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O SOLAR DOS CASTANHEIROS / Max Du Veuzit
O SOLAR DOS CASTANHEIROS / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SOLAR DOS CASTANHEIROS

 

                   Lisboa – 1976, 4 de Abril

Hoje, de manhã, deixo o convento para sempre. Alegria! Felicidade! As religiosas despediram‑se de mim, com os olhos marejados de lágrimas...

Yvonne du Boussou disse‑me: "‑ Bravo! Estás com sorte! Eu ainda cá fico quinze meses!"

Marta Charmin murmurou‑me ao ouvido: "‑ Boa sorte! Trata de desencantar depressa um noivo e convida‑me para o casamento...".

Lucy Kabd declarou, abraçando‑me: "‑ Como nos vamos aborrecer, agora, sem ti! Quando uma sai, que tristeza!..."

E, por fim, Susana de Vouzon, a minha preferida entre todas, disse‑me adeus, soluçando: "‑ Escrever‑me‑ás muitas vezes, sim?..."

Prometi... E, a despeito da minha alegria por me evadir, sentia dentro de mim qualquer coisa por deixar as quatro amigas.

 

                    6 de Abril

Enfim, livre!

Estou desde ontem nas Torrinhas, junto da minha querida mãe e da nossa velha criada Felícia. Reina por toda a casa um grande silêncio... Sempre o mesmo silêncio doloroso que me impressionava tanto quando era pequena. As nossas paredes ocultam lágrimas, suspiros e pesares. Minha mãe, eternamente vestida de preto, conserva no coração, no rosto, na voz, nos gestos e no fato, o luto pelo marido adorado que morreu no mar, após quatro anos de felicidade, sem nuvens; quando acabava de ser mãe, tinha apenas vinte e três anos e tudo parecia responder, na vida, aos seus sorrisos e desejos...

E passara‑se isto, havia quinze anos! Decorreram dias, meses e anos; e a alegria nunca mais voltou à grande casa silenciosa...

 

                    7 de Abril

Tomei três grandes resoluções esta manhã: sacudir a sombra do passado, despertar a casa adormecida, e... tarefa talvez mais difícil, mas certamente mais suave... fazer sorrir minha mãe.

 

                   8 de Abril

O meu nome? Solange de Borel. A minha idade? Dezoito anos. O meu retrato? Alta, delgada e loura. Cabelos ao vento, pele clara, olhos estranhos... como avelãs.

É isso mesmo; tenho os olhos cor de avelã madura, ou de ouro velho acastanhado. No colégio falava‑se muito a esse respeito!

 

 

                   9 de Abril

As Torrinhas é o nome de um pequeno solar, onde minha mãe nasceu. Um parque, uma casa quadrada, com quatro sinos nos telhados de ardósia; uma horta e um prado. Eis as Torrinhas. No parque existe um mirante de onde se avista todo o vale em redor. É o meu lugar predilecto. Nessa casa há um delicioso quartozinho, estilo Pompadour, que é o meu. E no prado pastam, em boas relações, um grande e fogoso cavalo e uma bonita égua baia que habitualmente se presta ao tiro e que vou aprender a montar.

Eis, por agora, os meus três reinos.

 

                   11 de Abril

Dei hoje a primeira lição de equitação. É o filho do nosso antigo mordomo... porque nós já fomos muito ricos... quem me ensina. Chama‑se Bernardo Sauvage e tem quarenta e cinco anos, pouco mais ou menos. É um antigo sargento reformado, que floreia a sua conversa carregando nas consoantes, como rufos de tambor:

‑ At... t... tenção! Vai ca... ir... r!...

Minha mãe deposita nele ilimitada confiança. Como não quer que eu saia só nem que fique sempre fechada nas Torrinhas, e como não pode nem quer ir comigo, pediu a Sauvage que me acompanhasse. Este vive sozinho, de um modesto rendimento, numa casinha situada do outro lado do vale e no meio dos bosques. Quando minha mãe o chamou, correu, orgulhoso e radiante pela missão de confiança que ela lhe dava. Oh! Que bom olhar de cão dedicado aquele em que me envolveu quando lhe disse, reatando o conhecimento, com um bom aperto de mão:

‑ Sinto‑me feliz em tê‑lo por companheiro nos meus passeios, Sauvage. Quantas excursões iremos fazer!

‑ Oh! menina, eu é que me sinto muito... muito feliz! Mal imagina a senhora de Borel a felicidade que isso me causou!...

E o pobre homem estava tão comovido que tinha os olhos cheios de lágrimas. Fiquei deveras impressionada com esta silenciosa comoção. Meu velho Sauvage! Nem calculas a espontânea simpatia que inspiraste à menina a quem vais servir de mentor...

 

                   13 de Abril

Recebi esta manhã uma carta muito afectuosa de Susana, na qual me anuncia, pomposamente, que as religiosas, conformando‑se com o progresso, que mete o desporto em tudo, tomaram um professor de ginástica para o colégio. Essas meninas vão fazer ginástica. Bravo! Eu vou fazer equitação. Duas vezes bravo!

 

                   14 de Abril

Isto vai óptimo! Começo a aguentar‑me muito bem em cima da Mascote!

 

                   18 de Abril

O meu equitador está maravilhado! Diz que sou uma amazona consumada e que, amanhã, daremos o primeiro passeio fora do parque. Como estou contente !

 

                   19 de Abril

Esta manhã saí a cavalo, das Torrinhas, corada de alegria. Minha mãe, um pouco apreensiva, viu‑me partir. Receava tanto que a minha inexperiência não soubesse conter Mascote, quando passasse qualquer carro ou algum ruidoso automóvel!

‑ Então, Bernardo? Vou bem?

‑ Muito bem, menina. Dir‑se‑ia que monta desde que nasceu.

Sinto‑me orgulhosa! Mas, confesso que, cá por dentro, não fico muito tranquila quando Mascote arrebita as orelhas e a sinto tremer, cheia de uma impaciente necessidade de galopar. A presença de Milord, que Bernardo monta a meu lado, parece electrizá‑la:

‑ Tão depressa não, menina! Habitue‑se primeiro à estrada e às passagens dos carros.

Mas não era a mim a quem Sauvage devia dizê‑lo, era à Mascote.

 

                   25 de Abril

Agora Já damos grandes passeios a cavalo. A pouco e pouco fomos até Thierville, a cabeça do cantão, dezasseis quilómetros ida e volta. O tempo estava delicioso. O céu azul; os pássaros cantavam fazendo os ninhos; as árvores cheias de flores, a formarem grandes ramos brancos e cor‑de‑rosa, cortando a verdura delicada das folhas de Abril. Tudo era alegria da Natureza que embelezava as novidades... E, contudo, a minha alma estava triste! Saira alegre, descuidada, como todos os dias. Sauvage, a meu lado, manifestava a mesma serenidade. Mas um passado doloroso ia tocar‑nos com a sua sombra. Bastara uma simples palavra para o atrair e fazer reviver, porque as palavras escapam‑se, multiplicam‑se e tornam‑se frases... despertam pensamentos... recordações que fazem sofrer... Descemos o vale e subimo‑lo a leste por uma larga estrada cheia de sombra, através dos bosques.

‑ Isto é delicioso! ‑ exclamei ‑ Como se chama este sítio, Bernardo?

Sauvage olhou para mim um pouco surpreendido, e demorou em responder.

‑ Neste momento vamos atravessando os Castanheiros, menina ‑ disse apenas.

Os Castanheiros. Este nome despertava, bruscamente, em mim, confusas recordações.

‑ Esta propriedade era de meu pai, não era? ‑ perguntei um pouco embaraçada por não ter reconhecido nem adivinhado aquilo que tão bem deveria conhecer.

‑ Pois claro! ‑ volveu Bernardo como única resposta, em tom um pouco contrariado.

Evitava olhar para mim, como se o assunto lhe tivesse desagradado, e começou a assobiar.

Fiquei pensativa. De repente, inúmeras recordações me assaltaram, nas quais, confesso, até então não pensara.

Os Castanheiros... meu pai!... Como estas duas palavras vinham de longe ao meu pensamento. Ninguém as pronunciava diante de mim. Porquê?

Meu pai! Os Castanheiros. Sabia que aquele grande solar pertencera à minha família e que deixámos de o habitar desde a morte de meu pai.

O assunto era triste, mas já distante. O tempo passara, trazendo novos horizontes ao meu cérebro de criança... Em resumo, uma espécie de esquecimento voluntário deixava na sombra a recordação de meu pai e da propriedade que nos pertencera.

Mas a fatalidade impele‑nos. A mão do acaso colocou‑se, pesadamente, sobre o meu ombro e fez‑me estremecer, ouvindo esse nome quase esquecido e quase indiferente para mim: O Solar dos Castanheiros!

Acudiram‑me ao pensamento reminiscências da minha mais tenra infância, fazendo nascer uma impulsiva e inesperada necessidade de falar delas.

E, sem me poder conter, voltei‑me para o meu companheiro, interroguei‑o, sem pensar que as minhas perguntas fora de propósito iam desencadear uma tempestade na minha existência, até aí tão calma, de criança amimada e criada por uma tão boa mãe.

‑ Conheceu meu pai, Bernardo?

‑ Conheci ‑ respondeu o antigo sargento laconicamente.

E, como me fitasse quase hostilmente, acrescentei um tanto mal disposta:

‑ Não se admire: em casa não se fala nele. Faria entristecer mais minha pobre mãe, sempre envolta no seu luto.

‑ Não lhe falam do seu pai? ‑ interrogou Bernardo surdamente, dando uma brutal chicotada no cavalo.

‑ Nunca ‑ afirmei, admirada da sua violência ‑ É assunto que não é preciso relembrar... um assunto que me parece interdito diante de minha mãe, tão melancólica!

‑ Mas então a Felícia?

‑ A Felícia não responde quando a interrogam.

‑ Velha harpia! ‑ resmoneou Sauvage, entre dentes.

‑ Oh! Não gosta de Felícia ‑ considerei com surpresa ‑ Mas ela é boa criatura!

‑ Sim... é uma mulher honesta... mas dedicada demais à patroa; e isso torna‑a injusta e má para com os outros!

‑ Nunca se é dedicado de mais para com aqueles a quem se estima ‑ repliquei, meigamente.

‑ Sim, algumas vezes... Quando a dedicação se torna em lisonja, perfilham‑se os ódios e rancores daqueles a quem se dedica.

Abri os olhos, muito admirada.

‑ Não compreendo por que diz isso a respeito de Felícia.

Sauvage deu nova chicotada no cavalo.

‑ Não passo de um grande animal, que bem merece o nome de Sauvage que meu pai me legou. Felícia é uma santa. Esqueça o que lhe disse a respeito dela, menina. Eu devia falar menos.

O seu rosto tornara‑se duro e violento, como nunca o vira. Mas qualquer coisa no meu íntimo se comoveu ao vê‑lo.

Parecia‑me que essa violência não era comigo, antes pelo contrário.

Coloquei o meu cavalo a par do seu, e, impelida não sei por que subconsciente dominador, murmurei:

‑ Bernardo, meu bom Bernardo, não se zangue. Se soubesse como gosto de falar consigo... principalmente do passado... e a sério! Lá em casa sou sempre criança... a menina! Flores, pássaros, os meus pincéis, os meus livros e os meus vestidos, são as únicas coisas em que me falam... Por isso, se as minhas palavras lhe despertarem alguma vez tristes recordações, não me queira mal por isso, Bernardo, porque as digo sem intenção de o desgostar.

O meu companheiro corou.

‑ É bondade demasiada, menina, comover‑se com um velho urso como eu. Os que lhe falam em flores e borboletas têm razão... Sorria... os seus lábios e os seus olhos foram feitos para conhecer a alegria.

‑ Mas por que me diz isso tão lugubremente? Não desvie a cabeça... Bernardo... olhe para mim...

Sauvage fitou‑me com um olhar tão comovido que me fez bem, depois da sua violência de há pouco.

‑ Se soubesse como lhe sou dedicado... a si... à filha do senhor Frederico!

Inclinei‑me um pouco para ele e apertei‑lhe a mão com força.

‑ Gostava muito de meu pai? ‑ perguntei com o coração opresso, porque sentia que, apesar dos anos, esse homem se lembrava muito dele, enquanto nas Torrinhas parecia não quererem nunca pensar no desaparecido.

‑ Queria‑lhe como a um deus ‑ respondeu Sauvage surdamente ‑ Brinquei com ele quando era pequeno. Na tropa e no front nunca o deixei. Mais tarde, no Solar, vivi sempre a seu lado... ele tinha confiança em mim, e está tudo dito!

Assoou‑se estrondosamente para ocultar a comoção que lhe crispava o rosto. Pouco depois continuou no mesmo tom velado, que parecia remover‑lhe sagradas recordações:

‑ Era um homem tão encantador, tão amável... encantador e amável demais... São qualidades que fazem com que, às vezes, os melhores façam tolices... que se pagam caras!

‑ Sim, parece‑me que ouvi dizer que meu pai se arruinou.

‑ Arruinou! ‑ exclamou Bernardo com amargura.

‑ Sim, arruinou! ‑ respondi com simplicidade, sem comoção, porque isso ia já tão longe que não me perturbava.

Não tendo apreciado a verdadeira riqueza, pouco me comovia uma ruína, que tão tarde conhecia. E continuei:

‑ Meu pai perdeu a maior parte da sua fortuna e partiu para longe, para tentar recuperá‑la... Mas, pobre dele! Apenas encontrou a morte. Desditoso paizinho!

‑ A morte? Disse a morte? Com mil trovões! E é sua filha quem fala de morte?

Estremeci, não esperando semelhante exclamação quando apenas evocava a prematura morte de meu querido pai.

Sauvage deu um pulo na sela, e, preso de uma raiva súbita, fazia girar o chicote no espaço, sobre os ramos das árvores que formavam uma abóbada por cima das nossas cabeças. E as folhas caíam retalhadas pela chicotada seca que as decapitava.

Espantada com esta crise de furor que o assaltou, parei o cavalo e olhei para Bernardo, tentando compreender a sua atitude.

Porque protestava tão violentamente, quando eu falava na morte de meu pai?

‑ Sossegue, Bernardo, sossegue! Meu Deus, o que tem? Que disse eu?

Levou tempo a responder‑me. Quando se voltou para mim vi‑lhe o pobre rosto contraído.

Mas tranquilizando‑se ao ver‑me assim, procurou desculpar‑se. Fê‑lo, porém, tão desastradamente, que me pareceu querer desviar o sentido das palavras que lhe haviam escapado.

‑ Perdoe‑me, menina Solange. Sou um velho tolo a quem as palavras sobressaltam... Pronto, não se pensa mais nisso! A África faz exaltar os cérebros facilmente. Por infelicidade, fui lá e trouxe o mau hábito de me encolerizar de um momento para o outro.

Fiquei um pouco pensativa.

‑ Mas não o de se arrebatar sem razão alguma ‑ observei, nada convencida com as suas explicações ‑ As minhas palavras é que o exaltaram. Explique‑me, peço‑lhe, porque protestou quando lhe falei na morte de meu pai?

O rosto de Sauvage de novo se endureceu subitamente.

‑ Faz sempre mal ouvir coisas... coisas que se não esperam... coisas que...

Deteve‑se.

‑ Seu pai era um bom patrão ‑ terminou, um pouco carrancudo.

A seguir desviou o olhar, embaraçado...

‑ Não! Não! ‑ exclamei ‑ Nada de protestos vãos! Fale‑me de meu pai, da morte dele...

‑ Mas eu não sei nada, menina...

‑ Sim, sabe qualquer coisa... A sua cólera não é natural... Nada a explicava... e deixou escapar algumas palavras... Sauvage, diga‑me o que sabe, por piedade!...

‑ Não é comigo que deve falar a esse respeito, menina. Interrogue sua mãe.

‑ Minha mãe não me diz nada. Um dia, era eu pequena, quis que me falasse de meu pai...

‑ E então?

‑ Levantou‑se com aspecto doloroso, mas firme, e proibiu‑me de tornar a falar nesse assunto... Que mais lhe direi? A sua dor comoveu‑me... e não recomecei.

‑ E Felícia?

‑ Interroguei‑a várias vezes. Quis que me falasse de meu pai... que me citasse alguns factos da sua vida... que me dissesse como fora encontrado morto.

‑ E que lhe respondeu ela?

‑ "O senhor morreu no mar... Nunca fale nesse assunto à senhora; o doutor disse que isso a poderia matar".

‑ Insistiu, é claro?

‑ Sim, muitas vezes, mas sem resultado. Felícia, ou nada sabe ou recusa‑se a dizer‑me qualquer coisa. Quando insistia demasiado, chegava a ser grosseira... Por fim, acabei por não aludir mais ao passado... De que servia, se nada adiantava?

‑ Uma maneira como outra qualquer de enterrar mais uma vez esse pobre senhor ‑ resmungou Bernardo, que recaiu no seu mutismo.

Estremeci de novo. A ideia de que a morte de meu pai ocultava qualquer mistério atravessou‑me como um relâmpago. Então, insisti, porque queria saber; agora tinha a certeza de que o meu companheiro estava ao corrente de factos que eu ignorava.

‑ Bernardo não me respondeu quando lhe pedi que me dissesse o que sabia com respeito ao trágico fim do meu desgraçado pai. Suplico‑lhe que fale. Diga‑me a verdade, toda a verdade, porque a dúvida é o pior dos suplícios.

O meu interlocutor ficou silencioso e pensativo durante alguns momentos, como se não me tivesse ouvido. Depois, levantou a cabeça e olhou‑me fixamente.

‑ Levaram‑na alguma vez a rezar sobre o túmulo de seu pai?

‑ Não, visto que morreu longe... no mar... O iate dele foi a pique.

Um sorriso irónico crispou‑lhe os lábios.

‑ O senhor Frederico estava arruinado... mas possuía ainda um iate... e usava esse dispendioso meio de transporte para ir longe em busca da fortuna?... A fábula não tem pés nem cabeça!

As suas observações aterraram‑me. Num reflexo de alucinação, passei a mão pela fronte, onde as ideias se me chocavam febrilmente.

A observação deste homem era justa. Como não a fizera eu já?

E os meus olhos abriram‑se desmedidamente com espanto, sobre as deduções oferecidas tão imperiosamente à minha compreensão.

Meu pai... meu pai que eu julgava morto... de cujo trágico fim ninguém duvidava... meu pai... viveria ainda?

Sentia vertigens. E entrevia já possibilidades inesperadas.

Meu pai vivo!

Apesar do inverosímil dessa perspectiva maravilhosa e de haver apenas uma probabilidade contra cem mil de que esta se realizasse, queria examinar esse átomo de probabilidade e tentar tirar a limpo as razões que podiam apoiá‑la.

‑ Bernardo, fale! Já disse demasiado para que se não explique agora. Para que levantou uma dúvida sobre a realidade da morte de meu pai?

‑ Oiça, menina Solange ‑ continuou o antigo sargento com uma certa gravidade ‑ Nós, os aldeãos, temos uma crença: enquanto um homem não está enterrado, não está morto.

‑ Mas se o corpo desaparecer?

‑ Porque há‑de desaparecer ao mesmo tempo a vida?

‑ Então ‑ considerei, com o rosto transfigurado pela esperança ‑ supõe que meu pai não morreu? Que apenas desapareceu, e que vive longe, em qualquer parte?

‑ Porque não?... Não seria impossível!

A minha exaltação caiu.

‑ Há quinze anos partiu ‑ disse, abanando a cabeça ‑ Se ainda vivesse... minha mãe sabê‑lo‑ia... Teria voltado... ou ter‑nos‑ia dado notícias...

Sauvage encolheu os ombros:

‑ Isso é outra coisa. Pode estar‑se vivo sem escrever e sem regressar...

‑ Então, Bernardo, reflicta... Um homem não deixa a mulher e a filha ignorar a sua existência... E estas iriam logo ter com ele, se houvesse a menor esperança de que ainda vivesse... Não, meu pai está morto, infelizmente... sem o que não estaríamos tanto tempo separadas dele.

Sauvage continuava a encolher os ombros...

‑ Só a morte separa as pessoas? ‑ murmurou, por entre dentes.

‑ Que pretende dizer?

‑ Nada... Já falei demasiado!

‑ Peço‑lhe!...

‑ Não! A senhora de Borel nunca me perdoaria se soubesse que eu ousava levantar dúvidas sobre a veracidade das explicações que lhe tem dado.

‑ Mas meu pai, se vivesse e pudesse ouvi‑lo, abençoá‑lo‑ia.

Nos olhos do meu companheiro brilharam lágrimas.

‑ Ah! Menina Solange! ‑ exclamou, muito comovido ‑ Se tivesse conhecido o senhor Frederico como eu, certamente que quereria tornar a vê‑lo e o procuraria.

‑ Bernardo, não duvide de que eu queira procurar meu pai!... Não o conheci, ou antes, não me lembro dele; a sua recordação esfuma‑se nas brumas da minha memória de bebé; mas não pode imaginar como me faz falta a sua presença. Junto das minhas felizes companheiras que possuíam pais, julgava‑me uma deserdada. Muitas vezes voltava a cabeça para esconder as lágrimas de inveja ou de pesar, quando qualquer delas, no parlatório, se lançava nos braços do pai para o abraçar e ser apertada afectuosamente contra o seu peito acolhedor.

Calei‑me... os meus olhos cheios de lágrimas contemplavam, no espaço, a minha infância de órfã. Depois, ainda mais suavemente, continuei:

‑ Um pai é um sorriso que nos segue os passos; é uma atmosfera quente e alegre que nos rodeia... um ambiente incessantemente renovado e vivificado, porque cada vez que um homem entra em casa parece trazer consigo todo o ar exterior... Tive uma mãe afectuosa e boa, mas não conheci a casa alegre e movimentada, as sonoras gargalhadas, as escapadelas ousadas, as viagens distantes, as surpresas inesperadas, que um pai se compraz em organizar... Toda a minha infância foi triste e silenciosa. Minha mãe escondia as lágrimas; o seu sorriso era suave, a sua voz acariciadora; não queria mostrar‑me o seu pesar de viúva inconsolável, a nossa casa parecia cheia de melancolia. Instintivamente, os meus passos aligeiravam‑se e a minha voz ensurdecia, para não perturbar o sossego impressionante dos grandes aposentos desertos.

De novo me calei. Pensativa, inclinada para a frente, sobre a sela, esquecia a paisagem magnífica que se estendia a meus pés, tendo ao fundo, erguida para o céu, a ramaria dos castanheiros. Neste momento, a minha mão acariciou maquinalmente a garupa de Mascote, e o animal, estimulado pela carícia, começou a trotar.

Despertada pelo seu andamento, voltei à realidade.

‑ Bernardo ‑ disse ‑ tornar a ver meu pai seria o meu mais querido desejo! Mas não será loucura deixar penetrar no espírito semelhante esperança?

‑ A alma foi feita para esperar ‑ volveu‑me Sauvage sentenciosamente.

‑ Será razoável esperar uma coisa impossível?

‑ Antes de dizer que uma coisa se não pode fazer, é preciso tentar ver se é, na realidade, irrealizável. O que a impede de procurar o senhor Frederico?

‑ Procurar meu pai? Muito bem, vou tentar tudo para chegar junto dele, morto ou vivo... Mas encontrá‑lo‑ei?

Bernardo sorriu sem responder e os seus olhos, fixos nos meus, pareciam gritar desesperada e afirmativamente. Um rubor de esperança subiu‑me do coração às faces, sem que, contudo, nada de tangível sustentasse a insensata esperança que o meu companheiro acabava de despertar em mim.

Entretidos a conversar, acabámos o nosso passeio e regressámos às Torrinhas.

Sauvage saltou do cavalo em frente do portão e veio ajudar‑me a descer.

‑ A senha é silêncio, não é verdade? ‑ disse a meia voz, com súplica no olhar.

‑ Sim, mas também aliança! ‑ repliquei no mesmo tom, após ligeira hesitação ‑ Somos aliados; assim é preciso que seja ‑ insisti, com os olhos fixos nos dele.

‑ Obrigado! ‑ respondeu muito contente ‑ Não ousava propor‑lho, menina, por isso, duplamente obrigado!

Despedi‑me e subi ao meu quarto para mudar de fato. Estava admirada de mim própria. Não podia compreender como aceitara tão facilmente as sugestões do antigo soldado. Não estava menos surpreendida por aceitar esse silêncio que ele me impunha, e, mais ainda, de lhe ter correspondido tão espontaneamente com essa desusada aliança.

Que sentimento de conspiração se apossara instintivamente de mim? E contra quem era esse silêncio e essa aliança?

Contra minha mãe?

Ah! meu Deus! Não! Adoro minha mãe e a ideia de que posso desagradar‑lhe nem me passou pela cabeça.

Contra o receio de perturbar o seu sossego e tranquilidade? Sim! Era talvez essa a razão que me fizera aceitar a proibição de falar de Bernardo e de reclamar o seu auxílio.

E a certeza de que ia trabalhar para a felicidade de minha mãe, procurando vestígios desse marido que ela chorava sempre, dissipou todas as minhas hesitações.

De resto, sentia‑me leve, transfigurada. Parecia que se operava em mim uma ressurreição.

Meu pai! Meu pai, talvez vivo! Que louca esperança! Que maravilhosa perspectiva! Tocava as raias do prodígio!

Com efeito, dera‑se um milagre, e que milagre! Bastara uma palavra mágica e de esperança, para despertar em mim a recordação sagrada de meu pai, enterrada havia quinze anos!

 

                   27 de Abril

A chuva caía sem cessar, havia dois dias, e só avistara Sauvage de longe, quando vinha visitar Milord e Mascote, hábito que tomara agora todas as manhãs.

Na minha cabeça agitam‑se perguntas, impetuosamente; alegres chilreios de desarrazoadas esperanças, montões de desesperadoras realidades.

Como poderia minha mãe falar‑me da morte de meu pai, se não tivesse dela absoluta certeza!

Oh! terrível voz de desilusões inelutáveis!

 

                   29 de Abril

Sempre a chuva!

Sempre a dúvida... Contudo, por vezes, a esperança brilha.

Cascavéis ensurdecedores, que dia e noite me atormentam, quando cessarão a sua dança louca?

Como tenho pressa de agir...

 

                   30 de Abril

Demorei‑me esta manhã bastante tempo no quarto de minha mãe.

Pela primeira vez, a sua atitude dolorosa me apareceu em toda a sua desolação!

Minha querida mãe tem apenas quarenta e oito anos. No entanto, os cabelos já estão grisalhos. O rosto é ainda muito fresco, mas a sua expressão é tão cansada! E esse sorriso tão triste, tão vago; voz tão monótona, que coisa alguma reanimará e esses olhos pensativos, errantes, que olham sem ver e parecem conservar, entre as pestanas descidas, lágrimas mal enxutas!...

Como deve ter sofrido para chegar assim a personificar a melancolia sem esperança...

Vinte vezes estive para lhe falar de meu pai, lhe pedir explicações, pormenores; mas lembrava‑me, a tempo, da recomendação de Felícia:

"O doutor disse que isso poderia matá‑la".

E para não sucumbir à tentação de a interrogar, fugi para o meu quarto.

 

                   1 de Junho

Fui há pouco ter com a nossa velha criada, à cozinha, onde preparava a refeição do meio‑dia. Com ela não tenho de fazer cerimónias!

E apesar de esperar ouvi‑la resmungar, disse‑lhe com coragem:

‑ Felícia, procurei por toda a casa o retrato de meu pai para o ter no meu quarto. Talvez eu o tenha visto, sem saber. Pode mostrar‑mo?

A velha não esperava as minhas palavras. Trémula e assustada, fitou‑me subitamente, como se eu tivesse evocado Satanás e a sua corte infernal.

‑ Menina, peço‑lhe que não fale nisso! Como pode perguntar semelhante coisa?

‑ Não é natural que uma filha queira possuir o retrato do pai?

‑ Mas a senhora! A senhora!... Não pensa em sua mãe.

O meu aspecto decidido parecia esbofeteá‑la e, sem querer, comoveu‑me a sua aflição.

‑ Minha mãe não pode achar mal que eu queira ter no meu quarto, ao lado do seu, o retrato de meu pai. Se não quer dar‑mo ou mostrar‑mo, dirigir‑me‑ei a ela; estou certa de que não mo recusará.

As minhas palavras transtornaram‑na por completo. Esquecendo as suas funções e o respeito que me devia, caminhou para mim, ameaçadora.

‑ Sim, é isso! Vá matá‑la, despertando‑lhe terríveis lembranças! Julga que será por prazer que evito evocar o passado e coisas antigamente tão queridas?

Mas vi sua mãe moribunda, nos meus braços, torcendo‑se com febre, enquanto a boca inconsciente repetia o nome de seu pai... do marido dela. Não compreende que, se a arranquei à morte, se lha conservei, foi à custa de uma contínua vigilância, fazendo desaparecer tudo quanto podia lembrar‑lhe a catástrofe, em que a sua felicidade soçobrara?... Vá falar‑lhe nisso, agora que ela consente em viver quase tranquila. Vá despedaçar o seu frágil repouso! É um dever filial que cumprirá!... De resto, devo preveni‑la de que tudo quanto possa dizer ou fazer não adiantará nada. Na casa não há um único retrato, qualquer recordação de seu pai; rasguei e queimei tudo. Procure, mas não achará nada, nada!

Despedaçada por esta cólera louca, a velha Felícia caíra numa cadeira, soluçando.

Olhei para ela, aniquilada, mas relativamente pouco comovida. A própria violência e o exagero das suas censuras tinham‑me feito recobrar subitamente a tranquilidade, e olhei para ela com frieza.

Ao mesmo tempo as palavras de Bernardo vinham‑me à ideia:

"Há dedicações que são prejudiciais àqueles que delas são motivo".

Felícia acabava de confessar que fora ela própria quem fizera, em volta de minha mãe, esse duro silêncio de esquecimento a respeito de meu pai.

E, de repente, apesar dos seus muitos anos de serviço, apesar da sua dedicação, da sua fidelidade canina, pareceu‑me a inimiga, aquela que poderia ser, talvez, a causa do estado doloroso de minha mãe; a que era responsável pelo afastamento de meu pai, se, na verdade, como Sauvage me dera a entender, não estava morto.

Sem querer, os meus punhos fecharam‑se sob uma violência íntima até então desconhecida.

Recuei até à porta, para longe daquela mulher, fugindo à tentação louca, que me assaltava, de me lançar sobre ela, e forçá‑la a confessar que papel maléfico representara outrora na vida de meus pais.

Sem dizer palavra, sentindo‑me empalidecer, saí da cozinha e subi ao meu quarto. Julgava‑me muito calma, muito resoluta, mas, logo que a porta se fechou, os meus nervos fraquejaram.

Raiva, decepção, amargura e desespero, tudo se apossara do meu ser e do meu sistema nervoso. Senti‑me enfraquecer, a garganta contraiu‑se‑me; os objectos giravam em torno de mim, e, de repente, vencida, presa de vertigem, caí pesadamente, ao comprido, no tapete.

Quando, minutos depois, voltei a mim, estava estendida na cama, com minha mãe e Felícia à cabeceira.

‑ Minha filha! Minha Solange! Que te aconteceu? Vamos... fala...

Nos queridos olhos maternos lia‑se uma angústia sem limites.

E, apesar da minha fraqueza, sentia‑me forte a seu lado, e sorri para a tranquilizar.

‑ Não é nada, mãe... Esta chuva, não é... mas já passou... pronto.

Mas, em contraste com as minhas palavras, senti enorme vontade de chorar. Felícia, timidamente, como cão castigado, apresentou‑me um copo de água açucarada que recusei.

‑ Obrigada, não quero nada.

E desatei em soluços convulsos.

Felícia, consternada, conservou‑se de pé em frente da cama, ao passo que minha mãe me abraçava, embalando‑me com ternas palavras.

A minha crise de lágrimas durou felizmente pouco tempo, e bem depressa me pude levantar e compor a desordem do meu vestuário.

Vendo‑me melhor, minha mãe saiu do quarto. Felícia, pelo contrário, a pretexto de me arranjar a cama, ficou junto de mim.

‑ Perdoe‑me, menina Solange, se foram as minhas palavras que lhe fizeram mal. Estimo muito sua mãe, e receando que, sem saber, a menina lhe pudesse fazer mal, disse‑lhe coisas duras, que lastimo agora.

Voltei‑me para essa mulher, que estava de pé, tão arrependida. Cheia de piedade, estendi‑lhe a mão.

‑ Esqueçamos isso. Não gosto menos de minha mãe do que Felícia e, se a ameacei de a interrogar, sem ter ideia de o fazer, é porque percebi que me não queria responder.

‑ Mas para que há‑de apoquentar‑se com coisas mortas?

‑ Queria saber o... que sabe... E julguei que era má vontade da sua parte.

‑ Não. Afirmo‑lhe que tudo se destruiu e que nada resta de... desse senhor.

Ergui bruscamente a cabeça.

‑ De meu pai, quer dizer?

Nova dureza passou pelos meus olhos frios.

‑ Engana‑se ‑ continuei ‑ Há uma coisa que ninguém pode destruir...

‑ O que é? ‑ perguntou ela, admirada.

‑ O meu coração! O meu coração de filha! ‑ repliquei com uma espécie de raiva orgulhosa, empurrando‑a para a porta.

Felícia olhou‑me por algum tempo com espanto. Depois saiu do quarto, abanando a cabeça como se a minha declaração tão simples lhe parecesse o delírio de uma insensata, do qual resultariam muitas desgraças.

 

                   5 de Junho

Por fim, o sol brilhou esta manhã! Quando Sauvage veio visitar Milord e Mascote, gritei‑lhe da janela que, se me podia dedicar a sua manhã, eu estava pronta a dar um grande passeio a cavalo, pelo campo.

‑ Estou às suas ordens. Vou mandar selar os cavalos imediatamente.

Dez minutos depois, saíamos das Torrinhas.

‑ Para que lado vamos? ‑ perguntou Bernardo.

‑ Para os Castanheiros, quer? Deve conhecê‑los bem; eu não me lembro. Leve‑me até ao Solar onde meu pai nasceu.

Sem dizer palavra, o antigo soldado fez‑nos voltar à direita, e, quando chegou ao fim da vila, indicou‑me as últimas casas.

‑ Dali em diante começam as terras dos Castanheiros; depois o bosque, lá em baixo, até à ribeira.

‑ Quem as mantém?

‑ Os Raimbond.

‑ Esse nome é‑me desconhecido.

‑ São os novos caseiros... Os Vicent, que cuidaram delas durante muito tempo, já morreram há anos.

‑ Mas as terras pertencem ainda ao Solar?

‑ Pertencem... Nada mudou, salvo para os lados de Neuville, onde uns vinte hectares foram cedidos ao barão Jacob, por seu pai... antes de partir...

‑ Esse barão Jacob não é Judeu?

‑ É sim.

‑ Que faz ele?

‑ Montou uma fábrica... de algodões.

‑ Ouvi falar nisso... Mas diga‑me: o novo proprietário dos Castanheiros não é Piémont, o antigo notário de meu pai?

‑ É o que todos dizem.

‑ Não será verdade?

‑ Resta saber. O certo é que recebe as rendas.

‑ Não mora nos Castanheiros?

‑ No Inverno vai lá caçar, e, no Verão, passa ali algumas semanas.

‑ Então, é ele, agora, o feliz proprietário?

‑ Assim parece... No entanto, poder‑se‑iam tirar daí muitas deduções.

‑ Quais?

‑ Só habita geralmente uma ala do Solar, e todo o resto da vasta habitação continua hermeticamente fechada.

‑ Mesmo quando lá está?

‑ Sempre.

‑ E porquê?

‑ Diz que os aposentos não estão habitáveis, e que seria preciso muito dinheiro para se fazerem as reparações necessárias.

‑ Talvez tenha razão... meu pobre pai não teria podido, nos últimos tempos, conservar tudo como devia ser.

‑ Posso afirmar‑lhe o contrário... o senhor Frederico tinha orgulho em que tudo estivesse preparado e em ordem. Percorri muitas vezes todo o Solar e estava belamente cuidado: um verdadeiro museu.

Agradeci‑lhe com um olhar o que tomava por uma piedosa mentira.

‑ Enfim, este notário lá terá as suas razões... Cada um faz o que quer em sua casa.

‑ Evidentemente. Apesar de que não se possui uma tal propriedade... principalmente quando se é um homem de negócios... isto é, de dinheiro... para a habitar seis semanas, no ano, e deixá‑la no estado de abandono em que se encontra.

‑ Oh! ‑ exclamei tristemente ‑ Está tudo abandonado!

‑ Assim é! Chegámos. Vamos entrar pelas traseiras... Há uma brecha no muro... Conheço muito bem o sítio. Os nossos cavalos devem passar de salto à vontade.

‑ Não quer entrar?

‑ Porque não? Já o tenho feito várias vezes.

‑ E se alguém nos visse?

‑ Que tem isso? É Mateus Savalle, o couteiro, quem tem as chaves. Toma conta do Solar e dos bosques, para nada devastarem: mas posso afirmar‑lhe que, se nos encontrar, nada dirá. Pelo contrário!

‑ Também esse serviu meu pai?

‑ Não, menina. O irmão, que morreu, é que era guarda, antigamente, em sua casa. Mas é a mesma coisa: pais e filhos têm vivido sempre à sombra do antigo Solar e são seus antigos criados. Mas cá está a brecha... Vou passar primeiro para lhe mostrar o caminho... Oh! Pronto... Agora a menina. Agarre‑se bem e refreie Mascote. Bravo! Que belo salto! E agora siga‑me!... Atenção! Esse ramo rasga‑lhe o véu... Cá está a alameda!

Com efeito, acabávamos de penetrar numa larga alameda completamente invadida pela erva e pelo musgo. Não tinha o menor vestígio de passos; havia muito tempo que por ela não transitava qualquer pessoa.

Um sentimento inexplicável de alegria e de receio me enchia o coração e creio que, se estivesse só, começaria a chorar, comovida.

‑ Bernardo! ‑ disse a meia voz porque uma espécie de pudor religioso me impedia de falar alto nesses lugares povoados de ancestrais recordações ‑, Meu pai percorreu muitas vezes este caminho?

‑ Muitas, e até me lembro... de quando era pequeno... aqui, vê... fugiu ele à vigilância do preceptor, um bom abade que sabia fechar os olhos quando era preciso. Éramos uns poucos de garotos e brincávamos às guerras. O senhor Frederico era o nosso general... Como era valente e fogoso! Arrastava‑nos e levar‑nos‑ia consigo até ao fim do Mundo... Se o tivesse visto...

Levou a mão aos olhos húmidos e limpou‑os com a extremidade dos dedos.

‑ Desculpe‑me. Ora veja, menina! Eu não estava em mim!... Estas coisas não se esquecem. É um passado grato ao meu coração!

Não pude responder, porque uma pungente comoção me estrangulava a garganta.

Parecia‑me que andava num cemitério... Os túmulos eram as árvores silenciosas e abandonadas... Os fantasmas as recordações de meu pai, que esse homem evocava, com lágrimas na voz... Os mortos, o passado, todos os seres que eram do meu sangue e dos quais não conhecia o nome, e ainda menos a história...

Depois de vinte minutos de andar, a passo, desembocámos no verdadeiro parque.

A erva era alta e os canteiros estavam cheios de ortigas e de cardos. As flores, estragadas, amontoavam‑se, esmagando os rebentos verdes; as moitas desapareciam debaixo das raízes; os bosques estavam impenetráveis, e tudo me revelava um tal abandono que me provocou certo mal‑estar.

‑ Desde há quinze anos que nenhum jardineiro toca neste parque ‑ explicou Bernardo.

‑ Mas porque deixá‑lo em tal estado de desolação?

O meu companheiro moveu a cabeça, pensativo.

‑ As coisas reflectem muitas vezes os pensamentos dos homens ‑ murmurou, como se falasse consigo próprio ‑ Há quinze anos tudo era belo e brilhante... As alamedas bem tratadas, as estufas cuidadas e os maciços aparados... O Solar e o parque resplandeciam com milhares de luzes, logo que anoitecia, porque as festas sucediam‑se, à porfia... O amor e a mocidade, que uniam seus pais, a infância e o futuro que a menina personifica... tudo resplandecia aqui... Depois, veio a tempestade. Feriu e esmagou os corações... Os sorrisos terminam quando as lágrimas chegam. Acabam‑se as flores quando nascem os espinhos. Agora só há abandono e luto... é a imagem da sua desolada mãe... a da dolorosa e enigmática ausência do senhor Frederico... e é a sua, pobre flor de estufa, que não chega a desenraizar, e que, sem querer, procura o ambiente em que nasceu...

‑ Mas o tal notário não devia ter procedido assim! Não tinha de se preocupar com as desgraças que calaram sobre nós e que o não atingiram. Quando comprou esta casa não devia importar‑se com os aborrecimentos dos seus anteriores proprietários e não devia estigmatizar para sempre a dor que os meus pobres pais então sentiram.

‑ Por isso se vê que não é o dono do Solar e que não pode cuidá‑lo à sua vontade...

Levei a mão febril à testa ardente, onde os pensamentos se entrechocavam com violência.

‑ Se fosse verdade? Quem mo poderá dizer?... E, voltando‑me para ele, um pouco bruscamente,

com exaltação, supliquei‑lhe:

‑ O Bernardo deve saber. Eu tinha três anos, mas o senhor...

‑ Eu tinha vinte e oito anos, menina.

‑ Justamente! Deve lembrar‑se.

‑ Não me esqueço, na verdade.

‑ E então?

‑ Os Castanheiros foram postos à venda em lotes. Afixaram‑se editais... Os primeiros a ser vendidos foram os que pertencem ao barão Jacob... e o resto ficou para quando se anunciasse...

‑ E depois?

‑ Depois, na noite que precedeu a venda, os editais foram despedaçados, e à hora marcada, quando as pessoas apareceram para a adjudicação, disseram‑lhes que tudo findara; um comprador único apresentara‑se e arrematara a propriedade em bloco.

‑ E...

‑ E desde então o tabelião vem aqui, como há pouco lhe disse, caçar, passar uma parte do Verão com a família.

‑ Mas o comprador? Falou‑se em alguém?

‑ Quando interrogaram Piémont, a esse respeito, respondeu: "Então eu não sou ninguém?".

‑ E não insistiram?

‑ Sim, e ele redarguiu: "Julgam que a minha fortuna pessoal não me permite comprar os Castanheiros?".

‑ É verdade! Dizem que é muito rico.

‑ Sobre isso não resta dúvida.

‑ É então ele o proprietário de tudo isto?

‑ Resta saber... resta saber!...

De novo o rosto de Bernardo Sauvage brilhou com malícia.

‑ Devia interrogá‑lo, menina Solange. Certamente que não lhe recusaria a informação.

Eu tivera o mesmo pensamento; mas, por agora, não entrevia a possibilidade de o realizar. Tudo, em redor de mim, era tão novo, tão perturbador, desde alguns dias, que precisava de tempo para reflectir. Não podia tomar tão depressa tal resolução. E como encontrar‑me com Piémont? Que dizer‑lhe, para desculpar as minhas perguntas?

‑ Veremos! ‑ respondi, como se falasse comigo própria.

Demos a volta ao parque e estávamos agora em frente do Solar, admirável trecho da Renascença, todo em finos rendilhados de pedra.

‑ Não julgava que a casa fosse tão bonita! observei.

‑ Uma verdadeira moradia senhorial ‑ retorquiu Bernardo com uma espécie de orgulho ‑ Dizem que Henrique IV dormiu aqui.

Não pude deixar de sorrir.

‑ Na Normandia, todo o bom castelo que se preza alojou, pelo menos uma vez, Henrique IV.

‑ Asseguro‑lhe ‑ afirmou Sauvage.

‑ Oh! Mas eu não duvido! É bem possível, evidentemente ! Mas, mesmo sem o bom rei, esta casa é magnífica.

Vendo surgir entre os ângulos de pedra de uma das janelas uma boca de lobo aberta, pedi a Bernardo que ma colhesse.

‑ Queria levá‑la como recordação. Docilmente, o antigo soldado saltou do cavalo,

arrancou delicadamente a flor e estendeu‑ma em silêncio.

‑ Dê‑me também uma dessas pedrinhas que estão no chão... Olhe, essa que está entre os dois maciços de erva, que a protegeram da sujidade. Talvez meu pai a tivesse pisado muitas vezes.

Sauvage obedeceu, mordiscando o bigode que lhe tremia sobre o lábio. Peguei nas duas relíquias com devoção e beijei‑as com ternura.

E, baixinho, como para desculpar este gesto pueril, balbuciei:

‑ Não tenho a menor coisa de meu pai, sabe? Nas Torrinhas destruíram tudo... até o retrato dele!

E, pequenina, ao pé do grande Solar, onde todos os do meu sangue tinham nascido, quase desamparada nesse parque deserto e abandonado, comecei a chorar todas as lágrimas que há uma hora me apertavam a garganta.

Sauvage conservava‑se de pé, junto do cavalo.

Quase tão comovido como eu, levou aos lábios a minha mão.

‑ Não desespere, menina Solange. O senhor Frederico há‑de voltar... Se a menina quiser, ele voltará por sua causa.

‑ Tenho muito medo de que as nossas esperanças sejam vãs!... Quinze anos de ausência não se explicam facilmente, senão pela morte.

‑ Pensa assim porque não conhece a vida e ignora todos os dramas do coração... É nova e, naturalmente, falta‑lhe a experiência... Não sabe olhar em redor, mas veja, abra os olhos... Esta casa, este parque, é a imagem do abandono, mas é também a da esperança... Mão alguma lhe ousa tocar na ausência do dono, que deseja se respeitem os vestígios que deixou, quando vivia feliz. Diga: não sente constantemente essa desolação, essa tristeza das coisas, que são o símbolo de uma vida igualmente desolada, abandonada, destruída? Não adivinha que este Solar renascerá quando o dono vier, mas que só o fará reviver se a felicidade e a esperança sorrirem de novo no seu coração atormentado?

Comovida pela segurança com que Sauvage falava, apertei‑lhe demoradamente a mão.

‑ Sim, sim, Bernardo, quero crer, como o senhor, que meu pai vive. Mas nada sei, nada adivinho, porque me puseram uma venda nos olhos e ignoro todo o passado. Mas ajudar‑me‑á, guiar‑me‑á. Para tornar a ver meu pai, se, na verdade, ainda vive, para o dar de novo à minha pobre mãe, que o chora sem cessar, que não farei eu?

O olhar de Bernardo endureceu subitamente.

Retirou a mão que eu tinha entre as minhas e fitou o espaço por um momento, como se seguisse triste visão. Depois, sem dizer palavra, montou a cavalo.

Uma espécie de receosa intuição fez com que me conservasse silenciosa. Dir‑se‑ia que o nome de minha mãe bastara para lhe ensombrar a fronte.

Mas com a ponta do chicote designou‑me a avenida por onde viéramos.

‑ Voltemos, quer? ‑ propôs laconicamente.

‑ Pois sim! ‑ Já devem ter dado onze horas, e minha mãe zangar‑se‑ia se eu não estivesse presente à hora do almoço.

‑ A senhora de Borel ralha‑lhe muitas vezes? ‑ inquiriu Sauvage, já no seu tom habitual.

‑ Oh! não, poucas ‑ respondi com certo esforço ‑ Mas, quando procedo mal,   olha‑me... friamente... muito friamente... E não gosto de merecer esse olhar.

‑ A senhora de Borel não admite que ninguém proceda mal ‑ murmurou Sauvage num tom indefinido.

‑ Minha mãe é muito justa ‑ rectifiquei suavemente.

‑ Assim deve ser, mas não demasiado...

‑ Nunca me repreende sem o merecer.

‑ Mas quando o faz é a valer ‑ replicou ele, sorrindo.

Não pude deixar também de sorrir. Como parece conhecer bem minha mãe!

‑ Estou habituada. Já não estranho. Contudo, reconheço que não gosto de merecer as suas censuras.

‑ Por causa do olhar?

‑ Justamente! ‑ declarei com alegria.

Quando saímos das terras dos Castanheiros recomendou‑me silêncio absoluto sobre o que se passara no nosso passeio matinal.

‑ Porque isso podia emocionar inutilmente sua mãe e, para a outra vez, teríamos menos liberdade.

Olhei‑o amigavelmente.

‑ Não é preciso fazer‑me essa recomendação, meu bom Bernardo. O nome de meu pai está banido nas Torrinhas. Quando no outro dia o pronunciei, tive uma cena terrível com a Felícia. Se soubessem que lhe falo nele, proibiam‑me certamente de passear consigo.

‑ Do que eu teria muita pena.

‑ E, agora, já me custava que nos não víssemos. Por isso, guardo comigo as minhas reflexões.

‑ Não quero impeli‑la à insubordinação, menina Solange. Mas, francamente, à fé de soldado velho, creio que não faço mal falando‑lhe de seu pai e fazendo com que o conheça. Isso não diminui o amor e respeito por sua mãe, mas, em troca, aproxima‑a mais do ausente!

‑ Por isso, não o julgo mais culpado do que eu, que ouso pensar e agir fora da autoridade materna. As leis da Natureza, dando‑me um pai e uma mãe, criaram‑me o duplo dever de estimar ambos, e não julgo prejudicar um ocupando‑me do outro.

‑ Bravo! Raciocina como antigamente o meu tenente.

‑ O seu tenente? ‑ interroguei admirada.

‑ O senhor seu pai foi oficial durante a guerra. Não sabia?

‑ Ignorava‑o, mas fico satisfeita com a notícia. E, diga‑me, como era ele fisicamente?

Costeávamos um pequeno regato, que atravessava a relva das Torrinhas, quando lhe perguntei isto.

Sauvage indicou‑me a água com a ponta do chicote.

‑ Olhe para ali e verá o retrato que procura. Ponha um grande bigode louro no lábio superior, corte o cabelo à escovinha, vista‑se de homem, e será exactamente a sua reprodução.

‑ Deveras?! ‑ bradei, com uma chama afogueando‑me o rosto.

Sem compreender porquê, senti‑me feliz por saber que era parecida com meu pai.

Talvez tivesse a impressão de que essa semelhança me tornava duplamente da sua raça.

Tínhamos chegado ao portão. Bernardo ajudou‑me a desmontar.

‑ Era, então, alto, delgado e louro, como eu? ‑ indaguei a meia voz.

‑ Sim ‑ respondeu o antigo soldado no mesmo tom, sorrindo ‑E não esqueça os olhos de um castanho dourado, sem iguais.

‑ Ainda como eu?

‑ Exactamente.

Depois destas palavras, deixei‑o e, do alto da escadaria, disse‑lhe:

‑ Até amanhã, sem falta, Bernardo.

‑ Está bem, menina.

Sempre a mesma voz dócil, num tom infinitamente respeitoso, que qualquer cumplicidade comigo nunca devia alterar.

 

                   5 de Junho, à tarde

Coloquei no fundo de uma caixa de luvas, que era de ébano, com incrustações de cobre e tartaruga, a flor e a pedrinha que trouxera dos Castanheiros.

Guardei‑as religiosamente entre duas camadas de algodão. A caixa é linda, muito antiga e artisticamente trabalhada: um verdadeiro relicário...

Quando deixei cair a tampa pareceu‑me que fechara um caixão...

Que dolorosa ideia!

Mas, ao deixar Sauvage, nessa manhã, sentia‑me corajosa e cheia de esperança. As suas palavras arrastam‑me e quando está junto de mim partilho as suas ardentes convicções.

Infelizmente, depois, duvido. E a dúvida é o sofrimento...

Mas... se meu pai vivesse? Se, na verdade, não tivesse morrido?

Como sabê‑lo? Como adquirir a certeza?

O notário?

Sim, evidentemente, o notário deve saber.

Mas falará?

Bernardo afirma que sim.

Boa alma! A sua dedicação sem limites por meu pai talvez o desvaire.

Tenho notado quanto o nome de minha mãe o entristece, cada vez que o pronuncio. Que haverá, que não ousa dizer? Contudo, minha mãe é muito boa para ele. Testemunha‑lhe até uma verdadeira confiança, colocando‑me sob a sua égide. Nunca o faria a qualquer outro habitante da aldeia.

Em troca, Felícia não oculta a aversão que lhe tem... mas ele paga‑lhe na mesma moeda!...

E eu?... Não sei... Já não sei nada! Desde a minha última altercação com a velha criada, não posso esconder o meu ressentimento contra ela. Como ousou dizer‑me na minha cara que queimara tudo quanto dizia respeito a meu pai?

Essa velha! Apesar da sua passada dedicação aparece‑me como uma inimiga.

Pobre pai! Se, contudo, fosse verdade que ele vivesse longe! É insensato! Se vivesse, teria voltado! Minha mãe teria feito indagações... buscas! Se me criou na crença da sua morte é porque está persuadida de que assim é.

Mas, afinal, minha mãe já me afirmou que ele tinha morrido?

"Partiu, o barco foi a pique... e ele não voltou..."

Foi a versão que em tempos me deu.

Agora, talvez me explicasse a sua ausência de forma diferente... Mas não a posso interrogar. Ficaria admirada e inquieta... Talvez suspeitasse de Bernardo... Se me interrogasse não queria mentir‑lhe e certamente que os meus passeios a cavalo com o velho soldado ficariam suspensos.

Não, não é interrogando minha mãe que me poderei informar... É apenas por mim própria que devo conhecer a verdade... Sem Felícia e sem minha mãe, e com a ajuda desse bom Bernardo, não será impossível.

Oh! Queria que fosse amanhã, o mais tardar. Tenho pressa e sede de saber. Quero conhecer a verdade.

Meu pai! Quero meu pai, vivo ou morto!

 

                   6 de Junho

‑ Onde iremos esta manhã, Bernardo?

‑ Ia justamente fazer‑lhe a mesma pergunta, menina.

‑ Não sei. Guie‑me, visto estar combinado que me ajudará, com todas as suas forças, na tarefa que me impus.

‑ Então, se quer, iremos hoje ao acaso, em frente, conversando... Olhe, voltemos por ali, e, seguindo a estrada real, chegaremos até às Ortigas e tomaremos pelo atalho que vai dar a Anthieux.

Comecei a rir.

‑ Chama‑se a isso ir ao acaso, em frente, e segue um caminho traçado e definido de antemão! Vamos, Bernardo, não faça caixinha, diga‑me já o que vamos fazer à estrada de Anthieux?

‑ Nada, menina... apenas passear. Desse lado é a propriedade do coronel Chaumont. É muito bonita, com as suas rosas trepadeiras.

‑ Não gosto dos jardins dos outros ‑ disse, suspirando ‑ Tenho o coração muito cheio de um grande parque abandonado, cujas trepadeiras e raízes entrelaçadas parecem guardar e defender um segredo.

‑ O que não impede que a casa do coronel tenha um aspecto muito acolhedor.

‑ Conhece o coronel?

‑ Não! Só com muito respeito o abordaria. Mas é um sujeito bastante cortês, e estou certo de que a receberia muito bem.

‑ É então preciso que eu vá a casa do coronel?

‑ Foi uma boa ideia que a menina teve. Precisamente, o coronel, como todos os oficiais superiores, deve ter o Anuário Militar destes últimos anos.

‑ O Anuário Militar?

‑ Sim... é um livro onde está consignado o nome de todos os oficiais, com as suas patentes.

‑ Onde quer chegar, Bernardo?

‑ Ao seguinte: é que, para explicar a sua visita, a menina podia dizer ao coronel que precisa de uma informação do Anuário.

‑ E depois?

‑ Depois... talvez que, procurando, encontrasse o nome do senhor Frederico... ou, pelo menos, pudesse saber desde que época o seu nome ali não figura. O senhor Frederico passou à reserva depois da guerra. Não deve ter pedido a demissão antes de partir para essa famosa viagem... de onde não voltaria.

‑ E é verdade! Não tinha pensado nisso! Oh! Bernardo, que boa ideia essa, do Anuário! Vamos ter uma data aproximada da desaparição de meu pai.

‑ Então, sempre quer ir ter com o coronel? ‑ inquiriu, com alegria, deixando o seu tom sagaz.

‑ Para obter essa informação iria procurar o general, o ministro e todos os marechais da França.

‑ Então, apressemo‑nos, para não voltarmos muito tarde.

‑ Vamos depressa, vamos. Tenho o maior desejo em lá chegar.

‑ Bem sabia que a minha ideia lhe seria agradável ‑ continuou ele, com satisfação.

Pouco tempo levámos a chegar à encruzilhada das Ortigas e a tomar a estrada de Anthieux.

Cem metros antes de parar à porta do coronel Chaumont moderámos o andamento.

‑ Não é preciso chegar lá esbaforida. Deve também preparar um pretexto, uma explicação... porque não é hábito as meninas irem a casa de pessoas desconhecidas procurar notícias de um oficial.

‑ Não direi que se trata de meu pai?

‑ Não, é melhor não precisar; isso obrigava‑a a entrar em explicações com as quais o homenzinho nada tem. Olhe, diga‑lhe, por exemplo, que vai pedir‑lhe, para mim, a direcção de um dos meus antigos oficiais, a quem queria entregar um depósito sagrado... Pode falar nisso diante de mim, se quiser.

‑ Ele interrogá‑lo‑á sobre esse oficial e perguntar‑lhe‑á várias coisas, enquanto comigo, seja qual for o pretexto que lhe der, o coronel aceitá‑lo‑á sem dizer nada.

‑ É isso mesmo! Tem razão!

‑ Então...

‑ Faça como quiser, menina, dou‑lhe carta branca. Mas, pelo amor de Deus, não dê qualquer explicação que a comprometa.

‑ Sossegue, serei cautelosa.

Dois minutos depois batíamos ao portão de um elegante chalé, engrinaldado de rosas.

Um criado, que pelo aspecto se adivinhava ser um antigo soldado, veio abrir.

‑ O coronel Chaumont está em casa e poderá receber a esta hora? ‑ perguntou Sauvage, que desmontara para tocar a sineta.

‑ O senhor está. Queiram ter a bondade de entrar.

Bernardo dirigiu‑se para mim e ajudou‑me a desmontar.

‑ Coragem! ‑ murmurou baixinho.

Tranquilizei‑o com um sorriso, e um pouco comovida, apesar de tudo, por essa visita feita de minha vontade a um desconhecido, segui o criado que me precedia. Era, se a memória me não atraiçoa, a primeira vez que entrava só em casa de um estranho.

De repente, apareceu no cimo da escadaria um homem muito alto, de cabelo grisalho e bigode à imperial.

Olhou‑me com certa admiração, porque não lhe devia ser totalmente desconhecida.

‑ Queira desculpar que ouse apresentar‑me assim em sua casa, a esta hora ‑ murmurei, horrivelmente comprometida por me ver obrigada a ser a primeira a falar.

‑ Seja bem vinda!

‑ Sou filha de uma das suas vizinhas, da senhora de Borel...

‑ Das Torrinhas. Bem sei. Conheço um pouco a senhora sua mãe... Se quer dar‑me a honra de entrar... para o meu gabinete... terei muito prazer em a ouvir. Queira sentar‑se, peço‑lhe.

Sentei‑me, mais intimidada ainda ao saber que ele me conhecia.

Mas o coronel, muito amavelmente, acrescentou:

‑ Seja qual for o motivo da sua visita, estou à sua disposição.

Sorri com reconhecimento.

‑ Obrigada. Venho justamente pedir‑lhe... em nome de minha mãe... que sai muito pouco e raras vezes frequenta a sociedade... que me conceda licença para consultar o Anuário Militar. Julgamos que o coronel deve possuir, pelo menos, um exemplar, e minha mãe precisa de uma informação que lá deve estar... a respeito de um parente.

‑ Neste canto da biblioteca estão vários exemplares. Estão à sua disposição, mesmo que os queira levar para casa.

‑ É muito amável! E visto que me autoriza, vou imediatamente procurar a informação desejada.

‑ Como queira. Junto desta mesa estará mais à vontade para os consultar... Aqui tem tinta e papel para o caso de desejar escrever alguma coisa.

Pôs diante de mim vários anuários de diferentes datas e retirou‑se para o fundo do aposento.

Depois, sentando‑se num cadeirão, pegou maquinalmente num jornal, para melhor me deixar a liberdade de fazer as pesquisas que me agradassem. Mas eu sentia que por cima do jornal os seus olhos me examinavam e não me perdiam de vista.

Como não estava habituada, levei muito tempo a folhear aquele repertório de nomes, como se manuseasse um simples dicionário.

Havia três oficiais com o apelido de meu pai. Um, era capitão do activo; outro, major reformado, e o terceiro, apenas tenente. Mas nenhum tinha o mesmo nome.

Fiz em todos os anuários as mesmas pesquisas sem obter qualquer resultado, salvo notar que nas listas antigas o tenente não figurava.

Tive uma grande decepção e, com o olhar melancólico, conservei‑me por momentos com o cotovelo apoiado na mesa e a cabeça encostada às mãos.

O coronel, suspeitando que o meu trabalho fora infrutífero, facultou‑me uma agenda mais antiga.

‑ Veja isto. Se não se tratar de um oficial muito novo, talvez seja mais feliz com este alfarrábio.

Agradeci‑lhe e continuei a minha tarefa. Como não me desfitava, julguei do meu dever explicar‑lhe:

‑ Trata‑se de um tenente... de uns quarenta e três anos.

O coronel deu um pulo, para o qual naquele momento não achei explicação.

E observou com a sua franqueza rude de soldado:

‑ Diabo! O seu tenente não é nada novo!

‑ Há mais de quinze anos que tem a mesma patente ‑ tornei, ingenuamente.

‑ Mas, então, é tarimbeiro?

E como eu estremecesse, aterrada, sorriu.

‑ Perdoe‑me, mas geralmente um bom oficial não fica quinze anos sem ser promovido.

As suas palavras abriram‑me novo horizonte. Meu Deus! Que parva sou! E, corando, balbuciei:

‑ É verdade, esse tenente pode ser agora general!

Desta vez, o bom coronel riu à gargalhada. A minha inexperiência da vida militar saltou‑lhe aos olhos e divertiu‑o.

‑ Agora promove‑o um pouco depressa demais! ‑ exclamou alegremente.

Depois, aproximando‑se de mim, propôs:

‑ Se me permite que a ajude nas suas indagações, acharemos mais facilmente o que deseja.

Lembrei‑me da recomendação de Sauvage. Pensei também na prudente reserva que deveria manter, visto minha mãe ignorar a minha audaciosa tentativa.

Mas o rosto do coronel tinha qualquer coisa de tão franco e tão leal que atraía deveras a confiança.

Levantei para ele os olhos indecisos, onde tantas angústias deviam passar.

Adivinhara ele o meu embaraço ou, habituado pela sua profissão às intrigas femininas ligadas ao uniforme, julgaria que a alguma me prendia? Não sei. Mas pegou‑me paternalmente na mão e continuou:

‑ Seja qual for o nome desse oficial, prometo‑lhe que, se quiser dizer‑mo, o esquecerei cinco minutos depois de sair deste aposento.

O seu olhar era tão recto e tão leal que me entrou no coração.

E, ousadamente, respondi com firmeza:

‑ Agradeço‑lhe, coronel, o auxílio e a discrição que me oferece. Aceito ambos, cheia de confiança em si.

‑ Queira dizer.

‑ Procuro o nome de Frederico de Borel, que há quinze anos devia ser tenente, na reserva.

O coronel estremeceu um pouco e os seus olhos comoveram‑se ao fitar‑me.

‑ É inútil procurar ‑ declarou, fechando o Anuário que eu conservava aberto ‑ Conheço‑o.

‑ Conhece‑o? ‑ balbuciei, com a alma galvanizada.

‑ Frederico de Borel foi noutro tempo um dos meus oficiais. Combatemos juntos, no Chemin des Dames... Era um valente!

Levantei‑me, muito pálida, como para melhor o ouvir, e, talvez, para receber mais em cheio no coração o choque que ele me ia causar.

‑ Foi ferido em Craonne ‑ continuou o coronel, com ar pensativo ‑, Depois de curado, passou para a frent, em Verdun. Novamente ferido e tendo saído da linha de combate, perdi‑o de vista... Soube mais tarde que era capitão na reserva e que casara. Nessa época vivia eu na Alsácia...

Só mais tarde vim para esta terra, onde um dos meus parentes me legara esta casa... Quando cheguei, já Frederico de Borel não estava na região.

Eu escutava, numa espécie de êxtase religioso, as explicações do coronel. Era a primeira vez que ouvia tanto de meu pai e cada palavra pronunciada pelo seu antigo comandante inscrevia‑se em mim como o teria feito um buril na pedra:

"Meu pai!... Meu pai era um dos heróis da Grande Guerra!... Meu pai fora ferido duas vezes... E eu, sua filha, ignorava tudo até então...".

‑ E depois? ‑ balbuciei quando o antigo oficial se calou ‑ Depois, nunca mais ouviu falar dele?

‑ Tornei a vê‑lo, há doze anos... Acabava de pedir a demissão.

‑ Há doze anos! ‑ repeti como num sonho ‑ Há doze anos não estava morto?

‑ Mas que eu saiba ainda o não está. Ninguém ainda me anunciou a sua morte.

Estremeci e pareceu‑me que o sangue deixara de me circular nas veias. Esse homem raciocinava exactamente como Bernardo... E nem um nem outro acreditavam na morte de meu pai...

‑ Mas ‑ observei alucinadamente ‑ há doze anos que o não tornou a ver?

‑ Não, mas tive várias vezes notícias por amigos comuns. Escreveu‑me até um bilhete, há alguns anos... oito, talvez... partia para o Sudão.

‑ Para o Sudão?

‑ Sim; quando pediu a demissão... Germinavam‑lhe na cabeça milhares de projectos de exploração. Depois disso não deixou de viajar.

‑ E há oito anos que não houve falar nele?

‑ Não, mas isso não quer dizer nada. No centro de África as comunicações são muito deficientes e passam‑se muitos meses sem se poder fazer chegar a menor notícia ao Continente. Creia‑me, tenho a certeza de que não aconteceu nada ao senhor de Borel. Qualquer dia aparece por aí.

‑ Deus o oiça! ‑ exclamei, corando.

Naquela ocasião ter‑me‑ia feito bem chorar; lágrimas de alegria e de alívio ao mesmo tempo, enfim, lágrimas suaves! Mas contive‑me. Ignorava em princípio o que esse homem conhecia do passado de meus pais... essa espécie de separação entre meu pai e minha mãe... a sua partida, a sua ausência prolongada... desusada... a tristeza, o longo luto de minha mãe, que nada parecia fazer cessar. Que sabia ele? Que suspeitava? A gente da terra, principalmente esse homem, não saberia mais do que eu acerca do drama íntimo que dir‑se‑ia ter desunido para sempre meus pais?

Pensando em minha mãe, a quem a menor suspeita não devia atingir, bem como nenhum comentário desagradável, retive as lágrimas prestes a correr e consegui fortalecer um pouco o meu espírito abatido.

‑ Dê‑me licença que lhe agradeça do fundo da alma, coronel ‑ disse,   despedindo‑me ‑ Mal sabe como me foram preciosas as suas informações.

‑ Adivinho ‑ murmurou com afectuosa doçura.

Porém, escorando‑me contra o resto de comoção, continuei banalmente:

‑ Mais uma vez obrigada pelo seu amável acolhimento e desculpe a maçada.

Baixei correctamente a cabeça, mas ele estendeu‑me a máscula mão, na qual coloquei a minha que apertou fortemente.

‑ Até breve, minha filha... Tive o maior prazer em vê‑la... Lembre‑se de que esta casa é a de um velho amigo do senhor de Borel e que o seu proprietário terá muita alegria em falar consigo do ausente.

Esta afectuosa linguagem correspondia tão pouco à minha reserva que a fundiu instantaneamente. Os meus olhos marejaram‑se de lágrimas, e o coronel viu‑as.

‑ Por Deus! Como é bondosa! ‑ exclamou com voz altissonante.

E, num brusco movimento, puxou‑me para si e deu‑me estrondoso beijo na testa.

‑ Sabe ‑ disse, querendo logo desculpar‑se e acompanhando‑me até à porta ‑ que o coronel Chaumont é um velho endurecido e pouco dado a pieguices, mas, quando qualquer coisa o comove, chega a ser incorrecto.

Abriu a porta do gradeamento e cumprimentou‑me delicadamente, dizendo:

‑ Os meus profundos respeitos.

E, enterrando o chapéu na cabeça, voltou para trás febrilmente.

Bernardo esperava‑me, calcula‑se com que impaciência.

E, logo que montámos a cavalo, respondi à muda interrogação dos seus olhos:

‑ Meu pai vive! Pelo menos, vivia há oito anos!

‑ Eu bem o sabia! ‑ exclamou Sauvage, com verdadeira alegria.

Sentia que aquele homem estava bastante ligado ao serviço de meu pai, mas não compreendi bem quanto o estimava se não quando o vi entregar‑se sobre a sela a mil extravagâncias, ao anunciar‑lhe a boa notícia.

Tive de esperar que se acalmasse para lhe contar pormenorizadamente a minha visita ao coronel.

Ele ouviu‑me com toda a atenção. Depois disse:

‑ Afinal, fez bem em confiar nesse velho original. O melhor anuário pouco lhe poderia ter dito, visto que, há doze anos, o senhor Frederico já não era oficial da reserva. Ao passo que, com as informações obtidas, temos a certeza de que há oito anos seu pai gozava ainda de boa saúde. Supunha que exagerava, dizendo‑lhe que não devia desanimar?

‑ Devo‑lhe muito, meu amigo! Sem o senhor, continuaria a crer que meu pai tinha morrido no mar; e, graças à sua intervenção, ouso esperar vê‑lo um dia.

‑ Há‑de voltar, menina.

‑ Deus permita! É o meu maior desejo! Caminhámos alguns momentos, silenciosos, reflectindo.

‑ O que é preciso saber ao certo ‑ disse eu de repente ‑ são as causas exactas que forçaram meu pai a expatriar‑se. Porque ficou minha mãe aqui?... Devia tê‑lo seguido. A ruína não era tão completa que a obrigasse a separar‑se momentaneamente, visto que ainda lhe restavam as Torrinhas e os seus rendimentos. E, por último, como pôde minha mãe acreditar na morte de meu pai, quando lhe era tão fácil assegurar‑se do contrário?

O olhar de Sauvage desviou‑se do meu.

‑ Isso é outra coisa... que, no fundo, não tem importância.

‑ Pelo contrário, quero saber! Não compreendo esse mistério, e se conhece qualquer coisa, peço‑lhe que ma diga. Forjo na imaginação toda a espécie de ideias extravagantes... Fale, fale por favor, Bernardo.

‑ Preferia não lhe dizer nada. Compete à senhora de Borel explicar‑lhe o que se passou.

‑ Mas minha mãe não o faz nem nunca o fará! Meu pai morreu para ela e devo considerá‑lo como se não existisse.

‑ Felizmente, dizer que está morto não é matá‑lo.

‑ Responda à minha pergunta, suplico‑lhe, Sauvage!

‑ É difícil... Mas visto que assim o deseja e que o conhecimento do pouco que sei lhe pode servir... De resto, não são muitos os que saibam a verdade... Estou um pouco ao corrente do assunto porque minha mãe vivia nos Castanheiros com a senhora de Borel quando o caso ocorreu. Ora, o que a minha defunta mãe me contou, recomendando‑me que não o dissesse a ninguém, foi...

E, cheio de reticências, como se receasse ferir‑me, Bernardo explicou‑me:

‑ Nem sempre há união em todas as famílias, como seria para desejar. Umas vezes, é um que procede mal... outras vezes, é outro... E muitas coisas sucedem subitamente, sem que a vontade do culpado tenha contribuído para isso... Em resumo, seus pais adoravam‑se, era um contínuo murmúrio de beijos... Mas o senhor era volúvel, estouvado: era amável com todos, mesmo sem querer!... Uma noite... o que é que se passou? Não sei! A senhora teve ciúmes. Ele falava alto... ela gritava... ele suplicava... O senhor devia ter procedido mal, visto que implorava; mas a senhora é severa e não perdoa facilmente. Todo o seu orgulho devia estar revoltado, impedindo‑a de ser misericordiosa... De manhã, sua mãe partiu, sem querer ouvir o pobre marido que procurava retê‑la... Não houve maneira de desistir do seu propósito. Declarou que era o adeus definitivo. Conhece o seu famoso olhar, tão glacial e desdenhoso e que não perdoa? Seu pai também travou relações com esse olhar naquela manhã!

‑ Pobre pai!

‑ Sim, pobre senhor Frederico, porque todos os homens são mais ou menos fracos, o que não o impedia de adorar a senhora.

‑ Continue... minha mãe, então, partiu?

‑ Sim, afastou‑se, recusando qualquer entrevista ao marido, devolvendo‑lhe todas as cartas sem as abrir, pedindo‑lhe, apenas, por intermédio de um procurador, a possibilidade de viver tranquila no esquecimento, longe dele.

‑ Depois?...

‑ Não sei mais nada... Foi por essa época que os Castanheiros foram postos à venda... O senhor saiu de lá, quando viu que a senhora se recusava a voltar. Todo o pessoal foi despedido; o Solar ficou deserto. E continua vazio, porque as visitas de Piémont não contam! E continua vazio, porque o senhor Frederico não aparece.

‑ E minha mãe?

‑ Sua mãe foi residir para as Torrinhas, dois anos depois da venda dos Castanheiros. Trajava de preto, e Felícia dizia que o senhor desaparecera no mar.

‑ Mas a sociedade havia de falar, de fazer suposições...

‑ Pouca gente estava ao corrente da súbita discórdia; ninguém pensou em certificar‑se da veracidade do que Felícia dizia. Bastara uma noite para destruir a intimidade de seus pais. Mas isto não devia ter transpirado cá fora, de forma que, para toda a gente, o senhor morrera longe.

‑ Ninguém procurou verificá‑lo?

‑ Excepto a menina, ninguém tinha interesse no caso.

Fiquei por muito tempo pensando nesse rápido drama que tão completamente destruira a felicidade dos meus.

‑ Pobre mãe! ‑ murmurei, aludindo aos remorsos que a deviam ter assaltado, depois dos primeiros tempos e das cóleras passadas.

‑ Lastima‑a? ‑ perguntou Sauvage com ar sombrio.

‑ Sim, porque a tenho visto chorar muitas vezes e creio que não há dor mais amarga do que a que resulta de um excesso de severidade quando o perdão teria sido tantas vezes tão fácil e tão suave ao coração.

‑ E não tem pena de seu pai?

‑ Muita! Deve ter sofrido imenso! Mas ele tem, ao menos, a consolação de pensar que, se procedeu mal, fez quanto pôde para o reparar. Acredite que este pensamento conforta, ao passo que minha mãe ficou com o terrível remorso da sua implacável severidade.

‑ Ela podia repará‑la... tentar ir ter com o marido... chamá‑lo...

‑ Talvez o quisesse fazer... Quem sabe se já não seria tarde de mais! Quando quis aproximar‑se do marido, provavelmente não lhe encontrou vestígios... Tenho visto minha mãe chorar com frequência e estou certa de que tem sofrido atrozmente. Deve ignorar se meu pai ainda vive ou se apenas desapareceu.

‑ Talvez tenha razão; a senhora de Borel deve ter tentado procurar o senhor Frederico, mas ele não deixou indícios que permitissem descobri‑lo. Desesperado, atingido no seu orgulho de homem, partiu com a firme vontade de não ser procurado e de nunca mais voltar...

Detive as deduções de Bernardo.

‑ Se meu pai pensou assim, nunca mais o veremos: e a prova disso está nestes quinze anos de silêncio! Decorrerão dias e meses sem sabermos a menor coisa a seu respeito. É o absoluto esquecimento, tão poderoso como o túmulo. E talvez valesse mais, para tranquilidade moral de minha pobre mãe, que estivesse realmente morto.

‑ Cale‑se, menina Solange! Não blasfeme assim! Os nossos aldeãos dizem que enquanto há vida há esperança. E a menina, a filha do desaparecido, não quer esperar até ao fim?

Curvei a cabeça silenciosamente. Invadira‑me um grande desânimo desde que conhecia as causas da ausência de meu pai.

No meu íntimo dormitava um imenso orgulho... um orgulho ao qual teria sacrificado tudo, o meu coração, a minha tranquilidade e até a própria felicidade da minha vida inteira. E pensava que se meu pai sentira essa larva destruidora, quando o seu arrependimento não fora aceite por minha mãe, era igualmente capaz de ter tomado uma resolução implacável e conservá‑la até ao fim.

O meu longo silêncio devia ter impressionado Sauvage, que aproximou o seu cavalo do meu.

‑ Menina Solange ‑ disse ele mais suavemente ‑ Tenho em casa uma fotografia de minha mãe, tirada em grupo com a criadagem do Solar. Como o senhor Frederico era ainda criança pôs‑se à frente do grupo. Se amanhã quiser ir à minha casinha poderá examiná‑la à vontade.

Agradeci‑lhe.

‑ Irei ‑ disse simplesmente ‑ Venha buscar‑me cedo.

E a minha mão apertou a sua, como para lhe pedir perdão do meu desvairamento de há pouco.

 

                   7 de Junho

Como sempre, Sauvage, nessa manhã, foi pontual. Às oito horas estávamos a caminho.

Almocei de pé, à pressa, já vestida de amazona.

‑ Vejo que a minha Solange toma gosto por estas excursões matinais ‑ observou minha mãe, abraçando‑me ‑, Onde foste ontem?

‑ Para os lados de Anthieux. Mal conhecia essa parte da região.

‑ Julgo até que conheces muito mal os arredores, visto que passavas as férias comigo, em Diepa, em casa de tua tia Margarida.

‑ É verdade... conheço melhor as nossas costas normandas do que os arredores das Torrinhas.

‑ Por isso te entreguei a Sauvage. É um homem precioso, que te ensinará a amar o nosso cantinho, mostrando‑te todas as suas belezas. Estou tranquila a teu respeito quando andas com ele.

‑ Sei que o conhece há muito tempo, mãezinha.

‑ A mãe dele foi uma das minhas melhores cozinheiras... Olha, aí vem Sauvage. Vai depressa, minha filha, diverte‑te bastante... As Torrinhas nem sempre são alegres para uma rapariga da tua idade... O meu luto faz‑me viver reclusa... Vai, enche‑te de ar e liberdade. Aos dezoito anos sufoca‑se entre quatro paredes.

Antes de a deixar, beijei‑a, comovida com a solicitude que me testemunhava tão ternamente nessa manhã.

Pobre e querida mãe, sempre dolente e sempre triste... se soubesses onde vai a tua pequena Solange! Se adivinhasses de quem fala a tua filhinha!... Talvez ficasses bem surpreendida, sabendo que em todas as idades se chora e se sofre!...

Os filhos não são responsáveis pelas culpas dos pais, porém herdam‑nas... Herdei as suas lágrimas, e, no entanto, essas não diminuíram, ainda que eu esteja afogada nelas.

Parti com Bernardo. Creio ter dito já que ele habitava uma casa situada quase a meio do bosque, do outro lado da região, a poucos metros dos limites dos Castanheiros.

Quando nos dirigimos para ali, vimos, parado, a meio caminho, um grande automóvel. Um homem ‑ o motorista ‑ estava deitado de barriga para cima, na poeira do caminho, ao passo que outro ‑ provavelmente o dono do automóvel ‑ permaneceria de pé, atrás dele.

O primeiro parecia examinar atentamente o motor do carro; o segundo, pelo contrário, enterrado no seu abafo de peles, deixava os olhos percorrerem a paisagem cheia de sol.

Eu ia um pouco adiante de Bernardo, o qual observava geralmente essa atitude quando via pessoas estranhas ou atravessávamos qualquer aldeia.

Ora quando chegámos junto deles, o automobilista, que estava deitado no chão, levantou‑se e dirigindo‑se a Sauvage, que sem dúvida tomou por meu criado, disse‑lhe:

‑ Quer fazer o favor de me ajudar a levantar o carro e a escorá‑lo com essa pedra? Esqueci‑me do macaco.

Bernardo olhou para mim, hesitante.

‑ Vá ‑ disse eu, sofreando Mascote.

O meu companheiro desmontou, prendeu o cavalo a uma árvore, na beira da estrada, e deu a ajuda pedida.

Nesse intervalo, o outro homem voltou‑se para mim. Tinha uns cinquenta anos, pelo pouco que pude julgar do seu rosto, meio coberto por uma espessa barba arruivada.

Era alto, bastante forte sob o seu amplo casaco de peles, e trazia os vulgares óculos de automobilista.

Tirou o chapéu quando me viu, sóbria, mas delicadamente, e pediu desculpa da liberdade que o seu motorista tomara de interpelar tão familiarmente o homem que me acompanhava.

Respondi que o meu companheiro estava à sua disposição.

Após alguns rápidos agradecimentos, o desconhecido apontou para as casas da vila.

‑ Poderia dizer‑me, minha senhora, o nome desta aldeia?

‑ Thierville ‑ respondi ‑ uma pequena localidade de duzentos habitantes, quando muito.

‑ E aqueles magníficos bosques que há pouco atravessámos?

‑ Pertencem ao Solar dos Castanheiros ‑ informei, corando um pouco ao pronunciar este nome, quase sagrado para mim.

‑ O Solar dos Castanheiros ‑ repetiu o desconhecido, como se aquele nome não fosse novo para ele.

Depois, apontando para a nossa casa, que se avistava ao longe, muito branca, do outro lado do vale, interrogou:

‑ Aquela bonita casa, lá em baixo, cheia de torres, não está à venda?

‑ Não! ‑ exclamei ‑, Ninguém pensa nisso. É habitada há muitos anos pelas mesmas pessoas, e penso que continuará a sê‑lo!

‑ Julgava... sem dúvida, confundi! ‑ rectificou logo ‑ Falaram‑me numa magnífica moradia senhorial, em estilo Renascença, creio eu...

‑ O que diz?

Com a sua brusca franqueza de soldado, Bernardo dera um pulo, ao passo que eu me sentia empalidecer.

‑ O Solar dos Castanheiros à venda? Ora vamos ‑ continuou ele após um minuto de estupefacção.

‑ Não se trata do Solar dos Castanheiros ‑ disse o desconhecido, com indiferença ‑ O meu procurador indicou‑me em Thierville... um castelo... um velho castelo quase abandonado, em estilo muito puro, com um imenso parque e belos bosques... Nada mais sei, e pensei que qualquer pessoa mo poderia indicar sem dificuldade.

O tom daquele que falava tinha qualquer coisa de altivo, que devia impor‑se a Sauvage.

Mas este não conhecia delicadezas subtis e ainda menos o servilismo, principalmente quando qualquer coisa o preocupava deveras.

‑ Maldito tabelião! Não faltava mais nada! Mais uma das suas extravagantes invenções para irritar as pessoas! Nós temos já bastantes descrentes cá na terra, ainda é preciso mandá‑los vir de fora!

Estremeci, aterrada, sentindo todo o injurioso alcance das suas palavras para com um estranho. Mas este não parecia disposto a zangar‑se. Voltou‑se para Sauvage e examinou‑o com particular atenção.

Pareceu‑me notar, apesar dos seus óculos, que os olhos lhe brilharam de repente de um modo estranho. Escárnio ou ironia, as reflexões mordentes de Bernardo alegraram o desconhecido.

‑ Quero crer que ainda haverá em França famílias antigas que possam pagar pelo seu justo valor esse castelo ‑ disse com um sorriso indefinível.

‑ Mas serão estranhos, estrangeiros ou vadios, que virão tomar o lugar dos antigos proprietários. As pedras têm uma alma, senhor, e é insultar o passado desafiar a ira dos mortos apropriando‑nos dos despojos dos seus descendentes. Esses bens deveriam ser inatacáveis e não sair da família! Só o dinheiro pode andar de mão em mão, sem ser de ninguém. Mas as casas e as terras são coisas sagradas.

A cólera do pobre Sauvage devia divertir quem não lhe compreendesse os verdadeiros motivos.

Com o rosto alterado, devia parecer cómico àquela gente; mas eu achava‑o magnífico na sua exaltação. E no fundo da minha alma não partilhava eu instintivamente das suas ideias antiquadas?

O motorista levantara‑se e interrogou‑o com ar chocarreiro!

‑ Eh! Meu velho! Sempre és muito parvo! Até parece impossível! Serás da idade do teu avô, para andares assim atrasado?

‑ Vamos, Morvan, despache‑se. Vamos ficar aqui eternamente?

Esta ordem, secamente dada pelo desconhecido ao seu motorista, pareceu‑me uma espécie de censura ao tom escarninho com que aquele se dirigia a um homem que espontaneamente o auxiliara.

Com grande surpresa minha, a pessoa a quem, no entanto, as reflexões de Sauvage se dirigiam não parecia nada sentido com elas.

Retomara a sua atitude sonhadora e continuava a olhar pensativamente ao longe. Talvez o seu orgulho não quisesse condescender em compreender as observações desagradáveis do meu intrépido companheiro.

Com aspecto carrancudo, Sauvage montou de novo a cavalo.

‑ Isso agora já marcha!... Meus senhores, tenho a honra de os cumprimentar ‑ despediu‑se secamente.

‑ Obrigado, meu valente ‑ agradeceu o desconhecido, dirigindo‑se‑lhe ‑ Quer apertar‑me a mão? A sua rude franqueza deu‑me prazer. Estou certo de que deve ser um companheiro dedicado.

‑ Na certeza de que nem o dinheiro nem as palavrinhas mansas me farão mudar de opinião ‑ replicou sossegadamente o antigo soldado ‑ Os compradores podem vir, mas não comprarão Bernardo Sauvage.

Esta bela declaração fez sorrir, de novo, o desconhecido. Mas como impecável homem de sociedade, não insistiu.

Voltando‑se para mim, cumprimentou‑me depois de me ter dirigido novamente algumas palavras de agradecimento.

Continuámos o nosso passeio interrompido. Depois de termos percorrido uma centena de metros sem falar, voltei a cabeça, porque não ouvia o ruído do motor do automóvel.

O motorista estava ao volante, pronto para largar, mas o desconhecido conservava‑se de pé, no mesmo sítio onde o tínhamos deixado. Imóvel, seguia‑nos com o olhar.

‑ Cantei das boas ao tal sujeito! ‑ exclamou Sauvage, rancoroso ‑ Não o ouviu falar no seu procurador? Enchia a boca com ele, como se o seu dinheiro lhe desse uma espécie de soberania. Lá por que os Castanheiros estão à venda já se julga castelão.

‑ Meu pobre Bernardo! Não serão os seus lamentos que impedirão a venda... Se não for este o comprador, será outro. Tanto faz este como aquele. Tem aspecto de pessoa bem educada. Não viu como interrompeu imediatamente o motorista, que se permitiu gracejos tolos?

‑ É verdade! Parece ser delicado. De resto, não podia agir doutra forma, na sua presença, ou então seria um insolente.

‑ Talvez. Na verdade, foi bastante correcto.

‑ Sim, sim, está percebido! Mas não impede que eu sofresse um grande abalo ao saber que os Castanheiros estavam à venda, porque, desta vez, parece‑me que o caso é a valer. Apareceu um comprador de carne e osso! Já não são só palavras. E se não se anuncia a venda a rufos de tambor, pelo menos faz com que se desvalorize.

Calou‑se um momento e depois exclamou:

‑ Mas santo nome de Deus! Então, Borel não podia impedir isso!

Eu tivera o mesmo pensamento. Não respondi, tantas impossibilidades sentia levantarem‑se perante tal esperança! Interessar‑se‑ia ainda minha mãe pelos Castanheiros?

Mas chegávamos à casinha de Sauvage. Apeei‑me e aceitei a tigela de leite que ele me oferecia. Enquanto, um pouco pensativa, bebia lentamente a saborosa bebida, Bernardo despejou três copos de cidra.

‑ Esta notícia fez‑me febre! Estou mal disposto.

‑ Eu agradeço a Deus, permitir‑me que a soubesse assim... Depois da venda,   ter‑me‑ia sido mais doloroso.

Bernardo aprovou com um sinal de cabeça.

‑ Decerto! ‑ disse com voz surda ‑ Como desilusão já chegou.

Calou‑se, para continuar pouco depois, mais suavemente numa súplica:

‑ A menina Solange espera fazer qualquer coisa? Ah! Se fosse possível!

‑ Não sei, não tenho essa esperança! Neste momento estou como que esmagada... A casa fechada e o grande parque deserto parecem‑me um pouco meus; eram de meu pai, visto que pareciam não ser de ninguém. Mas, se vejo aí rostos novos e animação, creio que será o fim de todas as minhas ilusões. E, deste modo, como poderei esperar ainda que meu pai volte?

Sauvage deu um grande murro na mesa. Nesse instante, era capaz de todas as violências.

‑ Se bastasse ter estrangulado, há pouco o homenzinho, para impedir a venda do Solar, tê‑lo‑ia feito, disposto a pagar com a minha vida esse gesto homicida. Mas, depois dele, viria outro e isto nunca mais acabava!

‑ Vamos! Sossegue, meu bom amigo. Amanhã veremos se é possível fazer alguma coisa. Por agora, ouça: desejava visitar o Solar dos Castanheiros. Ma teus Sauvalle tem as chaves; peça que lhas confie, ou que nos acompanhe lá... O senhor diz que ele é dedicado aos antigos patrões; portanto, não lhe oculte que sou eu quem lho pede...

‑ Decerto que não recusa.

‑ Então, a caminho. Tenho pressa de voltar para as Torrinhas... Quero falar a minha mãe.

Antes de partirmos, Bernardo mostrou‑me o retrato em que falara. Os tons começavam a desmaiar. A fotografia, de resto, estava mal tirada. Contemplei por muito tempo aquele bonito rapazote de aspecto decidido, apesar dos seus traços delicados, rapazote que, mais tarde, fora meu pai.

Tive a tentação de pedir a Bernardo que me confiasse esse retrato, mas pensei que também representava a imagem da sua mãe e que não tinha o direito de privar esse bom amigo de uma recordação tão preciosa.

Apenas cheguei às Torrinhas e mudei de trajo, pus em prática o meu plano. Fui ter com minha mãe ao pequeno gabinete onde habitualmente permanecia.

Já me sentia muito firmemente decidida a falar‑lhe, e esta precisa resolução deixava‑me calma, disposta a encarar todas as respostas que me desse.

‑ Perdoe‑me, minha mãe, que interrompa a sua leitura ‑ disse‑lhe sentando‑me junto dela ‑ mas tenho de lhe falar em coisas que julgo muito graves e que não ouso adiar.

‑ De que se trata, minha filha? ‑ inquiriu ela, admirada, pousando nos joelhos o livro com que se entretinha quando entrei.

‑ Sabia que o Solar dos Castanheiros estava à venda? ‑ continuei corajosamente.

Estremeceu.

‑ Não. Ninguém me falou nisso ‑ declarou, olhando‑me, admirada.

‑ Soube‑o, esta manhã, por acaso ‑ expliquei.

E contei‑lhe o nosso encontro com o automóvel avariado e as informações pedidas e dadas pelo desconhecido. Bem entendido que não lhe falei nas reflexões afervoradas de Bernardo.

‑ É a primeira vez que ouço falar nessa venda ‑ observou minha mãe quando terminei a narrativa.

‑ Mas eu não vejo em que nos interesse tanto.

Sem querer, dei um pulo.

‑ Oh! Minha mãe. Essa casa era nossa, antigamente... Só o pensamento de que estranhos a vão habitar me aflige. Parece‑me um pesadelo que me vai ser preciso viver... Se vê a possibilidade de impedir essa venda, rogo‑lhe em nome do céu, que o faça.

Minha mãe ergueu‑se com vivacidade.

‑ Peço‑te que sossegues, Solange!... E raciocina um pouco... Então, minha filha, essa propriedade já não nos pertence. Piémont comprou‑a há muito tempo. Se hoje quer vendê‑la, está no seu direito, e não tenho nenhuma autoridade para o aconselhar a proceder de outro modo.

‑ Mas a mãe não a pode comprar?... O notário, certamente, lhe daria a preferência.

‑ Não pensas no que dizes, minha pobre filha ‑ retorquiu ela, ameigando a voz ‑ Essa casa vale, pelo menos, um milhão, e não possuo semelhante quantia.

‑ Mesmo vendendo as quintas, os prados e as Torrinhas?

Minha mãe começou a rir.

‑ Deliras, Solange! Nasci nas Torrinhas e conto aqui morrer. Como podes pedir‑me que sacrifique tudo para comprar uma propriedade que exige enorme despesa para ser habitada? Que farias do Solar dos Castanheiros?

‑ Iríamos viver para lá!

‑ E depois?

‑ Viveríamos lá, esperando...

‑ Esperando o quê?

Estive quase a responder‑lhe: "Esperando a volta de meu pai". Mas contive‑me. Para quê? Voltaria ele, agora?

Como eu ficasse silenciosa, verdadeiramente acabrunhada, minha mãe estendeu o braço e pegou‑me na mão.

‑ Então, Solange, porque te apoquentas assim, inutilmente? Compreendes que o que me pedes é impossível. Não posso, não tenho o bastante para pagar o Solar dos Castanheiros, mesmo que sacrificasse todos os nossos bens, como há pouco me propuseste.

Levantei a cabeça.

‑ E eu? ‑ interroguei.

‑ Tu? ‑ disse ela, admirada, sem compreender.

‑ Sim. Então não tenho absolutamente nada? A morte de meu pai, tornando‑me órfã, dá‑me direito à herança.

Vi o querido rosto materno contrair‑se dolorosamente.

‑ Torturas‑me, Solange, e inutilmente... Tu não tens nada... Nada, salvo o que eu possuo e o que tua tia Margarida te deixar.

Ergui‑me subitamente, com o olhar febril.

‑ Mas a tia Margarida é rica! O que nós não podemos, pode ela fazê‑lo. Vou escrever‑lhe, suplicando‑lhe que compre o Solar dos Castanheiros.

‑ Como és criança! Então imaginas que minha irmã pode gastar um milhão de um dia para o outro, só para satisfazer o capricho de uma sobrinha insensata? Não quero impedir‑te de escreveres a tua tia, mas previno‑te de que fará troça de ti!

O tom leve e escarninho de minha mãe fez‑me mal, nesse momento, em que a minha pobre cabeça atormentada procurava uma solução ao problema que me preocupava.

‑ Não gosta do Solar dos Castanheiros, minha mãe! ‑ não pude deixar de dizer amargamente.

‑ Sofri ali muito ‑ respondeu ela, suspirando ‑ Prendem‑me ao Solar muitas e tristes recordações. Não sabia era que tivesses tal amor por essa propriedade.

‑ Também o ignorava antes deste dia ‑ respondi ‑ Para o saber, foi preciso que um estranho me dissesse: "Desejo comprar e viver ali, como senhor". Isso foi para mim uma revelação! Se soubesse, minha mãe! Julguei que ia chorar diante de todos... Mordi os lábios para não dizer nada... Contudo, ainda esperava... Tinha fé em si. Mas, agora, acabou‑se!

Compreendo que nada há a fazer e nada posso impedir!

Pronunciei estas últimas palavras por entre lágrimas. Estava desesperada, e sentia agora a inutilidade da minha tentativa junto de minha mãe. Ela   consolou‑me o melhor que pôde, com palavras ternas, tentando, com todos os raciocínios possíveis, demonstrar‑me que a venda do Solar dos Castanheiros em nada mudaria a vida deliciosa e tranquila que eu devia passar nas Torrinhas.

Com a cabeça a arder, deixei‑a falar, embalando‑me com o som da sua voz, sem compreender o sentido das palavras.

Oh! Hora dolorosa, em que, com a cabeça encostada ao peito materno, cheia de tristeza, eu me sentia tão longe, tão só!...

 

                   10 de Junho

Logo que montei a cavalo, nessa manhã, interpelei Bernardo:

‑ Afinal, conseguiu ver Mateus Sauvalle?

‑ Sim, menina. Está à nossa espera. Respirei, aliviada. Havia dois dias que o meu bom Sauvage em vão tentava encontrar o couteiro, que partira para a aldeia próxima e só voltara na véspera à noite, como o meu companheiro acabava de explicar.

A certeza que Sauvage me dava de que podíamos visitar, nesse mesmo dia, o Solar, tirava‑me um peso de cima do peito, tal era o meu receio de que o guarda, mesmo a mim, o não pudesse mostrar. Partimos rapidamente, sempre silenciosos.

Cuidara com toda a atenção do meu vestuário, coisa que não estava nos meus hábitos havia muito tempo; mas esta visita à casa abandonada aparecia‑me como uma verdadeira cerimónia, uma espécie de homenagem póstuma que ia prestar aos cerimoniosos antepassados sob a vista dos quais devia ser preciso atravessar.

Desta vez, para irmos ao Solar, tomámos pela estrada principal.

‑ Hoje, não passaremos pela brecha ‑ explicou‑me Bernardo ‑ Sauvalle deve esperar‑nos ao portão.

Sorri, intimamente feliz.

‑ É quase uma visita oficial ‑ repliquei, com o coração alvoroçado de comoção.

E toquei Mascote, para chegar ao Solar mais depressa.

O meu companheiro seguia‑me, acabrunhado, e eu sentia o seu olhar tristonho pesar, por vezes, sobre mim.

O antigo soldado devia ter sonhado uma outra entrada no Solar dos Castanheiros, para o último representante dos condes de Borel. Esta visita, feita misteriosamente e quase às escondidas, à grande casa, onde, realmente, ninguém substituirá meu pai, parecia‑lhe intolerável. Não admitia ver‑me ali como visita, e, pior ainda, como estranha, quando bem depressa um desconhecido ali entraria como senhor.

Sauvalle esperava‑nos junto do portão principal.

Quando me viu dirigiu‑se a mim de boné na mão.

‑ Permita‑me que lhe dê as boas vindas ao visitar o Solar dos Castanheiros. E tenho muito prazer em que me dê licença de a acompanhar.

Agradeci com um sorriso ao bom homem, que me fizera cumprimento tão agradável.

‑ Mateus abrirá as portas ‑ exclamou Sauvage, cujo rosto sombrio se não modificava.

O seu ar triste lembrou‑me, com um aperto no coração, os dolorosos motivos que me haviam feito desejar essa visita ao velho Solar.

O "Solar dos Castanheiros à venda... O Solar vendido!... Que desgosto!".

A minha alegria fictícia caía subitamente, e a minha presença naquele sítio já me não apareceu como verdadeiramente devia ser: uma dolorosa peregrinação a coisas mortas que se iam profanar...

O meu cavalo calcava as pedras sonoras do pátio de honra. Meti‑o a galope, e, ferozmente, precedendo os dois homens, dirigi‑me para a imponente moradia senhorial.

Uma chicotada rapidamente dada, e as rédeas refreadas com mão firme, fizeram com que Mascote galgasse ousadamente os primeiros degraus da imensa escadaria.

Quantos senhores pomposamente equipados teriam tido, noutros tempos, o mesmo gesto!

Este pensamento surgiu bruscamente no meu espírito, e, como filme evocador, despertou na minha mente rostos antigos que me pareceram vivos.

Olhei em redor daquele pátio lajeado... Vi‑o povoado de homens de armas e de escudeiros. Vi altivas princesas e pajens atrevidos...

Foi um desfilar imponente de heróis de todas as épocas. Piedosos cruzados, bravos cavaleiros da Renascença, mosqueteiros do rei Henrique, altivos fidalgos do grande século, corajosos proscritos da Revolução, enfim, descendentes das velhas famílias francesas...

Todo o orgulho de Raça me assaltava.

"Sou dos vossos... o nosso sangue é o mesmo! Vós todos que me precedeste aqui, não me reconheceis?...".

Radiante visão que me fez bater mais depressa o sangue nas veias, mas apenas visão!

Estou sozinha no alto da escadaria... sozinha ao pé da casa solitária. O meu chicote em vão bateu na pesada porta de carvalho. O som repercutiu‑se lentamente por todos os cantos, parecendo despertar, ali, os ecos adormecidos.

Uma comoção religiosa se apossou de mim, como se de todas essas pedras uma alma se me dirigisse.

Como me sinto pequena em face de todos aqueles valentes que passaram essa porta, que pretendo transpor num pé de igualdade! As suas almas orgulhosas não corarão da minha fraqueza!

De novo vejo o longo cortejo de antepassados que me precederam e, perante o imponente desfile, ergo‑me, endireito‑me... os meus olhos não se baixaram diante dos seus múltiplos olhares de além‑túmulo:

"Só eu, Manes orgulhosos, resumo todos!... Ser minúsculo, oposto à massa, aqui estou!... Vivo, existo: feita de todas as suas virtudes e de todos os seus erros, de todas as suas vitórias e de todos os seus reveses. Eu só sou toda a sua força e a sua fraqueza!

Da árvore imensa só resta a glande; mas só o fruto é toda a Raça!... E sinto o sopro de todos esses heróis,] saudarem‑me, acolherem‑me... abraçarem‑me... A última descendente dos condes de Borel pode entrar: está em sua casa!...".

Impressionados pela minha gravidade e pelo meu longo silêncio Bernardo e Mateus pararam ao começo da escadaria.

Olhavam‑me, espantados, compreendendo talvez todo o desgosto que esta atitude sonhadora ocultava.

Assim que desmontei, dirigiram‑se para mim.

Enquanto Bernardo levava os cavalos, Sauvalle abria as portas, que giraram pesadamente nos gonzos.

Apareceu‑me um vestíbulo imenso, empedrado de mármore. Mobilavam‑no bancos esculpidos e altas panóplias.

Depois, entrámos numa larga antecâmara.

‑ A sala das armaduras ‑ indicou Bernardo. E a visita começou.

Piquei admirada da esplêndida ordem que se via por toda a parte. Uma camada de poeira cobria, evidentemente, todos os móveis, mas não havia nenhuma desordem; tudo estava no seu lugar, bem arrumado, pronto a ser utilizado.

Bastava varrer e limpar o pó para, num ápice, dar vida a estes vastos aposentos.

‑ É esta a parte do Solar que Piémont habita? ‑ perguntei.

‑ Oh! Não! ‑ respondeu Sauvalle. ‑ O nosso patrão só ocupa a ala esquerda, isto é, a parte pior. São, a bem dizer, uns aposentos separados, pois têm entrada particular.

Ele dissera o nosso patrão, falando do notário, e um estremecimento me sacudiu, inexplicavelmente, a este tratamento.

‑ Como vê, menina Solange ‑ disse Sauvage a meia voz ‑ tudo se encontra em bom estado.

‑ O senhor Piémont manda limpar tudo muitas vezes ‑ explicou o nosso cicerone ‑ Está tudo admiravelmente conservado; e ninguém dirá que há quinze anos estes aposentos estão fechados.

‑ Eu bem lhe dizia que Piémont podia habitar o castelo, sem fazer despesa alguma.

‑ Assim é. Inacreditável que ele não tenha pensado nunca em gozar tudo isto.

‑ E veja, por toda a parte só há quadros de mestres, pau‑rosa, bronzes maciços, tapeçarias antigas e mármores de preço.

Aproximou‑se de mim e fez em voz baixa esta observação:

‑ Acredita que o senhor Frederico, antes de aceitar a ruína para si e para os seus, não podia ter tirado partido de todas estas riquezas?

‑ Sim. A venda de todos estes móveis representaria enorme fortuna.

Calei‑me de repente. Acabava de me atravessar o espírito uma reflexão. Como pudera minha mãe afirmar‑me, três dias antes, que eu não possuía nada? Meu pai levara, então, tudo consigo?... Tudo, e o preço desse solar que ela avaliava ainda num milhão?... Tudo, e o valor dessas riquezas amontoadas por todos os cantos? Pergunta perturbadora, porque, se minha mãe tinha adquirido a certeza da morte de meu pai, o seu dever materno não teria sido procurar o que ele tivesse deixado?

E, se essa morte não era um facto concreto, porque me dizia ela que eu nada tinha a esperar do lado paterno?

Mas esta questão pecuniária não me interessava senão pelas deduções a tirar da existência provável de meu pai.

A nossa visita continuou, através de numerosos aposentos. Quando chegámos à Sala dos cavaleiros, longa galeria transformada em salão magnificente, Bernardo mostrou‑me um quadro, entre centenas de outros dependurados nas paredes, e explicou‑me:

‑ Aqui, por cima desta moldura, está o retrato do senhor Frederico, aos vinte e cinco anos, pouco mais ou menos quando a menina nasceu.

Corri febrilmente para a tela que ele me indicava.

Entretanto, Sauvalle, sem que eu lho pedisse, abrira as portadas directamente colocadas em frente desse retrato.

Sorridente, vivo, animado, apareceu‑me o rosto de meu pai, pela primeira vez... De súbito, os meus olhos ‑ os meus! de tão estranha cor ‑ atrairam‑me.

‑ Sim, pareço‑me com ele!

E, transfigurada, fitava‑o, de mãos postas, trémula de emoção.

Não se pode descrever o que então senti. Era um sentimento religioso, ao mesmo tempo muito doloroso e muito suave, uma alegria sem limites, de o ver tão altivo e tão belo, de sentir que eu era sua, tanto pelo sangue, como pelo coração e feições, mas era também uma horrível angústia dizer comigo mesma que talvez nunca conhecesse dele mais do que esse retrato... esse retrato que não era meu, e que acabava de o descobrir para melhor o perder, porque não tardaria em pertencer a um comprador... a um estranho qualquer, que apenas veria nele um retrato bem feito, assinado por um nome conhecido. Que pungente era esse pensamento! Voltei‑me para Mateus, e, com os olhos cheios de lágrimas, supliquei‑lhe:

‑ Diga‑me, posso levá‑lo? Não deve ser vendido!... Tiro‑o?

‑ Não sei, menina ‑ balbuciou Sauvalle, embaraçado ‑ É preciso perguntar ao senhor Piémont.

‑ Mas esse retrato pertence‑me. Não mo podem recusar... É meu! Esse quadro não pode ser incluído na venda. Ninguém vende o seu próprio retrato... Veja, há ao lado um lugar vazio: devia ser o retrato de minha mãe... Meu pai deve ter esquecido o seu... Foi um descuido, mas eu posso repará‑lo...

E repetia como um autómato.

‑ É meu, é meu...

Os dois homens olharam‑se. A minha comoção comunicava‑se‑lhes.

Vi Sauvalle limpar furtivamente os olhos, enquanto Bernardo, com o olhar fixo, mordiscava nervosamente o lábio inferior. O seu silêncio prolongado fez‑me voltar a mim. Compreendi que o meu pedido era insensato: Nada ali me pertencia!

Tudo fora vendido, até os objectos familiares... O comprador pagara tudo, até esse retrato, que revestia para ele o valor de uma obra de arte.

Então, voltando a cabeça para não ver mais o rosto sorridente que parecia seguir‑me com os olhos, afastei‑me, com o coração cheio de lágrimas recalcadas, tentando interessar‑me por todos os outros quadros que compunham essa magnífica galeria de família.

Que direi de todos os aposentos visitados? Guardo deles uma confusa recordação.

Vi o berço branco, verdadeiro ninho de rendas, onde dormi, em pequenina; vi o quarto de meu pai e o seu gabinete de trabalho, admirei o elegante quarto de vestir de minha mãe, e o sumptuoso quarto histórico onde, parece... dormiu Henrique IV.

Vi também uma imensa biblioteca onde se amontoavam mais de dois mil volumes de luxo; uma capela mística abrigada por brilhantes vitrais; vi quartos; um gabinete de fumar, moderno, junto de um jardim de Inverno; vi enormes cozinhas e pequenas salas de serviço.

Vi ainda mil coisas, mas não notei mais nada, perseguida como estava pela dor de um sorriso apaixonado, por um olhar dourado onde pareciam brilhar clarões de amor e orgulho.

Despedaçadora recordação!...

Um outro pesar ainda maior me estava reservado... Acabávamos de visitar o castelo quando um toque de buzina, brusco e prolongado, nos sobressaltou, ao mesmo tempo que ouvíamos o ruído de um motor.

Todos estremecemos.

Bernardo e eu fitámo‑nos, pensando ambos no automóvel da véspera.

Mas Sauvalle correra à janela...

‑ O senhor Piémont! ‑ exclamou, aterrado, olhando‑me com embaraço.

Nada me podia comover nesse momento. Pelo contrário, pareceu‑me ser o céu que me enviava o notário.

‑ Sossegue ‑ disse eu a Mateus Sauvalle ‑ o senhor Piémont não o censurará por eu aqui estar. Tomo a responsabilidade de tudo.

E, simplesmente, dirigi‑me para a porta, ao encontro do inimigo que o notário se me afigurava.

Quando apareci, no alto da escadaria, subiam duas pessoas. O tabelião, que eu vira muitas vezes, não vinha só; acompanhava‑o o estrangeiro do outro dia, e bastou‑me um olhar para reconhecer o automóvel e o motorista que eu já vira.

Vendo‑me, os dois homens pararam, admirados; mas, enquanto o rosto do notário indicava claramente que me conhecia, o do seu companheiro mostrou uma surpresa fria.

‑ Que encontro inesperado! ‑ disse por fim o notário, que não sabia que atitude havia de tomar.

‑ É verdade ‑ repliquei com simplicidade, continuando junto da porta, qual dona de casa recebendo as visitas.

E senti a necessidade de explicar imediatamente a minha presença ali:

‑ Ouvi dizer que o castelo ia ter um novo proprietário. Quis visitá‑lo antes de ir para a posse dele, certa de que o meu caro senhor Piémont não me recusaria o direito de aqui vir.

‑ Pois não, menina Solange. Pois não! Tenho o maior prazer. Fez muito bem.

Apesar destas palavras de delicadeza, vi o seu olhar dirigir‑se para Mateus Sauvalle, com uma certa expressão de aborrecimento.

‑ Não ralhe com Sauvalle! ‑ exclamei ‑ Disse‑lhe que abrisse as portas e me precedesse. Não ousou pedir‑me explicações, e, é claro, obedeceu. Espero que o não censurará.

Estas palavras eram tão desajeitadas e ao mesmo tempo tão pretensiosas, que, apesar dos vidros escuros dos seus óculos ‑ porque, hoje, já não trazia os óculos de automobilista ‑ vi o companheiro do notário franzir o sobrolho.

‑ Quem é esta senhora? ‑ perguntou ele um pouco secamente.

O rosto do notário passou por todas as cores do arco‑íris. Na verdade, eu tinha um modo tão cavalheiresco de estar em minha casa na sua presença, que devia sentir‑se aborrecido.

E, depois disto, devia perguntar de si para si como é que eu iria acolher as consequências.

A pergunta directa do desconhecido não pôde esperar mais para nos apresentar, o que fez com uma espécie de ansiedade.

‑ A menina Solange de Borel, das Torrinhas... o senhor James Spinder, o novo proprietário do Solar dos Castanheiros.

Esta rápida apresentação galvanizou toda a assistência. Bernardo e Sauvalle sufocaram um grito de surpresa, enquanto eu, empalidecendo subitamente, cambaleava: O Solar dos Castanheiros vendido!

Pelo seu lado, Spinder, provavelmente ao facto do que significava o meu nome, com respeito à sua nova propriedade, não pôde esconder um sobressalto, e pareceu‑me que corara de descontentamento sob a sua barba vermelha. Novo senhor daquela propriedade, não devia supor‑se ao abrigo de questões familiares que a sua venda, quinze anos antes, acarretara? E a minha presença no Solar, do qual acabava de tomar posse, poderia representar outra coisa para ele que não fosse um acto hostil?

Dominou‑se, porém, e cumprimentou‑me com a delicadeza de um homem de sociedade.

Mas eu estava muito perturbada e enfraquecida para lhe poder retribuir, salvo com uma leve inclinação de cabeça.

O novo proprietário do Solar dos Castanheiros. Estas palavras zumbiam‑me aos ouvidos e parecia‑me que se repetiam como fanfarra na minha cabeça.

Queria fugir, correr para longe de todos a fim de dar largas ao meu desgosto; mas as minhas pernas não o consentiam. Tive de me agarrar às pedras salientes do pórtico.

‑ Com mil diabos! ‑ exclamou Bernardo, correndo para mim ‑ Menina Solange! Menina Solange!

Pousei a cabeça no seu ombro robusto, ainda mal desperta pela sua voz rude, angustiada, onde havia rancor.

Mas Spinder dirigiu‑se para mim e afastou Sauvage, com autoridade.

‑ Apoie‑se a mim, mademoiselle ‑ disse, pegando‑me na mão e dando‑me o braço ‑ Venha descansar um instante na galeria.

Sem força nem vontade própria, naquele momento, segui‑o com docilidade. Ele devia ter visitado muitas vezes a casa antes de a comprar, porque abriu, sem se enganar, a porta desse aposento, o que eu talvez não conseguisse fazer, embora acabando de sair de lá.

Sentou‑se num cadeirão, e, sem dificuldade, abriu várias janelas para dar luz e ar ao aposento; tudo isto com absoluta franqueza de um dono de casa que se encontra no que é seu.

Depois, voltou para junto de mim.

‑ Sente‑se melhor? ‑ perguntou com infinito respeito.

E, como eu continuasse muito pálida, acrescentou:

‑ Permita‑me que lhe ofereça um pouco de champanhe... para lhe dar forças e alguma cor. Oh! Não recuse, não diga que não, peço‑lhe!

Este oferecimento foi feito num tom tão sincero e ao mesmo tempo tão firme, que não ousei recusar.

Voltou‑se para o notário, pois os dois homens tinham ficado discretamente à porta.

‑ Então, entrem. Vamos beber à saúde da menina. Desejo que a minha chegada a esta casa não deixe a ninguém qualquer má recordação, pela qual sou involuntário responsável.

Estas últimas palavras eram certamente ditas, com benevolência, em minha intenção; porém eu estava incapaz de pronunciar palavra. De resto, há certas feridas em que se não pode tocar, sem fazer redobrar o sofrimento. A sua alusão ao meu pesar representou esse papel doloroso, e tive que fechar os olhos sob a impressão das lágrimas que me perlaram subitamente as pestanas, e que eu não queria deixar ver.

Spinder percebeu a minha comoção. Por momentos, o seu olhar frio observou‑me; depois, subitamente, com essa soberana autoridade que parecia ser‑lhe habitual, indicou ao notário um armário metido na parede, junto de um enorme fogão de sala.

‑ Parece‑me que um destes dias vi aí taças. Faça o favor de trazer algumas, enquanto eu vou buscar umas garrafas de Clicquot, que tenho no meu automóvel.

Piémont obedeceu docilmente. Bernardo aproximou‑se de mim e olhou‑me com verdadeira solicitude.

‑ Não se apoquente, menina Solange ‑ disse a meia voz ‑ Isto tinha que ser... E talvez seja melhor assim. Se o Solar dos Castanheiros foi vendido é porque sem dúvida alguém voltou para dar essa ordem, pois nada me fará acreditar que Piémont fosse o verdadeiro dono. Há pouco nem sequer sabia onde estavam as taças!

‑ Em compensação, o recém‑chegado já estava inteirado!

‑ Sim! Fala como senhor! Este pagou a valer! Vê‑se logo!

‑ Oh!... ‑ lamentei.

‑ Enfim, não perca a confiança. Aqui deve andar o dedo do senhor Frederico. Foi ele quem mandou vender... Doutra forma, não seria natural!

Tentei prender‑me a esta esperança. Sauvage talvez tivesse razão.

A minha natureza combativa despertava, e pensei que se tornava necessário interrogar o notário.

Mas Spinder voltara, trazendo uma garrafa de gargalo dourado, que entregou a Bernardo.

‑ Abra isto, meu amigo. Deve saber fazê‑lo...

Vejo na sua escarcela uma fita que me indica ter andado na guerra: ora os poilus primavam em fazer os seus utensílios de tudo, e tenho a certeza de que não há um que não tenha aprendido a desrolhar uma garrafa sem saca‑rolhas.

Bernardo, lisonjeado, começou a rir, e, tirando um canivete da algibeira, depressa cortou os arames que prendiam a rolha.

O champanhe transbordou nas taças de cristal. O novo proprietário entregou‑me uma, e convidou cada um a servir‑se.

‑ Bebo pela menina e pelos antigos proprietários dos Castanheiros ‑ disse ele, levantando discretamente a taça ‑ Bebo à prosperidade desta casa e à felicidade dos seus habitantes e de todos cujos lugares aqui estejam indicados.

E dirigindo‑se a mim, com uma lenta inclinação do busto, concluiu:

‑ Termino, formulando especialmente este voto: que a menina Solange de Borel se sinta sempre aqui como em sua casa.

‑ Hurrah! Ao Solar dos Castanheiros e aos seus antigos donos! ‑ exclamou Bernardo, todo trémulo.

‑ À menina de Borel! ‑ repetiu mais suavemente o notário.

‑ E ao senhor Spinder, também ‑ disse Mateus Sauvalle, desastradamente, cuja voz ficou sem eco.

Eu não tinha dito uma palavra, nem para agradecer, nem, pela mais elementar delicadeza, para retribuir ao novo castelão os votos que tão amavelmente me formulava.

Mas era impossível conservar‑me mais tempo silenciosa. Levantei‑me, um pouco pálida, mas com uma firme resolução.

‑ Desculpe‑me por não corresponder melhor à sua extrema delicadeza, que muito lhe agradeço. Mas seria impossível, hoje, que pela primeira vez bebo nesta casa, erguer a minha taça sem ser em honra daquele cuja sombra parece pairar dentro destas paredes. Bebo a Frederico de Borel! A meu pai e ao seu regresso!

‑ Ao senhor Frederico ‑ repetiu lentamente por detrás de mim, como um eco, a voz rouca de Sauvage, que parecia afogada em soluços.

Houve um minuto de trágico silêncio.

As minhas palavras tinham, certamente, magoado Spinder, que devia esperar, depois de tanta amabilidade comigo, mais graciosidade da minha parte, porque o vi levantar‑se com certa altivez. Parecia mais alto e o seu olhar, passando por cima das nossas cabeças, dirigia‑se para o parque magnífico, onde as árvores centenárias erguiam as portentosas comas. O preço por que pagara tudo aquilo não lhe assegurava a sua posse integral? Depois, com a mão nervosa, seca e comprida, de unhas finas, agarrou na taça e, sem dizer palavra, despejou‑a de um trago. Em silêncio, pousou‑a sobre a mesa. Nem sequer tivera a correcção de aprovar o meu brinde.

Piémont assoou‑se estrondosamente, e Sauvalle, com os olhos baixos, fazia girar entre as mãos, com embaraço, o boné.

O novo dono da casa, depois de ter bebido, inclinara‑se para um pequeno móvel, estilo Império, cujos frisos cinzelados, de bronze dourado, examinava como se se tivesse desinteressado subitamente da minha presença em sua casa.

Fui eu quem primeiro rompeu aquele penoso silêncio, dirigindo‑me ao notário:

‑ Tenho algumas informações a pedir‑lhe, senhor Piémont. Não poderia   dispensar‑me alguns minutos num destes dias?

‑ Quando quiser. Com o maior prazer.

‑ O caso não tem importância para si e não quero incomodá‑lo. Por outro lado, tenho dificuldade em ir a sua casa. É um pouco longe.

‑ O mais simples seria, evidentemente, que eu fosse às Torrinhas, quando passasse por Thierville. Convém‑lhe?

Tive um segundo de instintiva hesitação, pensando que seria preciso pôr minha mãe ao corrente do que se passava. Mas havia estranhos em volta de mim que escutavam e apenas pude responder:

‑ Entendido; venha às Torrinhas. Contudo, como sou eu particularmente quem deseja falar‑lhe e durante uma boa parte do dia não estou em casa, poderia dizer‑me quando vai?

Enquanto falava, senti o olhar de Spinder fixar‑me.

‑ Posso escrever‑lhe na véspera ‑ propôs Piémont.

Era‑me impossível receber uma carta que não fosse primeiro entregue a minha mãe, que a leria antes. Teria de recorrer ao correio?... Ou espreitá‑la todas as manhãs, para esperar depois Piémont na estrada e detê‑lo antes de chegar às Torrinhas?

Todas estas dificuldades, que surgiram em tropel ao meu espírito, retardaram a minha resposta e deram tempo a Spinder de intervir, sem que calculasse o auxílio que me prestava.

‑ O senhor tem que vir almoçar aqui depois de amanhã ‑ disse ele ao notário.

‑ Como? ‑ perguntou este, parecendo bastante embaraçado por lhe lembrarem esse convite perturbador para a sua vida.

‑ Sim, sim, está entendido ‑ interrompeu Spinder com vivacidade ‑ Bem sabe que daqui a dois dias preciso de si.

E, voltando‑se para mim, com certa frieza, apesar da sua soberana cortesia, acrescentou:

‑ A menina de Borel quererá dar‑nos a honra da sua companhia nesse dia?

‑ É impossível! Sem minha mãe, não posso... e ela nunca sai.

Sorria‑lhe com o melhor dos meus sorrisos, procurando atenuar o que a minha correcta recusa podia ter de ofensivo para o seu convite um pouco sem‑cerimónia.

‑ É pena ‑ disse ele com uma leve contracção no rosto, como se não estivesse habituado à resistência ‑ Era uma excelente ocasião para se encontrar breve com o senhor Piémont.

‑ Sim, na verdade, é pena ‑ declarei, não ousando propor‑lhe que fosse aos Castanheiros a outra hora.

Mas Spinder, que não me desfitava, pareceu adivinhar os meus pensamentos. E voltou‑se para o tabelião.

‑ O meu automóvel irá buscá‑lo logo de manhã e estará aqui às dez horas. Deixo‑o livre até ao almoço. Se quer ir às Torrinhas, ou se a menina de Borel prefere vir passear até aqui, terei muita honra em lhe apresentar os meus cumprimentos e deixar o Solar dos Castanheiros ao seu dispor, para poder conversar consigo.

Dito isto, como se, na verdade, não pudesse fazer mais para me ser agradável, meteu as mãos nos bolsos e foi pôr‑se em frente da janela, deixando que Piémont e eu tomássemos a decisão que nos agradasse.

Teria preferido não voltar aos Castanheiros e encontrar o notário em qualquer outro sítio... por exemplo, em casa de Sauvage; mas, a menos de querer ser desagradável ao novo castelão, não podia deixar de aceitar a sua oferta: as Torrinhas ou os Castanheiros.

Combinaram‑se as coisas como ele propusera e escolhi os Castanheiros...

‑ Quinta‑feira de manhã, aqui, sem falta ‑ disse eu, despedindo‑me do tabelião.

‑ Até quinta‑feira ‑ confirmou ele.

Spinder saiu logo da janela e dirigiu‑se para mim, o que provava que, apesar da sua atitude indiferente, se não desinteressara do debate.

‑ Então, terei a honra de a receber quinta‑feira? ‑ disse ele, oferecendo‑me o braço para me acompanhar.

‑ Na verdade, é muito amável e aceito o seu tão cordial oferecimento: virei falar com o senhor Piémont aos Castanheiros.

‑ Tanto melhor! Terei ocasião de lhe apertar mais uma vez a mão, antes da minha partida.

‑ Conta partir em breve? ‑ interroguei delicadamente.

‑ Sim, no fim da semana. Estarei ausente alguns dias... o tempo necessário para procederem à limpeza do Solar.

Um receio me fez bater o coração.

‑ Sem dúvida, pensa em mudar o mobiliário e a disposição interior do castelo? ‑ interroguei novamente.

‑ De forma alguma! Aqui tudo está bem. Seria pena tocar‑lhe.

‑ Oh, sim ! Não mude nada ! ‑ supliquei sem mesmo saber o que dizia.

‑ Farei o possível para que o Solar dos Castanheiros não sinta muito a mudança de dono ‑ disse, um pouco irónico ‑ O seu criado fez‑me sentir bem, no outro dia, que seria um sacrilégio e pouco correcto, da parte de um recém‑chegado, ousar mudar aí alguma coisa, pretendendo fazer melhor do que fizeram aqueles que me precederam nesta casa.

Julguei perceber uma leve censura.

‑ Bernardo é arrebatado ‑ disse para o desculpar e bem fixar as responsabilidades do furor incorrecto do meu ousado mentor ‑ Gostava muito desta casa, onde cresceu ao lado de meu pai. Devem‑se‑lhe perdoar os excessos de linguagem, que traduzem mal as suas boas intenções.

‑ Estou convencido de que é uma boa alma! Acrescento até que se deve sentir orgulhosa em ter um tal servidor e em inspirar semelhante dedicação...

Tínhamos chegado ao pé de Mascote, que Bernardo trazia à rédea. Spinder   ajudou‑me a montar.

Apresentou‑me mais uma vez as suas homenagens e toquei o cavalo, que partiu a galope, ouvindo ainda atrás de mim a voz do novo proprietário dizer ao couteiro:

‑ Não se afaste, Sauvalle. O senhor Piémont deseja fazer‑lhe algumas perguntas.

‑ Este homem é capaz de fazer com que Piémont ralhe ao pobre couteiro que me abriu as portas ‑ pensei com um estremecimento de revolta ‑, Se cometer essa vilania, conheço uma menina que não deixará cair isso em cesto roto! O senhor James Spinder, apesar de todas as suas atenções, apesar da sua grande delicadeza e a despeito de toda a sua boa vontade, tornou‑se um usurpador da pobre órfã esbulhada.

Já dera meio‑dia havia muito quando transpusemos o portão do gradeamento das Torrinhas.

Absorvidos, cada um, nos seus pensamentos fizemos rapidamente o trajecto sem falar.

‑ A senhora de Borel vai ralhar‑lhe ‑ disse‑me então Sauvage tristemente ‑, Estamos muito atrasados.

‑ Hoje tenho desculpa! ‑ repliquei com indiferença.

Assim que cheguei, saltei da Mascote, e, sem descansar nem mudar de trajo, entrei à pressa na sala de jantar.

Minha mãe já lá estava, sozinha. Em pé, encostada ao fogão, esperava‑me, com a testa enrugada.

‑ Vê as horas que são ‑ disse, indicando‑me o relógio.

‑ Bem sei que me demorei de mais, minha mãe, mas peço‑lhe que me desculpe. Não pude vir mais cedo.

‑ Pelo menos, explica‑me o motivo ‑ redarguiu sem se comover.

‑ É bem simples ‑ volvi, sentindo enorme opressão no peito ‑ Venho do Solar dos Castanheiros!

‑ Falas sério?

Esta exclamação foi seca, mordente, irónica. Bastou para espicaçar a minha coragem.

‑ Sim ‑ repliquei suavemente, mas com muito mais calma ‑ Quis antes que a venda dessa casa fosse definitiva, cumprir uma piedosa peregrinação... Visitá‑la, pelo menos, uma vez, antes que mãos estranhas lhe profanassem as recordações. A meu pedido, Mateus Sauvalle abriu‑me as portas... Oh! Tranquilize‑se, minha mãe, eu não estava só. Sauvage quis acompanhar‑me e, com ele, nada tinha a recear de desagradável!

‑ Essa visita, que censuro, explica‑me bastante a causa da tua demora... Mas não a desculpa, pelo contrário!

‑ Permita‑me que acabe, minha mãe... Estaria de volta há mais de uma hora, se os acontecimentos se não opusessem... Terminada a minha visita, quando chegávamos ao portão, apareceu Piémont com o desconhecido do outro dia... Lembra‑se? Contei‑lhe... o automóvel avariado... os dois viajantes...

‑ Sim, muito bem...

‑ O notário não podia deixar de nos apresentar...

‑ Piémont devia ficar muito surpreendido de te encontrar em sua casa! ‑ tornou minha mãe, com aspecto ainda mais descontente.

‑ Menos do que o seu companheiro... Imagine que esse senhor...

Calei‑me um pouco, tão penoso era o assunto.

‑ Então?

‑ Chama‑se James Spinder ‑ continuei com esforço‑ É o novo proprietário do solar dos Castanheiros.

Minha mãe estremeceu bruscamente.

‑ O Solar dos Castanheiros foi vendido? ‑ inquiriu a meia voz.

‑ Foi.

Fez‑se pesado silêncio. Vi no rosto de minha mãe que o caso a interessava mais do que tinha querido mostrar‑me até ali. Nesse momento tive a intuição de que a sua alma vibrava com a minha. Mas depressa dominou o que na minha presença devia considerar como uma fraqueza.

‑ Devias ter‑te retirado logo ‑ observou‑me ‑, A tua presença tornava‑se indiscreta. E o que fizeste?

‑ Devia ter fugido, evidentemente... Mas as forças... Não pude! Esta notícia arrasara‑me!... Além de que já estava bastante comovida com a minha peregrinação... aquelas coisas... as recordações... o retrato de meu pai, na galeria... Era a primeira vez que o via.

Minha mãe empalideceu horrivelmente.

‑ Ah! ‑ murmurou ‑ Ainda lá está?

‑ Sim... vendido com o resto!

Houve uma pausa verdadeiramente dolorosa.

‑ Continua ‑ teve ela a coragem de dizer, apesar da sua comoção.

‑ Não sei mais nada, mãe... Ouvindo dizer que o Solar dos Castanheiros estava vendido, cambaleei. Pareceu‑me que ia morrer de pesar... O senhor Spinder correu para mim e fez‑me sentar num cadeirão.

Minha mãe levantou‑se, agitada.

‑ Meu Deus! ‑ disse ela ‑ Minha pobre filha! Em que situação ficas inutilmente!

‑ Tranquilize‑se ‑ volvi, sorrindo entristecida ‑ A correcção está salva; havia lá gente e não chorei.

Esperava uma palavra de ternura, mas, ferozmente retraída para não atraiçoar os seus sentimentos íntimos diante de mim, minha mãe conservou‑se silenciosa.

‑ Agora ‑ perguntei tristemente ‑ dá‑me licença por cinco minutos para ir mudar de fato e vir para a mesa?

‑ Não vale a pena. É já uma hora. Come assim mesmo.

Almoçámos, mas nem minha mãe nem eu tínhamos apetite, e mal tocámos nos pratos que Felícia nos servia.

A meio da refeição, minha mãe, até ali silenciosa, interrogou‑me a respeito de Spinder.

‑ É ainda novo, se bem que uma espessa barba que lhe cobre três quartos do rosto o envelheça bastante. Parece um homem de sociedade e ter hábito de mandar e de agir.

‑ O seu nome indica ser estrangeiro... Inglês ou Americano?

‑ Talvez Inglês: tem a frieza britânica. Em todo o caso, fala admiravelmente a nossa língua, não tem o menor sotaque na pronúncia, asseguro‑lhe.

‑ Pouco importa, afinal.

‑ Será um vizinho agradável ‑ repliquei.

‑ Não me dou com pessoa alguma! ‑ respondeu minha mãe, secamente.

Não insisti, mas gostei de pensar que minha mãe não apreciava o usurpador, como eu agora chamava ao recém‑vindo.

Quando nos levantámos da mesa, entrou Felícia com um enorme ramo de rosas.

‑ Da parte do senhor coronel Chaumont! ‑ anunciou ela.

Minha mãe estremeceu.

‑ Mas eu não conheço esse homem!‑disse, admirada.

O coração parecia querer saltar‑me.

‑ Encontrei‑o num passeio ‑ respondi esforçando‑me por não corar ‑ É um velho muito simpático.

‑ Acabas por conhecer toda a gente! ‑ exclamou ela, meio zangada ‑ E não gosto que te relaciones com qualquer pessoa. Como falaste com esse homem? Quem to apresentou?

Custava‑me muito mentir ou não falar claro, mas previa que se dissesse a verdade, ia dar lugar a uma explicação tumultuosa.

‑ Bernardo Sauvage conhecia‑o... Como foi soldado... ‑ respondi, um pouco hesitante.

‑ Bem compreendo. Mas aproveito a ocasião para te lembrar que é preciso ser prudente. Uma menina deve ser bastante reservada, e desejava que escolhesses as tuas relações com cuidado.

‑ Mãe, não vale a pena recomendar‑mo. Não vejo ninguém! Foi preciso haver a avaria naquele automóvel para trocar uma palavras com um desconhecido, o que logo lhe contei.

‑ Muito bem! Com respeito a essas flores, se queres, leva‑as. Sinto horror em tê‑las no gabinete.

Aceitando a sua autorização, peguei no magnífico ramo de rosas e levei‑o para o meu quarto.

Quando colocava as flores em duas grandes jarras, caiu delas um sobrescrito branco.

‑ O coronel manda o seu cartão ‑ pensei.

Na verdade, era o cartão do coronel, que nele escrevera algumas linhas:

 

O coronel Chaumont apresenta as suas respeitosas homenagens à menina Solange de Borel. Tendo podido obter algumas informações mais precisas a respeito do assunto do outro dia e desejando comunicar‑lhas, conserva‑se às suas ordens, para o fazer em sua casa ou nas Torrinhas, Com a maior consideração.

 

Seguia‑se a assinatura e a data.

Vinte vezes reli o pequeno cartão que o acaso providencial depusera directamente nas minhas mãos. Depois de passada a minha surpresa e de ter imaginado, com terror, todos os aborrecimentos que sofreria se esse papel tivesse ido parar às mãos de minha mãe, só pensei na comunicação que o coronel me prometia fazer.

Que informações seriam estas em que falava?

Meu Deus! Contanto que não fosse ainda alguma dolorosa decepção!

 

                   11 de Junho

A propriedade do coronel está situada a cinco bons quilómetros da nossa.

Apesar da minha impaciência em saber de que se tratava, não podia ir a pé, e foi‑me preciso esperar até ao dia seguinte que chegasse Sauvage, para ir a cavalo.

‑ Há novidades, Bernardo ‑ disse‑lhe quando ele apareceu.

‑ Boas?

‑ Não sei! O coronel deseja falar‑me. Vamos a casa dele.

Entreguei‑lhe o cartão, que leu atentamente.

‑ Não diz nada, Sauvage? ‑ notei, vendo‑o pensativo após a leitura.

‑ Tenho medo ‑ respondeu laconicamente ‑ Há alguns dias que os acontecimentos nos são tão desfavoráveis que não ouso alegrar‑me.

‑ Quer falar na venda do Solar? Foi uma provação que não desejava nunca ter sentido.

‑ Sim, que surpresa! Devia esperá‑la, mas não imaginava que era para já, tão depressa... Nada a impressionou, nesta história, menina Solange?

‑ A que respeito?

‑ Desse senhor com um nome tão esquisito... James Spinder! Não é um nome Cristão!

‑ Creio que é nome inglês. Mas que importa, se o seu possuidor é um homem honrado? Foi esse nome que o perturbou?

‑ Não, mas há dois dias ele não sabia que o Solar dos Castanheiros existia, e ontem já era dele. E não reparou no modo estranho desse senhor quando, ao chegar, a viu sair do Solar?

Sorri com a reminiscência.

‑ Oh! Sim. Principalmente quando afirmei orgulhosamente o meu direito de lá entrar e sair... Devia parecer um pouco ridícula! ‑ terminei, corando com aquela recordação.

‑ A menina foi sublime ‑ protestou Sauvage, com calor ‑, Impôs‑se a todos... O senhor Piémont não ousou dizer ui!

‑ Contudo, devia ter ficado atrapalhado ao ver‑me ali.

‑ Spinder ainda o estava mais! Aborreceu‑se por encontrar alguém no seu Solar.

‑ Perguntou logo quem eu era.

‑ Sim, e o seu nome embaraçou‑o. Devia conhecê‑lo, ou, pelo menos, tê‑lo ouvido pronunciar... Com que sobressalto soube quem a menina era!

‑ Observei o mesmo... Mas pareceu‑me que Spinder se tornou imediatamente mais amável logo que soube o meu nome!

‑ Talvez! É um homem correcto! Está habituado a dominar as suas impressões! Mas a Bernardo Sauvage nada escapa: se houver mouro na costa, cá estou ao leme.

‑ Que quer que nos oculte? Pode jogar comigo jogo franco; não lhe peço nada.

‑ Sim, a menina é uma pombinha, que não lhe perceberá as manhas!... Mas, seja como for, não me sai do pensamento que o novo proprietário do Solar está furioso por a encontrar lá, diante dele, como uma ameaça... Terá ao menos a consciência tranquila? De onde vem?... E por quanto pagou o Solar e o seu recheio? É caso para ver! Mas sossegue, eu cá estou! E com os olhos bem abertos!

Fiz um gesto evasivo perante os subentendidos. Que queria ele dizer?

Spinder pareceu‑me muito natural e correcto. Quais as suspeitas de Sauvage? Não compreendi.

Renunciando a adivinhar as impressões um pouco tenebrosas do meu valente companheiro, dei‑lhe algumas explicações a respeito da minha próxima visita aos Castanheiros.

‑ Quero que Piémont me forneça pormenores sobre a venda de há quinze anos... Não tenho idade para pedir contas, mas creio que ele não mas recusará.

‑ Mais vale que lhas recuse do que contar‑lhe histórias que apenas servirão para a despistar.

Decididamente, Sauvage duvidava de tudo e de todos.

‑ Espero que Piémont não será capaz de sustentar uma mentira ‑ exclamei com indignação.

‑ Ora! Quem ousará afirmar que a compra e a venda dos Castanheiros lhe não tenha custado algumas.

‑ Isso é o que havemos de ver!... Mas cá estamos em casa do coronel.

O velho oficial devia espreitar a minha chegada, porque, mal os nossos cavalos pararam diante da sua porta, apareceu perto do gradeamento e ele mesmo o abriu.

‑ Contava falar‑lhe esta manhã. Pensei que não se devia demorar em visitar‑me ou em me mandar ir a sua casa.

‑ Se pudesse ter vindo a pé, tê‑lo‑ia feito antes, coronel. Estou impaciente por saber o que tem para me dizer. Mas, primeiro, permita‑me que lhe agradeça: foi na verdade muito amável por se ter interessado pelas minhas investigações.

‑ É que fiquei aborrecido por lhe não ter podido ser útil, e isso   mortificava‑me. Disse comigo que, se a menina soubesse procurar o seu parente, por esse mundo fora, tão bem como lhe soubera procurar o nome no Anuário, nunca chegaria a um resultado.

‑ Tem razão. Uma rapariga sozinha nunca pode dirigir eficazmente as suas pesquisas... Tem pouca liberdade e experiência ‑ respondi, sem perceber logo que as minhas palavras advertiam o coronel da ignorância de minha mãe, com respeito às minhas acções.

‑ Evidentemente! Uma mulher não o consegue ‑ respondeu ele, generalizando a sua resposta, como se não quisesse dar a perceber ter notado a confissão que me escapara ‑ Desculpe‑me haver procedido sem o seu consentimento ‑ continuou ele ‑ Sou um homem de acção e não gosto de ver os assuntos prolongarem‑se. Ouso esperar que, em paga da minha boa vontade, não me quererá mal pela minha indiscrição.

‑ Pelo contrário! Como hei‑de agradecer‑lhe? Mas ele interrompeu‑me:

‑ Dedicar‑me‑á um poucochinho da sua amizade, à maneira de agradecimento, mais tarde... quando tiver encontrado o parente... Agora, ouça‑me...

Fez‑me sentar na sua frente, e logo, adivinhando a minha impaciência, começou:

‑ No outro dia, depois de ter saído, escrevi a alguns dos meus antigos oficiais, os quais sabia terem tido noutros tempos estreitas relações com o senhor de Borel, quando ele ainda era dos nossos.

‑ Foi uma ideia luminosa!

‑ Assim o julgo... Aqui estão as respostas... Pouco adiantam, apenas dizem que cessara há muitos anos qualquer correspondência com o seu parente. Mas um deles envia‑me esta informação, bastante vaga: o filho de um antigo oficial, o general marquês de Rouvalois, foi encontrar‑se... segundo se recorda o meu correspondente... com o senhor de Borel, há alguns anos, no Cairo, para subirem o vale do Nilo... Uma indicação... e, como vê, nada mais. É, pois, preciso procurar esse rapaz e interrogá‑lo. Com semelhante nome e ascendência não deve ser difícil dar com ele... Talvez Rouvalois pudesse informar‑nos melhor sobre o caso que nos interessa.

‑ Marquês de Rouvalois... ‑ repeti, procurando gravar este nome na memória.

‑ O filho ‑ rectificou o coronel ‑ porque o general, se ainda é vivo, deve ser muito velho... E, se bem me lembro, tinha muitos filhos. Foi uma informação muito vaga que obtive por esse lado, portanto, e antes de mais nada precisamos de saber de qual dos filhos se trata.

‑ Assim é! ‑ murmurei, suspirando, perante todas as dificuldades que esse facto representava.

‑ Espero, porém, esclarecer bem depressa essas diversas dúvidas... mas não é tudo! Não fiquei por aqui ‑ continuou ‑, Ao mesmo tempo que me dirigia aos meus mais novos oficiais, escrevi igualmente uma carta à Agência Colonial, em Paris, e outra ao Ministério das Colónias, perguntando‑lhe se estavam ao corrente das expedições do senhor de Borel.

‑ Como reflectiu bem ‑ observei, admirada, porque nunca teria essa ideia.

O coronel sorriu, contente com a minha aprovação.

‑ Pensei que o seu parente não devia ter partido só, mas sim acompanhado por alguns camaradas... E desde que se tratasse de uma expedição em conjunto, seria pouco natural que o ministro das Colónias o ignorasse.

‑ E conseguiu saber alguma coisa? ‑ perguntei, com ansiedade.

‑ Sim. Aqui estão as respostas das duas fontes, que são pouco mais ou menos semelhantes:

 

Há onze anos, um senhor de Borel, cujo primeiro nome não está indicado, fez uma expedição ao Sudão, embrenhando‑se pelo interior da África.

‑ Trata‑se, na realidade, de Frederico de Borel, visto que os seus camaradas se lembram perfeitamente de terem recebido, dali, notícias suas, nessa época. Mas continuo.

 

Dois anos mais tarde, encontrámos esse mesmo senhor de Borel nas costas da Guiné.

Depois, durante alguns anos, não ouvimos mais falar nele. Mas, recentemente, há seis anos, um senhor de Baurel ‑ cujo apelido não é escrito da mesma maneira, mas da mesma forma é pronunciado ‑ foi visto no Congo, dirigindo‑se para a Colónia do Cabo.

Por fim, há três anos, falou‑se numa caravana dirigida por um francês, chacinada nas margens do Quanza.

 

‑ Santo Deus! ‑ exclamei, empalidecendo ‑ Tratar‑se‑á dele?

‑ É bastante provável. O Quanza é um rio da África do Sul... e encontrava‑se certamente no caminho seguido por esse senhor de Baurel.

‑ Então foi morto há três anos! ‑ balbuciei, aniquilada.

‑ Dê‑me licença. Dizem‑me, pelo contrário, que, depois de um inquérito na costa, feito nessa época pelas autoridades portuguesas, resulta que o Francês de que se trata apenas ficou ferido e que uma tribo de Marusté o recolheu. Supõe‑se, por isso, que se terá dirigido para o Transval.

‑ É tudo tão vago!

‑ Concordo! Mas se confrontarmos esses factos com a informação dada pelos meus antigos oficiais, parece‑me que chegaremos à conclusão de que o senhor de Borel não morreu nas margens do Quanza, visto que há dezoito meses deixou o Cairo para subir o Nilo.

‑ Queira Deus que as coisas se tenham passado assim!

‑ Desejo‑o tanto como a menina, e, se me autoriza a continuar as investigações, vou tentar, por correspondência, encontrar o senhor de Rouvalois, para que nos esclareça.

‑ Oh! Sim, faça isso, peço‑lhe! E creia desde já no meu grande reconhecimento.

‑ Não me agradeça, minha filha. Tenho o maior prazer em lhe ser agradável. Era muito amigo de seu pai.

Deteve‑se, confuso, mas continuou:

‑ Admirava imenso o senhor de Borel. Era um desses homens amáveis e bem educados que dão honra ao exército Francês.

Estremeci. Era muito orgulhosa e recta para aceitar por mais tempo essa dissimulação quanto a um homem que me dava tais provas de estima.

‑ Não se constranja, coronel, dizendo meu pai ‑ exclamei com simplicidade, um pouco triste ‑, Sou de facto a filha de Frederico de Borel, e é por isso que procuro tão ardentemente saber o que foi feito dele.

‑ Já o adivinhara no outro dia ‑ respondeu o coronel, comovido.

E acrescentou, apertando‑me fraternalmente a mão.

‑ Conte comigo como com um velho amigo. Farei impossíveis para conseguir que encontre vestígios daquele que procura.

Como já nada mais tinha a dizer‑me, levantei‑me para me despedir e ele fez o mesmo.

‑ Não lhe dou estes papéis ‑ explicou, mostrando‑me as cartas que obtivera em resposta às suas ‑ Posso precisar de tornar a lê‑las ou neles colher alguma informação que a minha memória cansada não tivesse conservado.

‑ Não preciso deles! Creio que não esquecerei alguns dos nomes que pronunciou, e, visto que me quer prestar a sua ajuda, esses papéis são‑lhe de mais utilidade do que para mim.

Quando nos despedíamos, indiquei Bernardo ao velho oficial.

‑ Se precisar de ver‑me ou mandar‑me qualquer informação, peço‑lhe que me escreva para casa deste homem, porque, não desejando perturbar minha pobre mãe, já tão triste, nada lhe contarei do que fizermos, até termos obtido resultados definitivos.

O coronel examinou Sauvage.

‑ Este homem é seu criado? ‑ perguntou.

‑ Não. É um antigo zuavo reformado; é também um antigo companheiro de meu pai, a quem ficou profundamente dedicado. Minha mãe tem nele uma confiança cega, visto que o encarrega de velar pela filha, por montes e vales.

‑ Então foi zuavo? ‑ perguntou o meu interlocutor, dirigindo‑se amigavelmente a Bernardo.

‑ Sim, meu coronel. Estive lá oito anos. Há treze meses que estou de volta.

‑ Muito bem! Passe por cá algumas vezes. Se houver novidades para a menina de Borel encarregá‑lo‑ei de lhas transmitir.

‑ Muito bem, meu coronel!

Apertei demoradamente a mão do excelente homem, antes de o deixar. O seu grande entusiasmo em auxiliar‑me fazia com que eu voltasse a ter confiança no futuro.

Já não estava a tratar de um problema difícil, quase insolúvel. Alguém que possuía a experiência e a agudeza precisas e, principalmente, tendo toda a latitude para agir, abraçara a minha causa e ocupava‑se dela seriamente.

As informações obtidas a respeito de meu pai pareciam‑me, de resto, verdadeiramente animadoras.

Em vista do resultado obtido, já não se trata de um período de quinze anos para trás, na mais absoluta ignorância. Não, agora, tenho a íntima convicção de que meu pai vivia há poucos anos, e só me resta encontrar‑lhe vestígios.

 

                   12 de Junho

Davam dez horas, justamente, quando cheguei, nessa manhã, aos Castanheiros. Chovia torrencialmente.

Fui, não a cavalo como habitualmente, porque chegaria encharcada, mas de carro, na nossa venerável vitória, à qual tinham suprimido o lugar do cocheiro, o que permitia guiar eu mesma.

Foi Piémont que me recebeu à entrada.

‑ É pontual, menina Solange! ‑ exclamou ao ver‑me ‑, Também eu: há um quarto de hora que cheguei e mandei fazer um bom lume no fogão da casa de jantar para lá estarmos bem quentes.

A casa de jantar era, na verdade, acolhedora. Um grande fogão e em frente dele havia duas grandes cadeiras.

‑ Veja ‑ disse o tabelião, mostrando a mesa cuja metade estava elegantemente posta e servida ‑ o senhor James Spinder pensou que se conversa melhor em frente de um bom pastelão e de uma garrafa de vinho velho. E mandou‑nos preparar tudo.

‑ É, na verdade, muito amável, e muito lho agradeço ‑ disse eu, sensibilizada pela atenção.

‑ Estava um pouco doente, esta manhã, mas julgo que virá cumprimentá‑la antes de partir. Quer dar‑me licença de que o substitua, fazendo as honras da mesa?

Piémont colocou na minha frente um prato e um pãozinho dourado.

A merenda era tão imprevista e apetitosa que não resisti ao amável convite. Sentei‑me em frente do tabelião e saboreei as iguarias preparadas em nossa honra.

‑ Muito bem! ‑ declarou logo de princípio ‑ Conversaremos enquanto comemos. Que tem de tão grave a perguntar‑me, menina Solange?

Ia responder mas pareceu‑me ouvir nesse momento passos atrás de mim, e voltei a cabeça julgando que fosse um criado.

Não era ninguém. Estávamos sós, o notário e eu, na vasta sala de móveis antigos e pesadas tapeçarias.

‑ Estou às suas ordens ‑ disse o notário, que certamente pensou em qualquer hesitação da minha parte.

Então, sem preâmbulos, ataquei o assunto que tanto me interessava:

‑ Queria saber exactamente, meu caro senhor Piémont, quais foram as condições da venda dos Castanheiros, há quinze anos.

O tabelião não conseguiu esconder uma grande surpresa:

‑ É um assunto muito grave e muito velho para si, minha filha ‑ protestou, paternalmente.

‑ Bem sei que não tenho idade para pedir contas ‑ continuei, com firmeza ‑ mas penso que não haverá inconveniente em que me responda.

‑ A senhora sua mãe deve ter‑lhe dito...

‑ Deixemos de lado minha mãe, peço‑lhe ‑ interrompi risonha ‑, Não é ela que o interroga. Sou eu...

‑ E então?

‑ Então, queria saber se os Castanheiros, há quinze anos...

‑ Há catorze anos.

‑ Seja! Há catorze anos foram realmente vendidos por meu pai?

‑ Não resta dúvida, visto que fui eu quem...

‑ Sim, já sei! Dizem isso...

‑ Como? Dizem? ‑ protestou.

‑ Dizem também outra coisa ‑ continuei tranquilamente ‑ Afirma‑se que a venda não se efectuou e que, na realidade, se tratava apenas de uma venda fictícia.

‑ As pessoas que fazem correr esses disparates são idiotas. Há catorze anos que venho residir todos os Outonos nos Castanheiros.

‑ Residir! Apenas numa parte, e mesmo assim!

‑ Mantenho‑a.

‑ Falemos a esse respeito! ‑ exclamei, rindo, porque decididamente, a estupefacção do bom notário me divertia.

‑ Enfim, recebo as rendas e pago os impostos.

‑ Como qualquer administrador.

A testa do notário enrugava‑se; as minhas observações despertavam‑lhe a susceptibilidade.

‑ Onde quer chegar, menina Solange? Se quer dizer que eu não tinha o direito de vender esta casa ao senhor Spinder, estou pronto a mostrar‑lhe os papéis que me autorizam a fazê‑lo.

‑ Os títulos de propriedade? Mas não se trata da venda recente, falo da outra.

‑ Justamente, seu pai e eu regularizámos tudo antes da sua partida. Deu‑me recibos de tudo. Estou em regra.

‑ Nunca duvidei disso, meu caro senhor Piémont! Sei que é a integridade em pessoa. Só quero falar da venda verdadeira ou fictícia...

‑ Ouça, minha querida filha. Não esperava tais perguntas da sua parte, senão teria trazido comigo os documentos que se referem ao assunto. A senhora de Borel examinou‑os noutro tempo, e nada encontrou que dizer, e posso afirmar‑lhe que tudo se passou lealmente nessa época, entre seu pai e eu.

‑ Então, sempre é verdade que meu pai vendeu os Castanheiros? ‑ murmurei, abatida.

‑ Acaso duvidou?

‑ Sim. Esperava que não se tratasse de uma venda verdadeira. O abandono desta casa, o cuidado que houve em não tocar em nada e deixar no mesmo estado...

‑ Bem sabe, como há pouco disse, que raramente aqui vivo.

‑ Evidentemente. Mas não consigo compreender que um homem como meu pai se separasse desta casa de família. E mesmo apesar de mo afirmar, não sei... não posso acreditá‑lo! Tudo em mim se revolta contra o pensamento de que meu pai se tornasse, por sua própria vontade, um estranho aqui... que eu também aqui não seja nada...

‑ Seu pai quis viajar... Não tinha a certeza de voltar, porque, enfim, podia morrer lá longe!

‑ Que importava? Estava eu cá! Ele tinha uma filha. Não devia... não tinha o direito de me esquecer! Ah! Não é possível, meu pai não fez isso, não acredito!

‑ Vejo‑me muito embaraçado, minha pequena, e não posso julgar os actos de seu pai... É certo que devia ter pensado em conservar este património, que faria de si uma rica herdeira.

‑ Ponhamos de lado a questão de dinheiro! ‑ exclamei bruscamente ‑ Só aprecio os Castanheiros porque foram o berço de meus pais e aqui nasci. Se me inquieto pela sua venda de há quinze anos, é porque isso representa para mim algo de mais importante do que uma fortuna, por maior que fosse.

‑ Mas o que é que lhe pode parecer mais importante, minha filha? ‑ inquiriu o notário, gravemente.

‑ O regresso e a vida de meu pai. O senhor não acredita na sua morte. Bem sabe que ele não morreu no mar, como dizem.

‑ É a primeira vez que oiço dizer que ele morreu.

‑ Que felicidade...

‑ Mas também é a primeira vez que me afirmam que ele ainda vive. Desapareceu. Creio que só isto é verdade.

‑ Desapareceu! Desapareceu! ‑ protestei ‑ Pode acaso dizer‑se que um homem desapareceu quando se sabe o que ele fez e onde viveu?

O notário teve um sobressalto de espanto.

‑ Acaso o saberá?

‑ Sei, sim! ‑ afirmei com força, se bem que a minha certeza não fosse tão completa ‑, Procurei e cheguei a seguir‑lhe os passos nestes últimos tempos. Só há dois anos é que os perdi; mas, paciência, dentro em pouco saberei tudo.

‑ Ora aí está uma notícia que me dá prazer. De todo o coração desejo que o consiga!

O tom em que falava não era sincero e tive a impressão de que o notário estava pouco à vontade perante a minha segurança.

‑ Mas o que diz a senhora de Borel? ‑ continuou ele ‑, Tem, como a menina, uma fé cega no êxito?

Se estivesse mais calma nessa ocasião, teria notado o que presentemente me salta aos olhos ao escrever estas linhas: que Piémont não parecia muito surpreendido com as minhas confidências.

Talvez soubesse mais do que eu sobre a sorte de meu pai. É o que, sem dúvida, pensaria Bernardo...

Não ouso ir tão longe, no campo das deduções.

Mas repito que só agora fiz essa observação. Naquele momento, a pergunta precisa do notário, a respeito de minha mãe, absorveu‑me por completo.

‑ Minha pobre mãe ignora tudo ‑ respondi francamente ‑ Não quis perturbar a sua dolorosa melancolia, para a lançar em pleno drama... É possível que as minhas pesquisas esbarrem com um túmulo, mas pode ser que cheguem até meu pai vivo. No primeiro caso, deixarei minha mãe ignorar a verdade. No segundo, oh! com que felicidade lho daria a conhecer!

‑ E julga que ela partilhará plenamente da sua alegria?

‑ Espero que não duvide!

‑ Dizem, contudo... perdoe‑me repetir o que dizem... afirma‑se que a senhora de Borel nunca fala no marido.

‑ Mas usa fielmente luto por ele ‑ repliquei logo ‑, Vive enclausurada no meio dos vivos. Não tem o menor prazer, não vai a festa alguma...

‑ Por gosto sedentário, talvez.

‑ Não. Porque se lembra e espera.

O notário reflectiu uns momentos. Depois disse‑me:

‑ Ouça, minha filha, creia na experiência de um velho; receio bem que só encontre lágrimas e decepções ao remover essas cinzas. A menina é nova, suficientemente rica, a vida abre‑se‑lhe risonha: deixe o passado em paz... Olhe para a frente e não para trás... O resto é, apenas, fantasmas e desolação...

Movi a cabeça, pensativa.

‑ Não somos senhores dos nossos pensamentos nem dos nossos destinos. Desde que a sombra do passado me tocou, sinto‑me invadida pelo seu ambiente; atrai‑me, comprime‑me, sinto que me domina... toda a minha vontade lhe pertence. Não penso senão em fazer reviver esse passado querido, em o ressuscitar, encontrando meu pai, se é vivo, ou chorando‑o eternamente se está morto.

Devia ser uma alucinação, mas julguei ouvir novamente um ruído atrás de mim, e não pude deixar de me erguer e aproximar‑me de um reposteiro, e levantá‑lo. É claro que nada havia, salvo os ornatos de madeira, da parede, muito unidos.

‑ O que foi? ‑ perguntou o notário, admirado.

‑ Julguei ter ouvido andar ‑ respondi, um pouco confusa com o meu erro.

‑ Não me parece... os aposentos deste lado ainda não foram abertos. Em casa só está o senhor Spinder, e creio ter‑lhe dito que ainda não saira do quarto esta manhã.

‑ O senhor Spinder vive só?

‑ Quase. É viúvo... Ignoro se tem filhos, mas sei que tem muitos amigos.

‑ Na verdade, parece boa pessoa, a despeito da grande barba alourada e daqueles feios óculos muito negros.

‑ Tem a vista fraca; a claridade do dia faz‑lhe mal, segundo me disse.

Quando Piémont acabava de falar, abriu‑se a porta e apareceu o dono da casa.

Levantei‑me logo, quando o vi dirigir‑se para mim.

‑ Está doente? ‑ informei‑me timidamente, apertando a mão que ele me estendia.

‑ Um pouco... uma forte dor de cabeça.

Notei, efectivamente, que tinha mau aspecto e parecia um tanto deprimido.

‑ Dormi mal esta noite ‑ continuou ele ‑, é o bastante para me abater. Depois de ter a satisfação de conversar um pouco consigo, tudo desaparecerá.

Olhei para o relógio meio atrapalhada.

‑ É impossível e estou desolada. Bem vê as horas... Se me demorar, minha mãe ficará inquieta.

‑ Ralharam‑lhe pela sua demora, no outro dia? ‑ inquiriu ele, com o famoso franzir de sobrancelhas que eu já notara.

‑ Muito, não ‑ respondi, sorrindo ‑, Expliquei logo a causa a minha mãe, e passou‑lhe a inquietação imediatamente.

‑ Muito bem!

‑ Mas que diz a senhora de Borel da venda do Solar? ‑ perguntou o notário, que, decididamente, parecia procurar todas as ocasiões para conhecer os pensamentos de minha mãe.

‑ O que ela diz? ‑ volvi, um pouco admirada.

Mas, olhando para Spinder, acrescentei com um sorriso contristado.

‑ Não é generoso fazer‑me essa pergunta diante deste senhor, tão amável e delicado comigo. Deve supor que a venda desta casa não deixou minha mãe indiferente.

‑ Muito me desgostaria que a senhora de Borel visse na minha compra dos Castanheiros uma incivilidade para ela, e conto com a sua benevolência para lhe testemunhar o meu infinito respeito e minha inteira dedicação.

Fizera o seu protesto com um calor que me comoveu.

Instintivamente, apertei‑lhe a mão.

‑ Os nossos infortúnios são bastante anteriores à sua vinda para aqui, e de nenhum modo pode ter interferência neles. Minha mãe sabe há muito tempo que nada temos já com o Solar dos Castanheiros, e nem por momentos pensou em lhe querer mal por ser o seu actual proprietário.

‑ Contudo ‑ observou ele, sorrindo ‑, se bem me lembro, no outro dia não estava assim tão desprendida. Parece‑me que, quando se dirigiu ao senhor Piémont, lhe falou nos direitos que lhe assistiam em fazer aquela visita...

‑ É que anteontem abrigava ilusões ‑ repliquei corando de confusão ‑, Mesmo contra a realidade o coração ainda às vezes se revolta... É tão bom imaginar que tudo o que se desejaria ver realizar é possível! O senhor Piémont encarregou‑se há pouco de me tirar todas as ilusões. O nosso querido notário é um médico cruel pois cura depressa as pessoas de qualquer voluntária cegueira.

‑ Então abri‑lhe os olhos definitivamente? Ao menos está convencida?

À medida que falávamos, dirigíamo‑nos para a porta de saída.

Antes de responder, olhei atentamente para o parque. Depois, sorri com melancolia, e, fitando o notário exclamei:

‑ Meu Deus! Francamente lhe digo que a cura não foi completa.

Spinder acolheu a minha confissão com uma gargalhada.

‑ Muito bem! Faz muito bem! Não querem ver este inimigo dos lunáticos! Destruidor de sonhos! Ignoro de que se trata, mas conserve as suas ilusões, sejam elas quais forem; são sagradas, porque devem ser belas... De resto, a verdade está muitas vezes tão perto do inverosímil e o juízo da loucura, que não sei se será a menina quem terá mais razão, se o senhor Piémont, com todas as suas frias razões de homem de negócios, que só conhece algarismos e dinheiro.

‑ Aceite a profecia ‑ replicou o notário, alegremente ‑ O senhor Spinder talvez seja melhor profeta do que imaginamos. Só desejo ter‑me enganado, se isso for bom para todos.

Depois destas suas palavras, despedi‑me.

‑ Até breve ‑ disse Spinder, que parecia ver‑me partir com pesar.

‑ Boa viagem! ‑ respondi, lembrando‑me de que ele devia em breve ausentar‑se.

‑ Deseje‑me antes um bom regresso. Tenho pressa de voltar, se tiver a felicidade de a ver por aqui algumas vezes.

‑ Será, na verdade, abusar do seu bom acolhimento e receio ser indiscreta.

‑ Pelo contrário... Prometa‑me que volta... A sua promessa será o meu talismã de viagem.

Evidentemente, brincava; no entanto, comoveu‑me a sua amigável insistência, e prometi visitá‑lo, sem mais me fazer rogar.

‑ Então, leve a minha promessa e possa esse pensamento fazer com que volte depressa.

Beijou‑me a mão e separámo‑nos.

 

                   13 de Junho

Esperava Bernardo esta manhã para a minha saída habitual, e, em lugar do meu fiel companheiro!, veio um rapaz prevenir‑me que, sentindo‑se hoje um pouco indisposto, Sauvage preferia não sair...

Estou certa de que está na verdade doente, porque de outra forma não teria ficado na cama.

Pedi licença a minha mãe para ir até à sua casinha saber dele.

 

                   14 de Junho

Bom amigo! Eu bem sabia que estava realmente doente!

Deve ter apanhado frio anteontem de manhã, e chuva, quando veio buscar‑me às Torrinhas.

Bem lhe disse que deveria trazer um guarda‑chuva, quando chove. Mas essa ideia fazia‑o sorrir.

‑ Um antigo soldado, de malva!

E não quis sequer ouvir que devia mudar de fato e vestir o do jardineiro, porque o dele estava molhado.!

Toda a manhã, enquanto conversei com Piémont e Spinder, o meu descuidado companheiro de passeio conservou o fato molhado. Agora, tem tosse e febre, e não pode conservar‑se de pé!

O doutor Delorme veio vê‑lo. Disse‑me que é uma bronquite e que Sauvage se deve conservar na cama, tomando tisanas e xaropes.

Pobre homem, sozinho, na sua casinha! Quando está bom, vá lá! Mas nesta ocorrência...

Uma vizinha cuida dele. Mesmo assim, o tempo deve parecer‑lhe muito longo.

Ficou muito contente com a minha visita. Quando me viu, encheram‑se‑lhe os olhos de lágrimas de alegria. Felizmente, minha mãe deu‑me licença para o ir visitar todos os dias, até estar bom.

E lá voltarei breve.

 

                   16 de Junho

A minha pouca sorte continua. Aconteceu um desastre à Mascote, ontem, no passeio. Encontrei‑a com a pata esquerda envolta numa atadura de palha. O artelho inchou e o animal coxeia.

Bem se vê que não é Bernardo que a trata agora.

E, por alguns dias, estou privada da alegria de montar.

Se ao menos o meu pobre Sauvage estivesse melhor!

 

                   19 de Junho

Encontrei em casa de Bernardo um bilhete do coronel Chaumont. Avisa‑me de que conseguiu saber qual dos filhos do general Rouvalois deve ter acompanhado meu pai.

Foi o mais novo, chamado Maurício, mas parece que está, actualmente, na Indochina.

E o coronel termina o bilhete pela seguinte pitoresca reflexão, seguida de um bom incitamento:

Essa gente deve ter boa saúde para andar a passear de um extremo ao outro do Globo, quando lhes seria tão simples ficarem na sua terra!

Enfim, não desanime, minha amiguinha; creio que estamos em bom caminho.

Bernardo e eu ficámos contentes por ver que o coronel não nos esquece. É que os dias decorrem lentamente, agora que estou inactiva e que me resta apenas esperar o resultado das averiguações do coronel. Se tiverem bom êxito! Receio tanto que o velho oficial esteja numa falsa pista!

 

                   22 de Junho

Spinder voltou anteontem, segundo parece. Foi a vizinha que cuida do Bernardo quem lho disse. Informam que não veio só, e a mulherzinha, logo que me viu, contou‑mo.

‑ Imagine, menina, que trouxe com ele dois grandes marmanjões, negros como os demónios, com uns olhos do tamanho do meu punho e os dentes compridos como os de um cão esfomeado.

‑ Conheço o retrato ‑ disse Bernardo, que apesar da fraqueza se divertia em arreliar a pobre mulher ‑, São demónios saídos do inferno, se bem que na Argélia lhe chamem morenos.

‑ São negros! ‑ exclamou, divertida. Mas a mulher não ria.

‑ Jesus! Maria! Não sei que nome têm, mas sei que não é gente Cristã!

‑ O senhor Spinder não veio com mais ninguém?

‑ É provável, porque trazia muitas malas e embrulhos. Talvez viessem lá mais duas ou três dúzias de gorilas, iguais aos outros dois... Provavelmente, não permitem a essa gente viajar nos comboios.

Dessa vez, nem eu nem Bernardo pudemos conter o riso.

‑ Bem, bem ‑ disse a mulher, um pouco desconfiada com a nossa alegria ‑, Quando os virem, dirão como eu. Há cá na terra muitos bons rapazes para fazer o serviço do Solar sem impor à vizinhança semelhantes sacos de carvão.

‑ Ora! ‑ disse Bernardo ‑ Quando eles estiverem bem lavados já não pensará nisso.

‑ Pois sim! Se mais ninguém lhes der água e sabão...

Quando me retirei, Sauvage continuou a arreliar a vizinha ainda a propósito dos dois morenos.

 

                   25 de Junho

Há dois dias que encontro Bernardo preocupado. Fica calado durante muito tempo, quando eu lá estou, e se lhe falo do meu pai, do coronel e dos nossos projectos, sacode a cabeça sem responder.

Terá sabido qualquer novidade e receará revelar‑ma?

Mas não! Sou doida em me inquietar tão facilmente! Sauvage está enfraquecido pela doença e o seu estado é a causa dessa depressão moral que me faz duvidar dele...

 

                   29 de Junho

Travei há pouco conhecimento com um estranho à terra. E em que perigosas circunstâncias! Ainda estremeço só de o pensar.

Para ir ver Bernardo, mandei, hoje, atrelar Mylord à charrete inglesa, porque Mascote continua incapaz de sair.

Quando deixei o meu velho amigo, em lugar de voltar directamente para as Torrinhas, passei pela estrada de Autrebec, para ir visitar uma família pobre que minha mãe auxilia.

A charrette ia devagar, porque a colina é difícil de subir. Na minha frente caminhava sossegadamente um homem alto, magro, com as mãos atrás das costas.

De repente, notei que aquela figura era exactamente a de meu pai. Há algum tempo que encarava todos os homens altos e magros... Prestando atenção, quantos não se vêem assim!

Mas aquele chamara‑me a atenção, e, como só o via de costas, dei uma leve chicotada em Mylord, para lhe acelerar o andamento.

Ora, precisamente, desembocava naquele instante na estrada uma manada de bois que eu não vira. Estavam ocultos por uma espessa sebe de espinheiros.

Diante daquela avalanche de ruminantes, o meu cavalo espantou‑se. Recuou, encabritou‑se, chegou mesmo a ficar levantado nas patas traseiras, bastante alto, para eu perder o governo.

Dei um grito e larguei as rédeas, as quais, apesar de tudo, e consciente do perigo, em vão tentava agarrar.

Os bois, assustados, correram em debandada, e aquela desordem aumentou o terror de Mylord. Atirou coices, e, finalmente, recuou, tanto que uma roda da charrette transpôs um monte de pedras e eu, precipitada do meu lugar, julguei‑me morta.

Mas o meu corpo inanimado não caiu na estrada. Dois braços sólidos me agarraram e, delicadamente, me colocaram em lugar seguro. E enquanto eu, com o susto, perdia os sentidos, o meu salvador correu para o cavalo, agarrou‑o pelas narinas e, depois de uns momentos de luta, conseguiu dominá‑lo.

Quando voltei a mim, pareceu‑me estar num carro e experimentava a sensação de me encontrar sentada numa cadeira de balouço, derrubada para trás.

Um homem, inclinado para mim, tentava reanimar‑me, agitando um jornal junto do meu rosto pálido.

Vendo que me movia fracamente, passou‑me os braços em volta dos ombros e levantou‑me.

‑ Onde lhe dói, minha senhora? Está ferida? Esta voz ansiosa fez‑me abrir os olhos completamente e reconheci o desconhecido que caminhava há pouco à minha frente.

Devia estar muito pálida, porque me repetiu:

‑ Sossegue, peço‑lhe. Onde lhe dói?

‑ Em parte alguma ‑ balbuciei.

‑ Não está ferida?

‑ Julgo que não... Sinto‑me muito fraca, mas decerto foi o medo.

‑ Deus seja louvado! Receei muito por si!

Compreendi o que ele queria dizer e fechei os olhos, estremecendo.

Julgou que eu desmaiava novamente, porque ajoelhou junto de mim e o seu braço susteve‑me com mais firmeza.

Mas era apenas uma última fraqueza nervosa, que umas lágrimas, que sem querer me chegaram aos olhos, depressa acalmou.

Não tardou que fosse possível agradecer do fundo da alma àquele a quem devia a vida. Pareceu que estava pouco à vontade com a expressão do meu reconhecimento.

‑ Peço‑lhe ‑ protestou ‑ que não exagere o meu mérito. Fiz apenas o meu dever, nada mais. Tive unicamente o trabalho de a receber nos braços e colocá‑la no chão.

‑ Salvou‑me a vida. Sem o senhor estava perdida.

‑ O que me admira em tudo isto é a atitude do boieiro ‑ continuou ele, desviando a conversa ‑, Apenas se preocupou com os bois, que a custo conseguiu juntar, e estava furioso, como se o seu cavalo fosse o causador de todo o mal! Estes aldeões são na verdade singulares. Os seus animais antes de tudo enquanto a vida das pessoas não passa para eles de um pormenor!

‑ O meu cavalo está ferido? ‑ perguntei com inquietação.

O desconhecido sorriu.

‑ O quê? Também a senhora? O seu primeiro pensamento é para o cavalo!

Não pude deixar de corresponder à sua alegria.

‑ Perdão ‑ protestei, rindo ‑ O meu primeiro pensamento foi agradecer‑lhe.

‑ É verdade.

‑ Mas o segundo devia ser informar‑me se também não sofreu qualquer coisa.

‑ Absolutamente nada.

‑ Felizmente!

‑ Apanhámos ambos um susto e já não foi pouco.

‑ Provavelmente, a minha charrette é que não deve ter ficado nada boa ‑ exclamei, enervada, pensando nas despesas que isso ia ocasionar a minha mãe, a qual, certamente, me privaria durante algum tempo de sair de carro.

O desconhecido foi examiná‑la atentamente. Fez avançar e recuar Mylord, seguindo com cuidado o movimento das rodas, dos eixos e dos varais.

‑ Não tem nada quebrado ‑ anunciou, alegremente ‑ Apenas as pedras esfolaram a madeira de uma roda, mas bastará um pouco de tinta para reparar o mal.

‑ Tive então muita sorte, em vista de ser só isso!

‑ Não tenha dúvida! Um carro de quatro rodas não teria resistido.

Levantei‑me, porque durante esta conversa ficara sentada e compus o vestido, um pouco amarrotado.

‑ Que pensa fazer agora? ‑ perguntou‑me o desconhecido, dirigindo‑se para mim.

‑ Voltar para casa, porque não me sinto em estado de continuar o meu destino.

‑ Mora longe?

A pergunta, que seria indiscreta em qualquer outra circunstância, era natural naquele momento. Voltei‑me para o lado do vale.

Coincidência curiosa: o meu acidente dera‑se precisamente na mesma estrada onde, três semanas antes, encontrara, avariado, o automóvel de Spinder.

De longe, pude mostrar‑lhe os torreões da nossa casa.

‑ Lá em baixo, aquela casa com torres, não vê? ‑ expliquei.

‑ Ainda é longe?

‑ Não é muito: apenas meia hora.

‑ Mas não conta voltar no carro?

‑ Não! Tive muito medo! Creio que não ousaria...

‑ E faria bem. O cavalo é muito nervoso e deve estar acostumado a mão mais forte do que a sua.

‑ Assim é. Habitualmente, monto uma égua; mas sofreu uma entorse e tive que me utilizar deste puro‑sangue, que é fogoso e está acostumado a ser guiado por homens.

‑ Então como há‑de voltar? ‑ repetiu o desconhecido, que continuava a olhar para as Torrinhas. E acrescentou, adivinhando o meu embaraço;

‑ Se precisa de mim, não faça cerimónia. Posso acompanhá‑la até à sua porta.

‑ Oh! Não! ‑ exclamei logo ‑ Minha mãe ficaria muito inquieta e seria abusar demasiado da sua bondade. Vou a pé e conduzirei à mão...

Dirigi‑me para Mylord e quis agarrar‑lhe o freio, mas o animal, ao   reconhecer‑me, arrebitou as orelhas e desviou‑se para o lado.

O desconhecido agarrou‑lhe na outra guia e susteve o animal.

‑ Não poderá levar o cavalo; está, por agora, muito irascível. Permita‑me que a acompanhe, peço‑lhe, e ficarei mais tranquilo.

‑ Mas é preciso atravessar a vila...

Calei‑me. De repente, sentia‑me corar, não ousando dizer‑lhe que me não parecia correcto ser vista com um homem que não conhecia.

Ele compreendeu, sem dúvida, a minha atitude, porque continuou:

‑ Vá só, minha senhora, e deixe‑me segui‑la com o carro.

Felizmente, tive uma ideia:

‑ Não é preciso incomodar‑se tanto. Leve o cavalo até à casinha que está um pouco mais abaixo, à entrada do bosque; será o bastante e ficar‑lhe‑ei infinitamente grata.

‑ Onde está um homem doente? ‑ perguntou, um pouco admirado.

‑ Sim, justamente. Era a casa de Bernardo.

‑ Creio que esse homem não lhe poderá prestar grande auxílio.

Falando, fazia o cavalo dar a volta.

‑ Não, mas deixará ali Mylord e o carro, que mandarei buscar depois por um criado.

‑ Como quiser.

Pareceu‑me que o desconhecido, submetendo‑se à minha vontade, não ficara satisfeito com o meu plano.

De resto, devia esperar um reconhecimento menos reservado da minha parte. Pôs‑se a caminho sem falar e a sua súbita indiferença contristou‑me. Queria ter podido dizer‑lhe qualquer coisa amável, assegurar‑lhe que conservaria por ele um eterno reconhecimento, que a minha família teria muito prazer em lhe agradecer pessoalmente; mas quando o fitei encontrei um rosto frio, que me gelou as palavras na boca.

Quando nos aproximávamos da casa de Bernardo voltou‑se para mim:

‑ É aqui, minha senhora?

‑ É, sim.

Ele hesitou e, por fim, acrescentou:

‑ Eu digo senhora, mas talvez devesse dizer menina.

‑ Sim, menina ‑ respondi, corando como uma papoula.

A Maçon, a vizinha de Sauvage, vendo‑me chegar a pé e acompanhada, levantou as mãos ao céu e exclamou:

‑ Santo Deus! Alguma desgraça! Certamente aconteceu alguma desgraça à menina!

Respondeu‑lhe do interior da casa um grito de angústia e compreendi que as suas exclamações tinham sido ouvidas por Sauvage.

Pensando apenas em o sossegar, corri para o seu quarto e deixei o meu salvador em explicações com a mulher.

Em duas palavras contei a Bernardo o que se passava. Apesar da sua respeitosa afeição por mim, começou por me ralhar bastante.

‑ Mas que ideia! Vir com Mylord, que é o animal mais nervoso que conheço! Oh! Mas isso é tentar a sorte! Tem então, assim, muita vontade de perder a vida? Se ainda o atrelasse a um carro pesado; mas à charrette! É insensato!... Ah! que miséria! Estar aqui pregado com um maldito reumatismo! A Mascote ferida... Este acidente... Nada disto acontece quando estou perto de si! Espere que melhore, com a breca! E daqui até lá, ande a pé ou de bicicleta!

A cólera de Sauvage, em qualquer outra circunstância, não me teria chocado, porque sentia que era por afecto por mim que assim falava; mas o desconhecido entrara, ouvira‑o, e eu estava terrivelmente contrariada.

‑ Zangue‑se antes com o imbecil do carreiro ‑ disse o meu salvador, intervindo ‑Julga que esse sujeito se deu ao trabalho de socorrer a menina? Ele só se preocupava com um boi que andava extraviado. Não se concebe como podem existir semelhantes brutos.

Bernardo levantou‑se quando viu o desconhecido. E, mudando subitamente de tom, respondeu:

‑ Felizmente que estava lá o senhor. A menina acaba de me contar que lhe deve a vida. Sou apenas um antigo criado do pai dela, mas permita‑me que lhe agradeça, em nome de toda a família e de todos quantos conhecem e estimam a menina. Ah! se tivesse acontecido qualquer desastre! Enlouqueço só de pensá‑lo! Toque nesta mão! É a mão de um homem honrado, que nunca renegou os seus juramentos e juro hoje que lhe serei dedicado toda a vida. Se precisar de um homem pronto para se deixar matar por si, aqui me tem; basta fazer‑me um sinal.

O desconhecido aproximou‑se de Bernardo e apertou‑lhe a mão com força.

‑ Espero não ter que apelar para a sua dedicação ‑ disse com amabilidade ‑, Na verdade, seria exigir de mais por um favor tão pequeno; mas sinto‑me feliz pelas palavras que pronunciou. Provam‑me que a menina deve ser infinitamente boa para ter sabido inspirar tais sentimentos a quem a conhece.

Depois, voltando‑se para mim, envolveu‑me num longo olhar e inclinou‑se para se despedir.

Estendi‑lhe a mão... Na verdade, era o menos que podia fazer, pois bem sabia, sem exagerar, que lhe devia a vida.

‑ Até breve... e obrigada, mil vezes obrigada.

Os seus dedos febris deixaram nos meus, que estavam gelados, uma sensação de queimadura.

‑ Quem é este homem?... ‑ perguntou Bernardo depois do meu salvador sair.

Estremeci. Na minha perturbação, esquecera‑me de lhe perguntar o nome.

‑ Não deve ser daqui... É a primeira vez que o vejo.

‑ Também eu... Contudo, julgo conhecer todos os dos arredores... Eh! senhora Maçon, chegue cá.

A vizinha correu ao chamamento de Sauvage.

‑ Ó tia Maçon, quem é este sujeito?

‑ Palavra que não sei, mas parece‑me um original famoso. Imagine que enquanto punha o cavalo na cocheira me perguntou o nome da menina...

‑ E depois?

‑ Depois quando lho disse, deu tal pulo que imaginei que ia cair. Solange de Borel! ‑ repetiu ele ‑ Ah! É a pequena Solange!... ‑ acrescentou mais baixo ‑, Salvo o devido respeito, menina, afirmo‑lhe que disse: Ah! É Solange. Parecia até conhecer muito bem o seu nome. E, sabe, deve ter ficado contente em o ouvir, porque me meteu isto na mão!

A boa mulher, ainda comovida pela boa gorjeta que apanhara, mostrava na palma da mão uma moeda, novinha.

‑ É curioso! ‑ disse apenas Bernardo.

Mas eu muito excitada, inclinei‑me para o doente e perguntei:

‑ Diga, Sauvage, tem a certeza de que não é ele?

‑ Ele quem?

‑ Meu pai! Sauvage sorriu.

‑ Não, não é ele, tenho a certeza! Não pense nisso. Seu pai tem quarenta e tantos anos, agora; e o homem que saiu daqui tem vinte e seis a vinte e oito anos.

‑ É verdade! Estou louca!

Bernardo fizera‑me notar a idade do meu salvador. Muito comovida pelo meu infortúnio, não tinha pensado nisso.

Demorei‑me ainda uns momentos em casa de Bernardo; depois, cansada de corpo e mal refeita da comoção, retomei, a pé, o caminho das Torrinhas.

Seguia pensativa, recordando a exclamação do desconhecido que a vizinha de Sauvage contara, e tentava compreender como e porquê o meu nome comovera o meu salvador! Mas, depois de ter dado mil voltas à imaginação, cheguei a supor que a boa mulher talvez exagerasse um pouco, como todas as bisbilhoteiras da aldeia, que sentem sempre a necessidade de dizerem mais do que sabem.

E nessa noite raciocinei tranquilamente. O meu nome podia ter sido já dito diante do desconhecido, e, portanto, ele não o ignorar; mas daí a cair para o lado e chamar‑me Solange, sem mais nada, ia grande distância.

 

                   30 de Junho

Esta noite dormi mal. Tinha, sem cessar, por entre uma sonolência, a impressão de um movimento de balanço, seguido de uma queda de escantilhão.

Acordada em sobressalto, sentei‑me na cama, assustada, e, durante alguns momentos, fiquei com o coração oprimido e palpitante. Adormeci depois, e continuei com o pesadelo.

Spinder mandara logo de manhã saber notícias minhas e um grande ramo de rosas.

Quem lhe falaria do meu acidente?

Esta atenção do castelão comoveu minha mãe. Veio ao meu quarto, ainda eu estava deitada.

‑ Que te aconteceu ontem? Quando regressaste a pé, apesar de teres ido de carro, apenas me disseste que o tinhas deixado em casa de Bernardo, porque Mylord te parecera nervoso... Ocultas‑me a verdade, visto que esta manhã vieram saber da tua saúde.

‑ Perdoe‑me, minha mãe, se só lhe disse uma parte da verdade, mas receava assustá‑la, e ser privada de sair no carro... Aborreço‑me tanto quando fico em casa...

‑ Mas, enfim, o que se passou?

‑ Quase nada; Mylord deu uns coices; eu tive medo e gritei. Alguém que passava na estrada aguentou o cavalo e pude descer do carro... Preferi ir a pé a tornar a ver Mylord aos saltos entre os varais da charrette.

Minha mãe sorriu.

‑ Julgava‑te mais valente! Mas como se chama esse diligente caminhante?

‑ A esse respeito, motus, como diz Bernardo. Esqueci‑me de lhe perguntar o nome e nunca o tinha visto. Pela primeira vez que o céu me envia um salvador, fiz uma figura de estouvada.

‑ É isso mesmo, porque me vejo impossibilitada de lhe agradecer o serviço que te prestou.

‑ Salvou‑me a vida, mãe ‑ continuei, suavemente ‑ Sem ele, Mylord teria tomado o freio nos dentes... Havia uma manada de bois que corriam em todas as direcções pela estrada.

‑ Então estiveste, realmente, em perigo?

‑ Sim, mãe... um pouco... durante uns momentos... o carro ia‑me derrubando.

‑ E não me disseste nada! É preciso arrancar‑te a verdade aos bocados! Quer dizer que, ontem, iam‑me trazendo a filha inanimada! Oh! Deveras espantoso!

‑ Mas tudo acabou em bem. É o principal.

‑ Felizmente... É preciso agradecer àquele que te socorreu; é um dever de reconhecimento, cujo cuidado não deixo a ninguém.

‑ Tentarei saber o seu nome.

‑ Sim, é preciso!... E o cavalo... um nervoso. Eu me desembaraçarei dele.

‑ Oh! Não! Com Sauvage, Mylord porta‑se muito bem.

‑ Evidentemente, mas não estou nos casos de sustentar um cavalo só para serviço de Bernardo. De resto, Mascote basta para a nossa modesta vida, e não vejo necessidade de termos os dois...

‑ Pronto! Logo previ que me ralharia, por não ter dito toda a verdade. Agora, fico reduzida a andar a pé ou a sair de carro... Acabaram‑se os meus passeios a cavalo, porque decerto me não autorizará a andar de bicicleta sem companhia.

Minha mãe pegou‑me afectuosamente na mão.

‑ Vamos, não te enerves! Não gosto de te ver assim agitada, sem motivo. Promete‑me que não te utilizarás mais de Mylord e não falemos mais nisso.

‑ Não é preciso recomendar‑mo: tive um medo horrível!

‑ És impetuosa ‑ disse minha mãe, beijando‑me na testa ‑ Deixa‑te estar mais um bocado deitada. Vou responder ao enviado do senhor Spinder, que vais muito bem, como pode ir uma menina imprudente e sem juízo.

Eis por que escrevo estas linhas ainda na cama.

 

                   2 de Julho

Terei sonhado?

Da janela do meu quarto, donde avisto todo o vale, descubro muito bem a estrada de Noyville.

Ora, nessa manhã, julguei ver, a cavalo, a figura do homem que, no outro dia, me salvou a vida.

Para ter a certeza, peguei num binóculo, mas o cavaleiro afastara‑se e só o pude ver pelas costas.

A minha dúvida persistia. Se era o meu salvador quem eu vira na estrada, essa manhã... rondando as Torrinhas é por que vive na região. Ou residirá aqui transitoriamente?

E não me enganaria?

 

                   4 de Julho

Mas o que tem, hoje, Bernardo? Está imensamente mudado. Fui visitá‑lo como habitualmente, levando‑lhe esses pequenos nadas que dão sempre prazer aos doentes. Mostrava‑se silencioso, distraído; dir‑se‑ia que a minha presença o incomodava.

‑ Não há nada de novo da parte do coronel? ‑ perguntei.

‑ Não, menina.

‑ Como tarda!

‑ Não pode escrever todos os dias.

Esta resposta admirou‑me, porque, em geral, o velho soldado partilha da minha impaciência. Fiquei inquieta.

‑ Terá sabido alguma má notícia, Sauvage!

‑ Eu?... Não sei nada! ‑ disse com vivacidade.

‑ Por que se defende tão vivamente?

‑ Porque sinto angústia na sua voz e não gosto que se apoquente sem razão.

‑ É verdade! Tenho sempre medo... E penso que, se o coronel souber que aconteceu qualquer coisa a meu pai, mo ocultará. Bernardo talvez chegue a sabê‑lo, mas fará o mesmo.

‑ Bom. Agora está quase a chorar! Ouça, menina Solange, a menina não é razoável em se mortificar assim, sem motivo.

‑ Então, deveras, não sabe nada?

‑ Afirmo‑lhe que não vi o coronel e que ele me não escreveu! Dou‑lhe a minha palavra de soldado! Está contente?

‑ Sim, tranquilizou‑me. Mas, para que fique absolutamente sossegada, responda‑me com a mesma franqueza: porque está mudado desde há uns dias? Porque não gosta que eu lhe fale na esperança que tenho de encontrar meu pai?

Sauvage não me respondeu.

Nesse momento entrou em cena uma terceira personagem.

A porta abriu‑se e, com grande surpresa, reconheci Spinder. Bernardo, vendo‑o, quis levantar‑se e pareceu‑me que se perturbara muito.

Mas o recém‑chegado dirigiu‑se logo para ele.

‑ Vamos, vamos; sossegue, meu bom amigo. Os doentes não devem agitar‑se assim.

Depois, voltando‑se para mim, amigavelmente e com a mão estendida, acrescentou:

‑ Tenho grande prazer em a encontrar aqui, visto que não me dá muitas vezes ocasião de lhe apresentar as minhas homenagens.

‑ Só há pouco soube que tinha chegado ‑ balbuciei para me desculpar, porque me lembrava da promessa que lhe fizera, antes de partir, de o ir visitar.

‑ Há doze dias que regressei e mesmo que a menina tivesse sabido logo no dia seguinte, também não teria ido muitas vezes aos Castanheiros ‑ replicou alegremente ‑, É a sorte dos homens da minha idade: a mocidade foge‑lhes ‑ acrescentou com certa amargura.

Depois, informou‑se do estado de Bernardo, e, como eu me levantasse discretamente, para me retirar, levantou‑se também.

‑ Vai para as Torrinhas? Tenho o meu carro e vou justamente para esse lado. Quer permitir‑me que a leve a casa?

‑ Receio incomodá‑lo, aceitando.

‑ Absolutamente nada. É uma alegria para mim fazer o trajecto na sua companhia.

Despedimo‑nos de Sauvage, cujo rosto exprimia uma espécie de satisfação íntima.

De repente senti‑me triste, porque atribuí o seu ar hipócrita à presença do novo castelão em sua casa. Já se teria passado para o outro lado... para o lado do novo proprietário?

Lembro‑me da sua altiva resposta a Spinder, a primeira vez que este nos dirigiu a palavra, quando teve a avaria no automóvel:

"Na certeza de que nem o dinheiro nem as boas palavras me farão mudar. Os compradores podem vir, mas não comprarão Sauvage."

E, precisamente, Spinder, ao sair, disse‑lhe:

"Trate de se curar depressa, Sauvage. Bem sabe que o esperam nos Castanheiros".

Esta simples frase de encorajamento do rico estrangeiro ao homem humilde apertou‑me atrozmente o coração.

Bernardo aceitou entrar para o seu serviço... O pobre diabo não é rico, e o dinheiro atrai as pessoas. Pareceu‑me, de repente, que o meu mais precioso amigo me abandonara.

Silenciosa, sentei‑me ao lado de Spinder, que guiava uma soberba conduite do mais recente modelo. Como continuasse pensativa, o meu companheiro   interrogou‑me:

‑ Que tem, que está tão triste, minha amiguinha?

Esta palavra amiguinha, que aquele estranho me dava, fez‑me corar violentamente. Aquelas palavras familiares caíam mal no momento em que eu o detestava por me ter roubado Bernardo.

"Não sou fácil de mudar!" ‑ pensei eu.

E, alto, respondi:

‑ Meu Deus! Estou, na verdade, envergonhada ‑ respondi, fingindo uma impecável correcção ‑ Aceitei um pouco estouvadamente o amável oferecimento e acabo de me lembrar que minha mãe me encarregou de um recadinho para ela.

Spinder voltou‑se para mim bruscamente. Através dos óculos, vi‑lhe os olhos procurando os meus, que se furtavam.

Cavou‑se‑lhe na testa uma ruga.

‑ Que tem? Zangou‑se, assim... de repente?

Ri à força.

‑ Não, mas desejo cumprir a missão de que minha mãe me encarregou.

Spinder parou o carro.

‑ Pois bem! ‑ disse por fim, retendo‑me ‑ É apenas uma mudança de itinerário... Tenho tempo... Para que lado vamos?

‑ Não quero impor‑lhe a maçada de me acompanhar ‑ exclamei, fazendo menção de me apear.

‑ Se não aceitar o meu oferecimento, julgarei que está deveras zangada ‑protestou ‑ e como a menina de Borel é demasiado boa para fazer uma afronta sem motivo a um homem da minha idade, vou pedir‑lhe que me explique em que pude desagradar‑lhe.

O tom era irrepreensível, se bem que um pouco altivo. Este apelo directo às conveniências chamou‑me aos meus deveres. Num minuto, o meu nervosismo desapareceu e compreendi que acabava de ser soberanamente injusta para com esse homem, que até ali só tivera gentilezas comigo.

Ele olhava‑me, muito sério, esperando a minha resposta.

E ouviu o que o meu coração me ditou.

Agarrei‑lhe as mãos com vivacidade, muito arrependida da injúria que estivera quase a fazer‑lhe. E apenas pude balbuciar, com os olhos cheios de lágrimas:

‑ Perdoe‑me! Se soubesse como fiquei, de repente, desgostosa!

Spinder puxou‑me para si, paternalmente, murmurando:

‑ Pobre garota! Eu bem adivinhava!

Pôs o carro em andamento, mas voltou‑o para uma direcção diametralmente oposta à das Torrinhas. E, conservando o meu braço passado pelo seu, continuou:

‑ Não pode confiar‑me o seu desgosto, menina Solange?... Qualquer coisa me diz que lhe não sou estranho. Contudo... Se soubesse como desejava vê‑la sempre sorrir, sempre!

‑ O senhor é muito bom e eu uma péssima rapariga que não merece a sua indulgência ‑ disse com convicção.

‑ Então o que fez essa péssima rapariga, a quem acusa tanto?

Lealmente, expliquei‑lhe, confusa:

‑ Ela detesta‑o... e com toda a alma, porque o senhor disse há pouco a Sauvage que o esperava nos Castanheiros.

‑ E a menina não quer que ele vá?...

‑ Sauvage é livre, evidentemente!... Mas entristeceu‑me saber que passava para o seu serviço. Era como se desertasse... Como se me abandonasse... O senhor   tira‑mo, compreende?

‑ Não compreendo nada ‑ volveu Spinder, rindo ‑, Afirmou‑me um dia que esse homem não era seu criado.

‑ Justamente! Era mais do que isso... quase um amigo... antigo impedido de meu pai... Brincara com ele, em pequeno... Foi criado em casa de meus avós, e fazia parte da família. Junto de mim, era uma recordação do saudoso desaparecido. Compreende agora?

‑ Compreendo, principalmente, que ao saber que ele iria para minha casa, a menina teve a impressão de que ele se passava para o inimigo.

‑ É verdade!

‑ Não fui eu que a obriguei a dizê‑lo! ‑ exclamou ‑ Eu sou o inimigo!

E, mais tristemente, acrescentou:

‑ Contudo, no outro dia, assegurou‑me que eu não era, de forma alguma, responsável pela mudança de dono dos Castanheiros. Se não comprasse esta propriedade, outro o faria.

‑ E esse outro não teria sido, certamente, tão indulgente como o senhor para com a pobre deserdada! ‑ exclamei, comovida.

‑ Foi talvez apenas por isso que me senti atraído para si... Porque a menina é quem devia estar no meu lugar.

‑ Não, não diga isso. Afianço‑lhe que nunca tive o sentimento de posse. Talvez já lhe dissessem que meu pai desaparecera, durante uma viagem pelo mar... também eu acreditava essa piedosa mentira. Pois bem, se ele voltasse, que me importava mais! Fortuna ou pobreza, nada valem para mim, diante do resto. As únicas coisas que contam são os beijos de que estou privada e as carícias que não recebo.

Spinder, sem dizer palavra, apertou‑me contra si, num brusco movimento. Este homem devia ter sofrido muito para partilhar tão espontaneamente da minha mágoa.

Naquele instante, a comoção que mostrava foi‑me agradável.

Tinha ainda o coração confrangido pela estranha atitude de Sauvage e foi para mim um alívio poder falar do meu desgosto a ouvidos compadecidos que só desejavam compreender‑me.

Não se pensou mais, é claro, no pretenso recado de que minha mãe me encarregara. Conversámos por muito tempo, como velhos amigos; mas, de repente, notei que o carro se dirigia para paisagens que eu ainda não conhecia.

‑ Mas onde estamos? Para onde vamos? ‑ inquiri.

O meu companheiro olhou em redor.

‑ Lá em baixo, à esquerda, é Autrebec, e deste lado Anthieu. Tomando pelo primeiro caminho, à direita, contornaremos a região e chegaremos à encruzilhada das Ortigas, creio eu. Dali, facilmente atingiremos as Torrinhas.

‑ Já conhece a região melhor do que eu ‑ disse, admirada.

‑ É muito possível. Percorro‑a quase todos os dias. A solidão entristece‑me! Mas agora não estou só; um dos meus amigos, que regressou de uma longa viagem por África, chegou a minha casa domingo à noite. Vem passar uns poucos de meses comigo, para se restabelecer completamente, porque foi ferido em terras longínquas.

As suas palavras fizeram‑me estremecer e despertar a minha curiosidade.

‑ Que parte da África explorou ele? ‑ perguntei, ansiosamente.

‑ Nos últimos tempos, a região do Tigre. É um simpático rapaz de vinte e oito anos, a quem quero como filho.

‑ Ah! Tem vinte e oito anos!

Respirei com esforço: fora um rebate falso!

O pensamento de meu pai obceca‑me! Vejo‑o por toda a parte! E, de repente, sem raciocinar, como o novo dono dos Castanheiros me falasse de um desconhecido que vinha da África, julguei que se tratasse dele.

Em breve chegámos ao fim do nosso caminho. Meia hora depois, o carro de Spinder parava ao portão das Torrinhas.

Quando se despediu, o castelão fez‑me prometer que em breve iria aos Castanheiros.

‑ Pus de parte algumas recordações que lhe serão agradáveis. Vá buscá‑las... Amanhã, quer?

‑ Não prometo ir, sem falta, amanhã, porque minha mãe pode dispor do meu dia, de outra forma, mas se estiver livre, afianço‑lhe que não faltarei.

‑ Então, espero que até amanhã; se não, até breve! Não se esqueça de apresentar as minhas respeitosas homenagens à senhora sua mãe, a quem não ouso perturbar no seu retiro, mas que muito gostaria de conhecer.

‑ Parece‑me ter‑lhe dito já que minha mãe nunca sai ‑ tornei, como desculpa.

‑ Já disse, sim. Entretanto, ela devia permitir‑me que a fosse cumprimentar.

Não ousei responder sem consultar minha mãe. Spinder compreendeu a minha reserva e não insistiu.

Vi‑o espreitar para o parque, talvez procurando ali uma figura que lhe fosse hostil; e, após um último adeus, pôs o motor em andamento.

Mal dera uns passos na entrada, minha mãe apareceu.

‑ Quem era! ‑ perguntou, um pouco secamente, indicando‑me o automóvel que se afastava.

‑ O senhor James Spinder.

‑ Então não lhe queres mal por ter comprado os Castanheiros.

‑ Compreendi que não era responsável pelas circunstâncias que no‑lo fizeram vender. Podia ter sido outro o comprador.

‑ Começas a pensar acertadamente ‑ respondeu, levemente irónica ‑ Mas ‑ continuou ‑ como é que esse senhor te trouxe até aqui? Foste aos Castanheiros?

‑ Não, mãe. Encontrei‑o à cabeceira de Bernardo, e ofereceu‑se para me trazer. Não ousei recusar.

‑ Na verdade, era difícil... Esse senhor Spinder é amável?

‑ Muito. Encarregou‑me de lhe apresentar os seus cumprimentos, perguntando se o não poderá fazer pessoalmente.

Minha mãe teve um sinal negativo e a fronte enrugou‑se‑lhe.

‑ Não. Explica‑lhe que vivo na mais completa solidão da qual não desejo sair.

‑ Permite‑me que aceite o seu convite de ir algumas vezes aos Castanheiros?

‑ Creio que não vive ali só...

‑ Tem um pessoal numeroso.

‑ E família?

‑ Não sei. Disse Piémont que tem muitos amigos.

‑ Então, se a convivência com essa sociedade te é agradável, vai. Não desejo que vivas reclusa como eu. O abade Violet, que veio há pouco ver‑me, disse‑me que Spinder era um homem de bem e um excelente Cristão. Dou‑te carta branca, nesse sentido.

‑ Obrigada, minha mãe.

Foi uma sorte o abade Violet ter dado informações de Spinder, a minha mãe, porque doutro modo nunca ela me concederia semelhante autorização, sem o conhecer melhor. E, na verdade, sentiria desgosto se não pudesse encontrar‑me com ele...

É muito bom, muito afectuoso, e sou obrigada a concordar que, apesar das minhas suspeitas, tem já toda a minha simpatia...

Mas...

Meu Deus! O que escrevi eu! Já estarei como Bernardo?... Os Castanheiros atraem‑me.

 

                   5 de Julho

Tive razão em não prometer formalmente a Spinder que ia hoje aos Castanheiros.

Em troca, que perturbador passeio eu dei. Minha mãe mandou‑me, esta tarde, a Faussemaire, pequena aldeia de Noyville, situada a uns doze quilómetros daqui, para receber, em seu lugar, a renda de uma quinta que ali tem.

Quem me acompanhou foi Augusto, o jardineiro, que atrelou Mylord à vitória. Sentou‑se à frente, e eu ao fundo.

Mal tínhamos deixado as Torrinhas, quando o nosso carro se cruzou com um cavaleiro, que reconheci num relance.

Será preciso dizer que se trata do desconhecido! que me salvou a vida? Ele reconheceu‑me, igualmente, ao passar, e cumprimentou‑me correctamente.

‑ Como se chama este senhor? ‑ perguntei a Augusto, que conhece toda a gente.

Mas o bom homem não me pôde responder.

‑ Há oito dias que o vejo muitas vezes rondando as Torrinhas. Este senhor deve estar hospedado em casa de qualquer dos nossos vizinhos, mas não vejo qual deles seja.

Baixinho, disse comigo que me não enganara no outro dia, quando, da minha janela, o julguei reconhecer, na estrada. E senti‑me confusa.

É uma sensação estranha saber‑se que se deve a vida a um desconhecido... que sem ele seríamos, provavelmente, um farrapo inerte no fundo de uma cova. Muitas vezes pergunto a mim mesma se fui bastante expressiva nos agradecimentos a este homem, que correu em meu socorro, sem se inquietar com o mal que lhe poderia acontecer.

Que lhe disse? Que palavras ditou o meu reconhecimento? Não sei: estava tão comovida!

E, depois, que fiz em seu favor?

Minha mãe disse‑me que procurasse saber o seu nome, a sua personalidade... Tentei sequer encontrá‑lo?

Devia ter‑me logo informado, perguntar‑lhe o nome. Onde tinha a cabeça, porque não o fiz?

Mas não tem ele, também, um pouco de culpa dessa ignorância em que estou, em tudo quanto lhe diz respeito? Desde quando se salva a vida de alguém, sem que, depois, se decline o nome? Não devia arranjar‑se de forma que conseguisse facilmente seguir‑lhe os passos e me pudesse informar a seu respeito?

De resto, a sua presença, rondando as Torrinhas, o novo encontro ao portão da minha casa, tudo, enfim, não é tão natural como quero imaginar. Este homem tem direito aos agradecimentos que lhe não deram, a um reconhecimento que lhe não manifestei: decerto, procura um e outro!

Em vez de corar há pouco, como uma tola, devia ter feito sinal a Augusto para parar o carro e...

Mas estou doida! Não posso agarrar esse homem pela mão, sob pretexto de que lhe estou agradecida, e levá‑lo a minha mãe, como a uma distribuição de prémios!

Todos esses pensamentos se me chocavam no cérebro, enquanto o carro se dirigia para Faussemaire.

Se eu, então, soubesse o que ia acontecer! Ainda não acabara de pensar no meu salvador! O diabo, às vezes, tece‑as!

Mas sigamos em boa ordem a minha narrativa e contemos as coisas como se passaram. Primeiro, logo que chegámos, fui ter com os nossos caseiros. E enquanto Augusto comia uma bucha e dava água ao cavalo, fiquei no pátio.

Depois, fui colher cerejas com o filho da caseira. Não tinha fome, e como a boa mulher queria por força que as levasse a minha mãe, preferi ir presidir à colheita, a ficar fechada em casa, onde se respirava um cheiro a lacticínios bastante desagradável para quem não está habituado a ele. Por isso, fui com o garoto, e quando chegámos à cerejeira, que estava à beira da estrada, esbarrámos com o cavaleiro de há pouco.

Sim, ainda ele!... Lá estava! Desta vez, tornei‑me mais vermelha do que as cerejas. Ele lá estava, ele com quem me cruzara duas horas antes, a três léguas desse lugar, numa direcção oposta!

Parece‑me que só o acaso não seria suficiente para explicar o segundo encontro. Ele também me viu! De novo me cumprimentou respeitosamente.

Passou, vai‑se afastando... Mas o pequeno, que era atrevido, como todos os garotos do campo, interpelou o cavaleiro:

‑ Pst, oh! senhor! Se quer cerejas, estas chegam para todos!

Estremeci, aterrada. Não iria o desconhecido imaginar que fosse eu quem tivesse dado lugar àquele convite? Se não tivesse ouvido... mas não, parou logo o cavalo.

‑ Fala comigo? ‑ perguntou, hesitando, porque julgou ter ouvido mal.

‑ Pois antão com quem houvera de falar ‑ respondeu o garoto ‑ Tou a apanhar cerejas, e já que o senhor é um amigo cá da menina, aprovéte também.

Estas palavras eram tão ingénuas na sua boa intenção, que o cavaleiro riu‑se e eu dissimulei mal o desejo de o imitar.

‑ Está muito calor ‑ disse ‑ e essas cerejas são bem vindas, se a menina me não achar audacioso de mais em privá‑la de alguns desses frutos.

Muito intimidada para poder falar, fiz um gesto de protesto. O pequeno, felizmente, não me deu tempo de dizer nada.

‑ Ah! Teja certo que não apanharemos todas. Os ramos estão a vir abaixo!

Trepou a uma árvore e, com grandes gargalhadas, fazia chover sobre mim uma saraivada de cerejas.

Para esconder a minha perturbação, porque estava ainda atrapalhada com a aventura, comecei a apanhar a fruta e a encher o cesto que o pequeno trouxera da quinta.

O jovem cavaleiro não desmontara. Pouco à vontade com a minha reserva e, provavelmente, muito bem educado para a desfazer, olhava‑me em silêncio.

‑ Menina! Antão, esquece‑se do nosso convidado? Eu julgava ser‑le agardável e vejo‑a assim tão acanhada?

Sem dizer palavra, gelada, obedeci a este brutal aviso.

Peguei no cesto e fui oferecê‑lo ao cavaleiro, que continuava a seguir com o olhar todos os meus movimentos.

‑ É servido? ‑ ofereci delicadamente.

‑ Na verdade, lastimo ter sido indiscreto em aceitar diante de si o oferecimento deste garoto.

Cobrei ânimo, porque as suas desculpas continham uma discreta censura.

‑ Nem pense nisso! Faz muito calor e o pequeno tem razão. Aceite sem cerimónia.

O desconhecido pegou delicadamente com a ponta dos dedos em duas cerejas.

‑ É muito pouco! Tire mais!

‑ Então, faça favor de servir‑me ‑ tornou alegremente ‑ Da sua mão aceitarei tudo.

‑ O mais difícil será talvez comê‑las! ‑ respondi, rindo.

Pegando num punhado de cerejas entreguei‑lhas na mão.

‑ Creia que comerei muitas, se me forem sempre dadas por si.

‑ Não esteja com aquelas! E lá vão mais! ‑ gritou o pequeno, empoleirado na árvore.

‑ O garoto tem graça ‑ notou o desconhecido, vendo‑me corar.

‑ Sim, é alegre!

‑ Pertence àquela casa, creio eu.

‑ É filho dos nossos caseiros.

‑ Parece inteligente.

‑ Até de mais!

A minha afirmativa levava algum rancor. Neste momento apareceu um automóvel.

Instintivamente, recuei, e voltei‑me para esconder o rosto, porque não queria ser vista oferecendo cerejas a um rapaz à beira da estrada.

Mas o meu precoce perseguidor troçou lá de cima:

‑ Olha a menina, que não quer que a vejam!

Felizmente, o desconhecido adivinhou o meu suplício e pôs‑lhe fim. Depois de nos ter agradecido, o mais depressa possível, sem mesmo ousar dirigir‑se‑me directamente, afastou‑se. Respirei, aliviada.

Mal partira, o pequeno saltou para o chão e olhou‑me consternado.

‑ Ele vai‑se embora! E eu a pensar que era o seu conversado!... Veio atrás de si e andou à roda da nossa casa!

Agora, que estou sozinha, posso continuar a ouvir o garoto, porque as suas reflexões pouco me incomodam. Contudo, o meu silêncio perturbou‑o e   desculpou‑se.

‑ Não me queira mal por me enganar! Do alto da árvore, dizia comigo que se estivesse ali não a incomodaria.

‑ Mas eu não conheço esse senhor! ‑ disse sem pensar.

‑ Isso agora! Pois olhava bem para si; e a menina... bem vi...

Agarrei‑o por um braço com vontade de o esbofetear.

‑ Que viste tu?

‑ Não se zangue! A menina estava vermelha como uma papoila e não ousava levantar os olhos para ele.

‑ És estúpido!

Nem mesmo tentei desenganá‑lo. Sinto que não convenceria aquele garoto travesso. Mas penso, com espanto, que nem tanto era preciso para comprometer a reputação de uma rapariga.

O meu rosto devia reflectir o meu estado de alma, porque o pequeno aproximou‑se de mim, olhando‑me por baixo.

‑ Não se escame! Eu sei guardar segredo!... Todas as raparigas da vila têm namorados... Eu bem sei... Conheço‑os a todos e nunca conto nada a ninguém... mesmo que me dêem algum dinheiro quando me encontram...

Ah! O precoce vadio já sabia fazer chantagem.

Aborrecida, voltei logo para o carro, que me esperava, pronto a partir, e mal agradeci à gente da quinta o seu bom acolhimento e as suas cerejas. Mas quando o carro começou a andar, meti, à pressa, a mão na algibeira e atirei uma moeda ao garoto, que rejubilou.

Não foi pensando em mim que paguei um resgate a esse descarado velhaquete. Na verdade, não, porque compreendo que a sua tagarelice não podia atingir‑me! Mas penso no desconhecido, que ignora o que se teceu em volta de nós, e não queria que ele o soubesse.

 

                   6 de Julho, à noite

Não consigo adormecer. O garoto decerto mentiu! Para que viria o desconhecido de tão longe ter comigo... para me ver?

O outro disse que me esperava... Dez minutos? Invenção?

Se me tivesse, realmente, seguido e esperado, é porque teria qualquer coisa para me dizer. Ora! Não me disse nada. Contudo, o rapaz deu‑lhe bem ocasião para isso.

Nem sequer fez alusão ao meu acidente, ao nosso primeiro encontro. Dir‑se‑ia que me via pela primeira vez e que nunca me falara.

Não, não tinha nada para me dizer. Não! Não me esperou diante da quinta e não era por minha causa que lá estava.

Mentira! É mentira!

Mas devia ter aproveitado a ocasião para lhe perguntar o nome...

 

                     7 de Julho

Hoje é domingo. Ao chegar à igreja tive uma nova surpresa: o meu desconhecido lá estava, de pé, quase à entrada.

Para chegar ao meu lugar, às nossas cadeiras, tive que passar diante dele e os nossos olhares cruzaram‑se. Vi desenhar‑se‑lhe nos lábios um fugitivo sorriso, quando trocámos um imperceptível cumprimento.

Como corei de repente! A presença deste rapaz na missa impediu‑me de rezar com a minha habitual devoção.

Apesar de estar muito longe, atrás de mim, sentia‑me envolvida no seu olhar e não podia fazer um gesto sem que ele o notasse. Receava e desejava ao mesmo tempo o fim da missa. Alguma coisa me dizia que o desconhecido não sairia antes de nós, de mim e de Felícia.

E não me enganei em tal pressentimento. Lá estava junto à pia da água‑benta, e, quando nos viu aproximar, mergulhou os dedos na água e ofereceu‑no‑la.

Os meus trémulos dedos tocaram nos seus.

Porque estava tão perturbada que nem ousava olhar para ele? Não estaria talvez indicado sorrir‑lhe e dirigir‑lhe a palavra? Aproveitando a presença de Felícia poderia falar‑lhe e dizer‑lhe que minha mãe lhe agradecia e que lhe tributava eterna gratidão por lhe ter salvo a filha.

Mas nada... Um rubor, uma tremura e um olhar furtivo. Curvei a cabeça desastradamente e comecei a andar, contrafeita, ao lado de Felícia, que de nada suspeitava. Eis tudo quanto me foi possível fazer há pouco.

E depois?... Oh! Depois!... A insistência do olhar desse homem que me persegue... Esses dedos que julgo continuarem a tocar nos meus... esse sorriso que, parecendo vencer a minha timidez, atrai o meu, como um imã... Principalmente, a lembrança desse acanhamento, da confusão que me paralisa na sua presença e precipita o bater do meu coração, numa carreira desordenada...

Que quer dizer tudo isto?... Porque hei‑de fechar os olhos à verdade?

Solange, toma cuidado! O coração deve defender‑se contra as surpresas do caminho! O homem que te atormenta talvez não seja digno de ti. Olha apenas para o objectivo filial que traçaste a ti própria e não permitas que um desconhecido te desvie dele...

Solange, ingénua Solange, toma cautela!

 

                     8 de Julho

Por fim, consegui ir hoje aos Castanheiros. Já não é sem tempo; há muitos dias que Spinder me esperava.

Foi ainda Augusto quem me levou, mas o carro partiu logo assim que saltei para o chão.

Spinder estava sentado no terraço com um outro homem que não distingui logo. Assim que o dono da casa me viu, correu para mim:

‑ Que agradável surpresa! Julguei que não voltaria, tanto fez desejar esta visita.

‑ Não me queira mal ‑ respondi amavelmente, apertando‑lhe as mãos ‑ Como receava, minha mãe dispôs de mim naquele dia.

‑ Bem sei, bem sei! Alguém me disse que a tinha encontrado no papel de senhora proprietária, em Faussemaire.

Ia perguntar‑lhe quem fora esse indiscreto alguém, mas levou‑me para o terraço, em direcção de outra personagem, que se levantou.

Meu Deus! Esta figura... Ia jurar...

E o meu coração começou a bater precipitadamente.

Sim, é ele! Sempre ele!... Encontrá‑lo‑ei por toda a parte? Que hei‑de fazer para não pensar nesse rapaz?

Spinder adiantou‑se:

‑ Não preciso de os apresentar. Conhece Maurício, visto que ele já teve o prazer de lhe ser útil.

Desta vez nenhuma timidez intempestiva me deteve e estendi a mão ao rapaz com um à‑vontade sociável que me encantou.

Hoje, a sua presença junto de mim nada tinha de equívoco, e sentia‑me muito menos perturbada. Respondendo às palavras de Spinder, julguei dever rectificar:

‑ Este senhor fez mais por mim do que ser‑me útil: salvou‑me a vida. Se não fosse ele, teria ficado esmagada.

‑ Ele não diz isso...

‑ Evidentemente! Exagera muito!...

‑ Oh! Não! ‑ protestei.

‑ O seu amigo Sauvage contou‑me os factos como a menina lhe disse, mas Maurício pretende que só o acaso fez tudo nesse dia ‑ continuou Spinder.

‑ Porque esse senhor é tão modesto como corajoso; mas sei muito bem que lhe devo a vida e que, sem a sua intervenção, não estaria provavelmente aqui.

‑ Ora... ‑ protestou o meu salvador, embaraçado ‑ Não fiz nada disso. Primeiro, a menina estava perturbada de mais para poder lembrar‑se...

Sorri.

‑ É verdade! Estava assustada, mas não tanto que não compreendesse a situação. Não diminua o seu mérito, porque assim diminui toda a importância do meu desastre.

Maurício também sorriu.

‑ Se é por esse capricho, curvo‑me.

‑ Perdão! É por amor da verdade. O meu carro descaiu para um lado, e eu, fortemente projectada para trás, cairia debaixo dele, quando, com risco da vida, o senhor me agarrou e me colocou em lugar seguro. Foi também o senhor quem domou o cavalo e quem depois me tratou, visto que fiquei desmaiada.

Enquanto falava, Spinder agarrava as mãos do rapaz e apertava‑as efusivamente.

‑ Maurício, porque não me disse a verdade? Se não fosse a sua intervenção, que terrível acidente se teria podido dar!... E justamente a esta encantadora garota, para quem me sinto deveras atraído! Poupou‑me esse pesar, meu amigo, e estou‑lhe infinitamente reconhecido...

Mas Maurício, pouco à vontade indicando‑me com o olhar, disse:

‑ Visto que a menina Solange está sã e salva, o resto nada interessa. Fez por acaso tanto barulho, o ano passado, quando o senhor me arrancou das garras de um tigre que em mim queria saciar a fome? Suponhamos que prestei à menina o serviço que recebi de si e não falemos mais nisso.

Spinder, largando‑lhe as mãos, voltou‑se para mim.

‑ É justo. O principal é que todos estejam sãos e salvos. A minha amiguinha está risonha e fresca, lembrando‑se apenas do seu caso para se rir dele.

Rimo‑nos todos e abordámos outros assuntos de conversa, da qual Spinder fazia as honras, porque eu estava comovida e tão feliz por me encontrar junto desse homem tão bom e do seu amigo, que gozava aquele minuto de silêncio.

Sentámo‑nos em cadeiras de junco, e, a um sinal de Spinder, um magnífico Negro, de espáduas hercúleas, sempre a rir, trouxe‑nos a mesa do chá.

Mas desde que cheguei, desde que encontrei o castelão com o meu salvador, obcecava‑me sempre a mesma ideia. Adivinho que é este o rapaz de vinte e oito anos, o amigo ferido em África, de quem Spin der me falara e que viria passar alguns meses no Solar dos Castanheiros.

Mas essas informações são vagas. Que faz esse rapaz? Como se chama? Nada sei dele, e quando penso que já tem um lugar importante no meu pensamento, estremeço, cheia de medo.

Meu Deus! E se não fosse digno da simpatia que me inspira? Se, apesar das aparências, fosse algum vilão espreitando a avezinha para a aturdir?

De facto, com que facilidade me cativou!

Creio que Spinder não se prestaria a uma deslealdade. Mas, até agora, o castelão nada sabe dos nossos encontros.

Este pensamento perturba‑me. Meu Deus, devo informar‑me enquanto é tempo, e não deixar que a minha imaginação continue a prender‑se ao acaso.

‑ Em que pensa, minha filha? Há alguns minutos que a vejo preocupada.

A voz de Spinder fez‑me estremecer e agradeci‑lhe com um sorriso, porque parece que ele lê sempre no meu pensamento, para se antecipar aos meus menores desejos.

A ocasião era boa de mais para não procurar saber imediatamente o nome e a posição daquele a quem devia o estar ainda em bom estado.

Esforçando‑me por ser natural, respondi:

‑ Eu, preocupações? Não! Reflectia... Vai rir‑se: acreditará que nem sequer sei o nome do meu salvador?

‑ O quê?

E Spinder, admirado, interrogou o amigo com os olhos.

‑ Não fiz mistério dele ‑ respondeu o rapaz, que julgou ver uma censura nesse olhar ‑, A menina não mo perguntou... senão, sabê‑lo‑ia imediatamente.

‑ É verdade. Não lho perguntei. Esperava sabê‑lo de outra forma! Mas todas as pessoas que interroguei o ignoravam.

‑ Deveras? Procurou sabê‑lo? ‑ volveu o jovem com os olhos radiantes de alegria.

‑ Procurei, sim, e mesmo com insistência. Minha mãe queria manifestar‑lhe pessoalmente a sua gratidão... Afirmo‑lhe que procurei informações várias vezes... mas sem êxito. Então, senhor Spinder, queira fazer o favor de apresentar‑me.

‑ O conde Maurício de Rouvalois ‑ disse o interpelado, indicando o amigo.

‑ O conde de Rouvalois... ‑ repeti, surpreendida, procurando lembrar‑me onde ouvira já esse nome.

‑ Conhece‑o? ‑ interrogou ele, admirado. Movi a cabeça afirmativamente.

‑ Parece‑me que pronunciaram esse nome, há pouco tempo, diante de mim.

E, de súbito, brilhou a luz do meu cérebro.

‑ Ah!... Já sei!

Certamente, empalideci.

Os dois homens olhavam‑se interrogativamente.

‑ O senhor é filho do general de Rouvalois? ‑ perguntei com o coração palpitante.

‑ Exacto.

‑ Tem irmãos. Um deles não subiu o vale do Nilo, há dois anos?

‑ Fui eu próprio... Mas quem lhe contou isso?

Sem lhe responder, continuei, vibrante de esperança:

‑ O senhor! Foi o céu quem permitiu este encontro.

E, ansiosa, trémula, mal podendo dominar a comoção que me fazia tremer a voz, interroguei o conde:

‑ Diga‑me, não se encontrou com o senhor de Borel?... Frederico de Borel?

‑ De Borel?

Hesitou, esquadrinhou na memória, e, depois, dirigindo‑se a Spinder, repetiu:

‑ De Borel...

‑ Não me lembro ‑ respondeu o castelão em seu lugar.

Voltei‑me logo para este:

‑ Também fez parte da expedição?

‑ Fiz! Razão por que posso afirmar‑lhe que nenhum dos nossos companheiros usava esse nome.

Estava aterrada. No entanto, insisti:

‑ A pessoa de quem lhe falo podia ter adoptado outro nome para efectuar a viagem... Muitas vezes prefere‑se o incógnito. Peço‑lhe, veja se se recorda: é um homem de quarenta e três anos... alto, loiro, com os olhos... com os olhos como os meus!

‑ Na verdade, não me lembro ‑ declarou Spinder, com segurança.

Procurei, com o olhar, a confirmação desta resposta no rosto do conde de Rouvalois; mas este, com os olhos no chão e a fonte enrugada pelo esforço dos pensamentos, evocava, provavelmente, todos os seus companheiros de viagem e tentava descobrir aquele de quem eu falava.

Perante o seu mutismo, o meu coração encheu‑se de angústia. E dirigi‑me a Rouvalois, a gritar, como se entre nós já não devesse haver segredos.

‑ Meu Deus! Não mo quer dizer!... Frederico de Borel morreu?... Que desgraça! Afirmaram‑me que partira consigo... ou antes, foi o senhor quem o seguiu às nascentes do Nilo.

‑ Quem lhe deu essa indicação?

‑ Um homem honrado que não pode enganar‑me: o coronel Chaumont.

‑ O quê? Conhece o coronel Chaumont? ‑ exclamou Spinder.

‑ Habita nesta região ‑ disse rapidamente, porque não queria desviar a conversa.

E, de novo, insisti com Maurício:

‑ Não me respondeu, senhor de Rouvalois... Não compreende a minha ansiedade?... Trata‑se de meu pai!

‑ Então, sossegue... Posso afirmar‑lhe que nenhum dos nossos companheiros morreu e que todos estão vivos e de boa saúde, felizmente.

‑ Não me engana?

‑ Dou‑lhe a minha palavra de honra.

‑ E tem a certeza de que não havia, entre os senhores, nenhum que se chamasse Borel?

‑ Nenhum usava esse nome. Isso também lhe posso afirmar.

Um doloroso suspiro me saiu do peito.

‑ Meu Deus! Meu Deus! Agora onde procurá‑lo? ‑ murmurei em voz baixa.

Estava abatida. Desde o princípio desta cena fazia esforços sobre mim própria para moderar a voz e os sentimentos, porque fora educada no hábito de guardar sempre uma impassível correcção, fossem quais fossem os acontecimentos que ferissem a minha sensibilidade.

Mas as forças da alma têm um limite, e, nesse momento, lia‑se‑me abertamente no rosto uma verdadeira mágoa. Eram todas as minhas esperanças desmoronadas. Pode calcular‑se o desânimo que me invadira.

Spinder levantara‑se e percorria o terraço a grandes passadas.

Bruscamente, dirigiu‑se para mim.

‑ Não desanime, minha filha, suplico‑lhe! O senhor de Borel pode muito bem ter subido o Nilo com outra caravana. Todos os dias elas partem do Cairo.

‑ Não, não! Com o senhor de Rouvalois é que ele devia estar e não com outro. Amanhã, vou procurar o coronel Chaumont, e dizer‑lhe o que se passa.

‑ Esse homem tenta encontrar seu pai? ‑ interrogou o castelão.

‑ Sim. É muito bom... Quis ajudar‑me nas minhas investigações... Foi ele quem encontrou os traços de meu pai, nestes últimos anos; no Sudão, na África Central, nas costas da Guiné, no Congo, nas margens do Quanza e no Transval. Pôde segui‑lo passo a passo, nestes últimos anos. As informações obtidas param no Nilo! E acabam de me dizer que ele não estava com os senhores!...

‑ Julgava que tivesse a certeza de que o senhor de Borel morrera no mar.

Embaraçada, senti‑me corar. Na minha febre esqueci a piedosa mentira em que envolvia a desaparição de meu pai. Mas era muito tarde para voltar atrás.

‑ Não ‑ confessei ‑ Não pudemos obter nenhuma confirmação da realidade dos nossos receios. Portanto, apesar de tudo, esperamos, e as informações obtidas parecem consolidar as nossas esperanças.

‑ Perdoe a minha indiscrição. A despeito de ter chegado há pouco a esta terra, estou ao corrente de uns certos zuns‑zuns... Mas acaba de me falar na volta possível do senhor de Borel... Supõe então que seu pai ainda está vivo, apesar do seu longo e inverosímil silêncio?

‑ Enquanto não adquirirmos a certeza da sua morte, esperamos a sua vinda.

‑ Vinda provavelmente problemática.

‑ Pobre de mim!

‑ Mas a senhora de Borel partilha as suas esperanças?

‑ Ignora as últimas informações que pude obter, porque lhe quero evitar a dor de uma desilusão. Se triunfar, dir‑lhe‑ei a verdade.

‑ E supõe que isso lhe dará alegria?

Estremeci. Porque me interrogava ele também sobre os sentimentos de minha mãe para com meu pai? Toda a gente sabe, então, que foi a sua intransigência em perdoar que o afastou de nós?

Passei a mão pela testa, fatigada, lastimando todas as palavras que me tinham escapado e as confidências que fizera. Aquela gente era‑me quase estranha, e traí os meus sentimentos mais íntimos, levantei o misterioso véu que cobria o passado dos meus.

Mas, quando levantei os olhos para eles, gelada pelas minhas reflexões, só vi o rosto muito bom e muito paternalmente consternado de Spinder inclinado para mim; não encontrei senão o olhar silenciosamente eloquente do conde de Rouvalois. Na realidade, dois amigos cheios de indulgência.

Não, não devia arrepender‑me de ter gritado o meu sofrimento na presença de ambos.

Contudo, logo me levantei para me despedir. Havia demasiado desespero no meu coração para poder prolongar esta visita.

‑ Já nos deixa? São apenas quatro horas! ‑ protestou o castelão, com pesar.

‑ Fique um pouco mais ‑ murmurou Rouvalois.

‑ Minha mãe fez‑me prometer que voltaria cedo...

Resposta pouco comprometedora e sempre valiosa.

Cumprimentei o conde, cujos olhos me não deixavam. Adivinhei que desejaria seguir‑me, para não me deixar só comigo mesma em semelhante ocasião. E como me voltasse para ele, antes de descer os degraus do terraço, notei que se levantara para vir ter comigo. Surpreendi, porém, um gesto breve de Spinder, que lhe ordenava que ficasse.

Primeiro, admirou‑me essa ordem do dono da casa, mas compreendi‑lhe o sentido quando me explicou:

‑ O seu carro foi‑se embora e mandei preparar o automóvel. O meu motorista vai levá‑la a casa.

‑ Posso ir a pé; dois quilómetros não me assustam...

‑ Apesar disso, como o tempo não está seguro, prefiro que vá no automóvel.

O carro chegava nesse momento.

‑ Até breve ‑ acrescentou, beijando‑me a mão.

E, apesar do meu desgosto, sorri‑lhe, tanto me sentia rodeada da sua afectuosa solicitude.

 

                     9 de Julho, de manhã

Passei uma noite atroz. Que de pensamentos se chocaram no meu cérebro!

Pesei‑os e medi as respostas, que ontem deram às minhas perguntas o proprietário dos Castanheiros e o seu jovem amigo. Afirmaram‑me que pessoa alguma com o nome de meu pai fez parte da caravana, que nenhum membro da expedição morrera e que eu podia estar tranquila; mas não me responderam quando lhes dei os sinais do desaparecido e emiti a suposição de que podia estar junto deles com outro nome.

Não seria muito natural, da sua parte, passarem em revista todos os seus antigos companheiros e procurarem qual se aproximaria mais dos sinais indicados?

Que motivo lhes reteve o amigável zelo?... E com que prudência me respondiam quando os interrogava!

‑ Parece‑me que estou perto da verdade!... Há em volta de mim um mistério! Como achar natural que o homem que o coronel Chaumont indicou como tendo estado em recentes relações com meu pai, no estrangeiro, se encontre actualmente nos Castanheiros? Como não achar estranho que James Spinder, tendo feito parte de uma expedição onde devia estar o senhor de Borel, venha precisamente comprar o castelo que lhe pertenceu, sem nunca ter ouvido falar nele pelo seu precedente proprietário?

Não, o acaso só por si não pode criar estas coincidências... Eu encontrarei!...

No mesmo dia, à tarde, fui ver Bernardo e pu‑lo ao corrente dos acontecimentos sobre os quais queria ouvir a sua opinião. Combateu o meu raciocínio, mas não me convenceu. Primeiro, Sauvage pareceu‑me ficar surpreendido por saber que o meu salvador era justamente aquele que o coronel Chaumont procurava tão longe. Mas quando lhe contei as singulares observações que esses factos me suscitavam, encolheu os ombros e disse‑me que nada havia de extraordinário naquilo que me parecia tão inexplicável.

‑ A menina Solange tem a imaginação muito exaltada. O acaso faz às vezes coincidências extravagantes.

‑ Mas estas são curiosas de mais!

‑ Nem por isso! O oficial que informou o coronel apenas se fez eco de um diz‑se, sem o poder justificar nem verificar. Sabia que o conde de Rouvalois ia até às Nascentes do Nilo. Isso é um facto concreto e o próprio senhor de Rouvalois lho confirmou pessoalmente. Em troca, o que parece ter sido aumentado sem fundamento, é que o senhor de Borel fizesse parte da expedição. Ora o hóspede do senhor Spinder afirmou‑lhe não ter conhecido ninguém com esse nome.

‑ Apesar de tudo, é singular que dois homens dessa famosa expedição estejam precisamente nos Castanheiros neste momento.

‑ O que talvez ainda fosse mais extraordinário é que justamente seu pai tivesse relações, em África, com um homem que a milhares de léguas de distância viesse a França salvar‑lhe a vida da filha.

A implacável lógica de Bernardo impressionou‑me. Na verdade, tudo é extraordinário neste caso. Mas como tudo se explicaria se fosse a vontade de meu pai que tivesse guiado para aqui Spinder e o seu amigo! Guardei para mim essa íntima reflexão, visto que Bernardo me pusera precisamente em guarda contra as divagações da minha imaginação.

‑ Se a menina Solange, para encontrar seu pai, se fia só em suposições e coincidências estranhas, arrisca‑se a nunca chegar a um resultado certo.

‑ É preciso, porém, tirar partido das menores informações. As minhas deduções...

Sauvage interrompeu‑me:

‑ As suas deduções são muito parciais. Imaginamos muitas vezes o que desejamos ver realizado. Vá falar ao coronel Chaumont, conte‑lhe tudo isto, e ele lhe dirá o que pensa. Mas, por piedade, não se exalte inutilmente.

Não insisti. Tive a impressão de que ele não me compreendia. De algum tempo a esta parte, Sauvage já não partilha a minha maneira de ver. Já não crê em coisa alguma e nada espera já. A sua nova atitude reforça as minhas dúvidas: a sua mudança data também da chegada de Spinder ao castelo.

Será isto igualmente uma coincidência sem importância?

 

                   10 de Julho

O meu desejo de ir ver o coronel Chaumont era bastante difícil de realizar. Como consegui‑lo? A casa do velho militar ficava bastante longe da nossa, e eu só tinha Mylord à minha disposição, porque Mascote precisava ainda de repouso.

Augusto andava ocupado com os fenos, e não podia ir comigo; encontrava‑me, pois, reduzida a fazer o caminho a pé ou a servir‑me da bicicleta. Mas minha mãe deixar‑me‑ia utilizá‑la sem ir acompanhada?

Enchi‑me de coragem e falei‑lhe nisso.

‑ Não! ‑ respondeu‑me ‑ Não é próprio de uma menina andar a pedalar sozinha pelas estradas.

‑ Mas tenho absoluta precisão de sair, minha mãe.

‑ Onde te esperam?

‑ Em parte alguma, mas devo ir a casa do coronel Chaumont.

‑ A casa do coronel Chaumont!... Fazer o quê?

‑ Sauvage pediu‑me que fosse em seu lugar e prometi que ia ‑ expliquei, um pouco embaraçada.

Como dei em mentirosa!

‑ Então como há‑de ser?

‑ É por isso que lhe peço licença para me servir da bicicleta.

Falava com certa hesitação. Eu, a eterna vigiada como se tivesse ainda dez anos, e que não posso dar um passo sem prestar explicações, sei que peço a minha mãe um favor extraordinário. A sua resposta negativa foi quase instintiva.

‑ Não gosto que andes de bicicleta sem ser acompanhada.

‑ Mãe, isso agora é coisa corrente, principalmente no campo!

‑ Sei que os costumes modernos emanciparam as raparigas. Não está bem e não aceito que tenhas semelhantes liberdades!

Creio que hoje, no campo, quase todas as raparigas têm bicicleta. As mães haviam de rir se alguém as censurasse. Mas não nasci numa cabana... No espírito de minha mãe a bicicleta é certamente um objecto de perdição e de perversidade.

Renunciando a insistir, transigi piedosamente:

‑ Vou engatar Mylord.

‑ E quem o guia? Tu, não decerto...

‑ Como Augusto está ocupado...

‑ Espera para amanhã.

‑ Prefiro ir a pé.

‑ Ah! ‑ exclamou minha mãe, admirada ‑ É então um caso urgente?

‑ É, sim.

‑ De que se trata? Conta‑me...

‑ Não sei... O coronel mo dirá, quando o informar de que Bernardo está doente e não pode lá ir.

‑ Sauvage devia ter‑se dirigido a outra pessoa e não a ti, para os seus recados. Abusa, na realidade. Enfim, visto que te comprometeste...

Não respondi. É bem desagradável mentir. Minha mãe reflectiu uns momentos.

‑ O pequeno Celestino, sobrinho do Augusto, te acompanhará. Irá atrás de ti, na bicicleta do tio.

Não pude conter uma gargalhada.

‑ Oh! Mãe, desculpe, mas a ideia de ir escoltada por esse campónio pareceu‑me engraçada! Julgará que serei mais respeitada por ir acompanhada por um garoto daquela idade? Com as magras pernas e a bola negra que lhe serve de cabeça, parecerá um chimpanzé atrás de mim: A menina Solange e o seu macaco! Que belo assunto para um quadro!

Foi impossível a minha mãe resistir à minha alegação. Começou a rir, e, meio vencida protestou:

‑ Porém, não quero que vás só!

‑ Porquê? Serei prudente e não me demorarei. Que mal pode acontecer numa estrada, quando se vai de bicicleta, que não possa suceder indo a pé?

‑ Podes encontrar gente.

‑ Gente! Nesta estrada não se vê viv'alma. De resto, o Mundo e os seus preconceitos! Se eu tivesse a desgraça de ser órfã, viúva ou divorciada, poderia andar à minha vontade que ninguém se inquietaria com a minha idade: mas, porque tenho uma mamã que vela piedosamente por mim como por um tesouro inestimável, o Mundo achará muito natural que fique toda a vida uma patetinha e que guarde as conveniências!

Minha mãe levantou as mãos ao céu.

‑ É espantoso como raciocinam as raparigas de agora! Vai em bicicleta! Espero que nada de mau te acontecerá! Com respeito à velocidade, tenho confiança em ti, para não cometeres qualquer imprudência.

‑ Obrigada! A minha mãezinha é adorável! Beijei‑a tão contente! É a primeira vez que vou andar pelas estradas sem escolta, completamente livre.

Não me demorei muito em me preparar. Vinte e cinco minutos depois tocava ao portão do coronel Chaumont.

Abriu‑me a porta um criado velho.

‑ O senhor coronel não está, menina. Há dois dias que se ausentou.

‑ Foi para fora? ‑ perguntei, desanimada.

‑ Para Paris.

‑ E quando julga que regressará?

‑ No fim desta semana.

‑ Bem. Voltarei depois. Até breve.

‑ Até breve. O senhor coronel deve ter muita pena quando souber que a menina veio cá e não o encontrou.

‑ Não tem importância.

E eis como, depois de ter obtido de minha mãe a inverosímil licença de me servir da bicicleta, para ir a casa do coronel, não estou mais adiantada do que se não tivesse obtido essa apreciável concessão.

 

                     12 de Julho

Fiquei tão perturbada, na passada segunda‑feira, quando fui visitar Spinder, que me esqueceu de lhe falar nas lembrançazinhas que ele pusera de parte, para mim. Resolvi, pois, reparar aquele esquecimento e ir reclamar‑lhe o que prometera. Às quatro horas lá estava eu sentada no salão do castelo, porque nessa tarde fazia muito calor, e a temperatura era, certamente, menos elevada ali do que ao ar livre.

Na minha frente havia uma mesa cheia de gulodices e de bebidas geladas, e Spinder, a meu lado, enchia‑me de atenções. Diante de nós, o conde de Rouvalois sorria, divertido com os repentes do castelão, muito alegre, hoje.

‑ Tive, esta manhã, o prazer de conversar, em Noyville, com um dos seus admiradores ‑ disse‑me, de repente.

‑ Qual? ‑ perguntei estouvadamente.

Esta reflexão levou Rouvalois a dizer.

‑ Precise, caro amigo; a menina Solange tem tantos admiradores que não sabe de qual lhe quer falar.

‑ Já lho teria dito se me não interrompesse ‑ replicou Spinder, sorrindo ‑ Trata‑se do filho de Kabds, o industrial.

‑ Ele falou‑lhe em mim? ‑ inquiri, admirada.

‑ Em termos líricos e os mais lisonjeiros... Tem nele um verdadeiro admirador e... um pretendente, creio bem!

Como ficasse pensativa, o conde informou‑se:

‑ Não foi o pai dele quem comprou há tempos uma parte das terras do solar dos Castanheiros?

A testa de Spinder enrugou‑se.

‑ Foi, e é pena! Levantei a cabeça.

‑ Pena que essa gente tenha comprado as terras? ‑ interroguei.

‑ Pena, principalmente, de que elas tenham sido vendidas.

‑ Pois bem! Eis uma bela ocasião para a menina de Borel tomar posse de uma parte dos bens paternos! ‑ exclamou o conde, num tom que me pareceu mordente ‑ Não é preciso mais do que tocar os sinos e abrir o cortejo.

Devia rir, porque era brincadeira, mas as suas palavras soaram dolorosamente ao meu coração. Olhei‑o. De repente, passou‑me pelas pupilas uma chama de orgulho:

‑ A infelicidade do senhor Kabds, neste ponto, é grande, porque não me sinto, ainda, caída tão baixo, para me vender por esse preço.

Spinder estremeceu, e o seu olhar foi do conde para mim. Mas, com presença de espírito, porque não queria que a conversa pudesse ir além do tom de gracejo, exclamou:

‑ Bem dito. Apanha, Maurício!

‑ A culpa é sua ‑ respondeu o interpelado, aborrecido ‑, Para que veio falar‑nos nos projectos daquele homem?

‑ Não pensava que esse assunto lhe fosse desagradável, Maurício.

‑ Tenho horror a essa gente do Levante, que se implantou no solo da França.

‑ Por espírito de Raça? ‑ perguntei, para dizer alguma coisa.

‑ Não, por ciúme! Revolta‑me que ousem levantar os olhos para as nossas compatriotas. Perturba o meu egoísmo.

Spinder riu‑se com esta declaração.

‑ Mas Maurício não pode casar com todas as que eles cobiçam.

‑ Basta‑me que não desejassem aquelas que eu conheço.

Senti‑me corar. Como compreendo bem neste momento que as palavras são semelhantes a uma bola, que cada um se esforça por recambiar!

Aquele a quem o castelão chama Maurício nem mesmo olhou para mim, ao falar, mas perturbei‑me porque a sua ira foi provocada, principalmente, pela desagradável ideia do meu admirador estrangeiro.

Neste momento, o Negro veio dizer a seu amo que o chamavam ao telefone.

‑ Desculpe‑me... Daqui a cinco minutos estou de volta. Deve ser o meu procurador de Paris.

Saiu e deixou‑nos sós.

‑ É o pensamento do tal Kabds que a torna tão pensativa? ‑ perguntou‑me bruscamente Rouvalois, vendo que me calava.

Franzi os lábios, com desdém.

‑ Absolutamente nada. Esse senhor não tem semelhante honra.

‑ Contudo, conhece‑o? Vê‑o umas vezes por outras?

‑ Vi‑o em Diepa... Estava lá, no Verão passado. Vou para ali, todos os anos, para casa de minha tia.

‑ É das suas relações?

‑ Apenas um conhecimento e nada mais... É rico. Minha tia, também: forçosamente, têm as mesmas relações?

‑ E a menina?

‑ Eu? ‑ interroguei, fitando‑o.

Calou‑se. Teve medo, se falasse, de ir muito longe.

Então, para o tranquilizar, porque adivinho que é isso o que procura, continuo:

‑ Asseguro‑lhe que não tenho a menor simpatia por esse homem, nunca fui para ele diferente do que tenho sido para qualquer outro.

‑ Mas sabia que ele a pretendia?

‑ Não. Outros rapazes têm tido comigo as mesmas atenções! Nunca pensei que pudesse levantar os olhos para a minha humilde pessoa.

Deixei de falar.

O senhor de Rouvalois também se calou. Talvez o não tivesse convencido. Olhei para ele, que me olhava também longa, estranha e profundamente... e não dissemos mais nada.

Quando Spinder regressou, a custo sacudi o torpor que me invadiu...

‑ Era o que eu dizia. Falei com o próprio Cornely. Amanhã mesmo terei o dinheiro.

‑ Tanto melhor; é um negócio arrumado e menos uma preocupação para si.

‑ Com Cornely não há que recear, o pior era encontrá‑lo!... E esta laranjada!‑exclamou, mudando de tom ‑ Daqui a pouco está quente! Que bem que você fez as honras da casa na minha ausência, Maurício! A menina Solange vai tomá‑lo por um verdadeiro selvagem.

Rimos todos, e a conversa generalizou‑se.

De repente, Spinder levantou‑se, foi a um cofre antigo e abriu uma gaveta secreta.

Tirou dela dois ou três objectos e entregou‑mos.

‑ Aqui tem as recordações de que lhe falei. Encontrei‑as esquecidas no fundo de uma velha secretária que seu pai, certamente, não se lembrou de revistar. Estas duas miniaturas podem muito bem ser os retratos de seus avós paternos, a julgar pelos nomes que têm nas costas. Veja.

As minhas mãos tornaram‑se repentinamente trémulas, pegando nesses quadrozinhos que me mostrava.

Nas Torrinhas não há relíquia alguma que diga respeito à minha família paterna. Pela primeira vez os meus dedos tocaram em coisas que pertenceram aos pais de meu pai...

Foi com uma espécie de unção que li o que Spinder me indicava. Por detrás das molduras estava escrito:

Pedro Gãetan, barão de Goussainville, conde de Borel.

E no outro:

Ana Maria, condessa de Borel, da família d'Esquencourt.

‑ São exactamente os nomes dos pais de meu pai ‑ disse com voz inexpressiva.

E os meus lábios beijaram religiosamente as duas miniaturas.

Mas vi que estavam rodeadas de dois círculos de esmeraldas finamente engastadas em ouro antigo.

‑ São de grande valor. Deverei aceitar? Não irei privá‑lo delas? Posso tirar as miniaturas e deixar‑lhe as molduras.

‑ Seria um acto de vandalismo, menina Solange ‑ respondeu‑me gravemente Spinder ‑ Os retratos vão com os aros; uns e outros têm a mesma proveniência, e são‑lhe igualmente preciosos. Aceite‑os. É uma simples restituição que lhe faço. Estou certo de que seu pai nunca teve a intenção de se desfazer de tais objectos.

‑ Aceito‑os como mos oferece ‑ respondi com reconhecimento ‑ e agradeço‑lhe do fundo do coração... Não sabe todo o valor que esses objectos representam para mim...

Sem querer, as lágrimas embaciaram‑me os olhos.

‑ É tudo quanto possuo da minha família paterna. .. ‑ terminei em voz baixa.

A minha comoção e os meus olhos húmidos talvez tivessem perturbado o conde, porque se levantou bruscamente e foi encostar‑se a uma janela, olhando o parque fixamente.

Spinder estava de pé, atrás de mim. Não podia vê‑lo, mas, pelo silêncio que se seguiu às minhas palavras, adivinhei que respeitava a minha emoção.

O gesto do conde chamou‑me à realidade. Um triste sorriso me entreabriu os lábios e tentei gracejar para expulsar completamente a minha agitação.

‑ Que insuportável sensitiva sou! Até pus em fuga o senhor de Rouvalois!

O conde voltou‑se para mim.

‑ Não posso habituar‑me a vê‑la chorar ‑ respondeu com vivacidade ‑ Há pouco tive vontade de estrangular o nosso amigo, que lhe fez revolver essas tristes recordações.

‑ Oh! ‑ protestei ‑ Pelo contrário. Se soubesse que suave comoção ele me deu.

Cheia de reconhecimento, voltei‑me para Spinder, que tinha na mão uma carteirinha de algibeira.

‑ Está aqui outra coisa que contava dar‑lhe, mas a censura que Maurício me dirigiu faz‑me hesitar. Ficaria desolado por lhe causar o menor desgosto ou lhe reabrir uma ferida mal fechada...

‑ Há feridas que doem menos quando se lhes toca. Ofereça‑me, e asseguro‑lhe que nada me daria mais prazer que a atenção que acaba de ter comigo.

O castelão envolveu‑me num longo olhar cheio de ternura.

‑ Seja ‑ disse ‑, Esta carteira é sua, e devo entregar‑lha, diga Maurício o que disser... Pelo que li, vi que pertenceu a seu pai, que aí escreveu, por sua própria mão, os principais acontecimentos da sua vida... São notas redigidas à pressa e que não correspondem a um longo período, visto que a última é datada de 19... Mas, sob a brevidade das frases, adivinhará os sentimentos de seu pai... Deu‑me a impressão de que adorava apaixonadamente os seus...

Um tremor me percorreu. A voz grave de Spinder provocava‑me sensações extraordinárias:

‑ "Os verdadeiros sentimentos de meu pai... Adorava apaixonadamente os seus...".

Que palavras teriam advogado melhor a causa daquele que eu procurava tão ardentemente? Talvez que o castelão também supusesse, como Piémont, que a voz de minha mãe se levantara diante de mim para acusar o ausente...

Ter‑me‑ia sido preciso dar‑lhe penosas explicações para lhe demonstrar o contrário. E estendi apenas as mãos para a carteirinha oferecida à minha curiosidade filial.

‑ Oh! Dê‑ma... obrigada! ‑ agradeci com fervor ‑, Notas escritas por meu pai! Que coisa poderia ser mais preciosa para mim? Obrigada, senhor Spinder, por mas haver guardado!

Porém, o castelão não deu logo a carteira.

‑ Leia‑a atentamente, minha amiguinha, como eu o fiz não sabendo o que continha. Mas terá mais valor nas suas mãos do que nas minhas... Talvez lhe forneça indicações... uma resposta a coisas passadas... Aqui a tem... guarde‑a... é sua.

Piedosamente, peguei na carteira. Ia abri‑la, mas um gesto de Spinder deteve‑me.

‑ Não, já não... diante de nós, não...

E, como ficasse hesitante, acrescentou, rindo:

‑ Tenho medo de Maurício. Não se esqueça de que me ia estrangulando há pouco.

‑ A verdade é que se me tivesse consultado, meu amigo, aconselhar‑lhe‑ia a queimar antes esses papéis do que a dá‑los, neste momento, à menina Solange ‑ respondeu o conde, vivamente ‑ Vai revolver uma infinidade de dolorosos problemas, e, certamente, não é esse o seu fim.

‑ Não, meu rapaz, não é esse, com efeito, o fim que desejo. Mas estou certo de que a minha amiguinha fará melhor uso deste caderno do que imagina, e não serão só lágrimas que a sua leitura lhe suscitará.

De Rouvalois fez um gesto evasivo.

‑ A sua intenção é, evidentemente, louvável, mas só vejo uma coisa: é que a menina de Borel pode voltar a chorar.

Spinder inclinou‑se para mim e rodeando‑me o pescoço com os braços, pousou‑me um beijo respeitoso no cabelo.

‑ Pois bem! ‑ disse, meio sério, meio risonho ‑ Se a fizer chorar, Maurício a reconfortará. Penso que assim ficará satisfeito.

Um rápido clarão perpassou pelos olhos do jovem conde.

‑ Perfeitamente! ‑ exclamou ‑ E, para começar, vou roubar‑lha.

Dirigiu‑se para mim e ofereceu‑me o braço.

‑ Venha. Deixemos este feio senhor, que só fala de coisas sérias. No parque há sombra, vamos respirar o ar livre; sufoca‑se nesta sala!

Um pouco hesitante, aceitei o braço que me oferecia; mas Spinder, sossegadamente, empurrou‑o e agarrou‑me a mão, que passou sob o seu braço.

‑ Perdão, perdão. Maurício usurpa, neste momento, o meu papel. A minha idade dá‑me mais direitos que a sua para a acompanhar, e estou certo de que a menina de Borel será dessa opinião. De resto, que eu saiba, a minha amiguinha não precisa neste momento de ser reconfortada. Olhe para ela, rejubila por ver a sua decepção.

O conde riu com vontade.

‑ Com efeito, é sempre divertido ver um ladrão roubado, e eu represento essa personagem, neste momento.

‑ Deixe lá! A sua vez há‑de chegar.

‑ Assim o espero!

Conversando, demos a volta ao parque, e, logo que pude despedir‑me, sem parecer denotar muita pressa, saí, porque estava impaciente por tomar conhecimento do conteúdo da carteirinha que motivara, entre os dois homens, a amigável discussão que acabei de contar.

Pensava, logo que chegasse às Torrinhas, poder fechar‑me no meu quarto e, cheia de solicitude, percorrer o precioso livrinho que acabavam de me dar, mas minha mãe veio logo ter comigo.

‑ Viste Spinder? ‑ informou‑se.

‑ Vi, mãe.

‑ Não te disse que procurou comprar a quinta de Noyville e as terras de Kabds?

‑ Não; e, contudo, falámos delas, há pouco.

‑ Vieram procurar‑me, hoje.

‑ Quem?

‑ Kabds e o filho.

Senti‑me corar. Minha mãe notou‑o e enganou‑se com respeito às causas da minha perturbação.

‑ Vejo que estás ao corrente. O teu rosto não sabe mentir, se os lábios sabem calar! Mas nunca... ouves?... Nunca darei o meu consentimento!... Se teu pai aqui estivesse, essa gente não teria ousado tal passo.

‑ Fez muito bem em os despedir, minha mãe ‑ declarei tranquilamente.

‑ Não te importa? ‑ inquiriu ela, surpreendida.

Que belo pensamento dirigi ao senhor de Rouvalois, nesse instante.

‑ É‑me indiferente! Não é o desgosto pelo filho de Kabds que me impedirá de dormir, asseguro‑te.

Minha mãe respirou.

‑ Tanto melhor! Quando te vi corar, há pouco, imaginei...

‑ Sim, bem sei; mas foi porque Spinder me deu a entender esse pedido de Kabds...

‑ Como? Ele sabia?

‑ Provavelmente, porque essa gente lhe havia falado nisso. Talvez, mesmo, tomando os seus desejos como realidade, se gabassem de antemão do êxito da sua tentativa. Mas, seja como for, estou contente em saber que o novo castelão quer ficar com as terras de Noyville.

‑ Isso não te renderá nada.

‑ Bem sei, mas gosto muito mais de Spinder do que deles...

Não acabei. Vi que seguira em absoluto as passadas de Bernardo: estava com o inimigo. Minha mãe ficou pensativa. Depois disse:

‑ Esse tal Spinder deve ser muito rico.

‑ Assim parece.

‑ Julgas que consentirá em ceder o retrato de teu pai, por uma boa quantia?

‑ A mãe pensou nisso?

‑ Sim, essa tela era de uma semelhança espantosa, e queria tornar a vê‑la... Desde que disseste que ainda estava no Solar, não penso senão no retrato.

‑ Ignorava, então, que ele lá estivesse?

‑ Nunca pensei que teu pai pudesse vender os Castanheiros com tais coisas... Julgava que levara todas as recordações.

Adivinha‑se a comoção que se apossou de mim, ouvindo aquelas palavras. Nunca até ali me falara, por tanto tempo, em meu pai. E com que palavras dolorosas e ar de intensa tristeza o fazia agora!

‑ Nunca voltaste aos Castanheiros, mãe? ‑ perguntei afectuosamente.

‑ Desde que a propriedade foi vendida, nunca mais lá fui ‑ murmurou com os olhos húmidos.

‑ Hás‑de lá ir um dia comigo ‑ alvitrei suavemente.

‑ Não! Não poderei. Muitas recordações aí me esperavam... Agora... principalmente desde que os aposentos encontraram a sua alegria, o seu movimento.

‑ Nada está mudado.

‑ Julgas isso?

‑ Tenho a certeza. Spinder disse‑me que desejava que tudo ficasse no mesmo estado. Apenas o parque sofreu uma transformação... E talvez o restituíssem ao que já fora... Não tenho a certeza.

Minha mãe suspirou e calou‑se. A lembrança da sua antiga residência devia   ter‑lhe passado pela memória, tal como a conhecera.

Depois, voltou à sua ideia.

‑ Hás‑de ver isso com respeito ao retrato, sim?... Não devemos deixar uma recordação dessas em mãos estranhas... De resto, quero tê‑lo. Nada possuo que me fale de teu pai... Tudo desapareceu quando estive doente.

As lágrimas caíam‑lhe pelas faces, sem que fizesse um gesto para as esconder.

‑ Ao lado do seu retrato, estava, antigamente, o meu. Continua lá?

‑ Não, mãe. Não há lá nenhum retrato teu.

‑ Meu Deus!... Teu pai teve o cuidado de o não deixar... levou o meu!

Soluçou dolorosamente, o que bastante me comoveu. Minha mãe, habitualmente tão calma, tão senhora de si, aparecia‑me agora lamentavelmente desgraçada. Vencida pela dor, não tendo já forças para a esconder, chorou junto de mim, nada podendo fazer para a consolar.

Agora, que o olhar de um homem despertou em mim sentimentos desconhecidos, compreendo a sua angústia. Procuro um pai, mas ela chora um marido... o companheiro da sua vida, aquele que fez palpitar o seu coração de rapariga, em quem tinha depositado toda a confiança, todo o futuro.

Pela primeira vez compreendo tudo quanto a traição daquele a quem se ama pode trazer de sofrimento, de ódio e de cólera.

Ser traída é duro... mas viver quinze anos de lágrimas e sofrimentos...

Pobre mãe, como deve ter sofrido!

E, não resistindo à necessidade de lhe dar um pouco de esperança, embora essa esperança fosse seguida de uma desilusão, ajoelhei‑me a seus pés, abracei‑a e disse‑lhe tudo: a visita ao coronel, as minhas investigações, os resultados obtidos...

Só lhe ocultei uma coisa: as dúvidas que me assaltaram desde que falei ao conde de Rouvalois na sua viagem ao Nilo. E se lhas não disse é porque receio incutir‑lhe uma esperança louca... esperança que há pouco me perturbou, quando Spinder pareceu tomar a defesa de meu pai, como se cumprisse uma missão determinada.

Contei tudo; sim, ela quis saber ainda mais, interrogando‑me e reclamando factos precisos. Foi necessário que lhe explicasse e repetisse tudo... E recomecei, sem me cansar!

Como era tonta em recear a sua cólera! Abraçou‑me, cobriu‑me de beijos, partilhou as minhas lágrimas, censurando‑me apenas não ter tido confiança nela.

‑ De que tiveste medo?

‑ Felícia disse‑me que morrerias se eu te falasse neste assunto.

‑ Que loucura!

E, porque um pouco de esperança atravessou o seu luto, animou‑se, falou‑me, fez projectos, e, pela primeira vez, de há tempo para cá, vi‑a sorrir.

‑ É preciso ir a casa do coronel, minha Solange.

‑ Sim, mãe.

‑ Será até talvez melhor que te acompanhe. Que te parece?

‑ Creio que não. O coronel poderia, em primeiro lugar, constranger‑se, por se ter metido neste caso sem haver sido autorizado por ti...

A verdade é que desejo estar só com o coronel, porque não lhe ocultarei nenhuma das reticências de Spinder e do seu amigo. Falar‑lhe‑ei da nova atitude de Bernardo, repetindo‑lhe também as palavras do castelão, quando há pouco me entregou a carteirinha.

E perguntei a mim própria se não devia falar também nisso a minha mãe. Mas a entrada de Felícia, que pela terceira vez veio anunciar que o jantar estava na mesa, impediu‑me de seguir a minha ideia.

Agora entendo que mais vale o silêncio. Este livrinho pode conter algumas recordações dolorosas que é inútil relembrar, neste momento, à minha pobre mãe.

Esta tarde sente‑se muito feliz e há muita esperança nos seus olhos, para que eu faça de novo brotar neles as lágrimas.

Como Maurício de Rouvalois, há pouco, para mim, temia motivos de tristeza, receio‑os eu agora para ela...

 

                   13 de Julho

Li e reli as notas escritas por meu pai. Adivinha‑se com que religiosa unção percorri essas linhas, finamente escritas, que traçavam sobriamente os principais acontecimentos da sua vida.

O seu casamento, a sua felicidade de esposo, o meu nascimento e baptizado, tudo ali está anotado em poucas linhas. Que profundo amor por mim e por minha mãe se depreende em cada página!

Este livrinho é o melhor e mais poderoso advogado que se poderia encontrar em favor do ausente.

Quem ousaria suspeitar dos seus sentimentos paternais, depois de anotações como as que tomo ao acaso:

 

A minha Solange nasceu! Sou pai! Que alegria tão divina apertar ao peito um ente pequenino que é a carne da nossa carne e o sangue do nosso sangue!

 

Ou ainda:

 

Bebé é cristãzinha desde esta manhã. O querido anjo parecia compreender toda a gravidade do acto que se efectuava: não chorou!

A minha adorada Solange está, pois, inscrita no registo civil e na igreja. Agora, já é uma personagem importante!

 

E mais longe, depois de ter rememorado o esforço dos meus primeiros passos:

 

Com que estremecimento de íntima alegria paterna não apertei minha filha nos braços, depois dela ter percorrido, sozinha, alguns metros, para vir ter comigo.

Os sentimentos de meu pai por minha mãe não são menos ardentes. O amor intenso que tem por ela demonstra‑se cada vez que a evoca:

 

Era o aniversário do nosso casamento, e eu e Maria ‑ Maria era o nome próprio de minha mãe ‑ quisemos passá‑lo, ambos, em completa solidão, visto que os nossos corações precisavam mais do que nunca de se encontrarem a sós.

Há já três anos que somos casados! Será possível? Estes trinta e seis meses passaram como um sonho, e parece‑me que foi ontem que casei com a minha adorável companheira. Três anos! Mal tive tempo de lhe dizer o meu amor e lhe provar a minha inalterável dedicação.

A felicidade não tem limite! Que inebriante vertigem me dá este pensamento tranquilo e suave: toda, toda a minha vida, sempre e sempre, ela e eu vivermos juntos...

 

E, depois destas ardentes páginas, essa em que a sua ternura máscula vai da mãe para a filha deixa perceber nas suas anotações uma vaga inquietação:

 

Sinto pena de que tenhamos visitas, neste Outono, para as caçadas: a nossa querida intimidade vai ser perturbada...

 

Mais longe, essa inquietação define‑se:

 

Maria tem sentimentos muito elevados e generosos: a sua delicadeza em convidar a senhora de Mainfruit é desses. Esta mulher não tem nada, nem na alma nem no espírito, que possa compreender e reconhecer a benévola atitude da minha querida mulher...

 

Até aqui, meu pai não formulou nenhuma queixa contra essa estranha. Mas, alguns dias depois, rabiscou estas simples palavras na carteirinha, que certamente se lhe referiam:

 

Essa mulher faz‑me medo. Adivinho‑a invejosa e ciumenta. Por que sortilégio, por que milagre de habilidade ou coquetismo pode arrastar assim todos os homens a seus pés?...

 

E de repente, sem que nada fizesse prever essa espécie de profissão de fé, escreveu, entre a narração de uma caçada e a indicação de um jantar, estas reflexões sugestivas:

 

Adoro minha mulher e minha filha, e só desejo viver sempre para elas e por elas! A minha felicidade é muito preciosa para que a arrisque tão estupidamente: a ironia e o despeito de uma estouvada, que se vê repelida, não me perturbam.

 

Enfim, uma frase termina o caderno, de que restam algumas folhas em branco, e essa frase parece indicar‑me quanto meu pai pensava sobre este assunto:

Se não devesse poupar a bondade da minha querida Maria, que acredita na sinceridade desta gente, e ficaria desolada de os ver sob o seu verdadeiro aspecto, como me desembaraçaria bem depressa desses importunos ‑ marido e mulher!...

 

Esta nota era a última escrita pela mão de meu pai, e reli‑a agora, sossegadamente, tentando adivinhar através dessas linhas o que faltava para clareza dessas anotações, porque bem sabia que estava ali o nó do drama familiar que, alguns anos antes, perturbara os meus.

Pensava também em tudo quanto Bernardo me contara acerca dessa zanga que certa noite houve entre meus pais, E de todas essas reflexões apenas uma certeza se firmava em mim: meu pai nada tinha a censurar‑se. Fora vítima das circunstâncias, das aparências talvez, mas a sua vontade em nada havia contribuído para as dificuldades que podia ter encontrado. Por consequência, nada depunha contra ele.

Sim, essa convicção consoladora ou desmoralizadora, conforme eu encarasse a integridade do seu carácter ou a amargura do seu exílio, essa convicção, repito, entrara no meu espírito. E compreendia que tarefa moral me estava incumbida, desde que me tornara detentora da carteirinha encontrada nos Castanheiros.

Antes de chamar meu pai para junto de nós, se o conseguir encontrar, quero apagar, primeiro, em minha mãe, a impressão antiga de uma traição ofensiva da parte daquele que lhe jurara amá‑la sempre. Era uma espécie de reabilitação moral que devia cumprir, e essa tarefa pareceu‑me bem suave, ainda que particularmente delicada.

Fechei preciosamente a carteirinha no fundo de um cofre, que escondi com cuidado atrás de uma pilha de roupa, numa gaveta: parecia‑me que ainda não chegara o momento de a entregar a minha mãe.

 

                   Na mesma data, ao meio‑dia

O correio trouxe‑me, ao meio‑dia, bilhetes postais dando notícias do coronel.

O excelente homem deve ter sabido da minha visita escusada a sua casa e, para me evitar nova e inútil caminhada, recorreu a escrever‑me bilhetes postais.

 

Um trazia esta frase delicada:

 

Com as minhas respeitosas lembranças.

 

Outro, um aviso disfarçado para não ir a sua casa antes de um certo tempo:

 

De Paris, onde ainda me demoro cerca de uma semana, receba os meus respeitosos cumprimentos.

 

Enfim, um terceiro fez estremecer de alegria o meu coração, apesar dos seus termos disparatados:

 

Envio‑lhe alguns postais para o seu álbum, desejando que lhe dêem tanto prazer como tive ontem, encontrando vestígios recentes ‑ apenas de há dois meses ‑ de um volume precioso, que muito desejava obter, e que perdera há dezoito meses.

 

Ao ler este postal não pude reprimir um movimento de alegria, e todo o sangue me subiu ao rosto.

Que risonha esperança! Terei compreendido bem o sentido da sua frase? Não me iludirei? Dois meses!

O coronel teria recentes notícias de meu pai, e restava apenas saber o que fora feito dele de há dois meses a esta parte!

‑ De quem são esses bilhetes? ‑ perguntou minha mãe, admirada perante a minha perturbação.

‑ Do coronel Chaumont ‑ respondi, entregando‑lhos.

Leu‑os sumariamente, e, nada tendo visto que pudesse justificar a minha comoção, tornou a lê‑los, atentamente, mas sem êxito!

‑ Porque pareces tão alegre? ‑ perguntou ao entregar‑mos.

Hesitei um momento. Devia fazer‑lhe nascer essa nova esperança? A minha alegria era tão grande que não pude resistir ao desejo de lha fazer partilhar.

‑ Torna a ler esse postal, mãe... Não adivinhas?... Creio que se trata de meu pai... Dois meses apenas! Compreendes?

Minha mãe empalideceu.

‑ Céus! Será possível!

E releu o postal a meia voz.

‑ Julgas?... Não nos enganaremos? Seria tão atroz que a nossa esperança falhasse!

E, não podendo resistir mais à comoção que a agitava tão de súbito, soluçou convulsivamente.

Tive de fazê‑la sentar numa poltrona. Tornou‑se de repente tão fraca que fui obrigada a dar‑lhe um cordial a fim de que readquirisse forças.

Pobre mãe! Todos estes abalos a comovem. E, então, prometi a mim própria não lhe comunicar as notícias que recebesse de meu pai. Estas alternativas de esperança e de desânimo poderiam prejudicar‑lhe a frágil saúde.

Já tenho pena de a ter posto ao corrente do pouco que sei; se, depois de ter feito nascer a esperança, me fosse preciso comunicar‑lhe uma realidade desanimadora, sinto que isso seria horroroso para ela e que talvez não resistisse.

Todas essas reflexões me cortaram a alegria que o bilhete do coronel me fizera sentir.

Agora, não duvido. Não estarei enganada? Compreenderia bem o sentido das frases do meu velho amigo?

Se apenas se tratasse de mim, que importariam os embates, as esperanças não justificadas, todas essas alternativas de boas e más notícias, contanto que o resultado fosse bom?! A minha sensibilidade, posta mais ou menos à prova, nesta ocasião, demonstrou a sua força! Mas minha mãe, tão pálida, tão triste e anemiada pelo seu longo pesar?

Queira Deus que meu pai volte e que a sua presença entre nós seja salutar à pobre mãezinha. Ou então para que servirá o regresso de um, se o outro tiver que partir?...

Este pensamento de luto desmoralizou‑me completamente. Quando o estado de minha mãe já não reclamava a minha presença junto dela, subi ao meu quarto, e, ali, chorei perdidamente. Todas as minhas lágrimas de esperança, receio e desânimo se misturavam para avolumar os meus pesares.

 

                   15 de Julho

Ontem, domingo, fui à igreja, esperando ver ali algum rosto amigo e reconfortante, isto é, Spinder ou o seu jovem camarada; mas não vi nem um nem outro, e parte do dia passou‑se triste e longo, apesar dos festejos populares celebrando a data nacional.

 

                   No mesmo dia, à tarde

Fui aos Castanheiros, para expor a Spinder o pedido de minha mãe com respeito ao retrato de meu pai.

O castelão não estava lá, e o criado que me recebeu não pôde dizer‑me se o seu amo regressaria à noite, ou se, pelo contrário, a sua ausência se prolongaria por muitos dias. Não ousei perguntar pelo conde. Talvez acompanhasse o amigo, porque também não o vi. Voltei mais triste do que fui.

Assim que cheguei às Torrinhas, minha mãe interrogou‑me sobre a missão que me confiara.

Pobre mãe! Também ficou aborrecida por ver que era preciso esperar! Mal acabara de lhe comunicar a minha inútil visita ao castelo, o ruído de um motor, parando em frente do portão, fez‑me levantar a cabeça.

‑ Um automóvel! ‑ exclamou minha mãe, surpreendida, porque não esperava qualquer visita nesse dia.

Corri para a janela.

‑ O automóvel de Spinder. Reconheço o motorista! ‑ exclamei com verdadeira alegria.

Não pude dizer mais nada, porque a porta do salão abriu‑se, e Felícia fez entrar o conde de Rouvalois.

Um pouco confuso, primeiro, por nos encontrar juntas, depressa serenou. E baixando a cabeça diante de minha mãe, desculpou‑se, num tom respeitoso:

‑ Perdoe, minha senhora, ousar apresentar‑me assim, sem para isso ter sido autorizado. Quando há pouco cheguei aos Castanheiros, soube da visita da menina de Borel e julguei dever desculpar o meu amigo Spinder, que foi obrigado a ausentar‑se precipitadamente.

Minha mãe ia responder com alguma banal fórmula de delicadeza, quando intervim rapidamente.

‑ Minha mãe ‑ disse com certo calor ‑ permita‑me que lhe apresente o conde de Rouvalois, de quem lhe tenho falado várias vezes, e a quem desejava vivamente conhecer. É a este senhor que deve poder, hoje, abraçar sua filha, visto que, graças a ele, estou ainda viva.

O conde agradeceu com um olhar a minha intervenção.

Minha mãe estendeu‑lhe espontaneamente as mãos e, em termos menos calorosos, mas certamente mais comovidos que os meus, agradeceu‑lhe a sua dedicação, a presença de espírito no momento do meu desastre, e assegurou‑lhe o seu eterno reconhecimento.

Esta entrada no assunto, tornando minha mãe devedora, rompeu o gelo entre eles.

Àquele que lhe salvara a vida da filha, fosse quem fosse, minha mãe não podia se não fazer o mais agradável acolhimento: a porta das Torrinhas estava aberta, para ele, desde aquele instante. Mas o conde não era homem que se contentasse com tal situação, adquirida à custa do nosso reconhecimento. Pelo seu tom amável, sério, atitude infinitamente respeitosa e pela sua impecável correcção, soube conquistar minha mãe.

Com efeito, não resistiu à simpatia que o visitante lhe inspirara à primeira vista. Ela, habitualmente tão desprendida de tudo, tão refractária a qualquer novo conhecimento, tão altiva até na sua feroz solidão, mostrou‑se deveras encantadora e ouviu Rouvalois com um apaziguamento sem igual.

Aquela atitude foi‑me infinitamente agradável. Ouvindo‑os, o meu coração enchia‑se de alegria. Nesse instante, sentia‑me orgulhosa em ser filha de minha mãe, tão grande senhora no seu benévolo acolhimento, e, aos olhos dela, estava disposta a valer‑me da impecabilidade mundana do visitante. O conde encurtou, contudo, a primeira entrevista e, levantando‑se para se despedir, desculpou‑se mais uma vez da liberdade que tomara em se apresentar nas Torrinhas.

Depois, voltando‑se para mim, disse‑nos com a sua mesma infinita correcção, onde, porém, havia um pouco mais de doçura, que Spinder só estaria de volta aos Castanheiros depois de amanhã, à tarde.

Levantámo‑nos, para o acompanhar; mas, nesse momento, Felícia mandava entrar uma nova visita.

Era o abade Violet, que estendendo uma das mãos a minha mãe e a outra ao conde, a quem parecia conhecer muito bem, se dirigia para nós, no seu passo suave.

E, de repente, sem nos dar tempo de lhe dizermos nada, explicou.

‑ Venho pedir à sua boa vontade um auxílio, querida senhora de Borel. Fui chamado à aldeia de Anthieux. Um rachador acaba de cair do alto de um salgueiro e precisa urgentemente do meu santo ministério. O caminho, a pé, é longo e receio chegar tarde de mais e não poder estar aqui às horas das ave‑marias. Quer emprestar‑me o seu carro?

‑ Da melhor vontade ‑ condescendeu a mãe. E, voltando‑se para mim, acrescentou:

‑ Vai prevenir o Augusto... dize‑lhe que engate depressa... Oxalá não ande no campo!...

Mas de Rouvalois deteve‑me:

‑ Permite‑me que façamos melhor? O automóvel está à porta. Se o senhor cura quer aceitá‑lo, está à sua disposição. O motorista levá‑lo‑á em poucos minutos ao seu destino e tornará a trazê‑lo. Deste modo, a senhora de Borel não terá que interromper o trabalho do criado.

Minha mãe aprovou a proposta e o abade ficou encantado.

‑ Tenho ainda um favorzinho a pedir ‑ resolveu o sacerdote, voltando‑se para mim ‑ Deve lá haver uma pobre mulher e três garotos a chorar. Creio que a presença da nossa Solange não seria supérflua.

‑ Irei da melhor vontade! ‑ exclamei, muito contente por acompanhar o padre e o conde, imaginando que este iria connosco.

Rapidamente, pus um chapéu e uma capa. Quando cheguei junto do grupo que me esperava ao portão, o abade despediu‑se de minha mãe.

‑ Daqui a pouco, cá lhe trago Solange ‑ prometeu, entrando no carro.

O conde, de pé, à portinhola, esperava‑me. Entrei, por minha vez, e sentei‑me ao lado do cura. Atrás de mim, Maurício fechou a portinhola, sem subir. Compreendi que a mais elementar cortesia exigia aquela maneira de proceder.

O rosto devia ter mostrado alguma decepção, porque me envolveu num longo olhar de alento.

‑ Quer dar‑me licença que partilhe um pouco da sua boa acção, menina? ‑ perguntou‑me, tirando a carteira do bolso.

Entregou‑me uma nota, que recebi em silêncio, agradecendo‑lhe apenas com uma inclinação de cabeça, tão comovida fiquei por ter pensado nisso.

‑ Privo‑o do seu carro ‑ desculpou‑se o padre, que só então percebeu que o conde teria de ir a pé.

‑ Com muito prazer ‑ afirmou este ‑ Desde esta manhã que ando de automóvel e estou encantado por caminhar agora de tarde, um pouco, a pé.

Trocámos novos cumprimentos e o automóvel partiu. Antes de sair do parque, levantei‑me e olhei para trás. Vi o grupo formado por minha mãe e pelo conde, que se dirigiam lentamente para o gradeamento.

Estava tão pouco nos hábitos de minha mãe acompanhar assim os visitantes, que não pude deixar de o fazer notar ao abade.

‑ O senhor de Rouvalois conquistou a simpatia de minha mãe ‑ concluí.

‑ É um rapaz muito amável ‑ respondeu o padre‑ Teria grande alegria se quisesse vir morar para a nossa terra; mas conto pouco com isso. É um pássaro de emigração, que precisa de novos horizontes. Até aqui, percorreu o Mundo em todos os sentidos. Em breve, provavelmente, vê‑lo‑emos desaparecer, como veio, a caminho de outro qualquer canto da Terra.

‑ Fez‑lhe algumas confidências? ‑ interroguei, com o coração subitamente apertado.

‑ Não; mas fala com tanto entusiasmo dos países longínquos que visitou, que creio enganar‑me pouco supondo que para lá voltará, logo que possa.

Não respondi. Invadira‑me um certo mal‑estar. Parecia‑me que o peito estava esmagado num torno e que um círculo me apertava o crânio.

Precisamente no banco da frente vi um livro que ainda não fora de todo aberto. Devia pertencer ao conde, que começara a lê‑lo, a julgar pelo sinal feito no alto de uma página.

Por curiosidade maquinal, peguei‑lhe, abri‑o e li o título: As margens do Amazonas.

A princípio, esse título nada me lembrou. Depois, subitamente, as palavras abriram‑me o espírito.

‑ O Amazonas?... Um rio do Brasil. A América do Sul!

Atirei o livro, quase brutalmente, e, fechando os olhos, entreguei‑me a um verdadeiro desânimo, onde tudo quanto me interessava só me aparecia para me atormentar. Meu pai desaparecido, a saúde precária de minha mãe, os Castanheiros vendidos, a doença de Bernardo, a partida possível do conde...

Tudo no meu pobre cérebro concorria para me desanimar.

Por sua vez o padre pegara no livro e folheava‑o.

‑ O Brasil ‑ disse ele, a meia voz ‑ Sim, o nosso amigo falou‑me nesse país... Tem esse pensamento... É para ali que se dirigirá na próxima vez.

‑ Mas não o deixe ir, senhor abade! ‑ exclamei sem querer.

‑ Mas como, meu Deus! Que autoridade posso ter? Só o senhor Spinder o poderia conseguir, talvez. E, mesmo assim, de que vale o afecto de um amigo, comparado com uma verdadeira vocação? A ternura de uma mãe, de uma mulher, não seriam até talvez infrutíferas perante uma decisão tomada?

Não insisti. Na voz do padre havia fatalismo e senti‑me o mais possível desanimada.

Felizmente, chegámos a Anthieux, e tive de me ocupar daquela pobre gente e consolá‑la o melhor possível. A sua dor, cuja intensidade eu compreendia, fez‑me esquecer por momentos os meus desgostos. E quando eu e o abade regressávamos, os meus pensamentos eram menos sombrios. O nosso jantar nesse dia foi mais animado do que de costume.

Falámos do que se passara, e minha mãe fez‑me contar pormenorizadamente tudo quanto vira e fizera em Anthieux. Depois, elogiou o abade Violet, cuja incansável dedicação era tantas vezes posta à prova pelos seus pobres paroquianos; e, por fim, falando do conde, aprovou o gesto de generosidade que tivera em favor do sinistrado.

‑ Pondo de parte esse acto, como achas o senhor de Rouvalois, mãe? ‑ perguntei.

‑ Bem... muito bem. É um homem de sociedade, indiscutivelmente.

Este cumprimento tinha um verdadeiro valor na boca de minha mãe, que acrescentou ainda:

‑ Felicito o senhor Spinder por se ter sabido rodear de um tal amigo. Não conheço o novo dono do Solar, mas, a julgar pelo senhor de Rouvalois, suponho que seja um homem muito distinto.

Sorri, feliz, por aquele elogio, sem notar que minha mãe me examinava atentamente.

‑ Tenho pena, minha mãe, de que não conheça Spinder. Veria que, pondo de parte a idade, nada tem a invejar ao seu jovem amigo. É tão justo, tão bom e tão reflectido em todos os seus actos, como nas suas opiniões! Sou obrigada a reconhecer que apesar de todas as más vontades que senti contra ele, conquistou a minha verdadeira simpatia.

‑ Falas da sua idade ‑ notou minha mãe ‑ Mas é muito mais novo do que imaginas, pois o senhor de Rouvalois, que há pouco me falou dele em termos não menos calorosos do que os teus, disse‑me que não contava ainda quarenta e cinco anos. É, como vês, um homem ainda novo.

‑ Exacto... mas viveu muito, sofreu muito, provavelmente, para poder ser assim tão calmo e reflectido... Asseguro‑te que o julgava mais velho.

Houve um silêncio, durante o qual senti o olhar materno pensativamente fixo em mim. Depois, por cima da toalha, a mão de minha mãe veio agarrar suavemente a minha, como para amenizar o que ia dizer.

‑ E a propósito, minha Solange ‑ disse afectuosamente ‑ já pensaste como é falsa a tua situação nos Castanheiros, junto desses dois homens?

‑ Que quer dizer?

‑ Talvez me alarme sem razão ‑ continuou mais meigamente ainda ‑ Mas o senhor de Rouvalois é muitíssimo novo, e o seu amigo, apesar de toda a sua gravidade, não me parece suficientemente idoso para que a tua situação junto dele não seja reparada.

Um bom sorriso adoçou ainda a subtil observação.

O meu rosto corou subitamente.

‑ Não quer que volte ao Solar? ‑ balbuciei.

Ela absteve‑se de me dar uma ordem.

‑ Não te proíbo; quero deixar‑te toda a liberdade sobre esse assunto... Neste momento, não é uma mãe que te fala, é uma amiga... uma grande amiga que teve a tua idade!

A sua mão apertou mais fortemente a minha e continuou, com uma espécie de ansiedade discreta e terna:

‑ Queria poupar‑te a qualquer comentário desagradável, por um lado, e a qualquer desilusão, por outro. A imaginação caminha depressa... Não fecho a minha porta ao senhor de Rouvalois. Pode voltar aqui quando quiser... Mas tu, Solange, não seria melhor espaçares um pouco as tuas visitas... por correcção... ou por prudência...

O tom em que minha mãe falava comoveu‑me profundamente. Pusera um tal tacto e uma tal delicadeza nas suas palavras, que não me revoltei nem procurei sequer negar, por instintivo pudor, a insinuação que as suas reticências traziam.

Fiquei um momento silenciosa; depois, tomando coragem, levantei para ela os olhos cheios de lágrimas.

‑ Tem razão, não volto mais ao Solar.

Minha mãe sorriu com a minha decisão tão radical e sensata.

‑ Não. Não é preciso cessar completamente as tuas visitas. O senhor Spinder poderia sentir‑se ofendido com tal procedimento... Por certo não merece que uses para com ele de semelhante rigor.

‑ Tenho, com efeito, a certeza de que isso lhe daria tanto desgosto como a mim própria.

‑ Continua, pois, a ir aos Castanheiros. De resto, esperam‑te lá depois de amanhã. Mas espaceja e encurta o mais possível as visitas... Não achas, Solange?

‑ Sim, mãe. Farei o que me aconselhas. Mas se é só a presença do senhor de Rouvalois o obstáculo, esse desaparecerá em breve.

‑ Porquê?

‑ Porque não deve estar aqui muito tempo. O abade Violet dizia‑me há momentos que o conde está disposto a visitar o Brasil.

Minha mãe pareceu admirada e os seus olhos fixaram‑me novamente.

‑ Quando há pouco lhe perguntei se contava demorar‑se entre nós muito tempo, não me falou nisso.

‑ E que lhe respondeu?

‑ Que ainda não tinha nenhum projecto, visto que se sentia muito bem, gozando a afectuosa hospitalidade de Spinder. Enfim, que lhe custaria muito ter de partir agora.

‑ Ele disse‑lhe isso? ‑ perguntei, com um brilho de felicidade no olhar.

Uma expressão de admiração trocista cobriu o rosto de minha mãe, que confirmou, um tanto irónica:

‑ Sim, creio... creio que foi isto que ele disse... Mas se queres posso perguntar‑lho...

‑ Oh! Está a fazer troça de mim!...

E, confusa por não ter sabido ocultar a minha perturbação à sua perspicácia maternal, baixei os olhos sobre o prato.

 

                   16 de Julho.

Acaba de nascer uma filhinha aos nossos caseiros de Saussay, e minha mãe mandou‑me a casa deles levar, com os nossos parabéns, umas guloseimas à nova mamã.

Toda a minha vida me lembrarei deste passeio. Estou tão perturbada e comovida que não sei se poderei contar claramente tudo quanto hoje me sucedeu.

Primeiro, a partida com Augusto, no lugar de cocheiro, na vitória; depois, no caminho, cruzámo‑nos com um automóvel, que julgo ser o de Spinder, mas o caminho fazia uma curva e não pude reconhecer quem ele transportava.

Por fim, chegámos a Saussay, onde todos os parentes dos nossos caseiros se encontravam reunidos em volta da jovem mãe.

Desempenhei‑me o mais depressa possível das minhas incumbências, distribuindo os presentes, e enquanto Augusto tomava um copo de cidra à saúde da recém‑nascida, dirigi‑me num pulo para a igrejinha de Saussay.

É uma igreja minúscula, no alto de um rochedo escarpado, ao qual estreito atalho conduz a pronunciado declive.

Ali só há missa uma vez por ano, no dia da peregrinação. O resto do tempo está aberta para todos os fiéis, mas nunca se vê lá ninguém. Desta capela descobre‑se um panorama admirável.

Visto que se me oferecia a ocasião de lá ir, aproveitei‑a logo. E, em breve, cheia de calor, com o rosto animado pela ascensão, entrei no pequeno santuário, deserto, como sempre. Uns vinte genuflexórios enchiam‑no completamente.

Que ardente súplica dirigi ao céu, pedindo‑lhe de todo o coração a graça de encontrar meu pai! Mas, de repente, o meu recolhimento foi perturbado.

Ressoavam passos nas lajes, e alguém veio ajoelhar‑se atrás de mim. O facto era tão raro, que, sem querer, voltei a cabeça.

Estupefacção. Era o senhor de Rouvalois.

Fiquei perturbadíssima. Estava ali tão perto de mim que ouvia o ruído da sua respiração. Quem sabe se ele não ouvia as pancadas precipitadas do meu coração!

Na capela, de novo se fizera silêncio, mas as minhas orações ficaram suspensas, e foi em vão que quis continuá‑las: os meus lábios murmuravam, mas o meu espírito estava alheio.

E pensei com terror, no juízo que faria minha mãe se pudesse ver‑me, neste instante, ela que, há dias, tão ternamente me afirmou a sua confiança em mim.

Como desejei estar longe... muito longe! Não podia continuar ali; assim era preciso!

E o pensamento de que era incorrecta a presença de Rouvalois junto de mim, naquele sítio tão solitário, impôs‑se ao meu espírito, e acusei‑o de me expor a uma situação tão desagradável. Mas talvez a sua presença só fosse devida ao acaso. Por que censurá‑lo de um acto que talvez ele não pudesse prever? Se me afastar, não me seguirá? Acaso foi alguma vez Incorrecto comigo?

Procuro iludir‑me. Com que comoção sinto que o recém‑chegado me seguirá e que está aqui porque eu estou. Levanto‑me, decidida a dominar o estado febril que me agita. Mas que significa esta tola agitação? Não é o meu salvador o ser mais leal e generoso que conheço? Poderei acaso recear da sua parte a menor indelicadeza? E que mal haveria em trocar com ele um aperto de mão e algumas palavras banais?

Se há alguma incorrecção, não será no meu pensamento, que não posso dominar? Será no meu coração, onde se gravou um rosto? Será na minha vagabunda imaginação, que deixo galopar sem freio?

Mãe! por que me abriu os olhos no outro dia! A sua subtil recomendação só serviu para aumentar a minha perturbação íntima e dar‑me a ideia do mal, quando todos os meus actos e todos os meus pensamentos estavam cheios da mais ingénua confiança...

Depois de ter feito o sinal da cruz, dirigi‑me para a porta. Saí e não pensei em fechá‑la. Senti muito bem que o conde me seguia de perto: ei‑lo junto de mim!

Volto‑me, e apenas lhe pude dizer, como censura:

‑ O senhor!... Mas porquê?

‑ Pareceu‑me vê‑la de longe... Senti o desejo de me certificar, e o meu automóvel quis seguir o seu caminho.

Sorriu, procurando nos meus olhos um pouco de indulgência. Vendo que me calava, explicou ainda:

‑ Subi aqui na esperança de a ver... de lhe falar...

‑ Falar‑me?

‑ Sim, ter notícias suas.

‑ Oh! Sim!

A minha voz cujas inflexões febris domino, parece‑me ressoar falsamente, junto da sua, tão suavemente empolgante.

O conde calou‑se, porque compreendeu que os seus protestos não se ajustavam aos nossos pensamentos.

O meu aspecto frio desconcertou‑o, e, hesitando, continuou logo:

‑ Quanto tempo permaneceu naquela quinta? Julguei que não saía mais de lá!

‑ Viu‑me entrar?

‑ Vi.

‑ Esperou‑me?

‑ De longe... sem querer!

‑ Como da outra vez!

Maurício olhou para mim, hesitante, e, depois, confirmou com simplicidade:

‑ Sim, como no outro dia; mas hoje fui mais feliz porque está só!

‑ Mas podia ter vindo até aqui acompanhada.

‑ Paciência! Tê‑la‑ia cumprimentado de longe.

Confessou, desta forma, que a sua presença junto de mim era propositada! De novo nos calámos, mas os seus olhos, que procuravam sempre encontrar os meus, eram mais eloquentes do que a sua voz grave. E para fugir à perturbação secreta que sentia, quis despedir‑me:

‑ Estão à minha espera. Tenho que ir‑me embora. Vou descer por este atalho e o senhor...

Aqui, detive‑me; mas, de repente, acrescentei, com voz suplicante:

‑ E o senhor, seja generoso! Poderiam interpretar mal a sua presença a meu lado, principalmente minha mãe... Vá por outro caminho!

Maurício riu.

‑ Por qual? Só há um, e salvo que exija que eu quebre a cabeça, tentando descer este rochedo pela via mais rápida... o espaço... tem de suportar a minha presença até lá abaixo.

‑ É verdade! só há um caminho!

Bastaria que ele interceptasse o minúsculo atalho, e eu não poderia continuar a andar. Estou à sua mercê. Esta ideia atravessa‑me o cérebro como relâmpago, e recuo estupidamente, se bem que o saiba incapaz de me prender junto de si contra os meus desejos.

O conde viu o meu gesto e fitou‑me, admirado.

‑ Oh! ‑ exclamou, ofendido pelo que julgou, enfim, compreender na minha atitude ‑ A menina de Borel é senhora das suas acções. Não tenho o menor intuito de lhe impor a minha presença.

Adivinhava‑se pesar no seu tom subitamente glacial, e não precisei de que se afastasse e me dissesse:

«Passe, menina» para me convencer de que estava zangado e que o ferira sem razão.

Nervosa e hesitante, fiquei imóvel, voltada para ele. Que dizer para reparar a minha falta? Tremia de que a menor palavra agravasse a situação ou fosse além do meu desejo.

E decidi afastar‑me.

‑ Até depois, senhor de Rouvalois.

‑ Adeus.

Toda a nossa correcção de sociedade explodiu nesta dupla saudação pronunciada tão cerimoniosamente.

Mas, mal tinha dado uns passos no estreito atalho, parei, impotente para poder continuar.

Podia, porventura, afastar‑me assim? Porque o acuso de ter procurado ir ter comigo, se o meu coração bate com tanta força quando ele está na minha presença?

E, sem querer, voltei‑me novamente para o conde. De pé, no mesmo lugar, não se mexera. Estava pálido, taciturno; o seu olhar segue‑me com uma espécie de angústia; mas qualquer coisa em mim o chama contra minha vontade, e, sem termos trocado uma palavra nem esboçado um gesto, com um salto, alcançou‑me e, nervosamente, agarrando‑me o braço, apertou‑o contra si com força, exclamando:

‑ Má!

Foi um grito de vitória! Triunfou, e eu, radiante de alegria íntima, verifiquei a minha derrota e senti que acabava de encontrar um senhor.

Não me largou o braço. Talvez quisesse amparar‑me naquela descida, em que os meus pés esbarravam com as pedras do atalho. Porém, a educação da sociedade, de que estávamos impregnados, não perde os seus direitos. Apesar da comoção que nos perturba, trocámos apenas palavras banais, como se receássemos reconhecer essa perturbação.

‑ Qual a invocação desta capela? ‑ perguntou.

‑ Santa Gúdula.

‑ Delicioso nome!

Ri, com um riso feliz que gritava a alegria de o saber a meu lado.

‑ Não há aqui todos os anos uma peregrinação?

‑ E muito frequentada.

‑ Deveras? E que doença cura?

Ri, novamente.

‑ Não é uma doença, antes pelo contrário! Santa Gúdula é casamenteira! As raparigas vêm cá pedir um marido.

‑ Palavra?

‑ Sim, sim!

‑ Ah!

E, inclinando‑se para mim, um pouco trocista, inquiriu:

‑ Então, há pouco?...

Corei, protestando:

‑ Não, nem pensei nisso!

Divertia‑se com a minha confusão. Depois continuou:

‑ Isso não quer dizer nada: Santa Gúdula podia pensar por si.

Então eu, que raras vezes brinco a esse respeito exclamei:

‑ E por si! A santa também protege os rapazes. Quem sabe se lhe vai escolher noiva!...

O conde não respondeu, mas a sua mão apertou‑me com mais força o braço, que continuava a conservar prisioneiro, e essa pressão pareceu dizer‑me que o milagre se dera.

Chegámos ao sopé do outeirinho. Há duas estradas na nossa frente. O automóvel, vazio, está junto do talude.

Com o mesmo movimento correcto, separámo‑nos, e, para atenuar a transição, perguntei, gravemente:

‑ Que horas são?

Maurício consultou o relógio, com ar não menos sério.

‑ Quatro horas e trinta e cinco.

‑ Não estou atrasada, mas são horas. Augusto deve ter acabado de merendar.

‑ Augusto é o seu criado?

‑ Sim, o jardineiro.

Sentíamos como que uma dificuldade em nos deixarmos assim, como estranhos, quando havia instantes nos sentíamos tão inteiramente unidos.

Estendi‑lhe a mão.

‑ Até breve!...

Pegou‑me nos dedos, mas não os largou.

‑ Quando a verei? Amanhã?

‑ Não sei.

‑ Sim, amanhã! Creio que vai aos Castanheiros.

‑ É verdade. Esquecia‑me de que minha mãe me encarregou de um negócio a efectuar com o senhor Spinder.

‑ Então, até amanhã.

‑ Até amanhã ‑ murmurou Maurício, beijando‑me demoradamente a mão.

Por fim, separámo‑nos. Enquanto o conde se dirigia para o automóvel, corri para casa dos nossos caseiros, e uma hora depois, quando o meu carro se aproximava das Torrinhas, um automóvel passou‑nos à frente, em grande velocidade.

Reconheci, ao volante, o senhor de Rouvalois, que me cumprimentou cortesmente, e, enquanto o veículo desaparecia numa volta do caminho, perguntava a mim própria se não sonhara tudo quanto acabo de escrever.

 

                     17 de Julho

Eram quase duas horas quando cheguei aos Castanheiros, acompanhada, desta vez, por Bernardo, porque o antigo sargento, por fim curado, apressara‑se a retomar junto de mim o seu posto de guarda fiel.

Fiquei muito alegre por poder montar a cavalo, visto que há muito tempo estava condenada a ir a pé ou de carro e não me cansava de acariciar Mascote, deixando‑a caracolar à vontade.

Quando cheguei à brecha do muro dos Castanheiros, que um dia saltáramos para penetrar na propriedade, Bernardo fez‑ma notar.

‑ Foram dadas ordens para se arranjar depressa este canto do muro. Quer saltá‑lo pela última vez? Veremos o parque sob o seu novo aspecto.

‑ Pois sim, passemos!

E sopeei a minha montada, como da outra vez.

Senti um baque no coração, lembrando‑me da minha primeira visita. Viera ali com a alma despedaçada, mas também cheia de esperança e de coragem. Agora, tornava a ver esse recanto sem grande emoção aparente e podia vir aos Castanheiros muitas vezes, passear por ali, conversar e rir, sem que a sombra do passado se erguesse com a mesma eloquência, diante dos meus olhos.

Ia ao Solar e não era meu pai quem o habitava; e perdera a esperança de ver voltar para lá os meus, pois o seu lugar estava tomado; ia ali, e não era só uma recordação filial que me levava e me fazia adorar aqueles sítios. Uma imaginação mais recente se me gravara no coração e parecia querer reinar nele em primeiro lugar.

Este pensamento desolava‑me e sentia o remorso invadir‑me, ao percorrer esse parque silencioso.

‑ O Bernardo também vem muitas vezes ao Solar ‑ disse, pensando que ele igualmente sofrera a mesma atracção.

‑ Gosto de ver o senhor Spinder. É um homem agradável.

Mordi os lábios, porque o elogio do castelão, que estou pronta a fazer em qualquer altura, desagradava‑me na boca do meu companheiro.

‑ Junto desse homem tão bom, depressa esqueceu os seus antigos amos! ‑ repliquei, mordente.

Sauvage olhou‑me e sorriu, sem se zangar.

‑ Não, visto que ainda estou a seu lado.

‑ Mas ficaria encantado se lhe dessem a liberdade. Como a aproveitaria depressa para ficar de todo nos Castanheiros.

‑ Meu Deus! Talvez seja certo! Mas o não menos certo é que a única coisa que me retém cá fora é a menina Solange.

‑ Mas lá por isso é livre!

Bernardo sorriu e respondeu com o mesmo ar de bonomia, que me desagradava:

‑ Não se zangue. Se quiser fazer calar as suas prevenções contra o senhor Spinder, há‑de ver que merece maior afeição do que a que lhe quer dar.

‑ Cale‑se! Nem sabe como me faz mal!

E, como se não quisesse ouvi‑lo, chicoteei ao de leve a égua, que saltou de súbito.

Com docilidade, Sauvage seguiu‑me a alguns passos de distância. Cheguei nesse momento junto do regato, que liberto das ervas ruins, dos lodos impuros e da sua flora aquática, parecia tão límpido e puro como um grande espelho reflectindo o céu.

Tinha pensamentos singulares sobre a atitude de Bernardo e arreigava‑se‑me no espírito uma ideia louca que já uma vez mo atravessara, quando encontrei Spinder à sua cabeceira e quando notei a alegria que a sua presença causava no antigo zuavo.

Nessa época, a mudança de Sauvage era tão recente, tão inesperada, que me fizera nascer suspeitas. Mas, como da outra vez, repeli com força essa ideia: as grandes barbas ruivas do novo castelão não tinham relação alguma com o fino e comprido bigode loiro de meu pai...

De resto, não eram só as aparências físicas que destruíam tal suposição; o carácter um pouco e o temperamento um tanto fleumático de Spinder opunham‑se totalmente à vivacidade e à exuberância alegre que o retrato do meu querido desaparecido revelava.

Aproximámo‑nos do Solar. O conde devia espreitar a minha chegada por outra porta, porque o ruído dos cascos dos cavalos fê‑lo desembocar na álea principal.

Radiante de alegria, quando me viu, correu para mim, e recebi em pleno coração o seu olhar alvoroçado.

‑ Receava que algum aborrecido contratempo a obrigasse a adiar esta visita ‑ murmurou, beijando‑me a mão.

‑ Visto que tinha prometido...

Maurício hesitou; depois, meio risonho, meio sério, confessou lastimosamente:

‑ Receava também que a minha presença, ontem, na capela, a tivesse ofendido, depois de reflectir.

‑ Na verdade, estava muito zangada ‑ declarei para o arreliar.

O rosto iluminou‑se‑lhe.

‑ Mas já o não está, pois não faltou ‑ disse.

Enquanto falava, ajudava‑me a desmontar e, dando‑me o braço, levou‑me para o Solar.

‑ Preveni Spinder da sua visita.

‑ Sabe que me encontrou ontem?

O seu braço comprimiu o meu.

‑ Disse‑lho.

‑ E que respondeu? ‑ perguntei, muito corada.

‑ Que sou indigno da clemência de Santa Gúdula.

‑ Porquê?

‑ Parece que serei um marido detestável.

‑ Oh!

‑ Não é dessa opinião?

Corei fortemente.

‑ Não sei! ‑ protestei, rindo, para ocultar o enleio.

‑ Mas qual é a sua opinião pessoal?

‑ É melhor perguntar isso àquela a quem escolher para sua mulher.

‑ Eis uma resposta de Normanda!

E rimos como crianças, a quem o menor brinquedo diverte.

Momentos depois penetrei no gabinete de Spinder. Estava sentado em frente de uma mesa atulhada de papéis. Levantou a cabeça e recebi em cheio o choque eléctrico das suas pupilas claras. Pareceu‑me outro homem, sem que pudesse, a princípio, explicar‑me porquê.

Depois compreendi. Pela primeira vez, vi‑o sem os óculos fumados e pareceu‑me muito menos velho do que habitualmente.

Vendo aquele homem quase novo, perturbei‑me e pensei nas recomendações de minha mãe, que cada vez me pareciam mais justificadas. Mas não tive tempo de reflectir sobre este assunto. O castelão viera ao meu encontro com as mãos estendidas, e o conde retirava‑se discretamente.

‑ Enfim! Espero que não voltará a estar tanto tempo sem me ver! A sua vinda é uma grande felicidade, minha filha; espero que não espaçará tanto as suas visitas.

‑ Como vê, chego quando regressou... e, desta vez, sou mandada por minha mãe.

‑ Foi o que Maurício me disse ontem.

Senti‑me corar. E de novo perguntei a mim própria como o conde ousara pôr o amigo ao corrente do nosso encontro.

O castelão adivinhou o meu pensamento, porque acrescentou:

‑ Maurício é o homem mais nobre e leal que conheço. É um companheiro a quem quero como filho, e não se admire de que me fale de todas as suas alegrias e projectos.

O meu rubor acentuara‑se. Spinder pegou‑me na mão, que apertou afectuosamente entre as suas. Depois, mudando vivamente de assunto, com aquela autoridade que lhe era peculiar, interrogou‑me:

‑ Então, quer dizer‑me qual é o negócio de que sua mãe a incumbiu?

‑ Sabendo que o retrato de meu pai estava aqui, quando o julgava desaparecido ou destruído há muito tempo, encarregou‑me de lhe perguntar se consentiria em ceder‑lho.

‑ De que retrato se trata? ‑ perguntou, hesitante.

‑ Daquela grande tela que está com os outros retratos da família na galeria. Posso mostrar‑lho.

‑ Eu sei...

Por momentos, ficou pensativo.

‑ Então foi por julgar esse retrato desaparecido que a senhora de Borel se não preocupou com ele até hoje?

‑ Exactamente! Nem sequer supôs que podia ter sido vendido com o resto... E não explico a mim própria como tais recordações não foram conservadas por meu pai.

‑ Contudo, a senhora de Borel, no momento da venda...

Compreendi‑o, apesar da sua hesitação.

‑ Minha mãe esteve gravemente doente... Uma febre cerebral que a deixou por muito tempo entre a vida e a morte, e que a ia endoidecendo, não permitiu que se interessasse ou pudesse opor‑se a qualquer coisa. Quando lhe voltou de novo a faculdade de compreender e sofrer, era tarde de mais, o desastre dera‑se.

Spinder fez um gesto de surpresa.

‑ Contaram‑me, com efeito, que a senhora de Borel esteve doente... Mas julguei compreender... perdoe‑me...

O meu interlocutor parecia não acreditar na realidade dessa doença.

Um rubor de cólera me invadiu o rosto. As suas palavras eram um pouco indiscretas, mas não me incomodava refutar a opinião desse homem, com respeito a minha mãe. Pelo que Bernardo me dissera, por certas reticências em volta de mim, compreendera já que um juízo errado fazia crer a todos que só a severidade de minha mãe afastara meu pai para um longo exílio. Não partilhara eu própria dessa crença? Mas não desejava que semelhante opinião chegasse até ao conde, e foi com ardor que respondi ao castelão, pondo, involuntariamente, um certo orgulho na voz:

‑ Quem ousou duvidar da realidade dessa doença?

‑ Parece que todos... Até seu próprio pai.

‑ Pois meu pai enganou‑se completamente! ‑ afirmei com energia.

Spinder parecia deveras espantado.

‑ Não foi um pretexto... Um motivo inventado para não responder a seu pai?... Para o não tornar a ver?

‑ Não. Minha mãe esteve bem doente, perto de quinze meses. Foi ela própria quem mo disse, contando‑me os dolorosos princípios do seu calvário de viúva.

‑ Ela disse‑lho?

‑ Disse... e minha mãe nunca mente!

Spinder levantara‑se com agitação e passeava pelo aposento. O seu rosto estava tão alterado que me perturbei. E mais forte do que há momentos, no parque, a suave recordação assaltou‑me o pensamento.

‑ Meu Deus! Será ele?

Era loucura, era insensatez pensar daquele modo, mas, perante aquela comoção, aquela extraordinária agitação, não seriam permitidas todas as hipóteses?

Enquanto essa angustiosa pergunta se me agitava na cabeça, sem que ousasse responder‑lhe negativa ou afirmativamente, porque qualquer erro nesse sentido seria grave, o castelão viera sentar‑se na minha frente.

E, sem suspeitar das dolorosas hesitações que me assaltavam, continuou, muito calmo e dominando‑se:

‑ Então, a senhora de Borel deseja adquirir o retrato de seu marido? Foram certamente as suas instâncias que lhe fizeram nascer esse desejo.

Esta insidiosa pergunta, pronunciada, porém, com aparente indiferença, perturbou‑me por completo.

Tive a visão clara de que só uma legítima inquietação a formulava. E redargui como se a minha resposta devesse ser ouvida por meu pai ou fielmente a ele transmitida:

‑ Confesso que não pensei em comprar esse quadro, se bem que me tivesse comovido bastante, quando, há algumas semanas, visitei a galeria... Quero levá‑lo porque a ideia é de minha mãe, e estou aqui para lhe significar o seu vivo desejo de possuir esse retrato. Pede‑lhe, por minha intervenção, que lho ceda e fixe as condições. Devo acrescentar que, sejam quais forem, estaremos de acordo.

Spinder ouvira a minha resposta com os olhos meio fechados, numa atitude profundamente atenta.

‑ Perdoe‑me a pergunta que vou fazer‑lhe, minha filha. Tem muita importância para me decidir a separar‑me dessa tela, que completa a admirável colecção da galeria.

‑ Diga.

‑ Julgava que, tanto a senhora de Borel, como a menina, não possuíssem uma grande fortuna. Como pode afirmar‑me que serão aceites as minhas condições a respeito desse quadro, que, assinado por um grande mestre, tem um valor artístico ainda muito maior, posto que o pintor morreu muito novo e foi esta a sua última obra?

‑ Minha mãe está, sem dúvida, disposta a todos os sacrifícios. Ignora o valor do quadro e disse‑me que aceitasse todas as suas exigências, fossem quais fossem.

No rosto de Spinder lia‑se profunda admiração.

‑ Então sua mãe está disposta a sacrificar uma parte da sua fortuna para entrar na posse de uma simples recordação?

‑ Mas que recordação! A imagem querida daquele a quem chora todos os dias!

Calei‑me, porque sentia as lágrimas embargarem‑me a voz. Sem dúvida, a maneira como eu falara comovera Spinder, que olhava para o chão, pensativo.

Como continuasse calado, prossegui:

‑ Que deverei responder a minha mãe?

‑ Diga‑lhe que vou reflectir no seu pedido... Apanha‑me de tal forma desprevenido... Fixar um preço em tais circunstâncias é difícil... Volte daqui a dois dias, quer? Dar‑lhe‑ei uma resposta.

‑ Minha mãe deu‑me liberdade ampla sobre o preço ‑ respondi, um pouco desapontada.

Spinder sorriu.

‑ Não duvido... Estou até persuadido de que, consigo, poderia abusar um pouco da situação.

‑ Esse pensamento não ocorreu a minha mãe ‑ protestei com vivacidade.

‑ O que muito lhe agradeço ‑ replicou ‑ porque não me conhece bem, e a sua confiança em mim parece‑me ainda mais preciosa, outorgada tão generosamente. O que, no entanto, me surpreende ‑ acrescentou ‑ é que para melhor concluir este negócio a senhora de Borel não tivesse vindo aqui, ou me mandasse ir a sua casa.

‑ Não creio que minha mãe pense em voltar aos Castanheiros. Essa peregrinação despertar‑lhe‑ia recordações dolorosas e queridas.

‑ Há peregrinações que fazem surgir milagres! ‑ murmurou gravemente.

Estremeci. Meu Deus! Que ideia me tornou a passar pela cabeça? Oh! É preciso que eu saiba, que tenha a certeza. Quando daqui a dois dias voltar, hei‑de achar meio de fazer cessar a minha dúvida. Não posso viver por muito tempo em semelhante incerteza. Felizmente que o coronel Chaumont está a chegar!

Depois da observação de Spinder, julguei o assunto terminado, e despedi‑me, dizendo‑lhe: Até breve!

O senhor de Rouvalois esperava‑me à saída, passeando pelo terraço.

Ficou transtornado por ver que o seu amigo me não retivera para passarmos uns momentos juntos.

‑ Vai‑se já embora? ‑ perguntou com pesar.

‑ Sim. Vou dar conta a minha mãe da missão que me confiou.

‑ Resultou como desejava, decerto ‑ inquiriu ligeiramente ‑ O nosso velho amigo não saberia recusar‑lhe nada.

‑ Infelizmente, desta vez tive menos sorte ‑ respondi, pensativa.

E acrescentei, já muito confiante nele:

‑ Se o senhor Spinder lhe referir o que se passou, conto consigo para apoiar a minha causa.

‑ Não duvide! Tenho o maior desejo em procurar ser‑lhe agradável, para deixar perder a primeira ocasião.

Agradeci‑lhe com um sorriso. Maurício ajudou‑me a montar, não querendo deixar esse cuidado a Bernardo, que, delicadamente, se afastara, esperando‑me.

‑ Quando a tornarei a ver? Amanhã?

‑ Só conto voltar cá depois de amanhã, e isso se minha mãe não vir inconveniente.

‑ Porque havia de vê‑lo?

Corei, mas calei‑me, não ousando falar‑lhe dos escrúpulos que ela me expusera.

De resto, o conde insistiu na sua ideia.

‑ Que faz amanhã?... Aonde vai?

‑ Não sei ainda ‑ declarei, hesitante.

‑ Então diga‑me onde posso encontrá‑la.

Corei ainda mais sem responder. Era uma entrevista que me pedia.

‑ Bem sabe que não posso continuar a andar à roda das Torrinhas, para lhe espiar a saída.

‑ Costuma fazê‑lo? ‑ interroguei, comovida.

‑ Todos os dias. Acabariam por notar a minha presença.

‑ Não!... Isso não!...

‑ Qual o meio de o evitar, visto que se recusa a indicar‑me outro sítio?

E eu acho natural que não possa proceder doutra forma.

‑ Amanhã? Sim?... ‑ continuou, persuasivo.

‑ Não sei... Tenho medo de lhe indicar um sítio e não ir...

‑ Sim... pode comparecer se quiser.

Como me visse silenciosa e irresoluta, reprimiu um movimento de decepção.

‑ Está bem... Eu arranjarei as coisas... eu a espreitarei...

Esta ameaça decidiu‑me:

‑ Estou a pensar... Conto ir amanhã ver o coronel Chaumont.

‑ Deveras? ‑ inquiriu, duvidando um pouco.

‑ Sim, vou de tarde! Lembrei‑me agora de que preciso falar a esse senhor, com urgência.

‑ Isso tranquiliza‑me. Então, até amanhã?

‑ Pois sim, até amanhã.

As nossas mãos encontraram‑se num demorado aperto e depois separámo‑nos.

 

                   19 de Julho

‑ Sinto‑me encantado por vê‑la! ‑ exclamou o coronel Chaumont, vendo‑me entrar no seu gabinete ‑, Como tem passado, minha querida filha?

E, sem me dar tempo a dizer palavra, continuou, resplandecente de alegria:

‑ Tenho boas notícias... notícias que lhe darão prazer. Mas diga‑me primeiro se recebeu os meus postais e lhes compreendeu o sentido?

‑ Naturalmente ‑ respondi, febrilmente ‑, Compreendi que me falava de meu pai e que me enviava as mais preciosas esperanças.

‑ Assim é. Tratava‑se de seu pai. No Ministério da Guerra, onde fui por assuntos pessoais, o acaso, o bom acaso que dispõe às vezes as coisas admiravelmente, fez‑me encontrar um dos meus antigos camaradas que voltava de Itália, onde passara seis meses de licença, a convalescer. É claro que não nos separámos logo. Satisfeitos pelo nosso encontro, resolvemos jantar juntos. Ora, de que falariam dois velhos camaradas senão dos antigos conhecidos?

O meu amigo Bignon... é o nome desse oficial... evocou, como é natural, todos os velhos companheiros e, de repente, exclamou:

"‑ Adivinha, Chaumont, que alma do outro mundo eu vi há seis semanas, em Salerno? Não procures, porque não acharás...

"E como hesitasse um pouco, citou‑me alegremente:

"‑ Borel... Frederico de Borel! Aquele jovem conde que aos trinta e tal anos foi acometido da loucura das viagens e deixou a família para percorrer o Mundo de ponta a ponta! Julgava‑o morto há muito tempo, e ei‑lo que reaparece, cheio de vida e são como um pêro, asseguro‑te.

"Calcule a minha surpresa, ouvindo falar assim, subitamente, de seu pai!

"‑ Viste Borel? ‑ perguntei.

"‑ Vi, passámos oito dias juntos, em Salerno. Borel chegava da Manjúria, onde fora observar, de perto, as hostilidades nipónicas.

"‑ Mas eu supunha que Frederico de Borel estivesse agora nas nascentes do Nilo.

"‑ Esteve, efectivamente, ali, mas a expedição durou apenas um ano, e, antes de regressar a França, quis estudar mais atentamente a questão asiática. Disse‑me que tinha visitado a Coreia e a Manjúria até às margens do Amor, o qual desceu na extensão de centenas de quilómetros, fazendo uma viagem de recreio, através das regiões assoladas pela guerra e pela fome. Quando o deixei, partiu para Marselha, onde ia esperar a chegada de um amigo, o filho do general de Rouvalois...

Aqui, interrompi a narração do coronel.

‑ Tem a certeza de que o seu amigo disse: o filho do general de Rouvalois?

‑ Se tenho a certeza?... Afirmo‑lhe, minha filha.

‑ Então, deve haver em tudo isto um terrível mal‑entendido. Esse senhor de Borel de quem se trata não é aquele que procuramos.

‑ E porquê? ‑ perguntou o coronel.

‑ Porque Maurício de Rouvalois afirmou‑me não conhecer meu pai.

‑ Viu o senhor de Rouvalois?

‑ Bastantes vezes. Está aqui perto, em casa de um amigo.

‑ E diz que afirma não conhecer o senhor de Borel?

‑ É bastante categórico a esse respeito.

‑ Acaso não se tratará de Maurício, mas de qualquer dos seus irmãos? ‑ considerou o coronel, já hesitante.

‑ Perdão. Foi Maurício de Rouvalois, o filho do general, quem chegou de África e subiu o Nilo, há dois anos.

O coronel soltou uma gargalhada.

‑ Mas isso é extraordinário! E esse rapaz pôde dizer‑lhe que não conhece o senhor de Borel?

‑ Afirmou‑mo.

Compreendi que a minha afirmação parecia basear‑se num erro, e, instintivamente, grande tristeza se apossou de mim.

‑ Pois bem! O seu informador mentiu! ‑ exclamou o coronel, que se levantou nervosamente.

‑ Oh! ‑ protestei debilmente, sentindo o coração apertar‑se‑me de uma forma estranha ‑, Asseguro‑lhe, coronel, que deve haver nisto um mal‑entendido ‑ acrescentei com ardor.

‑ E eu declaro‑lhe que esse homem é um impostor e que a enganou de um modo indigno. Vou dar‑lhe imediatamente a prova.

Com ar decidido, o coronel dirigiu‑se para a secretária de mogno, e abriu uma das gavetas. Pegando numa carta, entregou‑ma.

‑ Aqui tem, leia isto. Foi o general de Rouvalois quem pessoalmente me confirmou estas informações que até aqui lhe tenho dado. Uma carta do pai desse rapaz! Creio que não hesitará em reconhecer a sua hipocrisia!

Muito atrapalhada, peguei na carta. Tremiam‑me os dedos ao desdobrá‑la. Que ia saber? De que duplicidade Maurício se tornara cúmplice? Confesso que, naquele instante, não pensava já na alegre perspectiva de encontrar em breve meu pai. Mais forte do que essa alegria, uma dor íntima me esmagava o coração.

Maurício enganara‑me! Maurício mentira!

‑ Leia! ‑ insistiu o coronel, que nem sequer suspeitava das causas da minha aflição ‑ Leia e julgue qual de nós diz a verdade: esse senhor ou eu.

Então, li:

 

       Meu caro coronel,

Sinto‑me satisfeito por lhe confirmar todas as informações que tem obtido acerca do seu antigo tenente.

Foi de facto meu filho Maurício quem subiu o vale do Nilo, em 19... com ele e outros camaradas.

Em quase todas as suas cartas, Maurício me fala de Frederico de Borel, que lhe salvou a vida em muitas circunstâncias trágicas, e ao qual está muito ligado.

Procure Maurício da minha parte e, assim, mais facilmente poderá encontrar o seu antigo oficial, que, em geral, guarda o incógnito, e aparece com um nome menos conhecido do que o próprio.

E creia‑me sempre camarada muito dedicado.

               De Rouvalois

 

 

Fiquei aterrada. Já não era possível a menor dúvida: sim, Maurício enganara‑me bem! Zombando das minhas lágrimas, da minha dor e da minha ansiedade, respondera com uma mentira à confiança que depositava nele.

O coronel por fim reparou no meu abatimento.

‑ Mas o que é isto, minha amiguinha? Dir‑se‑ia que esta carta a aflige! E eu que pensava vê‑la tão alegre!

Tentei sacudir a profunda desilusão que acabava de sofrer.

‑ Tem razão, coronel. Devo alegrar‑me com o êxito que obteve, e não me apoquentar com a traição de quem zomba dos meus sentimentos filiais.

‑ Hum! Hum! ‑ fez o coronel embaraçado, examinando‑me com surpresa.

Mas de repente os olhos brilharam‑lhe. Dirigiu‑se para mim, puxou uma cadeira para junto da minha e, pegando‑me nas mãos, perguntou‑me paternalmente:

‑ Quer contar‑me tudo quanto se passa? Como conheceu o filho do general e em que circunstâncias lhe falou de seu pai? Evidentemente que há um mal‑entendido! Até prova em contrário, tenho Maurício de Rouvalois por um homem educado, incapaz de dizer uma mentira ou de zombar da dor de uma rapariga.

Ouvindo‑o falar assim, senti o sangue afluir‑me às faces. A bondade do coronel ditara‑lhe as palavras precisas para apaziguar a minha perturbação íntima. Afinal, para que acusar Maurício, sem procurar saber as causas que o obrigaram a proceder assim? Provavelmente, tudo era devido a qualquer ridículo mal‑entendido.

E contei‑lhe tudo, ocultando‑lhe apenas os sentimentos que o conde me inspirava, e que julgava ter‑lhe também inspirado.

Mas o velho oficial devia ter grande experiência em matéria de amor. Várias vezes senti as suas mãos apertarem as minhas, quando contava com muito calor as palavras com que o castelão elogiava o carácter do seu amigo, ou, ainda, quando evoquei a figura máscula e corajosa, a propósito do meu acidente.

Quando terminei, o coronel parecia muito alegre.

‑ Estamos na pista de seu pai! É uma questão de dias e talvez de horas, e poderá abraçá‑lo. Sim, é evidente, a presença de Maurício nos Castanheiros não é natural, bem como a de Spinder!... Hum!... Quem sabe se este não possuirá outra Identidade diferente daquela em que se apresenta... Enfim, tudo isto é um caso para ver... Fale ao seu amiguinho e tenha confiança nele. Estou certo de que a não enganou voluntariamente. A sua atitude embaraçada, quando lhe fazia perguntas, prova‑o...

‑ Não acha? ‑ volvi, transfigurada.

‑ Decerto ‑ afirmou o coronel, apertando‑me de novo as mãos ‑ Esse rapaz é escravo de uma ordem que o impede de falar e toda a sua respeitosa dedicação por si não lha fez esquecer. Interrogue‑o habilmente... Se for preciso, mostre‑lhe esta carta do pai... E, assim, levado à parede, será obrigado a dar‑lhe a conhecer a verdade, e, desta vez, sem reticências. De resto, a partida está ganha, porque logo que Maurício de Rouvalois saiba que foi apanhado em mentira, só pensará em se desculpar, revelando‑lhe tudo.

Levantei‑me, impaciente por agir. Mas ao deixar o coronel, não me esqueci de lhe agradecer, o mais profundamente possível, quando por mim fizera.

‑ Sem o senhor nunca saberia a verdade. Julgaria sempre que meu pai morrera ou desaparecera, e esta horrível dúvida envenenar‑me‑ia a existência. Como poderei pagar‑lhe esta dívida de reconhecimento?

O coronel abriu‑me os braços.

‑ Abrace‑me, minha filha, e, mais tarde, quando beijar seu pai, lembre‑se de que há, num cantinho, um velho coronel que muito estimaria poder também abraçá‑lo.

Os olhos encheram‑se‑me de lágrimas.

‑ Prometo‑lhe, coronel! E meu pai estimá‑lo‑á duplamente, por ter sido tão bom para a filha.

O velho oficial estava comovidíssimo, mas cortou bruscamente as efusões.

‑ Até breve! Vá cumprir a sua missão. Deve estar impaciente...

Assoou‑se com força, e deixou‑me sem dizer mais palavra.

Quando Bernardo, que me esperava na estrada, me viu, perguntou‑me:

‑ O que há de novo, menina Solange? O coronel teve alguma boa notícia?

Estremeci, e bruscamente chamada à realidade, olhei para o antigo soldado. Num relâmpago, lembrei‑me da atitude que ele tomara nos últimos tempos a meu respeito.

E sorri, irónica.

‑ O coronel não me disse nada que o Bernardo não saiba já! ‑ respondi com ironia.

Sauvage fitou‑me e um fugitivo rubor lhe coloriu as faces morenas.

‑ Então nada de novo? ‑ balbuciou desajeitadamente.

‑ Perdão! ‑ continuei no mesmo tom trocista ‑ Agora sei tanto como o Bernardo! E é pena que as informações me chegassem por outra boca, que não fosse a sua.

‑ Que pretende dizer? ‑ tentou protestar.

Mas interrompi‑o com uma gargalhada:

‑ Nada, evidentemente... Não quero dizer nada... mas é pena!

Curvou a cabeça, pensativo, e em silêncio o carro começou a rodar.

Passou‑se um bom bocado sem trocarmos uma única palavra. Mas, de súbito, recordei‑me de que o conde me marcara um encontro na estrada.

‑ Meta o cavalo a passo ‑ ordenei a Sauvage. No andamento em que íamos teríamos chegado às Torrinhas em menos de um quarto de hora, e eu desejava, particularmente agora, ver Rouvalois.

Bernardo obedeceu‑me em silêncio. Devia, contudo, ter adivinhado a razão da minha ordem, porque, quando chegámos à entrada do bosque de Anthieux, voltou‑se para mim e disse:

‑ O senhor de Rouvalois passou há pouco pela estrada, enquanto a menina estava em casa do coronel... Ia de bicicleta... Creio que deve estar a repousar à sombra deste bosque, porque hoje faz bastante calor... Se a menina quer, podemos sair da estrada e tomar por alguma álea, onde haja mais sombra.

A sua forma de falar, tão pouco habitual, deu‑me a perceber, melhor do que um discurso, quanto as minhas observações o tinham mortificado.

‑ Faça o que quiser. Desejo falar ao senhor de Rouvalois, e muito gostaria de o encontrar hoje.

‑ Então, olhe, menina... Ali está a bicicleta dele encostada a uma árvore... Já nos viu e dirige‑se para nós.

Bernardo parou o carro. Efectivamente, Maurício, com o chapéu na mão, aproximou‑se.

‑ Que lindo dia! ‑ exclamou ‑, O sol brilha no céu e a alegria nos corações. Sinto‑me felicíssimo por a ter encontrado.

Estendeu‑me a mão, cheio de contida alegria. Hesitei em lha apertar e os seus olhos manifestaram surpresa.

‑ Que se passou? ‑ inquiriu, fitando‑me.

‑ Teria enorme pesar em lhe dar neste momento o menor sinal de amizade, tendo no coração um pensamento reservado ‑ respondi francamente, mas sem severidade nem rispidez.

De resto, era incapaz dessas atitudes para com ele. A testa enrugou‑se‑lhe.

‑ Mas o que há? ‑ repetiu.

‑ Vou dizer‑lho.

E, descendo do carro, voltei‑me para Bernardo:

‑ Vá à frente, devagar. Eu e o senhor de Rouvalois segui‑lo‑emos a pé.

Maurício foi buscar a bicicleta.

‑ Porque hesitou em me apertar a mão e o que significam as suas estranhas palavras? ‑ perguntou, logo que chegou perto de mim.

Como levasse um momento para lhe responder, acrescentou com voz angustiosa:

‑ Peço‑lhe, Solange, diga‑me depressa e francamente o que tem contra mim. Entre nós não deve haver a mais pequena dúvida nem o menor pensamento reservado... É impossível que algum de nós cometesse voluntariamente qualquer falta para com o outro.

‑ Foi o que acreditei até hoje... Tinha em si uma cega confiança.

‑ Mas é preciso que continue a tê‑la! Explique‑se, peço‑lhe! Será admissível que me suponha capaz de qualquer coisa menos correcta para consigo?

‑ Então por que me enganou voluntariamente?

‑ Voluntariamente!... Oh! O que diz?...

Que ardente súplica lhe passava naquele momento pela voz! Teria comovido qualquer mulher menos enamorada do que eu. Contudo, tornei‑me severa, querendo conhecer a fundo toda a verdade daquela história.

‑ Confirmou uma mentira com a sua palavra de honra ‑ continuei, implacavelmente.

‑ Eu?!...

Fez‑se pálido de súbito.

‑ Afirmou‑me que não conhecia meu pai e que não fizera parte da expedição dele às nascentes do Nilo.

‑ Tem a certeza de que lhe afirmei isso? ‑ perguntou, mais senhor de si.

‑ Não vai decerto fazer jogo de palavras!

‑ Lembre‑se bem. Dei‑lhe a minha palavra de que nenhum dos meus companheiros morrera.

‑ E depois?

‑ Depois... que nenhum deles usava o nome de Borel.

‑ E hoje está pronto a repetir‑me o mesmo?

‑ Sem dúvida.

‑ Confirmar‑me‑á mais uma vez que não conhece um senhor de Borel? Que esse nome lhe é desconhecido? Que nenhum dos seus companheiros se chamava assim?

‑ São três perguntas diferentes, minha amiguinha ‑ replicou, rindo.

‑ Não se ria destas coisas. Essas três perguntas resumem‑se numa, apenas. Vamos, confirme‑me a sua resposta do outro dia! Que espera para me repetir que não sabe o que quero dizer?

‑ Por que insiste tanto, Solange?

‑ Porque desejo, ou confundi‑lo pela sua mentira, ou assegurar‑me de que posso continuar a ter confiança em si. Vamos, senhor de Rouvalois, responda depressa.

‑ Abusa da situação. Sente bem que não posso responder‑lhe.

‑ Porquê?

‑ Porque nada tenho a acrescentar ao que já lhe disse.

‑ Ah! Sim! Foi então seu pai quem falou verdade?

‑ Meu pai?!

‑ Decerto. Leia esta carta escrita por ele. Dir‑lhe‑á o que parece ignorar.

Leu a carta e entregou‑ma em seguida.

‑ Esta carta confirma tudo quanto sabe: primo: que o senhor de Borel não morreu na expedição, e segundo: que nenhum dos nossos companheiros usava esse nome, visto que seu pai era ali conhecido sob outro qualquer apelido.

A sua resposta pareceu‑me fútil e os meus lábios franziram‑se com um pouco de desprezo.

‑ Na verdade, fiz mal! ‑ exclamei nervosamente ‑ O senhor não compreendeu nem a minha pergunta, nem a minha angústia, nem as minhas lágrimas, de contrário, não teria fingido não as perceber. Fui eu, pelo contrário, quem avaliou mal o sentido das suas palavras; ignorava que pudessem ser elásticas e terem diversas formas, segundo as necessidades do momento.

A sua mão agarrou‑me o braço. Através do leve tecido da manga, senti os seus dedos magoarem‑me a carne.

‑ Não acuse sem saber, Solange. Fez‑me perguntas a que não podia responder. Antes de a conhecer, de possuir a sua confiança... essa confiança que me recusa agora... um homem que me honrou com a sua amizade fez‑me seu confidente, e, contando‑me as coisas mais íntimas da sua vida, obrigou‑me a prometer que o não trairia, mesmo perante sua filha,. Colocado, entre si a quem amava, e ele a quem estimava como pai, que devia fazer? Podia responder‑lhe directamente quando me interrogava a respeito de um segredo que não era meu? Traí‑lo, parecia‑me um meio bem indigno de lhe ser agradável, Solange. E mesmo que leia nos seus olhos a minha condenação, sinto que lhe responderia a mesma coisa sempre, brincando com as palavras, mas tentando tranquilizá‑la e fazendo‑lhe sentir que não lhe dizia toda a verdade.

Calou‑se. E eu, mal disposta com as acusações que lhe dirigira, também fiquei silenciosa.

Depois de uma grande pausa, Rouvalois deu‑me o braço e puxou‑me para si.

‑ Pode censurar‑me por ter procedido dessa maneira, minha amiga. É juiz da minha conduta. Que decide?

Olhei para ele e sorri‑lhe:

‑ Está bem, compreendo que não podia responder‑me doutro modo. Mas confesse também que o seu papel é muito ingrato.

‑ E duplamente doloroso. Quando a via triste precisava de lutar comigo mesmo para não correr para seu lado, gritando‑lhe a consoladora verdade. Quantas discussões não tive com Spinder a esse respeito!

‑ Mas por que tomou ele atitude tão cruel?

‑ Sofreu muito, Solange. E depois...

Calou‑se subitamente.

‑ Depois?... ‑ insisti, com um sorriso travesso.

‑ Nada. Esse segredo não me pertence.

‑ Não, com efeito! É o do polichinelo! ‑ exclamei ‑ É o do coronel, é o meu, o seu, o de Sauvage, o de toda a gente! Na verdade, faria mal em lhe tocar!

‑ Então, supõe?... ‑ interrogou, sorrindo.

‑ Que esse excelente senhor Spinder, sem os terríveis óculos e a feia barba avermelhada, podia transformar‑se num conde de Borel de bom aspecto.

‑ E agora, que conta fazer? ‑ inquiriu, sem aprovar nem repelir a minha suposição.

Mas essa atitude de reserva já não me admirava da sua parte, agora que conhecera a susceptibilidade dos seus escrúpulos.

‑ O que conto fazer? ‑ respondi ‑, A pergunta necessita reflexão.

‑ Quer que procuremos reflectir ambos?

‑ Justamente... Examinemo‑la! Primeiro, por um lado, meu pai; por outro, minha mãe. Mas, ao passo que estou conhecedora das menores intenções desta com respeito ao ausente, que conheço o seu amor, as suas lágrimas e pesares, os seus mais violentos desejos, nada vejo em meu pai senão uma atitude de fingimento, sob um disfarce voluntário.

‑ Seu pai é o melhor dos homens ‑ interrompeu calorosamente o conde.

‑ Não o ignoro! ‑ exclamei muito comovida ‑ Há muito tempo que apreciei as suas grandes qualidades... O meu coração vibrou mais de uma vez ao contacto do seu. Por outro lado, ouso afirmar que é o mais amável dos pais e que, apesar de todos os acontecimentos que lhe alteraram a vida, continuei a ser sempre para ele a sua Solange adorada.

‑ Sim, adora‑a!

‑ Contudo ‑ prossegui, acompanhando o meu raciocínio ‑, meu pai pôde reprimir diante de mim um impulso paternal que poderia ter revelado quem era, logo, ao nosso primeiro encontro. Pôde vir habitar esta terra, sem ir bater à porta de minha mãe; pôde vê‑la de longe, sem correr para ela; talvez se desviasse do seu caminho para não a encontrar! Para que tudo se tenha passado assim, é preciso que o seu ressentimento, os seus futuros projectos, sejam implacáveis! Como deviam pesar na sua consciência estes pensamentos para contrabalançarem por tanto tempo os deveres de esposo e de pai?

Falava devagar, pausadamente, pesando bem cada frase.

Notei que havia alguns minutos Maurício me escutava com atenção, e estava certa de que as minhas palavras seriam fielmente repetidas a meu pai, se a isso o autorizasse.

E, na verdade, estava no propósito de pedir‑lhe que representasse o papel de intermediário entre nós dois.

Depois de um segundo de silêncio, continuei, mais séria ainda:

‑ Este dia é belo para mim: meu pai vive! Mas a alegria de o ter encontrado e de o conhecer é moderada pela atitude misteriosa que tomou para connosco. Que fará quando souber que eu sei? Quais os projectos, as suas resoluções com respeito aos dois seres que usam o seu nome, e que, com todo o ardor do coração, desejam a sua volta? Ignoro‑o, e, se o sabe, não lhe peço que mo revele... Diga‑lhe que sei e que o adoro mais ainda, desde que aqui está. Transmita‑lhe fielmente as minhas palavras. Sei que posso contar com a sua amizade, senhor de Rouvalois... O meu papel terminou; sou apenas a filha obediente, curvando‑se perante a vontade dos pais.

‑ Mas voltará aos Castanheiros...

‑ Não, o meu lugar, agora, é junto de minha mãe. Poderia sair dos braços de meu pai e, voltando às Torrinhas, entreter com esperanças as lágrimas de minha mãe? Nunca, nunca me colocarei em semelhante situação.

‑ Mas o seu lugar é também junto de seu pai!

‑ Por acaso, antes de o conhecer não fui a confidente do pesar de minha mãe? Poderei trair a sua confiança em proveito de um outro, mesmo que esse outro me fosse tão querido como ela? Chega‑me a vez de ter escrúpulos... Creio que me reconhecerá esse direito.

Suspirou tristemente e, com ansiedade, observou:

‑ Então, agora que conhece seu pai, poderá conservar‑se‑lhe afastada?

‑ Só dependerá dele que assim não seja.

‑ Mas terá a força de resistir a lançar‑se‑lhe nos braços?

‑ Ele teve‑a, ao ver‑me chorar na sua presença, a ausência de um pai querido!

‑ E a sua mãe que dirá?

‑ Minha mãe... Aí é que a dificuldade começa. Devo dizer‑lhe tudo, ou calar‑me? Não estou presa pela menor promessa. Se escutasse só o meu coração, entraria daqui a pouco, em casa, com o rosto radiante, e gritar‑lhe‑ia a boa nova: Meu pai vive! Está aqui!

‑ Por que não o fará?

‑ Ignoro os projectos de meu pai... Minha mãe vive num doloroso torpor, mas vive!... Compreende? Vive, porque vibra nela a esperança, apesar de tudo... Mas se souber...

‑ Então?

‑ A sua alegria não terá limites. Calcando qualquer falso pudor ou receio, irá aos Castanheiros lançar‑se nos braços de meu pai, gritar‑lhe o seu amor, a sua alegria de o tornar a ver, o seu longo martírio de esposa sem marido, de viúva sem túmulo. Mas como a acolherá ele? Tenho medo... Se minha mãe só encontrasse meu pai?... Se nesse homem, a quem ama com o mais vivo amor, em vão procurasse um marido!?... Compreende, Maurício? Tenho medo! Não ouso decidir‑me...   Parece‑me que não sou eu quem deve agir. Curvo‑me perante a vontade de meu pai. Ele que dirija os acontecimentos. Se ele quisesse, como todos poderíamos ser felizes!

‑ Mesmo Solange e eu? ‑ disse, cingindo‑me mais o braço.

Fitei‑o, corando. Por momentos, o nosso olhar cruzou‑se deliciosamente. Mas sacudi a cabeça, lançando para longe esse pensamento estranho ao assunto que me obcecava.

‑ Nunca disporei da minha vida enquanto a de minha mãe não seja mais feliz.

Rouvalois devia ter compreendido que o meu tom de voz era peremptório, pois não respondeu.

Durante esta conversa, tínhamos andado um bom bocado. À nossa frente, o carro continuava a sua marcha lenta. Mas, a umas centenas de metros, já se viam as primeiras terras de Thieville. Não podia ir mais longe ao lado do conde, sem me comprometer.

Chamei Bernardo, que parou o carro imediatamente. E, despedindo‑me de Maurício, recomendei‑lhe que repetisse a meu pai a conversa que tivéramos.

‑ Conto consigo, senhor de Rouvalois, para defender a nossa causa, junto do seu amigo. O senhor, que o conhece, e que está ao corrente das razões da sua atitude, será o único que saberá encontrar as palavras precisas a dizer‑lhe.

‑ Prometo‑lhe.

‑ Até breve... Não se esqueça de que deposito em si toda a minha confiança...

‑ Para ser eloquente, bastar‑me‑á lembrar do que há pouco me respondeu, quando me permiti evocar o futuro, abrangendo‑a no meu.

Por única resposta, as minhas mãos apertaram as dele, longamente.

‑ Até breve, pois espero a sua visita com impaciência!

‑ Sim, até breve!

O carro começou a rodar e ele montou na bicicleta. Minutos depois, chegávamos às Torrinhas. Logo que desci, em frente do portão, voltei‑me para Bernardo, que me olhava furtivamente, muito triste.

Desejava, porém, tratar hoje toda a gente com a mesma severidade.

‑ Agora não devo sair mais ‑ disse‑lhe ‑ e é inútil que lhe faça perder mais tempo. Considere‑se livre no que me diz respeito, Sauvage.

‑ A menina expulsa‑me? ‑ balbuciou o antigo soldado, cujo rosto bruscamente se coloriu.

Se nessa tarde desejava ser severa, também queria ser justa.

‑ Só se expulsa um criado mau! ‑ protestei ‑, Sauvage nunca foi mau criado... Pelo menos, tive sempre a ideia de que era um amigo e penso que o tratei sempre como tal.

‑ É verdade! Foi sempre muito boa para mim... Mas agora afasta‑me!

‑ Porque já não preciso de si, Sauvage ‑ disse suavemente.

O bom homem baixou a cabeça.

‑ Bem sei porquê! Mereço censuras, mas pense que foi o senhor Frederico quem me obrigou a calar.

‑ Provavelmente, Bernardo, julgou fazer bem, aceitando representar comigo esse papel... Cada um é juiz de si próprio... Eu acho que teria feito melhor não enganando a confiança que tinha em si... Mas que importa! Terá a amizade de meu pai. É e será sempre para ele o companheiro dedicado da sua mocidade e o servo fiel que o esperava no regresso. Qual seria o homem que se não julgaria feliz por ter merecido semelhante dedicação?

Sauvage moveu a cabeça.

‑ A sua amizade também me era preciosa, menina Solange. Além disso, agora o que ficará a pensar de mim?

‑ Não esquecerei que era amigo de meu pai, a ponto de o ressuscitar a meus olhos. Lembrar‑me‑ei da fé sincera que o animava e do incitamento que me dirigia. Foi meu amigo; nunca poderei esquecer que o considerei assim. Mas, hoje, chegou a hora de nos separarmos. Por sua vontade, voltou para o antigo amo, e o seu lugar é ao lado dele. Vá para os Castanheiros, o senhor é da família! Meu pai abriu os braços ao antigo companheiro, ao passo que à filha tratou‑a como qualquer pessoa amiga. Vá‑se embora, Bernardo, e não volte. Bem vê que tenho pena, e que vale mais não o encontrar a meu lado...

‑ Menina Solange... ‑ começou ele, muito comovido.

Mas deixei‑o, correndo. Não queria acrescentar mais nada ao que dissera, percebendo bem que se afastava bastante transtornado.

Num instante subi ao meu quarto. A hora do jantar aproximava‑se e tinha apenas o tempo preciso para mudar de vestido.

Com a fronte colada à vidraça, olhava para a frente, sem ver... Fiquei pensativa, recapitulando tudo quanto se passara.

Meu pai vivo! Encontrei meu pai!

Isso era o lado bom do caso. O outro deixava‑me perplexa.

Por que tomara meu pai semelhante atitude para comigo e minha mãe?

E, pouco a pouco, a verdade apareceu‑me. Ouvindo aquele que tomara por Spinder, julguei perceber que a sua intenção era ficar ali para sempre...! Não falara em regressar às antigas terras dos Castanheiros, a Kabds, para que o Solar voltasse ao que fora?

Poderia concluir‑se que meu pai, regressando a casa com um nome suposto, ali se conservasse e vivesse sempre com esse nome de empréstimo?

Depois de quinze anos de ausência, suporia que sua mulher e sua filha ainda se ocupavam dele? Poderia, acaso, prever que eu conseguiria seguir‑lhe os passos até o encontrar?

Não! Voltando a habitar tão perto das Torrinhas, devia julgar‑se ao abrigo das nossas investigações.! Não contara com a marcha imprevista dos acontecimentos, que talvez esperasse poder dirigir. De tudo isto poderia deduzir que a intenção de meu pai seria conservar-se‑nos estranho?

Evidentemente, não! Se fosse esse o seu desejo o mais simples teria sido ir viver para outro sítio... muito longe de nós!

Não quereria experimentar‑nos? Aprender a conhecer‑nos, depois de uma tão longa ausência?

Talvez. Devia supor, com efeito, que só pensávamos nele de longe em longe, com a melancólica resignação daqueles que perderam um ente querido. O tempo não esfuma tudo, até as maiores dores?

Mas se meu pai voltou com a ideia de nos observar e tudo estudar antes de se dar a conhecer, como pudera conservar‑se insensível ao amor filial, que tantas vezes lhe manifestei, sem saber que me dirigia àquele a quem o meu coração chamava?

Entretanto, devia sentir quanto lhe queria e como desejava o seu regresso. Algumas vezes o vi comover‑se, ouvindo‑me. Andava de um lado para o outro, agitado, preso de uma luta íntima, que só agora compreendo.

Também muitas vezes me falava de minha mãe, inquiria da sua saúde, dos seus actos, até dos seus pensamentos, visto que não só ele, como Piémont, o conde e até Bernardo, todos, enfim, me faziam sempre a mesma pergunta, que acabei por notar:

"E a senhora de Borel pensa também assim? Que diz ela a esse respeito?"

Portanto, meu pai preocupava‑se com os actos e, principalmente, com os sentimentos de minha mãe.

Aí é que estava a chave do enigma.

E perguntava, agora, a mim própria, se a linha de conduta que eu observava seria conveniente. Primeiro, recusei voltar aos Castanheiros, ligando a minha sorte à de minha mãe, não querendo que fosse esquecida por mais tempo. Quanto a isso, fiz bem! A sua ternura deve ter sido tão verdadeira como é a minha!... Estou certa de que meu pai vai ficar muito transtornado com tal decisão.

Depois, declarei ao senhor de Rouvalois que só me ocuparia do meu futuro quando o de minha mãe estivesse regularizado conforme os seus desejos. Creio que foi muito hábil esta resposta dada a Maurício. Se, depois de semelhante condição, o filho do general não empregar todos os esforços para dar um bom e pronto resultado aos projectos de meu pai, é porque pouco se importa comigo. Há pouco desesperei o bondoso Bernardo. Tenho a certeza de que ao sair das Torrinhas foi a correr aos Castanheiros. Neste momento deve estar a dizer a meu pai que o expulsei, e que me recuso a tornar a vê‑lo, porque é muito cruel pensar ter sido mais bem tratado do que eu por aquele que, antes de a qualquer outro, me devia abrir os braços.

Meu Deus! Oxalá todas estas pressões com que conto pesem favoravelmente no ânimo do meu querido ausente!

A criada teve de vir ao meu quarto dizer‑me que o jantar estava na mesa. Absorvida nos meus pensamentos, de todo o esquecera.

Logo que a minha mãe me viu, perguntou‑me, ansiosamente, o que se passara na minha visita ao coronel. Tinham‑se debatido tantos assuntos no meu espírito, esta tarde, que me esqueci de arquitectar o que devia responder‑lhe quando me interrogasse.

Apanhou‑me desprevenida, e fiquei atrapalhada, procurando, à pressa, o que devia dizer‑lhe, sem adiantar muito.

Mas enganou‑se sobre o motivo da hesitação.

‑ Meu Deus! Soubeste qualquer coisa má que não ousas dizer‑me?

A sua ansiedade restituiu‑me o uso da palavra.

‑ Não, minha querida mãe. Pelo contrário, tenho boas notícias a dar‑lhe.

‑ Porém, pareces hesitar, como se receasses dizer‑me o que soubeste.

‑ É porque, desde que vi o coronel, tenho reflectido em tantas coisas, para vencer as últimas dificuldades, que nem sequer dei atenção ao que me perguntaste!

‑ Bem; mas, agora, se sabes qualquer coisa mais, dize. Boa ou má, quero conhecer toda a verdade. Nada me ocultes!

‑ Só tenho uma verdade a dizer‑lhe, mas essa é absoluta: meu pai vive!

Minha pobre mãe levantou‑se, muito pálida.

‑ Vive? Tens a certeza? Procurei‑o tantas vezes sem resultado... acabei por julgá‑lo morto, e vens dizer‑me que ainda é vivo!... Tens, na verdade, a certeza absoluta?

‑ Absoluta!

‑ Não será engano ou suposição?

‑ É uma certeza. Se não fosse assim, não lho afirmava.

‑ Vive!

‑ Sim, vive! E está em França há já algumas semanas.

‑ Aonde?... Sabes?

‑ Sei que o encontraram em Paris, há quinze dias.

Dando esta resposta, supunha que devia tranquilizá‑la completamente, tirar‑lhe qualquer receio ou dúvida. Ao mesmo tempo, para não ser apanhada em mentira, afirmava uma coisa que sabia ser certa, visto que Spinder estivera havia duas semanas em Paris, por causa de negócios.

‑ Quinze dias! ‑ repetia minha mãe, que mal podia respirar.

E perguntou de novo:

‑ Estás certa disso? O coronel não se enganaria?

‑ Não, mãe. Forneceu‑me provas e nomes. Vi cartas escritas por pessoas dignas de fé. Uma é de um antigo camarada de meu pai, chamado Bignon, que passou oito dias com ele em Salerno, na Itália.

‑ Disseste‑me há pouco em Paris.

‑ Espera, mãe. A outra carta é escrita por um velho general, cujo filho esteve com meu pai, há algumas semanas, em Marselha. Enfim, uma terceira informação confirmava as duas precedentes, e acrescentava que o conde de Borel passara alguns dias em Paris, com um nome suposto, para ali regularizar certos negócios financeiros.

‑ Mas de quem provém a terceira informação, Solange?

Hesitei um instante. A quem a atribuir, para a sossegar sobre os pormenores que lhe dera?

Mas o meu silêncio, por mais curto que fosse, alarmou‑a de novo:

‑ Hesitas, Solange? Que me ocultas ainda?

‑ Estava a lembrar‑me do nome do procurador que disse ao coronel ter recebido a visita de meu pai.

‑ O coronel viu esse homem que falou com teu pai?

‑ E viu ainda outro, mãe; aquele que esteve em Salerno com o conde de Borel.

‑ Meu Deus! Julgo sonhar! Há quem o visse, e eu nada sabia! Há pouco, ainda, ignorava mesmo que meu marido fosse vivo.

‑ É, sim! Não duvides.

‑ A ideia de que vive é‑me agradável de mais para me recusar a aceitar essa notícia!

‑ Graças a Deus! Receava que não acreditasses na afirmação do coronel. Esse excelente homem conseguiu encontrar pessoas que, nestes últimos tempos, tiveram relações com aquele que procuramos. Infelizmente, não conseguiu chegar junto dele. Precisamos de esperar ainda; mas a certeza de que as nossas investigações não esbarram com um túmulo, deve dar‑nos paciência para procurarmos novos pormenores.

‑ Receio bem que, mesmo sabendo onde vive teu pai, não estejamos mais adiantadas!...

‑ Que queres dizer?

‑ Que teu pai, segundo dizes, está em França...

‑ É certo ‑ interrompi.

‑ Seja. Está relativamente perto de nós se compararmos a sua residência actual com os países longínquos que até aqui habitou. É quase nosso vizinho; mas, apesar disso, nada mudou a nossa situação. Mesmo muito perto, teu pai continua muito longe!

Curvei a cabeça; era este o pensamento que sombreava a minha alegria, desde que conhecia a verdade...

Pobre mãe! O seu coração de esposa logo lhe indicara o perigo. Mas teria pensado assim, se estivesse ao facto de tudo quanto eu sabia?

‑ Ele está em França ‑ continuou ‑ isto é, separado de nós apenas por algumas horas de viagem; e, não receando transpor distâncias inverosímeis para descobrir qualquer tribo digna de curiosidade, não sentiu o desejo de vir aqui, ver a filha e a mulher que usam o seu nome. Não contamos, já, na sua existência...

Ouvindo falar assim minha mãe, foi‑me preciso empregar um grande esforço sobre mim mesma, para lhe não gritar a verdade, para não lhe dizer que aquele a quem culpava de indiferença estava ali, perto de nós, informando‑se dos nossos actos e gestos, havia algumas semanas.

Sem suspeitar do combate que se travava em mim, continuou:

‑ Criou, longe de nós, outra vida... Talvez outra mulher e outros filhos sejam o seu pensamento. Quando se afastou para longe, estava eu doente... Amando‑me verdadeiramente, teria escolhido semelhante momento para partir?

Subiu‑me ao rosto uma vermelhidão. Era a primeira vez que minha mãe acusava meu pai diante de mim. E exclamei, muito comovida, mas quase feliz de poder falar sobre um assunto que tão bem conhecia:

‑ Não posso deixar‑te interpretar assim o passado, mãe. Estavas doente, mas meu pai ignorava‑o; as cartas que te escreveu foram‑lhe devolvidas sem terem sido abertas. Quando se apresentava em tua casa, diziam‑lhe que não estavas. Só insistia, apelavam para a sua delicadeza, para que se afastasse, sem escândalo. Interroga Felícia, se ignoras estas coisas, e afirmo‑te que, diante de mim, não ousará negá‑las! Essa mulher foi o teu génio mau! Foi ela quem, verdadeiramente, te separou de meu pai. Sem o seu mesquinho ciúme, sem o seu acanhado espírito de aldeã estúpida, terias continuado a viver feliz junto de um marido que te adorava.

Admirada de ouvir da minha boca esta linguagem inesperada, minha mãe olhava‑me, silenciosa.

Após um momento, moveu a cabeça negativamente:

‑ O teu amor filial pelo desaparecido é para mim sagrado de mais para que em coisa alguma o queira diminuir. Contudo, minha Solange, não acuses uma de nós, sem saber. Posso afirmar que não foi a minha doença que desencadeou os acontecimentos. Essa... pobre de mim!... foi apenas o resultado deles. O verdadeiro motivo da nossa separação foi absolutamente outro...

‑ Bem sei, mãe! Mas posso afirmar‑te que te enganas muito a esse respeito.

‑ Não, desgraçadamente... Tu não sabes, não podes saber!

‑ Perdão, mãe, sei! O acaso fez‑me conhecer esta verdade: é que, ao contrário do que julgaste, meu pai só a ti amou, desprezando a mulher de quem queres falar.

Minha mãe pareceu muito agitada.

‑ Como sabes essas coisas? Quem te pôde dizer...

‑ A própria mão de meu pai me esclareceu.

‑ De teu pai? Que queres dizer?

‑ Ouve, mãe. Tenho em meu poder uma carteirinha que pertenceu a meu pai. Nessa carteira anotava ele os principais factos da sua existência. O seu casamento, o meu nascimento, tudo ali está relatado...

‑ E então?

‑ Então, também aí fala dessa... mulher...

‑ Ah! Vês!

‑ Com efeito, vejo que ela o perseguiu, que usou de toda a garridice para com ele, mas vejo também que ele fugiu, que a desprezou, e que desejaria separar‑te dessa falsa amiga.

‑ Solange, ouve, é preciso que saibas tudo!...

E ia contar‑me o que se passara. Uma ideia, porém, lhe atravessou o cérebro, porque se deteve, inclinou a cabeça, e a sua animação caiu subitamente.

‑ Não, nada tenho a dizer‑te. Só teu pai e eu devemos conhecer tudo isso. Tinhas há pouco razão; foram os acontecimentos que nos tornaram desgraçados e não os nossos erros. Conserva a tua fé na inflexível rectidão de teu pai, merece‑a; conserva‑me também o teu amor, Solange. Posso ter sido vítima das coincidências, mas afirmo‑te que voluntariamente nunca teria afastado teu pai de mim; estava doente e bem doente! Quando recobrei a razão, com a saúde, era tarde!

‑ Bem sei... ‑ murmurei quase só para mim.

E, com efeito lembrava‑me da minha visita a Spinder, quando lhe fui pedir que vendesse o retrato de meu pai. Que angústia ele não mostrara quando lhe afirmei que minha mãe estava realmente enferma, quando se efectuara a primeira venda dos Castanheiros.

Sim, meus pobres pais tinham sido vítimas de um fatal conjunto de circunstâncias: Minha mãe, doente, não pudera opor‑se à partida de meu pai, e este, justamente inquieto pelo silêncio da mulher, não acreditara na verdade dessa doença intempestiva.

Como a felicidade ou a desgraça das pessoas dependem de tão poucas coisas! Um pouco menos de orgulho da parte de meu pai, uma enfermeira menos inflexível junto de minha mãe, e ambos teriam vivido felizes!

Enfim, tudo isto era o passado! Era preciso realizar agora um presente mais risonho.

‑ Vou entregar‑te a carteirinha em que te falei, mãe. Não quis confiar‑ta mais cedo, porque receava despertar em ti cruéis recordações. Com a certeza de que meu pai é vivo, e de que o veremos em breve, podes ler o que ele escreveu, sem grande pesar.

Subi rapidamente ao meu quarto e trouxe‑lhe o livrinho confidencial de meu pai.

Minha mãe pegou‑lhe muito comovida.

‑ Reconheço‑o ‑ murmurou ‑ trazia‑o sempre na algibeira interior do casaco.

Os seus olhos estavam rasos de lágrimas, quando poisou religiosamente os lábios na pequena encadernação de marroquim.

Mas teve uma curiosidade natural:

‑ Como estás de posse desta carteira? Quem ta deu?

Corei, novamente. Desta vez, não podia, sem mentir, esquivar a resposta. Tinha que dizer a verdade. De resto, não era a despropósito que o nome suposto de meu pai aparecesse também na conversa.

‑ Deu‑ma o senhor Spinder, que a achou num móvel dos Castanheiros.

‑ O senhor Spinder! ‑ repetiu minha mãe, cujo rosto, também por sua vez, corou, sob um repentino mal‑estar, com o pensamento de que um estranho pudesse conhecer factos íntimos que só lhe diziam respeito a ela e ao marido.

‑ E esse homem, sem dúvida, leu? ‑ perguntou ela.

‑ Creio que sim.

‑ Como to entregou? Que te disse?

‑ Deu‑mo com outros objectos que lá achou, mãe... duas miniaturas antigas... e disse‑me... que esses objectos eram mais meus do que dele.

‑ Mas a respeito da carteira?

‑ Ah! Sim, a carteira? Agora me lembro! Fez‑me notar que, apesar da simplicidade das frases... via‑se que meu pai amava apaixonadamente os seus... Também me disse que...

‑ Que...?

‑ Que era uma resposta a muitas coisas passadas.

‑ Ele disse‑te isso! ‑ exclamou minha mãe, um pouco confusa.

‑ Sim ‑ respondi suavemente ‑, Creio que Spinder, ao dar‑me a carteira, desejava que ela te chegasse às mãos.

‑ Mas por que razão? ‑ inquiriu minha mãe, tão admirada como comovida.

‑ Talvez supusesse que... que estas notas continham provas que... que a esclarecessem... sobre certos casos... sobre coisas que motivaram noutro tempo um desacordo entre ti e meu pai.

‑ Mas, deveras, julgas que Spinder tenha necessidade de se ocupar de factos que perturbaram outrora a minha vida?!

Todo o orgulho de minha mãe explodia nestas palavras. Compreendi, demasiado tarde, que tais reflexões só podiam despertar a sua susceptibilidade feminina.

‑ Oh! mãe, não sei! Só faço suposições! ‑ declarei com certa vivacidade ‑ O castelão é um homem incapaz de cometer indiscrições... Se soubesse com que tacto, com que delicadeza me falou sempre nessas coisas! Asseguro‑te que esse homem é muito bom, e ficaria desolada de ter podido prejudicá‑lo no teu espírito, mãe, por uma falsa interpretação de palavras.

‑ Bem! Eu verei este livro e farei o meu juízo... ‑ disse, mais calma.

Compreendi que naquele momento qualquer insistência seria supérflua e   preparei‑me para me despedir dela. Ia apresentar‑lhe a testa para o seu habitual beijo, como todas as noites fazia, e minha mãe deu‑mo distraidamente.

‑ Não estás contente? ‑ murmurei, comovida, por lhe ver o olhar tão inquieto ‑, Hoje tenho a certeza de não ser órfã. Não devemos alegrar‑nos?

O rosto de minha mãe iluminou‑se subitamente.

‑ Sim, tens razão! Meu marido vive. O resto não conta!

E abraçámo‑nos, longamente.

 

                   20 de Julho

Adivinha‑se que dei inúmeras voltas na cama, ontem à noite, sem poder conciliar o sono. Por isso, acordei esta manhã muito tarde, e eram já perto de dez horas quando fui dar os bons‑dias a minha mãe.

Encontrei‑a no quarto, preparando‑se para envergar um elegante vestido de visitas. Com um olhar rápido, notei as roupas de seda, o cabelo cuidadosamente arranjado, o rosto rejuvenescido e sorridente.

Mas não me informei da metamorfose. Minha mãe indicou‑me uma cadeira, a um canto do quarto.

‑ Senta‑te, e, enquanto acabo de me vestir, vais dar‑me algumas informações.

As perguntas que me fez ainda mais aumentaram o meu espanto.

‑ Fala‑me desse senhor Spinder... Como é ele?

‑ Alto e magro ‑ respondi, subitamente embaraçada.

‑ Cabelo?

‑ Louro.

‑ O bigode?

‑ Usa umas suíças avermelhadas.

‑ E os olhos?

‑ São azuis... Mas usa óculos pretos.

‑ Nunca ouviste dizer que viajasse por África?

‑ Creio que explorou muito esse país.

‑ Falou‑te nisso?

‑ Não... ou antes, disse‑me ter subido o Nilo com o senhor de Rouvalois.

‑ Fez essa viagem pela mesma época em que, segundo as notas do coronel, teu pai efectuou o mesmo trajecto?

Por única resposta fiz prudentemente um gesto vago; mas perguntei a mim própria quem poderia ter informado tão bem minha mãe, que, com um sorrizinho feliz ao canto dos lábios, continuou a fazer‑me perguntas sobre perguntas, cada vez mais inesperadas.

‑ O senhor de Rouvalois não é filho de um general?

‑ Sim, mãe.

‑ E não me disseste que teu pai se encontrara em Marselha com um amigo?

‑ Disse.

‑ Foi o pai desse amigo quem informou, por carta, o coronel?

‑ Foi.

‑ Afirmaste‑me que viste a carta?

‑ Li‑a, efectivamente.

‑ Estava assinada pelo general, creio eu?

‑ Exactamente.

Minha mãe começou a rir.

‑ Estás admirada, minha pobre Solange! Vamos, não faças essa cara tão triste! Não te pergunto se esse general usava o nome de um certo senhor do meu conhecimento.

‑ Como o soube, minha mãe?

‑ Que Maurício de Rouvalois é o filho de um general reformado? Apenas por que foi ele quem mo disse. Conversámos durante muito tempo no outro dia... Ele desejava fazer‑me saber que era de boa família. Com respeito à sua origem, nada ignoro. Mas deixemos isto, porque é uma questão tão secundária! Estou apenas admirada que tu própria não tenhas feito todas estas observações... Principalmente, depois das anotações, a lápis, ultimamente acrescentadas na carteirinha que ontem me entregaste.

‑ Que anotações.

‑ Não leste o que lá estava?

‑ Sim... li tudo quanto se relacionava com o passado. Mas nada vi escrito recentemente, como dizes.

Minha mãe pareceu surpreendida e entregou‑me o livrinho.

‑ Não reparaste nesta página?

‑ É a primeira vez que a vejo.

E, na realidade, não tinha notado as poucas linhas que ela me mostrava.

Estavam no fim da carteira, depois de umas vinte páginas em branco.

‑ Vê... são datas e nomes de terras: Sudão, Congo, Cabo, Quanza, Transval, Nilo, Manjúria, todos seguidos de datas... Na aparência, isto nada quer dizer; mas se aproximarmos estes nomes do itinerário seguido por teu pai, há catorze anos, ver‑se‑á que estas notas são reveladoras.

A alegria brilhou‑lhe no rosto.

No fundo, estava contente por ver que minha mãe chegava à verdade, sem que me fosse preciso revelar‑lhe as minhas próprias observações. À medida que ia falando, acabava de se vestir.

‑ Repara ‑ disse ela ‑ essas notas a lápis foram escritas por teu pai, ou por qualquer pessoa que o conhece particularmente, visto que está ao corrente das suas viagens. Por outro lado, essa carteira foi entregue por um homem que recebeu em sua casa a pessoa que viu teu pai em Marselha, há poucas semanas... Quero tirar isto a limpo, sem demora.

‑ Que vai fazer, minha mãe?

‑ Vou aos Castanheiros.

‑ A mãe?

‑ Porque não? Não tenho acaso um pretexto?

Desejo adquirir o retrato de teu pai, e Spinder prometeu dar‑te hoje a resposta.

‑ Queres que te acompanhe... para as apresentações ‑ ofereci timidamente.

Minha mãe começou a rir. Nunca lhe ouvira rir desta maneira. E de pé, na minha frente, respondeu com alegria:

‑ Creio que o meu nome bastará para que as portas dos Castanheiros me sejam abertas... Além disso, tenho assim tão mau aspecto que me seja precisa a tua recomendação para ser recebida?

‑ Oh! mãezinha ‑ protestei, divertida pela sua reflexão ‑, Não queria dizer semelhante coisa.

Depois, vendo‑a tão fina, tão distinta, com o seu casaco de cetim preto, acrescentei, comovida:

‑ Como estás bonita com essa expressão de alegria no rosto! Como estás interessante e fresca com os teus fatos negros! Como desejava que meu pai te encontrasse hoje! Poderia, acaso, resistir ao apelo duplamente irresistível do teu encanto e da tua ternura?

‑ Então, dá‑me um beijo para me trazer felicidade.

Pegou‑me na cabeça com ambas as mãos, e olhou‑me com afecto.

‑ Minha boa Solange! Para poupares desilusões, só me quiseste trazer até hoje certezas. O teu carinho filial pelo ausente, que eu não ousaria despertar, guiou‑te até teu pai, mas ainda tinhas dúvidas e hesitaste em falar. Expulsa os teus últimos receios, Solange: o coração de uma esposa bate com tanta força como o de sua filha. Deixa tua mãe proceder. É agora a sua vez...

Ouvindo‑a, os olhos encheram‑se‑me de lágrimas. Adivinharia ela o secreto receio que desde a véspera repelia, como se ainda não contente em recear o orgulho ultrajado de meu pai, receasse, também, o ressentimento de minha mãe?

E, pensando no ausente ‑ que tanto sofrera ou expiara, segundo a sua consciência lhe censurasse ou não qualquer coisa ‑ ousei dizer:

‑ Minha mãe, se o acaso colocasse meu pai diante de ti, como lhe falarias do passado?...

Ela compreendeu a subtileza da minha pergunta.

‑ Falaria só para pedir perdão de ter duvidado ‑ disse gravemente.

‑ Obrigada.

Uma onda de benéficas lágrimas me inundou os olhos.

Minha mãe apertou‑me nos braços ternamente.

‑ É preciso ter confiança, Solange. O futuro pode ser belo; restam‑nos ainda longos anos para ser felizes. Seca as lágrimas, o tempo das provações vai acabar. Tem esperança...

‑ Que assim seja! Deve ser! ‑ exclamei com fé.

Minha mãe compôs ao espelho uma madeixa de cabelo que os nossos abraços lhe tinham desarranjado.

‑ Então, adeus ‑ despediu‑se ‑ O carro está pronto. Daqui a um quarto de hora estou lá...

Segundos depois, minha mãe sentava‑se na vitória, que estava atrelada a dois cavalos. Augusto e o sobrinho, com a libré da nossa casa, ocupavam o seu lugar.

Minha mãe pouco saía, mas de cada vez que ia fazer uma visita ou a um passeio, rodeava‑se sempre do mesmo cerimonial: uma equipagem de luxo e dois criados de libré.

Hoje, talvez por efeito das minhas disposições de alegria, encontrei minha mãe mais fidalga do que nunca, e a vitória atrelada com esmero. Mesmo que passe por uma menina pouco da minha época, confesso que prefiro um bom trem ao mais moderno automóvel de luxo.

Enquanto pude seguir o carro com a vista, fiquei na escadaria. Mal entrara na biblioteca, onde contava ficar esperando o regresso da minha mãe, chegou‑me aos ouvidos o ruído de um motor.

Depressa atingi a escadaria. Era o automóvel dos Castanheiros que rodava pela alameda.

Por momentos, receei que fosse meu pai.

‑ Que aborrecido contratempo ‑ pensei ‑ justamente quando a mãe acaba de sair.

Mas, quando o automóvel se deteve, foi Maurício quem se apeou.

Apertámo‑nos as mãos, silenciosamente.

‑ Venho como mensageiro de alegria ‑ explicou‑me, entrando no salão ‑ A senhora de Borel pode receber‑me?

‑ Minha mãe não está. Deve ter‑se cruzado com ela, há momentos, na estrada.

‑ Na verdade, pareceu‑me ter reconhecido os seus criados.

‑ Tinha qualquer comunicação a fazer‑lhe?

‑ Sim. Spinder mandou‑me pedir‑lhe, em seu nome, que tivesse a gentileza de lhe conceder uma entrevista, esta tarde, aqui ou em casa dele.

‑ A mãezinha foi justamente para os Castanheiros.

‑ Disse‑lhe...

‑ Nada ‑ interrompi ‑, Porém, ela adivinhe muitas coisas... Tirou conclusões, e foi ter com Spinder, persuadida de que ele deve saber onde reside o marido.

E contei‑lhe as singulares perguntas que minha mãe me fizera de manhã. Quando acabei a narração perguntei‑lhe que acolhimento pensava ele que minha mãe iria ter.

‑ Aquele que eu faria a Solange depois de uma semelhante separação ‑ respondeu sorrindo.

Senti‑me corar.

‑ Fale sério. Isso não é uma resposta.

‑ Mas foi a resposta de seu pai quando lhe fiz a mesma pergunta há pouco.

‑ Então, deveras, meu pai graceja? Estava alegre esta manhã?

‑ Muito alegre! A forma como ontem Solange despediu Sauvage divertiu‑o imenso.

‑ Pobre Bernardo! Ficou desesperado, quando me deixou.

‑ Acredito‑a! Foi aos Castanheiros, verdadeiramente perturbado, contar‑nos tudo. Esse honesto homem está persuadido de que foi um traidor para si, e, para se castigar, jurou não voltar ao castelo enquanto lhe não perdoe.

‑ E isso divertiu meu pai?

‑ Palavra, porque Sauvage ousou dizer‑lhe que era a frieza do conde de Borel para com sua filha a causa de todo o mal.

‑ Ele ousou dizer‑lhe isso?

‑ Sem reticências... Bem sabe que Bernardo fala sempre com clareza.

‑ E meu pai não se zangou?

‑ Pelo contrário! Consolou alegremente o seu antigo soldado, assegurando‑lhe que tudo se arranjaria pelo melhor.

‑ E o senhor... repetiu a meu pai o que eu lhe disse?

‑ As suas palavras foram fielmente reproduzidas.

‑ E que lhe disse ele, então?

‑ Nada.

‑ O quê? Nada? ‑ volvi, admirada.

‑ Seu pai ouviu em silêncio a comunicação, e só à noite aludiu a isso.

‑ Então? ‑ perguntei, impaciente.

‑ Precisa que eu lhe repita textualmente as reflexões do senhor de Borel? ‑ perguntou o conde com um sorriso travesso.

‑ Evidentemente.

No rosto do meu interlocutor brilhou um relâmpago de maliciosa jovialidade.

‑ Então, oiça ‑ continuou ‑ "Co'a breca, minha filha é terrível!" disse seu pai. "E quase tão voluntariosa como eu! Se não me rendo imediatamente aos seus desejos, é capaz de me indispor com todos os meus amigos e até comigo mesmo. Consegui quase persuadir‑me de que tem muitos agravos meus.

Graças a ela, Sauvage quase me considera como um pai sem entranhas. E até por uma pressão que não posso qualificar, mas que julgo monstruosa, conseguiu que o Maurício passasse completamente para o lado dele..." Visto que desejou conhecer o pensamento do senhor de Borel, aí tem exacto o que ele disse ontem!

‑ Está a brincar! Zomba de mim ‑ protestei, com um trejeito de desapontamento.

‑ Garanto‑lhe...

Mas interrompi‑o. Tinha sofrido tantas desilusões, havia algumas semanas, que não podia conformar‑me com a sua descuidosa alegria.

‑ Como pôde meu pai ficar alegre, ouvindo‑o reproduzir‑lhe as minhas palavras? Terá tão pouca afeição por mim que lhe seja indiferente possuir ou não a minha confiança?

‑ Oh! Tantas palavras para tão pouca coisa! O senhor de Borel reflectiu silenciosamente depois de me ter ouvido, inquieto, sem dúvida, pela reprovação que as suas reflexões continham... Só mais tarde, intimamente persuadido de que Solange não queria desgostá‑lo, mas apenas fazer pressão sobre as suas decisões, foi que se riu da sua hostil táctica. Bem vê que não se deve atormentar com essa boa disposição paterna!

‑ É verdade! Estou nervosa esta manhã! Se Maurício não tivesse vindo, sinto que teria chorado de angústia, sozinha, na biblioteca, esperando a volta de minha mãe.

‑ Chorado? E porquê? ‑ inquiriu afectuosamente, apertando‑me a mão ‑ Tem tão pouca confiança em seu pai e em mim?

‑ Confesso‑lhe que duvidei. Ontem, quando lhe falei, sentia‑me animada e muito decidida; depois, pouco a pouco, à tarde e à noite, apoderou‑se de mim uma tristeza, sem me poder defender dela... Dizia comigo que teria talvez feito melhor em ir ajoelhar‑me aos pés de meu pai, e suplicar‑lhe que me acolhesse e também a minha mãe. Dizia comigo... Ah! Porque não pensei ontem neste facto brutal: meu pai viveu seis semanas a nosso lado sem se dar a conhecer.

‑ Oiça, Solange ‑ tornou Maurício, muito sério ‑ é preciso que lhe explique os motivos de tal atitude da parte de seu pai. Isto vai obrigar‑me a tocar em certos assuntos... Perdoe‑me, é preciso que os evoque, para que me compreenda bem.

‑ Alude à zanga que separou meus pais?

‑ Justamente.

‑ Fale à vontade... Sei bem que minha mãe foi quem primeiro julgou ter o direito de sair dos Castanheiros.

‑ Não sabe também que todas as tentativas de conciliação, feitas por seu pai, não tiveram, infelizmente, bom êxito?

‑ Sei.

‑ Expulso, desdenhado e desprezado aparentemente por aquela a quem amava, seu pai, ferido no coração e revoltado no seu orgulho, quis desaparecer sem mais explicações: "Expulsas‑me? Partirei! Recusas responder‑me? Não te escreverei mais. Não me queres ver? Não me verás mais! Éramos casados, e, de hoje em diante, seremos estranhos...". E partiu.

‑ Implacável decisão! E manteve‑a durante quinze anos! ‑ murmurei, amargamente.

‑ E mantê‑la‑ia ainda, se os acontecimentos não lhe contrariassem as intenções. Quando aqui veio, há dois meses, com um nome suposto, contava demorar‑se apenas alguns dias; o tempo necessário para regularizar alguns negócios a respeito dos Castanheiros. Queria pôr o Solar em seu nome, para que Solange pudesse casar segundo a sua condição. Não era nem um esposo nem um pai que voltava; era um chefe de família que se preocupava com a sorte da sua descendência. Sua filha precisava agora dele! Não deveria instalá‑la no seu verdadeiro meio de opulência? Não devia assegurar‑lhe um casamento rico e uma boa aliança?

‑ Então meu pai só voltou para se ocupar dos meus interesses materiais?

‑ Isso era o que ele dizia. Pensei sempre comigo que, a seu pesar, alimentava outras esperanças. Fosse como fosse, repito, logo que aqui chegou, os acontecimentos transtornaram‑lhe os projectos. Quando o seu automóvel teve uma avaria, reconheceu no passeante que lhe ofereceu assistência um antigo servo que lhe era muito dedicado. Regressou a casa, e, no limiar da porta, uma rapariga acolhia‑o, reivindicando bem alto o direito de ali habitar. Dois dias depois, sob o seu tecto, essa garota teimosa perseguia‑o com o seu carinho filial. Pede contas, interroga um notário e, terrivelmente cruel na sua lógica, gritava bem alto, sem imaginar que aquele de quem falava podia ouvi‑la: "Meu pai não pode ter desaparecido para sempre! Estou certa de que voltará por minha causa!..." Que drama íntimo não desencadearam as palavras dessa rapariga na alma de um infeliz! E todos os dias a vontade do homem era atacada pela afeição da garota. O pai vê desabrochar perante os seus olhos a flor filial, que só pede para ser colhida. Vinte vezes lutou consigo próprio, para não apertar nos braços a jovenzinha que só fala nele, misturando o seu nome a todos os seus projectos de futuro. Depois, é a mãe. O apelo é mais discreto, mas a garota inocente afirma com tanta fé a fidelidade e o amor da esposa! Não lhe dá esta uma prova eloquente, oferecendo sacrificar uma parte da sua fortuna, apesar de estar bem reduzida, para resgatar um simples retrato? Enfim, não lhe falo senão por alto do amigo de cada dia, do confidente familiar que abraçou a causa das duas mulheres. Sim, tudo concorria para quebrar a energia de seu pai. Ontem, à tarde, quando com toda a coragem defendeu sua mãe, quebrou‑lhe as últimas resistências...

"Vai ‑ disse‑me ele esta manhã ‑ vai buscar minha mulher e minha filha e   dize‑lhes que estou aqui, que as espero. Já não posso passar sem os beijos da minha filha e creio que já não poderia viver em paz, longe daquela que durante quinze anos conservou tão fielmente o seu culto por mim!" E aqui está, Solange, o que vinha dizer‑lhe, como me ordenaram.

Calcula‑se com que religiosa comoção ouvi falar o senhor de Rouvalois!

‑ Fez bem em me dizer tudo isso ‑ declarei quando terminou ‑ Fez‑me voltar a confiança. Agora compreendo melhor meu pai. A sua atitude, em qualquer circunstância, martirizava‑me, porque a examinei bem sob todos os aspectos e não a percebia perfeitamente. Explicando‑ma, tornou‑a clara e, agora, parece‑me muito natural. Sim, compreendo, não podia ver em mim, antigamente, senão a filha do seu sangue, destinada a assegurar a sua descendência, perpetuar a sua Raça, ao passo que hoje sente‑me sua, não só pelo sangue, mas também e principalmente pelo coração, pelo carácter e pelo estado de espírito, que são os seus. Obrigada, senhor de Rouvalois, por ter‑me falado assim. Só agora gozo a verdadeira alegria de ter encontrado meu pai.

‑ Está completamente sossegada?

‑ Sim, completamente!

‑ Mesmo pelo que diz respeito à senhora de Borel?

‑ Sim, visto que meu pai lhe disse que viésse buscá‑la.

‑ Posso agora falar‑lhe num assunto que me é tão querido, senão mais do que era para si aquele que acabámos de tratar?

O seu tom grave comoveu‑me, e a minha mão que tinha entre as suas, começou a tremer.

Viu a minha comoção, porque levou os meus dedos aos lábios.

‑ Amo‑a, Solange, amo‑a com toda a minha alma que aspira ardentemente a si. Já várias vezes ousei na sua presença aludir aos meus sentimentos, sem que me desanimasse.

Apesar de estar muito comovida com as suas palavras, não pude deixar de o arreliar. Talvez procurasse apenas esconder a minha emoção. E interrompi‑o:

‑ Mas quem lhe disse que o animei? ‑ inquiri, fingindo‑me muito séria.

‑ Muito e muitas vezes! ‑ respondeu, sorrindo.

‑ Palavra?

‑ Olhe, quanto mais não seja, agora. Estou só consigo, há muito tempo, nesta sala, e quero acreditar que não o fazia com outra pessoa.

Que pensamento malicioso me levou a arreliá‑lo ainda mais? Parecia tão seguro de si, ao falar‑me tão certo do meu afecto, que simplesmente por espírito de contradição lhe repliquei com soberba indiferença:

‑ Tem razão! Confesso que é um facto grave contra mim. Contudo, mesmo   ferindo‑lhe a vaidade, devo reconhecer que no estado de espírito em que me encontrava quando aqui chegou, fosse quem fosse que viesse falar‑me de meu pai seria bem acolhido.

Uma nuvem perpassou pela fronte do conde.

‑ Seja ‑ concordou ‑ Acabo de me enganar, estupidamente, com a sua amigável atitude... e não mereço melhor resposta por ter mostrado tanta presunção. Entretanto, há ainda um facto: Amo‑a ardentemente, e não me respondeu. Meu pai vem aí pedir a sua mão. Sei que seu pai veria este casamento com prazer; ouso esperar que sua mãe o não impedirá. E Solange não me tranquiliza?

‑ Se meu pai deseja este casamento, obedecerei ‑ concluí, afectando humilde submissão.

Mas a alegria que me brilhava nos olhos devia desmentir as minhas palavras, porque vi Maurício sorrir imperceptivelmente.

‑ Então, tanto pior para mim ‑ disse, muito sério ‑, Como não quero ser o triste herói de um casamento de obediência, esperarei para lhe falar de novo dos meus projectos. Acredito que depois de ter passado alguns anos no Brasil, seja mais digno de interesse do que actualmente.

‑ No Brasil! Que ideia! Mas eu não quero que vá para essas longínquas terras estrangeiras.

‑ Que faço em França, visto que me não ama? Evidentemente, é certo!

‑ Não o amo! Mas aceito‑o por marido... quanto mais não seja para o tornar desgraçado... Muito desgraçado! É enervante! Porque prevejo que serei uma detestável esposa.

‑ Tanto pior, mas prefiro correr esse risco a ver outro mortal substituir‑me a seu lado.

‑ Não lhe meto medo?

‑ Não, sou valente, por felicidade, e, depois... falta convicção às suas ameaças.

Olhámo‑nos e, de repente, a nossa fictícia gravidade caiu, e começámos a rir. As minhas mãos estavam prisioneiras nas suas, e, num ímpeto, inclinei‑me para ele.

E, quando os seus lábios pousaram pela primeira vez na minha testa, só sabia repetir:

‑ Como sou feliz! Como sou feliz!

De repente, o relógio deu meio‑dia e, quase ao mesmo tempo, a porta abriu‑se e Felícia anunciou:

‑ O almoço está na mesa.

Maurício e eu olhámo‑nos, sorrindo.

‑ Neste momento ‑ volveu o conde ‑ dizem‑se as mesmas palavras nos Castanheiros. São dois almoços que se arriscam a ser comidos bem tarde.

‑ Tem razão; minha mãe ainda não voltou e o senhor está longe do Solar.

Interrompi‑me, subitamente ruborizada. Num relâmpago, acabava de ver o lado divertido da situação de meus pais, almoçando, talvez sozinhos, nos Castanheiros, enquanto eu e o conde partilhávamos, aqui, o almoço que nos esperava.

Mas Maurício adivinhara, provavelmente, o meu pensamento, e apressou‑se a expulsar o mal‑estar que me invadia.

‑ O automóvel está à espera. Proponho‑lhe que me acompanhe a fim de nos reunirmos com seus pais, no Solar. Creio que não se sentarão à mesa sem nós. Julgarão que o nosso primeiro cuidado foi ir ter com eles. De resto, se encontrarmos no caminho o carro do senhor de Borel, ser‑lhe‑á fácil voltar para trás.

‑ Muito bem! ‑ exclamei ‑, Que boa ideia! É só o tempo de cuidar um pouco da minha toilette.

E, correndo à casa de jantar, preveni rapidamente a criada.

‑ É inútil servir, Felícia, almoçamos fora.

‑ Que pena! E eu que tinha preparado um pastelão quente, primeiro prato!

‑ Coma‑o! Divida tudo pelos criados. Diga‑lhes; que é em honra da volta do seu amo. Finalmente meu pai voltou! Que se alegrem!

O rosto da criada empalideceu.

‑ O senhor... O senhor voltou?

‑ Sim, meu pai regressou e minha mãe já está junto dele.

Vi‑a levantar os braços, parecendo‑me que lançava uma evocação ao céu.

‑ Jesus! Maria!

Mas não ouvi mais. Fui ter com Maurício. No caminho, o nosso automóvel cruzou‑se com o carro vazio de minha mãe. E o senhor de Rouvalois fez‑mo notar:

‑ Veja se as minhas previsões não eram certas: a senhora de Borel ficou junto de seu pai.

Um sorriso de júbilo apareceu‑me nos lábios, mas os olhos encheram‑se‑me de água.

Pobre mãe! Depois de quinze anos de lágrimas e pesares, como hoje deve ser feliz! O meu noivo ‑ porque dar‑lhe‑ei agora esse nome ‑ apertou‑me afectuosamente a mão.

‑ Acabaram‑se as lágrimas... Os maus dias passaram. Agora a vida deve ser sorrisos para todos!

‑ Sim! ‑ confirmei com fervor ‑ Os quatro vamos ser felizes.

Apenas o automóvel parou diante do portão dos Castanheiros, apareceu, no alto da escadaria, um homem que se dirigiu para mim.

Era alto, magro. Tinha a estatura de Spinder, mas não usava nem as grandes barbas nem os enormes óculos negros.

Comovida, com o coração a bater, parei, não ousando pronunciar a palavra que me subia aos lábios.

Mas ele estendeu‑me os braços:

‑ Minha Solange!...

Era a voz de James Spinder, mas não era ele!

Risonha metamorfose! Era meu pai, tal como naturalmente era e pela primeira vez o via.

Ao seu terno apelo respondera como uma espécie de fervor:

‑ Meu pai!

Dois braços me apertaram ternamente contra o peito e senti que ele me cobria de beijos:

‑ Minha filha... Minha filha querida!...

Que inexprimível ternura havia naquelas palavras mágicas!...

E àquela divina música, a que os meus ouvidos não estavam habituados, o meu coração respondeu com palavras tão poderosas como comoventes:

‑ Meu pai! Meu pai está aqui!

 

                   7 de Agosto

Já não escrevo mais neste caderninho. As pessoas felizes não têm história ‑ diz o ditado ‑ e, efectivamente, hoje, não saberia contar os menores factos da minha existência, sem repetir em cada linha essa frase que resume agora toda a minha vida:

‑ Sou feliz! Muito feliz!

Dentro de algumas semanas, estarei casada, orgulhosa e feliz de ser para sempre a companheira do meu bom amigo, daquele que, não me conhecendo, me salvou a vida na estrada...

Ficámos todos a viver nos Castanheiros. O Solar é bastante grande para abrigar, ao mesmo tempo, a felicidade de meus pais e a nossa. O meu pai e o meu noivo decidiram também assim, e eu aceitei esta combinação com tanta alegria quanto me permitirá ver todos os dias meu pai, e, apesar de casada, gozar por muito tempo a felicidade de o ter encontrado.

O pai de Maurício, o general de Rouvalois, virá refugiar‑se junto de nós, para gozar um pouco da nossa ternura e mocidade. É viúvo e não precisa de uma casa muito grande: contentar‑se‑á com as Torrinhas, apesar da sua grande fortuna.

A propriedade de minha mãe, na estrada das Ortigas, permitirá ao coronel Chaumont que nos venha ver, sempre que queira conversar com o seu velho camarada, a respeito dos companheiros de outros tempos. Não terminarei esta exposição do futuro que me espera, sem falar dos meus humildes amigos.

Não quis que Bernardo deixasse por mais tempo de vir aos Castanheiros, e, logo no dia a seguir àquele em que tomei a resolução de não lhe aparecer, fui procurá‑lo ao seu cantinho, no bosque.

‑ Faz‑me falta, Bernardo. Não saberia andar a cavalo se não me acompanhasse.

Bernardo Sauvage tremia ao ouvir‑me e vi‑lhe os olhos rasos de lágrimas.

‑ Menina Solange, se soubesse a minha tristeza ao pensar que estava zangada comigo!... Nunca imaginei que isso custasse tanto! Supunha que estimava o senhor Frederico acima de tudo... Pois fique sabendo que a estimava tanto como a ele... Ele? A menina? Era incapaz de escolher aquele que deveria seguir.

‑ Felizmente, não terá necessidade de resolver esse problema. Não deixo meu pai e, quando Bernardo vier aos Castanheiros, ver‑nos‑á a ambos... E, principalmente, não se esqueça de que o seu lugar é junto de nós para mais tarde ensinar equitação a meus filhos... quando os tiver!

‑ Hurrah pela prosperidade dos Castanheiros ‑ exclamou o antigo soldado, cuja melancolia desaparecera como por encanto.

E, desde então, encontro o meu bom Sauvage em todos os cantos do Solar, sempre pronto a prestar serviços a quem os necessitar.

Quanto a Felícia, supondo que o seu antigo patrão a expulsaria, agora que voltara, correu, lavada em lágrimas, a deitar‑se‑lhe aos pés, pedindo‑lhe que não a separasse da sua boa ama, a quem vira nascer.

Meu pai foi grande na sua generosidade. Não lhe dirigiu a menor censura e contentou‑se em lhe dizer esperar que, dali em diante, não saísse das suas funções de cozinheira.

 

                   15 de Setembro

Os Castanheiros abrigam agora dois pares felizes: os pais e os filhos!

No grande Solar, por muito tempo silencioso, vozes animadas ressoam com vibrações alegres.

Velhos retratos, velhos móveis, velhas paredes, alegrem‑se: uma nova vida de prosperidade paira sobre a antiga moradia!

E vós, nomes orgulhosos dos antepassados que errais nestes lugares, vede‑nos com benevolência! A árvore dará frutos fecundos: a filha do conde de Borel perpetuará a sua linhagem!

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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