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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SÉTIMO VÉU / Rosa Lobato de Faria
O SÉTIMO VÉU / Rosa Lobato de Faria

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SÉTIMO VÉU

 

Não te preocupes em entender: viver ultrapassa todo o entendimento.

Clarice Lispector

 

Pois é, Dona Floriana, não dizem que as paredes têm ouvidos? Pois então. Eu era os olhos e os ouvidos daquelas paredes. Não que andasse a espreitar os patrões ou a escutar às portas como as criadas de quarto, mas porque a minha pessoa era para eles invisível de tão habitual e não se coibiam de, na minha presença, expor o que tinham de mais íntimo, os seus sentimentos, as emoções, os desejos, as pragas, as revoltas, os rancores.

Acho que não eram melhores nem piores do que a maioria dos mortais, apenas humanos. Às vezes confusos, às vezes assustados. Mas quem sou eu para julgar, sequer analisar os outros. Eu, que cheguei àquela casa aos vinte e dois anos para ser dama de companhia e sem saber como, insensivelmente, fui resvalando para o estatuto de governanta, costureira, cozinheira, criada para todo o serviço, pau-para-toda-a-obra, babá, preceptora, mas também confidente e às vezes bode expiatório.

«A Mila sabe», devia ser a frase mais ouvida naquelas salas e naqueles quartos. Pede à Mila, ela faz. A Mila faz, a Mila sabe, a Mila resolve. A cozinheira adoeceu e há doze pessoas para jantar? A Mila toma conta da cozinha. Os Menezes vêm de visita e trazem as crianças?

A Mila cuida delas, leva-as a passear, conta-lhes histórias. A adolescente em crise fechou-se no quarto e recusa-se a comer? A Mila vai lá. Mila, vai lá tu. Mila, ajuda aqui. Mila vem cá, tu é que sabes resolver isto.

Não se pense, porém, que me sentia vítima.

Pelo contrário, sentia-me omnipotente.

A vida encarregar-se-ia de mostrar-me que contra a vontade de Deus ninguém pode coisíssima nenhuma.

Nasci numa daquelas famílias da pequena aristocracia decadente cuja condição económica era costume designar por pobreza envergonhada. Situação nada agradável porque do que efectivamente se tratava era de alicerçar o dia-a-dia numa enorme mentira que consumia todas as nossas energias. Era preciso fingir que tínhamos rendimentos quando não tínhamos nenhuns, o que implicava um permanente vaivém a caminho da casa de penhores recorrendo ao outrora luxuoso recheio da casa e dependendo da boa vontade de antigas criadas ou antigas costureiras de confiança, que a troco de pequenas gorjetas se encarregavam deste sigiloso comércio.

Era preciso virar os fatos do meu pai, cerzir com perícia cada pequeno rasgão, crochetar golinhas de renda e confeccionar flores de pano para refrescar um vestido velho, assoberbar o sapateiro com súplicas de recuperação de sapatos rotos, inventar pequenas aldrabices para adiar a satisfação da conta da mercearia (enquanto em casa se criavam inimagináveis pratos para o aproveitamento de restos, se valorizava o pão duro e se fazia render uma asa de frango).

Era necessário fazer visitas de pouca cerimónia, não deixar de aparecer, ainda que para isso fosse preciso passar frio no Inverno (porque o casaco, de tão coçado, não aguentava a luz do dia) ou sofrer calor no Verão (escondendo sob a écharpe ainda apresentável as nódoas de ferrugem ou o passajado dos vestidos).

Era também indispensável inventar desculpas credíveis para recusar convites para jantares de cerimónia ou festas comemorativas, primeiro porque não tínhamos roupa decente, segundo porque já havíamos esgotado o stock de pratinhos chineses e caixinhas de prata a que recorremos durante anos para presentes de aniversário e baptizado.

Os casamentos eram sempre o mais difícil de contornar. Não bastava dizer, a minha filha está com uma forte dor de dentes, era preciso eximir toda a família, pretextando uma intoxicação alimentar ou a chegada súbita de parentes inesperados. Quanto ao presente, tentávamos confeccionar à pressa pelas nossas próprias mãos uma peça de tapeçaria, desmanchando camisolas velhas para o aproveitamento das lãs.

Às vezes era necessário receber para o chá. Fazíamo-lo no salão, a única divisão que mantínhamos mobilada, resistindo estoicamente à tentação de trocar as cadeiras chippendale por bifes e a bilheteira de prata por pares de sapatos que não nos torturassem os pés.

(Se alguém entrasse no meu quarto encontraria, em vez da mobília Império já vendida a um antiquário, um divã desconjuntado e uma velha tábua de passar a ferro coberta com uma colcha, a fazer de cómoda.)

Servíamos às visitas bolinhos de flocos de aveia e torradinhas de pão duro, habilmente cortado, com compota caseira feita com fruta quase podre, arrematada no mercado ao preço da uva mijona.

A minha mãe e eu apresentávamo-nos no salão com as nossas eternas golinhas de renda, bem largas, para tapar as mazelas da blusa, e perfumadas a água-de-colónia feita em casa, em antiquíssimos boiões de ameixas de Elvas, com pétalas de rosas de algum ramo que, apesar de tudo e muito esporadicamente, a minha mãe ainda ia recebendo.

Tudo seria mais fácil se fôssemos pobres genuínos em vez de pobres envergonhados. O meu pai poderia ganhar a vida a fazer pequenos biscates, consertos, reparações para o que tinha a maior habilidade - só assim conse-guíamos que a nossa casa ainda se mantivesse de pé - a minha mãe era uma exímia costureira, mas, meu Deus, o que haviam de pensar os outros e tudo se resumia ao preconceito expresso na frase podem pensar que precisamos. Porque precisar era a maior das vergonhas e, por isso, mentíamos e fingíamos sem vergonha nenhuma.

Quando constou em Viseu que Júlia Amaral, recém-casada com o engenheiro Tiago Vaz, procurava uma dama de companhia de boa família decidi candidatar-me ao lugar não sem antes ter tido com o meu pai aquela discussão clássica, se sais esta porta não voltas a entrar, está bem paizinho, disse eu, mas alguém tem de ser realista nesta casa. E pensei no alívio de terem menos uma boca para sustentar e no carácter de salvação de que se revestia a entrada mensal do meu ordenado, magro mas pontual.

Ficou desde logo claro que se tratava de um emprego interno (melhor ainda!) com cama, mesa e roupa lavada e um ordenado muito menos magro do que eu supusera e que a mim me pareceu uma quantia redentora.

O trabalho consistia em atender a senhora dona Amélia, mãe da dona da casa, já que o velho Gervásio Amaral morrera há dois anos, deixando à filha a casa das Lias e respectiva quinta e uma respeitável fortuna. Consideraram as senhoras que Júlia, agora casada, não se podia ocupar a tempo inteiro de sua mãe doente cardíaca, que requeria companhia e cuidados.

Foi esta a minha primeira função. E, quando em 1948 a senhora dona Amélia faleceu, eu já tinha sabido tornar-me tão útil que ninguém pensou em dispensar os meus serviços. Ou por isso ou porque já fazia parte da mobília.

Assim morei naquela casa cinquenta e quatro anos e conheci cinco gerações da família Amaral.

Então, no ano passado, considerando que eu já estava na idade de descansar, o senhor doutor Augusto, segundo marido da patroa Júlia, resolveu proporcionar-me, a expensas suas, o internamento nesta Casa de Repouso (soa melhor que lar), habitado por condessas e senhoras riquíssimas, onde vivo rodeada de luxo, cuidados médicos e a presença indisfarçável da morte.

Porque não tenho família própria, preferiria, claro está, ter vivido os meus últimos anos na Casa das Lias, mas não posso esquecer que não é a minha casa embora seja a única que conheci e amei.

Lá era apenas a Mila. Aqui readquiri o meu estatuto social de origem e sou a senhora dona Emília Estefânia Paes Monte-negro de Figueiredo Soares. Jogo cartas com as senhoras mais bem-nascidas do Norte, troco pontos de agulha com as matriarcas das maiores fortunas do Douro.

Estou aqui porque nunca casei e não tenho filhos que me acolham. Estou aqui porque me supõem rica. Estou aqui porque o doutor Augusto Balbi é muitíssimo meu amigo. Estou aqui porque a minha memória é de ferro. Estou aqui porque com os anos me tornei menos discreta. Estou aqui porque sei de mais.

 

Depois de uma noite de pesadelos acordo com a campainha do telefone e é a mãe a dizer que o padrinho Augusto morreu.

Não estou preparada para isto. Nunca ninguém está. Para mim o padrinho Augusto era imortal, nunca o vi doente e apesar dos seus oitenta e muitos anos parecia-me sempre jovial, bem-disposto e eterno.

Resta-me cancelar as consultas do dia, amanhã é sábado, posso ficar na Casa das Lias até domingo à noite.

A Marta. Telefonar à Marta para ver se ela quer vir comigo a Viseu.

Marta, olá, a mãe ligou-te?

Agora mesmo, mas eu já.

Claro, tu já. Sonhaste, não?

Ssssim. Mais ou menos isso.

Queres vir comigo para Viseu?

Vou com o Paulo e os miúdos. Porque não vens tu connosco? Ficamos o fim-de-semana com os pais.

Não. Agradeço-te mas prefiro ficar independente. Não sei, estou meio, sabes como eu sou.

Joana, não compliques. O padrinho Augusto já tinha aquela idade e, ouve, não

Eu sei, Marta. Mas o luto é uma coisa individual. Tenho que resolver isto na minha cabeça, que não é das mais simples, e para isso preciso de tempo. Tempo e silêncio. A viagem vai fazer-me bem.

Está bem, maninha, encontramo-nos lá.

A estrada. Uma bonita manhã de Inverno, clara e fria e, enchendo todo o horizonte, este esmagador sentimento de culpa. Que, não sei porquê me acompanha sempre e, se durante largos períodos de tempo se apazigua, volta com maior intensidade nos momentos de crise. Principalmente quando morre alguém. Algum doente meu. Alguém conhecido. Alguém distante. E então tratando-se de família é bem pior. Lembro-me da morte da prima Mécia que eu detestava e de como fiquei desesperada a pensar que o meu ódio a tinha liquidado. Tentando justificar a culpa, estupidamente.

É como se, algures, numa dobra escura do tempo, eu tivesse morto alguém e, tendo esquecido o acto, guardasse apenas o remorso. Eu. Que nunca, sequer, abortei. Gostaria de ter podido dizer ao psiquiatra (cujas sessões abandonei porque não me ajudavam) sim, pratiquei uma interrupção de gravidez. Mas, mesmo assim, acho que não adiantaria nada. Porque este sentimento de culpa é anterior à puberdade. Lembro-me de ser pequena e sonhar que a minha boneca preferida tinha caído da janela, e de acordar chorando de remorsos, embora soubesse que, no sonho, eu não estava em casa quando a boneca caiu. Lá da janela do meu quarto da Casa das Lias, que abre para a frescura da folhagem dos plátanos centenários.

E agora o padrinho Augusto. O adorado padrinho Augusto, padrasto da minha mãe, que sempre viveu connosco na quinta. É lá que ele tem, tinha, tem, o seu atelier de escultor, foi lá que nos viu crescer e ajudou os nossos pais a educar-nos. Conta a Mila que até aos cinco, seis anos, eu costumava apresentá-lo às visitas, este é o meu avô, que se chama padrinho Augusto.

Fiquei de rastos quando finalmente percebi que ele não era nosso avô de verdade. Ajudava-nos nos trabalhos da escola com uma disponibilidade que os meus pais nem sempre tinham, passeava connosco, ensinava-nos um monte de pequenas coisas.

Quando a Marta começou a consciencializar a sua diferença encontrou no padrinho Augusto um confidente atento e um conselheiro seguro.

Porque a Marta é, não sei que eufemismo usar, sensitiva ou como diria a Mila, tem poderes. Vê espíritos, pressente mortes e tempestades, adivinha pensamentos. Mas como é a pessoa mais calma e sensata de toda a família, nunca foi possível classificá-la como louca, ou histérica ou, simplesmente perturbada. O padrinho Augusto ensinou-a a canalizar esse dom. (Chamou-lhe dom para que ela não se sentisse diferente no sentido negativo mas positivo.) A saber viver com ele. A não se assustar. E, se possível, a utilizá-lo para ajudar as pessoas. O que ela faz. É especialista em cuidados paliativos, isto é, auxilia doentes terminais a enfrentar a morte.

A Marta tem menos dois anos do que eu mas é, na ausência da mãe, o meu porto de abrigo.

Joana, a avó Júlia está outra vez atrás de ti. Não te assustes, ela é boa.

Ora, Marta, como é que sabes que é a avó Júlia. Tu nunca a conheceste.

Estamos no jardim da Casa das Lias a tricotar mantas para os pobres. Quadrado a quadrado. Que depois se pregam uns aos outros para fazer cobertores quentinhos para o Inverno. É o fim das férias, já depois da praia de Agosto. Eu tenho onze anos, a Marta nove.

Sei que é a avó Júlia porque é igual ao retrato que está no salão por cima da lareira. Tem o mesmo vestido, certamente para eu a reconhecer melhor. Mas não era preciso nada disso: assim que chega eu sei que é ela.

Pergunta-lhe o que é que quer. Irrita-me ter fantasmas atrás de mim sem nenhum propósito.

A avó Júlia não é um fantasma, é um espírito. É o que ela me está a dizer. E vem muitas vezes porque quer conhecer-nos. Tem pena de se ter ido embora tão cedo.

Sempre gostaste daquele retrato. Agora até sonhas acordada com ele.

Pensa o que quiseres. Neste caso o que tu pensas não altera nada.

Eu às vezes pensava que a Marta abusava do seu dom para se fazer interessante. Mas não era verdade. Era-lhe indiferente que as pessoas acreditassem ou não. Pouco falava do assunto e nunca insistia quando sentia nos outros dúvidas ou incredulidade. Aprendi por isso a confiar cegamente nela, embora por vezes me assustasse.

A estrada. O traço contínuo. Os pensamentos à solta misturando-se. Devia ligar à Manú. (Patrícia ligue-me à doutora Manuela. A doutora Manuela não vem...) É melhor não ligar. Se a Manú não for ao consultório é o caos. Também não posso dizer, Manú, tens de ir ao consultório, ela vai responder, pensas que sou alguma irresponsável, claro que vou. Então para quê ligar, melhor é deixar correr os acontecimentos. A mãe ao telefone a dizer, encontrámos o padrinho Augusto no atelier, quando o doutor Machado chegou, e eu a imaginar a mãe a preparar o tabuleiro do pequeno-almoço para levar àquele velho madrugador, está frio, o padrinho Augusto não comeu, que falta que faz a Mila, quem é que se lembrou de a reformar, os requintes de dona de casa da mãe, o naperon de linho amarelo com bolinhas bordadas a cheio, o do recorte, a loiça branca, a manteigueira cheia, a taça da compota, o guardanapinho em triângulo, as torradas de pão caseiro, os biscoitos em oito, depressa, antes que as torradas arrefeçam, encontramos, então talvez o pai achasse que a mãe não podia com o tabuleiro e tenham os dois atravessado a distância, ainda considerável, da porta da cozinha ao atelier escondido entre as árvores, onde tantas vezes do tecto amovível surgiam as cabeças, os troncos, os braços das estátuas como fantas-mas, ultimamente menos, o escultor famoso entrara numa fase de estatuetas delicadas, rapariguinhas nuas mas pudicas, a mãe com a cafeteira de prata segura pela asa para não derramar o café rescendente, o pai João com a bandeja, o leite oscilando na leiteirinha de porcelana, o pequeno-almoço cuidadosamente preparado para um morto, oxalá a Manú me atenda o menino das três horas, o que tem a mãe hipocondríaca, o pai a empurrar com o pé a porta do atelier, o padrinho Augusto estiraçado na poltrona, ah bom, levanta-se de madrugada mas depois dorme o seu soninho, padrinho Augusto, padrinho Augusto tem aqui o seu café.

A mãe hipocondríaca do menino das três horas é um caso clínico, talvez uma das raras vítimas da síndrome de Munchausen por delegação, mães que fazem adoecer os filhos para melhor lhes demonstrarem (e ao mundo inteiro) a sua devoção e amor, estou a estudar o assunto, não me posso deixar influenciar pelo facto de ela ser enfermeira, dado que isso faz parte do perfil dessas doentes, mas eu sou pediatra, cumpre-me antes de mais curar o filho, mas como, se a mãe e o padrinho Augusto presumido cansado, depois adormecido, depois desacordado, depois desmaiado, por fim morto, está morto João, meu Deus, chama o doutor Machado e o tabuleiro pousado bruscamente na banca entre cinzéis e pedaços de mármore, o leite a empapar as bolinhas amarelas do naperon e um biscoito caído com o solavanco no pó de pedra, a desenhar aos pés do morto um imprestável infinito.

 

É uma velha história, dona Floriana. Talvez a senhora, que é do Porto, tenha ouvido contar.

Gervásio Amaral era um homem carismático do princípio do século que todo o Porto conhecia. Rico, solteiro, de boa família e melhor apresentação, formava, com o seu amigo Alcides Guimarães Belo, uma parelha incontornável pelo humor e pelas loucuras, comentadas nos salões e nos cafés.

Alcides era casado, pelo que se recatava um pouco mais quando se tratava de histórias de mulheres. Que Gervásio recrutava em Paris, as mais vistosas, as mais exóticas, e passeava pelo Porto sentadas no side-car da sua moto, de écharpe de organza, de capacete de motociclista sobre os cabelos frisados e curtos, por si só motivo de escândalo em 1912. Parecia incorrigível, até ao dia tardio em que cupido lhe atirou, também a ele, a sua seta.

Gervásio fazia os mais improváveis negócios que um deus leviano ou um diabinho calculista transformava em êxitos. Um dia comprou uma quintarola às portas de Gaia coberta de vides com muito mau aspecto que ele fez ressuscitar e de onde conseguiu extrair um vinho delicioso. Era tão pouco que o reservou para consumo próprio e logo os amigos, deliciados, o baptizaram de Amarelinho. Tinha o hábito de apanhar o eléctrico cuja carreira tinha uma paragem a cem metros do portão da quinta. Lá chegados apeavam-se todos, guarda-freio, revisor e passageiros incluídos e entregavam-se descuidosamente a uma prova de vinhos. O eléctrico ficava a entupir a linha no Largo dos Aviadores, à medida que iam chegando outros que não podiam passar, o pessoal desmontava e juntava-se à função. A carreira já era conhecida pelos utentes do fim da tarde por carreira do Gervásio. O vinho era oferecido à discrição. Mas como a quinta produzia flores lindíssimas e fruta da melhor qualidade, aquela gente toda comprava a um preço óptimo, o que permitia aos retardatários adoçar a mulher com um ramo de geribérias ou um açafate de pêssegos. Assim Gervásio Amaral não tinha preocupações com o escoamento dos produtos da quintarola nem com as manobras dos intermediários.

As suas extravagâncias eram conhecidas, desde as gorjetas monumentais que deixava nos restaurantes onde ia comemorar um bom negócio, aos jantares na sua própria casa aos quais, mesmo estando sozinho, se apresentava de casaca e o mordomo se obrigava a desdobrar a ementa escrita em letra gótica e com iluminuras.

As francesas de passagem rejubilavam e depois de lhe darem umas boas dentadas na pecúnia, eram recambiadas à origem soterradas em sacos das lojas elegantes de Santa Catarina.

Com a entrada de Portugal na Grande Guerra, pôs-se Gervásio Amaral a farejar negócios. E descobriu um. Apercebeu-se de que o ácido sulfúrico, que rareava, era indispensável no fabrico de munições. A burocracia dar-lhe-ia tempo de armazenar todo o ácido sulfúrico existente no país, para depois o vender ao Estado no momento certo que não tardava.

Era uma operação de vulto, que envolvia importantes empréstimos bancários. Gervásio Amaral costumava negociar em nome próprio, mas desta vez era necessária uma firma comercial.

Tinha Gervásio a trabalhar com ele um manga-de-alpaca, apagado e discreto, que se encarregava da escrita das suas variadíssimas aventuras económicas, a quem pagava generosamente por considerá-lo uma peça importante do seu sossego.

Senhor Cordeiro, disse-lhe. Preciso que me faça um favor. Descreveu-lhe o negócio e explicou-lhe que precisava dele para formar uma sociedade que só existiria para aquele efeito e que se chamaria Germano & Correia, respeitando as três primeiras letras dos respectivos nomes. O Cordeiro não teria que desembolsar um chavo, só assinar a escritura e, uma vez o negócio consumado, comprometer-se a desfazer o pacto social.

O outro disse a tudo que sim, com certeza senhor Amaral, o senhor tem sido um pai para mim e para a minha família, o que me custa fazer-lhe um jeito tão simples, que nem favor se pode chamar.

E o banco emprestou o dinheiro e Gervásio arrematou todo o ácido sulfú-rico existente, armazenou-o e esperou. Quando soube que a fábrica de arma-mento de Braço-de-Prata procurava, desesperadamente e em vão o precioso ácido, escreveu ao Ministério da Guerra explicando que a firma Germano & Correia tinha em armazém o suficiente para as necessidades de fabrico.

Vendeu até ao último decilitro e no final da guerra tinha ganho uma fortuna. Na hora de desfazer a sociedade o Cordeiro, a quem reservava uma estupenda quantia, recusou-a. Sou seu sócio, senhor Amaral, quero metade e não assino nada que altere o nosso pacto social.

Está bem, senhor Cordeiro. Então recusa o meu cheque? É a sua última palavra?

Recuso, disse o outro com as unhas enlutadas de fora. Não me compra por tão pouco.

O senhor é que sabe, disse Gervásio Amaral rasgando calmamente o cheque em trinta bocadinhos.

Abriu-se com o seu amigo Alcides Guimarães Belo, não querem lá ver aquele filho da puta? Tenho que arranjar maneira de foder os cornos àquele cabrão. (A par da sua extrema elegância, Gervásio Amaral era também conhecido pelo seu vernáculo.)

Tenho a solução, disse o Alcides.

Fala depressa antes que eu morra de fúria.

Não tens uma arma? Ouço dizer que andas sempre armado.

E queres que eu limpe o sebo ao gajo, assim sem mais nem menos.

Não. Empresta-me a arma e eu vou assustá-lo. Faço-lhe uma cena, digo que interceptei uma carta dele para a minha mulher e, transtornado, desato aos tiros. Acerto-lhe no pé, ou coisa assim, crime passional, lavagem de honra.

Depois apareço eu com o notário e explico-lhe que, à segunda carta, o meu amigo não o deixa vivo. É óptimo e é divertido. Mas ó Alcides, tu sabes atirar?

Nunca peguei numa arma, mas aprendo.

Um dia estava o Cordeiro na barbearia onde diariamente fazia a barba e lustrava o bigode quando apareceu o Alcides embuçado, de cabeça perdida, lançando gritos de vingança, seu sacana de merda, a atentar contra o meu bom nome, a escrever cartas indecentes à minha esposa, mas eu rebento-lhe os cornos e são todos testemunhas de como eu defendo a minha honra! Toma, vilão!

Alcides queria fazer render a cena, achou que se estava a sair lindamente, mas percebeu que se não atirasse depressa o outro talvez tivesse hipótese de fugir e vai daí, pum, pum, não tinha treinado a pontaria e apanhou o outro no abdómen.

Saiu, cambaleando, até à esquina onde um automóvel o esperava. Não ficou para ver o grande penteador branco tingir-se de vermelho, nem o Cordeiro de cabeça caída sobre o ombro, de ventas ensaboadas e olhos de cordeiro mal morto.

Então? Conseguiste?

Uma limpeza. Percebi hoje que a minha vocação é o palco. Não é o tiro ao alvo, mas é o palco.

Porquê? Não lhe acertaste?

Acertei, pois. Acho que o matei.

Às sete da manhã já estavam os dois debruçados sobre o jornal. Uma notícia na página dos crimes,

TIROS NA BARBEARIA

Cavalheiro não identificado entrou ontem na Barbearia Ideal empunhando uma arma e desfechou dois tiros sobre o conceituado empresário Jesuíno Cordeiro, acusando-o de ter atentado contra a sua honra por meio de uma carta alegadamente dirigida à esposa do agressor.

Empresário? Conceituado empresário? Agora acabo com ele. Que merdas andava ele a contar na barbearia? É óbvio que o jornalista falou com o barbeiro, não há informadores mais eficientes e...

Tu deste-lhe na barriga?

Sei lá. Aquela coisa parece que tinha vida própria, gargalhou.

... o caso foi entregue à Polícia Judiciária.

Ah, bom. Então estamos em paz. Com um bocado de sorte o sujeito safa-se e a polícia arquiva o caso e quando o Cordeiro voltar ao lado de cá vai encontrar-me aos pés da cama. A mim e ao notário e vai assinar a papelada ainda antes de perceber que não se apagou. Ou não me chame Gervásio Amaral.

O Alcides, um pouco a despropósito, soltou uma das suas habituais gargalhadas.

Efectivamente assim foi. E do Cordeiro ninguém mais ouviu falar. Retirou a queixa e sumiu-se para terras de Verride a fazer pequenas escritas de empresários sem nenhuma visão.

Alcides Guimarães Belo recebeu do amigo um presente principesco. Sendo sua mulher natural de Viseu, Gervásio comprou uma belíssima quinta com uma belíssima casa nos arredores daquela cidade e ofereceu-a ao amigo que há muito pensava retirar-se para aqueles lados com a mulher e a filha adolescente.

Quando, anos mais tarde, Gervásio os visitou, deparou-se com uma rapariga deslumbrante onde não reconheceu a menina de outros tempos.

Lembras-te da minha filha Amélia?

Gervásio Amaral engoliu em seco. Não era seu hábito ficar boquiaberto perante as graças de uma mulher.

Tornou-se visita assídua da Casa dos Plátanos. Apesar da diferença de idades, Amélia andava nos vinte e poucos e Gervásio nos trinta e muitos, Alcides e a sua mulher Dália viam com bons olhos aquela corte, aquele enlevo, aquele namoro.

A Amélia não casou até agora porque é doente, explicou-lhe o amigo. Sopro no coração. O médico desaconselha o casamento.

Não a vais proibir de casar, ou vais? Perguntou Gervásio à beira do pânico. Nunca me apaixonei na minha vida e agora estou a pagá-las todas juntas.

Nunca poderia negar a mão da minha filha ao meu maior e mais fiel amigo. Mas é meu dever prevenir-te que não é fácil viver com uma mulher doente e que, muito provavelmente, não poderá ter filhos. E a quem vaticinam uma vida curta...

Gervásio decidiu então apressar o casamento. Faria tudo pela saúde de Amélia. Consultaria os melhores médicos da Europa. Dar-lhe-ia uma vida calma e rodeada de luxo e amor. E, a pedido do amigo, ficariam a viver com eles para não os privar da presença da sua única filha.

Foi assim que Gervásio Amaral mudou radicalmente de vida. Tornou-se um marido desvelado e um homem tranquilo. E quando nasceu a sua filha Júlia, verificando que todas as mulheres da família tinham um nome terminado em «lia» trocou o nome da quinta, de Casa dos Plátanos para Casa das Lias e arrancou ao sogro e amigo a mais sonora das suas célebres gargalhadas.

A senhora dona Amélia contou-me esta história várias vezes, costumava dizer, isto não foi bem assim na parte que se refere ao negócio, parece que o meu marido, para não ser acusado de açambarcador, quando meteu o ácido sulfúrico no armazém teve de simular falência para lhe selarem as portas e o produto ficar lá quietinho até ao momento de ser necessário e isto complicou o processo e dessas diligências eu não percebo.

A mim interessa-me a parte em que o conheci e me apaixonei por ele, acrescentava com a sua vozinha ofegante por causa da doença, essa é que foi uma história linda de amor que nem as dos romances que eu costumava ler, tinha-me feito romântica porque me diziam que eu não podia casar e já tinha resolvido viver o amor por empréstimo e não há como os livros, os generosos livros, para nos emprestarem outras vidas. E então chegou aquele homem bem-posto, interessante, simpático, galante, viril, delicado, ele era tudo isso e amou-me loucamente, juro-te Mila, loucamente, que me importa que o meu coração tropece no seu próprio sangue se fui tão feliz e conheci o amor.

Quando foi do desastre o Gervásio não morreu logo, o meu pai sim. Tinham ido ao Porto no automóvel novo do meu marido, ele andava entusiasmado com a velocidade que aquilo dava, as costelas partidas oprimiram-lhe os pulmões e causaram a pneumonia que o matou. Foi o que disse o médico. Mas no hospital ainda teve tempo de me dizer, não chores minha adorada, dizem que a tua vida não há-de ser longa, por isso Deus me manda ir na frente para preparar a tua chegada ao céu com todos os mimos e requintes a que sempre te habituei. Quando a nossa filha casar pede-lhe que fique contigo na casa das Lias. E quando o teu coraçãozinho se cansar estarei à tua espera para te receber de novo nos meus braços.

Ele não me disse isto assim seguido. Foi dizendo e dizendo à medida que piorava e eu, apesar da doença e de quererem poupar-me e de a Julinha me ralhar, passava as noites na clínica e era no silêncio e na obscuridade da luz permanente que ele falava comigo, com muito custo, as mãos presas nas minhas, a respiração incerta, a vida a fugir-lhe mas os olhos nos meus e o sorriso, aquele sorriso trocista que não se apagou mesmo quando, com o rosto colado ao meu soltou o último e fundíssimo suspiro.

Por isso, Mila, não tenhas pena do meu sopro no coração, tenho que ir, não é, com o Gervásio à minha espera sabe-se lá com que loucuras.

Sobreviveu-lhe quatro anos. Dois na minha companhia, que era sua dama de isso mesmo, e me apeguei a ela com muito mais sentimento do que a minha posição exigia. Cuidei dela com boa vontade, posso dizer com amor, e guardo da senhora dona Amélia Amaral uma recordação de muita paz.

Às vezes penso que devia começar a contar estas histórias à Joaninha e à Marta, porque uma família não são só os laços de sangue e os afectos, mas as memórias, que umas vezes explicam, outras inquietam, outras magoam, mas sem as quais andaríamos à deriva sem cais onde amarrar o nosso perdido bote.

 

E eu avanço em direcção à Casa das Lias, estou quase a chegar, e volta aquela saudade, uma alegria incontrolável apesar do desgosto e por menos correcto, por menos adequado que isso seja, tenho mesmo que deixar-me inundar por ela, tão genuína, tão pura, tão cheia de infância, cada pedra começa a ter um rosto conhecido, cada árvore um nome, e o chiar dos pneus no saibro da entrada da quinta é tão reconfortante como a memória da caixinha de música que costumávamos ouvir, como prémio das boas acções ou consolo de tristezas, no quarto da minha mãe.

Ainda não vislumbro a casa. Terei de fazer a curva para a direita, já dentro da quinta, para apercebê-la ao longe, semi-oculta pela folhagem, branquejando entre roseiras, reconfortantemente instalada entre cantos de pássaros.

Agora surje-me o atelier do padrinho Augusto sem nenhuma estátua a ultrapassar o telhado, com a parede esverdeada do sulfato das videiras que a rodeiam e à esquerda, lá adiante, a rede do galinheiro enorme, o cacarejar intempestivo das galinhas, o grugulejar dos perus, o alarme dos gansos, respondendo ao ruído intruso do automóvel.

Fechem o galinheiro que eu estou a sentir o cheiro dos lobos.

Menina Marta, nesta época os lobos não atacam.

Vão atacar. Sinto a alcateia bem perto.

Ora ora, menina, lido com lobos há para cima de cinquenta anos.

Então está bem, não acreditem.

Quando no dia seguinte encontraram um caos de ovos partidos e penas ensanguentadas, o velho Zacarias disse, esta menina ou é santa ou tem parte com o mafarrico, que Deus me salve.

A Marta tinha só oito anos.

Faço um esforço para me lembrar ao que venho. Queria arrumar silenciosamente o carro longe da casa, entrar de surpresa, gritar Pai, Mãe, Padrinho Augusto, cheguei, ser recebida primeiro pelo cheiro da cera de alfazema, talvez já uma suspeita dos aromas do cabrito do almoço, acomodado no barro entre batatinhas novas, o arroz de forno enfeitado de rodelas de bom chouriço caseiro e logo depois a surpresa da mãe, os beijos da mãe, as mãos da mãe nos meus ombros, deixa ver, estás linda mas um bocadinho pálida, andas a trabalhar de mais e o pai, o sorriso luminoso do pai, ora seja muito bem aparecida dona Joana, e o padrinho Augusto?, já aí vem, agora ninguém o arranca do atelier.

Mas hoje será diferente. A casa está silenciosa. E se o perene cheiro da cera de alfazema me vem saudar desde a entrada, não há vozes nem gargalhadas e a cozinha não envia até mim os seus odores festivos.

Presumo que o corpo estará na capela. Vi muitos carros lá fora, o que pressupõe o velório em casa. Falta-me o ânimo de dirigir para lá os meus passos. Embora a porta estivesse aberta volto atrás e toco a campainha. Já pousei a mala na entrada e o casaco inútil, porque afinal faz calor.

Vem a Fernanda. Ah, menina, fez boa viagem. Os senhores estão na capela, vai haver uma missa de corpo presente agora às onze, estão à espera do senhor padre Armando.

Queria ir ao meu quarto, Fernanda, refrescar-me, pousar as coisas.

Eu levo, menina. A mãezinha mandou preparar o quarto da sua avó Júlia, que ela nunca dá a ninguém. A menina há-de querer comer alguma coisa.

Se me trouxeres um cafezinho fico óptima.

Sinto-me grata por esta chegada tranquila, as emoções adiadas para um pouco mais tarde, a possibilidade de me reencontrar com a casa, o silêncio, a ordem, a luz difusa, o quarto da avó Júlia imutavelmente arrumado, lavo-me, observo no espelho a minha cara de Lisboa que aqui parece diferente, sento-me na pequena poltrona capitonée junto à mesinha hexagonal de embutidos e, sem querer pensar em nada, espero pelo café.

A Fernanda traz a bandeja de prata com a xícara de porcelana pintada com flores românticas em rosa e lilás, a colherzinha com o contraste visível, um prato da mesma loiça com bolinhos de erva-doce, a cafeteira de prata, esguia, com pega de madeira, o guardanapinho de linho igual ao naperon feito à medida da bandeja, duro de tão bem passado, e nem vou à carteira buscar o adoçante porque não resisto aos torrões acomodados no açucareiro de prata, em forma de taça com asas de bolota e pinça a condizer.

Estará bem assim, menina Joaninha? Trago mais alguma coisa?

Está maravilhoso, Fernanda, Deus te pague, podes ir.

O café rescende. Os bolinhos são infância em forma de biscoito.

Podemos ter centos de casas ao longo da vida que só uma será para sempre a Casa.

O meu coração aquieta-se. O reencontro com o ritual diz-me que tudo está certo. Há algo de eterno nestes objectos, nestes gestos, no cheiro do café, no linho do guardanapo, no sabor da erva-doce. E quando todos morrermos esta rotina sagrada será ainda a verdadeira alma da casa.

A Marta tem dois filhos. Espero algum dia pôr no mundo uma filha, porque são as mulheres que tecem a eternidade.

Agora estou preparada para encarar o lado visível da morte, com o seu cortejo de lágrimas e abraços, cheiro a estearina e a flores cansadas, e aquele ar pesado, quase palpável, que enche a capela até ao tecto.

A capela foi mandada acrescentar à casa pelo meu trisavô, para que a minha bisavó Amélia, doente do coração, pudesse assistir à missa e confessar-se sem ter que sair da quinta. A confissão acontecia na primeira sexta-feira de cada mês e seguia-se um almoço em que o padre era o convidado de honra. À sobremesa, de língua desatada pela excelência da comida e do vinho, o padre desabafava, eu acho que a Amelinha se confessa uma vez por mês só para não me privar deste banquete. É que ela é a única das minhas paroquianas que não tem pecados.

Ah, senhor Padre, então e a gula, dizia ela lambendo o que restava de duas colherinhas de doce de ovos. E logo o padre, isso não é gula, é alegria, e a alegria nunca foi pecado.

Às vezes tento assimilar estas palavras do velho cura aos meus prazeres, pecaminosos à primeira vista. É alegria, Joana. Alegria.

Mas hoje é a tristeza.

A capela está repleta. Junto ao caixão aberto a minha mãe, com o seu rostinho lindo mas apagado, o cabelo preso atrás com um elástico, a saia preta, a blusa preta com pintinhas brancas. O meu pai atento às emoções dela, no seu estatuto habitual de anjo-da-guarda. O padrinho Augusto não tem cara de morto, serve-lhe aquele cliché «parece que dorme», acho que sorri, como se tudo isto o divertisse. E há as carpideiras de serviço, a lágrima fácil, o lencinho em bola, os brincos pretos.

Vou beijar os meus pais e logo três delas se levantam para me dar os pêsames. Perdeste um grande amigo, filha, um grande amigo. E o mundo perdeu um grande artista, reforça a outra. Vai fazer muita falta, diz a terceira. E a primeira, com um suspiro fundo, nós não somos nada, ninguém diga que está bem.

À chegada do padre todos se levantam, eu não consigo dar atenção à missa, estou preocupada porque a Marta não chegou.

E logo o pensamento me voa para anos atrás, a Marta à porta da capela, Joana, não posso entrar, estou a ouvir os afogados do rio.

Então, entras e rezas por eles.

São todos os afogados, desde sempre, desde sempre, acho que querem dizer-me alguma coisa.

E tu vais ficar aí o resto da vida a decifrar as mensagens de tanta gente?

Vai tu entrando que eu vou já.

Estará a Marta parada na porta a ouvir os afogados, o padrinho Augusto, a avó Júlia? Não é costume dela chegar atrasada.

E nisto vejo-a entrar, é igual à minha mãe em nítido, como alguém que pegasse num retrato da mãe e o avivasse com lápis de cores e fizesse sobressair a sua beleza escondida na cara da filha.

A Marta, o Paulo e as crianças, João e Mateus.

Fico sossegada, quase alegre.

E aos poucos, à medida que a cerimónia avança e me concentro na morte recém-estreada do padrinho Augusto, começo a sentir, lentamente, sorrateira-mente, um leve, amargo, inexplicável, conhecido, sentimento de culpa. Com ele insinua-se a dor de cabeça. Experimento rezar, mas aquele remorso dentro de mim incomoda-me. Se ao menos conseguisse chorar.

O corpo ficará todo o dia e toda a noite em câmara-ardente. O enterro é só amanhã às nove.

Tento sair da capela sem dar muito nas vistas. Digo ao ouvido da mãe, dói-me a cabeça, vou tomar ar, passo pela Marta para lhe dar um beijo, ela pede-me que leve os miúdos e lhes dê um sumo.

De facto aquilo não é ambiente para crianças de quatro e cinco anos. Coitados. Um velório naquela idade. E dou-me conta de que este é o primeiro velório da minha vida naquela casa, terá havido o da avó Júlia, mas eu ainda não tinha nascido.

Não sei porquê este pensamento faz aumentar a minha dor de cabeça. Entrego os meus sobrinhos à Fernanda que os leva para a copa a dar-lhes sumos e biscoitos. Eu subo ao meu quarto, tomo duas aspirinas, deito-me um pouco e adormeço, Sonho com o padrinho Augusto. Ele está vivo mas é um pesadelo, porque ele tenta dizer-me alguma coisa que não entendo. Está empoleirado num escadote a esculpir a estátua de uma mulher nua, grávida, e ao mesmo tempo fala comigo, é uma coisa urgente, mas as pancadas do martelo no cinzel não me deixam compreender nada, é como se martelasse na minha cabeça, se ao menos ele parasse de trabalhar e me falasse no meio do silêncio, mas não, e como olho para cima e ele tem o telhado amovível aberto, aquela luz dá-me em cheio nos olhos, torna insuportável a minha enxaqueca e na contraluz o padrinho Augusto começa a perder os contornos e a dissolver-se, e enquanto eu grito o quê o quê a estátua começa a dar à luz um bebé minúsculo que me cai nos braços e é o menino Jesus de marfim do quarto da avó Júlia e eu tenho que levá-lo escondido num xaile que agora me cobre, tomar conta dele, dar-lhe o peito, embalá-lo, resguardá-lo de todos os perigos porque é muito importante que ele sobreviva e carregue com todos os pecados do mundo, só assim ficarei livre dos remorsos e das dores de cabeça.

Não posso dormir de dia. Em dez minutos sonhei esta angústia toda. Sento-me na cama e olho para a parede do lado esquerdo, oposta à janela, para a cómoda de pau-santo e respectivo oratório, onde o belíssimo menino Jesus do século dezassete me olha tranquilo, abençoando-me com dois dedinhos erguidos, o cordeiro aos pés e a coroa de prata e brilhantes cingindo-lhe os caracóis de marfim.

Fico muito tempo amodorrada, tentando controlar a enxaqueca, verifico que as aspirinas não fizeram efeito mas não tenho nada mais forte, acho melhor descer, estou mais uma vez a ser anti-social, já deve estar a ser servido o almoço volante previsto para todos os que tiveram a amabilidade, claro que se salientam pelo apetite as três carpideiras de serviço que agora se comportam como num evento social, com a xícara da canja na mão esquerda e a empadinha na direita, arrulhando mundanamente, não consigo evitá-las, então Joaninha, filha, continuas sozinha lá por Lisboa, a minha mãe vem em meu auxílio, então, a Joana é médica, está a desenvolver um trabalho sensacional com adolescentes, exageros de mãe para o meu modesto projecto mas deixo-a dizer, quero que a minha genialidade e abnegação deixem estas velhas embasbacadas e logo uma delas, a chefe de grupo, sim sim filha, tudo isso está muito bem, mas vamos ao que importa, não, vamos lá a saber, quando é que te casas.

Penso ir até à capela agora que estão todos aqui, talvez se eu rezar, se eu me focar no que está a acontecer a minha dor de cabeça abrande. Está apenas uma pessoa ajoelhada junto ao caixão, é uma mulher e reconheço a silhueta curvada da Mila, que chora baixinho enquanto desfia as contas do rosário.

Apetece-me muito abraçá-la, sei como venerava o padrinho Augusto, mas não quero interromper aquele instante de recolhimento. Ela sente os meus passos e com os olhos míopes tenta identificar-me na penumbra.

Sou eu, Mila, a Joana.

Levanta-se para me abraçar. Eu devia ter ido primeiro, Joaninha. Era assim que estava combinado.

Tonta! E cubro-a de beijos. Ela cheira a pó-de-arroz antigo, a sedas velhas, a sabonete de musgo.

Sentamo-nos aos pés do caixão, ficamos em silêncio perante aquele morto risonho. A Mila, de olhos baixos, segura a minha mão e roda a minha aliança de esmeraldas que pertenceu à avó Júlia e que eu nunca tiro do dedo.

Este anel era da sua bisavó Amélia. Ofereceu-o à sua avó Júlia num Natal em que não teve saúde para fazer compras. O outro, o que tem o diamante e a pérola cinzenta é que foi presente do doutor Augusto, ajudei-o a escolher.

Também o tenho. Deu-mo a minha mãe.

Muito justo, a Joaninha é a mais velha. O seu padrinho havia de gostar de lho ver.

Viu-mo várias vezes, mas acho que nunca reparou.

Reparou pois. Ele amava como ninguém as suas mulheres.

Achei esta frase estranha. Como assim? Amava as suas mulheres?

Quero dizer que. Bom. Todas as mulheres da casa gostavam dele, não é? Ele tinha aquele jeitinho único de lidar com as pessoas, as novas e as velhas, todas as mulheres.

Ficamos em silêncio. Não percebo bem onde a Mila quer chegar. Ponho-me a tecer hipóteses, mas abandono, é muito trabalhoso para a minha enxaqueca. Até que ela diz esta coisa espantosa, o doutor Augusto foi a minha única paixão.

Repete lá isso, Mila.

Repito, sim. Quero dizer isto aqui na presença dele, e porque sei que a Joaninha não conta. O doutor Augusto foi o meu grande amor. Nunca lho disse, claro, mas quando a sua avó Júlia se ma...

Quê?

A... Quando a sua avó Júlia se magoou naquele acidente de automóvel.

Qual acidente? Nunca ouvi falar.

São coisas antigas, deixe lá.

A Mila está atrapalhada. Tenho a certeza que ela ia dizer, quando a sua avó Júlia se matou. Ora nunca jamais ouvi falar em tal coisa. Que diabo de mistério andará aqui?

Percebo que agora não lhe arrancarei nem mais uma palavra. Decido que qualquer dia irei procurá-la ao lar onde agora vive, casa de repouso ou lá como lhe chamam. Levo-a a almoçar, dou-lhe um vinhinho branco que ela adora, faço-a contar-me tudo.

Acho-me horrível com estes pensamentos premeditados. Coitada da Mila. Agora que me fez a grande confidência da sua vida, eu só ligo àquilo que realmente não disse. Obrigo-me a ser compreensiva.

Como é que te foste apaixonar pelo padrinho Augusto, Mila?

Era o homem mais bonito do mundo. O mais simpático, o mais inteligente. E bom. E artista, ainda por cima. Não era possível resistir-lhe.

Tiveste um caso com ele?

Deus me defenda, não. Foi só paixão platónica, mas que dura até hoje. Por causa disso nunca conheci homem nenhum. Nem podia. Ninguém lhe chegava aos calcanhares. Ele sim, ele conheceu outras mulheres. Culpa delas, que o desencaminhavam. E ele, o que havia de fazer, era homem.

Era homem.

A Mila diz isto com orgulho. Ela amou um homem. Com «H» grande. Um Homem.

Quando a sua avó Júlia se ma, se matou?

Será essa a origem da minha culpa? Eu já estaria na barriga da minha mãe e não pude valer-lhe? Sei que isto não me irá sair da cabeça.

À noite a minha enxaqueca, é claro, não melhorou. A Marta diz-me assim.

Joana. Antes de te deitares põe um copo de água na mesinha-de-cabeceira. Pede ao teu anjo-da-guarda que faça o necessário. Se acordares de noite, ou mesmo de manhã, bebe a água. Vais ver que melhoras.

Marta, eu sou médica.

Não custa experimentar, ri-se a Marta.

À hora de ir dormir, com a médica dentro de mim a insultar-me, vejo-me de copo de água na mão a fazer uma oração desesperada ao anjo-da-guarda.

De madrugada, com o crânio a estalar, bebo a água.

De manhãzinha acordo fresca e repousada: a dor de cabeça desapareceu.

 

Mila, Mila, onde é que tu tens a cabeça, velha caduca, ires faltar à tua jura diante do cadáver do homem a quem juraste. A Joaninha agora não me vai largar com perguntas. Vai deixar passar o funeral e depois há-de procurar-me no lar, tenho que me aplicar a trabalhar a história do acidente que inventei naquela hora de aperto.

Quando a senhora dona Amélia morreu já as coisas não andavam bem entre a senhora dona Júlia e o senhor engenheiro. Ela estava grávida, tinha-me confidenciado, Mila, acho que cometi um erro ao pensar que um filho iria transformar o Tiago numa pessoa mais responsável. Mas não lhe vejo melhoras nenhumas. Pelo contrário. Agora que a quinta e as propriedades são todas minhas, prepara-se para deixar todos os nossos bens naquele maldito pano verde. E nem por me ver grávida me trata com mais carinho. Como é que me pude enganar tanto.

Se me permite um conselho, tire-lhe a procuração antes que seja tarde.

Como, se nem sei onde ele a guarda. Deve estar no advogado, que é amigo dele.

Antes de ir falar com o advogado vamos dar volta à casa. Se o papel cá estiver eu encontro-o.

E comecei, metodicamente, sistematicamente, a esquadrinhar a casa de alto a baixo.

Todos os armários, estantes, secretárias, cómodas, escrivaninhas, papelei-ras, com suas gavetas, falsos e escaninhos secretos foram revistados em porme-nor, pasta por pasta, papel por papel. Tudo devagar, com a maior discrição, na ausência do dono da casa e para que ele não encontrasse nem um selo fora do lugar.

Não descubro o papel. Mas ainda não desisti. Agora vamos tratar das limpezas da Páscoa e logo a seguir recomeço. Não alertamos ainda o advogado.

A aproximação do tempo das limpezas sentia-se no ar, quando a Prima-vera começava a espreitar em forma de andorinha ou de flor, com uma voz diferente na fonte do jardim, carreiros de formigas à porta da cozinha, garga-lhadas de pássaros nas janelas abertas do primeiro andar.

Então era o momento de contratar duas mulheres de braços poderosos para auxiliarem o pessoal da casa, distribuir-lhes baldes, panos, jornais, deter-gentes caseiros para vidros e mosaicos, varapaus toucados de branco para desalojar teias de aranha, esfregões de arame para raspar a cera velha dos soalhos.

Era todo um frenesim de tapetes enrolados, janelas escancaradas, móveis arrastados, poltronas emborcadas, reposteiros estendidos sobre as camas, cortinados para lavar.

A casa perdia os seus recantos de intimidade e de penumbra, fazia-se descarada, exposta, sem mistério.

Depois, aos poucos, tudo voltava ao seu lugar. Primeiro, sala por sala, já com as paredes lavadas, os cantinhos vasculhados, os rodapés impolutos, os vidros limpos, começava a tarefa de espalhar cera de alfazema nas tábuas do chão, tarefa árdua, feita manualmente, doseando a cera para não empastar, a acabar sempre junto à porta, para não ter que pisar, mesmo com os pés obrigatoriamente descalços, o trabalho feito. E quando a cera secava e já toda a casa rescendia, começava a empreitada de puxar o lustro, metodicamente, sem nunca perder o alento e o brio.

Repor a decoração era já tarefa fácil. Os tapetes já limpos e secos ao sol sobre os arbustos, os móveis escarolados de todos os ângulos possíveis, os sofás escovados até à última franja do remate, as porcelanas lavadas com bicarbonato, as pratas areadas com solarina coração. Os reposteiros sacudidos, as cortinas engomadas, os vidros brilhando da fricção dos jornais, escolhendo sempre as páginas mais densamente impressas porque a tinta ajudava.

Terminávamos semicerrando janelas e cortinados, enchendo de flores e de plantas silvestres todas as jarras da casa. E cada recanto podia então servir de altar a Nossa Senhora de Todas as Graças, padroeira da quinta. (A sua imagem era venerada em lugar de honra na capela, que também não escapava ao mar em fúria das limpezas da Páscoa.)

Foi graças a essa maré devoradora de lixo, e quem sabe à padroeira a quem ainda hoje tenho o hábito de confiar as minhas aflições, que deparei com um baú no esconso das escadas que levavam ao sótão, um baú esquecido num recanto praticamente ignorado e escuro e me veio aquele alvoroço que mais que palpite é certeza, e soube de certeza certa que a procuração devia estar lá dentro. Mas faltava-me a chave. Consultada a minha patroa ela disse, esse baú era do meu avô, a minha mãe mandou-o pôr ali por considerar que tinha papéis Pessoais que não interessariam a ninguém. A chave. Ai, onde é que nós metemos a chave.

Já não deve estar no mesmo sítio, lembrei, porque se o senhor engenheiro lá tiver arrumado papéis dele é lógico que guardou a chave entre as suas coisas. E eu tenho ideia de, naquela minha busca sistemática, ter visto várias chaves e até já sei.

A patroa Júlia desceu a escada recém-encerada o mais de pressa que a sua gravidez de seis meses lhe permitia. Regozijei-me de ter apertado pessoalmente os parafusos dos varões de metal, também recém-areados, que prendiam a passadeira aos degraus e segui-a até à biblioteca.

Numa mesinha baixa de leitura estava um objecto que sempre me intrigara, um paralelepípedo de prata chinesa trabalhada, não uma caixa mas um paralelepípedo, sem tampa nem nenhum ponto fraco aparente.

Ela pegou naquilo e começou a rodá-lo nas mãos, como num passe de ilusionismo, fazendo pressão sobre as faces lisas e elas começaram muito lentamente a deslizar umas sobre as outras e a expor o seu interior forrado de veludo. Dentro estava uma chave presa por um cordão de seda vermelha com uma borla na ponta. Era uma chave linda, em metal de dois tons, que só por si valia como um objecto de arte.

Introduzida na fechadura minúscula do baú, rodou com um barulhinho gostoso e desvendou-nos os seus segredos.

O baú estava cheio. Em cima uma capa de cartolina azul-clara com a procuração. Por baixo uma quantidade enorme de gravuras, separadas por papéis de seda, que o engenheiro Tiago Vaz teria vendido se suspeitasse do seu valor.

Queimámos a procuração e fomos tomadas por um irreprimível ataque de riso, abraçadas, felizes, como duas adolescentes cúmplices do mesmo segredo.

Servi, para as duas, um chá na chamada salinha de costura do andar dos quartos, já que a sala de estar lá de baixo ainda estava na fase de secar a cera.

Foi com a xícara numa das mãos e uma fatia de bolo de maçã na outra que a minha patroa Júlia me disse assim,

Mila, quero pedir-te um favor. Não me trates por senhora dona. Não preciso de uma empregada, preciso de uma amiga.

Mas quando falavas de mim com a minha querida mãe dizias sempre a Julinha, que era como ela me chamava. Pois trata-me por Julinha que eu fico muito mais feliz.

Fiquei comovida. Não sei se ela se apercebeu de que também eu precisava bem mais de uma amiga do que de uma patroa.

Julinha, aceito e agradeço a honra que me faz e não preciso dizer-lhe que pode contar comigo sempre, para o que der e vier, eu infelizmente não lhe fui de nenhum préstimo no momento mais difícil da sua vida.

Os meses que faltavam para o parto decorreram tranquilos sem que o engenheiro Tiago Vaz perguntasse pela procuração. A chave estava de novo no seu intrigante estojo e o baú permanecia adormecido na penumbra.

A Ana Salomé nasceu em casa, numa bela manhã de Julho, sem a presença do pai, mas rodeada de mulheres, ansiosas por descobrir na recém-nascida todas as prendas do mundo. Linda. Esperta. Risonha. Parecida com a avó Amélia. E os dedos compridos. E as unhas cor-de-rosa. E a covinha na face.

Já as bochechinhas começavam a arredondar, já o sorriso era consciente e o pairar diálogo, quando o pai chegou das suas loucas andanças pelos casinos a buscar, desvairado, a procuração.

Tiago, tens uma filha.

Uma filha? Era só o que me faltava.

Não queres vê-la?

Depois. Agora preciso de encontrar a tua procuração. Ia jurar que a tinha guardado no, ou foste tu que lhe mexeste?

Eu? Eu sei lá onde é que tu metes os teus papéis. O mais certo é estar no advogado.

Não está. Ajuda-me a procurar, fazes favor.

Pede à Mila. Eu tenho que cuidar da Aninha.

Chama-se Aninha?

Ana Salomé.

Mas que raio de, bom, não interessa nada. Tenho de encontrar aquela procuração.

O que é que vais vender desta vez?

A vinha do Penedo. Já está apalavrada e o tipo que ma comprou não é para brincadeiras. Não te aflijas que eu depois compro outra com muito melhores castas.

Claro.

Se não encontrar a procuração vais ter que me passar outra.

Pois. Mas vais ver que aparece. Não queres conhecer a tua filha?

Vou já.

Berrou por mim e pusemo-nos os dois a procurar o inexistente documento.

Júlia, tens que vir comigo ao notário.

Ah, isso agora não posso. Tenho que dar de mamar ao bebé. E além disso tenho um pouco de febre e o médico proibiu-me de sair. Se pioro a criança pode adoecer.

És incapaz de me ajudar, de mostrar a mais remota boa vontade.

Mas não perdes pela demora. Eu trago o notário cá a casa.

Mas o notário não se encontrava em Viseu. Tinha ido a banhos com a família para a Figueira da Foz e por mais que o desesperado Tiago Vaz fosse lá tentar convencê-lo a acompanhá-lo à Casa das Lias, o notário, farto de conhecer os motivos daquele tipo de urgências, negou-se determinantemente a interromper as férias. De volta a Viseu, o engenheiro não regressaria a casa. Foi encontrado morto com dois tiros, dentro do automóvel, a seis quilómetros da quinta, assassinado, tudo indicava, por um credor impaciente.

Júlia Amaral Vaz portou-se com uma dignidade impressionante. Ninguém lhe viu uma só lágrima.

Depois do enterro veio dar de mamar à filha. Quando lhe pus o bebé ao peito teve esta frase de que nunca me esqueci,

É tão bonito este gesto de amamentar um filho. Só comparável em beleza ao gesto de semear a terra, ao de lançar a rede para a pesca, ao de erguer as mãos para rezar.

Tiago Vaz morreu sem conhecer a filha.

 

Hoje é domingo e amanhã tenho que voltar para Lisboa. Concedi-me três dias de luto, o que não me parece demasiado por um padrinho que foi um segundo pai, ou melhor um avô muito querido.

Lembro-me como, da última vez que aqui estive, tentou aconselhar-me acerca da minha vida amorosa. Porque eu trato muito mal os homens. Sou um bocado masculina nas minhas atitudes, demasiado independente, dizem eles, prefiro um episódio a uma relação. Gosto de viver sozinha e não tenho gavetas disponíveis para meias de lã e boxers de fantasia. Nas prateleiras da minha casa de banho não há espaço para máquinas de barbear, giletes e afins e se esporadicamente alguém pernoita, sugiro que se vá barbear para casa e a minha condescendência não vai além de um duche e um café.

Foi assim que consegui sacudir da minha vida homens interessantes e bons partidos, ansiosa por recuperar a liberdade de pintar as unhas dos pés acocorada como um hindu em cima do jornal do dia. Ou comer em tabuleiros de plástico iogurte com fiambre e batatas fritas de pacote. Ver televisão às três da manhã. Ouvir a Maria Callas a todas as horas. E ter dois gatos que me esfarrapam os sofás. Também gosto de martelar no computador às horas mais inusitadas, estudar na cama, lavar roupa interior de madrugada. Um susto para qualquer candidato a marido.

E depois há o Vasco. O meu doce, paciente Vasco.

Talvez um dia, quem sabe.

Subi ao meu quarto, ao quarto da avó Júlia, onde cada objecto parece querer conversar comigo. O nosso antigo quarto, meu e da Marta, está agora ocupado pelos meus sobrinhos. A Marta e o Paulo estão no quarto dos hóspedes, o maior, e permanecem fechados o quarto amarelo, o que tem a cama de solteiro e, por agora, o grande quarto, direi suite, do padrinho Augusto. Esse era o quarto dito «dos donos da casa», este onde estou era aquele que a avó Júlia ocupava nas suas tempestuosas brigas com o segundo marido. Contou-me a Mila. E depois há o quarto com saleta dos meus pais, que eram os aposentos de solteira da minha mãe e donde ela nunca quis arredar pé.

Menina Joaninha, são horas de merendar.

Há quanto tempo é que eu não ouvia a palavra merendar, que ninguém me tratava por menina, que esqueci esse ritual do lanche a que aqui chamam merenda.

Meninas, a merenda. A mãezinha mandou servir cá fora.

Vinha a mesinha de armar, a tolha bordada a ponto cruz, o bolo caseiro, o leite, e as duas, compostíssimas nos bibes de risquinhas e golinha branca com que a minha mãe repetia em nós a infância, sentadas em cadeirinhas baixas, pousando na borda da mesa bocadinhos de bolo para os duendes, que cada uma ia comendo quando a outra se fazia distraída, para nos convencermos que os duendes vinham e apreciavam as nossas ofertas.

O recanto do jardim prestava-se a estas fantasias e a muitas outras, imaginávamos sempre um mundo de seres minúsculos e misteriosos habitando os recantos sombrios entre as árvores, os canteiros de flores, o segredo das ervas. As formigas, as lagartas, os gafanhotos, faziam parte desse universo mágico, nem sempre eram o que pareciam, atribuíamos-lhe funções de mensageiros, intermediários entre nós e as pequenas fadas da floresta, oráculos do bom e do mau tempo.

Entenda-se que chamávamos floresta a qualquer conjunto de meia dúzia de árvores e atribuímos às fadas e aos duendes todos os sussurros do mundo vegetal à nossa volta, fosse o que fosse que por ali passasse, vento, escaravelho ou lagartixa.

A merenda fazia parte destes rituais encantados, podíamos pedir mel para barrar as bolachas e depois pôr gotinhas nas ervas porque os duendes eram proverbialmente gulosos e se as abelhas vinham imaginávamos duelos entre insectos e pequenos seres.

Ao contrário do que se passava em casa à hora da refeição com os adultos, à hora da merenda servida no jardim podíamos comportar-nos mal, embora o pai nos avisasse que havia câmaras escondidas a filmar os nossos disparates para uma fita intitulada As Macaquinhas da Casa das Lias com que se propunha concorrer ao prémio para o melhor filme sobre comportamento animal.

Em casa, à mesa, eram constantes as recomendações da mãe.

Não se sentem na borda da cadeira. Direitas à mesa. Onde estão as mãos? Quero ver as mãos. Desencoste os cotovelos. Limpe a boca antes de beber água. Boca fechada. Ah, ah, que maneira é essa de pegar no garfo, não quero ver as costas da mão. E não se pousam os talheres na borda do prato, que o prato não é nenhum barco e os talheres não são remos. E junte-os, se já acabou.

O pai ia-nos fazendo caretas a imitar as célebres macaquinhas da fita, para suavizar a austeridade da mãe. E nos dias piores, em que a mãe não nos largava com admoestações, o padrinho Augusto dizia, está bem Ana Salomé, já chega. Um pouco mais e não me sinto à altura de me sentar à mesa com as meninas mais bem-educadas da Península Ibérica.

É escusado dizer que nós, como qualquer criança de seis, sete anos, aprendíamos tudo e aprenderíamos muito mais, mas praticávamos pouco, por manha ou distracção. Daí o grande espanto e aplauso de toda a família quando de vez em quando porque havia visitas ou simplesmente porque nos apetecia, cumpríamos todas as regras, desde as mais complicadas, como descascar a banana de garfo e faca (os macacos é que comem a banana com a casca pendurada em feitio de flor) às mais absurdas, como fechar os talheres nas cinco e vinte e cinco tendendo para as seis e meia.

Os pais sentavam-se às cabeceiras da mesa, eu à direita do pai e a Marta à esquerda, o padrinho Augusto à direita da mãe e a Mila à esquerda, e uma vez em que a mãe, com gripe, não desceu para o almoço a Marta pretextou uma má disposição qualquer e pediu ao pai se eu a podia acompanhar à casa de banho. Como a mãe não estava o pai deu autorização e a Marta disse, Joana, a avó Júlia está sentada no lugar da mãe a esticar-se toda para tirar uvas do centro de mesa que a Mila fez e a cuspir as grainhas para a palma da mão sem maneiras nenhumas.

Estás maluca, Marta. Sempre quero ver, no fim do almoço, se faltam uvas no arranjo.

Viemos comer a sobremesa entre ataques de riso, porque até a mim me parecia ver estremecer o elaborado centro de mesa da Mila, com flores, frutos e espigas artificiais. Ficámos por perto enquanto a Rosalina (a Fernanda desse tempo) levantava a mesa. E conferimos que o cacho mais próximo do lugar da mãe tinha o lamentável aspecto de um galhinho seco, sem uva nenhuma e desencaixado da composição.

A merenda dos tempos actuais é mais um chá das cinco muito bem servido, reforçado com queijo da serra e pão caseiro. Sentamo-nos à mesa redonda da salinha de estar cá de baixo onde quase estranho ser admitida. Porque na infância esse era um momento só de adultos que não estávamos autorizados a interromper. Passando no corredor ouvíamos as conversas sussurradas, e a mãe, que me parecia mais linda do que nunca dando o perfil à luz da tarde, a perguntar, mais chá, João? Mando fazer mais torradas? Para logo voltarem àqueles murmúrios misteriosos que me faziam ver o mundo deles como algo inalcançável e um pouco assustador.

Está a Mila, o pai, a mãe e nós duas, o Paulo foi passear com as crianças (que merendaram na copa como nós fazíamos nos dias de chuva) a mostrar-lhes não só a quinta como outras propriedades próximas, fazê-los sentir um pouco a natureza num contacto directo.

Ao contrário das outras mães a Marta disse, deixa que se descalcem e sintam o contacto da terra nos pés, deixa que se sujem, que enterrem as mãos na terra molhada, já que está a chuviscar e deve cheirar bem.

A Mila deve ter achado isto horrível. Mas ficou tão fraquinha, tão murcha depois do funeral, que não encontrou forças para protestar.

Gostei tanto de dormir no meu quarto, disse ela.

Nunca ninguém lá dormiu desde que foste para o lar, garantiu a mãe, e isto pareceu reconfortá-la.

Aninha, arriscou, a pôr compota na torrada, eu não poderia voltar para casa? Agora que o doutor Augusto, quer dizer, ele é que levava muito em gosto que eu, mas não incomodo, não estou doente, se a Joaninha me quiser auscultar há-de ver que

Para a Mila um exame médico resume-se a uma auscultação torácica e uma apalpadela na barriga.

E a minha mãe cheia de paciência, Milinha querida, se te pusemos num lar não foi por não te querermos em casa, mas porque achámos que tinhas direito a todo aquele conforto ao fim de uma vida de trabalho. Aqui em casa havias de querer sempre ajudar, assumir o teu papel de governanta e havias de te ofender se eu não deixasse. Não te tratam lá bem? Não tens as tuas amigas? Não te vamos visitar quase todas as semanas? Acho que estás a ser mal-agradecida.

A mãe, que nunca fala, fez este discurso dum fôlego, com uma veemência que não lhe é própria, depois ficou calada e o pai fez-lhe uma festa na cabeça com imensa ternura.

Ia defender a pretensão da Mila, mas a Marta fez-me aqueles olhos eloquentes e eu calei-me.

O que eu senti na mãe, foi: Estou a cometer uma injustiça mas sou obrigada a isso.

Porquê?

Unidos na mesma tristeza pela morte do padrinho Augusto, a verdade é que acabámos por nos unir também na alegria do reencontro.

Não percebo porque é que estive tanto tempo sem vir a casa. Até mesmo no Natal tenho ficado nos últimos anos em Lisboa porque a Marta não quer deixar os sogros, velhotes e doentes e eu não quero separar-me dos meus sobrinhos.

Mas este encontro com o passado, com a infância, com a casa, traz-me um conforto espiritual e físico que já não me lembrava de sentir.

Até o consultório, as minhas crianças, o meu menino vítima da loucura da mãe, o meu projecto de apoio às adolescentes grávidas, tudo parece diluir-se num outro mundo que aqui não faz sentido. Não consigo sequer imaginar que daqui a dois dias estarei de novo naquela luta diária, contra o tempo, contra o trânsito, contra a estupidez dos pais, contra a falta de meios, contra a burocracia que não me permite avançar com a minha ONG (Organização Não Governa-mental), a que chamei Mães Menininhas, enquanto todos os dias morrem adolescentes em consequência de abortos feitos com agulhas de croché, ou às mãos das fazedeiras de anjos.

Mas agora estou aqui. A desejar nunca ter crescido. Nunca ter deixado este lugar seguro onde ainda soam as gargalhadas das minhas brincadeiras com a Marta, as recomendações da Mila, os ralhos da mãe, o bom humor do pai, as transgressões do padrinho Augusto.

A desejar ser ainda aquela Joana filha de João e Ana, fruto daquele amor tranquilo que até hoje nos acolhe, nos embala, nos envolve e faz da casa o porto a que nenhum temporal nos impedirá de voltar.

 

Já lhe contei isto, dona Floriana? Quando a Ana Salomé tinha cinco anos, Júlia Amaral Vaz preparou-se para viajar.

Estou farta disto, disse ela. Estou farta desta casa, estou farta da viuvez, estou farta da criança, estou farta desta terra provinciana onde me sinto continuamente espreitada. O mundo a acontecer lá fora e eu aqui fechada como uma toupeira. Sou nova, sou bonita, sou rica, sou saudável, não vou deixar que a vida me passe ao lado.

Entregou-me a filha, fez as malas e partiu.

Pude assim dar largas aos meus instintos maternais, o que já fazia desde que a Aninha nasceu, mas que agora, com a mãe ausente, tomava um gostinho de absoluto que me preenchia e me encantava.

A Ana era uma criança diferente da adulta em que a vida a transformou. Ao contrário daquela mulher apagada e de aparência tranquila, era uma miúda afirmativa e dona do seu nariz. Decidi ser firme com ela para que quando a mãe chegasse não me acusar de não a ter educado. Mas ela aceitava bem a disciplina, embora tivesse ideias próprias sobre o que era ou não Permitido e negociasse comigo os horários de dormir e comer, de brincar e estudar.

Eu mesma lhe ensinei a ler, e os primeiros números, as primeiras letras, os primeiros desenhos, foram feitos sob a minha orientação. Era espertíssima e aprendia tudo com uma facilidade surpreendente. Era alegre, endiabrada, divertida e, sem ter a beleza estarrecedora da mãe, era uma criança muito bonita. Guardo fotografias desse tempo e de vez em quando ainda dou comigo a beijar a filha que durante cinco anos foi só minha.

Aos poucos os postais começaram a chegar. De Paris, de Veneza, de Corfu, de Londres, de Barcelona, de Marraqueche, eu e a Aninha começámos a procurar no grande atlas de biblioteca, sempre aberto na respectiva estante, a trajectória de uma viagem que fugia à lógica, mas que serviu à Ana Salomé como uma óptima lição de geografia. Depois, durante pouco mais de um ano, toda a correspondência trazia o carimbo de Pádua e as cartas começaram a falar de saudades, a pedir fotografias da filha, da casa, das roseiras se acaso já estivessem em flor.

E quando comecei a preparar-me para recebê-la, de novo os postais: de Nova Iorque, de Washington, de São Francisco.

Por fim a notícia.

Mila imagina que me casei. Vou passar uns tempos em lua-de-mel numa fazenda no Brasil e depois volto para casa com o meu novo marido. Ele chama-se Augusto Balbi Zuzarte, é filho de mãe italiana e pai português, mas é conhecido em toda a Europa por Augusto Balbi. Ele é escultor e, embora seja também licenciado em biologia, é como artista plástico que se tornou conhecido. Pensava procurar em Portugal, onde tem vários interesses que herdou do pai, um lugar para trabalhar. Ele chama sossego ao que eu chamo pasmaceira, então o que pode ser melhor do que a Casa das Lias?

Prepara a Aninha, quero que ela goste muito do padrasto e se sinta feliz por mim.

Chegaram numa inesquecível tarde de Outubro com as glicínias troçando da vassoura do Chico, e teimando em atapetar a terra da alameda com farrapinhos de lilás.

Júlia Amaral Balbi Zuzarte era a mulher mais bonita que algum dia pude contemplar, actrizes de cinema incluídas. Trazia já um arrepio na roupa elegantíssima, outonal, as luvas de pelica cinzenta, o casaco cintado e cortado em viés, a gola aberta em cálice ao último grito dos anos cinquenta, a cabeça moldada num lenço de seda natural, em tons de rosa e cinza-claro. Os sapatos altos, da cor das luvas, destoavam daquele jardim meio selvagem e dos odores honestos de sopa de feijão que a cozinha já prometia para o jantar.

O marido parou um momento a contemplar a casa pelo lado de fora e com um sorriso de plena satisfação pisou os degraus da entrada e os arraiolos do átrio com o à vontade de quem tivesse nascido ali.

Que bem que cheira a sopinha, disse. Oxalá não demore. E eu senti-me aliviada porque por um momento receei que aquele senhor finíssimo de sobretudo escuro com gola de astracã fosse pedir caviar, salmão ou qualquer outra coisa que eu nem sequer imaginasse o que era.

O jantar está pronto, disse eu, toda embrulhada no meu melhor sorriso. Quando o senhor doutor desejar é só mandar servir.

A rainha Júlia subiu para se arranjar. Eu vou segui-la pelo rasto do perfume para conhecer o meu quarto e lavar as mãos enquanto a Mila me prepara um Porto seco. Não precisa ser o melhor da garrafeira. Tenho a certeza de que o pior é maravilhoso. E a Mila é ainda mais bonita do que eu imaginava.

Piscou-me o olho e subiu as escadas.

Fiquei arrasada. Que homem encantador. Grande, simpático, de cabelos claros um pouco despenteados, tive curiosidade em ver como ficariam depois de bem penteados. (Hei-de morrer com essa curiosidade porque nunca os penteou.)

Entrou-me um nervoso e percebi que as minhas pernas tremiam. Os joelhos, dotados de vida própria, oscilavam de baixo para cima e de cima para baixo como se aqueles olhos castanhos, aquele sorriso envolvente tivessem o condão de dissolver-me a vontade e de ligar-me a uma bateria eléctrica esquecida algures em mim.

Não há razão para estar nervosa, pensei. Já recebemos nesta casa, desde os tempos da senhora dona Amélia muita gente ilustre, importantíssima, e nunca me saí mal nas minhas funções de governanta. Este senhor não há-de ser mais exigente do que outros. É o meu novo patrão mas não está a submeter-me a nenhum exame. É simpatiquíssimo e não vai despedir-me. Fiquem quietas, rótulas. Que disparate!

Quando a Zeca passou viu-me agarrada aos joelhos, dona Mila isso é reumático, a minha mãe tem dias que nem sentada nem de pé, deitada pior ainda, só está bem a dar passadinhas curtas de um lado para o outro, é reumatol e água gelada e mesmo assim sabe Deus.

Lá consegui alcançar o vinho do Porto, escolher um cálice do melhor cristal, desencostar uma salva de gradinha e pousá-lo na biblioteca junto à poltrona que me pareceu poder ter a preferência do doutor Augusto Balbi. Esperando que a minha patroa, em cinco anos de ausência não tivesse mudado de hábitos, preparei o sumo de tomate que costumava tomar àquela hora: com sal, pimenta, sumo de limão, molho inglês e uma lágrima de vodka.

Foi quando ouvi o carro que trazia a Ana Salomé da escola. Tinha-me esquecido dela. Pela primeira vez em dez anos passara a minha menina querida para segundo plano. Achei que estava a enlouquecer.

Não estás boa da cabeça, Mila. O que é que te deu, dizia a mim própria, resmungando como as velhas, enquanto saía para acolher a Ana Salomé.

Queridinha, amor da sua Mila, vá tomar um banhinho e vestir-se para jantar que a sua mãe chegou. Com o novo marido dela, que se chama Augusto e é um homem lindo, quer dizer. É muito simpático, vai ver que gosta dele.

Já vi que tu gostaste, o que é bom. Pensei que ias ter ciúmes. Que te ias pôr toda coisinha para o lado da mãe.

Toda coisinha, eu? Pensei que a menina é que

Qual tretas! Adoro ter um homem em casa sem ser o Chico tonto ou o Manel da vinha. Bolas! Tenho a certeza que vai ser divertido. Só espero que a minha mãe ainda me conheça, não pense que eu sou a filha dos caseiros.

Não parecia sentir a falta da mãe. Se por um lado isso era lisonjeiro para mim, por outro fazia-me pena. Uma menina de dez anos, sem pai e habituada à ausência da mãe.

Espero que eles não sejam muito chatos. Se forem fujo de casa e levo-te comigo.

Não diga tolices. Vá, toca a arranjar.

Tenho fome. Foi à copa e subiu a escada a comer bolachas e a encher a passadeira de migalhas.

Quando os patrões desceram andava eu com a escova em forma de «S» e a pá respectiva (parecidas com as de limpar a toalha da mesa) apagando os sinais de existir em casa uma criança.

Júlia acusou o toque.

A Ana Salomé já chegou? Pareceu-me ouvi-la e vejo que sujou de lama a passadeira da escada. Só espero que não ma tenhas estragado com mimos.

Não, Julinha. Ela limpou bem os pés à entrada. Só que vinha a comer uma bolacha e, as bebidas estão servidas na biblioteca.

Os meus joelhos tremeram outra vez enquanto passavam por mim. Achei melhor pousá-los no degrau e fingir-me absorvida na caça às migalhas.

Isso, faz penitência estúpida, pensei, assumindo-me culpada de pecado indeterminado, sem querer admitir, nem por sombras, que tinha trinta e dois anos, era virgem e acabava de me apaixonar pelo marido da minha patroa.

O novo patrão tornou festiva aquela casa um pouco tristonha. Não alterou demasiado a rotina mas deu-lhe objectivos. Coisas que até ali se faziam por fazer, passaram a ter um propósito. Como pousar os jornais e o correio na grande bandeja do escritório, sacudir duas vezes ao dia as almofadas da sala de estar, limpar periodicamente os faqueiros de prata.

O doutor Augusto queria tudo a uso, dizia que devemos gozar as coisas enquanto temos coração para apreciá-las e eu que, criada com apertos medonhos, tinha a mania de guardar, sabe-se lá para quê, as melhores loiças, os melhores talheres, os melhores cristais, as melhores roupas de casa, sentia agora uma enorme alegria em retirar tudo constantemente de arcas e armários para exibir no dia-a-dia mesas dignas de um rei. Porque ele era o rei da casa e era bom prestar-lhe vassalagem. As suas ordens, dadas com voz doce, eram delicadíssimos pedidos. A sua gargalhada, grave e redonda, enchia-nos de energia e desejo de o servir. Eu sublimei a minha paixão, transformei-a em devoção e fidelidade.

O primeiro encontro de Ana Salomé com a mãe ao fim de cinco anos de ausência foi tudo menos dramático. Olá mãe, disse ela. Olá padrasto. Já me disseram que é muito simpático. Deu um beijinho a cada um e escarranchou-se no braço do sofá. Miliquiquinha, pede à Zeca um sumo para mim. De laranja.

Quando voltei com o sumo estava a Julinha a dizer, como é que é possível, parece que ainda ontem você era minúscula e agora está uma matulona desse tamanho.

Pois é, mãe, cresci. Que estranho, não é?

Não, não é estranho, é que eu

Pois. Eu também me lembro da mãe diferente, mas acho que isso é normal. Com outro vestido, outro cabelo, outro perfume. E agora pronto. Vamos ter de nos habituar às novidades. Padrasto incluído.

O doutor Augusto riu-se. Dá cá um abraço Anica (até morrer chamou-lhe sempre Anica, excepto quando se aborrecia com ela e lhe chamava Ana Salomé). Tenho a certeza de que vamos ser grandes amigos. Amanhã bem cedo, acrescentou depois de abraçá-la, quero que me mostres a quinta e me ajudes a escolher o sítio onde vou construir o meu atelier. Sou escultor, sabes, e posso esculpir-te a roer as unhas e pomos a estátua logo à entrada do portão.

Ela tirou a mão da boca e desatou a rir.

Amanhã não posso, tenho aulas.

Fazes gazeta.

Já vejo que você é horrível, riu ela.

Você? Atalhou a mãe. Mais respeito pelo seu padrasto, menina. Pai, tio, qualquer coisa. As pessoas ordinárias é que tratam os mais velhos por você.

Ordinário não quer dizer vulgar, comum?

Quer.

E nós somos o quê? Invulgares?

Pois somos. (O doutor Augusto divertidíssimo.)

Ah, fantástico. Então vou tratá-lo por padrinho Augusto que é um bocado classe média, para não me sentir incomum. De acordo, padrinho Augusto?

Mau mau, disse a mãe.

Mas viu-se logo que aquela relação ia ser boa. Melhor com o padrasto do que com a mãe, com quem era fácil as conversas subirem de tom, como se, por tudo e por nada, viessem à tona um pequeno rancor guardado no coração da filha e a correspondente culpa escondida no coração da mãe.

Escolhera, para construir o atelier, a antiga casa dos caseiros e a eira abandonada que lhes estava adjacente, Conservaram um velho espigueiro que o doutor Augusto achou perfeito na forma e no significado.

Pelo Natal o atelier estava pronto. E foi também por essa época que Júlia começou a escrever para os melhores colégios da Suíça com o objectivo de internar a filha. Ana Salomé tinha lido os livros que todas as meninas liam na época Céu aberto e Em pleno azul de Margarida Lopes Almeida que apresentavam essas escolas como verdadeiros paraísos, e mostrou-se entusiasmada com a ideia.

As razões de Júlia para querer afastar a filha nunca foram para mim muito claras. Há muito que se tinha demitido do seu papel de mãe e não estava agora disposta a assumi-lo, penso eu. Ela, é claro, só falava no futuro da filha e no grande empenho que punha na sua educação, dizendo que a escola de Viseu estava a fazer dela uma patega provinciana que mais tarde, sem termo de comparação, havia de querer casar com um patego provinciano.

O doutor Augusto esforçava-se por não interferir. Estava inteiramente concentrado nos acabamentos do seu estúdio, aquele espaço tão especial onde haveria de trabalhar, amar e morrer.

 

Quando entrei em casa, regressada da quinta, ouvi logo o ruído do aspirador e percebi que a minha eficaz colaboradora doméstica estava em plena actividade. Vinha a sonhar com um apartamento silencioso onde pudesse organizar interiormente a passagem de um mundo para outro na paz e na penumbra da minha sala de tons claros. Adoro ter a casa limpa, mas odeio o acto de limpar. Anseio por ter a casa arrumada mas execro a desordem que precede a ordem. Só que as utopias não existem e nada aparece feito por milagre.

Viva, Mercedes. Tudo bem por cá?

A senhora doutora foi a algum congresso?

Não Mercedes. Fui a casa, ao funeral do meu padrinho.

Ai, os meus pêsames. Foi doença má?

Não (que decepção, Mercedes). Morreu de repente.

(Suspiros) Ninguém diga que está bem. Um minuto aqui outro minuto no outro mundo. E agora por isso a senhora doutora não me consultava o meu sobrinho que está com uma tosse que Deus me livre.

Claro que sim. Diga à sua cunhada que o leve lá ao consultório.

Já tentei explicar à Mercedes que não sou eu que consulto os doentes, mas o contrário.

Inútil. Continua a pedir-me que consulte os sobrinhos, os primos e os vizinhos, ao que eu respondo invariavelmente que sim. Temos que ser uns para os outros, diz ela, e tem razão. É extremamente prestável, a Mercedes.

Veio substituir a minha linda cabo-verdiana Adília Augusta Abrantes de Castro de seu nome. Era alegre, robusta e eficaz. Corpo de estátua, rosto de ícone e analfabeta. Costumava entrar às oito e um dia chegou às onze, dona, desculpe o atraso mas fui presa.

Presa?

É. Mania de branco. Troquei por engano o meu passe de transporte com a minha amiga. Que mal tem? Ela pagou o dela, eu paguei o meu, porque não vale?

Mas iam juntas?

Não. Mas que tem? Para branco preto é tudo igual e retrato de minuto não presta. É uma cara preta, um borrão, não se percebe nada. Agora vamos a julgamento na sexta-feira, nem posso vir. Se calha fico lá dentro.

Não ficas nada que eu arranjo-te um advogado.

Não aconteceu mais do que uma advertência e a Adília, que já não tinha muito boa impressão das leis dos brancos, ficou ainda mais desconfiada.

Os brancos são burros, dona. Não a senhora que é doutora e isso tudo, mas os brancos que mandam. Eu, se soubesse ler e assinar o nome, era rainha do mundo.

Não seja por isso Adília. Eu ensino-te a ler e a assinar o nome.

A senhora faz isso por mim? Vou ser grata até à morte.

Não é preciso Adília. Ler é fácil: E o nome, começamos já a treinar. Como é que te chamas?

Adília Augusta Abrantes de Castro.

Ah.

Vai ser um pouco mais difícil, pensei, mas não há nada como experimentar.

Espertíssima, aprendeu a ler e a assinar o nome em um mês. Com a minha letra melhorada, porque eu esmerava-me e ela copiava igual. Suponho que devia ter jeito para o desenho. Ocorreu-me ensiná-la a desenhar e a escrever. No dia em que pensava começar com as cópias a que se seguiriam os ditados, declarou,

Dona, na terça-feira vou para a Holanda.

Era sábado.

O quê?

Sim dona. Já sei ler. Já sei assinar o nome, vou para a Holanda ser rainha do mundo.

Pensando em prostituição, perguntei aterrada,

E o teu marido?

Ah, ele não é meu marido no papel por isso eu casei com um holandês, paguei cem contos e ele agora mandou-me ir.

Mas vais viver com um homem que não conheces?

Pragmática, a Adília riu-se.

Não, dona. Não vou nem ver a cara dele. Está no contrato. Eu já sei assinar, assinei.

E vais de avião?

Machimbombo de emigrantes que é mais barato. O rapaz é amigo do meu Gaspar e faz-me um preço especial.

E o Gaspar não vai?

Chi. O Gaspar é muito mole. Fica cá com as crianças e quando eu puder mando chamar.

E tu vais fazer o quê na Holanda, Adília? Nem sabes a língua.

Sei assinar. É tudo que preciso para o negócio que ando cá a inventar.

Obrigada à senhora que me ensinou. Foi um grande presente, não vou esquecer.

Impotente, deixei partir a Adília Augusta Abrantes de Castro com o coração apertado, ao contrário dela que ia feliz e confiante, ciente da diferença abissal entre saber e não saber ler, saber ou não saber assinar.

Substituí a Adília por uma ucraniana de voz macia que fazia o serviço da casa um bocadinho pior do que eu. Ao terceiro dia descobri que era médica e dei-lhe emprego no consultório, por enquanto como ajudante eficientíssima, mas logo que regularize a sua situação vamos dar-lhe um gabinete para que exerça a sua especialidade que é ginecologia. Assim acompanharemos os bebés praticamente desde a concepção.

Goradas que foram as minhas experiências com mulheres-a-dias estrangeiras, entrou-me a Mercedes, de família galega, é certo, mas radicada há um século em Portugal. Limpa à portuguesa, cozinha à portuguesa, exprime-se à portuguesa, senhora doutora se consultava a minha tia que tem espandilose e está pior da úrsula. Fez um ketchup e acusou-lhe o coração maior que a caixa.

Vou ao voice-mail ouvir os recados. A Manú a dar-me um abraço de pêsames e a dizer que não me preocupe, está tudo a correr bem no consultório. O menino da mãe maluca está marcado para amanhã. O pedido de confirmação de um convite para uma antestreia. E três recados do Vasco. Onde estás? Não sei nada teu. Já estou com medo que estejas doente. Tinha pensado sairmos este fim-de-semana, mas não me atendes, tou a ficar preocupado. Liga-me.

Não me apetece ligar ainda ao Vasco. Ainda não.

Sei que vou acabar por chorar no seu ombro e não quero. Pelo menos por enquanto.

Vasco Mendonça de Freitas. Médico. Apaixonado por mim. Óptima pessoa. Discreto e paciente. Bonito homem. O que é que esperas para um sim definitivo ao Vasco, pergunta a Marta, pergunta a Manú, pergunto-me eu. O que espero, talvez gostar um pouco mais de mim, talvez sentir que mereço este marido, que não estou a impingir-lhe gato por lebre. Coisas complicadas da minha cabeça, às quais agora se veio juntar este zumbido de mosquito que a Mila deixou entrar na minha desconfiança, quando a sua avó se ma, se matou, se matou, se matou.

Conto à Marta?

É tão maravilhoso ter uma irmã, alguém que é como a continuação de mim própria. A cumplicidade nas horas boas e más, a infância comum, a partilha de tudo, as referências, os jogos, os risos, os códigos, as amarguras e os sonhos.

Vou contar. Mas preciso de pensar um pouco mais. A Mila disse. Quando a sua avó Júlia se ma, se magoou naquele acidente de carro. Foi um remendo. Sei, tenho a certeza de que foi um remendo. Senti. Percebi. A Mila não sabe mentir.

O menino da mãe maluca piorou. Tenho a certeza de que ela lhe dá remédios que eu não receito, só não faço ideia como os obtém. Passa a vida a dizer-me que o filho é epiléptico, mas nem eu nem o neurologista lhe encontramos sintomas de epilepsia. Ela descreve-nos os ataques com requintes de realismo, deve ter convivido com alguém que os tinha, mas não o filho.

A única solução é internar a criança. Mas como impedir que a mãe a visite? Precisamos da cumplicidade de médicos e enfermeiros, da própria direcção do hospital. Sendo ela enfermeira é-lhe fácil encontrar uma colega que a considere injustiçada por não poder visitar o filho. E aí cai por terra a tentativa de descobrir se a nossa teoria está certa, porque ela não deixará de o medicar por conta própria.

Nós achamos que ela encharca a criança em remédios de que não necessita. Que os obtém sabe Deus como, e lhos administra para fazê-lo adoecer. Aí mostra a sua dedicação ao filho: não lhe sai da cabeceira; caminha para os médicos com ele nos braços; clama que se reformou para cuidar do filho, que se divorciou porque o marido estava cansado de ser totalmente negligenciado em favor da criança doente. É uma vítima. Uma mãe corajosa e sofredora.

Mas a mim a vítima parece-me o pequeno e sou de opinião que corre risco de vida nas mãos daquela mãe. Não podemos confiar nem nos exames feitos por seu intermédio: desconfio que altera os resultados por sua conta e risco para provar a sua tese.

Este caso é dramático e a criança está cada vez pior. E como é que eu fico se lhe acontece alguma coisa?

Falar ao Vasco. Ele é sócio e director de uma clínica privada. Está em posição de conseguir que o miúdo, uma vez internado, não receba as visitas da mãe. Talvez ele queira ajudar-me nesta batalha. Mas até quando poderemos livrar o Gabriel da loucura daquela mulher? Conseguiremos provar que é ela que o faz adoecer? E se sim, internamo-la? Chamamos a polícia? E o que acontece à criança? Poderemos contar com o pai?

Vasco, preciso de ajuda.

Nem acredito no que estou a ouvir.

É um doente meu...

Vem passar o fim-de-semana comigo e contas-me tudo.

Não te estejas a aproveitar.

Claro que me estou a aproveitar. Há outra maneira de passares o fim-de-semana comigo?

Se eu for não é por ti, é por uma boa causa.

Eu não sou uma boa causa?

Não me baralhes. Eu vou.

Hoje é quarta. Saímos na sexta de manhã?

Sábado de manhã.

Sexta à noite.

Compro.

E de novo o encontro das mãos com as mãos, da pele com a pele, do riso com o riso, do silêncio com os beijos húmidos, deslizantes, navegadores, na rota de todas as especiarias.

Nem sei como me autorizei a ser feliz durante dois dias completos, três noites perfeitas.

Esqueci o luto, esqueci o Gabriel, esqueci o suposto suicídio da avó Júlia. Esqueci o meu trabalho, o meu rosto, o meu nome. E sei que este milagre tem um prestidigitador. Em várias acepções, até na literal.

Foi só na viagem de regresso que abordei o assunto do meu menino mártir, vítima do amor distorcido da mãe. E ficou assente que o internaríamos na clínica do Vasco e montaríamos uma conspiração para proibir a louca de visitá-lo. Nada disto vai ser fácil, mas trata-se de salvar a vida da criança.

Em casa, no que resta do domingo, sento-me a organizar a minha vida. Quero tentar perceber melhor esta minha estúpida fuga ao que me faz feliz, mas o espírito viaja para a Casa das Lias e a memória traz-me grandes planos de pequenas coisas esquecidas, a rugosidade do tronco das videiras, o ruído do saibro debaixo dos ténis, o cheiro acre das margaridas, o oscilar das saxífragas sob o peso das abelhas, o nariz húmido dos cães, o olhar lateral dos galos, a gargalhada amalucada dos perus.

É só nisto que penso, como se estes farrapos reunidos pudessem compor um arremedo da infância e lá vou eu, segura, no colo da Mila, pela mão da mãe, às cavalitas do pai, que idade tenho eu na memória, um ano, quase três, vejo-me a empurrar o carrinho da Marta, a minha boneca de carne e osso, de cabelinhos louros na almofada azul, e miosótis bordados na dobra do lençol.

Se eu conseguir internar o Gabriel talvez me sinta mais apaziguada e a Mila a chamar-nos para merendar noutro lugar das lembranças, queridinhas, a merenda está servida no alpendre, estes clarões que subitamente se acendem trazem quase sempre o Verão, o Inverno é demasiado triste, muito dentro de casa, mas agora que penso nisso também gostava de me deitar no tapete a ouvir chover e a espreitar tudo debaixo dos móveis e a respirar na manga do bibe o cheiro a ferro de carvão, porque, sei agora, faltava a electricidade quando a trovoada era feia de mais.

E talvez a papelada da ONG esteja despachada na semana que vem se a cunha da Manú tiver funcionado e agora é a voz do padrinho Augusto a mostrar-me os segredos do atelier, a deixar-me desenhar nos imensos blocos dos croquis, o cheiro da pedra pulverizada no banquinho aos pés do cadeirão e eu deitada no chão a ver o tecto abrir por um mecanismo misterioso e eu a sonhar que o padrinho Augusto morreu e voou por aquela abertura e a acordar no sofá da minha sala com as luzes todas apagadas porque anoiteceu e eu não organizei a minha vida, não resolvi a minha culpa, não consegui decifrar os escaninhos sombrios da minha alma.

Sim, sim dona Floriana. Os lombinhos de bacalhau são fritos. Fritos e arru-mados na assadeira de barro. É a cebolada que leva todo o tempero: a cebola, o alho, muito azeite, a folhinha de louro, a malagueta, os pimentos, o vermelho e o verde, cortados em tirinhas, tudo em cru, o vinho branco, o sal. Quando a cebola está lourinha já pode entrar o tomate picado e tudo vai a estufar lentamente até cobrir o bacalhau e ir ao forno para mágicas transformações. As batatas, fritas em rodelas muito grossas, vão para a mesa a rodear o petisco e não há pretensioso que resista a este prato labrego e deliciosamente português.

Entretemo-nos aqui no lar a trocar receitas agora que, provavelmente, nenhuma de nós voltará a abeirar-se de um fogão. É um exercício puramente académico, como dizia o doutor Augusto à Ana Salomé quando ela se punha a descrever quadros apocalípticos para educar as meninas, do género quando um dia ficarem pobres vão saber dar valor a cada migalha, a cada peça de roupa, quando um dia a casa lhes cair em cima hão-de lembrar-se de como era importante mantê-la limpa e conservada e por aí fora numa cruzada contra o esbanjamento e a negligência, contra os ares enjoados perante a comida ou enfadados perante as limpezas.

A ela nada disso lhe foi ensinado e é extraordinário como se tornou niquenta, quase maníaca, escrupulosa e metódica. É claro que me refiro à educação que a mãe lhe deu e não à que recebeu no colégio da Suíça, onde, se lhe incutiram hábitos de organização e asseio, certamente, tratando-se de um dos internatos mais caros da Europa, não se preocuparam em torná-la tão poupada e temente de futuras misérias.

Nunca saberei dizer até que ponto o colégio a influenciou. A Ana Salomé manteve sobre isso um certo secretismo, como se se tratasse de um assunto íntimo, que apenas a ela dizia respeito.

Quando lá em casa se começou a falar de internato o entusiasmo dela era enorme, como se qualquer mudança fosse bem-vinda. Não sei porquê, pois se havia menina neste mundo a quem nada faltasse essa menina era a Aninha. Talvez a falta de convivência com a mãe não tivesse tecido aquele laço que faz qualquer criança temer o afastamento de casa. O padrasto era um afecto recente, sem raízes. E eu, bem, eu era a Mila, mas as crianças ricas sabem por instinto que a afeição pelos empregados deve ser recalcada para um plano menos visível a que não é de bom tom dar pública importância. Também eu fiz assim, amachucando no coração o amor pela minha menina, vendo e ajudando aos preparativos com dores nas glândulas salivares do esforço que fazia para engolir as lágrimas enquanto pregava números cento e dezassete no avesso das roupas interiores, dos lençóis, dos roupões turcos, das peças da farda encomendadas em Montreux.

Ela adorou a farda, saia de pregas e blazer cor de cinza, meias de lã e pulôver verde-escuro sobre blusa branca, sobretudo cinza-escuro, adorou o número cento e dezassete, adorou a roupa desportiva com que havia de enfrentar a neve nas brincadeiras de fim-de-semana, adorou a ideia de viajar de avião pela primeira vez.

Quando nos despedimos era capaz de jurar que não voltaria a vê-la. Miliquiquinha, não chores. Eu já venho.

Pois sim.

Com muito medo de estar a levantar um falso testemunho, atrevo-me a pensar que a Julinha sentiu um certo alívio com a ausência da Aninha e que a internou mais a pensar na sua disponibilidade do que na educação da filha.

Quando voltaram da Suíça garantiu-me que tinham deixado a Aninha muito feliz naquele colégio maravilhoso, de instalações luxuosas e uma frequência que incluía meninas das melhores famílias da Europa, membros da realeza de todo o mundo, e herdeiras de multimilionários americanos.

Eu ria-me interiormente a imaginar a minha provincianinha, nunca saída de Viseu, nesse ambiente de primeiro mundo, tu cá, tu lá com filhas de reis e magnatas, esperta bastante para lhes contar umas aldrabices à portuguesa.

A rotina da casa modificou-se. O estúdio ficou pronto e era lá que o doutor Augusto passava grande parte do dia. Ao princípio Júlia acompanhava-o e até achava graça fazer lá, de vez em quando, uma ou outra refeição.

Para nós era um pouco complicado, obrigava-nos a um cortejo, entre a casa e o estúdio, de tabuleiros com loiça, copos, talheres, toalha, lavabos, faquinhas de manteiga e respectivos descansos de prata, para não falar na comida propriamente dita que tinha de chegar quente em travessas artisticamente arranjadas.

Isto durou uns meses até que a Julinha se fartou e passou a exigir que o marido viesse almoçar à casa grande e a tomar um segundo banho que o livrasse do pó da pedra, antes de se sentar à mesa.

Também ele se fartou dessa exigência e negociou comigo uns almoços frugais de pão, queijo e vinho, servidos informalmente a cuja exiguidade eu sempre manobrava para acrescentar algum miminho suplementar.

O meu patrão tinha cada vez mais trabalho e Júlia, que se aborrecia mortalmente, ofereceu-se para o secretariar.

Como todos os artistas ele não tinha a menor vocação para coisas práticas e era preciso aceitar encomendas, discutir datas, acertar preços, marcar exposições. As viagens e respectivos planos eram outro quebra-cabeças, já que ele tinha muitas encomendas para lugares públicos e era imperativo deslocar-se às diferentes cidades para estudar os espaços.

Júlia revelou-se uma secretária medíocre e aos poucos impôs-se a necessidade de contratar um secretário profissional.

Foi assim que, após várias tentativas frustradas durante um ou dois anos, entrou na Casa das Lias o João Maria Teixeira Baptista.

Era um rapaz de dezoito anos com um sorriso luminoso, uma farta cabeleira negra e encaracolada (o tipo de penteado que na época era considerado subversivo). Era invulgarmente tranquilo e calado, prestável e muito inteligente.

Parecia bastante mais velho porque era um homem feito, de ombros largos quase tão alto como o doutor Augusto, e só aquele sorriso de menino lhe traía a pouca idade.

Trabalhava com uma enorme seriedade, ficou rapidamente a par de todos os assuntos, tinha iniciativa e falava cinco línguas com o maior desembaraço.

A Julinha achava que ali havia gato, como é que um rapaz com aquela preparação não estava na universidade, mas num dia de temporal em que o doutor Augusto não abriu a oficina juntámo-nos na salinha a tomar chá e o João contou que era filho único de um casal de poucas posses que trabalhava duramente na Alemanha. Ele foi alternando entre os dois países porque não queria perder a cultura portuguesa, especializou-se em línguas, ganhou bolsas de estudo e preparava-se para estudar artes em Itália quando os pais morreram num acidente de automóvel, de férias em Portugal. Natural de uma aldeia nos arredores de Viseu viu no jornal o anúncio do doutor Augusto e decidiu candidatar-se e ficar por cá.

Júlia ficou pensativa e podia ler-se nos seus olhos uma mudança de atitude em relação àquele fenómeno, bom de mais para ser verdade, de que desconfiara permanentemente naqueles seis meses em que o marido não lhe poupara elogios. Os meus pais não eram ricos mas eram bem-educados, disse ele como quem se desculpa das suas maneiras irrepreensíveis. O meu pai era engenheiro mecânico e a minha mãe, embora trabalhasse em Munique como gerente de loja, era formada em letras, pela Universidade de Coimbra, saíram daqui porque discordavam, bem, do regime político que temos, não sei se devia falar nisto, eu à vontade, disse logo o doutor Augusto, eu sou estrangeiro e nem sequer tenho que ter opinião, mas aqui para nós que ninguém nos ouve acho o Salazar um ditador. Não lhe dou dez anos para cair de maduro.

João Baptista pareceu respirar de alívio. Se as ideias políticas da Casa das Lias fossem de sinal contrário, o seu emprego estaria seriamente comprometido.

Esse curso de artes ainda te interessa? Perguntou o doutor Augusto.

Ultimamente, não sei porquê, tenho pensado mais na filologia, talvez por causa desta minha inclinação para as línguas e, em última análise, hei-de ter um pouco da genética da minha mãe.

Então está resolvido. Vais matricular-te em Coimbra como voluntário e no próximo ano lectivo começas o teu curso. Isto se prometeres continuar a secretariar-me com a mesma eficiência que até aqui. O curso sou eu que pago e vou pôr à tua disposição um automóvel pequeno para ires e vires com outra agilidade. Como voluntário só tens que ir às frequências e a uma ou outra aula.

Não posso consentir nisso, doutor Augusto. Já é muita bondade autorizar-me a tirar um curso. Com o que eu ganho, aqui não tenho despesas, posso ir juntando,

Nada disso. Fazes favor de ter despesas porque um rapaz novo precisa de se divertir. E de se vestir e andar à moda e essas coisas para dar nas vistas às raparigas.

Quais raparigas se ele não sai de casa, disse a Júlia com um tom de voz onde havia ainda um resto de agressividade. Ciúme pela atenção excessiva que o marido dispensava àquele estranho? Despeito pela respeitosa indiferença com que João a ignorava, à excepção das raríssimas vezes em que ela lhe dirigia a palavra? Estavam por definir os sentimentos que João Baptista despertava na alma indecifrável de Júlia Amaral Balbi. Contudo nesse final de tarde Júlia chamou-me de parte e deu-me ordem para mudar as coisas do secretário para o quarto amarelo, no andar nobre da casa. Até ali João dormia num anexo da casa, um quartinho de arrumos que fora do motorista. Mas este entretanto casara e mudara-se para a casinha à entrada da quinta que o doutor Augusto mandou preparar para o jovem casal.

Aos domingos vinham os amigos deles admirar os confortos do novo lar, fogão a gás Cidla, água quente, duche e banheira numa casa de banho de azulejos azuis e brancos e um espelho no quarto onde qualquer mortal se podia ver dos pés à cabeça.

Mila, disse-me a Julinha, este rapazinho, este João Maria ou lá o que é, parece-me afinal mais civilizado do que eu pensava. Avisa-o que passa a dormir lá em cima e a usar a casa de banho dos hóspedes. Quando houver visitas logo se vê. Não precisa de fazer a cama como lá em baixo, mas recomenda-lhe que mantenha o quarto impecável, caso contrário volta para a arrecadação.

João Baptista nunca voltou para a arrecadação porque era extremamente bem-educado e incapaz de abusar da óptima situação que lhe proporcionaram. Sabia tornar-se praticamente invisível e mesmo às refeições quase não falava se não lhe dirigissem a palavra.

Um dia entrei no estúdio com o tabuleiro da merenda e estava lá a Julinha numa das suas visitas surpresa.

A Mila enche estes homens de manias, disse ela como se se dirigisse a uma quarta pessoa. Deixa ver: bolo ainda quente, presunto translúcido, pão fresco, cervejas, chá, que é para suas excelências escolherem. E torradinhas? Hoje não há torradinhas? Pois eu quero torradinhas, mas não aqui, na minha sala, e chá verde, este é preto, e um bocado deste bolo e compota de ameixa da que fez a Adelaide quando cá esteve. A outra tem o ponto muito alto. Ouviste, Mila, serve os senhores que eu já lá vou lanchar.

Júlia nunca lanchava, era só para embirrar. Aliás, disse ela seguindo um raciocínio pouco claro, não acho que faça sentido o João trabalhar aqui. O escritório fica vazio todo o dia. Tem lá secretária, espaço, telefone, tudo, mas não. Fica aqui a tentar ligar para a Suécia no meio de marteladas, a conversar em línguas misteriosas para o outro lado do mundo quando no escritório é um sossego e tem uma linha directa para o atelier para te consultar, Augusto, e confirmar datas contigo. Mas não. Ficam aqui a comer bolo com poeira, entalados entre blocos de mármore e outros calhaus, a chatear toda a gente com lanchinhos e almocinhos de faz-de-conta.

O doutor Augusto evitou dizer que não estavam senão a seguir as ordens dela que tinha declarado não querer estranhos metidos em casa o dia inteiro, secretariozecos de meia-tigela a porem as patas nos seus tapetes de Arraiolos.

Ouviu, João Maria? Mude a sua papelada para o escritório. E se precisar muito de lanchar é só tocar a campainha que a Mila manda lá a Zeca com alguma coisa. Ouviste Mila, tu também?

Com certeza, Julinha.

Nova de mais para a menopausa, velha de mais para caprichos adolescentes, não sabia a que atribuir esta irritação constante que parecia comê-la como uma urticária.

Ah, e veio carta da Ana Salomé. Não vem na Páscoa. Foi convidada por uma colega para passar as férias numa propriedade, solar, castelo, qualquer coisa dessas em Dorset ou Somerset, ou não-sei-quantas-set, para aquela tudo é melhor do que vir a casa aturar a mãe.

Atravessou-me a memória o tempo em que ela própria preferia tudo a vir a casa e aturar a filha. Achei-me azeda com este pensamento. Estaria a presença destes dois homens nas nossas vidas a beliscar a belíssima amizade que ambas tínhamos construído ao longo de anos? Mas depois pensei que até as irmãs guardam por vezes pequenos ressentimentos umas das outras e isso nada tem a ver com amizade, lealdade e amor.

Com efeito a Aninha vinha muito pouco a casa,

vinha cada vez menos. A mãe tanto investira naquelas amizades internacionais que agora era normal ela passar férias e até feriados em Inglaterra, França, Itália, às vezes na Turquia, até mesmo no Japão.

Júlia começara por achar bom, cultural, civilizado como ela gostava de dizer, mas agora ressentia aquela constante recusa de voltar a casa, a humilhação de ser constantemente ultrapassada nas preferências da filha. Começava talvez a compreender (e a não querer compreender) que ser mãe não é só pôr no mundo e considerar a tarefa cumprida, a maternidade é sobretudo uma construção, um tecer de laços indestrinçáveis, fortes e suaves, tão fortes e tão suaves que nos seguram ao longe pela força e nos prendem ao perto pela suavidade.

Justifiquei o mau humor da minha patroa com a carta da Ana Salomé. Recolhi no tabuleiro os restos da merenda e fui esmerar-me no chá verde, nas torradinhas, na compota de ameixa da Adelaide que a insensata Júlia entretanto esquecera.

 

O pai telefonou-me. Joaninha, querida, tem que vir a Viseu. Telefone à Marta e combine com ela. Vai ser lido o testamento do padrinho Augusto.

Ó pai, não me pode representar? Agora não me dá jeito nenhum. Tenho um doente em situação de risco, o assunto da ONG requer a minha presença nos próximos dias.

Tem que vir, querida. E a sua irmã também. É indispensável. Parece que vocês são as principais herdeiras.

O quê? Então e a mãe? A Mila?

Bem, não sei pormenores mas o advogado exige a vossa presença, disso tenho a certeza. Acertem as datas, comuniquem-me e venham. A mãe já anda radiante a fazer limpeza nos vossos quartos. Por amor de Deus não a decepcionem.

Rimo-nos.

Então lá terá que ser. Era uma maldade privar a mãe desse pretexto para uma boa faxina.

Acertamos então para a sexta-feira seguinte, a ideia é ficar para o fim-de-semana, porque a Casa das Lias não é um lugar onde se possa chegar e ir embora, há ali uns tentáculos de ternura e conforto que nos prendem, os pais são tão, não sei, suaves, o ar tão limpo, a casa tão silenciosa, com as janelas abertas sobre a infância e um sorriso de boas-vindas em todas as paredes.

Vamos as duas, a Marta e eu, no meu carro. O Paulo tinha obrigações e os miúdos tinham um passeio com a escola longamente esperado, é um crime privá-los de três dias no campo mas desta vez não deu. E a Marta que não pense em vir embora sem mim. Preciso dela. Os pais precisam dela. A casa precisa dela. Porque as casas são como as pessoas. Se nos ausentamos muito tempo, esquecem-nos.

Marta, o pai diz que aquela massa toda do padrinho Augusto é para nós duas. O que é que pensas fazer com a tua parte?

A Marta ri-se com o seu risinho matreiro, nada.

Como, nada?

Nada. Dar-to a ti para a tua ONG. Para ajudar-te a salvar adolescentes grávidas das garras dessas abortadeiras clandestinas que a lei (ou a falta dela), protege por vias indirectas.

Talvez a minha parte chegue para isso sem a tua contribuição que agradeço mas recuso.

De novo a gargalhadinha da Marta.

Não te preocupes que não vai ser preciso brigarmos por causa disso. Vamos mas é aproveitar o passeio que o dia está lindo e vai ser óptimo chegar a casa à hora do almoço.

Está-me a dar uma fome! Aposto que a mãe mandou fazer cabrito na assadeira de barro, com aquelas batatas cortadas ao alto e as cebolinhas...

... e o arroz de forno com o chouriço a enfeitar.

Porque é que em lugar nenhum do mundo o cabrito sabe como lá em casa?

E as duas em coro, creme queimado! e as glândulas salivares a darem-nos dores de ouvidos, só de imaginar o leite-creme delicioso com aquela camadinha vidrada de açúcar caramelizado, a Laura afadigada de roda do fogão de lenha, o ferro em brasa, o alguidar com água, o açúcar espalhado sobre a pele do creme semiarrefecido, por fim o ruidinho, aquele chiar festivo e o cheiro do caramelo quente que, quando éramos pequenas, nos vinha avisar à distância e nos fazia saltar da árvore onde nos empoleirávamos a ler o último dos «Cinco».

A que horas é a leitura do testamento?

Às quatro. Dá tempo de comer e chorar por mais.

Afinal a mãe reservou o cabrito para o almoço de domingo, recebeu-nos a bacalhau com presunto, era sexta-feira, mas presunto é carne mãe, é só para dar gosto e a intenção é que conta.

Mas o leite-creme queimado não falhou e a nossa aposta ganha foi recebida com palmas e risotas.

Estávamos um pouco irrequietas como sempre acontece quando vamos a casa e ficamos adolescentes parvas e dizemos disparates e desenterramos os códigos e explodimos de riso.

Mas de algum modo acho que estávamos a disfarçar a ausência do padrinho Augusto que ali à mesa se notava tanto, já teria dito duas ou três piadas ácidas sobre o presunto da abstinência, sobre o luto aliviado da mãe que era mais azul do que preto, mas, está claro, a intenção é que conta.

No lugar dele, disse-me depois a Marta, estava sentada a avó Júlia e foi para nós motivo de alegria sermos recebidas pelo nosso fantasma familiar.

Eu estava à espera que a Marta conseguisse ver o padrinho Augusto durante a leitura do testamento mas ele não veio, certamente para não lhe serem pedidas satisfações das disposições pouco lógicas, para não dizer incompreensíveis, que constituíam as suas últimas vontades. Se não tivesse sido apurada a sua perfeita sanidade mental ao tempo da redacção daquele docu-mento, eu tê-lo-ia contestado porque me favorecia de forma desproporcionada.

Apercebemo-nos de que o padrinho Augusto era imensamente rico. Tinha propriedades em Portugal, em Espanha, no Brasil, no sul da França e em lugares de que eu jamais ouvira falar. Tanto criava cavalos como engarrafava vinho, cultivava tulipas ou exportava café.

À medida que me ia apercebendo desta realidade, imaginava o exército de pessoas que se ocupariam de tudo aquilo. Se para lhe tratar do lado prático da sua actividade de escultor ele não dispensava os serviços do meu pai, o que não exigiria em meios humanos, a gestão daquele império. Seria por isso que ele passou toda a minha infância a viajar? E que mais tarde o meu pai corria o mundo como embaixador dos seus negócios? Lamentava agora nunca me ter interessado por nada disso. Ter-lhe-ia feito imensas perguntas. Penso que o meu pai deverá estar a par de tudo e os advogados puseram-se à minha disposição, mas não é o mesmo.

Padrinho Augusto, diz-me tu, com a camisa por fora dos jeans velhos, o cabelo desgrenhado, as mãos enormes, as rugas de bom gigante, o coração de pomba, diz-me tu porque mantiveste esta rede intercontinental de prosperidade para viveres numa quinta dos arredores de Viseu a esculpir as tuas obras de arte ao som de Vivaldi num velho rádio de pilhas.

Nunca foste pessoa para te organizares meticulosamente ou para fazeres planos à distância. Agias sem grande reflexão, improvisavas num repentismo alegre. Era uma frase tua, agora fazemos assim e depois logo se vê. Então diz-me: não valeria a pena teres pensado um pouco mais, um pouco melhor, na distribuição dos teus bens? Julgo poder associar a data do testamento à época em que pela primeira vez te falei da minha ONG, a obra Mães Menininhas que tanto me toca o coração e que pelos vistos tocou o teu, pois a forma como me favoreceste nas tuas disposições testamentárias tem obviamente a intenção de me ofereceres a realização do meu sonho.

O facto é que deixaste aos meus pais uma fazenda no Brasil (não consigo imaginar a mãe de chapéu colonial a dirigir os cafezais, mas tu lá sabes), mais duas propriedades aqui perto da quinta com as respectivas casas, à Mila uma bela pensão vitalícia, outra à Marta juntamente com o usufruto de dois óptimos apartamentos em Lisboa, de que o João e o Mateus tomarão posse aos vinte e cinco anos, uma lista interminável de lembranças a todos os empregados, aqui e no estrangeiro. E toda a imensidão que sobra tocou-me a mim, Joana Amaral Vaz Teixeira Baptista.

Não é seguramente esta a melhor terapia para o meu sentimento de culpa e fico desesperada. Começo logo ali a informar-me como dividir em partes iguais, com a Marta, tudo o que me coube, todos me dizem que a vontade do morto deve ser respeitada, que não posso tomar decisões de cabeça quente, que as menininhas precisam do meu dinheiro, que nada é por acaso, e a Marta chama-me de parte e diz-me que certamente o padrinho foi meu pai numa outra vida em que me deserdou e agora, obedecendo a um plano divino, tentou corrigir o erro e que há um propósito nisso e portanto há que cumprir o que ficou disposto com aceitação e alegria.

Nada me convence. Estou desorientada. A minha mãe irrita-se comigo, chama-me ingrata, o meu pai, com a sua doçura habitual tenta explicar-me que seria um grande erro desperdiçar esta oportunidade de pôr o meu projecto de pé, mostra-se entusiasmado, oferece-se para ajudar-me, lembra-me que posso abrir, não uma casa para recolher adolescentes grávidas abandonadas pelas famílias ou sem condições para criar os filhos, mas uma rede delas, por todo o país, com instalações impecáveis para as crianças, onde as mães poderiam deixá-las quando arranjassem empregos que a própria organização procuraria, alguma coisa de muito completo, com princípio, meio e fim, tudo o que o dinheiro pode proporcionar, tudo o que talvez o padrinho Augusto tivesse querido realizar e não realizou porque não era esse o seu caminho, os desígnios de Deus são insondáveis e não nos cabe a nós, é tentador, convenhamos, começar a sonhar com uma coisa destas e logo a seguir perceber que não tem que ser um sonho, dizemos sempre que se os ricos gastassem o seu dinheiro a ajudar os outros o mundo seria diferente e ter agora a possibilidade de fazer essa diferença, dormir sobre isto, marcar uma entrevista com os advogados, na segunda-feira tenho que estar em Lisboa para internar o Gabriel, neutralizar a mãe dele, mas isso é outro departamento, vou ter que ir e voltar, confiá-lo ao Vasco, pois é, o Vasco, como é que lhe conto esta história, para já não conto, visto que ainda não consegui sequer contá-la a mim mesma.

A Mila, que o pai mandou buscar propositadamente ao lar para assistir à leitura do testamento, não faz outra coisa se não chorar. Será que não compreende o que se passou e pensa que o padrinho Augusto a esqueceu?

Mila, estás a chorar porquê? Sabes quanto é dez mil euros mensais? Pagas o lar e ainda ficas com imenso dinheiro.

Fico com o dinheiro todo porque o seu paizinho quer continuar a pagar o lar. E não sei para quê. As minhas despesas são uma roupinha de vez em quando, uma água-de-colónia, um presentinho para alguém...

Então porque é que choras?

Ora, nunca pude ajudar os meus pais, só lhes dava o meu ordenado quando eles eram vivos e agora, que podia fazer tanto por eles, já cá não estão...

Mila, que tonta. A vida é assim mesmo. Fizeste por eles tudo o que pudeste, agora é a vez de outros fazerem por ti. Vá, não chores.

É que também o doutor Augusto, comove-me tanto ele ter-se lembrado de mim, tanto...

E a Mila soluça de gratidão.

Joaninha...

Diz, querida.

Este dinheiro só não pode comprar a única coisa que eu queria...

Diz o que é que eu dou-te. Agora sou rica.

Ela sorri entre lágrimas.

É uma coisa que o dinheiro não compra, Joaninha. Queria voltar para esta casa, para o meu quarto, para o meu canto. Fale com a mãezinha, querida.

De facto nunca percebi esta insistência em manterem a Mila no lar. Estou convencida de que acham sinceramente que ela está ali melhor, sem nenhuma preocupação, tratada como uma rainha. Mas se não é isso que ela quer, se ela prefere sentir-se útil, admira-me que o pai, que é todo sentimento, não tenha demovido a mãe, fazendo-a ver que somos a única família da Mila e só junto da família é que ela pode ter um final de vida feliz.

Tenho que tratar disto. Mas não é o momento.

A mãe, depois de ter-me chamado ingrata, fechou-se num silêncio obstinado em relação ao testamento do padrinho Augusto. Como se discordasse de tudo: do próprio testamento e da minha relutância em aceitá-lo. Não gostou, certamente, de ver a Marta preterida daquela maneira. Uma renda vitalícia e dois apartamentos é quase uma herança de pobre. Somos ambas filhas dela e a mãe nunca mostrou preferência por nenhuma de nós. Nem o pai. Foram sempre justíssimos, imparciais. Ambas nos sentimos sempre igualmente amadas e a mãe não pode deixar de sentir que a Marta foi injustiçada. Como eu sinto. Curiosamente, e ao contrário de todas as histórias de heranças que sempre se ouvem contar, só a Marta concorda cem por cento com a original decisão do padrinho Augusto. Vê ali uma justiça imanente, uma sabedoria superior, quem sabe uma inspiração divina.

Mas a Marta não é deste mundo.

Aquele fim-de-semana, de que tinha esperado tanto, tornou-se um pesadelo. Não consegui dormir em condições, perdi o apetite e mesmo o triunfal cabrito de domingo foi ingratamente desconsiderado por mim.

Não me reconhecia, não conseguia sequer imaginar-me no meu novo estatuto de nova-rica, que digo, nova-milionária, como se aquela vida não fosse minha e eu estivesse ali por empréstimo. Estava habituada a toda a espécie de ginásticas financeiras, entre os magros ganhos do consultório e as respectivas despesas, com as ajudas frequentes do pai, é certo, e a retaguarda abastada da Casa das Lias. Mas de meu, verdadeiramente de meu, tinha uma remediada conta bancária, um apartamento hipotecado e as jóias, jamais usadas à excepção da aliança de esmeraldas, da minha avó Júlia.

Será verdadeiramente a mim que tudo isto está a acontecer?

O escritor colombiano Álvaro Mutis conta que viu num cemitério uma lápide com esta única inscrição: não era aqui. Fico a pensar que talvez também eu me tenha equivocado de vida, de família, de planeta e seja essa a causa cósmica da minha inapagável culpa.

 

Não, dona Floriana. Não gostei nada que o doutor Augusto me tivesse deixado dinheiro. Dinheiro deixa-se a uma criada e eu não sou uma criada. Por mais que a Joaninha e a Martinha me digam que o doutor Augusto teve sentido prático deixando-me a única herança verdadeiramente útil na minha situação, eu preferia um objecto dele, uma lembrança, talvez aquela estatueta que eu prefiro, a da menina nua só de meias, agarrada ao chapéu. Provavelmente vale uma fortuna ou talvez não, talvez até ma dessem se eu pedisse, mas nunca pedi nada e não vou começar agora.

Bom foi o fim-de-semana em casa, o reencontro com o meu quarto, com as minhas gavetas, os meus armários, as minhas arcas onde acumulei os presentes de Natais e aniversários de uma vida inteira, roupas para a casa que nunca tive, bijutarias e pequenas jóias para as festas a que nunca fui. Adoro mexer-lhes, dobrar e desdobrar toalhas, abrir caixas, sacudir leques, écharpes, lenços de seda, voltar a pôr tudo no lugar, verificar os saquinhos de alfazema, renovar os dissuasores das traças, tirar o pó às flores de pano com que, em serões felizes, animei golas e decotes.

É todo um pequeno mundo de velha senhora, um património de tesouros inúteis que eu gostaria de deixar à primeira neta da Ana Salomé, ela não tem nenhuma neta, talvez nunca venha a ter, mas não sei o que me leva a acreditar que se essa menina um dia existir, gostará de subir ao quarto da velha Mila, envolver-se nos xailes, cobrir-se de jóias falsas, abanar-se com leques, mirar-se no espelhinho de moldura de prata que foi da sua trisavô Amélia e criar um mundo de fantasia e sonho que só a magia da infância sabe construir.

Não trago nada disto para o lar. As minhas pobres coisas haviam de sentir-se deslocadas. É ali que pertencem, ao quarto onde, se Deus é justo, eu hei-de um dia voltar. Em breve, pressinto. A Joana vai pedir por mim e a Ana Salomé não há-de dizer-lhe que não. A Ana Salomé é minha amiga. Com aquela aparência um pouco fria eu sei que há dentro dela muito amor e sensibilidade. Eu criei-a. Não me posso enganar.

Quando a Ana Salomé chegou da escola suíça com o curso terminado foi comigo que mais se abriu. Tratava a mãe e o padrasto quase como estranhos e parecia surda aos conselhos e sugestões dos dois.

Mostrou-se incomodada e um pouco ciumenta por encontrar o João Baptista, que ela não conhecia, a fazer parte da família, como se, de certo modo, ele lhe tivesse roubado o lugar.

O que é que este parvalhão faz cá em casa, perguntou-me. Que confiança é esta que lhe dão? Cada vez percebo menos desta família.

Não fique assim, querida. Ele é óptima pessoa, muito educado e é o braço direito do seu padrasto. Vai ver como vai gostar dele.

Não gosto de oportunistas.

Não houve quem a convencesse que o João Baptista não era nada disso, eu esperei que com o tempo ela viesse a conhecê-lo e a apreciar as suas qualidades. Imaginava mesmo que poderiam fazer um bonito par se algum dia parassem dois minutos próximos um do outro para eu poder apreciá-los lado a lado, situação impossível com uma gata brava como a Ana Salomé.

Quando lhe perguntaram, o padrasto ou a mãe, não me lembro, que curso pensava tirar, respondeu, nenhum.

Bem lhe disseram que podia ir estudar para o estrangeiro, respondeu que o que eles queriam era vê-la pelas costas para o queridinho João não perder regalias.

Quando um dia à mesa o João saiu da sua timidez para dizer que ia estudar filologia em Coimbra, na clara intenção de a entusiasmar com uma solução semelhante, ela pôs os olhos nos pratos antigos da parede fronteira e lançou em voz baixa mas audível a frase que nessa época viria a tornar-se um bordão na sua boca desdenhosa,

Did I ask? Do I care?

e que lançava o gelo sobre qualquer tentativa de conversa.

Nada lhe interessava. Recusava todas as sugestões de passeios, viagens, festas, hipóteses de convidar amigas, até que a Julinha me chamou ao quarto e me pediu que falasse com ela e descobrisse se aquilo era fruto de algum namoro mal resolvido, alguma paixoneta estrangeira, algum amor contrariado.

Fale a Julinha com ela. Acho que isso é mais uma conversa entre mãe e filha.

Pois. Devia ser, devia, mas não vês como ela me trata? Como uma estranha cuja autoridade não aceita. A verdade, Mila, é que eu não conheço a minha filha.

Apeteceu-me desbobinar um chorrilho de verdades que Júlia Balbi não gostaria nada de ouvir. Limitei-me a prometer que tentaria falar com ela.

Aproveitei para encetar uma conversa numa tarde em que a Ana Salomé veio bater-me à porta do quarto.

Era aquela hora morta em que as tarefas da manhã estão cumpridas, o almoço servido, as loiças e as pratas arrumadas e ainda não começou a rotina do chá das cinco ou do jantar.

Tinha o hábito de recolher-me uns momentos, ler um pouco, arrumar gavetas, era, por assim dizer, a minha hora de lazer que ninguém perturbava. Estranhei, por isso, ouvir bater à porta.

Entre, e a voz saiu-me interrogativa.

Entrou devagar, hesitante, ficou no limiar sem olhar para mim, amuada, com a boca num trejeito infantil.

Entre querida, insisti. Sente aqui ao pé da Mila. E feche a porta, sim?

Avançou de rompante, sentou-se com os pés na seda do assento e os joelhos à boca e desabafou, estou chateada que nem um peru.

Porque quer. A sua mãe e o seu padrinho não se cansam de inventar coisas para a menina se divertir.

Eles não percebem nada.

A menina também não explica.

Era o que mais faltava.

Mas à Mila podia explicar. Ainda sou a sua Miliquiquinha, ou não?

Claro que és.

Abraçou-se a mim e começou a chorar. Fiquei de rastos.

Ó querida, pronto, pronto, já passou. A Mila enxuga as lágrimas, a Mila ajuda, e tive saudades do tempo em que tudo se resolvia com um penso rápido no dói-dói, um bombom, uma cantilena de encontro ao coração.

Fazer perguntas podia estragar tudo, travar aquela maré de confidências que parecia estar a aproximar-se.

Diga à Mila o que foi. Vai ver que se sente melhor.

Não foi nada. O problema é que não foi nada. São coisas que me irritam. Só isso.

Arrisquei.

Não será antes a Aninha que deixou o seu coraçãozinho lá fora?

Saltou do meu colo com uma gargalhada.

Ó Mila! Que pirosa! Coraçãozinho lá fora! Só tu me fazias rir. Porque é que quando uma adolescente fica neura acham logo que deixou a merda do coraçãozinho não sei onde?

Olhe o palavreado, menina.

Desculpa, Mila, mas é ridículo. Não, não te preocupes. Não deixei coraçãozinho nenhum em parte nenhuma. Lá fora só conheci parvalhões com borbulhas convencidos que sabiam tudo, lá porque andavam nuns colégios transcendentes, lá porque eram ricos, lá porque eram herdeiros, e estavam convencidos que era tudo deles incluindo as raparigas. Só me interessei uma vez por uma pessoa mas era pai de uma amiga minha e quando começou a armar-se em atrevido fiz a mala e vim-me embora. Por isso a minha vida amorosa é bastante desinteressante. Não sou virgem, se é isso que queres saber, mas isso foram coisas que aconteceram a título de experiência, nos Estados Unidos, no último Verão. Não teve piada nenhuma e é preciso aparecer alguém muito excepcional para repetir a dose.

Eu estava siderada. A virgindade para mim ainda era um dogma e ouvir a minha menina falar com tanta ligeireza da sua honra perdida deixou-me em estado de choque.

E agora, Aninha?

Agora o quê? Achas que mande vir o rapaz que tomava conta dos cavalos lá na superpropriedade da minha amiga texana e o obrigue a casar comigo? Ele cheira um bocado a estrume, não sei se a Júlia vai aprovar.

Ria-se como uma doida. Eu não tinha palavras. Por mais que procurasse não encontrava nenhuma.

A menina está a brincar comigo, não está? Diga que está.

És mesmo a minha Miliquiquinha.

Cobriu-me de beijos.

Agora estás toda lambuzada. Dá cá um lenço para eu te limpar. E estás vermelhusca. Precisas de pó-de-arroz. Pronto, assim. Agora estás linda. Já podes ir dar a merenda àquele parvóide do secretário.

Deu-lhe para aí. Para embirrar com o rapaz. Mas não faz mal. Um dia vai ver que ele é boa pessoa.

Pois, pois. Vamos todos ver. Eu é que sei. E então Miliquiquinha? Já te refizeste do choque? Não ligues. Aquilo é só uma membranazita sem importância. Não faz falta nenhuma. É um estorvo. Não sentes que é um estorvo?

Ria-se.

Olhe o respeito, Aninha. Não lhe admito essas brincadeiras parvas.

Está bem, desculpa. Agora ajuda-me lá a pensar o que é que eu hei-de fazer da minha vida.

Eu? Assim sem mais nem menos?

Sim. Tenho a certeza que já conversaram todos imenso sobre o curso que eu hei-de tirar ou o ricaço com que me hão-de casar.

Como se a menina se deixasse casar pela vontade da sua mãe. Isso garanto-lhe que já todos perceberam que há-de fazer só o que o seu nariz mandar.

Foi sempre assim, o que fará agora.

Se ao menos eu soubesse o que quero...

Vai saber. Um dia acorda e diz, já sei. Não tenha pressa, a vida é assim mesmo. Aos dezasseis anos ninguém.

Dezassete.

Só a vinte e cinco de Julho. Ou acha que eu não sei? Eu, que a vi nascer. Que fui a primeira pessoa a pegar-lhe ao colo.

Não foi a minha mãe?

Quer dizer, foi. Eu só peguei em si para a entregar à sua mãe. A menina nasceu nesta casa. Naquele quarto onde agora não dorme ninguém, onde a sua mãe.

Onde a minha mãe o quê?

Onde a sua mãe se fecha quando briga com o seu padrinho.

Ai ela briga com o meu padrinho. Logo vi.

Ó Aninha, isso são coisas lá deles. Eu não devia ter dito nada. Desculpe. Não temos nada com isso.

Vou tentar conhecer melhor o meu padrinho. Passei tantos anos fora que já não conheço a minha família. Encontrei-os diferentes daquilo que eu pensava. E depois aquele trambolho do Baptista não me deixa ter intimidade com eles. Está sempre no meio das conversas.

Ora, Aninha. É má vontade sua.

E se eu me fizesse escultora? O padrinho Augusto ganha balúrdios, podia-me ensinar a arte dele e fazia-me sua continuadora.

Se calhar é preciso um bocadinho de talento.

E quem é que te disse que eu não tenho talento? Lá no colégio achavam que eu tinha jeito para a pintura. E ainda fiz uns mamarrachos de barro, um bocado para o abstracto, que iam para a exposição de fim de ano com chapinhas a dizer nostalgia quando saía certinho e revolta quando saía tudo torto. Eram obras muito apreciadas, fica sabendo, as da escultora Salomé Vaz.

Ria-se como se tudo, a vida, o colégio, a arte, não passasse de uma gigantesca piada.

Eu espantava-me como ela tinha passado das lágrimas ao riso com tanta facilidade, não fui uma adolescente muito convencional, na idade dela passava os dias a cerzir vestidos velhos e a reciclar chapéus, os devaneios do humor não faziam parte das minhas ocupações.

É isso mesmo. Vou fazer-me frequentadora do atelier do padrinho Augusto. Vou pedir-lhe que me ensine escultura. Ou então que me arranje uma roda de oleiro para eu fazer uns potes que se saírem com marrecas a gente diz que é assim mesmo para as pessoas se deslumbrarem com a minha criatividade.

Se isto não resultar tenho sempre a alternativa de posar para ele, talvez de ombro de fora ou quem sabe nua, para ver se reparam também em mim como no querido Joãozinho.

Aninha, não acredito que essa sua embirração é só um enorme ataque de ciúmes.

Ciúmes? Provavelmente, sim. Ou tu achas que é agradável chegar finalmente a casa ao fim destes anos todos e encontrar a própria mãe perdida de amores por um intruso de dezoito anos?

Não me digas que ainda não percebeste que a esplendorosa Júlia está apaixonada pelo João Baptista.

 

Quando cheguei a Lisboa percebi que não ia ser pêra doce internar o Gabriel na clínica do Vasco. A mãe não autorizava a menos que pudesse ficar vinte e quatro horas à cabeceira dele. Impossível explicar-lhe que o verdadeiro tratamento era subtraí-lo à sua devoção demolidora.

E pela primeira vez na minha vida tive um pensamento estranhíssimo, pus-me a imaginar o que é que o meu novíssimo dinheiro poderia fazer por aquela criança. Já me via a montar um esquema em que a mãe ganhasse uma viagem às Caraíbas num sorteio forjado ou o prémio da melhor mãe do ano, o que a levaria aos Estados Unidos a conhecer outras mães do ano, ou receitar-lhe uma cura de sono ou de beleza numa superestância para milionários estressados, mas a minha imaginação à solta teve que se remeter à realidade: nem a mulher abandonaria o filho em circunstância alguma, nem o dinheiro estaria à minha disposição nos tempos mais próximos. Por enquanto a minha abastança era só no papel.

Senti-me, por outro lado, muito constrangida em contar ao Vasco a reviravolta da minha fortuna. Tinha por um lado vergonha, por outro receio que alguma coisa se alterasse na nossa relação. Não que o Vasco fosse pobre e se enquadrasse num cliché de princesa e pastor, mas porque os homens às vezes lidam mal com essas situações.

Mentira. Sou eu que lido mal com a situação. Sinto-me culpada por ter sido beneficiada em relação à Marta e dou voltas à cabeça para encontrar uma maneira de repor a justiça.

À Manú também optei por não contar logo tudo. Somos, além de sócias e colegas, grandes amigas, mas a minha intuição diz-me que o dinheiro tem às vezes o poder de destruir, vá-se lá saber porquê, amizades sólidas e relações inocentes. Como se trouxesse com ele alguma coisa de maligno, de insidioso, de pérfido, mas se calhar sou eu que leio muitos romances.

A grande verdade é que a porcaria da herança nunca mais me saiu da cabeça e lembro-me do tempo em que costumava garantir, se me saísse a sorte grande, isso não alteraria um milímetro a minha vida, nem os meus hábitos, nem a minha cabeça.

Que saco.

A única pessoa com quem posso abrir-me é a Marta, não sei o que faria sem a minha irmã, só ela para acalmar-me com a sua bondade e o seu optimismo, aquela maneira bonita que ela tem de viver, a olhar sempre as coisas e as pessoas pelo lado bom.

É claro que ela começou por aconselhar-me calma, sabe-se lá quanto tempo demorará o dinheiro a chegar à nossa mão, é viver como se nada tivesse acontecido, mas começar a projectar, isso sim, o que poderá vir a ser a obra das Mães Menininhas, pensada agora em grande, não só em Portugal mas quem sabe em países onde o padrinho Augusto tinha negócios, Espanha, França, Brasil, sei lá que mais, essa sim era uma causa pela qual valeria a pena viver.

Isto animou-me. Quando o pai lá em casa abordou o assunto eu estava completamente atordoada, não percebi o alcance da ideia dele, mas agora assim, conversando com a Marta na sala dela onde um princípio de Primavera fazia explodir as plantas de interior e o canário doido da vizinha punha em bicos de pés o gato persa no entreaberto da vidraça, ah, agora, naquele apartamento tão real onde os cinzentos contrastavam com quentes amarelos, ali, tudo parecia possível.

Sempre admirei esta capacidade da Marta de manter a casa impecável com dois rapazes pequenos, ter sempre um bolo feito, bolachas fresquíssimas na lata, saber escolher a música de fundo certa para qualquer conversa, usar camisas de seda imaculadas e nunca, nunca levantar a voz.

Quando eu crescer quero ser como tu, digo-lhe sempre e ela começa a rir baixinho com a testa encostada à minha, nós somos uma, Joana, se fôssemos gémeas não éramos mais complementares.

Desta vez sou eu que proponho ao Vasco um fim-de-semana romântico. Ele fica desconfiadíssimo, diz-me que não foi por falta de iniciativa da parte dele que o Gabriel não foi internado esta semana, a mãe desculpou-se com a minha ausência, ele acha que deveríamos talvez convocar uma junta médica, talvez assim a mãe mas eu explico-lhe que não é por isso que quero estar com ele, pelo contrário, quero esquecer a senhora Múnchausen, falar de outras coisas que nada tenham a ver com a profissão, futilidades ou, quem sabe, coisas sérias como por exemplo o amor.

O Vasco fica pasmo, é a primeira vez que me ouve pronunciar tal palavra, fica com muito medo que aquilo se parta, que aquela onda de sentimentalismo morra na praia e fique ali a empapar uma areia molhada de ironia e cinismo.

Admito que sou muitas vezes cínica e irónica. O Vasco está vacinado contra essa minha recusa dos sentimentos mais sérios, essa minha renúncia à felicidade, o meu pavor a uma relação simples e alegre de duas pessoas que se amam sem mais complicações. Está habituado a que, à beira de um momento um bocadinho mais profundo, eu estrague tudo com a frase precisamente cínica, precisamente irónica, e chame pieguice a uma emoção mais funda, reacção química a uma atracção mais forte.

Sou um fracasso.

Mas desta vez vou tentar entreabrir a minha carapaça de defesas contra mim própria (lembro-me como da última vez foi tão bom, embora eu não lho tenha confessado) e deixar que ele me mime, me dê colo e beijos e presentes patetas, um golfinho de peluche, um colar de conchas, um vaso de violetas.

Uma praia no princípio da Primavera, já com sol mas ainda sem gente, cumpriu magnificamente a função de cenário para a primeira cena do novo capítulo da minha vida. O capítulo de novela mexicana em que vou dizer ao Vasco que sou milionária, que o amo e que espero que ele não me rejeite por causa disso.

Na novela mexicana:

Joana Rosa - Vasco, tenho um segredo a revelar-te, mas promete-me desde já que me não abandonarás.

Vasco Ramón -Jamais te abandonarei minha amada, seja qual for o segredo.

Joana Rosa - Sei como és orgulhoso e poderá dar-se o caso de quereres desmanchar o nosso noivado para não seres mal interpretado por meu pai.

Vasco Ramón - Pois que crime podes ter cometido tu, minha Joana Rosa, minha flor de pureza, minha pomba, que possa macular o meu orgulho de homem, a minha honra de primogénito dos Albarracin del Val?

Joana Rosa - É que, Vasco Ramón, o meu padrinho acaba de falecer deixando-me uma enorme herança que faz de mim a mulher mais abastada da América Latina.

Vasco Ramón - E cuidas tu, insensata, que o teu dinheiro te torna superior, na linhagem e na abastança, aos Albarracin del Val? Que eu me sujeitaria a ser apontado a dedo como o homem que casou por dinheiro? Que sofreria a humilhação de ver teu pai expulsar-me por imaginar que eu me propunha ao golpe do baú?

Joana Rosa - Mas, Vasco, e o nosso amor? Não sou culpada se meu padrinho me mencionou no testamento e não vejo nisto razão para ficar solteira. Tu também tens de teu, teu pai é rico e tu e os teus dezoito irmãos irão herdar uma considerável fortuna.

Vasco Ramón - Meu pai está cheio de saúde, mas ainda que algum imprevisto apressasse a sua morte, sabes quanto tempo demorariam as partilhas entre dezoito irmãos legítimos, vinte e três ilegítimos e as respectivas mães, tios, sobrinhos, cunhados, netos órfãos, criados e credores? Eu teria que viver à tua custa e isso a minha dignidade de Albarracin del Val jamais permitiria.

Joana Rosa - Juraste que não me deixarias e agora faltas ignominiosamente à tua palavra.

Vasco Ramón - As circunstâncias mudaram. E a menos que meu pai me aconselhe em contrário e o teu pai me aceite sem restrições, não poderemos voltar a ver-nos. Adeus.

Foi aqui que Joana Rosa se afogou e o dinheiro foi todo para a filha ilegítima e mestiça Acnemaltutaecql, conhecida por Tuta, que facilmente, ultrapassados todos os escrúpulos e todos os capítulos da novela, veio a desposar com grande pompa e circunstância Vasco Ramón del Val.

Na vida real:

Joana - Vasco, imagina que o meu padrinho Augusto resolveu deixar-me um balúrdio em testamento.

Vasco - Olha que boa ideia! Não queres ser minha sócia na clínica? É que estamos a precisar de fazer obras e as verbas estão curtas.

Joana - Vasco. Gosto muito mais de ti do que possas imaginar. Muito mais do que eu própria imagino.

Rio baixinho, bebo um gole do sumo e espreguiço-me na cadeira de estender, a olhar a praia. Inspiro o cheiro a maresia e fecho os olhos.

Estás a dormir, querida?

Não. Estava a sonhar mas não estava a dormir. Estava a pensar como a vida pode ser simples se a gente não se puser a complicá-la.

Isso vindo de ti é um enorme progresso. Acho que esse dinheirão que tu herdaste já te está a fazer bem.

Vamos não pensar em nada? Passear, comer bem, fazer amor, dizer disparates, rir à gargalhada, inventar silêncios, ver o pôr-do-sol de mãos dadas, muito pirosos, muito piegas, muito felizes.

Que programa fantástico.

E como num décor de novela um sol oblíquo inunda de repente a varanda do nosso quarto virado ao mar, ilumina o copo do Vasco onde a bebida parece fogo líquido, eu passo para a cadeira onde ele preguiça, abraço-o, inalo o seu perfume na pele do pescoço, murmuro amo-te e adormeço com a pureza irresponsável de um recém-nascido no seu primeiro sono.

Sonho com a avó Júlia.

Está a brincar connosco aos jantarinhos nas traseiras da Casa das Lias. Está vestida de branco como se fosse jogar ténis, com uma saia de pregas abotoada à frente, sapatos de lona, camisolinha de manga curta. Põe folhas de loureiro numa frigideira de bonecas e diz-me para fritar os carapaus. A Marta está a fazer uma sopa de ervas, a avó Júlia bate um bolo com saibro e água suja.

E agora tu eras a criada e agora a avó Júlia era a visita e agora os carapaus já estão fritos e agora eu punha a salada e agora jantávamos.

O melhor do sonho é que a avó nos autoriza a comer tudo e rimos as três à gargalhada até que o padrinho Augusto vem buscá-la para o ténis, mas ele tem calças de ganga e sandálias e a cara coberta de pó branco.

Agarramos a avó Júlia uma de cada lado, não queremos que ela vá, ela agora tem o vestido do quadro da sala e diz venho já, venho já, não demoro nada, fiquem a dormir, e deita-nos na terra e diz-nos para fingir que morremos que assim o tempo passa mais depressa. Não foi um pesadelo.

Acordo bem-disposta, diz-me o Vasco que não dormi mais que cinco minutos.

Tomamos um duche delicioso, não sei porquê, às vezes os duches no hotel sabem-me melhor do que em casa, talvez porque não estou com pressa, porque me concentro no prazer sensual do banho, porque antevejo uma noite de amor e quero estar cheirosa, macia, irresistível. É raro sentir-me tão feminina e gosto dessa minha faceta que habitualmente escamoteio debaixo de um estilo prático, muito profissional e defensivo, para que não me descubram. Para que nem sequer me pressintam.

Só o Vasco é que desperta, como diz o anúncio, a mulher que há em mim.

Jantar maravilhoso. Permiti-me mesmo beber um copo a mais. É um descanso poder ser irresponsável de vez em quando.

Vasco, gostavas de mim se eu fosse pobre? Claro que não. A minha tara são as milionárias complexadas.

Rio como uma tonta. Não, como uma bêbeda e o Vasco acha melhor levar-me para um passeio a pé na noite enluarada. O ar frio faz-me bem mas não me faz perder a euforia, a sensação de estar muito longe do mundo e de todas as suas complicações.

Esforço-me por apreciar estes momentos, por guardá-los na memória como uma coisa preciosa que um dia gostarei de recordar. Acho que estou apaixonada pelo Vasco mas tenho medo que seja uma consequência daquele Dão prodigioso. Por isso não lhe digo nada de excessivamente romântico ou comprometedor. Ainda me resta sobriedade para esse controle.

Mas que dizer da noite.

Nada, porque nenhuma palavra explica o prazer quando ele ultrapassa o nível do entendimento. Nada, porque não se pode dizer o indizível, verbalizar o sonho, explanar o mistério. Nada, porque tudo.

Levanto-me na primeira luz da manhã e desço à praia, cedendo à tentação de pisar a areia molhada. Lisa, virgem, apenas maculada pelas pegadas das gaivotas. O contacto dos pés descalços com a areia muito fria provoca-me um arrepio do princípio do mundo, a expectativa de alguma coisa por acontecer.

Sento-me abraçada aos joelhos, pousando o queixo no conforto dos jeans e penso na avó Júlia, na sua estranha aparição no meu sonho da véspera. Vi o seu sorriso, ouvi a sua voz, a sua gargalhada, eu que não a conheci. Quererá dizer-me alguma coisa, ajudar-me a encarar com simplicidade a minha nova situação, a aceitar a vida como ela vem?

De súbito apercebo-me que pensei e falei em dinheiro nestes últimos dias muito mais do que nos meus trinta e quatro anos todos somados. Eu, a despojada, a desinteressada, a altruísta, a isenta. Que decepção, sou humana.

Sorrio às ondas que trazem na espuma a luz do sol nascente.

Ao longe uma criança, incrivelmente pequena e só perante o mar imenso, colecciona conchinhas.

 

Imagine o despautério! Fiquei escandalizada com os disparates da Ana Salomé acerca da paixão da mãe pelo João Baptista. Ralhei-lhe, fiz-lhe ver que há limites para as loucuras que se podem dizer, que uma calúnia pronunciada em voz alta é uma força que pode fazer muito mal, que pode destruir e trazer desgraça.

És mesmo cega, disse ela a roer o canto de uma unha. Ninguém é intocável, ninguém é imune a isso que tu chamas pecado. Ninguém. Nem as mães das pessoas. E a minha está apaixonada sim senhora e é por isso que eu tenho ciúmes. Porque vinha cheia de boas intenções, decidida a gostar dela, a perdoar-lhe ter-me abandonado, ter-me empandeirado para a Suíça, ter desistido de me amar com tanta facilidade.

Não sou nenhum trambolho. Sou inteligente, sou bonita, fui sempre boa aluna, em toda a parte toda a gente me aprecia. Mas a minha mãe não gosta de mim. Prefere amar o secretariozeco.

Não diga isso, minha querida. E não chore, porque isso não é verdade, ora esta, para o que lhe havia de dar.

Está bem, se não queres não acredites. É mais cómodo. Mas verás como eu tenho razão.

Foi ao meu toucador, mexeu em tudo, cheirou os meus perfumes, escolheu um, pôs, com a ponta do indicador, uma gota atrás das orelhas, puxou os cabelos para cima e espetou-lhes uma peineta com pedrinhas que ali estava a enfeitar, trazida de Sevilha pelo doutor Augusto, pintou a boca com um bâton rançoso que descobriu numa caixa de porcelana e virou-se para mim numa provocação.

Estou linda, não estou? Agora vou seduzir o Joãozinho para enraivecer a Júlia. Aninha!

Mas já os seus passos soavam na escada e as gargalhadas na casa toda.

Fiquei imenso tempo a pensar naquilo, a querer e a não querer acreditar no que a Ana Salomé dissera e de súbito foi como se um véu caísse da frente dos meus olhos e eu revi uma a uma as raivinhas da Júlia, as embirrações sem motivo, as atitudes provocatórias.

Havia naquilo tudo alguma coisa de muito físico e só mesmo eu com a minha pouca ou nenhuma experiência da vida para não perceber nada, e é claro que a Júlia contava com isso. A Mila é pateta, não vai dar por nada.

Decidi guardar para mim esta descoberta e jamais dar razão ou comentar o tema com a Aninha. Mas preparei-me para estar atenta.

Júlia Amaral Balbi, 36 anos. Rica. Ociosa. Caprichosa e mimada. No auge da sua beleza. Habituada a ver satisfeitos os seus mais ínfimos desejos. Os mais loucos. Os mais desconcertantes.

Põe os olhos no muito jovem secretário do seu marido. Deseja-o como se deseja um chapéu ou um brinquedo novo. Só assim. Por desfastio.

Mas o brinquedo não é um brinquedo. Tem vontade própria e teima em não lhe corresponder. Em fingir que não percebe. Em fazer-se tímido onde ela o queria agressivo, rebelde onde ela o queria sujeito.

Para a Júlia é um jogo. Um desafio. Uma ocupação.

Esta era, na época, a minha visão dos acontecimentos. Acho que nem posso chamar-lhes acontecimentos porque de facto não acontecia nada. Era um clima, uma atmosfera, algumas palavras, alguns olhares, algumas atitudes, de brusquidão, de contrariedade, de ironia, de indiferença. Mas alguma coisa de estranho crescia naquela casa, alguma coisa de sufocante que quase se podia palpar.

Posteriormente pensei várias vezes que talvez acontecessem coisas horríveis, obscenas, inconfessáveis de que eu, na minha ingenuidade, não soubesse interpretar nem tão-só os vestígios. A que não soubesse dar nome.

Se a carta não estivesse lacrada, confesso que já a teria aberto ao vapor da cafeteira eléctrica que no meu quarto do lar serve para fazer chá.

Tentaria compreender este enigma que me tira o sono há mais de trinta anos.

A carta. Foi-me entregue pelo doutor Augusto. Era um envelope grande que dizia Mila no rosto. Só Mila. Não o abri logo. Era volumoso. Pensei que ia precisar de um dia inteiro para ler e reler o seu conteúdo. Então guardei-a, adiando o momento de compreender aquela morte, aquele desespero, quem sabe aquele último capricho.

Aqui ela conta-me tudo, pensei. Conta-me tudo como nos tempos da nossa cumplicidade. Ela sabe que sou a sua maior amiga. Talvez me peça segredo, mas conta-me tudo, como antigamente.

Guardei a carta na gaveta da cómoda, à espera.

Já tinham passado muitos dias, muitas lágrimas, muito sofrimento, quando o doutor Augusto ma entregou. Mila, ela deixou isto para ti. Tive vontade de saber se lhe teria deixado uma a ele mas não perguntei. Fiquei a tremer com a carta na mão, não chorei, fiquei só a tremer com o corpo todo arrepiado e era o seu perfume ali na minha mão e quando ele saiu e fechou a porta do quarto, beijei a carta, encostei-a ao peito, à cara, ao ouvido como se esperasse ainda ouvir bater o seu louco coração. Depois guardei-a sem a abrir.

Guardei-a. Não sei que medo me impedia de lê-la, de que revelações tentava proteger-me. E no dia, na noite de que ainda guardo a cicatriz em que venci a cobardia e a abri encontrei uma folha com um recado.

Um recado que me reduzia ao meu estatuto de governanta. Uma ordem para cumprir.

 

Mila, peço-te que entregues esta carta ao meu primeiro neto quando ele fizer trinta anos. Penso que estarás viva porque tu és eterna. Se vires que não chegas lá, encarrega alguém de o fazer... Desculpa se te chateio com incumbências mesmo depois de morta. Sempre fui uma chata ejá não tenho tempo de mudar. Obrigada por tudo o que sempre foste para mim, para todos nós. Amo-te muito, minha Mila. Desculpa o desgosto que te vou dar. Um beijo da Júlia.

 

Peço-te que entregues esta carta. Era uma carta volumosa. Lacrada. Dizia: ao meu neto mais velho.

 

Olho muitas vezes o lacre. Lembro-me do dia em que a Julinha me mostrou o estojo oferecido pelo pai no dia dos seus dez anos. Era um estojo de veludo cor de fogo e continha um grande pau de lacre, uma fosforeira de prata e um sinete de cabo de marfim com o brasão dos Amaral.

Ela guardava-o na sua escrivaninha e utilizava-o raramente. Era um daqueles presentes que se oferecem mais para ter do que para usar.

Usou-o para lacrar a carta. Ao meu neto mais velho. Ela usou-o. E confiou-me a carta. Que está ali na gaveta de segredo da papeleira que o doutor Augusto comprou num antiquário, para mobilar, com todo o requinte, o meu quarto do lar para onde me afastou com medo do que eu pudesse, quem sabe, revelar na minha caducidade, sem imaginar que eu estava de posse da carta que provavelmente contém todas as revelações.

Porque não entreguei a carta à Joana no dia dos seus trinta anos? Quis poupá-la ao desgosto de saber que a avó se suicidou? Porque é que nunca ninguém lhes falou nisto? Porquê tanto segredo?

Agarrei-me estupidamente àquele masculino ao meu primeiro neto, mentindo a mim própria, sabendo que a carta se dirigia à Joana, mas admitindo que, se nascesse um rapaz, esse seria o destinatário.

O rapaz não nasceu e eu continuei a guardar a carta. Nunca ninguém soube que eu a tinha. O doutor Augusto entregou-me uma carta que dizia Mila, sem suspeitar que havia outra dentro do sobrescrito.

Sou a única detentora do segredo, qualquer que ele seja.

Um segredo que desconheço mas que me dá poder. Um poder, ou uma ilusão dele, que me faz sentir importante.

Nunca tive nada além de uma família de empréstimo. As alegrias e as dores dos outros. O conforto dos outros. A casa dos outros. Os filhos dos outros.

Por isso vou guardar, como se fosse minha e até ao limite do possível, a carta lacrada.

Agora a Ana Salomé passava muito tempo no atelier do padrinho, como se não quisesse a proximidade da mãe.

Vá, vá, dizia-lhe ela. Faça companhia ao padrinho Augusto, veja se aprende alguma coisa, torne-se útil.

Era com visível satisfação que a via sair pela porta da cozinha, a roer uma maçã, uma castanha, qualquer coisa que apanhasse à mão. Nunca tentou aproximar-se da filha, convidá-la para sair, irem juntas às compras a Viseu, ou ao cabeleireiro, como seria natural.

Parecia que a sua única intenção era livrar-se de todos e meter-se no escritório a atazanar a vida ao pobre João Baptista que se devia ver grego para repeli-la sem perder a compostura.

Porque não creio que ele entrasse no jogo dela. Era demasiado correcto e bem formado para se envolver numa situação menos clara.

Ou não?

Passando no corredor eu podia perceber a voz dele, calma mas autoritária e a voz dela, abafada mas num tom irritado. Não compreendia as palavras mas sentia uma intimidade não sei de que espécie que me chocava e me fazia medo.

Lembro-me, hei-de lembrar-me sempre, daquela vez em que a porta estava entreaberta e eu ouvi claramente a voz dela.

Um dia mato-te, João. Um dia ainda te mato, só porque és estúpido, só porque não queres perceber.

Tratava-o por tu e ele respondia, Júlia, por amor de Deus, Júlia, veja se se acalma.

Na presença dos outros ela tratava-o por você, ele dizia senhora dona Júlia.

Tinha eu o direito de tirar conclusões? Depois a Ana Salomé entrou em casa a cantar aos gritos let it be, let it be, subiu a escada a correr, bateu a porta do quarto e Júlia veio ao corredor, talvez espreitar se o marido teria entrado e em passos leves dirigiu-se à salinha dela, pegou numa revista e chamou-me.

Eu sabia fazer-me surda e invisível e não acudi. Acho que ela me chamou para verificar se eu estava por perto mas eu deixei passar dez minutos e depois apareci, muito sonsa, a perguntar se podia servir o chá.

Onde é que estavas metida? Fartei-me de te chamar. Mentirosa, apeteceu-me dizer. Chamaste-me uma vez e não querias nada, mas respondi que estava na lavandaria a separar a roupa e que lá não se ouve a campainha. Mas queria o quê? Queria isso mesmo, o chá.

Preparei um lanche reforçado, com tudo o que havia de bom naquela casa, chamei a Aninha e o João Baptista e fiquei a vê-los merendar.

Senta-te, Mila. Lancha connosco, disse a Júlia num tom carinhoso que me soou a falso. Andas sempre numa roda-viva, se não é a roupa são as limpezas, se não são as limpezas são as compras, se não são as compras são os bolos e as refeições. É o meu trabalho, respondi formalizada. Descontrai-te, mulher! E vá. Senta-te a lanchar. Sou eu que mando.

Bem. Vou buscar uma xícara.

Tens muito jeito para disfarçar, pensei. Mas a mim não me enganas. Aos meus ouvidos soava aquele um dia ainda te mato, um dia mato-te João.

Que diferente de tudo isto a minha paixão pelo doutor Augusto. Toda feita de devoção, de respeito, de pudor. Lembro-me do tempo em que corava até às orelhas quando ele me dirigia a palavra e ele percebia e brincava comigo, trazia-me presentinhos, dizia, já viram que linda que a Mila está hoje, fica-lhe bem o azul. E eu a esconder a minha atrapalhação, a minha vergonha de amá-lo tanto, e à sua voz, aos seus modos, à sua energia de homem, às suas mãos, ao seu perfume. Uma vez por outra ousava levar para o meu quarto um lenço limpo que encontrava no bolso das calças que me entregavam para vincar, ele deitava água-de-colónia nos lenços directamente do frasco. E esse pedacinho do seu cheiro sob a minha almofada foi a transgressão mais próxima do transe amoroso que algum dia conheci.

Mas ali não. Ali passava-se outra coisa. Era uma espécie de raiva, de paixão furiosa, um impudor que eu adivinhava na Júlia e que temi ver explodir a qualquer momento, enquanto o João Baptista se mantinha calado de olhos no chá, nos bolinhos de manteiga de que se servia com cerimónia. As enormes pestanas pretas sombreavam-lhe o rosto e de repente ergueu-as para fixar o olhar na Ana Salomé que tagarelava sem que a mãe lhe prestasse qualquer atenção e eu vi, tenho a certeza que vi, naquele momento, naquela saleta, naquela luz da tarde, o amor infinito que até hoje ele lhe dedica, sublime e sem limite.

A Júlia não viu. Mas de qualquer forma não era esse o sentimento que ela desejava para si. Era uma outra, muito outra forma de amar.

Descobri, na minha inocência, que o amor pode ser tudo isso.

O meu enleio pudico, quase ridículo perante o doutor Augusto, o desejo espesso e animal que se desprendia do corpo esplêndido da Júlia e por fim, tornando tudo o resto mesquinho e desprezível, aquela luz imensa nos olhos negros do João, inteira, quase divina.

Senti-me de repente indizivelmente feliz. Se o João amava a Aninha ainda havia esperança para aquela família.

Que era a minha.

 

Morreu o meu menino. Morreu o meu menino Gabriel. O meu menino com nome de anjo trocou este lugar horrível, onde há mães que matam os filhos, por outro mais longe e que lhe pertence.

Não sei como isto pôde acontecer. Tomámos todas as precauções para interná-lo longe do alcance da mãe, avisámos todo o pessoal para que a não deixassem aproximar da criança, mas fomos impotentes perante esta estranha forma de loucura.

Porque a mãe é a doente. O filho é apenas a vítima. Esta louca que é enfermeira, leu tudo sobre epilepsia, infecções, inflamações e tentava provocar tudo isto na criança de forma a mantê-lo permanentemente doente. Para depois cuidar dele com uma devoção ilimitada. Uma forma perversa e perigosíssima de maus tratos.

Tive a primeira desconfiança num dia de consulta em que a mãe pediu para ir à casa de banho (devia estar aflita porque nunca tinha deixado o miúdo a sós comigo) e eu aproveitei para perguntar ao Gabriel se nunca ia de férias com o pai. Vou sim, disse ele, com o meu pai e a minha madrasta e os meus três irmãos. Divertimo-nos imenso e eu nunca fico doente. No dia em que chego a casa começo logo a sentir aquelas coisas.

Vais ver que é a casa que me faz mal. A casa e o remédio para os ataques. Remédio para os ataques? Quais ataques? Aqueles que a minha mãe diz que me dão se eu não tomar os remédios. É uma coisa que se chama mas a mãe entrou e ele reduziu-se ao seu habitual mutismo.

A partir daí comecei a procurar provas que corroborassem a minha tese. Descobri que a criança já estivera internada catorze vezes e que a mãe nunca largara a sua cabeceira. Disseram-me no hospital onde costumava ficar que a senhora era elogiada por todos, ajudava as outras mães, os doentes e as enfermeiras e movimentava-se por enfermarias, corredores e copas como se estivesse na sua própria casa. Depois a criança melhorava misteriosamente, tinha alta e ia para casa entre aplausos e comentários. O calvário desta senhora, coitadinha! Qualquer dia está de volta. E estava.

Na clínica do Vasco e fora do alcance da maluca, eu tinha a certeza de que o Gabriel iria melhorar. Iríamos recuperá-lo e explicar-lhe que eram os remédios que lhe faziam mal, que a intenção da mãe era boa mas que nele provocavam efeitos secundários e que estava proibido de os tomar.

O Gabriel pareceu confuso. Toda a vida, desde que se lembrava, lhe tinham dito o contrário. Na primeira noite chorou com saudades da mãe. As enfermeiras revezavam-se e todas tinham pena dele mas compreendiam a situação.

Na quinta noite, com o Gabriel muitíssimo melhor, a enfermeira de serviço teve um assunto particular e pediu a uma colega de outro serviço que estava de folga, que a substituísse. (Soubemos depois que se tratava dum tempestuoso caso passional). A outra anuiu e quando ia a entrar na clínica saiu-lhe ao caminho a mãe do Gabriel que estava ali escondida, presumivelmente há cinco dias, à espera de ver entrar uma enfermeira que fosse conhecida. Esta Marília tinha sido colega dela, não só de curso como num hospital em Abrantes onde haviam estagiado juntas.

Foi um encontro de velhas amigas. Com direito a uma ou duas lágrimas de crocodilo. Depois a pobre mãe injustiçada contou à outra a sua história e queixou-se da crueldade dos médicos que não a deixavam ver o seu menino.

A Marília não estava a par da situação e ficou absolutamente escandalizada.

Estes doutores têm cada uma! Com a mania que sabem tudo! Quem melhor que uma mãe?... Ah, mas isto não fica assim. Eu vou-te deixar entrar. Vai por trás, pela porta dos fornecedores, que está fechada a esta hora, mas eu daqui a bocadinho vou-te lá abrir.

A outra agradeceu, fico-te grata para toda a vida, não me vou esquecer do teu gesto, Marília és uma amiga das verdadeiras, e desandou para a porta de trás com o arsenal de medicamentos dentro da carteira.

Esgueirando-se pelos corredores chegou ao quarto do filho. Tínhamos providenciado para o Gabriel um quarto particular que eu pagava a preço de amiga, pensando assim ter a criança mais protegida, com uma enfermeira permanente.

A Marília entrou primeiro, disse à outra, que estava sobre brasas para ir encontrar-se com a sua paixão, podes sair, eu faço-te a noite e se vieres cedo nem vão perceber que eu te rendi. Mal ela saiu a mãe entrou, chiu, chiu, meu menino, não digas nada a ninguém que a mamã veio ver-te, a mamã agora trata de ti, vai dormir um bocadinho, Marília, que eu fico.

Dormir? Mas são dez horas e eu não tenho outra função senão vigiar o teu filho, que lindo que ele é, deixa ver a papeleta.

Olha, não tem medicação nenhuma, mas estes médicos andam a brincar ou quê? Dizem mal dos hospitais, mas pelos vistos os privados ainda são piores. A criança internada sem tratamento mas para que será que isto serve?

A doutora Joana disse que é para eu ficar limpo duma data de porcarias que andei a tomar, sabes, mamã, aquele remédio, o Tegretol, parece que é o que me faz mal.

Não ligues Marília, ele não sabe e os médicos ainda menos. Desde os três anos que ele anda a tomar o remédio para a epilepsia, foi um outro médico que mo receitou há muito tempo quando eu lhe descrevi os sintomas e ele não pode passar sem ele, na farmácia já me conhecem, há anos que o compro, às vezes nem me pedem a receita, mas eu amanhã falo com a doutora Joana, que isto assim é que não pode ser. Eu logo vi que se eles não me queriam cá por alguma coisa era. Não queriam que eu descobrisse que estavam a privar o menino do remédio que lhe faz tanta falta.

A Marília começou a ficar farta deste arrazoado, disse, vou comer alguma coisa ao bar, um bolo, um café, senão não me aguento toda a noite, queres que te traga alguma coisa. Não, vai, vai descansar que eu não saio daqui.

O depoimento da Marília, feito entre lágrimas e soluços foi claro e inocente, como é que eu podia imaginar que a própria mãe ia prejudicar a criança? Em catorze anos de enfermagem nunca vi uma mãe que não quisesse o melhor para o seu filho. Quando eu a conheci ela não era maluca, era até uma excelente profissional.

Supõe-se que a mulher tenha agido imediatamente quando a Marília saiu do quarto: deu três comprimidos de Tegretol ao filho e quando a Marília voltou o Gabriel dormia e ficaram a conversar até que a outra a convenceu a ir encostar-se um bocadinho e ela assim fez, na maior boa-fé.

Às seis horas da manhã a enfermeira de serviço voltou, já a mãe assassina tinha saído e a criança continuava a dormir. Agradeceu à Marília, vinha eufórica, com uma noite de amor em cheio, não deu grande atenção à criança, tão sossegada, e só quando a enfermeira do turno da manhã entrou e começaram os procedimentos de rotina, termómetro, pulso, perceberam que o Gabriel estava morto.

O menino Gabriel morreu e eu sou culpada. De nada serve agora a investigação policial, o inquérito, a prisão da mulher, com a minha recomendação para tratamento psiquiátrico. Porque nada impede que ela tenha outro filho e recomece.

Vou ter que viver com isto. Além da culpa indeterminada que sempre me atormenta, agora esta culpa muito concreta. Devia ter ficado pessoalmente a tomar conta da criança em vez de confiar em enfermeiras que não conheço. Devia ter tentado internar a mãe, devia ter tido outros cuidados para evitar que a louca conhecesse o paradeiro do filho. Não sei se tinha o direito de o fazer, mas não é isso que conta agora. Talvez eu própria devesse ser julgada, talvez me sentisse melhor se cumprisse uma pena.

O Vasco, é claro, diz que eu estou a ficar paranóica. Tenta acalmar-me, fica na minha casa, vigia a minha saúde, faz tudo por mim.

Mas é a Marta, com aquele seu dom maravilhoso, que vem ao fim do dia pôr a tocar uma música tranquilizante, falar-me da morte com a sua voz terapêutica, massajar-me as costas com as suas mãos de fada, com as suas mãos de mãe.

E eu abro-lhe o coração e choro todas as minhas lágrimas e finalmente adormeço e, como se regressasse ao ventre materno, oscilo nas águas seguras e primordiais de que nunca mais quero sair.

Sonho que não quero nascer. Aqui tenho abrigo e alimento que é o que todos os seres vivos desejam. Não sei como é o mundo lá fora. Não sei, sequer, que há um mundo lá fora. Não quero saber.

Sonho que a Marta é minha mãe. Estou ao seu colo e escondo o nariz na sua blusa perfumada. Oiço a sua voz que me canta baixinho e me faz bem.

Acordo a rir.

Marta, sonhei que eras minha mãe. Acho que estou a ficar idiota. Não vou armar-me em deprimida, não vou. Tenho tanto que fazer. As Mães Menininhas não podem esperar pelos meus humores. Vou cuidar delas. Vou cuidar delas a sério agora que tudo se pode concretizar.

A primeira coisa a fazer é encontrar uma casa, ou mandá-la construir. Uma casa espaçosa, cheia de sol, numa quinta com animais, com árvores, com flores. Providenciar às minhas meninas alimento e abrigo. Depois o resto.

Acho que sonhei com isto, alimento e abrigo, como se estivesse a receber um recado.

O tempo passa e as coisas avançam.

A Marta, o Vasco e um arquitecto amigo dele que se chama Albano Nogueira, ajudam-me a encontrar a quinta. Já decidimos construir a casa de raiz e o projecto começa a tomar forma.

É fantástico ver nascer um sonho.

Quanto mais avanço com isto, mais percebo que tenho que ir a casa. Quando digo casa refiro-me sempre à casa dos meus pais.

Talvez porque o meu apartamento é alugado, porque eu vivo só e nunca ali cozinho, sinto-me sempre de passagem e tudo me parece alheio e precário. A minha casa não é um lar.

Lar é onde se acende o lume e se partilha a mesa e se dorme, à noite, o sono da infância.

Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde. Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam: um estalar de madeiras, um ranger de degraus, um sussurrar de cortinas.

Lar é onde não se discute a disposição dos quadros, como se eles ali estivessem desde o princípio dos tempos.

Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade no tecto, o pequeno defeito do caixilho são imutáveis como uma assinatura conhecida.

Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias.

Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.

Lar, é onde nos amam.

Eram casas assim que eu queria para as minhas Mães Menininhas e para os filhos delas. Um conjunto de aromas, de sabores, de ruídos suaves que elas levassem para a vida e onde pudessem sempre, sempre voltar.

Não adianta construir paredes se não lhes metermos dentro uma alma. Essa vai ser a minha obra. A obra do padrinho Augusto que me proporcionou esta alegria.

Penso nele, tão parte da casa que mesmo depois de morto me custa a imaginá-la sem ele. O seu bom humor, os seus cabelos cada vez mais indomáveis à medida que envelhecia, os seus dedos brancos do pó da pedra, os seus suspensórios extraordinários, com porquinhos, com renas, com ratos Mickey. De mil cores. Largos como alças de sacos de viagem. Cada vez mais largos e mais garridos.

Querido padrinho Augusto. Que saudades da sua fantasia, dos seus sonhos mirabolantes, das suas gargalhadas. Que falta me faz a sua ironia, a sua tendência para desdramatizar. Vem-me à memória o seu perfume italiano que nunca conheci em mais ninguém, que encomendava de Itália aos caixotes e o precedia quando descia a escada.

Penso em tudo isto ao mesmo tempo, o meu subconsciente a querer mistificar-me.

Mas não adianta porque sempre, como pano de fundo, os olhos castanhos do Gabriel.

 

É como lhe digo, Dona Floriana. Aquela casa sempre luminosa, foi-se enchendo de sombras, de segredos, de labirintos onde entrei e de onde não soube sair.

Os terrenos de amores que ali se cruzavam eram para mim desconhecidos. Apetecia-me ralhar-lhes, pedir-lhes que pusessem as cartas na mesa, dizer à Júlia, o que andas a fazer não está certo, dizer ao João, abre o teu coração a quem amas, dizer à Aninha, aceita o grande amor que ele te dedica que não hás-de encontrar melhor marido.

Mas quem sou eu, quem era eu, para ter uma palavra a dizer sobre assuntos que não me dizem respeito. Percebia confusamente que amar nos confere muitos direitos e eu amava aquela gente. Eram a minha família, os meus únicos amigos.

Pensei falar ao doutor Augusto, mas a Julinha não hesitaria em despedir-me, chamando-me traidora, atirando-me à cara anos e anos a ser tratada como família, a receber atenções e regalias.

Calei-me. Mas fiz-me disfarçada, sempre a tentar ouvir o que não era para os meus ouvidos, o que não era para o meu entendimento.

A Júlia começou a tirar-me de casa, mandando-me à cidade muito para além do necessário, pretextando compras inúteis futilidades, uma escova de cabelo, uma revista, um tempero para o caril que subitamente apetecia.

Afastava a filha para a oficina do marido, Ana Salomé, faça companhia ao seu padrasto, leve-lhe um refresco, um lanche, que a Mila tem que ir a Viseu.

Ficava em casa a sós com o João Baptista, dando-me direito a pensar mal dela, a temer as suas artimanhas de mulher apaixonada a que ele, que era apenas um homem, não poderia resistir.

Meu Deus, como eu era romântica e pateta. E ainda sou. Fiquei pior depois de começarem as telenovelas. Aqui no Lar é dos poucos entretenimentos que temos. Isso, e dar voltas às nossas memórias para descobrir o que não devíamos ter feito e fizemos, o que devíamos ter feito e não fizemos. A querer reparar o irreparável como se a vida não fosse isso mesmo: errar, quantas vezes a pensar que se acerta, acertar, quantas vezes a pensar que se erra.

E aos poucos a Ana Salomé começou a ficar mais feliz, mais alegre, mais serena. Notava-se-lhe a boa disposição e as suas gargalhadas perderam aquela carga de raiva, de escárnio que costumava torná-las insolentes.

Tive a certeza que ela andava a namorar o João Baptista às escondidas. Não precisavam de se esconder, eram ambos livres e desimpedidos, mas talvez ele temesse a fúria da Julinha e ela, torcida como era, talvez sentisse prazer em fazer uma coisa que havia de desesperar a mãe quando um dia se soubesse, o que veio a acontecer, ou não seriam hoje aquele casal feliz, equilibrado e tranquilo, com duas filhas lindas e dois netos amorosos.

A verdade é que eles disfarçavam muito bem. Ela passava o dia no atelier do padrasto e ele fechado no escritório a tentar evitar os avanços da Júlia. Eu chegava a ter pena da minha patroa porque se via mesmo que ele não a queria nem dada e deve ser horrível para uma mulher, ainda por cima linda e desejável, sentir-se rejeitada daquela maneira.

Ele chegava a levantar a voz para mandá-la sair, por favor deixe-me em paz, já lhe disse que não, despeça-me se quiser mas acabe com este tormento. Deixe-me trabalhar.

Eram as frases que eu apanhava, não todas de uma vez, mas assim, aos farrapos e aquilo gerava um clima terrível, pesado, e eu perguntava-me até quando iria durar aquela situação. Às vezes apetecia-me dizer, a Julinha não vê que ele namora a sua filha, será tão egoísta que se vá meter entre eles que são novos e apaixonados. Mas depois pensava que não tinha provas nenhumas daquele namoro, eram só suposições da minha cabeça, e se não fosse verdade eu ainda ficava por intriguista e coscuvilheira.

E depois mandava-me a Viseu com um pretexto fútil e eu ia no carro a pensar, pronto, hoje é que vai ser, ele afinal não é o santo que eu penso, vai buscar à mãe o que a filha não lhe dá, e logo a seguir odiava-me por ter aqueles pensamentos, chamava-me a mim própria solteirona mal amada e aproveitava a ida a Viseu para confessar-me a um padre desconhecido, abençoai-me padre porque pequei, por pensamentos, palavras talvez, obras provavelmente, faço juízos maus de pessoas que nunca me fizeram mal nenhum, só quero o bem dessas pessoas mas ando a julgá-las, só Deus pode, quem sou eu, começo a rezar e só me vêm aquelas coisas à cabeça, dou por mim com o terço na mão a pensar nos problemas dos outros, como?, não não, esse tipo de pecados eu não tenho, é só na minha cabeça que estas coisas acontecem, ando armada em polícia da moral alheia, é horrível, não quero que isso me aconteça mas a verdade é que não posso evitar, tome lá a penitência e vá em paz.

eu não ia em paz, começava logo a conjecturar o que é que se teria passado na minha ausência, já arrependida de ter perdido tanto tempo na confissão.

então dona Mila, dizia o motorista, já leva a conscienciazinha mais leve

que pecados pensará este que eu tenho

e ficava arrependida de ter dito espere aí um bocadinho que eu vou-me confessar, devia ter dito vou rezar, se uma pessoa vai rezar não levanta nenhuma suspeita, a confissão já implica sabe-se lá que caraminholas na cabeça dos outros, no fundo é exactamente o que eu faço quando me ponho a pensar que a Ana Salomé namora às escondidas o João Baptista e que ele, quem sabe, cede às exigências da Julinha e vai com ela para a cama do quarto azul, Deus me perdoe, já tenho que me ir confessar outra vez.

Quando chegava a casa ia direita ao escritório para entregar as compras à Julinha, esperava surpreendê-los, mas ela nunca lá estava, o João dizia não sei onde está, talvez no atelier ou no jardim, estive aqui ocupado com telefonemas para Lyon, querem uma estátua do doutor Augusto para uma cidadezinha dos arredores e é preciso negociar datas, preços, condições.

Todas aquelas explicações, o excesso de pormenores, davam bem a entender que estava atrapalhado, a querer tapar alguma coisa aos meus pobres olhos, nunca ninguém se tinha dado ao trabalho de me dizer fosse o que fosse sobre as encomendas do doutor Augusto, quando ele acabava eu já lá não estava, já tinha subido a correr as escadas para ir conferir o quarto azul, encontrava-o impecável, reconhecia a minha última limpeza, a minha maneira especial de estender a colcha, de lhe fazer uma dobra sob os almofadões e todo o quarto estava envolvido naquela tranquilidade, naquela penumbra que têm os aposentos que não são habitados, na casa de banho o lavatório não apresentava vestígios de água recente e eu ficava aliviada, um bocadinho frustrada, confesso, e ocorria-me ir ver o quarto dele, mas aí já estava furiosa comigo própria, com a minha mente suja, com a minha curiosidade de solteirona sexualmente recalcada e dizia, se calhasse em voz alta, se querem amar-se que se amem, que diabo tenho eu com isso.

Só então ia pousar as compras, mais calma mas ainda afogueada, agora era eu que tinha de disfarçar perante o pessoal, o que é que tem dona Mila, está toda alterada, nada filha, foi um calor que me deu, não ligues, é da idade.

Agora, dona Mila! A minha mãe só começou com os calores lá para os cinquenta, a senhora ainda é nova, veja lá mas é se é algum mal do coração.

Já passei dos quarenta, a partir de agora espera-se tudo, arrumamos as compras e deixamos as conversas parvas para depois. Já estou boa, não vês?

Atão e as tais sementes de coentro, dizia a cozinheira, é isto no pacotinho? E o que é que lhes faço?

São para o caril, móis no almofariz com os cominhos o açafrão e um golpe de vinagre, fazes uma papinha que vai para o refogado juntamente com as malaguetas, a cebola, o alho, o cravo-de-cabecinha, as especiarias têm que fritar no azeite para dar bom gosto ao molho.

E saía da cozinha a pensar que faltavam ingredientes naquela receita, mas a minha cabeça andava noutro lado e ia ser preciso consultar o livro antigo da senhora dona Amélia, que não cozinhava mas sabia ensinar. Era um livro precioso, forrado a chita de florões cor-de-rosa onde vinham, traçadas com a sua letra altiva, todas as receitas que desde sempre deram gosto e aroma ao coração da casa.

Nas minhas idas a Viseu passava às vezes na antiga casa dos meus pais. Tinham morrido ambos com intervalo de um mês e eu, com a ajuda do doutor Augusto, tinha vendido a casa a um senhor que dela queria fazer uma pensão. A casa era antiga, grande e bem situada e eu senti-me rica com aquele dinheiro no banco que me permitia pensar, se um dia me despedirem já não morro de fome.

Antes de a vender dei uma volta a tudo para me desfazer do recheio, não queria que vissem a pobreza em que os meus pais tinham vivido, mesmo a minha ajuda para pouco mais dava que a comida, e tudo aquilo, a tábua de engomar a fazer de cómoda, as paredes com as marcas dos quadros vendidos, as cortinas rotas, os tapetes esfarrapados, os armários vazios, iria denunciar a miséria que tão arduamente se esforçaram por esconder.

Encontrei, nas minhas limpezas, um postal por escrever com vistas da Figueira da Foz e lembrei-me do Verão, quando eu tinha sete anos e os meus pais ainda tinham pratas que precisamente o meu pai vendeu (em Coimbra em grande segredo, fazendo-se passar por amigo do proprietário) para irmos para a praia fingir que podíamos.

Foi um verdadeiro tormento.

Ficámos hospedados num quarto alugado à viúva de um pescador de Buarcos, um quarto exíguo, com a cama dos meus pais encostada à parede e eu num colchão no chão. Não havia banho nem pequeno-almoço. íamos uma vez por semana ao balneário do Ginásio Figueirense cujo director era conhecido do meu pai, com o pretexto de que na moradia que alugáramos faltava constantemente a água.

Quanto ao pequeno-almoço, que tomado na pastelaria ficaria caríssimo, a minha mãe convenceu a viúva a servir-nos café com leite e pão com manteiga por um acréscimo minúsculo da renda, mas o pão era duro, o café era cevada e a manteiga era rançosa.

Depois tínhamos que ir dois quilómetros a pé para a praia da Figueira, como não havia dinheiro para alugar um toldo ficávamos à torreira do sol, a minha mãe com um véu no chapéu (que já ninguém usava nos anos trinta) para não lhe cair a pele do nariz, o meu pai a transpirar dentro do seu único fato, eu a chorar porque a mulher dos bolos abria a caixa mesmo ao pé de nós e vinha aquele cheirinho e ninguém me comprava nada. Lembro-me que um dia, depois do banho de mar (que era uma tortura chinesa: sete mergulhos cegos em sete ondas assustadoras nos braços do banheiro que tresandava a oleado, a peixe e a sal) me ajoelhei na areia ao pé de uma família com muitos filhos e a mãe chamou a mulher e ela abriu a caixa e veio aquele cheiro que me matava de fome e a senhora deve ter tido pena dos meus olhos famintos e na distribuição dos bolos pelos filhos deu-me uma bola-de-Berlim, quentinha, com creme, e nunca até hoje na minha vida nada me soube tão bem.

Quando já não aguentávamos mais o calor, saíamos da praia, o meu pai comprava três pães com queijo e íamos comer para o jardim público onde bebíamos água do repuxo e então a minha mãe tirava da bolsa bolachas que tinha trazido de Viseu numa lata, todos os dias embrulhava meia dúzia delas num guardanapo, punham-se moles e ela tinha a bolsa permanentemente repleta de migalhas.

Ficávamos ali à espera que passasse a hora do calor. Depois tentávamos pôr alguma ordem na roupa amarrotada pelo suor e íamos passear para a esplanada de cima, para trás e para diante, para trás e para diante, resistindo à tentação de avançar um pouco até à rua do casino e descansar um momento no pátio-das-galinhas onde, para ter direito a cadeiras, teríamos de pedir, pelo menos, uma laranjada.

Dávamos umas voltinhas pelas ruas, a olhar as montras do picadeiro e eu via as outras crianças, muito frescas e engomadas depois da sesta, dirigirem-se com a mademoiselle ou com a fráulein para as matinées do cinema ou do casino, nem me atrevia a perguntar porque é que não podia ir, a mãe diria pela centésima vez, o paizinho não está prevenido.

Como o paizinho não estava prevenido não convinha relacionarmo-nos com outras famílias, era necessário fazer despesa, entrar em grupos que combinavam almoçar juntos ou fazer passeios de charrete à Serra da Boa Viagem, era tudo caríssimo, nós ficávamo-nos pela contemplação do pôr-do-sol, era maravilhoso e se as condições atmosféricas permitissem ainda se podia ver o raio verde.

A essa hora já eu estava a estalar de fome, paizinho vamos jantar e então, antes que alguém pudesse ver-nos, enfiávamo-nos numa tasca a caminho de Buarcos e comíamos uma sopa e uma dose, a dividir pelos três, de lulas guisadas com batatas (que eu odiava) ou de ervilhas com ovos escalfados que eram os pratos mais baratos e que enchiam mais. Eu e a mãe bebíamos água da torneira, o pai um copo de vinho da Bairrada.

Ainda hoje me pergunto porque teria o meu pai vendido o resto das pratas para nos sujeitar àquela tortura. Para que nos vissem, suponho. Porque de facto, ao fim da tarde, o meu pai distribuía chapeladas e cumprimentos por vários conhecidos e esse era para ele o momento alto do dia, aqueles viseenses poderiam voltar à terra e dizer, os Figueiredo Soares estão bem de vida, ainda este ano os vi na Figueira a gozar a época balnear. Coitados dos meus pais. Morreram de vergonha, afogados na sua própria mentira.

 

Então recapitulando: as adolescentes, bem protegidas e bem alimentadas, são acompanhadas na gravidez por ginecologistas que farão o parto na nossa enfermaria, equipada com tecnologia de ponta. Teremos vinte e cinco quartos de duas pessoas, um berçário com assistência a prematuros, uma grande sala de estar e outra de jantar. Quarto de brinquedos para as crianças que permaneçam, já que a organização se ocupará das mães até elas se tornarem independentes.

Se elas quiserem estudar pagamo-lhes os estudos desde que tenham aproveitamento. Se preferirem trabalhar, o nosso departamento de emprego arranja-lhes colocação. Damo-lhes as ferramentas para poderem singrar na vida e serem autónomas. Se quiserem casar proporcionamos-lhes enxoval e boda.

Que mais poderemos fazer pelas adolescentes grávidas rejeitadas pelas famílias? Só a prática nos ensinará.

Pensamos que algumas delas quererão ficar a trabalhar na própria organização, já que vamos ter que empregar muito pessoal: enfermeiras, puericultoras, educadoras de infância, mulheres de limpeza, cozinheiras, auxiliares, empregadas de escritório, contabilistas, para não falar nos médicos, ginecologistas e pediatras, psicólogos, e sei lá que mais.

Cada unidade que abrimos nos ensinará as necessidades da próxima. Vamos fasear a abertura das casas nas principais cidades de Portugal e Espanha.

Ambicioso? Claro. Mas é assim que vale a pena. Enquanto planeio tudo isto, enquanto discuto com os arquitectos os pormenores da planta, enquanto elaboro com o Vasco o organograma do pessoal e a lista do equipamento médico, enquanto combino com a agência de publicidade a estratégia para tornar a organização conhecida das interessadas, pergunto-me se esta não será uma das minhas máscaras, as máscaras com que nos escondemos de nós próprios, os véus com que tapamos as nossas culpas, as nossas chagas interiores. Estarei a praticar uma boa acção para perdoar a mim mesma ter recebido esta inesperada fortuna, por ter deixado morrer o Gabriel, por ter, lá mais atrás, sei lá onde, feito sei lá o quê? Seja, ao menos, por uma boa causa.

Vou ter agora que visitar os bancos do padrinho Augusto acompanhada por um dos seus advogados para ter a certeza que não faltará, a tempo e horas, o dinheiro para as obras e para tudo o que se seguirá. No máximo dentro de dois anos quero ter a organização a funcionar.

Terei de viajar e espero que o Vasco me acompanhe, ele está a tentar arranjar as coisas nesse sentido.

No consultório terei de encaminhar todos os meus doentes para a Manú ou arranjar quem me substitua. A Manú tornou-se de repente muito crítica, não acredita na obra, muito menos que eu consiga dar-lhe seguimento, menos ainda que o dinheiro que eu herdei chegue, como ela diz, para essa loucura toda. Instalou-se entre nós um certo mal-estar ao fim de anos e anos de amizade e colaboração. Também isto me deixa insegura.

Combino com a Marta uma tarde calma em casa dela, o que se revela difícil para mim porque não consigo parar de ter imenso que fazer.

Parar também é um afazer, diz a Marta. Tão ou mais necessário que os outros afazeres. Vem tomar chá. Vem cedo. Fazemos um bolo. Rapamos a tigela como antigamente. Lambuzamo-nos. Vem.

Sempre aquela música calmante, aquela luz terapêutica, o cheiro a alfazema que lembra a nossa casa. Os miúdos estão na escola. Hoje é o Paulo que os vai buscar. Estamos sozinhas para as nossas conversas de que tanto gostamos.

Penso muitas vezes que te fizeste médica para exorcizar essa culpa em relação à morte. Numa profissão em que lidas com ela de frente não podes negar essa necessidade quando o momento surge.

Nada, na boca da Marta tem um ar doutoral. Ela diz tudo com a mesma simplicidade com que explica o ponto certo de uma calda de açúcar.

Mas sabes (defendo-me) o Gabriel... O Gabriel és tu. Tu choras-te a ti própria no Gabriel. O Gabriel é a tua infância perdida, é tudo o que morreu em ti. Esquece-o. Deixa-o partir. E fala do que te aflige. Os problemas de que não falamos crescem na escuridão do não dito. Era uma vez dois monges... Conta.

Era uma vez dois monges que se dirigiam a pé de um convento para outro. A dada altura do caminho foi necessário atravessar um rio a vau e na margem encontraram uma mulher aflita por não sentir forças para fazê-lo sozinha. A corrente era forte e ela frágil e doente.

Então um dos monges pôs a mulher às costas e passou-a tranquilamente para a outra margem. Ali pousou-a no chão e sem ouvir sequer os seus agradecimentos seguiu a jornada com o companheiro. Este fechou-se num silêncio amuado e nem reparou na beleza da manhã, das árvores e dos pássaros para que o outro monge lhe chamava a atenção. Quando horas depois se aproximavam do seu destino diz o monge, até ali silencioso,

Não gostei do teu gesto, irmão. Por que havias de pegar na mulher e colocá-la aos ombros? Que falta de pudor e de recato. Que gesto impuro capaz de contaminar a tua alma.

Não concordo, diz o outro. Ajudei a mulher com intenção cristã e deixei-a na margem, tal como ela me suplicou. És tu que vens carregando a mulher às costas desde a borda do rio e o silêncio fê-la pesar cada vez mais e foi-se tornando impura abraçada aos teus ombros. Larga a mulher onde eu a deixei, ela foi apenas, naquela circunstância, uma responsabilidade passageira.

Joana. Larga o Gabriel na margem do rio. Não o carregues às costas. Liberta-o e liberta-te.

(Já estamos na cozinha, de avental, é impossível não nos reportarmos à infância, às brincadeiras no pátio, às casinhas, às mamãs, às senhoras vizinhas.)

É preciso integrar a morte na nossa cultura de vida. Vivemos de olhos fechados, como se a morte não existisse, em vez de caminharmos abertamente para ela que está pacientemente à nossa espera, à espera da nossa aceitação. Porque a outra dimensão está em nós. Trazemo-la connosco desde o nascimento e é preciso falar do sofrimento, do medo de morrer.

São conversas que se evitam como se evitam os temas vergonhosos. E essa recusa envenena toda a nossa existência.

(Pesámos duzentos e cinquenta gramas de açúcar, cento e vinte e cinco de manteiga, cento e vinte e cinco de chocolate, cento e vinte e cinco de farinha. Eu separei cinco gemas das respectivas claras que me pus a bater em castelo. A Marta pôs o chocolate ao lume em banho-maria com uma colher de sopa de leite e ligou a batedeira. Por causa do barulho não podíamos falar. íamos sorrindo, de novo naquele lugar da infância quando, no Natal, nos encarre-gavam de uma ou duas sobremesas e isso estava tão presente naquela cozinha que eu podia ver a Marta de joelhos em cima de um banco, afadigada com o batedor das claras onde a Mila deitava gotas de limão para levantarem mais depressa.)

Temos em nós, implícita, a certeza de que o nosso corpo é apenas um... invólucro? Uma armadura? Um vestido? Um dispositivo de comunicação sensorial?

Uma máquina. Seguramente a mais sofisticada e perfeita de todas, que evoluiu, é claro, o Darwin tem toda a razão, mas um revestimento provisório em que abrigamos a memória da nossa intimidade com as estrelas. Porque somos energia como elas, como as pedras, como as águas, como o vento e só na descoberta dessa harmonia podemos serenar e ser felizes.

(A manteiga foi batida com o açúcar, juntaram-se as gemas, o chocolate, a farinha, as claras em castelo. A forma bem untada, o forno quente. Agora há que lavar a loiça e esperar que o cheirinho de bolo no forno inunde os nossos sentidos e a nossa memória.)

Todos sabem, mas muitos não acreditam que temos um lugar para onde voltar e a vida não é mais do que uma preparação para essa passagem.

E sabes que mais? Somos nós que construímos energeticamente o nosso futuro no plano físico e não físico. Iremos encontrar o que tivermos construído. E o nosso céu será o que formos capazes de projectar em vida: se não projectares nada, terás nada; se projectares a luz, terás a luz.

Não será mais interessante encarar a morte nesta perspectiva do que ter meramente uma visão de fim, de perda, de vazio?

E as pessoas que não acreditam nisso, Marta?

Nem por isso a trajectória delas é diferente. Apenas mais escuro o futuro que irão encontrar porque não souberam projectar a luz.

Se ao menos conseguíssemos aceitar o presente era mais fácil construir o futuro.

O segredo é esse. É dizer sempre sim ao presente. Não criarmos constantemente defesas contra o que vem. Quanto mais formos capazes de honrar o agora menos dor teremos.

É. Acredito que a dor humana advém da não aceitação. Como médica, conheço bem a rotina de quem sabe que vai morrer: negação, autopiedade, negociação, aceitação e finalmente a paz.

Exactamente. A morte assusta pela descontinuidade.

E o nascimento, não?

Penso que sim. Nós trazemos uma dor residual do passado. Depois o amor e o leite fazem-nos adaptar, acalmamos nos braços da mãe. O ideal era que não saíssemos desse conforto pelo menos até aos seis, sete anos. Hás-de reparar como os teus bebés se sentem tão desesperados quando os deixam nos infantários, na descontinuidade do seu mundo.

É verdade. São incomparavelmente mais tranquilos e num certo sentido mais saudáveis os bebés criados em casa.

Ficamos em silêncio o tempo da Marta trocar o CD por uma fuga de Bach.

Reparo como este supremo compositor, com a sua música, confirma tudo o que dissemos e ainda nos transporta mais para além, para um lugar onde inevitavelmente me lembro do Gabriel.

Se ao menos o Gabriel, murmuro.

A Marta segura-me nas mãos, alisa-me os cabelos, dá-me o seu sorriso mais doce.

Será que o Gabriel veio para te ajudar a pensar em tudo isto? Não te culpes. Deixa-o viver a sua eternidade. O Gabriel está bem.

Agora já o cheiro do bolo de chocolate inunda a casa. E enquanto falamos da morte, cumprimos esta pequena liturgia da vida e sentamo-nos a tomar chá.

 

Pois como ia dizendo, dona Floriana. A Julinha começou a descuidar a casa e era sobre mim que tudo recaía. Eu gostava. Podia imaginar muitas vezes que a casa era minha e que tudo ali se fazia ao meu jeito e de acordo com os meus preceitos e vontades. Não alterava substancialmente nada do que ali sempre se fizera, mas imprimia um toque pessoal ao arranjo das flores, ao calendário das limpezas, à escolha das ementas. Passei a mandar lavar os vidros com mais frequência que antes, a varrer os degraus das entradas duas vezes ao dia.

A culpa era da Primavera. Que espalhava chuvas de corolas minúsculas de encontro às janelas, inventava golpes de vento que traziam pólen e poeiras e aqueles dias de sol que nos embaraçavam o sangue nas veias.

Havia mais desejo de mãos afagando-se, a pele pedia luz e beijos demorados, mas aparentemente, naquela casa, ninguém beijava ninguém.

A Julinha passeava o seu ardor pelas salas sob a forma de má disposição, de agressividade, às vezes de fúria.

O doutor Augusto fugia dela como o diabo da cruz. Dizia uma ou duas das suas acutilantes piadas enquanto tomava o pequeno-almoço.

Cedíssimo reunia com o João Baptista no escritório e depois fechava-se na oficina durante o dia inteiro onde só a Ana Salomé gostava de lhe fazer companhia.

Não estou para aturar a minha mãe, dizia-me ela. Se não a deixo à vontade para namorar o Joãozinho até é capaz de me rogar uma praga.

Respeito, menina!

Respeito? É ela que tem que se dar ao respeito, ora essa. A paixão deve ser uma coisa boa quando não interfere com a felicidade dos outros. A mim já ela me varreu da folha dos afectos, aliás já me varreu há que tempos, quem sabe no dia em que nasci.

Não diga isso, Aninha. Não houve bebé mais amado, mais mimado que a menina. Isto é uma fase em que a mãezinha não anda bem dos nervos, o doutor Augusto até está com vontade de a levar ao psiquiatra.

Não é do psiquiatra que ela precisa e todos sabemos isso. Era só o João dar-lhe mais um bocadinho de corda e havias de ver como lhe passavam os nervos. Mas ele não dá. E ria-se como se estivesse na posse de um segredo que, por qualquer razão, achava hilariante.

Faz-me outra torrada, Mila. Estou cheia de fome e as torradas estavam frias.

Estavam quentes. A menina é que se pôs à conversa e deixou esfriar, mas já aí vêm outras bem quentinhas. Bem podia ir dar um passeio em vez de se encafuar o dia inteiro no atelier. Podia convidar uma amiga, fazer uma vida mais saudável. Saudável é ter pai e mãe e eu não tenho. Dava meia volta e saía a cantar com a torrada na mão, Mila, quando mandares o cafezinho das onze ao padrinho Augusto manda também para mim. E um iogurte de banana e biscoitos dos teus. Daqueles, com feitio de infinito.

Há-de ficar gorda e depois vai dizer que a culpa é minha. Ela virava-se a rir, com a boca reluzente de manteiga e vinha dar-me beijos gordurosos de que eu me defendia, a fazer-me zangada, mas na verdade encantada com aquela brincadeira de amor.

Quantas vezes pensamos que não somos felizes, que as coisas podiam correr melhor e mais tarde reparamos como aquele tempo foi alegre, quase perfeito e nós não o soubemos apreciar. Como eu estimo agora esse tempo, esses últimos dias da adolescência da Aninha, essa Primavera estouvada dentro e fora de casa, como se um vento de loucura tivesse passado ali.

Nunca mais houve uma Primavera assim.

Foi por essa época que a Júlia, por despeito ou por paixão, começou a pedir ao marido a cabeça do João Baptista.

Descia cedo, só para lhe dar cabo dos nervos logo ao pequeno-almoço.

Queria que o doutor Augusto o despedisse e inventava pretextos, uns atrás dos outros, que justificassem a sua pretensão.

Acho que ele rouba nas contas, dizia. Entregaste-lhe a contabilidade e ele aproveita-se.

O doutor Augusto ria-se. Pela mão do João passa uma gota de água que, mesmo que lhe molhasse as mãos, se evaporava no mesmo instante sem deixar rasto. São os bancos que administram o meu dinheiro. Pelo João passam trocos e nunca falta um tostão. Tens que inventar outro pretexto melhor para mandar o rapaz embora.

Acho que ele namora a Ana Salomé às escondidas. São dois grandes sonsos e andam a enganar-nos a todos.

E se eles namorassem, dizia o doutor Augusto, o que é que nós temos com isso? São novos e solteiros e eu até aprovava embora não me pareça que isso seja verdade.

O quê? Tu achas bem que uma miúda como a Ana Salomé ande a namorar às escondidas? Ainda por cima um desgraçado que não tem onde cair morto. A minha filha, quando crescer, não é para o bico dele.

A tua filha já cresceu, só tu é que não reparaste, disse o doutor Augusto a rir. É uma mulher, mas tu tens outras preocupações. Aquilo que te interessa não é aquilo que devia interessar-te.

Estás a insinuar o quê? Que eu não me interesso pela minha filha?

Não estou a insinuar nada. Estou a dizer.

E ficou a rir, o seu riso manso, gutural, que lhe rolava na garganta como uma cascata que desabasse em águas profundas. A Júlia, que odiava aquela forma especial como ele se ria algumas vezes, abandonou a mesa do pequeno-almoço, com o chá a arrefecer na xícara, a torrada no prato, o sumo de laranja pelo meio.

Eu ralhei, Julinha, tem que comer, anda magrinha como nunca a vi, mas ela já ia escada acima, amanhã quero o pequeno-almoço no quarto. Até ordem em contrário não desço para ouvir conversas idiotas logo pela manhã.

Esperei que o bolo inglês, que ela adorava, saísse do forno. Sabia que não tardaria a sentir fome por isso fiz-lhe uma bandeja apetitosa e levei-lha ao quarto. Quando subia, descia a Aninha.

Porque é que ela tem direito a bolo inglês e eu não?

Nem pense, daqui não rouba nada. Tem um inteiro lá em baixo. Defendi como pude o tabuleiro daquele apetite adolescente e, tal como a Julinha, duvidei que ela já fosse uma mulher.

Assim foram correndo os meses na Casa das Lias. A Julinha aparecia muitas vezes à mesa com os olhos vermelhos, vestígios de lágrimas recentes, e uma palidez que ela fazia realçar com a maquilhagem muito branca, onde o bâton abria uma chaga vermelha e os olhos, muito anos sessenta, pintados como carvões, intimidavam de tão deslumbrantes.

Acontecia ali um jogo de tensões que eu continuava a não saber decifrar. Trocavam-se olhares, sofriam-se silêncios, cruzavam-se sarcasmos e eu, que me sentia a mais naquela mesa de refeições onde em vez de afectos se partilhavam rancores, não trocaria o meu lugar por nenhum outro, na ânsia de compreender, de moderar, de consertar. Mas eu era apenas a governanta, que por gentileza dos patrões tinha a honra de me sentar à esquerda do dono da casa.

Na outra cabeceira, Júlia dava a direita ao João Baptista e de vez em quando, muito de vez em quando, erguia para ele os olhos com uma súplica, uma censura, um desespero, que todos, sobretudo o João, fingiam não ver. A Aninha sentava-se na minha frente, à direita do padrasto e trocava com ele alguns sorrisos, fazia-lhe festas na mão como quem diz, não ligues, aquilo passa-lhe e levantava a voz para dar uma ordem à criada, pedir água, salada, mais assado. Elogiava a comida e ninguém respondia. Às vezes desabafava, acho que vou para um convento ouvir ler as escrituras à hora das refeições. Tudo é mais divertido que este panteão.

Sabes o que significa panteão em grego?, aproveitava o doutor Augusto para aligeirar o ambiente. Significa o lugar onde estão todos os deuses.

Será que os deuses eram tão chatos como nós?

Se a mãe der licença, se o padrinho Augusto der licença, vou comer a fruta para o pé das galinhas que são muito mais animadas.

Servia-se de uma maçã e saía, fechando a porta da rua com estrondo. Às vezes, para reforçar, voltava atrás e dizia, desculpem, foi o vento.

E aquilo aconteceu, dona Floriana.

Foi num dia de chuva e trovoada. Trovoada de Verão, que são as mais opressivas. Com o ar carregado parecia que as tensões se avolumavam e a Júlia acordou logo maldisposta. Descompôs a rapariga que lhe levou o pequeno-almoço. Achou o sumo de laranja muito amargo, as torradas muito escuras, o chá muito forte. Perguntou pelo marido e foi-lhe dito que tinha saído cedo para ir a Viseu.

Faz de propósito, só pode ser. Com dias bonitos não arreda pé daqui. Hoje, com este tempo miserável... e a Ana Salomé? Está a dormir, disseram-lhe.

Levantou-se de um pulo, entrou-lhe pelo quarto dentro, sai dessa cama, estou farta de sustentar mandriões, tu e esse Baptista, que não faz a ponta dum corno. Mas eu ponho-o na rua tão certo como dois e dois serem quatro. E é hoje.

Estou doente, mãe. Preciso de dormir um bocado. Aquela sopa de ontem, não sei se foi a sopa, se foi o doce que tinha natas, alguma coisa não me assentou bem. Já me fartei de vomitar.

A mim não me fez mal nenhum, mas vocês são feitos de vidro. Dorme, então, e não saias da cama sem eu mandar cá a Mila ver como estás.

Foi tomar um duche rápido e desceu com o robe de seda sobre a pele. Deixou na escada um rasto de perfume.

Eu sabia, mas confirmei, que ia meter-se no escritório. Entrou a dizer em voz alta, à guisa de pretexto, é preciso ver se as janelas estão bem fechadas. Depois o silêncio. Ouviam-se apenas os trovões. A chuva e os trovões, como se não estivesse ali ninguém. E de repente os gritos dela. Não me negues isso, João. Uma vez, uma única vez, ou não és homem? És um nojento de um capado, um maricas de merda que não sabe tocar numa mulher? Estou a dar-te a tua última oportunidade. Intimo-te a que olhes para o meu corpo e digas que não te agrada. Que sou feia. Que te repugno.

Ele saiu do escritório, atravessou o corredor, a entrada, e correu pela chuva de camisa, fugindo daquela maravilhosa tentação: pela porta que ficou aberta vi que ela estava nua, a apanhar do chão o robe que se abria no tapete como uma flor doente.

Peguei num chapéu-de-chuva, numa gabardina e corri atrás dele. Já ia longe, apanhei-o à porta do atelier, que estava fechada, a chorar, a bater com a testa, a murmurar não posso, não posso, não posso...

Tentei consolá-lo, pedi-lhe que nunca se arrependesse do seu comportamento correcto, do seu carácter firme, mas ele só dizia, vou despedir-me, assim que chegue o doutor Augusto vou pedir-lhe que me dispense, não aguento mais esta tortura. Durante o dia a trovoada aumentou. Era uma daquelas trovoadas tremendas e eu temia pelo doutor Augusto, sabe-se lá onde andaria.

Proibi que se ligassem os aparelhos eléctricos, batedeiras, ferro, aspirador, mas a luz não tardou a faltar e a casa ficou escura, iluminada apenas pelos relâmpagos e silenciosa de vozes e ruídos humanos. Só os trovões, que pareciam estalar por cima das nossas cabeças e a chuva, tão forte como se o céu estivesse a desabar.

Fui com as criadas para a capela, corremos para lá com os xailes pela cabeça, acendemos velas a Nossa Senhora das Graças e a Santa Bárbara, se a Julinha precisasse de alguma coisa teria de se arranjar sozinha, mas depois lembrei-me da Ana Salomé que tinha acordado doente e no fim do primeiro terço voltei para casa com um coração apreensivo de mãe.

A Aninha tinha parado de vomitar mas estava muito abatida. Convenci-a a tomar um chá, umas bolachinhas de água-e-sal, um bocadinho de compota que acalma o fígado. Sentiu-se melhor depois de comer.

Vou descansar, disse ela. E logo, quando vier o padrinho Augusto tomo um banho e desço para o jantar.

Fique bem, querida. Não adianta tocar a campainha porque não há luz, mas de vez em quando eu venho espreitá-la.

Obrigado Miliquiquinha. Olha lá eu ouvi a minha mãe aos gritos ou sonhei?

Ora, o costume, já sabe, acordou maldisposta. Fica sempre assim com a trovoada.

Deixei a porta entreaberta para ouvi-la chamar e fui à cozinha destinar um almoço simples que não virasse os fígados de ninguém.

Ela adormeceu tranquilamente, sem saber que naquele dia ia decidir o seu destino, escrevê-lo e assinar por baixo.

Para a noite o temporal amainou.

Voltou a luz e a casa retomou a sua rotina habitual. A Aninha desceu, mais bem-disposta, com uma corzinha na face. Sentámo-nos as duas na saleta, eu com a minha costura, ela com uma revista.

Daí a pouco entrou o João Baptista. Sentou-se. Pegou e largou várias vezes o jornal e eu disse é de ontem, hoje com o mau tempo o rapaz não veio, mas certamente o doutor Augusto vai trazer.

Ficou calado, a roer a unha. E então reparei, não pude deixar de reparar, que a Ana Salomé o olhava fixamente, como se quisesse ler-lhe o pensamento, como se quisesse decifrar-lhe a alma.

Eles gostam um do outro, pensei eu, e às vezes não dá para disfarçar.

Ele não sorriu, como eu esperava que fizesse. Disse, o que foi, e continuou a roer a unha. Tinha-se feito um homem lindo. Quase que doía olhar para ele e devia ser isso mesmo que a Aninha pensava quando o olhava daquela maneira.

Ficámos assim, calados. Eu achei que devíamos conversar, cortar aquele ambiente incomodativo, mas não me ocorria absolutamente nada. Falar da tempestade teria sido redundante. Ainda arrisquei, o tempo melhorou, mas eles não responderam.

A Julinha não havia meio de descer. Achei que provavelmente não viria à mesa. Havia de pedir que lhe servissem uma sopa no quarto.

O doutor Augusto não havia meio de chegar. Tive que desabafar a minha preocupação. E o João disse,

Ele tinha assuntos a tratar. É capaz de ter ido a Coimbra. E como estamos sem telefone não pode avisar. Esperou que o mau tempo passasse e está aí a chegar, vai ver, Mila.

Apesar de tudo o João Baptista estava calmo. Ia pedir a demissão, talvez nessa noite mesmo, mas mantinha-se digno e controlado.

E então a Julinha desceu. Maravilhosa. Maquilhada, perfumada, com o cabelo apanhado e brilhantes nas orelhas.

Com o vestido preto de jersey, justo, que ela raramente vestia. E saltos altos.

Era impossível não olhar para ela. Emanava aquele poder da mulher que é bonita, que sabe que é bonita e que se sente particularmente bonita. O João e a Aninha trocaram um olhar. Ele levantou-se como mandam as regras.

Hoje há palhaços, disse a Aninha.

Não seja malcriada, sua inútil.

Rodou pela sala e não se sentou. Encostou-se à cómoda D. José a observar o verniz vermelho das unhas.

O Augusto não chegou?

A Aninha e eu respondemos com um abanar de cabeça, ela respirou e disse, vamos esperar, então.

E os minutos começaram a escorregar do relógio da parede como se fossem pedras, um a um, pan, pan, batiam-nos no peito e entupiam as nossas gargantas. Os minutos. E depois aquele gemido da engrenagem antes de dar as horas, para a badalada solitária das nove e meia.

E logo a seguir ouvimos o ruído dos pneus a rodar no saibro, o bater da porta do carro, a chave na fechadura da frente, e o doutor Augusto chegou, ruidoso como as pessoas às vezes ficam depois da chuva e entrou a dizer desculpem, mil vezes desculpem, foi um dia...

Estacou quando viu a mulher vestida como se fosse para uma festa.

Temos visitas, perguntou.

A Aninha torceu um sorriso, parece que não. É a minha mãe que está com um humor exibicionista.

A sua mãe está linda, menina. A sua mãe é a mulher mais linda do mundo. Dêem-me licença.

Saiu para despir a gabardina, lavar as mãos, compor-se para o jantar.

Posso mandar tirar, perguntei aliviada por ter passado aquela hora sufocante.

Não, disse a Júlia. Tenho uma coisa para dizer ao Augusto e quero-vos todos como testemunhas.

Curioso, disse o João Baptista. Eu também tenho uma coisa para dizer ao seu marido.

Diz lá, João, disse o doutor Augusto já de volta.

Não. Seja o que for que ele tenha para dizer eu vou falar primeiro.

Mas que solenes que vocês estão. Se esperarem um bocadinho vou lá acima vestir o smoking.

A Ana Salomé deu uma gargalhada, provavelmente a última da sua adolescência.

Este senhor aqui, disse a Júlia, tem-me vindo a causar os maiores aborrecimentos.

Via-se que trazia um discurso preparado. Tremia um pouco, de nervoso, que poderia confundir-se com indignação.

Este senhor aqui, ou devo antes dizer este menino, ousou levantar os olhos para onde não devia e presumir que está à altura do objecto dos seus desejos.

Pensei, por um momento que ela ia denunciar o namoro dele com a Aninha e por ciúme ia reprovar esse namoro, proibi-lo, talvez. Mas ela continuou.

Vem-me incomodando há muito tempo com propostas indecentes, avanços obscenos e parece-me que a única solução é expulsá-lo desta casa.

O João Baptista estava branco, mas não disse uma palavra. Eu queria e não queria estar ali. Apetecia-me fugir ao ouvi-la dizer aquela horrível mentira, a minha querida Júlia, com quem vivi tantos momentos alegres ou difíceis, levada àquela ignomínia pela irracionalidade da paixão. Mas por outro lado não podia perder nem uma palavra, consciente de que ali se estava a desenrolar um momento decisivo da vida daquelas pessoas que eu amava.

Sim, disse o doutor Augusto com a voz grave dos momentos de fúria. E depois entrou no teu quarto e violou-te.

Não, porque eu

Mas tu pensas que eu sou o Teseu? Que eu sou o Putifar? Que eu engulo essa rábula de Mut-em-enet? De Fedra? Não és a Fedra, querida. Há que tempos que eu venho observando o teu jogo. As tuas tentativas de me fazer despedir o João. Tenho-me feito de parvo, mas esta foi de mais. O João vai-se embora se quiser, é natural que se sinta ofendido com esta injustiça, deixo ao critério dele, mas por mim, fica. Vai continuar o seu curso que eu tenho muito gosto em oferecer-lhe e fica. Fala, João. O que é que pretendes fazer?

Eu ia, precisamente,

Desculpem, disse a Ana Salomé. Contrapondo ao dramatismo da mãe uma grande simplicidade levantou-se e deu a mão ao João Baptista.

O João não se vai embora, porque vai casar comigo. Ele ainda não sabe mas eu estou grávida e sendo o João um homem de honra vai com certeza querer oficializar o nosso amor.

A Aninha olhava firme para o padrasto e pela primeira vez vi o doutor Augusto perder a pose. Sentou-se. Desapertou o colarinho e a testa cobriu-se de gotículas de suor. Via-se que tentava raciocinar depressa, mas não conseguiu romper o silêncio que nos afogou a todos como um mar de chumbo.

A expressão do João Baptista era indecifrável. Surpresa? Alegria? Incredulidade? Alívio? Olhava para a Ana Salomé com uma grande interrogação em todo o rosto, em todo o corpo, como se tivesse mil perguntas para fazer e não conseguisse formular nenhuma.

Eu pensava, vitoriosa, que era a única a ter adivinhado aquele namoro secreto, embora não me passasse pela cabeça que tivesse atingido aquelas proporções. Duvidei que a gravidez fosse real, mas depois lembrei-me do enjoo daquela manhã e de como ela tinha recuperado com um chá e uma bolacha.

A Júlia teve a atitude que era de esperar. Olhou os três com a raiva de quem acabava de ser vítima de uma enorme e cruel partida, deu meia volta nos saltos altos e saiu da sala.

E foi só então que o doutor Augusto falou. Ainda sem firmeza, ainda abalado.

Parece que a Anica decidiu, não é? Ela já decidiu, João. E a Ana Salomé, segura, quase alegre, em tom ligeiro, claro, padrinho Augusto. O meu filho tem um pai. Claro. Pois claro. E tu, João? Ficaste mudo de espanto, calculo.

Estou... estou... muito feliz. É para mim uma alegria enorme e uma honra casar com a mulher que eu adoro.

Então a Aninha teve uma atitude inesperada. Abraçou-se ao João Baptista e desatou a soluçar.

Então, meu amor, então, dizia ele constrangido. Olhava para o doutor Augusto como se não percebesse o que se estava a passar. Sossega, querida. Vamos ser muito felizes, tenho a certeza. Não chores.

Tu sabes porque é que eu estou a chorar. Tu sabes. Disse isto quando pôde falar, quando já o doutor Augusto se recompunha, se levantava, esfregava as mãos e dizia

Bem, Mila, o que é que esperas para mandar servir o jantar? E abre-se uma garrafa de champanhe para brindar aos noivos. Eu vou lá acima explicar à Fedra que é de sua estrita obrigação vir beber à saúde do primeiro neto.

Quando entrámos na sala de jantar já lá encontrámos a Aninha e o João, educadamente de pé atrás das respectivas cadeiras. Como sempre. Como se nada tivesse acontecido.

Ocorreu-me que tinha ido ao teatro ver uma peça cheia de lances dramáticos e agora estávamos todos ali para um jantar rotineiro e aborrecido.

 

Botões, dedais, pedrinhas, búzios, folhas secas. É a minha caixa dos tesouros aberta em cima da cama do quarto azul. Apalpo, cheiro, sopeso cada objecto e viajo ao tempo da infância. As conchinhas apanhadas na praia, na maré-baixa, com as nossas sombras alongando-se pela areia molhada à hora do poente, nós de fato-de-banho e panamá, a Mila vigilante, a mãe a passear pelo braço do pai, nós a corrermos ao seu encontro para mostrar os tesouros do balde, olhe este búzio, que lindo, todo torcidinho e esta conchinha cor-de-rosa.

As pedrinhas encontradas à beira-mar, polidas e boleadas pelas ondas, tão diferentes das escolhidas aqui na quinta, muito mais agrestes mas às vezes bonitas, esta tem uma cova onde cabe a cabeça do meu dedo mindinho, é amarela, quase dourada, e faz contraste com as cinzentas e eu lembro-me de brincar que aquela era rainha e as outras as aias e que recebiam as redondinhas em visita, que vinham do mar e sabiam segredos que as da serra tentavam arrancar-lhes, oferecendo-lhes folhas e raminhos de murta.

Eu fazia a voz da rainha serrana, a Marta a da rainha das ondas e cada uma inventava histórias misteriosas e povoadas de maravilhas, onde passavam sereias e barcos-fantasma, gnomos, mouras encantadas e lobos de olhos de lume.

Também com os botões formávamos exércitos vindos do espaço, que subiam pelas pernas das bonecas e as punham em transe, com as boquinhas entreabertas e os inquietantes olhos de vidro azul. íamos espetando os botões com alfinetes nos seus corpos de pano, até ficarem completamente dominadas e preparadas para a entrada em cena do príncipe do Planeta Zero, um polichinelo que o padrinho Augusto nos tinha trazido sei lá de onde e que, malvado e sádico, levava todas para o seu harém. Incluindo a Careca que era a sua preferida e assim chamada porque tinha largado os caracóis louros na boca do cão Max, numa bela manhã em que a deixámos a dormir numa cama de folhas o sono enigmático das bonecas.

Tudo isto me vem à memória pelo simples gesto de meter a mão na caixa de madeira com a tampa pintada, que encontrei na minha antiga mesinha-de-cabeceira, na portinha do pernico que já lá não está (era amarelo e tinha um urso estampado), juntamente com livros de quadradinhos que líamos à noite, com uma lâmpada de pilha por dentro dos lençóis.

É talvez o barulhinho bom dos botões, das conchinhas, das pedras a bater na madeira que torna aquela caixa um verdadeiro tesouro que encerra um tesouro ainda maior, a minha própria infância, intocável, indestrutível e eu quero fechar-me na caixa e não sair de lá nunca mais.

Fico a olhar a tampa. Tem pintada uma casinha com uma porta e duas janelas, o telhado de duas águas, um abeto de cada lado. Atrás da casa um caminho que leva a uma sugestão de floresta que, nesse tempo, eu gostava de pensar que era a floresta encantada da Condessa de Ségur: quando uma criança se perdia lá e adormecia de cansaço e fome, acordava numa clareira iluminada, onde, sobre a relva, se estendia uma toalha de damasco coberta das melhores iguarias, servidas por corças brancas com gargantilhas de diamantes.

A floresta pertencia a um feiticeiro que, conforme a disposição com que acordava, podia transformá-la num lugar assustador, tenebroso, de troncos retorcidos e monstros esfomeados ou num paraíso de flores e pássaros, com as árvores carregadas de folhagem dourada, sombras e quedas de água, bagas sumarentas e animaizinhos dóceis.

E já que as histórias de fadas são metáforas da vida, a Marta diria que nós somos esse feiticeiro e está nas nossas mãos encher a nossa floresta de luz e inventar-lhe sombras onde descansar o coração.

Não fiz da minha vida um matagal inóspito, longe disso. Mas terei regado todas as árvores, colhido todos os frutos, escutado todos os pássaros?

Agora a minha caixa de madeira tem mais um tesouro: uma carta lacrada que a Mila me entregou.

Não quero lê-la. Gosto de apalpá-la, de sentir a suavidade do lacre, o relevo do brasão, o perfume. A Mila guardou-a trinta e muitos anos e ainda cheira ao perfume francês da minha avó. Um perfume que me parece antigo, carregado de sedução, de beleza fatal. Dizem que a minha avó era linda e eu mitifiquei-a muito para além do quadro do salão.

A carta diz, ao meu primeiro neto e eu nem tenho a certeza se sou eu. Ocorre-me que a minha mãe tenha tido outro filho antes de mim, ou uma gravidez que não foi a termo.

Não me apetece perguntar-lhe. De resto não vou falar desta carta a ninguém. Fiz a Mila prometer que também não o faria. É um segredo nosso.

Não sei bem porquê. Mas sinto, tenho a certeza, que o conteúdo daquela carta não é para divulgar.

Sim, a avó Júlia matou-se. A Mila, finalmente, decidiu confirmar. Deixou três cartas: uma ao padrinho Augusto que ele certamente destruiu porque não apareceu nos papéis dele outra à Mila e esta para o neto mais velho que, por exclusão de partes, terei que ser eu.

Penso que a Mila também teve essa dúvida, embora tenha a certeza de que a minha mãe nunca engravidou antes de mim. Que ela saiba, claro. Eu devia ter recebido a carta aos trinta. Mas não recebi. A Mila não sabe explicar porquê, mas sentiu-se compelida a escondê-la. De todos. Principalmente de mim.

Estranhamente não sinto o menor desejo de abri-la. Gosto dela como objecto, uma carta volumosa, num envelope de bom papel que tem gravado na face posterior o nome de quem remete, Júlia Amaral Balbi, em letras simples, que na época seriam modernas, em relevo.

Sinto que quebrar aquele lacre é quebrar alguma coisa dentro de mim. É um acto de violência, uma intromissão. Está tão bonita, a carta. Serena na sua antiguidade, elegante, apaziguada pela morte.

É um objecto de paz. Provavelmente um objecto de amor.

A Manú havia de dizer, que complicada que tu és! Abre a merda da carta e pronto! O Vasco respeitaria a minha decisão. A Marta ia compreender. Mas nenhum deles vai saber da existência da carta. Nenhum deles vai saber. Vou guardá-la como um segredo meu. Sou a procuradora do destinatário e terei que acreditar que o destinatário sou eu. A carta da avó Júlia. Ao meu primeiro neto.

Não sei que impulso me trouxe a visitar os pais, assim, sem mais nem menos, sem avisar. Quando dei por mim vinha na estrada com uma urgência enorme de chegar a casa, mas ainda consegui raciocinar e ir buscar a Mila que não me perdoaria se passasse tão perto e não a trouxesse comigo.

Quando cheguei ao lar, tive a surpresa de ouvir a Mila dizer-me, ainda bem que a menina veio, não dormi toda a noite a pensar que tenho um assunto urgente para tratar consigo.

Comigo, Mila? E porque é que não me telefonaste?

É que... é um assunto antigo. Tem trinta e muitos anos e é do tempo em que a sua avó Júlia morreu.

Então porque é que um assunto tão antigo te fez perder o sono esta noite?

Vá-se lá saber, Joaninha. A cabeça das pessoas é um grande mistério e a menina é médica, há-de saber disso melhor do que eu. Foi assim como se a sua avó me viesse tirar satisfações de uma tarefa que eu devia ter cumprido e não cumpri.

É hoje que me vais contar como é que morreu a avó Júlia?

A Joaninha não imagina como é pesado carregar um segredo a vida inteira. Mas agora o doutor Augusto morreu e eu acho que a Joaninha tem o direito de saber. A Avozinha matou-se, sim. Tomou comprimidos, que ela aliás tomava sempre porque era uma pessoa nervosa. Andava numa fase má, teve contrariedades, desgostos, mesmo, mas não me cabe a mim especular sobre os motivos. Tenho cá a minha ideia mas não vou divulgar. A verdade é que me pediram silêncio mas com os anos as coisas vêm ao de cima, não é? Não acha que as coisas vêm ao de cima? Tudo começou no funeral do doutor Augusto, quando eu quase me descaí e desde aí nunca mais tive sossego, como se o tempo tivesse andado para trás e eu me visse naquele dia que tanto fiz por esquecer, com os seus Paizinhos a voltarem da lua-de-mel e a Aninha a encontrar a mãe morta, já fria, quando todos pensávamos apenas que ela não tinha descido para lhes dar as boas-vindas por ter adormecido, ela tinha avisado, não tenho dormido nada mas hoje vou enfiar duas ou três pastilhas para dormir e amanhã não há quem me acorde.

Os noivos só eram esperados à noite, eu pensei que ela queria estar fresca e bem-disposta para recebê-los, havia de querer pôr-se linda, elegante como só ela sabia ser e depois, quando a tragédia aconteceu, só achei que ela tinha exagerado na dose.

O doutor Augusto parece ter entendido melhor o que se passava porque me explicou que não queria que o padre desconfiasse de suicídio, ia arranjar problemas com o enterro, só percebi depois porque é que o doutor Augusto sabia.

Espera aí, Mila. Deixa-me respirar. Deixa-me assimilar o que me estás a dizer. Então a minha avó matou-se no preciso dia em que os meus pais voltaram da sua lua-de-mel? Não quis vê-los? Era contra o casamento deles?

Era contra. Mas isso é uma história muito comprida.

Conta-me.

Não, Joaninha. Não sou eu quem lha vai contar. Venha comigo ao meu quarto.

Intrigada segui-a até aos seus luxuosos aposentos, os tais que o padrinho Augusto fizera questão de mobilar com todo o requinte e que a Mila só queria trocar pelo quartinho da Casa das Lias.

Começava a compreender. O padrinho Augusto tinha pago o preço do silêncio que lhe exigira, mas, embora confiasse na Mila, achava prudente colocá-la à distância das conversas casuais e irreflectidas das mulheres, era típico do padrinho Augusto considerar as mulheres palradoras irreflectidas, divulgadoras inconsequentes de segredos de família.

Enganou-se. Em trinta e tal anos a Mila nunca abriu a boca e se agora me estava a contar tudo aquilo certamente teria uma boa razão.

Compreendi quando a vi abrir a papeleira com uma chavinha minúscula, desvendar o segredo do móvel e tirar de lá uma carta lacrada.

Aqui está, Joaninha. A sua avó Júlia deixou duas cartas. Uma para o marido, outra para mim, com esta dentro. Três cartas, portanto, e por aí soubemos que se tinha suicidado e não morrera de morte acidental como acreditámos primeiro e fizemos acreditar a todos.

A minha carta não explicava nada. Eram agradecimentos, desculpas e pouco mais. E o pedido de entregar esta carta ao neto mais velho na sua maioridade, não, quer dizer, aos trinta anos.

Não me estás a dizer... espera lá. Não me estás a dizer que a minha mãe casou grávida!

Pois foi Joaninha. E a sua avó não perdoou isso aos seus pais.

Pus-me a rir.

Mas então a minha avó, que todos me dizem que era uma mulher tão desempoeirada, reprovou essa gravidez como uma qualquer provinciana preconceituosa?

A Mila guardou silêncio durante um momento e depois disse baixinho, num tom constrangido, eu acho que ela se sentiu enganada.

Vamos embora, Mila, anda daí passar uns dias à Casa das

Lias e tirar isso a limpo com a minha mãe.

Então a Mila teve uma reacção inesperada. Quase em lágrimas, assusta-díssima, suplicou, Joaninha por amor de Deus não faça isso. Não fale do assunto à sua mãe. Se ela desconfia que eu lhe disse todas estas coisas nunca mais me recebe lá em casa. Ela não quer que as meninas saibam. Ameaçou-me várias vezes de que nunca mais me recebia e nunca mais me falava se eu dissesse alguma coisa. Só que a Joaninha agora tem a carta da sua avó e certamente vai ficar a saber mais do que eu. Não sei, não li a carta, mas para que deixaria ela um escrito deste volume se não quisesse contar tudo o que aconteceu? A menina logo verá. Mas não diga nada à mãezinha. Nada. Não lhe fale na carta. Tem que me jurar.

Não te aflijas, Mila. E, bom, se não te basta a minha palavra, eu juro. Por tudo o que quiseres.

Está bem assim, Joaninha. Vamos então. Vou só preparar um saco de viagem e mudar de roupa.

Eu espero no bar, estou cheia de sede.

Meti a carta na carteira, não sem antes a virar e revirar de todos os lados e me encantar com ela.

Diz-me só uma coisa, Mila. Em que ano morreu a minha avó?

Deixe ver, Joaninha. Eu baralho-me um bocadinho com as datas, mas esta sei. Foi em Outubro. Outubro de sessenta e seis.

Fui beber um sumo a pensar que aquela criança não podia ser eu, porque só nasci em sessenta e oito.

Tinha chegado a supor que talvez pudesse ter descoberto a razão do meu sentimento de culpa, se, na barriga da minha mãe descobrisse que a minha avó se matou por minha causa.

Não. Era demasiado rocambolesco. Ninguém se mata por uma razão tão trivial. A hipocrisia social manda (mandava na época) que se ajustem as datas e se tape a verdade com um rebento de sete meses. Mas logo outra verdade se me impôs: aquela criança não vingou. Talvez o choque da morte da mãe naquelas circunstâncias trágicas tivessem feito a minha mãe perder o bebé.

Na viagem para casa perguntei à Mila. Mas ela fechou-se num silêncio obstinado, depois de, muito atrapalhada, ter dito algumas coisas contraditórias.

Não, a Aninha não perdeu bebé nenhum. Ou se calhar não estava grávida. Foi rebate falso, sei lá. Eu também não sei tudo. Sim, deve ter sido engano dela ou pode ter dito que estava, só para arreliar a mãe. É que a sua avó não gostava do seu pai. Ou por outra, gostava, mas... olhe. Não me pergunte mais nada. Dei-lhe a carta, não dei? Era a minha obrigação e agora a minha cabeça já não está boa. Já confundo as coisas e sou capaz de lhe dizer, sem querer, alguma mentira, por isso calo-me e não me arranca mais nada. Já falei de mais. Se me aflijo fico doente. E não quero incomodar.

Foi muda todo o caminho até à quinta. Eu pensava na carta. Decidi que não falaria dela a ninguém, já que parecia ser um tema tão sensível. Por outro lado achava que era um disparate aquele mistério todo por uma coisa passada trinta e tantos anos atrás. Mas pronto. Respeitaria o assunto, pelo menos até à leitura da carta. Que pensava fazer com toda a tranquilidade num recanto da quinta, ou no silêncio do atelier, ou no sossego do quarto azul que ia, mais uma vez, ser o meu quarto. Era só pedir à mãe. Ela não estava à minha espera, por isso não teria quarto nenhum preparado. Eu queria o quarto azul. O mesmo em que a avó Júlia morreu, o mesmo que guardava o mistério do seu suicídio.

A nossa chegada foi razão de muita alegria. Os pais não paravam de me abraçar, de me cobrir de beijos, deixa ver, estás com melhor aspecto, achávamos que não vinhas tão cedo, e o pai, não há problema nenhum, há? E a mãe, tenho a certeza que não, ela só precisa de mimos, sopas e descanso.

Confirmei que era o caso e que nem sabia ao certo porque é que me tinha dado aquela urgência de os ver. Saudades, claro, saudades. Deles e da casa. Do ladrar dos cães, do cheiro a alfazema do chão encerado, da penumbra da escada, da frescura do quarto, da brancura das toalhas, da leveza das cortinas, da intimidade dos móveis.

Da minha infância, em suma. De mim, da que eu fui naquelas salas, naqueles quartos, naqueles corredores, naquela cozinha. Da que eu fui à solta naquele pátio, naqueles caminhos, naquela quinta onde até as árvores tinham nomes que a Marta e eu lhes púnhamos, árvore do abraço, árvore do gancho, árvore do lobo, árvore das fadas, e onde nunca sentimos falta desse irmão que não nasceu ou não existiu, dessa avó que mesmo depois de morta vinha brincar connosco aos jantarinhos com sopa de ervas daninhas e saladas de pétalas de flores.

Fui à procura da caixa dos tesouros.

 

Estou feliz porque a Joaninha veio fazer-me confidências, ela que nunca fala da sua vida amorosa. Eu reconheço que sou um bocadinho cusca, como elas dizem, e bem me perguntava porque motivo continuaria solteira uma rapariga tão bonita e tão inteligente. Nunca nos apresentou nenhum namorado. Deixou casar a Martinha, dois anos mais nova, viu nascer os sobrinhos e continuou solteira e sem noivo nenhum no horizonte.

Em Viseu, sei muito bem que isto é motivo de falatório, até houve uma megera que me veio um dia perguntar se a Joaninha não gostaria de mulheres para estar solteira depois dos trinta. Pouco lhes rala a elas se se trata de uma médica brilhante e agora então com uma obra tão meritória como esta das mães adolescentes. Para elas a mulher só tem um destino que é casar e ter filhos, pouco importa se são felizes, se apanham pancada dos maridos ou sofrem toda a espécie de traições. Eu, sendo solteira, penso logo que estão a dar-me indirectas e é por isso que não tenho uma única amiga, com excepção para algumas conhecidas do tempo dos meus pais.

Mas então a Joaninha veio ao meu quarto e sentou-se a conversar, eu pensei que me vinha falar do que tinha lido na carta da avó, pus-me até um bocadinho nervosa à espera de alguma revelação, mas nem me tocou no assunto. Disse-me, isso sim, que está a gostar muito de um colega, é cirurgião e chama-se Vasco, Vasco Mendonça de Freitas, há-de ser de boas famílias, e ela diz que lhe faz lembrar o pai na bondade e na calma e que talvez por isso lhe agrada tanto.

Contou-me depois que há anos que lhe fala em casamento e, embora tenham um romance, ela nunca aceitou com medo de o fazer infeliz, como é que uma menina tão boazinha pode fazer alguém infeliz, mas ela respondeu-me que se sente sempre muito culpada sem saber de quê e que as pessoas com esses sentimentos de culpa fazem os outros infelizes, confesso que não percebi muito bem, mas pelo menos deu para entender que agora está disposta a encarar a proposta do tal doutor Vasco, pelo menos a considerá-la, o que já me deu muita esperança de ainda conhecer, antes de morrer, mais um Amaral Vaz Baptista (Mendonça de Freitas...) pequenino a correr por esta casa e por esta quinta.

Pediu-me que não dissesse nada aos pais, quer ser ela a surpreendê-los trazendo, como ela disse, o Vasco para lhes apresentar, este é o meu noivo, se calhar casamo-nos, a Aninha e o doutor João preocupam-se tanto, iam ficar felizes por verem a filha com uma pessoa de bem para ajudá-la a repartir a vida quando eles já não estiverem cá.

Têm-me sabido tão bem estes dias na Casa, estou sempre com saudades e quando chego aqui sinto-me logo no meu elemento, reparo se o chão precisa de cera, se as pratas estão bem areadas, se não estão riscadas, se os guardanapos estão bem passados, se a cozinha está a funcionar como deve ser.

A Aninha já tem só duas criadas, dispensou a dos quartos porque na verdade são só os dois e uma cozinheira e uma rapariga de fora dão bem conta do serviço.

Eu não quero tornar-me indigesta mas há sempre uma coisinha ou outra que não posso deixar de sugerir, uma folhinha de louro no guisado, um pouco mais de solarina no batente da porta, o ferro quente no avesso dos linhos bem molhados sobre uma toalha turca dobrada, para fazer realçar os monogramas e as flores bordadas a cheio.

O pessoal respeita-me, graças à Aninha e ao doutor Joãozinho, que dizem sempre, ouçam a Mila, a Mila entende das coisas, a Mila sabe como se faz.

É como se estivesse de férias. Como se andasse no colégio interno e tivesse vindo passar umas curtas férias a casa. Porque é assim que me sinto no lar: longe de casa, rodeada de colegas que não escolhi, a esperar ansiosamente um dia de visita, a esconder, à noite, as lágrimas na almofada. Como a miúda que sou, que continuo a ser, num escaninho do meu coração. Aos setenta e oito anos, como se tivesse doze, mas a alma não tem idade.

Em casa reencontro o meu quarto, as minhas coisas, a minha identidade. Nunca saberei agradecer bastante à Aninha ter respeitado sempre o meu peque-no mundo. Mas confesso que quando chego trago sempre um apertozinho no coração, podem ter disposto do meu quarto, nada os obriga a conservá-lo, imagino às vezes o sorriso desconsolado da Aninha, desculpa Mila, precisámos do quarto para deitar não sei quem, para arrumar não sei o quê, para instalar não sei que mais. Mas arranja-se ali um cantinho para tu dormires. Isto acontece nos meus pesadelos acordada. Se acontecesse de facto, era igual a terem-me enterrado, a terem-me esquecido debaixo de uma pedra tumular, nos confins do cemitério.

Mas a Aninha não. A Aninha é a filha que eu não tive e o marido um santo de bondade. Um homem que tem uma luz interior tão forte que às vezes, e eu sei que isto parece um disparate, os caracóis grisalhos da sua cabeça de estátua grega parecem iluminados. Tive muitas vezes essa impressão, ou ilusão de óptica, ou revelação que preferi atribuir à precariedade dos meus sentidos. Um dia hei-de perguntar à Martinha se

A Martinha saiu ao pai. Aqueles poderes dela têm a ver com aquela força inexplicável do pai, como se os dois pertencessem a um mundo diferente e tivessem vindo aqui para ajudar os pobres mortais. Pena que a Martinha venha tão poucas vezes cá acima, é quase como se não precisasse, como se comunicasse com os pais à maneira dela e matasse saudades por um processo espiritual.

Também tem os seus doentinhos e os filhos e o marido e isso ocupa-a muito, é diferente da Joaninha que apesar de todo o trabalho sempre é solteira.

A Joaninha saiu mais à mãe. Toda agitada, toda cheia de problemas e inquietações como a Aninha era antigamente, mas aquele casamento abençoado curou-a, graças a Deus, só é pena que a morte da mãe a transformasse numa pessoa tão reservada, com aqueles longos silêncios que nos preocupam porque ela não se abre com ninguém, talvez com o marido, comigo nunca e isso afastou-nos um bocadinho porque a confidência é um bom cimento para a amizade, mas é claro que o meu amor por ela não passa por aí, é e há-de ser para sempre a minha Aninha que eu criei, que me deu as alegrias de mãe sem ser mãe e as tristezas de irmã sem ser irmã.

 

Na véspera da minha morte dirijo esta carta ao meu neto M V que há-de nascer, que, se for mulher me compreenderá e se for homem me perdoará sem compreender. Espero muito este perdão porque o lugar para onde vou só poderá ser um lugar de paz se eu conseguir arrumar as minhas contas com a vida e isso, meu neto, só o teu perdão pode conseguir.

Talvez me considerem cobarde por causa do acto que estou na iminência de cometer. Para que não restem dúvidas vou engolir uma embalagem inteira de soporíferos e espero morrer a dormir, sem grandes solavancos nem vómitos nem aflições. Adormecer na escuridão e acordar na luz.

Se o suicídio for pecado como nos fazem crer, sabe Deus onde acordarei. Mas pago para ver. Talvez a minha alma não descanse e eu continue, mesmo morta, nesta casa, a encarar tudo o que não quero encarar. Dizem que Deus tem sentido de humor e essa seria uma boa piada. Amanhã saberei.

Vou vestir-me, maquilhar-me, pentear-me, perfumar-me e deitar-me na cama do quarto azul. Quero ser a mais bonita de todas as mortas. Vou carregar um bocadinho no blush para disfarçar a palidez. Compreenderão que estou pronta a enterrar e ninguém deve tocar na minha encenação. É claro que deixo estas instruções ao meu marido porque tu, meu neto, só as lerás tarde de mais.

A ti, vou explicar as verdadeiras razões do meu acto e essa é uma longa história que começa lá muito atrás no tempo, no dia em que o meu primeiro marido foi assassinado e a minha filha Ana Salomé, tua mãe, era apenas um bebé.

Senti-me culpada da morte do teu avô Tiago Vaz, porque talvez, se eu tivesse ajudado, aquela tragédia pudesse ter sido evitada. Por causa dessa culpa fiz penitência durante cinco anos, fechada em casa como uma monja. Um belo dia acordei curada, entreguei a Ana Salomé à Mila e decidi viajar. Não programei o tempo da minha ausência, mas posso dizer que a cinco anos de compostura se seguiram outros cinco de loucura, e percorri o mundo como uma aventureira que, habituada a não poder dar um espirro sem que todos me apontassem o dedo, me excedia agora um pouco a coberto do anonimato. Digamos que experimentei a minha liberdade até, por fim lhe descobrir os limites, e foi por essa altura que conheci o meu segundo marido, o escultor Augusto Balbi. Quando percebi ao fim de uma ano de vida frenética, que o entusiasmava a ideia de se ir enterrar na Casa das Lias para trabalhar nas suas esculturas, pensei que fosse sol de pouca dura e que não tardaríamos a fazer as malas para partir de novo, fazendo o périplo das suas propriedades em Itália, França, Brasil, onde daríamos mil festas loucas a pretexto de outras tantas exposições.

Mas o meu marido é um original. Rege-se por códigos da cabeça dele e acha que ser livre e subversivo pode ser fazer o contrário do que fazem as pessoas livres e subversivas e considera absolutamente transgressor fechar-se num buraco perdido na província de um pequeno país chamado Portugal.

E assim me vi uma vez mais enterrada viva na casa dos meus pais, na casa que o meu avô ganhou do meu pai por ter dado um tiro num sujeito indesejável (mas essa é uma história que não tenho tempo de te contar). Sempre achei malsã a origem desta casa, mas, com a ajuda da Mila, esforcei-me por mantê-la acolhedora e digna da minha descendência. Espero, meu neto, que ao leres esta carta saibas de que casa estou a falar, isto é, que não tenha sido vendida, ou pior, não se tenha desmoronado, arruinada e morta de abandono. Não confio muito na Ana Salomé para manter tradições familiares e talvez, depois do que vou fazer, fuja a sete pés deste lugar para calar remorsos que não deixará de sentir.

Nunca fui uma boa mãe. Talvez porque o nascimento da minha única filha quase coincidiu com a morte do pai dela, não lhe abri o coração, ocupada que estava com a minha atormentada cabeça. Nos primeiros cinco anos não fui paciente nem dedicada. E quando se tratou de a abandonar para ir correr mundo à procura, quem sabe, de mim mesma, foi com muita ligeireza que a entreguei à Mila com a desculpa de que ficava bem entregue.

De facto, ficava. A Mila já vinha sendo a mãe dela desde o berço, desde que a desmamei, precisamente quando fiquei viúva. Adoravam-se mutuamente e isso é verdade até hoje, por isso considerei que não lhe faria grande falta. Interrogo-me agora se terá sido assim, mas não estou a tempo de remediar nada. A Ana Salomé é adulta e os traumas que eventualmente lhe possa ter causado, terá de os resolver sozinha.

Parecer-se-á muito com uma desculpa de má pagadora dizer que descobri nestes últimos dias até que ponto ela me é querida? Que é por ela, por amor dela que resolvi deixar este mundo com uma dignidade recuperada à última hora e que estive aponto de perder?

Não vamos por aí. Odeio melodramas e sempre quis parecer céptica, cínica até. Mas estes últimos tempos ensinaram-me sobre mim mesma verdades insuspeitadas. Fui capaz de atitudes que sempre censurei nos outros, cobardias, vilezas, gestos teatrais, exaltações dramáticas.

O suicídio é uma delas, reconheço. Mas já estou contaminada pela decisão de acabar com tudo, como se essa decisão, que me surgiu como uma evidência, fosse uma doença terminal de que não posso salvar-me.

Tenho a certeza de que é melhor para todos. Não ia ser possível viver, respirar nesta casa, comigo fisicamente presente.

A família ia desmembrar-se. A Ana Salomé e o João Baptista iriam para longe, o Augusto deixar-me-ia e talvez até a Mila, quem sabe, fosse fiel à sua querida Aninha e partisse com ela, dada a obsessão que tem de cuidar, um dia, dos meus netos. Bom. Não está em discussão o meu suicídio. Não quero imaginá-lo nem justificá-lo. Só espero que Deus não me faça a partida de me manter viva, quem sabe estropiada ou imbecil.

Se for o caso rasga esta carta já.

 

Estou no meu apartamento de Lisboa. Tinha a carta guardada e tencionava fazer um esforço para esquecê-la. Mas esta noite acordei de repente, corri pela casa numa urgência enorme, procurei-a, em pânico, com medo de não a encontrar e com o coração a bater e a testa molhada de suor decidi abri-la.

Não parti o lacre. Achei que não podia, que não devia. Com um corta-papel abri o envelope pelo lado mais estreito. Preparei uma caneca de café com leite muito quente e meti-me na cama encostada a três almofadas. São quatro e doze da madrugada. Parei de ler para acender mais uma luz, já que a letra da avó Júlia, à medida que o texto avança, faz-me mais difícil, mais corrida, por vezes quase indecifrável. Mas estou a sair-me bem.

Curiosamente sinto este momento como um fim em si, um lugar onde cheguei depois de percorrer um longo caminho, e depois da excitação do acto de abrir a carta, da leitura das primeiras linhas, fiquei muito calma, muito serena, quase feliz.

Quero dizer-te, meu neto, que me senti sempre culpada por ter amado mal a tua mãe. Não gosto de sentir essa culpa. Escondo-a de mim mesma, tapo-a com argumentos, alivio-a com razões de queixa. Não quero bem à minha filha? Claro que lhe quero muito bem. Mas desde cedo tomei esse gostar como um dado adquirido, um caso arrumado, como se o amor não fosse uma força dinâmica, não fosse todos os dias, não fosse todas as veias. Entendi isto muito mais tarde, no dia em que me apaixonei. Soube então que o amor é à chuva e ao vento, é descalço nas pedras, é perdido no mar, é rasgado nos espinhos, é na fome e na sede e na doença e na amargura e no silêncio. O amor é o corpo todo, a alma toda, a vida toda. E come-nos o coração e nós fazemos nascer outro coração no peito para que o amor o devore. Descobri isto, sim, mas estava tão ocupada a descobri-lo que não achei em mim espaço para emendar os meus erros. Ao contrário. Errei mais, cada vez mais, até chegar aqui, onde errar é já uma obstinação.

Quando cheguei à Casa das Lias depois do meu casamento com o Augusto, estranhei aquela criança de dez anos, espevitada, impaciente por me agredir em todas as ocasiões possíveis, sempre com uma censura nos olhos e nas atitudes, uma recriminação no tom de voz. Afeiçoou-se ao padrasto para me fazer pirraça e não para me agradar, o que faz toda a diferença e aumentou a hostilidade das nossas relações.

E eu que fiz? Em vez de conquistá-la como fez o meu perspicaz marido, enterrei-a num colégio interno para não ter diante dos olhos aquela reprovação em forma de gente. Empandeirei-a para a Suíça, imagina, nada de colégios de freiras ao pé da porta, mas alguma coisa de bem longínquo, para cortar o laço de afecto que apesar de tudo tanto me fazia sofrer.

Não gosto de sofrer. Nasci rica, bonita, saudável, fútil e egoísta, tenho todas as condições para nunca sofrer. E afinal... Parece, dizem, que a vida não é possível sem sofrimento. E que cada um sofra à sua medida, porque já reparei que quem não tem razões para sofrer, inventa-as.

Deve ser o que pensam de mim. Que tinha tudo para ser feliz e fui inventar a infelicidade. Talvez tenham razão. Mas a felicidade constrói-se e a minha foi-me servida numa bandeja. Não lutei por ela, por isso não soube apreciá-la. A minha consciência em relação à Ana Salomé era um espinho enterrado nessa felicidade bacoca, patética, de literatura cor-de-rosa. Por isso amei-a do avesso, sempre com a culpa atravessada, sem ser capaz de a abraçar, de a segurar de encontro ao peito, de a beijar. Dava-lhe beijinhos sociais e hoje dói-me a boca dos beijos maternais que não lhe dei, doem-me os braços dos abraços envolventes, intensos, ternos, que tive a maldade de lhe recusar. Agora isto faz-me chorar. Lágrimas quentes, quentes, como é que de uma mulher tão fria nascem lágrimas tão quentes, que estranho, mas quanto mais as limpo, querendo recusá-las, mais elas brotam, quentes, quentes, a queimarem-me apele da cara, quero morrer bonita e estou aqui a encher as bochechas de cieiro, hei-de ser estúpida até à hora da morte. Literalmente. (E já borrei a carta, desculpa, o lenço não chega para aparar todo este choro fora de tempo.)

Estou siderada com a minha avó Júlia. A Marta nos seus encontros paranormais com ela, deu-me sempre a ideia de que se tratava de uma pessoa alegríssima, sem nenhum problema, um tanto infantil, quase inconsequente. E agora deparo-me com uma mulher torturada entre o amor pela filha e a incapacidade de o exprimir. E a minha mãe? Como terá reagido a tudo isto? Será a avó tão objectiva que consiga falar disso nesta carta?

Mas a pergunta que mais me inquieta é se o sentimento de culpa será uma coisa que se possa herdar. O dela levou-a ao suicídio, mas pelo menos conhecia-lhe as causas. E o meu? É confortável pensar que o herdei, como se herda a cor dos olhos ou o timbre da voz. Se chegar a essa conclusão esta carta já me terá feito imenso bem.

E um dia ela chegou do colégio. Adolescente em toda a acepção da palavra. Pêlos nas pernas. Uma ou outra borbulha. Desagradável até ao limite quando lhe apetecia. Encantadora, irresistível de inteligência e humor quando lhe dava na telha. Nunca se sabia com o que contar. Ou riso ou choro. Ou alegria exuberante ou amuos infantis. Ou dieta, ou apetite voraz. Ou esfarrapada ou vestida de menina exemplar. Ou cruel a enxotar os cães ao pontapé ou abraçada aos patos que lhe largavam caca verde nas calças de ganga. Só extremos. Nunca um momento de equilíbrio, uma conversa sensata, uma pausa para respirar. A minha filha adolescente que eu não sabia amar como amam as mães, como a minha mãe me amou a mim.

Diga-se de passagem que ela não se esforçava. Restava-me esperar que crescesse para poder, talvez, falar com ela, pôr o afecto em dia, acabar com aquela guerra surda. Mal sabia eu que o meu mundo havia de se virar de cabeça para baixo como um planeta que saísse de órbita e fosse parar a um lugar remoto e desconhecido do universo.

Além de um primeiro entusiasmo, nunca gostei verdadeiramente do meu primeiro marido, o teu avô Tiago Vaz. Ele fez-me a vida negra porque era jogador e eu passei a detestá-lo muito rapidamente. Morreu assassinado, acho que já te contei isto e eu fiquei chocada durante muito tempo, secou-se-me o leite e deixei de amamentar. (Não sei se foi esta a primeira ruptura com a Ana Salomé, nunca fui ao psiquiatra para perguntar). Do meu segundo marido, Augusto Balbi, gostei muito, muitíssimo, é um homem maravilhoso e por muito que às vezes me desespere com as suas loucuras, tem uma personalidade irresistível, é aquele género de pessoa a quem se perdoa tudo com a desculpa de que é um artista. Artista em toda a acepção da palavra. Artista completo. Com um talento incomparável, um humor ácido que eu adoro e um poder de sedução único.

Penso que não chegarás a conhecê-lo, porque depois do que se passou, e mais ainda depois do que se vai passar (Deus permita que os meus comprimidinhos não me deixem ficar mal) o Augusto vai de certeza mudar-se daqui para nunca mais aparecer. Ele tem casas em todas as partes do mundo e a sua bagagem é uma maleta com algumas cuecas, alguns suspensórios, que não dispensa, uma escova de dentes que mete no bolso e pouco mais. Tudo o que lhe faz falta para usar ou para esculpir, tem multiplicado pelas diferentes casas nos diferentes países. O meu marido é imensamente rico, embora viva como um pobretão. Não penses que é avarento, nada disso. Faz questão que dentro de casa tenhamos sempre o melhor do melhor, mandado vir, se for o caso, dos quatro cantos do mundo. Exige que eu me vista em Paris, que a minha lingerie seja assinada, que os meus sapatos venham de Itália, da sapataria de Milão que mos faz por medida. Mas ele anda vestido de servente de pedreiro.

É a sua roupa de trabalho. Sedutoramente perfumado, de barba sempre bem feita, mas roto e coberto de pó. Não quer que lhe cosam a roupa do atelier. É assim que se sente bem. E como não vai a lado nenhum, a não ser quando tem que viajar, é preciso arejar guarda-fatos inteiros de fatos italianos que doutro modo nunca veriam a luz do dia. É um excêntrico. Irresistível e, de vez em quando, irresponsável.

Só um irresponsável mete numa casa onde anda uma adolescente à solta, um rapaz de vinte anos, belo como um deus, e lhe chama seu secretário.

Foi isso que fez o Augusto. Inventou a necessidade de ter alguém que lhe tratasse dos contactos internacionais por causa das exposições, das encomendas que constantemente recebe e que falasse de dinheiro por ele, só no que toca à sua actividade de escultor.

Sugeri-lhe que desse essa ocupação à Ana Salomé, prestes a chegar com o curso terminado, a falar quatro línguas e sem parecer disposta a continuar outros estudos. Mas o Augusto riu-se, Júlia, a tua filha é muito nova, há-de ter a cabeça na lua e uma secretária tem que ser organizada e concentrada no trabalho.

Quando eu reagi à contratação de um secretário que iria viver lá em casa, ainda não sonhava como seria a pessoa que nos ia aparecer.

O Augusto depois de várias tentativas vãs, pôs um anúncio no jornal de Viseu e só ele respondeu. O Augusto achou que apesar de tão novo ele sabia tudo, era capaz de tudo e trataria de tudo. Encantou-se com ele à primeira vista. E, estúpida, desocupada e carente, eu também.

Aqui tenho que fazer uma pausa, meu neto, porque o que vou contar-te a seguir não é fácil. A imagem da tua avó Júlia, que provavelmente respeitas, vai sair tremida no retrato que de mim farei nas páginas seguintes. Preciso de toda a minha coragem para me expor ao teu julgamento.

 

Que mulher extraordinária! Como é que ela na véspera de matar-se, teve lucidez para escrever esta carta. Ao contrário do que imaginou, o meu julgamento não é negativo. Muito pelo contrário, encontro-lhe uma coragem admirável, pois sinto que se prepara para contar-me todos os seus motivos, quem sabe, todos os seus erros. Já a forma como descreve a relação com a minha mãe é de uma verdade que muito poucos teriam a objectividade de analisar. E esta não é a carta de uma mulher depressiva.

Quando a Mila me falou de suicídio, imaginei uma depressiva profunda, provavelmente apática, sem capacidade para comunicar. E o que encontro é uma pessoa lúcida, determinada, disposta a fazer uma auto-análise e a explicar-me?), sem querer guardar mistério nenhum, as razões, para ela provavelmente lógicas, que a levaram a decidir cometer um tal acto. Dizem que são os cobardes que se matam. Não me parece ser o caso, mas guardo a minha opinião para depois. Conseguirei não a julgar? Já estou a pôr-lhe rótulos e ainda a carta vai a meio. Mais vale assumir que não vou ser capaz de não a julgar. Veremos. No princípio da carta ela pede o meu perdão e esse já lho dei antecipadamente. Que mal me pode ter feito, a mim, que não tinha nascido?

O secretário do meu marido chama-se João Baptista e é o homem mais bonito que eu vi em toda a minha vida. E, acredita, não vi poucos. Conheci galãs de Hollywood, boémios românticos, conquistadores de olhares tenebrosos, nórdicos de olhos transparentes, mulatos de olhos verdes e sorrisos deslumbrantes. Mas o João... Para além da beleza clássica que qualquer um lhe reconhece - olhos de veludo negro, cabelo encaracolado, boca cheia, de estátua grega e nariz perfeito-, há nele alguma coisa mais que eu não sei definir. É como (isto provavelmente vai parecer-te um disparate e pensarás que só eu o vejo assim). É como se tivesse uma luz interior que lhe iluminasse o olhar, o sorriso, a maneira doce e segura de falar. Às vezes (sinto-me estúpida ao escrever isto), não parece deste mundo. É como um anjo ou quem sabe um demónio, já que o Diabo, dizem, toma os disfarces mais enganosos.

Não te sei explicar o que senti quando vi aquele homem.

Uma espécie de cobiça misturada com despeito, uma irritação inquieta, uma obstinação em contrariar cada elogio do meu marido.

Como se incubasse uma doença, apareciam os sintomas.

Só não pensei que a doença fosse tão grave.

Começou devagar. Era uma espécie de cansaço, de indolência, de secura na boca. A voz dele incomodava-me, embora falasse pouco, mas o timbre, a maciez, a modulação das frases derrubavam o meu precário equilíbrio.

Fazia tudo para não o ver e esperava ansiosamente o momento de o ver. Nos primeiros tempos ele dormia fora de casa, no quartinho que tinha sido do chauffeur e fazia o seu trabalho de secretário no atelier do Augusto, caótico e barulhento. Mas de nada se queixava e de tudo tirava o melhor partido. Se a Mila lhe perguntava pelo seu conforto (ou desconforto) ele nunca tinha frio, nem calor, nem fome, nem sede, nem solidão. Trocava qualquer inquietude da Mila por um sorriso límpido, com uma cova na face direita e uns dentes direitos e brancos que pareciam sempre acabados de escovar.

Com este sistema logístico só o via a uma única refeição, que era o jantar, porque as outras eram-lhe servidas no atelier graças aos bons ofícios da Mila. Eu desejava que se esquecessem dele, que não lhe dessem de comer, para o ver amuado ou a reclamar, ou quem sabe, estalar-lhe o verniz e tornar-se grosseiro ou pelo menos incorrecto. Não sei porque tinha estes pensamentos, acho que estava a tornar-me na pessoa má que mais tarde provei ser.

Mas um dia não aguentei mais tratá-lo tão mal. A minha consciência explodiu de culpa, e dizia-me, a meia voz (sempre gostei de falar sozinha), coitado do rapaz que não te fez mal nenhum, que é tão educado e de boa família, não há razão nenhuma para dormir naquele quartinho de pobre com tantos quartos vagos aqui em casa, e por dentro, em silêncio, num cantinho obscuro do meu pensamento, vou ter-te perto de mim, vou dizer ao Augusto que te ponha a trabalhar no escritório e acaba-se esta tortura de passar o dia inteiro a odiar-te, de viver em função da hora do jantar, de me arranjar para ti, umas vezes bem de mais, outras propositadamente mal, para veres até que ponto me és indiferente, franganote idiota, meu intruso, meu maldito, meu estúpido amor.

Assim se fez. E aos poucos aquela doença tomou conta de mim, minou-me de febre, afectou-me a cabeça.

Eu, que atravessara dois casamentos sem saber o que era a atracção sexual, eu, que fazia troça das paixões fatais que às vezes se comentavam no nosso círculo de amigos, compreendia agora como o desejo físico pode ser devastador e sentia aquela força devorar-me como um ser vivo dentro de mim, como um animal rugindo nas minhas entranhas.

Foi por essa época que a Ana Salomé chegou a casa, com o curso acabado e a sua incómoda adolescência.

A princípio não vi nela uma rival em potência. Era apenas uma miúda mal acabada, desagradável, respondona e irritante.

Sabia tudo, o que equivalia a não saber nada, e tomou o João Baptista de ponta. Implicava com ele a todo o propósito, mas ele, embora me custe a admitir, não lhe pagava na mesma moeda. Parecia achar-lhe graça, desculpava-lhe tudo, ria dos seus desaforos com o sorriso luminoso e a covinha na face.

Comecei a ter ciúmes, sentimento que até aí desconhecia. Afastava-a de casa, sob o pretexto de a ver ocupada mandava-a ajudar o padrasto, aprender alguma coisa de escultura, de desenho, sei lá, de História de Arte, assunto preferido do Augusto. E ela ia. Parecia-me que ia de boa vontade, talvez só para me provar que gostava mais do padrasto que da mãe.

Convinha-me esta situação. Tinha o João dias inteiros só para mim. À porta do escritório sentia o perfume dele que me atraía como um íman, posso entrar, posso vir para aqui ler o meu livro, estou farta de estar sozinha, como vê o meu marido abandona-me horas a fio... Ele, cerimoniosamente, faz favor senhora donajúlia, Júlia, dizia eu e ele não respondia. Olhava-me um momento, a tentar perceber a intenção na minha voz, dizia com licença e sentava-se a trabalhar.

Eu observava-o. Nada dava a entender que a minha presença o perturbasse. Tenho a certeza de que se esquecia de mim.

E então começava a subir-me uma fúria, uma vontade de varrer tudo de cima da secretária, sentar-me em cima dela, bem na frente dele e beijá-lo, beijar perdidamente aquela boca carnuda, sensual, que se fazia tão fria, tão alheia, tão insolente de indiferença.

Em vez disso ficava a olhá-lo. Este rapaz é homossexual, só pode ser, nem sequer repara que eu existo. Humilha-me de propósito. Um dia vai dizer-me que não gosta de mulheres para eu me sentir bem vexada com as figuras que faço. Saía a correr do escritório e ia fechar-me no quarto, a andar dum lado para o outro como se estivesse enjaulada, e estava, enjaulada na minha loucura, no meu desejo, na minha paixão.

Não, ele não é, claro que não é homossexual. Ele deseja-me tanto como eu o desejo a ele, mas não pode, não quer mostrar. Ou por respeito ao patrão ou para me provar como é forte e sabe sublimar as suas fraquezas e os seus devaneios. Mas eu vou quebrá-lo. Ele é apenas um homem. Hei-de conseguir o meu beijo.

Porque a princípio, julgava eu, era apenas de um beijo que se tratava. Sonhava com aquela boca. Imaginava a sua consistência, o seu sabor, a sua humidade. Queria tocá-la levemente com a minha, ficar horas nisso e ele passivo a deixar-se sentir, trincar, sugar, lamber, devagarinho, devagarinho, tinha orgasmos só de pensar nisso e era então, sempre em pensamento, que finalmente a penetrava com a minha língua a fazer a descoberta da sua, a atingir um paroxismo de delícias como se nunca mais as duas bocas pudessem separar-se, e nem queria imaginar o que se seguiria. Proibia-me de ir mais além enquanto não alcançasse este primeiro objectivo. Um beijo. Seria pedir muito?

À mesa ele sentava-se à minha direita e eu evitava olhá-lo, vê-lo comer, porque tudo me excitava, sentia um retraimento no ventre, um formigueiro nas coxas pelo lado de dentro, perdia o apetite, bebia um gole de vinho para ocupar os beiços secos de desejo, alheava-me das conversas, pedia desculpa, levantava-me. Mas quando chegava ao quarto sentia saudades, medo de que, num capricho, a Ana Salomé mo roubasse e voltava, com a certeza de que estava a enlouquecer.

Ele levantava-se para me segurar a cadeira, ou fazer menção de, com o guardanapo na mão e era nas mãos que eu reparava, as mãos de dedos longos, ágeis, de unhas perfeitas, muito rentes, as costas das mãos onde os pêlos faziam um desenho um pouco irregular e aquilo fazia-me perder a cabeça, tentava pensar noutra coisa, mas desprendia-se do corpo dele um vigor animal que me envolvia e me obrigava a dizer, realmente não me sinto muito bem.

Ele limitava-se a olhar para mim respeitoso e admirado mas nada preocupado, estava-se nas tintas para os meus achaques, o Augusto dizia uma das suas piadas ácidas acerca dos incómodos das mulheres, a Ana Salomé ria-se, fazia coro com ele e eu sentia-me à beira do desespero. A Mila, na sua bondade, oferecia-se para me fazer um chazinho de camomila e eu deixava-me mimar por ela como se estivesse doente de verdade.

Reparo agora que estou a contar tudo isto ao meu próprio neto, ultrapassando aquela distância de pudor e descrição que os membros da família sempre guardam uns dos outros, mas não é o momento de ser hipócrita: quero que saibas e entendas as verdadeiras razões do meu suicídio. E não quero pintar com lindas cores e desculpas românticas a minha imagem: sou uma mulher de carne e osso e os meus actos não têm desculpa possível.

 

Que pensar desta avó desconcertante, capaz de me confessar, com toda a simplicidade, todos os cambiantes da sua luxúria? Que pensar desta avó-mulher, desta avó-vulcão, que descobriu tarde a tortura do desejo não correspondido e que provavelmente morreu de amor?

Para mim o mais difícil de assimilar é o facto de o objecto desse desejo ser o meu próprio pai. É óbvio que não consigo (ou não quero) vê-lo como um objecto sexual, embora reconheça, sempre reconheci, a sua beleza invulgar. É ainda hoje, um homem lindo, o meu pai. Claro. Pronto. De acordo. Mas prefiro ler a carta como se de outra pessoa se tratasse. É um preconceito, eu sei, mas faz-me confusão. Desculpa, avó Júlia, esta limitação da tua neta. Mas acredita, em nada este pequeno senão prejudica a compreensão da tua história. Não estou escandalizada, só surpreendida. E ansiosa por entender tudo. Conta, avó.

 

Aos poucos fui perdendo literalmente a cabeça. Já não me satisfaziam aqueles beijos imaginados, já o meu corpo todo reclamava a extinção daquele fogo que me devorava como se eu fosse uma floresta a arder a pedir água, chuva, um temporal, ainda que dessa tempestade resultassem cinzas e devastação. Nada me importava. Não queria saber das consequências.

Assegurava-me de que a Ana Salomépassasse os seus dias no atelier com o Augusto, mandava a Mila levar-lhe lanchinhos para que não precisasse de vira casa, afastava a própria Mila, que é esperta e dá por tudo, com recados, encomendas inúteis que a obrigassem a irà cidade, garantia que as criadas estivessem ocupadas na cozinha, na copa, na sala de engomados, perdi todo o pudor e pus-me a provocar deliberadamente o João Baptista.

Acabaram-se os olhares carregados de intenções, a voz rouca, a garganta seca. Agora era tudo ou nada.

Disse-lhe, como uma perdida, que o desejava. Ordenei-lhe que me esperasse no quarto porque tinha que ser meu. Apareci-lhe de négligé desatado sobre o corpo nu, exibi-lhe o peito, as pernas, as coxas.

Ele repelia-me, horrorizado, como um santo tentado pelo próprio demónio. Nunca consegui tocar-lhe, nunca consegui que me tocasse. Eu tratava-o por tu, ameaçava-o de morte, e ele o mais longe que foi nessa intimidade com que eu sonhava era dizer-me Júlia, não, Júlia, Júlia pelo amor de Deus, deixe-me, deixe-me, deixe-me. E o meu nome assim na boca dele, sem títulos, sem cerimónias, como se estivesse nu, levava-me ao êxtase eà loucura.

Dizem que sou linda, deslumbrante, desejável. Os homens toda a vida me assediaram, me desejaram, se apaixonaram por mim. Podia contar-te vários casos, desde o jovem príncipe árabe que se matou por eu não consentir ser a primeira esposa do seu harém, até ao pintor, amigo do Augusto, que foi nosso hóspede e pintou o retrato que está, neste momento, na sala por cima do fogão e que confessou ao meu marido que tinha de partir porque o amor que sentia por mim o faria atraiçoar aquela amizade de anos.

Pois bem. De nada me valeu tanta beleza contra a virtude obcecada do João Baptista.

Comecei a odiá-lo.

A culpá-lo da frieza que ultimamente invadia o meu casamento. O Augusto já não me procurava e eu sentia-me aliviada com esse estado de coisas. A minha filha tinha-se tornado uma estranha porque eu, no meu desvario, quase me esquecera da sua existência.

Lembro-me que um dia, estava a comer um cacho de uvas no jardim, quando vi a Ana Salomé que se dirigia a casa vinda do estúdio do Augusto. Não me viu. Vinha devagar, com um vestido de Verão, leve, curto, e, como se ouvisse música, pôs-se a caminhar dançando. Levantou os braços e cruzou-os sobre a cabeça segurando com eles os longos cabelos ondulados, valorizando o pescoço, pondo em evidência as linhas do seu corpo soberbo.

E de súbito, como se a bíblica Salomé deixasse cair ante os meus olhos o seu sétimo véu, reparei que a minha filha, a minha adolescente desajeitada e rebelde, se transformara numa esplendorosa mulher.

Mas era tarde de mais.

Entendi então a recusa do João Baptista. E desvairada, decidi pedir a sua cabeça.

Era muito claro. O João estava apaixonado pela Ana Salomé. Só isso justificaria aquela rejeição permanente e obstinada. Procurei indícios desse namoro e não consegui encontrá-los. Mas fui capaz de os inventar. As bicadas provocatórias que ela lhe lançava, a aparente indiferença com um toque de ressentimento, e por outro lado, da parte dele, a disponibilidade total para satisfazer-lhe os caprichos, só podiam ser sinais de amor disfarçados. E então foi contra ela que se virou a minha cólera de mulher rejeitada. Pensei que se fizesse despedir o João Baptista era ela que eu privava do amor dele, tal como ela me privara a mim.

Comecei afazer queixas dele ao Augusto. A inventar mentiras acerca do seu carácter. O meu marido, claro, não ligava a mais pequena importância. E então decidi descer ao último degrau da vileza, ao mais baixo da injúria e da calúnia.

Diante de todos, reunidos para o jantar, acusei o João de assédio sexual, disse que ele tinha de ir-se embora porque eu não aguentava mais, procurei palavras ofensivas, falei de propostas indecentes, de avanços obscenos, sem ousar fitar os olhos dele, que imaginava negros como carvões, abertos de espanto, inconformados de injustiça.

Mas o Augusto riu-se na minha cara, chamou-me Fedra, disse que não caía naquele embuste e declarou que o João só sairia se quisesse, muito justamente ofendido com as minhas mentiras.

Fiquei sem chão. Mas o pior estava para vir.

A Ana Salomé declarou que estava grávida e que o João não podia ir-se embora porque eles iam casar.

Saí da sala convencida de que se tratava de uma conspiração horrível contra mim. Contra a minha paixão, contra o meu amor, contra a minha vida.

Queria morrer, mas o Augusto obrigou-me a apanhar os farrapos da minha dignidade, a vir à sala de jantar beber champanhe à saúde do meu primeiro neto.

Desde esse dia tudo se precipitou. Os preparativos para o casamento que felizmente eles quiseram discreto. O enxoval feito à pressa, o meu orgulho espezinhado, engolido e nunca digerido.

Para mim tudo se passava como num filme a preto e branco que eu não compreendesse. O entusiasmo exagerado da Ana Salomé, a alegria discreta do João que parecia ter o cuidado de não me querer ofender, os projectos da lua-de-mel patrocinada pela genorosidade excêntrica do meu marido, a comoção da Mila, derretida de ternura pela sua menina. E eu como uma sombra no meio de tudo aquilo, com mil pensamentos desencontrados, sem perceber como seria quando eles voltassem, porque tudo indicava que continuariam a viver ali em casa e eu não saberia como enfrentar a situação.

Finalmente o dia do casamento chegou. Foi uma cerimónia simples, na capela da casa, só com os amigos mais íntimos, já que nenhum dos noivos tinha outros parentes. Eu e a Mila chorámos como duas Madalenas. Ela de comoção, eu de raiva.

O casal devia partir para Lisboa na manhã seguinte, para apanhar o avião para Paris, início de uma disparatada volta ao mundo. Mas não quiseram ficar no hotel em Viseu.

Dormiu cada um no seu quarto, embora a Mila lhes tivesse preparado o quarto azul.

Então, definitivamente, irremediavelmente perdida, ousei a minha última cartada: fui bater à porta do quarto do João que se fechara à chave e não abriu.

Na manhã seguinte, muito cedo, a Ana Saloméfoi despedir-se de mim à saleta onde eu tomava o meu chá da manhã.

Desculpe se lhe roubei o seu amado, disse ela. Mas se isso a consola, quero dizer-lhe que ele nunca me tocou com um dedo. Nem esta noite, se quer saber. O filho que eu espero é do seu marido.

Deu meia volta e foi-se embora.

Nesse momento comecei a morrer.

A culpa. A culpa desabou sobre a minha cabeça, mas o seu peso destroçou-me o coração. Aquela criança que vai nascer é o símbolo da minha culpa e é isso que eu não posso suportar.

A culpa de não ter amado a minha filha. De não ter visto que ela se tornara numa mulher. De a ter atirado para os braços do Augusto, cujo gosto por rapariguinhas tão bem conheço. De tê-lo feito por egoísmo, para ficar a sós com o homem que eu decidi que havia de ser meu. A culpa de a deixar casar com um rapaz que talvez não ame. A culpa de o ter acusado. De não ter visto a grandeza do seu carácter, de ter sido capaz de tentar fazer-lhe mal.

Percebes agora, meu neto, porque é a ti que dirijo esta carta?

Falei com o Augusto, mas não fui capaz de acusá-lo. Ele pegou na sua exígua bagagem e partiu.

Estou absolutamente só. Não posso contar a verdade à Mila. Eles chegam amanhã e essa foi a única notícia que recebemos da sua famigerada lua-de-mel. Que durou dois meses e me deu tempo de amadurecera minha decisão.

Preparei-me para morrer.

Acredito na vida depois da morte e espero encontrar finalmente alguma paz.

Estes dois meses foram um inferno. Por mais voltas que dê, não vejo outra saída porque não seria capaz de encará-los. Muito menos de viver com eles. E não tenho para onde ir. Isto é, não quero ir para nenhum outro lugar. Esta é a minha casa. Onde nasci, onde vivi, onde amei, onde hei-de morrer. Esta noite, se Deus quiser.

E se, mesmo sem autoridade nenhuma, te posso dar um conselho, peço-te que não alimentes nenhum sentimento de culpa, porque esse é um veneno contra o qual não há antídoto.

Não sei o que te contou a tua mãe. Não sei até que ponto conheces a tua verdadeira origem. É bem possível que nada saibas. A Ana Salomé teve tanta pressa, tanta desenvoltura em arranjar-te um pai possível, aceitável aos olhos do mundo, que provavelmente não contará a verdade a ninguém. E eu não posso morrer com este segredo. Confio-to. Tu és o seu legítimo herdeiro. Um beijo e sê feliz.

 

Estou em estado de choque. A minha mãe? O padrinho Augusto? Não terá a Ana Salomé inventado isto para mortificar a mãe? Estou em crer que não havia criança nenhuma. Mas como ficaria a minha mãe sabendo que a sua mentira teria causado a morte da mãe dela? Será por isso que a conheço tão diferente da terrível Ana Salomé de que me fala a Mila e que a minha avó descreve?

De qualquer modo, mesmo que a gravidez existisse, provavelmente a minha mãe terá abortado, porque, segundo a Mila, a minha avó morreu em Outubro de sessenta e seis e não houve filho nenhum antes de mim, que nasci em Abril de sessenta e oito.

O primeiro neto não sou eu. O primeiro neto nunca existiu. A avó Júlia morreu por causa de um equívoco.

E nisto reparo na data da carta: vinte e um de Outubro de mil novecentos e sessenta e sete.

Sou filha do padrinho Augusto.

 

Se lhe conto tudo isto, dona Floriana, é porque sei que a senhora não está em estado de repeti-lo a ninguém, nem tenho a certeza se me entende, mas a mim faz-me bem falar e à senhora, com quem ninguém conversa depois da trombose, faz-lhe bem ouvir. Não pelo que ouve mas pela atenção que lhe dispenso e que a põe tão contente, toda virada para mim num esforço guloso, enquanto tomamos chá que eu lhe dou na boca às colherinhas.

Não pense que me passaram as insónias por ter entregado a carta à Joaninha. Pelo contrário. Achei que ela ia mostrar-ma enquanto ficámos na Casa das Lias, mas não, ela trouxe-me aqui e seguiu para Lisboa sem falar no assunto.

Não digo que me passasse a carta para a mão, mas enfim, poderia ter-me lido algumas passagens que me ajudassem a recordar a minha Julinha, a compreender melhor os motivos da sua morte.

Mas pronto. Cada macaco no seu galho e é nestas ocasiões que eu vejo que é mesmo assim: consideram-me da família mas só até certo ponto. Está certo. Eu é que tenho esta ilusão de ter direito a todos os segredos, não é por ser intrometida, é só por interesse, por amor.

A Martinha diz que depois de morrer entendemos tudo, não deve vir longe esse dia, vire a carinha mais para cá, dona Floriana, que o guardanapo já está encharcado em chá e depois passa para a blusa tão bonita que lhe trouxe a sua neta.

Depois daquela alegria toda do casamento da Aninha e do João, agora doutor João (nunca trabalhei tanto na minha vida, enxoval, preparativos, copo-d'água), ficou na casa um silêncio incómodo, que não era de sossego depois da festa, mas de situação mal esclarecida. Eu, se por um lado sentia um grande alívio, pois não há dúvida de que os preconceitos que me foram incutidos pelos meus pais, o pavor pelo julgamento alheio, vieram ao de cima quando me inteirei da gravidez sem noivado, por outro desgostava-me aquele remendo assim à pressa e só me consolava a certeza de que a Aninha ia ser muito feliz e de que o lindo vestido de noiva não denunciava nem por sombras a sua incipiente barriguinha.

Desgostava-me o facto de ela não se ter aberto comigo. Só me falara do rapaz para fazer comentários desagradáveis, para dizer que a mãe, Deus me perdoe, estava apaixonada por ele, mostrava-se ciumenta da atenção que tanto a mãe como o padrasto dispensavam, como ela dizia, àquele trambolho do Baptista.

Eles deviam ter aberto o jogo. A Julinha havia de cair em si, percebia-se agora que a Aninha e o João eram feitos um para o outro e qual não é a mãe que não prefere ver a filha feliz, a satisfazer os próprios caprichos.

Teria sido um noivado como deve ser, marcava-se o casamento, eles não precisavam de ter tanta pressa de meter o carro à frente dos bois.

Mas não, talvez receassem que não lhes fosse dada autorização para namorar, preferiram fazer tudo pela calada e o resultado foi o que se viu. Enganaram-me bem.

Não que eu não tenha pressentido aquele amor, já lhe contei que sim, quando ela começou a andar mais serena, mais mulher, mais bonita, mas longe de mim supor que tinham chegado às últimas consequências.

Enfim. Coisas de gente nova. Agora, graças a Deus, estão casados há trinta e cinco anos ou coisa que o valha, são um casal como não há outro.

Depois foi a alegria de lhes ver nascer as filhas, duas meninas lindas, que eu tive o gosto de ajudar a criar. São muito minhas amigas, a Joaninha então nem se fala.

Tenho pena de não ter tido mais proximidade com os filhos da Martinha, mas ela casou lá por Lisboa, tem a sogra, vem menos a Viseu porque como já lhe expliquei está sempre muito ocupada, é voluntária de cuidados paliativos, que é como quem diz, ajuda pessoas a morrer, não tarda vamos precisar dela, dona Floriana, ora veja lá se consegue comer o bolo assim às migalhinhas.

Quando a Aninha casou, o João tinha uma viagem de trabalho progra-mada, era necessário ir a Milão tratar de uma exposição do doutor Augusto e sugeriu que a lua-de-mel fosse em Itália, que não há país mais lindo para pessoas apaixonadas, ouço dizer, que eu nunca fui, e ele aproveitaria para tratar de tudo.

Mas o doutor Augusto que não senhor, que lua-de-mel é lua-de-mel, não é para ter preocupações profissionais e ele que não se ralasse porque se dava um jeito, e os noivos podiam ir descansados para a sua volta ao mundo, que foi o presente de casamento que lhes deu.

Agora o padrinho Augusto era padrinho de verdade, foi padrinho de casamento do noivo e eu, com muita emoção e alegria fui madrinha da minha menina, foi ela mesma que me convidou, fiquei sem saber se a mãe aprovava, mas também não perguntei.

Assim que os noivos saíram para viajar (por sinal na primeira noite dormiram cada um no seu quarto, por respeito, eu acho, e para grande alívio meu que sou estúpida e parece que achava esquisito aquilo assim às claras lá em casa), mas como eu dizia, assim que os noivos saíram o doutor Augusto fez um saquito de viagem, certamente para ir a Milão tratar das coisas e partiu.

O estranho é que não voltou nem deu notícias e só quando eles voltaram e tudo aconteceu é que o João Baptista soube localizá-lo para lhe contar o sucedido e chamá-lo para o enterro. Mas não se demorou. Entregou-me a carta, meteu meia dúzia de coisas num saco um pouco maior, e durante anos pouco soubemos dele.

No meu coração nunca abrandaram as saudades e todas as noites rezava a Nossa Senhora de Fátima para vê-lo entrar aquela porta, com a sua gargalhada ruidosa e a sua bagagem leve de peregrino.

Um dia Nossa Senhora ouviu as minhas preces. E até à hora da morte a sua bondade e a sua loucura encheram de alegria aquelas paredes que já definhavam de ausência.

Está a dormir, dona Floriana? Melhor assim. Era capaz de se pôr a pensar que estou bacoca como a senhora.

 

Agora falo eu. Agora falo eu que não tenho voz. Falo eu que matei a minha mãe com palavras que jamais devia ter pronunciado. Falo dentro da minha cabeça, porque o som da minha voz mata e eu só digo o indispensável para não me considerarem muda e não me internarem numa casa de doidos por maníaca.

A minha mãe abandonou-me quando eu tinha cinco anos e percebi que eu era certamente muito má porque a minha própria mãe não me queria. A mãe que eu adorava. A mãe que era o meu ídolo e a minha paixão.

Ficou longe outros cinco anos e eu, que ainda não tinha conseguido perdoar aquele abandono, pelo contrário, tinha deixado crescer em mim a revolta e o ressentimento, pensava que se um dia ela voltasse havia de me recompensar daquela ausência com infinitos beijos e atenções, mimos e carinhos, que só recebia da Mila, que eu adoro, sim, mas que não é minha mãe.

E um dia ela voltou. Voltou casada com um homem encantador e não me ligou importância nenhuma.

Era linda, ainda mais linda do que eu tinha imaginado, todas as noites, no escuro da minha cama, quando falava baixinho com ela e lhe dizia que voltasse que ainda havíamos de ser grandes amigas.

Fiquei deslumbrada com a sua beleza e só queria apertá-la num abraço que a fizesse gritar, mas ela deu-me um beijinho como se eu fosse a filha do caseiro e não quisesse nenhumas demonstrações de afecto que lhe amarro-tassem a roupa ou lhe desmanchassem o penteado.

Eu tinha dez anos e resolvi fingir que não me ralava nada, fiz-me logo muito amiga do meu padrasto na intenção de a chatear, olha coizinha, não queres não queiras, tinha mais a quem dar beijos, à minha Miliquiquinha e agora a este senhor simpático que cheira tão bem e parece ter tanta paciência para me aturar.

Sou má, não sou? O.K., coizinha, vais ver como elas mordem. Hei-de ser insuportável, vou descobrir o que é que te chateia e fazer o pior que eu puder.

Assim foi. Mas isto fazia-me tão infeliz por dentro, tão desgraçada, tão cheia de lágrimas a afogarem-me o coração porque não as deixava sair, que quando ela resolveu empandeirar-me para o colégio fingi que era o sonho da minha vida, que estava radiante, embora por dentro me sentisse morrer.

Em todo o caso preferia estar longe dela, não a ver, do que sentir a toda a hora a sua indiferença. Diziam que eu era torta como um arrocho, pois bem, dei prova disso quando nunca, nem por um instante, me mostrei alguma coisa menos do que eufórica por ir interna para um colégio na Suíça, longe de tudo o que eu amava, a minha casa, a minha quinta, a minha Miliquiquinha, o meu padrasto e a minha inalcançável mãe.

Fiz o possível por gostar do colégio, por me adaptar, por ser boa aluna, por conquistar a simpatia de mestras e colegas, pois percebi que aquele ia ser o único lar a que teria direito durante muitos anos.

Assim foi e não posso dizer que não gostei de lá estar, sete longos anos como o Jacob à espera da sua Raquel, só que eu não tinha a minha Raquel no horizonte, ou tinha, mas ela não me queria.

Então, de má e torcida, nunca ia a casa nas férias. As minhas amigas, quase todas milionárias (com algumas delas sempre me correspondi e troco agora e-mails ocasionais), convidavam-me constantemente para as maravilho-sas casas delas, eu nunca convidei ninguém com vergonha de elas perceberem que a minha mãe me odiava.

Verificava que quase todas tinham uma relação fria com os pais, quase de indiferença, algumas nem os viam porque tinham ido viajar e todos sem excepção as deixavam à vontade para fazerem o que lhes apetecesse e era como se pagassem para não terem que as aturar.

Não era muito diferente do meu caso, mas eu não podia pôr a minha mãe ao nível das mães delas: a minha mãe era a mais deslumbrante e a mais extraordinária e ninguém podia suspeitar que também ela espezinhava o meu amor.

Inventei então que ela era doente. Lembrei-me que a Mila me contava como a Avó Amélia sofria do coração e passei a dizer que a minha mãe era a pessoa mais bonita e mais doce deste mundo mas não podia cansar-se nem ocupar-se de mim, porque tinha que estar sempre em repouso, quer em casa, quer na clínica, ou andava a viajar no avião particular preparado para uma doente, para ir consultar os maiores especialistas do mundo.

As minhas colegas estavam-se completamente nas tintas para as minhas desculpas, também elas contavam histórias rocambolescas para justificar o desinteresse dos pais, salvo algumas que nem sequer se davam ao trabalho de explicar fosse o que fosse, e outras que os insultavam abertamente, o sacana do meu pai, a puta da minha mãe, pagam o que for preciso para nem saberem que eu existo.

Pelo menos entre as que me estavam mais próximas nunca nenhuma admitiu que os pais as tinham posto naquele colégio especial para o bem delas, para que se tornassem mulheres exemplares, socialmente perfeitas e intelectual-mente interessantes. Todas achavam que se encontravam internas devido ao egoísmo dos pais e por nenhuma outra razão.

Foi numas férias que passei no Texas, as do meu penúltimo ano, que me apercebi que tudo o que as minhas amigas americanas contavam acerca dos encontros com rapazes não era, como eu imaginava, simples gabarolice.

Aquilo era numa fazenda imensa, toda a quinta da Casa das Lias caberia num cantinho da propriedade e havia sempre muitos rapazes a frequentar a casa. Amigos dos irmãos da minha colega mais os amigos dos amigos, que vinham de longe em carros enormes com cornos no radiador.

Eram barulhentos e estúpidos, muitíssimo mal-educados, pousavam nas mesas de café as botas a cheirar a estrume e diziam piadas óbvias, sem graça nenhuma, num inglês nasalado, cantado, que me irritava.

A minha amiga não tinha esta noção que nós em Portugal temos dos estratos sociais e convidava o pessoal da quinta para os churrascos que se faziam ao ar livre, era tudo tu cá, tu lá, ao princípio pus-me um bocado de parte, mas logo percebi que, como convidada, a minha obrigação era alinhar naquele convívio democrático, à americana.

Havia lá um rapaz que estava encarregado dos cavalos que eram montados pelas pessoas da casa (porque havia muitos outros, noutra cavalariça, que eram de trabalho e montados apenas pelo pessoal, a que nós chamaríamos de cowboys).

Pois o rapaz, tenho que admitir, era o que na época se chamava um pêssego, moreno de olhos azuis, uma figuraça de actor de cinema e, ao contrário dos outros, extremamente calado e discreto. Olhava para mim de uma maneira inequívoca, mas nunca disse uma palavra.

Um dia fiz-me de parva, levantei-me cedo (cedo, lá, era seis da manhã), e fui fazer-lhe uma visita à estrebaria. Ele já estava todo activo a arear os arreios e fez um sorriso descontraído e trocista, como quem diz, já não era sem tempo.

Quer que lhe prepare um cavalo para ir passear, perguntou.

Só se você vier comigo, porque eu monto mal e além disso tenho medo de me perder.

Vamos embora, disse ele.

Não havia absolutamente ninguém e, evidentemente, ele conhecia os lugares mais bonitos e mais isolados de toda a fazenda. Foi óptimo ver nascer a manhã, foi óptimo ir beber uma água fresquíssima num recanto paradisíaco, foi óptimo deixar a minha virgindade debaixo daquelas árvores centenárias.

Passeei bastante a cavalo durante aquelas férias. Depois despedimo-nos como se não tivéssemos feito mais do que beber juntos uma cerveja ou dividir uma deliciosa febra grelhada. Acho que foi uma maneira boa de me tornar mulher sem dramas, sem compromissos, sem juras de amor e sem compli-cações.

Às vezes, já de volta ao colégio, pensava nele e já nem me lembrava se o seu nome era Ben ou Sam, eles chamavam-se todos mais ou menos da mesma maneira, mas era uma recordação boa, limpa, saudável. Dava comigo a rir sempre que essa lembrança me vinha à memória, de que é que estás a rir, nada, parvoíces da minha cabeça.

E um dia tive de voltar para casa. Fui o mais longe que aquele colégio me permitia ir e agora era a universidade ou o ócio.

Para os primeiros tempos o ócio pareceu-me uma boa opção e então a ideia era ficar um ano em casa, ver como é que as coisas se passariam com a minha mãe, sempre com a secreta esperança de que ela finalmente visse em mim uma amiga, aos dezassete anos pensava enterrar muitas das patetices da adolescência, pensava perdoar-lhe, pensava partir do zero. Ia precisar de muita coragem para vencer o meu orgulho, mas estava decidida a tentar.

Mas nada correu como planeara. Ao chegar a casa encontrei o meu lugar ocupado por um estranho, não o meu lugar físico mas o meu lugar afectivo, ele era, obviamente, o queridinho da minha mãe e do meu padrasto e até a Mila se derretia toda com ele.

Chamava-se João Baptista e eu fiquei furiosa por achá-lo lindo, por achá-lo simpático, modesto, encantador. Só pode ser um impostor, dizia de mim para mim, um graxa que veio roubar o amor da minha família e agora sim, agora é que eu não tenho nada, nem pai nem mãe nem padrasto nem Mila.

Odiava-me por não conseguir não gostar dele e jamais admitiria que poderia mesmo cair de amores por ele, porque isso seria a capitulação total.

Comecei então a fazer-lhe guerra. A implicar com ele sem motivo nenhum, cheia de raiva, de cada vez que a minha mãe, visivelmente apaixonada o olhava daquela maneira esquisita. É verdade que também ele me olhava dessa tal maneira esquisita mas eu nem quis tomar conhecimento, e só dizia, agora está feito parvo a tentar conquistar-me, só falto eu, mas a mim não me enrola, enquanto cá no fundo sabia que não era nada disso, parecia amor genuíno o que via nos olhos dele, mas estava cheia de defesas, coberta de espinhos, de puas afiadas, de baionetas. E mostrava-lhe frontalmente o meu desprezo.

Foi por essa altura que a minha mãe começou a enxotar-me de casa para ficar à vontade com o seu ai Jesus, Ana Salomé porque é que não vai fazer companhia ao seu padrasto? Torne-se útil, aprenda alguma coisa, não aguento andar a tropeçar numa adolescente mandriona, e nem um beijo, uma festa na cara, uma carícia no cabelo.

Tanta fome dos beijos da minha mãe! Mas a barreira que ambas levantámos já era intransponível. De birra eu já nem lhe dava aquele beijinho social de bons-dias e ela nada fazia para recebê-lo.

Comecei a enfiar-me no atelier dias inteiros a ver o meu padrasto trabalhar, era espantoso o seu talento, a maneira como apalpava uma pedra e intuía o que lá estava como ele me dizia, a alegria com que se punha a trabalhá-la e eu, deslumbrada, via nascer maravilhas daquelas mãos de homem e pensava, que mistério este o do talento, para mim uma pedra era uma pedra e todas as tentativas para esculpir alguma coisa, mesmo tosca, eram totalmente vãs.

Lembro-me que um dia me fez olhar com atenção a fotografia de uma escultura de jardim que mostrava uma rapariga com dois pombos pousados nas mãos.

Diz-me o que é que está errado nesta escultura, perguntou-me.

Não sei, eu acho linda. Acho a rapariga perfeita e os pombos muito bem esculpidos. O que será que está errado?

Repara nos braços. Se dois pombos pousarem nas tuas mãos, os pombos são pesados, estão vivos, os braços têm que fazer um esforço, os músculos contraem-se, não ficam assim lisinhos como se ela segurasse uma flor. E, vivos, os pombos estão quentes, essa vida tem que sentir-se na atitude da menina. Provavelmente as patas arranham-lhe as mãos, terá de haver uma crispação, talvez um sorriso assustado e então sim, ela diz, vejam como eu consigo segurar dois pombos vivos, quentes, cujas patas arranham os meus pulsos e eu aguento com esforço mas com cuidado para que não voem. Isto faz-me calor e provoca-me o riso e as asas a bater assustam-me. Se não, eu seria uma estátua antes de ser uma estátua. Percebeste?

Percebi. Oh, como percebi. A diferença entre aquela escultura estática e as figuras do padrinho Augusto.

Percebi o que era o génio. Admirei-o como só se consegue admirar aos dezassete anos, convenci-me até que estava apaixonada por ele.

E já não era preciso a minha mãe mandar-me ir ter com ele, era eu que corria para o atelier na esperança de aprender coisas novas, de descobrir o progresso dos trabalhos, ver surgir da pedra aquelas formas de vida que pareciam quentes, pareciam ter veias e nervos e músculos e corações a bater.

E aos poucos foi-se insinuando na minha mente perversa a ideia de seduzir o padrinho Augusto, fazê-lo meu, tornar-me dona daquelas mãos e daquele talento. Queria que ele me esculpisse, me tocasse como tocava a pedra e fizesse nascer de mim uma outra mulher.

Não seria honesta para comigo se não admitisse que por trás de tudo, a motivação maior era a glória, a excitação, o despudor de roubá-lo à minha mãe.

Provoquei-o até ao limite da paciência dele. Ofereci-me para posar nua, o que ele aceitou com a maior naturalidade. Eu ficava assim com uma grossura na garganta, pigarreava sem poder falar, com o rosto vermelho e a consciência daquela transgressão.

Vinham-me ideias loucas à cabeça, enquanto estava ali quieta, com os mamilos hirtos, a molhar o pano que cobria a pedra onde ele me sentava.

E um dia ele deve ter pensado que se lixe, tocou-me na parte interior das coxas e eu agarrei-me a ele, abri-me toda e tive um orgasmo.

Ele perdeu a cabeça e começou a lamber-me o sexo, o umbigo, o peito, eu gritava de paixão e ele então tapou-me a boca e possuiu-me como louco uma, duas, três vezes, no maior desconforto, no chão, entre blocos de mármore gelado, de novo no chão, sujos, cobertos de pó, desesperados e aquele sabor de incesto dava-nos uma fúria, uma consciência de pecado que tornava tudo indizivelmente excitante.

Nenhuma semelhança entre isto e as minhas inocentes experiências com o Sam ou Ben, ou lá quem ele era. Isto aqui era a sério, era uma sensualidade depravada e exaltante e mais saborosa porque ambos sabíamos que não podia durar.

Aconteceu, sempre por insistência minha, apenas três vezes. Não foi ele que provocou, não foi ele que me violou, não foi ele que me obrigou a nada. De todas as vezes, fui eu.

Descobri todo o mal que havia em mim, trouxe-o ao de cima, gostei de me sentir perdida, degradada, suja. Gostei de sentir o meu poder sobre um homem aparentemente tão seguro, tão sólido, mas que despertava em mim o animal.

Depois ele começou a resistir. Nunca mais me deixou despir. Disse que era tudo um disparate, que eu era uma miúda depravada, chamava-me Lolita e ria-se das minhas tentativas.

E eu parei. Achei que já me tinha vingado o suficiente. Já tinha que chegasse para atirar um dia à cara da Júlia, tão segura dos seus homens e da sua beleza.

Tornei-me mais adulta. Sentia-me melhor comigo própria e agora levava livros para o atelier e ficava lá horas esquecidas a ler, só levantava os olhos para admirar os progressos de mais uma escultura ou o sábio biselar de pedra.

Acalmei. Continuava a sentir os olhos do João Baptista em cima de mim, não sei se adivinhava o que se tinha passado, eu achava que sim, mas que ao mesmo tempo me dizia que me compreendia e perdoava.

Sabia que ele gostava de mim. Tinha dezassete anos e sentia-me vaidosa desse amor, tanto mais que a Júlia não o largava e então era uma dupla vitória: o marido dela tinha sido meu e o amante talvez viesse a ser. Ria-me por dentro e comecei a sentir-me feliz.

Um dia descobri que estava grávida.

Não quis dizer nada ao meu padrasto. Pus-me a engendrar uma solução muito mais fácil. Atribuir a gravidez ao João Baptista. Talvez deitar-me com ele e pronto, que fácil, olha, agora estou grávida.

Mas não consegui levar o plano adiante. O João Baptista era tão puro, nunca tinha tido um gesto, que até seria natural entre pessoas quase da mesma idade, nunca um atrevimento, uma palavra.

Olhava-me, apenas. Naquele olhar eu julgava ler tudo: amor, dedicação, respeito, despojamento e oferta. Mas nunca seria meu sem namoro, pedido, noivado, casamento, o que se apresentava difícil graças à pressão que a minha mãe devia exercer sobre o desgraçado.

Ou então eram amantes mesmo e ele não tinha autorização de gostar de mim.

Comecei a passar mal. A vomitar de manhã. Sem dizer nada a ninguém, a sentir o peito dorido, a ficar incomodada com certos cheiros, certas flores.

Tenho que resolver isto, pensava. Digo que vou a Londres visitar uma amiga e faço lá um aborto. Era talvez o mais fácil.

Mas alguém em mim queria ter aquele filho e pus-me a adiar perigosamente a interrupção da gravidez.

Não podia falar com a Mila. Além de ela ser virgem e não perceber nada destes assuntos, já ficou escandalizadíssima quando lhe falei dos meus amores americanos e ia, sei lá, alertar a minha mãe.

De qualquer modo entendia que estava metida num enorme sarilho.

E depois aconteceu aquilo.

Num dia de temporal a minha mãe inventou que o padrinho Augusto havia de despedir o João Baptista e eu tive duas certezas. Primeiro que o João Baptista devia ter repelido a minha mãe e ela agora vingava-se com aquela maldade de que são só capazes as mulheres rejeitadas. Acusava-o de a ter assediado e via-se na cara dele que era mentira, mas não se defendeu. Foi incapaz de manchar a imagem da Júlia. O padrinho Augusto, ao contrário, fez troça dela, e disse ao João que só se ia embora se quisesse.

Foi aí que compreendi a segunda verdade: se o João se fosse embora eu ficava sem solução para o meu caso.

Então vivi o momento mais difícil da minha vida. Como um jogador, tinha que apostar na carta certa e fazê-lo num espaço de segundos.

Poderia confiar no João a ponto de fazer a minha jogada, usando-a, sem que ele me desmentisse? Nunca tínhamos conversado sobre nada que não fosse trivial, nunca tínhamos falado de sentimentos, projectos, valores, opções de vida. Tudo quanto eu tinha era aquele olhar.

E apostei nele. No seu carácter, na sua generosidade e no seu amor e disse, o João não se pode ir embora porque estou grávida e nós vamos casar. Fiquei em pânico.

Agora estava tudo nas mãos dele. O meu futuro, a honra do meu padrasto, a vida do meu filho.

E ele não me faltou. Fingiu que o nosso namoro era um facto, que tínhamos ido longe de mais, que estava pronto para reparar o seu erro.

Depois daquela tensão terrível, porque a parada era demasiado alta, desabei como uma avalanche de neve e abracei-o a soluçar.

Ele falou-me como se fala a uma noiva muito querida, consolou-me, alisou-me os cabelos, limpou-me as lágrimas e disse as palavras inesquecíveis, é para mim uma alegria e uma honra casar com a mulher que eu adoro.

Joguei ali o meu destino e o meu involuntário parceiro daquele jogo não me deixou ficar mal.

Mas a minha vingança não estava completa.

Vi bem o sofrimento da minha mãe durante o curto tempo que duraram os preparativos para o casamento. O homem que ela queria para ela ia casar comigo. Eu agora estava quase sempre ao pé do meu noivo, tentando conhecê-lo, embora dele soubesse o essencial, o seu grande coração, o seu grande carácter.

A Júlia espiava-nos, eu fazia-me descarada, quando a pressentia dava beijos na boca do João, ele correspondia com timidez, tudo aquilo era um jogo de espelhos, nada era o que parecia, tudo tinha uma segunda intenção.

Com o padrinho Augusto nunca discuti o assunto. Ele fazia de conta que aquilo era natural, que não tinha acontecido coisa nenhuma entre nós e eu fazia por esquecer que em algum momento tinha havido em mim uma adolescente enlouquecida.

Um dia perguntei ao João, alguma vez me perdoarás a forma como te usei?

Tu nunca me usaste, disse ele. Eu é que fui egoísta e me aproveitei da situação. Porque tu o disseste, o que disseste naquela noite de temporal foi para mim a única verdade. Soube nesse instante que era o pai dessa criança que me oferecias e que ia amá-la tanto como tu e para sempre.

E então casámos.

E eu, de partida para a viagem de núpcias, num horrível acesso de maldade, vendo que a Júlia nem sequer tencionava dar-me um beijo, deixei sair da minha boca suja as palavras que jamais devia ter pronunciado, porque as palavras matam e com elas matei a minha mãe.

Foi uma lua-de-mel pouco convencional.

O padrinho Augusto tinha-nos oferecido uma volta ao mundo, sempre a sua maneira excessiva de resolver os problemas, mas o João arrastou-me como se arrasta uma convalescente, eu passava mal e estava doente de remorsos, não quis ir muito longe, no primeiro mês demos uma volta por Itália, depois fizemos o sul da França e acabámos por passar os últimos quinze dias numa praia de Inverno.

Foi ali que me senti melhor. Parei de vomitar, parecia que o ar do mar me fazia bem, passava horas a olhar a praia deserta, numa avenida da marginal arrepiada de folhas secas de um Outono precoce, onde sobre os candeeiros de globo redondo pousavam melancólicas gaivotas.

Então escrevi à Mila o único postal de toda a viagem, a anunciar que chegaríamos a casa daí a três dias.

E assim foi, chegámos.

A minha mãe tinha-se suicidado nessa noite.

 

Vivemos anos bons naquela casa, dona Floriana, ou melhor dizendo, voltámos a viver anos bons. Porque depois da morte da Julinha ninguém tinha alegria para nada. Parecia que estávamos sempre à espera de a ver descer aquela escada com o seu porte de rainha, o vestido de jersey preto, os saltos altos, os brincos de brilhantes nas orelhas, as unhas pintadas de vermelho, o cabelo apanhado como se fosse a um baile. E aquela beleza. Que só ela tinha. Porque as minhas meninas são lindas mas nenhuma lhe chega aos calcanhares.

A verdade é que não a vimos envelhecer e por isso guardamos dela aquela imagem quase irreal, como se fosse uma diva ou uma deusa da mitologia.

O quadro que está na sala, por cima da lareira, mostra-a maravilhosa mas não lhe faz inteira justiça. Eram os gestos, um mover da cabeça, o sorriso, uma maneira especial de olhar, aquele não sei quê que torna uma pessoa única.

Talvez Deus não tenha querido que aquela sua obra de arte se desmanchasse perante os nossos olhos com os sinais da idade. Pelas minhas contas teria trinta e oito anos quando morreu, que tristeza.

Depois, com o nascimento das meninas, primeiro a Joaninha, com ares à mãe, depois a Martinha, a cara do pai, a alegria foi voltando aos poucos e embora a Ana Salomé fosse uma sombra do que tinha sido, não é possível estar sempre triste numa casa onde há duas crianças a rir, a brincar, a correr, sobretudo depois que o doutor Augusto chegou e veio para ficar e revolucionou tudo outra vez com as suas gargalhadas e as suas maluqueiras e o seu jeito incomparável com as crianças.

Elas adoravam-no e a Joaninha chamava-lhe avô e ninguém se incomo-dava muito a emendá-la.

Este é o meu avô que se chama padrinho Augusto, dizia ela às visitas e todos se riam e o doutor Augusto deitava-a ao ar e apanhava-a nas suas grandes mãos de artista.

O doutor João, já se sabe, sempre aquele homem tranquilo e luminoso que até hoje conhecemos, nunca lhe vi uma má disposição, a educar as filhas com ternura e firmeza e sem nunca desautorizar a mãe.

As meninas cresceram, formaram-se, a Martinha casou, mas continuam a ser uma família muito bonita. É tão bom vê-los juntos, no Natal ou quando vêm a casa. O doutor Augusto já lá está, o céu lhe seja propício, mas sente-se, há-de sentir-se sempre a presença dele naquela casa, a casa onde me sinto feliz, a casa onde queria morrer, a casa de que fui os olhos e os ouvidos e em certos momentos, Deus me perdoe a vaidade, o coração.

Diga, dona Floriana. Quer dizer alguma coisa? Vá, eu tento percebê-la. Sim? Sim? Ai meu Deus, não entendo, quer escrever com a sua mãozinha boa? Não? Então? Sim. Vá.

Tens. É tens? Sim e mais? O que é que eu tenho?

Sorte. Sorte! É isso, dona Floriana? Está a dizer que sim! Tem razão dona Floriana. Não tive marido, nem filhos, nem casa, mas tive muita, muita, muita, muita sorte. Tome lá um beijinho. Gosto muito da senhora, que me ouve com tanta paciência e que afinal percebe bem mais do que eu pensava. Obrigada dona Floriana e agora durma o seu soninho, ai Jesus, a senhora está bem? Enfermeira, a dona Floriana!

 

É por isso que não tenho voz. É por isso que as palavras me são interditas. Matei a minha mãe com uma palavra. Acho que desde os cinco anos desejava matá-la, mas não sabia que ia ser essa a minha arma. Uma palavra.

É verdade que não calei a voz para sempre como teria sido meu desejo. Tive que criar as minhas filhas, educá-las, continuar a viver.

Amo o meu marido de amor verdadeiro e as poucas palavras que lhe digo são de ternura e de cumplicidade.

Fui severa com as minhas filhas, mas nunca lhes regateei os beijos, os abraços, os carinhos que a mim me fizeram tanta falta. Fechada dentro do meu remorso fiz-me um pouco mesquinha, acham-me avarenta, mas não de carícias, não de sorrisos quando eles são necessários.

Sei que não sou uma pessoa boa, mas tento melhorar todos os dias. Queria morrer feliz. Para isso falta-me ver a Joana casada, não porque eu seja preconceituosa mas porque a acho muito sozinha, e trazer a Mila de volta para casa. Agora que o padrinho Augusto morreu, vou falar com o João e pôr a Mila no lugar que lhe compete. Aqui. Ao pé de nós.

Foi já depois do nascimento da Marta que o João e eu decidimos pedir ao padrinho Augusto que voltasse para casa. Ele não tem ninguém.

Achámos que devia envelhecer aqui, junto das pessoas que lhe querem bem e deixarmo-nos de pruridos por causa de uma história antiga de que nunca mais ninguém falou. Ficou tacitamente aceite que a Joana é filha do João e não só no papel mas no coração de todos nós.

Não foi preciso insistir com o padrinho Augusto. Ele veio e trouxe a sua alegria, a sua inteligência, aquela maneira descontraída de encarar a vida, sem dramas nem saudosismos inúteis.

Nunca pusemos o nosso pensamento em palavras mas tanto o João como eu achámos que não podíamos privar o padrinho Augusto de ver crescer a filha dele, nem privá-la a ela de conviver com uma pessoa tão especial. O João sabe que a culpa do que aconteceu foi minha. Não temos nada contra ele. Demos-lhe amor até à hora da sua morte.

Às vezes tenho medo de não saber exprimir o meu amor pelas pessoas.

Tinha tantas razões de queixa da minha mãe mas a verdade é que nunca fui capaz de lhe dizer, mãe, gosto muito de si.

E ela, que nunca mo disse em palavras disse-mo quando se suicidou. Porque eu interpreto o suicídio dela como uma declaração de amor, um pedido de perdão, o abraço que nunca me deu.

Tenho que pensar assim para poder viver.

Amo-te, mãe. Descansa em paz porque eu amo-te e perdoo-te tudo. Perdoa-me tu também. Aonde quer que estejas recebe as minhas lágrimas e lava com elas o meu maculado coração.

 

E agora, perante a leitura da carta lacrada da minha avó Júlia, deixei de saber quem sou.

Se a minha cabeça já era complicada, agora é um turbilhão. Não é fácil encontrar pés de barro nos ídolos de toda uma vida, descobrir que o terreno mágico da infância estava minado de mentiras e finalmente perceber que ninguém achou necessário contar-me a verdade, que lhes pareceu mais cómodo deixar-me na ignorância dos factos o resto da minha existência.

Porquê? Acharão que eu não tenho direito à verdade? Que não sou digna de conhecer a minha origem? Ou a hipocrisia deles é tal que preferem manter a capa das conveniências?

Digo à Manú que estou doente e não vou trabalhar. Até as Mães Menininhas vão ter que esperar que eu volte a pousar em terra firme: tinha uma viagem agendada para levantar fundos e trato de adiá-la.

É como se tivesse sido apanhada pela espiral de um tufão e rodo, rodo, rodo, sem chegar a lugar nenhum. E de súbito lembro-me da Marta. Só ela pode ajudar-me a compreender.

A Marta está vinte e quatro horas de serviço incluindo domingos e feriados porque os moribundos não têm horário de partida.

Ao princípio sinto-me egoísta porque percebo como está ocupada: um dos seus doentes manifestou o desejo de morrer em casa e há que preparar a família para essa situação. Ensiná-los como se lida com a morte, sem dramatismos, sem lágrimas, rodeando o doente de alegria, recorrendo à Marta para que não tenha dores e os seus últimos dias neste mundo sejam calmos, se possível risonhos.

Em comparação, o meu problema é ridículo e eu digo-lhe que não tenho coragem de a desviar da sua ocupação mais que prioritária. Mas a Marta entende que também eu estou em agonia, e, uma vez instalado o doente, pede ajuda a uma colega para poder ausentar-se umas horas.

A Marta jamais me faltaria.

E conto-lhe. Dou-lhe a carta da avó Júlia para ler, mas ela não precisa. Dá-lhe uma vista de olhos e diz, eu sabia.

Sabias? Isso então acho imperdoável! Contaram-te a ti e não acharam necessário dizer-me? Todos vocês? Incluindo tu, Marta?

Acalma-te, querida. Limpa essas lágrimas ou chora até te sentires melhor. O choro é uma terapia. Faz-nos bem.

Mas eu não quero chorar mais. Quero estar furiosa, apetece-me ser má.

Ouve, Joana. Lembras-te quando o padrinho Augusto te deixou a fortuna? Eu percebi, chama-lhe intuição, chama-lhe o que tu quiseres, mas percebi. Fiz tudo para te convencer a aceitar o dinheiro de bom grado e de coração aberto, porque me pareceu que estava a ser feita justiça. E olha, mana. Deverias alegrar-te. Porque provavelmente descobriste a causa do teu velho sentimento de culpa. Quem sabe se, na barriga da nossa mãe, não te sentiste a causadora do suicídio da avó Júlia. Mas agora sabes que não tens culpa de nada. A nossa avó errou, a nossa mãe errou, o padrinho Augusto errou. E daí? São humanos, tal como nós, são os nossos muito queridos mas não é justo exigir que sejam santos, que sejam impolutos, que sejam perfeitos. Nós também não somos. Sabe-se lá quantos erros cometeremos ainda. Por negligência, por paixão, pelas circunstâncias. Faz parte da vida e ainda bem que somos todos humanos. Não podemos julgá-los.

E a mentira, Marta. A mentira em que me deixaram viver?

Foi por amor, Joana. Acredita. Foi por amor.

Queria muito aceitar os argumentos da Marta, mas sou diferente dela, agora sei porquê. O pai dela, que não é meu pai, é santo e ela também. Aceitam tudo o que a vida lhes dá com grandeza, com humildade, com alegria. São pessoas extraordinárias e eu tenho a sorte de os ter no meu caminho. Devia alegrar-me.

Então porquê esta mágoa, esta raiva, este mal-estar.

Preciso absolutamente de falar com eles.

Janto com o Vasco para lhe dizer que vou a casa uns dias, preciso de tratar alguns assuntos com os meus pais.

À sobremesa, e a despropósito, o Vasco segura a minha mão entre as suas, tira do bolso um anel invulgarmente bonito e pede-me em casamento.

Quase esqueço tudo. A princípio acho que ele está a brincar, que é uma rábula das dele, mas não é.

O Vasco diz que a vida não pode ser desperdiçada, que estamos a perder os nossos melhores anos e que se está mesmo a ver que fomos feitos um para o outro.

Não acreditas? Então consulta o Chico Buarque.

Quem?

Sabes o que é que ele diz? que consta nos astros, nos signos, nos búzios, eu li um anúncio, eu vi nos espelhos, está no evangelho garantem os orixás, dizem os autos, os dogmas, as bulas, consta na pauta, na carne, está no seguro, mandei fazer um cartaz, passou na novela, picharam no muro, serás o meu amor, serás amor a minha paz.

Enlouqueceste? E rio pela primeira vez desde que li aquela carta, sinto-me bem, enfeito-me por dentro, navego à vela, voo de asa-delta, banho-me na cachoeira, visto-me de azul, nado no rio, ouço música, decido ir ao Brasil passar a lua-de-mel e digo aceito, é assim que se diz? Nunca fiquei noiva antes, ensina-me, tenho que dizer amo-te ou basta bater as pestanas, olhar para o anel com a mão esticada, assim, ainda bem que arranjei as unhas, encostar-me ao teu ombro, ter vontade de chorar e dizer sim.

Vais a casa, não vais? Deixa-me ir contigo pedir a tua mão. À antiga, como manda o figurino.

Desta vez não dá, Vasco. Vou tratar de outras coisas. Mas na próxima vais comigo.

Prometes?

Prometo. Alguma vez te faltei?

Ammm... Pois. O.K.

Porque será que os homens da minha vida são tão bons? E eu ainda me queixo.

Parto de manhã cedo. Quero ir buscar a Mila ao lar, impor aos meus pais que ela fique em casa de uma vez por todas (como se eles me devessem alguma coisa). É que depois da conversa que vamos ter, vou explicar-lhes que a Mila não sabe de nada, não é necessário continuar a mantê-la afastada.

Qual não é a minha surpresa quando no lar me dizem que os meus pais foram buscá-la na véspera, que levou todas as suas coisas e veio uma carrinha para levar a papeleira que ela tinha em muita estimação.

Depois da morte da dona Floriana, explicam-me, ela ficou muito só, foi certamente por isso que os seus pais...

As coisas começam a encaixar.

Concentro-me então no discurso que preparei para os meus pais.

Procuro dentro de mim toda a zanga de que sou capaz. Quero encontrar a coragem necessária para encostá-los à parede, fazê-los ver que não podem continuar a mentir-me.

E de repente entro na quinta e vejo-os. De mãos dadas. Tranquilos. Confiantes. Fortes e frágeis ao mesmo tempo. Lindos e eternos no meu coração.

E percebo que não vou sequer tocar no assunto. Vou só abraçá-los, amá-los. Tive dois pais adoráveis, uma mãe amorosa e atenta, a vida foi mais pró-diga comigo do que com a maioria das pessoas. Não posso perturbar essa paz que eles a tão duras penas construíram, só porque preciso de uma satisfação.

Saio do carro, de onde fiquei a contemplá-los e vou ao seu encontro. Agora sentaram-se sob o caramanchão, junto da mesa de pedra onde há uma bandeja com refrescos. São os abraços, as exclamações da chegada, inesperada, ainda por cima. Vou lá dentro, pela porta da cozinha, buscar um copo e venho juntar-me a eles. Trazia o coração cheio de palavras, de recriminações, de perguntas, de mágoas, de desculpas. Sento-me e fico em silêncio. Porque entendo que aquela tarde transfigurada pela luz do Outono, plena de cantos de pássaros, carregada de eternidade, é tudo o que queria dizer-lhes.

Ao jantar, com a Mila à mesa, tão feliz que chora de alegria a cada frase, dou a grande notícia.

Imaginem que estou a pensar casar-me, vir morar para esta casa, ter uma filha, pôr-lhe um nome acabado em lia, talvez Júlia, e ser feliz.

Os três rejubilam. O pai manda abrir uma garrafa de champanhe. A Mila diz, desculpem, mas isto compete-me a mim. A mãe ralha, diz, eu não disse, vai querer fazer tudo como dantes. Ela teima, é só hoje, que este é um dia especial.

Nem ela sabe quanto.

Ergo a taça e com um sorriso a disfarçar a emoção faço um pequeno discurso:

À saúde da Mila que nos deu a alegria de voltar. Ao pai e à mãe que souberam manter vivo o espírito desta casa, o sítio onde reencontro a infância, o equilíbrio e o amor.

Porque não vale a pena cumprir feitos heróicos, dar a volta ao mundo num bote, ganhar o prémio Nobel, descobrir a pólvora, se não tivermos um lugar para onde voltar, onde alguém nos espera com uma sopa e um sorriso.

À nossa.

 

                                                                                            Rosa Lobato de Faria  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades