mercedes na frente do sujo prédio de cinco andares, na Dahmannstrasse, onde Ernst Vogel tinha o seu apartamento e a pequena empresa de venda de livros por reembolso postal, Tovah Levine saltou antes de Emily.

        Ansiosa em obter a confirmação final de Vogel para a entrada de um segundo Hitler no Führerbunker dois dias antes do fim, Tovah avançou apressadamente para o prédio.

        Por quase duas horas Tovah esperara impacientemente na suíte de Emily pelo momento em que se encontrariam com Vogel. Durante esse período, Emily a informara dos antecedentes de Vogel. Depois, ela examinara as anotações de Emily, em que todas as testemunhas concordavam que Hitler não saíra nem voltara ao Führerbunker no que se supunha terem sido os últimos vinte dias de sua vida. Contudo, todos aqueles depoimentos eram contestados por um guarda que vira Hitler entrar no bunker apenas dois dias antes de sua anunciada morte. Por várias vezes, Tovah e Emily garantiram a si mesmas que houvera um sósia de Hitler no bunker, que fora ele quem cometera suicídio, enquanto o verdadeiro Hitler sobrevivera e escapara.

        Agora, com Emily logo atrás, Tovah entrou apressadamente no prédio, tentando encontrar o apartamento de Vogel. Emily apontou para a escada.

        —  Ele mora no andar de cima, primeira porta à esquerda do patamar. Chegaremos na hora exata.

        Tovah deixou que Emily fosse na frente. Chegando ao patamar, as duas viraram à esquerda no corredor e pararam diante da primeira porta marrom, um tanto lascada e precisando de uma camada de tinta. Havia um botão de campainha ao lado e Emily apertou-o, esperando que a porta fosse aberta. Tocou três ou quatro vezes, mas ninguém atendeu.

        —  Talvez a campainha esteja quebrada — sugeriu Tovah.

        —  É bem possível. Muito bem, vamos experimentar à maneira antiga.

        Emily começou a bater na porta e um momento depois Tovah imitou-a, as duas batendo cada vez com mais força.

        A única resposta veio da base da escada. Uma mulher gorda e idosa começou a subir os degraus.

        —  O que está acontecendo aqui? — indagou ela, ofegante, quando chegou ao patamar. — Estão fazendo a maior balbúrdia. Sou Frau Lecki, a senhoria. Quem são vocês?

        —  Somos clientes do Sr. Vogel — respondeu Emily calmamente. — Marcamos um encontro. Ele deveria nos mostrar um livro importante. — Ela acenou com a cabeça para a porta. — Mas ninguém atende.

        Frau Lecki sorriu.

        —  Ora, Vogel é assim mesmo. Na metade das vezes ele não atende porque não escuta direito. E quando tira o aparelho de audição não pode ouvir absolutamente nada. — A senhoria meteu a mão no bolso do avental, tirando um molho de chaves. — Se Vogel disse que as receberia a esta hora, então deve estar em casa. Tenho certeza de que só não atendeu porque não está usando o aparelho de audição. Vou falar com ele e dizer que vocês já chegaram.

        Enfiando uma chave mestra na fechadura, Frau Lecki abriu a porta e entrou. Correu os olhos pela sala, soltando um grunhido de triunfo.

        —  Exatamente como pensei. Lá está ele, na cadeira de balanço, com o aparelho de audição desligado. E parece estar dormindo. — Chamou Emily e Tovah. — Podem entrar, enquanto eu o acordo.

        No instante em que entrou na sala, Tovah farejou e torceu o nariz, sussurrando para Emily:

        —  Que cheiro horrível! O que pode ser?

        Mas Emily observava Ernst Vogel, recostado na cadeira de balanço, os olhos fechados. Tovah acompanhou seu olhar, contemplando o vulto magro e encarquilhado, arriado na cadeira de balanço, as faces encovadas quase brancas, os lábios arroxeados.

        —  Ele parece doente — murmurou Emily. Frau Lecki sacudia Vogel pelo ombro.

        —  Levante-se, Ernst. Tem clientes aqui.

        Os olhos de Vogel não abriram. Em vez disso, a cabeça caiu para a frente; e quando a senhoria retirou a mão, ele deslizou para o lado, contra o braço da cadeira de balanço.

        —  Ele me parece morto — disse Tovah baixinho.

        Emily adiantou-se prontamente, abaixou-se na frente de Vogel, apoiada num joelho. Pegou o braço inerte do alemão e procurou o pulso. Depois de um intervalo, ela sacudiu a cabeça e levantou-se, cambaleando um pouco.

        —  Uma coisa horrível! — Emily fechou os olhos e tornou a sacudir a cabeça. — Não resta a menor dúvida de que ele está morto. Isso é terrível!

        Forçando-se a abrir os olhos, ela fez um esforço para olhar outra vez o corpo arriado na cadeira de balanço.

        —  Acho que o cheiro que você sentiu, Tovah, é de cianureto de potássio.

        —  Mas ele estava bem há poucas horas! — protestou Tovah.

        —  Não está mais. O pobre coitado tomou veneno por sua própria iniciativa ou foi obrigado a ingeri-lo, O cianureto matou-o instantaneamente.

        A senhoria começava a compreender a situação e abruptamente levou a mão à boca para sufocar um soluço.

        —  Mas ele não pode estar morto! É impossível! Era um homem muito ativo. Nunca se mataria. Mas... mas... foi o que aconteceu...

        —  Talvez com alguma ajuda — murmurou Tovah.

        Mas só Emily a ouviu. Frau Lecki já estava pegando o telefone.

        —  É terrível! Terrível! Tenho de chamar a polícia! — Levantando o fone do gancho, ela descobriu que o fio pendia solto. —

        Mas... cortaram o fio do telefone! É melhor eu ligar do meu apartamento.

        Ela virou-se e saiu correndo pela porta. Evitando olhar para Vogel, Emily concentrou sua atenção numa caixa de papelão sobre um consolo, por trás da cadeira de balanço.

        —  Tem uma coisa escrita a creiom no lado daquela caixa — disse ela. — Registros do Bunker. Ele estava à nossa espera.

        Tovah adiantou-se depressa.

        —  O que nos interessa é o de 28 de abril de 1945, aquele em que Vogel anotou o retorno de Hitler ao Führerbunker.

        Tovah pôs-se a verificar rapidamente os livros de registro, observando as datas nas capas.

        —  Ande depressa, Tovah — exortou-a Emily. — Não podemos deixar que a polícia nos encontre aqui. — Uma pausa e ela acrescentou: — Acho que não vai encontrar, Tovah.

        Tovah virou-se meio minuto depois, o rosto franzido.

        —  Tem razão, Emily. É o único que está faltando. Emily pegou-a pelo braço.

        —  Alguém ouviu nossa conversa ao telefone com Vogel e soube o que ele tencionava nos mostrar...

        —  Mas como?

        Emily ficou em silêncio por um instante.

        —  Não sei. Talvez tenham grampeado o telefone. De qualquer forma, alguém chegou aqui na nossa frente e Vogel recebeu-o, na maior inocência. O visitante deve ter encostado um revólver na cabeça de Vogel, obrigando-o a tomar a cápsula de cianureto. Depois, pegou o livro de registros e foi embora.

        Tovah deixou que Emily a levasse para a porta.

        —  E agora temos de sair daqui também — reiterou Emily.

        — Não podemos ir embora. E a polícia? Afinal, ele foi assassinado.

        —  E meu pai também. Tenho certeza agora. Onde estava a polícia na ocasião? Vamos embora. Não há mais nada que possamos fazer aqui.

        —  Acho que você está certa, Emily. Não podemos nos envolver no caso. E ninguém sabe que estivemos aqui.

        Emily fitou-a nos olhos.

        —  Exceto o assassino, é claro.

        Elas passaram depressa pelo apartamento da senhoria e saíram para a rua. Alcançando o Mercedes à espera, Tovah perguntou:

        —  O que isso acarreta para o nosso caso? Vogel jurou que viu Hitler voltar de um passeio, apesar de Hitler nunca ter saído para esse passeio. Concordamos que ele viu um segundo Hitler, um sósia, Manfred Müller. Mas agora não temos Vogel nem o livro de registros.

        —  Não precisamos de Vogel e seu livro de registros. Há duas horas tínhamos Vogel e ele nos contou tudo o que queríamos saber. Estamos chegando perto, Tovah, muito perto da verdade. Por mais apavorada que eu esteja, preciso agora voltar à escavação. Onde quer que eu a deixe?

        —  No Kempinski, por favor.

        Quando pararam diante do hotel, Tovah abriu a porta de trás para saltar. Olhou para Emily mais uma vez e disse:

        —  Espero que tenha razão quando diz que estamos mais perto da verdade, Emily.

        —  Vamos descobri-la, desde que alguém não nos acerte primeiro — garantiu Emily. — Agora, depois de tudo o que aconteceu, acho bom você descansar um pouco. Até mais tarde.

        Parada no meio-fio, observando o Mercedes se afastar, Tovah refletiu que estaria ocupada demais para poder descansar. Estavam perto da verdade. Era o momento de Tovah comunicar tudo a seus superiores. Era o momento de entrar em contato com Chaim Gol-ding e os outros agentes israelenses no escritório de Berlim do Mos-sad. Alguém estava atrás deles, e a maior de todas as tramas ainda precisava ser descoberta e punida.

       

        Eles estavam na Zona de Fronteira de Berlim Oriental, além do muro, Plamp guiando o Mercedes com todo cuidado pelo caminho de terra, na direção do Führerbunker. Emily sentava muito tensa no banco traseiro, ainda segurando o cartão que lhe autorizava o acesso à área de segurança.

        Tentou distrair-se da ansiedade com a contagem dos postes de concreto que sustentavam a cerca de arame. Mas não foi capaz de se livrar do pensamento predominante em sua mente. Os resultados das escavações iniciais. Tinha uma semana para descobrir as provas de que Hitler morrera ou não conforme fora anunciado, e aquele era o final do segundo dia de escavação. A esta altura, ela tinha certeza, Andrew Oberstadt e seus três operários já teriam encontrado a cova rasa e a cratera de bomba ao lado. A primeira fase estaria concluída, e ela se perguntava o que teria revelado.

        Assomando à esquerda, Emily podia ver o monte de terra e entulho que cobria o antigo Führerbunker. Uma parte da pickup Toyota de Oberstadt era visível por trás do monte. Seus três homens não estavam à vista, mas Emily avistou-o um momento depois, contornando a frente do monte, com uma pá na mão. Ele parou, cravou a pá pontuda na terra e apoiou-se no cabo, observando-a se aproximar.

        Plamp saíra da estrada e avançava para o bunker aos solavancos, pelo campo irregular. Freou a uns cinco metros de Oberstadt, desligou o carro, saltou e deu a volta para ajudar Emily a descer.

        —  Obrigada — disse ela ao motorista.

        Emily tirou a capa, ajustou o cinto do macacão azul e encaminhou-se para Oberstadt.

        —  Desculpe o atraso, mas achei que não precisaria de mim até concluir a escavação dos dois locais.

        —  E não precisamos mesmo. Mas talvez sua presença seja bastante conveniente agora.

        —  Já terminou de escavar a cova rasa e a cratera de bomba? — indagou Emily, ansiosa.

        —  Cobrimos a área com plástico, a fim de terminarmos depois que a chuva passasse.

        —  E o que encontraram?

        —  Infelizmente, não tivemos sorte — confessou Oberstadt, com expressão infeliz. — Encontramos três relíquias insignificantes, mas nada do que você queria.

        —  Não encontraram o camafeu com o retrato de Frederico o Grande? Nem um pedaço de mandíbula com uma ponte dentária?

        —  Nenhuma das duas coisas — respondeu Oberstadt. — Se estavam lá em 1945, talvez os russos tenham apanhado. Ou talvez nunca estiveram onde escavamos. Quer ver o que descobrimos?

        —  Claro.

        Oberstadt deixou a pá cravada na terra e deu a volta para o outro lado do monte, com Emily em seu encalço, tentando manter o equilíbrio na relva molhada.

        Emily viu na outra extremidade a pickup parada, com os três operários sujos de terra tomando café de uma garrafa térmica. Eles acenaram para ela, que retribuiu.

        Oberstadt conduziu-a a uma pequena toalha amarela, estendida sobre uma pedra achatada, perto da vala profunda onde outrora havia uma cova rasa.

        —  Aqui está tudo o que encontramos nos dois lugares. — Oberstadt levantou da toalha o primeiro dos três objetos. — Um dente solto. Acho que pertencia a um cachorro.

        —  O que faz sentido — comentou Emily. — Os cachorros de Hitler foram mortos e depois enterrados nesta área.

        —  E depois isto — disse Oberstadt, mostrando uma massa molhada do que poderia ter sido um chumaço de papel.

        —  E o que é isso?

        —  Creio que era um caderninho de anotações, com algumas páginas escritas. Mas está totalmente apodrecido de anos de umidade.

        Emily acenou com a cabeça.

        —  Também se enquadra. As anotações e documentos de Goebbels foram jogados na cova e provavelmente queimados.

        —  Ninguém jamais saberá com certeza. — Oberstadt tornou a se inclinar para a toalha e pegou cautelosamente um pedaço de pano enegrecido. — E, finalmente, encontramos isto.

        —  Não parece com nada.

        —  Mas é alguma coisa... uma coisa com um monograma quase ilegível, mas que ainda consigo ler. E vejo duas iniciais. — Oberstadt apontou. — Está vendo? As iniciais são E.B.

        —  Eva Braun — murmurou Emily. A realidade do passado fez com que ela pestanejasse. — Deve ser um pedaço de lenço ou do que chamavam naquele tempo peças íntimas. Estamos no caminho certo.

        —  Isso não esclarece que Eva Braun foi cremada aqui, junto com Hitler?

        —  Não necessariamente. A peça com monograma pode ter sido posta em outra pessoa, que foi cremada. Mas se tivesse encontrado a ponte dentária ou o camafeu...

        —  Lamento muito, mas não encontramos.

        —  Não se deixe enganar, Andrew. A situação não é tão ruim assim. A ponte ou o camafeu poderiam provar que foi mesmo Hitler quem enterraram aqui, dificilmente um impostor. Mas como você não descobriu qualquer das duas coisas, não há prova positiva de que foi Hitler o homem cremado. Portanto, Andrew, até agora está tudo ótimo.

        Emily virou-se e contemplou o enorme monte de terra, relva e entulho.

        —  Há mais um lugar em que devemos procurar. — Ela hesitou. — A última sala e o último quarto que Hitler ocupou. Para saber se o camafeu ou a ponte foram deixados lá para serem usados num sósia, mas esquecidos na pressa do enterro. Se não encontrarmos nenhum dos dois, isso indicaria que Hitler escapou com ambos.

        Estudando a elevação, Oberstadt sacudiu a cabeça.

        —  Mesmo que isso possa provar alguma coisa, como chegaríamos lá embaixo?

        —  Escavando diretamente de cima para baixo.

        —  Impossível — respondeu Oberstadt. — Sabe quanto teríamos de escavar? Eu diria que há seis metros do topo da elevação até o nível do solo. E creio que você me disse que os aposentos de Hitler ficavam a dezessete metros da superfície, cobertos por mais de três metros de concreto. Isso significa que teríamos de escavar cerca de 23 metros, com incontáveis obstáculos, em cinco dias... quando o seu prazo se esgota. Mesmo que os russos tenham triturado o concreto, não se pode escavar facilmente com pá e picareta.

        —  Não poderíamos usar equipamento pesado?

        —  Pensei em trazer um trator para acelerar a escavação na área mais ampla em torno dos dois locais que nos interessavam. Esta manhã, quando chegamos, perguntei ao oficial alemão oriental se havia alguma possibilidade. E ele respondeu que era absolutamente verboten. Não vão nos dar permissão.

        Emily mordeu os lábios, os olhos fixos no monte irredutível.

        —  Tem de haver alguma maneira... — Ela estalou os dedos de repente. — Já sei. Poderia escavar pela frente... não de cima para baixo... mas pela frente, ao nível do solo, alcançando o andar superior do Führerbunker. Isso lhe pouparia seis metros de escavação.

        —  Mesmo assim... — Oberstadt franziu o rosto. — Se abríssemos um túnel para o andar superior, teríamos de escorar tudo, a fim de evitar que a terra por cima desmoronasse. E se não existir mais o andar superior... se os soviéticos fizeram tudo desabar com seus tratores? Haveria mais escavação. E mais tempo.

        —  Mas o nível inferior, onde Hitler vivia, pode estar intacto. Foi construído para resistir praticamente a tudo. Não há algum meio de chegar lá usando o atalho que sugeri?

        —  Não sei — murmurou Oberstadt, estudando o monte. — Talvez pudéssemos encontrar um jeito de chegar ao fundo se eu dobrasse o número de homens que trabalham durante o dia e recrutasse um segundo grupo para escavar à noite.

        —  O que posso fazer para tornar isso possível? — insistiu Emily.

        —  Primeiro, tem de me garantir a verba para aumentar a turma do dia e contratar outra turma para a noite.

        —  Está garantida.

        —  Segundo, precisa entrar em contato com o seu amigo de Berlim Oriental para que obtenha permissão para escavarmos não apenas de manhã e à tarde, mas também durante a noite.

        —  Providenciarei a permissão. Eu tencionava falar com ele de qualquer maneira, a fim de conseguir um passe para o Sr. Foster, que pode nos ser útil aqui. Não se preocupe. Obterei a autorização para se escavar 24 horas por dia.

        —  E, finalmente, deixe-me falar com meu homem em Berlim Ocidental.

        — Seu homem em Berlim Ocidental? Oberstadt sorriu.

        —  Meu pai, Leo Oberstadt, que fundou a firma. Ele está inválido agora, aposentado, mas é um perito em construção de bunker, e precisarei de seus conselhos.

        —  Um perito em bunkersl Como assim?

        —  Ele supervisionou a construção de pelo menos meia dúzia de bunkers nazistas. Meu pai Leo tinha uma pequena firma de construção em Berlim antes da guerra. Foi preso porque é meio judeu. Era tão corpulento quanto eu na juventude e por isso os nazistas recrutaram-no como trabalhador-escravo, juntamente com outros judeus. Descobriram então que Leo era engenheiro civil e construtor, promoveram-no a capataz, supervisor de outros trabalhadores-escravos. Ele e seus companheiros construíram a maioria dos bunkers subterrâneos, durante a guerra. Todos os trabalhadores-escravos foram enviados para Dachau, Belsen e Buchenwald, antes do final da guerra. Mas meu pai escapou e sobreviveu. Ninguém na Alemanha conhece tanto os bunkers quanto Leo Oberstadt. É por isso que quero conversar com ele esta noite, estudando a planta do Führer-bunker. Ele poderá me dizer qual a melhor maneira de chegar lá no fundo.

        —  E continuará então na escavação?

        —  Assim que você conseguir permissão para um segundo turno de trabalho. Cuide disso e darei um jeito de levá-la ao lar, doce lar de Adolf Hitler.

       

        Naquela noite, na cama, Emily e Foster tentaram fazer amor. Mas era evidente que nenhum dos dois estava com disposição e desistiram depois de alguns minutos. Foster estendeu-se ao lado de Emily, abraçando-a.

        Durante o jantar eles haviam comemorado as conversas telefônicas de Emily com o Professor Otto Blaubach, que finalmente lhe providenciara a autorização para escavar durante a noite. Também tencionavam comemorar mais uma vez o desejo mútuo, mas a paixão não os incendiara. Abraçando-a firmemente, Foster perguntou:

        —  Qual é o problema, Emily? O que a está perturbando?

        —  Ernst Vogel — murmurou ela, em voz quase inaudível. — Seu cadáver na cadeira de balanço. Não consigo tirá-lo da cabeça. E não consigo deixar de me sentir responsável.

        Foster acariciou-lhe o rosto.

        —  Não é responsável por nada. Lamento que tenha acontecido e que você tenha testemunhado. Talvez a melhor coisa a fazer agora seja dormir um pouco.

        Emily bocejou.

        —  Isso mesmo, vamos dormir. Uma grande idéia.

        Emily puxou as cobertas por cima dos dois, apagou o abajur na mesinha-de-cabeceira e recostou-se no travesseiro. No escuro, podia divisar o perfil de Foster. Aconchegou-se outra vez contra o corpo dele.

        —  Rex — murmurou ela, sonolenta — esta noite você também não está com desejo. Alguma coisa perturba você também.

        Igualmente sonolento, ele resumiu sua visita ao Major Elford, em Spandau. E falou da visita a Rudi Zeidler com a planta do bunker antes desaparecida.

        —  E depois disso cheguei a um beco sem saída. Zeidler garantiu que não há ninguém no mundo que possa identificar o sétimo bunker... à exceção talvez de um dos trabalhadores-escravos de Hitler, que possivelmente ajudaram a construí-lo. Mas parece que todos os trabalhadores-escravos foram exterminados antes de a Alemanha derrotada. Se algum sobreviveu, segundo Zeidler, localizá-lo seria a mesma coisa que encontrar uma agulha num palheiro.

        Emily, quase dormindo, teve dificuldade em falar. Sentia a boca grudar, mas deu um jeito de balbuciar:

        —  Está procurando por alguém que foi trabalhador-escravo de Hitler?

        —  Isso mesmo.

        —  Pois tenho um para você. Andrew Ober... o pai de Oberstadt. Um antigo trabalhador-escravo que ainda está vivo. Pergunte-me pela manhã. Pergunte-me por Leo Ober... pergunte qualquer coisa pela manhã. Boa noite, querido.

    

        Depois que entrou no distrito de Weinmester Höhe, em Berlim Ocidenttal, Rex Foster não teve mais qualquer dificuldade para encontrar o caminho. Consultando o mapa da cidade, aberto no assento de passageiros do Audi alugado, ele pôde seguir as orientações meticulosas do recepcionista do Kempinski. Umas poucas voltas e ele estava na rua residencial chamada Gotenweg, onde residia o Oberstadt mais velho.

        Foster encontrou a casa que procurava no meio do quarteirão e parou na frente. Era um bangalô pequeno, pintado de branco e de telhas vermelhas. Tinha uma cerca de madeira curtida pelo tempo, protegendo o modesto gramado, e dois pinheiros, projetando-se sobre a varanda do bangalô. Aquela era a residência de Leo Oberstadt, antigo trabalhador-escravo dos nazistas.

        O relógio no painel do Audi informou a Foster que chegara dez minutos mais cedo para o encontro. Recostou-se no assento, a fim de fumar o cachimbo e relembrar os acontecimentos da manhã.

        Fora despertado pelo movimento e maciez do corpo de Emily contra o seu. Sentindo os lábios de Emily em seu rosto e depois na boca, ele a ouvira sussurrar:

        —  Está acordado, Rex? Estou com saudade. Senti muito não tê-lo ontem à noite. Parece que a última vez foi há um milhão de anos.

        —  E foi há um milhão de anos.

        —  Amo você, Rex.

        Ele a abraçara, acariciara, sufocara-a de beijos, querendo devorá-la. Gradativamente, os suspiros de Emily transformaram-se num gemido gutural.

        Fizeram amor, ternamente, devagar, até que o fogo incendiara os dois, a paixão aumentando de intensidade, engolfarido-os, consumindo-os.

        Fora maravilhoso, como uma volta ao lar há muito desejada, e ele compreendera que era uma união que acalentaria e lembraria para sempre.

        Ao terminarem, ele não ficara surpreso ao descobrir que sua pele e a de Emily estavam molhadas com a transpiração do prazer. Ele a levara então da cama para o banheiro. Abrindo, o chuveiro, deixando a água esquentar, ele a pusera debaixo do jato d'água. Ensaboaram meticulosamente as costas um do outro, e depois de se enxaguarem, saíram para o capacho oval e se enxugaram mutuamente.

        Deixando-a se vestir, Foster voltara ao quarto para pedir o café da manhã. Comeram juntos. Estavam acabando quando o telefone começara a tocar. Emily atendera. Era Andrew Oberstadt. Ela comunicara que obtivera permissão para a escavação noturna. Depois, olhando para Foster, Emily perguntara pelo pai de Oberstadt e sua atuação como capataz de trabalhadores-escravos. Recebendo a confirmação, Emily falara do desejo de Rex de se encontrar com o Oberstadt mais velho. Andrew Oberstadt tornara a ligar quinze minutos depois, e Emily anunciara alegremente para Foster:

        —  Está acertado o seu encontro com Leo Oberstadt, Rex. Às dez e meia desta manhã.

        Agora, o relógio do painel avisava que eram dez e meia: estava na hora de encontrar Leo Oberstadt. Saindo do carro, Foster abriu o portão da cerca, subiu por um caminho estreito até a porta e apertou a campainha.

        Segundos depois, uma mulher gorda, num cafetã florido, rosto gentil, buço e queixo duplo preencheu toda a porta. Foster identificou-se e ela imediatamente mandou-o entrar. Ouviu uma voz rouca e impertinente gritar de um cômodo vizinho:

        —  Quem está aí, Hilda?

        —  O seu visitante americano, Herr Oberstadt.

        —  Mande-o entrar, mande-o entrar!

        Hilda conduziu Foster a uma sala de estar bolorenta e antiquada. Havia pequenas tapeçarias por toda parte e o aparelho de televisão estava ligado. Somente depois que viu o anfitrião sacudir uma bengala e ordenar a Hilda que desligasse a televisão e lhes servisse uma cerveja gelada foi que Foster pôde localizá-lo. Leo Oberstadt estava ajeitado num canto do sofá, com muletas de metal ao seu lado. Foster fora informado de que encontraria um inválido e imaginara alguém arrasado e murcho. Mas o velho Oberstadt era na verdade um homem enorme, outrora provavelmente musculoso, com as pernas imobilizadas.

        —  Você é o arquiteto americano Foster? — indagou Leo Oberstadt, a voz incisiva, como se fosse uma acusação.

        —  Sou eu mesmo, senhor. E agradeço muito por ter me recebido.

        Leo Oberstadt bateu com a bengala no outro lado do sofá.

        —  Sente-se, meu jovem, sente-se. — Enquanto Foster sentava, ele acrescentou: — É amigo da mulher inglesa para quem meu filho trabalha?

        —  Sou, sim.

        —  Tem conhecimento da tolice em que ela está empenhada? Quer escavar o Führerbunker e encontrar Adolf.

        —  Já sei de tudo e acho que talvez não seja tolice, senhor. O velho pegou um lenço, escarrou nele, e ignorou a resposta de

        Foster ao continuar:

        —  Ontem à noite meu filho me trouxe a planta original do Führerbunker. Estudei-a e dei os meus conselhos. — Os olhos sardônicos fixaram-se em Foster. — Conhece a toca de rato que era o último bunker?

        —  Acho que sim.

        —  Claro. É o arquiteto americano que está desperdiçando tempo fazendo um livro ilustrado sobre os prédios e bunkers do Terceiro Reich. Muito bem, vamos descobrir o que você sabe.

        Ele pegou uma planta enrolada ao seu lado, tirou o elástico e mostrou a Foster a planta do Führerbunker, acrescentando:

        —  Mostre-me o que faria para descer até a suíte de Hitler sem levar uma eternidade.

        Foster inclinou-se para examinar a planta, embora a esta altura achasse que já a conhecia de cor. Ele disse depois de alguns momentos:

        —  Primeiro, devemos lembrar que este bunker foi construído com concreto reforçado. Tinha de ser assim, para proteger os ocupantes das granadas da artilharia. Portanto, não importa o que os soviéticos tenham feito... metido os tratores, até mesmo explodido algumas partes... desconfio que o nível inferior do bunker ainda está em grande parte intacto. Com isso em mente, creio que o. caminho mais fácil e mais rápido para entrar seria começar a escavar pelo lado, onde ficava a saída de emergência superior. Deve levar a quatro lances de degraus de concreto que descem para um corredor. Calculo que os degraus ainda existem. Se for o caso, talvez não haja necessidade de mais que uns poucos dias de escavação e esco-ramento para se alcançar os aposentos de Hitler. — Foster levantou a mão. — Eu faria assim, senhor.

        Os olhos de Leo Oberstadt fixaram-se nos de Foster com um brilho de aprovação.

        —  É muito esperto, meu jovem. Exatamente o que aconselhei a meu filho ontem à noite, embora ele já tivesse a mesma idéia. É como ele realizará a escavação. Deve dar certo... se é que alguma coisa pode dar. — O velho pegou a planta do Führerbunker e enrolou-a. — Muito bem, meu jovem, agora podemos conversar. Meu filho me contou esta manhã que você queria conhecer um antigo trabalhador-escravo.

        —  Isso mesmo, senhor. Preciso de respostas para algumas perguntas.

        —  Talvez tenha vindo ao homem certo. Não restam muitos de nós. Somos um clube pequeno. Sou um dos poucos veteranos sobreviventes, um dos responsáveis pela construção da maioria dos buracos de rato de Hitler. Quer saber como me tornei um trabalhador-escravo no eficiente Terceiro Reich?

        Numa voz sem qualquer inflexão, meio rouca, Leo Oberstadt relatou sua história. Foster escutou, fascinado pela maneira como Oberstadt reconstituía o passado, fazendo com que parecesse vivo no presente.

        O pai de Leo Oberstadt era luterano e a mãe, judia. Ele estava na casa dos vinte anos, engenheiro civil e sócio da modesta empresa construtora da família quando a Segunda Guerra Mundial estourou. A conquista da Europa por Hitler já estava bem avançada quando a origem religiosa da mãe fora descoberta. A mãe, o pai e ele foram presos e enviados para um campo de concentração. Um mês depois os pais foram despachados para as câmaras de gás em Auschwitz.

        —  Nunca mais tornei a vê-los. Também fui marcado para extermínio em Auschwitz e já havia a ordem para me enviar à câmara da morte quando um oficial nazista... um médico da SS... notou meus ombros e peito poderosos, os músculos dos braços, e me tirou da fila. Acabara de chegar uma ordem de Albert Speer. Hitler queria que os jovens robustos dos KZ Haftlonge — os prisioneiros dos campos de concentração, judeus, poloneses, tchecos, ucranianos, ciganos — servissem como trabalhadores-escravos na construção de uma série de bunkers subterrâneos por toda a Alemanha.

        Leo Oberstadt trabalhou em dois bunkers subterrâneos fora de Berlim — um trabalho extenuante, inumano, com centenas de outros prisioneiros — quando se descobriu que era engenheiro civil, com experiência na empresa do pai. Fora promovido a capataz de construção, obrigado a receber ordens de guardas nazistas e transmiti-las aos colegas prisioneiros.

        Quando o último trabalho estava quase pronto, talvez dois meses antes de a guerra terminar, todos os trabalhadores-escravos companheiros de Leo Oberstadt foram levados para serem liquidados. Leo, como capataz, foi o único que deixaram vivo, naqueles meses finais, para supervisionar a construção dos cômodos e as instalações técnicas naquele último bunker. O trabalho fora realizado por jovens e fanáticos membros da Juventude Hitlerista. Em nenhum momento, antes do início da construção ou durante os dois meses em que ficara preso no bunker parcialmente construído, Leo tivera a menor idéia do ponto da Alemanha em que estava localizado. Fora levado inicialmente para o trabalho com os olhos vendados e à noite também deixava o bunker vendado, até os últimos dois meses.

        E chegara a manhã em que fora vendado mais uma vez e jogado na traseira de um caminhão militar por guardas da SS. Podia ouvir os disparos de canhões ao redor. Estava sendo conduzido para algum lugar e pressentira que seria executado, mas tinha os olhos cobertos e os pulsos amarrados, encontrava-se totalmente impotente.

        Depois de uma volta vagarosa — ele calculara que o percurso levara pelo menos vinte minutos — Leo ouvira um dos guardas gritar:

        —  Vamos nos livrar dele aqui! Temos de acabar logo com isso antes de sermos emboscados!

        Leo fora rudemente levantado e empurrado, sendo jogado do caminhão para o pavimento lá embaixo. Ao cair na rua, momentaneamente atordoado, a venda se deslocara. Vira o caminhão alemão começando a se afastar, enquanto os três guardas da SS na traseira apontavam seus rifles para ele.

        Freneticamente, Leo se virará, tentando evitar a execução. Mas os tiros foram disparados e uma bala acertara na parte inferior das costas. Ele comprimira contra o chão, estava prestes a perder os sentidos, quando divisara à sua frente uma companhia soviética de soldados do Exército Vermelho e três tanques surgirem de uma área antes ocupada por árvores — e naquela ocasião apenas com tocos, cheia de entulho — disparando contra o caminhão alemão em fuga. Tivera a impressão de ouvir o caminhão explodir e depois mergulhara na escuridão.

        —  Acordei num hospital de campanha russo — recordou Leo Oberstadt, com evidente angústia. — A cirurgia salvou-me a vida, embora eu perdesse quase totalmente o uso da perna esquerda. Acabaram me soltando, quando descobriram quem eu fora. Reconstituí a antiga companhia construtora de meu pai. Casei. Tive um filho. Trabalhei duro. A empresa prosperou durante a reconstrução de Berlim. Há cerca de cinco anos perdi o uso da outra perna e tive de me aposentar.

        Ficou em silêncio, pegou a caneca de cerveja que fora servida. Bebeu, lambeu os lábios e depois acrescentou:

        —  E agora, Sr. Foster, em que posso ajudá-lo?

        —  Vou explicar.

        Foster tornou a falar de seu livro sobre arquitetura, das sete plantas desaparecidas, todas de bunkers subterrâneos, no território da Alemanha Ocidental. Contou que descobrira seis por intermédio de Zeidler, cada uma com a indicação dos locais, e como recuperara a planta do sétimo bunker na prisão de Spandau.

        —  Já localizei seis bunkers. Preciso descobrir agora o sétimo, o único que Zeidler não construiu para Hitler, o que não tem qualquer indicação do local. É de longe o maior dos bunkers, e Zeidler achou que algum operário que nele tivesse trabalhado poderia reconhecê-lo por suas dimensões.

        —  Deixe-me dar uma olhada — disse o velho Oberstadt. Foster tirou do bolso do paletó a planta dobrada do sétimo bunker, abnu-a e estendeu-a através do sofá para Oberstadt. O anfitrião tomou um gole da cerveja e examinou a planta.

        —  Tem razão — murmurou ele — é bem grande. E... muito familiar.

        —  Pode reconhecê-lo? — indagou Foster ansiosamente. O velho Oberstadt balançou a cabeça afirmativamente.

        —  O que temos aqui é o último bunker em que trabalhei, antes me levarem para ser fuzilado. — Ele devolveu a planta. Tenho certeza de que é mesmo este.

        —  Mas onde foi construído?

        Leo Oberstadt fitou Foster com alguma surpresa.

        —  Onde foi construído? — repetiu ele. — Ora, eu já lhe disse. Em Berlim, é claro.

        —  Como pode ter certeza? Passava a maior parte do tempo debaixo da terra e estava vendado ao chegar e sair.

        O velho sacudiu a cabeça devagar.

        —  Não, não todo o tempo... e nem sempre vendado. Contei que me tiraram do bunker com os olhos tapados para me fuzilarem. Levaram-me por uma distância que parecia ter sido percorrida em vinte minutos... mas podia ser apenas dez minutos, já que eles tinham de circular entre os escombros... antes de compreenderem que estavam prestes a ser atacados pelos russos que saíam da área de bosque devastada. Foi então que me largaram, tentaram fugir e não conseguiram.

        Foster concentrou-se na última informação.

        —  Os russos saindo da área de bosque? Que bosque?

        —  O Tiergarten, é claro. Hoje, mais uma vez, é um dos lugares mais lindos que temos em Berlim. A pouca distância a pé do que foi outrora a Chancelaria de Hitler... e o Führerbunker. Tenho certeza de que em algum lugar ali por perto foi construído esse sétimo bunker.

       

        Nicholas Kirvov ficou surpreso ao se descobrir tão cansado, embora ainda fosse de manhã. Estava sentado a uma mesa no terraço de uma coisa chamada Taverna Delphi, tomando uma xícara de chá preto. Olhava através do terraço para a Kantstrasse, pensando que era um nome exagerado para uma rua tão sórdida e de segunda classe. Do posto da Esso na esquina à Sex Shop sem vitrines, mas com cartazes provocantes ao lado, só havia lojas ordinárias e indefinidas. Ele não podia imaginar que tipo de galeria de arte estaria localizada naquele quarteirão, mas sua lista garantia que ali havia uma, a Galeria Tisher, provavelmente a não mais de meio quarteirão de distância — e ele jurara que não deixaria de procurar nenhuma galeria no centro de Berlim.

        O que o fizera parar ali, para aquele breve descanso, não fora p cansaço, mas sim o desânimo. Apesar do corpo pesado, sempre se orgulhara das pernas fortes e da capacidade de subir depressa escadas íngremes e intermináveis.

        Em casa, sempre fora impulsionado pelo entusiasmo. Mas ali, em Berlim, sentia cãibras nas pernas e dor nos pés por causa da frustração. Passara horas andando no dia anterior e assim continuava desde o início daquela manhã, tentando visitar todas as .galerias de arte na área da Kurfürstendamm. Afinal, o tal comissário de bordo, Giorgio Ricci, embora não se lembrasse do resto, insistira que comprara o quadro de Hitler não muito longe da Ku'damm. Assim, o objetivo de Kirvov tinha de estar em algum lugar daquela área. Contudo, cada uma das galerias que já visitara até agora rejeitara o quadro de Hitler como obra sem interesse, que não reconheciam e nem haviam negociado.

        Kirvov percebeu que o sol finalmente espiava por entre as nuvens cinzentas e automaticamente mudou a cadeira de posição, sob a sombra parcial de uma árvore, a fim de pegar um pouco de calor. Por um momento, perguntou-se se não deveria abandonar a busca cansativa e voltar a Leningrado, indo depois se encontrar com a mulher e o filho, em férias em Sochi. Afinal, disse a si mesmo, já conseguira identificar o tema do quadro de Hitler. Não restava mais qualquer dúvida de que era mesmo o Ministério do Ar de Gõring. Uma identificação suficiente para satisfazer qualquer espectador de sua exposição das obras de Hitler. Apesar disso, tinha de continuar e sabia que o faria, por outro motivo. Presumia-se que Hitler morrera em 1945. Só que o quadro do Ministério do Ar de Gõring fora pintado em 1952 ou depois. Sob alguns aspectos, Kirvov possuía uma mente literal. Não admitia discrepâncias artísticas. Até que aquele anacronismo fosse esclarecido, Kirvov sabia que não deixaria Berlim.

        O sol esquentara-o, animando-o um pouco. Tomou depressa o resto do chá, pagou e saiu para a Kantstrasse.                      

        Cinco minutos depois Kirvov viu a placa ao lado da loja grande e moderna, no andar térreo do prédio de escritório de seis andares:

       

        GALERIE TISHER BERLIN

        ANKAUF-VERKAUF

       

        Kirvov aproximou-se da vitrine. Havia ali três quadros grandes, naturalistas, de paisagens de Berlim.

        Era promissor, pensou Kirvov. Voltou atrás alguns passos e entrou na loja. O carpete bege e as paredes revestidas com madeira amarelada proporcionavam ao lugar uma leveza que só era um pouco contrabalançada pela escuridão sombria da maioria dos quadros expostos. Havia uma pequena escrivaninha e um jovem de óculos trabalhando ali. Uma escada curva levava a um pequeno mezanino, onde também estavam expostos à venda quadros emoldurados.

        Kirvov passou sob um lustre de cristal, aproximando-se do jovem que escrevia à mesa. Percebendo que um cliente estava ali, o jovem levantou-se apressadamente, afastando dos óculos os cabelos cor de palha.

        —  Sr. Tisher? — indagou Kirvov.

        —  Isso mesmo, sou Tisher. Se puder servi-lo em alguma coisa... — Seus olhos foram atraídos para o quadro envolto em feltro que Kirvov carregava sob o braço. — Por acaso tem alguma coisa para vender? Estamos sempre...

        —  Alguma coisa a perguntar. — Kirvov pôs o embrulho em cima da mesa, tirou o quadro e levantou-o. — Espero que possa reconhecer esta tela.

        Tisher pegou o quadro e examinou-o atentamente, torcendo o nariz.

        —  Presumo que se trata de uma cena de Berlim. Provavelmente do período do Terceiro Reich. Não é um quadro dos melhores. — Olhou para Kirvov. — Recebemos alguns quadros assim de vez em quando... e tratamos de nos livrar deles o mais depressa possível.

        —  Eu esperava que este fosse um dos quadros de que se livrou. Uma galeria nesta área, talvez a sua, vendeu-o a uma pessoa que conheço. E eu o adquiri. Gostaria de saber mais sobre a proveniên-cia do quadro. E gostaria de saber se foi a sua galeria que o vendeu:

        —  Não reconheço este quadro. Mas também não sou a pessoa mais indicada para esta consulta. Nossa gerente, que também se encarrega das aquisições de menor importância, certamente poderá lhe dizer mais alguma coisa a respeito. — Tisher largou o quadro, levou a mão em concha à boca e gritou para o mezanino: — Fràulein Dagmar! Pode descer por um momento?

        Nervoso, Kirvov esperou, observando a escada. Um instante depois um par de pernas apareceu, seguido por um corpo esguio de mulher, de aparência formidável, possivelmente na casa dos trinta anos, feições austeras, óculos de aros de chifre, cabelos pretos cortados bem curto. Tisher virou-se para ela.

        —  Este cavalheiro deseja saber uma coisa. Talvez possa ajudá-lo. — Ele olhou além de Kirvov para dois fregueses, um casal jovem, que acabavam de entrar. — Com licença, por favor.

        Tisher afastou-se, enquanto Fràulein Dagmar perguntava a Kirvov:

        —  O que deseja saber?

        —  Estou aqui por causa deste quadro — respondeu Kirvov, levantando a tela e entregando-a à mulher. — Reconhece esta obra?

        Ela lançou um olhar rápido para o quadro e depois tornou a fitar Kirvov.

        —  Claro. Fiquei com esta peça na galeria por quase um ano, antes de vendê-la. É uma dessas obras nazistas que uns poucos colecionadores nostálgicos apreciam, muito parecida com o estilo de Hi-tler, embora eu não possa autenticá-la. Para mim, trata-se de uma obra medíocre, que guardei à espera de algum colecionador. Como nenhum aparecesse, tive o capricho de expor o quadro. Duas ou três semanas depois apareceu um comprador, um estrangeiro... um italiano, se bem me lembro. Não era um grande conhecedor de arte, mas sentiu-se atraído pela possibilidade de o quadro ter sido pintado pelo próprio Hitler. E comprou-o

        Kirvov experimentou uma sensação de intensa excitação.

        —  Sei quem o comprou — disse ele. — O que estou querendo saber é quem o vendeu... isto é, quem o vendeu à galeria. Deve ter um recibo da compra.

        Fràulein Dagmar empertigou-se.

        —  Tenho sim. Mas não posso revelar essa informação a ninguém. Nossas transações com clientes que vendem suas obras de arte devem permanecer confidenciais. Lamento muito, mas não posso dizer isso a qualquer pessoa que aparece aqui.

        Em desespero, Kirvov tirou a carteira do bolso. Pegou um cartão seu e entregou-o à mulher.

        —  Não sou qualquer pessoa que aparece por aqui, Frãulein, como vai verificar.

        Ela olhou para o cartão de visitas com desinteresse, depois levantou a cabeça bruscamente, os olhos se arregalando por trás das lentes grossas.

        —  É... é o Sr. Kirvov, curador do Museu Hermitage, em Leningrado?

        —  Exatamente.

        Frãulein Dagmar tornou-se respeitosa no mesmo instante, até mesmo intimidada.

        —  Peço desculpas. É uma grande honra. Em que posso ajudá-lo?

        —  Basta que me diga como obteve o quadro, quem o vendeu. Temos no Hermitage uma grande coleção de quadros e desenhos de Hitler. São curiosidades históricas. Ao adquirir esta tela, resolvi mostrá-la como parte de uma exposição que terá um enorme público. E, como curador, sinto-me na obrigação de determinar a prove-niência desta obra. Espero que possa me ajudar.

        —  Pode estar certo que tentarei! — garantiu Frãulein Dagmar, com o maior entusiasmo. — Merece toda a nossa cooperação. Vou procurar a cópia da nota de compra.

        Afastou-se apressadamente, levada pelas pernas compridas, e desapareceu por trás da porta do escritório. Sorrindo pela primeira vez naquele dia, Kirvov tornou a pôr o seu tesouro na capa de feltro, devagar, com muito amor. Mal terminara quando viu Frãulein Dagmar voltar, com um pedaço de papel na mão.

        —  O quadro nos foi vendido por uma alemã, calculo que com trinta e poucos anos. Sra. Klara Fiebig. Lembro que ela comentou que ganhara o quadro de uma amiga ou parente. Não gostou, mas guardou-o por uma questão de sentimento. O marido também não gostava, porque era uma obra nazista. E ele acabou exigindo que a mulher se livrasse do quadro. Ela nos procurou. Achei que não havia muito mercado para um óleo assim, mas examinei-o e concluí que podia ser um Hitler, ou era uma excelente imitação de um Hitler. Por isso, resolvi comprar, como uma peça de interesse menor, mas insólita.

        Entregou o papel a Kirvov, acrescentando:

        —  Este é o endereço que a Sra. Fiebig me deu, na Knesebecks-trasse. Fica perto da Ku'damm, uma área de prédios de apartamentos. Fica a cinco minutos de táxi daqui. Mas também dá para se ir a pé.

        —  Muito obrigado.

        —  Comprei-o por uma ninharia. — Uma pausa, e Fràulein Dagmar acrescentou, pesarosa: — Gostaria de tê-lo vendido por mais. Não sabia que era tão valioso.

        —  E não é, como obra de arte. Apenas como história. Kirvov deixou rapidamente a galeria, as pernas outra vez ágeis e fortes.

       

        Esperando com paciência diante da porta do apartamento dos Fiebigs, no terceiro andar, depois de tocar a campainha, Kirvov constatou que sua tensão aumentava. Mantinha o quadro coberto mais possessivamente sob o braço, e continuava a debater consigo mesmo que desculpa poderia usar para que o convidassem a entrar e conversar.

        Foi só depois que ouviu passos no outro lado da porta que uma idéia lhe ocorreu.

        A porta estava se abrindo, e Kirvov empertigou-se.

        Ali estava uma mulher ainda jovem, alta, morena, olhos escuros, nariz arrebitado, usando uma bata rosa. Como ela era esbelta, não apresentando qualquer sinal de gravidez, Kirvov calculou que a bata era uma celebração prematura. Aparentava uns trinta anos. Olhava para Kirvov com curiosidade.

        —  Sra. Klara Fiebig?

        —  Sou eu — confirmou com cautela.

        —  Meu nome é Nicholas Kirvov. Deram-me o seu nome. Gostaria de trocar algumas palavras.

        —  Sobre o quê?

        —  Sobre uma obra de arte.

        Klara assumiu uma expressão aturdida.

        —  Arte? Não sei nada sobre arte. Não estou entendendo.

        Kirvov teve certeza de que estava no caminho certo. Não devia dar tempo à mulher para pensar.

        —  Vou explicar. — Tirou a carteira do bolso interno do paletó. Pegou um dos seus cartões de visita, estendeu-o para a mulher e guardou a carteira. E se apressou em acrescentar: — Sou o diretor de um museu de arte em Leningrado, o Hermitage. É muito conhecido...

        —  Já ouvi falar — disse ela, ainda concentrada no cartão.

        —  Vim a Berlim para entrevistar alguns colecionadores sobre arte alemã.

        —  Mas não sou colecionadora.

        —  Sei disso. Quero apenas a sua opinião, as suas idéias, sobre uma coisa a respeito da qual escreverei e que penso em expor. Pode me conceder uma entrevista, por favor? Não tomarei muito do seu tempo.

        Ele deu um passo decisivo, o pé cruzando o limiar, como se esperasse ser convidado a entrar. Klara Fiebig parecia confusa.

        —  Não sei... não estou...

        —  Obrigado por sua gentileza. — Kirvov passou para o pequeno vestíbulo. — Não vou demorar um minuto.

        —  Está bem. Mas tenho certeza de que está desperdiçando o seu tempo. — As boas maneiras de Klara prevaleceram. — Pode sentar. Mas não demore, por favor, pois estou muito ocupada hoje.

        —  Um minuto, não mais do que isso.

        Kirvov já estava na sala de estar, observando automaticamente as gravuras de bom gosto na parede. Olhou para a cadeira de rodas no canto e depois sentou numa das poltronas que flanqueavam a mesinha baixa.

        Começou a desembrulhar o quadro de Hitler, enquanto Klara Fiebig sentava no sofá. Kirvov podia perceber que ela o observava com expressão cautelosa. Ele tirou o quadro e suspendeu-o.

        —  Fui informado de que outrora possuiu este quadro. Soube que o vendeu à Galeria Tisher.

        Ela olhou a tela rapidamente, não deixando transparecer qualquer reação de conhecimento.

        —  O que há de tão importante nesse quadro que precisa saber?

        —  É uma raridade do Terceiro Reich e por isso de interesse para mim, como curador de museu e colecionador de arte alemã. Quero autenticá-la. — Kirvov fitou a mulher nos olhos. — Preciso saber onde o conseguiu.

        Klara estreitou os olhos, estudando a tela atentamente. Sacudiu a cabeça.

        —  Nunca vi esse quadro antes. Tive há muito tempo um quadro velho de uma rua de Berlim que meu marido considerava horrível. Resolvi então vendê-lo... mas não me lembro quando.

        Kirvov tentou avaliar a sinceridade de Klara Fiebig. Sua expressão não apresentava qualquer sinal de conhecimento. Kirvov conteve o seu desapontamento.

        —  Sra. Fiebig, a mulher da Galeria Tisher, Frãulein Dagmar, lembrava-se do quadro e me garantiu que o comprou de suas mãos. Foi ela quem me deu seu nome e endereço. Isso não aviva a sua memória?

        Mas Klara se manteve obstinada na negação.

        —  A mulher do Tisher está redondamente enganada. Nunca vi esse quadro antes.

        Kirvov procurou uma falha no controle de Klara Fiebig, mas não havia nenhuma. Desconfiava que ela já vira o quadro antes, até mesmo o possuíra, mas não havia como provar. Devagar, começou a embrulhar o quadro mais uma vez, murmurando:

        —  Está bem. Deve ter sido um engano.

        —  Claro que foi — declarou Klara, levantando-se. — Lamento que tenha perdido seu tempo.

        Kirvov já estava de pé e ela acompanhou-o até a porta.

        —  Agradeço a sua ajuda — disse ele. — E uma pena que eu não tenha podido descobrir alguma coisa sobre a tela. Seria muito útil.

        Enquanto abria a porta, Klara não pôde resistir a uma última pergunta:

        —  O que há de tão interessante nesse quadro?

        Saindo para o corredor, Kirvov respondeu, em tom de indiferença:

        —  Apenas que Adolf Hitler pintou-o em 1952 ou depois.

        —  Mas que absurdo! — disse Klara, bruscamente. — Todo mundo sabe que Hitler morreu em 1945.

        —  Exatamente. É o que torna o quadro tão interessante. Bom dia.

        Klara permaneceu abalada pelo resto da tarde, aguardando a chegada de sua tia, Evelyn Hoffmann.

        No momento em que observou o estranho ameaçador, o curador russo, deixar o prédio, ela correu para o quarto e despertou a mãe, que estava cochilando. Depois que a mãe estava plenamente desperta e sentada, Klara disse:

        —  Detesto incomodá-la assim, mamãe, mas não há outro jeito. Tem uma coisa que preciso lhe contar.

        —  O que é, Klara? Você parece assustada.

        —  E estou assustada, mamãe. Lembra-se daquele quadro do prédio do governo que Tia Evelyn deu a Franz e a mim em nosso primeiro aniversário de casamento? O que Franz tanto detestava que tive de me livrar dele?

        —  Claro que lembro.

        —  Pois acaba de sair daqui um homem que é entendido em arte e disse que o quadro foi pintado por Adolf Hitler.

        —  Mas que absurdo!

        —  Foi o que eu disse a ele. E o que é ainda mais absurdo, ele insistiu que Hitler pintou o quadro sete anos depois da guerra...

        —  Quem era esse doido?

        —  Vou contar...

        Rapidamente, Klara relatou toda a visita de Nicholas Kirvov. Depois de terminar, ela acrescentou, desolada:

        —  Não sei o que está acontecendo, mamãe, mas o tal de Kirvov vai escrever a respeito. E Tia Evelyn vai descobrir que vendi seu presente. É melhor eu falar com ela e explicar tudo, antes que tome conhecimento por outras pessoas. Ligarei para ela agora.

        —  Você sabe que Tia Evelyn não tem telefone, Klara. Mas sei como entrar em contato com ela. Deixe tudo comigo.

        —  Quero falar com ela hoje mesmo.

        —  Se for possível. Agora, ajude-me a sair da cama. E depois me deixe sozinha aqui. Cuidarei de tudo.

        Isso acontecera duas horas antes.

        Klara sabia pela mãe que Tia Evelyn fora informada e chegaria em breve. Esperava na sala, ansiosa em falar com a tia, mas temendo a confissão que teria de fazer da venda do quadro.

        Mais dez minutos passaram, o nervosismo de Klara aumentando, depois a campainha soou e lá estava Tia Evelyn, atraente e serena. As duas sentaram, frente a frente.

        —  Desculpe trazê-la até aqui tão de repente, tia.

        —  Não é problema. Minha única preocupação é que possa haver alguma coisa errada com você. Está passando bem? Não houve nada com a sua gravidez?

        —  Estou bem, tia. Mas há um problema e achei melhor lhe contar a respeito o mais depressa possível. Eu... eu tenho uma confissão a fazer e espero que não fique zangada.

        —  Klara, querida, nada que você diga poderá me deixar zangada. Eu a amo muito. E agora me diga o que tem a confessar.

        Klara engoliu em seco.

        —  É sobre o quadro, tia.

        —  Quadro?

        —  O que deu a mim e a Franz no primeiro aniversário de casamento. O do prédio do governo em Berlim, que era da coleção de arte alemã de seu marido. Está lembrada?

        Evelyn acenou com a cabeça.

        —  Estou, sim.

        —  Bom... — Klara tornou a engolir em seco e depois acrescentou, falando bem depressa: — Tia, vendi o quadro há um ano... vendi a uma galeria.

        Evelyn ficou aturdida.

        —  Vendeu?

        —  Tive de vender. Vou ser franca, tia. Franz jamais gostou do quadro, mas conservei-o porque era um generoso presente seu. Uma noite, talvez há um ano, Franz reuniu aqui alguns amigos, colegas professores, para um jogo de cartas. Mostrou o quadro a um deles, o professor de arte da escola. Esse amigo perguntou a Franz por que tinha um quadro tão horrível. Franz quis saber por que era tão horrível. O amigo explicou que o quadro era obviamente de um dos prédios oficiais nazistas, pintado por um artista nazista no estilo preferido por Hitler, talvez mesmo pintado pelo próprio Hitler. O amigo de Franz foi positivo: era mesmo uma obra de arte nazista.

        Klara engoliu em seco mais uma vez, antes de continuar:

        —  Sabe como Franz se sente em relação aos nazistas. Depois que os amigos saíram, ele me pediu que desse um jeito de me livrar do quadro. Respondi que não podia fazer isso, que era um presente seu. "Mesmo assim, tire-o daqui", insistiu Franz. "Sua Tia Evelyn jamais saberá." Mesmo não querendo, eu... eu fui a uma galeria de arte aqui perto, vendi o quadro e simplesmente esqueci. Fez outra pausa, exibindo uma expressão de culpa.

        —  Espero que me perdoe, tia Evelyn. Evelyn Hoffmann permaneceu controlada.

        —  É sobre isso que queria me falar, Klara? Compreendo perfeitamente. Afinal, seu primeiro dever é com seu marido. Lamento que ele não gostasse do quadro e você tivesse de vendê-lo, mas se isso é tudo...

        —  Não, tia, não é tudo. Aconteceu mais uma coisa.

        O rosto de Evelyn Hoffmann deixou, pela primeira vez, transparecer traços de preocupação.

        —  Mais uma coisa?

        —  No início desta tarde — Klara apressou-se em acrescentar. — Um homem esteve aqui, curador de um museu de Leningrado. Disse que se chamava Nicholas Kirvov e estava com o quadro... o mesmo quadro que nos deu. Ao que parece, ele viu o quadro na Galeria Tisher e comprou-o. Quer apresentá-lo numa exposição de arte alemã que está montando no Hermitage, em Leningrado. Queria saber mais sobre o quadro, não sei se para o catálogo da exposição ou talvez para um livro de arte.

        —  O que você disse? — perguntou Evelyn, falando bem devagar.

        —  Nada. Declarei que nunca possuíra o quadro nem o vira. Não queria me envolver.

        Evelyn balançou a cabeça em aprovação.

        —  Comportou-se da maneira correta, Klara. E não precisa se preocupar mais. Se tudo o que a atormentava era a possibilidade de eu saber que vendeu o quadro e ficar zangada... ora, não pense mais nisso...

        —  Tem mais uma coisa, tia. Uma coisa realmente estranha e assustadora.

        —  O que é?

        —  Quando o Sr. Kirvov ia saindo, perguntei o que havia de tão interessante no quadro. Ele respondeu que era de Adolf Hitler e fora pintado em 1952. Declarei que isso era um absurdo, que Hitler não podia ter pintado o quadro, porque morreu em 1945. O Sr. Kirvov disse então que era justamente isso. que tornava o quadro tão interessante.

        Evelyn Hoffmann empertigou-se.

        —  É mesmo um absurdo total. O Sr. Kirvov deve ser um lunático.

        —  Foi o que pensei, tia. O quadro não poderia ter sido pintado por Hitler, não é mesmo? Afinal, onde você poderia conseguir um quadro de Hitler?

        —  Não é de Hitler — declarou Evelyn Hoffmann firmemente. — Isso seria impossível. Meu marido, seu tio, jamais permitiria qualquer obra de um nazista em sua coleção. Seu tio era um social-democrata antiquado. O homem que esteve aqui só disse bobagem. Não posso imaginar por quê. Mas sabemos que esta cidade se acha repleta de malucos e provocadores. É melhor esquecer tudo, Klara. Quanto à venda do quadro, compreendo perfeitamente e não deve mais se preocupar com isso.

        Ela se levantou, inclinou-se para dar um beijo em Klara e depois acrescentou:

        —  Sempre amarei você, minha querida. E agora tenho de me apressar para um encontro.

        Evelyn encontrou Wolfgang Schmidt na mesa isolada no restaurante, tão concentrado em seu almoço que a princípio nem a viu. Notou que ele estava ocupado em cortar e engolir um Leberwurst grelhado e mastigar um pedaço de Pumpernikel, acompanhado com um gole de cerveja.

        Ela sorriu do seu apetite e já ia sentar quando Schmidt se apercebeu de sua presença, levantando-se pesadamente, ainda mastigando, e fez o movimento de beijar-lhe a mão.

        —  É um prazer vê-la de novo, Evelyn — disse ele quando se sentaram. E gesticulando para seu prato, acrescentou: — Perdoe-me por não esperar. Eu estava muito ocupado para comer antes e meu estômago já estava roncando.

        —  E eu estou atrasada.

        —  Quer me acompanhar? A salsicha está excelente.

        —  Hoje não, Wolfgang. Não tenho a menor disposição para comer. Mas acho que tomarei um copo de vinho branco...

        Uma garçonete se aproximou e ela pediu:

        —  Um copo de Kallstadter Sammagen, por favor. — Virando-se de novo para Schmidt, murmurou: — Eu estava ansiosa para que pudesse falar comigo hoje.

        —  Seu recado era suficiente, Evelyn. Leisl disse que era urgente. É mesmo?

        —  Infelizmente sim. A princípio eu não tinha idéia da importância, mas um recado de Klara é tão excepcional que não demorei a procurá-la. — Evelyn balançou a cabeça gravemente. — É de fato importante, Wolfgang.

        Ele limpou a boca com o guardanapo.

        —  Vai me contar agora o que aconteceu?

        —  O problema envolve o quadro que dei a Klara. Schmidt ficou confuso.

        —  Quadro?

        —  Foi há tanto tempo que é natural que você tenha esquecido. Há muitos anos, quando o Feldherr se sentia entediado e irrequieto, tive uma idéia para mantê-lo ocupado. Peguei uma fotografia recente do Reichsluftfahrtministerium... o velho prédio de Gõring... e entreguei ao Feldherr, para que ele se distraísse com a pintura de um pequeno quadro.

        —  Estou lembrando agora. E depois você deu o quadro a Klara como presente de aniversário de casamento.

        Evelyn esperou que o vinho fosse servido e por um momento ficou olhando para o copo, com expressão sombria.

        —  Esse presente foi um erro. Eu não devia ter feito isso.

        —  Por que não?

        —  Porque Klara vendeu o quadro. É claro que ela não tinha a menor idéia de seu valor. O marido não gostava dele, e por isso ela o vendeu a uma galeria. Um russo acabou por adquirir o quadro... um russo que é o curador do Hermitage, em Leningrado...

        —  Nicholas Kirvov — disse Schmidt prontamente. — Um dos novos amigos da Srta. Ashcroft.

        —  Era o que eu receava. Isso mesmo, Kirvov. Ele percebeu que o quadro fora pintado pelo Feldherr. Kirvov é um perito nessas coisas. Queria saber mais sobre o quadro e conseguiu localizar Klara. Foi procurá-la.

        —  Mas ela nada poderia dizer-lhe — interveio Schmidt. — Não sabe de nada.

       

        Evelyn tomou um gole do vinho.

        —  Não é esse o problema, Wolfgang. Claro que ela nada poderia dizer. Mas ele disse uma coisa a Klara.

        —  Disse o quê?

        —  Antes de se retirar, Kirvov declarou que o quadro era interessante porque fora pintado em 1952 ou depois, embora o autor tivesse supostamente morrido em 1945.

        —  Como ele poderia saber disso?

        —  Não tenho a menor idéia, Wolfgang. Não sei como Kirvov chegou a essa conclusão. — Ela tomou outro gole de vinho. — Só sei que Kirvov está agora desconfiado de que os acontecimentos de 1945 podem não ter transcorrido como foi registrado.

        Schmidt soltou um grunhido e automaticamente limpou o prato, enquanto procurava pensar.

        —  Acha que é sério?

        —  Muito sério.

        —  Possivelmente. Evelyn suspirou.

        —  Devemos ser cautelosos, Wolfgang. — Ela sacudiu a cabeça. — Lamento ter deixado o quadro sair de meu poder. As conseqüências podem ser terríveis.

        —  Não precisa se preocupar — assegurou Schmidt. — Posso dar um jeito no quadro. Muito em breve não existirá mais como prova.

        —  Tem certeza?

        —  Prometo. Enquanto isso, preciso pensar mais no caso, tentar prever o próximo passo de Kirvov, calcular as precauções necessárias. — Pôs a mão sobre a de Evelyn. — Não se preocupe, Effie. Venha se encontrar comigo aqui outra vez amanhã. Já terei um plano. Nosso serviço de informações é excelente. Estaremos preparados para qualquer ato ameaçador. E agiremos mais depressa.

        Schmidt começou a se levantar, acrescentando:

        —  Amanhã, Effie. Aqui mesmo.

        —  Pode estar certo de que não faltarei, Wolfgang.

       

        A velha bonita percorrera a distância a pé, com muito vigor para sua idade. Nicholas Kirvov, no Opel alugado, seguira-a devagar, até que a vira entrar na Ku'damm e logo desaparecer no interior de um restaurante chamado Mampes Gute Stube.

        Por sorte, Kirvov encontrou uma vaga a menos de um quarteirão de distância. Deixou o carro e se encaminhou apressado para o restaurante. A área de café era envidraçada e tinha um teto enviesado. Como tinha a impressão de que vira a velha entrar no restaurante além, Kirvov achou que era seguro se instalar no café.

        Descobriu que era um lugar muito elegante, mesas redondas sobre um carpete verde, as cadeiras estofadas em belbutina verde. Olhou ao redor e divisou uma mesa desocupada, perto da passagem central. Ao se encaminhar até lá, notou pela porta o bar e o salão de jantar. A mulher idosa não estava visível.

        Sentando-se, Kirvov aceitou o cardápio estendido pelo garçom. Não estava com fome, mas sabia que tinha de pedir alguma coisa. Olhando para a relação de sobremesas, escolheu cerejas com creme e fez o pedido.

        Fumando, refletiu sobre o que acontecera no início da tarde. O encontro com Klara Fiebig fora infrutífero. Mas ele ficara desconfiado ao deixar o apartamento. Especulara se ela não teria mentido. Não havia maneira de descobrir, a não ser que, em pânico por causa de sua visita, ela saísse às pressas para se encontrar com alguém. Kirvov resolvera sentar e esperar no Opel, estacionado na Kne-sebeckstrasse, vigiando o prédio em que Klara morava.

        Depois de duas horas ou mais, a vigília parecia inútil. Três pessoas haviam entrado no prédio — um homem idoso carregando uma sacola de compras, uma mulher um tanto velha de boa aparência e um garoto com livros escolares. Ninguém saíra do prédio. Era evidente que Klara Fiebig não vira motivo para entrar em pânico e procurar alguém. Kirvov concluíra que suas suspeitas eram infundadas. Chegara a um beco sem saída.

        Já estava prestes a ligar o carro e se afastar quando vira a porta do prédio se abrir e duas mulheres saírem. Uma delas era Klara Fiebig, segurando o braço da velha bonita que ele vira antes entrar no prédio. Klara falara com a velha, que acenara com a cabeça, e as duas trocaram um beijo. Klara tornara a entrar no prédio, enquanto a velha descia a rua. Pelo espelho retrovisor, Kirvov estudara o vulto da velha se afastando. Ela visitara Klara. Talvez chamada por ela. Uma pista tênue, mas de qualquer forma uma pista.

        Kirvov fizera a volta e, a alguma distância, seguira a mulher até a Kurfürstendamm, por onde avançara devagar, ouvindo as buzinadas irritadas dos outros motoristas, até vê-la entrar no restaurante.

        Agora, comendo as cerejas com creme fresco, Kirvov esperava que a mulher saísse do restaurante. Não sabia direito por que estava fazendo aquilo, mas também não tinha qualquer outro lugar para onde ir. Por isso, comeu e esperou, depois fumou um cigarro.

        Pelo menos mais quarenta minutos transcorreram, e Kirvov acabara de pagar a conta quando sua paciência foi recompensada. Lá estava ela, a velha bonita, começando a atravessar a área do café, acompanhada por um homem enorme, grisalho e empertigado, um espécime dos mais saudáveis para quem estava na casa dos sessenta ou setenta anos. Observando-os se aproximarem e depois passarem, Kirvov viu uma mulher de meia-idade, com um vestido púrpura, levantar-se de outra mesa e estender a mão para atrair a atenção do homem enorme.

        —  Como vai, Wolfgang? — disse ela.

        O homem chamado Wolfgang parou e apertou-lhe a mão.

        —  Já faz muito tempo, Ursula.

        A velha bonita que seguia à sua frente parou e virou-se, distraída. O homem hesitou por um instante e depois apresentou as duas mulheres:

        —  Minha cara, esta é Ursula Schleiter. Ursula, quero apresentar-lhe Evelyn Hoffmann.

        Um garçom aproximou-se, largando pratos ruidosamente numa mesa, e Kirvov perdeu o resto da conversa. Vira depois o homem chamado Wolfgang deixando o café com Evelyn Hoffmann. Os dois trocaram mais algumas palavras na calçada da Ku'damm e se separaram, seguindo em direções opostas.

        Kirvov levantou e resolveu seguir Evelyn Hoffmann mais uma vez. Provavelmente era um exercício inútil, mas ela fora a única pessoa a fazer contato com Klara Fiebig.

        Avançando pela Ku'damm, atrás dela, Kirvov não foi muito longe. O destino imediato de Evelyn Hoffmann era o ponto de ônibus na esquina, no outro lado da rua. Ela entrou na fila e ficou esperando. Poucos minutos depois um ônibus amarelo parou, com o número 29 no pára-brisa. Kirvov esperou até certificar-se de que a mulher Hoffmann embarcava no ônibus e depois se encaminhou às pressas para o seu carro estacionado.

        Seguindo outra vez pela Ku'damm, Kirvov manteve-se atrás do ônibus até a Breitscheidplatz, observando para ver se Evelyn Hoffmann não saltava. O que não aconteceu. Sempre atrás do ônibus, ele diminuía a velocidade em cada parada, na expectativa de que a velha bonita pudesse descer.

        Registrou a passagem por uma sucessão de placas — Tauent-zienstrasse, Kleiststrasse, Lutzowplatz, Landwehrkanal. Era um território desconhecido para ele. O percurso já se estendia por quinze minutos e a mulher ainda estava no ônibus.

        O ônibus estava outra vez diminuindo a velocidade, e Kirvov pisou de leve no freio. O ônibus parou na Schõneberger Strasse, e Kirvov também parou logo atrás. Automaticamente, inclinou-se para verificar se alguém descia. Duas pessoas. Uma delas era Evelyn Hoffmann.

        Enquanto o ônibus se afastava, Kirvov observou Evelyn Hoffmann parar junto ao meio-fio, olhar para a esquerda e depois atravessar a rua larga, depois cruzar outra, com a segurança de quem está acostumado ao caminho. Ela parou por um instante diante de um café modesto, quase na esquina, depois abriu a porta e entrou. Kirvov, que esperava em seu carro na Schõneberger Strasse, aproximou-se do café. Virou à esquerda na esquina e passou devagar pela frente. A placa por cima dizia que era o CAFÉ WOLF. Ficava quase na esquina da Stresemann Strasse com a Anhalter Strasse.

        Kirvov procurou por um lugar para estacionar na Stresemann Strasse e notou diversas vagas. Entrou em uma, encostando em diagonal no meio-fio, desligou o motor e saltou.

        Por um momento, parado na calçada, sob uma árvore, Kirvov tentou se orientar. A extremidade norte da Stresemann Strasse era bloqueada por um muro, obviamente o Muro de Berlim, na Zona de Fronteira. Kirvov começou a se encaminhar para o fim da rua, olhando a todo instante para trás, a fim de verificar se Evelyn Hoffmann já saíra do café.

        Chegando ao Hotel Hervis, Kirvov atravessou a rua, perto de um terreno baldio, uma depressão profunda, onde outrora existira o porão de um prédio, destruído na guerra. O terreno estava abandonado, coberto por mato. Kirvov começou a seguir na direção do café em que Evelyn Hoffmann entrara.

        Havia uma sucessão de pequenas lojas, com a Modellbau, que vendia kits de modelos de carros e aviões, depois a Küchler, especializada em rádios de automóveis, o Gesamtdeutsches Institut, um arquivo histórico que parecia ter também uma biblioteca, a Pizzera Selva, a pizzaria local, um salão de beleza e o Café Wolf, com uma tabacaria que também vendia livros usados na esquina.

        Havia janelas nos dois lados da porta do café, com vasos de plantas diante das janelas. Kirvov deu uma olhada no interior, divisando um balcão com bancos, algumas mesas redondas, uma vitrola automática. Avistou uma garçonete de blusão e jeans, servindo a um casal, numa das mesas. Viu outro casal nos fundos. Mas não viu Evelyn Hoffmann.

        Embora ela não pudesse saber quem ele era, Kirvov resolveu não continuar a esquadrinhar o interior do café, para não correr o risco de se tornar óbvio. Também não queria ficar muito tempo na frente do café. No outro lado da rua ficava a ilha de concreto com o ponto de ônibus, a Askanischer Platz. À direita da ilha havia uma rua chamada Bernberger Strasse.

        Deixando o café, Kirvov tornou a atravessar a rua e parou na Askanischer Platz, observando o Café Wolf, esperando que Evelyn Hoffmann saísse e se encaminhasse para o seu destino final. Acabou concluindo que poderia chamar muita atenção ali e foi para a esquina da Bernberger Strasse. Ali, ficou fumando e observando o movimento no Café Wolf.

        Por meia hora ou mais não houve qualquer atividade. O dia chegava ao fim e em breve estaria anoitecendo. Kirvov continuou a vigiar a entrada do café. Finalmente um dos casais que observara lá dentro saiu. Pouco depois, o outro casal também foi embora.

        Kirvov esperou, impaciente, pelo aparecimento de Evelyn Hoffmann. Um rapaz deixou o Café Wolf. Talvez o garçom. Talvez não. Depois a garçonete, com uma suéter e ainda de jeans, saiu para regar as plantas e tornou a entrar. Saiu de novo um instante depois e afastou-se.

        Mas nada de Evelyn Hoffmann.

        Kirvov começou a sentir-se tolo. Não havia o menor indício de que a mulher pudesse levá-lo a alguma pista útil, a não ser a sua ligação com Klara Fiebig, que de qualquer forma não reconhecera o quadro de Hitler.

        Era o início da noite agora, e Kirvov ficou alerta quando as luzes no interior do café se apagaram.

        Não podia haver a menor dúvida de que o Café Wolf estava fechado. Mas Evelyn Hoffmann, que ele vira entrar, não saíra.

        O que era surpreendente e inexplicável.

        Kirvov tentou encontrar uma explicação para aquele acontecimento insólito. Talvez Evelyn Hoffmann tivesse saído por outra porta, nos fundos. Talvez fosse a dona do café ou casada com o proprietário, residisse no andar de cima.

        Tudo era provável, mas de certa forma também improvável. Era esse o pressentimento de Kirvov. Ela não teria qualquer motivo para sair por uma porta escondida. E pelas suas roupas, pelas maneiras, era muito próspera e sofisticada para possuir um café como aquele ou morar ali.

        Mas, ainda assim, ela entrara e não saíra.

        O que era um mistério que exigia uma explicação.

        Cansado de esperar sozinho na escuridão, sem nada para ver, Kirvov começou a voltar para o carro. Mais uma olhada de esgue-Iha para o café. Absolutamente fechado, completamente às escuras. E Evelyn Hoffmann continuava inexplicavelmente lá dentro.

        Kirvov precisava relatar aquela história a alguém, esclarecer o enigma. Emily Ashcroft e Rex Foster, que se encontravam tão envolvidos quanto ele, eram as escolhas óbvias para consultar. Kirvov compreendeu que tinha de voltar agora ao Bristol Kempinski e encontrá-los.

        — Preciso muito falar com vocês — dissera Kirvov.

        Ele interceptara Emily Ashcroft, Foster e Tovah no instante em que os três deixavam o Kempinski.

        — Pois então nos acompanhe agora — respondeu Emily. — Vamos jantar cedo esta noite. Tenho de voltar ao Führerbunker pela manhã. Oberstadt está usando uma turma para trabalhar esta noite e quero verificar bem cedo o que eles conseguiram.

        Apesar de cansado, Kirvov decidira ir também. Agora, estava sentado com os outros a uma mesa que lhes proporcionava privacidade, porque separada das outras mesas por divisórias de madeira. Estavam no restaurante do segundo andar do Café Kranzler, na esquina da Kurfürstendamm com a Joachimstaler Strasse.

        Uma garçonete se aproximou, todos consultaram os cardápios e fizeram seus pedidos. Depois que a garçonete se afastou, Foster virou-se para Kirvov e perguntou:

        —  Sobre o que está querendo nos falar, Nicholas?

        —  Bom... — Kirvov hesitou por um instante. — Talvez não seja importante ou útil para qualquer de vocês. Foi apenas um incidente estranho e achei que deveria lhes comunicar.

        Todos ouviram atentamente, enquanto Kirvov relatava as suas várias aventuras durante o dia. A investigação pelas galerias de arte, a descoberta da que comprara e vendera o quadro de Hitler. A visita a Klara Fiebig, a declaração dela de jamais ter visto o quadro.

        —  Acha que ela estava mentindo? — indagou Emily.

        —  Acho que sim. Pelo menos foi o que pensei quando saí de lá, porque fiquei esperando na rua, na possibilidade de que ela pudesse sair para fazer contato com alguém e comunicar a minha visita.

        —  E ela saiu? — perguntou Emily.

        —  Não. Mas alguém foi procurá-la, porque depois ela acompanhou essa pessoa até a porta do prédio.

        Kirvov descreveu a pessoa, uma mulher um tanto imponente, muito bem-arrumada, na casa dos sessenta ou setenta anos, de nome Evelyn Hoffmann. Tinha alguma ligação com Klara Fiebig e por isso Kirvov a seguira até o Mampes Gute Stube, um restaurante na Ku'damm. Depois de algum tempo, ela saíra em companhia de um homem enorme chamado Wolfgang. Os dois se separaram, e a mulher Hoffmann pegara um ônibus até uma área perto do Muro, sempre com Kirvov em seu encalço. Entrara num lugar chamado Café Wolf, na Stresemann Strasse.

        —  Fiquei ali horas, esperando que ela saísse, a fim de descobrir para onde ia em seguida — concluiu Kirvov. — Mas acontece que ela não saiu. O café foi fechado e ela não saiu. É esse o mistério.

        —  Ela não poderia ocupar um quarto no café? — sugeriu Tovah.

        —  Duvido que ela morasse num lugar como aquele — respondeu Kirvov. — Tinha muita classe para isso.

        —  Tem alguma explicação? — indagou Emily.

        —  Absolutamente nenhuma. Esperava que algum de vocês pudesse me dizer qualquer coisa.

        Emily deu de ombros, num gesto de impotência.

        —  Eu não tenho o que dizer. A história toda parece com Alice descendo pela toca do coelho.

        Foster interveio:

        —  Disse que o Café Wolf fica perto do Muro?

        —  Na Stresemann Strasse. Segue direto para o Muro, a cerca de um quarteirão de distância.

        —  Com o monte de terra do Führerbunker bem do outro lado — comentou Foster.

        —  Talvez tudo não passe de bobagem minha. Acham que vale a pena continuar a investigar Evelyn Hoffmann?

        —  Pode ser perda de tempo — disse Foster. — E tempo é justamente o que não temos. Vamos pensar a respeito e resolver amanhã.

        Emily acenou com a cabeça em concordância.

        Emily e Foster estavam na suíte depois do jantar, aprontando-se para se deitar, quando o telefone tocou. Emily atendeu. Era Kirvov, e parecia bastante agitado.

        —  Estou muito transtornado — disse ele. — Cheguei ao meu quarto no Palace e tinha de ligar para vocês imediatamente.

        —  O que aconteceu, Nicholas?

        —  O quadro de Hitler desapareceu. Acho que foi roubado.

        —  Como assim? — disse Emily. — Onde estava o quadro?

        —  Deixei-o na mala do carro quando fui me encontrar com vocês no Kempinski. Tinha um Opel alugado e pus o quadro na mala. Tranquei a mala e também as portas do carro.

        —  Onde estacionou o carro?

        —  Havia uma vaga e por isso estacionei na rua. Depois do jantar, voltei ao carro. As portas continuavam trancadas. Chegando ao Palace, abri a mala para pegar o quadro. Desaparecera. Alguém o roubou.

        —  Mas quem mais tinha conhecimento do quadro, além de nós, a mulher da galeria de arte e Klara Fiebig? — perguntou Emily. — Mais ninguém, não é mesmo?

        —  Creio que mais ninguém...

        —  Tem mais uma pessoa — acrescentou Emily. — Eu tinha excluído seu nome. Evelyn Hoffmann. Ela poderia saber.

        —  Tem razão.

        —  Estava especulando antes se deveria continuar a investigar Evelyn Hoffmann, Nicholas. Pensamos que poderia ser perda de tempo. Pois mudei de idéia. Acho que vale a pena investigá-la.

        Emily pensou por alguns segundos e depois acrescentou:

        —  Tendo em vista o fato novo, Nicholas... ora, você chegou até este ponto. Pois agora vá até o fim. Por que não se posta perto do Café Wolf pela manhã bem cedo e fica observando para descobrir se a mulher Hoffmann não torna a aparecer? — Hesitou por um instante. — Pensando bem, Nicholas, como Rex tem permissão para participar da escavação...

        Emily virou a cabeça, indagando a Foster:

        —  Rex, pode me substituir no Führerbunker amanhã?

        —  Terei o maior prazer — respondeu Foster. — Mas onde você vai?

        —  Vou fazer companhia a Nicholas na Stresemann Strasse. Quero dar uma olhada na tal de Evelyn Hoffmann. Presumindo que ela reapareça. E acho que isso vai acontecer. Pode ser que tenhamos encontrado uma pista importante.

        

        O dia começou na Stresemann Strasse com três deles e terminou com apenas um.

        Começou às nove horas de uma manhã ensolarada, depois que souberam que o Café Wolf abria a essa hora. Chegaram pouco antes disso, Nicholas Kirvov ao volante do Opel alugado, Emily ao seu lado, Tovah no banco de trás. Estacionaram na Stresemann Strasse, a menos de meio quarteirão do Café Wolf, no outro lado da rua.

        Por um momento, ficaram alerta pela chegada de duas pessoas à porta do café. Kirvov reconheceu-as imediatamente como a jovem garçonete e o garçom. A garçonete destrancou a porta para que entrassem. Kirvov sacudiu a cabeça, murmurando:

        —  Empregados.

        Emily continuou a observar a entrada do café por mais algum tempo e depois lembrou a Kirvov:

        —  Você é o único que já viu Evelyn Hoffmann. Nem Tovah nem eu temos a menor idéia de como ela é. Portanto, Nicholas, dependemos de você.

        —  Confiem em mim — declarou Kirvov. — Estarei alerta. É uma questão importante para mim também.

        Depois de ligar o rádio do carro, baixinho, numa emissora que só tocava música, a fim de distrair Emily e Tovah, Kirvov dedicou toda a sua atenção a olhar pela janela do carro para a entrada do café.

        Uma hora e meia se passou, Kirvov não viu ninguém que se parecesse com a presa deixar o café, embora quatro fregueses entrassem. Duas horas depois de estarem ali, todos os quatro fregueses já haviam se retirado, separadamente.

        Emily começou a se preocupar com o que Rex Foster estaria fazendo no local da escavação, mas não queria sair dali para ir a seu encontro.

        —  Quero ver essa tal de Evelyn Hoffmann — declarou ela, com determinação.

        Irrequieta, abriu a bolsa, tencionando passar um pouco de batom nos lábios. E foi nesse instante que Kirvov disse:

        —  Quer ver Evelyn Hoffmann? Pois pode vê-la agora. Olhe. Emily empertigou-se, inclinando-se para Kirvov, a fim de olhar

        pela janela. Tovah, no banco traseiro, também olhava pela janela. Todos podiam divisar a mulher impressionante, de cabelos castanhos, talvez com l,70m de altura, esguia, postura ereta, caminhando em passos vigorosos, impecavelmente vestida num conjunto azul, atravessando a rua para a ilha de concreto que era a Askanischer Platz.

        —  Evelyn Hoffmann — sussurrou Kirvov. — Acho que ela está indo para o ponto de ônibus na Schõneberger Strasse.

        Ela desaparecera de vista agora, e Kirvov abriu a porta do carro e saiu, acrescentando:

        —  Vou me certificar.

        Ele subiu a rua até a Askanischer Platz, olhou para a direita e depois concentrou-se em acender um cigarro. Um ônibus amarelo apareceu, encaminhando-se para o ponto. Kirvov largou o cigarro no chão, esmagou-o com a ponta do sapato e deu alguns passos na direção da Schõneberger Strasse.

        Ele ficou por um momento fora da visão das mulheres no carro, mas reapareceu quase que no instante seguinte, aproximando-se depressa. Sentou ao volante, ligando o carro.

        —  Ela está no ônibus — anunciou ele, dando marcha à ré. — Vamos segui-la.

        Kirvov começou a inverter o percurso que fizera no dia anterior, atrás do ônibus de número 29. Ficou para trás, freando quando o ônibus parava para os pasageiros desembarcarem, tornando a partir cada vez que o ônibus andava de novo. Ficou um pouco mais para trás ao chegarem à Kurfürstendamm, deixando que dois outros carros o separassem do ônibus. Depois de avançarem um pouco pela rua apinhada, Kirvov disse:

        —  Ela saltará na próxima esquina, se está indo para onde eu penso.

        Ele diminuiu a velocidade, parando em fila dupla, estreitando os olhos, enquanto o ônibus chegava a outro ponto. Meia dúzia de pessoas saltaram. Evelyn Hoffmann estava entre elas.

        Emily e Tovah observavam em silêncio, fascinadas. Kirvov engrenou o carro, fazendo uma previsão:

        —  Ela vai subir a Knesebeckstrasse, a caminho de um apartamento no terceiro andar de um prédio que fica no meio do quarteirão, a fim de falar com Klara Fiebig. Vamos estacionar e descobrir se estou certo.

        Estacionando às pressas, perto da Steinplatz, Kirvov saltou para a calçada e correu até a esquina, espiando atentamente pela Knesebeckstrasse. Quando Emily e Tovah o alcançaram, ele gesticulou e disse:

        —  Eu estava certo. Acabei de vê-la entrar num prédio. Vou até lá dar uma olhada, só para ter certeza absoluta de que se trata do mesmo prédio. Esperem por mim aqui.

        Kirvov só se ausentou uns poucos minutos. Ao voltar, acenou com a cabeça, satisfeito.

        —  É o mesmo prédio. Ela está visitando Klara Fiebig.

        —  Eu gostaria de saber o que está acontecendo por lá — murmurou Emily.

        —  Ainda vamos descobrir — respondeu Kirvov. — Vamos ficar esperando por aqui. Se for como ontem, ela deve sair daqui a pouco. E no instante em que isso acontecer, vamos nos separar e olhar as vitrines. Depois que ela entrar na Ku'damm, nós a seguiremos a uma distância segura.

        —  Sabe para onde ela vai? — perguntou Tovah.

        —  Tenho uma idéia — disse Kirvov. — Não tenho certeza, mas vamos esperar para ver.

        A espera tediosa, animada apenas pela expectativa intensa, prolongou-se por quase quarenta minutos.

        —  Posso vê-la de novo — anunciou Kirvov, abruptamente. — Vamos nos separar. Nós lhe daremos meio quarteirão de vantagem e depois a seguiremos.

        As duas mulheres se afastaram apressadamente de Kirvov, enquanto o russo se deslocava alguns metros, indo postar-se diante da vitrine de uma loja de material fotográfico. Emily e Tovah se adiantaram mais um pouco, observando uma vitrine em que estavam expostos os últimos modelos franceses de pronta entrega.

        Kirvov manteve a esquina sob vigilância. Evelyn Hoffmann apareceu e se encaminhou apressadamente para a Kurfürstendamm, sem se preocupar em olhar para as vitrines. Era evidente que ela tinha algum destino certo. Depois que ela foi engolfada pelo fluxo de pedestres, Kirvov fez um sinal para Emily e Tovah. Ofegantes, as duas o alcançaram.

        —  Ainda posso vê-la — disse Kirvov. — Vamos segui-la.

        Em fila, com Kirvov na frente, foram avançando pela multidão, atrás de Evelyn Hoffmann, sem a perderem de vista em momento algum.

        Ela parou no sinal de trânsito da Ku'damm, esperou que abrisse e depois atravessou a rua junto com os outros pedestres.

        Kirvov levantou a mão, enquanto Emily e Tovah paravam ao seu lado.

        —  Acho que sei para onde ela está indo. — Apontou para uma placa na rua em que estava escrito Mampes Gute Stube. — O mesmo restaurante para onde a segui ontem. Vamos ver se ela entra lá.

        Ficaram observando.

        Evelyn Hoffmann deixou a calçada e entrou no Mampes Gute Stube.

        —  O que faremos agora? — indagou Tovah.

        —  Vamos ficar perto do restaurante — respondeu Kirvov. — Ela provavelmente vai se encontrar com o grandalhão com que a vi ontem, o homem chamado Wolfgang. Eu gostaria de saber quem é ele.

        —  Vou descobrir — prontificou-se Tovah. — Se eles se separarem ao saírem, vocês dois podem ficar com ela, enquanto eu sigo o homem.

        —  Boa idéia — comentou Kirvov.

        —  Quanto tempo teremos de esperar aqui? — perguntou Emily.

        —  Baseado no que aconteceu ontem, eu diria que eles devem sair num prazo de meia a uma hora.

        —  Então vamos descansar os pés — sugeriu Emily, acenando com a cabeça para um pequeno café, com meia dúzia de mesas na calçada. — Estou faminta, e poderemos comer alguma coisa enquanto esperamos.

        Encontraram uma mesa vazia no pequeno café e pediram Ka-setorte e Kaffee. Meia hora transcorreu, enquanto eram servidos e comiam.

        Mais trinta e cinco minutos se passaram, Kirvov estava pagando a conta quando Emily apertou-lhe o braço.

        —  Lá está ela, Nicholas, junto com um homem, provavelmente o mesmo grandalhão de que você falou. Está vendo?

        Kirvov espiou entre os veículos que passavam. Acenou com a cabeça.

        —  Estou sim. É o mesmo de ontem. Evelyn Hoffmann e seu amigo Wolfgang. — Ele se levantou. — Meu palpite é de que os dois vão se separar agora. Siga o homem, Tovah. Vamos nos encontrar mais tarde, no Kempinski. Emily, ela provavelmente vai atravessar a Ku'damm, até o ponto de ônibus na próxima esquina. Pelo menos é o que espero. Você a segue. Isso me dará tempo para ir buscar o carro. Pegarei você e poderá me dizer então se ela já pegou o ônibus.

        Ficaram observando Evelyn Hoffmann e Wolfgang manterem uma breve conversa na calçada, diante do Mampes Gute Stube. Depois, a mulher Hoffmann e o homem trocaram um aperto de mão e se separaram, partindo em direções opostas.

        —  Muito bem — disse Kirvov ansioso. — Vocês já sabem o que fazer.

        E afastou-se depressa, a caminho do Opel alugado.

        Poucos minutos depois estavam no carro e avançando pela Ku'damm, tentando localizar Emily. Avistou-a no meio-fio e fez-lhe um sinal. Ele parou e abriu a porta. Emily sentou-se ao seu lado, o dedo indicador apontando para a frente.

        —  O ônibus — balbuciou Emily. — Você estava certo. Ela pegou o ônibus, o que está um quarteirão à nossa frente.

        —  Ótimo! — exclamou Kirvov, tirando o carro do meio-fio e acelerando.

        Ele se aproximou do ônibus, percebendo que fazia o mesmo peréurso que cobrira no dia anterior.

        Quinze minutos depois observaram Evelyn Hoffmann descer do ônibus, atravessar a Stresemann Strasse e entrar no Café Wolf.

        —  Um círculo completo — murmurou Emily, enquanto Kir-vov estacionava o carro numa vaga, com plena visão da entrada do café. Ela franziu as sobrancelhas. — O que vamos fazer agora?

        —  Esperaremos, Emily. Ficaremos sentados aqui e esperaremos para descobrir se desta vez ela sai.

        —  E se ela não sair de novo? O que faremos?

        —  Não sei.

        —  Pois eu sei — declarou Emily enigmática. — Mas vamos esperar para ver o que acontece.

        Uma hora se passou.

        Outras duas horas transcorreram. Emily foi ficando cada vez mais irrequieta.

        —  Quando este maldito café fecha?

        —  Em menos de uma hora.

        —  É uma perda de tempo — disse Emily impaciente, pegando a maçaneta da porta. — Ela não vai sair... mas eu vou entrar.

        Emily já estava abrindo a porta quando Kirvov pegou-lhe o braço.

        —  Espere um pouco. Você não pode entrar lá.

        —  Por que não? É um lugar público. Pois eu sou público e quero comer. E também quero descobrir se Evelyn Hoffmann está lá dentro.

        —  Não faça isso, Emily. Pode ser perigoso.

        —  Não diga bobagem.

        Ela já havia saltado do carro.

        —  O que aconteceu com seu pai não foi bobagem, Emily. Ela pode ser uma neonazista. Por favor, lembre-se de seu pai...

        A menção ao pai fez Emily se virar na rua. Ela inclinou-se para Kirvov, observando seu rosto preocupado.

        —  Não esqueci de meu pai — disse calmamente. — E é justamente por isso que preciso saber o que está acontecendo lá dentro.

        —  Pois então irei com você.

        —  Nada disso, Nicholas. Você fica aqui. Provavelmente nada está acontecendo, e há alguma explicação perfeitamente inocente, e poderemos então acabar com esta busca inútil. Mas se alguma coisa está acontecendo... então sairei de lá e voltarei antes da hora de fechar. Se eu não voltar, então você sabe o que fazer. Comunique a Rex Foster, e ele poderá procurar a polícia.

        —  Eu preferia que você não fizesse isso — suplicou Kirvov.

        —  Tenho de fazer.

        Emily fechou a porta do carro e encaminhou-se para o Café Wolf. Como se estivesse hipnotizado, Kirvov observou-a, até vê-la afinal entrar no Café Wolf.

       

        Dentro do Café Wolf, Emily tentou se orientar. Esquadrinhou rapidamente o interior. Outro pequeno restaurante de classe média, mas imaculado. À esquerda, um balcão, com uma fileira de bancos marrons, uma escada em espiral, uma cabine telefônica, uma planta num vaso. À direita, algumas mesas redondas, uma delas ocupada por duas mulheres absortas numa conversa. No bar, uma moça de blusa de malha e calça de couro, uma toalha no braço, ao que tudo indicava a garçonete, ria de alguma coisa que o jovem garçom lhe dizia. A garçonete viu Emily e avançou em sua direção.

        —  Gostaria de sentar, Frãulein?

        A garçonete puxou uma cadeira de uma das mesas e Emily sentou.

        —  Eu queria apenas comer alguma coisa — murmurou Emily. A garçonete assumiu uma expressão pesarosa.

        —  Infelizmente, a cozinha está fechando, e dentro de meia hora o café também vai fechar. Talvez eu ainda possa lhe arrumar uma tigela quente de Bohnensuppe. Vou verificar se...

        —  Isso não — disse Emily, que não estava com a menor vontade de tomar sopa de feijão.

        —  Não gostaria de uma cerveja ou um café?

        —  Uma cerveja está ótimo. De qualquer tipo. Enquanto a garçonete se afastava para o bar, Emily observou o lugar com mais cuidado. As duas mulheres na mesa próxima se levantavam para ir embora. As duas eram gordas e malvestidas. Nenhuma das duas se parecia sequer remotamente com Evelyn Hoffmann.

        Enquanto as duas saíam, Emily retomou o exame do lugar. Evelyn Hoffmann só poderia ter ido para dois lugares. Podia ter subido pela escada em espiral, que levava a um apartamento ou escritório, ou entrado na cozinha. Havia uma porta de vaivém para a cozinha, tendo ao lado uma abertura pela qual o cozinheiro entregava os pedidos.

        A garçonete voltou com uma cerveja e a nota.

        Emily saboreou a espuma e observou a garçonete recolhendo os vidros de sal e pimenta, para tornar a enchê-los. Enquanto ela entrava na cozinha e o garçom saía pela porta, Emily ficou sozinha, tentando decidir o que faria em seguida. Resolveu explorar para onde levava a escada.

        Levantando-se, encaminhou-se para a escada, sem fazer barulho. Ao pôr o pé no primeiro degrau, notou dois cartazes de plástico pregados na parede, à esquerda. O primeiro dizia: ACHTUNG STUFEN! "Cuidado com os degraus." O outro era ainda mais desanimador: TOILETTEN. A fim de se certificar, Emily continuou a subir com extremo cuidado. Havia duas portas lá em cima. Uma delas tinha a silhueta de uma mulher, a outra, a silhueta de um homem. Eram mesmo os banheiros, não havia mais nada lá em cima. Mesmo assim, Emily abriu a porta do banheiro feminino. Havia uma pequena ante-sala, com uma pia", depois dois reservados, ambos abertos e vazios. Depois de um momento de hesitação, experimentou a porta do banheiro masculino. Esperando qualquer coisa, deparou-se apenas com um mictório desocupado, um sanitário e uma pia.

        Desanimada, Emily tornou a descer os degraus para o café. A garçonete ainda não estava à vista. Emily voltou à mesa e à cerveja, e pensou qual seria seu próximo movimento.

        Viu a garçonete tornar a entrar na sala, fitá-la e se aproximar, dizendo:

        —  Desculpe, mas vamos fechar dentro de cinco minutos. Eu agradeceria se pagasse a conta agora.

        —  Está bem.

        Emily abriu a bolsa, pegou dois marcos alemães e entregou-os à garçonete. Por um instante, pensou em interrogar a moça, descrevendo Evelyn Hoffmann e indagando para onde ela fora. Mas antes que pudesse se decidir, percebeu que a moça se encaminhava para a cozinha.

        Com um suspiro, Emily levantou-se para sair. À porta de vaivém, a garçonete olhou para trás e gritou:

        —  Auf wiedersehen.

        Ela desapareceu na cozinha.

        A porta da rua, Emily hesitou. Olhou para trás. A cozinha era a única possibilidade que não explorara.

        Por que não? Poderia descobrir se havia outra saída nos fundos que a mulher Hoffmann usara. Inventaria alguma pergunta para fazer à garçonete. Por que não?

        Emily virou-se e encaminhou-se resoluta para a cozinha. Sem mais hesitação, empurrou a porta de vaivém. Era uma cozinha comum, de azulejos brancos. Uma pia de aço, balcões, um cepo de madeira, um fogão comercial, geladeira, armários.

        Emily olhou ao redor. A garçonete não estava à vista. Mas havia um corredor reto à frente. Emily avançou para lá.

        Subitamente, do recesso mal-iluminado do corredor emergiu um jovem alemão, alto, musculoso e louro, obviamente o cozinheiro, já que usava o chapéu típico e um avental branco.

        Aturdida, Emily parou no mesmo instante, piscando os olhos para o homem, que disse suavemente:

        —  Seu cartão de identidade, por favor, Fràulein.

        —  Meu o quê?

        —  Seu cartão de identidade. Preciso vê-lo.

        —  Eu... eu não sei se...

        O jovem alto interrompeu-a, a voz assumindo um tom incisivo:

        —  Quem é você?

        —  Eu... ora, sou uma freguesa... queria apenas... mas é melhor eu ir agora.

        —  Acho que não. — O jovem meteu a mão por baixo do avental e tirou uma automática Mauser 7.65. — Venha comigo.

        Ele fez uma pausa, acenando ameaçadoramente com a arma, antes de acrescentar:

        —  Ande na minha frente. Schnell!

        O coração disparado, as pernas pesando como chumbo, Emily forçou-se a passar pelo homem e entrou no atemorizante corredor.

       

        O Café Wolf fechara.

        E Emily Ashcroft não saíra.

        Primeiro, nenhum sinal de Evelyn Hoffmann. Agora, Emily Ashcroft também sumira misteriosamente.

        Kirvov estava parado na crescente escuridão da Askanischer Platz, olhando para a porta trancada do restaurante às escuras, no outro lado da rua. Tentou imaginar o que poderia ter acontecido, mas não tinha a menor pista. Sabia apenas que o caso era grave e sinistro, que precisava fazer alguma coisa.

        Seu primeiro impulso fora correr para a porta, arrombá-la, entrar no Café Wolf, encontrar Emily, se possível decifrar o mistério de uma vez por todas.

        Mas o bom senso o conteve. Se entrasse e também desaparecesse, ninguém ali fora teria a menor idéia do que acontecera com Emily e com ele. Ainda a salvo na rua, ele se tornava o único contato de Emily com o mundo exterior, a testemunha solitária capaz de promover o resgate. Lembrou-se da última instrução de Emily: Se eu não voltar, então você sabe o que fazer. Comunique à Rex Foster, e ele poderá procurar a polícia.

        Emily estava certa. Não havia outra opção sensata.

        Kirvov voltou apressadamente para o carro, ligou-o e partiu em busca de ajuda.

        Chegando ao mundo mais iluminado e mais normal do Bristol Kempinski, ele deixou o carro com o porteiro e entrou apressadamente no saguão.

        Ao se encaminhar para a recepção, a fim de chamar Foster, avistou uma jovem loura que se encaminhava para o bar. Reconheceu-a. Era Tovah Levine.

        —  Tovah! — chamou Kirvov, adiantando-se para interceptá-la. Ela parou e levantou a mão em saudação.

        —  Oi, Nicholas.

        —  Aconteceu uma coisa terrível, Tovah. Tenho de encontrar Rex imediatamente. Precisamos ir à polícia.

        Ela estudou a sua expressão angustiada por um instante e depois, também preocupada, pegou-o pelo braço.

        —  Eu ia me encontrar com alguém que... que conhece a polícia. Venha comigo. Poderá nos contar o que está acontecendo.

        Kirvov resistiu.

        —  O problema é urgente, Tovah. Não posso desperdiçar um minuto sequer.

        —  Por favor, Nicholas, venha comigo.

        Relutante, ele acabou cedendo, acompanhando-a por toda a extensão do saguão. O luxuoso bar parecia vazio, com a exceção do homem barbudo que tocava o piano Steinway. Só depois é que Kirvov notou um homem se levantando de um grupo de cadeiras em torno de uma mesa num canto escuro.

        Tovah levou Kirvov até o homem, que estava esperando. Era mais alto que Kirvov, com as feições firmes e bronzeadas de um astro de cinema ou um atleta. Tovah disse:

        —  Nicholas, quero apresentá-lo a Chaim Golding, um amigo de Berlim. — Ela virou-se para Golding. — Este é Nicholas Kirvov, de Leningrado. Já lhe falei a respeito dele. Outro dos caçadores de Hitler.

        Golding estendeu a mão para o aperto, mas Kirvov apertou-a apenas por um breve instante, depois virou-se para Tovah e disse:

        —  Não tenho tempo para reuniões sociais agora, Tovah. Talvez em outra ocasião. Neste momento temos um problema grave. Emily desapareceu. Não sei o que aconteceu. Preciso encontrar Rex e procurar a polícia. Eu lhe contarei tudo quando estivermos a sós. — Lançou um rápido olhar para Golding, nervoso. — Trata-se... de um problema particular. Preciso ir agora.

        Tovah tornou a segurar seu braço.

        —  Para procurar a polícia? Não. Sente-se. O Sr. Golding conhece a polícia.

        —  Mas...

        —  Sente-se — ordenou Tovah, com um tom de autoridade na voz que Kirvov não ouvira antes. — Pode contar tudo na frente de Chaim Golding.

        Ela lançou outro olhar inquisitivo para Golding, que acenou com a cabeça. E depois acrescentou para Kirvov:

        —  Se houver problemas, o Sr. Golding será mais útil para nós do que a polícia de Berlim. — Uma pausa e ela arrematou, baixando a voz: — Nicholas, Chaim Golding é do Mossad... e eu também.

        Por um instante, Kirvov deixou transparecer seu espanto.

        —  Mossad?

        —  O serviço de informações de Israel — explicou Tovah. — Sou jornalista, isso é verdade, mas também é uma cobertura para o meu trabalho como agente do Mossad. Chaim Golding é meu superior imediato, chefe da importante seção de Berlim.

        Kirvov exibiu um vislumbre de reconhecimento.

        —  Mossad... a operação em Entebbe e tudo o mais. Claro, claro, já li a respeito. — Arriou o corpo para a beira de uma cadeira. — Mas ainda assim, a polícia...

        —  Não pense mais na polícia. — Tovah sentou e fez uma pausa, enquanto Chaim Golding sentava em frente dos dois. — O Mos-sad local do Sr. Golding é mais poderoso... e merece mais confiança... do que a polícia de Berlim. E agora nos conte o que aconteceu com Emily.

        Kirvov começou a resistir outra vez.

        —  Não sei se há tempo para isso...

        —  Tem de haver tempo — insistiu Tovah. — Precisamos conversar antes de agir. Não há alternativa. Conte-nos quando viu Emily pela última vez.

        Rapidamente, Kirvov relatou o que acontecera desde que ele e Emily haviam se separado de Tovah, na Ku'damm.

        —  Vim direto para cá, a fim de informar a Rex e depois chamar a polícia, para entrar lá e salvar Emily.

        —  A polícia não vai entrar lá nem investigar — declarou Tovah incisivamente. — São os últimos que devem ser avisados.

        Kirvov ficou completamente desorientado.

        —  Por quê?

        Tovah exibia uma expressão determinada.

        —  Enquanto você e Emily seguiam Evelyn Hoffmann, fui atrás do tal Wolfgang.

        —  E o que descobriu?

        —  Acompanhei-o até um prédio de quatro andares na Platz der Luftbrücke, 6. Havia uma placa por cima da entrada: Der Polizeipràsident in Berlin. Sabe o que isso significa, Nicholas?

        —  A chefatura de polícia de Berlim.

        —  Exatamente. Não demorei a descobrir que o homem que estava seguindo era Wolfgang Schmidt, o chefe de polícia. Compreende o que estou dizendo? O chefe de polícia de Berlim está associado à mulher Hoffmann. A mesma mulher que visitou Klara Fiebig, que outrora possuiu o seu quadro de Hitler. Muito suspeito. Como jornalista, não tive muita dificuldade em passar da recepção, onde descobri a identidade de Wolfgang, até o departamento de relações públicas. Saí com um lindo retrato do chefe Wolfgang Schmidt. E entreguei-o, claro, a Chaim Golding.

        Golding finalmente mexeu-se, inclinando-se para a frente e dirigindo-se a Kirvov, em voz baixa:

        —  Schmidt pôde ingressar na polícia de Berlim e subir de posição depois da guerra, porque tinha credenciais excelentes. Apresentou provas de que fora inimigo de Hitler e um dos líderes da tentativa do Conde von Stauffenberg de assassinar Hitler, em 1944. Está a par da conspiração de Von Stauffenberg contra Hitler?

        —  Li a respeito, quando era mais jovem, nos livros soviéticos de história da guerra.

        —  Vou refrescar sua memória — disse Golding. — Klaus von Stauffenberg era um aristocrata e um poeta que se tornou oficial sob Hilter. Von Stauffenberg sempre se opusera secretamente a Der Führer, por causa do seu uso abusivo do poder. Von Stauffenberg e outros, que ocupavam altos postos, resolveram se livrar de Hitler. Houve seis tentativas, que foram abortadas ou fracassaram. Finalmente, depois que malogrou a invasão da Rússia, Von Stauffenberg resolveu acabar com Hitler de uma vez por todas. Quando foi chamado à Prússia Oriental, a fim de se encontrar com Hitler e duas dúzias de generais do alto-comando alemão, no Covil do Lobo, em Rastenberg, Von Stauffenberg levou duas bombas em sua pasta. Juntou-se à reunião em torno da mesa de conferência e encostou a pasta com os explosivos num bloco que sustentava a mesa. Com a bomba marcada para explodir sete minutos depois, Von Stauffenberg pediu licença para dar um telefonema. Depois que ele saiu, o Coronel Heinz Brandt achou que a pasta no chão estava atrapalhando e empurrou-a para um lado, afastando-a do lugar onde estava Hitler. Houve a explosão, que destruiu a sala. Quatro pessoas morreram, mas Hitler escapou. Sofreu apenas queimaduras e ferimentos superficiais. Enquanto isso, Von Stauffenberg voltara a Berlim, presumindo que Hitler estava morto. Ele e os outros começaram a dar ordens para assumir o poder na Alemanha. É claro que Hitler capturou-o e aos outros. Foram efetuadas mais de sete mil prisões, e dois mil suspeitos foram executados. Von Stauffenberg foi fuzilado. Teve sorte. Outros foram garroteados com cordas de piano no quartel de Plotzensee e depois pendurados em ganchos de açougue. Segundo os registros do governo, uns poucos conspiradores escaparam. Um deles foi Wolfgang Schmidt. Ele tinha papéis assinados pelo próprio Von Stauffenberg, agradecendo por sua atuação contra Hitler. Com essas credenciais, Schmidt foi bem acolhido na polícia de Berlim e acabou se tornando o chefe. Tudo maravilhoso...

        —  Impressiona qualquer um — admitiu Kirvov.

        —  ... exceto por uma coisa — continuou Golding. — As credenciais de Schmidt eram falsas, uma total impostura.

        —  Uma impostura? — repetiu Kirvov.

        —  Wolfgang Schmidt sempre foi um autêntico nazista e continua até hoje. Era um dos guardas da SS mais dedicados em Berghof, a residência de Hitler por cima de Berchtesgaden. Hitler chegou mesmo a lhe confiar a proteção de Eva Braun. Quando o fim estava próximo, Hitler pegou alguns documentos confiscados de Von Stauffenberg, mandou adulterá-los e entregou-os a Schmidt como presente de despedida. Com sua nova personalidade, Schmidt acabou ingressando na polícia de Berlim, no pós-guerra. Esse nazista secreto é o atual Chefe de polícia da cidade.

        —  Mas se sabem de tudo isso...

        —  Por que não o denunciamos? Porque, meu amigo, é sempre mais útil conhecer o inimigo. Se não fosse Schmidt, seria outro. Pelo menos podemos assim saber qual é a situação. Entende agora, Sr. Kirvov, por que não podemos confiar na polícia de Berlim. Qualquer tentativa de resgatar a Srta. Ashcroft do Café Wolf teria de passar pelo chefe Schmidt. E posso lhe garantir que ele encontraria algum pretexto para não cooperar. Mais do que isso, ele aumentaria o risco para todos vocês. Está entendendo agora, Sr. Kirvov?

        Kirvov estava visivelmente abalado.

        —  Eu... entendo, sim. Mas...

        —  Claro que se deve fazer alguma coisa pela Srta. Ashcroft. Precisamos encontrá-la o mais depressa possível. Porém o desaparecimento terá de ser investigado por todos vocês e também pelos agentes do Mossad. Estamos aqui como agentes secretos, mas somos fortes e bem equipados. Vamos cercar imediatamente o Café Wolf e mantê-lo sob observação.

        —  Mas o que poderemos fazer? — insistiu Kirvov.

        —  Você e Tovah devem conversar imediatamente com o Sr. Foster. Tovah esteve com ele há pouco. Pelo que eu soube, o Sr. Foster pode ter alguma coisa a dizer. Se isso acontecer, Tovah nos avisará. Se ele não tiver qualquer idéia, tentaremos planejar alguma ação nossa. Só não podemos esquecer de uma coisa: quem quer que seja o inimigo, tem o apoio do chefe de polícia de Berlim. Agora, subam e conversem com o Sr. Foster. Espero que possamos agir a tempo... a tempo de salvar a Srta. Ashcroft de qualquer mal que possam lhe fazer.

        Kirvov e Tovah se levantaram no mesmo instante. Golding também ficou de pé, acrescentando:

        —  Só mais uma coisa, Sr. Kirvov, uma pequena informação curiosa e possivelmente esclarecedora. Sobre o Café Wolf. Sabia que na ocasião em que foi apresentado a Eva Braun, naquela loja de material fotográfico, Adolf Hitler disse que seu nome era Sr. Wolf? Isso mesmo... Sr. Wolf. E, agora, boa sorte a vocês dois.

        Depois de supervisionar a escavação no Führerbunker — Andrew Oberstadt esperava que sua turma noturna alcançasse a saída de emergência no início da noite — Rex Foster voltara ao Kempinski, a fim de esperar por Emily. Debruçado sobre a planta do Führerbunker, estendida sobre a mesa da sala, ele estudara alguns aspectos estranhos do projeto e gradativamente chegara a determinadas conclusões. Chegara a ligar para o arquiteto Zeidler, fazendo uma pergunta específica sobre a planta do Führerbunker.

        Quando a campainha da porta tocou, Foster foi abrir na maior ansiedade. Queria contar a Emily o que estava pensando e depois voltariam juntos à Zona de Segurança de Berlim Oriental. Abrindo a porta, não escondeu seu desapontamento. Eram Tovah e Kirvov.

        —  Olá — disse ele. — Eu estava esperando Emily...

        —  Precisamos conversar com você sobre Emily — anunciou Kirvov.

        Foster deixou-os entrarem na sala. Os dois sentaram e ele voltou à mesa, observando-os. Suas expressões eram sombrias, e Foster ficou preocupado.

        —  O que foi? — perguntou ele. — Emily está bem?

        —  Não sabemos — respondeu Kirvov. — Deixe-me explicar... Quando Kirvov terminou, Foster estava pálido, mas controlado.

        —  Por que não tentou entrar lá atrás dela, Nicholas?

        —  Pensei nisso, mesmo depois que o café foi fechado. Mas não sabia se conseguiria sair... e se não pudesse, ninguém saberia o que aconteceu conosco. Antes de Emily entrar...

        —  Foi uma besteira o que ela fez — interrompeu-o Foster. — Desculpe. Pode continuar.

        —  Ela estava decidida a entrar sozinha — Kirvov tentou explicar. — Antes, ela me disse que se não saísse eu deveria procurar você e chamar a polícia...

        —  A polícia deve ser avisada imediatamente.

        Foster já estendia a mão para o telefone quando Tovah sacudiu a cabeça.

        —- Não adianta, Rex. Agora é a minha vez. Deixe-me explicar.

        Rapidamente, ela falou de si mesma e do Mossad, contou os antecedentes de Wolfgang Schmidt.

        —  Essa não! — explodiu Foster. — E fui pedir a ajuda de Schmidt depois que Emily quase foi assassinada! — Deixou escapar um suspiro profundo. — Muito bem, a polícia está excluída. Onde isso nos deixa?

        —  Podemos contar com o apoio do Mossad, Rex — disse Tovah.

        —  Está querendo dizer que Golding pode realmente nos ajudar?

        —  Não só pode, como vai. É muito perigoso, mas o Mossad tem todas as condições para agir em Berlim. Além de agentes treinados na organização... não sei quantos existem na cidade... há centenas de outras pessoas de reserva, na comunidade de Berlim, anti-nazistas de todos os tipos, especialistas em tudo, de armamentos a máquinas, que podem ser convocados para fazer o que for necessário. Eles não hesitarão em eliminar os últimos vestígios do Terceiro Reich. Chaim Golding quer saber agora o que você acha que pode ser feito, antes de se arriscar a iniciar uma ação mais concreta.

        —  Ele não deve se lançar a qualquer ação direta por enquanto — disse Foster. — A polícia pode interferir e impedir tudo.

        Voltou à mesa e estudou a planta do bunker ali aberta, antes de acrescentar:

        —  Tenho uma idéia. — Ainda olhando para a planta, Foster explicou: — Tem alguma coisa muito estranha nesta planta do Führerbunker. É evidente para qualquer arquiteto. Cheguei a ligar para Zeidler, a fim de interrogá-lo a respeito. Ele me informou que o próprio Hitler ordenou que o bunker fosse feito assim, e teve de obedecer. Mas não resta a menor dúvida de que alguma coisa está faltando... e se for o que penso, isso nos revelará a localização do sétimo bunker.

        Kirvov estava confuso.

        —  Que sétimo bunker!

        —  Este. — Foster tirou a segunda planta, que estava por baixo da planta do Führerbunker. — O bunker subterrâneo que Hitler ordenou que nunca fosse identificado. Tenho agora uma idéia de sua localização. Tudo depende do que eu puder descobrir quando a escavação alcançar o Führerbunker.

        —  Espera entrar no Führerbunker! — indagou Tovah surpresa. Foster estava pondo o paletó.

        —  Esta noite. Quando eu voltar à área da fronteira, o lado do monte já deve estar escavado, com um acesso ao Führerbunker.

        —  Acha que ainda existe? — indagou Kirvov.

        —  Por que não? Foi construído bem fundo, reforçado com aço e concreto. Nem mesmo os russos com seus tratores poderiam afetá-lo, pelo menos no nível mais profundo que Hitler usava.

        —  Não pode ir sozinho — protestou Tovah. — Talvez eu possa...

        —  Tenho permissão para entrar na Zona de Segurança — interrompeu-a Foster. — Você não. Deve ficar aqui com Nicholas, avisando a Golding o que estou fazendo. Se eu precisar, pode estar certa de que darei um jeito de entrar em contato.

        Dentro da Zona de Fronteira de Berlim Oriental, a maior parte do monte que cobria o Führerbunker estava sumida na escuridão da noite. Apenas um lado do monte, o oeste, estava intensamente iluminado por três enormes refletores.

        À beira do círculo de luz, Andrew Oberstadt, de macacão sujo e botas enlameadas, estava parado, observando o trabalho noturno, seus homens alargando a passagem que levava a uma abertura no lado do monte. Tiravam mais terra e entulho, jogando em duas pilhas, quando Foster chegou. Oberstadt recebeu-o com a maior animação.

        —  Acho que já estamos quase chegando, Rex. Creio que tudo estará pronto para você a qualquer momento. A passagem pela velha saída de emergência para o nível inferior está quase desobstruida. Dei uma olhada há pouco. Não pude resistir à tentação de verificar como está. Nada mal, levando-se em consideração a passagem de quarenta anos e a ação dos russos. O teto de concreto parece ter protegido a área de Hitler por baixo. Pelo que pude julgar, a escada está quase toda intacta. Alguns degraus perto do topo estão destruídos, mas o resto da escada parece em condições de ser usado, até onde pude iluminar com a lanterna. Quer esperar até o amanhecer para descer?

        —  Quero descer imediatamente, Andrew. A reação de Oberstadt foi de dúvida.

        —  Vai ser muito difícil procurar pelo camafeu e a ponte dentária naquele buraco. Mesmo com a iluminação portátil, será difícil encontrar uma coisa tão pequena.

        —  Não é isso o que estou procurando esta noite, Andrew. Estou atrás de algo muito maior.

        Oberstadt deu de ombros.

        —  Você deve saber o que está fazendo. E acho que a luz do dia não tornaria a coisa mais fácil lá no fundo. Quando quer começar?

        —  Agora.

        —  Importa-se que eu o acompanhe?

        —  Posso usá-lo na primeira parte da operação. Seria muito útil. Mas se encontrar o que estou procurando, seria melhor que eu ficasse lá embaixo sozinho.

        —  Precisaremos de lanternas fluorescentes — disse Oberstadt.. — Uma para cada um.

        —  Eu gostaria de levar também outra coisa — informou Foster. — Alguma coisa para cortar concreto.

        —  Tenho uma serra de bateria. Foster pensou por um momento.

        —  Muito bem. Pegue a serra e também uma talhadeira e um martelo.

        Enquanto Oberstadt se afastava, chamando um operário para ajudá-lo, Foster olhava hipnotizado para a abertura no monte. Como estava parcialmente iluminada pelos refletores, ele se adiantou para verificar o estado da antiga saída de emergência.

        Passando entre os homens ofegantes, ele chegou ao buraco e abaixou-se para entrar. Lembrou-se da informação de que havia um vestíbulo que levava aos quatro lances de escada. A maior parte fora demolida e agora removida, a abertura fora escorada com vigas pela turma de Oberstadt. Foster divisou vagamente os degraus de concreto, cobertos por terra, muito disformes, no alto, os outros mergulhando íngremes na escuridão.

        E de repente dois potentes fachos de luz brilharam às suas costas. Oberstadt estava ali; entregou-lhe uma das lanternas fluorescentes e ficou com a outra. Depois, virando-se para um dos seus homens, pegou um saco de lona, com a serra e as outras ferramentas.

        —  Estamos prontos — anunciou Oberstadt.

        —  Pois então vamos descer — disse Foster.

        —  Tome cuidado — recomendou Oberstadt.

        Foster foi na frente, apoiando-se precariamente no primeiro degrau demolido, uma das mãos na parede, desceu para o seguinte e o outro, cada um parcialmente destruído. Constatou que, depois, os degraus cobertos de terra se encontravam em bom estado. Foster foi descendo, ouvindo Oberstadt logo atrás.

        E foram descendo cada vez mais, pelos quatro lances de escada. Foster lembrou-se de que eram quarenta e quatro degraus. Ao terminar de contá-los, compreendeu que estava certo, que se encontrava no nível inferior do Führerbunker original.

        Ali, naquele labirinto, dezessete metros abaixo do ponto em que entrara, estava sufocante. Era difícil respirar. Deu um passo e a poeira levantou, fazendo-o tossir.

        —  Você está bem? — perguntou Oberstadt, a voz ressoando pelo subterrâneo.

        —  Estou sim. Vamos verificar onde estamos.

        Ele conhecia muito bem a planta do nível inferior do bunker. Havia dezoito cômodos pequenos que se estendiam por quatorze metros à frente, e o acesso por aquele corredor central, de teto baixo, três metros de largura. Mas agora, pensando em Emily, Foster estava interessado apenas em seis cômodos, a suíte de Hitler e Eva Braun, mas especialmente a sala e o quarto pessoais de Hitler.

        Foster levantou a lanterna, tentando determinar as condições do nível inferior. A confusão era total, embora o lugar estivesse intacto. O teto e as paredes do corredor, outrora limpas, cor de ferrugem, estavam agora escurecidas pela terra e pelo tempo, teias de aranha pendendo por toda parte. Aqui e ali, à sua frente, havia poças de água estagnada e áreas enlameadas. Avançando alguns passos cautelosamente, Foster gritou para trás:

        — A porta deve estar por aqui, à direita. Vou verificar.

        E foi então que viu, através do buraco que fora outrora uma sala de espera, a porta de aço espesso, à prova de fogo, sobre a qual tanto lera, a que levava aos aposentos pessoais de Hitler no bunker.

        A maçaneta da porta estava ali, muito enferrujada, e Foster torceu para que ainda funcionasse, e pudesse abrir a porta.

        Com a ajuda da lanterna, ele achou a maçaneta. Estava fria. Segurou-a firmemente, virou-a. Com um rangido de protesto, a tranca cedeu. Foster encostou-se na porta, a fim de empurrá-la com seu peso. Mas a pressão não foi necessária. Rangendo, a porta se abriu lentamente.

        Por alguns segundos Foster permaneceu imóvel, como se fosse incapaz de deixar o presente e ingressar no passado. Então, ele avançou para a história. Enquanto movimentava a lanterna, o poço negro adquiriu vida sob a claridade intensa, que aumentou ainda mais alguns segundos depois, reforçada pela lanterna de Oberstadt, ao seu lado.

        A imagem há tanto tempo em sua mente encarregara-se de decorar a sala de estar de três por cinco metros, preparando-o para o que esperava encontrar. Haveria uma mesa num lado, com uma fotografia emoldurada da mãe de Hitler. Sobre o carpete haveria três cadeiras antigas e bem em frente uma mesinha redonda e o sofá azul manchado de sangue, em que haviam morrido Der Führer e sua mulher, Eva Braun.

        Mas a imagem foi dissipada pela realidade, e Foster compreendeu que quarenta anos haviam transcorrido, que estava no presente. Embora o Führerbunker tivesse sido isolado pelos russos, a fim de manter afastados os soldados do Exército Vermelho e o público curioso, alguns caçadores de souvenirs, entre o pessoal médico e os guardas soviéticos, haviam descido até ali durante os dois ou três dias iniciais. Procuravam por recordações ou utensílios para suas casas devastadas na Rússia.

        Foster olhou ao redor, examinando as áreas iluminadas pelas lanternas. O carpete fora arrancado e levado. Duas das três cadeiras estavam faltando, a terceira se encontrava toda quebrada, parecendo uma pilha de lenha. A mesinha redonda sumira. Tudo o que restava do passado eram a mesa de Hitler, encostada numa parede, e o sofá imundo e mofado, em outra.

        Mas Foster procurava por outra coisa.

        —  Projete a luz de sua lanterna na escrivaninha — ordenou a Oberstadt.

        Foster adiantou-se e com uma das mãos afastou a escrivaninha da parede. Espiou por trás, examinando a parede de concreto, depois ficou de joelhos, tateando pela parede. Era lisa... suja, mas lisa. Levantando-se, ele disse, enigmático:

        —  Aqui não. Vamos para o outro cômodo. Deve ser o quarto particular de Hitler.

        A porta de madeira do quarto estava emperrada. Foster sacudiu-a algumas vezes, até que se abriu abruptamente, levantando uma cortina de poeira. Foster tapou o nariz e a boca, esperando que a poeira assentasse. Depois, entrou no quarto, seguido de perto por Oberstadt.

        Era muito menor que a sala. Havia uma cama de solteiro, estreita como um catre militar, totalmente despojada, restando apenas a armação. Até mesmo o colchão fora levado. Foster calculou que houvera outrora uma mesinha-de-cabeceira e um abajur ao lado. Desaparecera. Todos os outros móveis, quaisquer que fossem, haviam sido confiscados. Mas no outro lado do quarto estava uma cômoda de quatro gavetas, muito grande para ser removida, ainda encostada na parede.

        Foster examinou as paredes e o teto do quarto. Eram de concreto, e havia rachaduras por toda parte.

        —  Muito estranho — comentou ele. — Há rachaduras aqui, mas não na sala. Contudo, o concreto é o mesmo.

        Oberstadt projetava o facho de sua lanterna em uma parede, estudando uma rachadura.

        —  Não entendo. Nada disso deveria ter rachado. — Pegou uma chave de parafuso e começou a enfiá-la numa rachadura. — Não creio que estas fissuras tenham acontecido naturalmente. Podem ser artificiais.

        Foster concordou com a cabeça, murmurando:

        —  Simuladas. Uma forma de camuflagem.

        —  Uma o quê? — indagou Oberstadt, perplexo.

        —  Para fazer com que todos ignorassem o fato verdadeiro. Já vai ver. Ajude-me a afastar esta cômoda.

        Os dois largaram as lanternas, pegaram os lados da cômoda e a afastaram da parede.

        —  Vamos empurrá-la mais para o centro do quarto — disse Foster. — Muito bem, agora pegue a sua lanterna e ilumine a parede onde estava a cômoda.

        Oberstadt obedeceu. Foster tornou a ficar de joelhos, estudando atentamente o trecho da parede que estivera escondido pela cômoda. Passou um indicador por quatro partes da parede.

        —  Justamente o que eu esperava. Passe-me a chave de parafuso, Andrew.

        Oberstadt entregou a chave de parafuso, e Foster cavoucou as fendas que encontrara. Não demorou muito para que um contorno na parede adquirisse forma. Parecia um painel retangular, com cerca de l,20m de largura e um metro de altura. Foster levantou-se.

        —  Aqui está o que eu procurava.

        —  O que era isso?

        —  Sou arquiteto há muito tempo, Andrew. Não posso imaginar que alguém construa um quarto desprovido de janelas como este sem acrescentar uma saída de emergência para complementar a porta.

        —  Mas há uma saída de emergência. Acabamos de descer por ela.

        —  Estou falando de uma saída particular. Não havia nenhuma na planta do Führerbunker. Eu não podia acreditar. Calculei que uma fora acrescentada depois. Pelo próprio Hitler. Uma saída secreta.

        O rosto avermelhado de Oberstadt adquiriu uma expressão de incredulidade.

        —  Isso é uma saída secreta?

        —  Acho que sim.

        —  Mas por quê? Para a eventualidade de um ataque com gás?

        —  Neste caso, para outra coisa. Um meio de escapar do bun-ker sem ser descoberto.

        —  Está querendo dizer que ele...

        —  Saberemos em breve. Está com a serra?

        —  Claro.

        —  Muito bem. — Foster apontou para as quatro linhas na parede. — Vamos começar. Espero encontrar um bloco móvel. Vamos ver se é isso mesmo.

        —  É pra já! — exclamou Oberstadt, no maior entusiasmo. Ele largou a lanterna e o saco com ferramentas e pegou a serra.

        Enquanto Oberstadt se aproximava da parede e ajoelhava, levantando a serra, Foster disse:

        —  Espero que não faça muito barulho.

        —  Faz barulho, mas será rápido. Se for apenas um bloco, então foi cortado para se ajustar na abertura e não terei de passar por concreto sólido. O que você cavoucou parece argamassa. Deve ser fácil como massa de vidraceiro, o barulho não deve passar de um zumbido. — Oberstadt fez uma pausa. — De qualquer forma, que diferença faz? Pensei que isto fosse uma saída de emergência.

        —  Ainda pode ser. Depende... para onde leva e o que tem no outro lado.

        —  O que pode haver no outro lado?

        —  Não saberei até você terminar.

        —  Muito bem, lá vamos nós.

        Oberstadt acionou a serra, que emitiu um zumbido baixo e firme. Encostou a lâmina numa das linhas na parede e no mesmo instante o barulho se tornou um ganido metálico.

        Levantando sua lanterna ainda mais, a fim de que Oberstadt pudesse ver melhor, Foster ficou surpreso com o rápido progresso da serra. Passava pelas linhas como se fosse um pedaço de bolo. Oberstadt só parou uma vez, comentando:

        —  Você está certo. E mesmo um bloco... uma tela de arame com argamassa por dentro. Deve sair num instante.

        Dez minutos depois ele desligou a serra e largou-a. Os dedos se enfiaram por um lado do bloco, sacudindo-o ligeiramente.

        —  Já estava solto — disse Oberstadt. — Só tinha uma leve camada de argamassa. Pode me dar uma ajuda?

        Cada um pegou um lado do bloco e começaram a puxar, tirando-o gradativamente da parede.

        —  Não é muito pesado porque não é concreto maciço — resmungou Oberstadt. — Não deve pesar mais que quarenta quilos.

        Empurraram o bloco para um lado, encostando-o na parede sólida do quarto. Foster ficou de joelhos, aproximou-se do buraco, levantou a lanterna e deu uma olhada lá dentro. Em seguida recuou.

        —  Justamente o que eu esperava.

        —  E o que você esperava?

        —  Um túnel subterrâneo como o que Speer abriu entre a Velha Chancelaria e a Nova. Só que este não foi aberto por Speer. Tenho certeza de que foi construído pelos trabalhadores-escravos de Hitler.

        —  O que vamos fazer agora? — indagou Oberstadt. Foster sorriu.

        —  Agora, vamos nos separar. Tenho de entrar por esse túnel para ver se descubro alguém.

        —  É melhor você me deixar acompanhá-lo.

        —  Não, Andrew. Neste caso, dois constituem uma multidão. Apenas uma pessoa pode fazer o que é necessário com mais discrição. O que é indispensável.

        Oberstadt ainda hesitava.

        —  Tem certeza de que quer ir sozinho?

        —  Acho que é melhor assim. — Foster estendeu a mão. — Obrigado, meu amigo. É melhor você subir agora. Eu o chamarei, se precisar de ajuda.

        —  Você é quem manda — murmurou Oberstadt, empertigando-se.

        —  Ficarei com a lanterna. E... você pode me emprestar também a talhadeira e o martelo.

        —  Talhadeira e martelo. Certo.

        Oberstadt entregou as ferramentas, depois pegou o saco com as outras ferramentas e a lanterna. Ao deixar o quarto de Hitler, ele só se virou uma vez, dizendo:

        —  Boa sorte, aonde quer que você esteja indo.

        Foster guardou as ferramentas nos bolsos da calça. Contemplou o buraco retangular na parede. Não havia mais qualquer dúvida. Hitler e Eva Braun haviam deixado o Führerbunker por ali, e o bloco reposto no lugar por companheiros, que também encostaram a cômoda na parede.

        E depois Hitler escapara pela catacumba sob a cidade... para onde? Foster desconfiava de que sabia para onde e também desconfiava de que Emily podia estar lá agora, e certamente não sozinha.

        Com extremo cuidado, segurando firmemente a lanterna e estendendo-a à sua frente, Foster passou pelo buraco.

        Saindo no túnel, ele levantou-se. Havia espaço suficiente. O túnel erguia-se para um teto em arcada, uns dez centímetros acima de sua cabeça. Havia escuridão além do facho da lanterna.

        Consultou o mostrador luminoso do relógio. Depois, segurando a lanterna à sua frente, começou a andar, devagar. Colocava um pé na frente do outro, cauteloso, as botas de sola de borracha não fazendo qualquer barulho.

        Era um túnel comprido e limpo, sem teias de aranha, sem terra. Apenas concreto por todos os lados, o facho de luz se projetando à frente, a escuridão também.

        E continuou a andar.

        Tornou a consultar o relógio. Já estava no túnel há vinte e cinco minutos. Percorrera pelo menos mil metros. Para onde?

        E foi então que viu. O facho da lanterna incidira sobre um beco sem saída. Uma parede sólida de concreto bloqueava a extremidade do túnel. Devia ter também uma abertura, um ponto de saída. A menos que tivesse sido solidamente cimentada.

        Em silêncio, mas depressa, chegou à parede que bloqueava o túnel. Começou a examiná-la meticulosamente, procurando por sinais de uma saída. Não demorou a encontrar o que procurava, bem no meio, na parte de baixo.

        Colocou a lanterna no chão, ajoelhou-se, estudou atentamente o lugar, enfiou os dedos por cima do bloco quadrado, menor que o da entrada do túnel, e experimentou alívio intenso ao constatar que estava solto, não cimentado, apenas encaixado no lugar.

        Pegou a talhadeira e, com o mínimo de barulho possível, começou a desprender o bloco.

        Conseguiu deslocá-lo facilmente, não era muito grosso, e quase caiu em suas mãos ansiosas. Estava solto agora, e Foster colocou-o no chão do túnel, ao seu lado. Havia um buraco quadrado, ao nível do chão, pelo qual seu corpo poderia passar sem muita dificuldade. Percebeu que havia alguma iluminação, um tanto escassa, no outro lado do túnel. Apagou a lanterna e largou-a na beira do túnel.

        Deitando-se, ele esgueirou-se pelo buraco. Ao sair no outro lado, avistou uma divisória de madeira, poucos metros à frente, com uma porta também de madeira. A porta era quase rente ao chão de concreto, e uma réstia de luz passava por baixo.

        Em silêncio, Foster levantou-se. O coração batia mais depressa, a adrenalina fluindo no sangue.

        Na ponta dos pés, sobre as solas de borracha, ele aproximou-se da porta. Não havia fechadura. Virou a maçaneta e puxou a porta alguns centímetros.

        A primeira coisa que percebeu foi que se encontrava numa espécie de mezanino, com uma escada descendo para...

        E foi então que ficou boquiaberto. Estendendo-se à sua frente, lá embaixo, parcamente iluminado para as horas noturnas, estava outro Führerbunker, só que maior, mais que o dobro na largura, mais que o dobro no comprimento. Uma sucessão de cubículos, provavelmente escritórios, mas também aposentos.

        E Foster compreendeu no mesmo instante o que descobrira.

        O sétimo bunker secreto de Hitler.

        Atônito, correu os olhos ao redor. O refúgio de Hitler por baixo da cidade de Berlim, escondido e povoado por quarenta anos. Uma cidade invisível por baixo da cidade.

        Enquanto seus olhos esquadrinhavam a vista incrível lá embaixo, Foster percebeu que não se encontrava sozinho ali, por cima do bunker secreto.

        Não estava sozinho. Tinha companhia.

    

        O que Foster viu, o que prendeu sua atenção hipnotizada, foi um guarda, de costas, um jovem soldado nazista, de uniforme cinza, uma faixa com a suástica num braço, o outro sustentando uma submetralhadora. Havia um coldre no cinto, contendo o que podia ser uma Luger .08.

        Para Foster, era evidente que a cabeça do soldado caíra para a frente, o queixo encostado no peito.

        A respiração era pesada, e ele deixava escapar uma sucessão de roncos.

        Cochilara durante o tedioso serviço de guarda noturna. Estava sentado no patamar de uma escada que parecia descer para o vasto bunker, e certamente adormecera.

        O movimento seguinte de Foster era óbvio. Ele não pensou duas vezes. Tirou o martelo do bolso da calça, segurando-o firmemente pelo cabo, abriu a porta por mais alguns centímetros, bem devagar, e passou.

        Agachado, Foster avançou para as costas do guarda adormecido. Sua visão periférica não divisou qualquer sinal de alguma pessoa no bunker lá embaixo.

        Quase em cima do guarda adormecido, Foster tentou prender a respiração, erguendo-se gradativamente para ter um impulso maior.

        Estava agora por cima do jovem nazista, olhando para os seus cabelos cor de areia. Levantou o martelo acima do ombro e mirou.

        O martelo desceu, o impacto firme, o golpe acertando em cheio na base do crânio do jovem nazista.

        A vítima não deixou escapar qualquer som. Começou a cair de lado, inconsciente, a submetralhadora desprendendo-se de sua perna e começando a cair também.

        Desesperado para evitar o barulho de um corpo caindo ou o estardalhaço da submetralhadora, Foster estendeu o braço livre, sustentando o corpo do rapaz, ao mesmo tempo em que a mão estendia-se para segurar a arma, os dedos conseguindo alcançá-la bem a tempo.

        Mais um olhar para a área lá embaixo.

        Ninguém fora alertado. Não havia ninguém à vista.

        Mesmo assim, Foster sabia que não podia perder sequer um precioso segundo. Estava no território subterrâneo do inimigo, herdeiros dos mais brutais assassinos dos tempos modernos, e devia estar preparado para qualquer coisa. Tornando a guardar o martelo no bolso da calça, pegou firmemente a submetralhadora com a mão direita e levantou o guarda inerte com o braço esquerdo. Recuando devagar, passou com o corpo pela porta e fechou-a com a ponta do pé.

        Baixando o guarda para o chão, Foster examinou-o. Devia ter trinta e poucos anos, nariz arrebitado, os olhos fechados. O golpe abrira a pele, provavelmente fraturara o crânio, e um filete de sangue escorria pelo pescoço do nazista. Foster não pôde determinar se o homem ainda respirava ou se havia ainda alguma pulsação. Mas, qualquer que fosse o seu estado, o guarda passaria muito tempo inconsciente, talvez para sempre. Constatou que o homem era um pouco mais baixo do que ele, mas afora isso tinham mais ou menos o mesmo corpo. E chegou à conclusão de que a troca funcionaria.

        O que fez em seguida era familiar para Foster. Já o fizera uma vez, com o cadáver de um vietcongue, antes de uma infiltração no Vietnã. E vira acontecer em filmes. Esperava que fosse suficiente. Ajoelhando-se, começou a tirar as roupas de soldado inconsciente, o cinturão com o coldre, a túnica, a calça, os sapatos.

        Foster olhou ao redor, à procura de um lugar para esconder o corpo inerte. Notando o que parecia ser um armário embutido numa parede, levantou-se, foi até lá e abriu as portas. Era de fato um armário, com três colchões empilhados. Foster voltou, puxou o corpo do soldado, levantou-o com alguma dificuldade para o colchão de cima e ajeitou-o ali. Só mais uma verificação. Ainda não havia o menor sinal de consciência. Aquele guarda não ofereceria qualquer perigo.

        Foster despiu-se depressa. Jogando suas roupas no armário, fechou as portas e depois pegou o uniforme do nazista, começando a vesti-lo. Ao terminar, constatou que o uniforme cinza estava um pouco largo e a calça alguns centímetros mais curta, mas não chegava a fazer muita diferença. Ajustou o cinto com a arma, tirou a Luger do coldre, examinou-a e confirmou que estava com um pente de balas.

        Estava pronto agora. Usar o uniforme nazista era-lhe repugnante, mas o disfarce valia a pena, qualquer que fosse o custo, já que era a única esperança de encontrar Emily. Rezava para que ela ainda estivesse viva, e ilesa.

        Com mais confiança, passou pela porta para o patamar, onde vira a sua vítima cochilando durante o serviço de sentinela. Agachando-se por um instante, esquadrinhou a área lá embaixo. Em sua mente de arquiteto, tentou sobrepor a planta do sétimo bunker que estudara tantas vezes e gravara na memória.

        O bunker ajustava-se perfeitamente à planta. Foster sabia que fora projetado no padrão geral do Führerbunker menor, só que em escala muito maior. Podia ver os cômodos menores, nos dois lados do largo corredor central. Pelo que estudara da planta, a suíte grande estaria localizada na extremidade do corredor. Era o tipo de suíte que alojaria alguém no comando... certamente alguém como Adolf Hitler.

        Não podia haver qualquer dúvida de que Hitler preparara aquela suíte — e aquele bunker — para si e Eva Braun.

        A possibilidade de que o próprio Hitler ainda pudesse estar ali ocorreu-lhe com mais intensidade. Hitler... Se não Hitler, então Evelyn Hoffmann, porque estava agora convencido de que Evelyn Hoffmann era nada menos que Eva Braun.

        E se Eva Braun controlava a suíte, era bem provável que Emily também estivesse ali.

        Seria o seu destino, a suíte grande, e seguiria diretamente para lá.

        Calculou que encontraria outras sentinelas noturnas, pelo menos mais uma ou duas, ao longo do corredor, e estava preparado para qualquer desafio.

        Começou a descer a escada, pisando com cuidado, nas botas de couro apertadas da Wehrmacht, saindo quase na extremidade do corredor, coberto, por um carpete verde-escuro.

        Confiante, iniciou a tensa marcha entre as duas fileiras de portas fechadas, a caminho do posto de comando.

        Ninguém à vista.

        E depois, alguém.

        Encostado ao lado do que parecia ser a porta de um escritório, outra sentinela noturna, um homem também jovem, louro, alto e esguio, absorvido em limpar as unhas, a Heckler & Koch encostada na parede ao lado.

        Foster avançou em sua direção sem qualquer hesitação. Quando já estava quase emparelhando com a sentinela, reconsiderou por quem deveria perguntar. Frau Evelyn Hoffmann ou Frau Eva Braun. O instinto levou-o a voltar ao que planejara inicialmente. Pelo canto da boca, ele disse ao guarda, num alemão perfeito:

        —  Tenho uma mensagem urgente para Número Um.

        Apenas isso. Sem nome. Neutro. Número Um. Seguro. Ou pelo menos ele assim esperava. O guarda mal se deu o trabalho de levantar os olhos.

        —  Ela está provavelmente dormindo agora... mas se é alguma coisa especial, pode ir.

        Foster saudou-o e, com seu melhor porte militar, como um soldado levando uma mensagem vital a seu líder, continuou a marchar em frente. Esperou que o guarda reconsiderasse, o chamasse de volta, mas isso não aconteceu.

        Chegando à suíte na extremidade do corredor — sem aberturas, madeira de alto a baixo, privacidade absoluta — ele se lembrou do projeto do sétimo bunker. Virando à esquerda, avançou depressa pela passagem, até encontrar a porta da suíte.

        Sem saber o que poderia aguardá-lo lá dentro, Foster pôs a mão na maçaneta de latão e virou-a, tão silenciosamente quanto possível.

        A porta se abriu e ele entrou numa pequena sala de recepção, mobiliada com uma escrivaninha modesta, uma cadeira giratória e duas cadeiras dobráveis. Não havia ninguém. Apenas uma segunda porta.

        Tirando as pesadas botas militares, encaminhou-se furtivamente para a segunda porta. Não havia fechadura. Ele abriu-a. Deu uma olhada. Dois abajures de pé proporcionavam a única iluminação da sala sem janelas. Era uma combinação de sala de estar e escritório, com uma enorme escrivaninha de carvalho à direita, um sofá e duas poltronas no outro lado, de frente para uma prateleira de madeira que parecia um consolo, mas com uma estante cheia de livros por baixo, em vez de uma lareira.

        Até onde ele podia perceber, a grande sala estava completamente desocupada.

        Mas estava enganado.

        —  Rex... — chamou uma voz de mulher, abafada.

        Sabia que o som partia de Emily, que ela se esforçava para levantar por trás do sofá e ser vista.

        Foster foi até o sofá. Emily, as mãos e pés amarrados, arriara outra vez no sofá, estendida de costas, à sua espera. Ajoelhando-se, trabalhando depressa para desfazer o nó da corda que a prendia, Foster conseguiu sorrir para a incredulidade que se estampava no rosto pálido de Emily. Os cabelos castanho-avermelhados estavam desmanchados, a saia de tweed levantada acima dos joelhos, obviamente por seus esforços para se livrar. Mas parecia ilesa.

        —  Você está bem? — sussurrou ele, afrouxando os nós. Emily acenou com a cabeça.

        —  Tem mais alguém por aqui?

        —  Psiu — disse Emily. — Tem sim. No quarto. Tome cuidado. — Quando seus braços ficaram livres, ela acrescentou: — Como conseguiu chegar aqui?

        —  Não importa agora. Você vai descobrir daqui a pouco. Ele desamarrava as cordas nos tornozelos, e ajudou-a a se

        sentar.

        —  Não sabe como rezei para que você estivesse bem. Foster estava no sofá ao lado de Emily, abraçando-a e beijando-

        a. Ela se comprimiu contra o seu corpo, aproximando a boca do seu ouvido.

        —  Eu não estaria bem pela manhã. Estão me guardando para outro interrogatório. Um homem horrível chamado Schmidt esteve aqui há poucas horas...

        —  Ele é o chefe da polícia de Berlim, um nazista secreto.

        —  ...para usar pentotal sódico em mim, a fim de descobrir quanto somos aqui em Berlim, o que sabemos, para poder nos descobrir e eliminar. Mas no instante em que chegou ele foi avisado de que deveria comparecer imediatamente a uma audiência, esta noite, sobre a morte de Ernst Vogel. Para determinar se foi suicídio ou assassinato. Ao que parece, era muito importante, porque ele saiu no mesmo instante. Mas prometeu que voltaria pela manhã, a fim de administrar o pentotal sódico e me interrogar. Sou a primeira de nosso grupo a ser capturada. Depois que falasse tudo, seria executada e cremada. Antes de se retirar, Schmidt disse a ela que trabalharia em mim bem cedo, depois viajaria para Munique.

        —  Disse a ela? — repetiu Foster. — De quem está falando? Quem é ela?

        —  Eva Braun. A verdadeira. Ela se apresenta como Evelyn Hoffmann. Mas gabou-se para mim que é Eva Braun.

        —  E Hitler?

        —  Já morreu. Há muito tempo. Ele e Eva viveram aqui, por baixo da cidade, durante dezoito anos, até que Hitler morreu de doença de Parkinson. Ela comanda tudo desde então.

        —  Incrível — murmurou Foster aturdido. — O que eles querem?

        —  Sobreviver. Não apenas por si mesmos, mas para ressuscitar o Terceiro Reich. Olhe ali.

        Emily levantou-se com alguma dificuldade e levou Foster até o consolo.

        —  Ao lado da urna grega que ela idolatra, onde estão guardadas as cinzas de Hitler. Entre a urna e o quadro de Hitler que roubaram de Kirvov. As palavras impressas na moldura são de Hitler.

        Foster aproximou-se. A citação dentro da moldura, pendurada na parede, estava escrita em alemão e dizia:

         O CONFLITO ENTRE RÚSSIA

         E ESTADOS UNIDOS É INEVITÁVEL.

         VAI ACONTECER.

         E QUANDO ISSO OCORRER,

         DEVO ESTAR VIVO — OU MEU SUCESSOR,

         COM OS MESMOS IDEAIS — PARA LIDERAR

         O POVO ALEMÃO,

         PARA AJUDÁ-LO A SE ERGUER DA DERROTA,

         PARA CONDUZI-LO À VITÓRIA FINAL.

        ADOLF HITLER

 

        —  Santo Deus! — murmurou Foster.

        —  Suas palavras para um oficial da SS.

        —  Foi para isso que ele viveu?

        —  E é para isso que ela vive hoje.

        —  Mas como, Emily? — Foster fez uma pausa, pensando. — O que eles estarão planejando?

        —  Não sei. Não ouvi nada.

        —  Pois vamos descobrir. — Ele tirou a Luger do coldre. — Vamos fazer uma visita a Eva Braun. Ela está no quarto?

        —  No quarto ao lado do que Hitler ocupava. Ela não vai falar, Rex. Jamais dirá coisa alguma.

        Ele refletiu por um instante e depois sussurrou.

        —  O pentotal sódico. Tencionava usá-lo em você. Sabe onde está?

        Emily assentiu.

        —  Schmidt deixou-o na gaveta da escrivaninha, a de cima, no lado direito. Ouvi-o comentar que era válido por vinte e quatro horas.

        —  Descubra-o, Emily. E pegue a corda no sofá. Vamos precisar dela.

        Chegando à mesa, Emily abriu a gaveta e tirou um saco plástico.

        —  Uma seringa, algo para usar como torniquete e uma solução amarelada: pentotal sódico. É esse mesmo.

        —  O soro da verdade. — Foster olhou para a Luger. — Leve-me ao quarto. Está na hora da verdade.

       

        Quinze minutos se haviam passado, e agora Eva Braun estava estendida de costas na cama, os pulsos e tornozelos amarrados aos balaustres da cama, amordaçada. Os olhos estavam abertos, não mais aterrorizados. Apenas desfocados.

        Pentotal sódico. Perfeito, pensou Foster, inclinando-se por cima dela.

        Até aquele ponto, refletiu Foster, fora bastante fácil. O súbito aparecimento dos dois e as luzes acesas levaram Eva Braun a um despertar imediato. A arma encostada em sua cabeça a forçara à submissão e, depois, ao silêncio.

        —  Pegue algumas roupas e faça-a vesti-las, Emily — ordenara ele.

        Depois que Emily pegara as roupas, Foster lhe entregara a arma e deixara o quarto.

        Ao voltar, encontrara Eva inteiramente vestida, outra vez deitada, Emily apontando-lhe a Luger.

        —  Segundo passo — dissera ele a Emily. — Passe-me a arma e pegue a corda.

        Depois de a amarrarem à cama, ele pedira a Emily que pegasse o pentotal sódico. Pela primeira vez, Eva Braun protestara, na maior agitação:

        —  Não, não, não! — implorara ela.

        Mas Foster só pensara nos seis milhões de vítimas do holocausto que também haviam suplicado por suas vidas, que lhes fora negada. A mulher do monstro, ela própria um monstro agora, também devia ser repelida. Foster enfiara a mordaça em sua boca e depois, com ar resoluto, preparara-se para aplicar o soro da verdade.

        Lembrando-se do que testemunhara no Vietnã, ele enchera a seringa com a solução. Depois, usando o torniquete, procurara uma veia bem saltada no pulso dela. Com todo cuidado, inserira a agulha na veia e injetara a droga intravenosamente. Retirando a agulha, observara Eva, murmurando para Emily.

        —  Deve fazer efeito em menos de um minuto.

        Olhando fixamente para Eva agora, ele podia constatar que os olhos se encontravam vidrados, ela estava completamente grogue.

        —  O efeito deve durar de uma a duas ou três horas. Aplicarei nela uma injeção de reforço depois. — Pegando Emily pelo braço e guardando a Luger no coldre, Foster acrescentou: — Podemos deixá-la por alguns minutos. Temos outra coisa a fazer.

        Saiu do quarto com Emily, atravessando o pequeno corredor até a sala. Por um momento, Foster ficou em silêncio, pensando, e depois perguntou:

        —  Emily, tem alguma idéia de quantos nazistas estão escondidos aqui?

        —  Eva me disse: "Somos mais de cinqüenta."

        —  Tem alguma idéia de quem são eles?

        —  Ela também falou sobre isso com bastante orgulho. Alguns homens do antigo círculo íntimo de Hitler, que foram declarados desaparecidos. Muitos da Juventude Hitlerista, enviados aqui para baixo antes de Hitler se instalar no bunker. Todos são agora adultos, muitos têm família. Não há crianças aqui, ninguém com menos de dezesseis anos. As mulheres grávidas são sempre enviadas para a Argentina, onde nascem seus filhos. As mulheres voltam sozinhas. As crianças são criadas e treinadas por alemães na Argentina. Só depois de completarem dezesseis anos é que os jovens voltam a Berlim, a fim de ocuparem seus lugares no bunker.

        —  Mas todos são nazistas obstinados.

        —  Mais do que isso. Além de nazistas, são também assassinos, condicionados para matar.

        —  Matar quem, Emily?

        —  Qualquer um lá em cima que possa ameaçá-los. Ela falou sobre a necessidade de exterminar... foi a palavra que usou... anti-nazistas, judeus proeminentes, caçadores de nazistas e estrangeiros perigosos, como meu pai. — Emily piscou os olhos. — Ela admitiu que o "acidente" de meu pai foi arrumado. Também admitiu que seus seguidores foram responsáveis por pelo menos 200 assassinatos, nos últimos vinte anos. Eles o liquidariam no mesmo instante, se soubessem que esteve aqui. São implacáveis, Rex, absolutamente brutais.

        —  Muito bem, Emily. Tenho uma missão para você. Vou tirá-la daqui agora. Mostrarei o caminho por onde entrei, pois será por lá que você vai sair.

        —  Numa missão?

        —  Isso mesmo. Sairá sob o monte do Führerbunker original, subindo para a antiga saída de emergência, para a Zona de Segurança de Berlim Oriental. Oberstadt está lá em cima. Ele não terá qualquer dificuldade em levá-la pelo portão. Procure o telefone mais próximo. Fale com Tovah Levine, no Bristol Kempinski. Ela e Kir-vov estão esperando. Diga-lhe que descobrimos tudo e mande que ela avise imediatamente a Chaim Golding.

        —  Chaim Golding?

        —  O chefe do Mossad em Berlim. Tovah é uma de suas agentes. Ele dispõe de pessoal e equipamentos para fazer o que é necessário. Diga a ele que quero que extermine os ratos que estão aqui embaixo, todos eles, imediatamente, esta noite.

        Os olhos de Emily se arregalaram.

        —  Como, Rex?

        —  Da mesma maneira que a quadrilha de Hitler fez com os judeus em Auschwitz. Mais exatamente, da maneira como Albert Speer planejou uma vez livrar-se de Hitler.

        —  Ele ia injetar gás pelo ventilador do Führerbunker.

        —  Isso mesmo.

        —  E lançar uma granada de um gás que afeta o sistema nervoso, chamado Tabun. Absolutamente letal.

        —  Só que desta vez os agentes do Mossad usarão provavelmente um gás muito sofisticado, embora igualmente letal. Tovah está aguardando em nossa suíte. A planta deste bunker está na mesa da sala da suíte. Golding saberá como fazer. Este bunker dever ser hermeticamente fechado. Você passou pela entrada por baixo do Café Wolf?

        —  Isso mesmo. O guarda obrigou-me a descer uma escada, até uma porta de aço. Destrancou-a e empurrou-me para dentro.

        —  Muito bem. Lembre aos agentes do Mossad para cuidarem do guarda no Café Wolf, descerem e trancarem a porta de metal. E depois eles devem bombear o gás. Em poucos minutos, todos os nazistas aqui embaixo estarão liquidados. Está com o relógio?

        —  Estou.

        —  Vamos coordenar o tempo, Emily. Pelo meu relógio, é uma e vinte da madrugada.

        —  Uma e vinte da madrugada — repetiu ela. — Certo.

        —  Avise a Tovah que os agentes do Mossad devem começar a bombear o gás exatamente às três horas da madrugada. Pontualmente às três. E agora vamos embora. Quero tirá-la daqui e depois voltarei para interrogar a nossa Eva Braun. Vou calçar de novo aquelas botas e...

        —  Espere um pouco, Rex. Vai me tirar daqui e depois voltar para interrogar Eva? O que acontecerá com você quando bombearem o gás?

        —  Sairei antes deste bunker e também do antigo Führerbunker. Encontrarei com você lá em cima. Depois que falar com Tovah e Golding, volte ao Führerbunker. Com as suas credenciais, os alemães orientais a deixarão passar de novo.

        —  Estarei à sua espera.

        Foster pegou-a pelo braço, murmurando:

        —  Estará à nossa espera. Sairei junto com Eva. Emily ficou aturdida.

        —  Por que? Foster sorriu.

        —  Precisamos de uma sobrevivente para provar que Hitler não morreu em 1945, que ele conseguiu escapar. Precisamos de alguém para confirmar a nova e sensacional conclusão de sua biografia.

        Ela beijou-o.

        —  Amo você, seu doido.

        A princípio, com Emily a reboque, Foster estava preocupado, mas descobriu que fora mais fácil do que na primeira vez.

        Havia dois guardas nazistas no corredor agora, absorvidos em conversa. Era óbvio que um deles estava prestes a substituir o outro no serviço. Em seu uniforme com a suástica, Foster mostrou-se com porte ainda mais militar, parecendo mais concentrado em sua missão do que quando entrara da outra vez.

        Passou com Emily pelos guardas como se ela pertencesse ao lugar — e era evidente que devia pertencer, caso contrário não estaria no bunker —, e os homens limitaram-se a fitá-la por um instante, mal prestando atenção a Foster.

        Levou Emily para a porta do mezanino, ajudou-a a passar pelo buraco quadrado para o túnel, informando onde estava a lanterna, explicando como sair e o que devia esperar.

        E depois, sozinho, voltou ao quarto de Eva Braun.

        Depois de tirar-lhe a mordaça, Foster acomodou-se na beira da cama. Os olhos de Eva estavam arregalados, um pouco desfocados, fixos no teto. Foster não sabia direito como funcionava o soro da verdade ou por onde começar o interrogatório. Mas em Saigon testemunhara o pentotal sódico ser usado como soro da verdade em prisioneiros vietcongues e achava que deveria funcionar da mesma maneira agora. Ouvira um capitão comentar que era como conversar com alguém durante o sono. Acabava com as inibições, removia qualquer camada de mentira, levava a pessoa a dizer tudo o que tinha no subconsciente. A coisa era simples e direta; e se o efeito começava a passar muito depressa, podia-se ministrar um reforço, deixando a pessoa sonolenta, mas não adormecida nem em estado de choque.

        Resolveu que começaria por algumas perguntas fáceis, a fim de pegar o jeito, depois iria direto à questão e sairia antes que os agentes do Mossad despejassem o gás venenoso no bunker.

         —  Seu nome é Eva Braun, não é mesmo?

        O olhar deixou o teto, para tentar se fixar na pessoa que lhe falava.

        —  Evelyn... Evelyn... — Uma pausa. — Eva. Eu sou Eva Braun Hitler.

        Havia algo de incrível naquela situação, algo assustador, a mulher notória do passado a se identificar, estendida naquela cama.

        —  Eva, você se lembra da data de 30 de abril de 1945?

        —  Claro. É a data em que todos acreditam que nós morremos. Mas os enganamos... enganamos a todos. Escapamos.

        —  Como enganaram a todos?

        —  Usando o ator e a atriz que eram nossos... nossos sósias. Esqueci o nome da mulher... não, estou lembrando... Hannah Wald... e acho que ele era Müller... isso mesmo, Müller. Os dois foram trazidos ao Führerbunker na noite anterior. Estavam apavorados. Tenho certeza de que desconfiavam. Nós os mantivemos em nossos aposentos... naquele dia... não, naquela noite... eles vestiam as nossas roupas. Bormann deu um tiro em Müller e depois obrigou Hannah... pobre coitada... a tomar cianureto. Os corpos foram levados para a sala em que estavam os cachorros e... no dia seguinte...

        Ela hesitou, parou de falar.

        —  No dia seguinte — incentivou-a Foster. — O que aconteceu no dia seguinte, Eva?

        —  No dia seguinte meu marido e eu pusemos os dois no sofá. E depois...

        Ela tornou a se calar.

        —  Depois o que, Eva?

        —  Rastejamos pela passagem no quarto e atravessamos o túnel para o novo bunker. E Bormann... depois que os outros levaram os corpos... Bormann voltou sozinho ao quarto, repôs o painel no lugar, ajeitou o bloco, cobriu-o, empurrou a cômoda para a parede. E depois ele deve ter saído.

        —  Para onde Bormann ia?

        —  Deveria se encontrar conosco e ficar também no outro bunker.

        —  E isso aconteceu?

        Por um momento Eva pareceu ficar aturdida.

        —  Não. Bormann deveria se encontrar com a gente na outra entrada...

        —  O Café Wolf?

        —  Tinha um nome diferente na ocasião. Era um bar, no mesmo lugar. Mas... eu... eu não sei... Bormann nunca apareceu. Alguém disse mais tarde que ele foi morto ao deixar o Führerbunker... talvez por uma explosão da artilharia russa. Mas não sei com certeza.

        Foster percebeu que a atenção de Eva Braun se diluía e torceu para que a memória não fosse afetada.

        —  Eva, quando foi construído o bunker para onde você e Hitler escaparam?

        —  Longe de Stanlingrado. Der Führer já tinha a planta.

        —  Hitler não receava que os operários pudessem denunciar a localização?

        Ela ficou em silêncio por um instante.

        —  Não sei... nunca pensei nisso.

        —  Quer dizer então que viveram neste bunker e ninguém jamais descobriu?

        —  Ninguém.

        —  Hitler nunca deixou o bunker e subiu para a cidade lá em cima?

        —  Claro que não.

        —  E você... você saiu alguma vez daqui, enquanto Hitler estava vivo?

        —  Eu queria, é claro, mas o Führer nunca permitiu. Só depois que tivemos a criança...

        Tiveram a criança? Foster não podia acreditar no que estava ouvindo. Examinou atentamente o rosto impassível de Eva Braun, em busca de qualquer sinal de fantasia. E depois perguntou, bem devagar:

        —  Você e Hitler tiveram um filho?

        —  Todo mundo sabe disso. O tom de Eva era impaciente.

        —  Claro, claro. Então vocês tiveram uma criança...

        —  Antes de meu marido ficar gravemente doente. Depois que Klara nasceu, meu marido queria que ela fosse criada normalmente em Berlim, mas que nunca se tornasse conhecida como nossa filha.

        Depois de tantos anos no bunker, tive permissão para sair, levando Klara. O Café Wolf já existia na ocasião e eu saí...

        —  A quem você deu Klara?

        —  À minha antiga criada... a primeira Liesl. Wolfgang Schmidt sabia que Liesl se fixara em Berlim. Achou que era seguro falar a ela sobre a nossa fuga, especialmente depois de lhe dar um bom dinheiro. Schmidt providenciou para que Liesl assumisse Klara como sua própria filha.

        —  Foi a primeira vez que você saiu. Quando foi a seguinte?

        —  Alguns anos mais tarde. — Havia uma expressão angustiada no rosto de Eva quando acrescentou: — Depois que meu marido morreu.

        —  Ele estava muito doente?

        —  Só no final. Antes, estava muito bem. Mantinha-se ocupado planejando o futuro, às vezes lia, escutava música, até mesmo pintava. Eu o fazia pintar para se distrair. — Parecia confusa outra vez. — Não, foi antes de ele morrer... poucos anos depois do nascimento de Klara... que saí do bunker pela segunda vez. Queria tirar fotografias de alguns dos seus prédios antigos favoritos para ele copiar... pintar... mas só pude encontrar um... o prédio de Göring... o Reichsluftfahrtministerium, na Leipzigerstrasse. Anos depois, vi o Muro pela primeira vez... uma atrocidade arquitetônica, infligida a uma cidade maravilhosa...

        —  E seu marido morreu. Quando?

        —  Quando o presidente americano... Kennedy... morreu... foi morto, no Texas. O rádio deu a notícia. Meu marido morreu da doença de Parkinson no mesmo dia. — Os olhos de Eva lacrimejavam. — Fizemos uma cerimônia e depois cremamos o corpo.

        —  Depois disso você passou a sair do bunker regularmente?

        —  Talvez uma vez por mês, para visitar Klara e Liesl, às vezes Schmidt. Ninguém podia mais me reconhecer, e por isso não havia qualquer problema. Aos poucos, comecei a sair do bunker com mais frequência, e logo todas as semanas, para visitar Klara, como sua tia Evelyn. A linda Klara, algo a que podia me apegar. E é claro que também havia o trabalho...

        —  Que trabalho? — perguntou Foster, bruscamente.

        —  Continuar o que meu marido estava fazendo.

        —  Estimular um conflito armado entre os Estados Unidos e. a União Soviética?

        —  Ora, isso aconteceria de qualquer maneira, meu marido sempre teve certeza. — Deu um tênue sorriso. — Será um dia maravilhoso quando eles se aniquilarem mutuamente. Detestamos igualmente a União Soviética e os Estados Unidos, embora a América tenha um líder que passamos a respeitar. Estou falando do presidente cowboy, que homenageou nossos quarenta e nove mortos da Waffen SS, no cemitério de Bitburg, na primavera passada. Meu marido teria apreciado a sua cortesia. Mas todos os outros americanos e russos são nossos inimigos. Será bom saber que eles se destruíram uns aos outros.

        —  Esse conflito entre americanos e russos... quando deveria acontecer? Você sabe?

        —  Algum dia... algum dia no futuro. — A voz de Eva tornou-se quase inaudível. — Mas primeiro... primeiro havia uma coisa mais importante. Estar pronta quando o momento chegasse. A Alemanha devia estar preparada. A Alemanha era tudo o que importava. Tornar a Alemanha forte outra vez. Prepará-la para o renascimento.

        —  Como?

        —  Eliminando os nossos inimigos. Schmidt se livrará dos estrangeiros amanhã, da mesma forma que cuidou de muitos dos nossos inimigos, ao longo dos anos. E depois ele vai para Munique, iniciando uma excursão pela Alemanha. Terá reuniões com as pessoas que mantêm contato com as 158 organizações de simpatizantes nazistas, como a Frente de Ação Parda, em Rosenheim, e a União Belsen, em Düsseldorf. Mais úteis, porém, serão os encontros com os adeptos alemães, respeitáveis e de confiança, industriais, políticos, veteranos de guerra, outros que são nossos amigos, para criar o novo partido.

        —  O novo partido — repetiu Foster, suavemente. — Que tipo de partido?

        —  Talvez um dos antigos assumindo o seu controle. Ou então um partido completamente novo. Outra vez o nacional-socialismo. Só que com um nome diferente. Schmidt decidirá.

        —  E Schmidt estará no comando?

        —  Isso mesmo, Wolfgang Schmidt. Tem de ser alguém que o público identifique como antinazista. Depois que o partido estiver formado, assim que a América e a Rússia tiverem se destruído, voltaremos à superfície como o núcleo a comandar o partido, assumindo o controle de tudo.

        Foster fitou-a atentamente.

        —  É isso o que está sendo planejado.

        —  Há muitos anos. — Eva sacudiu a cabeça. — Havia muito a fazer e sempre me preocupei que meu marido trabalhasse demais, em seu estado... mas ele mandou milhões de dólares americanos para a Argentina... e o Dr. Dieter Falkenheim preparou os materiais nucleares, trouxe tudo para o bunker... está aqui. Para ser temido e respeitado, qualquer país precisa ter um potencial nuclear.

        As palavras potencial nuclear pareciam insólitas na boca de Eva Braun. Era como se ela estivesse repetindo outras, talvez mesmo do falecido marido.

        —  É verdade, Eva. Mas é preciso primeiro assumir o controle da Alemanha. Não sei se isso ficou muito claro para mim. Pode me dizer de novo como fariam?

        A voz de Eva Braun tornou-se mais impaciente.

        —  Pelo caminho normal. É óbvio. O partido político estará de prontidão. Haverá bastante dinheiro. Há muitos ricos espalhados pela Alemanha e na América do Sul que lembram os velhos tempos, os bons tempos do passado, querem que voltem. Querem outra vez o poder. Ajudarão a tornar o partido majoritário. E nos receberão com a maior satisfação quando nos apresentarmos e assumirmos o comando. Estávamos nos preparando quando meu marido morreu.

        —  E ele a incumbiu de continuar a sua obra, Eva?

        Pela primeira vez, não houve resposta. Foster perguntou de novo, Eva Braun persistiu no silêncio. Seus olhos começavam a focalizá-lo. Ele decidiu que estava na hora da segunda dose. Aplicou o torniquete, pegou uma veia, aplicou a injeção. Esperou um minuto, rezando para que ela não dormisse.

        Os olhos de Eva permaneceram abertos, só que agora estavam mais uma vez desfocados. Foster inclinou-se para a frente, recomeçando.

        —  Estávamos falando sobre o seu papel, Eva. Você ficou para executar... para realizar o plano político.

        —  Para ficar no comando dos fiéis aqui embaixo. Mas lá fora é Wolfgang Schmidt quem trabalha conosco. Ele conhece todo mundo. Tem os contatos certos. Ele vai ser nosso... nosso...

        —  O homem de fachada. O líder. Ela assentiu.

        Foster passou a interrogar Eva sobre os detalhes do plano para tomar o poder. Ela divagava nas respostas. Enquanto discorria sobre as expectativas de Hitler de um holocausto nuclear e a execução de outro holocausto na Alemanha, Foster pensou nos carrascos de Hitler que haviam cometido o primeiro holocausto e em seus herdeiros. Com um calafrio a lhe percorrer o corpo, olhou para o relógio. Se tudo correra bem — se os agentes do Mossad não haviam sido frustrados em sua ação — os meios para acabar com aquela loucura deviam estar prestes a serem consumados. E se aconteceria em breve, não restava muito tempo para sair do bunker, antes que o gás letal do Mossad começasse a ser bombeado.

        Isso mesmo, estava na hora de sair e levar Eva Braun.

        —  Você tem uma lanterna, Eva?

        —  Tenho sim. E bem potente. Na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Guardo-a sempre à mão para a possibilidade de um corte no fornecimento de energia.

        Levantando-se, Foster abriu a gaveta e pegou a lanterna.

        —  Vou desamarrá-la agora, Eva. Daremos um passeio.

        Ele largou a lanterna e abaixou-se para desfazer os nós dos tornozelos.

        Subitamente, uma enorme sombra preta projetou-se na parede à sua frente.

        Aturdido, Foster virou-se.

        Na porta do quarto, ocupando quase todo o vão, estava o vulto gigantesco de Wolfgang Schmidt.

        Por um instante, Schmidt também ficou espantado e paralisado. Depois, como um animal selvagem, ele entrou em ação.

        —  Você, Foster, seu filho da puta! O que está querendo aqui? O que fez com ela?

        Implacável, inexorável, como um gigante vingativo, o rosto avermelhado contraído pela fúria, ele começou a avançar pelo quarto. Enquanto Schmidt estendia a mão para seu coldre por baixo do paletó, Foster gritou-lhe:

        —  Não faça qualquer movimento ou eu o matarei, Schmidt!

        Mas Foster sabia que não podia disparar sua Luger. O tiro certamente atrairia meia dúzia de guardas nazistas. Em vez disso, Foster pegou a lanterna na cama, no instante em que Schmidt sacava sua Walther P 38.

        Avançando para o gigante, Foster bateu com a lanterna na mão que empunhava a arma. Schmidt soltou um grito de dor, enquanto a automática escapava de sua mão e caía no chão.

        Desesperado, Foster chutou a arma com toda a força que podia. A arma deslizou para fora do quarto, batendo na parede do corredor e desaparecendo na sala.

        Enfurecido, Schmidt acertou com o punho enorme o lado da cabeça de Foster, jogando-se contra o pé da cama, onde ele arriou, caindo de joelhos.

        Virando-se, Schmidt saiu correndo do quarto para ir buscar sua arma.

        Foster levantou-se, cambaleando, e partiu apressadamente no encalço de Schmidt.

        Na sala, encontrou Schmidt a fitá-lo, enquanto se abaixava para pegar a arma. A mão de Schmidt já encostara na automática quando Foster mergulhou em sua direção.

        Schmidt caiu, a arma escapando outra vez de sua mão. Com outro rugido, Schmidt levantou-se, enquanto Foster também ficava de pé, cambaleando. Em frenesi, Schmidt atacou Foster, errando um golpe, depois outro. Mas acertou o terceiro no queixo de Foster e lançou-o com toda força contra o consolo.

        No momento em que seus ombros bateram no consolo, Foster levantou os braços e agarrou-o ao móvel para manter o equilíbrio. Esbarrando na preciosa urna grega de Eva, ele deslocou-a e derrubou-a no chão, onde bateu com um estrondo.

        Schmidt, com uma expressão assassina nos olhos, estendeu os braços enormes, um homem de Neandertal desvairado, avançando para Foster a fim de matá-lo.

        Foster pensou que estava perdido.

        Arremessando-se para a frente, quase para as garras do adversário, Foster ergueu-se abruptamente, desferindo-lhe um violento golpe de judô. Aturdido, Schmidt tentou agarrar a perna, desviar o golpe, mas foi lento demais. O pé de Foster acertou-o em cheio e com toda força na virilha. O alemão se dobrou em agonia, tentando sufocar o grito de dor, enquanto as mãos baixavam para a virilha. Tentando recuperar o fôlego, Schmidt arriou, apoiando-se num joelho. Foster imediatamente tornou a atacar, dirigindo o pé contra a têmpora do alemão.

        Schmidt caiu para o lado, momentaneamente atordoado. Mas era forte como um touro, e tentou se levantar mais uma vez. Foster compreendeu nesses poucos segundos que se Schmidt se recuperasse e ficasse de pé outra vez, ele poderia não sobreviver à força bruta do inimigo.

        Freneticamente, em terror mortal, Foster procurou alguma arma, qualquer coisa que pudesse usar como arma. Não havia nenhuma. Mas, de repente, as pontas de seus dedos tocaram no bronze da urna grega virada no chão. Segurando-a com as duas mãos, Foster virou-se para Schmidt, que sacudia a cabeça, tentando se levantar. Foster ergueu a urna e, com toda a sua força, baixou-a no crânio do alemão. A cabeça de Schmidt pendeu para trás, pareceu despencar para o lado, sobre o ombro. Foster tornou a bater e bater, até que o gemido do alemão desapareceu e ele tombou para o chão, inconsciente. Foster postou-se ofegante por cima dele, percebendo que a urna se abrira em seu ataque e que as cinzas estavam agora espalhadas por todo o rosto e peito de Schmidt.

        Largando a urna, ofegante, Foster ajoelhou-se ao lado do corpo inerte de Schmidt, a fim de certificar-se de que ele estava mesmo apagado. Não havia qualquer dúvida de que o alemão ficaria assim por meia hora ou mais. Foster olhou para o cristal espatifado de seu relógio de pulso. Se tudo correra bem, em breve, muito em breve, aquela sala e todo o bunker subterrâneo estariam cheios de um gás letal. Schmidt morreria, assim como todos os outros, muito antes de recuperar os sentidos. E, Foster lembrou a si mesmo, ele também morreria se não se apressasse.

        Para ter certeza de que o corpo de Schmidt não seria descoberto antes de o gás letal sair pelos tubos de ventilação, Foster procurou um meio de escondê-lo. Lembrou-se então que passara pelo quarto de Hitler no corredor. Metendo as mãos sob as axilas de Schmidt, com muito esforço, arrastou o corpo inerte pela sala, saiu para o corredor, foi até a porta do quarto de Hitler. Abrindo-a, Foster empurrou o corpo de Schmidt para dentro. Tornou a fechá-la.

        Encostando-se na parede, Foster permitiu-se alguns momentos para respirar fundo. Depois, compreendendo que o tempo se esgotava, que poderia ficar acuado ali embaixo com os outros, entrou em ação. Foi até a porta adjacente e entrou no quarto de Eva.

        Não tinha certeza do que encontraria. A luta próxima a teria despertado, trazendo-a de volta à normalidade?

        Incrivelmente, porém, Eva continuava deitada, na mesma serenidade com que a deixara. Ainda tinha os olhos vidrados, alheia ao que ocorrera fora do quarto.

        Foster pegou a lanterna, meteu-a num bolso, aproximou-se outra vez de Eva. E repetiu o que já dissera antes:

        — Vou desamarrá-la, Eva. E depois nós dois daremos um passeio.

        Ela piscou, sem entender.

        O mais rapidamente possível, Foster começou a desamarrá-la da cama.

        Ela estava atordoada, completamente dócil, e não oferecia qualquer resistência.

        Foster segurara seu braço ao passarem pelo bunker secreto. O único guarda de sentinela assumiu uma respeitosa posição de sentido ao reconhecer Eva Braun, mas ignorou Foster, ainda vestindo o uniforme nazista.

        Depois de chegar ao mezanino, com Eva, Foster olhara para trás. Pôde divisar o que não percebera antes — outros soldados de serviço na extremidade do corredor. Não passara, contudo, por nenhum antes com Emily e agora com Eva.

        Eva permanecera indiferente, mas obediente, quando ele a mandara rastejar do bunker, que fora o seu lar desde o final da guerra, para o túnel às escuras. Com suas próprias roupas numa das mãos, a lanterna na outra, ele se espremera atrás dela. Acendera a lanterna, repondo o bloco no lugar e fechando assim o buraco para o bunker.

        Depois, a lanterna iluminando o concreto à frente, levara Eva pelo caminho subterrâneo agora conhecido, até a abertura para o antigo quarto de Hitler, no Führerbunker menor.

        Ela passara de joelhos, com Foster logo atrás, também de joelhos. Ajeitando .a lanterna no chão, para que o facho iluminasse a abertura, ele recolocara o bloco no buraco. Sozinho, recorrendo a toda a sua força, conseguira encaixá-lo, empurrando de um lado e de outro para que se ajustasse melhor. Depois, tornando a pegar a lanterna, afastara Eva da cômoda, usando as últimas reservas de força para empurrá-la até a parede. Agora, o sétimo bunker estava totalmente fechado.

        A fim de se orientar, Foster girara o facho da lanterna pelo quarto empoeirado e cheio de teias de aranha. Quando a luz incidira sobre a armação da cama de Hitler, ele tivera a impressão de ouvir Eva soltar uma exclamação.

        Agora, conduzia-a pela porta para o que fora outrora a sala de estar do Führer, durante os últimos meses da guerra.

        Desta vez ele correu lentamente o facho da lanterna pela sala, parando por um instante no sofá, a cadeira quebrada, as paredes, a escrivaninha e o lugar onde outrora ficava o retrato de Frederico o Grande. E, finalmente, iluminou o rosto de Eva Braun.

        Ela estava pálida, a própria imagem do choque, e deixou escapar um grito sufocado. As mãos subiram à boca e as palavras passaram através dos dedos:

        —  O Führerbunker... A sala, nosso quarto...

        Foster especulou se os quarenta anos não haveriam desaparecido e ela vivia tudo novamente, os momentos mais felizes com Hitler, o casamento por tanto tempo desejado, a recepção com o estado-maior, os bajuladores.

        —  Oh, Deus, o que fizeram com o lugar? — Balbuciou Eva.

        —  Os russos vieram — disse Foster prosaicamente.

        —  Que animais! — exclamou ela, tremendo.

        E Foster teve certeza agora de que ela voltara ao presente, o efeito da droga dissipando-se por completo, seus sentidos restabelecidos. Ela piscou para o facho da lanterna.

        —  Quem é você? Como me trouxe até aqui? Quero voltar...

        —  Não pode voltar — disse Foster bruscamente. — Aquilo é o passado. — Fez uma pausa e depois acrescentou: — O passado está morto, ou o que resta estará morto dentro de poucos minutos. Tenho outros planos para você.

        Ele levantou a Luger com a outra mão, a fim de que Eva pudesse vê-la.

        —  E agora vamos subir pela escada para a antiga saída de emergência.

        —  Por quê?

        —  Quero a verdade, Eva. Toda a verdade.

        —  Não direi nada, absolutamente nada. E meu nome... meu nome é Evelyn Hoffmann — declarou ela, muito altiva.

        —  Vamos! — gritou Foster, empurrando-a com a arma.

        Ela avançou, e Foster seguiu-a pela sala de recepção até a escada, e subiram os degraus cobertos de terra. Ela parou na abertura para o monte de terra por cima do Führerbunker.

        —  Saia! — ordenou Foster, comprimindo o cano da Luger contra as costas de Eva.

        Tropeçando, ela saiu para o frio ar da noite, parou ao lado do monte, dentro da Zona de Segurança de Berlim Oriental. Estava escuro, mas não totalmente. Algumas luzes brilhavam pelo campo, projetadas das torres de vigia dos alemães orientais.

        —  Emily! — gritou Foster, descrevendo um semicírculo com a lanterna à procura de Emily, que prometera que voltaria e ficaria ali à sua espera.

        Mas não havia ninguém visível por ali.

        Sentiu um aperto no coração, especulou o que acontecera com Emily, se ela conseguira sair de Berlim Oriental, entrara em contato com Tovah e Golding, acionando os agentes do Mossad.

        Queria Emily ali, para certificar-se de que ela estava sã e salva, para ter certeza de que o epílogo à história de Hitler estava sendo consumado.

        Empunhando a Luger, ele pôs a lanterna no chão. Com a mão livre, tirou o uniforme nazista e pôs as próprias roupas. Ainda não havia sinal de Emily quando acabou. Os minutos passavam, seu desespero foi aumentando.

        E foi então que avistou, a alguma distância, pelo campo, uma luz que parecia se aproximar. E estava mesmo se aproximando, balançando ao chegar mais perto, uma lanterna carregada por alguém. Um momento depois pôde ver que era uma mulher.

        E teve a certeza de que era Emily.

        E de repente, um estampido alto às suas costas. A luz a vinte metros de distância caiu abruptamente, e o vulto que a carregava também tombou.

        Numa explosão de medo, Foster apertou a Luger com toda força e correu para a luz no chão, certo de que Emily fora baleada.

        Mas ela estava se levantando quando a alcançou, tateando à procura da lanterna.

        —  Você está bem? — balbuciou Foster, ajudando-a a levantar, amparando-a.

        —  Tropecei em alguma coisa. Machuquei um pouco o joelho, mas foi só isso. Graças a Deus, você escapou sem problemas.

        Foster pegou a lanterna de Emily e voltou apressadamente à escavação no monte.

        —  Arranquei de Eva quase tudo o que queríamos saber. Podemos descobrir o resto depois. O importante é que eles têm um plano para ressuscitar o nacional-socialismo na Alemanha. Querem se preparar para assumir o poder outra vez. Hitler sonhava com uma guerra nuclear inevitável entre a Rússia e os Estados Unidos. Eles querem estar preparados para isso. Eva deu-me todos os detalhes.

        —  O nazismo de novo na Alemanha? — murmurou Emily incrédula. — Não é possível. Eles devem estar loucos.

        —  Obcecados. Foi a última das grandes esperanças de Hitler. Conseguiu falar com Tovah e o pessoal do Mossad?

        —  Consegui. Tovah disse que entraria em contato com Gol-ding para convocar os agentes do Mossad e pegar o gás, seguindo para o Café Wolf e o sistema de ventilação do bunker. Se tudo correu bem...

        —  Ou seja, se eles não foram descobertos pela polícia de Schmidt.

        —  Schmidt. O que faremos com ele?

        —  Já cuidei dele. Schmidt apareceu no bunker. Foi terrível por um momento, mas tive sorte... contei com a idade e a agilidade do meu lado. Deixei-o lá embaixo, inconsciente. Se Golding aparecer com o gás, Schmidt estará liquidado também.

        —  Vamos rezar para que eles estejam bombeando o gás no bunker neste momento. A menos que haja algum problema, todos aqueles nazistas estarão mortos dentro de poucos minutos.

        Foster estava satisfeito.

        —  Depois, os militares alemães podem remover os corpos e ventilar o bunker. Você terá então todos os documentos, além de Eva Braun...

        —  Eva! — exclamou Emily. — Onde está ela?

        —  Ora, aqui comigo — murmurou Foster, indeciso. — Eu a trouxe... ela estava bem aqui...

        Acenou com a lanterna à procura de Eva Braun. Mas ela não estava mais ali.

        —  Ela se foi — murmurou Emily. — Quando você virou as costas, ela deve ter escapado.

        —  Não pode ter ido muito longe na Zona de Segurança.

        —  Não podemos ficar aqui de braços cruzados — disse Emily. — Vamos procurá-la.

        Foster pensou por um momento e decidiu:

        —  Agora não, Emily. Não sozinhos. Não podemos sair vagueando por aí à procura de Eva Braun. — Ele esquadrinhou a semi-escuridão. — E não se preocupe com Eva Braun. Ela não irá muito longe. Está acuada. Deixe que os alemães orientais a capturem.

        —  Mas nós a queremos!

        —  E a teremos depois que eles a pegarem. — Foster pegou Emily pelo braço e a levou apressadamente através do campo, na direção da casa da guarda dos alemães orientais. — Primeiro, vamos verificar se Golding recebeu a mensagem e fez o que era necessário. É o que devemos saber agora.

        Passando pela casa da guarda, Foster mudou de idéia.

        —  Vá sozinha, Emily. Pegue meu carro e siga para o Café Wolf. Descubra se vai haver um final feliz. Arrumarei uma carona e a encontrarei lá mais tarde. Agora, quero ficar mais um pouco por aqui. Estou começando a sentir saudade de Eva. Talvez eu tenha outra oportunidade de encontrá-la. Por favor, Emily, vá logo. Eu a encontrarei lá... e tome cuidado.

    

        Por vários minutos, depois que Emily partiu para o Café Wolf, Foster permaneceu ao lado da Zona de Fronteira de Berlim Oriental, esquadrinhando a cerca de arame, perto do portão em que se postavam três guardas e o oficial no comando. Estava atento a qualquer movimento na semi-escuridão do campo que denunciasse o reaparecimento de Eva Braun.

        Mas não havia ninguém à vista, nenhum sinal de Eva Braun. E Foster compreendeu que a mulher de Hitler não iria aparecer. Mas tinha certeza de que ela não conseguiria escapar. A mulher estava encurralada, seria avistada ao amanhecer e capturada pelos alemães orientais. Não importava o que acontecesse, no entanto, Foster sabia que não perderiam Eva Braun. Mais tarde, naquele mesmo dia, ele, ou Emily, comunicaria ao Professor Blaubach a verdadeira identidade da mulher presa. Foster podia imaginar a surpresa de Blaubach.

        Mas no momento, Foster concluiu que era inútil continuar ali, à espera. Havia um problema mais imediato a resolver. Precisava saber se os nazistas no bunker subterrâneo haviam sido executados. Gostaria agora de não ter cedido seu carro a Emily, ou então tê-la acompanhado na viagem ao Café Wolf. Precisava arrumar um carro agora.

        Foster encaminhou-se para o oficial no comando, um certo Major Janz, um homem muito decente, que até aquele momento sempre o tratara com toda cortesia. Ao vê-lo se aproximar, o Major Janz pegou a carabina soviética SKS que estava pendurada em seu ombro, adiantando-se para encontrá-lo no meio do caminho.

        —  Eu estava esperando que um dos meus colegas acabasse e saísse, mas não posso ficar por mais tempo — explicou Foster. — Seria possível chamar um táxi para mim? Sei que a hora é a pior possível, mas ainda deve haver táxis em algum lugar.

        —  Não há problema — disse o major. — Mandarei um dos meus homens ligar para o Palast Hotel. Sempre há táxis por ali, esperando por uma viagem de volta a Berlim Ocidental.

        O Major Janz chamou um guarda e mandou que telefonasse e pedisse um táxi para Herr Foster.

        Foster agradeceu ao major e voltou a observar a cerca de arame. A escudirão não dava qualquer indicação do paradeiro de Eva Braun. Subitamente, sentiu a presença do Major Janz ao seu lado, dizendo:

        —  Não há problema. Um táxi estará aqui dentro de dez a quinze minutos.

        —  Muito obrigado.

        O major continuou ali, olhando fixamente para Foster.

        —  Está tudo bem agora?

        —  Está sim, obrigado.

        Virando-se, Foster não tinha certeza se estava mesmo tudo bem — para si mesmo ou para qualquer dos outros. Tudo dependia do que estava acontecendo lá embaixo, no bunker secreto. Porque se Schmidt e seus fanáticos tivessem escapado ao extermínio, significava que em breve se lançariam à sua procura e de Emily, de Tovah e Kirvov, sedentos de vingança, prontos para matar.

        Ao volante do Audi de Foster, Emily seguiu para Berlim Ocidental. De novo a demora em Checkpoint Charlie, mais longa que de hábito, por causa da hora. Mas acabou sendo liberada e pisou no acelerador, levando o pequeno carro pelas ruas vazias em direção a seu destino.

        Ao chegar à Askanischer Platz e procurar por uma vaga, sua mente só se concentrava em uma coisa. Fervorosamente, rezava para que Tovah tivesse entrado em contato com Chaim Golding e que Golding tivesse reunido os agentes do Mossad, conseguindo acabar com a loucura escondida por baixo da cidade.

         Estava mesmo tudo acabado?, ela perguntava a si mesma.

        No silêncio da suíte do bunker, por baixo de Berlim, houve um movimento.

        Devagar, bem devagar, a porta do quarto de Hitler foi se abrindo.

        Uma mão enorme empurrava a porta. Wolfgang Schmidt, sacudindo a cabeça ensangüentada, rastejava para o corredor.

        Ao recuperar os sentidos, ele tentara lembrar exatamente o que acontecera. Voltara ao bunker para se certificar de que a mulher Ashcroft continuava ali, prisioneira, e verificar se Eva estava bem. Não encontrara a mulher Ashcroft onde a deixara e fora ao quarto de Eva. Ali, deparara com o desgraçado do Foster, e Eva amarrada na cama.

        Houvera uma luta, Foster conseguira de alguma forma derrubá-lo. A cabeça latejava de dor e tinha certeza de que fora atingido por alguma coisa pesada, sofrerá uma concussão. Só sobrevivera por causa do excelente estado físico, sua força natural.

        Apoiando-se na parede do outro lado do corredor, embora bastante fraco, Schmidt conseguiu levantar-se.

        Cambaleando, foi até o quarto de Eva. Ela não se encontrava ali. A cama estava vazia. E Foster também desaparecera. As pernas trêmulas, Schmidt foi para a sala. Também vazia.

        Avistou no chão a sua Walther P 38. Pegou-a.

        Tentou imaginar o que acontecera.

        Foster provavelmente levara Eva como refém, escapara pelo mesmo caminho que usara para entrar, qualquer que fosse. Todos ali embaixo haviam sido descobertos, seriam denunciados e destruídos para sempre.

        Cambaleante, Schmidt tentou raciocinar. Foster não podia ter ido à polícia, depois de encontrar o chefe no esconderijo. A quem então Foster pediria ajuda? Possivelmente aos comandantes das quatro potências que ocupavam Berlim. Revelando o segredo do bunker e pedindo ajuda militar.

        De certa forma, isso proporcionava a Schmidt um vislumbre de esperança. Conhecia os líderes das quatro potências, conhecia-os pessoalmente, sabia como seria impossível fazê-los agir depressa em qualquer situação, por mais crítica que fosse. Estavam sempre emaranhados na burocracia, e ouvir o que parecia uma história fantástica não os levaria a se mobilizar para uma ação imediata. Antes que qualquer coisa pudesse acontecer ainda havia uma esperança, uma esperança concreta.

        Embora a cabeça latejasse incessantemente, apesar da dor no crânio, Schmidt tentou raciocinar mais um pouco. Com toda certeza, enquanto procurava ajuda, Foster deixara seus aliados lá em cima, vigiando a saída do Café Wolf. Não podiam ser muitos. Seria fácil dominá-los.

        Ainda havia uma possibilidade de escapar, concluiu Schmidt. Só precisava alertar os guardas de confiança e outros ocupantes do bunker. Com suas armas mais modernas — metralhadoras e lançadores de foguetes portáteis — poderiam sair do bunker, através do Café Wolf, vencendo qualquer resistência tênue com uma rajada de balas.

        A fuga podia dar certo. Escapariam e estariam livres, se dispersariam para permanecer escondidos por mais algum tempo.

        Alerte os guardas, alerte o resto dos nazistas no bunker, tire-os daqui, o mais depressa possível.

        Havia tempo, havia tempo. Superariam qualquer oposição e venceriam.

        Schmidt cambaleou pela sala de estar, atravessou a sala de recepção e deixou a suíte.

        Encaminhou-se para a curva do corredor, virou-a, avistou a alguma distância um dos homens da Juventude Hitlerista de guarda.

        Abriu a boca para chamá-lo, alertar a ele e a todos, abriu a boca mas engasgou.

        Levou as mãos à garganta. Havia um mau cheiro acre, e ele estava sufocando. A voz rouca estava presa na garganta. Um torno lhe apertava a garganta, estrangulando-o, e começou a tremer incontrolavelmente.

        Tentou gritar para o guarda de serviço, mas não havia sentinela.

        Pela visão enevoada, percebeu que o guarda caíra, se contorcia no chão, ficando depois imóvel.

        Tossindo, Schmidt compreendeu vagamente que alguma coisa terrível estava acontecendo.

        Cristais de um azul-ametista caindo pelo tubo de ventilação, cobrindo o chão.

        E foi então que Schmidt percebeu tudo. Estivera em Auschwitz. Já vira os cristais. E sabia o que faziam.

        Sentiu que caía, sentiu que ofegava por ar, estendido no chão. Tentou aspirar um pouco de ar. Mas só havia vapores. E então fechou os olhos para a morte.

        Estacionando o Audi, deixando-o às pressas, Emily avistou Tovah sair do Café Wolf e correr em sua direção.

        —  Emily, Emily! — gritou Tovah, aproximando-se ofegante.

        — Ficamos tão aliviados ao saber de você! Que experiência! E descobrir o esconderijo deles! — Fez uma pausa, olhando ao redor.

        —  Onde está Rex?

        —  Virá daqui a pouco. Contarei tudo depois. O que quero saber agora é se Golding e seus homens entraram em ação.

        Tovah acenava com a cabeça no maior entusiasmo.

        —  Claro. Mas não com o gás Tabun de Speer. Nada disso. Usaram uma coisa mais poeticamente apropriada. Descobriram o tubo de ventilação camuflado na planta de Rex do bunker secreto. Largaram uma quantidade interminável de cristais de Zyklon B... ácido prússico... a mesma substância que os nazistas usaram nas câmaras da morte de Auschwitz para matar oito mil judeus por dia. Nossos agentes largaram no bunker subterrâneo uma quantidade suficiente desses cristais mortíferos para exterminar mil nazistas em poucos minutos. Quantos você disse que havia lá embaixo? Cinqüenta ou mais?

        —  Por aí.

        —  Pois estão todos mortos agora, Emily, até o último. Recebi o aviso de Chaim Golding. Seus homens já terminaram e estão recolhendo o equipamento. Dentro de um ou dois dias a cidade poderá remover os vapores do gás e depois o exército descerá para retirar os cadáveres. É uma pena que não haja um sobrevivente para nos contar tudo.

        —  Rex salvou uma pessoa — informou Emily.

        —  É mesmo?

        —  Ele saiu com Eva Braun.

        —  Eva Braun? Mas isso é incrível! Ele a tem em seu poder? Emily hesitou.

        —  Tem e não tem. Vou explicar, enquanto esperamos por Rex. Vamos dar uma volta e contarei o que aconteceu.

        Enquanto passava o braço pelo de Tovah e começava a andar, Emily se perguntou mais uma vez o que teria acontecido com a mulher de Hitler e o que ela estaria fazendo naquele momento...

        Desde o momento em que o americano chamado Rex correra pela escuridão para ajudar a sua companheira de conspiração, a mulher chamada Emily, Eva Braun agira por instinto. O lapso de seu captor lhe proporcionara uma oportunidade para escapar, e ela a aproveitara.

        Pegando a lanterna que ele deixara na relva, Eva entrara pelo buraco negro que fora outrora a saída de emergência do Führerbunker. Cambaleara pelas vigas que escoravam a passagem escavada, até alcançar o recesso mais profundo, perto do topo da escada. Tentara se esconder na escuridão, especulando se estaria de fato livre e tentando imaginar uma maneira de escapar daquela terra de ninguém dos alemães orientais.

        Ouvira-os depois voltando, os conspiradores Emily e Rex, concluíra que haviam parado a pouca distância da saída. Estavam conversando, muito excitados, especialmente o homem, em inglês, uma língua que Eva conhecia bastante bem, de suas aulas na escola e das trilhas sonoras dos filmes de Hollywood que seu amado sempre lhe permitira desfrutar no Berghof.

        O homem chamado Rex falara claramente dos planos políticos secretos, o prazo para ressuscitar e reconstruir a Alemanha, pela qual o Feldherr dera a sua vida e que ela e Schmidt procuravam preservar. Em seu esconderijo, Eva se perguntara aturdida como Rex pudera descobrir tanto. Certamente não fora ela quem lhe revelara tudo aquilo, a não ser que estivesse drogada. Mas não tinha qualquer /lembrança de drogas. Talvez ele tivesse visto algumas anotações em sua mesa ou mesmo soubera por intermédio de outra pessoa.

        Mas a notícia mais assustadora fora a que ouvira Rex anunciar à mulher Emily. Já cuidei de Schmidt. Deixei-o lá embaixo, inconsciente.

        E depois, continuando a prestar atenção, Eva ouvira algo ainda mais chocante. Alguém — o Mossad, ela ouvira Rex e Emily dizerem, os terríveis judeus — estava jogando um gás mortífero em seu lar subterrâneo de tantos anos. Estavam no processo bárbaro de exterminar todos os leais, os bons, Schmidt e os outros, aqueles que haviam idolatrado seu marido e a amada. Um ato selvagem inadmissível, mas não havia a menor dúvida de que estava sendo praticado.

        Abruptamente, ela ouvira seu nome ser chamado lá fora, Escutara e percebera que os dois haviam descoberto que ela desaparecera. Conseguira fugir. Eva tremera na escuridão, com receio de que pudessem adivinhar para onde ela fora, viessem com a lanterna a sua procura e a encontrassem. Suara frio com a perspectiva de ser capturada e posta em exibição pública, zombada, escarnecida e torturada, a única coisa que seu amado marido sempre temera e jurara que jamais permitiria acontecer.

        E ouvira novamente as vozes lá fora, compreendera que os dois se afastavam, apressando-se para chegar ao Café Wolf, a fim de revelar o desaparecimento de Eva e saber se fora concluído com êxito o esforço para massacrar todos os seus seguidores com o gás mortal.

        As vozes foram sumindo e depois houvera silêncio. Finalmente, Eva concluíra que eles haviam ido embora.

        Encolhida ali, na escuridão, ela ainda tinha medo de se mexer. Precisava ter certeza de que estava segura e necessitava de tempo para pensar.

        E continuara ali, na escuridão da escavação, compreendendo que somente uma preocupação obsessiva dominava a sua mente. Não era mais o futuro do partido. Não era Schmidt, o herdeiro perfeito de seu marido, o supremo ariano, fiel a seus ideais e devotado à causa. Como o partido, ele também estava perdido.

        Era outra coisa que a obcecava.

        Era a atrocidade que estava sendo cometida pelos conspiradores estrangeiros e seus colaboradores-gângsteres judeus contra os seus camaradas e seguidores, no lar subterrâneo. Gás venenoso se infiltrava para a catacumba fechada, e dentro de poucos minutos todos estariam mortos, não haveria ninguém para herdar a terra depois que os soviéticos e americanos se destruíssem mutuamente.

        O primeiro pensamento de Eva fora o de tentar salvá-los, adverti-los lá embaixo, resgatá-los. Poderia usar a lanterna, remover o bloco, encontrar sozinha o caminho pelo túnel que levava ao bunker secreto, dar o alarme.

        Mas depois compreendera que já era tarde demais. Muito tempo se passara desde que ouvira a notícia sobre o gás venenoso, e àquela altura a execução em massa já ocorrera, seu lar subterrâneo se transformara numa sepultura coletiva.

        Ela sentira um calafrio, à compreensão de sua terrível perda. Compreendera no mesmo instante o que devia ser feito, o que tinha de ser feito, e como se tornaria possível.

        Recordando, empertigara os ombros, permanecendo ereta na escuridão.

        O marido sempre insistira em que não seria capturado vivo pelos conquistadores bárbaros e exposto como um espetáculo. "Tschapperl... Coisinha", ele dissera-lhe um dia, "se formos capturados vão nos meter em jaulas e expor no jardim zoológico de Moscou." E na verdade, pela sua previsão e astúcia, ele sempre escapara aos vingadores. No esconderijo, lendo sobre os Julgamentos de Nuremberg, sempre deplorara os fracos que haviam colaborado com o espetáculo. Estranhamente, o homem do grupo que odiara como um traidor quase até o fim fora o único que passara a admirar: Hermann Göring. O gordo demonstrara bravura e lealdade autêntica, escapando ao laço do carrasco e tendo coragem para acabar com a própria vida em Nuremberg.

        Agora, Eva estava aplicando a convicção do marido ao que indubitavelmente aconteceria lá embaixo muito em breve.

        Dentro de um ou dois dias os assassinos desceriam ao bunker. Removeriam o gás letal, encontrariam dezenas de cadáveres deploráveis e tratariam de removê-los. Teriam então todo o resto, como troféus da guerra interminável. Teriam as preciosas cinzas de seu marido na urna. Teriam as recordações de sua grande vida. Teriam os diários dela, seus segredos, descobririam a verdade que os levaria a Klara.

        Teriam de revisar sua história.

        Teriam seu espetáculo.

        E Eva se lembrara agora das providências que o marido tomara para evitar uma ocorrência tão aviltante.

        Ele lhe falara sobre as alavancas secretas durante a última semana no Führerbunker. Eram duas, ligadas a fios que se estendiam para o bunker secreto. Uma alavanca podia ser acionada do nível inferior do Führerbunker. A outra, de um lugar que se transformara no Café Wolf. Qualquer uma das duas, ativada, detonaria uma carga no lar subterrâneo e explodiria tudo.

        E agora, pensou Eva, com todo o gás enchendo o bunker secreto, uma explosão e o fogo seriam devastadores. A explosão acabaria com tudo o que havia lá embaixo.

        A lógica do marido ao preparar aquele artefato destrutivo fora simples. Se os russos chegassem ao Führerbunker cedo demais, havia tempo suficiente para destruir o refúgio subterrâneo, a fim de que o mundo nunca soubesse que ele tencionara escapar à captura. Com o bunker de fuga destruído, ele e Eva poderiam heroicamente acabar com as próprias vidas, antes de serem capturados pelo inimigo. A outra alavanca, dentro do Café Wolf, serviria a um propósito similar se a fuga fosse bem-sucedida. Pois se o esconderijo fosse descoberto, nos anos subseqüentes, ele ainda poderia destruir tudo.

        Ele jamais permitiria um espetáculo.

        Nem ela, Eva disse a si mesma agora. Isso era tudo o que importava. Cumprir os desejos do marido.

        A alavanca no Café Wolf estava fora do seu alcance.

        Mas a alavanca no Führerbunker, lá embaixo, nunca fora descoberta, ela tinha certeza, e ainda poderia estar funcionando.

        O marido lhe mostrara onde estava, quase ao final da guerra. Mandara um eletricista do exército instalá-la e depois liquidara o homem. Onde ela vira aquela alavanca de emergência, quarenta anos antes? Eva concentrou-se em reconstituir aquele dia, aqueles momentos.

        Fora lá embaixo, no nível inferior do bunker, no cubículo de Johannes Hentschel, a sala do engenheiro, com seu motor diesel, que lhes proporcionava ar, água e eletricidade. Quando Hentschel estava dormindo, o marido a levara à sala, em frente ao quarto dela, no outro lado do corredor.

        —  Há duas coisas importantes que você deve ver, Effie — dissera-lhe o marido. — Aqui, em cima deste balcão, está o Not-bremse, o freio de emergência. Se houver algum atentado contra mim, puxe isto. Apagará o bunker e fechará todas as portas. Mas há uma coisa ainda mais importante que você deve saber. Debaixo do chão.

        Ele removera um bloco de concreto do chão, apontando para uma alavanca vermelha.

        —  Esta é a alavanca especial que pode acionar uma carga de ciclonita que explodirá e destruirá nosso bunker secreto, se algum dia houver necessidade. Jamais se esqueça disso, Effie. — E depois concluíra, arrogante: — Tenho sempre de pensar em tudo.

        Depois de tantos anos, ela se lembrava nitidamente, como se o marido tivesse acabado de lhe mostrar.

        Eva procurou e encontrou a escada de concreto que levava ao nível inferior do Führerbunker. Não precisava realmente de luz. Podia descer na escuridão ou vendada, já que fizera isso muitas vezes nas últimas semanas que passara ali, ainda tão vividas em sua memória.

        Tão depressa quanto possível, ela foi até o fundo. Com a lanterna na mão, avançou pelo corredor úmido, ignorando a suíte, seguindo em frente. Diminuiu as passadas, recordando mais uma vez a localização do cubículo de Hentschel.

        A lanterna iluminou a pequena sala, e ela sabia que era ali. Ficou de joelhos, a lanterna numa das mãos, os dedos da outra mão tentando desprender o bloco de concreto, lascado e sujo. Quebrou uma unha, depois outra, e por fim o bloco se desprendeu.

        Iluminou o buraco com a lanterna; ali, seca, sem qualquer corrosão, estava a alavanca vermelha, a alavanca especial.

        Sem qualquer hesitação, inclinou-se, pegou a alavanca e puxou-a com força. A alavanca se mexeu; ela a puxou com mais força ainda. Ouviu um estalido, e compreendeu que o sistema fora ativado.

        Dentro de dois minutos teria efeito.

        Empunhando a lanterna, levantou-se, voltou ao corredor e encaminhou-se para a escada. Subiu tão depressa quanto podia, lance por lance, até o topo.

        Acabara de chegar à saída de emergência quando ouviu o rumor da terra lá fora. Tropeçou para a abertura quando a explosão detonou o gás lá embaixo. Muitos metros à sua frente, na direção do muro e além, a terra entrou em erupção, como se um gigantesco vulcão adquirisse vida. Uma língua de fogo, uma cortina vermelha, estendeu-se para o céu, parecendo ter trezentos metros de altura. O rugido da explosão ressoou, cem vezes maior que as explosões da artilharia russa e os bombardeios aéreos dos Aliados que ouvira durante as últimas semanas da guerra.

        Na Zona de Fronteira de Berlim Ocidental, havia um inferno selvagem.

        O ar à sua frente estava obscurecido pelas nuvens de fumaça, pela chuva de terra e detritos. Ela virou a cabeça, a fim de proteger os olhos.

        Resguardou a vista por um longo tempo e esperou. Mas seu coração batia alegremente.

        Não se preocupe, meu querido, não haverá espetáculo, nem agora nem nunca.

        Só depois de ouvir as sirenes distantes é que ela se arriscou a sair para o campo aberto. O céu estava avermelhado. Os detritos e a poeira assentavam gradativamente. Largou a lanterna e tentou ver através da massa cinzenta. Viu o que queria e avançou em sua direção.

        Ao chegar perto do trecho destruído do muro de Berlim, constatou que a abertura era bastante larga para permitir a passagem de um batalhão de tanques.

        Eva parou ali, triunfante, examinando a abertura.

        Mais uma vez, pensou ela, era a Viúva Alegre. Todos os seus amigos e as cinzas de seu amado estavam desaparecidos, só restavam escombros no seio interminável da terra. A Viúva Alegre, sim, viúva, é verdade, mas sabia que não estava sozinha.

        Seguiu em frente, deixando a Zona de Segurança de Berlim Oriental, passou pela abertura do que fora outrora o terrível Muro e entrou em Berlim Ocidental.

        As sirenes eram mais altas.

        E Eva Braun continuava a andar.

        Quando a porta do apartamento na Knesebeckstrasse foi aberta, Eva sentiu-se aliviada ao deparar com Liesl em sua cadeira de rodas. Liesl ficou aturdida, enquanto Eva entrava, cambaleando.

        —  Eva! O que está fazendo aqui a esta hora? Oh, Deus, olhe só para você...

        Eva esquecera como estava coberta de fuligem, e ignorou o fato agora. Inclinando-se para Liesl, sussurrou, em tom veemente:

        —  Eles nos descobriram, destruíram nosso lugar...

        —  Eles... eles...?

        —  Os estrangeiros que estavam nos procurando.

        —  Mas como?

        — Não importa. Todos estão perdidos. Consegui escapar. E agora devemos todos partir antes que nos encontrem.

        —  Partir?

        — Não podemos perder um minuto sequer. Tenho um táxi esperando lá embaixo. Ainda me restavam alguns marcos no bolso. O táxi nos levará a Bahnhof. Pode se levantar?

        —  Darei um jeito, com a bengala. — Liesl hesitou. — Tem certeza, Eva?

        —  Claro. Eles virão atrás de nós. Não podemos ficar aqui.

        —  E Schmidt? Onde ele está?

        —  Morreu. Eles foram em seu encalço. Agora, somos apenas nós. — Eva correu os olhos pela sala. — Klara, onde está Klara? E Franz, está em casa?

        — Ele saiu cedo para a escola. Klara está na cozinha, preparando o meu café da manhã. — Liesl tremeu. — O que faremos com Klara?

        Sem a menor hesitação, Eva declarou:

        —  Klara deve ir conosco. Imediatamente.

        —  Ela vai recusar. Não compreenderá.

        —  Faremos com que compreenda. Diremos a verdade a ela.

        —  Como podemos fazer isso, Eva?

        —  Temos de fazer. Não há alternativa. Precisamos contar a ela e partir imediatamente.

        Liesl respirou fundo.

        —  Está bem. Mas... mas seria melhor se fosse eu quem lhe contasse. Deixe-me ir à cozinha. Não posso imaginar o choque que ela terá...

        —  Não há outro jeito, Liesl.

        —  Sempre tive medo deste momento. Mas tem de ser feito. Eva olhou para a cozinha.

        —  Se quiser, posso fazê-lo.

        —  Por favor, deixe-me falar primeiro — insistiu Liesl, manobrando a cadeira de rodas. — Vá para o meu quarto. E comece a arrumar as nossas coisas.

        —  Não levaremos bagagem — declarou Eva. — Só uma bolsa pequena para o dinheiro. Você ainda tem o dinheiro?

        —  Todo. Na gaveta de baixo, junto com os passaportes.

        —  É o que precisamos agora. Poderemos comprar qualquer coisa quando chegarmos ao nosso destino. Tem certeza de que pode lidar com Klara?

        —  Eu... eu não sei...

        Eva observou a velha rodar a cadeira para a cozinha. Depois, muito firme, saiu da sala e seguiu pelo corredor, passando pelo quarto de Fiebig e entrando no quarto de Liesl.

        Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira e foi até o armário. Encontrou uma valise na prateleira de cima, pegou-a e jogou-a sobre a cama desfeita. Abriu-a e depois foi até a cômoda, puxando a gaveta de baixo. As caixas com o dinheiro estavam sob as suéteres. Começou a transferir tudo para a valise. Depois que estava cheia, fechou-a e trancou-a.

        Ao fazê-lo, ouviu um grito estridente, depois um gemido longo, de um lugar distante. Da cozinha.

        Eva tornou a olhar para o relógio. Apenas uns poucos minutos haviam transcorrido. Ao pegar a valise, ela ouviu passos e virou-se no mesmo instante, deparando-se com uma Klara transtornada e desvairada na porta. Por um momento, Eva sentiu pena.

        —  Lamento muito, Klara... A voz de Klara estava tensa:

        —  Isto é uma brincadeira, não é mesmo... uma brincadeira cruel e repulsiva?

        —  É a verdade, querida...

        Eva encaminhou-se para a filha, querendo abraçá-la, mas Klara recuou.

        —  Você não é minha mãe. Não pode ser. Não acredito.

        —  SOU mesmo sua mãe — disse Eva em tom firme. — E ele foi seu pai.

        —  Não! Nunca! Você é louca! Nada disso é verdade!

        —  É verdade, sim, Klara querida. Sou sua mãe e ele foi seu pai.

        —  Nunca! — berrou Klara. — Não aquele monstro...

        Eva atravessou o quarto num instante, a mão levantada. Esbofeteou Klara.

        —  Não se atreva! — gritou. — Nunca fale dele assim! Nem agora nem nunca!

        Klara desatou a chorar, em convulsões, os ombros se sacudindo. Não havia tempo para cuidar da criança agora, consolá-la do choque. Era o momento para demonstrar força. Ele gostaria que fosse assim.

        —  Temos de ir agora, Klara — disse com firmeza. — Não podemos ser encontradas.

        —  Não — balbuciou Klara. — Eu não vou. Franz... nossa vida... nosso filho...

        —  Você não pode ficar. Temos de ir embora.

        —  Não.

        —  Não podemos deixar que eles nos descubram, Klara. Vai fazer agora o que estou dizendo? — Ela tentou se fazer ouvir acima dos soluços histéricos de Klara. — Faça o que estou mandando! Vai fazer, não é mesmo?

       

        Enquanto seguia para a Stresemann Strasse, Foster sentiu o cansaço dominá-lo. Estivera em movimento constante por um dia extenuante, uma noite frenética, uma manhã agitada, sem descanso, e pela primeira vez começava e sentir que suas forças se esgotavam.

        Além disso, o céu nublado, as nuvens baixas e escuras aumentavam sua depressão.

        Ao se aproximar do destino, percebeu que o céu escuro não era causado por nuvens, mas sim por uma mortalha de fumaça. Sua curiosidade foi despertada no mesmo instante, e tornou-se alerta.

        A origem da fumaça podia ser as explosões que ouvira e o fogo que avistara a menos de um quilômetro de Checkpoint Charlie. Enquanto o motorista diminuía a velocidade, Foster pôde divisar acima e além dos prédios à esquerda a ponta de uma montanha de chamas, que se estendia à distância. Não era o tipo de incêndio que resultava apenas da incineração de prédios. Era tipicamente o fogo de uma explosão de gás.

        Passando pela Askanischer Platz, avistou uma enorme multidão de curiosos. Carros de bombeiro, muitos homens e mangueiras esguichando espuma povoavam a Stresemann Strasse, todos os prédios estavam destroçados, as vigas ainda em chamas.

        Foster compreendeu prontamente o que estava acontecendo. Saltando do carro na esquina, correu para a Askanischer Platz. Ao se aproximar, entendeu perfeitamente o que acontecera.

        O bunker subterrâneo cheio de gás fora destruído. O resultado era evidente...

        Götterdämmerung.

        O esconderijo da matilha desvairada de Hitler fora destruído. Nada restaria do bunker secreto, a não ser um buraco no chão.

        Abrindo caminho pela multidão de curiosos, Foster avistou Kirvov, depois Tovah e finalmente Emily entre os espectadores. Encaminhou-se para eles, pegou Emily, abraçou-a, retribuiu seus beijos. Emily comprimiu-se contra ele, murmurando:

        —  Está acabado... graças de Deus, está acabado... Foster concentrou sua atenção no incêndio.

        —  Quando aconteceu isso, Emily?

        —  Cerca de uma hora depois que os agentes do Mossad encheram o bunker com gás. Ninguém escapou lá de baixo. Golding me contou. E pouco antes do amanhecer houve a terrível explosão. Tudo subiu pelo ar, e o fogo continua desde então. Talvez o gás tenha se inflamado por acidente.

        —  Talvez sim, talvez não — murmurou Foster.

        —  Alguém lá embaixo pode ter provocado a explosão ao acender um cigarro — sugeriu Emily.

        Tovah sacudiu a cabeça vigorosamente.

        —  Impossível. Está esquecendo que todos já haviam morrido muito antes da explosão.

        —  Tem razão. — Emily deu de ombros. — Não posso imaginar o que tenha acontecido.

        Foster espiava além dos carros dos bombeiros, pela extensão da Stresemann Strasse. A destruição de tudo, do Café Wolf ao Muro de Berlim, fora completa. Até mesmo um trecho do Muro fora destruído. Pela abertura, de quarenta ou cinqüenta metros, podia-se ver a vasta cratera que se estendia pela Zona de Segurança. Foster tocou em Emily e apontou para a abertura no Muro.

        —  Se alguém estivesse lá dentro e quisesse passar para cá, não teria agora a menor dificuldade.

        —  Está falando de alguém como... alguém como Eva Braun?

        —  Exatamente. — Foster tocou no braço de Kirvov. — Nicholas, onde mora Klara Fiebig?

        —  Na Knesebeckstrasse, à direita da Ku'damm.

        —  O que estamos esperando? Deve ser a nossa última parada. Ainda podemos pegar Klara... e Eva.

        Eles se agruparam em torno de Nicholas Kirvov, que apertava insistentemente a campainha. Bateram na porta do apartamento.

        Não houve resposta por longo tempo, mas finalmente ouviram alguém lá dentro. E um momento depois a porta foi aberta lentamente.

        Um homem ainda jovem, de ombros arredondados, talvez alto em outra ocasião, os cabelos pretos emaranhados, óculos de lentes grossas empoleirados no nariz adunco, feições encovadas, fitou-os com expressão aturdida. Foster percebeu que ele estava completamente atordoado, os olhos avermelhados e inchados, as faces manchadas de lágrimas. Kirvov hesitou.

        —  Você... você é Franz, o marido de Klara Fiebig?

        O homem moveu a cabeça para cima e para baixo, devagar.

        —  Onde ela está? — indagou Kirvov. — Precisamos falar com ela.

        Franz Fiebig continuou a fitá-los fixamente, e novas lágrimas afloraram a seus olhos.

        —  Vocês chegaram atrasados — murmurou ele, virando-se. Foster adiantou-se. Entrou na sala de estar atrás de Fiebig, e os outros o seguiram,

        Fiebig parou no meio da sala, desconsolado, de costas para ele, depois se arrastou quase a esmo para um canto, e desabou numa poltrona. Estava chorando outra vez, tentando encontrar um lenço. Foster tirou o seu, avançou lentamente e entregou-o a ele.

        —  Tarde demais? — murmurou Foster.

        —  Ela está morta — balbuciou Fiebig, mexendo a cabeça de um lado para outro, incrédulo. — Voltei da escola para almoçar com Klara. Encontrei-a morta em nosso quarto. Ela se suicidou.

        —  Suicídio? Por quê? Você sabe por quê?

        Fiebig não respondeu. Foster abaixou-se, apoiado num joelho, ao lado da poltrona.

        —  Talvez eu saiba por que, Franz. Acho que todos sabemos por quê. — Fez uma pausa. — A mãe de Klara esteve aqui para vê-la. Sua verdadeira mãe... Eva Braun.

        Através das lentes grossas, Fiebig focalizou Foster e limpou as lágrimas das faces.

        —  Isso mesmo — murmurou ele. — Sua mãe... Eva Braun. Foi o que aconteceu.

        —  Como descobriu, Franz?

        —  O bilhete... Klara deixou um bilhete na cômoda.

        —  Ainda está com o bilhete?

        —  Rasguei-o... joguei no vaso e puxei a descarga, depois que o médico veio.

        —  Pode lembrar o que Klara escreveu?

        Fiebig baixou o queixo para o peito, olhando para o carpete. Foster inclinou-se para a frente, a fim de ouvir suas palavras. Fiebig falava em tom abafado, sem qualquer inflexão:

        —  Evelyn... Eva... Eva Braun esteve aqui, na maior pressa. Contou a verdade a Klara. Que ela era a mãe de Klara. E o pai... — Ele não foi capaz de dizer o nome. — Ela soube quem era seu pai. E Liesl confirmou tudo. Eva e Liesl disseram que iam embora, tinham de ir embora, Eva insistiu que Klara as acompanhasse. Pobre Klara, minha pobre e querida Klara...

        —  O que mais ela escreveu?

        —  Eva e Liesl queriam que ela partisse também, mas depois ficaram com medo que sua histeria pudesse denunciá-las. Disseram que ela precisava se controlar primeiro. Depois disso, ela deveria encontrá-las num determinado lugar. Klara não disse onde. Se não comparecesse ao encontro, disseram Eva e Liesl, ela deveria desaparecer, sua vida se tornaria impossível aqui. Ela não poderia continuar aqui em hipótese alguma. Klara escreveu: "Eva disse que meu pai teria exigido assim. Nunca permitiria que eu fosse transformada num espetáculo público. Nunca deveria ser encontrada por nossos inimigos." E depois... depois... Klara escreveu, Eva e Liesl foram embora, ela ficou sozinha, não tinha para onde ir, mas sabia que precisava partir de qualquer maneira. "Desculpe, Franz, mas elas estão certas," escreveu Klara. "Alguém descobrirá, algum dia. Não posso magoar você nem marcar nosso filho pelo resto da vida. E por isso estou partindo. Amarei você para sempre." — Ele começou a sacudir a cabeça. — Oh, não, não ela não precisava fazer isso. Eu a amava muito. Não me importava. Não havia culpa. Ela era uma vítima. Eu a amaria por toda a eternidade.

        Ele cobriu o rosto e prorrompeu em soluços. Foster fez um esforço para se levantar, abalado, profundamente comovido.

        —  O médico... o médico ainda está aqui, Franz? Fiebig apontou para o corredor.

        Foster atravessou a sala, entrou no corredor, parou à porta do primeiro quarto. Sentiu o cheiro acre de amêndoa, um sinal denunciador.

        O médico, um alemão corpulento, de cabelos grisalhos, um lenço no nariz, estava sentado ao lado da cama de casal, um bloco no joelho, escrevendo seu relatório. Havia um vulto na cama, coberto por um lençol, da cabeça aos pés.

        —  Doutor... — chamou Foster.

        O médico idoso levantou a cabeça.

        —  .. .sou amigo dos Fiebigs e acho que Franz precisa de ajuda. Ele ficou bastante abalado.

        O médico balançou a cabeça.

        —  Quem pode culpá-lo por isso? De que outra forma ele poderia ficar? Mas não importa. Eu lhe darei alguma coisa. — Seus olhos contemplaram o corpo coberto. — Uma terrível tragédia...

        —  Ela se matou?

        —  Exatamente.

        —  Como?

        —  Uma cápsula de cianureto. Não posso imaginar onde a conseguiu.

        Mas Foster sabia.

        Saiu do quarto e foi se encontrar com os outros na sala. Fez sinal a Emily, Tovah e Kirvov. Todos deixaram o apartamento atrás dele.

       

        Era a manhã seguinte.

        Um dia claro, fragrante, e o sol banhava a cidade de calor. De braços dados, Emily e Foster estavam parados no terraço do prédio de escritórios Centro Europa, contemplando pela última vez a linda e desconcertante cidade de Berlim. Perto do Muro, uma trilha de fumaça ainda se elevava para o céu. Além da Kurfürsten Strasse, lá embaixo, no entanto, eles podiam divisar a verde extensão do Jardim Zoológico, o Tiergarten ao lado, vislumbrar o Bellevue Palace e o Reichstag, com o azul sinuoso do Rio Spree a distância.

        Berlim era uma cidade deslumbrante, pensou Foster, mas uma cidade invadida por horrores intermináveis. No dia anterior outro pesadelo fora evitado, mas ele desconfiava que os pesadelos de Berlim jamais cessariam. O perigo e a tragédia integravam o caráter da cidade.

        —  Pelo menos agora você tem o verdadeiro final da história de Hitler — comentou Foster. — Pode revelar a verdade ao mundo.

        —  A verdade? — repetiu Emily. — Duvido muito que jamais venha a ser conhecida. Sou uma historiadora. Devo ter provas de tudo o que escrevo. E que provas tenho agora? Posso provar que você e eu falamos com Eva Braun? Posso provar que não era uma impostora?

        —  Mas o que me diz do bunker secreto?

        Emily sacudiu a cabeça, com expressão consternada.

        —  Para o mundo em geral não há bunker, nunca houve um bunker secreto; existe apenas um buraco no chão, onde é improvável que qualquer pessoa pudesse viver. Os corpos e todas as provas foram incinerados, eliminados. Só há uma pessoa no mundo que pode provar o verdadeiro fim. Ela era a nossa única prova da verdade, e agora desapareceu. — Pegou a mão de Foster. — Nunca mais a encontraremos, não é mesmo, Rex?

        —  Ela está em algum lugar por aí. — Ele sacudiu a cabeça. — Mas ninguém jamais a encontrará.

        Emily tornou a contemplar a cidade lá embaixo, em silêncio, e correu os olhos além de seus limites. E depois murmurou:

        —  A Viúva Alegre... era assim que a família e os amigos a chamavam quando Hitler a levou para sua vida. Viúva Alegre, porque estava quase sempre sozinha. — Emily continuou com o olhar perdido na distância. — Pois continua sozinha, com o seu mistério, e talvez permaneça assim até o fim.

 

                                                                                            Irving Wallace

 

                      

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