Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O SILÊNCIO DE UMA PAIXÃO
Melly ainda não conhecia o novo paciente, mas soube do alvoroço que ele vinha causando entre as enfermeiras desde que chegara ao hospital.
Sentiu-se feliz por mais uma vez ter salvado a vida de uma outra pessoa. Muitas vezes a procuravam como doadora, pois o tipo de sangue que possuía — A negativo — era muito difícil de ser encontrado. O rapaz tivera sorte.
Agora que o paciente estava melhor, já podia comer alimentos um pouco mais sólidos. Melly entrou no quarto com a refeição em uma bandeja. Compreendeu de imediato o porquê de tanto sucesso com as enfermeiras. Era um homem muito atraente. Tinha os cabelos loiros e lisos, a pele bronzeada e incríveis olhos castanhos.
Embora se sentisse um tanto apreensiva, Melly sorriu. Não queria que ele notasse qualquer interesse especial da parte dela, embora no íntimo concordasse com todos os comentários que ouvira.
— O que você tem aí nessas travessas? Um bife suculento? — Pelo sotaque Melly logo percebeu que se tratava de um estrangeiro.
— Acho que vai gostar, sr. Lanier. Trouxe caldo de frango com talharim e torradas.
— Pelo jeito, quando sair daqui precisarei comprar roupas novas. Com essa comida vou engordar uns vinte quilos. — O paciente brincou, sentando-se na cama.
Enquanto ajeitava a bandeja na mesa de cabeceira, Melly pôde observar aquele corpo esbelto, agora tão próximo. Jourdan Lanier não era propriamente bonito, mas esbanjava sensualidade. Tinha o tipo do homem decidido.
— Poderia me ajudar a comer? A cirurgia me deixou muito preguiçoso.
— Só precisa de um pequeno esforço para segurar a colher, tenho outras refeições para servir.
— Que pena! — Jourdan provou a sopa. — Humm... Para mim falta um pouquinho de pimenta.
— Precisa se alimentar, sr. Lanier. — Melly tentava, com muito esforço, se manter o mais impessoal possível.
— Você não é de Londres, é?
— Não, sou de Devonshire, um lugarzinho pequeno e sossegado que não muda há séculos.
— Sabia que a sua voz é doce como os cremes de Devonshire? Ah, ficou surpresa, não foi? Garanto que pensou que um francês não conheceria os cremes e morangos de Devonshire. Daria tudo por uma sobremesa daquelas agora, no entanto, sou obrigado a comer torradas... — Melly sorriu, e ele continuou falando: — Para quem cresceu no interior, Londres deve ser muito barulhenta.
— Já me acostumei ao ritmo da cidade grande, e existem algumas compensações. Posso ver todos os filmes novos, ir ao teatro...
— Aposto que prefere os filmes de amor.
— E o que há de errado nisso?
— Nada... o amor faz o mundo girar — Jourdan parecia entender muito bem desse assunto. — Foi você quem doou sangue para a minha transfusão?
— Estou contente por ter ajudado, sr. Lanier — Melly respondeu, afastando-se da cama.
— Eu também. Agora você e eu temos algo em comum.
— É melhor comer, antes que esfrie.
— Tudo bem, assim vou ficar grande e forte outra vez, certo?
— Sr. Lanier, preciso trabalhar...
— Eu só queria agradecer — ele insistia. — Você salvou a minha vida.
— Acho que valeu a pena. — No instante seguinte Melly já havia se arrependido das palavras, o paciente poderia interpretá-las mal.
— Você é muito generosa... Como é mesmo seu nome?
— Melly.
Ela não conseguia entender como Jourdan viera a saber do fato. Talvez ele tivesse persuadido irmã Esperança a lhe dizer quem havia feito a doação de sangue.
— Agora preciso ir, sr. Lanier. Espero que se restabeleça logo.
— E eu espero que Melly não seja diminutivo de Melisande.
— Por quê? — ela queria se afastar, mas ao mesmo tempo sentia-se atraída pelo som daquela voz latina, usando as palavras de uma forma que nunca ouvira antes.
— Melisande era uma mulher muito cruel, por isso um nome como esse seria impróprio para alguém como você — Jourdan sorria. — Acho que é diminutivo de Melanie, a jovem tímida que tirou Ashley Wilkes da impetuosa Scarlet O'Hara. Viu só? Eu também conheço alguma coisa de cinema.
— Errado, sr. Lanier. Meu nome não vem do filme E o Vento Levou.
— Então desisto. Que mistério...
— É Melandra.
— Ah, Melandra... É latino?
— Só sei que é um nome muito antigo na minha família.
— Muito interessante — o olhar de Jourdan percorreu Melly da cabeça aos pés, de um modo que a fez ficar vermelha e abrir a porta depressa. Já no corredor, ela ainda o ouviu dizer: — Não vou me esquecer de você, Melandra.
A ameaça e a promessa contidas naquelas palavras fizeram Melly se afastar do quarto quase esquecendo o carrinho das refeições.
Embora já tivesse vinte e dois anos, ela procurava manter uma certa distância dos homens. Mas nunca, em toda sua vida, havia encontrado alguém que perturbasse tanto seus pensamentos. Pressentiu que, se não tomasse muito cuidado, iria se envolver com Jourdan Lanier.
Decidida a ficar longe dos encantos de Jourdan, Melly trocou com outra moça o roteiro das refeições. E, embora curiosa, procurava não fazer perguntas sobre o estado de saúde dele. Tinha certeza de que, tão logo estivesse de pé, voltaria a conquistar os corações das mulheres com quem se relacionava.
Por alguma razão, as maneiras de Jourdan haviam sugerido a Melly que era um homem solteiro.
O serviço no hospital era tão estafante que nos dias seguintes ela quase não teve tempo de pensar nos olhos fascinantes daquele francês.
Certa manhã, enquanto descascava alguns vegetais na cozinha, Melly recebeu uma visita inesperada. Seus olhos não podiam crer no que viam.
— Tudo bem, Melly? Recebi alta hoje e vim me despedir de você. — Jourdan a olhava com muito carinho.
— Tudo bem, eu... — ela respondeu, quase cortando o dedo, tamanha foi a emoção que sentiu ao vê-lo tão bem de saúde, impecável no terno marrom.
— Devo repousar durante algumas semanas — Jourdan informou, franzindo as sobrancelhas enquanto observava a cozinha. — Quando voltar a Londres, ficaria contente se jantasse comigo. Você aceita?
Melly o olhava, espantada. Um envolvimento com Jourdan Lanier estava fora de cogitação, e ela precisava se manter firme. Na certa ele apenas queria se mostrar agradecido, mas mesmo assim não era prudente aceitar o convite. No momento em que ia recusar, ouviu-o dizer:
— Você aceita — dessa vez era mais uma afirmação que uma pergunta. — Entrarei em contato com você, Melandra. — Jourdan se afastou, deixando-a imóvel, pensativa.
Depois daquele encontro, vários buquês de flores começaram a chegar ao pequeno apartamento situado num dos grandes e antigos casarões de Marylebone Road; flores maravilhosas, sempre acompanhadas de pequenas citações:
"As coisas simples nos confortam porque não nos amedrontam." "Nossas fugas freqüentemente nos levam ao nosso destino." O remetente nunca se identificava. Toda vez que Melly recebia os cartões, uma outra frase vinha-lhe à mente: "Cuidado com quem dá presentes."
Como não tinha em casa espaço para tantas flores, levava algumas para a clínica e as colocava nos quartos dos pacientes. Melly não dava explicações a respeito das flores, por isso aquele gesto ficava por conta de sua generosidade. Nunca havia falado de Jourdan com ninguém, embora as enfermeiras sempre comentassem as novas conquistas.
Quando a proprietária do apartamento de Melly insinuava que seu namorado devia ser muito rico para lhe enviar aquelas flores tão caras, fazia questão de assegurar que ele era apenas um paciente agradecido, mais nada.
Namorado! Francamente! Bastava olhar para Jourdan Lanier para perceber que ele não passava de um homem que ainda não amadurecera direito. Caso contrário não se deixaria levar com tanta facilidade pelo assédio das mulheres.
Melly se perguntava se o fato de ter permanecido longe do quarto dele na clínica, não lhe estimulara a curiosidade e também o desejo de conquistá-la. No fundo, ela sabia que em hipótese alguma deveria alimentar qualquer tipo de ilusão. Mesmo assim, um olhar ansioso começou a surgir naqueles olhos cor de mel.
Melly era uma moça sempre pronta a auxiliar a quem dela necessitasse. Porém, o relacionamento com os outros sempre fora muito difícil, como se existisse uma barreira separando-a do resto do mundo. Tudo em Melly indicava se tratar de uma pessoa reservada, e que pretendia permanecer assim.
Ela mal conhecera o pai, que havia deixado o país logo após ficar viúvo. Fora criada pela avó, uma senhora muito religiosa. O dinheiro que o pai enviava todos os meses tinha sido suficiente para que nada faltasse às duas. Um dia, porém, avó e neta foram surpreendidas por uma triste notícia: ele morrera tragicamente num acidente automobilístico.
Apesar da pouca convivência com o pai, Melly sentiu muito a morte dele. Passou toda a infância e parte da adolescência com a velha senhora na cidadezinha de Bryde. Moravam num pequeno chalé de telhado amarelo, rodeado por um jardim florido. No inverno, quando o lugarejo se cobria de branco, a única diversão das crianças eram as brincadeiras com a neve.
Havia estudado até os dezesseis anos, e, em seguida, começara a trabalhar na escola de equitação de Bryde. Como as outras crianças que ali viviam, acostumou-se com os pôneis e adorava cavalgá-los. Só mais tarde decidiu-se por trabalhar em Londres.
A avó, se ainda vivesse, na certa teria aconselhado a neta a esquecer um homem como Jourdan Lanier.
Melly percebia que o fato de seu sangue correr nas veias de Jourdan não aumentava a intimidade entre eles. Talvez fosse isso que ele pensava ao lhe enviar tantas flores. Mas um dia Jourdan iria perceber o equívoco daquela situação.
Os dias passaram lentos. No hospital, o trabalho continuava desgastante. Sempre muito serviço e muitos pacientes necessitando de afeto e compreensão. Melly, porém, gostava do que fazia. Sentia-se bem em poder ajudar, em poder suavizar um pouco o sofrimento de tanta gente.
Numa sexta-feira à tarde, assustou-se ao ouvir a dona do apartamento batendo à porta com insistência. Ela dizia que alguém a chamava ao telefone.
— Uma chamada para mim? — Melly abriu a porta, espantada. — Tem certeza?
— Absoluta. E tem um sotaque estrangeiro. Acho melhor atender logo, ele pode desligar. — A mulher parecia curiosa. Desde que Melly fora morar ali, nunca a vira acompanhada.
— Poderia fazer o favor de dizer que não estou em casa? Se eu descer agora, o bife que estou fritando vai ficar torrado. Além disso não quero falar com ele.
— Não seja boba, menina. Vá ver o que ele quer, corra. Eu cuido do bife — ela disse, desligando o fogão em seguida.
— Mas...
— É que tenho muito o que fazer, senão eu acabaria de fritar a carne. Depois você termina, vá...
Nervosa, desceu os degraus devagar, aproximando-se do telefone. Não, não podia alimentar nenhuma ilusão.
— Alô... — Melly disse num tom inseguro.
— Melandra?
— Sim.
— Eu disse que não perderia o contato, não disse? Recebeu minhas flores?
— Foi muita gentileza enviá-las, mas...
— Gostou delas?
— Gostei, m-mas você não devia gastar seu dinheiro com alguém que mal conhece.
— Não a considero uma estranha. Estou vivo graças a você.
— Ora, eles teriam encontrado um outro doador, sr. Lanier.
— Nosso tipo sangüíneo é raro, menina, e eu estava com o apêndice supurado.
— Eu sei. Melhorou depois das férias?
— Estou ótimo. E você, Melandra, como vai?
— Bastante ocupada — ela titubeou. — Foi mesmo muita gentileza me enviar aquelas flores, achei-as muito bonitas. Minha sala parece um jardim.
— Não queria que se esquecesse de mim.
— Imagine, eu... — Melly não sabia o que dizer.
— Melandra, ainda está aí? — Jourdan perguntou, aflito.
— Estou... Eu teria ficado muito triste se a transfusão não tivesse sido útil. — Ela se esforçou para dar um outro rumo à conversa.
— E eu teria ficado muito mais triste ainda, Melandra. Quer jantar comigo amanhã?
— E-eu costumo ir ao cinema aos sábados — o coração de Melly tinha disparado. Ela queria dizer sim, mas era obrigada a contrariar a própria vontade.
— Neste sábado pode jantar no Ritz.
— No Ritz?
— Se não gosta do Ritz, podemos ir a uma lanchonete. A escolha é sua.
Melly sabia que Jourdan brincara ao sugerir a lanchonete, mas, ao mencionar o restaurante mais deslumbrante da cidade, estava falando a sério.
— O convite é muito gentil, sr. Lanier, mas não posso, aceitar...
— Por favor, não faça isso comigo. — De repente, ele falou num tom enérgico! — Pare de fugir.
— E-eu vou ao cinema com... — Melly começou a se desesperar. — Eu tenho um encontro.
— Então sugiro que o cancele, embora eu saiba que não vai sair com ninguém.
— Quem andou lhe falando a meu respeito? — Estava cada vez mais aflita.
— Tenho minhas fontes, Melandra.
— Rosie Wing, por acaso? — Rosie era uma enfermeira chinesa, que cuidara de Jourdan e com a qual Melly se dava muito bem.
— Sim, isso mesmo. Por que tem tanto medo de mim?
— E-eu não tenho medo de você.
— Então prove. Diga que irá jantar comigo no Ritz.
— Não sei por que insiste tanto, sr. Lanier...
— Vamos, deixe de timidez.
— Rosie Wing é muito mais bonita do que eu. Por que não a convida para sair?
— Rosie é uma pessoa encantadora, mas acontece que estou interessado em você.
— Não sou tão interessante como imagina, sr. Lanier.
— Discordo. Certas mulheres são muito transparentes, e eu, particularmente, gosto de mistérios. — Jourdan fez uma pequena pausa para que Melly pudesse compreender aquele comentário. Depois continuou. — Vou buscá-la amanhã às sete e meia.
— Não... por favor! — seus dedos apertavam o fio do telefone.
— Essa é uma contradição que me intriga — Jourdan riu, e ela pôde imaginar-lhe os dentes fortes e brancos. — Não aceito um não como resposta.
— O senhor é muito persistente.
— Sei disso, Melandra. Vamos, admita que depois de tanto sofrimento é preciso comemorar o fato de estar de volta à vida. E quero você comigo nessa comemoração.
— Londres está cheia de garotas que adorariam se divertir sábado à noite. — Melly precisava convencê-lo de que gostaria de ir ao cinema sozinha.
— Sim, existem muitas, e algumas delas muito interessadas em agradar a um homem.
— Sr. Lanier, eu...
— Meu nome é Jourdan — ele a interrompeu.
— Não costumo chamar pelo primeiro nome pessoas a quem mal conheço.
— Mas eu faço questão de que você me chame assim.
— É por isso que não vou acompanhá-lo, sr. Lanier. O senhor me parece uma pessoa muito autoritária.
— Mas isso é uma característica masculina, não?
— Pode ser...
— Você não parece ter muita certeza.
— É porque não saio com qualquer estranho. — Melly devolveu, orgulhosa.
— Mesmo assim quero que você jante comigo. — Ele tentou suavizar a situação constrangedora que havia se criado. — Já provou champanha cor-de-rosa?
— Não.
— Quem lhe ensinou a ter aversão pelos homens? — perguntou, surpreendendo-se com a própria agressividade, que não conseguia controlar.
— Instinto, sr. Lanier.
— E seu instinto lhe diz que pretendo me aproveitar da situação?
— Você é um homem. — Era impossível esquecer a figura dele na cama do hospital: corpo bronzeado, braços fortes... Na certa ela não conseguiria resistir a tanta sensualidade.
— Sim, sou um homem. — Jourdan retrucou. — E acho que a natureza agiu muito bem, fazendo os homens tão diferentes das mulheres.
— Mas quando acaba a brincadeira, sr. Lanier, é a mulher que tem que arcar com todas as conseqüências, sabia?
— Mocinha, parece que meteu na cabeça que estou querendo seduzi-la. Você se considera tão irresistível?
— Não... — Melly ficou vermelha. — Claro que não.
— Então por que prefere me evitar? Estou sugerindo apenas um jantar, e garanto que não espero ser recompensado. A não ser que você mude de idéia.
Melly corou ainda mais. E, antes que pudesse dar qualquer outra desculpa, Jourdan disse categoricamente:
— Esteja pronta na hora, não gosto de esperar!
O ruído do telefone indicava que ele havia desligado. Melly pôs o fone no gancho e subiu os degraus sentindo as pernas trêmulas e uma estranha falta de ar. Talvez uma xícara de chá pudesse ajudá-la a se acalmar.
Enquanto colocava, a chaleira no fogo, pensava no Ritz, um lugar deslumbrante. Imaginou os garçons, servindo uma comida deliciosa, numa mesa que ela dividia com um francês muito conhecedor do mundo. Jourdan havia passado muito mal depois da operação, e uma recusa ao convite poderia parecer muito descortês. Afinal ele parecia estar querendo demonstrar gratidão, nada mais.
Ao ouvir um arranhão na porta, Melly a abriu. Era Podge, um gato branco e peludo.
— Oi, menino — sorriu, com a xícara fumegando na mão. — Veio me fazer companhia para o chá, ou só está querendo lambiscar alguma coisa?
Podge a olhava, piscando os olhos dourados de forma sedutora, e ela não resistiu. Após cortar a carne em pedaços, colocou o prato no chão, e o gatinho se fartou de comer.
Melly sentou-se para tomar chá e, sem que o percebesse, preocupava-se com o que deveria vestir para o jantar com Jourdan. O dinheiro que havia economizado era suficiente para comprar um vestido bem bonito.
Depois de muito tempo de ausência, viu Podge observando-a enquanto esfregava a pata nos bigodes.
A relação com os animais parecia muito mais fácil, Melly refletiu. Podge, por exemplo, tudo o que queria na vida era um belo pedaço de peixe, um rato para caçar e um canto onde pudesse se aconchegar e dormir.
Mas os homens... Bem, com os homens existia sempre a necessidade de se estar atenta. Ainda mais quando se tratava de alguém como Jourdan Lanier, tão charmoso e tão diferente de qualquer outro que havia conhecido.
De repente Melly constatou que toda a sua resistência em sair com Jourdan tinha sido em vão. Sim, ela queria provar champanha cor-de-rosa e recordar aquela noite pelo resto da vida.
Enquanto o táxi se dirigia para o restaurante, Jourdan Lanier observava Melly com insistência. Ele estava impecável, vestindo um smoking e uma camisa branca rendada.
Melly, com a respiração contida e sem pronunciar uma única palavra desde que tinham entrado no carro, seguia ao lado dele.
— Você está linda, Melandra — comentou com simpatia. Ela usava um vestido azul-marinho que contrastava lindamente com o cabelo liso e claro.
— Obrigada.
— Esses brincos de pérolas também são belíssimos.
— Eram da minha avó, sr. Lanier — ela procurava mostrar-se tranqüila.
— Seria muito pedir que me chamasse de Jourdan? — A pergunta parecia diverti-lo. — Não é um nome tão feio, é?
— Pelo contrário, é um nome muito bonito. — Melly se sentia inibida com aquele olhar insinuante.
— Estou contente por ter mudado de idéia e decidido vir jantar comigo.
— Será uma excelente oportunidade para substituir o costumeiro peixe com batatas — Melly sorriu. — Geralmente é esse o meu jantar quando volto do cinema.
— Você reúne um quê de inocência com um certo ar de mistério, sabia?
— Aprendi a ser sincera, só isso.
— Então seja sincera e admita que minha companhia não é tão ruim.
— Como eu poderia julgar ruim a companhia de alguém que vai me proporcionar um delicioso jantar, sr. Lanier? — Melly percebeu algo estranho na voz dele.
— Eu me chamo Jourdan — ele se aproximou tão depressa que ela se afastou, assustada. Levando a mão ao queixo de Melly, Jourdan insistia: — Diga meu nome... isso é uma ordem.
— Por que deveria obedecer? — protestou, fixando os olhos dourados no rosto de Jourdan. — Talvez esteja acostumado com a obediência de outras mulheres, mas, tenha certeza, sr. Lanier, não sou como elas.
— Eu sei. Você procura me manter a distância, para proteger sua valiosa castidade. — Enquanto estava falando, mantinha a mão no pescoço de Melly. — Posso sentir-lhe a pulsação, Melandra. Você tem medo de mim, não é verdade?
— Só estou um pouco inibida. Nunca fui ao Ritz e sei que é um lugar bastante requintado.
— Então é por isso? Pensei que fosse por causa do meu charme... — Enquanto falava, deixou que a mão escorregasse para o ombro de Melly.
— Não faça isso, Jourdan — ela pediu, afastando-se.
— Mas você age como se estivesse com medo. — Ele ficou sério e voltou para o seu canto.
— Não quero que me interprete mal, sr. Lanier, mas eu não sou liberal... pode me chamar de antiquada, se quiser.
— Então quer dizer que você não é uma daquelas loiras inglesas com quem um homem corre perigo?
— Comigo estará sempre seguro, sr. Lanier — o bom humor estava de volta com Jourdan no outro canto do táxi. — Os estrangeiros não deviam acreditar em tudo que lêem sobre as garotas inglesas... somos tão diferentes umas das outras como as flores num jardim.
— E com qual delas você se identifica? Com uma rosa cheia de espinhos?
— É, pode ser... mas prometo não machucá-lo se continuar afastado de mim.
— Parece que você aprendeu muito com sua avó. — Jourdan balançou a cabeça e sorriu.
— É verdade. Vovó era uma mulher maravilhosa, morei com ela desde pequenininha.
— As melhores lições são aquelas que aprendemos cedo. — O olhar de Jourdan se deteve no rosto de Melly. — Eu também tive uma avó que costumava fazer crochê e contar histórias sobre os heróis da França. Como os ingleses, nós também temos uma história, repleta de heróis. Seria uma pena se os jovens deixassem de acreditar na beleza do romantismo, não seria?
— Que bom que me compreende! — Melly parecia mais à vontade. — Mas, por favor, não me julgue puritana demais.
— Não, pode ficar tranqüila. Você tem valores que eu não só aceito como também procuro respeitar.
— Você realmente... respeita?
— Claro. Acho inclusive que foi um presente do destino tê-la encontrado na clínica quando precisei. Você é inscrita como doadora de sangue?
— Não...
— Então foi muita sorte você estar por perto no momento em que fui internado. — Jourdan fez uma careta, lembrando a dor que sentiu naquele dia. — Meu irmão trabalha na Embaixada Francesa aqui em Londres, e sua esposa tinha me convidado para um jantar. De repente, comecei a passar mal. Quando acordei, estava num quarto de hospital e uma enfermeira examinava minha pulsação.
Enquanto falava, Jourdan segurou a mão de Melly e observou-lhe os dedos delicados, que contrastavam com os seus, fortes e bronzeados. Ele usava um anel torneado com ouro branco.
— Ainda bem que tudo já passou...
— É, ainda bem. Mas, diga-me uma coisa, Melandra: por que você trabalha na cozinha do hospital?
— Porque gosto.
— Se gosta de cuidar dos doentes, devia ser enfermeira.
— É verdade, mas o curso preparatório é bastante demorado, e quando vim para Londres já tinha vinte anos.
— Compreendo. E o que você fazia antes de vir para Londres?
— Trabalhava numa escola de equitação — respondeu, retirando os dedos que estavam sob a mão de Jourdan. — Não me importo de trabalhar na cozinha, gosto muito do meu serviço, sr. Lanier.
— Gostaria que me chamasse pelo primeiro nome. Por que tantas formalidades? Temos ligações de sangue, lembra?
— Vou tentar...
— Espero que consiga antes que a noite termine — Jourdan levou a mão de Melly aos lábios e a beijou. Nesse momento, o táxi estacionava em frente ao hotel Ritz, e um porteiro uniformizado abriu a porta do carro para que descessem.
A chegada proporcionou a Melly o alívio de poder se esquivar da mão suave de Jourdan.
— Boa-noite — o porteiro aceitou a gorjeta e em seguida os encaminhou à entrada do hotel.
O ambiente do Ritz correspondia plenamente a todos as expectativas de Melly. Todo era maravilhoso. No ar havia um delicioso aroma de vinho e de café. Do teto dourado pendiam lustres que brilhavam sobre os adornos das colunas e espelhos.
Se os garçons usassem perucas e culotes de cetim, Melly teria a certeza de haver retrocedido no tempo.
Ao lado de Jourdan, ela subiu a larga escadaria, cujos degraus de mármore levavam ao salão de coquetéis, onde uma mesa fora reservada para eles. Sobre a mesa, em pequenas tigelas, havia nozes e torradas e, num balde com gelo, uma garrafa de champanha
Melly ficou atenta aos movimentos do garçom, colocando champanha nos copos, e sorriu ao notar que ele era mesmo cor-de-rosa.
— A senhorita está celebrando o aniversário, sir? — o garçom tinha percebido que aquela era a primeira visita de Melly ao Ritz.
— Não, estamos comemorando outra coisa. — Jourdan olhou para Melly, satisfeito.
— Vai escolher os pratos agora, sir?
— Não, Enrico, antes vamos tomar o nosso champanha.
— Pois não — o garçom fez uma reverência cortês e se afastou.
— À juventude — Jourdan ergueu a taça, e Melly o acompanhou. — Ela borbulha como champanha, e, quando nos damos conta, não existe mais. Obrigado, Melly, por ter estado perto de mim quando precisei de você.
— Não fiz mais do que a minha obrigação, sr. Lanier.
— Melly, será que vou ter de arrancar meu nome à força... Você parece uma criança teimosa. Não agüento mais tanta formalidade.
— Preciso de tempo para... me acostumar com você — Melly tomou um gole de champanha cor-de-rosa. — Humm, é delicioso!
— Conheço outras coisas de que você com certeza iria gostar. — Jourdan a observava.
Melly evitou responder, olhou ao redor, curiosa com o ambiente.
— O palácio de Buckingham não pode ser mais majestoso que este lugar... vovó não acreditaria se me visse agora. — Ela fez questão de mostrar que não havia entendido a intenção das palavras de Jourdan.
— Talvez ela a esteja vendo, petite — Jourdan levou a taça de champanha aos lábios enquanto contemplava Melly no belo vestido de seda, de corte simples, combinando com sua figura delicada. — É bom pensar que alguém a quem fomos muito chegados zela por nós, não é?
— É verdade. Às vezes tenho a impressão de que vovó está por perto, ainda preocupada comigo. Mas eu... — Melly se interrompeu e bebeu mais champanha.
— Você ia dizer...
— Oh, não era nada... eu só estava pensando.
— Gostaria de saber o que pensava, Melandra.
— Só fiquei surpresa ao perceber que você acredita que possa existir outra vida depois desta.
— Por que me julga tão descrente, mocinha?
— Acho que é por causa da sua sofisticação.
— Talvez eu seja um homem sofisticado, mas isso não significa que tenha perdido a fé. Melly, sabia que você é uma moça ingênua?
— Você acha mesmo? — Melly estava atenta aos olhares curiosos que as outras mulheres lançavam a Jourdan. Com aquele porte, chama muito a atenção sobre si. Talvez o estivessem confundindo com algum ator famoso.
Melly sentia-se gratificada em saber que havia lhe salvado a vida. Jourdan, de repente, mostrava-se uma pessoa afável, carinhosa até. Mas a insistência dele em continuar a olhá-la deixava-a encabulada.
— Você ficou repousando em Nice ou em Saint-Tropez? A cor da sua pele faz com que todos os homens aqui presentes pareçam doentes. — Ela parou um pouco, observando-lhe a covinha sob o queixo. — Mas no hospital você também já estava bronzeado.
— Naquele fim de semana eu tinha tomado um pouco de sol, mas você não devia olhar para os outros homens — Jourdan a repreendeu. — Eu não vejo mulher nenhuma aqui dentro.
— No entanto, sabe da presença delas, não sabe? Um francês sempre fica atento...
— Importa-se se eu fumar? — Jourdan sorriu, tirando um estojo de couro do bolso interno do smoking. — Poderia lhe oferecer um cigarro se minha intuição latina não me dissesse que uma de suas virtudes é não fumar.
— É, você acertou, não fumo mesmo. — Melly bebeu um pouco mais do champanha, enquanto ele acendia um charuto. — Onde foi que conseguiu esse bronzeado? Deve ter ficado muito exposto ao sol.
— Em Belize, uma ilha no Caribe. Tenho uma casa lá... Ficou surpresa, Melandra?
— É que você não parece do tipo caseiro.
— Pois é, mas eu adoro aquela casa, fica bastante isolada. Aproveitei para bronzear o corpo inteiro. — Os olhos de Jourdan brilharam, maliciosos. — Você bem que precisava de umas férias. Quando foram as últimas que tirou?
— Em agosto — Melly imaginava Jourdan deitado numa praia ensolarada depois de nadar em águas cristalinas... Era uma tentação, e um sofrimento, ver-se ao lado dele num local tão romântico. — Passei uma semana em Devonshire, mas preferia não ter ido; o chalé de vovó agora pertence a outras pessoas. Muitas das flores do jardim foram substituídas por esculturas coloridas... — Melly se interrompeu, triste. — Tudo muda quando a gente cresce, não é?
— Não podemos evitar, ma petite, o que nos consola é que nem sempre muda para pior. Você, por exemplo, está na melhor fase da vida e devia se divertir mais — na voz de Jourdan havia uma certa arrogância. — Precisa se assumir, Melandra, e conheço uma ótima fórmula para isso.
— Você não conseguiria muito — Melly replicou. — Levo minha vida do jeito que eu quero...
— Você não fala a sério, Melly. Olhe em volta, todas essas mulheres não possuem nem metade dos seus encantos, mas se divertem muito.
— A vida não é só divertimento — ela argumentou.
— É, mas também não se resume em trabalhar feito uma louca, voltar para um apartamento solitário e ver um filme sábado à noite. Você precisa sair dessa concha, antes que fique tão dependente dela a ponto de se sentir insegura quando não estiver lá dentro. — Jourdan a observava, olhar fixo, através da fumaça do charuto. — O que aconteceu com você, Melandra? Esses olhos lindos deveriam sempre estar sorrindo.
— Eu... — Melly enrubesceu ao ouvir Jourdan elogiar-lhe a beleza dos olhos. — Eu concordei apenas em jantar, sr. Lanier, não disse que contaria a história da minha vida.
— Mon Dieu! — Jourdan recostou-se à cadeira. — Você sabe ferir quando quer... mas posso adivinhar o que aconteceu. Apaixonou-se por um jovem e ele lhe deu o fora, aí resolveu excluir o amor da vida. Certo?
— Errou outra vez. — Melly procurava ser discreta, não podia confiar naquele homem.
Passou a observá-lo. A luz dos candelabros fazia com que os cabelos claros brilhassem com maior intensidade. A pele bronzeada sob a camisa branca aumentava-lhe a aparência sensual. Melly percebeu que seria muito difícil resistir a tanta sedução; precisava ficar atenta.
— Quer dizer que nenhum rapaz lhe deu o fora? Então deve ser uma freira fugitiva.
— Nem tanto.
— Pelo jeito... você é uma marciana. Acertei? — Ele procurava diverti-la, e Melly sorriu com a tentativa.
— Não vamos mais falar sobre mim. Tive uma vida comum. Por que comprou uma casa tão longe? — Melly parou, temendo ser indiscreta.
— Tão longe? Para que existem os aviões?
— É... a sua mulher... — Ela viu que se complicava cada vez mais. Devia mesmo ser muito ingênua.
— Não tenho mulher. Sou divorciado — Jourdan falava abertamente sobre sua vida. — Mas tenho uma filha que vive com a mãe na América. Gostaria de visitá-la com mais freqüência, só que é impossível. Está vendo, Melly, agora nos conhecemos um pouco mais. Você é uma moça solteira desconfiada dos homens, e eu tenho uma filha de um casamento fracassado.
Jourdan acabava de falar quando o garçom se aproximou para tornar a encher os copos.
— Gostariam de pedir agora?
— Sim, obrigado.
Enrico lhes entregou os cardápios. Logo depois Jourdan perguntou se ela gostaria de começar com caviar.
— Sério? — Os olhos de Melly se iluminaram. — Sempre quis saber que gosto tem isso.
— Você vai gostar. Quanto ao prato principal, que tal um linguado à Dover... um filé... ou talvez lombo de porco?
— Lombo de porco — Melly estava faminta. Lembrou-se da carne fria que na noite anterior Podge comera.
Enquanto Jourdan conversava com Enrico, Melly pensou em qual seria a verdadeira opinião dele a seu respeito. Talvez estivesse apenas querendo se divertir com uma moça simples, vinda do interior. Chegou a imaginar como seria a ex-sra. Lanier. Na certa uma mulher tão sofisticada quanto ele. Uma mulher que não ficaria deslumbrada com um restaurante como o Ritz.
— Você se importa com meu sotaque de Devonshire? — Melly perguntou de repente.
— Não, eu até o acho interessante. Por quê?
— É que, bem...
— Gostaria de ser mais desembaraçada? — Os olhos brilhantes de Jourdan observavam o rosto de Melly.
— Imagino que esteja habituado com outro tipo de mulher... — Melly observou, enquanto os dedos faziam girar a base da taça, indicando que o olhar de Jourdan a deixava nervosa.
— Acho que você continua me interpretando mal. Minha avó era galesa e meu avô trabalhava em minas de carvão... um aspecto do meu passado que nunca agradou Irene.
— Quem é ela?
— Minha ex-mulher.
O garçom se aproximou para consultá-los sobre o vinho que deveria acompanhar o jantar, e Melly concluiu que Jourdan havia sido casado com uma daquelas mulheres artificiais, que apenas se preocupavam em impressionar as pessoas através da aparência externa. Mulheres que só conseguem amar a si mesmas.
— Está com fome? — Jourdan se inclinou sobre a mesa e percebeu-lhe o olhar ausente. — Você me parece longe daqui... Sonha com uma ilha ensolarada, Melandra?
— Não... estou morrendo de fome. Comi pouco no almoço, precisava sair para comprar este vestido. A moça da loja disse que azul-marinho ficaria bem, mas...
— Fico lisonjeado por isso, Melly. O vestido é muito bonito e combina com você.
— Mas ele custou muito caro. — Melly mordeu o lábio. O vestido consumira-lhe grande parte das economias. — Desculpe, não devia...
— Compreendo perfeitamente, Melly. O salário da clínica não deve ser muito alto.
— Mas eu gosto de trabalhar lá, senhor... Jourdan.
— Champanha, depressa, vamos brindar a isso. — Ele ergueu a taça, entusiasmado. — Você conseguiu me chamar pelo nome!
— Não brinque comigo, por favor.
— Brincar? — ele franziu as sobrancelhas. — Pensa que a estou ridicularizando?
— Eu sei que me acha...
— Você não sabe o que eu acho, e agora é hora do jantar, vamos? — Jourdan afastou a cadeira e aproximou-se de Melly.
— Para onde?
— Jantar, minha doce caipirinha...
— Jourdan, eu...
— É brincadeira, querida, uma simples brincadeira.
Descendo os degraus, Melly pôde ver duas figuras refletidas nos espelhos enormes. A moça no vestido de seda era ela. O homem alto, um estrangeiro atrevido que num determinado momento entrara em sua vida, e que, depois daquela noite, não pretendia mais encontrar.
Foram levados a uma mesa que no centro tinha um arranjo de flores. Assim que se sentaram, o garçom sacudiu um guardanapo e colocou-o sobre o colo de Melly.
— Obrigada — ela sorriu, satisfeita com aquele gesto.
— Vejo que não está desapontada, seus olhos me dizem isso.
— Pareço muito boboca, não?
— Pelo contrário, acho você muito espontânea.
— Pelo jeito você vem sempre aqui, não é, Jourdan? Até chama o garçom pelo nome...
— Sempre que estou em Londres e tenho uma companhia especial.
— Agora sou eu que me sinto lisonjeada — Melly disse, sem nenhuma modéstia, decidida a não se deixar levar pelo charme de Jourdan Lanier.
— Você gosta de receber elogios de um homem? — Um sorriso surgiu nos lábios dele. — A maioria das mulheres gosta disso.
— Quando o elogio é sincero eu não me importo, mas quando apenas faz parte do jogo...
— Que jogo, mocinha?
— Você sabe muito bem a que me refiro.
— Não, não sei. Por favor, me explique — Jourdan havia ficado nervoso com as palavras de Melly.
— Os franceses não se consideram os melhores amantes do mundo? Você não pode criticar uma moça do interior que acredita nisso.
— Não se esqueça da minha porção de sangue galês... ele pode ter alterado minhas características francesas — Jourdan parecia que ia estourar de raiva. — Você me considera um playboy?
— Eu... não sei... — de repente Melly se deu conta de que sabia muito pouco sobre ele. — Você também é do serviço diplomático?
— De certa forma, estou aqui num serviço especial militar — ele falou, mais calmo.
Melly quase perdeu o fôlego. Agora sabia por que Jourdan possuía aquele físico que lembrava um guerreiro.
— Compreendo — ela sorriu. — Você faz um trabalho perigoso e tem todo o direito de se divertir quando está de licença.
— Pode ter certeza, Melly. — O tom de voz agora era bastante sarcástico, — Depois de passar meses na companhia de homens, nada como uma boa companhia feminina.
— Mas aposto que não é sempre que se dispõe a sair com ajudantes de cozinha — Melly não sabia por que estava dizendo aquilo, mas sempre que Jourdan lhe fazia algum elogio ela entrava em pânico. A intuição a avisava de que não deveria se deixar seduzir pelas palavras persuasivas daquele estrangeiro.
— Melly, por favor, veja se consegue se desarmar um pouco. Convidei você para vir ao Ritz comigo porque queria estar com você. Gosto da sua companhia. Mas se continuar agindo assim vai parecer que continuo em serviço.
— Quando pretende voltar?
— Está querendo se livrar de mim?
— Não...
— Pensei que estivesse; na verdade, pretendo ir ver minha filha e passar algum tempo com ela.
Jourdan calou-se por alguns instantes, e Melly imaginou como seria a menina.
— Mas e o serviço?
— Vou deixá-lo. Chega um momento em que todo homem sente que precisa se estabelecer, e eu já passei dos trinta. Quero ficar mais com Jody; daqui a pouco ela estará adulta, e eu nem tive a chance de conhecê-la direito.
— Então ela já é grande? — Melly gostava de ouvi-lo. Se Jourdan lhe confiava tantas particularidades era porque sabia que ela poderia compreendê-lo.
— Fez doze em dezembro. — Um sorriso assomou-lhe aos lábios. — Jody já é uma mocinha, mas Irene não quer admitir. Tem medo de envelhecer. Tenho a impressão de que ela não criaria problemas se eu quisesse a custódia de Jody.
— Então peça, Jourdan.
— Não é fácil, Melly. Para isso eu precisaria de um lar estabelecido.
O garçom se aproximou e serviu o caviar acompanhado de finas fatias de pão preto, bolotas de manteiga e pedaços de limão. Após espremer o limão, Melly provou o prato tão famoso.
— Jourdan, nunca pensei que fosse tão gostoso!
— Agora você me parece mais animada — ele disse, sorrindo. Melly não entendia como Irene pôde deixá-lo. Provou outro bocado de caviar e tomou um gole de vinho.
— É, tenho que admitir que você sabe viver.
— E não é ótimo? — Jourdan ergueu o copo de vinho. — Mas essa história já acabou, vamos iniciar uma nova.. Só espero que você me ajude quando eu precisar de um novo favor. — Melly lhe dirigiu um olhar desconfiado, e ele acrescentou sorrindo: — Não essa espécie de favor, senhorita Não-Me-Toquel
Como sobremesa, Melly resolveu experimentar a torta de laranja.
— Você tinha razão, Jourdan. É boa mesmo.
— Que bom que gostou, Melly!
— Acho que esta noite até vou sonhar com ela.
— Essa me acertou em cheio — Jourdan colocou um pedaço de queijo camembert numa torrada. — Quer dizer que prefere sonhar com uma torta de laranja?
— Já existem muitas mulheres sonhando com você, Jourdan. — Melly levou à boca outro pedaço de torta imaginando como deveria ser preparada. Mas sabia que nunca conseguiria fazer nada parecido num fogãozinho de duas bocas.
— Você me considera um grande paquerador, não é, Melly? Por quê?
— Bem, Jourdan... Você é um homem bonito... — Melly sentia dificuldade em continuar. — Do tipo galã de cinema.
— Tudo bem, não vou dizer que me acho um homem feio, mas isso não quer dizer que viva seduzindo mulheres por aí. Muitos conquistadores são homens aparentemente tímidos, sabia? Não se pode julgar uma torta pela cobertura.
— Sabe quem costumava dizer isso? — Melly lhe dirigiu um olhar surpreso.
— Não.
— Minha avó.
— A minha também, mocinha. Só que eu tenho valores e amor-próprio, não se esqueça.
— Desculpe-me — Melly disse. — É que a maioria das enfermeiras na clínica estava louca por você.
— E vê algum mal nisso? — Jourdan perguntou, incisivo.
— Não, Jourdan, pelo contrário. O problema é que procuro evitar qualquer envolvimento com as pessoas.
— Gostaria de saber por quê, Melly. Você está aqui comigo, e isso mostra que não tem tanta aversão aos homens como insiste em afirmar. Parece muito meiga, com esses olhos brilhantes, esses lábios macios... não deveria ser tão rígida.
— Por favor, não diga essas coisas... não quero ouvi-las.
— O que gostaria que eu dissesse? Que me chateia? — Jourdan a observava com atenção. — Vamos, seja sincera, pretende continuar fugindo o resto da vida?
— Claro que não...
— Ora, petite, se quisesse manter os homens a distância, seria melhor cobrir os cabelos e não usar esse vestido de seda, tão sensual.
Melly acabou de comer o pedaço de torta e limpou os lábios com o guardanapo. Jourdan parecia mesmo aborrecido, mas ela não permitiria que aquele estrangeiro se excedesse, criando um clima de intimidade entre os dois. Precisava fazê-lo acreditar que não estava interessada.
— Café? — Jourdan perguntou com o semblante sério.
— Por favor.
— Gostou do jantar?
— Estava ótimo, obrigada.
— Ainda bem que alguma coisa a agradou. Senão você teria perdido a noite.
Melly não fez comentários. Ainda bem que Jourdan não percebera que o julgava o homem mais atraente entre os que ali se encontravam. Ela precisava esconder os verdadeiros sentimentos.
— Melly, eu não devia ter insistido para que saísse comigo; depois do café vou levá-la para casa.
— Posso pegar o metrô, não lhe daria tanto trabalho...
— Mon Dieu — Jourdan lhe dirigiu um olhar furioso. — Faço questão de levá-la para casa. Quero ter certeza de que chegou bem. Pode ficar tranqüila, mocinha, não vou encostar um dedo em você.
Enquanto tomavam café, alguém tocou o ombro de Jourdan.
— Oi, estrangeiro. Eu tinha certeza de que era você. Sou capaz de reconhecê-lo mesmo de costas...
Melly olhou para a mulher elegante e a reconheceu de imediato. Era uma paciente que semanas atrás havia se internado na clínica para suspender as pálpebras e corrigir um implante de busto. Ela parecia mais linda do que nunca.
— Caroline! — Jourdan se levantou e beijou-lhe a mão. — Que bom ver você!
— O prazer é meu, querido. Agora me conte, por onde tem andado... você parece mais magro — Caroline tocou o rosto de Jourdan, num gesto sedutor. — Ouvi dizer que andou de molho... é verdade?
— Passei alguns dias no hospital, mas não foi nada sério. E você, como vai? Está me parecendo muito bem.
— Obrigada, querido — Caroline piscou para Jourdan e em seguida fitou Melly. Com certeza avaliava-lhe a idade e o preço do vestido.
— Acho que já nos encontramos antes — a mulher comentou. — Mas não consigo me lembrar onde. Será que foi no noivado de Betty Courtenay?
— Não, não conheço Betty Courtenay. — Quando Melly estava para dizer à mulher de onde se conheciam, Jourdan a interrompeu inadvertidamente.
— Melly, esta é uma amiga minha, a sra. Caroline Frome.
— Como vai, sra. Frome?
— Meu Deus... — Caroline Frome percebeu pelo sotaque que ela era do interior.
— O que foi, Caroline? — Jourdan parecia estar se divertindo. — Esqueceu alguma coisa?
— Não... não foi nada. Então, pobrezinho, quer dizer que esteve de cama num hospital... pode-se saber o motivo? Você sempre foi forte como um touro — e olhando para Melly. — Algum problema, querida?
— Não, apenas um pouco de dor de cabeça — ela se sentia cada vez mais tensa. Tinha a impressão de que Jourdan se divertia à sua custa, talvez aborrecido por ela não ter lhe dedicado as mesmas atenções que aquela mulher.
O olhar de Caroline se modificou quando tornou a observar Melly... de repente a reconheceu. O que Jourdan Lanier fazia na companhia de uma serviçal? Na clínica, Caroline Frome a tratara como a uma criada, que se encontrava ali para receber ordens e cumpri-las.
Melly observava o rosto artificial de Caroline Frome, cujas faces pareciam mais rosadas do que quando se hospitalizara. Era uma mulher fascinante, ainda mais com o vestido prateado envolvendo-lhe o corpo perfeito. Só o olhar ferino destoava de tanta beleza.
— Vai ao casamento de Betty Courtenay? — Caroline perguntou a Jourdan. — Minha irmã June será uma das damas de honra, e você sabe que ela o adora. É uma garota tão alegre...
— Recebi o convite, sou muito amigo de Jack Courtenay, mas acho que não vou poder comparecer. Preciso ir aos Estados Unidos, cuidar de um assunto pessoal.
— Vai se reconciliar com a deslumbrante Irene, Jourdan?
— Não, não vou — ele respondeu num tom seco.
— Que pena, querido! Todos achavam que vocês dois faziam um par perfeito, ambos pessoas tão distintas — os olhos de Caroline se voltaram para Melly. — Jody deve estar crescidinha... será que ela vai ser tão maravilhosa quanto a mãe?
Melly resolveu se retirar, julgou que não poderia permanecer ali, deixando que Caroline Frome a humilhasse daquele, jeito.
— Com licença — Melly afastou a cadeira.
— Aonde você vai? — Jourdan lhe dirigiu um olhar severo.
— Ao toalete — levantou-se e saiu da sala de jantar. A parede espelhada do corredor parecia interminável, mas por fim conseguiu atravessar a porta giratória e sair do Ritz.
Enquanto descia os degraus da estação do metrô que a levaria até perto de casa, Melly constatou que a noite de Cinderela com o Príncipe Encantado terminara.
Desolada e com o coração batendo forte dentro do peito, experimentou uma sensação desconhecida: um misto de alívio e angústia. Nunca mais veria Jourdan Lanier, os dois habitavam mundos diferentes. No dele, as mulheres eram desinibidas e viviam em bairros elegantes.
Ela não conseguia aceitar o que havia ocorrido. Fora humilhada por aquela mulher insensível, e Jourdan nada tinha feito para amenizar a situação. Nervosa, segurava a bolsa contra o peito, como se necessitasse de alguma coisa onde se apoiar. Seu olhar magoado e distante corria pelas paredes do túnel do metrô. Sem dúvida, Jourdan terminaria aquela noite com Caroline Frome.
Quando atravessou a rua na direção do ponto de ônibus, viu que era muito tarde e que havia poucas pessoas naquele trecho de Euston Road. Ao sentir o vento frio penetrando-lhe pelo vestido de seda lembrou-se de que tinha deixado o xale no restaurante.
Pelo adiantado da hora, Melly sabia que a condução ia demorar a passar. Estava com medo de permanecer ali sozinha. Mas era bem feito para ela, pensou, não devia ter se iludido com o champanha cor-de-rosa, nem com as flores.
Melly prendeu a respiração. A avó costumava lhe dizer que as páginas de um livro de mistério nem sempre proporcionavam uma leitura agradável... A lembrança súbita foi interrompida pelo som de passos atrás de si. Ela percebeu que não podia perder a calma. Afinal, as pessoas tinham o direito de ficar na rua até a hora que quisessem. Os passos se aproximavam mais e mais. E eram passos pesados, passos masculinos...
Segurou a bolsa com firmeza, numa atitude de defesa. Respirando fundo, ela se voltou, o rosto iluminado pelas luzes da rua.
— Afaste-se — gritou. — Não se atreva a me tocar!
— Ei... — sentiu que alguém lhe segurava o braço. — Você está apavorada, Melly, calma!
Alguns instantes se passaram até que percebesse que o homem era Jourdan Lanier.
— Desculpe se a assustei, mas, como você mencionou o metrô, achei que pudesse encontrá-la aqui. Eu sabia que a estação de Baker Street ficava próxima à sua casa.
— Largue-me — ela pediu, ainda tensa.
Mas Jourdan não a largou. Em vez disso, puxou-a para si e beijou-a na boca.
— Isto vai lhe ensinar a não fugir mais de mim — ele murmurou. — Sei que você não gosta de beijo, portanto encare-o como uma punição.
Melly tentava se livrar daqueles braços que a apertavam, mas não conseguiu. Quando finalmente ela viu que o ônibus se aproximava, ordenou:
— Tire suas mãos de mim ou eu grito e digo que tentou me assaltar.
— Não fale bobagens — Jourdan a sacudiu e olhou ao redor. Próximo dali um bar ainda estava aberto.
— Vamos beber alguma coisa. Está precisando, petite, e eu quero conversar com você.
— Meu ônibus já chegou... — Melly ainda tentava escapar. — Pare de me agarrar, seu... seu bruto.
— Tudo bem, mas, por favor, venha comigo — falou, soltando o braço de Melly.
— Jourdan, eu não vou.
— Então, vai ficar aqui sozinha de novo — ele disse, mostrando o ônibus que se afastava.
— Está vendo só? Perdi o ônibus por sua causa.
— Melly, quer parar de agir como uma criança?
— Eu? Agindo como uma criança?
— Isso mesmo, venha — Jourdan a conduziu ao outro lado da rua. — Esqueça Caroline.
— Ah... esquecer Caroline, é? — Melly parou e parecia que, de novo, ia tentar fugir.
— Também acho que ela foi indelicada com você.
— Só Caroline? — O sarcasmo na voz dela era flagrante.
— O que você quer dizer com isso?
— Não acha que também contribuiu para que Caroline agisse daquela maneira? — a voz de Melly soou clara e firme.
— Eu?
— É, você, sr. Jourdan Lanier!
— Parece-me que existe um grande equívoco nisso tudo, vamos... — Jourdan a encarou e em seguida os dois caminharam até o bar.
Lá dentro as pessoas falavam alto, e lim cheiro forte de cerveja se sentia por todo o ambiente. O som estridente de um piano servia de fundo aos ruídos característicos do bar. Jourdan olhou ao redor e encontrou dois lugares no fim do balcão.
— Venha.
Melly o acompanhou; alguns fregueses olharam-nos curiosos, imaginando que Jourdan fosse um policial. Cansada, ela aproximou-se do balcão; talvez o conhaque que Jourdan havia pedido lhe fizesse bem.
— Parece que esfriou mesmo — o barman comentou. — O senhor e a jovem vêm de alguma festa? Não é sempre que aqui aparecem pessoas vestidas assim.
— Fomos a um jantar — Jourdan pegou os conhaques. — Você teria um lugar mais calmo? Minha namorada não está se sentindo muito bem.
— Por ali, senhor — o homem indicou um espaço separado daquele ambiente por uma cortina de veludo desbotada. — O senhor e a moça vão se sentir melhor lá.
— Ótimo — Jourdan se voltou para Melly com os copos na mão. — Vamos nos sentar, a gente precisa conversar.
— Prefiro ficar aqui...
— Por favor, Melly — sua voz não era ameaçadora, apenas decidida.
Entraram no reservado sob os olhares curiosos dos poucos fregueses que ainda persistiam em enganar a própria solidão. Jourdan indicou um lugar onde ela ficaria de costas para a parede, assim poderia protegê-la de olhos indiscretos que a examinavam dos pés à cabeça.
Sentaram-se, e ele lhe entregou um dos copos.
— Eu... não sei por que resolveu me seguir. Você não deveria ter abandonado sua amiga Caroline.
— Ela é apenas a mulher de um amigo meu.
— É mesmo? — a voz de Melly era irônica. — Vocês estavam se entendendo tão bem que achei melhor não incomodá-los.
— Ciúmes?
— Nem um pouco. — Ela evitava olhá-lo de frente, pois aqueles olhos castanhos a perturbavam. — Eu a conheci na clínica. Não me pareceu tão encantadora nas vezes em que lhe servi o almoço.
— Não sabia que Caroline esteve doente — Jourdan balançava o copo. — Acho que não deveria usar esse tom de voz, não combina com você.
— A senhorita Frome não estava doente — Melly não pôde evitar um certo tom de desprezo. — Foi à clínica para tratar da beleza. — Tomou um gole do conhaque, acrescentando em seguida: — Sinto muito, mas ela me desprezou demais. É uma pessoa egoísta, e não tive nenhum prazer em conhecê-la.
— Compreendo, Melly, mas não pense que admiro aquele tipo de mulher. O marido é um bom sujeito, mas às vezes a gente tem a infelicidade de se envolver com a pessoa errada.
Jourdan ficou sério, talvez estivesse relembrando o próprio casamento. No outro canto da sala, o pianista resolvera tocar uma música suave, e Melly se sentia bem mais tranqüila.
— Pois é — Jourdan murmurou de repente —, o tempo passa e as coisas se acomodam... Você gosta muito do trabalho na clínica, Melly? — E sem lhe dar tempo para responder acrescentou: — Gostaria de ser a companheira de minha filha?
— Mas ela vive com a mãe... — Aquela pergunta deixou-a perplexa.
— Até agora Jody morou com a mãe. Daqui para frente, prefiro que cresça sob minha proteção. Você não gostou da mulher que encontramos no Ritz, não é mesmo? Pois ela é um exemplo perfeito daquilo em que Irene quer que a menina se transforme. Meu sangue também corre nas veias de Jody, e não quero que ela assimile as maneiras egoístas da mãe. Eu me preocupo muito... acredite.
Melly observou o rosto de Jourdan, que mostrava sinais de preocupação, e sentiu pena de Jody por ter uma mãe parecida com Caroline Frome.
— Compreendo, Jourdan. No seu lugar também estaria assim...
— Já que compreende, concordaria em ser a governanta de Jody?
— Eu... eu não sei bem o que dizer. — Melly mal conseguia articular as palavras, tal a confusão em que se encontrava. — Acho que não estou preparada para assumir algo tão sério...
— Você é uma pessoa amorosa, e para mim isso é muito importante, pois demonstra que conserva ainda um pouco da inocência da infância no coração; e gostaria que fosse assim com Jody. Não quero nem pensar que minha filha possa vir a ser como a mãe, vulgar e preocupada somente com a aparência. Mulheres como Irene nunca compreenderão que beleza é apenas algo superficial. Quando começam a envelhecer ficam desesperadas com as rugas.
— Mas eu... — O olhar de Jourdan a convencia de que era parte importante nos seus planos.
— Preciso afastar Jody da mãe enquanto é tempo... Enquanto ela ainda é uma criança.
— Mas você disse que Irene não recusaria a custódia de Jody.
— Não acredito que ela me causaria problemas, mas seus pais, sim. Gostam muito de Jody, e com certeza iriam recorrer à justiça se lhes dissesse qual é a minha intenção. Alegariam que sou um homem divorciado, que não se casou outra vez, portanto, sem condição nenhuma de proporcionar um lar adequado a Jody. Fariam qualquer coisa para impedir que minha filha ficasse comigo.
— Mas, em que eu poderia ser útil? — Melly se mostrava desanimada, imaginando que nenhum tribunal consideraria a governanta de uma criança uma boa substituta para a mãe. Explicou isso a Jourdan.
— Acho que tem razão — Jourdan se recostou na cadeira, apanhou no bolso um charuto e o acendeu sem desviar os olhos do rosto de Melly.,
— É quase impossível — ela tentava evitar aquele olhar. — Sou apenas uma pessoa comum que trabalha na cozinha de uma clínica. Minha educação terminou aos dezesseis anos, e não tive nenhum preparo para cuidar de crianças. Os avós de Jody conseguirão tudo o que querem, e você sabe disso, Jourdan.
— Claro que sei, já pensei nisso também. Mas acho que não conseguiriam se eu tivesse uma esposa.
Uma esposa resolveria o problema de Jourdan. Melly, porém, não gostou de ouvir aquela constatação. E, sem que se desse conta do ciúme que sentia, sugeriu:
— Que tal a irmã de Caroline?
— Por favor, não quero ser agredido — Jourdan olhou-a, aborrecido. — O que eu tinha pensado é que você poderia...
— Não... Peça isso a qualquer outra, menos a mim... se é que você fala a sério..
— Nunca falei tão a sério, Melly — Jourdan se inclinou para a frente. — Você não tem compromissos pessoais, e achei que o trabalho na clínica não lhe proporciona uma carreira satisfatória. A menos que não se importe em aturar a arrogância de mulheres como Caroline Frome...
— Mas eu... eu não posso me casar com você. — Aquela idéia fazia seu coração disparar, mas a intuição lhe dizia que precisava refletir melhor. — Não... eu não quero me casar... nem com você nem com ninguém.
— Mesmo sendo um casamento por conveniência? Ouça, Melly, já fui casado e não quero passar pela mesma experiência outra vez. — Ele parou um pouco, tentando ser mais convincente. — Por isso, esse segundo casamento seria apenas um arranjo, para que eu pudesse me apresentar no tribunal com uma esposa. Tenho certeza de que isso derrubaria qualquer argumento dos pais de Irene. Além de tudo, ia ser bom para você, petite, teria uma ótima casa e uma vida muito agradável ao lado de Jody.
— Mas... casamento? — Melly se sentia dividida entre aceitar ou não. — Não, eu não acho que...
— Você sente aversão por mim?
— Não... não é isso.
— Mas está agindo como se sentisse.
Melly viu que seria mais fácil deixá-lo acreditar que não gostava dele. Assim, o assunto se encerraria ali mesmo.
— Pense bem, Melly — Jourdan insistiu, como se percebesse que ela estava à beira de uma decisão. — O mar das Antilhas é lindo, e a água é bem quente. Você gosta de nadar?
— Não, eu não gosto.
— A água também a assusta?
— O que me assusta é o que você acaba de me pedir. Nós nem sequer nos conhecemos...
— Se estou aqui, lhe fazendo essa proposta, é porque devo a minha vida a você. — Ele sorriu. — E seria uma forma de retribuir um favor que dinheiro nenhum no mundo pode pagar.
— Jourdan, já lhe disse que você não me deve nada. Por causa do meu sangue, já havia salvado outras vidas antes. Casamento é uma decisão séria, e existem outras moças que...
— Claro, mas elas exigiriam o lado íntimo da relação. Certo?
— Acho que deve pensar que sou anormal... — Aquelas palavras de Jourdan a deixaram totalmente inibida.
— Não sei bem o que pensar, Melly, mas essa fobia pelos homens me dá liberdade para sugerir que se case comigo apenas no papel.
— É isso mesmo ou você está fingindo? — Era difícil para Melly acreditar que ele falava a sério.
— Você tem minha palavra de honra.
Ela voltou a olhar para Jourdan, em cujo rosto a vida de soldado deixara suas marcas. Um homem que queria uma estabilidade para poder reivindicar a companhia da filha. Sim, nos termos que propunha, talvez fosse possível, ela pensava.
— Eu... acho que vou aceitar o... o lugar.
— Sim, acho que tem razão — Jourdan franziu as sobrancelhas ao ouvir a maneira como Melly encarava a proposta. — Essa é a melhor forma de encarar este casamento, apenas um negócio que precisa de um acordo legal. Nesses termos, negócio fechado?
— Para mim vai ser uma ótima mudança. — Os olhos de Melly começavam a se tornar mais brilhantes. — Eu adoro crianças...
— Pretendo morar no Caribe, você vai gostar de Belize. A temperatura faz as pessoas se sentirem bem e despreocupadas.
— Belize... — Melly murmurou.
Havia um estranho fascínio no nome da ilha onde Jourdan queria viver; os pássaros e a folhagem deveriam ser de uma beleza que não se via na Inglaterra. Melly se sentia animada com o acordo, mas, quando se levantaram, ficando muito próximos um do outro, teve de se lembrar de que seria sua esposa apenas no papel. Embaraçada por tê-lo tão perto, afastou-se, seguindo na frente em direção à noite. Melly tremia, mas a causa não era o vento gelado que lhe castigava o corpo.
— Você está com frio — Jourdan tirou o paletó e colocou-o sobre os ombros dela. — Parece que não tem nenhum táxi por aqui, vamos a pé?
— Tudo bem — Melly olhava para o céu, onde as estrelas pontilhavam o infinito. — Você pode chamar um táxi pelo telefone quando chegarmos ao meu apartamento.
— Eu não estava pensando em passar a noite com você, Melly.
— Não... — ela ficou vermelha. — Claro que não.
— Ainda não se convenceu de que lhe propus casamento com a única intenção de conseguir a custódia de Jody? — perguntou, afastando-lhe uma mecha de cabelo que teimava em encobrir parte do seu rosto. — Provavelmente nunca esteve envolvida com pessoas que têm mais dinheiro que humanidade. Na clínica pensei muito em Jody. Todos que a cercam acreditam que dinheiro possa comprar qualquer coisa. Mas eles desconhecem que um coração generoso e a sensibilidade de uma pessoa não são artigos que se encontram à venda. E você, petite, tem todas as virtudes, embora às vezes tente me provocar.
— Acho que nunca conseguiria provocá-lo de verdade.
— Está dizendo que sou insensível, mocinha?
— Você é duro como pedra... só se emociona quando fala em Jody, mas isso é muito natural.
— Admito que seja verdade — Jourdan gracejou — Caso contrário, eu não pediria para que se casasse comigo.
— Não tenho a menor dúvida, Jourdan. Sei que não sou o tipo da mulher que possa agradar a um homem como você. Não sou encantadora e não conheço muito sobre a vida..
— Então imagina que seja esse o meu tipo, hein?
— E não é?
— Não, senhora, e além de tudo jamais me prenderia outra vez. Não tenha medo de se casar comigo — Jourdan segurou-lhe a mão. — Vou respeitar nosso acordo, prometo.
— Eu moro nesta rua. — Melly sentia que o acordo entre eles ia lhe trazer muitas complicações.
— Você vai achar Belize um paraíso, vai se apaixonar pela ilha.
Paraíso, Melly pensava. Parecia muito fácil acreditar naquelas palavras. E não era apenas por causa do sol, das palmeiras, dos pássaros tropicais, mas porque estariam sempre juntos, compartilhando as alegrias do dia-a-dia, mesmo dormindo em camas separadas.
— Se quiser, pode subir para um café — Melly disse quando se aproximavam do prédio.
— Tem certeza? — ele já se dirigia a um telefone para chamar o táxi.
— Eu lhe devo um café, vamos entrar.
Ela abriu a porta do apartamento, e Jourdan a acompanhou até a pequena sala de estar, mobiliada com peças deixadas por sua avó.
— Muito agradável, me faz lembrar um chalé. Aquela não é uma autêntica cadeira de balanço Windsor?
Melly sorria enquanto punha a água para ferver.
— Viver entre os móveis de minha avó me faz sentir em casa; essa cadeira era dela.
— Além de ter trabalhado numa escola de equitação, parece que você gosta muito de histórias de cavalos — Jourdan examinou a estante cheia de livros. — Por que deixou os pôneis e veio para Londres?
— Foi na época em que perdi minha avó.
— Muitas recordações, Melly?
— Muitas. Você prefere o café com açúcar?
— Ah, está vendo? Se não tivesse me deixado sozinho lá na l clínica, hoje saberia um pouco mais sobre mim. Por que não voltou lá depois daquela primeira visita? Assustei você?
— Bastante. Uma, duas, ou nenhuma colher de açúcar?
— Uma é suficiente, obrigado.
Melly sentia o coração palpitar. Jourdan Lanier conseguia despertar-lhe sensações até então desconhecidas. Passou-lhe a xícara, e Jourdan se sentou na cadeira de balanço, muito à vontade.
— Vou providenciar para que tudo que você quiser seja enviado para Belize.
Melly esboçou um sorriso e se sentou no banquinho de carvalho sobre o qual a avó muitas vezes descansara as pernas.
— Eu não tinha pensado nisso.
— Acho bom começar a se preocupar com esses detalhes — Jourdan olhava ao redor, apreciando a sala. — Você deve ser muito cuidadosa com o que estima.
Estima, com certeza era uma palavra de que Jourdan desconhecia o significado. Ele via aquele casamento como um simples acordo, não estava emocionalmente envolvido, e sim, preocupado com a filha.
— Jourdan, eu estava pensando... — Ela não conseguiu terminar a frase, ainda se sentia insegura com a idéia do casamento.
— Espero que não esteja com segundas intenções, Melly, imaginando que nosso casamento irá além daquilo que combinamos.
— Sei o quanto você quer ter Jody de volta... e acho que tem esse direito. — Melly tomou o café e, após alguns instantes que pareceram intermináveis, balançou a cabeça devagar. — E quanto ao acordo, no que depender de mim, pode ficar tranqüilo.
— Sabe, Melly, não tentaria obter a guarda de Jody se Irene fosse uma boa mãe. Mas ela não se importa nem um pouco com a menina. — Jourdan se interrompeu, praguejando algo em francês. — Não quero que minha filha cresça desse modo... eu a quero comigo, entende? — Os olhos dele brilhavam. — Como você diz, tenho meus direitos e, com sua ajuda, espero proporcionar a Jody um lar feliz, onde passe a adolescência sem preocupações e sem correr o risco de se tornar uma cópia da mãe.
— Jourdan...
— Sim, Melly.
— Quando foi que você decidiu... me pedir em casamento?
— Quando estava na ilha, me recuperando da cirurgia. Fiquei impressionado com o seu desprendimento. Era algo tão contrastante com tudo que eu lembrava de Irene que concluí que deveria afastá-la de Jody... por mais terrível que isso possa parecer. — Jourdan se inclinou para a frente, fitando Melly. — Tenho certeza de que encontrei a pessoa ideal para me ajudar.
Melly não podia evitar aquele olhar, sentia-se mais viva do que nunca... Uma sensação semelhante àquela de cavalgar pelos campos de Devonshire.
— Eu me casarei com você — ela disse, ansiosa. Não queria nem pensar nas conseqüências daquele ato. Queria apenas estar ao lado de Jourdan, e, embora o casamento fosse apenas no papel, faria o máximo para proporcionar um lar feliz a ele e a Jody.
Ela sabia que Jourdan estava sendo sincero quando falava de Jody. Essa sensibilidade aguçada Melly herdara da avó. Jourdan nunca separaria a filha da mãe caso não achasse ser isso extremamente necessário.
As dúvidas que assaltavam Melly permaneciam ocultas em seu íntimo... tão secretas que ela não podia dividi-las nem mesmo com o homem com quem acabara de concordar em se unir.
— Amanhã vou comprar um anel para você. Tem preferência por alguma pedra? Diamantes? — ele perguntou, já de saída.
— Imagine... são muito sofisticados para mim...
— Mas são lindos, petite.
— Obrigada. — Ela sacudiu a cabeça. — Se quer mesmo me dar um anel, prefiro um no estilo vitoriano. Você sabe, de pequenas pérolas, formando uma espécie de flor, algo mais ou menos assim.
— Melly, você é realmente uma moça incomum — Jourdan a beijou no rosto. — Vamos nos casar logo que tudo estiver arranjado, mas agora é melhor eu ir.
— Tudo bem, boa-noite.
Ao deixá-la, Jourdan sorriu para si mesmo. Parecia que seus planos começavam a dar certo.
A cerimônia e comemoração do casamento de Melly e Jourdan Lanier aconteceu nas dependências da Embaixada Francesa.
Uns dias antes, Jourdan a apresentou ao irmão Claude Lanier e à cunhada Marcelle que, apesar da alta posição que ocupavam em Londres, formavam um casal bastante simpático. Claude era bem mais velho que Jourdan e parecia estar satisfeito com o fato de o irmão ter escolhido uma moça inglesa para se casar.
A cerimônia foi breve e simples, e Marcelle havia se encarregado de providenciar a recepção. O champanha era de uma ótima safra, e o bufê oferecido aos convidados estava delicioso. Como a maioria das pessoas conversava em francês, Melly permaneceu calada ao lado de Jourdan, bebendo champanha e procurando se acalmar.
Ela já era a sra. Lanier e não conseguia tirar os olhos do marido, que, feliz, falava com os convidados.
Melly, às vezes, tinha a impressão de que diante de si encontrava-se o príncipe encantado que esperara por toda uma vida. Jourdan nunca lhe pareceu tão elegante: terno azul-es-curo, camisa de seda e uma gravata que brilhava com a luz do ambiente. Ela viu que não atingia os ombros dele, mesmo usando sapatos de salto alto.
Melly se surpreendia com a própria coragem, mas gostaria de que a avó estivesse compartilhando daquele momento. Com certeza ela a abençoaria, com as mesmas mãos suaves que tanto a haviam acarinhado.
Na hora de ir embora, Melly respirou, aliviada. Todos haviam sido muito educados, mas sabia que sua simplicidade surpreendera aquelas pessoas... sabia também que a tinham comparado com Irene. Melly era de fato muito diferente da primeira esposa de Jourdan. Os amigos dele precisariam se acostumar com ela. Talvez levasse algum tempo, mas no fim acabariam por aceitá-la.
— Bon voyage — Claude se debruçou na janela do carro, entregando a Melly um pequeno pacote. — Divirtam-se em Nova York, e boa sorte no que diz respeito à criança.
— Obrigado, Claude. Ficaremos em contato. Au revoir.
O grande carro alugado especialmente para aquela ocasião levou-os pelas ruas de West End. Melly, exausta, segurava o pequeno pacote entre as mãos.
— Você não vai abrir o presente? — Jourdan perguntou, observando-a um tanto divertido.
— Claude é muito simpático.
— É mal de família — ele gracejou. — Então quer dizer que agora é a sra. Lanier?
O coração de Melly se acelerou. Tentando evitar o olhar de Jourdan, começou a desembrulhar o presente. O pacote continha um estojo de couro, e, ao abri-lo, quase perdeu o fôlego. Numa almofada de cetim estava um crucifixo de turquesa preso a uma correntinha de prata.
— Que lindo! Veja, Jourdan.
— É uma croix à Ia Jeannette. Vai ficar muito bem com um dos vestidos novos. Causará inveja às outras passageiras do navio, Melly.
O carro os levava para Southampton, onde embarcariam no Queen Elizabeth II. Melly ficou feliz ao saber que viajariam a Nova York no famoso navio. Jourdan lhe assegurara que fariam uma viagem maravilhosa a bordo do navio mais luxuoso do mundo.
Dias antes da cerimônia, ele a levou a uma das mais elegantes lojas de Kensington para que escolhesse algumas roupas para a viagem. Pediu para que não se preocupasse com os preços, pois queria que tivesse um lindo enxoval.
Melly, entretanto, fez questão de escolher tudo sozinha, dispensando os palpites da vendedora, que ficou um tanto desapontada. Dentro do provador, Melly a ouviu cochichar com Jourdan lá fora:
— Nossas clientes sempre insistem para que as ajudemos, mas sua senhora parece não precisar de nossa colaboração, senhor.
Melly escolheu o que quis com imensa alegria. A vida parecia que começava a lhe sorrir, e mal acreditava que tudo aquilo fosse verdade. Mas ao mesmo tempo tinha certeza de que o anel que usava no anular direito e o homem que a acompanhava eram reais.
Dentro do carro, a caminho do porto, os pensamentos de Melly vagavam soltos. Por algum tempo, Jourdan permaneceu distraído, sem pronunciar nenhuma palavra. Ela sabia que pensava na filha e não se importava. Aquele silêncio lhe permitia observá-lo melhor e refletir um pouco mais sobre a condição em que se encontrava. Apesar de ter sido um casamento por conveniência, a cerimônia fora verdadeira. Haviam feito o juramento perante Deus e os homens. Agora eram marido e mulher.
Melly ainda segurava na mão a croix à Ia Jeannette, um símbolo de fé e esperança nos poderes do amor. Ela podia imaginar os festejos do casamento de Jourdan com Irene, muitas damas honra, muitos convidados e, na partida dos noivos, muito arroz, simbolizando a crença de todos em que o casal seria feliz para sempre.
De certa forma, essa viagem no Queen Elizabeth II era a lua-de-mel de Melly, mas os dois não dormiriam juntos. O casamento, para ela, terminava ali, onde geralmente começam os prazeres para todos os casais. Para eles, entretanto, o casamento era um meio pelo qual Jourdan esperava construir um relacionamento feliz com a filha.
Observando o marido, Melly deteve-se na sensualidade daquele corpo. De repente percebeu que o desejava muito. Apoiou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos, procurando afastar tais pensamentos. Fora um dia muito cansativo. Havia levantado cedo, preocupada com o fato de ser o dia do casamento... um dia importante e decisivo na vida de qualquer mulher, destinado a trazer alegria ou arrependimento.
Essas lembranças produziam estranhas expressões no rosto de Melly sem que ela percebesse. De repente sentiu um toque no queixo e abriu os olhos.
— Bem, minha querida noivinha, está feito. — Jourdan olhava para ela. — Como se sente deixando tudo para trás?
— Ainda um tanto estranha. E você, Jourdan? Como se sente?
Ele pensava na resposta, enquanto seu olhar passeava por aquela figura delicada.
— Não me arrependo. Parfois à tard crie l'oiseau quand il est pris.
— Gosto quando você fala em francês — Melly sorriu. — Mas não entendi uma palavra do que disse.
— Às vezes — ele traduziu — o pássaro grita muito tarde quando é preso. Você se sente presa?
— Nem um pouco — respondeu, sentindo Jourdan se aproximar.
Melly sabia que Jourdan tinha sido muito bem treinado durante anos no serviço militar, portanto, poderia dominá-la a qualquer momento, mas preferia confiar na sua palavra, na promessa de que não haveria relacionamento físico entre os dois.
— Melly, sei exatamente no que pensa. — Ao dizer aquilo se afastou, indicando que não precisaria temer-lhe os impulsos. — Está ansiosa com a viagem?
— Muito. — Os olhos dela se iluminaram. — Nunca imaginei que um dia viajaria num navio como o Queen Elizabeth II. Continuo achando que a qualquer momento vou acordar na cozinha da clínica, descascando batatas.
— Então pare com esses pesadelos, sra. Lanier. — Jourdan sorriu. — Posso lhe garantir que estou aqui e que agora somos marido e mulher. Quando chegarmos a Belize, vai provar a comida deliciosa que Bethula prepara. Ela é minha cozinheira e arrumadeira, uma nativa bondosa e sorridente. À noite, ouvirá o barulho do mar e o vento agitando as palmeiras... gostaria de que aprendesse a nadar, isso é muito importante.
— Eu... antes nadava muito — Melly procurava manter a serenidade. — Mas de repente, não sei por que, deixei de praticar.
— Não se preocupe, lá na ilha será impossível resistir àquela água tão transparente. — Aproximando-se, tirou o chapéu de camurça que Melly usava. — Gosto de ver o brilho desses cabelos, eles me guiaram quando estava indeciso sobre nosso casamento.
Melly se surpreendeu ao ouvir alguém tão seguro admitir que às vezes sentia-se indeciso. Embora fossem marido e mulher, existia entre eles uma distância muito grande, que ela não ousava ultrapassar.
— Pelo que parece, você gosta mesmo é de cavalgar — ele observou. — O que mais você fazia no interior?
— Às vezes vovó e eu íamos até o litoral para ver o mar. — É estranho como ele pode mudar tão de repente. Às vezes tão calmo e em seguida tão agitado...
— Como a paixão — Jourdan deteve o olhar no rosto de Melly. A divisória de vidro entre eles e o motorista lhes garantia privacidade.
Melly ficou tensa... A intuição lhe avisava que Jourdan era um homem de paixões intensas, e isso ela podia notar só em olhá-lo. Embora fosse seu marido, nenhum sentimento forte os unia. Nunca viria a ser uma verdadeira esposa para ele. E, certamente, quando chegasse o momento em que Jourdan necessitasse de outras mulheres, mais uma vez, teria que compreendê-lo.
Não podia esperar que Jourdan se mantivesse fiel a um casamento por conveniência. Mas só de imaginá-lo nos braços de outra, um sentimento contraditório se apossava de Melly. Um sentimento novo que ela teimava em não encarar.
— Você está contente por ter casado comigo? — Jourdan a observava com atenção. — Ou já se arrependeu?
— É mais provável que você se arrependa, Jourdan.
— Ora, Melly, você diz isso só porque nosso casamento não é do tipo comum.
— É, pode ser...
— Você acha que não sou um cavalheiro?
— Pelo contrário, mas sei também que é um homem e compreenderei quando... necessitar de privacidade.
— De uma mulher, você quer dizer?
— Sim, não gostaria que ficasse imaginando que me julgo no direito de reclamar se...
— Se eu a traísse?
— Isso mesmo — sem perceber, Melly apertou o crucifixo, como se rogasse nunca ter de suportar a infidelidade de Jourdan.
— E que espécie de reação espera de mim, petite, se você me trair?
— Mas eu não... — Melly ficou consternada. — Eu não poderia...
— Acho que temos os mesmos direitos. Se eu posso por que você não?
— Jourdan, você fala a sério?
— Acha que eu brincaria com uma coisa dessas?
— Eu... eu não sei... — Seus olhos estudavam o rosto de Jourdan. — Nosso casamento não é como os outros e ainda não conheço as regras... só espero que não mude a maneira de viver por minha causa.
— Melly, você sabe que as pessoas têm certas necessidades...
— Mas nós já discutimos esse assunto antes, e você concordou que...
— E você pensa que mudei de idéia? — Jourdan riu, tomou a mão de Melly e examinou o anel que lá estava. — Achei que confiasse um pouco mais em mim.
— Eu confio, Jourdan. Mas a maneira como você falou... — O coração de Melly batia mais forte dentro do peito. — Sabe, eu não gostaria que se sentisse preso só porque estamos casados. Você tem liberdade para fazer o que bem entender... Em certos aspectos não somos marido e mulher.
— O juiz que celebrou o casamento ficaria surpreso se ouvisse você falar, petite. Mas pode se tranqüilizar, um casamento não se resume a uma cama de casal...
— Você deve me achar uma tola — Melly falou, mu to inibida.
— Não, só acho que você é muito jovem e ingênua. Não precisa ficar repetindo a todo momento que não devo esperar nenhuma aproximação física. Por acaso já demonstrei alguma vez a intenção de possuí-la?
— Sou mesmo muito ingênua, não sou? — O rosto dela ficou em brasa.
— Mas isso não tem nenhuma relação com o que pretendo. Quero apenas que seja governanta de Jody. Certo?
— Sim. — Era ao mesmo tempo um alívio e um sofrimento ouvir aquilo.
— Bobinha — Jourdan beijou-lhe a testa. — Você não consegue acreditar que alguma coisa boa possa lhe acontecer? Durante os cinco dias que passaremos a bordo do navio mais bonito do mundo vai me conhecer um pouquinho melhor. Quando nos tornarmos amigos, verá que não precisa ter medo de mim.
Pouco depois, o carro se aproximava de um grande portão que dava entrada ao cais do porto. Um policial examinou todos os documentos e, em seguida, indicou o local em que o navio se encontrava ancorado.
— Existem algumas formalidades — Jourdan consultou o relógio. — Mas por volta das seis horas estaremos a bordo. Quando o navio for partir, uma banda vai tocar, nos desejando boa viagem. Se quiser, poderemos assistir de nosso convés particular.
Melly lhe dirigiu um olhar curioso e viu que Jourdan tinha um estranho brilho nos olhos.
— Ficaremos na suíte Queen Elizabeth — ele continuou. — Não disse nada antes porque queria lhe fazer uma surpresa.
Ela ficou mais que surpresa, ficou preocupada. Estava certa de que ocupariam cabinas separadas, e agora Jourdan falava de uma suíte... a mais luxuosa do navio.
— Parece que não gostou, Melly. Quando fiz as reservas eles só dispunham de suítes.
— Mas como vamos dormir?
— Não se preocupe, deve ter um sofá — Jourdan riu. — Não me importo, me acostumei a dormir em cama de soldado. Vamos, petite, não fique assim, é nossa lua-de-mel, lembra?
— Não lhe ocorreu que poderia ser importante para mim ficarmos em quartos separados? — Lágrimas surgiram nos olhos ile Melly. — Eu tinha certeza de que você ia acabar fazendo alguma indelicadeza comigo.
— Minha cara, você está exagerando...
— Eu... eu confiei em você — Melly interrompeu.
— Mon Dieu, você tem mesmo horror a homens, hein? — Jourdan parecia irritado. — Sempre foi assim tão inocente?
O carro parou. Melly não respondeu, indignada com a atitude de Jourdan. Não conseguia se conformar com a nova situação. E, além de tudo, tinha que aturar o mau humor dele. De repente, ela não se conteve:
— Jourdan, mas...
— Você deve estar com fome — ele a interrompeu. — Logo que estivermos a bordo, pedirei chá e alguns sanduíches, acho que vai lhe fazer bem.
O coração de Melly batia forte. Calada, ela o acompanhou até a sala de espera, onde apanhariam os cartões de embarque.
Sentaram-se.
— Meliy, você age como se eu fosse um criminoso. — Ele lhe segurou a mão e percebeu que estava fria. — Eu me sinto insultado, menina, nunca tive intenção de violentar você...
— Largue a minha mão, Jourdan, você conseguiu estragar tudo. Prometeu que...
— Você parece uma criança, Melly. Seria muito mais rápido ir a Nova York de avião. Tinha certeza de que ia gostar da viagem de navio. Se quiser, cancelamos tudo e vamos direto para o aeroporto.
Era doloroso não poder confiar em Jourdan, não poder compartilhar com ele o segredo que tanto a atormentava.
— Não, não precisa se preocupar comigo...
— Então, por favor, pare de chorar. Nunca imaginei que pudesse ficar tão chateada. Mais tarde vou falar com o comissário e tentar mudar nossas acomodações. Talvez tenha havido alguma desistência. Está bem assim?
— Eu gostaria muito — Melly respondeu com voz rouca.
— Às vezes tenho a impressão de que você já se arrependeu do nosso casamento. — Ele de repente parecia confuso. — Melly, será que ainda não se convenceu de que posso muito bem manter minhas mãos longe do seu corpo?
— Não fale assim, Jourdan, por favor...
— Como você acha que eu me sinto? — a voz dele agora já não escondia o ódio que aquela rejeição lhe causava. — Reservo uma das melhores suítes do navio, e você reage dessa forma... qualquer mulher nesta sala ficaria muito feliz se pudesse trocar de lugar com você.
— Sei que minha atitude é absurda — Melly murmurou —, mas você não pode entender o que se passa dentro de mim.
— Acho que entendo muito bem. Você é uma mulher medrosa e frígida, que vira uma pedrinha de gelo se um homem se aproxima. O que me irrita é que ainda fica pensando que reservei esta suíte só com a intenção de levá-la para a cama. Ora, petite, sabia que ir para a cama com uma pedra de gelo não desperta minhas paixões?
Melly corou e não respondeu. Julgava mais conveniente Jourdan imaginar que ela fosse frígida do que contar a verdade.
A fila começava a aumentar atrás do balcão onde eram entregues os cartões de embarque. Jourdan se levantou.
— Fique aqui, não demoro.
Quando ele se afastou, Melly teve vontade de fugir. Um táxi a levaria à estação de trem e logo estaria de volta a Londres. Ele certamente ia ficar furioso, mas isso era uma boa maneira de evitar conflitos futuros.
Levantou-se, mas os pés lhe pareciam acorrentados; não conseguiu se mover, precisando sentar-se outra vez. Era inútil, Melly não suportava a idéia de abandonar Jourdan, mesmo porque ele dependia de sua ajuda para conseguir a guarda de Jody.
Com grande esforço, procurou se recompor. Quando Jourdan voltou com os cartões, ela já tinha recuperado em parte a tranqüilidade.
— As pessoas já estão começando a embarcar. Vamos? Estou ansioso para ver a sua reação quando entrar no navio. Viajei nele há alguns anos com Irene.
Foi um simples comentário, mas não impediu que Melly sentisse uma pontada de ciúme. Caminhou ao lado de Jourdan, e logo se confundiram com a multidão que atravessava a porta de acesso ao cais.
O navio era imponente. Melly ficou admirada com a beleza do Queen Elizabeth e atravessou depressa a rampa que os levaria ao convés de embarque. Para ela, aqueles passos simbolizavam o início de uma nova vida.
Melly sabia com exatidão por que estava se sentindo mais insegura do que nunca. Havia ficado claro para ela que um dia Jourdan tinha amado a ex-esposa. E foi ali, no Queen Elizabeth, que passaram momentos de grande intimidade. E seria muita presunção da parte dela pensar que Jourdan não ia se recordar da mulher que Caroline Frome descrevera como deslumbrante. Uma mulher que devia chamar a atenção de todos no navio.
A única coisa que a tranqüilizava um pouco era saber que agora Jourdan não mais se importava com ela, queria apenas a filha. E sempre que se referia a Jody, o fazia com ternura.
— Não mudou nada — Jourdan disse de repente. — O navio está do jeito que eu lembrava. Que tal viajar nele, Melly?
— Muito excitante — respondeu, desejando poder deixar de lado a inibição e lhe dizer o quanto significava estar ali ao lado dele. Porém, Melly sabia que esse sonho nunca iria se transformar em realidade.
Melly observava a suíte Queen Elizabeth, maravilhada com a beleza da mobília e da decoração. A cama era grande e tinha uma colcha rendada tocando o espesso carpete creme. Havia um armário para roupas e uma penteadeira com espelho e lâmpadas ao redor. A escada curva levava à sala de estar que Jourdan mencionara. Subindo os degraus, Melly se deparara com um ambiente aconchegante: um sofá com muitas almofadas ao lado de um pequeno bar e, completando a doce intimidade que o local oferecia, uma aparelhagem de som completa.
Fascinada, Melly continuou a explorar o lugar. Abrindo a porta que levava ao convés encontrou uma mesa entre duas cadeiras de lona e várias banquetas, que poderiam ser úteis caso houvesse convidados.
Lá embaixo no cais, alguns passageiros aguardavam a chegada da banda que executaria várias músicas enquanto o navio estivesse partindo. Ficou ali por alguns minutos, pensativa; não tinha idéia de quando veria a Inglaterra outra vez.
Enquanto isso, como havia prometido, Jourdan procurava o comissário para tentar conseguir novas acomodações. Queria proporcionar à esposa toda privacidade possível.
Ainda no convés, Melly observava o belo contraste que as luzes de Londres, que aos poucos iam se acendendo, formava com o colorido característico do início de noite. Um vento frio começou a soprar, e quando se decidiu a voltar à realidade do quarto, à procura de um agasalho, deparou-se com Jourdan.
— Trouxe este casaco para você. Aqui fora é muito frio, e vai ficar pior quando o navio deixar o cais.
— Já vamos partir? — Melly se aconchegou dentro do casaco macio.
— Vamos, sim. Daqui a pouco a banda inicia os primeiros acordes e depois... teremos todo o mistério do oceano a nossa frente. Gostou do navio?
— Parece um sonho — ela estava ansiosa, esperando que Jourdan lhe dissesse o resultado da visita ao comissário.
— Sinto muito petite, mas acho que vai ter que suportar minha companhia nas próximas noites — disse Jourdan, sentando-se numa das cadeiras de lona e olhando para Melly. — Existia a possibilidade de eu dividir uma cabina no convés inferior com um outro passageiro, mas não sou tão generoso assim. Sei que está com medo de que eu me apaixone ao vê-la em uma linda camisola, mas, fique tranqüila, não me casei com você por causa desse belo corpo, que faz tanta questão de preservar como se fosse uma escultura rara...
A ironia machucava, embora Melly admitisse que não seria justo privá-lo do conforto que aquela suíte proporcionava. Na verdade, desejava que Jourdan tivesse conseguido outras acomodações, mas evitou insistir. Aquele tom de voz indicava que ele não a incomodaria.
A banda começou a tocar We Are Sailing, e eles prestaram atenção em cada detalhe da partida, os rebocadores se soltando, a música se perdendo na distância, e o vento cada vez mais frio.
— Um momento e tanto — Jourdan falou baixinho. Melly imaginou que ele estivesse pensando na viagem que fizera com Irene. Na certa a partida fora muito semelhante, só que depois eles deviam ter se abraçado e, com todo o carinho do mundo, trocado juras de amor.
Jourdan olhou para Melly e observou-lhe a expressão pensativa.
— Venha, uma xícara de chá vai lhe fazer muito bem.
— Espero não enjoar.
Caminharam pelo convés, sentindo o balanço do navio. No interior da suíte, Melly tirou o casaco dos ombros e foi servir o chá, mas Jourdan se antecipou.
Ele estava sério, e Melly percebeu que não era exatamente a companhia que Jourdan desejara.
— O jantar é às oito e meia. — Ele lhe entregou uma das xícaras e em seguida sentou-se no sofá, mantendo uma certa distância. — Até lá poderemos descansar um pouco. Você acha mesmo ruim ter que dividir esta suíte comigo?
Melly não sabia o que responder. Já aceitara a situação e não queria complicar mais as coisas.
— Ela é muito bonita, você tem bom gosto, mas deve ter custado uma fortuna.
— De fato, mas não pense você que eu me considero um homem rico. Há algum tempo, recebi uma pequena herança da família de meu pai, algumas ações de uma companhia de conservas. Fui aplicando os lucros e com eles pude comprar a casa em Belize, além de manter minha plantação de bananas.
— Plantação de bananas?
— Sim, isso mesmo. Hoje ela está um pouco abandonada, mas gostaria de transformá-la num negócio lucrativo. O que acha de ser a esposa de um agricultor?
— Só espero que não se decepcione comigo. Sei que me acha uma mulher... estranha.
— Se eu quisesse um casamento do tipo convencional, Melly, procuraria uma outra pessoa. Sei que ficou aflita com a questão da suíte, imaginando que eu tivesse feito de propósito só para conseguir um relacionamento íntimo. Mas, fique tranqüila, não costumo usar essa espécie de tática, entende?
— Entendo...
— Então relaxe, vou me deitar aqui neste sofá. Depois de dormir tantas vezes no chão, garanto que me sentirei em casa — ele brincou. — O exército também nunca ofereceu muito conforto...
— Mas...
— Tudo bem, Melly — Jourdan observava cada detalhe da sala de estar. — Ela é mesmo muito bonita. Gostaria de saber quantas estrelas de cinema já usaram esta suíte.
— Você ficou numa destas quando viajou com Irene?
— Ela adoraria, mas aquela ocasião estavam todas ocupadas, e tivemos que nos contentar com uma menos luxuosa.
— Irene é muito atraente? — Melly não pôde conter a curiosidade.
— Bem, essa é a única preocupação dela. Mas, por que a aparência de Irene a preocupa tanto? Você também é uma mulher muito bonita, Melly. A única coisa que atrapalha um pouco é essa rigidez constante que se impõe.
— É... Sinto muito ficar aborrecendo você com... a minha insistência.
Jourdan se espreguiçou entre as almofadas com um brilho malicioso nos olhos, e Melly o observava de longe.
— Mon Dieu, não precisa ser tão formal... Já prometi que iria tratá-la como minha filha.
— Os homens geralmente não são tão compreensivos...
Estava de fato satisfeita com a postura de Jourdan. Qualquer noiva naquele momento se atiraria nos braços dele, mas ela achava melhor permanecer afastada, no canto do sofá.
— Você quer dizer que eles sempre costumam exigir seus direitos?
— Sempre.
— Pode ser, mas o nosso único objetivo é aproveitar cada momento desta viagem. Quando chegarmos a Nova York, vou tratar o mais rápido possível do caso de Jody. Já telefonei a Irene para informá-la dos meus planos e também falei sobre o nosso casamento. Portanto, ela já sabe que quero a custódia de minha filha. Estou muito confiante, e você?
— Rezando para que tudo saia do jeito que planejou. Sei que ficaria muito contrariado se... se algo saísse errado.
— O que você está pensando? — Jourdan a fitou nos olhos. — Diga.
— Irene pode não gostar do fato de ter se casado outra vez,
Jourdan.
— Não gostar! Ela não tem o direito de se intrometer na minha vida, nosso casamento acabou.
— Mas Irene é muito orgulhosa, como você mesmo diz. Você pertenceu a ela, e agora pertence a... a outra pessoa. Talvez não queira admitir que esteja sendo substituída.
Jourdan ficou pensativo, e Melly achou melhor deixá-lo sozinho. A guarda de Jody poderia ser mais difícil do que ele imaginava. Ela então foi para o quarto, pegou a roupa e entrou no banheiro.
Aos poucos foi relaxando, mergulhada na água perfumada que a cobria até os ombros, pensando na possibilidade de ser feliz com Jourdan. Mas isso só seria possível se ele conseguisse a custódia de Jody. Aí, sim, seriam uma família.
Melly saiu do banho e se enxugou numa toalha grande e macia. Depois de vestir o roupão foi escovar os dentes. Sem que esperasse, um movimento brusco do navio a desequilibrou. Antes que pudesse se apoiar, escorregou, batendo o braço na banheira.
— Droga — sentada no chão, fazia massagens no braço quando ouviu Jourdan bater à porta. Ele tinha ouvido o barulho e correra, assustado.
— Tudo bem aí? — perguntou, preocupado.
— Sim... eu... derrubei uma coisa...
— Acho que você se machucou. Abra a porta, deixe-me ajudá-la.
— Não se preocupe — Melly tentava se levantar. — Espere só um minuto, já vou sair.
Quando conseguiu abrir a porta, encontrou Jourdan a sua espera.
— O que houve? Ouvi você gritar e pensei que tivesse escorregado ao sair do banho.
— Não foi nada, o navio balançou e eu bati o braço.
— Deixe-me ver. — Ele tomou o braço machucado — Aqui no navio existem médicos que atendem, a essas emergências.
— Mas não foi nada... — Melly se afastou imediatamente.
— Não seja infantil, por favor — Jourdan disse, seco. Melly levantou a manga bem devagar, constrangida com a presença de Jourdan, que lhe tomou o braço, examinando a contusão.
— É, não quebrou, mas deve estar dolorido, olhe o tamanho da mancha.
— Qualquer batidinha fica desse jeito.
Procurava se enrolar ainda mais no roupão, quando Jourdan a trouxe para junto de si e, antes que ela pudesse escapar, beijou-lhe o braço.
— Pronto, já vai sarar. Humm... perfume de rosas...
— Eu... deixei o vidro na banheira, pode usar se quiser — Melly sentia a cada instante que as batidas do seu coração aumentavam, e Jourdan continuava olhando-a nos olhos.
— Nervosa?
— É que... eu nunca estive num navio antes.
— Ou nunca esteve sozinha com um homem?
Melly ficou embaraçada, e ele achou melhor não insistir naquele assunto. Soltou-lhe o braço e entrou no banheiro.
Aproveitou a ausência dele para se vestir. Quando Jourdan saiu do banho, parecia muito bem disposto, o cabelo úmido caindo-lhe sobre a testa e aquele jeito que fazia Melly se lembrar das diferenças que havia entre os dois. Jourdan a olhava enquanto abotoava a camisa branca.
Com uma blusa de cetim bege e uma calça preta justa, Melly o esperava para jantar. Os cabelos longos emolduravam-lhe o rosto de linhas suaves. Ela dedicara uma atenção especial ao traje, mas nem por um momento imaginou parecer tão deslumbrante quanto Irene.
Enquanto Jourdan punha as abotoaduras, Melly dava os últimos retoques nas unhas. O trabalho na clínica havia maltratado muito suas mãos, que não combinavam nem um pouco com o anel.
— No navio têm um salão de beleza, com excelentes profissionais.
— Minhas mãos estão muito feias? Também não é para menos... Passava a maior parte do tempo lavando louça.
— Melly, gostaria de alertá-la quanto aos próximos contatos que fará neste navio. Para seu próprio bem, não conte tudo sobre você às mulheres que encontrar. Seria melhor dizer apenas que é minha esposa, compreendeu?
— Jourdan, eu não esperava isso de você — Melly ficou indignada com as palavras dele. — Sempre fui uma pessoa honesta, além do que não posso mudar minhas maneiras da noite para o dia. Você me garantiu que não se importava.
— Eu não me importo. Mas em todo cruzeiro existem os esnobes, pessoas que gostam de se divertir à custa da simplicidade dos outros.
— Então o que faço se alguém me perguntar o que eu fazia antes de casar com você?
— Diga apenas que trabalhava num hospital.
— Para pensarem que eu era uma enfermeira?
— Por que não?
— Acho que no fundo se envergonha por ter casado com uma ajudante de cozinha.
— Não, Melly, eu só queria evitar que alguém a ofendesse.
— Ofender a mim ou a você?
— Escute, petite — os olhos de Jourdan brilhavam, irritados — você é ótima e quero que continue assim. Acontece que na primeira oportunidade vão menosprezar você, pode acreditar no que digo. Conheço esse tipo de gente.
Melly não se envergonhava do serviço que fazia antes de conhecê-lo, e sentiu vontade de lembrar a Jourdan que, se ela não estivesse trabalhando na cozinha quando ele chegou à clínica, talvez não estivesse vivo. Mas achou melhor não irritá-lo.
— Eu sei no que está pensando, Melly. É justamente porque lhe devo a vida que não quero que seja alvo de gozações. Certas pessoas sentem prazer em falar mal dos outros. Você sabe disso.
— Pensa que sou um rato, Jourdan, que foge todo apavorado quando encontra um gato?
— No restaurante você fugiu.
— Eu... eu não fugi de Caroline Frome. — Melly ficou vermelha.
— Compreendo, estava fugindo de mim, não é? Ficou contente por eu ter ido atrás de você?
— Fiquei... — Melly concordou, não podia negar que Jourdan era especial para ela.
— Tome cuidado, você está muito bonita, mas, mesmo vestida assim, corre o risco de ser confundida com minha filha.
— Não se preocupe, sei cuidar de mim sem precisar mentir, Jourdan. Pessoas esnobes não me assustam.
— Espero que não. É a primeira vez que conheço alguém como você, Melly. Às vezes chego a ficar confuso, nunca sei se está sendo franca ou se disfarça muito bem. Você parece natural, à vontade, mas acho que isso é uma máscara, a maneira que usa para se proteger. No fundo me parece que esconde um grande segredo.
— Segredo? — ela esboçou um sorriso. — Por que você acha que eu tenho um segredo?
— Porque ele está aí o tempo todo, posso vê-lo através desses olhos arregalados.
— Jourdan, o que você deve estar vendo nos meus olhos é fome — Melly tentou brincar para esconder o que realmente sentia.
— Então vamos jantar — ele trancou a porta da suíte, e seguiram pelo corredor acarpetado até a escada que levava ao bar. — Que tal um coquetel antes da comida, noivinha?
— Ótima idéia — Melly ficou constrangida com os olhares que foram lançados em sua direção assim que entraram no bar. As pessoas pareciam avaliá-la, mas aquilo era esperado, pensou ela, ainda mais estando na companhia de um homem atraente como Jourdan.
Ele não fez comentários, encontrou dois lugares e logo chamou o garçom.
— Dois coquetéis de champanha.
Melly notou a curiosidade e o interesse das mulheres quando ele revelou o sotaque francês. O olhar de uma delas chegava a ser indiscreto, pelo jeito tentava descobrir que espécie de relacionamento havia entre eles. Para acabar com aquele comportamento, Melly discretamente colocou a mão esquerda sobre o balcão, mostrando a aliança no dedo anular.
Uma onda sacudiu o navio, e, para não cair, Melly precisou apoiar-se no braço de Jourdan.
— Tudo bem, chérie — ele a abraçou, e aquele gesto, em público, a inibiu mais do que se estivessem sozinhos.
Quando o garçom trouxe os coquetéis, Jourdan fez um brinde.
— A tudo que esperamos. Mas só depois da viagem, agora devemos nos divertir.
— Então, à diversão — Melly sorriu.
Quando terminaram o drinque, foram para o restaurante e sentaram-se em uma mesa junto com outros viajantes. Ali, todos se apresentavam pelo primeiro nome. A ocasião lembrava uma festa, era difícil acreditar que estivessem em alto-mar. As pessoas escolhiam o vinho e pediam a comida com tanta tranqüilidade que pareciam habituadas com o movimento do oceano sob os pés.
— Hum... a comida do cardápio parece boa — a moça sentada em frente a Melly disse. Era muito alegre e já havia dito o nome durante a apresentação. Estava viajando com uma amiga.
— Vá com calma, Brenda — a amiga a alertou.
— Gosto de tudo neste cardápio — Brenda estava entusiasmada.
— Devagar, pelo amor de Deus — Sônia insistiu. — Ou passará a noite toda indo ao banheiro.
— Não me importo — Brenda sorriu para Melly. — O que é um flambé bon filet?
Jourdan se antecipou na explicação, e Brenda arregalou os olhos.
— Você é francês?
— Oui — respondeu ele com um charme intencional.
— Vocês dois? — o olhar de Brenda se deteve no rosto de Melly.
— Minha esposa é inglesa.
— Que romântico! — Brenda sorriu e voltou-se para Melly. — Sua aliança é linda, e parece nova. Vocês são casados há muito tempo?
— Não, não muito.
Melly ficou satisfeita ao ver que Jourdan não lhe contou que eram recém-casados. Um casal em lua-de-mel poderia provocar curiosidades e, da forma como estavam as coisas entre eles, seria um tanto embaraçoso.
Felizmente Jourdan percebeu o olhar que Melly lhe dirigiu e mudou de assunto. Aliviada, ela saboreou uma deliciosa posta de peixe com molho de cogumelos.
Uma das pessoas à mesa era um homem chamado Clifford, que viajava muito e escrevia romances policiais. Ele dizia que o dinheiro sempre fora a causa da maioria dos crimes, mas, na sua opinião, as grandes paixões provocavam os crimes mais interessantes.
— Espero que você não coloque nenhum de nós nas histórias que escreve — a observação vinha de uma mulher com ar petulante, sentada ao lado de um sujeito de aparência discreta usando barba e bigode.
— Você ficaria muito aborrecida? — Clifford perguntou, os olhos brilhando por trás dos óculos.
— Mas é lógico. Eu e meu marido nunca nos envolveríamos em algo criminoso.
— Imprevistos, minha senhora, podem acontecer a qualquer um de nós, só depende das circunstâncias. A senhora deve saber que são as paixões que controlam o ser humano.
— Ah, mas não na nossa idade. Artur e eu já passamos da fase das paixões.
Artur continuou a tomar o caldo de carne, não dando importância às barbaridades que a esposa dizia. Brenda interrompeu aquele silêncio constrangedor.
— Eu não me importaria de figurar no seu livro, Clifford. Acho que seria muito divertido.
— Mesmo que fosse a vítima? — Jourdan perguntou.
— Ah, não. Vítima eu não quero ser. Prefiro figurar como a namorada do detetive.
— Então você não conhece meu detetive. É um homem grande, de sessenta anos e especialista em arqueologia. Ele costuma dizer que as paixões estão em ruínas há muito tempo.
— Que gracinha, eu adoro homens mais velhos
— Você é uma piada, Brenda — Sônia comentou. — Vive defendendo o feminismo, mas de vez em quando faz comentários bastante contraditórios.
— Comentários contraditórios? — Jourdan perguntou.
— Sim, senhor... como é mesmo o seu nome?
— Jourdan.
— Pois é, sr. Jourdan, comentários contraditórios, sim.
— O movimento feminista sempre me intrigou. O que pretendem? Auto-suficiência?
— Também, mas não queremos parar por aí.
— Mas isso poderia lhes custar... o amor.
— E quem disse que vocês estão interessados no amor? — o tom de desafio crescia na voz da moça. — Nós estamos cansadas de ser brinquedos nas mãos dos homens, que vivem comendo a maçã e nos deixando os caroços.
— Brilhante discurso — Jourdan gracejou. — Você acredita mesmo no que diz? Ou leu essas coisas num livro escrito por essas mulheres que gostam de se divertir com os sentimentos de outras mulheres... provocando-as porque têm curvas em vez de músculos?
— Sr. Jourdan, me desculpe, mas pela sua aparência não pensei que fosse tão preconceituoso e desinformado.
— Preconceituoso e desinformado, eu? — ele ficou perplexo.
— O senhor se refere às feministas como mulheres irresponsáveis que estariam querendo ferir os sentimentos de outras mulheres.
— E não são?
— Não, sr. Jourdan, não são. Nós, feministas, estamos à procura de novos caminhos, caminhos estes que homens e mulheres possam palmilhar lado a lado.
— Mas isso é um sonho, não é? — ele perguntou, irritado com a ousadia de Sônia.
— Não é apenas um sonho, nós vamos conseguir.
— Hum... não sei se gostaria de estar vivo quando isso acontecesse — Jourdan concluiu, pensativo, e se voltou para Melly, entretida com o jantar e que parecia não se interessar pelo assunto. — E você, chérie? Também condena os homens?
— Sabe, Jourdan, acredito que o movimento feminista possa trazer muitos benefícios para toda a humanidade.
— Mas acontece, Melly, que muitas mulheres são tão machistas quanto os homens. — De repente Artur havia saído do seu silêncio.
— Você tem razão, Artur. — Jourdan voltou-se para Sônia: — O que tem a falar sobre isso, senhorita?
— Acha que poderia ser diferente, sr. Jourdan?
— Não entendi...
— Se a cultura é machista, a mulher também vai ser e...
— Mas e a feminilidade?
— Isso é uma outra história. O que nós, seres humanos, precisamos aprender é nos olharmos com mais carinho. Os preconceitos de classe, raça, sexo e cor precisam cair, sr. Jourdan. Estamos em pleno final do século XX, é impossível que o mundo continue como está.
— Por favor, não me confundam com Sônia — Brenda pediu. — Ela costuma levar as idéias um pouco longe demais, se esquece de que o romantismo é maravilhoso...
— Brenda, você consegue me deixar furiosa: Será que não percebe que o romantismo é usado para nos dominar?
— Então quer dizer que as mulheres também lutarão nas guerras... — Jourdan disse, já com um tom de voz menos cortês. — Ou ainda serão os homens que perderão suas vidas?
— Sr. Jourdan, no mundo que nós sonhamos não existirão guerras.
— Agora quem está sendo romântica é você, Sônia.
— Até pode ser, mas é um outro tipo de romantismo. Nós queremos um mundo onde não exista qualquer espécie de dominação.
— Mas isso é impossível.
— Não, não é, sr. Jourdan, depende da gente.
— Por favor, me chame de Jourdan.
— Está bem, Jourdan. Não acha que seria maravilhoso?
— É, você sabe que sempre pensei que as feministas fossem...
— Mulheres que querem acabar com os homens — Sônia concluiu.
— É, é isso aí...
— Não, Jourdan, muito pelo contrário. Queremos os homens do mesmo lado. Mas como companheiros e não como tutores.
— Sônia, eu gostaria de ler mais a respeito...
— Sobre o movimento feminista?
— Também, mas antes queria entender direito como é que aconteceu essa dominação.
— É difícil encontrar um homem sensível como você, Jourdan, normalmente eles fogem assustados quando vêem uma feminista pela frente.
A mesa ficara em silêncio observando a conversa dos dois. Melly no início se assustara um pouco com o rumo da discussão, mas agora estava fascinada com o comportamento de Jourdan.
— Eu também quero ler sobre o assunto, quem sabe me inspire um bom enredo para meu próximo livro — Clifford também estava entusiasmado.
— Taí — Sônia ria, feliz. — Vocês podem começar com uma conterrânea de Jourdan.
— Quem? Brigitte Bardot? — perguntou a esposa de Artur.
— Não, Simone de Beauvoir. Ela é fantástica!
— Aquela que era casada com um escritor? — Clifford perguntou.
— Ela mesma. Só que ela não era casada com Jean-Paul Sartre, apenas viveram juntos durante a vida toda, e em casas separadas.
— Interessante, muito interessante — Clifford pegou um caderninho no bolso do paletó.
— Já li muito sobre ela — Jourdan agora falava, tranqüilo. — Qual o livro que você me recomenda?
— O Segundo Sexo, você vai gostar, Jourdan. E você também, Melly.
— Será que tem aqui na livraria do navio?
— Não custa dar uma olhadinha, Jourdan.
— Pois é, Sônia, vivendo e aprendendo... nunca pensei que algum dia fosse me interessar pelo movimento feminista...
— Fico feliz por você ter conseguido entender a nossa posição.
— Eu também, quem sabe a gente consiga um mundo melhor para os nossos filhos... — Jourdan disse olhando para Melly.
— Não me diga que vocês estão esperando... — Brenda se voltou para Melly. — Você está contente?
— Mas eu não... — Melly ficou vermelha e, olhando para Jourdan, imaginou como seria ter um filho dele.
Ela ainda não conhecia Jody, mas de uma coisa estava certa: saberia conquistar a confiança da menina.
Jourdan havia comentado a respeito da excelente escola existente na ilha e do seu interesse em matricular Jody no estabelecimento. Queria proporcionar à filha um lar feliz, e Melly estava disposta a ajudá-lo no que fosse possível.
Durante o jantar, antes da discussão com Sônia, Melly prestara atenção na forma como Jourdan se mostrava afetuoso para com as pessoas à mesa. Parecia usar uma máscara em público e outra na intimidade. De fato ele não era tão tolerante na intimidade, e isso já havia notado quando se recusara a dividir a suíte. Contudo, a intolerância poderia ser justificada pelo fato de não compreender a razão pela qual Melly insistia em se manter distante.
O segredo deveria resistir às provocações de Jourdan, mesmo que fosse preciso assumir que estava apaixonada por ele. Não era mais possível negar o descontrole que aquele homem causava em suas emoções.
Às vezes, Melly imaginava como seria bom poder aninhar-se nos braços de Jourdan e sentir-lhe o calor dos lábios, mas logo procurava afastar tais pensamentos da cabeça. Quanto menos Jourdan a tocasse, melhor.
Aquela era uma decisão fácil de tomar, mas difícil de pôr em prática. Isso ela pôde constatar quando Jourdan a convidou para dançar no salão de baile do navio.
— Esse é o tipo de música para se dançar à moda antiga — essas foram as únicas palavras pronunciadas por ele, enquanto deslizavam pela pista de dança.
Era mais de meia-noite quando voltaram à suíte Queen Elizabeth. Melly, ansiosa, procurava disfarçar o tremor que a invadia.
A luz iluminou a enorme cama, sobre a qual se encontrava uma camisola ao lado de um pijama de seda escura. Ela permanecia imóvel, indecisa, rezando para que Jourdan tornasse as coisas mais fáceis.
— Pare de tremer. Enquanto se acomoda, vou sair e jogar cartas. Assim acho que ficará mais à vontade.
— Eu... sinto muito, Jourdan — ela estava tensa. — Não posso evitar...
— Eu sei. Vá para a cama e não se preocupe. Quer que eu peça um calmante para você?
— Não, obrigada. Dançar me deixou tão cansada que logo estarei dormindo.
— Para alguém que detesta homens, até que dança muito bem.
— Ora, Jourdan, você é que é um bom parceiro. Eu me diverti muito.
— E nem vai me dar um beijo de boa noite?
Assustada, Melly olhou para Jourdan, que inclinou a cabeça e beijou-lhe a boca. Ela sentiu que o coração havia disparado e somente depois que a porta se fechou foi que conseguiu relaxar.
Melly não imaginava como reagiria caso Jourdan tivesse insistido em ficar, quebrando a promessa anterior e exigindo os direitos de marido.
Essa idéia permanecera em sua mente durante todo o tempo em que estiveram dançando. Jourdan a mantinha muito próxima, e ela pôde sentir a rigidez daquele corpo másculo. Dançar com Jourdan havia sido uma experiência das mais sensuais, despertando-lhe emoções nunca experimentadas.
Era preciso que tudo desse certo no que dizia respeito a Jody, pois, embora amasse Jourdan, Melly não podia ser uma verdadeira esposa para ele.
O ato físico era algo que Melly não conseguia encarar. Não havia como pertencer a Jourdan. Ela só podia lhe oferecer o coração, que sentia bater descompassadamente na presença dele.
Jourdan não conversou muito durante os últimos minutos da viagem, mas aquele silêncio era muito significativo. Melly estava preocupada, sabia que os sonhos haviam terminado e que daquele momento em diante começaria uma nova vida ao lado de Jourdan e Jody.
Após o desembarque do navio, foram para um hotel em Manhattan, onde havia um recado para ele de seu advogado americano. Melly viu o rosto de Jourdan se transfigurar ao ler o bilhete. Quando finalmente se voltou para ela, o brilho de expectativa lhe havia desaparecido dos olhos. O recado dizia que Irene se casara outra vez, com um dos corretores mais ricos de Wall Street, e que o novo marido estava disposto a acolher Jody como filha.
Jourdan amassou o bilhete devagar, e naquele instante Melly percebeu que ele estava remoendo a nova peça que o destino lhe pregara: não poderia mais disputar com Irene a guarda de Jody. Permaneceram poucos dias em Nova York; depois rumaram para Belize. Jody ficou na América com a mãe e o padrasto.
A caminho do aeroporto, Jourdan disse a Melly:
— Ela fez de propósito, sabia o quanto eu queria Jody conosco.
— Você não pode insistir? Afinal, você é o pai da menina.
— Não. Isso não seria bom para Jody.
A resposta fora incisiva, não admitia réplicas, Melly passou a se perguntar quais seriam as conseqüências daqueles acontecimentos sobre seu casamento. Tudo parecia não ter mais sentido. Jourdan não se casara por amor e sim para poder reivindicar a guarda de Jody.
No avião, observando as nuvens através da janela, Melly permanecia calada. Imaginava como seria a vida na ilha... Duas pessoas presas a um casamento cujo objetivo maior tinha sido frustrado.
Parecia haver apenas uma coisa a ser feita: anular o casamento o quanto antes. Nada mais sustentaria aquela relação.
— Pare de se preocupar — Jourdan tomou-lhe a mão. — Nós dois sabemos que Jody era a razão principal de nosso casamento, mas podemos tentar construir uma vida juntos. Sem dúvida, essa notícia nos abalou, mas tenho certeza de que vai gostar de Belize. Vamos... não gosto de ver você tão pensativa.
— Eu... não quero lhe causar problemas, Jourdan. Nosso casamento pode ser anulado...
— Não, não quero que você volte à vida que tinha antes de nos conhecermos. Não existem motivos para isso. Vou transformar a plantação num negócio lucrativo e preciso muito de você.
Quando Melly notou o brilho dos olhos de Jourdan, ficou um pouco mais tranqüila e resolveu deixar que ele decidisse a respeito do casamento. Não tinha qualquer interesse em voltar a viver sozinha, e muito menos lhe agradava a possibilidade de não ver Jourdan nunca mais, o que com certeza aconteceria se insistisse na idéia da anulação.
— A casa é muito grande? — Melly perguntou.
— Bastante, e tem uma varanda enorme rodeando a casa. Lá, você pode tomar o café da manhã à luz do sol e o lanche da tarde apreciando o crepúsculo. É só mudar de lado. Só precisa cuidar da pele, senão os insetos vão fazer um banquete. Você tem medo de besouros e aranhas?
— Aranhas? — Melly ficou arrepiada. — Não suporto aranhas.
— Então, quando encontrar uma, pode gritar que Bethula vai socorrer você. Acho que gostará dela. É uma boa pessoa. Não é muito cuidadosa com a casa, mas é uma cozinheira de primeira. Foi ela quem me ensinou a apreciar a cozinha tropical. Alguns pratos levam muito tempero, mas para um soldado é fácil se acostumar. Não sei se você vai gostar da comida, Bethula realmente exagera nos temperos.
— Você está muito aborrecido com o que aconteceu em Nova York? — Melly sorriu, um tanto embaraçada, sob o olhar de Jourdan.
— Acho interessante a maneira como você se preocupa com os sentimentos das outras pessoas, Melly. Isso para mim é novidade. Irene nunca se preocupou com ninguém além de si mesma. Eu gostaria tanto de ver Jody crescer na ilha... Ela teria uma vida saudável ao nosso lado, se alimentaria de comida natural e conviveria com todo tipo de crianças. Mas, do jeito que as coisas estão, acabará crescendo no ambiente que convém a Irene, e isso é uma coisa que não posso impedir. Não faz bem para uma criança ver os pais brigando pela sua custódia. Ela poderia se sentir puxada para dois lados ao mesmo tempo, e eu não quero isso para Jody. Vou deixar as coisas como estão, esperando que com o tempo ela consiga ser ela mesma.
Jourdan ficou calado por alguns momentos, segurando a mão de Melly, depois prosseguiu:
— Você vai ter que ocupar o lugar de Jody.
— Quer dizer... que serei uma espécie de filha?
— Por que não? — Jourdan sorriu.
— Mas... acredita mesmo que possa passar por sua filha?
— Acho que não. Mas vou ficar muito satisfeito em ter você comigo, poder passear pela ilha e recordar a infância. Você gostaria de Jody, Melly, é uma excelente criatura — ela percebeu lágrimas nos olhos de Jourdan. — Você se importa muito em ficar sozinha?
— Não, não me importo.
— Sempre foi uma pessoa muito solitária, não é, Melly?
— Bem... imagino que seja uma forma de defesa. Vovó e eu éramos muito ligadas, e acho que quando ela morreu, sem perceber, coloquei uma barreira para me proteger das outras pessoas. Vovó sempre foi muito alegre e nunca me preocupei em ter outros amigos.
Melly se interrompeu, tentando conter as lágrimas. Ela aprendera a controlar as emoções, e não podia falhar na frente de Jourdan.
— Não fique triste, nós seremos amigos.
Logo em seguida, ouviu-se um aviso pedindo aos passageiros que apertassem os cintos de segurança, para a aterrissagem. Em poucos minutos estavam a caminho da casa de Jourdan.
O táxi seguia por ruas estreitas, com subidas e decidas muito acentuadas e com tantas curvas que às vezes parecia que voavam.
Lá de cima podiam avistar o mar brilhando como prata sob o sol da tarde.
— Logo você vai se sentir como uma nativa, e nunca mais vai querer morar em outro lugar.
Melly tinha algumas dúvidas, mas nada respondeu. O forte calor fazia o cabelo e a pele parecerem tão úmidos que ela não estava certa de conseguir permanecer naquele lugar por muito tempo.
— Gostaria de beber uma xícara de chá bem gelado.
— Estamos quase chegando. Logo você vai poder tornar chá e um banho para diminuir o calor. No começo a temperatura parece terrível, mas a gente logo se acostuma. É importante comer muita fruta, e isso não falta em Belize. Não vai resistir ao ponche de abacaxi que Bethula prepara.
Pouco depois, o táxi deixou a estrada e seguiu por uma trilha ladeada por árvores cujas copas se encontravam dando a impressão de um túnel. Ali, o sol mal conseguia entrar. A trilha era uma grande curva, que contornava a propriedade de Jourdan. Pouco a pouco foi ficando iluminada até que, depois de passarem por dois postes de pedra, o táxi parou.
— Chegamos — havia um tom de felicidade na voz de Jourdan, e aquele ar de preocupação lhe havia desaparecido do rosto.
Logo que desceram do carro, uma mulher apareceu nos degraus da grande varanda que circundava completamente a casa.
— Até que enfim você chegou, patrão! — a mulher que veio recebê-los era uma negra gorda e sorridente. — O chá está pronto, esperando vocês dois.
— Chá! — Melly exclamou, ansiosa. — Que ótimo!
— Patrão — Bethula olhou Melly de alto a baixo —, sua esposa é bem miudinha. Quase a confundi com Jody. Onde está a menina? Ela não vinha para morar aqui com vocês?
— Jody não vem, Bethula, vai ficar com Irene.
— Mas, por quê? Não disse na carta que era para eu arrumar o quarto da menina?
— Sim, mas acontece que agora ela tem um padrasto, e por enquanto resolvi não incomodá-la. Se um dia ela me escrever, dizendo que não está feliz, vou buscá-la no mesmo instante.
— Mas não se preocupe, patrão. Logo, logo aquele quarto deverá ser ocupado... — Bethula disse, olhando para Melly.
Ela estava certa. Afinal, Jourdan e Melly eram recém-casados, e parecia evidente que Melly lhe daria um filho, assim que decidissem.
— A casa é linda, Jourdan, esse tipo de telhado colmado lembra o chalé de vovó. Na primavera, entre as flores, ele parecia uma pintura. Sempre tive vontade de fazer um quadro dele...
— Então, agora que tem tempo, por que não aprende a pintar? Depois é só voltar lá em Devonshire na primavera...
Bethula olhava para os dois, estranhando a conversa. Jourdan sorriu ao perceber a hesitação da mulher e procurou esclarecer.
— Melly é uma moça trabalhadora, que salvou minha vida. Nosso sangue é de um tipo raro, e, quando me operaram, foi dela que recebi o sangue para a transfusão de que eu precisava. Eu e você, Bethula, vamos cuidar muito bem desta garota.
Bethula sorriu como se agora estivesse satisfeita com a maneira como Jourdan se dirigia à esposa.
— Espero, dona Melly, que tenha bom apetite, porque eu gosto muito de cozinhar, e o patrão sabe que sou uma boa cozinheira.
Melly sentiu a pulsação acelerar, pois era natural que Bethula os visse como duas pessoas que tinham acabado de se casar, e que estavam ansiosas para desfrutar os prazeres do matrimônio.
— Jourdan já me contou que você é a melhor cozinheira da ilha, mas agora o que eu gostaria mesmo era de uma xícara de chá bem gelado.
Ao subir os degraus, Melly percebeu que a varanda tinha mais de três metros de largura. O chão era de ladrilhos, e havia altas colunas de madeira cobertas por trepadeiras. Nas paredes existiam várias arandelas e em toda a extensão espalhavam-se cadeiras de palha ao lado de mesas baixas. O lugar era muito aconchegante.
— Gostou da casa nova? — Jourdan perguntou, colocando a mão sobre os ombros de Melly.
Ela se voltou e deu de encontro com o brilho dos olhos de Jourdan, que tanto a embaraçavam. Se pudesse, cairia em seus braços, mas era preciso conter os impulsos.
— Parece um sonho, é linda.
Dentro da casa, havia grandes ventiladores suspensos no teto propiciando uma temperatura muito agradável. O assoalho era de madeira de lei e o ambiente, bastante amplo. Todos os cômodos se encontravam no mesmo nível e eram ornamentados com muitos vasos de flores.
Os dois se dirigiram para a sala onde Bethula serviria o chá. Tomando a extensão de uma das paredes desse cômodo, havia uma estante, com um número incalculável de livros.
Sobre uma mesa redonda, coberta com uma toalha de renda, estava um bule, xícaras, sanduíches e bolinhos caseiros.
No seu novo lar em Belize, Melly desejava apenas ser feliz com o homem para quem ela deveria ser mais uma filha do que uma esposa.
Jourdan a observava enquanto acendia um charuto.
— Dona Melly, a senhora deve estar cansada da viagem, uma xícara de chá vai ajudá-la a se recuperar. — Bethula lhe serviu a bebida.
— Obrigada, Bethula.
Melly se recostou, sentindo-se menos tensa. O braço esquerdo doía um pouco e ela o massageou de leve.
— Ainda dói muito? — Jourdan perguntou.
— Um pouco...
— Gostou do chá, dona Melly?
— Está uma delícia, agora vou experimentar um desses bolinhos com creme.
— Beijos de anjo — a empregada colocou dois num prato. — Coma um bolinho também, patrão. Fumar é mesmo uma invenção do demônio!
— Suponho que sim — Jourdan sorria enquanto Bethula deixava a sala. — Não sei como uma pessoa tão eficiente pôde se casar com alguém tão preguiçoso. O marido dela não faz nada o dia inteiro. Mas enfim, os mistérios do coração às vezes também parecem invenção do demônio.
A expressão de Jourdan agora se tornara sombria. Com certeza pensava em Irene e no modo como infernizara sua vida.
— Tome um pouco de chá, Jourdan. Quer que eu sirva?
— Por favor.
Melly serviu o chá com a mão direita, e, distraída, apanhou o açucareiro com a esquerda. De repente, como às vezes acontecia, os dedos enfraqueceram e o açúcar caiu sobre a mesa.
— Droga! — ela procurava recolhê-lo de volta ao açucareiro enquanto Jourdan a observava com atenção.
— Tem certeza de que está tudo bem com esse braço, Melly? Você levou um tombo aquela noite no navio. Quero ver isso outra vez.
— Não é nada. Sou mesmo muito desajeitada.
Mas Jourdan parecia não ter escutado as palavras de Melly. Aproximou-se e, com delicadeza, desabotoou o punho da blusa, arregaçando a manga até o cotovelo para examinar-lhe o braço. A marca da contusão desaparecia, e ele tocou de leve a região machucada.
— Dói? — Melly apenas sacudiu a cabeça, indicando que não sentia mais dor. — Tem certeza?
— Não se preocupe, está tudo bem.
— Está dizendo a verdade? Desculpe se insisto, mas é que eu notei que às vezes esse braço costuma enfraquecer. Por quê?
— Há muito tempo caí do cavalo e, depois disso, às vezes meu braço adormece um pouco — Melly não conseguia encará-lo. — Mas não é nada sério.
Pensativo, Jourdan baixou a manga e abotoou o punho devagar.
— Costumava ajudar Jody a se vestir quando era pequena. Se não fosse Irene, estaria aqui conosco...
Calado, ele apanhou a xícara de chá e foi se sentar na poltrona de couro, ao lado da estante. Melly o observava. Todos os planos que fizera envolviam Jody e agora devia estar bastante desapontado.
— Vejo que você tem muitos livros — ela procurava distraí-lo. — Gosto muito de ler, mas, pelo que vejo, esses são todos sobre guerras e aventuras, isso me aborrece muito.
— Quase todos são livros sobre guerra, mas, se você não gosta, posso conseguir outros. De que autores você gosta?
— Adoro romances policiais. Aposto que você achou que eu fosse fã de Florence Del Rue.
— E quem é Florence Del Rue?
— É uma romancista cuja maior parte das histórias se passa no deserto, mas as heroínas sempre se apaixonam por toureiros ou latifundiários.
— E como você conhece essas histórias se não as lê?
— Porque as pacientes da clínica gostavam muito. Florence Del Rue era uma das autoras mais populares por lá.
— Bem, pode fazer uma lista de romances policiais que eu dou um jeito de consegui-los pelo correio. Aproveito e peço também O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir.
— Obrigada — Melly mordeu outro bolinho. — Jody iria gostar muito disso, são tão gostosos...
— Quem foi que magoou você, Melly? — Jourdan perguntou de repente, pegando-a de surpresa.
— Quem me magoou? Ora, ninguém...
— Eu quero saber — Jourdan se inclinou para a frente com uma expressão inquisitiva. — Quero saber o que está escondendo, quero saber por que de vez em quando fica apavorada... principalmente quando me aproximo. Assusto você?
— Acho que não sou obrigada a ficar falando sobre o que não me agrada...
— Você sabe quase tudo sobre o meu passado, Melly. Não acha justo que eu pergunte sobre o seu?
— Mas não gosto de relembrar o passado. Talvez seja uma maneira de me defender.
— De mim?
Melly se levantou, irritada.
—.Não vim a Belize para ficar discutindo com você. Não tenho culpa se Irene frustrou todos os seus planos e agora está casado com quem não queria. Não vou mais incomodá-lo com isso... Amanhã volto para Londres.
Melly correu para a porta, mas Jourdan foi atrás dela, segurando-a pelos ombros e fazendo com que o encarasse.
— Jourdan, por favor, não faça isso. — Lágrimas surgiram nos olhos de Melly. — Não posso morar aqui com você... me perseguindo. Isso não é justo, você disse que... que eu teria minha vida. Foi esse o nosso acordo, lembra?
— Não estou querendo descarregar minha raiva em você — Jourdan a puxou para mais perto de si. — Na verdade, eu sempre soube que as coisas seriam como Irene havia planejado. Mas você é muito diferente dela, Melly. Eu só acho que tenho o direito de saber por que sente tanto medo e vive agindo como se guardasse um segredo pavoroso.
Jourdan a fitava com um olhar insistente, mais do que Melly podia suportar, e ela se afastou, desesperada.
— Só me casei com você, Jourdan, porque jurou que não me tocaria. Acreditei no que me disse sobre sua filha e resolvi ajudar porque parecia sincero. Agora... não sei em que acreditar. Acho que seria melhor eu voltar para Londres, podemos anular nosso casamento, afinal ele está só no papel.
— Eu só queria compreender a razão de tanto pavor, não pretendia estimulá-lo.
Mesmo tremendo, Melly encarou Jourdan. O que ela sentia não era medo dele, mas sim de não conseguir mais guardar aquele segredo. Jourdan não podia imaginar como ela lutava contra os próprios sentimentos, contra a vontade de tê-lo realmente como marido.
— Petite, eu não quero que volte para a Inglaterra. E também detesto ouvir você dizer que não confia em mim... não a trouxe para Belize para fazê-la sofrer. Vamos, seja razoável.
— Você também, Jourdan. Só lhe peço que me deixe ser como eu sou. Não é pedir muito, é?
— Claro que não, Melly, e é isso que me preocupa. Acho que às vezes comparo você com Irene. Ela sempre pedia mais do que merecia. Está bem, petite, será- como você quiser. Se existem coisas que ainda não pode me contar, eu respeito sua vontade.
— Obrigada, Jourdan.
Aquelas palavras tranqüilizaram Melly, mas isso não durou muito. O medo logo retornou quando descobriu que Bethula a pusera num quarto vizinho ao de Jourdan, e que entre os dois cômodos existia uma porta. Para a empregada aquilo era natural, seria estranho Melly ocupar um outro quarto, longe do marido.
Pensando em Jourdan, mais do que em si, Melly resolveu aceitar as acomodações que lhe foram destinadas. O povo da ilha na certa faria muitos comentários se soubesse que os dois não mantinham um relacionamento íntimo.
Embora Jourdan sempre se referisse à casa como o lugar para um homem solteiro, aquele quarto especificamente possuía detalhes bem femininos. A mobília era toda em bambu claro, e uma colcha transparente cobria a cama de casal.
Talvez o aposento tivesse pertencido a Irene, pensou Melly ao se encaminhar até o armário. Mas ao abri-lo constatou que estava vazio, embora exalasse um perfume sedutor...
Depois foi até a penteadeira e permaneceu durante algum tempo em frente ao espelho. Seu cabelo brilhava sob o sol que entrava pelas venezianas semi-abertas. Sim, ela concluiu, deveria ser muito diferente de Irene.
Desviando o olhar da própria imagem, fitou a porta que levava ao quarto de Jourdan. Com a mão sobre o lado esquerdo do peito, podia sentir as fortes batidas do coração. Era uma sensação muito estranha, parecia que ele pulsava dentro de suas mãos.
De repente, a porta se abriu e ela deu de encontro com Jourdan. O susto fez com que todo seu corpo tremesse. Como parecia alto, como parecia moreno em contraste com a mobília frágil e clara daquele quarto... um quarto que deveria lhe trazer muitas recordações.
Melly tinha de dizer alguma coisa... qualquer coisa que quebrasse aquele silêncio constrangedor.
— Eu... Irene dormia aqui? — ela perguntou de chofre.
Jourdan enfiou as mãos nos bolsos das calças. Ele tinha tirado o paletó e a gravata. A camisa parecia muito branca sobre a pele morena.
— Você se importa com isso?
Melly sacudiu a cabeça. Precisava tomar cuidado para não dar a impressão de que sentia ciúmes, não queria despertar tal idéia em Jourdan.
— É um quarto tão bonito que logo imaginei que ela dormisse aqui. Posso sentir o perfume e imaginá-la em frente ao espelho, penteando os longos cabelos pretos.
— Como você sabe que ela tinha longos cabelos pretos?
— Intuição. As lembranças do seu casamento com Irene não são boas, por isso imaginei que não se casaria com uma mulher parecida com ela, ainda mais...
— Nas circunstâncias em que nós nos casamos, você quer dizer?
— Sim. Por ela, você era apaixonado, mas se casou comigo porr razões diferentes... sei que não me pareço nada com Irene.
— Sobre isso você tem razão, Melly — havia uma certa ironia na voz de Jourdan. — Não há nada em você que lembre Irene. O cabelo dela é preto, e os olhos são tão escuros que podem esconder um milhão de segredos, e ao falar esbanja sensualidade. Mas os homens acabam aprendendo que a capa de um livro nem sempre revela o conteúdo.
Ao dizer aquilo, caminhou pelo aposento onde fora infeliz com a primeira esposa.
Melly se esforçava para manter a calma, enquanto Jourdan se aproximava, olhando ao redor, como se relembrasse a última vez em que estivera com Irene.
— Sim, ela se sentava ali, penteando os cabelos, admirando o rosto e aplicando cremes de beleza durante horas. Não sei como pude aturar uma mulher tão fútil como Irene. Sabe, Melly, você pode até pensar que ela me feriu, mas o que realmente acabou comigo foi ter perdido Jody.
Melly percebeu que Jourdan queria ser confortado, mas ela não se atrevia. Era preciso manter os termos daquele casamento, pois só assim poderia permanecer casada com ele.
— Jourdan, é uma pena que os planos não tenham dado certo, mas ainda lhe resta a plantação.
— É verdade, ela está abandonada e precisa de muito trabalho. — Ele suspirou, abatido. — E isso ocupará tanto meu tempo que nem vou lembrar da minha esposa misteriosa. Era isso que você queria dizer?
— Não...
Jourdan apontou para o quarto ao lado.
— Vou dormir ali, mas deixarei a porta destrancada. Não quero que Bethula fique muito curiosa sobre a gente.
— Tudo bem, mas, por favor, Jourdan, não me despreze.
— Mon Dieu, não é uma questão de desprezo. As pessoas que moram nesta ilha são realistas, e não compreenderiam um casamento como o nosso.
Melly ficou triste com aquela situação. Duas pessoas unidas por um vínculo tão frágil que concordavam em ficar juntas porque simplesmente não tinham nada melhor a fazer.
— Você disse que não queria que eu partisse, mas se mudar de idéia...
— Fique — Jourdan respondeu. — Mas, por favor, Melly, não quero mais vê-la aborrecida.
— Aborrecida? Estou pensando em você... que se casou comigo com uma intenção, e que agora não tem motivo para continuar.
— Nós dois sabemos de quem é a culpa. A causa desse meu mau humor é Irene, não você. Logo que sua mobília chegar da Inglaterra, todos estes móveis que me fazem lembrar dela poderão ser queimados...
Jourdan voltou para o outro quarto, e as últimas palavras que dissera ficaram na mente de Melly. Pensativa, espalhou o perfume que trouxera por todo o aposento, precisava afastar dali tudo que lembrasse Irene.
Na manhã seguinte, a primeira tarefa de Melly foi encontrar outra utilidade para o pequeno quarto que Bethula havia preparado para Jody. Não porque tivesse a intenção de fazer Jourdan se esquecer da filha, mas porque não queria que ele se lembrasse da insinuação de Bethula ao saber que Jody não ocuparia mais o lugar.
Com a melhor das intenções, Bethula havia sugerido aos dois que tivessem um filho para substituir Jody. Mas para Melly isso não era algo tão simples... era algo que lhe causaria terror.
Alguns dias após sua chegada, Jourdan iniciou o trabalho de limpeza da plantação de bananas. O mato estava alto, e ele precisou contratar vários homens para ajudar na tarefa de derrubar a vegetação que impedia o crescimento das bananeiras.
Não demorou muito para Melly começar a se sentir inútil, pois havia muito pouco que pudesse fazer para ajudar. Ansiosa, esperava pela volta de Jourdan, sempre com novas histórias sobre o dia no bananal.
— Hoje um dos homens encontrou várias aranhas sob um toco de madeira. Eu as recolhi e em seguida levei até a floresta para soltá-las.
Jourdan dizia que apenas queria trabalhar; por isso deixava as aranhas em paz.
— Como você consegue pegá-las? — Melly perguntou, estremecendo só de pensar. Ela adorava animais e até tolerava algumas espécies de insetos, mas as aranhas pareciam terríveis.
— Você parece uma criança, elas são inofensivas. Acho que é da aparência que você não gosta.
— Não só da aparência, também são perigosas.
Enquanto durasse a limpeza da área, Melly passaria o tempo na praia, aonde se chegava com facilidade através de uma trilha que descia por trás da plantação.
Vestindo camisa, short e um chapéu de palha de abas largas, Melly passava horas na praia lendo os livros de Sherlock Holmes.
Os lanches que Bethula lhe preparava faziam com que pudesse ficar ali por muito tempo, sem nada para se preocupar.
Desfrutava o isolamento do local, procurando não pensar no futuro. Todos os dias o sol brilhava intensamente, e logo Melly começou a parecer um moleque bronzeado e travesso, caminhando sobre as rochas e catando conchinhas que levava para casa.
A ilha havia se tornado seu lar, e a vida agora era muito diferente da que levava em Londres. Não precisava mais acordar cedo, sabendo que iria para a clínica num ônibus lotado para enfrentar mais uni dia de um trabalho estafante.
Ali, ao contrário, quando pegava a trilha que levava à praia, Melly se sentia em férias.
Na praia havia grandes rochas desgastadas pela ação do mar, que serviam de proteção quando o sol se tornava muito forte. Deitada na areia, Melly não acreditava que tudo aquilo pudesse ser verdade, pois muito poucas vezes na vida estivera desocupada.
Era triste observar os mesmos pássaros que voavam felizes na tranqüilidade do céu brigarem pela própria sobrevivência à beira-mar, à procura de alimentos.
À tardinha Jourdan sentava-se na varanda para desfrutar do maravilhoso pôr-do-sol. Melly sempre estava por perto lhe fazendo companhia. Ele vinha notando que Melly estava cada vez mais bronzeada e que seu cabelo parecia ainda mais claro.
— Isso não é justo: você na praia, tomando banho de mar, e eu, na plantação, morrendo de calor.
— Ah, mas você gosta disso — ela respondeu, balançando devagar o gelo do copo de suco de frutas que estava bebendo. — Você não é o chefe? Dono de quase tudo o que tem nesta ilha?
— Quer dizer que posso incluí-la em minhas propriedades? — ele perguntou em tom de brincadeira.
— Eu disse que você era dono de quase tudo... — Melly levou o copo à boca, assim não precisaria olhar para Jourdan.
— Você me considera um homem arrogante?
— Acho que a arrogância é uma característica de muitos homens. — Melly sorriu, divertida.
Jourdan estava impecável, trajando um paletó branco e uma camisa desabotoada no peito, que fazia realçar sua pele bronzeada. A aparência dele era perturbadora, mas Melly procurava disfarçar as emoções com um ar de indiferença.
— O que você acharia se eu fosse um marido que usasse pijama e fumasse cachimbo?
— Talvez eu me acostumasse com a idéia de pai e filha. Era isso que você queria saber? — O olhar de Melly era bastante inocente, mas na verdade percebera a intenção da pergunta.
Jourdan apenas sorriu, olhando para Bethula, que se aproximava para dizer que o jantar estava pronto.
Comeram peixe e a sobremesa foi uma deliciosa torta de ameixa com creme. Depois, tomaram café na sala de estar, onde se sentaram para ouvir um concerto pelo rádio.
— Espero que não sinta falta dos cinemas de Londres, Melly. O cinema mais próximo da ilha fica a umas três horas daqui. — Parou um pouco e depois continuou. — Petite, me diga uma coisa: você nunca foi ao cinema com um homem? Nunca quis viver um romance?
— Um romance de verdade nunca é como nos filmes que se vê no cinema. Na vida real, nenhum homem olha para uma mulher como Robert Redford.
— Ele é seu galã preferido?
— É. — Melly sorriu. — Sou louca por aqueles olhos azuis.
— Contanto que ele esteja lá na tela, bem longe de você, não é?
Melly concordou, esforçando-se para não lhe revelar os verdadeiros sentimentos. Se não tomasse cuidado, acabaria revelando que, para ela, Jourdan era muito mais encantador do que qualquer astro de cinema.
Tinham o hábito de dormir cedo, pois Jourdan passava o dia todo na plantação, e o trabalho o deixava muito cansado. Enquanto vestia a camisola, Melly podia ouvir os movimentos de Jourdan no quarto vizinho. Sempre, antes de se deitar, ele abria a porta que ligava os dois quartos para lhe desejar boa noite. Melly o esperava sentada na cadeira de braços com um livro nas mãos e vestindo um roupão sobre a camisola.
Jourdan nunca se demorava, e Melly nunca procurou saber se ele ficava aborrecido por encontrá-la todas as noites com o nariz num livro. Antes de fechar a porta, Jourdan lhe recomendava que não cansasse demais os olhos. Na verdade, ele já percebera que o que mais a abalava era a sua insistência de ir se despedir dela logo após o banho. O fato de estar sempre envolto num roupão preto e com os cabelos úmidos devia deixá-la confusa.
Somente depois que Jourdan ia para o quarto e fechava a porta entre eles é que Melly se acalmava. Permanecia imóvel, sentindo o aroma do charuto e se lembrando do corpo sensual que tanto a perturbava. Aquele não era um casamento comum, mas em espírito ela se sentia muito próxima de Jourdan.
Suas vidas combinavam de forma harmoniosa. Ninguém perturbava Melly durante as horas na praia. A única e eventual companhia era um flamingo que caminhava sobre as ondas, sem dar a mínima importância à garota do grande chapéu de palha.
A brisa do mar movia as folhas das palmeiras e, de vez em quando, Melly saía à procura de conchas para a coleção que aumentava dia a dia.
. Para evitar os ouriços-do-mar, usava um par de chinelos que encontrara num armário. Enquanto os experimentava, antes de ir para a praia, perguntou a Bethula se Irene ia com Jourdan à plantação antes de se separarem.
— Às vezes — ela respondeu, sempre sorridente. — A última vez em que esteve aqui, me pareceu que estavam tentando salvar o restinho que sobrava do casamento. Mas não podia dar certo: ela aborrecia o patrão o tempo todo, chateada por estar tão longe da cidade.
Bethula sacudia a cabeça enquanto contava a Melly os detalhes da última vez em que Jourdan e Irene ficaram ali juntos.
— O patrão queria descansar depois de um trabalho difícil, e aquela mulher não parava de chatear. Um dia, de manhã bem cedo, chegou um táxi e ela foi embora sozinha. O patrão não impediu. Alguns meses depois eles estavam divorciados e ela ficou com a criança porque o patrão era militar. — Bethula suspirou e prosseguiu, com um olhar pensativo: — Parece que o patrão nunca vai conseguir ter a menina com ele.
O comentário permaneceu longo tempo na cabeça de Melly. Sabia exatamente o que Bethula queria dizer com aquilo... Ela era a nova esposa de Jourdan... e deveria dar a ele um outro filho.
Melly se ajoelhou na praia, limpando a areia de uma concha, mas o olhar estava longe, na imensidão do oceano. Recordava a conversa com Bethula.
Às vezes sentia as emoções tão alvoroçadas quanto aquelas ondas, chocando-se contra as barreiras de corais. Desde o início sabia que se sentiria assim e achava que deveria ter dito a Jourdan por que não podia se casar. Mas ele havia insistido tanto e lhe assegurado que não se importava com aquele tipo de casamento...
Melly se sentou na areia, solitária, permitindo que a água molhasse suas pernas esticadas. Um casamento naquelas condições talvez até pudesse sobreviver se não fosse o novo compromisso de Irene, que frustrara a tentativa de Jourdan em obter a custódia de Jody. Não tendo a companhia da filha, Jourdan poderia pensar em outra criança para substituí-la. E, se isso acontecesse, passaria a abordá-la com mais freqüência... o que ela não iria suportar.
Melly andava tão confusa que nem se preocupou com Chantal André no dia em que ela chegou. Estava na varanda, comendo uma fatia de melão, quando aquela mulher de cabelos compridos, esbelta e elegante, desceu do carro esporte, num conjunto de short e camiseta bastante audacioso.
Ao subir os degraus, deixou bastante claro, através do modo de caminhar, que era uma mulher que gostava de ser notada.
— Então você é a nova esposa de Jourdan... — A voz tinha um tom de deboche que a aparência simples de Melly sempre provocava nas mulheres artificiais.
— Sim, sou a sra. Lanier. — Melly voltara da praia naquele instante e sabia o quanto se encontrava desarrumada.
— Cheguei a pensar que você fosse a filha dele — Chantal observava Melly da cabeça aos pés. — Mas aí me lembrei de que Jourdan me disse que Jody é moreninha como a mãe... Puxa, o seu cabeleireiro deve ser muito competente, para clarear seu cabelo sem deixar as raízes escuras.
— Nunca fui a um cabeleireiro. — Melly estava cada vez mais tensa, algo lhe avisava que aquela mulher e Jourdan não eram apenas conhecidos. — Você é amiga de meu marido?
— Voilà, vim trazer um presente para vocês. — Ela colocou um pacote sobre a mesa em frente a Melly. — É uma coqueteleira... você gosta de coquetéis, não gosta? Ou prefere melancia?
— Depende da ocasião. — Melly não mexeu no pacote. A francesa era amiga de Jourdan e não dela. — Você não quer sentar? Beber alguma coisa?
Sobre a mesa havia uma jarra de limonada. Inocente, Melly encheu um copo até a boca, enquanto a elegante visita sentava numa cadeira de vime.
— Meu nome é Chantal André — ela disse, olhando para o copo de limonada com um ar de ironia. — Jourdan lhe falou a meu respeito?
— Acho que sim. — Na verdade, Jourdan nunca se referira a Chantal. — Ainda não conheço os amigos de Jourdan, e ele anda tão ocupado com a plantação que no fim do dia tudo que quer é descansar aqui na varanda.
— Então ele pretende ficar aqui na ilha... vocês não estão aqui só em lua-de-mel — Chantal tomou um gole de limonada e dirigiu a Melly um olhar indicando que a julgava tão grosseira quanto aquele refresco.
— Jourdan está tentando fazer a plantação se tornar produtiva — Melly falou, colocando a casca de melão sobre a mesa. Em seguida, limpou os lábios. Percebeu, pela expressão de Chantal André, que na certa a estaria achando desajeitada, sem o charme que os franceses exigiam de suas mulheres.
— Quer dizer que Jourdan deixou o serviço militar?
— Sim, quando nos casamos.
— A seu pedido, imagino. — Chantal falava como se tivesse direitos sobre Jourdan.
— A idéia foi dele. Como deve saber, srta. André, ninguém diz a Jourdan o que deve fazer. Ele é dono da própria vida, e eu...
— Costuma decidir as coisas por você também?
— Não, da minha vida cuido eu.
— Você é muito mais nova que ele. Talvez por isso precise da proteção masculina. — Chantal não havia acreditado nas palavras de Melly.
— Se pensa assim... — Melly sorria, um olhar divertido realçava aquele rosto sem nenhuma pintura. Embora não fosse bonita, havia algo em sua aparência que as outras mulheres só conseguiam com o uso de cosméticos.
— Que coisa mais antiga! Onde Jourdan foi encontrar uma figura como você? Ele sabia muito bem que eu esperava por ele. Não fique surpresa com o que estou falando, chérie, mas você não imaginou que Jourdan fazia abstinência... não é?
— O que Jourdan fazia antes de casar não me interessa. — Melly procurava manter a calma, mas na verdade sentia uma certa indignação pela petulância daquela mulher.
— Você não sente ciúmes, nem se aborrece por eu vir aqui visitar vocês?
— Não — Melly mentiu.
— Você deve encantar Jourdan com esse amor tão inocente e confiante.
— Acredita mesmo? — Trabalhando na clínica, Melly tinha aprendido a lidar com mulheres como aquela. Usava sua meiguice para desconcertá-las.
— Mas é claro... Você é do tipo romântico... É fácil perceber isso. Conheceu Jourdan na Inglaterra?
— Em Londres. Foi operado na clínica onde eu trabalhava, servindo refeições — ela notou uma ponta de desprezo nos olhos de Chantal.
Melly não estranhava o fato de Chantal ter atraído Jourdan, pois devia possuir as mesmas manias de Irene. Era mais uma que dava importância apenas ao aspecto externo, às roupas, às jóias e aos bons perfumes.
— Você trabalhava como criada? Chérie, eu não acredito.
— As pessoas precisam comer, e isso me parece muito natural, não acha?
— Sabe o que eu quero dizer... você é completamente diferente da primeira esposa de Jourdan. Irene era tão bem relacionada, tão elegante, tão segura...
— Sim, e eu sei que não sou nada disso. — Embora ainda sorrisse, Melly tinha o olhar distante. — Acho que Jourdan estava precisando de uma mudança.
— É, ele sempre foi muito brincalhão...
— Você acha que por isso ele se casou comigo? Para surpreender suas... amigas?
— Bem, quando soube que ele se encontrava aqui com uma nova esposa, é lógico que eu pensei que... bem, vamos dizer, chérie, que é surpreendente saber que um homem como Jourdan se casou com uma garota simples, que não conhece muito do mundo.
— Talvez eu estivesse ocupada, aprendendo coisas mais importantes. Talvez eu quisesse ser mais do que uma pessoa superficial. Quando as pessoas falam sobre conhecer o mundo, geralmente querem dizer "amontoar sensações" e estar sob o sol evitando a todo custo as sombras onde alguém possa precisar de ajuda.
— Mon Dieu! — Chantal arregalou os olhos. — Você é incrível! Será que conseguiu modificar Jourdan com essas idéias caridosas a ponto de eu não conhecer mais aquele homem excitante que conhecia tão bem?
Melly percebeu a forma como Chantal enfatizou aquelas últimas palavras.
— Você conhece Jourdan há muito tempo?
— Mais ou menos. Eu canto no Café Zelle, na cidade. Jourdan ia sempre lá quando se separou de Irene. Estava sempre sozinho, era um homem atraente e nós nos tornamos... amigos.
— Isso deve ter feito muito bem a ele — Melly comentou, com uma certa ironia na voz. — Jourdan sofreu muito com o fato de ter que se separar da filha.
— A menina ainda está com a mãe, não é? Você não quis...
— Irene se casou outra vez. Eu gostaria muito que Jody estivesse conosco, mas Jourdan resolveu não insistir na custódia da filha porque acha que isso não seria bom para ela.
— Compreendo. — Chantal abriu a bolsa e tirou uma cigarreira — Você fuma?
— Não, obrigada.
— Você não tem vícios? — Chantal acendeu um cigarro, sem desviar o olhar do rosto de Melly.
— O que algumas pessoas chamam de vício, outras chamam de modo de vida. — Melly tinha o olhar fixo em Chantal, que fumava com elegância.
— Se você diz... — a francesa falou, sugerindo a Melly que Jourdan voltaria a ser seu amante caso ela quisesse. Depois continuou: — Esta casa é muito agradável, não é? Tão perto da praia... me conte, você e Jourdan costumam nadar sem roupa? — O olhar de Chantal percorria o corpo de Melly, avaliando-lhe as proporções. — Jourdan sempre gostou de nadar nu, e nessa praia solitária.
Ao imaginar Jourdan nu na companhia daquela mulher, Melly sentiu um ciúme terrível. Foi como uma punhalada no peito.
— Como eu disse, Jourdan anda tão ocupado com a plantação que não sobra tempo para ir à praia — Melly falava bem devagar para não deixar evidente o quanto se magoara com as insinuações. — Vou à praia sozinha. Assim posso esquecer a agitação e o barulho de Londres.
— Você não nasceu em Londres, imagino.
— Por que fala com tanta convicção?
— É que você tem uma simplicidade que as pessoas da cidade não têm.
— É, nasci no interior... em Devonshire.
— Ah... Mas no interior as pessoas são bem mais dedicadas do que nas cidades grandes. Eu nasci em Paris, a cidade mais civilizada do mundo. Você já esteve lá?
— Não, mas Jourdan me levou a Nova York. — Melly tinha a impressão de que uma serpente havia chegado em seu paraíso. E com aquela figura esbelta e elegante ela não podia competir. Sentia que não conseguiria impedir o impacto que a visita causaria a Jourdan quando ele a encontrasse.
Com certeza, ele não teria esquecido os bons momentos que passara com Chantal, e era inevitável que comparasse a sua sensualidade com a insistente reserva de Melly. Chantal tinha tudo para atrair um homem como Jourdan, e ele só se casou outra vez por causa da filha. Na certa nunca olhara para aquela francesa com olhos de pai, ao passo que em Melly procurou apenas uma companheira para a filha.
Melly acreditava que, se Irene o tivesse informado do novo casamento quando ele ainda estava em Londres, o curso de sua vida não seria o mesmo.
— Gostou de Nova York? Uma garota do interior como você deve ter achado a cidade um tanto assustadora.
— Achei uma cidade maravilhosa, principalmente à noite.
Melly relembrou os momentos que havia passado com Jourdan no terraço do hotel, olhando para o horizonte, enquanto o sol mergulhava no rio Hudson.
Durante os poucos dias que ficou em Nova York, pôde perceber como o ritmo agitado de vida estimula paixões nas pessoas que vivem nas modernas selvas de concreto.
— Mas acho que prefiro Belize — Melly prosseguiu. — Nunca na minha vida vi tantas árvores e flores. Outro dia encontrei na praia uma tartaruga com uma carapaça semelhante a um escudo medieval.
— A ilha tem seu charme — Chantal concordou —, mas Paris é maravilhosa. É uma cidade envolvente como nenhuma outra no mundo... Um dia ainda volto para lá.
— E o que prende você aqui? — Melly ouviu o som de passos que se aproximavam.
— Jourdan! — Chantal se levantou para cumprimentá-lo.
Melly se sentia como se fosse a visita e Chantal a esposa ansiosa pela volta do marido. Quando ele subiu os degraus da varanda, Chantal o esperava com os braços abertos.
— Chantal! — Na voz de Jourdan havia um tom de satisfação e Melly sentiu o ciúme crescer.
— Eu mesma, mon diable. Você sabia que eu estava a sua espera e faz isso comigo. — Chantal apontou para Melly. — Quando é que vou conseguir pegar você solteiro, hein?
Mal terminou de falar, se pendurou no pescoço de Jourdan para poder beijar-lhe os lábios. Percebendo o olhar de Melly, ele retirou as mãos da cintura de Chantal, afastando-a com suavidade.
— Bem, enchanté de te voir, ma chérie.
— Como se atreve a me dizer que está encantado por me ver? — Chantal fazia biquinho e se encostava em Jourdan. — Por que você não foi me procurar?
— Ando muito ocupado, Chantal. Minha esposa não lhe disse que trabalho como um doido na plantação?
— Sim, ela falou alguma coisa a respeito. Mas, que maneira de passar a lua-de-mel...
— Melly é muito compreensiva.
— Se você dissesse isso a meu respeito, eu torceria o seu pescoço. — Chantal não largava Jourdan. — Sua esposa é tão tímida... Não é bem o que eu esperava...
— Eu sei que você deve estar surpresa. Já tomou um drinque?
— Uma limonada — Chantal torceu o nariz. — Essa Melly é bem diferente, hein? Onde foi que você a encontrou?
— Numa clínica.
— Ah, sim Ela contou que trabalhava numa clínica. Trazia os seus chinelos e acendia o charuto...
— Não — Jourdan dirigiu um rápido olhar para Melly, e em seguida se voltou para Chantal.
— Prefere um daiquiri, não é? Melly a convidou para jantar?
— Non. Você está me convidando?
— Se você estiver com fome...
— Mas claro que sim. — A forma como Chantal esbanjava charme sugeria que o que estava sentindo não era bem fome. — Você parece muito bem, já se recuperou da operação?
— Completamente. Não foi nada sério.
— Eu... vou me preparar para o jantar... com licença. — Melly se levantou e entrou, deixando Jourdan sozinho com Chantal.
Ao entrar no quarto, Melly pensava que era natural Jourdan procurar alguém em busca de prazer. Ela imaginou que pudesse aceitar aquilo com tranqüilidade, mas agora parecia muito difícil. Talvez, se Chantal André fosse um pouquinho mais simpática seria possível concordar com o fato de Jourdan achá-la atraente.
Mas Melly não gostava de Chantal. Não gostava de sua artificialidade, de sua ironia. Durante o banho, evitou olhar o espelho na parede; sentia um misto de dor e raiva.
Chantal André era atrevida, exatamente o tipo que Jourdan definiria como egoísta. No entanto, parecia tão atraído por aquele tipo de mulher, como se não pudesse evitar. Sem dúvida a atração devia ser só física, mesmo assim não podia aceitar. Melly se voltou para o espelho lentamente, observando a própria imagem. O corpo de Chantal era muito mais sedutor que o dela. Melly suspirou ao fechar a água do chuveiro. Enrolou-se numa toalha e foi para o quarto.
Jourdan estava lá, esperando por ela.
Melly levou um susto ao encontrá-lo e comprimiu ainda mais a toalha sobre o corpo molhado. Chegou mesmo a recuar como se pretendesse voltar ao banheiro.
— Não faça isso, quero falar com você.
— Posso me vestir primeiro? — O coração de Melly quase saltava do peito.
— Não estou proibindo você de se vestir. — A expressão de Jourdan era quase ameaçadora. — Podemos falar enquanto se veste.
— Não... — Melly não pôde evitar um tom de pânico na voz.
— Por que não? Você me aborrece com esse seu jeito infantil, sabia?
— Então... então volte para sua amante. Ela não é tão inocente...
— Chantal não é minha amante. — Ele estava irritado.
— Não sou criança, Jourdan. Ela deixou bem claro que vocês... que vocês tiveram um caso.
— Somos apenas amigos, não chega a ser um caso amoroso. Essa sua ingenuidade faz com que não perceba a diferença. Quando é que você vai crescer?
— Era isso que você queria me dizer? — Melly tremia, incapaz de dissimular o pavor.
— Não, não era. Pensei que Chantal tivesse aborrecido você com alguma coisa, por isso vim dizer para não se aborrecer com o que ela diz.
— Claro. É compreensível que tema que eu saiba do seu relacionamento com ela... dos banhos de mar dos dois nus na praia... É lógico que você prefere esconder isso de mim.
— Mon Dieu! — Jourdan correu os dedos pelos cabelos despenteados. — Será que não consegue compreender que quando me separei de Irene estava propenso a algumas loucuras? Ela era exatamente o que eu precisava naquele momento... e talvez ainda seja.
Jourdan se voltou e saiu do quarto, batendo a porta atrás de si. Só muito tempo depois Melly encontrou disposição para se vestir e passar a noite ao lado de duas pessoas que já haviam compartilhado bons momentos de intimidade. Com tanto encanto e tanta experiência, Chantal diminuíra a infelicidade de Jourdan na época da separação, e aqueles laços não seriam rompidos com facilidade. Ainda mais por um casamento que se tornara um terrível engano.
Melly procurava conter as lágrimas. Uma aparência pálida só faria aumentar o contraste entre ela e Chantal.
"Quando é que vou pegar você solteiro?", Chantal perguntara.
Muito em breve, Melly respondeu para si.
O trabalho de limpeza da plantação finalmente havia terminado, e Jourdan deixou apenas alguns homens com a função de manter as trilhas limpas, impedindo que o mato voltasse a crescer e prejudicasse as bananeiras. Agora seria preciso cuidar do sistema de embarque e distribuição para quando as frutas estivessem prontas para a colheita.
Melly procurava se convencer de que essa era a razão das prolongadas ausências de Jourdan, de que ele ia à cidade a negócios, mas no íntimo estava certa de que começara a procurar Chantal André de novo.
Ela tentava não se aborrecer, Jourdan tinha o direito de ver outra mulher, já que o casamento deles era um blefe. Às vezes sentia vontade de deixá-lo, pois não via perspectivas para aquela situação, e, por mais que quisesse, era incapaz de permanecer indiferente à idéia de seus encontros com Chantal.
Jourdan e Chantal possuíam muito em comum: ambos franceses e do mesmo nível social, pareciam feitos um para o outro. Melly não os condenava, mas a infelicidade dela aumentava sempre que imaginava os lábios do marido a percorrer o corpo sedutor de Chantal.
Todas as manhãs, ao acordar, ela pensava a mesma coisa, que encontraria coragem para arrumar as malas e sair da vida de Jourdan. Era apenas alguém que ele encontrara num momento difícil da vida e com quem fizera um acordo. Agora, devido às circunstâncias estaria sendo indesejada.
Mas a determinação em acabar com o equívoco que tinha se tornado as suas vidas desaparecia ao sentar-se na varanda ao lado de Jourdan para o café.
A atenção que ele lhe dispensava, a maneira doce com que lhe perguntava se havia dormido bem, tudo isso fazia com que Melly adiasse os planos. Nesse momento era difícil conter o ciúme. Chantal poderia beijá-lo milhões de vezes, mas nunca faria por Jourdan o que ela fizera.
Melly sabia que se o deixasse nunca viria a esquecê-lo. Se o abandonasse somente uma parte dela voltaria à vida solitária de antes; a outra ficaria ali, junto de Jourdan.
Mas talvez fosse uma questão de tempo. O tormento de saber que cada palavra de Jourdan podia ser uma forma de disfarçar os sussurros que dedicara a Chantal André não duraria muito.
Havia horas em que Melly chegava muito perto de perguntar a Jourdan se ele estivera com Chantal na noite anterior. Mas retrocedia ao lembrar-se de que não possuía o direito de exigir nada dele, afinal era apenas uma esposa de mentirinha, com menos direitos que uma amante. O juramento que tinham feito não passara de um grande embuste, palavras ditas em um momento de extrema necessidade.
Certa manhã, embora o sol brilhasse no céu, o vento soprava forte. Jourdan, tranqüilo, avaliava o tempo.
— Parece que vamos ter um furacão. Nesta época do ano eles surgem de repente.
— Furacões são perigosos, não são? — ela não estava com medo, mas se preocupando com o bananal.
— Os furacões existem há milhões de anos, eles a assustam?
— Não sou assim tão medrosa, Jourdan — ela respondeu, enquanto descascava uma tangerina.
— Sei que não — Jourdan a fitava nos olhos como se quisesse dizer algo importante... talvez relacionado com a permanência dele na cidade até altas horas. Mas em vez disso pediu um pedaço da tangerina.
Melly partiu a fruta ao meio e lhe deu a metade. Enquanto ele comia, Melly o observava e foi aí que se deu conta de que Jourdan a excitava muito. Desejava ser Chantal André, com aquele corpo gracioso e sensual para poder provocá-lo.
Jourdan era bastante experiente e conhecia Chantal. Melly tinha certeza de que o que o atraía naquela francesa era sua sensualidade. O casamento com Irene havia fracassado, por isso nada mais lógico que ele não quisesse mais se envolver emocionalmente.
— Um furacão pode fazer muito estrago — ele disse, sobrancelhas erguidas e olhos impenetráveis. — Precisamos trancar todas as portas e janelas e ficar no porão até o temporal passar.
— Será que vai estragar as bananas?
— Acho que sim.
— Depois de tanto trabalho... Espero que essa tempestade não seja tão terrível.
— Talvez não chegue até a ilha, Melly. Você aprendeu a gostar daqui, não foi?
Ela concordou. Era impossível resistir aos encantos da ilha e de Jourdan, mesmo sabendo que o casamento poderia fracassar a qualquer instante.
— Vou sentir falta de tudo isso... — Melly interrompeu o que pretendia dizer, aliviada ao perceber que Jourdan estava concentrado numa carta que acabara de abrir.
— É de Jody. Ela conta que gosta do padrasto, que ele tem um barco e que os três vão navegar todos os fins de semana. Fica de segunda a sexta na escola, mas Roy, o novo marido de Irene, insiste para que ela passe o sábado e o domingo com eles. Também conta que Roy fica muito simpático vestido de marinheiro e que é bem diferente de mim, que vivia longe de casa, protegendo princesas árabes. — Jourdan parou, com raiva no olhar. — Parece que o vocabulário de Jody aumenta a cada dia, e eu perco o meu lugar de pai para o novo marido de Irene.
Melly não sabia o que dizer enquanto Jourdan dobrava a carta e a recolocava no envelope.
— Pronto, esse sujeito é o novo herói da minha filha. Será que ela vai se esquecer de mim?
— Não... não fique triste. — Melly tocou a mão de Jourdan. — Jody ainda é uma criança e com certeza não imaginou que essas palavras poderiam magoá-lo. As crianças falam com o coração...
— Com o coração... — Jourdan concordou. — É isso que magoa. Agora, Jody e eu seremos apenas estranhos.
— Não diga isso, Jourdan.
— Mas é o que vai acontecer. Pelo que pude constatar, Roy é bom para Jody, o que eu acho ótimo, mas isso significa que posso perder minha filha para ele.
Jourdan se levantou, fitando a plantação, o olhar distante....
— Preciso ir à cidade — ele disse de repente. — Tenho um encontro dê negócios. Você quer ir comigo?
— Fala a sério? — Melly estranhou o convite. Jourdan se voltou para ela, impaciente.
— Claro que sim!
— Eu... não quero atrapalhar — talvez, depois da carta de Jody, ele precisasse de consolo, e não seria surpresa se fosse procurar Chantal.
Era evidente que Jody não teve a intenção de magoar o pai, apenas contava as novidades, mas Jourdan parecia muito ferido. Talvez ela ainda não pudesse compreender que o pai, quando se ausentava, havia trabalhado para o país, arriscando a vida de uma forma que exigia muita força e coragem.
— Você não vai atrapalhar — Jourdan olhava para Melly de uma maneira ausente.
— Então eu gostaria de ir. — Ela afastou a cadeira e se levantou. Usava um short e uma camiseta, pois pensava em passar a manhã na praia. — Vou me trocar, você espera?
— Pois não, madame. — Quando Melly ia sair correndo, Jourdan a segurou pelo pulso. — Às vezes você me surpreende com essa preocupação constante de não ser intrometida. Você é a pessoa menos intrometida que eu já conheci, sabia?
O olhar de Jourdan a abalava, e Melly sentiu que nunca havia ficado tão vermelha antes. Sem dúvida ele a comparava com Chantal, uma pessoa tão segura de seu charme que jamais imaginaria que não estivesse sendo bem-vinda em algum lugar.
— Não dei muita atenção a você nas últimas semanas, mas foi porque precisei cuidar de uma série de coisas relativas à plantação. Você compreende?
— Compreendo, Jourdan. — Melly sorriu, enquanto ele a tocava no rosto queimado pelo sol, num carinho suave. Depois a soltou para que pudesse ir mudar de roupa.
Melly gostaria de acreditar no que ele dizia, que as idas à cidade eram realmente a negócios. Mas uns dias atrás, Bethula havia encontrado um lenço rendado no chão do quarto de Jourdan e o entregara a Melly, pensando que fosse dela. Estava manchado de batom... Um lenço que, com toda certeza, fora emprestado por Chantal para que Jourdan limpasse os lábios depois de terem se beijado. Sem dúvida, um indício do seu envolvimento com ela.
De qualquer forma, Melly se sentia contente pelo convite de Jourdan, mesmo que no céu houvesse sinais claros de tempestade. Orgulhava-se por ele ter lhe confiado as mágoas ao receber a carta de Jody. Ainda assim imaginava que Chantal André era alguém muito importante para Jourdan mas, em se tratando de Jody, não saberia compreender-lhe os problemas.
Chantal era experiente, bonita e possuía um corpo de fazer inveja a qualquer mulher, pensou Melly ao se vestir. Porém, na certa, não sabia o significado da palavra solidariedade.
Melly, às vezes, se sentia culpada de julgar com dureza uma mulher que mal conhecia, mas essa havia sido a maneira que encontrara para continuar sobrevivendo a tantas adversidades. Usando um vestido leve de verão, voltou, sorridente.
Jourdan esperava no carro, observando-a se aproximar através da fumaça do charuto. Melly voltou a ficar vermelha quando notou que ele a olhava de alto a baixo.
— Essa cor de vestido combina com seus olhos — comentou.
— Obrigada — ela olhou para o céu. — Você acha que eu devo levar uma sombrinha?
— Melly, você não existe! Uma sombrinha viraria do avesso assim que começasse a ventania. — Jourdan jogou fora o charuto, abriu a porta do carro e esperou que Melly entrasse.
— Gostei do perfume. Você está tentando me seduzir? — ele perguntou de repente.
— Não — alisava a saia do vestido, um tanto nervosa. Ao sentar atrás do volante, Jourdan encostou a perna na dela, o que lhe aumentou ainda mais o nervosismo.
Melly se afastou com cuidado, e ele nem percebeu. Ao cruzarem o portão, uma folha de bananeira colou-se ao pára-brisa do carro, permanecendo um instante sobre o vidro antes de cair no chão.
— O vento está aumentando. Tem certeza de que quer ir comigo, Melly? Se o furacão atingir a ilha, a gente pode ficar preso na cidade.
— Eu... prefiro ir com você. — A idéia de estar sozinha durante o furacão causava-lhe arrepios.
— Mas Bethula não vai sair...
— Tudo bem, tudo bem — ela agarrou a maçaneta da porta. — Se você não quer que eu vá... se prefere ir sozinho...
— Não seja infantil.
— Você está sempre dizendo que eu sou infantil... — Melly sentiu os olhos umedecerem, pois agora tinha certeza de que Jourdan preferia estar com Chantal... Com a desculpa do furacão, acabaria dormindo na cidade.
— Às vezes você age como criança — ele falava, mal-humorado, enquanto dirigia sob as árvores, até chegarem à estrada. Sentada ao lado de Jourdan, Melly percebeu que as coisas entre eles se tornavam cada vez piores, como se estivessem ambos com os nervos à flor da pele, aguardando o momento de concluírem a impossibilidade de viverem na mesma casa.
— Você vai se encontrar com alguém importante? — ela perguntou.
— É um despachante muito bem conceituado com, quem preciso negociar o embarque das bananas. Talvez você ache cansativo participar da nossa discussão. Se quiser andar pela cidade e fazer algumas compras... Você precisa de dinheiro?
— Não consigo gastar nem a metade do dinheiro que você me dá para as compras da casa. — Melly sorriu, um pouco mais aliviada. — Ainda tenho bastante.
— É muito fácil agradar você, petite. — Mais uma vez Jourdan se surpreendia. — A maioria das mulheres procura tirar tudo que pode de um homem; é insaciável.
— Como você é desconfiado, Jourdan! Vive confundindo todas as mulheres com... com Irene.
— É possível. Mas vocês duas são muito diferentes.
— E isso preocupa você, não é?
— Às vezes não consigo compreendê-la, Melly. Você é um mistério que eu não consigo desvendar.
— Acho melhor que não tente.
— Tem medo de que eu descubra seu segredo, não é?
Melly preferiu não responder, mudando de assunto.
— Bethula faz muita economia, comprando diretamente dos produtores da ilha, você não acha? O tamanho dos ovos é uma coisa incrível, são muito diferentes dos ovos que a gente vê em Londres. Bethula diz que são assim porque as galinhas vivem soltas.
— Sabe o que sinto morando na ilha, Melly? Uma sensação de liberdade, de estar entre pessoas que vivem soltas como essas galinhas a que você acabou de se referir. Viver aqui em Belize seria ótimo para Jody. Mas tenho que esquecer isso... você me ajuda?
— Se eu puder, Jourdan.
— Promete?
— Prometo.
— Não estou brincando, Melly. Quero transformar aquela plantação numa das melhores... quero fixar raízes nesta ilha. Você compreende?
— Claro que sim — ela podia apoiar aqueles planos, mas no íntimo se sentia incapaz de compartilhá-los como uma esposa. A própria forma como Jourdan falava em fixar raízes a alertava de que deveria se libertar, antes que isso se tornasse impossível. O acordo entre eles era bem claro, ela seria apenas uma companhia para Jody, que acabara de escrever uma carta dizendo que gostava do novo pai.
Aquilo magoara Jourdan profundamente, mas ao mesmo tempo intensificara-lhe a vontade de construir uma nova vida na ilha.
— Seus planos são ótimos — Melly disse.
— Você acredita mesmo que eles possam dar certo?
— Claro. Tudo vai sair como você quer, porque você é uma pessoa muito dedicada. Depois do que houve com Jody, imaginei que fosse desistir de tudo. Mas pelo jeito você não desanimou.
— Assim você me deixa encabulado, Melly... mas eu gosto disso.
Ela sorria, mas não havia abandonado a idéia de partir. Julgava que não deveria prendê-lo com aquele casamento inútil, além do que talvez já o tivesse perdido em parte para Chantal André... que lhe oferecia mais do que simples palavras de incentivo.
— Sim — Jourdan prosseguiu. — Tudo vai sair como eu quero. O que passou, passou...
Pouco depois chegavam à cidade, que era cercada por sólidas muralhas que lembravam uma antiga fortaleza. No mercado, apesar do vento forte, havia muita gente.
Jourdan estacionou o carro e indicou uma praça onde tinha um coreto.
— Está vendo aquele café, perto da fonte? Encontro você lá mais ou menos em uma hora. Enquanto isso, pode passear por aí... mas não vá se perder.
Ele sorria, observando o brilho daqueles olhos sob o sol. Meio sem jeito, Melly se inclinou e beijou o rosto de Jourdan. Depois se afastou depressa, voltando para trás da barreira que construíra entre eles.
— Como foi que consegui ganhar um beijo? — ele perguntou, perplexo.
— Bem, acho que é a minha forma desajeitada de tentar compensar o aborrecimento que aquela carta lhe causou. Não disse que eu devia me comportar como uma filha?
— Eu disse? — Jourdan observava Melly de alto a baixo. O vestido amarelo esvoaçava ao sabor do vento. — Como pude dizer uma bobagem dessas? Até mais tarde, petite.
Ele sumiu na rua estreita, cheia de gente. Algumas mulheres levavam os cestos de compras sobre a cabeça com uma facilidade incrível.
Melly se sentia perdida no meio daquele cenário tão vivo e colorido, e com as vozes das pessoas que se acotovelavam ao redor das barracas.
Ali havia de tudo, e ela parou para admirar um bracelete de bronze. Seria uma boa lembrança para levar de volta a Londres. Aquilo a faria lembrar Jourdan.
Num inglês sofrível o vendedor insistia para que ela levasse o bracelete, mas Melly decidiu não comprá-lo.
Mais à frente, entrou num beco, e o som de um calipso a atraiu a uma outra loja, onde parou para admirar um facão numa bainha. Ao vê-lo, pensou em Jourdan e entrou para perguntar o preço.
Atrás do balcão havia uma mulher descascando ervilhas numa tigela de madeira. Tinha o rosto brilhante e usava um lenço na cabeça. Ela se levantou, apanhou o facão na vitrina e lentamente o tirou da bainha.
— Isto para homem grande guerreiro — ela disse, mostrando os dentes muito brancos.
— É por isso que quero comprá-lo. Quanto a senhora está pedindo por ele?
A vendedora disse o quanto queria, e Melly se lembrou de que Bethula lhe dissera que deveria sempre regatear com os nativos. Eles admiravam isso e respeitavam um bom pechinchador.
— É muito. Este enfeite na bainha é de cobre, não é de ouro.
— Homens morrem cavando cobre como morrem cavando ouro.
— Isso é verdade, mas a senhora sabe que está pedindo muito por ele.
— Lâmina muito afiada. Pode cortar cabeça da moça.
— Acho que pode — se pretendia assustá-la, a mulher não conseguiu. — Se você quer mesmo tudo isso pelo facão, vou procurar outra coisa.
Ela já saía da loja quando a mulher a chamou de volta. Chegaram logo a um acordo, e o facão foi embrulhado. Quando Melly lhe entregou o dinheiro, a mulher segurou-lhe o braço.
A princípio, ficou um tanto assustada, mas logo se acalmou quando percebeu que a vendedora queria apenas examinar a palma de sua mão. Bethula lhe falara sobre as quiromantes de Belize.
— Você tem problema, vejo encruzilhada.
— Todo mundo tem problemas. Eu também tenho os meus, é claro.
— Cuidado com caminho que vai tomar — a mulher fitava Melly nos olhos. — Um deles leva para lugar nenhum.
— Eu sei cuidar de mim. Por favor, solte minha mão. Preciso encontrar meu marido para o almoço.
— Para ele moça comprou facão?
— Sim.
— Cuidado para não ferir coração da moça com ele — a mulher soltou a mão de Melly e voltou a descascar ervilhas.
Ela se despediu e saiu depressa, mas as últimas palavras continuavam a ecoar-lhe na mente. Quiromancia é uma bobagem, Melly pensava, pura superstição. Com certeza a chegada da tempestade contribuía para um certo clima de mistério, concluiu.
Quando chegou ao lugar que Jourdan indicara e se sentou, percebeu que suas pernas ainda estavam trêmulas. Era estupidez permitir que uma estranha a perturbasse com aquela conversa de encruzilhadas que levavam a lugar nenhum, embora as palavras tivessem um significado que Melly não podia ignorar por completo. O envolvimento com Jourdan chegara a um ponto que se voltasse para a Inglaterra deixaria o próprio coração para trás, e seria como se ele tivesse sido arrancado do seu corpo.
Melly suspirou, levando a mão ao lado esquerdo do peito, sentindo um vazio.
— Melly?
Ela olhou para cima, assustada, e viu diante de si a causa de todas aquelas preocupações.
— Até que enfim — Melly se levantou tão depressa que tropeçou, caindo nos braços de Jourdan.
— O que foi que você comprou?
— Um presente para você. — Ela mal conseguia sustentar-se em pé. — Espero que goste.
— Para mim? Já sei, você continua brincando de filha, certo?
Melly concordou. Aquela desculpa era mais segura... para ela.
Procuraram uma mesa na sombra. Quando se sentaram, Melly lhe entregou o pacote, e percebeu que Jourdan o abria como se não estivesse acostumado a receber presentes.
— É uma beleza. Onde você conseguiu encontrá-lo?
— Numa pequena loja numa dessas travessas. — Melly percebeu que Jourdan havia gostado do facão. — Achei que ficaria bem na parede do seu escritório.
— Você é mesmo imprevisível... — Jourdan se inclinou, fitando-a nos olhos. — Muito obrigado por pensar em mim.
Ela pensava em Jourdan o tempo todo, mas isso era algo que não podia lhe dizer.
— É apenas uma lembrança. E os negócios, como foram?
— Muito bem, fiz um ótimo acordo. Acho até que devemos comemorar com uma garrafa de champanha cor-de-rosa.
— No Ritz — Melly olhava ao redor. O ambiente em Belize a deixava muito mais à vontade. — Aquele jantar foi ótimo, mas gosto mais daqui. O povo da ilha é autêntico.
Jourdan a observava com atenção. Talvez estivesse tentando desvendar-lhe o segredo. Melly se certificou de que precisava ir embora, fugir daquele lugar, daquele povo maravilhoso, antes que tudo se desmoronasse ao seu redor.
— Belize seduziu você, Melly, assim como me seduziu a primeira vez em que estive aqui. Fiquei louco para arrumar um lugar nesta ilha, um lugar onde eu pudesse vir quando estivesse cansado do tal mundo civilizado. Você sente a mesma coisa?
Ela concordou, e logo esqueceu aquelas idéias de abandonar Jourdan e a ilha. Belize a encantava, mas a mulher que lhe vendera o facão tinha visto uma possível separação.
Quando o almoço chegou, Melly estava faminta. As lagostas pareciam deliciosas. Ela e a avó nunca tiveram dinheiro suficiente para comprar comidas caras, e seus pensamentos voaram até o jardim do bangalô.
Quando a avó falecera, a sensação de perda fora tão grande que não tinha conseguido chorar. A partir daquele momento nada mais lhe restava além da própria solidão. E teve medo de enfrentar o mundo sozinha.
— Melly — a voz de Jourdan interrompeu-lhe os pensamentos. — Não vale a pena voltar ao passado. Sei quando você faz isso porque o brilho de seus olhos desaparece.
— Eu... lembrava da minha avó... ela sempre trabalhou tanto, em troca de tão pouco.
— A vida costuma privilegiar algumas pessoas, petite, enquanto outras são exploradas — ele parou um pouco e depois continuou: — Sabe, Melly, estive pensando no que Sônia nos disse no navio... Lembra dela?
— Lembro, claro que lembro...
— Me impressionei muito com aquela garota. Acho que tem mesmo razão, a gente precisa tentar fazer alguma coisa para que todas as injustiças acabem...
— Fico contente que pense assim, Jourdan.
— Aqui na ilha, por exemplo... Vou ver se consigo me juntar com os outros produtores de banana para fundarmos uma cooperativa. O que você pensa da idéia?
— Me parece ótima. Mas os pequenos produtores também?
— Todos, Melly, todos... não sei se vai dar certo, mas pelo menos é uma tentativa.
— Jourdan, você é mesmo um homem incrível! — ela disse, sorrindo.
Nesse momento ouviram o som do primeiro trovão sobre o mar.
— A tempestade! — Melly exclamou.
— Acho que seria melhor ficarmos em Belize — Jourdan observava a taça de champanha nas mãos de Melly. — Podemos ficar no hotel Beaumont.
— Mas, Jourdan — ela estava apavorada. — Não trouxemos roupas de dormir.
— Ora, podemos comprar aqui na cidade.
— Eu... acho que seria melhor voltar para casa — na voz de Melly havia quase um tom de súplica.
— De que é que você tem medo? Da tempestade ou de mim?
— Não... — ela começou a protestar, mas sabia que Jourdan poderia ser muito mais perigoso do que a tempestade. — Sei que não é aconselhável dirigir depois de beber, mas a gente pega um táxi. Depois você vem buscar o carro.
— Sim, podemos fazer tudo isso, mas não vamos. O hotel é logo aqui perto. Aos sábados costuma haver baile no Beaumont... lembra quando dançamos no navio?
— Eu... não estou vestida para um baile — Melly tentava manter a calma, mas o coração tinha disparado. Queria muito ficar, mas sabia que isso seria um desastre. — Jourdan, vamos para casa.
— Não, Melly — ele deixou claro que já decidira passar o fim de semana na cidade.
— Bethula vai ficar preocupada — era a última tentativa de Melly.
— Eu avisei que se o furacão viesse para cá, ficaríamos na cidade. — Jourdan falou com um brilho divertido nos olhos.
— Então... você planejou tudo?
— Só em parte. O que é que preocupa você, petite? O quarto de dormir?
— Você sabe que eu... — Melly não conseguia conter o nervosismo.
— Sim?
— Você não vai insistir em... — Ela o fitou com um olhar de dúvida.
— Insistir em quê, Melly?
— Jourdan, você está sendo cruel.
— Você se tranqüilizaria caso ficássemos mais uma vez em quartos separados?
O hotel Beaumont, em estilo vitoriano, parecia esquecido pelo tempo na baía de Belize.
A construção possuía janelas enormes com sacadas bem amplas. O velho elevador de ferro sempre rangia ao levar os hóspedes para os seus respectivos andares.
Melly e Jourdan, conduzidos pelo camareiro, seguiam por um corredor silencioso. Em seguida o homem lhes indicou os aposentos. Eram quartos contíguos, também separados por uma porta. A mobília, em mogno trabalhado, estava em harmonia com a austeridade do ambiente. No teto, girando sem cessar, ventiladores faziam com que o ar úmido circulasse.
Após deixar as coisas sobre a cama, Melly foi até a sacada. A chuva tinha começado, e muitos relâmpagos cruzavam o céu. Embora ainda não passasse das quatro horas da tarde, parecia noite.
O vento soprava forte, e alguns disparos de canhões avisavam aos habitantes da ilha que um furacão se aproximava.
Melly ainda observava a chuva através da janela quando viu Jourdan ao seu lado. Por alguns instantes ele permaneceu em silêncio.
— Parece que o fim do mundo já começou — ele disse. — Ainda bem que estamos protegidos. O porteiro me contou que ouviu no rádio os boletins transmitidos pelo departamento de meteorologia, e parece que as coisas estão pretas. Alguns aviões estão tentando localizar o centro da tempestade e descobrir para onde ela se dirige.
Olhando o tempo lá fora, Melly concluiu que fora preferível ficar no hotel em vez de voltarem para casa.
— Vai ser um bonito espetáculo — ele prosseguiu. — E estamos num ótimo lugar para observá-lo. Gosto muito destes hotéis antigos... eles me fazem lembrar os velhos cabarés parisienses.
— Eu ainda não conheço Paris — Melly comentou, distraída. Ela também havia gostado do Beaumont. Ficara impressionada com as altas colunas de mármore que existiam no saguão.
— Um dia a gente vai até lá, petite, Paris é linda — ele olhou para o relógio. — Gostaria de descer para tomar chá?
— Hum, gostaria sim... — Melly se voltou para Jourdan, assustada com um trovão que sacudiu as janelas.
— Não me diga que você tem medo de trovões, justo uma amazona... — Jourdan se interrompeu quando notou a palidez no rosto dela. — Mon Dieu, você se assustou de verdade, calma.
— N-não...
— Você sabe o que é um trovão? — Ele a segurou pelo braço e acariciou-lhe os cabelos. — Duas nuvens, carregadinhas de eletricidade que se aproximam uma da outra e buuummm... acontece o trovão.
— Só isso?
— Não, primeiro você vê a luz da colisão, que é o relâmpago. Só depois é que se ouve o trovão. Gostou da explicação?
— Mais ou menos.
— Tudo bem, mais tarde explico com detalhes, agora vamos tomar o chá.
Melly tratou logo de escapar daquelas mãos macias, que lhe acariciavam os cabelos.
Ao chegarem ao salão de chá, foram servidos por garçonetes uniformizadas que pareciam fora do tempo, ao som de um piano que só tocava músicas antigas.
Jourdan se recostou na cadeira olhando ao redor com ar de satisfação. O mau humor daquela manhã desaparecera e, ao olhar para ele, Melly não pôde deixar de imaginá-lo ali no Beaumont na companhia de Chantal André.
Tentava afastar aqueles pensamentos, mas parecia impossível e, embora achasse que não tinha nenhum direito de ser possessiva, às vezes parecia impossível evitar.
Seus olhares se cruzaram, e Jourdan sorriu.
— Eu me sinto bem aqui, chego a esquecer todos os problemas.
.Melly continuava pensativa, talvez Jourdan a considerasse um problema. Se não fosse o casamento poderia encontrar Chantal André sempre que quisesse.
— Mais chá, Jourdan? — ela procurava disfarçar, mas seus sentimentos se tornavam cada vez mais confusos.
— Sim, por favor — Jourdan lhe passou a xícara e apanhou um biscoito. — Logo mais haverá um baile e eu sei que você dança muito bem, Melly. Percebi isso no navio. Não acredito que nunca teve um namorado. — Ele a encarou. — Por que não me conta a verdade?
— Bem, tinha um clube em Devonshire onde eu às vezes dançava — Melly servia o chá com cuidado, procurando controlar o nervosismo.
— E nunca se interessou por ninguém? — ele bebia sem tirar os olhos do rosto de Melly.
— Não, sempre gostei de ficar com vovó... e com os cavalos — Melly esboçou um sorriso. —Nunca fui namoradeira, chego a pensar que sou uma garota séria demais.
— Talvez — Jourdan mordeu outro biscoito. — Existem algumas coisas que ainda não sei sobre você, e acho que não pretende me contar, não é? — Jourdan era cuidadoso ao falar.
— É verdade. Tem coisas que não devem ser divididas com ninguém...
— Mas às vezes aquilo que guardamos só para nós deixa a gente mais angustiado. Mas vamos mudar de assunto... — Ele falou de repente. — Por que deixou a escola de equitação? Foi por causa da morte de sua avó?
— Foi — Melly respondeu baixinho.
— Então quer dizer que deixou um trabalho de que gostava só para trabalhar num hospital em Londres? — Jourdan insistiu.
— Você é muito persistente, Jourdan — Melly mal conseguia falar. — Será que não compreende que lá em Devonshire tudo me lembrava vovó? Eu precisava refazer minha vida em outro lugar.
— Mas por que num hospital?
— Porque é gratificante ver alguém que está doente se recuperar. Você lembra quando me pediu um bife suculento? Aquilo era sinal de que se recuperava.
— E você já teve algum problema de saúde?
— Eu? — O coração de Melly disparou dentro do peito. — Apenas as doenças comuns da infância.
— Engraçado... sabe por que perguntei? — A voz dele era terna. — Achava que você tivesse se submetido a alguma cirurgia, pois havia registro de seu tipo sangüíneo na clínica.
— Eles sabiam porque eu... eu precisei tomar algumas vitaminas.
— Vitaminas? — Jourdan apanhou um charuto, ainda com um brilho de interrogação nos olhos.
— É, mas agora estou ótima...
— Por que precisou de tratamento, Melly?
— Andei me alimentando mal, é só isso. Francamente, Jourdan, você parece Sherlock Holmes quando começa a fazer perguntas.
— Acha mesmo? — ele perguntou sorrindo.
— Acho.
— Então, quero fazer a última, e esta é pura curiosidade intelectual: o que você está achando dos livros que lhe trouxe? Vi um deles na sua mesa de cabeceira uma noite dessas.
— Quando? — Melly perguntou, sentindo outra vez o coração se acelerar.
— Ontem, eu creio. Você gritou e fui até o seu quarto ver o que acontecia. Mas você dormia, deve ter sido um pesadelo. — Ele parou para estudar-lhe as reações. — Também estava meio descoberta, e eu a cobri antes de voltar para o meu quarto. Acho que anda lendo histórias de mistério demais...
— Desculpe por acordá-lo, Jourdan. — Melly observava as próprias mãos cruzadas sobre o colo.
— Imagine... eu tinha acabado de chegar.
— Ah, sei... — Melly desviou o olhar, imaginando-o nos braços de Chantal. Levou um susto quando de repente ele colocou a mão sobre seu ombro.
— Ficou aborrecida por eu entrar no seu quarto enquanto dormia? — perguntou com uma certa ironia na voz. — Não se preocupe. Não costumo violentar mocinhas indefesas.
— Tenho certeza de que não faria uma coisa dessas. — Melly se afastou, preocupada com as palavras de Jourdan.
— Não entendi o que você quis dizer.
— Não precisa mais fingir, Jourdan. Sei que tem visto Chantal André, mas não o condeno por isso. A culpa é minha. Por que não pede uma anulação e procura um casamento de verdade?
— Cale-se!
— O quê?! — ela o fitou, surpresa.
— Você me ouviu.
Melly continuou observando Jourdan, em silêncio, enquanto o som do piano pairava sobre o salão.
— Preste atenção — ele se inclinou para mais perto de Melly, envolvendo-a com o olhar. — Se quisesse anular nosso casamento, já teria tomado as providências, e se estivesse interessado em sexo, procuraria Chantal. Acontece que não gosto de cicuta.
— Cicuta?
— É um veneno, ma chère. Parece vinho, mas é mortal.
— Eu... eu não entendo você, Jourdan — Melly, perplexa, tentava compreender melhor as palavras de Jourdan, pois já se convencera de que ele mantinha um romance com Chantal.
— Será que falo grego, Melly? Acredita mesmo que eu veja Chantal às escondidas? Será que não percebe que ando ocupado, discutindo assuntos relativos à plantação? — Jourdan falava alto, e as pessoas do recinto já começavam a olhar para o casal.
— Bethula encontrou um lenço rendado no chão de seu quarto e achou que fosse meu. No lenço havia marca de batom.
— Melly — Jourdan franziu a testa —, os ternos de verão que tenho usado ficaram naquela casa quando me separei de Irene. Na certa, o lenço estava num de meus bolsos.
— Oh... desculpe, Jourdan — quando ela se convenceu de que as suspeitas eram infundadas, Jourdan se aproximou e a beijou com ternura.
— Está melhor agora?
— Sinto... sinto muito, Jourdan — Melly mal conseguia conter a emoção do momento. — Fui muito desconfiada...
— Eu também ficaria, Melly, não se preocupe — sorriu, apontando para o último biscoito. — Coma esse pobre coitado, parece muito sozinho.
Melly sorriu e pegou o biscoito.
Antes de se hospedarem no Beaumont, Melly e Jourdan haviam saído para fazer compras. Além das roupas de dormir, Jourdan insistiu para que Melly ficasse com um vestido de seda, dizendo que combinaria com o ambiente do hotel. Para ele, além de um pijama, adquirira uma camisa e uma gravata que lhe assentavam muito bem com o terno branco que usava.
Quando desceram para o jantar, ela notou que a maioria das mulheres vestia roupas comuns.
— Você podia ter economizado o dinheiro deste vestido. As pessoas devem pensar que é nossa lua-de-mel.
— Então não vamos desapontá-las.
Melly tinha a garganta seca e se esforçava para não parecer tão apreensiva. A mão tremia muito ao despejar água no copo.
— Você está se sentindo bem? — Jourdan gracejou. Quando o garçom trouxe a relação de vinhos, ele pediu uma garrafa de Perrier Jouet, o que os hóspedes ao redor não puderam deixar de notar.
— As gardênias também foram idéia sua? — Melly tocou as flores no vaso enquanto procurava se convencer de que aquilo devia ser um sonho.
De certa forma, teria sido melhor tentar saber se Jourdan estaria ou não envolvido com Chantal, mas ele lhe parecera tão sincero... Esse seria um excelente motivo para deixá-lo.
Pelo que dissera, Chantal o havia atraído pela beleza, mas logo o decepcionara com tanta futilidade. A cantora amava apenas a si mesma, no seu coração não existia lugar para mais ninguém. Para ela o que as pessoas fossem na realidade não importava, só precisando dos olhares de admiração de todos que a rodeavam. Ainda mais quando acompanhada por um homem atraente.
—Você não gosta de gardênias?
— Elas são muito bonitas. — Melly se sobressaltou quando a voz de Jourdan interrompeu-lhe os pensamentos.
— Como você, petite.
— Oh... Jourdan!
— Melly, Melly... — Jourdan a fitava enquanto erguia a taça de champanha. — Vamos fazer um brinde, e, pelo menos por esta noite, acabar com as perguntas. Certo?
— Certo.
A tempestade parecia ter escolhido o hotel para mostrar a sua fúria. Os raios, cruzando os céus, davam ao ambiente uma atmosfera de maior proximidade.
Mais tarde, depois do jantar, a orquestra começou a tocar. O tempo lá fora, o perigo que corria, parecia que estimulara os hóspedes. Melly e Jourdan se misturaram com eles, na pista de dança, como se fossem uma só pessoa.
— Não sabia que você era uma mulher romântica.
— Deve ser efeito do champanha — o coração de Melly batia rápido. Ela precisava acordar daquele sonho, antes que fosse tarde demais. — Podemos sentar um pouco, Jourdan? Estou cansada e com sede. Gostaria de tomar um copo de limonada.
— Claro — Jourdan a levou até o terraço envidraçado, de onde se podia constatar a fragilidade do ser humano perante a natureza. Puxou uma cadeira para que ela sentasse e foi buscar o refresco.
Melly sabia que aquela noite seria inesquecível. De repente, a tristeza a invadiu com maior intensidade, um relacionamento com Jourdan era impossível. Tudo ali pedia para que as pessoas se entregassem à força do amor, mas precisava insistir, mesmo contra a própria vontade.
Ela o desejava mais do que nunca... Porém o seu corpo estava fadado ao desamor, se recusava a ser possuído.
— Experimente isto — Jourdan voltou com dois copos. — É gim com limão. — Sentou-se ao lado de Melly, observando a tempestade.
— Obrigada, Jourdan.
— Gostou de ter ficado?
— Sim, acho que esta foi a melhor noite de minha vida.
— Para mim também foi muito especial. Melly, olhe para mim.
Ela se voltou devagar, procurando parecer natural, mas não conseguia controlar seu coração apaixonado. Olhando para o rosto de Jourdan, a vontade era de acariciá-lo.
— Acreditaria, petite, se eu dissesse que nunca me diverti tanto com outra mulher? Você é uma companhia muito agradável.
— O baile foi maravilhoso, parecia uma festa — ela procurou mudar de assunto.
— Já esteve em muitas festas?
— Não. Eu... acho que gostaria de ir para o meu quarto. Estou começando a ficar com sono.
— Tudo bem, acompanho você.
Jourdan a levou até a entrada do quarto.
— Boa-noite e obrigada por esta noite maravilhosa.
Fechou rápido a porta. Naquele momento odiava-se por tratar Jourdan como a um conhecido que a tivesse levado para jantar.
Ela o amava muito, e era doloroso despedir-se dele de maneira tão impessoal. As lágrimas rolavam, parecendo levar consigo toda a alegria daquela noite.
Com a visão embaçada, foi até a cama, onde havia uma caixa de lenços de papel. Enxugou o rosto e continuou chorando como uma criança. Toda a angústia dos últimos meses vinha à tona fazendo-a perder totalmente o autocontrole.
A dor que sentia era tão intensa quanto a tempestade que rugia pela noite adentro. Em seguida, deitou-se, desesperada por não conseguir controlar as emoções. Dormiu. Quem sabe nos sonhos encontraria um pouco de tranqüilidade...
A tormenta se intensificou ainda mais. Por volta das duas horas da madrugada, o vento soprava tão forte que escancarou uma das janelas do quarto de Melly com um estrondo.
Melly acordou com o barulho e, assustada, gritou. Tremendo, sentou-se na cama, não sabendo o que fazer. A porta do quarto se abriu de repente.
— Ouvi um barulho... você está bem? — Jourdan apareceu.
— Eu... — Melly se sobressaltou ao vê-lo — acho que o vento abriu a janela. Ela bateu na parede e me acordou.
— É melhor fechá-la — encaminhou-se até a janela para verificar o trinco. — Os parafusos se soltaram, vai ser preciso consertá-la. Devo ter um pedaço de barbante no bolso do paletó, vou pegar. Por favor, fique calma. Está tudo bem.
Jourdan foi para seu quarto, e Melly, ainda bastante assustada, se enrolou nas cobertas.
Logo ele voltava com o barbante e amarrou as folhas da janela para que não se abrissem mais. Depois se aproximou da cama, observando Melly sob a luz tênue vinda do outro quarto.
— Levei um susto, com seu grito... foi como da outra vez. Tem sempre esses pesadelos, Melly?
— De vez em quando — ela tentava sorrir. — Quando a janela abriu, achei que um raio tivesse caído no meu quarto.
— Tem certeza de que está bem? — ele se sentou na cama de Melly, vestindo apenas a calça do pijama de seda que comprara no mesmo lugar onde ela havia comprado a camisola transparente que usava.
— Sim, estou — Melly procurava se esconder sob as cobertas. — Pode voltar para a cama agora, Jourdan. E obrigada por arrumar a janela.
— Petite, você parece muito ansiosa para que eu saia logo. Estive pensando a noite toda no nosso casamento — falava devagar, com ternura, procurando deixá-la à vontade. — Precisamos mudar esta situação absurda, e acho que devíamos começar agora mesmo...
Ela sacudiu a cabeça antes mesmo de ele acabar de falar.
— Não, Jourdan, não podemos...
— Não acho que essa seja a forma correta de encarar a situação, petite. Os motivos que nos levaram a este casamento não existem mais, mas isso não significa que ele não seja uma realidade. Você está aqui. Eu estou aqui.
Com o mesmo cuidado com que falava, segurou as cobertas que Melly usava para se proteger. Ela ficou apavorada.
— Não, Jourdan, por favor... não faça isso. Você prometeu.
— Você também, Melly. Ainda esta manhã, prometeu me ajudar a fazer da plantação um negócio produtivo. E, quando falei em fixar raízes, concordou. E você sabe o que significa fixar raízes. Precisamos de um filho, Melly...
— Jourdan — Melly tremia de medo e de emoção. Aquilo não podia estar acontecendo. Jourdan lhe prometera que nunca a tocaria.
— Não, você não pode fazer isso... você não pode.
Devagar, Jourdan puxava as cobertas.
— Sim, mon amour — ele dizia enquanto a fitava.
— Eu... não posso ter um filho.
— Você não tem muita escolha, querida — as mãos de Jourdan traziam Melly para perto de si, enquanto seus lábios beijavam-lhe o cabelo macio.
Ela sentia aquele toque carinhoso, o toque de um homem que precisava de uma mulher junto dele, com um corpo lindo e perfeito, uma mulher que pudesse lhe dar prazer e um filho.
Melly estava em pânico. Talvez devesse sair dali correndo, ainda havia tempo. Mas também sempre soubera que um dia na vida precisaria enfrentar a realidade. E o momento era aquele.
Decidida, tomou a mão de Jourdan, levando-a até onde o coração batia forte, o lugar onde o seio esquerdo estivera, fazendo-o sentir que ali não havia nada, e esperou sua reação.
Mas Jourdan, ao contrário do que ela imaginava, não a rejeitou.
— Está tudo bem, querida. Eu já sabia... — ele afagava o cabelo de Melly com ternura. — Bethula me contou. Ela logo percebeu o que se passava entre nós, e um dia descobriu por que você se afastava de mim. Oh, Melly,.como se eu não a quisesse em meus braços. Não percebeu isso quando dançamos? Não sentia como eu queria você? Não sabe que eu te amo demais?
— Eu... pensei que não ia me querer se, soubesse da verdade. — Melly soluçava.
— É você que eu quero, meu amor. Pensou realmente que um problema físico pudesse me afastar de você? — Jourdan acariciou o rosto de Melly e beijou-lhe os lábios com sofreguidão.
— Jourdan, eu...
— Não sei quando isso começou. Talvez com aquela transfusão de sangue, pois quando entrou no meu quarto aquele dia na clínica não pude tirar os olhos de você. Mas sempre que a olhava, sempre que tentava tocá-la, percebia que você me recriminava, eu me sentia um monstro, Melly. A princípio achei que seu medo iria desaparecer com o tempo, à medida que fosse se acostumando comigo. Mas não, você ficava cada vez mais arredia. E isso me torturava. Só consegui entender o que acontecia quando Bethula me contou que você usava uma prótese. Por incrível que pareça, e não interprete mal as minhas palavras, fiquei contente. Contente em saber o porquê de você me rejeitar...
— Oh, Jourdan... não queria que me achasse feia.
— Isso seria impossível, mon amour. Como você pôde pensar que eu seria capaz disso?
— Logo depois que fui operada, uma das enfermeiras disse que preferia morrer a viver assim o resto da vida, porque um homem acharia isso muito chocante, impossível de aceitar.
Jourdan praguejou em francês, e abraçou Melly.
— Pareço chocado?
— Não. Mas eu... não quero que tenha pena de mim.
— Claro que não, querida. Agora você vai me contar como isso aconteceu, garanto que se sentirá bem melhor depois.
— Jourdan — Melly falou, inibida —, como vou poder amamentar nosso bebê?
— Isso só será problema se tivermos gêmeos — ele sorriu. Melly também sorriu, finalmente livre dos pavores de uma vida inteira. Tudo que queria agora era estar perto de Jourdan.
— Venha, deite-se aqui comigo — ela pediu.
Jourdan não hesitou: no mesmo instante aconchegou-se ao lado dela. Melly não imaginava que um homem tão vigoroso pudesse ser tão terno. Durante alguns instantes, foi incapaz de pronunciar qualquer palavra.
Depois, mais tranqüila, contou-lhe sobre o acidente ocorrido na escola de equitação.
Durante o verão havia sempre grande atividade na escola. Além dos alunos habituais, muitos turistas vinham aprender a cavalgar, e era preciso que contratassem mais gente para ensiná-los. Um dos alunos possuía uma deficiência física, mas a equitação lhe fazia muito bem e sempre tinha uma égua mansa preparada para ele.
Naquela tarde, por descuido, fizeram-no montar o cavalo errado. Por causa da deficiência, era um tanto desajeitado. De repente, o cavalo ficou indócil e o derrubou no chão, pisoteando-o.
— Eu corri para ajudar e... e fui atingida por um coice.
— E o coice pegou no seio — Jourdan a abraçou, como se quisesse poupá-la daquela lembrança.
— Sim — Melly tremia nos braços de Jourdan, enquanto contava o que acontecera depois. A rápida viagem de ambulância até o hospital, o barulho da sirene, a cirurgia mutiladora, e, finalmente, o desespero...
— Nunca mais montei depois daquele dia — ela prosseguiu. — Meu interesse por cavalos desapareceu, fui morar em Londres, e me pareceu natural trabalhar num hospital, entre pessoas que tinham problemas de saúde. Durante algum tempo, toda vez que estava com outras mulheres jovens, eu... eu me sentia muito mal. Era uma sensação estranha. Não conseguia esquecer as palavras daquela enfermeira. Sempre que me olhava no espelho, achava que ela tinha razão em dizer que um homem ficaria chocado. Então... então apareceu você.
— E estarei sempre com você — Jourdan a cobriu de beijos. — E gostaria que encarasse isso tudo como uma fatalidade, um acidente que pode acontecer a qualquer pessoa.
— Mas é que...
— Eu entendo, querida. Imagino como deve ser difícil viver com um problema desses num mundo onde se valoriza a beleza física mais do que tudo.
— Às vezes eu sentia vontade de morrer... — ela disse baixinho.
— Não fale assim, meu amor. E não se sinta inferiorizada pelo fato de não possuir um seio; a perfeição física é só uma parte de um todo, um detalhe... Existem muitas coisas além dela. Pena que as pessoas insistam em ignorar essa verdade.
— Jourdan, acho que sempre o esperei...
— E agora estou aqui, Melly. — Ele a abraçava com desejo. — Quero você agora, querida. Inteirinha para mim.
— Eu também, Jourdan — Melly sorria, feliz, livre de todos os pesadelos. — E eu te amo tanto... Ouça, os trovões pararam, a tempestade foi embora.
— Tem certeza? — ele perguntou, brincando. — Para mim ela começa neste exato momento, sem segredos e sem medos.
Violet Winspear
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