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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEXTO HOMEM / David Baldacci
O SEXTO HOMEM / David Baldacci

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

– PAREM COM ISSO!
O homem se curvava sobre a fria mesa de metal, o corpo todo contraído, os olhos fechados e a voz falhando. Ele respirava com dificuldade e deixava o ar sair como se fosse o último suspiro. Através de fones de ouvido, uma rápida torrente de palavras enchia seus canais auditivos e inundava seu cérebro. Havia uma série de sensores presos a um pesado colete de tecido afivelado em seu tronco. E ele também usava uma touca com eletrodos que mediam suas ondas cerebrais. A sala estava muito iluminada.
A cada transmissão de áudio e vídeo seu corpo se contraía como se ele tivesse sido golpeado por um campeão de peso pesado.
Ele começou a chorar.
Em um cômodo contíguo e escuro, um pequeno grupo de homens espantados assistia à cena através de um espelho falso.
A tela na parede da sala em que o homem chorava media 2,40 metros de largura por 1,80 metro de altura. Parecia perfeita para assistir a um jogo de futebol americano. Contudo, as imagens digitais que ela exibia em rápida sucessão não eram de homens enormes uniformizados esmagando os neurônios uns dos outros. Eram dados ultrassecretos aos quais muito poucas pessoas no governo teriam acesso.
Coletivamente, e para o olho experiente, revelavam muito bem as atividades clandestinas realizadas mundo afora.
Eram imagens claras de movimentos suspeitos de tropas na Coreia ao longo do paralelo 38.

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Imagens de satélite de projetos de construção no Irã mostravam, sem deixar dúvidas, que havia silos de mísseis subterrâneos que pareciam enormes caixas escavadas na terra, junto com os registros térmicos marcantes de um reator nuclear em operação.
Do Paquistão, fotos de vigilância tiradas a grande altitude dos resultados de uma explosão terrorista em um mercado onde frutas, legumes e corpos cobriam o chão.
Da Rússia, havia um vídeo em tempo real de uma caravana de caminhões militares em uma missão que poderia levar o mundo a outra guerra mundial.
Da Índia fluíam dados sobre uma célula terrorista que planejava ataques simultâneos a alvos importantes em uma tentativa de desestabilizar a região.
Da cidade de Nova York, fotos incriminadoras de um importante líder político com uma mulher que não era sua esposa.
De Paris, uma grande quantidade de números e nomes representando movimentações financeiras de criminosos. Eles se alteravam tão rápido que pareciam um milhão de colunas de Sudoku exibidas em altíssima velocidade.
Da China, havia informações clandestinas sobre um possível golpe contra os líderes do país.
De milhares de centros de serviços de inteligência espalhados por todos os Estados Unidos e financiados pelo governo, fluíam informações sobre atividades suspeitas realizadas por americanos ou estrangeiros que operavam dentro do país.
Dos países de língua inglesa com os quais Estados Unidos compartilhavam dados sigilosos – Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia –, vinha uma compilação de informações ultrassecretas, todas de enorme relevância.
E de todos os cantos do globo eram fornecidas muitas informações em alta definição.
Se isso fosse um jogo de video game, seria o mais empolgante e difícil já criado. Mas não havia nada de fictício. Ali pessoas reais viviam e morriam a cada segundo todos os dias.
Esse exercício era conhecido no mais alto escalão da comunidade de inteligência como “Parede”.
O homem curvado sobre a mesa de metal era pequeno e esguio. Tinha pele morena e cabelos pretos curtos grudados na cabeça. Os grandes olhos estavam vermelhos de lágrimas. Ele tinha 31 anos, mas parecia ter envelhecido dez nas últimas quatro horas.
– Por favor, parem com isso. Não aguento. Não consigo fazer isso.
Ao ouvir esse comentário, o homem mais alto atrás do espelho se endireitou. Ele tinha 47 anos e aquilo era essencialmente seu trabalho, sua ambição e sua vida. Ele vivia e respirava aquele projeto. Seu cérebro se dedicava única e exclusivamente àquilo. O tom grisalho de seus cabelos havia aumentado de forma considerável nos últimos seis meses por motivos diretamente ligados à Parede ou, mais especificamente, problemas com a Parede.
Ele usava paletó, camisa e calças sociais feitas sob medida. Embora tivesse um corpo atlético, nunca participara de competições esportivas e não tinha a coordenação motora notavelmente boa. O que de fato tinha era inteligência de sobra e um desejo inesgotável de ser bem-sucedido. Havia se formado na universidade aos 19 anos, feito pós-graduação em Stanford e Oxford. Era a combinação perfeita de visão estratégica e esperteza. Era rico e bem relacionado, embora desconhecido do público. Tinha muitos motivos para se sentir feliz e apenas um para se sentir frustrado ou até mesmo revoltado. E estava olhando para o motivo agora.
Ou melhor, para a pessoa.
Bunting olhou o tablet que segurava. Tinha feito àquele homem uma enorme quantidade de perguntas cujas respostas podiam ser encontradas no fluxo de dados. Não obtivera uma única resposta.
– Por favor, alguém me diga que isso é uma brincadeira sem graça – comentou finalmente.
Bunting sabia muito bem que era sério. Aquelas pessoas não brincavam.
Um homem mais velho e mais baixo com uma camisa amassada ergueu as mãos em um gesto de impotência.
– A questão é que ele é um E-Cinco, Sr. Bunting.
– Bem, esse Cinco obviamente não serve para o serviço.
Eles se viraram para olhar mais uma vez pelo vidro enquanto o homem na sala arrancava os fones de ouvido e gritava:
– Quero sair! Agora! Ninguém me disse que seria assim.
Bunting pôs o tablet na mesa e se apoiou na parede. O homem na sala era Sohan Sharma. Ele fora a melhor e última esperança de preencher o cargo de Analista. “Analista” com A maiúsculo. Só havia um.
– Senhor? – chamou o homem mais jovem do grupo.
Ele tinha quase 30 anos, mas seus cabelos longos e rebeldes e seu rosto infantil o faziam parecer bem mais novo. Seu pomo de adão subia e descia, deixando claro seu nervosismo.
Bunting massageou as têmporas.
– Estou ouvindo, Avery. – Ele parou para mastigar algumas pastilhas de antiácido. – Só espero que seja importante. Estou meio estressado, como você deve ter percebido.
– Sharma é um Cinco verdadeiro de acordo com todas as medidas aceitáveis. Só ficou desorientado quando chegou à Parede. – Avery olhou de relance para a sequência de telas do computador que monitorava as funções vitais e cerebrais de Sharma. – Sua atividade cerebral foi nas alturas. Um caso clássico de sobrecarga de informações. Isso começou um minuto depois que elevamos ao máximo a taxa de transferência da Parede.
– Sim, isso eu descobri sozinho. – Bunting apontou para Sharma, que agora chorava no chão. – Mas é esse o resultado que obtemos com um Cinco legítimo? Como é possível?
– O principal problema é que há exponencialmente mais dados sendo lançados – explicou Avery. – Dez mil horas de vídeo. Cem mil relatórios. Quatro milhões de registros de incidentes. A coleta de imagens por satélite fica na casa de milhares de terabytes, e isso depois da filtragem. A quantidade de sinais interceptados que exigem atenção alcança milhares de horas. Só as comunicações do campo de combate poderiam encher mil catálogos telefônicos. Isso entra a cada segundo todos os dias, em quantidades sempre crescentes, de um milhão de fontes diversas. Em comparação com os dados disponíveis de apenas vinte anos atrás, é como pegar um dedal cheio de água e o transformar em um milhão de Oceanos Pacíficos. Com o último Analista, tivemos que reduzir de modo considerável o fluxo de dados por pura necessidade.
– O que exatamente você está me dizendo, Avery? – perguntou Bunting.
O jovem tomou fôlego. A expressão em seu rosto era como a de um homem que acabara de perceber que poderia estar se afogando.
– Podemos ter esbarrado nos limites da mente humana.
Bunting olhou para os outros. Nenhum deles sustentou seu olhar. Correntes elétricas pareciam surgir no ar úmido que emanava do suor de seus rostos.
– Não há nada mais poderoso do que um cérebro humano totalmente utilizável em ação – argumentou Bunting em um tom calmo. – Eu não duraria dez segundos na Parede, porque uso talvez 11% da minha massa cinzenta. Mas um E-Cinco faz o cérebro de Einstein parecer o de um bebê. Nem mesmo um supercomputador chega perto dele. Isso é computação quântica em carne e osso. Pode operar linear, espacial e geometricamente, em todas as dimensões que precisarmos. É o mecanismo analítico perfeito.
– Eu entendo, senhor, mas...
A voz de Bunting se tornou mais estridente:
– Isso foi provado em todos os estudos que já fizemos. É o evangelho em que se baseia tudo que fazemos aqui. E, ainda mais importante, é o que nosso contrato de 2,5 bilhões de dólares diz que temos de fornecer e algo de que todos aqueles filhos da mãe da comunidade de inteligência dependem. Foi o que eu disse ao presidente dos Estados Unidos e a todo mundo logo abaixo dele na hierarquia. E agora você está me dizendo que não é verdade?
Avery manteve sua posição.
– O Universo pode estar em constante expansão, mas há limites para tudo. – Ele apontou para a sala atrás do vidro, onde Sharma ainda chorava. – E talvez seja para isso que estejamos olhando agora. O limite absoluto.
– Se o que você está dizendo é verdade, então estamos mais ferrados do que imaginamos – falou Bunting, irritado. – Todo o mundo civilizado está ferrado. Estamos fritos. Acabados. Viramos história. Fim. Os vilões venceram. Vamos todos para casa esperar pelo Armagedom. Viva o Talibã e a al-Qaeda, aqueles canalhas. Fim de jogo. A vitória é deles.
– Entendo sua frustração, senhor. Mas ignorar o óbvio nunca é um bom plano.
– Então me consiga um Seis.
O jovem pareceu atônito.
– Mas não existe um Seis.
– Ridículo! Era isso que pensávamos do Dois ao Cinco.
– Mas...
– Consiga a droga de um Seis. Sem discussões, sem desculpas. Apenas faça, Avery.
O pomo de adão recuou.
– Sim, senhor.
– E quanto a Sharma? – perguntou o homem mais velho.
Bunting se virou para o Analista fracassado, que soluçava.
– Siga o processo padrão de saída, faça-o assinar todos os documentos de praxe e deixe claro para ele que, se disser uma palavra sobre isso para alguém, será julgado por traição e passará o resto da vida em uma prisão federal.
Bunting saiu. A sucessão de imagens enfim parou e a sala ficou escura.
Sohan Sharma foi conduzido para uma van que o esperava. Dentro dela havia três homens. Assim que ele entrou, um dos homens passou um braço em volta do pescoço e o outro ao redor da cabeça de Sharma. Então os moveu bruscamente em direções opostas e Sharma caiu com o pescoço quebrado.
A van se afastou com o corpo do mero E-Cinco cujo cérebro simplesmente já não era bom o bastante.

NOVE MESES DEPOIS

1
O JATINHO DEU UM FORTE solavanco na pista em Portland, no Maine. Ergueu-se no ar e bateu no chão de novo com ainda mais força. Até mesmo o piloto deve ter se perguntado se seria possível manter a aeronave de 25 toneladas na pista. Como estava tentando vencer uma tempestade, o jovem piloto fizera a aproximação com inclinação e velocidade maiores do que era recomendado pelo manual da companhia aérea. As rajadas de vento trazidas pela frente fria faziam as asas do jato oscilar. O copiloto avisara aos passageiros que o pouso seria brusco e bastante desconfortável.
Ele estava certo.
O trem de pouso tocou o solo pela segunda vez e conseguiu aderência. Segundos depois, os pneus dianteiros da aeronave também estavam na pista. A velocidade e a inclinação com que o pouso foi realizado fizeram muitos dos 48 passageiros no jato se agarrarem nos braços de suas poltronas até ficarem com os nós dos dedos brancos, pronunciar algumas orações e até mesmo pegar os sacos para vomitar que ficavam no encosto do assento da frente. Quando os freios e o reverso entraram em ação e a aeronave desacelerou perceptivelmente, a maioria dos passageiros suspirou de alívio.
Contudo, um homem só acordou quando o avião taxiava para o pequeno terminal. A mulher alta e de cabelos escuros ao seu lado olhou preguiçosamente pela janela, nem um pouco abalada com a aproximação turbulenta e os solavancos da aterrissagem.
Depois que eles chegaram ao portão e o piloto desligou as turbinas, Sean King e Michelle Maxwell se levantaram e pegaram suas bolsas no compartimento de bagagem da cabine. Ao seguirem pelo corredor com os outros passageiros que desembarcavam, uma mulher com uma aparência nauseada comentou atrás deles:
– Puxa, essa foi uma aterrissagem difícil.
Sean olhou para ela, bocejou e massageou o pescoço.
– Foi?
A mulher pareceu surpresa e olhou para Michelle.
– Ele está brincando?
– Para quem já viajou no assento dobrável de um C-17 em baixa altitude, no meio de uma tempestade de raios, com quedas verticais de mil pés a cada dez segundos, tendo quatro veículos blindados acorrentados perto de você e perguntando-se se um deles ia se soltar e arrebentar a fuselagem e levar você junto, essa aterrissagem foi bastante tranquila – argumentou Michelle.
– Por que alguém faria isso? – perguntou a mulher, com os olhos arregalados.
– É o que eu me pergunto todos os dias – respondeu Sean sarcasticamente.
Tanto ele quanto Michele traziam as roupas, produtos de higiene pessoal e outros itens essenciais nas bagagens de mão. Mas precisavam parar na esteira para recolher uma caixa rígida comprida de quase 50 centímetros. Era de Michelle, que a pegou e pôs dentro de sua maleta de viagem.
Sean a olhou com uma expressão divertida.
– Você é a dona da menor mala despachada de todos os tempos.
– Enquanto não permitirem que pessoas responsáveis entrem em aviões com armas carregadas, terei de usar esse truque. Vá buscar o carro alugado. Voltarei em um minuto.
– Você tem licença para portar isso aqui?
– Vamos esperar que não seja necessário descobrir.
Ele ficou pálido.
– Você está brincando, não é?
– O Maine tem uma lei de porte clara. Desde que a arma esteja visível, posso portá-la sem uma licença.
– Mas você vai carregá-la em um coldre. Isto é, escondida. Na verdade, está escondida agora mesmo.
Ela abriu a carteira e lhe mostrou um cartão.
– Motivo pelo qual tenho uma licença de não residente válida para armas escondidas no grande estado do Maine.
– Como foi que você conseguiu? Só ficamos sabendo desse caso há uns dois dias. Você não poderia obter uma licença tão rápido. Eu verifiquei. Requer uma papelada enorme e a resposta demora sessenta dias.
– Meu pai é amigo do governador. Telefonei para meu pai. Ele telefonou para o governador.
– Ótimo.
Michelle foi ao banheiro feminino, entrou em uma cabine, abriu a caixa rígida e carregou rapidamente a pistola. Pôs a arma no coldre e caminhou para o estacionamento coberto adjacente ao terminal, onde ficavam as locadoras de automóveis. Lá encontrou Sean preenchendo a papelada do carro que seria usado na próxima etapa da viagem. Michele também registrou sua carteira de motorista na documentação, porque ela dirigiria durante a maior parte do tempo. Não que Sean reclamasse de dirigir, mas Michelle era controladora demais para deixá-lo fazer isso.
– Café – disse ela. – Tem um lugar nos fundos do terminal.
– Você tomou um copo gigantesco no voo.
– Já faz tempo. E será uma longa viagem. Preciso do estímulo da cafeína.
– Eu dormi. Posso dirigir.
Michelle tirou as chaves da mão dele.
– Acho que não.
– Ei, eu dirigi a limusine presidencial, está bem? – argumentou Sean.
Ela olhou para a etiqueta nas chaves do carro alugado.
– Então esse Ford híbrido não teria graça para você. Acho que vou precisar de um dia inteiro só para conseguir fazê-lo chegar a 100 por hora. Vou poupá-lo desse aborrecimento e da humilhação.
Michelle comprou um café preto extragrande. Sean, um donut com cobertura granulada, que comeu sentado no banco do carona. Limpou as mãos e empurrou o banco para trás o máximo possível no carro compacto. Ainda assim, com 1,88 metro, ficou desconfortavelmente encolhido. Ele acabou pondo os pés sobre o painel.
Notando isso, Michelle comentou:
– O air bag sai daí. Vai fazer seus pés atravessarem direto o vidro e eles serão amputados quando baterem no teto.
Sean olhou para ela, o cenho franzido obscurecendo suas feições normalmente calmas.
– Então não faça nada para ele sair.
– Não posso controlar os outros carros.
– Bem, você insistiu em ser o motorista, quero dizer, a motorista. Então faça o melhor que puder para me manter seguro e confortável.
– Sim, mestre – retrucou ela.
Depois de um quilômetro em silêncio, Michelle disse:
– Estamos parecendo um casal de velhos.
Sean olhou para ela de novo.
– Não somos velhos e não somos casados. A menos que você tenha armado alguma coisa sem que eu soubesse.
Ela hesitou e depois apenas disse:
– Mas nós dormimos juntos.
Sean ia responder, mas pensou melhor e apenas deu um grunhido.
– Isso muda as coisas – afirmou Michelle.
– Por quê?
– Porque agora não é só profissional. É pessoal. Rompemos a barreira.
Sean se aprumou, tirando os pés do perigoso alcance do air bag.
– E agora você está arrependida? Pelo que me lembro, a iniciativa foi sua. Você foi pra cima de mim nua.
– Eu não disse que estava arrependida, porque não estou.
– Nem eu. Aconteceu porque obviamente nós dois queríamos que acontecesse.
– Certo. Então como ficamos?
Sean se reclinou de novo no banco e olhou pela janela.
– Não sei direito.
– Ótimo, era exatamente o que eu queria ouvir.
Sean olhou para ela e notou a rigidez em seu maxilar.
– O fato de eu não saber direito em que pé ficamos não diminui nem banaliza o que aconteceu entre nós. É complicado.
– Sim, é complicado. Sempre é. Para os homens.
– Se é tão simples para as mulheres, então me diga o que acha que deveríamos fazer.
Como Michelle não respondeu, ele perguntou:
– Você quer fugir, encontrar um padre e oficializar tudo?
Michelle o olhou de relance e a frente do Ford deu uma leve guinada.
– Está falando sério? Você quer isso?
– Só estou dando ideias, já que você parece não ter nenhuma.
– Você quer se casar?
– Você quer?
– Isso realmente mudaria as coisas.
– Hum, sim, mudaria.
– Talvez devêssemos ir devagar.
– Talvez.
Ela deu um tapinha no volante.
– Desculpe por ter me estressado com você por isso.
– Esqueça. E acabamos de deixar Gabriel muito bem, com uma ótima família. Isso também foi uma grande mudança. Agora é melhor irmos devagar. Se formos rápido demais, poderemos cometer um grande erro.
Gabriel era um garoto de 11 anos do Alabama que ficara sob custódia temporária de Sean e Michelle depois que a mãe dele foi morta. Atualmente, ele vivia com a família de um agente do FBI que eles conheciam. O casal estava formalizando a adoção dele.
– Tudo bem – concordou ela.
– E agora temos um trabalho a fazer. Vamos nos concentrar nele.
– Então essa é sua lista de prioridades? O profissional vem antes do pessoal?
– Não necessariamente. Mas, como você disse, será uma longa viagem. E quero pensar em por que estamos indo para a única penitenciária federal de segurança máxima do país para loucos, ver um homem cuja vida está definitivamente por um triz.
– Estamos indo porque você é amigo do advogado dele.
– Essa parte eu entendi. Você leu sobre Edgar Roy?
Michelle assentiu.
– Um funcionário público que vivia sozinho na zona rural da Virgínia. Sua vida era bastante comum até a polícia descobrir os restos mortais de seis pessoas enterradas em seu celeiro. Então a vida dele se tornou tudo menos comum. As provas me parecem indiscutíveis.
Sean concordou com a cabeça.
– Roy foi encontrado em seu celeiro com a pá na mão, a calça suja de terra e os seis corpos enterrados em um buraco no qual aparentemente ele estava dando os últimos retoques.
– Vai ser meio difícil argumentar com isso no tribunal – comentou Michelle.
– Infelizmente Roy não é político.
– Por quê?
Sean sorriu.
– Se ele fosse, poderia desfiar essa história dizendo que na verdade estava tirando as pessoas do buraco para salvá-las, mas era tarde demais; elas já estavam mortas. E agora ele está sendo perseguido por ser um bom samaritano.
– Então Roy foi preso, mas não foi considerado apto para julgamento pela avaliação psicológica. Foi mandado para Cutter’s Rock. – Sean fez uma pausa. – Mas por que o Maine? A Virgínia não tinha instalações para ele?
– Por algum motivo, foi um caso federal. Envolveu o FBI. Quando é decretada a prisão preventiva, mas o acusado não é considerado apto para julgamento, é para lá que os federais o despacham. Algumas prisões federais de segurança máxima têm alas psiquiátricas, mas decidiram que Roy precisava de algo mais. O antigo St. Elizabeth’s de Washington virou sede do Departamento de Segurança Interna e o prédio novo deles não foi considerado seguro o suficiente. Então Cutter’s Rock era a única saída.
– Por que o nome estranho?
– “Rock” porque é um lugar rochoso e “cutter” é um tipo de embarcação. Afinal, o Maine é um estado com tradição marítima.
– Esqueci que você fosse especialista em náutica.
Michelle ligou o rádio e o aquecimento, tremendo.
– Meu Deus, que frio! E ainda nem estamos no inverno – exclamou, irritada.
– É o Maine. Pode ser frio em qualquer época do ano. Verifique a latitude.
– As coisas que se aprende ficando muito tempo em espaços fechados...
– Agora nós realmente parecemos um casal de velhos.
Ele abriu ao máximo sua saída de ar, puxou o zíper de seu casaco para cima e fechou os olhos.

2
COM O PÉ DE MICHELLE afundado no acelerador como de costume, o Ford voou pela Interestadual 95, passou pelas cidades de Yarmouth e Brunswick e seguiu na direção de Augusta, a capital do estado do Maine. Depois de Augusta, a próxima cidade grande seria apenas Bangor, e Michelle começou a olhar em volta. Havia sempre-vivas dos dois lados da rodovia. A lua cheia dava à floresta um brilho prateado. Eles passaram por uma placa alertando que poderia haver alces cruzando a rodovia.
– Alces? – disse ela, olhando de relance para Sean.
Ele não abriu os olhos.
– O alce é o animal típico do estado do Maine. Você não ia querer atropelar um. Pesa mais do que este carro. E é mal-humorado. Mata você em um piscar de olhos.
– Como você sabe? Já encontrou um?
– Não, mas sou um grande fã do Animal Planet.
Eles dirigiram por mais uma hora. Michelle examinava constantemente a área, da esquerda para a direita e de novo para a esquerda, como um radar humano. Esse era um hábito tão arraigado nela que, mesmo já tendo deixado o Serviço Secreto havia tanto tempo, não conseguia parar. Mas, sendo investigadora particular, talvez não quisesse parar. As coisas que uma pessoa observa a deixam prevenida. E estar prevenido nunca é ruim, particularmente se alguém tenta matar você, o que parecia acontecer com bastante frequência com ela e Sean.
– Tem alguma coisa errada aqui – disse Michelle.
Sean abriu os olhos.
– Como o quê? – perguntou, fazendo ele mesmo uma rápida avaliação.
– Estamos na Interestadual 95. Ela vai da Flórida ao Maine. É uma longa estrada asfaltada. Uma grande rota de viagem. Um local de passagem dos viajantes em férias da Costa Leste.
– Sim. E daí?
– Daí que o nosso carro é o único nas duas direções há pelo menos meia hora. E se estiver acontecendo uma guerra nuclear e ninguém tiver nos contado? – Michelle começou a procurar uma estação de rádio. – Preciso de notícias. Preciso de civilização. Preciso saber se somos os únicos sobreviventes.
– Quer se acalmar? Aqui é isolado. Só isso. Apesar de ser uma rodovia interestadual. Há muito espaço e pouca gente. A maior parte da população mora perto da costa, em Portland, de onde viemos. O resto do estado é uma grande extensão de terra com poucos seres humanos. O condado de Aroostook é maior do que Rhode Island e Connecticut juntos. Na verdade, o Maine é maior do que todos os outros estados da Nova Inglaterra juntos. Passando por Bangor e seguindo para o norte, fica cada vez mais isolado. A interestadual termina perto da cidade de Houlton. Então você segue pela Rota 1 pelo resto do caminho para o norte, até a fronteira do Canadá.
– O que há lá?
– Lugares como Presque Isle, Fort Kent e Madawaska.
– E alces?
– Suponho que sim. Felizmente não estamos indo para lá. É longe mesmo.
– Não podíamos ter ido de avião para Bangor? Tem um aeroporto lá, não é? Ou Augusta?
– Não havia voos diretos. A maioria dos voos disponíveis tinha duas ou três conexões. Um deles ia para o sul, para Orlando, antes de ir para o norte. Poderíamos ter pegado um avião em Baltimore, mas teríamos de fazer uma conexão em LaGuardia e isso é sempre imprevisível. E ainda teríamos de ir de carro até Baltimore, e a Interestadual 95 lá pode ser um pesadelo. É mais rápido e garantido assim.
– Você é uma fonte de informações úteis. Já esteve no Maine muitas vezes?
– Um dos ex-presidentes que protegi tinha uma casa de veraneio aqui.
– Walker’s Point, a casa de veraneio de George Bush?
– Exatamente.
– Mas isso fica no sul do Maine, em Kennebunkport. Nós o sobrevoamos a caminho de Portland.
– É uma bela área. Seguíamos Bush em nosso barco. Nunca conseguíamos alcançá-lo. Sujeito corajoso. Tem uma lancha de 32 pés chamada Fidelity III, com três motores que dão mais de 800 HP de potência juntos. O homem adorava navegar na velocidade máxima no Atlântico com o mar agitado. Tentávamos acompanhá-lo de Zodiac. Foi a única vez que vomitei em serviço.
– Mas aquela área não é tão isolada quanto esta – disse Michelle.
– Não, há muito mais gente lá. – Ele olhou o relógio. – E está tarde. A maioria das pessoas aqui provavelmente se levanta ao amanhecer e vai para o trabalho. Isso significa que já devem estar na cama. – Ele bocejou. – Como eu gostaria de estar.
Michelle examinou o GPS.
– Nas proximidades de Bangor, sairemos da interestadual e seguiremos para o leste na direção da costa.
Ele assentiu com a cabeça.
– Entre as cidades de Machias e Eastport. Bem perto da água. Há muitas estradas secundárias. Não é fácil chegar, o que faz sentido, porque não será fácil para um maníaco homicida sair de lá se conseguir fugir.
– Alguém já conseguiu fugir de Cutter’s Rock?
– Não que eu saiba. E, se fugiu, teve duas opções: a natureza selvagem ou as águas frias do golfo do Maine. Nenhuma das duas é muito agradável. E os habitantes do Maine são durões. Nem mesmo os maníacos homicidas desejariam se deparar com eles.
– Então vamos nos encontrar com Bergin esta noite?
– Sim. Na pousada em que ficaremos. – Sean olhou o relógio. – Daqui a cerca de duas horas e meia. E visitaremos Roy às dez da manhã.
– Pode me contar de novo como conheceu Bergin?
– Ele foi meu professor de direito na Universidade da Virgínia. Um grande sujeito. Trabalhava como advogado autônomo antes de começar a lecionar. Poucos anos depois de eu me formar, abriu o escritório de advocacia. Como advogado de defesa, obviamente. O escritório fica em Charlottesville.
– Como ele acabou representando um psicopata como Edgar Roy?
– Acho que ele é especializado em casos extremamente difíceis. Não sei qual é sua ligação com Roy. E presumo que ele também nos falará sobre isso.
– Você nunca explicou por que Bergin nos chamou.
– Não expliquei porque não sei direito. Ele telefonou, disse que estava fazendo progresso no caso de Roy e precisava que algumas coisas fossem investigadas por pessoas de confiança para poder levar o caso a julgamento.
– Que tipo de progresso? Pelo que sei sobre o caso, só estão esperando ele recuperar a razão para condená-lo e executá-lo.
– Não sei qual é a teoria de Bergin. Ele não quis falar pelo telefone.
Michelle deu de ombros.
– Acho que logo descobriremos.
Eles saíram da interestadual e Michelle conduziu o Ford para leste por estradas cada vez mais sinuosas, onde ventava muito. Ao se aproximarem do oceano, o cheiro de maresia invadiu o carro.
– Peixe, meu favorito – disse ela sarcasticamente.
– Acostume-se com o cheiro. Está por toda parte aqui.
Michelle calculava que eles estavam a cerca de trinta minutos do destino, em um trecho da estrada particularmente isolado, quando a noite prateada foi iluminada pelas luzes de outro carro. Só que esse carro não estava na estrada, mas no acostamento. Michelle reduziu automaticamente a velocidade enquanto Sean abaixava o vidro para olhar.
– Pisca-alerta – disse ele. – Alguém enguiçou.
– Deveríamos parar?
Ele pensou sobre isso.
– Acho que sim. Talvez nem tenha sinal de celular aqui. – Sean pôs a cabeça para fora para ver melhor. – É um Buick. Duvido que alguém fosse usar um Buick para atrair motoristas inocentes para uma armadilha.
Michelle tocou na arma no coldre.
– Duvido que a gente se qualifique como motoristas inocentes.
Ela desacelerou o Ford e foi encostando atrás do outro carro. As luzes de alerta continuavam a piscar. Na vastidão da área costeira do Maine, aquilo parecia um pequeno incêndio, com as chamas tremulando ao vento.
– Tem alguém no banco do motorista – notou Michelle, pondo o Ford em ponto morto. – É a única pessoa que consigo ver.
– Então pode estar com receio de nós. Vou sair e tranquilizá-la.
– Vou atrás, caso haja alguém escondido no carro que não queira ser tranquilizado.
Sean pôs as longas pernas para fora e foi se aproximando lentamente do carro pelo lado do carona. Seus pés pisaram ruidosamente no estreito acostamento de cascalho. Sua respiração produzia nuvens no ar gelado. De algum lugar entre as árvores, ele ouviu o grito de um animal e por um momento se perguntou se era um alce. O Animal Planet não havia deixado claro qual era o som de um alce, e Sean não tinha nenhum interesse em descobrir.
– Precisa de ajuda? – gritou ele.
As luzes de alerta continuavam a piscar. Nenhuma resposta.
Sean olhou para o celular em sua mão. O dele tinha sinal.
– O carro enguiçou? Quer que a gente chame um reboque?
Nada. Sean chegou ao carro e bateu na janela.
– Olá. Você está bem?
Ele viu a silhueta do motorista pela janela. Era um homem.
– O senhor está bem?
O homem não se mexeu.
O próximo pensamento de Sean foi que se tratava de uma emergência médica. Talvez um ataque cardíaco. Uma névoa marinha havia ocultado a luz da lua. Estava tão escuro dentro do veículo que Sean não conseguiu distinguir muitos detalhes. Ouviu uma porta de carro se abrir. Virou-se e viu Michelle sair com a mão na coronha da arma. Ela o olhou, esperando que ele dissesse algo.
– Acho que o homem precisa de atendimento médico.
Ela assentiu e avançou; suas botas fizeram barulho no asfalto.
Sean deu a volta até o lado do motorista e bateu na janela. Tudo o que conseguiu ver na escuridão foi a silhueta de um homem. O pisca-alerta iluminava o interior do carro, projetando um vermelho brilhante antes de apagar de novo, como se o veículo esquentasse em um segundo e esfriasse no outro. Mas isso não ajudava Sean a ver dentro do carro. Só dificultava mais. Ele bateu outra vez no vidro.
– Senhor? Está tudo bem?
Sean apertou a maçaneta. Estava destrancada. Abriu a porta. O homem caiu para fora, preso ao carro apenas pelo cinto de segurança. Sean agarrou seu braço e o sentou enquanto Michelle corria.
– Ataque cardíaco? – perguntou.
Sean olhou o rosto do homem.
– Não – afirmou.
– Como você sabe?
Ele usou a luz do celular para iluminar o ferimento à bala entre os olhos do homem. Havia sangue e massa encefálica por todo o interior do carro.
Michelle se aproximou e disse:
– A arma estava encostada na pele. Dá para ver pela marca de queimadura da boca do cano e da mira. Não acho que foi um alce que fez isso.
Sean não disse nada.
– Procure algum documento na carteira dele – falou Michelle.
– Não preciso.
– Por que não? – perguntou ela.
– Porque eu o conheço – respondeu Sean.
– O quê? Quem é ele?
– Ted Bergin. Meu antigo professor e advogado de Edgar Roy.

3
A POLÍCIA LOCAL CHEGOU PRIMEIRO. Um único oficial do condado de Washington, em um V8 de fabricação americana amassado e empoeirado, mas resistente, com uma série de antenas de comunicação instaladas no porta-malas. Ele saiu da radiopatrulha com uma das mãos na arma de serviço e o olhar fixo em Sean e Michelle. Aproximou-se cautelosamente. Eles explicaram o que havia acontecido e o policial examinou o corpo, murmurou a palavra “droga” e pediu reforços rapidamente.
Quinze minutos depois, duas radiopatrulhas pararam atrás deles. Policiais jovens, altos e magros saíram dos carros verde-azulados. Seus uniformes azuis brilhavam como gelo iluminado mesmo à luz fraca e nebulosa. A cena do crime foi isolada e eles estabeleceram um perímetro de proteção. Sean e Michelle foram interrogados pelos policiais. Um deles digitou as respostas no laptop que pegara na radiopatrulha.
Quando Sean lhes disse quem eles eram, por que estavam ali e, mais importante, quem era Ted Bergin e que ele representava Edgar Roy, um dos policiais se afastou e usou seu rádio, presumivelmente para pedir mais ajuda. Enquanto eles esperavam reforços, Sean perguntou:
– Vocês sabem sobre Edgar Roy?
– Todos aqui sabem – retrucou um deles.
– Por quê? – perguntou Michelle.
– O FBI chegará aqui o mais rápido possível – falou outro policial.
– FBI? – exclamou Sean.
O policial assentiu com a cabeça e explicou:
– Roy é um prisioneiro federal. Recebemos instruções claras de Washington. Se algo lhe acontecesse, deveríamos chamá-los. E foi exatamente o que fizemos. Bem, eu disse ao tenente e ele os chamou.
– Onde fica o escritório do FBI mais próximo? – perguntou Michelle.
– Boston.
– Boston? Mas estamos no Maine.
– O FBI não mantém um escritório oficial no Maine. Tudo passa por Boston.
– Boston é muito longe. Temos de ficar aqui até eles chegarem? Estamos bastante cansados – exasperou-se Sean.
– Nosso tenente está a caminho. Pode falar com ele sobre isso.
Vinte minutos depois, o tenente chegou, e não foi solidário.
– Apenas fiquem onde estão – foi tudo que disse antes de se afastar para conversar com seus homens e examinar a cena do crime.
A equipe de peritos chegou alguns minutos depois, pronta para ensacar e etiquetar. Sean e Michelle ficaram sentados no capô do Ford observando o processo. Bergin foi oficialmente declarado morto por um homem que Sean presumiu ser um investigador forense ou médico-legista – ele não conseguia se lembrar de qual sistema o Maine usava. Ele e Michelle deduziram entreouvindo a conversa entre os técnicos e policiais, que a bala ainda estava na cabeça do morto.
– Sem orifício de saída, marca de contato, provavelmente arma de pequeno calibre – observou Michelle.
– Mas ainda assim fatal – respondeu Sean.
– Tiros à queima-roupa na cabeça geralmente são. Esfacelam o crânio, o tecido cerebral é pulverizado pela onda de energia cinética e há forte hemorragia, seguida de falência dos órgãos. Tudo acontece em segundos. Morte.
– Conheço o processo, obrigado – respondeu ele secamente.
Sentados, Sean e Michelle notaram que os policiais do Maine de vez em quando olhavam para eles.
– Somos suspeitos? – perguntou Michelle.
– Todos são suspeitos até prova em contrário.
Algum tempo depois, o tenente se aproximou e disse:
– O coronel está a caminho.
– E quem é o coronel? – perguntou Michelle educadamente.
– O chefe da polícia estadual do Maine, senhora.
– Está certo. Mas já demos nossas declarações – disse ela.
– Então vocês conheciam o morto?
– Sim – respondeu Sean.
– E o seguiram até aqui?
– Não o seguimos. Expliquei isso para seus policiais. Viemos nos encontrar com ele aqui.
– Eu gostaria que explicasse isso para mim, senhor.
OK, somos suspeitos, pensou Sean.
Ele contou para o tenente todos os passos da viagem deles até ali.
– Então está dizendo que não sabiam que ele estava aqui? Mas por acaso foram os primeiros a chegar à cena do crime?
– Isso mesmo – respondeu Sean.
O homem inclinou seu chapéu de aba larga para trás e refletiu:
– Pessoalmente, não gosto de coincidências.
– Eu também não – concordou Sean. – Mas às vezes elas acontecem. E não há muitas casas ou pessoas aqui. Ele ia para o mesmo lugar que nós, pela mesma estrada. E está tarde. Se era para ser encontrado, provavelmente seria por nós.
– Então no final das contas a coincidência não é tão grande assim – acrescentou Michelle.
O homem não parecia estar ouvindo. Ele olhava para o volume sob o casaco dela. Pôs a mão na própria arma e deu um baixo assobio, o que trouxe cinco de seus homens imediatamente para seu lado.
– A senhora está portando uma arma? – perguntou.
Os outros policiais ficaram tensos. Sean percebeu pelos olhares temerosos dos dois primeiros policiais a chegarem à cena do crime que eles teriam sérios problemas por deixarem escapar um fato tão óbvio.
– Estou – respondeu ela.
– Por que meus homens não sabiam disso?
Ele deu um olhar prolongado para os dois policiais, que estavam pálidos como a lua.
– Eles não perguntaram – respondeu ela.
O tenente sacou sua pistola. Um instante depois, havia seis armas apontadas para Sean e Michelle. Todas engatilhadas.
– Esperem – disse Sean. – Ela tem uma licença. E a arma não foi disparada.
– Vocês dois, cruzem as mãos atrás da cabeça. Agora.
Eles obedeceram.
A arma de Michelle foi apanhada e examinada e eles passaram por uma revista em busca de mais armas.
– Carga completa, senhor – disse um dos policiais para o tenente. – Não foi disparada recentemente.
– Sim, mas não sabemos há quanto tempo o homem está morto. E só foi usada uma bala. Bastava repô-la para o pente ficar cheio. Isso seria muito fácil.
– Eu não atirei nele – afirmou Michelle.
– E se tivéssemos atirado, acha que ficaríamos aqui e chamaríamos a polícia? – acrescentou Sean.
– Não cabe a mim dizer – rebateu o tenente, entregando a arma de Michelle para um dos seus homens. – Ensaque e etiquete.
– Eu realmente tenho licença de porte – disse Michelle.
– Me deixe ver.
Ela a estendeu para o tenente, que a olhou rapidamente antes de entregá-la aos homens.
– A licença não faz diferença se você tiver usado a arma para matar aquele homem.
– O morto tem um ferimento de entrada de pequeno calibre e nenhum orifício de saída – explicou Michelle. – Um tiro a uma distância intermediária teria deixado pólvora na pele. Aqui a pólvora obviamente penetrou na ferida. A boca do cano queimou a pele. Parece ser de um calibre 22 ou talvez 32. O 32 afetaria uma área de 8 milímetros. Minha arma teria deixado um orifício quase 50% maior do que isso. Na verdade, se eu tivesse dado um tiro à queima-roupa, ele teria atravessado o cérebro e o apoio para cabeça do assento, estilhaçado a janela de trás e seguindo por cerca de um quilômetro e meio.
– Conheço as características da arma, senhora – disse o tenente. – Essa é uma Heckler & Koch calibre 45, a mesma que usamos na polícia estadual.
– Na verdade, a minha é uma versão melhorada da que vocês acabaram de apontar para nós.
– Melhorada? Como?
– Sua arma é de um modelo mais antigo e básico. Minha Heckler & Koch é mais ergonômica e, por causa do novo design, tem um pente com capacidade de dez balas em vez de doze, como a sua. A coronha texturizada com encaixe para os dedos permite que ela seja posicionada mais baixo entre o polegar e o indicador, o que se traduz em melhor controle e administração do coice. Tem também trava ambidestra alongada e trilho universal Picatinny, em vez do trilho USP que você usa para acessórios. Tem um cano poligonal com anel de vedação em O. É capaz de derrubar qualquer coisa que ande sobre dois pés, tudo isso num modelo compacto de meros 794 gramas. E a arma é fabricada do outro lado da fronteira, em New Hampshire.
– Entende muito de armas, senhora?
– Ela é uma aficionada – respondeu Sean, vendo a crescente raiva nos olhos de sua parceira com o tom condescendente do policial.
– Por quê? – perguntou ela. – Mulheres não podem entender de armas?
O tenente sorriu, tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos loiros.
– Nesta parte do Maine, quase todo mundo sabe usar uma arma. Na verdade, minha irmã mais nova atira melhor do que eu.
– Veja só! – disse Michelle, sua raiva rapidamente diminuindo com a franqueza dele. – E pode testar minhas mãos em busca de resíduo de pólvora. Não vai encontrar nada.
– Você poderia ter usado luvas – salientou ele.
– Eu podia ter feito muitas coisas. Quer fazer a análise de resíduo de pólvora ou não?
Ele fez sinal para um dos técnicos, que realizou o teste em Michelle e Sean e fez a análise ali mesmo.
– Limpo – declarou ele.
– Uau, que surpresa! – comentou Michelle.
– Então vocês são investigadores particulares? – perguntou o tenente.
Sean assentiu com a cabeça e explicou:
– Berger nos pediu para ajudar no caso de Edgar Roy.
– Ajudar no quê? O homem é tão culpado quanto parece.
– Como você falou, não cabe a nós dizer – observou Sean.
– Vocês são licenciados no Maine?
– Preenchemos a papelada e pagamos a taxa – explicou Sean. – Estamos esperando a resposta.
– Então isso é um não? Vocês não são licenciados?
– Bem, ainda não fizemos nenhum trabalho investigativo. Só tomamos conhecimento dele. Apresentamos o requerimento o mais rápido que pudemos. As jurisdições onde somos licenciados têm uma relação de reciprocidade com o Maine. Isso é só uma formalidade. Vamos obter a aprovação.
– Investigadores particulares precisam de formação especial. Qual é a de vocês? Militar? Segurança pública?
– Serviço Secreto dos Estados Unidos – respondeu Sean.
O tenente olhou para Sean e depois Michelle com um respeito renovado. Seus homens fizeram o mesmo.
– Vocês dois?
Sean assentiu com a cabeça.
– Já cuidaram da proteção do presidente?
– Sean sim – contou Michelle. – Não cheguei à Casa Branca antes de deixar o Serviço Secreto.
– Por que saíram?
Sean e Michele trocaram breves olhares. Sean respondeu:
– Cansamos daquilo tudo. Queríamos fazer outra coisa.
– É justo.
Quarenta e cinco minutos depois, chegou outro carro. O tenente olhou e disse:
– É o coronel Mayhew. Deve ter afundado o pé no acelerador. Acho que estava perto de Skowheagan esta noite.
Ele se apressou a cumprimentar o chefe. O coronel era alto e tinha ombros largos. Na casa dos 50 anos, mantinha o corpo esbelto. Seus olhos eram calmos e atentos; seus modos, rápidos e profissionais. Sean achou que ele parecia um pôster de recrutamento policial num estilo Hollywood.
O comandante foi inteirado da situação, deu uma olhada no corpo e se dirigiu a Sean e Michelle. Depois das apresentações, Mayhew perguntou:
– Quando foi a última vez que tiveram contato com o Sr. Bergin?
– Hoje, por volta das 17h30. Um pouco antes de entrarmos no avião.
– O que ele disse?
– Que se encontraria conosco na pousada onde vamos ficar.
– Qual pousada?
– Martha’s Inn, perto de Machias.
O coronel aprovou a escolha com um aceno de cabeça e completou:
– Confortável, e a comida é boa.
– Bom saber – comentou Michelle.
– Mais alguma coisa de Bergin? E-mails? Mensagens de texto?
– Nada. Verifiquei antes de entrarmos no avião. E quando aterrissamos. Tentei telefonar para Bergin por volta das 21h, mas ele não atendeu. A ligação caiu direto na caixa postal, e eu deixei uma mensagem. Tem alguma ideia de quanto tempo faz que ele morreu?
O coronel ignorou a pergunta e continuou:
– Viram outros carros?
– Nenhum além do de Bergin – respondeu Sean. – Este trecho da estrada é muito vazio. E não vimos nenhuma evidência de outro carro ter parado por perto. Se bem que, a não ser que estivesse com algum vazamento, o carro provavelmente não deixaria rastros.
– Então vocês não têm a menor ideia de aonde Bergin iria esta noite?
– Bem, presumo que ia se encontrar conosco na Martha’s Inn.
– Sabe onde Bergin ia ficar? Na Martha’s?
– Não, parece que não tinha mais vagas – falou Sean.
Ele procurou em seus bolsos e pegou seu caderno de anotações. Folheou algumas páginas.
– Gray’s Lodge. Era lá que ele ia ficar.
– Certo, conheço essa também. É mais perto de Eastport. Não tão boa quanto a Martha’s.
– Parece que você viaja bastante – apontou Michelle.
– Parece que sim – respondeu o coronel impassivelmente. Ele olhou para o carro. – O único problema é que, se Bergin estivesse vindo de Eastport, o carro dele estaria virado na outra direção. Vocês vinham do sudoeste. Eastport fica a noroeste. E ele nunca teria vindo até aqui. A saída para a Martha’s fica 8 quilômetros adiante nesta estrada.
Sean olhou para o veículo e depois para o coronel. Finalmente falou:
– Não sei o que dizer. Foi assim que o encontramos. Parado como se estivesse no mesmo sentido que o nosso.
– Complicado – disse o policial.
Sean olhou para o Escalade preto que freou ruidosamente. Quatro pessoas com casacos do FBI literalmente pularam para fora. A cavalaria federal acabara de chegar de Boston.
E ficará ainda mais complicado, pensou ele.

4
O NOME DO AGENTE PRINCIPAL era Brandon Murdock. Ele tinha mais ou menos a mesma altura de Michelle, cerca de 1,80 metro. Magro como um palito, seu aperto de mão era surpreendentemente forte. Os cabelos eram grossos, mas cortados segundo os padrões do FBI. As sobrancelhas pareciam taturanas. O agente tinha uma voz profunda e um estilo sucinto e eficiente. Primeiro o tenente o inteirou da situação. Depois passou alguns minutos sozinho com o coronel Mayhew, que era o representante da polícia do Maine nível mais alto no local. Examinou o corpo e o carro. Então se aproximou Sean e Michelle.
– Sean King e Michelle Maxwell – chamou.
Algo em seu tom fez Michelle perguntar:
– Já ouviu falar de nós?
– Os rumores da capital chegam ao norte.
– É mesmo? – disse Sean.
– O agente Chuck Waters e eu frequentamos a Academia juntos e ainda mantemos contato.
– Ele é um bom sujeito.
– Sim, é.
Murdock olhou de relance para o carro. O bate-papo havia terminado.
– Então, o que podem me dizer? – perguntou o agente.
– Homem morto com um tiro na cabeça – respondeu Sean. – Estava aqui representando Edgar Roy. Talvez alguém não gostasse disso.
Murdock assentiu com a cabeça e completou:
– Ou talvez tenha sido um crime comum.
– Há dinheiro ou objetos de valor faltando? – perguntou Michelle.
– Não que tenhamos conhecimento – respondeu o tenente. – Carteira, relógio e telefone intactos.
– Então provavelmente não foi um crime comum.
– E talvez ele conhecesse quem o atacou – sugeriu Sean.
– Por que diz isso? – indagou Murdock rapidamente.
– A janela do lado do motorista.
– O que tem ela?
Sean apontou para o carro e perguntou:
– Importa-se?
Eles andaram até o Buick.
Enquanto todos olhavam, Sean apontou para a janela e depois para o corpo.
– Ferimento de entrada na cabeça, muito sangue espirrado. Não há orifício de saída, por isso todo o sangue saiu da testa. Jorrou abundantemente. Há sangue no volante, em Bergin, no painel, no banco e no para-brisa. Até eu tenho um pouco nas mãos, de quando abri a porta do carro e Bergin caiu para fora. – Ele apontou para a janela limpa. – Mas não aqui.
– Porque estava aberta quando o tiro foi disparado – apontou Michelle, enquanto Murdock assentia com a cabeça.
– E então o assassino a fechou, porque obviamente Bergin não conseguiria subi-la – completou Murdock. – Por quê?
– Não sei. Estava escuro, por isso ele pode não ter se dado conta de que a janela estava limpa, ou teria espalhado um pouco de sangue nela para nos confundir. Mas agora a análise de manchas de sangue atingiu um nível de sofisticação forense tão elevado que a polícia perceberia o truque facilmente. E talvez o atirador também tenha ligado o pisca-alerta para nos fazer pensar que Bergin estava enguiçado ou parado por vontade própria. Mas você encostar o carro e baixar a janela em uma estrada vazia a esta hora da noite? Bem, isso é muito significativo.
– Tem razão. Significa que você conhece a pessoa – concluiu Murdock. – Boa observação.
Sean olhou para os policiais e complementou:
– Bem, poderia haver outra explicação. Talvez a pessoa que o parou estivesse de uniforme.
Todos os policiais estaduais olharam para ele com irritação. Mayhew retrucou, indignado:
– Não foi um dos meus homens, isso eu posso garantir.
– Sou o único na área esta noite. E certamente não fui eu quem atirou no homem – afirmou o policial do condado.
– Não estou acusando ninguém – observou Sean.
– Mas ele tem razão – disse Murdock. – Podia ter sido alguém de uniforme.
– Só que um impostor – emendou Michelle.
– Seria difícil conseguir isso por aqui – argumentou Mayhew. – Arranjar o uniforme e a radiopatrulha. E ele poderia ser visto. Um grande risco.
– Ainda assim, é algo que temos de checar – refletiu Murdock.
– Há quanto tempo ele está morto? – perguntou Sean.
Murdock olhou de relance para um dos técnicos forenses, que respondeu:
– Neste momento, eu diria que há umas quatro horas. Terei um número mais exato depois da autópsia.
Sean olhou para seu relógio.
– Isso significa que chegamos trinta minutos depois do assassino. Não vimos nenhum carro passar por nós, portanto quem fez isso deve ter ido na outra direção ou saído da estrada.
– A menos que estivesse a pé – disse Murdock, olhando ao redor para a paisagem rural escura. – Um impostor uniformizado provavelmente estaria de carro. Duvido que Bergin tivesse parado apenas porque viu alguém uniformizado andando pela estrada.
Mayhew pigarreou e informou:
– Meus homens estabeleceram um perímetro de busca em todas as direções. Não encontraram nada. Faremos uma busca mais completa pela manhã.
– Onde fica a entrada mais perto daqui? – perguntou Sean.
– A cerca de 800 metros naquela direção – informou o tenente, apontando para o leste.
– O atirador pode ter ido a pé até seu carro, parado lá – disse Murdock.
– Seria muito arriscado – opinou Michelle. – Deixar um carro parado em uma estrada como esta despertaria suspeitas imediatamente. Ele não poderia ter certeza de que um policial não pararia para checar.
– Então talvez tivesse um cúmplice – sugeriu Murdock. – Esperando no carro. O atirador andou pela floresta para evitar ser visto por alguém na estrada. Entrou no carro e eles foram embora.
Sean olhou para o policial do condado de Washington que fora o primeiro a chegar à cena do crime.
– Viu outro carro parado durante sua patrulha desta noite ou a caminho daqui?
O policial fez que não com a cabeça e disse:
– Mas eu vim da mesma direção de vocês.
– Temos carros patrulhando as estradas próximas à procura de alguém ou algo suspeito. Mas já se passaram horas e o assassino poderia estar muito longe. Ou escondido em algum lugar – disse Mayhew.
– Para onde será que Bergin ia? – perguntou Murdock.
– Bem, ele tinha marcado de encontrar conosco na Martha’s Inn – respondeu Sean. – Mas agora sabemos que estava seguindo na direção errada. Ele teria virado para a Martha’s Inn antes de chegar a este ponto. Isso se estivesse vindo de Eastport.
Murdock pareceu pensativo.
– Certo, portanto ainda não sabemos aonde ele ia. Se não era ao encontro de vocês, para onde? E para se encontrar com quem?
– Bem, talvez simplesmente a resposta seja que, por algum motivo, ele saiu de algum lugar a sudoeste daqui para se encontrar conosco na Martha’s Inn. Isso o poria na mesma estrada e direção que nós – cogitou Michelle.
Todos consideraram a hipótese. Murdock olhou para o coronel e perguntou:
– Alguma ideia de aonde ele teria ido se essa teoria estiver certa?
Mayhew coçou o nariz e respondeu:
– Não muito longe, a menos que estivesse visitando a casa de alguém.
– Que tal Cutter’s Rock? – sugeriu Sean.
– Se ele tivesse saído da Gray Lodge para ir a Cutter’s Rock, não estaria nesta estrada – afirmou o tenente, ao que Mayhew anuiu com um sinal de cabeça.
– E Cutter’s Rock está fechada agora – acrescentou Mayhew. – Não são permitidas visitas à noite.
Murdock se virou para Sean e questionou:
– Ele falou com vocês sobre conhecer alguém aqui?
– A única pessoa de quem falou conosco foi Edgar Roy.
– Certo – disse Murdock. – Seu cliente.
O modo como ele disse isso fez Sean completar:
– Sabemos que Roy está na lista de observação federal. Que se acontecesse algo remotamente relacionado com ele, vocês deveriam ser chamados.
O rosto de Murdock revelou sua raiva por Sean saber disso.
– Onde ouviu isso? – perguntou, irritado.
Atrás de si, Sean quase pôde sentir o calor subindo no rosto do policial que deixara escapar o fato.
– Acho que Bergin me contou há alguns dias. Vocês estavam sabendo que ele era advogado de Roy, certo?
Murdock se afastou.
– Muito bem, vamos terminar de analisar a área. Quero fotos, vídeo, cada fibra, cabelo, gota de sangue, impressão digital, resíduo de DNA, pegada e tudo o mais que tiver por aí. Vamos logo com isso.
Michelle se virou para Sean e ironizou:
– Acho que ele não nos ama mais.
– Podemos ir? – perguntou Sean, em voz mais alta.
Murdock se virou de volta e disse:
– Podem, depois que nós tirarmos suas impressões digitais, amostras de DNA e impressões de seus sapatos.
– Para sermos excluídos da lista de suspeitos, é claro – disse Sean.
– Prefiro deixar que as evidências me guiem – respondeu Murdock.
– Eles já examinaram minha arma – afirmou Michelle. – E nós dois passamos por um teste de detecção de pólvora.
– Não me importa – retrucou Murdock.
– Fomos contratados por Bergin. É claro que não tínhamos nenhum motivo para matá-lo – disse Sean.
– Bem, neste momento só temos a palavra de vocês dois de que estavam trabalhando para ele. Teremos de verificar.
– Tudo bem. E depois de colherem nossas amostras?
– Vocês vão para onde estiverem hospedados. Mas não podem deixar a área sem minha permissão.
– Você pode fazer isso? – perguntou Michelle. – Não fomos acusados de nada.
– São testemunhas do crime.
– Não vimos nada que vocês não viram – contrapôs Sean.
– Não fiquem discutindo comigo – retrucou Murdock. – Porque vão perder. Sei que Chuck pensa que vocês são ótimos, mas sempre achei que ele tirava conclusões rápido demais. Portanto, na minha opinião, vocês ainda estão sendo avaliados.
– É muita cortesia profissional – resmungou Michelle.
– Estamos numa investigação de homicídio, não uma relação de amizade. Se eu devo algo a alguém, é ao morto ali.
Ele se afastou.
– Realmente acho que ele não nos ama mais – concluiu Michelle.
– Não posso culpá-lo. Estávamos na cena. Ele não nos conhece. Está sob pressão. Muita pressão. E tem razão. Seu trabalho é encontrar o assassino, não fazer amizade.
– Eles chegaram em minutos. De Boston. Chegaram tão rápido que estou achando que vieram de helicóptero, não de avião. Edgar Roy está numa posição bem alta na lista de prioridades.
– E eu me pergunto por quê.
Quando eles voltavam para o carro, depois de passarem por análises de dois técnicos, o tenente se aproximou.
– Um dos meus rapazes me contou que foi ele quem falou com vocês sobre o FBI. Obrigado por não terem dedurado o cara – agradeceu ele. – Isso poderia realmente prejudicar a carreira dele.
– Não há de quê – respondeu Michelle. – Qual é seu nome?
– Eric Dobkin.
– Bem, Eric – disse Sean –, parece que o FBI está dando seu típico showzinho de gorila furioso, por isso a gente precisa se ajudar.
– Como?
– Contaremos a vocês o que descobrirmos.
– Acha que isso é uma boa ideia? Quero dizer, eles são o FBI.
– Acho que é uma boa ideia até que se prove o contrário.
– Mas é uma via de mão dupla – acrescentou Michelle. – Ajudamos vocês e vocês nos ajudam.
– Mas agora é uma investigação federal, senhora.
– Então a polícia estadual do Maine simplesmente bota o rabo entre as pernas e foge? É esse seu lema?
Ele se endireitou.
– Não, senhora. Nosso lema é...
– Semper Aequus. Sempre justo. Eu pesquisei.
– Também: Integridade, Lealdade, Compaixão e Excelência – disse Dobkin. – Esse é nosso conjunto de valores essenciais. Não sei como as coisas funcionam em Washington, mas aqui nós levamos isso tudo muito a sério.
– Mais um motivo para trabalharmos juntos.
– Mas trabalharmos no quê? Vocês foram contratados por um homem que morreu.
– E agora temos de descobrir quem o matou.
– Por quê?
– Ele era meu amigo. – Sean se inclinou para mais perto do policial. – E não sei como vocês agem no Maine, mas, no lugar de onde viemos, não abandonamos nossos amigos porque alguém os matou.
Dobkin deu um passo para trás.
– Não, senhor.
Michelle sorriu e disse:
– Então tenho certeza de que o veremos. Enquanto isso – continuou ela, entregando-lhe um cartão de visita –, aí tem números de telefone suficientes para nos encontrar.
Michelle ligou o carro, pisou no acelerador e o Ford se afastou rapidamente.

5
ELES DORMIRAM.
Em quartos separados.
A proprietária era uma mulher de 73 anos, chamada Sra. Burke, que seguia a ideia antiquada de só deixar no mesmo quarto casais que usassem aliança.
Michelle dormiu pesadamente. Sean, não. Após apenas duas horas de sono intermitente, virando-se de um lado para o outro, ele se levantou e olhou pela janela. Ao norte e ainda mais perto da costa, ficava Eastport. Os raios do sol logo fariam cócegas na cidade, a primeira nos Estados Unidos a receber a luz da manhã todos os dias. Sean tomou um banho e se vestiu. Uma hora depois, foi ao encontro de uma sonolenta Michelle para tomar o café da manhã. A Martha’s Inn era singular e acolhedora e ficava a cinco minutos de caminhada da costa. As refeições eram servidas em uma pequena sala revestida de pinho junto à cozinha. Sean e Michelle se sentaram em cadeiras com encostos de ripas de madeira e assentos de palhinha. Tomaram duas xícaras de café cada um, comeram ovos, bacon e biscoitos muito quentes que já tinham sido generosamente cobertos de manteiga pela cozinheira.
– Acho que vou ter de correr uns 15 quilômetros para queimar essa gordura – comentou Michelle, servindo-se de uma terceira xícara de café.
Sean olhou para o prato vazio dela e disse:
– Ninguém a obrigou a comer tanto.
– Não precisava. Estava delicioso – falou ela e, ao notar o jornal local nas mãos de Sean, perguntou: – Nada sobre Bergin, não é? Aconteceu muito tarde.
Sean pôs o jornal de lado.
– É. – Ele apertou o casaco esportivo junto ao corpo. – A manhã está muito fria. Eu deveria ter trazido roupas mais quentes.
– Não verificou a latitude, marinheiro? Estamos no Maine. Aqui pode fazer frio em qualquer época do ano.
– Nenhuma mensagem do nosso amigo Dobkin?
– Nenhuma no meu celular. Provavelmente ainda é muito cedo. Então, qual é o plano? Não ficar aqui?
– Temos um encontro marcado com Edgar Roy. Pretendo comparecer.
– Vão nos deixar entrar sem Bergin?
– Acho que vamos descobrir.
– Você realmente quer fazer isso? Quer dizer, quão bem conhecia Bergin?
Sean dobrou o guardanapo e o pôs sobre a mesa. Olhou ao redor da sala; só havia mais um ocupante, um homem na casa dos 40 anos, vestido de alto a baixo de tweed. Bebia uma xícara de chá com seu dedo mindinho estendido em um ângulo perfeitamente elegante.
– Quando pedi demissão do Serviço Secreto, eu estava no fundo do poço. Bergin foi a primeira pessoa que acreditou que ainda me restavam alternativas.
– Você já o conhecia? E ele sabia o que tinha acontecido?
– A resposta é não para as duas perguntas. Só esbarrei nele por acaso em uma cafeteria em Charlottesville. E aí começamos a conversar. Foi ele quem me incentivou a fazer faculdade de direito. Bergin foi um dos grandes responsáveis pela minha recuperação. – Ele fez uma pausa. – Eu devo isso a ele, Michelle.
– Então acho que eu também.
O início do trajeto para Cutter’s Rock era um caminho sinuoso em direção ao oceano. A maré estava alta, e eles podiam ver as ondas batendo nos afloramentos rochosos enquanto dirigiam. Fizeram uma curva fechada à direita e depois outra à esquerda. Trinta metros adiante, chegaram a um trecho elevado e então viram uma placa de metal de quase 2 metros de largura sobre dois postes altos. A placa dizia que estavam se aproximando de uma prisão federal de segurança máxima e que, caso não tivessem nenhuma justificativa para estar ali, aquela era sua única e última chance de dar meia-volta e ir embora.
Michelle pisou ainda mais no acelerador, levando-os mais rápido para seu destino. Sean olhou para ela e perguntou:
– Está se divertindo?
– Só afastando um frio na barriga.
– Frio na barriga? Que tipo de medo você pode... – Ele se conteve, lembrando-se de que havia pouco tempo que Michelle se internara numa clínica psiquiátrica para resolver algumas questões pessoais.
– Certo – disse ele, voltando a olhar para a frente.
Um elevado feito de asfalto e rocha sólida os levou à prisão federal. O portão de entrada motorizado era de aço e parecia forte o suficiente para resistir a uma investida de tanques de guerra. Na guarita havia quatro homens armados que pareciam nunca ter sorrido em suas vidas. Traziam na cintura pistolas Glock, algemas, cassetetes retráteis, armas de eletrochoque, sprays de pimenta e granadas de atordoamento.
E um apito.
Michelle olhou para Sean quando dois guardas se aproximaram deles.
– Quer apostar 10 dólares comigo que vou perguntar ao grandalhão se ele já botou a boca no apito para impedir a fuga de um psicopata violento?
– Se você fizer alguma piada com esses gorilas, eu mesmo arrumo uma arma para dar um jeito em você.
– Mas, se eu perguntasse, eles ficariam furiosos comigo, não com você – argumentou Michelle com um sorriso.
– Não. Sempre batem no homem. A mulher nunca paga o pato. E muito obrigado.
– Pelo quê?
– Agora eu é que estou com um frio na barriga.
O muro era de pedra local, com quase 4 metros de altura e um cilindro de aço inoxidável de cerca de 2 metros de diâmetro no topo. Seria impossível firmar as mãos nele, quanto mais escalá-lo.
– Já vi esse equipamento em algumas prisões de segurança máxima – observou Sean. – Uma tecnologia impressionante de última geração para manter os bandidos dentro.
– E se usarem ventosas? – perguntou Michelle enquanto ambos olhavam para a cobertura de metal do muro.
– Os cilindros giram como uma roda de hamster. As ventosas não ajudariam em nada. O sujeito ainda assim cairia. E provavelmente há sensores de movimento.
O carro deles foi examinado por um aparelho que usava sensores sísmicos para captar vibrações produzidas por batimentos cardíacos. Um algoritmo de processamento levou menos de três segundos para assegurar que não havia nenhum outro ser vivo escondido no veículo. Então o carro foi submetido a um detector portátil de explosivos e drogas. Depois foi a vez de os dois passaram pelo detector portátil, e então foram revistados à moda antiga e interrogados pelos guardas, seus nomes sendo conferidos numa lista. Michelle estava prestes a lhes explicar sobre sua arma, mas se deu conta de que ela ficara com a polícia. No final, os dois obtiveram permissão para prosseguir por um caminho muito estreito com cercas altas. Michelle olhou em volta.
– Torres de vigilância de 30 em 30 metros – observou. – Cada uma com dois guardas. – Ela estreitou os olhos por causa do sol. – Um deles parece estar portando uma AK com um pente estendido e o outro, um rifle de longo alcance com infravermelho. Aposto que têm circuito interno de monitoramento, gravação digital e terabytes de dados armazenados. E sistemas multizona para evitar invasões e fugas, tecnologia de micro-onda e infravermelho, leitores biométricos, rede de informática com fibra ótica, circuitos polifásicos ininterruptos, além de geradores potentes, para o caso de falta de energia elétrica.
Sean franziu a testa e disse:
– Quer parar de agir como se estivesse se preparando para invadir a prisão? Com toda a parafernália que eles obviamente têm aqui, devemos presumir que estão nos observando e ouvindo.
Michelle lançou um olhar mais geral e viu que havia três cercas ao redor daquele prédio de concreto reforçado de dois andares onde ficavam os criminosos mais psicóticos do país. Todas as cercas tinham malhas trançadas, aproximadamente 5 metros de altura e concertina enrolada no topo. Os 2 metros superiores se inclinavam num ângulo de 45 graus para dentro, tornando quase impossível que fossem escaladas. A cerca do meio tinha uma carga elétrica letal, como deixava bem claro uma grande placa perto dela. O espaço entre cada cerca era um campo minado repleto de estacas afiadas como navalhas que saíam do chão e, pelo brilho do sol ali, Michele deduziu que havia fios estendidos por toda parte. À noite, a única hora em que alguém ousaria tentar fugir daquele lugar, os cabos ficariam invisíveis. O sujeito sangraria até a morte ou acabaria esbarrando na cerca central e sendo torrado. Se bem que, a essa altura, os guardas na torre já teriam acabado com ele com tiros na cabeça e no coração.
– Aquela cerca elétrica tem 5 mil volts e baixa amperagem, e é bastante letal – disse Michelle em voz baixa. – Aposto que há uma viga de concreto embaixo para que ninguém possa cavar e fugir. – Ela fez uma pausa. – Mas há algo estranho.
– O quê?
– Cercas elétricas são usadas para diminuir custos. E no que diz respeito à segurança de prisões, os custos mais relevantes são basicamente os de guardas para ficar em torres. Mas ainda assim há dois atiradores em cada torre aqui.
– Acho que não quiseram correr nenhum risco.
– Isso é exagerado, pelo menos na minha opinião.
– O que você esperaria? Está tudo sendo pago com nossos impostos.
Michelle notou uma sequência de painéis solares de um lado, posicionados no ângulo certo para captar o máximo de luz.
– Bem, pelo menos eles estão sendo “verdes” – salientou para Sean.
Eles passaram por mais três portões, por outros três pontos de conferência, três varreduras eletrônicas e revistas, a ponto de Michelle achar que todos os guardas conheciam cada contorno seu melhor do que ela mesma. Na entrada do prédio, portas hidráulicas enormes e robustas como as de um abrigo nuclear se abriram.
– Acho que este lugar é à prova de fuga – falou Michelle, impressionada.
– Espera-se que sim.
– Você acha que eles sabem que Bergin foi assassinado? – perguntou ela.
– Eu apostaria que sim.
– Então é possível que não nos deixem entrar.
– Eles nos deixaram chegar até aqui – respondeu Sean.
– Sim, e estou me perguntando por quê.
– Acordou meio lenta hoje?
– O quê?
– Esse seu questionamento de agora já está na minha cabeça desde que nos deixaram passar pelo primeiro portão.

6
HAVIA MAIS UM PONTO de conferência dentro da prisão. Magnetômetro para procurar possíveis armas não detectadas nas buscas anteriores, outra revista, raio X da pequena bolsa de Michelle, verificação de identidade e documentos, consulta à lista de visitantes, um interrogatório que teria deixado o Mossad orgulhoso e alguns telefonemas. Depois disso, mandaram que os dois esperassem em uma antessala junto à recepção, se é que ela poderia ser chamada assim. As janelas tinham no mínimo 7 centímetros de espessura e presumivelmente eram à prova de balas, de socos e de chutes.
Sean bateu em uma delas.
– Parece a janela da limusine presidencial.
Michelle estava examinando a parede interna da construção. Correu a mão num trecho dela.
– De gesso é que não deve ser. Parece uma mistura, algo com titânio. Duvido que minha 45 pudesse perfurá-la.
– Telefonei para um amigo que sabe algumas coisas sobre este lugar – contou Sean. – Fica sobre uma plataforma móvel, como os arranha-céus.
– Quer dizer, para o caso de haver um terremoto?
– Sim. Deve ter custado um dinheirão.
– Como você disse, foi pago com nossos impostos. Mas será que é à prova de enchentes? Estamos bem perto do mar aqui.
– Quebra-mar retrátil. Podem erguê-lo em vinte minutos.
– Está brincando!
– Foi o que meu amigo disse.
Michelle olhou em volta no cômodo pequeno e sóbrio.
– Quantas visitas eles recebem aqui? Não há nem uma única revista. E duvido que a gente encontre uma máquina de refrigerante.
– Você gostaria de visitar alguém aqui? Mesmo se fosse uma pessoa da família? Quero dizer, este é um lugar para loucos criminosos.
– Eles não são mais chamados assim, são?
– Acho que não, mas é o que são. Loucos e criminosos.
– Olhe só quem está sendo preconceituoso. Roy nem foi julgado ainda.
– Está certo, você me pegou.
– Mesmo assim, ele ainda deve ser um psicopata – acrescentou Michelle, fazendo seu parceiro erguer uma das sobrancelhas. Ela perguntou: – Quantos presos, quero dizer, pacientes, você acha que há aqui?
– Aparentemente isso é sigiloso.
– Sigiloso? Mas a prisão não tem nada a ver com a CIA ou o Pentágono.
– Só sei que tentei descobrir e dei com a cara no muro. Sei que Roy provavelmente é o preso mais importante que eles têm agora.
– Até aparecer algum psicopata ainda mais louco.
– Com licença?
Eles se viraram e viram um homem jovem de uniforme azul parado à porta. Ele segurava um pequeno tablet.
– Sean King e Michelle Maxwell?
Eles se levantaram ao mesmo tempo, muito altos perto do homem.
– Sim – respondeu Sean.
– Estão aqui para ver Edgar Roy?
Sean estava preparado para uma discussão sobre a impossibilidade de verem Roy. Mas Uniforme Azul apenas disse:
– Sigam-me, por favor.
Um minuto depois ele os deixou com uma mulher que era muito mais intimidadora. Quase tão alta quanto Michelle, mas consideravelmente mais larga e pesada, ela parecia capaz de jogar na defesa de um time de futebol americano profissional. A mulher se apresentou como Carla Dukes, diretora de Cutter’s Rock. Quando seus longos dedos se fecharam ao redor dos de Michelle em um aperto de mão, Michelle pensou que seu cumprimento não deixava nada a dever ao de um homem.
O escritório da diretora era um quadrado de paredes de 4 metros. Tinha uma escrivaninha com um computador, três cadeiras, contando a dela, e nada mais. Não havia nenhum arquivo, retrato de parentes ou amigos, quadro na parede, nenhuma vista, nada que fosse pessoal.
– Por favor, sentem-se – disse ela.
Eles se sentaram. Ela abriu sua gaveta, pegou um arquivo vermelho e o abriu sobre a escrivaninha.
– Eu soube que Ted Bergin está morto.
Obrigado por ir direto ao ponto, pensou Sean. E agora vem a briga.
– Isso mesmo – falou ele. – A polícia e o FBI estão investigando. Mas nós ainda temos um encontro marcado com Edgar Roy hoje e não queríamos perder essa oportunidade.
– Era para virem acompanhando Ted Bergin.
– Bem, obviamente ele não pôde vir – apontou Sean, sua voz calma, mas firme.
– É claro que não, mas não estou certa de que nessas circunstâncias...
Michelle interrompeu:
– Mas a defesa dele continuará. Em algum momento Roy será julgado. Ele tem direito de ser representado. E Sean também é um advogado licenciado que trabalha com Ted Bergin.
A diretora do presídio olhou para Sean e questionou:
– Isso é verdade? Pensei que você fosse investigador.
– Sou as duas coisas – explicou Sean, embarcando na tática improvisada de Michelle. – Tenho licença de investigador e sou advogado pelo estado da Virgínia, onde Roy será julgado.
– Tem alguma prova disso?
Sean lhe entregou sua carteira que comprovava a profissão.
– Um telefonema para Richmond confirmará isso – disse ele.
Ela lhe devolveu a carteira.
– Então sobre o que exatamente quer falar com o Sr. Roy?
– Bem, isso é confidencial. Se eu lhe dissesse, quebraria o sigilo advogado-cliente, o que seria negligência profissional.
– É uma situação delicada. O Sr. Roy é um caso especial.
– É o que estamos descobrindo – interpôs Michelle.
– Realmente precisamos vê-lo – acrescentou Sean.
– O FBI telefonou esta manhã – disse Dukes.
– Estou certo de que sim – disse Sean. – Foi o agente especial Murdock?
Ela ignorou a pergunta e disse:
– Ele me contou que o assassinato de Ted Bergin poderia ter algo a ver com o fato de ele representar Edgar Roy.
– Acha que tem? – perguntou Michelle.
Dukes olhou fixamente para ela e falou:
– Como eu poderia saber algo sobre isso?
– Bergin veio ver Edgar Roy? – perguntou Sean.
– É claro que sim. Era o advogado dele.
– Com que frequência veio? E quando foi a última vez?
– Não sei dizer de cabeça. Terei de consultar os arquivos.
– Poderia fazer isso?
A mão dela não foi para o teclado do computador.
– Por quê? Se está trabalhando com ele, já deveria ter essa informação.
– Viemos para cá separadamente. Íamos nos encontrar com ele na noite passada e revisar tudo. Mas como você já sabe, não tivemos essa chance.
– Entendo.
A mão dela ainda não tinha ido para o teclado.
– O agente especial Murdock lhe pediu essa informação?
– Certamente não estou em uma posição de lhe dizer se pediu ou não.
– Está bem. Podemos ver Edgar Roy agora?
– Não estou certa sobre isso. Terei de consultar nosso assessor jurídico e lhe dar a resposta.
Sean se levantou e deu um grande suspiro. Finalmente disse:
– Está bem, eu esperava não ter de seguir esse caminho.
– Do que está falando? – perguntou Carla Dukes.
– Pode me dizer onde fica a redação do jornal local?
Ela o olhou fixamente e perguntou:
– Por quê?
Ele olhou para seu relógio e respondeu:
– Se nos apressarmos, o jornal poderá publicar na edição da manhã que certa instituição federal impediu que um acusado tivesse acesso a seu advogado. Imagino que a notícia também poderia chegar a alguma grande agência de notícias e certamente se espalhar por toda a internet alguns minutos depois. Só para não haver erro, seu nome é com C ou K?
– Quer mesmo fazer isso? – falou Carla Dukes, e olhou para ele, com os seus lábios contraídos e um olhar quase assassino.
– Quer mesmo infringir a lei?
– Que lei? – disparou ela.
– A Sexta Emenda, que garante que todo acusado tenha direito a um advogado. A propósito, está na Constituição. E nunca é bom rasgar a Constituição.
– Ele tem razão, Sra. Dukes.
Sean e Michelle se viraram e viram Brandon Murdock à porta. O agente do FBI sorriu.
– Divirtam-se no seu bate-papo com Edgar Roy – disse ele.

7
SEAN E MICHELLE FORAM ESCOLTADOS até uma sala totalmente branca. Pequena. Com uma porta. Três cadeiras e uma mesa, tudo aparafusado no chão. Duas cadeiras de frente para a terceira, separadas dela por uma parede de policarbonato com 1 metro de largura e 10 centímetros de espessura, que ia do chão ao teto. Perto da cadeira solitária havia uma argola de metal de 7,5 centímetros de diâmetro cimentada no chão.
E então a porta se abriu e lá estava ele.
Sean e Michelle tinham visto fotos de Edgar Roy em jornais e em arquivos que Ted Bergin lhes enviara. Sean assistira a uma parte de um vídeo sobre o homem logo após sua prisão pelos assassinatos. Nada os havia preparado para vê-lo em pessoa.
Ele media 2,03 metros e era extremamente magro, como um lápis gigante. Tinha um pomo de adão que parecia uma bola de golfe entalada em um pescoço comprido. Seus cabelos eram escuros, longos e cacheados, emoldurando um rosto magro e sem atrativos. Ele usava óculos. Por trás das lentes, seus olhos eram pontos pretos, como as marcas de um dado. Sean notou os dedos finos do homem. Tufos de pelos saíam de suas orelhas. O rosto estava recém-barbeado.
Seus braços e pernas estavam acorrentados, e ele andava arrastando os pés enquanto os guardas o conduziam para a cadeira atrás do vidro e prendiam as correntes na argola no chão. Ela lhe permitia uma mobilidade de cerca de 15 centímetros. Dois guardas o ladearam. Eram homens grandes com rostos impassíveis, aparentemente de pedra. Portavam apenas cassetetes telescópicos de metal que podiam se estender até 1,20 metro e ser usados em golpes esmagadores.
Havia mais dois guardas à porta. Ambos carregavam espingardas de repetição que haviam sido transformadas em armas de choque. Podiam lançar seu projétil calibre 12 a mais de 30 metros e disparavam um pulso de energia por vinte segundos capaz de derrubar um jogador profissional da liga de futebol americano e deixá-lo no chão por um longo tempo.
Sean e Michelle voltaram sua atenção para Edgar Roy, atrás do vidro à prova de bala. Ele estava com as longas pernas esticadas e as solas de seus mocassins de tecido tocando levemente a parede de vidro inquebrável.
– Certo – disse Sean, desviando seu olhar de Roy para os guardas. – Precisamos falar a sós com nosso cliente.
Nenhum dos guardas se moveu nem um centímetro. Eles poderiam até ser estátuas.
– Sou o advogado dele. Precisamos de algum tempo a sós, rapazes – repetiu Sean.
Nenhum movimento. Aparentemente os quatro homens eram imóveis e surdos.
Sean passou a língua pelos lábios.
– Está bem. Quem é seu supervisor? – perguntou ao homem que portava uma espingarda.
O homem nem mesmo olhou para Sean.
Sean olhou de relance para Roy. Não tinha certeza de que ele ainda estava vivo porque não conseguia ver seu peito subindo e descendo. Roy não piscava nem se mexia. Apenas olhava para a frente, aparentemente vendo, mas sem registrar nada.
– Já estão se divertindo?
Sean e Michelle se viraram e viram o agente Murdock olhando para eles da porta.
– Para começar, pode dizer aos grandalhões para saírem da sala? – perguntou Sean, com sua voz ligeiramente elevada. – Eles não parecem entender bem a relação entre advogado e cliente.
– Na noite passada você era apenas um investigador particular. Hoje é advogado?
– Já mostrei minhas credenciais para a Sra. Dukes.
– E você permitiu que víssemos o homem – acrescentou Michelle.
– Sim.
– Então podemos vê-lo? – pediu Sean. – Profissionalmente?
Murdock sorriu e fez um sinal com a cabeça para os guardas.
– Fiquem do lado de fora da porta, cavalheiros. Se ouvirem algo fora do comum, sabem o que fazer.
– O homem está preso ao chão e há um vidro de policarbonato com 10 centímetros de espessura entre nós – afirmou Michelle. – Estou certa de que não há muito que ele possa fazer.
– Eu não estava me referindo necessariamente ao prisioneiro – respondeu Murdock.
A porta se fechou atrás deles e Sean e Michelle finalmente ficaram a sós com seu cliente.
Sean se inclinou para a frente e se apresentou.
– Sr. Roy? Sou Sean King. Esta é minha parceira, Michelle Maxwell. Estamos trabalhando com Ted Bergin. Sei que já se encontrou com ele.
Roy não disse nada. Não piscou, não se mexeu nem pareceu respirar.
Sean se recostou na cadeira, abriu sua maleta e olhou para alguns papéis. Canetas, clipes e outros objetos pontiagudos potencialmente letais haviam sido confiscados, embora ele achasse que poderia usar o papel para fazer um corte bem feio em alguém.
– Ted Bergin nos disse que estava preparando sua defesa. Ele lhe falou exatamente qual era?
Como Roy não esboçou nenhuma reação, Michelle disse:
– Acho que estamos perdendo nosso tempo. Na verdade, acho que estou ouvindo as risadas de Murdock do outro lado daquela porta de aço.
– Sr. Roy, realmente precisamos discutir algumas coisas.
– Ele foi mandado para cá porque foi considerado inapto para julgamento, Sean. Não sei como ele era quando chegou aqui, mas não acredito que tenha melhorado. Pelo que tudo indica, este homem poderá passar o resto da vida em Cutter’s Rock.
Sean pôs os papéis de lado.
– Sr. Roy? O senhor soube que Ted Bergin foi assassinado? – perguntou em um tom alto e direto, obviamente esperando ver algum tipo de reação de Roy.
Não funcionou.
Sean olhou ao redor no pequeno espaço. Inclinou-se para mais perto de Michelle e sussurrou:
– Quais são as chances de haver gravadores escondidos nesta sala?
– Grampear a conversa de um advogado com o cliente? Eles não podem se meter numa tremenda encrenca por isso? – sussurrou ela de volta.
– Só se alguém descobrir e puder provar. – Sean se aprumou e pegou seu celular. – Sem sinal. Mas estava funcionando na recepção antes de chegarmos aqui.
– Bloqueio de sinal?
– Isso também seria ilegal. Gostaria de saber por que me deixaram ficar com o celular. Na maioria das prisões ele é confiscado dos visitantes.
– Porque os celulares na prisão são mais lucrativos do que cocaína. Ouvi dizer que um guarda em algum lugar estava faturando na casa dos seis dígitos vendendo Nokias e planos de serviço em uma penitenciária estadual. Agora ele é mais um que só telefona lá de dentro.
– Olhe para o tornozelo dele, Michelle.
A tornozeleira era da cor de titânio. Uma luz vermelha piscava no centro.
– Eles a usam em algumas prisões de segurança máxima e em casos como os de Paris Hilton e Lindsay Lohan. Emite um sinal e indica a localização exata da pessoa. Se ela sair da zona permitida, um alarme é disparado – disse Michelle.
Sean abaixou a voz:
– Quantos lugares diferentes ele poderia frequentar aqui dentro, para precisar de uma tornozeleira eletrônica?
– Boa pergunta. Quer fazê-la a Murdock? Ou talvez a Carla Dukes?
Sean olhou de relance para Edgar Roy. Houvera um leve...
Não. Os olhos dele ainda eram pontos sem vida.
– Acha que ele está drogado? – perguntou Michelle. – Suas pupilas parecem dilatadas.
– Não sei o que pensar, sem um exame médico.
– Ele é bem alto. Mas muito magro. Não parece forte o suficiente para ter matado todas aquelas pessoas.
– Ele só tem 35 anos. Portanto, estava no auge da força física quando cometeu os assassinatos.
– Quer dizer, se os cometeu.
– Certo. Se.
– Mas os detalhes dos assassinatos não vieram a público. Os corpos nem mesmo foram identificados.
– Talvez tenham sido e essa informação também não foi divulgada – retrucou ele.
– Por que será?
– Talvez este caso seja realmente especial – falou ele, levantando-se. – Sr. Roy, obrigado por nos receber. Nós voltaremos.
– Voltaremos? – perguntou Michelle em voz baixa.
Quando bateram à porta, ela imediatamente se abriu.
– Como foi? – perguntou Murdock com um sorriso irônico.
– Ele nos contou tudo – respondeu Michelle. – É inocente. Pode deixá-lo ir agora.
– Encontrei algo interessante no quarto de Bergin na Gray Lodge – comentou Murdock, ignorando-a.
– Ah, sim, tipo o quê? – perguntou Sean.
– Nada que você precise saber.
–Ah, você realmente é uma graça, Murdock – disse Michelle. – Aprendeu isso em Quantico?
– Se for relacionado a seu trabalho como advogado de Roy, eu preciso saber – acrescentou Sean. – É sigiloso.
– Então preencha alguns papéis. Os advogados do FBI precisam de umas boas risadas. Enquanto isso, não lhe darei o documento.
– Então Roy é um zumbi. Ele é capaz de ir ao banheiro sozinho, de se alimentar?
– Roy está em boa forma. Fisicamente. Isso responde à sua pergunta?
Murdock se virou e foi embora.
– Esse cara realmente gosta de nós – disse Michelle sarcasticamente. – Acha que ele está interessado em um encontro comigo? Sempre sei o que fazer com um corpo.
Sean não estava prestando atenção nela. Observava os guardas escoltarem Roy de volta à cela. Quando o homem passou, Sean viu que ele era mais alto do que o maior dos quatro guardas. Sean também notou que Roy se movia sozinho, arrastando ruidosamente os pés acorrentados. Mas no rosto não havia nada.
Pontos pretos.
Nada.
Que era exatamente o que eles tinham agora.

8
FOI MAIS FÁCIL SAIR de Cutter’s Rock do que entrar – mas não muito. Sean ficou tão irritado com o nível de inspeção que disse rispidamente para o último grupo de guardas:
– Edgar Roy não está escondido na porcaria do nosso cano de descarga. – Ele se virou para Michelle. – Pise fundo no acelerador!
– Pensei que você nunca ia me pedir.
O Ford deixou duas faixas pretas no asfalto antes imaculado da entrada de Cutter’s Rock. Michelle pôs a mão para fora da janela e se despediu com o dedo do meio erguido.
Enquanto o carro fazia o caminho inverso no elevado, Michelle olhou de relance para o parceiro, que estava perdido em pensamentos.
– Obviamente você está concentrado em alguma coisa. Quer conversar sobre isso? – perguntou ela.
– Enquanto você estava sendo revistada na saída, tive a chance de fazer algumas perguntas para o assistente de Carla Duke. Roy se alimenta, só que não muito, e usa o banheiro. Ele perdeu um pouco de peso, mas tecnicamente está saudável.
– Então ele consegue fazer tudo isso, mas não consegue se comunicar com ninguém?
– Há um termo médico para isso, o cara o usou, mas não consigo me lembrar qual é. Em todo caso, aparentemente o corpo funciona, mas a mente, não.
– Conveniente.
– Certo, Bergin morreu. Assassinado. O FBI está na cena. Eles vasculharam o quarto de Bergin. Todo o produto do seu trabalho está nas mãos deles.
– Então, como Murdock disse, preencheremos alguns papéis no tribunal para tê-lo de volta.
– O único problema é que não sou realmente o advogado de Roy.
– Mas você é um advogado. Foi contratado por Ted Bergin, que era o advogado de defesa de Roy. Não será muito difícil torná-lo representante legal do acusado. Bergin certamente não vai se opor. Então quem poderá questioná-lo?
– Já faz tempo que eu não pratico.
– Sua licença ainda está válida, não está?
– Talvez.
Ela desacelerou o carro.
– Talvez? Isso não é muito bom para um cliente sujeito à pena de morte, é?
– Talvez eu precise conseguir alguns certificados para regularizar minha situação.
– Ótimo. Estou certa de que o agente Murdock vai adorar ajudá-lo nisso.
– Além do mais, fomos contratados como investigadores particulares, não advogados. O tribunal de justiça se baseará nos autos do processo. Eu não consto neles como advogado de defesa.
– Certo. Então farei uma pergunta idiota: Ted Bergin trabalhava sozinho?
Ele a olhou de relance.
– Na verdade, essa é uma pergunta brilhante. E precisamos descobrir a resposta.
Eles voltaram para a Martha’s Inn e se dirigiram ao quarto de Sean. Isso não escapou aos olhos da proprietária, cujo nome não era Martha, mas Hazel Burke. Ela passara a vida inteira naquela parte do Maine, conforme lhes contara no café da manhã.
– Seu quarto é do outro lado do corredor, querida – gritou ela para Michelle do pé da pequena escada. Dessa posição privilegiada podia ver claramente a entrada dos dois quartos. – O quarto em que está prestes a entrar é o do cavalheiro.
Michelle respondeu com uma voz firme:
– Mas não vou para meu quarto. Na verdade, vou para o do cavalheiro.
– E ficará lá por muito tempo? – perguntou Hazel, começando a subir os degraus.
Michelle olhou para Sean.
– Não sei. Você está muito animado?
Burke chegou ao segundo andar a tempo de ouvir isso.
– Querida, somos damas aqui.
– Talvez a senhora seja.
Sean se meteu na conversa.
– Vamos só trabalhar, Sra. Burke. Num caso judicial.
– Ah, o senhor é advogado?
– Sim.
– Ouviu falar no outro advogado, não foi? O pobre Sr. Bergin?
– Como soube disso? – perguntou Sean rapidamente.
Hazel limpou as mãos no avental e respondeu:
– Ah, bem, meu caro, os assassinatos não são tão frequentes aqui para que as pessoas não falem neles. Acho que todos sabem.
– Sim. Acho que sabem.
A mulher se virou para Michele.
– Você não é advogada, é?
– O que está insinuando? – perguntou Michelle rispidamente.
– Bem, querida, eu não a conheço, mas você não parece ser do tipo que use, você sabe, roupas elegantes.
Com óbvia desaprovação, a dona da pousada correu os olhos pelos jeans justos e desbotados, as botas empoeiradas, a camiseta branca e o casaco de couro gasto de Michelle.
– Tem razão. Prefiro couro e tachas.
– Isso não foi muito gentil – advertiu-a Hazel, seu rosto largo ficando rosado.
– Bem, acho que não sou uma pessoa muito gentil. Agora quer nos dar licença?
– Voltarei daqui a cinco minutos para ver se você ainda está aqui.
– Eu esperaria um pouco mais – disse Michelle.
– Por quê? – perguntou Hazel, desconfiada.
Michelle acariciou o braço de Sean e retrucou:
– O cavalheiro tomou um comprimidinho especial – falou ela, antes de bater a porta do quarto de Sean. – Essa dama está começando a me irritar.
– Esqueça isso. Vou telefonar para o escritório de Bergin em Charlottesville.
– Acha que eles sabem?
– Não sei. Geralmente se avisa o parente mais próximo primeiro. Mas a esposa de Ted morreu e eles não tinham filhos. Pelo menos ele nunca os mencionou para mim.
Sean se sentou na cama e deu o telefonema. Alguém atendeu. Ele disse:
– Alô, aqui é Sean King. É a Hilary? Falei com a senhora pelo telefone no outro dia. – Sean pôs sua mão em concha sobre o bocal. – A secretária de Ted.
Michelle assentiu com a cabeça.
– Sim – respondeu Hilary. – O senhor não deveria estar com o Sr. Bergin em Cutter’s Rock agora?
Sean pareceu sério. Ela não sabia.
– Hilary, lamento, mas tenho más notícias. Não gosto de fazer isso pelo telefone, mas você precisa saber.
Então ele lhe contou.
A mulher sufocou um grito, tentou se controlar e depois ficou aos prantos.
– Ah, meu Deus! Não consigo acreditar.
– Nem eu, Hilary. O FBI está investigando a morte dele agora.
– O FBI?
– Isso é complicado.
– Como... como ele morreu?
– Não foi de causas naturais, obviamente.
– Quem encontrou o corpo?
– Eu. Quero dizer, eu e minha parceira, Michelle.
Naquele momento a fachada profissional de Hilary se desfez por completo.
Sean esperou pacientemente ela parar de soluçar. Como pareceu que isso não aconteceria, ele disse:
– Podemos conversar sobre isso mais tarde, Hilary. Realmente sinto muito ter sido eu a lhe contar.
Com muito esforço, Hilary se recompôs.
– Não, não, eu estou bem. É só que foi um grande choque. Eu o vi ontem de manhã, antes de ele pegar o voo.
Sean só havia falado com Hilary pelo telefone, não a conhecia pessoalmente, mas pôde visualizar a mulher enxugando as lágrimas e talvez arrancando toda a maquiagem com o lenço de papel.
– A que horas foi?
– O voo dele ou quando o vi pela última vez?
Sean achou que ela estava se concentrando muito nos detalhes para tirar da mente a morte do patrão.
– Na verdade, as duas coisas.
– Oito horas no escritório – respondeu ela prontamente. – Ele tinha um voo curto de Charlottesville para o Reagan National. E um voo ao meio-dia de lá para Portland.
– Jato ou avião a hélice?
– Um daqueles jatos regionais. Da United, eu acho.
– O mesmo tipo de avião que pegamos. Certo, eles voam alto e rápido, então ele chegaria ao Maine um pouco depois da uma da tarde?
– Isso mesmo.
– A senhora teria a agenda dele? Eu gostaria de saber se ele se encontrou com Edgar Roy enquanto esteve aqui. E também quantas vezes podia ter feito isso no passado.
– Bem, sei que ele foi lá ontem. Ele me disse que tinha um encontro com Roy às seis horas. Estava preocupado com a possibilidade de o voo atrasar e não dar tempo. Acho que a viagem de carro de Portland é bem longa.
– Sim, é.
– E ele certamente foi ver o Sr. Roy no passado. Não me lembro das datas exatas, mas posso verificar no computador e mandar por e-mail para o senhor.
– Isso seria ótimo. Ah, sei que a esposa de Ted faleceu e acho que eles não tinham filhos. Mas há alguém que precise ser avisado? Quero dizer, algum parente mais distante?
– Ele tinha um irmão, que morreu três anos atrás. Nunca o ouvi mencionar mais ninguém. Acho que o trabalho era sua família.
– Acho que sim.
Michelle olhou para ele e ergueu dois dedos. Sean fez um sinal afirmativo com a cabeça e disse:
– Hilary, Ted tinha mais alguém trabalhando com ele? Presumi que ele trabalhasse sozinho, mas de repente me ocorreu que eu não tinha certeza disso. Fiquei alguns anos sem ter contato com ele.
– Ele tem uma assistente. Uma jovem brilhante, que se formou em direito há pouco mais de um ano.
– É mesmo? Qual é o nome dela?
– Megan Riley.
– Ela está no escritório agora?
– Não, está em uma audiência. Disse que voltaria logo depois do almoço.
– Ela estava trabalhando no caso de Roy?
– Sei que ela sabia do caso. É uma empresa pequena. E que fez algumas pesquisas sobre isso para o Sr. Bergin, porque ele me contou.
– Pode pedir para ela entrar em contato comigo assim que chegar? Preciso muito falar com ela.
– É claro. – Ela fez uma pausa. – Sean, vão descobrir quem fez essa coisa horrível?
– Bem, se o FBI não descobrir, nós descobriremos. Prometo.
– Obrigada.
Sean desligou o telefone e olhou para Michelle. Ela disse:
– Bem, essa é uma boa notícia. Ele tinha uma assistente.
– Formada há um ano. Essa não é uma boa notícia. Não há como um juiz deixá-la representar um acusado de homicídio. Não um num caso tão em evidência. Haveria um risco muito grande de alguém apelar com uma alegação de defesa incompetente.
– Mas você é um advogado experiente.
– Michele, eu já lhe disse que nem sei ao certo se minha licença está ativa.
– Então, se eu fosse você, descobriria.
Sean deu alguns telefonemas. O último terminou com um pequeno sorriso.
– Esqueci que a validade tinha sido estendida. Continua ativa. – Seu sorriso desapareceu. – Mas não piso em um tribunal há muito tempo.
– Isso é como andar de bicicleta.
– Não é, não.
– Não se preocupe, estarei com você o tempo todo.
– Se defender um cliente dependesse de dar umas boas surras e alguns tiros certeiros, não poderia ter ninguém melhor ao meu lado. Mas não depende.
– Pelo que tenho visto de alguns advogados de tribunal, a boa surra é a solução. Então o que vamos fazer agora?
– Esperar notícias de Megan Riley.
– Acha que ela assumirá o caso, considerando o fato de que seu patrão acabou de ser assassinado, talvez por representar Edgar Roy?
– Não, se for inteligente.
– Acredita mesmo que foi por isso que ele foi morto?
– Não temos nenhuma prova que sustente essa conclusão.
– Relaxe e pare de falar comigo como um advogado. Esqueça por um segundo seu lado analítico e responda sinceramente.
– Sim, acho que foi por isso que ele foi morto.
Michelle se apoiou na parede e olhou pensativamente pela janela.
– No que você está pensando? – perguntou Sean.
– Estou pensando em quanto tempo temos antes de nos tornarmos alvos.
– Quer desistir e pegar um avião de volta para a Virgínia?
Michelle olhou para ele.
– Você quer?
– Pensei que eu tivesse sido claro quanto a isso. Vou descobrir quem o matou.
– Pensei que eu também tivesse sido clara. Somos uma equipe. Irei para onde você for.
– Acha que não posso cuidar de mim mesmo?
– Não, mas eu posso cuidar melhor.

9
SEAN ESTAVA DANDO UM PASSEIO pela costa rochosa quando seu celular vibrou, um pouco depois das duas horas da tarde. Megan Riley soou jovem, inexperiente e chocada. Ele perdeu as esperanças. Não havia como ela lidar com aquilo.
– Não posso acreditar que o Sr. Bergin esteja morto – disse ela.
Sean imaginou seus olhos se enchendo de lágrimas. Uma reação bastante normal nessas circunstâncias, mas agora ele não precisava do normal, mas do extraordinário.
– Eu sei. É um choque para todos nós.
Enquanto ele falava, viu Michelle vindo de um frágil píer, onde um barco de pesca igualmente frágil estava atracado. Ela alcançou Sean e se sentou em uma enorme rocha que servia como barreira para o oceano.
– Quem faria uma coisa dessas? – perguntou Megan.
– Bem, estamos investigando. Hilary mencionou que você trabalhou para Ted no caso de Roy.
Ela fungou e respondeu:
– Fiz algumas pesquisas a pedido dele.
– Ted conversou com você sobre as teorias dele para o caso? Coisas como qual defesa estava planejando, os progressos que fizera, as conversas que teve com Edgar Roy?
Obviamente foram monólogos, pensou Sean.
– O Sr. Bergin conversou um pouco comigo. Acho que só quando precisava organizar as ideias em voz alta. E falei com ele ontem.
– A que horas?
– Por volta das seis.
– O que ele queria?
– Apenas se inteirar sobre alguns casos que estavam comigo.
– Ele falou com você sobre Edgar Roy?
– Disse que iria se encontrar com ele. Na verdade, acho que estava a caminho de Cutter’s Rock.
– Nada mais? – perguntou Sean.
– Eu lhe telefonei de novo lá pelas nove horas.
– Por quê?
– Eu tinha uma audiência no dia seguinte e precisava da orientação dele.
– Certo, Megan, isso é muito importante: Ted mencionou se tinha visto Edgar Roy na noite passada?
– Não, não falou sobre isso.
– Ele mencionou para onde ia na noite passada? Quero dizer, além de se encontrar com Michelle e comigo?
A voz dela pareceu assustada.
– Não, ele não disse nada sobre isso. Eu nem sabia que ele ia se encontrar com vocês. Só presumi que ia passar a noite lá.
– Absolutamente nada, tem certeza? – insistiu Sean. – Não deixou escapar nenhum comentário?
– Nada. A maior parte da conversa foi sobre a audiência que eu teria no dia seguinte. Ele não falou nada sobre Edgar Roy e eu não perguntei.
– Por que não?
– Porque se o Sr. Bergin quisesse discutir o caso, teria feito isso. Trabalho para ele há pouco tempo. Não me senti à vontade para me intrometer em um caso em que não estava trabalhando diretamente. Ele sempre respeitou muito o sigilo profissional.
– Está bem, então vamos direto ao assunto. Sabe se você está nos autos do processo? – perguntou Sean.
– Na verdade, estou. O Sr. Bergin disse que sempre era bom ter outro advogado nos autos. Para a eventualidade de algo acontecer.
– Bem, infelizmente ele foi profético. Olhe, vamos ter de falar com você sobre as teorias e estratégias de Ted. E qualquer outra coisa que possa estar ligada a Roy.
– Vocês falaram com Edgar Roy?
– Nós o vimos. Falar é um pouco problemático. Você pode pegar um avião para cá?
– Não tenho certeza. Estou trabalhando em alguns casos e...
– Megan, isso é muito importante.
Ele a ouviu respirar fundo.
– É claro. Sei que é. Eu... eu posso conseguir adiamentos de processos. E levar trabalho comigo. A comunidade jurídica daqui conhece e respeita o Sr. Bergin. Eles entenderão.
– Tenho certeza que sim. E você pode trazer os arquivos de Ted sobre o caso?
– Sem dúvida.
Sean olhou para o relógio.
– Há um voo noturno às sete horas de Dulles para Portland. Acha que conseguiria pegá-lo?
– Acho que sim. Posso deixar as coisas organizadas aqui e depois dirigir bem rápido.
– Farei as reservas e enviarei os detalhes para você por e-mail. Nós a pegaremos no aeroporto em Portland.
– Sr. King? – chamou ela.
– Pode me chamar de Sean.
– Sean, há motivos para eu ter medo?
Sean olhou para Michelle antes de responder à jovem.
– Ficarei grudado em você como cola.
– Acho que isso significa sim.
– Ter medo nunca é ruim, Megan.
– Eu o verei em Portland – disse ela com uma voz trêmula.
Sean desligou e contou para Michelle sua conversa com a jovem advogada. Michelle fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Então ela teve duas conversas com Bergin e em nenhuma delas Roy foi mencionado. Obviamente Bergin estava mantendo sigilo. Talvez tenha percebido que era perigoso e quis deixar Megan Riley de fora.
– Isso é realmente a cara do Ted. Cavalheiro até o fim.
– Então, o que você achou de Megan Riley? – perguntou Michelle.
– Acho que será um milagre se ela estiver naquele avião.
– Se ela não tivesse medo também seria um mau sinal.
– Eu sei. Tenho certeza de que ela é inteligente e uma boa advogada, caso contrário Ted não a teria contratado. Mas essa é uma péssima situação na qual colocar uma advogada principiante.
– Bem, nós só precisamos das informações que ela nos der sobre as conversas com Bergin. E não creio que alguém realmente acredite que ela substitua Bergin na defesa daquele maluco.
– O problema é que, se outro advogado assumir a defesa, nós estaremos fora do caso.
– Não se trabalharmos duro e nos tornarmos valiosos para ele. – A expressão de Michelle mudou. – Quem estava pagando Bergin? Se Edgar Roy não consegue nem falar, outra pessoa teve de contratá-lo.
– Essa é uma boa pergunta. Deve estar nos arquivos.
– Roy tinha dinheiro?
– Bem, ele tinha a fazenda e um emprego público.
– Mas não devia ser rico.
– Provavelmente não.
Eles caminharam de volta para a pousada.
A brisa do mar era fria e Michelle pôs as mãos dentro da jaqueta antes de perguntar:
– Então, até buscarmos Megan em Portland, o que há em nossa agenda?
– Uma visita à pousada Gray’s Lodge?
– Ao quarto de Bergin? O agente Murdock deve ter lacrado tudo muito bem.
– Mas poderíamos nos encontrar por acaso com nosso amigo Eric Dobkin, da polícia estadual do Maine.
– Você acha mesmo que ele ficará do nosso lado?
– Não custa nada perguntar. E, se minha impressão sobre Murdock estiver certa, provavelmente a esta altura ele já irritou todos os policiais do Maine.
– Ainda não sabemos se Bergin se encontrou com Roy ontem.
– E também não sabemos para onde ele ia.
– Seria ótimo conseguirmos uma lista de todos os seus telefonemas e e-mails.
– Seria, né? – concordou Sean.
– Mas Murdock está com isso tudo.
– Talvez sim, talvez não.
– O que isso significa?
– Tudo o que podemos fazer é tentar.
– E irritar o FBI? Essa não é uma atitude profissional inteligente – disse ela.
– O segredo é a sutileza.
– Sutileza não é meu ponto forte.
– É por isso que estarei desse lado da equação.
– Os opostos se atraem.
Ele a beijou no braço.
– Aparentemente sim.

10
HAVIA UMA BARREIRA DE POLICIAIS e federais ao redor da Gray’s Lodge. Os hóspedes haviam sido interrogados, e seus quartos foram vasculhados. E então lhes disseram para procurar outra hospedaria, mas não deixar a área. Com um pouco de sorte e boa dedução e fingindo serem turistas, Sean e Michelle encontraram os donos da pousada, um casal na casa dos 70 anos, visivelmente abalado com o que acontecera.
– Não dá para acreditar! – exclamou o homem, um sujeito robusto com cabelos brancos e rosto bronzeado, enquanto tomava uma xícara de café na loja de conveniência de um posto de gasolina, de onde era possível ver a pousada. Vestia uma camisa de flanela vermelha e calça jeans nova.
– Os policiais simplesmente entraram e mandaram todo mundo sair? – perguntou Michelle.
A esposa dele assentiu com a cabeça. Ela era uma mulher magra e rija, que parecia ter força para derrubar o marido no chão.
– Depois de interrogá-los e revistar suas gavetas de roupas íntimas. Alguns de nossos hóspedes vêm aqui há décadas. Eles não tinham nada a ver com aquele homem morto.
– Bem, depois disso, talvez esses hóspedes nunca mais voltem – comentou o marido, entristecido.
– E o morto, esse Bergin, tinha acabado de chegar naquele dia? – apressou-se a perguntar Sean.
– Isso mesmo – respondeu o marido.
– Mas a gente já tinha visto ele antes – acrescentou a mulher.
Sean reagiu imediatamente.
– Então ele já tinha vindo aqui?
– Duas vezes – respondeu o marido.
– Sabe para quê? – indagou Michelle.
– Não foi para caçar ou pescar – respondeu a mulher.
– Ele era advogado – disse o marido.
– Têm alguma ideia do que ele estava fazendo aqui? – perguntou Sean.
O marido analisou Sean e disse:
– Vocês não são daqui.
– Não, chegamos ontem. Estamos na Martha’s Inn. A Sra. Burke é uma pessoa muito gentil.
Michelle sufocou o riso.
– Sim, ela realmente é uma mulher muito gentil – disse o homem de um modo que fez sua esposa franzir os lábios.
– Nunca estive nem perto de um local onde houve um assassinato – mentiu Michelle. – Isso tudo é muito assustador. Mas adoro aqueles programas de TV sobre crimes reais.
– Eu me pergunto por que alguém ia querer matar um advogado. Provavelmente ele só estava aqui de férias – acrescentou Sean.
A mulher ia dizer alguma coisa, mas lançou um olhar inquisitivo para o marido, que disse:
– Ele não estava aqui de férias. Era o advogado de Edgar Roy.
– Edgar Roy? – repetiu Sean casualmente.
– O assassino em série que está preso em Cutter’s Rock à espera de julgamento. O jornal local publicou uma matéria grande sobre isso quando o trouxeram para cá. Dizem que ele é louco. Eu acho que está fingindo para não ser mandado de volta para a Virgínia e executado.
– Meu Deus! – exclamou Michelle. – O que ele fez?
– Matou um monte de gente e enterrou todo mundo na fazenda dele – respondeu a mulher, dando de ombros. – Aquilo não é um homem. É um animal selvagem.
– E o tal Bergin era advogado dele? – perguntou Sean. – Por isso tinha de ir a Cutter’s Rock para falar com ele?
– Bem, acho que tinha, se estava representando o sujeito – disse o marido. Ele olhou para a mulher. – E o homem ainda não foi condenado.
– Para mim, ele é tão cheio de culpa quanto o próprio pecado, e todos sabem disso – retrucou ela.
– Bem, acho que há gente de todo tipo no mundo. Eu não esperava que alguém como Bergin fosse ser advogado de uma pessoa assim.
– Então o senhor o conhecia? – perguntou Michelle ansiosamente. Ela olhou para Sean e fingiu uma empolgação ingênua com um assunto tão sério. – Quero dizer, isso é muito assustador, é como um programa da TV ou coisa assim.
O senhor assentiu com a cabeça e respondeu:
– Sim, acho que é. De qualquer modo, a pousada não é grande. Não temos muitos hóspedes, mesmo quando está cheia. Bergin descia para o café da manhã, essas coisas. Tínhamos mais ou menos a mesma idade. É natural que conversássemos. Sujeito interessante.
– E ele lhe contou o que estava fazendo aqui? Achei que tinha de manter sigilo, sendo um advogado – cogitou Sean.
– Bem, ele não me contou logo de cara, nem falou diretamente. Mas certa vez ele me perguntou como chegar em Cutter’s Rock, e eu lhe perguntei o que ia fazer lá. Foi quando ele me contou.
– Puxa, será que ele estava indo para Cutter’s Rock quando foi assassinado? – perguntou Michelle, empolgada.
– Não, acho que não – disse o marido.
– Porque ele já tinha estado lá – explicou a mulher.
– Como sabem disso? – perguntou Sean.
– Ele me disse que ia para lá imediatamente – falou o dono da Gray’s Lodge. – Estava com muita pressa na hora de fazer o check in na pousada. Seu voo havia atrasado e ele precisava chegar a Cutter’s Rock antes do fim do horário de visita. Ele só se registrou e saiu em seguida.
– Sim, mas talvez nunca tenha chegado lá.
– Não, ele chegou. Porque voltou para a pousada e tomou uma xícara de café. Eu lhe perguntei como tinha sido. Ele respondeu que bem, mas na verdade não estava dando essa impressão.
– Que horas eram? – perguntou Sean.
O senhor olhou para ele com desconfiança e perguntou:
– O que isso importa para você?
– Vocês fazem muitas perguntas – acrescentou a esposa.
Porém, antes que Sean pudesse dizer qualquer coisa, Michelle improvisou mais uma vez:
– OK, nós deveríamos ter lhes contado antes. – Ela fez uma pausa e depois disse em uma voz baixa, juvenil e assustada: – Fomos nós que encontramos o corpo dele.
O casal olhou para ela e depois para Sean. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– É verdade – disse ele muito honestamente.
As palavras saíram aos borbotões da boca de Michelle:
– E foi horrível. Mas ao mesmo tempo emocionante. Quero dizer, coisas assim nunca acontecem com a gente. Eu nunca nem havia visto uma pessoa morta. E muito menos uma pessoa assassinada. – Ela fingiu estremecer. – Odeio armas... – acrescentou, com uma expressão totalmente sincera. Então seu rosto se iluminou. – Mas foi uma emoção muito grande! O que é muito estranho, não acham?
– Bem, essa é uma emoção que prefiro não ter – comentou o dono da pousada, com ironia.
– Encontramos o corpo por volta da meia-noite – apressou-se a dizer Sean. – Mas ele deve ter voltado da visita muito antes disso.
– Ah, sim, lá pelas oito. Ele não jantou. Disse que não estava com fome.
– Ele falou com o senhor antes de sair de novo?
– Não. E também não o vi sair. Sei que estava aqui por volta das nove. Vi a luz acesa no quarto dele. Mas fiquei ocupado depois disso. – Ele olhou para sua mulher. – Você também não o viu, não é?
– Não. Falei isso para a polícia. Estava na cozinha lavando louça.
– Então passava das nove quando Bergin saiu. Mas, quando o senhor falou com ele depois que voltou de Cutter’s Rock, ele não disse que sairia de novo? Ou para onde iria? – refletiu Michelle.
– Não, nada desse tipo.
– Bergin recebeu telefonemas ou pacotes nesse dia? – perguntou Sean.
– Nenhum telefonema. Mas agora a maioria das pessoas tem celular. E não tinha nenhuma mensagem ou pacote na recepção nem nada assim.
Depois de fazer mais algumas perguntas, eles agradeceram ao casal e foram embora. Lá fora, o agente Murdock os esperava.
– Brincando de detetive? – perguntou ele em um tom ríspido, indicando com a cabeça o casal do outro lado da janela.
– Apenas tomando uma xícara de café. Está frio hoje.
– Sim, uma xícara de café com os donos da pousada onde seu amigo estava hospedado.
– Outra coincidência – disse Michelle.
– Que seja a última – respondeu Murdock.
– Pode devolver minha arma? Estou me sentindo nua sem ela.
– A análise balística ainda não foi concluída. Eu a avisarei. Pode demorar um pouco. A papelada se acumula. Sabe como é. – Ele olhou para Sean. – Espero não encontrar vocês dois de novo. Por que não voltam para a Virgínia? Não há nada que os prenda aqui.
– Pensei que você tinha dito que éramos testemunhas e não poderíamos deixar a área.
– Mudei de ideia. Podem ir!
– Estamos em um país livre – disse Sean.
– Até que percam a liberdade – retrucou Murdock.
Depois que ele foi embora, Michelle se dirigiu ao frentista do posto de gasolina.
– Onde fica a loja de armas mais próxima?
– Uns 3 quilômetros ao norte daqui, por esta estrada mesmo. O lugar se chama Fort Maine Guns.
– Tem uma boa variedade de pistolas?
– Ah, sim. Você atira?
– Só quando eu preciso.

11
MICHELLE DESLIZOU A SIG 9 milímetros para dentro de seu coldre e deu um longo suspiro de satisfação.
Sean olhou para ela, achando graça.
– Fazendo o que tem vontade, sempre que possível.
– Por que eu acho que é uma ideia boa mesmo ter uma arma aqui?
– Porque é.
– Eu tinha acabado de me acostumar com a Heckler & Koch, mas tenho de admitir que sempre preferi a Sig.
– Você também teve uma Glock durante algum tempo.
– É como dizem: algumas garotas gostam de sapatos, outras gostam de armas.
– Nunca ouvi ninguém dizer isso.
Ela pôs algumas caixas de munição na bolsa e observou:
– Hora de ir a Portland pegar a menininha advogada.
Eles haviam percorrido uns 20 quilômetros quando Michelle disse:
– Acho que tem alguém nos seguindo.
Sean continuou a olhar direto para a frente.
– Quem?
– Um sedã preto uns 3 quilômetros atrás. Eu o perco de vista nas curvas e volto a vê-lo nas retas.
– Pode não ser nada. Talvez vá para o mesmo lugar que nós.
– Veremos, não é?
Quando eles chegaram à saída para a interestadual, o carro seguiu em frente.
– Acho que você tinha razão – disse Michelle.
– Ainda assim, é melhor ficar alerta. Se o casal da Gray’s Lodge viu Bergin por volta das nove e ele foi morto por volta da meia-noite, isso ainda o deixa com cerca de três horas para se deslocar por aí.
– Ele não voltou para Cutter’s Rock. O lugar é fechado ao anoitecer. Então...
A bala atravessou a janela do lado do carona, passou diante de Sean e Michelle e quebrou o vidro da janela do motorista ao sair.
Sean se abaixou e Michelle imediatamente jogou o veículo para a esquerda. Ela dirigiu por um trecho pelo acostamento enquanto Sean olhava para trás.
– Nenhum outro carro? – perguntou ele.
– Não, foi um tiro de longo alcance.
– Pare o carro lá – vociferou ele, apontando para as árvores que ladeavam a estrada. – E fique abaixada.
Ela jogou o Ford para a grama e parou perto de um grupo de árvores. Eles se arrastaram para fora do carro, mantendo o veículo entre eles e o lugar de onde o tiro viera. Michelle estava empunhando sua Sig e examinando as possíveis linhas de fogo. Sean espiou por cima do capô e depois abaixou a cabeça de novo.
– Ninguém à vista.
Michelle olhou para as janelas quebradas e comentou:
– Um tiro sensacional com a gente em alta velocidade.
– Estou encarando isso como um aviso.
Ela assentiu com a cabeça e completou:
– Quem puxou aquele gatilho poderia facilmente ter nos matado. Acho que vi o maldito projétil passar bem na minha frente, mesmo sabendo que não é possível. E os vidros dos carros hoje em dia são um pouco melhores. Para quebrar os dois e seguir em frente é preciso bastante potência.
Sean estudou os arredores e observou:
– Leve brisa, muitas árvores, talvez o atirador estivesse em algum ponto alto. Com o sol atrás dele, o que favoreceu o tiro. Ainda assim, impressionante. Estávamos indo perpendicularmente ao tiro a uns 100 quilômetros por hora.
– Uns 110 – corrigiu Michelle. – O atirador deve ser um mestre com miras telescópicas militares. Ele fez um cálculo de distância sofisticado.
Sean fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Atirador de elite das forças armadas?
– Talvez. A única pergunta é das forças armadas de quem. Se for das nossas, quer dizer que a coisa está feia. Pergunte por que e a resposta é bastante óbvia.
– Edgar Roy – disse Sean. Ele se encostou na parte dianteira do carro e escorregou para baixo. – Um mero funcionário público?
– Era o que o arquivo dizia.
– Lista de observação do FBI. Advogado assassinado. Mandado para Cutter’s Rock. Tiro de longo alcance para nos alertar.
– Essa conta não bate, né?
– Não no mundo em que eu vivo.
– Acha que é seguro continuarmos? – perguntou Michelle.
– Acho que precisamos arriscar. Mas você tem meu total apoio para dirigir como se estivesse fazendo um teste para ser piloto da Nascar.
Mas não houve outro tiro enquanto eles corriam pela interestadual.
Voltaram pelo mesmo caminho da noite anterior e chegaram a Portland dez minutos antes de o voo de Megan aterrissar. Demoraram algum tempo para limpar o vidro de segurança, que cumprira seu papel quebrando-se em zilhões de pedaços, mas permanecendo no lugar.
Sean esperou os passageiros desembarcarem enquanto Michelle ia procurar outro carro para alugar.
Havia 39 passageiros no voo.
Megan Riley foi a trigésima nona a passar pelo portão de desembarque.
Ela provavelmente não queria sair do avião, pensou ele.
Megan olhou para Sean na expectativa.
– Megan? – chamou ele.
Ela fez que sim com a cabeça e caminhou na direção do investigador.
Michelle chegou naquele momento e sussurrou:
– Ela parece uma adolescente prestes a entrar numa escola nova.
A moça era pequena, com cabelos ruivos espalhados sobre os ombros e o rosto muito sardento. Arrastava uma mala de rodinhas e uma pesada bolsa de documentos que sem dúvida continha os antiquados arquivos em papel de Ted Bergin. Sean pegou a bolsa, apertou a mão da moça e a apresentou a Michelle.
Quando eles chegaram ao Ford, Megan viu os vidros quebrados e os cacos ainda no piso.
– Meu Deus, o que aconteceu?
Sean olhou para Michele, que disse:
– Podia ter sido pior. Só que não há mais carros para alugar. Espero que você tenha trazido um casaco pesado, Megan.
– Foi um acidente? – perguntou ela.
– Não exatamente – disse Sean, abrindo a porta de trás para a jovem.

12
– RESERVAMOS UM QUARTO PARA VOCÊ na Martha’s Inn, Megan – disse Sean, enquanto Michelle os conduzia de volta. – Alguns hóspedes saíram.
Em momento algum Megan deixara de olhar para as janelas quebradas. Ela apertou o casaco fino contra o corpo.
– Vocês registraram a ocorrência?
Sean olhou para trás na direção dela.
– Ainda não. Mas vamos. Infelizmente, a polícia está muito ocupada com outras coisas. Balas que não nos atingiram, disparadas por um atirador desconhecido, não estão no topo da lista de prioridades.
– Conheço um agente do FBI que provavelmente lamentará o fato de não termos sido atingidos – acrescentou Michelle.
– A prioridade da polícia é o assassinato do Sr. Bergin? – perguntou Megan.
– Pode chamá-lo de Ted.
– Não, ele sempre será o Sr. Bergin para mim – insistiu.
– Alguma coisa boa nos documentos que você trouxe? – perguntou Michelle.
– Não tenho certeza. Ontem fiquei o dia inteiro no tribunal e só voltei para o escritório hoje, quando retornei o telefonema de vocês. Mas trouxe tudo o que pareceu relevante.
– Nós ficamos agradecidos – disse Sean.
– Então vocês estão trabalhando com o FBI?
Sean olhou de relance para Michelle e disse:
– Mais ou menos.
– E quanto à casa de Bergin em Charlottesville? – Michelle quis saber. – O FBI esteve lá?
– Não sei. Isso é importante?
– Se conseguirmos chegar lá primeiro, poderia ser muito importante – explicou Sean.
– Mas não seria interferir em uma investigação oficial? – salientou Megan.
Michelle ergueu as sobrancelhas, mas segurou a língua. Sean se virou no banco.
– Você tem o telefone da casa de Hilary? – perguntou ele.
Megan procurou o número na lista de contatos do celular e passou para ele. Sean telefonou e aguardou atenderem.
– Hilary? Sean King. Uma pergunta rápida.
Ele perguntou sobre a casa de Bergin.
– OK, a que distância a senhora está de lá?
Ele fez uma pausa enquanto Hilary respondia.
– Acha que pode ir lá e nos dizer se há alguma atividade? Muito obrigado. Aguardo notícias suas. Outra coisa: o FBI foi ao escritório? Ninguém? Certo.
Ele pôs seu telefone de lado e olhou de relance para Michelle, que desviava o olhar de um lado para outro, como se seus olhos fossem um farol.
– Está vendo algo suspeito?
Ela deu de ombros.
– Não veremos sinal da mira antes de o projétil chegar. Simples assim.
Megan deve ter ouvido o comentário, porque imediatamente afundou no banco traseiro.
– Vocês precisam que eu fique aqui por muito tempo?
– Talvez – disse Sean.
– Em algum momento terei de voltar – argumentou ela, olhando para a escuridão ao redor.
– Todos nós queremos voltar para casa. Infelizmente, é tarde demais para Ted – acrescentou ele, com um tom um pouco mais duro.
Ela obviamente notou isso.
– Não estou tentando tirar o corpo fora. É só que...
Sean se virou mais uma vez no banco.
– Não acho que você seja covarde, Megan. Entrou no avião e veio para cá. Viu o que aconteceu com nosso carro e não deu meia-volta e fugiu. Isso exige coragem.
– Bem, na verdade eu quase fugi. Mas realmente quero ajudar – disse ela, devagar.
– Eu sei – falou ele, então um pensamento lhe ocorreu: – Hilary ficou no escritório o dia inteiro?
– Não, quando voltei do tribunal, ela havia saído para providenciar o funeral do Sr. Bergin. Mas ninguém apareceu enquanto eu estava lá.
Sean voltou a olhar para a frente e acrescentou:
– Não sei ao certo quando eles terminarão de examinar o corpo.
– Ainda não consigo acreditar que ele morreu.
Sean se virou para trás de novo e viu lágrimas escorrendo pelo rosto de Megan. Inclinou-se e pegou a mão dela.
– Megan, vai ficar tudo bem.
– Você não tem como prometer isso.
– Não, não tenho, mas podemos fazer tudo o que for possível para isso.
Ela enxugou rapidamente o rosto.
– Estou bem. Certo. Chega de lágrimas.
– Não há nenhuma lei que proíba chorar – disse Michelle.
– Do jeito que as coisas estão por aqui, acho que não teremos tempo para isso.
Sean e Michelle trocaram outro olhar, visivelmente impressionados com o comentário.
– Então, qual é a primeira coisa a fazer? – perguntou Megan.
– Vamos voltar à Martha’s Inn, preparar um bule de café bem grande e começar a examinar esses arquivos – respondeu Sean.
Eles estavam na estrada havia uma hora quando o celular de Michelle tocou. Era Eric Dobkin, da polícia estadual do Maine. Michelle ouviu e depois desligou.
– Ele quer conversar. Tem algumas informações para nós. Sei que está tarde, mas que tal eu deixar você e Megan na pousada e ir me encontrar com ele? Vamos poupar tempo se nos dividirmos.
– Depois do que aconteceu esta tarde, não sei bem se é uma boa ideia nos separarmos – refletiu Sean.
– Posso cuidar de mim mesma.
– Sei disso. Eu estava preocupado comigo e com Megan.
– Sou faixa verde em tae kwon do – disse Megan.
– Isso é ótimo – disse Sean, contendo um sorriso. – Mas se eles usarem o mesmo método, não chegarão perto o suficiente para você bater neles.
– Ah.
Sean estudou Michelle.
– Está bem. Vá se encontrar com Dobkin. De qualquer maneira, o exame da papelada será mais rápido se só estivermos Megan e eu. Poderemos trocar informações quando terminarmos. Onde é o encontro com Dobkin?
– Na casa dele. Ele me deu o endereço.
– Certo, mas é melhor você jogar o tempo todo para ganhar, está bem?
– Esse é o único modo como eu sei jogar, Sean. Embora a esta altura você já devesse saber disso.

13
O GPS FICOU SEM SINAL a cerca de 1 quilômetro da casa de Eric Dobkin. Michelle teve de lhe telefonar e ele foi dando as instruções pelo telefone. Quando ela fez uma curva e avistou as luzes da casa à frente, também viu uma picape Dodge do último modelo estacionada na entrada para automóveis. Perto dela havia uma velha minivan Chrysler. Ao espiar dentro da van, Michelle viu três cadeiras para crianças presas ao banco. Puxa, pensou consigo mesma. Aposto que ninguém nesta casa dorme muito.
A casa era feita com troncos de pinho, tinha um telhado de cedro e uma porta de carvalho sem adorno. O pequeno jardim de flores ao redor dela havia muito perdera seu viço de verão e parecia morto.
Michelle bateu à porta.
Ela ouviu passos leves lá dentro. Não eram de Dobkin. Talvez de sua esposa. Michelle olhou para a fachada da casa, imaginando seu interior.
Sala na frente. Três quartos ao longo de um corredor central. Cozinha provavelmente nos fundos. Sem garagem, o que no Maine parecia um pouco incomum. Talvez um banheiro e um lavabo. A casa parecia forte, com os troncos bem presos uns aos outros.
A porta se abriu. A mulher era baixa e carregava uma criança no colo. O tamanho e a forma da barriga indicavam que estava esperando outro filho. E para logo.
– Sou Sally. Você deve ser Michelle – disse ela em um tom tranquilo, quase cansado. – Este é Adam, nosso filho mais velho. Acabou de fazer 3 anos.
O garotinho, com o dedo na boca, olhou para Michelle.
– Vocês têm três filhos?
– Como sabe?
– As cadeiras na van.
– Observadora. Eric disse que você e seu parceiro são bons no que fazem. Sim, temos três garotinhos. – Ela acariciou a barriga. – E outro bebê a caminho. Um ano de diferença de um para outro.
– Vocês não perdem tempo – comentou Michelle, entrando na casa. – Desculpe por vir tão tarde.
– Com o horário de trabalho de Eric, todos nós viramos corujas. Ele está no escritório, nos fundos.
Michelle olhou ao redor. Escritório? Era um cômodo que ela não incluíra em suas suposições.
– Volto já – disse Sally.
Ela desapareceu e Dobkin surgiu um minuto depois. Usava calça jeans, camisa de algodão branca e um colete laranja. Seus cabelos louros ainda estavam marcados pelo chapéu de policial.
– Noite fria – disse Michelle.
Ele a olhou, achando graça.
– Fria?
– Bem, acho que para os padrões do Sul. Você mora em um lugar realmente isolado.
Ele deu um sorriso.
– Eu moro a meros 8 quilômetros do último sinal de trânsito. Precisa ver onde alguns dos outros rapazes moram. Aquilo é que é isolado.
– Se está dizendo...
– Então, seu parceiro está ocupado com outra coisa?
– Estamos tentando cobrir todas as bases. E agradeço por ter ligado. Sei que não deve ser fácil ficar no meio disso tudo.
– Vamos lá para trás.
Os dois passaram pela cozinha, onde puderam ver Sally alimentando Adam e o menino que deveria ser o do meio, que parecia estar quase dormindo e prestes a cair sobre o prato de comida. A criança menor já devia estar na cama, presumiu Michelle.
Eles se instalaram no pequeno escritório, onde havia uma velha e gasta escrivaninha cinza-chumbo, uma prateleira feita de tábuas e tijolos de concreto e um arquivo de carvalho arranhado com duas gavetas. Um laptop vermelho da Dell estava sobre a escrivaninha, junto com um estojo para arma de fogo trancado, onde Michelle presumiu que ele guardava a pistola de serviço. Com três crianças pequenas e certamente curiosas, aquilo era indispensável. Uma janela dava para os fundos da casa. Um tapete retangular azul fazia o possível para suavizar a dureza do chão de madeira. Dobkin se sentou atrás da escrivaninha e apontou para uma cadeira com encosto de ripas de madeira e assento de couro sintético. Michelle a puxou e se sentou.
Dobkin olhou para a cintura dela e insinuou.
– Arma nova?
Ela baixou os olhos para a Sig à mostra.
– Quando se está no Maine... E Murdock foi vago sobre quando eu poderia ter minha arma de volta.
– Ouvi dizer que vocês foram a Cutter’s Rock ver Edgar Roy.
– Fomos. Um lugar impressionante. Pelo visto não economizaram nem um dólar nele.
– Muitos empregos bem remunerados. E precisamos de cada um deles.
– Então psicopatas homicidas têm alguma serventia.
– Não chegaram muito longe com ele, não foi?
– Andou falando com o agente especial Murdock?
– Não. Uma amiga da minha esposa trabalha em Cutter’s Rock.
– Então você tem uma informante lá?
Dobkin se remexeu desconfortavelmente em sua cadeira e respondeu:
– Não chega a tanto.
– Como vai a investigação?
– Como sempre, o FBI está sendo parcimonioso com as informações.
– Para que você queria nos ver?
– Algumas coisas. Além da mensagem que seu parceiro deixou, Bergin recebeu um telefonema mais ou menos na hora em que saiu da Gray’s Lodge na noite passada. E também fez um.
– Quem telefonou para ele e para quem ele telefonou?
Michelle sabia a resposta para a primeira pergunta, mas não para a última.
– A que ele recebeu foi de Megan Riley. Número da Virgínia.
– É a advogada que trabalha com ele.
Michelle não mencionou que a mulher estava a menos de uma hora dali, na Martha’s Inn.
– E para quem ele telefonou?
– Para Cutter’s Rock, confirmando sua hora marcada na manhã seguinte.
– Isso é estranho. Ele esteve lá mais cedo... Podia ter confirmado o encontro.
– Talvez ele seja do tipo metódico. Ou fosse – corrigiu-se Dobkin.
– Cutter’s Rock. O que você sabe sobre o lugar?
– É federal e à prova de fuga. Os piores criminosos vão para lá.
Michelle fingiu um sorriso.
– Sim, essa parte eu sabia. Edgar Roy parecia um zumbi. Dopar os detentos é uma prática comum por lá?
– Acho que isso seria contra a lei, a menos que um médico as prescrevesse.
– Eles têm médicos lá, não é? Que talvez prescrevam o que for necessário?
– Acho que sim. Mas eles também usam a tal consulta a distância.
– Consulta a distância?
– Para não terem de transportar prisioneiros de um lado para outro. Os médicos podem fazer a consulta a distância, pelo computador, com técnicos da área de saúde no local. Examinar a garganta com uma pequena câmera, conferir sinais vitais, coisas desse tipo. Algumas audiências também não têm que ser presenciais. São realizadas pelo computador. As fugas tendem a ocorrer mais durante o transporte.
– Edgar Roy não parece capaz de fugir nem que lhe dessem a chave do lugar e uma passagem de ônibus.
– Não sei nada sobre isso.
– Mais alguma coisa?
– Não, na verdade não.
Michelle o olhou calmamente e refletiu:
– Você podia ter me contado isso tudo pelo telefone.
– Gosto de conversar pessoalmente.
– Não explica por que você quer nos ajudar.
– Vocês ajudaram meus homens. Estou retribuindo o favor.
– E um pouco de vingança pelo FBI assumir a investigação?
– Não tenho nada contra o FBI. Roy é problema deles.
– Algum resultado da autópsia de Bergin?
– Os federais trouxeram o próprio legista. Que eu saiba, ainda não foi feito nenhum relatório.
– O que o coronel está achando de ser posto para escanteio na própria cidade?
– Ele segue as regras.
– Sabe mais alguma coisa que poderia ajudar a entender por que Bergin foi morto?
– Não. E você?
– Estamos só tateando até agora.
– Soube que as janelas do seu carro não estão mais lá.
Michelle tentou esconder sua irritação ao perguntar:
– Soube por quem?
– É verdade ou não?
– Certo, é verdade.
– Quando isso aconteceu?
Ela contou.
– Você devia ter registrado a ocorrência.
– Estou falando com a polícia agora.
– Viu alguma coisa?
– Nada exceto um projétil de rifle de longo alcance passando diante dos meus olhos.
– Há poucas pessoas capacitadas para esse tipo de tiro.
– Ah, certamente. Aposto que sua irmã mais nova é uma delas.
Dobkin sorriu ao dizer:
– Você é sempre tão descontraída durante uma investigação?
– Ajuda a diminuir a tensão.
– Também há uma mulher com vocês. Quem é? Megan Riley?
– Há quanto tempo vocês estão nos seguindo?
– Não estamos. Temos alguns olhos na Martha’s Inn.
– A Sra. Burke?
– Ela é amiga da minha esposa.
– Sua esposa tem amizades muito úteis.
– Vantagens de uma cidade pequena.
– U-hum.
– Então é Megan Riley?
– Sim.
– Os federais vão querer falar com ela.
– Imagino que sim.
– E você vai dizer a eles que está com ela?
– Estou certa de que o agente Murdock, com todo o peso do FBI por trás dele, descobrirá onde ela está, se até sua esposa já sabe.
– Então acho que é isso.
– Por enquanto – emendou Michelle.
– Eu agradeceria se você mantivesse esse pequeno acerto entre nós.
– Mais uma coisa – disse ela enquanto se levantava.
– Sim – respondeu ele rapidamente, olhando por cima do ombro dela quando o som de um bebê chorando chegou até eles.
– É o seu caçula?
Ele assentiu com a cabeça.
– Sam. O nome do meu pai. Ele também era um policial estadual.
– Era? Ele se aposentou?
– Não. Morreu em serviço. Briga entre dois bêbados.
– Sinto muito.
Ele se retesou quando o choro do bebê se tornou mais alto.
– Então o que mais? Preciso ajudar Sally – disse ele em um tom destinado a encerrar a conversa.
– Por que Edgar Roy estava em uma lista de observação do FBI? Tudo bem, ele é suspeito de assassinatos em série. Mas, ainda assim é estranho que o advogado seja assassinado e um exército de federais de Boston pula para dentro de um helicóptero em vinte segundos.
– Não sei nada sobre isso.
– Mas você parece o tipo de pessoa que questionaria isso.
– Bem, acho que você está errada sobre o tipo de pessoa que sou.
Michelle voltou para seu carro, consciente do olhar de Dobkin sobre ela até sair de seu campo de visão.
Quer dizer que não precisa mais ajudar Sally com o bebê?

14
SEAN FOLHEOU AS ÚLTIMAS PÁGINAS de uma pasta de processos e depois observou Megan Riley, que esfregava os olhos e bebericava chá agora morno de uma caneca. Eles estavam no quarto de Sean. A Sra. Burke não colocara nenhum empecilho à presença de outra mulher ali, por isso Sean concluiu que ela simplesmente não gostava de Michelle.
Ele teve a confirmação disso quando a dona da pousada trouxe sanduíches, algumas fatias de torta, café e chá para Megan. Antes de sair do quarto, a Sra. Burke perguntou:
– Cadê sua amiga?
– Seguindo uma pista.
– Ela jantou?
– Acho que não.
– Bem, é muito tarde e a cozinha está fechada.
– Tudo bem. Eu aviso a ela.
Sean pôs a pasta de lado e olhou para as anotações que fizera em um caderno.
– Como foi que Ted assumiu esse caso?
Megan se inclinou para a frente em sua cadeira e pousou a caneca.
– Não sei direito. Ele mencionou de passagem várias semanas atrás. Para falar a verdade, eu não estava muito focada em Edgar Roy. Quero dizer, tinha lido alguma coisa no jornal, mas estava ocupada demais dando meus primeiros passos como advogada. Quando o Sr. Bergin me disse que eu também constaria nos autos, perguntei sobre o caso e ele passou alguns minutos comigo revendo os detalhes. Meu Deus, aquilo foi horrível. Edgar Roy deve ser louco de verdade.
– Esse louco é seu cliente agora, portanto guarde essa opinião para si mesma.
Megan se aprumou na cadeira e corrigiu-se:
– Ah, certo. Desculpe.
– E você fez algumas pesquisas sobre o caso para Ted, não foi?
Megan engoliu um pedaço de sanduíche e limpou a maionese em sua boca antes de falar:
– Sim. Coisas rotineiras. Assuntos jurisdicionais. Áreas de competência. Coisas assim.
– E teorias da defesa?
– Não sei se o Sr. Bergin já tinha alguma teoria. Mas ele parecia ansioso pelo início do julgamento.
– Como você sabe?
– Pelas coisas que ele dizia. O Sr. Bergin parecia estar muito disposto de levar o caso adiante.
– O que novamente não responde a como ele acabou sendo advogado de Roy. Se Roy era incapaz, não podia tê-lo contratado. E não consigo encontrar nada nos arquivos que mostre que os dois tinham um relacionamento profissional preexistente.
– O Sr. Bergin poderia ter sido contratado por alguém da família de Edgar Roy?
– Essa era minha próxima pergunta. Mas os recibos de pagamentos de honorários não estão nos arquivos.
– Acho que Hilary os guarda separados – explicou Megan.
– Mas não há nenhuma correspondência enviada a um cliente. E isso deveria estar nestes arquivos.
– Pensei que tivesse trazido tudo, mas posso ter deixado passar algo.
O telefone de Sean tocou. Ironicamente, era Hilary.
– Acabei de voltar da casa do Sr. Bergin, Sean. Não tem ninguém lá.
– Não tem ninguém lá agora. Mas deu para perceber se alguém passou por lá antes da senhora?
– O lugar é bem isolado, mas é preciso passar por outra casa para chegar à do Sr. Bergin. Conheço a mulher que mora nela. Eu lhe perguntei se a polícia ou alguém tinha ido lá e ela respondeu que não. E ela passou o dia em casa.
– Certo, Hilary, fico muito agradecido pelo favor. Olhe, estou aqui com Megan. Sim, pedimos que ela viesse de avião esta noite. Ela trouxe os arquivos, mas não há nada aqui que diga quem contratou Ted. Não podia ser Roy. Pelo menos eu acho que não. E o arquivo de correspondência não está aqui. Para quem você envia as cobranças de honorários?
– Não há nenhuma cobrança.
– O que você quer dizer? Ted estava fazendo isso de graça?
– Não tenho certeza. Acho que podia estar. Ou então tinha um sistema de pagamento diferente.
– Mesmo assim, ele tinha que ter sido contratado por alguém. Precisava entrar em contato com essa pessoa. Deve ter uma carta de contratação de representação legal em algum lugar, feita por uma pessoa autorizada a agir em nome de Edgar Roy.
– Bem, não sei quem é essa pessoa.
– Isso era típico de Ted?
– Como assim?
– Esconder de você a identidade do cliente?
Ela fez uma pausa de alguns segundos antes de dizer:
– Foi a única vez que ele fez isso.
– Certo, obrigado, Hilary. Manterei contato.
Ele pousou o telefone e olhou para Megan.
– Parece que temos um mistério nas duas pontas – falou ele.
A porta se abriu.
O agente Murdock surgiu com seus homens atrás de si.
– Megan Riley?
A jovem advogada derramou o chá ao se levantar com pernas trêmulas.
– Sim?
– FBI. Precisa vir conosco. – Murdock olhou para Sean. – E, você, fique agradecido por não estar sendo acusado de obstrução da justiça.
– E por que eu seria?
– Você sabe que ela é relevante para nossa investigação.
– Relevante, mas não testemunha. E eu tenho o direito de conduzir minha própria investigação.
Murdock ia dizer alguma coisa, mas, antes que conseguisse, Sean acrescentou:
– A meu ver, eu lhe fiz um favor. Eu a trouxe para o Maine. Mandarei um pedido de reembolso da passagem aérea dela para o FBI.
– Não conte com isso – resmungou Murdock. – Vamos, Srta. Riley.
Megan olhou de forma suplicante para Sean, que disse:
– Ligue quando eles terminarem. Eu vou buscá-la.
– Não, não vai – retrucou asperamente Murdock.
– Vai retê-la contra a vontade dela?
– Não.
– Então eu a buscarei quando ela ligar.
– É melhor você tomar cuidado.
– Sugiro que faça o mesmo, agente Murdock.

15
PETER BUNTING AJEITOU NERVOSAMENTE a gravata e fez um sinal afirmativo com a cabeça para o membro da equipe que o escoltara até a reunião. Bunting já estivera ali em várias ocasiões, mas desta vez era diferente. Desta vez estava preparado para se ferrar.
De repente, Bunting parou e olhou inexpressivamente para o homem que acabara de sair do escritório onde ele estava prestes a entrar.
Mason Quantrell era 15 anos mais velho do que Bunting e não tão alto quanto ele. Tinha peito largo e forte e queixo proeminente. Seus cabelos ainda eram espessos e ondulados, embora quase todos os fios castanhos tivessem se tornado grisalhos. Sua mente era muito mais viva que suas feições; seu olhar, intenso e vigilante. Ele era o CEO do Mercury Group, uma das maiores companhias na área de segurança nacional. Em termos de receita, a Mercury tinha o dobro do tamanho da empresa de Bunting, mas o Programa E dava maior influência a Bunting. Quantrell era adepto dos métodos tradicionais. Distribuía o serviço de inteligência. Deixava as abelhas operárias fazerem o trabalho e alimentarem a fábrica de papel do governo, emitindo relatórios que ninguém tinha tempo de ler. Ele era o dinossauro que ganhava bilhões do Tio Sam. Bunting fora contratado por Quantrell assim que saíra da universidade. E então Bunting partira para construir o próprio império. Duas décadas antes, Quantrell havia sido o garoto prodígio do mundo clandestino do setor privado, até Bunting substituí-lo.
Eles não eram amigos. De certa forma, eram até mais do que concorrentes. Em Washington não havia vencedores nem perdedores, apenas sobreviventes. E Bunting sabia que Quantrell faria tudo o que estivesse ao seu alcance para vê-lo cair de seu elevado pedestal.
– Que coincidência encontrá-lo aqui – comentou Quantrell.
Aposto que não, pensou Bunting.
– Como vão os negócios? – perguntou Quantrell.
– Nunca estiveram melhores.
– É mesmo? Ouvi dizer o contrário.
– Não dou a mínima para o que você ouviu, Mason.
Quantrell riu.
– Bem, não deixe a mulher esperando, Pete. Sei que ela tem muito a lhe dizer.
Ele se afastou a passos largos pelo corredor e Bunting observou cada um deles até que o assistente tocou em seu ombro, fazendo-o pular.
– A secretária Foster o verá agora, Sr. Bunting.
Ele foi levado para um grande e luxuoso escritório com janelas de vidro de policarbonato que deixava passar bastante luz, mas jamais uma bala. Ele se sentou diante da mulher. Ela vestia azul-claro – sua cor favorita, observara Bunting. Ellen Foster tinha 45 anos, era divorciada, sem filhos, tão ambiciosa quanto ele e brilhante. Simples assim. Nesse nível tão alto, o filtro se tornava incrivelmente seletivo. Ela também era loura, esguia e atraente, e capaz de passar de dama de ferro a sedutora envolvente com facilidade. Isso também não era de surpreender, naquela cidade em que a sutileza e a agressividade eram igualmente valorizadas.
Ellen, a secretária de Segurança Interna – um cargo novo, fruto do 11 de Setembro –, fez um sinal com a cabeça para Bunting com uma expressão indecifrável. Ele sabia que ela era uma excelente estrategista. Ellen comandava a maior agência de segurança do país, uma agência que tinha acumulado áreas de influência e sugado dólares do orçamento como um gigantesco aspirador de pó. Isso causara muita inveja em outras agências, que se ressentiam da importância e do alcance da nova menina dos olhos do governo. Mas este era o novo mundo e Ellen era o mais novo membro do Gabinete. Ela possuía a atenção e confiança do presidente. Quando se tem o apoio da Casa Branca, você vale ouro. Ellen sabia disso, é claro. Ela podia se dar ao luxo de parecer cooperativa e magnânima para seus concorrentes. Porque, no final, sabia que sairia por cima.
Ellen se levantou para cumprimentá-lo.
– Peter, que bom ver você. A família está bem?
– Sim, secretária Foster, estão todos bem. Obrigado.
Ela apontou para o sofá e as cadeiras encostadas em uma parede. Um bule de café e xícaras estavam sobre uma mesa próxima.
– Vamos relaxar um pouco. Afinal de contas, esta não é uma reunião formal.
Isso não fez Bunting se sentir nem um pouco confortável. Era mais comum uma relação profissional chegar ao fim em reuniões informais do que nas oficiais.
Eles se sentaram.
– Encontrei Mason Quantrell no corredor.
– Sim, imagino que sim.
– Há algo de interessante ocorrendo com o Mercury?
Ellen sorriu e empurrou o açucareiro na direção dele. Obviamente isso ficaria sem resposta.
– Ele não sabe sobre...? – disse Bunting.
– Vamos nos concentrar em você, Peter.
– Está bem.
Bunting havia acabado de levar a xícara aos lábios quando ela atacou.
– O exaltado Programa E obviamente saiu dos trilhos.
Ele tomou um gole muito grande de café e tentou não lacrimejar quando o líquido queimou sua garganta. Pousou a xícara e enxugou os lábios com seu guardanapo de tecido.
– Sim, temos problemas, mas eu não diria que saiu dos trilhos.
– E como você descreveria a situação? – perguntou ela incisivamente.
– Nós perdemos o rumo, mas estamos trabalhando muito para voltar. E eu...
Ellen ergueu um dedo, silenciando-o. Pegou o telefone e disse quatro palavras.
– Os relatórios, por favor.
Momentos depois, uma assistente com ar de muita competência lhe entregou a pasta. Ellen virou as páginas devagar enquanto Bunting observava inexpressivo. Ele desejou dizer “Você ainda usa arquivos de papel? Que estranho”. Mas não ousou.
– A qualidade dos relatórios piorou consideravelmente – começou a secretária. – A informação utilizável do Programa E caiu 36%. Os relatórios são confusos. Os pontos não estão ligados como antes. Você me disse que a operação não seria mensuravelmente impactada. É claro que foi.
– É verdade que os parâmetros estabelecidos foram muito altos. Mas eu...
Ela o interrompeu de novo.
– Você sabe que ninguém o apoia mais do que eu.
Ele sabia que aquilo era uma mentira deslavada, mas disse automaticamente:
– Fico muito grato por isso. A senhora tem sido uma grande aliada e uma líder maravilhosa em momentos muito estressantes.
O ego dos secretários de gabinete era enorme e exigia uma quantidade incomum de afagos.
Ellen sorriu pelos poucos segundos necessários e então sua expressão se tornou austera.
– Contudo, nem todos partilham do meu entusiasmo. Ao longo dos anos, o Programa E irritou algumas pessoas importantes. Tirou dólares e responsabilidades de outras agências. Isso é o Santo Graal em nosso mundo. É como uma torta. Alguém pega uma fatia maior e os outros têm de se virar com uma menor.
E o Departamento de Segurança Interna vem ficando com a maior fatia de todas, pensou Bunting.
– É indiscutível que o Programa E foi muito bem-sucedido – argumentou ele. – Manteve este país mais seguro do que se todas as agências estivessem concorrendo umas com as outras. Aquele modelo simplesmente não funciona mais.
– Eu não concordaria necessariamente com essa afirmação – respondeu Ellen lentamente. – Mas resta a velha pergunta: o que você fez por mim hoje? Os bárbaros estão nos portões. E você percebe o que pode acontecer se tudo isso se tornar público?
– Não se tornará. Posso lhe garantir.
Ela fechou o arquivo e disse:
– Bem, não estou nem um pouco segura, Peter. Assim como as outras pessoas relevantes também não estão. Quando o diretor da CIA soube, pensei que ele fosse ter um ataque cardíaco. Ele acha que isso é uma bomba-relógio colossal, prestes a explodir. Como você responde a isso?
Bunting tomou outro gole de café, dando-se mais alguns segundos preciosos para pensar.
– Acredito firmemente que podemos mudar a situação – disse ele por fim.
– Essa é a sua resposta? Sério?
Ela o olhou com incredulidade.
– Essa é a minha resposta – respondeu ele com firmeza.
Estava cansado demais para pensar numa resposta inteligente. E, de qualquer modo, não adiantaria. Obviamente a mulher tinha opinião formada.
– Talvez eu não esteja me fazendo entender, Peter. – Ellen fez uma pausa, parecendo avaliar o que estava prestes a dizer. – Há algumas pessoas que acham que as circunstâncias exigem uma ação preventiva.
Bunting passou a língua por seus lábios secos. Ele sabia exatamente o que aquilo significava.
– Acho que essa seria uma atitude muito imprudente.
Ela ergueu as sobrancelhas.
– É mesmo? Então qual é sua recomendação? Esperar a situação se agravar? Deixar a crise nos engolfar? Essa é sua estratégia, Peter? Devo telefonar para o presidente e informá-lo disso?
– Acho que não precisamos incomodá-lo neste estágio.
– Para um homem inteligente, você está agindo de um modo incrivelmente tacanho hoje. Vou ser o mais clara possível. Isso não vai nos atingir. Se der a menor indicação de que vai, tomaremos uma ação preventiva.
– Farei tudo ao meu alcance para que isso não seja necessário, senhora secretária.
O uso de seu título formal fez a mulher sorrir, achando graça.
Ellen se levantou e estendeu a mão. Ele a apertou. Notou que suas unhas eram compridas. Elas lhe arrancariam os olhos. Provavelmente se cravariam em sua pele e perfurariam seu coração também.
– Não corte laços, Peter. Sem eles, não lhe restará nada para sustentá-lo.
Bunting se virou e saiu do escritório com o máximo de dignidade. Só tinha um pensamento na cabeça.
Ele tinha de voltar ao Maine.
Quando Bunting saiu, Ellen terminou seu café. Alguns instantes depois, um homem entrou, respondendo à mensagem de texto que ela acabara de lhe enviar.
James Harkes ficou em posição de sentido a um metro de Foster.
Com 1,85 metro de altura, ele tinha por volta de 40 anos e alguns fios brancos nos cabelos curtos e escuros. Vestia terno preto, camisa branca e gravata preta. Parecia ameaçadoramente forte, com mãos grossas e dedos ásperos. Os ombros eram músculos sobre músculos, mas ele se movia como um gato, suavemente, sem desperdiçar um pingo de energia. Era veterano de muitas missões em defesa dos Estados Unidos e seus aliados. Um homem que fazia seu trabalho. Sempre.
Harkes não disse nada enquanto Ellen se servia de outra xícara de café sem lhe oferecer uma.
Ela deu um gole e finalmente ergueu os olhos para ele, ao perguntar:
– Você ouviu tudo?
– Sim – respondeu Harkes.
– Qual é sua impressão sobre Bunting?
– Ele é inteligente e talentoso, mas está ficando sem opções. O homem tem os pés no chão, por isso não podemos subestimá-lo.
– Ele não perguntou sobre o “acidente” de Sharma.
– Não, não perguntou.
– Nós vivemos em um mundo imprevisivelmente violento.
– Sim. Novas ordens?
– Você as receberá. Na hora certa. Apenas fique de olho nisso tudo.
Ellen fez um sinal quase imperceptível com a cabeça e Harkes saiu. Então ela terminou seu café e voltou ao importante trabalho de proteger a si mesma e ao seu país. Necessariamente nessa ordem.

16
CUTTER’S ROCK.
Perto da meia-noite.
O horário de visita há muito tinha terminado.
Os guardas nas torres patrulhavam seus setores.
As cercas com concertina no topo brilhavam ao forte luar.
A cerca elétrica do meio estava com carga total, pronta para queimar quem tivesse a infelicidade de esbarrar nela.
Os portões externos se abriram e o Yukon entrou.
Não houve checagens eletrônicas e nem varreduras do veículo. Nenhum pedido de identificação. Nenhuma inspeção de cavidades. O Yukon seguiu rapidamente por seu caminho.
Depois as portas hidráulicas de Cutter’s Rock se abriram. As do veículo se abriram ao mesmo tempo. Peter Bunting foi o primeiro a sair. Enquanto seus pés tocavam o chão de cascalho, ele olhou em volta e apertou sobretudo em volta do corpo. Seu jovem assistente Avery era seu único acompanhante.
O jato particular de Bunting havia aterrissado em uma pista particular a menos de uma hora de carro dali. Eles tinham seguido direto para lá.
Carla Dukes foi ao encontro deles na entrada.
– Oi, Carla – saudou Bunting. – Qual é a situação?
– Ele não disse nem uma palavra, Sr. Bunting. Só fica sentado, quieto.
– Visitas recentes?
– O FBI. E aqueles investigadores, Sean King e Michelle Maxwell. E, é claro, o Sr. Bergin.
– E ele não disse uma palavra sequer a eles?
– Nem uma só palavra.
Bunting fez um sinal afirmativo com a cabeça, um pouco mais tranquilo. Ele havia usado de sua influência para colocar Carla Dukes na direção de Cutter’s Rock. Ela lhe era leal, e naquele momento ele precisava que Carla fosse seus olhos lá dentro. A identidade de Edgar Roy tinha de ser mantida em segredo para todos, inclusive para seus advogados e o FBI.
– Fale-me sobre King e Maxwell.
– Eles são persistentes, inteligentes e obstinados – respondeu ela prontamente.
– Eram do Serviço Secreto – explicou Avery. – Então isso não é nenhuma surpresa.
– Não gosto de surpresas – disse Bunting. Ele fez um sinal com a cabeça para Carla. – Leve-nos até ele, por favor.
Ela os levou à mesma sala em que Sean e Michelle estiveram com Edgar Roy. Um minuto depois, o homem apareceu. Os guardas o escoltaram para dentro e o fizeram sentar na cadeira. Ele imediatamente estendeu suas longas pernas e ficou sentado lá, olhando para o nada.
Bunting olhou de relance para Carla.
– Isso é tudo, obrigado. E desligue o sistema de vigilância.
Bunting esperou até o equipamento de áudio e vídeo ser desligado e depois se sentou em uma cadeira perto de Roy, com seus joelhos quase tocando as pernas dele.
– Oi, Edgar.
Nada.
– Acho que você consegue me entender, Edgar.
Roy nem piscou. Ele olhava para um ponto fixo acima do ombro de Bunting.
Bunting se virou para Avery.
– Por favor, me diga que o cérebro dele não está danificado.
– Não encontraram nada de errado com ele.
Bunting abaixou a voz.
– Está fingindo?
Avery deu de ombros.
– Ele é a pessoa mais inteligente do mundo. Tudo é possível.
Bunting assentiu com a cabeça e pensou na primeira vez em que Edgar Roy encarara a Parede. Aquele havia sido um dos momentos mais felizes da vida de Bunting. Na verdade, comparável ao nascimento de seus filhos.
Dentro da sala, Roy – coberto com o mesmo equipamento de avaliação eletrônica usado pelo agora falecido Sohan Sharma – havia estudado a tela. Bunting notou que, quando a tela às vezes se dividia em dois conjuntos de imagens, Roy olhava para um conjunto com seu olho direito e para o outro com o esquerdo. Isso era incomum, mas não impossível para pessoas com a capacidade intelectual de Roy.
Bunting havia olhado de relance para Avery, que trabalhava no fluxo de informações diante de uma sequência de computadores.
– Status?
– Normal.
– Quer dizer elevado, mas dentro do normal?
– Não, não há nenhuma mudança – disse Avery.
– Quando eu mandar, use a potência máxima da Parede. Temos de saber de uma vez por todas se esse cara vai atingir o nível de qualidade necessário. Estamos ficando sem tempo e sem opções.
– Entendido.
Bunting havia falado pelo microfone do headset que usava. As primeiras perguntas foram apenas aquecimentos, nada muito complexo.
– Edgar, por favor, me forneça os dados logísticos da fronteira do Paquistão que você acabou de observar, começando pelos movimentos das tropas das forças especiais dos Estados Unidos e a tática reacionária usada pelo Talibã no dia 14 do mês passado.
Cinco segundos depois, escutou pelo fone de ouvido a repetição exata desses dados.
Ele se virou para Avery.
– Status?
– Nenhuma irregularidade. Estável e nivelado.
Bunting havia se virado para olhar através do espelho falso.
– Edgar, você acabou de observar o código de criptografia da cadeia de retransmissão da plataforma de satélite do Departamento de Defesa sobre o oceano Índico. Por favor, forneça-me um algarismo sim outro não desse código, até dígito número quinhentos.
Os números vieram para ele quase imediatamente, em rápida sucessão. O olhar de Bunting estava fixo em seu tablet, onde os dígitos corretos eram apresentados. Quando o último número saiu da boca de Roy, Bunting respirou profundamente. Uma resposta perfeita.
– Status teta? – gritou ele para Avery.
– Nenhuma mudança.
– Potência máxima no fluxo de dados.
Avery a usou e o fluxo de dados da Parede se acelerou consideravelmente.
– Certo, Edgar – murmurara Bunting. – Agora vamos ver se você é capaz de jogar para valer.
Ele havia feito mais quatro perguntas para Roy, todas elas testes de memorização, cada uma quantitativamente mais difícil do que a anterior. Roy acertara facilmente todas as quatro.
– Ele está muito relaxado – disse Avery, sua voz trêmula de excitação. – Na verdade, sua atividade teta baixou.
Relaxado, pensara Bunting. O homem estava relaxado e com a atividade teta baixa diante da Parede a todo o vapor.
Bunting tentou controlar sua crescente euforia. Memorização era uma coisa, análise, outra muito diferente.
– Edgar, dez minutos atrás você observou tanto a atividade militar quanto as condições geopolíticas na província de Ambar, no Iraque. Quero que compare isso com a situação política em Cabul, no Afeganistão, levando em conta os laços conhecidos dos chefes tribais e políticos em ambos os países. Quero sua melhor análise de quais passos estratégicos as forças armadas americanas deveriam dar para consolidar suas ações em Ambar e depois expandi-las para as regiões vizinhas nos próximos seis meses, ao mesmo tempo aumentando nosso controle militar e político sobre a capital afegã.
Bunting tinha quatro cenários muito sólidos na tela de seu tablet, o resultado das respostas de cem analistas experientes de quatro agências diferentes, que examinaram esses mesmos dados durante semanas, em vez de minutos. Qualquer uma dessas quatro respostas teria sido mais do que aceitável. Esse era o verdadeiro teste. O homem que ocuparia essa posição não era chamado de Memorizador, mas de Analista. Ele ganharia seu dinheiro transformando fatos em algo valioso, como um alquimista supostamente transformava ferro em ouro.
Quinze segundos se passaram e então o ouro chegou.
Contudo, Edgar Roy não deu uma das quatro respostas que Bunting previa e, na verdade, esperava. Isso fez o queixo de Bunting cair. Nenhuma pessoa com quem ele falara no Pentágono, no Departamento de Estado nem mesmo na CIA tinha sugerido uma estratégia tão revolucionária como a que esse homem sugerira, depois de apenas segundos pensando no assunto.
Bunting olhara para os homens ao seu redor, que também ouviram a sugestão. Todos estavam boquiabertos. Bunting havia se virado para Roy, que permanecia sentado como se estivesse assistindo a um filme moderadamente interessante, e não dirigindo a força descomunal da inteligência americana.
Peter Bunting não havia nascido em berço de ouro. Era filho de militar; a família se mudara sempre que os deveres e as patentes do pai mudaram. Seu velho tinha servido nas forças armadas, dado o sangue por seu país e instilado no filho o orgulho de fazer o mesmo. Porém um problema de vista havia acabado com qualquer chance que Bunting tivesse de se alistar, mas ele encontrara outro modo de servir. Outro modo de defender seu país.
Bunting havia ficado em êxtase ao descobrir que Edgar Roy era o melhor Analista que ele poderia encontrar. O que se seguiu foram seis meses do melhor serviço de inteligência que os Estados Unidos jamais tivera.
E agora?
Bunting encarou o zumbi de 2,03 metros de altura sentado à sua frente.
Deus ajude a todos nós.
Ele se virou para Avery.
– Como vai a investigação sobre a morte do advogado de Edgar?
– Devagar. O agente especial Murdock está no comando.
– E onde isso deixa Edgar?
– Bergin tem uma jovem assistente, Megan Riley. E, é claro, King e Maxwell.
– Certo, persistentes, inteligentes e obstinados. Foram eles que descobriram o corpo de Bergin, não?
– Sim.
– Aquela desgraçada da Ellen me colocou na forca hoje. E Mason Quantrell estava saindo de uma reunião com ela. Sei que Ellen organizou tudo para que eu desse de cara com ele.
– Por que acha isso? – perguntou Avery.
– É óbvio. Ela queria que eu soubesse que havia escolhido Quantrell como meu sucessor. E eles estão procurando qualquer desculpa para puxar meu tapete e botar o Mercury Group de Quantrell em primeiro lugar na hierarquia. E acho que encontraram.
– Mas por que eles fariam isso? O Programa E foi incrivelmente bem-sucedido. A abordagem de Quantrell continua a de sempre e é um desastre.
– As pessoas têm memória curta em Washington. E, para o Programa E cumprir seu papel, todos têm de partilhar informações conosco. Só que quase todo mundo quer seus pequenos feudos onde sempre estiveram, por isso eles contam com o apoio de todas as agências governamentais relevantes.
Bunting se concentrou em Roy de novo.
– Edgar, seu país precisa de você. Entende isso? Podemos resolver tudo para você. Mas precisamos da sua cooperação. Está entendendo?
Pontos negros. Nada mais.
Bunting insistiu.
– Acho que consegue me entender. E eu preciso que você pense com muito cuidado em como quer que tudo isso termine, está bem? Temos uma janela de oportunidade. Mas essa janela não vai ficar aberta para sempre.
Só um rosto de pedra o encarava.
Após mais algumas tentativas Bunting suspirou, se levantou e saiu. Enquanto ele e Avery caminhavam pelo corredor, Avery perguntou:
– Senhor, e se ele realmente tiver matado aquelas pessoas?
– Tenho mais de 300 milhões de pessoas para proteger. E preciso de Edgar Roy para fazer isso.

17
MICHELLE SE SENTOU DIANTE de Sean no quarto dele e eles trocaram informações sobre os últimos acontecimentos.
– Megan deve ter morrido de medo – comentou Michelle.
– Ela é corajosa. Ao sair, disse a Murdock que conhecia seus direitos e que ele não conseguiria intimidá-la.
– Bom para ela.
– Mas então começou a chorar e soluçar. Acho que Murdock pode ter considerado isso um sinal de fraqueza.
– Certo – concordou Michelle em um tom desapontado. – E agora?
– Estamos empacados com Roy. Não podemos investigar o assassinato de Ted para valer, porque Murdock não nos deixará chegar perto de nada.
– Então investigaremos outra coisa relevante para o caso. Que tal determinarmos se Edgar Roy é culpado ou não?
Sean assentiu com a cabeça.
– E também o motivo por que um cara como ele tem tanta atenção dos federais. Está certo que ele talvez seja um assassino em série, mas, infelizmente, há muitos assassinos em série e eles não atraem helicópteros tarde da noite e esse tipo de vigilância total.
– Acho que precisamos examinar o que ele realmente fazia no governo.
– Ted me disse que ele trabalhava na Receita Federal.
– Então voltaremos para a Virgínia?
– Primeiro precisamos cuidar de Megan. E descobrir quem contratou Ted Bergin.
– Acho que um advogado entraria em contato com o cliente pagante quando fosse falar com o réu.
– Dobkin lhe disse que ele só telefonou para Megan e para Cutter’s Rock. E quanto a e-mails?
– Dobkin não mencionou nenhum. De qualquer maneira, um cara da idade de Bergin podia não ser usuário de smartphones e e-mails.
– Talvez não. Mas você está certa: de algum modo ele devia estar em contato com o cliente.
– Você lembra se a mídia falou se Roy tinha família? Nesse caso, podem ter sido eles que contrataram Bergin.
– Lembro de ter lido que os pais dele estavam mortos. Não me recordo de nenhuma menção a irmãos. Teremos de descobrir isso de algum outro modo.
Ele abriu o caderno de anotações e começou a rabiscar.
– Certo, a investigação de Bergin está parada por enquanto. Investigaremos o passado de Roy, o cliente, depois precisaremos chegar à questão óbvia.
– Se Roy realmente matou aquelas pessoas? – indagou Michelle. – Isso é fundamental. O que significa que teremos de meter o nariz nessa investigação também.
– Faríamos isso de um jeito ou de outro – salientou ele. – Mas a lei obriga a acusação a partilhar todas as provas com a defesa.
– Podemos meter o nariz na cena do crime também?
– Seria negligência profissional se não metêssemos.
– Você acha que Roy está fingindo? Já vi alguns caras bancarem zumbis quando eu era policial. Principalmente se estivessem encarando a pena de morte.
– Se isso é fingimento, Roy é extremamente bom nisso.
– Talvez ele esteja sendo drogado.
– Não sei para que o governo manteria um réu de assassinato drogado para não ir a julgamento.
– Certo, quando você quer ir para a Virgínia?
– Eu disse para Megan me ligar quando os federais terminassem de interrogá-la.
– Considerando que Murdock tentará nos ferrar a cada passo, talvez ela demore um pouco a aparecer. Podemos nos dar ao luxo de esperar?
Sean olhou para ela e perguntou:
– O que você tem em mente?
– Como você sabe que tenho algo em mente?
– Somos um casal de velhos, lembra? Ou pelo menos agimos assim.
– Não termine minhas frases. Você pode acabar gravemente ferido.
– Então? – perguntou ele na expectativa.
– Então talvez eu vá para a Virgínia começar a investigar os assassinatos e a ligação de Roy com os federais, enquanto você fica aqui e espera que liberem Megan. E talvez possa voltar a Cutter’s Rock, dessa vez com Megan, e descobrir o que for possível sobre o assassinato de Bergin. E, num futuro próximo, nós nos encontramos e juntaremos as descobertas.
– Você não ia cuidar de mim? – perguntou ele, sorrindo.
– Chegou a hora de você crescer e se virar sozinho.
– Então nós dividimos e conquistamos.
– Ou cortamos nossa força ao meio – salientou ela, pegando sua arma e a oferecendo a Sean. – É melhor você ficar com isto.
– Não tenho porte de armas.
– É melhor ser preso por não ter porte do que eu ter que identificar seu corpo porque você estava desarmado.
– Entendi. Mas e quanto a você?
– Não se preocupe. Passarei em casa e pegarei outra.
– Quantas armas você tem?
– Nem mais nem menos do que eu preciso.
Ele pegou a arma.

18
À NOITE, SEAN LEVOU MICHELLE de carro ao aeroporto em Bangor, onde ela pegou o voo das sete da manhã. Depois de fazer uma conexão na Filadélfia, ela chegou à Virgínia alguns minutos antes do meio-dia. Havia dormido profundamente nos dois voos e se sentia revigorada quando aterrissou no aeroporto Dulles. Michelle pegou seu Toyota no estacionamento, passou em casa, arrumou outra mala, pegou uma pistola sobressalente e foi para o escritório. Verificou mensagens e e-mails, pegou mais algumas coisas, procurou alguns endereços, deu telefonemas e seguiu para Charlottesville.
Chegou à cidade por volta das quatro da tarde e se encaminhou para o escritório de advocacia de Ted Bergin, localizado num complexo empresarial perto do hotel Boar’s Head.
O escritório ficava no primeiro andar de um prédio revestido de tábuas brancas, com venezianas verdes e uma porta preta. As instalações eram simples: área de recepção, dois escritórios, uma sala de reunião, uma pequena cozinha com uma área de serviço nos fundos. Como de costume, Michelle fez o reconhecimento tático e notou a saída dos fundos no outro lado do prédio.
Michelle foi recebida por uma mulher na casa dos 60 anos que usava uma blusa azul-clara com gola franzida, saia preta e sapatos de salto alto pretos. Seus cabelos eram tingidos de louro e começavam a ficar ralos. Ela estava com os olhos inchados e as bochechas vermelhas. Michelle presumiu que era Hilary Cunningham e descobriu que estava certa quando a mulher se apresentou. Depois de lhe dar os pêsames pelo que acontecera a seu patrão, Michelle pediu para ver a sala de Bergin.
– Precisamos descobrir quem é o cliente – explicou ela.
Hilary a conduziu à sala de Bergin e depois a deixou sozinha, murmurando algo sobre tomar providências para o funeral. O estado totalmente arrasado da mulher fez Michelle se perguntar se o relacionamento deles fora mais do que profissional. Nesse caso, essa poderia ser outra pista a seguir. Talvez, afinal de contas, a morte de Bergin não tivesse nada a ver com o fato de ele representar de Edgar Roy. Ele fora professor de direito e amigo de Sean, mas a verdade era que os dois não se viram muito nos últimos anos. Poderia haver segredos no passado de Bergin que explicassem sua morte, até mesmo no Maine.
Michelle fechou a porta da sala e se sentou atrás da velha e pesada escrivaninha de Bergin, correndo os dedos pelo revestimento de couro desbotado. Olhando em volta, tudo ali lhe pareceu antiquado. E sólido. Ela fechou os olhos e pensou de novo no homem morto no carro.
No corpo franzino. No rosto enrugado. No buraco na cabeça.
E na janela que parecia ter sido fechada pelo assassino.
Um assassino que Bergin talvez conhecesse. Se conhecesse, isso diminuía bastante a lista de suspeitos.
Michelle examinou a escrivaninha e os arquivos de Bergin. Havia várias pastas de processos em um canto da sala, mas vazias. Nenhuma caderno de endereços. Nem computador na escrivaninha. Ela foi até a porta da frente e perguntou a Hilary sobre isso.
– Megan e eu usamos computadores, mas ele nunca quis usar. Caneta, papel e um gravador bastavam para ele.
– E a agenda de Bergin?
– Eu tinha uma agenda no computador para ele e imprimia uma cópia todas as semanas. O Sr. Bergin também carregava consigo uma agenda de compromissos.
Michelle concordou com a cabeça. E essa agenda agora estaria nas mãos do agente Murdock. Assim como o resto dos papéis de Bergin.
– Você sabe se Bergin enviava e-mails ou mensagens de texto do celular dele?
– Duvido muito que soubesse como fazer essas coisas. Preferia falar pelo telefone.
Michelle voltou ao escritório de Bergin e notou o porta-lápis e pilhas de blocos de notas sobre a escrivaninha.
Definitivamente antiquado. Mas não há nada de errado nisso, pensou.
Ela voltou sua atenção para os arquivos de madeira, o armário, o sobretudo pendurado em um gancho na parede e finalmente um aparador de carvalho.
Depois de uma hora de buscas, Michelle não encontrou nada de útil.
Ela passou mais uma hora fazendo perguntas a Hilary. Bergin não havia lhe contado muito sobre o caso de Roy, e Michelle percebeu que isso chateava um pouco a mulher.
– Ele geralmente era bastante aberto em relação a seus casos – explicou Hilary. – Afinal de contas, trabalhávamos juntos.
– E você fazia o faturamento?
– Sim. Por isso é tão estranho ele nunca ter mencionado quem o contratou para representar Edgar Roy. Afinal de contas, como seríamos pagos? Comentei com Sean que o Sr. Bergin podia estar trabalhando de graça, mas quanto mais penso nisso, mais parece improvável.
– Por quê?
– O escritório é pequeno. O Sr. Bergin ganhou um bom dinheiro ao longo dos anos, mas um caso como esse leva muito tempo e implicaria muitas despesas.
– Bem, é um caso importante. Talvez ele tivesse aceitado o trabalho por causa da notoriedade que poderia ter.
Hilary fez uma careta e retrucou:
– O Sr. Bergin não precisava de notoriedade. Era um advogado muito respeitado.
– Bem, talvez o cliente tivesse estabelecido uma condição contratual de sigilo absoluto. A senhora tem extratos bancários? Pode haver algum depósito que não tenha passado pelas suas mãos.
Hilary apertou algumas teclas no computador.
– Temos uma conta num banco local. Todo o dinheiro do escritório vai para lá. Eu tenho acesso on-line. Vou conferir.
Ela olhou para as várias telas e balançou a cabeça negativamente.
– Eu fiz todos esses depósitos de seis meses para cá.
– Podia ter sido em dinheiro.
– Não, não há nenhum depósito em dinheiro.
– Ele tinha outra conta?
Hilary pareceu ofendida com a mera sugestão.
– Se tinha, nunca me falou a respeito.
– E, obviamente, não há nos arquivos nenhum contrato de prestação de serviços advocatícios para o caso de Roy?
– Não, já verifiquei.
– Mas se Edgar Roy não o contratou, e pelo que vi duvido muito que tivesse capacidade, alguém com uma procuração ou algo assim teve de fazê-lo. Uma pessoa não pode simplesmente se nomear advogada de alguém. No mínimo, ele teria sido indicado por um tribunal – pensou Michelle em voz alta, então olhou para Hilary e disse: – Tem certeza de que não foi o que aconteceu?
– Não, se o tribunal tivesse feito isso, haveria um registro no arquivo. O Sr. Bergin foi defensor público, mas não nesse caso. E não acredito que o Sr. Roy precisasse desse tipo de ajuda. Ele tinha casa e um emprego.
– É, o problema é que ele está em estado comatoso. Não sei qual das duas situações é pior.
– Não posso opinar a esse respeito.
– Quem sabe um membro da família tivesse contratado Bergin? Os pais de Roy faleceram. Ele tem irmãos? Sean não lembra se a mídia mencionou algum.
– Realmente não conversei sobre isso com o Sr. Bergin – admitiu Hilary com humildade.
– Mas não ficou curiosa quando ele começou a representar o homem? Com a falta de um contrato de prestação de serviços? E a falta de pagamentos?
Hilary pareceu desconfortável com essas perguntas, mas respondeu:
– Reconheço que achei estranho. Mas nunca teria questionado o Sr. Bergin sobre um assunto profissional.
– Mas esse também era um assunto de negócios. O contrato de prestação de serviços e os pagamentos de honorários são importantes. Afinal de contas, isto é uma empresa e você faz parte dela.
– Já disse que nunca o questionei. O Sr. Bergin certamente sabia o que estava fazendo. E, afinal de contas, o escritório era dele. Eu... eu era só sua funcionária.
Michelle analisou o rosto da mulher. Ainda que quisesse ser mais que isso. Tudo bem, eu entendo.
– Ele nunca deixou escapar nada sobre quem poderia tê-lo contratado? O acerto financeiro?
– Não.
– Então o cliente nunca veio aqui?
– Bem, não fico aqui 24 horas por dia, 7 dias por semana, mas não, pelo menos enquanto eu estava presente.
– Então nenhum cliente esteve aqui desde que ele começou a representar Edgar Roy?
Hilary pareceu confusa.
– Não entendi.
– Se viesse alguém desconhecido, a senhora não necessariamente saberia por que estava aqui.
– Ah, certo, entendo o que você quer dizer. Bem, os novos clientes costumam fazer contato pelo telefone. Eu lhes peço as informações pessoais e pergunto qual é o assunto. O Sr. Bergin não lida com todas as áreas do direito, por isso não quero que as pessoas percam seu tempo vindo aqui à toa.
– A senhora faz uma triagem.
– Exatamente. E marco uma reunião, caso o Sr. Bergin possa lhes ajudar. E, quando eles chegam a um acordo, preparo um contrato de prestação de serviços.
– No mesmo dia em que vêm aqui?
– Às vezes. Se o contrato fosse fora do comum e o Sr. Bergin tivesse de revisar o documento padrão, ele seria enviado ao endereço do cliente alguns dias depois. O Sr. Bergin era rigoroso a esse respeito. Nenhum trabalho era feito até o contrato ser assinado.
– Aparentemente, exceto no caso de Edgar Roy.
– Aparentemente sim – concordou Hilary, torcendo o nariz.
– Alguém que a senhora não conhecesse telefonou perguntando por Bergin?
– Bem, recebemos muitos telefonemas. A maioria das pessoas eu conheço, é claro. Algumas, não. Mas não me lembro de nada fora do comum.
– Alguém veio se encontrar com Bergin mais ou menos na época em que ele começou a representar Roy, alguém para quem a senhora não enviou um contrato de prestação de serviços?
– Não que eu me lembre.
– Mas a senhora disse que não ficava aqui 24 horas por dia, 7 dias por semana. Bergin poderia ter se encontrado com essa pessoa fora do horário de trabalho. Ou ela podia ter telefonado quando a senhora não estivesse aqui.
– Sem dúvida. Ele podia ir e vir quando bem entendesse.
– O que pode me dizer sobre Megan Riley?
– Ela só começou a trabalhar aqui há dois meses. O Sr. Bergin dizia há muito tempo que precisava de um assistente. Que não trabalharia para sempre. E que a carga de trabalho era muito grande. Havia trabalho mais do que suficiente para um segundo advogado. E, é claro, nessa época ele estava representando o Sr. Roy, o que exigia muito da sua atenção. Ele precisava de ajuda.
– Houve muitos candidatos ao emprego?
– Vários. Mas desde o início existiu uma química entre Megan e ele. Dava para ver isso.
– A senhora gosta de Megan?
– Ela é muito gentil e trabalhadora. Agora, Megan não é muito experiente, portanto comete alguns erros, o que era de esperar. O Sr. Bergin estava sendo um ótimo mentor para ela, aparando algumas das arestas. – Ela fez uma pausa.
– O que foi? – perguntou Michelle.
– O Sr. Bergin e a esposa nunca tiveram filhos. Acho que ele via Megan como a filha ou até mesmo a neta que não teve. Esse provavelmente foi mais um motivo para ele contratá-la. Os outros candidatos eram mais velhos.
– Isso faz sentido. Parece que Bergin falou com ela no dia em que ele... no dia em que aconteceu. Megan mencionou esse fato à senhora?
– Não. Mas, se foi depois do expediente, ela provavelmente não teria tido tempo. No dia seguinte foi direto para o tribunal e não nos falamos até ela telefonar mais tarde. Foi quando eu lhe dei o recado de Sean.
– Megan disse que levou todos os arquivos sobre Roy. Acha que ela poderia ter deixado algum para trás?
– Posso verificar, se quiser.
– Por favor.
Vinte minutos depois, Hilary exibia uma pasta fina que continha apenas duas folhas de papel.
– Isto ficou preso no arquivo de outro cliente, acidentalmente. Talvez tenha sido por isso que ela não viu.
Michelle pegou a pasta, abriu e leu o que estava escrito.
Era do FBI. Um pedido de informação a Ted Bergin sobre o fato de ele representar Edgar Roy. Quando Michelle viu quem assinara a carta, tomou um susto.
Agente especial Brandon Murdock.

19
SEAN VOLTOU À POUSADA E literalmente caiu na cama. Levantou-se a tempo de um almoço tardio. Megan não ligou. Ele telefonou para ela, mas a ligação foi direto para a caixa postal. Então ele examinou mais duas vezes os arquivos legais, só que não encontrou nada de útil. Não havia muito sobre o caso e Sean não conseguiu determinar que rumo Bergin planejava dar à defesa. Porém o caso não era tão antigo. Provavelmente Bergin ainda estava estudando o que fazer. E não era um bônus o fato de Edgar Roy não os ajudar.
Agora estava anoitecendo e Sean parou o carro alugado de janelas quebradas no acostamento e desceu. A polícia e os federais tinham terminado seu trabalho e ido embora; a fita de isolamento amarela e as placas tinham desaparecido junto com eles.
Sean começou a investigação ficando onde o carro estivera. Ele se visualizou dirigindo tarde da noite. O que o teria feito parar no acostamento? Alguém em apuros? Essa pessoa havia acenado indicando que passava por algum tipo de emergência? Bergin era um homem inteligente, mas alguém de sua geração talvez estivesse mais inclinado a parar e ajudar.
Contudo, Bergin estava na casa dos 70, sozinho e desarmado. A atitude lógica seria continuar dirigindo. Se o assassino tivesse fingido uma emergência para tentar fazê-lo parar, Bergin podia simplesmente ter seguido em frente e telefonado para 911 do celular. Não precisaria parar e baixar a janela para acabar levando um tiro fatal na cabeça.
Então, a menos que ele conhecesse a pessoa, teria seguido em frente, mas não seguiu. Agora, Sean considerava outra possibilidade.
Talvez Bergin tivesse ido se encontrar com alguém e foi morto por essa pessoa. Sean analisou o acostamento de cascalho e voltou os pensamentos para aquela noite. Eles não tinham visto sinais de outro carro. Mas ele precisava admitir que não examinara o local muito atentamente antes de a polícia aparecer. Porém, se outro carro tivesse estacionado ali, provavelmente haveria alguma pista que a polícia e o FBI poderiam ter.
Ele olhou na direção da floresta. Os policiais haviam estabelecido um perímetro de busca preliminar, improvisado e imediato, e outro perímetro mais completo para ser coberto à primeira luz do dia. Eles teriam encontrado alguma coisa? Caso tivessem, Dobkin não estava ciente, ou talvez o FBI também viesse mantendo a polícia estadual do Maine às cegas.
Se houve um encontro, com quem foi e por que ali?
Bergin podia ser um homem gentil e atencioso, mas não era bobo. Se houvesse a mínima chance de uma emboscada, ele não teria comparecido. O caso tinha algo a ver com Edgar Roy? Só poderia ter, concluiu ele. O único motivo de Bergin estar no Maine era o cliente.
E, se o encontro tinha relação com Edgar Roy, talvez houvesse um número limitado de suspeitos. Sean se perguntou se essa lista começava e terminava em Cutter’s Rock.
Sean ficou tenso quando os faróis de um carro cortaram a lúgubre penumbra. A princípio ele achou que era apenas um motorista passando, mas o carro desacelerou e parou atrás do Ford.
Eric Dobkin não vestia uniforme e o veículo do qual saltou era sua picape Dodge, não a radiopatrulha da polícia estadual do Maine. Seus sapatos foram estalando no asfalto enquanto ele se aproximava de Sean. Dobkin vestia calça jeans gasta, um agasalho da Universidade do Maine e um boné do Red Sox. Parecia um aluno do último ano do ensino médio andando a esmo depois de um jogo de futebol.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou Dobkin, com as mãos nos bolsos do agasalho.
– Pensei que fosse óbvio. Examinando a cena do crime.
– E?
– E, francamente, não está me ajudando em nada.
– Você acha mesmo que ele conhecia a pessoa?
Sean olhou para além de Dobkin, para o trecho de floresta às escuras. Embora eles estivessem a quilômetros do oceano, o cheiro de maresia parecia dominá-lo, entrar por todos os poros, como o odor forte de fumaça de cigarro em um bar.
– Só uma teoria, baseada naquela janela. E no fato de ele ter parado em uma estrada deserta tarde da noite. Provavelmente não teria parado se fosse um estranho.
– Talvez alguém o tivesse enganado. Fingido que estava com o carro quebrado. Foi o que fez você parar.
– Sim, mas éramos dois e minha parceira tinha uma arma.
– Sei que sua teoria sobre um policial ter parado seu amigo parece plausível, mas não acho que seja possível. Esta é uma área isolada, mas todo mundo conhece todo mundo. Um estranho andando por aí em uma radiopatrulha teria sido notado.
– Acho que você tem razão. E, se quisessem matar Ted, não precisavam se dar tanto trabalho. – Sean parou, estudando o rosto do outro homem. – Vocês estão totalmente fora do caso?
– Não totalmente. O FBI está conduzindo, é claro, mas eles têm que nos usar para algumas coisas.
– Descobriram algo interessante?
– Nada. Eu teria contado à sua parceira.
– E se ele tivesse vindo se encontrar com alguém? – cogitou Sean. – Isso explicaria tanto o fato de ele parar no acostamento quanto de baixar a janela. Havia algum vestígio de outro carro?
– Nenhuma marca de pneu. Mas isso é fácil de evitar. Basta levar o carro para a estrada e voltar para alisar o cascalho. Com quem ele estaria se encontrando?
– Eu esperava que você tivesse alguma ideia.
– Eu não conhecia o homem. Você, sim.
Sean imaginou que o último comentário saiu em um tom mais acusatório que Dobkin pretendia.
– Quero dizer, se ele tivesse vindo se encontrar com alguém, provavelmente seria alguém daqui – explicou Sean. – E como isso não inclui muita gente, pensei que você poderia ter pelo menos um palpite. Talvez alguém de Cutter’s Rock? Você deve conhecer algumas das pessoas que trabalham lá.
– De fato, conheço.
– Sou todo ouvidos.
– Não sei bem se tenho algo a lhe dizer.
– Não tem ou não pode?
– Para mim é a mesma coisa.
– Você falou com minha parceira.
– Sim. Aliás, cadê ela?
– Conferindo algumas outras coisas.
– Murdock vai arrancar sua pele se você se meter na investigação dele.
– Não será a primeira vez que irritaremos alguém do governo.
– É só minha opinião.
– Então por que você parou aqui, se não tem nada a me dizer?
– O homem foi assassinado. Quero saber por quem.
– Eu também.
Dobkin esfregou o sapato na estrada.
– Preciso seguir uma cadeia de comando. Você não faz parte dela. Tenho família. Não posso jogar minha carreira no lixo. Não a troco de nada. Sinto muito.
– Está bem, entendo isso. Agradeço o que você fez.
Sean foi voltando para o carro.
– Tem alguma ideia de quem atirou em você?
Sean se virou para trás e respondeu:
– Não, só que não foi a primeira vez que essa pessoa disparou um rifle. Isso ficou muito claro.
– Vou investigar.
– Tudo bem.
– Por que você não notificou a polícia? Alguém tentou matá-lo.
– Não, foi um aviso. É diferente.
– Ainda assim, vou investigar.
– Faça como quiser.
– Você não parece estar levando isso muito a sério.
– Eu estou. Só acho que vocês não vão descobrir nada.
– Nós somos muito bons no que fazemos.
– Sei que são. Mas algo me diz que estamos enfrentando alguém que também é muito bom no que faz.
Os dois homens se entreolharam e pareceram chegar a um consenso silencioso. Dobkins por fim apontou o Ford.
– Se eu fosse você, cobriria essas janelas. Deve chover amanhã.
Sean o observou afastar-se em seu carro e depois dirigiu o Ford de volta para a Martha’s Inn, com o casaco abotoado até em cima para se proteger do frio úmido que entrava pelas janelas quebradas.

20
MICHELLE ILUMINOU O ENTORNO com a lanterna enquanto ia aos fundos da casa. Ela havia jantado, conversado com Sean e refletido sobre o que descobrira até então. Tinha esperado até bem depois do anoitecer para ir à casa de Bergin. Não que precisasse arrombá-la para entrar, só que a noite lhe parecia melhor para esse tipo de atividade.
Ted Bergin vivera em uma casa de fazenda do século XVIII que restaurara uns cinco anos atrás, pouco antes de a mulher com quem fora casado por quarenta anos morrer num terrível acidente de carro. Sean dera essa informação a Michelle e isso aumentara sua empatia pelo advogado e seu desejo de descobrir o assassino dele.
A casa ficava a cerca de 13 quilômetros do escritório de Bergin, em uma região rural e isolada e tendo como paisagem pitorescas colinas verdes. Ela se perguntou o que aconteceria com o lugar agora. Talvez ele tivesse feito um testamento, deixando a propriedade para Hilary Cunningham pelos anos de serviço e lealdade.
A mulher tinha lhe dado uma chave da casa. Explicara que Bergin guardava uma sobressalente no escritório para o caso de haver uma emergência.
Bem, acho que isso se enquadra.
Michelle optou pela porta dos fundos, pois evitava entrar em qualquer lugar pela da frente. Ou pelo menos passou a evitar desde que quase fora rasgada ao meio quando trinta balas de um pente de metralhadora destruíram a porta principal de uma casa em Fairfax, na Virgínia, diante da qual Michelle estivera um segundo antes.
Ela abriu a porta e espiou dentro da casa, iluminando com sua lanterna. Cozinha, concluiu facilmente quando o raio de luz se refletiu na geladeira e depois em um lava-louça de aço inoxidável. Michelle fechou a porta atrás de si e entrou mais.
A casa não era grande e não tinha muitos cômodos, por isso, uma hora depois, Michelle havia examinado o básico. A menos que estivesse disposta a arrancar pisos e destruir paredes de gesso, não descobriria nada importante. Ted Bergin fora um homem de hábitos ordeiros que optara por qualidade em vez de quantidade. Possuía relativamente poucas coisas, mas de excelente procedência. Ela encontrou um rifle e uma espingarda de caça dentro de um armário feito de vidro e madeira que ficava pendurado na parede do que parecia ser o escritório/biblioteca do advogado. Havia caixas de munição em uma gaveta embutida na parte inferior do armário.
Encontrou um colete de caça, equipamento de pesca e outros artigos esportivos em um vestíbulo e concluiu que Bergin fora um grande apreciador da vida ao ar livre. Se ele tivesse se aposentado, talvez ainda estivesse vivo, desfrutando seus anos dourados. Bem, não havia nenhuma dúvida disso – ele estaria.
Num álbum de fotografias, Michelle encontrou uma série fotos da Sra. Bergin. Várias a mostravam entre os 20 e os 30 anos. Ela era bonita e tinha um sorriso tímido que provavelmente atraíra a atenção de muitos rapazes. Em outras fotos, tinha cabelos brancos e pele enrugada. Mas mesmo mais tarde na vida sua expressão era cordial e até mesmo travessa. Michelle se perguntou por que eles nunca tiveram filhos. Provavelmente não conseguiram. E eram de uma geração sem acesso a clínicas de fertilidade e barrigas de aluguel, embora pudessem ter adotado.
Michelle pousou o álbum e pensou no que fazer em seguida.
Ela se perguntou por que nem a polícia nem o FBI tinham estado ali. Talvez estivessem restringindo a investigação ao Maine, o que parecia estupidez, já que o assassinato do homem no Maine poderia estar ligado a algo na Virgínia sem conexão com Edgar Roy. E, mesmo que o assassinato tivesse a ver com a defesa de Roy, também poderiam existir provas relevantes aqui. E havia a carta de Brandon Murdock. Aparentemente ele também queria saber quem era o cliente de Bergin. Contudo, devia haver algo nos autos, embora talvez fosse confidencial. Seria uma forma de manter a informação fora do conhecimento público.
Mas o FBI deveria ter acesso a qualquer documento confidencial.
Michelle decidiu ir mais uma vez à biblioteca de Bergin, para o caso de ter deixado escapar alguma coisa. Ela se sentou à escrivaninha dele, que era de madeira entalhada e tão sóbria quanto o mobiliário de um tribunal, e acendeu o abajur verde do advogado. Não havia nenhum computador. Apenas alguns arquivos e blocos com anotações. A secretária eletrônica de Bergin não tinha mensagens. A caixa de correio lá fora estava vazia. Michelle achou isso estranho, porque a correspondência devia ter sido entregue enquanto ele estava no Maine. A menos que ele a tivesse suspendido até sua volta.
Ela deu um tapa na testa.
Nossa, estou vacilando mesmo!
Ted Bergin não fora de carro para o Maine, mas de avião. Havia uma garagem com vaga para um só carro em sua casa. Ficava ao lado da cozinha. Michelle entrou na garagem e estudou o sólido Honda de quatro portas. Tinha uns 10 anos, mas estava bem conservado. Ela passou trinta minutos vasculhando cada metro cúbico da garagem. Uma das muitas coisas que o Serviço Secreto lhe ensinara era como examinar cuidadosamente um carro. Contudo, isso em geral era feito em busca de bombas. Michelle teve a sensação de que o que estava deixando escapar era muito mais sutil.
Ela se sentou no banco do carona e pensou. Se Bergin não usava um computador e queria manter a informação sobre seu cliente em segredo, onde estaria essa informação se não em seu escritório, com ele mesmo ou sua casa? A menos que ele tivesse decorado nomes, números de telefone e endereços, provavelmente os teria anotado em algum lugar para tê-los à mão. Afinal de contas, ele era um homem que usava papel e caneta.
O olhar de Michelle finalmente se fixou no porta-luvas. Ela já o havia examinado uma vez e encontrado as coisas usuais. Uma caneta, documentos de vistoria e do automóvel e o manual imaculado do Honda.
Michelle pegou o manual. Ela pulou para o fim, onde havia páginas em branco a serem preenchidas com registros de manutenção. Michelle nunca vira ninguém fazer isso, mas...
Lá estava, bem no meio das páginas em branco.
Kelly Paul. Telefones de casa e do celular e um endereço de correspondência que colocava Kelly em algum lugar a oeste dali, perto da fronteira da Virgínia Ocidental – se Michelle se lembrasse corretamente da localização da cidade que Bergin anotara. Tinha de ser isso. A pessoa que contratara Bergin. A não ser que Kelly Paul fosse a vendedora do Honda. Michelle não achava que fosse.
Ela rasgou a página, a enfiou em seu bolso e saiu do carro.
E ficou paralisada.
Não era mais a única pessoa na casa.

21
SEAN KING ESTACIONOU O CARRO alugado em uma estrada secundária e caminhou na direção do elevado. Ele voltara à pousada após topar com Dobkin. Mas tinha ficado inquieto e ainda não obtivera nenhuma notícia de Megan. Perguntou-se quanta confusão causaria se reclamasse do fato de o FBI manter a advogada guardada a sete chaves, talvez contra a vontade dela. Se Megan não aparecesse pela manhã, concluiu, teria de tomar alguma providência.
Havia conversado com Michelle. Ela lhe contara sobre a carta de Murdock que tinha descoberto no escritório de Bergin. Fora isso, não parecia estar fazendo muito progresso. Michelle lhe dissera que planejava ir à casa de Bergin mais tarde, esta noite. Sean esperava que ela tivesse mais sorte lá.
Ele olhou na direção elevado. Do outro lado ficava Cutter’s Rock. Estava escuro o bastante para que, de onde ele estava, visse algumas das luzes do prédio. O oceano Atlântico banhava a costa rochosa, as ondas batendo com força suficiente para borrifar água salgada na estrada. Um veículo vinha pelo elevado. Sean saiu do caminho quando ele virou em sua direção e se escondeu atrás de algumas formações rochosas ao longo da costa. Quando o carro passou, ergueu a cabeça um pouco acima da pedra.
Carla Dukes. Os ombros largos e volumosos eram inconfundíveis. Sean olhou o relógio. Nove horas. Carla tivera uma jornada de trabalho longa. Talvez isso fosse o normal em Cutter’s Rock.
Ele se abaixou de novo quando outro carro passou. Era muito trânsito para essa hora da noite em um lugar tão isolado. Sean levantou a cabeça bem a tempo de ver o motorista. Ele estava com a luz interna do carro acesa, olhando para baixo na direção de algo.
Sean correu para seu carro, o ligou e seguiu para a estrada principal. Acelerou, avistou as lanternas do outro carro e depois se deixou ficar um pouco para trás.
Embora estivesse nervoso com a possibilidade de ser descoberto, Sean conseguiu manter o outro carro em seu campo de visão, perdendo-o apenas brevemente nas curvas antes de voltar a avistá-lo nas retas. Depois de um tempo, saíram da estrada principal, afastando-se do oceano, e dirigiram uns 3 quilômetros para o interior. Outra série de curvas, e Sean ficando cada vez mais nervoso. Não havia como o homem não tê-lo visto. Os três carros desaceleraram. Carla entrou em um pequeno loteamento de casas recém-construídas. Provavelmente feitas para abrigar o pessoal de Cutter’s Rock e gerar empregos, presumiu Sean. Agora tudo de que o país precisava era de mais presos para a economia crescer.
Carla Dukes parou na entrada para automóveis da terceira casa à direita.
Sean ficou surpreso quando o segundo carro entrou na mesma estrada, passou pela casa da diretora do presídio e virou à esquerda no quarteirão seguinte. O homem também morava ali? Estava apenas indo para casa e não seguindo Carla?
Sean estacionou, saiu e começou a andar. Virou a gola para cima por causa do frio e também para ajudar a esconder o rosto. A casa de Carla Dukes era de dois andares, com revestimento de placas de vinil e uma minúscula varanda na frente. Também tinha uma garagem para dois carros, na qual a mulher entrara. Sean viu a porta da garagem se fechar.
Uns quinze segundos depois, luzes se acenderam dentro da casa. Provavelmente na cozinha, pensou Sean, já que a maioria das plantas eram assim.
Sean continuou a andar, virou à esquerda no quarteirão seguinte e procurou o outro carro. A rua estava escura, sem nenhuma iluminação além da luz fraca que ocasionalmente vinha de alguma casa. Aparentemente as pessoas dormiam cedo. Sean não conseguia ouvir muito mais do que a própria respiração. Seu olhar ia de um lado para outro. Ali as casas também tinham garagens e, se o homem tivesse entrado numa delas, Sean o teria perdido. Repreendeu-se mentalmente. Depois de ver onde Carla Dukes morava, ele deveria ter continuado a dirigir até chegar ao quarteirão seguinte, e então esperar ali para ver em que casa o outro carro entraria. Aquele foi um erro de cálculo que levara a um erro tático imperdoável para um homem como Sean King.
Ele havia chegado perto de uma caminhonete Ford F250 robusta e suja estacionada na rua, na frente de uma casa de dois andares idêntica à de Carla Dukes quando aconteceu.
O carro que procurava estava escondido pela enorme caminhonete e arrancou súbita e rapidamente na direção de Sean, seu motor roncando com o esforço. Ele se jogou na caçamba da caminhonete. Ao cair, bateu as costelas e a barriga em algumas ferramentas e uma pesada corrente enrolada. Quando olhou por cima da borda da caçamba, a única coisa que viu foi as lanternas brilhantes do carro antes de desaparecerem na estrada escura. Alguns segundos depois, o carro e seu motorista haviam sumido. Sean tomou fôlego e se levantou. Apalpou as costelas onde as ferramentas e a corrente haviam batido.
A luz da casa se acendeu. Sean saiu da caminhonete quando a porta da frente se abriu e emoldurou um homem. Ele estava de cueca samba-canção, camiseta branca e descalço. Segurava um rifle.
– Que diabo está acontecendo? – gritou o homem ao ver Sean, apontou o rifle em sua direção. – O que você está fazendo na minha caminhonete?
Um cão começou a latir em algum lugar.
– Estou procurando meu cachorro – explicou Sean, pondo a mão na lateral do corpo, onde sentiu algo úmido. – É um labrador branco chamado Roscoe. Eu estava aqui visitando a Sra. Dukes no outro quarteirão e ele fugiu do meu carro. Estou procurando há mais de uma hora. Achei que podia ter pulado na caçamba da sua caminhonete. Eu tenho uma igual e ele viaja atrás. Tenho esse cachorro há oito anos. Eu... eu não sei o que fazer.
O cano do rifle abaixou quando uma mulher usando legging e pulôver se juntou ao homem à porta. O homem disse:
– Nosso velho vira-lata acabou de morrer. É como perder um filho. Quer ajuda?
– Agradeço, mas o velho Roscoe não gosta de estranhos. – Sean pegou um pedaço de papel e anotou algo. – Este é o meu número de telefone. Vou deixá-lo na caçamba da sua caminhonete. Pode me telefonar se vir Roscoe?
– Está bem, farei isso.
Sean prendeu o pedaço de papel na caçamba da caminhonete com uma lata de tinta.
– Obrigado e boa noite. Desculpe-me por incomodá-lo.
– Sem problemas. Espero que o encontre.
Graças a Deus pelos amigos dos animais.
Sean voltou para o carro e dirigiu de volta para a Martha’s Inn. Subiu mancando para o quarto. Ele havia batido com a perna ao pular para dentro da caminhonete. Tirou a camisa e examinou a ferida ensanguentada na lateral do corpo. Também fora causada pela queda sobre a pilha de ferramentas e correntes na caçamba. Enquanto se lavava, Sean se perguntou se acabara de encontrar o assassino de Ted Bergin.
Ele se deitou com cuidado na cama após tomar alguns comprimidos de analgésico. Acordara dolorido. Repreendeu-se mentalmente por não ter anotado a placa do carro. Mas lembrou-se também de que não a vira com clareza.
Sean pegou o telefone e ligou para Eric Dobkin. O homem estava de serviço na viatura, a uns 25 quilômetros da Martha’s Inn. Quando Sean lhe explicou o ocorrido, Dobkin lhe agradeceu, disse que ficariam de olho no carro e no motorista e desligou.
Depois Sean ligou para o celular de Michelle. Ela não atendeu. Isso era incomum. Michelle quase sempre atendia o telefone. Telefonou de novo e lhe deixou uma mensagem pedindo que retornasse a ligação. A centenas de quilômetros, sentia-se impotente. E se ela estivesse em perigo?
Recostou-se de novo em seu travesseiro, tentando entender tudo o que acontecera, mas sem encontrar nenhuma resposta.

22
MICHELLE SE ESCONDEU ATRÁS do sedã de Bergin, com a mão na coronha da pistola. Sentira o celular vibrar no bolso, mas não pudera atender. Andou abaixada até a parte de trás do carro e experimentou a porta da garagem. Estava trancada. Encontrou a trava, girou-a e a ergueu. A porta era pesada, mas ela era forte. O problema não foi levantá-la. Foi o barulho. O trilho e as roldanas não deviam ser lubrificados havia muito tempo. Erguê-la apenas alguns centímetros causou um rangido que feriu os ouvidos de Michelle.
Ela havia acabado de revelar sua posição para quem quer que estivesse na casa, sem nenhuma recompensa por seus esforços. Abaixou a porta e voltou apressada à frente do carro. A porta da casa estava bem ali, mas teve a sensação de que passar por ela naquele momento não lhe faria bem.
Pode ser a polícia. Pode ser o FBI. Nesse caso, por que eles não anunciaram sua presença? Talvez pensem que sou um ladrão. E se eu me revelar e não for a polícia? Esta é a clássica situação em que se correr o bicho pega e se ficar o bicho come.
Michelle olhou ao redor da caixa quadrada de 3,6 metros de lado na qual estava presa. Nenhuma das portas era uma opção. Restava a pequena janela quadrada que dava para o jardim lateral, longe da porta da frente. Ela pegou uma lata de WD40 na mesa de trabalho, soltou a trava, borrifou o trilho com o lubrificante, ergueu a janela – felizmente quase sem nenhum ruído –, se suspendeu e caiu sentada na grama. Levantou-se em um segundo, com a arma sacada, nervos sob controle, olhos e ouvidos alertas. Deu a volta pelo lado da garagem e examinou a área. Somente seu Toyota estava visível. De qualquer maneira, ela teria ouvido outro carro parar, então presumiu que não era a polícia nem o FBI. Eles tendiam a fazer muito barulho quando não havia reféns envolvidos.
Quem quer que estivesse ali tinha deixado o veículo em outro lugar e vindo a pé. Isso era clandestino. Indicava má intenção e uma ameaça direta à sua segurança.
Michelle se jogou no chão assim que ouviu a pistola ser engatilhada. O tiro passou pela sua direita, atingindo o chão e cobrindo-a de grama e partículas de terra. Ela rolou para a esquerda e, no meio da manobra, disparou duas vezes na direção de onde o tiro viera. Ficou abaixada, viu de relance um vulto do outro lado do jardim, atirou de novo e se jogou atrás de uma árvore perto da garagem.
Tinha ouvido um grito? Atingira o alvo? Tinha visto um vulto e atirado bem nele. A não mais de 20 metros. Mesmo nessas condições ela deveria ter...
Encostada na árvore, Michelle agarrou a pistola com as duas mãos e ficou atenta. Para quase tê-la acertado, o atirador não podia estar na frente da casa. Tinha de estar do lado direito. Talvez na entrada de cascalho para automóveis ou na floresta do outro lado. Fora uma pistola; ela sabia pelo som do tiro e o ruído do ferrolho. Se o atirador estivesse do outro lado da rua, isso seria bom para ela. A essa distância e à noite, um tiro certeiro de uma pistola seria muita sorte.
Ela espiou rápido, mantendo o corpo atrás do tronco da árvore. Não podia excluir a possibilidade de o atirador ter equipamento de visão noturna. Ou de haver mais de um. Se houvesse dois deles, o outro poderia estar flanqueando-a bem agora, tentando encurralá-la.
Michelle olhou para o lado oposto da garagem. Não viu nada, mas discou o número da emergência no celular e falou baixo, relatando seu problema e localização ao atendente. Não fazia a menor ideia de quanto tempo a polícia demoraria para chegar, mas tinha de presumir que não seria rápido.
Você vai ter de se virar sozinha, Michelle.
Ela ficou de bruços e começou a recuar. Ao mesmo tempo olhava para a frente e para trás, esperando um ataque dos dois lados. Chegou à floresta e se levantou, abrigando-se atrás de um grande carvalho à beira da grama. Procurou não fazer nenhum movimento, tentando ficar o mais imóvel possível, e se manteve de lado para reduzir a área que poderia ser atingida.
Michelle olhou para sua caminhonete estacionada na entrada para automóveis. Havia muito espaço aberto até lá. Se o atirador tivesse equipamento de visão noturna, ela estaria morta após dois passos, usasse ele pistola ou não. Poderiam estar jogando com a paciência um do outro e talvez o melhor para ela fosse aguardar ali, torcendo pela chegada da polícia.
Vinte minutos se passaram e nada aconteceu.
Sirenes.
Um minuto depois, o carro da polícia chegou, seus pneus esmagando o cascalho ao parar.
– Sou Michelle Maxwell – gritou ela. – Fui eu que telefonei. Há um atirador no quintal da frente. Disparei contra alguém. Acho que posso ter acertado.
Os policiais olharam na direção dela. Um deles gritou:
– Não estou vendo ninguém. Quero que você saia com as mãos onde eu possa ver. – Ele acrescentou: – Você está armada?
– Acabei de dizer que atirei na pessoa que estava atirando em mim, então, sim, estou armada.
– Jogue a sua arma para a frente e depois saia com as mãos onde eu possa ver.
– E se o atirador ainda estiver lá?
– Como eu disse, não estou vendo ninguém. Já deve ter ido embora.
Michelle atirou sua arma, saiu de trás da árvore e deu um passo adiante. Um dos policiais se aproximou e pisou na arma dela enquanto o parceiro apontava a própria arma para Michelle.
– Sou investigadora particular e tenho permissão para estar nesta propriedade.
– Deixe-me ver alguma identificação.
Michelle lhe mostrou a identificação e a licença para porte de arma.
– Eu estava na garagem quando ouvi algo na casa. Saí pela janela e atiraram em mim bem ali. – Ela apontou para o lugar. – Se você iluminar a grama com sua lanterna, verá onde o projétil...
– Joe, é melhor você vir aqui – disse o outro policial.
Ele estava parado perto da caminhonete de Michelle.
– O que foi?
– Apenas venha aqui.
Joe fez um sinal para Michelle ir na frente e os dois foram até o outro policial.
Chegaram lá e baixaram os olhos.
O cadáver estava com o rosto virado para baixo, sem um dos sapatos e com as mãos abertas. Havia uma mancha de sangue bem no meio de onde a bala entrara.
O outro policial se ajoelhou e virou o corpo um pouco, enquanto seu parceiro o iluminava. Não havia nenhum ferimento de saída na frente. A bala ainda estava no cadáver.
Michelle sufocou um grito quando viu quem era.
Hilary Cunningham, a secretária de Ted Bergin.
Joe projetou a luz no rosto de Michelle, fazendo-a desviar os olhos.
– Você a conhece?
Michelle assentiu com a cabeça enquanto olhava para baixo, sem poder acreditar. Disse com uma voz entrecortada:
– É a mulher que me deu as chaves desta casa. Trabalhava para o dono.
– Bem, parece que você acabou de matá-la.

23
O TELEFONE VIBROU.
Ele continuou dormindo.
Vibrou de novo.
Ele se mexeu.
O telefone fez cócegas em seu bolso mais uma vez.
Ele acordou.
– Alô? – atendeu Sean com voz sonolenta.
– Sou eu – disse Michelle. – Estou com sérios problemas.
Sean se sentou na cama e olhou automaticamente para o relógio. Havia dormido de roupa. Era uma hora da manhã.
– O que aconteceu?
Dez minutos depois, Michelle havia resumido a situação e posto Sean a par dos acontecimentos.
– Está bem, não fale mais nada. Estou a caminho.
– A caminho como?
Sean parou enquanto se levantava da cama e perguntou:
– Como assim?
– Só há voos para cá daqui a seis horas.
– Vou de carro.
– Você chegará aqui à mesma hora que o voo da manhã, isso se dirigir sem parar, o que significa que vai virar um zumbi ou bater em uma árvore e morrer. Ou num alce. Vou ficar bem esta noite. Basta você chegar aqui com seu cérebro intacto e aí nós resolveremos isso.
– Espere um minuto. Você está detida?
– Não sou daqui. Tenho um carro. Uma mulher foi morta. Eu era a única pessoa viva na cena. Eles estão com minha arma, que é a segunda que a polícia me confisca. Então, sim, estou detida.
– Foi seu projétil que a matou?
– Eles ainda não sabem. Não fizeram a perícia. Mas não me surpreenderia se fosse. Disparei naquela direção contra alguém.
– Acha que Hilary estava atirando em você?
– Não encontraram nenhuma arma com ela. Tudo o que sei é que um projétil passou a 15 centímetros da minha cabeça e entrou na terra.
– Bem, o projétil confirmará sua história.
– Vamos esperar que o encontrem.
– Não está na terra?
– Acho que poderia estar. Mas também poderia ter atingido uma pedra enterrada na grama e ricocheteado. Não fiquei lá para descobrir.
– Está bem. Vou pegar o mesmo voo que você pegou para Washington e depois vou de carro até Charlottesville. Devo chegar por volta das três da tarde. – Ele fez uma pausa. – A polícia realmente pensa que você a matou de propósito?
– Acho que, devido ao fato de eu ter telefonado e à confirmação de que o telefonema veio do meu celular, eles ficaram menos desconfiados, mas a coisa ainda está feia.
– Certo, aguente firme até eu chegar.
– Não há muito mais que eu possa fazer. Alguma notícia de Megan?
– Não.
– Aconteceu algo interessante na minha ausência?
Sean hesitou, pensando se deveria contar.
– Não, nada de importante.
– Ah, traga a arma que comprei no Maine.
– Certo. Só vamos esperar que não seja confiscada também.
Sean desligou, telefonou para a companhia aérea, comprou uma passagem, fez a mala, pegou o estojo com a arma de Michelle no quarto dela e depois ligou para o celular de Megan. A ligação foi direto para a caixa postal. O FBI estava definitivamente mantendo-a escondida. Na mensagem Sean não lhe disse por que estava voltando para a Virgínia, só que entraria em contato.
Também deixou um bilhete para a Sra. Burke, depois saiu. Ligou o aquecedor do carro e dirigiu o mais rápido que pôde com o vento entrando pelas janelas quebradas. Chegou a Bangor por volta das cinco da manhã. Rezou para que, na hora que despachasse a arma e a munição de Michelle, não verificassem sua licença de porte, já que não era válida no Maine.
Era cedo, as pessoas no aeroporto estavam cansadas e nem mesmo ergueram uma sobrancelha quando ele lhes mostrou só de relance sua licença de porte de armas válida apenas na Virgínia. Afinal de contas, o Maine era um estado aonde as pessoas iam em férias e todos os americanos adoravam viajar com suas armas. O fato de ele despachar a arma provavelmente também ajudou, pois assim ele não teria acesso a ela durante o voo.
Sean tomou café e entrou no avião às 6h30. Tirou uma soneca durante o curto voo. A conexão na Filadélfia não foi tranquila e ele teve de gritar com vários funcionários da companhia aérea até ser posto nos fundos de um turboélice que partia para o Reagan National. Por algum milagre, a arma de Michelle o esperava na área de recolhimento de bagagem. Ele pegou um táxi para casa, fez sua mala e pegou a estrada para Charlottesville com uns 45 minutos de atraso, em um carro alugado só para a ida.
Ultrapassou o limite de velocidade várias vezes e chegou à prisão do condado um pouco antes das quatro da tarde. Anunciou que era o advogado de Michelle e que queria ver sua cliente. Vinte minutos depois, estava diante dela.
– Você parece bem – comentou ele.
– Você, por outro lado, parece péssimo.
– Obrigado. Viajei o dia inteiro para me encontrar com você.
– Você entendeu mal. Aprecio muito seu esforço. É só que estou acostumada com sua aparência de Cary Grant. Mas também é bom saber que você é humano como o resto de nós.
– Vi o relatório de detenção. Também conversei com um dos policiais que esteve na cena do crime com você na noite passada.
– Como conseguiu isso?
– Por acaso eu o ouvi falar sobre o assunto no corredor e o segurei para um bate-papo rápido. Eles já analisaram a cena, mas ele não me disse os resultados. Não sei se minha opinião faz alguma diferença, mas não acredito que ele pense que você é culpada.
– Vamos esperar que todos os outros concordem com ele. Ainda não posso acreditar que Hillary esteja morta. Falei com ela ontem.
– Vou me encontrar com o promotor público depois. Acho que posso explicar tudo. E então tirar você daqui.
– E se eles considerarem que represento risco de fuga?
– Cuidarei disso. Eu costumava advogar aqui. Conheço as pessoas.
– Pode dar certo – disse ela, incerta.
– Também me diverti um pouco ontem à noite.
Ele contou sobre Carla Dukes e seu encontro com o homem que a seguia.
– O que está acontecendo por lá? – perguntou ela em um tom exasperado.
– Com certeza mais do que nós imaginamos inicialmente.
Uma hora depois, Michelle estava livre. Ela pegou a caminhonete e seguiu Sean até o hotel Boar’s Head, onde jantaram.
– Então como você me soltou? – perguntou ela.
– Basicamente me responsabilizei por você. Portanto, se fugir estou frito.
– Tentarei permanecer neste hemisfério.
– Expliquei para o promotor público tudo sobre a morte de Bergin no Maine e nossa investigação. Ele é um homem sensato que conhecia Bergin muito bem. Concordou em que é altamente improvável você ter tramado a morte de Hilary. Eu lhe disse que estávamos fazendo o possível para descobrir quem o matou e que investigação nos trouxe aqui. Ele está do nosso lado. Mas o estranho é que ele não sabia que Bergin foi assassinado. É óbvio que alguém está mantendo a mídia em rédea curta.
– O FBI tem força para isso – afirmou ela.
– Eu também acho – concordou Sean. – Imagino que Hilary não tenha alardeando o acontecido. E Megan foi para o Maine logo depois que descobriu.
– Será um choque para muita gente. E agora Hilary também morreu.
– E a carta que você encontrou nos arquivos de Bergin? Do agente Murdock pedindo informações sobre o cliente? Isso é bastante incomum.
– Ah, meu Deus, eu não lhe contei a melhor parte.
Michelle pôs a mão no bolso e pegou a página do manual do carro. Ela explicou para Sean onde o encontrara.
– Achei que, se Bergin fosse ao encontro do cliente, seria de carro. Portanto, o carro era um lugar lógico para guardar o endereço.
– Kelly Paul. Certo. – Ele olhou o relógio, pegou o telefone e discou enquanto Michelle atacava o peixe e as batatas.
– Kelly Paul, por favor? – disse Sean. Ele fez uma pausa. – Sim, quem fala é Sean King. Trabalho para Ted Bergin no caso de Edgar Roy. Alô?
Ele pousou o telefone.
Michelle engoliu um pedaço de halibute empanado.
– Desligou na sua cara?
Sean fez que sim com a cabeça.
– Acho que foi ela quem contratou Bergin.
– Então é uma mulher?
– Exato. Ela perguntou quem era. Eu respondi, e ela desligou.
– Você acha que ela sabe que Bergin está morto?
– Não há como dizer. – Ele analisou o papel. – Se me lembro bem, esse lugar fica a quatro horas daqui, na região montanhosa da Virgínia Ocidental.
Michelle terminou o chá gelado.
– Só vou tomar um café e aí podemos pegar a estrada.
– Espere. Provavelmente não seria uma boa ideia você deixar a cidade agora. No mínimo a polícia vai querer falar com você de novo.
– Então você também não vai. Nós nos separamos e quase morremos.
– Certo, faz sentido. Espere.
Ele discou um número em seu celular.
– Phil, Sean King. Está com tempo para conversar comigo pessoalmente esta noite? Que tal às oito? Ótimo. Obrigado.
Ele desligou e fez um sinal para a garçonete trazer a conta.
– O que você vai fazer? – perguntou Michelle.
– Implorar a misericórdia do gabinete do promotor para tirar você da cidade. E se isso não funcionar, eu vendo tudo o que tenho para pagar a fiança.
– Pensei que você só tinha de depositar 10%.
– Neste momento, 10% de qualquer coisa seria muito pesado para as minhas finanças pessoais. A investigação particular é um negócio incerto. E agora eu nem tenho certeza de que seremos reembolsados por nossas despesas de viagens.
– E se isso não funcionar?
– Boto você numa bolsa e levo você escondida. De um modo ou outro, nós vamos ver Kelly Paul.
– Acha que ela tem todas as respostas?
– Bem, neste momento uma resposta já seria uma boa mudança.

24
SEAN ESTAVA SORRIDENTE quando saiu da reunião com o promotor.
Michelle, que o esperava em sua caminhonete, o olhou indagadoramente.
– Devo deduzir que correu tudo bem na reunião?
– Por enquanto ele suspendeu a prisão. Não haverá audiência nem fiança. Você está livre para ir, em minha companhia.
– Você deve ter vendido muito bem o seu peixe.
– Bem, foi isso e o fato de a polícia ter encontrado o projétil que quase atingiu você.
– Ótimo. Qual era o tipo?
– Remington 45 ACP. Bala de chumbo recoberta de cobre.
– Então não era da arma que matou Bergin. Um tiro a queima-roupa com uma bala dessas teria atravessado o crânio dele.
– E não foi o cara que avistei no Maine. Ele não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.
– Então eles ainda não fizeram a autópsia em Hilary, certo?
– Ainda não. Mas acho que quando fizerem não encontrarão um projétil calibre 45 nela.
Meia hora depois, eles tinham devolvido o carro alugado e estavam no Land Cruiser de Michelle, a caminho da casa de Kelly Paul. Dirigiram pela Interestadual 64 até a 81 e dali para o sul. Horas depois, uns trinta minutos antes de chegarem ao Tennessee, saíram da rodovia, dirigiram alguns quilômetros para o oeste e passaram por várias cidades pequenas. Dez minutos depois de deixarem a última cidadezinha para trás, Michelle desacelerou e olhou ao redor antes de espiar a tela do GPS.
Sean olhou o relógio, bocejou e disse:
– São quase duas da manhã. Se eu não tiver oito horas de sono o mais rápido possível, minha cabeça vai se desintegrar.
– Eu dormi bem na prisão.
– Não me admira. Conheço a sua cama. O colchão da cadeia provavelmente é mais macio.
– Não ouvi você reclamar quando estava na minha cama.
– Eu tinha outras prioridades.
– Como vamos fazer? O GPS diz que a casa fica naquela estrada que sobe pela esquerda. Tudo o que vejo são campos. Acha que ela mora em uma fazenda?
Sean olhou pela janela e comentou:
– Bem, tem um milharal ali. – Ele apontou para a direita e depois olhou para a esquerda. – Não sei bem o que é aquilo. Mas definitivamente é algum tipo de fazenda. Nem mesmo consigo ver uma casa.
Quando eles se aproximaram, Michelle avistou a caixa de correio. Ela ligou o farol alto.
– Nada na caixa de correio, mas deve ser aqui.
– Kelly Paul e Edgar Roy. Qual é a ligação?
– Bem, talvez sejam parentes. Paul pode ser sobrenome de casada.
– Ou talvez não exista nenhum laço familiar – cogitou Sean.
– Mas, como você disse, tem que haver alguma ligação. Como Bergin poderia representar Edgar Roy baseado apenas num pedido de Kelly Paul? Não seria necessário ter uma procuração ou algo assim?
– Idealmente, sim. Mas parece que Roy ficou maluco depois que foi preso. Portanto, se estava incapaz, não poderia assinar uma procuração.
– Não sabemos exatamente quando ele endoidou. Ele foi preso. Houve procedimentos judiciais. Fiança, perícia médica e psicológica, transferência para o Maine.
Sean assentiu com a cabeça e completou:
– Tem razão. Ele pode ter contratado Bergin antes de emudecer. Mas, nesse caso, por que todo o sigilo quanto ao cliente? Por que não existe nenhum registro de faturamento ou correspondência? E tem também a carta de Murdock e o fato de Bergin ter escrito o nome de Kelly Paul no manual do carro.
– Então vamos ficar sentados aqui a noite toda ou bater à porta dela?
– Bater à porta de alguém a esta hora e neste lugar pode resultar em tiros de espingarda. Acho melhor sair da estrada, esticar as pernas e dormir um pouco. Eu gostaria bastante disso.
– Deveríamos nos revezar vigiando.
– Vigiando o quê? Vacas?
– Sean, quase fomos mortos ontem. Vamos ser prudentes.
– Tudo bem, você tem razão.
– Eu vigio primeiro. Acordo você daqui a duas horas – disse Michelle.
Sean reclinou o banco, fechou os olhos e, alguns minutos depois, seu leve ronco se fez ouvir no interior da picape. Michelle olhou de relance para ele, estendeu o braço para o banco traseiro, pegou um cobertor no chão e o cobriu. Ela voltou a olhar pela janela da frente, alternando olhadas pelos espelhos retrovisores para ver se alguém os seguia. Pôs a mão sobre a coronha da arma e a deixou lá.
***
Sean bocejou, se espreguiçou e piscou, totalmente desperto. A luz do sol brilhava em seus olhos, e o investigador se aprumou e observou Michelle. Ela estava batucando uma música no volante e bebendo de uma garrafa de isotônico.
– Por que você não me acordou?
Ele olhou o relógio. Eram quase oito horas.
– Você estava dormindo com um bebê. Não tive coragem.
Sean notou o cobertor que Michelle pusera sobre ele.
– Certo, sua sensibilidade exagerada está me deixando muito desconfortável.
– Dormi muito na cadeia. Estou descansada, e agora você também está.
– Isso faz mais sentido.
O estômago dele roncou.
– Quer que eu corra ali e pegue um pouco de milho? – perguntou Michelle com um sorriso.
– Não, mas você teria uma barrinha de cereal naquele monte de coisas ali atrás? Estou com medo de botar a mão ali.
Michelle esticou o braço para trás, pegou alguma coisa e a jogou para ele.
– Barra de chocolate. Vinte gramas de proteína. Bom proveito.
– Alguma atividade de Kelly Paul?
– Nenhum carro chegou nem saiu e não vi nenhum ser humano, mas vi um urso-negro e acho que um castor também.
Sean abaixou a janela e respirou o ar puro e frio.
– Minha bexiga me diz que preciso fazer uma coisa.
Michelle apontou para o outro lado da estrada.
– Eu já fiz.
Ele voltou em alguns minutos.
– Acho que está na hora da nossa conversa com Kelly Paul.
Michelle ligou o Land Cruiser.
– Tudo bem, mas espero que ela tenha café. – Ela virou na estrada de cascalho. – E se Kelly não quiser falar conosco?
– Então acho que teremos de insistir. Afinal de contas, viemos de muito longe.
– E vamos contar a ela sobre Bergin?
– Se Kelly Paul contratou Bergin, a morte dele poderia deixá-la mais disposta a nos ajudar. Não sei qual é a relação disso tudo com o que aconteceu no Maine. Mas tenho de acreditar que, a menos que Bergin tivesse algum segredo sombrio em seu passado, as mortes dele e da secretária estão ligadas a Edgar Roy. E isso significa que também estão ligadas a Kelly Paul.
– Apesar do que você disse antes, talvez tenha sido eu quem matou Hilary Cunningham.
– Foi por isso que você não dormiu ontem à noite?
– Ela era uma senhora inocente, Sean. E agora está morta.
– Se você realmente fez isso, não teve a intenção. Alguém estava atirando em você. Você atirou de volta. É instintivo. Eu teria feito o mesmo.
– Ainda assim ela está morta. O que eles dizem para os filhos ou netos? “Sentimos muito, mas ela está morta porque acidentalmente levou um tiro”? Fala sério!
– A vida não é justa, Michelle. Nós dois sabemos disso. Vivenciamos isso com muita frequência para pensar de forma diferente.
– Isso não vai fazer com que eu deixe de me sentir culpada. De me sentir péssima.
– Tem razão, não vai. Mas lembre que, com toda a certeza, alguém levou Hilary Cunningham àquela casa contra a vontade dela. E, se você atirou mesmo em Hilary, não acho que tenha sido acidental, pelo menos por parte deles.
– Quer dizer que queriam que eu atirasse nela?
– Sim.
– Por quê?
– Hilary talvez soubesse de alguma coisa que certas pessoas não queriam que vazasse. E, se você realmente atirou nela, a polícia vai nos prender. Isso nos tira de cena, ou pelo menos é o que eles acham.
– Nesse caso, estamos lidando com gente muito doentia.
– Nós sempre lidamos com psicopatas, Michelle. É o que fazemos. Mas quero pegar esses desgraçados mais do que já quis pegar qualquer outra pessoa.

25
A CASA TINHA UM SÓ ANDAR, revestida de tábuas brancas e com telhas pretas que precisavam ser substituídas. A varanda era ampla e convidativa, com duas cadeiras de balanço velhas que oscilavam levemente à brisa. O sol estava subindo à esquerda da casa, mas um enorme carvalho a cobria de sombras.
A entrada para automóveis tinha mais terra do que cascalho. O gramado estava cortado rente, havia algumas flores em vasos e um galo desfilou na frente do Toyota quando Michelle parou. A ave inclinou a cabeça na direção deles, arrepiou as penas, os encarou de forma contundente com um só olho e cantou quando eles saíram do Land Cruiser.
Parte de um galinheiro podia ser avistada atrás da casa. Para além dele, um celeiro vermelho se erguia a uns 30 metros da residência, diagonalmente. Havia um varal no lado direito do quintal e algumas das roupas penduradas se erguiam preguiçosamente com o leve movimento do ar.
– Certo – disse Michelle. – Aposto o que você quiser que uma mulher baixa e gorducha, de macacão ou com um vestido de algodão estampado e botas de trabalho, atenderá à porta cheirando a titica de galinha. E apontará uma espingarda para as nossas barrigas.
– Apostado – disse Sean com ar de confiança.
Michelle o olhou de relance antes de se virar para a casa. De algum modo, a mulher havia se materializado na varanda, sem fazer um ruído sequer. Até mesmo Michelle, que tinha visão e audição perfeitas, não vira nem ouvira nada.
– Você deve ser Sean King. Eu estava à sua espera – disse a mulher.
A voz dela era grave, mas ainda assim feminina. Era uma voz confiante.
Quando as botas de Michelle pisaram o último degrau da varanda, ela teve de fazer algo que quase nunca fizera com outra mulher. Teve de olhar para cima. A dona da casa devia ter no mínimo 1,80 metro, descalça. Era magra e sem um grama de gordura excedente no corpo. E, embora não fosse jovem, mantivera o físico e os movimentos graciosos de uma formidável atleta.
Eles só podiam ser parentes. Mesmos olhos, mesmo nariz, mesma altura. Diferentes de Edgar Roy eram apenas a cor dos cabelos e a dos olhos. Os cabelos da mulher eram castanho-claros, e ela tinha olhos verdes em vez de pontos pretos. O verde era menos intimidador.
E, obviamente, ela falava.
Sean estendeu a mão.
– Peço desculpas por termos vindo tão cedo, Sra. Paul – disse ele.
Os longos dedos de Kelly Paul envolveram a mão de Sean e ela dispensou as desculpas dele.
– Não é cedo, pelo menos não aqui. Vi sua caminhonete lá fora às cinco da manhã. Ia convidá-los a entrar e tomar o café da manhã, mas você estava dormindo e a moça aqui fazendo as necessidades no bosque.
Michelle olhou para Kelly Paul com um misto de admiração e espanto.
– Sou Michelle Maxwell. – Ela apertou a mão de Kelly, que apertou de volta com uma força respeitável.
– Gostariam de tomar o café da manhã agora? – perguntou-lhes Kelly. – Tenho ovos, bacon, canjica, biscoitos e um bom café quente.
Michelle e Sean se entreolharam.
Kelly Paul sorriu.
– Vou interpretar seus olhares famintos como um sim. Entrem.
O interior da casa não parecia muito confortável. Era minimamente mobiliado, mas limpo, e seguia a linha simples que se esperaria a julgar pelo exterior. Kelly os conduziu pelo corredor até a cozinha, que era robusta, sem enfeites e com eletrodomésticos antigos. Havia uma lareira em uma parede que parecia tão velha quanto a casa, e outra lareira na sala.
– Mora aqui há muito tempo? – perguntou Sean.
– Pelos padrões locais, não. Esta é uma típica casinha de fazenda. Mas é o que eu queria.
– Então, de onde você veio? – perguntou Sean.
Kelly Paul estendeu a mão e ligou a cafeteira, depois pegou uma tigela e uma frigideira no armário.
Como ela não respondeu à primeira pergunta, Sean comentou:
– Você disse que estava nos esperando?
– Você me ligou ontem à noite. Reconheci sua voz quando falou lá fora, agora há pouco.
– Mas eu não tinha dito nada, antes que você dissesse que eu era Sean King.
Kelly se virou e apontou uma colher de pau de cabo comprido para Michelle.
– Você falou com sua parceira aqui. Tenho uma ótima audição.
– Como sabia que viríamos visitá-la? Ou que nós sabíamos onde você morava?
– O café ficará pronto daqui a um minuto. Você poderia pegar alguns pratos e xícaras no armário, Michelle? – Ela apontou para a esquerda. – Pode colocá-los na mesa da cozinha. Já comi, mas tomo um café com vocês. Muito obrigada.
Enquanto Michelle pegava a louça, Kelly cuidou dos ovos e do bacon que chiavam em outra frigideira. A canjica fervia em uma panela tampada e Sean sentiu o cheiro dos biscoitos no forno.
– Tenho um presunto Smithfield na geladeira. Posso fritá-lo também, se quiserem. Não há nada melhor do que um Smithfield curado em sal.
– O bacon já está ótimo – disse Sean.
Quando o bacon ficou pronto, Kelly Paul encheu os pratos de Sean e Michelle e se desculpou pela canjica instantânea.
– Se não fosse, demoraria um pouco para ficar pronta.
Kelly se sentou com uma xícara de café diante dos dois e os observou com o que pareceu ser um sincero prazer enquanto comiam.
Sean a olhava de relance de segundos em segundos. Kelly Paul usava calça cáqui, camisa de brim desbotada e tamancos bege que pareciam pequenos demais para seus pés. Seus cabelos chegavam aos ombros e estavam presos em um rabo de cavalo. Seu rosto era agradável e relativamente sem rugas. Ele calculou que a mulher tinha 40 e poucos anos, ou talvez menos.
Quando Sean e Michelle acabaram de comer e Kelly encheu as xícaras de café, todos se recostaram em suas cadeiras, com ar de expectativa.
– Agora que estamos de barriga cheia, vamos direto ao ponto – começou Kelly. – É claro que eu sabia que vocês viriam me ver, depois que desliguei. Quanto a saberem onde eu morava, presumi que ex-agentes do Serviço Secreto conseguiriam descobrir. Imagino que tenha sido por isso que Teddy Bergin os contratou.
– Teddy?
– O apelido que dei a ele.
– Então você conhecia Bergin antes de tudo isso?
– Ele era meu padrinho. E um dos melhores amigos da minha mãe. – Kelly estudou a reação dos dois à revelação e então continuou: – Quero que descubram quem o matou.
– Então você sabe que ele morreu? – perguntou Michelle. – Como?
Kelly Paul bateu na mesa com seu longo dedo indicador.
– Isso importa? – retrucou ela.
– Gostaríamos de saber – insistiu Sean.
– Hilary me ligou.
Sean pareceu zangado.
– Ela disse que não tinha a menor ideia de quem o contratara.
– Foi porque eu a fiz prometer que não diria.
– Por quê?
– Tinha minhas razões. As mesmas que fizeram Teddy manter tudo em segredo de justiça.
– Qual é o seu relacionamento com Edgar Roy? Vocês são irmãos? Têm os mesmos traços e são os dois bastante altos.
– Sou meia-irmã dele. Mesma mãe, pai diferente. Minha mãe tinha mais de 1,80 metro. O engraçado é que tanto o meu pai quanto o dele eram mais baixos do que ela. Acho que herdamos os genes de altura da nossa mãe.
– Paul é seu sobrenome de casada? – perguntou Sean.
– Não, nunca me casei. Paul era o sobrenome do meu pai.
– Mas obviamente você conhece Edgar Roy?
– Sim, embora eu seja 11 anos mais velha do que ele.
– Você tem 46?
– Tenho.
– Parece muito mais jovem – disse Michelle.
– Não é porque tive uma vida virtuosa, isso posso lhe garantir. – Ela sorriu.
Sean devolveu o sorriso e disse:
– Acho que muitas pessoas levam vidas não virtuosas, inclusive eu. Só que aparento toda a idade que tenho e um pouco mais.
– Nossa mãe se divorciou do meu pai quando eu tinha 9 anos. Ela se casou com o pai de Edgar, e ele nasceu logo depois.
– Então vocês dois conviveram como família por quanto tempo?
– Até eu ir para a universidade.
– E sua mãe e seu padrasto morreram?
– Meu padrasto morreu mais ou menos na mesma época em que fui embora. Nossa mãe morreu sete anos atrás. De câncer.
– O que aconteceu com seu padrasto?
– Ele sofreu um acidente.
– Que tipo de acidente?
– Do tipo que faz a pessoa parar de respirar de uma vez por todas.
– E seu pai?
– Minha mãe se divorciou do meu pai quando eu era uma garotinha. Desde então não tive notícias dele. Provavelmente foi por isso que ela se divorciou. Ele não era o homem mais dedicado do mundo.
– Como você obteve permissão para contratar um advogado para representar seu irmão? – perguntou Sean.
– Eddie é brilhante. Ele não conseguia só se lembrar de tudo o que tinha visto, lido ou ouvido. Conseguia se lembrar da data e do momento exato em que tudo acontecera. E era capaz de pegar peças de qualquer quebra-cabeça e encontrar a solução em um piscar de olhos. – Ela fez uma pausa. – Sabem o que é uma memória eidética?
– Uma memória fotográfica? – arriscou Sean.
– Mais ou menos. Mozart era assim. Nikola Tesla também. Uma pessoa com memória eidética pode, por exemplo, recitar mais de 100 mil casas decimais do número pi. Tudo de cor. Isso é uma coisa genética combinada com uma pequena anomalia da natureza. É como se a rede elétrica do cérebro fosse simplesmente melhor do que a de todas as outras pessoas. Ninguém aprende a ser eidético. Ou você é ou não é.
– E seu irmão obviamente tinha uma memória eidética.
– Na verdade, mais do que isso. Ele nunca se esquecia de nada. Mas, como eu disse, também podia ver como todas as peças de qualquer quebra-cabeça se encaixavam. O tipo de coisa “este fato afeta aquele fato”. Não importa quanto fosse disparatado ou parecesse não ter nenhuma relação. É como olhar para um anagrama uma única vez e saber exatamente o que ele diz. A maioria das pessoas usa cerca de 10% do cérebro. Eddie provavelmente usava de 90 a 95%.
– Impressionante – comentou Michelle.
– Ele podia ter atingido a excelência em qualquer campo.
– Percebo um porém a caminho – observou Sean.
– Porém nunca teve um pingo de bom senso. Nunca teve nem nunca terá. Se algo não o interessava, ele simplesmente ignorava, não importavam as consequências. Anos atrás, depois que Eddie se esqueceu de pagar as contas, de renovar a carteira de motorista e até mesmo de pagar os impostos, pedi que ele fizesse uma procuração para mim. Eu não podia fazer tudo pelo Eddie, mas me esforçava para fazer o meu melhor.
– Se você fez tudo isso, como pôde permanecer à sombra dele? Depois que ele foi preso, a imprensa nem mesmo mencionou uma meia-irmã.
– Eu estive fora por um longo período. Fiquei muito tempo longe de casa. E o sobrenome é diferente. Mas muitas das coisas que eu fazia por ele podiam ser feitas a distância.
– Mesmo assim...
– E eu sou uma pessoa reservada.
– Foi por isso que se mudou para cá? – perguntou Michelle.
– Em parte – respondeu apenas, e tomou um gole de café.
– Hilary também foi morta – afirmou Sean subitamente. – Você sabia disso?

26
PELA PRIMEIRA VEZ KELLY PAUL não pareceu estar no controle. Ela pousou a xícara de café, levou uma das mãos aos olhos e depois a abaixou de novo.
– Quando?
O tom foi de curiosidade misturada com raiva. Sean pensou também ter visto certo pesar.
– Na noite passada, em frente à casa de Bergin.
– Como?
Michelle olhou de relance para Sean, que disse:
– Ela caiu numa armadilha e levou um tiro. – Ele se inclinou para a frente. – Tem alguma ideia do que está acontecendo aqui, Sra. Paul?
Kelly Paul se debateu com seus pensamentos. Pigarreando, disse:
– Vocês precisam entender que meu irmão não matou aquelas pessoas. Foi tudo armado contra ele.
– Por quê? Por quem?
– Se eu soubesse, não precisaria de vocês. Mas eu diria que o responsável por tudo é particularmente poderoso e bem relacionado.
– Por que alguém assim estaria atrás do seu irmão?
– Bem, esse é o X da questão, não é?
– E você está dizendo que não faz a menor ideia?
– Não estou dizendo nada. Vocês é que são os investigadores.
– Então você sabia que Bergin havia nos contratado?
– Fui eu que sugeri. Ele me contou que conhecia você, Sean. Li um pouco sobre seu trabalho. Eu disse que precisávamos de uma dupla como vocês, porque o caso não seria simples.
– Quando foi a última vez que você viu ou falou com seu irmão?
– Quer dizer, antes de ele parar totalmente de falar?
– Como soube disso, que seu irmão havia parado de falar?
– Teddy me contou. E a última vez que falei com meu irmão foi pelo telefone, uma semana antes de ele ser preso.
– O que ele disse?
– Nada muito importante. Certamente não que suspeitava de que seis corpos estavam enterrados na fazenda da família.
– Há quanto tempo a fazenda pertence à sua família?
– Minha mãe e meu padrasto compraram a fazenda quando se casaram. Quando nossa mãe morreu, ela a deixou para nós dois. Eu estava morando no exterior, por isso disse para Eddie ficar com ela.
– Seu irmão continuou morando com a mãe mesmo depois de começar a trabalhar para o governo?
– Sim. Ele trabalhava no escritório da Receita Federal de Charlottesville, mas sei que tinha responsabilidades que o levavam regularmente para Washington. Na verdade, Edgar não tinha nenhuma vontade de se mudar para uma casa própria. Ele gostava da fazenda. Era quieta, isolada.
– E, obviamente, ele viveu lá sozinho depois que sua mãe morreu.
– Ele não tinha alternativa. Eu estava fora do país.
– Onde você estava? – perguntou Sean. – E o que fazia?
Kelly, que estivera olhando para um ponto na parede uns 30 centímetros acima da cabeça de Sean, agora olhava diretamente para ele.
– Eu não sabia que era o tema da sua investigação. Mas todas as perguntas relevantes parecem relacionadas a mim.
– Gosto de ser meticuloso.
– Uma ótima qualidade. Que você deveria apontar na direção do caso do meu irmão.
Sean aceitou calmamente a crítica. E notou uma mudança sutil no vocabulário e tom de Kelly.
– Nós lemos os arquivos da polícia sobre os corpos descobertos na fazenda.
– Seis. Todos homens. Todos brancos. Todos com menos de 40 anos. E todos ainda não identificados.
– Pelo que entendi, os exames de impressões digitais e de DNA não resultaram em nada.
– O que é incrível. Na TV, a polícia mostra que todas as pessoas estão na base de dados e só é preciso alguns segundos para encontrá-las – falou Kelly, que sorriu e tomou um longo gole de café.
– Posso até entender que uma, duas ou até mesmo três das vítimas não estivessem no sistema. Mas todas as seis?
– Acho que você e Michelle precisam ir lá dar uma olhada.
– Está oficialmente nos contratando?
– Achei que já havia contratado.
– Com Bergin morto, isso fica complicado. A assistente dele, Megan Riley, está nos autos do processo. Ela é esforçada, mas inexperiente. Não sei bem se o tribunal vai permitir que prossiga sozinha.
– Você é advogado – disse Kelly Paul diretamente.
– Você me investigou?
– É claro que sim. Seria uma idiota se não investigasse. Você pode trabalhar com ela.
– Não estou mais exercendo a profissão.
– Acho que você poderia reconsiderar. Fazer os dois trabalhos: investigador e advogado.
– Pensarei no assunto – disse Sean. – Neste momento, o FBI está escondendo Megan Riley em algum lugar no Maine, sugando o cérebro dela.
Kelly Paul o avaliou com um olhar perspicaz.
– Você acha que sua advogada inexperiente pode resistir ao FBI?
– Não sei – disse Sean, lançando-lhe um olhar curioso.
– Brandon Murdock? – perguntou Kelly Paul.
– Como sabe disso?
– Teddy me contou que ele estava tentando atravessar a barreira do sigilo legal para descobrir quem era o cliente. Disse que, no fim, a informação acabaria vindo a público, mas até então havia conseguido manter o homem a distância.
– Geralmente o FBI consegue o que quer.
– Sem dúvida. Mas vamos dar um pouco mais de trabalho a eles. Não sou advogada, mas eu diria que descobrir quem matou todas aquelas pessoas, Teddy e agora Hilary, é mais importante do que tentar descobrir quem está pagando pela defesa de Eddie.
– Então você acha que as mortes estão ligadas? – perguntou Michelle. – Os seis corpos, Ted Bergin e sua secretária, todos mortos pela mesma pessoa?
– Teddy Bergin não tinha inimigos. E por que matar Hilary, se não por algo que ela sabia? Prova que Eddie é inocente. Não havia como ele sair de Cutter’s Rock para matar qualquer um deles.
Sean considerou isso e falou:
– É verdade. Se as mortes estiverem ligadas.
– A prova existe. Tudo o que vocês têm de fazer é encontrá-la.
– Redigirei um contrato de prestação de serviços e você terá de assiná-lo.
– Ficarei muito feliz em fazer isso.
– Há algo mais que precisemos saber?
– Acho que vocês já têm bastante em que pensar.
Quando eles se levantaram para ir embora, Kelly Paul acrescentou:
– Não acho que seria inteligente deixar a pobre Megan com o FBI por muito tempo. Você poderia fazer algum barulho sobre detenção ilegal ou algo do gênero, apenas para pressionar o FBI. Ameace telefonar para uma emissora de TV local ou um jornalista. Eles simplesmente adoram isso no prédio Hoover. Faz seus traseiros ficarem contraídos.
Sean a olhou de um modo esquisito e perguntou:
– Tem muita experiência com o FBI?
– Mais do que você algum dia saberá, Sr. King.

27
PETER BUNTING SE SENTOU em seu escritório em Manhattan. Ele gostava de morar em Nova York. Tinha um escritório no sul de Washington e sua empresa possuía um prédio no norte da Virgínia, mas Nova York era única. A energia da cidade era visceral. Ao ir a pé todos os dias de sua casa de arenito pardo na Quinta Avenida para o trabalho, sabia que estava em seu lugar.
Ele esticou o pescoço para aliviar um torcicolo e estudou o documento em sua escrivaninha. O arquivo estava num tablet. Nenhum papel era guardado ali. Tudo o que era importante estava armazenado em servidores bem longe. A computação em nuvem imperava no mundo de Peter Bunting.
Bunting havia analisado as carreiras de Sean King e Michelle Maxwell e ficara um tanto impressionado. Ambos pareciam ser trabalhadores, inteligentes e pragmáticos. Porém, ele concluiu que parte do sucesso deles também se devera a golpes de sorte no momento certo. E sorte não era algo com que se podia contar o tempo todo. Ele não sabia ao certo como isso o beneficiaria ou prejudicaria.
Bunting apertou uma tecla e a tela mudou, junto com o tema em questão.
Edgar Roy.
Seu principal problema.
O que fazer com relação ao seu E-Seis consumia uma quantidade incomum do tempo de Bunting. Porém, a questão era de importância vital para ele. Embora tivesse tomado algumas medidas provisórias, ele estava inaceitavelmente atrasado. E a secretária Foster tinha razão: a qualidade da análise diminuíra. Não conseguiam manter os níveis alcançados. Bunting poderia perder tudo pelo qual trabalhara.
Ellen Foster e sua turma eram implacáveis. Acabariam com ele sem pensar duas vezes. Podiam estar tramando contra ele naquele exato momento. Não, não “podiam”, estavam. E, provavelmente, Mason Quantrell estava ajudando a orquestrar o esquema todo. Os mundos do setor público e privado tinham se unido em um único organismo no campo da segurança nacional. Os concorrentes dos dois setores trocavam de lado com crescente frequência. Agora era quase impossível dizer onde o governo terminava e as organizações com fins lucrativos começavam.
Quando Bunting decidira deixar sua marca no campo da inteligência, o cenário era um desastre. Havia agências de mais com pessoas de mais escrevendo relatórios de mais – frequentemente sobre a mesma coisa – que ninguém tinha tempo de ler. Olhos de mais examinando as coisas erradas. E o pior era que ninguém queria partilhar informações, temendo perder dólares ou territórios duramente conquistados. O Departamento de Segurança Interna não falava com a CIA. A Agência de Inteligência de Defesa não interagia com o FBI. A Agência de Segurança Nacional era um mundo à parte. As outras agências faziam o que queriam. Ninguém, nem uma única pessoa, sabia tudo ou chegava perto de saber. E, quando alguém não sabia tudo, cometia erros, erros enormes, do tipo que causava muitas mortes.
Foi assim que Bunting começou a traçar seu grande plano. Combinando o princípio básico do empreendedor com a motivação de um patriota que desejava proteger seu país, ele havia identificado uma necessidade de segurança nacional, e a suprira. Quando o conceito foi testado e aprovado, o Programa E se expandiu e se aprimorou a cada ano. Não se tratava de um exercício acadêmico. Nesse monte Everest de informações colhidas todos os dias pelos Estados Unidos e por seus aliados, podia haver um ou dois dados, bem distantes nas cestas de coleta da comunidade de inteligência, capazes de impedir outro 11 de Setembro.
Os sucessos do Programa E foram precoces e frequentes. Seria possível dizer, de um modo muito convincente, que o mundo inteiro ia mal. Mas Bunting era um dos poucos que sabia que o cenário poderia ser muito mais catastrófico. Quão perto do precipício os Estados Unidos e seus aliados haviam chegado. Como evitaram por pouco acontecimentos que teriam resultado em devastação maior do que a que fora causada pelos aviões que bateram naqueles prédios. Em apenas seis meses, a análise de Edgar Roy evitara pelo menos cinco grandes ataques a alvos particulares e militares no mundo. E muitos incidentes menores, mas potencialmente letais, foram evitados porque o homem era capaz de olhar para a Parede e revelar seus segredos como nenhum outro Analista na história. Os resultados de suas conclusões estratégicas podiam ser sentidos no mundo de milhares de modos diferentes.
Mas tudo dependia de se encontrar a pessoa certa. Esse sempre fora o desafio. A carreira do Analista durava em média meros três anos. Depois disso, até mesmo a melhor das mentes se esgotava. Então eles recebiam ótimas aposentadorias e seu lugar à sombra – só que, infelizmente, não tinham como treinar seus substitutos.
O telefone tocou. Bunting passou a língua pelos lábios e tentou permanecer calmo. Aquele era um telefonema programado. O principal motivo de ele estar no escritório. Ele pegou o fone.
– Alô. Sim, eu espero.
Um instante depois, ouviu uma voz de homem. Com a respiração controlada, Bunting disse:
– Senhor presidente, obrigado por arranjar tempo para mim.
A conversa foi rápida. O tempo preestabelecido era de cinco minutos. E o atual ocupante da Casa Branca só havia se dado o trabalho de telefonar porque Peter Bunting era um concorrente muito importante na comunidade de inteligência.
– Tem sido um prazer e uma honra servir ao meu país, senhor – assegurou Bunting. – Eu lhe dou a minha palavra de que todos os nossos objetivos serão atingidos, no prazo. Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Então os homens entraram nos detalhes.
Quando o timer do telefone marcou cinco minutos, Bunting se despediu, pousou o fone e ergueu os olhos para sua assistente, que disse:
– Acho que a pessoa tem certeza de que venceu na vida quando recebe um telefonema do presidente.
– Era de pensar que esse era o caso, não?
– Não é?
– Na verdade, só significa que seu tombo será maior.
Depois que ela saiu, Bunting pôs os pés sobre a escrivaninha e entrelaçou os dedos atrás da nuca. Ele conhecia pessoalmente centenas de analistas de inteligência, sujeitos talentosos das melhores faculdades, que atuavam em suas áreas de especialização. Os indivíduos nesse campo eram capazes de dedicar suas carreiras inteiras a um determinado quadrante de espaço aéreo sobre o Oriente Médio, analisando com zelo imagens de satélite relativamente iguais até seus cabelos ficarem brancos e suas peles murcharem. Eran especialistas, pessoas boas e confiáveis em sua pequena fatia da trama. Mas isso era tudo que elas sabiam, uma fatia incremental do arco-íris da inteligência. E isso dificilmente era bom o bastante.
Mas a especialidade de Edgar Roy era a onisciência.
Ele estava incumbido de saber tudo. E sabia!
Bunting nunca esperou encontrar outro Edgar Roy, a anomalia genética das anomalias genéticas. Uma memória perfeita e uma capacidade surpreendente de ver como todas as peças se encaixam. Ele desejou que Roy pudesse viver para sempre.
Seu telefone vibrou. Bunting pareceu aborrecido, mas atendeu.
– O quê? – Ele hesitou. – Tudo bem, faça-o entrar.
Era Avery. O jovem havia cortado os cabelos, mas nunca aprendera a se vestir adequadamente. Parecia ter acabado de acordar na casa da fraternidade, depois de uma festa regada a cerveja. Contudo, ele era inteligente. Sua mente não era classe E, mas certamente era útil.
– Vejo que acabou de voltar do Maine.
– Esta manhã. Queria lhe dizer que segui Carla Dukes até em casa há duas noites. Queria conversar com ela sobre alguns assuntos.
– Certo, e conversou?
– Não, porque notei que alguém estava me seguindo.
Bunting se endireitou.
– O quê? Quem?
– Não consegui ver direito porque estava escuro. Quase o atropelei enquanto tentei fugir. – Avery fez uma pausa. – Mas acho que era aquele investigador, Sean King.
– Sean King? O que ele estava fazendo lá?
– Aparentemente seguindo Dukes e/ou me seguindo.
– Ele viu você?
– Não muito bem, estou certo disso.
– Ele anotou o número da placa do seu carro?
– Provavelmente, mas troquei as placas por um par de falsas. Elas não levarão a lugar nenhum.
– Estou impressionado, Avery.
– Obrigado, senhor. Só achei que gostaria de saber.
– Isso é tudo?
Avery pareceu nervoso e respondeu:
– Na verdade, não. O backup da Parede está à beira de um colapso.
– Disso eu já sabia. Estou reconvocando dois E-Cinco para o serviço. E, depois que fui pego de surpresa por Foster, providenciei uma conversa telefônica com o presidente para tranquilizá-lo. Acabei de desligar. Isso nos dará algum tempo. Agora, se Foster tentar passar por cima de mim, parecerá estúpida.
– Mas não vai durar.
– É claro que não.
– Mas, se for provado que Edgar Roy é inocente, nós o teremos de volta ao trabalho e será o fim dos nossos problemas.
Bunting se levantou e espiou pela janela com as mãos nos bolsos da calça.
– Isso não é necessariamente verdade.
– Por quê?
Ele se virou.
– Você realmente acha que o governo americano deixará Edgar ir a julgamento?
– Mas qual é a alternativa? – perguntou Avery devagar.
Bunting se virou de novo e observou um bando de aves que voavam para o sul para passar o inverno.
Quem dera eu pudesse voar, pensou. Quem dera eu pudesse sair daqui.
– O que você acha, Avery? – perguntou ele por cima do ombro.
– Eles o matarão?
Bunting voltou a se sentar e mudou de assunto.
– Então duas noites atrás King estava no Maine seguindo você. E quanto a Michelle?
– Não estava com ele.
– E quais foram os movimentos deles desde então?
Avery deu um pequeno passo para trás.
– Eles escaparam um pouco à vigilância, mas agora foi reiniciada.
Bunting se levantou mais uma vez.
– Escaparam por quanto tempo?
– Algumas horas.
Ele estalou os dedos.
– Seja mais preciso, Avery.
– Oito horas e quatro minutos. Mas, ao que parece, agora eles estão a caminho da fazenda de Edgar Roy.
– Já lhe ocorreu que, enquanto os perdemos de vista, eles podem ter ido a algum lugar que seria muito esclarecedor?
– Sim, senhor, mas eu não era o responsável por essa tarefa.
– Ótimo. Você acaba de se tornar responsável por garantir que eles não sejam perdidos de vista de novo – falou Bunting, antes de mudar o foco e prosseguir: – Os seis corpos na fazenda?
– Sim?
– Nem um só deles foi identificado. Estranho, não é? – A expressão de Bunting indicou que aquilo era muito mais do que estranho; era impossível.
– Sim, era de supor que eles estivessem em alguma base de dados.
– E tem outra coisa.
– O quê?
– O número.
– Número?
– De corpos. Agora vá fazer seu trabalho.
Avery parecia muito confuso quando fechou a porta atrás de si.
Bunting se recostou na cadeira, girou e olhou para fora da janela.
Seis corpos. Não quatro, não cinco, mas seis.
Geralmente, Bunting era um homem que apreciava números. Ele adorava estatística, análise, conclusões baseadas em bases de dados sólidas. Mas o número seis estava começando a assombrá-lo. Não gostava nem um pouco disso.
Seis corpos. O programa E-Seis.
Era muita coincidência.
Alguém realmente estava brincando com ele.

28
A VIAGEM À CASA DE EDGAR ROY levou algumas horas. Michelle dirigiu, como de costume, enquanto Sean olhava taciturno pela janela.
– Você também ficou curiosa sobre o que Kelly Paul fez enquanto esteve fora do país? – perguntou ele.
– É claro que sim. Mas ela estava certa a respeito de nos concentrarmos na investigação sobre seu irmão. É ele que está enfrentando a pena de morte. Não ela.
Sean não pareceu ouvir isso.
– E ela em momento algum disse como o padrasto morreu.
– Isso é fácil de descobrir, mas parece um pouco irrelevante, Sean.
Ele se virou para olhá-la e falou:
– A menos que tudo esteja ligado.
– Aí estaríamos falando sobre um longo período de tempo.
Ele voltou a olhar pela janela.
– Por que uma mulher como ela se mudaria para uma casa caindo aos pedaços, no meio do nada? Ela não é fazendeira. E seu sotaque do interior pareceu um pouco forçado.
– Bem, ela de fato foi criada na Virgínia. E eles têm sotaque por aqui – comentou Michelle, arrastando as palavras.
– Muitas questões – disse Sean distraidamente.
– O que você achou do conselho dela sobre o FBI?
– Na verdade, foi bom. Riley é advogada de defesa. Não pode ser detida indefinidamente. De fato...
Sean pegou o celular e discou.
– Ainda não atende. Muito bem, vamos fazer do jeito difícil.
Ele discou outro número.
– Agente Murdock? Quem fala é Sean King. O quê? Sim, seguimos seu conselho e fomos embora. Mas estamos voltando. Só que não é por isso que estou telefonando. Você está retendo a advogada de defesa em um caso que está investigando. Isso infringe uma dúzia de normas éticas e leis, e isso só pelo que eu me lembro. Se ela não me ligar em cinco minutos, contando que está livre e a caminho da Martha’s Inn, a próxima vez que você me vir será na CNN, falando sobre os abusos de autoridade do FBI.
Sean parou enquanto o outro homem dizia alguma coisa.
– É, bem, vamos ver se eu estou falando sério. E agora você tem só quatro minutos.
Ele desligou.
Michelle o olhou de relance e perguntou:
– O que ele disse?
– As bobagens agressivas de sempre.
Sean olhou o relógio. Dez segundos depois do prazo final, o telefone tocou.
– Alô. Megan, como vai você? – Ele fez uma pausa. – Ótimo. Achei que o agente Murdock me entenderia. Estamos na Virgínia, mas voltaremos logo. Vá para a Martha’s Inn e fique lá. Não receba visitas. Não faça nada. E, caso Murdock se aproxime de você de novo, me ligue.
Ele desligou e pôs o telefone no bolso.
– O que eles perguntaram a Megan? – Michelle quis saber.
– Ela não disse. Pelo barulho de fundo, acho que estava em um carro do FBI, voltando para a pousada.
– Você acha que eles contaram a ela sobre Hilary?
– Não, pelo menos ela não mencionou isso.
– Espere até ela descobrir que provavelmente fui eu quem a matou.
– Michelle, nem você sabe se foi você, então pare de se atormentar com isso.
– É fácil falar.
Sean ia rebater, mas então parou e acariciou o braço dela.
– Realmente é fácil falar. Sinto muito.
– Então quando voltaremos para o Maine?
– Assim que examinarmos a fazenda de Roy e falarmos com as autoridades locais.
– Duvido que elas ajudem muito.
– Não, eu acho que vão ajudar.
– Por quê?
– Até este ponto, parece que todo mundo acreditava que Roy era culpado. Agora, com Bergin e Hilary mortos, algo em que Roy não podia estar envolvido, talvez as pessoas comecem a se questionar. E a polícia não é diferente.
– Com quem lidaremos no lado federal na Virgínia? Não seria Murdock?
– Conheço o agente de Charlottesville – respondeu Sean. – É um bom sujeito. Na verdade, me deve um favor.
– Parece que muita gente lhe deve favores. O que foi que você fez?
– Escrevi uma carta de recomendação para a filha dele, para a faculdade de direito da Universidade da Virgínia.
– Isso é tudo?
– Bem, eu lhe consegui ingressos para o jogo dos Redskins contra os Cowboys em Washington. Ele é de Dallas.
– Ah, isso, sim, tem valor.
O agente do FBI foi bastante solícito. E lhes contou algo particularmente intrigante.
– Conheço Brandon Murdock. Ele é um bom sujeito. Mas não sei por que se envolveria em algo assim.
– Por quê? – perguntou Sean.
– Ele não trabalha no setor responsável por assassinatos em série e crimes violentos.
– O que ele faz?
– Foi para Washington há algum tempo.
– Então está alocado no quartel-general do FBI, no escritório regional de Washington? – perguntou Michelle.
– Não. – Ele pareceu em dúvida. – Eu não devia estar lhe falando sobre isso, Sean.
– Qual é, Barry! Não vou contar para ninguém. Você me conhece.
– E ele lhe deu os ingressos para os Cowboys – lembrou-lhe Michelle.
O homem sorriu ironicamente.
– Tudo bem. Murdock está na unidade de contraterrorismo. Uma coisa realmente especializada. – Ele apontou um dedo para Sean. – E espero mais alguns ingressos por isso. Em assentos melhores.
– Verei o que posso fazer.
Mais tarde, Sean e Michelle passaram um tempo com o promotor público local, que estava ciente da morte de Hilary Cunningham.
– Tem razão, Sean – dissera o promotor. – Essa história está começando a feder.
Eles pegaram cópias do arquivo do caso de Roy e então foram até a fazenda. Era isolada, com acesso por uma estrada de terra, tendo as montanhas Blue Ridge como pano de fundo e nenhuma outra casa, carro ou até mesmo vaca desgarrada à vista. Michelle levantou poeira ao parar o Land Cruiser na frente de uma casa de madeira de um andar. Eles saíram.
Embora a cena do crime tivesse há muito sido liberada, as fitas amarelas da polícia ainda pendiam das colunas da varanda da frente. Uns 20 metros para oeste da casa havia um celeiro de dois andares, pintado de verde-escuro e com um telhado de cedro. Nos fundos eles podiam ver um galinheiro e um pequeno curral cercado que parecia pequeno demais para cavalos.
– Chiqueiro – observou Michelle, olhando de relance para Sean.
– Grato pela informação – disse Sean. – Achei que podiam ser criadores de pôneis.
– Corpos no celeiro.
– Seis. Todos homens. Todos brancos. Todos anônimos até agora.
Eles encontraram a porta da frente trancada, mas, um minuto depois, estava aberta, graças à habilidade de Michelle.
A casa tinha uma planta simples, e eles não demoraram muito percorrê-la. Michelle pegou um livro de uma estante lotada. Olhou a lombada.
– A única palavra que reconheço neste título é O.
– Bem, você não é superdotada.
– Obrigada por me lembrar.
– Nenhum retrato de família. Nada relacionado ao trabalho. Nenhum diploma universitário. Nada que mostre que o homem ao menos morou aqui.
– Exceto os livros.
– Sim, exceto eles.
– Bem, esta era a casa dos pais de Roy. Talvez ele guardasse suas coisas em outro lugar.
– Não, Kelly nos disse que os pais compraram a fazenda depois que se casaram e antes de o filho nascer. Este é o único lar que Roy conheceu. – Sean olhou um pouco mais ao redor. – Se ele tinha um computador, aposto que a polícia o levou.
– Boa aposta.
Michelle e Sean foram para o celeiro. As portas estavam destrancadas. Eles abriram e entraram. O espaço era grande e quase todo vazio. Havia um palheiro com acesso por uma escada de madeira, algumas bancadas de trabalho e uma série de ferramentas enferrujadas penduradas em ganchos nas paredes. Um velho trator estava estacionado nos fundos.
Michelle analisou uma parte do chão de terra no lado esquerdo do celeiro, que fora escavada em mais ou menos 1,5 metro.
– Imagino que essa seja a cova.
Sean assentiu com a cabeça e percorreu o perímetro do solo revirado.
– Como eles sabiam que deviam procurar aqui? – perguntou ela.
– O arquivo menciona uma denúncia anônima feita à polícia.
– Muito conveniente. Alguém tentou encontrar o denunciante?
– Provavelmente sim. Mas não deve ter levado a lugar nenhum. A ligação foi feita com um celular pré-pago descartável. Impossível de rastrear. Hoje em dia esse é o procedimento padrão dos maníacos homicidas, se o delator era de fato o assassino.
Michelle circundou o local cuidadosamente, estudando-o como um sítio arqueológico.
– Nenhum deles foi identificado. Você sabe se os rostos deles estavam desfigurados, ou se tiveram as impressões digitais queimadas de alguma forma?
– Acho que não. Ao que tudo indica, eles só não estavam em nenhuma base de dados. Acontece.
– Kelly Paul parece convencida da inocência do irmão.
– Meio-irmão – lembrou Sean.
– Ainda assim irmão.
– Sob alguns aspectos, eu a acho mais interessante do que o irmão. E notei que não havia fotos dela na casa de Roy e nem fotos dele na casa de Kelly.
– Algumas famílias não são muito unidas.
– É verdade, mas, ainda assim, agora eles parecem bem unidos.
– Bem, temos que admitir que nunca ouvimos o irmão dizer nada. E Kelly foi ao mesmo tempo faladora e econômica nos detalhes.
– Nos detalhes da história pessoal dela, que foi o meu argumento mais cedo.
Michelle olhou em volta.
– Certo, já vimos a cova. E agora?
Sean examinou algumas velhas ferramentas na bancada de trabalho.
– Vamos presumir que tramaram contra ele. Como é que alguém traz seis corpos até aqui e os enterra sem ninguém saber?
– Para começar, a fazenda é no meio do nada. Além disso, Roy não ficava aqui o tempo todo. Trabalhava fora da casa e também passava tempo em Washington, pelo menos foi o que nos contaram.
– Portanto, era bastante fácil plantar provas. Então a pergunta é: por quê?
– Quer dizer, se ele era uma engrenagem pouco importante na máquina coletora de impostos da nação, por que se dar todo esse trabalho?
– Há duas respostas possíveis. Tem algo na história pessoal dele que ainda não sabemos, algum tipo de rixa pessoal grave o suficiente para justificar uma vingança incluindo seis corpos. Ou...
– Ou ele não era apenas uma engrenagem pouco importante na máquina. Era muito mais. Considerando todos os elementos, estou propensa a seguir essa linha. Como afirmou a irmã de Roy, ele tinha dons intelectuais incomuns. Algo importante para certas pessoas e agências.
– Esse fator e o tempo passado em Washington me fazem seguir a mesma linha. Além do fato de o FBI estar demonstrando um interesse incomum no caso. – Ele limpou a poeira das mãos. – Muito bem, vamos tentar o legista do caso e o escritório em que Roy trabalhava.
Quando eles saíram do celeiro, um SUV parou no quintal da frente, e dois homens de terno saltaram do veículo.
– Podemos perguntar o que vocês estão fazendo aqui? – disse um deles.
Sean olhou para ele e respondeu:
– Depois que você me disser quem diabo vocês são.
Os homens mostraram distintivos. Rapidamente.
– Não deu para ver o nome da agência na sua carteira – afirmou Sean. – Que tal vocês mostrarem de novo, mais devagar?
As credenciais não apareceram, mas as armas dos homens, sim.
– Somos agentes federais, e vocês precisam sair desta propriedade agora.
Sean e Michelle mostraram suas identificações, explicaram o que estavam fazendo ali e as conversas anteriores com a polícia local e o promotor do condado.
Um dos homens balançou a cabeça e decretou:
– Isso não me interessa. Saiam. Agora.
– Estamos investigando este caso para a defesa. Temos o direito de estar aqui.
– Mesmo assim terão de sair.
– Como vocês sabiam que estávamos aqui? – perguntou Michelle enquanto eles iam para a caminhonete dela.
– O que disse? – falou um dos homens.
– Não há ninguém aqui. Não passamos por nenhum carro. Como vocês sabiam que estávamos aqui?
Em resposta o homem abriu a porta da caminhonete de Michelle e lhe fez um sinal para entrar.
Sean e Michelle se afastaram rapidamente pela estrada de terra, deixando poeira atrás deles e no rosto dos federais.
– Eles não tinham como saber que estávamos lá, Sean. E aqueles distintivos pareciam verdadeiros, embora eu não tenha visto para quem eles realmente trabalhavam. Pareciam federais.
Sean assentiu com a cabeça e completou:
– Estamos sendo seguidos, e eu gostaria de saber há quanto tempo.
– Juro que ninguém nos seguiu quando fomos ver Kelly Paul. Não havia como eu não ver. Não tinha nenhum lugar onde alguém pudesse se esconder. Absolutamente nenhum.
– Essa é a questão. Aqui também não há, e mesmo assim eles apareceram.
– Satélite? – cogitou Michelle, olhando pela janela.
– Estamos enfrentando os federais. Por que não?
– Comprar tempo de satélite é difícil até mesmo para o FBI.
– Aqueles homens não eram do FBI – refletiu Sean. – Os federais sempre querem que você saiba quem eles são. Eles teriam esfregado os distintivos nas nossas caras.
– Droga, no que foi que nós nos metemos?
Sean não respondeu porque não tinha nada para dizer.

29
– ELE ERA UM FUNCIONÁRIO excepcional. Muito inteligente. Não, na verdade mais do que isso. Era realmente impressionante. Acho que se poderia dizer que quase não humano.
Sean e Michelle estavam no escritório de Leon Russell, na Receita Federal em Charlottesville. Russell era baixo e gordo, com fartos cabelos brancos. Usava uma camisa de manga curta com camiseta por baixo e suspensórios. Seus dedos eram manchados de nicotina e ele se contorcia muito, como se a ausência de um cigarro na mão o perturbasse.
– Foi isso que ouvimos, também – concordou Sean. – Quais eram as funções dele aqui?
– Edgar era um solucionador de problemas. Nós o consultávamos sobre tudo que fosse fora do comum e que ninguém mais conseguisse resolver.
– Como ele era? – perguntou Michelle.
– Reservado. Às vezes saíamos para tomar uma cerveja depois do trabalho. Edgar nunca ia junto. Partia direto para a fazenda. Acho que gostava de ler.
– Você já foi à fazenda?
– Só uma vez, quando o entrevistei para o emprego.
– Como o conheceu?
– Amigo de um amigo. Da universidade dele. Tenho contatos em toda parte. Fico de olho em pessoas com talento excepcional. Edgar Roy realmente se sobressaía. Ele tinha se ausentado da universidade por algum tempo, fazendo não sei bem o quê. Mas eu lhe telefonei e ele veio para uma entrevista. Fiquei muito impressionado. Havia um daqueles velhos cubos mágicos na minha escrivaninha. Edgar o pegou e simplesmente ficou montando e desmontando aquele quebra-cabeça enquanto conversava comigo. Eu não tinha conseguido resolvê-lo nem uma única vez. Era como se ele pudesse ver todas as combinações na mente. Aposto que o cara poderia ter sido um ótimo enxadrista.
– Eu não sabia que a Receita Federal buscava esse tipo de talento – comentou Sean. – Vocês não podem competir com os salários de Wall Street.
– Edgar não tinha nenhuma vontade de ir para lá. Não me interprete mal. Ele provavelmente seria capaz de propor um algoritmo derivativo que o faria ganhar bilhões. Ou desenvolver softwares no Vale do Silício que o tornariam igualmente rico.
– Mas não tinha nenhum interesse nisso?
– Ele tinha sua fazenda, seus livros, seus números.
– Números? – perguntou Michelle.
– Sim. O homem adorava números e o que conseguia fazer com eles. E adorava complexidade. Era capaz de pegar um monte de partes diferentes do código tributário, renda, doação, imóveis, corporativo, parcerias, juros transitados, ganho de capital, e visualizar como todas elas funcionavam juntas. Fazia isso por diversão. Por diversão! Percebe como é impressionante? O código tributário é um pesadelo. Nem mesmo eu o conheço todo. Na verdade, não chego nem perto. Ninguém chega. Bem, exceto Edgar. Ele conhecia cada página, parágrafo e palavra. Provavelmente era o único no país.
– Ele era realmente único – disse Michelle.
– Ah, sim. Fazia nosso pequeno escritório se destacar, posso lhe garantir. Todo mundo queria transferi-lo. Quero dizer, no sistema da Receita. Tentaram roubá-lo, mas ele estava satisfeito. Não queria se mudar. Graças a Deus. Os bônus de desempenho que aquele homem me conquistou, bem, digamos apenas que minha aposentadoria será muito melhor por causa dele.
– Sei que ele ia muito a Washington – lembrou Sean. – Era por ser o único no país que sabia tanto?
A expressão amistosa de Russell se transformou ao retrucar:
– Quem lhe disse que ele ia muito a Washington?
– Não é verdade?
– Depende de como você define muito.
– E como você define? – perguntou Michelle.
– Uma vez por semana.
– Certo. Roy seguia esse padrão ou não?
– Preciso verificar em meus arquivos.
– O escritório aqui é tão grande assim?
– É maior do que parece.
Sean achou melhor mudar de assunto.
– Então, ele estava trabalhando aqui quando foi preso?
Russell se recostou e analisou Sean e Michelle com as mãos pousadas na barriga. Acima do ombro havia uma estante cheia de pastas brancas com títulos entediantes nas lombadas.
– E você diz que está representando os interesses de Edgar?
– Sim. Fomos contratados pelo advogado dele, Ted Bergin.
– Que agora está morto.
– Sim. Ele foi assassinado no Maine, perto de onde Roy está preso.
– Então, tecnicamente você não está mais representando Edgar.
Russell sorriu diante do que obviamente pensou ser um argumento fundamental e vitorioso no debate.
– Na verdade, ainda estamos. O escritório de Bergin o representava e há outra advogada que assumiu o caso. Portanto, a ligação ainda existe.
Russell, que não parecia estar ouvindo isso, abriu as mãos e falou:
– Não sei o que lhe dizer.
– Bem, eu esperava que você pudesse me dizer se Roy trabalhava aqui quando foi preso. – Ele fez uma pausa. – Ou o escritório é grande demais para que você saiba?
– Não tenho que lhe dizer nada. Você não é da polícia.
– Ao não nos dizer nada, você na verdade está nos dizendo muito – salientou Michelle.
– Estou certo de que a polícia apareceu para lhe fazer perguntas – acrescentou Sean. – Que motivos você teria para simplesmente não nos contar o mesmo que informou a eles?
– Por que você mesmo não pergunta a eles? Eu já falei o suficiente. E agora preciso trabalhar.
– É sempre melhor saber direto da fonte – insistiu Michelle. – Espero que você reconheça seu papel no processo.
– Não gosto do seu tom.
Sean se inclinou para a frente e perguntou:
– Você acha que ele é culpado?
O homem deu de ombros e respondeu:
– Provavelmente.
– Por quê?
– Esses gênios. Todos eles têm lados sombrios. Pensam demais. Não são como o restante de nós. Então, sim, provavelmente ele fez aquilo. Vamos encarar a realidade: um sujeito que sabe cada regra do código tributário só pode ser maluco.
– Bem, vamos torcer para que você não seja convocado ao júri – disparou Michelle.
Isso deixou Russell carrancudo.
– Você notou algo no comportamento de Roy que indicasse que ele poderia ser um assassino em série? – perguntou Sean.
Russell deu um falso bocejo e disse em um tom claramente desinteressado:
– E que tipo de comportamento eu procuraria?
Michelle reagiu rapidamente:
– Ah, não sei, talvez uma ou duas cabeças no pote de balas na escrivaninha dele. Coisas sutis desse tipo, seu idiota.
Um minuto depois, eles estavam sendo escoltados para fora por um segurança que parecia tão durão quanto os contadores no prédio. Quando ele estendeu o braço para pôr a mão nas costas de Michelle e apressá-la, ela resmungou:
– Encoste em mim e será um homem morto.
O homem afastou a mão tão rápido que estremeceu, como se tivesse dado um mau jeito num músculo.
Lá fora, Sean suspirou ao dizer:
– Adoro sua abordagem de interrogatório, Michelle. Tão sutil, tão sofisticada!
– Quase dá vontade de usar um distintivo de novo – retrucou Michelle. – Assim eles não podem chutar a gente antes de nos dar as respostas, mesmo se a gente for arrogante. E aquele idiota não ia nos dizer nada de útil.
– Tem razão. Ele se mostrou evasivo. Deve ter um bom motivo para isso.
– E Roy definitivamente não estava trabalhando para a Receita Federal quando foi preso, caso contrário o homem teria nos dito. Ele está escondendo alguma coisa. Se nos contar uma mentira, ela vai se virar contra ele. Se não nos contar nada, não acontecerá nada.
Eles estavam prestes a entrar no SUV de Michelle quando uma mulher se aproximou.
Ela parecia tímida, com cabelo louro-claro liso e óculos sobre olhos muito azuis.
– Com licença – chamou ela cautelosamente.
Eles se viraram para ela.
– Vocês queriam saber sobre Edgar?
– Você o conhecia? – rebateu Sean.
– A gente dividia a mesma estação de trabalho. Sou Judy, Judy Stevens.
– Estávamos fazendo perguntas, embora tenha sido difícil arrancar respostas do seu chefe.
– O Sr. Russell não gosta de dizer nada que possa ser usado, você sabe...
– Ser usado para lhe dar uma bela rasteira? – sugeriu Michelle.
Um sorriso surgiu no rosto de Judy e ela ficou levemente corada.
– Sim.
– E você tem esse problema? – perguntou Sean.
– Só quero que a verdade venha à tona.
– E o que é a verdade para você?
– Eu só sei que Edgar parou de trabalhar aqui mais de sete meses antes do pesadelo começar. Antes disso estava aqui fazia oito anos.
– Para onde ele foi?
– Ninguém sabe. Um dia ele simplesmente não veio trabalhar. Perguntei ao Sr. Russell, mas ele disse que não era da minha conta.
– Entendi. Você teve notícias de Edgar?
Judy baixou os olhos ao responder:
– Edgar e eu éramos amigos. Ele... ele era uma boa pessoa. Só era muito tímido.
– Então você teve notícias dele? – perguntou-lhe novamente Sean.
– Edgar me telefonou uma noite. Do nada. Eu lhe perguntei o que estava acontecendo, por que não vinha mais trabalhar. Ele me respondeu que tinha outro emprego, mas não podia contar qual era.
– Ele disse por que não podia contar?
– Só falou que era muito confidencial. Foi essa a palavra que ele usou. Confidencial.
– Você voltou a ter notícias dele?
– Não. E, pelo jeito como Edgar falou, achei que o telefonema era... era...
– Um risco para ele? – sugeriu Michelle.
Judy ergueu os olhos e confirmou:
– Sim, exatamente. Um risco para ele.
– Então Edgar devia mesmo pensar muito em você, para correr esse risco – acrescentou Michelle.
O rosto de Judy corou de alegria.
– Eu pensava muito nele.
– Então você não acha que ele matou todas aquelas pessoas? – testou Sean.
– Não. Eu conhecia Edgar. Bem, acho que o conhecia tão bem quanto era possível. Ele não é um assassino. Não saberia ser. Isso simplesmente não faz parte dele. Embora fosse um homem bem grande, era muito gentil. Se pisasse acidentalmente em um grilo, ficava triste.
Sean lhe estendeu seu cartão e disse:
– Caso você se lembre de mais alguma coisa, por favor entre em contato conosco.
Ela pegou o cartão e perguntou:
– Vocês viram Edgar? Quero dizer, naquele... lugar?
– Vimos.
– E como ele está?
– Não está muito bem.
– Podem lhe dizer que Judy mandou lembranças? E que eu acredito na inocência dele – acrescentou ela em um tom firme.
– Eu direi.
Eles entraram no SUV de Michelle e foram embora.
– Bem, pelo menos Edgar tem uma pessoa torcendo por ele – refletiu Michelle.
– Contando a meia-irmã, já são duas.
– Certo.
– Então um dia ele simplesmente para de ir trabalhar. O chefe na Receita Federal fecha o bico. Não dizem nada para ninguém. E ele corre um risco, liga para a amiga e lhe conta que tem um novo emprego que é confidencial.
Michelle ficou carrancuda ao dizer:
– E Murdock está na unidade contraterrorismo. Então o caso deve estar relacionado à segurança nacional, espionagem. E você sabe como eu odeio essas coisas de espionagem.
– Quer dizer, as traições duplas e triplas e múltiplas correntes de interesse em cada situação?
– É, por aí mesmo.
– Então, ele está metido com espionagem? Por quê?
– Provavelmente por causa de sua habilidade mental.
Sean deu de ombros.
– Não sei o que mais ele tem a oferecer além da estatura. E duvido que a CIA ou alguma outra agência de espionagem tenha um time de basquete. Então ele se envolve com espionagem e acontece isso. Seu novo patrão deve estar uma fera.
– Isso explica todos aqueles caras de ternos pretos com armas, satélites, e também o envolvimento do FBI.
– Eu gostaria de dar uma olhada no relatório do legista.
– Tomara que os legistas locais sejam um pouco mais prestativos do que o palhaço da Receita Federal. Agora estou esperando cair na malha fina qualquer dia desses – disse Michelle com uma careta.

30
DUAS HORAS DEPOIS, SEAN tinha uma cópia do relatório do legista e outros detalhes forenses.
– Vamos esperar que isso nos dê alguma pista – disse Michelle.
– Acho que, se houvesse alguma prova incontestável aqui, a polícia já teria feito alguma coisa. Esse caso não está indo a lugar nenhum. E não deve ser só porque Edgar Roy está num manicômio federal.
– Os pauzinhos definitivamente estão sendo mexidos – respondeu Michelle. – Tem gente fazendo tudo para abafar o caso.
– O que evidencia as forças que agem nos bastidores.
– Sim, forças assustadoras.
– Vamos comer alguma coisa e ver se descobrimos algo neste relatório.
Em meio a sanduíches e cafés, Sean leu o relatório e discutiu partes dele com Michelle.
– Não tem nenhuma surpresa. Os corpos foram encontrados em estados variados de decomposição. O legista calculou que um deles estava morto havia cerca de um ano. Os outros, entre quatro e seis meses.
– Isso significa que ele matou seis vezes em menos de um ano.
– Já vimos assassinos em série mais ativos. Além disso, o enterro atrapalha um pouco a determinar o tempo passado desde a morte. É possível fazer uma estimativa, mas não passa disso. Se os corpos tivessem sido deixados acima da terra, pelo menos teríamos larvas de moscas para nos orientar. Elas são bastante precisas. Mas mesmo no chão há algumas coisas úteis. Quero dizer, também há insetos sob a terra.
Michelle pousou seu sanduíche de atum.
– Ótimo assunto para uma refeição. Realmente desperta o apetite.
Ele guardou o relatório na pasta e olhou em volta no pequeno restaurante. Em um tom baixo, disse:
– Há um homem à sua direita de suéter e jaqueta jeans tentando muito parecer um estudante. Ele...
– Eu sei. Eu o vi uns dez minutos atrás. Há um volume de pistola na jaqueta e um fone no ouvido esquerdo.
– FBI?
– Provavelmente uma das agências governamentais. Mas o que nós vamos fazer?
– Não dar na vista que suspeitamos dele.
Michelle pegou novamente o sanduíche.
– Isso me deu fome de novo.
– E isso aqui pode tirar outra vez.
Ela parou com o sanduíche especial de atum a meio caminho da boca quando Sean continuou a falar:
– Vi uma coisa no relatório do legista que me intrigou.
– Mal posso esperar para saber o que é.
– Qual era o tipo de terra no celeiro de Roy?
– Estamos na Virgínia. Então era barro vermelho. Por quê?
– Os exames indicaram que todos os corpos traziam vestígios de terra diferentes da terra no celeiro.
Michelle pousou o sanduíche de novo.
– Mas isso só seria possível se...
– Com licença?
Os dois ergueram os olhos e viram o homem de jaqueta jeans parado ao lado da mesa deles.
– Sim – disse Sean, parecendo aborrecido por não ter notado a aproximação do homem.
– Gostaria de saber se vocês podem me acompanhar lá para fora.
– E por que nós faríamos isso? – perguntou Michelle, que cerrara a mão esquerda e deslizara a direita para a arma.
– Vamos fazer isso do jeito fácil.
– Não vamos fazer isso de jeito algum – retrucou ela.
O homem pôs a mão dentro da jaqueta: o seu primeiro erro.
Michelle girou e o atingiu com um chute de perna esquerda bem no estômago. O homem foi jogado para trás e bateu na mesa encostada na parede.
O segundo erro do homem foi se aproximar de Michelle de novo.
Antes que ele pudesse reagir, Michelle o acertou no queixo com um forte chute que o tirou do chão e o fez cair desacordado no linóleo amarelado e gasto.
Sean se levantou, olhando chocado para o homem.
Os poucos outros clientes da délicatessen, quase todos mais velhos, ficaram sentados em suas cadeiras, paralisados diante da súbita violência.
Michelle olhou para eles e explicou:
– Foi só um pequeno mal-entendido. Logo alguém virá buscá-lo. Vocês podem voltar a comer e, bem, devem pedir uma sobremesa também. – Ela apontou para o homem caído. – Ponham na conta dele. – Virou-se para Sean e sussurrou: – Sugiro que a gente saia antes que a equipe do sujeito interrompa nosso café.
Sean atirou um pouco de dinheiro sobre a mesa para pagar a refeição e disse:
– Se ele é um federal, nós estamos muito ferrados.
– Em nenhum momento ele mostrou um distintivo. Pelo que sabemos, ia sacar a arma.
Ela abriu a jaqueta do homem com a ponta da bota e a arma foi revelada.
– Mas ainda assim... – refletiu Sean.
– Vamos pensar nesse problema quando ele aparecer. Pessoalmente, estou meio cansada de ser intimidada pela turma de distintivo e cassetete. E paciência nunca foi uma das minhas virtudes.
– Como foi que você passou na avaliação psicológica para entrar para o Serviço Secreto?
– Moleza. Com muita Diet Coke e toneladas de chocolate.
Eles saíram da délicatessen pela porta dos fundos, deram a volta no prédio e viram outro homem em um carro. Michelle se esgueirou para dentro de seu SUV pelo lado do carona, seguida por Sean. Ela ligou o motor e se afastou antes que o motorista do sedã pudesse reagir.
Olhando pelo espelho retrovisor, Sean comentou:
– O motorista não sabe o que fazer. Seguir a gente ou entrar para ver o que aconteceu com o colega?
Michelle chegou à estrada e acelerou. O carro não os seguiu.
– Daqui a dois minutos será emitido um alerta contra nós por termos atacado um federal – cogitou Sean.
– Isso se ele for um federal.
– Ah, está na cara que ele é.
– Será que é melhor a gente se livrar deste carro e arranjar outro?
– Daqui a cinco minutos eles terão nossos dados no sistema. Nossos cartões de crédito e nossas carteiras de motorista vão ser rastreados.
– Então ligue para Murdock e conte o que aconteceu.
– Você perdeu o...? – O rosto de Sean congelou. – Essa realmente é uma ideia brilhante.
– Obrigada. Antecipe a investida dele e lhe avise que um homem armado nos procurou. Você só quer preveni-lo de que tem algo acontecendo. Quando Murdock perguntar por que diabo atacamos um federal, poderemos dizer que não sabíamos quem ele era.
Sean já estava discando o número. Passou dois minutos ao telefone e não deixou o agente do FBI dizer nenhuma palavra enquanto não terminou. Mas o que Murdock disse não agradou a Sean, a julgar por sua expressão.
– Sim, posso lhe dar uma descrição. E o número da placa.
Ele fez isso. Falou um pouco mais, respondeu a mais duas perguntas e desligou.
– A menos que Murdock seja um mentiroso de primeira classe, não sabia de nada.
– Então o homem não é do FBI?
– Deve ser de outra agência.
– E quanto ao alerta?
– A CIA não usa alertas. Eles aparecem no sistema todo, e aí os agentes são obrigados a explicar à polícia coisas que não gostariam de explicar.
O telefone de Sean apitou e ele leu a mensagem. Sorrindo, olhou para Michelle.
– Quer ouvir uma notícia realmente boa?
– Sim, seria ótimo.
– Esta mensagem é do meu amigo promotor. O projétil encontrado em Hilary Cunningham não corresponde à sua arma.
– Então não atirei nela?
O alívio no rosto de Michelle era enorme.
– Não, não atirou. O que significa que outra pessoa a matou ali ou em outro lugar e levou o corpo dela para lá para incriminar você.
– Como fizeram com Edgar Roy?
– Talvez.
– Mas eles deviam saber que a polícia faria a análise balística.
– Eu não disse que eles queriam que você fosse condenada pelo crime. Só queriam dificultar as coisas por algum tempo. Confundir a sua cabeça.
– Certo, isso eles conseguiram. Então o que a balística revelou? Foi outro projétil calibre 45 que quase me atingiu?
– Não. Calibre 9 por 19 milímetros Parabellum, ponta oca, encamisado.
– “Se você quer a paz, prepare-se para a guerra” – citou Michelle.
Sean a olhou com curiosidade.
– A palavra parabellum vem de um ditado em latim que significa isso. Era o lema do fabricante de armas alemão que criou o projétil Parabellum baseado no design de Georg Luger. Também é chamado de Luger 9 milímetros, para diferenciar do cartucho Browning, por exemplo.
– Você é um verdadeiro tesouro de pérolas balísticas.
– O cartucho Luger 9 milímetros também é a munição militar mais popular no mundo, usada pela maioria das forças policiais nos Estados Unidos. Qual era o fabricante e a carga?
Sean olhou para sua tela de novo e respondeu:
– Double Tap. Carga JHP Gold Dot. Cento e quinze grãos.
– Certo, esse cartucho tem um poder de parada de mais de 90% com um único tiro e penetração de mais de 35 centímetros. Não tem a mesma potência que um Magnum 44 ou um 357, mas ainda é muito poderoso. Pode definitivamente provocar um choque hidrostático.
– O que isso significa?
– Significa que um impacto no peito pode causar uma hemorragia cerebral.
– Então, obviamente esse não foi o projétil usado para matar Bergin.
Michelle negou com a cabeça.
– Sem chance. Esse projétil teria atravessado o crânio àquela distância. Nunca teria ficado na cabeça.
– Interessante. Então provavelmente quem matou Bergin não matou Hilary Cunningham.
– Certo. E agora? – perguntou ela.
– Voltamos ao Maine.
– De avião?
Sean fez que não com a cabeça.
– Pare e compre um café duplo. Vamos de carro.
– Posso pegar minha arma com a polícia local antes de irmos?
– Com a minha bênção.
Michelle pisou fundo no acelerador.

31
DOZE HORAS DEPOIS, ELES estavam em Boston, onde passaram a noite num hotel. Não foram até Machias, no Maine, porque o efeito da megadose de cafeína que Michelle tinha ingerido havia passado e ela fora para o banco traseiro para um breve cochilo depois de sete horas dirigindo. Após cinco horas ao volante do Land Cruiser, os olhos de Sean começaram a se fechar com muita frequência. Depois de algumas horas de sono profundo e uma partida cedo na manhã seguinte, Michelle e Sean entraram no estacionamento da Martha’s Inn no início da tarde.
Megan Riley foi ao encontro deles do lado de fora na porta da frente.
– O agente Murdock é um babaca – disparou ela.
– Bem, esse é um jeito de colocar as coisas – disse Sean.
– Mais educado do que eu usaria – acrescentou Michelle.
– O que o FBI queria saber? – perguntou ele.
– Tudo. Mas eu não disse nada. Sou a representante legal de Roy. Eles não podem me intimidar, por mais que tentem.
– Bom para você – disse Michelle.
– Liguei para Murdock e lhe dei um belo susto – acrescentou Sean.
– Eu sei. Ele não ficou nada feliz. Foi por isso que me liberou. O idiota.
– E descobrimos quem é o cliente – disse Michelle.
– Quem?
– A meia-irmã de Roy, Kelly Paul. Ela é uma mulher interessante. Ainda não consegui entendê-la bem. Mas é uma força a se considerar – respondeu Sean. Parou de falar e conduziu Megan a um banco sob uma árvore diante da pousada. – Sente-se.
– Por quê? – Megan ergueu os olhos para ele com uma expressão temerosa.
– Temos más notícias. Outra morte.
Ambos viram Megan agarrar o banco com tanta força que os dedos ficaram brancos.
– Quem?
– Hilary Cunningham.
Megan conseguiu conter o choro. Pelo menos por alguns segundos. Então se inclinou para a frente, escondeu o rosto nas mãos e começou a soluçar.
Sean olhou desesperadamente para Michelle, que murmurou:
– Desculpe, mas não sou boa nisso.
Sean se sentou ao lado da jovem advogada e lhe deu tapinhas nas costas meio sem jeito.
– Sinto muito, Megan.
Finalmente, Megan se endireitou, enxugou o rosto com a manga do casaco e perguntou:
– Como?
– Ela levou um tiro. E o corpo foi deixado na casa de Bergin.
Ele olhou de relance para Michelle, que disse:
– Eu estava lá quando aconteceu.
Megan olhou para Michelle e perguntou:
– Por que alguém mataria Hilary? Ela era só uma senhora simpática.
– Ela trabalhava para Bergin. Bergin representava Roy. Parece ser suficiente para certas pessoas – respondeu Sean.
Megan tomou fôlego para questionar:
– Então isso quer dizer o quê? Que eu sou a próxima?
– Não vamos deixar que nada lhe aconteça – assegurou Michelle.
Ela se sentou do outro lado da jovem advogada.
– Talvez eu devesse ter ficado com o FBI – comentou Megan, sua voz pouco mais do que um sussurro.
– É o que você quer? – perguntou Sean.
– Não, na verdade não. – Sua voz se tornou mais firme ao dizer: – O que eu quero mesmo é descobrir quem fez isso.
– É o que nós também queremos.
– Então para onde vamos agora?
– Ver seu cliente.
– Mas você disse que ele não fala.
– Mesmo assim, você tem que vê-lo. Vou providenciar o encontro.
Sean e Michelle tomaram banho, trocaram de roupa e comeram. Conseguiram autorização de Carla Dukes em Cutter’s Rock e foram até a prisão. A segurança estava ainda maior, se é que isso era possível. Em determinado momento, Michelle se irritou quando um dos guardas se entusiasmou demais ao revistá-la.
– Se você tocar na minha bunda mais uma vez, vai ter que aprender a viver sem as mãos – disse ela asperamente.
Ele recuou, olhou para o teto e fez um sinal indicando que eles podiam seguir em frente.
Eles esperaram na pequena sala. Edgar Roy foi trazido. Sua aparência e seu comportamento não haviam mudado. Quando Megan o viu, ficou boquiaberta e se sentou na cadeira, hipnotizada. Depois que os guardas saíram e a porta se fechou atrás deles, Megan continuou calada. Por fim, Sean disse:
– Hum, você quer tentar fazer algumas perguntas?
Megan começou, com o rosto corado. Ela abriu sua pasta.
– Sr. Roy, sou Megan Riley.
Ela exibiu um de seus cartões. Seu rosto corou de novo porque Roy continuou sentado olhando o teto. Afastou o cartão devagar e o guardou.
– Sr. Roy, sou sua advogada. O senhor está sendo acusado de vários assassinatos. Compreende isso?
Nada.
Ela olhou para Sean, que a encorajou com um sinal de cabeça enquanto Michele o olhava incredulamente.
Megan continuou falando com Roy:
– Temos que preparar sua defesa, e para isso precisamos de sua total cooperação.
Porém, toda a atenção de Roy permanecia concentrada no teto.
– Sr. Roy, outra pessoa ligada ao seu caso foi assassinada. Hilary Cunningham trabalhava para Ted Bergin. Ela levou um tiro e seu corpo foi deixado na casa dele – disse Sean.
Isso não provocou nenhuma reação em Roy.
Sean se levantou de repente e andou até bem perto do homem. Michelle imediatamente se levantou e se uniu a ele.
– Você acha que é uma boa ideia? – sussurrou ela.
– Não sei, mas acho que não temos nada a perder.
– Só um braço ou uma perna, se ele realmente for um psicopata.
– É por isso que trouxe você para me proteger.
Sean se curvou e ficou tão perto de Roy que pôde sentir sua respiração. Pelo menos, pensou Sean, Roy ainda respirava. Isso era mais do que podia ser dito sobre Bergin ou Hilary, ou as seis pessoas no celeiro.
– Nós estivemos com a pessoa que contratou Ted Bergin – sussurrou ele. Sua voz se tornou ainda mais baixa. Agora o único que podia ouvi-lo era Roy. – Sua irmã, Kelly Paul.
Sean se aprumou, analisando o outro homem. Então se curvou para a frente de novo, seu rosto quase tocando a orelha de Roy.
– E Judy Stevens lhe mandou lembranças. Ela acredita na sua inocência. Me pediu para lhe dizer isso.
Sean examinou novamente as feições de Roy. O silêncio se manteve por alguns segundos.
Megan ia dizer alguma coisa, mas Sean a impediu.
– Acho que basta por hoje.
– Mas ele não disse nada – argumentou Megan.
Sean olhou Michelle de um modo que indicava que não necessariamente concordava com essa afirmação.
Eles seguiam pelo corredor quando Sean diminuiu o ritmo ao ver Brandon Murdock se aproximar.
– Agora o FBI tem uma filial em Cutter’s Rock? – ironizou Michelle.
– Achei que vocês teriam algo melhor a fazer com seu tempo do que falar com uma parede. – Ele olhou de relance para Megan. – Sabe, você deveria escolher melhor os seus amigos aqui dentro. As alianças erradas podem metê-la em encrencas.
– Sou a advogada de Edgar Roy. Essa é a única aliança que me interessa.
– É advogada dele por enquanto.
– O que isso quer dizer? – perguntou Sean.
– Só que as coisas mudam.
– Ah, qual é, Murdock, você está entre amigos. O que há de tão especial em Roy? Por que você se interessa tanto por ele?
– Seis corpos.
– Jeffery Dahmer matou mais gente do que isso e não vi o FBI voando por aí, causando problemas por causa dele.
– Cada caso é um caso.
Michelle sorriu afetadamente.
– Então você agora é poeta?
– Tenham um dia produtivo.
Murdock se afastou.
Na pousada, depois que Megan foi para o quarto dela, Sean e Michelle se sentaram na pequena sala da frente.
– Sabe quando eu mencionei o nome de Kelly Paul para Roy?
– Eu não sabia que tinha mencionado. Não consegui ouvir o que você disse.
– Foi de propósito, para o caso de estarem gravando. Mas, quando eu disse o nome dela, consegui uma reação. Não foi grande coisa, mas houve um leve movimento de cabeça, um pequeno arregalar de olhos.
– Você acha mesmo que ele entendeu?
– Acho. E tem mais. Aconteceu a mesma coisa quando mencionei Judy Stevens.
– Então ele está fingindo? Por que faria isso? Para evitar ir a julgamento? É um tiro no escuro. Ele não pode se fazer de zumbi para sempre.
– Não sei bem se é só para escapar de um julgamento.
– Que outra motivação ele teria?
– Se conseguirmos uma resposta para essa pergunta, teremos uma resposta para quase tudo.

32
EDGAR ROY ESTAVA SENTADO em sua cela. Assumira a posição usual, com as longas pernas esticadas e as costas em um ângulo confortável na cadeira de metal aparafusada no chão. Ele fixou o olhar no lado mais distante do teto, que ficava 15 centímetros à direita da parede de trás e a 10 centímetros da parede perpendicular a essa. Roy imaginou que aquele ponto representava algum tipo de encruzilhada. Havia algo de reconfortante para ele naquele diminuto pedaço de concreto.
Por cima de seu ombro, uma câmera em um nicho na parede, atrás de uma proteção transparente, observava todos os seus movimentos, não que houvesse algum. Um aparelho de escuta embutido na parede registrava tudo o que ele dizia, não que Roy tivesse dito alguma coisa desde que chegara ali.
Mentes inferiores poderiam ser incapazes de conseguir esse feito, pelo menos por um longo período. Mas Roy sempre fora ótimo em se perder dentro da própria mente. Para ele, seu cérebro era um lugar muito interessante para se perder. Ele podia se entreter infinitamente com lembranças, quebra-cabeças e contemplações variadas.
Roy havia começado a pensar em suas primeiras lembranças, avançando em ordem cronológica exata. A primeira lembrança era de quando ele tinha 1 ano e meio. A mãe batera nele por fechar a porta em cima do gato. Roy se lembrava exatamente do que ela dissera, do grito do gato, do nome do gato – Charlie – e da canção que tocava no rádio quando aconteceu. Cores, cheiros, sons. Tudo. Sempre fora assim para ele. Outras pessoas se queixavam de que não conseguiam se lembrar de onde tinham estado na véspera, ou simplesmente não se recordavam mais de coisas antigas. Roy tinha o problema oposto. Ele nunca conseguia se esquecer de nada, não importava quão trivial fosse ou quanto quisesse esquecer. Sempre estava ali. Tudo estava ali.
Eu nunca consigo me esquecer de nada.
Com o passar dos anos, Roy aceitara a habilidade. Aprendera a pôr tudo em compartimentos separados em sua mente, que parecia ter espaço ilimitado, expandir quando ele precisava, como se ele plugasse um novo pen drive ou zip drive. Se fosse necessário, poderia se lembrar de tudo instantaneamente, mas não tinha de pensar naquelas coisas enquanto não quisesse.
Roy nunca buscara notoriedade por essa habilidade especial. Na verdade, sempre fora considerado esquisito por causa do modo como sua mente funcionava. Consequentemente, tentara esconder seus talentos especiais em vez de exibi-los. Então, num contrassenso, as pessoas que sabiam de seus talentos sempre o consideraram uma decepção.
Ele sentia que era muito fácil rotular uma pessoa sem se colocar no lugar dela. Mas ninguém nunca poderia se colocar no lugar de Roy de verdade.
Como a câmera estava atrás dele, Roy podia mover os olhos e focar outro ponto do teto. Ele deixou de pensar em quando tinha 1 ano e meio, na surra e no grito do gato.
Sua irmã.
E Judy Stevens.
Elas eram as únicas amigas que tinha.
E não haviam se esquecido dele. Talvez estivessem trabalhando do lado de fora para ajudá-lo. Aquelas pessoas que foram visitá-lo. Sean King e Michelle Maxwell. E a jovem, Megan Riley. Seu advogado estava morto. A secretária dele, assassinada. Foi o que eles disseram. Roy realmente se lembrava de tudo o que eles disseram, o que vestiam, cada movimento, cada pausa, cada contato visual. A mulher alta era cética. A baixa era nervosa e ingênua. O homem parecia sensato. Talvez estivessem ali para ajudá-lo. Mas há muito Roy desistira de confiar totalmente em qualquer pessoa.
Sua mente se voltou para aquele dia terrível. Por um capricho, entrara no celeiro. Cheiros de sua infância vieram até ele de todas as direções. Ele havia erguido os olhos para o velho palheiro. E tido mais lembranças. Caminhara pelo primeiro andar do celeiro, passando a mão pelo velho trator John Deere estacionado em um canto, com os pneus inutilizáveis. A velha bancada de ferramentas, os cestos de aveia, as placas de carro enferrujadas que ele e a irmã tinham juntado e pregado numa parede.
Quando ele chegou à parte de terra junto à parede, parou. O feno fora afastado para o lado e a terra estava recém-revolvida, embora ele não soubesse por quê. Roy se ajoelhou junto ao trecho, pegou um torrão de terra, apertou e deixou cair por entre os dedos. Era o bom barro da Virgínia com seu cheiro doce e enjoativo.
Roy notou uma pá encostada em uma parede e a usou para cavar a terra revolvida. Cavou até que parou e deixou a pá cair. Na terra havia algo que sua mente jamais teria previsto.
Era um rosto humano. Ou o que restava dele.
Ele se virou para correr de volta para casa e telefonar para a polícia quando ouviu os sons.
Sirenes. Muitas delas.
Ao chegar à porta do celeiro, as viaturas estavam freando na frente da casa. Homens uniformizados e armados saltavam delas. Eles viram Edgar, apontaram suas armas e correram na direção dele.
Roy recuou instintivamente para o celeiro. Isso foi um erro, é claro, mas ele não estava raciocinando claramente.
A polícia o encurralou ali.
– Não fui eu quem fez aquilo – gritou, olhando de soslaio para o que agora sabia ser uma cova.
Os policiais seguiram seu olhar para a terra revolvida. Foram até a beira da cova e seus maxilares se enrijeceram quando viram o que havia lá. O rosto podre olhando de volta. Então baixaram os olhos para as calças sujas de Roy e a pá no chão. O barro em suas mãos. E se aproximaram mais.
– Você está preso – gritou um policial.
– A dica valeu. Pegamos ele. Em flagrante – falou outro no rádio.
Quando Roy olhou para o homem e ouviu o que ele disse, sua mente perfeita parou de funcionar.
A partir do momento que fora preso e acusado, a única coisa em que Roy conseguia pensar era fugir para dentro da própria mente. Fazia isso quando estava com medo, quando o mundo parava de fazer sentido para ele. E então ele estava com medo e o mundo parara de fazer sentido.
Eles tentaram fazê-lo falar. Um exército de psicólogos e psiquiatras fora usado para avaliar sua condição e determinar se ele estava fingindo ou não. Contudo, nunca tinham encontrado alguém com uma mente como a dele. Nada do que perguntaram, nenhuma tática usada com ele adiantara. Roy podia ouvi-los e vê-los, mas era como se uma proteção invisível tivesse sido colocada entre ele e o mundo exterior. Era como presenciar aquilo tudo através de uma parede de água. O exército de psiquiatras finalmente desistira.
A parada seguinte tinha sido Cutter’s Rock.
Roy conhecia as rotinas de sua cela. Decorara o itinerário de todos os guardas. Sabia quando eles tomavam café da manhã, almoçavam e jantavam. Sabia a latitude e a longitude de Cutter’s Rock. E, graças a dois fragmentos de conversas ouvidas por acaso, inócuas para qualquer um que não tivesse uma capacidade de observação e habilidades analíticas fora de série, sabia que Carla Dukes era a representante de Peter Bunting lá dentro. Depois de todo aquele tempo enfrentando a Parede, as habilidades de Roy estavam aguçadíssimas.
E ele sabia que Bunting faria qualquer coisa ao seu alcance para tê-lo de volta. Para que Roy pudesse analisar a Parede. Para ajudar a manter o país seguro.
Edgar Roy não se incomodava em ajudar a manter a segurança em seu país. Mas nada era assim tão simples. Ele sabia que havia 16 serviços de inteligência americanos que empregavam mais de 1 milhão de pessoas, um terço das quais era de autônomos terceirizados. Havia quase 2 mil empresas em atividade no campo da inteligência. E, oficialmente, mais de 100 milhões de dólares eram gastos em questões de inteligência, embora o número exato fosse sigiloso e, na verdade, muito maior. Era um universo enorme e Edgar Roy estava no centro dele. Era o homem que decifrava o que, de outro modo, teria sido uma massa colossal e sempre crescente de dados incompreensíveis. Eram como as ondas do oceano: incansáveis, massacrantes, mas carregadas de importância para aqueles que podiam desvendar suas profundezas. Parecia poético, mas o que Roy fazia era na verdade muito prático.
Era um peso muito grande em seus ombros. E se Roy parasse e pensasse demais sobre isso, ficaria paralisado. As conclusões a que chegara, os pronunciamentos que fizera e as análises que ajudara a produzir serviram para criar políticas de impacto global. Pessoas viveriam e morreriam. Países foram invadidos ou não. Bombas foram lançadas ou não. Negócios foram fechados ou aliados foram descartados. O mundo girara de acordo com Edgar Roy.
Para o cidadão comum, isso teria soado completamente implausível: uma pessoa simplesmente dizendo ao serviço de inteligência americano o que fazer. Mas o segredo sujo da espionagem era que simplesmente havia informações de mais para se interpretar. E elas estavam tão interligadas que, a menos que alguém tivesse todas as partes, era impossível fazer julgamentos bem fundamentados. Aquilo era um gigantesco quebra-cabeça global. Mas se você só tivesse uma das peças dele, estava destinado ao fracasso.
No início Roy havia ficado fascinado com a Parede. Para ele, era um organismo vivo que falava uma língua estrangeira que Roy precisava aprender. Contudo, depois de alguns meses seu fascínio e interesse diminuíram um pouco. Por mais que o assunto fosse complexo e instigante até mesmo para Roy, ao ver os resultados de suas contribuições, a realidade do que estava fazendo desabou sobre ele como uma bomba arrasadora.
Não fui feito para brincar de Deus.

33
NA MANHÃ SEGUINTE, SEAN, Michelle e Megan tomaram café da manhã, não na Martha’s Inn, mas em um restaurante a 400 metros de lá. Depois de se fartarem com ovos, torrada e café, Sean começou:
– Acho que Carla Dukes foi plantada lá.
– Por que você diz isso? – perguntou Megan.
– O escritório dela estava vazio. Sem itens pessoais. Ela não pretende ficar lá por muito tempo. Como Mark Twain nasceu e morreu em passagens do cometa Halley, acho que ela veio com Edgar Roy e vai embora com ele.
– Parece que as pessoas estão realmente perseguindo Edgar Roy – comentou Megan.
– A pergunta é: por quê? – indagou Sean. – Você disse que Bergin lhe falou um pouco sobre ele.
– Só para uma pesquisa pontual. Nada importante. Você conheceu a cliente, a irmã de Roy, Kelly Paul. Qual foi a história dela?
– Ela quer ajudar o irmão. Tem uma procuração dele e contratou Bergin para representá-lo. Bergin era padrinho de Kelly.
Megan terminou o café.
– Então temos uma cliente que não quer falar. O FBI não nos diz nada. O Sr. Bergin e Hilary estão mortos e não há nenhuma pista de quem os matou.
– Precisamos descobrir o que Roy fazia de verdade – disse Sean.
– O que você quer dizer?
– Um nerd da Receita que de repente virou suspeito de assassinato em série não é motivo para tanto interesse federal – explicou Michelle. – Falamos com o chefe dele no escritório. Não quis nos dizer nada, o que na verdade significou muito. – Fez uma pausa e acrescentou: – E ele tinha amizade com uma colega de trabalho que disse que Roy parou de trabalhar lá meses antes de ser preso. Roy lhe telefonou uma vez e disse que estava trabalhando em algo confidencial, só que não quis revelar mais.
– Então você acha que Roy estava envolvido em outra coisa? Em algo criminoso, talvez?
– Não, algo que tivesse a ver com trabalho de inteligência.
– Achei que vocês chegariam lá – disse uma voz.
Ela estava parada perto da mesa deles. Quando Sean ergueu os olhos, perguntou-se como a mulher conseguia andar tão silenciosamente.
Kelly Paul tirou os grandes óculos de sol e perguntou:
– Posso me juntar a vocês?
Ela vestia calça jeans preta, colete de lã e uma grossa jaqueta de veludo cotelê por cima. Usava botas pesadas com os canos revestidos de pele. Parecia pronta para uma longa estada de inverno na costa do Maine.
Sean se levantou rapidamente e Kelly passou por ele.
– Megan Riley, esta é Kelly Paul. Nossa cliente – acrescentou sem jeito.
As mulheres se cumprimentaram com um aperto de mãos.
– Sei que o FBI lhe deu uma amostra de seu tratamento especial – disse Kelly. – Espero que não tenham deixado ferimentos permanentes.
Antes que Megan pudesse responder, Sean disse:
– O que você está fazendo aqui?
– Uma pergunta perfeitamente lógica – respondeu Kelly Paul.
– Pode me dar uma resposta? – solicitou Sean, quando pareceu que não receberia uma.
– Achei que seria uma boa ideia fazer o reconhecimento de terreno pessoalmente.
– Mas isso lhe custará o anonimato – salientou Michelle.
Kelly chamou a garçonete e pediu uma xícara de chá. Permaneceu em silêncio até que a bebida chegasse e ela desse um gole. Ela pousou a xícara e enxugou os lábios.
– Temo que meu anonimato tenha acabado no momento que vocês foram me visitar.
– Ninguém nos seguiu até sua casa – observou Michelle.
– Ninguém que vocês pudessem ver – disse Kelly tomando outro gole.
– O que você quer dizer exatamente? – perguntou Sean.
Kelly Paul olhou ao redor e falou:
– Vamos conversar sobre isso em outro lugar. Não aqui.
Eles pagaram a conta e entraram na caminhonete de Michelle. Kelly olhou o interior do veículo e perguntou:
– Você varreu isto aqui em busca de escutas?
Michelle, Sean e Megan olharam para ela.
– Escutas?! – exclamou Michelle. – Não, não varremos.
Kelly tirou um aparelho de sua bolsa e o ligou. Ela o passou pelo interior do veículo e analisou a pequena tela eletrônica.
– Certo, podemos prosseguir.
Kelly Paul pôs o aparelho de lado e se recostou enquanto os outros continuavam a olhar para ela.
– Que tal você começar a explicar? – perguntou Sean.
Kelly Paul deu de ombros e disse:
– É óbvio, não?
– O que é óbvio?
– O que estamos enfrentando aqui.
– E o que é exatamente? – perguntou Michelle.
– Todo mundo – respondeu Kelly Paul.
– Podemos começar pela página um? – sugeriu Sean. – Acho que seria o melhor para todos nós.
– Meu irmão não é só um funcionário da Receita Federal com seis corpos em seu celeiro.
– Sim, chegamos a essa conclusão sozinhos – disse Michelle.
– Então o que seu irmão faz exatamente? – perguntou Sean.
– Não estou convencida de que vocês estejam prontos para a resposta.
– Acho que estamos – insistiu Sean. – Na verdade, estamos tão prontos que acho que não vou deixá-la fora do carro enquanto não contar.
Antes que qualquer um deles pudesse reagir, Kelly encostou uma faca no pescoço de Megan.
– Isso seria um ato infeliz da sua parte, Sr. King, de verdade.
– Afaste a faca – pediu Sean. – Não precisa ir tão longe.
Kelly pôs a faca de lado e acariciou o braço de Megan.
– Me desculpe.
A jovem parecia prestes a vomitar o café da manhã.
– Respire fundo algumas vezes, e a náusea do choque logo passará – acrescentou Kelly gentilmente.
– Por que você fez isso? – perguntou Sean.
– Precisamos estabelecer algumas regras básicas. Não devo lealdade a nenhum de vocês, pelo menos não totalmente.
– Então a quem você é leal? – perguntou Michelle.
– Sobretudo ao meu pobre irmão, que está apodrecendo em Cutter’s Rock.
– Sobretudo? – repetiu Sean. – Isso significa que há algo mais. Ou alguma outra pessoa.
– No meu negócio sempre há algo mais, Sr. King.
– E que negócio é esse? Inteligência?
Ela olhou pela janela do carro e ficou calada.
– Muito bem – declarou Sean. – Cansei de tentar trabalhar com você. Saia. Vamos continuar sozinhos. Mas, se descobrirmos alguma coisa que prejudique seu irmão, azar. O que tiver de ser, será.
– Sob vários aspectos, meu irmão é a inteligência americana.
Sean balançou a cabeça.
– Isso é impossível. É um campo vasto demais.
– Sua intuição é uma graça. Mas o fato é que o sistema de inteligência americano estava quebrado. Tinha gente de mais metida no assunto, de modo que ninguém sabia realmente nada. Com o Programa E, esse ponto fraco foi corrigido.
– Programa E? – disse Michelle. – O E representa eidético?
Kelly sorriu e respondeu:
– Na verdade, representa Eclesiastes.
– Como na Bíblia? – ressaltou Sean.
– Sim, um livro do Antigo Testamento.
– Qual é a relação? – perguntou Michelle.
– Uma filosofia básica do Eclesiastes é que o indivíduo pode encontrar a verdade usando suas capacidades de observação e raciocínio, em vez de seguir cegamente a tradição. Você adquire sabedoria e a utiliza para entender o mundo sozinho. Essa era uma ideia radical naquela época, mas se encaixa muito bem no conceito do Programa E.
– Então é isso que eu irmão faz? – perguntou Sean. – É um analista?
– Há seis pessoas nos Estados Unidos classificadas como “superusuários”. Pela lei federal, elas devem saber tudo. Mas não tinham nenhum dom mental especial. Colocavam um almirante reformado em uma sala sem nem uma caneta ou papel e depois lhe passavam todas essas informações durante oito horas até ele desmaiar ou mijar nas calças. Isso cumpria a lei escrita de que os superusuários deviam ser mantidos atualizados sobre as coisas, mas dificilmente transmitia o espírito dessa lei.
– Por que isso é tão importante? – perguntou Sean.
– Vivemos em uma sociedade sobrecarregada de informações. A maioria das pessoas recebe mais informações de seus smartphones em uma semana do que seus avós recebiam durante toda a vida. No governo e, mais criticamente, na área militar, isso é muito mais complicado. De soldados rasos em cubículos olhando para centenas de telas de TV em instalações altamente secretas a generais de quatro estrelas atrapalhando-se com seus smartphones no Pentágono. De um analista clandestino novato em Langley olhando para zilhões de imagens de satélite ao conselheiro de segurança nacional tentando entender a pilha gigantesca de relatórios em sua escrivaninha, todos estão tentando fazer mais do que é humanamente possível. Sabia que os pilotos da força aérea chamam suas telas de dados de “baldes de baba”? É porque elas exibem tantas informações que eles quase viram zumbis ao olhar para elas. É possível treinar pessoas para fazer melhor uso da tecnologia ou se concentrar de um modo mais eficiente, mas não se pode aprimorar a capacidade neurológica de ninguém. Você tem aquela com que nasceu.
– E onde entra esse Programa E? – perguntou Michelle.
– Meu irmão é o último de uma curta linhagem de gênios peculiares que teve esse cargo. É um multitarefa supremo que também tem atenção perfeita aos detalhes. Sua rede neurológica é enorme. Ele consegue ver e entender tudo.
– E quem exatamente está por trás do Programa E? – perguntou Sean. – O governo?
– De certa forma.
– Isso é tudo que pode nos dizer?
– Por enquanto.
– E para quem você trabalha?
– Não trabalho para ninguém. Trabalho com certas pessoas. Da minha escolha.
– Não é muita coincidência seu irmão também estar trabalhando com inteligência? – perguntou Sean.
– Não há nenhuma coincidência nisso. Eu encorajei Eddie a trabalhar nessa área. Achei que seria um desafio para ele e também que ele seria de enorme valor.
Ela abriu a porta do carro.
– Espere! – exclamou Sean. – Você não pode ir agora.
– Manterei contato. Por enquanto, façam o possível para permanecerem vivos. Com o passar do tempo, isso ficará cada vez mais difícil.
– Uma última pergunta – disse Sean.
Kelly Paul parou à porta.
– Seu irmão é inocente como você disse que acreditava? Ou ele matou mesmo aquelas pessoas? – perguntou ele.
No início Sean pensou que ela não fosse responder àquela pergunta.
– Mantenho o que disse, mas no final das contas só Eddie pode responder definitivamente a isso.
– Se Roy realmente matou aquelas pessoas, a vida dele acabou. Ele não voltará para esse tal Programa E.
– Sob certos aspectos a vida do meu irmão acabou muito tempo atrás, Sr. King.

34
PETER BUNTING SE SENTOU à cabeceira da mesa e examinou os rostos virados para ele. As pessoas que o cercavam não eram estudiosos da política que viviam no mundo do hipotético, mas indivíduos que levavam muito a sério as ameaças nacionais. Bunting os admirava e temia. Admirava-os por seu serviço público. Temia-os porque sabia que encomendavam rotineiramente a morte de outros seres humanos, sem perder um minuto sequer de sono.
Essa reunião em particular, embora não fosse importante, estava sendo conduzida por Bunting por causa do alto nível dos participantes, e também das circunstâncias, a principal delas sendo a situação atual de Edgar Roy. Bunting não enviara um funcionário porque havia uma secretária de gabinete, vários diretores de inteligência e generais de quatro estrelas sentados à mesa com suas xícaras de porcelana. Eles contavam com a presença dele e estavam pagando muito dinheiro dos contribuintes por esse privilégio.
Havia uma pessoa que não deveria estar presente, mas Bunting não pôde fazer nada além de registrar seu protesto oficial antes que lhe dissessem laconicamente para prosseguir com o relatório.
Mason Quantrell estava sentado perto de Ellen Foster, com as mãos no colo e toda a atenção em Bunting. A única vez que Bunting tropeçou durante a apresentação foi quando Quantrell riu de uma afirmação sua e depois sussurrou algo no ouvido de Foster. Ela também sorriu.
Bunting respondeu com precisão às perguntas que se seguiram, muitas delas sagazes e complexas. Ele se tornara um especialista em interpretar os rostos frios daqueles homens e mulheres. Pareciam estar pelo menos satisfeitos, se não exatamente felizes, o que o deixou aliviado. Bunting já havia participado de reuniões em que não se saíra tão bem. Então Quantrell pigarreou. Todas as cabeças se voltaram para o CEO da Mercury. Agora Bunting suspeitava que toda a reunião fora cuidadosamente coreografada.
– Sim, Mason? – perguntou Bunting, apertando seu ponteiro laser e desejando apontá-lo para os olhos de Quantrell.
– Você nos disse muitas coisas hoje, Pete.
– Costuma ser o objetivo de uma apresentação como esta – rebateu Bunting, tentando manter sua voz equilibrada e calma.
Quantrell não pareceu ouvi-lo e continuou:
– Mas o que você não disse foi como pode continuar a esperar que um único Analista acompanhe todos os dados gerados. Embora seja verdade que você teve algum sucesso...
– Eu diria que tivemos um enorme sucesso. Mas, por favor, continue, Mason.
– Algum sucesso – repetiu Quantrell. – A verdade é que, ao depender de um único Analista, enfraquecemos nossa segurança nacional consideravelmente, talvez irreversivelmente.
– Eu discordo.
– Mas eu, não.
Todas as cabeças se viraram, mas apenas ligeiramente, porque o comentário viera de Ellen Foster.
Bunting estudou o rosto da mulher que se tornara sua mais poderosa adversária. Contudo, como Ellen Foster também comandava a maior agência de segurança federal, ele não tinha opção além de ser respeitoso.
– Senhora secretária?
– Como você avalia seu desempenho hoje, Peter? – perguntou ela.
Ellen Foster usava vestido preto, meias pretas, sapatos pretos e um mínimo de joias. Bunting notou, não pela primeira vez, que ela era uma mulher muito atraente. Tinha pele bonita e corpo esguio, mas com curvas. Ela possuía um currículo impressionante tanto em planejamento quanto em execução, além de ótimas relações políticas. A chefe do Departamento de Segurança Interna, divorciada, era discreta por natureza, mas, de vez em quando, aparecia nas colunas sociais de braços dados com um cavalheiro importante.
Ela morava na área nobre de Washington e tinha outra casa em Nantucket, onde ia relaxar seguida de perto por seus seguranças. Seu ex-marido, um administrador de fundo de ações em Nova York, acumulara uma enorme fortuna usando dinheiro de outras pessoas e pagando menos imposto de renda que a própria secretária. Após o divórcio, Ellen ficara com metade do patrimônio líquido dele, para fazer o que quisesse. E o que ela queria era dirigir a segurança da nação e, aparentemente, tornar a vida de Peter Bunting um inferno.
– Parece que todos ficaram satisfeitos com meu relatório. – Ele olhou para Quantrell e depois de novo para Ellen Foster. – Bem, quase todos.
– Você só pode estar brincando, Peter – disse ela.
– Se tiverem alguns exemplos, certamente podemos discuti-los.
– Discutir o quê? A análise que você apresentou hoje foi uma bela porcaria e todos nesta sala sabem disso. Aparentemente, todos menos você.
Bunting examinou mais uma vez as pessoas ao redor da mesa. Não havia nenhum rosto solidário no grupo.
– Eu respondi a todas as perguntas iniciais e complementares. Não fui aplaudido de pé, mas também não deixei nada pendente.
Ellen Foster se inclinou para a frente.
– Em sua renovação de contrato, você pediu um aumento de 23%, baseado em vários fatores.
Bunting deu uma olhada para Quantrell, que balançava a cabeça e fazia sons de desaprovação.
– Senhora secretária, com o devido respeito, um dos meus principais concorrentes está sentado nesta sala. Essas informações foram fornecidas confidencialmente para...
– Estou certa de que podemos contar com o profissionalismo do Sr. Quantrell.
Bunting teve vontade de dizer: que profissionalismo? Ele é uma criatura repulsiva e você sabe disso. Mas disse:
– Todos os aumentos de custo são justificados. Meu pessoal passou meses examinando os números. E trabalhou ao lado do governo em todo o processo, portanto não há surpresas aí.
– Embora em Washington tenhamos a reputação de ser um cheque em branco assinado, alguns de nós gostam de receber aquilo pelo que pagamos.
Apesar de ser quase 40 centímetros mais alto do que a mulher, Bunting agora se sentia muito menor do que ela.
– Acredito que fornecemos um produto valioso.
– Francamente, eu lhe dei uma chance, Peter. Você a desperdiçou.
– Falei com o presidente – apressou-se a dizer Bunting, e imediatamente se arrependeu disso.
Ela franziu os lábios e rebateu:
– Sim, eu sei. Boa manobra. Mas você só ganhou um pouco de tempo. Nada mais. – Foster olhou em volta e concluiu: – Acho que isso encerra a reunião. Sr. Quantrell, se puder me acompanhar ao meu escritório, tenho alguns assuntos importantes que gostaria de discutir.
Ela saiu da sala, seguida por Mason Quantrell.
Quando a sala se esvaziou, Bunting ficou lá por alguns instantes, fitando o relatório inútil em suas mãos. Ao sair, passando por pequenos grupos que conversavam no corredor, ninguém olhou para ele. Aparentemente, Ellen Foster fizera bem seu trabalho.
Bunting esperou diante da sala da secretária até que ela saísse com Quantrell.
– Podemos conversar um minuto, senhora secretária? – solicitou Bunting.
Ela o olhou levemente surpresa e respondeu:
– Estou com a agenda cheia.
– Por favor, apenas um minuto.
Quantrell pareceu achar graça da situação e disse:.
– Falarei com você depois, Ellen. – Ele deu um tapinha no ombro de Bunting. – Anime-se, Peter. Sempre teremos um lugar para você na Mercury. Soube que estamos precisando de um nerd no Departamento de Informática.
Quantrell se afastou e Bunting se virou para Foster.
– O que foi? – disse ela. – Seja breve.
Ele se aproximou e pediu:
– Por favor, não vá adiante.
– Com o quê?
– Com a ação preventiva.
– Meu Deus, Bunting – sussurrou ela. – Está falando disso no corredor? Ficou maluco?
– Só preciso de um pouco mais de tempo.
Ela o olhou de alto a baixo e depois fechou a porta do escritório na cara dele.
A caminho do aeroporto, Bunting notou o discreto prédio no fim de um pequeno centro comercial à beira da estrada e a estrutura de tijolos condizente com um bairro do subúrbio. E depois havia um prédio que parecia todo feito de vidro, mas na verdade não tinha nenhuma janela. Todos esses lugares eram pontos de reunião dos serviços de inteligência, espalhados no mundo exterior como estilhaços, e a maioria das pessoas que passava por eles não tinha a menor ideia do que acontecia lá dentro.
O trabalho de inteligência era sujo e às vezes letal. Se seu adversário era morto rapidamente com uma bala, lentamente com uma longa sessão de interrogatório ou anonimamente por um drone atirando de milhares de metros de altura, ainda estava morto. Como Edgar Roy logo estaria. Morto.
Bunting se recostou no banco e deu um longo suspiro. Naquele momento seu contrato de 2,5 bilhões de dólares não parecia valer nem um pouco a pena.

35
– VAMOS SEGUIR CARLA DUKES? Vamos ver Edgar Roy de novo? Vamos tentar de algum modo infernizar a vida de Murdock? Vamos revirar o passado de Kelly Paul para ver o que descobrimos? Vamos investigar os assassinatos de Bergin e Hilary? Vamos atrás dos seis corpos no celeiro de Edgar Roy?
Michelle se calou e olhou ansiosa para Sean enquanto eles caminhavam à beira-mar perto da Martha’s Inn.
– Ou vamos fazer tudo isso? Nesse caso, como? – rebateu ele. – Somos só nós dois.
– Somos bons no quesito multitarefa.
– Ninguém é tão bom assim nisso.
– Mas temos de fazer alguma coisa.
– Os seis corpos podem nos levar a duas conclusões. Ou alguém sabia que Roy era o Analista do governo e tramou contra ele ou Roy matou aquelas pessoas e o governo está tentando esconder do público o que ele fez.
– Mas você não acha que ele as matou, acha?
– Não, embora não tenha razões sólidas.
– Então as pessoas que tramaram contra ele devem ser inimigas do país. Elas sabem o que ele faz e estão tentando impedi-lo. Mas por que não matá-lo? Ele morava sozinho naquela fazenda. Teria sido fácil.
– Bem, ele devia ter seguranças, então talvez não fosse assim tão fácil. Mas pode ser que quisessem fazer mais do que simplesmente privar os Estados Unidos de seu brilhante Analista.
– Como o quê?
– Não sei – admitiu Sean.
– Quem você acha que atirou nas janelas do nosso carro?
– Ou o nosso lado ou o outro.
– Era o que eu estava pensando.
– Há muita gente perigosa nesse caso.
– É verdade – falou Michelle e pegou o braço dele. – Vamos.
– Aonde?
– Você vai ver.
Noventa minutos depois, Sean saiu da Fort Maine Guns com uma nova Sig 9 milímetros.
– Já faz algum tempo que não disparo uma pistola.
– É por isso que vamos para lá – falou ela, e apontou para uma porta em um prédio ao lado da Fort Maine com um letreiro que dizia Estande de Tiro.
Uma hora depois, Sean analisava seus resultados.
– Até que foi bom – disse Michelle. – Noventa por cento de acerto. Seus tiros em áreas letais foram bastante precisos.
Sean olhou para os alvos dela. Os buracos eram enormes, porque várias balas tinham atingido os mesmos pontos.
– Qual foi seu escore?
– Um pouco melhor do que o seu. Mas só um pouco.
– Mentirosa.
Quando eles voltaram à pousada, Megan estava trabalhando na mesa redonda da sala de estar, com papéis e arquivos espalhados.
A jovem advogada ergueu os olhos quando eles entraram.
– O que você está fazendo? – perguntou Sean.
– Trabalhando em algumas petições.
– Relacionadas a quê?
– A informação da Sra. Paul foi muito intrigante. Quero estar ciente de tudo o que o governo sabe sobre o histórico de Edgar Roy. E o que ele realmente faz para o governo.
– Mas se ele realmente trabalha no setor de inteligência, não vão nos dizer nada. Vão nos enrolar com aquela conversa fiada de segurança nacional – argumentou Michelle.
– Certo. Mas se conseguirmos ter isso registrado, talvez seja o suficiente para levantar dúvidas dos jurados. Certamente é uma prova relevante. E, para conseguirmos essa prova, teremos de pressionar o governo. Muito.
– Mas o homem talvez nunca vá a julgamento – salientou Michelle.
– Só que, se ele for, a perícia forense poderá nos ajudar. A terra diferente encontrada nos corpos, por exemplo. É possível que os corpos tenham sido trazidos de outro lugar e desovados no celeiro de Roy – especulou Sean.
– Bem, essa poderia ser a prova de defesa de que precisamos – disse Megan, esperançosa.
– A menos que eles argumentem que Roy matou aquelas pessoas em outro lugar, escondeu os corpos por algum tempo lá e depois os desenterrou e levou para a Virgínia.
– E os enterrou no próprio celeiro para que alguém pudesse encontrá-los e prendê-lo? – perguntou Megan incredulamente. – Para um homem tão inteligente, isso seria uma grande burrice.
– Tem também o misterioso delator que convenientemente avisou à polícia sobre os corpos. Quem é essa pessoa e como sabia sobre os corpos? Talvez ela própria tenha matado aquelas pessoas – alegou Sean.
– Ainda teremos de provar isso – observou Michelle.
– Não, prova de culpa é trabalho do governo. Só teremos de levar os jurados a ficar em dúvida – respondeu Sean.
– Murdock ficará furioso quando vir os autos – comentou Michelle.
– Azar o dele – falou Sean e olhou para Megan. – Tudo bem por você?
Ela sorriu e disse:
– O FBI não me assusta mais.
Sean e Michelle foram para o quarto dele.
– Há muitos caminhos que poderíamos seguir, mas quero me concentrar em Carla Dukes.
– Ela provavelmente é uma agente do FBI.
– Acho que não.
– Por quê?
– Já lidamos com muitos agentes do FBI. Ela não é nenhuma garotinha, portanto, se fosse agente estaria no FBI há anos. Carla não age como veterana do FBI. E uma agente do FBI saberia que usaríamos a ameaça da mídia para ver Roy e teria uma resposta preparada. Ela não teve.
– Mas, ainda assim, para ela somos inimigos – respondeu Michelle.
– Inimigos ainda podem chegar a um denominador comum.
Michelle ergueu o olhar e perguntou:
– Quer dizer que podemos conseguir o apoio dela?
– Exatamente.
– Será muito difícil.
– Sim – concordou Sean.
– Tem algo em mente?
– Tenho.
– Quando faremos isso?
– Esta noite, é claro.

36
CARLA DUKES PAROU O CARRO na garagem por volta das nove horas. Destrancou a porta que dava para a cozinha, pôs a bolsa no chão e ficou parada diante do alarme, com o dedo na frente das teclas certas. Levou um instante para perceber que o sistema não estava fazendo o barulho necessário para avisar que ela precisava desarmá-lo antes que o tempo expirasse.
Isso porque o alarme não estava ligado.
Ela se virou.
Sean estava ali parado, com a coronha da arma visível na cintura.
– Que diabo você está fazendo aqui? – perguntou Carla Dukes.
– Preciso falar com você.
– Você invadiu minha casa.
– Não, não invadi. A porta estava aberta.
– Mentira. Tranco tudo antes de sair e depois armo o sistema.
– Você deve ter esquecido. Porque, como pode ver, o sistema de alarme está desligado.
– Então você desligou.
– É sua palavra contra a minha.
– Você está na minha casa. Vou telefonar para a polícia.
Carla olhou para a arma dele.
Ele seguiu o olhar de Carla.
– É uma Beretta 9 milímetros. Ironicamente, a arma-padrão do FBI.
Carla tirou o celular da bolsa.
– Ótimo, então por que não ligamos para eles e pedimos que venham aqui buscar a arma e você?
Antes que ela pudesse apertar ao menos uma tecla, Sean disse:
– O agente Murdock gostaria de saber que você está trabalhando para outra pessoa?
– Tudo bem. Trabalho para o FBI. Portanto posso prendê-lo agora mesmo. Mas, em vez disso, lhe darei cinco segundos para sair daqui.
Sean não se moveu. Continuou olhando para ela com um sorriso firme no rosto, até que disse:
– Só para você ficar sabendo, Carla, o próximo minuto determinará se você acabará em uma prisão federal ou não.
– Do que está falando?
– Você acabou de cometer um grande erro.
– Estou avisando.
– Você não trabalha para o FBI. Longe disso. Portanto, se alguém vai telefonar para os federais, acho que vou ser eu.
Sean pegou seu telefone e levou o dedo aos números. Ela só o observou.
– Mas talvez primeiro você queira conversar – completou ele.
– Talvez – disse ela, nervosa.
Sean estendeu o braço, tirou o celular da mão dela e o colocou sobre o balcão da cozinha.
– Acho que você quer que o FBI pense que trabalha para eles. Está fingindo. Convenceu Murdock. Mas não foi ele que a colocou em Cutter’s Rock.
– Olhe, eu já lhe disse que trabalho para o FBI.
– Então me mostre seu distintivo.
– Sou uma agente infiltrada. Não o carrego comigo.
– Cadê sua Beretta?
– No meu quarto.
Sean balançou a cabeça.
– O procedimento operacional padrão de um agente infiltrado do FBI é representar um papel. Seu escritório está vazio. Não tem nem uma foto de família falsa na escrivaninha – disse ele, depois apontou para a própria arma e completou: – E, para a sua informação, o FBI não usa Berettas. Usa Glocks ou Sigs.
Carla Dukes não disse nada.
– Portanto outra pessoa colocou você em Cutter’s Rock. O que significa que deve lealdade a alguém em outro lugar. O FBI não gosta de ser enganado.
– Fui destacada para trabalhar em Cutter’s Rock. Tenho uma longa carreira em instituições penais federais.
– Isso não importa. Você está aqui temporariamente. Nem se deu o trabalho de ocupar o escritório. E este lugar é alugado. Por seis meses.
– Andou me espionando? – questionou ela.
– Sou um investigador. Passei uma tarde produtiva pesquisando sobre você. E não fui o único.
Carla Dukes empalideceu ao ouvir isso.
– O que você quer dizer?
– Quero dizer que há muita gente interessada em você, Carla. Achou mesmo que poderia entrar nessa e jogar dos dois lados sem que ninguém notasse? É o tipo de ingenuidade que poderia matá-la.
– Essas pessoas não brincam em serviço.
– Acredite em mim, recebi essa mensagem em alto e bom tom.
– Então você sabe que eu não posso lhe dizer nada. Por favor, vá embora. Agora.
– Vou simplesmente intimá-la para depor no processo.
– Que processo?
– Edgar Roy? Seis corpos? Na me diga que esqueceu.
– O que isso tem a ver comigo?
– Edgar Roy é o único motivo da sua presença em Cutter’s Rock, Carla. E, como eu o represento, é meu dever ético tentar inocentá-lo. Para tanto, preciso revirar tudo. Isso se chama dúvida razoável.
– Você é um tolo.
– E você não é?
– Saia.
– A propósito, Murdock já sabe a verdade sobre você.
– Isso é impossí...
Ela caiu em si tarde demais.
– Independentemente do que você diz ao FBI, eles geralmente descobrem a resposta certa.
– Vá embora agora.
Sean se virou para a porta e disse:
– Mais uma coisa. O FBI grampeou seu telefone invadiu seu e e-mail.
– Por que está me alertando?
– Na esperança de que recobre o juízo e queira fazer um acordo comigo, em vez de com eles – falou ele e esperou que suas palavras fossem assimiladas antes de continuar: – Carla? Está me entendendo?
– Eu... eu pensarei a respeito.
– Ótimo. Só não demore muito.
Sean entrou no Land Cruiser. Ligou o motor e se afastou rapidamente. Quando saiu do campo de visão da casa de Carla, Michelle, que estava escondida na parte de trás da caminhonete, passou para o banco do carona.
– Deu tudo certo? – perguntou Sean.
– Foi fácil. Carla deveria esperar que porta da garagem baixasse totalmente antes de entrar em casa. Consegui me esgueirar atrás dela.
Sean olhou o relógio.
– Eu a assustei com a história do telefone e do e-mail. Agora ela só tem uma opção para se comunicar.
– Cara a cara. Mas se Carla Dukes acha que não pode se comunicar por telefone ou e-mail, como vai marcar um encontro?
– Provavelmente por texto cifrado. Aparentemente inócuo, só que marcando uma hora num lugar pré-determinado.
Ele olhou para o rastreador eletrônico na mão de Michelle.
– Qual é o alcance disso?
– Alguns quilômetros. O suficiente para nossos objetivos, mesmo nas grandes áreas florestais do Maine.
– Onde você pôs o aparelho de escuta?
– Debaixo do limpador de para-brisa traseiro. Ninguém nunca procura lá. Depois saí pela janela da garagem. Estou ficando ótima nisso.
– Então agora é só esperar – disse Sean.
– Acho que não por muito tempo – falou ela, olhando mais atentamente para o aparelho. – Parece que Carla já está em movimento. Nossa, você a assustou de verdade.
– Fiz meu papel de advogado. Obviamente os advogados são assustadores para caramba.

37
DEPOIS DE ATERRISSAR NO LAGUARDIA e ser levado de carro para a cidade, Peter Bunting não voltou para casa – para sua esposa adorável e socialmente ativa e seus três filhos privilegiados e bem-educados –, a mansão de arenito pardo na Quinta Avenida, em frente ao Central Park.
Também não voltou ao escritório. Ele tinha que ir a outro lugar porque estava concentrado em manter Edgar Roy vivo.
E provavelmente a mim também.
Bunting caminhou 15 quarteirões até um velho prédio de seis andares bem distante das famosas avenidas de Manhattan. Tomou o cuidado de evitar ser seguido, entrando em portarias de prédios e saindo por caminhos diferentes. No térreo do prédio de seis andares havia uma pizzaria. Nos andares superiores, escritórios de pequenas empresas. No último andar havia duas salas. Ele subiu a escada e bateu.
O homem o deixou entrar e fechou a porta. Bunting passou para a sala adjacente. O homem o seguiu e também fechou essa porta. Ele fez um sinal para Bunting se sentar em uma cadeira perto de uma pequena mesa.
Bunting se sentou, desabotoou o paletó e tentou se acomodar em uma cadeira que não fora feita para proporcionar conforto. O homem continuou em pé.
James Harkes vestia, como sempre, terno preto, camisa branca engomada e gravata preta. Passaria despercebido entre os milhões de outros homens na cidade.
– Obrigado por se encontrar comigo tão rapidamente – começou Bunting.
– Sabe que estou encarregado de cuidar do senhor, Sr. Bunting – disse Harkes.
– Até agora, fez um bom trabalho.
– Até agora.
– E os seis corpos na fazenda? Acho que armaram contra Roy.
– E quem ia querer fazer isso?
Bunting hesitou antes de responder.
– Você está brincando, não é?
– Não costumo brincar em serviço.
– Quero dizer que, obviamente, esse programa incomodaria algumas pessoas.
– Mas por que armar contra Roy? Poderiam matá-lo ou comprá-lo. É o que eu faria.
Bunting não pareceu confiante quando disse:
– Só que nós também não podemos usá-lo. Isso nos enfraquece.
– Mas um dia ele pode ser solto. Matá-lo seria melhor para nossos inimigos. Assim, ele nunca mais poderá voltar ao trabalho.
Bunting o estudou atentamente antes de dizer:
– A secretária Foster está falando em ação preventiva contra Edgar Roy. Já sabia disso?
Harkes ficou quieto.
– Harkes, você realizou uma ação preventiva contra o advogado, Ted Bergin?
Harkes permaneceu em silêncio.
– Por que matá-lo?
O olhar de Harkes continuou fixo em Bunting, mas ele permaneceu calado.
– Quem autorizou? Com certeza não fui eu.
– Eu não faço nada sem a aprovação necessária.
– De quem? Ellen Foster?
– Manterei contato.
– Harkes, quando a pessoa segue esse caminho, não há volta.
– Mais alguma coisa, senhor?
Harkes abriu a porta para Bunting passar.
– Por favor, não faça isso, Harkes. Edgar Roy é único. Ele não merece isso. Ele é inocente. Sei que é.
– Passar bem, Sr. Bunting.
Quando chegou à rua, Bunting começou a caminhar para seu escritório, mas no último momento mudou de direção. Entrou num bar, se sentou e pediu um gim-tônica. Leu e-mails e deu alguns telefonemas, todos rotineiros, apenas para tirar a confusão a respeito de Edgar Roy da mente. Ele ficara encurralado naquela situação. Pessoas estavam sendo mortas e ele não podia fazer nada.
Perdido nos próprios problemas, Bunting não notou a mulher alta que entrou depois dele. Ela se instalou em uma mesa nos fundos do bar, pediu um chá gelado com limão e o observou atentamente, sem deixar transparecer o que fazia.
Kelly Paul esperou pacientemente enquanto Peter Bunting acabava de afogar as preocupações em um bom gim.

38
– ELA ESTÁ PARANDO – disse Sean, olhando para a pequena tela. – Reduza um pouco na próxima curva.
Michelle obedeceu. Uns 500 metros à frente, eles viram as lanternas traseiras do carro de Carla Dukes.
– Lugar isolado – comentou Michelle.
– Onde mais poderia acontecer um encontro como esse?
– Precisamos chegar mais perto.
– A pé. Vamos.
Um muro de pedra baixo forneceu cobertura e também permitiu que se aproximassem o suficiente para ver que o encontro de Carla Dukes seria numa pequena clareira com uma velha mesa de piquenique e uma churrasqueira a carvão enferrujada.
O homem era mais baixo do que Carla, mais jovem e magro.
Ela andava de um lado para outro na frente dele, falando sem parar enquanto o homem ficava parado, observando e ocasionalmente fazendo sinais afirmativos com a cabeça. Eles podiam ver isso tudo de onde estavam, mas não conseguiam ouvir o que era dito.
Sean pegou a câmera que trouxera da caminhonete e tirou algumas fotos da dupla. Estudou a tela e então a exibiu a Michelle.
– Você o reconhece? – perguntou em voz baixa.
Michelle examinou o rosto e respondeu:
– Não. Jovem e nerd. Não corresponde à minha ideia de superespião.
– Hoje em dia há espiões de tudo quanto é jeito. Na verdade, aqueles que não parecem espiões são os mais valiosos.
– Então esse cara vale ouro.
Quando Carla Dukes foi embora, eles não voltaram a segui-la. Em vez disso, foram atrás do homem. Ele era a próxima peça no quebra-cabeça. E poderia levá-los aonde precisavam chegar. Como não tinham um dispositivo de rastreamento no carro dele, tiveram de ficar mais perto do que Michelle gostaria, mas o homem não deu nenhum sinal de que percebera estar sendo seguido.
Várias horas depois, ficou claro para onde ele ia.
– Bangor – disse Sean, e Michelle fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Você acha que ele mora lá? – perguntou ela.
Sean olhou à frente e respondeu:
– Não. O carro dele é parecido com todos os outros carros alugados no aeroporto.
– Então ele vai pegar um voo em Bangor.
– Parece que sim.
Um pouco depois, quando o carro que seguiam entrou no aeroporto nos arredores de Bangor, eles tiveram a confirmação.
No caminho, Sean e Michelle já haviam feito seus planos. Ela estacionou e Sean saiu da caminhonete.
– Volte à Martha’s Inn e fique de olho em Megan. Não quero que ela acabe como Bergin ou Hilary – disse Sean.
– Me ligue quando souber aonde ele vai.
– Vou ligar – garantiu ele e, tirando a pistola do coldre, entregou-a a Michelle. – Fique com isto.
– Você pode precisar.
– Não tenho estojo para levá-la no avião. Ser parado pela polícia e perder o homem de vista não vai nos ajudar.
Ele se virou e começou a se afastar.
– Sean – chamou ela.
Ele se virou.
– Sim?
– Não morra!
Sean sorriu e respondeu:
– Farei o possível para não morrer.
Somente quando ele desapareceu de vista Michelle ligou o carro e partiu. Ela claramente não estava feliz em se separar de Sean de novo.

39
DURANTE A VIAGEM DE VOLTA, Michelle recebera um telefonema de Sean do aeroporto. O homem sairia num voo das seis horas da manhã para o aeroporto Dulles, no norte da Virgínia, com uma conexão em Nova York. Sean havia comprado uma passagem para o mesmo voo.
– Vi as passagens dele de relance. Ele está na terceira fila nos dois trechos. Consegui um lugar no fundo nos dois voos. O primeiro é da Delta e o segundo, da United. Vou ligar para você quando chegarmos, um pouco antes do meio-dia.
– Você viu o nome na passagem?
– Infelizmente, não.
Ele havia desligado e Michelle prosseguira sua viagem. Por volta das quatro da manhã, ela entrou no estacionamento escuro da Martha’s Inn. Os hóspedes tinham a chave da porta externa. Ela parou na cozinha, fez um lanche e depois começou a subir a escada. Parou no segundo lance, ao ver uma luz no quarto de Megan. Bateu à porta.
– Megan?
A porta se abriu um pouco e Michelle olhou para a jovem.
– Algum problema? – perguntou.
– Ouvi você chegando. Será que podemos conversar?
– Tudo bem – falou Michelle, antes de se instalar em uma cadeira perto de uma pequena cômoda de pinho. – Como vão as coisas?
Megan estava com uma roupa cirúrgica, que obviamente usava como pijama.
– Onde vocês estavam? Desapareceram depois que conversamos de manhã.
– Tivemos de sair para uma investigação.
– Vocês tinham dito que iam me proteger, mas só fazem sair por aí e me deixar sem notícias.
– Olhe Megan, você tem razão, mas estamos fazendo o melhor que podemos com nossos recursos limitados. Na verdade, Sean está seguindo uma pista agora, mas me mandou voltar para cá, para ficar de olho em você.
– Uma pista onde?
– Ao que tudo indica, em Washington.
Megan se sentou na beira da cama.
– Desculpe. Sei que vocês estão fazendo o melhor que podem. É só que estou...
– Assustada?
– Eu não pretendia atuar em direito criminal quando fui trabalhar para o Sr. Bergin. Esse caso simplesmente caiu no meu colo.
– Sean é um ótimo advogado e trabalhou em muitos casos criminais.
– Só que ele não está aqui agora. Estou tentando redigir as petições, mas não é nada fácil.
– Bom, acho que não posso ajudá-la com isso.
– Murdock veio me ver de novo.
– Que diabo ele queria?
– Parecia particularmente interessado no que você e Sean estavam fazendo.
– Aposto que sim.
– Parece que cada passo que nós damos nos leva para mais longe da verdade.
– Mas então uma pequena peça se encaixa, e logo seguimos em frente – disse Michelle.
– Você não pode contar com isso.
– Tentamos criar nossa própria sorte.
– Imagino que sim.
– Vá dormir um pouco. E que tal tomarmos café da manhã juntas, às nove? Aí poderemos conversar mais. Mas agora preciso dormir um pouco.
– Está bem, mas vou trancar minha porta e encostar a cômoda nela.
– Honestamente, é uma boa ideia.
Michelle saiu do quarto de Megan e foi para o seu. Bocejou, alongou seus músculos doloridos e então ficou totalmente desperta. Havia alguém andando lá embaixo. A princípio ela pensou que poderia ser a Sra. Burke, mas a mulher teria acendido a luz na própria pousada. Michelle se agachou e se moveu silenciosamente até a escada, empunhando a pistola. Concentrou-se nos movimentos do andar de baixo.
Era preciso muita energia para pisar em silêncio. A pessoa tinha de manter a posição, se mover e manter o equilíbrio em pontos precisos.
Jovem. Com bom condicionamento físico. Treinado.
Definitivamente não era a Sra. Burke.
– Maxwell? É você?
– Dobkin?
– Se você estiver com a arma apontada, pode guardar. Não quero levar um tiro por acidente.
– Então não apareça no meio da noite.
– Tenho uma chave. E sou da polícia. Tenho permissão.
Michelle pôs a arma no coldre e desceu a escada.
– Aqui.
Dobkin deu um passo e ficou diante de uma janela por onde o luar entrava. Estava de uniforme e parecia ansioso.
– Onde está seu parceiro? – perguntou. – No andar de cima?
– Não, ele saiu da cidade. O que está acontecendo?
– Você soube?
– Do quê?
– Encontraram Carla Dukes morta cerca de uma hora atrás, na casa dela.

40
O PILOTO PASSOU COM FACILIDADE pelos redemoinhos de vento do East River e o avião aterrissou pontualmente em uma pista no LaGuardia. Sean foi um dos últimos passageiros a desembarcar, mas acelerou o passo ao sair da ponte de embarque e entrar no aeroporto. O homem que ele seguia estava à frente, caminhando devagar. A comissária de bordo anunciara o número do próximo portão para os passageiros com conexão para Nova York e as pessoas se dirigiram para lá. Quando chegaram, o voo ainda não estava no painel, porque faltavam três horas até a curta viagem para a Virgínia.
Sean comprou um café e um sanduíche de ovo. Lembrou-se de algo, procurou o celular no bolso e o ligou. Logo viu que Michelle telefonara várias vezes e retornou imediatamente.
Quando ouviu sua voz, Michelle disse:
– Graças a Deus. Tentei falar com você antes, mas não consegui. Tenho muitas coisas para lhe contar.
– Não diga! Alguém mais morreu? – perguntou ele em tom de brincadeira.
– Como você sabia?
A expressão no rosto de Sean mudou.
– O quê? Eu não estava falando sério. Quem foi?
– Carla Dukes. Dobkin apareceu na pousada um pouco depois que voltei e me contou.
– No meio da noite? Por que ele faria isso? – questionou Sean.
– Não sei direito. Talvez ele ache que ainda nos deve algo por termos protegido seus homens de Murdock. Seja como for, ela está morta e eles não têm nenhuma pista. O FBI está cuidando do assunto.
Sean tomou um gole de café e deu uma mordida no sanduíche. Seus voos não tinham serviço de bordo e ele não se lembrava da última vez em que havia comido, mas com certeza já fazia algum tempo. A gordura e as calorias lhe caíram muito bem.
– Você contou a Dobkin sobre o que vimos na noite passada?
– Você bebeu? É claro que não! Não faria isso sem falar com você primeiro.
Sean franziu a testa antes de dizer:
– Não quero ser acusado de obstrução de justiça, mas também não estou pronto para nos comprometer.
– Então não dizemos nada por enquanto?
– Não. Nada.
– Se Carla Dukes foi morta porque falou com o homem que você estava seguindo, as coisas realmente poderiam ficar perigosas muito rápido.
– Mas, se eu descobrir para quem ele trabalha, poderíamos dar um salto gigantesco na investigação.
– Você também poderia acabar sendo morto.
– Tomarei cuidado. Cuide-se e cuide de Megan.
– Como você vai segui-lo quando chegar a Washington?
Sean olhou de relance para uma loja de presentes em um corredor perto de seu portão.
– Acho que encontrei a resposta. Ligo quando tiver seguido esse homem até a base dele.
Sean desligou, certificou-se de que o homem continuava sentado trabalhando em seu laptop e correu à loja de presentes. Demorou alguns minutos, mas acabou encontrando o que precisava.
Um chapéu de bombeiro de brinquedo. E um pequeno frasco de cola. Ele foi ao banheiro, entrou em uma cabine vazia e arrancou o pedaço de plástico dourado da frente do chapéu. Abriu a cola, pegou suas credenciais de investigador particular e fixou o pedaço de plástico dentro de uma folha de sua identidade. Colocou-a de volta no bolso, jogou o chapéu e a cola na lata de lixo, lavou as mãos e o rosto e saiu.
O voo para o aeroporto Dulles era em um jato bimotor regional da Canadian Regional operado pela United Express. Sean andou à frente do homem que vinha seguindo. Sentou-se no fundo, no corredor, e abriu um jornal que alguém deixara no bolso do assento. Ficou alternadamente lendo o jornal e olhando para seu alvo enquanto o homem tirava o casaco, dobrava-o cuidadosamente, guardava-o no compartimento acima da cabeça e se sentava. Ele estava falando pelo telefone com alguém, mas Sean não conseguiu ouvir nenhuma parte da conversa. Quando a porta do jato se fechou e as comissárias de bordo deram seus avisos sobre aparelhos eletrônicos, o homem desligou o celular. Um minuto depois, o jato se moveu e o homem agarrou o braço do assento quando eles começaram a taxiar para a pista.
Passageiro nervoso, pensou Sean.
Eles decolaram para o espaço aéreo de Nova York. Viraram para o sul, acelerando na subida. Quando chegaram à altitude de cruzeiro, o computador de bordo empurrou os manetes para a frente e logo eles estavam voando a 885 quilômetros por hora.
Trinta minutos depois, começaram sua descida no Dulles através de uma densa cobertura de nuvens. Continuaram a voar enfrentando um bom vento contrário e mudando altitudes. Sean viu o homem apertar o braço da poltrona com a mão direita a cada pequena alteração relativamente suave no voo.
Esse homem nunca seria bem-sucedido no Serviço Secreto, pensou Sean.
Eles aterrissaram e taxiaram para o portão. Os passageiros desembarcaram e se dirigiram ao terminal principal. Chegaram pelo Terminal B, por isso não precisaram usar as esteiras rolantes que transportavam os passageiros entre os terminais mais distantes.
Sean seguiu o homem por passarelas, subindo e descendo escadas rolantes até chegarem ao terminal principal. Quando o homem se dirigiu à área de recolhimento de bagagem, Sean soube o que esperar depois. O homem não tinha nenhuma bagagem. Devia estar indo encontrar o motorista.
E então aqui começa a parte arriscada.
Ao se aproximarem da área de recolhimento de bagagem, os motoristas das empresas que alugavam carros estavam enfileirados segurando cartazes com nomes escritos. Sean ficou tenso quando o homem que seguia apontou para um deles. Leu o cartaz que o corpulento motorista segurava.
Sr. Avery?
Sean os seguiu pelo aeroporto e a saída. Olhou para as filas de táxis da Dulles Flyer. Bastante cheias. Viu Avery e o motorista se dirigirem para a área do outro lado do terminal, onde ficavam os carros das locadoras.
Sean fez sua jogada.
Ele se meteu na frente das pessoas que esperavam na fila dos táxis. Quando elas reclamaram e um funcionário do aeroporto cuja função era embarcar e desembarcar passageiros se aproximou, Sean puxou a carteira e exibiu seu distintivo de plástico dourado e seu cartão de identificação. Fez isso muito rápido, mas com confiança, não dando tempo para que ninguém focasse neles.
– FBI. Preciso pegar este táxi. Estou seguindo um suspeito.
As pessoas na fila recuaram quando viram o distintivo, e o funcionário do aeroporto até abriu a porta para ele.
– Vá pegá-lo – disse para Sean.
Sentindo-se um pouco culpado, Sean deu um sorriso.
– Eu o pegarei.
O táxi se afastou e Sean deu instruções ao motorista. Eles saíram do aeroporto e pararam atrás do carro que levava Avery. Sean anotou o número da placa, para o caso de precisar dele depois. Eles dirigiram pela Dulles Toll Road, também conhecida como Vale do Silício do Leste em virtude do grande número de empresas de tecnologia instaladas ao longo dela. Sean sabia que também havia muitas fornecedoras de armamento militar e empresas do campo da inteligência ali. Vários ex-agentes do Serviço Secreto com quem ele trabalhara agora ganhavam muito mais dinheiro no setor privado, empregados em algumas daquelas companhias
O carro na frente pegou uma saída e rumou para oeste. O motorista do táxi o seguiu. Quando o primeiro veículo parou num complexo de escritórios, Sean pediu ao taxista que parasse. Saltou e entregou uma nota de 20 dólares para o homem, mas ele se recusou a aceitá-la.
– Basta você manter a gente em segurança – disse, antes de se afastar.
Um pouco constrangido, Sean guardou o dinheiro e olhou para o prédio. Logo descobriu que não pertencia a uma única companhia, mas abrigava várias empresas. Isso era um problema, mas ele precisava continuar. Geralmente só se uma boa chance em um caso, e poderia ser aquela.
Ele observou o motorista do carro alugado se afastar. Viu Avery entrar no prédio. Sean alcançou a portaria mais ou menos na hora que o elevador chegou para levar Avery. Um rápido olhar lhe permitiu ver que Avery estava sozinho. Havia um segurança na portaria atrás de uma mesa de mármore, que olhou de relance para Sean.
– Os visitantes devem assinar aqui, senhor.
Sean se aproximou e pegou a carteira. Ele a deixou cair e a pegou devagar, empurrando alguns cartões de volta para seus respectivos compartimentos. Quando se levantou e virou, viu que o elevador que levava Avery parara no sexto andar.
Então o elevador voltou a descer. Avery devia ter saído.
Ele se virou para o segurança.
– Pode não acreditar, mas sou de fora da cidade e estou um pouco perdido.
– Isso acontece – disse o segurança, embora não parecesse satisfeito com a confissão de Sean.
– Estou procurando a Kryton Corporation. Devia ficar em algum lugar aqui, mas acho que minha secretária anotou errado a droga do endereço.
O segurança franziu a testa.
– Kryton? Nunca ouvi falar. Sei que não fica neste prédio.
– Fica no sexto andar. Isso eu sei.
O segurança balançou a cabeça e disse:
– A única empresa no sexto andar é a BIC Corp.
– BIC. Não soa nem um pouco como Kryton.
– Não, com certeza não – disse o segurança firmemente.
– A Kryton atua no campo da inteligência. É uma fornecedora do governo.
– Como quase todas as empresas nesta área. Todas atrás do último dólar do Tio Sam. Isto é, do meu último dólar como contribuinte.
Sean sorriu e completou:
– Entendo bem o que quer dizer. Bem, obrigado. – Ele se virou para ir embora, mas então disse: – É a empresa da BIC, a caneta?
– Não, Bunting International Corp.
– Bunting? Não era um jogador de beisebol que se tornou senador?
– Não, o senhor está pensando no Jim Bunning, de Kentucky. Agora está aposentado.
Sean percebeu que a paciência do segurança estava acabando e que suas suspeitas aumentavam.
– Bem, é melhor eu ir ou perderei minha reunião – falou Sean e pegou o telefone. – Mas vou dar uma bronca na minha secretária agora mesmo.
– Tenha um bom dia, senhor.
Sean saiu e telefonou para Michelle.
– Finalmente demos sorte – disse ele, triunfante.

41
– QUANDO? – PERGUNTOU PETER Bunting com a voz trêmula.
Ele estava sentado atrás de sua grande escrivaninha, com o telefone encostado no ouvido. Tinham acabado de lhe dizer que Carla Dukes fora assassinada na casa dela.
– A polícia tem alguma pista? Suspeitos?
A pessoa respondeu.
– Certo. Mas quando você souber de alguma coisa, preciso ser informado.
Carla Dukes fora escolhida a dedo por Bunting para assumir a diretoria de Cutter’s Rock. Cooperavam um com o outro fazia muito tempo. Não eram amigos íntimos, mas colegas profissionais. Ela era boa no que fazia. Bunting a respeitava. E, sem querer, a levara à morte.
Em vez de fazer a longa caminhada até o prédio da pizzaria, ele decidiu ligar.
James Harkes atendeu no segundo toque.
– Que diabo está acontecendo? – perguntou Bunting.
– Não sei bem o que quer dizer.
– Carla Dukes foi assassinada na noite passada.
Harkes não disse nada. Tudo o que Bunting pôde ouvir foi a respiração do homem. Regular, calma.
– Você ouviu o que eu disse?
– Minha audição é excelente, Sr. Bunting.
– Ela era minha espiã. Eu a coloquei em Cutter’s Rock por um motivo específico.
– Entendo.
– Entende? O que isso significa? Se entende, por que a matou?
– Precisa se acalmar, Sr. Bunting. O que diz não faz o menor sentido. Eu não tinha nenhum motivo para matar a Sra. Dukes.
Não havia como Bunting saber se Harkes falava a verdade, mas algo lhe disse que o homem estava mentindo.
– Agora não só uma pessoa boa está morta, como não tenho olhos em Cutter’s Rock. Edgar Roy está lá sem nenhuma cobertura.
– Eu não me preocuparia com isso, senhor. Temos a situação sob controle.
– Como?
– O senhor tem de confiar em mim em relação a isso.
– Está louco? Eu não confio em ninguém, Harkes. Muito menos em pessoas que não respondem às minhas perguntas.
– Se tiver mais alguma dúvida, é só me ligar.
Harkes desligou.
Bunting pôs o fone lentamente no lugar, se levantou, foi à janela e olhou a rua. Sua mente passava de um cenário devastador para outro.
Porque alguém desejaria a morte de Carla? Ela era a diretora de Cutter’s Rock, mas não tinha poder real. Se Harkes a matara, qual tinha sido o motivo?
Ele se sentou e telefonou para Avery, que havia acabado de chegar ao escritório de Washington. Bunting sabia que ele tinha se encontrado com Carla na noite anterior. Aquilo fora uma coisa de último minuto, motivada por uma mensagem desesperada recebida por Avery, que voltara ao Maine apenas um dia antes. Carla Dukes queria se encontrar com Bunting, mas, como Avery já estava no Maine e Carla queria o encontro imediatamente, Avery o substituíra.
– Avery, Carla Dukes está morta, foi assassinada pouco depois de se encontrar com você.
– Eu sei, acabei de ouvir no noticiário – disse Avery, com um tremor na voz.
– Para que ela queria o encontro? Quando ela enviou a mensagem dizendo que queria me ver, não disse por quê. Foi quando lhe respondi dizendo para entrar em contato diretamente com você.
– Sean King foi à casa dela.
– King? Para quê?
– Ele disse que sabia que ela estava trabalhando para alguém além do FBI. E que o FBI não ficaria feliz quando descobrisse. Ele realmente a assustou.
– Como diabo ele sabia disso?
– Não tenho a menor ideia.
Bunting pensou rapidamente.
– Deve ter sido uma suposição dele.
– Mas ela estava assustada. E ele lhe deu uma espécie de ultimato.
– O que ele queria?
– Nós, eu acho.
– Como está nossa cobertura?
– Ninguém em Cutter’s Rock falará com ele.
– Mas eles suspeitam de que haja mais alguém envolvido.
Subitamente Bunting teve um pensamento terrível.
– King a encontrou logo antes de ela ir ver você?
– Sim. Ela estava perturbada e me enviou uma mensagem em código em que afirmava que King lhe dissera que o FBI tinha grampeado o telefone e os e-mails dela.
– E onde você se encontrou com ela?
– No lugar combinado. É uma pequena área de piquenique bem fora do caminho normal das pessoas, mesmo para os padrões do Maine.
– Então King apavorou Carla e isso a fez ir correndo para você. Michelle Maxwell estava com King quando ele se encontrou com Carla?
– Carla disse que ele estava sozinho.
– Droga!
– O que foi?
– Eles nos enganaram.
– O quê? Como?
– Enquanto Sean King se ocupava de assustar Carla, Michelle Maxwell estava fazendo outra coisa, talvez pondo um aparelho de escuta no carro de Carla. Então King lhe falou a besteira sobre o FBI ter grampeado o telefone e o e-mail dela. O resultado foi que o único modo de ela se comunicar seguramente conosco era cara a cara.
– Eles seguiram Carla Dukes até o encontro?
– É claro que sim. E então viram você lá concluiu – Carla Bunting na hora que sua cabeça começou a doer. – E então eles seguiram você. Provavelmente estão do lado de fora do seu escritório enquanto falamos.
– Ah, droga!
Bunting esfregou as têmporas e continuou:
– Você notou alguém parecido com Sean King em seus voos?
– Não, mas não estava prestando atenção.
Bunting tamborilou nervosamente em sua escrivaninha.
– Você pegou um táxi no aeroporto?
– Não, um motorista foi me buscar lá.
Bunting cerrou os dentes.
– Então agora eles também sabem o seu nome. Muito bem, eles o seguiram até o escritório e sem dúvida descobriram que você trabalha para a BIC. Da BIC para Peter Bunting basta uma busca no Google.
– Mas, senhor...
Bunting desligou na cara dele e ficou andando de um lado para outro em seu grande escritório, com o nervosismo alimentando seu corpo como pedras de crack liquefeitas.
Ele se acalmou e voltou a se sentar. Tinha de pensar. Mesmo se King tivesse juntado os pontos até a BIC, não havia prova de delito porque não havia delito. Mas essa não era a questão. Revelar ao público o que Edgar Roy realmente era poderia ser catastrófico.
E agora Bunting não tinha ninguém em que pudesse confiar.
Exceto em mim mesmo, ao que parece, pensou Bunting.
Um pensamento nada reconfortante naquele momento.

42
KELLY PAUL SE SENTOU à escrivaninha de seu quarto de hotel em Nova York e olhou ao redor do espaço pequeno e confortável. Quantos quartos como aquele habitara nos últimos vinte anos? Ela não queria parecer trivial e dizer além da conta. Mas essa era a verdade.
Não usava a caneta e o papel fornecidos pelo hotel porque poderia inadvertidamente deixar para trás uma pista que um dia levaria até ela.
Soubera da morte de Carla Dukes às 6h30. Não perdera muito tempo perguntando-se quem a matara. A resposta para essa pergunta era importante, mas não tanto quanto os assuntos nos quais estava concentrada.
A essa altura Peter Bunting também devia estar ciente da morte da mulher. A fonte dele dentro de Cutter’s Rock tinha lhe permitido certas liberdades quando queira se encontrar com o irmão dela. Contudo, Kelly também tinha suas próprias fontes, e elas lhe disseram que a condição do prisioneiro não havia mudado.
Continue assim, Eddie, continue assim. Por enquanto. Não os deixe chegar a você.
Ela baixou os olhos para o celular, hesitou e depois o pegou. Digitou o número. Ele tocou duas vezes.
– Alô?
– Sr. King, é Kelly Paul.
– Eu esperava ter notícias suas. Soube sobre Carla Dukes?
– Sim.
– Tem teorias?
– Várias. Isso é irrelevante agora. Onde você está?
– Onde você está?
– Na Costa Leste.
– Eu também. Fiz uma busca interessante na internet esta tarde.
– Sobre o quê? – perguntou ela.
– BIC, que corresponde a Bunting International Corp. O presidente é Peter Bunting. Já ouviu falar nele?
– Eu devia ter ouvido?
– É por isso que estou lhe perguntando.
– O que você descobriu? – quis saber Kelly Paul.
– A BIC é sediada em Nova York, mas tem uma filial em Washington porque é uma fornecedora do governo. Vende serviços de inteligência. Falei com alguns dos meus amigos em posições privilegiadas. Eles disseram que o contrato deles com o governo é de milhões de dólares, mas não sabiam exatamente o que a companhia faz. Aparentemente ninguém disposto a falar comigo sabia. É altamente secreto.
– Deve haver alguém que saiba o que Bunting faz, caso contrário o Tio Sam não o contrataria.
– Então você sabe?
– Acho que está na hora de nos encontrarmos.
– Onde?
– Estou em Nova York.
– Posso ir para aí.
– Ir? Então está em Washington? – deduziu Kelly.
– Quando?
– O mais rápido possível.
– Tem alguma coisa para me contar? – perguntou Sean.
– Eu não o faria perder seu tempo se não tivesse. Como você chegou à BIC?
– Com o bom e velho trabalho de detetive – respondeu Sean.
– Acho que você enrolou Carla Dukes de algum modo, ela ficou assustada e o levou até eles. E pagou com a vida por ser fraca e estúpida.
– Você realmente acha que ela foi morta por isso? – perguntou Sean.
– Não, na verdade não. Mas, neste momento, não quero especular. Consegue chegar a Nova York esta noite?
– Posso pegar o próximo trem expresso. Estarei aí às seis.
– Tem um restaurante francês na Rua 85. – Ela lhe deu o endereço. – Às sete?
– Nos vemos às sete.
Ela desligou e pôs o telefone de novo sobre a escrivaninha. Levantou-se, foi até a janela, puxou as cortinas pesadas e olhou para o Central Park do outro lado da rua. As folhas balançavam, a multidão estava diminuindo e os sobretudos se tornavam mais grossos. Havia começado a chover. Era apenas uma garoa, mas o céu escuro prometia mau tempo depois. Era nesse tipo de clima que a cidade ficava mais suja. A escuridão, a lama e a sujeira se revelavam em toda a sua abundância.
Mas esse também é o meu mundo. Escuro e cheio de sujeira, pensou Kelly.
Kelly vestiu a capa de chuva, ergueu o capuz e saiu para dar uma volta. Atravessou a Rua 59 e passou pela fila de charretes. Acariciou o focinho de um cavalo e olhou para o condutor. Eles eram todos irlandeses. Isso era uma antiga lei ou tradição da qual Kelly não conseguia exatamente se lembrar.
– Olá, Shaunnie.
O nome dele era Tom O’Shaunnessy, mas ela sempre o chamara de Shaunnie.
O homem continuou a tirar lixo de sua charrete e não olhou para ela.
– Não vejo você faz um tempo.
– Não tenho vindo muito.
– Ouvi dizer que se aposentou.
– E me desaposentei.
Ele a olhou com interesse ao perguntar:
– Você pode fazer isso?
– Kenny está no mesmo lugar?
Shaunnie completou o cesto de aveia.
– Onde mais ele poderia estar?
– Isso é tudo que eu precisava saber.
– Então você voltou a trabalhar? – perguntou ele.
– Por enquanto.
– Devia ter ficado aposentada, Kelly.
– Por quê?
– Para viver mais.
– Todos temos de morrer algum dia, Shaunnie. Os sortudos escolhem quando.
– Acho que não estou nesse grupo.
– Você é irlandês, todos os irlandeses são sortudos.
– E quanto a você?
– Não sou tão irlandesa – disse Kelly.
A chuva aumentou enquanto ela andava pelo parque. Manteve-se nos caminhos para pedestres até se aproximar do destino. Calçava botas impermeáveis que acrescentavam 5 centímetros à sua considerável altura. O velho estava entrincheirado em um banco atrás de um grande afloramento rochoso. Nos dias ensolarados, as pessoas ficavam em cima da pedra se bronzeando. Naquele dia chuvoso, ela estava deserta.
Kenny estava sentado de costas para ela. Ao som de sua aproximação, ele se virou. Vestia-se apenas um pouco melhor do que um morador de rua. Isso era intencional – chamava menos atenção. Contudo, tinha as mãos e o rosto limpos e seus olhos eram brilhantes. O velho puxou seu chapéu amassado um pouco para baixo e avaliou Kelly.
– Soube que você estava na cidade.
Kelly Paul se sentou perto do homem. Ele era baixo e parecia ainda menor perto dela.
– As notícias chegam desagradavelmente rápido hoje em dia.
– Não tão rápido assim. Shaunnie acabou de ligar para meu celular. Do que você precisa?
– Dois.
– O de sempre?
– Sempre funcionou para mim.
– Como está seu dedo do gatilho?
– Na verdade, anda um pouco duro. Talvez seja um princípio de artrite.
– Levarei isso em conta. Quando?
– Em duas horas. Aqui.
Ele se levantou e disse:
– Eu a verei daqui a duas horas.
Ela lhe ofereceu dinheiro.
– Depois – disse ele. – Confio em você.
– Não confie em ninguém, Kenny. Não neste negócio.
Ela voltou devagar para seu hotel. A chuva caía mais forte, mas Kelly Paul estava perdida em pensamentos e não pareceu notar. Ela havia andado na chuva em muitas partes diferentes do mundo. Isso parecia ajudá-la a pensar, clareava sua mente mesmo quando as nuvens acima adensavam. Luz vindo da escuridão. De algum modo.
Bunting. King. Seu irmão. O próximo movimento. Aquilo tudo estava crescendo. E quando a pressão aumentasse, irromperia como um foguete. E esse exato momento decidiria os vencedores e os perdedores. Sempre fora assim.
Ela esperava se sair bem, mais uma vez.

43
O TREM SAIU DA UNION Station em Washington e acelerou para Nova York. Sean se recostou em seu confortável assento na classe executiva. No ritmo em que os custos de viagem desse caso se acumulavam, ele teria de declarar falência no final do mês, quando vencesse a fatura de seu cartão de crédito.
Duas horas e quarenta minutos depois, o trem parou na Penn Station, em Nova York. Antes de deixar a Virgínia, Sean passara em casa e fizera uma mala. Ele a deslizou para fora da estação, pegou um táxi e partiu. O tempo estava úmido e frio, e Sean ficou feliz por estar com seu sobretudo e guarda-chuva. Com o trânsito noturno, o táxi parou no meio-fio da Rua 86 um minuto depois das sete. Ele pagou o motorista e foi com sua mala até o restaurante, que se revelou pequeno, singular e cheio de garçonetes e clientes falando francês.
No canto dos fundos, atrás de uma parede estrutural que adentrava o salão, Sean encontrou Kelly Paul de costas para a parede espelhada. Ele tirou o casaco, puxou a mala para perto da mesa e se sentou. Por alguns segundos, nenhum dos dois disse nada. Por fim, Kelly falou.
– Clima ruim.
– É esta época do ano.
– Eu não estava falando da chuva.
Ele se recostou na cadeira e esticou um pouco as longas pernas. Não havia muito espaço debaixo da mesa para duas pessoas altas.
– Sim, e o tempo está ruim também.
– Como está Michelle?
– Aguentando firme, como sempre.
– E Megan?
– Frustrada. Não posso culpá-la.
Kelly olhou de relance para o cardápio e disse:
– As vieiras são ótimas.
Sean pôs o dele de lado e falou:
– Para mim está bom.
– Você tem uma arma?
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Não. Voltei de avião para Washington. Não queria ter problemas no aeroporto.
– Você terá problemas muito piores se precisar de uma arma e não a tiver – garantiu ela e deu um tapinha em sua bolsa. – Tenho uma aqui para você. Glock. Prefiro o modelo 21.
– A de grosso calibre 45? Tão americana quanto torta de maçã, ou o mais perto que um fabricante de armas austríaco poderia chegar disso.
– Sempre gostei de pentes de 13 tiros. Para mim, 13 é um número de sorte.
– Você precisava de 13 tiros? – perguntou Sean.
– Somente se o outro lado tivesse 12. Você quer?
Eles trocaram um olhar demorado.
– Sim.
– Depois do jantar, então.
– BIC?
Ela pôs o cardápio na mesa e começou:
– Peter Bunting é um concorrente extremamente respeitado no campo da inteligência. Fundou a própria companhia aos 26 anos. Agora está com 47 e ganhou uma fortuna vendendo para o Tio Sam. Possui casas aqui em Nova York e também em Nova Jersey. É casado e tem três filhos; o mais velho está com 16 anos. Sua esposa se sai bem no circuito social, é bastante envolvida com caridade e sócia de um restaurante da moda. Segundo a opinião geral, as crianças não são exageradamente mimadas nem privilegiadas. Pelo que ouvi dizer, na verdade formam uma bela família.
– E Bunting é o dono da plataforma do Programa E que você mencionou?
– Foi uma invenção dele. Brilhante e à frente do seu tempo.
– O que significa que ele é dono do seu irmão.
– Peter Bunting também tem muito a perder. Isso o torna vulnerável.
– Você acha que ele tramou contra seu irmão?
– Não. Seu maior trunfo está sentado em uma cela. Sei que sua última reunião em Washington foi um desastre. Ele tem todos os motivos para querer seu Analista de volta o mais rápido possível. E tem mais.
– O quê?
– Alguns sérios concorrentes que não gostam de Bunting ou do Programa E.
– Quem são eles?
– Você provavelmente já ouviu falar em Ellen Foster.
Sean empalideceu.
– A secretária de Segurança Interna? Por que ela não gostaria do Programa E? Você disse que era uma ideia brilhante.
– Os serviços de inteligência não gostam de compartilhar. O Programa E os força a fazer isso. E Bunting dirige o espetáculo. Um espetáculo que costumava ser deles. Tem gente irritada. Dizem que Ellen Foster está liderando o grupo que vai tirar Bunting da jogada. Ela tem o total apoio da CIA, da Agência de Inteligência de Defesa, da Agência de Segurança Nacional e assim por diante.
– E depois fazer o quê?
– Voltar o relógio para o tempo em que todos perseguiam os próprios interesses.
– Então você acha que eles podem ter tramado contra seu irmão? Para desacreditar e pôr fim ao Programa E? Isso é muito improvável, não é? Quero dizer, eles põem o país em risco a cada segundo que seu irmão não faz o trabalho dele.
– A segurança nacional fala mais alto do que muitas coisas. Pode atropelar os direitos civis. Privar as pessoas de liberdades individuais. Mas não pode vencer e nem nunca vencerá o jogo político.
– Você realmente acredita nisso?
Ela tomou um gole de vinho e respondeu:
– Na verdade eu vivi isso, Sean.
Ele a olhou por um tempo antes de falar:
– Certo, então me diga, somos páreo para esses caras?
– Davi venceu Golias no vale de Elá.
– Mas nossa atiradeira é forte o suficiente?
– Acho que vamos descobrir.
Ele suspirou e deu uma pancadinha na mesa.
– Reconfortante. E quanto a Bunting?
– A esta altura já descobriu como você chegou até ele.
– Você acha?
– Bunting é um homem muito inteligente. Se não fosse, não teria conquistado o que tem. Mas, neste momento, também é um homem muito nervoso. Eu o tenho seguido pela cidade. Ele se encontrou com várias pessoas, uma das quais achei muito intrigante.
– Por quê?
– Quando você vê um rei da espionagem deixar seu hábitat na elegante Manhattan para entrar em um velho prédio de seis andares, sem elevador, com uma pizzaria no térreo, sabe que tem algo errado.
– Com quem Bunting se encontrou lá?
– O nome dele é James Harkes. Um homem que até eu acharia intimidador. E embora eu saiba que você não me conhece bem, isso diz muito.
– Você conhece esse Harkes?
– Só pela reputação. Mas ela é impressionante.
– Ele é o plano B de Bunting?
– É mais como seu anjo da guarda. Mas trabalha para mais de um patrão. Esse é o motivo de eu ter lhe dado a arma. Deve ter lhe ocorrido que, como Bunting sabe que você está em seu rastro, Harkes pode ser posto em ação contra você e Michelle.
– Entendi.
– E isso não leva em conta outros recursos que Ellen Foster e seus aliados poderiam usar.
– Recursos bem devastadores, imagino.
Kelly se debruçou e tirou a garrafa de azeite de oliva do caminho para poder segurar a mão de Sean.
– Por que está fazendo isso? – perguntou ele, intrigado.
– Eu não sou uma pessoa exageradamente afetuosa. Queria ver se sua pele estava fria e úmida e se sua mão estava tremendo.
– E?
– E estou impressionada, porque nenhuma dessas reações fisiológicas está ocorrendo. Sei que você foi guarda-costas do presidente, teve uma carreira promissora antes de cometer um erro que acabou com tudo. Também sei sobre Maxwell. Ela é uma máquina capaz de assustar a maioria dos atiradores de elite das forças armadas.
– Nunca conheci um homem que ela não conseguisse derrubar.
Kelly Paul soltou a mão dele e voltou a se recostar em sua cadeira.
– Bem, isso também poderia mudar. Logo.
– Estamos no mesmo time agora? Porque tudo o que acabou de dizer sobre nós também poderia se aplicar a você.
– Acho que eles ainda não sabem que estou no rastro deles, mas não posso garantir nada.
– Então somos uma equipe?
– Pensarei a respeito.
– Não temos muito tempo.
– Eu nunca disse que tínhamos.
– Por que você queria que eu viesse a Nova York? Tudo isso poderia ser dito pelo telefone.
– Mas não poderíamos fazer isso.
Ela deslizou um pacote para Sean.
– A Glock, conforme o prometido – explicou Kelly.
– Isso é tudo?
– Não. Mais uma coisa. Gostaria de ver onde Peter Bunting mora?
Sean a encarou, surpreso.
– Por quê?
– Por que não?

44
EDGAR ROY SABIA QUE HAVIA algo errado, porque a rotina em Cutter’s Rock mudara. Todas as manhãs, desde que ela chegara lá, Carla Dukes fazia suas rondas. Cutter’s Rock tinha capacidade para 214 prisioneiros, mas atualmente só abrigava cinquenta. Roy sabia disso por observação e dedução. Sabia por prestar atenção aos sons de bandejas de comida sendo entregues nas celas. Sabia por ouvir e distinguir 49 vozes diferentes que provinham dessas celas. Sabia por escutar os chamados dos guardas conferindo se todos estavam recolhidos para dormir.
E Carla Dukes fazia questão de conferir cada uma dessas celas exatamente quatro minutos depois das oito todas as manhãs e quatro minutos depois das quatro todas as tardes. Agora eram seis horas e Roy não vira a mulher durante o dia inteiro.
Contudo, ele ouvira muito. Sussurros entre guardas. Carla Dukes morrera. Atiraram nela em sua casa. Ninguém sabia quem havia feito isso.
Roy estava deitado na cama olhando para o teto. O assassinato da diretora do presídio havia interrompido a cronologia de todas as lembranças que já tivera. Ele realmente não desejava o mal para ninguém e, de certo modo, lamentava a morte de Carla. Ela fora levada a Cutter’s Rock para ficar de olho nele. Não queria estar ali. E por isso o culpava por seu dilema.
Ele sentiu a presença perto da porta de sua cela. Não olhou. Farejou o ar. Edgar Roy não tinha apenas um nível de capacidade intelectual inigualável. Tinha sentidos aguçados a um grau surpreendente. Tudo isso resultava das conexões especiais em seu cérebro.
Não era um guarda. Ele havia processado e organizado os cheiros e sons de todos os guardas. Havia um pessoal de apoio que tinha permissão para entrar na área das celas, mas também não era nenhum deles. Roy já havia sentido o cheiro dessa pessoa. Também conhecia o ritmo de sua respiração e seu modo singular de andar.
Era o agente Murdock, do FBI.
– Olá, Edgar – disse ele.
Roy permaneceu na cama, mesmo quando ouviu outro homem se aproximar. Desta vez um guarda. Era o baixo: com quadril largo, peito musculoso e pescoço grosso. O nome no crachá era Tarkington. Ele fumava e bebia. Roy não precisava de sentidos aguçados para saber disso. O guarda tinha um forte hálito de menta e enxaguatório bucal.
A porta eletrônica se abriu. Passos.
– Olhe para mim, Edgar. Você sabe que pode fazer isso se quiser – disse Murdock.
Roy continuou onde estava. Fechou os olhos e deixou a escuridão em sua cabeça o levar para um lugar que esse homem não podia alcançar. Outro som. O pisar de solas de sapato no cimento. Murdock se sentou na cadeira aparafusada no chão.
– Está bem, Edgar. Você não tem que olhar para mim. Eu falo e você escuta.
Murdock fez uma pausa e então, ao ouvir o próximo som, Roy percebeu por quê. O guarda se afastou. Murdock queria privacidade. Depois houve uma quase imperceptível parada de um motor. Roy sabia o que era. A câmera de vídeo embutida na parede acabara de ser desligada. Ele supôs que o microfone também.
– Finalmente podemos ter uma conversa particular. Acho que está na hora – falou Murdock.
Roy não se moveu. Manteve os olhos fechados, forçando-se a mergulhar em lembranças. Seus pais estavam brigando. Brigavam com frequência. Para professores universitários que viviam em mundos em que se elaboravam teóricas refinadas, eles eram surpreendentemente combativos. E o pai bebia. Quando estava bêbado, não era refinado.
Sua próxima imagem foi da irmã entrando na sala. Já alta e forte, ela se colocara entre os dois e os apartara, forçando-os a uma trégua pelo menos temporária. Então a irmã o pegou no colo e o levou para o quarto. Leu livros para ele. Acalmando-o, porque as brigas dos pais sempre o apavoraram. A irmã entendia sua aflição. Ela sabia o que ele suportava no mundo exterior e, de um modo mais sutil, nos confins complexos de sua mente.
– Edgar. Nós temos de acabar com isso – disse Murdock em um tom baixo e confortador. – O tempo está se esgotando. Eu sei disso. Você sabe disso.
Roy passou para a idade de 5 anos em sua cronologia. Seu aniversário. Nenhum convidado – seus pais não eram dessas coisas. Sua irmã, agora com 16 anos, já alcançara toda a sua estatura. Ela era mais alta do que o padrasto.
Roy já estava com 1,52 metro e pesava mais de 45 quilos. Em algumas manhãs ele ficava deitado na cama e realmente podia sentir seus ossos, tendões e ligamentos esticando-se.
Houve um pequeno bolo, cinco velas e outra briga. Essa havia se tornado violenta, envolvendo uma faca de cozinha. Sua mãe fora cortada. E então Roy observara espantado a irmã afastar o padrasto dela, torcer-lhe o braço atrás das costas e o forçar a sair da casa. Ela quisera ligar para a polícia, mas sua mãe tinha lhe implorado para não fazer isso.
Roy ficou um pouco tenso quando ouviu um ranger de pés contra o cimento. Murdock estava em movimento. Uma batida sutil nas costas.
– Edgar, preciso de sua total atenção.
Roy não se moveu.
– Sei que você sabe que Carla Dukes está morta.
Outra batida nas costas, mais forte.
– Nós retiramos o projétil. É a mesma arma que matou Ted Bergin. O mesmo assassino.
Seis anos. Sua querida irmã se preparava para partir para a universidade. Ela era ótima atleta de beisebol, voleibol e remo. No ensino médio, tinha sido a melhor aluna da turma e fizera o discurso de formatura, uma façanha que repetiria na universidade. Roy ficava impressionado com sua habilidade, seu desejo absoluto de vencer, mesmo se as chances estivessem contra ela.
Ele lhe acenara na porta da velha casa de fazenda enquanto ela punha as coisas no carro que comprara com o próprio dinheiro, fazendo bicos. Ela voltou e o abraçou. Ele sentiu seu perfume, um cheiro do qual ainda era capaz de se lembrar perfeitamente ali, deitado em sua cela na prisão.
– Kel – dissera ele então. – Sentirei sua falta.
– Eu voltarei, Eddie – respondeu ela.
Então ela lhe entregou algo. Ele o segurou. Era um pedaço de metal preso a uma corrente.
– Esta é a medalha de São Miguel Arcanjo – explicou ela.
Roy repetiu a frase, algo que inconscientemente fazia sempre que alguém lhe dava uma informação nova. Isso sempre a fizera sorrir. Mas dessa vez ela não sorriu. Sua expressão continuou séria.
– O protetor das crianças. Ele lidera o bem contra o mal, Eddie. Em hebraico, Miguel significa “Quem é como Deus?”. E a resposta é que ninguém é como Deus. São Miguel representa humildade diante de Deus, certo?
Ele repetiu isso palavra por palavra, incluindo as inflexões dela.
– Certo.
– Ele é um arcanjo. O inimigo supremo de Satã e de todos os anjos caídos.
Ela contou essa última parte encarando o padrasto, que olhara de relance para o outro lado, com o rosto ficando vermelho.
Então ela se foi.
Meia hora depois houve outra briga e Roy ficou no meio dela. Seu pai estava bêbado. Então lhe deu um golpe mais forte, que o derrubou da cadeira. Sua mãe tentara intervir, mas dessa vez ninguém deteria o pai. Ela por fim caiu inconsciente no chão, de tanto que apanhou.
Seu pai se virou para ele e o fez abaixar as calças. Eddie, de 6 anos, estava chorando. Não queria fazer isso, mas obedeceu porque estava apavorado. Suas calças caíram no chão da cozinha. A voz de seu pai era baixa, branda e monótona em seu bêbado torpor. Roy sentiu as mãos do homem em seus órgãos genitais. Sentiu o cheiro de álcool no rosto. O homem – Roy não podia mais se referir a ele como pai – estava se apertando contra ele.
Então ele foi afastado violentamente do filho. Houve um barulho. Ele foi atirado contra a parede enquanto os dois lutavam. Sua irmã voltara. Estava lutando com o padrasto com a ferocidade de uma leoa. Eles rolaram pela sala. Ela era mais alta, mais jovem e tinha o mesmo peso de seu oponente, mas ele ainda era um homem. Brigava com força. Ela lhe deu um soco no rosto. Ele conseguiu se levantar e lhe deu um chute no estômago. Caiu novamente, mas o álcool e a raiva de ter sido descoberto fazendo coisas vis com o filho pareciam lhe dar forças. Ele pegou uma faca no balcão da cozinha e partiu para cima dela. Ela deu um giro.
Ela deu um giro.
Isso era tudo de que ele conseguia se lembrar sobre aqueles poucos segundos de sua vida. Seis anos.
Ela deu um giro.
E então... um branco. O único lapso de memória que ele já tivera na vida.
Quando o branco terminou, o pai estava deitado no chão com sangue escorrendo do peito. A faca estava cravada nele; sua irmã estava de pé sobre o homem, ofegante. Até aquele momento, Roy nunca vira ninguém morrer. O pai deu uma pequena gorgolejada, seu corpo se enrijeceu e então relaxou e os olhos ficaram totalmente imóveis. Pareciam estar olhando apenas para ele.
Kelly correu para abraçar o irmão e se certificar de que ele estava bem. Ele esfregava a medalha, a medalha de São Miguel em seu pescoço.
São Miguel Arcanjo, o protetor das crianças. O pesadelo de Satã. O espírito da redenção.
E então a lembrança havia se desvanecido. E depois desaparecera.
– Edgar? – insistiu Murdock.
Eles haviam tirado sua medalha de São Miguel quando ele chegara ali. Era a primeira vez que não a usava desde aquele dia, tantos anos atrás. Roy sentia um enorme vazio em seu coração sem ela. Não sabia se algum dia poderia pegá-las de volta.
– Edgar? Eu sei de tudo. Descobri sobre o Programa E. Precisamos conversar. Isso muda tudo. Temos que ir atrás de algumas pessoas. Tem alguma coisa muito errada.
Mas o agente do FBI não conseguiu penetrar as defesas de Edgar. Não agora. Nem nunca. Finalmente soou o ranger de solas de sapato no cimento. A porta se abriu e fechou. Os cheiros e sons do homem desapareceram.
São Miguel nos proteja.

45
– É ALI – DISSE KELLY PAUL.
Ela e Sean estavam diante de um bloco de prédios de arenito pardo de quatro andares na Quinta Avenida, entre as ruas 70 e 80 Leste.
– Qual deles, especificamente? – perguntou Sean, enquanto ficavam na calçada oposta, protegidos da chuva pela copa de uma árvore.
Ela apontou para o maior com frisos, frontões e colunas, obra de artesãos habilidosos mais de um século atrás.
– Oitocentos e trinta e seis metros quadrados. As janelas da frente têm uma linda vista da copa das árvores do parque. E o interior é tão esplêndido quanto o exterior.
– Você já esteve lá dentro?
– Uma vez.
– Como?
– Eu nunca revelo minhas fontes.
– Ele está lá agora?
– Sim.
– Descreva-o.
– Posso fazer melhor – falou ela, pegando uma foto.
– Ele parece arrogante.
– E é. Só que não mais do que outros em sua posição. Também é obsessivo, o que o torna cuidadoso. Às vezes cuidadoso demais, o que pode ser explorado.
– Por que exatamente você me trouxe aqui?
– Para isto.
Kelly pegou o braço dele e o arrastou mais para dentro da sombra.
Alguns minutos depois, cinco pessoas saíram de um prédio de arenito pardo; todas estavam com grandes guarda-chuvas abertos. Bunting, sua esposa e seus três filhos: duas meninas e um menino. As crianças usavam suéteres de 200 dólares e sapatos igualmente caros. Aqueles cabelos nunca tinham sido cortados em uma barbearia, apenas salões de excelentes cabeleireiros. A esposa era bonita, refinada, alta, esguia e elegantemente vestida, com cabelos e maquiagem apropriados para um evento black-tie. Bunting estava com um paletó de tweed, jeans bem passados e botas de mil dólares, andando de forma confiante.
Eles eram a síntese do sonho americano, apresentado no ilustre cimento da região rica de Nova York.
– A família?
Kelly Paul assentiu com a cabeça e completou:
– E seus seguranças.
Sean virou a cabeça e viu dois homens surgindo das sombras e seguindo os Buntings.
– Um foi da força de operações especiais da Marinha. O outro era da Agência de Combate às Drogas. Ambos trabalham para uma subsidiária da BIC. Bunting tem mais dois agentes de segurança. Às vezes eles saem com os quatro, particularmente quando viajam para o exterior. Em outras ocasiões, eles saem com dois. Como agora.
– Como você sabia que eles sairiam esta noite?
– Eles fazem isso quatro vezes por semana, mais ou menos à mesma hora. Acho que a esposa insiste em sair. Bunting não gosta. Como regra geral, ele não aprova rotinas, mas gosta de manter a paz em casa. Na verdade, ama muito a esposa e a família.
– Como você sabe disso?
– Fontes novamente, Sean.
Enquanto eles observavam, Bunting pôs a mão no bolso e pegou seu celular para receber um telefonema. Parou de andar e fez um sinal para a esposa de que logo a alcançaria. Sean notou que um segurança ficou com Bunting.
– Parece que ele recebeu um telefonema interessante agora – disse Kelly Paul.
Eles assistiram enquanto Bunting andava em círculos e seu segurança esperava, paciente. Ele gesticulava e obviamente não estava feliz. Desligou e deu outro telefonema. Esse demorou menos de cinco minutos. Então guardou o aparelho e caminhou na direção da sua família.
– Para onde eles vão nesses passeios? – perguntou Sean.
– Eles percorrem dez quarteirões, entram no parque, retornam, saem na altura da Rua 60, viram para o norte e voltam para cá. Conversam, os filhos têm oportunidade de ser crianças, coisas normais.
– Por que eles não são? Normais?
– Bunting certamente não é. Ele existe neste mundo, mas não vive realmente nele. Se pudesse escolher, viveria apenas em seu mundo. Como é claro que não pode, faz certas concessões. Mas posso lhe dizer que, embora ele agora esteja com a família falando sobre escolas, notas e o próximo evento de caridade que a Sra. Bunting planejou, na verdade sua mente está trabalhando no que fazer em relação ao meu irmão.
– A esposa sabe sobre o que ele faz?
– Vamos apenas dizer que ela não tem curiosidade a respeito disso. Faz o papel da boa esposa. É inteligente, até certo ponto ambiciosa, boa para os filhos. Não está interessada em saber como seu marido ganha dinheiro para manter o apartamento, a casa de veraneio, a escola particular e tudo o mais.
– Você fez um estudo realmente minucioso dos Bunting.
– Quando soube que meu irmão trabalharia para ele, achei que era o meu dever.
– Você queria que ele trabalhasse lá?
– Pensei que sim. Eu estava errada, é claro. Eddie estava muito bem na Receita Federal. Mas eu não me permiti ver isso. Lealdade equivocada. Coloquei o país antes da minha família. Não repetiria o erro.
– Então você se sente culpada?
– Sim.
Sean olhou para ela, bastante surpreso. Para alguém que claramente revelava muito pouco reconhecer a própria culpa era uma atitude muito sincera de Kelly Paul. Ele havia presumido que ela faria o que costumava fazer, responder a uma pergunta com outra. Sentindo que agora Kelly poderia estar disposta a se abrir mais, ele arriscou:
– Posso lhe perguntar uma coisa?
– É claro.
– Vamos segui-los?
– Eles estão sendo seguidos. Só que não por nós.
– Você tem ajuda?
– Tenho conhecidos que me ajudam de vez em quando – respondeu ela.
– Outra pergunta?
Ela começou a caminhar na direção oposta à dos Buntings e Sean a seguiu, arrastando a mala. Sean interpretou seu silêncio como um “sim”.
– Você já falou sobre o Programa E, mas como é o recrutamento?
– Você não é nem convidado a entrar se não for o melhor dos melhores, com base em seu histórico. Há muitos testes preliminares nos quais as pessoas comuns fracassariam, mas todos os possíveis candidatos ao programa passam com sucesso total. Então o teste se torna cada vez mais rigoroso. Nesses estágios, os candidatos começam a ser reprovados. Finalmente se chega à Parede. Apenas uns 3% conseguem chegar tão longe.
Kelly parou numas das entradas do Central Park. Eles seguiram devagar por um dos caminhos. Sean esperou estarem bem dentro do parque para perguntar:
– A Parede?
Ela assentiu com a cabeça.
– É assim que a chamam. É o monstro através do qual flui toda a inteligência. A Parede é como passar do futebol do ensino médio direto para melhor jogador do ano da liga nacional. Pouquíssimos chegam lá.
Kelly parou e se sentou em um banco.
– Como você sabe disso tudo? Pelo seu irmão?
Ela negou com a cabeça.
– Eddie teria me contado, mas eu não deixei que falasse comigo a esse respeito. Ele poderia se meter em mais encrencas.
– Então foi por suas fontes novamente.
Kelly olhou para a escuridão, a luz fornecida apenas pelos postes no caminho. A chuva havia aumentado e Sean sentia o frio entrando em seus ossos.
– Não – finalmente disse ela.
– Então como sabe?
– Peter Bunting me recrutou para o programa sete anos atrás.

46
MICHELLE MAXWELL SE MANTEVE ocupada no Maine, enquanto o companheiro perambulava entre Washington e Nova York. Ela havia se encontrado com Eric Dobkin e examinado o que a polícia sabia sobre a morte de Carla Dukes. A parte mais significativa era que uma autópsia rápida tinha sido feita e um projétil fora removido do cérebro da mulher. Era um calibre 32 que combinava com o projétil encontrado em Ted Bergin. Não houvera arrombamento na casa de Dukes, portanto talvez ela tivesse deixado a pessoa entrar. Isso poderia significar que Carla Dukes e Ted Bergin conheciam o mesmo assassino. Mas como isso era possível? Ambos tinham chegado à região recentemente e, pelo que se sabia, não se conheciam.
O assassino seria um policial? Ou talvez agente do FBI?
Era isso que Michelle pensava agora, ainda mais do que antes. E, se fosse verdade, era muito preocupante.
Ela também tinha ido a Cutter’s Rock para observar de longe se estava acontecendo algo incomum. Havia situado seu posto de observação em um ponto alto que lhe permitia ver quase todo o complexo. À primeira vista, tudo parecia normal. Os guardas estavam em seus postos. Os portões estavam fechados. As rondas continuavam. A cerca sem dúvida estava eletrificada. Ela ficou ali por uma hora e, durante esse tempo todo, só viu um visitante entrar e sair.
Mas esse visitante era Brandon Murdock. Ele tinha ido ver Edgar Roy? Isso seria ilegal, já que Roy agora tinha uma advogada e não estava em condições de ser interrogado ou abrir mão de nenhum dos seus direitos. Ou, talvez, Murdock tivesse ido vasculhar o escritório de Carla Dukes. Para ver se alguma prova incriminadora fora deixada para trás. Prova que poderia levar a Murdock, se ele de algum modo estivesse envolvido nisso.
Quando Michelle estava prestes a deixar seu posto, notou algo incomum. Ela fez uma última varredura da paisagem rural e avistou outro binóculo a uns 800 metros de onde estava. Concentrou o seu naquele ponto, mas tudo o que conseguiu ver foi a luz do sol refletida no alvo.
Alguém mais estava vigiando a prisão federal?
Michelle calculou a localização desse observador, entrou em sua caminhonete e dirigiu para lá o mais rápido possível. Contudo, quando parou na estrada, saiu da caminhonete e avançou furtivamente pela floresta, quem quer que tivesse estado lá se fora. Ela examinou a estrada em busca de marcas recentes, mas não encontrou. A pessoa podia ter vindo e ido embora a pé. Também checou isso, mas não encontrou nada de útil.
Michelle dirigiu de volta para a pousada cheia de perguntas.
Um pouco antes da hora do jantar, desceu a escada da Martha’s Inn e encontrou a Sra. Burke, na recepção, olhando-a com ar desaprovador.
– Você tem um horário muito irregular, minha jovem – disse a proprietária da pousada. – Nunca faz suas refeições na hora certa. Não gosto disso. É trabalho extra para mim.
Michelle baixou os olhos para a mulher com uma expressão irritada.
– Desde quando eu lhe pedi para me preparar uma refeição especial?
– O fato é que tenho de estar pronta para preparar a refeição caso me peça.
– Quem disse isso?
– É uma cortesia da nossa pousada.
– Bem, obrigada, mas não precisa fazer isso. Portanto, problema resolvido.
Michelle passou por ela e se dirigiu à porta.
– Para onde está indo agora? – perguntou a Sra. Burke.
– Hum, sair pela porta e entrar em minha caminhonete.
– Quero dizer, para onde está indo em sua caminhonete?
– Não é da sua conta.
– As garotas do Sul são sempre tão grosseiras?
– Quem disse que sou do Sul?
– Ora, vamos, eu sei pelo sotaque.
– Está bem. Estou tentando não ser grosseira. Mas sou uma investigadora examinando uma série de assassinatos. Portanto, quando digo que não é da sua conta, esse é apenas um modo educado de dizer que não é da sua conta.
A Sra. Burke olhou para a cintura de Michelle.
– Você tem de usar essa coisa aqui?
Michelle olhou para a pistola no coldre, revelada pela abertura do casaco.
– Duas pessoas foram mortas. Pensei que a senhora gostaria de ter alguém com uma arma por perto. Para o caso do assassino aparecer.
A Sra. Burke ofegou e deu um passo para trás.
– Por que ele faria isso? Você só está tentando assustar uma velha senhora. Isso não é muito bonito.
Como a Sra. Burke parecia muito assustada, Michelle suspirou e disse:
– Se eu tentei assustá-la foi porque a senhora me irritou.
– Não foi a minha intenção.
– É claro que foi – retrucou ela.
Michelle pensou que a Sra. Burke fosse fazer um longo discurso criticando-a, mas em vez disso a mulher se sentou em uma cadeira, apertando o suéter contra o corpo, e admitiu:
– Você tem razão. Foi isso mesmo.
Michelle relaxou um pouco.
– Por quê?
– Você me lembra muito a minha filha. Bem, quando ela era mais jovem. Esquentada, independente. Tudo tinha de ser como ela queria.
– Certo.
– Nós tínhamos nossas diferenças. Nossas discussões.
– Mães e filhas sempre têm.
– Você e sua mãe são próximas?
Michelle hesitou.
– Nós... éramos.
A Sra. Burke pareceu confusa.
– Vocês eram... Ah, sim, ah, entendo, sinto muito. Foi recente?
– Bem recente, sim.
Alguns momentos de silêncio se passaram.
– Então o que aconteceu com sua filha? – perguntou Michelle.
– Ela foi embora para a universidade. Achei que voltaria para cá. Mas nunca voltou.
– Onde ela está agora?
– Havaí.
– Bem longe.
– O mais longe possível estando nos Estados Unidos. Tenho certeza de que isso foi intencional da parte dela.
– Costuma vê-la?
– Não. Não a vejo há décadas. Fico pasma quando penso nisso. Todos esses anos. O tempo passa muito rápido. Ela me manda fotos. Tenho três netos. Antes de meu marido morrer, planejávamos voar até lá e quebrar o gelo. Mas então ele morreu e... Bem...
– Acho que a senhora deveria ir.
Ela fez que não com a cabeça vigorosamente.
– Acho que eu teria muito medo. Quando meu marido era vivo, era o conciliador. Eu poderia fazer a viagem com ele. Mas sozinha, não.
– E não vê seus netos?
– Eles nem me conhecem.
– Mas conhecerão se a senhora for lá.
– Acho que é tarde demais – falou a senhora levantando-se. – Bem, tome cuidado. Deixarei comida para você na geladeira. E café pronto. Só terá de esquentar.
– Fico grata por isso.
– E ficarei de olho em sua jovem amiga. Ela parece muito reservada. Até mesmo assustada.
– Ela está sob muita pressão.
– Quando o Sr. King voltará?
– Não sei ao certo.
– Ele é muito bonito.
Michelle desviou seu olhar, mas confirmou:
– Sim, acho que é.
– Vocês dois estão enamorados?
Michelle fez o possível para não sorrir ao ouvir aquela palavra.
– Talvez sim.
– Então deveriam se casar.
– Isso é complicado.
– As pessoas que tornam tudo complicado. Você quer se casar com ele?
A pergunta pegou Michelle desprevenida.
– O quê? Eu... eu realmente não pensei sobre isso.
A Sra. Burke a examinou tão de perto que Michelle sentiu seu rosto ficando quente.
– Sei – disse a Sra. Burke ceticamente. – Bem, boa noite.
– Boa noite. E, na minha opinião, a senhora deveria ir ver sua filha.
– Por quê?
– Eu não pude ver minha mãe de novo. Sempre me arrependerei. Precisamos aproveitar nossas chances enquanto ainda existem.
– Obrigada, Michelle. Aprecio o conselho.
Michelle correu lá para fora, agora desconcentrada. Um telefonema estava prestes a mudar tudo isso.
– Alô?
– Maxwell?
– Quem é?
– Murdock.
– O que houve?
– Precisamos nos encontrar.
– Por quê?
– Sobre este caso.
– Sobre o que neste caso?
– Coisas que seu parceiro precisa saber. Coisas que descobri.
– Por que você está sendo amistoso de repente?
– Porque não sei se posso confiar em ninguém do meu lado.
– Essa é uma afirmação bizarra vinda de um agente do FBI.
– A situação está bizarra.
– Onde e quando?
– Dez horas. Eu lhe darei as instruções.
Michelle as anotou. Ia para a caminhonete, mas parou.
Tudo isso era muito suspeito.
Ela pegou o telefone e ligou para Sean. Não conseguiu falar com ele.
– Droga!
Ela pensou por alguns instantes e então discou outro número.
– Dobkin – atendeu a pessoa do outro lado.
– Eric, é Michelle Maxwell. Você poderia me dar uma cobertura esta noite?

47
– ELES A RECRUTARAM?! – exclamou Sean.
Kelly fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Não para ser Analista. Eu era inteligente, mas minha acuidade mental não chegava perto do nível exigido.
– Então para quê?
– Eles queriam que eu dirigisse o programa.
– Eles? Que dizer, Peter Bunting?
Ela se levantou e sugeriu:
– Que tal um café? Conheço um lugar aqui perto onde poderemos conversar com privacidade.
Não era um café nem um restaurante. Era um apartamento de um quarto, a três quarteirões do parque, em uma rua residencial de aparência normal onde crianças pequenas provavelmente brincavam na calçada quando o tempo estava bom.
No interior havia o mínimo necessário para se sobreviver. Tinha uma porta com fechaduras, uma janela, uma cozinha, uma cama, uma TV e um banheiro. Não havia quadros, cortinas nem plantas; havia o carpete cinza original, paredes brancas como casca de ovo e uns poucos móveis.
Kelly fez o café e levou duas xícaras com açúcar e creme para a sala de estar. A decisão de procurar abrigo fora boa. A chuva agora fustigava a janela e havia roncos de trovão e lampejos de raios.
Sean olhou ao redor enquanto tomava o café quente.
– O apartamento é seu?
– Não apenas meu.
– Compartilhado?
– O orçamento de todo mundo está reduzido.
– Deve ser bom ter um orçamento.
Ela o olhou por cima da borda de sua xícara.
– Deve ser.
– Estávamos falando sobre seu recrutamento. Bunting queria contratá-la?
– Entenda que sete anos atrás o Programa E não era o que é hoje. Ele surgiu depois do 11 de Setembro. Desde então, cresceu imensuravelmente, tanto em apropriação fiscal quanto em âmbito operacional. Seu orçamento é de bilhões, e não há nenhuma área da inteligência que ele não sirva. Só isso já bastaria para torná-lo único. E os dons intelectuais do meu irmão fizeram com que fosse ainda mais especial.
– E Bunting queria que você o dirigisse. Sei que você era mais do que capaz de fazer o serviço, mas esse não era para ser o trabalho dele?
– Naquela época Bunting estava expandindo os negócios. Queria delegar. Eu tinha uma carreira muito bem-sucedida. E meu sucesso era bastante conhecido na área. Atraí a atenção dele. Éramos contemporâneos. Tínhamos personalidades parecidas. O posto me faria ganhar muito dinheiro e permitiria que eu saísse de um ramo que tinha ficado muito perigoso. E deixaria Bunting livre para perseguir outras oportunidades comerciais. Teoricamente, parecia perfeito.
– Teoricamente – disse Sean. – Mas não na prática?
Ela pousou a xícara e continuou:
– Cheguei muito perto de aceitar. Por vários motivos. Naquele tempo, Eddie trabalhava na Receita Federal. Ele parecia feliz e desafiado. Bem, até o ponto em que qualquer coisa pode realmente desafiá-lo. Mas nossa mãe tinha acabado de morrer.
– E ele estava totalmente só?
– Sim. Eu não sabia se Eddie ficaria bem estando sozinho. Esse trabalho me permitiria passar mais tempo com ele, estar mais presente na vida dele.
– O que aconteceu? Parecia um emprego perfeito.
– No final eu não pude aceitar. Não estava preparada para o que seria um trabalho de escritório. Além do mais, estava acostumada a não ter patrão, eu só sabia dirigir o próprio espetáculo. Bunting tinha a fama de ser muito controlador. Eu não estava pronta para isso.
– E talvez também não estivesse pronta para cuidar do seu irmão.
– Talvez não – admitiu ela. – Foi extremamente egoísta da minha parte. Coloquei minhas necessidades profissionais acima das necessidades do meu irmão. Talvez eu sempre tenha feito isso.
– Não seria a primeira pessoa a fazer.
– Isso não é muito reconfortante. – Ela hesitou. – Eu o protegia quando ele era pequeno.
– Do pai? – perguntou Sean em voz baixa.
Kelly se levantou, foi até a janela e olhou para a noite tempestuosa.
– Ele era só um garotinho – disse ela. – Não podia cuidar de si mesmo.
– Mas você cuidou dele.
– Fiz a coisa certa.
– Matar seu padrasto?
Ela se virou para olhar para Sean.
– Provavelmente me arrependo de mais coisas do que a maioria das pessoas. Mas não disso.
– Então, anos depois, você recomendou seu irmão para o programa?
Kelly pareceu aliviada com a mudança na conversa. Ela voltou a se sentar.
– Não havia ninguém comparável a Eddie no conjunto de habilidades que o programa exigia. Ele era tão bom que o consideraram de nível E-Seis, o primeiro que já existiu.
Havia um orgulho fraternal na voz dela.
– E Bunting e você?
– Em relação a quê?
– Você e seu irmão foram cogitados para empregos no Programa E. Bunting deve saber que são parentes.
– E daí? Duvido muito que Bunting pense que tramei para meu próprio irmão ser acusado de assassinato.
– Mas ele pode pensar que você está trabalhando nos bastidores para ajudá-lo.
– Bem, eu estou. Mas também não creio que Bunting vá considerar isso uma ameaça. Se Eddie for inocentado, Bunting o terá de volta.
– Em Cutter’s Rick, seu irmão só fica olhando para o teto, nunca diz uma só palavra, nunca move um músculo. Ele está fingindo?
– Sim e não. É difícil explicar. Eddie pode se perder na própria mente como poucos. Ele também fazia isso quando criança.
– Por causa do pai?
– Às vezes.
– Então seu irmão se retirou para dentro da própria mente como uma forma de proteção?
– Ele está com medo.
– Bem, se o prenderem por esses assassinatos, poderão executá-lo. E o que é mais perigoso do que enfrentar uma injeção letal?
– Só que, pelo menos, a injeção letal é indolor. As pessoas que estamos enfrentando não serão tão generosas. Isso posso lhe garantir.

48
O LUGAR ONDE MURDOCK QUIS marcar o encontro era uma agência de correio a 3 quilômetros do cruzamento entre Eastport e Machias. Era um prédio de um andar, todo de tijolos e vidro, com um estacionamento asfaltado. Na frente, uma bandeira americana tremulava à brisa no alto de um poste de aço inoxidável de quase 10 metros de altura.
Havia um carro no estacionamento, perto da caixa de coleta de correio.
Mesmo a distância, Michelle pôde ver o homem no banco do motorista. Quando seus faróis dianteiros incidiram sobre o veículo, viu as placas do governo e o homem se mexeu no banco dianteiro. Ela parou ao lado do carro, desligou o motor e os faróis e saiu.
Michelle olhou em volta, estudando a topografia. O prédio ficava em um acre de terra limpa com um pouco de grama, calçadas e meios-fios de concreto e o bom e velho estacionamento de asfalto. Além disso, não havia nada além de mato.
Michelle se perguntou onde Dobkin tinha se escondido. Ele tinha várias opções. Ela teria se posicionado à esquerda do prédio, perto do limite da mata.
– Obrigado por ter vindo – disse Murdock ao sair do carro e ir ao encontro dela.
– Você fez parecer importante.
– E é.
Michelle se encostou na caminhonete e cruzou os braços.
– Uma pergunta preliminar.
Murdock franziu a testa.
– Diga.
– Sean e eu estamos na sua lista negra desde que você nos conheceu. Agora quer que trabalhemos juntos?
Murdock pegou um chiclete e pôs na boca.
– Fiquei muito irritado. Tenho uma tendência de ficar assim mais do que deveria.
– Todos nós já passamos por isso.
– Este caso está me dando úlceras.
– Não é só em você.
– Sempre que acho que estou chegando perto, acontece alguma coisa.
– E algo me diz que nenhum de nós realmente chegou perto de resolvê-lo.
– Você provavelmente está certa – admitiu Murdock.
– Então mudou de tática? Você disse que não podia confiar em seu lado.
– Digamos apenas que estou ficando paranoico com as coisas que escuto de quem está do meu lado. E também preciso obter resultados. Meu chefe grita comigo a cada cinco minutos. Se eu perder mais tempo brigando com você e King e continuar sem resolver esta coisa, nada mais importará. Estarei metido em um cubículo em algum posto avançado do FBI, me perguntando onde minha carreira foi parar.
– Sean estava certo sobre você e a segurança nacional, não é?
– Não que eu goste de alardear isso, mas sim. Estou na unidade de contraterrorismo.
– Então qual é a conexão entre segurança nacional e Edgar Roy?
– Tudo o que posso lhe dizer é que, quando ele foi preso e enviado para cá, o FBI recebeu ordem dos altos escalões para marcá-lo como importante. Roy era uma pessoa de interesse especial e deveríamos vigiá-lo de perto. É isso. Agora o que você pode me dizer?
– Estamos com algumas jogadas em curso, mas nada definitivo.
– Pode me contar?
– Não. Você telefonou para mim. Disse que tinha algumas coisas para me dizer. Estou ouvindo. Se eu soubesse que você queria fazer disto uma via de mão dupla, não estaria aqui.
– Está bem, está bem, é bastante justo.
Ele cuspiu o chiclete.
– Fui ver Edgar Roy hoje.
– Por quê?
– Só para falar com ele.
– E ele falou com você?
– Não, não muito.
– Não muito?
– Tudo bem, nada. O cara nunca emite nenhum som.
– E?
– E nunca esperei que ele falasse. Roy é um gênio. De fato, ele é tão inteligente que é um trunfo muito valioso do governo federal.
– É mesmo?
Ele ergueu a cabeça e falou:
– Por que acho que estou ensinando o padre a rezar missa?
– Pelo contrário. Isto é fascinante.
Ele deu um passo para mais perto e prosseguiu:
– Está bem. Vamos direto ao ponto. Fiz algumas investigações. Cobrei uns favores e cheguei ao principal. Sei o que Roy estava fazendo para o Tio Sam. E também descobri quem em Washington poderia querer o mal dele.
– Quem?
Murdock se aproximou ainda mais. Apenas alguns centímetros separavam os dois.
– Já ouviu falar no Prog...
Michelle teve a sensação de que havia levado uma bofetada. Sentiu o gosto do líquido que surgira em seu rosto e depois o cuspiu. A dor em seu braço era um pouco irritante. Só quando Murdock caiu sobre ela, dois segundos depois, percebeu o que estava acontecendo. Michelle o agarrou pelos ombros e se jogou com ele atrás da caminhonete. O tiro seguinte acertou 6 metros atrás, onde ela estivera em pé. Bateu no asfalto, lançando pedaços dele na grama. Um deles atingiu a caixa de correio e deixou uma grande mossa no metal pintado de azul. Se Michelle não tivesse se movido, seria sua massa encefálica marcando a caixa de correio.
Mais tiros disparados, de dois rifles diferentes.
Dobkin.
Murdock estava deitado em cima de Michelle.
– Murdock? Agente Murdock!
Michelle o tirou de cima de si e verificou seu pulso. Não havia nenhum. Olhou o rosto dele. Olhos vítreos. Boca ligeiramente aberta, com sangue escorrendo dela. Ele parecia surpreso. Michelle viu o buraco na camisa manchada de vermelho. Virou o agente. Ferimento de entrada no meio da espinha. Tiro certeiro. Michelle olhou para si mesma. Sangue no rosto. Sangue dele.
Ela olhou para mais baixo, para o braço.
Meu sangue.
O tiro havia saído do peito de Murdock e encontrado o braço dela. Michelle tirou o casaco e enrolou a manga da camisa. Era apenas um arranhão. Algo rangeu sob seus pés. Ela o pegou. Era o projétil disforme do rifle. Colocou-o no bolso do casaco.
Michelle pegou a arma e o telefone. Discou 911 e relatou o ocorrido.
Alguém ainda atirava. Pistola. Estava bastante certa de que era a H&K 45 de Eric Dobkin. Então os tiros cessaram.
Ela ligou para o celular de Dobkin. Quatro toques depois, considerou que talvez houvesse algo errado e ele estivesse morto também, mas Dobkin atendeu.
– Você está bem? – perguntou ele imediatamente.
– Estou. Murdock está morto.
– Imaginei isso quando vi que foi atingido.
– Você viu o atirador?
– Não, mas vi a trajetória e disparei na direção da origem. Oito tiros. Depois me aproximei. Pedi reforços.
– Eu também.
– Não estou conseguindo ver ninguém.
– Fugiu pela floresta de novo. Já estou farta dessas malditas árvores.
– Murdock está morto mesmo? Tem certeza?
Ela olhou para o corpo imóvel antes de responder:
– Sim, está. Não há a menor chance de estar vivo. O atirador sabia o que estava fazendo.
– E você tem certeza de que está bem?
– Nada que um Band-Aid não possa consertar. Se eu fosse você, tomaria cuidado até a ajuda chegar. Sei que estávamos bastante expostos aqui, mas foi um tiro certeiro. Ele poderia estar longe e ainda assim atingir você. Mantenha a cabeça abaixada.
– Está bem. Murdock lhe disse alguma coisa?
– Infelizmente nada que eu já não soubesse. Mas ele não podia ter sabido disso. – Ela hesitou, as palavras não saindo do modo como desejava. – Murdock estava tentando fazer a coisa certa.
Michelle desligou e se abaixou ao lado do morto. Parecia contraditório, mas, no caso de rifles de longo alcance, quanto mais longe o projétil viajasse, mais dano poderia causar ao atingir o alvo. Ela tirou do bolso o projétil disparado e o analisou. Então avaliou o tamanho do buraco nas costas de Murdock. A partir disso, considerou a trajetória da bala e calculou a distância de onde o tiro havia sido disparado.
Mais de 450 metros de distância.
Michelle não gostava muito de Murdock, mas ele era um federal. Ela havia sido uma federal. Existia um laço implícito ali. Quando alguém mata um federal, tira um pouco da alma de todos os outros federais. Isso não podia ser tolerado. Não podia deixar de ter consequências, consequências graves.
Ela rasgou parte da manga da camisa e a amarrou no ferimento, estancando o pequeno sangramento. Seu ferimento não parecia nada perto da ferida mortal sofrida por Murdock.
Michelle abriu a porta do carro, pegou uma garrafa de água e a usou para limpar o sangue do rosto.
O sangue dele.
Ela gargarejou, cuspiu e tentou não pensar em quanto inadvertidamente engolira e em como era salgado.
Quando terminou, olhou para Murdock de novo. Sabia que não deveria fazer isso, contaminar a cena do crime, mas estendeu o braço, pegou a carteira dele e a abriu.
Três filhos. Três garotinhos muito louros e uma mulher que parecia com qualquer mãe casada com um agente do FBI sobrecarregado de trabalho que se fora para sempre e com três filhos pequenos cheios de energia: cansada.
Michelle pôs a carteira de lado e se encostou no estribo do carro. Tentou não chorar, mas simplesmente não conseguiu evitar.
Ela cobriu os olhos, mas ainda assim lágrimas rolaram.

49
– O QUE MAIS PODEMOS FAZER neste momento? – perguntou Sean enquanto eles estavam sentados no pequeno apartamento.
– Não entendi.
– Bunting não tem nenhum motivo para tramar contra seu irmão.
– Não. Mas não se pode dizer o mesmo em relação a Bergin ou Carla Dukes – respondeu ela. – A morte de Bergin retarda o julgamento. Carla podia de algum modo ter se atrapalhado e deixado as pessoas erradas nervosas.
– Certo, esses são motivos para matar. Embora com seu irmão inapto a ir a julgamento, matar o advogado de defesa dele provavelmente não fosse absolutamente necessário.
– Se fosse 50% necessário, eles o fariam. E podiam temer que Bergin descobrisse algo.
– Bergin era meu amigo – disse Sean.
– Era meu amigo também. Lamento tê-lo envolvido nisso.
O telefone de Sean tocou. Ele atendeu.
– Michelle? O que houve? Fale mais devagar. Certo, certo. Murdock?
Ele ouviu em silêncio durante uns sessenta segundos.
– Estou a caminho. Chegarei o mais rápido que puder.
Ele desligou e olhou para Kelly, que disse:
– Murdock foi morto, não é?
– Como você sabia?
– Perguntei-me com quem Bunting estava falando tão animadamente.
– Acha que ele ordenou a morte de Murdock enquanto o observávamos? Enquanto passeava com a esposa e os filhos?
– Eu não disse isso. Mas Bunting nunca para de trabalhar, Sean. Então, você vai voltar para o Maine?
– Tenho que voltar. E Michelle me disse outra coisa.
– O quê?
– Ela foi observar Cutter’s Rock.
– E?
– E jura que outra pessoa também estava observando o lugar.
As narinas de Kelly se alargaram. Ela parecia estar procurando um cheiro no ar para seguir.
– Acho que vou com você. Só me dê alguns minutos para fazer a mala.
Cinco minutos depois, Kelly estava pronta para ir.
Eles foram de táxi a uma locadora de automóveis, alugaram um Chevrolet de quatro portas e dirigiram para o norte, saindo de Manhattan. Àquela hora da noite, o trânsito estava bastante bom, até mesmo para a cidade que nunca dorme. Chegaram a Boston de madrugada e se registraram em um hotel nos arredores da cidade, porque nenhum deles conseguia manter os olhos abertos. Levantaram-se às oito da manhã, depois de quatro horas de sono. Naquela tarde, várias xícaras de café e duas refeições ligeiras depois, entraram em Machias.
Sean e Kelly haviam ligado quando estavam chegando e Michelle foi encontrá-los diante da pousada.
Quando Sean viu a atadura ao redor do braço dela, ficou boquiaberto.
– Você também levou um tiro?
– Não exatamente.
– Como assim?
– Foi o projétil que atingiu Murdock. Passou de raspão.
Sean a abraçou e Michelle sentiu os braços dele tremendo.
– Estou bem, Sean, de verdade – disse suavemente, mas retribuiu o abraço.
– Não vamos mais nos separar. Sempre que fazemos isso, acontece algo de ruim.
Michelle ergueu os olhos para Kelly Paul.
– Não esperava ver você.
– Eu não esperava estar aqui.
Eles entraram na pousada, onde a Sra. Burke obviamente estava preocupada com Michelle. Ela verificou sua atadura e lhe trouxe outra xícara de café antes de deixá-los a sós. Megan estava sentada na sala da frente com uma xícara de chá apoiada no colo.
– Mais gente morrendo – comentou Megan com uma voz distante.
Todos olharam para ela, mas não disseram nada.
Megan se virou para Kelly e perguntou:
– Você não vai encostar uma faca em mim de novo, vai?
– Não, a menos que você me dê motivo.
Megan deu de ombros e ficou em silêncio.
– Conte-nos tudo que se lembra da última noite, Michelle – pediu Sean.
Ela contou, interrompida apenas pelas perguntas de Sean ou Kelly.
– Então Murdock sabia ou tinha descoberto sobre a existência do Programa E? – perguntou Sean.
– Bem, ele foi interrompido pelo tiro, mas acho que sim. E falou sobre certas pessoas em Washington que poderiam ter motivos para prejudicar Edgar Roy.
– Tramando conta ele? – indagou Sean.
– Bem, considerando-se que Roy poderia pegar pena de morte se fosse declarado culpado, sim.
Sean olhou para Megan e perguntou:
– Como anda o caso?
– Redigi algumas petições, mas preciso que você dê uma olhada nelas.
– Está bem. Soube de algo pelo promotor? Teve alguma notícia do tribunal?
Megan fez que não com a cabeça.
– Não restou ninguém no escritório do Sr. Bergin. Mas tenho checado e-mails e mensagens de voz. O caso está tecnicamente em um limbo jurídico em virtude da condição mental de Roy. Mas o tribunal ordenou avaliações periódicas dele para ver se está apto a ir a julgamento. E uma dessas avaliações será em breve.
Sean olhou de relance para Kelly e perguntou:
– Você gostaria de ver seu irmão?
Ela se virou para ele.
– Quando? – perguntou brandamente.
– Que tal agora?

50
COMO NÃO TINHA NENHUMA outra opção, Bunting fez mais uma vez a caminhada da rica e movimentada Manhattan para a pobre e igualmente movimentada Manhattan. Ergueu os olhos e viu o letreiro: Pizza: 1 dólar a fatia.
Como se estivesse ali em busca de pepperoni e queijo. Neste momento estava tão zangado que mal podia se conter. Queria bater em algo. Ou alguém.
Ele subiu os seis lances de escada. Tinha boa forma e se exercitava regularmente em seu clube privado, mas por algum motivo estava ofegante e suado quando chegou no alto.
Bunting bateu.
A porta se abriu.
James Harkes estava lá, vestido exatamente como antes. Enquanto era conduzido para dentro, Bunting se perguntou se todo o guarda-roupa do homem era composto de ternos, camisas e gravatas da mesma cor – a saber, preto, branco, preto.
Os homens se sentaram à mesma mesa. Um pequeno ventilador zumbia e oscilava em uma mesa lateral. Era a única corrente de ar ali, além da respiração dos homens. Bunting podia sentir o calor subindo dos fornos de pizza seis andares abaixo.
– Murdock! – começou Bunting.
– O que tem ele?
– Ele está morto, mas acho que você já sabia.
Harkes não disse nada. Ficou apenas sentado com suas grandes mãos repousando no abdome.
– Ele está morto, Harkes – repetiu Bunting.
– Eu o ouvi da primeira vez, Sr. Bunting.
– Quando nos falamos na noite passada e você contou que havia descoberto que Murdock sabia da existência do Programa E, eu não disse para matá-lo.
Harkes se inclinou apenas um pouco para a frente.
– Está presumindo certas ações da minha parte.
– Você o matou?
– Estou aqui para protegê-lo, Sr. Bunting.
– Mas ele é um agente do FBI. Você o assassinou.
– Palavras suas, não minhas.
– Cristo, você realmente vai ficar brincando com palavras agora?
– Tenho de cuidar de outras coisas. Há algo mais que eu possa fazer pelo senhor?
– Sim, pode parar de matar pessoas. Você acabou de fazer uma situação passar de complicada a quase impossível.
– Eu não a caracterizaria assim.
– Bem, eu sim.
– Michelle Maxwell sabe. E Sean King.
– Sobre Edgar Roy ser o Analista?
– Sim – confirmou Harkes.
– Como poderiam saber?
– Fonte externa.
– Quem?
– Kelly Paul.
Bunting olhou para ele.
– Kelly Paul – repetiu Harkes. – Sei que a conhece.
– Como ela está envolvida?
– Ela é meia-irmã de Roy – falou Harkes observando-o. – Mas o senhor sabia.
– Era com ela que King e Maxwell estavam quando os perdemos de vista?
– Possivelmente.
Bunting apontou um dedo para Harkes.
– Ouça com muita atenção. Você não vai chegar perto de Kelly Paul. Ou de Sean King. Ou de Michelle Maxwell. Está me entendendo?
– Temo que o senhor não esteja compreendendo a gravidade da situação.
– Então qual é o plano? Matar todo mundo?
– Os planos estão evoluindo – assegurou Harkes com uma calma enlouquecedora.
– Por que Kelly tentaria prejudicar o irmão? Isso é absurdo.
– Está presumindo que Kelly ainda trabalhe para nós. Ela é autossuficiente há algum tempo. Poderia estar trabalhando como autônoma para nossos inimigos.
– Não acredito nisso. Kelly Paul é tão patriota quanto qualquer um de nós.
– Esse é um ponto de vista perigoso para alguém em sua posição.
– Que ponto de vista? – disparou Bunting.
– De que alguém não pode ser corrompido.
– Eu não posso. Nunca faria nada para prejudicar meu país.
– É um belo discurso. Mas, com o incentivo certo, poderia mudar de ideia.
– Nunca.
– O senhor não está entendendo o que isso realmente significa.
– Se alguém mais for morto, será o fim para você, Harkes. Tem minha palavra.
– Tenha um bom dia, Sr. Bunting.
Harkes abriu a porta e Bunting passou pisando duro por ela.

51
DUAS HORAS DEPOIS, BUNTING estava sentado em uma confortável poltrona de couro no jato da companhia, taxiando para decolar. Era um Gulfstream G550. Podia voar de Londres a Cingapura com um único tanque de combustível. O jato tinha um escritório, uma cama, TVs, wi-fi, instrumentos de alta tecnologia, um bar completo, poltronas para 14 pessoas, dois pilotos e duas comissárias de bordo. Podia atingir quase 970 quilômetros por hora e voar em um teto máximo de 51 mil pés. Custara à empresa de Bunting, a BIC, mais de 50 milhões de dólares, além de alguns milhões adicionais por ano em manutenção e custos operacionais.
O voo de Nova York a Dulles, na Virgínia, levaria menos de meia hora. Bunting se recostou enquanto o G550 subia para o céu amigável, embora intensamente trafegado de Manhattan, e depois se inclinava lateralmente para o sul e para Washington. Antes que Bunting pudesse começar a trabalhar, o piloto anunciou a aterrissagem em Dulles. Vinte minutos depois, eles estavam em terra. Taxiaram para uma área particular do aeroporto e as escadas retráteis do G550 foram abaixadas. Bunting saltou e entrou na limusine à sua espera, que se afastou em alta velocidade assim que ele se sentou.
Era uma única alternativa para viajar, mesmo custando milhões de dólares mais despesas. Mas agora ele não estava pensando em sua forma de locomoção privilegiada; estava pensando na possibilidade de perder tudo o que conquistara. Seu encontro com Harkes o havia perturbado muito. Ele realmente sentia que as coisas estavam fugindo ao seu controle.
Quando saíram do aeroporto, Bunting se deparou com o mundo do transporte comum e ficou preso no trânsito na estrada com pedágio. Demorou mais para andar 10 quilômetros de carro do que demorara para percorrer 322 quilômetros de avião. Mas enfim chegou.
O prédio em que entrou parecia comum. Os transeuntes não o olhariam duas vezes. Não era o prédio de escritórios até o qual Sean seguira Avery. Aquele ficava a muitos quilômetros. Este era o lugar mais importante no império de Bunting. Era onde ficava a Parede. Ele passou rapidamente pelas portas de segurança antes de descer num elevador e seguir por um corredor.
Ele tivera que investir anos, milhões de dólares e muitos momentos de ansiedade até convencer a comunidade de segurança americana a entrar no século XXI e aceitar sua visão de tudo o que a coleta e análise de informações poderia se tornar.
Quando isso finalmente aconteceu, as comportas se abriram e bilhões de dólares de dinheiro do governo começaram a entrar em seus cofres. Era o maior triunfo de sua vida. E o que muitos tinham como certo era o fato de que o programa realmente funcionava. Ele havia previsto e impedido inúmeros ataques terroristas, tanto em solo americano quanto contra os interesses dos Estados Unidos no exterior. Tinha permitido que a CIA, a Agência de Inteligência de Defesa, a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, a Agência de Segurança Nacional e muitos serviços de inteligência menos conhecidos acumulassem sucessos consecutivos. O FBI, armado com pistas fornecidas pelo Programa E, havia preparado e feito operação após operação, capturando criminosos e terroristas e reunindo informações valiosas usadas para impedir atos terríveis no futuro.
A Parede era a parte mais importante, o golpe de mestre de Bunting. Enquanto equipes de analistas tradicionais, tão ocupados com as árvores que nem reconheciam a floresta, tinham chances insignificantes de identificar a verdadeira ameaça, uma pessoa – a pessoa certa – sentada em uma cadeira e aceitando o desafio da Parede os levara à terra prometida. A Parede revelava seus segredos mais ocultos somente para a pessoa certa. E as recompensas eram imensas e também imediatas.
O programa funcionara bem durante anos. E então surgira o problema. As informações que exigiam análise derrotaram as mentes superiores que Bunting conseguia encontrar. O Programa E finalmente apresentou uma falha. Oponentes como Ellen Foster, do Departamento de Segurança Interna, e Mason Quantrell, do setor privado, começaram a cercá-lo como os abutres que eram.
E então Bunting encontrou Edgar Roy. Mesmo diante dos padrões de excelência do Programa E Roy se destacara. Havia repetidamente detectado coisas que até mesmo supercomputadores poderosos em conjunto com mil analistas deixaram passar. Bunting estava convencido de que, se Edgar Roy estivesse olhando para a Parede antes de 11 de setembro de 2001, aquele dia teria sido como qualquer outro e totalmente esquecível.
Ele entrou na sala, bem abaixo do subsolo do prédio. Cumprimentou com a cabeça algumas pessoas que trabalhavam ali. Elas o cumprimentaram também e depois desviaram rapidamente os olhos, talvez percebendo seu distanciamento e nervosismo. Embora Ellen Foster tivesse deixado claro que sua última chance já tinha passado, Bunting organizara mais uma tentativa de salvar o programa. Até agora, os resultados não vinham sendo bons.
Bunting entrou na sala de controle e fez um sinal com a cabeça para Avery, que estava sentado, como de costume, diante dos computadores que operavam não só a Parede como também as informações geradas pelo Analista. Havia três deles na sala, conferindo os acontecimentos na Parede: duas mulheres e um homem, todos veteranos da BIC.
Quando Bunting se sentou em seu lugar e abriu seu tablet, notou que dois deles eram E-Cinco perfeitamente capazes e o outro, um E-Quatro de nível superior. De fato, os E-Cinco eram os melhores que ele já vira até Edgar Roy entrar em sua vida e lançar as possibilidades na estratosfera.
Mas agora as coisas haviam mudado. Como Avery já salientara, o fluxo de informações crescia exponencialmente, ultrapassando as capacidades das mentes que um ano antes conseguiriam lidar com ele. Edgar Roy podia lidar com ele. Só que Bunting não o tinha mais.
Bunting olhou pelo vidro. Os três analistas estavam fazendo o melhor que podiam, mas ele percebeu que a taxa de transferência da Parede fora reduzida em 60%. Nesse ritmo, as conclusões seriam inúteis antes de os analistas registrarem suas descobertas e enviarem os relatórios para o próximo elo na cadeia de comando. Simplesmente não iria funcionar.
Ele deixou o exercício prosseguir por mais cinco minutos, depois olhou desanimado para Avery e sinalizou para ele, correndo um dedo pelo pescoço.
Avery imediatamente falou pelo microfone de seu headset.
– Obrigado a todos. Fecharemos a Parede em cinco, quatro, três, dois, um.
Ele pressionou algumas teclas e a tela ficou escura.
Bunting quase desabou em uma cadeira e ficou lá sentado, olhando para o chão. Ellen Foster tinha razão. Estava tudo acabado. Ele estava acabado. Provavelmente o matariam. E depois matariam Edgar Roy.
Um homem abriu a porta da sala de controle.
– Sr. Bunting? – chamou.
Ele ergueu os olhos.
– A secretária Foster quer vê-lo o mais rápido possível.
Ah, meu Deus.

52
SEAN PENSOU QUE SERIA difícil conseguir autorização para entrar em Cutter’s Rock, sobretudo depois da morte de Carla Dukes. Contudo, a ausência dela pareceu diminuir os obstáculos necessários para eles verem o prisioneiro, mesmo acompanhados de Kelly Paul.
Assim, os enormes portões se abriram, os guardas fizeram a revista e logo depois eles estavam na sala de visitas à espera de Edgar Roy.
Megan ficou perto da parede, com Michelle ao seu lado. Sean observava a porta. Kelly Paul andava de um lado para outro, fitando o chão. Sean achou que sabia o que ela estava pensando. E ela provavelmente estava certa. Roy poderia reagir ao vê-la e abandonar a fachada de insanidade.
A porta se abriu e Edgar Roy entrou. Estava vestido do mesmo modo, com a mesma aparência e o mesmo cheiro. Era mais alto do que os guardas, que Sean e Michele e, sobretudo, do que a pequena Megan.
Sean ouviu primeiro: um assobio longo e baixo com uma melodia que ele não conseguiu identificar. Ele se virou em busca da fonte. Kelly Paul estava encostada na parede com o rosto virado para o lado oposto do irmão. Sean voltou a olhar para Roy. O assobio viera no momento que Roy estava com a cabeça baixa, por isso seus olhos não podiam ser vistos. Sean achou ter notado um leve estremecer no ombro do outro. Os guardas o sentaram em uma cadeira e o prenderam à argola no chão. Bateram a porta ao sair. Roy ficou sentado lá, com as pernas esticadas e o rosto virado para o teto. Os olhos fixos naquele maldito ponto. Tudo como sempre.
Exceto por aquele estremecimento.
O assobio foi ouvido novamente. Sean se virou de novo. Dessa vez Michelle se virou também.
Kelly Paul encarava o irmão.
– Oi, Eddie, é bom vê-lo – disse com a voz calma e um sorriso sincero.
Kelly Paul caminhou até o irmão e parou diante dele. Porém não se abaixou para se aproximar um pouco mais. Na verdade, pareceu se esticar o máximo que pôde. Ela ergueu as mãos à altura do peito.
O olhar de Sean percorreu a sala e então, atrás dele, viu algo e se perguntou por que não vira antes. Uma pequena imperfeição na parede, bem no alto. As lentes da câmera apontavam para, a cadeira, para o prisioneiro. Mas agora Kelly estava bloqueando o irmão na filmagem.
Sean deu alguns passos adiante e ficou de frente para Kelly Paul. Agora entendia por que ela havia se esticado o máximo possível. A mensagem que segurava estava perfeitamente alinhada com o ângulo de visão do irmão. Ela havia escrito com um lápis em grandes letras de imprensa.
EU SEI. E. BUNTING. ARMAÇÃO. SUSPEITAS?
Roy não teve nenhuma reação visível a isso, mas, quando Sean o encarou, viu que seus olhos finalmente ganharam vida e que um pequeno esboço de sorriso surgiu em seus lábios quando sua imagem estava seguramente escondida da câmera pelo corpo da irmã.
Parecia que o zumbi acabara de acordar.
Kelly começou a bater com o dedo no papel. Fez isso quase em silêncio, mas lenta e metodicamente. No início Sean não entendeu o que ela estava fazendo. Mas depois percebeu.
Ela está se comunicando com ele por código Morse.
E então surgiu outro som. Sean olhou para baixo. Roy estava batucando na própria perna. Respondendo a ela. Kelly batucou sua resposta.
Edgar Roy voltou a olhar para o ponto no teto.
Kelly amassou o papel, colocou na boca e engoliu.
Quando eles saíram, Sean lhe sussurrou:
– O que foi aquilo?
– Eu lhe dei detalhes e lhe pedi para analisá-los.
– O que ele respondeu por código?
– Ele queria saber se eu havia contado a Bergin sobre o Programa E. Eu lhe disse que não.
– O que faremos agora?
– Partiremos para o ataque – respondeu Kelly Paul.
– Como?
– Eu lhes contarei exatamente como, porque você e Michelle serão a ponta da lança.
– Bunting está por trás disso tudo?
– É o que vamos descobrir.
Roy foi levado de volta à cela. Uma vez lá, imediatamente se virou de costas para a câmera, para pelo menos poder fechar os olhos. Estava cansado, mas a visita melhorara consideravelmente seu ânimo.
Sua irmã viera. Ele sempre havia achado que viria. Sua mensagem deixara claro que ela entendia a situação. E ela lhe dissera um pouco mais usando código Morse, que lhe ensinara quando ele era criança.
Roy abriu os olhos e mirou a parede vazia à sua frente. Por algum motivo estava pintada de amarelo. Talvez achassem a cor tranquilizadora para os presos, como se uma simples cor pudesse superar o que significava estar ali.
Ted Bergin, Hilary Cunningham, Carla Dukes, Brandon Murdock, todos mortos. Pense em um padrão.
Fora isso que sua irmã lhe pedira para fazer.
E então ele fez, zelosamente. Examinou todas as combinações possíveis em sua mente.
Bergin e Dukes à queima-roupa com pistola. Cunningham assassinada e seu corpo levado à casa de Bergin. Murdock morto a longa distância com um rifle. Quem tinha motivos? Quem teve a oportunidade?
A mente de Roy verificou as possibilidades num ritmo que seria surpreendente para qualquer um que pudesse testemunhar seu processo de pensamento. A velocidade com a qual ele considerava e depois descartava possibilidades era tal que deixaria as pessoas comuns confusas durante meses.
Sua mente se desacelerou, sua base factual exaurida. Roy não havia recebido muito com que trabalhar, mas, para ele, fora o suficiente. Não detectara um único padrão.
Detectara quatro. Mas não tinha como informar à irmã. Talvez nunca mais a visse de novo.

53
CONDUZIDO POR UMA ESCOLTA armada, Bunting andou pelos corredores da nova sede do Departamento de Segurança Interna em Washington. Era um grande complexo cujo preço nunca fora revelado, por ser sigiloso. Bunting sabia que isso basicamente significava que alguém estava enriquecendo sem muito esforço.
Bunting foi deixado na sala e a porta se fechou e trancou automaticamente atrás dele. Olhou para a sala vazia e se perguntou se o haviam levado ao lugar errado. Suas dúvidas sumiram quando Mason Quantrell e Ellen Foster surgiram de uma sala adjacente.
– Sente-se, Peter, isto não deve demorar – disse Ellen Foster.
Ela abriu um laptop que estava diante da cadeira que ocupara enquanto Quantrell se sentava ao seu lado. Ele sorriu para Bunting e o cumprimentou:
– Como vai, Pete?
Bunting o ignorou e disse para Ellen Foster:
– Secretária Foster, mais uma vez preciso lhe dizer que estou extremamente desconfortável tendo meu principal concorrente na sala durante uma conversa confidencial.
– Peter, não temos segredos entre nós, temos? – disse ela, com afetação.
– Na verdade, temos. Emprego muitas pessoas que realizam um trabalho muito especializado usando procedimentos, protocolos, softwares e hardwares, algoritmos e coisas que gastei anos e muito dinheiro criando.
Ele olhou de relance para Quantrell, que continuava a encará-lo com o que parecia ser uma expressão divertida, deixando Bunting com vontade de pular sobre a mesa e estrangulá-lo.
– Bem, Pete, na configuração atual do Programa E, todos os seus concorrentes precisam enviar os próprios dados para o seu uso – falou Quantrell. – Também gastei muito dinheiro montando meu negócio. Mas eu sei compartilhar.
Pelo contrário. Bunting sabia que, ao longo dos anos, Quantrell só havia fingido colaborar, e ainda recebia um cheque do governo. Ele só estava esperando uma chance de derrubar Bunting. E claramente acreditava que a chance tinha chegado.
– Bem, Mason, tenho certeza de que se você tivesse criado o Programa E, seria inteligente o bastante para saber que ele é muito melhor do que a forma como todos nós operávamos na Idade das Trevas, ou seja, quando você era o líder do setor privado e cada um seguia numa direção diferente. Sabe, quando houve o 11 de Setembro?
O sorriso arrogante de Quantrell desapareceu e ele rosnou:
– Você não tem a menor ideia de com quem está lidando, seu idiota.
– Muito bem, rapazes, não temos tempo para briguinhas infantis – advertiu a secretária Foster.
Bunting se sentou diante deles e esperou.
Ellen Foster digitou sua senha e algumas teclas do computador, leu a informação na tela e a mostrou para Quantrell. Este olhou de relance para Bunting e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Se eles queriam intimidá-lo, pensou Bunting, estavam fazendo um ótimo trabalho. Mas seu rosto permaneceu indecifrável. Ele também sabia jogar.
– Nós temos uma agenda? – perguntou. – Para a reunião?
Ellen lhe fez um sinal para esperar um momento enquanto parecia enviar um e-mail. Ela fechou o laptop, ergueu os olhos para ele e disse:
– Agradeço sinceramente por ter vindo tão rápido, Peter.
– Eu faço o que posso – respondeu Bunting de má vontade.
A secretária Foster pôs os cotovelos na mesa e prosseguiu:
– Tenho uma pergunta pertinente e gostaria de uma resposta honesta.
Bunting a olhou sem entender e rebateu:
– Espero que acredite que sempre sou honesto com a senhora.
– Acontece que a pergunta não é muito difícil, mas talvez a resposta seja. – Ela fez uma pausa. – Você mandou matar o advogado de Edgar Roy, Ted Bergin, sua secretária, Hilary Cunningham, a diretora de Cutter’s Rock, Carla Dukes, e o agente especial do FBI, Brandon Murdock?
Por um momento o cérebro de Bunting parou de funcionar. Então ele gritou:
– É claro que não! Não posso acreditar que me fez essa pergunta.
– Por favor, acalme-se. Sabe quem os matou? Caso saiba, precisamos muito que nos diga.
– Eu não mando matar pessoas. Não tenho a menor ideia de quem fez isso.
– Bravatas não vão funcionar. Sabe quem os matou? – perguntou ela de novo.
Bunting olhou para Quantrell.
– Por que ele está aqui?
– Porque eu pedi que estivesse. Na verdade, ele tem ajudado muito a reunir algumas informações para o Departamento de Segurança Interna.
Bunting pôs uma das mãos na mesa para se firmar e perguntou:
– Que tipo de informações?
– Digamos apenas que o pessoal do Sr. Quantrell andou investigando e descobriu alguns fatos interessantes.
– Como quais? – insistiu Bunting.
– Não estou preparada para discuti-los com você agora.
– Se está fazendo acusações, acho que tenho todo o direito de saber em que se baseiam. – Ele lançou um olhar furioso para Quantrell. – Principalmente se este homem estiver envolvido. Ele mataria a própria mãe para recuperar o negócio que lhe tomei porque era mais inteligente do que ele.
Quantrell se levantou como se estivesse prestes a pular em Bunting por sobre a mesa. Ellen Foster o conteve com a mão e olhou para Bunting com desdém.
– Mais um comentário desses, Peter, e serei forçada a tomar uma atitude que realmente não desejo tomar.
– Quero que seja registrado que tudo que este homem lhe disse sobre mim é maculado pelo fato de que ele quer destruir o Programa E.
– Está disposto a passar por um detector de mentiras? – perguntou Ellen.
– Não sou um suspeito na investigação.
– Então isso é um não? – perguntou Quantrell.
– Sim, é um não – respondeu raivosamente Bunting.
Quantrell sorriu, olhou de relance para Ellen Foster e balançou a cabeça. Ela disse:
– Peter, espero que você tenha noção da gravidade da situação.
– Não tenho a menor ideia do que a senhora está falando, senhora secretária. Não tenho mesmo.
Se eles tivessem posto um monitor de frequência cardíaca em Bunting, neste momento provavelmente o levariam correndo para a emergência hospitalar. Mas então ele se deu conta de que aqueles dois idiotas seriam capazes de deixá-lo morrer bem ali no chão.
– Última chance, Bunting – avisou Quantrell.
– Última chance de quê? De me sentar aqui e confessar crimes que não cometi? – disparou ele. – E você, Mason, não tem nenhum direito de exigir nada de mim, portanto pare de agir como se fosse do FBI. É patético.
– Isso não é exatamente verdade – disse Ellen Foster.
– O que disse? – perguntou Bunting cautelosamente.
– Você sabe que os setores público e privado se tornaram cada vez mais indistintos. A empresa do Sr. Quantrell recebeu a incumbência de expor corrupção e ilegalidades na área da inteligência. Por isso, ele e seu pessoal receberam certa autoridade governamental.
Bunting olhou para Quantrell sem poder acreditar.
– Como aconteceu com os mercenários idiotas no Oriente Médio, que atiravam primeiro e faziam perguntas depois? Aquilo foi um triunfo espantoso para a reputação global dos Estados Unidos.
– É assim que as coisas são – disse Ellen. – E quem mais teria motivo para matar aquelas pessoas? Foi por que elas descobriram sobre o Programa E?
– Seu programa – destacou Quantrell. – Aquele que você fica jogando na nossa cara.
– De onde exatamente está vindo tudo isso? – perguntou Bunting.
– Vou lhe dizer. Está vindo exatamente do diretor do FBI. Ele me fez perguntas, Peter, perguntas a que eu tinha o dever de responder. Por isso, temo que agora você seja um suspeito – respondeu a secretária.
– Entendi – disse Bunting friamente. – O que exatamente disse ao diretor?
– Sinto muito. Não posso contar.
– Então sou um suspeito, mas a senhora não pode me contar o motivo?
– Não depende de mim. Na verdade, tentei protegê-lo.
Uma ova que tentou.
– Não há nenhuma prova de que eu tenha feito algo errado – disse Bunting.
– Bem, estou certa de que o FBI está trabalhando nisso agora – respondeu Foster.
Bunting digeriu aquilo tudo e perguntou:
– É só isso?
– Suponho que sim – respondeu a secretária Foster.
Bunting se levantou.
– É melhor eu voltar ao meu trabalho.
– Enquanto pode – observou Quantrell.
– Seis corpos no celeiro. Número interessante – disse Bunting.
Quantrell e Foster olharam para ele impassivelmente.
– Seis corpos. O programa E-Seis? Se eu não soubesse das coisas, pensaria que alguém estava fazendo uma piada de mau gosto comigo.
Quando Bunting se virou para ir embora, Ellen Foster disse:
– Peter, se por algum milagre você for inocente, espero que consiga sair disso ileso.
Ele se virou para ela e rebateu:
– Desejo-lhe o mesmo, senhora secretária.

54
BUNTING PASSOU O CURTO VOO no G550 olhando para uma grande massa de nuvens preguiçosas. Mal notou que o avião havia aterrissado até a comissária de bordo lhe entregar seu casaco e dizer que o carro estava esperando. A ida para a cidade demorou mais do que o voo. A empregada o cumprimentou à porta de sua mansão de arenito pardo na Quinta Avenida.
– Minha esposa está? – perguntou à mulher, uma latina de baixa estatura.
– Está no escritório dela, Sr. Bunting.
Ele a encontrou revendo os detalhes de outro evento de caridade. Bunting não sabia qual, porque sua esposa estava envolvida em muitos. Sabia que todos eram por uma boa causa e também permitiam que ela e suas amigas se vestissem com elegância, fossem a lugares chiques, comessem boa comida e se sentissem maravilhosas em relação a si mesmas e ao que faziam para pessoas que não moravam nas casas de 20 milhões de dólares da Quinta Avenida. Mas pensar assim era injusto. Sua esposa fora a hospitais sem nenhum fotógrafo a reboque e segurara bebês com aids e filhos de mães viciadas em crack durante horas, porque queria ajudar, sentia compaixão por eles. Era voluntária em distribuições de sopa para pobres, e lia em abrigos para moradores de rua e frequentemente levava os filhos para que eles vissem que a vida não era tão maravilhosa para todos. Eles haviam criado uma fundação que canalizava dinheiro e assistência para as pessoas pobres e sem escolaridade da cidade.
E eu não faço nada disso.
Mas mantenho o país seguro. Essa costumava ser sua resposta fácil para explicar por que ele não participava dos empreendimentos filantrópicos da mulher. Mas agora não parecia muito convincente.
Bunting beijou a esposa, que o olhou surpresa. Ele não chegava em casa tão cedo havia anos.
– Está tudo bem no trabalho? – perguntou ela, preocupada.
Bunting sorriu e se sentou diante dela no escritório primorosamente decorado que, sozinho, provavelmente custara uns 250 mil dólares.
Ele queria falar com a esposa sobre seus problemas, mas, para que isso acontecesse, ela precisaria de credenciais de segurança. E ela não tinha nenhuma. Nem uma única, enquanto ele tinha a mais alta de todas. Era como viver com alguém de outro planeta. Bunting nunca podia falar sobre trabalho com a mulher que amava. Nunca. Então ele simplesmente sorriu, embora tivesse vontade de gritar a plenos pulmões, e respondeu:
– Está. Quis vir para casa passar um pouco de tempo com você e as crianças.
– Ah, bem, tenho de sair para um evento de caridade no Lincoln Center. O trabalho de restauração que eles fizeram ficou lindo. Você deveria ir comigo um dia desses.
– Certo, eu vou – disse ele. – Um dia desses. E as crianças?
– Estão na casa da minha irmã. Lembra? Conversamos sobre isso. Voltarão amanhã de manhã. Nós falamos sobre isso – acrescentou gentilmente.
O sorriso no rosto de Bunting desapareceu. Sou um idiota. Basicamente gerencio o serviço secreto do país para manter todos os americanos seguros, mas não sei onde meus filhos estão.
Ele tentou achar graça nisso.
– Sim, eu sei. Tenho algumas coisas para fazer no meu escritório.
Bunting foi para o quarto, deixou o paletó de 2 mil dólares cair no chão, desatou a gravata de 300 dólares, serviu-se de uma bebida no minibar na sala de estar ao lado e olhou pela janela para o céu que escurecia. O outono havia chegado com temperaturas mais frias e tempo mais fechado. Isso só aumentava sua depressão.
Ele olhou ao redor no quarto, projetado por um designer com um nome só citado o tempo todo no tipo de revistas que Bunting nunca lia. Tudo era elegante, impecavelmente limpo e no devido lugar. Toda a sua casa podia aparecer numa revista. Mas nunca apareceria, em virtude do que ele fazia para ganhar a vida. Os chefões da espionagem do país esperavam que seus lacaios levassem uma vidinha discreta, e não corressem gritando pelos corredores com maços de dinheiro nas mãos gorduchas.
Bunting também tinha uma biblioteca cheia de livros com belas capas de couro, muitos dos quais eram primeiras edições de clássicos da ficção. Ou, pelo menos, fora o que ele tinha ouvido falar. O designer com um nome só e sua esposa haviam comprado todos em um único lote. Bunting nunca lera nenhum. Não tivera tempo. Ele não era um grande entusiasta de ficção. Toda a sua vida era pautada em fatos reais.
Ele desceu um lance de escada para seu escritório e passou cerca de uma hora trabalhando. Então, incapaz de se concentrar, desligou o computador, esfregou os olhos e voltou para o andar de cima, onde sua esposa estava terminando de se vestir para a saída noturna.
– Você pode ir comigo – sugeriu ela. – Sou do conselho diretor. Certamente posso lhe conseguir um lugar.
– Obrigado. Talvez outro dia. Estou exausto.
Ela se virou, afastou os cabelos e apontou para o zíper nas costas.
– Pode me ajudar, querido?
Antes de fechar o zíper, Bunting olhou para dentro do vestido, para a pequena calcinha que ela usava. Abaixou a mão e apertou suas nádegas macias.
– Pensei que você tinha dito que estava exausto – brincou ela.
– Isso foi antes de ver você nua.
– Seu senso de oportunidade é incrivelmente ruim.
– Eu sei – admitiu ele.
Depois de fechar o zíper do vestido, ele passou a mão pelas costas lisas da esposa, o que a fez estremecer um pouco. Ela o olhou e sorriu ao dizer:
– Não devo voltar tarde esta noite, se você realmente quiser brincar um pouco. Comprei lingerie nova.
– Seria ótimo – disse ele, momentaneamente se esquecendo de que as pessoas estavam caindo ao seu redor e de que enfrentava o colapso profissional ou até mesmo a possibilidade de morte precoce e violenta.
Esse pensamento comparado com a felicidade de sua vida doméstica o fez se sentir subitamente tonto.
Ela o beijou e disse:
– Leon vai me levar de carro. Vai esperar para me trazer de volta. Ou poderá vir direto para cá, caso você precise do carro.
– Não, não planejo sair. Eu a verei mais tarde, querida.
Bunting a observou partindo. Com 46 anos, sua esposa ainda era muito bonita. Eles estavam casados havia mais de 17 anos, mas todo ano parecia o primeiro.
Sou um homem de muita sorte. Em alguns aspectos. Em outros, nem tanto.
O tempo passou enquanto Bunting perambulava pela casa com um segundo copo de gim balançando precariamente na mão. Ele o terminou e mastigou os cubos de gelo, sugando a última gota de álcool.
Ellen Foster e Maison Quantrell estavam obviamente nisso juntos havia muito tempo. Bunting possuía informantes em toda parte, mas eles não tinham descoberto essa pequena aliança. O Programa E, apesar de seu valor comprovado, ardia em chamas. E aqueles dois estavam prontos para sair desse incêndio com seus impérios não só intactos, como muito maiores. E Bunting?
Eu serei morto ou preso. Eles tramaram muito bem contra mim.
Bunting tinha telefonado para James Harkes e ele não lhe retornara. Estava claro o que isso significava. Harkes deveria ser seu cão de guarda. Mas agora ele tinha voltado para o verdadeiro dono, como Cérbero para Hades.
Bunting esfregou a testa. Harkes fora plantado. Por Foster, Quantrell ou ambos. Se ele tinha matado aquelas pessoas? Se o FBI achava que Bunting... Estava certo de que havia provas suficientes para que ele fosse preso para sempre, tudo muito bem plantado. Ellen Foster era muito meticulosa.
Ele se sentou na beira da cama. A manta havia sido feita à mão na Itália. Custara mais do que as mensalidades de seu primeiro ano inteiro de universidade. Ele nunca tinha pensado nisso. E não se concentrou nisso naquele momento. Compraria cem mantas daquela, se conseguisse deixar tudo para trás.
Bunting respirou profundamente e sentiu o cheiro de álcool que exalava de sua boca. Fazia cócegas em seu nariz, o aquecia. Serviu-se de outro gim, deixou que ele descesse pela garganta, caísse no estômago e lhe desse um arrepio, como se ele estivesse mergulhando nu em água gelada.
Seu telefone vibrou. Bunting o tirou do bolso e o olhou desanimadamente quando viu quem era. Pensou em não atender, mas então o hábito foi mais forte e ele cedeu.
– Sim, Avery?
– Acabei de receber um telefonema de Sean King. Ele quer uma reunião.
Bunting não disse nada. Sentiu uma pontada dolorosa no peito.
– Sr. Bunting?
– Sim? – Ele tentou manter a voz firme, mas a ouviu falhar.
– Ele quer uma reunião.
– Eu ouvi. Com você?
– Não, com o senhor.
Bunting pigarreou e tentou produzir um pouco de saliva na boca.
– Quando?
Avery não disse nada.
– Quando?
– Ele disse que está diante da sua casa agora.

55
KELLY PAUL ABAIXOU O BINÓCULO e estudou a paisagem em volta enquanto a tarde se transformava em noite no leste do Maine. Tinha um bloco e uma caneta. Fez algumas anotações: números, localizações de coisas, graus na bússola, obstáculos e possíveis pontos vantajosos. Olhou para o oceano. A água estava calma. Desse ângulo no alto, Cutter’s Rock não parecia tão intimidadora.
Ela ergueu o binóculo mais uma vez quando uma van passou pela segurança e chegou aos portões da prisão. Ajustou o alcance e estudou o que estava escrito na lateral da van. Concluiu que Cutter’s Rock devia estar com problemas no sistema de energia. E aqueles homens estavam ali para consertá-lo. Eles ficaram lá dentro por quase duas horas, e então fizeram algum trabalho em um segundo prédio muito menor, atrás do principal. Depois saíram, puseram o equipamento na van e foram embora.
Kelly abaixou o binóculo quando a van saiu do campo de visão.
A prisão federal, concluiu, era uma cebola com camadas que precisavam ser descascadas. Depois que Sean havia lhe falado sobre o lugar, Kelly fizera Michelle lhe contar detalhadamente sobre o outro par de olhos que vira em Cutter’s Rock. Ela explicara a localização aproximada. Era por esse motivo que Kelly estava ali, para ver por si mesma. Era um bom ponto de observação. Podia entender por que tinha sido escolhido.
Ela olhou para as plantas da prisão que tinha na mão. Fora difícil obtê-las, mas, ao longo dos anos, muita gente ficara lhe devendo favores e ela não conseguia pensar num motivo melhor para cobrá-los. Também ficara sabendo que Cutter’s Rock tinha um novo diretor substituindo a falecida Carla Dukes. Estava certa de que essa nova pessoa fora tão cuidadosamente escolhida quanto a última, talvez ainda mais. Kelly fez anotações, depois deu alguns telefonemas do celular. Suspeitara de que certas ações táticas estivessem em andamento, e suas observações confirmaram isso. Ela precisava de ajuda. Com esses telefonemas, cobrou mais favores e obteve os recursos de que precisava. O fato de ninguém ter lhe dito não ou ao menos questionado por que ela queria fazer isso era uma prova da qualidade do trabalho que realizara na área nas últimas décadas.
Kelly guardou o telefone, refez seus passos e entrou de novo no carro alugado. A volta para Machias foi rápida, mas ainda assim lhe deu um tempo precioso para pensar. Encontrou Megan Riley na sala da frente da pousada. Megan estava com seu laptop, blocos de notas e documentos legais espalhados diante dela em uma grande mesa oval que a Sra. Burke lhe permitira usar como escrivaninha. Kelly Paul se sentou diante da advogada.
– Está sendo produtivo? – perguntou.
Megan mordeu a ponta do seu lápis e ergueu os olhos para a mulher.
– Depende de como você define produtivo – falou ela.
– Fazendo progresso?
– Muito pouco. Não é fácil.
– De fato, as coisas importantes na vida nunca são fáceis.
– Sean e Michelle saíram de novo.
– Eu sei.
– Para onde?
– Não sei.
– Ou não quer me dizer.
– Por que acha isso?
– Porque todos pensam que sou uma advogada principiante que vai estragar tudo.
– Você é, e talvez estrague.
– Obrigada. Obrigada pela confiança.
– Confiança se conquista.
– Estou fazendo o melhor que posso.
– Está absolutamente certa disso?
– Você é sempre tão grossa?
– Você ainda não me viu sendo grossa. A minha grosseria é inconfundível.
– Quero estar por dentro de tudo.
– Você também tem de conquistar esse direito.
Megan se reclinou em sua cadeira e observou a mulher.
– Certo. Por que não me conta algumas coisas sobre seu irmão? – Megan apontou para os documentos. – Estou tentando redigir petições para tirá-lo de Cutter’s Rock. Preciso ter algum argumento além da falsa insanidade dele.
– Falsa?
– Vi o que aconteceu em Cutter’s Rock. Você estava se comunicando de algum modo com ele.
– Talvez eu estivesse, talvez não. Sean disse que a perícia forense ajudará. Terra diferente nos corpos. Isso é algo que você pode usar.
– Mas é apenas um ponto de evidência, algo para o júri decidir. Não retirará as acusações.
– Retirar as acusações não é necessariamente o objetivo. Precisamos pressionar certas pessoas. Precisamos que elas saibam que há muita coisa em jogo. Mais do que meu irmão ser executado por crimes que não cometeu.
– Bem, redigir petições idiotas não fará isso.
– Poderá fazer, se executarmos o plano precisamente.
– E como chegaremos a essas pessoas?
– Acredito que Sean e Michelle estão tentando fazer isso agora.
– E quem são essas pessoas?
Kelly permaneceu em silêncio.
Megan fez beicinho e cruzou os braços.
– Sou eu quem está defendendo este caso para salvar seu irmão.
– É uma companhia no ramo da inteligência.
– Essa companhia tem um nome? Poderia ter uma relação direta com o caso.
– Não estou inclinada a dar essa informação agora.
– Então você realmente sabe?
– Talvez.
– Você não está facilitando as coisas.
– Eu não esperava que as coisas fossem fáceis.
Kelly Paul se levantou e foi embora, deixando Megan emburrada.

56
BUNTING POUSOU O TELEFONE e correu para a janela que dava para a rua. Estava totalmente escuro lá fora, exceto pelos faróis dos carros e postes de luz. Ele olhou o relógio. Eram quase dez horas. Examinou a área em volta da casa. Por um momento, teve uma leve esperança de que fosse apenas um blefe. Mas, então, viu o homem alto do outro lado da rua, do lado do parque, sob um poste de luz perto de uma árvore.
Aparentemente Sean King o vira também, na janela. Ele ergueu o celular.
Bunting se afastou da janela e pensou no que fazer. Geralmente, ele ligaria para Harkes e pediria que cuidasse disso. Mas essa não era mais uma opção.
Tenho de lidar com isso sozinho. E, talvez, seja uma questão de tempo.
Ele vestiu o paletó e foi para o andar inferior. Passou pela empregada, que lhe acenou com a cabeça respeitosamente. Passou pela cozinheira, que fez o mesmo. Tentou sorrir, embora o coração batesse forte no peito. Quando um de seus seguranças pessoais à porta da frente o olhou indagadoramente, Bunting disse:
– Só vou dar uma caminhada rápida. Você pode permanecer aqui.
– Mas, senhor...
– Fique aqui, Kramer, ficarei bem. É só uma caminhada.
O homem deu um passo atrás e abriu a porta para o patrão.
Bunting controlou seus nervos, endireitou os ombros e saiu, totalmente sozinho.
Sean esperou Bunting atravessar a rua antes de se aproximar.
– Sr. Bunting, obrigado por se encontrar comigo.
– Não sei bem como você sabe quem eu sou – disse Bunting friamente.
Sean olhou de relance para as poucas pessoas que andavam pela rua.
– Talvez fosse melhor irmos a algum lugar um pouco mais reservado.
– Primeiro eu gostaria de saber o que você quer.
As feições de Sean se endureceram ao dizer:
– Podemos perder tempo, se quiser. Perdemos tempo demais e então as coisas ficam fora de controle. Fora do controle de todos.
Em vez de responder, Bunting se virou e andou. Sean o seguiu. Minutos depois, eles estavam nos fundos de uma cafeteria vazia, encarando-se, enquanto a garçonete lhes servia xícaras de café.
– O que você quer? – perguntou Bunting depois que a mulher se afastou.
– Edgar Roy?
Bunting não disse nada.
– O senhor o conhece.
– Isso não pareceu uma pergunta.
– É um fato.
– Mais uma vez, o que você quer?
– Roy está sendo acusado de assassinato. Atualmente está numa cela em Cutter’s Rock. O senhor sabe disso tudo. Tem ido visitá-lo.
– Você tem informantes?
Sean se recostou e tomou um pouco de café. Estava fresco e quente, e aqueceu seus ossos congelados pela espera diante da fabulosa mansão.
– Muitas pessoas morreram. Meu amigo Ted Bergin. A secretária dele. Sua enviada, Carla Dukes. Um agente do FBI. Para não mencionar os seis corpos no celeiro de Edgar Roy.
Bunting pôs um pouco de açúcar no café.
– Você tem alguma ideia de no que está envolvido?
– O senhor está muito encrencado, Sr. Bunting. Pode perder tudo.
– Obrigado por sua avaliação do meu futuro. Acho que já ouvi o bastante.
Bunting começou a se levantar, mas Sean pôs uma das mãos em seu pulso.
– Todo mundo diz que o senhor é um homem muito inteligente. Seu trabalho torna os Estados Unidos mais seguros. Se eu achasse que o senhor era um vilão, não estaria aqui. Eu o deixaria afundar na própria lama.
Bunting voltou a se sentar.
– Você não tem como saber que não sou um vilão. – Ele examinou Sean mais atentamente. – Então isto é um teste? E como estou me saindo?
– O senhor veio se encontrar comigo. Pergunte a si mesmo por quê.
Sean fez uma pausa para deixar Bunting assimilar a ideia.
– Porque sabe que as coisas estão fora de controle. Sabe que sua liberdade pessoal está em risco. Sabe que, se podem matar um agente do FBI, por que não matariam o CEO de uma fornecedora de serviços de inteligência, fazendo parecer um acidente? – Ele fez outra pausa. – O senhor tem três filhos.
– Deixe meus filhos fora disso – vociferou Bunting.
– Eu nunca faria nada com sua família. Sou um dos mocinhos. Mas o senhor realmente pensa que as pessoas com quem trabalha a consideram intocável?
Bunting desviou os olhos. A resposta para essa pergunta ficou clara em sua expressão desesperada.
– O senhor está nadando com os tubarões, Sr. Bunting. Tubarões que atacarão qualquer um ou qualquer coisa. Eles são predadores.
– Você acha que não sei disso? – retrucou Bunting em um tom deprimido. – Não tive nada a ver com a morte daquelas pessoas. O que aconteceu com elas me enoja.
– Realmente acredito no senhor.
– Por quê? – Bunting pareceu surpreso.
– O senhor saiu do seu palácio e teve a coragem de se encontrar comigo, sozinho. Isso diz muito.
– Não é nem de longe tão fácil quanto você pensa que é, King. As pessoas envolvidas, praticamente não há limites para o que elas podem fazer.
– Edgar Roy é a chave. E se sua inocência for estabelecida e ele for solto de Cutter’s Rock?
– Isso é um grande “se”.
Sean debruçou-se na mesa.
– Acho que o senhor tem que se fazer uma pergunta, Sr. Bunting.
– Qual?
– Quer ficar na água com os tubarões, ou tentar chegar a terra firme? Se ficar na água, só posso ver um fim para o senhor. Discorda?
– Não, não discordo – disse Bunting francamente. – Entrarei em contato. – Ele fez uma pausa. – E aprecio o que está tentando fazer. Especialmente por Edgar. Ele não merece nada disso. É uma pessoa boa e gentil, com um cérebro realmente único. Só que foi preso por forças sobre as quais não sabe nada.
Quando ele se levantou, Sean pôs uma das mãos em seu braço ao concluir:
– Sei que o senhor precisa de tempo para pensar nisso, mas lembre-se de que tempo é um luxo que não temos.
Bunting quase sorriu.
– Acredite em mim, eu sei. Mas, deixe-me lhe dizer mais uma coisa. Mesmo se provarmos que Edgar é inocente, talvez isso não termine.
– Por quê?
– Porque o jogo é esse.
– Isso não é um jogo! – retorquiu Sean.
Bunting deu um sorriso cansado.
– Tem razão. Mas algumas pessoas ainda pensam que é. E o jogam por tudo o que representa.

57
SEAN APRESSOU O PASSO. Tinha pouca gente na rua, porque o tempo piorara. Chovia e o vento era forte.
Uma voz entrou em seu ouvido direito pelo fone que colocara lá.
A voz de Michelle estava tensa:
– Sean, tem um Escalade preto com janelas de vidro fumê e placas de fora do estado atrás de você.
– Pode não ter nada a ver comigo.
– Ele está correndo e costurando no trânsito sem nenhum motivo aparente.
– Bunting telefonou para alguém?
– Não que eu visse. Ele ainda está voltando para casa a pé, com as mãos nos bolsos. Mas ele pode ter sido seguido, e então esperaram que vocês dois se separassem para ir atrás de você.
– Certo, qual é a melhor manobra?
– Pegue o parque na próxima entrada. Ande mais rápido. Agora.
Sean começou a andar o mais rápido que podia, sem realmente correr e chamar uma atenção desnecessária. Pôs a mão no bolso do casaco e segurou a pistola que Kelly Paul lhe dera. Arriscou olhar para trás. Viu o veículo. Escalade preto, janelas de vidro fumê, placas provavelmente falsas. Tinha uma aparência sinistra.
Ele virou para a direita e entrou no parque.
Ouviu a voz de Michelle de novo.
– Mantenha à esquerda no caminho. Há algumas pessoas lá.
– Testemunhas não deterão esses caras, Michelle. Eles vão mostrar os distintivos, verdadeiros ou não, e acabarão me levando do mesmo jeito.
– Então vire à direita na próxima trilha e corra. Isso me dará tempo para pensar em algo.
– Onde você está?
– Neste momento, em cima de uma árvore de onde posso ver tudo. Vá.
Sean fez exatamente o que Michelle ordenara. Sabia que ela era boa, uma das melhores nesse tipo de coisa, mas também sabia que o outro lado tinha enviado seus melhores homens. E, certamente, eles estavam em maior número.
Ele apressou o passo e virou à direita, seguindo as instruções. Um casal à frente passeava com os filhos. Sean passou por eles o mais rápido possível. A última coisa que queria era um tiroteio no meio de um bando de crianças.
– Agora vire à esquerda – disse Michelle em seu ouvido.
Ele virou e se deparou com uma grande pedra rodeada por algumas flores murchas.
– Contorne a pedra e siga a trilha – instruiu Michelle. – Vá. Vá!
Sean King foi.
Havia cinco homens atrás dele. Todos armados, todos com credenciais que pareciam ser do FBI e todos com uma única missão.
Capturá-lo.
O líder os orientou e eles se espalharam pelo parque uns 40 metros atrás de onde tinham visto a presa pela última vez. Dois outros homens patrulhavam as saídas do parque por onde Sean poderia chegar à Central Park South.
Um dos homens fez uma curva no caminho. Estava com a mão no bolso, segurando a arma. Isso significava que só tinha uma das mãos livre para se defender.
Não era suficiente.
A bota o atingiu bem no maxilar, quebrando-o. Ele se curvou e a arma em seu bolso ficou evidente. O segundo chute quebrou seu antebraço e fez a arma cair com a boca virada para o chão. O terceiro golpe atingiu sua nuca uns 3 centímetros abaixo da medula, e ele acordaria dali a algumas horas com uma enorme dor de cabeça, além de estar com os ossos quebrados.
Rápida como o vento, Michelle passou ao próximo alvo.
Dois dos outros homens se reuniram, analisaram o terreno e depois se separaram de novo. O primeiro homem foi para o noroeste e o outro na direção oposta. Na crescente escuridão, o segundo homem não notou que a pessoa que passava por ele – usando um casaco preto comprido e um boné afundado na cabeça – parecia familiar até ser tarde demais. O punho se enterrou em seu rim. Ele se dobrou com uma dor violenta e foi atingido por um forte chute no maxilar. Caiu no chão inconsciente, o rosto ferido já inchando.
Michelle continuou a andar.
– Sean – chamou ela pelo microfone de punho –, cadê você?
– Saindo na Central Park South, perto das charretes.
– Não faça isso. Eles estarão cobrindo a área. Vá na direção de Columbus Circle, mas permaneça no parque.
– Qual é seu status?
– Dois no chão e mais alguns para derrubar.
Michelle se moveu, mas não rápido o suficiente. O golpe veio na direção de sua cabeça e a atingiu no ouvido. Ela tombou, encontrou apoio no caminho asfaltado, girou, pôs seu peso no pé direito e deu um chute no joelho esquerdo de seu agressor.
Michelle Maxwell adorava atacar joelhos. O joelho era a maior articulação do corpo, onde quatro ossos – a patela, o fêmur, o perônio e a tíbia – se juntavam como um entroncamento em uma rodovia e eram mantidos unidos por uma série de ligamentos, músculos e tendões. Era uma das partes mais complexas do corpo, essencial para a mobilidade.
Michelle o destruiu. Ela pressionou o agrupamento de ossos, rompendo músculos, tendões e ligamentos, que saltaram como molas; quebrou a patela e torceu o fêmur e o perônio para trás em ângulos em que eles nunca deveriam formar. O homem gritou e se encolheu no chão, segurando a perna arruinada.
Quando você acaba com o joelho, acaba com a briga. Os homens, mesmo os agentes treinados que Michelle conhecia, frequentemente tinham como alvo a cabeça, acreditando que sua força superior resultaria em um nocaute. Só que a cabeça era problemática. O crânio era grosso e, mesmo que você quebrasse o maxilar ou nariz de alguém, a pessoa não ficaria necessariamente incapacitada. Porém, se quebrasse o joelho, sim. Ninguém podia lutar bem com uma perna só, ou lutar com tanta dor.
Michelle usou o cotovelo num ângulo de 45 graus, que o tornava mais forte, para dar o golpe final na cabeça do homem. Ela descobriu as credenciais e o fone de ouvido e pegou também o rádio no cinto do homem. Por fim, abriu a camisa dele. Tudo o que viu foi pele branca. Nenhum colete à prova de balas. Era bom saber disso.
Ela pôs o fone no ouvido livre e escutou a conversa enquanto seguia em frente. Ficou claro que eles sabiam de sua presença. Pediram reforços. Michelle ouviu repetidamente alguns nomes, nenhum dos quais reconheceu. E ninguém identificou a que agência pertenciam, se é que pertenciam a alguma. Ela olhou a carteira de identidade e o distintivo que tirara do homem. Pareciam oficiais, mas eram de uma organização da qual nunca ouvira falar. Havia muitas delas agora e, quando você introduzia na equação o número assombroso de fornecedores particulares, as coisas ficavam rapidamente muito confusas.
Ela desligou o rádio e falou no próprio microfone.
– Sean, três no chão, mas eles pediram reforços. Qual é seu status?
– Chegando a Columbus Circle. Onde você está?
– Logo atrás de você. Quando chegar à praça, pegue um táxi e vá embora.
– E você?
– Eu me encontrarei com você na estação ferroviária, como combinamos.
– Michelle, não vou deixar você aqui...
– Sean, não banque o cavalheiro. Não temos tempo. Eu me encontrarei com você daqui a vinte minutos.
Então ela ouviu o clique do cão de uma arma sendo puxado para trás. E depois outro. Um na posição de quatro horas e outro na de sete horas. A 30 centímetros, no máximo. Eles vacilaram no posicionamento tático. Estavam muito perto dela. Perto demais.
Michelle fechou os olhos e planejou aquilo em sua cabeça.
O alvo na posição de quatro horas estava à sua direita, sua trajetória natural de movimento. Girar sobre o pé esquerdo, inclinar o tronco para baixo na mesma direção enquanto a perna direita dava um chute lateral no joelho direito, quebrando-o. Então, girar para o outro lado, abaixar e rolar enquanto o homem caía se contorcendo e gritando com seu membro arruinado e involuntariamente lhe fornecendo cobertura contra o outro atirador. Arma sacada, segura de lado com apenas uma das mãos e usando o espaço deixado pelo escudo humano para mirar o outro homem, que teria instintivamente se movido para a esquerda ao ver seu parceiro caindo na mesma direção do golpe de Michelle. Sem colete à prova de balas, de modo que um tiro no peito seria incapacitante, e depois daria outro na cabeça para matá-lo. Cotovelo no pescoço do homem na posição de quatro horas, que estaria vivo, e ela iria correndo para Columbus Circle.
Tudo aquilo era factível. As chances eram de 50%, talvez mais, se atingisse todos os alvos no momento certo.
O cálculo estava completo, exceto por uma variável. A esta altura Sean estava a salvo. Tinha de estar. Mais do que ela estava. Michelle abriu os olhos.
Contudo, antes de poder se mover, as pistolas dispararam.

58
NO PONTO DE TÁXI EM Columbus Circle, Sean ouviu os tiros e se virou na direção do parque. Em pânico, chamou pelo microfone.
– Michelle? Michelle, você está bem?
Nenhuma resposta.
– Michelle!
Silêncio.
Ele se virou para correr para o Central Park.
Pessoas o seguraram.
– Que...
Ele agarrou a arma. Eram dois homens.
– Vamos, vamos – disse um deles em seu ouvido.
– Quem diabo são...
– Kelly Paul – sussurrou o segundo homem em seu ouvido. – Agora ande.
– Mas minha parceira...
– Não há tempo. Vamos.
Eles o levaram de volta ao parque por outra entrada.
Um minuto depois, Sean foi empurrado para debaixo de um cobertor, no piso de uma das charretes que rodava lentamente pelo parque. Os dois homens desapareceram. O condutor, usando um chapéu velho e antiquado e uma capa de chuva preta comprida, deu uma leve chicotada e o cavalo acelerou.
Quando viu Sean puxar o cobertor de cima de si, o condutor disse:
– Fique coberto, amigo. Ainda não estamos livres.
Foi quando Sean sentiu um corpo perto dele. Apertou uma perna, depois a mão e o que parecia ser um seio.
– Puxa, seu senso de oportunidade é realmente péssimo.
– Michelle?
Ele moveu o cobertor até poder apenas distingui-la no escuro.
– Que diabo aconteceu lá? – perguntou.
– Situação difícil. Eu provavelmente não ia escapar, mas aí também tivemos reforços no Central Park.
– De Kelly Paul.
– Imagino que sim.
– Não se pode chamar isso de fuga rápida – observou Michelle.
O condutor a ouviu e disse:
– Às vezes é melhor ir devagar. O outro lado acabou de ir correndo atrás de uma isca que lançamos. Vocês já podem sair para respirar.
Ambos deslizaram para cima do banco, ao mesmo tempo em que baixavam o cobertor.
O motorista virou de lado e olhou para eles.
– Escaparam por pouco.
– Sim, por muito pouco – concordou Sean. – Conhece Kelly Paul? Como?
– Não vamos falar sobre isso.
– Acabou de nos fazer um grande favor.
– Vocês têm sorte de ela estar do seu lado.
– E quanto aos homens no parque? Os tiros?
– Sua amiga aqui neutralizou três deles. Ossos quebrados. Todos inconscientes. Os tiros que você ouviu foram das pistolas de dois outros, disparando bem quando nós os atacamos. Aparentemente, tinham ordens de matar sua amiga. Obviamente, erraram o alvo, mas por pouco. Nós, não. Eles vão viver. A cena será limpa. O relatório da polícia nunca será registrado. Isso nunca aconteceu. Oficialmente.
– Há pessoas muito influentes por trás deles – comentou Michelle.
– É óbvio – concordou o homem e se virou de novo para a frente.
– Então Kelly planejou isso? – refletiu Sean.
– Ela planeja tudo. Disse que vocês dois eram a ponta da lança. Mas uma lança também tem cabo. – Ele inclinou seu chapéu. – Nós somos o cabo.
– Obrigada – disse Michelle. – Ficamos lhe devendo essa.
– Vocês já deram toda a volta de charrete? – perguntou o condutor.
– Não – respondeu Sean. – E acho que não temos tempo para dar agora.
– Mas aceitaremos um convite para outra data – disse Michelle rapidamente, olhando de relance para Sean.
O condutor desacelerou a charrete perto de um cruzamento.
– Sigam direto por essa rua. Há um carro esperando, um Toyota vermelho de quatro portas. O homem ao volante se chama Charlie.
Michelle apertou a mão dele ao agradecer:
– Mais uma vez, obrigada. Eu estaria morta agora, se não fosse por vocês.
– Todos nós estaríamos mortos agora se não fosse por alguém – respondeu o condutor. – Basta vocês continuarem vivos para que nossos esforços não tenham sido em vão.
Sean e Michelle saltaram da charrete, andaram sob a lúgubre chuva, encontraram o carro e logo estavam a caminho da Penn Station.
Eles pegaram o Land Cruiser de Michelle em uma garagem próxima, abasteceram e, antes da meia-noite, estavam a caminho do norte. Michelle tinha trocado as placas do SUV por novas, só por precaução.
Enquanto eles deixavam Manhattan para trás, Sean estendeu a mão e apertou o braço de Michelle.
– Como disse o homem, escapamos por pouco. Muito pouco.
– Mas estamos vivos. É isso que importa.
– É?
Ela o olhou de relance enquanto trocava de pista e acelerava.
– O que quer dizer?
– Será que nós podemos mesmo continuar com isso até chegar ao ponto em que “escapar por pouco” se tornará “se ao menos ela não tivesse entrado pela outra porta”?
– Nós dois corremos riscos. Também poderia acontecer a você.
– Você corre muito mais riscos do que eu.
– Sim, e daí?
Sean afastou a mão, desviou os olhos e observou as luzes da cidade grande pelo espelho retrovisor até elas desaparecerem de vista.
– Sim, e daí? – repetiu Michelle.
– Não sei aonde quero chegar com isso.
– Acho que sabe sim.
– Está bem. Se fôssemos só nós dois, você estaria morta.
– Você fez o melhor que pôde. E qual era a alternativa? Não fazer nada?
– Talvez essa fosse a atitude inteligente.
– Talvez para nossa segurança, mas não para resolver o caso, o que calha de ser o nosso trabalho.
Como Sean ficou calado, ela acrescentou:
– Estamos em um negócio perigoso. Achei que nós dois sabíamos disso. É como jogar na liga nacional de futebol. Todos os domingos você sabe que vai levar uma surra, mas joga assim mesmo.
– Bem, os jogadores também se aposentam, antes que seja tarde demais.
– Não muitos. Pelo menos não voluntariamente.
– Bem, talvez devêssemos pensar nisso. Seriamente.
– E então o que faríamos?
– Há mais na vida do que isso, Michelle.
– Porque dormimos juntos?
– Provavelmente sim – admitiu Sean.
– Então agora temos algo a perder?
– Sim, um ao outro. Mas talvez você possa... você possa fazer outra coisa.
– Ah, entendi. Sou a mulher. Deixo o homem forte fazer o trabalho pesado, bancar o herói, enquanto fico em casa toda enfeitada assando biscoitos e tendo bebês.
– Eu não disse isso.
– Caso você tenha esquecido, eu sei cuidar de mim mesma.
– Estou certo disso.
– Então, se você realmente está entusiasmado com essa vidinha doméstica, por que você não fica brincando de casinha enquanto eu chuto portas e dou tiros?
– Não poderia viver assim. Sempre preocupado com a possibilidade de você não voltar para casa.
Ela pegou uma saída, parou a caminhonete no acostamento, pôs o câmbio ponto morto e olhou para Sean.
– Bem, como você acha que eu me sentiria se eu ficasse em casa esperando?
– Que nem eu – disse ele em voz baixa.
Ela assentiu com a cabeça.
– Isso mesmo. Que nem você. Se estivermos aqui juntos, pelo menos teremos um ao outro. Poderemos contar um com o outro para chegar em casa todas as noites.
– E se nós dois nos déssemos mal? Como quase aconteceu esta noite?
– Não consigo pensar em nenhuma forma melhor de morrer. E você?
Depois de um longo momento de silêncio, ele bateu no volante.
– Vamos lá. Temos um trabalho a fazer.
– Então agora estamos em sintonia?
– Na verdade, acho que sempre estivemos.

59
O SUV CANTOU PNEUS AO frear na Quinta Avenida. A porta se abriu, dois homens corpulentos saltaram, ergueram Peter Bunting totalmente da calçada e o jogaram dentro do veículo antes de ele se dar conta do que estava acontecendo. O carro se afastou rapidamente e Bunting se viu sozinho entre seus dois captores. Eles não responderam às suas perguntas. Em nenhum momento olharam para ele.
Ele foi levado a um lugar subterrâneo e altamente protegido. Um lugar sobre o qual os nova-iorquinos podiam andar milhões de vezes por dia sem nunca saber que existia. A sala era escura. Bunting ergueu os olhos para o homem, com medo.
James Harkes parecia diferente de em reuniões passadas. Estava vestido da mesma maneira, com um terno preto que mal escondia seu corpo musculoso. Mas sua atitude era diferente. Ficou totalmente claro que Bunting não estava mais no comando.
Se é que eu estive algum dia, pensou Bunting.
Harkes estava. Ou a pessoa que mandava nele e, agora, Bunting tinha uma boa ideia de quem era.
– Vamos rever mais uma vez seu relato, Bunting.
Não era mais Sr. Bunting.
– Já o revimos três vezes. Eu lhe disse tudo.
– Vamos rever até eu ficar satisfeito.
Quando Bunting terminou, Harkes disse:
– Por que você foi se encontrar com Sean King?
– Está cuidando da minha agenda agora?
Harkes não respondeu. Digitava algo no BlackBerry. Quando terminou, ergueu os olhos.
– Há algumas pessoas, todas conhecidas suas, que não estão felizes com seu desempenho recente.
– Eu já sabia disso – retrucou Bunting. – Se isso é tudo que você tinha para me dizer, eu gostaria de ir agora.
Harkes se levantou, foi até a parede e ligou um interruptor. A parede subitamente se tornou transparente. Quando Bunting se aproximou, viu que era um espelho falso. Seu assistente, Avery, estava em uma sala muito iluminada. Bunting viu que ele estava preso a uma maca. Havia um cateter intravenoso em cada um dos seus braços. O jovem se contorcia de medo. Sua cabeça fora virada de modo a dar a impressão de ele estar olhando diretamente para Bunting, ainda que isso fosse impossível. Com o vidro especial e as luzes fortes, o rapaz só poderia ver o reflexo do próprio rosto apavorado. Havia um monitor de frequência cardíaca em um suporte perto dos cateteres, com um fio ligado ao pescoço de Avery.
– Que diabo está acontecendo? – gritou Bunting.
– Avery fracassou. King chegou a você por meio dele. E você sabia, mas não se deu o trabalho de me contar.
– Não sou seu empregado.
Harkes se moveu com surpreendente velocidade. O soco atingiu Bunting bem acima do olho esquerdo. A mão de Harkes parecia um bloco de cimento. Com o sangue escorrendo de um corte profundo na testa, Bunting tombou para a frente na cadeira, nauseado com a violência do golpe.
Ele se esforçou para respirar.
– Olhe, seu canalha, Foster e Quantrell não são a única alternativa disponível...
Harkes lhe deu um segundo soco no rim direito, fazendo-o se dobrar e cair no chão. Dessa vez, ele vomitou. No instante depois que o vômito saiu de sua boca, Bunting foi erguido e atirado de volta à cadeira com tanta força que quase a derrubou para trás. Quando conseguiu respirar, Bunting disse:
– O que você quer de mim?
Harkes lhe entregou um controle remoto e ordenou:
– Basta apertar a tecla vermelha.
Bunting olhou para o aparelho na mão direita.
– Por quê?
– Porque eu estou mandando.
– O que acontecerá se eu apertar?
Harkes olhou através do espelho para Avery.
– Você é um homem inteligente. O que você acha que acontecerá?
– O que é aquela coisa ligada a Avery?
– Dois cateteres intravenosos e um monitor de frequência cardíaca.
– Por quê?
– Porque, quando você apertar a tecla vermelha, iniciará um processo. O soro fluirá pelos dois cateteres.
– Soro?
– Para garantir que os cateteres não serão bloqueados e que as substâncias químicas que fluirão por eles em seguida não se misturarão e entupirão as agulhas. Se isso acontecer, as drogas não chegarão ao corpo.
– Que drogas? Algum tipo de soro da verdade?
Uma expressão de quem estava se divertindo surgiu no rosto normalmente sério de Harkes.
– A primeira é tiopentato de sódio. Ela neutralizará um peso-pena como Avery em três segundos. A segunda droga é pancurônio; causa paralisia dos músculos esqueléticos e respiratórios. A última droga é cloreto de potássio.
Bunting empalideceu.
– Cloreto de potássio? Isso faz o coração parar. Ele vai morrer.
– Esse é o objetivo. Do que acha que estamos falando aqui, Bunting? Um tapinha na mão?
– Não vou apertar a tecla.
– Se eu fosse você, reconsideraria a decisão.
– Não vou matar Avery.
Harkes sacou uma pistola Magnum calibre 44 do coldre de ombro e encostou o cano na testa de Bunting.
– Mal posso descrever o que a munição nesta arma fará com seu cérebro.
Bunting começou a respirar rápido e fechou os olhos.
– Não quero matar Avery.
– Isso é um progresso. Você passou de “não vou matar Avery” para “não quero matar Avery”. – Harkes engatilhou o cão da Magnum. – Um tiro, e a maior parte de sua impressionante massa cinzenta acabará ali na parede. É isso que você quer? – Ele encostou o aço da arma na bochecha de Bunting. – Pense nisso. Você é rico. Tem casas lindas e seu próprio jato. Uma esposa sexy que acha você o máximo. Três filhos que crescerão e o deixarão orgulhoso. Tem muito pelo que viver. Avery, por outro lado, é um nerd totalmente substituível. Um perdedor. Um joão-ninguém.
– Se eu apertar a tecla, você vai me matar mesmo assim.
– Muito bem. – Harkes guardou a arma no coldre, pegou um envelope no bolso, tirou quatro fotos de dentro e as enfileirou sobre a mesa. – Mudança de tática. – Apontou para as fotos. – Me diga por onde você quer que eu comece.
Bunting olhou para as fotos e seu coração quase parou.
Sua esposa e seus três filhos estavam perfeitamente enfileirados.
Como Bunting continuou calado, Harkes acrescentou.
– Eu lhe darei uma escolha. Nós mataremos a mulher e deixaremos as crianças vivas.
Bunting agarrou as fotos e as apertou contra o peito, como se o simples ato pudesse protegê-los.
– Você não vai ferir minha família!
– Matamos sua esposa ou os seus três filhos. Cabe a você escolher. Mas tenho uma sugestão: se matarmos as crianças, você e sua esposa sempre poderão adotar outras.
– Seu canalha! Seu canalha insensível e doentio!
– Se eu não obtiver uma resposta em cinco segundos, eles estarão mortos daqui a cinco minutos. Todos eles. Sabemos que as crianças estão dormindo na casa da sua cunhada em Jersey. Temos pessoas lá prontas para executá-las agora. E, por favor, não pense que é um blefe.
Bunting pegou o controle remoto e apertou a tecla vermelha. Ele não olhou na direção de Avery. Não poderia. Manteve a tecla apertada e fechou os olhos.
Três minutos se passaram em silêncio.
– Pode olhar agora.
– Não.
– Eu mandei olhar.
O tapa no rosto fez os olhos de Bunting se arregalarem. Um punho se fechou como um torno em seu queixo e o obrigou a olhar para o espelho falso. O que viu deixou Bunting atordoado. Avery ainda estava lá, vivo. Enquanto Bunting continuava a olhar, surgiram homens que soltaram os fios de Avery e depois retiraram os cateteres. Avery se sentou, esfregou os pulsos e olhou ao redor, totalmente perplexo e aliviado.
Bunting ergueu a cabeça para olhar para Harkes, que o soltou.
– Por que você está fazendo isso?
– Saia daqui – retrucou Harkes.
Enquanto Bunting se levantava devagar, Harkes arrancou as fotos de suas mãos.
– Mas lembre que, quando eu quiser, eles estarão mortos. Portanto, se pensa em falar com King de novo, ou talvez com o FBI, é melhor reconsiderar.
– Então isso foi um aviso? – perguntou Bunting tremulamente.
– Foi mais do que um aviso. Porque é inevitável.
Dez minutos depois, Bunting estava num carro a caminho de casa. Seu rosto e seu coração doíam, e lágrimas empapavam o colarinho de sua camisa. Ele deu seis telefonemas, todos para pessoas nos altos escalões do governo. Esses números eram para seu uso exclusivo, de modo que as pessoas do outro lado não teriam nenhuma dúvida sobre quem estava ligando. Eram monitorados 24 horas por dia, 7 dias por semana. Bunting raramente ligava para eles, mas, quando ligava, sempre atendiam.
Seis telefonemas. E nenhum deles foi atendido.

60
SEAN E MICHELLE FINALMENTE chegaram a Portsmouth, onde pararam numa casa de panquecas e tomaram um rápido café da manhã, pagando em dinheiro. Depois, exaustos, dormiram na caminhonete no estacionamento por uma hora. Quando o alarme do celular de Michelle tocou, eles acordaram e olharam um para o outro sonolentos.
Sean verificou seu relógio.
– Mais seis horas de viagem. Chegaremos na hora do almoço.
– Depois que isto terminar, eu nunca, nunca mais vou dirigir até o Maine – disse Michelle.
– Eu nem quero entrar num carro de novo.
– Não podemos voltar à pousada.
– Eu sei. É por isso que vou ligar para Kelly Paul agora.
– E se eles rastrearem seu telefone?
– Troquei meu chip em Nova York. Mandei uma mensagem de texto para ela com os meus novos dados.
– Como você se saiu com Bunting?
– Ele disse que iria pensar no assunto. Eu também lhe deixei minhas novas informações de contato.
– Acha que vai ter notícias dele?
– Espero em Deus que sim.
– E quanto aos homens no parque? Estavam realmente dispostos a nos matar. E se Bunting estava envolvido com eles?
– Eu olhei nos olhos dele, Michelle. Ele está apavorado. E não só por si, mas pela família. Minha intuição me diz que ele não teve nada a ver com o ataque contra nós.
– Você acha que Bunting pode estar morto?
– O que você quer dizer?
– Eles sabiam que vocês dois tinham se encontrado. Podem ter ser vingado dele.
– Eu não sei. Se ele estiver morto, logo saberemos.
Eles chegaram a Machias às 13h30. Depois do telefonema de Sean, Kelly Paul arranjou outro lugar para ficarem. Tinha levado as coisas deles para lá e lhes dito como chegar ao local.
Quando eles pararam diante da pequena casa rústica em uma faixa isolada da costa a cerca de 8 quilômetros da Martha’s Inn, Kelly Paul saiu para cumprimentá-los.
– Obrigada pela ajuda lá no sul – disse Michelle, enquanto se alongava e fazia alguns agachamentos para afastar as cãibras da viagem.
– Nunca enviei gente numa missão sem reforços. É uma parte essencial da equação.
– Bem, teria sido bom saber disso. Quase atirei em um dos seus homens – acrescentou Sean.
– Eu tenho certa tendência de guardar segredo. Talvez exagere um pouco – admitiu ela.
– Mas você salvou nossas vidas.
– Depois de arriscá-las, mandando vocês entrarem em contato com Bunting.
– Bem, sem risco não há recompensa – disse Michelle.
– Onde está Megan? – perguntou Sean.
– Ainda na Martha’s Inn.
– Sozinha?
– Não, ela tem proteção policial.
– E como isso aconteceu?
– Dei alguns telefonemas, e as pessoas para quem liguei deram alguns telefonemas. Isso é o melhor que podemos fazer agora. Vocês dois obviamente estão marcados. Como se saiu com Bunting?
– Ele está atolado no meio de tudo e está ficando desesperado. Disse que não teve nada a ver com os assassinatos e acredito nele. Tememos que esteja morto.
– Você sabia o tempo todo que Bunting não estava por trás de tudo? – perguntou Michelle.
– Não com certeza. Mas o quadro está ficando mais claro a cada minuto. E seu encontro com ele cumpriu um objetivo importante.
– Qual foi? – perguntou Sean.
– James Harkes agora ficará livre para cortar suas asas.
– Então você realmente acha que ele já pode estar morto? – disse Michelle.
– Não, pelo menos ainda não. Quando eles foram atrás de vocês, estou certa de que também enviaram uma mensagem bem direta para Bunting: “Volte a falar sobre isso e sofrerá.” Provavelmente também ameaçaram a família dele.
– E por que isso é bom para nós? – perguntou Michelle.
– Porque agora Bunting poderá ser convencido a trabalhar conosco.
– Só que, de acordo com você, disseram a ele justamente que, se tentasse alguma coisa, seria morto – disse Sean.
– Uma coisa que você precisa entender sobre Peter Bunting é que ele é muito inteligente e engenhoso. Sem dúvida, agora está se sentindo encurralado. Talvez até mesmo derrotado. Mas então começará a pensar sobre o assunto. Ele detesta perder. É por isso que é um cão de guarda tão bom para o país. E, acima de tudo, ele é um patriota de verdade. O pai dele era militar. Bunting tem as cores da bandeira americana no sangue. Ele defenderá seu país até o fim.
– Você parece conhecer Bunting muito bem – disse Michelle.
– Quase fui trabalhar para ele. Faço questão de saber o máximo que posso sobre meus possíveis empregadores.
– Como chegaremos até ele? – perguntou Sean.
– Na verdade, acho que ele virá até nós – respondeu Kelly Paul.

61
QUANDO BUNTING VOLTOU PARA CASA, às três da manhã, sua esposa estava usando a nova lingerie sexy. Ela adormecera havia muito tempo e ele preferiu não acordá-la. Com a permissão de Harkes, lhe mandara uma mensagem de texto para evitar que ela ficasse preocupada e chamasse a polícia. Bunting passou pelo quarto em que a esposa dormia e foi para o banheiro, onde lavou o rosto. Olhou-se no espelho e viu o reflexo de um homem que caíra muito e num tempo curto demais.
Ele pegou um pouco de gelo no frigobar e o encostou no feio machucado da cabeça, sentado dentro do closet, totalmente vestido. De quando em quando, seu telefone tocava. Bunting olhava para a tela. Três ligações foram de Avery. Ele não atendeu nenhuma delas.
O que diria?
Desculpe-me, Avery, fiquei apavorado e sacrifiquei você e, graças a Deus e à tática inconcebível dos idiotas com quem estou envolvido, você não está morto.
Bunting havia parado na porta do quarto de cada um dos seus filhos. Eram cômodos luxuosos, muito além do que qualquer criança poderia precisar ou mesmo desejar, independentemente de quanto fosse rica. Felizmente, seus filhos estavam em Nova Jersey. Mas, sendo realista, não estavam mais seguros lá. Harkes poderia alcançá-los em qualquer lugar.
Ele voltou para o próprio closet, se sentou numa cadeira e pensou. Ellen Foster e Maison Quantrell o haviam encurralado. Mas será que o jogo terminava aqui? Edgar Roy continuava naquela prisão; o Programa E ainda estava operando, embora em um ritmo mais lento. E, se fosse provado que Edgar era inocente, tudo ficaria bem no mundo de Bunting.
Só que Ellen Foster e Maison Quantrell não iriam querer isso. Eles queriam acabar com o Programa E. Agora Bunting sabia que só havia um modo de garantir que isso acontecesse.
Bunting tirou a gravata e o paletó e chutou os sapatos e as meias. Caminhou penosamente até o quarto e ficou perto da cama marquesa. Fora importada da França, feita de algum tipo de couro excepcional e madeira antiga. Não conseguia se lembrar dos nomes. Era tão grande que ele e a esposa quase precisavam de um GPS para se encontrarem. Bunting observou o peito da mulher subir e descer. Ela não era um troféu a exibir. Era a mãe dos seus filhos. E eles tinham muita coisa. Uma vida boa. Não, ótima.
Mas, na verdade, não tenho nada, porque tudo me pode ser tirado. Eu posso ser tirado dela. Isso significa que ela não tem nada. O que significa que meus filhos não têm nada.
Ele continuou a imaginar James Harkes entrando pela porta com uma faca e uma arma na mão, e sua esposa e seus filhos indefesos diante dele.
Bunting passou outra hora perambulando pela mansão em Nova York. Passou pelos quartos da empregada e do chef. O motorista não morava no local. Uma segunda empregada, sim. Eles também tinham uma babá. Ela estava dormindo. Como todas as pessoas normais estariam àquela hora.
Bunting estava acordado porque ele não era normal. Harkes estava acordado porque não era normal. E naquele momento Ellen Foster provavelmente estava à sua escrivaninha executiva, tramando com Mason Quantrell como destruir Bunting totalmente.
O telefone voltou a tocar. Era Avery de novo. Desta vez ele atendeu.
Antes de o outro homem poder falar, Bunting começou:
– Fico feliz por você estar bem.
– O quê? Como sabia?
– Eles não lhe contaram?
– Contaram o quê?
– É complicado, Avery, muito complicado.
– Sr. Bunting, acho que eles iam me matar.
– Não há nenhuma dúvida.
– Mas por quê?
– Edgar Roy. Carla Dukes. Erros, Avery, erros.
– Então por que não me mataram antes?
Bunting se encostou numa parede de sua mansão.
– Para provar do que são capazes.
– Para quem? Para mim?
– Honestamente, Avery, você não significa nada para eles. Estavam provando do que são capazes para mim.
– Para o senhor? O senhor estava lá?
– Estava na sala ao lado.
– Meu Deus! Viu o que estava acontecendo comigo?
Bunting se debateu entre mentir ou não.
– Não, não vi. Só soube depois.
Sou tão fraco que nem mesmo consigo lhe contar o que fiz.
– As coisas estão mesmo saindo de controle.
– Já saíram há algum tempo, Avery.
– O que podemos fazer? O senhor pode telefonar para alguém?
– Eu tentei. Mas não atenderam.
– Pelo amor de Deus, o senhor é Peter Bunting.
– Sinto informar, mas isso não significa porcaria nenhuma para esses caras.
– Se vierem me pegar, acho que da próxima vez não terei tanta sorte.
– Nem eu.
– Eles não o machucariam, senhor.
Bunting teve vontade de rir. Quis deslizar pelo corrimão dourado no foyer de sua casa absurdamente cara, gritando a plenos pulmões. Em vez disso, falou em voz baixa.
– Você acha mesmo?
– Está tão ruim assim?
– Temo que sim.
Bunting ouviu o outro homem suspirar.
– Não posso acreditar que não temos ninguém a quem recorrer.
As palavras de Avery despertaram algo na mente cansada de Bunting.
– O senhor me ouviu?
– Telefonarei para você depois. Vá dormir um pouco. E fique fora de vista – disse Bunting.
Ele desligou e olhou para o telefone.
Tinha alguém a quem recorrer?
Ousaria?
Droga, ele tinha opção?
Bunting foi para o quarto e se deitou ao lado da esposa. Pôs um braço protetoramente sobre ela. Ele tinha se decidido.
Não vou cair sem lutar.

62
– O QUE VOCÊS DOIS ESTÃO fazendo aqui?
Eric Dobkin estava à porta de sua casa, vestindo calça jeans, meias grossas e um suéter de algodão.
Sean e Michelle olharam para ele.
– Precisamos conversar – disse Sean.
Como Dobkin não fez nenhum movimento para abrir mais a porta, Michelle perguntou:
– Podemos entrar ou vamos conversar aqui fora no frio?
– Não está tão frio.
– Fui criada no Tennessee, Eric. Para mim isto parece a Antártida.
Dobkin fez um sinal para eles entraram e, ao fechar a porta, deu uma olhada atrás da dupla.
Michelle notou.
– Nós nos certificamos de que não estávamos sendo seguidos.
– Vocês estão me colocando numa situação difícil – reclamou Dobkin de mau humor.
– Todos estão em uma situação difícil – retrucou Sean.
– Pensei que você estava nessa conosco – acrescentou Michelle.
– Até certo ponto.
– Isso não funciona assim – disse Sean.
– Perdido, perdido e meio – acrescentou Michelle.
– O que vocês querem?
Sean e Michelle se sentaram no sofá na sala de estar. Dobkin continuou em pé.
– Onde estão sua esposa e seus filhos? – perguntou Michelle.
– Saíram. Tirei uma folga hoje e estou pondo algumas coisas em dia.
– Bem, nós também temos coisas para pôr em dia.
– Como o quê?
– Só para confirmar, Bergin e Dukes foram mortos pela mesma arma? – perguntou Sean.
Dobkin se sentou diante deles e assentiu com a cabeça.
– Calibre 32 ACP.
– Alguma novidade sobre o caso? – prosseguiu Sean.
– Como eu disse, a polícia estadual do Maine está dando apoio. O FBI dirige o espetáculo. E Megan Riley obteve proteção policial.
– Nós sabemos – disse Michelle.
– E vocês dois provavelmente precisam de proteção. Quem matou Murdock também estava atirando em você, Michelle.
– Acredite em mim, eu sei. Só que proteção realmente não faz o meu etilo.
– Quem vai se importar com seu estilo se você estiver morta?
– Eric, se você nos ajudar a resolver o caso, será ótimo para sua carreira – sugeriu Michelle.
– E, se eu me intrometer e estragar as coisas, isso será o fim da minha carreira – retrucou Dobkin.
– Eu pensava que os homens do Maine fossem durões – provocou ela.
– Somos durões e temos cérebro!
– Então por que não começa a usar o seu? – disparou ela.
Dobkin se levantou e rebateu:
– Olhe, não tenho de ouvir essas bobagens. Eu lhe dei cobertura quando Murdock foi morto. Descarreguei minha arma na direção de onde aqueles tiros vieram. E lhes dei informações que não tinha que dar. Então me deixe em paz.
Sean se inclinou para a frente.
– Está bem, está bem. Sabe de uma coisa? Você tem razão.
Ele se calou, deixando Dobkin se acalmar e se sentar de novo.
– Para variar, gostaria que nós lhe déssemos informações?
– Não sei – disse Dobkin cautelosamente. – Elas são ruins?
– Então você andou pensando sobre o caso? – disse Sean.
– Se eu não tivesse pensado, não mereceria ser policial.
– Antes de lhe contarmos o que sabemos, o que você acha que está acontecendo? – perguntou Michelle.
Dobkin coçou o queixo.
– Se eu tivesse de fazer uma suposição, e seria apenas isso, diria que Roy deve ter alguma relação com o governo além da Receita Federal. Quero dizer, por que mais o FBI estaria metido nisso?
– Sem confirmar ou negar esse fato, posso lhe dizer que tem muito a ver com segurança nacional. E que Roy está do lado dos Estados Unidos. E aqueles seis corpos surgiram em uma hora muito conveniente – disse Sean.
– Está dizendo que armaram contra ele?
– Sim, estou.
– Pode provar isso?
– Estou tentando. Mas há pessoas influentes envolvidas. Muito influentes mesmo. Esbarramos com elas em Nova York e quase não conseguimos voltar para o Maine.
– O que aconteceu em Nova York? – perguntou Dobkin.
– Digamos apenas que vimos o inimigo, e ele joga para valer.
– E eles têm credenciais que lhes permitiriam entrar em quase qualquer local neste país.
Dobkin a olhou incredulamente.
– Espere um minuto. Está dizendo que os bandidos são gente do nosso lado?
– Bem – disse Michelle –, minha filosofia sempre foi que, se eles são bandidos, não podem ser gente do nosso lado.
Dobkin se sentou de novo e esfregou as pernas.
– Olhe, eu sou só um policial estadual. Não sei nada sobre esse tipo de coisa. Não sei como o lado federal funciona.
– Ou não funciona – emendou Sean.
– Então o que vocês querem de mim? – perguntou Dobkin abruptamente.
– Precisamos nos certificar de que você estará conosco se precisarmos de outra arma.
– Como esteve na noite em que Murdock foi morto – disse Michelle.
– Eu não me importo em ajudar. Mas o fato é que sou um policial. Não posso andar por aí como segurança. Eles me expulsariam da polícia estadual do Maine.
– Não estamos lhe pedindo para fazer nada disso. Só estamos pedindo para entrar em ação se os inimigos dos Estados Unidos vierem para a cidade tentando prejudicar o país – disse Sean.
– Mas você disse que o inimigo era basicamente gente do nosso lado. E ainda não me deu nenhuma prova disso.
– Como eu já disse, estamos tentando provar. Mas temos recursos limitados, problema que eles não têm. Então estamos aqui para pedir sua ajuda, para o caso de precisarmos dela. E prometo que só a pediremos se realmente for necessária, porque, pelo que vimos até agora, a coisa é muito perigosa.
Dobkin olhou para o chão. Quando ergueu os olhos, disse:
– Não vou deixar ninguém prejudicar meu país sem lutar.
– Isso é tudo que queríamos ouvir – disse Sean.
– Obrigada, Eric – acrescentou Michelle. – Isso significa muito.
– Então vocês acham que podemos ter sucesso?
– Com um pouco de sorte e ajuda de alguns amigos – disse Sean.

63
ELLEN FOSTER ANDAVA PELO corredor como se fosse a dona do lugar, acenando com a cabeça e sorrindo para pessoas que conhecia. Todas lhe sorriam de volta, porque ela era uma secretária de gabinete e, portanto, digna de deferência especial. Embora fosse verdade que nenhuma pessoa nunca passara de secretária de Segurança Interna para o escritório presidencial, algo na atitude de Foster sugeria que a mulher acreditava que poderia ser a primeira.
O agente do Serviço Secreto a cumprimentou respeitosamente com um aceno de cabeça e abriu a porta. Ela não estava no Salão Oval, usado principalmente para objetivos cerimoniais. Estava no gabinete de trabalho do presidente, na Ala Oeste. Era ali que a ação acontecia.
O presidente se levantou para cumprimentá-la. A única outra pessoa na sala era o consultor de segurança nacional, um homem corpulento de cara sempre fechada e o cabelo penteado de modo a cobrir uma careca de muitos anos. Todos se sentaram e trocaram algumas gentilezas que não importavam para nenhum deles. Então começaram a tratar de negócios. Essa reunião fora marcada às pressas entre outras duas, por isso Ellen Foster sabia que seu tempo era limitado. Foi direto ao assunto, assim que o presidente se sentou de novo, a dica para ela apresentar sua agenda.
– Senhor Presidente, eu esperava lhe trazer notícias melhores, mas lamento lhe informar que a questão do Programa E se tornou indefensável.
O presidente tirou os óculos e os colocou sobre a escrivaninha. Olhou de relance para seu consultor de segurança, cuja expressão não poderia ser mais melancólica. O caderno de anotações que segurava tremeu ligeiramente em suas mãos. Ele o pôs sobre a mesa ao lado e tampou a caneta. Não haveria anotações sobre isso.
– Me dê os detalhes essenciais, Ellen – pediu o presidente.
Quando ela terminou, o presidente se reclinou em sua cadeira.
– Isso é realmente inacreditável.
– Concordo, senhor – disse Ellen Foster suavemente. – É por isso, entre outros motivos, que insisto em ter mais controle sobre o Programa E. Em virtude de seu sucesso limitado, Peter Bunting obteve carta branca para operar. Falhas que seriam rotineiramente corrigidas não foram. Isso se deve mais aos congressistas, senhor presidente, do que ao poder executivo. Mas a situação se tornou preocupante e arriscada para todos.
O rosto do presidente ficou corado.
– Já é um pesadelo que o nosso principal analista esteja em Cutter’s Rock, acusado de seis assassinatos. Falei diretamente com Bunting a esse respeito. Ele me garantiu que a situação estava sob controle. Disse que, acontecesse o que acontecesse a Edgar Roy, a viabilidade do programa não seria afetada.
– É claro que não posso falar pelo Sr. Bunting, senhor, mas, pelo que vi, a situação não poderia estar mais fora de controle.
– E agora você está me dizendo que suspeita que Bunting tenha orquestrado uma série de assassinatos, inclusive de um agente do FBI. Meu Deus!
Ele deu outra olhada para seu consultor, que estava com as mãos sobre o colo, mas preferiu não falar.
– Sei que é um choque, senhor – concordou Ellen Foster. – Também fiquei chocada quando soube, menos de uma hora atrás. Foi por isso que pedi esta reunião. E, para piorar ainda mais as coisas, suspeitamos que ele esteja envolvido em uma quinta morte.
Os dois homens olharam para ela, esperando uma explicação.
– O Programa E tinha um recruta chamado Sohan Sharma. Ele conseguiu chegar à Parede. Fracassou no teste e, supostamente, foi descartado por meio dos protocolos normais.
– Mas você suspeita que não tenha sido assim? – perguntou o presidente.
– Logo depois de fracassar na Parede, Sohan Sharma morreu num acidente de carro. Vi o relatório da autópsia. Seu pescoço estava quebrado. Mas o legista suspeita que Sharma já estava morto quando o acidente ocorreu.
– O que significa que Bunting mandou matá-lo? Por quê? – perguntou o presidente.
– Minhas fontes informam que Sharma era sua última esperança de encontrar um substituto adequado para o último Analista. Quando Sharma fracassou, acho que Bunting simplesmente perdeu o controle e mandou matá-lo. Bunting está sob enorme pressão com o Programa E, senhor. Outro de seus reveses. Realmente não acho que o homem seja estável.
– Inacreditável! – exclamou o presidente, balançando a cabeça. – Que desastre! E durante meu mandato.
O consultor tossiu e comentou:
– Somos muito gratos que você esteja no controle da situação, Ellen.
Foster lhe lançou um olhar satisfeito. Aquilo não fora por acaso. Ela havia conversado longamente sobre isso com o homem exatamente sessenta minutos atrás. O apoio dele era essencial para seus planos.
O presidente olhou de novo para Ellen Foster.
– Você precisa se manter por dentro dessa situação. Sei que foi tolhida em um grau vergonhoso, mas realmente quero que cuide de tudo.
– Será minha prioridade máxima.
– Devo presumir que a CIA está a par de tudo?
– Sim. Falei pessoalmente com o diretor. Depois de resolvermos a questão do Programa E, acho imperativo que sejam feitas mudanças estruturais.
– Eu gostaria da sua opinião – disse o consultor, e o presidente concordou com a cabeça.
– Apostamos todas as nossas fichas numa única estratégia, por um tempo longo demais – disse Ellen Foster, muito séria. – E, embora ainda existam aqueles que reclamam de problemas na cooperação entre agências, isso simplesmente não é verdade. A redundância é a solução. Essa tem sido minha bandeira desde que assumi o Departamento de Segurança Interna. Com a responsabilidade e a análise de inteligência espalhadas por múltiplas plataformas, uma situação como esta nunca teria ocorrido. Acho que não deveríamos medir esforços para evitar que isso ocorra no futuro.
– Concordo totalmente com essa avaliação – declarou o presidente. – É muito precisa. Nunca me senti confortável com o Programa E apesar de, como você disse, seu sucesso limitado.
– Eu já sabia, senhor. Seus instintos sempre foram certeiros.
Na verdade, esse presidente havia elogiado os resultados do trabalho clandestino do Programa E sempre que pudera, principalmente porque os amplos sucessos do programa tinham levado seu índice de aprovação às alturas.
Mas as três pessoas naquela sala também sabiam que os fatos nunca poderiam ficar no caminho da sobrevivência política.
– E quanto a Bunting? – perguntou o presidente.
– Estou trabalhando com o FBI para montar o caso contra ele. Isso pode ser feito discretamente. A mídia nunca saberá de toda a história, nem deveria saber. A segurança nacional não pode ser comprometida apenas porque um megalomaníaco de algum modo chegou ao topo da cadeia alimentar em seu campo.
– E Edgar Roy? – perguntou o consultor.
– Um problema diferente – admitiu Ellen Foster.
– Você acha que ele é culpado? – perguntou o presidente. – Dos seis assassinatos?
Ellen Foster bateu com a ponta do dedo na escrivaninha.
– Edgar Roy é um homem estranho. Estive com ele algumas vezes. Posso facilmente imaginar que ele tenha um lado sombrio. Não posso afirmar se Roy realmente matou aqueles homens. Mas posso dizer que, mesmo que ele seja julgado e absolvido, será um caminho longo e confuso demais. Seus advogados fariam petições muito reveladoras. Reveladoras demais.
O consultor ficou agitado.
– Coisas que não queremos que sejam reveladas. Coisas que não podemos revelar.
– Exatamente – concordou a secretária de Segurança Interna. – E o mesmo vale para Bunting. Se ele realmente estiver envolvido nas mortes dessas pessoas, haverá um circo da mídia como nunca vimos. E, pelo que sei de Bunting, ele usará todos os recursos que tiver para escapar impune de seus crimes.
– Quer dizer, até mesmo revelar material sigiloso? – perguntou o presidente com um olhar alarmado. – Mas nunca permitiríamos isso.
– Só há uma pessoa com quem Peter Bunting se importa, e essa pessoa é ele mesmo. Pode acreditar no que digo. Bunting consegue vender ilusões para qualquer um, mas não passam disso.
O presidente balançou a cabeça pensativamente e disse:
– Sim, agora percebo.
– E veja aquele desastre do WikiLeaks. Quem imaginaria que aquilo seria possível? Acho que temos de presumir o pior – acrescentou a secretária.
O presidente suspirou e olhou para seu consultor.
– Ideias?
Escolhendo cuidadosamente as palavras, o homem disse:
– Existem maneiras. Sempre existem meios, senhor presidente, de evitar um julgamento, revelações sujas e coisas assim.
Ellen Foster examinou atentamente o rosto do presidente para ver como ele reagiria a essa sugestão. Alguns governantes eram escrupulosos em relação a esse tipo de coisa. Outros tinham muita determinação e pouca consciência e não pensavam duas vezes a respeito.
– Acho que deveríamos começar a avaliar alguns deles – disse o presidente.
Foster lhe deu um olhar cheio de orgulho e solidariedade.
– Essas decisões são difíceis, senhor, mas de certa forma também fáceis. Quando o impacto no país é tão claro.
– Não porei nada disso no papel. Na verdade, oficialmente esta reunião nunca aconteceu – determinou o presidente. – Mas quero conhecer minhas opções antes de tomar qualquer atitude.
– Pode haver uma limitação aí, senhor – disse Foster. Era a hora da verdade. Era para isso que ensaiara repetidamente diante do espelho em seu banheiro no Departamento de Segurança Interna.
O olhar do presidente foi penetrante e com um brilho de raiva escondida pronta para ser extravasada.
– Limitação?
Os presidentes não gostavam de limitações às suas decisões.
– Apenas baseada em um fator sobre o qual não temos controle – disse Ellen.
– Qual é?
– Não sabemos o que Bunting pode estar tramando.
– Bem, vamos deter o homem e nos certificar de que ele não tramará nada.
– Temos de ir com cuidado, senhor – disse Foster, que realmente não queria “deter o homem”. – Ele é inteligente e engenhoso. Eu o deixaria mostrar suas cartas. – Ela parou e olhou para o consultor.
Oportunamente, ele falou:
– Quer dizer, dar corda para ele se enforcar.
A secretária de Segurança Interna assentiu com a cabeça.
– Você leu minha mente. Exatamente: dar corda para ele se enforcar.
– E então agir? – questionou o presidente.
– E então poderemos agir do modo que for mais vantajoso para nós – corrigiu Ellen Foster. – E há algo mais, senhor.
O presidente sorriu de um modo irritado.
– Você está cheia de surpresas hoje.
A mulher se apressou, percebendo que a paciência dele estava acabando.
– A irmã de Edgar Roy.
– A irmã dele?
– Tecnicamente, meia-irmã. O nome dela é Kelly Paul. – Foster olhou de relance para o consultor e continuou: – Ela foi um dos nossos melhores agentes de campo, senhor presidente. Ponha a mulher em qualquer situação ou área de tensão no mundo e ela resolverá o problema, seja qual for.
– E ela é irmã de Roy – comentou o presidente. – Por que só fui informado disso agora?
– O senhor tem muitas coisas com que se preocupar – justificou-se a secretária. – E a questão não era importante, até agora. – Ela fez uma pausa. – Achamos que agora Kelly Paul está trabalhando para o outro lado.
– Meu bom Deus! Está falando sério?
– Ela está aposentada. Contudo, há algumas indicações de que tenha voltado à ativa. Só que não por nós. Disso nós sabemos – disse o consultor.
– E o que ela poderia querer? – disse o presidente.
– Nas circunstâncias corretas, Edgar Roy seria muito valioso para inimigos deste país.
O consultor acrescentou:
– O homem tem uma quantidade enorme de informações sobre nossa segurança nacional e nossos objetivos táticos e estratégicos.
– Mas usar o próprio irmão? – disse o presidente, incrédulo.
– Eles não são próximos – mentiu Ellen Foster. – E Kelly Paul tem fama, uma fama muito bem conquistada, de não deixar nada, nem mesmo sua família, ficar no caminho de uma missão. Portanto, se ela conseguir de algum modo tirar seu irmão de Cutter’s Rock...
– Isso não é possível – interrompeu o presidente. – É?
– As instalações são muito seguras, mas Kelly Paul é muito boa – respondeu a secretária.
– Então temos certeza absoluta de que ela está envolvida nisso? – perguntou o presidente.
– Sim. De fato, recebemos a informação de que ela foi visitar Edgar Roy em Cutter’s Rock.
– Se isso é verdade, por que não a prendemos imediatamente, lá mesmo?
– Ainda não tínhamos nenhuma prova de crime – disse a secretária. – Nem mesmo o suficiente para interrogá-la.
– Por que ela iria lá se não é próxima do irmão? – quis saber o presidente.
Ellen Foster hesitou, mas o consultor foi salvá-la.
– Talvez ela tenha outro objetivo, senhor. Poderia estar examinando o local.
Os olhos do presidente se arregalaram um pouco quando perguntou:
– Você realmente acha que vão tentar tirá-lo de lá?
– Nenhum lugar é à prova de fuga, se você tem as pessoas certas cuidando da extração – afirmou o consultor. Ele olhou para Ellen Foster. – Você está preparada para uma tentativa desse tipo?
– Estou, mas mesmo assim não há nenhuma garantia. – Ela olhou para o presidente. – Então talvez seja necessário pensar seriamente em implementar algum tipo de ação preventiva, seguindo as linhas que já discutimos.
– Com respeito a Roy e Bunting? – disse o presidente.
A secretária Foster fez que sim com a cabeça e acrescentou:
– E também a Kelly Paul.
Ele assentiu lentamente com a cabeça.
– Pensarei seriamente nisso.
Essa não era exatamente a resposta que Foster queria, mas ela não deixou isso transparecer. Havia conseguido a maior parte do que desejava.
– Bem, parece que você está com o problema sob controle, Ellen – concluiu o presidente.
Ficou claro que ele queria cuidar de outros assuntos. Embora o Programa E fosse um problema crítico para o país, era só um entre centenas de problemas críticos que o governante tentava resolver.
Ellen Foster se levantou e disse:
– Obrigada por se encontrar comigo, senhor.
O presidente apertou a mão dela.
– Você fez um ótimo trabalho, Ellen. Ótimo trabalho.
Enquanto andava pelo corredor na direção do comboio que a esperava, Ellen Foster olhou ao redor pela Casa Branca como se estivesse medindo as janelas para novas cortinas.
Naquele momento, tudo parecia possível.

64
SEAN OLHAVA PELA JANELA enquanto Michelle limpava as armas dos dois à mesa da cozinha. Ele havia telefonado para Megan Riley, que estava chateada por ter sido deixada de lado mais uma vez.
– Estou me demitindo como advogada – informou ela a Sean.
– Megan, por favor não faça isso. Nós precisamos de você.
– O que você precisa, Sean, é de um soco.
– Você faz parte da equipe.
– Não me sinto parte de nada. Agora nem posso ficar no mesmo lugar que vocês dois, então qual é o sentido? Deixarei os documentos do tribunal na pousada. Vocês podem buscá-los. Voltarei para a Virgínia.
– Megan, espere só alguns dias, por favor. Precisamos de você de verdade.
– Palavras, Sean. E quanto a um pouco de ação?
– Prometo que seu momento chegará.
Houve um longo silêncio.
– Eu lhe darei dois dias, Sean, depois voltarei à Virgínia.
Ele contou a Michelle o que Megan dissera.
– Não posso culpá-la – comentou Michelle. – E, se ela realmente pular do barco, simplesmente teremos de encontrar outro advogado, ou você terá de cuidar disso.
– Mas ela sabe muito. Poderia correr perigo.
– É verdade, mas não sei bem o que podemos fazer a respeito.
Sean enfiou a mão no bolso e pegou o telefone. Uma mensagem havia acabado de chegar.
– Droga!
Michelle ergueu os olhos de seu trabalho.
– O que foi?
– Alguém deixou uma mensagem. Deve ter sido enquanto eu conversava com Megan.
Ele ouviu o recado.
– Quem é?
– Peter Bunting.
– O que ele disse? – perguntou Michelle.
– Ele quer conversar.
– Kelly Paul estava certa. Ele realmente veio até nós.
Sean telefonou para o homem. Bunting atendeu no segundo toque.
– Alô.
– É Sean King.
– Obrigado por me ligar.
– Estou surpreso em ter notícias suas depois da nossa última reunião. Minha parceira e eu temos sorte de ainda estar respirando.
– Não sei o que aconteceu depois da conversa – disse Bunting. – Mas peço desculpas se o coloquei em perigo. Não tive essa intenção. No que me diz respeito, o resto da noite também não foi nada agradável.
– Certo.
– Não acredita em mim, não é?
– Na verdade, acredito sim.
– Precisamos nos reunir.
– Foi o que disse na mensagem. Por quê?
– Tenho uma proposta.
– Mudou de opinião?
– Pode-se dizer que sim.
– Pegaram pesado com você, não foi?
– Preciso saber de uma coisa. Kelly Paul está trabalhando com você?
– Quem?
– Não temos tempo para isso – rebateu Bunting, de um modo que deixou claro quanto estava irritado. – Ela está?
Sean hesitou, mas respondeu:
– Sim.
Houve silêncio.
– Bunting? – chamou Sean firmemente.
– Nós realmente precisamos nos encontrar.
– Como vai escapar deles? Você sabe que está sendo observado. Na verdade, provavelmente estão ouvindo nossa conversa agora.
– Impossível – disse Bunting.
– Por quê?
– Porque estou usando uma tecnologia de embaralhamento de frequência melhor do que aquela usada pelo presidente dos Estados Unidos em seus telefonemas. Nem mesmo a Agência de Segurança Nacional pode penetrá-la. E, assim que você atendeu, meu canal de tecnologia também se estendeu ao seu telefone.
– Mas isso ainda não responde à minha pergunta: como você conseguirá escapar fisicamente deles?
– Deixe isso comigo. Não construí um negócio de 1 bilhão de dólares na área da inteligência sendo um idiota.
– E sua família?
– Pode deixar que eu me preocupo com isso. Presumo que você esteja em algum lugar perto de Edgar Roy. Onde poderemos nos encontrar no meio do caminho? Digamos Portland, no Maine?
– Quando?
– Amanhã à noite.
– Onde em Portland? – perguntou Sean.
– Tem um restaurante no calçadão. Clancy’s. Fica aberto até meia-noite. Minha esposa e eu costumávamos ir lá quando estávamos namorando.
– Se você estiver tentando nos enganar...
– Minha família está em perigo, e eu preciso resolver isso.
Sean deixou o silêncio se prolongar. Ouviu a respiração tensa do outro homem.
– Nos vemos em Portland – disse Sean.

65
NA NOITE SEGUINTE COMO DE COSTUME, A família Bunting saiu de sua mansão e caminhou pela rua, com os dois seguranças particulares alguns metros atrás. O tempo continuava frio e a família Bunting usava agasalhos, chapéus, luvas e cachecóis. A Sra. Bunting caminhava de mãos dadas com o filho mais novo. Nem uma só vez o homem ao lado dela checou o celular para ver se havia mensagens.
Vinte minutos antes de eles saírem, uma entrega de móveis fora recebida na residência deles. Três grandes caixas. Isso não era incomum, porque entregas eram feitas frequentemente na residência dos Buntings. A Sra. Bunting era uma consumidora ávida.
Os homens que observavam do outro lado da rua viram as três grandes caixas sendo carregadas para dentro e depois para fora, vazias. Só que uma delas não estava vazia. O caminhão se afastou sacolejando pela rua com Bunting naquela caixa, rezando para seu subterfúgio ter funcionado. Depois que o caminhão percorreu 3 quilômetros sem ser parado, ele ergueu a tampa da caixa de madeira, saiu e se sentou sobre uma das saliências de metal sobre as rodas.
Ele não estava pensando em sua situação aflitiva. Ou em Edgar Roy. Ou no Programa E. Estava pensando na esposa e nos filhos. Estava pensando no próximo passo deles de acordo com plano. E se censurou amargamente por tê-los envolvido naquilo. E, é claro, rezou para que desse certo.
Tinha que dar.
O passeio dos Buntings durou cerca de meia hora, depois eles voltaram para casa. As crianças subiram a escada correndo para seus quartos. Julie Bunting tirou o casaco e o pendurou no closet. Virou-se para o homem atrás dela enquanto ele também tirava o chapéu, o casaco e o cachecol. O homem havia entrado na casa escondido na mesma caixa em que Peter Bunting saíra.
– Peter disse que você saberia o que fazer – disse a Sra. Bunting ao homem, que tinha a mesma altura e o mesmo porte físico de seu marido. Com as roupas de Bunting, ele seria uma isca perfeita.
– Sei, Sra. Bunting. Eu estarei com a senhora em todos os passos do caminho.
Um minuto depois, Julie Bunting se sentou em uma cadeira no vestíbulo, massageando as pernas. Quando seu marido a havia procurado e lhe dito o que ela precisava fazer, seu pequeno mundo perfeito desmoronara. Ela era uma mulher inteligente e culta. Adorava ser esposa e mãe, mas não era um bibelô. Ela o havia questionado longamente sobre o que vinha acontecendo. O pouco que ele lhe disse fez seu sangue gelar.
Julie nunca quisera saber exatamente o que ele fazia. Tinha ideia de que era algo com o governo, algo a ver com a proteção do país, mas isso era tudo. Presumira que ele empregava uma equipe de segurança por esse motivo e também porque os Buntings eram ricos e pessoas ricas precisavam de segurança. Por outro lado, ela tinha seu espaço: sua família, suas obras de caridade, a maravilhosa vida social de uma nova-iorquina com dinheiro para gastar. Era tudo o que ela podia querer da vida.
Só que uma realidade mais fria acabara de se instalar. Ela se sentiu culpada por se manter alheia ao mundo do marido durante tantos anos, sobretudo quando ele lhe proporcionara uma vida tão maravilhosa.
– Você está correndo perigo? – ela havia perguntado.
Julie amava o marido. Eles tinham se casado antes de Bunting ter dinheiro. Ela se preocupava com ele. Queria que ficasse seguro.
Bunting não respondera, o que era uma resposta.
– O que posso fazer para ajudar? – perguntara-lhe.
E o plano fora traçado.
Agora era a hora da segunda parte desse plano. Seu marido insistira nessa parte. E ela entendera muito bem por quê. Bunting havia ensaiado repetidamente os passos de Julie até ela achar que poderia dá-los perfeitamente. As crianças foram preparadas e os funcionários também. Ela fizera aquilo parecer um jogo para seu filho mais novo, mas os filhos mais velhos sabiam que havia algo muito errado.
Bunting havia se sentado com cada um deles antes de ir para a caixa. Dito que os amava muito. Dito que logo os veria. Julie Bunting percebera que essa última afirmação era a única em que o marido não acreditava totalmente.
Julie foi para o banheiro luxuoso como um spa, chorou, lavou o rosto e saiu pronta para fazer o que era preciso. Subiu a escada e se dirigiu ao quarto do filho mais velho, onde os outros estavam reunidos. Eles se sentaram na cama olhando a mãe. Ela os encarou e tentou lhes dar um sorriso encorajador.
– Vocês estão prontos?
Todos assentiram com a cabeça.
– Papai vai voltar? – perguntou o mais novo.
– Sim, querido, vai – conseguiu dizer Julie Bunting.
Ela desceu a escada e abriu a caixa de comprimidos que seu marido dera. Tomou três. Eles a deixariam muito enjoada, mas era tudo. Os comprimidos causariam todos os sintomas médicos que ela queria apresentar. Depois Julie pegou o telefone e fez a chamada. Disse ao atendente que havia tomado os comprimidos e precisava de ajuda. Deu seu endereço.
E desabou no chão.
Os homens do outro lado da rua ouviram as sirenes antes que pudessem ver sua fonte. Carros da polícia, ambulância e bombeiros pararam na frente da casa de Buntings cinco minutos depois de Julie Bunting desligar o telefone. O pessoal da emergência entrou correndo com o equipamento, junto a dois policiais uniformizados. Mais dois carros da polícia apareceram, e os homens neles estabeleceram um perímetro do lado de fora da casa.
Um homem do outro lado da rua relatou isso aos superiores e pediu instruções. Disseram-lhe para permanecerem em suas posições. Eles obedeceram.
Quinze minutos depois, a maca saiu com uma pálida Julie Bunting; havia um cateter intravenoso em seu braço. Momentos depois os filhos saíram, todos parecendo apavorados, o mais novo chorando de verdade. O homem que representava Peter Bunting segurava a criança em seus braços. Todo agasalhado, por causa do frio, e cercado de paramédicos, o falso Bunting ficou bastante obscurecido para a vigilância do outro lado da rua. Todos entraram na ambulância com Julie Bunting e o veículo partiu, com um carro da polícia na frente e outro atrás.
O mesmo homem do outro lado da rua relatou o ocorrido.
– Parece que a esposa está realmente doente. Toda a família foi com ela para o hospital, inclusive Bunting.
Ele ouviu e assentiu com a cabeça.
– Certo. Entendi.
A maioria de seus homens manteve a posição enquanto ele mandava dois de seus subordinados seguir a ambulância.

66
O AVIÃO PARTICULAR ATERRISSOU, a escada foi baixada e Peter Bunting saiu para o ar frio que soprava do oceano para Portland, no Maine. Ele não usara o jato da companhia, que seria muito fácil de seguir. Viera num jato alugado por uma de suas outras empresas. Durante o voo, recebera uma mensagem de texto do homem que estava fazendo o papel dele.
A mensagem dizia simplesmente TP, que era seu código para “Tudo pronto”. Se Bunting tivesse recebido qualquer outra mensagem, saberia que eles estavam em uma situação difícil.
Ele andou rapidamente até o carro. Não tinha motorista. Nenhuma equipe de segurança. Havia apenas um carro esperando. Bunting entrou e saiu dirigindo. Como ele era um nova-iorquino e também um CEO mimado, Bunting não dirigia fazia anos. E, na verdade, sentiu-se bem dirigindo.
Sean espiou pela esquina do prédio. O Clancy’s ficava do outro lado da rua principal. Havia poucas pessoas por perto em virtude da hora tardia e do clima frio. Sean se encolheu em seu casaco e olhou para a rua, à sua esquerda. Em algum lugar por lá estava Michelle, com um rifle de precisão com munição 7.62 OTAN e 175 grãos, com grande poder de parada. Michelle havia trazido o fuzil da Virgínia e o levara, assim como a arma e o suporte de atirador desmontados, numa sacola de nylon preta, abrigando-se com eles na escuridão. Mas Sean estava se comunicando com ela por meio do fone de ouvido e do rádio. Ele vivera com um fone no ouvido durante anos, quando era um agente do Serviço Secreto. Naquela época, seu trabalho era procurar ameaças ao presidente e, se preciso, dar sua vida por ele. Agora as ameaças que procurava eram direcionadas a ele mesmo.
Antes de partir para Portland, eles providenciaram que Megan fosse levada para a pequena casa rústica. A polícia local só conseguira mandar um investigador quase aposentado para protegê-la na Martha’s Inn. Ao conhecê-lo, Sean não ficou impressionado com sua habilidade ou seu entusiasmo.
Sean havia telefonado para Eric Dobkin e lhe pedido para zelar por Megan enquanto eles estivessem fora. Ele fora imediatamente. Sean lhe contara um pouco mais sobre o que estava acontecendo.
– Eles pegam pesado mesmo – comentara Dobkin. – Tem certeza de que não quer que eu vá com vocês?
– Precisamos de você aqui, com Megan – dissera Sean. – Ninguém sabe que estamos aqui, mas não há nenhuma garantia de que não descobrirão.
– Farei o melhor que puder, Sean.
– Isso é tudo o que posso pedir. E lhe fico muito grato.
Megan mais uma vez reclamara amargamente de estar sendo deixada de fora e, embora Sean a entendesse, não estava com vontade de discutir.
Por fim ele dissera com irritação:
– Quanto menos você souber, Megan, mais segura ficará. Se algo acontecer, faça exatamente o que o policial Dobkin mandar, entendeu?
Megan ficara parada no chalé, com um olhar desafiador no rosto.
– Está bem, mas quero que você entenda que vou me mandar daqui assim que você voltar – avisara ela.
– Você está pronta? – dizia agora Sean no microfone de punho enquanto seu olhar varria a rua.
– Afirmativo. – A voz de Michelle chegou ao seu ouvido.
– Posição?
– Alta, 91 metros a oeste de você. Posso ver tudo daqui. Linha de visão perfeita do Clancy’s.
– Como você conseguiu uma posição alta?
– Prédio vazio, fechadura da porta dos fundos patética. Está tudo certo?
– Afirmativo.
– Ótimo. Fique a postos. Avise-me quando o vir.
– Entendido.
Sean espiou de novo pela esquina do prédio. Contou os minutos em silêncio e depois olhou o relógio. Um minuto para as dez. Eles haviam chegado cedo, para o caso de Bunting estar pensando em armar uma emboscada ou não ter conseguido escapar da vigilância e ter sido seguido.
O carro veio pela rua, desacelerou e então parou. Virou em um estacionamento e o homem alto saiu.
Sean se enrijeceu.
A voz de Michelle veio até ele.
– É ele.
– Estou vendo. Faça uma varredura e me informe.
Três segundos se passaram.
– Limpo – disse Michelle. – Não foi seguido.
Sean foi para calçada, com seu olhar no homem alto do outro lado da rua. Em vez de ir direto até ele, Sean seguiu pela calçada mantendo-se perto das fachadas das lojas até ficar 15 metros atrás de Bunting.
Sean viu Bunting em pé na frente do Clancy’s procurando por ele. Olhou-o novamente.
– Olá, Sr. Bunting. Bom vê-lo de novo.
Bunting se virou.
– Você me assustou. Não o ouvi chegar.
– Esse era o objetivo – disse Sean.
– Onde está sua parceira, Michelle Maxwell?
– Por aí.
– Ninguém me seguiu.
– Bom saber.
Bunting olhou para a porta do Clancy’s.
– Acho que a cozinha ainda está aberta. Quer entrar?
– Vamos lá.

67
O RESTAURANTE PARECIA VAZIO. Ninguém foi recepcioná-lo, por isso Sean conduziu Bunting pela lateral até uma sala de jantar menor, fora da principal. Só havia uma pessoa.
Bunting parou e ficou boquiaberto quando a viu sentada lá.
Kelly Paul olhou para ele da mesa onde estava sentada de costas para a parede.
– Olá, Peter, há quanto tempo – disse ela em voz baixa.
Bunting relanceou os olhos para Sean.
– Eu não sabia que ela estaria aqui.
– Algum problema nisso?
– Não, na verdade estou feliz em vê-la.
Bunting se sentou diante de Kelly enquanto Sean se instalava ao lado dela, com a mão no bolso segurando a pistola.
– Presumo que vocês dois estejam armados – disse Bunting.
Sean pegou o cardápio com a mão livre.
– Por quê? Isso o faz se sentir mais seguro?
– Sim.
Kelly Paul estudou Bunting.
– E sua família?
– Tomei certas providências. Eles estão seguros, por enquanto. Obtive confirmação. Obrigado por perguntar.
– Minha família também está em perigo, Bunting.
– Sim, eu sei – disse ele, parecendo culpado.
– Isso é tão ruim quanto eu acho que é?
– Provavelmente pior...
Bunting parou de falar porque a garçonete veio anotar os pedidos.
A mulher tinha quadril largo, um rosto cansado e panturrilhas vermelhas e inchadas, provavelmente por ter ficado em pé durante dez horas, carregando pratos grandes de frutos do mar e canecas de cerveja.
Eles pediram café e ela foi embora, parecendo aliviada por ser só isso.
Bunting pôs o cardápio sobre a mesa e tirou os óculos.
– Fale – disse Kelly Paul simplesmente.
– Querem acabar com o Programa E. Querem acabar comigo e fazer o mesmo com seu irmão.
– Na verdade, você está dizendo que querem que as coisas voltem a ser como eram – disse Kelly.
– Sim.
– Você devia saber que esse dia chegaria.
– Saber e fazer algo a respeito são duas coisas muito diferentes. E acho que eu esperava, embora ingenuamente, que o clima tivesse mudado para melhor. É óbvio que eu estava errado.
– Quem está jogando com as peças pretas do tabuleiro? – perguntou Kelly Paul.
– Espere, nosso café está vindo – interrompeu Sean.
A garçonete pôs as canecas, o creme e o açúcar sobre a mesa e perguntou:
– Desejam mais alguma coisa? A cozinha já vai fechar.
– Não, obrigado – respondeu Bunting.
Ele entregou à mulher uma nota de 100 dólares e lhe disse para ficar com o troco.
Ela foi embora radiante e Bunting se virou de novo para Kelly.
– As peças pretas, Peter? – repetiu ela. – Acho que sei, mas quero confirmação.
Bunting tirou duas fotos do paletó. Ele as colocou perto uma da outra sobre a toalha quadriculada.
– Estamos absolutamente certos disso.
Kelly Paul assentiu com a cabeça e disse:
– Obrigada pela confirmação.
– Você suspeitava? – perguntou ele.
– É claro. Ela era a opção mais lógica.
– Sabe quem eles são? – perguntou Bunting a Sean.
Sean parecia não conseguir tirar os olhos das fotos.
– A mulher é Ellen Foster, do Departamento de Segurança Interna. Não reconheço o homem.
– Mason Quantrell, CEO do Mercury Group.
– Ele é um grande concorrente no campo da inteligência, não é? – perguntou Sean.
– Um dos maiores. E meu grande rival. Desde que o Programa E surgiu e suplantou o que Quantrell fazia para o governo, ele perdeu prestígio e se tornou muito menos valioso. Embora ainda ganhe rios de dinheiro.
– E o Sr. Quantrell não gostou nada disso, não é? – perguntou Kelly.
– Você o conhece?
– Ouvi falar. Tem fama de trabalhar mal e superfaturar. Na maioria dos setores, isso leva ao desastre. No mundo da inteligência e defesa, simplesmente faz você ganhar bem mais do que merece.
– Isso não tem a ver só com dinheiro, tem a ver com prestígio. Ele não gosta de fazer um papel secundário e ficar com minhas sobras. Está atrás de mim desde então – explicou Bunting. – Seu modo de agir é jogar merda na parede para ver o que cola. Nenhuma integração. Nenhuma reflexão. Deus o livre de partilhar recursos ou resultados. Com essa filosofia, é de admirar que só tenha acontecido um 11 de Setembro.
Kelly Paul deu uma pancadinha na foto da secretária de Segurança Interna.
– Eu conheci Ellen Foster antes que ela fosse a senhora secretária. Seria difícil encontrar uma pessoa mais ambiciosa. E com inteligência suficiente para conseguir o que quer.
– Mas o Departamento de Segurança Interna? Achei que seria mais provável a CIA ou a Agência de Segurança Nacional entrar nesse tipo de jogo sujo. O Departamento de Segurança Interna cuida da segurança dentro do país. Eles são tão importantes no campo da inteligência agora? – questionou Sean.
– Eles querem ser o jogador dominante – respondeu Bunting. – E têm orçamento e pessoal para isso. Sobretudo com alguém como Ellen Foster no leme. Ela é membro do Gabinete. O diretor da CIA faz os briefings presidenciais diários, mas não está no nível do Gabinete. Foster percebeu que está numa posição privilegiada para assumir o trono e governar o império da inteligência dos Estados Unidos. E tem se esforçado para isso. Mas o Programa E se baseia em integração entre agências e cooperação. Esse modelo não se encaixa nos planos dela.
– E Quantrell? – perguntou Sean.
– Extremamente capaz e também adepto do jogo duplo. Ao que tudo indica, está agarrado na saia de Foster. – Ela olhou para Bunting. – Os corpos no celeiro?
– Acredito que sim. Na verdade, acredito muito.
– Seis corpos. Eddie foi o primeiro E-Seis.
Bunting fez uma careta.
– Também pensei nisso. É o conceito de piada doentia desses canalhas.
– Os corpos nunca foram identificados – observou Sean.
Bunting deu de ombros.
– Isso é fácil de fazer. Você não acreditaria no número de corpos não identificáveis que há por aí. Foster e Quantrell poderiam obter o que precisavam de muitas fontes. Quantrell tem gente em toda a América Latina, no Oriente Médio e Leste Europeu. Há cadáveres de sobra nessas regiões. Você pode simplesmente trazê-los para cá.
– Mas havia terra diferente nos corpos – disse Sean King. – Isso dá muita bandeira.
– Em um processo legal comum, talvez – disse Bunting, impaciente. – Este não é um processo legal comum. Não imagino nenhum cenário em que Edgar Roy vá a julgamento. Simplesmente não deixarão que isso aconteça. A terra é irrelevante. Foster sabe disso.
– E Eddie sabe demais – acrescentou Kelly. – O que me faz perguntar por que deixaram meu irmão viver tanto tempo.
Sean a olhou surpreso com a frieza com que ela discutia o possível assassinato do irmão.
Kelly Paul notou sua surpresa e disse:
– Se eu tivesse tempo para fazer o papel da irmã comum, eu faria, Sean. Não tenho. – Ela se virou de novo para Bunting. – Por que ele ainda está vivo?
– Minha teoria é que Ellen Foster esteja orquestrando tudo como uma sinfonia insana. Todas as peças estão encaixadas. Ela quer desacreditar o Programa E e me destruir. Seu irmão é parte integrante disso, portanto ele tem de ser destruído também. Mas Roy tem de cair de um modo que satisfaça Foster e as pessoas a quem ela é subordinada.
– Como o presidente? – comentou Kelly Paul.
– Exatamente. Eles incriminaram Roy pelos corpos no celeiro para tirá-lo do Programa E. E estou certo de que estão contando um monte de mentiras a meu respeito para as pessoas que importam. Não basta apenas matar seu irmão. Agora não tenho nenhuma dúvida de que eles planejam assassinar Edgar, só não sei quando ou como. Droga, provavelmente vão tentar me culpar disso também. O ponto principal é que eu estarei morto, o Programa E terminará e um conceito como esse nunca mais terá chance de se concretizar. Então os negócios voltam ao normal. É o plano deles. Na verdade, um ótimo plano.
– Há quanto tempo você suspeita do envolvimento deles? – perguntou Kelly.
– Eu suspeito de todos. Mas só suspeitei seriamente deles pouco tempo atrás. Francamente, embora eu saiba que tudo é possível no campo da inteligência, não pensei que eles fossem tão longe. Eu estava errado.
– Ellen Foster precisa de cobertura política para isso – observou Kelly Paul.
– Ela está trabalhando nisso há algum tempo. Conseguiu tolher todas as minhas principais fontes de apoio. E também sei que ela fez uma visita recente à Casa Branca. Provavelmente me pintou como a reencarnação de Átila, o Huno. E quase posso garantir que a conversa envolveu seu irmão.
– E a mim também? – perguntou Kelly.
– Isso eu não sei – respondeu Bunting. – É certo que sabem da sua ligação com Edgar. Podem suspeitar que você não ficaria parada enquanto seu irmão corre tanto perigo.
– E você visitou seu irmão em Cutter’s Rock. Eles já devem saber disso – comentou Sean.
– Tenho certeza de que Ellen Foster construiu sua proteção política no nível mais alto – disse Bunting. – Ela é ótima em apunhalar os outros pelas costas. E tem grandes chances de sair dessa como a mocinha.
– Eu trabalhei durante muito tempo do lado federal. Sei como as coisas podem ser disfuncionais, mas vocês realmente acham que uma secretária de gabinete é capaz de fazer algo assim? – questionou Sean.
Kelly Paul sorriu ironicamente.
– Você era do Serviço Secreto, Sean. Andava com os Senhores Certinhos do governo federal. Peter e eu atuamos em uma área diferente.
Bunting concordou com a cabeça e acrescentou:
– O lado da inteligência acumula brinquedos e às vezes triunfa à custa de uma agência concorrente. Eles competem uns com os outros todos os instantes de todos os dias. Pelo menos é assim que isso funciona desde a Segunda Guerra Mundial.
– Até você criar o Programa E e fazê-los parar – salientou Kelly.
Sean fez que sim com a cabeça.
– E Ellen Foster destrói a segurança do povo americano assim? Como bem lembrou, e quanto a outro 11 de Setembro?
– Para eles isso entra no custo normal dos negócios, Sean. E a culpa pode ser jogada em outro. Você não corre atrás de posições tão elevadas na vida sem esperar o poder que as acompanha. Acredite em mim, estive com Foster e Quantrell recentemente. Suas intenções não poderiam ter ficado mais claras. E eles me encurralaram – respondeu Bunting.
– Então nós conhecemos os jogadores – comentou Kelly. – Conhecemos sua estratégia. Eles deram as cartas e estão culpando você pelo resultado. O que vamos fazer?
– Eles envenenaram todos contra mim. Não tenho mais nenhum aliado no governo. Sou um pária – contou Bunting.
– Você disse que ela visitou o presidente? – perguntou Kelly Paul.
– Sim. Foi uma reunião não agendada e, para o presidente ter arranjado tempo, deve ter sido importante.
– Quem mais estava lá?
– O consultor de segurança nacional.
– Ellen Foster também o tem nas mãos?
– Acho que eles têm um acordo – respondeu Bunting. – De cooperação mútua garantida.
– Não se faz uma reunião não agendada com o presidente se os motivos não forem os mais críticos.
– Isso mesmo. Qual é sua melhor aposta?
– Ela precisava de autorização para algo. Algo muito extraordinário, que ela não queria se arriscar a fazer pelos meios comuns – respondeu Kelly Paul.
Bunting assentiu com a cabeça e concordou:
– Acho que você tem razão.
– Foster é secretária do Departamento de Segurança Interna. De acordo com você, ela já mandou matar quatro pessoas, inclusive um agente do FBI. Droga, isso já não é extraordinário o bastante? – refletiu Sean.
– Isso foi jogo de cena, Sean – disse Kelly. – E não pense que estou sendo dura. Sei que há quatro pessoas mortas que não deveriam estar. Mas a culpa dessas mortes será posta em outra pessoa, por isso, na mente dela, nem mesmo contam. O que Ellen Foster provavelmente queria do presidente era autorização explícita para que ela pudesse tomar uma atitude extraordinária por conta própria.
– Em outras palavras, ela pediu permissão para eliminar certas pessoas – acrescentou Bunting.
Sean pareceu incrédulo.
– Eliminar certas pessoas? Quem?
– Eddie, Peter e provavelmente eu – respondeu Kelly Paul.
– Três cidadãos americanos? – disse Sean. – Você realmente acha que o presidente dos Estados Unidos autorizaria isso?
– O Sr. Certinho de novo – comentou Kelly Paul.
Dessa vez ela não sorriu.
– Droga. Tudo bem, eu sei que o governo manda matar pessoas. Terroristas, inimigos conhecidos do país e, ocasionalmente, um ditador perigoso.
– Nós somos um problema para o país, Sean – explicou Kelly. – Um problema sério. Eddie nunca irá a julgamento. Ele sabe demais. Se o presidente engoliu a mentira de que Peter mandou matar pessoas, não é difícil acreditar que se inclinaria a eliminá-lo. Ele não ia querer um julgamento por assassinato no qual certos fatos que seriam desastrosos para a segurança dos Estados Unidos pudessem ser revelados. O presidente é o chefe de Estado. Tem que cumprir muitos papéis, mas esse é o mais importante. Sua principal prioridade é manter o país livre de inimigos. Onde quer que eles estejam.
– Então vamos presumir que esse seja o caso – disse Bunting. – Ellen Foster obteve sua resposta. Também vamos presumir que foi um sim. Ela executará seu plano sem perda de tempo. O que fará primeiro?
– Não tenho muitas dúvidas em minha mente a esse respeito – disse Kelly Paul.
– E então? – perguntou Sean.
– Eddie não ficará em Cutter’s Rock por muito tempo.
Sean se apressou a dizer:
– Você não pode estar pensando em tirá-lo de lá.
– Ah, não sou eu quem vai tirar.

68
O ASSISTENTE DE QUANTRELL ABRIU a porta do depósito e o chefe entrou. Luzes automáticas se acenderam e ele piscou para acostumar a visão. O Mercury Group era dono daquele depósito, mas a propriedade fora de tal forma disfarçada que nem mesmo um exército de advogados e contadores conseguiria descobrir a verdade. Todos os grandes fornecedores particulares do governo, sobretudo os que operavam nos campos da defesa e inteligência, tinham estruturas complexas de negócios. Isso era uma necessidade. Havia olhos à espreita por toda parte e todos os fornecedores tinham segredos que não queriam que o governo nem que seus concorrentes conhecessem.
Ele olhou para a série de SUVs pretos estacionados no meio do depósito. Passou por eles avaliando cada detalhe e ficou satisfeito. Em um canto do depósito estava acontecendo uma reunião de planejamento final. Todos os homens sentados ao redor da mesa se levantaram quando Quantrell se aproximou.
O olhar no rosto desses homens era claro. Eles temiam e respeitavam Quantrell. Talvez o temessem mais do que respeitavam. Mason Quantrell nunca usara um uniforme e nunca disparara uma arma em prol de seu país, mas sabia como ganhar dinheiro vendendo para aqueles que faziam isso. Seu principal modelo de negócio era venda de material bélico para o Pentágono. Ele não fabricava aviões, tanques nem navios, mas fornecia muitos acessórios superfaturados, como munição, combustível especial, mísseis, armas e equipamentos de vigilância e segurança. Mas Quantrell havia descoberto muito tempo atrás que a verdadeira fonte de dinheiro ficava no lado leve da guerra. Em outras palavras, na inteligência. As margens de lucro ali eram enormes, muito maiores do que ele alcançaria negociando pelos canais tradicionais de apoio ao esforço de defesa. E o mundo nem sempre estava em guerra nos dias de hoje. Mas todo mundo espionava todo mundo, sempre.
Quantrell ganhara bilhões no ramo da inteligência seguindo os moldes antigos. Muitos analistas, muitos relatórios que ninguém tinha tempo de ler, promovendo a concorrência entre agências que queriam desesperadamente vencer à custa de suas agências irmãs, mesmo que isso significasse a perda do verdadeiro objetivo, que era manter a segurança do país. Sim, Quantrell ganhara uma fortuna, mas ainda não era suficiente. E então Peter Bunting entrara em cena com um modelo revolucionário que logo viraria o mundo de coleta de informações de cabeça para baixo.
Os negócios de Quantrell na área de inteligência haviam diminuído e sua raiva e frustração aumentaram.
Mas agora tudo estava prestes a mudar.
– Prontos? – perguntou ele para o líder da equipe.
– Sim, Sr. Quantrell – respondeu o homem.
A equipe era composta de mercenários estrangeiros de elite que fariam tudo por dinheiro. Eles nunca falavam sobre o que faziam, porque isso acabaria com seu meio de vida.
Quantrell fez algumas perguntas ao homem para avaliar se eles realmente estavam prontos. Conhecia o plano melhor do que ninguém, mas ficou satisfeito com seu nível de preparação.
Ele saiu do depósito, entrou em seu SUV e foi conduzido para longe. Uma hora depois, estava em Washington.
Embora fosse tarde, Quantrell tinha outra reunião. Em seu mundo, aqueles que relaxavam simplesmente eram atropelados.
Ellen Foster estava em seu escritório no Departamento de Segurança Interna. Também trabalhara até tarde. Era comum que fizesse isso. Mas terminara. Ela foi levada para casa de carro por sua equipe de segurança. Em Washington, a ordem de importância de uma pessoa frequentemente era determinada pelo tamanho de seu comboio. O do presidente era o maior, seguido pelo do vice-presidente. Depois havia uma forte redução para o resto da alcateia. Mas Ellen Foster estava nesse grupo.
Um homem a esperava em sua elegante casa no próspero noroeste da capital. Ao seu redor moravam membros proeminentes da elite de Washington, dos setores público e privado. Quando Ellen Foster entrou pela porta, ele a ajudou a tirar seu casaco.
– Me dê um segundo – disse ela.
Ellen subiu a escada e desceu alguns minutos depois. Estava com a mesma roupa, mas havia tirado as meias e os sapatos e soltara os cabelos.
Eles foram juntos para a antiga sala de estar da casa do século XIX. Ellen Foster se reclinou no sofá e fez um sinal para que o homem sentasse.
James Harkes obedeceu.
Terno preto, camisa branca, gravata preta sem nenhum vinco. Seu rosto estava impassível quando olhou para ela.
– Gostaria de beber algo, Harkes?
Ele fez que não com a cabeça.
– Não, obrigado.
– Então pode preparar uma vodca com tônica para mim? – pediu ela, apontando para o aparador. – Está tudo ali.
Ele preparou zelosamente a bebida e a entregou a Ellen.
– Obrigada. – Ela deu um gole e balançou a cabeça em sinal de aprovação. – Muito bom.
– Não há de quê. – Harkes olhou na direção da janela. – A senhora tem um ótimo destacamento de segurança. Eles estabeleceram seu perímetro com muita atenção. Seu sistema de alarme é de primeira classe e as fechaduras nas suas portas são as melhores.
Ellen Foster sorriu.
– Você sabe qual é a melhor segurança?
Ele a encarou, esperando que continuasse.
Ellen Foster se levantou, foi até uma escrivaninha antiga encostada em uma parede, pressionou uma peça de madeira na frente e uma pequena porta foi revelada. Ela pôs a mão dentro e pegou uma Glock 9 milímetros.
Ergueu-a para Harkes ver.
– A melhor segurança é você mesmo. Eu nem sempre me sentei atrás de uma escrivaninha. Uma destas já me veio a calhar muitas vezes.
Harkes não disse nada. Ellen pôs a arma de volta em seu lugar e se sentou.
– As coisas vão bem – disse ela.
– Geralmente as coisas vão bem até não irem mais.
Ela abaixou o copo.
– Você tem dúvidas? Problemas? Sabe de algo que não sei?
Ele fez que não com a cabeça de novo.
– Nenhuma das opções. Só sou um homem cauteloso.
– Não há nada de errado nisso, mas é preciso ter equilíbrio. Invoque seu lado selvagem de vez em quando.
– Quatro pessoas mortas. Cinco, se contarmos Sohan Sharma. Isso é selvagem o suficiente para mim.
– Você não está perdendo a coragem, está? – perguntou Ellen friamente.
– Considerando que não matei nenhuma delas, não. Mas uma delas era agente do FBI. Isso é preocupante.
– Sempre há dano colateral em situações como essa, Harkes. É inevitável. Você lutou no Iraque e no Afeganistão. Sabe muito bem disso.
– Aquilo era guerra.
– Isto também é guerra. Você precisa entender. Talvez até seja uma guerra maior. Pelo coração e a alma da inteligência americana.
– E a senhora quer comandá-la?
– Eu deveria ser a pessoa no comando. Afinal de contas, é a Agência de Segurança Interna.
– A CIA... – começou Harkes.
– Langley é uma piada. O Pentágono não ouve ninguém. O czar da inteligência não tem poder nenhum, e nem vamos falar na Agência de Segurança Nacional. É tudo muito patético.
– Mas o Programa E tem mérito.
– Esqueça a propaganda oficial. Esse era o mundo de Bunting. Ele era o dono do pedaço.
– E a senhora não.
– Agora você está me entendendo. Bunting é um tolo idealista. Dá para imaginar pôr toda a segurança deste país nas mãos de um analista?
– Mas esse não é realmente o caso, é? Ainda há muitos analistas fazendo seu trabalho. Os serviços de inteligência continuam em plena atividade. E a companhia de Bunting é muito mais do que o Programa E. Eles estão metidos em muitos outros serviços de inteligência. Mas Bunting foi encarregado de ver o quadro geral, unir os pontos. Era o que sempre fez falta no espectro da inteligência.
Ellen Foster negou com a cabeça.
– Essa é uma filosofia muito perigosa.
– Qual? Que qualidade é melhor do que quantidade?
– Nós lhes entregamos o nosso trabalho suado e eles ficam com o crédito. Isso é justo?
– Não pensei que justiça fosse um problema quando se fala sobre a segurança da nação.
– Não quero mais discutir isso com você – declarou Ellen incisivamente.
– Está bem. Eu só estava bancando o advogado do diabo. Faz parte do meu trabalho.
– Você sabe ser demoníaco, não é, Harkes? Tem essa reputação.
– Eu faço o que precisa ser feito.
– A esposa de Bunting tentou o suicídio. Sabia disso?
– Ouvi falar.
– Bunting deve estar desesperado. Eu não o suporto profissionalmente, mas tenho de admitir que ele se importa com a família. – O tom dela foi alegre.
– E isso também ajuda – disse Harkes.
– Exatamente. Isso o tira do jogo. Ele não está pensando em Edgar Roy ou em qualquer outra coisa. Sabe que armamos para ele levar a culpa. Mas não pode fazer nada a respeito. Cuidamos de todas as pessoas que importam.
– Foi um bom plano.
Ela o encarou de forma pensativa.
– Pode relaxar um pouco, sabe? Parece que está prestes a atacar alguém.
Harkes deixou o corpo sólido como uma rocha relaxar apenas um pouco.
– Faz um ótimo trabalho, Harkes. Fiquei impressionada com você desde o primeiro dia. Planejo usá-lo muito no futuro.
Ela cruzou as pernas e deixou o vestido escorregar generosamente em suas coxas nuas, enquanto se recostava mais nas almofadas.
– Fico grato, secretária Foster.
– O expediente acabou, Harkes. Pode me chamar de Ellen.
Harkes não disse nada.
– Você teve uma vida interessante, James – continuou ela. – Foi por esse motivo que selecionei você.
– Eu escolhi a trilha menos percorrida – disse Harkes simplesmente.
– Herói em combate, agente de campo com uma lista de sucessos. Você diz o que pensa e é capaz de debater em pé de igualdade intelectual com um membro do Gabinete – acrescentou ela. – Isso eu posso atestar.
Harkes não disse nada.
Ellen Foster sorriu discretamente.
– Estou deixando você desconfortável?
– Eu deveria estar?
– Acho que tudo depende de como você quer que a noite termine.
– Acha que isso seria sensato, senhora?
– Não sou velha o suficiente para ser uma senhora.
– Desculpe-me.
– Os empregados só vão voltar amanhã. O destacamento de segurança está lá fora, onde continuará a menos que eu ordene o contrário. Sou adulta. Você é adulto.
Ela esticou um pé descalço e tocou na perna de Harkes.
– Pelo menos espero que você seja.
Harkes ficou sentado em silêncio.
– Você nunca fez isso com um membro do Gabinete? – perguntou ela.
– Não. E como a maioria deles é de homens, minhas opções são limitadas.
– Bem, então esta é sua noite de sorte.
Ellen se levantou e foi até ele. Ela se abaixou e o beijou nos lábios.
– Espero que esteja impressionado. Não faço isso com qualquer um. – Ela tomou mais um gole de sua bebida e a pôs de lado. Disse casualmente: – Também estou procurando um novo chefe para meu destacamento de segurança pessoal. Acho que você vai gostar dos benefícios extras.
– Acho que não.
– O quê? – disse ela, surpresa.
Harkes se levantou.
– Não misturo negócios com outras coisas. Agora, se não precisa de mais nada, estou de saída.
– Harkes!
– Tenha uma boa noite, senhora secretária.
Harkes saiu pela porta da frente.

69
BUNTING E KELLY SEGUIRAM Sean e Michelle de volta para Mathias. No caminho, Sean contou a Michelle tudo o que fora discutido no restaurante. Horas depois, eles pararam na pequena casa rústica no bosque e apagaram os faróis. Sean foi o primeiro a notar que havia algo errado. A porta da casa estava parcialmente aberta. Eram quase quatro da manhã e ainda estava escuro. Michelle também notou a porta aberta. Ela sacou a arma.
Bunting, que adormecera no outro carro, acordou e perguntou, sonolento:
– Chegamos?
– Fique quieto – avisou Kelly, que dirigira o carro alugado. – Tem algo errado.
Quando Bunting viu que os outros três empunhavam armas, sentou-se ereto e totalmente desperto.
– O que foi? – sussurrou.
– Fique aqui – ordenou Michelle ao se aproximar do veículo. – E se mantenha abaixado.
– Vou ficar com Peter – informou Kelly Paul.
Bunting imediatamente se agachou no chão do carro, enquanto Kelly esquadrinhava a casa e o bosque ao redor.
Michelle entrou pela porta dos fundos e Sean pela frente, e eles se encontraram no meio da casa térrea. Michelle ergueu uma cadeira caída enquanto Sean olhava a cristaleira quebrada, que ficava encostada na parede, e a mesa virada de cabeça para baixo. Os documentos jurídicos de Megan Riley estavam espalhados pelo chão.
Mas tudo isso era secundário.
– Droga! – xingou Sean em voz baixa.
Eric Dobkin estava caído no chão, perto da mesa. Vestia roupas civis, porque estava lhes fazendo um favor. Seu último favor.
Michelle se ajoelhou ao lado dele.
– Parece haver um único ferimento de bala no peito – disse ela, examinando o buraco ensanguentado na camisa do homem. Ela o virou. – O projétil ainda está nele. Não há orifício de saída.
Michelle deitou novamente o corpo, se ergueu e deu um passo para trás.
– Não posso acreditar nisso.
– A porta da frente foi arrombada com um chute – observou Sean. – E Megan obviamente não está aqui.
Foi quando Sean viu algo atrás do sofá. Ele pegou. Era o suéter de Megan, coberto de sangue. Enfiou um dedo pelo buraco na roupa.
– Não é de bala. Parece ser de faca.
– Se ela foi morta, por que levar o corpo? – perguntou Michelle.
– Não sei. Mas temos de chamar a polícia.
– Esperem.
Eles ergueram os olhos e viram Kelly Paul e Bunting parados à porta da frente.
– Não podemos esperar, Kelly – disse Sean. – Este cara é um policial estadual. Estava nos fazendo um favor. E agora está morto. Ele tem esposa e três filhos pequenos. Isto é um pesadelo.
– E Megan foi levada. – Michelle olhou para Sean e acrescentou amargamente: – Que belos anjos da guarda nós fomos!
Eles chamaram a polícia. Sean e Michelle a esperaram enquanto Bunting e Kelly Paul iam embora. Teria sido muito complicado explicar o envolvimento dos dois. Eles marcaram de se encontrar mais tarde.
Antes de sair, Kelly dissera:
– Vai acontecer logo.
– Como eles vão fazer?
– Do único jeito que podem – respondera Kelly.
– E nossa reação será...? – perguntou Sean.
– Imprevisível – respondera Kelly.
– E depois disso? – perguntara Michelle.
– O verdadeiro trabalho começará – disse ela, enigmática.
Um momento depois ela, e Bunting se foram.
Vinte minutos mais tarde, duas viaturas estaduais pararam diante da casa. Sean e Michelle ouviram pés correndo. Alguns segundos depois, dois policiais apareceram à porta. Seus olhares examinaram a sala antes de pousar em Sean e Michelle e então, inevitavelmente, no corpo de Eric Dobkin. Eles avançaram devagar. Sean os reconheceu da cena do crime de Ted Bergin. Presumiu que eram amigos de Dobkin. Era provável que todos os policiais nessa área fossem grandes amigos.
Outro carro parou do lado de fora e, um instante depois, o coronel Mayhew entrou com um policial estadual.
Todos ficaram ao redor do corpo de Dobkin, olhando para ele.
Finalmente Mayhew olhou para Sean e Michelle.
– Que diabo aconteceu? – perguntou com uma voz baixa, mas cheia de emoção.
Ambos se revezaram explicando, deixando de fora os detalhes relacionados a Peter Bunting e Kelly Paul.
– O ponto principal foi que pedimos a Eric para vigiar Megan para nós. Estávamos preocupados com ela, depois do que aconteceu com Bergin – concluiu Sean.
– E onde vocês dois estavam quando tudo isso aconteceu? – perguntou Mayhew.
– Em Portland, seguindo uma pista – respondeu Michelle.
Mayhew respirou fundo e disse rispidamente:
– Eric é um policial estadual. Era um policial estadual. Não deviam ter lhe pedido para fazer serviços de segurança para vocês. Não era trabalho dele.
– Tem razão – concordou Sean. – Nunca foi nossa intenção que isto acontecesse.
– Vocês deviam saber que poderia acontecer – retorquiu Mayhew. – Se achavam que a moça estava em perigo, tinham que presumir que alguém poderia tentar machucá-la. O que poria Eric em perigo.
– Estamos muito mal por essa situação – disse Sean.
– Eu duvido – rosnou Mayhew. – Vocês certamente não se sentem tão mal quanto Sally Dobkin se sentirá ao descobrir que está viúva.
Sean abaixou os olhos.
– Coronel Mayhew, nós precisávamos de ajuda – argumentou Michelle. – Eric era um ótimo homem. Foi por isso que pedimos sua ajuda. Mas não o forçamos a fazer isso. Ele quis nos ajudar. Também desejava descobrir a verdade.
Mayhew não pareceu satisfeito com isso, mas parou de encará-la e começou a olhar ao redor.
– Alguma ideia de quem fez isso?
Sean e Michelle trocaram um rápido olhar. Eles haviam conversado e decidido como responderiam a essa pergunta.
– Não temos a identidade da pessoa, mas achamos que é a mesma que matou Bergin – disse Sean.
Mayhew olhou para o suéter ensanguentado.
– E vocês disseram ao atendente que Megan Riley está desaparecida?
– Ela deve ter sido o alvo.
– A equipe forense está a caminho – disse distraidamente Mayhew.
– Muito bem – disse Sean. – Estamos prontos para ajudar como pudermos.
– Há muito tempo não perdemos ninguém – falou Mayhew. – E nunca perdemos sob meu comando.
– Nós entendemos – disse Michelle.
– Tenho de ir contar a Sally – informou Mayhew com uma voz rouca.
– Gostaria que eu o acompanhasse? – perguntou Michelle.
– Não, não, esse é o meu trabalho – respondeu Mayhew firmemente.
Ele olhou mais uma vez para o corpo de Dobkin.
– Eu recrutei Eric. Eu o vi se tornar um bom policial.
– Estou certo disso – disse Sean em voz baixa.
– Vocês descobriram a verdade? – perguntou Mayhew.
– O quê? – disse Sean.
– Em Portland. Descobriram a verdade?
– Acho que estávamos chegando lá.
– Isto é muito mais complicado do que parecia no início, não é? – refletiu Mayhew sagazmente. – Bergin, Dukes, agente Murdock. Edgar Roy está bem no meio disso tudo, e duvido seriamente que ele seja quem nos disseram que é.
– Eu não poderia discordar de nenhuma de suas conclusões, senhor – disse Sean, sendo diplomático.
– Poderia me fazer um favor? – pediu Mayhew.
– É claro.
– Quando descobrir quem fez isso com Eric, quero prendê-lo pessoalmente e providenciar para que seja julgado aqui por assassinato.
– Farei tudo o que puder, coronel Mayhew. Certamente farei.
– Obrigado.
Mayhew se virou e foi embora.
Ele tinha de ir dar a trágica notícia para uma jovem com três filhos e um quarto bebê a caminho.

70
DUAS NOITES DEPOIS, EDGAR ROY pôde sentir que algo aconteceria, quase como os animais reagem à aproximação de uma tempestade. Ele se encolheu na escuridão, o rosto contra o colchão em que dormia todas as noites. Ouviu passos. Rondas de rotina. Conversas comuns. Mas, ainda assim, ele sabia.
As luzes piscaram, se apagaram, depois se acenderam de novo.
Ele se encolheu ainda mais na cama, com os pés para fora de uma das extremidades. Não ligava mais que a câmera visse que ele se movia. Não importava. As luzes piscaram de novo, como se houvesse uma tempestade lá fora e a mãe Natureza estivesse brincando com o circuito elétrico de Cutter’s Rock. Então as luzes se apagaram e ficaram assim durante um longo tempo.
Roy ouviu gritos de guardas. Ouviu gritos de alguns dos prisioneiros.
Pés correndo.
Portas sendo abertas e fechadas com um barulho de aço contra aço.
Uma sirene começou a tocar.
Então as luzes voltaram a se acender. De algum lugar vinha muito barulho, como o de um avião a jato preparando-se para decolar.
O gerador. Roy o ouvira ser ligado uma vez, num teste. O gerador tinha capacidade de fornecer energia para todas as instalações, até mesmo a cerca eletrificada. Era enorme e tinha um prédio só para ele, fora do principal. Era movido a combustível. Eles armazenavam combustível suficiente para uma semana. Roy também ouvira isso em conversas entre os guardas. Eles nunca esperaram que alguém estivesse ouvindo ou que se interessasse por isso. Mas Roy ouvia e se interessava por tudo. E se lembrava de tudo. O gerador era a defesa final. Depois disso não havia mais nada.
A produção de energia parou. No instante em que isso aconteceu, as luzes se apagaram de novo. Estava tão escuro ali dentro que Roy não conseguia ver nem mesmo as próprias mãos. Ele olhou por entre as barras de sua cela. Guardas corriam ao redor com luzes de emergência. Sem aquecimento, o prédio de concreto logo esfriou. Roy começou a tremer. Ele se cobriu. Roy tentou se esconder na cama. Mas não havia onde. Não mesmo.
A caravana de SUVs pretos com placas do governo passou pelo elevado na direção da entrada de Cutter’s Rock. Seis homens saltaram e se aproximaram do primeiro grupo de guardas. Atrás deles Cutter’s Rock estava às escuras, quase invisível. A escuridão só era quebrada pelo fraco luar e pelos feixes de luz estreitos das lanternas dos guardas que corriam tentando proteger o perímetro. Sirenes movidas a bateria soavam.
Um dos homens ergueu o distintivo.
– FBI. Estamos aqui para buscar Edgar Roy. Agora.
– O quê? – exclamou um guarda perplexo.
O homem balançou suas credenciais e seu distintivo na frente do rosto do homem de uniforme.
– FBI. Vocês estão com uma total falha de segurança. Roy é um prisioneiro federal de Nível Um. Isso constava da papelada quando ele foi trazido para cá. Sua segurança é da jurisdição do FBI no caso de uma crise em Cutter’s Rock. Agora abram os portões ou os prenderemos imediatamente.
Os guardas pareceram paralisados enquanto olhavam para a multidão de homens armados usando casacos do FBI e coletes à prova de balas.
Os guardas se viraram e abriram manualmente os portões, e os SUVs passaram rápido.
Quando eles chegaram à entrada principal, o novo diretor que substituíra Carla Dukes estava lá para cumprimentá-los. Ele ordenou aos guardas que abrissem o último conjunto de portas e imediatamente libertassem Edgar Roy e o deixassem sob a custódia do FBI.
Edgar Roy ouviu as portas se abrindo e fechando. Ouviu os sons de botas pesadas correndo pelas instalações. Ele não ergueu os olhos quando os sons pararam diante de sua cela. Não virou a cabeça quando a porta foi aberta manualmente. Deixou o corpo ficar mole quando mãos fortes se estenderam para ele.
Roy foi erguido, sua cabeça batendo no capacete de combate de um dos homens que viera buscá-lo. Eles o arrastaram pelo corredor.
Um dos homens disse em seu ouvido:
– Mexa os pés, idiota, ou meterei uma bala na sua cabeça.
Edgar Roy tentou se mover, suas pernas enfraquecidas dando dolorosos passinhos.
Eles correram pela escuridão. Sons, vozes, sirenes. Roy quis cobrir os ouvidos, mas os homens seguravam fortemente seus braços.
Quando chegaram à entrada, Roy viu rostos. O novo diretor o olhou, mal escondendo seu sorriso triunfante. As grandes portas foram abertas.
Pela primeira vez em meses, Edgar Roy estava do lado de fora. Podia sentir o cheiro do oceano e ver o luar.
Foi atirado no banco traseiro de um dos SUVs e depois homens entraram no veículo. Motores turbinados foram ligados e rodas colaram no asfalto. Roy foi atirado para trás em seu banco quando o SUV virou, alcançou 100 por hora alguns segundos depois e se precipitou para a saída.
Eles cruzaram o elevado. A caminhonete virou à esquerda e desacelerou. As duas caminhonetes atrás deles fizeram o mesmo. Dez minutos depois eles seguiam por uma estrada, a saída natural da área. Era isolada e escura, sem nada ao redor exceto uma longa faixa de asfalto e árvores.
O caminho óbvio de saída.
Roy sentiu um solavanco quando a caminhonete bateu em algo na estrada. Houve uma explosão, porém nada saiu pelos ares. A caminhonete não foi arremessada para longe, mas ficou envolta por uma nuvem de fumaça.
Alguém gritou. Roy sentiu o SUV se inclinar para a direita e depois esquerda. Homens ao seu redor vomitaram. Algo puxou seu braço. Ele sentiu um cano de metal encostar em seu rosto. Achou ter ouvido um clique, como o de uma arma sendo engatilhada.
A fumaça entrou pelas fendas do veículo. Roy não conseguia ver nada. Era como se eles estivessem em uma cabine de avião aberta e tivessem acabado de entrar em uma nuvem. Ouviu as outras caminhonetes girando e derrapando atrás deles. Homens gritavam, xingavam e sufocavam.
Roy se sobressaltou quando o tiro foi disparado. O vidro explodiu perto da sua cabeça. Alguns dos estilhaços o atingiram, cortando seu rosto.
Ele respirou profundamente e essa foi a última coisa que se lembrou de ter feito.

71
LEVE MOVIMENTO.
Leve náusea.
Ele viu a irmã girando na velha cozinha da família. Então se lembrou de algo muito mais recente.
Viu o rosto na terra olhando para ele do chão do celeiro.
Sua irmã girando de novo.
Depois o rosto do pai.
Então o rosto na terra.
Tudo aquilo pareceu relacionado, embora não pudesse estar.
Sua mente estava um caos.
Nunca tinha ficado assim antes. Nunca.
Edgar Roy abriu os olhos e depois os fechou rapidamente quando sentiu uma pontada de dor na cabeça. Abriu-os de novo. Alguma coisa o puxou. Ele deslizou para cima, como se estivesse sendo tirado de águas profundas. Tudo ao seu redor parecia molhado e escorregadio.
– Eddie?
Roy fechou os olhos mais uma vez.
– Eddie?
Ele forçou seus olhos a se abrirem. Sentia-se lerdo, estúpido, embriagado. Sensações que nunca tivera na vida.
– Eddie? Consegue se sentar sozinho?
Com um esforço, Edgar Roy se sentou e olhou para ela.
Kelly Paul estava sentada ao seu lado, no banco traseiro de uma van com janelas de vidro fumê. Havia outras pessoas com ele e a irmã. A van não estava em movimento.
O homem alto estava no banco do carona, a mulher cética de cabelos escuros, no do motorista.
Peter Bunting estava sentado do outro lado de Kelly.
– Edgar, está tudo bem? Você estava sangrando quando eles o encontraram – disse Bunting.
Roy tocou no lado da cabeça e sentiu a atadura.
– Tiro. Errou. Vidro – murmurou Roy.
– Tudo bem, Eddie. Passou perto, mas está tudo bem – tranquilizou-o Kelly.
– K-el? – disse ele, o nome saindo enrolado e truncado.
– Fique tranquilo, Eddie. Você respirou um negócio ruim. Não tem efeitos permanentes, mas demora um pouco a passar. Quando sair de seu organismo, você se sentirá muito melhor.
– Vocês fizeram aquilo tudo?
– Infelizmente foi inevitável.
Ele sentiu algo no tornozelo. Mais precisamente, ele não sentiu algo nele. Olhou para baixo. Não havia mais argolas em suas pernas.
– Achei que você não iria querer usar aquilo – disse Kelly Paul.
Roy olhou para a mulher de cabelos escuros.
Michelle olhou de volta pelo espelho retrovisor. Ela estava com um coldre de ombro e uma expressão ansiosa. Ao seu lado, Sean parecia igualmente preocupado.
Sean se virou para Kelly e disse:
– Vamos esperar que não tenha sido mesmo o FBI que foi pegar seu irmão.
Roy esfregou seu rosto e forçou a mente a se livrar de toda aquela fumaça, sujeira e ineficiência.
– Não foi o FBI – disse ele.
– Como você sabe? – perguntou Sean.
– Porque um dos homens me disse: “Mexa os pés, idiota, ou meterei uma bala na sua cabeça.”
A frase saiu mais como uma reprodução de gravador, e Michelle e Sean pareceram aliviados.
– Certo – concordou Sean. – Definitivamente não foi o FBI.
Michelle perguntou a Kelly:
– Como você sabia o que ia acontecer?
– Os homens observando a prisão. Essa foi a primeira pista. Depois, uma equipe de manutenção entrou para fazer um serviço de rotina. Só que esse serviço foi feito há menos de um mês e só deveria ser refeito três meses depois. Eles passaram muito tempo com o gerador.
– Então por que os deixaram entrar no prédio? – perguntou Sean.
– Porque o homem que substituiu Carla Dukes como diretor de Cutter’s Rock autorizou. Ele estava sendo subornado.
– E na verdade eles foram sabotar os sistemas elétricos e o gerador – disse Michelle.
– E, como vimos, eles conseguiram – respondeu Kelly Paul.
– Então você telefonou para alguns... amigos? – insistiu Sean.
– Conhecidos – corrigiu ela. – Eles vieram, viram e venceram.
– O que iam fazer com ele? Matá-lo? – perguntou Michelle, olhando para Edgar Roy.
– Sim, e botar a culpa em Peter, em mim ou em outro alvo conveniente.
Ela se virou para o irmão.
– Quando eu o visitei em Cutter’s Rock, pedi para você pensar sobre algumas coisas. Você pensou?
Roy assentiu com a cabeça. Ele ajeitou os óculos e disse:
– Você me perguntou sobre padrões. Detectei quatro diferentes, mas todos ligados de algum modo. O que soubemos recentemente me forneceu novas informações, que agora inseri nesses cenários.
A voz de Roy agora soava firme, direta e mais mecânica do que humana.
– Quatro padrões? – disse Michelle.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Em primeiro lugar, o agente Murdock foi morto porque descobriu a existência do Programa E. Isso não é uma dedução. Ele mesmo me contou, quando veio me ver em Cutter’s Rock. Disse que definitivamente havia algo errado e que ele precisava da minha ajuda para chegar às pessoas responsáveis. Carla Dukes foi eliminada porque não concordava com o plano de retirada, ao passo que o novo diretor não tinha esse escrúpulo, como agora nós sabemos. Eu vi o sujeito me olhando quando saímos de Cutter’s Rock. Ele é um péssimo ator, e sua culpa não poderia ser mais evidente.
– Ele obviamente não acreditava que você estaria em posição de contar nada a ninguém – disse Kelly Paul.
– Certo. Hilary Cunningham foi morta para incriminar a Sra. Maxwell e distrair você e o Sr. King do caso.
– E Bergin? – perguntou Sean.
– Obviamente foi morto por alguém que ele conhecia.
– Por que está dizendo isso? – perguntou Sean.
– A janela abaixada e depois subida pelo assassino – falou ele e olhou de relance para a irmã. – Ela me revelou isso em código Morse.
– Foi Sean quem me contou – acrescentou Kelly.
– Acho que grandes mentes pensam igual – observou Michelle.
– Mas não sei quem o matou – admitiu Roy. – Não tenho dados suficientes para prosseguir. O cenário provável foi tirá-lo do caso para que não fosse adiante. Eles estavam ganhando tempo. – Roy fez uma pausa. – Mas isso não faz muito sentido.
– Por quê? – perguntou Michelle.
– Porque, de qualquer modo, o caso não iria adiante, não com Edgar em Cutter’s Rock – respondeu Sean.
– Está totalmente certo – disse Roy.
– Pelo menos Foster e Quantrell devem estar dando chiliques – disse Bunting com um sorriso amargo. – Isso é positivo para nós.
– Mas também significa que virão atrás de nós – acrescentou Kelly Paul.
– E nós vamos ficar sentados esperando? – perguntou Sean.
– É claro que não – respondeu ela. – Agora estamos na ofensiva.
– Como? – perguntou Sean.
– Sei exatamente como – disse Kelly. – De certo modo, acho que esperei minha vida inteira por isso. – Ela olhou para Bunting. – E você, Peter?
– Ah, tenho a mesma impressão.

72
ELES DIRIGIRAM ATÉ UMA CASA segura arranjada por Kelly Paul.
– Todo mundo vai procurar meu irmão – disse Kelly. – Este lugar é longe o suficiente da ação, mas ainda assim teremos de tomar o máximo de precauções. Se eles recapturarem Eddie, nosso plano não vai dar certo.
Enquanto olhava ao redor do novo espaço, Sean disse:
– Agora todos nós somos criminosos. Incitadores e cúmplices. Com certeza não fomos contratados para isso. E certamente não nos sentimos confortáveis com a situação.
Kelly Paul se virou para olhar para ele.
Eu entendo. Se você e Michelle tiverem algum problema com isso, podem ir agora. Ninguém sabe que estão envolvidos em nada. Só peço para não entregarem Eddie. Se isso acontecer, estará tudo acabado para ele.
– Você acha que não há chance de ele ter um julgamento justo? – perguntou Sean.
– Ele nunca irá a julgamento, Sean. Não vão permitir. Eles o tiraram de Cutter’s Rock para matá-lo. Se ele voltar, será encontrado morto por causas desconhecidas na cela. É exatamente o que vai acontecer.
Sean olhou de relance para Michelle, que disse:
– Entre a cruz e a espada.
– Sim – respondeu ele.
– Dadas as circunstâncias, fomos longe demais para parar agora, Sean – disse ela. – E ainda não sabemos quem matou Bergin. Sei que isso é importante para você.
Sean olhou para Kelly, que o observava atentamente.
– Está bem, vamos ficar. Mas não vamos usar força contra agentes federais ou policiais estaduais.
– Agentes federais verdadeiros – destacou Michelle. – Eu já abati alguns falsos no Central Park e num restaurante em Charlottesville.
Sean continuou a olhar para Kelly.
– Estamos entendidos?
Ela assentiu com a cabeça.
– Sim.
Bunting pôs a mão no ombro de Sean.
– Obrigado.
– Não me agradeça ainda. Temos um longo caminho pela frente.
Depois que os outros se retiraram para seus quartos para dormir um pouco, Kelly e Roy ficaram sozinhos na sala.
– É tão bom ver você, Eddie! – disse Kelly. – Senti sua falta. – Ela fez uma pausa. – Só queria que fosse em circunstâncias diferentes.
– Também senti sua falta, Kel. Muito.
Kelly Paul olhou para baixo.
– Eu deveria ter visitado você muito tempo atrás. Antes de tudo isso...
– Sei que você estava ocupada.
– Nem tanto. – Ela ergueu os olhos. – Foi por minha causa que você entrou para o Programa E. Eu o recomendei para ele.
– Não posso dizer que estou surpreso.
– Analisou a situação, não foi? – disse ela com um débil sorriso.
– Sou muito bom nisso.
– Bunting não fez nada além de elogiá-lo.
– Mas não é... não é fácil ser...
– Deus?
– Então você entende. Esse não é um papel que humanos, não importa quanto sejam inteligentes, foram feitos para desempenhar. Nós temos dúvidas. Temos preconceitos. Cometemos erros.
– Você cuida da segurança de muitas pessoas, Eddie.
– Também mato muitas.
– Não diretamente.
– Isso é só tapar o sol com uma peneira.
– O que você faz é tentar tornar o mundo melhor, mais seguro e mais justo. Sim, suas decisões resultam na morte de pessoas, mas apenas para que muitas, muitas mais possam viver. O que há de errado nisso? O que sua mente surpreendente lhe diz a esse respeito?
– Logicamente, é óbvio que não há nada de errado. Mas isso também não é assim tão fácil.
Kelly Paul se reclinou na cadeira.
– Sei que não é. – Ela olhou para o irmão. – Você quer continuar nesse trabalho?
– Não sei. Primeiro preciso ver se vou sobreviver.
– Se nós vamos sobreviver. Você e eu.
– Você e eu – repetiu ele em voz baixa, embora fosse óbvio que as palavras dela o agradaram.
– Eu meti você nisso, e é meu dever tirá-lo – disse Kelly.
– Minha protetora – disse Roy quase em um sussurro.
– Posso lhe perguntar uma coisa?
– Sim.
– Por que você decidiu continuar morando na fazenda depois que nossa mãe morreu? Poderia ter vendido e se mudado.
– É o meu lar.
– Esse não é um motivo bom o suficiente, Eddie. Nós dois sabemos disso. – Ela fez uma pausa. – Visitei o lugar. Antes de você se tornar o Analista.
– Onde eu estava?
– No trabalho, na Receita Federal.
– Por que você foi quando eu não estava lá?
– Não sei. Talvez estivesse com medo.
O rosto dele ficou triste.
– Com medo? De me ver?
– Não, é claro que não. Acho que de vê-lo naquele lugar.
– Isso já faz muito tempo, Kel.
– Não tempo o suficiente. Não para mim. Ou você.
– Você voltou por mim.
Ela ergueu uma das mãos.
– Em primeiro lugar, eu nunca deveria ter deixado você lá. Eu sabia. Eu... conhecia aquele homem. Aquele animal.
– Mas agora ele está morto. Acabou.
– Isso nunca vai acabar, Eddie. Nem para você nem para mim. Nós dois sabemos disso. As cicatrizes são profundas. Eu nunca me casei. Nunca nem pensei nisso. Nunca tive filhos. Nunca quis. Quer saber por quê?
Roy fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Porque não achei que poderia protegê-los. Essa foi a saída mais fácil. Fui covarde, Eddie, pura e simplesmente covarde.
– Kel, não foi culpa sua.
Kelly Paul se levantou e andou em círculos diante dele.
– É claro que foi, Eddie. Eu o abandonei. Passei toda a minha vida me punindo ao fazer coisas muito perigosas. E só recentemente me ocorreu que, enquanto eu estava me punindo, me esquecia de algo importante.
Isso tudo veio como um sopro de ar contido finalmente liberado.
– O quê?
– Você. – Ela se ajoelhou na frente dele, pegou sua mão e a apertou. – Eu me esqueci de você, Eddie.
– Você nunca me esqueceu. Você escreveu. Veio me ver algumas vezes.
– Não é a mesma coisa. Você sabe disso.
Ela se reclinou e levou uma das mãos aos olhos.
– Por favor, Kel. Não fique triste.
Kelly se levantou abruptamente.
– Vou tirar você disso, Eddie. Eu lhe prometo. Mesmo que eu morra nesse processo.
Kelly Paul se virou e cambaleou para fora da sala, deixando o irmão mais novo sozinho com pensamentos com os quais nem mesmo sua mente brilhante estava preparada para lidar.

73
ELLEN FOSTER ESTAVA SENTADA numa cadeira no bunker subterrâneo que reservava para as reuniões mais particulares. Sem anotações, sem gravações e sem nenhum tipo de vigilância.
Ela se sentou, olhando para o homem que a encarava de volta.
– Você pelo menos entende como eu estou furiosa? – perguntou ela.
Mason Quantrell não disse nada. Ele batucou nervosamente na mesa de madeira e apenas a olhou com cautela.
A secretária de Segurança Interna prosseguiu:
– Era o melhor que eu poderia fornecer. Era perfeito. Você só tinha que fazer o seu trabalho. E agora? – Ela bateu com a mão na mesa. – E agora?
O rosto de Quantrell ficou sombrio e ele pôs a cautela de lado.
– Armaram contra nós, Ellen. Obviamente, você tem um espião na sua equipe. Isso não foi culpa minha. Nós fizemos tudo certo.
– Ah, não seja ridículo. Eles apenas enrolaram você. Foram mais espertos do que você.
– Foram mais espertos do que nós – corrigiu Quantrell em um tom ríspido. – Você e eu. Estamos nisso juntos.
O olhar zangado de Foster foi lentamente substituído por algo mais sutil: apreensão.
– Não estou gostando do seu tom, nem das suas palavras – disse ela.
– Este não é o momento para brigarmos – disse Quantrell, mais calmo. – Eles venceram um round, só isso. Fomos vitoriosos em todos os outros.
– Eles têm Roy. Se perdermos esse round, podemos vir a nocaute.
O outro homem na sala pigarreou.
– Acho que o Sr. Quantrell tem razão, secretária Foster – disse James Harkes.
Ellen Foster se virou para Harkes e seu rosto se tornou ainda mais duro. A rejeição da noite anterior ainda era nítida em suas feições. Harkes não estaria ali se não fosse pelo desastre recente que o tornara necessário.
– E por que você pensa assim? – perguntou Ellen Foster friamente.
– O plano sempre foi remover Edgar Roy e pôr a culpa em Bunting e seus aliados. Bem, agora eles realmente estão com Roy. Não precisamos fabricar a culpa. Ela é um fato.
– Tem razão – concordou Quantrell.
Ellen Foster já estava balançando a cabeça negativamente.
– Você se esqueceu de um detalhe importante. O comboio do FBI que tirou Roy de Cutter’s Rock era falso. Era o pessoal de Quantrell. Os idiotas dele.
– Isso não faz nenhuma diferença – disse Harkes. – Com comboio falso ou não, a equipe de apoio de Quantrell estava na cena 15 minutos depois do ataque. Obviamente, não chegou a tempo de impedir que levassem Roy, mas a cena foi limpa antes que qualquer um chegasse lá. No que diz respeito ao mundo, uma equipe falsa do FBI tirou Edgar Roy de Cutter’s Rock. E Roy agora está nas mãos de Peter Bunting. Portanto, Bunting deve estar por trás disso.
– E Kelly Paul – disparou a secretária Foster. – Ela deve estar metida nisso tudo. Afinal de contas, Roy é irmão dela.
– E agora sabemos que Bunting não foi para o hospital com a esposa – acrescentou Quantrell. – Foi tudo uma farsa para nos enganar.
– E a família dele está escondida – disse Harkes. – Foi um serviço muito bem executado.
Esse comentário fez a expressão de Ellen Foster se tornar ainda mais dura.
– Muito bem executado? Por que não começa a aplaudir, Harkes, se gosta tanto assim deles?
– Subestimar o oponente é o maior erro que se pode cometer, secretária Foster. Eles são bons. Temos de reconhecer isso e simplesmente ser melhores.
– Então eles estão com Roy – disse Quantrell. – O que vão fazer com ele? Ele não sabe nada que possa nos implicar em alguma coisa.
– E, como Roy é um prisioneiro fugitivo – acrescentou Harkes –, não estou certa de como Bunting pretende usá-lo. Ele não pode colocá-lo de volta no Programa E.
– Se nós conseguirmos encontrar Roy e eles... – disse Ellen Foster, sua raiva diminuindo enquanto se reconcentrava no problema.
– E amarrar tudo isso – acrescentou Quantrell. – Ainda poderemos atingir todos os nossos objetivos. Roy será morto, e Bunting culpado por tudo. O Programa E acabará para sempre.
Ellen Foster se levantou e andou pela sala.
– E, devido a esse último acontecimento, obtive algo esta manhã que poderá tornar nosso trabalho mais fácil.
– O quê? – perguntou Quantrell.
– Aprovação explícita do presidente para usar de qualquer meio necessário para consertar essa situação.
– Qualquer meio? – perguntou Harkes rapidamente. – Aprovação do presidente?
A secretária Foster olhou para ele e confirmou:
– Qualquer meio. Portanto acho que é um trabalho sob medida para você, Harkes.
Ele olhou para Quantrell e depois voltou a olhar para Foster.
– Então assumirei o comando?
– Está à altura da tarefa? – perguntou ela severamente.
– Só quero confirmar que faremos as coisas do meu modo.
– Não tenho nenhum problema com isso. Meus homens obviamente se ferraram. Mas sua reputação o precede, Harkes – disse Quantrell.
– Está de acordo, senhora secretária? – perguntou Harkes.
– Só quero que você cuide disso, Harkes. Usando os meios que quiser.
– E quem você quer que esteja vivo no final?
Ellen Foster pareceu surpresa.
– Não sei bem se quero que fique alguém vivo no final. Por que eu ia querer isso?
– Novamente, só gosto de ser o mais explícito possível em situações como essa.
Ela se aproximou dele e se inclinou para a frente.
– Então aqui estão suas instruções explícitas, Harkes. Edgar Roy, morto. Peter Bunting, morto. Kelly Paul, morta. Michelle Maxwell, morta. Sean King, morto. Isso é preciso o bastante para você?
– Sim.
Ela se aprumou e olhou para Quantrell.
– Se isso é tudo, Mason, eu gostaria de um momento em particular com Harkes. Temos um negócio pendente para resolver, sobre outro assunto.
Depois que Quantrell saiu, Foster se sentou na ponta da mesa perto de Harkes.
– Não gostei da noite passada. Seu comportamento foi além do ridículo.
– Imaginei que acreditasse nisso.
– O que quer dizer?
– Eu poderia dizer que seu comportamento é que foi ridículo, mas duvido que isso a convenceria.
– Não estou acostumada a ser rejeitada em nenhum nível.
– Também imaginei isso.
– Posso tornar a sua vida um inferno.
– Sim, pode.
– E, por outro lado, posso torná-la o oposto de um inferno.
– Não me prostituo, senhora secretária.
– Você faz o que eu quiser que faça – corrigiu-o ela. – Então, como deseja que isso termine?
– Tenho uma missão. Eu a cumprirei.
– E depois?
– Depois o quê?
Ellen Foster deslizou uma unha comprida pela mão dele.
– Eu quero você, Harkes. E eu consigo o que quero. Simples assim.
Harkes ergueu os olhos para ela.
– Por quê?
– Por que o quê?
– A senhora poderia ter um embaixador. Um senador. Um idiota rico de Wall Street. Qualquer um mesmo. Então por que eu? O que eu represento para a senhora?
– Já tive todos esses tipos. É que nem sorvete. Agora quero um sabor diferente.
Ela se inclinou para mais perto.
– Então, quando isto terminar, você continuará a trabalhar para mim do modo como eu escolher. Entendido?
– Entendido.
Foster passou uma das mãos pelo rosto dele.
– Ótimo. Agora faça o que precisa ser feito.
– Eu farei – disse ele.

74
– SENHOR, É ELE. AO TELEFONE!
A secretária de Mason Quantrell estava diante dele em uma das salas que alugava no norte da Virgínia.
Quantrell ergueu os olhos do trabalho.
– Quem?
– Peter Bunting.
Quantrell esqueceu tudo o que estava fazendo.
– Bunting? Ligando para mim?
– Linha um.
– Notifique a segurança e mande rastrear o telefonema.
– Sim, senhor – falou a mulher, saindo às pressas.
Quantrell parou, baixando os olhos para a luz que piscava. Então atendeu.
– Alô.
Bunting disse agradavelmente:
– Alô, Quantrell – disse Bunting de forma agradável. – Sei que seu pessoal de tecnologia está tentando rastrear este telefonema. Pode deixá-los fingir que dão conta, se quiser. Você nunca conseguirá entrar no meu canal de comunicação, principalmente porque seu software é uma porcaria barata que você vende para o Pentágono por cinquenta vezes o que vale. De qualquer forma, serei breve.
– Onde está Edgar Roy, Bunting?
– Engraçado você perguntar, Mason. Sei que teve uma surpresa bem desagradável quando seus homens caíram numa emboscada.
– Não sei do que está falando.
– Certo, certo, você diz isso só para o caso de eu estar sentado no prédio central do FBI, gravando este telefonema.
– Duvido que seja capaz de chegar perto de um prédio do FBI sem ser preso. Você está metido numa séria encrenca, meu amigo.
– Você acha? Bem, nem de longe tão séria quanto a sua encrenca.
– Você nunca mentiu bem, Pete.
– Sabe, foi um vacilo.
– O quê?
– A equipe que você usou para retirar Roy. Como você foi se esquecer das câmeras de segurança em Cutter’s Rock?
Quantrell sentiu a barriga se contrair só um pouco.
– Não tenho a menor ideia do que está falando.
– Você entende o conceito, não é? Eles veem as coisas.
– Eu... eu soube pelo noticiário que a energia foi cortada, como parte do plano de fuga. – Ele acrescentou em uma voz alta. – Um plano que você traçou.
– Mas Cutter’s Rock é uma prisão federal muito especial. E o Maine é um estado muito verde.
– Que diabo isso quer dizer?
– Você já notou os painéis solares, Mason?
Quantrell permaneceu em silêncio.
– Ou você nunca foi pessoalmente a Cutter’s Rock? Talvez tenha apenas mandado seus lacaios fazerem todo o reconhecimento. Bem, eles têm gerador a diesel, mas também têm energia solar de reserva. Não é tão poderosa. Não consegue fazer as instalações funcionarem. Não consegue nem mesmo eletrificar a cerca. Mas consegue manter as câmeras funcionando 24 horas.
– Energia solar de reserva? – repetiu Quantrell lentamente.
– Portanto eles têm fotos muito boas de todos os seus homens. Muito boas. Até mesmo com seus equipamentos do FBI falsos as imagens foram muito reveladoras.
– Você não vai distorcer isso, Bunting – disse Quantrell, mas sua voz estava fraca.
– O que estou tentando fazer, Mason, é lhe oferecer uma saída.
Quantrell teve de rir.
– Não que eu precise de uma, mas por que diabo você faria isso?
– Dois dos homens flagrados pelas câmeras foram identificados como tendo trabalhado para você no passado, Mason. No passado recente. Você precisava tanto contratar capangas que não conseguiu enviar pessoal limpo? Quero dizer, sei que você tem o diretor de Cutter’s Rock na palma da mão, mas os pequenos detalhes são os mais importantes. Você errou em duas frentes: ignorar as câmeras e usar capangas rastreáveis.
– Não acredito em nenhuma palavra do que está me dizendo.
– Na verdade, não o culpo por isso.
Quantrell ergueu os olhos quando o homem apareceu à porta de seu escritório. Era o chefe de segurança. Ele estava balançando a cabeça, seu rosto marcado pelo fracasso.
Quantrell o dispensou com um rápido aceno de mão.
– Mason, ainda está na linha? Sua segurança acabou de lhe relatar que falhou? – provocou Bunting.
Quantrell quase derrubou a cadeira ao se erguer de um pulo, procurando ansiosamente no escritório um conjunto de olhos, eletrônicos ou humanos, espiando-o de algum lugar.
– Fique calmo, Mason. Fique calmo. Não estou vendo você. Só o conheço. Eu o conheço muito bem. Você é previsível, com P maiúsculo.
– Qual é a droga do seu jogo, Bunting? – gritou Quantrell pelo telefone.
– Jogo nenhum, Mason. Mas é óbvio que você não está nem um pouco interessado no que tenho para dizer. Agora, quando os homens de Ellen Foster vierem prendê-lo, o que você vai fazer?
Dessa vez a barriga de Quantrell se contraiu tanto que ele quase se dobrou.
– Ellen Foster?
– Você realmente achava que ia se safar em igualdade de condições com ela? Foster é esperta demais.
Quantrell afundou na cadeira.
– Aonde você quer chegar?
– Foram seus homens que fizeram todo o trabalho pesado, não foram? Plantaram os seis corpos no celeiro de Edgar. Mataram Murdock, Dukes...
– Espere um pouco aí...
– Foster usou você, Mason. E, agora que está dando tudo errado, ela vai pôr em prática o plano de sobrevivência. Vai acabar com você. A pobre e generosa secretária de gabinete e o sórdido fornecedor de material bélico. Não se sinta mal. Isso não é assim tão incomum. É a mesma armadilha que você preparou para mim. Pelo menos eu fui esperto o bastante para sair da cidade. Você, por outro lado, está sentado em seu grande e elegante escritório com o centro do alvo bem na sua cabeça.
– Você... não tem nenhuma prova. Eu posso... eu tenho amigos. Aliados.
– Sim, eu também pensei que tinha. Isto é, antes de Ellen Foster virá-los contra mim. O que ela deve estar fazendo com você agora mesmo. E você sabe como aquela mulher pode ser persuasiva. Será que ela já se encontrou com o presidente para informá-lo de sua traição?
– Que traição? – perguntou rapidamente Quantrell.
– Ah, eu não lhe contei? Os cartões de memória das câmeras de vigilância foram entregues a ela esta manhã, junto com relatório detalhado do que representam. Sabe, eu ainda tinha um trunfo secreto em Cutter’s Rock que me ajudou nessa situação difícil. Pode considerar um belo presente meu. Será mais do que suficiente para uma acusação. Sua empresa será desqualificada para fazer qualquer trabalho para o governo, e como é só isso que você faz, não terá mais nenhum negócio. Mas isso não vai importar. Você acabará em uma prisão federal, onde caras grandes e durões com tempo sobrando vão querer conhecê-lo muito bem.
– Mas eu posso derrubar aquela vaca. Eu posso... sei de coisas...
– Ellen Foster é esperta demais, Mason. É a palavra dela contra a sua. Ela é a secretária de gabinete, e sua reputação é conhecida. E não é uma boa reputação. Por que você acha que ela escolheu trabalhar com você, seu idiota?
O sangue desapareceu lentamente do rosto de Quantrell enquanto ele assimilava a informação. Ele passou a língua pelos lábios e disse devagar:
– Você falou numa saída.
– Sim, falei. Quer saber qual é?
Quantrell tossiu, tentando pigarrear com a garganta subitamente seca. Ele falou com uma voz baixa e áspera:
– Sim, quero.
– Ótimo. Aguente firme e voltarei a ligar para você.
Quantrell gritou no telefone, mas Bunting já havia desligado.

75
ERA UM EVENTO DE GALA para arrecadar fundos no Lincoln Center. Vieram astros das duas costas do país. A esposa de Peter Bunting era do conselho do Lincoln e ajudara a programar o evento. Ela não compareceria, em virtude da doença recente, mas encontrara alguém para usar seu convite de cortesia.
Kelly Paul, alta, majestosa, usando um vestido longo e cabelos presos no alto, exceto por algumas mechas soltas, caminhou por um dos corredores do centro com uma taça de Bordeaux na mão. As pessoas a olharam e fizeram comentários sobre ela, embora não soubessem quem era.
Kelly Paul estava ali por um único motivo. E finalmente o avistou.
Ou, mais exatamente, a avistou.
Ellen Foster não parecia muito confortável. Não só porque o problema de Edgar Roy pesava em sua cabeça, mas também porque estava num evento em que não era nem de longe o centro das atenções. Sua fama pública era limitada, embora ela tivesse mais poder do que qualquer um no prédio. Mas isso parecia não significar muito quando uma matilha de convidados esbarrava em você numa tentativa de encurralar o mais novo astro de Hollywood ou cantor de sucesso.
Ellen caminhou com uma taça de champanhe na mão, procurando furtivamente alguém que a reconhecesse para poder se exibir um pouco. Sem encontrar ninguém interessado nela, decidiu ir ao banheiro feminino.
No banheiro, enquanto retocava o batom, ouviu uma voz.
– Olá, Ellen.
Ela ficou paralisada, mas apenas por um instante. Olhou no espelho e não viu ninguém.
– Eu tranquei a porta. Você não será perturbada.
Ellen Foster se virou devagar.
– Estou armada.
– Não, não está.
Kelly Paul saiu das sombras e a encarou. Mesmo de salto alto, a secretária Foster era mais baixa que a outra mulher.
– Kelly Paul? – falou Ellen Foster, balançando a cabeça. – É muita audácia sua fazer isso.
– Fazer o quê? Xixi? Isso não é mais permitido no Lincoln Center?
Foster apoiou suas nádegas na pia de granito e cruzou os braços.
– Eu poderia mandar prendê-la agora.
– Pelo quê?
– Por muitas coisas.
– Terá de ser mais específica.
– Onde está seu irmão?
– Eu ia lhe perguntar a mesma coisa.
– Realmente não tenho tempo para isso.
– Peter Bunting? – disse Kelly.
– O que tem ele?
– Você armou muito bem contra ele.
– Pelo contrário, ele cavou a própria sepultura.
Kelly Paul ergueu as mãos.
– Verifique se estou com uma escuta, se quiser. Você pode ser franca.
Ellen Foster olhou para Kelly Paul como se ela tivesse perdido o juízo.
– Preciso voltar à festa. E, para o caso de você tentar fugir, meus homens estão vigiando todas as saídas. Estou ansiosa para ver quantas acusações serão feitas contra você.
A secretária Foster começou a sair.
– Essa coisa do Mason Quantrell é interessante, não é?
A secretária parou com a mão na maçaneta.
– Quem? – disse ela.
– O Mercury Group? Mason Quantrell. Seu parceiro no crime?
– É impressionante ver como você caiu. Você costumava ser especial. Esse é o desempenho mais amador e patético que já vi.
– Bunting é um homem muito inteligente. Ele foi mais esperto que Quantrell – disse Kelly. – Ligou os pontos e encontrou a prova. Quantrell sabe que vai cair por causa disso. Mas também está tentando fazer um acordo com o FBI. Está interessada em saber o que eles vão querer em troca?
Ellen Foster simplesmente ficou parada, olhando para ela.
– Continua achando meu desempenho amador, Ellen?
– Estou ouvindo, ainda que seja para me divertir.
Contudo, a mulher estava claramente menos confiante.
– A história não vai demorar muito. Quantrell está prestes a denunciá-la.
Ellen Foster forçou um sorriso.
– Pelo quê?
Kelly Paul contou nos dedos da mão esquerda.
– Os seis corpos no celeiro. Um advogado e sua secretária mortos. A diretora de Cutter’s Rock morta. Um policial estadual do Maine morto. E, acima de tudo, um agente do FBI morto. Os federais ficam muito irritados quando um deles é assassinado. E você não precisava fazer isso, Ellen. E daí que ele tivesse descoberto sobre o Programa E? Você realmente precisava fazer isso? O sujeito tinha três filhos.
– Isso é a maior idiotice que já ouvi.
– E mesmo assim você continua aqui.
– Por que está me dizendo isso?
– Porque quero meu irmão de volta, são e salvo. E preciso de você para isso.
Pela primeira vez a insegurança surgiu nos olhos de Ellen Foster.
– Seu irmão foi tirado de Cutter’s Rock por pessoas que se passaram por agentes do FBI. Em outras palavras, por você.
– Foi o pessoal do Quantrell, e você sabe disso.
– Mas...
– Mas o quê? Ele veio com uma conversa fiada de que seu plano não deu certo? Disse que perdeu meu irmão? – Kelly Paul se aproximou da outra mulher. – Quero Eddie de volta, Ellen. E, de um modo ou de outro, eu o terei.
Ela fez uma pausa e um ar de incredulidade surgiu em seu rosto, enquanto estudava o olhar vazio de Ellen.
– Quantrell enganou você também? Disse que pegaria Edgar e o mataria? Que poria a culpa em Bunting? Droga, Bunting já está frito. O Programa E acabou. Você não precisava de meu irmão para isso. Foi um exagero. Ele poderia muito bem apodrecer naquela prisão. Não faria nenhuma diferença para você. Você já tinha vencido. Não entendeu isso?
Kelly Paul se aproximou ainda mais, de modo a olhar Ellen Foster de cima.
Eddie é inocente. Eu não dou a mínima para o Programa E, mas não vou deixar meu irmão perder a vida para que você consiga uma vitória inútil sobre Peter Bunting. Mas, a esta altura, você já deve saber da falsa tentativa de suicídio da esposa. Ela já está em algum lugar sem acordo de extradição.
– A verdade é que não sei onde seu irmão está – disse Ellen devagar.
Kelly Paul deu um passo para trás.
– Então vir vê-la foi uma perda de tempo.
– Não sei o que você quer dizer – falou Ellen com uma voz apressada.
– Pelo amor de Deus! Você é a chefe do Departamento de Segurança Interna. Seu trabalho é pensar muito bem nessas coisas, Ellen. Mas, se aliar a Quantrell? De onde surgiu essa brilhante ideia? Você sabia que Bunting era muito bom no Programa E. Então, deveria saber que Quantrell não era páreo para ele. Pensou mesmo que Bunting ia ser derrotado e simplesmente desistir? Ele sempre foi capaz de vencer Quantrell. Escolheu muito mal seu aliado. Quem diabo a aconselhou a fazer isso?
A secretária Foster agora estava claramente em modo de fuga.
– Eu não... quer dizer... Podemos pegar Bunting...
Kelly Paul não a deixou terminar.
– Meu Deus, você não estava me ouvindo? Seu pessoal perdeu Bunting de vista. Eles não têm a menor ideia de onde ele está. O homem sumiu!
Ellen Foster não respondeu a isso. Sua boca estava se movendo, mas nenhuma palavra saía.
– Você encurralou Bunting, mas ele sempre tem uma saída. E Quantrell foi estúpido o bastante para oferecê-la. Mas Quantrell também foi esperto o bastante para perceber algo que você aparentemente deixou passar.
– O que você está...
– Edgar Roy? Um verdadeiro E-Seis? O único no planeta? Você sabe o que ele valeria para os inimigos deste país? Sabe por quanto Quantrell poderia vendê-lo?
– Ele nunca trabalharia para outro país.
– Quem, meu irmão ou Quantrell?
– Os dois.
– Você sabia que, quando Quantrell estava começando, ele quase foi banido como fornecedor do governo porque para a China vendeu componentes de armas restritos? Ele só saiu dessa por causa dos caros advogados e botando a culpa num subordinado. Ele venderia a própria mãe para a Coreia do Norte se achasse que poderia lucrar com isso. E mesmo que meu irmão jamais fosse trabalhar contra o próprio país intencionalmente, você não acha que os russos, norte-coreanos ou sírios poderiam encontrar um modo de persuadi-lo? Suas técnicas de tortura são antigas, mas ainda muito eficazes. Acredite em mim, eu sei.
– Então está me dizendo que Quantrell...
– É claro que ele traiu você. É assim que ele é. E, agora que Bunting acabou com ele e se salvou, Quantrell vai ferrar com você para livrar a própria cara. Isso se chama dominó para adultos. O que deixa meu irmão num limbo total. E isso não é bom. Ele é um negócio inacabado, e negócios inacabados não têm expectativas de vida longas.
Ellen agora estava cambaleando um pouco em seus saltos de 7,5 centímetros.
Kelly Paul tirou a mão da mulher da maçaneta e destrancou a porta.
– Mas, como agora está bem claro que você foi burra o bastante para não perceber o que estava acontecendo e que não tem como me ajudar, terei de procurar o que preciso em outro lugar. Além disso, o que você poderia fazer de uma cela?
Kelly apontou para um canto da boca de Ellen Foster.
– Está com algumas ruguinhas aí. Talvez queira ajeitar isso para ficar melhor na foto da prisão.
Kelly Paul fechou a porta atrás de si.

76
MICHELLE ESTAVA DIRIGINDO.
Sean estava no banco do carona.
Edgar Roy estava no banco traseiro da van.
A viagem havia sido longa, e eles pararam apenas duas vezes para ir ao banheiro. Quando pegaram a estrada rural, Michelle desacelerou a van.
– Sei que Bunting falou que escapamos à vigilância quando viemos aqui antes nos encontrar com Kelly Paul, mas este caso está me deixando paranoica.
Sean concordou com a cabeça enquanto varria a área com o olhar. Era o lugar perfeito para uma emboscada.
– Mas, enquanto as coisas não mudarem, isto é melhor do que nos hospedarmos em um hotel.
– Só se não acabarmos mortos – disse Roy.
Sean o olhou, surpreso. Edgar Roy havia passado a maior parte da viagem em silêncio.
– Uma observação brilhante – disse Michelle sarcasticamente. Ela pôs a van em ponto morto e olhou de relance para Sean. – Plano?
– Posso ir na frente e, se alguém estiver esperando por nós, me matará, e vocês poderão fugir.
– Parece bom para mim.
– Eu estava brincando.
– Eu sei. Eu vou.
– Não vou permitir que faça isso, Michelle.
– Não me lembro de ter perdido sua permissão, senhor.
– Vocês dois sempre falam assim? – perguntou Roy.
Ambos olharam para ele.
– Assim como? – exclamou Michelle, encarando-o com um olhar fulminante.
– Ah, deixa para lá – disse Roy.
Ele baixou os olhos para as próprias mãos.
– Podemos passar por lá de carro e ver se alguém vem atrás de nós – sugeriu Sean.
– Ou escolher um ponto naquela colina, ficar de tocaia e observar o lugar – propôs Michelle.
– Ou simplesmente fazer à moda antiga – disse Sean.
– O que isso significa? – perguntou Roy.
– Você espera na van – disse Michelle. – E não abre a porta para estranhos.
Separaram-se para se aproximarem da casa pela frente e pelos fundos ao mesmo tempo. Levaram dez minutos para examiná-la. Estava vazia e parecia igual a quando estiveram lá antes. Michelle entrou com a van no celeiro nos fundos e foi com Roy até a casa, depois de fechar as portas do celeiro.
– Esta é a casa da minha irmã? – perguntou Roy, olhando ao redor.
– Por enquanto, eu acho. Imagino que ela não fique em um lugar por muito tempo.
– Não, não fica.
– Mas vocês dois obviamente continuaram unidos. Ela se arriscou muito para ajudar.
– Ela sempre me protegeu.
– Sean chegou à varanda da frente e ouviu isso.
– Você precisou muito de proteção?
– Sim, acho que sim.
– Vamos entrar – disse Michelle, olhando ao redor. – Não estou gostando muito de ficar aqui. É um paraíso para atiradores.
Lá dentro eles encontraram uma despensa cheia de comida, lenha para as lareiras, casacos quentes e botas, camisas de flanela, pijamas e lençóis limpos nas camas.
Michelle ergueu um dos casacos.
– Acho que vou vestir imediatamente. Está gelado lá fora, e não muito melhor aqui.
– Vou acender uma das lareiras – disse Sean.
– Posso cozinhar, se quiserem – ofereceu Roy.
Michelle o olhou de relance.
– Você sabe cozinhar?
– Sim, mas se você preferir cozinhar, tudo bem.
– Ela prefere não fazer – disse Sean rapidamente, ignorando um olhar de reprovação de Michelle.
Depois de uma refeição de costeletas de porco, legumes, biscoitos e uma fatia para cada um de uma torta de maçã de supermercado que Roy havia encontrado no congelador, eles se sentaram diante de uma lareira flamejante.
– Alguma notícia de Kelly ou Bunting? – perguntou Michelle.
– Só recebi uma mensagem de texto. Os dois fizeram contato com seus respectivos alvos. E aparentemente foram muito bem-sucedidos – respondeu Sean.
Roy fez um sinal afirmativo com a cabeça, olhando para o fogo.
– Eles estão jogando Quantrell e Foster um contra o outro.
– Sua irmã lhe contou que esse era o plano? – perguntou Sean.
– Não, mas é o mais óbvio. Encontrei Foster duas vezes. Ela é claramente megalomaníaca. Mason Quantrell é ambicioso e invejoso. Uma combinação letal.
Sean pôs outro pedaço de lenha na lareira e se aproximou das chamas.
– Fale-me sobre os corpos no celeiro.
Roy se virou para ele.
– Por quê?
– Somos investigadores. Ted Bergin nos contratou para ajudá-lo. É o que estamos tentando fazer. Mas, para isso, precisamos de informações. E essa é a primeira chance real que temos de falar com você.
Roy demorou um instante limpando as lentes dos óculos na camisa. Ele os recolocou e disse:
– Eu estava dando uma volta antes do jantar. Geralmente fazia isso. Não ia ao celeiro havia muito tempo, e de repente decidi entrar. Tudo parecia igual até que vi a terra revolvida em um lado. Peguei uma pá e comecei a cavar para ver o que havia lá. Foi quando vi o rosto. Estava prestes a telefonar para a polícia quando ouvi as sirenes. Eles me prenderam. Não posso culpá-los. Eu estava sujo de terra e os corpos estavam ali. Deve ter parecido que eu havia acabado de enterrá-los, em vez de estar tentando desenterrá-los.
– E foi então que você se fechou...?
Roy pareceu sem jeito.
– Sim, foi quando me fechei em minha mente.
– Mas você se lembra de tudo que aconteceu? – perguntou Michelle.
– Nunca me esqueço de nada. Lembro-me da primeira cela em que me puseram. Do Sr. Bergin vindo me representar. Ele se esforçou muito. Houve momentos em que pensei em falar com ele, mas eu estava com medo. – Roy fez uma pausa. – Sinto muito pela morte dele. Foi por minha causa, é claro.
– Então Foster e Quantrell puseram os corpos lá para incriminar você.
– Fico grato pela presunção de inocência – disse Roy.
– Eu nunca presumo nada – respondeu Sean. – Mas o timing da coisa toda foi perfeito demais. Se eu tivesse de apostar, diria que você estava sendo observado e que, assim que entrou naquele celeiro, os policiais receberam o telefonema.
– E, pelo que conhecemos de você, é inteligente demais para ser pego em flagrante pela polícia local – acrescentou Michelle.
Sean olhou para Roy.
– Certo, Quantrell e Foster tramaram contra você. Acharam que tinham se safado impunemente. Agora estão sendo jogados um contra o outro. O que eles farão a seguir?
Roy não hesitou.
– Foster não tem um histórico de atos ilícitos, enquanto a reputação de Quantrell é péssima nesse aspecto. Se nenhum fator mudar, Quantrell reagirá mais calmamente à situação do que Foster.
– Em outras palavras, ele está acostumado a ir longe demais – disse Michelle.
– Exatamente. Sua reação natural será sobreviver, e talvez até mesmo continuar seu negócio. Foster pode muito bem partir para o ataque e ver no que vai dar. Ou pode tirar o time de campo e não fazer nada, esperando que passe.
– Dessa opção eu duvido – disse Michelle. – Ninguém se torna chefe do Departamento de Segurança Interna sendo passivo, sobretudo uma mulher.
– Concordo com você – disse Roy. – O que significa que ela provavelmente será muito agressiva ao tentar remediar a situação.
– Então ela voltará a procurar os aliados, tentando obter apoio – disse Sean. – E desacreditar Quantrell?
Roy assentiu com a cabeça.
– Ela está em uma posição vantajosa. Pode conseguir uma reunião com o presidente ou o diretor do FBI se precisar. Quantrell não. Ele obviamente sabe disso, e vai usar seus pontos fortes.
– Quais são? – perguntou Sean.
– Operações em campo. Foster nunca teria usado o pessoal do Departamento de Segurança Interna para os assassinatos ou a minha retirada. Mas os mercenários particulares são muito menos seletivos. São leais ao dinheiro.
– Então Quantrell usará seus homens? – perguntou Michelle.
– Para me encontrar, matar Bunting e minha irmã. E, se for preciso, até mesmo eliminar Foster.
– É preciso muita coragem para eliminar a chefe do Departamento de Segurança Interna – disse Sean.
– Quando você não tem nada a perder, isso não exige muita coragem – respondeu Roy. – E não é preciso ser um gênio para entender essa realidade.

77
ELLEN FOSTER SE SENTOU em sua cadeira no bunker sob o escritório central do Departamento de Segurança Interna. Acima, seus milhares de funcionários públicos realizavam a tarefa de manter o país livre de todos os ataques. Se fosse um dia normal, ela estaria pessoalmente envolvida na estratégia dessa luta diária. Ela vivia e respirava e pensava em poucas coisas além disso.
Neste momento, ela não podia ligar menos para o assunto.
James Harkes estava parado na sua frente.
A secretária Foster havia contado para ele o que Kelly Paul lhe dissera no banheiro do Lincoln Center. Ele tinha feito algumas perguntas relevantes que, em sua maioria, permaneceram sem resposta. Ela o olhou como quem avalia sua última esperança.
– Isso muda tudo. O que podemos fazer? – perguntou ela.
– O que quer conseguir?
– Quero sobreviver, Harkes. Isso não é óbvio? – disparou ela.
– Mas há muitos modos de sobreviver, senhora secretária. Só preciso saber qual deles deseja.
Ela piscou e entendeu o que Harkes queria dizer.
– Quero sobreviver com minha carreira intacta, como se nada tivesse acontecido. Essa é a maneira mais simples de me expressar.
Ele assentiu devagar com a cabeça.
– Vai ser muito difícil – disse francamente.
Ellen sentiu um leve calafrio e passou os braços ao redor de si mesma.
– Mas não impossível?
– Não, não impossível.
– Kelly Paul disse que Quantrell está tentando fazer um acordo, me trair.
– Eu não duvidaria disso, sabendo o tipo de pessoa que Quantrell é. Mas ele tem acesso limitado às pessoas que importam. A senhora, não.
– Só que o problema é que já estive com o presidente arquitetando o caso contra Bunting. O presidente me disse para cuidar disso. Ele me deu autoridade explícita para fazer o que fosse necessário.
– E procurá-lo de novo agora com uma nova história sobre Quantrell a faria perder credibilidade aos olhos do presidente?
– Exatamente. Serei alguém que pediu socorro tantas vezes quando não era necessário que ficou sem apoio na hora que realmente precisou dele.
– Talvez seu problema já esteja resolvido, pelo que me falou.
Ela o olhou ansiosamente.
– O que você quer dizer?
– O presidente já lhe deu autoridade explícita para fazer o que for necessário.
– Mas e Quantrell?
– Dano colateral. Não é tão difícil quanto parece. Com Quantrell fora de cena, seus problemas estarão resolvidos. Não há nada que a incrimine. Ele desaparecerá e o caminho ficará livre.
Ellen Foster ficou sentada, pensando.
– Isso poderia dar certo. Mas como funciona essa coisa de dano colateral?
– Nós pusemos a culpa de tudo mais em Bunting, por que não colocar isso também? É natural. Eles são grandes rivais. Todos sabem disso. Será muito fácil produzir provas da obsessão de Bunting por Quantrell.
– Então mataremos Quantrell e poremos a culpa em Bunting?
– Sim.
– Mas Kelly Paul disse que ele sumiu faz tempo.
– Você realmente acreditou em tudo o que ela lhe disse?
– Bem... quero dizer... – Ela parou, parecendo constrangida. – Estou perdendo um pouco o controle aqui, não estou? – disse, acanhada.
– A senhora está sob muita pressão. Mas precisa ir em frente, se realmente quiser sobreviver.
– Por favor, sente-se, James. Você parece desconfortável em pé aí.
Harkes se sentou.
– Como faremos? – perguntou ela seriamente.
– Haverá uma reviravolta no jogo, pelo menos é o que eu acho. Bunting ainda deve estar por perto – respondeu Harkes.
– Por quê?
– Bunting não é do tipo que foge com o rabo entre as pernas. Por tudo o que sabemos, ele na verdade está trabalhando com Kelly Paul e a turma dela.
– Com Kelly Paul? Mas por quê?
– Bunting se encontrou com Sean King. Depois disso eu ameacei Bunting e a família dele, caso fizesse isso de novo. Então ele planejou a falsa tentativa de suicídio da esposa e saiu às pressas. Se ele fosse fugir, levaria a família junto. Até a senhora admitiu que Bunting realmente se importa com eles.
– Acho que isso faz sentido – admitiu Ellen Foster.
– E pense no fato de ele ter se encontrado com King e logo depois ter planejado todo esse subterfúgio.
– Não é coincidência? – perguntou a secretária.
– Nem de longe. Os outros fatores importantes se encaixam muito bem. Sean King e Michelle Maxwell estão tentando ajudar Edgar Roy. Na verdade, eles visitaram Cutter’s Rock com Kelly Paul. Obviamente estão juntos nisso. E Bunting está com eles.
– E qual é a motivação dele?
– Falando claramente, senhora secretária, Bunting é inocente. Ele sabe disso, e deve ter convencido a todos. E King e Maxwell agora sabem que Roy não matou ninguém. Restaram poucas opções para Bunting. Kelly e provavelmente King e Maxwell devem ter lhe oferecido uma saída. Qual, eu ainda não sei.
– Queria confirmar a teoria de que estão todos trabalhando juntos.
– A vinda de Kelly Paul a Nova York foi a confirmação.
– O que você quer dizer? – perguntou ela seriamente.
– Kelly usou o convite da Sra. Bunting para ir àquele evento beneficente. Nós sabíamos que ela, Sean e Michelle haviam se aliado. Agora temos uma ligação direta entre Kelly Paul e Peter Bunting: o convite.
– Ah, droga! Não posso acreditar que não pensei nisso.
– É por esse motivo que a senhora me tem – disse Harkes.
Ellen Foster sorriu e tocou a mão dele.
– Sim, sim, é.
– Se tivéssemos alguma isca para atraí-los! Algo que valorizassem. Isso me ajudaria muito a resolver do modo certo. – Ele a olhou na expectativa.
– Acho que eu posso ter o que precisamos – disse ela.
Ellen ligou o tablet, digitou algo e virou o aparelho para Harkes. Era uma imagem de uma sala com alguém nela.
– Meu trunfo – disse ela.
O chão e as paredes eram de concreto. Havia um beliche e um banheiro no canto. A pessoa estava sentada na cama.
Megan Riley mal parecia ela mesma.

78
DO LADO DE FORA DA CASA de fazenda o sol havia baixado, projetando sombras nas janelas. Logo estaria totalmente escuro. Sean pôs um pouco mais de lenha no fogo e o atiçou. Quando ele se sentou, Roy disse:
– Obviamente Kel lhes contou sobre o Programa E.
– Sim – respondeu Sean.
– E quanto à Parede?
– Não em detalhes.
– A Parede é todos os dados sendo entregues de uma só vez. Eu me sento diante de uma tela gigantesca, 12 horas por dia, absorvendo tudo.
– Quando você diz todos os dados, o que exatamente quer dizer? – perguntou Michelle.
– Significa literalmente tudo o que foi coletado pelas operações de inteligência dos Estados Unidos e de vários aliados no exterior que partilham informações conosco.
– Isso não é muita coisa? – perguntou Sean.
– Na verdade, é mais do que você pode imaginar.
– E você olha para isso e faz o quê? – perguntou Michelle.
– Eu analiso, junto as peças importantes e faço meu relatório. Eles examinam cuidadosamente minhas conclusões, e então elas se tornam parte do plano de ação dos Estados Unidos em todas as frentes relevantes. Na verdade, as ações tomadas são bem imediatas.
– Você tem memória fotográfica – disse Sean. – Eidética?
– Um pouco mais do que isso – disse Roy modestamente.
– Como pode ser mais do que uma memória fotográfica? – observou Michelle.
– A verdadeira memória fotográfica é extremamente rara. Muitas pessoas conseguem se lembrar de muitas das coisas que viram, mas não de tudo. E, até mesmo para muitos eidéticos, a lembrança pode desaparecer quando outras a substituem. Eu nunca consigo me esquecer de nada.
– Nunca? – questionou Sean olhando para ele ceticamente.
– Infelizmente, as pessoas não percebem que muitas lembranças são do tipo que você quer esquecer.
– Eu entendo – disse Michelle, obtendo um olhar solidário de Sean.
– Importa-se se eu testá-lo? – perguntou Sean.
– Estou acostumado a ser testado.
– Qual era o nome do policial que o prendeu no celeiro?
– Qual deles? Eram cinco – respondeu Roy.
– O primeiro a falar com você.
– No crachá estava escrito Gilbert – respondeu Roy.
– Número do distintivo?
– Oito-seis-nove-três-quatro. Sua arma era uma Sig Sauer 9 milímetros com pente de 12 balas. Ele tinha uma unha encravada no dedo mínimo direito. Posso lhe dar os nomes e os números dos distintivos dos outros policiais, se quiser. E, como isto é um teste de memória, durante os últimos 331,52 quilômetros de viagem passamos por 168 veículos. Gostaria de saber os números das placas, começando pelo primeiro? Havia 19 de Nova York, 11 do Tennessee, seis de Kentucky, três de Ohio, 17 da Virgínia Ocidental, uma da Geórgia, da Carolina do Sul, de Washington, Maryland, Illinois, Alabama, Arkansas e Oklahoma, duas da Flórida e as demais da Virgínia. Também posso lhe dizer o número e as descrições dos ocupantes de cada veículo. Posso dividir isso por estado se quiser.
Michelle ficou boquiaberta e disse:
– Não consigo me lembrar nem mesmo do que fiz na semana passada. Como você guarda tudo isso na sua cabeça?
– Eu posso ver na minha cabeça. Só preciso solicitar a memória.
– Como fichas de leitura em sua cabeça?
– Não, é mais como um DVD. Posso ver tudo fluindo. Então posso fazer parar, pausar, ir para a frente ou para trás.
Sean ainda parecia cético.
– Está bem. Descreva a parte externa desta casa, o celeiro e a terra ao redor.
Roy fez isso rapidamente, terminando com “havia 1.614 telhas no lado leste do telhado do celeiro. A quarta telha na segunda fileira do alto está faltando, assim como a septuagésima primeira na nona fileira contando da frente. E a dobradiça da porta esquerda do celeiro é nova. Há 41 árvores no campo no lado leste da casa. Seis estão mortas e quatro morrendo; a maior delas é uma magnólia. Minha irmã obviamente não está interessada em paisagismo”.
– Últimos quatro presidentes do Uzbequistão?
– Obviamente essa é uma pergunta capciosa. Só houve um desde que o cargo foi criado, em 1991, depois da queda da União Soviética. Islam Karimov é o atual ocupante. – Ele deu a Sean um olhar de quem entendia a situação. – Você escolheu o Uzbequistão porque era o país mais desconhecido de que conseguiu se lembrar no momento?
– Até certo ponto, sim.
– Mas a Parede não tem a ver apenas com a memorização de dados. Você precisa fazer algo com eles – explicou Roy.
– Um exemplo – pediu Michelle.
– Depois de analisar os dados na Parede, eu disse ao nosso governo para ajudar os afegãos a aumentarem a produção de papoulas.
– Por quê? A papoula é usada para fazer ópio, que é o principal ingrediente da heroína – disse Sean.
– Quando eu entrei para o Programa E, o Afeganistão enfrentava uma praga que havia destruído 30% da produção de papoulas.
– Mas isso não é uma coisa boa? – perguntou Michelle.
– Na verdade, não. Quando você tem uma escassez de algo, o que acontece?
– O preço sobe – respondeu Sean.
– Certo. O Talibã obtém 92% de sua receita da venda de papoulas. Em virtude da praga, sua renda subiu quase 60%. Isso lhe deu muito mais recursos para nos prejudicar. Foi especulado na mídia que a Otan introduziu intencionalmente a praga, numa tentativa de acabar com a produção de papoulas. Eu presumi que, na verdade, foi o Talibã que fez isso para causar uma alta nos preços.
– Por que você achou isso? – perguntou Sean.
– Na Parede havia um artigo publicado num jornal agrícola obscuro. Mencionava um cientista que reconheci como um simpatizante do Talibã. O artigo afirmava que esse cientista tinha viajado para a Índia, onde se acredita que a praga se originou, uns seis meses antes de ela surgir em Helmand e Kandahar. Ele levou a praga para o Afeganistão e o Talibã a usou para elevar os preços. Então recomendei que os Estados Unidos impedissem que a praga surgisse de novo e destinassem mais terra à produção de papoulas. Agora a projeção é que a renda do Talibã caia pela metade no próximo ano. Mas também tenho uma pequena surpresa preparada para eles.
– Qual?
– Introduzimos uma semente híbrida na produção de papoulas no Afeganistão. As papoulas se desenvolvem bem. Mas, quando você tenta usá-las para fazer heroína, acaba obtendo algo muito mais parecido com aspirina. Assim a papoula se torna o que sempre deveria ser, uma bela planta.
– E você propôs isso? – perguntou Michelle. – Como?
– A Parede me fornece tudo, mas eu a complemento com coisas que aprendi sozinho. À primeira vista, o híbrido não parecia ser nada de especial. Não estava nem mesmo sendo discutido no contexto da produção de papoulas e certamente não no esforço contra o Talibã. Mas quando soube dele e vi que poderia ser usado nesse esforço, eu o propus como uma manobra tática com possíveis implicações estratégicas.
– O que você quer dizer? – perguntou Sean.
Roy ajeitou os óculos. Parecia um professor dirigindo-se distraidamente à turma.
– Porque agora isso vai muito além de apenas oferta, demanda e preço. Se o elemento criminoso souber que não pode se fiar na integridade da produção de papoulas dos afegãos, não comprará deles em nenhuma outra circunstância. Também há o benefício adicional dos cartéis de drogas ficando muito zangados com o Talibã por arruinar um ano de produção de heroína, que representa bilhões de dólares. O cartel se vingará, o que resultará na morte de muitos dos líderes do Talibã. Com a produção de papoulas fora da jogada, outras possibilidades de plantio se tornam viáveis, nenhuma das quais nem de longe gerando tanta renda para os terroristas lutarem contra nós. Os fazendeiros ainda poderão ganhar a vida de forma decente, e o cartel terá de procurar outra fonte de matéria-prima de heroína. Só temos a ganhar com isso.
– Impressionante – disse Michelle.
– Eu posso ver a floresta e todas as árvores nela. É uma espécie de ecossistema em que tudo causa impacto em tudo. Posso ver como as coisas se conectam umas com as outras, independentemente do quanto possam parecer desconectadas.
Michelle se recostou.
– Você certamente se sairia muito bem num desses programas de prêmios da televisão.
Roy pareceu alarmado com a ideia.
– Não, eu ficaria muito nervoso. Sem saber o que falar.
– Nervoso?! – exclamou Sean. – É só um programa de perguntas e respostas. Você está decidindo a política dos Estados Unidos da América.
– Mas não estou competindo com ninguém. Isso não é do meu feitio. Não é a mesma coisa.
– Se você está dizendo... – respondeu Sean, que não pareceu nem um pouco convencido.
– Nós temos satélites posicionados ao redor de todo o planeta. Muito do que vemos na Parede são vídeos de eventos em todos os países. – Ele fez uma pausa. – Isso é um pouco como ser Deus espiando suas criaturas, vendo o que estão tramando, e depois lançando fogo e enxofre sobre aqueles que mais os merecem. Eu não me importo com essa parte.
Michelle olhou para a lareira.
– Estou certa de que não. E me dá arrepios pensar que há pessoas observando tudo o que a gente faz.
– Eles não estão observando todos e tudo, Michelle. Com mais de 6 bilhões de pessoas no planeta, isso seria impossível – disse Sean.
Ela olhou para Sean e rebateu:
– Ah, é? Bem, eles podem ficar de olho em quem quiserem. Lembra-se de quando fomos à casa de Edgar? Ninguém nos seguiu. Ninguém podia ter nos visto do chão. Mas ainda assim aqueles capangas apareceram. De algum modo eles sabiam que estávamos lá. Aposto que há olhos no céu sobre a casa de Edgar.
Roy olhou para ela e disse:
– Olhos no céu sobre a minha casa?
– Sim. Pelo que vejo esse é o único modo de saberem disso – concluiu Michelle.
À luz do fogo, os olhos de Roy pareceram maiores por trás dos óculos.
– Você acha que o satélite estava observando minha casa 24 horas por dia 7 dias por semana?
Sean olhou de relance para Michelle e disse:
– Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana? Não sei. Por quê?
Roy continuou olhando para o fogo e não disse nada.
Finalmente Sean entendeu o que ele estava pensando.
– Espere. Se houvesse mesmo uma câmera, como não viu as pessoas plantando os corpos no seu celeiro?
Roy se mexeu e olhou para ele.
– É claro que só pode haver uma resposta para isso. Alguém ordenou que o satélite olhasse para outro lado no exato momento em que estava sendo feito.
– Isso deixaria um rastro de papel. E exigiria uma autorização muito de cima – disse Sean.
– Como a da secretária do Departamento de Segurança Interna – disse Roy.

79
– DIGA-ME COMO ESTÁ A situação. Ruim?
Mason Quantrell estava sentado em uma poltrona de couro de seu luxuoso jato particular, que na verdade era um Boeing 787 Dreamliner personalizado para seu próspero dono. Em sua cauda havia uma pintura do veloz Mercúrio, o símbolo da companhia de Quantrell. O jato era muito maior e mais caro do que o Gulfstream G550 de Peter Bunting. Mas, como era bilionário, Mason Quantrell podia facilmente comprar os brinquedos mais caros no mercado. E, na verdade, o Tio Sam bancara grande parte do custo.
– Péssima – respondeu a única outra pessoa na cabine dos passageiros.
James Harkes estava sentado tomando um copo de água, enquanto Quantrell tomava seu segundo uísque. O CEO parecia cansado, com olheiras que lembravam luas em quarto crescente sob seus olhos.
– Ela vai pegar pesado com o senhor.
Quantrell abriu suas mãos num gesto impotente.
– Mas, depois do nosso último encontro, as coisas pareciam bem. E então recebi o telefonema de Bunting. Bem no meu escritório. O idiota autoconfiante. Ele nos desafiou a rastreá-lo.
– E vocês não conseguiram?
– Não – disse Quantrell de mau humor. – O canalha sempre foi bom nessas coisas de espionagem. Você sabia que eu o recrutei no programa de PhD em Stanford?
– Não, não sabia.
– Antes disso ele estudou em Oxford. Foi bolsista Rhodes. Fez a universidade em menos de três anos. Já estava nos radares das pessoas por causa de alguns estudos que havia publicado sobre a crescente ameaça do terrorismo global e o melhor modo de lidar com ele. O artigo foi muito específico. Ele praticamente previu o 11 de Setembro vinte anos antes de acontecer.
– Então ele foi trabalhar para o senhor?
Quantrell assentiu com a cabeça enquanto o avião se inclinava para a esquerda e iniciava a descida.
– Durante três anos. Fez um ótimo trabalho e realmente mudou as coisas para nós. Droga, na época eu o estava preparando para dirigir toda a maldita companhia. Mas ele tinha outras ideias.
– O Programa E? Parece que o senhor gostaria de ter embarcado nisso.
– Eu teria, mas ele nunca me deu a chance. Foi embora, começou o próprio negócio e logo subiu na hierarquia dos fornecedores. Tenho de admitir que o negócio dele era bom. Não, era mais do que bom. E então ele levou isso para um nível totalmente diferente com o Programa E.
– Eclesiastes – disse Harkes. – O Programa E?
– O quê? Ah, sim. Eu não sabia que o homem tinha um lado bíblico. – Quantrell tomou o resto de sua bebida. – E então ele vendeu a ideia para as pessoas importantes em Washington. Agora a maioria de nós está comendo poeira há anos.
– Nunca pensou em processá-lo?
– Não há nenhuma base para isso. Ele desenvolveu o programa depois que me deixou e nunca violou o acordo de não concorrência que tínhamos. Era inteligente demais para isso. Não, eu o odeio porque não gosto de perder. E, com ele por perto, eu tenho perdido. Muito. – Quantrell pousou o copo vazio e afivelou o cinto de segurança quando o avião enfrentou um pouco de turbulência. – Mas Ellen Foster pode me causar ainda mais dano. E não estou falando apenas de dinheiro.
– Sim, pode – concordou Harkes.
– O presidente lhe deu carta branca.
– Sim.
– Dano colateral? O que significa, eu?
– Faz sentido, não é?
– Mas Ellen Foster tem de ligar isso a Bunting e aos outros. Como ela planeja chegar até eles?
– Ela tem um trunfo – observou Harkes.
– Quem?
– Megan Riley.
Quantrell se inclinou para a frente, parecendo surpreso.
– A advogada? Ela é uma das pessoas de Ellen?
– Não. Ela foi sequestrada no Maine. Foster a mantém em algum lugar.
Quantrell esfregou seu queixo.
– Isso é realmente extraordinário.
– Sim, é – concordou Harkes.
– Ela me deixou fora disso.
– A mim também, até agora.
– E Foster está planejando usá-la para pegar Bunting e os outros? Como?
– Jogando com a culpa e a consciência deles. Megan Riley é uma vítima inocente. Se fizermos as coisas direito, poderemos usá-la para atraí-los.
– E a secretária Foster quer sobreviver a tudo isso com a reputação e a posição no Gabinete intactas?
– Sim. Eu lhe disse que isso seria difícil, mas não impossível.
– Ela deseja a minha morte como parte do plano?
– Deseja, mas não exige – foi a resposta diplomática de Harkes.
– Então temos uma brecha.
– Acho que sim. Uma brecha muito vantajosa para o senhor, se nós jogarmos direito.
– Você sabe o que eles estão fazendo, é claro – disse Quantrell.
– Eles estão jogando vocês um contra o outro. Bunting lhe telefonou para jogá-lo contra Foster. Kelly encurralou Foster no banheiro feminino e fez a mesma coisa.
– Inteligente. Ellen claramente engoliu a isca. Tenho de admitir que Bunting me deixou apavorado quando telefonou.
– E Kelly Paul pode ser muito persuasiva.
– Ela é o peão mais preocupante no tabuleiro agora – disse Quantrell.
– Eu não a chamaria de peão, senhor. Não podemos subestimar a mulher.
– Já topou com ela antes?
– Algumas vezes. E em nenhuma delas o resultado foi o que eu desejava.
– Se ela consegue derrotá-lo, Harkes, me apavora.
– Ela tem de saber que estou envolvido porque Bunting teria contado, mas eles não sabem que trabalho para o senhor. Ninguém sabe disso.
– Meu trunfo. – Quantrell deu um sorriso satisfeito. – Quando você pode estabelecer a posição de Riley?
– Assim que o senhor me disser para fazê-lo.
– Vá – respondeu o CEO imediatamente.

80
– NÃO POSSO ACREDITAR que nunca pensei nisso – disse Bunting.
Ele olhou para Kelly Paul, que estava sentada em uma cadeira observando seu telefone. Ela havia acabado de falar com Sean King. Kelly e Bunting estavam no apartamento “compartilhado” dela em Nova York, não muito longe da casa de Bunting. A mansão estava vazia e, por enquanto, a família dele estava segura.
– A cobertura de satélite – disse Kelly Paul.
– Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana – acrescentou Bunting.
– Fornecida pelo Departamento de Segurança Interna?
– Suponho que sim. Bem, se eles fizeram isso, não se deram o trabalho de me contar. – Ele olhou pela janela, e a chuva caía sem parar. – Mas não é fácil mover aqueles olhos – disse. – Edgar não seria uma prioridade deles.
– Isso poderia muito bem exigir a assinatura da secretária Foster – concordou Kelly Paul. – Isso é um rastro de papel.
– Se ao menos pudéssemos provar que o satélite estava observando e uma ordem foi dada!
Kelly Paul não disse nada.
– No que você está pensando, Kelly?
– E se ele não foi movido?
Bunting desviou seu olhar da janela.
– O que você quer dizer?
– E se o satélite viu exatamente o que aconteceu?
– Você está afirmando que seu irmão realmente é um assassino em série? – perguntou Bunting em um tom perplexo.
– Não.
– Certo. Então a única outra conclusão é que tramaram contra ele. Plantaram os corpos naquele celeiro. Se esse era o plano, por que deixariam os olhos no céu observarem? Isso provaria que seu irmão é inocente. E acabaria com o plano deles. E o mais importante é que, a esta altura, esse fato teria vindo à tona.
– Não necessariamente. Você sabe tão bem quanto eu que as plataformas de satélite variam muito. E quem pode afirmar que era um satélite do governo?
– Você quer dizer que poderia ser um comercial?
– Ou um particular.
– Por quê? – perguntou Bunting.
– Se o satélite fosse do governo, teria sido mais difícil controlar a informação, até mesmo para Ellen Foster. Mas e se fossem olhos particulares?
– Com os quais ela poderia ter concordado, já que estava planejando com Quantrell toda essa campanha contra mim e o Programa E fora dos canais do Departamento de Segurança Interna.
– Ou poderia ser mais complicado do que isso.
– Como?
– O Mercury tem vários satélites, certo?
– Certo. Quantrell foi um dos primeiros nessa área.
– Então digamos que ele também tem a visão da propriedade de Edgar. Eles escolhem um fim de semana em que Eddie está em Washington. Ellen ordena que o satélite dela olhe para outro lado. Eles levam os corpos para lá e os enterram no celeiro de um modo que sejam facilmente descobertos depois. Telefonam para a polícia e meu irmão cai na armadilha.
– Mas por que Quantrell não desviaria o olhar dele também? – perguntou Bunting. Antes que Kelly pudesse responder à sua pergunta, ele mesmo a respondeu. – No caso de as coisas darem errado, ele teria poder sobre Foster.
– Exatamente.
– Então como confirmaremos?
– Há modos. Trabalharei neles.
– Se pudermos obter imagens do que realmente aconteceu, Edgar será inocentado.
– Mas isso ainda não nos deixará seguros.
– Não, você está certo, é só uma parte.
O telefone de Bunting tocou. Ele o tirou do bolso.
Kelly Paul olhou para ele.
– Quem é?
– Avery.
Ele atendeu e pôs no viva-voz para Kelly também ouvir.
– Fale rápido, Avery.
A voz do outro homem estava tensa.
– Sr. Bunting, recebi um telefonema de alguém.
– Quem?
– Não sei. Não disseram o nome. Mas queriam que eu lhe transmitisse uma mensagem.
– Qual era?
– Eles querem fazer uma troca.
– Que tipo de troca?
– Uma mulher chamada Megan Riley em troca de Edgar Roy.
Ele fez uma pausa.
– Avery, isso é tudo? Megan Riley em troca de Edgar Roy?
– Não. Também querem o senhor.
Bunting tomou fôlego e olhou na direção da janela, como se eles pudessem estar escondidos lá fora.
Avery parecia à beira das lágrimas.
– Acalme-se, Avery, tudo ficará bem. Eles lhe deram detalhes?
Bunting e Kelly o ouviram engolir um soluço e dizer:
– Depois de amanhã, em Washington, na área do parque em frente ao Museu Aeroespacial. Eles disseram que, se o senhor tentar algum truque, avisar à polícia ou algo assim, eles matarão a Srta. Riley e sairão atirando. Muitas pessoas morrerão.
– Certo, Avery, certo. Agradeço seu telefonema. Você agiu bem. Agora precisa ir para um lugar seguro.
Bunting estremeceu quando outra voz veio pelo telefone.
– Tarde demais para isso – disse a voz.
Houve um único tiro e eles ouviram um corpo cair.
– Avery! – gritou Bunting, agarrando o telefone.
– Se você e Roy não estiverem no parque depois de manhã, na hora e no lugar combinados, Riley morrerá e muitas outras pessoas morrerão – falou a voz. – Entendeu?
Bunting não respondeu.
Kelly Paul pegou o telefone dele e disse:
– Nós entendemos. Estaremos lá.
A linha ficou muda.
Bunting cambaleou até a janela e pressionou o rosto contra ela.
– Sinto muito, Peter – disse Kelly Paul.
Bunting ficou calado durante algum tempo e Kelly deixou o silêncio persistir.
– Ele era só um jovem.
– Sim, era – concordou Kelly.
– Ele não deveria estar morto. Não era um agente de campo. Era um funcionário de escritório.
– Muitas pessoas não deveriam estar mortas. Mas estão. Agora temos de nos concentrar em depois da manhã.
– Nosso plano não deu certo. Estávamos jogando um contra o outro, mas não levamos em conta essa possibilidade. – Bunting se virou para olhar para ela. – Eles têm um exército, Kelly. O que nós temos?
– Eu diria que temos a justiça do nosso lado, mas isso parece um pouco impróprio nessas circunstâncias. Ainda assim, precisamos tentar.
– Quero estrangular Quantrell e Ellen Foster com minhas próprias mãos, e juro por Deus que farei isso.
– Eles forçaram Avery a dar aquele telefonema. E fizeram isso para confundi-lo, Peter.
– Bem, eles fizeram um ótimo trabalho – retrucou ele.
– Eles esperarão que sua mente fique embotada. Esperarão que você não aja racionalmente. Esperarão que entregue os pontos.
– Eu nem mesmo conheço essa Megan Riley. E querem trocá-la por mim e seu irmão?
– Eles mataram Avery e a matarão também. E aumentaram a aposta. Muita gente no parque também morrerá.
Bunting voltou a se sentar, enxugou os olhos e o rosto e respirou longa e profundamente.
– Certo, o melhor modo de vingar Avery é pensar bem nisso tudo. Em primeiro lugar, que dia é depois de amanhã? Por que esperar?
– O parque é um lugar popular, sempre cheio de gente.
– Mas depois de amanhã? Haverá mais pessoas lá?
Ele fez uma busca na internet pelo seu telefone. Kelly olhou para a tela.
– Devo admitir que eles têm certo requinte.
– Eles vão fazer a troca de reféns no meio de uma passeata pela paz – disse Bunting, carrancudo.

81
AMANHECIA E MICHELLE HAVIA dirigido durante a maior parte da noite para levá-los a Washington. Sean dormia ao seu lado. Roy adormecera no banco traseiro. O céu estava nublado e prometia mais chuva, em virtude de uma tempestade que se posicionava sobre a Costa Leste.
– Frio, chuva e escuridão. Combina com meu humor.
Michelle olhou de relance e viu Sean acordado olhando para fora.
Ele olhou para ela e sorriu, resignado.
– Amanhã será um dia agitado.
Eles atravessaram uma ponte e viraram à direita, seguindo as instruções que Kelly dera quando telefonara para contar as novidades sobre Megan Riley.
Michelle olhou de relance para uma esquina.
– Ocupei um posto naquela esquina durante 12 horas. Foi um dia depois do 11 de Setembro. Ninguém sabia que diabo estava acontecendo. Eu nem mesmo trabalhava com segurança naquela época. Tinha sido designada para um caso de falsificação em Maryland. Eles convocaram alguns de nós para ajudar na segurança do presidente e do vice-presidente. Fiquei aliviada por todos os meus músculos estarem em boa forma. Mas sabe de uma coisa?
– Você não queria deixar seu posto.
Ela assentiu com a cabeça.
– Como você sabia?
– Quando aconteceu o 11 de Setembro, eu estava advogando, fora do Serviço Secreto havia algum tempo. Vi aquilo na TV junto com todos os outros americanos. Quis voltar, ir para Washington e ajudar. É claro que não pude.
Ele ficou em silêncio e depois acrescentou em uma voz baixa:
– Mas eu queria mesmo voltar e ajudar.
– As coisas ficaram ruins de verdade, não é?
– Na verdade, estão ruins há muito tempo. O que significa que todos nós temos de nos esforçar um pouco mais para consertá-las.
– Essa é uma boa atitude – avaliou Roy. Ele se aprumou, passou uma das mãos por seus cabelos e olhou para eles.
– O mundo é complicado, por isso as pessoas procuram soluções complicadas. E não há nada de errado com isso, porque soluções simples geralmente não funcionam. Mas às vezes as soluções são simples e, ainda assim, as pessoas se recusam a vê-las.
– O que você quer dizer? – perguntou Sean.
– Que em certas circunstâncias a abordagem mais simples é melhor, ainda que seja porque menos coisas podem dar errado.
– Você sabe o que eles querem – disse Michelle.
– Sim. Peter Bunting e eu. Em troca de Megan Riley. E, é claro, da ameaça de matar muitas pessoas inocentes.
– Então qual é a solução simples para isso? – perguntou Sean.
– Dar a eles o que querem.
– Você e Bunting? Eles matarão os dois.
– Talvez sim, talvez não.
– Eles vão matar vocês – disse Sean. – Não há outro motivo possível para fazer a troca.
– É uma possiblidade – disse Roy um pouco vagamente.
– Vamos nos encontrar com sua irmã e Bunting daqui a uns dez minutos – disse Michelle. – Você acha que ela terá uma solução simples?
– Acho que ela terá uma solução. Kel geralmente tem. Para tudo.
– As opções dela podem ser limitadas.
– Estou certo de que ela sabe disso.
– Kelly não vai entregar você, Edgar – disse Michelle. – É sua irmã. Ela não fará isso.
– Mas então muitas pessoas serão feridas.
– Teremos de fazer algo chamado contenção de danos – respondeu Sean.
– Conheço a expressão. Mas geralmente é reservada para casos em que você tem vários recursos. Nós não temos. A secretária Foster e Quantrell, por tabela, têm muitos.
– Você acha que eles ainda estão trabalhando juntos? Mesmo depois que nós dissemos que um está tentando ferrar o outro? – perguntou Michelle.
– Eles estão atuando em várias frentes – disse Roy. – Vão se preparar para o pior, mas executar o plano que parecer mais viável. Megan Riley é um trunfo valioso que manterão reservado. Talvez eles sempre tivessem pretendido usá-la. Isso não significa que agora confiem um no outro. Provavelmente não confiam.
– Então o que os está mantendo juntos?
– Minha irmã falou comigo a esse respeito. Ela acha que é James Harkes. E concordo com ela.
– Fale-nos sobre ele – disse Sean.
– Veterano condecorado. Coração Púrpura. Estrela de Bronze. Candidato à Prata. Foi agente de campo da CIA e da Agência de Inteligência de Defesa. Ele é bom.
– É esperto o suficiente para levar isso até o fim?
– Você terá de perguntar à minha irmã. Ela sabe mais sobre ele do que eu.
– Então eles trabalharam juntos? Acho que ela mencionou algo assim.
– Não tenho certeza de que trabalharam juntos.
– Então o que fizeram?
– Acho que eles quase mataram um ao outro. E, pelo que minha irmã disse, ela teve sorte de escapar.
– Se os dois eram agentes americanos, por que isso aconteceu? – perguntou Michelle.
– Aparentemente é complicado. Mas é muito ruim que Harkes esteja do lado deles.
Sean se virou e suspirou.
– Incrível.
Alguns minutos depois eles entraram em uma rua residencial tranquila. A porta da garagem se abriu quando se aproximaram e Michelle entrou nela. A porta se fechou atrás deles.
Kelly Paul estava esperando à entrada da casa.
– Temos um plano para amanhã? – perguntou Sean, quando eles entraram.
– Sim – respondeu Kelly. – Só não temos nenhuma garantia de que vá dar certo.

82
O DIA COMBINADO PARA A troca de reféns estava claro e frio. Às dez horas, uma multidão já se encontrava no parque. Havia discursos, exibições, canções, mais discursos, banheiros químicos para milhares e muitos cartazes com o símbolo da paz.
O Museu Aeroespacial era um dos mais populares do Instituto Smithsonian. Ficava na mesma rua da sede do instituto.
O museu era o marco zero.
Faltavam duas horas.
O tempo frio ajudava, porque todos usavam casacos, chapéus e cachecóis, o que tornava mais difícil alguém ser reconhecido.
Sean e Michelle estavam no parque, perto do Capitólio. Edgar Roy, usando um casaco com capuz e o rosto virado para baixo, estava sentado em uma cadeira de rodas que Sean empurrava. Sean apertou o próprio casaco contra o corpo. Estava bem justo por um bom motivo.
O olhar de Michelle varreu a área. Ela disse:
– Parece que há no mínimo mais de 100 mil pessoas aqui.
– No mínimo – concordou Sean.
– Cem mil e sessenta e nove – corrigiu Roy.
Sean olhou para baixo.
– Como você sabe disso? Não me diga que contou todo mundo.
– Não. Mas vi quadrantes suficientes no parque em meu trabalho no Programa E. É um alvo importante para terroristas. É possível determinar o número de pessoas a partir de quantos quadrantes estão cheios.
– Independentemente disso, ainda são muitas pessoas – disse Michelle.
– E possivelmente muitas mortes – acrescentou Sean em um tom preocupado.
James Harkes estava no que era provavelmente o melhor ponto de observação do parque: no alto do monumento a Washington, com um binóculo. Ele olhou para as pessoas abaixo e depois deu um telefonema.
Mason Quantrell estava em seu Boeing Dreamliner, voltando de uma reunião na Califórnia. Ele atendeu antes do primeiro toque terminar.
– Status? – perguntou ansiosamente.
– O parque está ficando cheio. Estou numa ótima posição. Todos os jogadores estão no lugar ou logo estarão. Quando aterrissará?
– Três horas e vinte minutos.
– Espero ter boas notícias para o senhor.
– Não que eu precise lembrá-lo, mas, se for bem-sucedido, haverá 50 milhões de dólares à sua espera, livres de impostos. E eu lhe darei mais 10 milhões como bônus. Você nunca mais terá que trabalhar na vida.
– Fico grato por isso, Sr. Quantrell. Mais do que o senhor imagina.
– Boa sorte, Harkes.
Quando Harkes desligou, pensou: nada disso terá a ver com sorte.
Ele deu outro telefonema.
Este também foi atendido no primeiro toque.
Ellen Foster estava em casa, sentada na cama. Ainda estava de camisola, com os cabelos despenteados e com muita azia. Era sábado. Ela tinha um evento fora da cidade, mas pedira ao seu pessoal para reagendá-lo, alegando doença. O que não estava longe de ser verdade. Ela se sentia bastante mal.
– Harkes, como vão as coisas? – Sua voz estava aguda por causa do nervosismo, que ela mal conseguia controlar.
– As coisas estão se posicionando em seus devidos lugares. Mas a senhora precisa respirar fundo algumas vezes e se manter controlada.
– Está assim tão óbvio?
– Infelizmente, sim.
Ele a ouviu seguindo seu conselho. Três respirações profundas. Quando ela voltou a falar, sua voz parecia quase normal.
– Você já os avistou?
– Não, mas eu não esperava avistar. Eles ainda têm algum tempo. E, sabendo disso, não aparecerão um segundo antes do necessário.
– Como você sabe?
– Porque se fosse eu, também não apareceria.
– Você realmente acha que eles virão?
– Francamente, não posso controlar os atos deles, secretária Foster. Tudo o que posso fazer é criar uma atmosfera que aumente as probabilidades de que eles façam o que queremos. E acho que consegui.
– Como você imagina que vá se desenrolar?
– Eles pegarão Riley. Nós pegaremos Roy e Bunting.
– Eu discordo. Kelly Paul não vai desistir tão facilmente. Quando ela me encurralou naquele banheiro no Lincoln Center, foi muito clara. Quer o irmão de volta. Se Kelly está com Roy, não o deixará ir sem lutar. Simplesmente não é possível.
– Ela mentiu – disse Harkes. – Estava com o irmão o tempo todo. Tentou jogar a senhora contra Quantrell. Se não estivesse com o irmão, por que concordaria em vir para a troca? Nós pagamos para ver e funcionou.
– Tem razão. Ainda não estou pensando claramente.
– Mas não discordo da senhora sobre as intenções de Kelly Paul. Ela tentará oferecer apenas Bunting nessa troca. Eles acharão que nós não retaliaremos se conseguirmos algo em troca de Riley.
– Mas e quanto a Roy?
– Tenho um plano para ele.
– Quer dizer, segui-los até onde ele está escondido?
– Algo ainda melhor. Olhe, tenho de ir. As coisas estão começando a esquentar.
– James, eu ficarei muito grata quando tudo isso terminar. Sinceramente.
– Eu sei... Ellen.
Depois de desligar o telefone, Foster olhou pensativamente pela janela do seu quarto. Ela não tinha dito a James Harkes toda a verdade. Havia guardado algo.
Seu trunfo.
E fizera isso por um simples motivo. Embora confiasse em Harkes, só havia uma pessoa no mundo em que Ellen Foster confiava totalmente.
E era Ellen Foster.
Harkes olhou para o parque cheio de pessoas reunidas para restaurar a paz mundial. Elas estavam totalmente inconscientes do potencial de violência em seu meio. Lá embaixo havia uma dúzia dos mercenários de Quantrell em posições táticas. Eles tinham armas e nenhum medo de usá-las. Recebiam ordens de James Harkes. Era o trabalho dele se certificar de que estariam onde precisavam estar. E, lá embaixo, em algum lugar, estava Kelly Paul.
Harkes desceu rapidamente os degraus.
A caminho, olhou o relógio.
Faltava uma hora e vinte minutos.

83
KELLY PAUL OLHOU PARA o monumento a George Washington. Se ela pudesse escolher um posto de observação, seria lá. Continuou a observar e sua vigilância foi recompensada.
James Harkes saiu do monumento, virou à esquerda e se dirigiu para o marco zero. Ela o seguiu até ele desaparecer na multidão.
Kelly Paul caminhou um pouco mais antes de olhar de relance para o homem perto dela.
Peter Bunting usava jeans desbotados e um casaco de moletom de universidade. Estava com um boné na cabeça e segurava um cartaz que dizia “Faça Amor, Não Faça a Guerra”.
– Você se mistura muito bem em uma passeata pela paz, Peter, ainda mais para um fornecedor de sistemas de defesa – disse ela ironicamente.
Bunting não riu da piada.
– Quantos homens você acha que eles têm aqui?
– Mais do que precisam. Força esmagadora não é uma prerrogativa apenas do governo.
– Você acha que Quantrell ou Foster estão aqui?
– Não estão em nenhum lugar por perto. Os líderes invariavelmente deixam seus subordinados lutarem por eles.
– Acha que serão violentos?
– Não tenho como saber. Espero que não, mas isso está fora do meu controle.
Ele a olhou com respeito.
– Você não parece nervosa.
– Pelo contrário, estou muito nervosa.
– Você esconde isso bem.
– Sim. E você precisa fazer o mesmo.
Durante o tempo todo em que falava, ela observava o que acontecia ao redor.
– O que você acha que fizeram com o corpo de Avery?
– Eu não sei.
– Eu gostaria de lhe dar um enterro decente.
– Certo, Peter. Mas, por enquanto, vamos nos concentrar naqueles que ainda estão vivos.
Ela olhou o relógio.
Faltava uma hora.
Megan Riley estava espremida entre dois homens que tinham armas sob as capas. Os cabelos e o rosto da jovem estavam sujos e havia um ferimento profundo em sua bochecha esquerda, causado por um soco. Seus pulsos estavam feridos pelas algemas. Sua blusa sob a jaqueta tinha cheiro de sangue. Megan havia emagrecido e seus olhos pareciam desconcentrados. Ela caminhava penosamente, cabisbaixa.
Bem à frente estava o Museu Aeroespacial. Se Riley o reconheceu, não esboçou nenhuma reação.
Agora só faltavam dez minutos.
***
James Harkes andava num ritmo calculado em meio à multidão. Sabia exatamente onde cada homem seu estava posicionado. O sincronismo precisava ser perfeito. Harkes olhou adiante e viu Riley e seus dois seguranças dirigindo-se ao museu. Haviam dito a Riley que ela seria morta se emitisse um som.
Harkes olhou na outra direção. A mulher era alta e usava um sobretudo que chegava quase aos tornozelos. O homem perto dela era mais alto. Usava jeans e um casaco de moletom e segurava um cartaz. Eles iam na direção do marco zero.
Na parte norte do parque, Harkes avistou o homem na cadeira de rodas. Ele estava sendo empurrado por seu companheiro. A mulher de cabelos escuros andava ao lado deles. O destino deles também parecia ser o marco zero.
Harkes acelerou o ritmo e pôs a mão no bolso. Teria de presumir que todos estariam armados. Se não estivessem, seriam idiotas. Ele disse algumas palavras que foram captadas por um aparelho de comunicação em seu ouvido.
Ele olhou o relógio.
Faltavam dois minutos.
Sean e Michelle estavam quase lá. Sean deu um tapinha no ombro de Roy.
– Um minuto – disse em voz baixa.
Roy assentiu com a cabeça e pôs as mãos nas pernas, retesando o corpo.
– Já viu algum deles? – perguntou Michelle.
– Ainda não. Mas estão aqui.
Ela o cutucou com seu braço.
– Megan com dois valentões na posição de cinco horas.
Sean viu.
– Ela parece péssima.
– Isso vai ser tenso. Você sabe que vai.
– Sempre é. Está vendo Kelly e Bunting?
Ela assentiu de leve com a cabeça.
– Posição de nove horas.
Sean olhou nessa direção.
– Você acha que Kelly está vendo Megan?
– Acho que ela não deixa escapar nada.
– Aja como no Serviço Secreto, Michelle. Avalie ameaças de todos os lados.
– É isso que estou fazendo desde que chegamos ao parque.
Kelly Paul segurou Bunting pelo cotovelo.
– Trinta segundos.
– Eu sei – disse ele. – Está vendo Megan?
– Já faz quatro minutos. Está entre dois homens de Quantrell.
– Quantos mais por perto?
– Eu diria que pelos menos dez. Não sei o número exato.
Bunting se enrijeceu quando viu o homem.
Ele caminhava com passos ágeis, parecendo se mover sem esforço em meio à multidão. Mas, desta vez, não usava terno preto com gravata nem camisa branca. Os óculos de sol escondiam seus olhos, mas Bunting tinha certeza de que estavam registrando tudo.
– Harkes! Harkes está aqui.
– É claro que está – disse Kelly em voz baixa. – Onde diabo você achou que ele estaria?
– Tenho muito medo dele.
– Deveria ter. Temos dez segundos.
Bunting começou a respirar rápido.
– Diga-me que vai dar certo, Kelly.
Ela apertou seu braço com mais força.
– Estamos quase lá, Peter. Fique firme. Estamos quase lá.
Ela olhou para seu relógio e acelerou seu ritmo.
Tudo estava bem à frente.
Este era o seu mundo. Esta era a versão de Kelly Paul da Parede.
Cinco... quatro... três... dois...

84
ELES FICARAM FRENTE A FRENTE de lados opostos de uma faixa de grama de 60 centímetros que, de certo modo, parecia larga como o oceano Atlântico.
James Harkes e Kelly Paul se encararam.
Megan Riley, subjugada por seus captores, olhava em silêncio para o chão. Perto de Kelly e Bunting estavam Sean e Michelle, com Roy na cadeira de rodas.
Roy se aprumou e deixou seu capuz cair.
Quando Megan ergueu os olhos e viu Sean e Michelle, sua sensação de alívio foi profunda.
– Vamos tornar isto fácil e simples – disse Harkes em voz baixa. – Passem Bunting e Roy para cá. E terão Riley.
– Isso não parece justo, não é? – provocou Kelly Paul. – Vocês recebem dois e nós só recebemos um.
– Esse foi o acordo – disse Harkes.
– Não, essa foi a proposta.
Harkes a olhou com interesse.
– Você realmente quer renegociar agora? Meus homens têm dez alvos predeterminados para atingir se eu lhes der o sinal. Você que sabe se quer ser responsável pela morte de inocentes. Mas eu não aconselharia.
– Entendo a lógica, Harkes, entendo de verdade.
– Mas ainda assim discorda?
– Não necessariamente.
– Não temos tempo. Preciso de uma resposta.
– Suponha que eu lhe dê Bunting.
Ela agarrou o braço de Bunting e o empurrou para a frente.
Ele se soltou e a olhou de cara feia.
– Então sou o cordeiro do sacrifício – disse ele asperamente. – O sangue fala mais alto.
Harkes balançou a cabeça.
– Precisamos do pacote completo.
– Ele é meu irmão.
– Meio-irmão.
– Ainda assim – disse ela calmamente.
– Quer uma demonstração da minha intenção?
Harkes apontou para um garotinho que segurava um copo de chocolate quente não muito longe deles.
– Eu ergo minha mão e ele ganha um terceiro olho.
– Você faria isso? Com uma criança?
Harkes a encarou, inexpressivo.
– Posso escolher um vovô, se preferir. O argumento seria o mesmo.
– Você é um verdadeiro canalha, sabe disso? – disse ela.
– Um comentário que não nos leva a lugar nenhum. Devo erguer minha mão?
– Você simplesmente matará meu irmão.
Harkes olhou para Edgar Roy, que estava sentado na cadeira de rodas.
– E se eu lhe disser que isso não vai acontecer?
– Por que eu deveria acreditar no que você diz?
– O cérebro dele é uma mina de ouro. Quem joga ouro fora?
– Quer dizer, para outro país?
– Isso seria problemático.
– Eu não sou um traidor – disse Roy.
– Você ficaria vivo – respondeu Harkes. – A escolha é sua.
– Você provavelmente não vai nos deixar sair daqui vivos, mesmo se o entregarmos – disse Kelly.
– Dou a minha palavra de que não será o caso.
– Não confio em você.
– Não a culpo. Também não confio em você.
– Espero que estejam lhe pagando bem para cometer traição.
– As palavras são suas, não minhas.
– Quando você se vendeu, Harkes? Pelo menos se lembra?
Por uma fração de segundo as feições de Harkes se endureceram.
– Vou erguer minha mão se Edgar Roy não se levantar da cadeira e vier aqui com o Sr. Bunting. Agora. Quer esperar que o garotinho termine o chocolate quente primeiro?
Sean e Michelle olharam para o garotinho. Michelle retesou seu corpo para pular.
Roy se levantou da cadeira.
– Eddie! Não! – gritou Kelly.
– Muitas pessoas já morreram por minha causa, Kel. Chega. Ninguém mais vai morrer. Principalmente uma criança.
– Eles me disseram que você tinha um grande cérebro, Roy – disse Harkes. – Venha aqui, por favor. Bunting, você também.
Eles observaram Bunting e Roy darem um passo à frente. Obedecendo a um sinal de cabeça de Harkes, os homens soltaram Megan, que cambaleou na direção de Sean e Michelle.
O olhar de Sean não havia parado de se mover. Ele percorrera quadrante por quadrante, levando seu olhar para longe e depois trazendo-o de volta, passo a passo, como quem lança uma linha de pesca e a recolhe devagar, procurando ameaças. Era como se ele nunca tivesse saído do Serviço Secreto. Sean havia se posicionado no parque muitas vezes enquanto estava no Serviço. O que e como procurar penetrara em sua mente até não haver nenhuma diferença entre pensamento consciente e instinto.
Assim que Megan se juntou a eles, Sean o viu. Um homem que prestava muita atenção neles, ao mesmo tempo que tentava parecer que não o fazia. Ele estava com a mão no bolso. Um brilho ótico se seguiu quando ele fez pontaria.
Sean pulou, seu corpo ficando paralelo ao chão.
O tiro foi disparado.
O projétil atingiu Sean no peito. Ele deu um gemido, caiu na grama com força e escorregou.
– Sean! – gritou Michelle.
Os homens que tinham estado dos dois lados de Riley subitamente caíram antes que pudessem sacar suas armas, seus corpos se contorcendo de dor. Homens se aglomeraram e os seguraram no chão, suas armas brilhando à luz do sol.
– Onde está o atirador? – gritou um deles.
Ao ouvir o tiro, a multidão no parque agiu como uma onda subindo. A debandada ganhou velocidade e volume, e logo a onda era incontrolável.
James Harkes estava em movimento. Ele derrubou dois homens com sua arma. Eles caíram na grama, fora de combate. Harkes seguiu em frente, seu olhar indo em todas as direções. Ele não sabia quem havia disparado, mas isso atrapalhara muito seus planos. Suas posições táticas cuidadosamente preparadas estavam agora sendo desfeitas.
Mas o que ele podia fazer era prosseguir, continuar andando rápido.
Michelle se ajoelhou perto de Sean.
– Sean!
Ele tentou ficar de joelhos.
– Vá, vá. Conclua o plano. Eu estou bem.
Ela olhou para o furo no colete à prova de balas, onde o projétil o atingira.
– Tem certeza de que está bem?
Ele fez uma careta, apertando o peito com uma das mãos.
– Michelle, tire eles daqui! Agora!
Michelle apertou o braço dele, se ergueu de um pulo, agarrou Megan e Roy pelo pulso e gritou:
– Comigo, agora!
Eles correram pelo parque, abrindo caminho com dificuldade por entre a multidão que gritava e corria em todas as direções.
Harkes por fim conseguiu avistá-la e tentou tenazmente atravessar a multidão para chegar à mulher.
Kelly Paul estava de costas para Harkes. Ele estava a centímetros de distância.
– Kelly!
Ela se virou, o viu, ergueu sua arma e atirou.
O homem atrás de Harkes deu um gemido quando a bala de borracha o atingiu no peito. Ele caiu para a frente, e a arma que estava prestes a descarregar em Harkes escorregou de sua mão.
Kelly Paul se juntou a Harkes. Ele olhou para o homem caído enquanto os agentes do FBI corriam e algemavam o homem ferido.
– Obrigado – disse Harkes.
– Acho que ele o viu matando os homens de Quantrell e percebeu o que você realmente ia fazer.
Ela apontou para sua esquerda.
– Peguei mais dois. O FBI também já está com eles.
Harkes fez um sinal afirmativo com a cabeça e ergueu sua Taser.
– Peguei dois. Além dos dois com Riley. Ainda faltam cinco – disse ele. – O parque está fechado. Eles não podem fugir.
– De onde veio aquele primeiro tiro? – perguntou ela.
– Não tenho a menor ideia. Mas não nos ajudou nem um pouco. E seu irmão? E Megan Riley?
– De acordo com o plano. Onde está Bunting?
Ele apontou para o outro lado da rua, para onde dois agentes do FBI o escoltavam em segurança.
– Bom trabalho – disse ela.
– Estou atrás desse pessoal há muito tempo. As coisas poderiam ter dado errado em qualquer momento.
– Mas não deram.
– Você também fez um bom trabalho – disse Harkes.
– Não teria conseguido sem você, Jim.
Michelle, com Megan e Roy a reboque, avançava através da multidão em pânico. Por fim viu uma nesga de luz do dia e os levou na direção dela.
– Cuidado! – gritou Roy.
Foi um aviso desnecessário. Michelle já o vira. Ela largou o braço de Roy, girou seu corpo no ar e fez o agressor cair de costas com um chute fulminante, que quebrou o maxilar dele.
– Meu Deus – disse Roy, olhando para o homem caído, que pesava uns 100 quilos. – Como você fez isso?
– Meus pés pensam sozinhos – bradou ela. – Vamos. Mexam-se, mexam-se!
Eles correram pelo parque. Alguns segundos depois, chegaram à van. Michelle ligou e engrenou rapidamente o motor.
Edgar olhou para trás, para o caos no parque.
– Isso não saiu exatamente como o planejado – disse ele.
– Quase nunca sai – respondeu Michelle enquanto a van se afastava em alta velocidade. – Mas estamos vivos. – Ela olhou pelo espelho retrovisor. – Megan, você está bem?
Megan se aprumou em seu banco e afastou dos olhos os cabelos sujos.
– Agora estou. Não achei que fosse aguentar. – Ela esfregou os pulsos inchados. – Eles me bateram muito.
– Eu sei. Encontramos seu suéter ensanguentado.
Megan tocou no ombro.
– Faca – disse simplesmente.
– Mas você está bem?
– Eles só precisavam deixar um pouco de sangue para trás, para que vocês soubessem que eles não estavam brincando. E eu fui bem maltratada nos últimos dias – disse Megan em voz baixa. – Lamento pelo policial Dobkin. – Ela respirou profundamente. – Foi horrível. Eles arrombaram a porta com um chute e atiraram nele. Ele nem teve chance de sacar a arma.
– Eu sei. Mas pelo menos você está segura – disse Michelle.
Megan olhou para Edgar Roy.
– Que bom que tiraram você de lá. – Ela estendeu sua mão. – Prazer em finalmente conhecê-lo.
Roy apertou a mão dela.
– O prazer é meu – disse ele de modo tímido. – Desculpe-me por antes. Por não falar com você e tudo o mais.
– Não se preocupe – disse Megan. – Tudo o que eu quero agora é um banho quente e roupas limpas.
– Temos o lugar certo, fica bem perto – disse Michelle. – Chegaremos lá em cinco minutos.
Megan olhou para trás e disse em um tom assustado:
– Michelle, acho que estamos sendo seguidos.
– Estamos. FBI. Eles cuidarão do perímetro de segurança no esconderijo. Mais tarde, quando tudo estiver resolvido, vamos ao escritório de Washington. Eles precisam do seu depoimento detalhado, Megan.
– Ficarei feliz em ajudar. – Ela sorriu. – Mas primeiro posso tomar banho?
– Você é quem manda.
Eles continuaram a dirigir. O SUV preto atrás acelerou e se aproximou mais.

85
TODOS OS 12 HOMENS de Quantrell foram dominados, algemados e levados em vans do FBI. Os participantes da passeata pela paz provavelmente pensaram que os tiros foram dados por algum idiota que não partilhava do entusiasmo deles por um mundo menos violento. A multidão havia se reunido na extremidade mais distante do parque, longe da atividade nada pacífica.
Sean, Kelly Paul, Bunting e James Harkes se encontraram no meio do parque. Sean estava curvado para um lado.
– Foi muito ruim? – perguntou Kelly Paul, olhando para o buraco no colete à prova de balas.
– Costela quebrada, mas é melhor do que estar morto.
– Você salvou a vida de Eddie – disse ela, apertando o braço dele.
– Obviamente não me contaram todo o plano. Eu não sabia que iam fazer isso – disse Harkes.
– Pode ter sido só alguém atrás de um bônus por morte – observou Kelly.
– Como você conseguiu ver o atirador antes de todo mundo? – perguntou Harkes.
– Isso já foi meu ganha-pão – respondeu Sean.
– Status dos outros? – perguntou Paul.
– Confirmei com Michelle – disse Sean. – Eles estão no esconderijo seguro. Megan está bastante machucada, mas, com um pouco de repouso, roupas limpas e comida, ficará bem. O ferimento no ombro estava horrível, mas Michelle o limpou. Quando ela for ao escritório do FBI em Washington para dar seu depoimento, eles poderão examiná-la melhor.
– Ótimo – disse Kelly, depois olhou para Harkes. – Próximo movimento?
– Vou visitar algumas das minhas pessoas favoritas e lhes contar coisas que literalmente mudarão suas vidas de um modo que não imaginavam que acontecesse.
– Mande lembranças minhas a Ellen Foster e Mason Quantrell.
– Eles pensaram que estavam usando Megan para pegar Bunting e Roy. Não tenho nada contra a advogada, mas na verdade a estávamos usando para fazê-los ficar cara a cara.
– O único jeito de conseguir – acrescentou Kelly.
– Você tem certeza de que tem material bastante para prendê-los? – perguntou Bunting ansiosamente. – Eles são ótimos em desviar a culpa para os outros. Tenho uma vasta experiência pessoal nisso.
– Sei disso, Sr. Bunting – disse Harkes. – Mas estamos trabalhando nessa operação há algum tempo, e os promotores estão bem confiantes de que temos o que precisamos. E eu serei uma testemunha importante. Se não fosse pelas questões legais da minha palavra contra a dela, eu poderia ter prendido Ellen Foster antes. O custo da espera foi enorme. Muitas pessoas morreram. O assassinato do agente Murdock me assombrará pelo resto da vida.
– Meu irmão disse que ele descobriu sobre o Programa E.
Harkes fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Eles tinham um sistema de escuta na cela. Surtaram e autorizaram a morte sem falar comigo. Descobri que Murdock estava morto ao mesmo tempo que os outros. – Ele fez uma pausa. – Mas agora pegamos os canalhas.
– Espero que sim – disse Bunting sem muita confiança.
Harkes percebeu e disse:
– Só para tranquilizá-lo, também obtivemos um belo bônus no campo das provas.
Bunting mostrou interesse.
– Qual?
– Checamos o ângulo de satélite que nos forneceu – disse Harkes. – Era melhor do que poderíamos ter esperado. Ellen Foster autorizou a mudança na posição do satélite sobre a casa de Edgar Roy por um período de três horas em uma noite de quarta-feira, uma semana antes de Roy ser preso.
– E foi quando os corpos foram postos no celeiro – disse Sean.
– Certo.
– Mas por que isso foi melhor do que poderíamos ter esperado? – perguntou Kelly Paul. – Você só tem a mudança no satélite. Isso é esclarecedor, mas não necessariamente incriminador. Pode ter havido outros motivos para a mudança, ou pelo menos ela pode alegar isso.
– Não, ela não pode.
– Por quê? – perguntou Bunting rapidamente.
– Porque Mason também tinha um par de olhos sobre o celeiro o tempo todo, de sua plataforma particular. Foi como você disse: Quantrell queria uma garantia extra, para o caso de Foster se voltar contra ele.
– Então você está dizendo que temos um vídeo dos corpos entrando? – perguntou Sean.
– Sim, temos. Bem nítido. E acontece que os homens que executaram o serviço já tinham trabalhado com Ellen Foster, quando ela estava baseada no Extremo Oriente. Acho que ela não confiava que Quantrell faria o trabalho direito. Capturamos esses homens, e digamos apenas que eles estão cooperando com o FBI no desenvolvimento do processo.
– Isso não poderia ter acontecido a duas pessoas melhores – disse Bunting, que agora parecia muito mais confiante.
Harkes lhe deu um tapinha no braço.
– Sinto muito por ter escondido isso de você. E por ter atacado você fisicamente e ameaçado sua família. As pessoas com quem eu estava lidando eram muito espertas, e me observavam o tempo todo. Eu precisava representar o meu papel muito bem para que confiassem em mim.
– Tenho de admitir que comecei a suspeitar quando você deixou Avery vivo, mesmo depois de eu apertar a tecla – disse Bunting, depois fez uma pausa. – Mas agora ele está morto de verdade.
– Não, não está. Estará à sua espera no escritório de Nova York na segunda-feira.
Bunting ficou paralisado.
– O quê? Mas e o telefonema?
– Eles queriam matá-lo. Mas eu os convenci de que poderíamos fazer isso depois. Então usamos um pequeno subterfúgio. Eu não ia deixar que matassem o rapaz.
– Graças a Deus.
– E sua família está sã e salva, sob proteção federal.
– Eu sei. Falei com minha esposa. – Ele hesitou. – Estou pensando em tirar umas férias. Acho que o Programa E pode sobreviver sem mim por um tempo.
– Acho que seria uma ótima ideia – disse Kelly Paul. – E, francamente, Eddie também precisa de um descanso. A partir de agora, ele e a irmã passarão mais tempo juntos.
Harkes saiu para terminar o que havia começado muito tempo atrás.
– Um homem bom para se ter do seu lado – disse Kelly, observando-o ir.
– Tenho certeza de que ele disse o mesmo sobre você – falou Bunting.
– Como vocês dois se conheceram? – perguntou Sean.
– Digamos apenas que foi um arranjo mutuamente benéfico.
Sean estava prestes a responder quando seu telefone tocou. Ele abaixou os olhos e reconheceu o nome de quem estava ligando.
Aquele seria um telefonema que mudaria tudo para Sean King.

86
O DREAMLINER 787 aterrissou pontualmente no aeroporto Dulles e foi freando até parar. O piloto taxiou o avião até um espaço aberto nas cercanias do aeroporto. Havia dois SUVs esperando nesse ponto. A porta se abriu, uma escadaria móvel foi posicionada e Mason Quantrell desceu. Vestia jeans bem passados e uma camisa branca sob uma capa. Segurava uma pasta e parecia descontraído e feliz.
Ele sorriu e acenou quando a janela de um dos SUVs foi abaixada e pôde ver Harkes sentado dentro. Quantrell se sentou ao lado dele.
– O voo foi bom? – perguntou Harkes.
– Ótimo, ótimo. Recebi sua mensagem. Estávamos descendo para Dulles. Parece que não poderia ter sido melhor.
– Não, de fato não poderia – respondeu Harkes.
– Mal posso esperar para ouvir a história toda. Por que não vamos até minha casa em Great Falls? Meu chef estudou em Paris e a adega está ao seu dispor. Podemos comer alguma coisa enquanto você me apresenta seu relatório. – Ele fez uma pausa e então acrescentou: – Ellen Foster já sabe?
Harkes sorriu.
– Eu estava deixando o melhor para o fim.
Quantrell riu.
– Você armou tudo muito bem. Ellen Foster ficará em dívida comigo para sempre por termos livrado a cara dela. Agora conseguirei o aumento no orçamento que eu quiser.
– Precisamos fazer uma pequeno desvio – disse Harkes.
Quantrell olhou para ele.
– O quê? Para onde?
Quantrell notou que o SUV não fora ligado. Eles não estavam se movendo.
Harkes abaixou sua janela de novo e fez um sinal com a mão.
– O que você está fazendo, Harkes?
Quantrell se encolheu quando a porta foi aberta e quatro homens apareceram.
– FBI – anunciou o agente principal. – Mason Quantrell, você está preso.
Enquanto o agente lia os direitos de Quantrell, Harkes abriu a porta, saiu, a fechou atrás de si e foi embora.
Em momento nenhum ele olhou para trás.
Um já fora, agora era a vez da outra.
Ellen Foster havia tomado banho, arrumado os cabelos e se vestido meticulosamente. Agora estava sentada em uma cadeira na sala de sua bela casa, num bairro elegante cheio de pessoas muito ricas. Ali era o lugar dela, estava certa disso. Superara muitas coisas para chegar àquele ponto da vida. E agora?
A mensagem que recebera fora inesperada. Ellen tinha pensado que receberia as boas notícias de Harkes. Teria sido muito justo. Só que, às vezes, a vida não era nada justa. Infelizmente, se tratava de um desses momentos.
Sentada em seu banheiro diante do espelho aplicando maquiagem, ela pensou muito nos últimos anos de sua vida. Eles tinham sido repletos de triunfos e alguns fracassos inevitáveis – como seu casamento. Seu marido era rico, mas nem de longe tão famoso quanto ela, e isso o irritara. Um homem extremamente inseguro, apesar da fortuna, ele acabara por destruir todos os sentimentos que ela nutrira por ele.
O divórcio fora manchete nos jornais e depois esquecido. E a vida dela havia continuado. Como deveria ser.
Ellen se sentou com as mãos cruzadas no colo enquanto olhava para a sala perfeitamente decorada. Realmente era um belo espaço; ela havia se sentido muito bem ali. Muito feliz. Era uma combinação perfeita de vida doméstica aparentemente maravilhosa e superioridade profissional. Ela tocou os brincos. Brincos extravagantes que ganhara do ex. O colar que usava valia 50 mil dólares. O anel de brilhante e safira, quase o dobro. Ela queria parecer perfeita para aquele seu ato final.
Era um ato necessário, porque Harkes a traíra.
Harkes estava trabalhando para outros. Ele não havia sido leal. Em vez de ajudá-la, conseguira destruí-la. O subalterno se voltara contra a chefe. Mas agora era tarde demais.
A vida realmente era injusta. Tudo o que ela havia feito fora para tentar manter o país seguro. Esse era o seu trabalho. E qual tinha sido sua recompensa?
Ellen ouviu as caminhonetes parando ruidosamente na frente de sua casa. Levantou-se, foi até a escrivaninha e pegou a arma no esconderijo. Por um momento, se perguntou como os jornais dariam a notícia. Não que isso realmente importasse. Ela presumiu que o ex-marido ficaria um pouco surpreso, embora tivesse se casado com uma mulher muito mais jovem e estivesse começando a família que ela nunca quisera ter com ele.
A secretária Foster lamentou de verdade que ninguém fosse chorar por ela. Isso era triste, concluiu.
Pés subiram correndo até a varanda da frente.
Seu destacamento de segurança não conseguiria detê-los.
Tudo bem. Ela não queria que fossem detidos.
Eles tinham um mandado de prisão, estava certa disso.
A mulher balançou a cabeça e respirou fundo.
Eles estavam bem na porta. Bateram.
– FBI – anunciou uma voz grave.
– Secretária Foster, por favor, abra a porta.
Ela ergueu a Glock até a têmpora direita, posicionando-se de modo a cair no sofá. Sorriu. Uma queda suave. Ela merecia isso. Felizmente, havia tomado dois comprimidos de Valium, o que tornava as coisas muito menos estressantes. Qualquer um que pensasse em suicídio deveria tirar proveito desse produto, pensou.
O FBI deu um último aviso. Ellen Foster visualizou o aríete hidráulico sendo colocado contra a porta, que era feita de madeira centenária. Não cederia tão facilmente. Restavam-lhe mais alguns segundos.
Ela se perguntou se Harkes estava com eles. Queria olhar nos olhos dele mais uma vez. Ela ainda o venceria. Queria ver o olhar triunfante no rosto de Harkes desaparecer quando a bala entrasse na cabeça dela. Mas, provavelmente, Harkes não estava.
Aquele covarde.
O aríete atingiu a porta uma vez. Ela rachou e quase cedeu. Com o segundo golpe ela se abriu.
A porta foi totalmente escancarada.
Os homens entraram correndo.
Ellen Foster sorriu para eles e puxou o gatilho.
Mas nada aconteceu. Ela puxou o gatilho de novo. E de novo. E uma quarta vez.
James Harkes entrou a passos largos, passou pelos agentes do FBI que cercavam a mulher e parou na frente dela. Ele pegou a arma.
– Você não terá a saída fácil – disse.
A secretária Foster cambaleou em seus saltos altos.
– Seu filho da mãe!
Ela lhe deu um tapa.
Ele não se esquivou. Apenas ficou encarando-a, satisfeito. Por fim, Ellen Foster desviou os olhos.
– Há algo que estes homens precisam lhe dizer.
Harkes deu um passo para o lado quando eles se aproximaram, leram os direitos de Ellen e a algemaram.
Enquanto a conduziam para fora, Harkes gritou:
– Mais uma coisa.
A mulher se virou para olhar para ele.
Harkes ergueu a arma.
– Devia ter se certificado de que ninguém havia retirado o percussor, senhora secretária.

87
SEAN OLHOU PARA O NÚMERO do telefone.
– É o coronel Mayhew, da polícia estadual do Maine. Eu liguei mais cedo, mas ele não atendeu. Deixei uma mensagem para me retornar.
Sean atendeu e explicou as coisas para o coronel.
Compreensivelmente, Mayhew estava feliz com os resultados.
– Diga ao pessoal em Washington para se certificarem de que os canalhas nunca mais vejam a luz do dia.
– Eu direi, senhor – respondeu Sean com um sorriso.
– O pior é que não consigo entender – disse Mayhew.
– O quê?
– O resultado da autópsia do pobre Eric.
A barriga de Sean se contraiu um pouco.
– Ferimento por arma de fogo, certo?
– Sim. Não há nenhuma dúvida disso. Bem no peito.
Sean relaxou.
– Então qual é o problema?
– Bem, foi de um calibre 32. Do mesmo tipo que matou Carla Dukes e seu amigo Ted Bergin. Mas, o que é realmente estranho, é que foi um tiro à queima-roupa. Simplesmente não consigo imaginar como Eric pôde deixar que alguém se aproximasse tanto sem que ele chegasse a dar um único tiro. Quero dizer...
Mas Sean não estava mais ouvindo. Estava correndo.
Estava correndo não para salvar sua vida. Mas para salvar a vida da pessoa com quem mais se importava no mundo.
– Está se sentindo melhor? – perguntou Michelle quando Megan entrou na sala usando roupas limpas.
– O banho foi ótimo. Acho que estou voltando a ser humana. E obrigada por ter trazido minhas roupas para cá.
– Não há de quê. Depois que falhamos com você no Maine, isso era o mínimo que podíamos fazer.
Michelle olhou pela janela. Em um SUV estacionado em frente, estavam três agentes do FBI. Havia mais dois no quintal dos fundos do esconderijo. Pela primeira vez em muito tempo, ela se sentiu razoavelmente segura.
– Onde está Edgar? – perguntou Megan.
– Cozinhando.
– Ele sabe cozinhar?
– E muito bem. Estou certa de que você está com fome. Acho que não lhe deram muita comida.
– O proverbial pão e água. Ainda assim, mal consigo acreditar que saí dessa viva.
– Foi difícil.
– Vou ver se ele precisa de ajuda. Minha mãe sempre me disse que, se eu quisesse mesmo me casar, tinha de saber me virar na cozinha.
– Não acredito nem um pouco nisso.
Megan foi para a cozinha enquanto Michelle, sempre irrequieta quando nenhuma ação era necessária, andava de um lado para outro.
Em sua segunda volta pela sala, seu telefone tocou. Era Sean.
Ela ia atender, mas não chegou a fazê-lo.
Sangue esguichou do corte em seu braço. A faca teria atingido seu pescoço, mas ela a viu um instante antes de atingi-la, e ergueu o braço. A lâmina cortou pele, músculo e tendão.
Michelle soltou o telefone, caiu para trás, ergueu os olhos e viu Edgar Roy partindo para cima dela de novo.
Mas então percebeu que ele não estava partindo para cima dela. Estava se atirando na frente dela. Não, em algo mais. Em outra pessoa.
Ele colidiu com Megan Riley na hora que ela tentava atingir Michelle de novo com a grande faca de cozinha. Eles caíram juntos no chão, o homem grande sobre a mulher pequena. A luta deveria ter terminado ali.
Mas Megan Riley obviamente não era uma mulher comum.
Ela era, na verdade, o trunfo de Ellen Foster.
Roy gemeu e rolou para o lado quando o joelho de Megan atingiu seus genitais. Um segundo depois, ela estava em pé e o atingiu com dois fortes chutes na cabeça que o fizeram cair de costas. Roy ficou quase inconsciente, com sangue escorrendo de um corte profundo no rosto.
Megan ergueu a faca para o golpe mortal, mas não teve a chance de desferi-lo.
Michelle lhe deu um chute no joelho. Só que não foi um chute perfeito, porque, quando estava prestes a dá-lo, escorregou no próprio sangue que empoçava no chão de madeira.
Megan fez uma careta e olhou para a perna machucada. Então se lançou para a frente sobre sua perna boa, deu uma cotovelada na cabeça de Michelle, girou ao redor da oponente e lhe chutou as pernas. Michelle caiu com força, batendo com a cabeça no chão. Ela se desviou um instante antes de Megan golpeá-la novamente com a faca. A lâmina entrou na coxa em vez de na barriga. Megan torceu o cabo e Michelle gritou de dor quando sua carne foi rasgada. Ela chutou a outra mulher e se levantou. As duas mulheres se estudaram, cada qual protegendo os próprios ferimentos.
– Vou matar você – rosnou Megan.
– Não, você vai tentar – retrucou Michelle.
– Você devia ter visto os olhos de Bergin antes de eu atirar na cabeça dele. Ele pareceu tão surpreso quanto Carla Dukes, quando eu a matei.
– Eu não sou um velho. Nem uma mulher gorda e lenta.
Megan sorriu perversamente.
– Não, mas também vai sangrar até a morte.
Megan tentou fazer alguns cortes com a faca, mas não conseguiu vencer as defesas de Michelle. Michelle agarrou um abajur de pé e o girou diante de si como um nunchaku. Ela avançou enquanto Megan caía para trás, momentaneamente vencida pela manobra. Mas, quando Megan pulou sobre Roy com a faca erguida, Michelle teve de atirar o abajur nela para defendê-lo. O metal do pé atingiu Megan no rosto, fazendo um corte profundo em sua bochecha. Sangue escorreu. Ela caiu de lado sobre Roy, mas, um instante depois, estava de pé segurando a faca na sua frente.
Foi tarde demais.
O ombro de Michelle atingiu Megan no estômago e as duas mulheres foram lançadas violentamente contra uma mesa e uma parede, abrindo buracos no gesso com a força do impacto.
Infelizmente, Michelle bateu em uma viga e fraturou a clavícula.
Percebendo o ferimento, Megan deu um soco bem no osso fraturado e Michelle deslizou para trás, segurando o ombro e ofegando.
As duas mulheres se levantaram devagar, cada qual com uma perna machucada, mas Michelle tinha sangue escorrendo de dois grandes ferimentos. Ela podia sentir seu coração batendo mais forte a cada contração, jogando mais sangue no chão, sem nada para substituir a perda.
Ela tomou fôlego rapidamente. Não lhe restava muito tempo. Simulou um ataque e Megan deu um passo para trás. Michelle investiu, visando o braço de Megan que empunhava a faca.
Mas, em seu estado enfraquecido, chegou um segundo atrasada.
Megan passou a faca para a mão esquerda um momento antes do impacto. Quando as duas mulheres caíram para trás, Megan enfiou fundo a faca nas costas da outra mulher.
Elas atingiram o chão e Megan chutou Michelle para longe, rolou e ficou sobre uma só perna, vacilante.
Michelle tentou se levantar, mas caiu de joelhos. A faca ainda estava nela. O sangue agora jorrava de três feridas, a última e mais grave nas costas. Ela agora via imagens indistintas à sua frente e sua respiração se tornava cada vez mais difícil.
Estou morrendo.
Com as últimas forças que lhe restavam, Michelle puxou a faca.
Ela olhou para Megan, sua respiração vindo em haustos.
– Você está morta – zombou Megan.
– Você também, sua vaca – disse Michelle, com sangue acumulando-se em sua boca e lhe dificultando a fala.
Ela atirou a faca.
Errou feio e a faca atingiu a parede, caindo inofensivamente no chão.
Enquanto Michelle ficava sentada lá, impotente, com sua vida se esvaindo, Megan se preparou para dar o golpe mortal: uma cotovelada na nuca de Michelle que romperia sua medula e acabaria com sua vida na hora.
Ela pulou para dar esse golpe final.
E Edgar Roy deu um giro.
Em sua mente única, era subitamente trinta anos atrás, e Edgar Roy, então com apenas 6 anos e alvo do ataque sexual de seu pai, deu um giro. E golpeou. O homem caiu. Seus olhos se tornaram vítreos. A respiração cessou. O homem morreu. Bem na cozinha da casa de fazenda.
Então, como uma velha TV em preto e branco subitamente transformada em uma HD tela plana, as velhas imagens desapareceram e Roy voltou diretamente para o presente.
O homem de 2,03 metros enfiou com tanta força no tronco de Megan Riley a faca de cozinha que apanhara que a mulher pequena foi erguida 30 centímetros do chão. Um instante depois, a espantosa velocidade do ataque de Roy catapultou Megan Riley para a parede. A mulher bateu nela com força e escorregou para o chão. Olhou em silêncio para a faca enfiada até o cabo em seu peito arquejante; a ponta quase cortara seu coração em dois. Ela tentou tirar a faca. Agarrou-a. Suas mãos se contraíram e depois relaxaram. Os dedos escorregaram do cabo. Os braços caíram para os lados. A cabeça pendeu sobre o ombro. Ela deu um último e trêmulo suspiro.
E então morreu.
Edgar Roy ficou em pé lá por alguns instantes.
Eu dei um giro. Minha irmã não girou. Eu enterrei a faca em meu pai. Minha irmã não fez isso. Eu dei um giro. Eu matei o animal. Eu matei meu pai.
Sua lembrança havia muito perdida, a única que o deixara, finalmente voltou a ele.
Roy correu para o lado de Michelle e verificou seu pulso.
Não conseguiu encontrá-lo.
A porta se abriu repentinamente.
Ele se virou e viu Sean e sua irmã em pé.
– Por favor, ajudem! – gritou Roy.
Sean correu.
Eles haviam telefonado para uma ambulância a caminho de lá, só por precaução.
O telefonema fora uma boa ideia.
Os paramédicos entraram na sala segundos depois, e começaram a trabalhar febrilmente em Michelle. O cenário não parecia bom. Ela havia perdido muito sangue. Eles a puseram rapidamente na maca, e Sean entrou na ambulância logo antes de as portas se fecharem.
Os agentes do FBI começaram a avaliar o que havia acontecido dentro do esconderijo seguro que se revelara tudo menos isso.
Roy desabou junto a uma parede. Sua irmã se ajoelhou ao seu lado. Um agente se aproximou e ela disse:
– Pode nos dar um minuto?
O federal assentiu com a cabeça e se afastou.
Roy olhou de relance para o corpo ensanguentado de Riley, que morrera encostada na outra parede, com a faca ainda cravada nela. Parecia uma boneca grande e aterrorizante em uma vitrine.
– Eu a matei – disse ele à irmã.
– Eu sei.
– Ela estava tentando matar Michelle.
– Também sei disso, Eddie. Você salvou a vida dela. Fez a coisa certa.
Ele balançou a cabeça obstinadamente.
– Não sabemos. Ela ainda pode morrer.
– Pode. Mas você lhe deu uma chance.
Roy abaixou os olhos, como se estivesse nauseado.
Ele ergueu os olhos para a irmã de novo.
– Eu matei meu pai.
Kelly se sentou ao lado de Roy, pegou a cabeça dele e a apoiou em seu peito.
– Durante todo esse tempo não consegui me lembrar. Eu... simplesmente pensei que tinha sido você. Você... sempre me protegeu.
– Daquela vez, Eddie, você se defendeu sozinho. E me salvou. Você fez a coisa certa. Não fez nada de errado. Entende isso?
Ele não disse nada.
– Eddie, você entende isso? Você não fez nada de errado – enfatizou ela.
– Entendo.
Ele engoliu um soluço.
– Eles levaram minha medalha de São Miguel.
– Eu sei. Posso lhe dar outra.
Ele relanceou os olhos para o corpo de Megan.
– Acho que não preciso dela. Não mais.
– Também acho que você não precisa.
Ele começou a chorar e sua irmã o amparou.
Os sons melancólicos da ambulância transportando a horrivelmente ferida Michelle Maxwell diminuíram até só restar o silêncio.

88
O QUARTO DO HOSPITAL ESTAVA mais frio do que qualquer necrotério em que Sean já estivera. A maioria das luzes vinha de pequenos aparelhos que emitiam ruídos estranhos, assinalando a vida ou anunciando a proximidade da morte.
Ele estava sentado na cadeira, segurando as mãos dela, com a testa apoiada na grade da lateral da cama.
Michelle Maxwell estava coberta por uma teia de cateteres cheios de coisas das quais Sean nunca ouvira falar, fluindo para seu corpo e levando outras embora.
Ela havia morrido três vezes. Uma na ambulância. Outra na mesa de cirurgia. E outra bem ali, naquela cama. Na verdade, sofrera uma parada cardíaca enquanto ele segurava sua mão. A equipe de emergência agira rápido e fizera seu milagre, trazendo-a de volta do túmulo, enquanto Sean observava, impotente, da porta.
Sean havia conversado com o médico:
– A faca causou muito dano. Ela ficou quase sem sangue – explicara o médico. – Mas ela é jovem e está em ótima forma física, caso contrário não teria conseguido chegar tão longe.
– Será suficiente? – perguntara Sean. – Trazê-la de volta?
– Só podemos esperar que sim – respondera o cirurgião. – Mas, francamente, mais um episódio como esse e será difícil mantê-la viva.
E com esse comentário Sean perdera quase todas as esperanças.
Ele ergueu a cabeça quando os ouviu entrar.
Kelly Paul estava com o irmão.
O rosto de Edgar Roy ainda trazia os ferimentos do encontro com Megan Riley, ou qualquer que fosse seu nome verdadeiro. Ela estava morta e isso era tudo o que importava a Sean.
Kelly se aproximou e olhou para Michelle antes de tocar no ombro de Sean.
– Sinto muito. Isso nunca deveria ter acontecido.
– Essas coisas acontecem – disse Sean em voz baixa. – Acontecem o tempo todo. Coisas ruins, com pessoas que estão tentando fazer o que é certo – completou ele, depois olhou para Roy: – E nem teria chegado aqui se não fosse por você. Eu lhe devo tudo, Edgar, de verdade.
– E eu lhe devo também, Sr. King – disse Roy em voz baixa.
– Como ela está? – perguntou Kelly.
– Sobrevivendo, vencendo um minuto de cada vez. Eles nem mesmo sabem me dizer se algum dia acordará. Mas estarei aqui quando acordar.
Ele se aprumou e virou para olhar para Kelly Paul.
– E quanto a Ellen Foster e Mason Quantrell?
– Revezando-se nas acusações mútuas. Mesmo que os promotores não tivessem provas suficientes antes, agora teriam.
– Onde eles arranjaram os seis corpos para plantar no celeiro?
– Por aí. Eram pessoas que sabiam que não poderiam ser identificadas.
Kelly Paul se inclinou para a frente e pegou a mão de Sean.
– A missão de acabar com essa gente era minha, não dela. Cumpri a missão, mas falhei com ela. Falhei com vocês dois.
– Vim aqui para dizer basicamente o mesmo.
Todos eles se viraram e viram James Harkes à porta. Ele vestia seu terno preto, camisa branca e gravata preta. Seu corpo estava tenso, tanto quanto o rosto. Harkes foi até eles. Olhou para Michelle e depois rapidamente desviou o olhar.
– Pensei que tínhamos coberto todas as possibilidades – disse, em tom de desculpas. – Mas não tínhamos.
– O nome verdadeiro dela não era Megan Riley, é claro – acrescentou Kelly. – Não importa qual era. Ela era a última cartada de Ellen Foster, da qual ninguém mais sabia.
– Ela ao menos era advogada? – perguntou Sean.
– Sim, entre muitas outras coisas. Foi por esse motivo que Ellen Foster a escolheu para trabalhar com Bergin.
– E ela o matou?
– Sem dúvida. Nós sempre achamos que tinha sido alguém que ele conhecia, ou ele não teria saído da estrada daquela maneira. Sabíamos que Megan tinha ligado para Bergin naquele dia. Simplesmente presumimos que ela estava na Virgínia. Não sei como ela explicou para Bergin sua ida ao Maine.
– Então ela matou Bergin para poder atuar como advogada e nos espionar? – perguntou Sean.
– Sim – respondeu Harkes. – E matou Carla Dukes porque eles não podiam confiar nela para executar o plano de retirada.
– E é claro que ela atirou em Eric Dobkin. Assim, poderia ser trazida de volta depois como um cavalo de troia. E funcionou – acrescentou Kelly, com tristeza.
– Eu tive a sensação de que Ellen Foster não estava me contando tudo – admitiu Harkes. – Ela disse que Megan era seu trunfo. Achei que estava se referindo a uma refém inocente. Obviamente, ela não era nem inocente nem refém. Ellen Foster realmente me enganou.
Ele fez uma careta e balançou a cabeça.
– Não se culpe por isso, Harkes – consolou-o Sean. – Você fez um bom trabalho. Na verdade, fez um ótimo trabalho.
– Francamente, não foi bom o bastante. – Ele fez uma pausa e olhou ao redor. – O Tio Sam pagará a conta disto tudo. Michelle terá o melhor tratamento do mundo, Sean. E, pelo que vi dela, estará em pé chutando portas antes do que imaginamos.
– Obrigado por dizer isso – falou Sean.
Harkes tirou algo de seu bolso.
– Isto é para você. Para vocês dois.
Ele entregou um envelope para Sam.
– O que é?
– Bunting e o Tio Sam acharam que vocês mereciam uma recompensa. Contribuíram igualmente para a quantia que está neste recibo de transferência. O dinheiro já está nas suas contas.
– Mas nós só estávamos fazendo nosso trabalho.
– Não, na verdade vocês dois fizeram muito do nosso trabalho – disse Kelly.
– Nós soubemos que havia algo de errado com o Programa E depois que um homem chamado Sohan Sharma fracassou na Parede e acabou morto – explicou Harkes. – No início, suspeitamos de Bunting, mas quando começamos a cavar mais fundo as coisas ficaram muito complicadas. Quando os corpos surgiram na casa de Eddie, chamamos Kelly. Sabíamos que ela teria todos os motivos para limpar o nome do irmão e chegar à verdade. Mas nunca teríamos chegado lá sem sua ajuda. E essa é a mais pura verdade.
Quando Sean viu a quantidade de dólares na folha de papel ficou boquiaberto. Ele olhou para Harkes, sem poder acreditar.
– Isso é muito, Harkes.
O homem olhou novamente para Michelle na cama.
– Não, Sean não é nem de longe o bastante.
– Eu gostaria que a viúva de Eric Dobkin ficasse com um pouco desse dinheiro – disse Sean.
– Faça o que quiser com o dinheiro – disse Harkes. – É seu.
Depois que os três saíram, Sean continuou sentado ao lado da cama. Planejava ficar sentado ali até Michelle acordar ou... Bem, independentemente do que acontecesse, ele estaria ali.
Sean olhou ao redor pelo quarto. Eles haviam passado por muitas coisas juntos. Um maníaco do passado dele que destruíra sua casa. Um assassino em série que quase acabara com ambos. Um perigoso agente da CIA que achava que torturar colegas americanos era totalmente legítimo. E líderes políticos que se consideravam acima da lei. Nessas ocasiões, a única pessoa com quem ele realmente havia contado fora Michelle. Ela o salvara inúmeras vezes. Sempre estivera ao seu lado. O vínculo deles era tão forte quanto um milhão de diamantes revestidos de titânio. Não havia nada mais resistente.
Ele se recostou e ouviu os aparelhos que mantinham Michelle viva. Ela era jovem. Forte. Sobrevivera a muita coisa. Não poderia perder sua vida porque uma traidora literalmente a atacara pelas costas. Simplesmente não poderia.
Ele pôs a cabeça na grade fria da cama e apertou os dedos dela. Ficaria ali até um dos dois parar de respirar.
Espero que seja eu.
A noite virou dia. E o dia virou noite.
Michelle ainda estava deitada.
E Sean ainda estava sentado.
Os aparelhos faziam seus ruídos estranhos.
Ele esperava por um milagre.
As enfermeiras e os médicos iam e vinham. Olhavam para ele, sorriam, diziam algumas palavras encorajadoras, verificavam os sinais vitais e gráficos de Michelle e depois saíam rapidamente.
Contudo, ele sabia que a cada dia que ela não acordava, diminuíam suas chances de acordar.
Fluidos entravam e saíam.
O relógio tiquetaqueava.
Os aparelhos zumbiam e sibilavam.
Os médicos e as enfermeiras iam e vinham.
Sean estava sentado com seus dedos entrelaçados nos dela.
Ele havia imaginado Michelle levantando-se de repente da cama e lhe sorrindo. Ou ele voltando do banheiro e deparando com ela sentada em uma cadeira, lendo um livro. Ou, conhecendo-a como a conhecia, mais provavelmente fazendo abdominais, comendo barrinhas de cereal e bebendo Gatorade aos litros. De vez em quando, se imaginava encontrando a cama vazia porque ela havia morrido, mas na maioria das vezes conseguia afastar esse pensamento.
Sean ergueu a cabeça e olhou para ela. Piscou para limpar seus olhos.
Ele olhou para a mão dela. Olhou para a dele. Balançou a cabeça e a encostou de novo na grade.
Foi só por isso que ele não viu Michelle abrir os olhos.
– Sean? – chamou ela com uma voz rouca e enfraquecida pelo desuso.
Ele ergueu a cabeça mais uma vez. Seu olhar encontrou o dela.
As lágrimas vieram.
Deles dois.
– Estou aqui, Michelle. Bem aqui.
Ele obtivera seu milagre.

 

 

                                                                  David Baldacci

 

 

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