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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SOLISTA / Jack Higgins
O SOLISTA / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O Cretense atravessou o portão do alto muro de tijolo que rodeava a casa perto de Regent's Park e meteu-se nos arbustos, fundindo-se com as sombras. Consultou o mostrador luminoso do relógio de pulso. Dez minutos para as sete, o que significava que dispunha de pouco tempo.
Vestia um anorak preto. De um dos bolsos tirou uma Mauser munida de um volumoso silenciador na ponta do cano. Verificou o gatilho e enfiou-a novamente no bolso.
A casa era bastante imponente, o que não admirava, dado pertencer a Maxwell Jacob Cohen — Max Cohen para os amigos. Entre outras coisas, presidente da maior cadeia mundial de fabricantes de roupa, um dos judeus mais influentes na sociedade inglesa. Um homem amado e respeitado por todos quantos o conheciam.
Era, infelizmente, também um sionista convicto, uma considerável desvantagem aos olhos de certas pessoas. Não que o Cretense se importasse. A política era um disparate. Brincadeira de crianças. Nunca questionava o alvo, apenas os pormenores e, neste caso, submetera-os a uma análise cuidada.
Na casa estavam Cohen, a mulher e a empregada. Mais ninguém. A restante criadagem vivia fora.
Tirou do bolso uma máscara preta que enfiou pela cabeça e que só lhe deixava os olhos, o nariz e a boca a descoberto, depois do que puxou o capuz do anorak, saiu dos arbustos e avançou na direção da casa.

 

 

 

 

Maria, a empregada espanhola dos Cohens, estava na sala de estar quando soou a campainha da porta. Ao abri-la recebeu o maior susto da sua vida. O fantasma diante dela empunhava uma pistola na mão direita. Quando os lábios se moveram através da obscena abertura da máscara de lã, expressou-se em inglês, num tom rouco e com um vincado sotaque estrangeiro.

— Leva-me junto de Mr. Cohen.

Maria abriu a boca com a intenção de protestar. A pistola continuava, ameaçadoramente, apontada, no momento em que o Cretense entrou e fechou a porta atrás de si.

— Rápido, se queres continuar viva.

A moça virou-se para subir as escadas e o homem seguiu-a. Quando avançaram pelo patamar, a porta do quarto abriu-se e Mrs. Cohen apareceu. Há alguns anos que vivia com o receio de que algo do género pudesse acontecer. Ao avistar Maria, o indivíduo encapuçado e a arma, recuou instintivamente para o quarto. Bateu com a porta, fechando-a à chave, e depois dirigiu-se ao telefone e marcou o número da polícia.

O Cretense empurrou Maria na sua frente. A moça tropeçou, perdeu um sapato, e em seguida parou diante da porta do escritório do patrão. Hesitou e depois bateu à porta.

Max Cohen respondeu num tom surpreendido, dado ser uma estrita regra da casa que não o deviam incomodar no escritório antes das oito da manhã. Avistou Maria de pé, sem um sapato, o terror estampado no olhar, depois do que a puxaram para o lado e o desconhecido apareceu de arma em punho. Disparou uma vez.

Max Cohen tinha praticado boxe na juventude e, por instantes, foi como se estivesse de volta ao ringue. Um murro aplicado em cheio no rosto e que lhe fez perder o equilíbrio. Em seguida, estava de costas no chão do seu gabinete.

Os lábios tentaram formular as palavras da mais vulgar das preces hebraicas recitadas três ou quatro vezes ao dia por qualquer judeu ortodoxo, a última prece que pronuncia às portas da morte: Escuta Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é só um. Contudo, as palavras não chegaram a formular-se e a luz, agora, desaparecia muito rapidamente para dar lugar às trevas.

No momento em que o Cretense atravessava a correr a porta da frente, o primeiro carro da polícia a responder à chamada surgiu ao fundo da rua. E outros aproximavam-se a toda a velocidade. Percorreu o jardim como uma seta, aproveitando-se das sombras, e trepou um muro que dava para outro jardim. Finalmente abriu um portão e viu-se num relvado estreito. Puxou o capuz para trás, desembaraçou-se da máscara e afastou-se dali rapidamente.

A sua descrição, obtida, por intermédio da empregada, pela primeira equipa de policiais a aparecer no local, já estava a ser transmitida pela rádio. Não que interessasse. Mais umas centenas de metros e teria desaparecido na paisagem verde de Regent's Park, direto à estação de metropolitano do lado oposto, com transferência em Oxford Circus.

Ia a atravessar a rua quando ouviu o pisar de travões.

— Eh! Você! — chamou uma voz.

Bastou um simples olhar para ver que se tratava de um carro da polícia. Atirou-se para diante, dobrou a viela mais próxima e começou a correr. Como habitualmente a sorte não o desamparou, pois ao percorrer a fila de automóveis estacionados avistou um indivíduo que se sentava ao volante de um deles. A porta bateu e o motor começou a trabalhar.

O Cretense escancarou a porta, arrancou o condutor para fora, puxando-o pela cabeça, e saltou para o assento. Pisou o acelerador, fez girar o volante, arrancando o para-lamas do carro da frente, e afastou-se a toda a velocidade, enquanto o automóvel da polícia o perseguia fazendo soar a Sirne.

Cortou caminho por Vale Road, na direção de Paddington. Sabia que não tinha muito tempo para os despistar, porque dentro de segundos todos os carros da polícia daquela parte de Londres convergiriam para a área, fazendo barreira.

Havia uma tabuleta de obras, com uma seta apontando para a direita e que não lhe deixava grande opção. Uma rua de sentido único, entre armazéns, estreita e escura, levando à estação de mercadorias de Paddington.

O carro da polícia estava próximo agora — demasiado próximo. Aumentou de velocidade e verificou entrar num túnel estreito e escuro por baixo da via-férrea, depois do que uma figura lhe apareceu pela frente.

Era uma menina numa bicicleta. Uma jovem vestida com um casaco de lã, grosso e castanho, e um cachecol de riscas à volta do pescoço. Apercebeu-se do rosto pálido e assustado, ao olhar por cima do ombro. A bicicleta curvou.

Rodou o volante, roçando o para-lama na parede do túnel com tanta força que produziu faíscas. De nada valeu. Não tinha espaço. Ouviu-se uma pancada surda, nada mais, e seguidamente ela desequilibrou-se e embateu na capota do automóvel.

O carro da polícia deteve-se com um guinchar de travões. O Cretense seguiu caminho, direto ao fundo do túnel, tomando pela Bishops Bridge Road.

Cinco minutos mais tarde abandonou o carro numa travessa em Bayswater, atravessou a Bayswater Road e caminhou num passo largo ao longo das árvores dos Kensington Gardens, surgindo no Queen's Gate.

Havia já bastante gente quando atravessou para o Albert Hall. Estava uma fila nos degraus de acesso à bilheteira, porque havia um concerto importante nessa noite. A Filarmónica de Viena tocava o St. Anthony Chorale, de Brahms, com John Mikali ao piano para interpretar o Concerto Nº 2 em Dó menor, de Rachmaninov.

Vinte e um de Julho de 1972. O Cretense acendeu um cigarro e examinou o retrato de Mikali no cartaz, aquele famoso retrato com o cabelo preto e encaracolado, o rosto pálido e os olhos semelhantes a vidro escuro.

Deu a volta pelas traseiras do edifício. Uma das portas estava encimada por uma tabuleta com a indicação de Artistas. Entrou. Um porteiro, metido no cubículo, levantou os olhos do jornal desportivo e sorriu.

— Boa noite, Sir . Está frio, hoje.

— Já esteve pior — retorquiu o Cretense.

Desceu pelo corredor que levava aos bastidores. Havia uma porta com a indicação de Sala de Artistas. Abriu-a e carregou no interruptor. Era surpreendentemente espaçosa para camarim, e bastante bem mobilada. A única coisa que assistira, sem dúvida, a dias melhores era o piano de prática, encostado à parede, um antigo Chappell, que parecia quase cair aos bocados.

Tirou a Mauser do bolso, abriu uma gaveta, retirou o fundo e enfiou a Mauser por baixo, ocultando-a de olhares indiscretos. Desembaraçou-se seguidamente do anorak, atirou-o para o canto e sentou-se diante do espelho do toucador.

Soou uma pancada na porta e o superintendente cénico meteu a cabeça lá dentro.

— Tem quarenta e cinco minutos, Mr. Mikali. Quer que mande vir café?

— Não, obrigado — agradeceu John Mikali. — Eu e o café não nos entendemos. Qualquer motivo de ordem química, segundo diz o meu médico. Contudo, se me arranjasse uma xícara de chá, ficava-lhe muito grato.

— Certamente, Sir — acedeu de imediato o superintendente cénico que, antes de se retirar, fez uma pausa. — A propósito, se está interessado, transmitiram agora uma notícia da última hora na rádio. Alguém matou a tiro Maxwell Cohen, na sua casa perto de Regent's Park. Um embuçado. Escapou.

— Deus do céu! — exclamou Mikali.

— A polícia considera tratar-se de um caso político, dado Mr. Cohen ser um sionista muito conhecido. O ano passado escapou à morte, por milagre, de uma bomba que alguém lhe mandou numa carta. — Sacudiu a cabeça. — Vivemos num mundo estranho, Mr. Mikali. Que tipo de homem seria capaz de fazer tal coisa?

Quando saiu, Mikali voltou-se e observou a sua imagem no espelho. Esboçou um ligeiro sorriso, que foi correspondido pelo rosto refletido.

— E então? — foi a pergunta formulada.


CAPÍTULO 1

 

 

A cerca de quarenta milhas marítimas a sul de Atenas e a menos de cinco da costa do Peloponeso situa-se a ilha de Hidra, outrora um dos mais importantes poderes marítimos do Mediterrâneo.

A partir do meio do século XVIII, muitos capitães de navios fizeram grandes fortunas negociando até terras da América, e foram trazidos arquitectos venezianos para construir mansões que ainda hoje se podem avistar, naquele que é o mais belo de todos os portos.

Mais tarde, quando a Grécia sofreu sob o duro regime do Império Otomano e a ilha se transformou num abrigo para os refugiados do continente, foram os marinheiros de Hidra que desafiaram o poder da Marinha turca na Guerra da Independência, que acabou por resultar na liberdade nacional.

Para um grego, o nome desses famosos capitães hidriotas, Votzis, Tombazis, Boudouris, possuem o mesmo toque de magia do que um John Paul Jones para um americano, e Raleigh e Drake para os ingleses.

Entre esses nomes, o lugar mais honroso era ocupado por Mikali. A família tinha prosperado na qualidade de batedores, quando Nelson tomara o comando do Mediterrâneo Oriental, fornecendo quatro navios à armada dos Aliados, que tinha esmagado o Império Turco, de uma vez por todas, na Batalha de Navarino, em 1827.

A fortuna resultante da pirataria e bloqueio nas guerras turcas, sagazmente investida numa série de linhas de navegação criadas, veio a significar que no final do século XIX os Mikalis eram uma das famílias mais abastadas da Grécia.

E os homens eram todos navegantes por temperamento, à excepção de Dimitri, nascido em 1892, que denotou um invulgar interesse por livros, frequentou Oxford e a Sorbonne, e regressou a casa para aceitar o cargo de professor de Filosofia Moral na Universidade de Atenas.

O filho, George, não demorou a restaurar a honra da família. Optou por frequentar a Escola de Marinha Mercante, em Hidra, a mais antiga do género na Grécia. Marinheiro inteligente e dotado, assumiu o primeiro comando com a idade de vinte e dois anos. Em 1938, ansioso por descobrir novos horizontes, mudou-se para a Califórnia, a fim de assumir o comando de um novo barco de passageiros para a Pacific Star, que fazia a carreira São Francisco-Tóquio.

O dinheiro nada significava para ele. O pai tinha depositado mil dólares na sua conta num banco de São Francisco, uma quantia considerável nessa época. O que fez, foi por desejar fazê-lo. Tinha o seu navio e o mar. Apenas lhe faltava uma coisa, que foi descobrir Mary Fuller, a filha de uma professora de música do liceu, uma viúva de nome Agnes Fuller, que conheceu num baile em Oakland, em Julho de 1939.

O pai apareceu para o casamento, comprou ao jovem casal uma casa junto ao mar, em Pescadero, e regressou à Europa, onde o tiroteio já ressoava na atmosfera qual tempestade.

George Mikali ia a meio caminho do Japão, quando os italianos invadiram a Grécia. Na altura em que o navio fizera a viagem de regresso e ancorara outra vez em São Francisco, o Exército alemão atacara em força. Em 1 de Maio de 1941, Hitler, ao interferir para salvar as aparências de Mussolini, derrotara a Jugoslávia e a Grécia e expulsara o Exército britânico, tudo em vinte e cinco dias e com menos de cinco mil baixas.

Para George Mikali não havia retorno a casa, e do pai restava o silêncio. Depois verificou-se aquele domingo, em Dezembro, quando as forças de ataque de Nagumo reduziram Pearl Harbor a um monte de ruínas fumegantes.

Em Fevereiro, já Mikali estava em San Diego, no comando de um navio de transportes e abastecimento não muito diferente do seu. Duas semanas mais tarde, a mulher, após três anos de debilidade física e abortos, deu à luz um filho.

Mikali apenas tinha uma licença de três dias. Nessa altura convenceu a sogra, que já atingira o cargo de reitora, a mudar-se para a sua casa, numa base de permanência, e descobriu o rasto da viúva de um marinheiro grego, que estivera ao seu serviço e morrera num tufão ao largo da costa japonesa.

Tinha quarenta anos. Era uma mulher robusta e pesada, chamada Katina Pavio, cretense de naturalidade, e que estivera a trabalhar, como criada, num hotel à beira de água.

Levou-a para casa, a fim de a apresentar à mulher e à sogra. Devido ao vestido preto e ao lenço na cabeça, esta mulher baixa, robusta e do campo, parecera-lhes uma figura estranha. Contudo, Agnes Fuller sentira-se estranhamente atraída por ela.

Para Katina Pavio, que tinha permanecido estéril ao longo de dezoito anos de casada, sem receber resposta às suas preces nem aos vários milhares de velas oferecidas numa súplica à Virgem, os acontecimentos assemelharam-se a um milagre ao olhar para o berço onde estava deitado o bebé adormecido. Tocou numa das mãozinhas muito ao de leve, com o dedo. A criança logo o apertou, como se não o quisesse largar mais.

Sentiu-se invadida por uma onda de ternura que lhe aflorou ao rosto moreno, e Agnes Fuller ficou contente. Katina foi buscar os seus poucos haveres ao hotel e mudou-se para aquela casa nessa mesma noite.

George Mikali partiu para a guerra, navegando várias vezes para as ilhas até ao dia 3 de Julho de 1945, en route para Oquinava, quando o seu navio foi atacado e afundado com toda a tripulação pelo submarino japonês 1-367, comandado pelo tenente Taketomo.

A mulher, que continuava num estado de saúde periclitante, nunca recobrou do choque e morreu dois meses mais tarde.

Katina Pavio e a avó do miúdo continuaram a encarregar-se de o criar. As duas mulheres possuíam um extraordinário entendimento instintivo, que as unia no que se referia ao miúdo, pois era indubitável que ambas o amavam profundamente.

Embora as obrigações de Agnes Fuller como reitora do estabelecimento em Howell Street pouco tempo lhe deixassem para o ensino, continuava a manter-se uma pianista de boa qualidade. Era, por conseguinte, capaz de apreciar a importância do fato de o neto ter uma enorme inclinação musical aos três anos.

Ela própria começou a ensinar-lhe piano aos quatro anos e depressa se tornou visível que tinha entre mãos um raro talento.

Os anos passaram até 1948, altura em que Dimitri Mikali, então viúvo, conseguiu regressar novamente à América, onde o que foi encontrar lhe causou uma enorme surpresa: um neto americano, com seis anos de idade, que falava fluentemente grego embora com sotaque cretense, e que tocava piano como um anjo.

Sentou o rapazinho delicadamente no joelho, beijou-o, e disse a Agnes Fuller:

— Aqueles velhos capitães do mar davam uma volta nas suas campas de Hidra se soubessem disto. Primeiro eu, um filósofo. Agora, um pianista. Um pianista com um sotaque cretense. Um tal talento é concedido pelo próprio Deus. Deve ser acalentado. Perdi muito na guerra, mas ainda sou bastante rico para velar a fim de que nada lhe falte. De momento, fica aqui com vocês. Mais tarde, quando for um pouco mais velho, veremos.

A partir de então, ao miúdo nada faltou de melhor no capítulo de estudos e professores de música. Quando atingiu os catorze anos, Agnes Fuller vendeu a casa e, na companhia de Katina, mudou-se para Nova Iorque, de forma a permitir-lhe continuar a usufruir do nível de ensino de que necessitava.

Pouco antes de ele fazer dezessete anos, Agnes sofreu um repentino ataque cardíaco, num domingo antes do jantar. Já estava morta antes de a ambulância chegar ao hospital.

Dimitri Mikali era na altura professor de Filosofia Moral, na Universidade de Atenas. Ao longo dos anos o neto fora visitá-lo nas férias em muitas ocasiões e haviam iniciado uma sólida amizade. Apanhou o avião para Nova Iorque assim que recebeu as notícias, e ficou chocado com a cena.

Katina abriu-lhe a porta e levou um dedo aos lábios.

— Nós a enterramos esta manhã. Não nos deixaram esperar mais tempo — disse.

— Onde está ele? — perguntou o professor.

— Não ouve?

O som do piano chegava-lhe abafado, através das portas fechadas da sala de estar.

— Como está?

— Como uma pedra — respondeu. — Sem vida. Gostava dela — acrescentou simplesmente.

Quando o professor abriu a porta, deparou com o neto sentado ao piano, vestido de preto, a tocar uma estranha e lúgubre melodia, que recordava folhas sopradas na floresta ao cair da noite. Por qualquer motivo, Dimitri Mikali sentiu-se invadido por um tremendo desespero e inquietação.

— John? — chamou em grego, ao mesmo tempo que pousava a mão no ombro do rapaz. — O que estás a tocar?

— Le Pastour de Gabriel Grovlez. Era a sua peça favorita — respondeu o jovem, voltando-se para o fitar com uns olhos semelhantes a dois buracos negros cavados no rosto pálido.

— Vens comigo para Atenas? — perguntou o professor. — Tu e Katina. Para ficares algum tempo na minha companhia, até resolvermos este impasse.

— Sim — respondeu John Mikali. — Acho que a ideia me agrada.

E ficou realmente uns tempos. Havia toda uma Atenas a usufruir, essa cidade barulhenta, e a mais alegre de todas, que parecia manter-se acordada noite e dia. No grande apartamento da área elegante, perto do palácio real, o avô dava recepções quase todas as noites. Escritores, artistas, músicos, vinham todos. Em particular os políticos, pois o professor estava muito envolvido com o Partido da Frente Democrática e na realidade era o maior financiador do jornal do partido.

E também havia Hidra, onde eram proprietários de duas casas; uma nas ruas estreitas do pequeno porto e outra numa península remota ao longo da costa, para lá de Molós. O rapaz passava ali longos períodos, na companhia de Katina, que cuidava dele, e o avô mandou vir, de barco, um piano de concerto Bluthner a expensas consideráveis e que, segundo as informações de Katina ao telefone, nunca era tocado.

Por fim, Mikali regressou a Atenas, e começou a frequentar festas, sempre atento, sempre delicado, e com uma figura extraordinariamente elegante, dotado de um cabelo negro e encaracolado, um rosto pálido e os olhos semelhantes a vidro escuro, sem o mínimo de expressão. E nunca o viam sorrir, um fato que muito intrigava as senhoras.

Uma noite, para grande surpresa do avô, quando uma delas lhe pediu que tocasse, o jovem acedeu sem hesitar. Sentando-se ao piano, tocou o Prelúdio e Fuga em Mi menor, de Bach, uma peça com o brilho do espelho e a frieza do gelo, e que deixou os presentes reduzidos a um silêncio de espanto.

Mais tarde, após os aplausos, e após todos se terem ido embora, o professor fora ter com o neto. Ele estava de pé, na varanda, a escutar o movimento do início da manhã, aparentemente distante.

— Decidiste, portanto, juntar-te novamente aos vivos? E agora?

— Paris, acho — respondeu John Mikali. — O Conservatório.

— Entendo. O palco de concertos! É essa a tua intenção?

— Se estiver de acordo.

— És tudo para mim. Já devias saber — respondeu Dimitri Mikali, abraçando-o ternamente. — Os teus desejos são os meus. Vou mandar Katina fazer as malas.

Descobriu um apartamento junto à Sorbonne, numa rua estreita perto do rio, num desses bairros típicos da capital francesa com as suas lojas, cafés e bares próprios. O género de vizinhança onde todos se conheciam uns aos outros.

Mikali frequentava o Conservatório. Praticava de oito a dez horas por dia, e dedicou-se de corpo e alma exclusivamente ao piano, sem mesmo se importar com moças. Katina cumpria o seu papel de sempre: cozinhava, tratava da casa e preocupava-se com ele.

Em 22 de Fevereiro de 1960, dois dias antes de fazer dezoito anos, tinha um importante exame no Conservatório. Existia uma possibilidade de ganhar uma medalha de ouro. Exercitara-se durante quase toda a noite e, às seis da manhã, Katina fora buscar pãezinhos frescos à padaria, e leite.

John acabara de sair do duche e estava a apertar o cinto do roupão, quando ouviu o pisar a fundo de travões, na rua, e um impacto surdo. Mikali dirigiu-se apressadamente à janela e olhou para baixo. Katina jazia estendida, na valeta, com os pãezinhos espalhados à sua volta. O camião Citroen que a atropelara inverteu rapidamente a marcha. Mikali avistou de relance a face do condutor. Seguidamente, o camião dobrou a esquina e desapareceu.

Katina demorou várias horas a morrer. Ele conservou-se no hospital, sentado junto da cama, agarrando-lhe a mão, sem a largar um instante, mesmo quando os dedos adquiriram a rigidez da morte.

A polícia mostrara-se vencida e cheia de desculpas. Infelizmente não houvera testemunhas, o que dificultava o caso, mas prosseguiriam, sem dúvida, com as investigações. Não que fosse necessário, dado Mikali conhecer bastante bem o condutor do camião Citroen. Claude Galley, um indivíduo bruto e ordinário, dono de uma pequena garagem junto ao rio, onde trabalhava com dois mecânicos.

Podia ter dado a informação à polícia. Não o fez. Era um caso pessoal. Algo que tinha de tratar por suas próprias mãos. Os seus antepassados seriam capazes de entender perfeitamente, dado que, em Hidra, há séculos que o código da vendetta reinava em absoluto. Qualquer homem que não se vingasse pelo mal feito aos seus, ficava ele próprio amaldiçoado.

E, no entanto, havia algo mais em causa do que isso. Uma estranha e gélida excitação que lhe invadia todo o ser, enquanto esperava a coberto das sombras, em frente da garagem, às seis horas dessa tarde.

Às seis e meia os dois mecânicos saíram. Esperou cinco minutos mais e atravessou a estrada até à entrada da garagem. As portas duplas deixavam entrar a noite; o Citroën estava estacionado e virado para a rua. Por detrás, uma rampa de cimento descia até ao fundo.

Galley estava a trabalhar num banco encostado à parede. A mão direita de Mikali desapareceu no bolso da gabardina e agarrou firmemente o cabo da faca de cozinha.

Apercebeu-se, de súbito, de que havia uma forma mais fácil. Uma maneira a que se aliava uma percentagem considerável de justiça poética.

Meteu-se na cabina do Citroen, colocou a alavanca das mudanças em ponto morto com a mão enluvada, e depois soltou o travão de mão. O veículo deslizou, começando a ganhar velocidade. Galley, meio bêbado, como era habitual, só se apercebeu da situação no último momento. Voltando-se, gritou no momento em que o camião de três toneladas o esmagou de encontro à parede.

Não existia, porém, satisfação em tudo aquilo, pois Katina desaparecera, para não mais voltar, tal como o pai que nunca tinha chegado a conhecer, a mãe que representava uma apagada recordação, e a avó.

Caminhou na chuva, durante horas, numa espécie de atordoamento. Por fim, próximo da meia-noite, foi abordado por uma prostituta na margem do rio.

Tinha quarenta anos e parecia mais velha, sendo esse o motivo por que ela não acendeu muitas luzes quando chegaram ao apartamento onde morava. Não que importasse naquele momento especial, pois John Mikali não tinha qualquer certeza de diferenciação entre o real e o irreal. Fosse como fosse, jamais tinha ido com uma mulher para a cama em toda a sua vida, um fato que as suas atitudes inexperientes logo revelaram. E, com a ternura divertida que, frequentemente, carateriza as mulheres em tais circunstâncias, ela iniciou-o nos mistérios o mais rapidamente que era possível.

Ele aprendeu depressa, montando-a com uma fúria controlada, uma, duas vezes, fazendo-a vir-se pela primeira vez desde há anos, fazendo-a gemer sob o seu corpo e implorar mais. Quando seguidamente adormeceu, ele deixou-se ficar ao seu lado, às escuras, maravilhado com o seu poder de levar uma mulher a reagir assim, e a fazer as coisas que fizera. Curioso que o fato tivesse tão pouca importância para ele, esta coisa que sempre julgara tão significativa.

Em seguida, ao percorrer de novo as ruas banhadas pelo começo do alvorecer, jamais se sentira tão abandonado na vida. Quando chegou finalmente ao mercado central, reinava uma atividade enorme. Ele via os carregadores despejarem os pesados vagões carregados com produtos do campo e, contudo, aos seus olhos era como se tudo se processasse em câmara lenta. Como se ele vogasse num outro plano.

Mandou vir chá num estabelecimento que se mantinha aberto toda a noite e sentou-se junto da montra a fumar um cigarro, após o que tomou consciência de um rosto que o fitava da capa de uma revista num escaparate ao seu lado. Uma figura magra e esguia, com uniforme de camuflagem, o rosto queimado pelo sol, uns olhos inexpressivos e uma espingarda debaixo do braço.

Quando folheou a revista, o artigo de fundo debatia o papel da Legião Estrangeira na guerra da Argélia, que nessa altura estava no auge. Homens que, apenas há um ano ou dois, tinham sido apedrejados pelos estivadores das docas em Marselha, no seu regresso da Indochina e dos campos de prisioneiros do Vietnã, voltavam a combater nas batalhas de França numa imunda e insensata guerra. Homens sem esperança, chamava-lhes o articulista. Homens que não tinham qualquer outro sítio para onde ir. Na página seguinte havia uma fotografia de um outro legionário soerguido na maca, o peito envolto numa ligadura ensopada em sangue. Tinha a cabeça rapada à escovinha, as faces encovadas, uma expressão que já se situava para além da dor, e os olhos fixos num abismo de solidão. Para Mikali assemelhava-se a fitar a sua própria imagem refletida no espelho. Fechou a revista. Voltou a colocá-la, cuidadosamente, no escaparate, e em seguida respirou fundo para evitar que as mãos lhe tremessem. Algo lhe estalou no cérebro. Os sons voltaram à superfície. O mundo regressara à vida, embora ele não fizesse parte dele, nem nunca tivesse feito.

Céus! Sentia um frio intenso. Levantou-se, saiu, e caminhou a passo rápido pelas ruas, com as mãos enfiadas nos bolsos.

Eram seis horas da manhã quando regressou ao apartamento. Pareceu-lhe sombrio e vazio, despido de vida. A tampa do piano estava levantada e a música continuava no suporte onde a deixara. Faltara ao exame, não que naquele momento fosse importante. Sentou-se e começou a tocar lentamente e com grande sentimento aquela lúgubre pequena peça Le Pastour, de Grovlez, que executara no dia do funeral da avó, em Nova Iorque, quando Dimitri Mikali tinha aparecido.

Quando morreram as últimas notas, fechou a tampa do piano, levantou-se, e dirigiu-se a uma secretária onde foi buscar os passaportes, o grego e o americano, pois tinha dupla nacionalidade. Lançou um último olhar ao apartamento e saiu.

Às sete seguia no metro, a caminho de Vincennes. Uma vez chegado, percorreu as ruas numa passada brusca até ao velho forte, o centro de recrutamento para a Legião Estrangeira.

Ao meio-dia tinha entregue os passaportes como prova de identidade; ficou aprovado num rigoroso exame médico, e assinou um contrato que o obrigava a servir, por um período de cinco anos, no mais famoso de todos os regimentos de qualquer exército do mundo.

Às três horas do dia seguinte, acompanhado por três espanhóis, um belga e oito alemães, estava a caminho, de comboio, rumo a Marselha, para o Forte Saint Nicholas.

Dez dias mais tarde, juntamente com cento e cinquenta recrutas e uma quantidade de outros soldados franceses que na altura prestavam serviço na Argélia e Marrocos, embarcou num navio de tropas com destino a Oran.

Em 20 de Março chegou ao final do seu destino: Sidi-bel-Abbès, que há quase um século continuava a manter-se o centro de toda a atividade da Legião.

A disciplina era rígida, o treino de uma eficácia bruta, destinado a um fim único: produzir os melhores homens de combate do mundo. Mikali aplicou-se com uma energia feroz que, logo de início, fez incidir sobre si a atenção dos superiores.

Quando já se encontrava há algumas semanas em Sidi-bel-Abbès foi levado, um dia, ao Deuxième Bureau. Na presença de um capitão, entregaram-lhe uma carta do avô, que havia sido informado do seu paradeiro e lhe pedia que reconsiderasse a decisão tomada.

Mikali garantiu ao capitão que estava plenamente satisfeito ali, e foi-lhe pedido que escrevesse uma carta ao avô, dizendo isso mesmo, ao que acedeu, fazendo-o na presença do oficial.

Durante os seis meses seguintes, saltou vinte e quatro vezes de paraquedas, recebeu treino com todos os tipos de armas modernas, e atingiu uma perfeição de capacidade física que jamais sonhara possível. Comprovou-se um atirador de marca tanto com espingarda como com revólver, e a classificação obtida em luta livre foi a mais elevada da sua aula, uma circunstância que lhe mereceu um tratamento de considerável respeito pelos companheiros.

Bebia pouco e só ocasionalmente visitava o bordel da cidade; no entanto, as mulheres disputavam as suas atenções, um fato que há muito deixara de o intrigar e o punha perfeitamente indiferente.

Já era segundo-cabo antes da sua primeira ação, em Outubro de 1960, quando o regimento se deslocou às montanhas Raki para atacar uma vasta força de fellagha, que há alguns meses andara a controlar a área.

Havia cerca de oitenta rebeldes no cimo de um monte, virtualmente inexpugnável. O regimento efetuou um ataque frontal, que foi apenas aparentemente suicida, na medida em que na altura crucial da batalha a 3ª Companhia, que incluía Mikali, foi largada no topo do próprio monte, de helicóptero.

Seguiu-se uma luta sangrenta de corpo a corpo. Mikali distinguiu-se ao destruir um ninho de metralhadoras, que havia sido responsável pela baixa demais de duas dúzias de legionários, e que deu, por algum tempo, a sensação de poder arruinar toda a operação.

Mais tarde, quando estava sentado numa rocha a atar uma ligadura numa ferida aberta no braço direito, um espanhol fora de encontro a ele com um riso de louco, agarrando pelos cabelos duas cabeças numa das mãos.

Soou um tiro e o espanhol caiu de bruços, soltando um grito. Mikali já se voltara, de arma em punho, disparando com uma das mãos contra dois fellagha que se haviam erguido de um monte de cadáveres. Ambos ficaram a fazer companhia aos outros corpos.

Manteve-se um bocado à espera na vertente, mas ninguém mais se mexeu. Passado um pouco, sentou-se, apertou a ligadura do braço com os dentes, e acendeu um cigarro.

Ao longo dos doze meses que se seguiram, combateu nas ruas da própria Argélia, foi largado, por três vezes, de paraquedas, durante a noite, na região montanhosa, a fim de atacar as forças rebeldes de surpresa, e sobreviveu a emboscadas em inúmeras ocasiões.

Em Março de 1962 tinha um galão e a Médaille Militaire, e era primeiro-cabo. Definia-se como um ancien, ou seja, o tipo de legionário capaz de aguentar um mês a dormir quatro horas por noite e a percorrer cinquenta quilómetros por dia, em marcha forçada, e com todo o equipamento, se necessário. Matara homens, matara mulheres, matara crianças. Por conseguinte, a morte nada significava para ele.

Após a condecoração, foi retirado do ativo por uns tempos e mandado para a escola de preparação de guerrilha, em Kefi, onde aprendeu tudo o que havia a aprender sobre explosivos: sobre dinamite, TNT e bombas de plástico, e dúzias de processos diversos de construir uma armadilha eficiente.

No dia 1 de Julho voltou ao regimento, após terminar o curso, e arranjou boleia num camião de abastecimentos. Ao atravessarem a aldeia de Kaffa, cinquenta quilos de dinamite, detonados por qualquer tipo de controlo à distância, fizeram explodir o camião ao meio. Mikali viu-se, de gatas, na praça da aldeia, milagrosamente vivo. Tentou levantar-se, ouviu-se o disparar de uma metralhadora e foi atingido, por duas vezes, no peito.

Enquanto se mantinha prostrado por terra, avistou o motorista do camião, que se contorcia do outro lado dos destroços ardentes. Quatro homens avançavam, equipados com várias armas. Debruçaram-se, rindo, sobre o motorista. Mikali não conseguia ver o que faziam, mas o homem começou a gritar. Pouco depois, soou um tiro.

Aproximaram-se então de Mikali, que se sentara encostado ao poço da aldeia, com a mão no interior do casaco de camuflagem por onde escorria o sangue.

— Não estás lá muito bem, pois não? — perguntou o líder do pequeno grupo, em francês. Mikali reparou que a faca que o homem segurava na mão esquerda estava tingida de sangue.

Mikali sorriu pela primeira vez após a morte de Katina.

— Oh, podia ser pior.

A mão saiu-lhe da camisa, agarrando uma Smith & Wesson Magnum, uma arma que tinha conseguido no mercado negro de Argélia, meses antes. O primeiro tiro despedaçou a parte superior do crânio do indivíduo; o segundo atingiu entre os olhos o que vinha atrás dele. O terceiro homem ainda estava a tentar empunhar a espingarda, no momento em que Mikali lhe deu dois tiros no ventre. O quarto deixou cair a arma, horrorizado, e virou-se com a intenção de fugir. Os dois últimos tiros de Mikali destroçaram-lhe a espinha, atirando-o de cabeça para os restos do camião em chamas.

Do outro lado, para além da cortina de fumo, os aldeãos começaram a sair a medo das casas. Mikali esvaziou a Smith & Wesson. Depois, com dificuldade, recarregou a arma. O homem que atingira no ventre soltou um gemido e tentou levantar-se. Mikali deu-lhe um tiro na cabeça.

Tirou a boina, comprimiu-a de encontro às feridas para reter o fluxo de sangue, e manteve-se sentado, de encontro ao poço, o revólver aperrado num desafio aos aldeãos que tentassem aproximar-se.

Ainda se mantinha consciente, no mesmo sítio, rodeado apenas pelos mortos, quando uma patrulha da Legião o descobriu uma hora mais tarde.

Toda a situação adquiriu um laivo bastante irônico, na medida em que o dia seguinte, 2 de Julho, foi o Dia da Independência. Isto pôs termo a sete anos de combate. Mikali foi enviado, de avião, para França, e internado no hospital militar de Paris, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica especializada ao tórax. No dia 27 de Julho foi condecorado com a Croix de La Valeur Militaire. No dia seguinte chegou o avô.

Tinha naquela altura setenta anos, mas denotava ainda Ótimo aspecto físico. Sentou-se à beira da cama, observou a medalha durante algum tempo, e depois falou num tom de voz suave:

— Troquei umas impressões com o Quartel-General da Legião. Dado ainda não teres vinte e um anos, tudo indica que, com o tipo de pressão indicada, poderia obter a tua dispensa.

— Sim. Eu sei.

E o avô, servindo-se da mesma frase que utilizara naquela noite de Verão, em Atenas, cerca de três anos antes, disse:

— Decidiste, portanto, juntar-te novamente aos vivos?

— Porque não? — retorquiu John Mikali.

Recebeu um certificado de boa conduta declarando que o primeiro-cabo John Mikali servira, ao longo de dois anos, com honneur et fidelité, e era dispensado antes do tempo previsto por razões de ordem clínica.

Havia uma certa verdade na afirmação. As duas balas com que fora atingido no peito afetaram-lhe gravemente o pulmão esquerdo, e teve de ingressar numa clínica de Londres, a fim de ser submetido a uma operação ao tórax. Em seguida, regressou à Grécia, não a Atenas, mas a Hidra, à villa situada para lá de Moios, no promontório sobre o mar, tendo apenas como cenário de fundo as montanhas e as florestas de pinheiros. Uma região deserta e selvática, de acesso apenas possível a pé ou de mula.

Um velho casal de camponeses, que vivia numa casinha junto ao quebra-mar lá em baixo na baía, cuidava dele. O velho Constantin dirigia o barco onde ia buscar abastecimentos à cidade de Hidra. Quando necessário, tratava das terras, do fornecimento de água e do gerador. A mulher servia de governanta e de cozinheira.

Na maior parte do tempo, Mikali estava sozinho, à exceção de quando o avô lhe vinha fazer companhia. Passavam as noites sentados junto à lareira, onde ardiam toros de pinho, e falavam de tudo, horas a fio, muitas vezes até o Sol romper. Arte, literatura, música, e até política, apesar de se tratar de um assunto a que Mikali era em absoluto indiferente, eram temas apaixonantes.

Uma coisa jamais discutiram: a Argélia. O velho não perguntava, e Mikali nunca abordou o tema. Era como se nunca tivesse acontecido. Durante aqueles dois anos nem uma vez única tocara no piano, mas agora voltava a fazê-lo, cada vez durante mais horas, ao longo dos nove meses que durou a convalescença.

Numa calma noite de Verão, em Julho de 1963, durante uma das visitas do avô, tocou após o jantar o Prelúdio e Fuga em Ré menor, de Bach, a mesma melodia que tocara naquela noite em Atenas — na noite em que havia decidido ir para Paris.

Estava um tempo muito calmo. Através das janelas abertas, que davam para o terraço, o céu apresentava um tom laranja-avermelhado e o Sol punha-se por detrás da ilha de Dokos, situada a um quilómetro e meio no mar.

— Estás, por conseguinte, novamente preparado, julgo? — suspirou o avô.

— Estou — respondeu John Mikali, abrindo e fechando os dedos. — É a altura de o descobrir de uma vez por todas.

Decidiu-se por Londres e a Academia Real de Música. Alugou um apartamento em Upper Grosvenor Street, junto a Park Lane, que dava acesso a Hyde Park, onde corria dez quilómetros, todas as manhãs, quer chovesse quer estivesse sol, insistindo sempre. Os velhos hábitos custam a morrer. Três vezes por semana treinava num famoso ginásio da cidade.

A Legião penetrara-o até ao âmago e não poderia libertar-se facilmente. Tomou consciência do fato, numa noite chuvosa, próximo da meia-noite, ao ser atacado por dois jovens no momento em que virava a esquina de Grosvenor Square.

Um deles abordou-o por trás, imobilizando-lhe o pescoço, e o outro saltou do varandim do rés-do-chão de uma casa.

O pé direito de Mikali disparou contra as partes baixas do jovem, que tombou com um grito. O segundo assaltante ficou tão impressionado que afrouxou o gancho. Mikali libertou-se, descrevendo um curto arco com o cotovelo direito. Ouviu-se um estalido no preciso instante em que o osso do maxilar se quebrava. O rapaz gritou e caiu de joelhos, enquanto Mikali se limitava a passar por cima do corpo do amigo e a afastar-se, com passo rápido, sob a pesada chuva.

Na Academia a sua reputação consolidou-se ao longo de três duros anos. Era bom — melhor do que isso. Sabiam-no, e ele também. Não entabulou amizades íntimas. Não que as pessoas o detestassem. Pelo contrário, achavam-no muito atraente, só que a uma imensa distância. Uma barreira que, aparentemente, ninguém era capaz de transpor.

Mulheres não faltavam, mas nem uma que conseguisse ter êxito em lhe despertar o mínimo desejo pessoal. Não estava em causa qualquer homossexualidade latente, mas as relações que mantinha com mulheres provocavam-lhe uma total indiferença. No entanto, o que acordava em cada uma delas já era outra questão, e a sua fama como amante atingia proporções quase lendárias. Quanto à música, no final do curso foi-lhe concedida a medalha de ouro Raildon.

O que não era bastante. Não para o homem em que se tornara. Viajou, por conseguinte, até Viena, a fim de estudar um ano com Hoffman. O verniz final. Depois, no Verão de 1967, estava pronto.

Corre uma velha anedota entre os profissionais da música de que subir pela primeira vez a um palco de concertos é ainda mais difícil do que obter êxito, após se estar lá.

Em certa medida, Mikali podia ter comprado o seu ingresso. Podia pagar a um agente para alugar uma sala de concertos em Londres ou Paris, e preparar um recital, mas era uma coisa que o seu orgulho jamais lhe permitiria. Tinha de agarrar o mundo pelo cachaço. E havia uma única maneira de o conseguir.

Após umas curtas férias na Grécia, voltou a Inglaterra, a Yorkshire, como concorrente no festival de música de Leeds, uma das mais importantes competições de piano do mundo. Ganhá-la correspondia a conquistar fama imediata e uma garantia de uma digressão de concertos.

Ficou em terceiro lugar e recebeu ofertas imediatas de três importantes agências. Recusou-as na totalidade. Recomeçou a praticar durante catorze horas diárias no seu apartamento em Londres e, em Janeiro seguinte, deslocou-se a Salzburg. Alcançou o primeiro lugar na competição ali disputada, vencendo quarenta e oito concorrentes de todo o mundo, com a execução do Concerto Número Quatro Para Piano, de Rachmaninov, uma obra a que iria dar um toque muito pessoal nos anos vindouros.

O avô esteve presente ao longo dos sete dias em que durou o festival e, depois de todos se terem ido embora, levou duas taças de champanhe até à varanda de onde Mikali contemplava a cidade.

— Agora, o mundo é teu. Todos te querem. O que sentes?

— Nada — respondeu John Mikali. Bebeu um pequeno gole de champanhe gelado e, subitamente, sem nenhum motivo específico, viu na sua frente os quatro fellagha que davam a volta ao camião em chamas e avançavam a rir ao seu encontro. — Não sinto nada.

Nos dois anos que se seguiram, os olhos negros ressaltavam no rosto pálido e atraente em cartazes expostos em Londres, Paris, Roma, Nova Iorque, e a sua fama aumentou. Os jornais e revistas tinham tirado muito partido dos seus dois anos na Legião e das suas condecorações por provas de coragem. Na Grécia transformou-se numa espécie de herói popular. Os seus concertos em Atenas eram sempre acontecimentos significativos.

A situação tinha mudado na Grécia, agora que os coronéis se encontravam no poder, após o golpe militar de Abril de 1967 e do exílio do rei Constantino em Roma.

Dimitri Mikali tinha setenta e seis anos e aparentava essa idade. Embora ainda desse recepções à noite, poucos eram os que apareciam. As suas atividades a favor do Partido da Frente Democrática tinham contribuído para uma crescente impopularidade junto do Governo, e o seu jornal fora já fechado em várias ocasiões.

— Política! — observou-lhe Mikali numa das suas visitas. — Um disparate total. Para quê arranjar problemas desse tipo?

— Oh! Mas a verdade é que me sinto muito bem — sorriu o avô —, com o que se pode chamar de posição privilegiada tendo um neto que é uma figura internacional.

— Muito bem, então. Têm uma Junta Militar no poder a quem não agrada a minissaia — prosseguiu Mikali. — E daí? Já estive em lugares piores do que a Grécia de hoje, pode acreditar.

— Presos políticos aos milhares, o sistema educacional utilizado para doutrinar crianças, a esquerda praticamente posta fora de combate. Será que te soa à pátria da democracia?

Nenhuma das frases produziu o menor efeito em Mikali. No dia seguinte apanhou o avião para Paris. Nessa mesma noite deu um recital de Chopin, um espetáculo de caridade a favor da pesquisa internacional contra o cancro.

Tinha uma carta à sua espera, de Bruno Fischer, seu agente em Londres, sobre o itinerário de uma digressão por Inglaterra, País de Gales e Escócia, no Outono. Já se encontrava há algum tempo a examiná-la, no camarim, após o recital, quando soou uma pancada na porta e o porteiro do teatro espreitou.

— Um cavalheiro para si, Monsieur Mikali.

Foi desviado para o lado, a fim de dar passagem a um indivíduo musculoso e robusto, com pouco cabelo e um farto bigode negro. Vestia uma gabardina usada sobre um fato de tweed amarrotado.

— Olá, Johnny. Prazer em ver-te. Sou Claude Jarrot, sargento do Estado-Maior, Terceira Companhia, Segundo Batalhão. Fizemos juntos aquela largada noturna em El Kebir.

— Recordo-me — disse Mikali. — Partiste um tornozelo.

— E tu ficaste ao meu lado, quando os fellagha atacaram. — Jarrot estendeu-lhe a mão. — Tenho lido notícias tuas nos jornais, e quando assisti ao concerto, esta noite, pensei em aparecer., Não tem nada a ver com a música. Não ligo peva a isso. — Tem a ver com não ser capaz de deixar de aproveitar a oportunidade de apertar a mão a alguém que esteve comigo em Sidi-bel-Abbès.

Talvez estivesse ali por interesse, pois Mikali achava-lhe um aspecto bastante descuidado, mas a sua presença trouxe-lhe de volta o passado. Por qualquer motivo, Mikali mostrou-se caloroso.

— Ainda bem. Ia sair mesmo agora. E se fôssemos tomar qualquer coisa? Deve haver um bar aqui perto.

— A verdade é que sou dono de uma garagem, a um quarteirão daqui — disse Jarrot. — Tenho um pequeno apartamento por cima. De momento, há boas bebidas. Napoléon verdadeiro.

— Vamos lá — acedeu Mikali. — Por que não?

 

 

As paredes da sala de estar estavam cheias de fotografias catalogando a carreira de Jarrot na Legião, e viam-se recordações por todo o lado, inclusive o quepe branco e as dragonas em cima do aparador.

O conhaque Napoléon era bastante bom, e ele embebedou-se rapidamente.

— Puseram-te fora durante o putsch, presumo? — perguntou Mikali. — Não estavas metido na OAS (1) até ao pescoço?

(1) OAS — Organização do Exército Secreto. Organização secreta formado por militares franceses, que na Argélia se opunham à política de De Gaulle, que pretendia conceder a independência à Argélia. (N. da T.)

— Claro que sim — respondeu Jarrot num tom de desafio. — Todos aqueles anos na Indochina. Estive em Dien Bien Phu, sabias? Aqueles sacanas amarelos prenderam-me seis meses num campo de concentração. Éramos tratados como porcos. Depois foi o fiasco de Argélia, quando o velho nos pôs na merda. Apenas os franceses respeitáveis deviam pertencer à OAS e não tipos como eu.

— Não é coisa de muito futuro agora, claro — comentou Mikali. — O tipo mostrou que era mesmo a sério, quando mandou fuzilar o Bastien Thiry. Quantas tentativas para o deitar abaixo e nem uma só com êxito?

— Tens razão — concordou Jarrot, sem parar de beber. — Fiz a parte que me cabia. Vê só.

Retirou um tapete que cobria uma arca a um canto, procurou uma chave e abriu-a com dificuldade. Lá dentro havia uma variedade significativa de armas. Algumas metralhadoras e uma série de revólveres e granadas.

— Há quatro anos que tenho aqui este material — confessou. — Quatro anos, mas o trabalho acabou. Tivemos que chegasse. E agora um homem tem de se valer de outras coisas.

— A garagem?

Jarrot levou um dedo ao nariz.

— Vem comigo. Quero mostrar-te. Seja como for, a garrafa já está vazia.

Abriu uma porta fechada à chave nas traseiras da garagem. Dava para uma divisão cheia de caixotes de papelão e caixas de todos os feitios. Abriu um de onde tirou mais uma garrafa de Napoléon.

— Disse-te que havia mais — informou com um gesto indicativo à sua volta. — Mais de tudo por aqui. Qualquer tipo de bebida. Cigarros, comida enlatada. Estará vazia no final da semana.

— De onde vem tudo isto? — perguntou Mikali.

— Talvez pudesse responder: das traseiras de um camião de passagem — riu Jarrot, embriagado. — Nada de perguntas, nem de meter o nariz, como costumávamos dizer na Legião. Recorda-te apenas de uma coisa, mon ami: tudo o que precisares, tudo. Basta vires ter com o Claude. Tenho conhecimentos. Posso arranjar-te tudo e aceita como promessa. Não só porque foste um velho companheiro de Sidi-bel-Abbès. Se não me desses uma ajuda, os fellagha nessa altura ter-me-iam cortado os tomates, entre outras coisas.

Nessa altura já estava muito embriagado e Mikali animou-o com uma palmada nas costas.

— Não me esquecerei.

Jarrot arrancou a rolha com os dentes.

— À Legião — brindou. — O clube mais privado do mundo.

Bebeu da garrafa e passou-a.

Andava em digressão pelo Japão na altura em que lhe foi comunicada a morte do avô. O velho, cada vez mais doente, com o avançar dos anos e sofrendo de artrite numa anca, já há algum tempo que necessitava de muletas. Desequilibrara-se no chão de pedra do terraço do apartamento e caíra à rua.

Mikali cancelou os concertos que lhe foi possível e tomou o avião para casa, mas demorou uma semana a chegar a Atenas. Na sua ausência, o médico legista ordenara que se efetuasse o funeral, a cremação segundo os desejos de Dimitri Mikali, expressos numa carta de instruções ao seu advogado.

Mikali, à semelhança de vezes anteriores, refugiou-se em Hidra, na villa da península para lá de Moros. Quando transpôs no hidrofoil a distância que separava Atenas do porto de Hidra, já Constantin o esperava para o levar na lancha. Ao subir a bordo, o homem entregou-lhe silenciosamente um sobrescrito, pôs o motor em marcha e afastou-se do porto.

Mikali reconheceu imediatamente a caligrafia do avô. Os dedos tremiam-lhe um pouco ao abrir a carta. O seu conteúdo era breve.

Se leres isto, é porque estarei morto. Mais cedo ou mais tarde, atinge-nos a todos. Portanto, deixemo-nos de tristezas. Também não te vou maçar com a minha estúpida política, porque, no fim de contas, talvez o fim seja sempre igual. Apenas sei uma coisa com plena certeza. Iluminaste os últimos anos da minha vida com orgulho e alegria, mas principalmente com o teu amor. Deixo-te o meu, juntamente com a minha bênção.

Mikali sentia os olhos a arder e dificuldade em respirar. Quando chegaram à villa, calçou botas de alpinista, roupas usadas e meteu-se à montanha, caminhando horas seguidas, procurando uma total prostração física.

Passou a noite numa herdade deserta e não conseguiu dormir. No dia seguinte, continuou a escalada e passou uma noite semelhante à anterior.

No terceiro dia, arrastou-se até à villa, onde Constantin e a mulher o meteram na cama. A velha deu-lhe a beber uma poção de ervas. Dormiu vinte horas seguidas e acordou calmo e novamente na plena posse do habitual controlo. Telefonou a Fischer, para Londres, e informou-o de que queria regressar ao trabalho.

 

 

No apartamento de Upper Grosvenor Street tinha um monte de correspondência à espera. Passou-lhe uma vista de olhos rápida e deteve-se numa das cartas. Tinha um selo grego e a indicação de "pessoal". Fora enviada para o seu agente e reendereçada para ali. Pousou as restantes cartas e abriu aquela. A mensagem estava datilografada numa folha vulgar de papel. Sem morada. Sem assinatura.

A morte de Dimitri Mikali não foi um acidente — foi um crime. As circunstâncias são as seguintes: Há algum tempo que andava a ser pressionado por determinadas fações do Governo, devido à sua atividade para a Frente Democrática. Alguns gregos, amantes da liberdade, tinham compilado um dossiê para apresentar nas Nações Unidas, incluindo pormenores de presos políticos detidos sem julgamento, atrocidades de todos os géneros, tortura e crime. Pensava-se que Dimitri Mikali conhecia o paradeiro deste dossiê. Na noite de, 16 de Junho, foi visitado no seu apartamento pelo coronel George Vassilikos, que é o principal responsável pelo trabalho do departamento político do Serviço Secreto Militar, juntamente com os seus guarda-costas, sargento Andreas Aleko e sargento Nikos Petrakis. Num esforço para levar Mikali a revelar o paradeiro do dossiê, espancaram-no e queimaram-no barbaramente com isqueiros, no rosto e em partes privadas do corpo. Quando acabou por morrer devido a este tratamento, Vassilikos ordenou que atirassem o corpo do terraço, para fazer com que a morte parecesse um acidente. O médico legista tinha ordens de apresentar a certidão como o fez e nunca chegou a ver o corpo, que foi cremado para apagar os vestígios de espancamento e tortura. Os dois sargentos, Aleko e Petrakis, gabaram-se destes fatos, num momento de embriaguez, tendo sido escutados por algumas pessoas simpatizantes da nossa causa.

A raiva adquiriu vida dentro de Mikali. A dor física que se lhe apoderou do corpo era algo como jamais sentira antes. Dobrou-se, acometido por um espasmo, caiu de joelhos, e em seguida enroscou-se numa posição fetal.

Ignorou quanto tempo se manteve assim, mas ao cair da noite tomou consciência de que percorria rua atrás de rua, e as trevas foram descendo sem fazer ideia de onde se encontrava. Por fim, entrou num café pequeno e mandou vir café, sentando-se a uma das mesas de tampo manchado. Assemelhava-se a qualquer eco dos tempos passados, à repetição da cena no café em Paris, junto ao mercado, pois alguém deixara ali um exemplar do Times londrino. Pegou-lhe e passou mecanicamente os olhos pelo noticiário. Em seguida, o corpo tornou-se-lhe rígido, ao deparar com um pequeno cabeçalho, a meio da segunda página.

Delegação do Exército grego visita Paris para conferências da NATO.

Intimamente já sabia o nome que iria encontrar, antes de ler o resto do noticiário.

Em seguida, todas as peças do quebra-cabeças se enquadraram nos sítios certos, como se fosse um sinal do próprio Deus, no momento em que o telefone tocou. Era Bruno Fischer.

— John? Desejei tanto que tivesses chegado. Posso arranjar-te dois concertos imediatamente. Quarta e sexta-feira, se quiseres. Estava previsto que o Hoffer executasse o Lá menor, de Schummann, com a Orquestra Sinfónica de Londres. Infelizmente partiu o pulso.

— Quarta-feira? — perguntou Mikali num tom mecânico. — Só me restam três dias.

— E daí? É uma coisa que já gravaste duas vezes. Um ensaio bastará. Podias fazer sensação.

— Onde? — quis saber Mikali. — Na Sala de Concertos do Festival?

— Céus! Nada disso. Em Paris, Johnny. Sei que terás de apanhar imediatamente outro avião, mas importas-te?

— Não — acedeu John Mikali calmamente. — Paris estará Ótimo.

O golpe militar que teve lugar na Grécia, às primeiras horas de 27 de Abril de 1967, havia sido inteligentemente planeado por um punhado de coronéis, em segredo absoluto, o que em grande medida explicou o êxito conseguido. A cobertura dada pela imprensa nos dias seguintes foi significativa. Mikali passou a tarde, antes de apanhar o avião da noite para Paris, no Museu Britânico, lendo todos os jornais disponíveis publicados no período a seguir ao golpe.

Não foi tão difícil como poderia parecer, principalmente porque apenas lhe interessavam as fotografias. Descobriu duas. Uma publicada na revista Times e mostrando o coronel George Vassilikos, um homem alto e elegante de quarenta e cinco anos, com um bigode farto e preto, de pé, ao lado do coronel Papadopoulos, o homem que, para os devidos efeitos, era o ditador da Grécia.

A segunda fotografia estava inserida num periódico publicado por exilados gregos em Londres. Mostrava Vassilikos ladeado pelos seus dois sargentos. A legenda por baixo referia: O carniceiro e os seus adeptos. Mikali arrancou cuidadosamente a página e saiu.

Ao chegar a Paris, na manhã seguinte, telefonou para a Embaixada da Grécia e foi atendido calorosamente pelo adido cultural, o doutor Meios.

— Que prazer em vê-lo, caro Mikali! Não fazia ideia que estivesse em Paris.

Mikali explicou as circunstâncias.

— Publicarão, obviamente, qualquer notícia na imprensa parisiense para dar a conhecer aos fãs que serei eu a tocar e não Hoffer, mas quis certificar-me de que ficassem a sabê-lo aqui na Embaixada.

 

 

— Não encontro palavras para lhe agradecer. O embaixador ficaria furioso se a ocorrência lhe passasse despercebida. Vou preparar-lhe uma bebida.

— Terei o maior prazer em arranjar bilhetes — disse-lhe Mikali. — Para o embaixador e outras pessoas de que queira fazer-se acompanhar. Não li, em qualquer lado, que têm aqui uma alta patente militar de Atenas?

Meios esboçou uma careta, ao mesmo tempo que lhe trazia um copo de sherry.

— Não propriamente interessado em cultura. Trata-se do coronel Vassilikos, dos Serviços Secretos, o que constitui uma forma delicada de dizer...

— Já imagino — comentou Mikali.

— Vou mostrar-lho — disse Meios, consultando o relógio.

Aproximou-se da janela. Um Mercedes preto estava parado à entrada, com um motorista à espera do lado de fora. Momentos depois, o coronel Vassilikos desceu os degraus da entrada principal, ladeado pelos sargentos Ale-ko e Petrakis. Aleko ocupou o banco da frente, ao lado do motorista, e Petrakis meteu-se com o coronel no assento traseiro. Quando o Mercedes se afastou, Mikali fixou a matrícula, embora o automóvel fosse fácil de reconhecer devido ao galhardete grego, na frente.

— Dez horas em ponto — observou Meios. — Exatamente a mesma hora a que aqui esteve no mês passado. Se os intestinos lhe funcionam com a mesma regularidade, é um homem saudável. Dirige-se à Academia Militar, em St. Cyr, para o dia de trabalho, através do Bosque de Meudon, e Versalhes. O motorista diz-me que gosta do cenário.

— Não arranja tempo para se divertir? — inquiriu Mikali. — Parece um bicho de mato.

— Corre por aí que gosta de rapazes, mas pode ser boato. Uma coisa é certa: a música ocupa um lugar muito insignificante na sua lista de prioridades.

— Bom. Não se pode conquistar toda a gente — sorriu Mikali. — Mas quanto a si e ao embaixador...

 

 

Meios acompanhou-o até à entrada da frente.

— Fiquei desolado quando me informaram da morte do seu avô. Deve ter sofrido um choque horrível. E conseguir regressar a um palco de concertos tão pouco tempo depois... Só posso dizer que a sua coragem me enche de admiração!

— É bastante simples — retorquiu Mikali. — Era o homem mais notável que conheci.

— E imensamente orgulhoso de si?

— Evidentemente. Não continuar neste momento, ainda que só por ele, seria a maior traição imaginável. Poderia dizer-se que esta minha deslocação a Paris é uma maneira de acender uma vela em sua memória.

Voltou costas e desceu os degraus, entrando no automóvel que alugara.

Nessa tarde teve um ensaio com a Orquestra Sinfónica de Londres. O maestro estava em grande forma. Ele e Mikali entraram imediatamente em sintonia. Contudo, pediu um outro ensaio na tarde seguinte, entre as duas e as quatro, dado o concerto se efetuar às sete e meia. Mikali concordou.

Às cinco e meia dessa tarde, esperava num velho Citroën num dos acessos da Avenida de Versalhes, perto do palácio. Jarrot estava ao volante.

— Se ao menos me contasses do que se trata — resmungou.

— Mais tarde — prometeu Mikali, oferecendo-lhe um cigarro. — Disseste que se alguma vez precisasse fosse ter contigo, certo?

— Claro, mas...

Nesse momento o Mercedes preto com o galhardete grego passou por eles. Mikali apressou-se a dizer:

— Segue aquele carro. Não vale a pena velocidades. Não vai a mais de quarenta.

— Não fazia sentido — retorquiu Jarrot, enquanto se punha em andamento. — Com uma bomba daquelas, pelo menos.

— É muito simples — disse Mikali. — O coronel gosta do cenário.

— O coronel?

— Cala a boca e continua a guiar.

O Mercedes tomou pela avenida que atravessa o Bosque de Meudon, o parque tranquilo e deserto a essa hora. Começou a ganhar distância. Nesse momento, um motociclista passou por eles a toda a velocidade, com os faróis no máximo, uma figura sinistra de capacete, óculos escuros e um casaco preto, levando uma metralhadora ligeira a tiracolo.

Desapareceu no caminho, ultrapassando o Mercedes.

— Filho da mãe — insultou Jarrot pela janela. — Nos últimos tempos veem-se por aí uma série desses porcos da CRS (1) em motorizadas pesadas. Julguei que só a polícia de choque as tivesse.

(1) CRS — polícia rural (N. da T.)

Mikali esboçou um leve sorriso e acendeu outro cigarro.

— Podes abrandar. Agora sei como o fazer.

— Fazer o quê, Santo Deus?

E, nessa altura, Mikali informou-o. O Citroën ziguezagueou violentamente, no instante em que Jarrot pisou o travão e o encostou ao lado da estrada.

— És doido. Tens que ser. Nunca o conseguirás.

— Oh, claro que conseguirei. Se me ajudares. Podes fornecer-me tudo o que necessito.

— Uma merda, é o que é. Escuta bem, doido varrido. A Sûreté só precisaria de uma voz ao telefone.

— Não passas de um sujeito gordo e imbecil — retorquiu Mikali calmamente. — Sou John Mikali. Toco em Roma, Londres, Paris e Nova Iorque. Faz algum sentido que me passasse pela cabeça uma ideia tão louca? O que me levaria a fazer tal coisa? O meu avô caiu daquela varanda devido a um acidente. O tribunal assim o declarou.

— Não! — contrapôs Jarrot, veementemente.

— Ao passo que tu, meu velho, és um ladrão barato, como logo me apercebi quando me mostraste tudo aquilo que tinhas na garagem. Também estiveste muito implicado na O AS.

— Ninguém pode prová-lo — retorquiu Jarrot de cabeça perdida.

— Oh, mas claro que podem. Basta o teu nome, uma ligeira alusão a um envolvimento com a OAS e temos o Serviço Cinco, não é assim que chamam ao esquadrão da morte, os barbouzes? Metade deles são antigos companheiros teus da Argélia e sabes, portanto, o que podes esperar. Estendem-te na mesa, fazem as ligações às partes privadas e carregam no interruptor. Daí a meia hora estarás a contar-lhes tudo até ao mínimo pormenor, só que não vão acreditar. Continuarão a torturar-te apenas para ter a certeza de que arrancaram tudo. No final, estarás morto ou feito idiota.

— De acordo — gemeu Jarrot. — Não te vás embora. Faço o que queres.

— Mas claro que sim. Como vês, Claude, basta que saibas viver. E agora vamos embora daqui.

Baixou o vidro da janela e deixou que a brisa do anoitecer lhe refrescasse o rosto. Há anos que não se sentia tão vivo. Todos os nervos do corpo funcionavam em acorde perfeito. Assemelhava-se ao momento final antes de avançar, sob as luzes, até ao piano. Depois seguiam-se os aplausos, em ondas crescentes...

Pouco passava das seis horas, na tarde seguinte, quando Paros, o motorista da Embaixada, ao volante do Mercedes, tomou pelo caminho de Versalhes, à esquerda, e entrou no Bosque de Meudon. O sargento Aleko ia sentado ao seu lado. Petrakis ocupava o banco traseiro suplente, diante do coronel Vassilikos, que estudava um dossiê. A divisória de vidro ia fechada.

Tinha chovido abundantemente a tarde inteira e o parque apresentava-se deserto. Paros seguia a pouca velocidade, como era hábito e, ao lusco-fusco que caía rapidamente, apercebeu-se da presença de luzes na retaguarda. Um homem da CRS, com uma gabardina preta e um capacete puxado para a cara, passou ao lado e fez sinal de paragem. Dado ter a gola subida por causa da chuva e óculos escuros, Paros não conseguia ver-lhe as feições.

— CRS — disse Aleko.

A divisória interior de vidro desceu. O coronel Vassilikos ordenou:

— Averigua o que quer.

Quando o Mercedes parou, o homem da CRS atravessou a motorizada na frente, desmontou da pesada BMW e fez descer o apoio. Caminhou na sua direção. Tinha a gabardina a escorrer água e transportava uma pequena metralhadora MAT49 a tiracolo.

Aleko abriu a porta e saiu.

— Qual é o problema? — inquiriu num mau francês.

A mão do homem da CRS saiu do bolso, na companhia de uma automática de calibre 45, semelhante às utilizadas pelo Exército americano durante a Segunda Guerra Mundial.

Atingiu Aleko no coração, atirando o sargento de encontro ao Mercedes. O corpo perdeu o equilíbrio e aterrou na valeta, de rosto para baixo.

Petrakis, sentado no banco suplente, de costas para a divisória de vidro, recebeu a segunda bala na nuca. Caiu para a frente, sofrendo morte instantânea, o corpo dobrado, como que em oração, sobre o assento ao lado do coronel. Este encolheu-se cobardemente, paralisado pelo choque, e com o uniforme manchado pelo sangue que espirrara de Petrakis.

Paros agarrou firmemente o volante e todo o corpo lhe estremeceu ao ver o cano da automática virar-se na sua direção. — Não... por favor, não!

Ao longo dos anos, Mikali aprendera a falar a um grego destinado a ir ao encontro dos requisitos da sociedade de Atenas, mas agora retornava ao sotaque do camponês cretense, que Katina lhe ensinara há tantos anos. Puxou Paros de trás do volante.

— Quem és tu? — perguntou, sem desviar os olhos de Vassilikos.

— Paros... Dimitri Paros. Sou apenas um motorista da Embaixada. Um homem casado e com filhos.

— Devias escolher um emprego melhor do que trabalhar para filhos da puta fascistas como estes — disse Mikali. — E agora corre o mais que puderes pelo parque.

Paros afastou-se aos tropeções. Vassilikos exclamou:

— Pelo amor de Deus!

— O que tem Ele a ver com isto? — Mikali vincou o sotaque cretense e puxou os óculos escuros para a testa. Uma expressão da maior surpresa estampou-se no rosto do coronel. — Você? Mas não é possível!

— Pelo amor do meu avô! — disse Mikali. — Desejava poder fazê-lo mais lentamente, mas não há tempo. Pelo menos, irás para o Inferno sabendo o porquê.

Quando Vassilikos abriu a boca para falar novamente, Mikali disparou e atingiu-o entre os olhos, causando-lhe morte imediata.

Um segundo depois montava na BMW e afastava-se. Um automóvel passou por ele, na direção de Versalhes. Apercebeu-se pelo retrovisor de que o carro abrandava ao passar pelo Mercedes e, em seguida, parava. Não que lhe importasse. Saiu da estrada, meteu por um dos carreiros e desapareceu por entre as árvores.

Num acesso afastado, do extremo oposto do parque, deserto àquela hora crepuscular, Jarrot esperava, receoso, junto do velho camião Citroen. A parte de trás estava descida formando uma rampa, enquanto ele fingia reparar um dos pneus traseiros.

Ouviu-se o som da BMW que se aproximava por entre as árvores. Mikali apareceu e subiu diretamente a rampa de acesso ao camião. Jarrot levantou rapidamente a parte traseira, depois apressou-se a subir para a cabina, pondo-se ao volante. Ao afastar-se ouviu as Sirnes da polícia, à sua esquerda, perdidas na distância.

Mikali estava de pé junto à fornalha da garagem onde meteu o uniforme da CRS, peça por peça, até mesmo o capacete de plástico. A BMW estava a um canto, junto ao camião Citroen, despojada das matrículas e indicativos falsos da polícia que, dado serem, na sua maioria, de plástico, não tiveram dificuldade em arder.

Quando subiu as escadas, foi encontrar Jarrot, sentado à mesa, tendo na frente uma garrafa de Napoléon e um copo.

— Os três! — exclamou. — Deus do céu! Que tipo de homem és, afinal?

Mikali tirou um sobrescrito do bolso e pô-lo em cima da mesa.

— Quinze mil francos, como estava combinado. Quanto a isto, fica comigo — acrescentou tirando o Colt do bolso. — Prefiro ser eu a desembaraçar-me.

Virou costas na direção da porta.

— Onde vais? — perguntou Jarrot.

— Tenho um concerto — respondeu-lhe Mikali. — Ou já te esqueceste? — Consultou o relógio. — Daqui a exatamente trinta minutos... portanto, tenho de ir andando.

— Jesus Cristo! — exclamou Jarrot, após o que acrescentou violentamente: — E se alguma coisa corre mal? Se te descobrem a pista?

— É melhor não o fazerem. Tanto para teu bem como para o meu. Voltarei depois do concerto. Digamos onze horas. Okey?

— Claro — acedeu Jarrot num tom cansado. — Não tenho sítio para onde ir.

Mikali meteu-se no automóvel de aluguer e afastou-se. Sentia-se calmo e descontraído, sem o mínimo receio, mas parecia-lhe óbvio que Claude Jarrot já deixara de ser útil. Além de que o seu comportamento deixava muito a desejar. Não era certamente o homem dos tempos da Argélia.

Tratava-se de uma situação desagradável, mas não lhe restavam dúvidas de que teria de fazer qualquer coisa em relação a Jarrot. De momento, porém, havia o concerto.

Chegou ao teatro da ópera apenas com uma margem de quinze minutos, o que mal lhe dava tempo para se mudar. Conseguiu-o, no entanto, e deixou-se ficar nos bastidores a observar, quando o maestro subiu ao palco.

Ao segui-lo foi acolhido por uma tempestade de aplausos. A casa estava cheia e reparou na presença de Meios, do embaixador grego e da mulher, sentados na terceira fila, ocupando Meios o lugar da coxia.

O Concerto em Lá Menor foi originalmente escrito por Schumann, como uma fantasia de um andamento para piano e orquestra, dedicado à sua mulher, Clara, ela própria uma pianista de concertos. Mais tarde, alargou-o a um concerto em três andamentos, que o crítico musical do Times londrino descreveu, outrora, como uma obra elaborada e ambiciosa, ao mesmo tempo que elogiava as tentativas de Madame Schumann quanto a transpor a rapsódia do marido para música.

Nessa noite, sob as mãos de Mikali, resplandeceu e adquiriu vida de uma forma que eletrizou completamente a assistência. Esse o motivo por que se gerou uma considerável surpresa, para não dizer mais, quando, a meio do intermezzo e em resposta a uma mensagem trazida pelo arrumador, o embaixador da Grécia, a mulher e o adido cultural se levantaram e saíram da sala.

Jarrot viu as notícias pela televisão. De acordo com o locutor, tratava-se, obviamente, de um crime político, o que se comprovava pelo fato de o assassino ter deixado o motorista em liberdade; referira-se às vítimas como fascistas. Era, provavelmente, um membro de um dos muitos grupos políticos de gregos não partidários e que viviam exilados em Paris. Neste caso, a polícia dispunha de uma pista excelente. O homem que procuravam era cretense — um camponês cretense. O motorista mostrava-se seguro nesse ponto. Reconhecera o sotaque.

 

 

As fotografias dos corpos, particularmente as do banco traseiro do Mercedes, eram elucidativas, isto no mínimo, e levaram Jarrot a recordar-se de alguns dos feitos de Mikali em tempos passados. E dissera que ia voltar depois do concerto. Porquê? Apenas podia haver um único motivo de peso.

Tinha de fugir enquanto ainda estava a tempo, mas a quem recorrer? De forma alguma à polícia e tampouco a qualquer dos seus companheiros de crimes. Subitamente, e apesar do seu estado de semiembriaguez, pensou na resposta óbvia. A única pessoa. Mditre Deville, o seu advogado. O melhor advogado criminal em exercício, todos o sabiam. Já o salvara, por duas vezes, da prisão. Deville saberia o que fazer.

Àquela hora não estaria, obviamente, no escritório, mas no apartamento, onde vivia só, desde que a mulher morrera de cancro, há três anos. Rua de Nanterre, junto à Avenida Victor Hugo. Jarrot descobriu o número e marcou-o rapidamente.

Decorridos uns breves instantes, uma voz respondeu:

— Fala Deville.

— Maìtre! Sou eu. Jarrot. Preciso vê-lo.

— Novamente em encrenca, Claude? — riu Deville, bem-humorado. — Vá ao escritório logo de manhã. Digamos, cerca das nove horas.

— É uma coisa que não pode esperar, Maìtre.

— Terá de esperar, meu rapaz. Vou jantar fora.

— Ouviu as notícias esta noite, Maìtre? Sobre o que aconteceu no Bosque de Meudon.

— Os assassinatos? — retorquiu Deville num tom de voz diferente. — Sim.

— É por isso que tenho de falar consigo.

— Estás na garagem?

— Estou.

— Nesse caso, espero-te aqui dentro de quinze minutos.

Jean-Paul Deville tinha cinquenta e cinco anos de idade, e era um dos advogados mais famosos em exercício na barra de crime do tribunal de Paris. Apesar do fato, mantinha excelentes relações com a polícia. Embora se servisse de todos os truques possíveis em defesa dos clientes, era um homem correto, justo e de uma correção escrupulosa nas suas questões. Enquadrando-se na definição de cavalheiro pelos antigos padrões, cooperara com a Sûreté em mais do que uma ocasião, o que contribuíra para adquirir popularidade nesse sector.

Toda a sua família havia sido morta quando os bombardeiros Suka haviam atacado Calais, em 1940. O próprio Deville fora dispensado do serviço militar devido a má visão. Funcionário num escritório de advogado, tinha sido enviado para a Alemanha Oriental e Polónia juntamente com milhares de compatriotas, a fim de cumprir trabalhos forçados.

À semelhança de muitos franceses apanhados para lá da Cortina de Ferro no final da guerra, só voltara a pôr o pé em França em 1947. Dado a família ter morrido em Calais, decidiu construir uma nova vida em Paris, indo para a Sorbonne com uma bolsa especial do Governo para pessoas como ele, e formara-se em advocacia.

Ao longo dos anos, adquirira uma reputação considerável. Casara com a secretária, em 1955, mas não tinha havido filhos. Nunca fora uma mulher saudável e o cancro no estômago causara-lhe dois anos de sofrimento até à morte.

Todos estes fatos lhe tinham trazido a amizade não só da polícia e dos companheiros da profissão, mas entre a gente do mundo do crime.

Uma ironia do destino, realmente, quando se pensava que este afável e simpático francês era, no fim de contas, o coronel Nikolai Ashimov, um ucraniano que não pisava a pátria há cerca de vinte e cinco anos. Provavelmente o único agente mais importante dos Serviços Secretos russos na Europa Ocidental. Um agente, não da KGB, mas da sua dura rival, o departamento da secção dos Serviços Secretos do Exército Vermelho, conhecido por GRU.

Os russos, mesmo antes do fim da guerra, possuíam escolas de espiões em vários locais da União Soviética, cada uma com um toque nacional distinto, como em Glacyna, onde os agentes eram treinados para trabalhar nos países de língua inglesa, vivendo numa réplica de uma cidade inglesa e exatamente como se estivessem no Ocidente.

Ashimov passou dois longos anos a receber uma preparação semelhante em Grasnia, onde a ênfase se colocava em tudo o que era francês, sendo o meio, cultura cozinha e vestuário fielmente copiados.

Logo de início usufruiu de uma vantagem sobre os outros, na medida em que a mãe era francesa. Fez rápidos progressos e acabou por ser destacado para se juntar a um grupo de trabalhadores forçados franceses na Polónia, em 1946, suportando uma existência dura, inserido na pessoa dum tal Jean-Paul Deville, que morrera de pneumonia numa mina de carvão siberiana, em 1945. E, seguidamente, em 1947, havia sido mandado de regresso à pátria — para França.

Deville serviu mais um brande a Jarrot.

— Vá. Bebe. Vejo que bem precisas. Uma história surpreendente, essa.

— Posso confiar em ti, Maìtre, não posso? — perguntou Jarrot ansiosamente. — O que quero dizer é que se os flics vêm a saber uma palavra...

— Já não te garanti que sim, caro amigo? — respondeu Deville num tom calmo. — A relação entre um advogado e o seu cliente é a que existe entre um padre e o penitente. No fim de contas, se tivesse revelado tudo o que sei sobre a tua relação com a O AS...

— Mas o que posso fazer? — retorquiu Jarrot. — Se tivesse visto o noticiário da televisão, saberia do que é capaz.

— Espantoso! — comentou Deville. — Já o ouvi tocar, muitas vezes, como é óbvio. Considero-o muito bom. Recordo-me vagamente de ter lido em qualquer revista que servira na Legião, durante alguns anos, na juventude.

— Nunca teve juventude, esse indivíduo — rebateu Jarrot. — Se soubesse algumas das coisas que fez na Argélia, nesses tempos... Em Kasfa, mesmo com duas balas alojadas no pulmão, conseguiu matar quatro fellagha com um revólver. Um revólver, Santo Deus!

— Conta-me mais — pediu Deville, servindo-lhe mais um brande.

E Jarrot obedeceu. Quando acabou, estava a cair de bêbado.

— E o que faço?

— Onze horas, foi, segundo creio, a hora a que ele disse que voltava. — Deville consultou o relógio. — São dez horas, agora. Vou buscar o casaco e regressamos à garagem. Acho melhor ser eu a conduzir. Não estás em estado de atravessar a rua.

— À garagem? — repetiu Jarrot num tom arrastado e pesado. — Porquê à garagem?

— Porque quero conhecê-lo. Ter uma conversa sensata com ele a teu respeito — explicou Deville, dando-lhe uma palmada amigável no ombro. — Confia em mim, Claude. Tenciono ajudar-te. Foi essa, afinal, a razão que te levou a vires aqui, não?

Dirigiu-se ao quarto, vestiu um sobretudo escuro e pôs o chapéu preto, de coco, que nunca abandonava. Abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira ao lado da cama, de onde tirou uma automática. Ia, afinal, confrontar um homem que, a ser verdade tudo o que escutara naquela noite, era um assassino psicopata de primeira apanha.

Tomou o peso da arma na mão e, em seguida, atuando apenas por palpite e correndo o maior risco da sua vida, meteu-a novamente na gaveta. Regressou à outra divisão, onde Jarrot continuava às voltas com o brande.

— Estou pronto, Claude — declarou num tom jovial. — Vamos lá.

O concerto foi um êxito total. Mikali foi chamado repetidas vezes ao palco, enquanto a assistência exigia entusiasticamente que tocasse mais. Por fim, acedeu. Verificou-se um murmúrio de excitação seguido de um silêncio absoluto, quando se sentou ao piano. Uma pausa e começou a executar Le Pastour, de Gabriel Grovlez.

Estacionou o automóvel de aluguer a alguma distância da garagem e percorreu a pé o resto do caminho, sob pesada chuva. Tranquilamente, como Judas, enfiou pelo portão principal. Continuava a agarrar o revólver no bolso direito da gabardina. De pé, imerso em trevas, escutava a música abafada que lhe chegava do apartamento por cima da garagem.

Subiu as escadas sem fazer ruído e abriu a porta. A sala de estar estava meio às escuras, e a única luz provinha do candeeiro pousado na mesa, onde Jarrot ressonava ao de leve num sono de bêbado.

Tinha ao seu lado uma garrafa vazia de Napoléon e outra bastante deitada abaixo. Um transístor emitia música suave. Naquele instante a voz do locutor interrompeu para fornecer mais detalhes sobre a maciça caça da polícia ao assassino de Vassilikos e dos seus homens.

Estendeu o braço, desligou o rádio e, em seguida, tirou o Colt do bolso. Uma voz suave disse num excelente inglês, apenas com ligeiro sotaque francês:

— Se essa é a arma que estou a pensar, seria de fato um erro de primeira matá-lo com ela.

Deville saiu das sombras do fundo do quarto. Não despira o sobretudo preto e tinha uma bengala numa das mãos e o chapéu de coco na outra.

— Iriam retirar a bala do cadáver e testes forenses demonstrariam que se tratava da arma que foi utilizada contra Vassilikos e os seus homens. Tenho razão, não tenho? Não é é mesma arma? — Encolheu os ombros. — O fato não iria obviamente significar que descobrissem a sua pista, mas seria uma pena estragar uma operação tão inteligente com um ato de estupidez.

Mikali deteve-se, com o revólver encostado à perna.

— Quem é você?

— Jean-Paul Deville. Advogado criminal por profissão. Esta criatura é meu cliente. Foi visitar-me ao princípio desta noite e contou-me tudo. Temos uma relação pessoal, sabe? Sou, posso dizer, o seu confessor. Há um ano ou dois meteu-se em complicações com a OAS e livrei-o de sarilhos.

Levou a mão ao bolso. Mikali ergueu a arma.

— Vou só buscar um cigarro, garanto-lhe. — Deville mostrou uma cigarreira de prata. — Há anos que não disparo uma arma. Nada de instrumentos cortantes. Nada nas mangas. Todo este assunto está entre nós dois e este pobre porco embriagado. Não falou a mais ninguém.

— E acredita nele?

— A quem iria recorrer? Tal como um coelho assustado, refugiou-se na única toca segura que conhecia.

— Para lhe dizer que...

— Estava com medo que você tentasse matá-lo. Bastante aterrorizado. Contou-me tudo a seu respeito. Argélia, a Legião. Kasfa, por exemplo. Esse assunto impressionou-o profundamente. Também me explicou o motivo de tudo. O fato de Vassilikos ter torturado e assassinado o seu avô.

— E daí? — prosseguiu Mikali numa espera paciente.

— Podia ter escrito uma carta com todos estes pormenores antes de sair, esta noite, do meu apartamento. Tê-la metido no correio, com uma nota à minha secretária a pedir-lhe que a entregasse às pessoas indicadas no SDECE (1).

(1) 'SDECE — Polícia de Segurança do Estado. (N. da T.)

— Mas não o fez.

— Não.

— Por que não?

Deville foi até à janela e abriu-a. A chuva continuava a cair abundantemente. Ouvia-se o som do tráfego na noite.

— Diga-me uma coisa... Fala geralmente grego com um sotaque cretense, como o fez no parque?

— Não.

— Foi o que pensei. Um golpe genial, aliado ao chamamento de fascistas a Vassilikos e aos seus homens, diante do motorista. Significa, obviamente, que esta noite em Atenas andarão à caça de cada comunista, agitador, e membro da Frente Democrática em quem consigam pôr a mão.

— Pouca sorte a deles — observou Mikali. — A política aborrece-me, portanto faça o favor de ir direto ao principal.

— É, de fato, bastante simples, Mr. Mikali. O caos... o caos é a minha profissão. Tenho um interesse enorme, tal como os meus superiores, em criar o máximo no mundo ocidental. O caos, a confusão, o medo e a incerteza, como o que o senhor criou, porque o que hoje está a acontecer em Atenas acontece também em Paris. De manhã, não haverá um único agitador esquerdista na cidade que não esteja sob vigilância ou preso. Não só os comunistas mas também os socialistas. O Partido Socialista não irá gostar e muito em breve também os trabalhadores não gostarão, o que torna as coisas bastante difíceis para o Governo, com uma época de eleições à porta.

— Quem é você? — quis saber Mikali num tom calmo.

— Não o que pareço, e nisso somos iguais.

— Do Leste? Tão longe como Moscou, talvez?

— E isso é importante?

— Já lhe disse que a política me aborrece.

— Uma base excelente para o tipo de relação que procuro.

— — Nesse caso, o que pretende?

— Que você, meu amigo, repita a operação do Bosque de Meudon quando me for útil. Apenas em ocasiões muito especiais. Um contrato apenas entre os dois.

— Chantagem, então? — retorquiu Mikali, calmamente.

— Não seja estúpido. Podia matar-me agora... e a Jarrot. Sair daqui com toda a hipótese de ninguém ter armado em esperto. Quem neste mundo iria suspeitar de si? Santo Deus! Já tocou para a própria rainha de Inglaterra numa recepção especial em Buckingham Palace, no ano passado, certo? Quando faz escala em Londres, passando por Heathrow, o que lhe fazem?

— Levam-me para a sala dos VIP.

— Exato. E consegue recordar-se da última vez que qualquer Alfândega do mundo lhe tenha revistado a bagagem?

O que era verdade. Mikali pousou o Colt no parapeito da janela e puxou de um cigarro. Deville deu-lhe lume.

— Deixe que lhe especifique uma coisa. Tal como para si, também a política nada é para mim.

— Nesse caso, por que faz tudo isto?

— É o meu único passatempo — respondeu Deville com um encolher de ombros. — Sou feliz, porque a maioria das pessoas nem isso tem.

— E eu? Tenho? — retorquiu Mikali.

Deville virou-se. Naquele momento existia entre ambos uma estranha intimidade, parados e de pé, junto à janela, com o cheiro da chuva enchendo a atmosfera.

— A sua música? Não me parece. Muitas vezes senti pena dos artistas criativos. Músicos, pintores, escritores. Tudo é tão efémero, principalmente nas artes de execução. O auge dura muito pouco. Logo se começa a cair. Como no sexo. Ovídio soube expressá-lo perfeitamente, há mais de dois mil anos, e nada mudou desde então. Depois do coito, todos ficam deprimidos.

Expressava-se num tom de voz suave e extraordinariamente sensato. Um tom de pessoa civilizada e paciente. Por instantes, Mikali sentiu-se como que transportado à villa de Hidra, sentado em frente da lareira onde ardiam os toros de madeira, e escutando o avô.

— Mas esta noite... foi diferente. Apreciou tudo. Cada momento de perigo. Vou fazer uma previsão. Amanhã, os críticos musicais dirão que o concerto de hoje foi uma das suas melhores execuções.

— Sim — concordou Mikali. — Fui, de fato, bom. O gerente do teatro disse-me que a casa vai esgotar na sexta-feira.

— Na Argélia matou muita gente, certo? Aldeias inteiras... mulheres, crianças, era esse tipo de guerra. Esta tarde matou porcos.

Mikali contemplou a noite através da janela e avistou os fellagha dando a volta ao camião em chamas, em Kasfa, avançando em câmara lenta na sua direção, enquanto ele esperava, recusando teimosamente morrer, e com a boina vermelha comprimida de encontro às feridas.

Saíra vencedor, por quatro vezes, num combate frente à morte. Voltava a sentir a mesma excitação que lhe tirava a respiração. O caso no Bosque de Meudon fora exatamente o mesmo, sabia-o agora. Uma dívida pelo avô, claro, mas depois...

Ergueu as mãos.

— Nomeie uma partitura, qualquer concerto que quiser e, com elas, ofereço-lhe a perfeição.

— E mais — anuiu Deville num tom calmo. — Muito mais. Sei que também o sabe, meu amigo.

Mikali exalou um profundo suspiro.

— O que tem em mente para o futuro? — perguntou.

— É importante?

— De fato, não — respondeu Mikali, com um ligeiro sorriso.

— Ótimo, mas para começar, vou dar-lhe o que os meus amigos judeus chamam um mitzvah. Uma boa ação, pela qual nada espero em troca. Algo para si. O seu programa de digressões poderá levá-lo a Berlim na primeira semana de Novembro?

— Posso marcar datas em Berlim. É um sítio onde tenho sempre as portas abertas.

— Ótimo. O general Stephanakis estará numa visita de três dias à cidade, no dia 1º de Novembro. Caso deseje saber, era o superior imediato de Vassilikos. Pensei que tivesse algo mais do que um interesse passageiro por ele.

Mas, de momento, acho melhor fazermos qualquer coisa com o nosso amigo Jarrot.

— O que sugere?

— Para começar, mais um pouco de Napoléon pela garganta abaixo. Uma pena desperdiçar um conhaque tão bom, mas tem de ser. — Puxou a cabeça de Jarrot para trás, agarrando-o pelos cabelos e meteu-lhe o gargalo entre os dentes. Olhou por cima do ombro. — Espero que me consiga arranjar um bilhete para a atuação de sexta-feira. Não me agradava nada perdê-la.

Às cinco e meia da manhã seguinte, continuava a chover torrencialmente quando o polícia de patrulha da área parou junto ao acesso inclinado que levava ao Sena, do outro lado da Rua de Gagny.

Tinha o boné ensopado e sentia-se infelicíssimo, ao parar debaixo de um castanheiro para acender um cigarro. Quando o nevoeiro se levantou um pouco do rio, avistou algo a boiar na água, ao fundo do acesso.

Ao aproximar-se, verificou serem as traseiras de um camião Citroen, cuja parte da frente se encontrava debaixo de água. Meteu-se dentro da água gelada, respirou fundo, agarrou na maçaneta da porta e abriu-a. Veio à superfície com Claude Jarrot nos braços.

Durante o interrogatório, que se efetuou uma semana depois, o relatório médico indicou uma quantidade de álcool no sangue três vezes superior à permitida para os condutores de veículos. O veredicto do médico legista foi simples: morte acidental.

O concerto na sexta-feira correspondeu às expectativas, e o próprio ministro do Interior esteve presente na recepção, conversando a um canto da sala com o embaixador grego. Quando a multidão de fãs se cerrou à volta de Mikali, Deville aproximou-se.

— Ainda bem que veio — cumprimentou Mikali, apertando-lhe a mão.

— Não teria faltado por nada, caro amigo. Foi brilhante... bastante mesmo.

Mikali deitou um olhar de relance à sala a abarrotar, cuja frequência se compunha principalmente das pessoas mais famosas e importantes de Paris.

— É estranho como subitamente me senti tão longe de tudo isto.

— Só, no meio da multidão?

— Acho que é isso.

— Senti-me mais ou menos assim durante cerca de vinte e cinco anos. A grande jogada. Caminhando à beira do abismo. Sem certezas quanto a durações de tempo. À espera do dia final. A pancada na porta. Tem uma excitação muito particular — sorriu Deville.

— Como estar constantemente no auge? — retorquiu Mikali. — Acha que esse tal seu dia final acabará por chegar?

— Provavelmente quando menos o esperar e pelo mais estúpido e trivial dos motivos.

— Não se vá embora — pediu Mikali. — Tenho de dar uma palavra ao ministro do Interior. Vemo-nos mais tarde.

— Claro.

Entretanto, dizia o ministro do Interior para o embaixador da Grécia:

— É óbvio que estamos a fazer tudo ao nosso alcance para limpar esta... esta mancha à honra francesa. Mas, para lhe falar honestamente, Embaixador, este seu cretense parece ter desaparecido da superfície da terra. Apenas de momento, porém. Tem a minha promessa de que, mais cedo ou mais tarde, o apanharemos.

Mikali escutou estas palavras ao aproximar-se.

— Sinto-me muito honrado com a presença de Vossas Excelências aqui, esta noite — sorriu.

— Foi um privilégio, Monsieur Mikali. — O ministro estalou os dedos e logo um empregado se aproximou com champanhe numa bandeja. Todos tiraram uma taça. — Uma execução surpreendente!

— À sua saúde, meu caro Mikali, e ao seu gênio — elogiou o embaixador grego, levantando a taça. — A Grécia orgulha-se de você.

Ao mesmo tempo que Mikali erguia a taça, Jean-Paul Deville brindou-o pelo espelho.

O general George Stephanakis alojou-se no Hotel Hilton, em Berlim Ocidental, na tarde de 2 de Novembro. A gerência deu-lhe uma suite no quarto andar, com quartos adjacentes para os ajudantes. Certificaram-se, igualmente, num gesto de cortesia, de que o criado de quarto e a camareira fossem gregos.

Esta última chamava-se Zia Boudakis, tinha dezanove anos, e era uma mocinha de cabelo preto e pele de tom de azeitona. Dali a alguns anos teria provavelmente problemas de peso, mas não ainda, nem naquela noite em que, servindo-se da chave suplente, se introduziu na suíte. Tinha uma aparência inegavelmente atraente, com as meias pretas e o uniforme curto e preto.

Tinham-na informado de que o general voltaria às oito e, por conseguinte, logo se ocupou a abrir as camas e a limpar a suíte. Dobrou as colchas e, em seguida, virou-se para as guardar no armário, fazendo deslizar a porta.

O homem que estava no interior tinha calças e camisa pretas, a cabeça tapada com uma máscara preta, que apenas deixava a descoberto os olhos, o nariz e os lábios. Reparou que tinha uma corda enrolada à volta da cintura e que a mão com que lhe agarrou a garganta, abafando o grito, estava enluvada. Em seguida, viu-se com ele no escuro do armário, a porta fechada e deixando apenas uma fresta através da qual se avistava o quarto.

Diminuiu a pressão e, aterrorizada, falou instintivamente em grego:

— Não me mate!

— Ei! Uma grega! — exclamou o homem com grande surpresa da jovem ao ouvi-lo falar a sua língua.

Reconheceu imediatamente o sotaque. — Oh, meu Deus! É o Cretense!

— Acertaste, amor! — Virou-a, sem deixar de lhe apertar ligeiramente o pescoço. — Se fores boa moça, não te farei mal. Mas se não fores e tentares avisá-lo, mato-te.

— Prometo — gemeu ela.

— Ótimo. A que horas volta?

— Às oito.

— Temos vinte minutos de espera — disse, consultando o relógio. — Vamos arranjar uma posição mais confortável, certo?

Encostou-se à parede, agarrando-a de encontro ao corpo. Ela deixara de ter medo, pelo menos tanto como ao vê-lo, e sentia-se estranhamente excitada ao tomar consciência do volume do sexo duro e da mão a rodear-lhe a cintura. Começou a mover-se, roçando-o, num ligeiro movimento primeiro e, em seguida, com maior pressão quando ele se riu e a beijou no pescoço.

Estava mais excitada do que alguma vez se sentira, ali no escuro, virada para o homem, numa oferta muda, quando ele a empurrou contra a parede, levantando-lhe a saia preta bem acima das coxas.

Passados uns instantes, atou-lhe suavemente os pulsos atrás das costas e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Já tiveste o que querias, portanto sê boa menina e mantém-te quieta.

Colocou-lhe um lenço na boca para a amordaçar, novamente com uma surpreendente suavidade, e esperou. Ouviu-se o som de uma chave na fechadura, a porta abriu-se, e o general Stephanakis entrou com dois ajudantes.

Estavam todos fardados. Virou-se e anunciou: — Vou tomar uma ducha e mudar de roupa. Voltem daqui a quarenta e cinco minutos. Jantamos aqui.

Fizeram a continência, saíram e ele fechou a porta. Stephanakis deixou cair o boné em cima da cama e começou a desabotoar a túnica do uniforme. A porta do guarda-roupa deslizou nas suas costas, e Mikali saiu. Na mão direita, segurava uma pistola com silenciador. Stephanakis olhou-o, estupefato, e Mikali puxou a máscara para cima.

— Oh, Santo Deus! — exclamou o general. — Tu... tu és o Cretense]

— Bem-vindo a Berlim! — saudou Mikali. E disparou.

Apagou todas as luzes, pôs novamente a máscara, em seguida abriu a janela e desenrolou a corda que trazia em volta da cintura. Alguns minutos depois, deixava-se cair no telhado de uma garagem, no escuro, quatro andares abaixo. No treino, em Gasfa, na costa marroquina, durante os velhos tempos, um paraquedista da Legião tinha de descer um rochedo de mil metros a pique, preso numa corda, ou chumbava no curso.

A salvo no telhado, puxou a corda, enrolou-a de novo rapidamente à volta da cintura, e em seguida saltou para o chão.

Parou junto a uns caixotes do lixo, na rua, e livrou-se da máscara, que dobrou cuidadosamente e meteu no bolso. Tirou, em seguida, um vulgar saco de papel detrás dos caixotes do lixo, do interior do qual surgiu uma gabardina vulgar, escura. Vestiu-a.

Alguns momentos depois afastava-se a passo brusco, através das ruas noturnas, de regresso ao hotel. Às nove e meia, estava na Universidade de Berlim, dando um recital de obras de Bach e de Beethoven, numa sala de concertos apinhada.

Na manhã seguinte, Jean-Paul Deville recebeu um telegrama de Berlim. Dizia simplesmente: Sen mitzavh muito apreciado. Talvez possa fazer o mesmo por si alguma vez.

Não havia assinatura.


CAPÍTULO 2

Os serviços secretos ingleses, conhecidos mais exatamente como MI5, não existem oficialmente, nem tampouco são reconhecidos legalmente, embora de fato ocupem um amplo edifício de tijolo branco e vermelho no West End de Londres, a pouca distância do Hotel Hilton.

Utiliza homens sem rosto e anónimos, que passam todo o tempo numa batalha constante de perícia, destinada a controlar as atividades dos agentes de potências estrangeiras em Inglaterra e, cada vez mais, o que se tornou um problema ainda mais grave, das forças do terrorismo europeu.

No entanto, o DI5 apenas pode efetuar investigações. Não tem poderes para prender. A sua eficácia depende, em última análise, da cooperação do Departamento Especial da Polícia Metropolitana da Scotland Yard. São eles que fazem as prisões, para que os homens anónimos dos DI5 nunca tenham de aparecer em tribunal.

Tal explicava o porquê, na noite do atentado a Maxwell Cohen, de ser o inspetor-chefe Harry Baker quem se deslocara à morgue, num Jaguar da Polícia. Pouco passava das nove, quando ele subiu apressadamente as escadas do sinistro edifício situado em Cromwell Road.

Baker era natural de Yorkshire, em Halifax, no West Riding. Há vinte e cinco anos que era polícia. Um espaço de tempo suficiente para ter caído no desagrado do público, e trabalhar num sistema de três turnos, que apenas proporcionava um fim de semana em sete, passado em casa com a família. Um fato em relação ao qual a mulher deixara de fazer comentários pelo simples motivo de que fizera as malas e o deixara, há cinco anos atrás.

Baker tinha cabelo grisalho, a cana do nariz partida, uma relíquia dos tempos em que jogava rúgbi e que lhe dava o ar de um pugilista profissional. O que era uma ilusão na medida em que nele se albergava uma das mentes mais perspicazes do Departamento Especial.

O seu ajudante, o inspetor-detetive George Stewart, esperava no foyer, fumando um cigarro. Deixou-o cair no chão, pisou-o, e foi ao encontro dele.

— Muito bem... Quero saber tudo — disse Baker.

— Jovem de catorze anos: Megan Helen Morgan. — Nesse momento, tinha o bloco de apontamentos aberto.

— Mãe, Mrs. Helen Wood. Casada com o reverendo Francis Wood, dirigente da paróquia de Durham, em Essex. Falei com ele ao telefone, há uma meia hora. Já vêm a caminho.

— Um minuto — interrompeu Baker. — Começo a ficar um tanto confuso.

— A senhoria da jovem está lá dentro, Sir . Uma tal Mrs. Cárter.

Abriu uma porta com o indicativo de Sala de Espera, e Baker entrou. A mulher sentada junto à janela era robusta, de meia-idade, e vestia uma gabardina castanha. Tinha os olhos inchados de chorar.

— Apresento-lhe o inspetor-chefe Baker. É ele o encarregado do caso, Mrs. Cárter — anunciou Stewart. — Importa-se de lhe contar o que já me contou?

— Megan mora comigo — respondeu num sussurro.

— A mãe vive em Essex.

— Sim, sabemos disso.

— Andava na Escola Itália Conte. Em aulas de canto, dança, drama, essas coisas, sabe? Queria ser atriz. Esse o motivo porque estava hospedada em minha casa — voltou a explicar num tom paciente.

— E esta noite?

— Estiveram a ensaiar a tarde inteira para uma revista musical que andam a preparar. Avisei-a de que tivesse cuidado. — Virou-se, olhando através da janela com uma expressão vazia. — Nunca gostei que andasse de noite naquela bicicleta.

Fez-se um silêncio. Baker pousou-lhe a mão no ombro, depois do que esboçou um aceno de cabeça dirigido a Stewart, e saíram.

— O doutor Evans já chegou?

— Vem a caminho, Sir . Quer ver o corpo?

— Não. Prefiro deixar esse pormenor desagradável para mais tarde. Seja como for, Evans não pode iniciar a autópsia sem a mãe ter feito a identificação formal.

— Alguma notícia sobre Mr. Cohen, Sir?

— Continua vivo, é o que se pode dizer, com uma bala no cérebro. Estão agora a operar.

— Vai esperar aqui até à chegada de Mrs. Wood?

— Sim. Acho que sim. O comissariado sabe onde estou. Veja se consegue arranjar-nos uma xícara de chá.

Stewart saiu e Baker acendeu um cigarro, voltou-se, e olhou através das portas envidraçadas. Há muitos anos que não se sentia tão ansioso. Entre outros deveres, cabia ao Departamento Especial a incumbência de atuar como guarda-costas junto de chefes de Estado de visita ao país e outros VIP importantes. O Departamento orgulhava-se precisamente do fato de nunca ter falhado ainda nessa tarefa especial.

No entanto, o caso dessa noite, envolvendo Max Cohen, era uma coisa diferente. Terrorismo internacional do género mais temível, ali em Londres.

Stewart apareceu com chá em dois copos de papel.

— Alegre-se, Sir . Vamos apanhar esse filho da mãe.

— Não, se é quem eu penso — retorquiu Harry Baker.

Nesse momento, John Mikali voltava a ser chamado ao palco, a fim de receber uma nova e clamorosa ovação do público, em pé. O superintendente cénico esperava-o com uma toalha na mão. Mikali limpou o suor que lhe escorria do rosto.

— É tudo — disse. — Se quiserem mais, terão de comprar bilhetes para terça-feira.

A sua voz era atraente, cheia de personalidade, o que algumas pessoas chamariam um bom Boston americano, e se enquadrava com o encanto lânguido para que mudava imediatamente assim que as circunstâncias o exigiam.

— A maior parte já o fez, Mr. Mikali — sorriu o superintendente cénico. — Tem o champanhe à espera no camarim. Visitas?

— Nenhuma com menos de vinte e um anos, George — sorriu Mikali. — Tive uma semana muito juvenil.

Na sala dos artistas livrou-se do fraque e da camisa e enfiou um roupão turco. Em seguida ligou o rádio portátil que estava em cima da mesa de maquilhagem e estendeu a mão para a garrafa de champanhe Krug. Meteu um pouco de gelo picado no fundo da taça e encheu-a.

Enquanto saboreava o primeiro gole delicioso e gelado, a música na rádio foi interrompida por um noticiário de última hora. Mr. Maxwell Cohen, vítima de um assassino desconhecido que o atacara ao princípio da noite, tinha sido operado com êxito. Estava, de momento, sob uma rígida vigilância policial. O diagnóstico deixava antever uma recuperação total.

Fontes do noticiário estrangeiro comunicavam que a responsabilidade do ataque fora reivindicada pela organização Setembro Negro, o grupo de vingança de Al Fatah, formado durante 1971, a fim de eliminar todos os inimigos da revolução palestina. Apresentavam como argumento o considerável apoio de Maxwell Cohen ao sionismo.

Mikali fechou momentaneamente os olhos, tomou consciência do camião em chamas, dos quatro fellagha que dele se aproximavam e do sorriso na face do líder, o que tinha a faca na mão. E, em seguida, a imagem mudou para a escuridão do túnel, o rosto pálido e aterrorizado da jovem da bicicleta, avistado de relance.

Abriu os olhos, desligou o rádio e brindou a si próprio, olhando-se no espelho.

— Abaixo da perfeição, meu velho. Abaixo da perfeição, o que não serve de nada.

Soou uma pancada na porta. Ao abrir, o corredor parecia abarrotar de jovens, na sua maioria estudantes, a julgar pelos cachecóis com os símbolos universitários.

— Podemos entrar, Mr. Mikali?

— Por que não? — sorriu John Mikali, ao mesmo tempo que o encanto com um misto de insolência ocupava o lugar devido. — A vida está aqui com o grande Mikali. Entrem e vejam.

Baker estava de pé, no foyer da morgue, na companhia de Francis Wood. Não tinha um aspecto particularmente sacerdotal. Baker calculou que devia andar na casa dos sessenta. Era um homem alto, de aspecto bondoso, com uma barba grisalha que precisava de ser aparada. Vestia um casaco escuro e uma camisa azul de gola alta.

— A sua mulher, Sir ? — inquiriu Baker com um aceno na direção de Helen Wood, que estava junto à porta a falar com Mrs. Cárter. — Vejo que aceita tudo o que se passou com um comportamento extraordinário.

— É uma pessoa com uma natureza muito especial, inspetor. Pinta, sabe? Na maioria, aquarelas. Era bem conhecida quando usava o seu antigo nome.

— Morgan, Sir ? Sim. Já me tinha interrogado sobre esse assunto. Mrs. Wood era viúva, presumo?

— Não, inspetor, divorciada — explicou Francis Wood com um esboço de sorriso. — Decerto o surpreende esta perspectiva da Igreja inglesa. A explicação é bastante simples. Servindo-me de um termo antigo, tenho os meus meios próprios. Posso dirigir o barco. Houve um espaço de um ou dois anos, quando nos casamos, em que me vi sem emprego. Depois o meu bispo atual escreveu-me a falar na paróquia de Durham. Não será o fulcro do universo, mas aquela gente há seis anos que não tinha pároco e mostrava-se disposta a aceitar-me. E devo acrescentar que o meu bispo é uma pessoa de opiniões extremamente liberais.

— E o pai da criança? Onde podemos contatá-lo? Será preciso notificá-lo.

Antes de Wood poder responder, Mrs. Cárter saiu e a mulher voltou-se e aproximou-se deles. Trinta e sete anos de idade, segundo Baker apurara das informações fornecidas por Stewart, mas parecia dez anos mais nova. Tinha um cabelo louro-cinza que usava apanhado na nuca, um rosto de uma beleza extraordinária, e os olhos mais calmos que alguma vez vira. Vestia um velho impermeável militar que dantes ostentara as três divisas correspondentes ao posto de capitão e os olhos perspicazes do polícia notaram que haviam sido arrancadas.

— Lamento ter de lhe fazer este pedido, Mrs. Wood, mas terá de proceder à identificação formal.

— Se quiser ter a bondade de me indicar o caminho, senhor inspetor — disse ela num tom baixo e suave.

O Dr. Evans,, o patologista, estava à espera na morgue, ladeado por dois ajudantes que já tinham vestidas batas brancas, botas, e as compridas luvas de borracha de um tom verde-claro.

A divisão estava iluminada por uma luz fluorescente tão intensa que feria a vista. Alinhadas, via-se uma fila de meia dúzia de mesas operatórias de aço inoxidável.

A menina estava deitada de costas, na mesa que se encontrava mais próximo da porta, tapada com um lençol branco e a cabeça soerguida por um apoio de madeira. Helen Wood e o marido aproximaram-se, seguidos de Baker e de Stewart.

— Não vai ser nada agradável, Mrs. Wood, mas é uma coisa que tem de ser feita — disse Baker.

— Por favor — pediu ela.

Fez um aceno de cabeça a Evans que levantou o lençol, expondo apenas a cabeça. A jovem tinha os olhos fechados, o rosto sem marcas, só que o resto da cabeça estava metido num capacete de borracha branco.

— Sim — murmurou Helen Wood. — É Megan. Evans tapou novamente o rosto e Baker disse:

— Podemos ir.

— O que lhe vai acontecer? — murmurou Helen. — A ela. Foi Francis Wood a responder:

— Têm de a autopsiar, minha querida. É a lei. Para descobrir a causa legal da morte a ser indicada no relatório do médico legista.

— Quero assistir — decidiu.

Foi Baker que, instintivamente, bateu na tecla certa.

— Pode ficar, se quiser, mas daqui a cinco minutos julgará estar num talho. E não me parece que queira ficar com essa recordação dela.

Foi brutal, direto, e atuou de tal forma que os nervos da mulher a atraiçoaram de imediato. Cambaleou de encontro a Wood, semidesmaiada; Stewart apressou-se a ajudá-lo. Levaram-na juntos para fora da sala.

Baker virou-se para Evans e apenas lhe conseguiu ler piedade no rosto.

— Sim. Eu sei, doutor. O raio de uma maneira de ganhar a vida.

Saiu. Evans virou-se e fez um aceno. Um dos técnicos ligou o gravador, enquanto o outro retirava o lençol que cobria o cadáver da menina.

Evans começou a falar num tom seco e desprovido de emoção:

— Hora, vinte e três e quinze. Vinte e um de Julho de mil novecentos e setenta e dois. Patologista de serviço, Mervyn Evans, catedrático em patologia forense, Faculdade de Medicina da Universidade de Londres. Indivíduo do sexo feminino, idade de catorze anos e um mês. Megan Helen Morgan. Morreu aproximadamente às dezanove e quinze de hoje, como resultado de atropelamento e fuga.

Esboçou um aceno e um dos técnicos puxou para trás a proteção de borracha, revelando indícios óbvios de fratura do crânio.

Continuando a falar no mesmo tom de voz e descrevendo todos os movimentos, Evans pegou no bisturi e aplicou-o ao crânio.

Francis Wood atravessou as portas giratórias e foi encontrar Baker e Stewart à sua espera no foyer.

— Não demorará a ficar bem. Está no automóvel.

— O que tenciona fazer, Sir ? Ir para um hotel?

— Não. Ela quer ir para casa.

— Terá dificuldade em conduzir a esta hora da noite, por essas estradas da região de Essex.

— Fui padre no Regimento de Artilharia na Coreia, no Inverno de mil novecentos e cinquenta, quando um milhão de chineses saiu da Manchúria e nos perseguiu pelo Sul. Conduzi um camião Bedford através de uma densa camada de neve durante cinquenta quilómetros, e nunca estiveram muito longe de nós. Tínhamos falta de motoristas, sabe?

— Um raio de maneira de praticar — comentou Baker.

— Um dos aspectos interessantes da vida, inspetor, é o de que algumas experiências são tão terríveis, que o que vem depois se assemelha a um bónus.

Estavam agora a falar por falar e ambos o sabiam.

— Apenas uma coisa, Sir — acrescentou Baker. — Recebi um telefonema dos meus superiores. Segundo parece, e por questões de segurança, não será tornada pública qualquer relação entre a morte da sua filha e o caso Cohen. Espero que o senhor e a sua mulher aceitem as circunstâncias.

— Francamente, inspetor, presumo que lhe não será difícil concluir que a minha mulher preferirá que este terrível assunto receba o mínimo de publicidade possível.

Voltou-se e dirigiu-se à porta, mas seguidamente fez uma pausa.

— Estávamos, no entanto, a esquecer um detalhe. Interrogou-me quanto ao pai de Megan.

— Exato, Sir . Onde podemos contatá-lo? — Baker fez um aceno e Stewart tirou o bloco de notas do bolso.

— Bastante difícil, receio. Está fora do país.

— No estrangeiro?

— Depende inteiramente do seu ponto de vista. Neste momento, inspetor, está em Belfast. Coronel Asa Morgan, Regimento de Paraquedistas. O departamento indicado do Ministério da Defesa será capaz de o ajudar a contatá-lo, julgo, mas está certamente muito mais dentro do assunto do que eu.

— Claro, Sir . Deixe tudo por nossa conta.

— Nesse caso, despeço-me.

A porta bateu atrás dele. Stewart disse:

— Coronel Asa Morgan, Regimento de Paraquedistas. Quer saber uma coisa Sir ? Acho que um homem destes não vai ficar nada satisfeito com a notícia.

— Além de que será a declaração da era sangrenta — rematou Baker violentamente.

— Conhece-o, Sir ?

— Sim. Digamos que sim.

Baker dirigiu-se imediatamente ao cubículo do porteiro, telefonou para a Scotland Yard e pediu que o pusessem em comunicação com o subdelegado governamental, Joe Harvey, Diretor do Departamento Especial, e que sabia haver-se instalado de saco-cama para passar a noite no seu gabinete.

— Daqui, Harry Baker, Sir — disse, quando Harvey respondeu. — Estou na morgue. A moça que o nosso amigo atropelou no túnel Paddington no momento da fuga... a mãe acabou de proceder à identificação. Uma tal Mrs. Helen Wood.

— Julguei que o nome da miúda fosse Morgan?

— A mãe é divorciada, Sir . Voltou a casar com um pároco. — Baker hesitou. — Escute bem, Sir . Não vai gostar nada do que lhe vou comunicar. O pai...

Hesitou novamente.

— Diga o que tem a dizer, Harry, Pelo amor de Deus — pediu Harvey.

— É Asa Morgan.

Fez-se um momento de silêncio e, em seguida, Harvey comentou:

— Deus do céu! Só nos faltava esta.

— Da última vez que tivemos notícias dele, encontrava-se em Omã, em tréguas com a Força Aérea Especial. Sabe o que é, George?

Baker mantinha-se, de pé, junto à janela do gabinete. Passava um pouco da meia-noite e a chuva tamborilava de encontro à vidraça.

— Não posso responder afirmativamente, Sir — disse Stewart, passando-lhe uma xícara de chá.

— É o que os militares designam como uma unidade de elite. O Exército deseja levantar o mínimo de ondas a respeito deles. Qualquer soldado a prestar serviço se pode oferecer como voluntário. Julgo que o tempo de três anos é suficiente.

— E o que fazem exatamente?

— Tudo o que os outros acham duro em excesso. O mais parecido com as SS que temos no Exército britânico. Neste momento estão em Omã, ao serviço do sultão, fazendo a vida num inferno aos rebeldes marxistas das montanhas. Serviram, igualmente, na Malásia, durante a Emergência. Foi o meu primeiro contato com eles.

— Desconhecia que tinha estado lá, Sir .

— Não estavam a sair-se muito bem com a clandestinidade comunista chinesa e, portanto, resolveram ver se policiais oficiais conseguiam ajudar. Foi nessa altura que conheci o Morgan.

— Mas o que há nele assim de tão especial, Sir ? — quis saber Stewart.

— Escolheste a palavra certa, não há dúvida — retorquiu Baker, enchendo o cachimbo lentamente. — Asa deve, neste momento, andar próximo dos cinquenta anos. Um filho de um mineiro galês do Rhondda. Não sei o que lhe aconteceu no princípio da guerra, mas sei que foi um desses pobres sodas que largaram em Arnhem. Nessa altura, era sargento. Recebeu depois a promoção a ajudante de segundo-tenente.

— E em seguida?

— Palestina. Costumava dizer que foi nessa altura que "tomou o gosto" às guerrilhas urbanas. Foi seguidamente destacado para os Carabineiros do Ulster quando partiram para a Coreia. Capturado pelos chineses. Esses filhos da mãe conservaram-no prisioneiro durante um ano. Sei que algumas pessoas pensaram que toda aquela lavagem ao cérebro, que usaram nos nossos rapazes que lá estiveram, lhe tinha subido à cabeça.

— O que quer dizer com isso, Sir ?

— Quando regressou, escreveu este tratado sobre o que considerava um novo conceito de guerra revolucionária. Não deixava de citar Mao com se fosse a Bíblia. Suponho que o Estado-Maior concluiu que ou se tornara comunista ou sabia do que estava a falar e, por conseguinte, enviaram-no para a Malásia. Foi lá que o conheci. Trabalhamos juntos durante bastante tempo.

— E obtiveram êxito?

— Ganhamos, ou não? A única insurreição comunista que conseguimos esmagar na Segunda Guerra Mundial foi a malaia.

— E Morgan?

— Voltei a vê-lo, durante uns tempos, em Nicósia, naquele caso de Chipre, quando fui destacado para o mesmo tipo de assunto. Agora que penso nisso, recordo-me que acabara de casar antes de sair de Inglaterra. Recordo-me disso, agora, e portanto a idade da criança está certa. Lembro-me de ouvir dizer que esteve em Adem, em mil novecentos e sessenta e sete, por ter sido distinguido ao salvar o pescoço a um bando de montanheses escoceses de Argyll, e de Sutherland que se emboscaram no distrito de Crater.

— Parece um homem a sério.

— Oh, sim. É essa a expressão. O tipo de monge-soldado. O Exército significa tudo para ele. A família e a pátria unidas numa só coisa. Não me admira que a mulher o tenha deixado.

— Interrogo-me sobre o que fará, quando receber a notícia do que aconteceu à filha.

— Só Deus sabe, George, mas consigo imaginar.

O vento fez bater a janela e, lá fora, a chuva bateu de encontro aos telhados, soprada do Tamisa.


CAPÍTULO 3

No entanto, em Belfast, nesse mesmo dia, tinham acontecido fatos invulgares também. Um dia que viria a ser conhecido na história da guerra do Ulster como a Sexta-Feira Sangrenta.

A primeira bomba explodiu às catorze horas e dez minutos na Estação Rodoviária de Smithfield, e a última às quinze e quinze no Shopping Cavehill Road.

Vinte e duas bombas ao todo, em lugares espalhados pela cidade, geralmente onde se esperava que a essa hora houvesse grandes aglomerações. Protestantes ou católicos, era indiferente. No fim do dia, contaram-se nove mortos e cento e trinta feridos.

À meia-noite, o Exército continuava a atacar em força. Um número não inferior a doze das bombas detonadas nesse dia ocorreu na área da New Lodge Road, que se encontrava sob a responsabilidade do 40º Comando dos Fuzileiros Navais.

Numa travessa pejada de vidros e cascalho, a pouca distância da New Lodge Road, uma dúzia de fuzileiros navais mantinha-se acocorada junto a um muro, em frente do que tinha sido o Cohan's Select Bar, nesse momento a arder. Dois oficiais contemplavam a cena, no meio da rua. Um deles era um tenente dos Fuzileiros. O outro usava a boina vermelha de paraquedista e um uniforme de camuflagem, aberto no pescoço, sem dragonas de qualquer tipo e sem casaco.

Tinha o rosto sombrio e irado de um indivíduo que aprendera a conhecer o mundo em que vivia bem demais e que apenas sentia desprezo por ele. Era um homem baixo e moreno, de ombros largos, cheio de uma vitalidade inquieta que era um tanto acentuada pela bengala de bambu com que batia, ao de leve, no joelho direito.

— Quem é o tipo? — sussurrou um fuzileiro para outro.

— Dirige o Departamento Especial do Estado-Maior. É o coronel Morgan. Um bom filho da mãe, segundo ouvi dizer — respondeu-lhe o companheiro a seu lado.

No telhado de um bloco de apartamentos, a uns cem metros, dois homens mantinham-se acocorados junto ao parapeito. Um deles era Liam O'Hagan, na altura o líder dos Serviços Secretos do IRA Provisório no Ulster. Examinava a cena no exterior do Cohan's Bar com a ajuda de binóculos Zeiss adaptáveis ao escuro.

O jovem ao seu lado transportava uma espingarda convencional 303 Lee Enfield, de um tipo na altura da preferência tanto do Exército britânico como dos atiradores de precisão do IRA. Estava munida com uma lente de aumento de infravermelhos, para lhe permitir buscar um alvo no meio das' trevas.

Nessa altura estava precisamente a fazer pontaria, tendo apoiado o cano no parapeito.

— Primeiro vou dar cabo do maldito paraquedista.

— Não, não vais — contrapôs O'Hagan num tom calmo.

— Por que não?

— Porque eu assim o digo.

Um Land-Rover deu a volta à esquina, lá em baixo, seguido por um outro muito próximo. Haviam sido reduzidos ao essencial e, por conseguinte, tanto o motorista como os três soldados acocorados nas traseiras de cada um dos veículos estavam completamente expostos. Eram paraquedistas, jovens eficientes e de aparência dura, com boinas vermelhas e casacos da artilharia antiaérea, e metralhadoras ligeiras Sterling prontas a entrar em ação.

— Importa-se de olhar para aquilo, então? A pedir mesmo que sejam abatidos, os estúpidos sacanas. Não me diga que não posso atingir um deles?

— Seria a última jogada — contrapôs O'Hagan. — Sabem exatamente o que estão a fazer. Aperfeiçoaram essa técnica de ataque descoberto, em Adem. A tripulação de cada um dos veículos vela pela do outro. Sem tanques que bloqueiem o avanço, estão preparados para ripostar no momento.

— Malditas SS — praguejou o jovem.

— Que raio de comentário da boca de um homem que outrora esteve ao serviço do rei — riu O'Hagan.

Lá em baixo, Asa Morgan subiu para o lado do motorista que seguia no primeiro Land-Rover e os dois veículos afastaram-se.

O tenente dos Fuzileiros deu uma ordem, e a equipa começou a atuar. A rua estava, agora, silenciosa, ouvindo-se apenas o crepitar das chamas no Cohan's Bar, devido à explosão ocasional de uma botija quando atingida pelo calor.

— Deus do céu! Que desperdício de bom uísque! — exclamou Liam O'Hagan. — Ah! Bom. Lá chegará o dia, conforme me dizem os camaradas sociais-democratas, em que não só a Irlanda acordará livre e unida mas também com uísque na torneira, como água corrente, em todos os lares decentes.

Esboçou um sorriso e deu uma palmada no ombro do rapaz.

— E agora, Seumas, meu caro, acho que chegou a altura de nos pormos a mexer.

Morgan conservava-se de pé, no gabinete dos Comandos no Grande Hotel Central, na Royal Avenue, a base do regimento principal da cidade, e que servia de alojamento a quinhentos soldados.

Fixava inexpressivamente a mensagem que tinha na mão, e o jovem oficial do Estado-Maior que a trouxera do quartel-general mexeu-se, pouco à vontade.

— O general no comando encarregou-me de lhe transmitir os seus sentidos pêsames. Autorizou a sua deslocação a Londres no primeiro avião disponível.

— É muita bondade da sua parte — retorquiu Morgan, franzindo o sobrolho. — E a operação Moiormaril — As suas incumbências serão transmitidas a uma outra pessoa, coronel. Ordens do Ministério da Defesa.

— Nesse caso, acho melhor começar a fazer as malas. Algures, à distância, ouviu-se o impacto surdo de uma explosão e o disparar de uma metralhadora. O jovem oficial estremeceu.

— Nada de preocupante — observou Asa Morgan. — Somente o eco da noite de Belfast. — Seguidamente abandonou o gabinete.

A paróquia de Durham situava-se em Essex, a pouca distância do Blackwater River. Uma região pantanosa, com ribeiros, relva crescida tendente a mudar rapidamente de tonalidade como que sob a influência de um ser invisível, o gorjear da água por todo o lado. Um mundo estranho, habitado na maioria por pássaros. Maçaricos, fuselos e gansos vinham do sul, dos lados da Sibéria, para passar o Inverno.

A aldeia era uma comunidade pequena e dispersa, de origem saxónica, o que era, pelo menos, comprovado pela cripta da igreja, embora o restante fosse normando.

Francis Wood estava a trabalhar no cemitério, a aparar a relva com um velho corta-relva manual, quando o automóvel desportivo metalizado se deteve junto ao portão e Asa Morgan saiu. Vestia calças largas e camisa de gola alta azul com uma casaco marrom.

— Como está, Francis? — cumprimentou.

Francis Wood desviou o olhar na direção do Carrera Targa.

— Continua fiel ao Porsche, estou vendo.

— Não tenho mais nada em que gastar o dinheiro. Conservo o apartamento em Gresham Place. Tem uma garagem na cave e acho-o muito confortável.

Das faias que os rodeavam voaram gralhas, que fizeram uma barulheira enorme sobre as suas cabeças.

— Lamento, Asa. Mais do que as palavras me permitem.

— Quando é o funeral?

— Amanhã, à tarde. Duas e meia.

— Vai celebrar?

— A não ser que tenha qualquer objecção.

— Não seja estúpido, Francis. Como está a Helen a reagir?

— Ainda não teve uma quebra nervosa. Se quiser falar com ela, está junto da represa, a pintar. Se fosse a si, pisaria o terreno cautelosamente.

— Porquê?

— Explicaram-lhe certamente as circunstâncias da morte de Megan?

— Foi atropelada mortalmente por um condutor que fugiu.

— Houve mais do que isso, Asa.

— Nesse caso, seria melhor ter-me contado tudo, não? -— retorquiu Morgan, olhando-o com uma expressão vazia.

Morgan seguiu pelo caminho através do portão, dando a volta ao edifício de pedra da paróquia com a sua cobertura de telhas curvas e dirigindo-se, ao longo do dique, na direção do estuário. Avistou-a à distância, sentada junto ao cavalete e vestindo o velho impermeável militar que lhe comprara no dia em que tinham casado.

Ela olhou por cima do ombro ao senti-lo aproximar-se e seguidamente continuou a pintar. Morgan deixou-se ficar de pé, algum tempo, nas suas costas, sem pronunciar

uma palavra. Tratava-se, obviamente, de uma aquarela, a sua expressão artística favorita. Uma vista dos pântanos e do mar, acompanhada de um céu cinzento e chuvoso como fundo, e que era, no conjunto, muito bonita.

— Estás a melhorar — cumprimentou.

— Olá, Asa.

Sentou-se num banco de relva ao seu lado, fumando, e ela continuou a pintar sem o olhar uma vez que fosse.

— Que tal Belfast?

— Nada por aí além.

— Ainda bem — comentou. — Estão bem um para o outro.

— Sempre julguei que essa frase tivesse um sentido particular no que nos dizia respeito — retorquiu ele calmamente.

— Não, Asa. Nunca te cheguei a ter na vida.

— Também nunca me esforcei por ser diferente do que na realidade sou.

— Fomos juntos para a cama na nossa noite de casamento, e acordei, de manhã, com um estranho ao meu lado. Sempre que surgia qualquer combate, por insignificante que fosse, eras o primeiro a ofereceres-te como voluntário. Chipre, Bornéu, Adem, Omã, e agora esse talho irlandês, do outro lado do mar.

— Para isso me pagam. Sabias o que estavas a aceitar.

— Diabos me levem se sabia! — rebateu ela, agora num tom irritado. — Certamente que não me passava pela cabeça Chipre nem as outras coisas que ali fizeste para o Ferguson.

— A caça aos guerrilheiros urbanos é uma outra maneira de ser militar. Só que as regras são diferentes.

— Que regras? Torturas, lavagem ao cérebro? Pôr um homem de encontro a uma parede, apoiado nas pontas dos dedos e com um balde na cabeça, durante vinte e quatro horas? Não é uma acusação que os jornais te imputaram em Nicósia? Continuas a usar esse processo em Belfast, ou encontraste um requinte mais aceitável?

— Esta conversa não nos conduz a sítio algum – exclamou Morgan, levantando-se com a palidez estampada no rosto.

— Sabes por que te abandonei? — continuou Helen. — Sabes o que me levou finalmente a decidir? Foi quando estiveste em Adem. Quando li nos jornais como, depois de terem armado uma emboscada a uma das tuas patrulhas, avançaste, totalmente desarmado, à exceção daquela maldita e pretensiosa bengala, pondo-te em frente do blindado e incitando os rebeldes a que se mostrassem e te dessem um tiro. Quando li aquilo, e te vi na primeira página de todos os jornais, fiz as malas, porque soube nesse preciso momento, Asa, que há dez anos que estava casada com um morto em pé.

— Não a matei, Helen — disse Morgan.

— Não, mas foi alguém muito semelhante a ti.

Foi talvez o comentário mais cruel que poderia ter feito. Toda a cor se lhe esvaiu do rosto. Por momentos, Helen sentiu vontade de lhe estender os braços, de o abraçar novamente. Ligá-lo a ela, como se fosse capaz de conter a inacreditável vitalidade daquele homem, aquela partícula elementar do seu ser e que sempre lhe escapara. No entanto, seria uma loucura da pior espécie, condenada ao fracasso, como sempre acontecera.

Abafou qualquer sentimento de pena que pudesse ter, e prosseguiu friamente:

— O Francis já te pôs ao corrente das disposições para o funeral?

— Já.

— Queremos que tudo decorra com a maior simplicidade. Não haverá qualquer ligação com o assunto Cohen, por questões de segurança, o que é um bem. Se quiseres vê-la, está numa agência funerária, em Grantham. Pool & Son, George Street. E, agora, gostaria que te fosses embora, Asa.

Ele deixou-se ficar uns momentos a olhá-la. Depois afastou-se.

Mr. Henry Pool abriu uma porta no interior, e indicou o caminho até uma capela funerária. A atmosfera estava pesada devido ao aroma das flores. Música gravada proporcionava um fundo devoto adequado. Havia meia dúzia de compartimentos de cada lado, e Mr. Pool conduziu Morgan até um deles. Viam-se flores por todo o lado. Um caixão de madeira de carvalho encontrava-se numa bancada forrada de damasco, com a tampa parcialmente afastada.

O assistente, que fora o primeiro a receber Morgan à sua chegada à agência, um homem alto e magro chamado Garvey, vestido com um fato preto e de gravata preta, mantinha-se de pé, do outro lado do caixão.

A jovem tinha os olhos fechados, os lábios um pouco entreabertos, levemente pintados, e o rosto com uma maquilhagem pesada.

— Foi o melhor que consegui fazer, Mr. Pool — informou Garvey. — Afecção craniana maciça, Sir . Muito difícil.

Morgan, porém, não o escutava, pois ao olhar o rosto da filha pela última vez, a bílis subiu-lhe à boca, ameaçando sufocá-lo. Deu meia volta e foi vomitar lá fora.

Quando, ao fim da tarde, foi introduzido por Stewart no gabinete de Harry Baker, este estava de pé, junto à janela, olhando lá para fora. Virou-se.

— Olá, Asa! Já lá vai muito tempo.

— Harry!

— O bom reverendo deu com a língua nos dentes, certo?

— Sim. Morgan sentou-se e Baker procedeu às apresentações:

— George Stewart, o meu colaborador. Sentou-se atrás da mesa.

— Bom, Harry. O que há para mim de novidades?

— Nada — replicou Baker. — Os serviços secretos são o fator principal. O Departamento Especial fornece apenas os músculos. O DI5 está responsável pelo caso. O Grupo Quatro que recebeu novos poderes, diretamente do primeiro-ministro, para tratar de todos os casos de terrorismo, subversão e casos afins.

— Quem está à frente?

— Ferguson.

— Era de esperar. O mesmo que voltar ao ponto de partida, certo? Quando posso falar com ele?

Baker consultou o relógio.

— Dentro de trinta e cinco minutos no seu apartamento, em Cavendish Square. Prefere que seja lá o encontro. — Pôs-se de pé. — Vamos. Encarrego-me de te levar.

— Não é necessário — contrapôs Morgan, imitando-o.

— Ordens, meu velho. — sorriu Baker. — E sabes o que pensa Ferguson das pessoas que não cumprem as suas ordens.

O brigadeiro Charles Ferguson era um homem robusto de expressão bondosa e que parecia usar um fato acima do seu número. O único traço militar era-lhe conferido pela gravata do Corpo de Guarda britânico. O cabelo grisalho e sujo, o queixo duplo, os óculos em formato de meia-lua que lhe serviam na leitura do Financial Times, junto à lareira, quando Morgan e Baker foram introduzidos na sala, contribuíam para lhe dar a aparência de um professorzinho de segunda.

— Que agradável revê-lo, Asa, meu rapaz! Expressava-se num tom de voz levemente arrebicado e um tanto forte, à semelhança de um ator a entrar na idade pertencente a qualquer companhia de segunda em digressão, que deseja certificar-se de que conseguem ouvi-lo na última fila.

Fez um aceno ao criado, um ex-gurka naik que esperava pacientemente junto à porta.

— Muito bem, Kim. Chá para três.

O gurka retirou-se e Morgan olhou de relance ao redor. A lareira era Adam genuína, bem como o fogo que nela ardia. O restante também era estilo georgiano. Tudo se enquadrava à perfeição, até mesmo os pesados reposteiros.

— Bonito, não? — perguntou Ferguson. — Foi Ellie, a minha segunda filha, quem se encarregou de tudo. Dedica-se, agora, à decoração de interiores.

— Sempre resolveu os seus assuntos bastante bem — retorquiu Morgan dirigindo-se à janela e observando a praça.

— Oh, Santo Deus. Começamos com a mesma conversa, Asa? É pena. Muito bem. Vamos diretos ao assunto. Queria falar comigo?

Morgan olhou para Baker, que se encontrava sentado numa cadeira com braços de couro no canto oposto do aposento, a fumar cachimbo.

— De acordo com Harry, julgo que era o contrário.

— Ah, sim? — retorquiu Ferguson num tom jovial. O gurka entrou com uma bandeja que colocou junto à lareira e retirou-se. Ferguson pegou na chaleira.

— Céus! — explodiu Morgan violento.

— De acordo. Entendo, Asa. Já sabe, agora, que o homem que disparou contra Maxwell Cohen é o mesmo que atropelou mortalmente sua filha no túnel Paddington. Correto?

— Sim.

— E gostaria, como é natural, de pôr as mãos! Também nós. E as organizações dos Serviços Secretos da maioria das nações mais importantes. A única coisa que sabemos ao certo sobre o cavalheiro implicado, é que executou o mesmo tipo de operação com um monótono mas bastante espetacular sucesso em todo o mundo, já lá vão cerca de três anos.

— E que medidas estão sendo tomadas?

— Pode deixar esse aspecto a nosso cargo. Tenho estado em contato com o Ministério da Defesa. Informaram-me que, dadas as circunstâncias especiais, lhe concedem um mês de licença. — Naquela altura, Ferguson já estava a falar a sério. — Se estivesse no seu lugar, enterrava os mortos e seguidamente afastava-me por uns tempos, Asa.

— Era, realmente, o que faria? — rebateu com um sotaque galês muito mais acentuado, como sempre lhe sucedia nas alturas de maior tensão. Morgan virou-se para Baker: — E tu, Harry? Também farias o mesmo?

Baker dava a sensação de estar perturbado.

— Estão a considerar a hipótese da sua promoção na lista de Outono, ou já tinha ouvido boatos a este respeito? — continuou Ferguson. — Brigadeiro na sua idade, Asa, significa que pelo menos será general de divisão antes de se reformar. Um motivo de orgulho.

— Para quem?

— Não estrague as coisas, Asa. Percorreu um longo caminho.

— Para um rapazinho da sarjeta galês que começou como recruta, não é isso o que pretende dizer?

Morgan saiu, batendo com a porta violentamente atrás de si.

— Foi bastante duro com ele, Sir — observou Baker.

— Era essa exatamente a minha intenção, inspetor-chefe. Voltará quando atingir o ponto de fervura — disse Ferguson, estendendo novamente a mão para a chaleira. — É servido? — perguntou.

O interior da igreja de St. Martin, na paróquia de Durham, ostentava uma beleza dada pela simplicidade. Pilares normandos erguendo-se na direção de um tecto ricamente ornado de figuras, tanto humanas como de animais. Talvez por que no período de construção fora utilizada como um local de refúgio, não havia janelas baixas. A única luz provinha de janelas redondas, abertas nas galerias superiores sob o telhado e, por conseguinte, a igreja era um local sombrio.

Harry Baker e Stewart chegaram pouco depois das duas horas. Foram encontrar Francis Wood, à espera, vestido para a cerimónia.

— Senhor inspetor-chefe! Senhor inspetor! Ainda bem que vieram.

— Receio não termos notícias, Sir .

— Nenhuma prisão, é o que pretendem dizer? — sorriu Wood calmamente. — E que diferença faria em caso contrário?

— Estive, ontem, com o coronel Morgan. Pensa de uma forma bastante diversa.

— Conhecendo Asa como conheço, não me espanta. As pessoas começaram a chegar, na sua maioria a pé e, obviamente, habitantes da aldeia. Wood cumprimentou-os. Em seguida, o portão aberto na parede do lado contrário da igreja e que dava acesso ao jardim da paróquia abriu-se para dar passagem à mulher.

Não se apresentava vestida de luto, mas com um fato simples e cinzento de saia pregueada, sapatos acastanhados e meias de vidro. Tinha o cabelo apanhado na nuca com uma fita de veludo, como no primeiro momento em que Baker a conhecera. Dadas as circunstâncias, mostrava-se invulgarmente calma.

— Inspetor-chefe — cumprimentou com um aceno de cabeça dirigido a Baker.

Naquele momento, Baker sentiu que não tinha palavras. Francis Wood beijou-a ao de leve na face e ela avançou para o interior da igreja. O carro funerário deteve-se junto ao portão da paróquia e, alguns momentos depois, o caixão foi trazido aos ombros de Henry Pool, do filho e de quatro ajudantes, todos adequadamente vestidos com fatos pretos.

Wood foi ao seu encontro para os receber.

— O que mais detesto em tudo isto, George — disse Baker —, é o fato de provavelmente já terem repetido duas vezes esta mesma cena, hoje. O mesmo carro funerário, os mesmos sobretudos pretos, as mesmas expressões próprias do momento. Quer dizer qualquer coisa, mas não sei bem o quê.

— Não há vestígios de Morgan, Sir .

— Já tinha reparado — disse Baker, e acrescentou quando o cortejo avançou na direção deles: — Entremos, já que estamos aqui.

Sentaram-se num banco, a meio da igreja, e o cortejo desfilou ao lado deles, com Francis recitando a Oração do Enterro dos Mortos.

Eu sou a Ressurreição e a Vida, disse o Senhor. O que acreditar em mim, viverá depois da morte; e o que viver acreditando em mim será eterno.

O caixão foi colocado diante do altar e os gatos-pingados retiraram-se. Verificou-se uma pausa e Wood prosseguiu a cerimónia.

De uma geração para outra foste o nosso refúgio, ó Senhor!

A porta do templo abriu-se e, seguidamente, fechou-se de novo com tanta força que Wood fez uma pausa e ergueu os olhos do livro de orações. Cabeças viraram-se. Asa Morgan apresentou-se de uniforme completo, barbeado, com um cinto à Sam Browne, medalhas penduradas em fila por baixo das asas da SAS e sobre o bolso da túnica. Tirou a boina vermelha e sentou-se na última fila.

Só uma pessoa não se voltara: Helen Wood. Sentava-se só, na primeira fila, os ombros direitos e olhando em frente. Verificou-se uma pausa mínima e o marido continuou a recitar numa voz sonora e clara.

A caminho do cemitério, a trovoada fez-se ouvir à distância e as primeiras gotas da chuva pesada e grossa molharam as pedras da calçada.

— Uma das grandes coincidências da vida — observou Baker. — Em oito de cada dez vezes, chove nos funerais. Foi por isso que comprei esta coisa.

Abriu o chapéu-de-chuva e, ao lado de Stewart, seguiu na cauda da fila formada pelos habitantes da aldeia, que abriam caminho ao longo das pedras tumulares na direção da sepultura cavada de fresco.

A maior parte conservou uma distância respeitosa, enquanto Helen Wood se mantinha de pé à beira da sepultura, diante do marido. Asa Morgan estava atrás do padre, com a boina puxada para a frente, no ângulo exato.

Francis Wood continuou o cerimonial, erguendo um pouco a voz quando a chuva aumentou de intensidade. A mulher ajoelhou-se, no momento preciso, para apanhar um pouco de terra, lançando-a na sepultura. Permaneceu assim uns instantes e, ao erguer os olhos, apercebeu-se de que Morgan avançara um passo e fora colocar-se ao lado do marido.

Francis Wood prosseguiu sem vacilar:

A terra à terra, as cinzas às cinzas, o pó ao pó, na segura e certa esperança da Ressurreição.

Morgan tirou a boina vermelha da cabeça e deixou-a tombar na cova aberta, em cima do caixão. A mulher ergueu-se lentamente, sem desviar os olhos dele por um único momento. Deu meia volta, avançou através das sepulturas e entrou na igreja.

— O que lhes dará bom motivo para conversa na aldeia durante bastante tempo — comentou Baker.

Quando Francis Wood entrou na igreja, momentos mais tarde, encontrou Morgan sentado no banco da frente, de braços cruzados e fitando o altar.

— Sei que o motivo não é a oração, Asa. O que pretende? — perguntou Wood.

— Realmente não, se o que acabou de nos impingir é o melhor que sabe dar — retorquiu Morgan. — "Porque foi da vontade de Deus chamar a alma da nossa querida irmã aqui presente". O que significa isso, com mil raios, Francis?

— Não sei, Asa. Para mim, trata-se de uma questão de fé. Fé para todos nós e segundo os objetivos do Senhor.

— Muito reconfortante, na verdade — disse Morgan, levantando-se e subindo os degraus do púlpito.

— Muito bem, Asa. Estou à espera.

Baker e Stewart escutavam, a coberto das sombras, ao fundo da igreja.

— Estou tentando conciliar o fato da misericórdia divina com uma menina colocada no caminho de um fanático violento, em fuga após uma tentativa de homicídio. A propósito, julgo que lhe interessará saber que um grupo terrorista de nome Setembro Negro reivindicou o atentado. Uma bonita palavra, tem de confessar. Tudo terminologia.

Expressava, naquele momento, uma calma pouco vulgar, e agarrou a beira do púlpito tão fortemente que o sangue lhe fugiu dos nós dos dedos.

— Deus castiga, Asa, e os homens vingam-se — observou Wood. — Julgo saber o caminho que deseja tomar e vou dizer-lhe uma coisa. Nada encontrará no final. Nenhuma resposta, nem satisfação... nada.

Morgan olhou em redor.

— Nunca me tinha apercebido de como tudo é bonito visto daqui. — Desceu os degraus, percorreu a passagem entre os bancos rapidamente, e saiu.

Baker e Stewart seguiram-no. Agora estava a chover ainda mais e ficaram a vê-lo caminhar, descoberto, até ao portão e entrar no Porsche.

— Mete-te no automóvel e segue-o — disse Baker a Stewart. — Eu apanho o comboio de regresso a Londres. Pega-te a ele como grude. Quero saber para onde vai e o que faz. Perde-o, e vais ter de te haver comigo.

Para Stewart foi fácil manter-se na peugada do Porsche prateado, pois mesmo depois de sair de Londres e meter pela autoestrada MI do norte, Morgan raras vezes passou dos setenta à hora, aumentando de velocidade só quando era necessário ultrapassar um camião pesado ou qualquer outro veículo em andamento lento demais.

À saída de Doncaster, parou num posto de serviço para meter gasolina. Stewart fez o mesmo, mantendo-se na sua peugada. O Porsche tomou a direção do parque de estacionamento e Morgan desceu. Procurou no interior do automóvel um impermeável militar que vestiu por cima do uniforme. Em seguida, dirigiu-se ao self-service, do outro lado da rua.

Stewart estacionou a uma distância de alguns automóveis e foi ao banheiro. Quando saiu, verificou que o Porsche ainda se encontrava à vista, depois do que se dirigiu ao café, espreitando lá para dentro. Não havia sinais de Morgan.

Virou-se rapidamente, mas não se enganara. O Porsche continuava no mesmo sítio e, seguidamente, avistou o coronel acocorado junto ao seu carro.

No momento em que Stewart se aproximou rapidamente, Morgan levantou-se e Stewart viu que tinha o pneu da frente em baixo.

— O que está a fazer, com os diabos? — inquiriu encolerizado.

— Parece-me que está com problemas, inspetor — respondeu Morgan, dando um pontapé no pneu. — Se estivesse no seu lugar, mandava chamar um polícia.

Meteu-se no Porsche e afastou-se a toda a velocidade.

Nessa manhã, Mikali levantou-se tarde e passava das onze da manhã quando saiu para a habitual corrida em Hyde Park, apesar da chuva pesada. Não que o incomodasse. Gostava da chuva. Dava-lhe a sensação de estar fechado e encerrado como num mundo que lhe pertencesse.

Regressou, por fim, ao apartamento de Upper Grosvenor Street e ao abrir a porta sentiu o aroma a café acabado de fazer. De início, pensou que a moça da noite anterior não tivesse voltado a casa. Mas Jean-Paul Deville apareceu à porta da cozinha.

— Ah! Chegou finalmente! Como vão as coisas? Entrei com a chave de emergência. Espero não ter causado inconveniente.

Mikali foi buscar uma toalha à casa de banho e limpou o suor do rosto.

— Quando chegou?

— No primeiro avião da manhã. Achei que devíamos ter uma conversa.

Regressou à tarefa de se ocupar do café e Mikali disse: — As coisas não correram muito bem.

— Atingiu-o na cabeça, à queima-roupa. Quem podia exigir mais? E conseguimos o que pretendíamos. Uma tentativa de assassinato em plena Londres. Títulos nas primeiras páginas da imprensa de todo o mundo e uma espantosa publicidade para a causa palestina. Os membros do Setembro Negro estão encantados. O seu contato em Paris veio visitar-me na noite passada. Compreendo que desta vez as coisas tenham sido um tanto difíceis. Estava preocupado?

— Quando estava na Argélia, os Árabes tinham um ditado: "Tudo obedece à vontade de Deus." Por mais planos cuidadosos que se façam, um destes dias acaba-se onde não se espera. A arma, que se julga não emperrar, emperra. É o que acabará por dar cabo de mim e de si, quando menos o esperar.

— Muito possível — concordou Deville. — Tal como a jovem de bicicleta no túnel?

— Um azar. Tentei evitá-la, mas não havia nada a fazer. Houve apenas uma pequena menção nos vespertinos de Londres, mas só não entendo porque não estabeleceram qualquer ligação com o caso Cohen.

— Sim. Já me interroguei a esse respeito. Mandei a minha gente de Londres investigar. Segundo parece, os pais da miúda divorciaram-se há uns tempos. O pai é um coronel paraquedista chamado Morgan, Asa Morgan. De momento, em serviço na Irlanda. A KGB na nossa Embaixada em Londres teve a amabilidade de o passar a pente fino no computador, a meu pedido, e tem uma folha de serviços espantosa. Perito em subversão, técnicas de guerrilha urbana, métodos de interrogatório avançados. Chegou mesmo a ser prisioneiro dos chineses na Coreia. Faz sentido que o Exército não levante muitas ondas com um indivíduo assim, o que explica o tratamento oficial do assunto.

— Fazem a mesma ideia do Cretense — observou Mikali, deitando chá no bule.

— O que significa isso? Está com receio de que seja outra pessoa a conseguir os louros?

— Vá para o diabo! — riu Mikali.

— Daqui a pouco, amigo. — Deville pegou na xícara do café e sentou-se junto à janela. — Para os revolucionários de todo o mundo, desde as Brigadas Vermelhas ao IRA, o Amante Cretense é uma lenda viva. Mas não se iluda. Os arquivos de todos os Serviços Secretos ocidentais registam pormenorizadamente cada uma das suas operações. Desvendando o mínimo possível ao público, esperam aumentar as oportunidades de o apanhar. Além disso, todos gostam dos vencedores. Pode mesmo vir a tornar-se popular, o que não convém.

— É uma ideia.

Deville tirou do bolso uma folha de um bloco de apontamentos e empurrou-a na sua direção.

— Voltei a mudar o número de emergência da sua caixa postal, não só em Londres como em Manchester e Edimburgo. Aprenda-o de cor e queime. — Okey — concordou Mikali, servindo-se de uma xícara de chá.

— Ficou satisfeito com a sua execução da noite passada?

— Razoavelmente. A acústica do Albert Hall nunca me satisfaz, mas o ambiente é Ótimo.

— E, agora, umas férias. O que tenciona fazer? Ir para Hidra?

— Primeiro alguns dias em Cambridge.

— Doutora Katherine Riley? — inquiriu Deville. — Está rapidamente a tornar-se um hábito. É uma coisa séria?

— Faz-me companhia — elucidou Mikali. — Nada mais do que isso, mas como uma boa companhia é terrivelmente difícil de encontrar neste mundo nojento... Não acha?

Correu o fecho do bolso do lado direito do fato de treino de onde tirou uma automática pequena, com uns doze centímetros de comprimento e um cano de formato curioso, pousando-a na mesa.

— O que é isto? — inquiriu Deville, pegando-lhe.

— Uma Ceska checa. Este modelo especial foi fabricado pelos alemães, quando se apoderaram da fábrica durante a guerra. Tem incorporado um silenciador muito eficaz.

— Útil?

— Os serviços das SS usavam-nas.

— Anda sempre armado, mesmo quando vai correr pelo parque? — quis saber Deville, pousando-a cautelosamente.

Mikali serviu-se demais uma xícara de chá, e acrescentou açúcar e leite, no estilo inglês.

— Diga-me uma coisa — pediu. — Ainda traz uma cápsula de cianeto?

— Evidentemente.

— Normas do GRU, claro.

— Sim.

— Por que nunca me ofereceu uma?

— Porque nunca me ocorreu uma situação em que a pudesse utilizar — respondeu Deville, encolhendo os ombros.

— Exato. — Mikali sorriu e pegou na arma. — Quando chegar esse momento totalmente inesperado, quando vierem prender-me, tê-la-ei na mão. Mesmo na sala de artistas do Albert Hall.

— Entendo — comentou Deville. — Morrer na glória. O fim do soldado, de rosto para o inimigo. — Suspirou e a voz, naquele momento, expressava um genuíno afecto. — Acho-o, de fato, um romântico incurável, meu caro John. É essa a imagem que tem de si? O último samurai?

Mikali abriu a janela e foi até à varanda. O sol brilhava, quando contemplou o parque. O dia estaria quente.

— Oscar Wilde afirmou, uma vez, que o mundo mal chega a um quarto de hora feito de momentos extraordinários — comentou, virando-se.

— O que nos coloca de volta a Cambridge e à doutora Riley — retorquiu Deville.

— Exato — sorriu Mikali. — Decididamente um dos momentos mais extraordinários a que ele se estava a referir.


CAPÍTULO 4

À noite, Morgan chegara a Leeds. Saiu da cidade através da A65, rumo aos vales de Yorkshire ao longo de Otley, Ilkley e Skipton, transpondo uma paisagem íngreme de pântanos desertos, acima dos quais se elevava um acidental píncaro montanhoso.

A aldeia de Malham situa-se no meio do cenário de pedra mais rugoso de Yorkshire. Atingiu-a quando a noite estava a cair, conduziu mais um quilómetro antes de finalmente atravessar um portão de cinco grades que dava acesso a uma pequena casa de pedra cinzenta, situada entre as árvores, em meio acre de jardim.

Em termos restritos, o local era agora pertença de Helen, mas ao verificar, a chave estava debaixo da pedra onde sempre tinha sido guardada. Abriu a porta e em seguida tirou as coisas de dentro do automóvel.

Notava-se aquele cheiro, levemente húmido, proveniente da falta de uso, mas havia lenha suficiente na lareira. Acendeu-a, e partiu em exploração ao andar superior, onde havia dois quartos de dormir e uma casa de banho.

Descobriu o que pretendia num dos roupeiros. O velho equipamento de alpinista. Botas, calças de ganga e camisas de lã grossa. Levou-as para o andar de baixo juntamente com um saco de dormir e espalhou tudo junto à lareira. Em seguida, retirou uma garrafa de uísque da pequena mala de viagem, meteu-se dentro do saco de dormir e deitou-se diante da lareira.

Começou a beber uísque, em grande quantidade, por não querer pensar nela. Naquela altura, não. Isso viria depois. Passado algum tempo, adormeceu.

A alguns quilômetros de Malham, um caminho conduz aos rochedos de Gordale Scar. Asa Morgan tinha visitado este lugar, pela última vez, na companhia da filha, quando ela fizera doze anos. Naquela manhã, avançando a passo firme' ao longo do terreno irregular e debaixo da chuva pesada, escutava de novo a sua voz excitada, quando dobraram a rocha e a escarpa surgiu com a cascata aberta no centro, mais abundante do que o habitual devido à chuva.

A única possibilidade de avanço fora uma subida pela rocha íngreme, embora oferecendo apoios, do lado esquerdo, e empurrara-a, conservando-se mesmo atrás dela para o caso de uma emergência. Seguiu-se a morosa luta ao longo do entulho para lá da cascata e no cume o caminho pela margem da ravina.

Avançou através do denso nevoeiro e da chuva, quilómetro após quilómetro e totalmente absorvido pelo passado. Era como se ela ainda estivesse ao seu lado, caminhando na sua frente através do nevoeiro, reaparecendo em seguida de súbito para lhe vir falar de uma qualquer descoberta.

E, durante algum tempo, foi novamente um rapazinho de catorze anos, naquela primeira semana após ter saído do liceu. Erguer às cinco da manhã e partir para as montanhas com um farnel das sanduíches de queijo preparadas pela mãe e um termo com chá gelado. Uns quilómetros a pé todas as manhãs até atingir a gruta que provocara a morte do pai.

Nunca esqueceu esse primeiro dia. O sobressalto nauseante quando a cabina desceu, a sete mil metros, até um mundo fantasmagórico de trevas, desespero e esforço horrível.

Nem tampouco os duros dez quilómetros de regresso no fim da primeira caminhada, tão cansado que pensava não ser capaz de conseguir. Mais tarde, sentado na velha banheira de zinco, em frente da lareira, enquanto ela lhe esfregava o corpo para remover a camada de poeira, sabia uma coisa pela certa. Tinha de existir qualquer coisa melhor, pois sentia algo dentro de si como uma dor ansiando por se libertar.

E havia realmente, porque tal como alguns nasceram para representar e outros dotados para seguir a carreira de grandes cirurgiões ou músicos, Asa Morgan era um soldado por natureza. Um líder nato. Para ele, a vida militar representava um apelo tão forte como o sacerdócio para outros.

Assim, e por ironia do destino, foi a guerra a salvá-lo; a arrancá-lo à Rhondda para sempre e a levá-lo para o Exército.

O caminho dava a curva na direção de Malham e foi quando descia o sítio designado por Dry Valley que tudo aconteceu. Chegou a uma saliência com um grande rochedo ao lado, onde se tinham abrigado da chuva, a comer sanduíches.

Uma onda de dor apoderou-se de todo o seu corpo.

— Não! — gritou. — Não! — E voltou-se como que a fugir ao diabo em pessoa, escorregando e deslizando pela superfície traiçoeira, aos tropeções, até ao vale.

Viu-se, subitamente, no chão de calcário que sabia levar à beira do precipício enorme de Malham Cove. O vento afastou o nevoeiro, e todo o vale se estendeu aos seus pés.

No íntimo cresceu-lhe uma raiva tão grande como uma lava incandescente.

— Vou já, meu filho da mãe! — gritou. — Vou já! Correu por entre as placas rochosas e começou a descer o caminho o mais rapidamente que pôde.

Ao meio-dia do outro dia, estava a bater à porta de um apartamento, em Cavendish Square. Veio abrir o gurka, Kim, vestido com o impecável casaco branco de botões dourados e reluzentes. Morgan afastou-o sem uma palavra e foi encontrar Ferguson, sentado à secretária da sala de estar, com os óculos de meia-lua na ponta do nariz e a examinar um monte de documentos. Ergueu os olhos e pô-los de lado.

— Mas que rapaz mau! O pobre Stewart não foi exatamente recebido de braços abertos, à chegada. A promoção do pobre diabo ficou provavelmente uns anos atrasada.

— Quero-o, Charles — retorquiu Morgan. — Estou disposto a fazer tudo o que me disser, a jogar segundo as suas regras, mas tem de me dar uma oportunidade.

Ferguson levantou-se e foi até junto da janela.

— Bacon afirmou que a vingança é uma espécie de cruel justiça, o que não resolverá as coisas. Nada de nada. Emotividade a mais. Risco de embotar os juízos de valor. E já não tem exatamente vinte e cinco anos, certo? — Sacudiu a cabeça firmemente. — Não. Vai acabar a sua licença e depois regressar a Belfast.

— Nesse caso, desisto da comissão.

— Não pode. Não no seu caso. Encontra-se na Segurança, Asa, o que o torna um indivíduo especial. Conosco para sempre. Como nos bons e velhos dias de guerra.

— De acordo — anuiu finalmente Morgan. — Um mês foi o que me disse que tinha, e é um mês que terei.

Virou as costas e saiu, antes que Ferguson tivesse tempo de lhe dar qualquer resposta.

Estava evidentemente mais calmo, agora, e de novo senhor de si. Aquela explosão em Malham, a corrida louca de automóvel para sul secara-lhe o excesso de emoção existente no íntimo. Voltava a ser o profissional frio, calculista e capaz de uma total objetividade.

O problema residia, no entanto, em saber por onde começar. Estava sentado na sala de estar do apartamento em Gresham Place, pouco passava das quatro, examinando vários jornais diferentes com relatos da cena de tiros, no momento em que a campainha da porta soou. Quando a abriu, viu Harry Baker com uma pasta na mão.

— Foste um pouco duro para com o jovem Stewart, não? — atacou, entrando sem pedir licença. — O rapaz ainda tem umas coisas a aprender.

Morgan seguiu-o até à sala de estar e ficou à espera, com as mãos nos bolsos.

— Muito bem, Harry. O que desejas?

— O Ferguson telefonou-me. Foste ter novamente com ele.

— Também te disse que me aconselhara a afastar-me?

— Disse.

— E então?

Baker tirou o cachimbo para fora e começou a enchê-lo.

— Salvaste-me a vida em Nicósia, Asa. Se não fosses tu, tinha apanhado uma bala na cabeça, daquele tipo da EOKA. Atiraste-me ao chão e recebeste a bala nas costas.

— Todos cometemos erros na vida.

— Se o Ferguson descobrir o que estou a fazer, é o meu fim, mas que se lixe. — Baker abriu a pasta, de onde retirou um dossiê que pousou em cima da mesa. — Está tudo aqui, Asa. Tudo o que há a saber, e não é muito, sobre o homem que disparou contra Maxwell Cohen e matou Megan. O homem a quem chamamos o Amante Cretense.


CAPÍTULO 5

Baker deixou-se ficar, de pé, em frente da lareira, a aquecer-se, enquanto Morgan começava a examinar o dossiê.

— Como podes verificar, apareceu pela primeira vez em cena em mil novecentos e sessenta e nove. O assassinato de Vassilikos. Foi nessa altura que os jornais começaram a tratá-lo por Cretense.

— Por ter o motorista certeza de que falara com um sotaque cretense?

— O que, de acordo com o dossiê, foi confirmado pela criada de quarto do Hilton, em Berlim Ocidental, um mês depois, quando deu cabo do general Stephanakis.

Morgan continuou a ler.

— Este episódio da moça no roupeiro, enquanto esperavam que Stephanakis aparecesse, é verdadeiro?

— Sim.

— O que explica o rótulo de Amante Cretense!

— Esse e um outro caso semelhante que irás encontrar mencionado. E no caso dessa moça, Boudakis, não foi violação. Um psiquiatra teve uma sessão com ela. Ficou com a impressão de que se apaixonara pelo indivíduo.

— Pelos pormenores que estão aqui, diria que muitos gregos, neste momento, o aplaudem — observou Morgan. '— Tanto Vassilikos como o general Stephanakis não passavam de dois carniceiros.

— Passemos aos fatos — retorquiu Baker. — O nosso amigo é, por conseguinte, um simples camponês cretense, um herói da Resistência a quem não agrada o atual regime na Grécia, um regime que considera fascista. Decide proceder ao seu tipo de luta. Ótimo, só que há um ponto importante a considerar. A partir desse momento, tem sido responsável por assassinatos uns atrás dos outros, pelo mundo inteiro. Os atentados têm sido, geralmente, reivindicados por um ou outro grupo terrorista, mas sabemos, como o sabem as principais organizações mundiais de Serviços Secretos, quando a responsabilidade cabe ao Cretense. Atua de uma forma distinta e inconfundível. Continua a leitura, e entenderás o que quero dizer.

Sentou-se junto à lareira, acendeu novamente o cachimbo e Morgan começou a analisar o dossiê.

Em Junho de 1960, matara, no quarto de hotel, o coronel Rafael Gallegos, chefe da Polícia do país basco, situado nos Pirenéus, entre Espanha e França. O crime constituiu uma fotocópia do assassinato do general Stephanakis, em Berlim Ocidental. A responsabilidade havia sido reivindicada pelo movimento nacionalista basco ETA, que vinha a lutar, há anos, pela separação da Espanha.

Em Setembro do mesmo ano, o general Severo Falçao, dirigente da polícia secreta brasileira, fora assassinado no Rio de Janeiro por um polícia de trânsito que mandara parar o automóvel numa estrada tranquila, que levava à casa do general, situada nos arredores. Tal como no assassinato de Vassilikos, apenas o general e os guarda-costas morreram. O motorista fora deixado em paz.

Em Novembro de 1970 matara George Henry Daly, um executivo de finanças em Boston. Os jornais só não tinham mencionado que Daly era, na realidade, o major Sergei Kulakov, que passara para os americanos, cinco anos antes, vindo do posto de Serviços Secretos do Exército Vermelho em Berlim. A CIA interrogara-o, e fornecera-o com o que imaginara uma identidade nova em folha. A mulher descrevera o Cretense na perfeição. Podia tê-la morto e não o fez.

Em 1971, em Toronto, foi a vez de Henry Jackson, um economista, mais um caso de um agente russo sob um nome falso.

Mais tarde, ainda nesse mesmo ano, o cônsul-geral de Israel, em Istambul. O Exército de Libertação do Povo Turco reivindicara o atentado.

Seguiu-se um dos casos mais espetaculares. O assassinato do realizador cinematográfico italiano Mário Forlani, no Festival de Cinema, em Cannes. Forlani havia já recebido inúmeras ameaças por causa de um filme que fizera, ridicularizando Mussolini.

— Não é, por conseguinte, um fanático marxista — comentou Morgan.

— Estás a referir-te ao caso de Cannes? Deu muito que falar. Os franceses haviam montado uma guarda semelhante à de Fort Knox ao hotel onde Forlani estava alojado. Garde Mobile por todo o lado. No interior, homens da Segurança à paisana. Toda a gente se encontrava instalada no hotel. Metade das cabeças não coroadas da Europa, a maioria do que nestes dias se consideram estrelas em Hollywood. John Mikali, o pianista, Sophia Loren, David Niven, Paul Newman, e sabe-se lá quem mais.

— E conseguiu introduzir-se no meio de todos?

— As coisas aconteceram de uma maneira simples. Fornali apareceu à porta do seu apartamento no décimo quinto andar, na companhia de três jovens com quem ia jantar. Havia dois policiais à porta e outro no elevador.

— E?...

— O Cretense materializou-se simplesmente ao fundo do corredor, atingiu-o duas vezes no coração com um revólver, àquela distância, imagina. E desapareceu num abrir e fechar de olhos pela escada de incêndio.

— Sem deixar vestígios?

— Desapareceu da face da terra. A polícia francesa revistou o local a pente fino, mas a busca revelou-se infrutífera. A maioria das celebridades saiu essa noite do hotel.

Não o conseguiram fazer com a pressa devida. Foi um escândalo dos grandes.

— E depois?

— Está no dossiê. Matou Helmut Klein, o ministro das Finanças da Alemanha Oriental, que estava de visita à Universidade de Frankfurt, em Novembro último. Todo o terreno em redor da Universidade estava sob a mais estrita vigilância. Teve uma ligação com uma moça chamada Lieselott Hoffman que, segundo mais tarde se apurou, era simpatizante do Baader-Meinhof. Possuía uma espingarda sob ordens da Fação do Exército Vermelho.

— E o Cretense apareceu?

— Depois de escurecer e com aquela sua maldita máscara.

Morgan pousou novamente o olhar no dossiê.

— De acordo com o que aqui se diz, Klein saiu de uma recepção na casa do reitor, pouco depois das dez. O Cretense atingiu-o a uma distância de trezentos metros, utilizando um amplificador de imagem. Um tiro inacreditável.

— E depois fugiu. A moça foi apanhada a tentar desfazer-se da arma. A maior parte dos detalhes vieram a lume durante o interrogatório. Parece ter-lhe aplicado o mesmo tipo de tratamento que à criada no Hilton de Berlim, e foi mais outra que deu a sensação de não se importar. Foi salva de um camião prisional en route para a cadeia por uma brigada da Fação do Exército Vermelho.

— E desapareceu sem deixar rasto?

— Até ser presa em Londres, em Fevereiro deste ano, quando estava a trabalhar numa boutique. Declarou ter casado com um indivíduo chamado Harry Fowler, um criado de Camden Town, só que não há rasto dele. O fato tê-la-ia evidentemente transformado numa cidadã britânica. Os alemães querem-na de volta, tanto os da Alemanha Oriental como os da Ocidental. E os grupos de liberdade civil daqui desejam-na, como é natural, sob vigilância. Encontra-se num centro de detenção preventiva em Tangmere, perto de Cambridge. Uma fonte de consideráveis problemas para o Governo.

— Imagino. — Morgan continuou a ler em silêncio, por momentos. — Este relatório do psicólogo sobre a moça é, de fato, bastante bom. Quem o fez?

— Uma mulher chamada Riley. Doutora Katherine Riley. Uma americana. Faz parte de um dos colégios universitários de Cambridge. Tem permissão de visitar a moça Hoffman regularmente.

— Por quê?

— É o seu âmbito, o terrorismo. Entrevistou quase todos os terroristas europeus famosos, na prisão, sempre que lhe concederam permissão para tal. Escreveu um livro, há dezoito meses, chamado O Fenômeno do Terrorismo.

— Já me recordo — disse Morgan. — Li-o — acrescentou, acendendo um cigarro. — Segundo os meus cálculos, o nosso amigo deu cabo de cerca de uma dúzia de pessoas muito importantes apenas em três anos. É uma boa marca.

— E não toma partidos — comentou Baker. — O camponês cretense que parecia tão antifascista, acaba por matar um ministro do Gabinete da Alemanha Oriental e um realizador cinematográfico comunista.

— Mas ainda encontra tempo para os fascistas.

— E dois importantíssimos exilados russos aos quais, tanto os serviços secretos americanos como o canadenseo, julgavam ter dado uma protecção mais do que adequada.

— Quais são as últimas da frente terrorista internacional? — inquiriu Morgan. — Tenho andado bastante desatualizado, desde a questão do Ulster.

— Atualmente existem elos definidos entre os grupos de todo o mundo — esclareceu Baker. — Por exemplo, os japoneses, que foram responsáveis pelo massacre no aeroporto de Telavive, tinham sido preparados em campos de treino terroristas libaneses. As suas armas, principalmente granadas e Kalashnikovs, foram fornecidas pelo grupo Baader-Meinhof. A Frente de Libertação Palestina também se encontrava implicada.

— Mas que combinação!

— As informações que possuímos dizem que, no princípio do ano, uma conferência secreta de organizações de guerrilha, efetuada em Dublim, contou com a presença de representantes maoístas e anarquistas do mundo inteiro.

— Sendo os do IRA os anfitriões?

— Depende do setor do IRA a que te referes.

— Os maoístas... os anarquistas... que vão todos para o diabo. Apenas me interessa o Cretense. — Morgan pegou num lápis e num bloco de apontamentos. — O que sabemos realmente sobre ele?

— Fisicamente baixo — respondeu Baker.

— Mas extraordinariamente robusto.

— De uma grande inteligência e cheio de recursos. Obviamente capaz de se movimentar pelo mundo sem dificuldade de qualquer espécie.

— Um soldado.

— O que te leva a pensar assim?

— A forma como executa as operações, a precisão, o método. Quando tem um alvo é para lá que se dirige. Nada existe de confuso nele. Por várias vezes poupou a vida a pessoas. Como foi o caso dos motoristas, em Paris e no Rio.

— Mas não a de Megan.

— Não — concordou Morgan, esboçando um aceno calmo. — Atropelou-a como a um cão. O seu único erro.

Estudou as notas que tomara no bloco e Baker observou:

— Não te esqueças do mais importante: é um cretense.

— Que fala alemão, francês, espanhol e inglês? Um soldado treinado? Um viajante do mundo? — retorquiu Morgan, sacudindo a cabeça em negativa. — No teu caso, emendaria esse raciocínio. O que procuramos é um homem que, por qualquer razão, consegue fazer-se passar por cretense se o desejar.

— E onde começarias a caça a um indivíduo assim?

— De momento... não sei — respondeu Morgan com um encolher de ombros. — A moça Hoffman. Pode constituir uma pista. Talvez não tenha dito ainda tudo o que sabe. Talvez essa tal doutora Riley mereça uma visita. Conhece-a?

— Foi-me dado esse prazer. Não gosta de policiais. O tipo de mulher que o senhor McCarthy teria colocado em frente de um comitê congressional antes de ela dar por isso. A propósito, uma coisa que não se encontra no dossiê. A bala que extraíram do cérebro de Cohen indica ter saído de uma Mauser, mas de um tipo muito invulgar: calibre sete seis três, modelo mil novecentos e trinta e dois, e esta tinha um silenciador volumoso. Era o tipo de arma utilizada por algumas unidades da Segurança alemã durante a guerra.

— Sim. Já sei a que tipo de arma te referes — disse Morgan. — Só fabricaram um número reduzido.

— Certo. E são muito difíceis de obter hoje em dia, quase uma impossibilidade. O computador só indica uma delas, utilizada para matar no Reino Unido um sargento dos Serviços Secretos do Exército, no ano passado, em Londonderry.

— O Cretense! No Ulster? — surpreendeu-se Morgan.

— Não... um mercenário de nome Terence Murphy. Foi morto por um comando de patrulha, quando se pôs em fuga juntamente com um homem chamado Pat Phelan. E o interessante é que também ele tinha uma. Tentamos detectar a pista do fabricante de onde vinham as armas, mas sem êxito.

— Uma possibilidade interessante — observou Morgan num tom calmo. — A de que a arma que foi utilizada para atingir Cohen possa ter vindo da mesma fonte.

— Já tenho pessoas a investigar o assunto — disse Baker. — Mas para dizer a verdade, não fomos muito longe da última vez, por isso... — Pegou no dossiê e meteu-o novamente na pasta. — Agora sabes tanto como nós sobre o Cretense. O que tencionas fazer?

— Pensarei em qualquer coisa.

— Aposto que sim — observou Baker com uma expressão sombria, e abriu a porta. — A partir de agora, as nossas contas estão saldadas, Asa. Recorda-te disso.

Morgan deu-lhe uns minutos apenas, depois do que pegou no casaco e o seguiu. Chegou à entrada principal, à tempo de ver Baker dirigindo-se para o fundo da rua. O inspetor-chefe parou na esquina, tentando fazer sinal a um taxi. Morgan dirigiu-se apressadamente à garagem, meteu-se no Porsche e pôs o motor a trabalhar.

Esperava sob as árvores, do lado de fora do apartamento de Ferguson, em Cavendish Square, quando o táxi parou e Baker saiu. Pagou ao motorista e entrou. Morgan deu-lhe uns minutos e seguiu-o.

Quando Kim veio abrir a porta, empurrou-o para o lado e foi direto à sala de estar. Ferguson estava sentado à secretária com o dossiê aberto diante de si. Baker mantinha-se ao seu lado.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou Baker amargamente.

— Continua a portar-se fora da linha, não, Asa? — suspirou Ferguson.

— Muito bem. Vamos deixar de agir como sacanas imbecis — decidiu Morgan. — Vocês pretendem esse tal tipo cretense, e eu também. Por que não dar um carácter oficial ao assunto e acabar com isto?

— Mas o ponto principal é esse precisamente, rapaz. Nada de oficializações.

— Oh, estou a entender! — rebateu Morgan, olhando para Baker. — Supostamente, deveria sentir-me grato ao receber os favores do meu velho companheiro aqui presente, e depois partir como um louco à caça do que pudesse descobrir por minha própria conta e risco. E tudo culpa minha, se falhasse, hem?

— E seria capaz, Asa? — inquiriu Ferguson. — Partir como um louco à caça e descobrir qualquer coisa, quero dizer? Algo importante?

— A Mauser — respondeu Morgan. — Se conseguisse descobrir a pista do negociante de armas que a forneceu, talvez fosse um bom ponto de partida.

— E onde irias descobrir essa informação, com os diabos? — quis saber Baker.

— Em Belfast.

— Belfast! — exclamou Baker, surpreendido. — Deves estar doido!

— Ponhamos as coisas no devido lugar. Há gente lá, do lado errado, mas que poderá dispor-se a ajudar-me em memória dos velhos tempos.

— Como Liam O'Hagan? Porque, outrora, cumpriram serviço juntos? Receberás uma bala na cabeça, e é tudo!

— E que mais, Asa? — interrompeu Ferguson. — Que mais seria necessário?

— Gostaria de interrogar Lieselott Hoffman, antes de partir para Belfast. Amanhã de manhã, seria Ótimo.

— Arranje isso com a doutora Riley, inspetor-chefe — ordenou Ferguson.

— Também gostava de uma lista de todos os pormenores mencionados naquele dossiê. Datas, locais, as operações.

Morgan dirigiu-se à porta.

— Tanto quanto me diz respeito, está de licença um mês, Asa — disse Ferguson.

— Claro!

— Por outro lado, se lhe pudermos ser úteis em alguma coisa...

— Eu sei — disse Morgan. — Não hesitarei em telefonar.

Em 1947, quando se esboçaram os primeiros contornos da guerra fria no horizonte, J. Parnell Thomas e o seu Comitê Sobre Atividades não Americanas decidiram procurar vestígios de subversão comunista na indústria cinematográfica de Hollywood.

Dezenove escritores, realizadores e produtores formaram um grupo de resistência, e declararam que o Comitê não tinha nada que se intrometer nas suas opiniões políticas. Onze foram chamados a Washington, a fim de responderem por si próprios em público. Um deles, Bertolt Brecht, partiu apressadamente para a Alemanha Oriental.

Os outros dez se recusaram a responder, utilizando a garantia da liberdade de expressão contida no primeiro parágrafo da Constituição americana.

O assunto fez abalar toda a indústria do cinema, e implicou muito mais gente do que os famosos dez. No período que se seguiu, muitos atores, escritores e realizadores sofreram um dano tal na sua reputação, causado pelo Senado, que não voltaram a trabalhar.

Sean Riley, um escritor americano-irlandês com fama de dizer o que tinha a dizer, foi um dos atingidos. Apesar dos seus dois argumentos galardoados com Óscares, viu-se, repentinamente, sem hipótese de arranjar trabalho onde quer que fosse. A mulher, que sofria do coração há anos, não conseguiu aguentar a tensão e preocupações desse período horrível. Morreu em 1950, o ano em que o marido se recusou a comparecer diante de um subcomitê do Senado, liderado por Joseph McCarthy.

Riley não se rendeu. Retirou-se simplesmente para o campo, para uma velha herdade hispano-americana em ruínas, em San Fernando Valley, e levou a filha de oito anos com ele.

Durante anos viveu do que na indústria cinematográfica se designa como médico de argumentos. Sempre que alguém tinha dificuldades com um argumento, levava-o a Riley, que o reescrevia, mediante pagamento. O seu nome nunca aparecia, evidentemente, nos cartazes.

No fundo, não foi uma vida assim tão má. Escreveu dois ou três romances, plantou uma vinha, e criou a filha com amor, compreensão e ternura, ensinando-a a respeitar a terra e o que de melhor há nas pessoas, e a nunca ter medo.

Ela era uma jovenzinha de rosto angular, pele cor de azeitona, com os olhos verde acinzentados e o cabelo negro herdados da mãe, uma judia polaca de Varsóvia, quando foi para a UCLA. Formou-se em psicologia em 1962, fez pesquisas no ramo da psiquiatria experimental na Clínica Tavistock em Londres e doutorou-se pela Universidade de Cambridge, em 1965.

Deslocou-se a Viena, ao Instituto Holzer, destinado a loucos criminosos, a fim de seguir o seu interesse especial, a psicopatologia da violência. Foi neste local que iniciou o seu contato com esse surpreendente fenómeno dos nossos tempos que se chama a guerrilha urbana. O terrorista da classe média.

Durante os anos que se seguiram prosseguiu os seus estudos neste campo, entrevistando pessoas na maioria das capitais europeias, trabalhando, quando tinha de o fazer, para as autoridades governamentais implicadas, embora não fosse uma situação que lhe agradasse.

Nunca deixou de manter um contato muito marcado com o pai, visitando-o pelo menos duas vezes por ano. Ele também foi vê-la à Europa, principalmente quando a indústria cinematográfica italiana o transportou a Roma e a novas oportunidades. O seu nome reapareceu nos cartazes. Ganhou prémios de argumentos em Berlim, Paris e Londres. E depois, em 1970, morreu com um ataque cardíaco na herdade de San Fernando Valley.

Nessa altura, a filha estava em Paris, na Sorbonne, e regressou imediatamente a casa no primeiro avião. Aguentou, esperando-a, e quando entrou no seu quarto no Lebanon Hospital, os olhos azuis, talhados no rosto queimado do sol, e que subitamente envelhecera, abriram-se. Pegou-lhe na mão. Esboçou um sorriso, e morreu.

Todos apareceram no funeral. Realizadores, atores, produtores e homens do topo da hierarquia que não lhe tinham dirigido a palavra nos maus tempos. Que lhe tinham voltado as costas e mudado de passeio quando o viam aproximar-se. Agora que morrera, chegava-se a falar na hipótese de a Academia lhe conceder um prémio especial.

Na qualidade de católica tradicionalista mandou-o enterrar, em vez de cremar, e manteve-se no cemitério, apertando as mãos dos que desfilavam diante dela e odiando cada um daqueles cobardes e hipócritas.

Depois fugiu, regressando à herdade do vale, mas de nada lhe valia, com a presença de todas as recordações do pai.

Não tinha ninguém para quem se virar, pois havia um aspecto em que não se deu bem, e que consistia nas suas relações com o sexo oposto. As suas ligações com homens tinham sido sempre emocionalmente breves e insatisfatórias e, por conseguinte, fisicamente também. A verdade consistia em que nunca encontrara ninguém que se equiparasse ao pai.

Quando se encontrava mesmo à beira do precipício, surgiu-lhe a salvação sob a forma de uma carta, por via aérea, com um selo inglês de Cambridge e que uma manhã foi deitada na sua caixa de correio. Continha uma oferta para ensinar na sua faculdade em New Hall, e agarrou-a com mãos ambas, fugindo para o único outro refúgio que conhecera na vida.

E o vento tinha virado de feição a seu favor. Como se regressasse a casa. Tinha o trabalho, o livro e Cambridge, em toda a sua pujança, especialmente naquela bela manhã de Abril de 1972 quando conheceu John Mikali.

Trabalhou a noite inteira nas provas da quinta edição do livro, na medida em que os editores as queriam na sexta-feira. Em vez de se meter na cama, seguiu a rotina programada. Vestiu um fato de treino, montou na bicicleta e pedalou rumo ao centro da cidade, limpa, tranquila e bela à luz da manhã.

Quinze minutos mais tarde, corria pelo caminho ao longo dos Backs, os relvados que descem até ao rio Cam. Aproveitava cada minuto, satisfeita com o trabalho conseguido durante a noite, aspirando o aroma da manhã e, subitamente, sentiu o som de alguém que a acompanhava e Mikali surgiu ao seu lado.

Estava vestido com um fato de treino muito simples, azul-claro, e sapatos de ténis. Tinha uma toalha branca enrolada à volta do pescoço.

— Uma boa manhã para treinar — comentou ele.

Reconheceu-o imediatamente, difícil seria tal não acontecer, devido aos cartazes com a habitual foto e que, durante uma quinzena, se encontravam colados por toda a Cambridge.

— Geralmente costuma estar.

— Ah, uma americana! — sorriu instantaneamente. — Deve ser o meu dia. É uma estudante bolseira, ou qualquer coisa assim?

A sua costela irlandesa revelou-se, fazendo-a soltar uma risada.

— Esse tempo há muito que já lá vai. Agora sou o que aqui chamam uma assistente universitária. Chamo-me Katherine Riley. Sou da Califórnia.

— Também eu, Deus do céu! Chamo-me Mikali, John Mikali.

Apertou-lhe a mão com uma leve relutância, consciente de um estremecimento de emoção, um frio desconhecido no ventre.

— Sim, eu sei. Esta noite vai tocar o Concerto Nº 4, de Rachmaninov, com a Orquestra Sinfónica de Londres.

— Conto com a sua presença.

— Está brincando? Alguns estudantes passaram toda a noite em bicha, à espera que a bilheteira abrisse, de manhã. Desde esse momento que não há um único lugar para esse concerto.

— Que disparate! — comentou ele. — Onde vive?

— Em New Hall.

— Mando entregar-lhe um bilhete, ao meio-dia. Não encontrava forma de recusar, nem tampouco o pretendia.

— Seria fantástico.

— Depois vão dar uma recepção em minha honra no Trinity College. Posso juntar igualmente um convite? Se aparecer, deixará de ser monótono. — Antes que ela lhe respondesse, olhou para o relógio. — Não me tinha apercebido das horas. Tenho um ensaio de quatro horas esta manhã, e Previn é um maestro severo. Até logo à noite.

Virou costas e atravessou os Banks a correr, numa passada muito rápida. Ela deixou-se ficar no mesmo lugar, a observá-lo, consciente de toda a força que dele emanava, e mais excitada do que alguma vez se sentira em toda a vida.

Durante a recepção, deixou-se ficar a observá-lo no canto oposto da sala, com o fato de veludo, a camisa preta, de seda, aberta e revelando o crucifixo de ouro à volta do pescoço, numa palavra, tudo o que o definia. Ele mostrava-se inquieto, enquanto a multidão o rodeava, perscrutando incessantemente a sala. Quando a descobriu, esboçou imediatamente um sorriso e pegou em duas taças de champanhe de um tabuleiro transportado por um criado que passava ao seu lado, encaminhando-se logo na sua direção.

— Telefonei para a faculdade — informou. — Por que não me disse logo? Doutora Riley... catedrática em New Hall.

— Não me pareceu importante.

— Toquei bem esta noite?

— Sabe que sim — limitou-se ela a responder, ao mesmo tempo que segurava a taça que ele lhe estendia.

Os olhos de Mikali deixavam refletir uma expressão estranha. Era como se, de certa maneira, tivesse feito uma descoberta que não esperava.

Sorriu e ergueu a taça num brinde.

— A Katherine Riley, uma bonita moça católica, inteligente, perspicaz, e com gostos musicais, que nos próximos três minutos vai me tirar daqui para me mostrar Cambridge.

— Judia — disse. — A minha mãe era, e isso conta.

— De acordo. Vou proceder à correção necessária. Katherine Riley, uma bonita moça judia. Isso significa que também sabe cozinhar?

— Sem dúvida.

— Excelente. Vamos embora daqui. Pode me levar num passeio de barco ao luar e me mostrar o romance que existe em você.

Decorrida a primeira meia hora choveu, o que os deixou encharcados até os ossos, quando abandonaram o barco na margem do rio.

Mais tarde, quando o táxi os deixou em New Hall, chovia ainda mais torrencialmente, e chegaram à porta do apartamento dela molhados na escala máxima para dois seres humanos.

Quando abriu a porta e fez menção de entrar, ele segurou o braço dela.

— Não — contrapôs. — Da primeira vez, sou eu que a levo no colo. Trata-se de uma velha tradição grega. Somos muito étnicos, sabe?

Depois, perto das três da manhã, quando finalmente pararam, ela voltou-se para ele na cama, no momento em que estava à procura de um cigarro.

— Foi uma maravilha. Nunca imaginei que pudesse acontecer assim.

— Durma — disse ele ternamente, colocando um braço em volta do corpo dela.

Nessa altura deixara de chover e o luar infiltrava-se no quarto. Deixou-se estar muito quieto durante algum tempo, fumando e fitando o teto. Quando a ouviu gemer em sonhos, reforçou instintivamente o abraço.

— Consegue ter consciência absoluta de que foi Milton o responsável por esta árvore? — perguntou Katherine.

Estavam sentados debaixo da amoreira, no Jardim de Convívio do Christs College, a árvore que se dizia ter sido plantada pelo poeta em pessoa.

— É-me totalmente indiferente — retorquiu Mikali, beijando-lhe o pescoço. — Nada interessa num dia como este. Primavera em Cambridge e você tem que trabalhar.

— Até o fim da semana e depois tenho merecidas férias.

— Não sei, Katherine, não sei. Esse tipo de trabalho a que você se dedica... Violência, morte, terrorismo... É um campo difícil para uma mulher. Não. Vou emendar. Difícil para homem ou mulher.

— Oh, deixe disso — retorquiu ela. — E o tempo que você passou na Legião, na Argélia? Li esses artigos nas revistas. Que papel executava nessa altura?

— Era apenas uma criança — disse ele com um encolher de ombros. — Aderi impulsivamente. Uma coisa emocional. Mas você, na realidade, é mesmo caçadora. Alguém me contou na noite passada que está ocupada com essa moça alemã, a que tem ligações com o grupo Baader-Meinhof. Desconhecia que estivesse aqui.

— Está, sim. Em Tangmere. É uma instituição especial. A pouca distância daqui. Patrocinada pelo Governo.

— Oh, compreendo. Está oficialmente encarregada do caso?

— Sim — respondeu, hesitante. — É a única maneira que consegui de vê-la, mas espero ter conquistado a confiança dela.

— Ela não escondeu no quarto esse cara a quem os jornais chamam de Cretense, em Frankfurt, na noite em que disparou contra o ministro da Alemanha Oriental?

— Certo.

— Eu mesmo estava lá — observou. — Dando um concerto na universidade. — Levantaram-se e começaram a passear. — Não compreendo. É óbvio que a polícia deve ter conseguido arrancar alguma descrição dele. O bastante para descobrir a pista. Sempre soube que os alemães são muito eficientes nesse campo.

— Usava máscara. O tipo de coisa com buracos para olhos, nariz e boca, sabes? Mesmo que quisesse descrevê-lo, não poderia.

— O que quer dizer com isso?

— Segundo consta, ele preencheu todo o tempo fazendo amor com ela — sorriu Katherine Riley.

— Com máscara? Mas isso é o máximo!

— Não sei. Nunca experimentei.

Mais tarde, num barco, no rio, Mikali disse: — Tenho uma villa em Hidra, Katherine. Sabe onde fica?

— Sei.

— A casa fica junto à costa. Só se consegue chegar de barco ou pelas montanhas, a pé ou de mula. Na realidade, se alguma vez você se perder, basta procurar os postes telefônicos e segui-los.

— Se me perder?

— Disse que sairia de férias neste fim de semana. Ocorreu-me que talvez você possa dar um passeio a Hidra. Disponho de três semanas e depois parto para Viena. Vai considerar a hipótese?

— Já considerei.

Mais tarde, falou com Deville ao telefone.

— Estabeleci contato, como sugeriu, e posso garantir que não há qualquer problema no que se refere à encomendazinha alemã. Nem o mínimo.

— Ótimo. Então, está tudo tratado. O que vai fazer agora?

— Parto para Hidra no sábado. Vou passar três semanas lá. Levo a doutora Riley.

— E por que, John? Meu Deus! — exclamou Deville, surpreendido.

— Porque quero — respondeu Mikali, voltando a pousar o receptor.


CAPÍTULO 6

Katherine Riley estava à secretária, junto à janela do seu gabinete, a comer um almoço composto de sanduíches mistas e leite frio, ocupada com a tese revista de um dos seus alunos mais fracos.

Ouviu-se uma pancada na porta e Morgan entrou. Vestia uma camisa escura, de gola alta, e casaco cinzento de tweed. O único pormenor na sua figura era a gabardine militar, que lhe caía, solta, dos ombros.

— Sim? — perguntou, embora já soubesse de quem deveria tratar-se.

— Morgan — identificou-se. — Asa Morgan. Presumo que o inspetor-chefe Baker do Departamento Especial já a tenha contatado.

Deixou-se ficar sentada, olhando-o, com uma sanduíche numa das mãos e uma caneta na outra.

— Coronel Morgan, não é? Regimento de Paraquedistas?

— Faz a afirmação como se tivesse alguma importância.

— Li aquele panfleto que escreveu para o Ministério da Defesa, a seguir aos acontecimentos da Coreia. Trabalho, eventualmente, nesse tipo de assunto.

— Temos algo em comum, portanto.

— Oh, não — respondeu ela. — Não tanto quanto sei. Há aquele incidente desagradável em que se meteu em Chipre, durante o combate da EOKA. Analisei a sua vida, coronel. Nessa altura, a imprensa sugeriu que também se enquadraria perfeitamente nas SS.

— O objetivo do terrorismo consiste em aterrorizar — retorquiu Morgan. — Foi o próprio Lenin a dizer. Em mil novecentos e vinte e um, Michael Collins aderiu a essa crença. Declarou ser a única forma de um pequeno país conseguir derrotar uma nação. As guerrilhas urbanas são nossa especialidade, doutora, portanto conhece tão bem como eu o seu funcionamento. Campanhas indiscriminadas de bombardeio, terror infundado, carnificina deliberada de inocentes, mulheres, crianças. A minha missão em Chipre era dar fim a isso, e consegui.

— Com processos de interrogatório que faziam recordar a Gestapo mais do que qualquer outra coisa.

— Não — contrapôs. — Totalmente errado. Tudo de valor veio dos chineses. Forneceram-me instruções pessoais num campo chamado Tipai, na Manchúria.

Continuou sentada, consciente de que deveria sentir-se furiosa e não estava, o que era estranho, na medida em que este homem representava tudo o que ela mais detestava. Autoridade uniformizada, a máquina militar que uma vez mais engolia a juventude do país e os cuspia para o Vietnã.

— Harry Baker me avisou que você não gosta de policiais — disse. — Errou. Obviamente o que está em causa são os uniformes.

— Talvez.

Acendeu um cigarro.

— Assim já é melhor. Quase sorriu e os cantos da sua boca viraram-se para cima e não caíram.

— Diabos o levem! — exclamou ela.

— Vou conseguir falar com a Hoffman? — inquiriu Morgan, sentando-se sobre a mesa.

— Segundo Baker, está relacionado com o caso Maxwell Cohen. O Departamento Especial acha que o Cretense atacou novamente.

— É verdade.

— E acha que conseguirá uma pista dele com Lieselott? — respondeu com um sacudir negativo da cabeça. — Não lhe diria uma palavra, mesmo que soubesse.

— Por que ele fez amor com ela?

— Não acho que compreenda — voltou a dizer Katherine, sacudindo uma vez mais a cabeça. — Para uma pessoa como ela, ele um deus. Um símbolo daquilo em que acredita.

— Não me diga nada. Deixe-me adivinhar. A pureza da violência.

Abriu uma gaveta de onde retirou um panfleto amarelo.

— Alguém me mandou isto da Sorbonne, noutro dia. Foi impresso por uma das associações de estudantes. Supostamente estão adquirindo educação nas universidades, e que educação! — Abriu o panfleto. — Escute este conselho aos manifestantes. Quando em confronto com a polícia, devem usar luvas. Jornais enrolados em volta do corpo diminuem a eficácia dos canos das espingardas. Um comprimido antigripe tomado meia hora antes de começar o motim e outro quando começam a cair as granadas diminuem a náusea provocada pela inalação de gás.

— É a primeira vez que escuto tal coisa — comentou Morgan. — Não posso me esquecer. Quando poderei vê-la?

— De acordo. Perca o seu tempo, se é isso que deseja. Tem automóvel?

— Tenho.

— Marquei uma entrevista para as três. Levaremos vinte minutos para chegar lá. Pode vir buscar-me às duas e meia. E agora, se não se importa...

— Usa sempre o cabelo preso atrás como neste momento? — quis ele saber, pegando a pasta e a capa.

— E o que tem a ver com isso, diabos?

— Se estivesse no seu lugar, jovem, soltaria. Num dia bonito lhe daria um aspecto de verdadeira mulher.

A porta fechou-se suavemente nas suas costas. Ela continuou sentada, com a boca aberta, tal a surpresa.

A sala de entrevistas no Centro de Recuperação Especial de Tangmere tinha um ambiente muito agradável. As paredes forradas de papel com motivos, tapete combinando, uma mesa e algumas cadeiras. As janelas com grades forneciam um toque quase incongruente.

— Bastante agradável, na realidade — comentou Morgan com um toque de ironia, observando o jardim.

— Não se trata de uma prisão normal, nem é essa a ideia — respondeu Katherine Riley. — É uma instituição psiquiátrica.

— Com o objetivo de recuperação, e rezemos a Deus para que aconteça.

Antes que pudesse responder, a chave rodou na fechadura e Lieselott Hoffman foi introduzida na sala. A guarda da prisão retirou-se e fechou a porta novamente à chave.

Era uma moça de baixa estatura, um rosto de feições vulgares, cabelo loiro cortado curto, vestindo jeans e uma camisa de algodão. Ignorou Morgan e perguntou num inglês excelente: — Quem é o seu amigo?

— O coronel Morgan. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas. — Katherine Riley fez aparecer um maço de cigarros, ofereceu-lhe um e acendeu.

— Sobre o Cretense — elucidou Morgan.

A moça virou-se bruscamente, muito pálida, e voltou-se novamente para Katherine Riley.

— O que aconteceu?

— Um tiroteio em Londres. Um sionista famoso. O Setembro Negro reivindica o atentado, mas a polícia julga tratar-se do Cretense.

— O poder para o povo — exclamou Lieselott Hoffman virando-se para Morgan de punho cerrado.

— Que povo, minha pateta?

Ela baixou a mão com uma expressão de curiosa incerteza no rosto e ele abriu a pasta de onde extraiu uma série de fotografias.

— Pensei que, por momentos que fosse, desejasse um contato com a realidade. Veja o que seu Cretense tem feito ao longo dos anos.

Aproximou-se da mesa e Katherine Riley seguiu-a.

— Esse é um tal coronel Vassilikos no banco traseiro do automóvel, em Paris. Como pode ver, tem o crânio despedaçado. O homem ajoelhado junto dele é um dos guarda-costas. Tem aí os miolos bem à mostra.

Não se notou a mínima alteração no rosto dela, enquanto lhe ia mostrando, uma após outra, as vítimas do Cretense. A última era a de Megan, tirada no túnel de Paddington, prostrada na sarjeta onde a tinham encontrado.

— Quem era esta? — perguntou, pegando a foto.

— Minha filha — explicou Morgan. — Tinha catorze anos. Atropelou-a com um carro roubado, para escapar, depois de ter disparado contra Cohen.

Lieselott pousou a foto, virou-se para Katherine Riley e, com uma expressão da mais absoluta indiferença estampada no rosto, disse: — Posso ir embora?

Katherine Riley, num gesto que ia totalmente contra a sua maneira de ser, esbofeteou-a.

Morgan entrepôs-se entre as duas, colocando-lhe as mãos nos braços e expressando-se num tom de voz tranquilo, mas que não admitia réplica: — Calma, moça.

Lieselott Hoffman passou por trás deles, dirigiu-se à porta e apertou na campainha. Decorrido algum tempo a porta abriu-se e ela passou para o outro lado, sem pronunciar palavra.

Por cima do ombro dele, Katherine Riley olhou a fotografia de Megan, a massa sangrenta a que o rosto ficara reduzido, e sentiu-se fisicamente nauseada.

— Lamento — sussurrou.

— Ah, Kate — retorquiu. — Regra número um: nunca pedir desculpas, nem dar explicações. Agora, vamos sair daqui e beber qualquer coisa.

— Asa? — exclamou. — Mas que nome estranho! — disse Katherine.

— Tirado da Bíblia — elucidou-a Morgan, após o que se tornou na realidade muito galês. — A minha mãe era muito religiosa. Quando era miúdo, obrigava-me a ir à capela duas vezes, todos os domingos.

— E onde?

— Numa aldeia em Rhondda Valley, no País de Gales. Minas de carvão, uma escória. Um lugar de onde fugir. O meu pai foi morto quando um teto caiu. Tinha oito anos. A firma concedeu à minha mãe uma pensão de dez shillings semanais. Aos catorze, também desci às minas e subi pela última vez, quatro anos depois, para servir ao Exército.

— Sem nunca olhar para trás?

— Adorava — admitiu ele. — Nunca me senti tão enquadrado como na qualidade de soldado. E o Exército me fez um bem enorme. Fui sargento em Arnhem, e depois encarregaram-me de uma comissão como segundo-tenente. Depois da guerra, mantiveram-me. Mandaram-me para Sandhurst.

— E o seu passado? Nunca lhe ocasionou problemas num lugar daqueles?

— Ora! Qualquer imbecil consegue aprender a manejar um garfo e uma faca, e na qualidade de galês, sabe, sempre me achei superior a qualquer maldito inglês ainda que educado em Eton. — Sorriu, naquele momento zombando dela. — Somos um povo muito intelectual. Surpreendi-os. Na guerra não me limitei a ler Clausewitz. Também sabia o meu Wu Ch'i. Matéria densa, sabe?

— Aposto que foi você o primeiro filho da mãe.

— Tinha de ser, moça. Tinha de ser o melhor, entende? Nas línguas, por exemplo. Não que constituíssem problema. Depois de se aprender a falar galês, todo o resto parece fácil.

Estavam sentados a uma mesa, uma entre tantas outras de um pub, na margem do rio Cam. Era muito agradável naquele fim de tarde.

— E sua mulher? Como aceitou a situação?

— Com a habitual firmeza, tanto quanto posso julgar — respondeu ele com um encolher de ombros. — Acabou tudo há bastante tempo. Nunca aceitou devidamente a minha vida militar ou a maneira como a encaro. É pintora de profissão, e muito boa. Conhecemo-nos na National Gallery numa manhã de domingo. Um desses erros monumentais que as pessoas cometem, frequentemente, ao longo da vida. Acho que o uniforme e a boina vermelha tiveram muita influência.

— Ela gostou?

— Não durante muito tempo.

— O que correu mal?

— Foi me visitar em Chipre, durante a campanha EOKA. Um dia seguíamos de automóvel, ao longo de Nicósia, atrás de um médico de um regimento de cavalaria que gastava o seu tempo livre tratando gratuitamente os camponeses das aldeias das montanhas Troodos. Parou em um sinal e dois terroristas da EOKA estouraram seus miolos, disparando através da janela.

— E você deu cabo deles?

— Estava armado, evidentemente.

— E matou os dois?

— Sim. Infelizmente, um deles tinha apenas quinze anos.

— E ela não conseguiu aguentar?

— O temperamento ocidental. Esperam que se dispare no ombro ou braço, mas quando se vive uma situação real há apenas uma coisa a fazer. Atirar para matar. E atirar duas vezes para ter certeza de que o outro não responda enquanto cai.

— E depois disso tornou-se diferente?

— Não foi tanto o rapaz, mas me ter visto em ação. Disse que nunca conseguiria esquecer a expressão que viu no meu rosto. Quando tudo isso aconteceu, estava grávida, mas não voltou a ir para a cama comigo.

— Lamento — murmurou Katherine.

— Por quê? Ela acredita na vida. Encarou-me como uma espécie de carrasco público. Agora está casada com um pastor. O gênero de homem que acredita em tudo e em nada, por conseguinte dão-se bem.

— Lamento o que se passou com a sua filha — disse ela.

— Devia ter agido de outra forma — retorquiu. — Foi uma estupidez pensar que conseguiria chocar aquela moça e arrancar-lhe alguma reação.

— Para os que pensam como ela, trata-se de uma espécie de religião — explicou Katherine. — Acreditam em todas as balelas saídas de gente como Sartre. A violência encarada pelo lado nobre. Os terroristas adoram o ponto de vista romântico. Reivindicam o papel de heróis da revolução, mas desdenham os princípios da guerra. Dizem falar pelo povo, mas geralmente são o eco da própria voz.

— E o Cretense! — retorquiu Morgan. — Que tipo de indivíduo é?

— O que lhe parece?

Ele contou a conversa que tivera com Baker sobre o assunto e a eventual conclusão a que haviam chegado.

— Sim... Acho que posso aceitar a teoria. O único ponto em que discordo é esse do passado militar.

— Por quê?

— Os cubanos têm oferecido excelente treino militar a terroristas de todo o mundo há muitos anos, além de que existem os russos. Na nossa época levam estudantes da maioria dos países estrangeiros para a Universidade Patrice Lumumba, em Moscou. A KGB anda sempre em busca de material valioso.

— Eu sei — retorquiu Morgan —, mas pressinto mais do que isso no Cretense. Se quiser, pode definir como o instinto de um soldado que reconhece outro soldado. Apenas gostaria de saber o que faz agir esse homem. Não se trata de ideologia... nada nos seu crimes revela uma motivação desse gênero.

— Está interessado no ponto de vista psicológico?

— Por que não?

— OK! Lá vai. Dediquei-me ao estudo de corredores do Grand Prix, tempos atrás. A conclusão foi que quanto maior a tensão melhor funcionam. A maior parte deles só se sente verdadeiramente vivo operando com todo o seu potencial em condições de perigo máximo. O corredor mais famoso do Grand Prix é simplesmente o que está preparado para atirar para fora da pista qualquer carro que atravesse em sua frente. A sua imagem é a da masculinidade personificada, mas é capaz de amar motores, automóveis e a engrenagem da profissão mais do que a qualquer mulher. A corrida constitui o desafio perfeito em que a morte representa a única alternativa. É um jogo que excita continuamente e que jamais deixa de satisfazer.

— O desafio permanente. Um homem contra... — Morgan franziu o sobrolho. — Contra o quê?

— Ele próprio, talvez. Um personagem psicopata, indubitavelmente, caso contrário jamais aceitaria a culpa associada aos crimes que comete.

— E a procura da morte, foi o que disse? Que tem um desejo de morte?

— Não me parece que o perturbe minimamente. Temos gravações de pilotos de prova à beira da morte quando aviões caem e que, em vez de gritarem de medo, continuam a tentar explicar o que há de errado. Ele é esse tipo de homem. — Ela hesitou. — Um homem, na minha opinião, muito parecido com você.

— Bom. Nesse caso, acho que tenho hipóteses — retorquiu Morgan, olhando para o relógio. — Agora, vou embora. Tenho um encontro em Londres esta noite.

— O que vai fazer? — perguntou Katherine, quando regressavam ao Porsche. — Não é o máximo aonde consegue ir?

— Não — respondeu ele. — Há a arma que matou Cohen. Tenho que descobrir de onde veio.

— Acha possível?

— Conheço um homem em Belfast que talvez possa ajudar. Terei de me avistar com ele. — Ela entrou no Porsche, Morgan fechou a porta, deu a volta ao carro e colocou-se atrás do volante. — Posso visitá-la, quando voltar?

— Se quiser... — Ela verificou que respondera sem a mínima hesitação e com a maior surpresa a nível pessoal.

— Não teria perguntado se não quisesse, não acha?

A Security Fators Ltd. situava-se num pequeno beco junto à Great Portland Street. Pouco passava das sete quando Morgan subiu as escadas e empurrou a porta com o indicativo de "Escritórios". Estava fechada, mas havia luz no interior. Premiu o botão da campainha e esperou. Uma sombra recortou-se do outro lado da porta que se abriu.

Jock Kelso tinha cinquenta e cinco anos e parecia ter quarenta, apesar do cabelo grisalho cortado à escovinha. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, a pele bronzeada e feições determinadas, o tipo de homem a evitar em determinadas situações e a procurar noutras. Tinha prestado serviço na Guarda Escocesa, e depois no Regimento de Paraquedistas durante vinte e cinco anos, cinco dos quais como primeiro-sargento de Morgan.

— Olá, Jock — cumprimentou Morgan, entrando. — Como vai esta coisa da segurança?

Kelso indicou o caminho para um outro gabinete, pequeno e arrumado, com uma mesa, arquivos verdes e tapetes nas paredes. Aqui residia a alma do negócio. Deste gabinete tinham partido mercenários para combater no Congo, Sudão e Omam, bem como para mais uma dúzia de guerrazinhas imundas, pois Jock Kelso estava no negócio da morte. Sabia-o, e Morgan também.

— Ouvi falar do que aconteceu a Megan — disse Kelso, ao mesmo tempo que servia uísque em dois copos de papel. — Lamento.

— Quero o homem responsável, esse Cretense de que falam — retorquiu Morgan.

— Estou ao seu dispor, coronel. Sabe-o perfeitamente.

— Muito bem, Jock. Tenho uma pista. Pode significar qualquer coisa ou nada, mas de qualquer modo tenho de regressar a Belfast para descobrir.

— Sem uniforme? — perguntou Kelso com uma expressão grave. — Deitam-lhe a mão, coronel, e arrancam-lhe os olhos.

— Passa a palavra a O'Hagan — disse Morgan. — Avisa-o de que estarei na Europa, em Belfast, a partir de amanhã à tarde. Que quero encontrar-me com ele. Podes consegui-lo?

— Posso — respondeu Kelso. — Se é isso o que deseja.

— É isso, Jock. É isso mesmo o que quero. Como te tens arranjado desde que a tua mulher morreu?

— Muito bem. A minha filha, Amy, ainda continua em casa e cuida de mim.

— Deve ter agora uns vinte, não? Está noiva ou coisa assim?

— Nada disso — riu Kelso. — Aquela tem os miolos no sítio. Montou um negócio como florista. Vai muito bem, principalmente no serviço de entregas. É surpreendente como crescem. Num minuto são crianças e logo no seguinte...

Fez uma pausa desajeitada. Morgan esvaziou o copo e estremeceu.

— Está uma noite fria, hoje. Começo a envelhecer.

— Mas não tanto frio como na Coreia, coronel.

— Não — concordou Morgan num tom de voz tranquilo. — Nada poderá haver que se lhe compare. Dou-te notícias na volta.

Kelso ficou a ouvi-lo descer as escadas. Depois pegou no telefone e chamou um táxi.

O carro deixou-o ficar, vinte minutos depois, no exterior da Harpa de Erin, um bar na Portobello Road e que, como o nome indicava, era muito frequentado pelos irlandeses que estavam em Londres.

A casa estava cheia, um velho a um canto tocava harmónica e cantava uma velha balada de rua irlandesa, Bold Robert Emmet. Quando Kelso entrou, toda a sala se unia no entoar do refrão: Julgado como traidor, rebelde, um espião; mas ninguém me pode chamar ingénuo ou cobarde, vivi como herói e herói morrerei.

Foi acolhido com mais do que um olhar de inimizade, ao abrir caminho até à porta de vidro fosco. Quando entrou, viu três homens sentados a uma pequena mesa, jogando às cartas.

O homem robusto, de frente para ele, chamava-se Patrick Murphy, e era o organizador, no norte de Londres, da Sinn Fein, a ala política do IRA Provisório.

— Jock? — perguntou.

— É importante — respondeu-lhe Kelso.

Murphy esboçou um aceno de cabeça afirmativo e os outros dois levantaram-se e saíram.

— Bom?

— Tenho uma mensagem para O'Hagan.

— Que O'Hagan?

— Deixa-te de graças comigo, Patsy. Fomos soldados tempo demais. Diz a O'Hagan que Morgan estará na Europa, a partir de amanhã, e que deseja vê-lo, o mais depressa possível, para assuntos pessoais.

— Que tipo de assunto pessoal?

— Cabe-lhes discutir.

Kelso abriu a porta, avançou de novo por entre a multidão e regressou ao táxi, que deixara à espera. Quando o automóvel se afastou, ele estava a suar ligeiramente.

Nessa altura, Murphy deixara-se ficar sentado, refletindo uns momentos, após o que se debruçou no balcão do bar e chamou a dona da casa. Ofereceu-lhe algumas notas de libra.

— Troca-me isto em moedas de dez pence, Norah, meu amor. Quero telefonar para Belfast.

— Claro, e podes usar o meu telefone, não?

— Para este telefonema, não. Nunca se sabe quem poderá estar à escuta.

Ela encolheu os ombros e deu-lhe os trocos da caixa. Murphy saiu pela porta das traseiras e desceu a rua até à cabina telefónica da esquina.

Na manhã seguinte, pouco depois das nove, alguém bateu à porta do estúdio de Katherine Riley. No momento em que levantou os olhos, avistou Mikali.

— Quando chegaste? — perguntou ela.

— De avião, esta manhã, no meu novo Cessna de segunda mão. Tenho alguns dias de férias, a que se seguem concertos em Paris, Berlim e Roma. Depois, estou a pensar ir uns tempos para Hidra. Dispões de tempo?

— Não sei — respondeu ela, já nos seus braços, consciente da excitação física que nunca deixava de a possuir.

— Este período estou sobrecarregada de trabalho.

— De acordo. Esta manhã, então. Se te portares como uma boa menina, deixo-te pilotar o Cessna.

— Faço-o muito melhor do que tu, John Mikali, e sabe-lo bem — retorquiu, na medida em que ambos tinham a paixão do voo. — Dá-me apenas dez minutos para trocar de roupa.

— Cinco — rematou ele, ao mesmo tempo que se sentava na secretária e acendia um cigarro enquanto ela se dirigia ao quarto. — Então, tens estado muito ocupada esta semana? A fazer o quê?

— A mesma rotina de sempre — respondeu Katherine.

— À exceção da Hoffman. Visitei-a, ontem, em circunstâncias bastante estranhas.

— Ah, sim? — inquiriu Mikali, levantando-se e indo até à porta do quarto. — Conta lá.

Mais tarde, quando se dirigiam ao automóvel, ele deu uma desculpa, regressou novamente à Faculdade, parou na primeira cabina pública e telefonou para Paris. Quando Deville atendeu, falou rapidamente: — Quero informações completas sobre esse indivíduo, o Morgan. Tudo o que possa saber-se. O currículo, incluindo fotografias. A sua gente em Londres consegue fornecer?

— Claro. Pode recolhê-las na caixa postal em Londres, a qualquer hora depois das sete. Posso concluir que está com problemas?

— Foi ver a "encomenda" alemã, embora não o tenha conduzido a parte alguma. Segundo as informações que recebi, deslocou-se agora ao Ulster para recolher uma pista que possa ajudá-lo, no que se refere à arma utilizada.

— Corre na direção errada — observou Deville com uma risada. — Um beco sem saída.

— Evidentemente — concordou Mikali. — Mas é bom estar-se preparado. Manter-me-ei em contato.


CAPÍTULO 7

 

O Europa Hotel, em Belfast, situa-se na Great Victoria Street, um edifício de doze andares junto à estação de caminho-de-ferro. Dado ter sido inaugurado em 1971, já fora alvo demais de vinte e cinco atentados do IRA.

Morgan recordou-se daquela interessante estatística, enquanto se encontrava à janela do seu quarto no quarto andar, olhando para baixo, para a estação das camionetas e a igreja protestante de Sandy Row.

Um vento frio, de leste, soprava de Belfast Lough, arrastando a chuva através das ruas da cidade destruída. Sentia-se inquieto e frustrado. Era o segundo dia que ali passava, e nada de acontecimentos.

Ficara no hotel, saindo apenas do quarto para descer à sala de jantar ou ao bar, passara a maior parte da noite anterior sentado no escuro, junto à janela, uma noite marcada pelos sons da explosão de bombas ou o matraquear ocasional de fogo de armas de mão.

Estava preocupado porque era sexta-feira, e em menos de quarenta e oito horas, às quatro horas da manhã de segunda-feira, 31 de Julho, a operação "Motorman" iria entrar em ação: a maior operação alguma vez montada pelo Exército inglês, desde o Suez. Uma invasão planeada de todas as áreas interditas dominadas pelo IRA, em Belfast e Londonderry. Assim que a mesma se iniciasse, O'Hagan desapareceria completamente das vistas durante uns tempos, podendo ir até ao Sul, para a República, se não fosse destacado.

Por fim, incapaz de suportar mais aquela tensão, vestiu o casaco, meteu-se no elevador e desceu até à recepção. Comunicou ao recepcionista que estaria no bar, sentou-se num banco e mandou vir uísque irlandês Bushmills.

Talvez tivesse esperado demasiado de O'Hagan. Talvez o golfo fosse atualmente demasiado largo.

Sorveu um gole de uísque e um porteiro uniformizado bateu-lhe no ombro.

— Coronel Morgan? O seu táxi chegou, Sir.

O motorista era um homem de idade, que precisava muito fazer a barba. Sentado no banco de trás, Morgan teve consciência dos olhos que o observavam pelo retrovisor. Não pronunciaram uma única palavra, enquanto avançavam através da escuridão e da chuva. Na maior parte das esquinas das ruas principais havia soldados de um ou do outro lado, mas via-se também uma quantidade enorme de tráfego e um número surpreendente de pessoas.

Estavam na Falis Road, com a Turf Lodge católica à esquerda. Morgan sabia e, seguidamente, o velho entrava por uma das miseráveis ruas laterais.

Ao fundo, havia um pátio de uma fábrica. Ao se aproximarem, o portão elevado abriu-se. Avançaram, e o portão fechou-se atrás deles.

Por cima de uma porta havia um spot que iluminava o pátio. A velha furgoneta Ford, estacionada ao lado, tinha as letras "Padaria Kilroy" pintadas de lado.

A chuva era o único elemento a cortar o silêncio. O velho falou pela primeira vez.

— Acho melhor sair, senhor.

Este era o momento mais perigoso e Morgan sabia. O momento que lhe indicaria se o seu risco calculado valera ou não a pena. Acendeu calmamente um cigarro, depois abriu a porta e saiu.

Um homem de compleição robusta, vestido com um anorak preto, deu a volta por detrás da furgoneta, armado com uma espingarda Kalashnikov de assalto. Morgan esperou. Ouviram-se passos e uma segunda figura surgiu das trevas: um homem alto, com um velho impermeável de cinto e um boné de tweed. Era muito jovem, pouco mais que adolescente. Ao aproximar-se, Morgan avistou o rosto por baixo do boné, os olhos escuros e inquietos reveladores de um espírito atormentado.

— Se quiser ter a bondade de se colocar em posição, coronel.

Era de Belfast, como o sotaque indicava, e sabia bem do ofício, pois revistou peritamente Morgan de alto a baixo, enquanto ele se mantinha encostado a um dos lados da furgoneta, de braços erguidos.

Dando-se, finalmente, por satisfeito, o adolescente abriu as portas traseiras.

— Muito bem, coronel, entre.

Subiu atrás de Morgan. O outro homem estendeu-lhe a espingarda e fechou as portas. Morgan ouviu-o dar a volta ao táxi. Um momento depois, afastavam-se.

A viagem não levou mais de dez minutos. A furgoneta parou, o motorista deu a volta e abriu as portas. O rapaz saltou e Morgan foi atrás dele. A rua oferecia um cenário de desilusão, pejada de vidros. A maioria dos candeeiros estavam estilhaçados e um armazém, do outro lado da rua, ficara reduzido a um monte de destroços.

As pequenas casas de terraço revelavam poucos indícios de vida, à exceção de um rasto de luz, sempre que uma cortina fora mal corrida. O rapaz acendeu um cigarro e deitou fora o fósforo.

— Um lugar ótimo para criar os filhos, não acha, coronel? — comentou, sem olhar para Morgan, depois do que atravessou para o lado contrário da estrada, com as mãos dentro do velho impermeável.

Morgan seguiu-o. Havia um pequeno café à esquina. O rapaz empurrou a porta e entrou. Era um local que nada tinha de especial. Havia uma fila de compartimentos, pintados de castanho de um dos lados, um bar com tampo de mármore no outro, com uma enorme máquina antiga, que funcionava com um queimador.

Segundo parece, não havia clientes. O único sinal de vida provinha de uma mulher velha, de cabelo grisalho, com a frente tapada pelo avental branco, sentada junto da chaleira, a ler o jornal. Olhou Morgan de relance e, seguidamente, fez um aceno ao rapaz.

— Traz o coronel aqui, Seumas — ordenou uma voz tranquila do compartimento ao fundo.

Liam O'Hagan comia ovos e batatas fritas e tinha uma caneca de chá junto ao cotovelo. Estava no início dos quarenta e tinha o cabelo preto e encaracolado. Vestia uma camisa de algodão aberta no pescoço, um casaco usado, e tinha a aparência de um trabalhador das docas que tivesse parado para comer uma bucha no caminho de regresso a casa.

— Olá, Asa — cumprimentou. — Estás com bom aspecto.

O rapaz dirigiu-se ao balcão e encomendou dois chás. Morgan sentou-se.

— Um bocado jovem para estas coisas, não?

— Quem? O Seumas? — riu O'Hagan. — Não foi isso o que pensaram, em Falis Road, durante Agosto de sessenta e nove, quando os grupos Laranja avançaram para dar cabo do local e escorraçar todas as famílias católicas que ali vivessem. Foi um punhado de homens do IRA que, nessa noite, saiu para as ruas e os manteve à distância. Seumas foi um deles.

— Na altura devia ter cerca de dezesseis anos.

— Dezoito, Asa — retorquiu O'Hagan. — Apareceu com um revólver Webley, de calibre quarenta e cinco, que o avô trouxera para casa da Primeira Guerra Mundial. Nessa noite combateu a meu lado. Desde essa altura que tem velado pelos meus interesses.

— Velado por ti?

— Com o revólver, é do melhor que tenho visto. Seumas voltou com uma caneca de chá, que colocou junto ao cotovelo de Morgan. Dirigiu-se novamente ao balcão e sentou-se num banco, ao fundo, a observar a porta, enquanto bebia o chá.

— Sinto-me impressionado.

— Mas, afinal o que queres, Asa? — perguntou O'Hagan. — O Inverno de mil novecentos e cinquenta, Liam, na Coreia, quando eras o pior segundo-tenente dos fuzileiros do Ulster.

— Bons tempos esses! — exclamou O'Hagan. — Mas ficamos impressionados, céus, quando um homem como tu assumiu compromissos. Transformou-se num soldado, com medalhas, tudo.

— Na altura em que os chineses nos cercaram em Imjin, quando o regimento teve de abrir caminho fosse lá como fosse, voltei atrás a buscar-te, Liam, quando apanhaste aquela bala no pé. Arrastei-te. Estás em dívida para comigo.

O'Hagan limpou a boca, retirou meia garrafa de uísque do bolso e adocicou o chá, gesto que repetiu no de Morgan.

— Totalmente paga — retorquiu. — Na Sexta-Feira Sangrenta, Asa. Estavas na Lewis Street, à meia-noite, do lado de fora do Cohan's Bar que, nessa altura, estava a arder. O rapaz e eu estávamos no telhado em frente. Ele queria estourar teus os miolos. Não o deixei. Por conseguinte, se vieste pedir um favor especial, bem perdeste o teu tempo.

— Um bom dia para ti — retorquiu Morgan amargamente. — Cerca de cento e quarenta mortos e feridos.

— Não sejas criança. A tempestade de fogo que esses aviões da RAF provocaram em Hamburgo, em Julho de quarenta e três, mataram mais pessoas em três dias do que a bomba atómica em Hiroshima. A única diferença entre a bomba largada a seiscentos mil metros e a abandonada debaixo da mesa de um café, num pacote, é que o aviador não vê o que está a fazer.

— E onde vai terminar toda essa violência e morte, Liam?

— Numa Irlanda unida.

— E depois? O que tencionam fazer, quando tudo acabar?

— No que estás a falar, com mil raios? — inquiriu O'Hagan, franzindo o sobrolho.

— Vão ganhar, não? Têm de acreditar nisso, ou não valeria a pena, ou será que não desejam que pare? Querem que se mantenha sempre? Viva a República! Armas Thompson e impermeáveis. A minha vida pela Irlanda.

— Vai para o diabo, Asa! — exclamou O'Hagan.

— Lembra da minha filha Megan?

— Que idade tem agora? — perguntou O'Hagan, depois de esboçar um aceno afirmativo. — Catorze ou quinze, presumo?

— Não leu a notícia dos disparos contra Maxwell Cohen na semana passada?

— Foi o Setembro Negro, não nós.

— O homem responsável teve de roubar um automóvel para fugir da polícia que o perseguia. Megan regressava de bicicleta, da escola, pelo túnel de Paddington. Ele a atropelou. Deixou-a prostrada na sarjeta, como se fosse um cão.

— Minha Nossa Senhora! — exclamou O'Hagan.

— Não fique perturbado. Aconteceu na Sexta-Feira Sangrenta, por isso não interessa uma pessoa a mais ou a menos.

O rosto de O'Hagan adquiriu expressão grave.

— De acordo, Asa. O que quer?

— Não foram divulgados pormenores à imprensa por razões de segurança, mas tudo indica que o homem responsável é o que se conhece como o Cretense.

— O Amante Cretense! Ouvi falar nele. Uma espécie de super-homem internacional, que derrubou homens dos dois lados da fronteira.

— Esse mesmo. Disparou contra Cohen servindo-se de uma pistola de formato invulgar. Uma Mauser com silenciador, de uma série feita para os homens das SS durante a guerra. Agora, não aparecem por aí.

— Compreendo — disse O'Hagan. — Se conseguisse descobrir a pista do homem que a forneceu...

— Exato. De acordo com o Departamento Especial, o único assassinato registrado no Reino Unido com a utilização de uma arma idêntica foi o de um sargento dos Serviços Secretos do Exército em Londonderry, por um pistoleiro contratado, de nome Terence Murphy. Foi abatido pelos Comandos quando fugia na companhia de um homem chamado Pat Phelan, armado com uma igual.

— E gostaria de conhecer a proveniência? — concluiu O'Hagan, encolhendo os ombros. — Só há um problema.

— Qual?

— Terry Murphy e Phelan não eram mercenários. Iam começar, mas em setembro passado aderiram a um grupo chamado Os Filhos de Erin, chefiado por Brendan Tully.

— Já ouvi falar nele — comentou Morgan. — Um outro puro exemplar dos vossos tipos de violência?

— É o nosso Brendan. Doido de todo. Acende uma vela à Virgem, mas seria capaz de matar o papa, se achasse que beneficiaria a causa em alguma coisa.

— Sabe onde conseguiram as Mausers?

— Talvez.

— Preciso saber, Liam. É a única pista que tenho.

— Estou vendo que é mesmo coisa séria — retorquiu O'Hagan, com um aceno de concordância. — Para que quer esse homem? Uma questão de justiça?

— Justiça o diabo! Quero vê-lo morto.

— Uma resposta honesta, de qualquer maneira. Vou ver o que consigo arranjar. Vá para a Europa e espere.

— Quanto tempo?

— Dois dias. Talvez três.

— Não serve.

— Por que não?

Morgan avançara demasiado para poder recuar.

— Na segunda-feira à noite terão cercado Belfast de tal maneira que nem um rato conseguirá romper a rede.

— Interessante! — comentou O'Hagan e nesse momento a porta abriu-se de rompante.

Seumas já estava de pé e O'Hagan tirou uma Browing com bastante rapidez do bolso, e colocou-a no regaço, por baixo da mesa.

Um homem extraordinariamente robusto manteve-se junto à porta, cambaleando de bêbado. Vestia um casaco curto e usado, um sobretudo, e tinha os olhos injetados de sangue. Não pareceu notar a presença de O'Hagan e Morgan, e ignorou Seumas, avançando aos tropeções até o balcão. Aí chegando, agarrou-se com as duas mãos, como que para se aguentar de pé.

— Ando reunindo fundos — disse à velha. — Para a organização. Dez libras e fica tudo bem. Caso contrário, fechamos a casa.

Ela não se mostrou nada assustada, limitou-se a pôr chá numa caneca, juntou açúcar, mexeu com a colher e estendeu-a ao outro lado do balcão.

— Beba isso, rapaz, e fique sóbrio. Depois, vá para casa. Bateu na porta errada.

Atirou a caneca pelo ar com a mão.

— Dez libras, minha senhora, ou acabo com a casa.

Na mão direita de Seumas havia uma Luger e o cano logo ficou, como que por milagre, sob o queixo do indivíduo. O jovem não pronunciou palavra. Foi O'Hagan quem falou.

— O IRA, não é? Que brigada?

O homem robusto fitou-o estupidamente e O'Hagan ordenou: — Ponha-o para fora, Seumas.

O rapaz obrigou o outro a dar meia volta e empurrou-o aos tropeções pela porta. O'Hagan pôs-se de pé, foi atrás deles e Morgan seguiu-os.

O indivíduo mantinha-se debaixo de um dos raros postes que ainda funcionavam, a chuva escorrendo pelos cabelos e Seumas a um lado, apontando-lhe a Luger. O'Hagan avançou, fez uma pausa, e em seguida deu-lhe um pontapé nas partes baixas que o obrigou a soltar um grito e a cair de joelhos.

— Muito bem — exclamou O'Hagan. — Sabe o que fazer.

Seumas aproximou-se mais, com o cano da Luger apontado atrás da rótula direita do indivíduo, e em seguida estourou-a com um único tiro.

O homem soltou um grito de agonia e rolou por terra. O'Hagan manteve-se de pé, a olhar para ele.

— Há homens bons, mortos e sepultados na luta contra o maldito Exército inglês, e sacanas como vocês cospem sobre eles.

Nesse mesmo instante, dois Land-Rovers voltaram da esquina da rua e pararam. Morgan percebeu os uniformes e o foco dos faróis.

— Fiquem onde estão — ecoou uma voz pelo alto-falante num tom brusco e num inglês escolar, mas tanto O'Hagan como Seumas tinham mergulhado no escuro da travessa do café. Morgan seguiu-os, correndo como se tivesse o diabo atrás.

Ao fundo da rua havia um muro de tijolos com um metro e oitenta de altura e treparam no momento em que os primeiros soldados apareceram. Viram-se num pátio de uma fábrica e avançaram aos tropeções, no escuro, até uma porta dupla de madeira. Seumas empurrou o portão e viram-se na rua, do outro lado, no instante em que o primeiro soldado conseguia transpor o muro.

O jovem e O'Hagan davam a sensação de saber, exatamente, para onde se dirigiam. Morgan seguia-os, ziguezagueando ao longo de ruas estreitas, e o som dos passos dos perseguidores distanciava-se cada vez mais. Por fim, viram-se na margem de um pequeno canal e Seumas deteve-se junto a uns arbustos. Tirou uma pequena lanterna do bolso e quando a acendeu ouviu-se uma tremenda explosão vinda do centro da cidade, a que se seguiram outras três numa rápida sequência.

O'Hagan consultou o relógio.

— Mesmo em tempo — retorquiu com um esgar dirigido a Morgan. — E pensar que você poderia ter sido morto por um dos seus. A ironia do destino.

— E agora? — quis saber Morgan.

— Vamos sair daqui. Abre caminho, Seumas.

À luz da lanterna do rapaz, Morgan viu que ele afastara os arbustos, revelando um esconderijo com uma tampa, que puxou. Desceu uma escada de ferro. Após uma hesitação, Morgan seguiu-o, e atrás foi O'Hagan, voltando a colocar a tampa.

Morgan viu-se num túnel tão pequeno, que era obrigado a acocorar-se. O rapaz tirou uma lanterna de uma saliência e acendeu-a. Começou a avançar e Morgan seguiu-o, consciente do som de água à distância.

Desembocaram num túnel de cimento grande e, à luz da lanterna, avistou uma torrente de águas castanhas e cheias de espuma que atravessavam o centro. O cheiro era muito desagradável.

— Os esgotos principais — esclareceu Seumas.

— Toda essa merda dos protestantes do Shankhill. Não se preocupe, coronel. Vamos passar por baixo e reaparecer junto dos amigos em Ardoyne.

— E depois? — perguntou Morgan.

— Acho que, dadas as circunstâncias, o melhor será sair da cidade esta noite — decidiu O'Hagan. — Tu também, Asa.

— Nunca conseguiremos — disse Morgan. — Nunca, depois dessas bombas. Vão montar barreiras em todas as saídas.

— Há muitas maneiras! — rebateu O'Hagan. — Agora, vamos.

Foram ter, vinte minutos mais tarde, ao que parecia ser o pátio de uma fábrica, por trás de um alto muro de tijolo. Quando o jovem se dirigiu ao edifício, Morgan observou, à luz da lanterna, vestígios consideráveis de danos causados por bombas e também que todas as janelas estavam fechadas com chapas de ferro.

Fizeram uma pausa junto às enormes portas duplas, fechadas com cadeado e corrente, e O'Hagan tirou uma chave do bolso. Era um armazém de bebidas, propriedade de uma firma londrina. Após o terceiro bombardeamento, acharam que era suficiente. Abriu as portas. Morgan e Seumas entraram. O'Hagan fechou as portas e o jovem avançou, às apalpadelas, no escuro. Ouviu-se o som de um interruptor e uma lâmpada acendeu-se.

— Mas que simpatia não terem cortado a eletricidade! — observou O'Hagan.

Morgan viu-se numa garagem. No centro, havia qualquer veículo tapado. O'Hagan aproximou-se e retirou a proteção, revelando um Land-Rover do Exército. A tabuleta pintada na frente apresentava os seguintes dizeres: "Emergência — Distribuição de bombas".

— Limpinho, hein? — observou O'Hagan. — E nunca nos mandaram parar. E já que penso nisto, deves sentir-te em casa, Asa. — Deu a volta até a traseira do Land-Rover, de onde tirou um casaco de camuflagem, que lhe atirou. — É tudo o que precisamos aqui. Embora tenhas de descer algumas patentes. O máximo que consigo são galões de capitão. Serei sargento e Seumas o nosso motorista.

— Com que finalidade? — quis saber Morgan. — Para onde vamos?

— Querias conhecer a proveniência daquelas Mausers. De acordo. Vamos perguntar a Brendan Tully.

Todo o caminho ao longo da cidade até Antrim Road decorreu sem novidade. Três barreiras de polícia militar fizeram-lhes sinal para que avançassem, e numa quarta, onde se procedia à identificação dos veículos, Seumas limitou-se a carregar na buzina e a tomar pelo lado oposto da estrada.

Nos arredores de Ballymena, O'Hagan disse ao jovem que parasse junto a uma cabina pública de telefone. Não demorou mais do que três minutos lá dentro. Quando regressou, vinha a sorrir.

— Está à nossa espera. A estrada de Glenarrif, através das montanhas Antrim.

— E como vão explicar a minha presença? — perguntou Morgan.

— Continuas a falar galês, não? — retorquiu O'Hagan com um esgar. — Brendan adora treinar seu irlandês. Aprendeu-o quando esteve na prisão com McStiophan. O galês e o irlandês têm, certamente, algo em comum.

Decorridos trinta quilômetros ao longo da estrada, através das montanhas, chegaram a uma tabuleta que indicava Coley para a esquerda. Seumas virou, seguindo por um caminho estreito em ziguezague, por entre os muros de pedra, subindo cada vez mais alto na direção das montanhas.

À primeira luz cinzenta do alvorecer chegaram a uma pequena clareira, ao fundo da qual se recortavam faias. Havia um celeiro, portas abertas e um velho jipe, ladeado por dois homens. Os dois apresentavam-se vestidos como trabalhadores de fazenda, um deles com um casaco usado e boné de tecido, e o mais jovem de macacão e botas Wellington.

— O que está de boné é Tim Pat Keogh, braço-direito de Tully. O outro é Jackie Rafferty. Um tanto bobo. Faz geralmente o que Tully manda — explicou O'Hagan.

Seumas freou e os dois homens se aproximaram.

— Bom dia, O'Hagan — cumprimentou Keogh. — Se deixarem o Land-Rover no celeiro, levamos vocês no jipe até a fazenda.

O'Hagan esboçou um aceno de concordância a Seumas, que escondeu o veículo. Saíram todos e, nesse momento, Keogh e Rafferty fecharam a porta do celeiro. O'Hagan pendurara ao ombro uma metralhadora Sterling e Morgan levava uma Smith & Wesson de calibre 38 no cinto.

— Uma visita amigável, não, Mr. O'Hagan? — perguntou Keogh.

— Não seja estúpido, Tim Pat — respondeu O'Hagan. — E, agora, vamos à fazenda. Queria um café da manhã. Foi uma noite dura.

A fazenda era um lugar pobre, num local cavado na montanha como proteção contra o vento. Os prédios precisavam de reparos sérios e o quintal estava coberto de lama.

Brendan Tully era um belo homem alto, rosto magro, um lado da boca em pequeno e perpétuo meio-sorriso, como se estivesse permanentemente divertido com o mundo e seus habitantes. Cumprimentou-os na porta. Obviamente acabara de sair da cama e usava uma túnica velha sobre o pijama.

— Liam — gritou. — Você é um colírio para os olhos, apesar deste maldito uniforme. Venham para dentro.

Eles o seguiram até a cozinha, onde madeira queimava em um forno aberto. Uma mulher idosa, de xale preto nos ombros contra o frio da manhã, estava ao fogão preparando o café.

— Não se preocupem com ela. É surda como uma pedra. Seumas, meu rapaz! — exclamou, dando-lhe uma palmada no ombro. — Continuo a ter um lugar para ti, se andas à procura de ação para valer.

— Sinto-me satisfeito onde estou, Mr. Tully.

— E quem é este personagem? — quis saber Tully, virando-se, com uma expressão curiosa, na direção de Morgan.

— Um velho amigo. Dai Lewis, do Exército da Gales Liberta. Ajudaram com armas no Outono de sessenta e nove, recordas, quando as coisas estavam mal?

— Nesse caso, fala galês?

— Seria uma porcaria de galês se não falasse — respondeu Morgan na sua língua nativa.

Tully ficou encantado.

— Uma maravilha! — exclamou. — Só que não entendi uma palavra. Agora, vamos começar bem o dia, enquanto a velha prepara a comida.

Foi buscar uma garrafa de uísque e copos.

— Um pouco cedo, mesmo para ti! — comentou O'Hagan.

— A vida é curta, não? — rebateu Tully, obviamente bem-disposto. — Seja como for, o que os trouxe até aqui?

— Oh! As coisas aqueceram um pouco na cidade a noite passada, e o Dai veio de Cardiff. Ele próprio contará.

Aceitou o copo que Tully lhe estendia e Morgan disse com uma pronúncia impecável de galês: — Desta vez, resolvemos atuar devidamente, Mr. Tully. Falar aos malditos ingleses de um País de Gales independente é tempo perdido.

— Tivemos setecentos anos de conversa e aonde fomos parar? — redarguiu Tully.

— Dai e sua gente andam em busca de alguns revólveres com silenciador — interferiu O'Hagan. — Pensou que poderia ajudar, e depois lembrei dos teus dois rapazes que morreram no ano passado. Terence Murphy e o jovem Phelan. Não estavam armados de Mausers com silenciadores?

— Correto — aquiesceu Tully. — Bem difíceis de conseguir.

— Podemos perguntar de onde vieram?

— Dos irmãos Jago, dois dos maiores patifes de Londres. — Tully virou-se para Morgan. — Ignoro se ainda têm o que pretendem, mas cuidado com eles. Seriam capazes de desenterrar a própria avó e vender o cadáver, se pensassem poder ganhar algum dinheiro com isso.

Via-se que estava preso de estranha e nervosa agitação e os olhos refletiam um brilho intenso. Sorveu um pouco de uísque e disse a O'Hagan: — Ainda bem que vieste. Gostaria de dar bater um papo contigo. Algo de significativa importância para todo o movimento.

— Ah, sim? — perguntou O'Hagan interessado e simultaneamente cansado.

— Vem para a sala de estar. Vou mostrar. Temos tempo antes do café. — Tully mostrava dificuldade em controlar-se. — Levará apenas uns minutos. Podem esperar por nós.

Virou-se e dirigiu-se à sala de estar. O'Hagan olhou para Morgan e Seumas e foi atrás do outro com relutância.

— Fecha a porta, homem — ordenou Tully impaciente, depois do que abriu uma gaveta da velha mesa de mogno, de onde tirou um mapa que desdobrou.

O'Hagan aproximou-se e verificou que o mapa mostrava a costa ocidental da Escócia, incluindo as ilhas Hébridas.

— O que é isto?

— Esta ilha aqui, Skerryvore — assinalou Tully. — É uma base de treino de mísseis. Um dos meus rapazes, Michael Bell, foi cabo técnico lá. Conhece o lugar como a palma da mão.

— E daí?

— Parece que às quintas-feiras, de quinze em quinze dias, um oficial e nove homens passam de automóvel pela estrada do aeroporto, de Glasgow para Mallaig. Dali vão de barco até Skerryvore. Digamos que o seu caminhão seja detido no caminho para Mallaig, numa quinta-feira e que eu esteja à espera com nove dos meus homens para substituí-los, incluindo Michael Bell, como é óbvio.

— Mas por quê? — inquiriu O'Hagan. — Para que o jogo?

— A coisa que estão testando nessa ilha chama-se Hunter, um míssil de alcance médio. Não é atômico, mas um novo tipo de explosivo que, na realidade, causaria um impacto dos grandes. Uma dessas coisas dirigidas serviria para destruir dois quilômetros quadrados de Londres.

— Deves estar doido — retorquiu O'Hagan irritado. — Foguetes em Londres? O que estás tentando fazer? Perder tudo aquilo por que lutamos?

— Mas é a única maneira, não entendes? Levar a luta à própria porta do inimigo.

— Matar milhares de uma vez só; alienar completamente a opinião pública mundial? — contrapôs O'Hagan com um sacudir negativo da cabeça. — Neste momento, Brendan, aos olhos de muita gente no estrangeiro, somos um punhado romântico de homens combatendo um exército. É dessa forma que acabaremos por sair vitoriosos. Não derrotando o Exército inglês, mas tornando as coisas tão desagradáveis que acabarão por se retirar de moto próprio, como fizeram em Adem, Chipre e em todos os outros lugares. Mas isto... — Sacudiu a cabeça. — Isto é uma loucura. O Conselho do Exército nunca aprovaria um esquema do gênero. Seria como matar a rainha. Seria contraproducente.

— Estás querendo dizer que contarias ao Conselho do Exército?

— Evidentemente. O que mais esperas que faça? Sou o chefe dos Serviços Secretos do Ulster, não?

— De acordo — anuiu Tully na defensiva. — Errei, nesse caso. Se não tiver o Conselho me apoiando, não há maneira de conseguirmos, é óbvio. Vou ver se o café está pronto.

Foi até à cozinha, onde Morgan, Seumas e Keogh estavam sentados à mesa. Dirigiu-se à porta da frente e avistou Rafferty inclinado no jipe pondo óleo no pedal do freio. Rafferty endireitou-se e voltou-se.

Tully tinha o rosto distorcido de raiva.

— Acaba com eles, Jackie. Três de um golpe. Sem confusão. Entendes?

— Compreendo, Mr. Tully — respondeu Rafferty sem o menor indício de emoção. — Uma dessas bombas automáticas russas deve servir.

— Ao trabalho, então. — Tully regressou à cozinha. O'Hagan vinha saindo da sala de estar. Trazia o mapa debaixo do braço e a metralhadora Sterling no braço direito, pronta a entrar em ação. — Subitamente perdi o apetite. — Lá fora, ouviu-se o som do jipe, que começava a trabalhar e se afastava.

— Onde foi o carro, com os diabos?

— Buscar leite — respondeu Tully. — Não temos uma única vaca, aqui. Sejamos razoáveis, Liam.

— Mantém-te a distância. — O'Hagan fez um aceno de cabeça a Morgan e ao jovem. — Muito bem. Vocês dois. Cubram-me as costas, Seumas.

Saíram para o pátio. Ao chegarem ao portão, Tully gritou da porta: — Escuta-me, Liam.

O'Hagan limitou-se, porém, a aumentar a passada.

— O que houve, com os diabos? — quis saber Morgan.

— Nada que te diga respeito — respondeu O'Hagan. — Um assunto para o Conselho do Exército. — Sacudiu negativamente a cabeça. — Aquele lunático. Como lhe pode ter passado pela cabeça que entraria em tal esquema?

Iniciaram a subida e desceram até o celeiro. As portas continuavam fechadas e não se via sinal do jipe.

— Vocês, me cubram — disse a Morgan e Seumas —, enquanto tiro o Land-Rover, só para o caso de tentarem alguma graça. — Jogou a Sterling para Morgan.

Abriu a porta do celeiro e Morgan virou-se, ouvindo-o mexer-se lá dentro. A porta do Land-Rover bateu, no momento em que O'Hagan entrou. Seguiu-se uma explosão tremenda, uma corrente de ar quente e Morgan foi atirado de cara no chão.

Ajoelhou-se e avistou Seumas que tentava pôr-se em pé, agarrado ao braço, onde um estilhaço de metal se enfiara.

O celeiro era um inferno e os destroços do Land-Rover constituíam autêntico braseiro.

Morgan teve consciência do som de um motor, ajudou Seumas a levantar-se e empurrou-o para as árvores, acocorando-se ao lado dele. O jipe aproximou-se. Freou e Rafferty saiu. Avançou com uma das mãos a protegê-lo do calor, aproximando-se tanto quanto era possível. Morgan ergueu-se e surgiu dos arbustos.

— Rafferty?

No momento em que Rafferty deu meia volta para o encarar, Morgan esvaziou a Sterling com três rajadas, lançando-o na fornalha do celeiro. Atirou a Sterling para o lado, agarrou Seumas e ajudou-o a subir para o jipe.

Ao pôr-se atrás do volante, perguntou: — Sabes onde podemos arranjar-te um médico? Um médico de confiança?

— O Centro de Enfermagem Hibernian para os Velhos. Fica a três quilômetros daqui, na direção de Ballymena — respondeu Seumas, e desmaiou.

 

Morgan despiu o uniforme de camuflagem na lavanderia e jogou-o num cesto de roupa suja. Por baixo, tinha as suas roupas. Verificou a carteira, em seguida lavou o rosto e as mãos e voltou à sala de pequenas cirurgias.

O velho médico, Kelly, que aparentemente dirigia o local, e uma jovem enfermeira inclinavam-se sobre Seumas, cujo braço e ombro estavam ligados. Fechou os olhos.

— Agora vai dormir — esclareceu o Dr. Kelly, voltando-se para Morgan. — Dei-lhe uma injeção. Estará como novo daqui a uma semana.

— Vai embora, coronel? — perguntou Seumas, abrindo os olhos.

— De volta a Londres. Tenho coisas para tratar. Nunca me disseste teu sobrenome.

— Keegan — respondeu o jovem com um esboço de sorriso.

Morgan escreveu seu número de telefone no bloco de receitas do médico e arrancou a folha.

— Se achares que alguma vez te posso ser útil, telefona.

Dirigiu-se à porta.

— Por quê, coronel? Por que fizeram aquilo?

— Segundo o que pude concluir, Tully apresentou um esquema qualquer que O'Hagan não aprovou. Iria certamente informar ao Conselho do Exército e suponho que esta foi a única maneira de Tully impedir.

— Vou tratar de manda-lo para o inferno — disse Seumas, e fechou os olhos.

Quando chegou à primeira cabine pública, Morgan telefonou para o quartel-general dos Serviços Secretos em Lisburn e, no sotaque de Ulster mais convincente que conseguiu, indicou o local onde poderiam encontrar Brendan Tully e os Filhos de Erin, embora suspeitasse de que há muito teriam partido.

Em seguida, apanhou um trem em Ballymena para Belfast e dirigiu-se ao Europa, onde pagou a conta. Às três horas, estava no aeroporto de Aldergrove, à espera do avião para Londres.

John Mikali, a oito mil metros sobre a Suécia, en route para Helsinque, examinava o dossiê sobre Asa Morgan. O homem da GRU na Embaixada Russa em Londres fora, de fato, aos pormenores. Fornecera não só todos os aspectos da carreira de Morgan até os mínimos detalhes, como igualmente de associados conhecidos, com fotografias. Ferguson era uma figura proeminente como chefe da brigada antiterrorista Grupo Quatro, e Baker também, embora Mikali já estivesse familiarizado com o homem de Yorkshire. Deville possuía um arquivo completo sobre o pessoal do Departamento Especial e Mikali gastara muitas horas, no passado, a estudar-lhes os rostos. Fizera o mesmo com seus correspondentes em Paris, Berlim e na maioria das outras capitais que tinha como hábito visitar.

Voltou a estudar a fotografia de Asa Morgan durante algum tempo, e em seguida recostou-se, ficando a pensar. Não que se sentisse preocupado. Morgan não tinha hipótese de o apanhar. Nem uma pista ou um vestígio único. Estava perfeitamente coberto.

Uma aeromoça loura e atraente com um corpo maravilhoso, cujas formas eram acentuadas pelo uniforme azul-marinho da British Airways inclinou-se sobre ele.

— Vai dar um concerto em Helsinque, Mr. Mikali?

— Sim. O Concerto nº 1 de Brahms, amanhã à noite, com a Orquestra Nacional.

— Gostaria muito de ir, se arranjasse ingresso — disse ela. — Estamos em escala durante dois dias.

Era, de fato, bem bonita. Deu-lhe um sorriso lânguido.

— Diga-me onde se vai instalar e mando um. E se não tiver nada melhor para fazer, depois há uma festa.

Agora, estava corada e os seios parecia quererem arrebentar a blusa de nylon branco e leve.

— Seria maravilhoso. Deseja alguma coisa?

— Meia garrafa de champanhe, acho.

Deixou-se ficar sentado, a olhar pela janela, bastante cansado, mas a verdade é que não se sentia com disposição de dar este concerto. Estava, na realidade, precisando de férias. Não era necessário regressar a Londres. Apanharia o avião de Helsinque para Atenas depois do concerto. Mesmo que não fosse um voo direto e se visse obrigado a ir via Paris ou Munique, podia chegar a Atenas a qualquer hora da tarde. Depois, Hidra.

A ideia era agradável e sentiu-se mais animado, quando a aeromoça trouxe o champanhe. Enquanto o bebia lentamente, saboreando o frescor, abriu o dossiê de Morgan e começou a examiná-lo outra vez.

 

Harvey Jago inspeionou-se, cuidadosamente, diante do espelho da casa de banho. Com o casaco de veludo vermelho, a écharpe de seda branca enrolada à volta do pescoço e o cabelo louro cuidadosamente penteado, era uma figura imponente. Continuava a parecer um peso pesado leve, bom para quinze rounds em qualquer dia da semana, e fora esse, de fato, o início da sua vida — viam-se os indícios no nariz quebrado e na cicatriz em redor dos olhos. Poderia ter feito uma operação plástica, mas as mulheres gostavam assim. A pele podia estar enrugada, mas era nos olhos que vivia o homem. Uns olhos duros, cruéis e impiedosos.

Esta manhã estava longe de se sentir bem-disposto, pois na noite anterior um dos seus muitos negócios, uma casa em Belgravia, onde jovens ao seu serviço se submetiam aos caprichos de clientes do mais elevado prestígio, sofrera uma rusga da polícia.

Jago não estava verdadeiramente preocupado com o problema causado aos dois nobres nem aos três membros do Parlamento que se viram temporariamente nas mãos da polícia. Nem tampouco com as fianças que teriam de ser pagas pelas moças ou a perda do lucro da noite.

Não existia a mínima possibilidade de um envolvimento pessoal. A casa estava no nome de outra pessoa. Para isso mantinha homens de confiança. Não. Apenas se sentia aborrecido com a falta de aviso daqueles policiais da Brigada de Costumes, que recebiam enormes salários semanais para que os estabelecimentos de Jago fossem deixados em paz. A cabeça de alguém iria rolar.

Entrou na sala de estar e pôs-se à janela do seu apartamento no último andar. Dava-lhe um prazer imenso olhar, através de Green Park, para Buckingham Palace, e esse fora o motivo por que comprara o apartamento. A uma distância enorme dos bairros dos arredores de Stepney, onde fora criado.

Maria, a pequena criada filipina, trouxe café numa bandeja. Esperou até encher a xícara.

— Obrigado, amor — agradeceu.

Quando se afastou, muito limpa e arrumada com vestido e meias pretas, o irmão Arnold entrou. Era dez anos mais novo do que Jago, com falta de cabelo e faces balofas, e conseguia parecer subalimentado e ansioso ao mesmo tempo. Debaixo daquela aparência superficial tinha um cérebro que funcionava como um computador em questões de finanças.

— Tem um lindo traseiro, essa moça — comentou Jago. — Eu a levaria para a cama, Arnold, sério mesmo, só que sabes perfeitamente o que penso de misturas com empregados.

Arnold, que já tinha uma ligação com Maria e receava que o irmão descobrisse, replicou: — Tens toda a razão, Harvey.

— Quanto me vai custar a noite passada?

— Entre treze e quinze notas grandes. Não posso dar mais certeza por causa da lei. Algumas moças já são reincidentes. Vão necessitar de advogado e isso custa dinheiro.

— O que for preciso, Arnold. Mais uma coisa: a Brigada de Costumes. Quero saber quem nos denuncia e quero saber hoje.

— Está tudo sendo visto — disse Arnold. — Há um cara que quer falar contigo. Chama-se Morgan.

— O que ele quer?

— Não me disse, mas pediu que te desse isto. — Arnold estendeu-lhe um maço de notas de vinte libras com uma faixa do Midland Bank em volta delas. — Quinhentos.

Jago cheirou-as. — Céus! Como gosto deste cheiro. OK, Arnold. Faça entrar. Vejamos do que se trata.

Morgan usava uma camisa de gola alta e não se incomodara em desabotoar a capa militar. Jago serviu-se de um scotch e observou-o.

— Mr. Morgan — anunciou Arnold e deixou-se ficar à porta.

— Coronel, na realidade.

— E o que devo fazer? Continência? — perguntou Jago com uma careta e pegando as quinhentas libras. — Sou um homem ocupado e isto apenas lhe compra um tempo limitado de conversa. Diga o que tem a dizer ou ponha-se para fora.

— É bem simples — retorquiu Morgan. — O tiroteio Cohen, na semana passada. A arma utilizada foi uma Mauser de 763 milímetros, modelo de mil novecentos e trinta e dois, com silenciador volumoso dos que se fabricaram para as SS. É uma arma bem rara nos dias que correm. A sua organização forneceu algumas ao IRA, no ano passado.

— Quem disse isso? — interferiu Arnold.

Morgan não desviou os olhos de Jago.

— Um homem chamado Brendan Tully. Estive ontem com ele no Ulster.

— Ouça uma coisa — começou Arnold, mas o irmão mandou-o calar com um gesto.

— Já que não representa a lei, o que pretende afinal?

— O homem que disparou em Cohen atropelou minha filha na fuga. Matou-a. Quero pôr as mãos nele.

— Estou compreendendo — disse Jago. — Acha que a Mauser que ele usou possa ter a mesma origem das outras?

— Parece uma teoria razoável. — Morgan retirou um segundo maço de notas do bolso e jogou-o na mesa. — Estão aí mais quinhentos, Mr. Jago. Como vê, estou preparado para pagar a informação.

— Vai custar bastante — observou Jago.

— Quanto?

— Outros mil.

— De acordo. Quando?

— Não sou eu que trato desses assuntos pessoalmente. Tenho de falar com a pessoa indicada. Se houver alguma coisa a saber, só amanhã à noite. Sou dono de um clube em Chelsea, o Flamingo, em Cheyne Walk; nos encontraremos lá, à noite, por volta das nove.

— De acordo.

Morgan dirigiu-se à porta e Jago observou: — E não se esqueça dos outros mil, coronel Morgan.

— Claro que não, Mr. Jago. Sou um homem de palavra.

— Alegra-me muito ouvi-lo.

— Espero que faça o mesmo.

— É uma ameaça, coronel? — perguntou Jago, calmamente.

— Sim. Pensando bem, acho que é — respondeu Morgan, depois do que saiu.

Fez-se um silêncio e Jago disse: — Sabes uma coisa Arnold? É a primeira vez, em anos, que ouço tais palavras, e não podemos permitir estas coisas, não é? Mau para o negócio. Vou me interessar pessoalmente pelo coronel Morgan. Um interesse de fato pessoal. Ponha uns caras preparados para esta noite. Homens de Dustbin.

— Claro, Harvey.

Arnold virou-se para sair e Jago acrescentou: — E mais uma coisa. A partir de agora, vamos deixar de vender mercadoria a esses irlandeses. Já tinha te dito que estão na lama. De futuro, ficamos com os árabes.

De volta ao apartamento, Morgan colocou o filtro na máquina de café e, em seguida, telefonou para a Security Fators, Ltd. Jock Kelso pareceu aliviado ao ouvir-lhe a voz.

— Estás de volta, graças ao céu, então! Falaste com o O'Hagan?

— De passagem — respondeu Morgan. — Receio que esteja morto, Jock. Uma bomba no automóvel. Foi uma sorte não ter morrido também.

Fez-se um silêncio pesado e, em seguida, Kelso perguntou: — Descobriste o que querias saber?

— Sim. É por isso que estou telefonando. O que tens para me dizer sobre os irmãos Jago?

— São provavelmente os gângsteres mais importantes de Londres. Até mesmo a Máfia maneja cuidadosamente esses dois. Arnold, o magro, é o cérebro. O irmão mais velho, Harvey, também não é idiota. Foi boxeur.

— Conheci-o e vi o material.

— E é para dizer o mínimo. No ano passado um jogador italiano chamado Pacceli tentou viciar os dados numa das casas de jogo de Jago. Sabes o que Jago fez? Cortou a ponta de cada um dos dedos da mão direita de Pacceli com a tesoura do jardim. Estás tentando me dizer que é ele a fonte das Mausers?

— Assim parece. Vou vê-lo esta noite. Um lugar chamado Flamingo, em Cheyne Walk. É respeitável?

— Pessoas rigorosamente do topo.

— O que significa que saberá portar-se. Diz-me, Jock. Como é que ele ganha dinheiro?

— Clubes de jogo, proteção, casas de prostituição de alto nível.

— E é tudo?

— Tem outra fonte de lucro marginal; um outro meu associado esteve envolvido. Fica a pouca distância de Cheyne Walk, perto de Chelsea Creek. Uma fábrica de tintas chamada Wetherby & Sons.

— Que mais?

— No negócio é conhecida como uma refinaria. Costumam, geralmente, desviar um caminhão transportando uísque ou qualquer coisa semelhante. Em seguida, diluem-no numa grande quantidade de água. Têm garrafas próprias e as etiquetas das melhores marcas. Fornecem aos clubes de toda a região.

— E a polícia não sabe disso?

— Nunca se aproximam e quando isso acontece há sempre um homem no topo para aguentar o golpe. Se fosse tu, afastava-me, a não ser que estejas preparado para ir até o fim.

— Oh, mas claro que estou, Jock. Claro que estou.

Morgan estava sentado à mesa limpando uma Magnum Smith & Wesson quando o telefone tocou. Era Kate Riley.

— Está de volta! — exclamou.

— Sim. Desde ontem.

— Conseguiu alguma coisa?

— Irei sabê-lo mais tarde, esta noite. De onde está telefonando... Cambridge?

— Não. Estou na cidade, durante uns dias, trabalhando na Clínica Tavistock. Pedi emprestado o apartamento de um colega que foi passar um mês em Nova Iorque. É em Kensington. Douro Place.

— Vou dizer uma coisa — observou Morgan. — Tenho um encontro com o pior patife de Londres, esta noite, no Flamingo, em Cheyne Walk.

— Mas é um dos clubes mais reservados da cidade.

— Assim dizem. Ponha um vestido bonito, penteie os cabelos e talvez me convença a levá-la.

— Combinado — acedeu ela.

O clube era exatamente como o tinham descrito. Luzes indiretas, música suave, criados atenciosos, a última palavra em luxo. Morgan e Kate Riley eram obviamente esperados. Conduziram-nos até junto de uma mesa de canto, uma das melhores do local.

O maître deu um estalido com os dedos e surgiu um balde com gelo e uma garrafa de champanhe.

— Com os cumprimentos de Mr. Jago, Sir . Esta noite são seus convidados.

Do seu gabinete acima do restaurante, Harvey Jago, resplandecente numa casaca de veludo preto, observava-os através de binóculos.

— Gosto do ar da pombinha, Arnold. Mulher de classe. Vê-se logo.

— E ele, Harvey? É coronel, não?

— Mentira — retorquiu Jago. — Não sei a história dele, mas estamos no mesmo comprimento de onda.

— Trago-o aqui?

— Ainda não. Deixa-os apreciar o jantar. Afinal o que conta é a sobremesa, não, Arnold?

 

— Como vamos de homens? — perguntou-lhe Morgan.

— Não é da sua conta.

— Nesse caso, o que faz sempre que deseja um pouco de ação e paixão?

— Voo — respondeu ela. — Há doze anos que tenho brevê. Sou realmente boa.

O maître aproximou-se e falou em voz baixa ao ouvido de Morgan. Ele deixou Kate na companhia da taça de champanhe e seguiu o homem até fora do restaurante e através de uma porta com os dizeres "Particular". Havia um lance de escadas acarpetadas. Arnold estava à espera no alto.

— Por aqui, coronel.

Morgan subiu as escadas e entrou no gabinete que era o orgulho e a alegria de Jago, e fora decorado por um dos melhores designers de interiores de Londres. Tudo era chinês, e alguns objetos de arte tinham-lhe custado muito dinheiro.

Jago estava sentado atrás da mesa, fumando um charuto.

— Cá estamos. Tem sido bem tratado?

— Otimamente — respondeu Morgan. — No entanto, o meu tempo é tão limitado quanto o seu, Mr. Jago. A informação que me prometeu?

— Não falamos em mais mil, Arnold? — retorquiu Jago.

Morgan tirou um envelope do bolso interior.

— Primeiro ouçamos o que tem a dizer. Depois, fica com direito a isto.

— Bom. Isso vai ser difícil — suspirou Jago. — Receio que não tenhamos sido capazes de conseguir a informação que pretende.

— Não foram capazes ou não quiseram? — inquiriu Morgan.

— Pode se divertir nas longas noites de inverno pensando nisso.

— E as mil libras que lhe paguei?

— O meu tempo, meu velho, é coisa valiosa. — Jago consultou o relógio. — Mostra o caminho de saída ao coronel, Arnold. Tenho mais o que fazer.

Morgan avançou até à porta, deteve-se, e pegou num enorme jarro chinês que estava numa mesa com tampo de laca.

— Começo do século dezenove — disse. — Não é particularmente raro, mas é uma peça bonita.

Deixou-a cair no chão e estilhaçou-se em mil bocados.

— E isto, meu amigo, é apenas o começo — limitou-se a comentar antes de sair.

Jago deu apressadamente a volta à mesa. Ficou olhando para os pedaços do jarro com expressão transtornada. Voltou-se para o irmão.

— Sabes o que tens a fazer e manda que façam bem. Se sair do hospital, quero que seja de muletas.

Morgan tinha estacionado o Porsche a alguma distância. Kate Riley deu-lhe o braço, enquanto caminhavam.

— Ele não se abriu, então?

— É essa mais ou menos a situação.

— E o que vai fazer agora?

— Convencê-lo a repensar.

Viraram para a rua lateral, onde tinham deixado o Porsche.

Arnold Jago parou na esquina com os dois homens. Um deles era pequeno e necessitava urgentemente de um barbeiro. O outro tinha pelo menos um metro e oitenta, uma expressão dura, maçãs do rosto salientes e mãos grandes.

— OK — disse Arnold. — Façam como deve ser.

— Deixe conosco, Mr. Jago.

Os dois homens começaram a andar junto aos carros estacionados, e um deles, Jacko, deteve-se, forçando o mais baixo a parar. Morgan e Kate Riley haviam, aparentemente, desaparecido.

Jacko deu um passo hesitante para a frente. Morgan subiu os degraus de uma das altas casas vitorianas, fez com que o homem baixo desse meia volta, e deu-lhe um pontapé nas partes baixas. O homem caiu com um gemido. Jacko, ao virar-se, avistou Morgan de pé ao lado do corpo que se contorcia, as feições iluminadas pelo poste de luz, enquanto Kate Riley surgia por trás dele.

— Anda à minha procura, não? — perguntou Asa.

Jacko moveu-se rapidamente. Depois, jamais teve certezas em relação aos acontecimentos. Sentiu o chão fugir-lhe sob os pés e aterrissou no pavimento molhado. Quando se ergueu, Morgan agarrou-lhe o pulso direito, torcendo-o e imobilizando seu ombro. Jacko soltou um grito de dor, no momento em que o músculo começou a rasgar-se. Sem abandonar aquela posição terrível em que o colocara, Morgan atirou-o de cabeça no muro do edifício.

Deu o braço a Kate Riley e conduziu-a ao longo da calçada até o Porsche. Enquanto a ajudava a entrar, ela disse: — Acredita, realmente, em ir até o fim das coisas, não?

Ao dar a volta para ocupar o lugar ao seu lado, ele comentou:

— Acho interessante que não tenha começado a arrancar os cabelos pelas minhas maneiras fascistas e violentas, dada a sua qualidade de catedrática bem comportada, virginal e defensora da liberdade.

— Aqueles dois estavam pedindo uma lição. Receberam — disse Kate. — Deve ter desagradado muito ao Mr. Jago.

— Acho o comentário oportuno — concordou Morgan, pondo o carro em marcha.

Parou do lado de fora da casa dela, em Douro Place, e acompanhou-a à porta.

— Não vai subir? — perguntou ela.

— Tenho umas coisas a fazer.

— Tais como?

— Ensinar Harvey Jago a portar-se como um cavalheiro.

— Posso ajudar?

— De fato, não. O que pretendo é, por definição, um ato criminoso. Prefiro não a envolver para o caso de as coisas correrem mal. Entrarei em contato depois.

Desceu as escadas até o Porsche, antes de lhe dar tempo a que protestasse. Abriu a porta e entrou. Arnold Jago saiu do carro no local onde o havia estacionado, mais para o fim da rua. Verificou o número da casa, depois regressou ao automóvel e afastou-se.


CAPÍTULO 8

Ferguson estava só, trabalhando, em seu apartamento de Cavendish Square, havendo como único som a Orquestra de Glenn Miller que tocava suavemente no gira-discos colocado na mesa atrás dele.

O seu vício secreto consistia em escutar as grandes orquestras dos tempos da juventude. Não só a de Miller mas também as famosas orquestras inglesas, como as de Lew Stone e Joe Loss, em que Al Bowlly era o vocalista. Ferguson era invadido por uma onda de nostalgia que o transportava aos tempos da guerra, a 1940, quando a situação se apresentava de fato bastante difícil. Mas, pelo menos, conhecia-se o terreno que se pisava — sabia-se até onde se podia ir. E agora? O verdadeiro inimigo podia estar sentado num banco do Parlamento. Provavelmente estava.

O telefone, o vermelho junto à sua mão esquerda, tocou suavemente. Consultou o relógio. Eram quase dez horas, quando levantou o receptor.

— Diga quem fala.

— Baker, Sir .

— Está a trabalhar até tarde, inspetor.

— Trabalho de secretária... sabe como é, Sir . Pensei que lhe agradasse saber que Asa Morgan regressou intato de Belfast. Os Serviços de Segurança viram-no passar por Heathrow na noite passada.

— Mas não sabemos o que conseguiu, enquanto lá esteve?

— Não, Sir .

— Falou com os Serviços Secretos de Lisburn sobre O'Hagan?

— Sim, mas desapareceu de vista. Não é de surpreender com a operação "Motorman" em curso.

— E o que fez Morgan esta noite?

— Parece ter um programa com a doutora Riley, a psicóloga de Cambridge. Ela está num apartamento em Douro Place. Morgan foi buscá-la às oito e meia. Estavam aparentemente vestidos para uma noite de festa.

— E aonde foram?

— Ignoro, Sir . O meu agente perdeu-os de vista.

— Espanta-me! — observou Ferguson. — É para isso que pagamos a essa gente? Para fazerem papel de incompetentes e imbecis?

— Escute, Sir. Tudo isto tem a marca de Morgan. Há anos que anda metido neste gênero de coisas, bem sabe Malásia, Chipre, Adem, e agora Ulster. Fareja um perseguidor, mal sai à porta. Tem um instinto especial. Foi o único processo que conseguiu mantê-lo vivo estes anos todos.

— De acordo, inspetor. Deixe-se de elogios. Apenas está a pretender dizer-me que não existe maneira de o seguir, a não ser que ele permita.

— A não ser que ponha atrás dele carros com seis agentes e controle por rádio ligado à Central.

— Não — retorquiu Ferguson. — Não faça isso. Não faça muito simplesmente o que quer que seja. Deixemos que Asa atue sozinho durante um dia ou dois. Afaste completamente o seu homem. Em seguida, veremos o que se consegue.

Pousou o fone e, do outro lado do fio, Harry Baker apertou o botão do intercomunicador e falou com o sargento que se encontrava do lado de fora do gabinete.

— Pode mandar sair Mackenzie de Gresham Place, George.

— Muito bem, Sir . Mais algumas ordens para ele?

— Depois comunico.

Baker desligou, suspirou fundo e começou a examinar o monte de papéis que cobriam a mesa.

Qualquer daquelas medidas era, de todo, inútil, pois no próprio momento em que Mackenzie recebia ordens pelo rádio para se afastar, Morgan fazia sinal a um táxi na esquina de Pont Street, depois de sair do apartamento escalando o muro do pátio das traseiras.

Já estudara cuidadosamente a situação à luz do dia, no princípio da tarde e sabia em pormenor o que estava a fazer. Ordenou ao motorista que o deixasse em St. Mark's College, em King's Road. Dali a Chelsea Creek eram apenas cinco minutos a pé.

A fábrica de tintas de Wetherby & Sons erguia-se num quebra-mar, que entrava pelo Creek, do outro lado da central eléctrica. Morgan deteve-se nas sombras, ajustando as luvas de cabedal macio, tirou uma máscara do bolso do casaco e enfiou-a na cabeça.

Os portões da frente tinham grades e refletiam as luzes de segurança. Havia igualmente uma tabuleta indicativa da presença de cães de guarda, embora tal pudesse ter significado ou não.

Já descobrira a forma de entrar durante uma inspeção, à tarde. Havia um dique de cimento por onde escorria água, estendendo-se na direção do aglomerado de aço junto ao quebra-mar, onde se erguia a fábrica.

Desceu a margem e começou a avançar, de início devagar, estudando a força da água. Não era, porém, impossível de vencer, pois a água chegava-lhe a meio das pernas e o apoio do dique era suficientemente largo, se bem que traiçoeiro, dado estar coberto de limos.

Não lhe levou mais do que alguns minutos a chegar ao outro extremo. Deteve-se por momentos; em seguida subiu pela escada de manutenção, até ao quebra-mar, chegando ao pátio das traseiras da fábrica.

Havia uma escada de incêndio que conduzia ao primeiro andar. A porta lá em cima estava trancada com uma barra de ferro e um cadeado. Morgan tirou um pé-de-cabra de aço de dentro da bota esquerda, inseriu-o no buraco do cadeado e deu a volta. Abriu-se imediatamente, franqueando-lhe a entrada.

A partir desse momento encontrava-se em território desconhecido. Nem sequer sabia qual a ação seguinte, pois ignorava o desenrolar dos acontecimentos.

Serviu-se cuidadosamente da lâmpada de bolso, reparando estar no andar onde se procedia ao engarrafamento. Um aroma pesado a bebida enchia o ambiente. Desrolhou a tampa de um dos vários barris que descobriu a um canto do compartimento e cheirou. Álcool industrial. Por conseguinte, Jago "cortava" o bom scotch com algo mais do que água. Com o tipo de veneno que se sabia cegar as pessoas.

Uma janela permitia-lhe observar o pátio principal. Havia uma casinha junto ao portão e avistou um guarda uniformizado da segurança, a ler, sentado numa cadeira e com os pés em cima de uma secretária. Um grande cão alsaciano dormia a seus pés.

Morgan desceu, cautelosamente, as escadas de madeira e viu-se numa garagem enorme. Havia duas furgonetas e um camião de três toneladas, que continha dúzias de caixotes de uma marca muito conhecida de uísque, ou assim parecia.

Havia portas duplas unidas por uma tranca. Espreitou através de uma janela e avistou uma pequena rampa, que conduzia ao pátio inferior. Daquele sítio já não conseguia ver o guarda, mas apenas a janela iluminada da pequena casa.

Refletiu uns instantes e, em seguida, voltou a subir as escadas até ao compartimento onde se engarrafava, destapou um dos barris de álcool industrial e voltou-o, de forma a despejar o conteúdo no chão.

Desceu as escadas novamente, inclinou-se na cabina do camião, colocou a alavanca das velocidades em ponto morto e soltou o travão de mão. Em seguida, retirou a tranca e abriu as portas duplas.

Da casinha não lhe chegava o mínimo sinal de vida. Deu a volta pelas traseiras do camião, fez força, e empurrou. A máquina começou a rolar, a princípio lentamente e, em seguida, os pneus da frente pisaram a rampa. A velocidade aumentou tanto que o fez desequilibrar e cair.

Quando Morgan se pôs de pé e correu para as escadas, o camião atravessou o pátio como um raio e esmagou-se de encontro aos portões, arrancando-os dos gonzos e só parando na rua.

Nessa altura, já ele se encontrava a meio da divisão onde se engarrafava. Fez uma pausa para acender um fósforo, atirou-o para a poça de álcool, que logo se incendiou como se se tratasse de uma explosão de gás, e saiu pela porta da escada de incêndio.

Deteve-se a meio caminho do dique e olhou para trás, avistando as chamas que chegavam às janelas do primeiro andar. Virou-se e prosseguiu o seu caminho, trepando até alcançar a estrada e movendo-se rapidamente através do emaranhado de ruas que levavam a King's Road.

Jago ainda estava no clube quando recebeu a notícia e não ficou nada satisfeito.

— O que se passa, cos diabos? — quis saber. — Alguém está a pressionar, ou o que é afinal?

— Não sei, Harvey — respondeu Arnold.

— E o uísque do camião que encontraram na rua? De onde era?

— Material de exportação destinado às docas Harwich. Os rapazes carregaram-no na noite passada, do lado de fora de um café de camionistas, em Croydon.

— Céus! — exclamou Harvey. — Era só o que me faltava. Os policiais a meterem o nariz em tudo. É muito possível que qualquer imbecil tenha deixado impressões digitais no sítio errado.

— Não conseguem aproximar-se nem a um quilómetro de ti, Harvey — apressou-se Arnold a garantir. — O aluguer da fábrica está em nome de um velho irlandês chamado Murphy.

— Nesse caso mete-o no primeiro avião de regresso à República, e quero isso ontem.

— Não te preocupes, Harvey. Já lá está. Um bêbado irlandês que não aparecia há anos. Por isso o escolhi.

O telefone tocou. Jago pegou o receptor e atendeu: — Sim? Quem fala?

— Disposto a falar agora, Mr. Jago, ou prefere outra demonstração? — perguntou Morgan.

— Filho da mãe!

— Não são palavras novas para mim, mas falemos de negócios. A proveniência das Mausers. Dê-me qualquer informação e não me terá mais na cola.

Arnold escutava a conversa num outro telefone. Abriu a boca e Jago mandou-o calar com um gesto.

— OK, amigo. Ganhou. O indivíduo que trata desse meu ramo de interesses comerciais chama-se Goldman. Hymie Goldman. Vou falar com ele e depois telefono.

— Uma promessa? — perguntou Morgan com um toque de ironia na voz.

— Não passará da uma — disse Jago consultando o relógio.

Pousou o receptor e foi servir-se de um uísque. Bebeu-o lenta e pensativamente, sem pronunciar palavra. Arnold sentiu um aperto no estômago, pois já vira aquela expressão noutros momentos. Sabia o que significava.

— Vou dizer o que quero que faças, Arnold. pega o Andy... Andy Ford. Depois vai ao Douro Place e agarra a pombinha de Morgan. E nos encontraremos no Wapping. — Consultou o relógio. — Dou-te uma hora.

— Podemos ter problemas, Harvey. Por que não dar a informação e tirá-lo de cima de nós?

— Podia responder e já falei com o Hymie Goldman e não há informação a dar.

— Santo Deus! — exclamou Arnold.

— Mas não é só isso. O que ele fez à fábrica de bebidas foi ruim, mas há mais, Arnold. Ameaçou-me... a mim! Não nos podemos permitir uma coisa dessas, pois não? — acrescentou, dando uma palmada no ombro do irmão. — E, agora, põe-te a andar, meu caro, que não temos a noite por nossa conta.

Foi talvez uns quarenta minutos mais tarde que o telefone de Morgan tocou.

— Muito bem, coronel. Ganhou. Farmer's Wharf, Wapping. Encontrará um armazém na doca chamada Century Export Company. Estarei lá dentro de meia hora com o tipo que fez a transação em que está interessado.

— Ótimo — exclamou Morgan. — Quanto vai custar?

— Os primeiros mil em que acordamos. Não vejo motivo para não os receber — retorquiu Jago, tentando vincar o toque de ofensa na voz. — Depois, afaste-se do meu caminho. Não quero complicações com a polícia. Custa tempo e dinheiro, e sou um capitalista.

Morgan pousou o telefone, abriu a gaveta do lado direito da mesa e tirou uma Walther PPK. Depois um silenciador Carswell, que adaptou ao cano da Walther, assobiando baixinho. Retirou seguidamente o tambor da arma, esvaziou-o, e voltou a carregá-lo cuidadosamente, sem se apressar.

O armazém era um edifício velho, com pesadas paredes de pedra, e datava dos tempos áureos dos navios vitorianos, quando a marinha mercante inglesa reinava.

O local estava atulhado de mercadoria e Jago mantinha-se sentado na traseira do seu Rolls-Royce "Silver Shadow", ao lado de Kate Riley, bebendo brandy do bar portátil.

— Certeza que não queres beber nada, querida?

— Vá para o inferno — respondeu ela.

— Não é resposta que se dê.

Arnold estava junto à porta. Ford, um escocês baixo, moreno, com um ar perigoso, envergando o tipo de vestimenta verde usado no inverno pelo Exército americano, estava sentado em cima de uma mala. Tinha uma espingarda no colo.

— Esconde essa maldita coisa — ordenou Harvey, atirando-lhe um tapete de automóvel e consultando o relógio. — Deve estar chegando de um minuto para o outro.

Acima deles, na escada de incêndio, Morgan espreitava, anotando cuidadosamente os pormenores da situação. Ford e a espingarda, Arnold junto à porta, Jago na traseira do Rolls, com Kate.

Regressou sem o mínimo barulho pela escada de incêndio e apressou-se a ir até ao fundo da rua, onde deixara o Porsche. Esperara, obviamente, encrenca. Estava preparado para isso. Agora, por causa de Kate, estava com raiva. Quando se colocou atrás do volante, suas mãos tremiam ligeiramente.

— Vem aí. Estou ouvindo — disse Arnold.

Ouviu-se o ruído do motor do Porsche lá fora e, em seguida, o silêncio, quando foi desligado. O portão abriu-se e Morgan entrou. Tinha o impermeável militar aberto e as mãos bem enfiadas nos bolsos.

Kate agarrou a maçaneta, abriu a porta e avançou aos tropeções para ele.

— É uma armadilha, Asa! — gritou. — Estão à espera.

Morgan abraçou-a. Harvey Jago riu e saiu do Rolls, segurando a garrafa de brandy com uma das mãos e uma taça de prata na outra.

— Não há necessidade disso — observou deliciado. — Afinal, somos todos amigos aqui, não é verdade, coronel?

Morgan sorriu, o sorriso mais frio que ela já vez vira, fazendo-a perceber, pela primeira vez, que aqueles olhos refletiam estranhas chispas douradas.

— Feriram você? — perguntou.

— Não.

— Nesse caso, tudo bem.

Puxou-a para trás dele e virou-se para Jago.

— Não me parece que o seu amigo tenha lembrado de engatilhar a arma quando a botou embaixo do tapete.

— Andy! — gritou Jago.

Ford já estava afastando o tapete para o lado, dedos estendidos para o gatilho. A mão de Morgan surgiu na frente do impermeável, segurando a Walther. Disparou duas vezes e a arma voou pelos ares, ao mesmo tempo em que o pequeno escocês tombava, aterrissando sobre o caixote.

Kate soltou um gemido e Morgan teve consciência dos dedos dela se enterrando em seu ombro.

— Lá para fora, menina — ordenou. — Espere no carro.

— Isto já foi longe demais, Asa.

— Para o carro.

Obedeceu. O portão fechou-se suavemente atrás dela. Jago e o irmão esperavam juntos ao lado do Rolls.

— Conta, Harvey. Conta a verdade, elo amor de Deus — pediu Arnold.

— Muito bem — acedeu Jago. — Cometi um erro. Não se pode culpar um homem por tentar, Morgan. Estamos do mesmo lado. O importante é nos conhecer.

— Exato — disse Morgan, fazendo pontaria, e arrancando um pedaço da orelha esquerda de Jago com um tiro certeiro.

Jago caiu sobre o Rolls, agarrado à cabeça ferida, o sangue escorrendo por entre os dedos.

Arnold aproximou-se dele e agarrou-o pelas abas do casaco.

— Conta, Harvey. Pelo amor de Deus. Este homem é louco. Dará cabo de nós.

— De acordo! De acordo! — acedeu Jago, se bem que a sua dureza se mantivesse, apesar da dor. — OK. O que se passa é o seguinte: Hymie Goldman forneceu as armas a esses irlandeses do Ulster com as duas Mausers entre outras coisas. Em seguida, há umas semanas, estava aqui sentado verificando o material. O que chamamos material especial. Fá-lo sempre às quartas-feiras à noite. De um momento para o outro apareceu esse cara com a máscara, das sombras. Deu-lhe mil em notas velhas, num envelope, e pediu-lhe uma arma com silenciador. Disse que vinha recomendado por um amigo.

— E depois?

— Hymie ainda tinha uma dessas Mausers com silenciador. Deu-lhe, juntamente com uma caixa de munição e o cara foi embora.

— Compreendo — Morgan ergueu a Walther. — Acho que desta vez será a orelha direita.

— Juro que estou dizendo a verdade — gritou Jago e pela primeira vez a voz expressava pânico.

— Sim, infelizmente assim parece — disse Morgan, baixando a arma. — Olhou para Ford, estendido de costas, a boca aberta e uma das pernas pendente. — Não sei o que vão fazer, mas presumo que tenham seus procedimentos.

Dirigiu-se à porta. Quando ia abrir o portão, Jago disse: — Vou te pegar, Morgan. Por causa disso.

Morgan virou-se. — Não — contrapôs. — Acho que não. Acho que quando estiver mais calmo, Mr. Jago, concluirá que o melhor será considerar tudo uma experiência a esquecer.

A porta fechou-se atrás dele. Ouviram o motor do Porsche se afastar.

Jago tinha o lado esquerdo da cabeça, a mão e os ombros cheios de sangue, mas continuava a dominar-se.

— Harvey? — perguntou Arnold, trêmulo de medo.

— Está tudo em ordem. Chama o doutor Jordan pelo telefone. Diz-lhe que tive um acidente. Vamos àquela clínica particular em Bailey Street.

— E ele? — perguntou Arnold, olhando de lado para Andy Ford.

— Mais um bêbado que vai desaparecer. Telefona para o clube e fala com o Sam. Diz-lhe que quero imediatamente aqui o grupo de emergência. Quero este sítio limpo, de manhã. Podem despejá-lo no novo acesso de Hendon. Naqueles alicerces são despejadas quinhentas toneladas de cimento por noite. Graças ao progresso. Agora, ajuda-me a subir para o automóvel. Terás de guiar.

Arnold fez como lhe diziam.

— Lamento, Harvey. — Estava quase a chorar.

— Deixa lá, Arnold. Ele tinha razão. É uma questão de se considerar tudo como experiência e esquecer.

Deu uma palmadinha na face do irmão e desmaiou.

Quando chegaram a Douro Place, Morgan desligou o motor e virou-se para ela.

— Lamento o que se passou.

— Não, não lamenta — disse ela. — É um homem de impulsos, Asa. Vejo isso agora. Faria o que quer que fosse para atingir esse seu objetivo mítico. Levando tudo atrás de si, como quase me levou esta noite. E com que fim? Conseguiu fazer algum progresso?

— Não.

— Para mim chega. Tem sangue demais nas veias. Vou fazer as malas e partir para Cambridge... esta noite.

— Se está preocupada com o que aconteceu, não fique. A última coisa que Jago deseja são os policiais aqui.

— Quer dizer que não terá problemas em se desfazer do corpo? Pelo amor de Deus, Asa, isso está certo?

Saiu do automóvel, batendo com a porta. Ele se manteve atrás do volante e apertou o botão, o que fez com que a janela automática descesse silenciosamente.

— Lamento, minha cara — disse. — Mas não me resta escolha, compreende?

Pôs o motor em marcha e foi embora. Ela deixou-se ficar uns momentos no mesmo sítio a ouvir o Porsche afastar-se. Em seguida, subiu os degraus com passos lentos e cansados, procurou a chave e abriu a porta.

CAPÍTULO 8

Estava a chover torrencialmente ao primeiro lusco-fusco do alvorecer, quando Seumas Keegan subiu o caminho até à porta das traseiras do pavilhão, a três quilómetros de Ballymena, na estrada de Antrim. Sentia-se cansado até à medula dos ossos e o braço provocava-lhe dores infernais, apesar da ligadura branca com que o médico lho atara ao peito.

Tim Pat Keogh vira-o aproximar-se por detrás da cortina da cozinha. Tully estava sentado à mesa, junto à lareira, a comer ovos com presunto.

— Ainda não — ordenou Tully. — Vejamos o que pretende.

Tim Pat abriu a porta. A figura de Seumas Keegan recortou-se na ombreira, o rosto pálido e olheirento sob o boné, e o velho impermeável de cinto a escorrer água, devido à chuva torrencial.

— Deus do céu! Pareces-me um cadáver ambulante! — observou Tim Pat.

— Posso falar com Mr. Tully? — perguntou Seumas. Tim Pat levou-o até à cozinha e revistou-o com mãos de perito. Descobriu um revólver automático no bolso esquerdo do impermeável e pousou-o em cima da mesa.

Tully continuou a comer, observando simultaneamente o jovem.

— O que desejas?

— Disse-me que havia sempre trabalho para um indivíduo com valor, Mr. Tully.

Tully serviu-se demais uma xícara de chá.

— O que te aconteceu ao braço?

— Quebrado, Mr. Tully — respondeu Seumas, olhando para o braço ao peito.

— Há um pormenor — replicou Tully. — O'Hagan sempre me jurou que com uma arma na mão direita não havia melhor do que tu. Mas dizia que com a esquerda nem um soco numa porta davas.

— Se me der oportunidade, Mr. Tully, daqui a um mês ou dois estarei como novo.

No rosto do jovem lia-se agora desespero. Tully começou a palitar os dentes com um fósforo.

— Não me parece, Seumas. Para te falar honestamente, acho que estás a precisar de muito repouso. Não te parece, Tim Pat?

— Plenamente de acordo, Mr. Tully — sorriu Tim Pat, ao mesmo tempo que engatilhava a Sterling.

Seumas nem se mexia, de ombros caídos e a cabeça baixa, mas quando ergueu a cabeça tinha um sorriso estampado no rosto.

— Para dizer a verdade, Mr. Tully, sempre pensei que me respondesse dessa maneira.

Disparou a Luger que trazia escondida na ligadura. Tim Pat Keogh teve morte imediata.

No momento em que o corpo do robusto indivíduo foi atirado de encontro ao aparador, ocasionando uma cascata de louça que se estilhaçou no soalho, Tully puxava a gaveta da mesa, procurando freneticamente a arma que escondia lá dentro. O tiro seguinte de Keegan atingiu-o no ombro esquerdo, fazendo-o girar sobre si e arrancando-o à cadeira.

Por momentos, ficou agachado gritando de agonia e em seguida tentou erguer-se. Keegan disparou outra vez e a bala alojou-se na base do crânio de Tully, atirando-o diretamente de cabeça para o meio dos toros que ardiam na lareira.

Verificou-se uma chama repentina no instante em que o casaco pegou fogo. Seumas manteve-se, uns instantes, de pé, a olhá-lo, depois do que virou costas e saiu.

Morgan tentara deitar-se, mas dormira um sono sobressaltado. Pouco depois das seis, desistiu e foi para a cozinha. Estava a fazer café no momento em que o telefone tocou. Pelo toque, soube tratar-se de uma cabina pública. Ouviu-se o cair das moedas e, em seguida, o inconfundível sotaque do Ulster.

— É o senhor, coronel? Fala Keegan... Seumas Keegan.

— Onde estás?

— Próximo de Ballymena. Pensei que lhe agradasse saber que acabei de me encarregar de Tully e de Tim Pat Keogh.

— Para sempre?

— Como a tampa do caixão a fechar-se. Fez-se silêncio.

— E agora? — quis saber Morgan.

— Vou descansar para o Sul.

— E depois?

— O que lhe parece, coronel? Quando se entra, nunca mais se sai. É o que dizemos no IRA e bem o sabe. É um homem de valor, mas está do lado errado.

— Tentarei recordar-me, da próxima vez que nos encontrarmos.

— Espero para bem de ambos que isso nunca venha a acontecer.

A linha ficou silenciosa. Morgan conservou-se uns momentos na mesma posição e depois pousou o receptor.

— Viva a República, Seumas Keegan! — exclamou num sussurro, após o que se voltou e regressou à cozinha.

Sentou-se junto da janela, a beber café, extremamente cansado e deprimido, mas não por ter morto um homem. Era uma coisa que lhe acontecera frequentemente ao longo dos anos. E não tinha pena. Ford não passava, afinal, de um assassino profissional.

"E estás de volta ao ponto de partida, meu velho", murmurou com os seus botões, em galês. "Ou, pelo menos, é o que algumas pessoas podiam dizer."

Pensou em Kate Riley e depois nas suas palavras. Estivera certa. Não avançara nada. Tivera apenas duas pistas possíveis. Lieselott Hoffman e as Mausers. Ambas o tinham levado a becos sem saída.

Por conseguinte, o que lhe restava? Os jornais e as revistas em cima da mesa, cada um com um relato diferente do ataque a Cohen. Quantas vezes os tinha examinado? Pegou no Telegraph e voltou a ler o artigo principal.

Depois de ter acabado, serviu-se demais um café e sentou-se. A única coisa que lhe faltava era, obviamente, a morte de Megan no túnel, porque a imprensa não recebera autorização de ligar os dois acontecimentos.

Havia uma referência, totalmente isolada, tratando o caso como um acidente de atropelamento e fuga, em que o condutor de um carro roubado atropelara uma jovem de escola e mais tarde abandonara o veículo nos Jardins de Craven Hill, Bayswater.

Não foi com qualquer emoção particular que tomou consciência de que, por qualquer motivo, não tinha na realidade visitado o local onde o Cretense abandonara o carro. Não que houvesse qualquer coisa de importante a descobrir. Por outro lado, o que mais há para fazer quando se chega ao fim das coisas, às seis horas de uma manhã húmida e cinzenta em Londres?

Estacionou o Porsche nos Jardins de Craven Hill e sentou-se com o roteiro de Londres nos joelhos, aberto na página que interessava e seguindo a louca corrida do Cretense nessa noite, imaginando o pânico no momento em que as coisas tinham começado a correr mal. E depois do acidente com o carro? O que se passara?

Morgan começou a andar pelo passeio, fazendo o que lhe parecia natural. Virou em Leinster Terrace. A alguns metros de distância situava-se a movimentada Bayswater Road, com os Kensington Gardens em frente.

"Se estivesse no teu lugar, cara, teria seguido por aqui", pensou Morgan. "Ao longo da estrada, direto ao escuro, e correndo para o outro lado, como se o diabo o seguisse."

Quando atravessou a estrada, dirigiu-se automaticamente ao portão mais próximo e seguiu o caminho, passando pelo Round Pond, à direita. Apesar da hora viam-se algumas pessoas, desde o corredor tradicional em fato de treino até ao matutino que passeava o cão.

Chegou ao Queen's Gate, em frente ao Albert Hall. A partir daqui, tudo era possível. O metrô era o caminho óbvio a tomar. Uma vez num trem subterrâneo, as possibilidades eram infindáveis.

Tomou o caminho de volta, através de Kensington Gardens, até ao local onde Leinster Terrace se unia a Bayswater Road. Fez uma pausa, cheio de raiva e frustração, incapaz de largar o fio da meada.

"Deves ter ido para algum lado, filho da mãe", disse em surdina. "Mas para onde?"

Atravessou para o outro lado e começou a caminhar na direção de Queensway. Era evidentemente inútil, sabia, ao parar fatigado junto ao restaurante italiano da esquina e acendeu um cigarro.

Havia uma quantidade de cartazes colados na parede junto na vitrine do restaurante. De início foi o rosto pálido e atraente que lhe chamou a atenção, depois os olhos pretos e o nome Mikali em grandes letras pretas.

Ia a virar costas, mas o destino quis que lesse os dizeres do cartaz, lembrando-se de que, de acordo com o dossiê que Baker lhe mostrara, Mikali fora uma das celebridades presentes no hotel durante o Festival de Cinema de Cannes, quando o Cretense abatera a tiro o realizador de cinema italiano, numa ação reivindicada pela Brigada Negra.

E, em seguida, verificou a data e a hora no cartaz: sexta-feira, 21 de Julho de 1972, às vinte horas.

Não era possível. Era uma ideia completamente louca e, no entanto, viu-se automaticamente a caminhar pelo passeio na direção de Leinster Terrace. Deteve-se ali uns momentos, imaginando o Cretense a abandonar o automóvel naquele local.

À distância, avistava a cúpula do Albert Hall recortando-se sobre as árvores. Atravessou rapidamente para o outro lado e mergulhou no parque.

Desceu as escadas que partiam do Albert Memorial, percorreu Kensington Gore, ziguezagueando por entre o trânsito do início da manhã, e parou do lado de fora da entrada principal do Albert Hall. Havia uma série de cartazes anunciando vários concertos e os respectivos programas. Daniel Barenboim, Previn, Moura Lymphany e John Mikali. A Orquestra Filarmônica de Viena e John Mikali tocando o Concerto Nº 2 para Piano, sexta-feira, 21 de Julho de 1972, às vinte horas.

"Oh, Deus do céu!", exclamou Morgan em voz alta. "Foi para cá que se dirigiu. Tinha de ser. Esse o motivo por que atravessou o túnel Paddington. Esse o motivo por que abandonou o automóvel em Bayswater."

Virou as costas e afastou-se rapidamente.

Era um disparate e, no entanto, quando regressou ao apartamento, começou a reler os jornais. Os fatos do atentado contra Cohen e a morte de Megan estavam mencionados em páginas diferentes do Daily Telegraph, de sábado, dia 22.

Procurou a página artística e encontrou. Um artigo enorme assinado por um crítico musical, analisando o concerto da noite anterior, juntamente com uma fotografia do artista. Morgan estudou-a durante algum tempo. O rosto simpático e grave, o cabelo preto e os olhos. Era, obviamente, estúpido, mas de qualquer forma foi buscar o Who's Who na estante e procurou em Mikali. Em seguida, saltaram-lhe algumas frases diante dos olhos — a referência ao serviço militar de Mikali na Legião Estrangeira, no Corpo de Paraquedistas na Argélia — e deixou de se sentir estúpido.


CAPÍTULO 9

Pouco passava das nove quando a secretária de Bruno Fischer abriu a porta do seu gabinete em Golden Square e entrou. Mal tivera tempo de despir o casaco, quando o telefone tocou.

— Bom dia — cumprimentou. — Agência Fischer.

— Mr. Fischer está? — Era uma voz de homem, bastante profunda, com um toque de sotaque galês.

— É raro vermos Mr. Fischer antes das onze — respondeu, sentando-se na beira da secretária.

— Ele é o agente de John Mikali?

— Sim. — Chamo-me Lewis — elucidou Asa Morgan. — Sou estudante universitário da Academia Real de Música e estou a escrever uma tese sobre os pianistas contemporâneos de concertos. Gostaria de saber se Mr. Mikali estaria disposto a dar uma entrevista?

— Receio que não — retorquiu ela. — Acabou de dar um concerto em Helsinque e voou diretamente para a Grécia onde foi passar uns dias de férias. Tem lá uma vil-la em Hidra.

— E quando o esperam de volta?

— Tem um concerto em Viena dentro de dez dias, mas provavelmente apanhará o avião diretamente de Atenas. Não sei, de fato, informá-lo quando voltará a Londres, e não existe qualquer certeza de que o receba.

— Mas que pena! — lamentou Morgan. — Esperava poder perguntar-lhe as cidades em que gosta de tocar. Se tem algumas favoritas e porquê.

— Paris — elucidou ela. — Acho que lhe agrada Paris e Londres acima de tudo.

— E Frankfurt? — inquiriu Morgan. — Alguma vez tocou lá?

— Acho que sim.

— Por que diz isso?

— Estava a dar um concerto lá, na Universidade, no ano passado, quando o ministro da Alemanha Oriental foi assassinado.

— Obrigado — agradeceu Morgan. — Foi-me muito útil.

Ficou sentado ao telefone a pensar no assunto. Tinha de haver qualquer falha. Era demasiado simples. E, nessa altura, o telefone tocou.

— Lamento, Asa — soou a voz de Kate Riley. — Sentia-me tão abalada com o que aconteceu.

— Onde está?

— De volta a Cambridge, em New Hall.

— Aconteceu-me uma coisa estranhíssima esta manhã — disse ele. — Fui até à rua onde o Cretense abandonou o automóvel naquela noite e percorri depois o caminho a pé, como ele deve ter feito.

— Tudo suposições, evidentemente.

— O percurso levou-me ao longo dos Kensington Gar-dens até ao Albert Hall. Aí reparei num cartaz. Um entre muitos, mas mais interessante do que os outros, anunciando um concerto às oito da noite, na data em que Megan morreu.

— Um concerto? — Kate Riley tomou consciência de um frio que lhe percorria o corpo e do bater do coração com mais força.

— John Mikali tocando o Concerto Nº 2 para Piano, de Rachmaninov. Esse nome fez soar uma campainha no meu cérebro. Um realizador cinematográfico chamado Forlani foi abatido a tiro no Festival de Cinema de Cannes, em mil novecentos e setenta e um, no hotel, pelo Cretense, que desapareceu sem deixar rasto, apesar dos guardas de segurança. Mikali era uma das muitas celebridades instaladas no hotel nessa mesma altura.

— E então?

— No ano passado, quando o ministro da Alemanha Oriental foi assassinado em Frankfurt, adivinhe quem estava a dar um concerto na Universidade?

— Tudo isso é um disparate, Asa — retorquiu ela suspirando fundo. — John Mikali é um dos maiores pianistas do mundo. Uma celebridade internacional.

— Que serviu dois anos na Legião Estrangeira em adolescente — disse Morgan. — De acordo. Não parece muito provável, mas pelo menos vale a pena seguir a pista.

— Já falou ao inspetor-chefe Baker sobre as suas suspeitas?

— Claro que não. As suspeitas são minhas e demais ninguém. Vou continuar a investigar e a mantê-la informada.

Depois de ele desligar, Kate pegou na lista telefónica e não teve dificuldade em descobrir o número de Bruno Fischer. Quando lhe respondeu, ficou com a impressão de que ainda o apanhara na cama.

— Bruno?... Katherine Riley.

— Em que posso ser útil a esta hora da manhã?

— Quando espera o John, de Helsinque?

— Não vem. Decidiu que precisava de descanso. Voou diretamente para Atenas e continuou até Hidra. Estará lá agora, se quiser falar com ele. Tem o número, não tem? A única coisa boa naquele lugar primitivo é haver telefone.

Ela desligou e procurou noutra página da lista. Um pormenor quanto a Hidra era a possibilidade de ligação automática. Percorreu a série de números. Fez três tentativas, antes de conseguir acertar.

— És tu, John?

— Katherine! Onde estás? — perguntou Mikali, parecendo satisfeito.

— Cambridge. Acho que consigo uns dias de férias. Posso aparecer?

— Claro que sim. Quando te espero?

— Ainda tenho umas coisas a resolver por aqui — respondeu ela, olhando para o relógio —, mas talvez possa apanhar o avião da tarde. Se não conseguir, vou no último da noite. O que significará que só irei arranjar transporte para a ilha amanhã de manhã.

— Mando o Constantin esperar-te na doca.

Depois de pousar o receptor, deixou-se ficar muito tempo sem se mexer. Que disparate! Que tremendo disparate. Naquele momento verificou que odiava Asa Morgan com todas as fibras do seu coração.


CAPÍTULO 10

Morgan esperava ao balcão de informações do Telegraph, em Fleet Street. A simpática jovem a quem fizera o pedido cinco minutos antes, regressou com um volumoso dossiê.

— Mikali... John — disse. — Há muita coisa sobre ele.

E era verdade. Morgan levou-o para uma das mesas, sentou-se e começou a examiná-lo. Havia, evidentemente, lacunas. Os recortes eram principalmente ingleses e americanos, mas também havia franceses. Uma revista mencionando um concerto a enquadrar-se com o assassinato de Vassilikos e um outro que se ajustava ao russo, em Toronto.

Finalmente, havia aquele artigo no Paris-Match e que Morgan leu lentamente. O seu francês não era famoso, mas chegava-lhe para compreender. Tratava-se de um relato do tempo em que Mikali prestara serviço na Legião, e havia uma descrição especialmente interessante do que se passara em Kasfa.

Virou, seguidamente, a página e observou as fotografias. Uma de Mikali, com a boina de paraquedista e o uniforme de camuflagem, segurando uma metralhadora com o maior dos à-vontades. A outra apanhara-o, num plano aproximado, vestido com um quepe branco regulamentar do legionário que completou o treino.

Morgan contemplou o rosto jovem e endurecido, o cabelo cortado à escovinha, os olhos inexpressivos e a boca. Fechou o dossiê. Era suficiente. Tinha descoberto a identidade do Cretense.

Pouco passava da uma, quando Kim introduziu Baker no apartamento de Ferguson. O brigadeiro estava a comer um almoço de sanduíches junto à lareira. Lia, igualmente, o Times.

— Parece nervoso, inspetor!

— Asa partiu para Atenas no avião das onze da noite. O Departamento Especial em Heathrow não teve autoridade para o deter, mas as notícias acabaram finalmente por chegar a nós.

— Num momento em que ele, obviamente, já partira. British Airways, presumo.

— Olympic.

— Mas que atitude tão pouco patriótica.

— Verifiquei junto deles. Aparentemente, marcou lugar no avião pelo telefone e chegou dez minutos antes, para levantar o bilhete. Levava apenas um saco de mão.

— Grécia — disse Ferguson — e Creta. De certa maneira, parecem ajustar-se, não? Coisa que me desagrada.

— Quer que notifique o Departamento Especial grego para o prender?

— Claro que não.

— De acordo, Sir . Temos algum homem do DI5 na nossa Embaixada lá?

— Temos, sim. Um capitão Rourke, assistente do gabinete militar do adido.

— Talvez possa seguir Morgan, quando chegar?

— É certamente uma ideia, inspetor-chefe, à exceção de que, infelizmente, como me informou, Asa Morgan só pode ser seguido se quiser. Mesmo assim, se lhe apetecer telefonar a Rourke, faça-o. O telefone vermelho proporciona geralmente os mais rápidos resultados.

Voltou a embrenhar-se na leitura do Times. Baker dirigiu-se à secretária, pegou no telefone vermelho e pediu uma ligação para a Embaixada Britânica em Atenas.

O capitão Charles Rourke estava encostado a uma coluna a ler um jornal, no momento em que Morgan saiu da Imigração e Alfândega. O capitão vestia um fato de algodão amarrotado, do tipo preferido por muitos gregos durante o calor dos meses de verão, o que, supostamente, o ajudaria a misturar-se com eficácia no meio da sala a abarrotar.

Soldados profissionais com roupas de civil conseguem geralmente reconhecer-se uns aos outros. Neste momento, a tarefa de Morgan foi facilitada, pois tinha uma memória de elefante em relação a caras e recordava-se da de Rourke, de a ver na primeira fila de um grupo de estudos sobre métodos e tecnologia da guerrilha urbana, que leccionara no ano de 1969, em Sandhurst.

Ferguson a tomar precauções. Não que lhe importasse. Foi até ao balcão de câmbio e apresentou duzentas libras esterlinas, em troca do que recebeu a quantia apropriada em dracmas, tendo seguidamente saído e chamado um táxi.

Visitara Atenas há alguns anos para uma conferência da NATO. Recordava-se do hotel onde ficara nessa altura. Tanto quanto se lembrava, adaptava-se perfeitamente ao seu objetivo.

— Conhece o Green Park Hotel, em Kriston Street?

— Claro — respondeu o motorista e arrancou. Atrás dele, Charles Rourke já se metera no banco traseiro de um Mercedes preto e batia no ombro do motorista.

— Esse táxi aí na frente. O Peugeot verde. Seguimos para onde ele for.

Recordava-se, agora, de Morgan e daquele curso na Academia. Era realmente divertido esta troca de lugares. Recostou-se no banco com um sorriso e acendeu um cigarro.

Morgan consultou o relógio. Fora necessário adiantá-lo duas horas, o que significava que pela hora de Atenas eram agora um quarto para as cinco.

— A esta hora ainda se consegue arranjar transporte para Hidra? — quis saber.

— Ainda — respondeu o motorista. — Horário de Verão. Nestas noites de Verão, os transportes funcionam até mais tarde. O último hidroboat para Hidra parte de Pireu, às seis e trinta.

— Quanto tempo demora?

— Chega às oito horas. É uma viagem agradável, com muito para ver. Nesta época do ano só escurece por volta das nove e meia da noite. — Olhou de relance por cima do ombro. — Quer que o leve a Pireu?

Morgan, consciente de que levava o Mercedes na peugada, sacudiu negativamente a cabeça.

— Não. Vou deixar para amanhã. Fico no hotel.

— Ei! Para um inglês, fala muito bem grego.

Não lhe pareceu politicamente aconselhável responder que aprendera durante três duros anos caçando terroristas do EOKA, em Chipre.

— Trabalhei alguns anos em Nicósia — disse Morgan — para uma fábrica de vidros que era propriedade dos ingleses.

— As coisas estão agora melhores por lá — retorquiu o motorista com um aceno de cabeça. — Acho que Makarios sabe o que faz.

— Esperemos que sim.

Tinha pouco tempo a perder, sabia-o no momento em que pagou ao motorista junto ao Green Park Hotel e o Mercedes preto passou por eles, detendo-se na curva, a alguns metros. Quando Morgan se virou e subiu as escadas de acesso à porta giratória, Rourke saiu do automóvel e foi atrás dele.

Uma vez lá dentro, Morgan não se dirigiu à recepção. Em vez disso, atravessou até ao mezanino. Rourke deteve-se, por momentos, fingindo examinar os câmbios no foyer e apenas o seguiu quando Morgan já subira o primeiro lance de escadas.

Uma vez no mezanino, Morgan, que sabia exatamente para onde se dirigia, passou como uma seta pela loja de recordações e tomou pelas escadas estreitas que levavam diretamente ao restaurante, aberto vinte e quatro horas, no piso inferior. Abriu caminho por entre as mesas e saiu pela entrada lateral do hotel, no momento em que Rourke, ainda no mezanino, hesitava, sem saber para onde ir.

Foi até junto da jovem da loja de recordações.

— O meu amigo veio na frente. Trazia um saco marrom e estava vestido com uma capa. Segundo parece, perdi-o de vista.

— Já sei, Sir. Desceu as escadas do restaurante.

Rourke, tomado de uma desconfiança repentina, transpôs os degraus a dois e dois. Mas nessa altura já Asa Morgan desaparecera há muito, e estava a meio do parque que desembocava na praça em frente.

Foi dar, como esperava, a uma praça de táxis e meteu-se no início da fila.

— Para o Pireu — indicou ao motorista. — Tenho de apanhar o Flying Dolphin que parte para Hidra às seis e meia.

— É muito apertado, senhor — retorquiu o motorista. — Não sei se conseguiremos.

— Quinhentos dracmas segredam-me que vamos conseguir — disse Asa Morgan, ao mesmo tempo que se agarrava à pega de mão enquanto o motorista sorria, pisava o acelerador e disparava o automóvel por entre o tráfego.


CAPÍTULO 11

Em Heathrow eram três e meia em ponto quando Katherine Riley se dirigiu apressadamente à recepção da British Airways, seguida por um bagageiro.

O jovem empregado examinou-lhe o bilhete.

— Desculpe, senhora, mas já estão subindo para bordo. É tarde demais para deixa-la passar. Quer que veja se consigo o voo das sete horas?

— Sim — respondeu. — Faça-o, por favor. Tenho de chegar esta noite a Atenas.

Foi verificar a lista de passageiros e pouco depois regressou: — Sim. Podemos fazê-lo. Receio que vá chegar bem tarde. Meia-noite e trinta pela hora grega.

— Não interessa — respondeu. — Vou para as ilhas, o que significa que começarei o dia cedo.

— Muito bem. E agora, se deixar que me encarregue da sua bagagem, farei com que chegue ao destino.

Desta vez, foi Ferguson a comunicar telefonicamente a Baker as más notícias de Atenas.

— Acabei de falar com Rourke. Asa passou-lhe a perna, e sem dificuldade, assim parece.

— Santo Deus! — exclamou Baker, totalmente incapaz de se controlar. — Onde descobre esses idiotas, com mil raios?

— Trata-se de uma disposição do Todo-Poderoso, inspetor-chefe. Quem somos nós, pobres mortais, para pôr em causa as suas determinações?

— Então... o que fazemos, agora, Sir ?

— Ficamos sentados à espera de que aconteça alguma coisa — respondeu Ferguson, pousando o receptor.

Morgan chegou ao cais do Pireu para embarcar no hi-drofoil com dez minutos de avanço. Não estava muito cheio e, depois de pagar o bilhete a bordo, sentou-se junto à janela.

Estava uma noite calma e o Flying Dolphin conseguiu dar a velocidade máxima, elevando-se acima das águas nas suas pernas semelhantes às de inseto. E o cenário era espetacular. Salamis com as águas azuis do golfo de Egina, o enorme aglomerado das ilhas de Egina e Paros resplandecentes de luz cortando a noite.

Nada daquilo significava o que quer que fosse para Morgan, mesmo quando foi até ao convés e se inclinou na amurada, fitando o espaço com um olhar inexpressivo, pensando numa única coisa: John Mikali. E o que sucederia quando se encontrassem? Não tinha qualquer arma. Impossível arriscar-se a tentar passar alguma, quando fosse revistado pela segurança do aeroporto. Dispunha evidentemente das mãos. Não seria a primeira vez. Ao olhá-las, verificou que tremiam ligeiramente.

Finalmente a ilha de Hidra recortou-se, nua e austera, na noite, semelhante a um enorme fóssil, curiosamente desapontadora até o Flying Dolphin aportar, revelando todo o encanto da cidade de Hidra.

As casas erguiam-se em filas, para lá das vertentes e os acessos eram constituídos por uma rede de áleas ziguezagueantes e forradas de cascalho. A noite escorria e a multidão alegre enchia as tabernas.

Morgan escolheu um lugar numa das mesas ao ar livre, junto ao Convento de Dormiton, de frente para as águas. O empregado que veio servi-lo falava um inglês muito aceitável e, por conseguinte, Morgan guardou o grego e mandou vir uma cerveja.

— É americano? — perguntou o empregado.

— Não. Galês.

— Nunca estive no País de Gales. Em Londres, sim. Trabalhei um ano num restaurante em King's Road, Chelsea.

— E cansou?

— Frio demais — sorriu o empregado. — O clima aqui é uma maravilha. E quente — acrescentou, levando os dedos aos lábios num gesto apreciativo. — Muitas moças. Montes de turistas. Está aqui de férias, não?

— Não — respondeu Morgan. — Sou jornalista. Espero entrevistar John Mikali, o pianista de concertos. Tem aqui uma villa, não tem?

— Claro. Na costa, para lá de Moios.

— Como chego lá? — quis saber Morgan. — Há um ônibus local?

— Não há carros nem caminhões em Hidra — Sorriu o empregado. — É contra a lei. A única forma de lá chegar é de mula ou nos dois pés. Uma mula é melhor. O interior da ilha é uma região agreste e montanhosa, e as pessoas ainda vivem como noutros tempos.

— E Mikali?

— A villa fica a uns dez quilômetros daqui descendo a faixa costeira, num promontório entre os pinheiros, em frente a Dokos. Muito bonito. Usa uma lancha a motor para buscar provisões.

— Posso alugar um barco que me leve até lá?

— Se não o convidou, impossível — respondeu o empregado, sacudindo a cabeça em negativa.

Morgan tentou uma expressão desapontada. — E o que devo fazer, então? Nem quero pensar que fiz todos estes quilômetros inutilmente. — Retirou da carteira uma nota de cem dracmas e pousou-a cuidadosamente em cima da mesa. — Se pudesse dar alguma ajuda, ficaria muito agradecido.

O empregado pegou calmamente a nota e meteu-a no bolso num gesto casual.

— Vou dizer-lhe uma coisa. Faço-lhe um favor. Telefono para ele. Se quiser recebê-lo, é lá com ele. OK?

— Ótimo.

— Qual é o seu nome?

— Lewis.

— OK. Fique aqui. Volto dentro de minutos.

O empregado entrou na taberna, foi até o balcão, consultou uma pequena lista, depois do que pegou no receptor de um telefone de parede e marcou um número. Foi o próprio Mikali quem atendeu.

— Como está, Mr. Mikali? Fala Andrew, o garçom do Niko's — disse em grego.

— E em que posso ser útil?

— Está aqui um homem que chegou de Atenas e quer visitá-lo. Um jornalista. Diz que espera conseguir entrevistá-lo.

— E o que é? Americano?

— Não. Galês. Diz ele. Chama-se Lewis.

— Galês? — repetiu Mikali num tom levemente divertido. — Isso muda a situação. OK, Andrew. Estou disposto. Mas só lhe concedo uma hora. Vou mandar o Constantin buscá-lo. Indica-lhe o barco quando chegar aí.

— OK, Mr. Mikali.

O empregado regressou a Morgan.

— Está com sorte. Ele diz que o receberá, mas só durante uma hora. Vai mandar-lhe o velho Constantin. Aviso quando chegar.

— É realmente uma sorte! — exclamou Morgan. — Demora muito?

— O suficiente para que possa comer alguma coisa — respondeu o garçom com um esboço de sorriso. — Posso aconselhar o peixe. Pescado esta noite.

Morgan comeu bem, primeiro para preencher o tempo e acabando por gostar mesmo. Estava acabando quando o empregado lhe bateu no ombro, fez um sinal e Morgan avistou uma lancha branca a motor que dava a volta e aportava.

— Venha — disse o garçom. — Vou levá-lo até lá e apresentá-lo.

A lancha parou junto ao pier e um garoto de uns onze ou doze anos saltou para o cais e procedeu à atracação. Vestia camisa usada e jeans. O garçom fez-lhe festa na cabeça e o menino esboçou um largo sorriso.

— Este é Nicky, o neto de Constantin, e aqui está Constantin em pessoa.

Constantin era um homem baixo, de aparência robusta, com o rosto profundamente queimado graças à vida passada no mar. Usava boné de marinheiro, camisa xadrez, calças remendadas e botas.

— Não se deixe levar pelas aparências — sussurrou o garçom. — Este velho filho da mãe é dono de duas boas casas na cidade. — Levantou a voz. — Este é Mr. Lewis.

Constantin não deu um sorriso sequer.

— Vamos, senhor — limitou-se a dizer num inglês atrapalhado.

Voltou as costas e regressou à casa do leme.

— Pensa provavelmente que o Diabo o apanhará se andar por fora durante a noite — explicou o empregado. — São todos os mesmos, estes velhos. Metade das mulheres julgam-se bruxas. Até à volta, Mr. Lewis.

Morgan subiu a bordo, o miúdo seguiu-o, enrolando a corda, e a lancha a motor afastou-se do porto, para lá da fortaleza, outrora pesadamente defendida com as armas venezianas apontadas na direção do mar, como esperando ainda a chegada dos turcos.

Estava uma bela noite, se bem que a costa do Peloponeso, a cerca de seis quilómetros, desaparecesse já sob uma espécie de crepúsculo púrpura, e na costa de Hidra se avistassem luzes nas janelas. O barco seguiu viagem sobre um mar sereno, enquanto Constantin aumentava a velocidade. Morgan entrou na casa do leme e ofereceu-lhe um cigarro.

— Quanto tempo falta?

— Quinze, vinte minutos.

Morgan contemplou o mar noturno, escuro como tinta, enquanto o sol desaparecia no horizonte longínquo para lá de Dokos.

— Bonito — observou.

O velho não se incomodou em responder e, passados uns momentos, Morgan desistiu e desceu ao salão, onde foi encontrar o miúdo, sentado à mesa, a ler um jornal desportivo. Morgan olhou por cima do ombro. A primeira página mostrava o famoso grupo de futebol de Liverpool.

— Gostas de futebol? — perguntou Morgan.

O menino sorriu novamente, depois dirigiu-se a um armário, abriu-o e tirou uma máquina fotográfica Polaroid, de modelo dispendioso. Colocou Morgan na objetiva, fez-se um clarão e a fotografia saiu pela frente.

— É um brinquedo caro — observou Morgan. — Quem te deu?

— Mr. Mikali — respondeu Nicky. — Um homem bom.

Morgan pegou a fotografia e ficou a observá-la, enquanto secava e ia revelando o próprio rosto que o olhava e as cores se acentuavam.

— Sim — concordou lentamente. — Suponho que sim.

A fotografia ficou pronta. Nicky a estendeu a Morgan.

— Boa?

— Sim — respondeu Morgan, fazendo-lhe festa na cabeça. — Muito boa.

O telefone tocou. Quando Mikali atendeu, era novamente Katherine Riley.

— Ainda estou na sala internacional de embarque em Heathrow. — comunicou. — Houve um atraso.

— Pobre querida.

— Mas que afirmação extravagante da tua boca — reparou.

— Sinto-me com uma disposição extravagante.

— De qualquer maneira, apanho o primeiro hidrobarco de manhã.

— Mando Constantin te buscar. Não fales com desconhecidos.

Mikali desligou, quando ouviu o ruído do motor aproximando-se. Pegou um par de binóculos, abriu as portas francesas e atravessou o amplo terraço. Ainda havia luz suficiente para lhe permitir ver a aproximação da lancha ao longo da baía e mover-se na direção do pequeno quebra-mar onde Anna, a velha mulher de Constantin, estava à espera.

A ponta do quebra-mar estava iluminada. No momento em que o miúdo atirou a corda ao avô, Morgan seguiu-o, saltando a amurada; Mikali focou os binóculos na sua figura, por breves instantes. Foi o suficiente.

Regressou à sala de estar onde ardia a lenha na lareira. Serviu-se de uma grande dose de Courvoisier com gelo, abriu uma gaveta da mesa, tirou uma Walther e adaptou rapidamente um silenciador ao cano.

Colocou a arma no cinto e começou a passear pela sala, copo numa das mãos, abriu todas as portas, empurrando todas as cortinas para trás, de maneira a que o vento noturno enchesse a casa com o aroma de flores vindo do jardim.

Em seguida, apagou todas as luzes, à exceção de um abajur para leitura junto a ums mesinha de café, ao lado do piano. Depois sentou-se ao Bruthner e começou a tocar.

A uns quinze ou vinte metros no caminho íngreme que subia do quebra-mar, chegaram a um pequeno pavilhão primitivo. Na entrada, um cão ladrou para Morgan. A velha enxotou-o e o menino entrou. Constantin continuou a subida sem uma palavra e Morgan seguiu-o.

Percebeu que o jardim estava tratado, ladeado de oliveiras, cheio de vasos de camélias, gardénias, hibiscos e na quente atmosfera noturna pairava o aroma de jasmins.

Nessa altura ouviu o piano, de onde se evolava uma estranha e lúgubre melodia. Por momentos, parou. Constantin voltou-se para trás sem o mínimo indício de emoção, e Morgan prosseguiu caminho.

Subiram os degraus de acesso à villa. Tratava-se de um edifício enorme, de um andar, construído em largura, feito em pedra local, com persianas pintadas de verde e um telhado de telhas curvas. Por todo o lado cresciam buganvilas.

Havia uma porta dupla de carvalho ornamentado a ferro. Constantin abriu-a sem cerimónias e indicou o caminho. O hall interior servia aparentemente de junção a duas partes da casa, e estava imerso em trevas. Um rasgo de luz escoava-se por baixo de uma porta aberta ao fundo e de onde vinha a música. Constantin avançou até junto dela, fez um gesto de cabeça a Morgan para que entrasse, pousou o saco de viagem e saiu sem uma palavra, fechando a porta da frente atrás de si.

— Entre, Mr. Lewis — convidou Mikali.

Morgan entrou na sala. Era muito comprida, estava mobilada com simplicidade, tinha paredes pintadas de branco, um chão de mosaico encerado e o fogo ardia alegremente na lareira, enquanto Mikali se mantinha sentado ao piano de concertos Bluthner.

— Tire o casaco, por favor.

Morgan atirou o impermeável na cadeira mais próxima e avançou lentamente como um homem num sonho, sentindo a garganta seca e respirando com dificuldade. A música fazia vibrar todas as fibras do seu corpo.

— Conhece esta peça, Mr. Lewis?

— Sim — respondeu Morgan num tom de voz enrolado. — Chama-se Le Pastour e é de Gabriel Grovlez.

— Um homem de gosto e discernimento — elogiou Mikali, conseguindo mostrar-se surpreso.

— Nada disso — rebateu Morgan. — Trata-se, na realidade, de uma das peças que a minha filha tinha de aprender para obter o diploma do quinto ano do Conservatório de Música.

— Lamento o que aconteceu — disse Mikali. — Tentei evitá-la, coronel.

Naquele momento, já nada havia que surpreendesse Morgan.

— Sim. Posso imaginar. Quando assassinou Stephanakis em Paris, deixou viver o motorista, depois a criada de quarto no Hilton, em Berlim, e novamente o motorista, no Rio, quando matou o general Falcão. Quem se julga? Deus?

— Regras do jogo. Nenhum deles era o alvo.

— O jogo? — retorquiu Morgan. — E que jogo?

— Devia saber. Há muito tempo que está metido nele. O jogo mais excitante do mundo, tendo a própria vida como aposta máxima. Pode mencionar-me, honestamente, qualquer outra coisa que tenha feito, capaz de lhe proporcionar o mesmo tipo de excitação?

— Você é um louco — observou Morgan.

— Por quê? — retorquiu Mikali com uma leve expressão de surpresa. — Costumava fazer as mesmas coisas de uniforme, e deram-me medalhas por isso. Exatamente a sua posição. Quando se olha no espelho, é a mim que vê.

A música mudava, agora para um qualquer concerto cheio de vida e de força.

— O interessante é que está aqui pelos próprios meios — comentou. — O que aconteceu ao DI5 e ao Departamento Especial?

— Queria-o para mim.

A música elevou-se, em crescendo, no mesmo instante em que Morgan avançou, as mãos como armas.

— Gosta disso? — perguntou Mikali. — É o Concerto Nº 4 para Piano em Si Maior, de Prokofiev, tocado com a mão esquerda.

A mão direita surgiu acima do piano, segurando a Walther.

Morgan desviou-se para o lado no preciso instante em que uma bala abria-lhe um orifício no alto do ombro esquerdo.

Arrancou a lâmpada da mesa de café e a sala ficou mergulhada em trevas. A Walther disparou novamente duas vezes, mas Morgan já saíra pela porta mais próxima. Correu ao longo do terraço e saltou para o jardim, três metros abaixo, aterrissando pesadamente.

O cão latia novamente na pequena casa, quando correu ao longo da vertente íngreme, aos ziguezagues, através das oliveiras. Mikali, que o seguira até o terraço, sem hesitação foi atrás dele.

A noite caíra agora quase por completo. O horizonte assemelhava-se a uma mancha de fogo, quando Morgan chegou à beira do abismo e hesitou, tomando consciência de se encontrar num beco sem saída.

Por instantes, a sua silhueta recortou-se, perfeitamente, no colorido laranja e dourado do céu noturno, e Mikali disparou sem parar de correr. Morgan soltou um grito, no momento em que a bala o lançou através do espaço. E em seguida, desapareceu.

Mikali perscrutou a escuridão, que se estendia abaixo. Ouviram-se passos nas suas costas e Constantin apareceu, com uma espingarda numa das mãos e uma lanterna na outra.

Mikali arrancou-lhe a lanterna, acendeu-a, e fê-la incidir sobre as águas ondulantes e escuras por entre as rochas.

— O menino está deitado? — perguntou.

— Está — respondeu o homem com um aceno afirmativo.

— Ótimo. A doutora Riley vai chegar amanhã, muito cedo, de Atenas. Estará à tua espera.

Mikali percorreu o caminho de volta até ao terraço. O velho contemplou as águas escuras, benzeu-se, depois virou as costas e dirigiu-se à pequena casa.

Foi cerca de uma hora mais tarde que Jean-Paul Deville chegou ao seu apartamento, em Paris. Fora a um jantar anual, na companhia de colegas na barra do tribunal. A maior dos companheiros tinha decidido acabar a noite num local em Montmartre, muito frequentado por cavalheiros de meia-idade em busca de excitação. Deville conseguira escapar-se de uma forma bastante delicada.

Quando estava a despir o casaco, tocou o telefone. Era Mikali.

— Há uma hora que estou tentando encontra-lo.

— Fui jantar fora. problemas?

— O nosso amigo galês apareceu. Sabia tudo a meu respeito.

— Santo Deus! Como?

— Não faço a mínima ideia. Concluí que não passara a informação. Estava ansioso demais para me apanhar por conta própria.

— Encarregou-se dele?

— Para sempre.

Deville franziu o sobrolho, pensando no assunto, e em seguida tomou uma decisão.

— Dadas as circunstâncias, acho que devemos estar juntos. Se apanhar o primeiro avião para Atenas, poderei estar em Hidra à uma da tarde pela hora daí. De acordo?

— Perfeito — concordou Mikali. — Katherine Riley chega de manhã, mas não há qualquer problema.

— Claro que não — retorquiu Deville. — Mantenhamos as coisas bem normais. Até à vista.

Mikali serviu-se demais um brandy, aproximou-se da mesa e abriu o dossiê de Morgan. Descobriu a fotografia e fitou o rosto moreno e sombrio durante algum tempo, após o que a jogou na lareira com o restante do dossiê.

Sentou-se ao piano e flexionou os dedos. Em seguida começou a tocar Le Pastour, com um enorme sentimento e suavidade.


CAPÍTULO 12

George Ghika passara a maior parte dos seus setenta e dois anos como pescador de profissão, vivendo na pequena herdade onde tinha nascido, no cimo dos pinheiros, por cima da casa de Mikali.

Os seus quatro filhos tinham emigrado para a América, um por um, ao longo dos anos, deixando-o só com a mulher, Maria, que o ajudava com o barco. Não que interessasse. Em qualquer dia da semana era tão dura como ele e sabia manejar o barco na perfeição.

Duas vezes por semana, levados pela excitação e a possibilidade de ganhar algum dinheiro extra, iam colocar as redes à noite, como habitualmente. Em seguida apagavam as luzes e faziam o percurso de seis quilómetros, através do estreito, até uma taberna na costa do Peloponeso, onde iam buscar um carregamento de cigarros sem imposto, o que tinha considerável procura em Hidra.

Na viagem de regresso, voltavam ao trabalho das redes e continuavam a pescar. Tudo funcionara sempre perfeitamente até àquela noite, quando Maria ligou os fortes holofotes metálicos colocados na proa do barco, cuja luz atraía o peixe, e avistou, em vez dele, uma mão estendida para ela e depois um rosto manchado de sangue.

— Minha Nossa Senhora! Um diabo marinho! — exclamou George, erguendo um remo para bater.

— Afasta-te, velho idiota — ordenou-lhe a mulher. — Não consegues distinguir um homem, quando vês um? Ajuda-me a metê-lo cá dentro.

Morgan estava deitado no fundo do barco, enquanto ela o examinava.

— Levou um tiro — disse o marido.

— Achas que não consigo ver? Dois. A carne está rasgada no ombro e aqui, na parte de cima do braço esquerdo. Uma bala atravessou-a.

— O que vamos fazer? Levá-lo ao médico, à cidade de Hidra?

— Para quê? — retorquiu ela num tom de desdém, porque, à semelhança de muitas camponesas de Hidra, só confiava em ervas e poções. — O que pode ele fazer que não sejamos capazes de fazer melhor? Além de que haveria a polícia. Seria necessário um relatório do caso e surgiria a questão dos cigarros. — A face velha enrugou-se ainda mais num sorriso. — E tu, meu George, és velho demais para ser metido na prisão.

Morgan abriu os olhos e disse em grego:

— Façam o que fizerem, mas não metam a polícia.

— Como vês, o nosso homem do mar falou — retorquiu a mulher, voltando-se e batendo no ombro do marido. — Vamos levá-lo para terra, antes que nos morra nos braços.

Apercebeu-se de que se encontrava numa pequena baía em forma de ferradura, com uma estreita faixa de praia e pinheiros plantados na vertente, que descia da montanha.

O quebra-mar era construído em maciços blocos de pedra, que entravam pela água funda. Algo estranho de encontrar num local tão isolado. Nessa altura desconhecia que tinha mais de cento e cinquenta anos de existência e datava da Guerra da Independência grega, quando esta baía albergara vinte escunas hidriotas armadas, à espera de atacar qualquer navio da frota turca que tivesse a imprudência de se aproximar daquela costa.

Sob o luar, Morgan tomou consciência de alguns edifícios arruinados, enquanto o velho o levava para terra. Cambaleou um pouco, sentindo-se nas nuvens.

Maria rodeou-lhe o corpo com um braço, dando provas de uma força surpreendente para a sua idade.

— Não é a altura de cair, rapaz. É a altura de mostrar quanto vale.

Alguém riu e Morgan verificou surpreendido que era ele mesmo.

— Rapaz, eu? — retorquiu. — Já vivi quase cinquenta anos... cinquenta longos anos e malditos anos.

— Nesse caso, a vida já não deveria oferecer-lhe surpresas.

Verificou-se um movimento na sombra e o velho George saiu de uma das casas, conduzindo uma mula. Não tinha estribos, mas apenas um cobertor e uma sela tradicional feita de madeira e de cabedal.

— O que faço com isto? — perguntou Morgan.

— Montá-la, meu filho — respondeu a mulher, apontando na direção dos pinheiros. — Até às montanhas. Ali há a segurança e uma cama quente. — Deu-lhe uma palmadinha afetuosa no rosto com as costas da mão. — Vai fazer isso por mim, não vai? Esta última coisa com todas as suas forças, para que o possamos levar para casa?

Por qualquer motivo, sentiu-se muito próximo das lágrimas, de uma maneira para si desconhecida há anos.

— Claro — viu-se a responder em galês. — Leve-me para casa.

O choque de uma ferida causada por um tiro de uma arma é tão grande que para a maioria das pessoas lhes congela temporariamente o sistema nervoso. Só mais tarde aparece a dor, como aconteceu a Morgan. Então agarrou-se firmemente à sela de madeira, enquanto a mula iniciava a subida pelo caminho rochoso, através dos pinheiros, com o velho George na frente e Maria a pé, à sua esquerda, segurando o cinto de Morgan com uma das mãos.

— Está bem? — perguntou ela em grego.

— Sim — respondeu. — Sou indestrutível. Tenho de me poupar para esse filho da mãe do Mikali.

A dor era aguda e intensa, assemelhando-se a um ferro em brasa. Coreia, Adem, Chipre; velhas cicatrizes que se abriam, fazendo com que o corpo se lhe contorcesse em agonia e as mãos se agarrassem à parte de madeira mais alta da sela como se ela fosse a própria vida.

E ela sabia, e segurou mais fortemente o cinto. A sua voz tornou-se mais profunda do que algo que alguma vez lhe fora dado conhecer, mais insistente e sobrepondo-se à dor.

— Vai aguentar-se — falava. — Vai aguentar-se até eu lhe dizer.

Foi a última coisa que ouviu. Quando chegaram à pequena herdade, no cimo da montanha, meia hora mais tarde, e George amarrou a mula e se voltou para o ajudar a descer, estava desmaiado e as mãos agarradas tão firmemente à parte mais alta da sela, que tiveram de lhe desprender os dedos um por um.

Katherine Riley sentia-se completamente exausta depois do voo noturno e quatro horas num hotel de Atenas, onde não adormecera por um momento que fosse, dando voltas e mais voltas por causa do calor, e levantando-se cedo para apanhar o táxi que tinha contratado para a levar ao Pireu.

Até mesmo a surpreendente beleza do passeio matutino pelo mar até Hidra não contribuíra para lhe alterar a disposição. Tinha medo. O que Morgan sugerira era estúpido, e de um espírito ruim. Muito simplesmente impossível. Entregara o corpo a Mikali e ele proporcionara-lhe toda uma alegria de vida que lhe fora negada desde a morte do pai. Entendimento e compreensão.

Palavras, apenas palavras. Nem o mínimo conforto, sabia-o no momento em que desembarcou do Flying Dolphin e Constantin avançou ao seu encontro para lhe pegar na mala.

Nunca sentira conforto ao seu lado, sempre imaginara que ele não aprovava a sua presença. Raras vezes falava, fingindo que o seu inglês era pior do que na realidade, como naquele momento em que se afastaram do porto e entrou na casa do leme.

— Nicky? — perguntou ela.— Não veio junto?

O velho não lhe deu resposta, limitou-se a dar atenção ao controle.

— Está em Atenas com a mãe?

Aumentaram de velocidade. Kate desistiu, e foi sentar-se à popa. Voltou o rosto para o céu da manhã e fechou os olhos doridos.

Quando avançaram na direção do quebra-mar, Mikali estava à espera junto da velha Anna e do miúdo. Tinha óculos escuros, vestia uma camisa branca com quadrados e acenava-lhe, excitadamente, com a boca aberta num sorriso que revelava os dentes brancos.

Sentiu-se mais assustada do que nunca, sem saber o que lhe iria dizer, no momento em que ele lhe estendeu a mão para a ajudar a descer para terra. O sorriso transformou-se numa expressão preocupada.

— Katherine? O que houve?

Esforçou-se por reter as lágrimas.

— Estou tremendamente cansada. Todo aquele tempo de espera em Heathrow, depois o voo e aquele horrível hotel em Atenas.

Mikali rodeou o corpo dela com os braços e sorriu novamente.

— Recordas do que disse Scott Fitzgerald? Um banho quente e posso continuar durante horas. É do que estás a precisar.

Pegou a mala e dirigiu-se a Constantin em grego. Quando subiam o caminho que levava à villa, ela perguntou: — O que disseste a ele?

— Que voltasse a Hidra ao meio-dia. Chega uma pessoa de Paris. O meu advogado francês, Jean-Paul Deville. Já me ouviste falar dele.

— Vai ficar?

— Provavelmente só esta noite. Negócios e nada mais. Uns documentos importantes que tenho de assinar.

Abraçou-a mais fortemente e deu-lhe um beijo na face. — Mas isso não interessa. Vamos lá a esse banho quente.

Até certo ponto, deu resultado. Deixou-se ficar deitada, enquanto a água quente a libertava de todas as dores e tristezas. Ele trouxe champanhe gelado e brandy numa taça de cristal.

— Que bonita! — elogiou Kate, fixando a peça. — Nunca tinha visto uma igual.

— Veneziana, do século dezessete. O meu trisavô, o que foi almirante da esquadra hidriota, trouxe-a de um barco turco durante a batalha de Navarino. — Esboçou um sorriso. — Deixa-te estar e descansa enquanto vou fazer o almoço.

— Tu?

— E por que não? — retorquiu ele, voltando-se com um sorriso quando ia a chegar à ombreira da porta e abrindo os braços naquele seu gesto tão caraterístico. — Nada é impossível ao grande Mikali.

A mistura de brande com champanhe subiu-lhe de imediato à cabeça, mas de forma que lhe era inteiramente desconhecida. Em vez de confusão e entorpecimento dos sentidos, tudo se lhe tornou mais claro. Apercebeu-se, nitidamente, de que a situação não se podia manter assim. Aquela coisa que lhe corroía as entranhas tinha de ser expulsa cá para fora.

Saiu do banho, enfiou um roupão turco, dirigiu-se ao quarto e sentou-se em frente do toucador, penteando apressadamente os cabelos. Soaram passos levíssimos e o rosto dele refletiu-se no espelho, recortado na ombreira e escondido atrás do anonimato dos óculos escuros.

— Muito bem. Então o que se passa, anjo?

Ela manteve-se sentada, olhando-o no espelho. Era estranho como as palavras lhe saíam facilmente.

— Recordas do meu coronel galês, Morgan? O que foi visitar Lieselott Hoffman?

— Claro que sim. O que tinha uma filha que foi atropelada pelo Cretense, depois de dar os tiros em Cohen.

— Como sabes disso?

— Tu disseste.

Recordou-se e esboçou um aceno afirmativo. — Esse mesmo. Não devia ter dito. Era confidencial.

— Segredos? Entre nós? — retorquiu ele, acendendo um cigarro e dirigindo-se à janela que ficava ao lado dela.

— Morgan acha que és o Cretense — afirmou ela suavemente.

— Ele o quê? — disse Mikali, fitando-a com uma expressão admirada.

— Afirma que estavas dando um concerto em Albert Hall na noite em que o Cretense disparou em Cohen. Que fica do outro lado de Kensington Gardens, onde abandonou o carro.

— Isso é uma loucura!

— Diz também que estavas no Festival de Cinema de Cannes quando Forlani foi assassinado.

— O mesmo acontecia com metade de Hollywood.

— E na Universidade de Frankfurt, quando aquele ministro da Alemanha Oriental, Klein, foi morto a tiro.

Mikali virou-a no banco e pousou as mãos nos ombros dela.

— Eu próprio te disse isso. Não te recordas? Na primeira vez, quando nos conhecemos, quando dei aquele concerto em Cambridge. Estávamos a discutir a jovem Hoffman e as circunstâncias do assassinato e contei que, nessa altura, estava em Frankfurt.

Tudo lhe acorreu à memória e soltou um gemido que se assemelhava a uma sensação de alívio.

— Oh, céus! Verdade. Eu me lembro.

— Deve estar louco — prosseguiu Mikali abraçando-a. — E anda por aí espalhando essas coisas?

— Não — respondeu ela. — Perguntei se tinha falado com Baker, do Departamento Especial, mas disse que não. Que era um problema dele e de mais ninguém.

— Quando te falou de todas essas coisas?

— Ontem, de manhã cedo... pelo telefone.

— E não voltaste a vê-lo desde então?

— Não... Disse que continuaria a investigar. Que ia me manter informada. — As lágrimas começaram a molhar seu rosto.— Está obcecado, entendes? Tenho tanto medo.

— Não há que ter medo, anjo. Nenhum.

Levou-a até junto da cama.

— Estás apenas precisando dormir — decidiu, puxando a colcha para trás.

Ela obedeceu como se fosse uma criança e deixou-se ficar deitada, de olhos fechados, a tremer. Momentos depois, Mikali meteu-se na cama ao lado dela.

Voltou a cabeça na direção dele, que a abraçou com uma das mãos e lhe desapertava o roupão com a outra. E depois cobriu-lhe os lábios e ela abraçou-o com uma paixão mais ardente do que nunca.

Deville encostou-se à balaustrada do terraço e contemplou o mar no local onde Dokos começava a ser envolvido pela névoa de calor da tarde.

— Suponho que continua a gostar de estragar um bom Napoléon com cubos de gelo? — perguntou Mikali, surgindo por uma das portas com um copo em cada mão.

— Claro que sim. — Deville aceitou o copo que lhe estendia e fez um gesto na direção do mar. — Tudo isto é realmente muito bonito aqui. Vai sentir a falta.

— O que significa essa observação? — quis saber Mikali, pousando o copo na balaustrada e acendendo um cigarro.

— É muito simples. Estamos na queda. Os dois. Se Morgan conseguiu descobrir a sua identidade, outra pessoa acabará por eventualmente conseguir. Oh! Não me refiro ao próximo mês, nem ao ano que vem. Mas indubitavelmente no ano seguinte. — Sorriu e encolheu os ombros. — Ou talvez na próxima quarta-feira.

— E mesmo que me apanhem, seja lá quem for, acha que eu falaria? — retorquiu Mikali. — Que eu o mandaria para o buraco?

— A tortura é um pouco diferente hoje da do tempo da Gestapo — comentou Deville. — Bastaria enfiarem uma agulha em seu braço com sucinicolina, droga bastante incômoda e capaz de colocar o ser humano o mais perto da morte que é possível. A experiência é tão terrível que poucas pessoas conseguem suportar a ideia de uma segunda dose — acrescentou com um sorriso calmo. — Cantaria como um pássaro, John, e o mesmo aconteceria ao Amante Cretense.

Ao longe, o hidrobarco passou a caminho de Spetsae.

— O que sugere? — quis saber Mikali.

— Chegou a altura de regressarmos à pátria, meu amigo!

— À querida e velha mãe Rússia? — retorquiu Mikali, soltando uma gargalhada. — Pode ser a pátria para ti, companheiro, mas nada significa para mim. E se chegarmos a esse ponto, o que vai acontecer? Esteve tempo demais fora. Vão te dar um cartão VIP para fazer compras na secção especial do GUM, o que pouco tem a ver com Gucci. E quando estiver na fila da Praça Vermelha para olhar Lenin no seu mausoléu, estará pensando em Paris e nos Champs Elisées, bem como no aroma dos castanheiros úmidos, ao longo das alamedas, depois das chuvas.

— Muito poético, mas sem modificar o âmago da questão. A minha velha avó sofria de reumatismo e pressentia a chuva com vinte e quatro horas de antecedência. Eu consigo pressentir problemas com a mesma facilidade. Acredite, chegou a hora de partir.

— Para ti, talvez — insistiu Mikali teimosamente. — Não para mim.

— Mas o que fará? — inquiriu Deville verdadeiramente surpreso. — Não compreendo.

— Viver cada dia que passa.

— E quando chegar aquele dia especial, o dia em que vierem buscá-lo?

Mikali vestia camisa larga que escondia um coldre de mola Burns & Martin, preso ao cinto. A mão direita surgiu com a Walther.

— Lembra da minha Ceska? Era a minha arma em Londres. Esta é uma variação hidriota. Como lhe disse, estou sempre preparado.

Nesse momento o telefone começou a tocar. Desculpou-se e dirigiu-se ao interior da casa. Deville manteve-se sentado junto à balaustrada, contemplando Dokos e saboreando o conhaque.

Mikali tinha, evidentemente, razão. Paris era a única cidade, ou então Londres, num dia bonito. De momento, Moscou nada significava para ele. Pensou no inverno e um arrepio involuntário tomou seu corpo. E não havia ninguém, vivalma. Um primo ou dois. Nenhum outro parente chegado. Mas que opção lhe restava?

Mikali atravessou as portas rindo, com um copo e uma garrafa de Napoléon na outra.

— Vejam só se a vida não é das coisas mais incríveis — comentou com o rosto fervente de entusiasmo. — Era Bruno, Bruno Fischer, o meu agente. André Previn acabou de o contatar. Este sábado é o fecho do Concerto Promenade. Mary Schroder ia tocar o concerto de piano de John Ireland. Aquela idiota quebrou um pulso a jogar tênis.

— E querem que toque no seu lugar?

— Previn ofereceu-se para alterar o programa. Deixa-me tocar o Concerto Nº 4, de Rachmaninov. Já o fizemos juntos antes, e por conseguinte não serão necessários muitos ensaios. Vejamos. Hoje é quinta-feira. Se apanhar o avião da noite, amanhã estarei em Londres. O que me dá dois dias para ensaiar.

Deville nunca o vira em tamanha excitação.

— Não, John — contrapôs. — Regressar neste momento a Londres seria o pior possível. Sinto-o em todos os ossos.

— Os Concertos Promenade, Jean-Paul — retorquiu Mikali. — A série mais importante de concertos no cenário musical europeu. No de todo o mundo, com os diabos. Sabe como é na última noite?

— Não. Nunca assisti.

— Nesse caso, perdeu uma das grandes experiências da vida. Todos os lugares sentados ocupados e, no espaço livre em frente do palco, os jovens que estiveram em fila durante três dias, de pé, ombro com ombro. Consegue imaginar o que significa receber um pedido para tocar numa noite assim?

— Sim — respondeu Deville com um aceno afirmativo. — Consigo imaginar.

— Oh, não. Não consegue coisa nenhuma, velho amigo — rebateu Mikali. — Não consegue.

Esvaziou o copo de brandy de uma vez só e atirou-o pelos ares. Brilhou ao sol como uma chama e foi estilhaçar-se, lá ao fundo, nas rochas.

Katherine Riley acordou e permaneceu deitada por momentos, tentando recordar-se de onde estava. Estava só. Quando olhou para o relógio, verificou que eram duas e meia da tarde.

Levantou-se, vestiu rapidamente jeans e blusa branca, calçou sandálias e foi à procura de Mikali.

Não se via sinal dele na sala de estar, mas o som de vozes levou-a ao terraço onde foi encontrá-lo, de pé, com Deville.

Mikali veio ter com ela, colocou-lhe um braço em redor da cintura e deu-lhe um beijo na cara.

— Sentes-te melhor?

— Acho que sim.

— Esta, Jean-Paul, é a luz da minha vida, a doutora Katherine Riley. Cuidado com as palavras. É capaz de lhe arrancar tudo com a psicanálise.

— Muito prazer, doutora — cumprimentou Deville, beijando-lhe galantemente a mão.

Mikali, incapaz de se conter, pegou-lhe nas duas mãos.

— Acabei de falar com Bruno ao telefone. Previn quer que vá substituir Mary Schroder. Tocar Rachmaninov.

O que para ele significava apenas um concerto, o que fizera particularmente seu — o Nº 4 — e ela sabia.

— Quando? — perguntou.

— Sábado, na noite de encerramento dos Concertos Promenade.

— Mas que maravilha! — exclamou ela, lançando-lhe os braços ao pescoço num gesto espontâneo. — Mas sábado já é depois de amanhã!

— Eu sei. Significa apanhar o avião que parte hoje de Atenas, para ter tempo suficiente de ensaio. Importas-te? No fim de contas, acabaste de sair do avião.

— Nem pensar — respondeu Kate, olhando para o francês. — E o senhor, senhor Deville? Vem também?

— Não. Jean-Paul tem de regressar a Paris — disse Mikali. — Só veio aqui para eu assinar uns documentos. Está tratando do aspecto jurídico de uma bolsa que foi concedida por entidades de Paris e Londres com a finalidade de auxílio a jovens músicos de talento excepcional. Adquiriram uma enorme casa em Paris. Quando estiver pronta, tencionamos dar aulas.

— Tencionamos? — inquiriu.

— Ofereci meus serviços gratuitamente. Espero que outros músicos famosos possam fazer o mesmo.

Todos os seus primitivos receios lhe pareciam um sonho estúpido. Colocou-lhe um braço em redor da cintura.

— Acho uma ideia maravilhosa — aprovou.

— Ainda bem... E, agora, se fôssemos comer alguma coisa?

— A verdade é que queria tomar um pouco de ar — disse ela, sacudindo a cabeça em negativa. — Se não te importas, vou dar um passeio.

— Faz o que quiser. Claro que não me importo. — Beijou-a novamente na face. — Vejo-te mais tarde.

Deixou-se ficar na varanda vendo-a afastar-se pelo jardim.

— Brilhante! — elogiou Deville. — Que atuação. Eu próprio quase fiquei convencido. Como consegue?

— Oh! Aprende-se — respondeu Mikali. — Ao longo dos anos. Com todas as mentiras e enganos. O segredo reside na prática... em muita prática — sorriu. — E, agora, se tomássemos outra bebida?

A pequena propriedade onde moravam George e Maria Ghika situava-se numa ligeira depressão sobre a orla da montanha, rodeada de pinheiros. De um lado, uma selvagem e bela ravina oferecia uma descida íngreme, enquanto o outro se orlava de oliveiras.

A casa era uma construção de andar único, com um telhado de telhas curvas e as paredes caiadas de branco. Compunha-se de uma sala de estar, que também servia de cozinha, e de dois quartos. O chão era empedrado e as paredes de estuque, mas lá dentro estava fresco apesar do calor de Verão.

Quando Morgan saiu avistou o idoso casal sentado num banco a apanhar sol. Maria arranjava peixe, enquanto George a observava, fumando cachimbo.

— Não devia andar de pé — censurou-o ela num tom de voz terno.

Morgan estava ligado até à cintura. O ombro direito e o esquerdo tinham sido corretamente enrolados em linho branco. Sentia-se velho — cansado e destruído como há muitos anos não lhe acontecia.

— Sente-se aqui — ofereceu George, indicando-lhe o banco ao seu lado. — Como se sente?

— Faço cinquenta anos no mês que vem — respondeu Morgan — e sinto pela primeira vez o peso dos anos.

— Esse velho que está aí pode dar-lhe vinte e cinco anos — riu Maria — e ainda tenta levar-me para a cama aos sábados.

George ofereceu-lhe um cigarro grego e deu-lhe lume.

— A noite passada disse uma coisa interessante. Falou de Mikali. Foi ele que lhe fez isso?

— É seu amigo? — perguntou Morgan. O velho cuspiu e levantou-se.

— Espere aqui. — Dirigiu-se ao interior da casa e regressou com um par de binóculos Zeiss.

— Onde foi arranjar isto, com os diabos? — quis saber Morgan.

— Tirei-os a um soldado nazi em Creta, durante a guerra, quando estive com a EOK. Venha que lhe quero mostrar.

Avançou um pouco pelos pinheiros e Morgan foi atrás dele. O velho parou e apontou.

— Veja!

Lá em baixo, a ravina descia através dos pinheiros até à baía onde se erguia a villa de Mikali. George regulou os binóculos e estendeu-os a Morgan.

— Examine tudo isso. Os terraços... Cada uma das pedras transportadas de mula. Construídos com o suor dos meus antepassados. Tudo roubado pelos Mikali.

As linhas daqueles terraços antigos recortaram-se com vida no momento em que Morgan os examinou através das lentes. Apesar das oliveiras, o terreno não estava obviamente cultivado.

— John Mikali? — perguntou com um olhar para o velho George.

— O bisavô. Faz alguma diferença? Um Mikali é um Mikali. Outrora, nós, os do clã Ghika, éramos gente importante. Respeitavam-nos. Mas agora...

Morgan levou novamente os binóculos aos olhos e o jardim por baixo da villa surgiu diante de si. Nesse momento avistou Kate Riley descendo o caminho até o quebra-mar, onde o jovem Nicky pescava à linha.

— Santo Deus! — exclamou Morgan.

O velho tirou-lhe os binóculos da mão e observou.

— Ah, sim! Já a vi antes por estes lados. A senhora americana.

— Antes? — perguntou Morgan.

— Oh, claro. Conhece-a?

— Julguei que sim — respondeu Morgan num tom de voz rouco. — Agora, já não estou tão certo. — E antes que George pudesse detê-lo, deu meia volta e começou a descer a vertente, ao longo dos pinheiros.

Estava muito calor quando Kate se afastou até ao jardim. O pequeno cão de pelo negro ladrou quando passou por ele na direção da pequena casa. A velha Anna acenou-lhe da cozinha e, em seguida, chegou aos degraus de cimento e viu Nicky a pescar.

A água apresentava uma transparência cristalina e a lancha a motor refletia-se nela. Nicky voltou-se com um sorriso e ela fez-lhe uma festa nos cabelos.

— Yassoul — cumprimentou, servindo-se de uma das poucas palavras gregas que sabia.

Ele puxou a linha e sorriu-lhe. Já tinha doze anos, a idade bastante para deixar a escola. A mãe, uma viúva, trabalhava num hotel de Atenas e ele vivia de momento com Constantin e a mulher, ajudando no barco e aprendendo a pescar. Kate gozava do seu favoritismo. Sempre que chegava, seguia-a como um cãozinho por todo o lado.

Tirou um pacote do bolso dos jeans e ofereceu-lhe um pedaço do bolo turco feito pela avó. Era tão doce que, por vezes, a enjoava ligeiramente, mas recusar significaria um insulto. Pegou num bocadinho, meteu-o na boca e engoliu-o o mais rapidamente que conseguiu.

Sentou-se num dos degraus de cimento. Ele acocorou-se ao seu lado e tirou algumas fotografias a cores do bolso da camisa.

— Oh! Ainda não te deixaste disso, então? — perguntou.

Foi passando as fotos, uma a uma. Havia uma do velho Constantin, da avó e outra de Mikali no terraço. Uma dela, também, sentada na proa do barco.

— Boas? — quis saber.

— Muito boas.

Em seguida, entregou-lhe a fotografia de Asa Morgan que tirara na lancha, na noite anterior.

Deixou-se ficar sentada a contemplá-la e levou alguns momentos a tomar consciência da realidade.

— Onde tiraste esta? — sussurrou. Em seguida, virou-se e agarrou-lhe o braço. — Quando? — perguntou. — Quando esteve ele aqui? — O rapaz fitou-a sem compreender e ela apontou para a fotografia e depois para o barco. — Quando?

O rosto se iluminou.

— Na noite passada. De Hidra. — Virou-se e apontou na direção da villa. — Para a casa.

— Mas não é possível. Não é possível — retorquiu ela, fincando-lhe os dedos no braço. — Onde está ele? — perguntou, agitando-lhe a fotografia diante dos olhos. — Onde está ele?

— Embora — respondeu o miúdo. — Embora.

Mostrava-se agora um pouco receoso. Apanhou as fotografias e quando tentou arrancar-lhe a de Morgan, que ela conservava na mão, reagiu com ira e empurrou-o violentamente.

Voltou-se e subiu apressadamente as escadas, com a fotografia agarrada de encontro ao corpo e correndo pela estreita faixa de areia. Do outro lado da baía, um caminho subia a pique através dos pinheiros. Seguiu por ele sem fazer a mínima ideia de até onde a levava, consciente de uma única coisa: Mikali tinha mentido.

O caminho era íngreme e rochoso, difícil de transpor com as sandálias de sola fina que levava calçadas e feito apenas para mulas. Continuou, no entanto, a andar às cegas, sem saber para onde se dirigia. Por fim, chegou a um pequeno planalto à beira das rochas.

Deixou-se cair pesadamente numa saliência, exausta. Continuava a agarrar fortemente a fotografia colorida de Morgan. Fitou-a com um olhar vazio e afundou o rosto nas mãos.

Ouviu-se um movimento próximo. Ergueu os olhos e Morgan surgiu por entre as árvores.

Por momentos, pensou que tinha realmente enlouquecido.

— Asa? — disse. — É mesmo você?

Ele aproximou-se de um salto e pôs a mão na garganta dela. Sentiu-se asfixiar, incapaz de fazer frente à força dele. Em seguida, percebeu George Ghika, que se inclinava sobre eles. Agarrou Morgan pelos cabelos, puxando-o tão violentamente para trás que Morgan gritou de dor e a largou.

O sangue começou a tingir o curativo. Ficou a olhá-la.

— Sabia desde o princípio. Avisou-o, não foi? Esse o motivo por que na noite passada estava à minha espera.

— O que aconteceu? — perguntou ela, sem entender.

— Oh! Meteu-me uma bala no corpo e caí dos rochedos para o mar. Seria uma bela isca dos peixes, se não fosse este homem e a mulher.

— Então, ele é o Cretense. Você tinha razão.

— Está a tentar dizer-me que não sabia?

Voltou a sentar-se, agarrou a fotografia amarrotada e estendeu-a.

— Veja isso e deixe que lhe explique a minha relação com John Mikali.

O velho George desaparecera da cena, dando meia volta e afastando-se quando ela começou a falar. Quando acabou, Morgan deixou-se ficar uns momentos sem pronunciar palavra e ela percebeu as gotas de suor que se lhe formavam na testa.

— Acredita em mim?

Levantou-se, sentou-se ao lado dela e colocou-lhe um braço em redor dos ombros.

— Atrevo-me a dizer que somos um par de tolos.

— Gosto de você, Asa Morgan — murmurou Kate, encostando o rosto ao ombro dele, ao mesmo tempo que o braço bom a envolvia.

— Ah, só que cheguei com vinte anos de atraso, por conseguinte nada de disparates. Agora, examinemos mais uns pormenores. Deville, foi o que disse? Jean-Paul Deville!

— Exato.

— Aposto que há mais nele do que uma primeira aparência dá a entender.

Naquele momento tremia um pouco, com uma expressão feroz no olhar e o rosto molhado de suor.

— O que vai fazer agora? — perguntou ela.

— Não sei bem. Noutras circunstâncias, apetecia-me ir ter com ele e ajustar contas, mas no estado em que me encontro atualmente, julgo que caía por terra se respirasse com mais força. Pelo menos, sei onde esse filho da mãe estará no sábado à noite. No palco de Albert Hall.

Era fácil ver que naquele momento estava a sentir dores intensas.

— Devia estar na cama, Asa — observou ela.

— Disse-me que parte para Atenas esta noite para apanhar o voo de Londres?

— Exato.

— Irá, evidentemente, com ele.

Continuou sentada, olhando-o inexpressivamente com as mãos cruzadas no regaço.

— Para continuar a partilhar a sua cama, como se nada tivesse acontecido, Asa? Para o manter quente até você chegar lá? Pôs-se de pé com uma expressão invulgarmente calma no rosto. — Acho que devia ter pena de ti, mas não tenho. Acho-o tão diabólico como ele. Estão bem um para o outro.

Afastou-se. Quando tentou levantar-se, Morgan verificou que as pernas se recusavam a aguentar o peso do corpo e chamou num tom rouco:

— Kate! Pelo amor de Deus!

— E o que pode ter Ele a ver com tudo isto, Asa? — retorquiu sem se virar e desaparecendo por entre os pinheiros.

Ouviu-se o soar de ferraduras nas suas costas. George apareceu com a mula, seguido de Maria. A velha estava muito zangada. Pôs a mão na testa de Morgan.

— Doido! Já está com febre. Anda procura se matar?

No entanto, ele nada tinha a dizer de momento, porque era como se estivesse debaixo de água e tudo se movimentasse em câmara lenta. Maria e George reuniram forças e conseguiram pô-lo em cima da sela, depois do que iniciaram o caminho de volta através dos pinheiros.

Quando o meteram na cama, tremia. George puxou a roupa e Maria foi à cozinha de onde regressou com uma xícara.

— Beba, rapaz — ordenou.

Sabia mal e Morgan engasgou-se, mas engoliu o líquido, pensando em Katherine Riley.

— Uma pena — disse em galês. — Uma bonita moça. Mas sabe como é?

Em seguida, envolveram-no as trevas.

Mikali e Deville estavam ao fundo do terraço a conversar, quando Kate entrou. Ficou a observá-los, durante algum tempo, por detrás de uma janela na sala de estar e em seguida dirigiu-se ao bar e serviu-se de uma larga dose de gim tónico. Ouviram-se passos leves e Mikali rodeou a cintura dela com os braços.

Um pouco cedo para ti, não?

— Sinto-me cansada. É tudo — respondeu.

Ele beijou-lhe o pescoço, virou-a na sua direção e notou a preocupação em seu rosto.

— Detesto dizer isto, anjo, mas estás com muito mau aspecto.

— Eu sei — retorquiu ela. — Tenho andado a trabalhar como um cão e depois seguiu-se a viagem de avião e a última noite em Atenas. — Fez uma pausa e a frase seguinte saiu-lhe um tanto contrariada, mas depois de a pronunciar era impossível voltar atrás. — Estive a pensar. Importavas-te se ficasse aqui uns dias?

Mikali hesitou uns momentos. Depois sorriu:

— Por que não? O descanso vai fazer-te bem. Mas quero-te em Londres, no sábado, sem falta. Haverá uma reserva de um lugar o mais próximo de mim que for possível. Preciso de ti ali, anjo. Algo a partilhar. Algo a recordar.

Abraçou-a com força e beijou-a. Surpreendentemente como tudo era fácil, e no entanto ele era, afinal, o mesmo homem, o homem a quem tantas vezes oferecera o corpo. O Amante Cretense desde o início. A única diferença residia em que agora o sabia.

— Se não te importas, acho que agora me vou deitar. Estou com uma dor de cabeça arrasante.

— Claro que sim.

Saiu da sala e Deville transpôs a porta-janela.

— Acho que devia matá-la.

— Porquê? — perguntou Mikali num tom calmo. — Ela não sabe de nada.

— Ama-a?

— Desconheço o que essa palavra significa. Gosto dela, não há dúvida. Da sua presença, da sua companhia. Nestes aspectos, agrada-me mais do que qualquer outra mulher que conheci na minha vida.

— Tem as sementes da dúvida no íntimo. Quem sabe quando germinarão!

— Uma observação que não se enquadra consigo. Sentou-se ao Bluthner e os dedos começaram a tocar maquinalmente Le Pastour.


CAPÍTULO 13

Morgan descia as montanhas no caminho de regresso a casa, quase correndo para fugir à tempestade que as nuvens negras ameaçavam, enchendo o horizonte.

Surgiram as chuvas, uma torrente com uma força tal que ficou imediatamente ensopado até aos ossos. E o frio dava a sensação de lhe penetrar no cérebro, o que o fez gritar de dor no momento em que desceu a vertente até à aldeia, lá em baixo.

Tinha a porta da pequena casa aberta enquanto ele avançava, aos tropeções, pelo caminho, com a cabeça enrolada num xaile preto, de forma a não se lhe poder ver o rosto.

Rodeou o corpo dela com os braços, arrastando-o para o calor.

— Tenho tanto frio, mãezinha — disse. — Tanto, tanto frio!

Estava deitado, de costas, com a cabeça no travesseiro, mas quando se inclinou sobre ele e o xale lhe escorregou da cabeça, era Katherine Riley que o fitava.

— Tudo bem, Asa. Estou aqui. Agora dorme.

— Sim, mãezinha — disse fechando os olhos e obedecendo.

Morgan acordou de um sono sem sonhos e deixou-se ficar acordado a olhar para o teto de estuque por cima da cabeça. Voltava a ser ele, tinha a pele fria e a única recordação daquilo por que passara apenas se conservava na dor persistente que tinha no braço e no ombro. Era dia e o sol escoava-se pela janela.

Ouvia a voz de alguém que cantava nas proximidades e o som rítmico de um machado a cortar lenha; atirou a roupa para trás e pôs-se em pé. Deixara de se sentir nas nuvens. Apenas lhe restava a dor, o que servia para lhe manter os sentidos aguçados.

George estava a rachar toros para a lareira e Maria, sentada num banco a apanhar sol, remendava o casaco manchado de sal de Morgan. Ao seu lado, no banco, estava a secar a carteira, juntamente com o passaporte e um maço de notas de dracmas.

Maria aproximou-se. Ergueu a mão e sentiu a testa.

— Então?... A febre desapareceu? — Voltou-se para George e acrescentou:

— Que me dizes a isto, meu velho? Quem sabe mais do que o médico?

George apoiou-se ao machado.

— Ela é uma bruxa — disse —, bem como todas as suas antepassadas do clã. É um fato conhecido.

— Portanto, sente-se melhor? — perguntou Maria.

— Muito melhor.

— Ótimo. Dormiu muitas horas. Foi necessária aquela poção que lhe dei.

Ele consultou o relógio e verificou que eram oito horas. Sentia-se de cabeça leve quando atravessou o pinhal, até junto das rochas. Protegeu os olhos com as mãos, olhando para a villa de Mikali, lá em baixo, na baía. O velho George apareceu ao seu lado.

— Foram-se embora?

— Todos.

— E a mulher?

— Vem aí. Olhe! — disse o velho com um gesto. Kate surgiu das ávores e pisou a clareira, lá em baixo, seguindo o trilho que ziguezagueava por entre os planaltos cobertos de vegetação. Trazia óculos escuros, uma T-shirt com uma saia usada de algodão e um saco ao ombro.

— Penso que ela se preocupa consigo — disse-lhe o velho em grego. — Ficou, muitas horas, ao lado da sua cama.

Morgan sentou-se num toro sem desviar o olhar da figura que se aproximava e o velho colocou-lhe ao lado um maço de cigarros gregos e fósforos.

— Vou dizer a Maria que faça café — anunciou, indo-se embora.

Emergiu de entre os pinheiros dez minutos mais tarde e foi encontrá-lo sentado, no toro, a fumar. Deteve-se uns momentos a olhar para ele, guardando um estranho anonimato por trás dos óculos escuros.

— Está, por conseguinte, outra vez ao nosso lado?

— Assim me dizem.

Sentou-se na relva, diante dele, encostada a uma árvore e pousou no chão o saco que trazia ao ombro.

— O que traz aí? — quis saber.

— Sanduíches e uma garrafa de vinho. Constantin pensa que gosto de dar um passeio diário pelas montanhas.

— E a velha e o miúdo?

— Oh! Estão em Hidra, na casa de cidade que é pertença de Mikali. Nesta altura do ano, há vezes em que permitem visitas de turistas. Parece-se com um museu. Está cheia de relíquias do tempo dos turcos... esse tipo de coisa.

Havia uma falta de à-vontade entre os dois que este género de conversa não conseguia superar.

— Por que ficou? — inquiriu ele.

— Estava contrariada — respondeu ela, tirando os óculos escuros. Estava muito pálida e com olheiras. — Disse-lhe que me sentia cansada e perguntei-lhe se se importava que ficasse a descansar um ou dois dias.

— Concordou?

— Com a promessa de que estaria no meu lugar a tempo, no Albert Hall.

— Compreendo. Apanhou, por conseguinte, o último voo da noite passada? E Deville foi com ele.

— Da noite passada? — Kate sacudiu lentamente a cabeça. — Perdeu um dia, Asa. Hoje é sábado. Sábado, de manhã. Partiram anteontem.

Deixou-se ficar sentado, olhando-a, como que fulminado por um raio, incapaz de aceitar a realidade.

— Está tentando me dizer que estive inconsciente trinta horas?

— Mais ou menos. Virou-se e revirou-se na cama, mas a Maria sabia, obviamente, o que estava a fazer. As ervas dela não falham.

— Mas isso quer dizer que o concerto é esta noite. — Pôs-se de pé de um salto e de punhos cerrados. — Não entende? Esse sacana pode estar de regresso, amanhã de manhã.

— Telefonou-me a noite passada — informou. — Disse-me que estivera com Previn no Albert Hall, e que ali passará a maior parte do tempo hoje. Ensaio para o concerto desta noite. É realmente muito simples. Basta fazer um telefonema a Baker para a Scotland Yard.

Fez-se silêncio prolongado.

— Sim. Podia fazer isso — retorquiu Morgan. Voltou a sentar-se no toro e acendeu um cigarro.

— Deixe-me explicar. Há uma secção do DI5, que se chama Grupo Quatro, com novos poderes concedidos diretamente pelo primeiro-ministro para resolver casos de terrorismo, subversão, etc. Tem à frente um indivíduo de nome Ferguson. Baker trabalha para ele. Eu e Ferguson conhecemo-nos de há longa data. É uma personalidade de força. Ficaria surpreendida se lhe dissesse que me encorajou a fazer tudo isto, logo de início? Utilizou-me como instrumento. Esperou que tivesse êxito onde eles tinham falhado porque eu dispunha daquele pequeno extra, que acode pela definição de ódio.

— Neste ponto estava em absoluto dentro da razão.

— Sim, mas agora que o descobri, quero Mikali para mim.

— Olho por olho. É essa a forma como vê as coisas? Dente por dente?

— E por que não? Se o acusar na Grécia, rir-se-ão de mim. É um herói nacional. Se deixar que o prendam em Inglaterra, dão-lhe quinze anos por disparar contra Cohen, e apenas se conseguirem provas. Recorde-se de que todos os outros crimes foram executados noutros locais. Os alemães, os franceses. Todos terão de esperar pela sua vez.

— E então?

— Decorrido algum tempo os membros da Setembro Negro, das Brigadas Vermelhas, ou seja lá o que for, desviarão um avião da British Airways, numa bela manhã. O preço pela entrega dos passageiros e da tripulação intatos será a libertação de Mikali, a caminho da Líbia, de Cuba ou qualquer sítio desses.

— E quer vê-lo morto?

— Quando estiver, pronto.

— Eu própria poderia contatar Baker.

— Mas não o fará — respondeu-lhe com um sacudir de cabeça negativo.

— Por que não?

— Porque me deve isso, menina — respondeu, tocando no braço e depois no ombro e fazendo um esgar de dor. — Devia estar morto. Se não estou, não é graças a si. E não me atire à cara com Jago. Foi uma coisa diferente e bem o sabe.

— Muito bem, Asa — acedeu ela, levantando-se. — Vá para o inferno pelos seus próprios meios.

— E você?

— Regresso hoje a Londres. Dali, parto para Cambridge. Já tenho a minha conta. Você e John Mikali, Asa. Merecem-se um ao outro.

— E não telefonará a Baker?

— Não — respondeu. — Dediquem-se aos vossos malditos e violentos jogos bem longe de mim.

Afastou-se com passo rápido. Morgan levantou-se e ficou a vê-la afastar-se, depois do que virou costas e regressou a casa. O velho George, que continuava a rachar toros, parou com a tarefa.

— Foi-se embora?

— Foi. A que horas sai o próximo hidrobarco para o Pireu?

— Dez e meia. Impossível de apanhar no meu barco.

— E o seguinte?

— Meio-dia e meia.

— Leva-me?

— Se for esse o seu desejo.

Morgan foi ter com Maria, que continuava sentada a remendar-lhe o casaco.

— A minha camisa?

— Pendurada na corda, a secar ao sol. Lavei-a. Mas quanto a isto, nem a minha magia o conseguiu remendar — acrescentou, com uma piscadela de olho na face enrugada.

Deu-lhe o passaporte. Molhado, devido ao tempo que passara debaixo da água, inchara e ficara enrugado com o sol. Quando tentou abri-lo, abriu-se.

— Deus do céu! — exclamou em galês. — Só me faltava esta.

— É assim tão mau, rapaz? — perguntou.

— Pode ser. Pode alterar tudo. É o que veremos.

Na villa, Katherine Riley acabara de fazer as malas, quando o telefone tocou. Ao pegar no receptor, soou-lhe ao ouvido a voz de Mikali.

— Ainda estás aí? Já devias estar aqui!

— Não há problema — disse ela. — Vou partir já com Constantin. Vamos usar a lancha. O que significa que chegarei ao hidrobarco das dez e meia. Com um pouco de sorte devo apanhar o voo da uma e meia pela nossa hora. — Surpreendente como se sentia calma. — Que tal vão as coisas?

— Uma maravilha! — Mikali parecia excitadíssimo.

— Previn é um gênio... o melhor maestro com quem trabalhei. Mas vou levar a maior parte do dia a acertar tudo, anjo. Se não estiver por perto quando chegares, não te preocupes. Tens a chave. Certifica-te apenas de que, esta noite, estarás a ver-me.

A voz deixou de se ouvir. Kate ficou uns momentos de receptor na mão e em seguida pousou-o. Quando se voltou, Constantin estava junto da porta a observá-la. Havia algo no rosto e nos olhos escuros como se pudesse ver através dela. Saber tudo. Mas era disparate.

Indicou-lhe as duas malas com um gesto e pegou no impermeável.

— Muito bem. Estou pronta — disse, saindo na frente dele.

Deville, abrigado da chuva sob uma árvore junto a Hyde Park, em Park Lane, observou Mikali que corria a toda a velocidade, vindo do Serpentine. Vestia um fato de treino preto, com uma risca escarlate ao longo de cada perna. Deteve-se a alguns metros e parou, de mãos nas ancas, controlando a respiração.

— Nunca desiste, pois não? — perguntou Deville.

— Sabe o que se diz — respondeu Mikali. — A respeito dos velhos hábitos e essas coisas. — Acertou o passo com o dele e encaminharam-se para a estrada. — Então sempre conseguiu ficar? Ainda bem que reservei mais um lugar no camarote de Katherine.

— Ela está aqui? — perguntou Deville.

— A caminho. Falei com ela na Hidra, esta manhã. Estava de partida.

— E daí? — Deville fez um aceno de cabeça e continuou tranquilamente. — Quero que nos entendamos. Não vim para assistir ao seu concerto, John. Vim buscá-lo.

Mikali parou, voltou-se na sua direção e a mão fincou-se de imediato no cano da Ceska, no coldre Burns & Martin que usava dentro do traje de treino.

Deville ergueu uma das mãos na defensiva.

— Não, meu querido e caro amigo. Está a compreender-me mal — retorquiu, apresentando-lhe um sobrescrito. — Bilhetes para ambos. Arranjei um taxi aéreo para Paris, e que parte de Gatwick às onze e um quarto. Dá-lhe muito tempo para aparecer em Albert Hall. Sei que na última noite do Concerto Promenade, o concerto se toca durante a primeira parte.

— E depois?

— Chegamos a Paris a tempo da ligação com o voo da Aeroflot para Moscou. Está tudo tratado. No Paris Soir de hoje uma notícia anunciava a sua intenção de dar aulas no Conservatório de Moscou.

Mikali parou uns momentos a olhar para Park Lane, voltou-se e contemplou o Serpentine. Respirou fundo e ergueu o rosto para a chuva.

— O começo da manhã em Londres é uma maravilha — disse. — Não há nada parecido. A não ser que prefira o cheiro dos castanheiros molhados de orvalho, em Paris.

— Colocou uma das mãos no ombro de Deville. — Lamento, amigo, mas as coisas são assim.

— Tem um dia inteiro para mudar de opinião — retorquiu Deville, encolhendo os ombros.

— Um dia de ensaios — observou Mikali. — por conseguinte, tenho de ir andando. Se Previn chegar antes de mim, insistirá em fazer o chá. E fica sempre uma porcaria.

— Não se importa que utilize o apartamento?

— Claro que não. Embora duvide que chegue a tempo antes do concerto. Se mudar de ideia quanto a voltar, terá um bilhete reservado na bilheteira.

Esperaram na beira do passeio que as luzes mudassem. Depois deu uma palmada no ombro de Deville.

— Uma grande noite, Jean-Paul. A maior da minha vida, julgo.

Quando o Tristar iniciou a descida para Heathrow, sob o sol do fim de tarde, Katherine Riley obedeceu à indicação de apertar o cinto. Em seguida, recostou-se no lugar.

Sentia-se cansada, mais cansada do que alguma vez estivera na vida. Cansada, irritada e frustrada. Conhecia o síndroma, como qualquer psicóloga experimentada. À semelhança de se encontrar num bosque às escuras, em qualquer sonho de infância, indecisa sobre o caminho a tomar, enquanto um ser diabólico e sem nome se aproximava rapidamente.

Fechou os olhos. Não via John Mikali, mas o rosto moreno e distorcido de Asa Morgan, a dor refletindo-se no olhar. Apercebeu-se de que estava errada.

Morgan afirmara que estava em dívida para com ele. A ser verdade, devia-lhe apenas honestidade e preocupação, coisas que apenas se podiam expressar de uma forma.

Tudo se assemelhou a uma injeção no braço, uma onda de energia a invadi-la. Ansiava por se ver fora do avião, foi a primeira a passar o portão da imigração, onde apresentou o passaporte e pediu que a pusessem em comunicação com o agente do Departamento Especial que estivesse mais disponível.

Eram precisamente duas e meia quando o capitão Charles Rourke regressou ao seu gabinete na Embaixada Britânica no Plutarchu I, em Atenas. O telefone tocou quase imediatamente. Quando pegou no receptor, Benson, um dos subsecretários com responsabilidades consulares, estava do outro lado.

— Como está, Charles? Pedi, na porta, que me informassem da sua chegada. Há quase uma hora que tenho aqui um indivíduo a azucrinar-me os ouvidos, porque quer um passaporte temporário para regressar à pátria. Tem o dele aos bocados.

— Não é do meu âmbito, meu caro.

— A verdade, Charles, é que não me agrada nada disto. Aparece aqui como se fosse um zé-ninguém e, quando fui verificar o que restava do passaporte, surge-me como um oficial e um coronel de patente. De nome Morgan.

Mas Rourke já pousara o telefone e deixava apressadamente o gabinete.

Morgan estava com um aspecto horrível, tendo o cabelo preto, de fios prateados, desgrenhado como o de um cigano. Precisava urgentemente de fazer a barba. O fato de linho, manchado de sal, tinha encolhido, e quase rebentava pelas costuras dos ombros.

— Oh! É você — exclamou, quando Rourke entrou na sala de espera. — Uma bonita confusão que fez no aeroporto, no outro dia.

— Santo Deus! Está bem? — perguntou Rourke horrorizado com o seu aspecto.

— Claro que não — respondeu Morgan. — Estou seguro por sangue, entranhas e cordas de piano, mas isso agora não interessa. Apenas desejo um passaporte temporário e um lugar no primeiro avião que parta hoje para Londres.

— De fato, não estou muito certo de o conseguir. Antes demais tenho de ir verificar as possibilidades. Recebi ordens rigorosas a seu respeito.

— Brigadeiro Ferguson?

— Exato, Sir .

— Nesse caso, é um DI5. Encorajante. Talvez essas lições que lhe dei na Academia, em sessenta e nove, tenham afinal sido úteis.

— Recordou-se de mim, Sir ?

— Claro que sim. Nunca me esqueço de um rosto. Agora, faça o seu telefonema.

— Só um minuto, Sir . — Rourke inclinou-se para a frente com uma expressão preocupada. — Não tem sangue a escorrer-lhe da manga?

— É natural, considerando que um determinado cavalheiro tentou infligir-me ofensa corporal com a ajuda de uma Walther PPK. Talvez um médico fosse conveniente, já que está a tratar do assunto. Mas incapaz de manter a boca fechada! Não quero nada que me afaste desse avião.


CAPÍTULO 14

Eram quase seis horas, quando Kim respondeu à campainha da porta do apartamento, em Cavendish Square, para se lhe deparar Baker e Morgan.

Ferguson estava na sala de jantar, a comer sozinho, à cabeceira de uma elegante mesa Regengy, com um guardanapo preso no colarinho.

— Cheira bem — observou Morgan. — O que é isso?

— Bife Wellington. Para um gurka, Kim tem um talento notável para a cozinha tradicional inglesa. Está com um aspecto horrível, meu caro amigo.

— Não sou tão novo como era, nada mais. Foi ao armário e serviu-se de um brande.

— Não há problemas, inspetor?

— Quase não conseguiu, Sir . O nevoeiro desceu, enquanto estava à espera. Julgo que Heathrow fechará daqui a umas horas.

Ferguson sorveu um gole do copo de vinho clarete e recostou-se.

— E então, Asa?

— Então, o quê?

— Deixe-se de histórias. Foi obviamente à Grécia, em perseguição do Amante Cretense. Esquivou-se ao meu agente e depois surgiu, quatro dias mais tarde, com feridas provocadas por tiros de balas e um passaporte estragado, ansioso e desesperado por regressar a Inglaterra o mais rapidamente possível.

— Todos aqueles turistas — retorquiu Morgan. — Não consegui aguentar. — Esvaziou o copo. — De acordo, se for embora? Cairia bem uma noite bem dormida.

— Ferguson fez um aceno de cabeça a Baker, que abriu a porta da sala de estar. Katherine Riley entrou.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou Morgan amargamente.

— Não seja estúpido, Asa. A doutora Riley agiu no seu interesse e em circunstâncias muito difíceis. Contou-me tudo.

Katherine Riley mantinha-se de pé, muito pálida, à espera. Morgan ignorou-a.

— Onde é que ele está?

— Mikali? Ocupado, ensaiando no Albert Hall com André Prévin e, sendo o perfeccionista que é, tudo indica que ficarão aqui até a hora do concerto.

— O que não lhe dá jeito.

— Por que não? — Ferguson serviu-se demais uma taça de clarete. — Podíamo-lo prender neste momento, no palco, mas de que serviria? Pergunte ao inspetor.

Morgan virou-se para Baker, que lhe respondeu com um aceno de concordância.

— Estão todas as entradas guardadas, Asa. Tenho mais de cinquenta homens, além do pessoal uniformizado normal de serviço para controlo das aglomerações. A maioria à paisana e todos armados. Contratei mesmo gente do Esquadrão Fantasma para estar na bicha dos bilhetes para o Concerto Promenade.

O telefone tocou no hall e Baker foi atender.

— Como pode ver, ele não vai conseguir safar-se — disse Ferguson. — Que dê o seu concerto. Como se diz: "O espectáculo tem de continuar." Seja como for, meu caro Asa, raras vezes se toca o Concerto Número Quatro de Rachmaninov. Com John Mikali a executá-lo na última noite do Promenade é um acontecimento da maior importância. Não faltaria por coisa alguma deste mundo.

Katherine Riley deu meia volta, foi para a sala e bateu a porta atrás de si. Ferguson suspirou.

— As mulheres são, realmente, as mais perversas criaturas, não são? Por que se sentirão atraídas pelos Mikali?

Baker voltou com um recado.

— Segundo parece, esse francês, Deville, que foi visitar Mikali em Hidra, está agora no apartamento. Quando contatei os serviços secretos franceses para informações a seu respeito, julgaram que estava louco. É um dos advogados criminais mais famosos de Paris. De qualquer maneira, meteram os dados no computador.

— E então? — quis saber Ferguson.

— Um ponto interessante, Sir. Foi enviado aos trabalhos forçados pelos nazistas durante a guerra. Um dos milhares de embarcados para a Europa Oriental para trabalhar nas minas de carvão etc. Os que sobreviveram foram devolvidos pelos russos, em mil novecentos e quarenta e sete.

Ferguson esboçou um sorriso e virou-se para Morgan.

— E qual é a conclusão, Asa?

— KGB?

— Talvez, mas a sua principal tarefa consistiu na infiltração dos próprios serviços secretos franceses nos anos do após-guerra. Para mim, os serviços secretos russos seriam uma hipótese muito mais provável. Segundo parece, Deville tem estilo, algo que sempre achei que faltava ao KGB.

— Até mesmo a variedade de Eton?

— Um bom comentário, esse! — observou Ferguson, limpando o queixo com um guardanapo. — Mas um homem como Mikali! Porquê, Asa? Quais os seus motivos?

— Não faço a menor ideia. Só posso dizer de onde lhe veio a experiência, e é tudo. Aderiu à Legião aos dezoito anos. Serviu dois anos na Argélia como paraquedista.

— Mas que romântico da sua parte!

— Desculpe-me, Sir — interrompeu Baker. — Posso fazer uma pergunta sobre Deville? Quer que o prenda, agora?

— Um momento, inspetor — retorquiu Ferguson voltando-se para Morgan. — Neste momento, Asa, acharia bem ir discretamente até à sala ao lado e fazer as pazes com a doutora Riley.

— O que significa que não sou desejado nesta discussão?

— Exato.

Baker foi abrir a porta da sala. Morgan hesitou, seguidamente transpô-la e o inspetor-chefe fechou-a atrás dele.

Katherine Riley mantinha-se junto à lareira, com as mãos na cornija e o olhar fixo nas chamas. Levantou a cabeça e contemplou a imagem dele refletida no espelho com moldura dourada.

— Não o poderia deixar abandonado, Asa. Ter-se-ia visto em sérias dificuldades.

— Dou-lhe os meus parabéns pela forma como utiliza as palavras — elogiou. — Resultados de uma educação de qualidade!

— Asa, por favor. — Naquele momento expressou-se, de fato, num tom de voz magoado.

— Eu sei — retorquiu ele num tom duro. — A paixão agarrou-a pela garganta e não a largou mais. Mas por quem? Por mim ou por ele?

Kate deixou-se ficar a olhar para ele, o rosto ainda mais pálido. Quando falou, foi quase num sussurro.

— Eu e Maria lavámo-lo na noite passada. Quantas vezes foi ferido? Cinco? Seis? E essas são só as cicatrizes visíveis. Lamento por si.

Passou por ele, abriu a porta e foi para a outra sala. Ferguson ergueu os olhos e Baker virou-se para a olhar.

— Agora já me posso ir embora? — perguntou ela. Ferguson olhou para Morgan, que se deixara ficar junto à ombreira. Inclinou-se para diante, com as mãos apoiadas na mesa da casa de jantar.

— Por favor! — acrescentou Kate, num tom premente. — Não consigo aguentar mais!

— E onde tenciona ir, doutora Riley? — inquiriu Ferguson.

— Tenho um amigo que me emprestou um apartamento em Douro Place. Deixei lá o automóvel. Apenas quero regressar o mais rapidamente possível a Cambridge.

Tinha o rosto muito calmo e uma expressão muito suave quando lhe disse: — E é realmente isso o que quer fazer? Tem a certeza?

— Tenho — respondeu sombriamente.

— Muito bem. — Fez um aceno de concordância a Baker. — Acompanhe a doutora Riley a um automóvel, inspetor-chefe. Encarregue-se de que a levem a este endereço em Douro Place. Podemos contatá-la em Cambridge, em qualquer altura que seja necessário.

Dirigiu-se à porta e Baker foi acompanhá-la. Quando a abriu Ferguson observou:

— Uma última coisa, doutora. Peço-lhe que não tente sair do país até receber ordens da segurança. Seria, de fato, muito embaraçoso ver-me obrigado a detê-la.

Kim entrou com um prato coberto. — Ah! Pudim! — exclamou Ferguson. — Já começava a pensar que tinhas esquecido. — Sentou-se, voltou a prender o guardanapo no pescoço e o gurka serviu-o. — Um bolo de queijo muito especial, ensopado em Grand Marnier. Por favor, Asa.

— Não, obrigado! — agradeceu Morgan. — Prefiro mais um brandy.

— À vontade! E que tal esse braço? Muitas dores?

— De morrer — respondeu Morgan, e era verdade, apesar de deliberadamente exagerar a expressão de dor no rosto, quando serviu uma dose generosa de Cour-voisier.

Enquanto bebia, Baker voltou.

— Nenhum problema? — perguntou Ferguson.

— Nenhum, Sir.

— Ótimo. Mikali não fez qualquer tentativa de fuga?

— Não, Sir . Acabei de telefonar ao posto de comando móvel no parque de estacionamento. As informações mais recentes são as de que acabaram de ensaiar.

— Seis e um quarto — observou Ferguson, consultando o relógio. — Vejamos. O concerto abre com Debussy: L'Après-midi d'un Faune, seguido da Sinfonia do Relógio, de Haydn. O que significa que Mikali fará a entrada por volta das oito e quarenta e cinco com o intervalo às nove e meia.

— E prendemo-lo nessa altura, Sir ?

— Julgo que será melhor após a recepção do intervalo. Ele é o convidado de honra. Daria um tanto nas vistas se não estivesse presente. Façamos com que tudo pareça o mais normal possível, enquanto conseguirmos.

— Também gostava de ir.

— Lamento, Asa. Compreendo os seus sentimentos, mas a missão está cumprida. O seu envolvimento termina aqui. A partir de agora, fica tudo entregue à polícia.

— De acordo — disse Morgan, erguendo a mão. — Sei quando sou vencido. Portanto, posso ir-me embora.

Voltou-se na direção da porta e Baker disse:

— Espera por mim, Asa. Vou levar-te a casa. Morgan saiu e Ferguson observou:

— Sabe, na realidade, quando está vencido. É quando pronuncia esse tipo de frases que fico realmente preocupado. Leva-o para casa. Quero o apartamento dele vigiado de noite e de dia, até isto terminar.

— Não me preocupava se estivesse no seu lugar, Sir . No estado em que está, surpreende-me que tenha conseguido chegar à porta.

— Se acredita nisso em relação a Asa Morgan, inspetor — disse Ferguson —, nesse caso, acreditará no que quer que seja.

Quando Mikali entrou na sala dos artistas, nos fundos de Albert Hall, tinha a camisa ensopada de suor e tremia de excitação. Fora bom e sabia-o. Passara pelos dois mais difíceis dias de ensaio da sua vida e a perspectiva do concerto era nesse momento algo de maravilhoso.

A porta abriu-se e nesse momento entrou o superintendente cénico com uma xícara de chá, leite e açúcar numa bandeja antiga.

— Tentou contatar Heathrow? — perguntou Mikali enquanto se limpava a uma toalha.

— E consegui, Sir . Os dois aviões de Atenas aterraram, o último pouco antes de o nevoeiro descer.

— Ótimo! — exclamou Mikali. — Não se esqueça de verificar se o bilhete da doutora Riley e o de Maìtre Deville estão na bilheteira.

Quando o superintendente cénico abriu a porta, Previn entrou.

— Está tudo a correr bem?

— Agora sim — respondeu Mikali. — Fui bem?

— Nada mal — respondeu Previn com um esboço de sorriso. — Por fases.

— Por fases? — retorquiu Mikali com uma gargalhada. — Esta noite, maestro, vai assistir ao desempenho por que esperou uma vida inteira. E, agora, tome uma bela xícara de chá para variar — acrescentou com uma palmada no ombro de Previn.

Quando chegaram a Gresham Place, Baker pediu ao motorista que esperasse, e subiram os degraus que levavam à entrada.

— Quer uma bebida? — perguntou Morgan.

— Não tenho tempo.

Deu um cigarro a Morgan, acendeu outro e ficaram a fumar na entrada, fitando a chuva que caía.

— Algumas vezes te interrogas sobre o mundo, Harry?

— Tarde demais para sentimentos poéticos, Asa. No teu caso, cerca de vinte e cinco anos de atraso.

— Então, o que faço?

— Mete-te na cama, antes que caias.

Um outro carro da polícia parou ao fundo da rua e o inspetor-detetive Stewart desceu, seguido por dois policiais uniformizados. Pararam junto aos degraus.

— O coronel Morgan vai retirar-se para o apartamento, a fim de descansar durante a noite — disse-lhes. — Se alterar os planos ou tentar sair do apartamento, seja por que motivo for, prendam-no imediatamente. Um de vocês pode vigiar esta entrada do automóvel e o outro dar a volta pelo lado das traseiras e ficar atento. — Serão substituídos daqui a quatro horas — informou-os Stewart. Afastaram-se e virou-se para Baker. — Mais alguma coisa, Sir ?

— Não. Entra no carro, George. Vamos partir imediatamente.

— Isto é legal, Harry? — inquiriu Morgan.

— Ferguson podia ter-te detido, se quisesse, até tudo ter acabado.

— Sob que acusação?

— De início, serviria um suspeito que apresentasse feridas causadas por tiros sem qualquer explicação adequada. — Atirou o cigarro para a sargeta. — Sê razoável, Asa. Vai para a cama.

Desceu os degraus, meteu-se no banco traseiro do automóvel da polícia, ao lado de Stewart, e o carro pôs-se em marcha. Morgan olhou para o lado oposto da rua, na direção do outro automóvel, acenou ao jovem polícia que se encontrava atrás do volante e depois entrou no edifício.

Jack Kelso assistia a um desafio de futebol pela televisão, quando o telefone começou a tocar. A sua filha Amy, uma bonita moça de cabelos pretos, surgiu da cozinha, limpando as mãos ao avental e foi atender.

— É o coronel Morgan, paizinho.

Kelso desligou o televisor e pegou no receptor.

— Coronel?

— Jock? Estou com um leve problema. Um carro da polícia estacionou em frente da minha porta e tenho um polícia no pátio traseiro para não me deixarem sair. O brigadeiro Ferguson não quer que me meta em sarilhos. Estava a interrogar-me sobre se poderia fazer alguma coisa.

— Deus do céu, coronel! — riu Kelso. — A cada minuto tudo se vai assemelhando cada vez mais aos velhos tempos.

Morgan pousou o receptor, abriu a gaveta da secretária e pegou na Walther PPK. Verificou cuidadosamente o tambor, e em seguida adaptou o silenciador Carswell ao cano.

Começava a sentir-se cansado, o que nunca daria resultado. Foi à casa de banho, abriu o armário por cima do lavatório e descobriu um pequeno frasco de comprimidos vermelhos. O Exército chamava-lhes balas de Belfast, porque se destinavam a fazer com que se aguentasse os maus momentos, quando o descanso era impossível. Dois de quatro em quatro horas e aguentava-se vinte e quatro horas sem dormir. O único problema residia em que, durante uma semana, se ficava como um cadáver.

Engoliu dois com a ajuda de um copo de água, regressou à sala de estar, sentou-se junto da janela e ficou à espera.

Pouco passava das sete e um quarto e Deville estava a fazer café na cozinha do apartamento em Upper Grosve-nor Street, quando a campainha da porta tocou. Deteve-se, imediatamente alerta, e dirigiu-se à porta da cozinha, com a lata de grãos de café numa das mãos e uma colher na outra.

A campainha da porta tocou de novo. Não era, obviamente, Mikali. Tinha chave, a não ser que se tivesse esquecido, mas era pouco provável que viesse ali a tão pouco tempo do concerto. Podia, indubitavelmente, ser Katherine Riley, mas Deville lembrou-se de que era mais do que provável que tivesse a sua própria chave.

Decidiu não atender. Nesse momento uma chave rodou na fechadura, a porta abriu-se, e Ferguson entrou. Deville apercebeu-se da presença de Baker atrás dele, com um pé de cabra na mão.

— Obrigado, inspetor. Pode esperar lá em baixo — disse Ferguson. — Não vamos demorar.

Vestia um sobretudo dos que são utilizados pelos oficiais da Brigada Nacional, e tinha o guarda-chuva a escorrer. Encostou-o a uma cadeira.

— Um tempo surpreendente para esta época do ano — observou com um arremesso de sorriso. — Penso que me conhece.

Deville, que sempre estivera familiarizado, ao longo da sua carreira, com os rostos de todos os membros importantes dos serviços secretos do mundo ocidental, esboçou um grave aceno de concordância. O momento chegara, finalmente, decorridos vinte e cinco anos, pensou. O momento que sempre fora possível. O momento em que transpusessem a porta para o prender, quando menos esperasse.

Na corrente do relógio que ia de um bolso do colete ao outro, tinha um berloque que era uma cabeça de leão. Tocou-lhe casualmente, apalpando-o.

— É onde guarda a cápsula de cianeto, não? — inquiriu Ferguson. — Mas que processo tão antigo. Costumavam dar-nos durante a guerra. Deitei a minha fora. Supostamente tinha um efeito rápido, mas estava uma vez na presença de um general das SS, que tomou uma e não parou de gritar durante os vinte minutos seguintes. Uma morte violenta.

Dirigiu-se ao bar, desrolhou a garrafa de uísque e cheirou. Fez um aceno de aprovação e serviu-se de um.

— O que me sugere? — quis saber Deville. Ferguson foi até à janela e observou a rua molhada da chuva.

— Bom. Podia tentar um ato desesperadamente heroico e saltar, mas suponhamos que conseguisse chegar à Embaixada Soviética e o mandavam de barco para casa. Não me parece que o receberiam de braços abertos. Como sabe, falhou no final e, segundo sempre soube, não aprovam muito isso. Têm, obviamente, uma atitude civilizada em relação à pena capital. Não enforcam as pessoas. Mandam-nas, em vez disso, para o arquipélago de Gulag que, a acreditar em Soljenitsine, não é um local nada agradável. Por outro lado, Moscou sempre garantiu que a obra do escritor não passava de repugnante propaganda ocidental.

— E qual a alternativa? — perguntou Deville — Os franceses... é um cidadão francês, não é verdade, Maître Deville? Existe o direito de pedir a sua extradição e a gente dos seus serviços secretos mostrou-se altamente susceptível quanto aos agentes russos, depois do caso Safira, em sessenta e oito, e a sugestão de que haviam sofrido a infiltração da KGB. Seria indubitavelmente entregue ao Serviço Cinco que utiliza, de fato, processos antiquados, quando se trata de arrancar informações às pessoas. Continuam a acreditar no poder da eletricidade, segundo ouço dizer, especialmente quando se ligam os fios a várias partes da anatomia de um infeliz ser humano.

— E o senhor? — inquiriu Deville. — O que tem a propor?

— Oh! A morte, como é óbvio — respondeu Ferguson num tom jovial. — Pensaremos em qualquer solução. Os desastres de automóvel são sempre indicados, em especial quando se verifica um incêndio. Reduz habitualmente a identificação ao nível do que se encontra nos bolsos.

— E depois?

— Paz, anonimato, uma vida tranquila. A cirurgia plástica opera milagres.

— Em troca do tipo certo de informação?

Ferguson serviu-se de mais uísque e depois voltou-se, sentado na beira da mesa.

— Em mil novecentos e quarenta e três, quando estive a trabalhar com a clandestinidade francesa, vi-me, graças a um informador, nas mãos da Gestapo, em Paris, no seu quartel general da Rua de Saussaies, nas traseiras do Ministério do Interior. Nessa altura ainda acreditavam nos antigos processos de tortura. Muito desagradável, pode acreditar.

— Escapou?

— Saltando de um comboio a caminho do campo de concentração de Sachsenhausen, mas isso é uma velha história. — Dirigiu-se à janela e perscrutou novamente a rua. — Nessa altura era mais simples. Conhecíamos o terreno que pisávamos. Por que lutávamos. Mas agora...

Fez-se um silêncio prolongado, antes que desse meia volta.

— Claro que continua, indubitavelmente, a existir a cápsula de cianeto.

— Oferece-me a possibilidade de escolha?

— O sentido britânico do fair play, meu velho. Fui prefeito em Winchester.

Voltou-se e viu que Deville segurava a pequena cápsula preta de cianeto na palma da mão direita.

— Acho que não a quero, obrigado.

— Excelente! — disse Ferguson, pegando-lhe cuidadosamente. — Coisas terríveis! — observou, ao mesmo tempo que a deixava cair no soalho de madeira e a pisava com o calcanhar.

— E agora? — quis saber Deville.

— Oh, um pouco de música, presumo — respondeu Ferguson. — Vai apreciar. Sei que John Mikali toca o Número Quatro esta noite, no Albert Hall. Uma ocasião inesquecível.

— Tenha a certeza — retorquiu Deville, vestindo o sobretudo preto, pegando no chapéu de coco que estava no bengaleiro junto à porta e agarrando na bengala com cabo prateado.

— Apenas um pormenor, para satisfazer a minha curiosidade — disse Ferguson. — KGB ou GRU?

— GRU — respondeu Deville. — Coronel Nikolai Ashimov.

O nome soava estranhamente quando pronunciado pela própria boca.

— Exatamente como pensei — sorriu Ferguson. — Tinha dito a Morgan que o achava com estilo demais para ser da KGB. Vamos?

Abriu a porta, dando-lhe delicadamente passagem, e Deville saiu à frente.

Naquele momento, Katherine Riley, que seguia por entre o intenso tráfego e a chuva abundante pela Circular do Norte, fez rodar o volante do seu MGB de desporto para uma rua lateral e parou.

Desligou o motor e sentou-se uns momentos, consciente do bater do próprio coração e as mãos sem largar o volante. Por fim, respirou fundo. Havia apenas um lugar para onde desejava ir agora e não era certamente Cambridge.

Pôs o motor em marcha, foi até ao fundo da rua e voltou para trás, na direção do centro de Londres.


CAPÍTULO 15

Na sala dos artistas, por detrás do palco, em Albert Hall, Mikali estava diante do espelho a ajeitar a gravata branca. Em seguida abriu o toucador e tirou o fundo falso da gaveta, pondo à mostra o coldre de mola Burns & Martin que continha a Ceska. Ajustou o coldre no cinto, atrás das costas. Depois vestiu o elegante fraque e colocou um cravo branco na lapela.

No palco, a orquestra chegava aos acordes finais da Sinfonia Nº 101 em Ré Menor, de Haydn, conhecida pelos apreciadores de concertos de todo o mundo como O Relógio.

Abriu a porta e saiu para a passagem. O superintendente cénico estava sentado ao fundo da descida, onde era a entrada dos artistas para o palco. Mikali avançou um pouco até avistar Prévin no lugar do maestro e, atrás dele, à esquerda do palco, o camarote Loggia mesmo ao fundo da curva e que reservara para Katherine Riley. Não havia sinais dela nem de Deville.

Sentiu um enorme desapontamento e regressou imediatamente à sala dos artistas, pegou numa moeda e marcou o número do apartamento, utilizando o telefone de parede. Deixou que o telefone tocasse durante um minuto do outro lado, em seguida pousou o receptor e voltou a tentar sem êxito.

— Então, Katherine? — murmurou. — Onde estás, com os diabos?

A porta abriu-se e o superintendente cênico meteu a cabeça.

— Dez minutos, Mr. Mikali. Posso dizer-lhe que esta noite veio toda a gente.

— Sinto-me excitadíssimo — sorriu Mikali.

— Uma xícara de chá, Sir ?

— É a minha fraqueza, Brian, bem sabes.

O superintendente cénico saiu, Mikali acendeu um cigarro e começou a fumá-lo sofregamente, passeando de um lado para o outro. Parou repentinamente, esmagou a ponta do cigarro e sentou-se junto ao velho piano Chapell encostado à parede. Flexionou os dedos e começou a percorrer uma série de escalas.

A única coisa que interessou o motorista do carro da polícia estacionado no exterior do apartamento de Morgan foi a cor da pequena furgoneta que ali parou. Amarelo vivo. O Cesto de Flores — Interflora — Serviço 24 horas.

O condutor usava boné e uma pesada capa de oleado da mesma cor, com a gola levantada para se proteger da chuva. Tirou do carro um ramo de flores embrulhado para oferta, subiu os degraus apressadamente e desapareceu no interior do edifício.

A primeira coisa que Morgan viu, ao abrir a porta, foi o ramo de flores e logo a figura de impermeável amarelo que passou por ele.

Fechou a porta. Ao voltar-se, descobriu tratar-se de uma mulher jovem e muito atraente, o que só se tornou visível quando tirou o boné.

— Quem é você, com mil diabos? — inquiriu, enquanto a via desabotoar a capa.

— Amy Kelso, coronel. Cresci um pouco, desde a última vez que me viu, mas não temos tempo para conversas. Por favor, vista a capa e ponha o boné. Encontrará uma furgoneta à entrada. Meta-se nela e dê a volta por Park Street. O meu pai espera-o lá com um Ford Cortina branco.

— E você? — perguntou, enquanto vestia a capa.

— Deixei o Mini em Park Street. Vou buscá-lo daqui a cinco minutos. Apresse-se, coronel. Por favor!

Morgan hesitou, em seguida colocou o boné, agarrou num pequeno saco e dirigiu-se à porta.

— E mantenha a gola puxada para cima!

A porta fechou-se atrás dele. Por baixo da capa, ela vestia uma gabardina leve. Levou as mãos ao cabelo, apanhado no alto da cabeça. Tirou rapidamente os alfinetes e em seguida deixou-o cair sobre os ombros e penteou-se.

Minutos depois de a furgoneta ter desaparecido, o motorista da polícia avistou Amy Kelso que saía do prédio. Fez uma pausa, olhando a chuva, depois do que ela desceu os degraus apressadamente.

Ficou a vê-la afastar-se com um olhar de franca admiração, e depois virar a esquina e desaparecer da sua vista. Não teria ficado tão satisfeito se a tivesse visto chegar junto do Mini, estacionado em Park Street, colocar-se atrás do volante e arrancar.

Quando Katherine Riley atravessou a entrada envidraçada e entrou no foyer do Albert Hall, a primeira pessoa que viu foi Harry Baker falando com dois policiais uniformizados. Detectou-a imediatamente e cortou seu caminho com duas largas passadas, no momento em que se dirigia à bilheteria.

— O que significa isto, doutora?

— Tenho um ingresso reservado.

Ele sacudiu negativamente a cabeça, agarrou-a pelo cotovelo e voltou a empurrá-la, firmemente, para o exterior. Uma furgoneta de aparência normal encontrava-se parada no pequeno parque de estacionamento oficial, o quartel-general do departamento especial para a operação. O automóvel de Ferguson estava parado ao lado e ele sentado no banco de trás com Deville.

— O que aconteceu com Cambridge? — perguntou o brigadeiro, abrindo a porta e saindo.

— Mudei de opinião — respondeu ela. — Decidi que queria ouvi-lo tocar novamente.

— E é tudo? Nada de ideias disparatadas?...

— A que se refere, brigadeiro? Que vou avisá-lo? E para onde iria?

— Certo — acedeu Ferguson com um aceno de concordância.

— O senhor também, Monsieur Deville? — perguntou, fitando o francês.

— Assim parece, Mademoiselle.

— Posso ir, então? — inquiriu, olhando novamente para Ferguson.

— Sim, pode ir, doutora. Se há alguém que merece assistir ao último ato é a senhora.

Voltou-se e dirigiu-se apressadamente à entrada. Ferguson recostou-se no automóvel.

— Deve estar a começar a qualquer momento. Quer entrar agora, Maître?

— Para falar verdade não, brigadeiro — respondeu Deville com um sacudir de cabeça negativo. — Por estranho que possa parecer nestas circunstâncias, o piano, como instrumento, nunca me agradou.

Na sala dos artistas, Mikali ajustava a gravata ao espelho, enquanto Prévin aguardava junto à porta. Ouviu-se uma pancada e o superintendente cênico entrou.

— Tudo pronto, meus senhores.

— Boa sorte, John — sorriu Prévin, estendendo a mão.

— Quem precisa dela? — retorquiu Mikali, abrindo os braços. — Para o grande Mikali, tudo é possível.

O Albert Hall estava a abarrotar e além dos camarotes da primeira fila, os Loggia, o balcão e as cadeiras, havia quinze mil espectadores do Promenade, muitos na galeria, encontrando-se a maioria na arena, em frente do palco, de pé, ombro a ombro, aglomerados junto ao varandim, particularmente jovens e estudantes com roupa de fantasia, como era tradicional na última noite de concertos ao ar livre.

E quando Previn entrou no palco, seguido de Mikali, os aplausos assemelharam-se a algo que Mikali nunca ouvira, fazendo com que o sangue lhe corresse mais fortemente nas veias e o enchesse de excitação e de entusiasmo.

Deixou-se ficar de pé, fazendo vénias umas atrás das outras e Previn ria, aplaudindo igualmente, depois do que Mikali se voltou, ergueu os olhos para o camarote Loggia, mesmo ao lado do palco, e avistou Katherine Riley sentada.

Abriu caminho através da orquestra, tirou o cravo da lapela e atirou-o para ela.

Ela apanhou o cravo, segurou-o, fitando-o como se estivesse num sonho, depois do que o beijou e o devolveu. Mikali voltou a pô-lo na lapela e soprou-lhe um beijo. Os espectadores ovacionaram alegremente, ele dirigiu-se ao piano e sentou-se.

Todo o barulho desapareceu. Fez-se silêncio total. Prévin, como era habitual, preferia dirigir o concerto do próprio palco e mantinha-se muito junto do piano.

Virou-se para Mikali, agora com uma expressão grave. A batuta desceu e, quando a orquestra começou a tocar, os dedos de Mikali fundiram-se ao teclado.

Kelso voltou o Cortina na direção de Prince Consort Road e parou na curva. Manteve o motor a trabalhar e virou-se para Morgan.

— Posso fazer mais alguma coisa, coronel?

— Esqueça-se de que me viu, se me quer bem.

— Assim será — disse-lhe Kelso.

Morgan, que vestia um velho impermeável e o boné de tweed fornecido pelo primeiro-sargento, levantou-se e inclinou-se na janela.

— Obrigado, Jock. E, agora, desaparece.

O Cortina afastou-se rapidamente e Morgan levantou a gola do impermeável para se proteger da chuva. Dirigiu-se às traseiras do Hall. Parou junto à estátua do Príncipe Consorte e olhou na direção da entrada secundária. Havia policiais uniformizados ao fundo das escadas. Avistava, pelo menos, um de serviço em cada porta que conseguia ver, com os bonés brilhando à chuva.

Nesse momento, um camião virou a esquina e travou em frente da entrada dos artistas. Tinha escrito, de lado, o nome de uma das melhores cervejarias de Londres. Enquanto Morgan observava, três ou quatro empregados, com bonés e impermeáveis para se protegerem da chuva, começaram a descarregar caixotes de cerveja, sob o olhar de dois policiais de serviço naquela porta.

Morgan atravessou a rua como uma seta e ocultou-se na sombra projetada pelo veículo” à espera do momento oportuno. Os dois policiais tinham as cabeças muito juntas e riam. Um empregado veio até cá fora, pegou numa caixa e entrou novamente. Morgan deu a volta ao camião e pegou, sem hesitar, no caixote seguinte, pô-lo ao ombro e encaminhou-se na direção da porta.

Ouviu-se nova gargalhada dos dois policiais, que já ecoou nas suas costas. Passou pelo gabinete do vigia do palco, à esquerda, virou à direita pelo corredor e continuou a avançar, seguindo na peugada do empregado que seguia alguns metros adiante, obviamente na direção do bar.

Chegou a uma porta aberta, à direita, que dava acesso a umas escadas. Atravessou-a rapidamente, pousou a caixa de cerveja e subiu o patamar seguinte.

Nesse momento, já ouvia a orquestra nitidamente e o piano, muito perto, acabando por ir dar a um dos grandes corredores labirínticos, tão típicos de Albert Hall. Em frente havia uma porta com o letreiro de "Saída". Abriu-a, entrou e viu-se na descida que conduzia às escadas e à arena do lado esquerdo do palco. E ali encontrava-se, finalmente, John Mikali.

Mikali, próximo do final do último andamento, esperava, movimentando os dedos, enquanto a orquestra prosseguia o tema, preparando-se para o enorme esforço físico requerido nos momentos finais.

Ergueu os olhos para André Prévin, fitando-o, e nesse mesmo instante avistou além do maestro a porta da saída, aberta, e no alto da rampa a figura de Asa Morgan.

O choque foi tão grande que, por instantes, pareceu transformado em pedra. Katherine Riley, que não deixara de o observar, seguiu a direção dos olhos, mas Morgan já tinha recuado para fora da porta e desaparecido.

Meu Deus!, pensou Mikali. Está vivo. O filho da mãe conseguiu safar-se e agora veio me matar. Ocorreu-lhe uma frase do Bushido: “Não há solidão mais profunda do que a do samurai. Apenas, talvez, a do tigre na selva.”

Não sentiu medo mas uma alegria feroz, uma espécie de êxtase. No momento em que Prévin fez um aceno de cabeça, Mikali mergulhou na dramática parte final do concerto que, de todo o extenso repertório, fizera particularmente sua, tocando como jamais o fizera em toda a sua vida.

E os aplausos da assistência foram os maiores de toda a sua carreira musical. Todos o ovacionavam. A orquestra, Prévin, os espectadores do Promenade, comprimidos de encontro à barreira, com as mãos estendidas na sua direção.

Ergueu os olhos para o camarote Loggia e avistou Katherine Riley, de pé, agarrada ao corrimão. Nesse momento Prévin aproximou-se dele, pegou-lhe o braço e levou-o.

O superintendente cênico estava à espera na sala dos artistas com uma taça de champanhe em cada mão.

— Nunca ouvi nada parecido — comentou, enquanto o ruído aumentava e os espectadores começavam a entoar o nome de Mikali.

Mikali engoliu o champanhe e esboçou um ligeiro sorriso: — Fui realmente bom, maestro, ou apenas em algumas partes?

Prévin, obviamente comovido, ergueu a taça num brinde.

— De vez em quando, meu amigo, a vida tem grandes momentos. Este foi decididamente um deles. Agradeço-lhe.

Mikali sorriu e bebeu um pouco mais de champanhe, olhando na direção do final da passagem, para o ponto onde se unia ao corredor principal, e pensou em Morgan, ali, naquele velho edifício, provavelmente à sua espera, a coberto das sombras.

No confronto na villa de Hidra, Morgan tinha afirmado que desejava Mikali para si. Não existia motivo para que, naquele momento, pensasse de outra forma. No fim de contas, nada mudara.

Os aplausos tornaram-se insistentes.

— Vamos, John. Se não aparecermos, invadem o palco.

Quando surgiram novamente, a multidão começou a entoar: "Mikali! Mikali", e logo choveram flores, lenços universitários e chapéus. Agradecendo-lhe o momento único que lhes havia proporcionado.

Fez uma vénia, sorrindo e soprando um beijo na direção de Katherine Riley, apenas conseguindo pensar que havia uma única saída do palco, pelo acesso ao corredor, onde Morgan estaria à sua espera — teria de estar.

Subitamente ocorreu-lhe que não era bem assim. Voltou-se para apertar a mão do primeiro violinista, avançou para lá dele, na direção da barreira. Lá em baixo, a quatro metros de altura, era o acesso que levava à arena.

Inclinou-se, agitando os braços para os espectadores do Promenade.

— Vocês são uma maravilha. — gritou. — Algo que ultrapassa as palavras. Acho que não aguento mais.

Apoiou um dos pés na balaustrada e muito simplesmente desapareceu da vista. Ouviram-se alguns gritos e uma súbita inquietação, mas ele aterrou firmemente no chão, após o que a porta do acesso bateu e ele desapareceu.

Depois apenas se ouviram gargalhadas e um ecoar de aplausos ensurdecedores, a que todos se juntaram, até mesmo a orquestra, ante o que certamente constituía a forma menos ortodoxa de abandono do palco por um grande artista, alguma vez testemunhada na longa história do Royal Albert Hall.

O corredor da arena estava deserto, mas de um momento para o outro as pessoas encheriam os corredores em todos os pisos do edifício, a caminho dos bares, durante o intervalo. A terceira porta de saída levou-o às escadas que conduziam à porta das traseiras.

Harry Baker estava a falar com dois policiais uniformizados, lá em baixo no foyer. Mikali reconheceu-o imediatamente, voltou-se e subiu novamente as escadas.

Será que estaria errado? Que Morgan tivera, afinal, a atitude sensata? Percorreu apressadamente o corredor da arena e dirigiu-se à saída que levava ao gabinete do guarda do palco e da entrada dos artistas.

Quando aí chegou, olhou cautelosamente em redor e avistou dois policiais uniformizados, no interior, abrigando-se da chuva, uma coisa totalmente nova em toda a sua experiência de Albert Hall.

Era suficiente. O sexto sentido que o conservara vivo durante tanto tempo, pressentindo o perigo qual animal da selva, ditava-lhe que estava metido em grandes sarilhos.

Voltou-se e começou a percorrer apressadamente de volta o grande corredor da arena, uma figura estranha, elegante e solitária, de fraque e gravata branca, no momento em que André Prévin e uma quantidade de gente em traje de gala surgiam na curva diante dele e lhe caíam em cima.

No espaço de segundos, viu-se rodeado de admiradores excitados.

— O que tentou fazer? Partir o pescoço? Foi uma forma original de abandonar o palco, mesmo na última noite do Promenade.

— Apenas quis dar minha pequena contribuição para a tradição — respondeu Mikali.

— Estão todos à sua espera na Sala do Príncipe Consorte. A duquesa de Kent, o embaixador grego, o primeiro-ministro. Não se pode fazê-los esperar — riu Prévin. — Estamos na Inglaterra, tu sabes.

Agarrou Mikali pelo cotovelo e empurrou-o, firmemente, ao longo do corredor.

A escada que levava à Sala do Príncipe Consorte estava a abarrotar de gente e Katherine Riley teve de empregar toda a sua força para abrir caminho. Conseguiu, a custo, chegar à porta envidraçada, e deparou com um porteiro uniformizado.

— O convite, por favor, Miss.

— Não tenho — respondeu. — Mas sou amiga pessoal de Mr. Mikali.

— Como muitas outras pessoas esta noite, Miss — retorquiu o porteiro, esboçando um gesto na direção das escadas pejadas de gente, e um grupo de estudantes começou a gritar: "Mikali! Mikali!"

Para lá das portas envidraçadas, avistava a sala cheia de mulheres elegantes com trajo de cerimónia e os homens de casaca, à exceção do inspetor-chefe Harry Baker, que tinha um terno azul-escuro e se mantinha de costas para a porta.

Conseguiu ultrapassar o porteiro e bater na porta. No momento em que o porteiro a agarrou, Baker voltou-se. Olhou-a gravemente durante uns momentos e depois abriu a porta.

— Está tudo em ordem. Pode deixar passar. — Pegou-a pelo braço e levou-a para um canto. — Não vale a pena, doutora. Está acabado. Nada mais lhe resta a fazer aqui.

— Eu sei — disse ela.

Deixou-se ficar a olhá-la uns momentos e, depois, fez uma coisa surpreendente. Passou-lhe a mão ao de leve pelos cabelos e abanou a cabeça.

— Mulheres. São sempre o mesmo. Nunca aprendem, não?

Abriu a porta, afastou-se para o lado e fez-lhe sinal para que entrasse.

Edward Heath, o primeiro-ministro inglês, era também um músico de qualidade, e apertou entusiasticamente a mão a Mikali. — Extraordinário, Mr. Mikali. Uma noite inesquecível.

— Obrigado Sir.

Mikali, escoltado por Previn, aproximou-se da duquesa de Kent, que demonstrou a simpatia e os conhecimentos de sempre.

— Ainda não gravaram juntos o Quarto de Rachmaninov, não? — perguntou.

— Não, Madam —, respondeu Prévin sorrindo, mas acho que podemos afirmar, seguramente, que após a execução de John nesta noite, tal omissão será rectificada num futuro muito próximo.

Mikali deixou-os a conversar e prosseguiu caminho, apertando dúzias de mãos. Parou a conversar com o embaixador grego, sem dar verdadeira atenção ao que dizia, passeando inquieto os olhos pela sala, na expectativa de deparar com o rosto de Morgan fitando-o, raivoso, no meio da multidão.

Em vez dele, viu Katherine Riley junto à porta, ao lado de Baker. Sorriu amargamente num montar repentino das peças do quebra-cabeças e avançou na sua direção. Logo em seguida, porém, quando as pessoas se afastaram observou Ferguson e Jean-Paul Deville encostados à parede, bebendo champanhe.

Hesitou, mas em seguida aproximou-se deles.

— Jean-Paul — cumprimentou num tom à vontade.

— Penso que já conhece o brigadeiro Ferguson — disse Deville.

Mikali tirou uma bonita cigarreira de ouro do bolso, de onde extraiu um cigarro.

— Apenas de nome. Tem uma imagem excelente, brigadeiro. — Ofereceu-lhe cigarros. — São gregos, desculpe. É a minha etnia. Talvez não goste.

— Pelo contrário — disse Ferguson, tirando um e aceitando fogo.

— E o coronel Morgan dos sete fôlegos? Não vem se juntar a nós?

— Não — respondeu Ferguson. — Não direi exatamente que está metido na cama, mas encontra-se sob o que poderia chamar-se de detenção em domicílio. Durante os acontecimentos desta noite, naturalmente. Pareceu-me a atitude lógica a tomar. Como sabe, ele o queria.

— Detenção em domicílio, foi o que disse? — riu Mikali. — Velou, realmente, pela minha noite, brigadeiro.

A campainha de alarme soou pelo espaço de segundos.

— Não há maneira de fuga, meu amigo, sabe, não? Para utilizar aquela velha frase tão do gosto da polícia inglesa, o melhor será acompanhar-me calmamente.

— Mas quando me viu fazer as coisas com calma, meu caro brigadeiro?

O embaixador grego deu-lhe uma palmada no ombro.

— Ficaríamos muito honrados se quisesse juntar-se a nós no camarote para assistir à segunda metade do concerto.

— Com muito prazer, senhor Embaixador — respondeu Mikali. — Demoro apenas uns minutos.

Virou-se na direção de Ferguson, que deixara de sorrir.

— Não me esquecerei tão depressa da sua execução desta noite, mas detestaria que lhe servisse de epitáfio. Pense nisso, Mikali.

Tocou no braço de Deville. O francês sorriu tristemente.

— Sabia que isto ia acontecer, John. Não quis dar-me ouvidos.

— Mas estava errado, afinal, meu amigo — retorquiu Mikali. — Disse que podia ser na próxima quarta-feira, mas hoje é sábado, à noite.

Transpuseram a porta e Mikali ficou a vê-los com um mar de gente em volta. Baker tinha desaparecido, mas Katherine Riley continuava à espera, junto à parede separada dele por todas aquelas pessoas.

Abriu caminho na sua direção e deixou-se ficar diante dela, as mãos nos bolsos e o cigarro ao canto da boca. E quando lhe sorriu, sentiu o coração bater-lhe mais fortemente.

— Há muito que sabias?

— Desde Hidra. Encontrei Morgan nos montes, em muito mau estado, ou melhor, foi ele quem me encontrou.

— Compreendo agora — disse Mikali com um aceno afirmativo. — Se é que te interessa saber, a morte da filha foi um acidente. Tentei evitar, mas não foi possível.

— Por quê, Johnny? — perguntou. Encostou-se à parede ao lado dela e, durante uns momentos, gerou-se uma total intimidade entre os dois.

— Não sei. Sempre tive a sensação de que as pessoas morriam à minha volta. Acho que a partir daí tudo evoluiu naturalmente. E o problema reside em que era de fato bom nisso. Mas és tu a doutora. Explica-me.

— Tinhas um talento — retorquiu ela. — Um dom tão especial. Demonstraste-o esta noite. E afinal...

— Palavras, anjo — interrompeu-a. — Nada dura e tudo passa. — Quando o embaixador grego se afastou com o seu grupo, Mikali pegou-lhe no braço e foram atrás. — Sabes que me disseram que estes corredores têm milhares de quilómetros de curvas e nem uma única reta? Tudo é circular, com as curvas umas a seguir às outras e Asa Morgan pode estar à espera em qualquer delas.

— Difícil — retorquiu Kate. — O brigadeiro Ferguson prendeu-o esta noite no seu apartamento em Upper Grosvenor Street.

— Então, não fez um bom trabalho. Há cerca de vinte minutos, vi-o junto à saída do acesso, mesmo por baixo do teu camarote, e não me pareceu nada amistoso. Devo dizer-te que contribuiu para um certo impacto nos momentos finais da minha atuação.

Ela agarrou-lhe o braço, fazendo-o parar.

— E agora?

— Vou fazer companhia ao embaixador grego e ao seu grupo no camarote, a fim de assistir à segunda parte do concerto. O evento tradicional. A Pompa e Circunstância, de Elgar, Uma Fantasia sobre Canções Marítimas Inglesas e, finalmente, todos de pé a pedirem Jerusalém e dando o máximo de esforço. A última noite do Promenade, anjo. Achas que o iria perder, mesmo por causa de Asa Morgan?

Afastou-se dele, horrorizada, e correu para a saída mais próxima. Mikali continuou a seguir o grupo do embaixador, deixou-se ficar para trás um passo ou dois, virou rapidamente na próxima saída do corredor a que chegaram, escondendo-se nas sombras do patamar, esperando até os passos desaparecerem.

Fez-se um ligeiro silêncio e, seguidamente, a orquestra começou a tocar a Marcha de Pompa e Circunstância, de Elgar.

— Muito bem, meu caro — disse tranquilamente. — Vejamos se conseguimos encontrar-te — e afastou-se pelo corredor deserto.


CAPÍTULO 16

 

Harry Baker estava a falar com um inspetor uniformizado no foyer da entrada das traseiras, quando Katherine Riley o encontrou. Estava obviamente bastante perturbada e pegou-lhe nos braços.

— Ei! O que aconteceu?

— Asa — disse-lhe. — Está aqui. Em algum lugar no edifício. Mikali sabe. Viu-o no Hall, pouco antes do intervalo.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou Baker. — Onde está Mikali agora?

— Juntou-se ao grupo do embaixador grego para assistir à segunda parte do concerto.

— Certo. Agora, fique aqui — ordenou ele, forçando-a a sentar-se.

Trocou uma brevíssima conversação com o inspetor e desapareceu a correr pelas escadas.

Ferguson e Deville estavam de volta ao banco de trás do carro do brigadeiro, no parque de estacionamento, quando um sargento da polícia apareceu, vindo da furgoneta do posto de controlo e o chamou lá fora. Passados uns momentos, Ferguson entrou novamente no automóvel.

— Problemas? — perguntou Deville.

— Pode dizê-lo. Asa Morgan anda por aí à solta no edifício.

— Por conseguinte, essa detenção no apartamento não bastou obviamente para o segurar, mas presumo que contava com isso, não?

— O Amante Cretense é John Mikali — retorquiu Ferguson. — Tudo virá a lume. E o que lhe acontecerá? Não a corda, mas a prisão perpétua, dado a era liberal em que vivemos. Pode imaginar o que isso faria a um homem como ele?

— Prefere, portanto, que seja Morgan a servir de carrasco em seu lugar?

— Asa sempre se saiu bastante bem como executor público. Seja como for, Mikali vivo não nos serve para uso direto. Você sim, e o seu desaparecimento súbito simplificaria enormemente a sua posição.

— Tudo muito claro — observou Deville. — À exceção de um ponto importante que parece ter descurado.

— E qual é?

— A probabilidade de ser o coronel Morgan a acabar com uma bala entre os olhos.

Harry Baker desceu as escadas até ao foyer da entrada das traseiras. Quando Katherine se levantou, disse:

— Não há vestígios dele no camarote do embaixador. Verifiquei.

Voltou-se para o inspetor e começou a falar-lhe num tom baixo e premente. Por uns momentos, a presença de Katherine Riley foi esquecida e ela subiu tranquilamente as escadas, começando a correr ao virar a esquina do corredor, desaparecendo de vista.

Deteve-se no patamar, por baixo da Sala do Príncipe Consorte, onde se efetuara a recepção, sem saber o que fazer nem para onde ir em seguida.

À distância, vindo do Hall conseguia ouvir os sons da Pompa e Circunstância, de Elgar, e em seguida, bastante inesperadamente e com seu espanto total, escutou o som do acompanhamento dum piano”, que vinha do piso superior.

Desta vez não havia sítio” para onde ir e Mikali sabia-o. Nenhuma saída. A última barricada e de pé no meio das sombras, escutando a Pompa e Circunstância que lhe chegava do Hall, recordou-se de Kasfa, do cheiro a queimado, os quatro fellagha que se aproximavam na sua direção, enquanto encostado ao poço e agarrado à vida se recusava a ceder. Há muito tempo que o esperavam. Muito tempo.

— Vamos facilitar as coisas — disse em voz baixa. Subiu as escadas, mergulhadas em trevas, que tinha à direita. Abriu cautelosamente a porta do cimo e espreitou para a Sala do Príncipe Consorte. Estava, obviamente, vazia, como esperava, sendo o único ocupante a sua outra metade refletida no espelho, ao fundo. Aquela criatura elegante que fora o seu fantasma durante tanto tempo.

— OK, meu velho — sorriu. — É a última vez, portanto... que tudo saia bem.

Havia um piano de concerto ao canto junto da janela, um Schiedmayer. Quando atravessou a sala na sua direção, escolheu um dos cigarros gregos e acendeu-o. Em seguida, levantou a tampa do Schiedmayer e sentou-se. Tirou a Ceska e colocou-a, à mão, ao fundo do teclado.

— Muito bem, Morgan — murmurou. — Onde estás? — E começou a tocar a Pompa e Circunstância com garra, acompanhando os sons distantes da orquestra no Hall.

Quando se ouviram passos na escada, não foi Morgan quem apareceu, mas Katherine Riley. Dobrou-se na ombreira para recobrar o fôlego e em seguida aproximou-se.

— Isto é uma loucura. O que estás a fazer?

— A experimentar um pouco de Elgar. Já me tinha esquecido de como era divertido.

Naquele momento estava tocando brilhantemente e num tom elevado, inclinado sobre o piano, o cigarro pendente do canto da boca.

O som ecoava pelas escadas, ao longo dos corredores ziguezagueantes e, por conseguinte, Asa Morgan, que esperava a coberto das sombras no acesso à sala dos artistas, virou-se imediatamente e começou a subir as escadas, com a mão na coronha da Walther metida no bolso direito do impermeável.

E o som chegou aos ouvidos do próprio Baker, que se encontrava junto ao inspetor, no foyer da entrada das traseiras. Virou-se e subiu as escadas a correr, com o inspetor e dois agentes na peugada.

— Por favor, John. Se é que alguma vez signifiquei alguma coisa para ti.

— Oh, mas claro que sim, anjo — sorriu Mikali. — Recordas-te daquela manhã, em Cambridge, junto ao rio? Foi uma ação pensada, porque precisava de te conhecer para ter a certeza de que a Lieselott não constituía uma ameaça para mim.

— Sei isso agora.

— Não que seja importante. A verdade é que foste a única mulher por quem, de fato, me interessei. Alguma hipótese de me poderes explicar?

Nesse momento, Asa Morgan surgiu das sombras e a sua figura recortou-se na entrada.

Mikali deixou de tocar.

— Custou-lhe bastante, não?

À distância, a orquestra tocava a Fantasia sobre Canções Marítimas Inglesas.

— Estou aqui e é isso o que interessa.

— O campo de batalha é um terreno de cadáveres ambulantes — sorriu Mikali. — Um estratego militar chinês, chamado Wu Ch'i, afirmou-o uma vez, há muito tempo. Diria que se nos aplica perfeitamente, Morgan. No fim do dia, não há realmente muito a escolher entre nós.

Na mão surgiu-lhe a Ceska. Katherine Riley gritou, interpondo-se entre os dois, de braços abertos.

— Não, John!

Quando Mikali, hesitante, fez menção de se levantar, Morgan apoiou um joelho em terra e disparou a Walther duas vezes, tendo as balas atingido Mikali no coração, fazendo-o erguer no banco do piano e causando-lhe morte instantânea.

Naquele momento apareceram Baker e os três policiais. Morgan conservava-se junto à porta, agarrando firmemente a Walther. Katherine Riley esperava, com as mãos pendentes ao longo do corpo, quando Baker se inclinou sobre Mikali.

— Podia tê-lo atingido, Asa — disse ela. — Só que me meti no caminho. Hesitou, porque me meti no caminho.

Baker levantou-se e virou-se com a Ceska na mão.

— Não, minha querida, não foi isso. Ele não ia disparar em ninguém com sua arma. Está vazia. Verifique por si mesmo. Tinha tirado as balas.

O inspetor estava ao telefone de parede, por detrás do bar, falando em voz baixa.

— Ligue-me ao veículo dos comandos. Brigadeiro Ferguson.

Katherine Riley avançou e ajoelhou-se ao lado de Mikali. A frente branca da camisa estava manchada de sangue, mas o rosto não apresentava marcas, tinha os olhos fechados e um ligeiro sorriso.

Afastou-lhe o cabelo da testa e, em seguida, tirou-lhe, com muito cuidado, o cravo branco da lapela. O cravo que havia jogado no camarote. O cravo que beijara para depois devolver.

Virou costas e foi embora, passando por Morgan sem pronunciar uma palavra.

— Kate? — chamou ele, fazendo menção de ir atrás dela.

Baker pegou-lhe no braço.

— Deixa-a ir, Asa. Dá-me a arma.

Morgan estendeu-lhe a Walther e Baker descarregou-a.

— Sentes-te melhor, agora? Trouxe-te Megan de volta?

Morgan aproximou-se do corpo de Mikali e inclinou-se sobre ele.

— Por que fez ele isto?

— Bom. Se me puser a adivinhar, meu caro Asa, diria que tudo se passou mais ou menos assim: és bom, mas ele era melhor, e não podia permitir-se a tal, não desta vez. Não lhe restava saída.

— Que vá para o inferno! — exclamou Morgan.

— É um ponto de vista. E a propósito, Asa, já leste o Daily Telegraph de hoje? Publica uma lista das últimas promoções do Exército. Conseguiste, finalmente. Brigadeiro. Agora, se quiseres, até o Ferguson podes mandar passear.

Contudo, Morgan já não o escutava. Voltou-se e correu na direção do corredor. Estava deserto, à exceção de Katherine Riley que desaparecia, lá ao fundo, na curva.

— Kate? — chamou, e quando começou a correr a audiência no Hall rompeu numa tempestade de aplausos quando do final da Fantasia sobre Canções Marítimas.

Quando chegou ao cimo das escadas que levavam ao foyer principal, não viu sinais dela. Desceu aos dois degraus de cada vez e atravessou as portas envidraçadas. Nas suas costas, a orquestra, o coro e toda a audiência irromperam no cântico glorioso de Jerusalém.

Chovia abundantemente e a rua abarrotava de tráfego. Quando desceu os degraus, Ferguson avançou ao seu encontro, abrigado por um guarda-chuva.

— Parabéns, Asa.

— Era o que queria, não era? Soube logo desde o início. Ambos o queríamos. O velho jogo, numa constante repetição.

— Claramente especificado.

Morgan olhou ansiosamente em volta.

— Onde ela está?

— Ali — indicou Ferguson com um aceno de cabeça para o lado oposto da rua. — Se estivesse no seu lugar, eu me apressaria, Asa.

Mas Morgan, que avançou em ziguezague por entre a chuva pesada e o tráfego intenso, chegou tarde demais. Quando conseguiu alcançar o outro lado, ela já estava além do Albert Memorial e desapareceu na escuridão no parque.

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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