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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SOL VERMELHO / Marion Zimmer Bradley
O SOL VERMELHO / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SOL VERMELHO

 

                   A LERONIS

Leonie Hastur estava morta.

A velha leronis, feiticeira do Comyn, Guardiã de Arilinn, telepata, treinada em todos os poderes das ciências da matriz de Darkover, morreu como vivera, sozinha, isolada no alto da Torre de Arilinn.

Nem mesmo sua sacerdotisa-noviça-aprendiz, Janine Leynier, de Storn, soube a hora em que a morte chegou à Torre, discreta, e a levou para um dos outros mundos pelos quais ela aprendera a passear, com a serenidade de quem se encontrava em seu jardim murado.

Ela morreu sozinha; e morreu sem ser lamentada. Pois embora Leonie fosse temida, reverenciada, quase idolatrada como Deusa em todos os Domínios de Darkover, não era amada.

Houvera um tempo em que fora muito amada. Houvera um tempo em que Leonie Hastur fora jovem, bela e casta, como uma lua distante, e poetas escreverem em sua glória, comparando-a à face de um brilho refinado de Liriel, a grande lua violeta de Darkover; ou a uma deusa que descia para viver entre os homens. Fora adorada por aqueles que viviam sob o seu controle na Torre de Arilinn. Houvera um tempo, apesar da austeridade dos votos sob os quais vivia (e que tornavam uma blasfêmia inominável que qualquer homem sequer tocasse nas pontas de seus dedos), em que Leonie fora amada. Mas isso acontecera num passado distante.

E depois, à medida que os anos passaram sobre sua cabeça, deixando-a mais e mais sozinha, mais e mais distante da humanidade, Leonie se tornara menos amada; e mais temida e odiada. O velho Regente Lorill Hastur, seu irmão gêmeo (pois Leonie nascera na casa real dos Hasturs de Hastur, e se não optasse pela Torre, ocuparia uma posição mais alta do que qualquer Rainha na terra), há muito já morrera. Havia um sobrinho que ela vira umas poucas vezes por trás do trono de Stefan Hastur-Elhalyn, e era o verdadeiro poder nos Domínios. Para ele, no entanto, Leonie não passava de um sussurro, uma história antiga, uma sombra.

E agora ela estava morta, jazia numa cova anônima, como era o costume, dentro dos muros de Arilinn, onde nenhum ser humano que não tivesse o sangue do Comyn jamais poderia entrar; na morte, tão isolada quanto em vida. E restavam poucos vivos para lamentar.

Um dos poucos que choraram por Leonie foi Damon Ridenow, que casara anos antes no Domínio de Alton, e por um breve período fora Guardião daquele Domínio, pelo jovem herdeiro de Alton, Valdir de Armida[1]. Quando Valdir alcançara a maioridade e tomara uma esposa, Damon e toda sua família, que era grande, mudaram-se para uma propriedade à margem do lago Mariposa, na serra aprazível, contraforte das Colinas Kilghard. Quando Leonie era jovem, e Damon também, servindo como mecânico na Torre de Arilinn, ele a amara; um amor casto, sem nunca haver um contato físico, um beijo, sem qualquer pensamento de violar os juramentos que a prendiam. Mas ele a amara mesmo assim, com uma paixão que dera forma e cor a toda a sua vida posterior; e quando soube de sua morte, Damon foi se isolar em seu gabinete, e ali derramou as lágrimas que não poderia derramar diante da esposa, nem da irmã da esposa, que fora outrora noviça-Guardiã de Leonie em Arilinn, nem de qualquer outra pessoa de sua família. Mas se souberam de sua dor - e numa família de telepatas do Comyn tais coisas não podiam ser ocultas por completo - ninguém jamais falou a respeito; nem mesmo os filhos e filhas crescidos indagaram por que o pai lamentava em segredo. Para eles, Leonie não passava de uma legenda com um nome.

À medida que a notícia espalhou-se pelos Domínios, houve muita especulação excitada, até nos cantos mais remotos, sobre a questão que agora interessava a todos, das Hellers às Planícies de Arilinn: Quem será a nova Guardiã de Arilinn?

E no dia seguinte, Damon recebeu, na privacidade de seu gabinete, a visita da filha mais nova, Cleindori.

Ela recebera o nome antigo, lendário e tradicional de Dorilys, Flor Dourada. Mas quando criança tinha os cabelos tão dourados, numa suave e pálida tonalidade, e os olhos tão grandes e azuis, que as babás sempre a vestiam com trajes azuis e fitas azuis. Sua mãe de adoção, Ellemir, esposa de Damon, dizia que ela parecia com a campânula azul da flor de kireseth, coberta por um pólen dourado. Por isso, quando começou a engatinhar, chamavam-na de Cleindori, Sino Dourado, que era o nome comum para a flor do kireseth. Com a passagem dos anos, a maioria das pessoas quase esqueceu por completo que Dorilys Aillard (pois sua mãe fora uma filha nedestro desse poderoso Domínio) jamais tivera outro nome que não Cleindori.

Ela se tornara uma moça alta, tímida e compenetrada, com treze anos agora, os cabelos ainda dourados, mas com uma tonalidade acobreada. Havia sangue das Cidades Secas no clã Ridenow, e dizia-se que o pai de sua mãe também fora um bandido das Cidades Secas, de Shainsa; mas esse antigo escândalo há muito estava esquecido. Damon, contemplando o corpo de mulher e os olhos sérios de sua filha mais nova, sentiu pela primeira vez na vida que se aproximava da velhice.

- Veio a cavalo de Armida hoje, minha criança? O que seu pai de adoção disse a respeito?

Cleindori sorriu, e foi dar um beijo no rosto do pai.

- Ele não disse nada, pois eu não lhe contei - respondeu ela, alegremente. - Mas não vim sozinha, pois Kennard, meu irmão de adoção, me acompanhou até aqui.

Cleindori fora entregue em adoção aos nove anos de idade, como era o costume nos Domínios, para crescer até se tornar mulher sob uma mão menos terna que a da mãe. Fora criada por Valdir, Lorde Alton, cuja esposa, Lori, só tinha filhos homens, e ansiava por uma menina. Havia um acordo vago de que Cleindori, ao ter idade suficiente para casar, poderia se tornar esposa do filho mais velho de Lorde Alton, Lewis-Arnad. Mas por enquanto, Damon supunha, não passava pela cabeça de Cleindori a idéia de casar; ela e o filho mais novo de Valdir, Kennard, eram como irmã e irmão de verdade. Damon recebeu Kennard, um garoto corpulento, de ombros largos e olhos cinza, um ano mais moço do que Cleindori, com um abraço de parente, e disse:

- Sei que minha filha foi bem guardada na viagem até aqui. Mas por que vieram, crianças? Estavam caçando com falcões, se atrasaram, e resolveram dar um pulo até aqui, pensando que haveria bolos e doces para desobedientes, em vez do pão e água da punição que encontrariam em casa?

Mas ele ria enquanto falava.

- Não é isso - respondeu Kennard, muito sério. - Cleindori disse que precisava vê-lo, e minha mãe nos deu permissão para a viagem, embora eu não creia que ela entendesse direito o que pedimos, nem pensasse muito bem em sua resposta, pois reina a maior confusão em Armida desde que recebemos a notícia.

- Que noticia? - indagou Damon, inclinando-se para a frente. Mas eleja sabia, e sentia um aperto no coração. Cleindori enroscou-se numa almofada a seus pés, fitando-o.

- Pai querido, há três dias a Dama Janine de Arilinn chegou a Armida, em busca de alguém para assumir o nome e a dignidade da Dama de Arilinn, que morreu, a leronis Leonie.

- Ela demorou bastante tempo para chegar a Armida - comentou Damon, contraindo os lábios. - Não pode haver a menor dúvida de que já havia procurado em todos os Domínios antes.

Cleindori acenou com a cabeça.

- E bem possível, pois depois que soube quem eu era, fitou-me como se cheirasse alguma coisa desagradável, e disse: "Já que você é da Torre Proibida, também assumiu as heresias dessa gente?" Ficou zangada quando Dama Lori lhe disse meu nome, e tive de explicar que minha mãe me dera o nome de Dorilys. Mas Janine acabou declarando: "Por lei, sou obrigada a testá-la para avaliar seu laran. Não posso lhe negar isso."

Ela contraiu o rosto numa imitação da leronis, e Damon cobriu a parte inferior do rosto com uma das mãos, como se imerso em pensa-mento, mas na verdade para esconder um sorriso; pois Cleindori tinha um jeito todo especial para arremedar outras pessoas, e reproduzia com perfeição o tom azedo e o olhar desaprovador da leronis Janine.

- Janine foi uma das pessoas que gostariam de me queimar vivo ou me cegar - comentou Damon -, quando briguei com Leonie pelo direito de usar o laran que os deuses me concederam da maneira como me aprouvesse, e não apenas como Arilinn determinasse. O fato de ser minha filha, criança, não faria com que ela a amasse.

Cleindori tornou a sorrir, jovial.

- Posso viver muito bem sem o amor dela, e também posso muito bem acreditar que ela nunca amou sequer um gatinho de estimação! Mas o que eu queria lhe contar, pai, foi o que ela me disse, e o que respondi. Janine mostrou-se satisfeita quando a informei de que você ainda não me ensinara coisa alguma, e que fora criada em Armida desde os nove anos de idade. Deu-me uma matriz, e testou meu laran. Depois, anunciou que me queria em Arilinn. Franziu o rosto, e ressalvou que não me escolheria de bom grado para isso, mas só porque eram bem poucas as que podiam suportar o treinamento. Acrescentou que desejava me preparar para Guardiã.

A respiração de Damon ficou presa na garganta; mas o protesto morreu antes de sair, pois Cleindori o fitava com os olhos faiscando.

- Pai, eu disse a ela, como sabia que deveria fazer, que não poderia ingressar numa Torre sem o consentimento paterno, e depois vim até aqui para lhe pedir esse consentimento.

- Que não vai ter - declarou Damon, ríspido -, não enquanto eu estiver acima do solo e insepulto. Nem mesmo depois, se eu puder impedi-la.

- Mas, pai... ser a Guardiã de Arilinn! Nem mesmo a Rainha... Damon sentiu o aperto na garganta ainda maior. Depois de tantos anos, a mão de Arilinn tornava a se projetar para alguém que ele amava.

- Não, Cleindori - ele afagou os cachos dourados, que brilhavam como uma liga de ouro e cobre - Você só percebe o poder. Não conhece a crueldade do treinamento. Para ser Guardiã...

- Janine me contou tudo. Disse que o treinamento é longo e cruel, muito difícil de suportar. Também falou sobre algumas coisas que devo jurar, sobre as coisas a que devo renunciar. Mas garantiu que achava que eu seria capaz.

- Criança... - Damon engoliu em seco, angustiado. A carne e o sangue humano não podem suportá-lo!

- Isso é bobagem, pai, pois você suportou - insistiu Cleindori. E o mesmo fez Callista, que foi noviça-Guardiã de Leonie em Arilinn.

- Tem alguma idéia do quanto custou a Callista, criança?

- Você cuidou para que eu soubesse, antes de sair da infância. - respondeu Cleindori. Callista fez a mesma coisa, antes que eu crescesse, dizendo que era uma vida cruel e antinatural. Cresci com a história de sua luta e de Callista contra Leonie e o resto de Arilinn, num duelo que durou a noite inteira...

- A história cresceu tanto assim? - interrompeu Damon, com uma risada. Foi menos de um quarto de hora; embora, é verdade, a tempestade tenha dado a impressão de que grassou por muitos dias. Mas lutamos contra Arilinn, e conquistamos o direito de usar o laran como nos aprouvesse, e não apenas como eles determinassem.

- Mas também sei que você, treinado em Arilinn, assim como Callista, possui uma capacidade excepcional, enquanto que aqueles que aprenderam o uso do laran aqui têm menos habilidades, e são meio canhestros na aplicação de seus dons. E sei também que todas as outras Torres nesta terra ainda mantêm o sistema de Arilinn.

- Esses poderes e habilidades... - Damon fez uma pausa, num esforço para se controlar e falar calmamente, pois começara a gritar. Cleindori, desde que era jovem que acreditava que o sistema de Arilinn... e de todas as outras Torres, às quais o pessoal de Arilinn impôs sua vontade... é cruel e inumano. Acreditava nisso, e tratei de lutar, oferecendo minha vida como sacrifício, para que os homens e mulheres nas Torres não precisassem renunciar por completo às suas vidas, submetendo-se a uma morte em vida, isolados dentro das paredes de uma Torre. As habilidades que possuíamos podem ser aprendidas por qualquer homem ou mulher, do Comyn ou plebeu, se tiver um talento inato. É como tocar o alaúde; a pessoa nasce com um ouvido para a música, e pode aprender a dedilhar as cordas, mas nem mesmo por essa difícil vocação se deve pedir a alguém que renuncie a seu lar e família, vida ou amor. Ensinamos muita coisa a outras, e adquirimos o direito de ensinar sem qualquer penalidade. Um dia virá, Cleindori, em que as antigas ciências da matriz de nosso mundo estarão à disposição de quem puder usá-las, e as Torres não serão mais necessárias.

- Mas ainda somos párias - insistiu Cleindori. Pai, se visse a expressão de Janine quando falou a seu respeito, chamando-a de Torre Proibida...

O rosto de Damon se contraiu.

- Não amo tanto Janine para que a opinião desfavorável que ela possa ter a meu respeito me faça perder noites de sono.

- Mas Cleindori tem razão - interveio Kennard. Somos renegados. Aqui, as pessoas se apegam a seus costumes; mas no resto dos Domínios, só recorrem às Torres para aprenderem a usar o laran. Também vou para uma Torre, talvez Neskaya, talvez a própria Arilinn, depois de cumprir meus três anos de serviço na Guarda. Se Cleindori for para Arilinn, disseram que eu não poderei ir, até que ela complete seus anos de isolamento, pois uma Guardiã em treinamento não pode ter um irmão de adoção por perto, ou qualquer outro a quem esteja ligada por afeição...

- Cleindori não vai para Arilinn, e ponto final. E Damon repetiu em seguida, com mais veemência ainda: - Carne e sangue humanos não podem suportar o sistema de Arilinn!

- E devo dizer outra vez que isso é bobagem - declarou Cleindori, -, pois Callista suportou, assim como Dama Hilary de Syrtis, Margwenn de Thendara, Leominda de Neskaya, Janine de Arilinn, a própria Leonie, e novecentas e vinte Guardiãs antes dela. E o que todas suportaram, eu também posso suportar.

Ela apoiou o queixo nas mãos cruzadas, fitando o pai com a maior seriedade.

- Você me disse muitas vezes, desde que eu era criança, que uma Guardiã só é responsável perante sua própria consciência. E que, por toda parte, entre os melhores homens e mulheres, a consciência é o único guia para o que fazem. Pai, sinto que meu destino é ser uma Guardiã.

- Pode ser Guardiã entre nós, quando crescer - disse Damon -, sem os tormentos que teria de suportar em Arilinn.

- Oh, não! - Cleindori levantou-se, furiosa, pôs-se a andar de um lado para outro da sala. É meu pai, e quer me manter sempre como uma garotinha! Pai, acha que não sei que sem as Torres dos Domínios nosso mundo seria dominado pelo barbarismo? Não viajei muito, mas já estive em Thendara, e vi ali as espaçonaves dos terráqueos, sei que só conseguimos resistir ao Império porque as Torres dão ao nosso mundo o que precisamos, com as antigas ciências da matriz. Se as Torres acabarem, Darkover cairá nas mãos do Império, como uma ameixa madura, pois o povo vai clamar pela tecnologia e o comércio dos terráqueos.

Damon respondeu com muita serenidade:

- Não creio que isso seja inevitável. Não tenho ódio aos terráqueos; meu melhor amigo nasceu na Terra, seu tio Ann'dra. Mas é por isso que me empenho, para que haja, no momento em que todas as Torres se apagarem, suficiente laran entre a população dos Domínios para que Darkover possa se manter independente, sem ter de mendigar nada aos terráqueos. E esse dia haverá de chegar, Cleindori, o dia em que todas as Torres dos Domínios estarão abandonadas e vazias, o refúgio de aves de rapina...

- Parente! - protestou Kennard, fazendo um sinal contra o mal. Não diga essas coisas!

- Não é agradável de ouvir, mas é verdade. A cada ano, há menos e menos de nossos filhos e filhas com o poder ou a vontade de suportar o antigo treinamento, e se entregarem por completo às Torres. Leonie, em uma ocasião, queixou-se a mim que treinara seis moças, e apenas uma foi capaz de completar o treinamento para ser Guardiã. Foi a leronis Hilary, que adoeceu e teria morrido se não a despachassem de Arilinn. Três das Torres... Janine não lhe contou isso, Cleindori, mas eu, treinado em Arilinn, sei muito bem... Três das Torres operam com um círculo de mecânicos, porque não contam com uma Guardiã, e suas leis absurdas não permitem que aceitem uma Guardiã que não esteja disposta a ser um símbolo enclausurado de virgindade. Alegam que sua força e poder de laran são menos importantes do que ela ser uma deusa virgem, isolada, impondo um temor supersticioso. Eu diria que há uma centena ou mais de mulheres nos Domínios que poderiam realizar o trabalho de uma Guardiã, mas acham que não há motivo para se submeterem a um treinamento pelo qual deixarão de ser mulheres, virando apenas máquinas para transmissão de força. E não as culpo por isso. As Torres vão acabar. E devem mesmo acabar. Depois que se tornarem meros monumentos em ruínas do orgulho e loucura do Comyn, então o poder do laran, junto com as pedras de matriz que nos ajudam a ampliá-lo, poderá ser usado como sempre deveria, para a ciência, não para a bruxaria! Para a sanidade, não para a loucura! Tenho me empenhado nisso durante toda a minha vida, Cleindori.

- Não pode estar pensando em derrubar as Torres, tio! - protestou Kennard, chocado.

- Não, claro que não. Jamais pensaria nisso. Mas quero que tudo esteja pronto quando as Torres forem abandonadas, para que nossas ciências laran não precisem perecer nessa ocasião.

Cleindori parou ao lado de Damon, pôs a mão de leve em seu ombro.

- Pai, eu o respeito por isso. Mas seu trabalho é muito lento, pois ainda o chamam de pária e renegado, se não mesmo de coisas piores. E por isso é muito importante que jovens como eu, como minha meia-irmã Cassilde e Kennard...

Damon ficou chocado.

- Cassilde também vai para Arilinn? Isso matará Callista! Cassilde era filha de Callista, quatro ou cinco anos mais velha do que Cleindori.

- Ela já tem idade suficiente para não precisar de consentimento - disse Cleindori. Pai, é necessário que as Torres não morram, até chegar o momento, se é que deve chegar, em que não serão mais necessárias. E sinto que minha consciência determina que eu me torne Guardiã de Arilinn.

Ela fez uma pausa, estendeu a mão para ele.

- Não, pai, escute. Sei que você não é ambicioso, pois renunciou à oportunidade de comandar a Guarda da Cidade. Poderia ser o homem mais poderoso de Thendara, mas não quis. Eu não sou assim. Se meu laran é tão poderoso quanto a Dama de Arilinn me disse, quero ser Guardiã, para poder fazer alguma coisa além de cuidar de camponeses e ensinar as crianças da aldeia. Pai, quero ser Guardiã de Arilinn!

- Vai se meter naquela prisão da qual libertamos Callista a um preço tão alto! - exclamou Damon, com profunda amargura.

- Era a vida dela, e eu tenho de cuidar da minha! Escute, pai... -Cleindori tornou a se ajoelhar ao lado de Damon. A irritação desapareceu de sua voz, e foi com extrema seriedade que ela acrescentou: Você me disse, e pude comprovar, que Arilinn declara as leis pelas quais o laran é usado nesta terra, com exceção dos poucos aqui que desafiam Arilinn.

- Podem estar fazendo as coisas de maneira diferente nas Hellers, em Aldaran, e além - ressaltou Damon. - Sei pouco a respeito.

- Neste caso... - Cleindori fitou-o, o rosto redondo muito sério. Se eu for para Arilinn, e aprender a ser Guardiã, por suas próprias regras, o mais ortodoxo sistema de uso do laran... se eu me tornar Guardiã assim, poderei mudar essas leis, não é mesmo? Se a Guardiã de Arilinn determina as regras para todas as Torres, então posso mudá-las, pai, posso proclamar que o sistema de Arilinn é cruel e inumano... e porque consegui alcançar essa posição, ninguém poderá dizer que sou um fracasso, uma pária, atacando o que não sou capaz de fazer. Poderei mudar essas leis terríveis, derrubar o sistema de Arilinn. E quando as Torres não mais oferecerem a homens e mulheres uma morte em vida, então os jovens do nosso mundo haverão de procurá-las, e as antigas ciências da matriz de Darkover terão um renascimento. Mas essas leis nunca poderão ser mudadas... a não ser que uma Guardiã de Arilinn queira mudá-las!

Damon olhou para a filha, abalado. Era de fato a única maneira pela qual as leis cruéis de Arilinn poderiam ser alteradas; uma Guardiã proclamar um novo sistema, compulsório para todas as Torres. Ele bem que se esforçara ao máximo, mas era um renegado, um pária; nada podia fazer fora de Arilinn. Pouco realizara... e ninguém sabia disso melhor do que ele.

- Pai, é o destino - disse Cleindori, a voz jovem tremendo um pouco. Depois de tudo o que Callista sofreu, depois de tudo o que você sofreu, talvez tenha sido para que eu pudesse voltar, e libertar os outros. Agora que você já provou que podem ser libertados.

- Tem razão - admitiu Damon, ainda relutante. O sistema de Arilinn só poderá ser derrubado por sua própria Guardiã. Mas... oh, Cleindori, não você!

Angustiado, desesperado, ele abraçou a filha.

- Não você, querida!

Gentilmente, ela se desvencilhou do abraço. Por um momento, pareceu a Damon que ela já era alta, majestosa, distante, envolta pela estranha força de uma Guardiã, com a majestade escarlate de Arilinn.

- Pai, querido pai, não pode me proibir de fazer isso. Sou respon-sável apenas perante minha consciência. Quantas vezes já não disse para todos nós, a começar por meu pai de adoção Valdir, que nunca se cansa de repetir para mim, que a consciência é a única responsabilidade? Deixe-me fazer isto: terminar o trabalho que você iniciou na Torre Proibida. De outra forma, quando você morrer, tudo acabará, um bando de renegados e suas heresias desaparecendo para sempre. Mas eu posso levar seus ideais para Arilinn, e depois para o resto dos Domínios. Afinal, pai, a Guardiã de Arilinn faz as leis para todas as Torres, para todos os Domínios. Pai, eu repito, é o destino. Devo ir para Arilinn.

Damon inclinou a cabeça, a relutância ainda persistindo, mas inca-paz de se manifestar contra a segurança jovem e inocente da filha. Parecia-lhe que os muros de Arilinn já começavam a envolvê-la. E foi assim que eles se separaram, para não tornarem a se encontrar até o momento da morte de Cleindori.

 

QUARENTA ANOS DEPOIS Foi assim que aconteceu.

Você era um órfão do espaço. Pelo que sabia, podia ter nascido em uma das Grandes Naves; as espaçonaves da Terra; as naves estelares que realizavam as longas viagens entre as estrelas, promovendo os interesses do Império. Nunca soube onde nasceu, ou quem foram seus pais; o primeiro lar que conheceu foi o Orfanato dos Espaçonautas, quase avista do espaço-porto de Thendara, onde aprendeu a solidão. Antes disso, em algum lugar, houve cores e luzes estranhas, imagens confusas de pessoas e lugares, que caíam no esquecimento quando tentava focalizá-las, pesadelos que às vezes o faziam sentar na cama, gritar em terror, antes de despertar por completo, e ver o dormitório limpo e sossegado ao seu redor.

As outras crianças eram o refugo abandonado da raça arrogante e instável da Terra, e você era uma delas, com um de seus nomes. Mas do lado de fora estendia o mundo escuro e belo que vira - e às vezes ainda via - em seus sonhos. Sabia, de alguma forma, que era diferente; pertencia àquele mundo exterior, àquele céu, àquele sol; não ao mundo limpo, branco e estéril da Cidade Comercial dos terráqueos.

Teria sabido disso mesmo que não lhe contassem; mas sempre o faziam, com freqüência. Não em palavras, é verdade, mas por uma centena de pequenas maneiras sutis. E, de qualquer forma, você era diferente, uma diferença que podia sentir até os ossos. E também havia os sonhos.

Mas os sonhos se desvaneceram; primeiro, em lembranças de sonhos, e depois em lembranças de lembranças. Você sabia apenas que outrora recordara alguma coisa além isso.

Aprendeu a não indagar sobre seus pais, mas adivinhava. Isso mesmo, você adivinhava. E assim que teve idade suficiente para suportar a pressão de uma espaçonave deixando um planeta sob empuxo interestelar, espetaram uma porção de agulhas em seu braço, e o carregaram, como se fosse um saco de bagagem, para bordo de uma das Grandes Naves.

Voltando para casa, disseram os outros meninos, meio invejosos, meio apreensivos. Só que você sabia; ia para o exílio. E quando acordou, atordoado, nauseado, com dor de cabeça, com a sensação de que alguém cortara um grande naco de sua vida, a nave se aproximava de um mundo chamado Terra, e havia um casal idoso à espera do neto que nunca vira.

Disseram que você tinha doze anos. E chamaram-no de Jefferson Andrew Kerwin Junior. Era assim que também o chamavam no Orfanato dos Espaçonautas, e por isso você não discutiu. A pele deles era mais escura do que a sua, tinham olhos também escuros, os olhos que você aprendera a chamar de olhos animais, com as babás darkovanas; mas eles viviam sob um sol diferente, e você já sabia sobre a qualidade da luz; vira as luzes brilhantes na Zona Terráquea, e lembrava como doíam em seus olhos. Por isso, sentia-se disposto a acreditar que aquelas pessoas idosas, estranhas e escuras, podiam ser os pais de seu pai. Mostraram-lhe uma fotografia de Jefferson Andrew Kerwin quando tinha mais ou menos a sua idade, treze anos, pouco antes de sua fuga como auxiliar de carga numa das Grandes Naves, há muitos e muitos anos. Deram-lhe o quarto dele para dormir, e o mandaram para a escola. Eram bondosos com você, e não mais que duas vezes por semana o lembravam, por uma palavra ou um olhar, que não era o filho que haviam perdido, o filho que os abandonara pelas estrelas.

E também nunca respondiam às perguntas sobre sua mãe. Não podiam; não sabiam, não queriam saber, e mais ainda, não se importavam. Era Jefferson Andrew Kerwin, da Terra, e isso era tudo o que queriam de você.

Se ocorresse quando você fosse mais jovem, poderia ter sido suficiente. Tinha fome de pertencer a algum lugar, e o amor ansioso daqueles velhos, que precisavam de você para ser seu filho perdido, poderia reivindicá-lo para a Terra.

Mas o céu da Terra era de um azul frio e ardente, as colinas de um verde hostil; o sol pálido doía em seus olhos, mesmo por trás de óculos escuros, e os óculos fazia com que as pessoas pensassem que tentava se esconder delas. Você falava a língua com perfeição... haviam providenciado isso no orfanato. Sentia saudade do frio, dos ventos que sopravam pelo desfiladeiro por trás da cidade, dos contornos distantes e irregulares das montanhas; sentia saudade do céu nebuloso, do sol baixo, como um olho encarnado, em chamas. Seus avós não queriam que pensasse ou falasse em Darkover, e em uma ocasião, quando você juntou dinheiro suficiente para comprar uma coleção de ilustrações dos planetas de Rim, um deles com um sol vermelho que parecia o de Darkover, eles trataram de lhe tirar tudo. Você pertencia à Terra, ou pelo menos foi o que lhe disseram.

Mas você era mais esperto do que isso. E partiu, assim que teve idade suficiente. Sabia que partia outra vez o coração dos velhos, e de certa forma não era justo, porque haviam sido bondosos com você, tanto quanto sabiam ser. Mesmo assim, você partiu; tinha de partir. Porque sabia, se eles não soubessem, que Jeff Kerwin Junior não era o menino que amavam. Provavelmente, se chegasse a esse ponto, o primeiro Jeff Kerwin, seu pai, também não fora esse menino, e fora por isso que ele partira. Os velhos amavam alguém que haviam inventado e chamavam de filho, e talvez, você pensava, até se sentissem mais felizes com as recordações, em vez da presença daquele menino real, destruindo a imagem de seu filho perfeito.

Primeiro, houve um emprego civil no Serviço Espacial na Terra, em que você trabalhava muito, e mantinha a língua entre os dentes quando os arrogantes Terranan fitavam sua altura ou diziam piadas sutis sobre o sotaque que nunca chegou a perder por completo. E depois veio o dia em que embarcou numa das Grandes Naves, desta vez acordado, por vontade própria, confirmado no Serviço Civil do Império, a caminho das estrelas, que eram nomes no toque de chamada de seus sonhos. E você contemplou o odiado sol da Terra minguar na distância, até uma estrela indistinta, e sumir na imensidão do grande escuro, enquanto seguia para o primeiro posto de seu sonho.

Não Darkover. Ainda não. Mas um mundo com um sol vermelho que não doía em seus olhos, para um trabalho subalterno num mundo de maus cheiros e tempestades elétricas, em que as mulheres albinas eram enclausuradas por trás de muros altos, e nunca se via uma criança. Depois de um ano ali, houve um bom cargo num mundo em que os homens andavam com facas, e as mulheres usavam sinos nas orelhas, criando um carrilhão sedutor enquanto andavam. Você gostava de lá. Teve muitas lutas, e muitas mulheres. Por trás do servidor civil quieto, havia um arruaceiro escondido; e naquele mundo esse arruaceiro se soltava de vez em quando. Teve bons momentos. Foi naquele mundo que você começou a andar com uma faca. De certa forma, parecia certo para você; experimentava uma sensação de complemento quando prendia a faca na cintura, como se até então andasse meio despido. Falou a respeito com o psicólogo do serviço, e escutou suas conjeturas sobre medos ocultos de adequação sexual, compensação com símbolos fálicos, e compulsões de poder; ouviu tudo sem fazer comentários, e descartou as teorias, porque mais sabia. Mas ele fez uma pergunta importante.

- Foi criado em Cottman Quatro, não é mesmo, Kerwin?

- No Orfanato dos Espaçonautas que existe ali.

- Não é um dos mundos em que os homens adultos andam com espadas durante todo o tempo? Não sou um antropólogo comparativo, mas se via homens armados com espadas durante todo o tempo...

Você concordou que provavelmente era isso, e não disse mais nada, mas continuou a usar a faca, pelo menos nas horas de folga, e provou para sua satisfação que sabia manejá-la numa briga, se fosse necessário.

Teve bons tempos ali. Poderia ter ficado, e sido feliz. Mas ainda havia uma compulsão a guiá-lo, uma profunda inquietação, e quando o Legado morreu, e o novo se mostrou disposto a trazer seus próprios homens, você estava pronto para partir.

A esta altura, os anos de aprendizado já haviam terminado. Até agora, ia para onde o mandavam. Agora, perguntaram-lhe para onde queria ir, nos limites do razoável. E você não hesitou.

- Darkover. E logo se apressou em corrigir: - Cottman Quatro. O homem no Departamento de Pessoal ficou surpreso.

- Por que alguém desejaria ir para lá?

- Não há nenhuma vaga?

Você já se sentia meio resignado a deixar o sonho morrer.

- Claro que há. Nunca temos voluntários para lá. Sabe como é o lugar? Frio como o pecado, entre outras coisas, e bárbaro... com extensas áreas proibidas aos terráqueos. Não estará seguro se der um passo além da Cidade Comercial. Nunca estive lá pessoalmente, mas o lugar, pelo que ouço dizer, vive em tumulto permanente. Acrescente-se a isso que quase não há comércio com os darkovanos.

- Não? O espaço-porto de Thendara é um dos maiores do Serviço, pelo que sei.

- É verdade - admitiu o homem, com uma expressão sombria. Fica localizado entre os braços da espiral superior e da inferior da galáxia, e por isso temos de recrutar pessoal suficiente para guarnecer uma grande estação de escala. O espaço-porto de Thendara é um dos principais pontos de transbordo para passageiros e carga. Mas é um lugar horrível; se for para lá, pode ter de permanecer por anos, até conseguirem arrumar um substituto, depois que não agüentar mais.

Uma pausa, e o homem acrescentou, persuasivo:

- Você tem feito uma bela carreira para se perder num mundo assim. Rigel Nove precisa urgente de bons homens, e você teria um futuro ali... talvez acabasse promovido a Cônsul, ou até mesmo a Legado, se quisesse passar para a área diplomática. Por que desperdiçar sua carreira num pedaço de rocha meio congelado, à beira do nada?

Você deveria ter sido mais esperto, mas pensou que, por uma vez, talvez ele quisesse mesmo saber, e por isso lhe disse.

- Nasci em Darkover.

- Ah, um daqueles. Entendo.

Você viu a expressão do homem mudar, e sentiu vontade de dar um murro para tirar aquele sorriso do rosto rosado. Mas não o fez; limitou-se a ficar imóvel, observando-o carimbar seu pedido de transferência. Compreendeu que se tivera qualquer intenção de ingressar na área diplomática, ou alguma esperança de chegar a Legado, o homem frustrara para sempre com o que carimbara em sua ficha; mas você não se importava. E depois houve o embarque em outra Grande Nave, um crescente excitamento que não podia conter, a tal ponto que quase não saía do domo de observação, procurando um carvão em brasa, no céu, que logo surgiu e foi crescendo, até se tornar o braseiro que assombrava seus sonhos. Depois de um tempo que pareceu interminável, a nave baixou lentamente para um planeta escarlate, que usava um colar de quatro pequenas luas, como pedras preciosas engastadas num céu carmim.

E você soube que voltara para casa.

 

O SOUTHERN CROWN aterrisou no planeta ao meio-dia, no lado do dia. Assim que pousou, Jeff Kerwin desceu com extrema agilidade pelas estreitas escadas de aço, saltou para o solo, e respirou fundo. Esperava de alguma forma que o próprio ar contivesse alguma coisa penetrante e diferente, familiar e estranha ao mesmo tempo.

Mas era apenas ar. Tinha uma fragrância agradável, mas qualquer ar seria assim depois de semanas a respirar o ar parado da espaçonave. Ele tornou a aspirar, procurando por alguma indicação de sua lembrança esquiva na fragrância. Era frio e revigorante, com um toque de pólen e poeira; mas, acima de tudo, continha os cheiros químicos impessoais de todos os espaço-portos. Alcatrão quente. Poeira de concreto. O ozônio do oxigênio líquido vaporizando ao passar pelas válvulas.

Era como estar de volta à Terra! Apenas outro espaço-porto!

Mas, afinal, o que ele queria? Pare com isso, disse Kerwin a si mesmo, irritado. Pela maneira como projetou em sua mente, a volta a Darkover seria tão espetacular que se toda a cidade viesse recebê-lo, com desfiles e fanfarras, ainda ficaria aquém das expectativas!

Ele recuou, saindo do caminho de um grupo de homens da Força Espacial - altos, em uniformes de couro preto, com botas, as pistolas de raios ocultando sua ameaça dentro dos coldres - com estrelas faiscando nas mangas. O sol se encontrava uma fração além do meridiano, imenso, vermelho-laranja, entre nuvens irregulares pairando alto no céu. As montanhas serrilhadas por trás do espaço-porto projetavam sua sombra sobre a Cidade Comercial, mas os picos ainda eram banhados pela luz do sol. A memória procurou os pontos de referência ao longo dos picos. Os olhos de Kerwin fixaram-se no horizonte, e ele tropeçou num caixote de carga.

- Procurando as estrelas, Cabeça Vermelha? - disse uma voz jovial. A mente de Kerwin retornou ao espaço-porto, com um esforço quase físico.

- Já vi estrelas em quantidade suficiente que me bastem por algum tempo - murmurou ele. Estava apenas pensando que o ar tem um cheiro agradável.

O homem ao seu lado sorriu.

- Já é um conforto. Passei algum tempo num mundo em que o ar tinha um alto teor de enxofre. Perfeitamente saudável, ou pelo menos era o que diziam os médicos, mas eu vivia com a sensação de que alguém jogara uma caixa inteira de ovos podres em cima de mim.

Ele se juntou a Kerwin na plataforma de concreto.

- Como é voltar para casa?

- Ainda não sei.

Kerwin fitou o recém-chegado com uma expressão próxima da afeição. Johnny Ellers era baixo e corpulento, começando a ficar calvo no topo da cabeça, com o uniforme de couro preto de um espaçonauta profissional. Duas dúzias de estrelas faiscavam numa explosão de cores em sua manga: uma estrela para cada mundo em que já prestara serviço. Kerwin, com apenas duas estrelas até agora, encontrara em Ellers uma fonte de informações sobre quase todos os planetas e quase todos os assuntos sob o sol... qualquer sol.

- É melhor sairmos daqui - sugeriu Ellers.

O pessoal da manutenção já enxameava sobre a nave, preparando-a para decolar de novo, dentro de poucas horas. As órbitas favoráveis não esperavam por nenhum homem. O espaço-porto já estava apinhado de caminhões, carregadores, máquinas zumbindo, e instruções eram gritadas em cinqüenta línguas e dialetos. Kerwin olhou ao redor, procurando se orientar. Além dos portões do espaço-porto ficava a Cidade Comercial, o prédio do quartel-general dos terráqueos... é Darkover. Sua vontade era correr para lá, mas tratou de se controlar, encaminhando-se com Ellers para a fila que já se formava, para verificar identidades e missões.

Ele deixou que tirassem sua impressão digital, assinou uma declaração confirmando que era quem dizia ser, recebeu um certificado de identidade, e seguiu adiante.

- Para onde? - indagou Ellers, se juntando a ele outra vez.

- Não sei - respondeu Kerwin, lentamente. - Mas acho melhor me apresentar ao quartel-general antes de mais nada.

Ele não fizera planos formais além daquele momento, e não tinha certeza se queria a companhia de Ellers dali por diante. Por mais que gostasse de Ellers, preferia retomar o contato com Darkover sozinho. Ellers soltou uma risada.

- Está pensando em se apresentar agora? Ora, sabe que não adianta. Não é mais um garoto inexperiente, com os olhos esbugalhados por sua primeira missão em outro planeta. Pode deixar a burocracia para amanhã de manhã. Esta noite... - ele acenou com a mão, num gesto expansivo, na direção dos portões do espaço-porto - vinho, mulheres e música... não necessariamente nessa ordem.

Kerwin hesitou, e Ellers exortou-o:

- Vamos logo! Conheço a Cidade Comercial como a palma da mão. Terá de comprar tudo... e eu conheço todos os mercados. Se fizer as compras em arapucas para turistas, pode gastar seis meses de salário sem conseguir nem a metade do que precisa.

Era verdade. Ainda havia um problema de peso nas Grandes Naves para se permitir o transporte de roupas e utensílios pessoais. Saía mais barato vender tudo quando se era transferido, e comprar o necessário ao chegar ao novo posto, do que pagar as taxas de excesso de peso. Cada espaço-porto no Império Terráqueo era cercado por lojas, boas, ruins e indiferentes, dos centros comerciais de luxo aos mercados de segunda mão.

- E também conheço os melhores pontos de diversão. Você não viveu até experimentar o firi darkovano. Lá nas montanhas, contam histórias engraçadas sobre essa bebida, em particular de seu efeito nas mulheres. Lembro de uma ocasião...

Kerwin deixou Ellers levá-lo, sem prestar muita atenção à história do homenzinho, que já começava a assumir contornos familiares. A

julgar pelo que contava, Ellers tinha tantas mulheres, em tantos mundos, que Kerwin às vezes especulava vagamente como ele arrumara tempo, nos intervalos, para as viagens pelo espaço. As heroínas das histórias variavam de uma mulher-ave siriana, com enormes asas azuis e um manto de penugem, a uma princesa de Arcturus IV, cercada por donzelas ligadas a ela por vínculos de pseudocarne viva, até o dia de sua morte.

Os portões do espaço-porto davam para uma vasta praça, em torno de um monumento erguido sobre altos degraus, e um pequeno parque cheio de árvores, Kerwin contemplou as árvores, suas folhas violeta balançando ao vento, e engoliu em seco.

Houvera um tempo em que conhecera muito bem a Cidade Comercial. Crescera bastante desde então... e ao mesmo tempo parecia ter encolhido. O imenso arranha-céu do QG terráqueo, antes impressivo por suas dimensões, era agora apenas um edifício grande. O círculo de lojas em torno da praça era agora muito maior. Kerwin não se lembrava de ter visto, quando criança, o enorme Sky Harbor Hotel, com sua fachada iluminada por neon. Ele suspirou, tentando definir as lembranças.

Atravessaram a praça, e entraram numa rua calçada com blocos de pedra, tão grandes que a imaginação ficava atordoada ao tentar adivinhar quem ou o quê os havia colocado ali. A rua estava tranqüila e vazia; Kerwin calculou que a maior parte da população terráquea fora assistir ao pouso da nave estelar, e que àquela hora bem poucos darkovanos se encontravam fora de casa. A verdadeira cidade ainda se mantinha fora do alcance da vista, fora da audição... fora do alcance. Ele tornou a suspirar, e seguiu Ellers para a rede de lojas.

- Podemos comprar boas roupas aqui.

Era uma loja darkovana, o que significava que se esparramava pela rua, sem uma distinção nítida entre o exterior e o interior, entre a mercadoria à venda e os pertences pessoais do proprietário. Mas fora feita uma concessão aos estranhos costumes dos terráqueos, e algumas das mercadorias à venda estavam em cabides e mesas. No momento em que Kerwin passou pela arcada externa, suas narinas se dilataram em reconhecimento de um cheiro familiar: uma lufada de fumaça fragrante,

o incenso que perfuma todas as residências darkovanas, da choupana ao palácio. Não usavam incenso, não oficialmente, no Orfanato dos Espaçonautas, na Cidade Comercial; mas quase todas as mulheres que ali trabalhavam eram darkovanas, e os vapores resinosos haviam impregnado seus cabelos e roupas. Ellers torceu o nariz, soltou um grunhido de repulsa, mas Kerwin descobriu-se a sorrir. Era o primeiro toque de genuíno reconhecimento num mundo que se tornara estranho.

O lojista, baixo e encarquilhado, usando camisa e calção amarelos, virou-se e murmurou uma fórmula de saudação:

- S'dia Shaya.

Significava Você me empresta sua graça. Sem pensar, Kerwin respondeu com outra fórmula polida sem significado, o que deixou Ellers aturdido.

- Não sabia que falava a língua local. Disse-me que tinha saído daqui quando era pequeno.

- Só falo o dialeto da cidade.

O lojista já se aproximara dos cabides coloridos por mantos, gibões, blusões, coletes e túnicas de seda. Kerwin, exasperado consigo mesmo, disse bruscamente, no Padrão Terráqueo:

- Nada assim. Roupas de Terranan, companheiro.

Ele concentrou-se em escolher algumas peças... roupas de baixo, trajes para dormir, apenas o suficiente para uns poucos dias, até descobrir o que a missão e o clima exigiriam. Havia grossas parkas, destinadas às montanhas nas reservas de Rigel e Capella Nove, forradas com fibra sintética, que mantinham o calor do corpo até trinta graus abaixo de zero, ou até mais. Kerwin ignorou-as, embora Ellers, tremendo de feio, já tivesse comprado e vestido um; não fazia tanto frio assim, nem mesmo nas Hellers, e aqui em Thendara o tempo lhe parecia bastante ameno para sair sem um agasalho. Ele advertiu Ellers, em voz baixa, para não comprar aparelho de barba.

- Pensando em virar um nativo, Kerwin? Vai deixar a barba crescer?

- Não, mas encontrará aparelhos melhores na loja do Serviço, lá no QG. Darkover é pobre em metais, e os poucos disponíveis não são tão bons quanto os nossos, além de custarem muito mais caro.

Enquanto o lojista fazia os pacotes, Ellers aproximou-se de uma mesa perto da entrada.

- Que tipo de coisa é esta, Kerwin? Nunca vi ninguém em Darkover usando uma roupa assim. É um traje nativo darkovano?

Kerwin estremeceu; traje nativo darkovano era um conceito, como língua darkovana, que consistia apenas de uma simplificação de forasteiros do Império. Havia nove línguas darkovanas, ao que ele sabia - embora só falasse bem uma delas, e conhecesse umas poucas palavras de duas outras -, e os trajes darkovanos eram bastante variados, das sedas e cores refinadas das terras baixas aos couros não curtidos e peles das montanhas distantes. Ele se juntou ao amigo e olhou para a confusão de peças diversas, todas mais ou menos usadas, espalhadas ao acaso, culotes e túnicas utilitárias para usar na cidade. Kerwin percebeu no mesmo instante o que atraíra a atenção de Ellers. Era uma beleza, em verde e amarelo, com ricos bordados, em padrões que lhe pareciam familiares; calculou que se sentia mais cansado do que imaginara. Levantou o traje, e viu que era um manto comprido, com capuz.

- É uma capa de montaria - explicou ele. - São usadas nas Colinas Kilghard, e pelo bordado devia pertencer a um nobre. Talvez sejam as cores de sua casa. Não sei como veio parar aqui. Agasalham bem e são confortáveis, especialmente numa viagem a cavalo. Mas mesmo quando eu era garoto, este tipo de manto já havia saído de moda aqui na cidade. Coisas assim...

Ele apontou,para a parka de fibra sintética que Ellers pusera, importada de outro planeta, antes de acrescentar:

- ...eram mais baratos, e agasalhavam da mesma forma. Estes mantos são feitos a mão, tingidos a mão, bordados a mão.

Não era um manto de tecido, mas de couro, macio e flexível, macio como lã, flexível como seda, bordado com fios metálicos. As cores eram vivas, pareciam se derramar sobre o braço de Kerwin.

- Parece que foi feito para um príncipe - comentou Ellers, em voz baixa, com evidente admiração. Olhe só para esta pele! De que tipo de animal veio?

O lojista lançou-se a um discurso de venda eloqüente, sobre o custo alto da pele, farejando uma possível venda, mas Kerwin riu, e interrompeu-o com um gesto.

- É de coelho de chifres. São criados como ovelhas. Se fosse uma pele de marl, seria de fato o manto de um príncipe. Mas calculo que pertencia a algum cavalheiro pobre, ligado à família de um nobre... alguém com uma esposa ou filha bastante talentosa e diligente, que podia passar um ano fazendo o bordado.

- Mas os bordados, nobres, estes lindos padrões, dignos do Comyn, esta riqueza do couro tingido...

- O que parece mesmo é um bom agasalho - disse Kerwin, ajeitando o manto sobre os ombros.

Era mesmo macio e quente. Ellers deu um passo atrás, fitando-o com evidente consternação.

- Por Deus, já virou nativo? Não pretende usar essa coisa na Zona Terráquea, não é?

Kerwin soltou uma gargalhada efusiva.

- Eu diria que não. Apenas pensei que seria um bom agasalho para usar em meu quarto à noite. Se os alojamentos de solteiro no QG forem parecidos com os que encontrei em minha última missão, oferecem um mínimo de aquecimento, a menos que você queira pagar o dobro pelo consumo de energia. E aqui faz bastante frio no inverno. Claro que agora tempo está ameno, até quente...

Ellers estremeceu, e murmurou, sombrio:

- Se isto é quente, espero estar no outro lado da galáxia quando fizer/rio! Seus ossos devem ser feitos de alguma substância que eu não conheço, pois acho que está congelando! Mas o planeta de um homem é o inferno de outro - disse ele, citando um provérbio do Serviço. Mas não pretende gastar o salário de um mês com essa coisa, não é?

- Não, se eu puder evitar - respondeu Kerwin, pelo canto da boca. Mas se você não calar a boca, e deixar que eu barganhe com ele, é bem possível que isso acabe acontecendo!

Ao final, Kerwin pagou mais do que esperava, e disse a si mesmo que era um tolo, enquanto contava o dinheiro. Mas queria o manto, por algum motivo que não podia explicar; era a primeira coisa que o atraía na volta a Darkover. Queria de qualquer maneira, e acabou pagando um preço que tinha condições, embora não com facilidade. Quase ao final da negociação, sentiu que o lojista estava inquieto, por algum motivo, e cedeu muito mais fácil do que ele previa. Ellers podia não saber, mas ele tinha certeza de que obtivera o manto por menos do que o seu valor. Muito menos, a se dizer a verdade.

- Esse dinheiro seria suficiente para mantê-lo embriagado e feliz por meio ano - comentou Ellers, ao saírem para a rua.

Kerwin riu.

- Anime-se. Pele não é um luxo num planeta como este, mas um bom investimento. E ainda tenho o suficiente no bolso para a primeira rodada de drinques. Onde podemos beber?

Foram a uma casa de vinhos, na extremidade do setor; não havia turistas, embora uns poucos trabalhadores do espaço-porto estivessem misturados aos darkovanos ao longo do balcão, ou esparramados pelos divas compridos encostados nas paredes. Todos se concentravam nas atividades sérias de beber, conversar ou jogar, com o que pareciam ser dominós, ou pequenos prismas de cristal lapidado.

Uns poucos darkovanos levantaram os olhos quando os dois terráqueos se esgueiraram pela multidão, e foram sentar a uma mesa. Ellers já se sentia mais animado quando uma jovem rechonchuda, de cabelos escuros, veio anotar o pedido. Ele deu um beliscão na coxa roliça da moça, pediu vinho no jargão do espaço-porto, estendeu o manto darkovano sobre a mesa, para apalpar o pêlo, lançou-se a uma longa história sobre como encontrara uma pele extraordinária num planeta frio Lyra.

- As noites ali duravam sete dias, e as pessoas suspendiam todo e qualquer trabalho externo, até que o sol voltasse para derreter o gelo. Pois eu e aquela garota linda nos metemos debaixo da pele, e nunca pusemos o nariz de fora...

Kerwin se absorveu em seu drinque, e perdeu o fio da história... não que isso fizesse alguma diferença, pois todas as histórias de Ellers eram parecidas. Um homem sentado sozinho a uma mesa, diante de uma taça pela metade, fitou Kerwin nos olhos, e levantou-se subitamente... tão depressa que derrubou a cadeira. Começou a se aproximar da mesa dos dois, mas depois percebeu a presença de Ellers, de costas para ele, estacou no mesmo instante, deu um passo para trás, parecendo ao mesmo tempo surpreso e confuso. Foi nesse momento que Ellers, chegando a um hiato em sua história, olhou para trás, e sorriu.

- Ragan, seu velho patife! Eu já deveria saber que o encontraria aqui! Há quanto tempo, hem? Venha tomar um drinque com a gente!

Ragan hesitou, e Kerwin teve a impressão de que ele lançava um olhar apreensivo em sua direção.

- Ora, vamos! - insistiu Ellers. Quero que conheça um amigo meu, Jeff Kerwin.

Ragan sentou. Kerwin não pôde determinar o que ele era. Pequeno e franzino, tinha um rosto simpático, queimado de sol, como alguém que vivia ao ar livre, e mãos calosas; podia ser um pequeno darkovano das montanhas, ou um terráqueo em trajes darkovanos, embora usasse o ubíquo casaco de montanhismo e botas até o meio das pernas. Mas falava o Padrão Terráqueo tão bem quanto os dois terráqueos, ao perguntar a Ellers como fora a viagem. Quando a segunda rodada de drinques foi servida, ele insistiu em pagar. Mas continuou a lançar olhares furtivos para Kerwin, quando pensava não estar sendo observado. Depois de algum tempo, Kerwin teve de indagar:

- Afinal, qual é o problema? Agiu como se me reconhecesse, antes de Ellers chamá-lo...

- É verdade. Não tinha ainda visto Ellers. E depois também vi o que você vestia... - Ragan gesticulou para o traje terráqueo de Kerwin. Tive certeza então de que não podia ser quem eu pensava. Não o conheço, não é?

Ele franzia o rosto em perplexidade.

- Acho que não.

Kerwin estudou o homem, especulando se não poderia ser um dos garotos no Orfanato dos Espaçonautas. Era impossível determinar, depois... de quanto tempo? Dez ou doze anos, pela contagem terráquea; esquecera os fatores de conversão para o ano darkovano. Mesmo que tivessem sido amigos na infância, todo esse tempo apagaria a lembrança.

E ele não recordava ninguém chamado Ragan, embora isso nada significasse.

- Mas você não é terráqueo, não é? - indagou Ragan.

A lembrança do sorriso desdenhoso de um burocrata - um daqueles - aflorou na mente de Kerwin, mas ele tratou de reprimi-la.

- Meu pai era. Nasci aqui, fui criado no Orfanato dos Espaçonautas. Mas saí de lá ainda pequeno.

- Deve ser isso - disse Ragan. Passei alguns anos lá. Agora faço o trabalho de ligação para a Cidade Comercial, quando é preciso contratar darkovanos: guias, montanhistas, gente assim. Organizo caravanas para as montanhas, até outros centros comerciais, essas coisas.

Kerwin ainda tentava determinar se o homem tinha um sotaque darkovano reconhecível, e resolveu perguntar:

- Você é darkovano?

Ragan deu de ombros.

- Quem sabe? - murmurou ele, com uma profunda amargura na voz. E, diga-se de passagem, quem se importa?

Ele ergueu sua taça, e bebeu. Kerwin seguiu o exemplo, sentindo que muito em breve ficaria embriagado; nunca fora um grande bebedor, e o vinho darkovano, que jamais provara quando criança, era bastante forte. Não parecia ter qualquer importância. Ragan o observava de novo, e isso parecia também não importar.

Kerwin pensou: Talvez sejamos parecidos. Minha mãe provavelmente era darkovana; se fosse terráquea, seu nome constaria nos registros. Ela pode ter sido qualquer coisa. Meu pai pertencia ao Serviço Espacial; essa é a única coisa que sei com certeza. Mas, além disso, quem e o que eu sou? E como ele teve um filho mestiço?

- Pelo menos ele se importava o suficiente para providenciar a cidadania do Império para você - comentou Ragan, amargurado.

Jeff se espantou, sem saber que dissera tudo isso em voz alta, enquanto Ragan acrescentava:

- O meu nem se preocupou com isso!

- Mas você tem cabelos vermelhos...

Jeff especulou por que dissera isso. Só que Ragan parecia não ouvir, o olhar fixado em seu copo, e Ellers interveio, com um ar de injuriado:

- Ei, vocês dois, isto deveria ser uma comemoração! Vamos beber! Ragan apoiou o queixo nas mãos, fitou Kerwin através da mesa.

- Veio para cá, pelo menos em parte, para tentar descobrir seus pais... sua gente?

- Descobrir alguma coisa a respeito deles - corrigiu Kerwin.

- Já lhe ocorreu que talvez seja melhor não saber?

Claro que Kerwin já pensara nisso. Revirara o problema pelo avesso.

- Não me importaria mesmo que minha mãe fosse uma daquelas - disse ele, acenando com a cabeça na direção das moças que circulavam entre as mesas, servindo drinques, parando para conversar com os homens, trocando gracejos e insinuações. Quero saber de qualquer maneira.

Para ter certeza que mundo pode me reivindicar, Darkover ou Terra. Para saber...

- Mas não há registros no orfanato?

- Não tive ainda a oportunidade de verificar - respondeu Kerwin. De qualquer forma, é o primeiro lugar a que irei. Não sei o quanto poderão me dizer, mas é por lá que devo começar.

- E se não puderem lhe dizer qualquer coisa além do que já sabe? É sua única pista?

Com os dedos meio desajeitados por causa do vinho, Kerwin pegou a corrente de cobre em seu pescoço, pendurada ali desde que podia se lembrar.

- Só tenho isto como pista. Disseram-me no orfanato que tinha a corrente no pescoço quando cheguei lá.

E ninguém gostava da corrente. A diretora dizia que eu era grande demais para usar amuletos, e tentou tirá-la de mim. Eu gritei... por que havia esquecido isso?..."e lutei tanto que acabaram me deixando ficar com a corrente. Por que reagi assim? Meus avós também não gostavam, e aprendi a mantê-la escondida.

- Ora, isso é besteira! - exclamou Ellers, um tanto rude. O talismã perdido! Vai mostrá-lo aos nobres, que o reconhecem como seu herdeiro há muito desaparecido, vai para o castelo, e vive feliz para sempre!

Ele deixou escapar um som indescritível de desdém. Kerwin sentiu o vermelho da raiva afluindo a seu rosto. Se Ellers acreditava mesmo nisso...

- Posso dar uma olhada? - pediu Ragan, estendendo a mão. Kerwin tirou a corrente do pescoço. Mas quando Ragan fez menção de pegá-la, ele a aninhou em sua palma; sempre ficava nervoso quando outra pessoa tocava na corrente. Nunca perguntara o motivo para isso ao pessoal da psicologia. Provavelmente teriam uma explicação pronta e fácil, alguma coisa vaga sobre o seu subconsciente.

A corrente era de cobre, um metal valioso em Darkover. Mas a pedra azul sempre lhe parecera insignificante, um penduricalho barato, algo que uma pobre moça poderia acalentar como um tesouro; nem mesmo era lapidada, apenas um belo cristal azul, um pedaço de vidro. Mas os olhos de Ragan se contraíram ao se fixaram na pedra, e ele deixou escapar um assovio baixo.

- Pelo lobo de Alar! Sabe o que é isso, Kerwin? Kerwin deu de ombros.

- Alguma pedra semi-preciosa das Hellers, eu suponho. Não sou geólogo.

- É uma pedra da matriz. - Diante do olhar impassível de Kerwin, Ragan acrescentou: Um cristal psicocinético.

- Não entendo mais nada - disse Ellers.

Ele estendeu a mão para pegar a pedra. No mesmo instante, numa reação defensiva, Kerwin fechou a mão. Ragan alçou as sobrancelhas.

- Sintonizada?

- Não sei do que está falando - disse Kerwin - apenas não gosto que as pessoas a toquem. Uma tolice, eu suponho.

- Mas não é mesmo! - Ragan hesitou por um momento, e subitamente tomou uma decisão. Tenho uma. Não é desse tamanho, mas pequena, do tipo que vendem nos mercados para trancas de malas e brinquedos de crianças. Uma pedra como a sua... ora, não se encontra na rua. Deve valer uma pequena fortuna, e se monitorada em alguma das redes de controle, não será difícil descobrir a quem pertencia. Mas mesmo as pequenas, como a minha...

Ele tirou de um bolso interno uma pequena bolsa de couro, e abriu-a, tirando um pequeno cristal azul.

- São assim... talvez tenham uma forma de vida de baixo nível, ninguém jamais conseguiu determinar. Seja como for, são pedras de um homem só, faça uma fechadura com uma delas, e nada pode fazer com que se abram, a não ser a intenção da própria pessoa.

- Está querendo dizer que são mágicas? - perguntou Ellers, irritado.

- Claro que não. As pedras registram as ondas cerebrais e os padrões característicos de EEG de seus donos, ou algo parecido... como se fosse uma impressão digital. Por isso, você é a única pessoa que pode abrir a tranca; uma ótima maneira de proteger seus papéis pessoais. É para isso que uso a minha; e também posso fazer alguns truques com ela.

Kerwin olhou para a pequena pedra azul na palma de Ragan. Era menor do que a sua, mas da mesma cor distintiva. Ele repetiu devagar:

- Pedra da matriz...

Ellers, repentinamente sóbrio, fitou Kerwin, e disse:

- Isso mesmo, o grande segredo de Darkover. Os terráqueos vêm tentando obter há gerações, por todos os meios possíveis, até roubando, alguns dos segredos da tecnologia da matriz. Houve uma grande guerra aqui por isso, há quinze ou vinte anos... não me lembro, foi antes de meu tempo. Os darkovanos costumam trazer as pequenas, como a de Ragan, para a Cidade Comercial, e as vendem, em troca de drogas ou metais, em geral adagas, pequenas ferramentas, ou lentes de câmeras. De alguma forma, as pedras transformam energia sem os subprodutos da fissão. Mas são sempre pequenas, embora haja rumores da existência de grandes. Até maiores do que a sua, Jeff. Mas nenhum darkovano fala a respeito. Ei... - ele sorriu - talvez você seja mesmo o herdeiro do tal castelo, no final das contas. Com toda certeza, nenhuma moça trabalhando num bar usaria uma pedra como essa.

Kerwin tornou a abrir a mão em que estava a pedra, mas não olhou para ela. Deixava seus olhos turvos, provocava-lhe uma estranha vertigem, uma súbita náusea. Tornou a escondê-la dentro da camisa. Não lhe agradava a maneira como Ragan o fitava. Fazia com que se lembrasse de alguma coisa.

Ragan estendeu seu próprio cristal - não era maior do que uma conta que uma mulher poderia prender na extremidade de uma trança comprida? - na direção de Kerwin.

- Pode olhá-lo? - pediu ele.

Alguém lhe dissera isso antes. Em algum momento, alguém dissera: Olhe para dentro da matriz. Uma voz baixa, de mulher. Ou ela dissera Não olhe para dentro da matriz... Sua cabeça doía. Contrariado, ele empurrou a mão de Ragan, que alteou as sobrancelhas, em reconhecimento.

- É tanto assim? Pode usar a sua?

- Usar? Como? Não sei de nada a respeito.

Ele falou em tom grosseiro. Ragan deu de ombros, e comentou:

- Só posso fazer pequenos truques com a minha. Observe. Ragan virou a taça verde para tomar os últimos goles do vinho,

depois emborcou-a na mesa, e pôs o pequeno cristal azul em cima. Seu rosto assumiu um olhar intenso, concentrado; abruptamente, houve um pequeno clarão, de doer nos olhos, um chiado alto, e a haste da taça derreteu, despencou para o lado, desmanchou-se numa poça de vidro verde. Ellers praguejou. Kerwin passou a mão sobre os olhos, contemplando a taça emborcada, com a haste derretida. Houvera um artista terráqueo, ele lembrou de um curso de história da arte, que pintara coisas como xícaras peludas e relógios flácidos. A história o julgara um lunático, em vez de um gênio. A taça parecia tão surrealista quanto a obra dele.

- Eu poderia fazer isso? Qualquer um poderia?

- Com uma pedra do tamanho da sua, poderia fazer muito mais - garantiu Ragan. Bastaria saber como usá-la. Não sei como funciona, mas se você se concentrar, pode deslocar pequenos objetos, gerar um calor intenso, ou... ora, outras coisas. Não é preciso muito treinamento para brincar com pedras deste tamanho.

Kerwin tocou na pedra em seu peito, e murmurou:

- Então não é apenas um penduricalho.

- Claro que não. Vale uma pequena fortuna... talvez até uma grande fortuna, não sei determinar. Fico surpreso que não a tenham tirado de você antes de sua partida de Darkover, considerando o empenho com que os terráqueos vêm tentando obter algumas das maiores, a fim de fazer experiências, e testar seus limites.

Outra daquelas lembranças vagas aflorou. Drogado, na Grande Nave que o levara para a Terra, uma comissária de bordo ou atendente de alguma espécie mexendo na pedra, ele acordando, gritando, pesadelos. Pensara que era um efeito colateral das drogas. Sombrio, Kerwin murmurou:

- Acho que tentaram.

- Tenho certeza que as autoridades no QG dariam muita coisa para terem uma pedra desse tamanho - disse Ragan. Talvez você queira entregá-la; é provável que aceitem o que pedir, dentro de limites razoáveis. Pode inclusive exigir qualquer posto que quiser.

Kerwin sorriu.

- Como me sinto horrível sempre que a tiro, isso acarretaria... algumas dificuldades.

- Está dizendo que nunca a tira? - indagou Ellers, a voz um tanto enrolada. - Isso deve causar alguns problemas. Não a tira nem mesmo para tomar banho?

Kerwin riu.

- Posso tirar, mas não gosto. Eu me sinto... não sei explicar direito... esquisito quando a tiro.

Ele sempre se censurara por ser supersticioso, irracional e compulsivo, tratando a pedra como um fetiche. Ragan balançou a cabeça.

- Como eu disse, essas pedras são estranhas. Elas... Não faz sentido, mas é o que acontece. Não sei como funcionam, mas apenas que funcionam; talvez sejam uma baixa forma de vida. Uma pedra pode se ligar a você, e seria impossível deixá-la para trás. Nunca ouvi falar de ninguém que tivesse perdido sua pedra. Conheço um homem que vivia perdendo suas chaves, até que prendeu uma dessas pedras no chaveiro.

A partir daí, se esquecia as chaves em algum lugar, sempre sabia onde encontrá-las.

Isso explicava muita coisa, pensou Kerwin. Inclusive um menino berrando como se tivesse a metade de sua idade, quando uma terráquea do orfanato tentara privá-lo de seu "amuleto da sorte". Ao final, tiveram de devolvê-lo. Ele se perguntou, com um calafrio, o que teria acontecido se não o tivessem feito. Refletiu que não queria saber. Tornou a tocar na pedra oculta, sacudindo a cabeça, lembrando-se da certeza infantil de que aquilo continha a chave para seu passado misterioso, para sua identidade e a identidade de sua mãe, para suas memórias vagas e sonhos meio esquecidos.

- Claro que eu esperava que fosse o amuleto que provaria o meu direito de herdeiro de algum castelo - murmurou ele, com profunda ironia. Agora, todas as minhas ilusões foram destruídas.

Kerwin ergueu sua taça para os lábios, e chamou a moça darkovana para servir outra rodada.

E ao fazê-lo, seus olhos fixaram-se na taça cuja haste Ragan derretera. Será. que se encontrava mais embriagado do que imaginara?

A taça estava outra vez de pé, sobre uma sólida haste verde, incólume. Não havia nada de errado com ela.

 

Três drinques DEPOIS, Ragan pediu licença para se retirar, alegando que precisava se apresentar no QG, antes de receber o pagamento por um serviço que prestara. Depois que ele foi embora, Kerwin, impaciente, olhou para Ellers, que acompanhara Ragan na bebida, copo a copo. Não era assim que desejava passar a primeira noite de volta ao mundo cuja imagem mantivera na mente desde a infância. Não sabia direito o que queria... mas não era ficar sentado num bar de espaço-porto se embriagando!

- Escute, Ellers...

Um ronco baixo foi a única resposta; Ellers escorregara no banco, apagado.

A jovem darkovana rechonchuda aproximou-se com uma nova rodada - Kerwin perdera a noção da contagem - e fitou Ellers com uma mistura profissional de desapontamento e resignação. Depois, lançou um olhar rápido para Kerwin, e ele percebeu que o foco de interesse dela mudara. Ao se inclinar para servi-lo, ela deu um jeito para roçar em Kerwin. A túnica folgada não estava presa na garganta, e ele pôde ver o vale entre os seios, sentiu o cheiro suave de incenso em seus cabelos e roupas. Um fio de sobriedade o percorreu, ao aspirar aquela fragrância de Darkover, a fragrância de uma mulher; mas depois ele notou que ela tinha os olhos duros e superficiais, e que a música de sua voz tinha uma certa aspereza quando ela sussurrou:

- Gosta do que vê, grandalhão?

Ela falou no Padrão Terráqueo, meio estropiado, não o idioma musical do dialeto de Thendara; e isso, Kerwin compreendeu depois, foi o que mais o incomodou.

- Gosta de Lomie, grandalhão? Venha comigo, eu quente e gostosa, vai ver só...

Havia um gosto amargo na boca de Kerwin que não era apenas o travo posterior do vinho. Independente do céu e do sol, independente do mundo, as mulheres nos bares em torno das Cidades Comerciais terráqueas eram todas iguais.

- Vem comigo? Você não quer...?

Sem saber direito o que ia fazer, Kerwin segurou a beira da mesa e levantou-se, o banco caindo para trás com um estrondo. Assomou por cima da moça, com um olhar furioso, através da luz difusa e enfumaçada, e passaram por seus lábios palavras pronunciadas numa língua há muito esquecida:

- Vá embora, filha de um bode da montanha, e cubra sua vergonha em outro lugar, em vez de deitar com homens de mundos que desprezam o seu! Onde está o orgulho de Cahuenga, ó desavergonhada?

A moça soltou um gemido, recuou, toda encolhida, a mão segurou a túnica por cima dos seios soltos, num gesto convulsivo, e ela quase se curvou até o chão. Engoliu em seco, mas por um momento sua boca se mexeu sem que qualquer som saísse, até que conseguiu sussurrar:

- S'dia shaya... d'sperdo, vai dom alzuo...

E em seguida ela se afastou correndo, aos prantos; o som dos soluços e a fragrância do incenso em seus cabelos perduraram na sala, em sua esteira.

Kerwin cambaleou, apoiou-se na beira da mesa. Por Deus, como se pode ficar tão embriagado? E o que significavam aquelas besteiras que falei? Ele sentia-se aturdido consigo mesmo; de onde tirara aquelas palavras, deixando a pobre coitada apavorada? Não era mais virtuoso do que ninguém. Que resquício puritano o levara a se levantar em ira, e censurá-la daquela maneira? Tivera a sua quota de mulheres de espaço-porto em mais de um mundo.

E, além do mais, que língua falara? Sabia que não fora o dialeto de Thendara, mas qual teria sido? Não podia se lembrar; por mais que tentasse, nem uma única sílaba permanecera das palavras que afloraram em sua mente; apenas a forma da emoção persistia.

Ellers, por sorte, roncara durante todo o incidente; podia muito bem imaginar as criticas que o homem mais velho lhe faria, se não estivesse dormindo. E Kerwin pensou: É melhor sairmos daqui enquanto ainda posso navegar... e antes que eu cometa outra loucura!

Ele inclinou-se para sacudir Ellers, mas ele nem sequer deixou escapar um murmúrio. Kerwin lembrou-se que Ellers bebera tanto quanto ele próprio e Ragan juntos. Fazia isso em cada espaço-porto. Kerwin deu de ombros, levantou o banco que derrubara, ajeitou os pés de Ellers em cima, e cambaleou trôpego para a porta, deixando o amigo ali.

Ar. Ar fresco. Isso era tudo o que precisava. Estaria melhor assim que retornasse à Zona Terráquea; pelo menos saberia como se comportar depois que passasse pelos portões do espaço-porto. Mas, refletiu ele, confuso, eu pensava que sabia como me comportar em Darkover. O que deu em mim?

O sol, vermelho, como um olho irado, meio encoberto por uma névoa, pairava baixo no final da rua. Sombras profundas, em lilás e índigo, projetavam-se sobre as casas, numa semi-escuridão acolhedora. Havia pessoas nas ruas agora, darkovanos em camisas e culotes coloridos, usando pesados mantos, ou parkas comuns importadas, mulheres cobertas até os olhos com peles. Kerwin divisou um vulto alto, quase que deslizando pela rua, num manto com capuz, de corte e cor estranhos; levou um momento para compreender que não era um vulto humano.

E num momento em que parou, erguendo os olhos para o céu flamejante, o sol desapareceu de repente, e uma escuridão rápida estendeu-se pelo céu, parecendo asas imensas e suaves, se desdobrando para ocultarem toda a luz; era a noite repentina que caracterizava aquele mundo. Uma coroa de enormes estrelas brancas surgiu no céu, acompanhada por três pequenas luas, uma verde-jade, a outra azul-pavão, a terceira rosa-pérola.

Kerwin contemplou o céu, os olhos úmidos, sem qualquer vergonha pelas lágrimas súbitas. Não era ilusão, apesar dos bares de espaço-porto, tão vulgares, e da decepção das ruas. Era real; voltara para casa, vira a escuridão repentina se espalhar pelo céu, o brilho das estrelas que chamavam de Coroa de Hastur, por causa da lenda... Ele ficou parado ali, enquanto o ar esfriava depressa, a densa neblina da noite se acumulando, o brilho do céu se ofuscando, até desaparecer por completo.

Lentamente, continuou a andar. As primeiras gotas de chuva começaram a cair; o farol no alto do QG servia para orientá-lo, e ele seguiu nessa direção, com alguma relutância.

Pensou na moça darkovana no bar, a que censurara de modo tão inesperado... e tão estranho. Ela parecia ardente e macia, limpa também. .. o que mais um homem podia querer ao voltar para casa? Por que a repelira... ainda mais daquele jeito?

Sentia-se estranhamente irrequieto, meio atordoado. Voltara para casa? O seu lar? Isso representava mais do que um céu familiar e as estrelas lá no alto. Um lar significava pessoas. Era o que tinha na Terra, se assim queria. Não, concluiu ele, sóbrio; os avós não o queriam de fato, apenas o consideravam como uma segunda oportunidade de reconstituir seu pai, à imagem e semelhança deles. No espaço? Talvez Ellers fosse o amigo mais íntimo que já tivera, e o que era Johnny Ellers? Um vagabundo dos espaço-portos, alguém que vivia pulando de um planeta para outro. Kerwin experimentou uma profunda ânsia por raízes, um lar, por pessoas e um mundo que jamais conhecera. Nunca tivera permissão para conhecer. As palavras que dissera a Ellers, em tom meio auto-desdenhoso, ressurgiram em sua mente: Eu esperava que fosse o amuleto que provaria que eu era o filho e herdeiro há muito desaparecido...

Isso mesmo; sabia agora que fora esse sonho que o atraíra de volta a Darkover, a fantasia de que encontraria um lugar a que pertencia. Se não fosse por isso, por que teria deixado o último mundo? Gostava de lá; tinha muitas brigas, muitas mulheres, um companheirismo fácil, aventuras turbulentas. Mas durante todo o tempo persistira a compulsão inexorável de voltar a Darkover; levara-o a rejeitar o que sabia agora que seria um caminho seguro para o progresso na carreira; e, além disso, liquidara com toda e qualquer perspectiva de promoção a um cargo importante.

E agora que voltara, agora que vira as quatro luas e a repentina escuridão de seus sonhos, todo o resto seria um anticlímax? Descobriria que sua mãe fora apenas outra mulher de espaço-porto, como a que roçara nele naquela noite, ansiosa em levar para casa uma boa parte dos polpudos salários de espaçonautas? Se assim era, não podia admirar o gosto de seu pai. Seu pai? Ouvira muita coisa sobre o pai, naqueles sete anos em que vivera com os avós, e o retrato que lhe fora descrito não combinava com tal atitude. O pai, ele presumia, fora um homem exigente. Mas talvez fosse apenas a imagem que ele projetava para a avó... Mas pelo menos ele se importara o suficiente para obter a cidadania do Império para o filho.

Muito bem, ele se esforçaria para realizar o que viera fazer aqui. Tentaria descobrir quem fora sua mãe, por que o pai o abandonara no orfanato do espaço-porto, e como e onde ele morrera. E depois? Isso mesmo, o que faria depois? A questão o atormentava... o que faria em seguida?

Voarei o falcão quando suas penas crescerem, disse Kerwin a si mesmo, só depois percebendo que o provérbio darkovano aflorara em sua mente sem pensar.

As brumas noturnas haviam se condensado agora, e caía uma chuva fria, fina e incessante. O dia fora tão quente que Kerwin quase esquecera como o calor do dia se dissipava depressa, naquela estação, tangido pela chuva de granizo e a neve. Já havia pequenas agulhas de gelo na chuva. Ele estremeceu, passou a andar mais depressa.

De alguma forma, entrara numa rua errada; esperava sair no vasto espaço aberto diante do espaço-porto, mas em vez disso entrou numa praça estranha. Num dos lados havia uma fileira de tavernas e restaurantes. Havia terráqueos ali, o que indicava não ser uma área proibida ao pessoal do espaço-porto - Kerwin sabia que alguns lugares eram vetados, ouvira instruções rigorosas a respeito - mas havia cavalos amarrados do lado de fora, o que significa que também tinha uma clientela darkovana. Ele se aproximou, escolheu ao acaso um restaurante de onde saía o aroma forte de comida darkovana, e entrou. Ficou com água na boca. Comida; era disso que precisava, uma comida sólida e saborosa, não os alimentos sintéticos insossos que serviam na nave estelar. Na iluminação fraca, os rostos eram indistintos, e ele não procurou por nenhum dos homens do Southern Crown.

Sentou à mesa no canto, fez o pedido, e comeu com prazer ao ser servido. Não muito longe, dois darkovanos, mais bem vestidos que a maioria, jantavam tranqüilamente. Usavam mantos em cores vivas, botas de cano alto, cintos com pedras coloridas e adagas. Um deles tinha a cabeça flamejante, o que Kerwin estranhou, já que os darkovanos de Thendara eram morenos. Quando era criança, seus cabelos vermelhos despertavam curiosidade e atraíam as atenções, sempre que andava pela cidade. O pai e os avós tinham cabelos e olhos escuros, mas sua cabeça parecia um farol de fogo. No orfanato, o chamavam de Tallo, cobre, meio em desdém, mas também, como podia agora reconhecer, com um temor supersticioso. E as mulheres darkovanas que trabalhavam no orfanato se esforçavam tanto em suprimir o apelido que ele se espantara até naquele tempo. Adquirira a noção, apesar das darkovanas serem proibidas de falar sobre as superstições locais para as crianças, que cabelos vermelhos davam azar, ou eram um tabu.

Se davam azar, o raivo sentado ali parecia não saber disso, ou então não se importava.

Na Terra, talvez porque os cabelos vermelhos não fossem tão incomuns assim, a lembrança dessa superstição definhara. Mas talvez isso explicasse a atitude de Ragan. Se os cabelos vermelhos eram tão raros em Darkover, não se podia deixar de presumir, ao se ver alguém assim a alguma distância, que era o homem que conhecia, e demonstrar alguma surpresa ao constatar que se tratava de um estranho.

Mas, pensando bem, os cabelos de Ragan também eram avermelhados; ele podia ter sido raivo em criança. Kerwin pensou de novo que o homenzinho lhe parecia familiar, e tentou mais uma vez recordar se havia outros ruivos no orfanato. Com toda certeza, conhecera alguns quando era bem pequeno...

Talvez antes de minha ida para o orfanato. Talvez minha mãe tivesse cabelos vermelhos, ou alguns parentes assim... Por mais que tentasse, porém, não foi capaz de preencher o vazio de seus primeiros anos. Só havia a lembrança de sonhos perturbadores...

Um alto-falante na parede crepitou de repente, bem alto, e uma voz metálica disse:

- Atenção, por favor. Peço a atenção de todo o pessoal do espaço-porto, por favor.

Kerwin franziu as sobrancelhas, olhando para o alto-falante com um profundo ressentimento. Viera para cá a fim de escapar a coisas assim. Era evidente que alguns dos outros clientes do restaurante sentiram a mesma coisa, pois soaram alguns resmungos desdenhosos. A voz metálica continuou, falando o Padrão Terráqueo:

- Atenção, por favor. Todo o pessoal do QG com aviões no espaço-porto deve se apresentar imediatamente à Divisão B. Todos os vôos de superfície estão cancelados, repito, estão cancelados. O Southern Crown vai partir no horário previsto, repito, no horário previsto. Todos os aparelhos de vôo na superfície que estejam na pista devem ser removidos sem demora. Repito, todo o pessoal do QG com aviões particulares na pista...

O darkovano ruivo que Kerwin notara antes disse nesse momento, em voz alta e maliciosa, usando o dialeto de Thendara, que todos compreendiam:

- Esses terráqueos devem ser muito pobres, para incomodarem a todos nós com essa caixa de berros, em vez de pagarem algumas moedas para um lacaio levar suas mensagens.

A palavra que ele usou para designar "lacaio" era das mais ofensivas. Um oficial uniformizado do espaço-porto, sentado quase na frente do restaurante, lançou um olhar irado para o darkovano, mas pensou melhor, ajeitou na cabeça o quepe de fios dourados, e saiu para a chuva. Uma lufada de vento frio entrou no restaurante, pois o oficial iniciara um pequeno êxodo, e o darkovano mais próximo de Kerwin comentou para seu companheiro, rindo:

- Esa so vhalle Terranan acqualle...

O outro respondeu com um comentário ainda mais insultuoso, os olhos fixados em Kerwin, que percebeu que era o único terráqueo que continuava ali. Ele sentiu que tremia da cabeça aos pés. Sempre fora infantilmente sensível a insultos. Na Terra, fora um forasteiro, uma aberração, um darkovano; aqui em Darkover, sentia-se de repente um terráqueo; e os acontecimentos do dia não haviam abrandado sua disposição. Mas limitou-se a lançar um olhar irritado, e declarou... para a mesa vazia à sua esquerda:

- A chuva só pode afogar o coelho da lama se ele não tiver a sabedoria de se manter de boca fechada.

Um dos darkovanos - não o ruivo - empurrou seu banco para trás, de forma brusca, e no processo derrubou sua taça. O barulho do metal caindo no chão e o grito do garçom atraíram a atenção de todos para eles. Kerwin também se levantou, consternado. Ia provocar duas cenas, em dois lugares diferentes, e seu retorno a Darkover acabaria em alguma prisão local, por embriaguez e perturbação da ordem pública?

Mas o ruivo segurou seu companheiro pelo cotovelo, e disse alguma coisa, em tom de urgência, que Kerwin não ouviu direito. Os olhos do primeiro homem foram se fixar na cabeça de Kerwin, agora claramente iluminada pelo lampião preso na parede, e ele disse, engolindo em seco:

- Não, não quero problemas com o Comyn...

Kerwin não tinha a menor idéia do que ele estava falando. O belicoso em potencial fitou seu companheiro, não encontrou qualquer encoraja-mento nele, levantou o braço diante do rosto, murmurou alguma coisa que parecia com "Su serva, vai dom...", e depois atravessou o restaurante, evitando as mesas como um sonâmbulo, e saiu para a chuva.

Kerwin percebeu que todos no pequeno restaurante o observavam; mas conseguiu sustentar o olhar do garçom pelo tempo suficiente para fazê-lo se afastar. Tornou a sentar, pegou a caneca, que continha o equivalente local a café - uma beberagem rica em cafeína, o gosto parecido com chocolate amargo - e tomou um gole. Estava frio.

O outro darkovano bem vestido, o ruivo, levantou-se, e veio sentar no banco vazio diante de Kerwin.

- Quem é você?

Ele falou no Padrão Terráqueo, para surpresa de Jeff, mas formando cada palavra com extremo cuidado.

Kerwin largou a caneca na mesa, pesadamente.

- Ninguém que você conheça, amigo. Pode me deixar em paz, por favor?

- Falo sério - insistiu o ruivo. Qual é o seu nome?

E, subitamente, Kerwin sentiu-se exasperado. Que direito tinha aquele homem de indagar quem ele era?

- Sou a Besta do Mau Olhado, um deus muito antigo. E sinto nos ossos cada milênio que vivi. Deixe-me em paz, ou lançarei um encanta-mento contra você, como fiz com seu amigo.

O ruivo sorriu... um sorriso zombeteiro e hostil.

- Ele não é meu amigo, e é óbvio agora que você não é o que parece. Mostrou-se mais surpreso do que qualquer outro quando ele saiu apressado, pensando que era um dos nossos.

Ele fez uma pausa, e corrigiu:

- Um dos meus parentes. Kerwin disse, um tanto brusco:

- Mas o que é isso? Uma reunião de família? Não, obrigado. Venho de uma longa linhagem de homens-lagartos arcturianos.

Ele tornou a pegar a caneca com a bebida parecida com café, e inclinou a cabeça para beber. Sentiu o olhar perplexo do ruivo fixado no topo de sua cabeça. Depois, o homem levantou-se e afastou-se, murmurando "Terranan", num tom que fazia com que a palavra se transformasse num tremendo insulto.

Agora que era tarde demais, Kerwin desejou ter respondido com mais polidez. Era a segunda vez naquela noite que alguém pensava reconhecê-lo. Se parecia tanto assim com outro homem em Thendara, não fora isso que viera descobrir? Teve um impulso tardio de sair atrás do homem, e pedir uma explicação. Mas foi impedido pela certeza de que isso acarretaria uma nova repulsa. Frustrado, ele deixou algumas moedas na mesa, pegou o embrulho da loja, e deixou o restaurante.

A esta altura, a chuva se tornara um granizo gelado; as estrelas haviam desaparecido por completo. Estava muito escuro, o frio era intenso, o vento uivava, e ele foi andando com uma certa dificuldade, tremendo na túnica fina do uniforme. Por que não trouxera um agasalho para usar depois que escurecesse? Afinal, sabia como era o tempo em Darkover à noite. Ei... tinha um agasalho no embrulho! Podia ser um pouco esquisito, mas serviria para protegê-lo, até sair daquele vento. Com os dedos rígidos, ele abriu o embrulho, tirou o manto bordado, forrado de pele. Ajeitou-o nos ombros, sentindo o calor da pele a envolvê-lo, como uma carícia.

Entrou numa rua transversal, e lá estava a praça diante do espaço-porto, as luzes de neon do Sky Harbor Hotel diante dos portões. Deveria ir direto para o QG, procurar o alojamento que lhe fora designado; ainda nem se apresentara, não sabia onde poderia dormir. Encaminhou-se para os portões, mas num súbito impulso seguiu na direção do hotel. Tomaria um último drinque ali, devagar, com tempo para pensar, antes de retornar ao mundo de paredes brancas e luzes amarelas. Talvez até alugasse um quarto ali para passar a noite.

O recepcionista, ocupado em examinar os registros, mal levantou os olhos para fitá-lo.

- É ali - disse ele, brusco, tornando a se concentrar no livro de hóspedes.

Kerwin, surpreso - o Serviço Civil reservara acomodações para ele ali? - fez menção de protestar, depois deu de ombros, e seguiu para a porta indicada.

E estacou abruptamente, ao descobrir que entrara numa sala preparada para uma festa particular. Havia uma mesa comprida no centro, com um bufê posto, flores em jarras altas de cristal. Na outra extremidade da sala, um ruivo alto, numa capa bordada, parou, hesitante, a fitá-lo... e só depois de um momento Kerwin compreendeu que a parede preta era um painel de vidro dando para a noite, a escuridão por trás fazendo com que virasse um espelho; o darkovano de manto era ele próprio. Parecia como nunca se vira antes, um homem alto, os cabelos vermelhos grudados pela chuva no crânio, solitário e introspectivo, o rosto de um aventureiro que por algum motivo fora privado de aventuras. A visão do próprio rosto, por cima do manto darkovano, provocou um estranho ímpeto de... de recordação? Quando já se vira vestido assim antes? Ou... vira outro homem?

Kerwin franziu o rosto, impaciente. Claro que parecia familiar a si mesmo. O que havia com ele? E essa era também a explicação para o resto; o recepcionista o tomara por um darkovano, talvez alguém que conhecia de vista, e o orientara para a sala reservada. Na verdade, isso também explicaria Ragan e o ruivo no restaurante; tinha um sósia ou quase sósia em Darkover, algum ruivo mais ou menos do seu tamanho, o que enganava as pessoas, a um olhar rápido.

- Chegou cedo, com'n - disse uma voz.

Kerwin virou-se para vê-la. A princípio, pensou que era uma jovem terráquea, por causa dos cabelos vermelho-dourados que se agrupavam em cachos no alto da cabeça pequena. Era esguia, e usava um vestido simples, que aderia às curvas graciosas. Kerwin apressou-se em desviar os olhos - fitar uma darkovana em público é uma insolência punível com uma surra, ou até pior, se parentes da mulher estão presentes, e se sentem ofendidos - mas ela sustentou seu olhar com franqueza, com um sorriso de boas-vindas. Por isso, Kerwin acreditou por um momento que era mesmo uma terráquea, apesar da fala darkovana.

- Como chegou aqui? - indagou ela. Pensei que ficara decidido que viríamos com nossas respectivas Torres.

Kerwin fitava-a, aturdido, e sentiu que o rosto esquentava, mas não por causa do fogo.

- Minhas desculpas, domna - murmurou ele, na língua de sua infância. Não sabia que esta era uma sala particular. Fui orientado até aqui por engano. Perdoe a intromissão; vou me retirar imediatamente.

O sorriso da jovem se desvaneceu.

- Mas como assim? Temos muitas coisas a discutir...

Ela parou de repente, e demorou um momento para acrescentar, indecisa:

- Será que cometi um equívoco?

- Alguém se enganou, não resta a menor dúvida.

A voz de Kerwin definhou nas últimas palavras, ao compreender que a mulher não falara no dialeto de Thendara, mas sim em alguma língua que ele nunca ouvira antes. E, no entanto, entendera tudo, tão bem que por um instante nem percebera que ela falara numa língua desconhecida.

- Em nome do Filho de Aldones e sua divina Mãe, quem é você? Kerwin já ia dizer seu nome, mas depois refletiu que não podia significar coisa alguma para ela, e sentiu que o demônio-vermelho da raiva, mantido a distância por um momento porque falava com uma linda mulher, tornava a dominá-lo. Era a segunda vez naquela noite... não, a terceira. Aquele seu sósia devia ser um sujeito e tanto, se era reconhecido tanto numa espelunca de espaço-porto, quanto numa particular reservada à aristocracia darkovana... pois a jovem não podia ser qualquer outra coisa. Com toda a ironia de que era capaz, ele respondeu:

- Não me reconhece? Sou seu irmão mais velho, Bill, a ovelha negra da família, que fugiu para o espaço aos seis anos de idade, e desde então foi mantido cativo por piratas espaciais dos Mundos Exteriores. Descubra o resto no próximo fascículo.

Ela sacudiu a cabeça, sem compreender, e Kerwin compreendeu que a linguagem, a sátira e as alusões significariam menos do que nada para a jovem. Naquela linguagem que ele podia entender, se não pensasse muito a respeito, a jovem disse:

- Mas você não é um dos nossos, não é? Talvez da Cidade Oculta? Quem é você?

Kerwin amarrou a cara, impaciente, irritado demais para continuar naquele jogo. Quase desejou que o homem por quem ela o tomara entrasse agora na sala, a fim de esmurrá-lo na cara.

- Está me confundindo com outro, moça. Não sei coisa alguma sobre a sua Cidade Oculta... é muito bem escondida, ou algo assim. Em que planeta fica? Mas você não é darkovana, não é mesmo?

Pois as maneiras da jovem, com toda certeza, não eram as de uma darkovana. Se ela se mostrara surpresa antes, agora ficou atordoada.

- E, no entanto, compreendeu a língua de Valeron? Quero que me escute. Ela passou a falar no dialeto de Thendara. - Acho que devemos esclarecer tudo. Há alguma coisa muito estranha aqui. Onde podemos conversar?

- Já estamos conversando, aqui mesmo - respondeu Kerwin. Posso ser novo em Darkover, mas não tão novo assim. Não sou bastante louco para dar a oportunidade a seus parentes de apresentarem uma queixa de intenção de assassinato contra mim, menos de vinte e quatro horas depois de minha chegada. Se é que você de fato é darkovana.

O rosto bonito se contraiu num sorriso perplexo.

- Não posso acreditar - murmurou ela. Você não sabe quem sou, e pior ainda, não sabe o que eu sou. Tinha certeza que devia ser de uma das Torres mais remotas, alguém que nunca vira antes pessoalmente, apenas conhecia das redes de transmissão. Talvez alguém de Hali, Neskaya, ou Dalereuth...

Kerwin balançou a cabeça.

- Não sou alguém que conheça, pode acreditar. Gostaria que me dissesse por quem me tomou, pois seria ótimo conhecê-lo, quem quer que seja, se tenho um sósia nesta cidade. Talvez me esclarecesse algumas coisas.

- Não posso fazer isso - disse a jovem, hesitante, e Kerwin sentiu que ela percebera agora seu uniforme terráqueo, por baixo do manto darkovano.

- Não, por favor, não vá. Se Kennard estivesse aqui...

- O que é, Tani?

A voz era baixa e áspera, e Kerwin divisou, pela parede espelhada, um homem se aproximar. Virou-se para o recém-chegado, se perguntando - de tão louco que o mundo se tornara - se não veria uma imagem de si mesmo no espelho. Mas não foi o que aconteceu.

O recém-chegado era esguio, alto, de pele clara, com cabelos vermelho-dourado. Kerwin detestou-o à primeira vista, antes mesmo de reconhecer o ruivo com quem tivera uma breve e insatisfatória confrontação no restaurante. O darkovano absorveu a cena a um olhar, e seu rosto assumiu uma expressão de escândalo pela quebra das convenções.

- Um estranho aqui, e você está a sós com ele, Taniquel?

- Auster, eu só queria...

- Um Terranan!

- Pensei a princípio que fosse um dos nossos, talvez de Dalereuth.

O darkovano lançou um olhar desdenhoso para Kerwin.

- Ele é um homem-lagarto arcturiano... ou pelo menos foi o que me disse.

O homem virou-se para a moça, e passou a falar depressa, na mesma língua que ela falara antes, pensou Kerwin, mas num fluxo tão acelerado que não dava para entender uma palavra sequer. Também não precisava; o tom e os gestos revelavam a Kerwin tudo o que tinha de saber. O ruivo estava furioso. Uma voz mais profunda e mais suave interrompeu-o:

- Ora, Auster, não pode ser tão terrível assim. Vamos, Taniquel, conte-me o que aconteceu... e não caçoe, criança.

Um segundo homem entrara na sala, e também era ruivo. De onde vinham todos, naquela noite? Este era corpulento, alto e forte; mas seus cabelos vermelhos já tinham muitos fios brancos, e uma barba grisalha aparada contornava seu rosto. Os olhos eram quase ocultos por sobrancelhas hirsutas, tão espessas que pareciam disformes. Ele andava com uma perna rígida, apoiado numa bengala grossa, com um castão de cobre. Fitou Kerwin nos olhos, e disse:

- S'dia shaya; sou Kennard, terceiro em Arilinn. Quem é sua Guardiã?

- Em geral me deixam sair sem uma - respondeu Kerwin, seca-mente. Pelo menos até agora.

Auster apressou-se em dizer, zombeteiro:

- Está enganado, Kennard. Nosso amigo é um... um homem-crocodilo arcturiano, ou assim alega. Mas, como todos os terráqueos, ele mente.

- Terráqueo! - exclamou Kennard. Mas isso é impossível!

Ele parecia tão chocado quanto a jovem. Kerwin não agüentava mais, e declarou, ríspido:

- Longe de ser impossível, é a verdade absoluta; sou um cidadão da Terra. Mas passei meus primeiros anos em Darkover, e aprendi a pensar neste planeta como meu lar, além de falar a língua. Agora, se me intrometi ou se os ofendi, aceitem minhas desculpas, por favor; e desejo boa noite a todos.

Ele se virou, e se encaminhou para a porta. Auster murmurou alguma coisa que parecia com "coelho de chifre rastejando".

- Espere um momento! - gritou Kennard.

Kerwin, já na metade do caminho para a porta, parou ao ouvir a voz cortês e persuasiva do homem.

- Se dispõe de alguns minutos - acrescentou Kennard -, eu gostaria muito que pudéssemos conversar, senhor. Talvez seja importante.

Kerwin olhou para a moça, Taniquel, e quase cedeu. Mas um olhar para Auster fez com que se decidisse. Não queria problemas com aquele homem. Não em sua primeira noite em Darkover.

- Obrigado, mas não é possível - disse ele, amável. Talvez em outra ocasião. Por favor, aceite minhas desculpas por me intrometer em sua festa.

Auster murmurou algumas palavras irritadas, enquanto Kennard fazia uma mesura graciosa, e dizia uma fórmula polida de despedida. Taniquel ficou olhando para ele, muito séria, visivelmente atordoada. Kerwin tornou a hesitar, num súbito impulso, compreendendo que deveria parar, mudar de idéia, pedir a explicação que desconfiava que Kennard poderia lhe oferecer. Mas já fora longe demais para recuar com um mínimo de dignidade.

- Mais uma vez, boa noite - murmurou ele.

Kerwin saiu, e sentiu a porta se fechar por trás, separando-o dos ruivos. Foi dominado por uma estranha sensação de derrota e apreensão ao atravessar o saguão do hotel. Alguns darkovanos, a maioria com mantos cerimoniais do mesmo tipo que ele usava - não havia concessões aqui aos trajes importados ordinários -, cruzavam o saguão na direção oposta, e entravam na sala de onde ele acabara de sair. Kerwin notou que também havia alguns ruivos entre eles; ouviu murmúrios da multidão no saguão, e mais uma vez captou a palavra murmurada Comyn.

Ragan dissera essa palavra, sobre a pedra que ele tinha pendurada no pescoço: bastante boa para o Comyn. Kerwin vasculhou a memória; a palavra significava apenas iguais... aqueles que se situavam no mesmo nível que o seu. Só que não fora nesse sentido que haviam usado a palavra.

Lá fora, a chuva se dissolvera em neblina. Um homem alto, numa capa verde e preta, passou por Kerwin, e disse:

- Entre depressa, ou vai se atrasar.

Ele entrou no hotel. Parecia um estranho lugar para um grupo de aristocratas darkovanos promover uma reunião de família, mas o que ele sabia a respeito? Uma idéia delirante aflorou em sua mente, a de que talvez devesse invadir a reunião, e indagar se alguém perdera um jovem parente há cerca de trinta anos. Mas foi apenas uma noção absurda, descartada no instante em que surgiu.

Na rua escura, agora coberta por uma camada de gelo, não dava para ver as luas e estrelas. As luzes dos portões do QG ardiam com um clarão amarelado. Kerwin sabia que ali encontraria calor e coisas familiares, abrigo, um lugar certo, até amigos. Ellers provavelmente já acordara há algum tempo, descobrira que ele fora embora sozinho, e retornara ao QG.

Mas o que encontraria ali se voltasse? Alojamentos exatamente iguais aos que tinha no último planeta, frios e despojados, com seu cheiro anti-séptico institucional; uma coleção de filmes censurados, a fim de não provocarem emoções incontroláveis; refeições iguais às que faria em qualquer outro planeta do Império Terráqueo, para que os funcionários sujeitos a uma transferência a qualquer momento não sofressem problemas digestivos, nem tivessem de passar por um período de ajustamento; e a companhia de outros homens como ele, que viviam em mundos fantasticamente estranhos, mas aos quais viravam as costas, permanecendo no mesmo mundo insípido e familiar dos terráqueos.

Viviam em mundos estranhos, sob sóis estranhos, do mesmo jeito como viviam na Terra... isto é, a menos que quisessem sair, e causar problemas; pois sempre procuravam o pior, não o melhor, da beleza alienígena. Bebidas fortes, mulheres acessíveis, embora não muito atraentes, e um lugar para gastar o que sobrava do salário. Os mundos reais ficavam a um milhão de quilômetros além do alcance deles, e assim sempre estariam. Tão distantes quanto a jovem ruiva e sorridente que o saudara como com'ii, amigo.

Ele tornou a se virar, afastando-se dos portões do QG. Além do círculo de bares do espaço-porto, arapucas para turistas, bordéis e exposições, devia haver uma Darkover genuína, em algum lugar, o mundo que ele conhecera quando era menino na cidade, o mundo que

atormentara seus sonhos, e o arrancara de suas novas raízes na Terra. Mas por que tinha aqueles sonhos? De onde vinham? Com toda certeza, não do mundo limpo e estéril do Orfanato dos Espaçonautas!

Devagar, como se andasse pela lama, ele se encaminhou para a parte velha da cidade, os dedos prendendo os ganchos do manto em torno da garganta. As botas terráqueas ressoavam nas pedras do calçamento. Independente de por quem as pessoas o tomassem, não haveria mal nenhum em dar uma olhada na cidade. Afinal, era o seu mundo. Nascera aqui. Não era um ingênuo espaçonauta terráqueo, inseguro fora dos limites do espaço-porto. Conhecia a cidade, ou pelo menos a conhecera quando era menino, e conhecia a língua. Muito bem, os terráqueos não eram bem-vindos na Cidade Velha. Pois não iria como um terráqueo! Não fora um terráqueo quem dissera Dêem-me um menino até os sete anos de idade, e qualquer um que o quiser pode tê-lo depois disso! Aquele velho e sombrio santo tivera a idéia certa; por esse padrão, Kerwin era darkovano, sempre seria, e agora voltara para casa, não permitiria que o mantivessem a distância!

Não havia muitas pessoas nas ruas agora. Apenas umas poucas, em mantos e peles, andando de cabeça inclinada, contra o vento frio e forte. Uma moça trêmula, encolhida dentro de uma túnica de pele insuficiente para protegê-la do frio, lançou um olhar esperançoso para Kerwin, e murmurou algumas palavras, na língua antiga da cidade, que ele falara antes de ser capaz de balbuciar qualquer coisa no Padrão Terráqueo (como ele sabia disso?). Kerwin hesitou, pois ela era tímida, a voz suave, muito diferente da garota de olhos duros no bar. Mas depois a moça ergueu os olhos para os seus cabelos vermelhos, murmurou algumas palavras ininteligíveis, e se afastou apressada.

Uma' criatura raquítica se aproximou, lançando um olhar rápido para Kerwin, com olhos verdes que brilhavam no escuro, como os de um gato, mas com uma inconfundível inteligência humana por trás. Kerwin tratou de se afastar para o lado, pois os kyrri eram criaturas esquisitas, que se alimentavam de energia elétrica, e podiam aplicar nos estranhos incautos choques dolorosos, embora não fatais, se levassem um esbarrão, ou se sentissem acuados.

Kerwin atravessou o mercado da Cidade Velha, saboreando os sons e cheiros desconhecidos. Uma velha vendia peixe frito numa pequena barraca; passava uma massa espessa sobre os peixes, e depois os jogava numa panela com um óleo verde transparente. Levantou os olhos, e com palavras volúveis num dialeto que ele não entendeu, estendeu-lhe um peixe. Kerwin começou a balançar a cabeça, mas o aroma era apetitoso. Por isso, ele deu de ombros, tirou algumas moedas da bolsa. Mas a velha o fitava atordoada, e deixou as moedas caírem ao recuar abruptamente. Em suas palavras balbuciadas, Kerwin captou mais uma vez o nome Comyn, e franziu o rosto. Mas que coisa! Parecia que, naquela noite, ele tinha uma propensão para, inocentemente, apavorar as pessoas. E com a cidade repleta de homens e mulheres ruivos, em alguma espécie de reunião de família, Kerwin concluiu que os cabelos vermelhos eram ainda mais azarados do que haviam lhe dito no orfanato!

Talvez fosse por causa do fantástico manto de nobre que ele usava. Deveria tirá-lo, mas fazia frio demais para o uniforme terráqueo; além do mais, ele presumia, não estaria seguro naquela parte da cidade em trajes terráqueos.

Admitiu para si mesmo agora; pensava nessa impostura ao comprar o manto. Mas havia pessoas demais olhando para ele. Virou-se, decidindo que era melhor voltar ao QG pelo caminho mais rápido.

Andava depressa agora, pelas ruas escuras e desertas. Ouviu passos por trás... lentos, determinados. Disse a si mesmo para não ficar desconfiado. Afinal, não era o único homem com algum motivo para sair na chuva naquela noite. Os passos acompanhavam os ritmos do seu, depois se aceleraram para alcançá-lo. Kerwin deu um passo para o lado, a fim de deixar a pessoa passar, na rua estreita.

Foi um erro. Kerwin sentiu uma dor lancinante; o topo da cabeça pareceu explodir, e em algum lugar ele ouviu uma voz gritando estranhas palavras:

Diga ao filho do bárbaro que ele não verá mais as planícies de Arilinn! A Torre Proibida foi destruída, e o Sino Dourado está vingado!

Não fazia sentido, pensou Kerwin, na fração de segundo antes que sua cabeça batesse no chão, e tudo se apagasse por completo.

 

AMANHECIA, chovia forte, e alguém, em algum lugar, falava direto em seu ouvido.

- Fique quieto, vai dom, ninguém vai machucá-lo. Vândalos! O que aconteceu com esta cidade, quando o Comyn pode ser atacado...

E outra voz, mais áspera:

- Não seja um asno! Não vê o uniforme? O homem é um Terranan, e a cabeça de alguém vai rolar por isso! Vá chamar o vigia, depressa!

Alguém tentou erguer sua cabeça, e Kerwin concluiu que era a sua cabeça que ia rolar, porque explodiu no mesmo instante, e ele tornou a mergulhar na inconsciência.

Depois de ruídos confusos e uma dor intensa, uma luz branca muito forte brilhou nos recessos mais profundos de seu cérebro. Ele sentiu que alguém batia em sua cabeça, que doía demais. Soltou um grunhido de dor, e a luz foi afastada de seus olhos.

Estava deitado numa cama branca anti-séptica, num quarto branco anti-séptico, e um homem numa bata branca, com o emblema de caduceu do Serviço Médico e Psicológico, se inclinava em sua direção.

- Tudo bem agora?

Kerwin começou a acenar com a cabeça, mas houve uma nova explosão no cérebro, e ele mudou de idéia. O médico entregou-lhe um pequeno copo de papel, com um liquido vermelho; ardeu em sua boca, ao descer pela garganta, mas a cabeça parou de doer.

- O que aconteceu? - perguntou ele.

Johnny Ellers esticou a cabeça pela porta, os olhos injetados.

- Ainda pergunta isso? Eu apaguei... mas você é que foi assaltado e agredido. O garoto mais inexperiente, em sua primeira missão em outro planeta, saberia das coisas melhor do que você. Por que se meteu naquela área reservada aos nativos? Não estudou o mapa das zonas proibidas?

Havia um tom de advertência em sua voz. Kerwin respondeu, falando bem devagar:

- Claro que estudei. Devo ter me perdido.

Quanto do que se lembrava era verdade? Teria sonhado todo o resto... suas insólitas andanças com o manto darkovano, todas as pessoas que o haviam confundido com outro homem... Fora apenas uma ilusão, derivada de seu desejo de pertencer àquele lugar?

- Que dia é hoje?

- A manhã depois da noite passada - informou Ellers.

- Onde aconteceu? Em que lugar fui atacado?

- Só Deus sabe - respondeu o médico. É evidente que alguém o encontrou, e se apavorou; arrastou-o até a beira da praça do aeroporto, e largou-o ali, ao amanhecer.

O médico saiu de seu campo visual, e Kerwin descobriu que a cabeça doía ao tentar acompanhá-lo. Por isso, tratou de dormir de novo. Ragan, a moça na taverna, os aristocratas ruivos e o estranho encontro no Sky Harbor Hotel, tudo flutuava em sua mente, durante o sono. Se começara pensando que o retorno a Darkover era um anticlímax a seus sonhos, pelo menos já tivera bastante aventura agora para durar cinqüenta anos.

Não, sussurrou o demônio satírico em seu ouvido, as aventuras ainda nem começaram.

A cabeça ainda estava enfaixada quando ele se apresentou ao Legado na manhã seguinte. O Legado fitou-o sem demonstrar o menor entusiasmo.

- Preciso de médicos e técnicos, cartógrafos e lingüistas, e o que eles me mandam? Homens de comunicações! Sei que não é sua culpa, e que só podem mandar para cá os que estão disponíveis. Fui informado de que foi você quem solicitou sua transferência para Darkover, e talvez assim eu possa mantê-lo por mais tempo. Em geral, só recebo aqui gente inexperiente, que pede transferência assim que obtém créditos suficientes. Soube que foi atacado ao vaguear sozinho pelo distrito nativo. Não lhe disseram que isso é muito perigoso aqui? Kerwin limitou-se a murmurar:

- Eu me perdi, senhor.

- Mas por que saiu da área do espaço-porto? Não há nada de interessante por lá. - O Legado franziu o rosto. - Por que queria explorar a cidade por conta própria?

- Nasci aqui, senhor - disse Kerwin, determinado.

Se iam discriminá-lo por causa disso, ele queria saber logo de uma vez. Mas o Legado apenas assumiu uma expressão pensativa.

- Talvez seja uma sorte para você. Darkover não é um posto dos mais populares, mas como é o seu lar, talvez não odeie tanto quanto os outros. Talvez. Não sou um voluntário, já deve saber; envolvi-me com o grupo político errado, e estou cumprindo... pode-se dizer assim... uma sentença aqui. Se gosta mesmo do planeta, você pode ter uma carreira e tanto pela frente; porque, em circunstâncias normais, como já expliquei, ninguém quer permanecer aqui por mais tempo do que o mínimo necessário. E então, acha que vai gostar de Darkover?

- Não sei. Mas eu queria voltar.

Sentindo de alguma forma que podia confiar naquele homem, Kerwin acrescentou:

- Era quase uma compulsão. O que eu recordava do tempo em que era pequeno.

O Legado balançou a cabeça. Não era jovem, e tinha os olhos tristes.

- Posso muito bem entendê-lo. O anseio pelo cheiro de seu próprio ar, a cor de seu sol. Eu compreendo, rapaz. Deixei meu mundo há quarenta anos, só estive duas vezes em Alfa durante todo esse tempo, mas espero morrer ali. Como é mesmo o velho ditado... Embora as estrelas estejam semeadas com a mesma abundância das ervas daninhas, nenhum mundo de estrelas pode se comparar com o seu... - Ele fez uma pausa.

- Nasceu aqui, hem? Quem era sua mãe?

Kerwin pensou nas mulheres no bar do espaço-porto, mas logo tratou de se conter. Pelo menos seu pai se importara o suficiente com o filho para providenciar sua cidadania, e deixá-lo no Orfanato dos Espaçonautas.

- Não sei, senhor. É uma das coisas que eu esperava encontrar registradas aqui.

- Kerwin... Tenho a impressão de que já ouvi esse nome. Só estou aqui há quatro ou cinco anos, pela contagem local. Mas se seu pai casou aqui, deve constar dos registros lá embaixo. Ou nos registros do orfanato. Eles são muito cuidadosos com as crianças que aceitam ali; os enjeitados comuns são entregues aos Hierarcas da Cidade. E depois você foi enviado para a Terra, o que é muito raro. Normalmente, seria mantido aqui, estudaria, ganharia um emprego, técnico de mapeamento, intérprete, algum posto em que seria uma vantagem conhecer a língua como um nativo.

- Pensei que provavelmente era darkovano...

- Duvido muito, por causa dos seus cabelos. Há muitos ruivos entre os terráqueos... viciados em adrenalina, gostam de uma vida de aventureiro. Com algumas exceções, não há muitos darkovanos ruivos...

Kerwin ia mencionar que encontrara pelo menos quatro duas noites atrás, mas não conseguiu pronunciar as palavras. Literalmente, não conseguiu; era como se um punho comprimisse sua garganta. Em vez disso, ficou escutando o Legado discorrer sobre Darkover.

- É um lugar estranho. Ocupamos algumas áreas para o comércio, as Cidades Comerciais, aqui e em Caer Donn, nas Hellers, o espaço-porto aqui, o grande aeroporto em Porto Chicago, como fazemos em outros planetas. Conhece a rotina. Costumamos deixar os governos em paz. Depois que os povos dos vários planetas vêem o que temos a oferecer, em termos de tecnologia avançada e comércio, de participação numa civilização galática, começam a se cansar de viver sob condições primitivas ou bárbaras, sob hierarquias, monarquias e autarquias, e solicitam a admissão no Império. E nós entramos em cena para impor plebiscitos, e protegê-los de tiranias arraigadas. É quase uma fórmula matemática; pode-se prever tudo. Um mundo de classe D como este pode resistir por cem anos, talvez cento e dez. Mas Darkover não segue o padrão, e não conseguimos entender por quê.

Ele bateu com o punho cerrado na mesa enorme.

- Eles simplesmente dizem que não temos nada que desejem. É verdade que comercializam conosco, às vezes; dão-nos prata, platina, pedras preciosas, pequenos cristais de matriz... sabe o que são?... em troca de câmeras e suprimentos médicos, trajes sintéticos para o frio, picaretas para gelo, coisas assim. Ferramentas de metal, acima de tudo, pois há uma escassez de metal no planeta. Mas eles não demonstram o menor interesse em instituir um programa de intercâmbio industrial ou tecnológico, nunca nos pediram assistência tecnológica, não possuem coisa alguma que pareça com um sistema comercial...

Kerwin recordou que ouvira muitas dessas informações nas instruções que recebera na nave.

- Está se referindo ao governo, ou ao povo?

- Às duas coisas. - O Legado soltou um grunhido. - É um pouco difícil localizar o governo. A princípio, chegamos a pensar que não havia nenhum... e é bem possível que não haja mesmo!

Os darkovanos, segundo o Legado, eram regidos por uma casta, que vivia em virtual isolamento; eram incorruptíveis, e especialmente inacessíveis. Um mistério, um enigma.

- Uma das poucas coisas que eles fazem questão de negociar conosco são cavalos - informou o Legado. Cavalos! Dá para entender? Oferecemos aviões, veículos de transporte de superfície, equipamentos para abrir estradas... e o que eles compram? Cavalos! Aposto que há vastas manadas nas estepes, nas planícies de Valeron e Arilinn, e também nas terras altas, as Colinas Kilghard. Dizem que não querem abrir estradas, e pelo que conheço do terreno, não seria fácil. Oferecemos todos os tipos de ajuda técnica, mas eles recusam. Compram uns poucos aviões, de vez em quando. E só Deus sabe o que fazem com os aparelhos. Não. têm pistas, e não dispõem de combustível suficiente, mas mesmo assim compram aviões.

O Legado inclinou-se para a frente, apoiando o queixo nas mãos.

- É um lugar meio doido. Jamais consegui entendê-lo. E para ser franco, também não me importo. Mas... quem sabe? Talvez algum dia você possa entender Darkover.

Em seu próximo momento de folga, ao final do dia seguinte, Kerwin seguiu para a seção mais respeitável da Cidade Comercial, onde ficava o Orfanato dos Espaçonautas. Recordava cada passo do caminho. O prédio surgiu à sua frente, frio e branco, estranho e alienígena, como sempre fora, no meio de árvores, recuado, ao final de uma rua comprida. O emblema terráqueo da estrela e foguete destacava-se por cima da porta. O vestíbulo estava vazio, mas através de uma porta aberta ele avistou um pequeno grupo de meninos trabalhando com a maior diligência em torno de um globo. Dava para ouvir gritos altos e alegres de crianças brincando nos fundos do prédio.

Na sala grande, que fora o terror de sua infância, Kerwin ficou esperando, até que uma mulher num discreto traje darkovano - saia folgada, casaco de pele de mangas compridas - apareceu para perguntar, com toda cordialidade, em que podia ajudá-lo. Quando Kerwin informou o que desejava, ela estendeu-lhe a mão.

- Quer dizer que foi um dos nossos meninos? Deve ter sido antes do meu tempo. Seu nome é...?

- Jefferson Andrew Kerwin Junior.

Ela franziu a testa, num esforço polido de concentração.

- Talvez eu tenha visto seu nome nos registros, mas não me lembro, assim de repente. Como eu disse, deve ter sido antes do meu tempo. Quando foi embora? Aos treze anos? Isso é raro, pois a maioria dos nossos meninos permanece aqui até os dezenove ou vinte anos. Depois de um teste, encontramos um emprego para eles aqui.

- Fui enviado para a família de meu pai na Terra.

- Neste caso, é certo que ainda temos seus registros, Jeff. Se seus pais são conhecidos... - a mulher hesitou. Claro que tentamos manter registros completos, mas às vezes só temos o nome do pai ou da mãe, porque de vez em quando há...

Ela tornou a hesitar, tentando encontrar uma maneira cortês de explicar, e arrematou:

- ...ligações desafortunadas...

- Ou seja, se minha mãe era uma das mulheres dos bares do espaço-porto, meu pai pode não ter se dado ao trabalho de informar seu nome?

A mulher balançou a cabeça, parecendo consternada por aquela linguagem objetiva.

- Isso acontece. Ou uma de nossas moças pode optar por ter uma criança sem nos informar quem é o pai, embora tudo indique que este não é o seu caso. Se quiser esperar um minuto...

Ela foi para uma pequena sala ao lado. Através da porta aberta. Kerwin divisou várias máquinas de escritório, e uma jovem darkovana, esguia e morena, usando um uniforme terráqueo. Depois de alguns minutos, a mulher voltou, com uma expressão perplexa, um pouco contrariada, e disse, em voz brusca:

- Não temos nenhum registro seu no orfanato, sr. Kerwin. Deve ter sido em algum outro planeta.

Kerwin fitou-a com o maior espanto.

- Ora, isso é impossível. Vivi aqui até os treze anos. Dormia no Dormitório Quatro, e o nome da inspetora era Rosaura. Costumava jogar bola no campo lá atrás.

Ele apontou. A mulher sacudiu a cabeça.

- Mas não consta dos arquivos, sr. Kerwin. Não teria sido registrado com outro nome?

Foi a vez de Kerwin balançar a cabeça.

- Não. Sempre fui chamado de Jeff Kerwin.

- Também não temos registros de qualquer menino daqui enviado para a Terra aos treze anos. Isso seria uma medida excepcional, jamais o nosso procedimento normal, e haveria um registro detalhado. E todos por aqui se lembrariam.

Kerwin deu um passo à frente. Inclinou-se para a mulher, um homem enorme, ameaçador, furioso.

- O que está tentando me dizer? Como não há qualquer registro meu? Em nome de Deus, que motivo eu teria para mentir? Já disse que vivi aqui durante treze anos. Acha que não sei com certeza? Posso até provar!

A mulher recuou.

- Por favor...

- Só pode ser algum erro - insistiu Kerwin, tentando se controlar. O nome não teria sido arquivado no lugar errado, ou há algum defeito no computador? Preciso saber o que dizem meus registros. Pode verificar de novo, por favor?

Ele soletrou o nome outra vez, e a mulher declarou, friamente:

- Já verifiquei esse nome, e duas ou três possíveis variações. Mas se foi registrado aqui sob outro nome...

- Não fui, não! É mesmo Kerwin Aprendi a escrever meu nome... na sala de aula à direita, no final do corredor, a que tem um retrato grande de John Reade na parede norte!

- Sinto muito, mas não temos nenhum registro de alguém chamado Kerwin.

- Que tipo de idiota retardado cuida do computador aqui? Será que não arquivam nomes, impressões digitais, impressões de retina?

Ele esquecera isso. Nomes podiam ser alterados, trocados, arquivados de maneira errada, mas ninguém podia mudar as impressões digitais.

- Se isso vai convencê-lo - disse a mulher, friamente - e se sabe alguma coisa sobre computadores...

- Trabalhei no Serviço de Comunicações da Terra com um Barry-Reade KS04 durante sete anos.

A voz da mulher continuou gelada:

- Neste caso, senhor, sugiro que venha comigo, e verifique os arquivos pessoalmente. Se achar que o nome foi registrado fora de seu lugar, ou soletrado de maneira errada, pode conferir as impressões digitais, pois arquivamos as de todas as crianças que passam pelo orfanato.

Ela inclinou-se, em silêncio, com um cartão, contra o qual comprimiu os dedos de Kerwin, um a um; era um papel de extrema sensibilidade, que registrava, de forma invisível, os sulcos e espirais das dobras cutâneas, padrões de poros, tipo e textura de pele. Depois, enfiou o cartão na fenda de uma máquina. Kerwin ficou olhando para a máquina silenciosa, as placas de vidro parecendo olhos cegos a fitarem-no.

Com fantástica velocidade, a máquina expeliu um cartão para uma bandeja. Kerwin pegou-o antes que a mulher pudesse alcançá-lo, ignorando a indignação fria no rosto dela. Mas ao virar o cartão, seu triunfo e convicção de que a mulher, por algum motivo, estava mentindo, desvaneceram-se por completo. Um terror gelado comprimiu seu estômago. As letras maiúsculas da impressão mecânica diziam:

NÃO HÁ REGISTRO

A mulher tirou o cartão dos dedos subitamente inertes de Kerwin.

- Não se pode acusar uma máquina de mentir - disse ela. E agora, se me dá licença, terei de pedir para que se retire.

O tom dizia com mais clareza do que as palavras que se Kerwin não fosse embora de bom grado, ela chamaria alguém para expulsá-lo.

Desesperado, Kerwin apoiou-se na beira do balcão. Experimentava a sensação de que caíra num espaço gelado e interminável. Atordoado, ele balbuciou:

- Como posso ter me enganado? Existe outro Orfanato dos Espaçonautas em Darkover? Eu... eu vivi aqui, estou lhe dizendo...

A mulher fitou-o sem dizer nada por um longo momento, até que uma certa compaixão substituiu a raiva.

- Não, sr. Kerwin, não há nenhum outro orfanato como o nosso em Darkover. Por que não volta ao QG, e verifica com a Seção Oito? Se houve... um erro... talvez eles possam ajudá-lo.

Seção Oito. Serviço Médico e Psicológico. Kerwin engoliu em seco, e se retirou, sem mais protestos. A mulher insinuara que ele estava perturbado, precisava de ajuda psiquiátrica. Não podia culpá-la por isso. Depois do que acabara de ouvir, ele próprio achava que era bem possível. Saiu para o ar frio da rua, os pés dormentes, a cabeça em turbilhão.

Eles estavam mentindo. Isso mesmo, alguém mentia. A mulher mentia. e ele sabia disso; podia sentir sua mentira...

Não! Era isso o que todo psicótico paranóico pensava: alguém mentia, todos eles mentiam, havia uma conspiração contra ele... Esses eles, misteriosos e esquivos, haviam se unido numa conspiração...

Mas como poderia ter se enganado? Afinal, refletiu Kerwin, enquanto descia os degraus, jogara bola ali, brincara naquele pátio quando era pequeno. Ele olhou para as janelas de seu antigo dormitório. Escalara a parede por fora, várias vezes, depois de alguma aventura, com a ajuda dos galhos baixos daquela árvore. Teve vontade de ir até o dormitório para verificar se as iniciais que entalhara no peitoril da janela ainda continuavam ali. Mas abandonou a idéia; do jeito como andava sua sorte, seria apanhado, e pensariam que era um molestador de crianças em potencial. Ele contemplou as paredes brancas do prédio em que passara sua infância... ou será que não?

Comprimiu os dedos contra as têmporas, procurando lembranças esquivas. Havia um limite para o que podia recordar. Todas as suas memórias conscientes eram do orfanato, do pátio em que se postava agora, correndo por ali; quando era bem pequeno, caíra naqueles degraus, e esfolara o joelho... que idade tinha na ocasião? Talvez sete anos. Ou oito. Haviam-no levado para a enfermaria, e disseram que iam costurar seu joelho. Especulara como seria possível enfiarem seu joelho numa máquina de costura; e quando lhe mostraram a agulha, ficara tão fascinado pela maneira como se fazia que até esquecera de chorar; era a sua primeira recordação realmente nítida.

Tinha alguma recordação antes do orfanato? Por mais que tentasse, só se lembrava de um vislumbre de céu violeta, quatro luas pendendo como pedras preciosas, e uma voz suave de mulher a lhe dizer:

- Olhe bem, meu filho, pois não tornará a ver isto por muitos anos...

Ele sabia, das aulas de geografia, que uma conjunção das quatro luas juntas no céu não ocorria com freqüência; mas não podia determinar onde estava quando a vira, ou quando tornaria a vê-la. Um homem num manto verde e dourado avançava por um longo corredor de pedra, que brilhava como mármore, um capuz sobre os cabelos vermelhos; e em algum lugar havia um aposento com uma luz azul... e depois ele se via no Orfanato dos Espaçonautas, estudando, dormindo, jogando bola com uma dúzia de outros meninos de sua idade, todos de calça azul e camisa branca. Quando tinha dez anos, apaixonara-se por uma babá darkovana chamada... Como era mesmo o nome dela? Maruca. Ela andava graciosa nas sandálias sem saltos, a túnica esvoaçando ao seu redor, tinha uma voz baixa e gentil. Ela desmanchava meus cabelos, e me chamava de Tallo, embora isso fosse contra as regras. Tive febre alta uma ocasião, e ela passou a noite inteira na enfermaria, sentada ao meu lado, pondo compressas frias em minha cabeça, até cantou para mim. Sua voz era doce, de um contralto profundo. E quando tinha onze anos, ele fizera sangrar o nariz de um menino chamado Hjalmar, por chamá-lo de bastardo, gritando que pelo menos sabia o nome de seu pai. Haviam sido apartados, esperneando, insultando um ao outro com os piores palavrões, pelo grisalho professor de matemática. E poucas semanas antes de sua partida, apavorado, tremendo todo, apático por causa das drogas, a bordo de uma nave espacial que o levaria à Terra, houvera uma garota chamada Ivy, uma turma acima da sua. Guardara a sua quota de doces para ela, passearam de mãos dadas, tímidos, sob as árvores no outro lado do pátio; e tentara beijá-la, meio sem jeito, mas Ivy virara o rosto, e seus lábios só encontraram um punhado de cabelos castanho-claros, com uma doce fragrância.

Não, ninguém poderia lhe dizer que estava louco. Lembrava de muita coisa. Voltaria ao QG, como a mulher sugerira, só que não iria ao Serviço Médico e Psicológico, mas sim aos Arquivos. Havia registros ali de todos os que já haviam trabalhado a serviço do Império. Todos mesmo. Descobriria tudo.

O homem dos Arquivos ficou um pouco surpreso quando Kerwin pediu uma verificação, o que era natural. Afinal, ninguém pede por sua própria ficha, a menos que esteja solicitando uma transferência. Kerwin procurou uma justificativa.

- Nasci aqui. Nunca soube quem foi minha mãe. Pode haver registros de meu nascimento, os nomes do pai e mãe...

O homem tirou suas impressões digitais, apertou os botões, desinteressado. Depois de um momento, uma impressora começou a funcionar, até que uma folha de papel caiu na bandeja. Kerwin pegou-a e leu, a principio com satisfação, porque era obviamente um registro completo, mas depois com crescente incredulidade.

KERWIN, JEFFERSON ANDREW. BRANCO. SEXO MASCULINO. CIDADÃO DA TERRA RESIDÊNCIA MOUNT DENVER. SETOR dois. ESTADO CIVIL solteiro. CABELOS vermelhos. OLHOS cinza. COR DA PELE clara. HISTÓRICO DE EMPREGO idade vinte anos aprendiz ComTerra. DESEMPENHO satisfatório. PERSONALIDADE retraída. POTENCIAL alto.

TRANSFERÊNCIA idade 22. Enviado como técnico júnior ComTerra, Consulado Megaera. DESEMPENHO excelente. PERSONALIDADE aceitável, introvertida. POTENCIAL muito alto. DEMÉRITOS nenhum. Nenhuma complicação conhecida. VIDA PARTICULAR normal, até onde é conhecida. PROMOÇÕES regulares e rápidas.

TRANSFERÊNCIA idade 26. Phi Coronis IV. Perito em ComTerra. Legação. DESEMPENHO excelente; recomendações por trabalho extraordinário. PERSONALIDADE introvertida, mas duas vezes repreendido por brigas no setor nativo. POTENCIAL muito alto, mas tendo em vista os reiterados pedidos de transferência possivelmente instável. Sem casamentos. Sem ligações conhecidas. Sem doenças transmissíveis.

TRANSFERÊNCIA idade 29, Cottman IV, Darkover (solicitada por razões pessoais, não enunciadas). Pedido aprovado, sugiro que Kerwin não deva ser transferido de novo, exceto com perda de antigüidade acumulada. DESEMPENHO ainda não há registros, apenas uma repreensão por intromissão num setor proibido. AVALIAÇÃO DE PERSONALIDADE servidor excelente e valioso, mas significativos defeitos de personalidade e estabilidade. POTENCIAL excelente.

Não havia mais nada. Kerwin franziu o rosto.

- Esta é a minha ficha profissional. Eu queria os registros de nascimento, essas coisas. Nasci aqui, em Cottman IV.

- Essa é a sua transcrição oficial, Kerwin. É tudo o que o computador tem a seu respeito.

- Não há registros de nascimento? O homem sacudiu a cabeça.

- Se nasceu fora da Zona Terráquea... e sua mãe era uma nativa... não seria registrado aqui. Não sei que tipo de registros de nascimento eles mantêm por lá...

O homem acenou com a mão na direção das montanhas distantes.

- ...mas com certeza não estão em nosso computador. Tentarei encontrá-lo em Registros de Nascimentos; e posso também tentar em direitos dos órfãos. Se foi enviado de volta à Terra aos treze anos, deve constar da Seção Dezoito, que cuida da Lei de Repatriação de Órfãos e Viúvas de Espaçonautas.

Ele apertou botões por vários minutos, e ao final balançou a cabeça.

- Dê uma olhada.

Kerwin viu o aviso na tela: NÃO HÁ REGISTROS.

- Aqui estão todos os registros de nascimento para Kerwin. Temos uma Evelina Kerwin, filha de uma enfermeira, que morreu aos seis meses de idade. E há também a ficha profissional de Henderson Kerwin, preto, sexo masculino, 45 anos, que foi um engenheiro no espaço-porto em Thendara, e morreu de queimaduras de radiação depois de um acidente com o reator. E nos direitos dos órfãos, encontrei um Teddy Kerlayne, que foi enviado para Delta Ophiuchi há quatro anos. Nada relevante, não é?

Em gestos mecânicos, Kerwin rasgou o papel em pedacinhos, os dedos se contraindo na frustração que o dominava.

- Tente mais uma coisa - pediu ele. Verifique o que há sobre meu pai. Jefferson Andrew Kerwin Senior.

Ele esmagou os pedaços do papel na mão cerrada, lembrando que dizia sem casamentos, sem ligações conhecidas. O casamento do pai, ou no mínimo sua ligação, com a mãe desconhecida deveria ter sido registrado, para que o Jeff Kerwin mais velho obtivesse a cidadania do Império para o filho. Haviam lhe explicado o procedimento quando ingressara no Serviço Civil; como registrar casamentos nativos - poucos planetas do Império eram tão rigorosos com a confraternização e casamentos nativos quanto Darkover - e como legitimar uma criança, com ou sem um casamento terráqueo. Sabia como se tinha de fazer.

- Pode verificar quando e onde meu pai apresentou um formulário 748-D?

O homem deu de ombros.

- Companheiro, você é difícil de convencer. Se constasse de um 748, isso estaria registrado em sua ficha profissional.

Mas ele recomeçou a apertar botões, olhando para a tela em que as informações apareciam, antes de serem impressas. Abruptamente, o homem estremeceu, contraiu os lábios. Virou-se para Kerwin, e disse, cortês:

- Sinto muito, Kerwin, mas não há registros. Alguém o informou errado; não temos registros de nenhum Jeff Kerwin no Serviço Civil, além de você.

Kerwin protestou, furioso:

- Só pode estar mentindo! Caso contrário, por que se mostrou surpreso ao ver o que havia na tela? Vamos, tire a mão, e deixe-me ver!

O homem deu de ombros.

- À vontade.

Mas ele apertara outro botão, e a tela estava vazia. A raiva e a frustração invadiram Kerwin como uma onda impetuosa.

- Está tentando me dizer que não existo?

- Ora, pode-se apagar um registro livro, mas não conheço ninguém que seja capaz de interferir nos bancos de dados de ComTerra. Segundo os registros oficiais, você só agora se encontra em Darkover, há dois dias. Acho melhor procurar o Serviço Médico e Psicológico, e parar de me incomodar!

Até que ponto eles pensam que sou ingênuo? ComTerra pode impedir que alguém de fora interfira em seus registros, mas uma pessoa lá dentro, com os códigos certos, teria pleno acesso. Alguém, por algum motivo obscuro, dera um jeito para que ele não tivesse acesso aos dados.

Mas por que se dariam a esse trabalho?

A alternativa era o que a mulher dissera. Ela o julgara louco, talvez um conspirador, que nunca antes estivera em Darkover, mas queria inventar um elaborado passado darkovano...

Kerwin enfiou a mão no bolso, tirou uma nota dobrada, e estendeu para o homem.

- Tente meu pai de novo, está bem?

O funcionário fitou-o, e Kerwin percebeu agora que seu palpite fora certo. Valia o dinheiro, embora não tivesse condições de gastá-lo, para saber que não era louco. A ganância e o medo travaram uma disputa no rosto do homem, até que ele disse, embolsando a nota:

- Está certo. Mas se os bancos de dados estiverem sendo monitorados, posso perder meu emprego. E qualquer coisa que apareça, será o ponto final; mais nenhuma pergunta, combinado?

Kerwin ficou olhando para a tela desta vez. O computador zumbiu baixinho, depois a tela ficou vermelha, piscando várias vezes, em sinal de alerta. O homem murmurou:

- Um circuito fechado.

Letras vermelhas surgiram na tela.

INFORMAÇÃO SOLICITADA SÓ DISPONÍVEL EM CÓDIGO DE PRIORIDADE: ACESSO FECHADO. DÊ CÓDIGO DE ACESSO VÁLIDO E AUTORIZAÇÃO PARA ACESSO ADICIONAL.

As letras piscavam com uma intensidade hipnótica. Kerwin acabou gesticulando para o homem, que desligou o programa. A tela parecia fitá-los, vazia e enigmática.

- E agora? - indagou o funcionário.

Kerwin sabia que ele queria outro suborno para tentar descobrir o código de acesso. Só que Kerwin tinha tanta possibilidade de descobri-lo quanto o funcionário. De qualquer forma, aquilo provava que havia alguma coisa.

Ele não sabia o quê. Mas também explicava a atitude da mulher no orfanato.

Ele virou-se, deixou a sala, sentindo uma determinação cada vez maior. Fora atraído de volta a Darkover... apenas para se deparar com mistérios ainda maiores à sua espera. Em algum lugar, de alguma forma, descobriria o que tudo aquilo significava.

Só que não sabia por onde começar.

 

Kerwin deixou o problema de lado nos dias seguintes. Teve de fazê-lo; assumir novas funções, por mais simples que fossem, por mais parecidas com as que tivera no planeta anterior, exigia toda a sua atenção. Era um setor altamente especializado de Comunicações, que envolvia a manutenção e reparos ocasionais nos equipamentos, tanto no próprio QG quanto em outros pontos da Zona Terráquea. Consumia tempo, e era tedioso, mais do que difícil, e Kerwin se descobriu a especular por que traziam pessoal terráqueo de outros planetas, em vez de treinarem técnicos locais. Fez a pergunta a um de seus colegas, que deu de ombros, e explicou:

- Os darkovanos não querem se submeter ao treinamento. Não possuem uma mente técnica... não são nada bons com essas coisas -Ele indicou os complexos equipamentos que estavam inspecionando. Acho que não é uma coisa natural para eles.

Kerwin soltou uma risada breve, sem qualquer diversão.

- Está se referindo a alguma coisa inata... uma diferença na qualidade de suas mentes?

O outro homem fitou-o com uma expressão cautelosa, compreendendo que se tratava de uma área delicada.

- Você é darkovano? Mas foi criado pelos terráqueos... encara as máquinas e a tecnologia como fatos consumados. Pelo que sei, eles não têm nada parecido... nunca tiveram - ele fez uma careta - e também não querem ter.

Kerwin pensou a respeito algumas vezes, deitado em sua cama, nos alojamentos para solteiros no prédio do QG, ou tomando um drinque sozinho num dos bares do espaço-porto. O Legado fizera um comentário a respeito... que os darkovanos eram imunes à atração da tecnologia terráquea, e se mantinham a distância do fluxo de cultura e comércio do Império. Bárbaros, sob um verniz de civilização? Ou... algo menos óbvio, mais misterioso?

Durante as horas de folga, ele voltou algumas vezes à Cidade Velha, mas agora sem usar o manto darkovano, e pondo alguma coisa na cabeça para cobrir os cabelos vermelhos. Dava tempo a si mesmo para pensar, pois queria ter certeza de seu próximo movimento. Se é que haveria um próximo movimento.

Item: o orfanato não tinha qualquer registro de um menino chamado Jefferson Andrew Kerwin Junior, enviado para os avós terráqueos aos treze anos de idade.

Item: o computador do QG recusava-se a fornecer qualquer informação sobre Jefferson Andrew Kerwin Senior.

Kerwin se perguntou o que esses dois fatos podiam ter em comum; acrescente-se a isso o bloqueio do computador do QG terráqueo, que se negava a revelar qualquer dado sobre seu pai, nem sequer admitia sua existência.

Se pudesse encontrar alguém que conhecera no orfanato, seria uma prova de que pelo menos suas lembranças de uma vida eram reais...

E eram mesmo reais. Tinha de partir daí, pois não havia outro lugar por onde começar. Se começasse a duvidar de suas próprias recordações, podia muito bem abrir a porta direto para o caos. Portanto, tinha de presumir que era tudo real, e que haviam alterado os registros, por algum motivo.

Durante a terceira semana, ele começou a perceber que andava se encontrando com o tal de Ragan com uma freqüência excessiva para ser mera coincidência. A princípio, não se preocupou com isso. No café do espaço-porto, quando via Ragan, sentado a uma mesa no fundo, cada vez que entrava, acenava com a cabeça, num cumprimento casual, e ficava nisso. Afinal, era um lugar público, e devia ter freqüentadores habituais. Ele próprio, a esta altura, já começava a se tornar um deles.

Mas quando uma falha inesperada em equipamentos no centro de controle do espaço-porto obrigou-o a trabalhar até tarde uma noite, e encontrou Ragan em seu lugar de sempre muito depois da hora habitual, ele começou a desconfiar. Até aquele momento, era apenas um pressentimento; mas começou a alterar os horários de suas refeições... e quatro em cinco vezes deparava com o darkovano moreno ali. Depois, resolveu beber em outro bar, por um ou dois dias; e teve certeza então que o homem o espionava. Não, espionar não era a palavra certa, pois era ostensivo demais. Ragan não fazia o menor esforço para se manter fora da vista de Kerwin. Era muito esperto para tentar se impor a Kerwin como um conhecido... mas sempre se punha em seu caminho, e Kerwin teve a estranha impressão de que ele queria ser acusado disso, questionado a respeito.

Mas por quê? Kerwin refletiu muito sobre o problema. Se Ragan fazia um jogo de espera, talvez estivesse ligado a outros fatos estranhos. Mas se ele se mantivesse impassível, e parecesse não notar coisa alguma, talvez eles - quem quer "eles" fossem - se vissem forçados a tomar alguma iniciativa.

Mas nada aconteceu, a não ser Kerwin assentar na rotina de seu novo emprego e de sua nova vida. Na Zona Terráquea, a vida era muito parecida com a que se levava na Zona Terráquea de qualquer outro planeta do Império. Mas ele continuava muito consciente do mundo além daquele mundo. Parecia chamá-lo, com uma estranha ânsia. Descobriu-se a aguçar os ouvidos na sociedade mista dos bares do espaço-porto à busca de fragmentos de conversa darkovana; distraído, ouviu-se a responder várias vezes a perguntas casuais em darkovano. E em algumas ocasiões, à noite, tirava da corrente no pescoço o misterioso cristal azul, e contemplava suas insondáveis profundezas, como se pudesse, pela força da vontade, trazer de volta as memórias vagas, para as quais aquela pedra parecia agora ser a chave. Mas o que havia em sua palma era uma pedra fria, sem vida, que não oferecia respostas às indagações que o assediavam. Kerwin tornava a guardá-la, e seguia, irrequieto, para um dos bares do espaço-porto, a fim de tomar um drinque, sempre atento à perspectiva de alguma coisa além...

Três semanas inteiras transcorreram antes que a expectativa subitamente fosse demais. Ele entrou no bar, num impulso repentino, sem dar tempo a si mesmo para considerar o que faria ou diria, e encaminhou-se para a mesa do fundo, à qual Ragan sentava, diante de uma caneca com um líquido escuro. Kerwin puxou uma cadeira com o pé, sentou, lançou um olhar irado para Ragan.

- Não precisa se fingir surpreso - disse ele, ríspido. Vem me seguindo há bastante tempo.

Kerwin pegou seu cristal, pôs, em cima da mesa, entre os dois.

- Falou-me sobre esta pedra naquela noite... ou estava mais bêbado do que pensei? Fiquei com a impressão de que você tinha algo mais a dizer. Pode começar.

O rosto de fuinha de Ragan exibia uma expressão cautelosa.

- Não falei coisa alguma que qualquer darkovano não pudesse lhe contar. Praticamente todos eles poderiam reconhecer esta pedra.

- Mesmo assim, quero saber mais a respeito. Ragan encostou a ponta de um dedo no cristal.

- O que quer saber? Como usá-la?

Kerwin considerou o oferecimento. Não; pelo menos no momento, não tinha nenhum proveito para os truques que Ragan fizera com seu cristal, como derreter vidro, ou... qualquer outra coisa de que ele fosse capaz.

- Acima de tudo, gostaria de saber de onde vem... e por que tenho uma.

- Uma pergunta difícil - comentou Ragan, secamente. Mas calculo que existem apenas uns poucos milhares de cristais assim.

Os olhos dele se contraíram, de uma forma que nada tinha de descontraída, embora a voz mantivesse uma indiferença deliberada.

- Algumas pessoas no QG terráqueo vêm fazendo experiências com os pequenos. É bem provável que lhe dessem uma considerável gratificação se entregasse esta para propósitos experimentais.

- Não!

Kerwin ouviu-se a pronunciar a negativa antes mesmo de saber que rejeitava a idéia.

- Mas por que veio falar comigo? - indagou Ragan.

- Porque há semanas deparo com você cada vez que me viro, e não acredito que seja apenas porque minha companhia lhe agrada. Sabe alguma coisa sobre tudo isto, ou quer que eu pense assim. Antes de mais nada, poderia me dizer com quem me confundiu, naquela primeira noite. E não foi o único. Várias pessoas pensaram que eu era outra pessoa. Naquela mesma noite, fui atacado num beco escuro...

Ragan entreabriu a boca, aturdido; Kerwin não podia duvidar de que ele estava mesmo chocado.

- ...e é óbvio que isso aconteceu porque eu parecia com alguém...

- Não, Kerwin, neste ponto você se engana. Isso o teria protegido, se qualquer coisa. É uma história complicada. E quero que saiba que não tenho nenhum ressentimento contra você. Uma coisa posso lhe adiantar: é por causa dos seus cabelos vermelhos...

- Ora, há darkovanos ruivos. Já os encontrei...

- Encontrou? - As sobrancelhas de Ragan se altearam. Você? Ele soltou uma breve risada desdenhosa, antes de acrescentar:

- Se é um homem de sorte, esses cabelos vermelhos vieram do seu lado terráqueo. Mas uma coisa posso lhe dizer: se eu estivesse no seu lugar, embarcaria na primeira espaçonave que saísse do planeta, e não pararia até chegar ao outro lado do Império. Esse é o meu conselho, o mais sóbrio possível.

Kerwin respondeu com um sorriso frio:

- Gosto mais de você quando está bêbado.

Ele fez sinal para que o garçom trouxesse mais drinques, esperou que o homem se afastasse, e disse:

- Escute, Ragan, se for necessário, vestirei trajes darkovanos, e irei à Cidade Velha...

- Para ter sua garganta cortada?

- Acabou de dizer que os cabelos vermelhos me protegeriam. Não. Irei à Cidade Velha, e perguntarei a cada pessoa que encontrar na rua quem pensa que eu sou, ou com quem pareço. E mais cedo ou mais tarde encontrarei alguém que me dirá.

- Não sabe em que está se metendo.

- E não saberei, a menos que você me conte.

- Está sendo tolo e teimoso. Mas é o seu pescoço. Muito bem, o que espera que eu faça? E o que ganharei com isso?

Kerwin sentia-se agora em terreno mais seguro. Teria desconfiado se o astuto Ragan se oferecesse para ajudá-lo sem pedir nada em troca.

- Não faço a menor idéia, mas deve haver alguma coisa que quer de mim, caso contrário não passaria tanto tempo me cercando, à espera das minhas perguntas. Dinheiro? Sabe quanto ganha um homem que trabalha em Comunicações dentro do Império. O suficiente para viver, mas sem qualquer sobra. Imagino... - a boca de Kerwin se contraiu.- ... que você espera obter algum lucro, o que quer que possa acontecer. E que tem um bom motivo para contar com essa possibilidade. Comece por isto.

Kerwin pôs a mão no cristal de matriz pendurado da corrente.

- Como posso descobrir tudo a respeito? Ragan balançou a cabeça.

- Eu lhe dei o melhor conselho que podia, e não pretendo me envolver nessa parte. Se quer saber mais, há mecânicos de matriz licenciados, até mesmo na Zona Terráquea. Não podem fazer muita coisa, mas pelo menos lhe darão algumas respostas. Ainda acho que não deve se meter. Trate de ir para bem longe. Nem imagina o que pode acontecer.

De tudo isso, Kerwin fixou-se apenas na estranha informação de que havia mecânicos de matriz licenciados.

- Pensei que era um grande segredo, sobre o qual os terráqueos nada sabiam.

- Já expliquei: eles negociam as pequenas. Como a minha. E quase que qualquer um pode aprender a usar as pequenas. Da maneira como eu faço. Uns poucos truques.

- O que um mecânico de matriz faz? Ragan deu de ombros.

- Digamos que você tem documentos legais que precisa guardar com toda segurança, e não tem confiança suficiente num banco. Compra uma das matrizes menores... se tiver condições para tanto, pois não são

baratas, nem mesmo as mínimas... e pede ao mecânico para sintonizá-la em seu padrão pessoal, as suas ondas cerebrais, como impressões digitais. Fecha a caixa, e a matriz a manterá trancada, de tal forma que nem uma marreta ou uma explosão nuclear conseguirão abri-la. Nada poderá abri-la, a não ser sua decisão pessoal, seu "Abre-te Sésamo" mental. Você pensa Abra, e a caixa se abre. Não precisa lembrar nenhuma comunicação, nenhum número de conta secreta, absolutamente nada. Kerwin assoviou.

- Mas que coisa! Pensando bem, posso imaginar alguns usos bem perigosos para esse tipo de instrumento.

- Também posso - comentou Ragan, secamente. Não conheço muito a história darkovana, mas sei que os darkovanos não permitem que nenhuma das matrizes maiores saia de suas mãos. Mesmo com as pequenas pode-se fazer algumas coisas terríveis, embora não possam manipular mais do que uma quantidade mínima de energia. Vamos supor, por exemplo, que você tem algum rival nos negócios que possui alguns aparelhos muito sensíveis. Concentra-se em seu cristal... até um pequeno, como o meu... e aumenta o calor no termostato, uns três graus centígrados, e derrete os circuitos mais importantes. Quer liquidar seu concorrente? Contrate um mecânico de matriz inescrupuloso para sabotá-lo, interferir em seus equipamentos elétricos, provoca um curto-circuito, e ainda pode provar que nem chegou perto do lugar. Acho que eles têm pavor, lá no QG, que os darkovanos possam usar suas matrizes... apagar os arquivos dos computadores, interferir no centro de controle das espaçonaves. Os darkovanos não têm motivos para fazer isso. Mas a própria existência desse tipo de tecnologia indica aos terráqueos que devem saber como funciona, e aprender a se precaver.

Ragan exibiu outro sorriso irônico, e acrescentou:

- Por isso é que eu disse que provavelmente lhe dariam uma pequena fortuna, ou deixariam que escolhesse o posto que quisesse, se entregasse a sua matriz. É a maior que já vi.

Kerwin recordou memórias fragmentadas; uma comissária de uma nave estelar mexendo na camisa de um menino drogado e gritando.

- Mas como eu obtive uma pedra deste tamanho?

Ragan deu de ombros.

- Kerwin, meu amigo, se eu soubesse a resposta, iria ao QG, e deixaria que eles me suplicassem para pedir o que quisesse. Não sou um adivinho.

Kerwin pensou a respeito por um minuto.

- Talvez o que eu precise agora seja um adivinho, ou algo assim. Soube que há telepatas e psíquicos por toda Darkover.

- Não sabe em que está se metendo, mas se quer mesmo correr o risco, conheço uma mulher que pode ajudá-lo, na Cidade Velha. Ela era... mas não importa. Se alguém pode lhe revelar alguma coisa, será ela. Entregue isto.

Ragan tirou um papel do bolso, escreveu um bilhete.

- Tenho contatos no setor darkovano, pois é assim que ganho a vida. Mas devo avisá-lo: vai custar muito dinheiro. Ela correrá algum risco, e vai fazê-lo pagar por isso.

- E você?

A risada breve e seca de Ragan foi estrondosa.

- Por um nome e um endereço? Pode me pagar um drinque, e talvez eu tenha contas a acertar com um outro ruivo. Boa sorte, Tallo.

Ele ergueu a mão em saudação, e Jeff observou-o se afastar, especulando. Para onde estava sendo levado? Leu o endereço, e compreendeu que ficava na parte mais perigosa de Thendara, a Cidade Velha, refúgio de ladrões, proxenetas, e pior. Não lhe agradava a perspectiva de ir até lá num uniforme terráqueo. Nem sequer queria ir. Mesmo quando menino, sabia que era melhor se manter a distância.

Ao final, fez algumas indagações cautelosas sobre mecânicos de matriz na parte melhor da cidade, e descobriu que operavam abertamente. Obteve os nomes de três mecânicos licenciados, na parte melhor da cidade, e escolheu um ao acaso.

Era um distrito de casas grandes, com paredes de uma pedra translúcida; aqui e ali ele avistou parques, um prédio público, um conjunto murado com uma pequena placa na entrada, informando que era a Casa da Guilda da Ordem das Renunciantes, e se perguntou se seria alguma espécie de convento. As ruas eram largas e bem-cuidadas, embora não pavimentadas. Numa praça vazia encontrou homens trabalhando num prédio inacabado, ajustando pedras com argamassa, serrando, martelando. Na rua seguinte havia um mercado, com mulheres de xales barganhando alimentos, crianças pequenas segurando suas saias, ou sentadas em pequenos grupos nas barracas que vendiam peixe frito, bolos e cogumelos. Os detalhes da vida cotidiana eram tranqüilizadores; crianças brincando entre as barracas, pedindo doces às mães. Chamavam aquela cultura de bárbara, pensou Jeff, ressentido, porque não tinham tecnologia ou trânsito complicado, e não sentia a menor necessidade disso. Não tinham carros-foguetes, grandes estradas, edifícios enormes, ou espaço-portos; mas também não tinham usinas siderúrgicas, ou fétidas refinarias de petróleo, nenhuma das coisas que um escritor terráqueo chamara de "os sinistros moinhos satânicos", nem minas escuras e sufocantes, operadas pelo trabalho-escravo ou por robôs. Kerwin riu de si mesmo; estava romantizando. Ao passar por uma estrebaria, onde selavam cavalos, ele refletiu que limpar bosta de cavalo, numa manhã em que a neve se acumulava por um metro de altura, também não era muito melhor do que trabalhar numa fábrica ou mina.

Ele localizou o endereço que procurava, e a porta foi aberta por uma mulher num traje discreto, que o conduziu a uma sala fechada, uma espécie de gabinete, com cortinas claras. Cortinas de isolamento, Jeff descobriu-se a pensar, estranhando no mesmo instante a súbita idéia. Um homem e uma mulher se adiantaram; eram altos, imponentes, a pele clara, olhos cinza, um ar de serena autoridade e equilíbrio. Mas ambos pareciam surpresos, quase intimidados.

- Vai dom - disse o homem - empresta-nos a sua graça. Como podemos servi-lo?

Antes que Kerwin pudesse responder, a mulher contraiu os lábios, num repentino desdém.

- Terranan - disse ela, com uma hostilidade ostensiva. O que você quer?

O rosto do homem espelhava a mudança que ocorrera nela. Eram bastante parecidos para serem irmão e irmã, e Kerwin notou, na pouca claridade, que os cabelos podiam ser escuros, mas tinham reflexos avermelhados, quase imperceptíveis. Nada parecido, no entanto, com os cabelos vermelhos e o porte aristocrático dos três ruivos que ele encontrara no Sky Harbor Hotel.

- Quero informações sobre isto.

Ele estendeu a matriz para os dois. A mulher franziu o rosto, gesticulou para que Kerwin recolhesse a pedra. Foi até um banco, pegou um pedaço de alguma coisa que parecia com seda, mas com um brilho metálico ou cristalino. Cobriu a mão com todo cuidado, e voltou para pegar a matriz na mão de Kerwin, evitando qualquer contato com sua pele. Ele experimentou uma breve e angustiante sensação de déjà vu.

Já vi alguém fazer isso antes, esse gesto... mas onde? Quando?

Ela examinou a pedra rapidamente, com o homem olhando por cima de seu ombro. Foi o homem quem falou primeiro, com uma certa rispidez:

- Onde conseguiu isto? Você roubou?

Kerwin sabia muito bem que a acusação não tinha a mesma força que teria na Zona Terráquea; mesmo assim, deixou-o irritado.

- Claro que não! Tenho essa pedra desde que posso me lembrar, e não sei como foi parar em meu poder. Podem me dizer o que é, ou de onde vem?

Ele viu os dois trocarem um olhar. A mulher deu de ombros, sentou a uma pequena mesa, com a matriz em sua mão. Examinou-a de novo, agora com uma lupa, o rosto pensativo e retraído. Havia na mesa uma placa de vidro, opaca, escura, com pequenas luzes brilhando no fundo; a mulher fez outro daqueles gestos familiares-estranhos, e as luzes começaram a piscar, dentro e fora do vidro, com um efeito hipnótico. Kerwin ficou olhando, ainda dominado pela sensação de déjà vu, e pensou: Já vi isso antes.

Não. É uma ilusão, tem alguma relação com um lado do cérebro vendo uma fração de segundo antes do outro, e o outro, ao ver, se lembrando de já ter visto...

De costas para Kerwin a mulher murmurou:

- Não está na tela principal do monitor.

O homem inclinou-se para ela, cobriu a mão com o material isolante, e tocou no cristal. Depois, fitou a mulher, surpreso, e disse:

- Acha que ele sabe o que tem aqui?

- Não há a menor possibilidade - respondeu a mulher. Ele vem de outro planeta; como poderia saber?

- É um espião enviado para nos desmascarar?

- Não creio. Ignora tudo, posso sentir. Mas também não podemos correr o risco; já morreram muitos apenas tocados de leve pela sombra da Torre Proibida. Livre-se dele.

Kerwin especulou, contrariado, se os dois continuariam a conversar sem incluí-lo. E depois, chocado, ele percebeu que não falavam no dialeto de Thendara, nem mesmo no casta puro das montanhas. Falavam aquela língua que de alguma forma ele conhecia, embora não fosse capaz de compreender conscientemente uma única sílaba. A mulher ergueu a cabeça, e acrescentou para o homem:

- Vamos lhe dar uma chance. Talvez ele tenha mesmo uma ignorância total de tudo, e corra perigo.

Ela olhou para Kerwin, e disse, na língua usada no espaço-porto:

- Pode me dizer como este cristal foi parar em suas mãos?

- Acho que era de minha mãe. Mas não sei quem ela era. Depois, hesitante, mas sabendo que era relevante, ele repetiu as palavras que ouvira na noite em que fora atacado, na Cidade Velha:

- Diga ao filho do bárbaro que ele não mais irá às planícies de Arilinn, e que Sino Dourado está vingado...

A mulher estremeceu de repente; Kerwin viu seu controle absoluto desmoronar. Ela se levantou apressada, e o homem estendeu o cristal para Kerwin, como se os movimentos de ambos fossem de alguma forma sincronizados.

- Não podemos nos intrometer nos assuntos de vai leroni - declarou ele, incisivo. Nada podemos lhe dizer.

Kerwin murmurou, aturdido:

- Mas... sabem alguma coisa... não podem...

   O homem sacudiu a cabeça, o rosto vazio, indecifrável. Por que sinto que deveria saber o que ele está pensando?, especulou Kerwin.

- Vá embora, Terranan. Nada sabemos.

- O que é vai leroni? O que...

Mas os dois rostos, tão parecidos, distantes e arrogantes, estavam fechados e impassíveis. Por trás da impassibilidade, porém, havia medo; e Kerwin sabia disso.

- Não é para nós.

Kerwin sentiu como se explodisse em frustração. Estendeu a mão, num gesto fútil, suplicante, e o homem recuou, evitando o contato, da mesma forma que a mulher.

- Mas não podem deixar assim, se sabem de alguma coisa... devem me dizer...

O rosto da mulher abrandou um pouco.

- Uma coisa posso lhe dizer. Pensei que isso... - ela indicou o cristal. - ... havia sido quebrado quando... quando Sino Dourado foi destruído. Como eles acharam conveniente deixar com você, podem algum dia julgar também conveniente lhe dar uma explicação. Mas se eu estivesse no seu lugar, não esperaria por isso. Você...

- Latti! - O homem tocou no braço da mulher. Pare por aqui! Ele virou-se para Kerwin, e acrescentou:

- Vá embora. Não é bem-vindo aqui. Nem em nossa casa, nem em nossa cidade, nem em nosso mundo. Nada temos contra você, mas traz perigo para nós, até com sua sombra. Vá embora.

E não podia haver mais qualquer apelação. Kerwin se retirou. De certa forma, meio que esperara por isso. Outra porta batida em sua cara; como o computador, codificado para que ele não pudesse ler os registros de seu nascimento. Mas não podia mais parar, mesmo que quisesse, embora começasse a se sentir assustado.

Ele adotou a precaução de cobrir os cabelos; e embora não usasse mais o manto darkovano, tirou todas as insígnias do Serviço quando foi à Cidade Velha, a fim de que nada pudesse identificá-lo com o pessoal do espaço-porto.

O endereço ficava numa área miserável, de prédios em ruínas. Não havia sineta. Ele bateu na porta, e esperou por um longo tempo. Já estava quase desistindo quando a porta foi aberta por uma mulher, que se apoiou no batente, com a mão trêmula.

Era pequena, de meia-idade, vestindo xales indefinidos, uma saia amarfanhada; não chegavam a ser trapos, e não estavam realmente sujos, mas ela transmitia uma impressão geral de desmazelo. Fitou Kerwin com uma indiferença sombria, e ele teve a impressão de que a mulher o focalizava com dificuldade.

- Quer alguma coisa? - indagou ela, como quem não se importava com isso.

- Um homem chamado Ragan me disse para vir até aqui. - Kerwin entregou o bilhete. Informou que você era uma técnica de matriz.

- Já fui - respondeu ela, com uma indiferença apática. Afastaram-me das redes de transmissão há muitos anos. Ainda posso fazer algum trabalho, mas vai custar caro. Se fosse legal, você não estaria aqui.

- O que eu quero não é ilegal, até onde eu sei. Mas talvez seja impossível.

Um tênue brilho de interesse surgiu nos olhos opacos.

- Entre.

A mulher recuou para que ele passasse. O interior era bastante limpo, com um cheiro pungente e familiar, de ervas ardendo num braseiro. Ela atiçou o fogo, provocando nuvens da fumaça pungente, e seus olhos exibiam uma expressão alerta quando se virou.

Mas Kerwin pensou que nunca vira uma pessoa tão desenxabida. Os cabelos, presos atrás do pescoço, tinham a mesma tonalidade do xale cinza desbotado; o andar era de cansaço, um pouco encurvado, como se ela sentisse uma dor crônica. Foi com extremo cuidado que a mulher arriou numa cadeira, e gesticulou para que Kerwin também sentasse, com um movimento da cabeça, cansado e brusco.

- O que você quer, Terranan?

Ao olhar de surpresa de Kerwin, os lábios lívidos se distenderam, numa careta que não chegava a ser um sorriso.

- Sua fala é perfeita, mas lembre-se de quem eu sou. Há outro mundo no jeito como anda, na posição da cabeça, no que faz com as mãos. Não desperdice nosso tempo com mentiras.

Pelo menos ela não o tomara por seu sósia misterioso em algum lugar, pensou Kerwin, agradecido, tirando o capuz com que cobrira a cabeça. Se eu for franco, talvez ela também seja franca comigo, refletiu ele; e pegou o cristal, mostrando-o à mulher.

- Nasci em Darkover, mas me mandaram para longe. Meu pai era terráqueo. Achei que seria muito simples descobrir mais a meu respeito.

- E deve ser mesmo, com isto. Afinal, é uma matriz à altura de uma Guardiã.

Ela inclinou-se para a frente; ao contrário dos outros mecânicos, não cobriu a mão ao tocar na pedra. Kerwin sentiu um arrepio; por algum motivo, detestava quando alguém a tocava. A mulher percebeu a reação, e disse:

- Então sabe pelo menos isso. Está sintonizada?

- Não sei o que isso significa. Ela franziu as sobrancelhas.

- Não se preocupe; posso criar uma proteção, mesmo que esteja. Aprendi há muito tempo, com o próprio velho, que qualquer técnico meio competente pode realizar o trabalho de uma Guardiã. O que já fiz muitas vezes. Deixe-me pegá-la.

Ela recolheu a matriz, e Kerwin experimentou apenas um ligeiro choque. As mãos eram belas, mais jovens que o resto da mulher, lisas e ágeis, as unhas bem-cuidadas; de alguma forma, ele esperava que fossem roídas e sujas. Outra vez, o gesto parecia familiar.

- Conte-me tudo.

Kerwin pôs-se a falar, sentindo-se subitamente seguro; a maneira como fora confundido com algum outro misterioso, o ataque na rua, o fracasso na tentativa de encontrar registros no orfanato, a recusa dos dois mecânicos de matriz em lhe revelarem qualquer coisa. Ao que a mulher franziu o rosto, desdenhosa.

- E eles ainda dizem que estão livres de superstições! Idiotas!

- O que pode me dizer?

Ela encostou a ponta de um dedo no cristal.

- Pelo menos uma coisa: não aparece nos monitores. Pode ter vindo de alguém da Torre Proibida. Não a reconheço de imediato. Mas é difícil acreditar que você tenha qualquer sangue terráqueo. Embora tenha havido uns poucos, e numa ocasião eu tenha visto o velho Dom Anidra... Mas isso não interessa agora.

Ela foi até um armário, e tirou alguma coisa, num saco de seda isolante. Depois, pegou uma pequena armação de madeira e vime, e abriu o saco de seda em cima. Era uma matriz pequena; menor que a de Kerwin, mas consideravelmente maior que a de Ragan. Pequenas luzes piscavam no interior; contemplando-a, Kerwin sentiu-se um pouco tonto e nauseado. A mulher fitou sua própria matriz, depois a de Kerwin, levantou-se, foi atiçar o braseiro, a fumaça voltou a ficar densa: Kerwin teve a sensação de que sua cabeça flutuava. A fumaça parecia conter alguma droga potente, pois a mulher, depois de aspirá-la bem fundo, fitou-o com um brilho súbito e intenso nos olhos.

- Você não é o que parece - as palavras saíam enroladas. -Descobrirá o que procura, mas também destruirá. Era uma armadilha, que não disparou, e por isso o mandaram para a segurança, bem longe, a salvo da nevasca e do banshee, o pássaro-espírito... Encontrará a coisa que deseja, conseguirá destruí-la, mas também a salvará...

Kerwin disse, ríspido:

- Não vim aqui para que lesse minha sorte.

A mulher deu a impressão de que não o ouviu, murmurando palavras de forma quase incoerente. A sala estava escura, exceto pelo brilho do braseiro, e muito fria. Kerwin remexeu-se, impaciente; a mulher fez um gesto imperativo, e ele tornou a ficar quieto, surpreso pela autoridade do movimento. Mas que bruxa velha! O que ela está fazendo agora?

O cristal na mesa, seu próprio cristal, brilhava e tremeluzia; o cristal na armação de vime, entre as mãos esguias da mulher, começou a arder lentamente com um fogo azul.

- Sino Dourado - murmurou a mulher, a voz meio pastosa, as palavras se unindo, virando apenas uma, Cleindori. Ah, Cleindori era linda, e por muito e muito tempo a procuraram, nas colinas no outro lado do rio, mas ela fora para onde não podiam encontrá-la, os tolos orgulhosos e supersticiosos pregando o Sistema de Arilinn...

Toda a luz na sala se concentrava agora no rosto da mulher, uma luz que parecia se irradiar do centro azul do cristal. Kerwin permaneceu sentado em silêncio, enquanto ela olhava para o cristal, e murmurava para si mesma. Ao final, ele pensou que a mulher entrara em transe, se era uma clarividente que podia responder às suas perguntas.

- Quem sou eu?

- É aquele que conseguiram mandar para longe, o graveto retirado da fogueira. Houve outros, mas você era o mais provável. Eles não sabiam, o orgulhoso Comyn, que você lhes fora arrebatado. Que a presa fora escondida dentro da casa do caçador, a folha escondida na floresta. Todos eles, Cleindori, Cassilde, o Terranan, o menino Ridenow...

As luzes no cristal deram a impressão de se fundir numa única chama azul. Kerwin estremeceu, como se fosse lancetado entre os olhos, mas não podia se mexer.

E depois uma cena surgiu diante de seus olhos, clara e nítida, como se impressa no interior de suas pálpebras.

Dois homens e duas mulheres, todos em trajes darkovanos, todos sentados em torno de uma mesa, sobre a qual havia uma matriz de cristal, numa armação; e uma das mulheres, muito frágil, muito bela, inclinava-se para a frente, pegava a armação, apertando com tamanho desespero que as articulações dos dedos ficavam esbranquiçadas. Seu rosto, emoldurado por cabelos vermelhos-claros, parecia familiar... Os homens observavam, concentrados, imóveis. Um deles tinha olhos e cabelos escuros, olhos de animal, e Kerwin ouviu-se pensando O Terráqueo, e compreendeu no fundo de sua mente que contemplava o rosto do homem cujo nome teria, e todos observavam, fascinados, enquanto as luzes frias dançavam no rosto da mulher, como alguma estranha aurora; e logo o ruivo alto subitamente arrancava as mãos da mulher da armação com o cristal; o fogo azul se dissipou, ea mulher arriou desfalecida nos braços do homem moreno...

A cena desapareceu; Kerwin viu nuvens em movimento, uma chuva fria caindo num pátio. Um homem avançava por um corredor de colunas altas, usando um manto adornado com pedras preciosas, amarrado no pescoço; era alto e arrogante, e Kerwin soltou uma exclamação de espanto, ao reconhecer o rosto de sonho de suas recordações mais antigas. A cena mudou para uma câmera de teto alto. As mulheres se encontravam ali, assim como um dos homens. Kerwin via a cena de uma estranha perspectiva, como se estivesse muito alto, ou muito baixo, e compreendeu que se encontrava ali, o horror e o medo súbito fazendo-o tremer. Desviou os olhos do grupo em torno da matriz, contemplou uma porta fechada, percebeu a maçaneta se mexendo, bem devagar. Abruptamente, a porta foi aberta, vultos escuros se adiantaram, correndo...

Kerwin gritou. Não era a sua própria voz, mas a voz de uma criança, esganiçada e apavorada, um brado de total desespero e pânico. Ele tombou para a frente, em cima da mesa, a cena escurecendo diante de seus olhos, os gritos recordados a ressoarem em seus ouvidos, por muito tempo depois de ter voltado a si.

Atordoado, ele se empertigou, passou a mão diante dos olhos, lentamente. A mão ficou molhada de suor pegajoso... ou seriam lágri-mas? Confuso, ele sacudiu a cabeça. Não estava na sala de teto alto, repleta de vagas formas de terror. Encontrava-se na casa de paredes de pedra da velha técnica de matriz; o fogo no braseiro apagara, a sala ficara escura e fria. Mal conseguia divisar a mulher; ela também tombara para a frente, o corpo sobre a mesa, por cima da armação de vime, que virara para o lado, o cristal caindo no tampo da mesa. Só que não havia agora nenhuma luz azul no cristal dela. Apagara, ficara cinza, um pedaço de vidro sem vida.

Kerwin olhou para a mulher, irritado e perplexo. Ela lhe mostrara alguma coisa... mas o que significava? Por que ele gritara? Cauteloso, ele tateou a garganta. A voz saiu trêmula:

- Mas o que tudo isso representa? Imagino que o homem moreno era meu pai. Mas quem eram os outros?

A mulher não falou, nem se mexeu, e Kerwin franziu o rosto. Bêbada, drogada? Não com muita gentileza, ele estendeu a mão para sacudi-la pelo ombro.

- O que aconteceu? O que significa? Quem eram eles?

Como se fosse num pesadelo, num lento movimento, a mulher resvalou para o chão, ficou caída de lado. Praguejando, Kerwin contornou a mesa, ajoelhou-se a seu lado. Mas já sabia o que ia descobrir.

A mulher estava morta.

 

A GARGANTA de Kerwin ainda doía, e ele sentia a histeria dominá-lo.

Todas as portas se fecham na minha cara!

Ele fitou a mulher morta com compaixão, com um angustiado sentimento de culpa. Arrastara-a para aquela situação, e agora ela morrera. Aquela mulher desconhecida e desgraciosa, cujo nome nem sequer conhecia, fora envolvida no destino misterioso que o perseguia.

Kerwin olhou para a matriz da mulher, cinza e sem vida, em cima da mesa. Teria morrido junto com a mulher? Cauteloso, ele pegou sua matriz, guardou na bolsinha, tornou a contemplar a mulher, com pesar, com um inútil pedido de desculpas, antes de sair para chamar a polícia.

Não demoraram a chegar, de uniforme verde, darkovanos da Guarda da Cidade - o equivalente à polícia metropolitana - nada satisfeitos com a presença de um terráqueo ali, o que deixaram transparecer logo no início. Relutantes, com uma rígida polidez, concederam-lhe o direito legal de chamar um cônsul terráqueo, antes de ser interrogado, um privilégio a que Kerwin preferia renunciar. Não estava nem um pouco ansioso em deixar que o QG tomasse conhecimento de suas atividades.

Fizeram-lhe perguntas, e não ficaram satisfeitos com as respostas. Kerwin nada escondeu, exceto a existência de sua própria matriz, e por que viera consultar a mulher. Ao final, no entanto, como não havia qualquer marca de violência na mulher, nem de agressão sexual, e porque um médico terráqueo e outro darkovano atestaram que ela morrera de um ataque cardíaco, deixaram-no ir embora, levando-o sob escolta até a entrada do espaço-porto. Despediram-se de Kerwin ali, com um formalismo sombrio, que o advertia, sem necessidade de palavras,

que se fosse encontrado de novo naquela parte da cidade não seriam responsáveis pelo que poderia lhe acontecer.

Ele pensou naquele momento que já vira o pior, chegara a um beco sem saída, com uma mulher morta. Sozinho em seus aposentos, andando de um lado para outro, como um animal enjaulado, revisou a situação várias vezes, tentando encontrar algum sentido.

Tinha de haver um propósito por trás de tudo aquilo! Alguém, ou alguma coisa, estava determinado a impedir que ele descobrisse seu passado. O homem e a mulher, recusando-se a ajudá-lo, haviam dito "Não podemos nos intrometer nos assuntos de vai leroni".

Kerwin não conhecia o termo. Tentou decifrar seus componentes. Vai era apenas um adicional honorífico, significando mais ou menos digno, ou excelente; como em vai dom, que significava digno lorde, bom senhor, Sua Excelência, dependendo do contexto. Leroni ele encontrou no dicionário sob leronis (singular, dialeto das montanhas), uma palavra definida como "provavelmente deriva de laran, significando poder ou direito de herança, em particular o poder psíquico herdado; leronis pode ser em geral traduzida como feiticeira".

Mas, Kerwin especulou, franzindo o rosto, quem eram as vai leroni, as dignas feiticeiras, e por que naquele mundo - em qualquer mundo -alguém haveria de acreditar que ele se achava envolvido em seus assuntos?

A campainha do aparelho de intercomunicação interrompeu seus pensamentos; Kerwin ouviu um grunhido irritado, e atendeu, para deparar com o rosto do Legado na tela.

- Suba até a Administração, Kerwin... imediatamente!

Ele obedeceu, subindo pelos elevadores até a cobertura, onde ficava o gabinete do Legado. Enquanto esperava, na ante-sala, estremeceu ao divisar pela porta aberta dois homens no uniforme verde da Guarda da Cidade; eles logo saíram, ladeando um homem alto e empertigado, de cabelos prateados, cujos trajes suntuosos, com um manto curto, em azul e prata, com algumas pedras preciosas, indicavam que" pertencia à aristocracia darkovana. Os três fitaram Kerwin, que experimentou a sensação aflitiva de que o pior ainda estava para vir.

A recepcionista gesticulou para que ele entrasse. O Legado recebeu-o de cara amarrada, e desta vez não o convidou a sentar.

- Então é o darkovano - disse ele, com alguma rudeza. Eu deveria ter imaginado. Em que se meteu agora?

Ele fez uma pausa, mas não esperou pela resposta de Kerwin, e logo continuou:

- Você foi advertido. Meteu-se numa encrenca antes de completar vinte e oito horas aqui. Como se não fosse suficiente, tinha de arrumar mais problemas.

Kerwin abriu a boca para responder, mas o Legado não lhe deu tempo.

- Chamei sua atenção para a situação em Darkover. Vivemos aqui sob uma trégua frágil, na melhor das hipóteses, e temos vários acordos com os darkovanos. Entre os quais o compromisso de manter os turistas intrometidos longe da Cidade Velha.

A injustiça deixou Kerwin furioso.

- Não sou um turista, senhor! Nasci e fui criado aqui...

- Poupe seu fôlego. Deixou-me bastante curioso para investigar a história que me contou de ter nascido aqui. É evidente que inventou a coisa toda, por alguma razão obscura, pois não há registro de nenhum Jeff Kerwin no Serviço... exceto o criador de problemas que tenho na minha frente neste momento!

- Isso é mentira! - explodiu Kerwin.

Ele tratou de se conter no mesmo instante. Vira o aviso de bloqueio do arquivo, o acesso só permitido por um código de alta prioridade. Mas subornara o operador, que lhe dissera que aquilo poderia custar seu emprego.

- Este não é um mundo para intrometidos e encrenqueiros -continuou o Legado. Eu o adverti uma vez, mas soube que andou bisbilhotando por aí...

Kerwin respirou fundo, fez um esforço para esclarecer sua posição de maneira calma e objetiva:

- Senhor, se inventei tudo isso do nada, por que alguém se incomodaria com minha suposta "bisbilhotice", como diz? Não percebe que isso comprova minha história... que há alguma coisa estranha acontecendo aqui?

- Tudo o que prova para mim é que você é maluco, com um complexo de perseguição, a idéia absurda de que estamos todos envolvidos numa conspiração para impedi-lo de descobrir alguma coisa.

- Parece muito lógico quando expressa nesses termos, não é mesmo? - murmurou Kerwin, com uma profunda amargura.

- Muito bem, dê-me um bom motivo, qualquer um, para que alguém se dê ao trabalho de conspirar contra um servidor civil subalterno, filho... como você alega... de um espaçonauta do Império, um homem de que ninguém jamais ouviu falar? Por que você seria tão importante assim?

Kerwin fez um gesto de impotência. O que podia responder? Sabia que os avós haviam existido, e que fora despachado de volta para eles, mas se não havia registro em Darkover de nenhum Jeff Kerwin, além dele próprio, o que podia dizer? Por que a mulher no orfanato mentiria? Ela própria dissera que gostavam de manter contato com os meninos que haviam passado por lá. Que prova ele tinha? Inventara tudo, a partir de seus sonhos? Sua sanidade parecia abalada.

Com um longo suspiro, ele deixou as lembranças partirem, abandonou o sonho.

- Muito bem, senhor, sinto muito. Não tentarei descobrir mais nada...

- Nem terá a oportunidade, pois não estará mais aqui.

- Não estarei...

Alguma coisa perfurou o coração de Kerwin, como uma faca gelada. O Legado acenou com a cabeça, exibindo uma expressão sombria.

- Os Anciãos da Cidade puserem seu nome numa lista de persona non grata. E mesmo que isso não tivesse acontecido, a política oficial é afastar todo mundo que se envolver nos assuntos nativos.

Kerwin experimentou a sensação de um golpe atordoante; permaneceu imóvel, sentindo o sangue se esvair do rosto, frio e sem vida.

- Como assim, senhor?

- Eu pedi sua transferência. Pode chamar assim, se quiser. Meteu o nariz em cantos demais, e agora vamos providenciar para que isso não se repita. Embarcará na próxima nave que sair daqui.

Kerwin abriu a boca, logo tornou a fechá-la. Apoiou-se na beira da mesa do Legado, sentindo que cairia, se não o fizesse.

- Está querendo dizer que serei deportado?

- É mais ou menos isso. Na prática, não chega a ser isso, é claro. Assinei a determinação como se fosse um pedido rotineiro de transferência; Deus sabe que temos muita gente querendo sair daqui. Tem uma ficha limpa, e lhe darei todas as recomendações. Dentro dos limites razoáveis, pode obter qualquer novo posto por antigüidade. Converse a respeito com o pessoal de controle...

Sentindo um aperto cada vez maior na garganta, Kerwin balbuciou:

- Mas, senhor, Darkover...

Ele parou. Era o seu lar, o único lugar em que queria ficar. O Legado balançou a cabeça, como se pudesse ler os pensamentos de Kerwin. Parecia cansado, desanimado, um velho enfrentando um mundo complexo demais para ele.

- Sinto muito, filho - murmurou ele, gentilmente. Acho que sei como se sente. Mas tenho um trabalho a realizar, e não disponho de muita liberdade de ação. Não há outro jeito; terá de embarcar na próxima nave. E não apresente um pedido para voltar, porque não vai conseguir.

Ele levantou-se, estendeu a mão, e acrescentou:

- Sinto muito, filho.

Kerwin não apertou a mão estendida. O rosto do Legado endureceu.

- Está suspenso de todo e qualquer dever, a partir deste momento. No prazo de vinte e oito horas, quero um pedido de transferência formal, com o novo posto que desejar; se dependesse de mim, eu o mandaria para a colônia penal em Lúcifer Delta. Ficará confinado a seus aposentos até a partida.

Ele se inclinou para sua mesa, ficou mexendo nos papéis que havia ali, e concluiu, sem levantar a cabeça:

- Pode se retirar.

Kerwin saiu. Perdera... e perdera tudo. Era grande demais para ele, o mistério com que se defrontava; esbarrara em alguma coisa muito além de sua capacidade.

O Legado mentira. Soubera disso, quando o homem lhe estendera a mão, ao final da conversa. O Legado se vira obrigado a mandá-lo para o exílio, embora não estivesse querendo...

Retornando a seus aposentos desolados, Kerwin disse a si mesmo para não bancar o tolo. Por que o Legado haveria de mentir? Será que ele não passa de um sonhador, com mania de perseguição, compensando a orfandade na infância com ilusões de grandeza?

Ficou andando de um lado para outro, irrequieto, foi até a janela, contemplou o sol vermelho, mergulhando para as colinas. O sol sangrento. Algum poeta romântico dera esse nome à estrela de Cottman, há muito tempo. Enquanto a rápida escuridão se espalhava ao redor, ele cerrou os punhos, olhando para o céu.

Darkover. É o fim de Darkover para mim. O mundo para o qual me empenhei em voltar, agora torna a me repelir. Fiz tudo para chegar aqui, mas foi em vão. Só tive frustração, portas fechadas, morte...

A matriz é real. Não sonhei com isso, nem inventei. E a matriz pertence a Darkover...

Ele tirou a pedra da bolsinha. De alguma forma, era a chave para o mistério, a chave para todas as portas batidas em sua cara. Talvez devesse tê-la mostrado ao Legado... Não. O Legado sabia muito bem que Kerwin dizia a verdade, mas optara, por algum motivo, por não admitir. Confrontado com a matriz, ele simplesmente inventaria outra mentira.

Kerwin se perguntou como sabia que o homem mentia. Mas tinha certeza. Sem a menor sombra de dúvida, sem qualquer hesitação, sabia que o homem mentia, por alguma razão obscura. Mas por quê?

Ele fechou a cortina, contra a escuridão lá fora, quebrada apenas pelas luzes do espaço-porto. Pôs o cristal em cima da mesa. Hesitou por um momento, vendo em sua mente a imagem da mulher caída na morte, o terror que o dominara...

Vi alguma coisa quando ela olhava para a matriz, mas não consigo recordar o que era. Só lembro que me deixou apavorado... Um rosto de mulher aflorou em sua mente, vultos escuros numa porta se abrindo... Kerwin cerrou os dentes contra o fluxo de pânico, arremeteu contra a porta fechada de sua memória, mas não foi capaz de lembrar mais; apenas o medo, o grito numa voz de criança, e a escuridão.

Disse a si mesmo, com firmeza, para não ser tolo. O tal de Ragan usara aquele cristal, e não lhe fizera mal algum. Contrafeito, ele protegeu os olhos com as mãos, concentrou-se na pedra, como a mulher fizera.

Nada aconteceu.

Talvez houvesse um jeito especial, talvez devesse procurar Ragan, persuadi-lo a explicar como usar a pedra, ou mesmo suborná-lo. Só que era tarde demais para isso agora. Ele continuou a olhar fixamente para o cristal, e por um instante teve a impressão de que uma luz fraca faiscava em seu interior, como chamas azuis, deixando-o meio tonto. Mas logo o brilho se desvaneceu. Kerwin balançou a cabeça. Tinha uma cãibra no pescoço, e os olhos o iludiam, isso era tudo. O velho truque de "olhar o cristal" era apenas uma forma de auto-hipnose, contra a qual tinha de se precaver.

Mas a luz persistiu. Era como um pequeno ponto de cor a se movimentar no interior do cristal. Cintilou de repente, e Kerwin teve um sobressalto; era como um ferro em brasa encostando em algum ponto de seu cérebro. E foi então que ouviu uma coisa, uma voz muito distante, chamando seu nome... não, não era isso. Não havia palavras. Mas a voz falava com ele, só com ele, mais ninguém, uma mensagem pessoal. Algo como Você, estou vendo você.

Ou, mais preciso, Eu reconheço você.

Atordoado, ele sacudiu a cabeça, apertou com força a beira da mesa. A cabeça doía, mas não podia parar agora. Parecia que podia ouvir alguém falar, apenas algumas sílabas ao acaso... mais um murmúrio, talvez várias vozes, surgindo e desaparecendo, no limiar de sua percepção, como um regato sussurrante, ao passar por pedras no fundo do leito.

Com toda certeza, é ele mesmo.

Não pode lutar contra isso agora.

Cleindori se empenhou demais para que a oportunidade seja desperdiçada.

Ele sabe o que tem, ou o que está acontecendo?

Tome cuidado] Não lhe faça mal! Ele não está acostumado...

Um bárbaro, Terranan...

Para que ele nos seja útil, de alguma forma, terá de encontrar seu caminho sozinho, sem ajuda, e é um teste que devo exigir.

Precisamos demais dele. Deixe-me ajudá-lo...

Será que precisamos mesmo? Um Terranan...

A voz parecia com a do ruivo no Sky Harbor Hotel. Mas quando Kerwin virou-se, meio esperando deparar com o homem entrando em seu quarto, não havia ninguém ali, e as vozes desapareceram.

Ele inclinou-se para a frente, os olhos fixados no cristal. E de repente, como se estivesse se expandindo, preenchendo todo o quarto, viu o rosto de uma mulher.

Por um instante, por causa do brilho dos cabelos vermelhos, pensou que era a jovem que encontrara no hotel, Taniquel. Só depois percebeu que nunca vira aquele rosto antes.

Os cabelos eram vermelhos, mas bem pálidos, quase mais dourados do que ruivos; era pequena e franzina, o rosto redondo, infantil, imaculado. Não podia estar muito longe da adolescência, refletiu Kerwin. Fitava-o com olhos enormes e sonhadores, só que parecia contemplar alguma coisa além dele.

Tenho fé em você, disse a mulher, de alguma forma, sem palavras, ou pelo menos as palavras não eram pronunciadas, apenas ressoavam em sua cabeça, e precisamos tanto de sua ajuda que convenci os outros. Venha.

Kerwin cerrou as mãos sobre a mesa.

- Para onde? - gritou ele. - Para onde?

Mas o cristal era todo azul de novo, sem qualquer luz cintilando lá dentro, a estranha jovem sumira; ele pôde ouvir seu próprio grito ecoando em vão pelas paredes.

Ela estivera mesmo ali? Kerwin enxugou a testa, úmida de um suor frio. Fora sua própria ânsia que tentara proporcionar uma resposta? Ele tornou a guardar o cristal. Não podia perder tempo com aquilo. Precisava se preparar para a viagem pelo espaço, vender tudo o que comprara, e deixar Darkover, para nunca mais voltar. Deixaria seus sonhos para trás, junto com o resto de sua juventude. Deixaria para trás as recordações vagas, os sonhos que tanto o assediavam, aqueles fogos-fátuos que quase o levavam à destruição. Iniciaria uma vida nova em algum lugar, uma vida de certa forma mais restrita, limitada pelo aviso de PROIBIDA A ENTRADA dos antigos anseios e esperanças, criaria uma vida com os fragmentos das antigas aspirações, uma vida de amargura e resignação...

E de repente algo aflorou dentro de Jeff Kerwin, algo que nada tinha a ver com o submisso funcionário de ComTerra, algo que se ergueu, apoiado nas patas traseiras, em fúria, e disse, de forma clara, inconfundível e inexorável: Não!

Não tinha de ser assim. Os Terranan nunca poderiam obrigá-lo a partir.

Quem eles pensam que são, afinal, esses malditos intrusos em nosso mundo?

A voz do cristal? Não, pensou Kerwin, a voz interior de sua própria mente, rejeitando de um modo categórico as ordens do Legado. Aquele era o seu mundo, e não podiam forçá-lo a ir embora.

Kerwin compreendeu que se movia agora de uma forma automática, sem pensar, como se fosse um outro eu, há muito adormecido, que tivesse assumido o comando. Observou-se a circular pelo quarto, recolhendo algumas coisas, descartando a maior parte do que era seu. Meteu meia dúzia de lembranças nos bolsos, deixou o resto ali. Guardou a matriz na bolsinha presa na corrente em seu pescoço, escondeu por dentro da túnica. Começou a desabotoar o uniforme, mas logo deu de ombros, deixou-o como estava, foi até o armário, pegou o manto darkovano bordado que comprara em sua primeira noite em Thendara. Vestiu-o, ajeitou nos ombros, prendeu os ganchos. Contemplou-se no espelho. Depois, sem olhar para trás, deixou seus aposentos, passando pela periferia de sua mente o pensamento de que nunca mais tornaria a vê-los.

Atravessou o corredor do dormitório de solteiros, passou pelo refeitório comunitário. Parou na porta externa, e uma voz interior, clara e incisiva, disse não, não agora, espere.

Sem entender, mas aceitando o pressentimento - o que mais podia ser? - ele sentou e esperou. Estranhamente, não se sentia nem um pouco impaciente. A espera tinha a mesma certeza cautelosa de um gato diante do buraco do rato, uma segurança absoluta. Ficou quieto, as mãos cruzadas, assoviando uma melodia monótona. Não havia a menor apreensão. Meia hora transcorreu, uma hora, uma hora e meia; ele começou a sentir cãibras nos músculos, mudou de posição, numa reação automática, para aliviar a tensão, mas continuou a esperar, sem saber por quê.

Agora.

Ele se levantou, foi para o corredor deserto. Enquanto andava, apressado, descobriu-se a especular se não haveria uma ordem para sua captura, caso fosse encontrado fora dos aposentos. Concluiu que sim. Não tinha planos, exceto o básico, de se recusar a obedecer à ordem de deportação. Isso significava que devia de alguma forma escapar, não apenas do QG, mas também da área do espaço-porto, de toda a Zona Terráquea, sem ser observado. Não sabia o que faria depois; e por mais estranho que pudesse parecer, não se importava.

Ainda seguindo o insólito pressentimento, Kerwin deixou o corredor principal, onde poderia se encontrar com conhecidos de folga, voltando a seus alojamentos, e encaminhou-se para um elevador de carga, pouco usado. Disse a si mesmo que deveria tirar o manto darkovano; se alguém o encontrasse a usá-lo dentro do QG, haveria perguntas, e a conseqüente descoberta. Ergueu a mão para soltar o fecho, pendurar o manto no braço; com o uniforme à vista, seria apenas outro funcionário invisível, andando pelo QG.

Não.

A negativa surgiu em sua mente, clara, inequívoca. Perplexo, ele baixou a mão, continuou com o manto. Saiu do elevador para um passadiço estreito, parou por um instante, a fim de se orientar; não conhecia aquela parte do prédio. Havia uma porta na extremidade do passadiço; abriu-a, e saiu para um saguão lotado. O que parecia ser um turno inteiro de pessoal de manutenção, todos de uniforme, circulava de um lado para outro, deixando o serviço. E inúmeros darkovanos, em seus trajes coloridos, usando mantos compridos, encaminhavam-se para a porta externa e os portões além. Kerwin, a princípio assustado com a multidão, logo percebeu que ninguém prestava a menor atenção nele. Devagar, com toda discrição possível, avançou pela multidão, conseguiu se juntar ao grupo de darkovanos. Calculou que formavam alguma delegação, ou um dos comitês que ajudavam a administrar a Cidade Comercial. Constituíam um fluxo determinado na multidão, todos seguindo na mesma direção. Kerwin, acompanhando-os, deixou o QG, saiu para a rua, atravessou os portões. Os guardas da Força Espacial lançaram aos darkovanos e a Kerwin apenas olhares superficiais.

Fora dos portões, os darkovanos se dividiram em grupos de dois e três, conversando, andando devagar. Um deles lançou a Kerwin um olhar polido de não-reconhecimento e indagação, mas ele murmurou uma frase formal, e tratou de se afastar, seguindo ao acaso por uma rua transversal.

A Cidade Velha já se encontrava imersa nas sombras. O vento soprava frio, e Kerwin estremecia um pouco, apesar do manto. Para onde iria agora?

Ele hesitou na esquina da rua em que ficava o restaurante onde confrontara Ragan. Deveria ir até lá, procurar Ragan, descobrir se o outro poderia ajudá-lo?

Outra vez ouviu um não inconfundível do mentor interior. Kerwin se perguntou se não estaria imaginando coisas, racionalizando. Mas não importava, de um jeito ou de outro.pois fora assim que conseguira deixar o QG; portanto, o que quer que significasse o pressentimento que o guiava, continuaria a segui-lo, pelo menos por mais algum tempo. Olhou para trás, na direção do prédio do QG, já meio encoberto pela densa neblina, e depois virou as costas, como se fechasse uma porta mental. Era o fim daquilo. Cortara as amarras, e não podia mais voltar.   .

Uma estranha paz pareceu envolvê-lo, com tal decisão. Em passos apressados, ele foi se afastando da área da Cidade Comercial.

Nunca se aventurara tão longe pela Cidade Velha, nem mesmo no dia em que procurara a velha mecânica de matriz, o dia que terminara com a morte da mulher. Por ali, os prédios eram antigos, construídos com a mesma pedra translúcida, e um vento frio soprava. Havia bem poucas pessoas nas ruas àquela hora; de vez em quando, um transeunte solitário, um trabalhador vestindo um dos blusões importados, passava por ele, a cabeça inclinada contra o vento; cruzou com uma mulher carregada numa liteira por quatro homens; e quase esbarrou com um não-humano, que se movia silenciosamente, ao abrigo de um prédio, e lançou-lhe um olhar insidioso.

Um grupo de garotos, esfarrapados, descalços, avançou em sua direção, como se tencionasse assediá-lo com pedidos de esmolas; mas eles recuaram de repente, sussurrando uns para os outros, e depois saíram correndo. Seria por causa do manto cerimonial, dos cabelos vermelhos que podiam divisar sob o capuz?

A neblina em movimento era cada vez mais densa; a neve começou a cair, em enormes flocos; e Kerwin compreendeu que se encontrava irremediavelmente perdido em ruas desconhecidas. Caminhara quase a esmo, virando em esquinas por impulso, com aquela sensação estranha, quase de sonho, de que não importava para onde fosse. Agora, numa imensa praça, tão desconhecida que nem podia calcular que distância percorrera, ele parou, balançou a cabeça, recuperou a percepção normal.

Por Deus, onde estou? E para onde vou? Não posso vaguear durante toda a noite, sob uma nevasca, mesmo usando um manto darkovano por cima do uniforme! Deveria ter procurado, logo de início, um lugar para me esconder por algum tempo; ou deveria ter deixado a cidade antes que dessem por minha falta!

Atordoado, ele olhou ao redor. Talvez devesse tentar retornar ao QG, aceitar qualquer punição que lhe aplicassem. Não. Assim, só teria o exílio. Já definira essa parte. Mas o insólito pressentimento que o guiara até ali parecia ter se desvanecido, abandonando-o por completo. Ele ficou olhando para um lado e outro, removendo a neve que caía em seu rosto, tentando decidir para que lado seguir. Num lado da praça, havia uma fileira de pequenas lojas, todas fechadas para a noite. Kerwin enxugou o rosto úmido com a manga, olhando através dos flocos de neve para uma casa isolada; uma mansão, na verdade, a residência na cidade de algum nobre. Havia luzes acesas lá dentro, e ele podia divisar vultos escuros através das paredes translúcidas. Atraído para as luzes, quase como se fossem um ímã, Kerwin atravessou a praça, parou de novo diante do portão entreaberto. Podia ver um lance de degraus, que levava a uma porta grande, toda talhada. Hesitou, tentando resistir à atração invisível daquela porta.

O que estou fazendo? Não posso simplesmente abrir a porta e entrar, penetrar numa casa estranha! Será que enlouqueci por completo?

Não. Este é o lugar. Estão à minha espera.

Ele disse a si mesmo que aquilo era uma loucura; mas seus passos o levaram em frente, em movimentos automáticos, na direção do portão. Estendeu a mão, tocou-o; como nada aconteceu, abriu-o, passou. Tornou a parar no primeiro degrau. A sanidade e a loucura se digladiavam em sua mente, e a pior parte era que Kerwin não sabia o que era o quê.

Veio até aqui. Não pode parar agora.

Está bancando o idiota consumado, Jefferson Andrew Kerwin. Trate de ir embora... vire as costas, e se afaste depressa, antes de se envolver em alguma coisa que não poderá realmente controlar. Não apenas algo previsível, como ser atacado e roubado num beco escuro.

Passo a passo, ele subiu os degraus escorregadios. Tarde demais para voltar agora. Kerwin pôs a mão na maçaneta, registrando na periferia de sua mente que tinha a forma de uma fênix. Virou-a lentamente, abriu a porta, e entrou na casa.

A quilômetros de distância, na Zona Terráquea, um homem acionara um comunicador, e pedira um circuito de prioridade, especialmente codificado, para falar com o Legado.

- Seu pássaro voou - anunciou ele.

O rosto do Legado na tela manteve-se impassível.

- Era o que eu esperava. Bastava pressionar um pouco, e eles teriam de tomar uma iniciativa. Eu sabia que não permitiriam que o deportássemos.

- Parece certo demais, senhor. Ele me dá a impressão de ser um tanto independente. Talvez tenha apenas saído por conta própria, pulado para o outro lado do muro. Não seria o primeiro. Nem mesmo o primeiro com o nome de Kerwin.

O Legado deu de ombros.

- É o que descobriremos em breve.

- Queria que ele fosse seguido? A resposta foi imediata:

- Não, claro que não! Eles não são nada tolos. No estado em que se encontrava, Kerwin talvez não percebesse que o seguiam, mas eles com certeza saberiam. É melhor deixá-lo partir, sem restrições. O movimento é deles neste momento. Agora... nós esperamos.

- É o que fazemos há mais de vinte anos - resmungou o homem.

- E se for preciso, esperaremos mais vinte anos. Mas o catalisador já foi acionado; creio que, de alguma forma, não vai mais demorar muito tempo. Vamos esperar para ver.

A tela ficou vazia. Depois de algum tempo, o Legado apertou outro botão, e bateu um código de acesso especial, com a indicação de KERWIN.

Parecia muito satisfeito.

 

Kerwin parou, piscando, contra o calor e a claridade do espaçoso vestíbulo. Tornou a enxugar a neve do rosto, e por um momento só pôde ouvir o vento e a neve lá fora, batendo contra a porta fechada. No instante seguinte, uma risada estridente rompeu o silêncio dentro da casa.

- Elorie ganhou! - exclamou uma voz feminina, que parecia familiar a Kerwin. Eu sabia!

Uma grossa cortina de veludo foi aberta, à frente dele, e uma moça apareceu, esguia, cabelos vermelhos, usando um vestido verde de gola alta, com um rosto atraente. Ria para ele. Dois homens também passaram pela cortina, e Kerwin se perguntou se não se encontrava em algum sonho... ou pesadelo. Pois eram os três ruivos do Sky Harbor Hotel; a jovem bonita era Taniquel, acompanhada pelo felino e arrogante Auster, e pelo homem corpulento e cortês que se apresentara como Kennard. Foi Kennard quem falou agora:

- Você duvidou, Tani?

- O Terranan!

Auster parou, com uma expressão furiosa. Kennard passou por Taniquel, e aproximou-se de Kerwin, que se sentia atordoado, pensando que deveria pedir desculpas pela intromissão. Kennard parou a um ou dois passos de Kerwin, e disse:

- Seja bem-vindo de volta, meu rapaz.

Auster fez um comentário sarcástico, os lábios se contraíram num sorriso irônico. Kerwin murmurou, balançando a cabeça:

- Não estou entendendo.

- Como encontrou esta casa? - perguntou Kennard.

Aturdido demais para dizer outra coisa que não a verdade, Kerwin respondeu:

- Não sei. Apenas vim para cá. Acho que foi por algum pressentimento.

- Nada disso - declarou Kennard, solene. - Foi um teste, e você passou.

- Um teste?

Kerwin sentiu-se de repente furioso e apreensivo, ao mesmo tempo. Desde que desembarcara em Darkover que alguém tentava pressioná-lo em alguma direção; e agora que fizera o que julgara ser um movimento independente, para se livrar das pressões, descobria que o haviam atraído para aquela casa.

- Acho que eu deveria ser grato, mas tudo o que quero neste momento é uma explicação. Um teste? Para quê? Quem são vocês? O que querem comigo? Ainda estão me confundindo com outro? Quem pensam que eu sou?

- Não é quem, mas o quê - disse Taniquel. Kennard falou ao mesmo tempo:

- Sabíamos quem você era durante todo o tempo. O que precisávamos descobrir...

Os dois pararam de falar, olharam um para o outro, e riram. Depois, a moça acrescentou:

- Conte a ele, Ken. Afinal, é seu parente.

Kerwin fitou-os com uma irritação ostensiva, enquanto Kennard voltava a falar:

- Somos todos seus parentes, no final das contas; mas eu sabia quem você era, ou pelo menos adivinhei, desde o início. E se não soubesse, sua matriz teria me revelado, pois já a tinha visto antes, até trabalhei com ela. Mas precisávamos testá-lo, verificar se possuía o laran herdado, se era mesmo um dos nossos.

Kerwin franziu o rosto.

- Como assim? Sou um terráqueo. Kennard balançou a cabeça.

- Pode ser. Mas, entre nós, a criança assume a posição e o privilégio do ascendente de casta superior. E sua mãe era uma mulher do Comyn, minha irmã de adoção, Cleindori Aillard.

Houve um súbito silêncio, enquanto Kerwin ouvia a palavra Comyn ressoar pela sala.

- Lembre-se que o tomamos por um dos nossos, naquela noite no Sky Harbor Hotel - acrescentou Kennard, depois de um momento. Não estávamos tão enganados quanto pensamos... ou como você nos disse.

Auster tornou a interromper, com algum comentário incompreensível. Era estranho como ele podia entender tudo o que Kennard e Taniquel falavam, mas não compreendia uma só palavra de Auster.

- Sua irmã de adoção? - repetiu Kerwin. Quem é você?

- Kennard-Gwynn Lanart-Alton, herdeiro de Armida. Sua mãe e eu fomos criados juntos; e também somos parentes de sangue, embora o relacionamento seja... complicado. Quando Cleindori... morreu... você foi levado embora, durante a noite, por meios furtivos. Tentamos encontrá-lo, mas havia naquela ocasião...

Ele hesitou por um momento.

- Não estou tentando ser reservado, dou-lhe minha palavra; acontece apenas que não imagino como posso explicar tudo sem fazer um longo relato das complicações políticas que ocorreram nos Domínios há cerca de quarenta anos. Havia... problemas, e quando descobrimos onde você se encontrava, resolvemos deixá-lo lá por algum tempo; pelo menos estava seguro. Quando podíamos tentar recuperá-lo, eles já o haviam mandado para a Terra, e só nos restava esperar. Tive uma certeza quase absoluta de quem você era naquela noite no hotel. E depois que sua matriz entrou em sintonia com uma das telas de monitor...

- Como?

- Não dá para explicar agora. Assim como também não posso explicar a estupidez de Auster quando o encontrou no bar, a não ser por ele ter bebido. Mas você também não se mostrou cooperativo.

Auster tornou a explodir num discurso ininteligível, e Kennard gesticulou para que ele se calasse.

- Poupe seu fôlego, Auster, pois ele não está entendendo nada. Seja como for, você passou no primeiro teste, o que indica que possui um laran rudimentar... E por quem é, assim como por outras coisas, vamos descobrir se tem o suficiente para nos ser útil. Aposto que você quer permanecer em Darkover, e lhe oferecemos essa oportunidade.

Atordoado, ainda desequilibrado, e sentindo em algum lugar de seu íntimo que as explicações de Kennard só serviam para confundir ainda mais a situação, Kerwin não foi capaz de falar nada.

Mas seguira seu pressentimento; e se o levara da frigideira para o fogo, só podia agradecer a si mesmo.

Ora, estou aqui, pensou ele. O único problema é que não tenho a menor noção de onde esse "aqui" é!

- Que lugar é este? É... - Kerwin fez uma pausa, e repetiu a palavra que ouvira Kennard pronunciar: Armida?

Kennard sacudiu a cabeça, rindo.

- Armida é a Casa Grande do Domínio de Alton. Fica nas Colinas Kilghard, a mais de um dia de viagem daqui. Esta é a casa em Thendara que pertence à minha família. A atitude racional seria levá-lo para o Castelo Comyn, mas alguns do Comyn não queriam se envolver com...

- ele hesitou - ...esta experiência, até saberem o que aconteceria, de um jeito ou de outro. E era melhor evitar que pessoas demais tomassem conhecimento dos fatos.

Kerwin correu os olhos pelas ricas tapeçarias, as cortinas suntuosas. O lugar parecia familiar, de alguma forma, mas ao mesmo tempo estranho, perdido nos sonhos antigos, quase esquecidos. Kennard respondeu ao pensamento que ele não formulara em voz alta:

- Talvez você tenha estado aqui, umas poucas vezes. Quando era bem pequeno. Mas duvido que possa se lembrar. De qualquer maneira...

- ele olhou para Taniquel e Auster, antes de acrescentar - e devemos partir logo. Quero deixar a cidade o mais depressa possível. E Elorie nos espera.

Kennard fez uma pausa, e seu rosto assumiu uma expressão sombria.

- Não preciso lhe dizer que há... algumas pessoas... que não gostam do que planejamos, e queremos apresentar a elas um fato consumado - seus olhos pareceram penetrar pelos de Kerwin. Já foi atacado uma vez, não é?

Kerwin não perdeu tempo a especular como Kennard sabia disso.

- É, sim.

A expressão de Kennard se tornou ainda mais sombria.

- A princípio, pensei que Auster estava por trás, mas ele me jurou que não teve qualquer participação. Eu esperava... esses antigos ódios, superstições, medos... eu esperava que tivessem sido dissipados pela passagem de uma geração.

Ele suspirou, olhou para Taniquel.

- Só peço um instante para me despedir das crianças, e depois estarei pronto para partir com vocês.

Uma pequena aeronave, sacudida pelos ventos e correntes traiçoeiros, sobre os picos escarpados das montanhas, voava através do amanhecer vermelho. Haviam deixado a tempestade para trás, mas o terreno irregular lá embaixo era encoberto por um denso nevoeiro.

Kerwin sentava com as pernas dobradas por baixo do corpo, numa posição desconfortável, observando Auster manipular os controles invisíveis. Não teria escolhido partilhar a pequena cabine do piloto com Auster, mas mal havia espaço para Kennard e Taniquel no pequeno compartimento lá atrás, e ele não fora consultado sobre sua preferência. Ainda se sentia atordoado pela rapidez dos acontecimentos; quase que de imediato, haviam-no levado para um pequeno campo de pouso, na beira da cidade, embarcando-o naquele aparelho. Pelo menos, pensou ele, irônico, agora sabia mais do que o Legado terráqueo, que não podia imaginar que uso os darkovanos davam aos aviões que compravam.

Kerwin ainda não sabia o que queriam com ele, mas não sentia medo. Não se mostravam particularmente amigáveis, mas... ora, aceitavam-no, como seus avós tinham feito; nada tinha a ver com seu caráter ou personalidade, ou se gostavam dele - e pelo menos Auster, com toda certeza, não gostava - mas aceitavam-no, como a alguém da família. Era isso, como alguém da família. Mesmo quando Kennard interrompera seu fluxo de perguntas, um tanto brusco, dizendo "Depois! Depois!", não houvera ofensa.

O aparelho não tinha controles visíveis, exceto por alguns botões de regulagem. Auster ajustara um deles ao embarcarem, pedindo desculpas pelo desconforto, uma desagradável vibração, que doía nos ouvidos e dentes de Kerwin. Era necessário, explicara Auster, em palavras relutantes, para compensar a presença de um telepata subdesenvolvido a bordo.

Desde então, Auster de vez em quando inclinava-se para a frente, ligeiramente, de sua posição ajoelhada, passando a mão devagar, como se sinalizasse para algum observador invisível. Ou como se afugentasse moscas, pensou Kerwin. Ele perguntara uma vez o que impulsionava o aparelho.

- A matriz de cristal - respondera Auster.

O que levara Kerwin a contrair os lábios, num assovio silencioso. Nunca imaginara que o poder daqueles cristais sensíveis ao pensamento pudesse ser tão grande. Não era apenas o poder psíquico. Tinha certeza disso. Kerwin calculara, pelo que Ragan dissera e o pouco que vira, que a tecnologia de matriz era uma daquelas ciências que os terráqueos agrupavam sob o nome geral de ciências não-causativas, como a eletromentria e a psicocinese, sobre as quais ele pouco sabia. Eram em geral encontradas em mundos não-humanos.

Apesar de todo o seu fascínio, Kerwin sentia-se assustado. E, no entanto... nunca pensara em si mesmo como um terráqueo, exceto por acidente de nascimento. Darkover era o único lar que já conhecera, e agora sabia que realmente pertencia ao planeta, que de alguma forma tinha parentesco com sua mais alta nobreza, com o Comyn.

O Comyn. Ele sabia pouco a respeito; apenas o que cada terráqueo transferido para Cottman Quatro conhecia, e que não era muito. Formavam uma casta hereditária, e optavam por ter tão pouco relacionamento com os terráqueos quanto era possível, embora cedessem o terreno para o espaço-porto, e permitissem a abertura de Cidades Comerciais. Não eram reis, autocratas, sacerdotes, ou um governo; ele sabia mais sobre o que não eram do que sobre o que eram. Mas tivera um gosto da reverência fanática com que eram tratados aqueles nobres de cabelos vermelhos.

Cauteloso, ele tentou movimentar as pernas, sem esbarrar em nada, enquanto perguntava a Auster:

- Falta muito para chegarmos a essa cidade de vocês?

Auster não se deu ao trabalho de fitá-lo. Era um homem muito magro, com um quê de felino nos ombros e na contração da boca arrogante; mas, de certa forma, também parecia familiar, de um jeito que Kerwin não podia identificar. Mas tinham algum parentesco; Kennard dissera que todos eram parentes. Talvez Auster parecesse com Kennard.

- Não falamos o Cahuenga aqui, e não posso compreendê-lo, nem você a mim, com o amortecedor ligado - respondeu ele, apontando para o pequeno calibrador.

- O que há de errado com o Cahuenga? Você sabe falar muito bem... eu ouvi.

- Somos capazes de compreender qualquer língua humana conhecida - disse Auster, com a arrogância inconsciente que tanto irritava Kerwin - mas os conceitos de nosso mundo só são exprimíveis no contexto de nossa simbologia semântica, e não tenho o menor desejo de conversar em crocodilo com um mestiço sobre questões triviais.

Kerwin resistiu ao impulso de uma reação violenta. Já se cansara daqueles comentários insolentes sobre os homens-lagartos, e ainda mais de Auster repeli-lo cada vez que abria a boca. Jamais conhecera um homem tão fácil de detestar quanto Auster, e se o homem era mesmo seu parente, tinha de concluir que os relacionamentos de sangue não significavam tanto quanto deveriam. Kerwin descobriu-se a especular qual a proximidade do parentesco. Esperava que não fosse muita.

O sol encostava na borda das montanhas quando Auster se remexeu ligeiramente, o rosto satírico relaxou um pouco, e ele apontou para dois picos iguais.

- Ficam ali - disse ele - as planícies de Arilinn, com a Cidade e a Torre.

Kerwin mexeu os ombros com cãibras, e contemplou lá embaixo a cidade de seus antepassados. Daquela altitude, era parecida com qualquer outra cidade, um padrão de luzes, prédios, espaços abertos. O pequeno aparelho começou a descer, num daqueles gestos de afugentar mosca de Auster; Kerwin perdeu o equilíbrio, fez um esforço frenético para recuperá-lo, e involuntariamente caiu para o lado de Auster.

Estava totalmente despreparado para a reação de Auster. O homem esqueceu a operação da aeronave, e com um movimento largo deu um golpe para trás, o cotovelo batendo em Kerwin com toda força. Acertou Kerwin na boca. A aeronave deu um solavanco, virou, e lá atrás Taniquel soltou um grito. Auster, recuperando-se, fez alguns movimentos rápidos para controlar o aparelho.

O primeiro impulso de Kerwin - o de dar um soco nos dentes de Auster, e que se danassem as conseqüências - foi contido de imediato. Ele se manteve em seu lugar, por um ato de vontade, cerrando os punhos para não perder o controle. Mas disse, em Cahuenga:

- Continue a pilotar a aeronave. Se quer uma briga, espere até pousarmos, e terei o maior prazer em satisfazê-lo.

A cabeça de Kennard apareceu na abertura estreita entre as duas cabines; ele disse alguma coisa, em tom inquisitivo, numa língua que Kerwin não conhecia, e Auster respondeu, ríspido:

- Pois então diga a ele para manter as patas de crocodilo longe de mim!

Kerwin abriu a boca - fora o movimento brusco de Auster que o fizera perder o equilíbrio - mas logo tornou a fechá-la. Não fizera coisa alguma de que devesse se desculpar! Kennard declarou, num tom conciliador:

- Kerwin, talvez você não saiba que qualquer movimento repentino pode desviar o aparelho do curso, quando é operado pelo controle de matriz.

Ele olhou para Kerwin, com uma expressão pensativa, depois deu de ombros, e arrematou:

- Seja como for, estaremos pousando dentro de um minuto.

O pequeno aparelho pousou suavemente numa pista com luzes piscando. Auster abriu a porta, e um darkovano moreno, de culote e gibão de couro, encostou uma escada curta.

- Sejam bem-vindos, vai dom'yn - disse ele, erguendo um braço, num gesto cortês, que parecia um pouco com uma continência.

Auster desceu a escada, gesticulando para que Kerwin o seguisse. Kennard também desceu, demonstrando alguma dificuldade para ajeitar os pés nos degraus. Kerwin não percebera antes como o homem mais velho era entrevado; um dos homens à espera se adiantou, deferente, para ajudar Kennard, que aceitou de bom grado o braço estendido para apoiá-lo. Só uma ligeira contração dos lábios revelou a Jeff Kerwin a contrariedade de Kennard por ter de aceitar a ajuda do homem. Taniquel foi a última a desembarcar, parecendo sonolenta, um pouco irritada; disse alguma coisa a Auster, de cara amarrada, e os dois conversam em voz baixa por um momento. Kerwin especulou se eram casados, ou amantes; exibiam uma intimidade descontraída, que ele sempre associara a casais num longo relacionamento. Depois, ela olhou para Kerwin, e balançou a cabeça.

- Há sangue em sua boca. Você e Auster já brigaram?

Havia uma certa malícia zombeteira na voz. Ela inclinou a cabeça para um lado, fitou um e outro. Auster se mostrou furioso.

- Um acidente e um mal-entendido - interveio Kennard.

- Terranan - murmurou Auster.

- Como poderia esperar que ele fosse qualquer outra coisa? -indagou Kennard. E de quem é a culpa por ele não saber nada sobre as nossas leis?

Com um gesto largo, ele atraiu a atenção de Kerwin, e acrescentou:

- Ali está, a Torre de Arilinn.

Erguia-se reta, com uma aparência atarracada, mas era de uma altura incrível, uma construção elegante, com uma pedra marrom, opaca. A visão despertou em Kerwin mais uma sensação de déjà vu. Foi com a voz trêmula que ele disse, contemplando a Torre se projetar contra o céu:

- Eu... já estive aqui antes, senhor? Kennard balançou a cabeça.

- Acho que não. Talvez a matriz... mas não sei. Parece-lhe familiar? Ele pôs a mão de leve no ombro de Kerwin, por um instante, um gesto que surpreendeu o homem mais jovem, tendo em vista o tabu que envolvia o contato físico entre aquelas pessoas. Kennard se apressou em retirar a mão, e acrescentou:

- Não é a mais antiga, nem mesmo a mais poderosa das Torres do Comyn. Mas há uma centena de gerações, mais até, nossas Guardiães têm operado a Torre de Arilinn com uma sucessão ininterrupta de sangue do Comyn apenas.

- E depois de cento e uma gerações - comentou Auster, por trás deles - trazemos para cá o filho de um terráqueo e de uma leronis renegada!

Taniquel virou-se para ele, irritada.

- Vai questionar a palavra de Elorie de Arilinn?

Kerwin se enfureceu. Já agüentara demais; agora, o homem se punha a condenar seus pais! O filho de um terráqueo e de uma leronis renegada... A voz profunda de Kennard interveio, ríspida:

- Auster, já chega. Falei antes de virmos para cá, e vou repetir de novo, pela última vez. O homem não é responsável por seus pais, nem pelos pecados imaginários deles. E Cleindori, devo lembrá-lo, era minha irmã de adoção, além de minha Guardiã. Se falar dela outra vez nesse tom, terá de se ver não com o filho, mas comigo!

Kerwin sentiu olhos curiosos acompanharem-no, enquanto cruzava a pista. O ar era úmido e frio, e passou por sua cabeça que seria agradável se meter sob um teto, se esquentar, relaxar, tomar um banho, beber um drinque, e jantar... não, comer o desjejum. Afinal, passara a noite inteira acordado.

- Tudo no devido tempo - disse Kennard.

Kerwin teve um sobressalto, compreendendo que teria de se acostumar à capacidade de Kennard de ler seus pensamentos.

- Primeiro, terá de se encontrar com os outros que estão aqui -acrescentou Kennard. Como não podia deixar de ser, estamos todos ansiosos em saber a seu respeito, ainda mais os que não tiveram a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente.

Kerwin limpou o sangue que ainda escorria pelo lábio. Desejou que lhe permitissem tomar um banho antes de ser levado à presença de estranhos. Ainda não aprendera que os telepatas raramente prestavam qualquer atenção à aparência exterior de um homem. Ele atravessou o pátio murado de um prédio que parecia com um quartel, e um corredor comprido, fechado por um portão de madeira. Um cheiro familiar indicava que havia cavalos em estábulos nas proximidades. Só quando se aproximaram da Torre é que percebeu que prédios baixos cercavam a Torre. Percorreram mais dois pátios, e chegaram a uma arcada que tremeluzia com uma neblina tênue, com as cores do arco-íris. Kennard parou, e disse a Kerwin:

- Nenhum humano vivo, exceto aqueles com sangue puro e ininterrupto do Comyn, jamais cruzou este Véu.

Kerwin deu de ombros. Sentiu que deveria ficar impressionado, ou algo assim, mas sua capacidade para a surpresa se esgotara quase que por completo. Estava cansado e faminto, não dormia há quarenta e oito horas, e se irritou ao perceber que todos os outros, inclusive Auster, observavam à espera do que ele diria ou faria.

- O que é isto? - indagou ele. Um novo teste? Minha cartola está cheia de coelhos, mas vocês é que escrevem o roteiro. É por aqui que temos de passar?

Os outros continuaram a esperar, e por isso Kerwin respirou fundo, e avançou para o arco-íris tremeluzente.

Experimentou uma sensação elétrica, como se espetado por mil agulhas, como se todo seu corpo fosse um pé que ficara dormente. Ao olhar para trás, não pôde divisar os outros, exceto como sombras indistintas. Subitamente, começou a tremer; tudo aquilo fora apenas uma armação para levá-lo a alguma armadilha? Ele se encontrava sozinho num pequeno cubículo sem janelas, um beco sem saída, o arco-íris por trás proporcionando a única claridade.

Depois, Taniquel também passou pelo arco-íris, logo seguida por Auster e Kennard. Kerwin deixou escapar um tolo suspiro de alívio... se pretendiam lhe causar algum mal, não precisariam trazê-lo para tão longe!

Taniquel fez sinais com os dedos, não muito diferentes dos que Auster usara para controlar a aeronave. O cubículo disparou para cima, de forma tão súbita que Kennard cambaleou, quase caiu outra vez. Parou de repente, e saíram para uma sala iluminada, que por sua vez se abria para um amplo terraço.

A sala era imensa, com espaço suficiente para o eco, mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, dava uma impressão de aconchego e intimidade. O chão era de ladrilhos, tão gastos que haviam se tornado irregulares, como se pisados por incontáveis pés. Na outra extremidade da sala havia uma fogueira que rescendia a fumaça fragrante e incenso. Alguma coisa peluda e escura, não-humana, se agachava ali, atiçando o fogo com um fole de estranho formato. Assim que Kerwin entrou, a criatura fitou-o com enormes olhos verdes, sem pupilas, transmitindo uma indagação inteligente.

À direita do fogo havia uma pesada mesa de madeira lustrosa, toda talhada, umas poucas cadeiras de braços dispersas ao redor, e um diva comprido, cheio de almofadas. Tapeçarias cobriam as paredes. Uma mulher de meia-idade levantou-se de uma das cadeiras, e adiantou-se. Parou a um passo de Kerwin, fixando-o com seus olhos cinza, frios e inteligentes.

- O bárbaro - disse ela. Pois é como ele parece, com sangue no rosto. Mais alguma briga, Auster, e você pode voltar para a Casa da Penitência em Nevarsin por uma temporada inteira.

Uma pausa, e ela acrescentou, depois de pensar um pouco:

- No inverno.

A voz era rouca, um tanto ríspida; havia inúmeros fios brancos nos cabelos avermelhados. O corpo era grosso e compacto sob as camadas de saias e xales, mas firme demais para parecer gordo. O rosto era jovial e inteligente, com rugas em torno dos olhos.

- Que nome os Terranan lhe deram?

Kerwin disse seu nome à mulher, e ela repetiu-o, contraindo um pouco os lábios.

- Jeff Kerwin. Era de se esperar. Meu nome é Mesyr Aillard, e sou sua prima distante. E não pense que me orgulho do relacionamento, porque não é o caso.

Entre telepatas, as mentiras sociais polidas não teriam o menor sentido. Não julgue os modos dessa gente pelos padrões terráqueos. Kerwin achou

que, apesar da grosseria, havia alguma coisa que ele apreciava naquela velha sincera. Ele se limitou a dizer, cortês:

- Talvez um dia eu possa fazê-la mudar de idéia, Mãe.

Ele usou o termo darkovano que significava não exatamente mãe, nem mesmo mãe de adoção, mas qualquer parente do sexo feminino da geração da mãe.

- Pode me chamar de Mesyr, pois não sou tão velha assim! B trate de fechar a boca, Auster, pois está tão escancarada que poderia engolir um banshee! Ele não tem a menor idéia de que está sendo ofensivo, já que não conhece nossos costumes... e como poderia?

- Se a ofendi, quando tencionava ser cortês... - disse Kerwin.

- Pode me chamar de Mãe, se quiser. A verdade é que nunca mais cheguei perto das redes desde que meu filho Corus começou a trabalhar nelas... um tabu que ainda respeito. Este é meu filho, Corus. Como devemos chamá-lo... Jefferson... - ela teve alguma dificuldade para pronunciar o nome - Jeff?

Um adolescente de pernas compridas entrou na sala, e estendeu a mão para Kerwin, como se fosse um ato formal de desafio. Ele sorriu, insinuante, de uma maneira que Kerwin achou parecida com Taniquel.

- Sou Corus Ridenow. Já esteve fora do nosso mundo, no espaço?

- Quatro vezes. Três outros planetas, inclusive a Terra.

- Muito interessante... - murmurou Corus, com uma certa ansiedade - nunca estive além de Nevarsin.

Mesyr amarrou a cara para Corus, e interveio:

- Este é Rannirl. Nosso técnico.

Rannirl era mais ou menos da idade de Kerwin, alto e magro, com um ar de competência, uma sombra de barba vermelha, mãos fortes e calosas. Não ofereceu um aperto dê mão a Jeff, mas fez uma mesura formal, e disse:

- Então o encontraram. Eu não esperava por isso, e também não imaginava que poderia passar pelo Véu. Kennard, eu lhe devo quatro garrafas do vinho de Ravnet.

Kennard sorriu, efusivo.

- Beberemos juntos no próximo feriado... todos nós. Não apostou também com Elorie? Sua paixão por uma aposta ainda vai arruiná-lo algum dia, meu amigo. E onde está Elorie? Deveria se encontrar aqui, pelo menos para reclamar o falcão que apostou.

- Ela descerá dentro de poucos minutos - anunciou uma mulher alta, que Kerwin concluiu ter a idade de Mesyr. Sou Neyrissa.

Ela também era ruiva, cheia de fios brancos, alta, angulosa e feia, e fitou Kerwin nos olhos. Não parecia cordial, mas também não era hostil.

- Vai trabalhar como monitor aqui? - indagou ela. Não gosto de operar fora do círculo, pois é um desperdício do meu tempo.

- Ainda não o testamos, Rissa - informou Kennard. A mulher mais velha deu de ombros.

- Ele tem cabelos vermelhos, passou pelo Véu sem sofrer coisa alguma, e isso é teste suficiente para mim. Ele é mesmo do Comyn. Mas suponho que você precisa descobrir que donas ele possui. Cassilda pensa que ele é de Alton ou Ardais, pois estamos precisando desses poderes. Temos neste momento um excesso dos talentos de Ridenow...

- Está me deixando ressentida - interrompeu Taniquel, jovial. -Vamos ficar de braços cruzados, Corus, deixando que ela diga isso?

O adolescente soltou uma risada.

- Nos dias de hoje, não podemos ser exigentes. É esse o problema, não é mesmo, o de não encontrarmos pessoas suficientes para trabalharem em Arilinn? Se ele possuir os talentos de Cleindori, será esplêndido, mas não vamos esquecer que também tem sangue Ridenow.

- Não saberemos por algum tempo se ele dará um monitor, um mecânico, ou mesmo um técnico - disse Kennard. Caberá a Elorie decidir. E ei-la que chega.

Todos se viraram para a porta; e depois Kerwin compreendeu que o silêncio na sala era apenas em sua imaginação, pois Mesyr, Rannirl e Neyrissa ainda falavam, e só em sua mente um silêncio envolvia a moça na porta. Nesse instante, quando ela o fitou, Kerwin reconheceu o rosto que vira na matriz de cristal.

Ela era pequena e frágil, e Kerwin concluiu que devia ser bem jovem, talvez até mais moça do que Taniquel. Os cabelos vermelho-dourados caíam em mechas claras em torno do rosto queimado de sol. O traje era uma túnica formal, escarlate, presa nos ombros por fechos de metal, dando a impressão de serem pesados demais para sua fragilidade. Parecia até que os ombros iam vergar ao peso, uma criança com a roupa de uma princesa ou sacerdotisa. Tinha o andar de pernas longas de uma criança, e os olhos, emoldurados por pestanas compridas, eram cinza e sonha-dores.

- Posso presumir que este é meu bárbaro? - disse ela.

- Seu?

Taniquel riu para a moça na túnica escarlate, que reiterou, em voz suave:

- isso mesmo, meu.

- Não briguem por minha causa - interveio Kerwin, divertido.

- Não se sinta tão lisonjeado - advertiu Auster, ríspido.

Elorie lançou um olhar direto e firme para Auster, que baixou a cabeça, como um cachorro repreendido, para surpresa de Kerwin. Taniquel fitou Kerwin com aquele seu sorriso especial - era como se partilhassem um segredo, refletiu ele - e disse:

- Esta é a nossa Guardiã, Elorie de Arilinn. Agora que estamos todos aqui, você pode sentar, comer e beber alguma coisa, se recuperar. Sei que foi uma noite longa e árdua para você.

Kerwin aceitou o copo que ela lhe estendeu. Kennard levantou seu copo para Kerwin, e disse, sorrindo:

- Seja bem-vindo de volta ao lar, meu rapaz.

Os outros acompanharam o brinde, cercando-o, Taniquel com seu sorriso insinuante, Corus com uma estranha mistura de curiosidade e desconfiança, Rannirl com um sorriso reservado, mas ao mesmo tempo afável, Neyrissa a estudá-lo e avaliá-lo de uma maneira ostensiva. Só Elorie não falou, nem sorriu, fitando Kerwin com um olhar direto e solene, por cima de sua taça, antes de baixar os olhos. Mas Kerwin sentiu que ela também dissera "Seja bem-vindo de volta ao lar".

Depois de algum tempo, Mesyr largou seu copo, e declarou:

- Acho que já chega. Agora, como todos passamos a noite acordados, para verificar se conseguiriam trazê-lo são e salvo, sugiro que todos nos retiremos, para dormir um pouco.

Elorie esfregou os olhos com os punhos infantis, soltou um bocejo. Auster aproximou-se dela, com evidente irritação.

- Você se esgotou de novo... por ele!

Auster lançou um olhar irado para Kerwin, e continuou a falar, mas agora numa língua que o terráqueo não entendia.

- Venha comigo - disse Mesyr, sacudindo a cabeça para Kerwin. Levarei você lá para cima, e providenciarei um quarto. As explicações podem ficar para mais tarde, depois que todos dormirmos.

Um dos não-humanos seguiu na frente, carregando um lampião. Percorreram um corredor largo, subiram por uma escada de mosaicos.

- Não temos nenhum problema de escassez de aposentos - comentou ela -, portanto, se não gostar do quarto, basta procurar qualquer outro que esteja vazio, e se instalar lá. A Torre foi construída para abrigar de vinte a trinta pessoas, já que havia três círculos completos aqui, cada um com sua própria Guardiã. Agora, no entanto, somos apenas oito... nove, contando com você. E esse é o motivo para sua presença aqui, é claro. Um dos kyrri lhe levará qualquer coisa que quiser para comer. Se precisar de ajuda para se vestir, ou qualquer outra coisa, basta pedir. Lamento não termos servidores humanos, mas eles não podem passar pelo Véu.

Antes que ele pudesse fazer alguma pergunta, Mesyr acrescentou:

- Tornaremos a nos ver no pôr-do-sol. Mandarei alguém para lhe mostrar o caminho.

Ela se retirou no instante seguinte. Kerwin parou no meio do aposento, olhou ao redor.

Era grande e luxuoso, não apenas um aposento, mas uma suíte. Os móveis eram antigos, e as tapeçarias nas paredes estavam desbotadas. Em outro aposento, havia uma cama grande, sobre uma plataforma; a pressão de gerações de pés havia criado depressões nos ladrilhos, mas a roupa na cama era nova e branca, rescendia um pouco a incenso. Havia alguns livros e pergaminhos antigos em prateleiras, e Kerwin se perguntou quem teria ocupado aqueles aposentos pela última vez, e por quanto tempo. O não-humano peludo abriu as cortinas para deixar a luz entrar no aposento externo, fechou a cortina na porta do quarto interno, e foi arrumar a cama. Kerwin tratou de explorar a suíte, e encontrou um banheiro de um luxo quase sibarítico, com uma banheira bastante profunda para se mergulhar. Havia outros acessórios, de aparência alienígena, mas ele constatou que o banheiro proporcionava tudo o que um humano podia desejar, e mais algumas coisas que ele jamais imaginaria por si mesmo. Havia uns poucos potes pequenos, ornamentados, em marfim e prata, numa prateleira; curioso, ele abriu um dos potes. Estava vazio, exceto por um resíduo seco de pasta resinosa no fundo. Cosmético ou perfume, resquício de uma leronis do Comyn há muito morta, que outrora habitara aqueles aposentos. Haveria muitos fantasmas ali? O perfume acionou outra daquelas lembranças vagas, sepultadas no fundo de sua mente; ele refletiu que deveria tê-lo cheirado quando era pequeno, e ficou imóvel por um instante, vasculhando a memória. Mas a recordação se esquivava... Kerwin balançou a cabeça, determinado, fechou o pote. A lembrança recuou, um sonho dentro de um sonho.

Ele retornou ao primeiro cômodo. Havia um quadro pendurado ali, uma moça esguia, de cabelos vermelhos, debatendo-se nas garras de um demônio. As recordações da infância de Kerwin, das lendas darkovanas, permitiram-lhe identificar as figuras míticas, a violação de Camilla pelo demônio Zandru. Havia outros quadros da mitologia darkovana; ele reconheceu algumas cenas da Balada de Hastur e Cassilda, a lendária Cassilda do tear de ouro, inclinando-se sobre o corpo inconsciente do Filho da Luz, na praia em Hali, Camilla trazendo nozes e frutas para ele, Cassilda com uma flor-da-estrela na mão, Alar em sua forja, Alar acorrentado no inferno com a mulher-loba roendo seu coração, Sharra se elevando em chamas... Camilla ferida pela espada-de-sombra. Vagamente, ele lembrou que o Comyn alegava descender do mítico Hastur, Filho da Luz. Perguntou-se qual seria a relação entre o Deus das lendas, e os atuais Hasturs do Comyn. Mas sentia-se cansado demais para especular por muito tempo, ou formular mais perguntas. Tratou de tirar as roupas, deitou na cama grande, e não demorou a dormir.

O sol despencava para o horizonte quando acordou, e um dos não-humanos de passos silenciosos se movimentava no banheiro, preparando um banho, com água perfumada. Recordando o que Mesyr dissera sobre uma reunião ao pôr-do-sol, Kerwin tomou banho, fez a barba, comeu um pouco da refeição que o não-humano trouxera. Mas quando a criatura peluda gesticulou para a cama, onde estendera um traje darkovano, Kerwin sacudiu a cabeça, e pôs o uniforme escuro do Serviço Civil terráqueo. Pensou em sua atitude com uma amarga ironia. Entre os terráqueos, sentia a necessidade de enfatizar seu sangue darkovano, mas aqui experimentava uma súbita compulsão de não negar sua herança terráquea. Não se envergonhava de ser filho de um terráqueo, apesar do que Auster dissera, e se quisessem chamá-lo de bárbaro, que o fizessem!

Sem bater na porta, sem qualquer aviso, a jovem Elorie entrou no quarto. Kerwin teve um sobressalto, consternado com a intromissão; se ela chegasse dois minutos antes, ele seria surpreendido sem roupas! Embora estivesse vestido agora, faltando apenas as botas, mesmo assim ficou desconcertado.

- Bárbaro! - exclamou ela, rindo. Claro que eu sabia! Sou uma telepata, lembra?

Kerwin corou até as raízes dos cabelos, e calçou as botas. Era óbvio que as convenções de vida entre telepatas não seriam as mesmas a que estava acostumado.

- Kennard receava que você se perdesse, ao tentar encontrar o grande salão, e eu disse a ele que viria buscá-lo.

Elorie não mais usava a pesada túnica formal, mas um vestido fino, bordado com flores-da-estrela e cerejas. Parara por baixo de um dos quadros mitológicos, e a semelhança era evidente. Ele olhou do quadro para a jovem, e perguntou:

- Foi você quem posou para esse quadro? Ela levantou os olhos, indiferente.

- Não. Essa é minha tataravó. As mulheres do Comyn, há algumas gerações, tinham uma paixão por serem pintadas como personagens da mitologia. Mas copiei o vestido do quadro. Vamos embora.

Elorie não se mostrava muito cordial, nem mesmo polida; mas parecia considerá-lo como alguém da família, a mesma atitude dos outros.

Ao final do corredor, no alto de uma escada comprida, ela parou, foi até uma janela, que oferecia a vista da paisagem ao pôr-do-sol.

- Olhe só - disse ela, apontando. Daqui se pode ver até o pico da montanha em Thendara... se seus olhos estiverem treinados. Há outra Torre do Comyn ali. Mas agora quase todas estão vazias.

Kerwin bem que tentou, mas só conseguiu divisar as planícies e os contrafortes distantes, desaparecendo num nevoeiro azulado.

- Ainda estou confuso. Não sei realmente o que é o Comyn, o que as Torres representam, ou o que é uma Guardiã... além... - ele fez uma pausa, sorrindo, e acrescentou - ...de ser uma mulher muito bonita.

Elorie limitou-se a fitá-lo, impassível, e Kerwin acabou por baixar os olhos; ela o fizera sentir que o comentário fora ao mesmo tempo grosseiro e intrometido. Só depois de um longo momento é que ela disse:

- Seria mais fácil explicar o que fazemos do que dizer o que somos. O que somos... Há muitas lendas, superstições antigas, e de certa forma temos de corresponder a todas...

O olhar de Elorie se perdeu na distância por algum tempo.

- Uma Guardiã, basicamente, trabalha na posição central, o centro polar, se preferir assim, de um círculo de técnicos de matriz. A Guardiã...

Uma prega surgiu entre as sobrancelhas claras da jovem, enquanto obviamente ela considerava como traduzir em palavras que ele pudesse compreender.

- Em termos técnicos, uma Guardiã não é mais que uma operadora de matriz especialmente treinada, que pode juntar todos os telepatas de seu círculo numa unidade, atuando como uma espécie de coordenadora central, para promover todos os vínculos mentais. A Guardiã é sempre uma mulher. Passamos toda a infância nos preparando para isso, e às vezes...

Ela tornou a se virar para as janelas, contemplando as montanhas distantes, antes de acrescentar:

- Perdemos nossos poderes depois de uns poucos anos. Ou renunciamos por livre e espontânea vontade.

- Perdem? Renunciam? Não estou entendendo.

Mas Elorie apenas deu de ombros, sem responder. Só muito tempo depois é que Kerwin viria a descobrir que Elorie superestimava sua capacidade telepática. Ela jamais conhecera, em toda a sua vida, qualquer homem que não fosse capaz de ler seus pensamentos, de tão perto. Kerwin ainda não tinha nenhum conhecimento do fantástico isolamento em que as jovens Guardiães viviam.

- A Guardiã é sempre uma mulher... desde a Era do Caos que os homens foram legalmente proibidos de desempenharem o papel de Guardião - continuou Elorie. Os outros... monitores, técnicos, mecânicos... podem ser homens ou mulheres. Embora hoje em dia seja mais fácil encontrar homens para o trabalho. Ou melhor, não é tão fácil assim. Espero que me aceite como Guardiã, e que seja capaz de trabalhar comigo.

- Será um trabalho dos mais agradáveis - murmurou Kerwin, olhando com apreciação para a linda jovem à sua frente.

Elorie virou-se abruptamente para fitá-lo, a boca entreaberta em incredulidade. Depois, os olhos ardendo, as faces vermelhas, ela gritou:

- Pare! Pare com isso! Houve um tempo em Darkover, seu bárbaro, em que eu poderia tê-lo matado por me olhar desse jeito!

Kerwin, consternado e espantado, recuou um passado, e balbuciou, atordoado:

- Vá com calma, moça... srta. Elorie. Não tive a intenção de dizer qualquer coisa que pudesse ofendê-la. Sinto muito... - ele sacudiu a cabeça, sem compreender - ... mas lembre-se de uma coisa, se a ofendi, não tenho a menor idéia de como, ou por quê!

As mãos de Elorie apertaram o corrimão com tanta força que ele pôde ver suas articulações ficarem brancas. Pareciam muito frágeis, aquelas mãos pálidas, estreitas, com dedos delicados, afilados. Depois de um longo momento de silêncio, que já começava a parecer interminável, ela largou o corrimão, balançou a cabeça, num gesto impaciente.

- Eu tinha esquecido. Ouvi-o insultar Mesyr também, sem ter a menor idéia de que o fazia. Se Kennard pretende assumir o papel de seu pai de adoção aqui, terá de lhe ensinar a cortesia elementar. Mas já chega. Você disse que nem sequer sabia o que era o Comyn...

- Um corpo de governantes, eu pensei... Elorie sacudiu a cabeça.

- Só recentemente, e não muito; no início, o Comyn era formado pelas sete famílias de telepatas de Darkover, os Sete Domínios, cada família possuindo um dos grandes dons de laran.

- Mas pensei que todo o planeta fervilhasse de telepatas! Ela deu de ombros, descartando a idéia.

- Todas as pessoas vivas possuem algum grau de laran. Estou me referindo aos talentos psicocinéticos e psíquicos especiais, 05 dons do Comyn, reproduzidos em nossas famílias nos últimos séculos... no passado, acreditava-se que talvez fossem herdados, que o Comyn descendia das sete crianças... algumas pessoas falam em sete filhos, mas pessoalmente acho que isso é improvável... de Hastur e Cassilda; talvez porque nos velhos tempos o Comyn era conhecido como o sangue de Hastur, ou as Crianças de Hastur. Em termos mais específicos, os dons do laran se concentram na capacidade de usar uma matriz. Presumo que sabe o que é uma matriz.

- Vagamente.

As sobrancelhas claras tornaram a se altear.

- Fui informada de que tinha a matriz que pertenceu a Cleindori, cujo nome é escrito aqui como Dorilys de Arilinn.

- Tenho mesmo, mas não faço idéia do que seja, essencialmente, e sei ainda menos para que serve.

Kerwin concluíra, há muito tempo, que os truques que Ragan fazia com sua pequena matriz eram irrelevantes; e aquelas pessoas tratavam o assunto com a maior seriedade. Elorie balançou a cabeça, quase espantada.

- E, no entanto, nós o encontramos e guiamos através da matriz! Isso nos provou que você havia herdado algum...

Ela fez uma pausa, e depois continuou, com uma certa irritação:

- Não estou sendo evasiva! Apenas tento pôr em palavras que você possa entender, mais nada! Localizamos a matriz de Cleindori através das redes e bancos de monitores, que nos revelaram que você herdara a marca de nossa casta. Uma matriz, essencialmente, é um cristal que capta, amplifica, e transmite o pensamento. Eu poderia falar sobre a rede espacial, teias neuroeletrônicas, canais nervosos, e energônios cinéticos, mas deixarei que Rannirl explique tudo isso, já que ele é o nosso técnico. As matrizes podem ser tão simples quanto esta...

Ela tocou num pequeno cristal que, em total desafio à gravidade, mantinha a gola do vestido afastada de sua garganta.

- ...ou podem ser telas sintéticas... o termo técnico é treliça... com estruturas cristalinas internas artificiais muito complexas, cada cristal reagindo à amplificação de uma Guardiã. Uma matriz... ou melhor, o poder do pensamento, do laran, controlado por um hábil técnico de matriz ou um círculo de Guardiã... pode liberar energia pura do campo magnético de um planeta, e canalizá-la, como força ou matéria. Calor, luz, energia cinética ou potencial, a síntese de matéria-prima em forma utilizável... todas essas coisas eram outrora feitas por matriz. Sabia que os ritmos de pensamentos, as ondas cerebrais, possuem uma natureza elétrica?

Kerwin acenou com a cabeça.

- Já vi as ondas cerebrais serem medidas. Chamamos o instrumento de eletroencefalógrafo...

Ele falou no Padrão Terráqueo, sem saber se os darkovanos possuíam uma palavra equivalente, e pôs-se a explicar como media e tornava visíveis os impulsos elétricos do cérebro, mas Elorie deu de ombros, impaciente.

- Um instrumento simples e tosco. De um modo geral, as ondas de pensamento, mesmo as de um telepata, não podem ter muito efeito no universo material. A maioria não é capaz de mover um único fio de cabelo. Há exceções, forças especiais... vai aprender sobre isso mais tarde. Mas as ondas cerebrais, por si mesmas, não podem mover um único fio de cabelo, como eu disse. Os cristais de matriz, de algum forma, transformam a força em forma. Isso é tudo.

- E as Guardiãs...

- Algumas matrizes são tão complexas que uma pessoa sozinha não é capaz de controlá-las; é preciso a energia de várias mentes, ligadas e alimentadas através do cristal, para formar um nexo de energia. Uma Guardiã manipula e coordena as forças. Isso é tudo o que posso lhe dizer.

Elorie virou-se abruptamente, apontou para a escada.

- Desça por ali.

Depois, ela se afastou, e Kerwin ficou observando-a, aturdido. Teria feito de novo alguma coisa para ofendê-la? Ou será que fora um capricho infantil? Ela parecia mesmo infantil, com toda certeza!

Ele desceu, descobriu-se outra vez no grande salão iluminado pelo fogo, onde fora recebido naquela manhã... recebido de volta ao lar? Seu lar? O salão estava vazio, e Kerwin arriou numa das cadeiras com almofadas, cobrindo a cabeça com as mãos. Se alguém não lhe explicasse as coisas, muito em breve, acabaria enlouquecendo de frustração!

Kennard encontrou-o ali, ainda sentado nessa posição. Kerwin fitou o homem mais velho, e murmurou:

- É demais, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Não consigo absorver. Não compreendo... não compreendo nada!

A expressão de Kennard era uma curiosa mistura de compaixão e diversão.

- Posso entender como se sente. Vivi alguns anos na Terra, e sei tudo sobre o choque cultural. Deixe-me aliviar os pés.

Ele se acomodou nas almofadas de outra cadeira, com extremo cuidado, recostou-se, cruzou as mãos atrás da cabeça.

- Talvez eu possa esclarecer tudo. Devo-lhe isso.

Kerwin sempre ouvira dizer que os darkovanos, pelo menos a nobreza, não se envolviam com o Império; a informação de que Kennard vivera na Terra deixou-o espantado, embora não mais do que qualquer outra coisa que ocorrera nos últimos dias, ou sua presença ali. Estava praticamente imune a qualquer choque adicional.

- Comece pelo seguinte: quem sou eu? E por que estou aqui? Kennard ignorou a pergunta, o olhar perdido no espaço por cima da cabeça de Kerwin. Depois de algum tempo, ele disse:

- Naquela noite no Sky Harbor Hotel, sabe o que eu vi?

- Lamento, mas não estou com ânimo para jogos de adivinhação. Kerwin queria fazer perguntas objetivas, e receber respostas objetivas; não queria se ver obrigado a responder a mais perguntas.

- Lembre-se que eu não tinha a menor noção de quem você era. Parecia com um de nós, mas eu soube que não era. Vi um terráqueo, mas sou um Alton, tenho uma dessas percepções fortuitas de desvio de tempo. Por isso, olhei para o terráqueo e vi uma criança, uma criança confusa, que nunca soubera quem ou o que era. Eu gostaria que tivesse ficado naquela ocasião, e conversado conosco.

- Eu também - murmurou Kerwin.

Uma criança que nunca soubera quem ou o que era. Kennard expressara com precisão.

- Cresci, é verdade, mas meu verdadeiro eu ficou para trás, em algum lugar.

- Talvez se encontre aqui.

Kennard levantou-se, e Kerwin seguiu o exemplo, estendendo a mão para ajudar o homem mais velho. Mas Kennard recusou, sorriu contra-feito, e disse:

- Está especulando por que...

- Não - respondeu Kerwin, percebendo de repente que todos procuravam habilmente evitar o contato físico com ele. Detesto as pessoas esbarrando em mim; jamais me senti bem em lugares apinhados. E me sinto mal em multidões. Sempre foi assim.

Kennard balançou a cabeça.

- Laran. Você possui apenas o suficiente para achar o contato físico desagradável...

Kerwin riu.

- Eu não chegaria a esse ponto... Kennard deu de ombros, sardônico, e disse:

- Desagradável, a não ser em circunstâncias de intimidade deliberada. Certo?

Kerwin pensou nos raros contatos físicos em sua vida. Sabia que sempre afligira sua avó terráquea pela violenta aversão a manifestações de afeto. E, no entanto, gostava da velha, até a amara, à sua maneira. Os colegas de trabalho... ocorreu-lhe que os tratava da mesma maneira como Auster o tratara no avião: rejeitando com violência o menor contato pessoal, recuando fisicamente a qualquer toque físico. O que não o tornava popular.

- Você é... Que idade tem? Vinte e seis, vinte e sete anos? Claro que sei qual é a sua idade darkovana... fui um dos primeiros a quem Cleindori contou... mas nunca fui capaz de fazer a conversão para a contagem terráquea. Foi há muito tempo que vivi na Terra... e por tempo demais para ficar longe de seu próprio elemento!

- Um elemento terrível - murmurou Kerwin. Pode me dizer como entro nessa confusão:

- Tentarei.

Kennard foi até uma mesa no canto, serviu-se de um drinque, de um sortimento de garrafas que havia ali; alteou as sobrancelhas numa indagação para Kerwin.

- Tomaremos drinques quando os outros descerem, mas estou com sede agora. Também quer?

- Posso esperar.

Ele nunca fora um grande beberrão. A perna ruim de Kennard deve lhe causar uma dor considerável, se é capaz de romper o costume assim, pensou Kerwin, e se perguntou impaciente de onde viera o pensamento, enquanto o homem mais velho retornava à sua cadeira, com todo cuidado.

Kennard tomou um gole, largou o copo na mesa ao lado, cruzou os dedos, pensativo.

- Elorie já lhe contou; há sete famílias de telepatas em Darkover, uma família para cada um dos Sete Domínios. Os Hasturs, Ridenow, Ardais, Elhalyn, Altons... minha família... e Aillard. A sua família.

Kerwin fizera a contagem.

- Só disse seis.

- Não falamos sobre os Aldarans. Embora alguns de nós tenham sangue de Aldaran, e dons de Aldaran. Houve casamentos entre as famílias... mas não falamos sobre isso. É uma história comprida e vergonhosa. Seja como for, os Aldarans foram exilados dos Domínios há muito tempo. Não poderia lhe contar tudo a respeito agora, mesmo que soubesse de tudo, e mesmo que tivéssemos tempo... o que não tenho, o que não temos. Mas com apenas seis famílias de telepatas... tem alguma idéia do nosso grau de endogamia?

- Está querendo dizer que normalmente casam apenas dentro de sua casta? Os telepatas?

- Não de todo, e não... deliberadamente. Mas ser um telepata, isolado nas Torres, com outros de sua espécie... é como uma droga. -a voz de Kennard não era muito firme. Isso deixa a pessoa completa-mente despreparada para... para contatos com forasteiros. O fato é que você se perde nas Torres, e quanto sai em busca de ar, por assim dizer, descobre que não pode mais respirar o ar comum. Descobre que não pode suportar a companhia de forasteiros, pessoas que não estão sintonizadas com seus pensamentos, pessoas que... esbarram em sua mente. Não pode chegar perto delas, porque não são reais para você. Há um certo embotamento, é claro, depois de algum tempo, ou você nunca poderia viver fora de uma Torre, mas... mas é uma tentação. Os não-telepatas parecem bárbaros para você, ou como estranhos animais, alienígenas, errados...

Ele olhava de novo para o espaço por cima da cabeça de Kerwin.

- Arruina-o para qualquer tipo de contato com pessoas comuns. Com as mulheres. Até mesmo em seu nível, imagino que deve ter tido problemas com mulheres que não podem... não podem partilhar seus sentimentos e pensamentos. Depois de dez anos em Arilinn, qualquer outra coisa é como... como ir para a cama com uma besta embrutecida...

O silêncio se prolongou, enquanto Kerwin pensava a respeito, sobre a curiosa alienação, a sensação de diferença, que sempre se interpusera entre ele e todas as mulheres que conhecera. Como se tivesse de haver algo mais, uma coisa mais profunda do que o contato mais íntimo...

Abruptamente, com um pequeno calafrio, Kennard recuperou o controle, e continuou a falar, em tom um pouco ríspido:

- Seja como for, a endogamia mental é ainda maior do que a física; só por causa dessa incapacidade em tolerar pessoas de fora. E a endogamia física já é bastante ruim por si só; surgiram algumas características recessivas muito estranhas. Uns poucos dos antigos dons desapareceram por completo; não conheci mais que um ou dois telepatas catalisadores em toda a minha vida. É o antigo dom de Ardais, mas Dom Kyril não o possuía, ou se tinha, nunca aprendeu a usá-lo, e se tornou tão louco quanto um banshee no Vento Fantasma. Entre os Aillards, o dom passou a ser ligado ao sexo; aparece apenas nas mulheres, e os homens não o têm. E assim por diante... Se sabe alguma coisa sobre genética, pode entender o que estou dizendo. Um sólido programa de exogamia ainda poderia nos salvar, se pudéssemos tolerá-lo, mas a maioria de nós não é capaz. Assim...

Ele deu de ombros.

- Em cada geração, nascem cada vez menos pessoas com os antigos dons de laran. Mesyr lhe contou; houve uma época em que havia três círculos aqui em Arilinn, cada um com sua própria Guardiã. Houve uma época em que havia uma dúzia de Torres, e Arilinn não era a maior. Agora... agora há apenas três outras Torres em funcionamento, cada uma com um círculo de mecânicos. Somos a única Torre com uma Guardiã qualificada, o que significa que Elorie é virtualmente a única Guardiã em Darkover. E dentro do Comyn, assim como na pequena nobreza ligada a nós pelo sangue, quase não há gente suficiente, em cada geração, para manter essas Torres em operação. Por tudo isso, temos agora duas linhas de pensamento no Comyn.

Kennard passara a falar em tom incisivo, não havia mais o menor vestígio da vaguidão anterior.

- Uma facção achava que deveríamos aderir a nossos costumes antigos, enquanto pudéssemos, resistir a todas as mudanças, até desaparecermos, como seria inevitável, em mais uma ou duas gerações; nada mais importava, pois pelo menos permaneceríamos como sempre fôramos. Outros achavam que, como uma mudança inevitável, ou no mínimo a única alternativa para a extinção, deveríamos efetuar as mudanças que fôssemos capazes de tolerar, antes que as intoleráveis nos fossem impostas. Essas pessoas achavam que a ciência da matriz podia ser ensinada a qualquer um com os rudimentos de laran, desenvolvido e treinado para operar da mesma maneira que um telepata do Comyn. Havia uns poucos dessa facção no poder no Comyn, uma geração atrás, e durante aqueles poucos anos ser mecânico de matriz virou uma profissão. Descobrimos nessa ocasião que a maioria das pessoas possui algum poder psíquico... pelo menos o suficiente para operar uma matriz... e podiam ser treinadas no uso da ciência de matriz.

- Conheci um casal assim - comentou Kerwin.

- Não se pode esquecer que o problema era agravado por atitudes emocionais intensas - continuou Kennard. Era virtualmente uma religião, e houve um tempo em que o Comyn foi quase um sacerdócio. As Guardiãs, em particular, eram alvos de um fanatismo religioso que equivalia à idolatria. E agora chegamos ao ponto em que você entra na história.

Ele mudou a posição na cadeira, desconfortável, suspirou, permaneceu em silêncio por um momento.

- Cleindori Aillard era minha irmã de adoção. Era uma nedestro de seu clã, o que significa que não nasceu num casamento legítimo. Era filha de uma mulher de Aillard e um homem de Ridenow, um filho mais moço desse clã. Tinha o nome de Aillard porque entre nós uma criança assume o nome do ascendente de posição superior, não necessariamente do pai, como ocorre na Terra. Fomos criados juntos, desde o tempo em que ela era bem pequena, e foi prometida em casamento... um compromisso mais entre as famílias do que entre as pessoas envolvidas... a meu irmão mais velho, Lewis. Depois, foi escolhida para ser treinada como Guardiã, em Arilinn.

O rosto de Kennard se tornara outra vez amargurado e remoto.

- Não conheço toda a história, e prestei um juramento... obrigaram-me a jurar, quando voltei a Arilinn, há coisas que não posso lhe revelar. Seja como for, estive ausente durante algum tempo, na Terra, o que também é uma longa história. Meu pai escolheu um filho de adoção terráqueo, e eu fui para a Terra, no que se poderia chamar de intercâmbio de estudantes, enquanto Lerrys era criado aqui. Assim, não vi Cleindori por seis ou sete anos. Quando voltei, ela era Dorilys de Arilinn, Guardiã. Cleindori era, sob alguns aspectos, a pessoa mais poderosa no Comyn, a mulher mais poderosa de Darkover. Dama de Arilinn. Era uma leronis de excepcional capacidade; e como todas as Guardiãs, fizera o juramento de virgindade, e vivia num rígido isolamento... ela foi a última. Nem mesmo Elorie foi treinada nos costumes antigos, como aconteceu com Cleindori. Pelo menos isso Cleindori conseguiu.

Ele tornou a cair num amargo silêncio por algum tempo. Depois, empertigando-se sobre as almofadas, a voz seca, desprovida de emoção, continuou:

- Cleindori era uma guerreira, uma rebelde. Era uma reformadora, no fundo do coração; e como Dama de Arilinn, assim como uma das últimas sobreviventes das mulheres Aillard na linhagem direta, possuía um poder considerável e posição no Conselho por si mesma. Tentou mudar as leis de Arilinn. Travou uma luta encarniçada contra o novo Conselho e sua convicção de que as Torres do Comyn deveriam manter seu sigilo e sua situação antiga, resguardada, semi-religiosa. Tentou trazer gente de fora para as Torres... o que conseguiu, até certo ponto. A Torre de Neskaya, por exemplo, aceita qualquer um com poder telepático... do Comyn, plebeu, ou mendigo nascido na sarjeta. Mas também eles não têm uma Guardiã de verdade há cinqüenta anos. Mas depois ela passou a atacar os tabus de sua posição especial. E isso foi demais, era o tipo de heresia que incitava à rebelião... Cleindori rompeu os tabus várias vezes, alegando que podia fazê-lo com impunidade, porque como Guardiã era responsável apenas perante sua própria consciência. E ela acabou fugindo de Arilinn.

Kerwin já começara a desconfiar que a história terminaria dessa maneira, mas mesmo assim foi um choque. Ele murmurou:

- Com um terráqueo... meu pai.

- Não tenho certeza se ela deixou a Torre com seu pai, ou se ele apareceu depois. Mas é por isso que Auster o odeia, porque há muitas pessoas que pensam que sua própria existência é um sacrilégio. Havia precedentes de uma Guardiã renunciar a seus poderes para casar. Muitas fizeram isso. Mas uma Guardiã deixar as Torres, abandonar sua virgindade ritual, e permanecer uma Guardiã... não, eles não podiam tolerar isso.

A amargura na voz de Kennard era ainda mais intensa.

- Afinal, uma Guardiã não é uma pessoa tão excepcional. Foi descoberto, ou redescoberto, no tempo de meu pai, que qualquer técnico mais ou menos competente pode realizar o trabalho de uma Guardiã. Até mesmo alguns homens. Eu mesmo posso, se for necessário, embora não seja muito hábil nessa função. Mas a Guardiã de Arilinn... ela é um símbolo. Cleindori me disse uma ocasião que o Comyn precisava no fundo de uma boneca de cera de criança numa vareta, para usar a túnica escarlate, pronunciar as palavras certas, no momento apropriado, e assim não haveria necessidade de Guardiãs em Arilinn; e como a boneca poderia permanecer virgem para sempre, sem confusão, sofrimento ou sacrifício, todos os problemas de Arilinn ficariam resolvidos para sempre. Não creio que possa imaginar o tremendo choque para os homens e mulheres mais conservadores do Conselho. Ficaram amargurados com Cleindori, com seu... sacrilégio.

Ele olhou para o chão, de rosto franzido.

- Auster possui ainda uma razão especial para odiá-lo. Ele também nasceu entre os Terranan, embora não se lembre; por algum tempo, também esteve no Orfanato dos Espaçonautas, embora o tenhamos tirado de lá antes mesmo que aprendesse a língua deles. Não o ouço falar uma única palavra de terráqueo, ou cahuenga, desde os treze anos de idade. Mas isso não vem ao caso. É uma estranha história.

Kennard ergueu a cabeça, fitou Kerwin.

- Sorte sua que os terráqueos o mandaram para os Kerwins, na Terra. Havia muitos fanáticos que teriam considerado um ato virtuoso... vingar a desonra de uma vai leronis matando a criança que ela tivera de seu amante.

Kerwin descobriu que tremia, apesar da sala estar quente.

- Se é assim, o que estou fazendo aqui em Arilinn?

- Os tempos mudaram. Como eu lhe disse, estamos definhando. Não há mais um número suficiente de pessoas como nós. Temos uma Guardiã aqui em Arilinn, mas praticamente não existe nenhuma outra nos Domínios, e só contamos com umas poucas meninas sendo treinadas, com a possibilidade de se tornarem Guardiãs. Os fanáticos morreram, ou se tornaram impotentes na velhice; e mesmo que ainda restassem alguns, esses poucos aprenderam a escutar a voz da conveniência. Por pura necessidade, devo ressaltar; não podemos mais desperdiçar alguém que possa ter os dons de Aillard ou Ardais... e os outros. Você tem sangue Ridenow, sangue Hastur, e sangue Alton. Por diversos motivos... Kennard respirou fundo, controlando-se.

- Pessoas diferentes dirigem o Conselho agora. Quando você voltou a Thendara... não demoramos muito para adivinhar quem deveria ser. Elorie viu-o nos monitores... ou melhor, viu a matriz de Cleindori... e confirmou. Naquela noite no Sky Harbor Hotel, meia dúzia de representantes das poucas Torres ainda em funcionamento reuniram-se ali... fora do Castelo Comyn, para que pudéssemos conversar com toda liberdade... a fim de tentar alcançar algum acordo sobre padrões para admissão nas Torres. Quando você entrou... lembra o que aconteceu; pensamos que fosse um dos nossos, e não apenas porque tinha cabelos vermelhos. Pudemos sentir o que você era. Por isso o chamamos. Você veio. E aqui está.

- Aqui estou, um forasteiro...

- Não de fato, caso contrário nunca passaria pelo Véu. Já percebeu que não gostamos da presença de não-telepatas aqui; é por isso que não temos servidores humanos, é por isso que Mesyr continua em Arilinn, e cuida de tudo para nós, embora já tenha passado da idade de operar nas redes. Você passou pelo Véu, o que significa que possui sangue Comyn. E me sinto à vontade com você. O que é um bom sinal.

Kerwin sentiu que suas sobrancelhas se alteavam. Kennard podia se sentir à vontade com ele, mas não era mútuo, ainda não. Sentia-se propenso a gostar do homem mais velho, mas ainda faltava muito para ficar à vontade em sua companhia.

- Ele gostaria de sentir a mesma coisa em relação a você -comentou Taniquel, entrando na sala. É o que vai acontecer, Jeff. O problema é que você viveu entre os bárbaros por muito tempo.

- Não zombe, chiya - disse Kennard, numa censura indulgente. Ele também não está acostumado a você, o que não significa necessáriamente que seja um bárbaro. Sirva-nos um drinque, e pare de caçoar, está bem? Já temos problemas suficientes.

- Ainda não - declarou Rannirl, parando na arcada. Elorie descerá dentro de um minuto. Vamos esperar.

- Isso significa que ela vai testá-lo - murmurou Taniquel.

Ela se aproximou das almofadas, e sentou, graciosa, como uma gata, encostando a cabeça no joelho de Kennard. Estendeu os braços, um deles esbarrando em Kerwin; bocejou, passou um braço ,em torno do pé de Kerwin, afagando-o de leve, distraída. Deixou a mão pousada em seu tornozelo, os olhos faiscando num sorriso malicioso. Kerwin sentiu-se desconfortável com o contato. Sempre detestara ser tocado, e percebeu que Taniquel sabia disso.

Neyrissa e Corus entraram na sala, acomodaram-se nas almofadas, deixando espaço para a perna estropiada de Kennard. Taniquel se mexeu, irrequieta, até ficar entre Kennard e Kerwin, aninhada nas almofadas como uma gata, um braço no colo de cada um. Kennard afagou a cabeça da moça, afetuoso, mas Kerwin se encolheu, apreensivo. Aquela moça o provocava de uma maneira afrontosa? Ou apenas era ingênua, descontraída, como uma criança, entre homens que considerava neutros, como se fossem irmãos, ou parentes próximos? Sem dúvida ela tratava Kennard - e vice-versa - como se fosse um tio predileto, e não havia nada de provocante na maneira como o tocava. Com Kerwin, porém, havia uma diferença sutil, que ele podia perceber, e se perguntou se ela também sabia disso. Estaria apenas imaginando coisas? Mais uma vez, como acontecera quando Elorie entrara em seu quarto sem se anunciar, no momento em que acabara de se vestir, Kerwin sentiu-se perturbado. A etiqueta de um grupo de telepatas ainda era um mistério para ele.

Elorie, Mesyr e Auster entraram juntos na sala. O olhar furioso de Auster procurou Kerwin no mesmo instante. Taniquel afastou-se um pouco de Kerwin. Corus foi até um armário, evidentemente por longo hábito.

- O que vão beber? O de sempre, Kennard, Mesyr? O que prefere, Neyrissa? Elorie, sei que nunca bebe nada mais forte do que shallan...

- Ela vai beber esta noite - disse Kennard. Tomaremos kirian. Corus virou-se, surpreso, em busca de uma confirmação. Elorie acenou com a cabeça. Taniquel levantou-se, foi ajudar Corus, enchendo pequenas taças de um frasco de formato curioso. Levou uma taça para Kerwin, sem perguntar se ele queria.

O líquido na taça era claro e aromático; Kerwin olhou-o, e teve a impressão de que todos o observavam. Já começava a se cansar de tudo aquilo. Pôs a taça no chão, sem provar.

Kennard riu. Auster disse alguma coisa que Kerwin não entendeu, e Rannirl franziu o rosto, murmurando uma censura. Elorie observava-os, com um tênue sorriso, ergueu sua taça aos lábios, mal provando o líquido. Taniquel soltou uma risadinha, e Kennard explodiu:

- Pelos infernos de Zandru! Isto é sério demais para brincadeiras! Sei que gosta de se divertir, Tani, mas mesmo assim...

Ele pegou a taça estendida por Corus, com o rosto franzido.

- Parece que tenho de exercer o papel de mestre-escola por tempo demais!

Kennard suspirou, levantou sua taça, e acrescentou para Kerwin:

- Esta coisa... não é kirian puro, caso saiba o que é isso, mas licor de kirian... não é exatamente uma droga ou estimulante, mas baixa o limiar de resistência à recepção telepática. Não precisa beber, a menos que queira, mas ajuda bastante. E é por isso que todos nós vamos beber.

Ele tomou um gole, e continuou:

- Agora que você está aqui, depois de descansar um pouco, é importante testarmos o seu laran, determinar até que ponto é telepata, que donas pode possuir, quanto treinamento vai precisar, antes de trabalhar conosco... ou o inverso. Vamos testá-lo por meia dúzia de maneiras; é mais eficiente num grupo. Por isso... - Kennard tomou outro gole - ...kirian.

Kerwin deu de ombros, pegou sua taça. O líquido era ardente, com um estranho cheiro volátil; pareceu se evaporar em sua língua antes mesmo que pudesse prová-lo. Não era sua idéia de uma boa maneira de se embriagar. Era mais como aspirar um perfume do que beber qualquer coisa. O gosto lembrava limão. Quatro ou cinco goles terminavam a taça, mas era preciso beber devagar; os vapores eram fortes demais para se tomar como um drinque comum. Kerwin notou que Corus fazia uma careta, como se detestasse o gosto. Os outros, aparentemente, estavam acostumados; Neyrissa mexeu sua taça, e aspirou os vapores, como se fosse um conhaque fragrante. Kerwin concluiu que era mais um gosto adquirido.

Ele esvaziou sua taça, largou-a no chão.

- O que acontece agora?

Para sua surpresa, as palavras soaram engroladas; teve alguma dificuldade para formulá-las, e ao terminar de falar não sabia que língua usara. Rannirl fitou-o, com um sorriso que Kerwin sabia que visava a tranqüilizá-lo, e disse:

- Não deve se preocupar com nada.

- Não sei por que isso é necessário - comentou Taniquel. Ele já foi testado pelo laran. Pouparam-nos desse trabalho com os monitores.

Enquanto ela falava, uma imagem aflorou na mente de Kerwin, espontânea, o irmão e a irmã que haviam examinado sua matriz, dizendo-lhe com arrogância que não era bem-vindo em sua casa, nem em seu mundo.

- Mas que insolência! - exclamou Corus, irritado. Eu não sabia disso!

Taniquel acrescentou:

- Quanto ao resto...

Kerwin baixou os olhos para a moça enroscada a seu lado, o rosto levantado, os olhos, que se encontraram com os seus, brilhantes e compreensivos. Ela estava tão próxima que Kerwin podia se inclinar e beijá-la.

E foi o que ele fez.

Taniquel também se inclinou para ele, sorrindo, encostando o rosto no seu, e murmurou:

- Marque-o positivo para empatia, Kennard.

Kerwin teve um sobressalto, surpreso, enquanto seus braços enlaçavam Taniquel: depois, ele riu e relaxou, subitamente despreocupado. Se a moça tencionasse protestar, já o teria feito; mas ele sentiu que

Taniquel estava satisfeita, aninhada em seus braços, contente por isso. Auster explodiu num fluxo de sílabas ininteligíveis, e Neyrissa balançou a cabeça, em reprovação, para Taniquel.

- Chiya, este é um assunto sério!

- E estou sendo séria - garantiu Taniquel, sorrindo -, embora meus métodos sejam heterodoxos.

Ela tornou a encostar o rosto no de Kerwin; de repente, surpreendentemente, Kerwin sentiu um aperto na garganta, e, pela primeira vez em anos, lágrimas afloraram a seus olhos. Taniquel parou de sorrir, afastou-se um pouco de Kerwin, mas deixou a mão no rosto dele, como uma promessa.

- Podem imaginar um teste melhor para empatia? - murmurou ela. Se ele não pertencesse, nenhum mal seria causado, pois não receberia de mim; e se recebeu... foi porque merece.

Kerwin sentiu os lábios macios de Taniquel roçarem em sua mão, e experimentou uma profunda emoção. A gentileza e intimidade daquele pequeno gesto era de certa forma mais significativa para ele do que qualquer coisa que outras mulheres já lhe haviam oferecido, ao longo de sua vida. Representava uma aceitação plena dele, como um homem e como um ser humano, de tal forma que ali, diante de todos, Taniquel e ele se tornavam mais íntimos do que amantes.

Os outros deixaram de existir. Com o braço em torno dela, ele puxou a cabeça de Taniquel para seu ombro, um gesto terno, confortador, tranqüilizador, diferente de tudo que já sentira antes. Kerwin ergueu os olhos turvos e piscou, embaraçado por aquela demonstração de emoção; mas viu apenas compreensão e bondade. O rosto sombrio de Kennard parecia um pouco menos carrancudo.

- Taniquel é a perita em empatia. Deveríamos esperar por isso... ele tem sangue Ridenow. Embora seja raro que um homem demonstre a esse grau.

Ainda aconchegada a Kerwin, Taniquel disse:

- Como você deve ter sido solitário... As palavras soaram quase inaudíveis.

Durante toda a minha vida. Jamais pertencendo a qualquer lugar.

Mas agora você pertence.

Nem todos os olhares eram benevolentes. Auster fitou os olhos de Kerwin, que teve a impressão de que se um olhar queimasse, ele viraria cinza.

- Por mais que eu deteste interromper essa comovente demonstração. .. - murmurou Auster.

Taniquel deu de ombros, resignada, e largou a mão de Kerwin. Auster continuou a falar, mas naquela língua que Kerwin não entendia.

- Desculpe - disse Kerwin - mas não estou entendendo. Auster repetiu, só que na mesma língua. Acrescentou alguma coisa para Kerwin com as sobrancelhas alteadas, um sorriso sardônico.

- Não entendeu nada, Jeff? - indagou Kennard.

- Não, o que é muito esquisito, pois entendo tudo o que você e Taniquel falam.

- Entendeu a maior parte do que falei, não é mesmo, Jeff? -perguntou Rannirl.

- A não ser uma ou outra palavra.

- E Mesyr?

- Também entendi.

- Mas deveria entender Auster - acrescentou Rannirl. Ele tem sangue Ridenow, e é o seu parente mais próximo aqui, exceto talvez...

Rannirl fez uma pausa, franzindo o rosto.

- Responda depressa, Jeff: que língua estou falando?

Kerwin já ia dizer que era a língua que aprendera quando criança, o dialeto de Thendara, mas hesitou, confuso. Não sabia. Kennard balançou a cabeça, lentamente.

- É isso mesmo. Foi a primeira coisa que notei em você. Falei em três línguas diferentes esta noite, e você nunca hesitou ao me responder em qualquer delas. Taniquel falou numa quarta. Auster, no entanto, experimentou-o em duas línguas que você compreendeu quando Rannirl e eu falamos, mas não entendeu uma só palavra. Mesmo quando Auster fala em Cahuenga, você só entende uma parte. É mesmo um telepata, sem dúvida. Não foi sempre um lingüista excepcional?

Ele balançou a cabeça, e continuou, sem esperar pela resposta de Kerwin:

- Foi o que pensei. Capta o pensamento sem esperar pelas palavras. Mas você e Auster não sintonizam o suficiente um com o outro para que possa captar o que ele diz.

- Pode vir com o tempo, à medida que eles se conhecerem melhor - interveio Elorie. Não tire conclusões precipitadas, tio.

Ela usou a palavra que era um pouco mais íntima do que parente, um termo geral para designar qualquer parente mais chegado da geração do pai.

- Já determinamos que ele possui o laran básico, a telepatia, e um alto grau de empatia, o dom Ridenow, bem desenvolvido - continuou Elorie. Provavelmente tem diversos outros talentos menores. Precisare-mos defini-los, um a um, talvez em contato profundo. Jeff...

Ela deu a impressão, de certa forma, de se virar para ele, embora mantivesse o olhar perdido na distância. Kerwin bem que tentou atrair sua atenção, mas Elorie não olhou para ele.

- Você possui uma matriz. Sabe usá-la?

- Não tenho a menor idéia.

- Rannirl, você é o técnico. Rannirl pediu:

- Jeff, pode me deixar ver sua matriz?

- Claro.

Kerwin tirou a corrente por cima da cabeça, pegou a pedra, estendeu para o técnico. Rannirl protegeu a mão com um lenço de seda, e pegou-a. Kerwin se surpreendeu ao sentir um vago desconforto por isso. Numa reação automática, sem pensamento consciente, ele se inclinou, e recuperou a pedra, com as duas mãos. O desconforto desapareceu. Espantado, ele ficou olhando para suas mãos.

- Foi o que pensei - Rannirl balançou a cabeça. Ele conseguiu sintonizar, de forma um tanto tosca.

- Isso nunca aconteceu antes! - disse Kerwin.

Ele ainda olhava para a matriz em suas mãos, chocado pela maneira como agira, sem pensar, a fim de se proteger contra o contato.

- É provável que tenha ocorrido enquanto o guiávamos até nós - disse Elorie. Permaneceu em contato com o cristal por muito tempo, e foi assim que o alcançamos.

Ela estendeu os dedos esguios, e acrescentou:

- Entregue-me sua matriz, se puder.

Kerwin respirou fundo, e deixou que Elorie pegasse o cristal. Sentiu o contato como se as mãos delicadas de Elorie tocassem em seus nervos expostos; não chegava a ser doloroso, mas ele sentia uma percepção intensa, como se o contato indefinível pudesse a qualquer momento se tornar uma agonia... ou um prazer insuportável...

- Sou uma Guardiã, e uma das habilidades que devo adquirir é a de manipular matrizes que não estejam sintonizadas comigo. Taniquel?

A hiper-sensibilidade de Kerwin se desvaneceu quando Taniquel pegou a matriz de Elorie; ela sorriu, e disse:

- Não é um teste justo, pois Jeff e eu mantivemos um contato profundo há poucos minutos. A sensação não é a de que você mesmo a está manipulando?

Kerwin confirmou com um aceno de cabeça.

- Corus?

Taniquel entregou a matriz ao rapaz. Kerwin experimentou um arrepio incontrolável, por todo o corpo, quando Corus tocou na pedra. O próprio Corus estremeceu, como se o contato doesse, e se apressou em entregar o cristal a Kennard.

O contato de Kennard não chegou a ser doloroso, embora Kerwin experimentasse uma intensa percepção, um tanto desagradável. O desconforto diminuiu um pouco, enquanto Kennard continuava a segurar o cristal, até que se tornou um calor agradável; mas ainda era uma intromissão, uma intimidade indesejável, e Kerwin ficou aliviado quando Kennard passou a matriz para Neyrissa.

Outra vez a sensibilidade profunda, quase angustiante, que diminuiu um pouco com o passar do tempo. Kerwin podia sentir sua respiração quente sobre o cristal, o que não fazia sentido, pois Neyrissa se encontrava longe dele.

- Estou acostumada ao trabalho de monitora - disse ela. Posso fazer o que Tani fez, ressoar ao campo magnético de seu corpo, embora não tão bem, pois não mantivemos um contato profundo. Até agora, tudo bem. E só resta Auster.

Auster soltou um grito, e largou a matriz, como se fosse um carvão em brasa. Kerwin sentiu a dor como um choque, por todos os seus nervos. Taniquel estremeceu sob sua mão, como se ela também sentisse a dor. Neyrissa olhou para o cristal caído, sem se arriscar a tocá-lo, e murmurou:

- Tani? Você pode...

A dor cessou no instante em que Taniquel pegou a matriz. Kerwin respirou fundo, tremendo todo. Auster também estava trêmulo e pálido.

- Pelos infernos de Zandru!

Seu olhar para Kerwin já não era mais de absoluto rancor, pois havia também um certo medo. Auster falou em Cahuenga, e Kerwin teve a impressão de que ele queria ser entendido com uma clareza total desta vez:

- Sinto muito, Kerwin. juro que não fiz isso deliberadamente.

- Ele sabe disso, ele sabe disso - murmurou Taniquel.

Ela largou a mão de Jeff, foi até Auster, passou um braço por sua cintura, acariciou a mão dele, gentilmente. Kerwin observava, surpreso, com um espanto súbito e ciumento. Como ela podia sair de um contato emocional tão íntimo com ele, e ir direto para aquele... para Auster, e se mostrar tão preocupada com ele? Com um tremendo ciúme, ele observou Taniquel afagar Auster, cujo rosto contraído pouco a pouco se tranqüilizou. Elorie fitou Kerwin nos olhos, quando ele se inclinou para recolher a matriz, e disse:

- É evidente que a matriz está sintonizada com você. A primeira lição na manipulação apropriada de uma matriz: mesmo sob kirian, como acontece agora, nunca deixe que ninguém a toque, exceto em seu círculo, e só quando tiver certeza de que estão em contato com você. Todos tentávamos a sintonia máxima, até mesmo Auster; e parece que tudo deu certo, exceto por ele. Mas de um estranho, poderia sofrer um choque realmente doloroso.

Kerwin especulou como seria um choque realmente doloroso, se Elorie achava que o de Auster não era muito importante. Ele lançou um olhar irado para Taniquel e Auster, sentindo-se furioso e abandonado. Rannirl exibiu seu sorriso sardônico, e disse:

- Tudo isso só para descobrir o que pudemos adivinhar esta manhã, quando vimos Kerwin com sangue no rosto; eles não simpatizam um com o outro, não podem sintonizar.

- Mas terão de fazê-lo - declarou Elorie, tensa. Precisamos dos dois, e não podemos admitir esse tipo de atrito aqui!

Auster murmurou, com os olhos fechados:

- Eu disse que acataria a decisão da maioria. Conhecem meus sentimentos a respeito, mas prometi que faria o melhor... e falei sério.

- É o que todos podiam esperar de você - murmurou Taniquel. Kennard acrescentou:

- Nada mais justo. E agora? Foi Rannirl quem respondeu:

- Ele pode sintonizar no círculo, quando o ajudarmos; mas será capaz de usar sua matriz? Experimente um teste de padrão.

Kerwin voltou a ficar apreensivo, pois Kennard se mostrou tenso, e Taniquel veio segurar sua mão outra vez, sugerindo:

- Se ele conseguiu sintonizar a própria matriz, talvez possa obter o padrão espontaneamente.

- Talvez os porcos possam voar - disse Kennard, bruscamente. Vamos testar a possibilidade, mas acho que seria forçar a nossa sorte se encarássemos como um fato incontestado. Passe-me sua taça, Tani.

Ele virou a taça ao contrário, sobre uma mesa baixa.

- Jeff, pegue o cristal... não, não o entregue a mim. É apenas um teste - Kennard indicou a taça -; cristalize-a.

Kerwin fitou-o, sem entender.

- Projete em sua mente uma imagem clara dessa taça se desfazendo em pedaços. Mas tome cuidado para não deixá-la se espatifar ou explodir, pois ninguém quer ser ferido por um caco. Use a matriz para ver sua estrutura cristalina.

Subitamente, Kerwin lembrou Ragan fazendo algo parecido no café no espaço-porto. Não devia ser muito difícil, se Ragan era capaz de fazê-lo. Ele olhou atentamente para a taça, depois para o cristal, como se a concentração intensa pudesse forçar o processo em sua mente, e sentiu uma estranha agitação...

- Não, Tani, não o ajude - disse Kennard, em tom um tanto ríspido. Sei como se sente, mas precisamos ter certeza.

Kerwin continuou a fixar o cristal, e seus olhos começaram a doer, foram ficando turvos.

- Sinto muito - murmurou ele. Não consigo imaginar como.

- Tente - insistiu Taniquel. É muito simples, Jeff. Crianças terráqueas podem aprender a fazer isso.

- Estamos perdendo tempo - interveio Neyrissa. - Você terá de dar o padrão, Ken. Ele não pode fazê-lo espontaneamente.

Kerwin olhou para todos, desconfiado, pois a expressão de Kennard era sombria.

- O que significa isso?

- Terei de lhe mostrar como se faz, a técnica não-verbal, e serei direto. Sou um Alton, e nossa técnica especial é o contato compulsório.

Ele hesitou, e Kerwin teve a impressão de que todos o observavam com apreensão. Perguntou-se o que aconteceria agora.

- Observe meu dedo - acrescentou Kennard.

Ele o aproximou do nariz de Kerwin, que ficou olhando, aturdido, especulando se desapareceria, ou algo assim, e que tipo de demonstração psíquica aquilo poderia ser. Kennard recuou o dedo, lentamente. No instante seguinte, Kerwin sentiu as mãos do homem mais velho, tocando em suas têmporas...

E não se lembrou de mais nada.

Balançou a cabeça, tonto. Estava deitado de costas sobre as almofadas, a cabeça no colo de Taniquel. Kennard fitava-o com uma preocupação afetuosa. O rosto de Elorie, por cima do ombro de Kennard, exibia uma certa curiosidade. Kerwin tinha uma estranha sensação na cabeça, como se estivesse de ressaca.

- O que fez comigo? - perguntou ele.

Kennard deu de ombros.

- Nada, na verdade. Na próxima vez, não vai se lembrar conscientemente, e será mais fácil - ele entregou a taça a Kerwin. Tome aqui. Cristalize-a.

- Acabei de tentar...

Sob o olhar insistente de Kennard, ele contemplou a matriz. E de repente a taça à sua frente ficou turva, adquiriu uma estranha aparência. Não era mais apenas um pedaço de vidro, ele a via de uma maneira diferente. Nem mesmo era vidro, uma matéria amorfa; a taça era cristal, e ele podia observar curiosas tensões e movimentos. Podia sentir uma estranha pulsação na matriz em sua mão, uma tensão emocional, um equilíbrio... Os cristais se situam num plano, pensou ele, e percebeu o plano, tudo foi se tornando claro em sua mente, ouviu um estalido; a nova visão se anuviou e desapareceu, e ele contemplou incrédulo a taça na almofada, dividida ao meio, de forma impecável, como se cortada por uma faca afiada. Surrealista, pensou. Umas poucas gotas de kirian manchavam a almofada. Kerwin fechou os olhos. Ao tornar a abri-los, tudo continuava igual. Kennard acenou com a cabeça, satisfeito.

- Nada mau, para uma primeira tentativa. Não chega a ser perfeito, mas é bastante boa. Sua percepção molecular vai melhorar com a prática. Mas, pelos infernos de Zandru, como suas barreiras são fortes! Dor de cabeça?

Kerwin fez menção de sacudir a cabeça em negativa, mas logo percebeu que a resposta era sim. Tocou nas têmporas, cauteloso. Os olhos cinza de Elorie encontraram-se com os seus por um momento, frios e distantes.

- Defesa mental contra um estresse intolerável - disse ela. Uma típica reação psicossomática; você diz a si mesmo se sinto dor, eles vão parar de me pressionar, e me deixarão em paz. E Kennard é escrupuloso, parou antes de lhe causar algum mal. A dor é a melhor defesa contra a invasão mental. Por exemplo, se alguém tenta entrar em sua mente, e não há amortecedor, a melhor defesa é morder o lábio até sangrar. Bem poucos telepatas conseguem superar isso. Eu poderia lhe dar uma explicação técnica sobre vibrações simpáticas e células nervosas, mas por que perder tempo com essas coisas? Deixarei isso para os técnicos. Ela foi até o armário em que eram guardadas as bebidas, pegou um pequeno frasco, e despejou três pequenos tabletes verdes na mão de Kerwin, sem tocá-lo.

- Tome isto. Estará se sentindo melhor dentro de uma ou duas horas. Quando tiver mais prática, não vai precisar, pois poderá trabalhar os canais diretamente. Mas por enquanto...

Obediente, Kerwin engoliu os tabletes, e tornou a olhar, sem acreditar, para a taça partida ao meio.

- Fui eu mesmo quem fez isso?

- Não foi nenhum de nós - respondeu Rannirl, secamente. E imagino que pode calcular as probabilidades de todas as moléculas perderem sua tensão ao longo de uma linha assim por acaso. Eu diria que é de uma em cem trilhões.

Kerwin pegou as duas metades, sentindo a beira afiada da fratura com as pontas dos dedos. Tentava formular alguma explicação que satisfizesse a metade terráquea de sua mente, jogando com frases como percepção subliminar da estrutura atômica... Mas por um momento vira a maneira como os cristais eram mantidos unidos por tensões e forças vivas! Lembrou que aprendera na escola que os átomos eram apenas conjuntos de elétrons em movimento, que cada objeto sólido consistia na verdade de espaço vazio ocupado por forças infinitesimais. Sentia-se atordoado.

- Terá de aprender - aconselhou Rannirl -, ou sempre pode fazer como Tani... pensar como magia. Concentre-se, acene com a mão, e pronto... Presto! Tudo feito por magia.

- É mais fácil assim - protestou Taniquel. Funciona, mesmo que eu não determine as forças exatas envolvidas nas tensões moleculares...

- Só que com isso faz o jogo das pessoas que preferem ser supersticiosas em relação a nós! - interveio Elorie, irritada. Acho que você gosta quando a chamam de feiticeira e bruxa...

- Vão chamar de qualquer maneira, não importa o que eu me considere - declarou Taniquel, sem perder a calma. Disseram isso de

Mesyr, e ela foi uma das melhores técnicas em seu tempo. Que diferença faz o que eles pensam, Lori? Sabemos o que somos. Ou é como aquele provérbio que Kennard tanto aprecia, o de aprender a lógica pelos latidos de seu cachorro?

Elorie não respondeu. Kerwin pegou a taça partida, e ajustou as beiras, observando atentamente. Mais uma vez, o novo tipo de percepção se manifestou, como se visse por baixo da superfície, todas as forças e tensões na estrutura do cristal...

A taça era outra vez inteira em suas mãos, mas um pouco irregular, uma projeção na borda indicando onde fora partida. Kennard sorriu, como se estivesse aliviado, e disse:

- Com isso, só resta um teste.

Kerwin ainda olhava para a taça um pouco irregular, e perguntou:

- Posso ficar com isto? Kennard acenou com a cabeça.

- Claro.

Kerwin tornou a sentir os dedos pequenos de Taniquel se entrelaçarem com os seus, e percebeu que ela estava assustada, seu medo era como uma dor em algum lugar dentro dele.

- Isso é mesmo necessário, Kennard? - apelou ela. Não pode pô-lo num círculo externo, e ver como ele reage?

Elorie fitou-a com uma expressão compadecida.

- Isso quase nunca funciona, Tani. Nem mesmo num círculo de mecânicos.

Kerwin sentiu medo outra vez. Até agora passara pelos outros testes, e já começava a se orgulhar do que conseguira.

- O que é agora, Taniquel?

Mas foi Elorie quem respondeu, gentilmente:

- O que Kennard deseja é muito simples: precisamos testá-lo num círculo, para verificar como se ajusta nas redes... o nexo de poder. Sabemos que possui uma empatia em alto nível, e passou pelos testes básicos... tem psicocinese suficiente para um bom mecânico, quando aprender o uso. Mas este é o maior teste... como sintoniza com o resto de nós - ela virou-se para Kennard. Testou-o em contato, sabe como ele funciona no padrão. Quais são suas barreiras?

- Tremendas - respondeu Kennard. Como se podia esperar outra coisa, em alguém que cresceu entre os cegos mentais?

Ele explicou para Kerwin:

- Ela quis dizer que impus o contato a você, para lhe dar esse padrão... - Kennard apontou para a taça. Com isso, tive a oportunidade de verificar o potencial de suas defesas. Todos possuem alguma defesa natural contra a invasão telepática... o termo técnico que usamos é barreira. Trata-se de um escudo protetor entre telepatas, para impedir que irradie seus pensamentos particulares por toda parte, e para protegê-lo de captar a estática telepática fortuita... afinal, você não precisa ouvir o cavalariço decidir que cavalo vai escovar primeiro, ou a cozinheira pensar no que vai preparar para o jantar. Todos têm. É um reflexo condicionado, e quanto mais forte o telepata, de um modo geral, mais forte a barreira. Quando operamos num círculo, temos de aprender a baixar essa barreira, e trabalhar sem o reflexo protetor. A maioria começa a trabalhar na adolescência, e aprendemos a erguer ou baixar as barreiras conscientemente. Ao crescer num mundo de não-telepatas, você provavelmente aprendeu a manter as barreiras erguidas durante todo o tempo. Às vezes as barreiras nunca baixam, e devem ser abertas à força. Precisamos conhecer o grau de dificuldade de trabalhar com você, as dimensões de sua resistência.

- Mas por que esta noite? - indagou Mesyr, falando pela primeira vez... e deixando Kerwin com a vaga noção de que ela se considerava apartada dos outros, não mais parte do círculo interno. Elevem se saindo bem; por que precipitar as coisas? Não podemos lhe dar mais tempo?

- Tempo é a única coisa que não temos a oferecer - respondeu Rannirl. Lembre-se de que estamos lutando contra um prazo fatal.

- Rannirl tem razão - disse Kennard, lançando para Kerwin um olhar quase de desculpas. Trouxemos Kerwin para cá porque há uma escassez desesperadora em Arilinn. Se não pudermos usá-lo, sabe tão bem quanto eu o que acontecerá com todos nós.

Ele fez uma pausa, correu os olhos ao redor, desolado.

- Precisamos deixá-lo em condições de trabalhar conosco o mais depressa possível, ou estamos perdidos!

- Não podemos perder mais tempo - declarou Elorie, levantando-se, as cortinas flutuando ao seu redor como se movidas por uma lufada intangível. Mas é melhor subirmos para a câmara de matriz.

Um a um, todos se levantaram; quando Taniquel puxou-o pela mão, Kerwin também se ergueu. Kennard olhou compadecido para ela, e disse:

- Sinto muito, Tani. Sabe tão bem quanto eu por que não pode participar. O vínculo já é muito forte. Neyrissa será a monitora.

Ele virou-se para Kerwin, e explicou:

- Taniquel é nossa empática, em contato com você. Se ela participasse, haveria de ajudá-lo demais; não agüentaria permanecer isenta. Mais tarde, o contato entre vocês vai tornar o vínculo mais forte, e ajudar o círculo, mas não enquanto o estivermos testando. Tani, você tem de ficar aqui.

Relutante, ela largou a mão de Kerwin, que se sentiu gelado e sozinho; sem a menor dúvida, a animação e a confiança eram parte do que Taniquel irradiava para ele. De repente, Kerwin sentiu-se apavorado. Rannirl disse:

- Vamos, anime-se.

Ele tocou de leve no braço de Jeff. O gesto era tranqüilizador, o que já não acontecia com o tom, que parecia muito com um pedido de desculpas.

Kennard gesticulou, e atravessaram juntos o vasto salão, subiram por uma escada, avançaram por um corredor; subiram outro lance de escada, e entraram numa sala que Kerwin não vira antes. Era pequena, octogonal. Ao longo das paredes, havia espelhos e superfícies espelhadas, que refletiam imagens ao acaso, distorcendo seus corpos além do reconhecimento. Kerwin viu-se como um filete de uniforme preto, encimado por cabelos flamejantes. No centro da sala havia um círculo mais baixo, com assentos acolchoados, e todos se encaminharam para lá, numa ordem que parecia familiar, predeterminada. Na parte central do círculo havia uma mesa pequena, com uma armação entrelaçada, semelhante à que Kerwin vira na casa da leronis, o que lhe proporcionou outra vez um breve e angustiante relance de déjà vu. Havia ali um cristal, maior do que qualquer outro que ele já vira antes. Rannirl murmurou em seu ouvido:

- É a treliça da rede de transmissão.

As palavras não faziam o menor sentido para Kerwin. Numa tentativa de explicar, Rannirl acrescentou:

- É uma treliça sintética, não uma matriz natural. Mas isso também nada explicava para Kerwin.

- Tire-nos das redes de transmissão, Neyrissa, apenas por esta noite - murmurou Elorie. Não há motivo para que as pessoas em Neskaya saibam o que estamos fazendo aqui, e acho que Hali não quer saber.

Neyrissa foi até o assento central, isolou as mãos com um pedaço de seda, como a leronis em Thendara fizera. Ela inclinou-se para o cristal, e Kerwin protegeu os olhos com as mãos, o déjà vu muito intenso, enquanto observava os movimentos graciosos. O que havia de errado com ele? Nunca estivera numa câmara de matriz antes, nunca vira um círculo... uma ilusão, uma falsa percepção das duas metades do cérebro, disse ele a si mesmo, com veemência; nada mais do que isso...

Ele ouviu o fluxo de pensamento, os bruxuleios ao seu redor, e depois, com toda clareza, embora Neyrissa não tivesse falado: Estamos testando em Arilinn, e ficaremos fora das redes por vinte e oito horas...

Com extremo cuidado, as mãos protegidas, Neyrissa removeu o enorme cristal da armação, e anunciou:

- Estamos defendidos, fora das redes.

Ela foi guardar o cristal num armário, mas não retornou ao assento central. virou-se para Elorie e acrescentou com uma estranha formalidade.

- O círculo está em suas mãos, tenerésteis.

Kerwin reconheceu o termo arcaico para Guardiã, mesmo sem saber como. Elorie pôs seu próprio cristal na armação, tirando-o da bolsa pendurada do pescoço. Lançou um olhar inquisitivo para os outros. Kennard acenou com a cabeça; Neyrissa e Rannirl seguiram o exemplo. Auster se mostrou em dúvida por um instante, mas acabou dizendo:

- Acato seu julgamento, Elorie. Declarei desde o início que acompanharia a decisão da maioria.

O jovem Coras contraiu os lábios, fitou Kerwin com um olhar cético.

- Acho que Mesyr tinha razão, deveríamos esperar. Mas posso fazê-lo, se vocês acham que ele também pode.

Elorie olhava para Auster; ele disse alguma coisa ininteligível para Kerwin, e Elorie balançou a cabeça em concordância. Kennard inclinou-se para Kerwin, e explicou:

- Enquanto você e Auster não puderem sintonizar, teremos de mantê-los em níveis separados.

Elorie acrescentou:

- Levarei Auster primeiro, e deixarei Kerwin por último - ela olhou de Rannirl para Kennard. Você é que vai conduzi-lo, Kennard.

Ela tornou a correr os olhos pelo círculo, e Kerwin notou uma comunicação entre todos, quase imperceptível, acenos de cabeça, trocas de olhares, uma espécie de harmonização mútua, pequenos entendimentos que não precisavam de palavras. Elorie baixou a cabeça, contemplou a matriz por um momento, e depois apontou um dedo esguio para Auster.

Kerwin, apreensivo, sensibilizado para aquelas correntes, sentiu algo como uma linha de força palpável ligando a delicada jovem com Auster; um pequeno choque elétrico irradiou-se pelo ar, enquanto faziam o contato.

Uma corrente de emoção na sala, como uma chama intensa, ardendo contra o gelo...

Rannirl...

Forças em tensão, alinhando-se, uma ponte firme, através de um abismo profundo...

- Corus - sussurrou Elorie, em voz alta.

Kerwin compreendeu, sem saber como, captando como fragmentos de pensamento, que Corus era bastante jovem, muito inexperiente, e não podia entrar no círculo sem a deixa verbal. Com um sorriso nervoso, o jovem cobriu o rosto com as mãos. Parecia extremamente jovem. Kerwin, ainda tateando no clima predominante na sala, teve uma curiosa visualização de mãos e pulsos se entrelaçando, como acrobatas se encontrando em pleno ar, num aperto firme...

Neyrissa, veio a ordem silenciosa, e de repente o quarto ficou povoado por faíscas elétricas, uma teia de clarões. Por um instante, Kerwin sentiu que todos se fundiam, uma união de olhos, de rostos. Kennard escapuliu dele para fazer o contato, e a sensação foi de uma revoada de aves, formando uma só, rostos e olhos expectantes...

- É fácil - sussurrou Kennard para ele. Eu o conduzirei.

Depois, a voz de Kennard definhou, parecia apenas um zumbido distante nos ouvidos de Kerwin. Podia ver todos agora, não com os olhos, mas como um círculo de rostos e olhos expectantes... Sabia que pairava à beira do contato telepático; parecia-lhe uma teia, os filamentos ondulando, suavemente...

Elorie sussurrou "Jeff", mas a palavra soou como um grito estridente.

Basta se largar, entrar em contato, é fácil. Era parecido com as instruções que recebera para chegar até eles, através das ruas de Thendara. Podia dizer onde eles se encontravam, podia sentir o círculo à sua espera, de alguma forma visualizava-os como uma roda de mãos dadas, deixando um espaço vazio para ele... mas como alcançá-los? Ele ficou parado, impotente, como se recuasse das mãos estendidas, e de repente experimentou a sensação de que balançava em pleno ar, por cima de um vasto abismo, aguardando o sinal de pular para algum alvo em movimento... Sabia que captava uma imagem mental de Corus, e não entendia por quê, mas sentiu um medo vertiginoso de altura, um terror paralisante do vasto abismo, da queda, do mergulho no desconhecido... o que deveria fazer? Todos pareciam pensar que ele sabia.

Você pode fazer isso, Jeff. Possui o Dom. Era a voz de Kennard, suplicante.

Não adianta, Ken. Ele não vai conseguir.

A barreira é um reflexo condicionado. Depois de vinte anos com os terráqueos, ele enlouqueceria sem isso. O rosto de Kennard flutuava na estranha luz da sala, refletido no cristal de Elorie, projetando cores prismáticas ao redor. Kerwin pôde ver os lábios de Kennard se mexendo, mas não ouviu-o falar. Vai ser difícil. Vinte anos. Não foi nada fácil para Auster depois de cinco anos, e ele era puro Comyn.

Kerwin flutuava através da sala; parecia nadar debaixo d'água.

Tente não resistir, Jeff.

Abruptamente, como um golpe de faca, ele sentiu o contato... indescritível, inacreditável, tão estranho e indefinido que só podia ser interpretado como dor... numa fração de segundo, compreendeu que fora isso que Kennard fizera antes, o que não podia suportar, nem sequer lembrar, aquele contato intolerável, intromissão, violação... Era como ter o crânio aberto por uma broca de dentista. Ele permaneceu imóvel por cerca de cinco segundos, depois sentiu que estremecia convulsivamente, e ouviu alguém gritar de um milhão de quilômetros de distância, enquanto resvalava para a escuridão.

Ao sair desta vez, descobriu-se deitado no chão da câmara de matriz octogonal, Kennard, Neyrissa e Auster de pé, fitando-o. Em algum lugar, Kerwin ouviu soluços abafados, e viu na periferia de sua mente o jovem Coras todo encolhido, o rosto coberto pelas mãos. Rannirl passava o braço pelos ombros de Corus, procurando confortá-lo. A cabeça de Kerwin era um gigantesco balão, cheio de uma dor intensa, fervilhante, como um ferro em brasa. Era tão terrível que ele não conseguiu respirar por um segundo; depois, sentiu os pulmões se expandirem, e um som rouco saiu por sua boca, contra sua vontade. Kennard ajoelhou-se ao seu lado, e perguntou:

- Acha que pode sentar?

De alguma forma, ele conseguiu. Auster estendeu a mão para ajudá-lo, parecendo doente, e murmurou, com uma inesperada cordialidade em sua voz:

- Todos passamos por isso, Jeff, de um jeito ou de outro. Apoie-se em mim.

Desligado, surpreso consigo mesmo, Kerwin segurou a mão do outro homem. Kennard indagou:

- Você está bem, Corus?

O rapaz ergueu o rosto inchado, molhado de lágrimas. Parecia passar mal, mas murmurou:

- Eu viverei.

Neyrissa disse, com um gentil desapego:

- Está fazendo isso a si mesmo, mas tem uma opção. Elorie acrescentou, com uma voz tensa:

- Vamos fazer tudo depressa, pois nenhum de nós pode suportar muito mais.

Ela tremia, mas estendeu a mão para Corus. Kerwin sentiu, como uma corrente elétrica, em algum lugar no fundo de sua mente, a reconstituição da teia. Auster, depois Rannirl e Neyrissa ajustaram-se em seus lugares; Kennard, ainda conduzindo Kerwin, afastou-se de repente, e também entrou em sintonia Elorie não disse nada, mas de repente seus olhos cinza encheram todo o espaço da sala e Jeff ouviu seu comando imperceptível:

- Venha.

Com um solavanco, a respiração saindo violentamente de seu corpo, ele sentiu o impacto de suas mentes misturadas como se tivesse entrado em um dos prismas do cristal lapidado. Um padrão flamejou, como uma enorme estrela de fogo, na mente de Kerwin, e ele sentiu que corria por todo o círculo, fluindo como água, entrando e saindo do contato; Elorie, fria, distante, segurando-o pela extremidade uma salva-vidas... A segurança de Kennard; um contato ligeiro, como uma pluma, trêmulo, assustado, de Corus; uma erupção de Auster, faíscas se juntando, se separando... Neyrissa, uma busca suave, inquisitiva...

- Já chega! - disse Kennard, bruscamente.

E de repente Kerwin voltou a ser ele próprio, os outros não eram mais turbilhões de energia na sala, ao seu redor, mas outra vez pessoas separadas, agrupadas em torno dele. Rannirl assoviou.

- Pelos infernos de Zandru, que barreira! Se algum dia conseguirmos ultrapassá-la, Jeff, você será um técnico excepcional... mas primeiro temos de nos livrar dessa barreira!

Coras acrescentou:

- Não foi tão ruim na segunda vez. Ele conseguiu avançar por uma parte do caminho.

A cabeça de Kerwin ainda era uma massa de fogo fervilhante.

- Pensei, o que quer que tenham feito comigo...

- Removemos uma parte da barreira - explicou Kennard.

Ele continuou a falar, mas subitamente as palavras não tinham mais qualquer significado. Elorie olhou para Kerwin, disse alguma coisa. Mas as palavras eram apenas um ruído, estática no cérebro de Kerwin. Ele sacudiu a cabeça, sem compreender. Kennard perguntou, em Cahuenga:

- A dor de cabeça melhorou?

- Claro.

Não melhorara; se alguma diferença havia, estava pior, mas Kerwin não tinha mais energia para dizer isso. Kennard não argumentou. Segurou Kerwin pelos ombros, com firmeza, levou-o para a sala ao lado, instalou-o numa cadeira com almofadas.

- Agora é comigo - declarou Neyrissa.

Ela se adiantou, pôs as mãos na cabeça de Kerwin, que não disse nada. Não tinha mais condições de falar. Oscilava num enorme balanço, cada vez mais depressa, num pêndulo de dor e vertigem. Elorie murmurou alguma coisa. Neyrissa fez uma pergunta a Kerwin, em tom de urgência, mas nada fazia o menor sentido para ele. Até mesmo a voz de Kennard era apenas uma confusão de sílabas incompreensíveis, uma salada verbal. Ele ouviu Neyrissa dizer:

- Não estou conseguindo alcançá-lo. Chamem Taniquel, depressa. Talvez ela possa...

As palavras subiam e desciam ao seu redor como uma canção entoada numa língua desconhecida. O mundo era turvado por um nevoeiro cinza, e ele balançava num pêndulo gigantesco, cada vez para mais longe, para a escuridão e luzes tênues, para o nada...

E depois Taniquel estava ali, uma presença meio indistinta diante de seus olhos. Ela se ajoelhou, com um grito desesperado.

- Jeff! Oh, Jeff, pode me ouvir?

Como ele podia deixar de ouvir, pensou Jeff, com a irracionalidade da dor, quando ela berrava em seu ouvido?

- Jeff, por favor, olhe para mim, deixe-me ajudá-lo...

- Não mais - balbuciou ele. Já chega. Agüentei o suficiente por uma noite, não é?

- Por favor, Jeff, não poderei ajudá-lo se não deixar...

Ele sentiu a mão de Taniquel, quente e dolorosa, em sua cabeça latejando. Remexeu-se, irrequieto, tentando afastá-la. A mão parecia um ferro em brasa. Ele desejou que todos sumissem, que o deixassem em paz.

Depois, devagar, bem devagar, como se algum veio tenso tivesse sido fechado, ele sentiu que a dor se desvanecia. Foi diminuindo, momento a momento, até que outra vez pôde ver a moça com nitidez. Empertigou-se na cadeira, a dor apenas uma vibração difusa na base do cérebro.

- Foi muito bom - disse Kennard, incisivo. Acho que ainda vai conseguir.

- O esforço não vale a pena - murmurou Auster.

- Ouvi isso - balbuciou Kerwin.

Kennard balançou a cabeça, com uma expressão triunfante.

- Foi o que eu lhe disse... que o risco valia a pena.

Ele deixou escapar um suspiro longo e cansado. Kerwin levantou-se, meio trôpego, apoiou-se no encosto da cadeira. A sensação era a de que passara por um espremedor de roupa, mas experimentava uma estranha paz. Taniquel estava arriada junto da cadeira, pálida e exausta, Neyrissa ao lado, segurando sua cabeça. Ela ergueu os olhos, e balbuciou:

- Não se preocupe, Jeff. Eu... estou contente por ter feito alguma coisa por você...

Kennard também parecia cansado, mas triunfante. Corus sorriu, trêmulo, e ocorreu a Kerwin, com uma estranha percepção, que o rapaz chorara por ele. Até mesmo Auster, mordendo o lábio, disse:

- Tenho de reconhecer que você é um dos nossos. Não pode me culpar por duvidar, mas... não guarde nenhum ressentimento contra mim.

Elorie aproximou-se, ergueu-se na ponta dos pés, bastante perto para abraçá-lo, embora não o fizesse. Levantou a mão, tocou em seu rosto, um contato leve como uma pluma, com as pontas dos dedos, e murmurou:

- Seja bem-vindo, Jeff-o-bárbaro.

Ela sorriu. Rannirl passou o braço pelo de Kerwin, ao descerem a escada para o salão em que haviam se reunido no início da noite.

- Pelo menos desta vez podemos decidir por nós mesmos p que queremos beber - disse ele, rindo.

Kerwin compreendeu que passara pela provação final. Taniquel aceitara-o desde o início, e agora todos o aceitavam também, integral-mente. Ele, que nunca pertencera a qualquer lugar, sentiu-se agora emocionado com a certeza de uma integração profunda. Taniquel veio sentar no braço de sua cadeira. Mesyr se aproximou para perguntar se ele queria alguma coisa para comer ou beber. Rannirl serviu-lhe um copo de um vinho gelado e aromático, com um gosto que lembrava maçã, e comentou:

- Acho que você vai gostar disso; vem de nossa propriedade.

De uma forma incongruente, era como uma festa de aniversário. Mais tarde, ainda naquela noite, Kerwin se descobriu ao lado de Kennard. Sensibilizado pelo ânimo do homem mais velho, Kerwin se ouviu dizer:

- Você parece feliz com a situação. Auster não está satisfeito, mas você está. Por quê?

- Por que Auster não está, ou por que eu estou? - indagou Kennard, rindo.

- As duas coisas.

- Porque você é em parte terráqueo - respondeu Kennard, voltando a ficar sério. - Se puder integrar um círculo de matriz... mais do que isso, dentro de uma Torre... e o Conselho aceitar, então há uma possibilidade de que meus filhos sejam também aceitos.

Ele franziu o rosto, olhando por cima da cabeça de Kerwin para uma triste distância.

- É que eu fiz a mesma coisa que Cleindori. Casei fora do Comyn... casei com uma mulher que era em parte terráquea. E tenho dois filhos. E o seu caso abre um precedente. Eu gostaria de pensar que um dia meus filhos poderão vir para cá...

Kennard se calou. Kerwin poderia ter feito mais uma dúzia de perguntas, mas sentiu que aquele não era o momento. O que não parecia ter importância. Ele pertencia.

 

Os DIAS FORAM passando em Arilinn, e Kerwin logo começou a sentir que estivera ali por toda a sua vida. E, no entanto, de uma curiosa maneira, era como um homem perdido num sonho encantado, como se todos os seus antigos sonhos e desejos adquirissem vida; entrara neles, e fechara uma porta por trás. Era como se a Zona Terráquea e a Cidade Comercial nunca tivessem existido. Nunca, em qualquer mundo, ele se sentira tão em casa. Nunca pertencera a qualquer lugar como pertencia a Arilinn. Deixava-o quase apreensivo ser tão feliz; não estava acostumado a isso.

. Sob a orientação de Rannirl, ele estudou a mecânica da matriz. Não se deu muito bem com a teoria; concluiu que talvez Tani tivesse a idéia certa ao chamar de magia. Os espaçonautas também não entendiam a matemática da propulsão interestelar, sabiam apenas que funcionava. Foi mais rápido no aprendizado dos feitos psicocinéticos mais simples, com as matrizes de cristal pequenas; e Neyrissa, a monitora, ensinou-lhe a entrar no próprio corpo, procurar os padrões do sangue fluindo nas veias, regular, acelerar ou diminuir os batimentos cardíacos, aumentar ou baixar a pressão sanguínea, controlar os fluxos pelo que ela chamava de canais, e Kerwin desconfiou que os médicos terráqueos chamariam isso de sistema nervoso autônomo. Era muito mais sofisticado do que qualquer técnica de biofeedback que ele aprendera na Zona Terráquea. Os progressos foram menores no círculo de contato. Ele aprendeu a cumprir seu turno - com Corus ou Neyrissa a seu lado - nas redes, o sistema de comunicação telepática entre as Torres, que transmitia mensagens e notícias entre Neskaya, Arilinn, Hali e a distante Dalereuth. As mensagens ainda significavam pouco para Jeff, sobre um incêndio na floresta nas Colinas Kilghard, uma sucessão de ataques de bandidos nos longínquos contrafortes das Hellers, a erupção de uma febre contagiosa em Dalereuth, o nascimento de trigêmeos perto de Lake Country. Cidadãos comuns de vez em quando compareciam à Sala dos Estranhos da Torre, e pediam a transmissão de mensagens pela rede, questões de negócios ou notícias de nascimentos, mortes e contratos de casamento.

Mas ele não era tão bem-sucedido no trabalho no círculo. Sabia que todos acompanhavam ansiosos o seu progresso, agora que fora aceito; parecia às vezes que o observavam como falcões. Taniquel insistia que o pressionavam para avançar depressa demais, enquanto Auster se irritava, e acusava Kennard e Elorie de tratá-lo com indulgência. Mas, por enquanto, ele só conseguia suportar uns poucos minutos de cada vez no círculo de matriz. Evidentemente, não era um processo que pudesse ser precipitado; mas ele resistia por alguns segundos a mais de cada vez, suportando mais e mais o estresse do contato, antes de ter um colapso.

A dor de cabeça persistiu, e até tornou-se pior; mas, por algum motivo, isso não desencorajava nenhum deles. Neyrissa ensinou-o a controlá-la, pelo menos um pouco, regulando a pressão interior dos vasos sanguíneos em torno dos olhos e dentro do crânio. Mas ainda havia muitas ocasiões em que ele era incapaz de suportar qualquer coisa que não fosse um quarto escuro e silêncio total, com a cabeça dando a impressão de que ia rachar. Corus fazia gracejos rudes a seu respeito, e Rannirl previa, pessimista,-que ele ia piorar, antes de começar a melhorar, mas todos se mostravam pacientes; uma ocasião, quando se encontrava trancado com uma de suas terríveis dores de cabeça, ouviu Mesyr - que ele achava que o detestava - repreender Elorie, a quem obviamente ela adorava, por fazer barulho no correr, perto de seu quarto.

Uma ou outra vez, quando ele não agüentava mais, Taniquel entrou no quarto, sem ser convidada, e fez a mesma coisa que na primeira noite, encostando dedos leves em suas têmporas, e fazendo a dor desaparecer, como se abrisse uma válvula. Ela não gostava de fazer isso, Kerwin sabia; deixava-a esgotada, e Kerwin se assustava - e também se envergonhava - ao vê-la tão pálida e abatida depois. E Neyrissa ficava irritada.

- Ele tem de aprender a fazer sozinho, Tani. Não é bom para você, nem para ele, se continuar a fazer o que Jeff deve aprender a fazer por si mesmo. Olhe só para você agora, também ficou incapacitada!

Taniquel respondeu, quase balbuciando:

- Não suporto a dor dele. E como tenho de sentir a mesma dor, de qualquer maneira, é melhor ajudá-lo logo de uma vez.

- Pois então aprenda a se resguardar - advertiu Neyrissa. - Uma monitora nunca deve ter um envolvimento profundo, e você sabe disso. Se continuar assim, Tani, pode imaginar o que acontecerá.

Taniquel fitou-a com um sorriso malicioso.

- Está com ciúme, Neyrissa?

A mulher mais velha limitou-se a olhar para Kerwin, de cara amarrada, e saiu da sala.

- O que significa tudo isso, Tani? - perguntou Kerwin.

Mas Taniquel não respondeu. Kerwin se perguntou se algum dia seria capaz de compreender as pequenas interações entre as pessoas ali, as cortesias e as coisas que não precisavam ser ditas numa sociedade telepática.

Apesar de tudo, porém, ele já começara a relaxar. Por mais estranha que fosse, a Torre de Arilinn não era um castelo mágico de conto de fadas, apenas um enorme prédio de pedra, em que pessoas viviam. Os servidores não-humanos, silenciosos, parecendo flutuar de um lado para outro, ainda o deixavam inquieto, mas quase não os via, estava se acostumando com seus hábitos, e aprendendo a ignorá-los, como os outros faziam, a menos que quisesse alguma coisa. E nem tudo ali era bruxaria. A torre encantada não era absolutamente encantada. Por alguma razão insólita, Kerwin sentiu-se satisfeito quando descobriu um vazamento no telhado de seu quarto. Como ninguém de fora podia passar pelo Véu, ele e Rannirl subiram para o telhado inclinado, numa altura estonteante, e fizeram o conserto. De alguma forma, o prosaico incidente fez com que a Torre se tornasse mais real para Kerwin, menos como um sonho.

Ele começou a aprender a língua que os outros falavam entre si -chamavam-na de casta -, pois embora pudesse entendê-la telepáticamente, sabia que mais cedo ou mais tarde teria de lidar também com os não-telepatas locais. Leu alguma coisa da história de Darkover, do ponto de vista darkovano, não do terráqueo; não havia muitos livros, mas Kennard era um estudioso, e tinha um tratado extenso sobre a época dos Cem Reinos - que pareceu a Jeff um período mais complicado do que a Europa medieval - e outro sobre as Guerras de Hastur, que no final da Era do Caos uniram a maior parte das terras sob os Sete Domínios e o Conselho do Comyn. Kennard avisou-o que a história acurada era mais ou menos desconhecida; os textos haviam sido compilados a partir da tradição, lendas, baladas antigas e relatos orais, já que por quase mil anos a escrita estivera confinada aos irmãos de Santo Valentirie, no Mosteiro de Nevarsin, e os livros haviam se perdido quase que por completo. Mas com tudo o que aprendeu, Jeff concluiu que Darkover tivera outrora uma tecnologia de pedras de matriz altamente desenvolvida, e que seu abuso reduzira os Sete Domínios a uma anarquia caótica, depois da qual os Hasturs instituíram o sistema de Torres, sob as Guardiãs, que juravam castidade para evitar lutas dinásticas, e mantinham rígidos princípios éticos.

Ele começara a perder a noção do tempo, mas calculava que estava em Arilinn há trinta ou quarenta dias quando Neyrissa, ao final de uma sessão de treinamento, anunciou:

- Acho que você já pode agora atuar como monitor num círculo, sem muita dificuldade. Posso lhe dar o certificado de monitor, mas terá de prestar o juramento, se quiser.

Jeff fitou-a em espanto e consternação. Ela interpretou mal a surpresa, e disse:

- Se prefere fazer o juramento com Elorie, é seu direito legítimo, mas posso lhe assegurar que, na prática, não incomodamos a Guardiã com essas coisas. Sou plenamente qualificada para receber seu primeiro juramento.

Kerwin sacudiu a cabeça.

- Não tenho certeza se quero fazer qualquer julgamento. Não fui avisado... não entendo mais nada!

- Mas não pode operar no círculo sem o juramento de monitor -disse Neyrissa, franzindo o rosto. Ninguém treinado em Arilinn jamais admitiria isso. Nem ninguém de qualquer outra Torre se disporia a trabalhar com você sem o juramento... Por que não quer prestar o juramento?

Ela estava consternada, e fitou-o com uma suspeita que já desaparecera dos olhos de todos, menos de Auster.

- Pretende nos trair?

Um ou dois minutos transcorreram antes que Kerwin compreendes-se que ela não falara a última frase em voz alta.

Neyrissa tinha idade suficiente para ser sua mãe, e Kerwin especulou de repente se ela conhecera Cleindori; mas não perguntou. Cleindori traíra Arilinn. E Kerwin sabia que o filho dela nunca se livraria desse estigma, a menos que conquistasse a liberdade.

- Não me disseram que teria de prestar juramentos. De um modo geral, não é um costume terráqueo. Não sei o que teria de jurar - num súbito impulso, ele acrescentou:

- Você faria um juramento que não conhecesse, sem saber a que isto o obrigaria?

A suspeita e irritação desapareceram lentamente do rosto de Neyrissa.                                              

- Eu não tinha pensado nisso, Kerwin. O juramento de monitor é feito até por crianças, quando são testadas aqui. Outros juramentos podem lhe ser pedidos mais tarde, mas este o obriga apenas aos princípios básicos: você jura que nunca usará sua pedra-da-estrela para forçar a vontade ou consciência de qualquer coisa viva, nunca invadirá a mente de outra pessoa que não esteja querendo, e usará seus poderes apenas para ajudar ou curar, jamais para fazer a guerra. O juramento é muito antigo, remonta aos tempos anteriores a antes da Era do Caos, e há quem diga que foi criado pelo primeiro Hastur, quando deu uma matriz a seu primeiro pajem; mas isso é uma lenda, é claro. Com certeza, sabemos que é formalmente exigido em Arilinn desde a época de Varzil, o Bom, talvez mesmo antes.

Uma pausa, e ela acrescentou, os lábios se contraindo numa expressão desdenhosa:

- Não há nada no juramento de um monitor que possa ofender a consciência do próprio Hastur, muito menos de um Terranan!

Kerwin pensou a respeito por um momento. Há muito tempo que ninguém o chamava assim; não desde a sua primeira noite ali. Ao final, ele deu de ombros. O que tinha a perder? Mais cedo ou mais tarde teria de pôr de lado seus padrões terráqueos, optar pelos princípios e éticas darkovanos. Então por que não agora?

- Prestarei o juramento.

Enquanto repetia as palavras arcaicas - não forçar nenhuma coisa viva contra sua vontade ou consciência, não se intrometer sem ser chamado em nenhuma mente ou corpo, exceto para ajudar ou curar, nunca usar os poderes da pedra-da-estrela para forçar mente ou consciência - ele refletiu, quase que pela primeira vez, sobre os poderes assustadores da matriz, nas mãos de um hábil operador. O poder de interferir com os pensa-mentos das pessoas, de diminuir ou acelerar seus batimentos cardíacos, controlar o fluxo de sangue, retirar oxigênio do cérebro... era uma tremenda responsabilidade, e ele desconfiou que o juramento de monitor tinha a mesma força do juramento hipocrático na medicina terráquea.

Neyrissa insistira que o juramento fosse feito em contato mental, dizendo que era o costume, e Kerwin calculou que o motivo para isso era monitorar quaisquer restrições mentais, uma forma rudimentar de detector de mentiras, e que era tão normal entre telepatas que ele compreendeu que não implicava falta de confiança. Enquanto enunciava as palavras - percebendo agora por que eram exigidas, e também que era mesmo sincero ao prestar o juramento - ele sentiu a intensa intimidade de Neyrissa; de certa forma, era como se estivessem fisicamente muito juntos, embora a mulher sentasse no outro lado da sala, a cabeça inclinada, os olhos fixados em sua matriz, sem fitá-lo. Assim que Kerwin terminou, Neyrissa levantou-se, e disse:

- Estou cansada de passar o tempo todo trancada aqui dentro. Vamos sair para respirar um pouco de ar fresco. Gostaria de dar um passeio a cavalo? Ainda é cedo, e não há muito o que fazer hoje, pois nós dois não estamos escalados para operar nas redes. O que me diz de uma caçada com falcões? Não acha que seria ótimo termos aves para o jantar?

Kerwin guardou sua matriz, e seguiu-a. Aprendera a gostar de andar a cavalo; na Terra, era apenas um luxo exótico, para ricos excêntricos, mas ali, nas Planícies de Arilinn, era um meio comum de transporte, já que os veículos aéreos, impulsionados por matriz, eram raros, e usados apenas pelo Comyn, mesmo assim só em circunstâncias bastante especiais.

Ele acompanhou-a sem hesitação na descida para o estábulo, mas no meio da escada Neyrissa disse:

- Não seria melhor convidar os outros?

- Como achar melhor - respondeu Kerwin, um pouco surpreso. Ela não se mostrara muito cordial antes, e Kerwin não esperava que tivesse um grande interesse por sua companhia. Mas Mesyr se encontrava ocupada com problemas domésticos em algum lugar da Torre, Rannirl tinha um trabalho urgente a fazer no laboratório de matriz - ele tentou explicar, mas Kerwin não pôde entender mais que uma palavra em cinco, pois não tinha os conhecimentos técnicos necessários -, Corus estava atuando na rede, a perna estropiada de Kennard o incomodava, e Taniquel descansava para seu turno na rede, naquela noite. Ao final, os dois saíram sozinhos, pois Auster se recusou em acompanhá-los.

Kennard pusera um animal à disposição de Kerwin, uma égua preta, alta e esguia, criada em sua propriedade; Kerwin já fora informado de que os cavalos de Armida eram famosos nos Domínios. Neyrissa tinha um pônei cinza-prateado, de crina e rabo dourados, que ela disse ter vindo das Hellers. Levou seu falcão num bloco na sela, à sua frente; usava uma capa cinza e escarlate, com uma saia comprida e larga, que Kerwin percebeu ser dividida no meio, quase como uma calça. Enquanto pegava o falcão com o mestre falcoeiro, ela olhou para Kerwin, e disse:

- Há um falcão-sentinela bem treinado que Kennard lhe deu permissão para usar; ouvi quando ele falou.

- Nada sei sobre caçar com falcões - disse Kerwin, balançando a cabeça.

Ele aprendera a montar de uma forma aceitável, mas não sabia manipular aves de caça, e não pretendia fingir o contrário.

Houve uns poucos olhares e murmúrios curiosos, que Neyrissa ignorou, enquanto atravessavam a cidade. Kerwin refletiu que quase nada conhecia da cidade de Arilinn - que ele ouvira dizer que era a terceira ou quarta maior cidade nos Sete Domínios - e decidiu que a exploraria algum dia. A capa de Neyrissa era levantada pelo vento, revelando os cabelos cor de cobre, cheios de fios brancos, presos em trancas em torno da cabeça. Como fazia frio, Kerwin pusera seu manto de couro cerimonial por cima do traje terráqueo; e ouvindo os murmúrios, percebendo as expressões reverentes, ele compreendeu que o tomavam por outro membro do círculo da Torre. Fora isso o que as pessoas em Thendara haviam pensado, em sua primeira noite em Darkover?

Além dos portões de Arilinn, as planícies estendiam-se amplas, com capões aqui e ali, umas poucas trilhas e uma velha estrada para carroças, agora vazia. Andaram em silêncio por uma hora, à claridade púrpura do sol, até que Neyrissa parou seu cavalo, e disse:

- Há boa caça aqui. Devemos pegar algumas aves, um ou dois coelhos-de-chifre... Elorie não tem comido muito ultimamente, e eu gostaria de tentá-la com alguma coisa saborosa.

Kerwin sempre pensara na caça com falcões como um esporte exótico, algo feito pela emoção; e pela primeira vez, compreendeu que numa cultura como aquela era um meio utilitário de pôr carne na mesa. Talvez devesse aprender, concluiu ele. Parecia ser uma das habilidades práticas de um cavalheiro... e também, refletiu ele, observando as mãos pequenas e fortes de Neyrissa tirando o capuz do falcão, de uma dama. Não se podia imaginar as mulheres da nobreza caçando para comer, mas fora assim que a caça com falcões começara. Embora uma dama não fosse capaz de caçar grandes animais, não havia razão para que não igualasse ou mesmo superasse um homem na caça com falcão. Kerwin sentiu-se de repente um inútil.

- Não se preocupe com isso - disse Neyrissa, fitando-o, o que o fez compreender que ainda mantinham um resquício de contato mental.

- Você vai aprender. Da próxima vez, arrumarei um falcão verrin para você. É bastante alto e forte para carregá-lo.

Ela lançou o falcão para o ar, e observou-o subir mais e mais, uma das mãos protegendo os olhos.

- Agora! - murmurou Neyrissa. Ele avistou a presa... Kerwin olhou, mas não avistou a ave.

- Pode ver tão longe assim, Neyrissa?

Ela fitou-o com um ar de impaciência. Claro que não. O contato com o falcão e com o pássaro-sentinela é um dos dons de nossa família. O pensamento se irradiou da superfície da mente de Neyrissa, e Kerwin compreendeu que o contato entre os dois ainda era forte. Com parte de sua mente, ele sentiu o vôo, as asas compridas em movimento, a emoção da perseguição, divisou o mundo passar lá embaixo numa velocidade vertiginosa, um fluxo de êxtase invadindo todo o seu corpo... Balançando a cabeça, em espanto, Kerwin retornou ao solo, e acompanhou Neyrissa, que galopava para o lugar em que o falcão pousara com sua presa. Ela gesticulou para que o ajudante, que os seguia a alguma distância, pegasse a pequena ave morta, e a guardasse no alforje em sua sela. O falcão veio para a mão enluvada de Neyrissa, que tirou a cabeça da ave morta, e deu-a para ele comer. Neyrissa tinha os olhos fechados, o rosto afogueado; Kerwin se perguntou se ela também partilhara a emoção da caçada. Ele ficou observando o falcão engolir sangue e tendões com um senso de excitamento misturado com repulsa. Neyrissa fitou-o, e explicou:

- O falcão só come de minha luva. Nenhum pássaro bem treinado comerá de sua presa até que lhe seja dado. Já chega...

Ela tirou o pedaço ensangüentado do bico implacável, acrescentando:

- Quero outra ave.

Mais uma vez, ela lançou o falcão no ar, e Kerwin, sentindo o fio de contato entre mulher e animal, seguiu-o em sua mente, sabendo que não era uma intromissão, que Neyrissa abrira sua mente para que ele pudesse partilhar o êxtase do vôo, a longa subida pelo ar, o mergulho repentino, o sangue esguichando...

Enquanto o ajudante trazia a cabeça da segunda ave, Kerwin, através da emoção e repulsa, percebeu o quão profundamente partilhava aquilo com Neyrissa, quão grande era o excitamento que o dominava, quase sexual. Furioso, ele reprimiu o pensamento, perturbado e envergonhado, não querendo que Neyrissa soubesse. Não estava tentando seduzi-la... nem mesmo gostava dela! E a última coisa que queria agora era complicar sua vida com qualquer mulher!

Contudo, à medida que o sol baixava, e o falcão tornava a subir pelo céu, atacando e matando, Kerwin foi atraído de novo para o contato extasiado com a mulher e o falcão, sangue, terror e excitamento. Por fim, Neyrissa virou-se para o ajudante, e disse:

- Já chega. Pode voltar.

Ela parou o cavalo, observou-o partir, respirando fundo, devagar. Kerwin tinha certeza de que Neyrissa o esquecera. Sem dizer nada, ela virou o cavalo na direção dos distantes portões de Arilinn.

Kerwin partiu atrás, numa estranha submissão. O vento aumentou, e ele puxou o capuz sobre a cabeça. Cavalgando atrás de Neyrissa, com o sol vermelho baixo no céu, uma lua violeta em crescente sobre uma colina distante, ele experimentou a estranha sensação de que se encontrava sozinho com a mulher naquele mundo, indo em seu encalço como o falcão perseguira a ave em fuga... Bateu com os calcanhares nos flancos da égua, e seguiu atrás dela, correndo como se estivesse nas asas do vento, perdido no excitamento da perseguição... e se segurando na montaria com a pressão dos joelhos, por instinto, toda a sua mente concentrada na emoção daquele instante. Enquanto galopava, sentiu que o contato com a mulher ainda perdurava, sentiu o excitamento que ela também experimentava, a percepção dos cascos em seu encalço, a longa perseguição, um estranho anseio, em que se misturava um certo medo... Imagens afloraram à mente de Kerwin, alcançá-la, tirá-la do cavalo, jogá-la no chão... era um excitamento sexual crescente, a dominá-lo, um excitamento partilhado, o que o levou a acelerar sua montaria, inconscientemente, até que chegaram perto dos portões da cidade...

A compreensão surgiu com um tremendo impacto. O que estava fazendo? Era um hóspede ali, um colega de trabalho, já até prestara juramento; era um homem civilizado, não um bandido, nem um falcão! O sangue latejava em suas têmporas, e ele evitou os olhos de Neyrissa, enquanto os cavalariços pegavam os animais. Desmontaram, e Kerwin sentiu que ela também ficara tonta com o excitamento, mal conseguia se manter de pé. Ele sentia-se perturbado e envergonhado pela prevalência da fantasia sexual, consternado pelo pensamento de que Neyrissa também a partilhara. Nas pequenas dimensões do estábulo, Neyrissa passou por ele, os corpos nem se tocaram, mas ainda assim ele sentiu a presença intensa da mulher sob o manto, e virou a cabeça para esconder o rubor que se espalhou por seu rosto.

Assim que passaram pelo Véu, na base da escada, ela parou de repente, virou-se para fitá-lo.

- Desculpe. Eu havia esquecido... por favor, acredite em mim, não fiz isso de propósito. Apenas esqueci que você não... não seria capaz de se resguardar, se lhe fosse indesejável.

Kerwin olhou para ela, constrangido, mal absorvendo que Neyrissa também projetara e partilhara a curiosa fantasia. Tentando ser polido, ele murmurou:

- Não tem importância.

- Tem, sim! - exclamou ela, irritada. Não pode entender. Eu havia esquecido o que significaria para você, e não é a mesma coisa que significaria para um de nós.

Abruptamente, a mente de Neyrissa se abriu, e Kerwin ficou chocado ao sentir o excitamento tenso que ela experimentava, de uma profunda sexualidade, sem ser disfarçado agora pelo simbolismo da caça com falcão. Ele ficou perturbado, embaraçado, e Neyrissa acrescentou, em voz baixa, insidiosa:

- Eu disse que não poderia entender. Eu não deveria ter feito isso com você, a menos que suas barreiras fossem adequadas para bloquear, e não eram. Num homem... um dos nossos... o fato de aceitar e... partilhar... significaria algo mais do que para você. A culpa é minha; acontece às vezes, depois do contato. Eu errei, Kerwin, não você. Afinal, não está obrigado a qualquer coisa. Não se preocupe. Sei que não quer...

Neyrissa respirou fundo, fitando-o nos olhos, e Kerwin pôde sentir toda a raiva e frustração dela. Ainda transtornado, sem entender direito, ele murmurou:

- Sinto muito, Neyrissa. Não tive a intenção... de fazer qualquer coisa que pudesse ofendê-la ou magoá-la...

- Sei disso! - explodiu ela. Já expliquei: às vezes acontece. Sou monitora há tantos anos que posso saber que fui a responsável. Calculei errado o nível de suas barreiras, isso é tudo. Pare de se angustiar, e procure se controlar, antes de espalharmos isso por toda Arilinn. Posso lidar com o problema, mas você não pode, e Elorie é muito jovem. Não vou admitir que ela se perturbe com essa bobagem!

Foi como uma súbita inundação de água gelada, afogando tudo, acabando com sua percepção da mulher, a descoberta chocada de que os outros telepatas podiam captar suas fantasias, suas necessidades... Kerwin sentiu-se nu e exposto, e a raiva de Neyrissa era como um raio vermelho em sua consciência. Ele experimentava uma extrema vergonha. Balbuciou uma desculpa, angustiado, subiu apressado a escada, foi se refugiar em seu quarto. Ainda não entendia direito o que acontecera, mas isso não diminuía seu desespero.

Uma longa introspecção levou à conclusão de que era impossível esconder as emoções num grupo de telepatas; e, quando tornaram a se encontrar, embora ele estivesse preocupado, com medo de que sua vergonhosa incapacidade de bloquear os próprios pensamentos pudesse arruinar a descontração com que era aceito, ninguém falou ou sequer parecia pensar a respeito. Começava a compreender o que significava ficar exposto, até mesmo em seus pensamentos mais íntimos, a outras pessoas. Tinha a sensação de que estava nu, à vista de todos; mas refletiu que nenhum deles passara pela vida sem um único pensamento embaraçoso, e que teria de se acostumar a isso.

E pelo menos sabia agora que não adiantava tentar fingir com Neyrissa. Ela o conhecia, como monitora fora ao fundo de seu corpo, agora também penetrara em sua mente, vira até mesmo aqueles pontos sensíveis que ele preferia que permanecessem ignorados. E mesmo assim Neyrissa o aceitava. O que era um sentimento agradável. Paradoxalmente, não passou a gostar dela mais do que antes, mas agora sabia que isso não tinha importância; haviam partilhado alguma coisa, e aceitavam.

Ele estava em Arilinn há cerca de quarenta dias quando lhe ocorreu de novo que não conhecia a cidade, e uma manhã perguntou a Kennard - pois não tinha certeza de sua posição na Torre - se podia sair para explorá-la.

- Por que não? - respondeu Kennard, para em seguida sair de seu devaneio, e acrescentar: Pelos infernos de Zandru, meu rapaz, não precisa pedir permissão para fazer qualquer coisa que lhe aprouver. Vá sozinho, peça a um de nós para acompanhá-lo e explicar tudo, ou leve um dos kyrri para não se perder... como preferir!

Auster virou-se da lareira - estavam todos no grande salão - e disse, azedo:

- Não nos desgrace por sair com estas roupas.

Qualquer coisa que Auster dizia sempre provocava a determinação de Kerwin de fazer exatamente o contrário.

- Todos olharão para você se sair com essas roupas, Jeff -acrescentou Rannirl.

- Vão olhar de qualquer maneira - comentou Mesyr.

- Mesmo assim, é melhor usar um traje darkovano. Venha comigo, Jeff. Vou lhe emprestar uma roupa minha... creio que somos mais ou menos da mesma altura... por enquanto. E devemos providenciar logo trajes adequados para você.

Kerwin sentiu-se ridículo ao vestir o gibão curto de franjas, a blusa comprida de mangas largas, e o culote que terminava antes das botas. A noção de cor de Rannirl também não combinava com seu gosto; se tinha de usar um traje darkovano - e concordava que seria um absurdo sair no uniforme terráqueo -, não precisava ser num gibão magenta com ornamentos laranja! Ou pelo menos esperava que não!

Mas Kerwin ficou surpreso ao se contemplar num espelho, e descobrir que o traje vistoso lhe caía muito bem. Realçava sua altura excepcional e a cor dos cabelos, que sempre o deixavam contrafeito em trajes terráqueos. Mesyr advertiu-o a não cobrir a cabeça; os telepatas da Torre de Arilinn mostravam a cabeça com orgulho, e isso os protegia de insultos e ferimentos acidentais. Num mundo de violência diária, como Darkover, em que brigas na rua eram uma forma predileta de demonstrar animação, Jeff Kerwin não podia deixar de admitir que tal atitude fazia sentido.

Enquanto caminhava pelas ruas da cidade - optara por sair sozinho - ele percebeu os olhares e sussurros, mas ninguém o abordou. Era uma cidade estranha para ele; fora criado em Thendara, e o dialeto ali era outro, as roupas das mulheres diferentes, com as saias mais compridas, quase não se via os blusões terráqueos importados, homens e mulheres usavam o manto comprido com capuz. Só que os calçados de um terráqueo não se ajustavam ao traje darkovano - Rannirl, embora mais alto do que Kerwin, tinha pés surpreendentemente pequenos - e num súbito impulso, ao passar por uma loja que tinha botas e sandálias em exposição, Kerwin entrou, e pediu para ver um par de botas.

O proprietário parecia tão intimidado e respeitoso que Kerwin especulou se teria cometido algum erro social - era óbvio que o Comyn não freqüentava lojas comuns -, até que a barganha começou. O homem se empenhou com insistência em trocar as botas de preço modesto por um par muito mais caro, a tal ponto que Kerwin irritou-se, e se pôs a barganhar com veemência. O lojista reiterou aflito, várias vezes, que aquelas botas miseráveis não eram dignas de um vai dom. Ao final, Kerwin escolheu dois pares, um de montaria, e as botas de cano baixo, de camurça macia, que todos os homens de Arilinn pareciam usar dentro da Torre. Tirando a carteira do bolso, ele perguntou:

- Quanto lhe devo?

O homem se mostrou chocado e ofendido.

- O que fiz para merecer esse insulto, vai dom? Empresta sua graça a mim e à minha loja; não posso aceitar nenhum pagamento!

- Mas não deve fazer isso! - protestou Kerwin.

- Eu disse que aquelas pobres botas não eram dignas de sua atenção, vai dom, mas se o lorde aceitar de mim par de botas excepcional...

- Mas que coisa!

Kerwin não sabia o que estava acontecendo, não podia imaginar que tabu darkovano violara desta vez, sem saber.

O homem lançou um olhar curioso para Kerwin, antes de indagar:

- Perdoe a minha intromissão, vai dom, mas não é o Lorde Kerwin-Aillard do Comyn?

Kerwin recordou o costume que dava à criança darkovana o nome do ascendente de posição superior, e teve de admitir que sim. Ao que o homem declarou, firme e respeitoso, como se instruísse uma criança retardada em boas maneiras:

- Não é o costume aceitar pagamento por qualquer coisa que um lorde do Comyn tenha se dignado aceitar, senhor.

Kerwin cedeu gentilmente, sem querer armar uma cena, mas sentia-se embaraçado. Como poderia obter as outras coisas que queria? Bastava entrar e pedir? O Comyn, ao que tudo indicava, tinha um belo golpe aplicado ali, mas ele não era bastante explorador para aproveitar. Estava acostumado a trabalhar para ter o que queria, e sempre pagava por tudo o que levava.

Ele meteu o embrulho debaixo do braço, e saiu para a rua. Sentia-se curiosamente diferente e satisfeito, por ser capaz de andar por uma cidade darkovana como um cidadão local, não um forasteiro, não um intruso. Pensou por um instante em Johnny Ellers, mas aquela era outra vida, e os anos que ele passara com o Império Terráqueo eram como um sonho.

- Kerwin?

Ele ergueu os olhos para deparar com Auster, vestido em verde escarlate, parado à sua frente.

- Ocorreu-me que poderia se perder - acrescentou Auster, jovial. Tinha uns assuntos a resolver na cidade, e pensei que talvez pudesse encontrá-lo no mercado.

- Obrigado. Ainda não me perdi, mas as ruas são um pouco confusas. Ainda bem que veio me procurar.

Kerwin estava surpreso com o gesto cordial; de todo o círculo, Auster era o único que se mostrara persistentemente hostil.

Auster deu de ombros, e de repente, tão claro como se ele tivesse falado, Kerwin sentiu o padrão inequívoco.

Ele mente. Disse isso para eu não perguntar o que veio fazer aqui. Não foi para se encontrar comigo, e lamenta que eu o tenha visto. Mas Kerwin tratou de reprimir o assunto. Afinal, não era o vigia de Auster. Talvez o homem tivesse uma namorada ali, ou um amigo, qualquer outra coisa. Não era da sua conta.

Mas por que ele achou que tinha de me explicar sua presença na cidade?

Passaram a andar juntos, na direção da Torre, que ficava a uma boa distância do mercado. Auster parou subitamente.

- Gostaria de ir a algum lugar, tomar um drinque comigo, antes de voltarmos à Torre?

Embora apreciasse o convite cordial, Kerwin sacudiu a cabeça.

- Obrigado, mas já fui olhado demais por um dia. De qualquer forma, não sou muito de beber. Mas agradeço o convite. Talvez em outra ocasião.

Auster fitou-o com uma expressão que não chegava a ser amigável, mas pelo menos era compreensiva.

- Vai se acostumar a ser observado... num certo nível. Em outro, é cada vez pior. Quanto mais se isola com... com sua própria espécie... menos é capaz de tolerar os outros.

Continuaram a andar, lado a lado, até que Kerwin ouviu um grito, às suas costas. Auster virou-se, dando um empurrão violento em Kerwin, que perdeu o equilíbrio, estatelou-se no chão, enquanto alguma coisa passava pelo lugar em que estivera sua cabeça, e ia bater no muro. Um fragmento de pedra atingiu o rosto de Kerwin, abrindo-o até o osso.

Auster também se desequilibrara, e caíra de joelhos; levantou-se, olhando ao redor, pegou a pedra que alguém arremessara, com uma acurácia que poderia ser fatal.

- Mas o que é isso? - gritou Kerwin.

Ele se levantou também, olhando para Auster, que murmurou:

- Peço desculpas... Kerwin interrompeu-o:

- Esqueça! Salvou-me de um ferimento mais grave. Se essa coisa tivesse me atingido em cheio, eu poderia até ter morrido. - Ele tocou no rosto, com dedos cautelosos. - Quem atirou essa pedra?

- Algum descontente - Auster tornou a olhar ao redor, apreensivo. Coisas estranhas vêm acontecendo em Arilinn. Pode me fazer um favor, Kerwin?

- É o mínimo que lhe devo.

- Não mencione o incidente às mulheres... nem a Kennard. Já temos problemas demais com que nos preocuparmos.

Kerwin franziu o rosto, mas acabou concordando, com um aceno de cabeça. Sem dizerem mais nada, eles se encaminharam para a Torre. Era surpreendente como se sentia à vontade com Auster, refletiu Kerwin, apesar do fato óbvio do outro detestá-lo. Era como se conhecessem por toda a vida. Isolado com sua própria espécie, dissera Auster. Mas Auster seria sua própria espécie?

Havia duas coisas que ele tinha de analisar. A primeira, o fato de que Auster, embora não gostasse dele, reagira - de uma forma automática, por instinto - para salvá-lo de uma pedra arremessada; se ficasse imóvel, poderia ter deixado que Kerwin fosse atingido, e assim se pouparia de problemas posteriores. Mas ainda mais surpreendente do que o estranho comportamento de Auster era o próprio atentado. Apesar de toda a deferência com o Comyn dos habitantes de Arilinn, era evidente que alguém na cidade gostaria que um deles morresse.

Ou seria o intruso meio-terráqueo que deveria ser morto? Kerwin se arrependeu da promessa que fizera a Auster. Gostaria de conversar a respeito com Kennard.

Naquela noite, quando se juntou aos outros no salão, Kennard olhou curioso para o curativo em seu rosto. Se Kennard indagasse à queima-roupa o que acontecera, Kerwin poderia ter respondido, já que não prometera a Auster mentir a respeito. Mas Kennard não fez qualquer comentário, e por isso Kerwin limitou-se a relatar o incidente com o comerciante e as botas, comentando sua apreensão com o costume. O homem mais velho inclinou a cabeça para trás numa risada.

- Meu caro rapaz, você proporcionou a ele um prestígio... creio que um Terranan diria publicidade gratuita... que vai durar por muitos anos. O fato de um Comyn de Arilinn, mesmo não dos mais importantes, ter entrado em sua loja, barganhado com ele...

- Não passa de um golpe - resmungou Kerwin, irritado, sem achar a menor graça.

- Na verdade, Jeff, faz muito sentido. Dedicamos uma boa parte de nossas vidas ao povo, pois só nós podemos fazer coisas de que os outros não são capazes. Eles nem pensariam em nos deixar inventar uma desculpa para nos ocuparmos em outra atividade. Passei algum tempo como oficial na Guarda. Meu pai é o comandante hereditário, pois é um posto de Alton, e assumirei quando ele morrer. Deveria estar agora ao lado dele, aprendendo, mas havia uma escassez de pessoal em Arilinn, e por isso tive de voltar. Se meu irmão Lewis estivesse vivo... mas ele morreu, deixando-me como Herdeiro de Alton, e do comando da Guarda.

Kennard suspirou, o olhar se perdeu na distância; e depois, abruptamente, recordou o que dizia a Kerwin, e continuou:

- De certa forma, é uma maneira de nos manter prisioneiros aqui, um suborno. Qualquer coisa que por acaso quisermos... qualquer um de nós... recebemos no mesmo instante, e assim não temos a menor desculpa para deixar a Torre sob a alegação de que poderemos ter mais fora daqui.

Ele olhou para as botas, franziu o rosto, antes de acrescentar:

- Foi uma mercadoria de má qualidade a que o homem lhe deu. Cai mal para ele próprio e sua loja.

Kerwin riu. Não era de admirar que o homem se empenhasse ao máximo para que ele levasse um par melhor! Ele relatou tudo, e Kennard balançou a cabeça.

- Falando sério, o homem ficaria muito satisfeito se você voltasse lá na próxima vez em que visitar a cidade, e levasse o melhor par da loja. Ou melhor ainda, encomende um par especialmente para você, do jeito que quiser. E por que não aproveita para mandar fazer algumas roupas

mais apropriadas ao clima? Os terráqueos acreditam em aquecer suas casas, não seus corpos; quase sufoquei quando estive lá...

Kerwin aceitou a mudança de assunto, mas ainda não compreendia muito bem o que as Torres tinham de tão importante. Muito bem, a transmissão de mensagens. As redes podiam ser mais simples do que montar um sistema de comunicações por rádio ou telefone. Mas se isso era tudo o que eles queriam, um sistema de rádio poderia atender a todas as necessidades. Quanto ao resto, ainda não ligara os truques mais simples com os cristais à excepcional importância que os telepatas do Comyn pareciam ter em Darkover.

E agora havia outra peça naquele quebra-cabeça que não se ajustava: uma pedra atirada em plena luz do dia contra dois dos reverenciados telepatas da Torre. E não fora um acidente. Não podia ter sido uma pedra jogada a esmo numa briga. Fora mesmo um ataque deliberado, para mutilar ou matar... e por pouco não conseguira. Não dava para entender, e ele se censurou por ter feito a promessa a Auster.

Kerwin obteve a resposta para sua pergunta vinte dias mais tarde. Numa das salas isoladas, sob a supervisão de Rannirl, ele trabalhava com a mecânica elementar, praticando técnicas simples de emissão de força, não muito diferentes do truque de derreter o cristal que Ragan demonstrara. Já se empenhavam nisso há mais de uma hora, e sua cabeça de Jeff começava a latejar, quando Rannirl disse, abruptamente:

- Já chega, por enquanto; alguma coisa está acontecendo.

Saíram para o patamar no momento em que Taniquel subia correndo pela escada; ela esbarrou neles, e Rannirl estendeu a mão para ampará-la.

   - Tome mais cuidado, chiya. O que aconteceu?

- Não sei ainda, mas Neyrissa acaba de receber uma mensagem de Thendara: Lorde Hastur está vindo para Arilinn.

- Tão cedo? Eu esperava termos mais tempo. Rannirl olhou para Kerwin, e franziu o rosto. Você ainda não está preparado.

Kennard também subiu a escada, apoiando-se no corrimão.

- Isso tem alguma coisa a ver comigo? - perguntou Kerwin.

- Ainda não temos certeza - respondeu Kennard. É possível. Foi Hastur quem deu o consentimento para trazê-lo até aqui... embora nós assumíssemos a responsabilidade.

Kerwin sentiu um súbito aperto na garganta. Fora localizado ali? Os terráqueos exigiram o cumprimento da ordem de deportação? Ele não queria deixar Darkover, sentia que agora não suportaria sair de Arilinn. Pertencia à Torre, aquelas pessoas eram a sua família... Kennard acompanhou seus pensamentos, e sorriu gentilmente.

- Eles não têm autoridade para deportá-lo, Jeff. Pela lei darkovana, a cidadania segue o ascendente de posição superior, o que significa que você é darkovano por direito de sangue, um Aillard do Comyn. Na próxima sessão do Conselho, com toda certeza, Lorde Hastur vai confirmá-lo como Herdeiro de Aillard, já que não há herdeira feminina nessa linhagem. Cleindori não teve filhas, e ela própria era nedestro.

Mas Kennard ainda parecia preocupado, e enquanto continuava a subir, a caminho de seu quarto, olhou para trás, apreensivo, e acrescentou:

- Mas trate de usar roupas darkovanas!

O próprio Kerwin foi providenciar as roupas na cidade. Ao vestir o sombrio traje azul e cinza, feito pelo melhor alfaiate que pudera encontrar, contemplou-se no espelho, e pensou que pelo menos parecia darkovano. Sentia-se como tal... isto é, na maior parte do tempo. Mas ainda tinha a impressão de que continuava em julgamento. Será que Arilinn - ou o Conselho do Comyn - tinha realmente o poder de desafiar o Império Terráqueo?

Jeff concluiu que essa era a pergunta apropriada. O único problema é que não conhecia a resposta, não podia sequer adivinhar.

Reuniram-se não no grande salão, que usavam todas as noites, mas numa sala menor, mais formal, no alto da Torre, que Kerwin ouvira ser chamada de câmara de audiências da Guardiã. Era bastante iluminada, com prismas suspensos de correntes de prata; os assentos eram antigos, lavrados, de uma madeira escura, e havia no meio uma mesa baixa, incrustada com pérola e nácar, com uma estrela de muitas pontas no centro. Nem Kennard nem Elorie estavam presentes. Kerwin sabia que Kennard fora à pista de pouso para receber o ilustre visitante. Ao sentar, ele notou que uma cadeira era mais alta e mais imponente do que as outras, e calculou que estava reservada para Lorde Hastur.

Uma cortina foi puxada por um não-humano, e Kennard entrou, claudicando, foi ocupar seu lugar. Por trás dele veio um homem alto e moreno, esguio, mas com uma postura marcial. Ele disse, cerimonioso:

- Danvan Hastur de Hastur, Guardião de Hastur, Regente dos Sete Domínios, Lorde de Thendara e Carcosa...

- E assim por diante - interveio uma voz gentil e firme. Você me empresta sua graça, Valdir, mas suplico que me poupe de todas essas cerimônias.

E Lorde Hastur entrou na sala. Não era um homem alto. Vestia-se com simplicidade, com um manto azul forrado de pele prateada. À primeira vista, parecia um acadêmico tranqüilo, passando da meia-idade, cabelos louros, prateados nas têmporas, cortês e despretensioso. Mas alguma coisa - a postura imponente do corpo esguio, a linha firme da boca, o olhar rápido e incisivo, avaliando a sala e as pessoas ali - fez com que Kerwin compreendesse que não se tratava de uma não-entidade. Ali estava um homem de tremenda presença, acostumado a dar ordens e a ser obedecido, um homem absolutamente seguro de sua posição e poder, tão seguro que nem precisava de arrogância.

De alguma forma, ele parecia ocupar mais espaço na sala do que seu físico justificava. A voz povoava todos os cantos, embora não fosse alta.

- Emprestem-me sua graça, crianças. Estou contente por voltar a Arilinn.

Os olhos azul-claros fixaram-se em Kerwin, e o homem se adiantou em sua direção. Sua presença era tão magnética que Kerwin levantou-se, numa deferência automática.

- Vai dom - disse ele -, estou aqui a seu serviço.

- Então você é o filho de Cleindori, o que mandaram para a Terra. Danvan Hastur falava o dialeto de Thendara, o mesmo que Kerwin usara na infância. De alguma forma, sem saber como, ele compreendeu que Hastur não era um telepata.

- Que nome lhe deram, filho de Aillard?

Kerwin disse seu nome; Hastur balançou a cabeça, pensativo.

- Um bom nome, embora Jeff tenha um som desnecessariamente bárbaro. Pode considerar a possibilidade de adotar um dos nomes de seu clã; sua mãe, com toda certeza, escolheria um deles para você, Arnad, Damon, ou Valentine. Já pensou a respeito? Quando for apresentado ao Conselho deverá usar um nome condizente com um nobre de Aillard.

Kerwin declarou, tenso, resistindo ao charme de Hastur:

- Não me envergonho de usar o nome de meu pai, senhor.

- Como quiser. Posso assegurar que não tive a intenção de ofendê-lo, parente, nem sugeri que repudiasse sua herança terráquea. Mas você parece Comyn. Eu queria verificar pessoalmente, ter certeza.

Kennard interveio, em tom seco:

- Não confia em minha palavra, Lorde Danvan? Ou... - ele olhou para o homem moreno e pálido que se chamava Valdir - ...foi você que não pôde aceitar minha palavra, meu pai?

Os dois trocaram um olhar meio hostil, meio afetuoso, antes que Kennard acrescentasse para Kerwin, formal:

- Meu pai, Valdir-Lewis Lanart de Alton, Lorde de Armida. Kerwin fez uma mesura, surpreso; o pai de Kennard?

- Não nos ocorreu que tentaria nos enganar, Kennard, mesmo que pudesse - disse Valdir. Mas Lorde Hastur queria ter certeza de que não haviam sido enganados pelo terráqueo, aceitando um impostor.

Seus olhos penetrantes estudaram Kerwin por um instante, depois ele suspirou, e declarou:

- Mas posso ver que é verdade. Tem os olhos de sua mãe, meu rapaz. É muito parecido com ela. Fui o pai de adoção de Cleindori. Quer me dar um abraço de parente, sobrinho?

Ele se adiantou para um abraço formal, pressionou suas faces contra as de Jeff. Sentindo, corretamente, que era um ato muito significativo de reconhecimento pessoal, Kerwin baixou a cabeça. Hastur disse, o rosto um pouco franzido:

- Estes são dias estranhos. Nunca imaginei que receberia o filho de um terráqueo no Conselho. Mas se devemos, assim será.

Ele suspirou, e acrescentou para Kerwin:

- Muito bem, também o reconheço. Um sorriso irônico surgiu em seu rosto.

- E já que aceitamos o filho de um pai terráqueo, suponho que devemos aceitar também o filho de uma mãe terráquea. Leve Lewis-Kennard à sessão do Conselho, se for o caso, Kennard. Quantos anos ele tem agora... onze?

- Dez, senhor.

Hastur balançou a cabeça.

- Não posso falar pelo Conselho, mas se o garoto tem laran... Por outro lado, ele ainda é muito pequeno para se ter certeza, e talvez o Conselho se recuse a reconhecê-lo; mas eu, pelo menos, não mais lutarei contra isso, Ken.

- Vai dom, é muito generoso - disse Kennard, a voz impregnada de sarcasmo.

Valdir apressou em interferir, num tom incisivo:

- Já chega. Voaremos esse falcão quando suas asas estiverem crescidas. Por enquanto... ora, Hastur, o jovem Kerwin não seria o primeiro com sangue terráqueo a se apresentar ao Conselho do Comyn por direito de casamento. Nem mesmo o primeiro a construir uma ponte entre nossos dois mundos, para a melhoria de ambos.

Hastur suspirou de novo.

- Conheço suas opiniões a respeito, Valdir; meu pai as partilhava, e foi por vontade dele que Kennard seguiu para a Terra, quando não era mais que um menino. Não sei se ele estava certo ou errado; só o tempo nos dirá. No momento, nos confrontamos com as conseqüências dessa decisão, e devemos lidar com elas.

- Estranhas palavras para o Regente do Comyn - comentou Auster, de seu lugar.

Hastur lançou-lhe um olhar fulminante de falcão.

- Eu lido com realidades, Auster. Você vive aqui, isolado, com seus irmãos e irmãs de sangue Comyn; eu, à beira da Zona Terráquea, não posso fingir que os dias antigos de Arilinn ainda persistem, ou que a Torre Proibida nunca projetou uma sombra sobre todas as Torres dos Domínios. Se o Rei Stephen... mas ele está morto, que seu sono seja profundo, e eu sou o Regente para uma criança de nove anos, não muito inteligente ou firme; um dia, se formos afortunados, o Príncipe Derek reinará, mas até lá devo fazer o que for preciso, em seu nome.

Ele virou-se com um gesto determinado, que silenciou Auster, e foi ocupar seu lugar... não a cadeira alta, Kerwin notou, aturdido, mas um dos assentos comuns. Valdir não sentou; continuou de pé, junto da porta. Embora não usasse qualquer arma, Kerwin pensou nele como um homem com a mão no punho da espada.

- E agora, minhas crianças, como vão as coisas em Arilinn? Kerwin, observando Lorde Hastur, pensou: Eu gostaria de poder contar a esse velho sobre aquela pedra! Lorde Hastur é sério e objetivo; saberia o que fazer, com toda certeza!

As cortinas na entrada se mexeram, e Valdir anunciou, cerimonial:

- Dama Elorie, Guardiã de Arilinn.

Mais uma vez, o corpo pequeno e imponente parecia sufocado pelos trajes cerimoniais, de um peso cruel. As correntes de ouro na cintura e prendendo o manto quase pareciam com grilhões, um fardo insuportável. Em silêncio, sem olhar para ninguém, ela foi para a cadeira que parecia um trono, à cabeceira da mesa. A mesura profunda de Valdir surpreendeu Kerwin, tanto quanto a reação de Lorde Hastur, que se levantou, e inclinou-se até os joelhos para Elorie.

Kerwin não podia compreender. Aquela era a mesma moça que brincava com suas aves de estimação no grande salão, discutia com Taniquel, fazia apostas tolas com Rannirl, e cavalgava como uma garota turbulenta com seus falcões; nunca a vira antes no traje cerimonial completo, e foi um choque e uma revelação. Ele sentiu que deveria se curvar também, mas Taniquel tocou em seu pulso, e ele captou o pensamento:

O Circulo da Torre de Arilinn, o único nos Domínios, não precisa se levantar para sua Guardiã. A Guardiã de Arilinn é sacrossanta; mas nós somos seus eleitos. Havia orgulho no pensamento de Taniquel, e Kerwin também sentiu um lampejo; nem mesmo Hastur podia recusar deferência à Guardiã de Arilinn. Portanto, num certo sentido, somos mais poderosos do que o Regente dos Sete Domínios...

- Seja bem-vindo, em nome de Evanda e Avarra - disse Elorie, em sua voz suave e gutural. Como Arilinn pode servir ao filho dos Hasturs, vai dom?

- Suas palavras iluminam o céu, vai leronis - respondeu Hastur. Elorie gesticulou para que ele tornasse a sentar. Kennard disse:

- Faz muito tempo que não nos honra com uma visita a Arilinn, Lorde Hastur. É claro que nos sentimos honrados, mas, me perdoe, sabemos que não veio aqui para nos honrar, nem para dar uma olhada em Jeff Kerwin, nem para trazer mensagens sobre o Conselho, ou mesmo para permitir que eu veja meu pai, e pergunte pela saúde de meus filhos. Eu diria também que não veio pelo prazer de nossa companhia. O que quer conosco, Lorde Hastur?

O rosto do Regente se contraiu num sorriso jovial.

- Eu deveria saber que você logo perceberia, Ken. Quando Arilinn puder dispensá-lo, precisamos de alguém como você no Conselho; Valdir é diplomata demais. Tem toda razão, é claro; vim de Thendara porque temos uma delegação à espera... com a grande questão.

Todos eles, a exceção de Kerwin, pareciam saber do que se tratava. Rannirl murmurou:

- Tão cedo?

- Não nos deu muito tempo, Lorde Hastur - disse Elorie. Jeff vem fazendo bons progressos, mas lentos.

Kerwin inclinou-se para a frente, apertando os braços da cadeira.

- Mas que história é essa? Por que olham para mim? Hastur disse, solene:

- Porque você, Jeff Kerwin-Aillard, nos deu, pela primeira vez em muitos anos, um Círculo da Torre com um pleno complemento de poder, sob uma Guardiã. Se você não nos desapontar, podemos assumir uma posição de salvar o poder e prestígio do Comyn... se não nos desapontar. Caso contrário... - ele abriu os braços. - os terráqueos terão acesso a Darkover. Os outros seguirão, e não haverá como detê-los. Quero que você... todos vocês... venham conversar com a delegação. O que me diz, Elorie? Confia em seu bárbaro terráqueo a esse ponto?

No silêncio que se seguiu, Kerwin sentiu o olhar calmo e infantil de Elorie fixado nele.

Bárbaro. O bárbaro de Elorie. Ainda sou isso, para todos eles. Elorie virou-se para Kennard.

- O que acha, Ken? Você o conhece melhor.

A esta altura, Kerwin já se acostumara a ser discutido de uma forma ostensiva. Numa sociedade telepática, não havia como evitar isso. Mesmo que tivessem o tato de lhe pedir para deixar a sala, ainda saberia de tudo o que dissessem. Ele tentou se manter impassível.

- Podemos confiar nele, Elorie - respondeu Kennard, suspirando -, mas o risco é seu, e portanto a decisão deve ser sua. Qualquer que seja, vamos apoiá-la.

- Eu sou contra - interveio Auster, veemente. Sabem o que eu acho... você também, Lorde Hastur!

Hastur virou-se para o homem mais jovem.

- É um preconceito cego contra os terráqueos, Auster - sua serenidade contrastava com o rosto tenso e contraído e a voz irada de Auster - ou tem algum motivo?

- Preconceito e ciúme! - exclamou Taniquel, furiosa.

- Preconceito, sim - admitiu Auster -, mas não preconceito cego. Foi fácil demais afastá-los dos terráqueos. Como sabemos que não foi tudo encenado para nos enganar?

Valdir disse, em sua voz profunda:

- Com o rosto de Cleindori reproduzido nele? Jeff tem sangue Comyn.

- Com sua licença, Lorde Valdir, acho que também está sendo preconceituoso - disse Auster. Você, com seu filho de adoção terráqueo e neto mestiço...

Kennard levantou-se abruptamente.

- Ora, Auster...

- E ainda fala em Cleindori! - da maneira como ele falou, a palavra soou como um epíteto, uma coisa repulsiva. Aquela que foi Dorilys de Arilinn... renegada, herege...

Elorie também se levantou, pálida, indignada.

- Cleindori está morta! Deixe-a em paz! E que Zandru mande escorpiões para fustigarem os que a assassinaram!

- E ao sedutor dela... e todo o sangue daquele homem! - berrou Auster. Todos sabemos que Cleindori não estava sozinha quando fugiu de Arilinn...

Emoções novas e desconhecidas se confrontavam em Jeff Kerwin. Eram de seu pai e sua mãe que eles falavam! Pela primeira vez em sua vida, ele sentiu um ímpeto de simpatia pelos avós terráqueos. Podiam parecer frios, sem amor, mas haviam-no acolhido como um filho, sem jamais criticá-lo pela mãe alienígena, ou por seu sangue misto. Ansiava em se levantar, lançar um desafio a Auster; começou a se erguer, mas um olhar irritado de Kennard manteve-o na cadeira, enquanto a voz retumbante de Hastur ordenava:

- Basta!

- Lorde Hastur...

- Nem mais uma palavra! - a voz enfática e furiosa de Hastur silenciou até Auster. Não estamos aqui para revirar os atos de homens e mulheres que estão mortos há uma geração!

- Neste caso, por favor, Lorde Hastur, por que estamos aqui? - indagou Neyrissa. Dei a Kerwin o juramento de monitor; ele pode servir num circulo de mecânicos.

- E num círculo de Guardiã? - perguntou Hastur. Estão todos dispostos a arriscar nisso? Para fazer de novo o que Arilinn podia fazer no tempo de Leonie, e nunca mais fez desde então? Estão preparados para isso?

Houve um silêncio, um profundo silêncio, e Kerwin sentiu que estava impregnado de medo. Até mesmo Kennard mantinha-se calado. Por fim, Hastur acrescentou, em tom de urgência:

- Só a Guardiã de Arilinn pode tomar a decisão, Elorie. E a delegação aguarda a palavra da Guardiã de Arilinn.

- Acho que não devemos arriscar - insistiu Auster. O que a delegação representa para nós? A própria Guardiã deve escolher o momento que julgar mais oportuno.

- O risco é meu... ao aceitar ou recusar - duas manchas vermelhas de raiva brilhavam nas faces de Elorie. Nunca antes usei minha autoridade; não sou uma bruxa, não permitirei que homens me atribuam um poder sobrenatural...

Ela abriu os braços, num pequeno gesto de desamparo.

- Mas, para o bem ou para o mal, sou Arilinn; a autoridade por lei cabe a mim, Elorie de Arilinn. Ouviremos a delegação. Nada mais há a ser dito; Elorie falou.

Cabeças se inclinaram, houve murmúrios de assentimento, e Kerwin, observando, ficou chocado. Entre eles, discutiam com Elorie, não hesitavam em contestá-la e argumentar; aquela concordância pública era como um ritual.

Elorie encaminhou-se para a porta, empertigada e imponente. Kerwin observou-a, e subitamente sentiu a inquietação dela. Sabia, sem saber como o conhecimento lhe chegava, que Elorie detestava invocar sua autoridade suprema e ritual, como repudiava o temor supersticioso que cercava seu alto posto. Aquela moça pálida, quase como uma criança, pareceu-lhe de repente real, sua calma apenas uma máscara para convicções arrebatadas, para emoções tão controladas que eram como o olho do furacão.

E eu a julguei serena, sem emoções? É uma máscara que ela usa, não mais do que isso, apenas uma máscara que ninguém pode remover, nem mesmo ela própria...

Ele sentiu as emoções de Elorie como se fossem suas.

Estou fazendo o que jurei que nunca faria. Usei a reverência condicionada de todos por uma Guardiã para forçá-los afazer o que eu quero! Mas tinha de fazer isso, não havia outro jeito, ou teríamos mais cem anos desses absurdos supersticiosos... E depois um pensamento que, Kerwin compreendeu, chocou Elorie tanto quanto a ele, uma indagação repentina e assustadora: Cleindori estava certa? E ele sentiu os pensamentos de Elorie se apagarem para o silêncio, sabendo que ela ficara apavorada com a última pergunta.

 

Descendo a escada, entre Taniquel e Elorie, Kerwin ainda se sentia abalado pelo impacto do contato com Elorie. Como Kennard chamara o seu dom? Empatia... o poder de sentir as emoções de outras pessoas. Aceitara, intelectualmente, que isso era verdade; fizera pequenos testes, em condições de laboratório, e entre o círculo. Agora, pela primeira vez, atingira-o fundo, num nível visceral, ele sentira.

Não sabia para onde iam, e apenas seguiu os outros. Passaram pelo Véu, e seguiram para um prédio perto da Torre, no qual Jeff nunca reparara antes. Era um salão comprido e estreito, e um gongo cerimonial soou em algum lugar no instante em que entraram. Havia uns poucos espectadores em cadeiras, e diante deles, numa mesa comprida, sentavam meia dúzia de homens.

Tinham uma aparência próspera, a maioria de meia-idade, ou mais, e usavam trajes darkovanos, à moda das cidades. Esperaram em silêncio enquanto Elorie era anunciada, e ocupava seu lugar, na cadeira central. Os integrantes do círculo da Torre sentaram em torno de Elorie, sem falar.

Foi Danvan Hastur quem finalmente falou:

- Vocês são os homens que se intitulam a União Pan-Darkovana? Um dos homens, corpulento e moreno, com olhos faiscantes, fez uma mesura.

- Valdrin de Carthon, z'par servu, meus lordes e damas. Com sua permissão, falarei por todos.

- Deixem-me revisar a situação - disse Hastur. Vocês formaram uma liga...

- Para fomentar o crescimento industrial e comercial em Darkover, nos Domínios e além - declarou Valdrin. Não preciso explicar a situação política... os terráqueos e sua base em nosso mundo. O Comyn e o Conselho, com sua licença, Lorde Hastur, vêm tentando ignorar a presença terráquea aqui, e suas implicações para o comércio...

Hastur tratou de interrompê-lo:

- A situação não é bem assim.

- Não quero discutir, vai dom - respondeu Valdrin, respeitoso, mas também impaciente. Os fatos são os seguintes: pelos acordos com os terráqueos, temos uma oportunidade que nunca nos foi oferecida antes, de tirar os Domínios da nossa Idade Média. Os tempos mudam. Quer se goste ou não, os terráqueos estão aqui para ficar. Darkover está sendo atraída para o Império. Podemos fingir que eles não estão aqui, recusar qualquer negócio, ignorar suas ofertas de comércio, mantê-los confinados nas Cidades Comerciais, mas as barreiras vão desmoronar em mais uma geração, duas no máximo. Já vi acontecer em outros mundos.

Kerwin lembrou o que o Legado dissera, que deixavam os governos em paz, mas que o povo via o que o Império Terráqueo tinha a oferecer, e começava a exigir a adesão do planeta. É quase uma fórmula matemática. .. pode-se prever o que vai acontecer.

Valdrin de Carthon estava dizendo a mesma coisa, com alguma veemência:

- Em suma, Lorde Hastur, protestamos contra a decisão do Conselho do Comyn, e queremos algumas das vantagens que derivam da integração no Império!

- Compreende a decisão do Conselho, de manter a integridade do modo de vida darkovano, em vez de nos tornarmos apenas outro estado-satélite do Império? - indagou Hastur, calmamente.

- Com todo respeito, Lorde Hastur, quando fala sobre o modo de vida darkovano, refere-se a nos deixar permanecer como uma cultura bárbara para sempre? Alguns de nós querem civilização e tecnologia...

- Conheci melhor do que você a civilização terráquea - disse Hastur - e posso lhe garantir que Darkover não quer saber disso.

- Fale por vocês, vai dom, não por nós! Talvez houvesse, nos tempos antigos, alguma justificativa para o regime dos Sete Domínios; naquela época, o Comyn nos oferecia alguma coisa para compensar o que lhe dávamos em matéria de fidelidade e apoio!

Valdir Alton interveio:

- Estou ouvindo uma traição contra o Conselho e Hastur? Valdrin de Carthon protestou:

- Traição? Não isso, senhor. Que Deus me guarde. E também não queremos participar do Império. Só estamos interessados no comércio, avanços tecnológicos. Houve uma época em que Darkover dispunha de sua própria ciência e tecnologia. Mas esses dias passaram, e precisamos ter alguma coisa para substituí-los, ou afundaremos numa segunda Era do Caos. É tempo de admitir que ficaram para trás, e devemos ter algo em seu lugar. E se os terráqueos querem permanecer aqui, podem nos oferecer alguma coisa... comércio, metais, máquinas, consultores tecnológicos. Porque não resta a menor dúvida de que as antigas ciências das Torres desapareceram para sempre.

Kerwin começava a compreender a situação. Por causa de seus poderes psíquicos inatos, os homens e mulheres do Comyn haviam sido os soberanos - e também, num certo sentido, os escravos - de Darkover e dos Domínios. Através da tremenda energia das matrizes, não as pequenas, individuais, mas as grandes, exigindo círculos de telepatas treinados nas Torres, ligados por uma Guardiã, haviam proporcionado a Darkover sua própria ciência e tecnologia. Isso explicava as vastas ruínas de uma tecnologia esquecida, as tradições de ciências antigas...

Mas qual fora o custo, em termos humanos? Os homens e mulheres que possuíam tais poderes levavam vidas restritas, zelando com todo cuidado por seus preciosos poderes, incapazes de estabelecer contatos humanos normais.

Kerwin especulou se a tendência natural da evolução, na natureza, para a norma geral, longe dos extremos, fora responsável pelo definha-mento daqueles poderes. Pois era certo que haviam definhado. Arilinn, Mesyr lhe contara, tivera outrora três círculos, cada um com sua Guardiã;

e Arilinn fora apenas uma de muitas Torres. Cada vez menos pessoas nasciam agora com um potencial pleno de laran. A ciência de Darkover tornara-se um mito esquecido, reduzida a uns poucos truques psíquicos... E isso não era suficiente para manter Darkover independente da atração do comércio do Império e da tecnologia terráquea.

- Temos de lidar com os terráqueos - acrescentou Valdrin de Carthon -, e acho que conquistamos a maioria do povo para a nossa posição.

- Os habitantes de Thendara são leais ao Conselho do Comyn! -declarou Valdir.

- Mas não se esqueça, vai dom, que Thendara é apenas uma pequena parte dos Domínios, e os Domínios não abrangem Darkover por completo - insistiu Valdrin. Os terráqueos assumiram o compromisso de nos emprestar técnicos, engenheiros, administradores industriais, peritos diversos... tudo o que for necessário para iniciar amplas operações de mineração e produção aqui. Os metais são a chave, meu lorde. Antes de termos a tecnologia, precisamos das máquinas, e antes das máquinas, devemos ter.

Hastur ergueu a mão para interrompê-lo.

- Já sei de tudo isso, como uma canção antiga. Antes das minas, precisamos das máquinas, e alguém deve fabricar as máquinas, extrair os metais para fazer as máquinas. Não somos uma civilização mecanizada, Valdrin...

- Tem razão, o que é uma pena!

- Será mesmo? O povo de Darkover está contente com suas fazendas e cidades como são agora. Temos as indústrias que precisamos, para produzir laticínios, moer grãos, fazer tecidos. Temos instalações para fabricar papel e feltros, processar nozes...

- Tudo transportado em mulas!

- E não precisamos de homens para trabalharem como escravos na abertura de estradas, e em sua manutenção para o tráfego de gigantescos veículos, que correm a uma velocidade vertiginosa, e deixam nosso ar poluído com seus combustíveis químicos!

- Temos direito a indústrias e riqueza...

- E a fábricas? À riqueza adquirida obrigando homens a trabalharem em condições inumanas, fabricando coisas de que não precisamos, ou que não queremos? Ao trabalho feito por robôs, deixando os homens sem nada para fazer, a não ser drogar seus sentidos com diversões ordinárias, ou cuidar dos consertos eventuais nas máquinas? A minas e pessoas para as cidades, a fim de construírem e operarem as máquinas, de tal forma que não terão mais tempo para cultivar os alimentos de que precisam? A uma situação em que a produção de alimentos se torna outra vasto empreendimento industrial, e os filhos de um homem viram uma desvantagem, em vez de um patrimônio?

A voz de Valdrin soou calma, impregnada de desdém:

- É um romântico, meu lorde, mas sua imagem distorcida não convencerá os homens que querem alguma coisa melhor do que passar fome em suas terras, até morrer num ano ruim. Não pode nos reter para sempre numa cultura primitiva, meu lorde.

- Quer dizer que querem realmente ser uma réplica do Império Terráqueo?

- Não é bem assim, não da maneira como pensa - disse Valdrin. Podemos tirar o que precisarmos do sistema terráqueo, sem permitir que nos corrompa.

Hastur sorriu.

- É uma ilusão que tem seduzido muitos povos e mundos, meu bom homem. Acha que podemos combater os terráqueos em seu próprio terreno? Não, meu amigo; o mundo que aceita as coisas boas que vêm do Império Terráqueo... e não me iludo nesse ponto, são muitas... devem também assumir os males que as acompanham. E, no entanto, talvez você tenha razão; não podemos barrar o caminho para sempre, e manter nosso povo pobre e simples, uma sociedade agrícola numa era interestelar. É possível que sua acusação proceda. Houve um tempo em que fomos mais poderosos do que agora, mas também é verdade que neste momento estamos saindo de uma Idade das Trevas. Só não é verdade que devemos seguir o caminho da Terra. E se os antigos poderes ressurgissem? E se o Comyn pudesse de novo fazer todas as coisas que as lendas dizem que era capaz? E se as fontes de energia fossem disponíveis outra vez, sem a busca interminável por combustíveis, sem os males que assolaram nosso mundo nos anos anteriores à Aliança?

- E se o burro de Durraman pudesse voar? - indagou Valdrin. É um bom sonho, mas há anos que não temos uma Guardiã competente, muito menos um círculo plenamente qualificado.

- Temos agora. Hastur virou-se, com um gesto largo. Um círculo completo do Comyn, pronto para demonstrar seus poderes. Só peço uma coisa: que nos mantenham a salvo dos terráqueos, e de seus métodos ruinosos e desumanizadores. Não podemos aceitar seus técnicos e engenheiros para destruírem nosso mundo. E se temos de negociar com a Terra, que seja numa condição de igualdade, não como protegidos pobres, ajudados por uma classificação de bárbaros! Nosso mundo é antigo, mais antigo do que os sonhos da Terra, e mais orgulhoso. Não nos envergonhe dessa maneira!

Ele despertara o orgulho e patriotismo de todos, e Kerwin notou o fogo nos olhos de cada membro da delegação. Só Valdrin ainda se mostrava cético.

- O círculo da Torre pode fazer isso?

- Podemos - respondeu Rannirl. Sou o técnico; possuímos a habilidade, e sabemos como usá-la. O que vocês precisam?

- Estamos discutindo com um grupo de engenheiros terráqueos para fazer um levantamento dos recursos naturais nos Domínios - disse Valdrin. Nossas maiores necessidades são os metais: estanho, cobre, prata, ferro, tungstênio. E combustíveis: enxofre, hidrocarbonetos, substâncias químicas... eles nos prometeram usar todos os seus equipamentos para localizar os principais recursos minerais disponíveis para a extração...

Rannirl levantou a mão.

- E ao descobrirem onde estão, vão se espalhar por toda Darkover com suas máquinas infernais, em vez de permanecer em suas Cidades Comerciais!

- Deploro isso tanto quanto você! - garantiu Valdrin, veemente. Não tenho o menor amor para o Império, mas se a alternativa é cair de volta no primitivismo...

- Há uma alternativa - insistiu Rannirl. Podemos fazer esse levantamento para vocês... e cuidar também da extração, se quiserem. E seremos mais rápidos do que os terráqueos.

Kerwin respirou fundo. Deveria ter adivinhado. Se uma matriz de cristal podia impulsionar uma aeronave, quais seriam os limites desse poder?

Por Deus, que conceito! E manter os engenheiros terráqueos longe dos Domínios...

Kerwin não percebera até aquele momento como eram profundos seus sentimentos nessa questão; seus anos na Terra afloraram em sua mente, as sujas cidades industrializadas, homens vivendo para as máquinas, sua consternação ao voltar a Thendara, e descobrir que a Cidade Comercial era apenas um pequeno canto do Império. Com o amor arrebatado de um exilado por seu mundo, ele compreendeu o sonho de Hastur, manter Darkover como era, fora do Império.

- Parece ótimo, meus lordes - disse Valdrin -, mas há séculos que o Comyn não é tão forte assim... talvez nunca mais volte a ser. Meu bisavô costumava me contar histórias de prédios construídos pelo poder da matriz, estradas abertas, muitas outras coisas, mas agora tudo o que um homem pode conseguir é arrumar ferro suficiente para ferrar seus cavalos!

- É uma boa perspectiva, sem dúvida - acrescentou outro membro da delegação -, mas acho que é mais provável que o Comyn esteja apenas tentando ganhar tempo, até que os terráqueos percam o interesse, e procurem outro planeta. Creio que devemos negociar com os terráqueos agora.

- Lorde Hastur - continuou Valdrin -, precisamos mais do que uma conversa vaga sobre os antigos poderes do Comyn e círculos da Torre. Quanto tempo levariam para efetuar esse levantamento?

Rannirl olhou para Hastur, como se pedisse permissão para falar, antes de perguntar:

- Quanto tempo os terráqueos precisariam?

- Eles prometeram que concluiriam o levantamento em meio ano.

Rannirl olhou para Elorie e Kennard, e Kerwin sentiu que mantinham uma conversa da qual fora excluído.

- Meio ano, hem - murmurou Rannirl. O que diria se fizéssemos esse levantamento em quarenta dias?

- Sob uma condição - anunciou Auster, solene. Que se fizermos isso para vocês, abandonarão toda e qualquer idéia de negociar com engenheiros terráqueos!

- Nada mais justo - declarou Elorie, falando pela primeira vez, e Kerwin notou como todos na sala se calaram no mesmo instante. Se provarmos para você que somos capazes de fazer mais do que os engenheiros terráqueos, aceitarão a orientação do Conselho? Nosso único desejo é que Darkover continue a ser Darkover, não uma réplica do Império Terráqueo... ou uma imitação de terceira classe! Se tivermos êxito, vocês se submeterão às decisões do Conselho do Comyn e de Arilinn em todas as coisas.

- Nada mais justo, minha dama - concordou Valdrin. Mas só é justo se funcionar nos dois sentidos. Se não puderem cumprir o que prometem, o Conselho do Comyn retirará todas as objeções, e nos deixará negociar com os terráqueos sem interferência?

- Só posso falar por Arilinn, não pelo Conselho do Comyn - respondeu Elorie.

Mas Hastur levantou-se. Com uma voz serena e ressonante que se espalhou pela sala, sem ser alta, ele declarou:

- Tem a palavra de um Hastur de que assim será.

Os olhos de Kerwin se encontraram com os de Taniquel, percebendo o choque neles. A palavra de Hastur era proverbial. E agora tudo dependia deles... se pudessem de fato fazer o que Rannirl dissera, o que Hastur prometera. Todo o rumo futuro de Darkover dependia do sucesso ou fracasso do círculo. E esse sucesso ou fracasso dependia dele, Jeff Kerwin, o "bárbaro de Elorie"... o mais novo membro do circulo, o elo fraco na corrente! Era uma tremenda responsabilidade, e Kerwin se sentiu assustado com as implicações.

As formalidades de despedida foram intermináveis, e antes que terminassem Kerwin tratou de escapulir, despercebido, atravessou os pátios, passou pelo arco-íris tremeluzente do Véu.

Era um peso grande demais para suportar, o sucesso ou fracasso depender apenas dele... e pensara que teria mais tempo para aprender! Recordou a agonia dos primeiros contatos mentais, e foi dominado por um terrível medo. Foi para seu quarto, jogou-se na cama, num desespero silencioso. Não era justo lhe exigir tanto, e tão cedo! Era demais exigir que o destino de Darkover, o mundo que ele conhecia e amava, dependesse de seus poderes não experimentados!

Ele sentiu uma estranha fragrância no quarto, e um lampejo de reconhecimento remoto penetrou num recesso fechado de sua memória.

Cleindori. Minha mãe, que violou seus juramentos ao Comyn por um terráqueo... devo pagar por sua traição?

E algo mais aflorou, reconhecimento, lembrança, pairou à beira de seus sentidos, uma voz que dizia não foi traição... Não podia identificar a porta escura na memória, agora entreaberta, uma voz...

Uma dor intensa deu a impressão de que sua cabeça ia estourar; e logo se desvaneceu. Kerwin se levantou, e gritou em desespero:

- É demais! Não é justo que tudo dependa de mim...

Ouviu as palavras ressoando em sua mente, como se ricocheteassem nas paredes, como se houvesse mais alguém ali, gritando aquelas mesmas palavras, com o mesmo desespero.

Soaram passos suaves no quarto, uma voz sussurrou seu nome, e Taniquel se encontrava ao seu lado, a teia de contato unindo os dois. O rosto da moça, agora solene e livre de malícia, estava contraído e tenso, com o problema de Kerwin.

- Mas não é assim, Jeff - murmurou ela, depois de um longo momento. Confiamos em você, todos confiamos em você. Se fracassarmos, não será só por sua culpa. Não sabe disso?

A voz de Taniquel falhou, e ela abraçou-o. Kerwin, abalado por uma nova e profunda emoção, comprimiu-a contra seu peito. Seus lábios se encontraram, e Kerwin compreendeu que desejava aquilo desde a primeira vez em que a vira, através da chuva e granizo de uma noite darkovana, através da fumaça de uma sala terráquea. A mulher de seu povo, a primeira pessoa a aceitá-lo como um deles.

- Nós amamos você, Jeff; se fracassarmos, não será um fracasso seu, mas nosso. Não será o único a ser culpado. Mas não vamos fracassar, Jeff. Sei que não vamos...

Os braços de Taniquel o aninhavam, seus pensamentos se fundiram, e o fluxo de amor e desejo em Kerwin foi uma experiência que ele jamais conhecera, nunca imaginara que seria possível.

Não se tratava de uma conquista fácil, alguma mulher vulgar de bares de espaço-porto, que proporcionaria a seu corpo um momento de satisfação, mas deixaria o coração intato. Não era um encontro amoroso que deixaria uma vaga lembrança de lascívia em sua memória, e a angústia da solidão, quando sentia, como ocorrera com tanta freqüência, o vazio da mulher, tão profundo quanto sua própria desilusão.

Taniquel. Taniquel, que fora mais íntima do que qualquer amante anterior, desde aquele primeiro instante de contato mental entre os dois, desde o primeiro beijo dado e retribuído. Como fora possível que ele nunca tivesse percebido? Kerwin fechou os olhos, para melhor saborear a intimidade, mais intensa do que o contato dos lábios ou braços. Taniquel sussurrou:

- Eu senti... sua solidão e necessidade, Jeff. Mas tive medo de partilhar, até agora. Jeff, Jeff... assumi a sua angústia, deixe-me partilhar isso também.

- Mas não tenho medo agora - respondeu Kerwin, a voz rouca. Só tinha medo porque me sentia sozinho.

- E agora nunca mais ficará sozinho - disse Taniquel, em seus pensamentos, aconchegando-se nos braços dele com uma rendição tão absoluta que deixou Kerwin com a sensação de que nunca antes conhecera qualquer outra mulher.

 

Se kerwin visualizara a pesquisa planetária como algo a ser feito por magia, concentração nas matrizes, um rápido processo mental, logo descobriu que se enganara. O trabalho de contato mental, Kennard explicou, viria mais tarde; antes disso, havia inúmeros preparativos, e só os telepatas da Torre poderiam fazê-los.

Era quase impossível focalizar o contato telepático, a menos que o objeto ou substância fosse primeiro levado ao contato de um dos telepatas. Kerwin imaginara que a coleta de materiais seria feita por forasteiros ou subalternos; em vez disso, ele próprio, como o menos hábil no trabalho telepático de matriz, teve de se empenhar em pequenas funções técnicas, nos estágios preliminares. Aprendera alguma coisa de metalurgia na Terra; com a ajuda de Corus, localizaram amostras de vários metais. Num laboratório, que fez Jeff recordar as concepções históricas das instalações de um antigo alquimista, fundiram e refinaram os minérios, usando técnicas simples, mas surpreendentemente eficazes, reduzindo-os a uma forma pura. Ele se perguntou o que fariam com aqueles amostras em miniatura de ferro, estanho, cobre, chumbo, zinco e prata. Ficou ainda mais confuso quando Corus começou a fazer modelos moleculares desses metais, como se fossem brinquedos de criança, bolas de barro na ponta de varetas, parando de vez em quando para se concentrar nos metais, e "sondar" a estrutura atômica com sua matriz. Kerwin logo aprendeu como fazer; não era muito diferente de suas primeiras experiências com a estrutura de vidro e cristal.

Enquanto isso, Taniquel saía todos os dias no veículo aéreo com Auster e Kennard, examinando grandes mapas, coordenando-os com todo cuidado com fotografias (tiradas por excelentes câmeras terráqueas) do terreno. Às vezes ausentavam-se por dois a três dias consecutivos.

Taniquel explicou a Kerwin por que precisavam dos mapas e fotografias do terreno:

- A fotografia... junto com o mapa... torna-se um símbolo daquele trecho do terreno, e por seu intermédio podemos estabelecer o contato. Houve um tempo em que um bom psíquico podia encontrar água ou minério no solo, mas precisava estar andando em cima dele.

Kerwin acenou com a cabeça; mesmo na Terra, onde os poderes psíquicos não eram muito respeitados, havia muita gente praticando a hidroscopia e rabdomancia. Mas num mapa?

- Não encontramos nada no mapa - disse Taniquel. O mapa é um artifício para estabelecer contato com aquele trecho específico do solo, o território representado pelo mapa. Poderíamos descobrir pelo puro psiquismo, mas é mais fácil se temos uma representação direta, como uma fotografia. Usamos o mapa para efetuar o contato, e determinar o que encontramos ali.

Kerwin refletiu que o princípio era o mesmo do homem que matava seu inimigo enfiando alfinetes em sua imagem; mas quando a comparação aflorou em sua mente, Taniquel empalideceu, e protestou:

- Ninguém treinado em Arilinn jamais faria uma coisa tão infame!

- Mas o princípio é o mesmo - insistiu Kerwin -, usar um objeto como foco para os poderes da mente.

Ainda assim, Taniquel não podia admitir.

- Não é absolutamente a mesma coisa! Isso é se intrometer com a mente, uma atividade ilegal, e... sórdida! - gritou ela, veemente, para depois fitá-lo com uma expressão desconfiada. Prestou o juramento de monitor, não é?

Era como se Taniquel se perguntasse como alguém jurado poderia acalentar tais pensamentos. Kerwin suspirou, sabendo que nunca compreenderia a moça. Haviam partilhado muita coisa, os contatos mentais eram freqüentes, e ele sentia que a conhecia por completo; e, no entanto, havia ocasiões, como agora, em que ela se tornava diferente, uma estranha total.

Enquanto aprontavam os mapas, conferindo sua acurácia pelas fotografias terráqueas (Kerwin, que conhecia alguma coisa de fotografia de seus anos na Terra, foi utilizado na revelação de filmes e ampliação das fotos aéreas), Coras concluiu a preparação das amostras de metal; depois, Elorie usou-as na construção de treliças de matriz.

Era um trabalho árduo e exigente, em termos físicos e mentais; operavam com vidro derretido, cuja estrutura amorfa ainda era bastante sólida para sustentar as matrizes de cristal na disposição desejada. Coras, cujo potencial de psicocinese era bastante elevado, tinha a tarefa de manter o vidro derretido em estado liquido, sem a aplicação de calor. Kerwin tentou isso várias vezes, mas assustava-o ver Elorie enfiar as mãos na massa em aparente ebulição. Rannirl disse secamente que se Kerwin perdesse o controle todos poderiam ser gravemente feridos. Por isso, não deixou mais que ele manipulasse o vidro liquefeito enquanto trabalhavam. Camada após camada de vidro foi despejada, Elorie ativando, com sua matriz, os pequenos cristais sensibilizados, dentro de cada camada. Rannirl sempre se mantinha ao lado, para assumir o controle se ela vacilasse. Todo o processo era acompanhado numa tela, não muito diferente da que Kerwin vira na casa dos dois mecânicos de matriz em Thendara. O monitoramento do complexo interior das estruturas cristalinas, sendo criadas dentro das camadas de vidro, era efetuado por um processo análogo ao que Taniquel ou Neyrissa costumavam usar para monitorar o corpo de um deles. Ao final de uma longa sessão de trabalho com as treliças, Rannirl comentou:

- Eu não deveria dizer isso, mas Elorie desperdiça sua capacidade na função de Guardiã. Ela possui o talento para ser uma técnica; e nunca será, porque precisamos muito de Guardiãs. Se houvesse mais mulheres dispostas a operarem como Guardiãs... Afinal, uma Guardiã não precisa desse tipo de talento, não precisa sequer aprender a monitorar; basta manter os fluxos de energônio. Pelos infernos de Zandra, poderíamos usar uma máquina para tal serviço! Eu poderia construir um amplificador para desempenhar essa função, capaz de ser acionado por qualquer bom mecânico. E nem mesmo posso ensinar a Elorie tanto quanto ela quer saber sobre mecânica, já que ela precisa de toda a sua energia para o trabalho que faz no círculo. É lamentável...

Ele baixou a voz ao acrescentar, como se esperasse que pudessem ouvi-lo e condená-lo:

- As Guardiãs são um anacronismo nos dias de hoje. Cleindori tinha toda razão, mas eles não querem admitir.

Mas quando Kerwin mostrou-se surpreso, e indagou o que isso significava, Rannirl balançou a cabeça, contraiu os lábios, e murmurou:

- Esqueça o que eu disse. É um ponto de vista perigoso.

Ele não quis falar mais nada a respeito, mas Kerwin captou um fragmento de pensamento sobre fanáticos que achavam que a virgindade ritual de uma Guardiã era mais importante do que sua eficiência com as matrizes, e que esse ponto de vista destruiria as Torres, mais cedo ou mais tarde, se é que já não o fizera.

Trabalhando com os outros, Kerwin sentia sua sensibilidade aumentar, dia após dia. Não tinha dificuldade agora para visualizar quase que qualquer estrutura atômica; o trabalho que realizara com Neyrissa, aprendendo a monitorar seus órgãos e processos internos, começava a ser transferido para a visualização dos campos de energia e processos atômicos, e ele se tornou capaz de manter a estase em qualquer estrutura cristalina. Podia também sentir agora a estrutura interna de outras substâncias; uma ocasião, descobriu-se consciente da lenta oxidação do ferro numa dobradiça de porta; em seu primeiro esforço sem supervisão, pegou seu cristal, e reverteu o processo, com uma total concentração mental.

Ainda sentia tremendas dores de cabeça quando trabalhava nas redes - embora agora já pudesse se manter por um turno nas transmissões sem qualquer ajuda - e o esforço era enorme, cada consumo de energia psíquica deixando-o exausto e esgotado, o corpo exigindo muita comida e sono.

Podia agora entender o apetite gargantuesco que todos tinham. Elorie, por exemplo, impressionara-o por sua gula infantil por doces. Espantara-se ao ver uma moça tão frágil e delicada devorar quantidades de comida que saciariam a fome de um carregador. Mas agora Kerwin sentia fome durante todo o tempo; o corpo, drenado de energia, exigia substitutos com uma fome voraz. E quando o dia de trabalho era encerrado - ou faziam uma pausa porque Elorie não podia mais suportar a pressão - e Kerwin podia descansar, ou quando Taniquel arrumava uma folga para ficar em sua companhia, ele descobria que só podia deitar ao lado dela e dormir.

- Receio não ser um amante dos mais ardorosos - desculpou-se ele uma ocasião, desolado e triste.

Taniquel se encontrava estendida ao seu lado, amando-o e disposta, mas o único desejo no corpo de Kerwin era uma ânsia de sono. Taniquel riu baixinho, inclinou-se para beijá-lo.

- Sei disso; já esqueceu que convivi com operadores de matriz durante toda a minha vida? É sempre assim quando temos um trabalho grande... sua energia tem um limite, é toda consumida no círculo, e nada resta. Não se preocupe com isso.

Ela riu de novo, com um brilho malicioso nos olhos.

- Quando treinava em Neskaya, costumávamos fazer um teste, um dos homens e eu; deitávamos juntos... e se qualquer dos dois era capaz de sequer pensar em alguma coisa que não dormir, então sabíamos que trapaceáramos, não dando tudo o que tínhamos no trabalho de matriz.

Kerwin experimentou um súbito acesso interior de ciúme pelos homens que ela conhecera assim; mas, na verdade, sentia-se cansado demais para se importar. Taniquel acariciou seus cabelos.

- Durma, bredu... teremos tempo suficiente quando isso terminar, se você ainda me quiser.

- Se eu ainda a quiser?

Kerwin sentou na cama. Ela recostou-se no travesseiro, os olhos fechados, as sardas pálidas no rosto brejeiro, os cabelos soltos.

- Como assim, Tani?

- As pessoas mudam - murmurou ela, vaga. Mas não se preocupe com isso agora. Venha...

Taniquel puxou-o para deitar, gentilmente, as mãos leves acariciaram sua testa.

- Durma, amor; você está exausto.

Por mais cansado que Kerwin estivesse, no entanto, as palavras haviam expulsado o sono de sua mente. Como Taniquel podia duvidar... ou será que ela tivera alguma premonição? Ele se sentia feliz desde que haviam se tornado amantes; agora, pela primeira vez, a apreensão o invadiu, e teve uma repentina visão de Taniquel de mãos dadas com Auster, passeando pelas ameias da Torre. O que houvera entre Taniquel e Auster?

Kerwin sabia que Taniquel gostava dele, de uma maneira que nunca julgara possível com qualquer mulher. A harmonia era total. Ele compreendia agora por que suas ligações casuais com outras mulheres nunca haviam ido além da superfície; sua sensibilidade telepática não reconhecida captava-a superficialidade essencial das mulheres que conhecera; censurava a si mesmo por ser um idealista, querer mais do que qualquer mulher podia dar. Sabia agora que era possível; seu relacionamento com Taniquel projetara uma nova dimensão, a primeira vez em que partilhava paixão e emoção, uma genuína intimidade. Tinha certeza que Taniquel gostava dele; mas como podia gostar tanto, se também se sentia atraída por outro daquela maneira?

Muitas inquietações começaram a entrar em foco, enquanto ele permanecia acordado, a cabeça latejando. Agora, tudo se tornava claro; os outros na Torre de Arilinn sabiam que os dois eram amantes. Pequenas coisas despercebidas na ocasião, um sorriso de Kennard, um olhar insinuante de Mesyr, até uma breve conversa com Neyrissa - Sente ciúme? -, assumiam um novo significado.

E eu nunca percebi; numa cultura telepática, não pode haver privacidade, e eu jamais compreendi... Subitamente, aflorou um pensamento intenso, embaraçoso: todos telepatas, estariam lendo seus pensamentos, suas emoções, espionando o que partilhava com Taniquel? Um constrangimento angustiado o dominou, como se tivesse tido o sonho vergonhoso de desfilar nu por uma praça cheia de gente, e despertar para descobrir que era verdade...

Taniquel, sonolenta, segurando sua mão, acordou com um sobressalto, como se tocada por um fio desencapado. A indignação deixou seu rosto vermelho.

- Você... você é um bárbaro! - explodiu ela. É um... Terranan!

Ela saiu da cama, vestiu seu roupão, e desapareceu, os passos leves sumindo na distância, sobre o chão irregular. Kerwin, aturdido com a repentina explosão de raiva, continuou deitado, com a cabeça latejando. Disse a si mesmo que de nada adiantaria ficar assim, tinha muito trabalho a fazer no dia seguinte, e se empenhou em aplicar as técnicas que Neyrissa lhe ensinara, para relaxar o corpo, diminuir a respiração, acalmar as tensões, atenuar o sangue latejando nas têmporas. Mas sentia-se confuso e consternado para ter muito êxito.

Mas quando tornaram a se encontrar, Taniquel se mostrou tão gentil e afetuosa como sempre, acolhendo-o com um abraço espontâneo.

- Perdoe-me, Jeff. Eu não deveria ter ficado tão zangada. Foi injustiça minha. Não devo culpá-lo, pois viveu entre os Terranan, e absorveu alguns de seus... de seus estranhos costumes. Com o tempo, passará a nos compreender melhor.

E com a segurança dos braços de Taniquel a enlaçá-lo, as emoções se misturando, Kerwin não pôde duvidar da sinceridade dos sentimentos dela.

Treze dias depois da visita de Hastur a Arilinn, as matrizes ficaram prontas; e nesse mesmo dia, no grande salão, Elorie anunciou:

- Podemos iniciar a primeira operação de levantamento esta noite. Kerwin sentiu o pânico do último minuto. Seria a sua primeira experiência de contato prolongado num círculo de matriz.

- Por que à noite? - perguntou ele. Foi Kennard quem respondeu:

- A maioria das pessoas dorme durante a noite, e assim temos menos interferência telepática... no rádio, você chamaria de estática. Também há uma estática telepática.

- Quero que todos durmam durante o dia - disse Neyrissa. Devem estar repousados para esta noite.

Corus piscou para Kerwin, e comentou:

- É melhor dar um sedativo para Jeff, caso contrário ele ficará acordado, irrequieto.

Mas não havia maldade em suas palavras. Mesyr olhou para Kerwin, inquisitiva.

- Se quiser alguma coisa...

Ele sacudiu a cabeça, sentindo-se um tolo. Conversaram por mais alguns minutos, e depois Elorie, bocejando disse que seguiria seu próprio conselho, e subiu para seus aposentos. Um a um, todos se retiraram. Kerwin, que não sentia sono, apesar do cansaço, esperou, na expectativa de que Taniquel o acompanhasse. Talvez, se ela lhe fizesse companhia, poderia esquecer a iminente provação, e relaxar um pouco.

- Neyrissa falou sério, meu rapaz - disse Kennard, parando ao lado dele. - A palavra da monitora é lei, em casos como este. É melhor descansar um pouco, ou esta noite será demais para você.

Um momento de silêncio, e depois Kennard alteou as sobrancelhas.

- Ah, então é assim, hem? Kerwin explodiu:

- Será que não há nenhuma privacidade aqui? Kennard exibiu um sorriso irônico.

- Sou um Alton, a família de telepatas mais fortes no Comyn. E... ora, vivi na Terra, casei com uma terráquea. Por isso, talvez eu compreenda mais do que os jovens. Não se sinta ofendido, mas... posso lhe dizer uma coisa... como diria a um irmão mais moço, ou um sobrinho?

Comovido contra sua vontade, Kerwin respondeu:

- Claro que pode.

Kennard pensou por um instante, e só depois falou:

- Não culpe Taniquel por deixá-lo sozinho neste momento, quando sente que mais precisa dela. Sei como se sente... pelos infernos de Zandru, como sei! - ele riu, como se tratasse de alguma piada particular. - Mas Tani também sabe. E quando uma operação de matriz está em andamento, ainda mais grande como esta, o celibato é a regra, uma necessidade. Tani sabe que não pode fazer isso. E acho que um de nós deveria ter conversado a respeito com você antes.

- Não estou entendendo - murmurou Kerwin, rebelado. Por que faria qualquer diferença?

Kennard respondeu com outra pergunta:

- Por que acha que as Guardiãs devem se manter virgens? Kerwin não tinha a menor idéia, mas subitamente ocorreu-lhe que isso explicava Elorie. Na superfície, era uma jovem adorável, tão bela quanto Taniquel, mas tão assexuada quanto uma criança de sete ou oito anos. Rannirl fizera um comentário sobre virgindade ritual... e Elorie, com certeza, era tão inconsciente da própria beleza e atração quanto uma criança pequena e inexperiente. Ou mais até; a maioria das meninas já tinha noção de sua feminilidade aos oito ou nove anos de idade, e podia-se perceber nelas as sementes da sedução. Elorie, no entanto, parecia desconhecer sua feminilidade.

- Nos tempos antigos, considerava-se uma coisa ritual - acrescentou Kennard. Acho que isso é um absurdo. Mas persiste o fato de que é extremamente perigoso para uma mulher atuar na posição central de um círculo de matriz, mantendo os fluxos de energônio, a menos que seja uma virgem; tem alguma relação com as correntes nervosas. Mesmo na periferia do círculo, as mulheres mantêm uma rigorosa castidade por um período considerável antes. Quanto a você... vai precisar de toda a sua energia nervosa esta noite, de toda a sua força, e Taniquel sabe disso. Por isso é que precisa dormir um pouco. Sozinho. E devo também alertá-lo, se é que já não descobriu, que não funcionará direito para uma mulher por alguns dias depois. Não deixe que isso o preocupe; é apenas um efeito colateral do consumo de energia.

Ele pôs a mão no pulso de Kerwin, num gesto afável, quase paternal.

- O problema, Jeff, é que você se tornou de tal forma uma parte integrante da Torre que esquecemos que nem sempre esteve aqui. Tomamos como fato consumado que sabe de todas essas coisas, e por isso ninguém lhe explica.

Jeff, comovido com a atitude afetuosa de Kennard, murmurou:

- Obrigado... parente.

Ele usou a palavra sem constrangimento, pela primeira vez. Se Kennard fora irmão de adoção de Cleindori, a mãe de Jeff... Kerwin já sabia que a adoção, em Darkover, criava vínculos de família que em muitos casos eram mais fortes do que os de sangue. Ele perguntou, num súbito impulso:

- Conheceu meu pai, Kennard? O homem mais velho hesitou.

- Conheci. E creio que se pode dizer que o conheci muito bem. Não... não tão bem quanto eu poderia desejar, ou talvez as coisas fossem diferentes. Não me ajudou a mudar nada.

- Como era meu pai? Kennard suspirou.

- Jeff Kerwin? Não tinha muita semelhança com você, que é mais parecido com minha irmã. Kerwin era grandalhão, moreno e pragmático. Um homem sério e objetivo. Mas também tinha imaginação. Lewis... meu irmão... conheceu-o melhor do que eu. Foi Lewis quem o apresentou a Cleindori - Kennard franziu o rosto abruptamente. Mas não há tempo para conversar sobre essas coisas agora. Vá descansar.

Kerwin sentiu que o homem mais velho estava um pouco perturbado, e de repente captou uma imagem em sua mente.

- Kennard, como minha mãe morreu?

O queixo de Kennard se projetou para a frente.

- Não me pergunte, Jeff. Antes de consentirem em sua vinda para cá...

Ele parou, obviamente considerando o que dizer. Kerwin sentiu que Kennard se bloqueava por completo, para evitar que ele captasse sequer um fragmento de pensamento.

- Eu também me encontrava em Arilinn na ocasião. Pediram-me para voltar por causa da escassez de pessoal depois... depois do que aconteceu. Mas antes de permitirem sua presença aqui, obrigaram-me... obrigaram-me a jurar que não responderia a algumas perguntas, e essa é uma delas. Jeff, o passado pertence ao passado. Pense no presente. Todos em Arilinn, todos nos Domínios, devem deixar o passado para trás, e pensar no que podemos fazer por Darkover e nosso povo.

Havia a insinuação de uma dor antiga no rosto de Kennard, mas sua barreira ainda era impenetrável.

- Quando você veio para cã, Jeff, tínhamos muitas dúvidas a seu respeito. Mas agora, ganhando ou perdendo, é um de nós. Um autêntico darkovano... e um autêntico Comyn. Tal pensamento pode não ser tão

tranqüilizador quanto seria se Tani estivesse com você... - acrescentou Kennard, com uma tentativa de jovialidade - ...mas deve ajudar, pelo menos um pouco. Agora, vá dormir... parente.

Mandaram-no chamar ao nascer da lua. A Torre de Arilinn parecia estranha e silenciosa na noite profunda, e a câmara de matriz dava a impressão de ressoar com o silêncio. Reuniram-se ali, falando em voz baixa, sentindo a quietude como uma coisa viva ao redor, uma presença real, que detestavam perturbar. Kerwin sentia-se relaxado, vazio, esgotado. Notou que Kennard claudicava mais do que o habitual; Elorie parecia sonolenta e irritada; e Neyrissa deu uma resposta ríspida quando Rannirl fez um gracejo.

Taniquel tocou na testa de Kerwin, e ele sentiu o fluxo suave dos pensamentos dela, o contato rápido e seguro, e desta vez não recuou.

- Ele está em condições, Elorie.

A Guardiã olhou de Taniquel para Neyrissa.

- Você monitora, Tani. Precisamos de Neyrissa no círculo. Ao olhar injuriado de Neyrissa, Elorie acrescentou:

- Ela é mais forte, e vem trabalhando há mais tempo. Para Kerwin, ela explicou:

- Quando trabalhamos num círculo como este, precisamos de alguém para monitorar fora do círculo, e Taniquel é a nossa melhor empática. Ela permanecerá em contato com todos nós. Assim, se alguém esquecer de respirar, ou tiver uma cãibra, Taniquel saberá antes da própria pessoa, e tomará as providências para evitar um mal maior. Auster, você segura as barreiras.

Para o novo membro do círculo, Elorie explicou:

- Todos baixamos as barreiras individuais, e ele ergue uma barreira coletiva, para impedir uma escuta telepática; sentirá se alguém tentar interferir conosco. Nos tempos antigos, havia forças estranhas em Darkover; e talvez, por tudo o que sabemos, ainda existam. A barreira em torno da gestalt de nossas mentes nos protegerá.

Kennard segurava uma treliça de matriz menor, com telas de superfície de vidro, como a maior que haviam construído. Ele virou-a para um lado e outro, na direção de cada um, franzindo o rosto, e fazendo pequenos ajustamentos nos controles. Luzes brilhavam aqui e ali, nas profundezas da treliça. Distraído, Kennard disse:

- A barreira de Auster deve resistir, mas mesmo sem, como precaução adicional, ligarei um amortecedor, focalizado em torno da Torre. Segundo nível, Rannirl?

- Terceiro, acho melhor - interveio Elorie. Kennard alteou as sobrancelhas.

- Todos nos Domínios saberão que alguma coisa acontece em Arilinn esta noite.

- Pois que saibam - respondeu Elorie, indiferente. Já pedi que tirassem Arilinn da rede de comunicação esta noite. É um problema só nosso.

Kennard concluiu o que fazia com o amortecedor, e começou a abrir os mapas sobre a mesa. Ajeitou também uma boa quantidade de crayons coloridos, enquanto perguntava:

- Devo marcar os mapas? Ou deixaremos isso aos cuidados de Kerwin?

- Marque-os você - respondeu Elorie. Quero Corus e Jeff no círculo externo. Corus possui tanta psicocinese que mais cedo ou mais poderemos usá-lo na extração, e Jeff tem um fabuloso senso de percepção estrutural. Jeff...

Ela colocou-o um pouco além de Rannirl, e acrescentou:

- Corus, você fica ali.

A grande treliça de matriz já se encontrava na armação diante de Elorie. Auster anunciou:

- Tudo pronto aqui.

Para Kerwin, o silêncio enluarado na sala pareceu se aprofundar; a impressão era a de que todos estavam de certa forma isolados, a própria respiração cada vez mais profunda, ressoando ao redor. Uma tênue imagem flutuou em sua mente, e ele compreendeu que Corus o alcançara, com um fragmento de pensamento, um forte muro de vidro nos cercando, através do qual se pode ver com clareza, mas impenetrável... Kerwin podia sentir as próprias paredes de Arilinn, não a Torre real, mas sua imagem mental, como uma Torre improvável, arquetípica, e ouviu alguém no círculo pensando Permanece aqui, desse jeito, há centenas e centenas de anos...

As mãos de Elorie cruzaram-se à sua frente; ele fora advertido muitas vezes, nunca toque numa Guardiã, mesmo acidentalmente, dentro do círculo, e na verdade nenhum deles jamais tocava em Elorie, embora às vezes Rannirl, que era o técnico, a amparasse por um instante, segurando seu ombro de leve; e Elorie também não tocava em ninguém. Kerwin notara isso; ela podia chegar bem perto, entregar-lhe pílulas, parar na sua frente, mas nunca tocava em ninguém. Era parte do tabu que envolvia uma Guardiã, a proibição de qualquer contato físico, por menor que fosse. E, no entanto, embora pudesse ver as mãos esguias cruzadas sobre a mesa, ele sentiu que Elorie estendia as mãos para todos, que se davam as mãos, unidos num círculo sólido; compreendeu que todos partilhavam a sensação, que Elorie segurava uma das mãos e Taniquel a outra, como monitora. Kerwin engoliu em seco, a boca subitamente ressequida, enquanto os olhos cinza de Elorie se encontravam com os seus. Treme-luziam, como a matriz, e Kerwin sentiu-a unir a todos numa teia firme, entre suas mãos fortes, uma rede de filamentos faiscantes, em que eram como pedras preciosas, cada um irradiando sua própria cor, o rosa-cinza da vigilância de Taniquel, o brilho de diamante de Auster, Corus com um lustro incolor, cada um com seu próprio som, sua própria cor, na rede de luar que era Elorie...

Através dos olhos de Kennard, eles viram o mapa aberto na mesa. Kerwin flutuou em sua direção, e sentiu que subia, como se voasse, sem corpo, sem asas, sobre um vasto terreno, com a força de ímã da amostra metálica pura, numa armação ao lado da treliça de matriz. Ele parecia se estender, se dilatar, inconsciente dos limites de seu corpo; e depois Rannirl projetou um padrão rápido, turbilhonante. Sem qualquer surpresa, Kerwin se descobriu a traçar, com toda sua mente e percepção, um modelo molecular, assim como seus dedos haviam antes moldado as bolas em varetas que pareciam brinquedos de criança. Através das pontas dos dedos sensíveis de Corus, ele sentiu os elétrons em movimento, a estranha amálgama do núcleo, a estrutura atômica do metal que procuravam.

Cobre. Sua estrutura parecia cintilar do mapa, sintonizada com o terreno em que o mapa se transformara, de tal forma que ele podia sentir o metal ali. Não era a mesma coisa que penetrar na estrutura de cristal do vidro. Era curiosamente diferente, como se, através do mapa e das fotografias, que irradiavam a textura do solo, rocha, relva e árvores, ele traçasse as correntes magnéticas palpáveis, pondo de lado todos os padrões atômicos irrelevantes. Tornara-se centenas de vezes mais sensível ao terreno sob... suas mãos? Claro que não! Sob sua mente, seus pensamentos, mas ainda assim parecia peneirar o solo, em busca da estrutura complexa dos átomos de cobre, onde se agrupavam... enormes depósitos do minério...

Uma dor difusa e latejante o atingiu; circulava através dos átomos de cobre, era cobre, oculto no fundo do terreno, misturado com outros elétrons desconhecidos, outras estruturas, a tal ponto que era impossível respirar, os átomos se projetando, girando, colidindo. Por um momento, fora do corpo, ele viu através dos olhos de Rannirl os padrões complexos, contemplou o estranho terreno achatado que intelectualmente sabia ser o mapa, mas que também era a grande perspectiva aérea das Colinas Kilghard, lá embaixo, com seus picos escarpados e abismos profundos, rochas e árvores... e por toda parte ele ia localizando as seqüências de átomos de cobre... Via e sentia através dos olhos de Kennard, deslocava-se na ponta de um crayon laranja pela superfície do mapa, uma marca que nada significava, absorvido como estava no turbilhão de estruturas e padrões, átomos de cobre puro emaranhados nas complexas moléculas de ricos minérios... Kennard, ele sabia, acompanhava-o, medindo distâncias, fazendo cálculos, assinalando no mapa... e Kerwin continuou, fundido nas camadas faiscantes da treliça de matriz, que de alguma forma se tornara o mapa, a própria superfície do planeta...

Kerwin nunca soube, pois o tempo deixou de ter qualquer significado, por quantas horas girou, se projetou, sondou, por terra, rocha, lava, através de correntes magnéticas, por quantas vezes a percepção de Rannirl captou-o, e virou a ponta do crayon de Kennard, toda a sua substância transmutada em marcas no mapa... Mas, ao final, o turbilhão foi diminuindo, até cessar. Ele sentiu Corus (um líquido cristalizando, esfriando) sair da rede, com uma sensação de estrondo; ouviu Rannirl deixar alguma fenda invisível; sentiu Elorie abrir a mão gentilmente, e largar Kennard (dedos invisíveis largando um boneco sobre uma mesa); e depois a dor, como a agonia de respirar água, sacudiu Kerwin, enquanto sentia que caía em queda livre para o nada; Auster (um vidro se espatifando, e libertando um prisioneiro) soltou um grunhido de exaustão, inclinou a cabeça sobre a mesa. Uma corda invisível partiu, e Neyrissa caiu, inerte, como se despencasse de uma enorme altura. A primeira coisa que Kerwin viu foi Taniquel, suspirando em cansaço, esticando o corpo cheio de cãibras. Os dedos de Kennard, inchados e tensos em dor, largaram um pedaço de crayon, e ele fez uma careta, segurando-os com a outra mão. Kerwin podia ver o inchaço dos dedos, a tensão neles, e pela primeira vez teve percepção da doença das articulações que entrevava Kennard, e um dia o deixaria paralisado, se vivesse por tanto tempo. O mapa estava coberto por símbolos enigmáticos. Elorie cobriu o rosto com as mãos, emitindo um som que parecia um soluço de exaustão. Taniquel levantou-se, aproximou-se de Elorie, ajoelhou-se ao seu lado, com uma expressão de preocupação e consternação, passou as mãos sobre sua testa, no contato da monitora, a dois centímetros da pele.

- Já chega - disse Taniquel. O coração de Corus quase parou, e Kennard sente muita dor.

Elorie levantou-se, meio trôpega, foi se postar atrás de Rannirl e Kennard, olhou para os mapas. Tocou na mão inchada de Kennard com o mais leve contato das pontas dos dedos, mais um gesto simbólico do que concreto. Depois, lançou um rápido olhar para Kerwin, e disse:

- Vocês notaram que Jeff fez todo o trabalho estrutural?

Kennard ergueu a cabeça, ofereceu um débil sorriso a Kerwin. Ainda massageava as mãos, distraído, como se doessem. Taniquel adiantou-se, pegou-as entre as suas, gentilmente. Kerwin viu as linhas tensas da dor desaparecerem do rosto do homem mais velho.

- Ele esteve presente durante todo o tempo, mantendo as estruturas - murmurou Kennard. Foi fácil com ele na rede. Tenho certeza que Jeff ainda será um técnico tão bom quanto você, Rannirl.

- Não é preciso muito para isso - comentou Rannirl. Sou um mecânico, não um técnico; posso realizar o trabalho de um técnico, mas sou ofuscado quando há um técnico de verdade presente. Kerwin pode tomar meu lugar no momento que quiser; você também poderia, Ken, se fosse bastante forte.

- Obrigado, mas deixarei isso para Jeff, bredu - respondeu Kennard, fitando Rannirl com um sorriso afetuoso.

Ele inclinou-se para a frente, e por um instante apoiou a cabeça no ombro de Taniquel. Kerwin captou um fragmento do pensamento dela, Ele é velho demais para este trabalho, e depois um fluxo furioso de ressentimento, Temos tão pouca gente...

- Mas conseguimos - declarou Corus, olhando para o mapa. Elorie tocou no mapa com a ponta de um dedo.

- Kennard mediu todos os depósitos de cobre nas Colinas Kilghard, indicou todos os lugares em que o minério é mais rico, assim como os lugares em que se encontram tão misturados com outros minérios que se tornam inúteis. Até mesmo a profundidade está assinalada, assim como a composição química dos minérios, o que nos permitirá saber que equipamentos serão necessários.

Subitamente, apesar do cansaço, os olhos de Elorie brilharam em exultação, e ela acrescentou:

- Mostrem-me os terráqueos que seriam capazes de fazer tanto, com toda a sua tecnologia!

Ela se esticou toda, como uma gata.

- Percebem o que fizemos? Funcionou, todos juntos... deu certo! Estão satisfeitos agora por terem me escutado? Podem me dizer quem é o bárbaro?

Elorie se aproximou de Jeff, estendeu as mãos, as pontas dos dedos delicados mal roçaram nos dele. Ele sentiu que o gesto era tão significativo para Elorie, por trás da estrutura de tabu e intocabilidade, quanto seria o abraço espontâneo de outra moça.

- Ah, Jeff, eu sabia que poderíamos conseguir tudo com você! É forte, poderoso, não pode imaginar o quanto nos ajudou!

Numa reação impulsiva, Kerwin apertou as mãos dela; mas Elorie recuou no mesmo instante, pálida, e ele viu o pânico em seus olhos. Ela juntou as mãos, num gesto de pavor, com um apelo repentino nos olhos; mas foi apenas um momento. Depois, ela cambaleou, e Neyrissa amparou-a.

- Apóie-se em mim, Elorie. Está exausta, o que não é de admirar, depois de tudo.

Elorie cobriu os olhos, como uma criança, com os punhos fechados. Neyrissa levantou-a, nos braços fortes, e disse:

- Eu a levarei para o quarto, e providenciarei para que coma alguma coisa.

Kerwin sentou de novo, a dor intensa das cãibras em todos os músculos; esticou-se, virou-se para a janela, por onde o sol aparecia, já alto no céu. Ele nem percebera que o dia amanhecera. Haviam passado quase uma noite inteira dentro da matriz, em contato! Rannirl dobrou o mapa, com o maior cuidado.

- Tentaremos de novo, dentro de poucos dias, com amostras de ferro. Depois estanho, chumbo, alumínio... será mais fácil na próxima vez, agora que sabemos o que Jeff pode fazer na rede - Rannirl sorriu para Jeff. Sabia que é a primeira vez que um círculo completo atua em Arilinn, em doze anos ou mais?

Ele olhou para Auster, franziu o rosto.

- Auster, qual é o problema, parente? Este é um momento de regozijo!

Os olhos de Auster fixavam-se em Kerwin, com um rancor ostensivo, sem piscarem. E Kerwin teve certeza: Ele não está satisfeito com o que fiz.

Queria que eu... que todos nós fracassássemos. Mas por quê?

 

A DEPRESSÃO PERSISTIU mesmo depois que Kerwin se livrou da fadiga com o sono. Enquanto se vestia para se juntar aos outros, quase ao pôr-do-sol, ele disse a si mesmo que não deveria permitir que o rancor de Auster estragasse tudo. Passara pelo difícil teste do contato pleno com o circulo da Torre, e alcançara o triunfo. Auster jamais gostara dele; era até possível que estivesse com inveja dos elogios concedidos a Kerwin. Provavelmente não era mais do que isso.

E agora, ele sabia, haveria um intervalo de folga, e estava ansioso em passar uma parte do tempo com Taniquel. Apesar da advertência de Kennard, sentia-se descansado e revigorado, pronto para se encontrar com ela. Especulou se Taniquel aceitaria, como fizera tantas vezes, passar a noite com ele, e havia uma agradável expectativa em seus pensamentos quando desceu. Mas também não havia pressa; se não fosse naquela noite, seria em outra.

Todos haviam acordado antes dele, e se encontravam reunidos no grande salão. Kerwin ficou feliz com a própria informalidade dos cumprimentos; significava que ele pertencia, era da família. Aceitou um copo de vinho, e acomodou-se em seu lugar habitual. Neyrissa aproximou-se, trazendo o que parecia ser um trabalho de bordado, e sentou perto dele. Kerwin ficou um pouco impaciente, mas havia tempo. Olhou ao redor, à procura de Taniquel, mas ela estava perto da lareira, conversando com Auster, de costas para ele.

- O que está fazendo, Neyrissa?

- Uma colcha para a minha cama. Não imagina como faz frio aqui no inverno; além disso, mantém minhas mãos ocupadas.

Ela virou para mostrar; era uma colcha branca, com cerejas em três tonalidades de vermelho nas beiras. Kerwin espantou-se com a quantidade de trabalho envolvida; nunca lhe ocorrera que Neyrissa, monitora em Arilinn e uma dama do Comyn, pudesse se ocupar com uma atividade tão tediosa. Ela deu de ombros.

- Como eu disse, mantenho minhas mãos ocupadas, quando não há mais nada a fazer... e me orgulho da minha habilidade.

- É mesmo muito bonito. Um trabalho como este teria um valor inestimável na maioria dos planetas que visitei, pois as pessoas só usam roupas de cama industriais.

Neyrissa riu.

- Acho que eu não gostaria de dormir sob qualquer coisa feita por máquinas. Seria como deitar com um homem mecânico. Soube que até isso existe em outros mundos, mas não posso acreditar que satisfaçam as mulheres. Prefiro o artigo genuíno em minha cama... todos eles.

Jeff levou um momento para compreender a insinuação - que era ainda mais sugestiva em casta do que na língua que ele falava - mas ninguém com um mínimo de força telepática poderia deixar de perceber o duplo sentido, e ele riu, um pouco embaraçado. Mas Neyrissa fitou-o nos olhos de uma maneira tão franca que ele não pôde mais conservar o embaraço, e caiu na gargalhada.

- Acho que tem razão, algumas coisas são melhores quando são a obra da natureza - concordou Kerwin.

- Fale-me sobre o seu trabalho para o Império, Jeff. Se eu fosse homem, creio que gostaria de conhecer outros mundos. Não há muita aventura nas Colinas Kilghard, ainda menos para uma mulher. Já viveu em muitos mundos?

- Dois ou três, mas no Serviço Civil não se conhece muita coisa; eu passava a maior parte do tempo trabalhando com os equipamentos de comunicações.

- E as máquinas de comunicações fazem as mesmas coisas que realizamos com nossas redes? - indagou ela, curiosa. Explique-me como funcionam, se puder. Trabalho nas redes desde os quatorze anos de idade, e me parece estranho prestar o mesmo serviço com máquinas. É verdade que não há telepatas no Império Terráqueo?

- Se há, eles não contam a ninguém.

Ele descreveu para Neyrissa a rede de comunicações de ComTerra, ligando os planetas por sistemas interestelares, explicou a diferença entre rádio e hipercom interestelar. Descobriu que ela possuía uma inteligência mecânica, e logo apreendeu a teoria, embora achasse que era um tanto desagradável a comunicação por máquinas.

- Eu bem que gostaria de experimentá-las, Jeff, mas apenas como uma diversão. Creio que as redes das Torres são mais confiáveis e mais rápidas, e não apresentam defeitos com tanta facilidade.

- E fez isso durante toda a sua vida? - indagou Kerwin, especulando mais uma vez que idade ela tinha. Por que desejou ingressar numa Torre, Neyrissa? Nunca casou?

Ela sacudiu a cabeça.

- Nunca tive o menor desejo de casar, e para uma mulher nos Domínios, é o casamento ou a Torre... a menos... - ela riu. Eu bem que gostaria de cortar os cabelos rentes, empunhar uma espada, e prestar o juramento de Renunciante. Vi minhas irmãs casarem, passarem a vida atendendo aos caprichos de algum homem, gerando um bebê depois do outro, até que aos vinte e nove anos eram gordas e feias, os corpos arruinados pelos sucessivos partos, as mentes restritas por só cuidar de crianças e da casa. Uma vida assim, pensei, nunca me agradaria. Por isso, quando se confirmou que eu tinha laran, vim para cá como monitora, um trabalho que me convém, uma vida que não me desagrada.

Ocorreu a Kerwin que ela devia ter sido muito bonita quando era jovem; os elementos de beleza ainda perduravam, as feições aristocráticas, a cor exuberante dos cabelos, tendo apenas uns poucos fios brancos agora, o corpo ainda esguio e empertigado, como o de Elorie. Ele disse, galante:

- Tenho certeza que muitos protestaram contra essa decisão.

Os olhos de Neyrissa se encontraram com os dele, por um instante.

- Não é bastante ingênuo para pensar que também mantenho os votos de uma Guardiã, não é? Tive uma criança de Rannirl há dez anos,

na esperança de que herdasse meu laran; minha irmã a adotou, pois eu não tinha o menor desejo de viver com uma criança me agarrando pela saia. Teria dado um filho também a Kennard, pois ele não tinha herdeiros e o Conselho o pressionava. Mas Kennard preferiu casar. Não gostaram da mulher com quem ele casou, mas ela lhe deu dois filhos, e aceitaram o mais velho como seu herdeiro... embora não fosse fácil. E me sinto bastante satisfeita, pois sou necessária aqui, já nem tanto agora que Taniquel descobriu que possui laran suficiente para ser uma monitora. Ainda assim, Tani é jovem. É provável que decida deixar a Torre para casar, como acontece com muitas moças. Fiquei surpresa quando Elorie veio para cá; mas ela é filha do velho Kyril Ardais, que espalhou a história de sua devassidão de Dalereuth às Hellers. Depois de testemunhar o que sua mãe sofreu, tenho certeza que Elorie não queria casar, e tinha medo de todos os homens. Ela é minha meia-irmã, pois sou uma bastarda do velho Dom Kyril.

Neyrissa falava com uma serena indiferença.

- Fui responsável por sua vinda para cá. O velho a punha para cantar e entreter seus companheiros de bebida, e uma ocasião, quando ela ainda era muito pequena, um deles a acariciou com suas mãos imundas... nosso irmão quase o matou. Ele queixou-se ao Conselho, Elorie veio para Arilinn. Dyan solicitou que Kyril fosse afastado, e se tornou o Regente do Domínio. Assim, quando o velho perder o juízo por completo, o Domínio não será dilacerado por disputas, por causa de suas indecências e devassidão. Custou alguma coisa a Dyan conseguir isso; é um músico talentoso e um curandeiro, e gostaria de estudar todas as artes de cura em Nevarsin, mas agora tem o peso do Domínio em seus ombros. Mas estou me perdendo nessas histórias.

Ela fez uma pausa, sorrindo.

- Na minha idade, acho que se pode desculpar essa divagação. Trouxe Lori para cá, como eu disse, e esperava que ela desse uma boa monitora, talvez até uma técnica, já que possui uma boa mente. Em vez disso, porém, preferiram lhe ensinar a função de Guardiã. Por isso, Arilinn é a única Torre em Darkover com uma Guardiã qualificada ao estilo antigo. Suponho que devemos nos orgulhar disso, mas lamento por Elorie. É uma vida árdua; e como ela é a nossa única Guardiã... embora haja uma menina em Neskaya que também esteja sendo preparada. .. não poderia deixar a Torre, como acontecia no passado, quando o peso do trabalho se tornava excessivo. É um fardo terrível, e apesar da Dama de Arilinn ocupar uma posição mais elevada que a rainha, eu não gostaria de ocupar o posto... nem que uma filha minha o assumisse.

O copo de Neyrissa estava vazio; ela inclinou-se para a frente, e pediu a Kerwin para enchê-lo de novo. Ele se levantou, foi até a mesa em que ficavam as bebidas. Corus e Elorie se divertiam em algum jogo com dados de cristal. Rannirl tinha um pedaço de couro na mão, e o costurava num capuz de falcão.

Taniquel continuava ao lado da lareira, absorvida numa conversa com Auster. Kerwin tentou atrair a atenção dela, querendo fazer um sinal discreto, pedindo que viesse lhe fazer companhia, um sinal que a moça conhecia muito bem. Esperava que Taniquel apresentasse alguma desculpa a Auster, e se juntasse a ele.

Mas ela se limitou a oferecer um sorriso rápido, sacudiu de leve a cabeça. Aturdido, rejeitado, Kerwin viu-a pôr a mão na de Auster, as cabeças se aproximarem. Pareciam muito absorvidos. Kerwin encheu o copo de Neyrissa, e levou-o de volta, numa perplexidade crescente. Taniquel nunca parecera tão desejável quanto agora, quando seu sorriso brejeiro era todo para Auster. Ele sentou ao lado de Neyrissa, entregando-lhe o copo, mas da irritação passou para a confusão, e depois para o ressentimento. Como Taniquel podia fazer aquilo com ele? Será que não passava de uma provocadora sem coração?

À medida que a noite avançava, ele foi mergulhando mais e mais na depressão. Escutou os comentários de Neyrissa sem prestar muita atenção, e foram inúteis as tentativas de Kennard e Rannirl de atraí-lo para uma conversa; depois de algum tempo, todos presumiram que ele ainda estava exausto, e deixaram-no sozinho. Corus e Elorie terminaram seu jogo, e iniciaram outro; Neyrissa foi mostrar sua colcha a Mesyr, e pedir conselhos, as duas selecionando linhas e comparando cores. Era uma cena doméstica tranqüila, exceto pela angústia de Kerwin por ver a cabeça de Taniquel encostada no ombro de Auster. Kerwin disse a si mesmo, uma dúzia de vezes, que era um tolo por continuar sentado a observar, mas a perplexidade e a raiva ressentida o dominavam. Por que ela fazia aquilo? Por quê?

Mais tarde, Auster levantou-se para reencher seus copos. Kerwin também se levantou, abruptamente. Kennard fitou-o, preocupado, enquanto Kerwin atravessava a sala, e se inclinava para tocar no braço de Taniquel.

- Venha comigo - disse ele. Quero conversar com você.

Ela se mostrou surpresa, nada satisfeita, mas lançou um rápido olhar ao redor - Kerwin quase que pôde sentir sua exasperação, misturada com a determinação de não fazer uma cena - e disse:

- Vamos para o terraço.

O último resquício do pôr-do-sol há muito desaparecera; a neblina se condensava numa chuva miúda, que logo se transformaria num aguaceiro. Taniquel estremeceu, ajeitando o xale amarelo de tricô em torno dos ombros.

- Está frio demais para ficar aqui por muito tempo. Qual é o problema, Jeff? Por que passou a noite inteira me olhando desse jeito?

- Não sabe? Será que não tem coração? Tivemos de esperar...

- Está com ciúme! - indagou ela, jovial.

Jeff puxou-a para seus braços, beijou-a com violência, esmagando sua boca; ela suspirou, sorriu, retribuiu o beijo, mas com tolerância, em vez de paixão. Ele segurou-a pelos cotovelos, e murmurou, a voz rouca:

- Eu deveria saber que você apenas brincava comigo, mas não pude suportar... vê-la com Auster, diante de meus olhos...

Taniquel recuou, aturdida e furiosa.

- Jeff, não seja tão obtuso! Não percebe que Auster precisa de mim neste momento? Não compreende isso? Não tem sentimentos, nenhuma bondade? Esse é o seu triunfo... e a derrota dele, não entende?

- Está tentando dizer que se virou contra mim?

- Não consigo entendê-lo, Jeff. Por que eu me viraria contra você? Tudo o que estou dizendo é que Auster precisa de mim... agora, esta noite... mais do que você-.

Taniquel ergueu-se na ponta dos pés, beijou-o, persuasiva, mas ele recuou, começando a absorver o que acabara de ouvir.

- Está dizendo o que eu penso que está dizendo?

- O que há com você, Jeff? Parece que não sou capaz de alcançá-lo esta noite.

Ele sentiu um aperto na garganta.

- Eu amo você... e a quero. É tão difícil compreender isso?

- Também amo você, Jeff - respondeu ela, com alguma impaciência. Mas o que isso tem a ver com os fatos? Acho que se sente cansado demais esta noite, ou não estaria falando assim. Qual é o problema se por esta noite Auster precisa de mim mais do que você, e eu resolvo confortá-lo da maneira que ele mais precisa?

Kerwin perguntou, incisivo:

- Está querendo dizer que vai dormir com ele?

- Mas claro que sim!

Ele sentiu a boca ressequida.

- Sua vagabunda!

Taniquel recuou, como se ele a tivesse agredido. Seu rosto, na semi-escuridão, estava totalmente branco, as sardas sobressaindo como manchas escuras.

- E você é estúpido, grosseiro e egoísta... um bárbaro, como Elorie o chamou, e pior ainda! Você... os terráqueos pensam nas mulheres como sua propriedade! Eu amo você, é verdade, mas não quando se comporta desse jeito!

Ele sentiu um espasmo doloroso:

- Este é o tipo de amor que posso comprar nos bares do espaço-porto! O braço de Taniquel subiu, e ela deu-lhe um tapa ardente em cheio no rosto.

- Você... - ela gaguejou, sem palavras - ...eu pertenço a mim mesma, ouviu? Você recebe o que eu dou e acha certo; mas se resolvo dá-lo a outro, você logo me chama de puta? Dane-se você, seu Terranan pervertido! Auster tinha razão sobre você o tempo todo.

Taniquel passou por ele, e Kerwin ouviu seus passos se afastando, rápidos e decididos; em algum lugar dentro da Torre uma porta foi batida.

O rosto ardendo, Kerwin não a seguiu. A chuva era intensa agora, o vento soprava forte, e havia sinais de gelo nas gotas enormes. O que fizera agora? Atordoado, envergonhado, sentindo necessidade de se esconder -todos deviam ter visto como Taniquel o rejeitara, como se voltara para Auster, e com certeza sabiam o que isso significava -, Kerwin atravessou o corredor apressado, e subiu a escada, a caminho de seu quarto. Antes que o alcançasse, no entanto, ouviu passos irregulares por trás. Era Kennard.

- Jeff, qual é o problema?

Ele não queria confrontar naquele momento o rosto rude e sábio do homem mais velho. Entrou no quarto, murmurando:

- Ainda cansado... acho que vou me deitar, dormir mais um pouco. Kennard seguiu-o, pôs as mãos em seus ombros, e obrigou-o a se virar, com uma força surpreendente.

- Escute, Jeff, não pode se manter apartado de nós assim. Se quiser conversar a respeito...

- Será que não há nenhuma privacidade por aqui? - explodiu Jeff, a voz tremendo.

Kennard suspirou.

- A perna está doendo muito; posso sentar?

Kerwin não tinha como recusar. Kennard arriou numa cadeira de braços.

- Escute, filho, entre nós, as coisas têm de ser... confrontadas. Não podem permanecer ocultas, para infeccionarem. Para o melhor ou para o pior, você é um membro de nosso círculo...

Jeff contraiu os lábios.

- Não se metam nisso. É entre Taniquel e eu, não é da conta de mais ninguém.

- Não, não é absolutamente entre Taniquel e você - protestou Kennard. É entre você e Auster. Qualquer coisa que acontece em Arilinn afeta a todos nós. Tani é uma empática; não pode compreender como ela reage quando sente... quando tem de partilhar... esse tipo de necessidade, de fome, solidão? Você irradiava sem parar, e todos nós captamos. Mas Tani é empática e vulnerável. E reagiu a essa necessidade, porque é mulher, generosa e empática, não podia suportar sua infelicidade. Deu o que você mais precisava, e o que era natural que ela desse.

- Ela disse que me amava - murmurou Kerwin e eu acreditei. Kennard estendeu a mão, e Kerwin sentiu toda a simpatia nele.

- Pelos infernos de Zandru, Jeff... palavras, palavras, palavras! E a maneira como as pessoas as usam, o que querem indicar com elas!

Era quase como uma imprecação. Ele tocou de leve no pulso de Jeff, o contato aceito de um telepata, que significava mais que um aperto de mão ou um abraço, e disse, gentilmente:

- Ela o ama, Jeff. Todos o amamos, cada um de nós. Você é um dos nossos. Mas Tani... é o que ela é. Será que não pode compreender o que isso significa? E Auster... não pode imaginar o que significa ser uma mulher, empática ainda por cima, e sentir o tipo de desespero e necessidade que havia em Auster esta noite? Como ela pode sentir isso, e não... não reagir? Se você e Auster se compreendessem, se tivesse empatia com ele, sentiria também a sua dor, e entenderia o que Taniquel sentiu!

Contra a sua vontade, Jeff começou a absorver o conceito; num círculo fechado de telepatas, as emoções, necessidades, ânsias, não afetavam apenas a pessoa que as sentia, mas também todos os outros ao redor. Ele perturbara a todos com sua solidão e ânsia de aceitação, e Taniquel reagira, com a mesma naturalidade com que uma mãe acalma um bebê chorando. Mas agora, quando Jeff estava feliz e triunfante, e Auster parecia derrotado, era a dor de Auster que ela desejava aliviar...

A carne e o sangue humanos não podiam suportar, pensou ele, angustiado. Taniquel, a quem tanto amava, Taniquel, a primeira mulher que significara alguma coisa- para ele, Taniquel nos braços do homem a quem ele odiava...Jeff fechou os olhos, tentando bloquear o pensamento, a dor que causava.

Kennard fitava-o, e Kerwin, contrafeito, reconheceu a expressão dele como compaixão.

- Deve ser difícil para você. Passou tanto tempo entre os terráqueos que absorveu seus códigos neuróticos. As leis das Torres não são as mesmas que prevalecem nos Domínios; entre telepatas, não podem ser. O casamento é uma instituição recente em Darkover; o que vocês chamam de monogamia é ainda mais recente. E nunca foi realmente aceita. Não o estou culpando, Jeff. Você é o que é, mas Tani também é o que é. Só gostaria que você não se sentisse tão infeliz com a situação.

Ele se levantou, cansado, e saiu do quarto. Kerwin captou um fluxo de pensamento. Kennard casara com uma terráquea, conhecera o sofrimento de um homem dividido entre dois mundos, sem pertencer a nenhum, vira seus dois filhos rejeitados, porque não pudera gerar um filho de uma esposa aceita pelo Conselho, mas a quem, sensível demais para as emoções silenciosas, não podia amar...

Deitado em sua cama, insone, incendiado por uma ira ciumenta, Kerwin travou uma batalha solitária, e quase ao amanhecer chegou a um sombrio equilíbrio. A mulher não valia a pena. Não permitiria que Auster arruinasse tudo para ele. Tinham de trabalhar juntos, de um jeito ou de outro. Era mortificante perder para Auster, mas no final das contas era apenas seu orgulho que estava envolvido. Se Taniquel queria Auster, que tirasse bom proveito. Ela fizera sua opção, e podia mantê-la.

Não era a solução ideal, mas funcionou. Taniquel se mostrou polida, fria e remota, e Kerwin assumiu a mesma atitude. Mais uma vez, iniciaram o trabalho de construir telas de matriz, sintonizando-as com mapas e fotografias aéreas; mais uma vez, reuniram o círculo, procurando por depósitos de ferro, e poucos dias depois de prata e zinco. No dia anterior à quarta busca, Jeff foi dar um passeio sozinho pelas colinas, e logo se encontrou com Corus, pálido e excitado, à sua procura.

- Jeff, Elorie quer todos nós na câmara de matriz, imediatamente! Ele acompanhou o garoto, especulando sobre o que acontecera. Os outros já estavam na câmara, Rannirl com os mapas na mão.

- Temos problemas. Recebi o aviso de nossos clientes, logo depois que lhes entreguei o mapa. Em três lugares separados, aqui, aqui e aqui... - Rannirl indicou os pontos marcados no mapa - ...o pessoal das Hellers, os malditos Aldarans e seus homens, se apressaram em reivindicar as terras com os -mais ricos depósitos de cobre. Sabem tão bem quanto eu que os Aldarans são peões dos terráqueos, com sua Cidade Comercial em Caer Donn. Não passam de uma fachada do Império, reivindicando as terras para instalarem colônias industriais terráqueas.

São áreas despovoadas nas Hellers, não servem para a agricultura, e não creio que alguém tenha jamais adivinhado que eram boas para a mine-ração, já que são quase inacessíveis. Como eles descobriram?

- Coincidência - respondeu Neyrissa. Afinal, os Aldarans são muito ligados ao povo-da-forja. Eles sempre fazem a prospecção de metais, e usam os talismãs-de-fogo da maneira como usamos os círculos de matriz.

Auster interveio, irritado:

- Não posso acreditar que seja apenas coincidência... e logo na primeira vez que Jeff participa do círculo! Os intermediários da Terra se apropriam dos depósitos mais ricos, e nada nos deixam para oferecer a nossos clientes, a não ser alguns locais mais precários, quase impossíveis de aproveitar! E não apenas um caso, nem dois, mas três! - ele virou-se para Kerwin, furioso. - Quanto os terráqueos lhe pagaram para nos trair?

- Se acredita nisso, então é mais idiota do que eu pensava. Taniquel se manifestou, com a mesma fúria:

- Sei que não gosta de Jeff, Auster, mas isso é absurdo! Se acredita nessa possibilidade, então é capaz de acreditar em qualquer coisa!

- É apenas azar, nada mais - murmurou Kennard.

- Uma vez, eu poderia acreditar em coincidência - insistiu Auster. Duas vezes, admitiria a coincidência e azar. Mas três vezes? Três? É tanta coincidência quanto o trabalho da parteira depois de um Vento Fantasma é coincidência!

Elorie franziu o rosto.

- Calem-se todos! Não quero que essa discussão continue. Há uma maneira de esclarecer a questão, Kennard. Você é um Alton. Ele não pode mentir para você, tio.

Kerwin compreendeu no mesmo instante o que isso significava, antes mesmo que Elorie o fitasse, e acrescentasse:

- Consentirá num exame telepático, Jeff? A raiva dominou Kerwin.

- Consentir? Eu exijo! E depois farei com que você engula suas palavras, Auster, vou enfiá-las por sua goela com meu punho!

Ele virou-se para Kennard, a raiva deixando-o indiferente ao medo de confrontar aquela sondagem de pesadelo.

- Vamos logo! Descubra por si mesmo! Kennard hesitou.

- Não creio realmente...

- É a única maneira - interrompeu-o Neyrissa, determinada -, e Jeff está disposto.

Kerwin fechou os olhos, preparando-se para o choque doloroso do contato forçado. Por mais que ocorresse, nunca se tornava mais fácil. Ele suportou por um momento, a incrível intromissão, o pesadelo da violação, antes que um nevoeiro cinza e misericordioso bloqueasse a dor. Quando voltou a si, estava de pé diante dos outros, segurando a beira da mesa para não cair. Ouviu a própria respiração pesada na sala silenciosa.

Os olhos de Kennard se deslocavam sem parar entre ele e Auster.

- E então? - indagou Jeff, a voz irada e defensiva.

- Eu sempre disse que podíamos confiar em você, Jeff - murmurou Kennard -, mas alguma coisa está acontecendo aqui. Algo que não compreendo. Há um bloqueio em sua memória, Jeff.

- Os terráqueos não poderiam ter lhe dado alguma espécie de condicionamento pós-hipnótico - sugeriu Auster - e o terem infiltrado em nosso meio... como uma bomba-relógio?

- Eu lhe asseguro que superestima os conhecimentos da mente dos terráqueos - disse Kennard. E também asseguro, Auster, que Jeff não está lhes fornecendo informações. Não há culpa nele.

Mas um horror gelado subitamente apertava a garganta de Kerwin.

Desde que chegara a Darkover que se sentia pressionado por alguma força misteriosa. Não fora o Comyn, com toda certeza, que destruíra seus registros de nascimento, assim como os registros de Jeff Kerwin, seu pai, que reivindicara e obtivera para ele a cidadania do Império, em todos os computadores terráqueos. Não fora o Comyn que o pressionara até que não tinha mais para onde ir, e só lhe restara escapar... escapar para o Comyn.

Teria sido infiltrado ali, um espião inconsciente na Torre de Arilinn?

- Nunca ouvi falar de nada tão absurdo - declarou Kennard, irritado. Prefiro acreditar que foi você, Auster... ou a própria Elorie! Mas esse tipo de suspeita entre nós só poderá beneficiar os terráqueos!

Ele fez uma pausa, pegou o mapa.

- É mais provável que tenha sido um dos Aldarans; há alguns telepatas ali, e operam com matrizes não monitoradas, fora das redes das Torres. Sua barreira pode ter falhado, Auster, isso é tudo. Digamos que foi apenas azar, e vamos tentar de novo.

 

Ele tentou descartar a idéia de sua mente. Afinal, Kennard garantira sua inocência depois do exame telepático. E Kerwin sabia que isso era uma defesa legal em qualquer lugar. Mas depois de despertada, a idéia persistiu, como a dor num dente incomodando:

Será que eu saberia, se os terráqueos tivessem me infiltrado aqui?

Fiquei tão contente em me libertar da Zona Terráquea que nem sequer fiz perguntas. Como, por exemplo, o computador no Orfanato dos Espaçonautas não tinha registros meus? Disseram que Auster também nasceu entre os terráqueos. Será que há um registro dele ali? Há algum motivo para que um telepata com uma matriz, como Ragan sugeriu, não pudesse apagar o banco de memória de um computador... ou eliminar um arquivo específico? Tudo o que ele sabia de computadores, e tudo o que sabia de matrizes, indicavam que não seria muito difícil.

Kerwin passava os dias silencioso e apático, deitado em sua cama por horas a fio, tentando não pensar em nada. Ou saía para passear sozinho, a cavalo, pelas colinas. Sentia que os olhos de Taniquel o observavam sempre que estava com os outros, percebia sua simpatia (aquela desgraçada, não quero sua compaixão!), e sofria com isso. Evitava-a quando podia, mas a lembrança de seu pouco tempo como amantes era que nem uma faca afiada a cortar seu coração. Porque fora muito mais profundo que qualquer relacionamento casual, não podia ser descartado com indiferença; permanecia com ele, uma angústia constante.

Ele tinha uma vaga noção de que Taniquel tentava manobrar para encontrá-lo a sós, e sentia um prazer rancoroso em se esquivar. Uma manhã, no entanto, deparou com ela na escada.

- Jeff - murmurou ela, estendendo a mão -, não fuja... por favor, não continue a fugir de mim. Quero conversar com você.

Kerwin deu de ombros, olhou por cima da cabeça de Taniquel.

- O que há para dizer?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas, que se derramaram pelo rosto.

- Não posso mais suportar - balbuciou Taniquel - nós dois como inimigos, e a Torre impregnada de... de ódio e suspeita! E ciúme...

O gelo do ressentimento de Kerwin se derreteu diante da angústia genuína de Taniquel, e ele murmurou:

- Também não gosto dessa situação, Tani. Mas lembre-se que não foi culpa minha.

- Por que você tem... - ela mordeu o lábio, controlando a irritação. Lamento muito que esteja tão infeliz, Jeff. Kennard me explicou, um pouco, como você se sentiu. Não imaginei...

Com um sarcasmo intenso, Kerwin perguntou:

- Se eu fosse bastante infeliz, você voltaria para mim - ele pegou-a pelos ombros, sem muita gentileza. - Devo supor que Auster a fez pensar o pior de mim, que sou um espião dos terráqueos, ou algo parecido?

Ela ficou quieta entre suas mãos, sem fazer qualquer esforço para se desvencilhar.

- Auster não está mentindo, Jeff. Ele apenas diz o que acredita. E se pensa que ele se sente feliz por isso, está muito enganado.

- Por acaso Auster ficaria com o coração partido se conseguisse me expulsar daqui?

- Não sei, mas ele não o odeia tanto quanto você pensa. Olhe para mim, Jeff. Não percebe que estou lhe dizendo a verdade?

- Acho que você deve saber muito bem o que Auster sente.

Mas os ombros de Taniquel tremiam agora, e a visão de Taniquel, a maliciosa, a despreocupada, em lágrimas, deixou-o mais desesperado do que as suspeitas de todos os outros. Era o pior de tudo, pensou Kerwin, cansado. Se Auster tivesse mentido por maldade, se Taniquel o tivesse trocado por Auster só para magoá-lo, deixá-lo com ciúme, poderia pelo menos compreender esse tipo de motivação. Mas a situação era um mistério total para Kerwin. Taniquel não atacara, não se defendera, nem mesmo em pensamento; apenas partilhava o sofrimento dele. E abraçou Kerwin, soluçando, desesperada.

- Oh, Jeff, ficamos tão felizes quando você chegou, e sua presença aqui significou muito para todos nós, mas agora está tudo arruinado! Se ao menos pudéssemos saber, se pudéssemos ter certeza!

Kerwin confrontou a todos naquela noite, no grande salão, quando se reuniram para os drinques habituais. Levantou-se, agressivo, as mãos cruzadas nas costas. Em desafio, vestira seu uniforme terráqueo; em desafio, falou em Cahuenga:

- Auster, você fez uma acusação; submeti-me ao exame telepático, que deveria ter esclarecido tudo, mas você não aceitou minha palavra, nem a de Kennard. Que prova exigiria? O que aceitaria?

Auster também se levantou, esguio e gracioso, ágil como um gato.

- O que você quer de mim, Kerwin? Não posso desafiá-lo, por causa de sua imunidade do Comyn...

- A imunidade do Comyn que se... - Kerwin usou uma palavra das sarjetas do espaço-porto. Passei dez anos na Terra, e existe ali uma expressão que pode ser mais ou menos traduzida como agüente as conseqüências, ou cale a boca. Diga-me logo, aqui e agora, que prova você aceitaria, e me dê a oportunidade, aqui e agora, de esclarecer tudo, à sua satisfação. Ou cale a boca sobre o assunto, para sempre... e pode ter certeza, irmão, que se eu ouvir mais uma única sílaba, ou captar uma só insinuação telepática, vou lhe dar uma surra que nunca mais esquecerá!

Ele ficou imóvel, os punhos cerrados, e quando Auster deu um passo para o lado, também se deslocou, a fim de permanecer bem na sua frente.

- Vou repetir, Auster. Agüente as conseqüências, ou cale a boca para sempre.

Havia um silêncio chocado no salão, o que deixou Jeff satisfeito. Mesyr soltou um pequeno grunhido de repreensão, quase uma advertência: Calma, crianças...

- Jeff está certo - interveio Rannirl. Não podemos continuar assim, Auster. Prove o que insinua, ou peça desculpas a Jeff, e nunca mais toque no assunto. Não apenas por Jeff; deve isso a todos nós. Não podemos viver dessa maneira; somos um círculo. Não peço que façam o juramento de bredin, mas devem encontrar uma maneira de viverem juntos em harmonia. Não é possível deixar que essa situação persista, a Torre dividida em duas facções, cada uma ameaçando a outra. Afinal, Elorie já tem muito com que se preocupar.

Auster fitou Kerwin. Se olhar pudesse matar, pensou Kerwin, Auster não teria mais qualquer problema. Mas quando ele falou, sua voz era calma, ponderada:

- Tem razão. Devemos descobrir a verdade, de uma vez por todas. E Jeff tem de assumir o compromisso de respeitar o resultado. Elorie, você pode fazer uma armadilha de matriz?

- Posso, mas não o farei - explodiu ela -; se quiser, faça você mesmo seu trabalho sujo!

- Kennard também pode - lembrou Neyrissa. Auster franziu o rosto.

- Sei disso, mas ele é parcial... em favor de Jeff. Assumiu o papel de seu pai-de-adoção aqui.

A voz de Kennard soou contida e perigosa:

- Se ousa presumir que eu, mecânico em Arilinn antes mesmo das Mudanças, violaria meu juramento...

Rannirl ergueu a mão, para deter os dois.

- Eu cuidarei de tudo - declarou ele. Não porque estou do seu lado, Auster, mas porque precisamos resolver essa questão, de um jeito ou de outro. Jeff... você confia em mim?

Kerwin acenou com a cabeça. Não sabia o que era uma armadilha de matriz; mas com Rannirl no comando, tinha certeza de que a armadilha não seria para ele.

- Muito bem, está resolvido. Mas até montarmos a armadilha de matriz, para a próxima sessão do círculo, vocês dois não podem declarar uma trégua?

Jeff teve vontade de dizer De jeito nenhum!, e ao olhar para o rosto soturno de Auster compreendeu que o outro homem sentia a mesma coisa. Como os telepatas podiam fingir? Mas Taniquel estava à beira das lágrimas, e Jeff deu de ombros. Não o prejudicaria ser cortês; Auster só queria conhecer a verdade, e isso era uma coisa em que concordavam.

- Está bem, eu o deixarei em paz, se ele também me deixar em paz. Combinado?

O rosto tenso de Auster relaxou.

- Combinado.

Tomada essa decisão, a tensão geral se dissipou, e o estágio seguinte do trabalho começou num ambiente que, em contraste, era quase cordial. Precisavam agora construir uma treliça de matriz para o trabalho conhecido como "purificação"... algo que não se fazia nessa escala desde os grandes dias do Comyn, quando as Torres pontilhavam a terra, proporcionando poder e tecnologia a todos os Domínios.

Haviam localizado minerais e depósitos de minério, registrado sua riqueza e acessibilidade. Na etapa seguinte, separariam os depósitos dos outros minerais que os contaminavam, a fim de que o cobre e outros metais pudessem ser extraídos em forma pura, sem necessidade de refino. Gota a gota, átomo a átomo, no fundo do solo, por pequenas alterações de energia e força, os metais puros seriam separados dos minérios e da rocha. Corus passava mais e mais tempo com seus modelos moleculares, determinando pesos e proporções exatos. E desta vez Elorie, junto com Rannirl, pediu expressamente a ajuda de Kerwin para colocar os pequenos cristais dentro da treliça. Ele tinha de manter os complexos padrões moleculares, visualizados numa tela de monitoria, para que Elorie e Rannirl pudessem ajustar os cristais em suas posições específicas dentro das camadas amorfas de vidro. Kerwin aprendeu coisas sobre estrutura atômica que nem mesmo os cientistas terráqueos conheciam... seus estudos de física, por exemplo, nada haviam revelado sobre a natureza dos energônios. Era um trabalho exaustivo, monótono e tenso, mais do que um esforço físico; e sempre, no fundo de sua mente, pairava o pensamento do teste a ser realizado com a armadilha de matriz, qualquer que fosse.

Quero saber a verdade, qualquer que seja.

Qualquer que seja?

Isso mesmo, qualquer que seja.

Trabalhavam um dia num dos laboratórios de matriz, com Jeff sustentando a complexa estrutura interna de cristal, quando subitamente ele viu toda a treliça derreter, e se fundir num clarão azul. Uma dor intensa espalhou-se por seu corpo; mal sabendo o que fazia, Jeff agiu por puro instinto. Cortou no mesmo instante o contato entre Rannirl e Elorie, apagou as telas, e segurou o corpo desfalecido de Elorie ao cair. Por um momento de pânico, chegou a pensar que ela parara de respirar; mas depois as pálpebras adejaram, e Elorie deixou escapar um suspiro.

- Trabalhando demais, como sempre - murmurou Rannirl, olhando para a treliça. E insiste em continuar, mesmo quando eu suplico que descanse um pouco. Ainda bem que você a amparou a tempo, Jeff, caso contrário teríamos de reconstruir toda a treliça, o que nos custaria pelo menos dez dias. Você está bem, Elorie?

Ela chorava baixinho, exausta, inerte nos braços de Jeff. O rosto exibia uma palidez mortal, e os soluços eram débeis, como se já não tivesse mais força para respirar direito. Rannirl tirou-a dos braços de Jeff, segurando-a como se fosse uma criança pequena, e saiu do laboratório. Olhou para trás, e disse:

- Peça a Tani para vir até aqui, o mais depressa possível!

- Taniquel saiu com Kennard no carro aéreo - informou Kerwin.

- Neste caso, é melhor eu tentar chamar alguém que esteja na rede. Rannirl abriu a porta mais próxima com o pé. Era um dos aposentos sem uso; dava a impressão de que ninguém entrava ali há muitos anos. Ele estendeu Elorie num diva coberto por uma colcha empoeirada, enquanto Kerwin parava na porta, impotente.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? - murmurou ele.

- Você é um empático, e foi qualificado como monitor. Não faço isso há anos. Vou subir, e tentar trazer Neyrissa até aqui, mas é melhor você monitorá-la, para ver se seu coração está bem.

E subitamente Kerwin recordou o que Taniquel fizera por ele naquela primeira noite de teste, absorvendo sua dor, quando desfalecera pelo rompimento de suas barreiras.

- Farei tudo o que puder.

Ele se aproximou de Elorie, que balançou a cabeça, de um lado para outro, como uma criança rebelde.

- Não - disse ela, irritada. Deixem-me em paz. Estou bem.

Mas ela teve de respirar duas vezes enquanto falava, e seu rosto estava mais branco do que osso raspado.

- Ela é sempre assim - murmurou Rannirl. Faça o que puder, Jeff. Vou chamar Neyrissa.

Jeff inclinou-se para Elorie.

- Não sou tão bom quanto Tani ou Neyrissa, mas farei o que puder. Depressa, aguçando sua sensibilidade, ele passou as pontas dos dedos sobre o corpo de Elorie, a dois ou três centímetros da pele, sentindo as células. O coração de Elorie continuava a bater, mas fraco, irregular; a pulsação era tênue, quase ilegível. A respiração era tão débil que Jeff mal podia senti-la. Cauteloso, ele procurou o contato, tentando determinar, com a percepção ampliada, os limites da fraqueza dela, tentando absorver a exaustão de Elorie, como Taniquel fizera com a sua dor. O movimento de busca das mãos de Elorie persistiu, e depois de um momento Jeff pôs suas mãos entre as dela, sentiu o débil esforço que ela fez para apertá-las. Elorie estava quase inconsciente. Pouco a pouco, porém, enquanto ele se ajoelhava, as mãos sempre unidas, Jeff pôde sentir que a respiração dela se firmava, que o coração voltava a bater num ritmo mais regular, e que a palidez mortal do rosto se transformava outra vez numa coloração saudável. Não sabia como ficara apavorado até ouvi-la respirar calma e firme; ela abriu os olhos, fitou-o. Ainda estava um pouco pálida, os lábios lívidos.

- Obrigada, Jeff - sussurrou Elorie, apertando as mãos dele. Depois, para espanto de Jeff, ela estendeu os braços, num apelo silencioso. Ele reagiu no mesmo instante, abraçando-a, sentindo que ela precisava da segurança daquele contato; manteve-a assim por um momento, sentindo-a macia e fraca, ainda inerte. E depois, sem surpresa, Kerwin sentiu a suave e confortadora fusão de percepções, quando seus lábios se encontraram.

Sentiu com uma percepção dupla profundamente aguçada o corpo leve e inerte de Elorie em seus braços, a fragilidade misturada com uma força inabalável, a qualidade infantil junto com a sabedoria serena e intemporal de sua casta e treinamento. (E vagamente, através de todas essas coisas, ele sentiu o que Elorie sentia, sua fraqueza e lassitude, o terror que ela experimentara quando seu coração fraquejara, e se descobrira à beira da morte, a necessidade da segurança do contato, a ansiedade com que aceitara o beijo, um estranho e apenas meio entendido despertar em seus sentidos; ele partilhou com a mulher a admiração e surpresa por aquele contato, o primeiro contato que ela conhecia que não era paternal e impessoal; partilhou sua tímida e impudente surpresa pela força do seu corpo de homem, o súbito e crescente calor que os envolvia; sentiu-a se projetar para ele, de uma maneira inconfundível, em busca de um contato mais profundo, e reagiu de acordo...)

- Elorie... - sussurrou ele, mas soou como um grito triunfante - oh, Elorie...

E apenas para si mesmo ele sussurrou meu amor, por um momento sentindo tudo naquela mulher, o calor intenso, o anseio por seu beijo...

Até que de repente veio um momento espasmódico de medo convulsivo, provocando uma angústia em cada nervo de Jeff; o contato entre os dois se rompeu, como um cristal partindo, e Elorie, pálida e aterrorizada, tratou de se desvencilhar de seus braços, debatendo-se como uma gata.

- Não, não! - balbuciou ela. Largue-me, Jeff... não...

Atordoado com o choque, Kerwin soltou-a; ela se levantou apressada, afastou-se, as mãos cruzadas em pavor sobre os seios, que subiam e desciam em soluços silenciosos, angustiados. Elorie tinha os olhos arregalados, mas tornara a erguer as barreiras contra ele. A boca infantil se mexeu sem emitir qualquer som, o rosto se contraiu numa careta de menina, na tentativa de conter as lágrimas.

- Não - murmurou ela outra vez, depois de um longo momento. Você esqueceu... esqueceu o que sou? Ah, que Avarra tenha piedade de mim!

Elorie cobriu o rosto com as mãos, e fugiu às cegas do quarto, quase tropeçando num banco, esquivando-se à mão que Jeff estendeu numa reação automática para ampará-la, passou pela porta, disparou pelo corredor. Muito longe, no alto da Torre, ele ouviu uma porta ser fechada.

Kerwin não tornou a ver Elorie por três dias.

Pela primeira vez, ela não se reuniu com os outros para os drinques habituais no grande salão. Desde o momento em que Elorie o deixara, Jeff sentia-se isolado e sozinho, um estranho entre eles, num mundo subitamente frio e inóspito.

Os outros pareciam considerar a reclusão de Elorie como um fato corriqueiro. Kennard comentou, dando de ombros, que todas as Guardiãs faziam isso de vez em quando, era parte do desempenho de suas funções. Jeff, mantendo suas barreiras firmes contra uma traição involuntária (de si mesmo? de Elorie?), não disse nada. Mas os olhos de Elorie, luminosos e atormentados pela consternação, o medo súbito e chocante, assim como a lembrança do calor daquele corpo em seus braços, pareciam flutuar à sua frente na escuridão, todas as noites, antes de dormir. Podia sentir, com uma memória quase tátil, o beijo de Elorie em sua boca, o corpo frágil e assustado em seus braços, e o choque depois que ela se desvencilhara e fugira. A princípio, ele ficara meio irritado. Afinal, fora ela quem iniciara o contato. Por que o rompera daquela maneira, como se ele tivesse tentado estuprá-la?

E depois, devagar, com muita angústia, a compreensão aflorou.

Violara a mais rigorosa lei do Comyn. Uma Guardiã assumia o juramento de virgindade, era treinada por muito tempo para seu trabalho, corpo e cérebro recebiam o condicionamento para a missão mais difícil em Darkover. Para todos os homens nos Domínios, Elorie era inviolável. Uma Guardiã, tenerésteis, nunca deveria ser tocada em desejo, nem mesmo no mais puro amor.

Ele ouvira o que os outros diziam - e pior ainda, sentira o que sentiam - sobre Cleindori, que violara esse juramento (e ainda por cima com um dos desprezados terráqueos).

Em sua vida antiga, Kerwin poderia ter se defendido, alegando que Elorie convidara seus avanços. Fora ela quem o tocara primeiro, quem erguera seus lábios para os dele. Mas depois de algum tempo de treinamento na honestidade inexorável de Arilinn, não podia haver essas evasivas fáceis. Ele sabia do tabu, tinha conhecimento da ignorância de Elorie; estava a par da maneira franca com que ela demonstrava afeição aos outros no círculo, confiante no tabu que a protegia; para todos, era assexuada e sacrossanta. Aceitara Jeff do mesmo modo... e ele traíra sua confiança!

Ele a amava. Sabia agora que a amava desde a primeira vez em que a vira; ou talvez mesmo antes, quando suas mentes fizeram contato através da matriz, e ele ouvira as palavras suaves, Eu o reconheço. Agora, Jeff nada podia ver à frente que não sofrimento e renúncia.

Taniquel... sua atração por Taniquel parecia agora apenas um sonho. Sabia agora que fora gratidão porque ela o aceitara, por sua generosidade e afeto; ainda gostava dela, mas o que houvera entre os dois, por algum tempo, não podia sobreviver a qualquer interrupção do vínculo sexual. Nunca experimentara nada parecido com aquela sensação irresistível que o engolfara por completo; sabia que amaria Elorie pelo resto de sua vida, mesmo que nunca mais pudesse tocá-la, mesmo que ela não demonstrasse o menor sinal de retribuir seu amor.

(Mas ela demonstrara, ela demonstrara...)

Mas pior do que isso era um medo terrível, corroendo sua consciência. Kennard advertira-o sobre os perigos da exaustão nervosa, aconselhara-o a se manter afastado de Taniquel durante os dias imediatamente anteriores a uma carga intensa de trabalho com matriz, a fim de evitar o esgotamento de suas energias. As Guardiãs, ele sabia, tinham uma sintonia completa, de corpo e mente, com as matrizes que operavam; era por isso que nunca deveriam ser tocadas por qualquer insinuação de emoção, muito menos de sexualidade. A memória de Jeff retornou à primeira noite em Arilinn; a consternação de Elorie ao menor comentário galante, sua observação de que as Guardiãs eram treinadas desde crianças para seu trabalho, e às vezes perdiam a capacidade para realizá-lo depois de bem pouco tempo. Neyrissa ressaltara que não havia outras Guardiãs, e por isso Elorie, ao contrário de outras Guardiãs no passado, não era livre para deixar seu alto posto pelo casamento... ou pelo amor.

E agora, quando talvez o próprio destino de Darkover dependia da força da Torre de Arilinn - e talvez de Elorie apenas, já que a força de Arilinn se baseava na fortaleza de sua amada Guardiã - , ele, Jeff Kerwin, o estranho no ninho, o forasteiro que conquistara seus corações, traía a todos, abalava as defesas de sua Guardiã.

E a esta altura de seus pensamentos, Kerwin sentou na cama, comprimiu o rosto contra as mãos. Tentou apagar tais pensamentos por completo. Era pior do que a acusação de Auster, de que ele não passava de um espião, transmitindo informações ao Império.

Sozinho, na noite, ele lutou até o fim a sua terrível batalha. Amava Elorie; mas seu amor podia destruí-la como Guardiã. E sem uma Guardiã, fracassariam no trabalho que realizavam para a União Pan-Darkovana, que consideraria isso como uma permissão para chamar os terráqueos, os técnicos que remodelariam Darkover à imagem do Império.

Uma parte traidora de si mesmo indagou: Seria tão ruim assim? Mais cedo ou mais tarde, Darkover entraria na linha. Era o que acontecia com todos os planetas.

E mesmo para Elorie, ele garantiu a si mesmo, seria melhor. Nenhuma jovem deveria viver daquela maneira, em reclusão, evitando tudo o que fazia com que a vida valesse a pena. Nenhuma mulher deveria pensar que seu corpo não era mais que uma máquina para transformar as energias do trabalho de matriz! Até mesmo Rannirl se rebelara, e Rannirl era o chefe técnico em Arilinn. Rannirl dissera que Guardiãs como Elorie eram um anacronismo nos dias atuais. Se a Torre de Arilinn e a tecnologia de matriz não podiam sobreviver exceto pelo sacrifício das vidas de moças como Elorie, talvez nem merecessem sobreviver. Se o trabalho para a União Pan-Darkovana fracassasse, então Elorie não precisaria mais ser Guardiã, estaria livre.

Traidor!, ele acusou a si mesmo, amargurado. As pessoas de Arilinn o aceitaram, um estranho, expatriado, exilado de dois mundos, aceitaram-no como um dos seus, ofereceram-lhe gentileza, amor e aceitação.

E agora ele se dispunha a atacá-las em seu ponto mais fraco, pensava em algo que as destruiria!

Deitado ali, na escuridão, ele decidiu renunciar a Elorie. Era ela que importava, e sua opção era ser Guardiã, permanecer Guardiã. A qualquer custo para si mesmo, em renúncia e agonia, a paz mental de Elorie nunca deveria correr qualquer risco.

Na manhã do quarto dia ele ouviu a voz de Elorie na escada. Lutara para alcançar a resignação, mas ao som daquela voz suave tudo aflorou de novo, com um ímpeto incontrolável; e Kerwin voltou correndo para seu quarto, às cegas, querendo reprimir o desespero e rebelião que o dominavam. Oh, Elorie, Elorie... Ainda não podia confrontá-la.

Mais tarde, ele ouviu a voz de Rannirl em sua porta:

- Jeff, pode descer agora?

- Dê-me só um minuto.

Rannirl se afastou. Sozinho, Kerwin fez um esforço para aplicar toda a técnica de controle que aprendera, firmou a respiração, forçou-se a relaxar; e quando teve certeza de que poderia encarar a todos sem revelar sua angústia ou culpa, ele finalmente desceu.

O círculo de Arilinn estava reunido diante do fogo, mas Kerwin só tinha olhos para Elorie. Ela pusera de novo o vestido com cerejas bordadas, preso na garganta por um cristal; os cabelos avermelhados estavam presos em trancas enroladas na cabeça, com uma flor azul, coberta por um pó dourado. Era a flor de kireseth, coloquialmente chamada de sino dourado... cleindori. Ela estaria testando seu controle? Ou, especulou Jeff de repente, a sua própria resistência?

Elorie levantou os olhos, e ele teve de se lembrar de respirar. Pois ela exibiu um sorriso gentil, distante, indiferente.

Portanto, ela nada sentira. Será que ele imaginara tudo? A reação de Elorie não fora mais do que medo, como se ele tivesse despertado o antigo temor... Kerwin recordou a história de Neyrissa, um dos companheiros de bebida do pai louco pusera suas mãos sujas na moça, e o irmão a trouxera para Arilinn, para dar-lhe segurança e refúgio.

Kennard pôs a mão no ombro de Jeff, gentilmente; de alguma forma, através do contato, uma percepção silenciosa passou entre os dois. As Guardiãs são treinadas, por meios que você nem pode imaginar, a se manterem livres de toda e qualquer emoção. De algum jeito, naqueles três dias de reclusão, Elorie conseguira recuperar aquela calma remota, a paz intacta. O sorriso era quase exatamente como sempre fora. Quase. Kerwin sentiu que era frágil e cauteloso o controle que ela exercia sobre o pânico. Com um ímpeto de compaixão e angústia, ele pensou Não devo fazer nada, absolutamente nada, para perturbá-la. Ela quer assim. Não devo violar seu controle, nem mesmo pelo pensamento.

- Preparamos tudo para a operação de separação esta noite - anunciou ela., muito calma. E Rannirl me informa que a armadilha de matriz já terminou, Auster.

- Estou pronto - declarou Auster -, a menos que Jeff prefira recuar.

- Eu disse que aceitaria qualquer teste que me desse. Mas, afinal, o que é uma armadilha de matriz?

Elorie fez uma de suas caretas infantis.

- É uma sórdida desvirtuação de uma ciência honesta.

- Não necessariamente - protestou Kennard. Há algumas que são válidas. O Véu na entrada de Arilinn é uma espécie de armadilha de matriz; impede o acesso de todos que não são aceitos como Comyn, relacionados pelo sangue. E há outras em rhu fead, o lugar sagrado do Comyn. De que tipo é a sua, Auster?

- Está ligada à barreira - explicou Auster. Quando erguermos a barreira coletiva em torno de nosso círculo, armarei a armadilha de matriz em sincronia. Assim, se alguém estiver captando uma mente dentro do círculo, a armadilha vai imobilizá-lo, e poderemos vê-lo depois no monitor.

- Pode ter certeza de que se alguém anda espionando através da minha mente - disse Kerwin - estou tão ansioso em descobrir quanto você!

- Muito bem, vamos começar - Elorie hesitou, mordeu o lábio, encaminhou-se para o armário em que eram guardadas as bebidas. -Quero um pouco de kirian.

Ela serviu-se, sob o olhar desaprovador de Kennard.

- Há mais alguém que não confie em si mesmo esta noite? Auster Jeff? Pare de me olhar desse jeito, Neyrissa; sei o que estou fazendo, e você não é minha mãe!

Rannirl interveio, a voz áspera:

- Se não se sente preparada para a operação de purificação, Lori, podemos adiá-la por alguns dias...

- Já protelamos por três dias, e estou tão preparada quanto jamais poderei ficar.

Ela levou o kirian aos lábios. Lançou um olhar para Jeff quando pensava que ele não a observava. Sua expressão atingiu fundo o coração de Kerwin.

Então era a mesma coisa com ela. Kerwin sentira-se magoado por pensar que Elorie pudera pôr tudo de lado, fora capaz de esquecer ou ignorar o que houvera entre os dois. Agora, vendo a mágoa nos olhos dela, Kerwin desejou de todo coração que Elorie tivesse de fato permanecido incólume ao que ocorrera. Ele podia suportar o sofrimento, se fosse necessário. Mas não sabia se suportaria o que fizera com Elorie.

Ele podia, porque devia. Observou-a terminar de tomar o licor de kirian, e depois todos subiram para a câmara de matriz.

A disposição foi a mesma da última vez, com Taniquel monitorando, Neyrissa dentro do círculo, Auster sustentando a barreira coletiva, Elorie no centro, segurando em suas mãos esguias as forças que podiam aproveitar o campo magnético de um planeta, unindo todas as mentes, e concentrando o poder na treliça de matriz projetada para aquela operação.

Kerwin sentiu a espera como uma dor, fez um esforço para se controlar, na expectativa do momento em que os olhos cinza de Elorie o fitariam, e o atrairiam para o contato do círculo. Sentiu que assumia forma ao seu redor; Auster, forte e protetor; a força intangível que era Kennard, tão em contradição com o corpo entrevado; Neyrissa, gentil e à vontade; Corus, um fluxo de imagens em turbilhão.

Elorie.

Ele sentiu sua presença firme a orientá-lo pelas camadas da treliça de cristal, que de alguma forma era também o mapa estendido diante de Kennard e o território dos Domínios, ampliando sua percepção, além do tempo e espaço, lançando-o em viagem pela essência do mundo...

Ele saiu horas mais tarde, recuperou lentamente a consciência normal, para ver o dia amanhecendo na câmara, e os rostos do círculo da Torre ao seu redor. E o de Auster contraído, hostil... e triunfante. Sem dizer nada, ele gesticulou ao redor.

Kerwin nunca vira uma armadilha de matriz antes. Parecia um pouco com um metal de brilho estranho, com cristais incrustados aqui e ali, a superfície vítrea com pequenas faixas de uma luz intensa, irradiada lá do fundo. Auster murmurou:

- Cansada, Elorie? Projete na tela do monitor, Corus, para ver o que temos - ele apontou um dedo para um objeto pequeno em seu colo. - Armei para qualquer um que tentasse se infiltrar na barreira coletiva; e senti a armadilha fechar. Quem quer que seja, está imobilizado aqui, e poderemos vê-lo.

Com extremo cuidado, como se manipulasse alguma coisa suja, Corus pegou a armadilha de matriz. Ajustou a tela do monitor, e luzes começaram a piscar no interior. Depois, na superfície vítrea, uma imagem se formou, lentamente. Pairou por um instante sobre a cidade de Arilinn, e logo foi se deslocando por um ponto de referência depois de outro. Ao final, focalizou uma sala pequena, quase vazia, no vulto de um homem, inclinado, em concentração silenciosa, imóvel como na morte.

- Quem quer que seja, nós o mantemos em estase - anunciou Auster. Pode mostrar o rosto dele, Corus?

A imagem entrou em foco, e Jeff soltou um grito ao reconhecer o rosto.

- Ragan!

Claro. O homenzinho amargurado das sarjetas do espaço-porto, que praticamente admitira ser um espião terráqueo, que seguira Jeff por toda parte, até o ensinara a usar uma matriz.

Quem mais poderia ter sido?

E, de repente, Jeff sentiu-se dominado por uma raiva intensa, calma, gelada. Alguma coisa atávica nele, toda darkovana, realçou sua ira, o orgulho ferido por ter sido manipulado daquele jeito, sua mente usada. Palavras antigas afloraram sem pensamento em sua mente.

- Com'ii, a vida deste homem é minha! Quando e como eu puder, reivindico sua vida, e quem a tomar antes de mim, terá de me prestar contas!

Auster, pronto para lançar novos desafios e acusações, Kerwin sabia, permaneceu mudo, os olhos arregalados, chocado. Kennard fitou Kerwin nos olhos, e disse:

- Comyn Kerwin-Aillard, como seu parente mais próximo e tutor aqui, ouço sua reivindicação, e lhe concedo essa vida; para tomá-la ou poupá-la, como quiser. Procure-a, e faça o que tiver de fazer.

Jeff ouviu as palavras rituais quase sem compreender. Suas mãos doíam, literalmente, na ânsia de esquartejar Ragan. A voz saiu tensa, quando ele gesticulou para a tela, e disse:

- Pode mantê-lo assim por tempo suficiente para que eu o alcance, Auster?

Auster acenou com a cabeça, a armadilha de matriz ainda entre suas mãos. Taniquel rompeu o silêncio, a voz estridente:

- Não podem deixá-lo fazer isso! É assassinato; Jeff não tem a menor idéia de como usar uma espada, e vocês acham que esse... esse sharug, esse filho de gato, é capaz de travar uma luta justa?

- Talvez eu não saiba manejar uma espada, mas sou muito bom com uma faca - Jeff olhou para Kennard. Parente, dê-me uma adaga, e poderei cuidar dele.

Mas foi Rannirl quem desafivelou primeiro a faca que tinha na cintura, e murmurou:

- Irmão, estou com você. Seus inimigos são meus inimigos; e que nunca haja uma faca desembainhada entre nós.

Ele estendeu a faca, com o punho virado, para Kerwin, que a pegou, atordoado. De algum lugar, recordou que isso possuía um significado muito sério em Darkover. Não conhecia as palavras rituais, mas lembrou que aquele diálogo tinha a força ritual de um juramento de fraternidade, e sentiu-se feliz, apesar de sua raiva intensa. Abraçou Rannirl, e só pôde pensar em dizer o seguinte:

- Obrigado... irmão. Contra meus inimigos... e os seus.

Devia ter sido a coisa certa a dizer, ou bem próxima, porque Rannirl virou a cabeça e beijou-o, para algum embaraço de Jeff.

- Vamos embora - disse ele. Cuidarei para que a luta seja limpa, em seu nome, Kennard. Se duvida, Auster, venha também.

Kerwin pegou a faca. Não tinha menor dúvida de sua capacidade em combate. Metera-se em algumas lutas em outros mundos, e descobrira que em seu íntimo havia um belicoso escondido; agora, estava contente por saber disso. O código de sua infância, o código da rivalidade de sangue, parecia dominar por completo todo o seu ser.

Ragan ia ter uma tremenda surpresa.

Da qual só se livraria pela morte.

 

Eles saíram da torre, passando pelo Véu, para a claridade vermelha do sol, o Sol Sangrento, que se erguia sobre as colinas distante, a leste. Jeff caminhava com a mão na faca, sentindo-a estranha e fria. Àquela hora, as ruas de Arilinn estavam desertas; só uns poucos transeuntes surpresos viram os três ruivos, andando lado a lado, armados, prontos para uma briga; e os que viram, logo descobriram que tinham problemas urgentes a resolver na direção oposta.

Atravessaram o mercado, onde em dias mais felizes Jeff escolhera um par de botas, entraram num subúrbio sujo, superpovoado. Auster, as mãos ainda na armadilha de matriz, murmurou:

- Não conseguirei imobilizá-lo por muito mais tempo. Um sorriso sinistro distendeu os lábios de Kerwin.

- Basta que agüente até eu poder encontrá-lo, e depois pode soltá-lo no momento que quiser.

Seguiram por uma viela estreita, cruzaram um pátio cheio de lixo, passaram por um estábulo com uns poucos animais malcuidados. Um cavalariço meio retardado, em farrapos, ficou boquiaberto quando eles apareceram, observou-os por um instante, depois virou-se e fugiu. Auster apontou para uma escada íngreme, levando a uma galeria externa, onde havia dois quartos. Ao subirem, uma garota com a saia rasgada, um lenço na cabeça, saiu para a galeria, a boca se contraindo num grito de espanto. Rannirl fez um gesto brusco e furioso, ela voltou correndo para seu quarto, bateu a porta. Auster parou diante da outra porta, e disse:

- Agora.

Suas mãos ossudas fizeram alguma coisa com a armadilha de matriz que Jeff não viu. Um grito longo, de raiva e desespero, soou no interior do quarto, enquanto Kerwin saltava para a frente, abria a porta com um chute, e entrava.

Ragan, ainda na postura em que a armadilha de matriz o imobilizara, libertou-se de repente, e se virou contra eles, como um gato acuado, tirando uma faca de sua bota. Recuou e ficou de frente para os outros, o aço à mostra entre eles, mostrou os dentes, num rosnado.

- Três contra um, vai dom'yn?

- Apenas um! - gritou Jeff.

Com o braço livre, ele gesticulou para que Rannirl e Auster se afastassem. No momento seguinte, Jeff cambaleou ao impacto do corpo de Ragan se lançando contra o seu. Sentiu a ponta da lâmina passar sobre seu braço, enquanto levantava sua própria faca, mas apenas cortou a manga. Contra-atacou com um movimento rápido, desequilibrando Ragan; e logo os dois se engalfinharam, e Jeff lutava para evitar que a faca de Ragan atingisse suas costelas. Sentiu sua própria faca passar por couro, e estava vermelha quando a puxou. Ragan grunhiu, debateu-se, fez uma súbita finta...

Auster, observando como um gato diante de um buraco de rato, subitamente avançou para eles. Desequilibrou Jeff, que sentiu, mal acreditando no que acontecia - Eu deveria saber que não podia confiar em Auster! -, a faca de Ragan rasgar seu braço, até poucos centímetros abaixo da axila. Dormência, depois uma dor ardente espalharam-se por seu corpo; a faca caiu de sua mão esquerda, ele pegou-a com a direita, resistindo à pressão de Auster, que empurrava seu braço para baixo. Kerwin praguejou, enfurecido, chutou Auster.

- Largue-me, seu desgraçado! É essa a sua idéia de uma luta justa? Rannirl se adiantou, passou os braços em torno de Auster, por trás, puxando-o. No processo, recebeu um golpe da faca de Ragan, que rasgou seu antebraço, até o dorso da mão.

- Você enlouqueceu? - balbuciou ele.

Ragan desvencilhou-se. Houve um estrondo, de uma lata de lixo caindo, o barulho de pés descendo pela escada. Auster e Rannirl caíram no chão, ainda lutando. De alguma forma, Auster se apoderara da faca de Ragan. Rannirl gritou:

- Pegue a faca, Jeff!

Kerwin largou sua faca, avançou para os corpos engalfinhados, forçou a mão de Auster para trás. Auster ainda se debateu por mais um instante, mas logo sua mão relaxou, soltou a faca, a sanidade retornou pouco a pouco a seus olhos. Havia um corte longo em seu rosto - Kerwin não sabia de que faca -, um olho escurecia, o sangue escorria do nariz, onde o cotovelo de Jeff o acertara.

Rannirl levantou-se, limpando o sangue do antebraço. A faca não penetrara; o talho era apenas superficial. Ele olhou para Auster com surpresa e horror. Auster começou a se levantar, e Kerwin fez um gesto ameaçador. Por dois centavos teria chutado as costelas de Auster.

- Fique onde está, seu desgraçado!

Auster removeu o sangue do nariz e boca, continuou estendido no chão. Kerwin foi até a janela, olhou para o pátio imundo. Ragan desaparecera, como era de se esperar. Não havia a menor possibilidade de tornarem a encontrá-lo. Ele voltou para Auster, e disse:

- Dê-me um único bom motivo para que eu não acabe com você! Auster sentou, ensangüentado, mas não derrotado.

- Vá em frente, Terranan! Finja que lhe devemos a proteção de nossos códigos de honra!

Rannirl avançou para ele, ameaçador.

- Ousa me chamar de traidor? Kennard aceitou o desafio, e você não disse nada na ocasião. E eu dei a faca a esse homem; ele é meu irmão. Por direito, Auster, eu poderia matá-lo!

E era o que Rannirl parecia disposto a fazer.

- Kennard concedeu-lhe o direito...

- De assassinar seu cúmplice, para que nunca descobríssemos a verdade! Não percebeu que ele pretendia matar o homem antes que pudéssemos interrogá-lo? É isso mesmo, ele fez uma encenação para nós. Foi muito esperto, ia matá-lo antes que conseguíssemos arrancar toda a verdade. Eu queria capturá-lo vivo, e se você tivesse o bom senso de um coelho-de-chifres nós o teríamos agora, para um interrogatório telepático!

Ele está mentindo, pensou Kerwin, desolado. Mas a dúvida começava a se manifestar no rosto de Rannirl. Como sempre, Auster conseguira confundir a questão, deixá-lo na defensiva.

- Acho melhor voltarmos - murmurou Kerwin, cansado.

Ele sentia-se perdido, desanimado, e o ferimento que Ragan fizera em seu braço doía bastante agora.

- Pode me ajudar a tirar a camisa e estancar a hemorragia, Rannirl? Estou sangrando como um matadouro no verão.

Havia mais pessoas nas ruas agora, e olhavam espantadas para os três homens do Comyn, um com o nariz ensangüentado, outro com o braço numa tipóia improvisada com a túnica inferior de Rannirl. Kerwin sentia todo o cansaço de uma noite passada no trabalho de matriz a envolvê-lo agora; a impressão era a de que cada passo seria seu último esforço. Passaram por uma taverna em que trabalhadores de amontoavam, comendo e bebendo, e o cheiro de comida lembrou a Kerwin que nada haviam comido depois de uma noite no trabalho de matriz, e deixou-o faminto. Ele olhou para Rannirl, e num acordo tácito entraram na taverna. O proprietário ficou deliciado, desatou a falar, prometendo providenciar o melhor da casa. Mas Rannirl sacudiu a cabeça, pegou um pão comprido ainda quente e um prato com salsichas, largou algumas moedas no balcão, e fez um sinal para seus companheiros. Lá fora, ele partiu o pão, entregou um pedaço a Kerwin, e outro a Auster, com um olhar furioso. Continuaram a andar pelas ruas de Arilinn, mastigando o pão com salsicha, com a maior voracidade. Era apenas como um lanche ligeiro entre refeições, uma guloseima que se oferece a uma criança impertinente, mas restaurou um pouco as forças de Kerwin. Mas ao chegarem à Torre, a passagem pelo Véu pareceu drenar suas últimas energias.

- Venha comigo, Jeff - disse Rannirl. Farei um curativo em seu braço.

Kerwin sacudiu a cabeça. Podia ver que Rannirl também estava exausto, e nem mesmo fora sua luta.

- Vá descansar... Uma pausa, e ele acrescentou, contrafeito:

- ...irmão. Eu mesmo cuidarei do ferimento.

Rannirl hesitou, mas se afastou. Kerwin, aliviado por ficar sozinho, foi para seu quarto, e fechou a porta. No banheiro luxuoso, tirou a tipóia e a camisa, ergueu o braço meio sem jeito, com uma careta de dor. Rannirl conseguira estancar a hemorragia com um chumaço de sua camisa rasgada. Kerwin tirou-o, examinou o ferimento. Uma dobra de pele se soltara, e pendia junto com a carne, como um trapo ensangüentado, mas até onde ele pôde verificar, o ferimento não era profundo. Enfiou a cabeça debaixo da água; levantou-a, pingando, mas desanuviada.

O não-humano peludo que o servia entrou no quarto, e estacou no mesmo instante, consternado, os olhos verdes sem pupilas se arregalando em horror. Saiu apressado, voltou com bandagens e uma substância amarelada, que passou no ferimento. Com extrema habilidade, usando as mãos estranhas, sem polegares, ele prendeu a atadura. Feito isso, fitou Kerwin, inquisitivo.

- Vá me buscar alguma coisa para comer - pediu Kerwin. Estou faminto.

O pão com salsicha partilhado na volta mal começara a encher vasta cratera de vazio em seu estômago.

Já comera por três vaqueiros famintos depois de uma longa cavalgada quando a porta se abriu, e Auster entrou no quarto, sem se anunciar. Tomara banho e trocara de roupa, mas Kerwin constatou, satisfeito, que o esplêndido olho preto demoraria bastante tempo para voltar ao normal. Kerwin limpou a boca, empurrou o prato para o lado, e gesticulou para a faca de Rannirl na mesa.

- Se sofreu outra perturbação mental, aí tem uma faca; se não, saia do meu quarto.

Auster estava muito pálido. Tocou no olho, como se doesse. Kerwin torceu para que a dor fosse intensa.

- Não o culpo por me odiar, Jeff, mas tenho uma coisa a lhe dizer. Kerwin fez menção de dar de ombros, descobriu que o movimento doía, e desistiu. Auster observava-o e estremeceu como se a dor fosse sua.

- Ficou muito ferido? O kyrri verificou se não havia veneno na faca?

- Como se você se importasse - murmurou Kerwin. Mas isso é um truque sujo darkovano; os terráqueos não lutam assim. E por que se preocupa, quando fez tudo o que podia para que eu saísse ferido?

- Creio que mereço isso. Pode acreditar no que quiser. Só me importo com uma coisa... ou melhor, duas, e você está destruindo ambas. Talvez não entenda... mas é pior do que se entendesse!

- Vá direto ao ponto, Auster, ou saia daqui!

- Kennard disse que havia um bloqueio em sua memória. Não o estou acusando de nos trair de propósito...

- É muita bondade sua - interrompeu-o Kerwin, sarcástico.

- Você não quer nos trair - continuou Auster, perdendo subitamente o controle, e assumindo uma expressão desesperada -, mas ainda não entende o significado de tudo isso. Significa que os terráqueos o infiltraram entre nós! Puseram esse bloqueio em sua memória, provavelmente antes mesmo de deixar o Orfanato dos Espaçonautas, antes de viajar para a Terra. E quanto voltou, eles armaram tudo, na expectativa de que isso acontecesse... nós o aceitarmos, pensarmos em você como um dos nossos, dependermos de sua ajuda... precisarmos de você!

A voz falhou; chocado, Kerwin percebeu que Auster fazia um tremendo esforço para conter as lágrimas, tremia da cabeça aos pés.

- Nós caímos na armadilha,Jeff, por sua causa... e como podemos sequer odiá-lo por isso... irmão?

Kerwin fechou os olhos. Aquele era o próprio pensamento que ele vinha tentando excluir.

Fora manobrado em cada passo do caminho, desde o primeiro encontro com Ragan. Talvez Johnny Ellers também participasse da operação, com a incumbência de apresentá-lo a Ragan; ele jamais saberia. E quem poderia ter feito isso, a não ser os terráqueos? Manobrado para suas experiências com a matriz. Manobrado para a confrontação com o Comyn. E, por último, ameaçado de deportação, para forçar o Comyn a entrar em ação.

Ele não passava de uma elaborada armadilha, uma bomba-relógio! Arilinn o aceitara... e a qualquer momento ele poderia explodir em suas caras!

Auster pegou Jeff pelo braço, gentilmente, tomando cuidado para não afetar o ombro ferido.

- Seria ótimo se pudéssemos gostar mais um do outro... mas deve pensar que só estou dizendo isso porque não temos sido amigos.

Kerwin sacudiu a cabeça. A angústia e sinceridade de Auster eram óbvias para qualquer pessoa com um mínimo de laran.

- Não penso assim. Não agora. Mas o que eles esperam conseguir?

- Não sei. Talvez pensassem que o círculo da Torre se desintegraria com o seu ingresso; talvez quisessem informações, vazadas através do rompimento na barreira. Sei que eles querem saber como opera a nossa ciência de matriz, e até hoje não conseguiram descobrir muita coisa. Nem mesmo através de Cleindori, quando ela fugiu com seu maldito pai. Como eu posso saber o que os terráqueos querem? Mas você deve saber, pois é um deles. Viveu entre os terráqueos. Vamos, diga-me: o que eles querem?

Kerwin balançou a cabeça.

- Não sei, e não sou mais um deles. Nunca fui, exceto na superfície. Mas agora que encontramos o espião, agora que sabemos o que eles estão fazendo... não podemos nos precaver?

- Se fosse apenas isso, Jeff. Mas há outra coisa, algo que tentei não ver - o rosto de Auster estava branco e contraído. - O que você fez a Elorie, meu irmão?

Elorie. O que você fez a Elorie. E se Auster sabia, todos sabiam.

Ele não podia falar. Sua culpa, o medo de Auster, era como se um miasma invadisse o quarto. Auster largou-o.

- Vá embora, Jeff. Pelo amor de todos os Deuses que há na Terra, vá embora antes que seja tarde demais. Sei que a culpa não é sua. Não foi criado com o tabu. Não está gravado no fundo de seu ser. Mas se gosta de Elorie, se gosta de nós, vá embora antes de destruir a todos.

Ele virou-se e saiu. Kerwin se jogou na cama, vendo tudo com clareza, pela primeira vez.

Auster estava certo. Ele ouviu, como um eco sinistro, as palavras da mecânica de matriz que pagara com a própria vida por lhe mostrar um fragmento de seu passado. Você é aquele que foi enviado, uma armadilha que falhou. Mas ela ainda dissera outra coisa. Encontrará a coisa que ama, e a destruirá; mas também a salvará.

Era verdade, a profecia daquela mulher desgraciosa e condenada, cujo nome ou história ele jamais saberia. Jeff descobrira que amava, e já chegara bem perto de destruir o alvo de seu amor. Poderia salvá-la, se fosse embora agora, ou já era tarde demais?

Ah, Elorie, Elorie! Mas não devia sequer sussurrar seu nome. Até um pensamento poderia perturbar a paz que ela conquistara com tanta dificuldade. Kerwin levantou-se, sombrio, sabendo o que deveria fazer.

Sem pressa, tirou o culote de camurça e as botas de cordões, o gibão colorido; vestiu de novo o uniforme terráqueo que descartara - para sempre, fora o que pensara - ao chegar a Arilinn.

Hesitou diante da pedra de matriz, praguejando, dividido, com vontade de jogá-la da janela mais alta da Torre, espatifá-la nas pedras lá embaixo; mas acabou guardando-a no bolso. Já se encontrava sob um estresse muito grande agora, e sempre sentira uma tremenda apreensão quando o cristal ficava fora de seu alcance físico.

Era de minha mãe. Acompanhou-a no exílio. Pode ir comigo também.

Ele também hesitou diante do manto cerimonial bordado, forrado de pele, que desencadeara a sucessão de eventos; mas pendurou-o nos ombros. Era seu, por direito, comprado com o dinheiro que ganhara em outro mundo; e, pondo de lado o sentimento, era uma proteção contra o frio inclemente da noite darkovana. O ferimento da faca de Ragan ainda não cicatrizara (isso era tudo o que o Comyn podia lhe oferecer, ferimentos de faca no corpo, e ferimentos ainda mais profundos na alma?), e não podia correr o risco de ficar enregelado. E também - outra consideração prática - um homem em uniforme terráqueo nas ruas de Arilinn haveria de sobressair como uma flor-da-estrela nas geleiras nuas das Hellers. O manto o manteria anônimo até alcançar uma boa distância da Torre.

Ele saiu do quarto. Havia um cheiro agradável de comida quente em algum lugar: lutas com faca, rivalidades de sangue, intermináveis operações telepáticas na câmara de matriz, tudo podia vir e passar, mas a pragmática Mesyr sempre planejaria as refeições, persuadiria os kyrri a prepará-las como ela desejava, repreenderia Rannirl por arruinar seu apetite com vinho antes da comida, procuraria novas fitas para os vestidos de Elorie, censuraria os homens por entrarem com botas enlameadas no grande salão depois de uma caçada. Kerwin ouvia a voz calma e jovial de Mesyr com uma certa nostalgia. Aquele era o único lar que ele já conhecera.

Sempre desejei que minha avó Kerwin fosse como ela.

Ele passou por uma porta aberta. O suave perfume de flores de Taniquel envolveu-o, e pôde ouvi-la cantando em algum ponto da suíte. Uma breve cena aflorou em sua mente, o corpo esguio e bonito meio submerso em água esverdeada, os cachos empilhados no alto da cabeça, enquanto ela se esfregava. A ternura dominou-o. Taniquel já dissipara o cansaço da noite de trabalho no sono, e ainda não sabia das conseqüências da luta com faca... nem Kennard.

O pensamento paralisou-o. Muito em breve, se é que já não começara, haveria um contato mental entre eles, ao se reunirem para a noite, e todos saberiam o que ele planejava. Tinha de partir depressa, ou não mais conseguiria.

Kerwin cobriu a cabeça com o capuz, desceu a escada sem ser visto, e passou pelo Véu. Estava seguro agora, pois o Véu também isolava os pensamentos. Em passos determinados, mantendo o cansaço a distância, ele atravessou a concentração de prédio em torno da Torre, cruzou a pista de pouso, e se encaminhou para o centro da cidade de Arilinn.

Seus planos eram vagos. Para onde podia ir? Os terráqueos não o queriam. Agora, também não havia lugar para ele em Darkover, nenhuma segurança; onde quer que se escondesse, de Dalereuth a Aldaran, não havia refúgio bastante remoto em que o Comyn não pudesse descobri-lo; pelo menos não enquanto conservasse a matriz da renegada Cleindori.

Portanto, tinha de voltar aos terráqueos. Deixar que o deportassem, parar de lutar contra seu destino. Poderiam simplesmente deportá-lo. Mas se haviam sido mesmo eles que o infiltraram no Comyn, o que fariam quando soubessem que sabotara o plano, um plano tão meticuloso que levara duas gerações para ser posto em prática?

Isso importava? Eles podiam fazer muito pior.

Mas será que qualquer coisa importava agora?

Kerwin levantou o rosto, e contemplou o enorme olho injetado que algum terráqueo romântico chamara, poucas gerações antes, de Sol Sangrento. Despencava por trás da Torre de Arilinn; ele observou-o desaparecer, e logo vieram a escuridão, o frio e o silêncio. A última claridade do sol vermelho se desvaneceu; a Torre ainda persistiu por mais um instante, uma pálida imagem posterior nas pálpebras de Jeff, e logo se dissolveu na chuva. Uma única luz azul brilhava em algum ponto perto da ponta da Torre, empenhando-se bravamente em penetrar pela neblina e chuva; e depois sumiu também, como se nunca tivesse existido. Kerwin removeu a chuva dos olhos (a chuva era salgada e quente, ardendo em seu rosto?), virou as costas à Torre, decidido, e embrenhou-se pela cidade.

Encontrou um lugar em que não o reconheceram como terráqueo ou Comyn, apenas olharam para a cor de seu dinheiro, pagou por uma cama, privacidade, e bebida suficiente - ele esperava - para apagar pensamento e memória, turvar a inútil mas inevitável reconstituição daquelas breves semanas em Arilinn.

Foi uma bebedeira monumental. Ele nunca soube quantos dias durou, ou quantas vezes cambaleou pelas ruas de Arilinn em busca de mais bebida, voltando a seu buraco fétido como um animal ferido. Quando dormia, a escuridão era povoada por rostos, vozes e lembranças que ele não podia suportar; ao voltar a si de um longo período de esquecimento, mais estupor do que sono, descobriu todos em torno de sua cama.

Por um instante, pensou que era o efeito posterior de um uísque de péssima qualidade, ou que sua mente estafada pifara por completo. Depois, Taniquel deixou escapar um som incontrolável de consternação e compaixão, e se ajoelhou ao lado da esteira imunda em que ele estava deitado. E foi então que Kerwin compreendeu que eles se encontravam mesmo ali.

Ele passou a mão pelo rosto com a barba por fazer, umedeceu os lábios rachados com a língua. A voz não queria lhe obedecer. Rannirl disse:

- Pensou mesmo que o deixaríamos partir assim, bredu?

Ele usou a inflexão que fazia a palavra significar irmão amado. Kerwin balbuciou:

- Auster...

- Ele não sabe de tudo - interveio Kennard. Jeff, pode nos escutar com sensatez agora, ou ainda está embriagado demais?

Ele sentou na cama. O quarto miserável, a garrafa vazia por cima das cobertas emaranhadas, a dor ainda intensa no ferimento negligenciado, parecia tudo parte da mesma coisa, sua dor e derrota. Taniquel segurava sua mão, mas era o contato de monitora de Neyrissa que ele sentia na mente.

- Ele está bastante sóbrio - anunciou Neyrissa.

Kerwin olhou ao redor. Taniquel, os dedos pequenos e firmes pressionando os deles; Rannirl, transtornado e cordial; Kennard, triste e preocupado; Auster, numa indiferença amargurada.

Elorie, o rosto uma máscara branca, os olhos vermelhos e inchados... Elorie em lágrimas!

Ele se desvencilhou da mão de Taniquel, e disse, gentilmente:

- Oh, Deus, por que temos de passar por tudo isso de novo? Auster não lhes contou?

- Ele nos contou uma porção de coisas, disse Kennard -, tudo enraizado em seus próprios medos e preconceitos.

- Não nego isso - declarou Auster. Mas me pergunto se os medos e preconceitos não eram justificados. Aquele espião... Como era mesmo que Jeff disse que ele se chamava? Ragan. É outro deles. É mais do que óbvio... afinal, eu reconheço o homem. Seria capaz de jurar que é um nedestro do Cotnyn, talvez de Ardais, ou mesmo de Aldaran. Com sangue terráqueo. O homem certo para nos espionar. E Jeff... Ele conseguiu até passar pelo Véu, e enganar Kennard no interrogatório telepático!

Rannirl protestou, irritado:

- Acho que você vê espiões terráqueos debaixo de cada travesseiro, Auster!

Taniquel tornou a pegar a mão de Kerwin, e murmurou:

- Não podemos deixá-lo partir, Jeff. É um dos nossos, parte de nós mesmos. Para onde iria? O que faria?

- Espere, Tani - disse Kennard. Jeff, trazê-lo para Arilinn foi um risco calculado; sabíamos disso antes de chamá-lo através da matriz, e todos concordamos em assumir o risco. E havia mais do que isso. Queríamos desfechar um golpe contra a magia negra e o tabu, dar um primeiro passo para transformar a mecânica de matriz em ciência, não uma... não uma bruxaria. Demonstrar que podia ser aprendida por qualquer um, não apenas por um sacrossanto... sacerdócio.

- Não sei se concordo com Kennard nesse ponto - declarou Neyrissa. Não quero nenhuma sombra da Torre Proibida, com seus esquemas conspurcados e Guardiãs renegadas, se projetando sobre Arilinn. Mas recuperamos Arilinn, e Tani tem razão, Jeff, você é um dos nossos. Todos concordamos com o risco.

- Mas será que não entendem? - bradou Kerwin, a voz trêmula. Eu não estou disposto a correr o risco. Não quando não tenho certeza de que sou de fato um... um agente livre, não um espião infiltrado; quando não sei o que eles podem me obrigar a fazer. Quando podem me levar a destruir todos vocês.

- Talvez tenha sido assim que você deveria nos destruir - comentou Coras, em tom amargo. Fazer-nos confiar em você... e depois, quando não mais pudéssemos trabalhar sem sua participação, forçá-lo a nos deixar!

- É uma tremenda injustiça de sua parte, Corus - protestou Jeff. Estou tentando salvar a todos; não posso ser responsável por destruí-los!

Taniquel baixou a cabeça, encostou o rosto na mão dele, num choro silencioso. O rosto de Auster era implacável.

- Kerwin tem razão, Kennard, e você sabe disso. E ele tem coragem suficiente para querer fazer a coisa, certa. E só prejudica a todos nós com o prolongamento desta situação.

Kennard, apoiado pesadamente em sua bengala, fitou a todos com desprezo, mordeu o lábio para conter a raiva.

- Covardes, todos vocês! E logo agora que temos uma oportunidade de lutar contra esses absurdos! Rannirl, você sabe o que é certo! Não disse...

Rannirl interrompeu-o:

- Minhas convicções pessoais são uma coisa, a vontade do Conselho é outra. Recuso-me a fazer uma declaração política sobre minha carreira em Arilinn. Sou um técnico, não um diplomata. Jeff é meu amigo. Dei-lhe minha faca. Chamo-o de irmão, e o defenderei contra seus inimigos. Ele não precisa voltar para os terráqueos. Jeff...

Ele virou-se para o homem sentado na cama, e acrescentou:

- Quando sair daqui, não precisa voltar para os terráqueos; vá para a casa da minha família, nas Colinas Kilghard. Pergunte a qualquer pessoa onde fica o lago Mirion. Diga ali que é meu irmão jurado, mostre a faca que lhe dei. Depois que tudo for resolvido, talvez você possa retornar a Arilinn.

- Nunca imaginei que você fosse tão covarde, Rannirl - disse Kennard. Por que não o defende aqui? Se ele precisa de um lar, pode encontrá-lo em Armida; ou, como filho de Cleindori, no lago Mariposa. Mas não há mais ninguém com coragem suficiente para defendê-lo em Arilinn? Ele não é o primeiro terráqueo...

- Você é transparente demais, Kennard - interveio Auster. Só se importa em trazer aquele seu filho mestiço para Arilinn algum dia, e é capaz até de aturar um espião terráqueo para criar um precedente! Seu filho não pode vir para Arilinn por seus próprios méritos, se tiver algum? Não desejo qualquer mal a Jeff agora; que Zandru leve esta mão...

Ele tocou no punho da adaga, antes de continuar:

- ...se eu lhe desejo algum mal. Mas ele não deve voltar à Torre; não podemos correr o risco de ter um espião terráqueo dentro de um círculo de matriz. Se ele retornar, eu irei embora.

- E eu também - acrescentou Neyrissa.

Rannirl, com uma vergonha amargurada, murmurou:

- Sinto muito, mas eu também.

- Covardes! - gritou Corus, furioso. Os terráqueos conseguiram dissolver nosso círculo, no final das contas, não é mesmo? Nem precisaram converter Jeff num espião, bastou fazer com que desconfiássemos dele!

Kennard balançou a cabeça, numa repulsa incrédula.

- Pretendem mesmo fazer isso?

Kerwin sentiu vontade de gritar: Amo todos vocês! Parem de me torturar assim! Mas disse outra coisa, a voz enrolada:

- Agora que sabem que pode ser feito, encontrarão outro para o meu lugar.

- Quem? - indagou Elorie, amargurada. O filho mestiço de Kennard? Ele ainda não tem dez anos! A velha Leominda de Neskaya? O Herdeiro de Hastur, que só tem quatro anos, ou o Herdeiro de Elhalyn, que tem nove anos, e não é muito mais que um idiota? Ou talvez o louco do meu pai? Ou a pequena Callina Lindir, de Neskaya?

- Discutimos tudo isso quando decidimos trazer Jeff para cá - disse Kennard. Não pudemos encontrar outros candidatos em todos os Sete Domínios. E agora, quando temos um Círculo de Guardiã plenamente qualificado e funcionando em Arilinn, vocês vão jogar tudo isso fora, e deixar Jeff partir? Depois de tudo por que passamos para trazê-lo até aqui?

- Não!

Elorie surpreendeu a todos com seu grito. Ela jogou-se para a frente, e Kerwin, com medo de que caísse, estendeu as mãos para ampará-la. Teria de largá-la no mesmo instante, respeitoso, mas Elorie agarrou-se a ele, seus braços apertaram-no. Ela tinha o rosto mais branco do que na ocasião em que desfalecera na câmara de matriz.

- Não... - sussurrou ela... Não, Jeff, não vá! Fique conosco, Jeff, não importa o que aconteça... eu lhe suplico... não suportaria vê-lo partir...

Por um instante, Kerwin apertou-a com força, seu próprio rosto como a morte, e murmurou:

- Ah, Elorie, Elorie...

Mas depois, recuperando o controle, ele a afastou, gentilmente.

- Compreende agora por que devo ir embora? - disse ele, quase num sussurro, falando só para ela. Tenho de partir, Elorie, e você sabe disso tão bem quanto eu. Não torne a situação mais difícil para mim.

Ele viu choque, ira, compaixão e acusação em todos os rostos ao seu redor. Neyrissa se adiantou para retirar Elorie, murmurando para ela. Mas Elorie repeliu-a, e declarou, a voz alta e estridente:

- Não. Se é isso o que Jeff decidiu, ou o que vocês impuseram a ele, então também tomo uma decisão... está acabado, não posso mais renunciar à minha vida por isso!

Ela fitou os outros, os olhos enormes, parecendo equimoses no rosto pálido.

- Mas Elorie... Lori, sabe que não pode se retirar, - suplicou Neyrissa -, sabe o quanto é necessária...

- E o que eu sou? Uma boneca, uma máquina para servir ao Comyn e à Torre? - a voz era histérica agora - não e não! É demais para mim! Não posso mais suportar, e renuncio...

- Elorie... breda... - suplicou Taniquel. Não diga isso... não assim, não agora, não aqui! Sei como se sente, mas...

- Acha que sabe como me sinto? Ousa me dizer isso, logo você, que deitou nos braços dele, e conheceu seu amor? Oh, não, não negou nada a si mesma, mas não hesita em me dizer o que devo fazer...

- Não sabe o que está dizendo, Elorie - interveio Kennard, a voz terna. Não se esqueça de quem é...

- Sei quem eu deveria ser! - berrou ela, frenética, fora de si. Uma Guardiã, uma leronis, uma virgem sagrada, sem mente ou coração, sem alma, sem vida própria, uma máquina para as redes de transmissão...

Kennard fechou os olhos, em agonia, e Kerwin, fitando o rosto do velho, teve a impressão de que já ouvira uma conversa parecida, anos antes, e viu o rosto de sua mãe, refletido na mente e memória de Kennard. Cleindori. Oh, minha pobre irmã! Mas, em voz alta, Kennard disse apenas, com extrema gentileza:

- Lori, minha querida, tudo o que você sofre, outras já sofreram antes. Quando veio para Arilinn, sabia que não seria fácil. Não podemos permitir que renuncie, não agora. Outra Guardiã está sendo treinada, e você será livre quando ela puder assumir suas funções. Mas não agora, chiya, ou vai frustrar tudo o que já fizemos!

- Não posso mais! Não posso continuar a viver assim! Não agora, quando finalmente sei a que jurei renunciar!

- Lori, minha criança... - murmurou Neyrissa. Mas Elorie virou-se para ela, em fúria.

- Você sempre viveu como achou melhor, encontrou a liberdade na Torre, não a escravidão! Para você, foi um refúgio; para mim, nunca foi qualquer outra coisa que não uma prisão! Você e Tani não hesitam em me exortar a renunciar para sempre às coisas que conhecem, o amor, alegria partilhada, crianças... - a voz tremia agora - eu não sabia... não sabia... e agora...

Ela tornou a se jogar nos braços de Jeff, que não pôde mais afastá-la. Auster disse em voz baixa, olhando para Elorie, horrorizado:

- É uma traição pior do que qualquer coisa que os terráqueos poderiam conceber. E pensar, Jeff, que eu acreditei que você tinha feito isso inocentemente!

Rannirl balançou a cabeça, consternado. Também falou em voz baixa, com uma raiva contida:

- Eu lhe dei minha faca, chamei você de irmão. E fez isso conosco... fez isso com ela! Houve um tempo em que um homem que seduzia uma Guardiã seria enforcado nos ganchos, e a Guardiã que violasse seu juramento...

Ele teve de fazer uma pausa, de tão furioso que estava.

- E assim a história se repete... Cleindori e esse sórdido terráqueo!

- Você mesmo disse que qualquer mecânico poderia fazer o trabalho de uma Guardiã, que uma Guardiã era um anacronismo, que Cleindori estava certa - protestou Elorie, em tormento.

- O que eu acredito e o que podemos fazer em Arilinn são coisas diferentes - respondeu Rannirl, desdenhoso. Nunca pensei que você pudesse ser tão tola. Nem imaginei que era tão fraca para se jogar nos braços de um terráqueo bonito, que seduziu a todos nós com seu charme. Isso mesmo, ele também me encantou... e usou isso para destruir a Torre!

Rannirl virou as costas aos dois assim que acabou de falar.

- Sua vagabunda nojenta! - gritou Neyrissa, erguendo a mão para esbofetear Elorie. Não é melhor do que o velho asqueroso que é nosso pai, cuja devassidão...

Kennard se adiantou para segurar a mão de Neyrissa ainda no ar.

- Mas o que é isso? Ousa agredir sua Guardiã?

- Ela perdeu esse direito! - protestou Neyrissa, contraindo os lábios em desprezo.

Auster murmurou, olhando de um para outro:

- No passado, isso acarretaria a morte para você, Elorie... e a morte por tortura para ele.

Chocado e consternado, Kerwin compreendeu o erro que todos estavam cometendo, o equivoco em relação a Elorie, que continuava a abraçá-lo, pálida e apavorada, o rosto comprimido contra seu peito. Ele se preparou para negar a acusação, proclamar a inocência de Elorie. As palavras já se formavam em seus lábios: Juro que ela sempre foi sagrada para mim, que sua castidade não foi violada... Mas Elorie virou a cabeça nesse instante, assumindo uma atitude de desafio.

- Pode me chamar do que quiser, Neyrissa. Todos vocês. Não vai adiantar. Renunciei a Arilinn; declaro-me incapacitada para ser Guardiã, pelas leis de Arilinn...

Ela tornou a se virar para Kerwin, em soluços amargurados, tornou a enlaçá-lo, a comprimir o rosto contra seu peito. As palavras ainda por dizer - Isto é apenas uma fantasia de uma garota inocente. Não a trai, nem a vocês - morreram para sempre nos lábios de Kerwin. Não podia rejeitá-la ou repudiá-la agora; não quando via o choque e incredulidade nos rostos dos outros se transformando em repulsa e aversão. Elorie se agarrava a ele impotente, apertava-o com uma força desesperada, todo o seu corpo tremendo em lágrimas.

Num gesto deliberado, de aceitação, Kerwin inclinou a cabeça e confrontou-os, os braços envolvendo Elorie.

- Eles devem morrer por isso! - gritou Auster. Rannirl deu de ombros.

- De que adianta? Eles sabotaram tudo que tentamos fazer, tudo que realizamos. Nada que pudéssemos fazer agora mudaria qualquer coisa. Desejo-lhes toda alegria por isso!

Ele virou as costas aos dois, e saiu do quarto. Auster e Corus seguiram-no; Kennard ficou por mais um momento, o rosto vincado e desesperado.

- Ah, Elorie, Elorie - sussurrou ele -, se ao menos tivesse me procurado, me alertado a tempo...

Kerwin compreendeu que não era com Elorie que ele falava, e sim com uma recordação. Mas ela não ergueu a cabeça do peito de Jeff. Depois de algum tempo, Kennard suspirou, balançando a cabeça, e também se retirou.

Aturdido, ainda abalado pela força da mentira de Elorie, Kerwin ouviu a porta ser fechada depois que todos saíram. Ela se acalmara um pouco, mas agora recomeçou a soluçar, como uma criança; Kerwin manteve-a em seus braços, sem entender.

- Elorie, Elorie, por que fez isso? Por que mentiu para eles? Chorando e rindo ao mesmo tempo, histérica, Elorie inclinou-se

para trás, a fim de fitá-lo.

- Não foi mentira. Eu não poderia mentir para eles de novo. Foi a minha posição de Guardiã que se tornou uma mentira, desde que toquei em você... claro que sei que você nunca teria me tocado, por causa da lei, por causa do tabu, mas quando falei, eles sabiam que eu dizia a verdade. Porque eu o quero tanto, o amo tanto, que não suportaria virar outra vez um robô, uma máquina, uma morta-viva, como era antes...

Os soluços quase abafavam as palavras.

- Eu sabia que não poderia mais suportar, continuar a ser Guardiã... e quando você foi embora, pensei a princípio que sua ausência talvez me permitisse voltar a ser o que era, mas não havia nada, absolutamente mais nada em meu mundo, e compreendi que se nunca mais tornasse a vê-lo, estaria mais morta do que viva...

- Oh, Elorie! Por Deus, Elorie!

- E agora você perdeu tudo, Jeff, nem mesmo é mais livre. Mas eu não tenho nada, não tenho mais ninguém, e se você não me quiser, nada mais me resta...

Kerwin tornou a aninhá-la em seus braços, como uma criança. Sentia-se reverente com a enormidade da confiança de Elorie, abalado e consternado por tudo a que ela renunciara por seu amor. Beijou o rosto molhado de lágrimas de Elorie, ajeitou-a na cama desarrumada, ajoelhou-se ao seu lado.

- Elorie... - murmurou ele, como uma prece e um compromisso -, não me importo se perdi todo o resto, agora que tenho você. Meu único pesar por deixar Arilinn foi pensar que também a deixaria.

As palavras não eram verdadeiras, e ele sabia ao pronunciá-las que não eram, assim como também sabia que ela sabia. Mas a única coisa que importava agora era tranqüilizar Elorie com uma verdade mais profunda.

- Elorie, eu nunca a deixarei.

E isso, pelo menos, era verdade. Jeff inclinou-se para a frente, beijou-a nos lábios, e tornou a envolver o corpo infantil com seus braços.

 

Thendara, à luz minguante, era uma massa de torres e contornos escuros; o QG terráqueo, lá embaixo, era como uma lança iluminada contra o céu. Jeff apontou para Elorie, através da janela do avião terráqueo.

- Pode não ser lindo para você agora, minha querida, mas em algum lugar encontrarei um mundo para lhe dar.

Ela encostou a cabeça em seu ombro.

- Já tenho todo o mundo que quero.

O aviso para apertar os cintos se acendeu, e ele a ajudou. Elorie comprimiu as mãos contra os ouvidos, detestando o barulho, e Jeff enlaçou-a.

Os últimos três dias haviam sido de alegria e descoberta para ambos, apesar do sentimento partilhado de serem párias, expulsos do único lar que jamais haviam conhecido. Nenhum dos dois falava sobre isso; tinham muitas outras coisas para partilharem.

Ele jamais conhecera uma mulher como Elorie. Houvera um tempo em que a julgara alienada, sem qualquer paixão, mas depois constatara que a calma era um controle arraigado, não uma ausência de paixão.

Elorie viera para seus braços assustada, desolada, inocente quase até a ignorância. E entregara a ele seu medo, assim como o resto de si mesma, sem farsa, sem vergonha. Aquela total confiança também apavorava Kerwin... como podia se mostrar merecedor? Mas era típico de Elorie nada fazer pela metade, com qualquer mesquinharia; como Guardiã, mantivera-se ao largo até mesmo de primórdios de paixão, não permitira

o amor nem mesmo na imaginação. Mas depois de descartar tudo isso, entregara-se a Jeff com toda sua paixão e dedicação.

Ele comentara isso, sua surpresa, o medo de que Elorie se mostrasse assustada ou frígida, o espanto e satisfação pela reação dela à paixão. Por algum motivo, Jeff acreditara que uma mulher capaz de levar uma vida de Guardiã seria fria no íntimo, sem paixão ou desejo. Ela rira, balançara a cabeça.

- Não é bem assim, Jeff. Kennard me explicou o problema. Os forasteiros pensariam que só uma mulher sem paixão, que não sofre por viver sozinha e sem amor, seria capaz de ser Guardiã. Mas quem conhece alguma coisa de laran, sabe que não é o caso. Laran e sexualidade vêm do mesmo lugar interior, estão estreitamente ligados, e uma mulher que pudesse desempenhar as funções sem sofrer não teria laran suficiente para ser Guardiã, ou qualquer outra coisa!

Agora, ao desembarcarem, ela puxou o capuz do manto sobre os cabelos brilhantes; Jeff segurou seu braço, ao descerem os degraus de metal desconhecidos. Devia parecer determinado, pelo bem de Elorie, embora não se sentisse assim.

- Sei que é estranho para você, querida, mas não continuará assim por muito tempo.

- Nenhum lugar em que você esteja jamais será estranho para mim. Mas... eles vão permitir isso? Não vão... nos separar?

Nesse ponto, Kerwin podia tranqüilizá-la.

- Posso ser darkovano por suas leis, querida, mas tenho cidadania terráquea, e eles não podem me negar isso. E qualquer mulher que casa com um cidadão do Império adquire automaticamente a cidadania.

Ele recordou o funcionário entediado e indiferente que os casara três dias antes, na Cidade Comercial de Porto Chicago, uma cidade além dos Domínios. O funcionário se limitara a lançar um olhar superficial para o disco de identidade de Jeff, e anotara o nome dado por Elorie, "Elorie Ardais", sem o menor interesse; provavelmente nunca ouvira falar do Comyn, nem da Torre de Arilinn. Ele chamara uma mulher à sua sala para testemunhar o casamento; ela se mostrara cordial e loquaz, dizendo a Elorie que, como os dois tinham cabelos vermelhos, deveriam ter muitos filhos ruivos. Elorie corara, e Jeff sentira uma ternura profunda e inesperada. O pensamento de ter uma criança com Elorie o comovia de uma maneira que nunca imaginara que seria possível.

- Você é minha esposa pelas leis do Império, onde quer que possamos ir - uma pausa, e ele acrescentou, gentilmente: - Mas talvez tenhamos de deixar Darkover.

Ela balançou a cabeça, mordeu o lábio. O Comyn podia estar tão ansioso agora pela deportação de Jeff quanto antes se mostrara em impedi-la.

No fundo, Kerwin achava que seria melhor assim. Talvez Darkover não pudesse ser para ambos mais do que uma lembrança do que haviam perdido. E havia muitos outros mundos em que poderiam viver.

Nervoso, ele se aproximou da barreira. Era bem possível que fosse detido, como um homem sob uma sentença de deportação. Havia certas formalidades legais que poderia invocar, apelações, protelações a que tinha direito. Por si mesmo, parecia não valer a pena. Por Elorie, no entanto, faria tudo o que pudesse para se esquivar ao julgamento sumário, tentaria reverter a sentença.

O guarda alto da Força Espacial, em seu uniforme de couro preto, olhou para o amarrotado traje terráqueo de Kerwin, e para a moça coberta por um véu, de braços dados com ele. Verificou o disco de identidade de Jeff.

- E a mulher?

- É minha esposa. Casamos em Porto Chicago, há três dias.

- Ahn... - murmurou o homem da Força Espacial. Neste caso, há certas formalidades que devem ser cumpridas.

- Como quiser.

- Queiram me acompanhar até o QG, por favor.

Ele seguiu na frente, Jeff apertando o braço de Elorie, num gesto tranqüilizador. Tentava esconder a apreensão que sentia. O casamento teria de ser registrado, e assim que Jeff entregasse sua identificação, o computador informaria que ele fora condenado à deportação, suspenso de suas funções.

Jeff chegara a pensar em retornar à Zona Terráquea no anonimato, pelo menos por um ou dois dias. Mas a peculiaridade das leis do Império sobre mulheres nativas e o casamento fizera com que isso fosse inconcebível. Elorie insistira, depois que ele explicara tudo, que não se importava. Mas Jeff declarou, com firmeza, prevalecendo sobre o protesto dela pela primeira vez:

- Mas eu me importo.

E ele não dera margem para qualquer contestação. O Serviço Civil do Império é integrado, na maior parte, por homens solteiros; poucas terráqueas se dispõem a acompanharem seus homens pela metade da galáxia. Isso significa que, em cada planeta, as ligações com nativas, formais e informais, são consideradas normais. Para evitar intermináveis complicações com os diversos governos planetários, o Império faz uma distinção bastante nítida.

Um cidadão do Império pode casar com qualquer mulher, em qualquer planeta, pelas leis do mundo dela, por seus costumes; é uma questão entre o terráqueo, a mulher, sua família, as leis pelas quais vivem. O Império não se envolve. Quer o casamento seja formal ou informal, temporário ou permanente, ou nem seja um casamento, é um problema de ética pessoal e padrões morais das partes envolvidas. O homem continua a ser solteiro para o Império, e dispor o que bem quiser para a esposa; mas sempre pode, se assim desejar, solicitar a cidadania para qualquer criança que nascer do casamento, e lhe garantir alguns privilégios. Fora o que o Jeff Kerwin mais velho fizera por seu filho.

Mas o homem também pode registrar o casamento no Império, ou assinar um documento declarando-a sua esposa legal. A partir do momento em que o contrato de casamento fosse assinado e registrado, Elorie passava a ter direito a todos os privilégios de uma cidadã; e se Jeff morresse um instante depois, ela ainda teria direito a todos os direitos de uma viúva de cidadão. Kerwin não sabia o que o futuro reservava, mas quisera proteger e prover Elorie dessa maneira. Palavras pronunciadas em amargura ainda ressoavam em seus ouvidos, povoavam seus pesadelos.

Nos velhos tempos, seria a morte para você, Elorie... e a morte por tortura para ele! E um terror antigo o assediava. Havia quem pudesse se sentir compelido a vingar a honra de uma Guardiã.

Kennard dissera... o que fora mesmo que Kennard dissera? Nada. Mas ainda assim Jeff tinha medo, sem saber por quê. Por isso, observou com alívio o funcionário tirar a impressão de seu polegar e de Elorie, e bater as informações para os registros. Agora, não havia possibilidade do braço comprido do Comyn se projetar para lhe arrebatar Elorie.

Ou pelo menos era o que ele esperava.

Mas vendo os detalhes sendo gravados no computador, ele tinha certeza de que criara problemas para si mesmo. Dentro de poucas horas, teria de responder a perguntas, poderia enfrentar a deportação. Havia uma mancha em sua ficha, mas era um civil, no final das contas, e deixar o serviço sem permissão formal era apenas uma pequena violação dos regulamentos, não um crime. Precisava encontrar um jeito de ganhar a vida. Devia decidir se voltava à Terra, ou assumia o risco em outro mundo - estava convencido de que os avós terráqueos não acolheriam Elorie de bom grado - mas todos esses detalhes podiam esperar.

Quase todo o seu conhecimento de Thendara era de bares e lugares similares, aos quais não podia levar Elorie. Poderia reivindicar alojamentos no QG, apresentando a solicitação para pessoal casado, mas não faria isso até que não houvesse outro jeito. Também seria insensato procurar aposentos na Cidade Velha, pois tivera o gosto em Arilinn do tratamento dispensado ao Comyn, quando reconhecido. Um hotel na Cidade Comercial era a solução temporária óbvia. Ao passaram pela rua, ele indicou o Orfanato dos Espaçonautas.

- Foi aqui que eu vivi até os doze anos de idade.

Mais uma vez, a perplexidade o dominou: Ou será que não? Por que não há registros meus no orfanato? No hotel, - quando ficaram a sós, ele perguntou:

- Elorie, o Comyn teve alguma coisa a ver com a destruição de meus registros no orfanato?

Jeff supunha que uma matriz poderia apagar, sem maiores dificuldades, os arquivos de um computador. Ou pelo menos ele poderia, com o conhecimento que possuía de computadores e matrizes, idealizar um meio para conseguir isso.

- Não sei, Jeff. Só posso dizer que recuperamos Auster quando ele ainda era pequeno, e destruímos seus registros.

Kennard se referira a isso como uma história curiosa, e insinuara que a contaria a Jeff mais tarde. Só que não o fizera.

Muito tempo depois de Elorie adormecer, ele continuou acordado, a seu lado, pensando nas falsas pistas e nos becos sem saída que haviam dificultado a busca por seu passado. Abandonara a procura quando o Comyn o encontrara... afinal, descobrira o principal que queria saber, o lugar a que pertencia. Mas ainda havia mistérios a serem esclarecidos, e antes de deixar Darkover para sempre - ele calculava agora que seria apenas uma questão de tempo - precisava efetuar uma última tentativa de saber tudo.

Contou alguma coisa a Elorie, no dia seguinte.

- Não havia registros meus ali; vi o que a máquina respondeu. Mas se eu pudesse entrar para verificar... pode haver alguém no orfanato, uma governanta, algum professor, que se lembre de mim.

- Não seria perigoso, tentar entrar lá?

- Não haveria um risco físico, mas eu poderia ser preso por entrar sem autorização. Eu gostaria muito de conhecer uma maneira de uma matriz me tornar invisível.

Elorie sorriu.

- Eu poderia erguer uma barricada... lançar o que costumam chamar de encantamento, o que lhe permitiria passar pelos outros sem ser visto -ela suspirou. É ilegal para uma Guardiã que renunciou à posição continuar a usar seus poderes. Mas já violei tantas leis... e perdi alguns poderes...

Ela estava pálida e angustiada. Kerwin sentiu um aperto no coração ao pensar em tudo a que Elorie renunciara por ele. Mas por que haveria de fazer tanta diferença? Ele não expressou a pergunta em voz alta, mas Elorie captou direto de sua mente, e respondeu:

- Não sei. Sempre me disseram que uma Guardiã deve ser... deve ser virgem, e renuncia a seus poderes se repudia o juramento para tomar um amante, ou um marido.

Kerwin se mostrou surpreso pela maneira resignada como ela aceitava isso; afinal, Elorie desafiara muitas superstições, recusara-se a usar sua autoridade ritual, detestava a palavra feiticeira quando lhe era aplicada. Mas talvez fosse algo tão profundamente arraigado que não podia resistir.

Kennard declarara que se tratava de uma bobagem supersticiosa. Mas quer Elorie tivesse de fato perdido seus poderes, ou apenas acreditasse nisso, o efeito seria o mesmo. E talvez houvesse um fundo de verdade em tudo aquilo. Ele conhecia a terrível exaustão e esgotamento nervoso do trabalho de matriz, mesmo em seu nível de novato. Kennard o aconselhara a evitar o sexo por algum tempo antes de um trabalho mais intenso no círculo. Fazia sentido que as Guardiãs sempre mantivessem o auge de sua força, resguardando seus poderes na reclusão, sem consumir energia com qualquer outro vínculo ou preocupação.

Ele se lembrou do dia em que Elorie desfalecera, como pensara que seu coração havia parado. Kerwin abraçou-a, apertou-a entre seus braços, e pensou: Pelo menos ela se encontrava a salvo de tudo isso agora!

Mas ele a tocara naquela ocasião, transmitira sua força. O contato a destruíra como uma Guardiã?

- Não - murmurou Elorie, lendo seus pensamentos, como ocorria com freqüência. Desde o primeiro momento em que fiz contato com você, através da matriz, sabia que seria... alguém especial, alguém que perturbaria minha paz; mas eu era orgulhosa. Pensei que poderia manter o controle. E havia Taniquel; invejei-a, mas também sabia que você não poderia ficar sozinho por muito tempo.

Os olhos dela ficaram marejados de lágrimas.

- Sentirei saudade de Tani - continuou Elorie. Gostaria que pudesse ter sido diferente, que partíssemos sem... de tal maneira que não nos odiassem por isso. Gosto muito de Tani.

- Não ficou com ciúme porque ela e eu... Elorie soltou uma risada.

- Ah, vocês, terráqueos! Não, querido. Se as coisas fossem diferentes, se pudéssemos continuar a viver entre nossa gente, eu a chamaria de bredhis, e seria Tani que escolheria para partilhar sua cama, no caso de uma gravidez ou doença minha... isso o deixa chocado?

Kerwin beijou-a, sem dizer nada. Os costumes darkovanos eram idealistas, mas ele levaria algum tempo para se acostumar. E sentia-se contente por ter Elorie só para si.

Mas a idéia o fez pensar em outra coisa.

- Taniquel não era virgem, mas apesar disso trabalhava no círculo de matriz...

- Ela não era uma Guardiã, nunca foi obrigada a fazer o trabalho de Guardiã, nunca teve de concentrar e orientar os energônios do círculo - explicou Elorie. Esses votos, essa... abstinência... não eram compulsórios para ela, nem para Neyrissa, muito menos para os homens. E há poucas gerações... no tempo da Torre Proibida... houve uma Guardiã que deixou Arilinn para casar, e continuou a usar seus poderes. Foi um tremendo escândalo. Não conheço toda a história, pois não se contam essas coisas a crianças. E também não sei como ela conseguiu.

Apressada, como se receasse outras perguntas, Elorie acrescentou:

- Mas tenho certeza de que ainda posso fazer algumas coisas com minha matriz. Deixe-me tentar.

Ela hesitou quando tirou o cristal da bolsinha de couro, envolto por sedas isolantes.

- Eu me sinto diferente. Como se fosse outra pessoa. Tenho a sensação... de que não mais pertenço a mim mesma.

- Pertence a mim - declarou Kerwin, fazendo-a sorrir.

- As esposas terráqueas são uma propriedade? Não, amor, acho que não; pertenço a mim mesma, mas de bom grado partilharei cada momento de minha vida com você.

- Há alguma diferença?

A risada suave de Elorie sempre o deliciava.

- Para você, talvez não. Para mim, é muito importante. Se eu quisesse ser a propriedade de algum homem, poderia ter casado antes mesmo de sair da infância, e nunca iria para a Torre.

Ela pegou a pedra em sua mão, e Kerwin percebeu a hesitação com que a tocava, contrastando com a segurança que sempre demonstrara na câmara de matriz. Elorie estava assustada! Ele quis lhe dizer que não importava, que era melhor guardar a matriz, não queria que ela tocasse naquela coisa amaldiçoada - era preciosa demais para correr o risco! -, mas depois viu a expressão nos olhos de Elorie.

Ela o amava. Renunciara a todo seu mundo por ele, tudo o que era, tudo o que poderia ser. Mesmo agora, Kerwin sabia, ele só tinha uma percepção vaga de forasteiro do que significava ser uma Guardiã. Se Elorie precisava daquilo, devia deixá-la tentar. Mesmo que a matasse, tinha de deixá-la tentar.

- Mas quero que me prometa, Elorie, que não assumirá riscos desnecessários - disse ele, segurando-a pelos ombros, e inclinando sua cabeça para fitá-la nos olhos. Se achar que não está certo, interrompa a tentativa.

Kerwin sentiu que ela mal o ouvira. Os dedos esguios de Elorie envolveram a matriz; seu rosto se mostrava distante e absorto. Ela murmurou, não para ele:

- O formato do ar aqui é diferente, pois estamos entre montanhas; devo tomar cuidado para não interferir com a respiração dele.

Ela mexeu a cabeça de leve, num sinal imperioso, e Kerwin sentiu o contato, intangível, como uma carícia.

Não sei por quanto tempo poderei manter, quando há terráqueos ao redor, mas tentarei. Pronto, Jeff. Olhe-se no espelho.

Ele se levantou, foi se postar na frente do espelho. Podia ver Elorie com absoluta nitidez, em seu vestido cinza, os cabelos brilhantes caindo sobre a matriz em sua mão; mas não pôde ver a si mesmo. Baixou os olhos; podia se ver num olhar direto, mas não a seu reflexo no espelho.

- Mas... mas... posso me ver...

- Claro que pode, e se alguém esbarrar em você, saberá perfeita-mente de sua presença - respondeu Elorie, com a insinuação de um sorriso. Não se tornou um fantasma, meu bárbaro querido, apenas mudei a aparência do ar em torno de você, por algum tempo. Mas creio que serei capaz de manter assim até que você possa entrar no orfanato, sem ser visto.

O rosto de Elorie tinha a expressão triunfante de uma criança exultante. Jeff inclinou-se para beijá-la, e viu a estranheza no espelho, Elorie se erguendo e abraçando o nada. Ele sorriu. Não era uma operação de matriz difícil, talvez ele próprio pudesse realizá-la. Mas provara a Elorie...

- Que não virei cega e surda mental - arrematou ela, captando seu pensamento, numa voz tensa, embora ainda exibisse o sorriso infantil. Vá logo, querido. Não sei por que prazo conseguirei manter, e é melhor não perder tempo.

Kerwin deixou-a no quarto do hotel terráqueo, e atravessou o corredor em silêncio, sem ser visto. Experimentava um senso de poder estranho e desmedido. Não era de admirar que o Comyn se julgasse praticamente invencível...

Mas a que custo? Moças como Elorie, renunciando a suas vidas...

O Orfanato dos Espaçonautas continuava igual ao que era poucos meses antes. Uns poucos meninos faziam alguma coisa no pátio, ajoelhados em torno de um canteiro de flores, sob a supervisão de um garoto mais velho, com um emblema no braço. Silencioso como um fantasma, Kerwin hesitou, antes de subir os degraus brancos. O que deveria fazer primeiro? Entrar sem ser visto no escritório, verificar os arquivos? Ele logo descartou a idéia; podia estar invisível, mas se começasse a abrir livros ou apertar botões, o pessoal no escritório veria alguma coisa, mesmo que fosse apenas livros e papéis se mexendo, como por vontade própria; e mais cedo ou mais tarde tratariam de investigar.

E mais cedo ou mais tarde alguém esbarraria nele.

Ele parou, pensou por um momento. No dormitório do terceiro andar, que ocupara junto com outros cinco meninos, esculpira suas iniciais, aos nove anos de idade, num peitoril de janela. A madeira poderia ter sido reparada, ou substituída; mas se isso não tivesse ocorrido, e encontrasse suas iniciais ali, provaria alguma coisa, para sua própria satisfação. Não precisaria mais conviver com a suspeita insidiosa de que nunca vivera ali, que imaginara toda a coisa, que suas lembranças não passavam de alucinações.

Era um dormitório antigo, e muitos meninos haviam feito a mesma coisa. As babás e conselheiras darkovanas concediam bastante liberdade, em algumas áreas. Em seu tempo, o dormitório já era escalavrado, embora limpo e arrumado, mas com as marcas de muitas brincadeiras e experiências infantis com ferramentas.

Ele avançou por um corredor, passou pela porta aberta de uma sala de aula, tentando não fazer barulho, mas duas ou três cabeças se viraram. Portanto, ouviram alguém passando pelo corredor. E daí? Mesmo assim, ele continuou na ponta dos pés.

Uma darkovana, os cabelos enroscados atrás da cabeça, presos por uma travessa de couro no formato de borboleta, a saia comprida de tartã e o xale rescendendo a incenso, passou por ele no corredor, cantando baixinho. Entrou num dos quartos, e saiu com um bebê sonolento no colo. Kerwin parou automaticamente, apesar de saber que estava invisível, e a mulher parecesse ignorar sua presença, ainda entoando a cantiga das montanhas.

- Laszlo, Laszlo, dors dí ma main...

Kerwin ouvira a cantiga na infância, a história tola de um menino cuja mãe de adoção o empanturrava de bolos e doces, até que ele chorou por pão e leite; recordou que haviam lhe dito que a cantiga remontava à época conhecida como Cem Reinos, ao tempo das Guerras de Hastur, que a encerrara, e que os versos eram uma sátira política aos governos benevolentes demais.

Ele se afastou para o lado quando a mulher se aproximou, sentindo o farfalhar das saias; mas quando se cruzaram, ela franziu o rosto, curiosa, interrompeu a cantiga; ouvira a respiração dele, aspirara alguma fragrância desconhecida de suas roupas?

- Laszlo, Laszlo... - recomeçou ela.

Mas a criança em seu colo se virou, olhou direto para Kerwin, por cima do ombro da mulher. Disse alguma coisa, em sua algaravia de bebê, sacudindo o punho rechonchudo para Kerwin. A babá tornou a franzir o rosto, virou-se.

- Que homem? Não há ninguém aqui, chiy'llu.

Kerwin tratou de se afastar pelo corredor, apressado, na ponta dos pés, o coração disparado. Os olhos de uma criança poderiam penetrar na ilusão de Elorie?

Ele parou no alto da escada, procurando se orientar. Finalmente seguiu para o que parecia ser o quarto certo.

Estava vazio, iluminado pelo sol, oito camas pequenas e arrumados em cubículos, ao longo das paredes. No espaço aberto no centro havia brinquedos, figuras de homens, prédios e espaçonaves, sobre uma mesa baixa. Ele contornou a mesa, divisou um prédio alto e branco no meio da mesa, e soltou um suspiro; as crianças haviam construído uma réplica do QG terráqueo, que tanto ocupava seus pensamentos.

Estava perdendo tempo. Foi até a janela, passou os dedos pelo batente da janela, ao nível dos olhos. Não havia nada ali... e de repente ele percebeu o que fazia. Esculpira suas iniciais ao nível dos olhos, só que de um menino de nove anos, não de alguém que tinha agora dois metros, ou mais!

Ele abaixou-se, e viu, na madeira macia, várias marcas, cruzes, corações, jogo-da-velha. E no lado esquerdo, com as letras meio quadrado do alfabeto do Padrão Terráqueo, o trabalho infantil de seu primeiro canivete:

JAK. JR

Só ao ver as iniciais é que ele compreendeu que tremia todo. Cerrara os punhos com tanta força que as unhas machucavam a palma. Não lhe passara pela cabeça, até aquele momento, que duvidara de encontrá-las ali; mas agora, ao tocar nas marcas que um menino fizera na madeira, soube que desconfiara da própria sanidade, e que a dúvida fora profunda.

- Eles mentiram, eles mentiram... - murmurou Kerwin, em voz alta.

- Quem mentiu? - indagou uma voz suave. - E por quê? Kerwin virou-se para a porta. Um homem baixo e corpulento, de cabelos grisalhos, estava parado ali, fitando-o. Portanto, a ilusão de Elorie se dissipara; ele fora visto, ouvido... e descoberto. O que aconteceria agora?

 

Os olhos do homem, inteligentes e gentis, fixavam-se em Kerwin, sem qualquer raiva.

- Nunca permitimos visitantes nos dormitórios - disse ele. Se queria ver algum menino em particular, deveria ter pedido para encontrá-lo na sala de jogos.

Seus olhos se contraíram subitamente.

- Mas conheço seu rosto... Você é Jeff, não é mesmo? Kerradine, Kermit...

- Kerwin.

O homem acenou com a cabeça.

- Lembro agora. Nós o chamávamos de Tallo. O que veio fazer aqui, jovem Kerwin?

Abruptamente, Kerwin resolveu dizer a verdade.

- Vim procurar minhas iniciais, que deixei aqui.

- E por que queria fazer isso? Sentimentalismo? Para se lembrar dos velhos tempos?

- Não. Estive aqui há poucos meses, e me disseram no escritório que não havia registros de minha passagem por aqui... que eu mentia ao alegar que fui criado aqui. Não culpo a mulher que me recebeu... ela não estava aqui quando fui embora, não podia se lembrar de mim... mas quando descobri que não havia nem registros de minhas impressões digitais no computador... comecei a duvidar de minha própria sanidade. - Kerwin indicou suas iniciais na madeira. Mas agora tenho certeza de que sou são. Fiz isto quando era garoto.

- Como isso poderia ocorrer? - indagou o homem. Ah, esqueci... não creio que se lembre de meu nome. Sou Jon Harley. Ensinava matemática para os garotos mais velhos. Ainda ensino, diga-se de passagem.

Jeff apertou a mão que o homem lhe estendeu.

- Claro que lembro, senhor. Não separou uma briga em que me meti, e depois fez um curativo em meu queixo?

Harley riu.

- Não esqueci. Era um garoto turbulento. Lembro até quando seu pai o trouxe para cá. Você devia ter cinco anos, eu acho.

- Conheceu meu pai, senhor?

- Só o vi naquela ocasião, quando ele o trouxe para cá - respondeu o homem, com evidente pesar. Mas vamos descer, jovem Kerwin, tomar um drinque, ou outra coisa. Os computadores de vez em quando entram em pane; talvez seja melhor verificar os arquivos escritos e registros da escola.

Kerwin compreendeu que deveria ter esperado antes, insistido, tentado falar com alguém que pudesse se lembrar dele. Como o Sr. Harley.

- Há mais alguém aqui que ainda possa se lembrar de mim? Harley pensou por um momento.

- Acho que não. Já passou muito tempo, e houve um considerável rodízio de pessoal. Talvez algumas criadas, mas creio que sou o único professor que se lembraria de você. Quase todas as babás e professores são jovens. Preferimos assim, porque as crianças precisam de jovens por perto. Só eu continuo, apesar de velho, porque é difícil conseguir bons professores que venham da Terra, e querem alguém que fale a língua sem sotaque.

Ele deu de ombros, num gesto de censura, antes de acrescentar:

- Mas vamos descer para a minha sala, jovem Jeff. Quero que me conte o que anda fazendo. Lembro que foi mandado para a Terra. Diga-me por que voltou a Darkover.

Na sala austera do velho, invadida pelo barulho das crianças brincando lá fora, Jeff aceitou um drinque que não queria, fazendo um

esforço para reprimir inúmeras perguntas, achando que o velho Harley não teria as respostas.

- Diz que se lembra de meu pai me trazendo para cá. Minha mãe... estava com ele?

Harley sacudiu a cabeça.

- Ele nada falou sobre uma esposa.

Mas, pensou Kerwin, ele reconhecera o filho, o que não fácil, pelas leis do Império.

- Como era meu pai?

- Só o vi uma vez, já expliquei, e não é fácil dizer como ele parecia. Tinha o nariz quebrado, resultado de alguma briga. Havia muitos distúrbios em Thendara na ocasião, uma revolta política. Eu jamais soube dos detalhes. Ele usava trajes darkovanos, mas tinha sua identidade terráquea. Fizemos perguntas sobre sua mãe, mas você não podia falar.

- Aos cinco anos de idade?

- Não falou por mais um ano. Para ser franco, pensamos que tinha uma deficiência mental. É um dos motivos pelos quais me lembro tão bem de você; porque todos passamos muito tempo tentando ensiná-lo a falar. Até trouxemos um fonoaudiólogo do QG para trabalhar com você. Não falava uma só palavra, nem em terráqueo, nem em darkovano.

Kerwin ouvia espantado, enquanto o velho homem continuava seu relato:

- Kerwin... seu pai... concluiu todas as formalidades para sua internação aqui naquela noite. Depois foi embora, e nunca mais tornamos a vê-lo. Ficamos bastante curiosos, porque você não parecia nem um pouco com ele, e ainda por cima tinha cabelos vermelhos. Naquela mesma semana recebemos outro menino de cabelos vermelhos, cerca de um ano mais novo do que você.

Kerwin perguntou, com uma súbita curiosidade:

- O nome dele era... Auster? Harley franziu o rosto.

- Não sei. Ele foi para a divisão dos menores, e poucas vezes o vi. Só me lembro que tinha um nome darkovano. Esteve aqui apenas por um ano, o que também é muito estranho. Foi seqüestrado, e todos os seus registros roubados na ocasião... Ora, estou falando demais. Sou um velho, e isso nada tem a ver com você. Por que pergunta?

- Porque acho que o conheço.

- Seus registros foram roubados, mas ainda há um registro do seqüestro. Quer que eu verifique?

- Não precisa se incomodar.

Auster nada mais tinha a ver com ele; qualquer que fosse a história curiosa, e tanto Kennard quanto Harley haviam-na considerado esquisita, Kerwin nunca a saberia. De qualquer forma, era improvável que o garoto tivesse sido registrado no orfanato como Auster Ridenow. Talvez Auster tivesse nascido também de dois traidores do Comyn, que fugiram com a renegada Cleindori e seu amante terráqueo. Isso tinha alguma importância? Auster fora criado no Comyn, herdara todos os seus poderes, e fora para Arilinn no momento designado. Kerwin, criado na Terra, também fora para Arilinn, e traíra a todos...

Mas não podia pensar nisso agora. Agradeceu a Harley, recusou outro drinque, concordou em visitar o novo recreio e os novos dormitórios, e finalmente se despediu, cheio de novas perguntas para substituir as antigas.

Onde e como Cleindori morrera?

Como e por que Jeff Kerwin pai, o nariz quebrado, todo machucado depois de uma luta terrível, levara seu filho para o Orfanato dos Espaçonautas?

E para onde ele fora depois disso, onde e como morrera? Pois era certo que ele morrera; se tivesse sobrevivido, iria buscar o filho.

E por que o filho de Jeff Kerwin, aos cinco anos de idade, fora incapaz de falar uma única palavra, em qualquer das línguas dos pais, por mais de um ano?

E por que Jeff Kerwin, adulto, não tinha lembrança da mãe ou do pai, absolutamente nenhuma recordação nítida, a não ser as imagens vagas de sonhos... paredes, arcadas, portas, um homem de andar orgulhoso, uma mulher inclinada sobre uma matriz, erguendo-a com um gesto que persistia, quando todo o resto de sua memória se apagara... um grito de criança...

Ele estremeceu, reprimiu a lembrança indistinta. Descobrira uma parte do que queria saber, e Elorie estava à sua espera, para ser informada do que acontecera.

Quando ele voltou, encontrou-a dormindo, estendida na cama em exaustão, com olheiras profundas; mas ela sentou na cama assim que Jeff entrou no quarto, ergueu o rosto para receber um beijo.

- Jeff, sinto muito, agüentei pelo máximo que podia...

- Está tudo bem.

- O que descobriu?

Ele hesitou, sem saber o que deveria lhe contar. As perguntas que o assediavam não a deixariam apreensiva? O que ela sabia de Cleindori, exceto que fora condicionada a desprezar a "renegada"? A mão de Elorie se fechou sobre a dele.

- O que realmente me magoaria, Jeff, seria você se recusar a partilhar essas coisas comigo. Quanto a Cleindori... como posso desprezá-la? Ela só fez o que eu também fiz, e agora compreendo seus motivos.

O sorriso de Elorie fez Kerwin sentir que seu coração ia se partir.

- Não sabe que Elorie de Arilinn terá seu nome escrito ao lado de Ysabet de Dalereuth e Dorilys de Arilinn como Guardiãs renegadas, que fugiram sem devolver seus juramentos, sem pedir permissão?

Kerwin esquecera que Cleindori fora apenas o apelido de sua mãe, não seu nome verdadeiro; em Arilinn, ela era Dorilys.

Ele sentou ao lado de Elorie, e contou tudo, desde o seu primeiro momento em Darkover, quando encontrara Ragan, e descobrira o que era sua matriz, a frustração da primeira visita ao orfanato, os mecânicos de matriz que se recusaram a ajudá-lo, a velha que morrera tentando ajudá-lo, e todo o resto, inclusive o que Harley lhe dissera.

- E o tempo está se esgotando - concluiu Kerwin. Devo enfrentar os fatos: não é provável, que eu descubra muito mais. Assim que o relatório que apresentei no espaço-porto chegar ao QG, provavelmente terei várias acusações contra mim, talvez até um inquérito civil. Mas isso é tudo, Elorie, a história de minha vida, pelo que vale. Casou com um homem sem pátria, querida.

Como em resposta, o comunicador no canto do quarto tocou; quando ele atendeu, uma voz mecânica disse:

- Jefferson Andrew Kerwin?

- Falando.

- Coordenação e Pessoal - continuou a voz mecânica gravada. Fomos informados de que se encontra na Zona Terráquea. Há uma acusação civil contra você, de fuga ilegal para evitar a deportação. É agora notificado de que o Conselho Municipal de Thendara, agindo em nome e com a autoridade do Conselho do Comyn, num mandato assinado por Danvan, Lorde Hastur, Regente por Derek de Elhalyn, declarou-o persona non grata. Está oficialmente proibido de deixar a Zona Terráquea; e como foi solicitado o registro de sua esposa, Elorie Ardais Kerwin, como cidadã do Império, a proibição também se aplica a ela. Esta é uma ordem oficial; fica proibido de se afastar por mais de dois quilômetros universais de suas atuais acomodações, ou deixá-las por um período superior a duas horas; e dentro de cinquenta e duas horas deve se apresentar às autoridades competentes, com sua identificação, ou seja, a qualquer membro da Força Espacial de uniforme, ou a qualquer funcionário de Coordenação e Pessoal. Compreende o comunicado? Por favor, acuse o recebimento.

- Droga! - murmurou Jeff.

A voz mecânica repetiu, paciente:

- Por favor, acuse o recebimento. Elorie sussurrou:

- Todas as autoridades terráqueas falam assim?

- Por favor, acuse o recebimento - repetiu a voz mecânica, pela terceira vez.

- Mensagem recebida - disse Jeff.

Virando as costas ao comunicador, ele perguntou:

- Quer lutar contra isso, querida?

- Como posso saber, Jeff? Acatarei sua decisão. Faça o que achar melhor, amor.

A voz mecânica continuou:

- Por gentileza, indique se aceitará a ultimação, e se apresentará no momento indicado, ou se pretende entrar com um recurso legal.

A mente de Jeff funcionava depressa. Era contra o seu temperamento submeter-se à ordem de deportação sem qualquer protesto. Um recurso lhe proporcionaria um adiamento automático de dez dias, e talvez nesse prazo ele pudesse descobrir mais alguma coisa. Estava resignado a deixar Darkover; mas se agisse como se quisesse criar problemas, poderiam lhe oferecer um posto melhor quando finalmente fosse obrigado a se submeter à transferência.

- Entrarei com um recurso.

O silêncio do comunicador fê-lo pensar em computadores em funcionamento, selecionando a resposta adequada para continuar o contato.

- Por gentileza, informe a natureza de seu recurso, com as bases legais.

Kerwin pensou depressa. Não era um experto jurídico.

- Reivindico a cidadania darkovana, e apelo contra o direito deles de me declararem persona non grata.

Era bem provável que de nada adiantasse, pensou ele, enquanto a paciente voz gravada do comunicador repetia suas palavras. Kerwin não tinha certeza se era a antiga declaração de persona non grata, depois da qual fugira do QG, ou uma nova, promulgada após sua partida de Arilinn. Calculou que a Torre de Arilinn ainda não devia ter feito contato com Hastur, persuadindo-o a emitir uma nova ordem, tão depressa. De qualquer forma, ganharia algum tempo com isso. Mas se a ordem fosse nova, ninguém em Darkover se interporia entre ele e a deportação legal.

Kennard poderia ajudar... se conseguisse alcançá-lo. Mas Kennard continuava em Arilinn, muito longe. E embora Kennard pudesse simpatizar com eles, estava preso por seu juramento a Arilinn.

E nenhuma das perguntas jamais seria respondida. Nunca saberia quem Cleindori fora, ou por que ela morrera, ou por que deixara Arilinn. Jamais conheceria os segredos de sua infância. Elorie levantou-se, aproximou-se dele, e murmurou:

- Eu poderia... talvez... atravessar a barreira em sua memória Jeff. Kennard disse que o grau de sua barreira era fantástico. Foi por isso que ele não pôde a princípio localizar o bloqueio em sua mente. Mas... por que quer saber, Jeff? Já não temos' mais nada a ver com o Comyn, e provavelmente deixaremos Darkover para sempre. Assim, que importância tem? O passado pertence ao passado.

Por um momento, ele não soube como responder, mas logo disse:

- Durante toda a minha vida, Elorie, senti essa... essa compulsão tremenda para voltar a Darkover. Era uma obsessão, uma ânsia incontrolável; poderia ter uma vida boa em outros mundos, mas Darkover sempre permaneceu no fundo de minha mente. Chamando-me. Agora, começo a especular se era realmente eu... ou se a pressão para o meu retorno foi plantada naquele período que não consigo recordar.

Ele não continuou a falar, mas sabia que Elorie acompanhava seus pensamentos. Se sua ânsia por Darkover não era real, mas uma compulsão implantada por outra pessoa, então o que ele era? Um homem vazio, um instrumento, uma armadilha sem mente, uma coisa programada, não mais real do que a voz mecânica gravada do comunicador. Qual era a realidade? Quem e o que ele era? Elorie balançou a cabeça, solene, compreensiva.

- Muito bem, Jeff, tentarei. Não agora. Mais tarde. Ainda estou cansada da ilusão. E também... - ela sorriu - ...estou com fome. Podemos arrumar alguma coisa para comer neste hotel, Jeff, ou em algum lugar por perto?

Recordando o terrível esgotamento do trabalho de matriz, Kerwin levou-a para um dos cafés do espaço-porto, onde Elorie comeu uma lauta refeição. Passearam por algum tempo pela Zona Terráquea, e Jeff mostrou-lhe alguns dos lugares mais importantes, mas sabia que ela não se importava, tanto quanto ele.

Nenhum dos dois falou de Arilinn, mas Jeff sabia que os pensamentos dela, como os seus, sempre voltavam para lá. O que o fracasso significaria para Darkover, para o Comyn?

Haviam localizado e purificado os depósitos minerais no contrato, mas ainda restava o trabalho de extração, a grande operação de trazer os metais à superfície do planeta. Elorie comentou, como algo casual:

- Eles podem fazer isso com um círculo de mecânicos. Rannirl é capaz de realizar a maior parte do trabalho com energônios. E qualquer técnico competente pode desempenhar as funções de uma Guardiã. Não precisam de mim.

E em outra ocasião, a propósito de nada, ela disse:

- Eles ainda têm os modelos moleculares que fizemos, e a treliça continua a funcionar. Devem dar um jeito.

Jeff abraçou-a.

- Arrependida?

- Nunca - os olhos de Elorie se encontraram com os deles, em total sinceridade. Mas... eu bem que gostaria que tivesse acontecido de outra maneira.

Ele os destruíra. Voltara ao mundo que amava, e destruíra sua última oportunidade de permanecer como era.

Mais tarde, quando Elorie pegou sua matriz entre as mãos, ele experimentou uma súbita apreensão. Lembrou a mecânica de matriz que morrera ao tentar ler sua memória.

- Elorie, prefiro nunca saber a sujeitá-la a qualquer risco! Ela sacudiu a cabeça.

- Fui treinada em Arilinn; não corro nenhum risco.

Elorie falou com uma arrogância inconsciente. Os pontos de luz em movimento da matriz entre suas mãos se tornaram mais luminosos. Os cabelos avermelhados caiam como uma cortina ao longo das faces.

Kerwin sentia-se muito assustado. O rompimento de uma barreira telepática - ele se lembrava da tentativa de Kennard - não era um processo fácil, e a primeira tentativa fora bastante dolorosa.

A luz no cristal aumentou, parecia se irradiar num fluxo denso para o rosto de Elorie. Kerwin protegeu os olhos da claridade intensa, mas foi absorvido pelos padrões brilhantes. E, de repente, surgiram sombras em movimento, que logo clarearem em cor e forma...

Dois homens e duas mulheres,, todos em trajes darkovanos, sentavam em torno de uma mesa. Uma das mulheres era frágil, inclinava-se sobre uma matriz... ele já vira essa cena antes! Kerwin ficou paralisado, dominado pelo terror, enquanto a porta se abria, devagar, bem devagar... o horror...

Ele ouviu seu próprio grito, estridente e aterrorizado, o protesto de uma criança apavorada saindo da garganta de um homem, um momento antes do mundo se turvar, se tomar escuro.

... Ele estava de pé, oscilando, as mãos comprimindo as têmporas. Elorie, muito pálida, fitava-o, o cristal em seu colo.

- Jeff, o que você viu? - sussurrou ela - ...que Avarra e Evanda o protejam! Nunca imaginei um choque assim!

Ela fez uma pausa, respirou fundo.

- Sei agora por que a mulher morreu! Ela...

Elorie cambaleou subitamente, caiu contra a parede. Jeff adiantou-se para ampará-la, mas ela continuou, sem prestar atenção:

- O que quer que ela viu... e não sou uma empática, mas deixou-o atordoado, como uma criança... é evidente que a pobre mulher sofreu todo o impacto. Se tinha um coração fraco, deve ter parado, literalmente assustada até a morte por alguma coisa que você viu, há mais de um quarto de século!

Jeff pegou as mãos dela.

- Vamos esquecer, Elorie. É perigoso demais, já matou uma mulher. Posso viver sem saber o que aconteceu.

- Não, Jeff. Acho que precisamos saber. Tem havido mistérios demais. Ninguém sabe como Cleindori morreu, exceto Kennard, mas ele jurou nada contar. Não creio que ele a tenha matado.

Kerwin ficou chocado; isso nunca lhe ocorrera. Elorie acrescentou:

- Sou capaz de apostar minha vida na honestidade de Kennard.

E também na afeição genuína que ele sentia por ambos, pensou Kerwin.

- Sou uma Guardiã treinada, Jeff, não há perigo para mim. E estou tão ansiosa em saber quanto você. Mas dê-me sua matriz agora. Era de Cleindori, pode ajudar. E vamos começar por outra coisa. Você disse que tinha umas poucas recordações antes do orfanato; vamos tentar recuperá-las.

Ela olhou para a matriz de Kerwin; como sempre, quando sua matriz se encontrava nas mãos da Guardiã, Jeff sentiu a percepção de Elorie se fundir com a sua. Fechou os olhos, recordando.

A luminosidade na matriz aumentou. Havia cores, turbilhões como neblina; havia um farol azul brilhando em algum lugar, um prédio baixo, branco e reluzente, à margem de um estranho lago, que não era de água, uma insinuação de perfume; uma voz baixa e musical, entoando uma canção antiga, e Kerwin compreendeu, com uma intensa emoção, que a voz era de sua mãe, Cleindori, Dorilys de Arilinn, Guardiã renegada, cantando um acalanto para a criança que nunca deveria ter nascido.

Envolto por um manto de pele, ele era carregado por longos corredores, nos braços de um homem com cabelos vermelhos. Não era o rosto de Jefferson Kerwin, familiar para ele pelos retratos que vira na Terra; mas Kerwin sabia, naquele canto estranho e alienado de sua mente que era o seu eu adulto, que fitava o rosto de seu pai Mas, neste caso, de quem eu sou filho? Por um instante, de relance, ele viu o rosto de Kennard, mais jovem, sem rugas, um rosto alegre e sereno. Outras imagens surgiram e passaram; ele se viu brincando num pátio ladrilhado, entre flores e arbustos, com duas crianças menores, tão parecidas que podiam ser gêmeas, só que uma tinha os cabelos vermelhos de sua casta, como ele, enquanto a outra era morena, os cabelos escuros. E havia um homem alto e corpulento, usando uma estranha roupa escura, que lhes falava com um sotaque esquisito, demonstrava uma gentileza rude. Os gêmeos chamavam-no de pai, e Jeff chamava-o por uma palavra muito parecida, que significava, na língua das montanhas, pai de adoção, ou tio; como ele chamava Kennard; e o Jeff Kerwin adulto sentiu os cabelos se arrepiando em sua cabeça, ao compreender que fitava o rosto do homem cujo nome assumira; não era como nos retratos na casa dos avós na Terra, mas aquele era sem dúvida o Jeff Kerwin mais velho. Mais nebulosas eram as recordações da mulher de cabelos claros, mais loura que acobreada, e da outra mulher, de cabelos escuros, com reflexos avermelhados ao sol, e das colinas por trás do castelo, montanhas de picos escarpados, uma torre alta e antiga...

Mas este é o Castelo de Ardais, meu lar... Como foi parar aí, Jeff? Kennard e meu meio-irmão Dyan eram bredin, muito unidos na infância... Quer dizer que você foi criado nas Hellers? E isto é o muro do Castelo de Storn...

Como foi criado nas Hellers, além dos Sete Domínios? Cleindori se refugiou ali, quando fugiu da Torre? O que meu irmão Dyan sabe a respeito? Ou foi apenas porque meu pai era louco, e não podia traí-los?

As lembranças continuaram. Kerwin percebeu que sua respiração passava com dificuldade pela garganta, que se aproximava do ponto de perigo; sentia o sangue latejando nos ouvidos. E subitamente houve um clarão azul, e uma mulher surgiu à sua frente, alta, esguia e juvenil, mas não mais jovem; e ele sabia que contemplava sua mãe. Por que jamais conseguira recordar o rosto dela, antes daquele momento? Ela usava uma túnica escarlate de corte estranho, a túnica que Elorie descartara para sempre, a túnica de uma Guardiã de Arilinn; mas enquanto ele olhava, a túnica se desfez e desapareceu, deixando-a de saia de tartã e blusa branca com bordados de borboletas, o traje que ela usava no dia-a-dia. Kerwin podia se lembrar até da textura do tecido. Por que Elorie não a via?

- Mãe... - sussurrou ele - ... pensei que estivesse morta.

E ele soube que sua voz era a de uma criança. E soube também que ela não estava ali, que era apenas a sua imagem que via agora; a imagem de uma mulher morta há muitos e muitos anos; as lágrimas afloraram, com um aperto na garganta, lágrimas que ele nunca fora capaz de derramar antes.

Minha mãe. E ela morreu, de uma maneira horrível, assassinada por fanáticos...

Mas ele ouvia sua voz, transtornada, desesperada, pesarosa.

Como posso fazer isto com uma criança? Meu filho, ele é pequeno demais para suportar tanto peso, pequeno demais para a matriz, mas no entanto... por duas vezes agora escapei da morte por um triz, mais cedo ou mais tarde conseguirão me matar, esses fanáticos que acreditam que a virgindade de uma Guardiã é mais importante do que seus poderes! Mesmo depois que lhes demonstrei o que posso fazer...

E outra voz, de um homem, profunda e gentil, ressoou na mente de Jeff: Esperava alguma outra coisa de Arilinn, minha Cleindori? E, de alguma forma, através da memória e percepções da mãe, Kerwin viu, como uma criança e como um adulto, com uma estranha dupla visão, o rosto de quem falava... um velho, encurvado pela idade, com o rosto remoto de um sábio, os cabelos prateados-cinza, os olhos de uma profunda bondade... mas amargurados. Eles expulsaram Callista, embora eu lhes mostrasse o que você também tentou mostrar.

Pai, todos em Arilinn são tão tolos assim? Saiu como um brado desesperado. Aqui está me filho, seu homônimo, Damon Aillard; e eles não hesitarão em me matar, a Lewis e Cassilde; também matarão Jeff, Andres e Kennard, e todos os demais, até os meninos de Cassilde e a filha que ela terá de Jeff neste verão! Pai, pai, o que posso Jazer? Atraí a morte para todos? Nunca tive a intenção de causar qualquer mal, eu lhes daria leis novas, descartaria as antigas e cruéis leis de Arilinn, a Jim de que as mulheres pudessem viver ali em felicidade, para que os homens e mulheres de Arilinn não precisassem se resignar a uma morte em vida; mas eles nem quiseram escutar, muito embora fosse a Guardiã de Arilinn quem falasse! A Lei de Arilinn é a de que a palavra da Guardiã é lei; e, no entanto, quando tentei lhes oferecer novas leis, recusaram-se a me ouvir, perseguiram-me e a Lewis, até que Fugimos... Pai, pai, como pude me enganar tanto? E agora eles mataram o pai de meu filho, e sei que não vão parar até matarem a última criança da Torre Proibida! Não há qualquer meio para que eu possa salvá-las?

Kerwin partilhou, por um momento angustiante, os pensamentos de Damon Ridenow; todos eles, os que haviam trabalhado no que ainda chamavam, em desafio, de Torre Proibida, tinham atraído uma sentença de morte, que os atingiria mais cedo ou mais tarde.

Ele sentiu o desespero com que Damon falou.

Não há como usar a razão com fanáticos, Cleindori. A razão e a justiça dizem que uma Guardiã é responsável perante sua própria consciência; mas eles se tornaram imunes à razão e justiça. Você não é uma operária de matriz; não é a operária de matriz que eles querem em Arilinn corno Guardiã. O que eles desejam em Arilinn é uma virgem sagrada, um sacrifício a suas culpas e medos. Não creio que as forças da razão tenham qualquer peso contra fanáticos e a superstição cega, Cleindori.

Pai, você me criou para acreditar na razão!

Eu estava enganado. Ah, minha querida, como estava enganado!

E, depois, Kerwin ouviu a decisão.

Eu poderia me esconder para sempre, permanecer sã e salva, ou me refugiar entre os terráqueos. Mas se devo morrer, e sei agora que mais cedo ou mais tarde devo morrer, irei para Thendara, e ensinarei a outros o trabalho que aprendi que pode ser feito. Você ensinou a muitos trabalhadores de matriz. Eu ensinarei outros. Eles podem me matar, mas não conseguirão ocultar para sempre o que aprendi, e o que ensinei. Haverá trabalhadores de matriz fora da Torre; e quando a Torre de Arilinn desmoronar, nas ruínas de seu ódio e na morte em vida das almas dos homens e mulheres que ali vivem, cegos à justiça, à verdade, ao que é certo, então surgirão outros, para que as antigas ciências de matriz de Darkover nunca desapareçam. Despeça-se de mim, pai, e abençoe meu filho. Pois sei que nunca mais tornaremos a nos ver.

Eles vão matá-la, Cleindori. Ah, minha filha, meu sino dourado, devo perdê-la também?

Mais cedo ou mais tarde, todos os homens e mulheres nascidos deste mundo devem morrer. Abençoe-me, pai, e abençoe meu filho.

Kerwin, através de sua estranha percepção dupla, sentiu a mão de Damon em sua cabeça. Leve minha bênção, querida. E você também, meu neto, em quem meu nome e minha infância renascem. E depois a percepção foi sufocada pela consciência da angústia, enquanto pai e filha se despediam pela última vez.

Kerwin, absorvido na recordação, sabia que as lágrimas escorriam por seu rosto; mas concentrava-se na matriz, na lembrança que Cleindori gravara em seu filho; com alguma relutância, pois sabia que ele ainda era muito pequeno, mas ainda assim sabendo que algum registro devia ser mantido, para que o conhecimento de sua morte não se perdesse para sempre...

O tempo veio e passou; ele não sabia quantos dias e noites vivera no quarto escondido, quantas pessoas visitaram em segredo a casa em

Thendara em que se ensinava o trabalho de matriz, sob a liderança de Cleindori e da mulher gentil que ele chamava de mãe de adoção, cujo nome era Cassilde, a mãe de Auster e Ragan, que eram seus companheiros de brincadeiras. Ele sabia, vagamente, como uma criança sabe dessas coisas, que Cassilde muito em breve daria a todos uma irmã. Já chamavam a criança por nascer de Dorilys, que ele sabia ser o nome de sua mãe. Cassilde achava que era um ótimo nome para uma rebelde.

- E que ela possa criar uma tempestade sobre as Hellers como sua homônima fez antes, pois um dia será nossa Guardiã - dissera Cassilde.

Tinham de brincar sem fazer barulho, pois ninguém podia saber que alguém residia ali, dizia sua mãe; e Jeff e Andres circulavam entre a casa e o espaço-porto, traziam comida e roupas, qualquer outra coisa que fosse necessária. Uma ocasião ele perguntara por que seu pai de adoção Kennard não estava ali também.

- Porque há muitos que poderiam segui-lo, Damon - respondera a mãe. Ele vem tentando obter a anistia para nós no Conselho, mas é uma missão longa e árdua, e ele não tem o ouvido de Hastur.

Ele não sabia o que era anistia, mas imaginara que era uma coisa muito importante, porque seu pai de adoção Arnad não falava de outra coisa. Nunca perguntava pelo pai; sabia vagamente que seu pai fora embora para lutar, e que não voltaria. Valdir, Lorde Alton, e Damon Ridenow, o velho Regente de Alton, brigavam com o Conselho, e a mente do Jeff menino especulava se havia duelos com espadas e facas na câmara do Conselho, e quantas pessoas teriam de enfrentar, antes que ele, sua mãe e todos os outros pudessem voltar para casa.

E então...

Jeff sentiu o coração disparar, a respiração acelerar, e compreendeu que o momento que jamais pudera recordar, o terror que bloqueara sua mente e memória, era iminente. E, subitamente, resistindo à recordação em terror, mas sentindo a vontade inexorável de Elorie a conduzi-lo, através da matriz, ele se tornou menino outra vez, tinha cinco anos, brincava sobre o tapete num cômodo pequeno e escuro, uma espaçonave de brinquedo em suas mãos...

... O homem alto, em trajes terráqueos, levantou-se de repente, e ele deixou a espaçonave de brinquedo cair de suas mãos. Os três puseram-se a discutir por causa disso, mas Jeff Kerwin silenciou-os com um gesto.

- Meninos, meninos... fiquem quietos... não devem fazer tanto barulho... e sabem disso - advertiu ele, num sussurro.

- É difícil mantê-los quietos - murmurou Cassilde.

Ela estava bastante pesada agora, desajeitada, e Jeff Kerwin foi acomodá-la numa cadeira, antes de dizer:

- Sei disso. Eles não deveriam estar aqui. Seria melhor mandá-los para um lugar seguro.

- Não há segurança para eles em parte alguma - sussurrou Cassilde, suspirando.

Os gêmeos brincavam agora com a espaçonave, mas o menino Damon, que um dia seria chamado de Jeff Kerwin, ajoelhava-se um pouco apartado, os olhos fixados em sua mãe, de pé por trás da matriz em sua armação.

- Cleindori, já expliquei o que você deveria fazer - disse Kerwin, com uma ternura profunda nos olhos. Propus obter segurança para todos no Império. Não precisam falar mais do que acham que eles devem saber, Mas até por esse pouco, eles ficarão mais do que agradecidos, e mandarão vocês e as crianças para a segurança em qualquer mundo que escolherem.

- Devo ir para o exílio porque tolos e fanáticos protestam e gritam, slogans pelas ruas de Thendara?

Cassilde, as mãos aninhadas sobre a barriga, como a proteger a criança que abrigava ali, interveio:

- Tolos e fanáticos podem ser mais perigosos do que homens sensatos. Não tenho medo de Hastur, nem do Conselho. E o pessoal de Arilinn... eles podem nos desprezar, mas não nos farão mal, assim como Leonie nada fez contra Damon, depois do duelo em que ele conquistou o direito de manter a Torre Proibida. Mas tenho medo dos fanáticos, dos conservadores que desejam que tudo, inclusive Arilinn e Hali, seja como no tempo de nossos antepassados. Não posso ir para a Terra, pelo menos até minha criança nascer; e as crianças ainda são muito pequenas para uma viagem entre as estrelas. Mas acho que você deve partir, Cleindori. Deixe seu filho aos cuidados dos terráqueos, e saia daqui. Pedirei abrigo ao Conselho; tenho certeza de que me deixarão ficar em Neskaya.

- Que Evanda e Avarra a protejam! - exclamou Cleindori, desesperada, fitando sua meia-irmã. Eu a faço correr perigo pelo simples fato de continuar aqui, não é mesmo? Você não é uma Guardiã, Cassie, pode ir para onde quiser, viver como quiser, mas eu sou a renegada, sob sentença de morte desde o momento em que anunciei que os enganara, que Lewis e eu éramos amantes há mais de um ano, mas mesmo assim continuei a trabalhar como Guardiã em sua preciosa Arilinn! Lewis...

A voz tremia agora, e ela teve de fazer uma pausa.

- Eu o amava... e ele morreu por meu amor! Kennard deveria me odiar por isso. E, no entanto, ele continua a lutar por mim no Conselho...

Jeff comentou, cético:

- A morte de Lewis Lanart-Alton fez de Kennard o Herdeiro de Alton, Cleindori.

- E, no entanto, você quer que eu suplique proteção ao Conselho, a Lorde Hastur, que me chamou de coisas abomináveis? Mas eu poderia até fazer isso, se todos me pedissem. Jeff? Cassie? Arnad?

O homem alto, no manto verde e dourado, aproximou-se por trás de Cleindori e a enlaçou, rindo.

- Se algum de nós tivesse tal pensamento, Sino Dourado, ficaria envergonhado de expô-lo na sua presença. Mas acho que devemos ser realistas.

- Pois eu prefiro desafiar a todos, pelo menos até que o Conselho tome sua decisão - disse o terráqueo. Mas acho que Cassilde deve ir para Neskaya, ou no mínimo se refugiar no Castelo Comyn, até que sua criança nasça; nenhum assassino poderia alcançá-la ali. O Conselho pode desaprová-la, mas a protegerá fisicamente, e ela não está sob sentença de morte.

- Só que gerei crianças de um desprezado terráqueo - lembrou Cassilde, a voz amarga.

- Não foi a primeira, nem será a última - ressaltou Arnad. Já houve muitos casamentos assim. E creio que ninguém se importa com isso, exceto os fanáticos. E você, Cleindori, deve partir; deixe seu filho com os terráqueos, que o protegerão... nem mesmo no Castelo Comyn o filho de uma Guardiã renegada estaria a salvo da faca de um assassino, mas os terráqueos o protegerão.

A boca de Cleindori se contraiu num sorriso.

- E o que induziria os terráqueos a concederem refúgio ao filho de uma Guardiã renegada e do falecido Herdeiro de Alton? O que esse menino representa para eles?

- Como poderiam saber que ele não é meu filho? - indagou Kerwin. Os terráqueos não possuem os seus métodos refinados de controle; o menino me chama de pai de adoção, e não há peritos em lingüística em Darkover para conhecer a diferença entre as palavras. Tenho o direito legal de internar meu filho no Orfanato dos Espaçonautas; mesmo que eu achasse que a mãe de meu filho não tem qualificações para criá-lo como convém ao filho de um terráqueo, eles o aceitariam ali.

Ele se adiantou, pôs a mão no ombro de Cleindori, num gesto de infinita ternura.

- Eu lhe suplico, breda, deixe-me fazer isso. Depois, você iria para a Terra, ou algum outro mundo, durante um ou dois anos, até esse fanatismo acabar. Poderá voltar então, e ensinar abertamente o que agora ensina em segredo. Valdir e Damon já conseguiram persuadir os Anciãos da Cidade a licenciarem mecânicos de matriz como uma profissão. Eles trabalham em Thendara e Neskaya, e um dia atuarão também em Arilinn. O Conselho pode não gostar, mas como diz o provérbio... a vontade de Hastur é a vontade de Hastur, mas não é a lei da terra. Permita que eu faça isso por você, breda, providencie sua viagem para a Terra.

Cleindori baixou a cabeça.

- É possível, se todos acharem que é melhor assim. Você irá para Neskaya, Cassie? E você, Arnad?

- Sinto-me tentado a ir com você para a Terra - disse o ruivo em verde e dourado, num tom de desafio -, mas se vai sob a proteção de Jeff, não seria sensato. Ele terá de levá-la como sua esposa?

Cleindori deu de ombros.

- Que importância pode ter o que consta dos registros terráqueos? Eles vivem em computadores, e acreditam que uma coisa é verdade só porque está em seus arquivos. Por que me importaria?

- Tomarei as providências imediatamente - disse Jeff. Mas estão todos seguros aqui? Não tenho certeza...

Arnad declarou, com um gesto arrogante, baixando a mão para o punho da espada:

- Tenho isto, e protegerei a todos!

O tempo pareceu se arrastar, interminável, depois que o terráqueo se retirou. Cassilde pôs os gêmeos na cama, numa alcova com cortina; Arnad andava de um lado para outro, irrequieto, estendendo a mão de vez em quando para o punho da espada. O menino Damon continuava ajoelhado no tapete, esquecido, imóvel, esperando, dominado pela apreensão dos adultos ao seu redor. Ao final, Cleindori disse:

- Jeff já deveria ter voltado...

- Silêncio! - exortou Cassilde, em tom de urgência. Ouviram... Fiquem quietos! Não há alguém na rua?

- Não ouvi nada - disse Cleindori, impaciente. Mas tenho medo do que pode ter acontecido a Jeff. Ajude-me, Arnad.

Ela pegou sua matriz, pôs em cima da mesa. O menino se adiantou, na ponta dos pés, olhando em fascínio. A mãe o fizera olhar para a pedra com bastante freqüência, nos últimos dias; ela não sabia por quê, e Arnad dissera que ele era muito pequeno, poderia prejudicá-lo. Mas o menino sabia que, por algum motivo, a mãe queria que ele pudesse tocar na matriz, o que ninguém mais era capaz de fazer, nem mesmo seu pai, ou seus pais de adoção.

Ele chegou mais perto agora, a luz da matriz se irradiando para os rostos ao redor; um pequeno ruído desviou sua atenção; ele se virou para olhar, num terror crescente, viu a maçaneta da porta se mexer...

Soltou um grito estridente, e Arnad também se virou, mas um instante tarde demais. A porta foi aberta abruptamente, e a sala invadida por vultos encapuçados e mascarados. Uma faca certeira atingiu Arnad nas costas, e ele caiu, com um grito gorgolejante. O menino ouviu o berro alto de Cassilde, e viu-a cair também. Cleindori se abaixou, pegou a faca de Arnad, e se atracou com um dos mascarados. O menino correu, gritando, se debatendo, batendo nos vultos escuros com seus pequenos punhos. Mordia, chutava, arranhava, como um animal enfurecido. Montou nas costas de um dos atacantes, soluçando ameaças desvairadas.

- Deixe minha mãe em paz! Largue-a! Lute como um homem, seu covarde!

Cleindori gritou, desvencilhou-se do homem que a segurava, pegou Damon, apertou-o contra seu peito. Ele sentiu o terror como uma agonia física, refletido no intenso brilho azul da matriz... Houve um instante de contato profundo e ofuscante, e o menino soube, em agonia, exatamente o que eles haviam jeito, soube cada instante da vida de Cleindori, enquanto toda a vida da mãe desfilava diante de seus olhos...

Mãos rudes o puxaram, ele foi jogado pelo ar, bateu com a cabeça no chão de pedra, com toda força. A dor explodiu em seu cérebro, e ele ficou imóvel, ouvindo uma voz a bradar, enquanto mergulhava pela escuridão:

- Diga ao bárbaro que ele não mais voltará às planícies de Arilinn! A Torre Proibida foi destruída, e a última de suas crianças morreu, até mesmo a que não havia nascido! Assim, não teremos mais de enfrentar renegados, até o último dos dias!

Uma agonia incrível, insuportável, como uma faca se cravando em seu coração; e depois, num ato misericordioso, o contato foi rompido, a sala escureceu, o mundo se desvaneceu nas trevas...

Soaram batidas na porta. O menino, inconsciente no chão, mexeu-se, gemeu, pensou que podia ser seu pai de adoção; mas sentiu apenas estranheza, ao ver outros homens estranhos passando pela porta. Eles voltaram para me matar! A lembrança deixou-o como um coelho preso numa armadilha, ele tapou a boca com a mão, arrastou-se para baixo da mesa, ficou todo encolhido ali. As batidas na porta aumentaram de intensidade, até que foi arrombada outra vez. O menino, apavorado, tremendo sob a mesa, ouviu botas pesadas batendo no chão, sentiu o choque nas mentes dos homens, à luz de um lampião levantado, vendo a carnificina ali.

- Pela misericórdia de Avarra! - murmurou um homem. Chega-mos tarde demais, no final das contas! Aqueles fanáticos assassinos!

- Eu lhe disse que deveríamos ter apelado antes diretamente a Lorde Hastur, Cadete Ardais - murmurou outra voz, vagamente familiar para o menino debaixo da mesa, com medo de se mexer, de falar. -Tinha medo de que alguma coisa pudesse acontecer. Que Naotalba torça meu pés, mas nunca imaginei que fosse assassinato!

Um punho bateu na mesa, em ira impotente.

- Eu deveria ter previsto, disse a primeira voz, áspera, um tanto musical -, quando soubemos que o velho Lorde Damon morrera, junto com Dom Ann'dra e os outros. Um incêndio, eles disseram... mas de quem teria sido a mão que ateou o incêndio?

Diante da ira desesperada naquela voz, o menino escondido se encolheu ainda mais, comprimiu a mão contra a boca, para sufocar os soluços.

- Lorde Arnad, continuou a voz -, e Dama Cassilde, tão pesada da criança que era de se esperar que até mesmo aqueles fanáticos assassinos tivessem piedade! E também...

Houve uma pausa, a voz baixou para um sussurro:

- ...minha parenta Cleindori. Eu sabia que ela se encontrava sob sentença de morte, até mesmo de Arilinn, mas tinha esperança de que os Hasturs a protegessem.

Um suspiro longo e profundo. O menino ouviu movimentos ao seu redor, ouviu a cortina da alcova ser puxada.

- Por Zandru... crianças!

- Mas onde está o terráqueo? - perguntou um dos homens. -Deve ter sido arrastado vivo para a tortura, provavelmente. Essas devem ser as crianças de Cassilde por Arnad; olhem só, uma delas tem cabelos vermelhos. Pelo menos aqueles fanáticos miseráveis tiveram a decência de não fazer nada com essas pobres crianças.

- É mais provável que não as tenham visto - murmurou o primeiro homem. Mas se descobrirem que continuam vivas... sabe tão bem quanto eu o que poderá acontecer, Lorde Dyan.

- Tem razão... e é uma vergonha ainda maior para todos nós -disse o homem chamado de Lorde Dyan, franzindo o rosto. Por todos os Deuses! Se ao menos pudéssemos falar com Kennard... mas ele não está na cidade, não é?

- Não - respondeu o primeiro homem. Foi apresentar um apelo em Hali.

Houve um silêncio prolongado. Ao final, Lorde Dyan declarou:

- Kennard tem uma casa em Thendara. Se Dama Caitlin estiver lá... ela abrigaria as crianças até Kennard voltar, e apelar a Hastur? Você é um homem jurado de Kennard, Andres; conhece Dama Caitlin melhor do que eu.

- Eu não pediria nenhum favor a Dama Caitlin, Lorde Dyan - respondeu Andres. Ela se torna mais e mais amarga à medida que os anos passam, e aumenta a certeza de sua esterilidade. Ela sabe muito bem que Kennard deve um dia pô-la de lado, e gerar filhos com outra. Se lhe pedíssemos para abrigar qualquer criança, em nome de Kennard... ela pensaria, com toda certeza, que são bastardos de Kennard, e não elevaria um dedo sequer para protegê-los. Além do mais, se assassinos invadissem a casa de Kennard, poderiam matar Dama Caitlin também...

- O que não deixaria Kennard muito pesaroso, eu acho - comentou Lorde Dyan.

Andres deixou escapar uma exclamação de horror.

- Ainda assim, Lorde Dyan, tenho a obrigação, como homem jurado de Kennard, de salvaguardá-la também. Ele pode não amar a esposa, mas deve respeitá-la por lei, e eu não ousaria submetê-la a qualquer risco pela presença destas crianças. Com sua permissão, Lorde Dyan, acho melhor levá-las aos terráqueos, e pedir abrigo entre eles. E depois que a lembrança desses distúrbios desaparecer, Kennard pode apelar a Hastur por uma anistia...

- Depressa... - murmurou Lorde Dyan - alguém está vindo! Leve as crianças, e não deixe que façam qualquer barulho! Tome aqui, enrole o pequeno com esta manta... calma, cabelos vermelhos, fique quieto...

Damon foi até a beira da mesa, oculto nas sombras, e viu dois homens, um em trajes terráqueos, outro no uniforme verde e preto da Guarda da Cidade, envolverem seus companheiros em mantas, e levarem-nos embora. Houve silêncio de novo...

E depois soou um grito terrível de angústia, e ele viu Jeff Kerwin entrar, cambaleando, as roupas rasgadas, o rosto ensangüentado. O menino sentiu alguma coisa se romper dentro dele, uma dor profunda, quis gritar e gritar, mas só conseguiu soltar um ofego, afastou a toalha, saiu de baixo da mesa, e ouviu o soluço de consternação de Kerwin, ao ser envolto pelos braços fortes do pai de adoção.

Uma manta o cobria, a neve caía em seu rosto. Estava todo molhado, angustiado, podia sentir a dor do nariz quebrado de seu pai de adoção. Tentou falar, mas não pôde fazer com que a voz lhe obedecesse. Depois de um longo tempo de frio e dor, ele se descobriu num cômodo aquecido, mãos gentis davam leite morno em sua boca. Abriu os olhos, choramingou, fitando o rosto de seu pai de adoção.

- Tudo bem, pequeno, tudo bem... - murmurou a mulher que o alimentava - ...mais uma colher, meu pequeno, tão corajoso... Acho que não há nenhuma fratura no crânio, Jeff; já o monitorei, e não encontrei qualquer hemorragia interna. Ele apenas tem várias equimoses. Deve ter desmaiado, e aqueles fanáticos pensaram que tivesse morrido. Os demônios assassinos, tentar matar um menino de cinco anos!

, - Mataram minhas crianças, e levaram os corpos para algum lugar, talvez tenham jogado no rio - era terrível a expressão nos olhos de seu pai de adoção. Teriam matado este menino também, Magda, se não pensassem que ele já estava morto. Mataram Cassilde e a criança ainda em seu ventre... demônios, demônios! A mulher perguntou, gentilmente:

- Você viu sua mãe morrer, Damon?

Mas embora soubesse que ela lhe falava, o menino não foi capaz de responder; fez um tremendo esforço para falar, aterrorizado, mas nem uma única palavra passou por seu pavor e desespero. A sensação era de um punho cerrado comprimindo sua garganta.

- Ele ficou transtornado de tanto medo, o que não é de admirar, se viu todos morrerem - murmurou Kerwin, amargurado. Só Deus sabe se um dia conseguirá recuperar o juízo perfeito. Ele não disse nada, estava todo molhado e sujo quando o encontrei, embora já seja crescido. Minhas crianças mortas, o filho de Cleindori um idiota... essa é a nossa colheita por sete anos de trabalho!

- Talvez a situação não seja tão ruim assim, Jeff - disse a mulher chamada Magda. O que pretende fazer agora?

- Só Deus sabe. Queria evitar a interferência das autoridades terráqueas, até podemos chegar a um acordo entre nós... Kennard, Andres, o jovem Montray e eu. Sabe em que trabalhávamos... a continuação do que Damon e os outros iniciaram.

- Claro que sei... a mulher aninhou o menino em seu colo. O pequeno Damon aqui é tudo o que resta. A mãe de Cleindori e eu éramos bredini, irmãs juradas, quando meninas... e agora todos se foram. Por que eu deveria continuar aqui?

Ela fez uma pausa, os olhos amargos.

- Sei que você tentou, Jeff. Também tentei ajudar Cleindori, mas ela não quis me procurar. Mas havia concordado em viajar para o mundo exterior...

- Um dia tarde demais - murmurou Kerwin. Se ao menos eu a tivesse persuadido ontem...

- Não adianta lamentar agora, Jeff. Eu gostaria de ficar com o menino, mas posso ser transferida de Darkover a qualquer momento, e ele ainda é muito pequeno para viajar numa espaçonave, mesmo que estivesse drogado...

- Eu o levarei para o Orfanato dos Espaçonautas. É o mínimo que devo a Cleindori. E quando eu conseguir encontrar Kennard... acho que Andres está na cidade, em algum lugar. Vou procurá-lo, descobrir o paradeiro de Kennard... e depois, talvez, seja possível fazer alguma coisa pelo menino. Mas ele ficará a salvo com os terráqueos.

A mulher acenou com a cabeça, afagou a cabeça dolorida de Damon. Sua mão prendeu na corrente em torno do pescoço do menino, ela puxou-a, e soltou um grito de espanto.

- A matriz! A matriz de Cleindori! Por que não morreu com ela, Jeff?

- Não sei. Mas ainda vivia quando cheguei lá, e o menino, embora não falasse, sabia o suficiente para pegá-la. Creio que ela o deixava tocar na matriz, de tal forma que acabou sintonizando com seu cérebro. Se ele sentiu a mãe morrer através da matriz... isso explicaria o estado em que se encontra. A matriz está bastante segura aí, pendurada no pescoço de um menino idiota. Não poderão tirar a pedra sem matá-lo. Mas serão gentis com ele, e talvez possam lhe ensinar alguma coisa, mais cedo ou mais tarde.

E depois Damon sentiu frio de novo, levado nos braços do pai de adoção, cada passo provocando uma dor intensa nas costelas machucadas, sob a chuva forte e o granizo, ao longo das ruas de Thendara...

E depois ele sumiu, não se encontrava mais em parte alguma, não era nada...

Ele estava de pé, pálido e trêmulo, lágrimas no rosto, em seu quarto no hotel em Thendara, ainda dominado pelo terror de uma criança. Elorie o fitava, chorando também. Jeff fez um esforço para falar, mas a voz não obedeceu. Claro que não, não podia dizer uma só palavra... nunca mais tornaria a falar...

- Jeff, você está aqui! - disse Elorie. Jeff... Jeff, volte ao presente! Volte ao presente! Isso aconteceu há vinte e cinco anos!

Ele levou a mão à garganta. A voz saiu enrolada, mas conseguiu balbuciar:

- Então foi assim... Vi todos morrerem. Assassinados. E... não sou Jeff Kerwin. Meu nome é Damon, e Kerwin não era meu pai, mas sim amigo de meu pai. Não sou Jeff Kerwin... e não sou um terráqueo!

- Não, não é - sussurrou Elorie. Seu pai era o irmão mais velho de Kennard! Por direito, é você, não Kennard, o Herdeiro de Alton... e Kennard sabe disso! Poderia tomar o lugar dos filhos mestiços de Kennard. Foi por isso que ele não falou por você, no hotel? Kennard o ama. Mas ama os filhos de sua segunda esposa, a esposa terráquea, mais do

que qualquer outra coisa no mundo. Mais do que Arilinn. Mais, eu acho, do que sua própria honra...

Jeff soltou uma risada breve e estridente.

- Sou um bastardo, e filho de uma Guardiã renegada. Duvido que me queiram como Herdeiro de Alton, ou qualquer outra coisa. Kennard pode parar de se preocupar... se é que algum dia se preocupou.

- E tem ainda a complicação final nessa confusão de identidades trocadas - murmurou Elorie. As crianças de Cassilde foram levadas para o Orfanato dos Espaçonautas... conheço o homem de Kennard, Andres. Mas Lorde Dyan... ele é meu meio-irmão, Jeff. E eu nem sabia que ele conhecia Auster. Mas ele devia saber, e foi por isso que insistiu em tirar Auster do orfanato; provavelmente pensou que ele era filho de Cassilde por Arnad Ridenow, por causa de seus cabelos vermelhos.

- Que Deus ajude a todos nós, Elorie. Não é de admirar que Auster pensasse ter reconhecido Ragan. São irmãos gêmeos! Podem não ser muito parecidos, mas são gêmeos...

- E os terráqueos usaram Ragan para espionar o Comyn. Porque o vínculo telepático entre gêmeos é o mais forte que se conhece! Era Auster, não você, a bomba-relógio plantada pelos terráqueos! Eles sabiam do vínculo telepático entre gêmeos. Por isso, deixaram que Auster voltasse... e mantiveram Ragan, ligado pela mente, para espionar Auster. Mesmo depois que ele foi para Arilinn!

- E Jeff Kerwin levou-me para o Orfanato dos Espaçonautas, registrou-me ali como seu filho. E depois... só Deus sabe o que aconteceu; ele deve ter sido morto também.

- É estranho e triste que as duas facções, quando as crianças corriam perigo, chegassem à conclusão de que estariam mais seguras entre os terráqueos - comentou Elorie. Nossas leis de rivalidade de sangue são implacáveis, e os fanáticos achavam que deviam exterminar a Torre Proibida, até os bebês e crianças por nascer.

- Vivi na Terra, e sei que a maioria dos terráqueos tem boa índole. E também é verdade que não gostam de envolver crianças nos problemas dos adultos, nem transferir para os filhos os pecados de seus pais.

Jeff se calou. O conhecimento de que era um terráqueo, um exilado, sempre fora parte de sua existência. E agora, legalmente, era um terráqueo; e sob uma sentença de deportação do Império Terráqueo!

- Mas não sou terráqueo - acrescentou ele. Não tenho qualquer parentesco com Jeff Kerwin, não tenho nem um pingo de sangue terráqueo. Meu nome nem mesmo é Kerwin, mas... qual seria?

- Damon - respondeu Elorie. Damon Aillard, já que a criança recebe o nome do ascendente de posição superior, e Aillard tem uma posição mais alta no Comyn do que os Altons, assim como as nossas crianças, se as tivermos, seriam Ardais, em vez de Aillard... Só se você casasse com uma Ridenow, ou com uma plebéia, é que suas crianças seriam Altons. Mas pelo costume terráqueo, você seria chamado Damon Lanart-Alton, não é mesmo? Eles usam o nome do pai, e você foi criado assim.

O rosto de Elorie empalideceu subitamente.

- Jeff! Temos de avisar Arilinn!

- Não estou entendendo. Por quê?

- Eles podem tentar a operação de extração dos metais... embora eu ache que isso seria uma loucura sem uma Guardiã... e Auster continua a ter um vínculo mental com Ragan, o espião... e não sabe disso!

Jeff sentiu um frio no coração.

- Como podemos avisá-los, meu amor? Mesmo que lhes devêssemos qualquer coisa... e eles nos expulsaram, chamaram-na de coisas sórdidas... Arilinn fica muito longe, e estamos aqui. Mesmo que pudéssemos sair da Zona Terráquea... lembre-se de que estou sob prisão domiciliar... duvido que conseguiríamos entrar em contato com Arilinn. Talvez só telepaticamente; você pode tentar isso, se quiser.

Elorie sacudiu a cabeça.

- Fazer contato com Arilinn de Thendara, sem qualquer ajuda? Não é possível sem uma das redes de transmissão. Com minha matriz apenas, não dá. Não... - ela hesitou, ficou vermelha - ...não agora. Houve uma ocasião... como Guardiã de Arilinn... em que eu poderia ter feito isso. Mas não agora.

- Pois então se preocupe com eles! Deixe que assumam seus próprios riscos!

Elorie tornou a sacudir a cabeça.

- Arilinn me treinou, Arilinn me fez o que sou, e não posso deixar de me preocupar com o que possa acontecer a meu círculo. Há uma rede de transmissão no Castelo Comyn, em Thendara. Eu poderia alcançá-los por lá.

- Boa idéia - murmurou Jeff, com um sorriso sardônico. Posso imaginar a situação. Você, a Guardiã que foi expulsa de Arilinn, e eu, o terráqueo sob uma sentença de deportação, entrando no Castelo Comyn, e pedindo polidamente para usar a rede de transmissão que existe ali.

Ela baixou a cabeça.

- Não seja cruel, Jeff. Sei muito bem que estamos no ostracismo. Mas o Conselho não se reunirá até o verão. Ninguém reside no Castelo Comyn nesta época, a não ser o Regente, Lorde Hastur. Dama Cassilda era amiga de minha mãe. E meu meio-irmão, Lorde Dyan, é um oficial na Guarda da Cidade. Acho... acho que ele me ajudará a obter uma audiência com Lorde Hastur.

- Se ele é tão grande amigo de Kennard, é bem provável que fique contente por me ver morto.

- Ele ama Kennard, é verdade, mas não aprova seu segundo casamento, nem sua esposa terráquea, nem seus filhos meio terráqueos; e você é darkovano puro. Dyan queria servir em Arilinn; o Comyn significa muito para ele. Teria ido para lá com Kennard, quando eram jovens, pelo que eu soube, se não fosse testado e considerado... inadequado. Acho... espero poder persuadi-lo a me conseguir uma audiência com Lorde Hastur.

Elorie fez uma pausa, e depois acrescentou, tensa:

- Se tudo o mais falhar, apelarei para Lorde Alton. Afinal, Valdir Alton também amava seu filho mais velho, e você é o único filho de Lewis.

Jeff ainda não podia absorver tudo aquilo. Lorde Alton, o velho que lhe dera um abraço de parente, era na verdade seu avô. Mas era contra sua natureza que Elorie suplicasse por sua conta.

- Arilinn se virou contra nós, Elorie. Esqueça-os!

- Oh, Jeff, não! Quer que a União Pan-Darkovana se volte para a Terra, e Darkover se transforme numa colônia terráquea de segunda classe?

E isso o comoveu. Darkover fora seu lar, mesmo quando se julgava um filho da Terra e cidadão do Império. Agora, sabia que era realmente darkovano; não tinha o menor direito legal a se intitular um terráqueo. Era todo Comyn, um genuíno filho dos Domínios.

- Não pode entender, Jeff? Sei que o fracasso é quase certo, em particular se tentarem com um círculo de mecânicos, com Rannirl no comando, ou se forem bastante loucos para usarem uma Guardiã sem todo o treinamento necessário. E tenho medo das conseqüências para eles. Trarão a pequena Callina de Neskaya, e farão com que tente manter unido o circulo de matriz... e ela tem apenas doze anos. Já conversei com Callina em transmissões. Ela tem o dom, mas não foi treinada em Arilinn, e ainda por cima Neskaya não possui uma tradição de grandes Guardiãs... as melhores sempre foram as de Arilinn. Mas quando souberem que você não é terráqueo, Jeff, poderá voltar, e o círculo será muito mais forte!

O rosto de Elorie estava pálido e ansioso.

- Oh, Jeff, significa tanto para o nosso mundo!

- Querida, eu tentaria qualquer coisa - murmurou ele, angustiado. Até voltaria para o círculo de matriz, se me aceitassem; mas este comunicado diz que somos prisioneiros! Se tentássemos nos afastar do hotel por mais de um quilômetro, eles nos prenderiam. Só porque não estamos atrás de grades, isso não significa que eu não esteja preso. Posso apelar contra a deportação, e se conseguir provar que não sou filho de Kerwin por sangue, poderei permanecer aqui. Mas, por enquanto, somos tão prisioneiros como se estivéssemos na cadeia!

- Que direito eles têm...

A arrogância da princesa, a Dama de Arilinn, resguardada, mimada, idolatrada, estava em sua voz agora. Ela pegou seu manto com capuz - Jeff o comprara em Porto Chicago, para que Elorie escondesse seus cabelos vermelhos, que a marcavam como Comyn - e ajeitou-o nos ombros.

- Se não quiser me acompanhar, Jeff, eu irei sozinha!

- Elorie... fala mesmo sério?

Os olhos responderam por ela, e Jeff tomou sua decisão.

- Está bem, irei com você.

Nas ruas de Thendara, ela andava tão depressa que Jeff mal conseguia manter seu ritmo. Era o final da tarde, uma claridade vermelha iluminava as ruas, as sombras se encompridavam, púrpuras, entre as casas. Ao se aproximarem da beira da Zona Terráquea, Jeff começou a se perguntar se aquilo não era uma insanidade; com certeza seriam detidos nos portões. Mas Elorie se movia com tanta rapidez que tudo o que ele podia fazer era seguir em sua esteira.

A grande praça estava vazia, e os portões da Zona Terráquea guardados apenas por um único homem uniformizado da Força Espacial. Do outro lado da praça, Jeff podia avistar os restaurantes e lojas darkovanos, inclusive o lugar em que comprara seu manto. Ao chegarem aos portões, o guarda barrou-lhes a passagem.

- Desculpem, mas tenho de ver suas identificações.

Kerwin fez menção de falar, mas Elorie impediu-o. Ela empurrou para trás o capuz cinza, deixando à mostra os cabelos vermelhos, que o Sol Sangrento parecia incendiar, e soltou um grito estridente, que ressoou pela praça.

E por toda parte os darkovanos se viraram, surpresos e chocados pelo que Kerwin sabia ser, de alguma forma, um grito de guerra. Alguém gritou:

- Uma vai leronis do Comyn, e nas mãos dos terráqueos!

Elorie pegou o braço de Jeff. O guarda deu um passo à frente, ameaçador, mas uma multidão já se materializava, como num passe de mágica, por toda a praça. Toda aquela massa assustou o guarda terráqueo - Jeff sabia que eles tinham ordens para não dispararem contra pessoas desarmadas - e Elorie e Jeff foram levados pela multidão, uma passagem se abrindo para os dois, com gritos e murmúrios diferentes em seu encalço. Ofegante, aturdido, na entrada de uma rua, na outra extremidade da praça. Elorie pegou sua mão, e conduziu-o pela rua, enquanto os sons do distúrbio se desvaneciam na distância.

- Depressa, Jeff! Vamos logo embora, ou eles acabarão nos cercando, querendo saber o que está acontecendo.

Ele estava surpreso, um pouco chocado. Podia haver repercussões; os terráqueos não ficariam nada satisfeitos com aquela manifestação em seus portões. Mas, no final das contas, ninguém saíra ferido. Ele confiaria em Elorie, como ela lhe confiara sua vida.

- Para onde estamos indo?

Ela apontou. O Castelo Comyn se projetava muito acima da cidade, vasto, estranho e indiferente. Exceto por algumas altas autoridades, nenhum terráqueo jamais entrara ali; e os poucos só tinham ido a convite.

Só que ele não era um terráqueo, e teria de se lembrar disso.

Curioso. Há dez dias isso me deixaria muito feliz. Agora, não tenho tanta certeza.

Ele seguiu-a pelas ruas cada vez mais escuras, ao longo da ladeira íngreme em direção ao Castelo Comyn, especulando o que aconteceria quando lá chegassem, e se Elorie teria algum plano específico. O castelo parecia ao mesmo tempo enorme e bem guardado, e ele refletiu que dois estranhos não poderiam entrar, pedir para falar com Lorde Hastur, sem qualquer formalidade, sem uma audiência marcada com antecedência.

Mas não levara em consideração o enorme prestígio pessoal do Comyn. Havia guardas, no uniforme verde e preto dos Altons, a família que fundara a Guarda da Cidade, como Kennard lhe dissera, e a comandava desde tempos imemoriais. Mas à visão de Elorie, mesmo a pé, em trajes humildes, fez os guardas demonstrarem sua reverência.

- Comynara...

O guarda mais à frente olhou para a cabeça vermelha de Jeff, depois para suas roupas terráqueas, mas decidiu se precaver, e corrigiu:

- Vai Comynari, emprestam-nos sua graça. Como podemos melhor servir a vai domna?

- O Comandante Alton está no castelo?

- Lamento, vai domna, mas Lorde Valdir está ausente, em Armida, há um decêndio.

Elorie franziu o rosto, mas hesitou apenas por um instante.

- Pois então diga ao Capitão Ardais que sua irmã, Elorie de Arilinn, deseja lhe falar imediatamente.

- Pois não, vai domna.

O guarda ainda olhou com estranheza para as roupas terráqueas de Jeff, mas não questionou a ordem. Afastou-se para cumpri-la.

 

NÃO se passaram mais que uns poucos minutos até o guarda voltar, acompanhado por um homem alto e esguio, de roupas escuras - Kerwin calculou que ele devia estar na casa dos quarenta anos, embora parecesse mais jovem -, com um rosto afilado, como o de um falcão.

- Elorie, chiya - disse ele, alteando as sobrancelhas.

Kerwin teve um arrepio. Já ouvira antes aquela voz áspera, musical e melancólica; ouvira-a como um menino apavorado, todo machucado, dado como morto, encolhido sob uma mesa, sem ser visto. Mas Dyan Ardais não quisera lhe causar mal algum; e com certeza, se ele tivesse feito um apelo, haveria de tomá-lo sob sua proteção, como fizera com as outras crianças, ignoradas pelos assassinos. Ele sabia que o irmão de Elorie era um homem rigoroso, mas gentil, até mesmo de coração mole, com crianças, por mais cruel que pudesse ser com adultos.

- Soube que fugiu de Arilinn - acrescentou ele, olhando para os trajes humildes e o manto ordinário de Elorie com um desprazer ostensivo -, e na companhia de um terráqueo. Ai de Arilinn, que por duas vezes em quarenta anos viu isso acontecer. É este o terráqueo?

- Ele não é terráqueo, meu irmão, mas o filho verdadeiro de Lewis-Arnad Lanart-Alton, filho mais velho de Valdir, Lorde Alton, com Cleindori, que renunciou a seu posto, embora sem permissão, pelas leis de Arilinn, para tomar um consorte de seu nível e posição. Este é o filho dela. Uma Guardiã, Dyan, é responsável apenas perante sua própria consciência. Cleindori fez apenas o que a lei teria lhe permitido. Ela não é responsável perante aqueles que negaram o direito da Dama de Arilinn de declarar leis justas para seu círculo.

Dyan franziu o rosto. Seus olhos, pensou Kerwin, eram incolores como o metal frio, o aço cinzento.

- Uma parte disso eu soube por Kennard, que tentou me convencer da inocência de Cleindori, embora eu achasse que foi tudo uma loucura. Lewis também era um tolo idealista. Mas era irmão de Kennard, e devo a seu filho os direitos de um parente.

Os lábios finos se contraíram num sorriso sarcástico, e ele acrescentou:

- Portanto, temos aqui um coelho-de-chifre na pele de um homem-gato, Comyn em traje terráqueo, o que é uma mudança e tanto, depois dos incontáveis espiões e impostores que tivemos de enfrentar de vez em quando. Mas como o chamaram, filho de Cleindori? Lewis, por seu pai, e com mais direito a esse nome do que o bastardo de Kennard?

Kerwin experimentou a sensação desagradável de que Dyan se divertia - mais do que isso, sentia um prazer intenso - com seu constrangimento. Em anos posteriores, conhecendo Dyan melhor, sabe-ria que ele raramente perdia uma oportunidade de remoer a faca na ferida.

- Não me envergonho de portar o nome de meu pai de adoção terráqueo - respondeu ele, um tanto ríspido. Não seria honroso repudiá-lo a esta altura da minha vida; mas minha mãe me deu o nome de Damon.

Dyan inclinou a cabeça para trás e riu, uma risada longa e estridente, como o grito de um falcão.

- O nome de um renegado para outro! - exclamou ele, quando acabou de rir. Nunca desconfiei que Cleindori possuísse tanta noção da coisa certa. Mas o que quer de mim, Elorie? Não creio que deseje apresentar seu marido... - a palavra que ele usou designava companheiro livre; se desse a inflexão que significava amásio, Jeff o teria agredido. -... a nosso pai louco em Ardais.

- Preciso falar com Lorde Hastur, Dyan. Pode providenciar o encontro, como seconde por Valdir.

- Em nome de todos os nove infernos de Zandru, Lori! Não acha que Lorde Danvan já tem problemas suficientes? Vai levar até ele a sombra da Torre Proibida outra vez, depois de um quarto de século?

- Preciso vê-lo - insistiu Elorie, o rosto contraído. Eu lhe suplico, Dyan. Sempre foi bondoso comigo quando eu era criança; e minha mãe o amava. Salvou-me dos amigos bêbados de meu pai. Posso jurar...

A boca de Dyan tornou a se contorcer, e suas palavras foram cruéis:

- O juramento padrão, Elorie, é eu juro pela virgindade da Guardiã de Arilinn. Duvido que até mesmo você tenha a insolência de fazer esse juramento agora.

Elorie explodiu, em fúria:

- Esse é o tipo de loucura estúpida e fanatismo que mantiveram as Guardiãs de Arilinn como bonecas rituais, sacerdotisas, feiticeiras! Eu julgava você melhor, Dyan, e nunca imaginei que pudesse me jogar isso na cara! Prefere que a Torre de Arilinn seja o alvo dos risos de nosso povo, porque vocês se preocupam mais com a virgindade de uma Guardiã do que com seus poderes? Você é inteligente, nunca foi um tolo, nem um fanático! Eu lhe suplico, Dyan!

A ira se desvaneceu de repente, e ela acrescentou, muito séria:

- Juro a você, pela memória de minha mãe, que o amou quando era um menino sem mãe, que não abusarei da generosidade de Lorde Hastur, e que este não é um pedido trivial ou frívolo. Não quer me levar até ele?

O rosto de Dyan se abrandou.

- Está bem, breda - disse ele, com uma gentileza inesperada. Uma Guardiã de Arilinn só é responsável perante sua própria consciência. Terei respeito pela sua, até prova em contrário, minha irmã. Venha comigo. Hastur se encontra na câmara de audiências, e já deve ter terminado com a última delegação de hoje.

Ele levou-os pelo castelo, através de corredores largos, por uma longa passagem de colunas. Jeff se empertigou, tremendo, outra vez um menino sendo carregado por ali. Um dos sonhos estranhos que me atormentavam no Orfanato dos Espaçonautas...

Dyan introduziu-os numa pequena ante-sala, gesticulou para que esperassem ali. Voltou depois de algum tempo para anunciar:

- Ele os receberá. Mas que Avarra a proteja se desperdiçar o tempo dele ou esgotar sua paciência, Lori, porque eu não a protegerei.

Ele conduziu-os a uma pequena câmara de audiências, onde Danvan Hastur sentava em sua cadeira sobre uma plataforma, fez uma reverência, e se retirou.

Lorde Hastur fez uma mesura para Elorie. As sobrancelhas se uniram em desprazer ao deparar com Kerwin, mas o rosto se desanuviou no instante seguinte; estava reservando seu julgamento. Ofereceu a Kerwin o menor aceno de cabeça possível em cumprimento, e disse:

- E então, Elorie?

- É muita generosidade sua me receber, parente - Elorie fez uma pausa, e sua voz tremia quando continuou... - ...ou... não sabe...

A voz de Danvan Hastur interrompeu-a, solene e grave:

- Há muitos e muitos anos eu me recusei a escutar quando um parente suplicou por minha compreensão. E, como conseqüência, Damon Ridenow e toda a sua família morreram queimados num incêndio cuja origem me recusei a questionar, dizendo a mim mesmo que era a mão dos Deuses. Fiquei de braços cruzados, não levantei a mão para ajudar. Também não me sinto desprovido de culpa pela morte de Cleindori. Na ocasião, pensei que fosse apenas a vingança dos Deuses, embora não a sancionasse, e nada soubesse dos fanáticos assassinos responsáveis por aqueles mortes. Pensei... e que todos os Deuses me perdoem por isso... que a destruição da Torre Proibida, por mais cruéis que fossem aquelas mortes, restauraria nossa terra e nossas Torres aos seus costumes antigos e legítimos. Claro que não tive qualquer participação nas mortes, e se os assassinos caíssem em minhas mãos, eu os entregaria à vingança. Mas também não ergui a mão para evitar os assassinatos, nem para desacreditar os fanáticos que causaram tantas mortes entre o Comyn, de pessoas que não podíamos dispensar. Disse a mim mesmo, quando Cleindori apelou a mim, que ela renunciara a todo e qualquer direito à minha proteção. Não tenciono cometer esse erro duas vezes; se eu puder evitar, não haverá mais mortes no Comyn. Também não transferirei os pecados de homens há muito mortos para seus descendentes. O que quer de mim, Elorie Ardais?

- Ei, espere um instante! - disse Kerwin, antes que Elorie pudesse abrir a boca. Vamos esclarecer uma coisa. Não vim aqui para pedir a

proteção de ninguém. A Torre de Arilinn me expulsou, e quando Elorie ficou do meu lado, eles a expulsaram também. Mas vir até aqui não foi idéia minha, e não precisamos de nenhum favor.

Hastur piscou, aturdido, e depois por seu rosto firme e austero se espalhou um sorriso inequívoco.

- Considero-me censurado, filho. Falem como acharem melhor.

- Para começar, ele não é um terráqueo - disse Elorie. Não é filho de Jeff Kerwin.

Ela explicou o que descobrira. Hastur se mostrou aturdido, mas acabou murmurando:

- Eu deveria ter imaginado. Você tem a aparência Alton; mas o pai de Cleindori tinha sangue Alton, e por isso nunca pensei nessa possibilidade.

Solene, ele inclinou a cabeça para Elorie.

- Cometi uma grande injustiça com você. Qualquer Guardiã pode, ao estímulo de sua própria consciência, deixar seu sagrado posto, e tomar um consorte de seu próprio nível e posição. Erramos com Cleindori, e agora erramos com você também. A situação de seu marido Comyn será regularizada, parenta, e que tenham filhos e filhas dotados com laran...

- Ora, que se dane tudo isso! - interrompeu Jeff, numa fúria súbita. Não mudei nem um pouco do que era há quatro dias, quando achavam que não era bastante bom para Elorie! Se caso com Elorie enquanto pensam que sou Jeff Kerwin Junior, ela é uma desgraçada, uma prostituta, mas se caso depois que descobrem que meu pai era um dos arrogantes Comyn, que nem se deu ao trabalho de comunicar minha existência à sua família, então de repente tudo passa a ser certo outra vez...

- Jeff, Jeff, por favor... - suplicou Elorie.

E ele ouviu os pensamentos assustados dela: Ninguém ousa falar assim a Lorde Hastur!

- Eu ouso - declarou ele, ríspido. Diga a ele o que quer, Elorie, e depois vamos sair daqui, o mais depressa possível! Casou comigo pensando que eu era um terráqueo, lembra? Não me envergonho de meu nome, nem do homem que o deu a mim, quando meu próprio pai não se encontrava presente para me proteger!

Ele parou de falar, subitamente desconcertado diante dos firmes olhos azuis do velho. Hastur sorriu.

- Aí fala o orgulho Alton... e o orgulho dos terráqueos, que é diferente, mas nem por isso menos real. Pode se orgulhar de seu pai de adoção terráqueo, assim como da sua herança de sangue, meu filho; minhas palavras visavam a aliviar o coração de Elorie, não a projetar qualquer desdouro sobre Jeff Kerwin. Por todos os relatos, ele era um homem bom e corajoso, e eu teria salvo sua vida, se pudesse. Mas agora me expliquem, os dois, por que vieram aqui.

Sua expressão se tornou mais grave, enquanto escutava, e ao final ele comentou:

- Eu sabia que Auster estivera em poder dos terráqueos, mas nunca me ocorreu que pudessem usá-lo por qualquer meio, pois ele era muito pequeno. Também não sabia que Cassilde tivera gêmeos. Cometemos uma grande injustiça com a outra criança; e você diz, Kerwin... - ele teve alguma dificuldade para pronunciar o nome, tornando-o mais parecido com o darkovano Kieran - ...que ele é um homem amargurado, um espião terráqueo. Alguma coisa deve ser feito por ele. Mas por que Dyan não me contou?

Elorie explicou, balançando a cabeça:

- Dyan só soube de algumas coisas da Torre Proibida, por intermédio de Kennard. Os meninos eram diferentes; talvez ele pensasse que um deles, tendo cabelos e olhos escuros, fosse o filho do terráqueo. Por isso, ajudou-o a recuperar apenas o que julgava ser o filho de Arnad Ridenow.

- É verdade que reconhecemos Auster como o filho de Arnad -disse Hastur. Ele tinha o dom Ridenow; mas podia ter herdado de Cassilde, que era filha de Callista Lanart-Carr com Damon Ridenow.

Ele balançou a cabeça, suspirando.

- O problema, Lorde Hastur - explicou Jeff -, é que pensei que eu era bomba-relógio que os terráqueos haviam implantado... mas é Auster. E ele ainda está no círculo de matriz de Arilinn!

- Mas ele tem laran! Foi criado entre nós! É Comyn! Hastur falou em consternação, e Jeff balançou a cabeça.

- Ele é filho de Jeff Kerwin, não eu.

Auster fora seu irmão de adoção, haviam brincado juntos quando eram crianças. Ele não gostava de Auster, mas lhe devia lealdade... e também amor, porque Auster era o filho do homem que lhe dera seu nome e um lugar no Império Terráqueo. Auster era seu irmão; mais do que isso, seu amigo no círculo de matriz. Não queria que Auster fosse usado para destruir a Torre de Arilinn.

- Mas... um terráqueo? Em Arilinn?

- Ele pensava que era Comyn - disse Jeff, um intenso excitamento invadindo-o, enquanto começava a compreender. Acreditava que era Comyn, estava convencido de que tinha laran... e por isso tinha, nunca desenvolveu qualquer bloqueio contra a convicção de que tinha poderes psíquicos!

- Mas será que não percebem? - interrompeu Elorie. Temos de avisar Arilinn! Eles podem tentar a operação de mineração... e Auster ainda se encontra ligado a Ragan... vai fracassar!

Hastur empalideceu.

- Tem razão. Enviaram a pequena Guardiã de Neskaya para lá... e deveriam fazer a tentativa esta noite.

- Esta noite? - balbuciou Elorie. Precisamos avisá-los! É a única chance que eles têm!

Os pensamentos de Kerwin eram amargurados enquanto voavam pela noite. A chuva fustigava o pequeno aeroplano; um jovem estranho do Comyn ajoelhava-se na frente do aparelho, controlando-o, mas Kerwin não tinha olhos nem pensamento para ele.

Haviam tentado alertar Arilinn através da rede de transmissão no Castelo Comyn, mas Arilinn já saíra da rede. A Torre de Neskaya informara que suspendera o vínculo com Arilinn há três dias, ao mandarem Callina Lindir para lá.

Por isso, ele estava voltando a Arilinn. Para alertá-los, talvez salvá-los... pois não havia a menor dúvida de que aquela operação, a maior da Torre, era o alvo primário dos terráqueos que queriam que Arilinn fracassasse... o que faria com que Darkover caísse nas mãos dos consultores, engenheiros é industriais terráqueos.

O jovem Comyn pilotando o aparelho fitara Elorie com reverência quando o nome de Arilinn fora enunciado. Parecia que todos sabiam da tremenda experiência em Arilinn, que poderia manter Darkover e os Domínios fora do alcance do Império Terráqueo.

Só que a tentativa seria um fracasso. Por isso, voavam pela noite para detê-la, antes que começasse; mas se não a realizassem, seria uma desistência, equivalente ao fracasso, e era por isso que tencionavam fazer uma experiência desesperada com uma Guardiã apenas meio preparada. De qualquer forma, acarretaria o fim da Darkover que todos conheciam.

Se ao menos eu não tivesse voltado a Darkover!

- Não, Jeff - murmurou Elorie. Não é justo se culpar.

Mas ele se culpava. Se não tivesse voltado, eles poderiam encontrar outro para ocupar o lugar vago em Arilinn. E Auster, sem Jeff para antagonizá-lo, talvez descobrisse a verdade sobre o espião terráqueo. Mas agora todos se viam obrigados a acatar o sucesso ou fracasso daquela experiência; e se falhassem - o que parecia inevitável - haviam assumido o compromisso, pela palavra de Hastur, de não oferecer mais resistência ao modo de vida terráqueo, sua industrialização, seu comércio, sua cultura.

Sem Kerwin para lhes proporcionar aquela falsa confiança, a espionagem dos terráqueos só produziria informações escassas.

A mão de Elorie na sua parecia de gelo. Kerwin envolveu-a com seu manto forrado de pele, recordando contra sua vontade uma das histórias de Johnny Ellers. Podia resguardar Elorie contra o frio com seu manto darkovano; mas agora que sabia que não tinha qualquer direito à cidadania terráquea, nem a Arilinn, para onde poderia levá-la? Ela apontou pela janela, e sussurrou:

- Arilinn, e ali está a Torre.

Depois, Elorie soltou um suspiro de consternação e desespero, pois havia uma iridescência azulada e faiscante em torno da Torre.

- Chegamos tarde demais, Jeff! Eles já começaram!

 

Kerwin sentiu que andava como um sonâmbulo ao atravessarem a pista, com Elorie ao seu lado. Haviam fracassado, era tarde demais. Ele virou-se para ela, e murmurou:

- É tarde demais! Aceite!

Mas ela continuou a andar, e Kerwin não podia deixá-la ir sozinha. Passaram pelo Véu faiscante, e ele prendeu a respiração ao impacto da tremenda força que parecia se espalhar por toda a Torre, irradiando-se da câmara lá em cima, onde o círculo se formara. Incompleto, sem dúvida, mas ainda assim com um incrível poder. Envolveu Kerwin como um batimento cardíaco a mais, e ele sentia que Elorie tremia.

Seria perigoso para ela agora?

Arrebatado, dominado pela vontade de Elorie e por aquela força misteriosa, Kerwin subia as escadas da Torre. Parou do lado de fora da câmara de matriz, sentindo o que havia ali dentro.

A barreira de Auster não era mais que um paredão de névoa para ele. Seu corpo permanecia fora da câmara, mas ele se encontrava lá dentro também, e com sentidos além dos olhos físicos fez contato com todos eles: Taniquel, no assento da monitora; Rannirl mantendo com firmeza a visualização de técnico; Kennard inclinado sobre os mapas; Coras no lugar antes ocupado por Kerwin; e unindo a todos, nas malhas de uma frágil teia de aranha, um contato desconhecido, como uma dor...

Ela era franzina, ainda não saíra da infância, mas usava a túnica de uma Guardiã,, escarlate, não a cerimonial, mas daquele tipo largo, com capuz, que todos usavam na câmara de matriz, a cor bem viva, para que ninguém tocasse nela, nem mesmo por acidente, quando absorvia toda a carga de energônios. Tinha cabelos escuros, como vidro preto, ainda entrançado como os de uma criança, em torno do rosto pequeno, triangular, pálido e fino, tremendo no esforço.

Ela sentiu o contato de Kerwin, ficou perplexa, mas de certa forma sabia que não era uma intromissão, que ele pertencia. Rapidamente, Kerwin fez de novo a ronda do círculo, Rannirl, Corus, Taniquel, Neyrissa, Kennard... Auster...

Auster. Kerwin sentiu alguma coisa, fora do círculo como estava, parecia um cordão preto, pegajoso, palpável, projetando-se além da barreira; a linha que os retinha, impedia o círculo de matriz de fechar sua rede de energia. O vínculo, o vínculo psíquico entre os gêmeos, que ligava Auster ao irmão, sem o seu conhecimento, à margem do círculo...

Espião! Espião terráqueo! Auster sentira a presença, virou-se em sua direção, furioso... embora seu corpo, imóvel no contato, não se mexes-se... mas a tensão ondulou a serenidade do círculo, esteve prestes de rompê-lo.

"Espião e terráqueo. Mas não eu, meu irmão!" Kerwin ingressou no círculo, estabeleceu um contato pleno, e projetou na mente de Auster toda a lembrança do cômodo em que Cleindori, Arnad e Cassilde haviam sido assassinados, Cassilde esperando a irmã de Auster, que nunca nascera...

Auster gritou, um grito silencioso, em angústia. Quando a barreira em torno do círculo começou a cair, Kerwin tratou de reerguê-la, com sua projeção telepática; fez uma ronda pelo círculo, consolidando o contato; e com um impulso rápido e deliberado, cortou o cordão preto... (chiando, queimando, um vínculo cortado)... e rompeu o vínculo para sempre.

(A quilômetros de distância, um homenzinho moreno, que se chamava Ragan, desfaleceu com um grito de agonia, permaneceria desacordado por horas, e despertaria sem saber o que acontecera. Foi encontrado dias depois, levado para a Torre de Neskaya, onde o ferimento psíquico foi curado. Auster pôde então saudar o irmão gêmeo que não conhecia... mas isso só ocorreu mais tarde.)

A mente de Auster vacilava; Kerwin sustentou-o com um forte contato telepático, o mais profundo que era possível.

Leve-me para o círculo!

Houve um breve momento de vertigem intemporal, enquanto ele era absorvido no antigo contato. Uma faceta do cristal, uma partícula sem corpo flutuando num círculo de luz... e depois Kerwin era um deles.

Muito abaixo da superfície do mundo se encontram essas estranhas substâncias, átomos, moléculas, íons, conhecidas como minerais. O contato de Kerwin examinou a todos, através da estrutura de cristal na tela de matriz; agora, átomo por átomo, molécula por molécula, ele as livrou das impurezas, a um ponto em que se tornaram puras e derretidas, em seus leitos rochosos, e agora o círculo unido de força deveria erguê-las, através da psicocinese, o círculo se moldando como uma enorme Mão, que levaria as substâncias para os lugares previamente preparados.

Estavam todos na expectativa, enquanto o frágil contato da Guardiã-criança vacilava, no esforço para mantê-los unidos. Kerwin, em contato profundo com Taniquel, sentiu o desespero da monitora pela força insuficiente da menina.

Não! Isso a matará!

E nesse momento, enquanto o círculo titubeava, prestes a se dissolver, Kerwin sentiu de novo um contato familiar, seguro, amado.

Elorie! Não! Você não pode!

Sou uma Guardiã, e responsável apenas perante minha consciência. O que importa, minha posição ritual, um antigo tabu que perdeu seu significado há gerações, ou meu poder de manipular os energônios, minha competência como uma Guardiã? Duas mulheres morreram para que eu me tornasse livre para realizar este trabalho, para o qual nasci e fui treinada. Cleindori provou isso, antes mesmo de deixar Arilinn, que era possível libertar as Guardiãs de leis que não passavam de fraudes, de mentiras supersticiosas e sem sentido! Não quiseram ouvi-la; preferiram expulsá-la para morrer! Agora, com os terráqueos à espera do nosso fracasso, tencionam sacrificar o sucesso' de Arilinn por causa de um antigo tabu? Se assim agirem, deixarão Arilinn ser destruída, e deixarão Darkover cair nas mãos dos terráqueos; mas a culpa será de vocês, não minha, meus irmãos e irmãs!

Depois, com uma infinita gentileza (como um braço firme em torno de ombros infantis, como a mão que firma uma taça balançando, quase derramando), Elorie consolidou o contato, reforçando a teia frágil da Guardiã-criança com seu vínculo forte, de uma forma tão suave que não houve choque, nem dor.

Minha pequena irmã, este peso é grande demais para você...

E o contato se firmou de repente, um círculo fechado dentro da tela de cristal; a força aflorou, fluiu... Kerwin não era mais uma pessoa isolada, nem sequer era humano, mas uma parte do círculo, uma parte de um tremendo rio de metal derretido, ardendo, luzindo, impelido para cima, por arrancos de energia, uma energia que explodia, flamejava, engolfava a todos...

Devagar, bem devagar, o metal derretido esfriou, endureceu, ficou inerte outra vez, aguardando a presença daqueles que o precisavam, aguardando as mãos e instrumentos daqueles que o transformariam em ferramentas e máquinas, energia, poder, a vida de um mundo.

Um a um, todos foram se soltando, e o círculo se dissolveu. Kerwin sentiu que se retirava do círculo. Taniquel ergueu os olhos, ardendo em amor e triunfo, para recebê-lo de volta. Kennard, Rannirl, Corus, Neyrissa, todos o cercaram; Auster, um choque profundo em seus olhos de gato, mas livre do ódio, veio lhe dar as boas-vindas, com um abraço rápido e firme, o contato de um irmão.

A menina, a Guardiã de Neskaya, se encontrava inerte no chão; caíra de seu assento de Guardiã, e Taniquel se inclinou sobre ela, pôs as mãos em suas têmporas. A menina parecia esgotada, desfalecida. Taniquel murmurou, apreensiva:

- Rannirl, venha pegá-la...

Elorie! O coração de Kerwin parou por um instante. Ele pulou por cima das cadeiras, para abrir a porta da câmara. Não se lembrava como entrara ali, mas Elorie não pudera segui-lo. Sua mente entrara no circulo de matriz... mas o corpo permanecera fora da câmara resguardada, desprotegido.

Ela estava caída no chão, esparramada, pálida, sem vida. Kerwin ajoelhou-se ao seu lado, todo seu triunfo e exaltação se desvanecendo

em ódio e imprecações, enquanto encostava a mão naquele peito sem nenhum movimento.

Elorie, Elorie! Impelida pela consciência de uma Guardiã, ela voltara para salvar a Torre... mas pagara com sua vida? Ingressara despreparada, sem qualquer proteção, numa tremenda operação de matriz. Ele sabia como esse trabalho drenava a vitalidade, esgotando-a quase ao ponto da morte; mesmo quando Elorie se achava guardada e isolada, era um esforço que quase a levava à beira do colapso. Até resguardando sua vitalidade e forças nervosas pela castidade e isolamento sacrossanto, ela mal conseguia suportar! Não, ela não perdera seus poderes... mas aquele era o preço que devia pagar por ousar usá-los agora?

Eu a matei!

Desesperado, ele continuou ajoelhado ali, mal sentiu quando Neyrissa tentou empurrá-lo para o lado.

Kennard sacudiu-o, bruscamente.

- Jeff! Ela ainda não está morta, Jeff, há uma possibilidade de salvá-la! Mas tem de deixar as monitoras alcançarem-na, para determinar a gravidade de seu estado!

- Não toquem nela! Vocês não fizeram o suficiente para...

- Ele está histérico - disse Kennard. Tire-o daqui, Rannirl. Kerwin sentiu os braços fortes de Rannirl segurarem-no. Tentou alcançar Elorie, e Rannirl murmurou, compadecido:

- Sinto muito, bredu, mas tem de nos deixar... Fique quieto, irmão, ou terei que deixá-lo desacordado!

Ele sentiu Elorie tirada de seus braços à força, gritou em raiva e desespero... e depois, lentamente, sentiu o contato afetuoso de todos em sua mente, até que se acalmou. Elorie não morrera. Só estavam tentando ajudá-la. Ele ficou quieto, entre Rannirl e Auster, vendo com meio olho que a boca de Rannirl sangrava, e havia um arranhão no rosto de Auster.

- Eu compreendo - murmurou Auster - , mas fique calmo, irmão de adoção. Será tudo o que for possível. Tani e Neyrissa estão com ela agora.

Ele levantou os olhos, e acrescentou:

- Eu fracassei, bredu, fracassei. Teria destruído tudo, se não fosse por você. Nunca tive qualquer direito de estar aqui, porque sou um terráqueo, um forasteiro. Você tem mais direito do que eu...

Inesperadamente, para horror de Kerwin, Auster caiu de joelhos, e disse, em voz quase inaudível:

- Tudo o que eu disse a seu respeito era a verdade para mim, vai dom. Eu deveria ter percebido... odiando a mim mesmo, e fingindo que era a você que odiava. Tudo o que mereço do Comyn é a morte. Há uma vida entre nós, Damon Aillard; faça o que bem quiser.

Ele inclinou a cabeça e esperou, abalado, resignado à morte. E, subitamente, Jeff ficou furioso.

- Levante-se, seu tolo! Ele puxou Auster.

- Tudo isso significa apenas que alguns de vocês, seus idiotas... Ele olhou ao redor, antes de continuar:

- ... terão de mudar suas noções estúpidas sobre o Comyn, mais nada. Muito bem, Auster nasceu de um pai terráqueo... e daí? Ele possui o Dom Ridenow... porque foi criado com a convicção de que o possuía! Passei por vários infernos em meu treinamento... porque todos vocês acreditavam que eu teria dificuldades por causa do meu sangue terráqueo, e me fizeram acreditar nisso! É verdade, o laran é herdado, mas não ao ponto que acreditavam. Isso significa que Cleindori tinha razão; a mecânica de matriz é uma ciência que qualquer um pode aprender, e não há necessidade de envolvê-la com todos os tipos de rituais e tabus. Uma Guardiã não precisa ser uma virgem...

Kerwin parou de falar abruptamente. Elorie acreditava nisso. E sua convicção podia matá-la!

E, no entanto... ela sabia, fora parte do vínculo dele com Cleindori. Fora por isso que Cleindori lhe dera a matriz, embora sua mente de criança tivesse quase explodido com o fardo: para que um dia outra Guardiã pudesse ler o que Cleindori descobrira, e transmitir a Arilinn a mensagem que não ouviriam dela, para que pudesse conhecer a mente, o coração e a consciência da Guardiã martirizada, que morrera para

libertar outras mulheres da prisão que a Torre de Arilinn erguia em torno de suas mentes e corações.

- Mas nós vencemos! - exclamou Rannirl.

Foi nesse instante que Jeff compreendeu que todos haviam acompanhado seus pensamentos.

- Um período de graça - murmurou Kennard, sombrio -, não uma vitória final.

E Jeff soube que Kennard tinha razão. Aquela experiência dera certo, e a União Pan-Darkovana se sentia agora obrigada, por uma questão de honra, a acatar a vontade de Hastur na aceitação do modo de vida terráqueo. Mas houvera também um fracasso.

Kennard traduziu-o em palavras.

- Os círculos de Torre nunca poderão voltar a ser o que eram no passado. A vida só pode seguir para a frente, nunca para trás. Ainda é melhor pedir ajuda aos terráqueos... à nossa maneira, sob nossas condições... do que deixar que todo esse peso fique nos ombros de uns poucos homens e mulheres com o dom. É melhor que a população de Darkover aprenda a partilhar o esforço uns com os outros, Comyn e plebeus, e até mesmo com os terráqueos.

Ele suspirou, e acrescentou:

- Eu os abandonei. Se tivesse lutado ao lado deles até o fim... as coisas poderiam ter sido diferentes. Mas era por isso que eles se empenhavam, Cleindori e Cassilde, Jeff e Lewis, Arnad, o velho Damon... todos nós. Para promover um intercâmbio justo; Darkover partilharia os poderes de matriz com a Terra, para as poucas coisas que eles poderiam usar com segurança, e a Terra nos ofereceria algumas de suas coisas. Mas como iguais, não como superiores terráqueos, e suplicantes darkovanos. Um intercâmbio justo, entre mundos iguais, cada um com seu orgulho, cada um com seu poder. Deixei que você fosse enviado para a Terra, Jeff, porque achei que era uma ameaça para meus filhos. Pode me perdoar, Damon Aillard?

- Nunca me acostumarei a esse nome. Não o quero, Kennard. Não fui criado com ele. Nem sequer acredito em seu tipo de governo, ou no poder herdado dessa maneira. Se seus filhos quiserem, tudo lhes pertence; você os criou para assumirem esses tipos de responsabilidade. Apenas... - Jeff sorriu - ...use toda a influência que tiver para evitar que eu seja deportado, depois de amanhã.

- Não existe nenhum Jeff Kerwin Junior - murmurou Kennard. Eles não podem deportar para a Terra o neto de Valdir Alton. Independente do nome que ele quiser usar.

Houve um toque leve como uma pluma no braço de Jeff. Ele baixou os olhos para o rosto pálido e infantil da Guardiã-criança; e lembrou seu nome, Callina de Neskaya. Ela sussurrou:

- Elorie... ela está consciente, e quer falar com você.

- Obrigado, vai leronis.

Jeff viu a menina corar. O que Elorie fizera também a libertara, só que Callina ainda não sabia disso.

Haviam levado Elorie para o quarto mais próximo, acomodando-a num diva ali. Pálida, sem forças, ela estendeu os braços para Jeff. Ele enlaçou-a, sem se importar com a presença do resto do círculo, que se apinhava no quarto. Ao tocá-la, percebeu como o choque fora profundo, por ingressar desprotegida e despreparada no círculo de matriz. Em dias futuros, Guardiãs aprenderiam meios de se precaverem contra a drenagem de "energias de um trabalho tão maciço; sem a tremenda dedicação da castidade ritual permanente, mas ainda assim com fortes salvaguardas. Elorie fora bastante atingida; chegara mais perto da morte do que qualquer um gostaria de lembrar, e muitos sóis se ergueriam e se poriam sobre Arilinn antes que sua antiga risada alegre tornasse a ressoar pela Torre; mas seus olhos reluzentes ardiam em amor e triunfo.

- Nós vencemos, e estamos aqui! - sussurrou ela.

E Kerwin, abraçando-a, teve certeza de que haviam mesmo vencido. Os dias que viriam, para Darkover e o Comyn, mudariam todos eles; ambos os mundos lutariam para absorver as transformações que os anos trariam. Mas um mundo que permanece sempre o mesmo só pode morrer. Haviam lutado para manter Darkover como era; mas a vitória fora apenas para determinar que mudanças ocorreriam, e com que rapidez.

Ele descobrira o que amava; e destruíra-o, pois o mundo que amava nunca mais seria o mesmo, fora o instrumento da mudança. Mas ao destruir aquele mundo como era antes, salvara-o da destruição suprema e final.

Seus irmãos e irmãs o cercavam agora. Taniquel, tão pálida e esgotada que ele compreendeu como ela se exaurira no esforço para trazer Elorie de volta. Auster, com o modelo de sua vida liquidado, mas com uma nova força, com a qual poderia se recuperar. Kennard, seu parente, e todos os outros...

- Mas que história é essa? - interveio a voz sensata e tranqüila de Mesyr. Qual o sentido de ficarmos todos parados aqui, quando o trabalho de uma noite já foi feito... e bem feito? Vamos descer, para comer alguma coisa... você também, Jeff. Deixe Elorie descansar um pouco.

Com mãos firmes, ela puxou as cobertas até o queixo de Elorie, e gesticulou para que todos se retirassem.

Os olhos de Jeff tornaram a se encontrar com os de Elorie; embora fraca, ela desatou a rir, e todos a acompanharam, de tal forma que os corredores e escadas da Torre ressoavam com o riso. Algumas coisas, pelo menos, nunca mudavam.

A vida em Arilinn, por enquanto, voltara ao normal.

Estavam todos em casa novamente. E, desta vez, haveriam de ficar.

 

A claridade vermelha ainda persistia nas colinas; duas das quatro luas apareciam no céu, a verdade Idriel, perto do ocaso, e o pequeno crescente de Mormallor, de um marfim pálido, perto do zênite. Kindra n'ha Mhari não percebeu, a princípio, nada de estranho na aldeia. Sentia-se grata demais por tê-la alcançado antes do pôr-do-sol - um abrigo contra o frio e a chuva de uma noite darkovana, uma cama para dormir, depois de quatro dias de viagem, uma taça de vinho antes de dormir.

Pouco a pouco, porém, ela compreendeu que havia alguma coisa errada. Normalmente, àquela hora, as mulheres estaria circulando pelas ruas, conversando com as vizinhas, comprando os alimentos para a refeição noturna, enquanto as crianças brincavam e brigavam. Naquele fim de tarde, no entanto, não havia nem uma única mulher na rua, nenhuma criança.

Qual seria o problema? Franzindo o rosto, ela avançou pela rua principal, a caminho da estalagem. Estava faminta e cansada.

Deixara Dalereuth muitos dias antes, com uma companheira, a caminho da Casa da Guilda em Neskaya. Mas sem que qualquer das duas soubesse, sua companheira estava grávida; caíra doente, com febre, abortara na Casa da Guilda em Thendara, e ainda se encontrava ali, acamada. Kindra continuara sozinha para Neskaya; mas fizera um desvio de três dias de viagem para levar uma mensagem à mãe de juramento da mulher doente. Encontrara-a numa aldeia nas colinas, ajudando um grupo de mulheres a organizar uma produção de laticínios.

Kindra não tinha medo de viajar sozinha; já percorrera aquelas colinas em todas as estações, com todos os tempos. Mas suas provisões se aproximavam do fim. Por sorte, o estalajadeiro era um velho conhecido; Kindra tinha pouco dinheiro, porque a viagem fora inesperadamente prolongada, mas o velho Jorik lhe daria comida e à sua égua, providenciaria uma cama por uma noite, e confiaria que ela lhe enviaria o dinheiro mais tarde... sabendo que se isso não acontecesse, sua Casa da Guilda pagaria, pela honra da Guilda.

Ela também conhecia há muitos anos o homem que pegou sua égua no estábulo. Ele franziu o rosto quando Kindra desmontou.

- Não sei onde poderemos alojar sua égua, mestra, com tantos cavalos estranhos por aqui... acha que ela partilharia uma baia sem escoicear? Ou será melhor deixá-la no passo, amarrada com uma corda grande?

Kindra notou que o estábulo estava apinhado de cavalos, duas dúzias, talvez mais. Em vez de uma estalagem de aldeia vazia, parecia até o dia de mercado em Neskaya!

- Encontrou cavaleiros na estrada, mestra!

- Não, nenhum - respondeu Kindra, franzindo o rosto. - Todos os cavalos das Colinas Kilghard parecem estar aqui, em seu estábulo... o que aconteceu? Uma visita real? E o que há com você? A todo instante olha para trás, como se esperasse descobrir seu amo ali, com uma vara na mão para espancá-lo... e onde está o velho Jorik, que não vem receber seus hóspedes?

- O velho Jorik morreu, mestra. Dama Janella tenta cuidar da estalagem sozinha, ajudada pelas jovens Annelys e Marga.

- Morreu? Que os Deus nos guardem! Como isso aconteceu?

- Foram aqueles bandidos, mestra, a quadrilha de Cicatriz; retalharam o velho Jorik ainda de avental. Criaram a maior agitação na aldeia, quebraram todas as canecas de cerveja, e quando os homens os expulsaram com seus forcados, juraram que voltariam para incendiar tudo aqui. Dama Janella e os anciões fizeram uma coleta, e conseguiram cobre suficiente para contratar Brydar das Colinas Fen e seus homens, para nos defender quando os bandidos voltarem. Desde então, mestra, os homens de Brydar permanecem aqui, brigando, bebendo e cercando as mulheres, a tal ponto que os habitantes já começam a dizer que o remédio é pior do que a doença. Mas entre, mestra, entre. Janella ficará feliz ao vê-la.

A rechonchuda Janella parecia mais pálida e mais magra do que na última vez em que Kindra a vira. Recebeu Kindra com uma efusividade inesperada. Em circunstâncias normais, era fria com Kindra, como convinha a uma esposa respeitável na presença de uma representante da Guilda das Amazonas; agora, pensou Kindra, ela estava aprendendo que uma estalajadeira não podia se dar ao luxo de alienar uma freguesa. Jorik, Kindra sabia, também não aprovava as Amazonas Livres, mas aprendera pela experiência que eram hóspedes quietas, que não criavam problemas, não se embriagavam, não quebravam bancos e canecas de cerveja, e pagavam suas contas direito. A reputação de um hóspede não macula a cor de seu dinheiro, pensou Kindra, irônica.

- Já soube o que aconteceu, minha boa mestra! Aqueles homens horríveis, o bando de Cicatriz, mataram meu marido, sem qualquer motivo... só porque Jorik jogou uma caneca de cerveja num deles, que tentava pôr suas mãos imundas em minha filha, a pequena Annelys, que ainda nem tem quinze anos! Monstros!

- E o mataram por isso? Lamentável! - murmurou Kindra.

Mas sua compaixão era pela menina. Durante o resto de sua vida, Annelys haveria de se lembrar que o pai fora morto ao defendê-la, porque ela não era capaz de se defender. Como todas as mulheres da Guilda, Kindra prestara o juramento de se defender, de não recorrer a nenhum homem em busca de proteção. Pertencia à Guilda por metade de sua vida; parecia absurdo que um homem devesse morrer por defender uma moça de avanços a que ela própria não podia se esquivar.

- Ah, mestra, não sabe como é estar sozinha, sem um homem. Como sempre viveu sozinha, não pode imaginar.

- Ora, você tem suas filhas para ajudar. Janella balançou a cabeça, e lamentou:

- Mas elas não podem ficar entre esses homens rudes, pois ainda são muito pequenas!

- Seria bom que aprendessem alguma coisa do mundo e seus costumes - comentou Kindra.

A mulher suspirou.

- Eu não gostaria que elas aprendessem tanto assim.

- Neste caso, seria bom se você arrumasse outro marido - disse Kindra, sabendo que não havia a menor possibilidade de se comunicar com Janella. - Mas lamento o que aconteceu, e compartilho sua dor. Jorik era um bom homem.

- Nem imagina como ele era bom, mestra. Vocês, mulheres da Guilda, intitulam-se livres, mas me parece que sempre fui livre, até agora, quando devo me manter vigilante noite é dia, para evitar que alguém tenha a idéia errada sobre uma mulher sozinha. Ainda outro dia um dos homens de Brydar me disse... e esse é outro problema, os homens de Brydar. Comem tudo o que temos, mestra, e não há lugar no estábulo para os cavalos dos hóspedes pagantes, com metade da aldeia mantendo seus animais aqui, contra uma nova investida dos bandidos, e esses espadachins de aluguel bebendo a cerveja do meu filho dia após dia...

Abruptamente, ela lembrou seus deveres como hospedeira.

- Mas venha para a sala comum, mestra, trate de se esquentar, enquanto providencio seu jantar. Temos lombo de chervine assado. Ou se preferir alguma coisa mais leve, não gostaria de um guisado de coelho de chifres com cogumelos? A estalagem está lotada, é verdade, mas tenho um pequeno quarto no alto da escada que pode ocupar, um quarto à altura de uma grande dama. A própria Dama Hastur dormiu ali, naquela cama, há alguns anos. Lilla! Lilla! Onde será que aquela retardada se meteu? Quando a contratei, a mãe me disse que ela era meio obtusa, mas não tanto que não passe o dia inteiro conversando com aquele jovem espadachim de aluguel, que Zandru arranhe todos eles! Lilla! Vamos, depressa, leve esta boa mulher a seu quarto, vá buscar água para ela se lavar, cuide de seus alforjes!

Mais tarde, Kindra desceu para a sala comum. Como todas as mulheres da Guilda, aprendera a ser discreta quando viajava sozinha; uma mulher solitária era alvo fácil de indagações, no mínimo, e era por isso que sempre viajavam em dupla. Isso acarretava uma certa estranheza, até especulações obscenas, mas também evitava as abordagens desagradáveis a que estava sujeita uma mulher viajando sozinha em Darkover. Claro que qualquer mulher Amazona Livre saberia se defender se a situação fosse além das palavras grosseiras, mas isso podia acarretar

problemas para a Guilda. Era melhor se comportar de uma maneira que reduzisse ao mínimo a possibilidade de encrencas. Por isso, Kindra sentou sozinha num canto perto da lareira, manteve o capuz puxado em torno do rosto - não era mais jovem, nem muito bonita - tomou seu vinho, esquentou os pés, e não fez nada para atrair a atenção de ninguém. Ocorreu-lhe que naquele momento, apesar de se intitular uma Amazona Livre, tinha de ser muito mais contida do que as jovens filhas de Janella, circulando de um lado para outro, protegidas pelo teto da família e a presença da mãe.

Ela terminou sua refeição - optara pelo guisado de coelho de chifres - e pediu um segundo copo de vinho, cansada demais para subir a escada até seu quarto, exausta demais para dormir se conseguisse.

Alguns dos espadachins de aluguel de Brydar sentavam a uma mesa comprida, no outro lado da sala, bebendo e jogando dados. Era um bando misto. Kindra não conhecia nenhum deles, mas já se encontrara com o próprio Brydar umas poucas vezes, e uma ocasião fora contratada junto com ele para proteger uma caravana de mercadores que atravessaria até o deserto até as Cidades Secas. Ela acenou com a cabeça, cortês, para Brydar, que a saudou em resposta, mas não lhe dispensou mais qualquer atenção. Conhecia-a bastante bem para saber que Kindra não aceitaria sequer uma conversa polida numa sala cheia de estranhos.

Um dos mercenários mais jovens, alto, sem barba, magricela, os cabelos cor de gengibre cortados rentes, levantou-se e veio para sua mesa. Kindra preparou-se para o inevitável. Se estivesse com duas ou três companheiras da Guilda, teria acolhido com satisfação uma companhia inofensiva, para um drinque juntos, uma conversa sobre a situação das estradas. Mas uma Amazona sozinha NÃO bebia com homens em tavernas, e Brydar sabia disso tão bem quanto ela.

Um dos mercenários mais velhos devia estar querendo se divertir à custa do garoto inexperiente, espicaçando-o a provar sua virilidade pela abordagem da Amazona, à espera das risadas com a rejeição inevitável.

Um dos homens fez um comentário que Kindra não conseguiu entender. O garoto rosnou alguma coisa, com a mão no cabo da adaga.

- Tome cuidado, seu______!

Ele disse um palavrão. Ao chegar à mesa de Kindra, o garoto disse, em voz suave, um pouco rouca:

- Boa noite, honrada dama.

Surpresa pela frase cortês, mas ainda cautelosa, Kindra respondeu:

- O mesmo lhe desejo, jovem senhor.

- Posso lhe oferecer uma caneca de vinho?

- Já tenho o suficiente para beber, mas agradeço a gentil oferta. Alguma coisa fora de sintonia na atitude do rapaz, quase efeminada,

alertou-a; tudo indicava que a proposição dele não seria habitual. Todo mundo sabia que as Amazonas Livres tomavam amantes se e quando escolhiam, e muitos homens achavam que isso significava que sempre havia uma possibilidade, em qualquer ocasião. Kindra era hábil em rejeitar esses avanços velados, sem jamais chegar a uma recusa categórica; com abordagens mais grosseiras, ela não perdia tempo com cortesias. Mas não era isso que o rapaz queria; Kindra sabia quando um homem a fitava com desejo, quer traduzisse isso em palavras ou não. Havia algum interesse no rosto daquele rapaz, sem dúvida, mas não era um interesse sexual. Mas então o que ele queria?

- Posso... posso sentar aqui, e conversar por um momento, honrada dama?

Kindra poderia lidar com a grosseria. Mas aquela cortesia excessiva era desconcertante. Estariam apenas se divertindo com alguém que odiava mulheres, apostando que ele não teria coragem de falar com a mulher? Ela disse, em voz neutra:

- Esta é uma sala pública; as cadeiras não me pertencem. Sente onde quiser.

Contrafeito, o rapaz sentou. Parecia mesmo bastante jovem, ainda imberbe, mas tinha as mãos bem calosas, e uma cicatriz antiga numa das faces; não era tão jovem quanto ela pensou.

- É uma Amazona Livre, mestral

Ele usou o termo comum, um tanto ofensivo, mas Kindra não ficou ressentida. Muitos homens não conheciam outro nome.

- Sou, sim, mas preferimos dizer que sou obrigada por juramento... - A palavra que ela usou foi Comhi-Letzis. - ... uma Renunciante da Irmandade das Mulheres Libertas.

- Posso perguntar... sem intenção de ofender... por que o nome Renunciante, mestral

Na verdade, Kindra ficou satisfeita pela oportunidade de explicar.

- Porque, senhor, em troca de nossa liberdade como mulheres da Guilda, prestamos um juramento de renunciai: aos privilégios que pode-ríamos ter se optássemos por pertencer a algum homem. Se renunciamos às desvantagens de ser uma propriedade e serva, devemos também renunciar aos benefícios que possam advir dessa situação, para que nenhum homem possa nos acusar de tentar ter o melhor das duas opções.

- Parece-me uma opção honrada. Jamais conheci antes uma... uma Renunciante. Diga-me, mestra... - A voz se tornou subitamente estridente. - Suponho que conhece as calúnias que dizem por aí... Como qualquer mulher tem a coragem de ingressar na Guilda, sabendo o que será dito a seu respeito?

- Creio que para algumas mulheres chega o momento em que pensam que há coisas piores do que ser o alvo de difamações públicas. Foi o que aconteceu comigo.

Ele pensou por um momento, o rosto franzido.

- Nunca tinha visto uma Ama... ahn... uma Renunciante viajando sozinha antes. Não costumam viajar sempre em duplas, honrada dama?

- É verdade, mas isso não é indispensável.

Kindra explicou que sua companheira caíra doente, e ficara em Thendara.

- E viajou tanto para transmitir uma mensagem? Ela é sua bredhis! O rapaz usou a palavra polida para designar companheira livre ou amante feminina de uma mulher; e porque era a palavra polida, não a grosseira, Kindra não se sentou ofendida.

- Não, apenas uma camarada.

- Eu... eu não ousaria falar se estivesse com uma camarada... Kindra riu.

- Por que não? Mesmo em duplas ou trios, não somos cães para morder estranhos.

O rapaz baixou os olhos para suas botas.

- Tenho motivos para temer... as mulheres... - murmurou ele, quase inaudível. - Mas me pareceu gentil. E suponho, mestra, que em todos os lugares a que vai nestas colinas, onde a vida é tão difícil para as mulheres, sempre procura esposas e filhas que estejam descontentes em casa, a fim de recrutá-las para sua Guilda?

Bem que gostaríamos!, pensou Kindra, com toda a amargura antiga; mas ela sacudiu a cabeça, e disse:

- Nossos regulamentos proíbem. A lei determina que uma mulher deve nos procurar por sua própria iniciativa, e solicitar formalmente permissão para se juntar a nós. Não tenho sequer permissão para dizer às mulheres das vantagens da Guilda, quando perguntam. Só posso falar das coisas a que devem renunciar, por juramento.

Ela contraiu os lábios, e acrescentou:

- Se fizéssemos o que você sugere, procurássemos esposas e filhas descontentes, a fim de atraí-las para a Guilda, os homens não permitiriam que restasse uma só Casa da Guilda nos Domínios. Tratariam de queimá-las... com todas nós lá dentro.

Era a antiga injustiça; as mulheres de Darkover haviam conquistado aquela concessão, a carta da Guilda, mas com tantas restrições que muitas mulheres nunca recebiam nem falavam com uma irmã da Guilda.

- Suponho que eles descobriram que não somos prostitutas, e por isso alegam que somos todas amantes de mulheres, empenhadas em roubar suas esposas e filhas. Devemos ser, ao que parece, uma coisa ruim ou outra.

- Quer dizer que não amantes de mulheres entre vocês? Kindra deu de ombros.

- Claro que há. Deve saber que há algumas mulheres que preferem morrer a casar; e mesmo com todas as restrições e renúncias do juramento, consideram que é uma alternativa melhor. Mas posso lhe assegurar que nem todas são assim. Somos mulheres livres... livres para isso ou aquilo, à nossa vontade.

Depois de pensar por um momento, Kindra acrescentou, com todo cuidado:

- E se você tem uma irmã, pode dizer isso a ela, da minha parte. O jovem estremeceu, e Kindra mordeu o lábio; mais uma vez, baixara a guarda, captando impressões tão nítidas que às vezes suas companheiras acusavam-na de ter um pouco do dom telepático das castas superiores, o laran. Kindra, que era, até onde podia saber, toda plebéia, sem qualquer sangue nobre ou dom telepático, em geral se mantinha defendida; mas captara um pensamento fortuito, um pensamento amargo, em algum lugar, Minha irmã não acreditaria... um pensamento que logo se desvaneceu, tão depressa que ela se perguntou se não imaginara aquilo. O rosto jovem no outro lado da mesa se contraiu em linhas de amargura.

- Não há ninguém agora a quem eu possa chamar de minha irmã.

- Sinto muito - murmurou Kindra, perplexa. - Ser sozinho é uma coisa triste. Posso perguntar seu nome?

O rapaz tornou a hesitar, e Kindra compreendeu, com sua estranha intuição, que o nome verdadeiro quase escapara dos lábios comprimidos; mas ele se conteve a tempo.

- Os homens de Brydar me chamam de Marco. Não pergunte por minha linhagem; não há mais ninguém que reivindique parentesco comigo agora... graças àquelas bandidos sórdidos sob o comando de Cicatriz. - Ele contraiu a boca em ódio. - Por que acha que me encontro aqui? Pelos poucos cobres que estes aldeões podem pagar? Não, mestra. Também estou obrigado por um juramento. De vingança.

Kindra saiu da sala comum pouco depois, mas por muito tempo não conseguiu dormir. Alguma coisa na voz do jovem, em suas palavras, havia encontrado uma ressonância em sua própria mente e memória. Por que ele a interrogara com tanta insistência? Será que ele tinha uma irmã ou parenta que falara em se tornar uma Renunciante? Ou será que o rapaz, um efeminado óbvio, sentia inveja, porque ela conseguira escapar ao papel determinado pela sociedade para seu sexo, o que ele não podia fazer? Será que ele fantasiava alguma fuga assim às exigências feitas aos

homens? Com toda certeza, não; havia vidas mais simples para homens que a de um espadachim de aluguel! E os homens tinham uma opção sobre as vidas que poderiam levar... ou pelo menos mais opções do que a maioria das mulheres. Kindra optara por se tornar uma Renunciante, uma pária entre a maioria das pessoas nos Domínios. Até mesmo o estalajadeiro só a tolerava porque ela era uma freguesa regular e pagava bem, mas igualmente toleraria uma prostituta ou um trapaceiro itinerante, contra os quais teria menos preconceitos.

Será que o rapaz, especulou ela, seria um dos espiões apregoados em rumores que a cortes, o corpo governante em Thendara, enviava para denunciar Renunciantes que violavam os termos de sua carta, tentando recrutar mulheres para a Guilda? Se era esse o caso, pelo menos ela resistira à tentação. Nem sequer dissera, embora tentada, que se Janella fosse uma Renunciante se sentiria competente para dirigir a estalagem sozinha, sem a ajuda das filhas.

Umas poucas vezes, na história da Guilda, homens haviam tentado se infiltrar, disfarçados. Desmascarados, haviam sido submetidos a uma justiça sumária; mas já acontecera, e podia acontecer de novo. E aquele rapaz pareceria bastante convincente em roupas de mulher, pensou Kindra... a não ser pela cicatriz no rosto e as mãos calosas. Ela riu, no escuro, sentindo os calos em seus próprios dedos. Ora, se o rapaz fosse bastante tolo para tentar, pior para ele. Ainda rindo, ela adormeceu.

Despertou horas mais tarde ao som de cascos de cavalos, o choque de aço, gritos, um tremendo alarido lá fora. Mulheres berravam em algum lugar. Kindra se vestiu, e desceu correndo. Encontrou Brydar parado no pátio, dando ordens. Por cima do muro, ela viu o céu avermelhado por chamas. Cicatriz e seus bandidos, ao que parecia, estavam à solta na cidade.

- Vá até a retaguarda deles, Renwal, - ordenou Brydar, - solte os cavalos e afugente-os, para que eles sejam obrigados a lugar, em vez de atacar e fugir em seguida, como fizeram antes. E como todos os bons cavalos estão guardados aqui, um de vocês deve ficar para impedir que eles peguem os nossos... os outros venham comigo, as espadas prontas para o combate...

Janella se encolhia sob o beirai de um prédio próximo, as filhas e as servas ao seu redor.

- Vão nos deixar aqui, desprotegidas, depois que os alojamos por sete dias, e nunca recebemos um único cobre em pagamento? Cicatriz e seus homens virão para cá, com toda certeza, em busca dos cavalos, e ficaremos à mercê delas, sem ninguém para nos defender...

Brydar gesticulou para o jovem Marco.

- Você! Fique aqui, e guarde os cavalos e as mulheres... O rapaz protestou:

- Não! Entrei em seu bando com a promessa de enfrentar Cicatriz, com o aço na mão! É uma questão de honra... acha que preciso de seus cobres sujos?

Além dos muros, reinava a confusão.

- Não tenho tempo para discutir - respondeu Brydar. - Kindra, esta luta não é sua, mas sabe que sou um homem de palavra; fique aqui, proteja os cavalos e estas mulheres, e farei com que seu tempo valha a pena!

- À mercê de uma mulher? Vai deixar uma mulher para nos proteger? É a mesma coisa de usar um camundongo para vigiar um leão!

O protesto veemente de Marco foi ignorado por Marco, que virou-se para Kindra, com os olhos inflamados.

- Tudo o que me foi prometido por esta missão é seu, mestra, se me liberar para enfrentar meu inimigo jurado!

- Pode ir - disse Kindra. - Eu cuidarei delas.

Era improvável que Cicatriz chegasse àquele ponto, mas a luta não era sua; em circunstâncias normais, lutaria ao lado dos homens, e ficaria furiosa se a deixassem para trás, numa posição segura. Mas as palavras de Janella haviam-na irritado. Marco desembainhou sua espada, e saiu apressado pelo portão, acompanhado por Brydar. Kindra observou-os se afastarem, pensando em suas primeiras batalhas. Talvez um gesto, uma frase, alguma coisa a alertara. O garoto Marco é nobre, pensou ela. Talvez até Comyn, bastardo de um grande lorde, quem sabe um Hastur. Não

sei o que ele está fazendo entre os homens de Brydar, mas com certeza não é um espadachim de aluguel comum. O lamento de Janella fê-la voltar a seu dever:

- Ah, que coisa terrível, deixar-nos aqui só com uma mulher para nos defender...

- Venham comigo! - disse Kindra, em tom brusco. - Ajudem-me a fechar o portão!

- Não aceito ordens de uma mulher desavergonhada que veste um culote...

- Pois então deixe o portão aberto! - berrou Kindra, perdendo a paciência. - Deixe Cicatriz entrar aqui sem qualquer dificuldade! Quer que eu vá convidá-lo, ou prefere mandar uma de suas filhas?

- Mãe! - protestou uma garota de quinze anos, desvencilhando-se da mão de Janella. - Isso não é maneira de falar... Lilla, Marga, vamos ajudar a boa mestra a fechar o portão!

Elas se juntaram a Kindra, empurraram o pesado portão de madeira, baixaram a tranca. As mulheres choramingavam em consternação. Kindra escolheu uma delas, uma jovem com seis ou sete luas de gravidez, encolhida sob uma manta por cima da cabeça.

- Você! - disse ela, apontando. - Leve todas as crianças para o quarto mais forte lá em cima, tranque as janelas e a porta, não abra até ouvir minha voz, ou a de Janella!

A jovem não se mexeu, ainda soluçando, e Kindra acrescentou, ríspida:

- Depressa! Não fique parada aí como um coelho de chifres congelado na neve! Mexa-se longo, ou vou lhe dar uma surra até deixá-la sem sentidos!

Ela fez um gesto ameaçador, a mulher estremeceu, levantou-se, e conduziu as crianças pela escada. Levou um bebê no colo, e empurrou as outras, com gritos assustados.

Kindra avaliou as outras mulheres apavoradas. Janella era um caso irremediável. Era gorda e esbaforida, olhava ressentida para Kindra, furiosa porque ela fora incumbida de defendê-las. Ainda por cima, tremia

à beira de um pânico que poderia contagiar todas; mas talvez ela se acalmasse se tivesse alguma coisa para fazer.

- Janella, vá para a cozinha, e prepare um ponche de vinho quente - ordenou Kindra. - Os homens vão querer quando voltarem, e com certeza será merecido. Depois, providencie algum pano para ataduras, caso alguém saia ferido. Não se preocupe, pois ninguém fará nada com você enquanto estivermos aqui.

Ela apontou para Lilla, agarrada na saia de Janella, os olhos arregalados em terror.

- Leve-a com você. A presença dela aqui só serviria para nos atrapalhar.

Depois que Janella se retirou, resmungando, a garota apatetada em sua esteira, Kindra olhou para as mulheres robustas que ficaram ali.

- Entrem no estábulo, e empilhem fardos de feno em torno dos cavalos, para que eles não possam tirar os animais com facilidade. Não, deixe a lanterna aí; se Cicatriz e seus homens conseguirem chegar aqui, atearemos fogo a alguns fardos. Isso assustará os cavalos, que poderão matar um ou dois bandidos a coices. De qualquer maneira, vocês poderão escapar enquanto eles pegam os cavalos. Ao contrário do que talvez tenham ouvido, a maioria dos bandidos pensa primeiro nos cavalos e no saque. As mulheres jamais ocupam o primeiro lugar de sua lista. Além do mais, nenhuma de vocês tem jóias ou trajes ricos que eles possam querer levar.

Kindra sabia que qualquer homem que pusesse as mãos nela, com intenção de estupro, haveria de se arrepender no mesmo instante; e se fosse subjugada pelos números, aprendera meios pelos quais podia sobreviver à experiência sem ser destruída; mas aquelas mulheres não tinham essa instrução. Não era certo culpá-las por seu medo.

Eu poderia lhes ensinar isso. Mas as normas de nossa carta o proíbem, e estou obrigada por meu juramento a respeitá-las; mesmo sendo normas que não foram feitas pelas mães da Guilda, mas por homens que temem o que poderíamos dizer às suas mulheres!

Mas talvez, pelo menos, elas considerem uma questão de orgulho poderem defender seus lares contra invasores! Kindra foi acrescentar sua

força ao trabalho de levantar os pesados fardos em torno dos cavalos. As mulheres esqueceram seus medos no árduo esforço. Mas uma delas resmungou, bastante alto para Kindra ouvir:

- Tudo isso não é problema para ela, pois foi treinada para ser uma guerreira, e está acostumada a essas coisas! Mas eu não estou!

Não era tempo de discutir a ética da Guilda, e Kindra limitou-se a perguntar, suavemente:

- Orgulha-se de não ter sido ensinada a defender sua criança? Mas a moça não respondeu, apenas continuou a levantar um pesado

fardo. Não era difícil para Kindra entender o pensamento dela; se não fosse por Brydar, cada homem da aldeia seria capaz de proteger suas mulheres! Kindra pensou, com total repulsa, que aquele era o tipo de raciocínio que fazia com que as aldeias fossem incendiadas, ano após ano, porque nenhum homem devia lealdade a outro, nem defendia qualquer família além da sua. Fora preciso uma ameaça como a de Cicatriz para levar aqueles aldeões a se organizarem o suficiente para contratarem os serviços de uns poucos espadachins de aluguel, e agora suas mulheres protestavam porque eles não eram capazes, cada um em sua porta, de defender sua própria família.

Depois que os cavalos estavam protegidos, as mulheres tornaram a se reunir no pátio, muito nervosas. Kindra foi até o portão trancado, a faca solta na bainha. As outras mulheres permaneceram sob o telhado da cozinha, mas uma delas, a mesma que tivera a iniciativa de ajudar Kindra a fechar o portão, tomou uma súbita decisão; levantou a saia até os joelhos, determinada, entrou na cozinha, pegou uma machadinha de cortar lenha, e foi se postar ao lado de Kindra.

- Annelys! - gritou Janella. - Volte para cá! Fique junto de mim! A jovem lançou um olhar desdenhoso para a mãe, e declarou:

- Se algum bandido escalar o muro, não vai pôr as mãos em mim, nem em «linha irmã, sem enfrentar o aço frio. Não é uma espada, mas acho que até nas mãos de uma garota esta lâmina faria mudá-lo de idéia no mesmo instante! - Ela olhou para Kindra, com um ar de desafio. -Tenho vergonha de todas vocês, deixando que uma mulher sozinha nos defenda! Até mesmo uma coelha de chifres protege sua cria!

Kindra ofereceu-lhe um sorriso jovial.

- Se tem tanta habilidade com essa coisa quanto tem coragem, irmã, eu preferia tê-la a defender minhas costas em vez de qualquer homem. Segure a machadinha com as duas mãos, se chegar o momento de usá-la, e não tente qualquer coisa fantasiosa, apenas desfira um bom golpe nas pernas, como se estivesse cortando uma árvore. Ele não estará esperando por isso, entende?

A noite foi se arrastando. As mulheres se acomodaram em fardos de feno e caixotes, apreensivas, com ocasionais soluços e lágrimas, enquanto ouviam gritos e o choque de espadas lá fora. Só Annelys permaneceu ao lado de Kindra, resoluta, segurando a machadinha. Depois de uma hora, Kindra também sentou num fardo de feno, e disse:

- Não precisa ficar segurando assim, pois isso só a deixará cansada para um combate. Deixe a machadinha encostada no fardo, para poder pegá-la num instante, se houver necessidade.

Annelys perguntou, em voz baixa:

- Como sabe tão bem o que fazer? Todas as Amazonas Livres... preferem outro nome, não é?... como as mulheres da Guilda aprendem? São todas guerreiras, espadachins de aluguel?

- Não, nem todas - respondeu Kindra. - Acontece apenas que eu não tenho outros talentos; não sei tecer nem bordar, e minha eficiência numa horta só funciona no verão. Minha mãe de adoção é uma parteira, que é o nosso ofício mais respeitado; mesmo quem despreza as Renunciantes admite com freqüência que podemos salvar a vida de bebês quando a curandeira da aldeia fracassa. Ela queria me ensinar sua profissão, mas eu também não tinha talento para isso, e me sinto nauseada ao ver sangue...

Ela baixou os olhos para sua faca comprida, recordou os muitos combates que travara, e soltou uma risada. Annelys riu também, um som estranho em contraste com os lamentos assustados das outras mulheres.

- Você. tem medo de ver sangue?

- É diferente - explicou Kindra. - Não suporto o sofrimento quando não posso fazer nada para ajudar, e se um bebê nasce sem problemas não costumam chamar uma parteira da Guilda. Só nos chamam quando a situação é desesperadora. Prefiro lutar contra homens ou animais do que pela vida de uma mulher ou bebê desamparados...

- Acho que eu faria a mesma coisa - comentou Annelys. Kindra pensou: Se eu não estivesse obrigada pelas leis da Guilda, poderia dizer a ela o que somos. E seria um crédito para a Irmandade...

Mas o juramento a manteve em silêncio. Ela suspirou, fitou Annelys, frustrada.

Já começava a pensar que as precauções haviam sido inúteis, que os homens de Cicatriz nunca chegariam ali, quando uma mulher soltou um grito estridente. Kindra virou-se para ver a borla de um gorro de tricô aparecer por cima do muro; depois, dois homens surgiram em cima do muro, as facas presas nos dentes, deixando as mãos livres para a escalada.

- Ah, então foi aqui que esconderam tudo, as mulheres, os cavalos... - grunhiu um deles. - Vá pegar os cavalos, enquanto eu cuido... ei, cuidado!

A advertência foi dada quando ele viu Kindra se aproximar correndo, com a faca levantada. O homem era mais alto do que Kindra; enquanto lutavam, ela só podia se defender, recuando passo a passo, na direção do estábulo. Onde estavam os homens? Por que os bandidos haviam conseguido chegar tão longe? Elas seriam a última defesa da aldeia? Pelo canto dos olhos, ela divisou o outro bandido avançando, com sua espada erguida; tratou de dar volta, recuando cautelosa, a fim de encarar os dois.

Mas nesse instante Annelys soltou um grito estridente, a machadinha faiscou uma vez, e o segundo bandido caiu, uivando, o sangue esguichando da perna. O oponente de Kindra titubeou ao grito; ela aproveitou para golpeá-lo no ombro, e pegou sua faca, quando ele a deixou cair da mão inerte. O homem caiu para trás, e Kindra pulou em cima dele.

- Annelys! - gritou ela. - Vocês, mulheres! Tragam cordas, qualquer coisa para amarrá-los... outros podem aparecer...

Janella se adiantou com uma corda de varal. Recuou enquanto Kindra amarrava o homem, e olhou para o outro bandido, caído numa poça de seu próprio sangue. Sua perna fora quase cortada, na altura do joelho. Ele ainda respirava, mas já não tinha mais condições de gemer, e morreu enquanto as mulheres o observavam. Janella fitou Annelys, horrorizada, como se sua jovem filha tivesse de repente adquirido uma             segunda cabeça.

- Você o matou - balbuciou ela. - Cortou sua perna!

- Preferia que ele tivesse cortado a minha, mãe? - perguntou Annelys, inclinando-se em seguida para examinar o outro bandido. -Ele só foi ferido no ombro. Viverá para ser enforcado.

Respirando com dificuldade, Kindra empertigou-se, deu um puxão final na corda. Olhou para Annelys, e disse:

- Salvou minha vida, irmã.

A moça sorriu, excitada, os cabelos caindo sobre os olhos. O granizo começou a cair no pátio. Subitamente, Annelys passou os braços em torno de Kindra, que retribuiu ao abraço, ignorando a expressão perturbada da mãe.

- Uma das nossas não poderia ter feito melhor. Meus agradecimentos, irmã.

A moça fizera por merecer o agradecimento e aprovação, e se Janella as fitava como se Kindra fosse uma depravada sedutora de meninas, então tanto pior para Janella! Ela deixou o braço da moça estendido por seus ombros, e disse:

- Escutem... acho que os homens estão voltando.

Um minuto depois ouviram o chamado de Brydar, e foram abrir o portão. Os homens traziam mais de uma dúzia de bons cavalos. Brydar riu, e comentou:

- Os homens de Cicatriz não terão mais uso para eles, e com isso estamos bem pagos. Ah, vocês, mulheres, pegaram os últimos deles?

Ele olhou para o bandido morto na poça de sangue, e depois para o outro, amarrado com a corda de varal de Janella.

- Bom trabalho, mestra. Providenciarei para que tenha uma parte dos despojos.

- A moça ajudou - disse Kindra. - Eu teria morrido sem ela.

- Um deles matou meu pai, e acabei de cobrar a dívida, mais nada! - Annelys falou com veemência, virou-se para Janella em seguida, e ordenou: - Mãe, traga o ponche de vinho para os nossos defensores!

Os homens de Brydar sentaram por toda a sala comum, bebendo o vinho quente, agradecidos. Brydar largou sua caneca numa mesa, esfregou os olhos com as mãos, cansado.

- Alguns dos meus homens estão feridos, Dama Janella. Tem alguém aqui com experiência em tratar de ferimentos? Vamos precisar de ataduras, talvez ungüentos e ervas. Também...

Ele parou de falar, quando um dos homens chamou-o da porta, com urgência, e saiu apressado.

Annelys foi entregar uma caneca a Kindra, que tomou um gole, e descobriu que não era o ponche feito por Janella, mas um vinho delicado e dourado das montanhas. Kindra bebeu devagar, sabendo que a moça queria lhe dizer alguma coisa. Annelys sentou à sua frente, tomando um gole de vez em quando do ponche quente em sua própria caneca. As duas relutavam em se separar.

Ah, malditas sejam as leis idiotas que nos impedem de falar sobre a Irmandade! Ela é boa demais para este lugar, para esta mãe tola; a idiotada da Lilla é mais do que sua mãe precisa para ajudá-la a dirigir a estalagem. É bem provável que Janella a case com algum matuto o mais depressa possível, só para ter um homem aqui! Mas a honra exigia que ela se mantivesse em silêncio. Contudo, observando Annelys, pensando na vida que a moça levaria ali, Kindra não pôde deixar de se perguntar, perturbada, que tipo de honra era aquela, que determinava que uma pessoa como Annelys fosse deixada num lugar tão atrasado.

Mas ela logo refletiu que era uma lei sábia; ou pelo menos fora formulada por cabeças mais sábias do que a sua. Se não fosse assim, concluiu Kindra, muitas garotas seriam atraídas pela perspectiva de uma vida de emoções e aventuras, e poderiam ingressar na Irmandade sem terem pleno conhecimento das dificuldades e renúncias que as aguardavam. O nome Renunciante não era gratuito, pois não era uma vida fácil; e considerando a maneira como Annelys a fitava, era bem possível que ela a seguisse apenas por idolatria. O que não seria certo. Kindra suspirou.

- Creio que as emoções acabaram por esta noite - disse ela. -Devo me deitar agora, pois terei uma longa viagem pela frente amanhã.

Escute só o barulho! Eu não sabia que um dos homens de Brydar fora ferido com gravidade...

- Parece mais uma discussão do que homens gritando de dor -sugeriu Annelys, prestando atenção aos gritos e protestos. - Será que estão brigando pelos despojos?

A porta foi aberta abruptamente, e Brydar das Colinas Fen voltou à sala.

- Mestra, perdoe-me, sei que está exausta...

- E bastante, mas depois de toda essa gritaria, não é provável que eu consiga dormir. Em que posso ajudá-lo?

- Eu lhe suplico... pode me acompanhar? É o garoto... o jovem Marco. Ele foi ferido, gravemente, mas não quer nos deixar tratá-lo enquanto não falar com você. Diz que tem uma mensagem urgente, muito urgente, que deve transmitir antes de morrer...

- Pela misericórdia de Avarra! - exclamou Kindra, chocada. -Quer dizer que ele está morrendo?

- Não sei, porque ele não nos deixar examinar o ferimento. Se fosse razoável e nos deixasse tratá-lo... mas está sangrando como um chervine retalhado, e ameaçou cortar a garganta de qualquer homem que tente tocá-lo. Tentamos imobilizá-lo para fazer um curativo à força, mas ele se debateu tanto que a hemorragia aumentou... Não podemos esperar mais. Quer vir comigo, mestra?

Kindra fitou-o, com uma indagação, pois nunca imaginara que Brydar seria tão indulgente com qualquer homem de seu bando. Ele disse no mesmo instante, na defensiva:

- O rapaz não é nada para mim, nem irmão de adoção, nem parente, nem mesmo amigo. Mas lutou ao meu lado, é corajoso; e foi ele quem matou Cicatriz, em combate pessoal. Agora, pode morrer por causa disso.

- Mas por que ele quer falar comigo?

- Ele diz, mestra, que é um problema envolvendo sua irmã. E lhe pede, em nome de Avarra, a piedosa, que vá ao seu encontro. Marco é quase bastante jovem para ser seu filho.

- Está certo - concordou Kindra, finalmente.

Ela não vira o próprio filho desde que ele tinha oito dias de idade; e o menino ainda seria jovem demais para empunhar uma espada.

- Não posso recusar o pedido de alguém que me suplica em nome da Deusa.

Kindra levantou-se, franzindo o rosto; o jovem Marco dissera que não tinha irmã. Não, não fora bem assim: ele dissera que não havia ninguém agora a quem pudesse chamar de irmã. O que podia ser bem diferente.

Na escada, ela ouviu a voz de um dos homens de Brydar, argumentando:

- Não vamos machucá-lo, rapaz, mas se não cuidarmos desse ferimento, você pode morrer, entende?

- Fique longe de mim! Juro pelos infernos de Zandru e pelas tripas derramadas de Cicatriz morto que enfiarei esta faca na garganta do primeiro homem que me tocar!

Lá dentro, à luz de uma tocha, Kindra viu Marco meio sentado, meio deitado numa enxerga de palha. Tinha uma adaga na mão, e mantinha os outros à distância, mas estava pálido como a morte, a testa coberta por um suor gelado. A enxerga se avermelhava com uma poça de sangue. Kindra conhecia o suficiente de ferimentos para saber que o corpo humano podia perder mais sangue do que a maioria julgava possível sem um grave perigo; mas para qualquer pessoa comum a situação parecia alarmante. Marco olhou para Kindra, e balbuciou:

- Mestra, eu suplico... preciso lhe falar a sós...

- Isso não é jeito de falar com um camarada, rapaz - disse um dos mercenários, ajoelhando-se por trás dele, enquanto Kindra se ajoelhava ao lado da enxerga.

O ferimento era no alto da coxa, perto da virilha; o culote de couro contivera.um pouco a hemorragia, ou o rapaz teria sofrido o mesmo destino do homem atingido pela machadinha de Annelys.

- Seu tolo - murmurou Kindra. - Não posso fazer por você nem a metade do que seu amigo é capaz.

Os olhos de Marco fecharam-se por um momento, de dor ou fraqueza. Kindra pensou que ele perdera a consciência, e gesticulou para o homem por trás.

- Depressa agora, enquanto ele está sem sentidos... Mas os olhos torturados tornaram a se abrir.

- Você também ia me trair?

Marco gesticulou com a adaga, mas tão fraco que Kindra ficou chocado. Não havia tempo a perder. A melhor coisa era atendê-lo.

- Saiam todos - disse Kindra. - Conversarei com ele, e se não quiser escutar, já tem idade suficiente para arcar com as conseqüências de sua loucura.

Os homens se retiraram, e ela acrescentou:

- Espero que seja mesmo muito importante para que arrisque sua vida, garoto tolo!

Mas uma grande e terrível suspeita já aflorara na mente de Kindra.

- Sabe o quanto é provável que esse ferimento seja mortal? Não tenho a menor habilidade com essas coisas, e seus camaradas poderiam cuidá-lo melhor.

- Sei que será a morte para mim, a menos que você me ajude -balbuciou a voz rouca, cada vez mais fraca. - Nenhum desses homens é bastante camarada para que eu possa confiar nele... mestra, ajude-me, eu lhe suplico, em nome da misericordiosa Avarra... sou uma mulher!

Kindra respirou fundo. Já começara a desconfiar... e agora tinha a confirmação.

- E nenhum dos homens de Brydar sabe...

- Nenhum. Convivo com eles há meio anos, e não creio que qualquer um desconfie... e temo as mulheres ainda mais. Mas achei que poderia confiar em você...

- Pode contar comigo - murmurou Kindra. - Sou obrigada por juramento a jamais recusar ajuda a qualquer mulher que me peça ajuda, em nome da Deusa. Mas deixe-me ajudá-la agora, minha pobre moça, e ore a Avarra para que não tenha demorado demais.

- Mesmo que seja... prefiro morrer como uma mulher do que... desgraçada e desmascarada. Já conheci tanta desgraça...

- Fique quieta, criança!

Mas ela caiu de costas na enxerga; desmaiara de fato desta vez, finalmente. Kindra cortou o culote de couro, examinou o ferimento que se estendia da coxa ao monte púbico. Sangrara bastante, mas Kindra concluiu que não era fatal. Ela pegou uma das toalhas limpas que os homens haviam trazido, comprimiu-a contra o ferimento; quando a hemorragia quase parará, Kindra franziu o rosto, refletindo que haveria necessidade de pontos. Hesitava em fazê-lo, pois tinha pouca habilidade nessas coisas, e um dos homens do bando de Brydar sem dúvida seria mais competente e meticuloso; mas também sabia que era exatamente isso o que aquela mulher temia, ser manuseada e desmascarada por homens. Kindra pensou: Se pudesse ser jeito antes que recupere os sentidos, ela não precisaria saber... Mas prometera à moça, e cumpriria sua promessa. A moça não se mexeu quando ela saiu para o corredor. Brydar apareceu no meio da escada.

- Qual é a situação:

- Mande Annelys vir até aqui - pediu Kindra. - Diga a ela para trazer fio de linho e uma agulha, ataduras, água quente e sabão.

Annelys tinha coragem e força; e ainda mais importante, saberia guardar um segredo, se Kindra lhe pedisse, em vez de comentar a descoberta. Brydar indagou, em voz baixa, que não se projetava além do ouvido de Kindra:

- É uma mulher... não é mesmo? Franzindo o rosto, Kindra perguntou:

- Esteve escutando a conversa?

- Claro que não. Mas tenho o cérebro com que nasci, e me lembrei de algumas coisas. Pode pensar em qualquer outro motivo para que um membro do meu bando não nos deixe vê-lo sem o culote? Quem quer que ela seja, tem coragem suficiente por dois homens!

Kindra balançou a cabeça, consternada. No final das contas, todo o sofrimento da moça fora inútil, pois o escândalo e desgraça seriam inevitáveis.

- Brydar, você prometeu que minha participação seria recompensada. Deve-me isso, ou não?

- Claro que devo.

- Pois então jure por sua espada que nunca abrirá a boca sobre isso, e estou paga. Acha justo?

Brydar sorriu.

- Não vou privá-la de sua recompensa por isso. Acha que quero que se espalhe por toda a região que Brydar das Colinas Fen não sabe distinguir homens de mulheres? O jovem Marco cavalgou com meu bando por meio ano, e provou ser um homem de verdade. Se sua irmã de adoção, parenta, prima, ou como quer que você queira se intitular, resolve tratá-lo pessoalmente, e levá-lo para casa em seguida, o que meus homens podem dizer? Não posso admitir que ninguém fique pensando que uma mulher matou Cicatriz debaixo do meu nariz!

Ele pôs a mão no punho da espada, e arrematou:

- Que Zandru deixe esta mão trêmula se eu disser qualquer palavra a respeito. Mandarei Annelys vir até aqui.

       Brydar se retirou, e Kindra voltou para junto da moça. Ela ainda estava inconsciente. Quando Annelys entrou, Kindra disse, bruscamente:

- Segure o lampião ali; quero dar os pontos antes que ela recupere a consciência. E tente não vomitar, nem desmaiar; o serviço tem de ser feito depressa, ou precisaremos imobilizá-la à força.

Annelys soltou uma exclamação de espanto à visão da moça e do ferimento, que recomeçara a sangrar.

- Uma mulher! Abençoada Evanda! Ela é de sua Irmandade, Kindra? Sabia disso?

- Não às duas perguntas. Ilumine aqui...

- Deixe comigo. Já fiz isso muitas vezes, e tenho as mãos firmes. Uma ocasião, quando meu irmão se feriu na coxa, ao cortar lenha, eu mesma costurei. Além disso, sempre ajudo a parteira. Segure o lampião você.

Aliviada, Kindra entregou a agulha. Annelys começou a dar os pontos, com extrema habilidade, como se bordasse uma almofada. No meio do processo, a moça recuperou a consciência, e soltou um grito de pavor. Mas Kindra lhe falou, ela se controlou, ficou imóvel, mordendo o

lábio, apertando a mão da mulher mais velha. Um instante depois, ela umedeceu os lábios, e sussurrou:

- Ela é uma das suas, mestral

- Não, criança, assim como você. Mas é uma amiga, e não contará a ninguém, tenho certeza - garantiu Kindra, confiante.

Depois que terminou, Annelys foi buscar um copo de vinho para a mulher, segurou sua cabeça, enquanto ela bebia. Um pouco de cor voltou às faces pálidas, a respiração se tornou mais fácil. Annelys estendeu uma de suas camisolas.

- Acho que ficará mais confortável nisto. Gostaria de poder levá-la para a minha cama, mas é melhor não movê-la por enquanto. Kindra, ajude-me a levantá-la.

Com um travesseiro e lençóis limpos, ela se empenhou em tornar a enxerga de palha mais confortável.

A estranha fez um murmúrio de protesto quando começaram a despi-la, mas estava fraca demais para resistir. Kindra ficou aturdida quando tirou a túnica de baixo. Nunca teria acreditado que qualquer mulher com mais de quatorze anos fosse capaz de passar por homem entre homens; contudo, aquela mulher conseguira, e agora ela compreendia como. A forma revelada era lisa, sem seios; os ombros tinham a musculatura endurecida de qualquer espadachim. Havia mais cabelos nos braços do que a maioria das mulheres teria tolerado sem remover de alguma forma. Annelys também se mostrou espantada, e a mulher, percebendo a reação das duas, escondeu o rosto no travesseiro. Kindra disse, um tanto ríspida:

- Não precisa ficar olhando assim. Ela é emmasca, isso é tudo. Nunca ouviu falar a respeito antes?

A operação de neutralização era ilegal em Darkover, e perigosa; e naquela mulher devia ter sido feito antes ou pouco depois da puberdade. Kindra tinha uma porção de perguntas, mas a cortesia a proibia de fazê-las.

- Mas... mas.. - sussurrou Annelys. - Ela nasceu desse jeito, ou foi feita assim? É ilegal... quem ousaria...

- Fiz uma operação - informou a moça, o rosto ainda oculto no travesseiro. - Se tivesse nascido assim, nada teria a temer... e optei por me tornar dessa maneira para nunca mais precisar temer coisa alguma! Ela contraiu os lábios quando a levantaram e viraram. Annelys soltou uma exclamação alta ao ver as cicatrizes nas costas da mulher, como marcas de chicotadas. Mas não disse nada, apenas cobriu com sua camisola, compadecida, a revelação assustadora das cicatrizes. Gentil-mente, lavou o rosto e as mãos da mulher. Os cabelos de um louro avermelhado estavam escuros de suor, mas nas raízes Kindra viu outra coisa: os cabelos cresciam vermelhos como fogo.

Comyn. A casta dos telepatas, de cabelos vermelhos... essa mulher era nobre, nasceu para reinar nos Domínios de Darkover!

Em nome de todos os Deuses, especulou Kindra, quem pode ser ela, o que lhe aconteceu? Como veio parar aqui, disfarçada, os cabelos pintados para que ninguém pudesse adivinhar sua linhagem? E quem a maltratou tanto? Deve ter sido espancada como um animal...

E depois, chocada, ela sentiu as palavras se formando em sua mente, sem saber como.

Cicatriz-, explicou a voz em sua mente. Mas agora estou vingada. Mesmo que acarrete minha morte...

Kindra sentia-se assustada; nunca antes captara nada com tanta clareza. Seu dom telepático rudimentar sempre fora uma questão de rápida intuição, pressentimento, palpite afortunado. Ela sussurrou, em horror e consternação:

- Pela Deusa! Criança, quem é você?

O rosto pálido se contraiu numa careta que Kindra reconheceu, horrorizada, ser um arremedo de sorriso.

- Eu... não sou ninguém. Pensava em mim mesma como a filha de Alaric Lindir. Já ouviu a história?

Alaric Lindir. A família Lindir era orgulhosa e rica, aparentada com a família Aillard, do Comyn. Gente muito importante para Kindra ter algum conhecimento pessoal; possuíam o sangue antigo de Hastur.

- É verdade, uma família orgulhosa - murmurou a mulher. - O nome de minha mãe era Kyria, irmã mais nova de Dom Lewis Ardais... não o Lorde de Ardais, mas seu irmão caçula. Ainda assim, era de linhagem tão nobre que ao se descobrir que esperava criança de um dos lordes de Hastur, em Thendara, levaram-na para casar às pressas com Alaric Lindir. E meu pai... o homem que sempre acreditei ser meu pai... orgulhava-se de sua filha de cabelos vermelhos. Durante toda a minha infância ouvi como ele tinha orgulho de mim, porque eu casaria no Comyn, ou iria para uma das Torres, e me tornaria uma poderosa leronis ou Guardiã. E de repente... apareceram Cicatriz e seu bando, saquearam o castelo, levaram algumas mulheres. Quando Cicatriz descobriu quem era uma de suas cativas... o mal já estava feito, mas ainda assim ele pediu resgate a meu pai. E meu pai, aquele mesmo Dom Alaric que não tinha palavras de orgulho suficientes para sua filha de cabelos vermelhos, que confirmaria suas ambições por um casamento no Comyn, meu pai... Ela engasgou por um instante, mas logo continuou:

- Ele mandou dizer que se Cicatriz pudesse me garantir... intacta... então pagaria um resgate alto; mas se não, ele se recusava a pagar qualquer coisa. Pois se eu estivesse... arruinada... não teria qualquer uso para ele, e Cicatriz podia me enforcar, ou me entregar a um de seus homens, como achasse melhor.

- Sagrado Portador dos Fardos! - sussurrou Annelys. - E esse homem a criara como sua própria filha?

- Isso mesmo... e eu pensava que ele me amava - disse a moça, o rosto tornando a se contorcer.

Kindra fechou os olhos, em horror, vendo o homem que acolhera feliz a bastarda de sua esposa... mas apenas enquanto ela pudesse ajudar em suas ambições! Os olhos de Annelys estavam marejados de lágrimas.

- Que coisa terrível! Como algum homem...

- Passei a acreditar que qualquer homem seria capaz disso, -declarou a moça, - pois Cicatriz se mostrou tão furioso com a recusa de meu pai que me entregou a um dos seus homens como diversão, e puderem ver como ele me usou. Esse eu matei uma noite, enquanto ele dormia, depois que finalmente se convenceu de que me espancara até a submissão... e assim consegui fugir, voltei para minha mãe, que me recebeu com lágrimas e compaixão, mas vi em sua mente que seu maior medo agora era o de que pudesse envergonhá-la, se estivesse esperando um bastardo de Cicatriz. Ela temia que meu pai dissesse tal mãe, tal filha, e minha desgraça ressuscitaria a história da sua. E não pude perdoar minha mãe... por ela continuar a amar e a viver com aquele homem que me rejeitara, me condenara a tal destino. Procurei uma leronis, que se compadeceu de mim... ou talvez ela também quisesse ter certeza de que eu não desgraçaria meu sangue Comyn, ao me tornar uma prostituta ou amásia de um bandido... e me fez uma emmasca, como puderam ver. Juntei-me aos homens de Brydar, e assim alcancei minha vingança...

Annelys estava chorando, mas o rosto da moça era como pedra. Aquela calma era mais terrível do que a histeria; já se encontrava além das lágrimas, num lugar em que pesar e satisfação eram a mesma coisa, em que se usava a máscara da morte. Kindra murmurou:

- Você se encontra segura agora, ninguém lhe fará mal. Mas não deve mais falar, pois está fraca da perda de sangue. Tome o resto do vinho, criança, e trate de dormir.

Ela sustentou a cabeça da moça enquanto esta bebia o vinho, dominada pelo horror. Mas também sentia admiração. Cativa, espancada, violada, depois rejeitada, aquela moça recuperara a liberdade matando um dos bandidos; sobrevivera à posterior rejeição da família para tramar sua vingança, e a executara, como só um nobre seria capaz de fazer.

E o orgulhoso Comyn rejeitou esta mulher? Ela possui a coragem de dois de seus homens juntos! É o tipo de orgulho e insensatez que um dia fará com que o reinado do Comyn desmorone em ruínas! Kindra estremeceu, com um estranho medo premonitório, vendo com seu dom telepático cada vez mais intenso uma imagem de chamas sobre as Hellers, estranhas naves celestes, alienígenas andando pelas ruas de Thendara vestidos de couro preto...

Os olhos da mulher fecharam, suas mãos apertaram as de Kindra, e ela sussurrou:

- Tive minha vingança, agora posso morrer. E com meu último sopro eu a abençoarei, porque me permitiu morrer como uma mulher, não num disfarce odiado, entre homens...

- Mas não vai morrer - murmurou Kindra. - Tenho certeza que viverá, criança.

- Não! - O rosto da mulher se contraía em linhas obstinadas de recusa. - O que a vida reserva a uma mulher sem amigos e sem parentes? Pude suportar viver sozinha, em segredo, entre homens, disfarçada, enquanto acalentava o pensamento da minha vingança, que me fortalecia naquela... farsa diária. Mas odeio os homens, abomino a maneira como falam das mulheres entre eles. Prefiro morrer a voltar ao bando de Brydar, ou continuar a viver entre homens.

- Mas agora que está vingada, - disse Annelys, - pode tornar a viver como uma mulher.

Outra vez ela balançou a cabeça.

- Viver como uma mulher, sujeita a homens como meu pai? Suplicar abrigo à minha mãe, que pode me dar pão em segredo, para que eu não os desgrace ainda mais morrendo em sua porta, mas me manteria escondida, fazendo um trabalho servil, costurando ou bordando, depois que vagueei livre com um bando de mercenários? Ou viver como uma mulher solitária, à mercê dos homens? Prefiro enfrentar ? misericórdia da nevasca e do banshee, o pássaro-espírito!

Ela tornou a apertar a mão de Kindra, e reiterou:

- Prefiro morrer.

Kindra puxou a moça para seus braços, comprimiu-a contra seu peito.

- Fique quieta, criança. Está exausta, e não deve falar assim. Vai se sentir diferente depois de dormir.

Mas Kindra podia sentir o desespero da mulher em seus braços, e sua raiva transbordou. As leis da Guilda proibiam-na de falar da Irmandade, de explicar àquela moça que poderia viver livre, protegida pela carta das Renunciantes, nunca mais ficaria à mercê de qualquer homem. As leis da Guilda que ela não podia violar, o juramento que tinha de cumprir. E, no entanto, num nível mais profundo, não estaria violando o juramento se nada dissesse àquela mulher, que tanto arriscara, que apelara em nome da Deusa, se negasse o conhecimento que poderia lhe proporcionar a vontade de viver?

O que quer que eu jaca, será uma violação do juramento; ou por recusar ajuda a essa moça, ou por falar quando sou proibida por lei de dizer qualquer coisa.

A lei! A lei feita por homens, que ainda a pressionavam por todos os lados, embora tivesse se livrado das leis ordinárias, pelas quais os homens forçavam as mulheres a viver! E ela seria duplamente culpada se falasse da Guilda na presença de Annelys, apesar de Annelys ter lutado a seu lado. A lei das Hellers protegeria Annelys desse conhecimento; haveria problemas para a Irmandade se Kindra atraísse a filha de um respeitável estalajadeiro, cuja mãe precisava dela... e também da ajuda de seu futuro marido, para cuidar da estalagem.

Contra seu peito, a moça ferida tornara a fechar os olhos. Kindra captou o tênue fio de seus pensamentos; sabia que a casta dos telepatas podia encontrar a morte por um esforço da vontade... como aquela moça desejara viver, apesar de tudo o que lhe acontecera, até alcançar sua sonhada vingança.

Deixe-me dormir... e posso acreditar que voltei aos braços de minha mãe, nos dias em que ainda era sua criança, em que todo o horror ainda não me atingira... Deixe-me dormir, para nunca mais despertar...

Ela já começava a definir, e por um momento, em desespero, Kindra, sentiu-se tentada a deixá-la morrer. A lei me proíbe de falar. E se falasse, Annelys, já dominada pela idolatria por Kindra, já se rebelando contra o destino de uma mulher, depois de experimentar o orgulho de se defender, Annelys também a seguiria. Kindra compreendeu isso, com um tremor estranho e premonitório.

Ela deixou que a raiva fluísse e transbordasse. Sacudiu a desconhecida, até despertá-la, sabendo que ela já estava morrendo, por sua vontade.

- Escute! Tem de me escutar! Não deve morrer! Não depois que sofreu tanto! É o caminho de uma covarde, e você provou muitas vezes que não é covarde!

- Mas eu sou covarde - declarou a mulher. - Covarde demais para viver da única maneira como uma mulher como eu pode viver... através da caridade de mulheres como a minha mãe... ou à mercê de homens como meu pai e Cicatriz! Sonhei que poderia encontrar outro meio, depois de obter minha vingança, mas não existe nenhum!

E a raiva e a determinação de Kindra não puderam mais ser controladas. Ela olhou desesperada por cima da cabeça da mulher para os olhos assustados de Annelys. Engoliu em seco, sabendo da gravidade do passo que estava prestes a dar.

- Há... pode haver outro meio - murmurou ela, ainda contemporizando. - Nem mesmo sei seu nome... qual é?

- Não tenho nome - declarou a mulher, o rosto como pedra. -Jurei que nunca mais pronunciaria o nome que me foi dado pelo pai e a mãe que me rejeitaram. Se eu vivesse, assumiria outro nome. Pode me chamar como quiser.

E com um ímpeto de ira, Kindra tomou sua decisão. Tornou a puxar a moça contra seu peito, e disse:

- Eu a chamarei de Camilla, pois deste dia em diante juro que serei sua mãe e irmã, como a abençoada Cassilda foi para Camilla. E você não vai morrer, Camilla.

Kindra respirou funda, determinada, segurando a mão de Camilla, enquanto estendia a outra para Annelys.

- Minhas irmãs, deixem-me lhes falar sobre a Irmandade das Mulheres Livres, o que os homens chamam de Amazonas Livres. Deixem-me falar sobre os costumes das Renunciantes, obrigadas pelo Juramento, as Comhi-Letzii...

 

Para o terráqueo Jeff Kerwin, o planeta distante do qual se lembrava apenas como um sonho de infância era o seu lar. Mas quando anos de planejamento finalmente o levaram de volta a Darkover, Jeff descobriu que não havia paz para ele ali... não para alguém que tinha ao mesmo tempo os cabelos vermelhos de um lorde do Comyn e sangue terráqueo de um bastardo em suas veias; não para alguém que tinha uma pedra de matriz darkovana sem saber de onde vinha; não para alguém que conseguiu conquistar a confiança da sagrada Guardiã e conheceu os segredos de sua Torre, apenas para ser acusado de revelá-los a seus superiores terráqueos...

 

[1] Essa história é contada em A Torre Proibida.

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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