Biblio "SEBO"
Amina é muçulmana e quer ser uma mulher livre. Mora no Bairro do Vulcão e foi uma aluna brilhante no liceu Godefroi de Bouil lon, na cidade mais próxima. O liceu tem o nome do chefe dos primeiros cruzados porque foi nessa cidade, Clermont-Ferrand, que foi lançado há nove séculos o apelo à Cruzada pelo Papa Urbano II. O seu irmão é integrista. Que significa para ele o desejo de liberdade de uma mulher? Como poderia Amina ter esperança, sonhar, quando à sua volta se desencadeia a violência? Um dia, acontecem mortes, crimes. O responsável pela investigação desses crimes descobre uma realidade contraditória onde se misturam o passado e o presente, nesse lugar que viu reunir os Cruzados e onde o futuro hesita entre o fanatismo e a liberdade. Juntos, ele e Amina, dois seres aparentemente opostos na sociedade actual, vão compreender que o amor é a única parte de Deus.
- Crucificaram-no - disse um dos homens que estavam debaixo das árvores, à beira da estrada.
Apertavam-se uns contra os outros, formando no meio do nevoeiro uma massa de contornos imprecisos. Não se lhes viam as caras, dissimuladas pelos capuzes, surdamente martelados pela chuva. De vez em quando, uma rajada de vento sacudia os ramos dos abetos e, durante alguns minutos, a água escorria das folhagens mais altas e o nevoeiro esfiapava-se. Os homens surgiam então nos seus longos impermeáveis pretos e brilhantes, de costas curvadas. Quando a borrasca recomeçava, o nevoeiro voltava a ser denso e as silhuetas confundiam-se de novo com o bosque.
- Isto é obra de mais que um, de certeza - disse a mesma voz. Era uma voz brutal e destoava naquela atmosfera húmida onde as formas pareciam dissolver-se e onde o próprio crepitar da chuva era abafado.
Houve um longo silêncio, e depois, de súbito, vindo de longe, o canto de um galo pareceu aproximar-se, subir do vale, correr ao longo das encostas, ressoar pela floresta, claro, agudo.
- Quem sabe? - murmurou alguém. - Talvez ele já estivesse morto. Podem tê-lo morto noutro lugar. Nesse caso, um homem sozinho era capaz de fazer isto.
Beaufort avançou, iluminaram a árvore. Olhou primeiro para as raízes. Eram viscosas e luzidias, sinuosas, deslizavam sob o musgo, mergulhando na terra esponjosa. Depois examinou as escamas enegrecidas da casca; aqui e ali, algumas brechas deixavam o branco do tronco à vista.
Por fim ousou levantar a cabeça.
O corpo parecia fluido, distante, como velado pela espessura do nevoeiro que a luz não conseguia penetrar.
Beaufort aproximou-se mais.
- Nada bonito de se ver - sussurrou um dos homens que o tinham seguido.
Mas ele próprio experimentava um sentimento contrário. O corpo era de um adolescente de ancas mal definidas, de ventre liso. Estava nu até à cintura e as calças de cotim tinham descaído, mostrando o umbigo. As costelas saíam por baixo da pele mate e esticada, porque ele estava esquartelado, poder-se-ia dizer crucificado, com os pulsos amarrados de um lado e de outro do tronco a ramos um pouco elevados, de modo que com os braços levantados, desenhando um V aberto, parecia querer agarrar-se a eles. Uma espessa correia preta esmagava-lhe o pescoço e cingia o tronco da árvore. A cabeça, caída para o peito, dissimulava em parte essa amarra e os cabelos frisados, muito pretos, cobriam-lhe a testa. A chuva deslizava sobre todo o corpo, escorria do rosto, dos ombros, dos cabelos, das axilas hirsutas.
- Viu? - perguntou o homem que estava atrás de Beaufort. Tinha estendido o braço, mostrando abaixo do mamilo esquerdo, no sítio do coração, dois traços de sangue que desenhavam uma cruz, a barra horizontal mais curta, a vertical afilada.
Beaufort deu mais um passo em direcção à árvore.
Agora distinguia o pigmento da pele; os sulcos da chuva, como lágrimas, escorriam para a ferida, apenas dois cortes - feitos não para matar, mas para marcar. As gotas deslizavam; algumas introduziam-se na ferida, outras corriam até às calças de ganga azul encharcadas de água. Os pés descalços estavam rígidos como os de um dançarino que se lança sobre as pontas.
- Viu - repetiu o homem - aquela cruz? O sinal deixado por um louco ou por fanáticos, não? Um crime ritual; eu preferi avisar Paris. Que acha disso?
Beaufort recuou.
Bastavam alguns passos para que o corpo se esbatesse atrás daquela espessura de estopa cinzenta onde o brilho das tochas fazia cintilar miríades de gotinhas. A árvore e os ramos desapareciam e o adolescente morto, de braços levantados, pernas estendidas, dorso esticado, parecia efectuar um salto de anjo.
- Desçam-no - lançou Beaufort.
Apertados nos impermeáveis, com a cabeça encapuzada, os homens começaram, com gestos lentos e inábeis, a desapertar a correia que segurava o pescoço. Assim que o libertaram, o corpo oscilou para a frente, depois baloiçou da esquerda para a direita, com os braços para trás. Tinha perdido toda a sua graça trágica, para ser apenas um boneco desarticulado.
Beaufort precipitou-se e, instintivamente, agarrou o corpo pela cintura, imobilizando-o, mas a pele estava tão gelada, tão escorregadia, que ele afastou imediatamente os braços, esfregando as mãos contra o impermeável que lhe pareceu vivo e quente.
- Desçam-no! - repetiu, afastando-se.
Um homem rodeou o morto com um cobertor, dois outros desataram os pulsos dos ramos. Depois, segurando o corpo a três, tão perto uns dos outros que aquilo que transportavam desaparecia entre os impermeáveis; só os pés descalços, arqueados, saíam do cobertor.
Estenderam-no numa padiola colocada sobre o musgo e a erva que tinham pisado. Depois ergueram-se e, nesse instante, os braços do adolescente voltaram a cair para um lado e para o outro, longe do corpo, as palmas das mãos voltadas para o céu.
Beaufort agachou-se.
A pele de cada uma das mãos estava cortada e as feridas traçavam nas palmas cruzes cor de sangue seco.
Depois foi preciso voltar a dobrar os braços sobre o peito, mantê-los assim com a ajuda do cobertor apertado que envolvia o corpo.
Quando os homens levantaram a padiola, Beaufort aproximou-se e, caminhando perto do morto, puxou uma ponta do cobertor, libertando o flanco esquerdo e fazendo aparecer a cruz que marcava o torso. Depois, lentamente, voltou a cingir o corpo, tapando o rosto. O cobertor já estava pesado, encharcado em água. A chuva continuava a cair, direita, enquanto o nevoeiro se havia dissipado, agarrando-se apenas aos cimos das árvores em longas faixas de formas irregulares.
Não era o primeiro morto que se descobria assim: a maior parte das vezes na floresta, com os braços abertos, os pulsos amarrados como para uma crucificação, o corpo ferido por incisões em forma de cruz, dois traços vermelhos na zona do coração, outros que fendiam as palmas das mãos.
- É um assassino solitário - disse Beaufort.
O ministro fez uma careta, baixando e abanando a cabeça.
Tinha-se instalado diante da sua secretária de modo a estar separado do comissário apenas alguns centímetros, de pernas estendidas, com o corpo afundado na beira do assento, de modo que os sapatos, quando ele se deixou deslizar, chocaram nos de Beaufort, que recuou.
Com as mãos cruzadas no ventre, o casaco desabotoado, o ministro parecia um prelado ou um velho cabo-de-guerra, cansado e céptico, que já não precisa de acreditar para agir, que ouviu tudo e tudo pode escutar.
- Solitário... - repetiu ele.
Beaufort interrompeu-se mas, afastando os polegares, levantando as mãos, o ministro convidou-o a continuar.
- É um homem só - retomou Beaufort. - É louco, mas à maneira de um artista que cria de cada vez uma obra singular e no entanto se repete toda a vida, de modo que se reconhece o seu estilo, a sua marca; é isso que ele quer. Anda ao sabor dos seus desejos e das suas pulsões, dos seus pesadelos e obsessões. Imaginou talvez uma religião, um Deus só para si. Ele é o sacerdote, o discípulo, o profeta. Realiza actos de fé. É esse o sentido dos seus crimes.
Beaufort falara tão depressa que teve de tomar fôlego, e, no silêncio que se estabeleceu, como o ministro parecia sonhador, ele descobriu para lá da secretária, à sua frente, a alta e larga janela que dava para o pátio do ministério, os gradeamentos de pontas douradas, e depois o duplo sulco arruivado das árvores da Avenida de Marigny, e enfim o espaço, a ponte, ao longe a esplanada e a cúpula cinzenta do céu outonal. Apeteceu-lhe levantar-se, caminhar para a cúpula dourada, mergulhar no céu, esquecer todos aqueles assassínios, a vida... Era talvez apenas um desejo como aquele que fazia o criminoso agir: este queria fugir, quebrar todos os laços submetendo-se à sua loucura, tornando-se escravo do mais obscuro de si mesmo, daquilo que a ele pertencia, que não podia confessar, a que não podia renunciar. Matava para renascer. Alimentava-se do corpo do outro, hóstia de carne.
O ministro tossicou, murmurou algumas palavras, depois inclinou-se para a frente, com o rosto junto ao do comissário.
- Então, o seu artista, é um místico?
- Ele compõe uma dança macabra - recomeçou Beaufort. - Colecciona e esculpe verdadeiros corpos que são para ele apenas imagens. Só ele conhece a lógica do seu projecto, o tema da sua criação, mas é uma consciência instintiva do seu ser íntimo. Não actua, é actuado, como um místico, com efeito: levado, cego e vidente. Mas talvez os estigmas que ele traça nos corpos sejam apenas astúcias para não revelar outros desejos mais profundos ainda. Talvez ele toque várias partituras ao mesmo tempo e as esqueça logo que acrescentou um novo corpo a esse friso, que vai desenrolando de uma ponta à outra do país. Depois, cumprida a sua tarefa, regressa à multidão como um desses escultores anónimos da Idade Média cujo rasto só se conhece pelos traços que deixaram na pedra. Ele não deseja a notoriedade. Age apenas para si próprio, para executar as ordens que recebe.
- As ordens... - resmungou o ministro, levantando-se.
Abotoou o casaco e voltou a instalar-se atrás da secretária, afastado do comissário.
- Os mandamentos do seu Deus - recomeçou Beaufort. - Ele julga ouvi-los, certamente, como todos os místicos.
- Mística, mística! - resmungou o ministro, rejeitando a palavra com um lento movimento da mão.
Só a usara, explicou, para traduzir o pensamento de Beaufort, mas não se interessava pelas hipóteses, não aceitava essa análise. Não queria interpretações, mas resultados, prisões.
Beaufort baixou a cabeça, com os antebraços apoiados nas coxas, numa atitude que não estava conforme com os usos. Ele devia manter-se direito, com as mãos bem apoiadas nos joelhos, ou com os braços cruzados, mas, em vez disso, curvava-se, deixava-se ir como para acompanhar as palavras que tinha dito, tão diferentes das que deveria ter usado para apresentar o seu relatório depois daquele novo crime, o sétimo, se se admitisse a ideia de que se tratava mesmo de uma dança macabra, em que cada novo morto segurasse a mão daquele que o precedia.
Esboçou uma frase para explicar ao ministro que só era possível deter o assassino se se interpretasse os seus actos, se se fizesse um esforço para compreendê-lo, mas interrompeu-se. Os móbiles daquele homem deviam ser tão sinuosos como os arabescos do tapete que Beaufort fitava a seus pés. As linhas azuis e amarelas seguiam lado a lado, sobrepunham-se, fundiam-se uma na outra, dando à lã uma tonalidade ocre, mais clara ou mais escura segundo os jogos da luz outonal.
O primeiro corpo que Beaufort tinha descoberto estava deitado num chão pedregoso de uma cor próxima da do tapete; fora também numa estação fulva, em pleno Outono avermelhado.
A floresta onde o tinham achado estava em parte calcinada. O fogo destruíra a vegetação rasteira, desbastara os ramos baixos, deixando ver a terra nua. O corpo tinha sido amarrado a um dos troncos enegrecidos e marcado com o sinal da cruz.
Beaufort previra então que esse criminoso voltaria a matar, sem dúvida da mesma maneira, que aquele morto anunciava outros, também eles lacerados por feridas simbólicas no peito e nas palmas das mãos. O matador queria deixar estigmas; ele realizava uma obra, procurava um desígnio.
O comissário ficara surpreendido pela força da sua convicção, essa certeza que o habitava, a exaltação que sentira quando o ministro lhe confiara a responsabilidade pela investigação - visto que você sabe - declarara-lhe.
Mas aos mortos foram-se juntando outros mortos, sem que se conseguisse interromper aquela sarabanda. Felizmente ninguém, na imprensa ou na opinião pública, compreendera ainda que se tratava de um motivo único, que mudava de lugar e de rosto mas retomava sempre o mesmo tema. Cada assassínio tinha sido relatado como um caso do dia-a-dia local, um caso misterioso e sórdido que se esquecia passados dois ou três dias. Mas aquele sétimo morto inquietou o ministro.
- Sete, não é um número qualquer... - sublinhara ele. - Os jornais vão-se meter, e se os temos à perna, vamos todos dançar! - dissera ele ao receber Beaufort e ao indicar-lhe depois um cadeirão.
Ao instalar-se, mas de costas meio voltadas, interrogara Beaufort: continuava ele a viver com essa jornalista do L'Indépendancel
Não esperou pela resposta. Deixando-se por fim cair no assento, acrescentara que o L'Indépendance, com Josserand à frente, era sem dúvida o mais tinhoso dos diários. Quando agarravam, nunca mais largavam.
- Se eles descobrem a sua dança macabra, vão fazer todos os dias um fresco. Sabe isso, Beaufort?
Depois, conservando o rosto baixo, murmurara que se tratava de "Marion Chauvel, não é verdade?, a sua companheira?... Notável, precisa... a ela, não a receava eu. Quando nos decidirmos a isso, você pode passar-lhe o dossier, mas (deu uma palmadinha no joelho de Beaufort) ainda não chegou o momento. Ache-me primeiro os culpados!
Fora assim o princípio da sua conversa e, ao fim de mais de uma hora, o ministro voltava, como se o interlocutor tivesse falado em vão:
- Um homem só, Beaufort?
Abanava a cabeça. Não estava convencido. Por que não uma seita, um grupo terrorista?
Agarrou no dossier, brandiu-o, depois começou a folheá-lo, mostrando uma ficha e depois outra ao comissário, que reconhecia aqueles rostos de olhos fechados, aqueles dorsos magros, aquelas feridas cruzadas.
As vítimas pareciam-se, observou ele.
- Na dança macabra, cada rosto é diferente, toda a gente é arrastada para o baile - acrescentou levantando-se e caminhando para a janela. - O príncipe e o monge seguem o camponês, puxando o ourives, o cavaleiro, o boticário, a castelã, o velho e a criança...
- Aqui, são sempre os mesmos, Beaufort.
O ministro fizera novamente deslizar as fichas como um jogo de cartas.
- A morte atinge apenas adolescentes ou homens muito jovens que por assim dizer não existiam antes. Ninguém se inquieta com a sua ausência. E depois, não são nada. Quem reclama os seus corpos? Quem apresenta queixa? Quem os reconhece quando os jornais publicam os retratos? Esses rostos, no entanto...
Observou longamente as fotografias.
- Dir-se-ia que estão em pose, que interpretam um papel, o papel de jovem morto - murmurou antes de voltar a colocar as fichas no dossier, apoiando-se depois à mesa com as duas mãos. - De onde vêm eles? Quem são? Também eles, como o seu assassino, nascem com a morte?
Endireitou-se, contemplou a avenida em silêncio, depois acrescentou como que para si mesmo:
- A morte é a grande parteira... Você viu-os de perto, Beaufort? Tenho a certeza de que não pôde resistir, de que até lhes tocou. Durante a guerra, também não conseguia impedir-me de tocar na pele dos mortos: é tão estranho, aquele desaparecimento do calor... Um homem estava suado, presa do medo, da doença, e de repente gela, torna-se um mineral. Reparou nisso, Beaufort?
Depois de um silêncio, voltou a sentar-se atrás da mesa. Beaufort compreendeu que a entrevista terminara, levantou-se, inclinou-se, mas, no momento em que se dirigia para a porta, o ministro interpelou-o numa voz cansada, onde no entanto transparecia uma certa mofa.
Beaufort sabia o que os seus amigos do L'Indépendance escreveriam quando descobrissem a série de assassínios? "Os assassinos de árabes assinam os seus crimes com o símbolo do Cristo." Belo título, não é verdade? Ele imaginava as consequências? Uma guerra de religião aqui e ali: interessante, não? Beaufort tinha pensado nessa hipótese? Um provocador, um incendiário que lança corpos como outros lançam tochas e esperam que o fogo pegue. Será ele, então, quem avisará a imprensa. Beaufort não terá tempo para fazer confidências a Marion Chauvel. É pena, não? Suspirou:
Ache-me depressa os culpados, Beaufort. Sete, é um sinal. Um limiar.
Marion Chauvel e Beaufort estavam nus.
Abandonavam-se, agarrados um ao outro, corpo único que o sono arrastava pouco a pouco. De vez em quando Beaufort gemi-cava, agitando-se um pouco, lembrando-se do adolescente morto, o sétimo, da sua pele gelada, da rigidez dos membros que fora necessário dobrar, com o risco de os quebrar como madeira seca. Revia as feridas cruzadas.
Dizia então: "Tenho frio."
Marion, colada contra as suas costas, com os lábios na nuca, as pernas entre as suas pernas, o braço em volta do pescoço, apertava-o contra ela. Beijava-o e ele acalmava-se. Mas, por vezes, com um movimento brusco, desprendia-se, empurrava-a como se afasta alguém que nos paralisa para nos arrastar e se afundar connosco. Ele sufocava, dizia. Levantava-se de um salto, caminhava ao lado da cama, naquela claridade gelada das noites límpidas que anunciam o Inverno.
Ela não o questionava. Era a regra da sua vida comum desde que moravam juntos no apartamento de Marion Chauvel, na Rua d'Assas. Não dissimulavam nem as suas angústias, nem as incertezas, nem mesmo os seus receios, mas silenciavam as causas. Cada um sabia, ao ver o outro, se a parte de morte que trazemos em nós estava tão presente que aniquilava nele toda a vontade de viver. Então abriam os braços, encostavam-se um ao outro, e bastavam alguns minutos para que o desejo repelisse essa lava negra que, ao longo do dia, os tinha invadido lentamente, a morte que ressumava das reportagens ou das investigações que efectuavam cada um por seu lado.
Marion Chauvel regressava do Ruanda; tinha visto. Beaufort, por seu lado, tocara naquele corpo crucificado e o frio mineral gelara-lhe os dedos.
Jantavam lado a lado. Ela tirara os brincos, soltara os cabelos. Olhava Beaufort. Tinha de novo o rosto nu de que ele gostava. Ele servia-lhe um vinho branco italiano, orvieto, que tinham descoberto no princípio do seu amor - mas eles nunca usavam esta palavra -, na primeira viagem que tinham feito juntos, a Sorrento, no Outono. Depois, sem poderem separar-se, agarrados um ao outro, dirigiam-se para o quarto e caíam na cama. Voltavam a si nus, esgotados, Beaufort enrolado, sobre o lado direito, Marion agarrada a ele, com os seios esmagados contra as suas costas. Muitas vezes adormeciam assim, mas por vezes Beaufort tinha a impressão de se afogar e saltava para fora da cama.
Naquela noite, aquela que se seguiu ao dia em que ele vira e tocara o sétimo corpo, desejaria confiar a Marion aquilo que sentira de cada vez que se tinha encontrado diante de uma dessas vítimas seminuas - apenas dois tinham sido completamente despojados das suas roupas. Tivera de examinar as feridas, constatar que as chagas desenhavam mesmo uma cruz, mas que os lugares de sacrifício eram inexplicavelmente afastados uns dos outros.
Tinha visto o primeiro corpo numa floresta calcinada da Alta Provença. O calor, branco e seco, era reflectido no rosto pelo ocre das pedras resplandecentes.
Os outros haviam sido descobertos em matas carregadas de humidade, com o solo coberto de húmus, de folhagens tão espessas que as plantas rasteiras estavam sempre na sombra.
No entanto, ele tivera a sensação de que esses lugares tão diferentes estavam ligados entre si, que se pareciam, tal como as vítimas escolhidas: esbeltas, morenas, jovens, árabes, sublinhara brutalmente o ministro.
Beaufort procurara o que poderia ter atraído o assassino. François Milner, o inspector que era seu assistente naquela investigação, opusera a todas as suas hipóteses o papel do acaso nos encontros entre um assassino errante e as suas vítimas, o jogo de circunstâncias imprevisíveis; tinha denunciado o erro que seria introduzir uma lógica onde não havia mais que o caos de um comportamento criminoso, o cerco de um lobo que saltava sobre as suas presas quando podia apanhá-las e que mudava de região para não ser identificado e capturado.
Beaufort escutara esses argumentos sem se deixar convencer. Os lugares onde os mortos eram colocados, expostos, crucificados, estavam todos mergulhados num profundo silêncio. Os ruídos e as vozes, mesmo quando passava uma estrada perto - era o caso do sétimo corpo, descoberto à beira da estrada de La Chaise-Dieu para Clermont-Ferrand -, esbatiam-se como se a morte impusesse a sua lei ao espaço. Ao fim de alguns minutos, Beaufort tinha a impressão de se encontrar fora do tempo, num universo de leis imutáveis onde se desenrolavam confrontos incessantemente recomeçados, em que as épocas se sucediam como o fluxo e o refluxo das marés, cobrindo esse mundo em que a morte ritual fazia entrar. Era talvez isso que o assassino desejava ao erguer os seus calvários de corpos sofredores: obrigar os outros a cumprir uma peregrinação até esse reino de morte, a descobrir esses lugares, essas florestas, esse silêncio.
- E então? - objectara François Milner. - Que é que se podia deduzir dessas impressões que ele não partilhava?
- Que história essa - resmungara o ministro. - Você é investigador ou folhetinista?
Ambos tinham troçado, cada qual à sua maneira, quando Beaufort expusera a sua hipótese. Essas florestas, esses tufos de árvores não eram no entanto resultado de uma sobreposição de circunstâncias. O lobo sabia aonde ia. O louco amarrava as suas vítimas no centro de espaços marcados. A floresta calcinada, a do Primeiro corpo, era próxima da abadia de Silvacane. Cinco outros haviam sido descobertos na Borgonha, nesses bosques que coroam os outeiros ou ocupam o fundo dos vales, numa região enquadrada por Clairvaux, Cíteaux, Vézelay. O sétimo fora crucificado a ramos de árvores na floresta que rodeia a abadia de La Chaise-Dieu.
Beaufort sabia que não se podia tratar de um acaso, mas essa certeza era indizível. Ela vinha-lhe da luz tamisada que inundava a clareira onde o corpo se encontrava estendido, ou então da queimadura do sol, ou ainda dos véus de nevoeiro que dissimulavam a vítima. Ela vinha-lhe do silêncio pesado que tornava os gestos desajeitados. Como poderia ele explicar que sabia que o assassino queria, ao marcar cada corpo com os estigmas e depô-lo ali, naqueles bosques, designar também os lugares? O morto da floresta como uma vítima sacrificada para honrar a memória dos homens recolhidos, levados nos grandes vasos de pedra das abadias onde a vida se sepultava para que jorrassem a fé e a prece?
Talvez aqueles crimes fossem mesmo uma espécie de devoção, um apelo a castigar o assassino e a honrar as suas vítimas como outras tantas relíquias marcadas por feridas santas? Talvez um homem percorresse assim, na sua loucura, um caminho de cruz, um calvário?
Mas podia ele falar disso a Marion sem revelar essa série de crimes, sem confessar aquilo que se comprometera a silenciar?
Limitou-se a contar-lhe que tinha visto em La Chaise-Dieu, na capela da abadia, esculpidos nos capitéis, nas colunas do claustro, corpos tão impressionantes e tão presentes que ainda estava perturbado. Tinha tocado nesses torsos magros de adolescentes, nas costelas como nervuras, rugas vivas da pedra. A morte arrastava esses jovens, esses amantes, para a sua dança. Mas ele tinha descoberto um baixo-relevo próximo do altar no qual havia anjos a rezar. Gostaria que Marion visse esses rostos graves e calmos, serenos e no entanto desesperados, aquelas mãos unidas, aqueles corpos desfalecidos envoltos em véus de onde surgiam braços nus. Ficara enternecido por aqueles longos cabelos e principalmente por aqueles olhos semicerrados que pareciam hesitar entre a morte tranquila, o silêncio imóvel, e a vida.
- Imagino... - murmurou Marion erguendo-se num cotovelo e olhando Beaufort.
Mas ela tinha-lhe voltado as costas, com a cabeça enterrada nos ombros, a nuca curvada.
- Então tu foste lá... - acrescentou ela.
Na noite anterior, ela ouvira a campainha do telefone, depois a do interfone alguns minutos mais tarde. Não se mexeu, não interrogou Beaufort, deixando-o levantar-se, vestir-se às escuras, e não o tinha acompanhado, como habitualmente fazia, quando ele alcançou a entrada e abriu a porta que rangia.
Não conseguira voltar a adormecer, atormentada por não saber onde ele ia, receando que corresse riscos. Já se imaginava chamada pelo gabinete de Josserand, atravessando a sala de redacção, pressentindo o que ele lhe ia dizer: que procuravam contactá-la do Ministério do Interior, que o rv listro queria falar-lhe. O ministro? surpreender-se-ia ela. Mas não estava nada surpreendida. Antes oprimida, desesperada, porque sabia que Beaufort estava em contacto directo com o ministro para a investigação que estava a fazer - mas a que propósito? Ignorava-o. Pensava num caso de terrorismo, de atentados integristas ligados ao Irão ou aos isla-mitas argelinos, e tinha medo - e o ministro, numa voz severa e compadecida, dir-lhe-ia que ela devia mostrar-se corajosa: Beaufort, o seu amigo, nãoé...
Vagueara pelo apartamento como uma gata que espera e que fareja, e tinha vontade de miai - sim, nunca esta palavra lhe parecera tão exacta, miar que estava farta daquela angústia, que queria que Beaufort voltasse, enrolar-se de encontro a ele, porque os dois, e apenas os dois juntos, podiam enfrentar a vida.
Cruzara os braços no peito, estreitara os seus próprios ombros, como se pudesse acreditar que assim Beaufort a enlaçava. Tinha necessidade dele. Acabara-se o tempo em que ela se pavoneava, orgulhosa da sua solidão, corsária dos sentimentos! Já não podia viver sem ele. Só com ele podia enfrentar a morte.
Sentara-se diante da pequena secretária que ele colocara para um canto da entrada. Ela nunca ali parava, por discrição e porque estava sempre apressada, correndo na entrada, com uma maleta na mão, de partida para qualquer investigação na província, uma reportagem na Bósnia, e tinha o táxi à espera. Mas que outra coisa podia ela fazer, naquela noite sem sono, senão remexer nos objectos, nos papéis, nos livros que pertenciam a Beaufort, que ele tinha impregnado com o seu odor? Levava-os instintivamente aos lábios, cheirava-os. Espantava-se com a escolha de livros que ele parecia ler, estudar mesmo, pois que havia folhas de papel metidas entre as páginas. Que procurava ele nesse estudo sobre S. Bernardo e as grandes abadias medievais? Porquê aquela narrativa da primeira cruzada, aquela enciclopédia do Islão, ou mesmo aquela obra consagrada à Solução Final na História (mas ela sabia que Beaufort tinha lido quase tudo o que fora publicado em francês sobre o nazismo; tinha-o escutado uma noite inteira a dialogar com Hélène Milner, a mulher de François Milner, que terminava uma tese sobre a Alemanha e a quem ele tinha displicentemente mostrado que possuía os conhecimentos de um especialista). Por que não lhe falara ele nunca dos seus novos centros de interesse: a Idade Média, ao que parecia, e o Islão? Devia ter ficado tranquilizada por ele abandonar assim por outras curiosidades o universo mórbido e maléfico em que durante tanto tempo se comprazera, mas pressentia que o perigo era igualmente grande para ele, a morte estava igualmente presente.
Ficou por longos momentos imóvel, encostada à secretária, contemplando os livros sem ousar tocar-lhes, como se soubesse que o conteúdo deles ia inquietá-la ainda mais.
Por fim abrira-os, nas páginas marcadas.
Longas passagens haviam sido sublinhadas e circundadas por Beaufort. A princípio percorreu-as com o olhar, depois esquecera-se de que estava a meio da noite, que Beaufort acabava de sair, que estava inquieta, que ela própria tinha um inquérito difícil a fazer, para o qual devia preparar-se. Aquelas palavras que descobria tinham a força de um furacão. O sangue e a morte colavam-se a cada uma delas. Aqueles textos eram outros tantos santuários, mausoléus, templos. Sentia-se encarcerada em Ratisbonne, Mayence, Espira, Worms, com aqueles judeus de que falava Schlomo Bar Simeão, que não imaginavam, ao ver avançar para as muralhas a multidão dos cruzados, em 1096, conduzidos por Pierre L'Ermite ou por cavaleiros alemães, que aquele era o rosto da sua morte.
Aquelas palavras descreviam as mulheres grávidas desventradas, as crianças de peito despedaçadas, o sangue que, no templo de Salomão, em Jerusalém, subia até aos tornozelos dos cavaleiros, parecia a Marion que as ouvira tantas vezes nos países em guerra que ela própria tinha percorrido! Conhecia o lamento dos velhos: "Porque é que o céu não escureceu, porque é que as estrelas não dissimularam o seu esplendor, porque é que o Sol e a Lua não se esconderam quando tantos santos pereceram?" Mas era Schlomo Bar Simeão que se interrogava, e não um dos muçulmanos de Bihac, nem um dos cristãos de Kigali. Nove séculos tinham passado e Deus ainda não respondera.
Ela desdobrou uma folha colocada no centro da mesa e na qual Beaufort copiara, numa escrita entrecortada, quase informe, algumas linhas que Marion decifrou lentamente:
Vede estas gerações de homens na terra, como folhas nas árvores, na oliveira, no loureiro que conservam sempre a sua folhagem. A terra produz os humanos como folhas. Ela está cheia de homens que se sucedem; uns nascem enquanto outros morrem. Esta árvore também nunca se despoja do seu manto verde. Olha para baixo, tu caminhas sobre um tapete de folhas mortas.
Talvez já tivesse lido - mas quando? porquê? - aquele texto de Santo Agostinho, ou então ele exprimia com tal força aquilo que ela sentia, que tinha a impressão de já o conhecer, como se ele fizesse parte da sua memória mais profunda, quando acabava de descobri-lo. O mesmo se passava sem dúvida com Beaufort, e inquietava-a a ideia de que ele o tinha copiado, lido e relido, porque devia comprazer-se na sua meditação, não para nele encontrar motivos de optimismo ou de sabedoria - como era possível, ao admitir aquele ciclo sem fim do qual nós próprios não somos mais que um elemento, esse "grão no universo" de que tantas vezes falam aqueles que têm fé -, mas, pelo contrário, para com ele alimentar o seu desespero.
Ficara oprimida, de súbito convencida de que nunca conseguiria arrancar Beaufort àquela obsessão da morte, àquele repisar, quando já tinham passado anos desde a morte da filha, Solange, lentamente levada pela morte. Nesses dias a vida de Beaufort oscilara. No entanto, tinha por vezes a convicção de que aquela ruminação não era alimentada apenas pelo remorso de ter sobrevivido, ou pela mágoa, mas também por uma forma secreta, complacente e malsã de prazer lúgubre.
Naquela noite, ela surpreendera Beaufort imóvel, com uns olhos que pareciam não olhar nada, indiferente a tudo o que o rodeava, mas com o rosto tenso, não doloroso, mas à espreita, como se visse outra coisa, como se, graças a essa dor, fosse conduzido a outro lugar, a uma região profunda de si mesmo inacessível aos outros e que ele se recusasse sempre a partilhar ou a descrever.
Detestou-o por essa fuga, esse isolamento voluntário para que ele se deixava arrastar e ao qual ela nunca teria acesso. Podia ele amar verdadeiramente se se entrincheirava assim num desespero e num prazer rodeados de muros?
Observando-o, compreendera que a morte sofrida, contemplada, talvez dada ou escolhida, podia ser fonte de prazer. E essa certeza apavorara-a.
Aproximara-se dele, arrastando-se de joelhos na cama, agarrando-o pelo pescoço, murmurando-lhe que devia voltar a deitar-se, não se deixar arrastar por aquela dança macabra, não voltar a contemplar esses anjos de olhos semicerrados. Olhasse para ela, que escolhera a vida. Acrescentara, puxando-o para si - ele deixara-se arrastar -, que gostava do loureiro, da oliveira, das árvores que conservam a sua folhagem.
- Leste aquele texto de Santo Agostinho? - perguntara ele deitando-se a seu lado.
Ela começara a acariciá-lo, dizendo que estava gelada.
Julgou ouvi-lo murmurar que efectivamente tocara num morto, hoje, que o tomara mesmo nos braços.
Ela não ousara fazê-lo repetir, questioná-lo. Colara-se a ele.
De braços abertos, o torso nu, o adolescente parecia morto. Tinha as costelas salientes, formando linhas de sombra na pele. Mantinha os olhos semicerrados.
Estava imóvel numa luz tão branca e tão crua que parecia esculpido em relevo naquele muro de pedra ocre a que estava amarrado, os pulsos ligados a aros de ferro, os tornozelos com uma corda que lhe amarrotava o tecido das calças de bainhas esfiapadas.
Tinha a cabeça baixa, com o queixo apoiado no peito. Estava um homem sentado à sua frente. Quando o homem lhe falava, o adolescente soerguia-se um pouco, a sombra das suas costelas ficava ainda mais marcada por ele respirar mais depressa, mais profundamente.
O rosto e a maior parte do corpo do homem estavam na zona obscura da adega abobadada, estreita como uma cave. Mas as suas mãos de dedos longos e finos, os pulsos, os antebraços apoiados nas coxas, as pernas, encontravam-se no interior do cone de luz. O adolescente tentara por várias vezes abrir os olhos, mas era ofuscado pelo candeeiro potente - um projector, na realidade, colocado no chão entre os pés do homem sentado.
O feixe de luz era absorvido pelas pedras trabalhadas, escavadas de alvéolos, mas, na extremidade da parede, iluminava o início de um corredor inclinado que parecia mergulhar, perder-se nas profundezas.
- Aqui - o homem estendera o braço, mostrando a entrada do corredor -, tu e eu estamos no ventre, no princípio... Compreendes?
A voz era suave, mas insistente. Tinha começado a esfregar lentamente as mãos, como se as massajasse ou limpasse com cuidado.
- Eu chamo-te Caim - disse. - Está bem? A voz fez-se quase suplicante.
- Caim, adivinhas porquê?
O adolescente não se mexeu mas dilatou subitamente o torso, abriu a boca, com os olhos esbugalhados, o rosto deformado pelo esforço, e o grito agudo que lançou parecia nunca mais acabar, subindo de todo o seu corpo projectado para a frente como para sustentar e levar aquele grito mais longe, escapar-se com ele.
O homem continuava a esfregar os dedos, as palmas das mãos, mais lentamente ainda, apertando as falanges, torcendo-as, puxando-as, fazendo estalar as articulações.
O adolescente interrompeu-se bruscamente, a cabeça voltou a cair-lhe para o peito, e o homem começou a acariciar as costas das mãos, os pulsos. Numa voz melosa combinada com esse movimento, marcando por vezes uma pausa como se, oprimido, necessitasse de retomar fôlego, observou que nunca se ouvia o grito das crianças quando elas gritavam de dor no ventre da mãe.
- Sabes que no entanto os matam? - recomeçou. - Retalham-nos no ventre em pedacinhos de carne, trituram-nos, aspiram esses detritos humanos, atiram-nos para o lixo, depois queimam-nos. Achas que eles não sofrem quando os sufocam no ventre? Só que ninguém os ouve, ninguém!
Fez um gesto com a mão, como um golpe de foice.
- Já te disse; tu e eu, estamos no ventre.
Levantou-se e desapareceu completamente na sombra. Os seus passos ressoaram debaixo da abóbada. Remexeu em objectos metálicos, puxou caixas, talvez. O adolescente endireitou-se, estendeu os braços como a verificar a resistência dos nós e das argolas, depois semicerrou os olhos quando o homem voltou a sentar-se.
- Dei-te um nome - disse este último.
As suas mãos e os pulsos estavam de novo à luz. Enrolou à volta dos dedos uma larga tira de couro preto, depois deixou-a pender, balanceou-a, apertou-a no punho esquerdo enquanto com o indicador direito apontava o adolescente.
- Chamo-te Caim - repetiu. - Tu és aquele que seguiu o mau caminho.
A sua voz tinha mudado, autoritária, rancorosa.
- E se tu és Caim, deves ser castigado. Tu sabes o que fizeste? A voz tremia de indignação. O homem esticava a correia entre as mãos, puxando-a aos esticões.
- Mas eu vou-te marcar, como Deus fez. Ele deu-me o poder imenso para te nomear. Tenho direito de vida. O teu corpo usará o sinal, como Caim o usou. O emblema de Deus!
O adolescente tinha-se baixado, com os braços esticados para trás. Mas os laços demasiado curtos impediam-no de alcançar o chão de terra batida com os joelhos. Era sacudido por soluços, repetindo:
- Mas o senhor está louco! Eu não sou Caim, sou Khaled, Khaled!
O homem desapareceu outra vez na sombra. Ia e vinha. Uma porta rangeu, depois bateu; os passos rasparam no chão. De repente, gritou numa voz rouca:
- Cala-te! Já acabaste? Cala-te! O adolescente ainda murmurou:
- O senhor está louco, mas o senhor está louco! - depois calou-se, continuando a chorar.
Sem sair do escuro - a sua voz vinha agora do corredor inclinado -, o homem acrescentou num tom melífluo, entrecortado por suspiros de abatimento, que obedecia à lei divina, que aqueles que tinham seguido o mau caminho, cometido o primeiro assassínio, deviam ser castigados, sim, era assim. Porque Deus sabia que não havia qualquer arrependimento, nenhum remorso. O Santo Sepulcro continuava maculado pelos filhos de Abraão. Judeus, árabes, pensavam eles nos crentes da verdadeira fé?
O homem tinha-se imobilizado, sem dúvida, porque o silêncio invadira a adega. Mas ao fim de alguns minutos recomeçou, abafando um soluço, clamando que o sacrilégio não podia continuar, que um dia haveria uma nova cruzada.
Recomeçou a caminhar fora do cone de luz, aflorando-o de vez em quando, deixando adivinhar a perna, a mão, o ombro, a sua grande estatura.
Murmurava:
- Meu rapaz, meu querido, tu és tão belo, tão jovem, porque seguiste tu o mau caminho? Tu és meu irmão, Caim, vou-te purificar, vais ficar no ventre comigo. Vais usar o sinal!
Beaufort fez deslizar para a jovem a fotografia do adolescente.
Os traços do sétimo morto destacavam-se sobre o fundo quase branco da foto com a nitidez de uma água-forte. Os olhos fechados, a boca cerrada, os lábios sorvidos, devorados, conferiam ao rosto uma expressão de amargura e de desespero, e também de pavor, como se tivesse sido apanhado num sono povoado de pesadelos.
A jovem continuava de cabeça baixa. Não tocara no retrato, mas tinha-o enquadrado com as duas mãos abertas pousadas na mesa. Com os dedos afastados, parecia apoiar-se na mesa para não cair, com o seu próprio rosto quase a tocar o rosto de olhos fechados.
Beaufort, que a observava, a princípio apenas via dela as mãos de pele morena, de dedos finos. As pestanas longas e recurvadas, as sobrancelhas depiladas desenhavam linhas que se confundiam com a orla do amplo véu negro. Este ocultava os cabelos e as suas pregas, misturadas às do vestido comprido e do xaile, pareciam envolver todo o corpo.
Quando ela entrara no gabinete, parecera a Beaufort bastante alta e esbelta, mas o véu e a maneira como ela se abatera quando v'ira a fotografia transformavam-na numa espécie de bola negra, maciça como um esboço de estátua.
-Agora ele está morto - murmurou o comissário debruçando-se por cima da mesa.
Assim, via o rosto da jovem de faces apertadas pelo lenço preto.
Ela tinha a boca carnuda, e o lábio inferior, o mais grosso, tremia de maneira instintiva, arrastando o queixo, mas esse era o único sinal de emoção naquele rosto liso e redondo. Mantinha os olhos semicerrados e essa ausência de olhar perturbava Beaufort, inquietava-o como se a jovem proclamasse assim que recusava a vida, que pertencia já, também ela, ao mundo em que o adolescente havia sido lançado.
- Ele está morto - repetiu o comissário. - Ninguém poderá fazê-lo sofrer nunca mais, ninguém pode já ameaçá-lo.
Interrompeu-se, aproximando-se ainda mais da jovem, tentando forçá-la a olhar para ele e a responder-lhe. Mas ela ignorava-o, absorta pelo rosto do morto, petrificada por essa contemplação. Ele próprio via o retrato do adolescente ao contrário, como se a corrente de um rio o arrastasse, e sentiu o desejo - sem dúvida era também isso que a jovem sentia - de descobrir o que escondiam aquelas pálpebras descidas, de ouvir o que poderia dizer aquela boca sem lábios.
Num movimento rápido, retirou a fotografia, meteu-a no dossier e recuou, apoiando-se com as duas mãos no rebordo da mesa.
- É preciso dizer o nome dele.
Endireitando-se, a jovem fechou os olhos e cruzou os braços.
- Ainda que ele esteja no al-Jannah - continuou Beaufort (mas ela não reagiu a essa palavra que ele usara propositadamente para tentar fazer nascer uma cumplicidade ou desarmar a sua agressividade) -, ainda que ele habite o jardim das Delícias, dever-se-á deixar em paz aqueles que o mataram, aqueles que o torturaram?
Voltou a abrir o dossier, examinou as fotografias mostrando as feridas do torso e das palmas das mãos daquele sétimo corpo, mas voltou a guardá-las após um momento de hesitação. Devia mostrar-lhe aquilo?
Ela tinha vinte anos, segundo o relatório dos guardas, e chamava-se Amina Nekoub, nascida em Clermont-Ferrand de pais argelinos. Estava inscrita no primeiro ano da universidade - em letras e história - e morava no Bairro do Vulcão, um conjunto de torres situado nas encostas da cadeia dos Puys, a alguns quilómetros a oeste de Clermont-Ferrand, na direcção de Royat. Vivia ali com a família, o pai que trabalhara vinte e cinco anos nas fábricas Michelin, dois irmãos - um de vinte e três anos, um crente rigoroso, talvez um islamita, que animava uma escola alcorânica num apartamento do Bairro, outro de dezassete anos, ambos igualmente desempregados. A mãe só raramente saía e era Amina que tinha a casa a seu cargo. Segundo um informador da polícia, ela tinha adoptado havia pouco tempo o uso do véu, mas durante todo o tempo de escolaridade nunca se havia distinguido das suas colegas. O informador indicava que ela manifestara uma viva emoção ao descobrir na primeira página de La Montagne a fotografia do adolescente encontrado morto na floresta próxima da abadia de La Chaise-Dieu. Correra, gesticulando, pelas alamedas do Bairro, gritara até que os irmãos a agarraram e a levaram. Os guardas interpelaram-na de madrugada, para não suscitar incidentes, e conduziram-na à esquadra da polícia de Clermont, onde Beaufort a esperava.
Mas ela nem quisera sequer responder ao interrogatório de identificação, ignorando a mão que o comissário lhe estendia, atirando os documentos para cima da mesa, e depois desviando a cabeça, olhando ao longe a floresta que se adivinhava como uma aguarela sombria que o cinzento do nevoeiro diluía e apagava.
Amina Nekoub sentara-se no entanto assim que Beaufort lhe mostrara a fotografia do adolescente, murmurando que sabia que ela tivera pena, e mesmo mais do que isso, que ficara transtornada, talvez revoltada. Ele apenas lhe pedia o nome daquele mártir - repetira a palavra, mais baixo, mas insistindo, com a voz grave, um pouco constrangido por usar aquele vocabulário com que esperava tocá-la, pois que era essa a palavra que eles usavam quando falavam dos seus heróis, daqueles que caíam, se sacrificavam como loucos.
- Que tinha ela a temer? - continuara quando ela pareceu não ter ouvido. Já não era necessário protegê-lo, esconder aquilo que talvez soubesse dele. - Agora ele está morto.
Só o lábio dela tremera.
Mas ela era inacessível, as perguntas deslizavam por ela, pelas suas pálpebras fechadas, por aquele rosto onde nada fixava o olhar, por aquele véu que a envolvia, que a fechava e a protegia. E Beaufort sentira-se incapaz de atravessar esse limite negro para lá do qual começava um mundo diferente, um mundo de certezas imemoriais, de ódios e desprezos.
Tivera um gesto de cólera, em parte calculado, ao retirar a; fotografia: esperava que ela soltasse um grito, como se a repelissem para longe daquele rosto de olhos fechados que ela conhecia, estava convencido disso.
Amina Nekoub enfrentara Beaufort, hierática, com as mãos ocultas sob o tecido do véu, as pálpebras baixas.
Ele acrescentou, martelando cada frase como uma ameaça, que se deslocaria ao Bairro do Vulcão, que interrogaria os irmãos dela, que havia de encontrar o rasto daquele adolescente morto, que o vingaria apesar dela, porque era seu dever perseguir os assassinos. Escutava-se a si próprio, envergonhado da sua grandiloquência. Nunca se exprimia assim.
- Faça como quiser - disse ela ao levantar-se.
Ele ficou tão surpreendido com aquela voz clara, resoluta, que não respondeu, deixando-a partir, adivinhando, pela maneira como ela se dirigia para a porta, que, por baixo do véu, o corpo era esbelto, os movimentos vivos.
Amina Nekoub voltou-se, com o olhar tão intenso que ele baixou a cabeça como se tivesse sido apanhado em falta.
- Quais são os nossos direitos, senhor? - atirou ela. Viu-a na moldura da porta, grande e digna, imobilizando-se um instante numa atitude de desafio, as pregas do véu caindo a direito, como talhadas numa lava negra.
Beaufort saiu da esquadra da polícia de Clermont pouco depois de Amina Nekoub. Procurou-a com os olhos e imobilizou-se como se a tivesse descoberto à sua frente a alguns passos, tirando lentamente os véus. Imaginou o corpo nu de Amina e essa pulsão de desejo deixou-o surpreendido, embaraçado. Foi talvez para combatê-la que recordou então o corpo do adolescente morto. Essa sucessão de visões doentias perturbou-o. Disse para si mesmo que não era decididamente um homem de fé.
Errou pelas ruelas empedradas que conduziam, todas elas, à catedral erguida como um bloco de lava, maciça e negra, sobre um outeiro de onde, nos dias de chuva, a água escorre para as vielas.
Chovia.
Caminhou da catedral para Notre-Dame-du-Port. Telefonou a Marion Chauvel. A chuva atingia com pequenas explosões amarelas os vidros da cabina, por vezes cobertas de um reflexo vermelho-sangue ou verde-pálido.
Marion dizia:
- Mas onde estás tu, Jean-Louis? De onde telefonas?
Ele estava longe, tão longe daquela voz...
Quereria dizer que uma jovem envolta num véu negro o havia ferido, que os seus olhares de ódio e de desprezo, os seus olhos aliás tinham sido como pontas de flechas a penetrar nele. Que essas pontas continuavam lá, cravadas no seu peito. Que sabia ele da fé, das suas certezas, da loucura que arrebata, que faz santos e mártires, criminosos e vítimas, irmãos e carrascos?
Aquele que retalhara o sétimo corpo ajoelhar-se-ia diante daquela Madona negra que era levada em procissão até Notre-Dame-du-Port quando as ruelas se enchiam de cânticos? As pessoas persignavam-se quando essa Virgem de majestade passava, oscilando aos ombros dos homens curvados, seguida das auriflamas, das cruzes e do Corpo supliciado?
- Estás a ouvir, Jean-Louis? Ele não era um homem de fé.
- Que tens tu? - insistia Marion. - Não estás bem?
- Não, está tudo bem.
As pequenas palavras da grande mentira. O que é um amor sem fé? Uma paixão sem a loucura da ilusão?
- Tenho saudades. Amo-te, Jean-Louis.
Ela ousava pronunciar aquelas palavras que ele nunca empregava ou que censurava logo depois de as ter murmurado, pois que sabia ele dos sentimentos? Conhecia o desejo. Tinha tocado a morte com os dedos. Esforçava-se por compreender, por manter afastadas essas paredes que, por vezes, à noite, sentia apertarem-se contra os seus ombros, esmagando-o lentamente, enterrando-o sob a sua massa. Enterravam-no. Queriam fazê-lo entrar à força num mundo diferente, o mundo da fé, um mundo onde se crê que vivem as crianças mortas e repousam os adolescentes mártires, porque o Alcorão diz - ele lera e relera essas frases desde o início da sua investigação, elas tinham-no acalmado e ele tivera a tentação de se deixar enterrar de uma vez para sempre para que os seus olhos se fechassem, não vissem mais aquilo que é, só aquilo que poderia ser, ou antes aquilo que é para os que crêem:
Aqueles que estão mais perto de Deus Habitarão no jardim das Delícias. Aí encontrarão mulheres isentas de toda a mácula e aí ficarão eternamente.
Tiraremos do seu coração toda a falsidade; vivendo como irmãos, tomarão as suas refeições em leitos, face a face, uns e outros.
Serão reintroduzidos no jardim do Éden que o Misericordioso prometeu aos seus servidores.
A sua promessa será cumprida.
Não ouvirão aí nem discurso frívolo nem palavras criminosas;
Aí ouvir-se-ão apenas as palavras: Paz, paz.
Beaufort, quanto a ele, não tinha paz.
Quando, por vezes, tinha a sensação de que ela o enlaçava, quente e húmida, mel e leite, pousando-lhe os lábios na nuca, levantava-se de um salto, caminhava ao longo da cama. Tinha medo da paz. Ela sufocava-o. Só se interessava pelo corpo nu, pelas suas feridas. Em saber quem o tinha martirizado, e porquê.
Não, Beaufort não era um homem de fé.
Mas os homens de fé, Beaufort sabia-o, tinham vindo a Clermont aos milhares, afluindo de toda a Europa. Reuniram-se a algumas centenas de metros do hotel deAuvergne onde ele estava hospedado, não longe da catedral que, à noite, obscurecia o céu.
Uns caminharam desde os confins do Norte e do Leste. Outros partiram de Espanha e faziam rodopiar as auriflamas que haviam brandido diante dos infiéis. Alguns cantavam, todos rezavam.
Clermont era lugar de concílio, e a fé era então tão grande que os caminhos eram rios de homens que corriam para a cidade que os acolhia todos nas suas cinquenta e quatro igrejas.
Os carpinteiros tinham erguido, para lá dos muros, naquilo a que então chamavam Champ-Herm, um estrado feito de troncos trazidos às costas pelos lenhadores das florestas que já rodeavam a abadia de La Chaise-Dieu. Do alto desse estrado, dominavam-se os campos húmidos, cheios de charcos, percorridos por riachos, os outeiros cobertos de erva alta curvada pelo vento. Os prelados e o papa Urbano II tinham subido com dificuldade os degraus do estrado, mas quando por fim apareceram a multidão inumerável aclamou-os.
Quando percorrera aquele Bairro que se estende hoje entre Notre-Dame-du-Port e a capela da Visitação, Beaufort imaginara essa grande concentração de homens, de indigentes e de senhores, de miseráveis e de cavaleiros - essa grande enchente das almas, como disseram os cronistas - que entoavam cânticos, lançavam clamores, brandiam cruzes com o Corpo supliciado.
Era em 27 de Novembro do ano de 1095, e Urbano II pregava:
-Falo àqueles que estão presentes, e proclamá-lo-ei aos ausentes, mas é Cristo que manda.
Dizia: "Deus le volt!
A multidão respondia, persignando-se: "Deus o quer!"
Os sinos das cinquenta e quatro igrejas de Clermont repicavam e, em cortejo, os treze arcebispos, os duzentos e vinte e cinco bispos, os trezentos e oitenta e nove abades e os mil clérigos tomavam lugar diante do estrado.
-Se deixais agora os turcos e os árabes sem resistir, eles vão estender a sua vaga mais amplamente sobre muitos fiéis servidores de Deus - avisava Urbano II.
Prometia a remissão dos pecados àqueles que perdessem a vida nessa luta pela libertação do túmulo de Cristo.
-Alistai-vos sem tardar. De um lado estarão os miseráveis, do outro os ricos, aqui os inimigos de Deus, ali os seus amigos!
Partiram em multidão para Jerusalém, os pobres com mulheres e filhos, com a cruz cosida na camisa...
Séculos mais tarde, quando investigava sobre um assassino que marcava as suas vítimas com uma cruz, Beaufort fixara no relato da primeira cruzada os textos que contavam aquilo que alguns cruzados fizeram aos judeus quando chegaram à Alemanha e entraram em Espira, Maiença, Worms e Ratisbona.
E como, em Jerusalém, no templo de Salomão e na mesquita de al-Aqsa, "houve uma tal carnificina que os nossos se enterravam no sangue até aos tornozelos".
E quando vira a estátua de Urbano II, de cruz erguida, diante da catedral, Beaufort recordara-se das palavras de Schlomo Bar Simeão, quando a turba da cruzada se abatera sobre os guetos da Alemanha: "Por que é, interrogava-se o crente, que o céu não escureceu, porque é que as estrelas não dissimularam o seu esplendor, porque é que o Sol e a Lua se não esconderam quando tantos santos pereceram?"
Sim, porquê?
Tal como o homem de fé, Beaufort também não tinha resposta.
Ao sair do hotel de Auvergne, Beaufort imobilizou-se. A catedral obstruía a ruela como uma falésia negra. As lojas de recordações religiosas tinham puxado as cortinas. Fazia frio.
Que fazia ele ali, sozinho uma vez mais?
Teve uma espécie de náusea, de tal modo a sua vida, a vida lhe pareceu de repente feita de pedaços separados, de sensações e de pensamentos contraditórios, e teve a intuição de que só uma fé, não importa qual, uma loucura, uma paixão qualquer permitiam reunir tudo isso, esses dias em migalhas, esses anos que se desfiavam, esses sentimentos que vinham e se desvaneciam, esses nadas díspares a que se reduz um destino quando não é unificado por uma crença, um impulso que dão sentido a essa poeira que escorrega das mãos. Talvez o homem que Beaufort procurava matasse muito simplesmente porque não aceitava que a vida, a sua vida fosse apenas uma sucessão de actos sem objectivo.
Que se podia contra isso? Esse desejo de morte que se apoderava de um homem, dos homens, para preencher o vazio das suas vidas? Que se podia opor a isso? A lei?
- O senhor viu?
O dono do hotel dirigira-se ao comissário e mostrava numa das fachadas uma inscrição.
- Eles estão doidos, não? Mas o que é que eles querem? Beaufort descobriu por sua vez o sexo enorme como um gládio vermelho. Alguém escrevera por baixo, em maiúsculas brancas: "OS ÁRABES ENRABAM-VOS." - Eles querem que as pessoas se matem umas às outras? - continuou o hoteleiro. - Se eles tornam a pôr isto...
Começaram por troçar os dois, depois o hoteleiro fechou e brandiu o punho. Se os surpreendesse, matava-os.
- Vá lá, vá lá - disse Beaufort afastando-se.
As lajes estavam escorregadias, desunidas. O chuvisco insinuava-se por baixo das roupas.
Que fazia ele ali, sozinho?
A Praça da Vitória estava deserta. Aproximou-se da fonte encimada pela estátua desse papa que, de cruz erguida, fizera o apelo à cruzada, nove séculos antes.
Um vagabundo dormia, com o corpo escondido debaixo de caixas, os pés envolvidos em sacos do lixo.
Beaufort entrou no bar à esquina da praça com a ruela onde estava situado o seu hotel.
Ao voltar-se, encostado ao balcão, viu, num rectângulo de luz projectado pela fachada da catedral, a estátua do papa como uma sombra chinesa, graffiti desmesurados. Talvez Beaufort tenha lançado a cabeça para trás abanando-a, como certos bêbedos, talvez tenha começado a rir em silêncio, talvez tenha murmurado "Nove séculos, nove séculos"... - talvez a mulher morena sentada a seu lado ao balcão imaginasse que ele estava alegre:
- Como vai isso, hem? - atirou-lhe ela.
Tinha os olhos semicerrados, o corpo curvado, uma maneira de se inclinar para a frente que deixava ver os seios apertados um contra o outro. Falava com o queixo encostado ao peito, os cabelos a taparem-lhe a testa. Quando se calava, mantinha a boca entreaberta e passava maquinalmente a língua pelos lábios.
Beaufort baixou os olhos, olhou as coxas gordas, os tornozelos fortes. Ela não escondia nada, era para alugar, para vender.
Ele hesitou.
Tantas vezes agarrara o corpo de uma mulher, essa obsidiante presença de vida. Pouco importava o desejo ou o fastio. Ela estava ali, húmida, pesada e palradora. Esmagava-se o rosto contra os seus seios, entre as coxas. E já se não desfiava até à obsessão questões desprovidas de sentido. Já não se estava só. O outro obrigava-nos a ser. Se ele existia, nós existíamos. Beaufort aproximou o seu tamborete.
- E tu, como vais? - perguntou.
Ela deixou-se cair sobre ele, apoiando-lhe nas coxas as mãos de dedos abertos.
Ele deu por si a pensar nas mãos de Amina Nekoub pousadas sobre a mesa, enquadrando a fotografia do adolescente morto.
- Que é que tu fazes? - inquiriu a mulher.
Tinha erguido um ombro e, pela abertura do camiseiro, ele entreviu a marca vermelha do soutien na pele branca, como uma cicatriz.
Ele levantou-se imediatamente repelindo a mulher.
- Que é que tu queres? - retomou ela troçando. - Quem é que queres?
No momento em que passava a porta, ouviu-a gritar-lhe de repente que ele não passava de um imbecil, que devia era ir levar no cu.
Sentou-se no rebordo da fonte. De vez em quando, o monte de cartões e de andrajos remexia-se.
A loucura voltava, interminável. Nove séculos não tinham bastado para estancar a sede de sangue.
O homem deitado no chão começou a tossir.
Chuviscava. Era uma transpiração gelada que se colava à cara e às mãos.
A princípio, o silêncio e a luz impressionaram Beaufort. Surpreendido, ficara por momentos apoiado ao carro, que acabava de estacionar num dos parques do Bairro do Vulcão.
As pessoas estavam reunidas em pequenos grupos no meio das áleas do Bairro. Outros, jovens na sua maioria - eram talvez os camaradas do sétimo morto? -, continuavam sentados nos bancos do parque de jogos. Às janelas das torres, havia mulheres debruçadas.
Contudo, o comissário só ouvira a voz de uma criança, um daqueles miúdos que corriam nas orlas da floresta cujas árvores ainda rodeadas de nevoeiro cercavam o Bairro do Vulcão. Mas essa voz era tão límpida, semelhante a uma vibração de cristal, que o ar ressoava como uma imensa cúpula.
Beaufort fechou a porta do carro sem bater com ela e avançou na álea em direcção à última torre, diante da qual estavam estacionados os carros da polícia e a ambulância.
Caminhava devagar. O chão estava coberto de lascas de sílex, de bocados de asfalto, porque o revestimento estava quebrado e aqui e ali cresciam tufos de erva. Beaufort mantinha-se em guarda, embora ninguém voltasse a cabeça para ele, mas tinha a sensação de que aquele vazio podia encher-se brutalmente, transbordar, espalhar-se como um magma em fusão, e que para isso bastava um ruído, uma palavra, um gesto a mais. Era como antes da tempestade, esses poucos minutos de acalmia que precedem rajadas e chuvadas.
As pessoas, sem olhar para ele, apenas se afastavam para o deixar passar e, à medida que ele se aproximava da torre, os grupos de homens tornavam-se mais numerosos, mais compactos. Algumas vezes teve de parar, murmurar:
- Dão-me licença - avançar as mãos como para fender a onda.
Quando o viram, os polícias de serviço diante da entrada vieram ao seu encontro e guiaram-no para a escada onde tinham encontrado o corpo.
- Umas crianças que estavam a brincar - disse um dos inspectores, endireitando-se.
O corpo estava dissimulado debaixo de umas embalagens, farrapos, jornais. Os pés estavam metidos num saco de plástico azul, como o do vagabundo que tossia na praça, enrolado contra o parapeito da fonte.
Alguém, talvez uma criança, tinha retirado um dos cartões, de modo que se via o rosto, de um homem dos seus sessenta anos, de cabelos brancos, traços macilentos. Ninguém lhe baixara ainda as pálpebras; os olhos eram cinzentos.
As velhas do Bairro, aquelas que já não saíam, porque tinham medo ou, como elas diziam, porque as suas pernas pesavam como chumbo ou como pedras, chamavam-lhe "o santo homem". Ele visitava-as uma ou duas vezes por semana e elas espreitavam-no, só abrindo depois de ele dizer o seu nome: "é o padre Desbordes". Mas esqueciam-se de que ele era dominicano, padre, e até a mãe de Amina Nekoub, a quem o marido, os dois filhos e a filha deixavam muitas vezes sozinha, o esperava e o abençoava. Algumas limitavam-se a chamar-lhe "o bom homem". Ele ficava-lhes com os filhos, organizava passeios ao Puy, a La Chaise-Dieu, aos montes Dore. Para os miúdos, ele era François. Quando os adolescentes, de boné enterrado até aos olhos, as pernas apertadas em calças de ganga, se cruzavam com ele, zombavam: para eles, ele era o velho parvo ou o velho maluco, o padre, um tipo de outro tempo, um chato de outro mundo. Mas os drogados visitavam-no. Por vezes dava-lhes algumas dezenas de francos ou seringas, porque mais valia picar-se com uma agulha limpa do que morrer de sida. Quando falava demasiado tempo, ouviam-se gritos nas alamedas: "Não me chateies! Deixa-me em paz ou rebento-te!" E via-se os tipos saírem a correr.
Um deles devia tê-lo morto.
Um inspector murmurou para Beaufort que aquele morto, ao menos, não o tinham crucificado. Beaufort debruçou-se, levantou um dos cartões, contemplou a mancha de sangue seco que cobria todo o baixo ventre.
Morrer às mãos de um homem não era ser sempre crucificado?
O inspector aproximou-se e ficaram assim um e outro como que fascinados por aquela coisa inerte em que se tinha tornado o padre Desbordes.
- Ele considerava-se Cristo - murmurou o inspector. - Imaginamos sempre que a bondade protege. Pois sim! Os carneiros são os primeiros a ser mortos!
Beaufort voltou a colocar o cartão, ocultou o rosto com um trapo, depois destapou-o de novo e, num movimento lento da palma da mão, fechou os olhos cinzentos. E aquele mesmo frio, aquela insuportável queimadura da pele gelada, mineralizada, fê-lo estremecer.
- Eles vão escrever sobre isto! - retomou o inspector. - Esta história vai fazer chorar. Vão desembarcar aí todos, TV, rádios, e vamos ter merda. É um vulcão, este Bairro!
Abanou a cabeça e sorriu, orgulhoso do seu jogo de palavras.
- Um autêntico vulcão - repetiu.
Já esquecida a coisa - aquele homem que a vida tinha deixado - a vida fútil podia recomeçar a sua farândola.
Beaufort dirigiu-se para a entrada da escada. Quando empurrou a porta, houve um murmúrio, uma espécie de bramido grave saído da pequena multidão que se tinha reunido diante da torre, rodeando os carros da polícia e a ambulância.
Alguém gritou:
- Andam a matar-nos, e o que é que vocês fazem? Beaufort avançou a passo lento. Imaginou-se atingido por uma pedra na testa, espezinhado, morto, mas isso deixou-o indiferente. Caminhou pois calmamente para as primeiras filas, como se não tivesse ouvido as vozes, numerosas, que o interpelavam, nem sequer visto as pessoas, e estas afastavam-se.
Foi nesse momento que viu, no meio de uma álea, a silhueta de Amina Nekoub.
Tinha os braços cruzados, a saia preta a tocar no chão, o rosto apertado pelo véu, como uma daquelas freiras medievais. Como elas, pareceu-lhe ser a encarnação da loucura e da dignidade.
Mas quem não era louco?
A mulher do bar que exibia os seios e as coxas?
Quem podia decidir?
Quando o reconheceu, Amina Nekoub imobilizou-se, mas levantou a cabeça olhando para longe, para lá das torres.
Beaufort voltou-se para seguir o seu olhar.
Podia-se talvez imaginar que aquela curva mais clara que dividia o céu em dois, uma das extremidades apoiada nos cumes da cadeia dos Puys, a outra desaparecendo na camada cinzenta que encobria Clermont, era o vestígio ou o anúncio de um arco-íris?
Beaufort sentara-se num banco, com as costas apoiadas ao tabique, diante da porta de entrada. Todos os que entravam nas instalações da associação do padre Desbordes olhavam para ele e calavam-se. Alguns inclinavam a cabeça como se faz ao passar diante de um caixão, e era mesmo a vida morta do padre François Desbordes que eles saudavam ao entrarem naquela sala onde o sacerdote reunia todos os dias os membros daAssociação do Vulcão, por ele criada. Tinham ficado de pé. Alguns viravam a cabeça, atentos ao nevoeiro que deslizava para a cidade, submergindo pouco a pouco as árvores, o parque de jogos, as áleas. As torres pareciam inacabadas, com o cimo mergulhado no céu cinzento.
A princípio Beaufort não ousara enfrentar os rostos deles. A intensidade daqueles olhos incomodava-o. Que podia ele dizer? Quando tentara falar, na alameda, em frente da entrada do imóvel onde tinham encontrado o corpo do padre, os mais jovens tinham começado a gritar. Ele não passava de um chui, um miserável, um porco. Eram os chuis que os matavam. Alguém gritara numa voz aguda que dominava todas as outras:
- Onde está Khaled, onde está? Vocês também o massacraram a ele?
O inspector que estava junto de Beaufort murmurara que esse jovem tinha desaparecido, que era conhecido dos serviços de polícia por organizar o tráfico de droga na cidade, mas era muito popular, uma espécie de juiz ou de árbitro entre os bandos.
- É claro - acrescentara quando o comissário se voltara para ele -, é claro, não fomos nós...
- É preciso que vocês nos ajudem, - começara Beaufort. - Sem vocês, não podemos fazer nada.
- Khaled, Khaled! - gritaram eles como única resposta. Depois o inspector sugerira que se fizesse uma reunião nas instalações da associação. E Beaufort retomara a sua caminhada no meio da alameda. Alguns jovens seguiam à sua frente, saltando às arrecuas; por vezes, avançando no mesmo passo tranquilo, indiferente, dava-lhes encontrões com o peito, a cara junto às caras deles. Pareciam-se tanto com aqueles mortos que ele vira e tocara que sentia piedade deles. Segurara o braço do inspector que queria repeli-los, murmurando:
- Deixe-os, deixe-os.
Agora estavam à sua frente e tinha de olhar para eles. Levantou a cabeça e, atrás dos homens que estavam de pé, apercebeu Amina Nekoub. Era mais alta que eles e ele já não conseguiu afastar o olhar dos traços dela, dos seus olhos que também o fixavam, da fina linha das sobrancelhas por baixo da orla do véu que lhe estreitava a testa.
Ele tirou a fotografia do adolescente descoberto na floresta de La Chaise-Dieu, aquele que Amina Nekoub devia conhecer e cuja morte a tinha perturbado; estendeu-a ao homem que estava mais perto de si.
- Este também está morto - lançou Beaufort. - Tenho a certeza de que ele é do Bairro, que viveu aqui. E dois mortos - este, de quem não sei nada, e o padre Desbordes -, dois mortos no mesmo Bairro, andam juntos.
Um após outro, os homens puseram-se a examinar a fotografia do adolescente dos olhos fechados. Sem deixar - como poderia ele? - de olhar para Amina Nekoub, Beaufort descobriu, entre as duas janelas estreitas que davam para a floresta agora mergulhada no nevoeiro, um crucifixo preso à altura do rosto. O corpo do Cristo estava apenas esboçado, composto por dois bocados de arame de cobre dobrados e cruzados, um representando os braços, em forma de taça ou de bacia, o outro desenhando uma espécie de Z alongado. Pareceu a Beaufort que todos os cadáveres que tinha visto, até o do padre Desbordes, poderiam ser assim figurados, implorantes, elevando-se num movimento de dor e de compaixão, de sofrimento e de sacrifício - talvez o único Conhecimento que existe.
- Eu conheço-o - disse ela.
Os homens voltaram-se para Amina Nekoub. Ela segurava a fotografia, que lhe ocultava o rosto.
Explicou que o tinha encontrado ali, naquela sala, com o padre Desbordes. Chamava-se Tahar, era tudo o que ela sabia, mas ele tinha dito que vinha de Paris, que o ameaçavam, pessoas cujo nome ele não citara. Partira pouco depois com Khaled, e também este tinha desaparecido.
Interrompeu-se, baixou a fotografia e acrescentou, com os olhos semicerrados, que sabia que Khaled estava morto.
Beaufort não precisou de interrogá-la.
- Sinto-o - explicou ela antes que ele falasse. -Aqueles que nos matam, de que é que eles têm medo?
Depois voltou as costas, sem escutar o comissário que evocava a justiça, o castigo, a investigação que estava a fazer. Haviam de encontrar os culpados, afirmava, aqueles que tinham morto Tahar e os que tinham morto o padre Desbordes, talvez os mesmos. Quando os mortos andam juntos, os criminosos andam também ao mesmo passo.
Amina Nekoub saiu da sala e os homens, depois de trocarem algumas palavras, seguiram-na.
- Eles são assim - murmurou o inspector encolhendo os ombros.
O comissário foi até à janela. Os cones azulados dos grandes lampadários recortavam a noite. À luz que redemoinhava, distinguiu a silhueta negra de Amina. Atravessava aqueles vultos, depois desaparecia antes de ressurgir ao fim de alguns passos e de ser de novo tragada pelo nevoeiro.
Beaufort encostou a testa à vidraça. Estava gelada, como um corpo morto.
Quando se voltou, um jovem que ficara sozinho no meio da sala olhava-o. Usava uma camisa branca de colarinho abotoado alto, sem gravata, e, por cima do fato preto assertoado, uma djellaba.
- Aqui, era uma casa sagrada - disse.
Falava devagar, com os dedos cruzados, num tom enfático que desagradou ao comissário.
- Não se devia chorar o padre Desbordes - continuou. - O Misericordioso prevenira: "Não creias que aqueles que são mortos no caminho de Deus estão mortos. Eles estão vivos!
Beaufort escutava-o com impaciência. Julgou reconhecer aquele rosto cujas faces eram escurecidas por uma fina camada de barba. Os olhos eram encovados, azuis, sob arcadas supraciliares grossas. A boca carnosa era amuada, desdenhosa.
- Que faz você aqui? Que é que você sabe? - perguntou-lhe numa voz irritada.
O homem explicou gravemente que ensinava o Alcorão aos jovens do Bairro.
Puxou dos seus documentos, estendeu-os ao inspector para mostrar bem que reprovava o nervosismo de Beaufort. Depois, volúvel, caminhando pela sala, mostrando os livros nas prateleiras, recomeçou a falar do padre Desbordes, um homem justo que respeitava a palavra do Profeta, que a compreendia, a estudava e a amava. Fora talvez por isso que o tinham assassinado.
- Deixe-me em paz! - resmungou o comissário.
Não gostava daquele homem, era uma coisa instintiva. Naquele rosto, naquela voz, qualquer coisa o atraía e lhe repugnava como uma perversão, um desvio de sentido. A fé não podia identificar-se com aquilo. Aquela crença matava os crentes.
- Você conhecia Tahar e Khaled? - interrogou.
O homem abriu os braços. Quem pode conhecer os homens? Com um gesto de enfado, Beaufort agarrou o bilhete de identidade que o inspector lhe estendia. Resmungou:
- Francês, claro.
O homem avançou. O queixo e o lábio inferior tremiam-lhe.
Que queriam que ele fosse? Nascera ali, em Clermont. O pai tinha deixado três dedos debaixo de uma prensa, na Michelin. Da mão direita, precisou agitando a sua diante da cara de Beaufort. O avô tinha morrido no vale do Rhône em Agosto de 1944.
- O senhor sabe o que ele fazia? Combatia por si.
Isso bastava, ou devia ele também pagar o preço do sangue?
- Querem talvez matar-me também a mim? - continuou. Beaufort tentou interrompê-lo, desculpar-se, mas o outro continuou o seu solilóquio. No tempo da cruzada, aquela que partira de Clermont - o padre Desbordes dizia que nove séculos era apenas um sopro de vento, que o mesmo é dizer nada -, numa cidade do Oriente, Ma'arat, os cavaleiros tinham posto os adultos a cozer e as crianças no espeto, e depois tinham-nos comido.
- Continua a haver aqueles que sonham cozer-nos ou grelhar-nos, senhor. Nós somos pagãos, bárbaros, não é?
Tinha puxado as abas da djellaba para o peito. Só que, acrescentou, os pagãos tinham-se tornado coriáceos, indigestos.
- Deixe-se de merdas - respondeu Beaufort.
Com um gesto maquinal, abriu o bilhete de identidade. Leu: Hocine Nekoub. Fechou-o imediatamente.
Aquele rosto era como que uma contrafacção do de Amina Nekoub. Uma cópia má.
- O senhor viu a minha irmã - disse Hocine aproximando-se.
Fixava Beaufort com um sorriso, a cabeça um pouco inclinada. Amina não sabia nada, continuou. Devia ser deixada em paz.
- Deixe-se de merdas - repetiu Beaufort.
Com a palma da mão no peito de Nekoub, empurrou-o para a porta. Pagavam-lhe, disse, para encontrar os assassinos. E interrogava quem queria. Aqui, a lei era a mesma para todos, homens ou mulheres. O senhor Nekoub tinha compreendido?
- Cada um age segundo a sua lei - replicou Hocine. Beaufort bateu com a porta.
- Eles são assim - repetiu o inspector.
Beaufort enrolou-se em cima do banco, apertando com os braços os joelhos dobrados contra o peito. Estava sozinho nas instalações do padre Desbordes. Tinha frio. Transpirava.
Do Bairro subiam rumores, dominados de vez em quando por gritos ou pelos rugidos de um motor lançado a todo o gás. Mas isso parecia-lhe tão distante, e a sua nuca estava tão tensa, o seu corpo tão doloroso - como se o tivessem espancado - que já não tinha força para se levantar, ir até à janela, olhar aquelas áleas que percorrera quando tinha acompanhado o inspector até à porta apenas esboçada por aquelas lâmpadas de luz difusa que pareciam flutuar na espessura de uma água suja.
O inspector insistira para que Beaufort regressasse a Clermont. A noite, o Bairro do Vulcão fechava-se sobre si próprio, explicara. As pessoas barricavam-se. Os agentes da polícia de choque ficavam dentro dos carros, estacionados na orla da floresta. Em algumas noites, quando o nevoeiro era denso, atacavam-nos à Pedrada. Eles lançavam algumas granadas, avançavam pelas alamedas. Por vezes, havia fogo. Ardia durante horas nos parques de estacionamento e nas caves. No Verão, quando o céu estava claro, viam-se os braseiros desde Clermont como fumarolas por cima de uma cratera.
- Bairro do Vulcão, hem? Quando Khaled estava lá, acalmava os jovens. Agora, é Hocine Nekoub que lhes fala. Eles escutam ou não escutam. Alguém sabe o que se passa nas cabeças deles? Se fica aqui, comissário, ponha o ferrolho, tranque-se. E telefone imediatamente se houver problemas.
Beaufort sabia que aquele frio não era o medo. O medo distrai. Fugimos. Berramos. Ou puxamos da arma. Mas ele não podia fugir, porque o pânico corria mais depressa que ele e encontrá-lo-ia à sua frente.
Sentia o suor escorrer-lhe entre as coxas, e pela nunca. E cobria-lhe a testa.
Era como nos piores momentos da sua vida, depois da morte da filha, ou naquela noite que passara sozinho nos rochedos da floresta de Fontainebleau, quando descobrira o cadáver de Sandra, aquela menina raptada, assassinada.
Por que se recordava daquilo?
Talvez vergonha, por ter humilhado e empurrado Hocine Nekoub.
Um louco, um fanático, no entanto.
E então?
Outra coisa ainda mais profunda: o sentimento de que aquilo que ele julgara estável - a sua vida desde havia meses com Marion Chauvel, aquela investigação -, começava a agitar-se; já não tinha a certeza de nada desde a descoberta do primeiro corpo, ou depois da morte do padre Desbordes, aqueles encontros com as pessoas do Bairro do Vulcão, o desprezo delas, o seu ódio até, o de Hocine Nekoub, de Amina, daqueles jovens que saltavam à volta dele como se quisessem o seu escalpe.
Bastava isso para explicar a subida, nele, daquele magma, daquela náusea?
Talvez aquela lassidão angustiada lhe viesse simplesmente de, após a partida do inspector, e de colocado o ferrolho, ter aberto as gavetas do armário que continham as coisas pessoais do padre Desbordes. Folheara os livros, os cadernos, o caderno de endereços, e aquele bloco de papel quadriculado no qual o sacerdote, página atrás de página, tinha escrito textos curtos apenas rabiscados, por vezes traçados a lápis.
Beaufort imaginara-o a meio da noite, por fim sozinho, hesitante quanto a uma palavra. Era talvez aquele primeiro texto .- Desbordes era demasiado humilde para ousar pensar que escrevia poemas que alguém além dele pudesse ler - que tinha exposto Beaufort àquele grande sopro frio que o fazia estremecer, aquelas palavras póstumas de que não conseguia desprender-se, como laços que o paralisassem:
Vi uma criança morta
No Teu silêncio
E aqueles que Te rogavam
Usavam os grandes mantos negros
Da Diferença
Mas eu reconheci as palavras estrangeiras
Ouvi o Teu sinal
O muro continuou nu
A esperança cobriu-se de dor
Ajoelhei entre esses desconhecidos
Homens éramos todos e apenas
Irmãos imensamente
Pela criança perdida.
Que esperava Beaufort ao telefonar a Marion Chauvel?
De repente, descerrara as mãos, empurrara o banco, levantara-se e, de pé em frente da janela, marcara o número de Marion. Silhuetas separavam-se ou aglutinavam-se no meio do nevoeiro, formas um pouco mais negras, algumas das quais tinham os gestos lentos de afogados arrastados para o fundo, de braços abertos, pernas curvadas; depois desapareciam e a escuridão era demasiado densa para que Beaufort pudesse segui-las.
- Sou eu - disse ele.
Já sabia que Marion não poderia ajudá-lo, que pelo contrário essa voz não ia chegar até ele, que permaneceria distante e portanto o oprimiria, o persuadiria de que estava de novo sozinho; sozinho como quando renunciamos a saber onde vamos, e estamos já na corrente que nos afasta inelutavelmente da margem e ainda não distinguimos a outra margem.
Por que cedera ele uma vez mais? Que loucura o levava a abandonar os pequenos refúgios da terra firme, algumas certezas, uma mulher, um lugar partilhado com ela, para mergulhar naquelas águas geladas, nesse rio da passagem - e sem dúvida nunca mais reencontrará terra, vai talvez mesmo soçobrar?
Quem sabe se não telefonou a Marion para se persuadir de que tinha já chegado a esse ponto, que ela se afastava, visto que ele próprio era arrastado?
Ela falava.
Onde estava ele? Ela telefonara para o hotel de Clermont, mas ele tinha saído logo de manhã. Estava inquieta. Esperara o telefonema dele. Tinha muitas coisas para lhe dizer.
- Antes de mais, estás bem?
Mas não lhe dava tempo para responder. Ele seguia o caso Desbordes, não é verdade? Ela tivera conhecimento por um jornalista de La Montagne que estava no local quando da descoberta do corpo. Beaufort não imaginava o barulho que aquilo provocava nas redacções em Paris. Desbordes era um dominicano. Tinha numerosas amizades entre os intelectuais. Tinha estado preso durante a guerra da Argélia.
- Tu estás a ouvir-me? Sabias disso? O jornal das vinte e uma horas - não viste a televisão? - abriu com o crime, a personalidade de Desbordes. Em suma, segundo eles, seria o primeiro assassínio integrista. Vais ver os títulos de alguns diários, amanhã: "A Argélia exporta assassinos!" As cadeias de televisão vão mandar equipas para Clermont. Tu estás no Bairro do Vulcão? Eles telefonam-me, sabem que tu estás com a investigação e que nós estamos juntos...
Juntos?
A palavra, alguns dias antes, talvez mesmo apenas algumas horas, teria feito nascer nele um estremecimento, uma alegria instintiva.
Teria repetido: "Juntos, sim" e ririam os dois. Estavam juntos. Teriam contado os meses. Teriam dito: "Lembras-te?" Ela murmuraria, como sempre que ele estava separado dela: "Tenho saudades tuas."
E essa palavra havia-se tornado já uma recordação, uma nostalgia, uma palavra que media a perda.
Porquê? Que se tinha passado nele? Seria o regresso do seu próprio passado, aquele poema de Desbordes.
"Vi uma criança morta
No Teu silêncio"
que lhe recordava o rosto da filhinha enlanguescida, esgotada, incurável? Ou era outra coisa ainda?
A morte, muito simplesmente, de que ele não parava de se aproximar, de tocar, e aquele último corpo, o de Desbordes, talvez um morto a mais, que o arrastava?
Marion não dissera: "Tenho saudades de ti."
Ela explicara que Josserand lhe pedira que preparasse um longo artigo sobre o Bairro do Vulcão. Ela ia portanto até Clermont.
Ria. Esperava que a cama do hotel fosse larga - não demasiado, no entanto!
- Jean-Louis, tu estás a ouvir-me?
Ele imaginava-a ao pé de si. Como poderia dissimular que se tinha encarquilhado como um pedaço de papel queimado e bastaria que ela estivesse ali, que lhe tocasse, para se aperceber de que ele já não era mais que cinzas?
- Está bem, está bem - limitou-se ele a repetir.
Devia preparar-se para ver chegar os enviados especiais de toda a imprensa, acrescentou ela. Aquele caso Desbordes ia, dentro de alguns dias, apagar tudo o resto. Um padre dominicano, um santo homem assassinado no coração de um Bairro, Beaufort estava a medir o choque? Simbolicamente, aquilo valia um atentado.
Enquanto ela falava, ele viu silhuetas que corriam diante da entrada do imóvel. Distinguia-os melhor, porque dois lampadários iluminavam a alameda. Pareceu-lhe que brandiam os punhos, que atiravam pedras, que gritavam.
Depois aquele martelar contra a porta, aquela voz primeiro abafada, depois mais clara, forte, premente:
- Abra, abra!
Ele pediu desculpa, desligou, e, sem sequer reflectir, abriu.
Beaufort não conseguira discernir o rosto de Amina Nekoub. As escadas e o patamar estavam mergulhados na escuridão e a luz da sala, caindo obliquamente, cortava a jovem pelos ombros, de modo que ela parecia, envolta nos seus véus negros, uma figura de proa mutilada.
Afastou-se para deixá-la entrar, e, porque tinha a impressão de que não se poderia impedir de sorrir, perturbado e surpreso por aquela sensação de leveza que sentia de repente, como se o seu corpo se tivesse liberto do peso de gelo que o mantivera esmagado desde que estava sozinho na sala, baixou a cabeça.
Ela disse:
- É preciso fechar a porta, depressa! - e, antes que ele pudesse esboçar um gesto, empurrou-a, pôs o ferrolho, e só então, levantando os olhos, ele lhe viu o rosto.
Os lábios estavam tumefactos, violáceos, quase negros; o inferior, que ele se lembrava de que tremia da primeira vez que se encontrara com Amina, estava todo rebentado. Havia sangue colado ao queixo.
Ela suportou o seu olhar na mesma atitude de desafio; finas rugas de amargura, que ele não notara até àquele instante, rodeavam-lhe a boca, e aquele rosto que, na sua recordação, era liso e cheio, parecia emagrecido.
Ela deu alguns passos e achou-se no meio da sala, em plena luz vertical. Ajustou o véu de modo a dissimular a testa, a deixar ver apenas a linha das sobrancelhas; dos lados do rosto, o véu roçava o canto dos olhos. A impressão de que ela tinha a cabeça ligada era assim mais forte. A pele junto ao véu estava azulada, quase negra. Beaufort adivinhou que Amina tinha sido espancada. As arcadas supraciliares e as maçãs do rosto estavam inchadas sem que os olhos parecessem ter sido atingidos, mas eles estavam assim mais brilhantes ainda, de um azul-claro, como estilhaços acerados espetados na pele escura.
Ele ficou durante alguns segundos parado diante dela, de braços caídos, desamparado, enquanto ela encolhia os ombros, com o mesmo trejeito de desprezo a atravessar-lhe as rugas em volta da boca; depois fez uma careta, porque a pele do rosto devia, a cada movimento, esticar e a dor atingir-lhe as têmporas, as faces, os lábios.
Beaufort agarrou-a pelos ombros e não pôde deixar de pensar que eles eram mais ossudos do que imaginava, porque os véus, o xaile, o vestido comprido ocultavam a realidade daquele corpo cuja elegância ele tinha adivinhado da primeira vez, no seu gabinete da esquadra da polícia, mas de que percebia agora melhor a musculatura nervosa, quase a magreza.
- Quem? - perguntou ele.
Depois, continuando a agarrá-la, enquanto ela não se mexia, continuou, falando cada vez mais baixo, murmurando que ela não podia aceitar ser assim tratada, ela, uma estudante, tão digna, tão orgulhosa, ele sabia, tão consciente do seu valor; nenhuma religião, nenhuma fé, nada justificava que a espancassem assim, pior que um animal; só os malandros, os pulhas, os assassinos, aqueles que não acreditavam em nada, para quem o ser humano valia menos que um animal, não era mais que um peso de carne, só esses podiam tratar as mulheres daquela maneira. Mas ninguém tinha o direito de agir assim, ninguém - interrompeu-se, apertou-lhe os ombros -, nem um pai, nem um irmão, repetiu, ninguém! Nenhum homem de verdadeira fé, que respeitasse as criaturas de Deus, se acreditava verdadeiramente no seu Deus, não se comportaria daquele modo. Ninguém. Só os brutos, os bárbaros, os criminosos...
Calou-se. A sua voz tremia. Perguntou a si mesmo se não teria falado com demasiada febre, demasiado arrebatamento. Bruscamente, achava-se ridículo. Havia tantas mulheres espancadas, aqui mesmo, neste país. Afinal de contas, aquilo que acontecia era do mais banal, mesmo que fosse do registo do horrível, do insustentável. A religião nada tinha a ver com este assunto. Um tipo, porque tinha uma massa de músculos, desancava a mulher, a amante, a irmã, a filha; podia ser católico, muçulmano, judeu, bêbedo, proxeneta. E a mulher encaixava, explicava às vizinhas que tinha chocado contra o canto da mesa. E a rapariguinha não dizia palavra.
- Quem? - repetiu ele, mas numa voz já cansada Amina soltou-se e caminhou para a janela.
Beaufort ouviu então os gritos, ou antes os urros, mas talvez durante os minutos em que estivera a falar, desde que Amina Nekoub entrara na sala, não tivesse mais prestado atenção a esse rumor, a essas vagas de violência surda que, subindo da alameda, daquela toalha escura que cobria todo o Bairro do Vulcão, atingiam a fachada da torre, faziam vibrar as vidraças.
Amina recuou. Murmurou, com os olhos perdidos naquele nevoeiro irisado pelas luzes dos lampadários:
- Eles continuam ali, não me vão deixar.
A sua voz não exprimia qualquer emoção, mas abatimento, uma fadiga desesperada.
Beaufort dirigiu-se para o telefone, mas, no momento em que levantava o auscultador, ela precipitou-se, agarrou-lhe o pulso - Não, os polícias não! Nunca! Ele deixou cair o aparelho.
- Eu sou polícia - disse inclinando a cabeça - Você... - começou ela. Depois encolheu os ombros.
Nesse preciso instante, quando, depois de ter agarrado o pulso dele durante alguns segundos - a pressão daqueles dedos, o contacto daquela pele tão quente tinham-no emocionado, parecera-lhe que aquele corpo oculto se revelava de súbito, que lhe percebia melhor a flexibilidade, adivinhando a curva das costas, a pele das coxas, o ventre tão liso, e teve de refrear o movimento instintivo que o impelia para Amina, o desejo de apertá-la contra si, de tranquilizá-la tocando-lhe -, no instante em que ela retirava a mão, os vidros das duas janelas explodiram, algumas pedras vieram bater violentamente nas prateleiras, depois caíram e rolaram pelo soalho.
- Apague, apague a luz! - murmurou Amina baixando-se. Houve ainda algumas pedradas - sem dúvida de fundas -, e os gritos, agora que os vidros estavam partidos, invadiam a sala ao mesmo tempo que o bafo húmido e gelado do Bairro, esse sopro acre: sem dúvida - os clarões reflectiam-se nos bocados das vidraças ainda agarrados aos caixilhos das janelas - tinham acendido fogueiras no parque de estacionamento ou na lixeira da orla da floresta.
A escuridão da sala era assim como que desfiada e Beaufort distinguiu a silhueta de Amina, que se tornara de novo aquela forma redonda, como uma estátua primitiva, abatida na extremidade do banco; ele instalou-se na outra ponta.
Ouviu as sirenes dos carros da polícia e dos bombeiros; as luzes dos faróis giraram na sala, varrendo as divisórias, as filas de livros, e como a luz se reflectia no espelho do armário, o crucifixo era também iluminado por intermitências.
Os gritos afastaram-se, cada vez mais confusos, dominados pelas sirenes e pelo rebentar das primeiras granadas de gás lacrimogéneo, cuja explosão seca Beaufort reconheceu.
- Sabe o que é que eles dizem? - perguntou Amina. Teve um riso trocista, murmurou que eles eram todos uns imbecis, uns doidos furiosos, mas era assim. Se eles só tinham aquela merda na cabeça, de quem era a culpa? Beaufort tinha visto o que era o Bairro do Vulcão? E quando alguém como o padre Desbordes vinha ocupar-se deles, matavam-no.
- Quem? - voltou a perguntar Beaufort.
- Matam-no - limitou-se ela a repetir. - Que é que lhes resta, que é que nos resta? Que se pode fazer?
Os gritos elevaram-se, novamente próximos, e as explosões amarelas iluminaram a sala ao mesmo tempo que os vapores adocicados e repugnantes dos gases lacrimogéneos se espalhavam.
Eles começaram a tossir. Beaufort prendeu o impermeável diante das janelas. Com excepção de duas fendas um pouco mais claras na parede do fundo, desenhando uma cruz torta, a sala estava escura.
- Sabe o que é que eles gritam? - perguntou novamente Amina.
Falava ainda mais baixo, como se o escuro impusesse silêncio. Murmurou:
- De pé, árabes. Estamos em guerra!
Depois acrescentou numa voz mais forte que aquilo nem desagradava à gente dali, àqueles a quem chamavam gauleses.
- Isto metes-lhe medo, mas excita-os. Dizem para si mesmos que vão poder recomeçar a cruzada. É preciso que haja sempre gente para matar, não?
Ela falava numa voz cada vez mais sacudida, como se, depois de cada palavra, lhe faltasse a respiração e precisasse de retomar fôlego. Isso dava às suas palavras a intensidade de uma confissão, e, embora ela apenas murmurasse, a força de um grito, de um protesto de todo o seu corpo quebrado pelas próprias palavras que ela pronunciava, como se as frases dele saídas se voltassem contra ele para o atingir.
- Estamos à mão - dizia ela -, somos fáceis de matar, matamo-nos mesmo uns aos outros, e daí? As pessoas olham: nós somos os bárbaros, os pagãos, os primitivos. Hocine tem razão quando diz isso. As pessoas imaginam que isto vai ser uma boa guerrazinha do Golfo, aqui, por toda a parte, uma cruzada, uma limpeza como na Bósnia, hem? Se são as muçulmanas as violadas, que é que isso tem? Isso não incomoda ninguém, pelo contrário: é normal. E se nos defendemos, então, é o escândalo, somos criminosos, ladrões, desordeiros, não nos perdoam nada!
Calou-se bruscamente, depois gemeu:
- Estou farta.
A emoção de Beaufort era tão forte que ele repetiu várias vezes:
-Conte-me, conte-me...
- Que é que nós queríamos ser? - murmurou ela a dado momento da noite.
Beaufort estava voltado para ela, ainda sentada na extremidade do banco.
Por vezes, uma rajada de vento levantava o impermeável que ele prendera diante das vidraças partidas. Antes que o nevoeiro invadisse a sala, ele entreviu Amina naquela claridade viscosa derramada pelos lampadários da alameda. Adivinhou que ela tinha os braços cruzados no peito e que falava de cabeça baixa, com a boca sobre os punhos.
Tossia frequentemente e Beaufort sentia-se dilacerado por aqueles ataques agudos, estridentes.
Sussurrar-lhe talvez: "Como vai isso?" Mas ele mal podia descerrar os lábios. Se abrisse a boca, deixava de crispar as mandíbulas, começaria a bater os dentes. O frio, a humidade impregnavam as paredes, e quando se apoiava à divisória, sentia o corpo como que esmagado por uma parede gelada. Então debruçava-se, agarrando o banco com as duas mãos, mas a madeira estava tão fria como a pedra.
- Espere - sussurrou ele.
Tacteou, recusando-se a acender a luz, porque só aquela escuridão, aquele frio, aquele nevoeiro que entrava às lufadas e estagnava nos cantos e no soalho permitiam a confidência de Amina.
Era preciso que nada mudasse, para que ela continuasse.
Descobriu um cobertor na sala ao lado, sobre o catre onde o padre Desbordes dormia.
Desdobrou-o lentamente e pô-lo sobre os ombros da jovem.
Ele ficou muito tempo em silêncio e ele receou que o seu gesto recordasse a Amina onde estava, a quem falava.
Ele não se mexeu, abstendo-se de incitá-la a recomeçar.
Foi ela que, de repente, recomeçou a falar.
- Que é que nós queríamos ser? - repetiu. - Pessoas entre as pessoas, que não fossem mais vistos que os outros. Que é que eu queria ser? Uma rapariga sentada na primeira fila na aula de Mme Dubois. Eu levantava a mão. Demasiadas vezes. "A ti, Amina, não te pergunto, tu sabes tudo" dizia-me Mme Dubois. Por vezes acrescentava, e eu orgulhava-me disso, e no entanto envergonhava-me como de uma falta: "Tu sabes tudo demasiado depressa, demasiado bem." No pátio, as raparigas rodeavam-me. O meu pai, quando estava de folga, esperava-me à saída. Entrávamos na padaria, fazíamos bicha; ele comprava-me um pão com chocolate. Eu pensava que éramos pessoas como as outras.
Muitas vezes, durante aquela noite, Beaufort desejava tanto que Amina continuasse a falar que, quando ela se calava, ele apertava os dedos como para rogar que ela recomeçasse, mas, ao mesmo tempo, tinha medo daquilo que ia ouvir. A desgraça avançava em bicos de pés, sombra densa que pouco a pouco se estendia sobre as esperanças da menina, essa Amina Nekoub que tinha sido sucessivamente a melhor da sua classe na escola primária, no colégio, e depois no liceu Godefroi-de-Bouillon, em Clermont.
Quem sabia, na sua turma C do segundo ciclo, que Godefroi de Bouillon, que dava o nome ao liceu, tinha sido vassalo do imperador da Alemanha Henrique IV? Que em 1096 ele encabeçara o exército de cavaleiros que partiram em cruzada porque o papa Urbano II, em Clermont, pedira aos cristãos que fossem libertar o túmulo de Cristo dos infiéis?
- Eu preparava o meu exame de francês - precisou ela.
Mme Robin, a professora, escolhera como texto de explicação o Ensaio sobre os costumes, de Voltaire, capítulo 54: "Esse texto, mademoiselle Nekoub, é para si, da linha 37 à linha 172. Creio que lhe vai interessar.
"Tomaram pois a cruz à porfia, escrevia Voltaire. Nunca a Antiguidade vira tais emigrações de uma parte do mundo para outra produzidas por um entusiasmo de religião. Esse furor epidémico apareceu pela primeira vez para que não houvesse nenhum flagelo possível que não tivesse afligido a espécie humana..."
- Eu pensava que nós éramos pessoas como as outras - repetiu Amina.
- Então, o seu comentário, mademoiselle Nekoub? Certamente compreendeu o sentido do texto?
Amina tossira. Tivera dificuldade em falar, como se, bruscamente, aquela língua que era a sua, que lhe permitira obter as melhores notas em redacção, em expressão escrita, em dissertação, em comentário, se lhe tivesse tornado estranha.
Tinha pensado nesses cristãos que usavam o sinal da cruz e que tinham estrangulado os judeus em Ratisbona, Worms e Maiença, nesses cruzados famintos que tinham cozido os adultos e grelhado as crianças para se alimentarem em Ma'arat, nesse sangue que subia, no tempo de Jerusalém, até aos tornozelos dos cavaleiros.
Pensara que nunca mais poderia falar. Depois falara.
- Excelente, mademoiselle Nekoub, perfeito. Um pouco apaixonado, passional mesmo... Seja mais prudente no exame, nunca se sabe o que pensa o examinador, e o tema é perigoso, não é verdade, principalmente para si...
- Eu pensava que éramos pessoas como as outras pessoas - murmurou ela uma vez mais.
Tossia. O vento empurrava o nevoeiro para a sala e levantava o impermeável, que batia contra o caixilho da janela como uma vela esticada. Aquele barulho repetido parecia o choque da ondulação contra o casco de um barco, e por vezes parecia que uma borrasca estava a ponto de arrancar a gabardina, que voltava a cair pesadamente, batendo na parede. A noite na sala era tão profunda como se esta estivesse mergulhada numa massa de água.
O barulho, o frio, o nevoeiro, a insónia davam náuseas a Beaufort; sentia-se sacudido como se a sede da Associação do Vulcão oscilasse de uma vida para outra, e ele próprio partilhasse com Amina Nekoub o incerto e angustiante momento da passagem.
Era preciso que ela falasse, que fosse até ao fim, para se libertar desse destino em que a tinham envolvido; era preciso que se libertasse, que cada frase a libertasse um pouco mais.
Ele, Beaufort, fora ali colocado pelo acaso - mas existiria o acaso, ou alguém fazia com que as vidas se cruzassem? -, durante o tempo da viagem, para que Amina abrisse o sarcófago e se evadisse, para que ela saísse do túmulo.
E também para ele se efectuaria então a passagem, aqui, nesta sala, durante esta noite, de uma vida para outra.
-Então conheci Tahar - disse Amina Nekoub.
Beaufort endireitou-se, de corpo tenso. Aquele era o momento perigoso da passagem. Tudo o que ela contara até àquele instante não fora mais do que uma maneira de se aproximar daquele nome, Tahar - do jovem que, com a ponta do pé, tinha empurrado um dia a porta da Associação do Vulcão. Era enviado pelo padre Marois, do Bairro dos Gigantes, em Nanterre.
Amina olhara para Tahar. Ela era então apenas uma rapariguinha de calças de ganga, pulôver branco de gola virada, sapatilhas e cabelos pretos caídos para os ombros.
Absteve-se de descrever Tahar a Beaufort. Percorreu um novo círculo para se afastar desse nome. Contou que, muitas vezes, quando saía do liceu, ia buscar o pai à saída da fábrica. Ele avançava empurrando a bicicleta, com a gola do casaco levantada, o boné enterrado até às sobrancelhas. Estava sempre acompanhado por dois ou três colegas a quem chamava por vezes camaradas. Apertava Amina de encontro a si: "É a minha filha, tu conhece-la ", dizia. Tinha as mãos enegrecidas, as unhas partidas, e, mais tarde, teria apenas dois dedos na mão direita: é preciso ser vivo para retirar a mão das prensas depois de lá ter metido a forma, e, naquele dia, ele estava distraído, pensava talvez no sol, nas terras de ocre do seu país.
Ele dizia pois:
- É a minha filha, esta é alguém, ela sabe! Professora, médica? Veremos... - Apertava-lhe o ombro e ela gostava do seu cheiro de borracha queimada, de suor e de tabaco.
Nesse tempo ainda não moravam no Bairro do Vulcão, mas em duas pequenas divisões na velha Clermont, onde se amontoavam os quatro. Nesse Bairro, eram pessoas entre as pessoas. Só depois, quando subiram para junto da floresta, para aquelas torres, se tornaram diferentes, deixaram de ser pessoas entre as pessoas, mas "os do Bairro", "os do Vulcão", "os das torres".
Hocine, o irmão, vagueava pelas alamedas. Descia a Clermont para lutar à entrada das boites, onde os vigilantes lhe impediam o acesso. Puseram-lhe a cabeça inchada, quadrada, toda negra, num comissariado da polícia, e foi depois desse espancamento que ele se tornou silencioso, depois explicou que ia partir para continuar os estudos noutro lugar, que lhe pagavam a viagem. A mãe chorara, mas quem se pode opor a um filho mais velho quando ele apodrece num país onde não há nada a fazer para ele?
Os Michelin, punham-nos na reforma, na caixa, suspirava o pai.
Hocine partira portanto. Era Amina quem se ocupava do irmão mais novo, Mehdi. Ela conseguia algum dinheiro indo aos fins-de-semana tomar conta de crianças nesses grandes apartamentos da cidade onde os congeladores estavam cheios de lacticínios, de carnes, de peixes. Por vezes, levava debaixo do blusão um desses sacos gelados que colocava em cima da mesa da cozinha, em sua casa. A mãe sopesava-o, o pai lançava uma olhadela à filha, Mehdi dizia: "Onde é que fanaste isso?" Apertando os ouvidos com as palmas das mãos, Amina tentava esquecê-los para ler, ler, ler.
Muitas vezes batia com a porta e atravessava o Bairro a correr. Instalava-se aqui, nesta sede da associação, e não na grande sala onde vários jovens viam permanentemente televisão ou um filme que o padre Desbordes passava no magnetoscópio, ou então, acocorados, murmuravam entre si, trocando pequenos pacotes, notas enroladas apertadas com elásticos. O sacerdote recusava-se a baixar os olhos e ver. Conduzia Amina até ao seu quarto, mostrava-lhe a mesa onde trabalhar e afastava o seu bloco de papel quadriculado.
- Entra para aqui, estarás sossegada. Que é que tu fazes? Ele debruçava-se. Ela gostava daquela mão que lhe roçava os cabelos. Depois de ler algumas frases do livro que Amina tinha de comentar, murmurava:
- Voltaire, sim, é preciso, claro. Mas... - Interrompeu-se, e depois: - Cabe-te a ti percorrer o teu caminho, julgar. Verás se ele te basta ou se...
Foi então que conheci Tahar - recomeçou ela.
Encontrara-se diante daquele jovem magro, de ancas apenas esboçadas, tão alto que a olhava de cabeça inclinada e ela tinha que levantar os olhos para ele. Ao fim de alguns segundos, tinha-lhe virado as costas e abandonado a sede da associação sem sequer responder ao padre Desbordes. Correra até a casa, depois decidira ir a Clermont.
Tahar esperava-a na paragem do autocarro.
Assim começara a história dos dois. Mas, depois de ter dito que, durante todo o trajecto entre o Bairro do Vulcão e a Praça da Vitória, tinham ficado de pé um de encontro ao outro, e que ao descer do autocarro Tahar lhe pôs o braço pelos ombros, Amina deixou de desenrolar o fio dos dias. Passou a falar aos sacões, por explosões bruscas: frases que jorravam, sem ligação entre si, cóleras que explodiam, palavras como cinzas que caíam lentamente, outras que rolavam como ribombos, que a violência da sua cólera projectava para longe e que feriam Beaufort. Ele procurava reconstituir a trama, mas as frases, as imagens voavam desordenadamente, por vezes murmuradas, por vezes gritadas.
- Que é que eu podia fazer? - exclamou Amina. - Quando um irmão nos sacode, nos esbofeteia, diz que nos vai estrangular, começa a sufocar-nos e nos oprime? Que podia eu fazer? Deixar-me matar? Fiz o que eles queriam. Eu queria ficar aqui, mas Hocine insistia em enviar-me para lá, Mehdi e ele acompanhavam-me, e que é que eu fazia entre os meus dois irmãos?
Denunciava-os à polícia? E lá, o que seria de mim? Enterrada, casada, com um trapo na boca? E se me mexesse, se gritasse, o pescoço cortado? O senhor lê os jornais? As raparigas como eu, são encontradas à beira da estrada, mortas.
Beaufort imaginava esse sangue seco, essas moscas, esses corpos violados, essas jovens dessangradas.
Amina retomou fôlego. Murmurou que toda a gente respeitava Tahar e gostava dele. Ela também, como uma louca. Mas havia alguém, dizia ele, que o perseguia, que procurava sempre encontrá-lo, fazê-lo falar, fazê-lo contar a sua vida, talvez para escrever um livro, preparar um filme. Pagava bem, mas Tahar desconfiava. Era um tipo esquisito, talvez um pederasta, um vicioso, um tarado. Que poderia ele fazer da vida de Tahar? Quem se interessava pelas nossas vidas? Quem?
Começara a falar mais alto: quem nos escutava?
Ninguém! Que morramos ou que nos matem, como Tahar. Morremos como ratos! Que éramos nós durante a guerra da Argélia? O senhor sabe: ratinhos que eram afogados no Sena às dezenas. O padre Desbordes contou-me, uma noite. Também ele tinha sido tratado como um rato, e em 16 de Outubro de 1961, a noite dos afogamentos, em Paris, estiveram quase a matá-lo também. Talvez seja preciso ter vivido isso para se interessar por nós, para nos compreender?
Depois voltava a murmurar.
Quando estivera grávida, Tahar já tinha partido. Tinha já morrido, talvez, mas ela não sabia. O padre Desbordes ajudara-os a fazer crer que era a mãe de Amina que esperava um filho. O padre Desbordes era astucioso, tinha ajudado a preencher os papéis.
- Era eu que paria, mas a minha mãe é que era a mãe!
Depois, a criança morreu. Era como se Deus, se ele existe, não quisesse deixar viver uma criança que incomodava, que não ousavam mostrar.
O comissário lembrou-se então do poema escrito no papel quadriculado:
Vi uma criança morta
No Teu silêncio
E aqueles que Te rogavam
Usavam os grandes mantos negros
Da Diferença...
Naquele instante as palavras submergiam-nos lentamente, a ela e a Beaufort, e o nevoeiro na sala era como uma nuvem de cinzas.
- Sem o padre Desbordes, eu teria morrido, como a criança, sussurrou ela. - Khaled também me ajudou. Ele e Tahar andavam sempre juntos. Quando vimos, na primeira página do jornal, a fotografia de Tahar morto, eu gritei como se tivessem morto o meu filho uma segunda vez, como se alguém se obstinasse em fazer-me pagar. Khaled disse-me que tinha encontrado o homem que queria tanto que Tahar lhe contasse a sua vida. Tahar tinha sido imprudente; ele, Khaled, ia armar uma cilada a esse homem, porque era certamente ele que tinha morto Tahar. Era um tipo sujo, isso adivinhava-se, um doido, mas de camisa e gravata, e que falava como na televisão. Khaled havia de apanhá-lo, jurava.
- Onde está ele, Khaled? Também morto.
- Que é que vocês, os polícias, fazem? É a nós que vocês matam, e aqueles que nos matam têm pena suspensa! Os pobres, sentiram-se ameaçados! Quando é que vocês nos vão grelhar, cozer como durante a cruzada, como no Iraque, como na Bósnia?
Calou-se por instantes, acalmou-se.
Quando regressou, disse ela numa voz indiferente, Hocine estava tão diferente que todos, em casa, ficaram com medo.
- Foi a minha mãe que lhe contou sobre o meu filho. Ele ficou como louco, bateu-me. Quis sufocar-me, depois ficou durante horas com a cabeça entre as mãos, em silêncio. Eu estava sentada no chão e a minha mãe lavava-me a cara, punha-me compressas. O meu pai mantinha os olhos fechados. O meu irmão Mehdi troçava, repetia que eu era uma puta, como todas as outras raparigas do Bairro. De repente, Hocine levantou-se e deu-lhe quatro bofetadas, e Mehdi deixou-se escorregar contra a parede. Ficámos assim muito tempo, os dois, ombro a ombro.
- Hocine perguntou: "Quem sabe?"
- Só o padre Desbordes sabia. Fora ele que nos ajudara, que preenchera os papéis, que velara a criança morta connosco. "Deus foi justo" disse Hocine. "Foi misericordioso. Levou o filho do pecado."
- Aproximou-se então de mim e ordenou-me que me levantasse. Pôs as duas mãos à volta do meu pescoço, com os dois polegares apoiados na minha garganta. Eu estava viva. Ele deixava-me viva! Mas tinha de ser respeitosa. Puxou-me os cabelos, fez-me gritar. Eu devia esconder aquilo, ser uma mulher digna, apagar a minha falta. Eu tinha sorte; ele era meu irmão; podia esquecer. Ninguém devia saber de nada, de nada. Ele tinha uma posição no Bairro. Ia abrir uma escola alcorânica. Tinham confiado nele. Tinham-no instruído. Ele tinha uma missão.
Encostou-me à parede segurando-me pelos ombros, e deu-me as suas ordens: "Esqueço, se tu te vergares à regra. Se não, mato-te. Aqui ou lá. Mas não escaparás. Tu sabes."
Depois de Hocine, cada um à sua maneira, o pai, a mãe, o irmão todos haviam repetido: "Obedece, submete-te, não nos desonres. Deus deu-te uma oportunidade. Ninguém do Bairro sabe. A tua família esquece. Hocine perdoa-te. Respeita as regras."
Que podia ela fazer? conclui numa voz grave, de cabeça baixa. Fugir? Morrer?
Hocine trouxera o xaile, os véus negros. Dissera: "Que ninguém, nunca mais, te veja como uma puta!"
- Pronto, já contei - murmurou Amina depois de um silêncio.
Beaufort viu-a dirigir-se para a janela. Afastou o impermeável e a poeira cinzenta do dia que despontava infiltrou-se na sala. O nevoeiro, em longos farrapos sujos, agarrava-se aos cimos das torres e às árvores, recortando a floresta em tiras mais ou menos sombrias. O ar estava tão húmido que ele sentiu gotinhas a escorrerem na pele, como lágrimas.
Com gestos lentos, Amina tirou o xaile, depois o véu. A cabeleira espalhou-se sobre os seus ombros como uma força por muito tempo comprimida que por fim jorra, livre, negra, brilhante.
Beaufort não ousou aproximar-se de Amina. Tinha vergonha de olhá-la como se a tivesse forçado a despir-se à sua frente. Ela estava de costas para ele. Com o braço esquerdo levantado, mantinha o impermeável acima da janela com os vidros partidos. Assim os seus cabelos caíam do lado direito e a nuca, longa, velada de madeixas curtas, parecia vulnerável.
Beaufort baixou a cabeça. Amina Nekoub não era mais que uma testemunha que finalmente falara, que seria preciso interrogar de novo, confrontar com o irmão Hocine Nekoub. Porque não havia talvez ligação entre os assassínios deTahar e de Desbordes, o desaparecimento de Khaled e a série dos crimes anteriores. Provavelmente ele apenas imaginara, para lhes dar uma ligação lógica, um sentido a actos sem qualquer relação, para além das similitudes de encenação que eram talvez devidas apenas ao acaso ou à interpretação que ele fizera delas.
Devia mostrar-se modesto, limitar-se ao seu papel de investigador que avança passo a passo.
Levantou a cabeça. Amina estava no mesmo lugar. Para lá dela, entre a cerração acinzentada, começavam a aparecer as árvores e as torres. Mas a luz era pouco mais forte. Chovia e o dia nascia raiado de linhas oblíquas.
Ela devia estar com frio. Apeteceu-lhe caminhar para ela, rodeá-la com os braços, apertá-la contra si, embalá-la, de lhe fazer compreender que a protegeria, que tinha necessidade de defendê-la, que era a primeira vez que sentia isso por uma mulher.
Mas, com os cotovelos apoiados nas coxas, o busto inclinado, com esse peso que sentia nos ombros, não se mexeu.
Não era a primeira vez.
Muitas vezes, de manhã, a filha entrava na cozinha titubeando de sono. Com os olhos fechados, avançava, de braços abertos, como uma sonâmbula. Murmurava. "Onde é que tu estás, papá, onde?" De cada vez, aquela visão, aquela voz perturbavam-no. Era tão indefesa, a sua menina! Ele levantava-a, embalava-a. Deixava brotar aquelas palavras instintivas: "Meu amor, meu coração, meu anjo, meu sol, minha alegria, minha filha", que nunca mais tinha pronunciado desde que ela morrera. E nunca mais deixara de se acusar por não ter sabido salvá-la. Os médicos nunca conseguiram convencê-lo de que ninguém podia fazer nada, que não se sabia curar aquela doença, que eram assim a injustiça e a crueldade da morte: não se compreendia porque é que ela escolhia este ou aquela.
Ele urrara. Ele soluçara. Tinha-se transformado naquele polícia taciturno e obstinado que diziam grosseirão, mas cuja indulgência e piedade súbitas, quando por vezes empurrava um suspeito para fora do comissariado "Desanda, desaparece!", surpreendia.
Sabia-se que vivia sozinho, que passava as noites a ler obras históricas sobre o nazismo, as memórias dos soldados da Ordem Negra. Depois, durante uma investigação sobre o assassínio de uma mulher e da filha, encontrara Marion Chauvel, jornalista do L'Indépendance, e vivia em casa dela. Mas era ela que o tomava nos seus braços, que o embalava, que o protegia, como fazem as mulheres fortes, as mulheres sem filhos cujo amante é o filho crescido que não tiveram.
Ele, Beaufort, enrolava-se, não conseguia segurar Marion contra o peito, como se faz com uma criança, como ele próprio o fazia ainda há pouco com a filha.
Esboçou um movimento para se levantar, para se dirigir a Amina, pousar a mão naquela nuca nua, levantar ainda mais as suas madeixas negras, sussurrar-lhe que não devia recear mais nada, nunca mais.
Mas depressa retomou a mesma posição. Ela era apenas uma testemunha. Ele era apenas um polícia. Quem podia ele proteger, embalar? Nem sequer soubera salvar a filha. Não era um homem capaz de inspirar confiança. Fazia o seu trabalho, só isso.
Amina aproximou-se de Beaufort. O impermeável voltara a cair diante da janela e a escuridão era quase total na sala, com excepção dos raios de luz que se cruzavam no tabique, desenhando uma cruz enviesada.
Ela ficou à frente dele, imóvel, com os cabelos a enquadrarem-lhe o rosto. Os braços caídos, as mãos abertas pareciam atraí-la para o chão.
Beaufort levantou-se como se receasse que ela caísse.
De pé diante dela, não ousava agarrá-la pelos ombros. Murmurou que ela não devia ficar ali. Ela não se mexeu. De súbito, ele murmurou-lhe que tinha perdido uma filha, Solange, havia alguns anos. Sentia-se miserável por ter feito esta confidência incongruente que lhe surgira, mau grado seu, como uma confissão que liberta, uma mão estendida a Amina.
Ele era tão fraco como ela. Estava nu, como ela. Eram iguais pelo e no luto, na recordação de uma criança morta.
Ele murmurou os últimos versos do poema do padre Desbordes:
Homens nós éramos todos e somente Irmãos imensamente Pela criança perdida...
Quando ainda estavam debaixo do alpendre de betão que protegia a entrada da torre, Beaufort colocou o seu impermeável sobre os ombros de Amina. Ela, imóvel, pareceu não se aperceber do gesto dele, hesitando em abandonar aquele abrigo e meter-se nas avenidas do Bairro.
Chovia. Tinham apagado as luzes, de modo que a penumbra se alargara como um regresso inopinado da noite. Por vezes, réstias de luz, amarelas e depois vermelhas, desenhavam trajectórias barulhentas, ao longo das avenidas, antes de desaparecerem para lá da curva deixando apenas um eco que se apagava ao longo da estrada de Clermont. No silêncio restabelecido, ouvia-se o vento vergar e amarfanhar as árvores da floresta muito próxima. O ar húmido e frio, com cheiros a mato rasteiro, projectava em rajadas a chuva para debaixo do alpendre.
Beaufort estendeu a Amina o xaile e o lenço que ela tinha deixado em cima do banco, na sala, e que ele agarrara no momento de sair. Sem olhar para ele, ela agarrou com as duas mãos a larga gola do impermeável, ajustando-o para que não escorregasse, depois começou a andar em silêncio no meio da alameda.
Saltava por cima das poças, avançava depressa, falava sem procurar saber se Beaufort estava ao pé dela ou se a seguia, como se estivesse certa de que ele a acompanhava, a ouvia. Essa confiança que ela tinha nele, a maneira espontânea como se exprimia, o ar de pensar em voz alta, comunicavam a Beaufort um sentimento de leveza. Gostaria, desejaria deitar a correr juntamente com ela. Depois daquela noite de insónia, de atenção angustiada, de reminiscências dolorosas, de repetições, de perguntas, aquele ímpeto que o empurrava, mesmo o prazer que sentia em receber a chuva de frente, em respirar aquele ar tão gelado que cortava a respiração, deixavam-no espantado. Parecia-lhe que se libertara de um peso, que redescobria sensações simples, como um convalescente. Não respondia a Amina, mas caminhava ao passo dela. Em dado momento, como a chuva redobrasse, colocou o véu e o xaile em cima da cabeça para se proteger, e ela lançou-lhe um olhar irónico. Era a primeira vez, desde que a conhecera, que a via não rir, mas deixar de estar tensa, com o rosto à beira da jovialidade, quase da despreocupação - apenas alguns instantes, mas bastava para que ele a imaginasse a caminhar numa praia, contra o vento, ao nascer de um dia estival.
Ela recomeçou numa voz mais forte, mais segura, dizendo que não queria viver mais no Bairro, que estava farta de se dobrar, de ceder, que apenas tivera vontade de viver e que isso não era um crime; se a religião condenava isso, então não era uma religião para ela, mas para os mortos ou os escravos. Já não podia viver ali com eles. Agora, matavam-na. Não lhe perdoariam, e ninguém a defenderia. Também ela, de resto, se continuasse ali com eles, deixava-se espancar, matar, na impossibilidade em que estava de resistir aos irmãos ou de denunciá-los.
Não tinha dito nada, nunca diria nada contra eles.
Voltou-se para Beaufort, caminhando mais devagar.
Não, que ninguém imaginasse que ela poderia acusá-los. Nunca, nunca! Eles tinham sido injustos com ela, mas onde estava a justiça? Porque é que Hocine nunca tivera o direito de ir a uma boite! Porque é que os polícias lhe tinham posto a cabeça negra, aos murros e às matracadas? Chegou-se mesmo a pensar que ele ia perder um olho. Onde estava a justiça, para eles? Não, que não contassem com ela! Nunca diria: "Foi Hocine que me bateu, foi Hocine que me ameaçou."
- E Tahar, e o padre Desbordes, e Khaled? - murmurou Beaufort.
Ela teria ouvido? A chuva horizontal batia-lhes nos rostos. O vento rolava desde os altos, obrigando-os a caminhar curvados.
-Hocine não fez nada! - exclamou ela. - Nada! Eu sou irmã dele. Ele tinha o direito, ele acreditava nisso. Não tenho nada a dizer contra ele. Nada. Os outros?
Ela parou e desafiou Beaufort, de queixo levantado, e os cabelos negros ensopados da chuva caíam, esticados, para os ombros.
Os outros? Hocine era talvez louco, era talvez capaz, num movimento de cólera, de matar a irmã, e isso só a ela dizia respeito, mas matar pessoas como Desbordes, Khaled, Tahar? Não, que não o acusassem desses crimes, porque então ela juraria que tinha sido ela que os cometera: mais valia tomar a injustiça ainda maior, mais demente.
- Para se vingar, pela honra...- acrescentou Beaufort. - Para que ninguém soubesse...
- Que é que tu julgas? - ripostou ela. De repente, Beaufort só ouviu aquele tratamento por tu.
- Que é que julga? - retomou ela recomeçando a andar. Hocine era como toda a gente, só aspirava a arranjar os seus assuntos da melhor maneira. Tinham-lhe pago dois anos de estudos, talvez no Paquistão. Era agora um homem importante no Bairro. Era respeitado. Recebia um salário. Se os polícias o procurassem ele podia mesmo pedir a um advogado que o defendesse e pagar-lhe honorários. Quanto a ela, tinha compreendido: o que ele queria, era conservar tudo isso. Então a irmãzinha devia ter a barriga lisa e os cabelos ocultos debaixo do véu. Como os outros, hipócrita, astuto, medroso, Hocine não queria perder aquilo que tinha ganho: a sua situação. A religião era o seu ofício, ele tinha de acreditar, não? Era preciso que a família Nekoub fosse respeitada, respeitável. E como ela, Amina, não ousava ir-se embora, era preciso que ela dissesse que o achava capaz de a matar, não? Abanou a cabeça e sorriu, um pouco inclinada, infantil, maliciosa. Acrescentou que havia irmãos que matavam, com efeito, e por muito menos que aquilo que ela fizera, em famílias onde a teriam estrangulado. Ela tivera sorte: na sua família tinham sido tolerantes, mesmo Hocine.
Apertava o impermeável nos ombros, com o queixo enterrado na gola.
Muitas vezes, murmurou, era ela que se acusava de ser uma criminosa, porque a criança tinha morrido, porque não devia ter nascido assim, escondida, como um ser a mais.
- E você? Também sentes isso?
Ele fez que sim com a cabeça.
Quando chegaram diante da primeira torre, que se erguia como um farol sobre uma falésia de rochas negras e dominando assim o vale em cujo fundo se estendia Clermont, Amina parou. A chuva deslizava-lhe pelo rosto. Ergueu a cabeça. As nuvens passavam, escondendo por vezes o xadrez das janelas iluminadas. O vento, como uma corrente fria, caía ao longo da fachada e fazia rodopiar a chuva sobre o telhado do alpendre.
- Tens de subir comigo - disse Amina.
Beaufort estendeu-lhe de novo o xaile e o véu, mas ela empurrou a porta de entrada da torre sem agarrar os quadrados de tecido pesados da chuva, depois devolveu o impermeável a Beaufort e repetiu que desejava que ele a acompanhasse a casa. Beaufort estava tão emocionado com o tratamento por tu que ela usava agora permanentemente que não conseguiu responder nem sequer imaginar o que aconteceria quando os pais de Amina - e talvez Hocine - a vissem no limiar do seu apartamento.
- Você quer... - disse, incapaz de a tratar também por tu. Ela sorriu, abanou a cabeça. Se ele estivesse presente seria mais fácil para ela, que era apenas uma mulher que obedecia à lei ao acompanhar um polícia. Que é que ele achava? Passando as duas mãos pela nuca, ela levantou os cabelos e fez cair algumas madeixas para a cara, depois apertou-as friccionando, dizendo que compreendia porque é que os cruzados quiseram partir daqui para Jerusalém, e os gauleses conquistar a Argélia.
- Tu gostas do sol? - perguntou ela.
Ele pensou na paisagens de Lot, nas colinas do Périgord, nesses grandes planaltos de pedras secas e nos meandros do rio encaixados entre as margens abruptas dominadas por um torreão atarracado. Mas hesitou, embaraçado pela ideia de falar de si, do lugar da aldeia de Mauriès, da sua infância nas margens do Dordogne, do calor tempestuoso de Agosto, da vertigem quando saltava do alto das falésias para o rio. O simples facto de se lembrar parecia-lhe agora ridículo.
- Deves gostar do sol - murmurou ela empurrando os cabelos para trás.
Parecia calma, apaziguada, quase serena. Apoiou a palma da mão esquerda no botão de chamada do elevador, com o corpo ligeiramente inclinado, de modo que a túnica negra que Beaufort tomara por um vestido comprido se entreabriu, deixando ver um pulôver demasiado largo, calças de ganga esfiapadas que caíam sobre as sapatilhas.
- Não lhes respondas, mesmo que te insultem - preveniu ela quando entraram na cabine.
O elevador parecia um monta-cargas com as paredes manchadas por tantas inscrições e desenhos obscenos, traçados em grossos traços vermelhos e pretos, que se não podia adivinhar qual havia sido a sua matéria nem a cor original. Ouviam-se miúdos descer a escada a gritar, e, quando Amina abriu a porta, quatro ou cinco crianças dos seus doze anos entraram pela cabina, impedindo Beaufort de sair. Resistiam, aglutinados uns contra os outros, com os bonés enfiados até aos olhos, segurando com as duas mãos as correias das mochilas.
- Isto aqui é animado! - exclamou Amina estendendo-lhe a mão.
Os miúdos barafustavam, retendo Beaufort, enquanto Amina o puxava, rindo. Ao rosto da noite, aos sorrisos esboçados sucedia enfim nela uma jovialidade inesperada, com aquela maneira de dizer abanando a cabeça: "Que parvos! Que chatos!" Ela segurava a porta do patamar, fazia-lhes voar os bonés, e os miúdos protestavam, proferindo insultos, enquanto lhes gritava que desandassem, que iam chegar atrasados. Beaufort teve de súbito a certeza, que nunca confessara a si mesmo, de só poder escapar ao pântano da recordação tornando-se pai de um outro filho, deixando-se retomar assim pelo movimento da vida, aceitando o risco de um novo sofrimento, da angústia quotidiana - sabia agora que as crianças também morrem -, voltando a jogar às cegas na aposta da vida, visto que ignoramos sempre como rolam os dados e quem os lança. Sim, ele soube nesse instante que tinha vontade de correr esse risco, mas disse para si mesmo que Marion nunca aceitaria entrar nessa jogada. Ela dissera-lho repetidas vezes e Beaufort parecera aprová-la pelo seu silêncio. Com o rosto crispado pela amargura, ela explicara que tinha visto tantas vezes a morte rondar, ceifar - a última vez no Ruanda, a grandes golpes de machete nas cabeças das crianças -, que considerava criminoso oferecer à morte uma nova vida, uma vida saída de si. Teríamos o direito, para nosso prazer, nossa pequena alegria egoísta, de empurrar alguém para o açougue?
Marion olhava Beaufort, espiava-o mesmo quando se exprimia assim, com a boca apenas entreaberta, a voz dura.
Muitas vezes perguntara a si mesmo se ela não esperava que ele a contradissesse, a envolvesse com o braço para lhe dar confiança e conduzi-la onde ela dizia que não queria ir, mas que chamava com todo o seu corpo. Mas nunca tivera essas palavras nem esse gesto. Ele próprio tinha necessidade de ser arrastado por uma mulher que, sem pensar em nada, num movimento amplo e instintivo das ancas, lhe tomasse a vida para a fazer renascer nela.
O argumento de Marion, que ele aceitava, deixava-o desesperado. A morte era portanto mais forte. Ela enterrava-lhe as presas na nuca, e ele baixava a cabeça. Renunciava a aceitar o desafio da vida; capitulava. Permanecia imóvel entre os corpos mortos daqueles que amara. Enterrava-se vivo.
Fazer amor com Marion, apesar da ternura, do ardor que ela manifestava, não passava assim de um divertimento, um prazer Para os dois, que não tinha mais importância aos olhos de Beaufort que qualquer dessas pequenas satisfações quotidianas a que os adultos finórios se entregam com moderação.
Amina abanou-lhe a mão. Ele estava a adormecer? perguntou. Indicou-lhe a porta do apartamento que dava para um pequeno patamar situado quatro degraus abaixo do nível a que o elevador parara.
- Não lhes digas nada - murmurou ela.
Franziu as sobrancelhas, libertou o rosto puxando as longas madeixas para trás das orelhas.
Pareceu a Beaufort que descobria assim o perfil regular da menina que ela havia sido e o da criança que, um dia, havia de nascer dela.
Os últimos insultos que Mehdi, o jovem irmão de Amina, gritava da janela perderam-se no crepitar da chuva. Ela tinha vestido o impermeável de Beaufort. As mangas escondiam-lhe as mãos; os ombros caíam, demasiado largos, e as abas batiam-lhe nos tornozelos.
Beaufort caminhava atrás dela, levando os dois sacos de pano em que ela metera os seus livros e trapos, como ela dissera, as notas de curso - "pouca coisa, como vês, a minha vida não é pesada", murmurara ela no elevador.
Era a primeira frase que ela proferia depois de terem penetrado no apartamento.
Passara diante do pai e da mãe, sem lhes lançar um olhar. A mãe começara a murmurar e a fungar, escondendo a cara com as mãos. Era grande, com os cabelos e a testa ocultos por um véu. Acompanhara a filha ao fundo do apartamento e Beaufort ouvira-a salmodiar.
O pai não parara de fixar Beaufort, obrigando-o por vezes a baixar a cabeça. No fim, a tensão era tão grande que o comissário dissera que era melhor assim, para Amina mas também para eles, que não lhe aconteceria nada, que ele era polícia, mas antes de mais nada era um amigo da filha. Não podiam deixar que a espancassem, que a matassem, não é verdade? O pai não podia deixar de estar de acordo?
Estático, com os olhos encovados - como os da filha e do filho Hocine - sob as arcadas supraciliares grossas, o rosto cansado e magro, ele não respondera, com duas rugas profundas em volta da boca. Depois, bruscamente, quando uma porta batera e o irmão de Amina, Mehdi, se precipitara na pequena entrada onde Beaufort estava, o pai apertara-lhe a mão:
- Confio-ta - murmurara. - Ela é honesta, instruída, é a melhor. Leva-a daqui.
Deixara a mão pousada no braço do comissário quando Mehdi começou a gritar, a desafiar este, a repetir que ia levantar todo o Bairro, e que se veria se um panasca como ele podia levar Amina, que isso não estava na lei, que ele não tinha o direito, que iam matá-lo à pedrada, aquele cretino. Gesticulava diante de Beaufort, que continuava a sentir a mão do pai no seu braço.
Depois Amina apareceu, com os dois sacos nas mãos, seguida pela mãe. Mehdi começou então a insultar a irmã: se Hocine a encontrasse, e havia de encontrá-la, matava-a, ela sabia; ela desonrava a família, era uma porca, uma puta. E, atirando-se para a frente como para lhe desferir uma cabeçada, cuspiu-lhe na cara. O pai avançou, rodeando Amina com os braços. Ela não pousou os sacos, mas baixou-se e, por momentos, a sua cabeça ficou apoiada no ombro do pai. Fechara os olhos e parecera a Beaufort que ela chorava. Depois dirigiu-se para a porta e o polícia saiu às arrecuas para fazer face a Mehdi, mas o pai interpusera-se, virando as costas ao filho, continuando a fixar Beaufort, murmurando-lhe, no momento em que este passava o limiar:
- Confio em ti. Amina é o meu coração e os meus olhos, ela é a minha vida.
Beaufort nada respondera, mas, por sua vez, colocara a mão no ombro do pai e, pela maneira como aquele homem o olhara de súbito, compreendera que esse gesto valia para ele um compromisso e uma promessa.
A mãe e o filho gesticulavam ao fundo do corredor. Mehdi repetia que se Hocine estivesse presente, ninguém, e muito menos um chui de merda, teria o direito de entrar no apartamento, e Amina nunca teria ousado apresentar-se à frente dele como uma mulher perdida. Maldita fosse: ela havia de pagar, ela sabia. Que não esperasse escapar ao castigo!
Fora o pai que fechara a porta. Beaufort imaginara-o de costas coladas à porta para impedir que o filho os seguisse.
O comissário agarrara nos sacos de Amina, e, na entrada da torre, como a chuva tivesse redobrado, estendera-lhe o seu impermeável. Ela hesitara, mas depois, assim enfarpelada, metera pela alameda. Surpreendendo-se com aquela reminiscência, Beaufort pensara então na personagem de Chaplin caminhando com roupas demasiado largas, numa estrada, em direcção ao futuro.
Quando, tendo-a alcançado, a ouviu repetir: "Não é grande coisa, como vês. A minha vida não é pesada", ele murmurou - mas sem dúvida ela não distinguiu a sua resposta por causa das rajadas de vento e da chuva - que assim ela podia ir mais longe, mais depressa. E pensou de novo nessa estrada que seguia, direita, no final de Luzes na Cidade.
Amina tinha adormecido. Enquanto conduzia, Beaufort voltava-se frequentemente para lhe lançar uma breve olhadela, enrolada no banco traseiro. O impermeável que ele lhe pusera por cima tinha deslizado, mas, rolando depressa, ele não procurara endireitá-lo. Gostava de a ver assim, com os punhos fechados debaixo da face esquerda, as pernas encolhidas.
A princípio, quando atravessaram Clermont, ela ia sentada ao lado dele. Continuara nesse mesmo lugar quando, na primeira estação de serviço da auto-estrada, ele parara para telefonar a Milner. Ocorrera-lhe essa ideia de repente, assim que saíram do Bairro do Vulcão, quando Amina se interrogava, perguntando a si mesma onde poderia alojar-se, contando e recontando as poucas notas amarrotadas que tirava do bolso das calças.
Com uma autoridade de que não se julgava capaz, Beaufort decretara que ela não podia ficar em Clermont, que devia afastar-se da região e, sem ter sequer reflectido sobre isso, anunciara-lhe que a conduziria a Paris. Ela ficaria em casa de amigos, o seu adjunto François Milner e a mulher, Hélène, que ensinava História Alemã na Sorbonne. Tinham um filho pequeno, Gabriel. Ela poderia ocupar-se dele. Tinham-se mudado havia pouco e procuravam uma pessoa. Ela estava de acordo?
Ela sorrira-lhe, depois começara a dormitar, como que tranquilizada, autorizada enfim a deixar-se levar. Ele ficara feliz com esse abandono. Mas só depois de ter telefonado a Hélène Milner, quando teve a certeza de que ela poderia receber Amina, que as coisas se arranjariam, abriu a porta de trás, levantou o apoio do braço para libertar o banco, e depois murmurou a Amina que lhe bastava instalar-se ali para dormir, porque ainda faltavam várias horas de estrada.
Ela nem sequer abrira os olhos, apoiando-se a ele, enrolando-se imediatamente, e ele tapara-a com o impermeável.
Na estrada, à medida que rolava para norte, o céu ficava limpo, azul no horizonte, por cima das colinas da Borgonha; o sol espelhava-se mesmo nas poças entre as cepas de vinha ou iluminava as vidraças das casas na encosta da colina.
Beaufort sentia-se bem. Aquele era um desses momentos em que as coisas, as ideias, os acontecimentos se encaixam uns nos outros, como se existisse uma ordem preestabelecida e, desde que se achasse a chave, bastava deixar-se levar e guiar pelo instinto.
Havia apenas vinte e quatro horas, teria ele imaginado que iria rolar em direcção a Paris com uma jovem deitada no banco traseiro, que ia confiar a Hélène Milner?
No entanto, era isso que acontecia, e aquilo que até então lhe parecera o essencial da sua vida, as suas relações com Marion Chauvel, essa investigação que devia levar a cabo, tudo se tornava secundário, relegado para segundo plano. Primeiro, instalar Amina Nekoub em casa dos Milner, nesse grande apartamento do XV Bairro que tinham alugado, abandonando o seu domicílio da Rua du Chemin-Vert. Havia um quarto destinado a alojar a pessoa que se ocuparia do filho. Tinham-no mostrado a Marion e a Beaufort, mas, explicara Hélène Milner, havia dificuldade em encontrar uma jovem inteligente, equilibrada, em quem tivessem total confiança. Era como se aquele quarto estivesse à espera de Amina, como se Milner só tivesse mudado de casa com esse fim. E quem sabe até onde ainda ia conduzir a lógica dos acontecimentos, por que caminhos iam tomar a investigação, a própria vida, tão inesperados como aqueles que haviam conduzido Amina até àquele carro, depois àquela Rua de Javel, no fim do XV Bairro, ao terraço do apartamento dos Milner de onde se avistava o Sena?
Amina acordou quando Beaufort rolava já pelos cais.
Ele não sentia qualquer fadiga. Pelo contrário. Nunca, desde havia anos, sentira uma tal impressão de vigor, quase de juventude. Principalmente - e isso surpreendia-o mais que tudo -, não se achava culpado por ter vontade de viver, ousava quase sentir-se feliz por existir.
- Como vai isso? - lançou para Amina, que se sentara e cujo rosto ele via pelo retrovisor.
Ela pousou a mão no ombro de Beaufort durante alguns segundos, como um agradecimento que não formulava.
Do terraço, Beaufort observava Amina e Hélène Milner.
Tinha puxado a porta envidraçada, de modo que não ouvia o que elas diziam. Hélène franzia as sobrancelhas, tinha testa enrugada. Amina, com a boca entreaberta, abanava a cabeça. De vez em quando, Hélène, com a mão esquerda, puxava as madeixas negras que se lhe escapavam do carrapito, e depois, com o punho fechado, sublinhava as suas frases com um gesto rápido. Beaufort imaginava o som da voz, a paixão angustiada com que ela falava. Por vezes, quando jantavam os quatro, com François Milner e Marion Chauvel, ele comprazia-se a provocar Hélène, simplesmente para lhe ouvir a voz, suportar a sua cólera, descobrir uma vez mais o seu entusiasmo, assegurar-se de que ela não renunciara. Tinha necessidade de ouvi-la repetir que os polícias e os jornalistas, à força de farejarem nas pregas e repregas sujas da vida, já não sentiam mais nada além disso, o cheiro a podre, a morte, o horrível fedor da decomposição. Ela, porque estava em contacto com estudantes, respirava outra coisa, o desejo de pureza, de justiça. "Vocês já não sentem nada da verdadeira vida, exclamava. Já não acreditam em nada!"
Exaltava-se. Marion baixava a cabeça com ar aborrecido. Beaufort, algumas noites, prolongava a disputa, falava do nazismo, dos estranguladores, do desejo de crime, de violência e de terror que arrasta os homens. François Milner suspirava, voltava a encher os copos. O bem, o mal, murmurava, não iam repisar esse velho problema filosófico. E se falássemos de outra coisa?
De que falava Hélène agora com Amina? Via-a, com as palmas das mãos apoiadas na mesa, debruçada para a jovem que, de repente, desatou a rir. Beaufort sentiu-se feliz; pela primeira vez desde havia muito tempo, tinha a sensação de haver praticado uma acção justa e clara.
Deu a volta ao terraço. O apartamento, situado no último andar, parecia um posto de vigia. Avançou até ao extremo. Apesar do sol que fazia cintilar o rio, o vento era gélido. Os contornos do relevo desenhavam-se tão nitidamente sobre o azul-vivo do céu, que as colinas pareciam o ressalto de uma vaga negra que desabava e ameaçava cobrir o espaço caótico da cidade.
Beaufort abrigou-se atrás da sebe de tuias que Hélène plantara no rebordo do terraço. Mas estava a tremer. A fadiga fazia-se sentir. Sentou-se no banquinho em frente da cozinha e puxou a gola do casaco. Estava melhor assim, protegido do vento, com o sol a aquecer-lhe as costas.
Via Amina e Hélène diante uma da outra. Hélène segurava o queixo da jovem com a mão esquerda e, com a direita, em gestos lentos, limpava as equimoses que lhe escureciam e inchavam as maçãs do rosto e as têmporas. O algodão deslizava como uma carícia.
Com a cabeça um pouco inclinada para trás, Amina sorria como uma criança que se deixa tratar.
Beaufort fechou os olhos.
Tinha dormido?
Sobressaltou-se, endireitou-se. Onde estava ele?
Amina gritava:
- Eles mataram Khaled, mataram-no!
Amina estava na extremidade do terraço. Agitava os braços, parecia chamar por socorro. Quando ele se precipitou para ela, imobilizou-se, de braços abertos, depois ajoelhou, com os braços a rodear o peito, dobrada sobre a sua ferida e a sua dor.
- Khaled, Khaled também - murmurou ela para Beaufort, que a conduzia para a sala onde se encontrava Hélène Milner, de pé diante do ecrã da televisão.
Beaufort mantinha Amina apertada conta ele, rodeando-lhe os ombros, olhando aqueles jovens que corriam gesticulando pelas alamedas do Bairro do Vulcão. No parque de estacionamento, diante da última torre, bombeiros, protegidos por um cordão de polícias, lutavam contra os incêndios. Fora ali que, quando o nevoeiro se dissipou, tinham encontrado o corpo de Khaled estendido sobre a capota de um carro, de braços abertos, com o rosto voltado para o céu.
Aqueles que o encontraram não ficaram surpreendidos com a sua imobilidade debaixo da chuva, com aquela estranha postura que ele assumira, de costas contra o pára-brisa. Quem se preocupava com quem? Cada um seguia o seu caminho. Devia ser um desses drogados com os quais as pessoas por vezes chocavam à entrada das torres e aos quais corriam a pontapé para que fossem morrer noutro lado.
Fora o dono do carro que, querendo agarrar o corpo pelos braços para o fazer cair da capota, descobrira as palmas das mãos manchadas de sangue, aquela ferida no flanco, as manchas escuras que lhe haviam retesado a camisa. Pusera-se a gritar: tinham-lhe sujado o carro. Quem era aquele imbecil? A polícia chegara pouco depois, mas os jovens do Bairro já tinham invadido o parque de estacionamento, deitado fogo ao veículo, gritando que se não deixariam matar uns atrás dos outros como carneiros, que iam descer a Clermont, saquear as ruas, que era preciso que os ouvissem.
- Porquê este crime? - interrogava o jornalista. Estendia o microfone a Hocine Nekoub, que estava de braços cruzados no meio de um grupo de jovens do Bairro. Por baixo da djellaba aberta, via-se-lhe o fato cinzento e a camisa branca.
Ao reconhecer o irmão, Amina fechou os olhos, baixou a cabeça e depois, como se procurasse a escuridão, o silêncio, o esquecimento, encostou o rosto ao peito de Beaufort, que começou a acariciar-lhe os cabelos, lentamente, como quem acalma uma criança.
Hocine Nekoub falava com segurança e gravidade. De vez em quando, abria os braços, voltava-se, mostrava os jovens. Acusamos! dizia. Assassinavam-se jovens, muçulmanos, sem que a polícia descobrisse os culpados.
O jornalista protestou. Mas Hocine deu então um passo em frente, de braço esticado, ameaçador. Havia menos de uma semana, tinham descoberto o corpo de um jovem na floresta de La Chaise-Dieu. Que era feito da investigação? Os polícias, um comissário, tinham ido ao Bairro, mas para nos interrogar, a nós, as vítimas, para nos acusar, a nós, para nos prender a nós, sem mandato, sem sequer recorrer a um juiz de instrução! Nós não somos franceses?
O crime da floresta de La Chaise-Dieu era horrível. O jovem tinha sido torturado. A polícia pretendia tê-lo identificado. Seria verdadeiramente Tahar, a quem toda a gente conhecia e estimava aqui, no Bairro? Porque é que nos mantêm à margem? Mas estarão realmente decididos a descobrir os assassinos? Ou querem lançar uma nova cruzada contra o Islão?
A voz de Hocine Nekoub foi abafada pelos gritos e aplausos dos jovens que o rodeavam.
- O padre Desbordes - objectou o jornalista - não era muçulmano...
- Acusem-nos a nós, acusem-nos! - exclamou Hocine numa voz penetrante. - O padre Desbordes compreendia-nos, estimava-nos. Ele respeitava a nossa fé. Vivia aqui, connosco, no Bairro do Vulcão. E se fosse essa a razão por que o mataram?
As últimas imagens da reportagem eram tiradas de longe, sem dúvida da estrada de Clermont, abaixo do Bairro do Vulcão. O bulício humano nos parques de estacionamento e nas alamedas tinha desaparecido. As torres voltavam assim a ser os blocos minerais perfurados por alvéolos, rodeados pela grande floresta sombria que descia as encostas. A câmara girou para os cimos, para o céu, sugerindo com o seu movimento que um dia a natureza recuperaria os seus direitos e que do Bairro do Vulcão ficariam apenas alguns vestígios esparsos, um pedaço de estrada, uma carcaça de metal - esta última imagem em grande plano que terminava a sequência.
Uma outra abriu com corpos estendidos à beira de um caminho. Mulheres choravam. Soldados, com o rosto dissimulado por máscaras negras, empurravam homens de djellabas contra uma parede. Nas ruas estreitas, centenas de homens ajoelhados inclinavam-se enquanto se elevava uma prece pronunciada em voz gutural. O rosto de um velho invadiu o ecrã, depois o de uma religiosa, com a testa cingida pelo véu branco. "Os integristas mataram-nos, degolaram-nos durante a noite", declarava uma voz.
Hélène Milner cortou o som. Indignou-se: o relacionamento dos assuntos, o próprio ângulo das tomadas de imagens, a escolha dos planos, tudo, não passava de manipulação, propaganda insidiosa. Fingiam mostrar, quando na verdade ocultavam. O integrismo e o crime eram consequência da miséria, protestava ela.
- Muçulmanos ou não, as pessoas estão exaustas, dispostas a acreditar seja no que for. Ontem, era aAlemanha; hoje, a Argélia. Nazismo, integrismo...
Encolheu os ombros, abanou a cabeça. Quem explicava?
Ninguém. Saiu da sala falando, e Beaufort ouviu-a soliloquiar na cozinha. Regressou:
- Como não ser fanático quando se morre de fome?
Amina ergueu-se lentamente, mas Beaufort continuou a apertá-la contra ele.
Parecia-lhe que sempre a conhecera, que sempre a segurara assim, que ela tomara o lugar que lhe estava destinado. Era ali que ela devia estar. Ele tinha a atitude de quem protege, mas era ele que era tranquilizado pelo corpo daquela jovem, pelo contacto com os seus cabelos que sentia debaixo dos dedos.
- É preciso que vocês os encontrem - murmurou Amina dirigindo-se para o terraço. - Não os deixes voltar a matar. Descobre-os!
Beaufort seguiu-a com o olhar enquanto a sua silhueta pensativa ia e vinha, passando e voltando a passar diante da porta envidraçada, com o busto inclinado para a frente. Hélène pousou a mão no pulso de Beaufort.
-Ela é bonita, é nobre - disse em voz baixa.
Os grandes mantos negros da Diferença
Logo que entrara no vestíbulo do hotel, em Clermont, Beaufort vira-os. Estavam sentados no salão, em frente da recepção. Falavam alto. A voz de Jean-Marie Borelli, o cronista de Radio Première, dominava todas as outras: "Mas quem queriam vocês que fosse? É claro que foram os integristas que o assassinaram! Mataram Desbordes porque ele era um sacerdote, um dominicano, como matam os cristãos, os estrangeiros na Argélia. Mas tudo bem, continuem, preguem a tolerância e a compreensão, vá, vá, deixemos que eles nos aterrorizem..."
Borelli falava, com a cabeça inclinada para trás, de olhos fitos no tecto do salão mergulhado na penumbra.
Beaufort detestava aquela voz estridente, ligeiramente velada e rouca. Que vinha Borelli ali cheirar?
Manteve-se afastado, de maneira a não ser visto do salão, tentando adivinhar quem eram os outros jornalistas reunidos à volta da mesinha coberta por uma toalha bordada.
Reconheceu imediatamente Marion. Estava de costas para ele, mas os cabelos dela saíam do espaldar da poltrona e distinguia-lhe as pernas cruzadas, a mão pousada no joelho direito. Pela maneira como estava sentada, ele imaginava a expressão do seu rosto, desdenhosa, aborrecida, cansada, a de uma pessoa que viu tantas coisas que já nada a espanta. Talvez devido à tensão da viagem, da fadiga que o fazia cambalear - havia quase dois dias que verdadeiramente não dormia -, teve um acesso de mau humor, de cólera mesmo. Que necessidade tinha ela de se deslocar também ali? Clermont não era Kigali!
Recordou-se no entanto de que ela anunciara a sua chegada, explicara que o assassínio do padre Desbordes atrairia os enviados especiais, e eles ali estavam, com efeito, sentados ao pé dela.
Beaufort não queria encontrar-se com eles.
Estendeu a mão para que lhe entregassem a chave, mas, nesse instante, Marion chamou-o. Voltou-se. Ela caminhava para ele, e todos o olhavam. Ela indicara-lhes sem dúvida que ele era o comissário encarregado da investigação.
Ele agarrou a chave e, sem sequer lhe responder com um gesto, dirigiu-se para o elevador.
Achava-se ridículo, grosseiro. Não compreendia por que agia assim em vez de esperar Marion, agarrá-la pelos ombros, beijá-la, nem que fosse apenas por amizade, como podem fazer um polícia e uma jornalista que são levados a cruzar-se muitas vezes durante as investigações. Em vez disso, afastava-se sem uma palavra, como um alarve, e Marion alcançava-o, agarrava-o pela manga do impermeável, diante do elevador:
- Mas que é que tu tens? - perguntou ela. - Não a tinha visto?
Ele gaguejava. Tinha feito o percurso Clermont-Paris e volta. Não tinha dormido na noite anterior. Não lhe apetecia enfrentar jornalistas, não tinha de resto nada a dizer-lhes. Nunca se encontrava com a imprensa durante uma investigação, ela sabia isso.
Ela era a imprensa? exclamou ela colocando-se à frente dele.
Ele hesitou. Sentiu-se tentado a afastá-la, a exprimir brutalmente aquilo que sentia ainda há pouco: que nunca haviam formado um casal, mas apenas a associação de duas solidões. Que eram dois desadaptados, oh, não desempregados ou sem-domicílio-fixo, pelo contrário, quase uns êxitos sociais, em todo o caso nada tinham a ver com os excluídos. Ela, correndo de um extremo ao outro do mundo, uma dos "grandes nomes" - ah, a bela designação de que ela se orgulhava! - do L'Indépendance, um olhar agudo, uma pena hábil, dizia-se; ele, nomeado comissário, promoção ao mérito, a quem o ministro do Interior recebia e escutava em privado. Dois transviados, no entanto, na vertente sombria da vida, incapazes de querer um filho, por medo, cobardia, desespero, por pessimismo e egoísmo. Transviados, imbecis, juntos para não se matarem, para se vigiarem um ao outro...
Era isso o que ele tinha vontade de lhe lançar, como se a fadiga o tornasse mais lúcido, amargo, impiedoso.
Marion olhava-o, com a cabeça um pouco inclinada para o ombro direito, uma ruga a dividir-lhe a testa. Havia tanta tristeza e cansaço nos seus olhos que Beaufort acabou por murmurar que a não tinha reconhecido. A penumbra, o cansaço..., explicou. Tinha feito a estrada entre Paris e Clermont debaixo de chuva, como um sonâmbulo. Devia deitar-se para poder retomar a investigação no dia seguinte.
Ela esforçou-se por lhe falar pausadamente, mas os seus olhos encaravam Beaufort, tentando captar o seu olhar que se furtava, e, pouco a pouco, a sua voz alterou-se como no final de uma corrida. Todos aqueles assassínios, o do padre Desbordes e, antes dele, o do jovem da floresta de La Chaise-Dieu, depois aquele corpo encontrado nessa mesma manhã no parque de estacionamento do Bairro do Vulcão, sem contar os outros que os tinham precedido... Dizia-se que havia vários crimes inexplicados, sempre jovens muçulmanos... Afirmava-se também que Beaufort fora pessoalmente encarregado pelo ministro do Interior, que o recebia regularmente. Era verdade?
Ele não respondeu, encostado à parede como para se segurar.
Está ali toda a gente, continuou Marion, ofegante. Brigitte Georges apresentava uma edição especial do jornal das vinte horas, na KTE, do Bairro do Vulcão. Tinham filmado durante todo o dia no local, gravado entrevistas.
Ele conhecia Hocine Nekoub? Marion encontrara-se com ele. Era impressionantemente calmo, de uma grande clareza. Um dirigente de uma grande autoridade. Tinha dado uma conferência de imprensa. Beaufort tinha-o interrogado?
Marion esperou em vão que ele descerrasse os dentes.
Estava também Borelli, recomeçou ela em voz surda. Como era costume, iria lançar azeite no fogo. O que ele queria, era merda. Gozava com aquilo. Rejubilava. Os outros, como Joan Finchett, do Continental: razoáveis. Joan preparava um dossier sobre os subúrbios, o integrismo, a América amanhã em França, etc. Beaufort imaginava. Que pensava ele disso? E a sua investigação?
Repetiu a pergunta, depois perguntou num murmúrio se ele a ouvia.
Ele olhava-a. Tinha um rosto marcado, menos por causa das rugas que lhe rodeavam os olhos e a boca do que porque emanava dos seus traços uma amargura irreprimível, e, ao olhá-la, Beaufort tinha a impressão de descobrir nela o mais negro de si mesmo. Era o espelho de aumentar da aflição difusa de que ele estava impregnado. Ela exprimia sem reserva o receio - que transformava em certeza - de que o futuro não tinha saída, de que os anos que tinham pela frente seriam piores que aqueles que já tinham vivido, que a vida não era mais que um abismo.
Talvez, se ele se recusava a formar um casal com Marion, fosse porque tinha ainda bastante entusiasmo, força, fé, optimismo para rejeitar essa parte sinistra dele que ela encarnava. Ele tinha necessidade - essa necessidade era um pequeno rebento frágil - de acreditar, de ter esperança. Ela não deixava nenhuma possibilidade. Mostrava o deserto estéril de uma vida mineral à volta deles, à sua frente. Só a ele, ao seu corpo, ela ia buscar um pouco de vida. Ele sentia-o e isso apavorava-o. O amor, para ela, não era já uma festa desordenada, espontânea, mas um ritual grave, aplicado, como um dever, uma cerimónia fúnebre à porta fechada, todas as portas fechadas sobre dois corpos suados.
Viver, para quê, então?
Ela olhava-o, depois baixou a cabeça pela primeira vez, como se lhe tivesse lido os pensamentos. Retomou fôlego.
Por que tivera ele de ir a Paris? Porquê essa ida e volta no mesmo dia? Um elemento novo?
Ele encolheu os ombros enquanto carregava no botão para chamar o elevador. Essa jovem, a irmã de Hocine Nekoub, ele detivera-a? Sabia que Hocine se preparava para apresentar queixa por violação, violências, rapto, sequestro? Ia pedir a Benoít Rimberg que fosse seu advogado. Beaufort compreendia o que isso significava? Rimberg faria o processo dos métodos da polícia, do ministro do Interior. Ele era conhecido: talentoso, impiedoso. Havia de fazer-se arrogante. Os imigrantes, a liberdade individual, etc. Beaufort medira os riscos? Porque o ministro não lhe daria cobertura. Haviam de abandoná-lo a Rimberg. Ele dava-se conta? O que era essa mulher? Ele ia sair daquilo feito em bocados.
- Estou-me nas tintas - respondeu Beaufort entrando na cabina do elevador.
Esperou que a porta se fechasse para se voltar.
Ao acordar, Beaufort teve a sensação de que os seus olhos já não conseguiam apreender o espaço à sua volta.
Onde estava?
Zonas inteiras permaneciam na sombra. A sua visão era limitada e fluida. As linhas curvavam-se. Tentou voltar a cabeça, mas uma dor aguda apertou-lhe o crânio à altura das sobrancelhas, e pensou que os globos oculares lhe iam rebentar.
Onde estava?
Pensou que tivesse sofrido um acidente na auto-estrada, ao regressar de Paris a Clermont. Depois recordou-se do seu encontro com Marion no vestíbulo, da porta do elevador que se abria e fechava. Talvez a cabina tivesse ficado imobilizada entre os andares.
Tentou novamente mover o pescoço, fechando os olhos e atirando a cabeça para trás, mas o sofrimento foi ainda mais forte. E foi essa dilaceração da nuca, como se lhe arranhassem ou esfacelassem a base do crânio, que lhe fez reviver a cena.
... Aqueles homens, com o rosto tapado com lenços, boinas enterradas até aos olhos, esperavam-no na escada da torre. Quando saíra das instalações da associação do padre Desbordes, tinha-os visto, imóveis, apenas por alguns segundos. Hesitara, quando o que seria necessário era agir como que por reflexo, reentrar, barricar-se, pedir socorro.
Caíram sobre ele e agrediram-no a pontapé, ao soco e à cabeçada; e um deles brandia um tijolo com as duas mãos. Beaufort protegera o rosto com o braço esquerdo e, agora, tacteava com as pontas dos dedos o cotovelo ligado.
Devia portanto estar no hospital.
Depois, quando o homem levantava de novo o tijolo, Beaufort ouvira vozes de crianças nos andares, gritos e risos.
Fora lançado ao chão, mas, esticando as pernas, repelira o homem do tijolo, disparando-lhe o tacão na têmpora, e, nesse momento, conseguira gritar, talvez dizer: "Socorro, miúdos! Miúdos, salvem-me!" e ouvira-os gritarem com mais força, descerem as escadas, antes do patamar onde ele estava derrubado, enrolado para se proteger.
O tipo lançara o tijolo na sua direcção, mas Beaufort conseguira evitá-lo. Ouvira pragas numa mistura de árabe e de francês, depois os três ou quatro homens desapareceram e os miúdos devem ter-se debruçado sobre ele, examiná-lo, avisar alguém.
Estava portanto no hospital.
Deslizando a mão aberta pela mesa de cabeceira, depois pela parede, tentou em vão descobrir uma campainha. Apurou o ouvido, ouviu apenas um ataque de tosse, o rangido distante de uma porta, vozes abafadas que se aproximavam e depois se esfumavam. Era talvez de noite?
Que fizera ele depois de ter deixado a porta do elevador fechar-se atrás de si, sem se voltar, para evitar ver o rosto suplicante e infeliz de Marion Chauvel?
Lembrava-se das manchas escuras no tecto do seu quarto do hotel. Eram os sinais da doença que minava a vida. Sentira frio. A luz era cinzenta. Começara a tremer. Sentado em cima da colcha de um azul desbotado, marcara então o número dos Milner. O tapete estava sujo, puído. Ele voltara a marcar o número. Imaginara a voz calorosa de Hélène. Ela falar-lhe-ia de Amina com entusiasmo. Erguera os olhos. O fio que levava a uma tomada eléctrica redonda, rachada, estava descolado da parede e pendia ao lado da sua marca, rasto enegrecido daquilo que fora uma pintura branca e que não era mais já do que um amarelo de urina.
Não fora Hélène que atendera, mas François Milner. Falava como quem apresenta um relatório. O ministério procurara contactar com Beaufort durante toda a tarde. O caso Desbordes inquietava-os. Os jornais televisivos, a imprensa da tarde tinham feito dele os seus grandes títulos. As violências que ocorreram de manhã no Bairro do Vulcão faziam temer um contágio dos outros subúrbios. Borelli, na sua crónica da Radio Première, traçara um quadro apocalíptico do futuro, denunciando a estratégia terrorista dos integristas. Houvera os atentados, depois tinham assassinado o padre Desbordes, eles provocavam motins, queriam levar a guerra santa à Europa, ao solo francês. O Bairro do Vulcão fora escolhido pelos integristas porque fora em Clermont que havia sido lançada, há nove séculos, a primeira cruzada.
- Criminoso, inconsciente, provocador! - comentara Milner.
Mas a pressão da opinião pública ia exercer-se fortemente sobre o governo, explicara. O padre Desbordes era uma personalidade de dimensão nacional...
Beaufort escutara-o em silêncio. Depois, quando Milner o interrogara, respondera laconicamente que era preciso reunir todos os elementos de informação sobre o passado de Desbordes, as suas amizades, as suas inimizades, os seus costumes, etc. Milner encarregar-se-ia disso em Paris, e ele em Clermont. Depois ficara à espera de que o inspector lhe falasse de Amina. Mas Milner parecia recusar-se a isso, evocando o que sabia acerca do padre Desbordes, do seu empenhamento nos anos 60 ao lado dos nacionalistas da FNL, da ajuda que lhes havia dado nas redes de apoio, em França, do seu papel nos comités "Verdade-Liberdade" que haviam denunciado a tortura naArgélia. Ele conhecera nessa altura o sociólogo Georges Bourrières, e Josserand, actual director do L'Indépendance. Bourrières e Josserand tinham esquecido o seu passado esquerdista; Desbordes era o único desse grupo a ter conservado um empenhamento social, uma moral da devoção, um apego a tudo o que dizia respeito à Argélia, ao Islão.
Ele tinha mesmo vivido do outro lado do Mediterrâneo até 1972. A sua morte permitia a todos os seus antigos camaradas terem boa consciência. Escreviam-se elogios fúnebres. Faziam-se grandes títulos de primeira página. Milner interrompera-se:
- Marion está em Clermont, contigo? - perguntara. Beaufort não respondera, deixando-o continuar. Desbordes pertencia à Igreja. Um sacerdote católico morto pelos integristas, era, para a direita e para a extrema-direita, um crime exemplar. Eles já rejubilavam. Borelli fornecia-lhes argumentos.
- Irresponsável, irresponsável - repetira Milner.
- É preciso reflectir em tudo isso - murmurara Beaufort. Depois ousara falar de Amina.
Milner parecera hesitar muito tempo antes de responder, limitando-se a dizer que a jovem tinha sido imediatamente aceite por Gabriel. "As crianças são intuitivas" acrescentara. Beaufort não ousara interrogá-lo de novo, acrescentando apenas num suspiro: "Protege-a." Como Milner quisesse fazê-lo repetir, ele balbuciara que ela estava talvez ameaçada; mas exprimira-se ainda de maneira tão confusa que Milner tivera de explicar que a linha estava má, que não percebera nada, que não compreendia. Entretanto, acrescentara erguendo a voz, Beaufort não devia inquietar-se com isso, Amina Nekoub tinha-se adaptado em menos de nada. "Adoptámo-la" insistira ele.
Depois interrogara o comissário sobre a conferência de imprensa de Hocine Nekoub e sobre a queixa que o irmão de Amina tencionava apresentar. "Por violação" precisara ele desatando a rir. Que pensava ele da entrada de Benoít Rimberg no caso?
Beaufort furtara-se e desligara.
Sentira-se irritado, inquieto, mesmo envergonhado com a sua timidez, com aquela atitude equívoca que não conseguia dominar.
Então deitara-se em cima da cama e o telefone tocara imediatamente. A voz de Marion, angustiada, insistente: "Jean-Louis, Jean-Louis", repetia aquele nome como uma litania. Mas que se passava? Que tinha acontecido? Por que não respondia ele? Ela estava ali, naquele mesmo hotel, e iam passar a noite em quartos separados? Sem a mínima explicação? Ele conhecia-a. Ela nunca exporia as suas relações. Compreendia bem que ele fizesse questão de não se ostentar com uma jornalista. Seja. Mas achava que os iam fotografar na cama?
Ele pousara o auscultador e a voz continuara, distante, chorona, depois subitamente seca, dura, cortante: "Tu és um idiota" concluíra ela desligando.
Beaufort adormecera assim, vestido, tirando apenas os sapatos, esmagado por uma fadiga dolorosa que lhe mortificava as pernas, os ombros, a cabeça. Ao acordar, tinha frio.
A noite mal começava a dissipar-se quando ele tomara a estrada do Bairro do Vulcão. Durante toda a subida, no flanco da encosta, entre as árvores, o nevoeiro colara-se ao pavimento, tornando a visibilidade quase nula. Os próprios ruídos desapareciam. As motorizadas ou as motas surgiam de repente, apagando-se ao fim de alguns segundos, o tempo de aperceber os rostos envoltos em lenços, as golas dos blusões de ganga levantadas.
Beaufort parara o carro longe dos parques de estacionamento do Bairro, depois caminhara no meio das alamedas desertas; o espaço que atravessava parecia nu, as torres dissolvidas no nevoeiro, os clarões dos candeeiros mal coloriam aquele algodão cinzento e viscoso que cortava a respiração, de tão gelado.
Tivera dificuldade em orientar-se e acabara por fazer parar dois jovens que se recusaram a responder-lhe, mas, em vez de os deixar afastarem-se, ele exigira violentamente, sem dúvida sob o efeito da fadiga, que o conduzissem à torre do padre Desbordes. Exibira o seu cartão de polícia. Fora talvez nesse momento que desencadeara a armadilha que ia atingi-lo. Mostrara-se brutal, segurando os dois jovens pelo braço, empurrando-os à sua frente - "E não se enganem!" repetia-lhes, empurrando-os. Eles tentaram libertar-se, mas, resmungando, haviam-no conduzido até à torre. Assim que os soltara, com as suas silhuetas já perdidas no nevoeiro, os dois jovens insultaram-no, ameaçaram-no. Iam arrancar o couro àquele chui estúpido. O couro! Um deles gritara, como os manifestantes de dois dias antes: "De pé, árabes! Começou a guerra!"
Ao ouvi-los, Beaufort acalmara-se. Teria ele maltratado assim os alunos do Liceu Janson-de-Sailly que se tivessem recusado a informá-lo, a guiá-lo? Tinha-se comportado como um branco arrogante, mesmo que a atitude daqueles dois jovens para com ele tivesse sido provocante e agressiva.
Percorrera lentamente as duas salas da associação do padre Desbordes, recordando a noite que ali passara com Amina Nekoub. Naquele lugar, qualquer coisa de novo havia começado nele, qualquer coisa a que ele não dava nome, que se recusava mesmo a analisar, consciente apenas de ter mudado, de reagir de maneira diferente, de ser agora mais emotivo, mais impaciente, mais exigente - e Marion Chauvel fora a primeira a sofrer as consequências daquilo que se passara nele, ali, naquele lugar onde tinha o sentimento de que acabavam de se ligar os fios dos três últimos crimes, o de Desbordes, o de Tahar e o de Khaled, talvez também os dos assassínios anteriores.
Se, como pensava, eles estavam todos ligados.
Examinara o ficheiro, a biblioteca do padre Desbordes, descobrira uma espécie de diário manuscrito que enchia um caderno quadriculado semelhante àquele em que o padre escrevia os seus poemas. Reunira os documentos que lhe pareciam mais pessoais, depois abandonara o local.
Fora então que apercebera, na escada, aqueles homens com os bonés enfiados até às sobrancelhas e de rosto mascarado por lenços vermelhos com manchas amarelas.
-Eles querem matá-lo - pensou Amina. Estava sentada, sozinha, no salão do apartamento dos Milner. Hélène acabava de sair com Gabriel. "Descanse mais um pouco", recomendara-lhe ela, segurando a porta do elevador aberta. Ela insistira: era preciso que Amina se ambientasse ao lugar, olhasse e farejasse, se instalasse naquele espaço, se habituasse ao seu quarto, a todo o apartamento.
- Vai viver aqui não se sabe quanto tempo; é preciso que se sinta bem -repetira.
Amina devia abrir as gavetas e os armários, folhear os livros da biblioteca. Gabriel gritara que queria dar os seus brinquedos à jovem para que ela não se aborrecesse.
Ela sentira vontade de chorar, passando os dedos pelos cabelos anelados da criança. Quem sabe o que seria do seu filho se ele tivesse sobrevivido?
- Sente-se bem? - perguntara Hélène Milner. Amina deixara sem dúvida, a seu pesar, transparecer a sua emoção, e também o seu desespero. Esse menino a quem tinham chamado Réda, o seu filho, que teria ele sido? Um pequeno árabe que conheceria a sorte de Mehdi e de Hocine, mesmo que se tivesse mostrado o mais atento, o mais disciplinado dos alunos, dos estudantes. Um dia, alguém lhe faria soletrar o seu nome, o apelido, "Réda Nekoub" e isso significaria: "Que é que tu fazes aqui, de onde vens tu, por quem te tomas, que é que queres? Tu não tens direito a nada." E talvez Réda se tornasse furioso como Hocine. Ela compreenderia a sua cólera e tê-lo-ia aprovado, tolerado, como a sua mãe e até o pai, que não condenavam Hocine e aceitavam que ele impusesse a sua lei no seio da família. A mãe e o pai que a haviam aconselhado, a ela, a submeter-se, a usar o véu, a esconder assim a sua vergonha, a tornar-se ao menos uma muçulmana orgulhosa daquilo que era, em vez de uma jovem árabe - era assim que eles lhes chamavam a todos - desprezada, escarnecida, insultada.
Então Amina baixara-se, beijara Gabriel. Estava bem, respondera. Olharia todos os brinquedos do menino, prometia; quando ele voltasse, ficaria com ele no quarto.
Eles tinham saído. Ela escutara o ruído do motor do elevador, o ranger dos cabos, e, de repente, fora o silêncio, depois o rumor do vento que vergava as tuias do terraço. Passara de uma sala a outra, abrindo com gesto maquinal, para obedecer a Hélène Milner, os roupeiros e armários, as gavetas, descobrindo todo aquela amontoado de objectos: talheres, lençóis, camisas, copos, brinquedos; depois começara a examinar os livros, atraída por obras em alemão que folheara, depois por outras sobre a história do nazismo, começando a ler, de pé, aquele livro de Arno Meyer, A Solução Final na História, fascinada pelo relato das violências perpetradas pelos "soldados de Deus" esses cruzados que, convidados pelo papa Urbano II, em Clermont, a irem libertar a Terra Santa, haviam deixado ao longo do seu caminho um interminável rasto de sangue. Primeiro o dos judeus, depois o dos muçulmanos:
O conde Echino, quando entrou em Maiença, foi o opressor de todos os judeus. Não mostrou qualquer piedade pelos anciãos, nem pelos jovens, nem pelas crianças, nem pelos bebés, nem sequer pelos doentes. Tratou o povo de Deus como a poeira que se espezinha, matando os jovens à espada, esventrando as mulheres grávidas... Num único dia, mil e cem santas foram mortas e massacradas, com crianças, que não tinha pecado nem transgredido a Lei, as almas de pobres pessoas inocentes...
Arrumara o livro com uma sensação de náusea.
Lembrava-se daquele texto de Voltaire que tivera de explicar no Liceu Godefroi-de-Bouillon, e da pequena frase ambígua da professora, Mme Robin: "Isto há-de interessar-lhe, principalmente a si..."
Porquê a ela? Porque ela se chamava Amina Nekoub? Porque a morte daquelas crianças judias, a das mulheres desventradas de Maiença devia interessar apenas aos judeus? Porque o massacre dos Tutsis no Ruanda devia revoltar apenas os Tutsis?
Mas que mundo era este?
Lembrava-se daquele professor do Bairro do Vulcão, M. Chavances. Era um homem novo, magro, que desejava que os alunos o tratassem por tu. Ela própria nunca se atrevera. Ele passava entre as carteiras, colocava a mão no ombro dela, felicitava-a, e era como um fluxo de sangue quente que subia à garganta de Amina e lhe ruborizava as faces. Ele lia sempre, porque ela obtivera a melhor nota em expressão escrita, o texto que ela tinha redigido. Ela baixava a cabeça.
Regressava sozinha, depois da aula, e, caminhando ao longo das alamedas do Bairro, recitava as frases do seu trabalho, repetia para si mesma as palavras de M. Chavances. Estava feliz. Tinha pressa de que a noite passasse para voltar à sala de aulas, reencontrar M. Chavances que abria as portas do armário dos livros e a tinha nomeado bibliotecária. Registava num grande livro os nomes daqueles que pediam livros emprestados. Todos os sábados de manhã zelava por que eles devolvessem os livros dentro dos prazos. M. Chavances sentava-se por vezes ao pé dela, fazia deslizar o dedo pela coluna dos nomes. Olhava para Amina e dizia: "Aquilo que faz a diferença entre as pessoas, é apenas a bondade e a generosidade. Tirando isso, são todas iguais. Mas há aqueles que querem saber. São a inteligência e o trabalho que dão a liberdade. Tu compreendes, Amina?"
Quando, ao regressar a casa, ela se instalava, colocando os cadernos sobre a mesa baixa, a mãe não parava de girar na sala, falando sem parar: Amina devia despachar-se, o pai ia chegar, era preciso pôr a mesa, e para que servia aquilo, o estudo? Hocine também tinha estudado, e não encontrava nada, nenhum trabalho, mas tinha sido espancado, e o mesmo aconteceria com Amina, com Mehdi...
Amina não queria ouvir. Mais tarde, quando se tornou aluna do liceu, trabalhava na sala da biblioteca e só regressava a casa já de noite, num dos últimos autocarros. Gostava da atmosfera da aula, gostaria de ser interna, e nunca mais sair do liceu, nem ao domingo. Estudava. Cada qual tinha o seu lugar. O mundo era ordenado, justo, como uma República ideal, aquela com que Rousseau sonhava: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Era francesa, livre, igual. Os outros eram fraternos com ela.
E depois, um dia, aquele texto de Voltaire sobre a cruzada. E, alguns meses depois, Tahar a apertar-se contra ela no autocarro que descia de Clermont. E aquele filho que a sua mãe, arranhando as faces, batendo no peito, salmodiando a sua vergonha e a sua cólera, aceitava apresentar como seu, aquele filho a quem chamariam Réda e que já lhe roubavam.
Depois a morte de Réda.
E o véu em que ela se envolvia para obedecer, para se punir, para apagar a sua falta, e Hocine a martelar-lhe o rosto com pancadas porque ela confessara ao comissário que conhecia Tahar.
Mas era novamente livre e queria ser igual aos outros, custasse o que custasse. Deixar-se-ia matar, se fosse preciso.
Sentou-se. O céu entrava no apartamento dos Milner pelas portas envidraçadas, de modo que quando ligou a televisão os rostos pareceram inscrever-se nas nuvens, desfilar no horizonte, como suspensos.
Brigitte Georges apresentava o jornal a partir do salão de um hotel de Clermont; as imagens do Bairro do Vulcão sucediam-se. Os jovens entrevistados repetiam todos as mesmas palavras: "desemprego", "droga", "os polícias que batem e insultam" o Bairro como um deserto... Franceses, que é que isso queria dizer, se fechavam as portas diante daqueles que tinham uma cara diferente, uma cara de árabe?
Amina enterrou-se na poltrona, com a cabeça encolhida entre os ombros. Estava humilhada. Aquelas palavras, justas, perturbavam-na. Também era preciso ter orgulho, forçar as portas, construir as suas próprias casas e possuir as chaves delas. Escolher, não fugir para a loucura.
Esforçou-se por escutar Hocine que, calmo, perorava, respondendo a Brigitte Georges com uma segurança matizada de desprezo.
Depois, num gesto, o Dr. Rimberg interrompeu-o. Estava em Clermont, dizia numa voz sarcástica, porque aquilo que ali se passara podia ter muito graves consequências. Três homens tinham sido assassinados, dois jovens muçulmanos e um sacerdote. E procedia-se como se o padre Desbordes fosse a única vítima! Acusavam da sua morte aqueles a quem chamavam "integristas"! Queriam abrir a caça ao fácies? Recomeçar a cruzada? Ele que usara a estrela amarela em 1942, que sofrera o anti-semitismo, ele cujos pais tinham desaparecido, não o aceitaria. Ele representava portanto a parte civil, a família Nekoub. Denunciava as violências exercidas contra Amina Nekoub, irmã de Hocine, detida e sequestrada pela polícia.
Foi nesse momento que Brigitte Georges indicou que o comissário Beaufort fora vítima de uma agressão, no Bairro do Vulcão, que fora hospitalizado num estado que não inspirava cuidados, mas fora agredido por moradores do local, numa das torres: era isso tolerável?
- É preciso que toda a gente respeite a lei - respondeu Rimberg. Depois, sorrindo, acrescentou que se a polícia violava a lei, como podiam os simples cidadãos ter fé nela?
-Eles querem matá-lo - disse então Amina para si mesma.
E levantou-se de um salto. Fechou os olhos, apertou os punhos contra os ouvidos. Eles tinham morto Tahar, o padre Desbordes, Khaled; e agora voltavam-se para Beaufort!
Que mundo era este? Estava povoado de loucos?
- Tu és louco - lançou Marion Chauvel em voz baixa. Estava de pé ao lado da cama e olhava Beaufort, abanando a cabeça.
Ele não se mexera. Com os olhos semicerrados, estava afundado entre duas almofadas, com a testa ligada, o queixo encostado ao peito, o braço esquerdo seguro por uma tala, parecia dormitar. Mas via distintamente Marion. Ela fazia caretas, com os lábios estendidos, como as crianças amuadas, quase a romper em soluços. Com as duas mãos apertava os varões da cama, parecendo agarrar-se a eles para não cair. Ele ouvia a sua respiração ofegante.
- Tu és louco - repetiu.
Ele teve vontade de lhe gritar que saísse, porque já não suportava aquela voz abatida, cheia de piedade. Mas limitou-se a suspirar.
- Tens dores? - perguntou ela debruçando-se sobre a cama num impulso.
Ele enterrou-se o mais que pôde nas almofadas. Ela ergueu a prancheta onde estava fixada a folha de temperatura. Ele já não tinha febre, sairia dentro de três ou quatro dias, comentou. A enfermeira confirmara que as feridas eram superficiais: nenhuma fractura, nenhum traumatismo. Tinha-se saído bem.
- Eles são loucos - acrescentara Marion.
Apoiou-se com os dois antebraços no rebordo da cama e pôs-se a falar num murmúrio entre a penumbra do quarto.
Ela gostaria de compreender. Que tinha ele a censurar-lhe? Qual o sentido daquela ruptura sem explicação, sem motivo? Ou então, ele que lhe contasse! Era por causa dessa rapariga que ele tinha conduzido a Paris, a irmã de Hocine Nekoub, aquela a quem o acusavam de ter violado, a propósito de quem Benoit Rimberg se constituíra parte civil em nome do irmão e da família? Beaufort não seria louco, se era esse o caso, ao colocar a sua vida em causa, toda a sua vida, por uma rapariga que não podia conhecer? Pode-se saber o que são uma personalidade, um carácter, sentimentos, ao fim de quarenta e oito horas? Ele estava passado? Por causa disso quebrava os laços que se tinham estabelecido entre eles desde havia quase dez anos, a cumplicidade, a amizade que tinham conseguido estabelecer? Podia ele esquecer isso? Lembrava-se da sua viagem a Sorrento? O caminho de um para o outro tinha sido tão longo, tão difícil de percorrer, para chegar enfim àquela confiança, a essas noites em que ficavam encolhidos, ela de encontro às costas dele? Ele pensava que ia poder apagar tudo isso? Havia uma memória dos corpos. Ela sabia como ele se abandonava entre os seus braços como uma criança.
Interrompeu-se de súbito.
- Tu queres um filho?
A voz tornara-se mais aguda.
- É isso? - murmurou ela. - Seja com quem for, mesmo com essa rapariga?
A expressão do seu rosto tinha mudado. Beaufort adivinhava ou imaginava o seu desprezo, a sua cólera. Ela endireitara-se, segurando de novo o varão da cama com as duas mãos, mas de braços estendidos. Esperava ele acabar assim com a sua obsessão, as suas recordações, a sua filha morta, apagar tudo, recomeçar, a qualquer preço, fosse com quem fosse, e para essa rapariga, é claro, um polícia, um comissário, era uma boa maneira de se integrar, não é verdade? Ele tinha-a violado? Marion troçava - Era preciso ser capaz disso! Mas não devia ter sido muito difícil. Pobre tipo que se deixara manipular como um idiota! Que lhe prometera ele? Casamento? Ah, se julgava poder sair-se assim! Não, Marion não reclamava nada. Ela nunca precisara dos outros, principalmente dos homens. Mas o irmão, Hocine Nekoub, e o Dr. Rimberg iam aproveitar-se disso para montar um belo processo escandaloso. Isso havia de dar também grandes títulos. E talvez ela própria escrevesse um artigo: "O comissário e a jovem Beur!" Bastante bom, não, como reportagem, como projector sobre a sociedade francesa de hoje? Josserand havia de adorar esse tema. O ministro talvez não apreciasse. Beaufort tinha pensado nisso, no inquérito da Inspecção-Geral dos serviços, na sua carreira? Ele queimava tudo numa cabeçada? E para quê? Mas já ele se tinha olhado a si mesmo, a essa culpabilidade que arrastava, essa filha morta? Estava ele pronto, quando saísse da sua miragem, a fazer face? Ela, Marion, conhecia-o. Tinha visto muitas vezes depressivo, sentado na beira da cama, com a cabeça entre as mãos! Imaginava ele que aquela tristeza que tinha em si ia desaparecer porque uma jovem deixara que a fodesse, porque ele gozara e sonhava fazer-lhe um filho? De que é que ele gostava? Ter o filho, ou foder uma mulher passiva e submissa, que abria as pernas e aceitava tudo o que ele desejava? O Islão era isso, não era, para as mulheres? E ele, considerava-se um sultão?
- Pobre tolo, pobre louco! - acrescentou depois de um silêncio.
Olhou longamente Beaufort. Mas ele não se mexeu.
- Pobre louco! - repetiu antes de sair do quarto. Ele ouviu os seus passos afastarem-se no corredor do hospital.
Louco...
À noite, esta palavra enchera a cabeça de Beaufort.
Louco, era-o, por recusar engolir os comprimidos, três pequenos grãos vermelhos que a enfermeira lhe colocava na palma da mão direita.
Ela dizia:
- Precisa de dormir, isso vai acalmá-lo. Acho-o nervoso. As visitas de mulheres nunca são boas para os homens doentes, estou enganada?
Era tagarela. Esperava que Beaufort levasse a mão à boca para se afastar da cama. Não imaginava que os três comprimidos tinham ficado na palma da mão e que ele os colocava ao lado dos outros, debaixo do lenço, no bolso do casaco do pijama.
Desde que recuperara a consciência, no dia seguinte à sua entrada no hospital de Clermont, resistira à tentação do sono tranquilo, aos conselhos do médico e da enfermeira. Que sabiam eles dele? Aquele sofrimento agudo que lhe rodeava a cabeça, aquele outro que lhe esmagava o cotovelo e se prolongava até aos dedos e até ao ombro, tinham-se tornado já familiares, e, ao suportá-los, lancinantes, tinha a impressão de se conhecer melhor, de gozar a materialidade do seu corpo, de lhe apreender os contornos, os recantos, de estar mais vivo pela dor do que se estivesse entorpecido, como pretendiam, na sonolência adocicada dos analgésicos.
Mas a noite tornava-se então idêntica a uma interminável travessia de uma dessas florestas sombrias: aquela que ficava próxima de Silvacane, a que rodeava La Chaise-Dieu, ou as que se estendiam pelos montes da Borgonha entre Vézelay, Clairvaux e Citeaux, lugares de isolamento e de prece que se descobriam depois de ter errado de árvore em árvore e de ter chocado, como ele próprio o fizera, com esses corpos de jovens assassinados.
Sim, era louco por querer assim caminhar toda a noite, nessa escuridão em que cada forma se transformava num homem crucificado, lacerado.
Voltara a vê-los a todos: o de Silvacane, o primeiro, na floresta calcinada, depois os outros cinco, encontrados com semanas, com meses de intervalo, nesse polígono florestal das grandes abadias. E aquele Tahar, mais a sul, na proximidade imediata de La Chaise-Dieu. Finalmente, aquele que interrompia a série dos jovens, o padre Desbordes, descoberto nesse Bairro do Vulcão e a cuja morte se sucedera a de Khaled, com os braços em cruz, no parque de estacionamento do mesmo Bairro.
A noite tinha o gume brilhante e acerado de uma lâmina que fustigasse o corpo e o espírito de Beaufort. Ele retesava-se, curvava-se. Gemia ao tentar mudar de posição, mas o braço esquerdo impedia-o de se voltar. E, com as pontas dos dedos, tacteava no bolso os cerca de vinte comprimidos que tinha acumulado em alguns dias.
Era louco por brincar com a ideia de morte.
No entanto, imaginava que um dia próximo engoliria aquela mão-cheia de grãos vermelhos. Deixaria ali as pessoas normais: Marion Chauvel, Milner, Borelli, o ministro do Interior, Josserand, Rimberg, Brigitte Georges, Hocine Nekoub. E também Amina Nekoub.
Era louco.
Lera durante o dia, na primeira página do Monde, a notícia do suicídio de Roger Stéphane, um escritor cujos livros ele não conhecia, mas cujo fim o atraíra: os comprimidos, depois uma bala na cabeça.
Beaufort fazia deslizar dentro do bolso os grãos que fariam finalmente a morte erguer-se nele.
Finalmente?
O sofrimento comprimia-lhe as têmporas. O sangue, aos sacões escaldantes, palpitava-lhe no braço. O coração parecia-lhe doloroso.
Estava de facto louco. Aquele corpo estava destinado a corromper-se tão depressa, ainda antes de ter tomado consciência daquilo que era. Bastava um movimento das pálpebras para que os decénios desfilassem e para que a pele das mãos estivesse já coberta de manchas bistre, idênticas às que manchavam o tecto do seu quarto de hotel. E, no fim de um único passo esboçado, abria-se o fosso. Para quê querer precipitar-se, se a vida andava àquele ritmo infernal: a toda a brida?
Beaufort abafava. Tentava erguer-se para respirar melhor. Voltava a pensar na frase: "A inteligência, confiara Malraux a Roger Stéphane num dia de Fevereiro de 1945, na frente gelada dos Vosges, é a destruição da Comédia."
Que comédia represento eu, por que aparências me deixo enganar? Que desejo me leva, cujo fim não imagino?
Beaufort interrogava-se. Num único pensamento, amara Amina Nekoub; vira o filho que lhe podia nascer dela; e selara já o termo da sua vida em comum.
Estava louco.
Quando se destrói toda a comédia, que resta, se não a morte?
Tinha dores.
A pele das costas estava irritada. Procurava acalmar-se, não pensar mais, mas, na noite de insónia, parecia-lhe que os corpos das vítimas vinham ter com ele como num carrocel, quando passam e voltam a passar as mesmas formas, as mesmas dores, as mesmas perguntas.
A escolha, estava totalmente convencido disso, era apenas entre a comédia e a morte.
E que comédia era aquela, se não uma loucura a que se submetiam todos aqueles que aceitavam viver?
Loucos, os cruzados que se reuniam em Clermont, havia nove séculos, para ir libertar o túmulo de Cristo. Loucos, a caminho de Jerusalém, esses cavaleiros massacradores dos judeus de Espira, de Worms, de Maiença, esses esfomeados que, em Ma'arat, metiam as crianças no espeto. Loucos, esses fanáticos que, em nome do Islão, matavam as alunas dos liceus nas estradas daArgélia. Louco Jean-Marie Borelli que lançava os seus anátemas sem provas; louco Benoit Rimberg; louco, Hocine Nekoub, e loucos aquele ou aqueles que assassinavam nas florestas da Provença ou da Borgonha, no Bairro do Vulcão.
Quem era mais louco, o ou os assassinos, o cruzado ou o inte-grista? Quem traçava a fronteira entre os crimes desejados, proclamados, justificados, santificados, e os assassínios denunciados, condenados, castigados?
Loucura, esta pergunta?
Ela atenazava Beaufort. Ele procurava assassinos. Devia aplicar a lei. Era o defensor da moral. Mas o assassínio não era já um mal quando perpetrado por um grupo, em nome de uma fé colectiva? Só voltava a ser crime quando era o acto de um só?
Louco por se interrogar! Louco por não representar a comédia necessária à vida!
Mas então só havia escolha entre a impostura e a morte?
Beaufort jazia imóvel à luz azulada das lamparinas. O silêncio do quarto era povoado por tosses distantes, por vozes abafadas. Lembrava-se da cela do monge que tinha visitado em La Chaise-Dieu, pouco depois da descoberta do corpo do sétimo morto, na floresta próxima. Era um túmulo de paredes nuas. Talvez o homem que ali se refugiara, e aqueles que o haviam precedido, quisessem evitar a escolha que se impunha aos que ficava lá fora: a mentira ou a morte, a cegueira ou o desaparecimento? Aquele homem tinha-se retirado, enclausurado. Fugira da vida para lhe dar um sentido.
Não era isso também pura loucura?
Não era tão louco como eu, como Hocine Nekoub ou o padre Desbordes?
Todos loucos, porque vivos.
O homem estava sentado nos degraus na escada que levava às instalações da associação do padre Desbordes. Não levantou a cabeça quando Beaufort chegou ao patamar. Estava apoiado à parede, de pernas encolhidas, com o jornal entre os joelhos à luz que, caindo de uma janela redonda de vidraças partidas, iluminava o patamar.
Ao primeiro olhar, Beaufort constatou que o homem era grande, atlético. Tinha as pernas compridas e, por baixo do anoraque bege, adivinham-se ombros e um dorso vigorosos. Usava um pulôver preto de gola alta. Podia ser um jornalista, um professor ou, quem sabe, um sacerdote, talvez o sucessor do padre Desbordes?
Beaufort imobilizou-se. O homem ergueu-se. Com um movimento da cabeça, mostrou as flores que se amontoavam diante da porta da associação. Tratava-se de pequenos ramos, quatro ou cinco flores de caules curtos desajeitadamente ligadas entre si. Algumas estavam presas ao puxador da porta, metidas na pequena fresta entre o batente e a parede. Desprendiam um cheiro vagamente enjoativo a erva molhada, a água estagnada.
- Bourrières - disse o homem levantando-se.
Era com efeito muito alto e Beaufort teve de levantar um pouco a cabeça para encará-lo. Os traços eram marcados, o nariz forte, o queixo pronunciado, e as rugas desenhavam-lhe em volta da boca de lábios finos um arco profundo e largo. Os cabelos grisalhos estavam cortados à escovinha, as têmporas rapadas pareciam côncavas, como se o crânio tivesse sido apertado, esticado para cima, porque o rosto era anormalmente oblongo ou dava essa impressão, acentuada pelo corte dos cabelos, direitos e lisos.
- Eu era amigo de François Desbordes - continuou. Esboçou um gesto com a mão mas deteve-se, pressentindo que Beaufort não ia estender a sua.
- François Desbordes - recomeçou o homem indicando com as cabeça os ramos de flores - suscitava o amor ou o ódio. Era isso que ele queria. Desprezava aqueles que viviam sem paixão, sem loucura.
Beaufort avançara. Novamente aquela palavra, "loucura".
Desde que saíra do hospital, havia apenas duas horas, exigindo ao inspector que o fora buscar que o conduzisse ao Bairro do Vulcão e o deixasse ali sozinho, esforçara-se por esquecer aquela palavra que o perseguira toda a noite. Mas, no momento em que começava a afastar-se, no parque de estacionamento do Bairro, o inspector lançara-lhe que aquilo era uma provocação, uma loucura]
- Deixe-me em paz! - gritara o comissário sem se voltar. Que arriscava ele? Com a cabeça enfaixada, o braço esquerdo ao peito, quase não podia defender-se. E daí? Que importava! Que o linchassem, que o apunhalassem, que morresse na escada de uma torre, com uma ferida no flanco, como o padre Desbordes, por que não? Valia mais isso que engolir o punhado de grãos vermelhos que recolhera meticulosamente num envelope que depois metera na pasta.
Caminhara lentamente no meio das alamedas, atravessara o parque de jogos. A água das poças, em muitos casos coberta por uma película de óleo ou de gasolina, tinha, ao sol velado, reflexos violáceos, dourados e azuis.
Parara em cada torre, abrindo a porta, avançando pela entrada, desafiando com o olhar os jovens acocorados ou encostados às paredes, e que se calavam ao vê-lo. Adivinhariam quem ele era?
Seria respeito pela sua audácia, uma espécie de vergonha pela emboscada que lhe havia sido armada? Os olhares evitavam-no.
De cada vez, ficara vários minutos a observar aqueles jovens. Ficavam incomodados, espreguiçavam-se. Alguns, num ímpeto desenvolto, subiam de um salto vários degraus e desapareciam nos andares. Uma única vez, na antepenúltima torre, um jovem de lenço vermelho com manchas amarelas amarrado à volta do pescoço, com a ponta do triângulo a cobrir-lhe o ombro, cuspira para o chão aos pés de Beaufort, depois aumentara para o máximo o som de um rádio colocado sobre um dos degraus.
Ele aproximara-se. Colocara o dedo no lenço, murmurara, com os lábios junto ao ouvido do rapaz, que era melhor que fizesse desaparecer aquilo se não queria apanhar dez anos. Depois gritara que desligasse o rádio. O tipo obedecera. À sua volta, os colegas recuaram para os degraus como se o polícia os tivesse ameaçado com uma arma.
Como sempre, dissera que era o comissário encarregado da investigação sobre os assassínios de Tahar, de Khaled e do padre François Desbordes, que iria até ao fim, que não interessava a ninguém que assassinos e cobardes escapassem à justiça. Podiam telefonar-lhe para a esquadra da polícia de Clermont, ou procurá-lo durante todo o dia nas instalações da Associação do Vulcão. Depois tocou com o dedo no braço esquerdo ao peito: não era assim que iam fazê-lo desistir. Podiam agir assim com mulheres, mas não com ele. E, mesmo com as mulheres, isso não funcionava. Eles eram cobardes, eram imbecis. Uns pobres tipos!
Empurrara com a mão aberta o tipo do lenço vermelho e amarelo, e acrescentara que, da próxima vez, o metia dentro.
Ninguém gritara. Nenhum insulto se elevara quando ele abandonara a torre para se dirigir à última, aquela onde se encontrava a sede da associação do padre Desbordes.
Crianças corriam do lado da floresta. Olhando apenas nessa direcção, vendo apenas aqueles abetos que formavam como que uma vaga brilhante, as gotas de chuva e de orvalho irisadas pelo sol, dir-se-ia que se estava numa clareira fora do tempo, com crianças que iam de árvore em árvore, levadas e trazidas pelo instinto de vida, que não conhecia nem passado nem futuro, mas apenas o instante. Beaufort voltara a cabeça e contemplara as torres, aqueles paralelepípedos erguidos como megálitos de ângulos vivos, sobre os quais os estendais de roupa às janelas batiam como bandeiras de desgraça na desordem das cores.
No patamar da sede da associação, Beaufort ficara pois diante do homem que repetia que François Desbordes, a quem conhecia desde os anos 60, era um homem de absoluto. Repetira a fórmula, saboreando-a:
- Um homem de absoluto, sim, um louco de Deus. Beaufort empurrou os ramos de flores com o pé, abriu a porta; as últimas flores presas ao puxador da porta e aos gonzos caíram.
O homem entrou atrás dele.
- Um louco de Deus - murmurou Beaufort. - E o senhor?
Voltara-se vivamente, encontrando-se assim em face do homem, mesmo junto dele. Este encolheu os ombros, balbuciou, recuou, baixou os olhos, murmurou:
- Eu, eu? Bourrières, Georges Bourrières, já lhe disse.
- E quem é Bourrières? - interrogou o comissário, avançando.
Beaufort era mais baixo que Bourrières, mais magro também, mas, por instinto, sentia-se em posição de força. Não era o seu cartão da polícia que lhe dava essa certeza. Por vezes, suspeitos algemados entre dois guardas exprimiam pela sua atitude uma invulnerabilidade, uma força que o impressionavam. Esses, sabia-o, nunca fraquejariam. Mas Bourrières, a quem ele encarava, perdia já todo o seu sangue-frio. Passava a mão pelos cabelos, limpava as gotas de suor que lhe surgiam na testa. Beaufort forçou-o:
- Então, quem é Bourrières? Qual é a sua loucura?
Já não precisava de pensar. Recuperava os reflexos do ofício, esse prazer do cerco de que a si próprio se censurava, mas que no entanto o excitava. Sentia um arrepio percorrer-lhe a pele. Era talvez também por isso que se vivia, para sentir esse gozo animal, incontrolável, que vinha do mais profundo do corpo, talvez de antes do homem.
Bourrières titubeou, depois respondeu com arrogância, erguendo o queixo, que era amigo, talvez o melhor amigo do padre Desbordes. Conheciam-se desde 1956 e nunca se tinham perdido de vista.
- Sou professor, sociólogo. Quer ver os meus documentos? Procurou febrilmente nos bolsos, resmungou que os polícias, como havia quarenta anos, como sempre, achavam que tudo lhes era permitido. Que era feito da democracia, dos direitos do cidadão? Brandiu por fim o bilhete de identidade diante dos olhos de Beaufort, que não o examinou. Bourrières, desconcertado, começou a gaguejar.
- Que é que veio aqui fazer? - perguntou o comissário. O enterro do padre Desbordes já se realizara, continuou. Quem esperava Bourrières diante daquela porta? O fantasma do sacerdote? Bourrières indignou-se, mas, ao mesmo tempo, curvava-se, enterrando a cabeça nos ombros, caminhando pela sala, explicando que quisera ver o lugar onde vivera Desbordes, naqueles últimos anos. Apenas tinham comunicado entre si pelo telefone ou por carta. Tinham mesmo trabalhado juntos, visto que Bourrières estudava a sociologia dos subúrbios e Desbordes era um observador e um actor dessa nova realidade urbana. Depois exclamou de repente, levantando os braços: Poderia um polícia compreender a amizade, a fraternidade, a emoção, as preocupações comuns, podia ele imaginar aquilo que os ligara, a Desbordes e a ele, havia quase quarenta anos, durante a guerra da Argélia? Podia conceber isso, a recordação dos combates lado a lado? Mas sabia um polícia aquilo que acontecera em 1961? Como Desbordes denunciara a matança, sim, a matança, talvez duzentos ou trezentos mortos, naquele 16 de Outubro, em Paris. Tinham-se retirado do Sena dezenas de cadáveres de argelinos, e Desbordes, a quem os polícias queriam liquidar, fora abandonado pela hierarquia católica, preso, julgado, condenado. Fora o Dr. Rimberg, o Rimberg de havia algumas décadas, que então o defendera.
Bourrières aproximara-se novamente de Beaufort. Também a ele o tinham detido, porque era um transportador de maletas, um daqueles que ajudavam os nacionalistas argelinos e denunciavam as caçadas ao argelino. Mas um homem com menos de quarenta anos saberia o que isso significava?
Bourrières parou diante da janela. Indicou as torres, as alamedas. Aqui, certamente, sabiam, transmitiam essas coisas de geração em geração, não esqueciam aquilo que tinham sofrido.
- Mas o senhor está-se nas tintas, não é? - acrescentou, voltado para Beaufort.
- Quem foi que apunhalou Desbordes, em sua opinião? Tem certamente uma hipótese, não? - perguntou-lhe o comissário.
Bourrières abanou a cabeça como se estivesse transtornado. Não sabia nada. Não acusava ninguém. Mas, como já dissera a Beaufort, Desbordes suscitava o amor e o ódio, era um homem de absoluto, um louco de Deus.
- Os integristas, então?
Bourrières furtou-se. Ignorava tudo sobre o clima do Bairro do Vulcão. Não era ele o polícia.
Beaufort interrompeu-o num tom brutal. Ninguém tinha ido procurá-lo a ele, Bourrières, lançou. Mas, visto que estava ali, interrogavam-no, como a qualquer outro. Ele conhecia Tahar e Khaled, as outras duas vítimas? O padre Desbordes falara-lhe desses dois jovens?
- Não, não... - repetiu Bourrières.
Choramingava. Só viera ao Bairro do Vulcão, explicou, para se recolher no local onde vivera e tinha sido morto François Desbordes, seu amigo.
- Pode conceber isso?
Beaufort sentou-se e pôs-se a ler os documentos relativos ao sacerdote, os que encontrara ali, naquele local, e os que Milner lhe enviara de Paris.
- Retire-se, retire-se - lançou a Bourrières. E não lhe prestou mais atenção.
Bourrières bateu a porta com violência e Beaufort fechou os olhos. Tinha vontade de gritar, de ir atrás do intruso, empurrá-lo para o banco, contra a parede: "Já acabaste de me chatear, imbecil? Que é que tu queres, que é que vieste aqui fazer verdadeiramente?"
Mas não se mexeu. Esperou que a calma e o silêncio voltassem a invadi-lo. E então retomou a leitura.
Desbordes citava muitas vezes o nome de Bourrières. Com a sua caligrafia fina e regular, meticulosa, escrevia por extenso Georges Bourrières, mas, por vezes, limitava-se às iniciais G.BA Elas apareciam nos anos 60, quando o sacerdote animava comités para a paz na Argélia. Apareciam ao lado do nome - ou das iniciais também - de Claude Josserand, actual director de L'Indé-pendance, então estudante de Filosofia.
Alguns dias antes do seu assassínio, Desbordes mencionara ainda o nome de Bourrières. O texto estava assinalado, como se ele nunca quisesse esquecer aquelas linhas de cada vez que abrisse o caderno. "Ajudar G. B., escrevia. Sinto-o arrastado pela tormenta. A morte do filho colocou-o fora do comum da vida. Ele ignora Deus e Deus deixa-o errar. Rezar por ele. Suplicar a Deus. Ver G. B. Escrever-lhe. Evitar que ele se afunde. O medo, por vezes, como uma visão, domina-me."
Beaufort levantou a cabeça, procurou o professor com os olhos. Depois voltou a injuriá-lo. Aquele imbecil tinha-se ido embora! Seria preciso convocá-lo, interrogá-lo. Uma espécie de raiva, de violência, apoderou-se de Beaufort sem razão. Talvez pela decepção? Imaginara a vida de Desbordes direita como a trajectória de uma flecha. E era um labirinto. O homem parecia-lhe hesitante, ansioso como à ideia de desistir, de não alcançar o cimo que se tinha fixado.
Nos primeiros dias que antecederam a sua morte, parecera reflectir sobre si mesmo, como se pressentisse o seu desaparecimento e desejasse fazer um balanço. Teria sido ameaçado? Multiplicara também as citações, textos de Santo Agostinho copiados a tinta vermelha. Os dois volumes, Confissões e A Cidade de Deus, estavam ali pousados, em cima da mesinha, junto ao caderno que Beaufort lia.
Inicialmente negligenciara esses textos. Encolhera os ombros, resmungando. O braço esquerdo doía-lhe. Que lhe interessava o Santo Agostinho? Depois, uma palavra aqui, uma frase ali, a correspondência que se estabelecia entre essas citações e as notas de Desbordes chamaram-lhe a atenção. Aquela linguagem de há quinze ou dezasseis séculos era tão fluida, tão clara, tão presente como a do sacerdote, ainda que mais nervosa e mais inspirada. Santo Agostinho falava da "corrupção de semelhantes amizades". E Desbordes evocava aquele a quem chamava o Amigo, cujo corpo, cuja força, cujos lábios se acusava de amar. "Oh blasfémia, oh perversão do amor. Perdoa-me, Senhor, castiga-me por este desejo que me torna selvagem!", anotava ele.
Desbordes homossexual?
Ao ousar pensar assim, Beaufort desprezava-se como se tivesse surpreendido uma cena íntima, roubado uma carta privada ou escutado alguma confissão. Entretanto, as palavras estavam ali, sublinhadas: "a corrupção de semelhantes amizades", copiara Desbordes. E acrescentara à frente: "A corrupção atrai-me como um precipício. Sou desde sempre dilacerado pelo meio. Loucura desta tentação da carne. Ela é talvez o meu calvário, o meu martírio. Entrego-me a ela e recuso-me. Horror de mim e amor pelo objecto do pecado, o Amigo solar."
Beaufort fechou o caderno num gesto brutal. "Um crime de panascas", murmurou. Era portanto a lama, o pântano habitual. O horror, sem heroísmo nem luz. O quotidiano sórdido.
Recomeçou a ler, acalmando-se pouco a pouco, emocionado a seu pesar pelos tormentos de Desbordes, cada vez mais tocado pelas citações de Santo Agostinho.
Desbordes parecia tê-lo descoberto durante uma estada de quatro anos na Argélia, por volta dos anos 60, não longe de Bône, essa cidade de que Santo Agostinho, no século IV, tinha sido bispo. Parecia a Beaufort que também ele poderia escrever, se tivesse a audácia e o talento para isso, frases semelhantes, que exprimiam tão bem aquilo que ele sentia. Também as confissões de Desbordes eram um eco das de Santo Agostinho. O tempo não existia nem para a morte, nem para o sofrimento, nem para o amor ou a fé.
Teve que se interromper. As frases estavam agora mergulhadas na penumbra gelada que invadira o local.
Acendeu a luz. Um lírio murcho com o caule amarelecido fora empurrado do limiar para o interior da sala, ao pé da porta. Apanhou-o. O caule pegava-se aos dedos.
Beaufort atirou a flor morta pela janela.
Anoitecera. O candeeiro iluminava apenas o caderno quadriculado. Beaufort hesitava. Para quê ler mais? Se Desbordes era apenas vítima de uma rixa entre homossexuais, ou da chantagem exercida sobre ele por algum jovem amante, para quê continuar? Deveria manchar a recordação daquele a quem as velhas do Bairro do Vulcão chamavam "santo homem"? Do padre que viera em socorro de Amina Nekoub e escrevera:
Vi uma criança morta
No Teu silêncio
E aqueles que Te rogavam
Usavam os grandes mantos negros
Da Diferença -
Deveria deixar dele apenas a imagem de um velho que vagueava em busca do prazer e que era sangrado com uma facada no flanco?
Horror.
Beaufort fechou os olhos: fugia; instalava-se em Mauriès e vivia com Amina na sua aldeia; tinha um filho. Via-o. Era um rapaz de pele mate, cabelos frisados, lábios grossos. Amina deixar-lho-ia? Aceitaria ela que ele se chamasse Cédric, Rodolphe, Charles, Matthieu, François, ou exigiria que a criança fosse principalmente dela, que usasse o nome de Sami, Ahmed, ou talvez Hocine, como o tio Hocine Nekoub, e que voltasse para aqui, para o Bairro do Vulcão, viver com os avós, a velha de véu e o operário imigrado?
Jejuaria durante o Ramadão...
Loucura!
Beaufort interrogava-se: em que Deus acreditava ele? Lembrava-se das missas dominicais em Mauriès, dos jogos na praça da aldeia, diante da igreja, e do padre que, no adro, lhe batia nas mãos quando começava o catecismo.
Que havia de legar a esse filho com o qual sonhava a despeito de tudo?
Retomou a leitura.
Nos últimos meses, Desbordes parecia obcecado pela morte, como se caminhasse para ela a grandes passadas. Tinha copiado esta frase das Confissões a tinta vermelha: "Olhava a morte como a minha mais cruel inimiga, eis o estado miserável em que então me encontrava." À frente deste texto de Santo Agostinho, o padre escrevera em letras maiúsculas: "ESPERO A MORTE COMO TUA MERCÊ."
Ele próprio tinha pensado aquilo tantas vezes, até nos últimos dias, e ainda no hospital, na véspera, que se espantou por ler aquela frase sem se sentir envolvido. A angústia continuava ali, como um peso, uma pressão no centro do corpo. Olhou para o envelope cheio de grânulos vermelhos que tinha na pasta, mas acabava de sonhar com a vida.
Admitia-o com inquietação e mesmo com um pouco de vergonha. Não era já um homem sentado, vencido, aterrorizado pelas suas recordações. Não esperava já de uma mulher, Marion Chauvel, ferida como ele, que o protegesse, o embalasse para que ele pudesse, sem demasiado sofrimento, ver a morte avançar.
Não, ele pensava numa mulher jovem. Pensava num filho por nascer.
Loucura!
Voltou a fechar o caderno quadriculado. Logo se veria. Aquela súbita desenvoltura, aquela inesperada indiferença pelo passado, o seu ou o de Desbordes, pela morte agarrada àquelas linhas, escondida entre aquelas páginas, deixavam-no perturbado. Observava-se, estupefacto. Que se passava com ele?
Mas era assim. Logo se veria.
Levantou-se e marcou o número do telefone de Milner.
Hélène Milner falou-lhe longamente de Amina, e Beaufort escutou-a sem interromper. Era como uma fábula que o encantava.
Hélène dizia: "Amina está a trabalhar no quarto", "Amina deitou Gabriel".
Imaginava ele o que Amina tinha contado à criança? A história do anjo Gabriel, o mensageiro que fala tanto aos judeus como a Maria e a Maomé. Espantoso, não é verdade? Fora o padre Desbordes, explicara a jovem, quem lhes ensinara aquilo, havia anos. Esse homem, um santo homem, todos o adoravam.
A voz de Hélène tornara-se mais abafada. Amina tinha falado do filho que perdera, da ajuda que o padre Desbordes lhe prestara. Beaufort sabia?
Hélène entusiasmava-se: Amina tinha sofrido, estava ferida, mas era uma mulher determinada, voluntariosa, uma mulher de coragem.
-Bela, também, bela... - murmurara ela, sonhadora.
Depois de um silêncio, explicou que Amina se inquietava por ele. Receava que fosse vítima de outras agressões. Estava indignada, revoltada, sim, pela queixa apresentada por Hocine Nekoub e pelo Dr. Rimberg.
Hélène tentara tranquilizá-la, mas, acrescentou baixando a voz, talvez Amina tivesse telefonado ao irmão para exigir que retirasse a queixa, para lhe dizer que era livre, que escolhera sozinha abandonar o Bairro do Vulcão, que nunca mais lá voltaria?
Beaufort ficou hirto. Perguntou em voz rouca se Amina tinha transmitido ao irmão o endereço ou o número de telefone dos Milner.
Hélène ficou em silêncio. Ele queria falar com Amina? Havia perigo para ela, para eles?
Beaufort não encontrava palavras para lhe responder. Tossia. A dor voltava a apertar-lhe a cabeça.
- Sejam prudentes - limitou-se ele a murmurar.
Na rádio, no carro da polícia que o reconduzia a Clermont, ouviu a correspondência de um jornalista anónimo que explicava de Argel que, agora, os integristas mutilavam os seus prisioneiros vivos, com uma máquina de corte ou com uma serra eléctrica. Os comandos do governo começavam a utilizar os mesmos métodos.
- Eles são loucos - comentara o inspector que conduzia. Beaufort pensou na criança. Mordeu os lábios para não gritar, para não vomitar.
Qualquer que fosse o preço, devia ir até ao fim.
Beaufort e Hocine Nekoub estavam sós, frente a frente, no pequeno gabinete da esquadra de polícia de Clermont, com a janela gradeada. Para lá das vidraças sujas, o céu parecia recortado em rectângulos cinzentos. Quando o comissário erguia a cabeça, deixando de encarar o seu interlocutor, imaginava mais do que distinguia as florestas que cobriam as encostas em volta da cidade, mas que o nevoeiro dissimulava.
Hocine Nekoub mantinha-se imóvel do outro lado da mesa.
Tinha-se recusado a tirar a djellaba, e o seu rosto, negro da barba, parecia assente sobre as dobras do tecido de lã grosseira que lhe ocultavam o pescoço, os braços, as mãos. Mantinha os olhos semicerrados, a boca ligeiramente entreaberta como num sorriso irónico. De vez em quando, sem mover o corpo nem sequer os lábios, repetia algumas palavras. Só falaria, dizia ele, na presença do Dr. Benoit Rimberg, que devia ser avisado. A sua detenção era ilegal. Tinha apresentado uma queixa contra o comissário Beaufort por violação, sequestro da sua irmã, Amina Nekoub, de quem soubera que estava em Paris, no apartamento de outro polícia. Protestava. Exigia que o Dr. Benoit Rimberg assistisse aos interrogatórios. Era cidadão francês. O avô tinha morrido pela França. O pai era um mutilado do trabalho. Que tinham a censurar-lhe, se não o seu credo muçulmano, a sua fidelidade ao Alcorão? Ousariam explicar aos jornalistas que era por isso que o haviam detido, levado à polícia como um assassino?
Era esse o momento que Beaufort escolhia, de cada vez, para dizer numa voz que tentava manter firme, quase indiferente, que Hocine Nekoub devia precisamente falar do assassínio de Tahar, de Khaled e do padre Desbordes, que sem qualquer dúvida tinha informações a fornecer sobre essas três vítimas: e antes de mais, quais eram as suas relações com elas?
Beaufort recomeçava a fazer as perguntas. Quando tinha Hocine Nekoub visto Tahar, Desbordes ou Khaled pela última vez? Que pensava ele de Tahar? Por que agredia ele a irmã, Amina Nekoub, quando esta confiara à polícia que conhecia Tahar?
Hocine Nekoub não se mexia, e contudo o comissário tinha a sensação de que todo o corpo dele se revoltava. Era como se, por baixo da djellaba, o visse enterrar as unhas nas palmas das mãos, curvar as costas. No entanto, Hocine só traía a sua cólera apertando os maxilares, mantendo os lábios entreabertos para não modificar a expressão do rosto.
Depois das perguntas, voltava a cair o silêncio. O comissário colocara as mãos bem abertas de um lado e do outro das fichas que François Milner lhe enviara. Lera-as, fizera anotações, sublinhando os pontos que desejava esclarecer interrogando Hocine Nekoub. A que países se deslocara ele depois de sair do Bairro do Vulcão? Permanecera dois anos no estrangeiro. "Viajei" respondera já Hocine a Beaufort. Contudo o seu passaporte francês estava limpo de qualquer visto. Ele pretendia ter permanecido nos países da Comunidade Europeia, como era seu direito. Não era ele cidadão francês?
Quando falava da sua nacionalidade francesa, fazia-o num tom de desafio e ao mesmo tempo de sarcasmo.
Com base em algumas informações, os serviços de polícia pensavam que Hocine Nekoub se deslocara à Argélia a partir da Itália, e depois tinha estudado o Alcorão no Paquistão; talvez tivesse mesmo recebido ali treino militar em campos de combatentes integristas, alguns dos quais participavam nos recontros entre fracções rivais no Afeganistão. Voltara sem dúvida à França pelo mesmo itinerário, mas todo o seu comportamento mostrava que era um homem de carácter e de ambições diferentes, de convicções - na fé - arraigadas, que regressara ao Bairro do Vulcão. Dispunha de dinheiro. Tinha alugado um apartamento para criar uma escola alcorânica. Organizava viagens a Paris, a Bruxelas, a Londres, para grupos de jovens desportistas, e, depois do seu regresso, o tráfico de droga tinha diminuído. A polícia tinha constatado isso, e os trabalhadores das organizações sociais, os animadores que operavam no Bairro, asseguravam que ele estava na origem dessa evolução. Hocine Nekoub tinha constituído uma polícia paralela cujos membros se chamavam "guardiães do Islão" e cuja missão era combater os "ímpios", os kufar - todos aqueles que, pelo seu comportamento, não respeitavam os preceitos do Islão. Era Hocine quem tinha mudado o estado de espírito dos habitantes do Bairro? A pequena mesquita - um simples barracão de chão de cimento coberto de tapetes, que Hocine tinha comprado -já não chegava. Acontecia que no momento da prece os fiéis fossem forçados a ajoelhar-se nas áleas, diante da construção que se tornara demasiado exígua.
Ao encarar Hocine Nekoub, Beaufort procurava fazer coincidir essas informações, esse retrato com o homem que tinha à sua frente, impassível e desdenhoso, jovem, tão jovem, parecia-lhe, que ele se perguntava se não se trataria de dois indivíduos diferentes. Um, aquele que era descrito pelos ficheiros da polícia, aguerrido, já um homem maduro; o outro, ainda frágil, esforçando-se por representar um papel mas como que acabado de sair da adolescência e que talvez bastasse abanar para que ele se pusesse a chorar.
Ao reler o relatório de identidade de Hocine Nekoub, Beaufort alimentava essa esperança. Ele ia fazer com que aquele rapazinho de vinte e três anos, um quarto de século mais novo do que ele próprio, cedesse! Quarenta anos separavam também aquele rapaz de François Desbordes. Tinha nascido dez anos depois do fim da guerra da Argélia.
O comissário aplicou-se a fazê-lo vacilar. Lisonjeou-o:
- Você é inteligente, senhor Nekoub, é um homem de fé, é portanto um homem de verdade. Não pode deixar de querer, tal como nós, o castigo dos assassinos, pois não?
Hocine limitou-se a responder que queria ser assistido pelo Dr. Benoít Rimberg. Então Beaufort mudou de tom. Deu uma palmada na mesa:
- Quem pensas tu que eu sou? Foste tu que mataste Tahar, Desbordes, Khaled, não? Sabemos isso. Temos provas! Mataste-os porque os dois últimos sabiam que Tahar tinha fodido a tua irmã, que ela teve um filho dele, tu sabes, não? E Tahar, porque não podias aceitar que ele tivesse comido a tua irmã, é isso, não é?
Sentia-se constrangido pelas palavras que achava hábil usar. Falava de cabeça baixa, como se tivesse vergonha de evocar assim a vida de Amina, como se ela pudesse ouvi-lo.
- Então? - perguntou.
E bateu na mesa ainda com mais raiva.
Mas Hocine Nekoub sorria. Queria que informassem o Dr. Rimberg da sua detenção, repetiu. Tinha esse direito.
Por duas ou três vezes, Beaufort ergueu-se, apoiando-se nos antebraços, e depois, debruçado para a frente por cima da mesa, quase tocando no rosto de Hocine Nekoub, lançou, com os dentes cerrados:
- Uma merda! Hei-de apanhar-te, pequeno imbecil! Se julgas que te vais armar em espertalhão e fazer-nos dançar, desilude-te! - Martelava a mesa com o punho. - Hei-de apanhar-te! - repetiu.
E quando Hocine recomeçou a falar do Dr. Rimberg, ele berrou:
- Cala a boca!
Depressa se acalmou, com as mãos de novo em cima da mesa, encarando Hocine. Estava talvez completamente enganado? Os assassinos que, em nome do Islão, matavam selvaticamente todos aqueles, cristãos ou muçulmanos, que não partilhavam a sua loucura, e pretendiam assim "assinar com o sangue", eram pouco mais velhos que aquele rapaz. Só era talvez possível correr o risco da morte, destruir a vida - a sua própria, as das pessoas a quem se assassinava -, precisamente quando se sentia o impulso de vida tão forte, tão novo ainda, que não se podia sequer conceber que ele pudesse ser interrompido? Morrer e matar, mesmo com crueldade, na cegueira da juventude, era um acto de vida, um gesto de loucura, como que a prova de que o instinto vital não trazia em si nem o bem nem o mal, era apenas uma manifestação de força, de violência levada até ao fanatismo.
Hocine Nekoub podia ser um assassino. Tinha olhos disso. Quando fixava Beaufort, este tinha de resistir à tentação de voltar a cara, de tal modo esse olhar era intenso, carregado de ódio ou então - mas isso não seria pior? - perdido, como se para ele não existissem nem Beaufort, nem aquele pequeno gabinete, nem aquela grade que fechava a janela, nada além dessa certeza nele... Essa certeza de que era puro, e todos os outros corrompidos, nocivos - vivos mas destinados à morte. E que ele estava disposto a dar-lha sem que a mão lhe tremesse.
Tal como espancara a sua própria irmã, Amina; tal como desferira talvez uma punhalada no padre Desbordes.
- Se tu ameaças, se tocas em Amina... - lançou de súbito Beaufort.
Levantou-se, contornou a mesa, colocou-se ao lado de Hocine Nekoub.
- Que é que me fazes? - replicou este.
Sorrira, com a boca toda aberta a mostrar os dentes amarelecidos.
- Matas-me? - continuou. Encolheu os ombros.
- A morte é a minha vida.
Beaufort recuou. De súbito sentiu-se esmagado, abatido. Que podia ele, que podia alguém fazer contra Hocine Nekoub e aqueles que acreditavam como ele? Eles eram a morte, desejavam-na com toda a força das suas vidas jovens.
Ao olhar o irmão de Amina, sentia horror e assombro. Que se podia opor a esses loucos, se não a força?
Como enfrentar a morte, se não pela morte? E entrar assim no jogo deles?
Sentou-se novamente diante de Hocine Nekoub.
- Nós somos milhares, dezenas de milhares, e mais ainda, preparados para o martírio - disse este numa voz firme, sublinhando cada palavra.
Beaufort baixou a cabeça.
- Desaparece - lançou.
O outro levantou-se, sorridente.
Benoit Rimberg decidira sentar-se no canto mais sombrio do salão do hotel d'Auvergne. Empurrara a poltrona de maneira a que os cortinados de cretone que caíam de ambos os lados da janela larga que dava para a Praça da Catedral o dissimulassem aos clientes que passavam no portal ou paravam na recepção. Não queria ser incomodado por alguns jornalistas que tinham ficado em Clermont. Obtivera o que desejava, uma entrevista na companhia de Hocine Nekoub, para o jornal da RTE, por Brigitte Georges, e, nessa mesma manhã, um longo artigo de Marion Chauvel em L'Indépendance. O retrato de Hocine Nekoub ocupava um terço da primeira página do jornal, e o de Benoít Rimberg ilustrava o final do artigo, na página quatro. O advogado devia estar contente.
Hocine Nekoub lia lentamente o artigo de Marion Chauvel e, de vez em quando, levantava a cabeça, observando o seu conselho, depois retomava a leitura e Rimberg adivinhava-lhe o meio sorriso, esse ar de auto-satisfação que o exasperava.
Experimentara esse sentimento desagradável desde que encontrara Hocine à saída da esquadra da polícia. Interrogara-o, perguntando-lhe como decorrera a detenção, se o comissário Beaufort não se mostrara demasiado insistente, violento. Hocine enfrentara-o? Conseguira seguir a regra que ele lhe pedira que respeitasse: não dizer nada?
Hocine Nekoub sorrira, olhando Rimberg com uma condescendência divertida:
- Ora vamos, doutor, acha que esse comissário, com os seus insultos e gritos, poderia assustar-me? O que é o comissário Beaufort? Nada. Ele não percebe nada. Não imagina nada. É um ímpio, doutor.
Foi o tom de Hocine, e aquela palavra ímpio - kufar, repetira ele depois - que o fizeram sentir-se mal. Teria feito mal em envolver-se naquele caso? Em precipitar-se para Clermont porque conservava de François Desbordes a memória de um jovem padre que, nos anos 60, não hesitara em ajudar os nacionalistas argelinos?
Benoít Rimberg defendera-o várias vezes ao longo desses processos que muitas vezes decorriam à porta fechada, ou cuja protecção tinha de ser assegurada pelos gendarmes. A volta do Palácio de Justiça, uma multidão de fanáticos reclamavam a cabeça de Desbordes, de Georges Bourrières, de Claude Josserand e do seu defensor, o Dr. Benoít Rimberg.
A opção de Rimberg, na época, era uma exigência da memória, um dever. Ele fora perseguido. Os seus pais haviam sido presos, em 16 de Julho de 1942, por polícias franceses. Tinham desaparecido entre Drancy e Auschwitz, talvez sufocados no vagão ou nas câmaras de gás ao chegar ao campo. E, na altura, fazia-se a caça ao argelino nas ruas de Paris ou de Argel. Àqueles não era preciso forçá-los a usar a estrela amarela; a sua identidade era a sua cara, o seufácies, como se dizia. Caça ao fácies: desencadeavam-se rusgas, encostavam-nos à parede, de braços levantados, revistavam-nos. Matavam-nos, mas apenas a retalho, não em série, como os nazis.
- É a guerra, meu caro Rimberg. Pensas que os ratos não cortam os tomates aos seus prisioneiros? E os atentados? Havíamos de deixá-los massacrar, degolar? - interpelavam-no alguns colegas.
Rimberg limitava-se a responder-lhes que estava ao lado da resistência. Também os nazis chamavam "terroristas" aos resistentes.
Esse tempo passara.
Rimberg deixara de defender processos políticos. Tornara-se um advogado de negócios, com correspondentes em Nova York, Zurique, Londres. Mas alguém tinha assassinado o padre Desbordes e esse simples acontecimento recordara-lhe que alguns continuavam a resistir e a morrer. Propusera a Hocine Nekoub assumir a sua defesa, e, como sempre, pegara-se com esse comissário Beaufort que não respeitava as leis.
Rimberg ensinara a lição a Nekoub: falar só dos direitos do homem, dos princípios da igualdade. Recordar a todo o momento que era cidadão francês, que o avô tinha desembarcado na Provença em 1944 para libertar a França dos nazis, etc.
- Os direitos do homem, compreende, Nekoub! A lei! Sou um cidadão francês como os outros. Isto é claro? - repetira.
Depois acrescentara que Hocine podia, em frente dos jornalistas, dizer que o perseguiam simplesmente porque era muçulmano e que alguns queriam fazer guerra ao Islão.
Já então o sorriso de Hocine Nekoub, a sua maneira de abanar a cabeça, de responder com um movimento de impaciência - "Mas eu compreendi, doutor, eu compreendi..." -, tinha irritado Benoit Rimberg. Era como um constrangimento lancinante que, pouco a pouco, abalava as suas certezas.
Vira o jornal televisivo de Brigitte Georges com um sentimento de mal-estar. A atitude de Hocine, as suas respostas calmas, a sua afectação fizeram nascer nele a suspeita de uma habilidade e de uma hipocrisia que o podiam ter enganado.
Teria sido vítima de um reflexo de culpabilidade relativamente ao destino de François Desbordes que, havia trinta anos, nunca desertara da linha da frente?
Rimberg desconfiava dos impulsos irreflectidos. Ao segui-los, aceitavam-se casos envenenados, corria-se para o impasse. Quanto mais os dias passavam, mais se censurava por ter agido sem se dar tempo para sopesar os diversos elementos do caso e avaliar o interesse que tinha em tratá-lo. Não tinha qualquer necessidade de um acréscimo de notoriedade. Os seus clientes, banqueiros ou directores de empresa, preferiam um advogado discreto a um agitador que pleiteasse nas audiências. Entretanto, que ia ele poder dizer? A investigação estava apenas no começo, ele apenas abrira o dossier, mas pressentia já que a personalidade de Hocine Nekoub não se prestava a esses grandes arrebatamentos de audiência onde se invoca o bem e o mal. A irmã de Nekoub, violada, sequestrada, no dizer do irmão, tinha telefonado a Rimberg, e ele compreendera o erro de escutá-lo. Ela reivindicara com veemência a sua liberdade, contara como Hocine a havia espancado. E era esse homem que ele pretendia defender em nome das ideias de justiça, de liberdade e de cidadania?
Experimentara um certo constrangimento e quase vergonha ao ler o artigo de Marion Chauvel. Aquela idiota retomara os argumentos que ele lhe tinha apresentado, sem sequer os discutir, cega pelas suas convicções, talvez pelos seus ressentimentos. Já se murmurava que Beaufort a deixara por causa de Amina Nekoub, uma rapariga que tinha ambições, uma dessas jovens que procuravam integrar-se a qualquer preço. Marion escrevia que Hocine Nekoub era vítima de uma provocação policial destinada a avivar os sentimentos racistas, a criar incidentes no Bairro do Vulcão. Alguns, afirmava ela, procuravam talvez utilizar os trágicos acontecimentos da Argélia, a deriva integrista do mundo muçulmano para retomar o espírito da cruzada. Não fora esta lançada em Clermont?
Ao ler a jornalista, esquecia-se que uma das vítimas era o padre François Desbordes, e que na Argélia eram os cristãos que eram mortos! Que era lá que se fazia a caça aos estrangeiros, a caça ao fácies, aos kufar, aos ímpios!
Rimberg tinha cada vez mais a convicção, insuportável para ele, de se ter enganado, de estar a agir como se o mundo não houvesse mudado desde havia trinta anos. O racista não era talvez o comissário Beaufort, mas o seu próprio cliente, Hocine Nekoub. Devia ousar pensar isso. E sentia-se amargo, inquieto, como se, bruscamente, o forçassem a ver, a descobrir que tinha envelhecido.
Hocine Nekoub dobrou lentamente o jornal. Estava sentado tão próximo do advogado que os seus joelhos se tocavam. De cada vez que isso acontecia, Rimberg tentava afastar-se como se esse contacto desencadeasse nele um movimento de repulsa.
- Então, satisfeito? - perguntou, esforçando-se por esquecer a sua reacção.
Hocine Nekoub sorriu. Bateu repetidas vezes com o jornal na coxa, abanou a cabeça. Estava bem, disse, não tinha nada a acrescentar. Agradecia ao Dr. Rimberg.
De repente, ao ouvir Hocine Nekoub, a sua voz calma, o advogado pensou: "Estou a defender um fanático. Estou enganado." Em alguns segundos, o tempo de um pensamento, ele argumentara, contestara, discutira, concluíra. O integrismo, o fanatismo dos jovens árabes era uma enxertia da miséria e da exploração no sentimento religioso. Seja. As causas eram portanto complexas. E a responsabilidade do Ocidente - como diriam, nos anos 60, Bourrières, Josserand, Desbordes, e ele próprio os teria aprovado - estava determinada. Claro. Mas o nazismo era uma enxertia da miséria, do desemprego no sentimento nacional. Seja: as causas eram portanto complexas. E a responsabilidade das grandes potências, real. Não tinham elas imposto o diktat de Versalhes? Exigido reparações? Claro.
E então?
Em que é que essas causas justificavam as decapitações, os massacres, em que é que elas desculpavam os integristas, os fanáticos? Se assim fosse, seria preciso desculpar os SS, esses infelizes filhos de desempregados que um dia se tinham descoberto assassinos!
Não, as causas não desculpavam nada.
Havia homens e actos. Era isso que era preciso julgar. As vítimas não queriam saber das causas. Sofriam, sangravam, morriam.
Rimberg observou Nekoub. Aquele, quem era ele, vítima ou carrasco? Talvez transformado em carrasco por ter sido vítima? Mas o que contava era aquilo que ele era hoje, e não o caminho que tinha percorrido. O seu itinerário, as suas razões só interessavam aos psicanalistas e aos biógrafos. Talvez aos padres. Quem sabe? François Desbordes tinha talvez perdoado ao seu assassino no momento de morrer. Rimberg, por seu lado, queria-se apenas advogado.
- Doutor... - começou Hocine Nekoub. Ainda sorria.
Agradecia a Rimberg por se ter proposto assegurar a defesa da sua família. Estava satisfeito. O advogado tinha sido leal. Mas Rimberg devia aceitar também o ponto de vista de um muçulmano, de um homem que queria respeitar as exigências da fé, não fugir aos seus deveres de muçulmano.
- O senhor é judeu, doutor, compreende... O senhor é um ímpio, doutor. Um kufar. Um judeu.
E sorriu abanando a cabeça.
Um judeu, disse Hocine Nekoub.
Rimberg não se mexeu. O seu corpo ficou como um punho fechado. Não era mais que uma bola de músculos enlaçados, de ligamentos entrecruzados, apertados com tanta força que puxavam os ombros como que para juntá-los à cavidade do peito, esticando a nuca e as costas. Tinha de resistir para não se dobrar, para não soltar um grito de raiva que lhe desfaria a garganta, libertaria uma tal violência que Hocine Nekoub seria esmagado, espezinhado, sepultado debaixo dos escombros.
Mas limitou-se a sorrir. Após um momento de hesitação, Hocine Nekoub levantou-se, murmurou que pagaria, naturalmente, os honorários que devia, depois recuou como se receasse que o advogado o agredisse no momento em que voltasse as costas. Parou no átrio do edifício, diante da recepção. Pela ampla janela do salão oculta por um véu de tule, Rimberg seguiu a sua silhueta. Ele atravessou a praça, dirigindo-se para a catedral, passando diante da estátua de Urbano II. O vento levantava-lhe as abas da djellaba.
Enquanto Hocine Nekoub desaparecia, Rimberg lembrou-se desses combatentes argelinos que encontrara nos anos 50 em Tunes pouco depois de terem atravessado a fronteira, fugindo às patrulhas francesas. Estavam hirsutos, com as faces cobertas por uma barba de vários dias. Apesar do calor sufocante, mantinham-se envoltos nas suas djellabas como se tivessem frio. Ao observámos, ao ouvir os seus relatos - as aldeias queimadas, os camaradas abatidos, atirados do alto dos helicópteros, os prisioneiros torturados, etc. - ao ver os seus olhos brilhantes, Rimberg tinha a impressão de que eles tremiam de febre.
Havia perto de quarenta anos. Ele estivera muito tempo na Argélia. Desbordes editava nessa época uma pequena revista com Claude Josserand, um estudante de Filosofia e Georges Bourrières, o sociólogo. Apesar da censura, das perseguições, e em breve as condenações, ela denunciava as violações do direito cometidas na Argélia sob a grande mentira da Pacificação.
Fora quarenta anos antes.
A praça em frente da catedral estava deserta.
Rimberg fechou os olhos e apoiou-se ao espaldar da poltrona. Sentia o desejo e a necessidade de dormir. Tinha sido invadido por uma sensação de vertigem e de náusea.
Apoiou a nuca no rebordo da poltrona, esticando assim o pescoço, expondo a garganta. E deu por si a imaginar o gesto pronto dos assassinos agarrando os padres pelos cabelos, porque eram cristãos, o sangue a jorrar, depois esses homens que se reclamavam do Misericordioso apoderavam-se das mulheres, violavam-nas para aquilo a que chamavam um casamento de prazer, e degolavam-nas por sua vez. Quem eram eles, esses assassinos?
Eles matavam com a certeza da sua superioridade. Enterravam o punhal com um sorriso de prazer e de desprezo. Um cristão, uma mulher, não pertenciam ao mundo. Não eram nada. Como os judeus.
No decorrer das décadas passadas, muito raros eram os que tinham ousado designar Rimberg desse modo.
Muitas vezes adivinhara a palavra à flor dos lábios, mas a pequena sílaba transformava-se numa longa frase que se estirava, e era Rimberg que, por vezes, para desconcertar o seu interlocutor, a pronunciava: "Mas é claro, sou judeu, meu caro, os meus pais até desapareceram em Auschwitz, ou no comboio que os transportava para lá. Isso incomoda-o, isso perturba os seus distintos clientes? Não insistamos..."
Mas, em Buenos Aires, em Santiago do Chile, no tempo da ditadura, quando Rimberg fora investigar o desaparecimento dos opositores, as torturas perpetradas nos quartéis - as mulheres penetradas por ratos, os corpos mutilados, já! -, alguns oficiais envergando casacos escuros cheios de paramentos dourados, com um fino bigode negro semelhante aos dos sedutores das histórias de cordel dos anos 30 atravessado no rosto de pele mate, haviam dito no mesmo tom que Hocine Nekoub: "O senhor é judeu, não é, doutor?" Era a sua maneira de excluí-lo de um mundo que esses carrascos julgavam dominar, onde eles queriam reinar como senhores, purificando-o de todos os hereges, de todos os ímpios, desses kufar de que falava Hocine Nekoub.
Rimberg imaginava-o: sem dúvida os SS que com a ponta da chibata haviam forçado o seu pai e a sua mãe a baixar a cabeça, para que o seu olhar de ímpios não maculasse os homens da raça superior - sim, sem dúvida eles haviam lançado da mesma maneira: "judeus".
Aquilo recomeçava, portanto, ou antes - e Rimberg ergueu-se, abriu os olhos, assumiu uma expressão desdenhosa, esticando os lábios, húmidos de uma saliva acre - aquilo continuava.
Aquilo?
Se se tratasse apenas de judeus, de muçulmanos, de cristãos, aquilo teria sido simples. Condenava-se uma ou outra dessas religiões irmãs. Ou as três. Não se tinham elas massacrado umas às outras desde havia séculos? Mas aqueles que não eram crentes, pagãos, ateus, que festejavam o solstício de Verão ou a revolução de Outubro, também eles tinham, como os outros, judeus, muçulmanos, cristãos, empurrado os homens para o matadouro.
Aquilo, era portanto a barbárie, a loucura que se mascarava, que de cada vez chegava à cena com um novo disfarce. A princípio, não se conseguia reconhecê-la. Já não usava um uniforme negro, já não brandia um estandarte vermelho. Ela tinha vestido os farrapos da vítima de ontem, dando assim o troco.
"Cretino! murmurou Rimberg. Pobre imbecil!"
Lera os artigos que relatavam as circunstâncias da morte de François Desbordes. Escutara as primeiras declarações de Hocine Nekoub e precipitara-se para Clermont, imaginando uma provocação de grupos racistas talvez ligados à polícia. Tinham suprimido o seu velho adversário François Desbordes a fim de acusar Hocine Nekoub, porque este tomara ascendente sobre os imigrados do Bairro do Vulcão.
Num movimento de orgulhosa certeza, Rimberg julgara adivinhar a manipulação e persuadira-se de que ia derrotá-la.
Cretino, pobre imbecil.
-Um judeu - dissera Hocine Nekoub.
Era como se, ao pronunciar esta palavra, Hocine Nekoub tivesse rejeitado a sua djellaba, o seu último disfarce, e aparecesse no seu uniforme negro de outrora.
A máscara caíra.
Apoiando-se nos dois braços da poltrona, Rimberg levantou-se lentamente.
Se era preciso lutar, era contra esses.
Em voz baixa, de cabeça inclinada, absorto nos seus pensamentos, pediu a conta na recepção, e, como o faziam repetir o seu nome, lançou maquinalmente, sorrindo à jovem:
- Benoít Rimberg, judeu.
Amina Nekoub hesitava em empurrar a porta do restaurante. Atrás da vidraça em que alguém pintara uma paisagem de oásis - um camelo recortava-se no alto das dunas -, ela entrevia um homem moreno de rosto gordo, cabelos luzidios, que dormitava, de braços cruzados, apoiado ao balcão. Por momentos, quando o barulho do trânsito enfraquecia, o tempo de um semáforo vermelho, ouvia a voz aguda de um cantor árabe que salmodiava.
Sempre se recusara a ouvir aquela música repetitiva, obsessiva, que lhe parecia lacrimejante e hipócrita, exprimindo uma pieguice afectada como os choros, os gestos e os gritos da mãe, que ela ignorava: "Continua com o teu cinema, respondia. Eu vou sair, raspo-me quando quero." - e batia com a porta.
Isso era antes de Tahar, antes do nascimento de Reda, antes do regresso de Hocine. Antes de tudo isso: a morte de Tahar e da criança, do padre Desbordes, de Khaled. E antes daquele polícia, Jean-Louis Beaufort.
Esforçava-se por repetir: Jean-Louis, porque era esse o nome dele e era assim que Hélène Milner lhe chamava.
Um rapaz do restaurante de quem ela apenas via o bigode espesso, as faces bexigosas, abriu a porta. A música envolveu-a.
Como podiam aquele tom meloso, aquelas notas arrastadas, aquele visco suplicante, aquelas vozes de inflexões femininas coabitar com a vulgaridade, a brutalidade, a crueldade dominantes? Eles violavam, lapidavam as esposas adúlteras, mas cantavam como mulheres.
Amina continuava à porta do restaurante, apesar dos gestos convidativos do rapaz.
Eles mentem, pensava ela. São loucos, não sabem o que querem, nem o que são. Isto não passa de uma civilização da mentira. Não quero isto, não quero mais disto. Vivo aqui. Não quero vê-los nunca mais!
Tinha recuado um passo, mas, de repente, do fundo da sala, Marion Chauvel fizera-lhe sinal, levantara-se, avançara para ela enquanto dobrava o jornal que segurava com as duas mãos. Pendia-lhe dos lábios um cigarro. Fizera deslizar os óculos para a ponta do nariz. Os cabelos anelados, meio compridos, deixavam ver longos pendentes dourados. Estava maquilhada, com as pálpebras muito negras, os lábios de um vermelho escuro. Amina achou-a pequena, quase atarracada, com as ancas demasiado largas, o blusão de couro preto, aberto sobre um camiseiro, ocultando a cintura das calças cinzentas.
- Venha - disse Marion pegando-lhe pelo pulso.
Estava perfumada.
O homem, atrás do balcão, sorriu a Amina com um ar de conivência, soerguendo-se apoiado nos antebraços. O rapaz seguiu-as.
Enquanto conduzia Amina, caminhando à frente dela sem a largar, Marion falava. Estava contente, dizia, por a jovem ter aceite aquele almoço. Era preciso conhecer o seu ponto de vista, que ela falasse livremente do Bairro do Vulcão, do padre Desbordes, de Hocine, deTahar, de tudo aquilo que achasse por bem dizer; de qualquer maneira, nada seria publicado sem o seu acordo, era uma regra que ela respeitava sempre.
Indicou a pequena mesa redonda à parte, num dos cantos da sala.
Era a sua mesa, explicou.
A sede do jornal ficava a algumas centenas de metros, ia ali quase todos os dias. Não se cansava da cozinha árabe. No fundo, era uma cozinha clássica, simpática e simples, camponesa. O cozido era da mesma família do cuscuz: carne cozida, legumes, uma cozinha de cozedura longa. Evidentemente, Amina gostava do cuscuz?
Amina sentou-se sem responder.
A sua irritação, quase furor, tinha-se voltado contra Marion Chauvel. Censurava-se por não ter desligado quando a jornalista lhe telefonara para casa de Hélène Milner, insistindo para que se encontrassem.
A saída do Dr. Rimberg, ainda que não tivesse feito nenhuma declaração, dava uma nova luz ao caso, explicara ela a Amina. Ela compreendia que isso equivalia a um acto de desconfiança para com Hocine Nekoub? Rimberg tinha a reputação de um advogado que, nos tribunais, defendia causas justas. Ao abandonar Hocine e portanto a sua irmã, ele acusava-os. Por isso ela devia explicar-se.
- Você conhece o comissário Beaufort, não conhece? - perguntara Marion Chauvel. Desejava também falar dele, dos métodos e das intenções da polícia, do papel do ministro do Interior. - Beaufort é o homem-chave, acredite.
Fora talvez esta última observação que a fizera decidir-se.
Apenas pronunciara duas vezes sim. Uma vez para aceitar o almoço, outra para garantir que tinha anotado bem o endereço do restaurante, o Oásis, perto da Praça da República.
- Você gosta de cuscuz, não é verdade? - Depois, como Amina não respondia, Marion acrescentara: - Sou uma idiota - e rira.
Aquele riso, ao telefone, e agora aquela maneira de apoiar o ombro ao de Amina - e os seus cabelos vinham roçar na face da jovem -, a sua voz grave para comentar a lista, dizer aquilo que preferia, o tom com que acrescentava: "Eles são simpáticos comigo, fazem aquilo que lhes peço, por isso não hesite, eles atendem: são simpáticos." - tudo, em Marion Chauvel, a revoltava.
Simpáticos? Quem se julgava ela, aquela, com a cara sarapintada como uma puta, o seu perfume atordoante, as unhas pintadas, com aquele cigarro cuja cinza deixava cair em cima da toalha?
Amina sentia-se acanhada, quase envergonhada por deixar imaginar, porque estavam ombro a ombro, uma cumplicidade entre as duas, e tinha vontade de empurrar Marion Chauvel. Naquele instante, Amina teria compreendido que insultassem aquela mulher, que lhe batessem.
Mas não, com aquele género de mulheres, eles eram efectivamente simpáticos. Reservavam as pancadas para as irmãs, para as filhas, para as esposas!
Àquelas falavam-lhes humildemente, como o dono do restaurante que, de pé junto da mesa, servil, interrogava:
- Que prefere que lhe prepare Madame Marion? O costume? Tenho uma coisa especial...
Debruçou-se, apoiando os dedos grossos e curtos na mesa. Tinha preparado uma tajine (1) para madame Marion e...
Encarava Amina. Esta achou-lhe um olhar desdenhoso, como se quisesse significar que sabia quem ela era, que ela não tinha direito à suas atenções, que ele não tinha obrigação de servi-la.
- Que me diz? - inquiriu Marion. - Mas nesse caso (tinha pousado a mão na do patrão), Sami, precisamos do seu melhor vinho, aquele...
Procurou o nome, quis pegar na carta de vinhos, mas o patrão impediu-a, agarrando-lhe por sua vez a mão.
Deixasse-o decidir. Madame Marion depois diria.
- Confia em mim?
Ela aquiesceu com um sorriso, depois indicou Amina: fazia questão de lhe apresentar aquela jovem, que era argelina.
- Já tinha visto - disse o patrão endireitando-se e voltando a cabeça.
(1) Tajine: assado de carneiro. (N. do T.)
- Argelina - disse Marion Chauvel.
Amina Nekoub teve a impressão de que todo o seu sangue lhe refluía para o baixo ventre, para o sexo.
Havia muito tempo, numa manhã de Inverno, estava sentada entre dois rapazes, ao fundo do autocarro. Tinha talvez catorze anos. Era de noite. O veículo estava mergulhado na penumbra. Os passageiros dormitavam. Um dos rapazes agarrara Amina pelo pescoço, apertando-lhe a garganta, encostando-se a ela, falando-lhe ao ouvido, e ela sentia ainda esse bafo escaldante, ouvia essas palavras:
- Porca, árabe, vocês têm todas o cu quente, hem, escondem-no bem, mas tu vai-nos fazer a dança do ventre, hem? - O outro metera a mão por baixo das saias de Amina, metia-lhe os dedos entre as coxas que ela apertava uma contra a outra.
Finalmente o autocarro entrara nas ruas iluminadas de Clermont e Amina conseguira soltar-se, dando cotoveladas, cabeçadas, correndo a colocar-se ao pé do condutor, enquanto os dois rapazes, que continuavam nos seus lugares, lhe faziam gestos obscenos.
Quando desceu do autocarro, teve medo de que eles a seguissem. Insultaram-na de longe:
- Porca, puta!
E um deles lançara:
- Volta para a tua terra, argelina!
- Argelina - disse Marion Chauvel.
O corpo de Amina estava gelado, com excepção daquele corte que a dividia, essa lâmina escaldante que, partindo do sexo, lhe cortava o ventre e o peito ao meio, e depois lhe abria a garganta. Não tinha força nem para falar nem para se mexer.
Estava empalada, dilacerada, varada no seu centro.
Debruçada para ela, Marion Chauvel continuou em voz mais baixa:
- Argelina, é uma maneira de dizer, claro.
Antes de mais, isso existia, os argelinos, os franceses? Ela só conhecia indivíduos. Talvez porque tinha percorrido o mundo em todos os sentidos, sentia-se simplesmente um ser humano. Francesa? Porque era preciso um passaporte. Marion sabia naturalmente que Amina era de nacionalidade e de cultura francesas, que tinha seguido uma escolaridade exemplar, brilhantes estudos na faculdade de letras e de história. Marion tinha-se informado antes de se encontrar com ela.
Mas não havia, em cada indivíduo, raízes mais profundas que a cultura livresca?
Marion - voltava a acender um cigarro, brincava com os óculos, com a cabeça puxada para trás - sempre contestara a política de assimilação. Sabia-se ao que isso conduzia, de onde isso vinha. De um sentimento de superioridade. Uma espécie de racismo. Como se existissem povos ou civilizações superiores!
Ah, o Ocidente, vimo-lo actuar durante este século! Não foram os muçulmanos que criaram Auschwitz, que lançaram duas bombas atómicas, que mataram um milhão de argelinos, e quantos iraquianos? Quanto aos franceses, podia-se enumerar os crimes que fora preciso cometer para constituir a França! E não apenas genocídios culturais, mas verdadeiros massacres: os albigenses, os protestantes, os comunardos, e já não falava dos insurrectos da Vendeia, uma verdadeira pacificação! Crianças e mulheres degoladas, afogadas, etc, uma infâmia!
Marion Chauvel agarrou o pulso de Amina.
- Somos um país sangrento. De resto, todas as nações são criminosas. Restam os indivíduos.
Suspirou.
- É mesmo assim! Que é que acha disto?
Amina continuava calada. Cada palavra a agredia, a humilhava. Sentia-se achincalhada, negada, como se, de antemão, Marion a interditasse de ser uma mulher livre, aqui, neste país onde ela nascera francesa, como se a jornalista quisesse mostrar-lhe que essa aspiração não tinha qualquer sentido, que devia continuar uma argelina, esconder os cabelos e ficar de pé atrás da cadeira do homem a fim de servi-lo enquanto ele comia.
- Aí está o vinho - lançou ela.
Saboreou, fazendo estalar a língua, esticando os lábios, dizendo que era efectivamente aquele que desejava.
Sami era um tipo extraordinário, continuou dando uma palmadinha no ombro do patrão e tomando a jovem por testemunha. Ele era um ser - insistia nesta palavra - excepcional. Era talvez partidário dos integristas? Não o censurava por isso, não é verdade, Sami? Ele tinha as suas razões, e ela respeitava-as. Se fosse muçulmana, quem sabe o que faria? Certamente odiaria os europeus. Mas não pedia nenhuma explicação a Sami. O que contava, era o indivíduo, a sua riqueza, a sua inteligência. Não é verdade, Sami?
O patrão abanou a cabeça.
No momento de servir Amina, hesitou. Marion tocou-lhe na mão. Mas claro, mas claro, devia deitar, encher-lhe o copo. Amina bebia vinho, como toda a gente. Sami recusava-se a beber com os seus clientes? E não se falasse de religião. A religião não tinha nada a ver com aquilo! O vinho, desde a antiguidade, era a própria marca da civilização.
Bruscamente, Amina Nekoub virou o seu copo e cobriu-o com as duas mãos sobrepostas. Depois afastou-se de Marion Chauvel, fazendo deslizar ruidosamente os pés da cadeira no chão. Parecia que a mesa, aquele canto da sala estavam de repente isolados, rodeados de silêncio. E essa impressão durou muito tempo, até que o patrão tossicou, murmurou que com os muçulmanos nunca se podia prever.
- Compreende, Madame Marion, não somos civilizados - concluiu ele afastando-se.
Amina endireitou-se.
Observou sucessivamente aquele homem que lhe sorria e Marion Chauvel, cuja fronte era cortada por uma ruga de inquietação.
Amina Nekoub só deu pelos dois homens no momento em que entrava no portal. Deviam estar dissimulados atrás das colunas de cimento e avançavam agora como empurrados pelo vento frio que soprava debaixo da abóbada. Soube imediatamente que era dela que eles estavam à espera.
O edifício em que moravam os Milner estava situado na esquina da Rua de Javel com a Avenida Émile Zola. O átrio dava acesso a uma pequena esplanada rodeada por outros edifícios. Ninguém parava naquele espaço que nunca era iluminado pela luz do Sol. A noite parecia espreitar ali o fim do dia, transbordar e invadir as ruas vizinhas, cobrir os prédios. Era, em plena cidade, um enclave sombrio onde Amina, já por várias vezes tivera medo, sentindo-se espiada.
Neste momento, parada, não pensava sequer em fugir. Naquele fim de tarde, as lojas da Avenida Émile Zola estavam fechadas, com excepção do merceeiro do fim da rua. Poderia correr até lá, mas os dois homens estavam já ao pé dela, agarrando-a pelo braço. Quando quis soltar-se, eles agarraram-na com mais força até magoá-la.
Ela absteve-se a princípio de gritar. Encarou-os, mas era como se não os visse. Pensava em Tahar e em Khaled, nesses dois mortos, e sentia subir em si uma violência, uma força, uma histeria que reprimia o seu medo. Não receava nada. Desprezava. Odiava. Ela era mais forte.
Começaram a falar-lhe em árabe, e aliviaram os dedos, imaginando-a resignada, assustada, e portanto submissa. Revoltou-se. Que diziam eles? perguntou. Não compreendia aquela língua de merda. Ela falava francês. Era francesa.
Abanaram-na, insultaram-na, depois um deles, em voz rouca, disse-lhe em francês que vinham da parte de Hocine. Ela devia regressar a casa, se não...
- Se não, o quê?
Mediu aquele homem baixinho, robusto, que usava um blusão de ganga com a gola levantada. Ele voltou a insultá-la em árabe.
- Se não o quê, pobre imbecil? - repetiu ela.
- É teu irmão. Tem direitos sobre ti.
- Que vá à merda! E vocês vão à merda! - gritou ela.
A grosseria libertava-a. Não era irmã de ninguém, principalmente desse porco do Hocine, ele que rebentasse! Tinha vontade de lhe cuspir na cara, e, como se a receassem, continuando a segurá-la, eles afastaram-se.
- Cuidado contigo - disse o outro.
Este tinha olhos de louco. De súbito, encostou-se a ela, obrigando-a a apoiar-se a ele. Pronunciou por duas vezes uma frase em árabe, depois repetiu-a lentamente em francês:
- Sou testemunha de que só há um Deus, e Maomé é o seu profeta.
- Merda! Merda! - bradou ela.
A sua voz invadia o portal, parecia rodopiar sobre a pequena esplanada, ao longo das fachadas e voltar para eles.
- Matamos-te, disse um.
- Mas primeiro fodemos-te, disse o outro. O teu irmão deu-nos esse direito.
Era como no autocarro que descia do Bairro do Vulcão, em Clermont, quando ela era ainda apenas uma rapariguinha que não sabia nada, que aprendia as suas lições tão facilmente que lhe bastava ler uma única vez um poema de Apollinaire para poder recitá-lo. E os dois rapazes, no banco de trás do autocarro, na penumbra, tinham-na insultado, metendo-lhe os dedos gelados por entre as coxas.
Desejaria cortar-lhes as mãos, o sexo. Muitas vezes Hocine colocava a palma da mão no seu próprio baixo ventre, sopesava, ria: "São grandes. Uma mulher não sabe o que isto é, quanto pesa. É bom, é pesado entre as pernas." Ela desprezava-o. Quereria matá-lo, que ele desaparecesse.
Gritou e, como no autocarro, deu cotoveladas e pontapés, depois lançou-se pela Avenida Émile Zola.
Ela era a mais forte.
Continuava a gritar enquanto corria. Gesticulando, desgrenhada, precipitou-se na mercearia, aquela mancha de luz rodeada de grandes tabiques negros.
Quase caiu nos braços de um homem novo, de bata azul. Estava tão esbaforida que só conseguiu indicar os dois tipos que estavam já à entrada da loja, entre os expositores de frutas.
De repente, descobriu o rosto do merceeiro. Moreno, de cabelos negros, anelados. Afastou-se dele. Era como os outros, pensou ela. Tinha-se lançado na ratoeira. Ele seria cúmplice dos outros.
Os dois tipos dirigiram-se ao merceeiro em árabe, e ele respondeu-lhes numa voz pouco segura. Falando com autoridade, avançaram, dizendo que ela era irmã deles, que tinha fugido, que queriam levá-la de volta aos pais, que um muçulmano tinha obrigação de ajudá-los. Mas, de repente, o merceeiro começou a falar francês:
- Ponham-se a andar! - lançou ele em voz forte. Ameaçou chamar a polícia.
Dirigiu-se para o telefone enquanto os dois tipos hesitavam. O merceeiro aproveitou-se disso para agarrar um taco de basebol que pareceu enorme a Amina. Brandiu-o, segurando-o com as duas mãos:
- Ponham-se a andar! - gritou, e, ao mesmo tempo, disse para a jovem, sem olhar para ela: - Chame a polícia, depressa, depressa!
Os dois tipos recuaram insultando-o, depois, com alguns pontapés, derrubaram as caixas da fruta e de legumes antes de fugirem na direcção do Sena.
O merceeiro praguejou em árabe. Pôs-se a apanhar as maçãs, as tangerinas, os tomates que tinha rolado pelo passeio. Quando Amina Nekoub quis ajudá-lo, ele endireitou-se, agarrou-a pelos ombros, instou-a a voltar para casa, depressa, porque aqueles dois, ela bem os vira: mesmo que fossem irmãos dela, eram doidos.
De súbito, Amina interrompeu o seu relato. Acabava de dizer que se precipitara para a mercearia, ao fim da Avenida Emile Zola, e que chocara com aquele homem que usava uma camisola azul.
- - É o Rachid, Rachid Messaou - murmurou Hélène Milner.
Estava apoiada à divisória envidraçada, com os braços cruzados. De pé diante de Amina, escutava, inclinada para a frente, de olhar fixo, com uma expressão de angústia, de emoção e de cólera no rosto. Com um gesto da mão, puxou os cabelos para trás. Aquele movimento breve, aquela sua maneira de cruzar novamente os braços como para se forçar à imobilidade, prender as mãos, revelavam a sua agitação.
Amina olhou para ela. Hélène encontrava-se no meio de um painel de vidro e parecia assim ocupar, como uma estátua, o espaço que separava dois prédios da Avenida Émile Zola; as fachadas intercalavam-se entre o terraço dos Milner e o horizonte colorido por um clarão difuso, como grandes cortinas negras que começavam a abrir.
- Rachid - continuou Hélène, visto que Amina ficou calada -, o Rachid está aberto até à meia-noite.
Hesitou, depois foi-se sentar no braço da poltrona sobre a qual Amina se deixara cair. Acariciou-lhe os cabelos enquanto explicava que Rachid era de uma família de Oran, que falava muitas vezes com ele. Tinha nascido na Courneuve; o pai associara-se com vários dos seus primos para alugar aquela loja. Era preciso trabalhar, trabalhar muito, porque no começo - era assim que ele falava - era preciso fazer aquilo que os outros já não queriam fazer.
Amina ocultou o rosto com as mãos e ficou assim sem que Hélène ousasse pedir-lhe para continuar o seu relato. Depois endireitou-se e agitou a cabeça como para dar a entender que já não suportava que lhe acariciassem os cabelos. Hélène foi apoiar-se de novo de encontro à divisória envidraçada.
- Quando lhe vi os cabelos pretos - murmurou a jovem -, a pele morena, pensei: "Estou tramada."
Pela primeira vez desde que os dois homens a tinham agarrado, debaixo do portal, ficara aterrorizada. Era como se, num instante, por causa da fisionomia daquele merceeiro, acreditasse que à sua volta já só havia inimigos, assassinos, que estava fechada numa sala cujas portas e janelas houvessem sido aferrolhadas.
Como no seu apartamento do Bairro do Vulcão - dizia-o a Hélène, confessava-o pela primeira vez a alguém, porque tinha vergonha daquilo que eles haviam feito, os seus irmãos, Hocine e o pequeno Mehdi; daquilo que eles, os seus pais, o pai e a mãe, tinham aceitado - onde a tinham fechado dias e noites deixando-a no meio dos seus excrementos, sem lhe darem nada de beber, nem de comer, nada, para que ela cedesse a Hocine, se vergasse, usasse o véu, para que nunca se suspeitasse de que era a mãe de Réda, o seu filho morto.
Fora isso que ela revivera ao descobrir o rosto do merceeiro. Murmurou o nome dele: Rachid Messaou. Hélène Milner repetiu-o: Rachid Messaou, sim, Amina fixara-o bem. Um homem corajoso, generoso, acrescentou.
Amina aprovou. Contou como ele enfrentara, sozinho, e como expulsara aqueles dois tipos que queriam arrastá-la.
Bruscamente, Amina mudou de voz. O seu timbre tornara-se agudo, repetia cada frase, cada palavra.
Alguém - estendia os braços para Hélène como a apontá-la -, alguém podia imaginar aquilo que ela, Amina Nekoub, pudera pensar ao encontrar-se diante de Rachid Messaou? Pensara:
"Estou tramada, é um árabe, um árabe!" quase gritava ela, Amina Nekoub, irmã de Hocine Nekoub, que vivia no Bairro do Vulcão, pensara aquilo, não imaginara outra palavra: nem tunisino, nem marroquino, nem argelino, só tivera aquilo no espírito diante daquela cara: árabe, e ficara aterrorizada.
- Árabe - murmurou de novo.
Hélène Milner aproximou-se, mas Amina sacudiu os ombros.
Que não lhe tocassem! A mão de Hélène nos seus cabelos fazia-a ter ainda mais consciência do seu corpo, da sua existência, de que tinha tanta vergonha que desejaria naquele instante encolher-se, consumir-se, raminho que se torna cinza ao arder.
A vítima, Rachid Messaou, tem um comércio de mercearia no número 7 da Avenida Émile Zola.
Descreve assim os factos:
Por volta das 23 horas e 45, minutos depois de ter puxado o taipal da loja, meteu pela Avenida Émile Zola, no passeio da direita, em direcção à Rua da Convenção.
Examinou atentamente as imediações virando-se diversas vezes, procurando não ser seguido. Transportava consigo efectivamente a receita do dia. Além disso, algumas horas antes, dois homens tinham-se introduzido na sua loja, procurando agarrar uma jovem que ali se refugiara. Ele expulsara-os. Esses dois homens haviam-no insultado e ameaçado ao retirar-se, depois de lhe derrubarem o expositor. Conseguiu fazer uma descrição precisa da jovem e dos dois homens que se apresentavam como irmãos dela.
Depois de atravessar a Rua Auguste-Vitu, Rachid Messaou ouviu um motor arrancar, e avistou um carro na esquina da Avenida Émile Zola com a Rua Auguste-Vitu. Tratava-se, segundo ele, de um Fiat Uno preto com riscas brancas.
Fixou elementos do número de matrícula... HE 63.
No interior estavam dois homens. Não conseguiu identificá-los, mas, em sua opinião, só podia tratar-se dos dois agressores precedentes.
O veículo, depois de arrancar, precipitou-se a toda a velocidade por cima do passeio tentando chocar contra Rachid Messaou. Ele conseguiu evitar o choque frontal, mas foi derrubado e sofre de várias contusões.
O seu estado, após exame, não inspira cuidados. Não foram detectadas fracturas nem lesões.
A vítima, Rachid Messaou, depois de apresentar queixa por tentativa de homicídio voluntário no comissariado do XV Bairro Beaugrenelle, recolheu ao domicílio, Rua da Convenção, 47.
Uma testemunha - Lucien Niéret, morador na Rua de Javel, 17-, que se apresentou espontaneamente, confirmou as afirmações da vítima, afirmando ter visto da janela do seu apartamento um homem, provavelmente do tipo norte-africano, a espiar à esquina da Rua Auguste-Vitu com a Avenida Émile Zola. Esse homem entrou para um automóvel estacionado na Rua Auguste-Vitu no momento em que o merceeiro saía da sua loja.
Essa testemunha permitiu completar parcialmente o número de matrícula do carro: ... 7 HL 63.
Para fins de identificação, esses elementos foram comunicados ao comissariado central de Clermont-Ferrand, dado que o número de matrícula revela um registo do departamento do Puy-de-Dôme.
Os ímpios serão friamente mortos
O ministro estava imóvel, com os cotovelos pousados nos braços da poltrona, os lábios colados aos dedos entrecruzados. Tinha a cabeça inclinada e poder-se-ia pensar que rezava ou dormitava. Tinha talvez fechado os olhos, mas Beaufort, de pé a alguns passos, só lhe via os cabelos negros, a testa, as sobrancelhas espessas, os dedos entrelaçados, e uma parte daquele corpo maciço, como que esmagado pelo seu próprio peso.
O ministro ignorou o contínuo que, num murmúrio, como que para não perturbar o silêncio do gabinete, anunciara o comissário.
O ranger da porta que se fechava, apesar de quase imperceptível, acentuou em Beaufort o sentimento de confusão e quase de pânico que sentia desde que partira de Clermont. Olhando à sua volta, procurou recuperar a recordação da sua última entrevista. Mas a sala estava mergulhada na penumbra, os cortinados meio corridos, de modo que apenas conseguiu distinguir uma parte do gradeamento de pontas douradas que dava para a Praça Beauvau. A Avenida de Marigny e, mais além, o espaço, a ponte, a esplanada, a cúpula dourada, essa perspectiva que permaneciam gravados na sua memória, estavam apagados.
Um candeeiro com quebra-luz de opalina verde, colocado no canto esquerdo da mesa de trabalho, apenas iluminava os processos espalhados e uma parte do corpo do ministro cujas costas e nuca ficavam mergulhadas no escuro da sala.
Era também aquele silêncio que angustiava Beaufort. Tinha a sensação de que havia apenas um breve caminho a percorrer desde o Bairro do Vulcão àquela grande sala sombria, como se um túnel conduzisse directamente do parque de estacionamento ruidoso do Bairro àquele lugar fechado.
Ainda nessa manhã, Beaufort estava escondido, com a gola do impermeável levantada, um boné enterrado até aos olhos, no carro gelado e cheio de fumo, estacionado a uns vinte metros de um veículo preto, um Fiat Uno com riscas brancas com a matrícula 627 HL 63.
Os três inspectores que estavam sentados na companhia do comissário dormiam por turnos, mas Beaufort vigiara toda a noite, à espreita desde que tinha parado no parque. Teriam dado por eles? Um bando de jovens parecera montar um espectáculo provocatório. A alguns metros dali, forçaram as portas de dois automóveis, depois circularam a grande velocidade pelas áleas, chocando contra outros veículos estacionados. A cada choque, a cada berro, Beaufort repetira numa voz demasiado calma que não interviessem, que não estava ali para isso.
Os inspectores praguejavam, protestavam. De qualquer modo, os dois tipos não viriam recuperar o carro. Certamente já os tinham avisado da presença da polícia. "Toda a gente deu por nós", afirmara um dos inspectores.
Depois caíra o nevoeiro.
Por várias vezes, tiveram tanto frio que deixaram o motor a funcionar.
Assim passara a noite, inútil e gelada.
Um dos inspectores abrira um termo de café e beberam do mesmo copo, com os dedos entorpecidos. Beaufort estava calado. Os outros ignoravam-no, nem sequer olhavam para ele, estendendo-lhe o termo sem dizer palavra. Depois houvera aquele telefonema da central da esquadra da polícia de Clermont: o ministro convocava o comissário Beaufort para essa mesma noite, em Paris, entrevista às 22 horas.
- Vocês conduzem-me daqui a duas horas – dissera Beaufort. - Peçam para ser substituídos. Quero aqui um carro com quatro inspectores todos os dias, entendido?
Beaufort tomara a estrada de Paris sem passar pelo hotel. Chovera, nevara mesmo durante uns cinquenta quilómetros. O dia parecia ainda não ter nascido. Longos camiões formavam uma cadeia contínua, levantando girândolas de água oleosa que os limpa-vidros espalhavam.
Conduzira, debruçado sobre o volante, com a tentação cada vez mais forte de fechar os olhos. Gostaria de sair daquele túnel, daquela estrada.
De um morto para outro, para onde ia ele?
Quando abrandava, entalado entre dois camiões e a fila dos carros que, em sentido inverso, o impediam de se escapar, pensava em Amina Nekoub, naquilo que Hélène Milner lhe explicara ao telefone. A jovem estava em estado de choque. A princípio encarara as coisas, mas era como no dia seguinte a um acidente: abatera-se brutalmente. Agora recusava-se a sair. Estava convencida de que não a largariam nunca mais, que iam matá-la em plena rua, de que Gabriel, o filho de Hélène, estava ameaçado, e a própria Hélène. Eles eram capazes de tudo. Ela tinha lido. Na Argélia, tinham assassinado as mães diante dos filhos de quatro ou cinco anos, e tinham fechado as crianças com o cadáver na mesma sala. "São loucos." Amina recusara-se a falar a Beaufort. "É um animal ferido, dissera Hélène. Ela fica enrolada na cama, é difícil fazê-la beber um pouco de chá ou de leite.
Precisava de vê-la, de tranquilizá-la.
Acelerava, escapa-se da coluna de camiões. Teria coragem para reencontrar Amina? Para lhe dizer o quê, oferecer-lhe que saída? Seria preciso partir com ela para outro país, para os antípodas, para a Austrália, a Nova Zelândia. Beaufort sonhava alguns minutos, depois um automóvel ultrapassava-o, salpicando os pára-brisa, e ele já não via nada. Rolava de novo num túnel. A fadiga apertava-lhe a nuca, os braços e as pernas inteiriçavam-se. Gostaria de fechar os olhos, acabar com tudo. Aquele túnel não tinha saída. A chuva redobrava. Nem dia, nem noite, clarões de faróis, linhas de luz, as ruas de Paris de repente, o amontoado de carros, aquela impaciência que se apoderava dele.
Ligou o rádio. Ouviu o final de uma frase: "... um segundo polícia foi atingido, mas está apenas ferido na coxa. O Bairro do Vulcão foi cercado. Duas companhias de polícia de choque foram enviadas para o local".
O indicativo musical tonitruava, perfurando-lhe a cabeça.
Enquanto acelerava, Beaufort procurou novas informações. Não conseguiu encontrar a frequência apropriada. Os números desfilavam sem parar no visor, depois recomeçavam em sentido inverso. Por fim, oprimido, desligou o rádio, pensou em telefonar para Clermont, depois renunciou.
O túnel, a fossa. Ele estava mesmo no centro.
No posto de guarda, à entrada do Ministério do Interior, tentou obter pormenores sobre os incidentes que parecia terem ocorrido no Bairro do Vulcão, em Clermont-Ferrand. Os agentes de serviço indicaram-lhe o único ecrã com que o posto de guarda estava equipado: a câmara de vigilância filmava a Praça Beauvau, já deserta.
Beaufort pediu então para telefonar. Remeteram-no de gabinete para gabinete. Enfim, com reticências, mesmo uma hostilidade que não procurava dissimular, um agente da esquadra de polícia de Clermont contou-lhe os incidentes.
- Aqui, nós, como conhecemos as pessoas do Bairro, sabíamos bem que isto ia acabar assim. Mas há uns que se julgam sempre mais fortes.
O comissário interrompeu-o, mas o outro ergueu o tom. Também podia não dizer nada. Quem lhe garantia que era Beaufort que estava ao telefone?
Este último pôs-se a gritar. Queria o texto do fax dirigido ao ministro do Interior, que lho mandassem imediatamente, em seu nome, para a Praça de Beauvau.
- Posso ler-lho - respondeu o polícia - se faz questão. Beaufort gritou que o exigia.
Alguns jovens, explicavam, tinham rodeado o carro da polícia no parque de estacionamento do Bairro e começaram a abaná-lo. Os polícias saíram. O veículo que eles vigiavam preparava-se para arrancar e os jovens quiseram criar uma diversão. Apesar das intimações, o veículo não tinha parado. Um dos inspectores disparara quando o carro se precipitara contra ele. Os ocupantes, depois de o derrubarem, dispararam à queima-roupa contra o polícia. O inspector apanhou uma bala de aletas - das usadas na caça ao javali - na cabeça. Um segundo polícia ficara ferido numa coxa. Os incidentes mais violentos ocorreram no momento da chegada do auxílio e dos carros dos polícias de choque. As ambulâncias e as forças da ordem foram apedrejadas. Houvera disparos contra eles. A calma só fora restabelecida às 19 horas, mas as forças da ordem continuavam no local. Receava-se uma recrudescência da tensão durante a noite, nomeadamente com riscos de incêndio de automóveis. Os polícias de choque barravam a estrada de Clermont, dado que alguns jovens manifestaram a intenção de descer à cidade para saquear lojas e vingar os seus camaradas feridos. Contava-se com efeito uma dezena de manifestantes mais ou menos atingidos. Um deles estava em coma. Mas não era impossível que alguns outros feridos tivessem sido recolhidos nas habitações.
Tinham sido pedidos reforços a Lyon.
Beaufort desligou sem proferir palavra.
Atravessou o pátio do ministério, depois subiu a passos lentos a escada de mármore que conduzia ao primeiro andar, onde ficava o gabinete do ministro. A cada degrau, sem que ele tivesse pensado nos incidentes ocorridos no Bairro do Vulcão havia apenas algumas horas, na sua ausência, sem que tivesse reflectido nas respostas que ia ter de dar ao ministro e aos motivos da sua convocação, sentia-se mais abatido, esgotado, revendo como se lhe surgissem com toda a clareza certos momentos do trajecto que acabava de fazer: as luzes de emergência vermelhas de um camião que de súbito se acenderam, a alguns metros à sua frente, e a maneira como fora forçado a reagir, ultrapassando o veículo pela direita, rodando pela faixa de paragem de emergência, e depois, mais tarde, quando entrava numa curva, a camada de lama que lhe tapara o pára-brisa.
Aquela lama, era tudo o que ele tinha de futuro à sua frente.
Quando o contínuo empurrou a porta do gabinete do ministro, Beaufort teve a impressão de que, desde o Bairro do Vulcão até àquela sala silenciosa mergulhada na penumbra, não fizera mais que avançar por um túnel cheio de algazarra e de lama, de clarões, de rajadas de vento. Precisou de alguns segundos para compreender que aquele homem que finalmente ergueu a cabeça e cujos traços, marcados pela fadiga, exprimiam vontade e determinação, era o ministro do Interior em pessoa.
Deve ter parecido tão idiota, ficando de pé quando o seu interlocutor, com um gesto, o convidava a sentar-se à sua frente, que este último repetiu as suas perguntas. Ele media bem o que estava em jogo na sua investigação? O ministro lembrava-se das palavras que tinham trocado ali, naquele mesmo gabinete. Beaufort pretendera então que os assassínios - sete, não é verdade, nesse momento; mas depois mais três, entre os quais o do padre Desbordes -, que esses assassínios eram obra de um único homem, de um assassino solitário, de um artista que esculpia os corpos, traçava de uma ponta à outra da França a sua dança macabra.
- Você afirmou isso, Beaufort, e com que convicção, com que talento! Eu disse-lhe: "Ache-me depressa os culpados." Onde estão eles, Beaufort? Os tumultos do Bairro do Vulcão - porque se trata de tumultos -, acha que são também obra de um místico? Francamente, Beaufort, dá-me vontade de rir!
O tom do ministro era grave, quase enfadado. Voltou a baixar a cabeça. Beaufort talvez nunca tivesse lido aquilo, continuou ele indicando os dossiers abertos em cima da mesa. Deveria...
O ministro estendeu o braço, tacteou com as pontas dos dedos, agarrou numa folha. Beaufort seguiu o movimento do braço e da mão como se se tratasse de um membro separado do resto do corpo, surgido da noite.
- Eles dizem que a França é dar al-harb - continuou o ministro agitando o folheto. - Sabe o que isso significa, Beaufort? Terra de guerra. Quer dizer que se pode assassinar, queimar, fazer explodir, etc. Como num campo de batalha, Beaufort. Basta um punhado de loucos. E eles existem, não? Talvez você me vá dizer nomes, quem sabe? Estou interessado, Beaufort!
O ministro levantou-se e começou a deambular pela sala, com as mãos atrás das costas. A sua silhueta destacava-se quando ele passava diante do estreito espaço deixado entre os cortinados. Com a cabeça firme entre os ombros maciços, parecia não ter pescoço. Estava curvado, como para compensar o peso do estômago, cuja curva era acentuada pelo casaco abotoado. Murmurava. Quem lia esses panfletos integristas, além dele? Dar al-harb, terra de guerra, quem queria saber disso? Cada qual aspirava viver como se nada pudesse acontecer. Cada qual pensava nas suas coisinhas: uma eleição, um exame, o fim-de-semana, a cona da amante, o filme na televisão. Não é verdade, Beaufort?
- E depois uma bomba no RER, seguida de outras, porque os vulcões traquejam, você sabe, não? O Estado paga-lhe para isso. E eu, estou aqui para o impedir, para limitar os estragos, compreende, Beaufort?
Estendeu os braços para o comissário: um polícia estava a morrer com uma bala de aletas na cabeça. Se escapasse, ficaria paralisado, cego. Outro tinha sido ferido com o mesmo género de projéctil; ainda não se sabia se ia ser possível salvar-lhe a perna. E os tipos do Bairro queriam descer a Clermont para quebrar tudo, para deitar fogo. E nada dizia que o não tentariam, esta noite, ou daqui por um mês, um ano. Ou dez anos.
- Passam depressa, Beaufort. Acha que ele não traquejou, o seu Bairro do Vulcão? Então, o seu assassino místico, o seu artista, descobriu-o? Continua a acreditar nisso?
O ministro voltou a sentar-se diante do comissário.
Bom - continuou ele -, sejamos sérios: em que ponto está você?
Beaufort sobressaltou-se, depois começou a falar.
Pronunciou as primeiras frases numa voz arrastada. Esfregava as mãos, esmagando-as uma contra a outra, e era como se amassasse cuidadosamente as palavras que hesitava em articular com receio de ir além dos factos, de formular hipóteses não verificadas. Não queria ser apanhado em falta, talvez porque se sentia antecipadamente culpado. Sabia que o ministro nunca deixava um polícia agir sem controlá-lo. As investigações encaixavam-se como caixas chinesas. Quem vigiava Beaufort? Milner? Quem seguia e escutava Milner? Que sabiam eles de Amina Nekoub?
O ministro não interrompeu Beaufort quando este citou o nome da jovem, explicando que alguém tentara raptar a irmã de Hocine Nekoub, em Paris, onde ela se tinha refugiado. Teria ele um relatório em cima da mesa indicando que o próprio Beaufort havia conduzido Amina a casa de François Milner? Que subtraía assim uma testemunha fundamental sem ter informado o juiz de instrução?
Beaufort esperou a pergunta, que não veio. Continuou, sempre esfregando as mãos, com os antebraços apoiados nas coxas.
Fora durante a tentativa de prisão dos dois agressores de Amina Nekoub que alguns polícias tinham sido feridos num dos parques de estacionamento do Bairro do Vulcão. Os dois homens procurados haviam beneficiado de cumplicidades. Segundo um plano concertado, alguns jovens do Bairro rodearam e atacaram os polícias para permitir a fuga aos dois homens. O Bairro do Vulcão era o centro do caso, e Hocine Nekoub o principal suspeito.
O ministro resmungou, abanando a cabeça para incitar Beaufort a continuar.
Hocine Nekoub conhecia as últimas três vítimas, Tahar, o padre Desbordes e Khaled, continuou o comissário. Hocine tinha razões privadas e motivos políticos contra eles. Era sem dúvida o único, no Bairro, capaz de movimentar cinquenta jovens. Era o comanditário da tentativa de rapto da irmã. Os agressores agiram abertamente em seu nome. Era um homem culto, prudente, determinado e inteligente. Estivera cerca de dois anos no estrangeiro, talvez no Paquistão. Ali seguira formação religiosa, talvez para-militar ou terrorista. Dispunha, desde o seu regresso, de fundos importantes que lhe haviam permitido criar, no Bairro, uma escola alcorânica. Mantinha os jovens, doutrinava-os.
- É ele o seu artista, o seu místico? - perguntou o ministro sem levantar a cabeça.
Os seus dedos unidos brincavam com os lábios, com os dois polegares apoiados no queixo.
Enquanto falava, Beaufort observava o ministro. Contrariado, soturno e indiferente, parecia um garoto que se entediava, que ainda procurava ser surpreendido, esperava que o fizessem sair da repetição quotidiana, sem surpresas, de tarefas e deveres que já realizara e que o deixavam a sós consigo mesmo na dúvida e nas perguntas - tudo aquilo a que ele desejava fugir, esperando que a tempestade, a erupção do Vulcão viessem tirá-lo dali. Essa necessidade, essa espera do acontecimento, era talvez isso que fazia os homens agirem, que os tornava loucos, místicos, inventando miragens e milagres, crueldades e esperanças nunca saciadas. Eles corriam assim durante milénios, desde sempre, atrás de uma ilusão, o seu único meio de sobreviver.
Beaufort pensava nisto olhando o ministro e essas ideias que, a despeito de continuar o seu relato, não paravam de assaltá-lo, davam-lhe talvez involuntariamente um acréscimo de audácia.
Falou mais depressa. Já não via o ministro. Tinha esquecido a sala onde estava. As palavras começaram a jorrar, a tomar lugar sem que ele tivesse de procurar o entalhe das frases onde elas deviam encaixar-se. Tudo o que lera nessas obras sobre as cruzadas, na Enciclopédia do Islão, mas também nas fichas que François Milner lhe tinha transmitido, tudo aquilo que fixara quando decifrara o diário do padre François Desbordes, e também tudo aquilo que imaginara, sem ousar formulá-lo ainda, e os seus sentimentos, a sua atracção por Amina, essa repulsa para com o irmão, Hocine, tudo isso se acumulara desde havia meses, compondo um fresco que ele descobria ao mesmo tempo que o pintava.
Era verdade: ele tinha, ali mesmo naquele gabinete, afirmado que se tratava de um assassino solitário, de um artista, de um místico - esta palavra, fora o senhor ministro que a proferira em primeiro lugar -, de um homem que esculpia os corpos, que imaginara um Deus ao qual obedecia, uma religião de que ele era talvez o único sacerdote e o único crente. Lembrava-se perfeitamente, tinha falado desses corpos crucificados que eram para o assassino como hóstias de carne sobre as quais ele traçava estigmas.
Tudo isso continuava a ser verdade. Era assim que se devia interpretar a maioria dos assassínios, mas talvez não todos. O erro que ele cometera, reconhecia-o, era acreditar que se tratava de um homem só. Na realidade - não estava a jogar com as palavras, não procurava apagar essa falsa pista que tinha esboçado -, os móbiles eram aqueles que ele expusera, mas tratava-se de um braço múltiplo, de uma loucura colectiva, de um grupo que se sentia solidário, cujos membros estavam unidos como um único corpo. Mãos diferentes talvez tinham golpeado, martirizado na floresta calcinada de Silvacane, nessas matas sombrias, húmidas, com o solo coberto de um húmus esponjoso e de uma espessa camada de folhas apodrecidas, nessas catedrais de silêncio entre Vézelay, Clairvaux, Cíteaux, e até em La Chaise-Dieu no que respeitava a Tahar. Havia vários assassinos, sem qualquer dúvida, e, sobre este ponto, Beaufort reconhecia, tinha-se enganado, mas aqueles que haviam assassinado, torturado, ligado os pulsos e os tornozelos, esses eram fiéis de uma mesma loucura. Havia uma única religião e vários assassinos.
- Que me está você a dizer, Beaufort, o que é que você me conta? - interrogou o ministro sem levantar a cabeça, apenas afastando os dedos dos lábios.
- Há um grupo místico unido. (Beaufort cerrou o punho.) Eles são talvez vários a matar, mas obedecem a um único pensamento, a uma única e mesma fé.
O ministro abanou a cabeça. Decididamente, se os polícias se punham a fazer pívias a grilos, com subtilezas de caca, então a única coisa a fazer era desistir! Abriu os braços num gesto violento. Mas quem julgava Beaufort que ele era? Que estava ele a tentar fazê-lo engolir? Ele não precisava de nenhum condicionamento açucarado, filosófico - sublinhava cada sílaba -, a verdade, queria-a crua, amarga, imunda, como ela era!
Portanto, Beaufort, continuou ele novamente calmo, explicava-lhe que um bando de loucos, quer dizer, de fanáticos, chame-lhe místicos, se quiser, mataram vários jovens, montaram uma encenação macabra. Bom, ele nunca acreditara no assassino solitário.
- Agora, explica-me que são vários, mas únicos ao mesmo tempo. É o mistério da santíssima Trindade? Você sabe, Beaufort (o ministro inclinou-se para trás, com o ventre e o estômago proeminentes, com os braços apoiados na poltrona), eu nunca pensei que Hitler tivesse morto sozinho, com as suas mãos, cinco milhões de judeus, nem mantido sozinho a frente de Leste e as outras. Nunca. Se é isso que você me quer fazer compreender, que havia apenas um chefe, uma ideologia, e executantes, está bem, já compreendi !
O ministro ergueu a mão, estendeu três dedos. O chefe, quem? disse ele baixando o dedo médio. A ideologia, qual? continuou encolhendo o indicador. E os executantes? Nomes! Fazia girar o polegar.
A loucura, continuou Beaufort como se não tivesse prestado atenção à interrupção do ministro, às suas perguntas, era talvez principalmente um facto colectivo. Não havia nada como a loucura, ou, se se quisesse, a ilusão, a fé, a religião, para reunir os homens, torná-los solidários e unidos: de repente, reencontravam no outro o brilho da mesma loucura, da mesma ilusão. Sabia o ministro que fora em Clermont, em 1095, que o papa Urbano II lançara o seu apelo à cruzada, durante um concílio? Havia ali milhares de crentes, milhares de loucos, mas tão unidos entre si que formavam um único corpo, uma única lâmina, e haviam-na espetado no corpo dos infiéis, judeus e muçulmanos. O ministro conhecia a palavra kufarl Era a palavra que usavam hoje os integristas para designar os ímpios, aqueles a quem degolavam.
O ministro levantou-se pesadamente. Apoiou-se à mesa com a palma da mão esquerda, enquanto com a direita afastava os dos-siers, pegava numa folha, mostrava-a a Beaufort. "Os ímpios serão mortos friamente", leu ele. Era a última mensagem que os grupos islamistas armados tinham dirigido às embaixadas cristãs.
O ministro voltou a sentar-se. Inclinou a cabeça para o ombro esquerdo, ergueu as sobrancelhas, fez uma careta.
- Eles exprimem-se efectivamente como na Idade Média, no tempo da cruzada. -Abanou a cabeça. - Dar al-harb, djiliad, kufar, terra de guerra, guerra santa, ímpio, cruzada... a humanidade progride, Beaufort, a passos largos, não acha?
Soltou uma gargalhada, fechando os olhos, limpando o nariz, depois apertando os lobos das orelhas ou acariciando o queixo numa série de gestos instintivos, figuras de um ritual de fadiga e de abandono. Por fim endireitou-se, voltou até à mesa, debruçou-se, remexeu numa gaveta e retirou dois grandes charutos que rolou entre as palmas das mãos antes de estender um ao comissário.
Trocaram o corta-charutos, os fósforos, e puseram-se a fumar, de olhos semicerrados.
Ao sair do ministério, Beaufort teve inicialmente a impressão de rolar ao acaso. Avançava tão devagar ao longo da Avenida de Marigny que foi ultrapassado diversas vezes, depois de sinais de faróis impacientes. Os polícias que deambulavam, numerosos, nos passeios, avançavam à beira do pavimento, surpreedendo-se de o ver arrastar-se assim, naquela avenida quase deserta ao longo do parque do Eliseu. Sem dúvida tomavam nota do seu número de matrícula, que seria registado numa memória, comparado, identificado.
Não acelerou, pensando nas últimas palavras do ministro. Tinham descido juntos a escada. O outro agarrara-o pelo braço numa familiaridade que não lhe era habitual. A sua bonomia, o seu comportamento quase complacente, a sua linguagem bastante popular escondiam de facto reserva e um desprezo altivo que a expressão do rosto revelava, - Sim, Beaufort, vou a Matignon agora mesmo - dissera -, porque os vulcões começam a traquejar, e não só o seu Bairro podre.
Tinha parado, um degrau acima de Beaufort.
Quem seria o imbecil do arquitecto, do prefeito ou do urbanista que escolhera aquele nome, "Bairro do Vulcão"? Mas é claro que isso daria ideias a qualquer um!!
Ao fundo das escadas, quando um plantão já empurrava a Porta que dava para o pátio, fixara Beaufort enquanto com as pontas dos dedos acariciava o lábio inferior e o queixo.
- Tem apenas alguns dias, comissário - murmurara. -
Depois, deixo-o afundar-se com essa rapariga nos braços. Como é que ela se chama, Amina Nekoub, não é? Você que se entenda com a família dela, com o juiz de instrução, com os jornalistas. Nunca é muito prudente, Beaufort, quando se é polícia (abanara a cabeça) ou político, ou seja o que for, de resto, romper com alguém que escreve nos jornais ou se apresenta na televisão.
Tivera um riso trocista. Ter alguém assim à perna, era ainda pior que um inspector do fisco, ainda mais maçador.
Depois dera uma palmadinha no ombro de Beaufort.
- Você devia ir dormir a casa de Marion Chauvel, esta noite. Antes da vossa... (agitara a mão para não ter que escolher as palavras), aquilo que ela escrevia, ainda escapava. Agora, está louca. Leu os últimos comentários dela? Que nós queremos recomeçar a cruzada, violamos os direitos do homem, e tutu quanti. Você deu-lhe volta à cabeça, meu caro. Ela sente a sua falta. Acalme-a, esta noite. Ainda é coisa para a sua idade, não é?
Deu dois ou três passos, depois lançou:
- Alguns dias, Beaufort, não mais. E não se esqueça: os vulcões traquejam. É mesmo agora que a coisa está a começar.
Beaufort esperou que o carro do ministro se afastasse para sair por sua vez, atravessar a Praça Beauvau e dirigir-se para... Era incapaz de escolher uma direcção. Deixou-se deslizar em direcção ao Sena, para esse clarão dourado que envolvia a cúpula dos Invalides, dissimulada pelo nevoeiro baixo. Tudo era impreciso, difuso: as silhuetas dos polícias de giro, as estátuas da ponte, as margens.
No último instante virou à direita, ao longo dos cais, pela margem esquerda. E acelerou. Podia alcançar a periférica, depois a auto-estrada. Viajaria toda a noite. Amanhã de manhã, Clermont. Prender Hocine Nekoub. Fazer uma busca em casa dele. Etc.
Abrandou.
Na margem, a via estava deserta. Um vapor brilhante corria juntamente com o rio. Dir-se-ia o bafo de gente adormecida arrastada pela corrente.
Onde ia ele?
Dormir em casa de Marion Chauvel? Como sempre, o ministro só falara mesmo nos últimos minutos, mostrando a Beaufort que sabia tudo. A convocação tivera apenas como objectivo dar-lhe a conhecer que o observavam, que toleravam ainda por alguns dias as suas hesitações, as suas divagações. Mas que se aproximavam do fim. Alguns dias. O ministro nunca fora tão preciso, tão ameaçador, tão amistoso. "Deixo-o afundar-se", dissera ele. Como se alguém pudesse arrancar-se sozinho às areias movediças. Quem lhe ia estender a mão, ajudá-lo a levantar-se?
Beaufort encolheu um ombro, inclinou a cabeça.
Se batesse à porta de Marion Chauvel, ela abria. Imaginava a expressão dela, ao mesmo tempo desdenhosa e triunfante. Vamos, anda, entra. Voltar-lhe-ia as costas, mais direita, mais digna, mais arrogante que nunca. Diria: "Temos de falar. Temos de romper o abcesso. Eu sou tolerante, mas não gosto da ambiguidade, da mentira. Tu sabes. Para que é que regressas? Para me saltar para cima? Anda, fode-me. Anda. Eu vi a tua arabezinha, almoçámos juntas. Isso supreende-te? Que idiota que ela é! Espero verdadeiramente, por ti, que não seja por causa dela que nos fizeste viver esta comédia. Anda, vem, deita-te."
-Deita-te...
Era isso que se pedia a todos os homens. Que se deitassem. Deitar-se, como se dizia nos comissariados a propósito dos delinquentes que confessavam.
Quem recusava submeter-se? Os loucos. Hocine Nekoub, à sua maneira. Mas eis que também ele, como os outros, se ajoelhava. Os loucos deitavam-se diante de Deus, estendiam-se depois de puxarem as cortinas do confessionário.
Quem ficava de pé, no final?
Desde que o homem enterrava o homem, portanto desde que o homem se tornara homem, deitava os seus mortos na fossa como para assinalar que no fim a submissão levava sempre a melhor.
-Deita-te - diria Marion.
E Beaufort teria vontade de fazê-lo, de se estender de costas para que ela o acariciasse. Ele sentiria o desprezo dela, a sua alegria em dominá-lo. E ele falaria talvez da sua investigação, principalmente daquilo que sentia, da sua confusão quando estivera na presença do ministro. Deitar-se-ia uma vez mais.
Marion Chauvel tê-lo-ia escutado. Depois, de repente, dir-lhe-ia que se calasse. Depois que a fodesse, porque estava farta de esperar. Voltaste, por isso fodes-me.
Ele deitar-se-ia sobre ela. E sentiria náuseas.
Onde estava ele?
A Torre Eiffel estava cortada pela camada de nevoeiro que flutuava à altura do primeiro andar. Ao descer para o subterrâneo, Beaufort voltou a ver a curva da auto-estrada varrida pelo vento, e fechou por instantes os olhos como se a lama tivesse voltado a cobrir o pára-brisa. Não sentia coragem para rolar até Clermont, naquela noite.
Contornou a rotunda da Ponte Mirabeau. Olhou, na direcção da Rua Javel, aquele prédio cujos terraços entrevia como proas, rodeados de tuias. Estacionou algumas centenas de metros mais adiante, ao longo do Sena.
Já não pensava. Desceu.
As portas abriam-se automaticamente: a do átrio do hotel, a do elevador, e bastava, para desbloquear a do quarto, fazer deslizar um cartão de plástico numa ranhura. Um ponto verde piscava. Era só carregar, descobrir o quarto silencioso, as janelas que só se podiam entreabrir, e aquele nevoeiro a toda a volta, ocultando o Sena, como num voo entre as nuvens.
Aquele som contínuo no auscultador, era o sinal de uma comunicação com o exterior. Aquelas pulsões agudas, os algarismos que formavam o número de François e Hélène Milner.
- Mas Amina está a dormir - disse Hélène. Ele repetiu: - Passa-ma.
Amina repetiu em voz velada que estava deitada, mas não estava a dormir.
Ele limitou-se a indicar que estava instalado no hotel, a três minutos a pé do prédio dos Milner, quarto 2832.
- No nevoeiro, estou no nevoeiro - acrescentou. Amina não respondeu. Ele ouvia-lhe a respiração. Voltava a ver o seu corpo longo e esbelto, os cabelos soltos. Ela fizera um gesto com o braço esquerdo de que ele se recordava, com a mão voltada, um movimento desajeitado que o comovera, para levantar as madeixas de cabelo, empurrá-las para trás do ombro.
- Tenho vontade de fazer amor consigo, agora, esta noite, imediatamente - disse ele.
Ela respirou com mais força, de um modo agitado.
- 2832 - repetiu ele.
E, para não ouvir a resposta, desligou imediatamente. E ficou à espera, com o rosto escondido pelas mãos.
Sentada diante da divisória envidraçada, Hélène Milner escrevia. O nevoeiro tornara-se mais espesso depois da saída de Amina Nekoub e ela já não conseguia ver o extremo da Rua de Javel, onde a jovem desaparecera, virando à direita, em direcção ao hotel onde Beaufort a esperava.
Hélène convencia-se de que a sua angústia era vã. Se Amina não fosse ter com ele, Beaufort telefonaria de novo. E ela mesma podia telefonar para o hotel. Mas recusava-se a isso, por discrição, porque a constrangia imiscuir-se naquela relação que pressentia passional; e também porque a condenava.
Quando pensava no quarto de hotel onde eles se deviam encontrar, não podia impedir-se de experimentar um sentimento de cólera, talvez mesmo de repugnância. Lembrava-se dos numerosos jantares que haviam partilhado os quatro, ela e François, Marion Chauvel e Beaufort. Riam e indignavam-se juntos. Beaufort enlaçava muitas vezes Marion. Saíam do apartamento dos Milner de mãos dadas. Estavam apaixonados; davam pelo menos a impressão disso, e não era já muito? Uma paixão não é principalmente os gestos e as palavras da paixão? E eles tiveram esses gestos, pronunciaram essas palavras. Ora, esta noite, Beaufort fazia amor com Amina. Repetia esses mesmos gestos, essas palavras. Porquê? Que civilização estava destinada a durar se a traição era diária, até no seio de um casal?
Hélène censurava-se por pensar assim, estupidamente, achava ela. Não devia haver entraves à liberdade. Afirmava isso a todo o instante desde a adolescência. Opusera-se ao seu patrono de tese, Jacques Hederlisch, um verdadeiro nazi, mas dissimulado, destilando a sua propaganda revisionista a coberto de uma história sem apriori. Ela denunciara-o. Conquistara, apesar dele, uma cátedra no Centro de História Germânica; escolhia os seus temas de curso com vista a convencer os estudantes dos malefícios do nazismo. Pregava a liberdade, a lucidez, queria preveni-los contra as tentações da escravidão, da submissão. E eis que, porque Beaufort convidava Amina Nekoub a ir ter com ele ao quarto do hotel, enganava Marion Chauvel, rompia com ela, lhes queria mal como se se tivesse tornado puritana, guardiã da ordem social. Desoladora. Estúpida!
Que vivam a sua liberdade!
Tentava convencer-se de que não era essa desordem que a inquietava, mas a ausência de Amina, os perigos que ela podia correr. Podiam estar à espreita dela, tentar novamente raptá-la.
Hélène saiu por isso diversas vezes, foi até ao extremo do terraço de onde, afastando os ramos das tuias, se podia ver o passeio, paralelo ao Sena, por onde Amina devia passar no regresso.
Maldito nevoeiro.
Recomeçou a escrever. Redigia uma aula sobre as relações entre Hitler e as massas. Era talvez isso que a angustiava. Descobria uma tal segurança nas afirmações do Führer, uma tal certeza, que se sentia abalada.
"Eu nunca actuei em contradição com a psicologia das multidões, dissera ele, nem choquei a sensibilidade das massas. Essa sensibilidade pode ser primitiva, mas tem o carácter permanente e irresistível de uma força da natureza... Acusaram-me de fana-tizar as massas, de levá-las a um estado de apatia letárgica, mas as massas só são manejáveis quando estão fanatizadas."
Fechou os olhos. A angústia e o medo subiam nela. Sentia-se desmunida, impotente. Que podia ela fazer? Assinava petições. Publicava um artigo aqui, um livro ali. Falava três horas por semana a uma centena de estudantes. Revia aquilo que era: uma solitária sustentando com as duas mãos um muro contra o qual desabava essa "força da natureza" de que Hitler falava, o fanatismo. Ou o desejo?
Timidamente, tentara convencer Amina a não sair, a esperar, para se encontrar com Beaufort, o princípio da manhã. Mas era a noite que atraía Amina, era o desejo que a impelia. Hélène sentira-o bem pela maneira como a jovem respirava, impaciente por sair do apartamento, por ir empurrar a porta desse quarto de hotel. O desejo, a paixão eram apenas as formas privadas, individuais, do fanatismo. E talvez aqueles que não as saciavam estivessem votados a tornar-se esses homens e essas mulheres de uniforme que levantavam o braço, marchavam em cadência, ou essas mulheres que usavam o véu, esses homens que, como Hocine Nekoub, segundo o relato feito por Amina, estavam prontos a agredir, a matar para fazer respeitar aquilo a que chamavam a fé?
Mas onde estavam as diferenças entre multidões religiosas de costas curvadas e multidões arregimentadas? Seria possível que Hitler tivesse razão ao falar de força da natureza, ao compreender, como dizia, que "nas horas críticas, a massa cria-se por toda a parte, na rua, na fábrica, na padaria, no metropolitano, em toda a parte onde se encontrem reunidas dez ou doze pessoas. Ela reage como massa..."!
Hélène saiu uma última vez para o terraço, mas o nevoeiro tornara-se tão denso que ocultava até a sebe de tuias. Ficou fora apenas alguns segundos, assustada com aquela polpa cinzenta que se colava à pele. A humidade gelada insinuava-se e ela entrou tremendo no apartamento, que achou frio, demasiado silencioso, e tão vazio.
François estava em Clermont. Não sabia onde encontrá-lo. E, tal como ela, que podia ele fazer? Adivinhava tantas vezes a confusão dele, o desespero mesmo. Vira no telejornal aqueles jovens que gesticulavam, no Bairro do Vulcão, em volta dos carros da Polícia. Tinham a parte inferior do rosto oculta por lenços. Os bonés enfiados até às sobrancelhas ocultavam-lhes os cabelos e a testa. Só se lhes viam os olhos, os gestos. Ouviam-se os seus gritos. Precipitavam-se contra as barreiras metálicas com uma fúria alegre, uma animação que aterrorizara Hélène. Tivera medo por François. Por si própria, por Gabriel. As granadas rebentavam em girândolas brilhantes, mas aqueles jovens dançavam à volta das explosões como se nada pudesse detê-los. Desejavam a morte, estavam prontos a matar para se matarem. Havia tanta energia na sua violência, no seu desejo, que Hélène se sentira desarmada, impotente como no momento em que Amina Nekoub, ao partir, lhe dirigira um sinal com a mão, tão ligeiro, tão vivo, tão cheio de alegria que tornava vão qualquer discurso racional.
Depois de apagar todos os candeeiros, Hélène sentou-se. Talvez só fosse possível preservar algumas ilhas, batidas pela loucura, pelo fanatismo. Talvez não servisse de nada pregar a razão, a sabedoria, era talvez preciso muito simplesmente defender-se?
Amina contara-lhe que Hocine afirmava que era preciso esmagar os "infiéis ocidentais" que um dia, também aqui nasceriam repúblicas islâmicas. Que entretanto era preciso proteger-se contra o desejo de destruição do Islão que o Ocidente estendia de um extremo ao outro do mundo. Existia uma vasta conspiração para aniquilar os muçulmanos, pervertê-los. A linha da frente passava pela Bósnia, pela Argélia, pelo Egipto, pelaTchetchénia, pela Palestina, pela Turquia, mas também pelo Bairro do Vulcão. Os judeus eram instigadores dessa conspiração geral. Organizavam a imoralidade para perverter os jovens muçulmanos, a começar pelas mulheres. E Amina, a acreditar em Hocine, tinha sucumbido. Fora preciso que ela sofresse as pancadas, os castigos, e depois que pedisse perdão e se velasse.
Agora, esta noite, ela dormia com Beaufort.
O gozo, o desejo privados seriam meios de se opor ao fanatismo, de privá-lo de energia?
Hélène estava cansada, abatida. Parecia-lhe que acabava de descobrir que os homens giravam como numa nora sem princípio nem fim.
Entrou em bicos de pés no quarto do filho. Fazia calor ali. Reconheceu aquele odor, um pouco ácido, a suor e a leite, que sempre a emocionava.
Deitou-se ao lado de Gabriel. A respiração dele era calma. Suspirou, um longo sopro de prazer, quando Hélène se encostou a ele. Beijou-o na nuca. Estava a suar. Ficou assim, de lábios nos cabelos do filho, e, pouco a pouco, essa paz infantil apossou-se dela. Adormeceu.
Ao entrar no quarto de Gabriel, às sete horas, para acordá-lo, Amina fez sobressaltar Hélène.
- Está aí? - murmurou ela.
Hélène não olhou para ela. Alisou a saia e o camiseiro, depois acendeu a luz, beijou o filho.
Quando se levantou, encontrou-se frente a frente com a jovem.
Foi então que notou, nas faces e no queixo de Amina, os traços vermelhos deixados por uma barba áspera quando fricciona longamente uma pele.
Amina Nekoub não baixou os olhos e foi Hélène Milner que virou a cabeça. Hesitou, como se se preparasse para interrogar a jovem, depois abandonou o quarto de Gabriel dizendo apenas:
- Lava-o, veste-o como de costume, não é verdade?
Amina não respondeu, agarrando Daniel pelos pulsos, tirando-o da cama.
A criança resistia, ria, debatia-se, e ela lutava com ele. Prendia-o entre os braços, acariciava-lhe os cabelos, cobria-o de beijos. Ele gritava que estava a sufocar. Ela respondia que ia devorá-lo. Estava alegre e forte. Sentia-se tão segura de si, nessa manhã, e o embaraço, a fuga de Hélène, que não conseguira dizer as palavras que lhe volteavam na cabeça: "Você dormiu com Beaufort?", tinham-na tornado ainda mais segura.
Pois sim, tinham fodido, toda a noite! Ela batera à porta e colaram-se um ao outro no limiar, sem dizer palavra, misturando as línguas. Sentira as mãos dele, os seus dedos duros, longos, que lhe agarravam, lhe abriam as coxas, a levantavam, a levavam para acama. Ele fora brutal.
Ela pensara: ele é como Tahar. Não conhecera homem desde o desaparecimento deste último, desde que a tinham coberto com aqueles véus de vergonha, desde a morte de Réda. Todo o seu corpo pedia que a amassem. Pensava também: ele nunca fodeu assim com nenhuma outra mulher.
Ele agarrara-lhe os cabelos com as duas mãos. Puxara-lhe a cabeça para trás, fazendo-lhe assim crescer os seios. Com uma das mãos, aflorava-lhe então o peito, enquanto com a outra continuava a manter-lhe a cabeça para trás. Forçava-a a arquear-se. Mordiscava-lhe os mamilos. Ela gritava Talvez ele a amasse daquela maneira porque não era uma dessas mulheres, como Marion Chauvel ou mesmo Hélène Milner, que nada sabiam da brutalidade e da energia que os corpos ocultam? Ela era do Bairro do Vulcão. Não tinha sido mimada, enfaixada, lavada, perfumada como uma boneca. A mãe não tivera tempo para lhe polvilhar as nádegas com pó de talco. Ela não tivera um amiguinho terno, sorridente, idiota, como os que se vêem nas séries de televisão. Nunca pudera dizer, como Marion Chauvel: "Eles são simpáticos." Eles tinham-lhe enfiado os dedos entre as pernas. Ela receara que uma dezena deles viesse rodeá-la, empurrá-la para uma cave para violá-la um depois do outro, como acontecera a tantas raparigas do Bairro. Também eles eram do Vulcão, como ela.
Beaufort, estava convencido disso, só encontrara até àquela noite mulheres geladas, mortas, tão reservadas que nunca deviam gritar, pousar os lábios nos pêlos de um homem. Eram, à sua maneira, mulheres veladas. Mostravam as pernas, o cu, os cabelos, bebiam, fumavam, e até, como Marion Chauvel, percorriam o mundo, ou então, como Hélène Milner, explicavam-no, mas estavam talvez mais fechadas que aquelas que só mostravam os olhos.
Pobres mulheres! Que sabiam elas, que compreendiam elas de si mesmas, do corpo dos homens, da vida?
Amina pôs-se a acariciar os pés de Gabriel, segurando-os entre as mãos. Ele ria às gargalhadas, esticava-se, repetindo:
- Mais, mais!
- Gabriel! - gritou Hélène Milner -, Gabriel! Depois, numa voz trémula que tentava dominar, acrescentou que eles iam atrasar-se, que, de manhã, não havia tempo para brincar, que ele devia aprender isso.
- Ele aprende, ele aprende - respondeu Amina enquanto a criança se lhe prendia ao pescoço.
Beauford havia telefonado já quatro vezes a Amina desde que partira de Paris.
Ligara-lhe uma primeira vez pouco antes da portagem. A necessidade de lhe falar surgira de súbito, imperiosa. Rolava depressa, julgava reflectir nas decisões que devia tomar à sua chegada a Clermont. Interpelar Hocine Nekoub imediatamente? Ou esperar até depois de prender os dois fugitivos do parque de estacionamento, os agressores de Amina? Esses talvez falassem, talvez acusassem Hocine. Segundo François Milner, tinham abandonado o carro à saída de Clermont e forçado um automobilista a ceder-lhes o seu veículo. Estavam armados, eram violentos. Tinham disparado contra o automobilista para matá-lo, mas o homem atirara-se para um fosso. Uns loucos, uns fanáticos, dissera Milner. O Fiat Uno preto de riscas brancas com a matrícula 627 HL 63 pertencia a um certo Youssef Malik, do Bairro do Vulcão, filho de Khader Malik, dono de um café na Rua da Charbonnière, em Paris. Dois agentes haviam sido colocados de vigia, em frente do café. Um deles conhecia bem Khader Malik, um velho rebelde dos anos 60, um operário da Renault que se voltara para o integrismo e fizera do seu café um foco de propaganda islamista. "Uma história exemplar - concluíra Milner.
Beaufort impacientou-se:
- Contas-me a história quando eu chegar a Clermont.
Abandonou rapidamente o hotel. Esquecera Amina. Como se o duche que tomara, o telefonema que acabava de fazer a François Milner tivessem apagado a noite que passara com ela. No carro, escutou os editoriais, os comentários, as últimas notícias indefinidamente repetidas em todas as rádios. Só pensava nisso. E no entanto, bruscamente, travou, meteu pela via da área de estacionamento e descobriu a cabina telefónica.
Tinha de telefonar a Amina, de ouvir a sua voz.
Disse apenas:
- Como vai isso? - Ela riu. - Bem sabes que isto vai bem - respondeu. Acrescentou que esperava o telefonema dele, que não quisera sair, para o não perder. Ele explicou que não tencionava telefonar, que tivera aquele impulso, aquela vontade irreflectida, instintiva, no último instante. Estive mesmo quase a derrapar, ao fazer a curva demasiado bruscamente.
- Voltas a ligar? - perguntou ela.
- Não antes de Clermont - preveniu ele.
Desligou e sentiu imediatamente o desejo de ouvi-la de novo. Voltou a entrar na cabina e marcou o número. Ainda antes que ele pudesse pronunciar uma única palavra, ela disse:
- És tu? Eu desejava que tu voltasses a ligar agora, imediatamente.
Falaram longamente, talvez porque, durante a sua noite, apenas tivessem trocado algumas palavras, já para fim, quando ela disse: "Tenho de partir. Tenho de arranjar Gabriel." No limiar da porta do quarto, murmurara: "Se não quiseres voltar a ver-me, não tem importância. Está bem assim." Ele não se mexera. "Sê prudente", respondera apenas.
Depois lavara-se meticulosamente, e a água quente levava-lhe as sensações, as emoções, as recordações. E telefonara a François Milner na esquadra da polícia de Clermont. Agora era apenas o comissário Beaufort que na tarde anterior se encontrara com o ministro do Interior e que recebera como palavra de ordem concluir a sua investigação dentro de alguns dias.
Era nisso que pensava, nisso apenas.
Telefonara portanto uma primeira vez a Amina Nekoub - duas vezes, de facto, pois voltara a ligar da mesma cabina alguns segundos depois de desligar.
Era ridículo, pensou ao bater a porta do carro e colocar o cinto num gesto brusco. Percorreu os primeiros quilómetros, até à portagem, com a cabeça vazia. A estrada estava seca, as nuvens empurradas para o horizonte por um vento frio. Uma luz viva, ofuscante, recordava cada pormenor: as primeiras colinas, aquela herdade fortificada, à esquerda da estrada. Voltou a ligar o rádio.
O automobilista contava: os dois homens estavam agitados, tinham olhos de loucos. Um repetia que iam morrer, que eram mártires, que o Misericordioso os acolheria mas que ainda deviam espalhar o sangue dos ímpios, dos traidores e dos criados da França, dos cristãos e dos judeus. "Compreendi, dizia o homem, que me iam matar, e saltei. Tive sorte: apareceram outros carros e eles tiveram que partir. Esses dois, não se deixarão apanhar vivos. Vão fazer estragos. Tenho a certeza de que já mataram pessoas. Bastava ver os olhos deles. Para mim, era como num filme, um filme de terror com os SS. Esses tipos são piores que os nazis."
Bruscamente, Beaufort desligou o rádio. Revia o rosto enrugado do pai de Amina na entrada do pequeno apartamento do Bairro. Iam confundir tudo. O velho Nekoub e os fanáticos. Os bons tipos e os assassinos. Amina e o seu irmão Hocine.
Tinha de lhe telefonar.
Parou uma segunda vez, depois uma terceira. Ela não se surpreendia por ouvi-lo.
- Gosto de que me fales - dizia. Ele descrevia a estrada, a Paisagem que via da cabina telefónica, o céu tão limpo por cima do Morvan. Seguira por engano a auto-estrada do sul, mas ia sair, rolar pelos departamentos, e gostaria de estar com ela.
- Talvez possamos partir por alguns dias, tu e eu - dizia ele.
Ela respondia:
- Estou de acordo. Ele voltava a partir.
Em que se estava ele a meter? Mas a pergunta não o angustiava. Desvanecia-se. Tinha necessidade de falar a Amina Nekoub. Tinha necessidade de vê-la, de lhe tocar. De repente, quando não tinha voltado a pensar na noite passada com ela, as recordações invadiam-no. Via-a nua, deitada na cama, depois de pé, bamboleando-se, fazendo girar os seios, "como as africanas" murmurava ela. Parecia-lhe que tinha à sua frente, expostas, separadas, partes do corpo dela: aquela cintura e aquele umbigo ligeiramente saído, aquele sexo, e, nas axilas, aqueles tufos de pêlos muito negros, impudicos, provocantes. Refugiara-se neles. Parecia-lhe que todo o seu próprio corpo, rosto e sexo, entravam nela, se enroscavam, se aninhavam nela, e que ao mesmo tempo que ele engolia Amina, era ela que o penetrava.
Parou nos arredores de Clermont, diante de uma cabina.
- Desejo-te - disse.
- Eu também - respondeu ela.
Reevocaram a sua noite em voz baixa. Ele tinha a impressão de que com ela a sua vida era multiplicada por dois. Não, não era isso, retomava: as noites com ela, todas as suas noites, seriam como se a sua vida fosse elevada ao quadrado, ela compreendia? Riram.
E ele achava-se idiota. Num tom soturno, explicara-lhe então que achava ridículo tudo aquilo que acabava de dizer. Ela sabia o que ele era? Um comissário de polícia, um polícia medíocre que arrastava uma, duas, três vidas estragadas, quebradas, incertas, um obsessivo que passava as noites a ler, que se chateava, que tinha pressa de morrer, que se levantava todas as manhãs olhando a fusca: quando é que eu rebento com os miolos? Um tipo de quem as mulheres fugiam, que elas receavam, como um tinhoso. Ela tinha-se encontrado com Marion Chauvel? Era a única que, afinal, o aceitara.
- Eu aceito-te como és - replicou Amina. E ele não respondeu.
- Se tu me queres... - acrescentou ela. Não voltaram a falar durante alguns segundos.
- Estás aí? - perguntou ela por fim.
Pôs-se a falar precipitadamente, no tom de conversa anódina. Ia sair com Hélène Milner: portanto Beaufort que não voltasse a telefonar. Ela telefonava-lhe para o hotel, no regresso. Hélène insistira em levá-la, por que não? a uma reunião-debate; um clube de que ela era membro, com professores, jornalistas. Hoje deviam debater o Islão em França.
- Parece que é preciso que eu esteja presente. Trocei dela, mas, neste momento, ela não aprecia o humor. Perguntei-lhe se, agora, se preocupavam em consultar os muçulmanos sobre o seu destino. Isso é novo, não?
Hélène enfurecera-se. Amina era francesa, nem mais nem menos que ela. Se queria assistir ao debate, tanto melhor. Se não... Amina aceitara.
- Não me telefones mais - repetiu ela a Beaufort.
Ele havia sentido já subir a mágoa, a necessidade. Ela murmurou uma vez mais que lhe telefonaria, e depois, numa voz alegre, quase irónica, acrescentou que não recearia ter um filho dele. Beaufort, era um nome bem francês para o filho de Amina Nekoub, não?
Ela desligou antes que ele pudesse responder.
Amina Nekoub teve de apertar a mão a cada um dos membros do clube.
Teve um movimento de recuo quando os viu, sentados em volta de uma mesa, naquela livraria perto da Praça do Odeon. As prateleiras de livros ocultavam todas as divisórias; uma escada estreita, de caracol, partia do fundo da sala. Estava um homem encostado aos degraus, com as suas longas pernas entre duas cadeiras.
Assim que entrou na livraria, atrás de Hélène Milner, Amina sentiu em si o olhar daquele homem. Encarou-o. Tinha a cabeça como que comprimida, as têmporas rapadas, cavadas. Tinha uma mandíbula forte e a parte inferior do rosto parecia assim mais larga que a superior, prolongada por cabelos espetados, cortados à escovinha. Mordiscava um cachimbo apagado, o que acentuava as rugas que lhe rodeavam a boca. Mas tinha ele boca? Era um traço, uma linha apenas definida.
Hélène empurrou-a para a frente. Nesse instante, Amina detestou-a.
Depois a sua acompanhante começou a perorar, protectora, segurando-a pelo ombro. Não tinha respeitado as regras do clube, dizia ela, propondo à jovem que se juntasse a eles esta tarde. No entanto, tendo em conta o tema, a personalidade de Amina, parecera-lhe que a sua presença seria útil aos debates. Amina era estudante de letras e de história, francesa mas de pai e mãe argelinos.
Morava... Hélène sorriu, deixou passar alguns segundos de silêncio antes de acrescentar: no Bairro do Vulcão, sim, esse Bairro de que tanto se falava.
Houve um murmúrio.
O homem sentado nos degraus endireitou-se, tirou o cachimbo da boca.
- Conhecia o padre Desbordes? - perguntou ele? Amina confirmou inclinando a cabeça.
- É espantoso, continuou o homem. Estive há alguns dias no Bairro do Vulcão, no local da associação criada por Desbordes. Todo aquele esforço aniquilado, destruído... Quem vai continuar o seu trabalho, quem vai substituí-lo? Desbordes era um homem de absoluto, um louco de Deus. A sua presença constituía um factor de equilíbrio.
Amina achou que os outros escutavam com impaciência aquele homem que, finalmente, se apresentou como sociólogo: Georges Bourrières. Estava a terminar o seu estudo sobre os subúrbios. Conhecia Desbordes desde havia mais de trinta anos, como Claude Josserand, de resto. Indicava um homem de cabelos muito negros, de rosto inchado, olhos fundos cortados por óculos em meia-lua.
Foi então que, guiada por Hélène Milner, Amina teve de dar a volta à sala, apertar a mão daqueles homens que se levantavam e cujos nomes ela fixou, com Hélène a indicar as funções de cada um: Borelli, cronista na Rádio Première; Pierre-Yves Lavignat, que dirigia L'Universel, sim, o semanário; Duguet, que animava Continental, concorrente do anterior, "amigo no entanto", disse ele sorrindo; e Josserand, sim, director do diário L'Indépendance.
- Eu sei, precisou Josserand, que uma das nossas jornalistas, Marion Chauvel, se encontrou consigo. Li o texto dela: muito interessante. Vamos publicá-lo dentro de dois ou três dias, quando se possa ter algum distanciamento relativamente aos recentes incidentes.
Havia um escritor, Gilles Duprez, outros jornalistas - Vincent Janovers, de Féminines - e universitários cujos rostos se pareciam uns com os outros, um pouco cinzentos, um pouco flácidos. Os seus olhos baços baixavam quando Amina os fitava. Ela sentou-se ao lado de um jovem, um investigador que trabalhava sob a direcção de Hélène Milner. Ele inclinou-se para ela e murmurou-lhe que era de origem argelina.
- Nekoub... - acrescentou. - Você é irmã de Hocine Nekoub, aquele que foi colocado sob vigilância, que abriu uma escola alcorânica no Bairro do Vulcão?
Ela olhou-o sem responder.
- Queria que ela soubesse, continuou, que ele era um inimigo declarado dos integristas. Trabalhava na comparação dos discursos totalitários, políticos e religiosos - o nazismo e o islamismo, se quiser. Isso choca-a?
Ela teve de se conter para não lhe responder grosseiramente. Quem se julgava aquele, com o seu casaco de tweed, as calças de veludo castanho, a camisa de oxford, a gravata de lã? Que imaginava ele? Que alguém se esqueceria da sua cara, dos lábios, da tez, dos cabelos frisados, do nome? Kamoun, era o quê? Não muito cristão, nem sequer judeu ou italiano. Árabe, pobre idiota. Árabe!
Amina pensou de repente no nome de Beaufort, e deu por si sem dúvida a sorrir ao imaginar que, se tivesse um filho, talvez ele se chamasse Beaufort, um nome de cruzado!
- Este tema dá-lhe vontade de rir? - murmurou Kamoun.
- Eu não sei nada - gaguejou Amina. -Acabo de chegar do Bairro do Vulcão, já vê! Sou uma bárbara, talvez mesmo pior: quase um animal.
Ele recuou, olhando-a com espanto, desorientado, sem saber o que lhe responder.
- Desculpe - disse -, não quis feri-la.
Ela voltou a cara. Era imbecil, ao deixar-se intimidar por aquela gente. Homens ou mulheres, que tinham eles vivido? Que é que eles sabiam?
Durante todo o serão, Amina furtou-se às perguntas. Tinha deslocado a cadeira de modo a ficar retirada, pelo que era preciso debruçar-se para vê-la. E eles tinham todos tantas coisas a dizer que nenhum insistira.
Ela escutou portanto, mantendo-se muito hirta, adivinhando sem precisar de se mover que Georges Bourrières quase não tirava os olhos dela.
Ele falou ainda do padre Desbordes, que devia ter sido assassinado por um fanático. Ela teve de novo a sensação de que quanto mais ele falava, mais aumentava o mal-estar dos outros. Baixavam a cabeça, tossicavam. Bourrières era excessivo, violento. Transpirava. "Que se espera para exterminá-los? dizia. São eles ou nós!" Tinha-se mesmo levantado, gesticulando, de pé num degrau. Ele não era suspeito de racismo: tinha ajudado os argelinos quando se arriscava a pele por isso. A OAS tinha-o condenado à morte em 1960. Mas, agora, tudo isso tinha mudado. Eram os outros que ameaçavam. De resto, Benoít Rimberg tinha-se retirado do caso e também ele não podia ser suspeito de falta de coragem. Mas compreendera certamente que não havia ninguém a defender. Só era preciso pulso, utilizar os métodos fortes. Porrada, porrada! Estava farto da desordem, da violência, da droga e da prostituição. Era verdade, as prisões estavam cheias de magrebinos. E daí? Ele já não queria vê-los. "Que os expulsem! É isso que é preciso fazer."
Bruscamente, deixou-se cair, com a cabeça entre as mãos, a testa logo pousada nos joelhos, respirando ruidosamente. Uma das jovens livreiras aproximou-se dele, agarrou-o pelo braço, ajudou-o a levantar-se.
Ele olhou para Amina.
- Desculpe - disse.
Limpou o suor que lhe corria pela testa, pelas faces.
- Um acesso de cólera - balbuciou. - Bebemos um ou dois copos, e derrapamos. Desculpe.
Atravessou a sala, e à porta, depois de ter envergado o casaco bege, acrescentou novamente numa voz forte que, como sempre, a verdade estava no álcool. No fundo, tinha dito sem disfarce aquilo que pensava.
- Vá-se deitar - lançou-lhe Janovers, um homem dos seus quarenta anos de rosto magro, queixo pronunciado, os cabelos um pouco longos. - Já disse bastantes disparates!
Bourrières hesitou, depois encolheu os ombros e saiu, tendo o cuidado de não bater com a porta.
Houve inicialmente um silêncio, murmúrios, depois Janovers continuou:
- É preciso compreendê-lo. Ele não aguentou. Josserand inclinara-se de modo a ver Amina Nekoub. Em poucas frases, explicou que o filho de Bourrières, um rapaz de vinte e dois anos, tinha encontrado a morte numa rixa, por acaso, ao sair de um serão, na porta de Vincennes. Um grupo de magrebinos pegara-se com a jovem que o acompanhava. Ele defendera-a. Os tipos estavam mais ou menos drogados. De qualquer modo, ele apanhara uma facada. Prenderam os suspeitos, mas estes foram postos em liberdade, por falta de provas.
- Bourrières só vivia para o filho, compreendem - disse Josserand. - Decaiu. Tornou-se obsessivo. As suas investigações no terreno, o seu trabalho de sociólogo já não são mais que pretextos. Ele procura os culpados. Não é um serviço que se lhe presta ao escutá-lo, ao desculpá-lo.
Josserand voltou-se para Janovers.
- Você teve razão. É preciso abaná-lo. Se não, um dia, aquilo acaba mal.
A discussão continuou, viva e confusa. Janovers acabava de efectuar uma reportagem ao longo da rota seguida pelos cruzados, nove séculos antes. Apaixonante! O integrismo, afirmava, Progredia por toda a parte, mas, longe de constituir uma regressão, ele era uma resposta como qualquer outra - de resto, quem dá as respostas? - aos problemas que se colocavam a esses povos. Tinha-se encontrado com intelectuais, engenheiros, jovens mulheres que, depois de vários anos de estudos nos Estados Unidos ou na Europa, aderiam aos movimentos islamitas. Era uma questão de dignidade, de vontade de resistência. Os povos não se deixam esmagar. Principalmente quando são herdeiros de uma grande história. Era preciso respeitar esse movimento, não apenas por realismo, porque não se podia sufocá-lo ou detê-lo, mas porque era a expressão, o desejo, a alegria de milhões de homens. Afinal de contas - por sua vez, Janovers olhou para Amina -, não tinham sido os islamitas, os árabes que haviam desencadeado as guerras mundiais, lançado as bombas atómicas, exterminado seis milhões de judeus. "Quem são os bárbaros? Francamente, eu hesito... O nazismo, o stalinismo, é a Europa, os filhos do cristianismo, não?"
Amina já não queria escutá-los, mas as suas vozes arpoavam-na, retinham-na quando a sua vontade era levantar-se, ir até à porta, à distância de alguns passos, ao encontro da noite, do anonimato. Parecia-lhe que, entre aquelas vozes, algumas as acusavam e a condenavam, enquanto as outras a defendiam e a absolviam.
Borelli indignava-se com as afirmações de Janovers. Alguns intelectuais muçulmanos eram integristas? Que significava isso? Interpelou Hélène Milner: podia ela confirmar, ela que era historiadora da Alemanha, que salvo duas ou três excepções todos os prémios Nobel alemães, todos os juristas, todos os professores tinham tomado o partido de Hitler?
- Até Heidegger - acrescentou Josserand.
- Queremos nós defender-nos, resistir? É essa a única questão - continuou Borelli.
Lavignat aprovou. Era um desafio lançado ao Ocidente. Era preciso ter a coragem de proclamar que se mantinham fiéis aos seus valores. Afinal, que outra coisa fazem os muçulmanos? Por que rejeitaríamos nós os valores do cristianismo? Serão eles inferiores aos do Islão?
Que fazia ela naquela sala com aquela gente? Não era nem cristã, nem do Ocidente. Chamava-se Amina Nekoub. Onde era o seu lugar? Teve de repente a certeza de que nunca o encontraria.
Veio-lhe uma recordação tão comovente, tão ridícula que a teria feito rir e chorar ao mesmo tempo.
Num domingo de manhã, o pai trouxera-lhe do mercado que se fazia nas praças de Clermont um par de sapatos pretos de verniz. Colocara-os em cima da mesa, à frente dela. A mãe gritara. O pai era louco por comprar aquilo, tão caro, tão bonito, tão frágil. Não eram sapatos para uma rapariga que se chamava Amina e patinhava na lama do Bairro do Vulcão. A mãe abanara a cabeça, virando os sapatos e fazendo uma careta. De resto, eram pequenos de mais.
O pai olhara para a filha. Todo o seu rosto parecia cair. Amina beijara-o. Calçara os sapatos e começara a sofrer, com os pés apertados, o calcanhar magoado. E no entanto, caminhara, dizendo que se sentia bem.
A mãe indignava-se: eram pelo menos dois números abaixo, ela bem via. Amina abanava a cabeça, dando a volta à sala. Não a magoavam, repetira mordendo os lábios.
Usara os sapatos sempre que saía com o pai. E o sofrimento nunca parara. Mas ela caminhara com ele, que estava orgulhoso.
Toda a sua vida seria assim.
No fim do serão, rodearam-na. Não a tinham ouvido muito, disseram. Jean-Luc Duguet propôs-lhe publicar no Continental tudo o que ela pudesse escrever sobre a atmosfera do Bairro do Vulcão, a questão do véu, o integrismo. Era pedinchão. Lavignat fez a mesma oferta para L'Universel. Empurrou as madeixas do seu cabelo para trás, num movimento lento das palmas das mãos e agarrou Amina pelo braço: sabia ela que ele animava, juntamente com Brigitte Georges, uma emissão de televisão sobre os problemas contemporâneos? Esperavam falar da situação do Islão. Tratava-se de saber, não é verdade, se havia nessa religião elementos Particulares que a predispunham para suscitar o fanatismo, rejeitar qualquer separação do Estado. Estaria Amina disposta a participar? O seu testemunho seria precioso.
Ela sufocava. Queria desaparecer. Por que não se calavam eles?
- O que há de extraordinário - disse Josserand, - é que mesmo que se pretenda o contrário, o Alcorão é um texto de abertura, funda uma religião aberta, parece-me, tolerante.
Tirou um folheto do bolso. Amina Nekoub conhecia aquela passagem do Alcorão que conta a visita do anjo Gabriel a Maomé?
- É Gabriel, o mesmo que anuncia a Maria que ela foi escolhida, que diz a Maomé: "Tu que és o mensageiro de Deus, ergue-te e prepara-te, põe o teu cinto, envolve a cabeça e o corpo no teu véu branco, e segue-me, porque esta noite Deus quer mostrar-te as inumeráveis maravilhas do Seu poder e dos Seus mistérios." Fabuloso, não é verdade? O anjo Gabriel, mensageiro da Anunciação entre os cristãos, os muçulmanos e os judeus: aí está o que devia servir de base à unidade de nossa civilização! Os muçulmanos são nossos irmãos. Nós formamos uma só família; na realidade, só nos opomos porque somos parecidos.
Aproximou-se de Amina.
- Estou enganado?
Ela respondeu numa voz surda:
- Eu não acredito nos anjos. Todos riram.
- Ateia? Ora vamos! - lançou Borelli. - Quem o é verdadeiramente?
Ela abriu a porta.
Lá fora, felizmente, era de noite e o ruído dos automóveis abafava as vozes.
Amina prometera telefonar e Beaufort esperava, com um cobertor pelos ombros, no quarto do hotel que, com excepção do círculo de luz que iluminava a mesinha onde ele colocara os seus dossiers e as suas fichas, estava mergulhado na noite. Mas, por vezes, levantava a cabeça e, no tecto que mal se distinguia, notava contudo manchas de humidade. Fixava-as; parecia-lhe que elas se alargavam e tinha por vezes a impressão de ouvir o martelar regular de gotas de água que caíam no soalho.
Levantou-se, acendeu a luz do tecto. As manchas de bistre não se tinham alargado sobre o revestimento estalado.
Abriu a janela, contemplou a rua empedrada, uma parte da catedral.
Que fazia ele naquela cidade sem Amina? Como podia aceitar desperdiçar uma única noite, uma hora sem lhe tocar, sem a amar? Tinha perdido tanto tempo, dilapidado tantas vidas anteriores! Iria recomeçar?
Enfurecia-se contra si próprio, a sua prudência, as suas hesitações, depois a tristeza envolvia-o.
Fechou a janela.
A vida era uma coisa que se ruminava, e quanto mais durava, menos sabor tinha. Mastigava-se porque era preciso. Repetia-se Os gestos e as frases. Andava-se num mesmo passo cada vez mais lento. Já nem sequer se gesticulava. Não havia sequer necessidade de guia. Conhecia-se o caminho. As pessoas dirigiam-se sozinhas, bem comportadas, sem revolta, para o matadouro.
A palavra fê-lo voltar à mesa.
Os dois pobres tipos, os dois miseráveis, os dois imbecis, as duas vítimas, os dois carrascos - chamassem-lhes como quisessem -, os dois homens que tinha tentado raptar Amina já haviam sido apanhados.
Quiseram forçar uma barragem da guarda na estrada de Thiers. Sem hipótese. A estrada serpenteava entre arvoredos, escorregadia, talvez coberta de gelo, estreita. Nem sequer fora necessário disparar contra eles. O carro tinha-se esmagado contra os larícios, e os gendarmes só tiveram de retirar os dois fugitivos. Um deles, Selim Nair, era procurado em Paris por roubo e violências. Tinha sido despedido das edições Christien Elsen, onde ocupava as funções de paquete. A direcção acusara-o - sem que tivesse sido possível provar - de fazer desaparecer pacotes de livros. Ele pretendera tê-los expedido. Jurara. Obtivera testemunhos favoráveis: uma editora, Anne-Marie Clermont, um escritor, Gilles Duprez, um investigador, Kamoun. Todos estes nomes estavam registados na ficha que o computador fizera chegar a Clermont. O editor acabara por retirar a queixa depois de uma intervenção do Dr. Rimberg - olha, cá está este outra vez! -, mas Selim Nair nunca mais fora readmitido. Derivas, pequenos delitos, violências e ofensas a um agente, tráfico de droga no subúrbio norte, detenções, prisão preventiva. E depois entrada em cena de Khader Malik, o dono do café da Rua da Charbonnière, um amigo do pai, e encontro com os islamitas. A engrenagem, tão banal que fazia bocejar. Mas era uma vida que se tinha esmagado contra um tronco de árvore, na estrada de Thiers.
O outro, Youssef Malik, ficara com os dois tornozelos e o ombro direito fracturados. Beaufort deslocara-se ao hospital de Clermont. Sentara-se aos pés da cama, pedindo ao polícia de serviço que saísse do quarto. Youssef Malik endireitara-se, fazendo uma careta.
- Dói, o braço, o ombro, hem? - perguntara Beaufort.
E dera uma palmadinha no seu próprio cotovelo, recordado de como o tinham agredido, no Bairro do Vulcão. Youssuf Malik era um deles, não? O lenço vermelho com manchas amarelas... Beaufort ia apresentar queixa contra ele. O testemunho de um comissário tinha peso.
Malik fizera um esgar de desdém.
Iam ordenar, recomeçara Beaufort, o encerramento do café que o pai, Khader Malik, tinha na Rua da Charbonnière, em Paris.
- Não têm o direito! - berrara Youssef. Depois fechara os olhos, e, numa voz subitamente calma, atirara que os ímpios podiam fazer o que quisessem, seriam vencidos em toda a parte, na Argélia, no Egipto, no resto do mundo, mesmo na França, em Paris e no Bairro do Vulcão. - Vocês são uns impuros, não são nada, menos que porcos!
Voltara-se de lado sem conseguir impedir-se de gemer.
- O teu amigo, Selim Nair, sabes que ele morreu? - murmurara Beaufort.
Youssef Malik parecera não ter ouvido.
- Morreu - repetira o comissário.
Soerguendo-se, Malik pronunciara numa voz clara e solene frases em árabe que Beaufort não compreendera. Erguendo-se contra a cabeceira da cama, Malik cuspira na sua direcção, com o torso lançado para a frente, o rosto deformado pelo ódio. Gritara talvez: "Morre!"
Lentamente, com a ponta do lençol, Beaufort limpara o impermeável, depois saíra do quarto. Não se sentia orgulhoso.
Atravessou a cidade a pé. Caíra a noite, esvaziando as ruas, deixando nos recantos apenas montes de farrapos e de cartões sob os quais se escondiam homens. Silhuetas atravessavam a Praça de Jaude, coladas uma à outra, ligadas talvez pelo desejo ou pela cumplicidade, uma paixão ou um tráfico. Um carro da polícia Patrulhava lentamente, com a sua luz azulada a desenhar arabescos nas fachadas mortas. Uma mulher acocorou-se e recuou até à esquina de uma rua, balanceando o corpo sobre os joelhos dobrados para escapar à patrulha, parecendo assim uma criatura disforme, animal.
Que fazia ele ali, a desempenhar um pequeno papel naquele grande bulício social, quando aquilo que lhe restava de vida se lhe escapava entre as mãos? Quando se ia deitar sozinho num quarto de hotel com o tecto manchado, com a recordação - o seu único bem - de uma noite passada na companhia de uma mulher, sem dúvida demasiado jovem, talvez demasiado diferente, que tinha é certo falado do nascimento de um filho, de um filho dele, mas apenas como uma ideia que atravessa o espírito e que é expulsa por uma outra.
Desejava ele verdadeiramente um filho, dela ou de outra?
Tinha vontade de esconder a cabeça debaixo dos braços, de esperar que alguém lhe desferisse o golpe de misericórdia.
No fundo, compreendia esses loucos, Hocine Nekoub, Selim Nair, Youssef Malik, todos marados, e, muito antes deles, os outros que, partindo dali, tinham marchado até Jerusalém, abandonando os seus hábitos, aquilo a que se chama a vida, para acabar mais depressa, na exaltação e na cegueira, na fé demente.
Regressou lentamente ao hotel. Quando lhe estenderam a chave do quarto, esperou que lhe anunciassem uma chamada de Paris. Interrogou o porteiro. "Nada, senhor Comissário. Nenhuma chamada, nada."
Como que para retardar o momento em que se encontraria no quarto, Beaufort não tomou o elevador. Pela fadiga misturada de desespero e de despeito, de amargura e de lassidão enquanto subia a escada, avaliou que aquela jovem, Amina Nekoub, era a sua última razão de viver.
Apoiou a testa à porta do quarto.
Talvez, disse a si mesmo fazendo uma careta. Razão de viver? Talvez.
Que certezas tinha ele?
Esperou a chamada de Amina enquanto estudava de novo o conjunto do dossier do caso. De facto - dispusera as pastas cartonadas em diferentes rimas -, distinguia agora os primeiros assassínios, os primeiros corpos, os das florestas de Silvacane e da Borgonha, esses lugares de silêncio, aos quais se devia talvez juntar o corpo de Tahar, descoberto na floresta de La Chaise-Dieu. Todas essas vítimas tinham sido, antes ou depois da morte, marcadas com o sinal da cruz. O peito ou as palmas das mãos laceradas, os estigmas constituíam a assinatura do criminoso, que pensara dar assim um sentido ao seu acto. Um louco, um sádico, um crente? Mas como identificar num mesmo homem as pulsões que o levavam a agir?
Depois havia os corpos do padre Desbordes e de Khaled, ambos encontrados no Bairro do Vulcão.
Beaufort folheou de novo o diário do padre Desbordes. Quem era o amigo do padre? O móbil do assassínio seria sórdido, de ordem sexual? Ou então...
Ou então o quê?
Empurrou a cadeira para longe da mesa.
Como se houvesse alguma vez um móbil nobre para um assassínio, como se isso não fosse sempre bestial, fazer sangrar um corpo humano! Ao pensar em fazer essa distinção, nem que fosse por um instante, Beaufort tinha a sensação de haver também perdido a razão. Tinham morto homens. Era preciso saber quem. Devia desempenhar o seu pequeno papel.
Voltou a aproximar-se da mesa e pôs-se a rabiscar, amarrotando numerosas folhas de papel. Por fim, alisando a página com o cutelo da mão, traçou de uma só vez quatro círculos secantes nos quais inscrevera nomes e um ponto de interrogação:
Os mortos das florestas
O
Tahar 1 Padre
Desbordes
Hocine Nekoub
Observou longamente os quatro círculos, com a cabeça vazia de qualquer pensamento, como se quisesse deixar-se impregnar até ao mais profundo de si mesmo por aquelas figuras que se lhe haviam imposto.
De repente, o telefone.
Amina murmurou apenas:
- Sou eu.
Era uma rapariguinha a falar. Contava e choramingava.
- São uns imbecis - dizia -, não compreendem nada. Depois, numa voz mais dura, acrescentou:
- Para eles, nós não existimos. Estão-se nas tintas para o que nos acontece, para aquilo que vivemos. Olham-nos de cima. Se tu os ouvisses: seja o que for, o Alcorão, o anjo Gabriel, a cruzada, os engenheiros que se tornam islamitas... Há também aqueles que nos querem exterminar. Mas nenhum deles nos vê como somos: pessoas como eles, simplesmente como eles, com um pai, uma mãe, irmãos - loucos e pessoas normais. Não querem que nós sejamos como eles. Quando o dizem, não o pensam. Eu ouvi-os, Jean-Louis, eles odeiam-nos, ou então olham-nos como animais estranhos, à parte. Ou nos acham divertidos, ou têm medo de nós. Que queres tu que eu faça? Já não sou de lá, e não sou daqui, não sou nada. Não quero ser nada, nada, nada.
Beaufort apertava o telefone contra a face, apoiava-o aos lábios. Segurava-o com as duas mãos, formando com as palmas como que uma concha, um ninho.
- Não - murmurava -, não digas isso. Tu és livre de ser aquilo que quiseres. É preciso querer, é preciso lutar. Deixa as pessoas falarem. Eles são assim com toda a gente. Não apenas contigo, com vocês. Mas, no fim, ainda que não seja fácil, mesmo que haja preconceitos, medo, aceitam-te como és. Era igual com os polacos, os italianos, todos aqueles que agora vivem aqui, os pais ou os avós de François Milner, estás a ouvir? É preciso querer, não recuar, compreendes? Tu és livre. Isto é uma sociedade livre, apesar de tudo, apesar dos imbecis. Não renuncies, és tão jovem, Amina, tão bonita. Eles é que não são nada. Tu és tudo, tens tudo.
Estava espantado com as palavras que pronunciava. Ainda era capaz de dizer aquilo, de o pensar? A confusão de Amina, a tentação da renúncia, a amargura que sentia nela perturbavam-no. Gostaria de embalá-la, de acariciá-la para tranquilizá-la como se faz a uma menina.
Ela era ainda uma menina.
Ele não ousara falar, nem pensar havia anos, talvez desde o dia em que o médico lhe dissera que Solange, a sua filha, tinha uma doença incurável. Fora nesse momento que se deixara arrastar pela vida, sem procurar o seu caminho, tentando apenas compreender o que se passava à sua volta, querendo identificar o Mal e os seus diferentes rostos. Por vezes, de resto, quando se acusava a si próprio de que já não estava agarrado à vida como dantes, combativo, entusiasta, antes da doença de Solange, espantava-se com a passividade das pessoas à sua volta, aquele desespero que as roía, do triste desânimo que lhes embaciava o olhar, da sua prudência, das suas cobardias. Estava portanto ainda do lado bom da vida e era por isso que rompera com Marion Chauvel, sabia-o, era por isso que ousava dizer a Amina Nekoub que era seu aliado, que podia contar com ele.
Ela respondeu: "Gostava que me apertasses, me esmagasses de encontro a ti."
Sentiu-a respirar mais calmamente.
Ela continuou, explicando que falava em voz baixa porque Hélène Milner estava a dormir no quarto ao lado. Todos estavam talvez cheios de boas intenções, dizia: aquele jornalista, Vincent Janovers, que seguira o caminho dos cruzados, que tentava compreender as razões do islamismo; Josserand, que citava passagens do Alcorão, ou o escritor Gilles Duprez, ou Kamoun; mas nenhum deles vivia no Bairro do Vulcão. Beaufort percebia o que ela queria dizer? Deixavam-nos entregues a si, metiam-nos num redil. Oh, não havia lei que os forçasse e alojarem-se todos num mesmo local, mas era ali que eles se estavam. E não podiam sair dali: era demasiado caro. Nas cidades as coisas deterioravam-se. Havia bandos. Loucos: Hocine, ela reconhecia-o. Uns fanáticos. Mortos: Tahar, Khaled, o padre Desbordes. Interrompeu-se.
- Naquele clube - continuou passados alguns segundos -, havia também um doido, um sociólogo, Georges Bourrières, que conhecia o padre Desbordes e que nos queria matar a todos.
Hélène ficara indignada. Aquele tipo, antigamente...
Mas que tinham eles que remexer no passado? Agora, ele era doido... O filho tinha sido morto numa rixa, mas não aconteciam rixas antes de haver magrebinos em França?
- Também o meu filho morreu - acrescentou Amina. - E não posso sequer dizer que perdi um filho. Nem por isso fiquei louca.
- Georges Bourrières... - repetiu Beaufort. Lembrava-se desse rosto oblongo, das têmporas rapadas desse homem, das gotas de suor que lhe perlavam a testa, quando, avançando para ele, nas instalações do padre Desbordes, lhe perguntara:
- Bourrières, quem é?
Reviu toda a cena, e ficou por momentos silencioso. Amina murmurou:
- Estás aí? Preciso de ti. Ele sentiu-se alegre.
A mãe, outrora, havia muito tempo, numa outra vida, não dizia que ele era - deu por si a sorrir com nostalgia - belo e forte?
O destino quebra-nos como se fôssemos de vidro
- Sangue, o meu sangue! Eles são doidos, é o meu sangue! Pronunciando estas palavras numa voz aguda, Georges Bourrières levantou-se da poltrona que ocupava em frente da janela daquela sala comprida, com as paredes forradas de livros. Beaufort não se mexeu. Adivinhou que Bourrières, cuja silhueta se recortava em contraluz, ficando o rosto na penumbra, colocara as duas mãos contra o ventre, flectia as pernas como se fosse ajoelhar-se, desabar. Inclinando-se para a frente, repetia: "Sangue! O meu sangue!", depois ergueu-se ao fim de alguns segundos e o seu corpo veio assim ocultar quase completamente a fachada da igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas, do outro lado da rua.
- Todas as testemunhas - continuou Bourrières na mesma voz aguda -, todas ouviram o meu filho gritar: "É o meu sangue, eles são loucos!"
Inspirou profundamente, depois deixou-se cair na poltrona em frente do comissário.
- Foram estas as últimas palavras de Yves. Morreu antes da chegada da ambulância. Tinha apanhado sete facadas: ventre, peito, estômago (Bourrières esfregava as duas mãos no torso). Toda a gente se pergunta como é que ele teve força para gritar. Mas ele era um rapaz de uma força, de uma vontade, de uma inteligência excepcionais.
Levantou-se de novo, saiu da sala, e a fachada da austera igreja voltou a ocupar o espaço da janela.
Beaufort tinha a impressão de conhecer os mínimos pormenores daquela igreja. Antes de carregar no botão do interfone, de indicar o seu nome a Bourrières, vagueara pelo Bairro. Chegara a Paris pouco antes das sete horas, estacionando o carro na Praça do Pantheon, deserta. Viajara sem interrupção desde que saíra de Clermont, a meio da noite, menos de uma hora depois de ter falado tão longamente com Amina Nekoub.
Começara por se deitar, comovido, fatigado, passando do entusiasmo à dúvida, pensando só na jovem, na afeição - não ousava dizer amor - que ela parecera testemunhar-lhe. Ela dissera que precisava dele. O amor, a amizade, não era outra coisa. Alguém que se torna necessário. Só ele existe verdadeiramente e dá movimento à vida, presença às coisas. Na sua ausência, a indiferença, o tédio, a inutilidade submergem o mundo.
Dormitou, procurando recordar tudo aquilo que Amina lhe dissera, desafiando-se a si mesmo, acusando-se de ceder a uma ilusão, tão tarde, quase no termo da vida, em todo o caso para além do meio dela. Era indecente, ridículo. Amina era tão jovem. Calculou: quantos, vinte anos, vinte e cinco anos de diferença? Sentiu-se abatido, depois pensou: por que não? Podia oferecer-lhe dez, quinze anos da sua vida. Ela recomeçaria depois. Brincou com essa ideia, adormeceu talvez. Mas, de repente, levantou-se. Precisava de se encontrar com Bourrières logo no dia seguinte. Precisava de saber quem era esse tipo.
Começou a vestir-se sem reflectir mais. Recuperava esse prazer de ceder à intuição, de inverter os raciocínios, os procedimentos, de agir por instinto.
No princípio da carreira, comportava-se assim. Criticavam-no por causa das suas iniciativas intempestivas, invejavam-no, qualificavam-no de polícia imaginativo que acredita na sorte, viola os regulamentos, os costumes. A hierarquia desconfiava dele e ele entorpecera pouco a pouco, perdendo toda a viveza depois da morte da filha, só dando um golpe de rins quando do caso de Judith e Sandra Ellner, quando fora necessário desencantar os assassinos dessa mãe e da filha. Nessa ocasião julgara descobrir metástases do nazismo, esse cancro que nunca se conseguiria talvez vencer, porque era apenas um dos rostos do Mal. Era o que ele pensara então, o que confiara um pouco imprudentemente numa entrevista que Marion Chauvel publicara - tinham-se conhecido nessa altura, por ocasião desse caso. O ministro do Interior tinha apreciado esse ponto de vista e encarregara-o de conduzir a investigação sobre os assassínios de jovens muçulmanos, aqui e ali. Mas Beaufort patinhara, errara, e, talvez porque Amina lhe restituía confiança, ousava pela primeira abandonar-se como outrora ao seu instinto. Tinha de ver Bourrières, imediatamente.
Antes de sair de Clermont, acordou François Milner, que dormia num quarto próximo, no mesmo andar do hotel.
- Vamos até lá, ao Bairro do Vulcão? Queres que prendamos Hocine Nekoub agora, a meio da noite? - perguntara Milner, colocando um pulover pelos ombros. Bocejava, dizia que se preparava, mas que ainda era de noite.
Protestara quando Beaufort lhe anunciara a sua intenção de partir para Paris. O comissário corria riscos. A imprensa tinha já descoberto a existência de Amina Nekoub. Os jornalistas iam evocar as suas ligações com a irmã de um suspeito. Ele imaginava as consequências dessa situação?
Beaufort parecera não ouvir. Queria um dossier completo sobre Georges Bourrières, sobre as condições em que o filho do sociólogo fora assassinado: relatórios, identidades dos suspeitos, actas, artigos, etc. Tudo. Milner que metesse mãos à obra.
- Que história é essa? - perguntara este último não sem impaciência.
Seguira-o no corredor do hotel, exigindo explicações, mas Beaufort encolhera os ombros: um dossier sobre Bourrières, ele que se ocupasse só disso.
Milner murmurara, resmungara, mas o comissário já descia as escadas.
Sete horas. Demasiado cedo para bater à porta de Bourrières.
Atravessou a Rua de Saint-Jacques, olhou o prédio onde morava Bourrières, tipicamente parisiense, com as suas falsas varandas presas nas ondulações da fachada de pedra cinzenta. Beaufort entrou na igreja escura, sem um único crente. Leu a placa que recordava que Saint-Jacques-du-Haut-Pas era uma paragem na rota dos peregrinos que, aos milhares, caminhavam para Santiago de Compostela. Vinham do Norte. Subiam em multidão a montanha Sainte-Geneviève, paravam ali onde, mais tarde, se havia construído a igreja, e o caminho que haviam seguido transformara-se naquela Rua de Saint-Jacques já bloqueada pelos engarrafamentos.
Beaufort voltou a atravessá-la, deslizando entre os carros. Tinha frio, estava como que impregnado pela atmosfera gelada e negra da igreja deserta. O fervor, a fé, a mística tinham abandonado os países daqui para surgir noutros lugares, poderosas, arrastando aos milhões esses homens que clamavam a sua obediência ao profeta, atravessavam os desertos, os continentes, enfrentavam as guerras para alcançar Meca?
A igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas não era mais que uma forma esvaziada; a Rua de Saint-Jacques, uma procissão metálica cujos elos só estavam ligados uns aos outros pelo tempo de um percurso, esse segmento de rua, procurando cada automobilista o seu objectivo singular.
Civilização, progresso, liberdade..., pensou Beaufort. Absurdo.
Instalou-se na esplanada de um café na esquina da Rua Saint-Jacques com a Rua de l'Abbé-de-L'Épée. As duas artérias estavam bloqueadas desde havia alguns minutos. No passeio em frente, diante da porta do instituto de surdos-mudos, alguns jovens comunicavam entre si por gestos, movendo rapidamente os dedos, parecendo simular sorrisos.
Contra-senso... Senso...
Por um instante, Beaufort teve a tentação de partir imediatamente para Clermont, apagar assim o impulso que tivera, o surgimento nele de uma certeza que não se apoiava em nada.
Agir por sua própria iniciativa, sem ter consultado um juiz de instrução, sem mandato, tendo por único móbil a intuição de que devia encontrar-se com Bourgères, saber quem era esse homem: senso ou contra-senso?
Indicou o seu nome no intercomunicador. Longo silêncio. Crepitação. Depois aquele voz forte que interrogava: Comissário? Mas porquê? Que é que queriam dele? A polícia que se ocupasse antes dos árabes, ninguém os prende! Conhecem-se os criminosos, mas deixam-nos tranquilos, hem?
- Você que é polícia, que acha disso?
Era uma situação inesperada. Beaufort estava apoiado com a mão esquerda ao alisar da porta, com o ouvido colado ao intercomunicador. A voz de Georges Bourrières chegava-lhe, sem dúvida deformada, coberta pelos parasitas do aparelho.
- Não me responde? Porque é que eu hei-de recebê-lo, então?
Encostando a boca ao microfone, o comissário explicou que já se tinha encontrado com Bourrières no Bairro do Vulcão, em casa do padre Desbordes.
- Eles mataram-no também! E que é que vocês fizeram depois disso? Nada! Até libertaram o culpado. Bravo, é sempre assim!
A porteira saiu do seu cubículo. Entreabriu a porta, interpelou Beaufort. Era proibido o porta-a-porta, disse ela. Ele mostrou-lhe o cartão de polícia.
- Vou subir - anunciou ele a Bourrières. - Quero falar consigo do seu filho, dos assassinos dele.
Novamente o silêncio, depois um lamento, frases confusas, murmuradas, e por fim, mais distintamente, algumas palavras para dizer que era inútil, que a polícia tinha abdicado como - a voz elevava-se - a França, a Europa, a civilização cristã...
- Vou subir - repetiu Beaufort.
Abanando a cabeça, a porteira acompanhou-o até ao elevador. O Sr. Bourrières era um bom homem, podia acreditar. Mas teve demasiadas infelicidades: a morte da mulher, do filho. Fechava-se.
Trabalhava, mas pode-se viver só de trabalho, mesmo quando se é um cientista como ele? E tudo isso - e ela mostrou o punho - por causa dessa ralé, desses árabes a quem deixavam roubar, matar, tirar o trabalho aos franceses.
A porta do apartamento estava aberta. Beaufort entrou. Dirigiu-se para a luz, atravessando o vestíbulo atravancado de pilhas de livros; algumas tinham desabado, dando de repente uma impressão de desordem. Depois hesitou um instante, tossicando, dizendo: "Estou aqui... Beaufort..." Ninguém respondeu. Voltou a fechar a porta. Numa salinha um pouco mais clara, à esquerda do vestíbulo, tinham amontoado malas, quadros, a maioria dos quais virados. Um tapete enrolado estava encostado verticalmente a um tabique. Dossiers acumulados estavam cobertos de pó. Beaufort empurrou por fim uma porta envidraçada que dava para um salão-biblioteca sobre o comprido.
Bourrières estava ali sentado, diante da janela, de costas para Saint-Jacques-du-Haut-Pas. O rosto e corpo ficavam na penumbra. O comissário sentou-se diante dele.
O outro parecia não o ver.
- O seu filho - disse ele. Bourrières deteve-o com um gesto da mão.
- Ele era belo, o meu querido - murmurou. - Tão belo, o meu querido, tão jovem...
Estendeu o braço.
Beaufort distinguia, à sua direita, presa às prateleiras, escondendo uma parte dos livros, uma grande fotografia representando um homem ainda novo, o próprio Bourrières, sem dúvida, com uma criança pelo ombro.
- O meu rapaz, meu querido, continuou o sociólogo. Quando era pequeno, nunca nos separávamos.
E riu. Mas poder-se-ia chamar riso àquele arrulho que lhe levantava o peito como um estertor?
- Eu dormia com ele. Apertava-se de encontro a mim. Quando a mãe morreu, por ela, eu quis que ele fosse baptizado. Ocorreu-me assim. Eu não acreditava em nada, nesse momento. Pedi a François Desbordes que o baptizasse. Era meu amigo. Eu gostava dele. Sabia que, para ele, cada homem devia ser respeitado como Deus. Era um homem puro, um homem de ideal. Ele veio. Baptizou-o ali (com um gesto da cabeça indicou Saint-Jacques-du-Haut-Pas). Eu não compreendia que era a vontade de Deus, que queria salvar o meu filho.
Soergueu-se.
- O meu filho é Abel, comissário, Abel! - martelou ele. - Conhece o destino de Abel? Lembro-me de que, no dia do baptismo, aqui, nesta sala, sentado no lugar onde o senhor está, Desbordes falou-se de Abel e de Caim. Sabe o que ele dizia? Os cristãos e os muçulmanos não devem ser entre si como Abel e Caim. Desbordes vivia na ilusão. Era um homem de absoluto, um louco de Deus.
- Já me disse isso no Bairro do Vulcão - murmurou Beaufort. - Lembra-se do nosso encontro em casa de Desbordes?
Bourrières parecia não o ter ouvido.
- Nesse dia, o meu filho dormia ao lado, no quarto. Foi estranho, aquele baptismo. Yves já andava. Antes da morte da mãe, eu sempre me recusara a que ele fosse baptizado. Não acreditava em nada, compreende? E depois, a mãe morreu. Fiz isso por ela. Depois...
Interrompeu-se, começou a baloiçar-se para trás e para a frente, em silêncio.
- Eu precisava de conhecer as circunstâncias... - arriscou Beaufort.
Bourrières imobilizou-se e, de repente, numa voz aguda, arquejante:
- Sangue, o meu sangue! Eles são loucos, é o meu sangue!
Depois levantou-se, repetindo as últimas palavras pronunciadas pelo filho, cruzando as mãos no peito, prestes a ajoelhar, a cair, depois sentando-se, levantando-se de novo e explicando, antes de sair da sala, que o filho tinha recebido sete facadas, que tinha morrido no passeio, traiçoeiramente morto, como Abel.
Quando Bourrières regressou à sala, titubeava, e, antes de se dirigir a Beaufort, agarrou-se à ilharga da estante, com os olhos semicerrados. Descarnado, com o maxilar demasiado forte, tinha o rosto de um morto, os ossos salientes pareciam quase a furar carnes exangues.
Recompôs-se, inclinou-se para Beaufort, estendeu-lhe um grosso arquivo cartonado, dizendo, enquanto lhe batia com as pontas dos dedos, que estava tudo ali, tudo, que não havia nada a acrescentar. O que faltava não era o conhecimento dos factos, nem as provas, mas a vontade, a coragem, a energia.
Recuou, fez um grande gesto com a mão direita, varrendo o ar à sua frente. A cobardia, a frouxidão, a demissão tinham submergido tudo, acrescentou:
- Não há já um homem para se erguer contra os bárbaros, ninguém! Isto poderia ser o fim, se...
Cheirava tão fortemente a álcool que Beaufort sentiu náuseas.
O comissário começou a percorrer os artigos de jornais que Bourrières tinha classificado cronologicamente. Era como se o acontecimento que constituíra o assassínio de Yves Bourrières, uma noite, cerca das vinte e três horas, na porta de Vincennes, na Rua dos Maraíchers, tivesse encolhido pouco a pouco até não ser mais, no último recorte de imprensa, que um local de três linhas relatando que os dois suspeitos detidos depois do assassínio tinham sido postos em liberdade, não tendo sido mantida nenhuma acusação contra eles. Bastaram quatro dias para que a morte daquele homem que quisera defender uma jovem que o acompanhava fosse eclipsada. No entanto, os títulos do primeiro dia tinham ocupado toda a largura das primeiras páginas. Os artigos indignados eram ilustrados com fotografias. O presidente da municipalidade do XX Bairro, o prefeito da polícia tinham feito declarações à imprensa. Era inadmissível, etc, etc. Os habitantes do Bairro tinham testemunhado. As ruas já não eram seguras. Os traficantes de droga actuavam diante dos olhos de toda a gente. Os drogados atacavam os transeuntes. Era a selva, a América! Yves Bourrières tinha-se mostrado corajoso, mas quantos outros tiveram de deixar andar, dar o seu dinheiro, assistir à violação da companheira? As pessoas já não saíam. "Não são franceses os que fazem isso, ou então são uns franceses estranhos."
Yves Bourrières, afirmava-se, morrera no passeio, com o peito a esvair-se em sangue, antes da chegada do socorro. A polícia cercara o Bairro, identificando dezenas de indivíduos. A jovem afirmara que os dois agressores eram homens morenos, de tipo norte-africano. Mas não identificara os dois suspeitos que havia sido detidos, em vão.
O morto tinha ficado dissimulado debaixo de outros mortos. A superfície voltara a ficar lisa.
Beaufort fechou o classificador.
- O senhor viu, compreendeu - murmurou Bourrières. Abanava a cabeça, parecia esgotado, de olhos novamente semicerrados. Depois endireitou-se e recomeçou a falar.
Não se dirigia a Beaufort. Era um solilóquio de que o seu interlocutor era apenas o pretexto e a testemunha. Por vezes, interrompia-se, deixando cair o queixo para o peito, respirando com dificuldade, como extenuado. Muitas vezes tinha um riso de escárnio, como para troçar de si próprio, daquilo que outrora pensara e fizera.
- Éramos imbecis - dizia. - Nós, é demasiado fácil de dizer nós! Eu é que era imbecil! Tinha um filho e não o defendi, pelo contrário, abri a porta para que irrompessem no seu quarto, para que os assassinos pudessem apunhalá-lo em sua casa. Fui eu, eu que chamei Caim para que matasse o meu filho, o meu Abel, eu. Mais ninguém!...
-Em 1960, quando ouvia alguém falar de ratinhos, ficava louco. Era a extrema direita, a OAS, os fascistas, os racistas que se exprimiam assim. Agora, sou eu que digo: são uns ratos! Multiplicam-se como ratos, ninhadas de ratos que se reproduzem, são centenas de milhões! A história não é mais do que isso: investidas de ratos contra as regiões ricas, despovoadas. E nós, aqui, que é que nós fazemos enquanto eles se expandem, fazem dezenas de filhos? Aspiramos os fetos, cortamo-los na barriga das mulheres, passamo-los pelo triturador. Nada de crianças, acabaram-se as crianças! Os nossos campos vazios. Eu moro numa casa de uma aldeia onde só restam alguns velhos. Já não há camponeses. Ninguém! E os ratos entram, avançam. Estão em todo o lado. Eu indignava-me quando lhes chamavam ratinhos! Mas eu não compreendia nada, tinha a cabeça recheada de ilusões!
Bourrières pareceu de repente descobrir a presença de Beaufort.
Levantou-se, foi até à janela. Apontou com o dedo a igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas.
- Está vazia, o senhor viu, sempre vazia! A morte do meu filho, é um sinal, compreende, senhor. Eu quis, sem compreender porquê, que ele fosse baptizado aqui. Mataram-no. Mataram François Desbordes. Eu (estendeu o braço para Beaufort), defendo-me. Abri o meu espírito. Conhece Josserand, o director do L'Indépendence! Ele estava comigo, com Rimberg, com Desbordes nos anos 60. Ainda não compreendeu nada. Não se atreve a compreender. Tem medo de ver. Leia o jornal dele. Pretende-se objectivo. Mas não mudou de olhar. Não sabe que hoje já não se trata de equilibrar os pratos da balança: é simplesmente eles ou nós. A nossa civilização ou a deles. Só isso! Eles já estão aqui, matam-nos, destroem-nos. Quem é que enche as prisões? Eles. As violências nos subúrbios, são também eles. Os atentados, são eles. Eu ando pelas cidades, sou sociólogo, não é verdade (esboçou um sorriso), é útil para investigar. Eles imaginam que os sociólogos estão do lado deles. Eu não os desengano. Interrogo-os. Eles são vaidosos. Falam porque estão seguros de nos vencer. Eles odeiam-nos, desprezam-nos. Eles querem fazer, e fazem, de cada Bairro uma praça forte, fora da lei. Foi por isso que mataram Desbordes. Ele queria ficar entre eles. Não o aceitaram. Expulsam os seus estrangeiros. Os Bairros, nós pensamos que isto é a nossa terra? Mas não, é a terra deles: as pequenas repúblicas islâmicas! Eu, senhor, não aceito isso. Não arrisco nada: eles já me mataram.
Alto, curvado, Bourrières estava de costas para Beaufort, apoiando-se à vidraça. A sua voz, mais grave, como que abafada, parecia vir de longe, encoberta pelo barulho da Rua Saint-Jacques.
- Tomei este novo caminho depois da morte da minha mulher - continuou. - Eu ignorava-o. Era a minha primeira estação. Estava ainda cego. Mas continuei a caminhar.
Batia com a testa na vidraça, devagar.
- Ali, baptizámos Yves. Era a minha segunda estação. Só com a morte do meu filho compreendi: a terceira estação.
Deixou-se deslizar ao longo da vidraça. Falava agora de joelhos.
- A morte de Desbordes é outro sofrimento - disse numa voz mais firme. - É preciso encontrar essa energia, impiedosa. É preciso uma vontade cortante como um gládio! Nunca houve destino para as civilizações da cobardia. É isso que eu penso.
Voltou a sentar-se na poltrona, em frente do comissário.
- Longo discurso - constatou inclinando a cabeça e passando os dedos pelos cabelos lisos. - Quando começo...
- Interessante - disse Beaufort levantando-se. Dirigiu-se lentamente para o vestíbulo, depois, como se se tivesse esquecido de um qualquer pormenor, voltou-se.
Essa aldeia de que Bourrières falara, povoada de velhos, essa aldeia onde ele morava quase sozinho, situava-se no Auvergne, não era, no coração deserto da França, esse coração antigo da Europa, a região das abadias, um país de fé - não tinha a primeira cruzada sida lançada em Clermont?
Bourrières confirmou.
- Uma aldeia? Não, apenas um lugar - disse.
- Perto de La Chaise-Dieu, não é? Bourrières encolheu os ombros.
- Um lugarejo como há tantos - resmungou. - Sem crianças. Sem igreja viva. Velhos que se agarram à vida. Um lugarejo morto.
- Mas o senhor vai lá por vezes - disparou Beaufort, enquanto se afastava.
Pareceu-lhe que Bourrières repetia: "Estou morto, já estou morto."
Beaufort atravessou a Rua de Saint-Jacques. Voltou-se e esquadrinhou aquela janela do quarto andar diante da qual Bourrières estava ainda sem dúvida sentado, murmurando palavras de sangue e de ódio, relendo os artigos que relatavam as circunstâncias do assassínio do filho.
Tudo era tão simples, para terminar, pensou. E sentiu de súbito a fadiga da noite. Estava abatido, tão cansado que tinha náuseas, como se apenas sentisse mágoa, desilusão ao ver confirmada a sua intuição. Tivera razão ao querer encontrar-se com Bourrières. Tinha acertado. E daí? Um caso que se esclarecia. O trabalho estava feito. Iam descobrir na casa que o sociólogo possuía no Auvergne vestígios da presença de Tahar e de Khaled. Bourrières devia tê-los sequestrado aí e tê-los torturado antes de depor os seus corpos, um na floresta de La Chaise-Dieu, outro no parque de estacionamento do Bairro do Vulcão. Sem dúvida conseguir-se-ia provar também que ele matara François Desbordes, testemunha do passado, que compreendera que o seu amigo era o assassino dos dois jovens muçulmanos. Bastava ler o seu diário. Seria mais difícil fazer Bourrières confessar os crimes anteriores, o da floresta de Silvacane, os das florestas do silêncio e da fé, entre Vézelay, Citeaux e Clairvaux. Esquecidos, talvez, confundidos com as inúmeras mortes dessa batalha milenar em que ele acreditava e queria travar, novo cruzado que retomara o gládio.
Era, como sempre, sem surpresa. Sete facadas no corpo do filho. Sete mortos na floresta. Quem era Abel, quem era Caim? Quando se colocara este último pedaço que faltava, quando se olhava o desenho enfim completo do puzzle, encontrava-se apenas a banalidade de um homem, lastimável e trágico, que suscitava, conforme os dias, indignação, desprezo ou compaixão. Sim, no final, descobria-se apenas o insuportável sofrimento de um homem que se debatia para lhe fugir. Estava encerrado com ele. Julgava empurrar uma porta, sair da jaula onde esse sofrimento estava, retumbante. E descobria que o sofrimento estava em si próprio. Essa dor era tão forte, tão injusta, tão permanente que ele precisava, se queria viver, de fazer um compromisso com ela.
Beaufort conhecera isso. A sua filha morrera. Ele fizera da história dos homens uma máquina de morte. O contra-senso tornava-se senso. Como poderia ele condenar Bourrières?
Pobre homem, pobre louco. Matava porque lhe tinham morto o filho. Essa loucura e esse sofrimento que o habitavam, ele exaltava-os. Era um intelectual, é certo. Precisava de cenários históricos, da grandiloquência! Tinha a loucura grandiosa! Defendia a civilização cristã! Salvava o Ocidente! Detinha a verdade! Era crente! O seu filho seria Abel e ele, o pai, um justiceiro.
Tudo era tão simples, afinal.
Beaufort penetrou na igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Precisava de silêncio e de vazio. Mas ficou surpreendido. A nave estava iluminada. A pedra das abóbadas, das paredes e das colunas havia sido decapada. Tinha uma brancura de nova. Os arcos e as linhas de intersecção eram nervuras vivas que quebravam a luz, reflectiam-na, iluminando o punhado de fiéis reunidos em volta do altar. Um padre oficiava, erguendo a hóstia.
Instintivamente, como movido por uma recordação, Beaufort fez o sinal da cruz e ajoelhou num genuflexório, com o rosto entre as mãos.
Aquele murmúrio à sua volta, como o rumor tranquilizante de um riacho no silêncio.
Ficou assim vários minutos, levado por distantes reminiscências da sua infância. Talvez cada homem ficasse assim marcado, a seu pesar, pelos primeiros gestos que vira, pelos primeiros sons que ouvira, aquelas vozes que rezavam, aquele tilintar de uma campainha, aquela melopeia. Que se podia fazer contra aquele turbilhão que levava às origens da própria vida, ao começo destes tempos?
Bourrières fora assim arrastado. A sua loucura privada restituía vida à memória, a uma demência que havia lançado os homens uns contra os outros, árabes e cristãos entrechocando as suas lanças e espadas desde há mais de um milénio. Como esquecer esse velho confronto, esse sangue derramado, essas palavras diferentes, esses homens e esses países daqui que só se tornavam eles próprios por oposição aos de lá? E depois os ódios, a coragem, os heróis que se desafiavam? Tudo isso que recomeçava de século em século?
Bastava um encontro casual, um acontecimento trágico mas banal, o sofrimento de um homem como aquele pobre Bourrières, para que o vento soprasse, varresse a razão, e uma voz gritasse. "É o meu sangue, é o meu filho, vingança!"
Tudo era afinal tão simples. De fazer vómitos.
Beaufort levantou-se. Persignou-se de novo. Deliberadamente.
"Terminemos o Puzzle", pensou.
Beaufort escutava François Milner, mas era grande o contraste entre o entusiasmo, a exaltação mesmo do segundo, e a indiferença, a distracção do primeiro. O inspector, de pé, falava numa voz entrecortada, quase arquejante. Sentia-se que ele gostaria de caminhar, brandir as fichas, osdossiers. Mas a sala que tinham posto à sua disposição no terceiro andar da esquadra da polícia de Clermont, era apenas uma espécie de arrecadação atravancada por velhos móveis e pastas de arquivo. Era iluminada apenas por uma clarabóia e mal se podia lá entrar e depois permanecer imóvel. Milner estava portanto de pé atrás de uma pequena mesa que servia de secretária. Beaufort, sentado de esguelha, à sua esquerda, rabiscava num caderno, ignorando os documentos que o outro lhe mostrava.
Sentia-se que a impaciência e a cólera ganhavam pouco a pouco Milner. Interpelava o colega num tom cada vez mais irritado. Devia continuar a expor o resultado de investigações que o comissário parecia conhecer, ou dos quais se desinteressava? Beaufort já sabia talvez que os dois suspeitos que haviam sido presos depois do assassínio de Yves Bourrières, na Rua dos MaraTchers, não eram outros se não Tahar e Khaled, as últimas vítimas do assassino, aquelas que tinham sido encontradas na floresta de La Chaise-Dieu e no parque de estacionamento do Bairro do Vulcão? Quanto a Desbordes, era um velho amigo de Bourrières. Beaufort, naturalmente, sabia tudo isso?
Ele abanou a cabeça e, num movimento do lápis, fez sinal a Milner para continuar.
Nos papéis de François Desbordes, tinham encontrado uma carta de Georges Bourrières datada de vários meses antes, pouco tempo depois da morte do filho. Ele pedia a Desbordes, seu velho camarada - era assim que lhe chamava -, que o ajudasse a reatar contacto com um tal Tahar, que estava certo de que este se tinha instalado no Bairro do Vulcão, em casa do seu amigo Khaled, com quem vivera em Paris. O pretexto invocado pelo sociólogo era um estudo sobre a vida - as biografias, mais precisamente - dos jovens magrebinos. Tahar aceitara responder a uma série de entrevistas; tinha começado a fazê-lo. Bourrières tinha-lhe pago, mas o rapaz desaparecera. Esse trabalho, decisivo, estava portanto interrompido. O tom da carta era insistente. Ignorava-se aquilo que o padre respondera a Bourrières. Mas Tahar e Khaled tinham sido assassinados, e Desbordes também. Era isso bastante? Aliás, se Beaufort insistira em encontrar-se com Bourrières, se pedira a constituição daquele dossier, não era porque a sua convicção já estava formada? Porquê continuar? Beaufort era o melhor investigador, toda a gente sabia isso. A intuição bastava, não?
O comissário soergueu a cabeça. Parecia cansado. O seu rosto exprimia enfado e decepção. Milner lançara em desordem os papéis que tinha sobre a mesa. Que fazia ele ali? Beaufort arrependia-se das suas primeiras hipóteses, a culpabilidade de Hocine Nekoub? Mas que significava aquele comportamento? Ele, Milner, não compreendia. De resto não procurava compreender. Tinham-lhe pedido um dossier? Ali estava.
Deu uma palmada na mesa e sentou-se com dificuldade, fazendo deslizar a cadeira entre os armários.
- E a casa de Bourrières em Auvergne? - perguntou Beaufort.
Milner procurou entre as folhas. A casa? Os gendarmes não tiveram qualquer dificuldade em localizá-la. Era uma grande quinta de paredes de granito, com as caves de abóbada, dizia-se, e tectos de ardósia. Cinzenta, negra. Ficava na orla da floresta, não longe de La Chaise-Dieu. Dominava um lugarejo que era habitado apenas por um punhado de velhos. A casa tinha sido construída no local de uma torre a que chamavam Torre dos Templários. As suas pedras tinham sido sem dúvida utilizadas para construir a quinta.
- Tudo é tão simples, tão próximo... tudo se repete... - murmurou Beaufort.
Milner interrompeu-se, e depois, como o comissário ficara de novo silencioso, absorto no seu desenho, continuou numa voz indiferente, exprimindo assim a decepção que sentia perante a atitude do colega.
Bourrières, explicou, comprara aquela casa havia pouco tempo. Permanecia ali regularmente, apesar do desconforto do local. Conheciam-se as datas - chegadas, partidas - das suas permanências. Deixava as chaves a uns velhos do lugarejo.
Milner empurrou uma ficha para diante de Beaufort.
Uma dessas permanências, continuou, coincidia com a descoberta do corpo de Khaled no parque de estacionamento do Bairro do Vulcão. Entretanto, Bourrières não parecia ter habitado na quinta no momento da morte de Tahar. Era preciso naturalmente verificar tudo isso. Mas seria necessário?
Milner fez um longo silêncio. A luz desaparecia pouco a pouco, e já só iluminava pela clarabóia a parte superior de uma divisória, deixando o resto da pequena sala na penumbra. Os dois pareciam assim escondidos entre os móveis, procurando deliberadamente dissimular-se, desaparecer.
Numa voz surda, que era mais um sussurro, Milner disse que em tempos, durante os seus estudos de filosofia, nos anos 70, tinha lido muitos trabalhos de Bourrières. Era a referência. Sabia-se que durante a guerra da Argélia ele tivera uma conduta exemplar, juntamente com o Dr. Rimberg, o padre Desbordes, Josserand. Era um intelectual, o professor que salvara a honra, que todos queriam imitar. Um modelo. Interviera várias vezes nos anfiteatros. Sem concessões. Alguns tinham-no injuriado, empurrado. Ele enfrentara-os. Sem qualquer demagogia. Dirigira várias delegações de professores e de estudantes que tentavam iniciar negociações com a polícia. Ele contara-nos essa noite de 16 de Outubro de 1961, quando os polícia de Papon - sim, Papon, o tipo da Ocupação! - tinham arrebanhado uma dezena de milhares de argelinos e se tinham encontrado no Sena, ao longo das margens, duzentos, trezentos mortos. Nunca se soubera... Era isso, Georges Bourrières: o rigor, a coragem, a inteligência, a lucidez. Milner deu um murro na mesa.
- O que é ele agora, diz-me? - lançou como um grito abafado. - Um assassino de árabes? Um racista? O que é o Bourrières? Ficou louco, assim, porque lhe mataram o filho? Mas o que era esse homenzinho então verdadeiramente? Vento, papelão? Um tipo que vira a casaca porque tem uma desgraça pessoal? É isso, Bourrières? Merda, merda!
Martelar de novo a mesa.
- Um tipo que sofreu uma dor, uma grande dor - murmurou Beaufort.
Milner riu-se. Beaufort que evitasse aquele género de declarações diante da imprensa! Quem não sofria dores, na vida? E as pessoas transformavam-se por isso em assassinas? Agarravam na faca ou na espingarda?
Beaufort começou por não responder, e depois, arrancando a folha do caderno e continuando a rabiscar, explicou que no fundo Bourrières não mudara, que simplesmente se invertera, como essas figurinhas que se podem olhar de duas maneiras, mas que mostram sempre a aparência de uma personagem em equilíbrio, de cabeça para baixo ou de cabeça para cima. Os pés passam para a cabeça, e vice-versa. Bourrières era isso: uma lógica que se invertia, mas com a mesma preocupação de coerência. Continuava a sua cruzada. Antes, pela independência, pelo Terceiro Mundo, etc. Milner lera-o; Beaufort, não. Agora, tornara-se um templário, lutava pela defesa da civilização cristã com a mesma determinação de outrora. Um louco? Apenas um pouco mais que antes, talvez. Ele não tinha meios para desencadear a guerra do Golfo. Matava artesanalmente. E, como era um intelectual, envolvia as suas pequenas razões privadas nos estandartes da fé, da civilização, etc. Milner compreendia? Era preciso fazer daquilo uma grande história? Os Estados falavam dos direitos do Homem e pensavam no petróleo. Bourrière invocava a civilização, os valores ocidentais, e pensava no filho assassinado. Quem obedecia à lógica mais louca?
Milner levantou-se. A sala estava completamente mergulhada na penumbra. A luz já não atingia a vidraça da clarabóia.
- Que devemos nós fazer, senhor comissário? - perguntou ele numa voz gelada enquanto reunia os papéis. - Prisão, detenção, busca?
- Tudo isso, sim, tudo isso, François - respondeu Beaufort. Mas dentro de algumas horas... Queria dormir um pouco.
Não havia pressa. Bourrières não fugiria: ele nem sequer imaginava que pudessem acusá-lo. Milner dissera-o: Bourrières era um homem de coragem, de rigor, de inteligência e de lucidez. Era isso, não era? Continuava a sê-lo. Era um vingador e um redentor. Mas não se teria ele sempre sentido assim?
Fez deslizar para Milner a página do seu caderno na qual tinha rabiscado. Milner Olhou os quatro círculos secantes, as setas, os nomes.
Os mortos - Tahar - Yves - Cahaled - Padre Desbordes -
Georges Bourrières
- A morte do filho matou o pai - murmurou o comissário. O pai matou os outros. Simples, não?
Terá Milner murmurado que era demasiado simples, que não podia aceitá-lo?
Beaufort, que talvez tivesse imaginado essa observação mais do que a ouvira, encolheu os ombros.
- Aí está - disse Beaufort.
Não olhava Amina Nekoub, sentada à sua frente naquela cervejaria na rotunda da ponte Mirabeau, apenas a algumas centenas de metros do prédio onde moravam Hélène e François Milner. Telefonara-lhe da própria cervejaria. Ela respondera:
- Espere, eu desço. - Tinha-o portanto tratado por você, talvez porque os dias durante os quais não se falaram haviam sido o bastante para apagar aquilo que tinham vivido juntos. O hotel onde tinham passado a noite era tão perto da cervejaria que Beaufort, debruçando-se, podia vê-lo, alta torre composta por alvéolos rodeados de faixas de metal brilhante.
Ficara à espreita de Amina, escolhendo para isso uma mesa que permitia abarcar a Avenida Emile Zola.
Vira-a atravessar de longe. O vento levantava as abas do anorak, descobrindo as longas pernas cinzentas das calças justas. Parara um instante à beira do passeio, puxando o fecho éclair, enfiando os cabelos compridos debaixo do capuz ornado de pele cinzenta. Depois avançara, com as mãos metidas nos bolsos, um pouco inclinada porque o vento era forte e frio. Passara diante da mercearia de Rachid Messaou sem virar a cabeça, como se quisesse esquecer o lugar, a agressão que tinha sofrido.
Empurrara a porta e ali estava, com as coxas apoiadas no rebordo da mesa. Beaufort levantara-se, cedera-lhe o seu lugar, depois dera a volta à mesa como se quisesse que ela se instalasse em plena luz, para vê-la melhor.
No entanto, não olhara para ela. Dissera: "Aí está" depois, com a cabeça um pouco inclinada, os braços cruzados, parecera seguir as gaivotas que se erguiam do Sena até ali e volteavam gritando por cima do rio, de modo que erguendo os olhos, vendo apenas aquelas aves brancas de bico preto, talvez alcatrazes, fixando apenas o céu, poder-se-ia imaginar que se estava à beira do mar e que aquelas longas rugas brancas que o vento empurrava eram a espuma das ondas estendendo-se por uma praia azul.
Ele sonhara estar com ela, longe. Esquecidos.
Ela também cruzara os braços.
- Então?
Como ele não respondia, ela disse que seguira o telejornal, na véspera. O culpado daquela série de assassínios - Tahar, o padre Desbordes, Khaled, e os outros antes, quantos, cinco? - era então esse professor, Georges Bourrières, cujo filho fora assassinado. Era isso, não era? Hocine já não era suspeito? Ele telefonara nessa manhã, exigindo ainda que ela regressasse ao Bairro do Vulcão. E a agressão contra ela, aquele Youssef Malik que disparara contra os políticos, também isso era esquecido?
Ela falava em voz lenta e calma, repetindo que desejava simplesmente saber em que acreditar. Beaufort devia compreender que ela continuasse a desconfiar de Hocine, que queria permanecer livre. Bourrières era talvez um assassino, mas fora Hocine quem a espancara a ela. Não se esquecia disso. Lembrava-se da maneira como os dois homens, aqui - mostrava a Avenida Émile Zola, os expositores da mercearia -, quiseram raptá-la. Estavam dispostos a estrangulá-la, ela sentira-o. A ela, esse Bourrières nunca lhe fizera nada. Os outros, sim.
Beaufort falou como que contra vontade. Continuava em aberto uma acusação contra Hocine Nekoub, acusado de cumplicidade numa tentativa de rapto e de muitas outras coisas mais, talvez da organização de grupos armados, etc.
Encolheu os ombros. Queria que Amina compreendesse que se preocupava principalmente com a razão por que ela o tratara por você ao telefone. Tudo estava já terminado entre eles? A sua relação - não ousava pensar "amor" - fora tão breve, tão fugidia como aquele risco branco, aquele rasto que, durante alguns segundos, riscava o céu?
- Esse assassino, é realmente ele, Bourrières? - perguntou ela.
Tinha de falar, tinha de contar essa busca, na presença de Bourrières, na sua casa do lugar do Templário. Não lhe tinham posto as algemas, mas os gendarmes vigiavam-no de perto. Ele parecia indiferente àquilo que acontecia à sua volta, àquelas fotografias que tiravam na cave, das argolas de ferro fixadas na parede ocre, daquele candeeiro projector colocado no chão junto de uma poltrona, daqueles vestígios de sangue no chão, daquela camisa enrolada, enfim, descoberta atrás de um monte de achas. Um gendarme tinha descoberto umas correias, uns cordéis impregnados de sangue, metidos entre pedras soltas do muro.
Quando Beaufort as apresentara a Bourrières, este parecera despertar de um sonho. Abanara a cabeça. É claro, dissera, que o tinha amarrado ali. Mostrara as argolas. Como queriam que o interrogasse de outro modo? Estendera as mãos para os gendarmes, depois para Beaufort: não punham eles próprios as algemas aos acusados? Sorria.
- Mas enfim, é a guerra que nos fazem, senhores, uma guerra já longa (suspirara), de vários séculos. Sabem que a Espanha foi conquistada em 711? Em 732 (abrira os braços), foi Poitiers, é claro, Charles Martel. Mas a cruzada só começou três séculos mais tarde, e em 1683 os turcos ainda estavam junto às muralhas de Vienne. Comprei esta casa (batia com o calcanhar) porque neste local se erguia a Torre do Templário. Há uma memória das pedras, das civilizações. Mas eu levei muito tempo a compreendê-lo! Estive tantos anos cego! Outros ainda o estão: Josserand, esse pobre François Desbordes, um louco de Deus. Mas ele oferecia-se aos estranguladores como uma ovelha, para nos fazer compreender que a guerra está aí. Está a ver, comissário (decidira dirigir-se a Beaufort como se continuasse com ele uma conversa iniciada muito tempo antes), um homem, uma civilização só existem resistindo àquilo que os quer destruir. A cristandade, a Europa só se desenvolveram porque recusaram ser islamizadas. Acha que eu estou decidido a aceitá-lo agora? Eu fui sempre um minoritário. Continuo a sê-lo. Vou sempre até ao fim.
- Por que matou Khaled?
- É a guerra, senhor.
Suspirara de novo, caminhara de cá para lá pela cave. Era tão alto que tinha de se baixar para não chocar contra a abóbada.
- Porque é que eles mataram o meu filho? - acrescentara numa voz calma.
- Os outros: Tahar, o seu amigo Desbordes, os anteriores, na floresta de Silvacane, nas florestas de Bourgogne...
Beaufort pusera-se a deambular ao lado dele. Os gendarmes seguiam-nos. O juiz de instrução mantinha-se um pouco afastado.
- O senhor escolhe os lugares - continuara Beaufort. - As abadias porque se trata das florestas da fé, de lugares de silêncio, de oração...
- Eu não escolhi nada - respondera Bourrières abanando a cabeça. - Eu matei Caim. Era um acto de justiça. Um acto de guerra. Um aviso. Por isso quis que o corpo fosse exposto no próprio centro do Bairro do Vulcão. Eles compreendem isso. Eles decapitam em público. Cortam as mãos, as orelhas diante da multidão. Devem saber aquilo que os espera. Não vamos deixar-nos degolar. Aqui (batia de novo com o calcanhar), é a torre do Templário. Eles só são fortes pela nossa cobardia. Eu conheço-os bem. Estive ao lado deles. Abri a porta de Yves a Caim. E o senhor queria (erguera o tom), imaginava que eu podia não reagir! Mas eu nunca abdiquei, senhor. Nunca!
Sentara-se na poltrona de tecido, diante da parede de pedra ocre onde estavam cravadas as argolas de ferro.
Parecia subitamente abatido pela fadiga e o sono, e semicerrava os olhos. Beaufort e o juiz tinham-se aproximado.
- Não reconhece os outros assassínios? - perguntou o juiz. Bourrières sobressaltou-se.
- Quais assassínios? Um acto de guerra, um acto de justiça! Um acto de defesa! Digo-lhe eu (levantou-se, estendendo o braço para Beaufort), um acto fundador. Não o nego, reivindico-o!
- Bem - disse o juiz.
E explicou em voz baixa a Beaufort que desejava que o exame psiquiátrico a que Bourrières ia ser submetido concluísse pela sua irresponsabilidade, por um diagnóstico de demência. O código penal evitava-lhe então o julgamento. Para quê julgar aquele homem se ele fosse reconhecido como louco?
- Sim, para quê? - repetiu Beaufort.
Não recusou a mão que Bourrières lhe estendia e não respondeu quando este lhe atirou:
- Estamos no mesmo campo, senhor, não pode fazer nada, isso está na cabeça, nos genes: o senhor nasceu com o som dos sinos nos ouvidos, e eles ressoam em si desde há dois milénios. Isso nunca o conseguirá apagar! Acredite em mim. Eu tentei.
- Louco? - disse Beaufort voltando-se para o juiz.
- É melhor que ele seja louco.
O juiz sorriu, agarrando Beaufort pelo braço.
- Ele deixará de ser louco se um dia houver mesmo guerra entre eles e nós, daqui por um ano ou daqui por cem anos. Os loucos, nesse momento, tornam-se heróis, precursores, não é verdade? Mas, de momento, eu desejo que o achem louco.
Amina Nekoub escutou o breve relato de Beaufort, que se limitou a indicar que Bourrières reconhecera a sua culpabilidade no assassínio de Khaled, mas que parecia não se lembrar dos seus outros crimes.
- Os seus? - interrogou Amina. - Ele matou os outros, tem a certeza disso?
De novo ela o tratava por você.
- Ele não sabe nada, já não sabe nada-, disse Beaufort baixando a cabeça. - Ele está louco.
Sentia-se só. Não conseguia estender os braços para agarrar a mão de Amina. Também ela ficava anquilosada, quase hostil.
- Que é que se passa? - conseguiu ele articular.
Evitou tratá-la por você ou por tu, e apercebeu-se, depois de feita a pergunta, dessa estratégia latente na escolha das palavras.
- Os loucos, são cómodos - lançou Amina.
Com as duas mãos, ela soltou os cabelos que tinham ficado presos do capuz. Tinha de se ir embora, acrescentou. Levantou-se. Não lhe estendeu a mão.
- Amina... - murmurou ele.
- Não acredito em nada disso - respondeu ela. E voltou-lhe as costas.
Era uma dor difusa que alastrava assim que ele acordava. Tentava conhecer-lhe a origem, localizar o ponto onde ela aparecia, mas mal se sentava na beira da cama e logo ela estava presente no ventre e começava a subir de um lado e do outro do peito. Beaufort sabia que no final ela o obrigaria a abrir a boca, a lançar a cabeça para trás, a respirar como se acabasse de correr e lhe faltasse o fôlego.
Sufocava, injuriava-se.
Imbecil!
Censurava-se. Pobre idiota, pobre tonto!
Era o fim. Voltava a escarnecer, apoiando-se na pia da cozinha, naquele minúsculo apartamento da Rua de Croulebarbe que voltava a ocupar depois de anos de ausência, reatando com o seu começo como se tivesse passado todo o tempo a patinhar, pobre imbecil que vivera vidas sucessivas para as destruir uma após outra e voltar a achar-se ali, com a sua chávena de café que nem sequer conseguia beber quente, porque não era capaz de esperar e retirava demasiado depressa a cafeteira do lume. Café requentado, é claro, por preguiça, fastio, lassidão.
Era o fim.
Mas não, a sua vida não tinha fim: um recomeço de idiotices! E faltava-lhe o fôlego, como se tivesse corrido.
De facto, ele corria, sim. Fugia desde havia mais de uma semana, desde que Amina Nekoub deixara a sua chávena de café cheia diante dele, naquela cervejaria da rotunda da ponte Mirabeau.
A princípio ficara ali sentado, muito tempo depois de ela se ir embora, a seguir o voo das gaivotas, o deslizar da espuma sobre a praia azul. Ao fim de uma hora ou duas, o céu estava encoberto.
A corrida contra as recordações começava: sim, já recordações, os seus primeiros encontros com Amina, o véu que ela retirava, o seu corpo que ele imaginava de encontro ao dele, no limiar do quarto de hotel.
Pobre imbecil.
Tinha dormido todas as noites sozinho naquele apartamento de duas assoalhadas gelado, onde o pó era tão espesso que formava uma espécie de crosta acastanhada sobre os móveis e os livros. A roupa da cama estava impregnada de humidade, os armários da cozinha cheiravam a bafio. As baratas ziguezagueavam ao pé das tubagens, na pia, entre as latas de conserva fora de prazo que ele deitava fora uma após outra.
Fora de prazo como ilusões que é preciso abandonar.
Casos terminados, encerrados.
O caso privado, com Amina Nekoub.
O de Bourrières e dos assassínios - quantos: sete, oito? Nem sequer já se queria lembrar.
Telefonara a Hélène Milner, que nem o deixara falar. Era horrível, aquilo que acontecia a Georges Bourrières. Um destino tão trágico! Ela pensava em Louis Althusser, o filósofo que estrangulara a mulher. Esta chamava-se Hélène, Hélène... repetia ela.
Mas Bourrières era pior, ainda mais trágico, se possível, porque a loucura que o atingia era a loucura da época. Segundo o que a imprensa relatava, falava como um homem de extrema direita, não é verdade? Beaufort tinha lido aquele programa presidencial que declarava querer combater os "bandos étnicos" repatriar três milhões de imigrantes, restabelecer a pena de morte? Milhares, milhões de pessoas aprovavam isso. Hélène ouvira-os aplaudir, aclamar esses projectos.
Bourrières não dizia outra coisa. Ele estava verdadeiramente louco? Isso era indefensável.
- Vivemos um momento de regressão, tudo se fecha, Jean-Louis. Precisamos de nos aferrar. Um acontecimento pessoal pode fazer-nos ceder. Bourrières, é isso: depois da morte do filho, deixou tudo. Ele foi sugado, engolido. Terrível.
Beaufort afastou o telefone do ouvido. Aquela voz angustiada vinha de tão longe. Fechou os olhos. As duas ramificações da dor juntavam-se-lhe na nuca, ligavam-se no fundo da nuca, juntavam-se no fundo da garganta; a pressão obrigava-o a respirar ruidosamente.
Hélène interrompeu-se: que tinha ele?
Ele conseguiu dizer que, quanto aAmina, naturalmente, Hélène e François não eram obrigados a mantê-la em sua casa. Ela já não estava em perigo. Mas, imediatamente, a dor tornou-se mais aguda. Hélène que decidisse, segundo o seu interesse, aquilo que achava útil para ela.
- Tu já não te encontras com ela? - perguntou Hélène, admirada.
- O caso está encerrado - respondeu ele.
Hélène recomeçou no mesmo tom exaltado, sem captar a ambiguidade da resposta de Beaufort.
Amina não estava convencida da culpabilidade de Bourrières.
- Ela é extraordinária, de uma virtude - é a palavra - quase inumana. Não, heróica, é isso que se deve dizer. Acredita que o irmão está metido em toda essa história. Para ela, ele não só organizou a tentativa do seu rapto, mas ela pensa que ele está na origem dos assassínios. Não falo disso com François, acrescentou Hélène, ele nunca se confessa, mas sinto-o perturbado, como se a conclusão que vocês deram ao caso não o satisfizesse. Tens a certeza, quanto a Bourrières, Jean-Louis, verdadeiramente a certeza?
- Bourrières confessou - replicou ele.
E, depois de algumas palavras rápidas para impedir Hélène de questioná-lo, desligou.
Que tinha Bourrières confessado?
Voltara a vê-lo, na Rua de Saint-Jacques, durante a busca organizada pelo juiz no apartamento do quarto andar.
Colocara-se junto à janela e quisera não olhar, não ouvir. Caso encerrado.
Observara a rua de cima, vira aquelas velhas e aqueles velhos que entravam na igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Quem choravam eles, por quem rezavam? Remorsos, mágoas, recordações, esquecimento, medo, esperança? Quantas palavras para dizer que o tempo fugia, que se não conseguira fazer nada, ou tão pouco, que mal deixava vestígios.
- O homem que eu interroguei, Khaled, reconheceu os factos, dizia Bourrières, caminhando para lá e para cá no salão-biblioteca. Ele merecia a pena de morte. Era meu dever de pai e de cidadão julgá-lo. Meu dever de intelectual, também.
Dirigira-se para as estantes, seguido pelos olhares dos inspectores que se tinham aproximado. Mas ele parecera não os ver, ou considerá-los como simples ouvintes a quem devia convencer.
Pegara num livro, folheara-o, dirigira-se a eles e ao juiz:
- Leia isto, senhor juiz, leia o programa dos grupos armados islâmicos, leia o que eles desejam reservar-nos. A morte, senhor juiz, a destruição! Quem é culpado? Eu que luto, que torno a minha justiça expeditiva, de tempo de guerra, ou o senhor que contemporiza, que me manda examinar por peritos psiquiatras que ignoram tudo do problema? O problema não é individual. É uma questão de civilização, senhor juiz. Que acha disto, senhor Beaufort?
O comissário não respondera. Felizmente, Bourrières continuara o seu solilóquio, sem dissimular nada da sua premeditação, dizendo - Beaufort ouvira-o, não podia pretender o contrário - que tentara matar Tahar, mas que esperara demasiado tempo. Queria que Tahar o levasse até Khaled, e isso conseguira-o. Mas alguém - "Não lhe quero mal por isso" - precisara Bourrières num aparte - executara Tahar antes que ele próprio conseguisse agir.
- Num certo sentido, isso confortou-me. Eu não sou o único.
- Procura explicar-nos que não matou, Tahar?
- Não tive tempo, senhor juiz.
Beaufort abstivera-se de olhar para o juiz. Se havia ali um suplemento de informação, ele pediria para que o dispensassem. Milner assumiria a continuação.
Abandonara o apartamento de Bourrières antes do fim da busca. A chuva varria a Rua de Saint-Jacque engarrafada e, para se proteger das bátegas, decidira caminhar ao longo das fachadas, ao abrigo dos beirais, mas, quando meteu pela Rua dos Fossés-Saint-Jacques, à direita, recebera a chuvada em pleno, sem poder abrigar-se. Uma grande paliçada verde obrigara-o a avançar pelo pavimento, para o lado esquerdo da rua onde nada permitia evitar a chuva. .
Entretanto, parara, fascinado pelos gestos lentos de dois operários que, acocorados no meio da rua, se baloiçavam, oscilando nas pontas dos pés como dois bailarinos que acompanhassem a melopeia de uma música sagrada. Sopesaram lajes, assentava-nas debruçando-se para a frente, na areia espalhada no chão e enegrecida pela chuva. Apesar dos longos oleados amarelos que os envolviam, avançavam de cócoras, com uma flexibilidade espantosa, com a chuva a escorrer-lhe dos chapéus de oleado de abas largas, igualmente amarelos.
Sem parar de trabalhar, um daqueles homens olhara o comissário. Era impossível determinar a sua idade. Tinha o olhar ausente, o rosto cavado pela fadiga ou - era o que Beaufort tinha pensado, e essa ideia perturbara-o - pelo desespero, a aceitação sem revolta do destino, da ordem das coisas. Mektoub, Inch' Allah. Era um magrebino. Tinha reparado em Beaufort ou olhava para lá daquele desconhecido à chuva? Erguera-se um pouco para medir o arco de pedras que tinha terminado, e avançara dois passos bamboleando-se para iniciar um novo segmento.
A ruela, fechada ao trânsito, estava silenciosa. Parecia um estreito vale onde se lançavam o vento, a chuva, dando de repente a Beaufort a sensação de que nada mudava, de que por mais que o tempo passasse, cobrisse as vidas, tudo não era mais do que uma ilusão que deixava o homem sozinho, acocorado, repetindo infinitamente os gestos de outrora debaixo da chuva, entre paredes silenciosas.
Fora forçado a atravessar de novo, passando entre as paliçadas, encontrando-se de súbito diante daquela montra de livraria de que se recordava.
Havia alguns anos, ainda antes de morar na Rua de Croulebarbe, quando era apenas um estudante que frequentava o curso da faculdade de direito, na Praça do Panthéon, fora muitas vezes almoçar a um restaurante situado no fundo de um pátio que dava para a Praça da Estrapade, e fora atraído pelos livros expostos naquela livraria do Livre Pensamento. Os títulos eram sempre provocantes. Denunciavam a conspiração dos padres, a conjura dos integrismos, a mistificação das religiões ou a impostura da fé. Afirmavam poder demonstrar a não existência de Deus.
Nada mudara. Nem os gestos de um homem no trabalho, acocorado, assentando pedras. Nem o livre pensamento.
Beaufort dera a volta à praça, brincando com a ideia de que, para escapar à escravidão da vida, era preciso escolher outra servidão: a cegueira, a loucura, a fé. Por um instante, invejara Bourrières, Hocine Nekoub, talvez também aquele homem acocorado que aceitava -Mektoub, Inch Allah - a sua sorte, e cujo pensamento, cuja vida só se emancipavam pela crença.
Que é que eu penso? Que é que eu digo?
Sentiu vergonha daquele jogo; recompôs-se.
Na Rua Clotaire, que desce suavemente para a Praça do Panthéon, comprou os jornais da manhã.
Beaufort olhava as fotografias de Georges Bourrières tiradas à saída do palácio de justiça de Clermont. Ocupavam o centro da primeira página de todos os diários. A do L'Indépendance mostrava-o levantando o braço, de mão aberta, como um cavaleiro vitorioso depois de um torneio. Sorria, radiante. Os polícias que o rodeavam, mais baixos do que ele, apertados nos uniformes, pareciam escudeiros admirativos. Não ousaram pôr-lhe as algemas, pensou Beaufort, e, apesar da compaixão que sentia pelo sociólogo, teve novamente uma sensação de constrangimento. Era como se os crimes, nem que tivesse havido apenas um - esta reserva, que fazia a seu pesar, irritava-o -, tivessem sido esquecidos, ou, pior, legitimados e aceites. Os títulos dos jornais revoltavam-no: "Pai vingador", "Professor justiceiro", "Loucura de um homem ferido", etc. Marion Chauvel intitulara o seu artigo: "A demência de um cruzado do nosso tempo" e, sem sequer ler aquilo que ela escrevera, Beaufort enfureceu-se, remoendo injúrias. Que estúpida pretensiosa! Que é que ela sabia?
Quis sair do portal onde se tinha refugiado, a alguns passos do vendedor de jornais da Rua Clotaire, mas a chuva fustigava a rua e o vento projectava-a contra ele, molhando os jornais, desfazendo aquele papel de má qualidade que, rasgando-se, formava debaixo dos dedos uma massa negra que ele enrolava em bola, lançando-a para a valeta, recuando para evitar ser molhado pelas rajadas de vento geladas.
Conaça! A grosseria, a violência que sentia subir em si surpreendia-o. Mas abandonava-se a ela. Lera os primeiros parágrafos do artigo: Marion Chauvel descrevia Bourrieres como um intelectual fanático, um fascista que agarrava o pretexto da "desgraça acidental" que o atingira para saciar a sua paixão racista, essa loucura xenófoba que não era uma doença mental, mas uma ideologia louca, que não competia ao asilo psiquiátrico, mas aos tribunais; era preciso julgá-la, condená-la como crime contra a humanidade. Sob pretexto, acrescentava ela, de que Adolf Hitler sofrera na juventude o choque da morte da mãe, e depois não conseguira desenvolver-se sexualmente, mas tinha pelo contrário sido escravo das suas frustrações, dever-se-ia absolvê-lo, aplicar-lhe as disposições do Código Penal que previam o internamento, a não comparência diante do tribunal? Ela indignava-se antecipadamente por que alguém pudesse encarar, no caso de Georges Bourrieres, "intelectual assassino", portanto duplamente criminoso, a invocação da loucura, da irresponsabilidade, a fim de subtraí-lo à justiça. Quanto ao seu passado ao lado do povo argelino,, não desculpava nada. Pelo contrário! Mussolini tinha sido socialista na sua juventude. Staline, um revolucionário. Um e outro tinham acabado na pele de ditadores criminosos. À sua escala medíocre, Bourrieres, antigo intelectual de esquerda, tinha seguido a mesma trajectória. "É o assassino de jovens sem defesa, o torcionário, o ideólogo de uma cruzada, que deve ser julgado. Bourrieres é um símbolo e um perigo!"
Detestava, desprezava o tom do artigo de Marion Chauvel, a sua segurança, a sua desumanidade. Bourrieres já não existia. Ele deixava de ser uma pessoa para se tornar o nome de uma ideologia. Na realidade, Marion Chauvel era tão fanática como Bourrieres, tão louca como ele. Mas ela não passava ao acto. Bourrieres levara a sua loucura até ao fim, onde a prudência acaba, onde a hipocrisia e a habilidade deixam de ter uso. Quando estamos inteiramente revoltados por aquilo que imaginamos ser a verdade. Uma verdade que nos constrange. Que guia a mão. Que cega, porque estamos persuadidos de sermos os únicos a vê-la. Quaisquer que fossem as causas, Bourrieres era um místico. Um criminoso místico. Marion Chauvel não era mais que um pequeno tabelião pronunciando sentenças de inquisidor. Cretina!
Dobrou o jornal com uma sensação de nojo. Era então isso, o que eles iam reter, aqueles que não tinha ouvido a voz de Georges Bourrières?
Censurava-se também pela violência e a vulgaridade da sua reacção, essa ausência de autodomínio que é sempre sinal de um mal-estar, de uma mentira que pressentimos sem ousar confessá-la.
De repente, quando ia meter o jornal entre a parede e a porta e deixá-lo ali, notou a fotografia de Amina, à esquerda da última página do L'Indépendance. Estava sentada, com a cabeça um pouco inclinada, via-se uma sala de restaurante em segundo plano e, ao fundo, em contraluz, uma decoração representando palmeiras e um camelo que se recortava no alto de uma duna.
A dor que atenazava Beaufort desde que se levantara - aquela rigidez dos membros, aquele peso no peito e no ventre - tornou-se mais aguda. Avançou para o passeio para que o vento e a chuva lhe fustigassem o rosto. Um pouco mais calmo, voltou para o portal e, desdobrando o jornal, estendendo a última página na parede, descobriu, diante da fotografia de Amina, a de um jovem de cabelos frisados, de lábios grossos e nariz um pouco achatado, com o pescoço forte apertado numa camisa de colarinho abotoado. Entre as duas fotografias, a manchete indicava que Marion Chauvel se encontrara com dois jovens franceses, Amina Nekoub e Kamoun, descendentes da imigração muçulmana, e que recolhera os seus testemunhos.
Cretina. Puta!
Beaufort esticou o jornal, alisando-o para poder ler.
A pretexto de um estudo, ela procurara saciar a sua curiosidade, talvez vingar-se. Louca que se preocupava pouco com os riscos que podia fazer correr àqueles a quem apresentava em algumas linhas como muçulmanos determinados, decididos a oporem-se ao fanatismo!
Percorreu rapidamente o artigo uma primeira vez. Mas era a fotografia de Amina que o atraía. Tinha um rosto hostil, os cabelos escondiam-lhe uma parte da cara. Deviam tê-la fotografado sem ela saber, a menos que ela tivesse escolhido deliberadamente não olhar para a objectiva. Respondera às perguntas de Marion com frases curtas, banais, dizendo que era francesa e tolerante. Não se pronunciava sobre o comportamento das muçulmanas que optavam por usar o véu, pois defendia a liberdade individual.
Adivinhava-se, ao ler os comentários de Marion Chauvel, a decepção da jornalista. Desejava mais. Então, contava a tentativa de rapto de Amina Nekoub. Assegurava que esta se sentia condenada à morte. Que lhe tinham imposto o véu à pancada. Isso não era mentira, mas Amina abstivera-se de lho dizer. Então aquela garça da Marion Chauvel misturara habilmente - porque ela era, como muitas vezes repetia, uma "verdadeira profissional" - aquilo que sabia àquilo que a própria Amina declarara.
Era isso que eles iam fixar, aqueles que nunca tinham visto Amina, aqueles que nem sequer imaginavam como ela podia levantar os cabelos num gesto desajeitado de menina, de repente.
A entrevista de Kamoun era mais longa, as digressões de Marion Chauvel, mais sucintas. Ele repetia que, como intelectual francês de origem argelina, se sentia filho de duas tradições que, longe de serem contraditórias, eram complementares. O caso Bourrières era apenas um caso corrente, dizia. O integrismo era pelo contrário um movimento histórico perigoso, que ele combatia. Mas o mundo muçulmano condenava também o fanatismo. Séculos antes de Voltaire, o poeta Abou-Ala ai Maari, nascido na cidade de Ma'arat no século X, escrevera:
Os habitantes da terra dividem-se em dois: Aqueles que têm cérebro mas não têm religião, E os que têm religião mas não têm cérebro.
Kamoun reivindicava essa herança. Cada filho devia escolher no seu património. Os degoladores, ou os homens. Abou-Ala ai Maari morrera em 1057. Vinte anos mais tarde, os cruzados destruíam a sua cidade, passavam os habitantes à espada, e depois, a acreditar no cronista cristão Raoul de Caen, "coziam os pagãos adultos nas caldeiras, metiam as crianças em espetos e devoravam-nas grelhadas".
De quem queríamos nós ser descendentes? Do cruzado ou do poeta? Do inquisidor ou de Voltaire? Dos integristas ou de Abou- Ala ai Maari?
Kamoun lançava um aviso, citando uma vez mais o poeta de Ma'arat:
O destino destrói-nos como se fôssemos de vidro
E os nossos destroços nunca mais voltam a soldar-se.
Beaufort rasgou lentamente a última página do L'Indépendance, dobrou-a e meteu-a no bolso do impermeável, depois dirigiu-se para a Praça do Panthéon, fustigada pela bátega.
Não posso mais. Não posso Mais!
Beaufort deixou cair a cabeça para o peito, como aqueles acusados que, depois de terem confessado, se fecham no mutismo, não ousam olhar à sua volta, e é preciso segurar-lhes na mão para que assinem o seu depoimento.
-Não posso mais - murmurou de novo Beaufort.
Ouvia-se a si próprio pronunciar estas palavras. Via-se. Estava de pé, com as palmas das mãos apoiadas de um lado e do outro da janela, na pequena sala que lhe servia de gabinete. Devia ter levantado o estore, contemplar a Rua de Croulebarbe, mas, bruscamente, sentira vómitos. Aquela náusea não o surpreendia. Havia já alguns dias que sentia vertigens, como se a dor que o invadia desde que acordava tivesse passado a uma nova etapa. Tinha dores e, além disso, sentia-se desequilibrado, forçado a arrastar os pés, a roçar o ombro contra a divisória do estreito corredor que conduzia à cozinha. Entretanto, não se iludia quanto ao seu comportamento. Suportava, mas representava como um actor. Desdobrava-se. Sofria e interpretava o papel do homem que não pode mais, que renuncia, que se fecha, a quem a vida - a sua vida, a vida do mundo - aborrece. Não era comédia, e, entretanto, ele representava; e aquela lucidez era uma razão suplementar para o seu abatimento. Quem era ele? O que fazia? Que esperava? Estava deprimido e simulava. Não esperava nada e espreitava o acontecimento que o tiraria dali.
Depois, nessa manhã, iniciava uma nova cena cujas primeiras palavras já havia sussurrado: "Não posso mais."
Não podia, com efeito, puxar o estore. Ficou assim alguns minutos, depois foi tomado por uma necessidade febril de actividade, ao ponto de esquecer que tinha dores, com as costas bloqueadas à altura das ancas, e que as pernas estavam tão rígidas que lhe dava vontade de gritar.
Deslocou no entanto o divã que lhe servia de cama até ao extremo do quarto, ao fundo do corredor à esquerda. Ali estaria longe do rumor da rua. Aquele quarto, onde o divã entrara com dificuldade, dava para um saguão escuro nunca iluminado pelo sol. Ia dormir ali. Nunca mais dali sairia. Já não tinha nada a fazer lá fora, nem na outra sala. Estaria mais próximo da cozinha e poderia redigir o relatório que lhe fora encomendado pelo Ministério do Interior, ali naquela mesinha encostada ao rebordo da janela. Apercebendo-se de que caminhava normalmente -- mas, uma vez que tomava consciência disso, a dor invadia-o, paralisando-o, e tinha de se apoiar à divisória, soltando um grito - reuniu os dossiers, pegou numa resma de papel, na máquina de escrever, e instalou tudo sobre aquela mesa. O divã fazia de cadeira. Meteu uma folha na máquina, escreveu a data, abriu o dossier onde estavam reunidas as informações sobre cada crime, a identidade da vítima, o lugar da descoberta do corpo, o estado das feridas, o nome dos suspeitos interrogados, os relatórios dos guardas. Mas as frases eclipsavam-se. Fechou os olhos.
-Não consigo - disse para si mesmo.
Havia quase uma semana que tentava começar aquele relatório, fazer o balanço de vários meses de investigação, terminar verdadeiramente aquele caso.
Quem, aliás, a não ser Beaufort, quando tinham decorrido apenas alguns dias, sabia quem era Bourrières? Jean-Marie Borelli dedicara-lhe algumas frases numa das suas crónicas na Rádio Première, mas tratava-se apenas de incidentes destinados a ilustrar uma afirmação geral sobre a necessidade da repressão. "Sem querer desculpar os crimes de um Georges Bourrières, esse calmo professor transformado em assassino para vingar o assassínio do filho, dissera ele, saibamos que tais comportamentos, decerto inaceitáveis, mas compreensíveis, não existiriam se a justiça se mostrasse impiedosa, ousando exercer-se energicamente, ousando dizer que efectivamente, neste país, a atitude de uma parte da população de origem imigrada é um problema, mas que a lei deve ser respeitada, nem que por isso tenhamos que sofrer as críticas de alguns profissionais da boa consciência e do anti-racismo. Que lhes matem os filhos, e veremos quais serão as suas reacções!"
Beaufort estivera tentado a quebrar o aparelho de rádio. Agarrara-o com as duas mãos, levantara-o. Mas era apenas um actor a mimar a violência. Voltara pois a colocar o aparelho na prateleira superior de um armário. Jurara que já nada tinha a ver com essa gente. E, agora que estava retirado naquele pequeno quarto das traseiras, obscuro, apenas com um candeeiro de cabeceira a iluminar-lhe a mesa, pensava que, tal como estivera tentado depois da morte da filha, e várias vezes desde então, deveria ter-se retirado, viver fora do mundo, numa cela. Monge ou condenado?
Não posso mais.
Era também isso, a origem da sua dor, das suas vertigens: pensamentos em torvelinho, sem eixo, desligados, demasiado livres, que o arrastavam para um universo privado de referências onde se perdia. Sentia-se nauseado.
A menos que - conhecia-se o bastante para considerar essa possibilidade - aquele desejo de afastamento, aquele sofrimento, aquele encerramento de agora, longe da rua, sem informações, com a vontade de não atender o telefone, de deixar apenas funcionar o atendedor, fosse apenas uma maneira de não confessar a si próprio que a investigação não estava terminada. Mas essa intuição - de que Bourrières falara verdade ao reconhecer apenas o assassínio de Khaled, explicando que se atrasara demasiado, para Tahar, de que lhe tinham roubado a sua vítima, que outros o haviam morto antes dele -, o comissário recusava-a ainda.
Ele firmava-se. Por isso lhe doíam as costas, e tinha ruídos na cabeça.
Precisava de abafar a outra voz, aquela que lhe murmurava que Bourrières não passava talvez de um logro, uma solução parcial, que todas as outras equações estavam por resolver: o crime da floresta de Silvacane e os das florestas e clareiras do polígono sagrado entre Vézelay, Cíteaux e Clairvaux, bem como os assassínios do padre Desbordes e de Tahar.
Eis o que causava náusea e provocava as suas vertigens. Saber que nada, respeitante a esses crimes, estava resolvido, e aceitar entretanto que lhe dissessem que o caso estava encerrado, deixar dizê-lo, repeti-lo ele próprio, tentar convencer-se, acusar Bourrières de todos os crimes, pois que ele confessara um e era louco, irresponsável.
Iam encerrá-lo numa cela talvez maior que o quarto de Beaufort. Ele seria feliz aí porque estaria sossegado, esquecido na sua loucura. Durante a busca ao seu domicílio, na Rua de Saint-Jacques, ele dissera num tom grave que queria escrever uma história comparada das religiões cristã e muçulmana. Mostrara diversas estantes, precisando que ia traçar a lista dos livros que eram necessários. Mas, acrescentara abanando a cabeça, já conhecia a sua hipótese de partida, que o estudo confirmaria, estava convencido disso: o cristianismo era uma religião de liberdade que permitia o desenvolvimento do indivíduo, assegurando a salvação pessoal; o Islão, pelo contrário, pregava a submissão, o fatalismo, e conduzia portanto à violência e à barbárie. Era nisso que ele ia empregar os seus dias e a suas noites, se o internassem.
Devia introduzir a dúvida, questionar, continuar a investigação isolando o caso Bourrières e portanto a morte de Khaled, a única que estava explicada?
Beaufort hesitava. Apetecia-lhe encolher os ombros, renunciar, aceitar a solução cómoda: Bourrières único culpado, um criminoso que se podia escamotear para que a calma fosse restabelecida, que a comédia continuasse. Viram? Ele é louco! Não pensem mais nisso.
Beaufort não conseguia.
Ficava portanto em casa, prostrado, voltando lentamente as folhas do dossier, confrontando as datas, mau grado seu. Tinham descoberto o primeiro corpo na floresta de Silvacane apenas dois dias depois do assassínio de Yves Bourrieres em Paris, na Rua das Maraíchers. Seria possível que Georges Bourrieres tivesse já posto em prática a sua vingança? Beaufort escarnecia, murmurava: "Idiotices, idiotices!" Fechava o dossier, estava farto. Depois voltava a abri-lo. O padre Desbordes, o velho camarada de Bourrieres, poderia ter sido sua vítima? A acreditar em Bourrieres quando explicava o seu crime e dava as razões que o haviam levado a matar Khaled, devia-se confiar nele quando se apiedava do destino do padre, homem de absoluto, segundo as suas palavras, louco de Deus, ovelha que se oferecia ao martírio.
Não havia solução geral, Beaufort persuadia-se disso dia após dia sem querer ainda convencer-se.
Não quero saber. Não posso mais. Para quê perturbar ainda esta bela unanimidade. Os jornalistas, o ministério, toda a gente se tranquilizava. O louco matara porque lhe haviam morto o filho. Essa loucura tinha a sua nobreza. Era cómoda, não perturbava a ordem.
Toda a gente se iludia? O ministro não convocara Beaufort. Intuitivo, prudente, deixava falar mas continuava certamente dubitativo, demasiado avisado para acreditar só na culpabilidade de Bourrieres.
A esta ideia, Beaufort enfurecera-se sozinho no quarto. Que encarregassem outro de continuar! Milner. Muito bem, Milner!
Lembrara-se então das dúvidas do inspector e das de Amina Nekoub.
Houvera também a chamada do Dr. Rimberg. "Telefone-me, dizia o advogado. É urgente." Beaufort apagara as mensagens do gravador, mas a sua memória era fiel.
Não quero saber, repetia enquanto marcava o número de Rimberg.
Os irmãos de Bourrieres, explicou este último, constituíam uma tribo, um clã. Um estava no Conselho de Estado; outro, era delegado para o Armamento, politécnico; um terceiro, conselheiro diplomático. Pessoas razoáveis, ponderadas. Georges Bourrieres era a ovelha negra, o extravagante: escola normal superior, agregado de filosofia, sociólogo, assistente no FLN (1), processo, etc, a vergonha da família. Mas o clã nunca o rejeitara.
- É isso, um clã, meu caro Beaufort! Além disso, todos eles adoravam o sobrinho, Yves. Um rapaz excepcional, parece, matemático de génio. No fundo, compreendem o irmão. Em suma, pediram-me que o defendesse. Você conhece o dossier, Beaufort. Eu tenho estima por si. Acompanhei o caso Ellner. Mas no presente caso, realmente, aqui entre nós, como quer você responsabilizar Bourrières pelo crime da floresta de Silvacane? Sabe que Bourrières esteve nessa semana em Montreal? Regressou dois dias depois da morte do filho. Tenho o seu emprego do tempo hora por hora. Os irmãos não o deixaram até ao funeral. Acha que ele podia ao mesmo tempo rondar pela floresta de Silvacane com um cadáver nos braços?
Beaufort não respondeu.
Mas talvez, continuou Rimberg, imaginassem que os Bourrières, os quatro irmãos, eram cúmplices, constituíam um bando criminoso, uma ordem dos Templários, os quatro primeiros cavaleiros da nova cruzada?
- Sejamos sérios, Beaufort!
Tudo isto, acrescentou o advogado, era entre eles os dois, "para não morrer idiota, Beaufort, apenas por isso". Porque no fundo, do ponto de vista da defesa, quem ia alegar demência, irresponsabilidade, etc, alguns crimes a mais podiam constituir um argumento positivo. Rimberg reflectia sobre isso. Loucura caracterizada, neste caso, mas premeditação elaborada, portanto risco de reincidência, cura improvável, encerramento mais longo, era preciso pesar tudo isso, ele ia estudar a coisa sob o ângulo do interesse do seu cliente, consultar psiquiatras.
- Você é que decide, Beaufort. Eu queria apenas falar disto consigo, porque todo este caso não é comum, pois não? E nem você nem eu queremos deitar fogo à planície.
(1) Frente de Libertação Nacional.
Beaufort conhecia a expressão? Mao utilizara-a, outrora, quando se acreditava nas virtudes do incêndio.
- Hoje nós sabemos, não é verdade?
O advogado ficara longos momentos em silêncio, e Beaufort não desligara.
- Não imagina, Beaufort, porque foi que eu abandonei a defesa de Hocine Nekoub? Esse jovem simpático não queria nada com um advogado judeu. Receio que o fogo já esteja na planície...
Novo silêncio.
- Até breve, Beaufort.
Tinha a cabeça tão pesada que deixou cair a testa em cima da pequena mesa. Mas então, e embora tivesse esmagado as orelhas com as palmas das mãos, o ruído que lhe perfurava as têmporas tornara-se demasiado agudo, demasiado insuportável, e teve von- tade de gritar como um actor que o faz em excesso.
Estava a sonhar?
Beaufort soergueu-se num cotovelo. A dor já lá estava, deslizando ao longo das coxas para os calcanhares. Debruçou-se de maneira a ver, sobre a mesinha, o despertador, e reconstituiu lentamente o número que estava a ler, soletrando mentalmente cada um dos algarismos vermelhos: 0325. Noite. O longo miar de um gato rasgou a escuridão. Mesmo naquele saguão sombrio, a vida desdobrava-se, saltava, chocando contra as fachadas, amplificada, quebrando o sono. Quis voltar a adormecer, mas a queimadura que lhe retesava os músculos fazia-o sofrer aos sacões, como uma pulsação afinada pelo miar do gato, que recomeçara. Depois, de repente, aquela vibração aguda que o trespassava, vinda da outra sala: a campainha do telefone, dois toques, seguidos do som do gravador.
Beaufort saltou como se a dor não fosse mais que um pesadelo que se dissipava. Ouviu a voz de Amina, angustiada, esmagada:
- Vem, Jean-Louis, vem. Preciso que venhas.
Ele ficou paralisado por instantes, atendeu, tarde de mais. Começou a vestir-se enquanto pensava que não se tinha barbeado havia vários dias, e que ela acabava de o tratar por tu. Ao vestir o casaco pendurado nas costas de uma cadeira, fez cair a arma de serviço e o choque surdo do revólver no soalho transtornou-o. Tinha deixado Amina sem defesa. Sabia-a ameaçada. Tinha-a abandonado como um engodo para que os assassinos se desmascarassem. Agia sempre assim, recusando-se a tomar consciência das decisões que adoptava por instinto. Na realidade, esperava isso, tinha esperança nisso. Representara a comédia para não confessar a si próprio que estava à espera.
Desceu a escada a correr, com a arma na mão. Que pulha era!
Correu até ao carro sem sentir o menor incómodo, mesmo com uma ligeira raiva.
Enquanto punha o carro em andamento, colocou o farol no tejadilho, depois acelerou, alcançando os cais do Sena, com o vidro descido. O ar frio infiltrou-se ruidosamente, gelando-lhe o rosto, impedindo-o de pensar. Tinha impressão de lutar contra um obstáculo: o vento, o espaço, aquela noite que ele tinha de atravessar custasse o que custasse. Penetrava-a de frente. O clarão azul do farol iluminava a capota e era como se ele o perseguisse, dando um breve toque de sirene quando passava um semáforo vermelho, sacudido pelas lombas do pavimento quando tomava pela rampa que, das margens, levava ao cais Branly, depois metendo pelo terreno deserto que permitia evitar os semáforos da ponte de Lena. Estava já debaixo do metropolitano aéreo, naquela zona mais escura na orla do XV Bairro, e, depois de passar diante da cervejaria da rotunda da ponte Mirabeau, proa sombria, onde Amina se levantara deixando a chávena de café cheia, estacionou em cima do passeio, diante do prédio da Rua Javel.
Tocou à porta dos Milner, mas, até que lhes responderam, imaginou de repente que Amina podia tê-lo chamado de outro lado, refém que escapa por um instante à vigilância dos homens que a ameaçavam. Mas sentia demasiada determinação em si para duvidar por muito tempo. Isso não era possível; ela estava ali.
- Beaufort! - gritou várias vezes para o comunicador.
A porta abriu-se.
Tão lento, o elevador! Nove andares: o tempo de imaginar que ela era um daqueles corpos que ele vira e tocara, com os braços rígidos, o peito marcado, o sangue ao longo das feridas enegrecido como uma terra grumosa agarrada à pele.
- Onde está ela? - perguntou afastando Hélène Milner.
Amina Nekoub formava apenas uma bola enrolada num cobertor. Tinha os braços e as pernas apertados contra o peito. Tremia. Não levantou a cabeça quando Beaufort se aproximou, lhe pousou a mão nos cabelos e começou a acariciá-los, murmurando que era preciso que ela lhe explicasse. Mas ela limitou-se a repetir que eles o tinham morto, tinham dito que agora era a vez dela morrer, que não podia escapar ao castigo, tinham lançado uma fatwa contra ela, e era uma grande honra que lhe faziam, visto que ela não era nada, menos que os excrementos de um cão, menos que um porco, mas tinha de pagar e eles iriam portanto acoçá-la por todo o lado. Teria de viver com o seu medo. Seria como uma morta ainda antes que a faca lhe cortasse a garganta. Ela ia morrer todos os dias, cem vezes, mil vezes, a cada ruído, a cada olhar. Ninguém poderia salvá-la. Seria abandonada por todos, sozinha, e um dia viria o justiceiro, como vinha sempre, e atingiria também Salman Rushdie e todos aqueles que blasfemavam, que violavam a lei.
Eles tinham dito isso.
Amina puxou o cobertor para a cabeça, ocultando os cabelos, escondendo-se, repetindo: "Eles mataram-no, é verdade, tenho a certeza."
Beaufort voltou-se para Hélène Milner, que começou a explicar.
Tinham telefonado. Eram três e dez. Ela olhara o relógio. Receara que lhe anunciassem alguma má notícia para François. Beaufort sabia como ela estava angustiada, como detestava o trabalho dele, aquele lodo ao lado do qual ele se movia. Mas o homem, uma voz de estrangeiro, roca, queria falar com Amina Nekoub. A princípio Hélène recusara, mas ele invocara a família de Amina, a doença da mãe, a urgência. Então acordara Amina e escutara, mas o homem falava em árabe. Tinha um tom imperioso e alegre. Depois Amina agarrara a cabeça com as duas mãos, deixando cair o telefone, e Hélène questionara o estrangeiro. Ele dissera, destacando cada palavra:
- Nós fizemos justiça. Aqueles que escolheram ser ímpios não devem viver. Nós aplicamos-lhes a lei.
E desligara.
Amina repetira que era preciso chamar Beaufort, depressa, para que viesse, e só depois de ter deixado a mensagem na Rua de Croulebarbe ela explicara a Hélène que o homem lhe anunciara a execução do traidor, Kamoun, aquele que rejeitava e caluniava a religião, que decidira tornar-se ímpio. O seu corpo ia falar a Amina, a todos os outros. E o medo do castigo espalhar-se-ia como a nuvem.
- Kamoun, o meu estudante... - dissera Hélène. Enquanto marcava o número do telefone de Kamoun, Beaufort revia aquele rosto de lábios grossos, lembrava-se daquela fotografia, na última página do L'Indépendance, diante da de Amina. Na Rua Clotaire, Beaufort tivera nesse dia a intuição de que aquele artigo punha Amina em perigo. Não pensara a princípio em Kamoun, mas como podiam os fanáticos perdoar-lhe que citasse o poeta Abou-Ala ai Maari, que escrevia no século X i, quando ia desencadear-se na cidade de Ma'arat, o furor canibal dos cruzados:
Os habitantes desta terra dividem-se em dois: Aqueles que têm cérebro mas não têm religião, E aqueles que têm religião mas não têm cérebro.
Ao desligar o telefone, depois de ter deixado tocar por muito tempo, Beaufort injuriou em voz baixa Marion Chauvel.
Hélène procurava outro número de telefone onde encontrar Kamoun. Via-o todos os meses, dizia. Ele seguia o seu seminário de história da ideologia totalitária. Brilhante, corajoso, só suscitava simpatia e, quase todas as tardes, dava aulas a jovens desfavorecidos, imigrantes.
Beaufort desligou quase imediatamente o telefone. Ninguém, murmurou. Depois chamou a polícia, dando-se a conhecer, dando o endereço de Kamoun, Rua Vercingétorix, baixando a voz para indicar que se tratava talvez de um crime, que era preciso forçar a porta do apartamento, que estaria no local dentro de alguns minutos, que deixassem tudo como estava, e esperassem. Repetia: "Comissário Beaufort, encarregado de missão junto do ministro."
Colocou as duas mãos nos ombros de Amina, mas esta não se mexia. Preparava-se para lhe dizer que se tratava talvez apenas de uma tentativa de intimidação, de uma manobra destinada a assustá-la. A persegui-la, fazê-la ceder, mas limitou-se a apoiar as palmas das mãos para convencê-la de que a protegeria, de que não ficaria abandonada, sozinha.
Talvez esperasse que ela se levantasse, se colasse a ele, como no limiar do quarto de hotel, mas ela continuou imóvel, e ele disse:
- Não saiam, não abram a porta.
No momento em que entrava no elevador, Hélène murmurou:
- Tu achas...
Ele fechou os olhos.
Era Kamoun quem tinha dito, citando uma vez mais Abou-ala ai Maari:
O destino quebra-nos como se fôssemos de vidro
E os nossos destroços não voltam a colar-se nunca mais.
0440.
Algarismos verdes no painel de bordo do automóvel.
Decorrera apenas pouco mais de uma hora desde que Beaufort ouvira aquele miado de gato no poço escuro do saguão. Era a sua avó que lhe contava que os gatos são as almas dos mortos? Quando ia com ela ao cemitério de Mauriès, de onde se viam as colinas arborizadas, os meandros do rio, e onde, mais tarde, ele enterraria a sua filha, ela dizia: "Olha, Jean-Louis, olha como eles estão felizes. Estão à nossa espera, espreitam-nos, querem saber se vimos visitá-los." Tirava do saco uma bola de papel que abria e, antes que o tivesse colocado no chão, os gatos já tinham saltado dos muros de pedra ocre - vira pedras da mesma cor na cave da casa de Bourrières, no lugar chamado Torre do Templário.
Outros gatos insinuavam-se por entre os túmulos. "Estão felizes, estás a ver, sabem que pensamos neles, vão dormir em paz."
Quando a avó morrera - Beaufort tinha então apenas sete anos - e ele entrara no quarto onde ela estava deitada, vestida de negro, com a cabeça metida numa faixa branca, as grandes mãos de dedos torcidos, as enormes falanges apertando um rosário e uma grande cruz dourada, vira um gato sair de baixo da cama, atravessar a sala e saltar pela janela para os tufos de lilases.
Beaufort voltara muitas vezes sozinho ao cemitério. Os gatos sabiam que ele depositava sobre aquela laje de granito, debaixo da qual haviam escondido a avó, um saquinho de papel pardo.
Assim que o viam empurrar o portão, aproximavam-se a miar, acompanhando-o pela álea de gravilha arruivada, até ao túmulo.
Kamoun estava morto. Beaufort estava persuadido disso e rolava lentamente pela Rua Vercingétorix.
Era inútil apressar-se, os mortos sabem esperar.
Não imaginava o corpo. Sempre que, durante o trajecto entre a Rua de Javel e a Rua Vercingétorix, uma visão, uma hipótese precisas lhe ocorreram, ele afastara-as. Devia permanecer vazio para se encher dos factos, daquilo que ia ver, tocar. Era preciso receber o choque sem defesa, não confrontar a realidade com aquilo que já se pensara sobre ela. Como um velho acostumado às sinuosidádes da memória, fizera portanto mentalmente esse desvio pelo cemitério de Mauriès, e agora, quando já apercebia, ao fim da Rua Vercingétorix, os faróis azuis e amarelos que varriam as fachadas, e via aquela ambulância vermelha cuja presença confirmava a morte de Kamoun, pensava nesse guerreiro, Vercingétorix, vencido, preso, acorrentado no fundo de uma cela romana e que César, muito tempo depois do seu triunfo, mandara estrangular.
Foi antes do cristianismo, antes do Islão.
Foi no momento em que os bombeiros saíam da sala, levando o corpo de Kamoun, que Beaufort teve a impressão de que as paredes começavam a mover-se à sua volta. Precisou de se sentar no canto da secretária, fechar os olhos, deixar de ver aqueles livros espalhados pelo soalho, as gavetas vazias, e aquelas duas frases garatujadas na parede branca, entre as janelas que davam para a Rua Vercingétorix. Mas as palavras continuavam a desfilar, vermelhas porque escritas com o sangue de Kamoun. A primeira frase estava caligrafada em minúsculas, e talvez nesse momento Kamoun estivesse ainda vivo e pudesse ler: "Aquele que nos insulta pela pena morrerá pela espada." A outra fora traçada à pressa. As maiúsculas encavalitavam-se. O autor parecia ter tido pouco tempo, ou então receara que o sangue de Kamoun secasse, e sem dúvida Kamoun tinha morrido antes de compreender que um dos seus assassinos escrevia, esboçando apenas as últimas quatro letras:
EM BREVE ESTADO ISLÂmico
Beaufort voltou a abrir os olhos como para se assegurar de que não era imaginação sua, de que fora mesmo com aquele bocado de tecido enrolado em bola e impregnado ác sangue, ali abandonado, junto à parede, que os assassinos haviam traçado aquelas palavras. Tiveram de voltar diversas vezes ao corpo para embeber o tecido, esfregá-los contra as feridas abertas, a garganta cortada, o peito e as palmas das mãos retalhadas.
Beaufort sentiu náuseas.
Agora estava sozinho na sala.
Quando entrara, havia menos de uma hora, esta parecia uma cena de teatro quando, no fim do espectáculo, todos os actores se reúnem à volta do herói morto, que ainda não se levantou.
Imobilizara-se no limiar.
A luz crua dos dois projectores dos fotógrafos da identidade judiciária iluminavam todos os pormenores. Beaufort vira a janela aberta para o pátio. Os assassinos tinham-na partido depois de deslizarem dos telhados ao longo da fachada. Houvera luta. A sala estava devastada, móveis derrubados, livros despedaçados.
Kamoun vestia um pijama azul. Os assassinos haviam desnudado a sua vítima e rasgado o casaco. Com uma das mangas, tinham-no amordaçado. Depois deviam tê-lo torturado, abrindo-lhe o peito e as palmas das mãos, traçando aquelas cruzes profundas, vermelhas. Por fim, tinham-no degolado. O corpo de Kamoun caíra, com o rosto contra um livro aberto cujas páginas o seu sangue, espalhando-se, tornara ilegíveis.
Os inspectores, os agentes, os médicos tinham explicado tudo isso a Beaufort deslocando-se de um extremo a outro da sala e voltando sempre para junto do corpo de Kamoun, para retirar o lençol que haviam colocado sobre ele, para mostrar as feridas. Os seus gestos eram lentos, teatrais. As frases breves completavam-se como réplicas eficazes pronunciadas por actores sóbrios.
Beaufort ficara impressionado com o relato, com os movimentos de uns e de outros, aquela cenografia que não deixava nada ao acaso e tinha qualquer coisa de ritual. Pedira que iluminassem a parede branca, entre as janelas, para que as inscrições aparecessem distintamente nas fotografias.
Depois estabelecera-se o silêncio. Apagaram-se os projectores. As personagens abandonaram a cena e Beaufort ficara só.
Só então sentiu aquela sensação de vertigem, de náusea, e teve de se apoiar à secretária, sentar-se no canto. Cerrou os punhos e, de repente, bateu no joelho com todas as suas forças. A dor estendeu-se até à virilha e, quando quis abrir a mão direita, gritou como se tivesse fracturado um dedo. Mas aquele sofrimento que persistia, rodeando-lhe o pulso, chamou-o à realidade. Era como se a cada gesto que fazia - pegou no telefone, começou a marcar o número de François Milner em Clermont -, a dor lancinante, a dificuldade de mover os dedos lhe lembrassem que devia odiar.
Esses, murmurou por várias vezes marcando os números com a mão esquerda - a direita anquilosada começava a inchar -, esses, havia de desmascará-los. Eles tinham assinado o seu crime com a insolência de homens que estava para lá da razão, que queriam aterrorizar. Proclamavam que tinham morto nas florestas de Silvacane e Bourgogne, reivindicavam o assassínio de Tahar e do padre Desbordes.
Milner atendeu. Interrogou Beaufort numa voz hesitante.
- Eu estava a dormir - repetia.
- Que imbecil que fui! - sussurrou Beaufort. - Que imbecil! Nem sequer falava do assassínio de Kamoun. Explicou que andara cego, durante meses, com a cabeça cheia de velhas ideias dos anos 70 ou 80. Andara com disparates. Primeiro acreditara num assassino solitário, num místico cristão, depois na acção de racistas na caça ao muçulmano. Esforçara-se ainda por se convencer de que Bourrières, o louco, era o único culpado.
- Poise! - concluiu.
Tinham passado para a outra vertente. Eram os fanáticos do Islão que matavam aqueles que o não eram, aqueles que resistiam, como Kamoun, ou aqueles que continuavam a ver emissões a que os loucos chamavam "ilícitas", ou ainda que se entregavam a actos que os loucos consideravam imorais, contrários à lei do Profeta. Para eles, a morte! A cruz de sangue no peito e nas palmas das mãos servia talvez para desviar as suspeitas, mas principalmente para marcá-los com o sinal da sua infâmia.
Enquanto falava, o comissário voltou a pegar naquela página de jornal que os inspectores lhe haviam mostrado no momento em que entrou na sala. Estava manchada de sangue. Os assassinos tinham-na enfiado na garganta retalhada de Kamoun: "Come aquilo que escreveste, rebenta com aquilo que disseste! Aquele que nos insulta pela pena, morre pela espada!"
Beaufort reconhecera imediatamente, apesar do sangue, a última página de L'Indépendance, aquela que ele lera na Rua de Clotaire, abrigado debaixo do portal enquanto caía uma bátega de chuva. A fotografia de Kamoun não era mais que uma mancha vermelha. A de Amina Nekoub havia sido rasgada.
- Vai até ao Bairro do Vulcão - disse ele a Milner.
Era preciso, continuou, deter Hocine Nekoub e aqueles que o ajudavam. Era preciso lançar a rede largo e fundo. Depois se faria a triagem.
Milner estava reticente. Eles iam ser criticados. Grande parte da imprensa seria hostil.
- Reflectiste bem? - continuou ele.
- Agora! - gritou Beaufort. - Parte imediatamente. Milner não desligou. O comissário ouvia a sua respiração calma, a respiração de um homem ainda ensonado.
- Eles mataram Kamoun, o professor, o amigo de Hélène, tu conhecias? - disse Beaufort numa voz de súbito cansada.
Em sua casa, na Rua Vercingétorix, esta noite, por volta das duas horas. Milner sabia o que ele escrevia? Beaufort colocou a página do L'Indépendance debaixo do candeeiro da secretária. As manchas de sangue formavam pétalas desfiadas e o papel começava a rasgar-se, de tão impregnado de sangue. Leu ao inspector algumas das frases que ainda se podiam decifrar: "Eles pensam exactamente o que pensava Goebbels. Os islamitas armados são para o partido integrista aquilo que as SA e as SS eram para o partido nazi. Na região de Blida, violaram e degolaram duas rapariguinhas à frente dos pais. Uma tinha seis anos, a outra nove. Negociar com os degoladores integristas, é colaborar."
Beaufort calou-se durante alguns segundos.
- Agarra-me esse Hocine Nekoub - disse, falando com os lábios apertados. -Agarra-o, Milner, agora! É ele, estás a ouvir, é ele que está por trás de tudo isso. Se não o agarras...
Não ousou continuar e dizer:
- Eles vão matar Amina.
Desligou sem esperar a resposta. Depois passou o olhar e os dedos pelos livros que tinham ficado nas prateleiras, ao alcance da mão de Kamoun quando trabalhava, sentado àquela secretária em cujo canto ele próprio se apoiava agora.
Descobriu assim, mesmo ao lado dos textos de Rachid Boujudra, uma edição de bolso do Alcorão.
Abriu o volume ao acaso, na página da surata 21, intitulada: Os Nabis.
Leu as duas primeiras linhas:
A conta dos homens aproxima-se mas eles, desatentos, desviam-se dela.
Beaufort voltou a pôr o livro no lugar.
Quem estenderia agora a mão para lhe pegar, como Kamoun?
O velho Nekoub dissera a Beaufort:
- Deixa-a, vem.
A mulher berrava e gesticulava à entrada do apartamento, amaldiçoando o comissário, ameaçando-o, e o velho tentara repeli-la, mas ela precipitava-se de novo sobre ele.
Beaufort compreendia que ela o acusava de ser responsável pelo desaparecimento dos filhos, Amina, Hocine, Mehdi. De cada vez que pronunciava um desses nomes, agarrava o rosto com as duas mãos, esmagava as faces com as palmas, salmodiava numa voz aguda, depois, no fim, lançava os braços ao ar, e, embora fosse corpulenta, parecia prestes a saltar, e Beaufort recuava.
- Deixa-a, vem - repetira o velho Nekoub.
Abriu a porta, e os gritos da esposa invadiram o vão da escada. Ela tentara passar o limiar, mas o velho batera com a porta e fechara-a à chave. Depois começara a descer a escada depressa, fazendo sinal ao comissário para que se despachasse.
Cá fora planava o mesmo nevoeiro gelado que, em quase todas as visitas de Beaufort ao Bairro do Vulcão, eclipsava as torres e as florestas, enchia o vale, abafava os ruídos.
O velho Nekoub agarrou-o pelo braço. Estava ofegante e Beaufort, caminhando assim a seu lado, apoiando-o, escutando aquela respiração sacudida que o frio tornava ainda mais difícil, lembrou-se daquelas manhãs de Outono, no campo em volta da sua aldeia, quando o nevoeiro, transbordando do vale, se espalhava e o velho camponês que morava na casa vizinha da dos seus avós lhe pedia que o acompanhasse. O caminho subia de Mauriès para os prados e não havia melhor bastão, para apoiar um velho, do que um jovem.
- Uma bengala, não aquece o sangue - dizia o camponês. - Uma vida que começa, quando a tocamos, quando ela nos apoia, restitui-nos as forças, é como o sol quando expulsa o nevoeiro.
- Tem frio? - perguntou ele a Nekoub, e, num movimento instintivo de simpatia, quase de afeição, tirou o impermeável e colocou-o pelos ombros do velho.
Beaufort lembrava-se de que tivera o mesmo gesto com Amina, e teve vontade de agarrar o velho, apertá-lo de encontro a si, de aquecê-lo, de tranquilizá-lo. O velho Nekoub não lhe agradeceu. Apertou a gola do impermeável na mão esquerda, continuando a apoiar-se no comissário, fazendo-se mais pesado como para mostrar que tinha confiança, que se deixava conduzir.
Beaufort propôs-lhe que descessem a Clermont e se aquecessem ali tomando um café, mas Nekoub recusou. Não devia ausentar-se por muito tempo. A mulher estava sozinha em casa, e quem sabe o que ela podia fazer? Preferia portanto caminhar um pouco pelo Bairro para falar.
Por vezes, um ruído e um feixe de luz surgia ao pé deles, depois, desaparecida a motorizada, era novamente o silêncio e a penumbra meio azulada, meio dourada à volta dos candeeiros e dos marcos dos parques de estacionamento.
- Deves compreender... - começou o velho Nekoub.
A mulher não tinha mais nada. Antigamente, ela tinha a força. Gostava de si própria quando se olhava. Lia o desejo nos seus olhos. Tu compreendes, comissário. Ela tinha os filhos. É um prazer, lavar o corpo dos filhos. E depois, um dia, já não tocamos os corpos deles, os olhos do homem já não brilham. Estamos ofegantes, como eu. Que queres tu que reste? Durante anos, ela não usara o véu. Era como todas as mulheres daqui, as da fábrica.
E depois, um dia, que foi que lhe deu, talvez ela não quisesse mais ver os seus cabelos brancos, que adivinhasse o que se tinha tornado o seu corpo. O tempo, é duro para uma mulher. Ela enfiou então o rosto no véu e passou a usar as saias tão compridas que varriam o chão.
Foi também nessa altura que Hocine mudou, e Mehdi, e Amina.
Amina - voltou a cabeça para Beaufort -, tu conhece-la, é um diamante. Ninguém consegue quebrá-la. Pode-se matá-la, mas não se consegue fazê-la ceder. Quanto aos outros dois... - suspirou. Hocine, que podia eu fazer? Tornaram-lhe a vida difícil. E orgulhoso. Escutou a mãe. Não havia nada para ele aqui, e ele era duro de mais para apodrecer. Compreendes? É talvez culpa minha. Se eu tivesse abandonado a casa, se tivesse duas mulheres, como outros, talvez também ele tivesse roubado carros, fazendo dinheiro assim, vendendo essa merda que todos eles querem. Mas, comigo, com a mãe, ele não podia.
E havia também o padre Desbordes. A princípio, quando Hocine tinha doze anos, ia sempre lá, à associação. Eu dizia para mim: "Vai-se tornar cristão." O velho Nekoub encolheu os ombros: Que querias tu que isso me importasse? É na mesma Deus e a religião. Mas o padre não era desses. Devíamos conservar o nosso Deus. Tu compreendes, comissário - o velho Nekoub parou -, tu compreendes... Eu digo-te tudo; para que serve agora esconder as coisas? O padre Desbordes, era um homem que vivia sem mulher. E Hocine era belo. Tu compreendes, eu preferi não saber, porque nessas coisas, que é que se pode fazer?
Depois, Hocine partiu. Talvez ele tenha dito à mãe onde vivia; de mim, desconfiava. Eu era demasiado francês, não respeitava a religião, era um mau muçulmano, um sem-Deus, um comunista. Já não nos falávamos, eu e Hocine, e Mehdi, o irmão, nem sequer olhava para mim. Felizmente, tinha o meu diamante, a minha filha. Queria que ela se tornasse professora, médica, que conduzisse o seu próprio carro. Era sempre nela que eu pensava, e não nos filhos. Sou talvez um mau muçulmano. Será por isso que a desgraça se abateu sobre mim? Sabes o que diz o Alcorão:
Aqueles que não aderem
Ao Outro mundo
Nós votamo-los a um suplício terrível.
Acreditas em Deus, tu, comissário?
Beaufort não teve tempo de responder, de olhar o velho Nekoub, que se voltara para ele. Este recomeçara a falar.
Amina conhecera Tahar, Réda nascera, depois Réda morrera. O padre Desbordes tinha-os ajudado a dissimular esse nascimento e Beaufort devia imaginar aquilo que a velha, a sua mulher, devia ter sentido quando aceitara fazer-se passar por mãe de Réda, e em breve tornar-se mãe de uma criança morta.
- Não era seu filho - disse o velho Nekoub -, mas tornou-se o seu filho morto. Tu compreendes?
Apertou o braço de Beaufort. Também para ele a morte de Réda fora como se lhe cortassem os tornozelos. Nunca mais tivera vontade de sair de casa, de falar. Esse filho, de Amina e de Tahar, tornara-se também deles, dos velhos, um verdadeiro filho, e não da sua filha.
- Tu compreendes o sofrimento quando nos morre um filho?
- Compreendo - respondeu Beaufort.
Pronunciara sem dúvida essas palavras como uma confidência, porque Nekoub parou e murmurou:
- Também tu, comissário?... -Beaufort abanou a cabeça. O velho apertou-lhe longamente o pulso numa pressão paternal.
Caminharam em silêncio, o velho Nekoub guiando Beaufort de uma álea para outra, até que se encontraram diante da entrada da torre onde ele morava.
- Sobre o resto - disse ele retirando o braço -, nada te posso dizer. Mesmo que eu soubesse onde estão os meus filhos, por que havia de dizê-lo? Pode-se pedir isso a um pai? Tu sabes bem que não, comissário, e não me questionarás.
O velho Nekoub dirigiu-se para a porta, depois, quando tinha já chegado ao alpendre e a sua silhueta começava a ficar envolta no nevoeiro, voltou atrás, agarrou os dois pulsos de Beaufort e disse erguendo-se nas pontas dos pés, como para ter a certeza de que o comissário o ouviria:
- Defende-a se puderes, defende-a. Ela merece.
Já lhes chegaram relatos
Tantos acontecimentos, ricochetes, tantos mortos e tantos crimes na história do mundo desde que Beaufort deixou, diante da porta de uma das torres do Bairro do Vulcão, o velho Nekoub, no fim de uma manhã de Janeiro, quando o nevoeiro ainda se não dissipara.
Tantas surpresas e angústias, e prazeres também, tédio muitas vezes, na vossa vida, que talvez até o nome de Beaufort, as últimas palavras proferidas pelo pai de Amina Nekoub - "Defende-a, defende-a. Ela merece." - desapareceram já da vossa memória. Talvez todo este caso, começado com a descoberta de um corpo torturado, crucificado na floresta de Silvacane, no meio das árvores calcinadas, não longe da abadia, não seja sequer a memória de uma emoção, de uma atenção, de uma pergunta.
Mas leiam a surata 54, intitulada Al-Qamar ("A Lua") que copio na tradução do Alcorão de André Chouraqui:
Ela aproxima-se, a hora: A lua está presa!
Se eles vêem um Sinal, desviam-se e dizem: "É vulgar bruxaria!" Negam e seguem as suas paixões. Ora todo o decreto é irrevogável. Já lhes chegaram relatos, não desprovidos de ameaças, sabedoria proposta, advertência sem proveito!
E se não se devesse esquecer o destino de Amina Nekoub, o de Georges Bourrières, de Hocine e de Mehdi Nekoub, de Beaufort e de Marion Chauvel, se fosse preciso conhecer e recordar o nome daqueles que assassinaram Kamoun, Tahar, o padre Desbordes, os jovens da floresta do silêncio e da fé, porque os seus destinos cruzados eram outros tantos sinais? Porque um romance - os fanáticos que condenaram à morte Salman Rushdie sabem-no bem - é sempre anunciador.
Já lhes chegaram relatos, não desprovidos de ameaças, sabedoria proposta, advertência sem proveito! - diz a surata 54.
Sei bem que basta lançar a rede largo e fundo, como dizia Beaufort a François Milner quando exigia a prisão imediata de Hocine e dos seus cúmplices, para retirar do oceano nocturno actos e personagens tão monstruosos, inimagináveis, que a seu lado a vida de Amina Nekoub e mesmo todos os crimes que a rodeiam parecem insípidos, como a carne dos peixes de viveiro.
No jornal desse dia, 20 de Janeiro (a mesma manhã em que Beaufort, no parque de estacionamento do Bairro do Vulcão, demora a pôr a trabalhar o motor do seu carro, porque está emocionado, infeliz - como se se tratasse de um membro da sua própria família, talvez o seu pai - por ter de deixar o velho Nekoub), li que uma jovem francesa de origem argelina, com apenas dezasseis anos de idade, acabava de confessar o assassínio do filho, asfixiado no próprio dia do nascimento, dois anos antes. Ela conseguira ocultar a gravidez à mãe e aos alunos da sua aula. O pai trabalhava demasiado para manter por muito tempo os olhos abertos quando regressava da obra. O irmão, de dezoito anos, sabia, mas fora ele que violara a irmã e a forçava todas as noites no apartamento exíguo. Quando a criança nascera, assistida pela mãe da jovem, a vergonha abatera-se sobre a família. E a mãe exigira da filha, depois de ela própria ter tentado matar a criança ainda viscosa, que terminasse a tarefa. O que a filha fizera, asfixiando o recém-nascido, indo depositá-lo no contentor do lixo desse Bairro que não tinha o nome de Vulcão, pois que se tratava de um Bairro periférico de Paris, não das torres próximas de Clermont, em Auvergne. Esta cidade, recordemos, de onde foi lançado por Urbano II o apelo à cruzada, faz agora nove séculos.
Ninguém sabe o que aconteceu à criança estrangulada. Triturada, tão aperfeiçoadas e poderosas são as máquinas que esmagam, moem, amassam os nossos dejectos? Devorada, tantos são os ratos que andam aos bandos, os cães e os gatos vadios?
Mas a criança continuava viva na memória da mãe criminosa. E quando o irmão, desempregado como deve ser, recomeçou a abusar dela, ela confessou.
O jornal precisava que a tinham deixado em liberdade provisória depois de terem encarcerado, por assassínio, violências sexuais sobre menor, incesto, a mãe e o filho.
Ao ler esta notícia - Zola está morto? -, penso em Amina Nekoub, no filho que ela não matou, mas do qual foi despojada, porque a morte o levou, nessa criança pela qual Hocine Nekoub, regressado do Paquistão, a increpou a murro e a pontapé, por ter concebido, forçando-a a usar o véu, a humilhar-se, a proceder como se nunca tivesse conhecido o prazer nos braços de Tahar, a alegria, a alegria apesar de tudo quando ouvia o grito de Réda, seu filho, quando o tocava no instante em que ele saía dela, alguns minutos antes que a sua velha mãe se apoderasse dele, dividida entre a vergonha e a felicidade, proferindo maldições e rezando para que o rapaz - o seu, agora, aos olhos dos outros - fosse vigoroso e belo, como os seus dois filhos, Hocine e Mehdi.
Ela não sabe, a velha mãe Nekoub, porque morreu alguns dias depois de o marido se ter apoiado ao braço de Beaufort, ao longo das áleas do Bairro do Vulcão, enquanto o nevoeiro estagnava, azulado e dourado, em volta dos candeeiros e dos marcos dos parques de estacionamento; não sabe, ela que amaldiçoava Amina e abençoava os filhos, que Hocine e Mehdi são perseguidos por assassínio e que foi lançado contra eles um mandado internacional.
No apartamento de Kamoun, identificaram-se as suas impressões digitais na parede branca - como se Hocine tivesse apoiado a mão esquerda aberta enquanto traçava as inscrições com o tecido embebido no sangue de Kamoun - nos alizares da janela e nos punhais descobertos no pátio do prédio, alguns dias depois da descoberta do corpo.
Eles dirigiram-se sem dúvida de Paris para o Norte de França, e, com a ajuda de uma rede integrista, atravessaram a fronteira belga. Atravessaram talvez a Holanda, a Dinamarca, a Noruega, foram mais para norte ainda, antes de voltar a descer para sul, para as terras do Islão, atravessando a Alemanha, onde dispõem de redes de apoio. Talvez, um dia, os reconheçam entre os combatentes, os terroristas, os assassinos, e eles se tornem mártires cujos retratos serão exibidos e os nomes clamados, mostrando as suas roupas ensanguentadas? Talvez regressem clandestinamente a França para organizar atentados antes de serem cercados e abatidos, e no Bairro do Vulcão alguns imaginarão que Hocine e Mehdi são heróis.
No relatório que redigiu para o ministro do Interior depois do assassínio de Kamoun, Beaufort insistia na ameaça que os dois irmãos representavam. Pedia que fosse concedida, ao menos durante alguns meses, protecção próxima a Amina Nekoub, contra a qual havia sem dúvida sido lançada uma fatwa. Recordava que Hocine Nekoub era, segundo Youssef Malik, que fizera confissões completas, o assassino do padre Desbordes e de Tahar.
Aqui, as razões privadas - ainda que Beaufort as não referisse no seu relatório - misturavam-se à paixão política (mas seria essa a palavra, e não se devia dizer simplesmente à loucura?). Tahar era apenas um jovem que ganhara ascendente sobre os bandos do Bairro do Vulcão, um homem cuja beleza e inteligência, cuja indiferença pela religião, pelos costumes que ela impunha, constituíam, para Hocine, outras tantas provocações e desafios, mas ele era também o amante de Amina, o pai de Réda. Hocine apunhalara-o, e depois, com a ajuda deYoussef Malik e de alguns outros que compunham aquilo a que ele chamava a sua "Guarda santa", tinham-no levado para a floresta de La Chaise-Dieu e tinham-no crucificado.
O padre Desbordes morrera também pela mão de Hocine Nekoub, talvez por causa do amor que ele tivera por esse rapazinho de doze anos que fechava os olhos, deixava cair a cabeça para trás quando lhe acariciavam o peito e as coxas, quando lhe beijavam a pele aveludada, mas principalmente porque o padre tinha ajudado Amina a salvar o filho, e escrevera, depois da morte de Réda:
Vi uma criança morta
No Teu silêncio
E aqueles que Te rogavam
Usavam os grandes mantos negros
Da Diferença
Ajoelhei entre esses desconhecidos
Homens éramos todos e apenas
Irmãos imensamente
Pela criança perdida.
Fora Hocine que, acompanhado da sua "Guarda santa" - Youssef Malik fazia parte dela, assim como Selim Nair, morto quando tentara forçar uma barragem da polícia -, matara, insultando-os: "Tu deves morrer como um porco, como um kufar, tu já não és nada" os jovens cujos corpos haviam sido descobertos na floresta de Silvacane e nas da fé e do silêncio, entre Claivaux, Cíteaux e Vézelay. Hocine condenara-os por se terem afastado da lei do Profeta.
Eles renegam-no. O cataclismo agarra-os. De manhã, jazem nas suas moradas, diz a surata 29, Al-Ankabut ("A Aranha"), da qual Hocine gostava de citar este versículo. Se pudesse, esse homem teria morto a própria irmã.
Mas o ministro recusou-se a proteger Amina Nekoub. Não dispunha de efectivos suficientes, explicou. Beaufort compreendia, não é verdade? Tantas personalidades estavam ou julgavam-se ameaçadas... E acompanhou Beaufort até à porta de batente duplo com nervuras de madeira dourada. Dando-lhe uma palmadinha no ombro, disse:
- A protecção dessa jovem, porque não se encarrega você disso - a título privado, entende-se, fora das horas de serviço?
Sorriu. Não seria um encargo demasiado pesado, pois não, segundo aquilo que sabia dela?
Beaufort viveu alguns meses com Amina Nekoub, em Paris, no pequeno apartamento que possuía na Rua de Croulebarbe.
Contar a sua vida quotidiana, as suas noites, esse entusiasmo de Beaufort quando enlaçava o corpo de Amina, essa inquietação quando ela se imobilizava, mais parecendo sujeitar-se do que participar, é outra história. Cada qual pode imaginar o que foram os dias e as noites entre esse homem de quase cinquenta anos, natural de Mauriès, aldeia de Dordogne, pai de uma criança morta, e aquela mulher de origem argelina vinte e cinco anos mais nova que ele, que crescera no Bairro do Vulcão, que era também mãe de uma criança morta, e que, caminhando ao lado de Beaufort, segurando-lhe a mão ou o braço, baixava a cabeça sempre que se cruzava com um magrebino.
Tiveram um filho e, a princípio, Amina recusou-se a que Beaufort o reconhecesse, depois cedeu.
Escolheu o nome de Kamoun. No município do XIII Bairro, hesitaram em registá-lo, mas Beaufort insistiu e a criança foi assim inscrita sob a identidade de Kamoun, Ahmed, François Beaufort. Ahmed e François eram os nomes dos dois avós.
Pouco depois, Amina Nekoub deixou Beaufort para se instalar numa cidade do Norte, T... Ali se lhe juntou o pai dela, Ahmed Nekoub. Tornou-se professora num dos Bairros difíceis da cidade, uma zona de educação prioritária.
Era, segundo os relatórios do inspector de academia, uma professora notável, de dotes excepcionais, com uma infinita capacidade de devoção, uma das mais determinadas a recusar o uso do véu pelas poucas alunas que pretenderam apresentar-se na aula nesse trajo.
Foi depois da partida de Amina Nekoub que Beaufort pediu para beneficiar dos seus direitos à reforma antecipada. Vendera com dificuldade e a baixo preço o seu apartamento da Rua Croulebarbe e instalara-se em Mauriès, na casa dos avós.
Uma ou duas vezes por mês, rolando devagar por estradas secundárias, dirigia-se à cidade de T...
Via-se então Kamoun caminhar orgulhosamente pela mão do pai e do avô. Naturalmente, eles erguiam-no, baloiçavam-no, e a criança ria.
Depois Beaufort partia. A sua casa de Mauriès estava aberta. Ele esperava que a criança, a mãe, o avô ali fossem nas férias. Amina continuava evasiva.
Num primeiro Verão, Ahmed Nekoub veio com o neto a Mauriès. Amina preparava concursos.
Quando a criança e o avô dormiam, Beaufort lia. Era assinante do L'Indépendance e achava que Marion Chauvel era cada vez mais perversa, mais amarga, fustigando todos aqueles de quem falava. Os seus artigos eram cansativos, repetitivos. Por fim, deixou de lê-los.
Beaufort recebia grandes pacotes. Reconhecia a escrita um pouco entrecortada: internado numa clínica psiquiátrica de Melun, Georges Bourrières expedia-lhe os últimos capítulos da grande história das relações entre o cristianismo e o Islão, em que trabalhava. Era um formigar de factos, de referências, de citações despejadas em desordem. Mas cada um deles apresentava interesse, como uma pepita de conhecimento mergulhada na lama da loucura. E Beaufort, fascinado, não sabia já se era atraído por aquelas páginas em que as linhas manuscritas se encavalitavam, a maior parte das palavras sublinhadas com vários traços de cores diferentes, pelos elementos históricos reunidos, ou pela demência que as carregava.
De súbito, Kamoun gritava e Beaufort precipitava-se, mas Ahmed Nekoub estava já ao pé da criança, acariciando-lhe a testa, falando-lhe em árabe; na sua boca, aquela língua tornava-se um murmúrio tranquilizador, uma brisa roçando as folhas quando o ar quente esmaga o campo.
Os "três homens" - era o velho Nekoub que assim falava - partiam para o rio ao fim da tarde. As falésias calcárias dominavam a margem côncava, enquanto na margem convexa uma praia de grandes seixos redondos descia suavemente para a água verde. Enquanto a criança brincava na areia, Beaufort olhava no meio da falésia as aberturas escancaradas das grutas onde, havia vinte mil anos, quarenta mil anos, talvez mais, os homens daqui tinham começado o seu percurso, traçando nas paredes das cavernas perfis vermelhos de animais selvagens.
E voltava a pensar nas inscrições avermelhadas na parede branca do apartamento de Kamoun. Quem era o animal selvagem, depois desses milhares de anos?
Os risos de Kamoun a molhar o velho Nekoub faziam sobressaltar Beaufort.
Ele seguia as brincadeiras da criança e do velho, mas estava ofuscado pelo sol que dava às gotinhas as cores de um arco-íris fugidio.
Muitas vezes, imaginava que na sombra das árvores um gato espreitava.
Max Gallo
O melhor da literatura para todos os gostos e idades