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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SOM E A FÚRIA / William Faulkner
O SOM E A FÚRIA / William Faulkner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Sete de Abril de 1928
Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira e eu seguios pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.
- Aqui, caddie. - E davam tacadas. Foram-se embora pelo prado. Eu fiquei agarrado à cerca a vê-los irem-se embora.
- Vejam só - disse o Luster. - É mesmo muito engraçado; trinta e três anos e a portar-se dessa maneira. E eu que me dei ao trabalho de ir à cidade para lhe comprar o bolo. Vamos lá parar com choradeira. Então, não me ajuda a procurar os vinte e cinco cêntrimos para eu podê ir ao espectáculo logo à noite.
Eles agora iam a dar poucas tacadas pelo prado fora. Voltei para trás ao longo da cerca até onde estava a bandeira, a adejar sobre a relva cintilante e as árvores.

 


 


-Venha- disse o Luster. - Aí já procurámos. Tão depressa não aparecem
mais. Vamos até lá abaixo ó riacho a vê s'achamos os vinte e cinco
cêntimos antes qu'as negras os encontrem.
Era vermelha e adejava sobre o prado. Nisto, um pássaro desceu em
diagonal e empoleirou-se nela. O Luster atirou. A bandeira adejava
sobre a relva cintilante e as árvores. Eu estava agarrado à cerca.
- Vamos lá pará ca choradeira - disse o Luster. - Não os posso obrigá
a vir, s'eles não querem vir, ou posso. Se não se cala, a'nha avó não
lhe faz a festa de anos. Se não se cala, já sabe o qu'é qu'eu lhe
faço. Como-lhe o bolo todo. E as velas tamém. As trinta e três velas
todas duma vez. Vá, vamos té lá baixo é riacho. Tenho Xencontrá os
meus vinte e cinco cêntímos. Pode sê qu'a gente encontre alguma bola.
Lá tão. Lá tão eles. Ali a diante. Tá a vê. - Abeirou-se da cerca e
estendeu o braço. - Tá a vê-los. já não voltam mais pr'aqui. Vá, venha
daí.
Fomos pela cerca fora até ao muro do jardim, onde as nossas
sombras se encontraram. A minha sombra chegava mais alto que a do
Luster. Fomos até ao sítio onde a cerca estava partida e
passámos para o outro lado.
- Tere aí - disse o Luster. - Lá ficou outra vez preso no
prego. Será que não é capaz de passá por aqui sem ficá preso nesse
prego.
A Gaddy soltou-me epassámos degataspara o outro lado. O Tío Maury
dissepara não deixarmos que ninguém nos visse e por isso é melhor
irmos agachados, disse a Caddy. Agacha-te, Benjy. Assim, estás a ver.
Agachámo-nos e atravessámos ojardim, com asflores a roçarem e a
restolharem contra nós. O chão era duro. Saltámos a cerca no sítio
onde os porcos grunhiam efossavam. Se calhar estão tristesporque um
deles foi hoje para a matança, disse a Caddy. O chão era duro, todo
revolto e aos altos e baixos.
Mete as mãos nos bolsos, disse a Gaddy. Senão, ficas com elas
congeladas. E tu não queres ficar com as mãos congeladas no Natal,
pois não.
- Tá muito frio lá fora - disse o Versh. - Nem apetece saí de casa.
- Que se passa - disse a Mãe.
- Ele quê ir lá pa fora - disse o Versh.
- Deixa-o, ir - disse o Tio Maury.
- Está muito frio - disse a Mãe. - É melhor ficar em casa.
Vá, Benjamin, vamos lá parar com isso.
- O frio não lhe faz mal nenhum - disse o Tio Maury.
- Olha, Benjamin - disse a Mãe -, se não te portas bem, vais para a
cozinha.
- Mas a'nha mãe diz pa não o deixarmos ir hoje pá cozinha disse o
Versh. - Diz que tem as comidas todas pa fazê.
- Deixa-o ir, Caroline - disse o Tio Maury. - Ainda ficas doente de
tanto te preocupares com ele.
- Eu sei - disse a Mãe. - Às vezes penso que é castigo.
- Eu sei, eu sei - disse o Tio Maury@ - Mas não te podes deixar ir
abaixo. Olha, vou fazer-te um toddy.'
- Isso ainda me vai pôr mais nervosa - disse a Mãe. Sabes bem que vai.
- Vai é dar-te forças - disse o Tio Maury. - Agasalha-o bem, rapaz, e
leva-o a dar uma volta. O Tio Maury continuou a falar. O Versh
continuou a falar.
- Cala-te, por favor - disse a Mãe. - Não podemos andar mais depressa.
Não quero que depois fiques doente.
O Versh calçou-me as galochas e vestiu-me o casacão. Pegámos no meu
boné e saímos. O Tio Maury estava na casa de jantar a arrumar a
garrafa no aparador.
- Deixa-o andar lá por fora uma meia hora, rapaz - disse o Tio Maury.
- Mas não o deixes sair do quintal.
- Si, sinhô. - disse o Versh. - Nós não o deixamos sair daqui.
Fomos lá para fora. O sol estava frio e brilhante.
- Pa onde vai - disse o Versh. - Não tá a pensá ir té à cidade, poi
não. - Passámos por cima de um monte de folhas secas, restolhantes. O
portão estava frio. - É melhor deixá-se tá cas mãos nos bolsos - disse
o Versh. - Fica co elas enregeladas se
mexê nesse portão, veja lá o que faz. Por que não espera por elas
dentro de casa. - Meteu-me as mãos nos bolsos. Ouvia-o pisar as
folhas. Até sentia o cheiro do frio. O portão estava frio.
Olhe, são nozes. luupi. Trepe lá à árvore. Olhe um esqui- lo, Benjy.
Eu não sentia o portão, mas sentia o cheiro cristalino do frio.
- É melhor voltá a metê as mãos nos bolsos. Primeiro a Caddy vinha a
andar. Depois começou a correr, com a mochila às costas, a dar a dar.
1. Bebida revigorante à base de uísque e água quente. (N. da T)
- Olá, Benjy - disse a Caddy. Abriu o portão, entrou e agachou-se. A
Caddy cheirava corno as folhas. - Vieste ter comigo - disse ela. -
Vieste esperar a Caddy. Por que o deixaste ficar com as mãos tão
geladas, Versh.
- Eu bem lhe disse qu'as metesse nos bolsos - disse o Versh. - Mas ele
quis ficá agarrado ao raio do portão.
- Vieste esperar a Caddy - disse ela, esfregando-me as mãos. - O que
foi. O que é que estás a tentar dizer à Caddy. A Caddy cheirava como
as árvores e como quando ela diz que estivemos a dormir.
Não seipor que táp;ií a chorá, disse o Luster. Pode vê-las outra vez
quando chegarmos ao riacho. Olhe. Pegue. È uma erva-do-diabo. Deu-me a
flor. Saltámos a cerca para o " de dentro.
- O que foi - disse a Caddy. - Julgaste que era Natal quando eu
chegasse da escola. Foi isso que julgaste. O Dia de Natal é só depois
de amanhã. O Pai Natal, Benjy. O Pai Natal Vá, toca a dar uma corrida
até casa, para nos irmos aquecer. - Deu-me a mão e desatámos a correr
por cima das folhas secas, restolhantes. Galgámos os degraus e fugimos
ao frio brilhante lá de fora, para entrarmos no frio sombrio cá de
dentro. O Tio Maury estava a
arrumar a garrafa no aparador. Chamou a Caddy. A Caddy disse:
- Leva-o para o lume, Versh. Vá, vai com o Versh - disse ela. - Eu já
lá vou ter.

Fomos para junto do fogão. A Mãe disse:
- Ele tem frio, Versh.
- Nã sinhô - disse o Versh.
- Tira-lhe o casacão e as galochas - disse a Mãe. - Quantas vezes
tenho de te dizer para não o trazeres cá para dentro com as galochas
calçadas.
- Sissiô - disse o Versh. - Agora fique queto. - Tirou-me as galochas
e desabotoou-me o casacão. A Caddy disse:
- Espera aí, Versh. Podemos sair outra vez, Mãe. Queria que ele viesse
comigo.
- É melhor deixá-lo ficar - disse o Tio Maury. - Hoje já anelou muito
tempo lá fora.
- Acho que é melhor ficarem os dois em casa - disse a Mãe. A Dilsey
diz que ainda vai arrefecer mais.
- Oh, Mãe - disse a Caddy.
- Tolices - disse o Tio Maury. - Ela passou o dia todo na escola.
Precisa de apanhar ar. Vá, põe-te a andar, Candace.
- Deixe-o vir, Mãe - disse a Caddy. - Por favor. Ele vai ficar a
chorar.
- Então para que falaste nisso à frente dele - disse a Mãe. Por que
vieste para aqui. Para lhe dares um pretexto para me arreliar outra
vez. Hoje já andaste lá por fora tempo suficiente. Acho que o melhor é
sentares-te aqui a brincar com ele,
- Deixa-os ir, Caroline - disse o Tio Maury. - Um bocadinho de frio
não lhes faz mal nenhum. Lembra-te de que não te podes cansar.
- Eu sei - disse a Mãe. - Ninguém sabe como eu detesto o Natal.
Ninguém. Não sou uma dessas mulheres que aguentam tudo. Bem gostava de
ser mais forte. Pelo Jason e pelas crianças.
- Deves fazer o melhor que podes e não deixares que eles te
preocupem tanto - disse o Tio Maury. - Vá, toca a andar, vocês dois.
Mas não se demorem. Senão, a vossa mãe fica preocupada.
- Sim, senhor - disse a Caddy. - Anda, Benjy. Vamos sair
outra vez. - Abotoou-me o casaco e dirigimo-nos para a porta.
- Vais levar esse menino lá para fora sem as galochas - disse a Mãe. -
Queres que ele fique doente, com a casa cheia de gente.
- Esqueci-me - disse a Caddy. - Julguei que ainda as
tinha calçadas.
Voltámos para trás. - Tens de tomar tento no que fazes disse a Mãe.
Deixe-se estar queto disse o Versh. E calçou-me as galochas. -
Qualquer dia desapareço e vais ter tu de pensar por ele. Agora ponhase
a andar, disse o Versh. - Vem dar um beijo à tua mãe, Benjamin.
A Caddy levou-me até à cadeira da Mãe e a Mãe agarrou-me a cara com as
mãos e apertou-me contra o peito.
- Meu pobre menino - disse ela. Largou-me. - Tu e o Versh tomem
cuidado com ele, estás a ouvir, querida.
- Sim, senhora - disse a Caddy. Saímos. A Caddy disse:
- Tu não precisas de vir, Versh. Eu tomo conta dele.
- Ainda bem - disse o Versh. - Com este frio tamém não m'apetecia nada
ir lá para fora. - Fomos até à porta e parámos na entrada e a Caddy
ajoelhou-se e abraçou-me e encostou a cara dela à minha. Tinha-a
brilhante e fria. Cheirava como as árvores.
- Tu não és um pobre menino. Não és, pois não. Tu tens a tua Caddy.
Tens a tua Caddy, não tens.
V,@a U sepára com tanta caramunha e choradeira, dísse o Luster. Não
tem vergonha defazê todo esse chinfrim. Passámos pela cocheira, onde
estava a caleche. Tinha uma roda nova.
- Vá, suba e fique queto té a sua mãe chegá - disse a Dilsey. Ela
gostava de me levar na caleche. O T. R estava a segurar nas rédeas. -
Juro que não percebo por qu'é qu'o Jason não

compra uma sege nova - disse a Dilsey. - Esta geringonça ainda um dia
se desfaz com vocês cá dentro. Olha-me pa estas rodas.
A Mãe saiu e puxou o véu para o rosto. Trazia um ramo de flores na
mão.
- Onde está o Roskus - disse ela.
- Hoje o Roskus não pode mexê os braços - disse a Dilsey. Mas o T R dá
conta do recado.
- Tenho medo - disse a Mãe. - Parece-me que não é nada do outro mundo
pedir que um de vocês me sirva de cocheiro uma vez por semana. Deus
sabe que não é pedir muito.
- Sabe tão bem como eu, Miss CAine, que o Roskus está com uma crise de
reumatismo muito má e não pode fazê mais qu'o necessário - disse a
Dilsey. - Vá, entre lá. O T. R conduz tão bem como o Roskus.
- Tenho medo - disse a Mãe. - E com este menino. A Dilsey subiu os
degraus. - Chamá a isto um menino.. . disse ela e agarrou no braço
da Mãe. - Um homem tão grande como o T. R Vá lá, se é que quê vir.
- Tenho medo - disse a Mãe. Desceram os degraus e a Dilsey ajudou a
Mãe a entrar. - Talvez assim fosse melhor para todos - disse a Mãe.
- Não tem vergonha de dizê uma coisa dessas - disse a Dilsey. - Não
sabe qu'é preciso mais qu'um negro de dezoito anos
]o
pa pô a Queenie à desfilada. Ela é mais velha do qu'ele e o Benjy
juntos. E não te ponhas a atazaná a Queenie, 'tás a ouvi, T. R Se não
conduzes a contento de Miss Ca'line, mando o Roskus dar-te uma surra.
Pa isso ele tem força.
- Sissiô - disse o T R
- Vai acontecer alguma coisa, eu sei - disse a Mãe. Pronto, Ben)amin.
- Dê-lhe uma flor - disse a Dilsey. É isso qu'ele quê. E estendeu
a mão para as flores.
- Não, não - disse a Mãe. - Vais espalhá-las todas.
- Deixe-se tá a segurá-las - disse a Dilsey. - Eu tiro uma pa ele. -
Deu-me a flor e a mão dela foi-se embora.
- É melhor partirem já, antes qu@a Quentin vos veja e queira ir tzrdém
- disse a Dilsey.
- Onde está ela - disse a Mãe.
- Está em casa a brincá co Luster - disse a Dilsey. - Vá, T. R Agora
guia essa sege como o Roskus t'ensinou.
- Sissiô - disse T. R - Toc'andá, Queenie.
- A Quentin - disse a Mãe. - Não a deixes...
- Claro que não - disse a Dilsey. A caleche ia ao solavancos pelo
caminho empedrado abaixo.
- Tenho medo de ir e deixar a Quentin - disse a Mãe. - O melhor é não
ir, T P - Passámos o portão e a sege deixou de dar saltos. O T P
chicoteou a Queenie.
- Calma, T. R - disse a Mãe.
- Tenho d'a espevitá - disse o T. R - É pá mantê acorda- da té voltá
pó estábulo.
- Volta para trás - disse a Mãe. - Tenho medo de ir e deixar a
Quentin.
- Aqui não posso - disse o T. R Mas mais adiante a estrada alargou.
- E aqui, também não podes - disse a Mãe.
- Tá bem - disse o T. R Começámos a dar a volta.
- Devagar, T. P. - disse a Mãe, agarrando-me com força.
- Então. Eu tenho de dá a volta - disse o T. P - Aí, Queenie. -
Parámos.
- Assim, ainda nos voltamos - disse a Mãe.
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- Então o que quê qu'eu faça - disse o T. R
- Tenho medo que dês a volta - disse a Mãe.

- Toc'andá, Queenie. - disse o T. R - E lá continuámos.
- Tenho a certeza de que a Dilsey vai deixar acontecer alguma coisa à
Quentin enquanto eu estiver fora - disse a Mãe. Temos de voltar
depressa para casa.
- Vamos, Queenie - disse o T. P. E chicoteou a Queenie.
- Calma, T. E - disse a Mãe, agarrando-me com toda a força. Eu ouvia
os cascos da Queenie e, dum lado e doutro da estrada, via coisas
luminosas a deslizarem e as sombras delas a ondularem de través sobre
o lombo da Queenie. Continuavam a passar, brilhantes como o aro das
rodas. Nisto, de um dos lados, as coisas pararam junto do grande poste
branco onde estava o soldado. Mas do outro lado continuaram a deslizar
sem parar, só que um pouco mais devagar.
- O que é que quer - disse o Jason. Tinha as mãos nos bolsos e um
lápis na orelha.
- Vamos ao cemitério - disse a Mãe.
- Está bem - disse o Jason. - Não se atrase por minha causa. É só isso
que me quer. Só dizer-me isso.
Eu já sei que não queres vir - disse a Mãe. - Mas ficava mais
tranquila se viesses.
- Mais tranquila porquê - disse o Jason. - Nem o Pai
nem o Quentin lhe podem fazer mal nenhum.
A Mãe meteu o lenço por baixo do véu. - Pare com isso, Mãe - disse o
Jason. - Quer que esse imbecil se ponha a berrar no meio da praça.
Põe-te a andar, T. R
- Toc'andá, Queenie - disse o T. P.
- Isto é castigo - disse a Mãe. - Mas já não falta muito para eu ir
também.
- Espere - disse o Jason.
- Aíí - disse o T R E o Jason disse:
- O Tio Maury passou um cheque de cinquenta dólares. O que é que pensa
fazer, hem.
- Para que perguntas - disse a Mãe. - Ninguém se importa com o que eu
digo. Só não te quero apoquentar, nem a ti nem à Dilsey. E, depois,
qualquer dia desapareço, e então tu...
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- Põe-te a andar, T P disse o Jason.
- Toc'andá, Queenie disse o T. P. As coisas passavam
ondulantes. As do outro lado apareceram outra vez, brilhantes, velozes
e suaves, como quando a Caddy diz que vamos adormecer.
Seu chorão, disse o Luster. Não tem vergonha. Atravessámos o
estábulo. As baías estavam todas abertas. Agorajá não tem nenhum póneí
malhado pa montá, disse o Luster O chão estava seco e poeírento. O
telhado estava a cair. Os buracos inclinados estavam cheios de
remoinhos amarelos. Pa que quê irpr;ií. Quê apanhá com uma
dessas bolas na cabeça.
- Deixa-te estar com as mãos nos bolsos - disse a Caddy.
- Senão, ficas com elas congeladas. E tu não queres ficar com a
mãos congeladas no Natal, pois não.
Contornámos os estábulos. A vaca grande estava à porta com
a pequena e ouvimos lá dentro o Prince, a Queenie e a Fancy a
baterem com os cascos. - Se não estivesse tanto frio, íamos dar uma
volta na Fancy - disse a Caddy. - Mas hoje está muito frio para andar
a cavalo. - Depois, vimos o riacho donde saía fumo. - É ali que estão
a matar o porco - disse a Cadety. Podemos passar por lá no regresso,
para ver. - Começámos a
descer a colina.
- Queres levar a carta - disse a Caddy. - Então leva-a. Tirou a carta
do bolso dela e meteu-a no meu. - É um presente de Natal - disse a
Caddy. - O Tio Maury vai mandá-la a
Mrs. Patterson para lhe fazer uma surpresa. Temos de lha entregar sem

que ninguém veja. Vê lá se agora deixas estar as mãos nos bolsos. -
Chegámos ao riacho.
- Está gelado - disse a Caddy. - Olha. - Quebrou a
superfície da água e encostou-me um bocado à cara. - Gelo. Vês como
está frio. - Ajudou-me a passar para o outro lado e começámos a subir
a encosta. - Olha que não podemos dizer nada, nem à Mãe nem ao Pai.
Sabes o que eu acho que é. Acho que é uma surpresa para a Mãe e para o
Pai e também para Mr. Patterson, por Mr. Patterson te ter mandado
rebuçados. Lembras-te quando Mr. Patterson te mandou rebuçados no
Verão passado.
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Havia uma cerca. A vinha estava seca e o vento restolhava por entre as
vides.
- Só não percebo porque é que o Tio Maury não mandou o Versh - disse a
Caddy. - O Versh não ia contar nada. - Mrs. Patterson estava à janela.
- Espera - disse a Caddy. - Agora não salas daqui. Eu não me demoro.
Dá cá a carta. - Tirou-me a carta do bolso. - Deixa-te estar com as
mãos nos bolsos. Saltou a cerca com a carta na mão e atravessou o
canteiro de flores castanhas, ressequidas e restolhantes. Mrs.
Patterson veio abrir a porta e ficou à espera.
Mr. Fatterson andava a cortar asfiores verdes. Parou de cortar e olhou
para mim. Mrs. Patterson atravessou o jardim a correr.
Quando vi os olhos dela comecei a chorar. Idiota, disse Mrs.
Patterson, já lhe dissepara não te voltar a mandar cá sozinho. Dá-ma
cá. Depressa. Mr. Patterson veio a correr, com a enxada. Mrs,
Patterson debruçou-se sobre a cerca, com a mão estendida. Estava a
tentar passarpara o outro lado. Dá-ma cá, já disse, àW-ma cá. Mr
Patterson saltou a cerca. Apanhou a carta. O vestido de Mrs. fatterson
ficou preso na cerca. Vi-lhe novamente os olhos efugipela encosta
abaixo.
- Pr'àquele lado não há mais nada a não sê casas - disse o Luster. -
Vamos ré lá baixo é riacho.
Estavam a lavar no riacho. Uma delas estava a cantar. Eu sentia o
cheiro da roupa a adejar ao vento e do fumo que pairava por cima do
riacho.
- Deixe-se ficá aqui em baixo - disse o Luster. - Não tem nada que
fazê lá em cima. Eles inda lh'acertam, vai ver.
- O qu'é qu'ele quê.
- Ele não sabe o que quê - disse o Luster. - Pensa que quê ir lá pa
cima onde andam a jogá à bola. Sente-se aqui a brincá ca sua erva-dodiabo.
Se quê vê alguma coisa, veja os miúdos a brincarem no riacho.
Por qu'é que não se há-de portá como toda a gente. - Sentei-me na
margem, onde elas estavam a lavá e de onde subia um fumo azulado.
- Alguém viu uma moeda de vinte e cinco cêntimos por aqui - disse o
Luster.
Que moeda.
14
- A que eu tinha esta manhã - disse o Luster. - Perdi-a por aqui.
Caiu-me por este buraco do bolso. Se não a encontrá, não posso ir logo
à noite ó espectáculo.
- Onde é qu'arranjaste vinte e cinco cêntimos, rapaz. Nos bolsos
d'algum branco quando ele não tava a vê.
- Arranjei onde arranjei - disse o Luster. - E há muito mais donde
estes vieram. Mas tenho d'os encontrá. Alguém os encontrou.
- Eu cá não ando atrás de moedas. Tenho o meu trabalho pa fazê.
- Venha cá - disse o Luster. - Ajude-me a procurá-los.
- Ele, s'os visse, nem sabia qu'eram vinte e cinco cêntimos, poi não.
- Mas mesmo assim quê procurá - disse o Luster. Então, vão todas é>
espectáculo logo à noite.

- Nem me fales em espectáculos. Quando sair deste lava- douro vou tão
derreada que nem me posso mexê, quanto mais ir a algum lado.
-Aposto que vais - disse o Luster. -Aposto qu@inda ontem
lá estiveste. Aposto que vão tá lá todas quando a tenda abrir.
-já lá há negros que cheguem. Ontem à noite havia.
- O dinheiro dos negros é tão bom como o dos brancos, acho eu.
- Os brancos dão dinheiro aos negros porque sabem qu'o apanham de
volta outra vez mal aparece um branco a tocá c'uma banda, e depois os
negros têm de ir trabalhá mais p'arranjarem mais dinheiro.
- Então não há quem te convença a ires ao espectáculo.
- Pa já, não. Mas vou pensá.
- Que tens tu contra os brancos.
- Não tenho nada contra eles. Eu sigo o meu caminho e os brancos que
sigam o deles. Esse espectáculo não me interessa.
- Há lá um homem que toca música com uma serra. Té parece que tá a
tocá banjo.
- Tu foste lá ontem - disse o Luster. - E eu vou lá hoje. Se descobrir
onde perdi a minha moeda.
- Vais levá-lo contigo, não.
15
- Quem, eu - disse o Luster. - Achas que tou pa sê visto por aí co
ele, quand'ele se pusé a berrá.
- Qu@é que fazes quand'ele começa a berrá.
- Bato-lhe - disse o Luster. Sentou-se e enrolou as calças de ganga.
Elas brincavam na água.
- Então, têm visto algumas bolas por aqui disse o Luster.
- Não digas palavrões. É melhor não dizeres isso o pé da tua avó.
O Luster entrou no riacho onde elas estavam a brincar. Começou a
procurar dentro de água, ao longo da margem.
- Tinh`a comigo quando viemos pr'aqui esta manhã - dis- se o Luster.
- Onde é qu@a perdeste.
- Foi aqui por este buraco do bolso - disse o Luster. Andavam todos à
procura. Depois, levantavam-se todos de repente e
paravam e depois punham-se a chapinhar e a lutar dentro de água. O
Luster encontrou-a e sentaram-se dentro de água a olhar para o alto da
colina por entre os arbustos.
- Onde tão eles - disse o Luster.
- Inda não os vejo.
O Luster meteu-a no bolso. Eles vinham pela encosta abaixo.
- Viram cair aqui uma bola.
- Deve estar na água. Nenhum de vocês a viu ou ouviu cair.
- Eu cá não ouvi cair nada - disse o Luster. - Ouvi foi qualqué coisa
batê além naquela árvore. Mas não sei onde foi pará.
Eles começaram a procurar no riacho.
- Cos diabos. Procurem bem no riacho. Ela veio para aqui, que eu vi.
Procuraram no riacho. Depois voltaram pela encosta acima.
- És tu que tens a bola - disse o rapaz.
- Pa qu'é qu'eu a queria - disse o Luster. - Eu cá não vi bola
nenhuma.
O rapaz meteu-se na água. Continuou a procurar. Voltou-se e olhou
outra vez para o Luster. Continuou a procurar pelo riacho abaixo.
O homem gritou caddie do alto da colina. O rapaz saiu da água e subiu
a encosta.
16
- Olhe só pa essa choradeira - disse o Luster. - Cale-se.
- Por qu'é qu'ele se pôs a chorá agora.
- Só Deus sabe - disse o Luster. - Dá-lhe p'ali e pronto. Tem tado
assim toda a manhã. É porque faz anos, acho eu.
- Quantos anos.

- Trinta e três - disse o Luster. - Fez trinta e três esta manhã.
- Então quê dizê qu' há trinta anos qu@ele tem três anos.
- Eu guio-me pelo que diz a 'nha avó - disse o Luster. Eu cá não sei.
Vamos pô trinta e três velas no bolo, isso é qu'eu sei. O bolo ré é
pequeno. Se calhá nem vai chegá pa tantas velas. Veja se se cala. Vá,
venha cá. - Veio ter comigo e puxou-me pelo braço. - Ah, seu pateta -
disse ele. Quê q&eu lhe bata.
- Aposto que lhe vais bater.
- já tenho batido. Vá, agora cale-se disse o Luster. - já lhe
disse que não pode ir lá pa cima. Eles arrancam-lhe a cabeça
com uma daquelas bolas. Venha p'aqui. - Puxou-me para trás.
- Sente-se. - Sentei-me e ele tirou-me os sapatos e enrolou-me as
calças. - Agora, trate de brincá e veja s'acaba com esse berreiro.
Eu calei-me e entrei na água e o Roskus veio e dissepara irmos
cear e a Caddy disse,
Ainda não são horas da ceia. Eu cá não vou. Estava toda molhada.
Estávamos a brincar no riacho e a Caddy baixou-se e molhou o vestido e
o Versh disse:
- A sua mãe vai batê-lhe por tê molhado o vestido.
- Não vai nada - disse a Caddy.
- Como é que sabes - disse o Quentin.
- Não interessa como é que sei - disse a Caddy. - E tu, como é que
sabes.
- Ela disse que te batia - disse o Quentin. - Além disso eu sou mais
velho do que tu.
- Eu tenho sete anos - disse a Caddy. - Sei muito bem.
- Mas eu sou mais velho - disse o Quentin. - Eu já vou à escola. Não
vou, Versh.
- Sabe bem qu@ela lhe bate quando molha o vestido - disse o Versh.
17
- Não está molhado - disse a Caddy. Pôs-se em pé dentro de água a
olhar para o vestido. - Vou tirá-lo e pô-lo a secar.
- Aposto que não és capaz - disse o Quentin.
- Aposto que sou - disse a Caddy.
- Acho melhor não - disse o Quentin. A Caddy aproximou-se do Versh e
de mim e virou as costas.
- Desabotoa-mo, Versh - disse ela.
- Não faças isso, Versh - disse o Quentin.
- Não tenho nada a vê co isso - disse o Versh.
- Desabotoa-me o vestido, Versh - disse a Caddy. - Se não, conto à
Dilsey o que fizeste ontem. - E o Versh desabotoou-lho.
- Tira o vestido - disse o Quentin. A Caddy tirou o vestido e atirou-o
para a margem. Não tinha mais nada vestido além do corpete e dos
culotes, e o Quentin deu-lhe uma bofetada e ela escorregou e caiu
dentro de água. Quando se levantou começou a atirar chapadas de água
ao Quentin e o Quentin começou a atirar chapadas de água à Caddy. O
Versh e eu ainda apanhámos uns salpicos e o Versh pegou em mim e
levou-me para a margem. Disse que ia fazer queixa da Caddy e do
Quentin, e aí o Quentin e a Caddy começaram a atirar água ao Versh e
ele escondeu-se atrás dum arbusto.
- Vou fazê queixa à 'nha mãe de vocês todos - disse o Versh.
O Quentin trepou pela margem acima para ver se apanhava o Versh, mas o
Versh fugiu e o Quentin não conseguiu apanhá-lo. Quando o Quentin
voltou para baixo, o Versh parou e disse aos gritos que ia contar
tudo. A Caddy disse-lhe que, se ele não contasse, o deixavam voltar lá
para baixo. Então o Versh disse que não ia contar e eles deixaram-no
voltar.
- Agora estás satisfeita, não estás - disse o Quentin. Agora vamos
apanhar os dois.
- Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu fujo.

- Isso é que era bom - disse o Quentin.
- Isso é que fujo. E nunca mais volto - disse a Caddy. Comecei a
chorar. A Caddy virou-se e disse Cala-te, e eu calei-me. Depois eles
puseram-se a brincar no riacho. O Jason tam18
bém. Mas brincava sozinho um pouco mais afastado. O Versh veio por
detrás do arbusto, pegou em mim e levou-me outra vez para a água. A
Caddy tinha a parte de trás do vestido toda suja de lama, e eu comecei
a chorar e ela veio ter comigo e sentou-se na água.
- Vamos, cala-te - disse ela. - Eu não vou fugir. - E eu calei-me. A
Caddy cheirava como as árvores quando apanham chuva.
O qu'é quefoi, disse o Luster. Não é capaz d:@icabá com essa
choradeira e brincá dentro d:ígua como toda agente.
Por qu'é que não o levas pa casa. Não te disseram pa não o deixares
sair de U.
Elepensa qu esteprado ind.1 lhespertence, disse o Luster. E depois ld
de casa ninguém o pode vê.
Mas podemos nós. E ninguém gosta d`olhá para um pateta. Dá azar.
O Rosicus veio chamar-nos para a ceia e a Caddy disse que ainda não
eram horas.
- São pois - disse o Rosicus. - E a Dilsey diz pa irem todos pa casa.
Trá-los todos, Versh. - E subiu a encosta pelo sítio onde a vaca
estava a mugir.
- Talvez a gente consiga secar até chegar a casa - disse o Quentin.
- A culpa foi toda tua - disse a Caddy. - Oxalá nos apanhem. - Vestiu
o vestido e o Versh abotoou-lho.
- Eles não vão percebê que se molhou - disse o Versh. Não se nota
nada. Só s'eu ou o Jason formos contar.
- Vais contar, Jason - disse a Caddy.
- Contá o quê - disse o Jason.
- Ele não vai contar nada - disse o Quentin. - Não vais, pois não,
Jason.
-Aposto que vai - disse a Caddy. - Ele vai contar à Vóvó.
- Ele não vai fazer isso - disse o Quentin. - Ela está doente. Se
formos devagar, quando chegarmos já vai estar escuro de mais para eles
notarem.
- Tanto se me dá que notem como não - disse a Caddy. Eu mesma vou
contar. Trá-lo pa cima, Versh.
19
- O Jason não vai dizer nada - disse o Quentin. - Lembras-te daquele
arco com flecha que eu te fiz, Jason.
-já está partido - disse o Jason.
- Deixa-o contar - disse a Caddy. - Estou-me nas tintas. Traz o Maury
pa cima, Versh. - O Versh agachou-se e eu trepei-lhe para as costas.
A gente encontr'ós logo no espectáculo, disse o Luster. Vá lá, temos
d'encontrá a moeda.
- Se formos devagarinho, já vai ser noite quando lá chegarmos - disse
o Quentin.
- Eu cá não vou devagar - disse a Caddy. Começámos a
subir a encosta, mas o Quentin não veio connosco. Ainda estava lá em
baixo no riacho quando chegámos ao sítio onde podíamos sentir o cheiro
dos porcos. Estavam a grunhir e a fossar na gamela a um canto da
pocilga. O Jason vinha atrás de nós com as mãos nos bolsos. O Roskus
estava a ordenhar a vaca à porta do estábulo.
As vacas saíram aospinotes do estábulo.
- Vamos - disse o T. E - O quê, já tá a chorá outra vez. Olhe qu@eu
tamém choro. Uáá Uáá. - O Quentin deu um pontapé ao T. E e atirou o T
P para dentro da gamela onde os porcos estavam a comer e o T. P. ficou
lá metido. - Caramba disse o T. R - Desta vez é que foi. Viu o qu'esse
branco me fez. luuupi.

- Eu não estava a chorar, mas não podia parar. Eu não estava a chorar,
mas o chão não estava quieto, e eu comecei a
chorar. O chão continuou a subir e as vacas a correr pela encosta
acima. O T. P. tentou levantar-se. Mas caiu outra vez e as vacas
desataram a correr pela encosta abaixo. O Quentin agarrou-me por um
braço e fomos para o estábulo. Mas o estábulo não estava lá e tivemos
de esperar que ele voltasse. Não o vi chegar. Veio por detrás de nós e
o Quentin sentou-me na
manjedoura das vacas. Agarrei-me a ela. Mas ela também ia a fugir e eu
agarrado a ela. Desta vez as vacas correram outra vez pela encosta
abaixo, e pela porta adentro. Eu não era capaz de parar. O Quentin e o
T. P. vinham a lutar pela encosta acima.
O T. P. caía pela encosta abaixo e o Quentin puxava-o peI@
20
encosta acima. O Quentin batia no T. P. E eu não era capaz de parar.
- Levanta-te - disse o Quentin. - Não saias daqui. Não te vás embora
enquanto eu não voltar.
- Eu e o Benjy vamos voltá para a boda - disse o T P. 1uupi.
O Quentin bateu outra vez no T. P. Depois começou a atirar o T. P. de
encontro à parede. O T. P. ria-se. De cada vez que o Quentin o atirava
de encontro à parede, ele tentava dizer Iuupi, mas o riso não o
deixava. Eu deixei de chorar, mas não conseguia parar. O T. R caiu em
cima de mim e a porta do estábulo desapareceu. Rolou pela encosta
abaixo e o T. P. começou a lutar sozinho e caiu outra vez. Ele
continuava a rir e eu não conseguia parar, e tentei levantar-me, mas
caí e não conseguia parar. O Versh disse:
- Agora é qu'à arranjou bonita. Está a ver. Veja lá s'acaba
com essa gritaria.
O T. P não conseguia parar de rir. Caiu por cima da porta, e
sempre a rir. - 1uupi - disse ele. - Eu e o Benjy vamos voltá pá boda.
Salsaparrilha - disse o T P
- Cala-te - disse o Vérsh. - Onde é qu'àrranjaste.
- Na adega - disse o T P. - 1uupi.
- Cala-te, já disse - disse o Vérsh. - N'adega, aonde?
- Por lá - disse o T P Pôs-se a rir outra vez. - Inda há lá mais de
cem garrafas. Mais de mil. Cuidado, negro. Olha qu'eu grito.
E o Quentin disse: Ajuda-o a levantar-se. E o Versh ajudou-me a
levantar.
- Bebe isto, Benjy - disse o Quentin. O copo estava quente. - Agora,
cala-te - disse o Quentin. - Vá, bebe.
- Salsaparrilha - disse o T. P. - Deixe-me bebé, Mr. Quentin.
- Cala a boca - disse o Vérsh. - Olha que Mr. Quentin dá-te uma surra.
- Agarra-o, Versh - disse o Quentin. Eles agarraram-me. O meu queixo e
a camisa estavam quentes. - Bebe - disse o Quentin. Seguraram-me na
cabe21
ça. Sentia-me quente por dentro e comecei outra vez a chorar. Chorava
e passava-se qualquer coisa dentro de mim e eu ainda chorava mais, e
eles seguraram-me até a tal coisa parar. Depois calei-me. Ainda estava
a andar à roda e foi então que comecei a
ver as coisas outra vez a passar. Abre a manjedoura, Versh. Agora
passavam devagar. Estende esses sacos vazios no chão. Mas depois
passavam mais depressa, depressa de mais. Agora. Pega-lhe nos pés. As
coisas continuavam a passar, suaves e brilhantes. Ouvia o T. P. a rirse.
Fui com eles pela encosta luminosa acima.
Ao chegarmos ao cimo, o Vershpousou-me no chão. - Venha, Quentin -
chamou ele, olhando para trás. Mas o Quentin ainda estava lá em baixo
ao pé da água. Ia a entrar nas sombras, junto ao riacho.
- Esse casmurro que fique lá em baixo - disse a Caddy. Pegou-me na mão
e depois de passarmos pelo estábulo entrámos pelo portão. Estava uma

rã no caminho empedrado, mesmo no
meio. A Caddy passou-lhe por cima e levou-me atrás.
- Anda, Maury - disse ela. Ela ainda lá estava quando o Jason lhe deu
um pontapé.
- Isto faz verrugas - disse o Versh. A rã foi-se embora aos saltos.
- Anda, Maury - disse a Caddy.
- Esta noite têm visitas - disse o Versh.
- Como é que sabes - disse a Caddy.
- As luzes estão todas acesas - disse o Versh. - Em todas as janelas.
- Eu cá acho que se podem acender as luzes todas mesmo sem ter visitas
- disse a Caddy.
- Aposto que são visitas - disse o Versh. - O melhor é entrarem todos
pelas traseiras e irem logo pa cima.
- Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu cá entro pela sala onde eles
estão.
- Aposto qu'o seu pai lhe bate se fizé isso - disse o Versh.
- Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu cá entro pela sala. E vou comer
a ceia para a casa de jantar.
- E onde é que se senta - disse o Versh.
22
- Sento-me na cadeira da Vóvó - disse a Caddy. - Ela
come na cama.
- Tenho fome - disse o Jason. Passou por nós a correr pelo carreiro
acima. Ia com as mãos nos bolsos e caiu. O Versh foi levantá-lo. - Se
fosse com as mãos fora dos bolsos, não caía disse o Versh. - Gordo
como é, nem teve tempo pa tirá-las pa fora pa s'agarrar.
O Pai estava cá fora perto dos degraus da cozinha.
- Onde está o Quentin - disse ele.
- Vem aí - disse o Versh. O Quentin vinha muito devagar. A camisa dele
era uma mancha branca esborratada.
- Oh - disse o Pai. A luz que vinha pelos degraus abaixo bateu-lhe em
cheio.
- A Caddy e o Quentin andaram a atirar água um ao outro
- disse o Jason.
Ficámos à espera.
- Ai andaram - disse o Pai. O Quentin chegou e o Pai disse: - Hoje têm
de cear na cozinha. - Baixou-se e pegou-me ao colo, e a luz que vinha
pelos degraus abaixo bateu-me também em cheio e eu olhei para baixo e
vi a Caddy e o Jason e o Quentin e o Versh. O Pai aproximou-se dos
degraus. - Têm de ficar calados, ouviram - disse ele.
- Temos de ficar calados porquê, Pai - disse a Caddy. Temos visitas.
- Temos - disse o Pai.
- Eu bem disse qu@erarri visitas - disse o Versh.
- Não disseste nada - disse a Caddy. - Eu é que disse que eram. Até
disse que...
- Calem-se - disse o Pai. Calaram-se. O Pai abriu a porta,
atravessámos a varanda e entrámos na cozinha. A Dilsey estava lá
dentro e o Pai sentou-me na cadeira e baixou o tabuleiro e
empurrou-me até à mesa onde já estava a ceia. Deitava muito fumo.
- Agora, façam o que a Dilsey mandar - disse o Pai. Não os deixes
fazer muito barulho, Dilsey.
- Si, sinhô - disse a Dilsey. O Pai foi-se embora.
- Não se esqueçam de que têm de fazer o que a Dilsey man23
dar - disse o Pai por detrás de nós. Debrucei-me sobre a mesa.
O fumo bateu-me na cara.
- Esta noite diga-lhes para fazerem o que eu mandar, Pai disse a
Caddy.
- Eu cá não - disse o jason. - Eu cá só faço o que a Dilsey mandar.
- Vais ter de fazer, se o Pai disser - disse a Caddy. - Diga-lhes para

fazerem o que eu mandar, Pai.
- Eu cá não - disse o jason. - Eu cá não faço o que tu mandares.
- Calem-se - disse o Pai. - Pronto, façam todos o que a Caddy mandar.
Quando acabarem, leva-os para cima pela escada das traseiras, Dilsey.
- Si, sinhô - disse a Dilsey.
- Pronto - disse a Caddy. - Agora têm de fazer todos o que eu mandar.
- Calem-se - disse a Dilsey. - Esta noite têm de tá sossegados.
- Por que é que temos de estar sossegados esta noite bichanou a Caddy.
- Isso não é da vossa conta - disse a Dilsey. - Hão-de sabê quando for
da vontade do Sinhô. - Pôs-me a tigela à frente. O vapor que dela saía
fazia-me cócegas na cara. - Vem cá, Versh
disse a Dilsey.
- Quando for da vontade do Senhor, Dilsey - disse a Caddy.
- Então isso é no domingo - disse o Quentin. - Não percebes mesmo
nada.
- Calem-se - disse a Dilsey. - Não ouviram Mr. Jason dizê-lhes pa
tarem calados. Vá, toc'à comê. Vem cá, Versh. Pega na colhé dele. - A
mão do Versh avançou para a tigela com a colher e meteu-a lá dentro. A
colher subiu até à minha boca. O vapor fazia-me cócegas dentro da
boca. Depois parámos de comer e ficámos calados a olhar uns para os
outros e então ouvimos aquilo outra vez e eu comecei chorar.
- O que era aquilo - disse a Caddy. E pôs a mão dela em cima da minha.
24
- Era a Mãe - disse o Quentin. A colher voltou a subir e eu abri a
boca e depois pus-me a chorar outra vez.
- Cala-te - disse a Caddy. Mas eu não me calei e ela veio e abraçoume.
A Dilsey foi fechar ambas as portas e assim nós já não ouvíamos
nada.
- Agora cala-te - disse a Caddy. Calei-me e comi. O Quentin é que não
estava a comer. Mas o Jason estava.
- Era a Mãe - disse o Quentin. Levantou-se.
- Sente-se imediatamente - disse a Dilsey. - Eles lá dentro com
visitas e o menino co essa roupa toda enlameada. Sente-se também,
Caddy, e acabe de comer.
- Ela estava a chorar - disse o Quentin.
- Era mas era alguém a cantar - disse a Caddy. - Era, não era, Dilsey.
- Vá, toc'à comê, como Mr. Jason mandou - disse a Dilsey. - Vão sabê o
qu'é quando for da vontade do Sinhô. - A Caddy voltou para o lugar
dela.
- Já disse que é uma festa - disse ela. E o Versh disse: - Ele já
comeu tudo.
- Traz-me a tigela dele - disse a Dilsey. A tigela desapareceu.
Dilsey - disse a Caddy. - O Quentin não está a comer
a cela. Então ele não tem de fazer o que eu mandar.
- Coma a ceia, Quentin - disse a Dilsey. - Têm todos de comê tudo pa
depois saírem da cozinha.
- Eu não quero mais - disse o Quentin.
- Tens de comer tudo, se eu mandar - disse a Caddy. Tem, não tem,
Dilsey.
A tigela deitava-me vapor para a cara e a mão do Versh metia a colher
lá dentro e o vapor fazia-me cócegas na boca.
- Não quero mais - disse o Quentin. - Como é que eles podem dar uma
festa com a Vóvó doente.
- A festa é cá em baixo - disse a Caddy. - Ela pode vir para o patamar
e ficar a assistir. É o que eu vou fazer depois de vestir a camisa de
dormir.
- A Mãe estava a chorar - disse o Quentin. - Estava a chorar, não
estava, Dilsey.
25

- Não me venWatentá - disse a Dilsey. - Tenho de fazê a ceia p'àquela
gente toda assim que vocês acabarem de comê.
Daí a pouco, até o Jason já tinha acabado de comer, e começou a
chorar.
- Pronto, agora tinha de sê este - disse a Dilsey.
- Ele faz sempre isto desde que a Vóvó adoeceu e ele deixou de poder
dormir com ela - disse a Caddy. - Bebé chorão.
- Vou fazer queixa de ti - disse o Jason. Continuou a chorar. - já
fizeste - disse a Caddy. - Agora, já não tens mais nada para contar.
- O qu'os meninos precisam é de ir pá cama - disse a Dilsey.
Aproximou-se de mim, tirou-me da cadeira, pôs-me no chão e limpou-me a
cara e as mãos com um pano quente. - Versh, és capaz de os levar lá pa
cima pela escada das traseiras, sem fazê barulho. Vá, Jason, pare lá
co essa choradeira.
- Ainda é muito cedo para irmos para a cama - disse a Caddy. - Nunca
temos de ir para a cama tão cedo.
- Mas hoje têm - disse a Dilsey - O vosso pai disse pa irem
direitinhos lá pa cima quando acabassem de comê. Bem ouviram.
- Ele disse para fazerem o que eu mandasse - disse a Caddy.
- Eu não faço o que tu mandares - disse o Jason.
- Tens de fazer - disse a Caddy. - Vá, têm de fazer todos o que eu
disser.
- Fá-los calá, Versh - disse a Dilsey. - Vocês vão ficá todos calados,
não vão.
- Por que é que temos de estar tão calados esta noite - disse a Caddy.
- A sua mãe não se sente bem - disse a Dilsey. - Vá, agora vão todos
co Versh.
- Eu bem vos disse que a Mãe estava a chorar - disse o Quentin. O
Versh pegou-me ao colo e abriu a porta das traseiras. Saímos e o Versh
voltou a fechar a porta. Eu sentia o cheiro do Versh e podia tocarlhe.
Agora, fiquem todos calados. Nós não vamos ainda lá para cima.
Mr. Jason disse pa irem direitinhos lá pa cima. O que ele disse foi
para fazerem o que eu man26
dasse. Eu cá não vou fazer o que tu mandares. Mas ele disse para
fazermos todos. Disse, não disse, Quentin. Eu sentia a cabeça do
Vérsh. E ouvia as nossas vozes. Disse, não disse, Versh. Tá bem,
disse. Por isso eu digo para irmos lá para fora um bocadinho. Vamos. O
Versh abriu a porta e saímos todos.
Descemos os degraus.
- Acho que o melhor é irmos para casa do Vérsh, para não fazermos
barulho - disse a Caddy. O Versh pôs-me no chão e a Caddy deu-me a mão
e fomos todos por ali fora encostados ao
muro de tijolo.
- Anda - disse a Caddy. - A rã já se foi embora. A estas horas já
fugiu para o jardim. Pode ser que a gente veja outra. O Roskus passou
com os baldes do leite e seguiu o seu caminho. O Quentin não veio
connosco. Ficou sentado nos degraus da cozinha. Nós fomos até à casa
do Vérsh. Gosto do cheiro da casa do Versh. A lareira estava acesa e o
T P estava de cócoras diante do lume, emfralda de camisa, a atiçar as
brasas.
Então eu levantei-me e o T. P. vestiu-me e fomos comer para a cozinha.
A Dilsey estava a cantar e eu comecei a chorar e ela parou.
- Não o deixes vir cá pa casa agora - disse a Dilsey.
- Mas não podemos ir p'ali - disse o T. P. Fomos brincar para o
riacho.
- Por ali não podemos ir - disse o T. R - Não sabem que a'nha mãe
disse que não podemos.
A Dilsey estava a cantar na cozinha e eu comecei a chorar.
- Cale-se - disse o T. P - Vá, vamos té ao estábulo.
O Rosicus estava no estábulo a ordenhar as vacas. Estava a ordenhar só

com uma mão e a resmungar. Estavam uns pássaros empoleirados na porta
do estábulo a olhar para ele. Um deles voou para o chão e veio comer
com as vacas. Fiquei a ver o Roskus a ordenhar as vacas enquanto o T.
P. foi dar de comer à Queenie e ao Prince. A vitela estava na pocilga.
Dava focinhadas na
rede e berrava.
- T. P. - disse o Roskus. - O T. P. disse Estou aqui no
estábulo. A Fancy esticava a cabeça por cima da porta porque o
T. P. ainda não lhe tinha dado de comer. - Despacha-te - dis27
se o Roskus. - Tens de vir rirá o leite. já não consigo mexê a mão
direita.
O T P foi acabar de tirar o leite.
- Por que não chama o médico - disse o T. R
- O médico não adianta nada - disse o Roskus. - Não aqui, neste lugá.
- O qu'é que tem este lugá - disse o T P
- Este lugá traz má sorte - disse o Roskus. - Traz a vitela pá dentro
quando acabares.
Este lugá traz má sorte, disse o Roskus. Afogueira subia e descia por
trás dele e do Versh, deslizando pela cara dele epela do Versh. A
Dilsey meteu-me na cama. A cama cheirava como o T P Eu gostava daquele
cheiro.
- Que sabes tu disso - disse a Dilsey. - Tiveste alguma visão.
- Não preciso de tê visões - disse o Roskus. - Pois então não está ali
uma prova deitada naquela cama. Pois então não tem havido provas de há
quinze anos pá cá, pá que todos vejam.
- Talvez - disse a Dilsey. - Mas não te aconteceu mal nenhum, nem a ti
nem è@s teus, pois não. O Versh arranjou trabalho, a Frony casou-se e
já não te pesa e o T. P. já tá capaz d'ocupá o teu lugá quando o
reumático tomá conta de ti.
- Té agora aconteceram duas coisas - disse o Roskus. - E vem outra por
aí. Eu vi o sinal. E tu também.
- Esta noite ouvi piá o mocho - disse o T. P. - E o Dan não queria vir
comer. Não passava do estábulo. E desatou a uivá
assim que anoiteceu. O Versh ouviu-o.
- E não vai ficá por aqui - disse a Dilsey. - Mostra-me um homem que
não vá morrer, Deus seja louvado.
- Morrê não é o pior - disse o Roskus.
- Eu sei no que tu tás a pensá - disse a Dilsey. - E não traz boa
sorte dizeres esse nome, a menos que te queiras havê com ele quando
desatá a chorar.
- Este lugá traz má sorte - disse o Roskus. - Soube disso logo no
princípio, mas quando lhe mudaram o nome, então é qu'eu acreditei
friesmo.
Cala essa boca - disse a Dilsey. Puxou-me os cobertores
28
para cima. Cheiravam como o T. E - Agora, fiquem calados ré ele
adormecer.
- Eu vi o sinal - disse o Roskus.
- Só se for sinal qu'o T. P. tem de fazê todo o trabalho por ti disse
a Dilsey. Lev'o'pa casa, a ele e à Quentin, T P, e deix'o's brincá co
Luster onde a Frony ospossa vigiã, e tu vai aju,@U o teupai.
Acabámos de comer. O T. P pegou na Quentin e fomos para casa do T P. O
Luster estava a brincar na terra. O T. P. pôs a Quentin no chão e ela
pôs-se também a brincar na terra. O Luster tinha umas bobinas e ele e
a Quentin começaram a lutar e o Quentin ficou com as bobinas. O Luster
pôs-se a gritar e a Frony veio e deu uma lata ao Luster para ele
brincar, e então eu peguei nas bobinas e a Quentin começou a lutar
comigo e eu desatei a gritar.
- Cale-se - disse a Frony. - Não tem vergonha de tirá os brinquedos a

um bebé. - Tirou-me as bobinas da mão e deu-as de novo à Quentin.
- Cale-se - disse a Frony. - Tá mesmo a pedi-Ias. Ai isso é que tá. -
Pegou no Luster e na Quentin. - Venha daí - disse ela. Fomos até ao
estábulo. O T. R estava a ordenhar a vaca. O Roskus estava sentado num
caixote.
- O qu'é qu@eIe tem agora - disse o Roskus.
- Não o pode deixá sair daqui - disse a Frony. - Anda outra vez à
bulha cas crianças. Tira-lhes as coisas. Fique aqui co
T. P. e veja se se cala um bocadinho.
- Limpa-me bem esse úbere - disse o Roskus. - O Inverno passado tanto
ordenhaste a novilha qu'a secaste. Se secas esta, adeus leite.
A Dilsey estava a cantar.
- Por ali não - disse o T. R - Não sabe qu'a'nha mãe disse pa não
passarmos por ali.
Eles estavam a cantar.
- Venha - disse o T. R - Vamos brincá ca Quentin e co
Luster. Venha daí. - A Quentin e o Luster estavam a brincar no chão em
frente à casa do T. R Lá dentro estava uma fogueira acesa, a subir e a
descer, e a figura do Roskus, toda preta, desenhava-se em frente do
lume.
29
- E vão três, o Sinhô seja louvado - disse o Roskus. Disse-to há dois
anos. Esta casa traz má sorte.
- Então por qu'é que não te vais embora - disse a Dilsey. Despiu-me. -
Foram essas tuas histórias sobre a má sorte que meteram na cabeça do
Versh a ideia de ir pa Memphis. Deves tá satisfeito.
- Se tudo o que acontecê de mal ao Versh for isso - disse o Roskus.
A Frony entrou.
- já acabaram - disse a Dilsey.
- O T. R está quase despachado - disse a Frony. - Miss Ca'line quê que
vossemecê vá deitá a Quentin.
- Vou assim que pudé - disse a Dilsey. - Ela já devia sabê qu'eu não
tenWasas.
- É o qu'eu te digo - disse o Roskus. - Não dá sorte ficá num lugá
onde o nome dum dos filhos nunca é pronunciado.
- Cala-te - disse a Dilsey. - Queres qu'ele comece outra vez.
- Criá uma criança sem lhe dizê o nome da própria mãe disse o Roskus.
- Não te preocupes com ela - disse a Dilsey. - Eu criei-os a todos e
acho que posso criá mais esta. E agora cala-te. Vamos vê s'ele
consegue adormecer.
- Dizê o nome - disse a Frony. - Ele não conhece o nome de ninguém.
- Experimenta dizê-lo e verás se não conhece - disse a Dilsey. -
Experimenta dizê-lho quando ele tivé a dormi e aposto que te ouve.
- Ele sabe muito mais do qu'a gente pensa - disse o Roskus. - Ele
sabia qu'a hora deles tinha chegado, como esse cão também sabia. E, se
pudesse falar, era capaz de dizê quando vai chegá a hora dele. Ou a
tua. Ou a minha.
- Tire o Luster dessa cama, mãe - disse a Frony. - Esse aí é capaz de
lhe deitá mau olhado.
- Cal'à boca - disse a Dilsey. - É só essa a tua esperteza. Pa que dás
ouvidos ao Roskus. Meta-se na cama, Benjy_
A Dilsey empurrou-me e eu meti-me na cama, onde já estava
30
o Luster. Estava a dormir. A Dilsey pegou numa tábua comprida e meteua
entre mim e o Luster. - Agora, deixe-se tá do seu lado - disse a
Dilsey. - O Luster é pequenino e não o quê magoá, poi não.
Ainda não pode ir, disse o T P Pere aí. Olhámos para lá da esquina da
casa e vimos as caleches a afastarem-se.
- Agora - disse o T. P. Pegou na Quentin e corremos até à esquina da

cerca e ficámos a vê-Ias passar. - Lá vai ele - disse o T. P - Vêem
aquela envidraçada. Olhem pa ele. Lá vai ele deitado. Vêem.
Vamos, disse o Luster, vou levá esta bolapa casa, pa onde não a
perca. Não sínhô, não podeficã co ela. S;iqueles homens o vêem co ela,
vão dizê qu:i roubou. Agora, cale-se. Não podeficá co ela. Epa qu éque
a quer. Não podejogá à bola.
A Frony e o T. P estavam a brincar na terra do lado de fora da porta.
O T. R tinha metido pirilampos numa garrafa.
- Como é que vocês já estão aqui outra vez - disse Frony.
- Temos visitas - disse a Caddy. - O Pai disse para todos fazerem o
que eu mandasse. Acho que tu e o T. P. também.
- Eu cá não faço - disse o Jason. - E a Frony e o T. P. também não têm
de fazer.
- Se eu quiser, têm - disse a Caddy. - Mas sou capaz de não os
obrigar.
- O T R não faz o que ninguém manda - disse a Frony. Sabem se o
funeral já começou.
- O que é um funeral - disse o Jason.
- A nossa mãe não te disse pa não lhes dizês nada - disse o Versh.
- Onde vai sê o pranto - disse a Frony. - Quando foi da Irmã Beulah
Clay, o pranto durou dois dias.
Oprantofoi em casa da Dilsey. A Dilsey estava a chorar. Quando ela
estava a chorar o Luster disse Calem-se e nós caumo-nos, e
então eu comecei a chorar e o Bluepôs-se a uivar no vão da escada da
cozinha. Então a Dilseyparou e nósparámos.
- Oh - disse a Caddy. - Isso é os negros. Os brancos não fazem
prantos.
31
- A nossa mãe disse-nos pa não lhes dizermos nada, Frony disse o
Versh.
- Dizer o quê - disse a Caddy. A Dilsey estava a chorar e quando o
choro se ouviu U em casa eu comecei também a chorar e o Bluepôs-se a
uivar debaixo das escadas. Luster, disse a Frony da janela. Lev'O's pb
estábulo. Não posso fazê a comida com toda esta barulheira. E esse cão
tamém. Lev,O's daquípajora.
Eu não querir, disse o Luster. Posso encontrá o vô. Vi-o ontem à noite
no estábulo, a esbracíjar.
- Sempre gostava de sabê porquê - disse a Frony. - Os brancos tarn@ém.
morrem. A sua avó tá tão morta como qualqué negra pode tá, acho eu.
- Os cães é que estão mortos - disse a Caddy. - E a Nancy, quando caiu
na vala e o Roskus lhe deu um tiro e os abutres vieram e a despiram
toda.
Os ossos saíam da vala a toda a volta, onde os galhos tisnados estavam
metidos na cova preta a brilharem ao luar como se algumas das tais
coisas tivessem parado. Depois, as coisas pararam todas e ficou tudo
escuro e, quando eu parei para começar outra
vez, ouvi a Mãe e passos a afastarem-se depressa, e eu sentia-lhe o
cheiro. Depois o quarto chegou, mas os meus olhos fecharam-se. Eu não
parei. Sentia-lhe o cheiro. O T. P. tirou os alfinetes que prendiam os
lençóis.
- Cale-se - disse ele. - Chhhhh. Mas eu sentia-lhe o cheiro. O T. P.
pegou-me ao colo e vestiu-me num instante.
- Cale-se, Benjy - disse ele. - Vamos pa minha casa. Quê ir pa nossa
casa, onde tá a Frony. Vá, cale-se. Chhhhh.
Atou-me os sapatos, pôs-me o boné na cabeça e saímos. Havia uma luz
acesa no vestíbulo. Ouvimos a Mãe lá dentro.
- Chhhhh, Benjy - disse o T. R - Vamos já sair. Uma porta abriu-se e
eu senti-lhe o cheiro mais do que nunca. Apareceu uma cabeça. Não era
o Pai. O Pai estava doente lá dentro.
Por que não o levas lá para fora. É lá pa fora que vamos - disse o T.

P. A Dilsey vinha a subir as escadas.
32
- Cale-se - disse ela. - Cale-se. Leva-o lá pa casa, T. P. A Frony tá
a fazê-lhe a cama. Agora, tomem vocês conta dele. Cale-se, Benjy. Vá
co T. P.
Ela entrou para o sítio donde vinha a voz da Mãe.
- É melhor deixá-lo lá ficar. - Não era a voz do Pai. Ele fechou a
porta, mas eu mesmo assim sentia-lhe o cheiro.
Descemos os degraus onde estavam as nossas sombras. Esqueci-me do seu
casacão - disse o T P. - Era melhor trazê-lo. Mas agora não volto pa
trás.
O Dan estava a uivar.
- Agora, cale-se - disse o T R As nossas sombras moviam-se, mas a
sombra do Dan não se movia senão quando ele uivava.
Não o posso levá lá pa casa a berrá dessa maneira - disse o T P. - já
berrava que chegasse mesmo antes de tê arranjado esse vozeirão. Vá,
vamos lá.
Seguimos rentes à parede de tijolo seguidos pelas nossas sombras. A
pocilga cheirava a porcos. A vaca estava no estábulo a ruminar e a
olhar para nós. O Dan uivava.
- Vai acordá a cidade inteira - disse o T. R - Vej a se se cala. Vimos
a Fancy a pastar junto ao riacho. A lua brilhava na água quando lá
chegámos.
- Não, sinhô - disse o T. R - Ainda estamos muito perto. Não podemos
pará aqui. Vamos. Olhe só pó que fez. Molhou a perna toda. Venha por
aqui. - O Dan estava a uivar.
A vala surgiu de repente no meio da erva sussurrante. Os ossos saíam a
toda a volta entre os galhos negros.
- Agora - disse o T. P. - grite p'aí quanto quiser. Tem a
noite toda à sua frente e este pasto todo pa gritá à vontade.
O T. P. deitou-se na vala e eu sentei-me a olhar para os ossos
no sítio onde os abutres comeram a Nancy, saindo depois a
esvoaçar, negros e pesados, batendo as asas devagar.
Eu tinha-a comigo quando aqui tivemos antes, disse o Luster. Té lha
mostrei. Não a viu. Tirei-a do bolso aqui mesmo e mostrei-lha.
- Se julgas que os abutres vão despir a Vóvó - disse a Caddy -, deves
ser maluco.
- E tu és uma grande burra - disse o Jason. E começou a chorar.
- E tu és um bucha - disse a Caddy. O Jason chorava. Tinha as mãos nos
bolsos.
- O Jason há-de sê um homem muito rico - disse o Versh. Tá sempre a
agarrá o dinheiro.
O Jason chorava.
- Agora puseste-o a chorar - disse a Caddy. - Cala-te, Jason. Como é
que os abutres podem entrar no sítio onde a Vóvó está. O Pai não ia
deixar. Tu não deixavas que um abutre me despisse, pois não? Agora
cala-te.
O Jason calou-se. - A Frony disse que era um funeral disse ele.
- Mas não é - disse a Caddy. - É uma festa. A Frony não sabe nada de
nada. Ele quer os teus pirilampos, T. P. Deixa-o pegar neles um
bocadinho.
O T P. deu-me a garrafa com os pirilampos.
- Aposto que se formos até à janela da sala conseguimos ver
alguma coisa - disse a Caddy. - E então já acreditam em mim.
- Eu já sei o qu'é - disse a Frony. - Eu cá não preciso d'ir vê.
- É melhor calares a boca, Frony - disse o Versh. - Olha qu'a mãe
vai-te batê.
- O que é que foi - disse a Caddy.
- Eu sei aquilo que sei - disse a Frony.

- Vamos - disse a Caddy. - Vamos para a parte da frente. E lá fomos.
- O T. R quê os pirilampos de volta - disse a Frony.
- Deixa-o ficar com eles mais um bocadinho, T P. - disse a Caddy. -
Nós já tos trazemos de volta.
- Não foram vocês qu'os apanharam - disse a Frony.
- Se eu disser que tu e o T. P. também podem vir, deixa-lo ficar com a
garrafa mais um bocadinho - disse a Caddy. Ninguém disse que eu e o T.
R tínhamos de IWobedecê - disse a Frony.
- E, se eu disser que não têm, deixam-no ficar com ela disse a Caddy.
- Tá bem - disse a Frony. - Deix'è ficá com ela, T. P. Anda vê !o.-
chorar.
34
Eles não estão a chorar - disse a Caddy. - já vos disse que e uma
festa. Eles não estão a chorar, pois não, Versh.
- Se aqui ficarmos, não vamos descobrir o qu'é qu'eles tão a fazê -
disse o Versh.
- Vamos - disse a Caddy. - A Frony e o T. P. não têm de fazer o que eu
mando. Mas vocês têm. É melhor seres tu a levá-lo, Versh. Está a ficar
escuro.
O Versh pegou em mim e contornámos a cozinha pelo lado de fora.
Quando chegámos à esquina e olhámos, vimos as luzes a virpelo caminho
acima. O T P voltou para trás para a porta da adega e abríu-a.
Sabem o que qu'há lá em baixo, disse o T P Gasosa. Vi Mr. Jason sair
de U cas mãos cheias de garrafas. Esperem aí u m bocadinho.
O T Pfoi espreitar à porta da cozinha. A Dilsey disse, Ta qu'é que tás
a espreitá. Onde tá o Benjy.
Nós tamos aqui, disse o T P Vai tomá conta dele, disse a Dilsey. Não o
deixes virpa dentro de casa.
Sissiô, disse o T P Elesjá começaram. Vaí-te embora e não me deixes
esse rapaz vírp:2qui, disse a Díls£y já tenho trabalho que chegue.
Uma cobra saiu a rastejar de debaixo da casa. O Jason disse que não
tinha medo das cobras e a Caddy disse que ele tinha, mas que ela não,
e o Versh disse que tinham os dois e a Caddy disse-lhe que se calasse,
como o Pai tinha mandado.
Agora não comece a berrá, disse o T P Quê salsaparrilha. A
salsaparrilhafez-me cócegas no nari .z e nos olhos. Se não vai bebêla,
(iè cá, disse o T P Pronto, tome,4@. O melhor é irmos buscá outra
garrafa enquanto não aparece ninguém. Agora fique calado.
Parámos debaixo da árvore junto à janela da sala. O Versh sentou-me na
relva molhada. Estava fria. As janelas estavam
todas iluminadas.
- É ali que está a Vóvó - disse a Caddy. - Ela agora está doente todos
os dias. Quando ficar boa vamos fazer um piquenique.
35
- Eu sei aquilo que sei - disse a Frony. As árvores sussurravam. E a
relva também.
- O outro quarto ao lado é para onde vamos quando temos sarampo -
disse a Caddy. - Para onde é que tu e o T. P. vão quando têm sarampo,
Frony.
- Ficamos no sítio onde tamos, acho eu - disse a Frony.
- Eles ainda não começaram - disse a Caddy. Tão a prepará-sepa começa,
disse o T P Agorafiquem aqui enquanto eu vou buscá aquele caixotepa
podermos chegá àjanela. Tomem, tocà bebé a salsaparrilha toda. A
mimfaz-me sentir como
se tivesse um mocho na barríga.
Bebemos a salsaparrilha toda e o T. P. enfiou a garrafa pela persiana,
empurrou-a para debaixo da casa e foi-se embora. Eu ouvia-os na sala e
agarrei-me à parede. O T. E trazia o caixote de rastos. Caiu e pôs-se
a rir. Estava deitado na relva a rir. Levantou-se e puxou o caixote

para debaixo da janela, fazendo esforços para não se rir.
-Acho que vou desatá a rir às gargalhadas - disse o T R Ponha-s'em
cima do caixote pa vê se já começaram.
- Ainda não começaram porque a música ainda não chegou disse a Caddy.
- Não vai havê música nenhuma - disse a Frony.
- Como é que sabes - disse a Caddy.
- Sei porque sei - disse a Frony.
- Tu não sabes nada de nada - disse a Caddy. E foi para junto da
árvore. - Ajuda-me a subir, Versh.
- O seu pai disse pa não trepá a essa árvore - disse o Versh.
- Isso foi há muito tempo - disse a Caddy. -já se deve ter esquecido.
E depois ele disse que esta noite tinham de fazer o que eu mandasse.
Disse ou não disse.
- Eu não vou fazer - disse o Jason. - E a Frony e o T. R também não.
- Aj uda-me a subir, Versh - disse a Caddy.
- Tá bem - disse o Versh. - Não sou eu que vou apanhá. Pegou na Caddy
e levantou-a até ela chegar ao ramo mais baixo. Víamos-lhe a traseira
dos culotes toda suja de lama. Depois deixámos de a ver. Só ouvíamos
os ramos a abanar.
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- Mr. jason disse que lhe bate se partir a árvore - disse o Versh.
- Eu cá também vou fazer queixa - disse o jason. A árvore deixou de
abanar. Olhámos todos para cima para os ramos imóveis.
- O qu'é que tá a vê - bichanou a Frony. Eu via-os. E então vi a Gaddy
comflores no cabelo e um véu longo e brilhante como o vento.
- Chhhh - disse o T. P. - São capazes de a ouvir. Desça daí. - Puxoume.
Caddy. Agarrei-me à parede com unhas e dentes Caddy. O T P. puxoume.
- Chhl-ih - disse ele. Cale-se, Benjy. Quê qu'o oiçam. Venha daí.
Vamos bebé mais salsaparrilha, e depois voltamos p'aqui se prometê
ficá calado. É melhor irmos buscá mais uma garrafa, senão 'Irida
acabamos os
dois à bulha. Podemos dizê que foi o Dan qu'a bebeu. Mr. Quentin está
sempre a dizê qu@ele é tão esperto que nós podemos dizê qu'ele tamém
gosta de salsaparrilha.
O luar descia pelas escadas da adega. Bebemos mais salsapar- rilha.
- Sabe o qu@é qu'eu queria - disse o T. P - Queria q'um
urso entrasse naquela adega. Sabe o qu'é qu'eu lhe fazia. Chegava-me a
ele e cuspia-lhe num olho. Dê cá essa garrafa pa vê s'eu lhe meto
alguma coisa na boca antes de começá a gritar.
O 1 E caiu. Desatou a rir e a porta da adega e o luar desapareceram de
repente e eu senti qualquer coisa bater-me.
- Cale-se - disse o T. P., fazendo esforços para não se rir.
Santo Deus, assim toda a gente nos vai ouvir. Levante-se disse o T. P.
- Depressa, Benjy, levante-se. - Ele rebolava-se no chão a rir às
gargalhadas e eu tentei levantar-me. Os degraus da adega subiam até ao
luar, e o T. P. correu aos tropeções por ali acima até sair para a luz
e eu corri até chocar com a cerca e o T P. atrás de mim a dizer "Calese.
Cale-se". Depois caiu por cima das flores a rir e eu corri para o
caixote. Mas quando tentei trepar-lhe para cima ele deu um salto e
fúgiu-me e bateu-me na nuca e da minha garganta saiu um som.
Depois voltou a fazer o mesmo e eu desisti de me levantar e o som saiu
outra vez e eu comecei a chorar. Mas a minha gar37
ganta não parava de fazer barulho enquanto o T. P. me arrastava. O
barulho não parava e eu já não sabia se estava a chorar ou não, e o T.
P. caiu por cima de mim às gargalhadas, e a garganta sempre a fazer o
mesmo barulho, e o Quentin deu um pontapé no T. R e a Caddy pôs-me os
braços à volta do pescoço, e o seu
véu luminoso, e eu já não sentia o cheiro das árvores e comecei a
chorar.

Benjy, disse a Caddy, Benjy. Pôs-me outra vez os braços à volta do
pescoço, mas eu esquívei-me. - O que foi, Benjy - disse ela.
- Foi este chapéu. - Tirou o chapéu e aproximou-se outra vez, e eu
afastei-me. - Benjy - disse ela. - O que foi, Benjy, o que foi que a
Caddy fez.
- Ele não gosta desse vestido todo triques - disse o Jason. Julgas-te
muito crescida, não julgas. Julgas que és melhor que os outros todos,
não julgas.
- Cala-te, Benjy - disse a Caddy. - Olha que incomodas a Mãe. Cala-te.
Mas eu não me calei e quando ela se foi embora fui atrás dela e ela
parou nas escadas e ficou à espera e eu também parei.
- O que queres, Benjy - disse a Caddy. - Pede à Caddy. Ela faz.
Experimenta.
- Candace - disse a Mãe.
- Sim - disse a Caddy.
- Por que estás a arreliá-lo - disse a Mãe. - Trá-lo para aqui.
Fomos para o quarto da Mãe, onde ela estava deitada com a doença
metida num pano que tinha na cabeça.
- O que é que foi desta vez, Benjamin - disse a Mãe.
- Benjy - disse a Caddy. Velo ter comigo outra vez, mas eu virei-lhe
as costas.
- Alguma tu lhe fizeste - disse a Mãe. - Por que não o
deixas em paz, para eu poder ter um pouco de sossego. Dá-lhe a
caixa e Poi: favor vai-te embora e deixa-o em paz.
A Caddy foi buscar a caixa, pousou-a no chão e abriu-a. Estava cheia
de estrelas. Quando eu estava quieto, elas estavam quietas. Quando eu
me mexia, elas brilhavam e cintilavam. Calei-me.
Nisto, ouvi os passos da Caddy e comecei outra vez.
38
- Benjamin - disse a Mãe. - Vem cá. - Fui até à entrada da porta. -
Ai, ai, Benjamin - disse a Mãe.
- O que foi agora - disse o Pai. - Onde vais.
- Leva-o lá para baixo e arranja alguém para tomar conta dele, Jason -
disse a Mãe. - Sabes que estou doente, mas mesmo assim
Saímos do quarto e o Pai fechou a porta.
- T. P - disse ele.
- Siô - disse o T P lá de baixo.
- O Benjy vai descer - disse o Pai. - Vai ter com o T P., Benjy.
Fui até à porta da casa de banho. Ouvia a água lá dentro.
- Benjy - disse o T P de lá de baixo. Eu ouvia a água. Pus-me à
escuta.
- Benjy - disse o T. R de lá de baixo. Eu estava a ouvir a água.
Deixei de ouvir a água e a Caddy abriu a porta.
- Oli, Benjy - disse ela. Pôs-se a olhar para mim e eu fui ter com ela
e ela abraçou-me. - Encontraste a Caddy outra vez
- disse ela. - Julgavas que a Caddy tinha fugido. - A Caddy cheirava
como as árvores.
Fomos para o quarto da Caddy. Ela sentou-se ao espelho. Parou de mexer
com as mãos e olhou para mim.
- Que tens Benjy - disse ela. - Não chores. A Caddy não se vai embora.
Queres ver - disse ela. Pegou no frasco, tirou a rolha e aproximou-mo
do nariz. É bom. Cheira. Que bom.
Eu fui-me embora, mas não me calei, e ela ficou com o frasco na mão a
olhar para mim.
- Oh - disse ela. Pousou o frasco, velo ter comigo e abraçou-me. -
Então era isso que tu querias dizer à Caddy e não eras capaz. Querias,
mas não eras capaz, pois não. Claro que a Caddy não vai fazer uma
coisa dessas. Claro que não. Espera só até eu me vestir.
A Caddy vestiu-se, pegou outra vez no frasco e fomos para a cozinha.
Dilsey - disse a Caddy -, o Benjy tem um presente para

39
ti. - Baixou-se e pôs-me o frasco na mão. - Agora dá-o à Dilsey. - A
Caddy pegou-me na mão, estendeu-a e a Dilsey pegou no frasco.
- Si, sinhô - disse a Dilsey. - Não é que o meu menino deu à Dilsey um
frasco de perfume. Olha só pa isto, Roskus.
A Caddy cheirava como as árvores. - Nós não gostamos de perfume -
disse a Caddy.
Ela cheirava como as árvores.
- Então, então - disse a Dilsey. - já tá muito crescido pa dormir
acompanhado. Já tá um homenzinho. Treze anos. já tem idade pa dormir
sozinho no quarto do Tio Maury - disse a Dilsey.
O Tio Maury estava doente. Tinha um olho doente e a boca também. O
Versh levou-lhe a ceia ao quarto num tabuleiro.
- O Maury diz que dá um tiro naquele patife que o mata disse o Pai. -
Disse-lhe que por enquanto o melhor era não falar nisso ao Patterson.
- Bebeu um gole.
- jason - disse a Mãe.
- Ele vai matar quem, Pai - disse o Quentin. - Por que é que o Tio
Maury lhe quer dar um tiro.
- Porque não foi capaz de encaixar uma piada - disse o Pai.
- jason - disse a Mãe. - Como podes dizer uma coisa dessas. Eras bem
capaz de ficar a ver o Maury cair numa emboscada, e ainda te rias por
cima.
- Então é melhor que o Maury não cala numa emboscada disse o Pai.
- Dar um tiro em quem, Pai - disse o Quentin. - Em quem é que o Tio
Maury vai dar um tiro.
- Em ninguém - disse o Pai. - Eu nem pistola tenho. A Mãe começou a
chorar. - Se é de má vontade que o sustentas, por que não tens a
coragem de lho dizer na cara. Agora, francamente, rires-te dele em
frente das crianças, sem ele estar presente,
- Mas eu não faço isso - disse o Pai. - Eu até admiro o Maury. É
inestimável para o meu sentido de superioridade racial. Não trocava o
Maury por uma parelha de puros-sangues. E sabes porquê, Quentin.
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- Não senhor - disse o Quentin.
- Et ego in arcadia esqueci-me de como se diz feno em latim disse o
Pai. - Pronto. Pronto - disse ele. - Estava só a brincar. - Acabou de
beber, pousou o copo e pôs a mão no ombro da Mãe.
- Isto não é brincadeira nenhuma - disse a Mãe. - A minha família é
tão bem nascida quanto a tua. Lá por o Maury ter pouca saúde.
- Claro - disse o Pai. - A pouca saúde é a razão principal da vida.
Criado pela doença, na putrefacção, até à decomposição. Vérsh.
- Siô - disse o Versh por detrás da minha cadeira.
- Vai encher a garrafa outra vez.
- E diz à Dilsey que venha buscar o Benjamin para o levar
para a cama - disse a Mãe.
- já tá um rapagão - disse a Dilsey. - A Caddy tá cansada de dormir
consigo. Vá, agora cale-se, senão não adormece. O quarto desapareceu,
mas eu não me calei, e o quarto voltou e a Dilsey veio sentar-se na
cama a olhar para mim.
- Vá lá, seja um menino bonito e fique caladinho - disse a Dilsey. -
já vi que não vai sê, pois não. Então espere um bocadinho.
Foi-se embora. Não havia nada na porta. Depois apareceu a Cadety.
- Chhhh - disse a Caddy. -Já aqui estou.
Calei-me e a Dilsey puxou a colcha para baixo e a Caddy meteu-se entre
a colcha e o cobertor, sem tirar o roupão de banho.
- Pronto - disse ela - Já aqui estou. - A Dilsey trouxe
um cobertor e deitou-o por cima dela, aconchegando-a.
- Ele adormece num instante - disse a Dilsey. - Vou deixá a luz do seu

quarto acesa.
- Está bem - disse a Caddy. Deitou a cabeça na almofada, encostada à
minha. - Boa-noite, Dilsey.
- Boa-noite meu amô - disse a Dilsey. O quarto ficou à escuras. A
Gaddy cheirava a árvores.
Ficámos a olhar para a árvore onde ela estava empoleirada.
Que tá ela a vê, Versh - bichanou a Frony.
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- Chhhhhl-ih - disse a Caddy da árvore. E a Dilsey disse:
- Venham já p'aqui. - Vinha a dobrar a esquina da casa. Porqu'é que
não vão todos lá pa cima como o vosso pai mandou, em vez de
ry@apanharem de costas e fugirem p'aqui. Onde tá a Caddy, e o Quentin.
- Eu bem lhe disse para não trepar à árvore - disse o Jason. Vou fazer
queixa dela.
- Quem tá em que árvore - disse a Dilsey. Aproximou-se e
olhou para cima. - Caddy - disse ela. Os ramos começaram a abanar
outra vez.
- Sua atrevida - disse a Dilsey. - Desça já daí.
- Fala baixo - disse a Caddy. - Não sabes que o Pai disse para não
fazermos barulho. - As pernas dela apareceram e a
Dilsey esticou-se e tirou-a da árvore.
- O que tens tu na cabeça pr'ós deixares vir p 1aqui - disse a Dilsey.
- Não consegui fazê nada dela - disse o Vérsh.
- O que tão vocês todos a fazê aqui - disse a Dilsey. Quem vos mandou
vir p'aqui rondá a casa.
- Foi ela - disse a Frony. - Foi ela que disse pa virmos.
- E quem vos disse pa fazerem o que ela diz - disse a Dilsey. - Toca a
ir pa casa. E já. - A Frony e o T P. foram à frente. já não os víamos
apesar de ainda irem perto.
- Aqui fora no meio da noite - disse a Dilsey. Agarrou em mim e fomos
para a cozinha.
- A fugir pela calada - disse a Dilsey. - Quando sabia que já tinha
passado a hora de se deitá.
- Chhhhh, Dilsey - disse a Caddy. - Não fales tão alto. Não podemos
fazer barulho.
- Então veja se cala a boca e fica quieta - disse a Dilsey. Onde tá o
Quentin.
- O Quentin está furioso porque esta noite quem mandava
era eu - disse a Caddy. - Ele ainda tem o frasco dos pirilampos do T
P.
- O T R passa bem sem ele - disse a Dilsey. Vai procurá o
Quentin, Versh. O Roskus diz que o viu ir pó estábulo. - O Versh foise
embora. já não o víamos.
42
- Eles não estão a fazer nada lá dentro - disse a Caddy. Estão só
sentados a olhar.
- E não precisam da vossa ajuda pa nada - disse a Dilsey. Fomos de
volta até à cozinha.
Onde é que quê ir agora, disse o Luster. Vai voltápa tráspós vê a
jogá à bola outra vez. Fartámo-nos de aprocuràpor,@W. Deixe-seficá
aqui. Pere um bocadinho. Fíque aqui à espera queu vou @W e trago a
bola. Tive uma ideia.
A cozinha estava escura. As árvores projectavam-se negras no
céu. O Dan saiu do vão da escada todo lampeiro e mordiscou-me o
tornozelo. Fui de volta pela cozinha até onde estava a lua.
O Dan veio atrás de mim rasteiro, para o meio do luar.
- Benjy - disse o T R de dentro de casa. A árvore das flores junto à
janela da sala não estava escura, mas as árvores grandes estavam. A
relva zumbia ao luar quando a minha sombra caminhava sobre ela.

- Eh, Benjy - disse o T. P. de dentro de casa. - Onde é que se meteu.
Tá a rabiá, eu sei.
O Luster voltou. Pere, disse ele. Aqui. Não váp@Ilí. Miss Quentin tá
acoU co noivo na rede. Venhapor aqui. Voltejáp:2quí, Ben]y'.
Estava escuro debaixo das árvores. O Dan não quis ir para lá. Deixouse
ficar ao luar. Nisto vi a rede e comecei a chorar.
Saia daí, Benjy, disse o Luster. Sabe que Miss Quentín se vai zangá
consigo.
Primeiro eram dois e depois era só um na rede. A Caddy veio a correr,
toda branca na escuridão.
- Benjy - disse ela. - Como é que te escapaste. Onde está o Versh.
Abraçou-me e eu calei-me e agarrei-me ao vestido dela e tentei puxá-la
dali para fora.
- Porquê, Benjy - disse ela. - O que foi. T R - chamou ela.
O que estava na rede saiu de lá e veio ter connosco, e eu
comecei a chorar e a puxar pelo vestido da Caddy.
- Benjy - disse a Caddy. -É só o Charlie. Tu conheces o Charlie.
- Onde está o negro dele - disse o Charlie. - Por que é que o deixam
andar cá fora.
43
- Está caladinho, Benjy - disse a Caddy. - Vai-te embora, Charlie. Ele
não gosta de ti. - O Charlie afastou-se e eu calei-me. Puxei pelo
vestido da Caddy.
- Porquê, Benjy - disse a Caddy. - Então não me deixas ficar aqui a
conversar um bocadinho com o Charlie.
- Chama lá esse negro - disse o Charlie. Voltou para ao pé de nós. E
eu desatei a chorar ainda com mais força e a puxar pelo vestido da
Caddy.
- Vai-te embora, Charlie - disse a Caddy. O Charlie aproximou-se e pôs
as mãos em cima da Caddy e eu gritei ainda mais. Gritava que me
fartava.
- Não, não - disse a Caddy. - Não, não.
- Ele não fala - disse o Charlie. - Caddy.
- Estás louco ou quê - disse a Caddy. E começou a respirar muito
depressa. - Mas ele não é cego. Não. Não faças isso.
- A Caddy lutava. Respiravam os dois muito depressa. - Por favor. Por
favor - sussurrava a Caddy.
- Manda-o embora - disse o Charlie.
- Vou mandar - disse a Caddy. - Larga-me.
- Então, vais mandá-lo embora ou não - Charlie.
- Vou - disse a Caddy. - Larga-me. - O Charlie foi-se embora. - Calate
- disse a Caddy. - Ele já se foi embora. Calei-me. Ouvia-lhe a
respiração e sentia-lhe o peito a arfar.
- Tenho de o levar para casa - disse ela. Pegou-me na mão. Não demoro
- sussurrou ela.
- Espera - disse o Charlie. - Chama o negro.
- Não - disse a Caddy. - Eu volto já. Anda, Benjy.
- Caddy - disse o Charlie, num murmúrio bastante audível. Mas nós
continuámos. - É melhor que voltes. Vais voltar, não vais. - A Caddy e
eu desatámos a correr. - Caddy - disse o Charlie. Corremos até à
cozinha iluminados pelo luar.
- Caddy - disse o Charlie. A Caddy e eu continuámos a correr. Galgámos
os degraus da cozinha e, quando chegámos ao alpendre, a Caddy
ajoelhou-se
no escuro e abraçou-me. Podia ouvi-la respirar e sentir o seu peito a
arfar. - Não volto a fazer isto - disse ela. - Nunca mais, Benjy.
Benjy. - Nisto, começou a chorar e eu pus-me a chorar
44
também e abraçámo-nos um ao outro. - Cala-te - disse ela.

- Cala-te. Eu prometo. - Calei-me e a Caddy levantou-se e
fomos para a cozinha e acendemos a luz e a Caddy pegou no
sabão da cozinha e foi para o lava-loiças lavar a boca com toda a
força. A Cadety cheirava como as árvores.
Já estouJarto de lhe dízêpa não írp@dí, disse o Luster. Elesforam pá
rede, depressa. A Quentin segurava o cabelo com as mãos. Ele tinha uma
gravata vermelha.
Sabes que mais, meu parvalhão, disse a Quentín, vou dizer à Dílsey que
tu o deixas vir atrás de mimpara todo o lado. Vou dizer-lhe que te dê
uma boa surra.
- Não pude fazê nada - disse o Luster. - Venha cá, Benjy.
- Podias sim - disse a Quentin. - Mas nem tentaste. Estavam os dois a
espiar-me. Foi a Avó que vos mandou a todos para aqui para me
espiarem. - Saltou da rede. - Se não o levares já daqui para fora ou
se o deixares voltar para aqui, digo ao
Jason que te dê uma surra.
- Eu não consigo fazê nada dele - disse o Luster. - Tente a Miss
Quentin s'acha qu'é capaz.
- Cala a boca - disse a Quentin. - Vais ou não vais tirá-lo daqui.
- Ora, deixa-o ficar - disse ele. Tinha uma gravata vermelha. O sol
enchia-a de reflexos vermelhos. - Ouve lá, Jack.
- Nisto ele acendeu um fósforo e meteu-o na boca. Depois tirou o
fósforo da boca. Ainda estava a arder. - Queres experimentar - disse
ele. Fui até lá. - Abre a boca - disse ele. Abri a boca. A Quentin deu
uma sapatada no fósforo e o fósforo foi-se embora.
- Vai para o diabo - disse a Quentin. - Queres que ele comece. Não
sabes que depois nunca mais se cala. Vou fazer queixa de ti à Dilsey.
- E foi-se embora a correr.
- Anda cá, miúda - disse ele. - Eh. Volta para aqui. Eu não me meto
mais com ele.
A Quentin correu para casa. Deu a volta e entrou pela porta da
cozinha.
- Agora é que a fizeste bonita, Jack - disse ele. - Olá se fizeste.
45
- Ele não ouve o que vossemecê tá a dizê - disse o Luster.
- É surdo-mudo.
- Ah, é - disse ele. - Há quanto tempo tá ele assim.
- Tá assim faz hoje trinta e três anos - disse o Luster. Nasceu
pateta. Vossemecê faz parte dessa gente do espectáculo.
- Porquê - disse ele.
- Não m'alembra d'o vê por cá antes - disse o Luster.
- Sim, e depois - disse ele.
- Nada - disse o Luster. - Vou lá esta noite. Ele olhou para mim.
- Vôssernecê não será aquele que toca música c'uma serra
- disse o Luster.
- Se quiseres saber tens de gastar vinte e cinco cêntimos disse ele.
Olhou para mim. Por que é que eles não o fecham dentro de casa -
disse ele. Para que é que o trazes cá para fora.
- Não me pergunte a mim - disse o Luster. - Eu não posso fazê nada. Só
vim ré aqui pa vê s'acho a moeda que perdi pa podê ir logo é
espectáculo. E parece que não vou podê ir. - O Luster procurava no
chão. - Por acaso vossemecê não tem uma moedita a mais, poi não -
disse o Luster.
- Não - disse ele. - Não tenho.
- Tá visto que tenho Xencontrá a outra - disse o Luster. Meteu a mão
no bolso. - Por acaso tam'ém não quê comprá uma bola de golfe, poi não
- disse o Luster.
- Que espécie de bola - disse ele.
- Uma bola de golfe - disse o Luster. - Só peço vinte e
cinco cêntimos por ela.

- Para quê - disse ele. - Para que é que eu quero isso.
- Também não me pareceu que quisesse - disse o Luster. Venha p'aqui,
seu cabeça de burro. Venha p'aqui vê-los batê na bola. Aqui. Tome lá
isto, é pa j untá à sua erva-do-diabo. - E o Luster apanhou uma coisa
e deu-ma. Era brilhante.
- Onde é que arranjaste isso - disse ele. Quando ele andava, a gravata
ficava toda vermelha ao sol.
- Encontrei isto aqui debaixo do arbusto - disse o Luster.
- Primeiro ré pensei qu'era a moeda.
46
Ele aproximou-se e tirou-me a tal coisa da mão.
- Cale-se - disse o Luster. - Ele já lhe dá isso outra vez
assim que vir o que é.
- Olha um Agnes Mabel Becky1 - disse ele, olhando para a fachada da
casa.
- Cale-se - disse o Luster. - Ele já lhe dá isso outra vez.
Ele deu-mo e eu calei-me.
- Quem é que velo ter com ela ontem à noite - disse ele.
- Não sei - disse o Luster. - Eles vêm sempre qu'ela consegue descê
pela árvore pó lado de lá. Não lhes peço pa deixarem a assinatura.
- Pois raios me partam se um deles não deixou a assinatura
- disse ele. Olhou para a casa. Depois foi deitar-se na rede. Vai-te
embora - disse ele. - Não me incomodes.
- Venha cá - disse o Luster. - Agora é qu'a fez bonita. Miss Quentin
já deve tê ido fazê queixa de si.
Fomos até à cerca e pusemo-nos a espreitar pelos intervalos
entre as pétalas encaracoladas das flores. O Luster continuava à cata
na relva.
- Eu tinha-a quando aqui tava - disse ele. Eu via a bandeira a adejar
e o sol a inclinar-se sobre o prado.
- Daqui a nada elas aparecem - disse o Luster. -já se vêem algumas,
mas vão-se logo embora. Venha ajudar-me a procurá-la.
Fomos pela cerca fora.
- Cale-se - disse o Luster. - Como é qu'as hei-de obriga a vir p1aqui
s'elas não querem vir. Pere um bocadinho. Não tarda tão a aparecê por
aí. Olhe p'ali. Lá vêem elas.
Fui pela cerca fora até ao portão, por onde passavam as raparigas com
as sacolas. - Oh, Benjy - disse o Luster. - Volte
p aqui.
Não lhe serve de nada ir espreitá ao portão, disse o T P Míss Gaddyjá
sefoipa muito longe. Casou-se e deixou-oficar Não lhe serve de
nadaficã agarrado ao portão a chorá. Ela não o ouve.
O que é que ele quer, T P, disse a Mãe. Não és capaz de brincares com
elepara verse elefica calado.
1. Preservativo cuja marca era A. M. B. (N. da T)
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Ele quéír@ápa baixopóportão, disse o TP Está bem, mas isso não pode
ser, disse a Mãe. Está a chover. Tens deficar a brincar com elepara
ele estar calado. Oh, Benjamin.
Não há nada qu`ofaça caU, disse o T P Elejulga que sejorpó portão,
Miss Caddy vai voltá.
Tolices, disse a Mãe. Não conseguia ouvir o que diziam. Saí lá para
fora e não os conseguia ouvir, e fui até ao portão, por onde passavam
as raparigas com as sacolas. Elas voltavam a cabeça e ficavam a olhar
para rnim quando passavam apressadas. Eu tentava falar-lhes, mas elas
iam-se embora, e eu ia pela cerca fora a tentar falar-lhes, e elas
punham-se a andar mais depressa. Depois punham-se a correr e eu ia até
à esquina da cerca e já não podia avançar mais, e ficava agarrado à
cerca a olhar para elas e a tentar falar- -lhes.

- Oh, Benjy - disse o T R - O que tá a fazê, a fugir dessa maneira.
Não sabe qu'a Dilsey lhe vai batê. Não lhe serve de nada ficá p'aí a
gemê e a chorá agarrado à cerca - disse o T. P Assusta as miúdas. Olhe
pa elas, atravessaram pó outro lado.
Como é que ele conseguiu sair, disse o Pai. Deixaste o portão aberto
quando entwte, Jason.
Claro que não, disse ojason. Não sou assim tão estúpido. Acha-me capaz
de uma coisa dessas. Deus sabe que estajamíliajá tem problemas que
cheguem. Eujá opodia teravisado. Acho que édesta que o vai
mandarparajackson. Se Mr. Burgess não lhe der um tiro primeiro.
Cala-te, disse o Pai. já opodia ter avisado há muito tempo, disse
ojason. Estava aberto quando lhe toquei, e fiquei ali, agarrado a ele,
à luz do entardecer. Eu não estava a chorar e tentei parar, para ver
Qs raparigas aproximarem-se ao lusco-fusco. Eu não estava a chotar.
- Lá está ele. @araram.
- Ele não pode sair dali. E mesmo que saia também não faz mal a
ninguém. Anda daí.
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- Ele não pode sair. Eu não estava a chorar.
- Não sejas medricas. Anda daí. Elas aproximavam-se ao lusco-fusco. Eu
não estava a chorar e estava agarrado ao portão. Elas aproximavam-se
devagar.
- Tenho medo.
- Ele não te faz mal. Passo aqui todos os dias. Põe-se só a correr
pela cerca fora.
Elas aproximaram-se. Abri o portão e elas pararam e deram meia volta.
Eu tentava falar-lhe, e agarrei-a, e tentava falar-lhe, e
ela gritava e eu tentava falar-lhe, eu tentava, e as formas brilhantes
começaram a parar e eu tentei sair. Tentei tirá-las da minha cara, mas
as formas brilhantes começaram outra vez a passar. Elas iam pela
encosta acima, para onde ela caía para o outro lado, e eu tentei
gritar. Mas quando metia ar, não conseguia fazê-lo sair para gritar, e
tentava a todo o custo não cair da colina, mas
caí da colina abaixo para o meio das formas brilhantes que não paravam
de rodopiar.
Eh, idiota, disse o Luster. Lá vêm uns. Veja sepára de chorá e de
berrá.
Vieram até à bandeira. Ele tirou-a e eles bateram, e ele voltou a
colocar a bandeira.
- Sinhô - disse o Luster. Ele olhou em volta. - O que é - disse ele.
- Quê comprá uma bola de golfe - disse o Luster.
- Vamos ver - disse ele. Chegou-se à cerca e o Luster passou a bola
para o outro lado.
- Onde a arranjaste - disse ele.
- Encontrei-a - disse o Luster.
- Isso sei eu - disse ele. - Mas onde. Talvez dentro de algum saco de
equipamento.
- Encontrei-a aqui caída no chão - disse o Luster. - Só quero vinte e
cinco cêntimos por ela.
- E por que dizes que é tua - disse ele.
- Porque a encontrei - disse o Luster.
- Pois então trata de ir procurar outra - disse ele. Meteu a bola no
bolso e foi-se embora.
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- Tenho de ir logo à noite b espectáculo - disse o Luster.
- Ah, ele é isso - disse ele. Foi até à tabela. - Cá vai, caddie -
disse ele. E deu uma tacada.
- Ora esta - disse o Luster. - Barafustam se não as encontram e
barafustam s'as encontram. Veja se tá calado. Não percebe qu'as

pessoas ficam cansadas de o ouvir. Olhe. Deixou cair a sua erva-dodiabo.
Apanhou-a e deu-ma outra vez. - Precisa duma nova. Essa já
tá toda desfeita. - Ficámos a vê-los da cerca.
- Aquele branco não é pa graças - disse o Luster. - Viu corno ele me
tirou a bola. - Eles foram-se afastando e nós fomos andando pela cerca
fora. Chegámos ao jardim e daí já não pudemos passar. Agarrei-me à
cerca e espreitei pelos intervalos das flores. Eles foram-se embora.
- Agora não tem razão pa chorá - disse o Luster. - Cale-se. Quem tem
razão de queixa sou eu, não é vossernecê. Olhe. Por qu'é que não
s'entretém co esta flor. Daqui a nada tá a chorá por causa dela. -
Deu-me a flor. - Pa onde vai agora.
As nossas sombras estavam na relva. E chegaram às árvores antes de
nós. A minha foi a primeira a chegar. Depois chegámos nós, mas as
sombras já se tinham ido embora. Havia uma flor dentro da garrafa.
Meti lá a outra flor.
Agora)á é um homem crescido - disse o Luster. - A brincá com duas
flores dentro duma garrafa. Sabe o qu'é que lhe vão fazê quando Miss
CaIine morrê. Vão mandá-lo pa Jackson, que lá é qu@é o seu lugá. É o
que diz Mr. Jason. Lá pode passá os dias todos a chorá agarrado à
grades cos outros maluquinhos. Que tal.
O Luster roubou-me as flores. - É isto que lhe fazem em
Jackson quando começá a berrá.
Tentei apanhar as flores. O Luster apanhou-as primeiro e elas
desapareceram. Comecei a chorar.
- Isso, berre - disse o Luster. - Berre à vontade. Quê que lhe dê uma
razão pa berrá. Então tá bem. Caddy - disse ele baixinho. - Caddy.
Agora já pode berrá. Caddy.
- Luster - disse a Dilsey da cozinha. As flores voltaram a aparecer.
50
- Cale-se - disse o Luster. - Vamos pa dentro. Hoje pintou a manta.
Vá, levante-se. - Puxou-me pelo braço e levantei- -Me. Saímos de
debaixo das árvores. As nossas sombras tinham desaparecido.
- Cale-se - disse o Luster. - Olhe p'àquela gente toda a
olhá pa si. Cale-se.
- Trá-lo p'aqui - disse a Dilsey. - Fizeste-lhe alguma. Onde é que
estiveram.
- Além, debaixo dos cedros - disse o Luster.
- Só pa irritares a Quentin - disse a Dilsey. - Por que não o levas pa
longe dela. Não sabes qu'ela não gosta qu'ele ande por ond'ela anda.
- Ela tem tanto tempo pa cuidá dele como eu - disse o Luster. - Ele
não é meu tio.
- Não me provoques, negro atrevido - disse a Dilsey.
- Eu não lhe fiz nada - disse o Luster. - Ele estava ali a brincá e de
repente começou a berrá.
- Foste-lhe bulir co cemitério - disse a Dilsey.
- Não lhe toquei no cemitério - disse o Luster.
- Não mintas, rapaz - disse a Dilsey. Subimos os degraus e
entrámos na cozinha. A Dilsey abriu a porta do fogão, foi buscar uma
cadeira, pô-la à frente da lareira e eu sentei-me. Calado.
Queres qu'ela comece, disse a Dilsey. Pa quo deixaste írp@í Ele estava
só a olharpara afogueíra, disse a Gaddy. A Mãe estava a ensinar-lhe o
seu novo nome. Não a queriamosfazer chorar.
Sei que não, disse a Dílsey. Ele estava num extremo da casa e ela no
outro. Deixa as minhas coisas em paz, ouviste. Não mexas em
nada até eu voltar.
- Não tem vergonha - disse a Dilsey. - A arreliá-lo dessa maneira. -
Pôs o bolo em cima da mesa.
- Eu não tava a arreliá-lo - disse o Luster. - Ele tava a brincá co
aquela garrafa cheia de ervas e de repente começou a
berrá. Vossemecê bem ouviu.

- Não lhe tocaste nas flores - disse a Dilsey.
- Não lhe toquei no cemitério não - disse o Luster. - Pa que quero eu
as ervas dele. Andava só à procura dos meus vinte e cinco cêntimos.
51
- Perdeste-os, não foi - disse a Dilsey. Acendeu as velas. Umas eram
pequenas. Outras eram grandes cortadas aos bocadinhos. - Disse-te pó
guardares. já sei, agora queres qu'eu vá pedir outra moeda à Frony.
- Tenho de ir é> espectáculo e o Berijy que s'arranje - dissee o
Luster. - Não vou passá a vida toda atrás dele, de dia e de noite.
- Tu vais fazê exactamente o que ele te mandá, tás a ouvir negrinho
duma figa - disse a Dilsey.
- Não foi o qu'eu fiz sempre - disse o Luster. - Faço sem- pre o
qtiele quê. Faço, não faço, Benjy.
- Pois tens de continuá a fazê - disse a Dilsey. - Trazê-lo p'aqui a
chorá e pô-la a chorá também. Vá, agora vão todos comê o bolo antes
que chegue o jason. Não quero qu'ele se ponha a ralhá comigo por causa
dum bolo qu'eu comprei co meu dinheiro. Havia de sê bonito, fazê o
bolo aqui em casa, co ele a contá cada ovo qt@entra na cozinha. E
agora vê s'o deixas em paz, a não sê que não queiras ir logo à noite
é> espectáculo.
A Dilsey foi-se embora.
- Já que não é capaz d'apagá as velas - disse o Luster veja como eu as
apago. - Baixou-se para o bolo e soprou com toda a força. As velas
apagaram-se. Comecei a chorar. - Cale-se
- disse o Luster. - Olhe. Fique aqui a olhá pé, lume enquant'eu corto
o bolo.
Ouvia o relógio e ouvia a Caddy de pé atrás de mim, e ouvi .a o -
. Ainda está a chover, dísse a Caddy. Detesto a chuva. Detesto tudo. E
então a cabeça dela veio ter ao meu colo e ela estava a chorar
abraçada a mim e eu comecei a chorar. Depois olheipara o lume
outra vez e asformas brilhantes e suaves reapareceram. Ouvia o reldgio
e o - e a Gaddy.
Comi um bocado de bolo. A mão do Luster apareceu e tirou outro bocado.
Ouvia-o mastigar. Pus-me a olhar para o lume.
Um arame comprido passou-me por cima do ombro. Ia até à porta e o fogo
desapareceu. Comecei a chorar.
- Por qtié que tá a gritá agora - disse o Luster. - Olhe p'ali. - O
lume estava lá outra vez. Calei-me. - Veja se fica sentado a olhá pó
fogo como a'nha mãe mandou - disse o Luster. Devia tê vergonha. Tome.
Coma mais um bocado de bolo.
52
- O que foi que lhe fizeste agora - disse a Dilsey. - Não serás capaz
d'o deixares sossegado.
- Estava só a vê s'ele se calava, e não incomodava Miss Ca'line -
disse o Luster. - Mas alguma coisa o irritou.
- E essa coisa tem nome - disse a Dilsey. - Vou mandá o Versh dar-te
umas boas vergastadas quando chegá. Tás só a
vê té onde podes ir. Passaste o dia todo nisso. Levaste-o ré ao
riacho.
- Nã sinhô - disse o Luster. - Passámos o dia todo aqui
mesmo no quintal, como nos disse pa fazê.
A mão dele veio buscar mais uma fatia de bolo. A Dilsey deu-lhe uma
palmada. - Mete lá a mão outra vez e corto-ta rente co esta faca -
disse a Dilsey. - Aposto que ele inda não comeu nada.
- Isso é que comeu - disse o Luster. - já comeu o dobro de mim. Ora
pergunte-lhe.
- Experimenta ires lá outra vez ca mão - disse a Dilsey. Experimenta
só.
É isso mesmo, disse a Dilsey. Acho que chegou a minha vez de chorá.

Acho que o Maury também me vaifazê chorápor ele.
O nome dele agora é Benjy, disse a Caddy. -Essa agora, disse a Dilsey.
Ele inda não gastou o nome com que nasceu, pois não.
Benjamin é um nome tirado da Bíblia, disse a Caddy. Assenta-lhe melhor
do que lhe assentava Maury.
Essa agora. Porquê, disse a Dilsey. Porque a Mãe diz que sim, disse a
Caddy. Ora, ora, disse a Dilsey. Não é o nome que o vai ajudá. Mas
também não lhe vaifazê mal. Não dá sorte mudd de nome. O meu nome é
Dilsey desde que me conhep ejá era antes disso e há-de continuá a sê
Dílsey quandojá ninguém se lembrá de mim.
Como é que vão saber que é Dílsey quandojá não se lembrarem de ti,
disse a Caddy.
Está no livro, meu amâ, disse a Dilsey. Escrito com todas as letras. E
consegues ZÊ-lo, disse a Caddy. Não vai sêpreciso, disse a Diluy. Eles
Mem-no por mim. Tudo o qu eu tenho afazê é dizê que estou aqui.
53
O arame comprido passou-me pelo ombro e o lume desapareceu. Comecei a
chorar.
A Dilsey e o Luster continuaram a discutir.
- Eu bem te vi - disse a Dilsey. - Olá se vi. - Puxou o Luster do
canto para fora e abanou-o. - Com que então não estavas a arreliá-lo,
pois não. Espera só ré o teu pai chegá. Quem me dera sê nova como
noutros tempos e ias vê como elas mordiam. Só me dá vontade de te
fechá na adega e não te deixá ir 6 espectáculo logo à noite. Podes
crê.
- Oh, vó - disse o Luster. - Oh, vó. Estendi a mão para o sítio onde
tinha estado o fogo.
- Agarra-o - disse a Dilsey. - Não o deixes lá chegar. A minha mão
saltou para trás e meti-a na boca e a Dilsey agarrou-me. Ainda
conseguia ouvir o relógio misturado com a
minha voz. A Dilsey estendeu o braço e bateu na cabeça do Luster. A
minha voz soava cada vez mais alto.
- Dá cá essa gasosa - disse a Dilsey. Tirou-me a mão da boca. Pus-me a
chorar ainda mais alto e a minha mão tentava voltar para a boca, mas a
Dilsey segurou-a. A minha voz ouvia-se ainda mais alto. Ela salpicoume
a mão com gasosa.
- Vai à despensa e rasga um bocado do pano que está pendurado no prego
- disse ela. - Agora cale-se. Não quê qu'a sua mãe fique doente outra
vez, pois não. Pronto. Olhe pó lume. A Dilsey vai já fazê a mão pará
de doê. Olhe pé lume. - Ela abriu a porta da fornalha. Pus-me a olhar
para o lume, mas a minha mão não parava de doer e eu não parava de
chorar. A mão queria vir para a minha boca, mas a Dilsey estava a
segurá-la.
Atou-lhe o pano à volta. A Mãe disse:
- O que foi desta vez. Será que nem quando estou doente posso ter paz.
Será que tenho de sair da cama e ir ter com ele aí abaixo, com dois
negros adultos para tomar conta dele.
- Ele já tá bem - disse a Dilsey. - Ele cala-se já. Foi só uma
queimadela na mão.
- Dois negros desse tamanho e tinham de o trazer para dentro de casa a
chorar - disse a Mãe. - Fizeram-no chorar de propósito porque sabem
que estou doente. - Veio para junto de mim. Está calado - disse ela. -
já calado. Vocês deram-lhe este bolo.
54
- Fui eu qu@o comprei - disse a Dilsey. - Não veio da despensa do
Jason. Foi pó aniversário dele.
- Queres envenená-lo com esse bolo de terceira categoria disse a Mãe.
- É isso que queres, não é. Será que não consigo ter paz nem por um
momento.

- Volte pá cima e vá-se deitá - disse a Dilsey. - Isto passa num
instante e ele cala-se já. Vá, vá pá cima.
- E deixá-lo aqui para vocês lhe fazerem mais alguma - disse a Mãe. -
Como posso eu estar lá em cima deitada, com ele a gritar cá em baixo
desta maneira. Benjamin. Cala-te imediatamente.
- Não há outro sítio pá onde o levá - disse a Dilsey. - já não temos o
quarto que tínhamos antigamente. E ele não pode ficá lá fora a chorá
onde todos os vizinhos o vejam.
- Eu sei, eu sei - disse a Mãe. - A culpa é toda minha. Mas qualquer
dia desapareço, e tu e o Jason já se vão sentir mais à vontade. - E
começou a chorar.
- Veja se pára com isso - disse a Dilsey. - Assim vai piorá outra vez.
Volte pá cima. O Luster vai levá-lo pá biblioteca e fica lá com ele ré
eu tê a ceia pronta.
A Dilsey e Mãe saíram.
- Cale-se - disse o Luster. - Cale-se, já disse. Ou quê que lhe queime
a outra mão. Isso já não lhe tá a doê. Cale-se.
- Pronto - disse a Dilsey. -Agora pare de chorá. - Deu-me o chinelo e
eu calei-me. - Leva-o pá biblioteca - disse ela.
- E s'o voltá a ouvir, sou eu mesma que te dou uma surra.
Fomos para a biblioteca. O Luster acendeu a luz. As janelas ficaram
pretas e o sítio alto e escuro da parede veio direito a
mim e eu avancei e toquei-lhe. Era como uma porta, mas não era uma
porta.
O fogo veio por detrás de mim e eu avancei para o fogo, com
o chinelo na mão. O fogo era mais alto. Chegava à almofada da cadeira
da Mãe.
- Cale-se - disse o Luster. - Será que não é capaz de pará nem por um
momento. Olhe, fiz-lhe uma fogueira, e nem sequé olha pá ela.
O teu nome é Benjy, disse a Gaddy. Estás a ouvir Benjy. Benjy. Não lhe
digas isso, disse a Mãe. Trá-lo cá.
55
A Caddypegou-mepor baixo dos braços e ajudou-me a levantar. Levanta-te
Maur.. quero dizer, Benjy, disse ela. Não tentespegar-lhe, disse a
Mãe. Podes ajwU-1o a vir atéaqui, nãopodes. Ou serápedír muito.
Eu posso levá-lo, disse a Caddy. - Deixe-me levá-lo pa cima. Dilsey.
- Então vá lá. Um momento - disse a Dilsey. - Não pode nem com uma
gata pelo rabo. Vá e fique queta como Mr. Jason mandou.
Estava uma luz acesa ao cimo das escadas. O Pai estava lá em cima em
mangas de camisa. A cara dele era como se dissesse Cala-te. A Caddy
murmurou:
-A Mãe está doente.
O Vershpousou-me no chão efomos ao quarto da Mãe. Havia umafogueira.
Subia e desciapelasparedes. Havia outrajogueira no espelho. Eu sentia
o cheiro da doença. Estava numpano que a Mãe tinha enrolado à cabeça.
O cabelo dela estava na almofada. Ofogo não chegava U, mas brilhava na
mão dela, cheia de anéis a saltarem dos dedos.
- Vem dar as boas-noites à Mãe - disse a Caddy. Aproximámo-nos da
cama. O fogo desapareceu do espelho. O Pai levantou-se da cama e
pegou-me ao colo e a Mãe pôs-me a mão na cabeça.
- Que horas são - disse a Mãe. Os olhos dela estavam fechados.
Dez para as sete - disse o Pai. É muito cedo para ele ir para a cama -
disse a Mãe. Depois acorda ao nascer do sol, e eu não vou aguentar um
outro dia como o de hoje.
- Então, então - disse o Pai. E acariciou o rosto da Mãe.
- Sei bem que para ti não passo de um fardo - disse a Mãe. Mas já
falta pouco para desaparecer. E então ficarás livre das minhas
lamentações.
- Está caladinha - disse o Pai. - Eu levo-o lá para baixo um
bocadinho. - Pegou-me ao colo. - Vamos, meu velho. Vamos um bocadinho

lá para baixo. Não podemos fazer barulho enquanto o Quentin está a
estudar.
56
A Caddy aproximou-se da cama, inclinou-se e a mão da Mãe surgiu à luz
da fogueira. Os anéis dela saltavam nas costas da Caddy.
A Mãe está doente, disse o,[al. A Dilsey vai deítar-te. Onde está o
Quentin. * Vershfoi buscá-lo, disse a Dilsey. * Pai ficou a olhar para
nós quando passámos por ele. Ouvíamos a Mãe no quarto dela. A Caddy
disse: - Cala-te. O Jason vinha a subir as escadas. Vinha de mãos nos
bolsos.
- Hoje têm de se portar todos muito bem - disse o Pai. E não façam
barulho, para não incomodarem a Mãe.
- Nós ficamos calados - disse a Caddy. - Cala-te, Jason disse ela.
Começámos a andar em bicos dos pés. Ouvíamos o telhado. Eu via também
ofogo no espelho. A Gaddy pegou em mim outra vez.
-Vá, vamos embora - disse ela. - Depois, já podes voltar para o fogo.
E agora cala-te.
- Candace - disse a Mãe.
- Cala-te, Benjy - disse a Caddy. - A Mãe quer ver-te só por um
instante. Porta-te bem. Depois podes voltar para aqui, Benjy.
A Caddy pousou-me no chão, e eu calei-me.
- Deixe-o ficar aqui, Mãe. Quando ele se cansar de olhar para o fogo,
então pode chamá-lo.
- Candace - disse a Mãe. A Caddy baixou-se e pegou em mim.
Desequilibrámo-nos. - Candace - disse a Mãe.
- Cala-te - disse a Caddy. - Ainda o consegues ver. Vá, cala-te.
- Trá-lo cá - disse a Mãe. - Ele é muito grande para tu
lhe pegares. Não estejas para aí a tentar. Ainda dás algum mau-jeito
às costas. Todas as nossas mulheres sempre se orgulharam do seu porte.
Vê lá se queres parecer uma lavadeira.
- Ele não pesa assim tanto - disse a Caddy. - Eu consigo levá-lo.
- Bem, então sou eu que não quero que ele passe dum lado para o outro
- disse a Mãe. - Uma criança de cinco anos. Não, não. No meu colo não.
Deixa-o estar de pé.
57
- Se o abraçar, ele cala-se logo - disse a Caddy. - Chhhh disse ela. -
Vais voltar para lá agora. Então. Toma a tua almofada. Olha.
- Não faças isso, Candace - disse a Mãe.
- Deixe-o olhar para ela e ele cala-se logo - disse a Caddy. Levantase
um bocadinho, para eu a tirar. Pronto, Benjy, olha. Olhei para a
almofada e calei-me.
- Fazem-lhe vontades de mais - disse a Mãe. - Tu e o teu pai. E não
percebem que depois quem sofre com isso sou eu. A Vóvó estragou o
Jason da maneira que se viu e foram precisos dois anos para ele
recuperar, e eu não estou com forças para passar pelo mesmo com o
Benjamin.
- Não se preocupe com ele - disse a Caddy. - Eu gosto de tomar conta
dele. Não gosto, Benjy.
- Candace - disse a Mãe. -já te disse para não o chamares assim. já
foi uma complicação quando o teu pai se lembrou de te tratar por
aquele diminutivo idiota, e não quero ouvi-lo a
mais ninguém. Os diminutivos são urna coisa grosseira. Só a
gente do povo é que os usa. Benjamin é que é - disse ela.
- Olha para mim - disse a Mãe.
- Benjamin - disse ela. Agarrou-me a cara com as mãos e virou-a para
ela.
- Benjamin -disse ela. - Leva daqui essa almofada, Candace.
- Ele vai chorar - disse a Caddy.
- Leva daqui a almofada, já disse - disse a Mãe. - Ele tem de aprender

a obedecer.
A almofada foi-se embora.
- Cala-te, Benjy - disse a Caddy.
- Vai para ali e deixa-te estar sentada - disse a Mãe. Benjamin. -
Encostou a minha cara à dela.
- Pára com isso - disse ela. - Pára com isso. Mas eu não parava e a
Mãe apertou-me nos braços e começou a chorar, e eu ainda chorava mais.
Nisto, a almofada voltou
e a Caddy segurou-a por cima da cabeça da Mãe. Ela encostou a
Mãe para trás na cadeira e a Mãe ficou a chorar com a cara na almofada
vermelha e amarela.
58
- Pronto, Mãe - disse a Caddy. - Vá para cima deitar-se, senão fica
pior. Eu vou chamar a Dilsey. - Ela levou-me para ao
pé do fogo e eu fiquei a olhar para as formas suaves e brilhantes.
Ouvia o fogo e o telhado.
O Pai pegou-me ao colo. Cheirava como a chuva.
- Então, Benjy - disse ele. - Portaste-te bem hoje. A Caddy e o Jason
estavam a lutar no espelho.
- Então, Caddy - disse o Pai. Continuaran-i a lutar. O Jason começou a
chorar.
- Caddy - disse o Pai. O Jason estava a chorar. já não estava a lutar,
mas víamos a Caddy a lutar no espelho e o Pai pousou-me no chão e
entrou no espelho e começou a lutar também. Pegou na Caddy. Ela
continuou a lutar. O Jason estava caído no chão a chorar. Tinha uma
tesoura na mão. O Pai agarrou a Caddy.
- Ele cortou todos os bonecos de papel do Benjy - disse a Caddy. - Vou
cortar-lhe as tripas.
- Candace - disse o Pai.
- Isso é que eu vou - disse a Caddy. - Vou e vou mesmo.
- Continuava a lutar. O Pai estava a segurá-la. Ela deu um pontapé no
Jason. Ele rebolou para o canto, para fora do espelho. O Pai trouxe a
Caddy para junto do lume. já tinham saído todos do espelho. Só lá
ficou o lume. Tal como também estava na porta.
- Pára com isso - disse o pai. - Queres que a Mãe oiça e fique pior.
A Caddy parou. - Ele cortou todos os bonecos que eu e o Maur .. 1
digo, o Benjy fizemos - disse a Caddy. - Só por maldade.
- Não foi por maldade - disse o Jason. Estava sentado no chão, a
chorar. - Não sabia que eram dele. julguei que eram só papéis velhos.
- Tinhas de saber - disse a Caddy. - Fizeste isso só por...
- Cala-te - disse o Pa 1. - Jason - disse ele.
- Amanhã faço-te mais - disse a Caddy. - Vamos fazer um monte deles.
Toma, podes olhar para a almofada.
Ojason entrou. Fartei-me de lhe dizêpa se calá, disse o Luster.
59
Que sepassa agora, disse ojason.
- Está insuportável - disse o Luster. - Tem estado assim todo o dia.
- Então por que não o deixas em paz - disse o Jason. - Se não o
consegues calar, tens de o levar para a cozinha. Nós não nos podemos
fechar num quarto como faz a Mãe.
- A'nha avó diz pa não o deixarmos ir pá cozinha'té ela tê a
ceia pronta - disse o Luster.
- Então brinca com ele e vê se ele fica calado - disse o Jason. Será
que tenho de trabalhar o dia inteiro para chegar a casa e
encontrar este manicómio. - Abriu o jornal e começou a ler.
Podes olharpara o lume epara o espelho epara a almofada, disse a
Caddy. Agora, já não tens de esperar até aofim da ceiapara olharespara
a almofada. Ouvíamos o telhado. Ouvíamos também o Jason a chorar muito
do outro lado daparede.

A Dilsey disse: - Venha Jason. Não te tás a metê co ele, pois não.
- Nã sinhô - disse o Luster.
- Onde tá a Quentin - disse a Dilsey. - A ceia tá quase pronta.
- Eu cá não sei - disse o Luster. - Não a vi. A Dilsey foi-se embora.
- Quentin - chamou do meio do corredor. - Quentin. A ceia tá pronta.
Ouvíamos o telhado. O Quentin também cheirava como a chuva. O q u e é
q u e o Jaso n fez, disse ele.
Cortou todos os bonecos do Benjy, disse a Caddy. A Mãe disse para não
o chamares Benjy, disse o Quentin. Sentou-se no tapete ao pé de nós.
Quem dera que a chuvaparasse, disse ele. Assim não sepodefazer nada.
Andaste a lutar, não andaste, disse a Gaddy. Coisa sem importância,
disse o Quentin. Po&s contar, disse a Gaddy. O Pai vaiperceber. Quero
U saber, disse o Quentin. Quem dera queparasse de chover A Quentin
disse: - Então a Dilsey não disse que a ceia estava pronta.
- Disse sissiô - disse o Luster. O Jason olhou para a Quentin. Depois
continuou a ler o jornal. A Quentin entrou. - Diz
60
que está quase pronta - disse o Luster. A Quentin saltou para a
cadeira da Mãe. E o Luster disse:
- Mr. Jason.
- O que é - disse o Jason.
- Dê-me duas moedas - disse o Luster.
- Para quê - disse o Jason.
- Pa ir logo é espectáculo - disse o Luster.
- Julguei que a Dilsey ia pedir vinte e cinco cêntimos à Frony para
tos dar - disse o Jason.
- E pediu - disse o Luster. - Mas eu perdi-os. Eu e o
Benjy passámos o dia à procura da moeda. Pode perguntar-lhe.
- Então pede-lhe outra emprestada - disse o Jason. - Eu tenho de
trabalhar para conseguir ganhar o meu. - E continuou a ler o jornal. A
Quentin estava a olhar para o fogo. O fogo estava nos seus olhos e na
sua boca. A boca dela era vermelha.
- Tentei evitar que ele fosse para lá - disse o Luster.
- Cala a boca - disse a Quentin. O Jason olhou para ela.
- Lembras-te do que eu disse que te fazia se te tornasse a ver
com esse tipo do espectáculo - disse ele. A Quentin continuou a olhar
para o fogo. - Estás a ouvir - disse o Jason.
- Ouvi, sim - disse a Quentin. - E então por que não faz.
- Não te preocupes, que faço - disse o Jason.
- Não estou preocupada - disse a Quentin. O Jason continuou a ler o
jornal.
Eu ouvia o telhado. O Pai inclinou-separa afrente e olhoupara o
Quentin.
OU, disse ele. Quem ganhou.
- Ninguém - disse o Quentin. - Vieram apartar-nos. Os professores.
- Quem era ele - disse o Pai. - Não me queres dizer.
- Não teve problema - disse o Quentin. - Ele era do meu tamanho.
- Ainda bem - disse o Pai. - E podes ao menos dizer por que começou.
- Por nada de especial - disse o Quentin. - Ele disse que punha uma rã
na carteira dela e que ela não tinha coragem para lhe bater.
61
- Ah - disse o Pai. - Ela. E depois.
- Pois foi - disse o Quentin. - E eu então bati-lhe. Ouvíamos o
telhado e o lume, e umas fungadelas do lado de fora da porta.
- Onde ia ele arranjar uma rã em Novembro - disse o Pai.
- Isso não sei - disse o Quentin. Ouvíamos ruídos.
- Jason - disse o Pai. Ouvíamos o Jason.
- Jason - disse o Pai. - Vem para aqui e pára com isso. Ouvíamos o
telhado e o lume e o Jason.

- Pára com isso imediatamente - disse o Pai. - Vê lá se queres que te
bata outra vez. - O Pai pegou no Jason e sentou-o na cadeira ao seu
lado. O Jason continuou a fungar. Ouvíamos o lume e o telhado. O Jason
começou a fungar com mais força.
- Vá, continua - disse o Pai. Ouvíamos o lume e o telhado. A Dilsey
disse, Pronto, jápodem vir todos cear.
O Versh cheirava como a chuva. Cheirava como um cão, iambém. Ouvíamos
o lume e o telhado.
Ouvimos a Caddy a andar muito depressa. O Pai e a Mãe olharam para a
porta. A Caddy passou muito apressada. Nem olhou. Ia muito depressa.
- Candace - disse a Mãe. A Caddy parou.
- Sim, Mãe - disse ela.
- Cala-te, Caroline - disse o Pai.
- Vem cá - disse a Mãe.
- Cala-te, Caroline - disse o Pai. - Deixa-a em paz. A Caddy veio até
à porta e ficou parada a olhar para o Pai e para a Mãe. Os seus olhos
pousaram em mim e foram-se embora. Comecei a chorar. Chorava com toda
a força e levantei-me. A Caddy entrou e ficou de pé encostada à parede
a
olhar para mim. Fui ter com ela, a chorar, e ela encostou-se mais à
parede e eu vi os olhos dela e comecei a chorar com mais força e a
puxar-lhe pelo vestido. Ela estendeu as mãos, mas eu continuei a
puxar-lhe pelo vestido. Os olhos dela fugiram.
O Versb disse, Oseu nomeagora éBenjamin. Sabeporqu'é qu:lgora se chama
Benjamin. Porqu'o querem transformá num gengí62
vas azuis.' A 'nha mãe diz que há muito tempo o seu avô mudou o nome
dum negro, e que depois seJezpastor, e que quando olharam pa ele, ele
tinha também as gengivas azuis. E nunca as tinha tido assim. E quando
uma mulherprenha olhavapós olhos dele numa
noite de lua cheia, a criança nacia cas gengivas azuis. E uma noite,
quandojá havia perto d`uma dúzia de crianças de gengivas azuis a
correrem por ali, ele não voltou pa casa. Foram uns caçadores de
opóssuns que o encontraram nafloresta todo comido. Esabe quem o
comeu. Foram as crianças de gengivas azuis.
Estávamos no vestíbulo. A Caddy continuava a olhar para Mim. Tinha a
mão a tapar a boca e eu olhei para os olhos dela e pus-me a chorar.
Fomos para cima. Ela encostou-se outra vez à parede a olhar para mim,
e eu sempre a chorar, e ela continuou a andar e eu fui atrás dela a
chora-r, e ela encolheu-se contra a parede a olhar para mim. Abriu a
porta do quarto, mas eu puxei-lhe o vestido e fomos à casa de banho e
ela ficou encostada à parede a olhar para mim. Depois tapou os olhos
com o braço e eu encostei-me a ela a chorar.
Que estás tu afazer-lhe, disse ojason. Por que não o deixas em Paz.
Não lhe tou a tocá, disse o Luster. Ele tem tado assim todo o dia.
Precisa d@ípanhá.
Precisa é que o mandem parajackson, disse a Quentin. Como é que alguém
pode viver numa casa como esta.
Olha, menina, se não te ag", vai-te embora, disse ojason. * é que vou
mesmo, disse a Quentin. Não tepreocupes. * Versh disse: - Chegue-se pa
lá um bocadinho, pa eu secá as minhas pernas, - E empurrou-me. - Não
comece a berrá outra vez. Daí inda consegue vê o lume. É tudo o que
pode fazê. Não teve de andá lá por fora à chuva como eu. Nasceu cheio
de sorte c
nem se dá conta. - Deitou-se de costas diante do lume. - Sabe por qu'é
qu'o seu nome agora é Benjamin - disse o Versh. Porqu'a sua mãe tem
vergonha de si. É o que a'nha mãe diz.
- Fique aí quero e deixe-me secá as pernas - disse o Versh.
- Senão, já sabe o qu'eu lhe faço. Pélo-lh`o olho do cu.
1. Os Bluegum negroes (negros de gengivas azuis) eram tradicionalmente
famosos pela sua ferocidade. (N. da T)

63
Ouvíamos o lume, o telhado e o Versh.
O Versh levantou-se de repente e esticou as pernas. O Pai disse: -
Então, Versh.
- Hoje dou-lhe eu de comer - disse a Caddy. - Ele às vezes chora
quando o Versh lhe dá de comer.
- Leva este tabuleiro lá 'cima - disse a Dilsey. - E volta depressa pa
dares de comê ao Benjy- Queres que a Caddy te dê de comer, não queres
- disse a Caddy.
Como ele nunca mais tirava o chinelo nojento de cima da mesa, a
Quentin disse, Por que não lhe dás de comer na cozinha. É o mesmo que
estar à mesa com um porco.
Se não gostas da maneira como nós comemos, o melhor é não virespara a
mesa, disse ojason.
O Roskus deitava fumo. Estava sentado em frente do fogão. A porta do
forno estava aberta e o Roskus tinha lá metido os pés. Saía muito
vapor da tigela. A Caddy meteu-me a colher na boca devagarinho. Havia
uma marca preta no interior da tigela.
Pronto, pronto, disse a Dilsey. Elejá não o incomoda mais. Passei para
baixo da marca. Daí a pouco a tigela estava vazia. E foi-se embora. -
Ele hoje está com fome - disse a Caddy. A tigela voltou. já não
conseguia ver a marca. Mas depois voltei a vê-Ia. - Ele hoje está
esfomeado - disse a Caddy. - Vejam só o que ele comeu.
Pudera, disse a Quentin. Vocês mandam-no todos espiar-me. Odeio esta
casa. Voupôr-me a andar daquiparafora.
O Roskus disse: - Vai chover toda a noite. Gostas muito de andarpor
aí, mas é só até chegar a hora das refeições, disse o Jaso n.
Espera e verás, dísse a Quentin.
- Não sei con@istc, vai sê - disse a Dilsey. - Apanhou-me a anca duma
maneira que mal me posso mexê. É de passá a noite a subir as escadas.
Não me admirava nada, disse o Jason. A mim já não me espanta nada que
tufaças.
A Quentín atirou o guardanapopara cima da mesa. Cale a boca, Jason,
disse a Dílsey. Aproxímou-se da Quentin e
64
pôs-lhe o braço por cima das costas. Senta-te, minha linda disse a
Dibey. Ele devia tê vergonha. A atirar-lhe à cara com coisas de que
não tem culpa- Tá outra vez amuada, não tá - disse o Rosicus.
- Cala a boca - disse a Dilsey. A Quentin empurrou a Dilsey. Olhou
para o Jason. Tinha a
boca toda vermelha. Pegou no copo de água e esticou o braço para trás
sem tirar os olhos do jason. A Dilsey segurou-lhe o braço. Lutaram. O
copo partiu-se em cima da mesa e a água correu pela mesa
fora. A Quentin desatou a correr
-A Mãe está doente outra vez - disse a Caddy.
- Claro que tá - disse a Dilsey. - Cum tempo destes toda a gente fica
doente. Veja s'acaba de comê.
Diabos te levem, disse a Quentin. Diabos te levem. Ouvíamo-la a
correrpela escada acima. Fomospara a biblioteca.
A Caddy deu-me a almofada, e eu podia olhar para a almofada, para o
espelho e para o lume.
- Não podemos fazer barulho enquanto a Quentin estiver a estudar -
disse o Pai. - Que estás a fazer, jason.
- Nada - disse o jason.
- E se viesses fazer isso para aqui - disse o Pai.
O jason saiu do canto.
- O que estás tu para aí a chupar - disse o Pai.
- Nada - disse o jason.
- Ele anda outra vez a comer papel - disse a Caddy.

- Vem cá, jason - disse o Pai.
O Jason cuspiu o papel para a lareira. O papel assobiou, desenrolou-se
e pôs-se negro. Depois cinzento. Depois desapareceu. A Caddy, o Pai e
o jason estavam na poltrona da Mãe. Os olhos do jason estavam fechados
e a boca dele inexia-se como se estivesse a provar alguma coisa. A
cabeça da Caddy estava encostada ao ombro do Pai. O cabelo dela era
como o fogo, e dos seus olhos saíam pontas de fogo, e eu aproximei-me
e o Pai puxou-me também para a cadeira, e a Caddy segurou-me. Cheirava
como as árvores.
Ela cheirava como as árvores. No canto estava escuro, mas eu via
ajanela. Deixei-me Ulficar agachado, com o chinelo na mão. Não
65
o conseguia ver, mas as minhas mãos viam-no, e ouvia a noite a
aproximar-se, e as minhas mãos viam o chinelo, mas eu não me via, mas
as minhas mãos viam o chinelo, e eu estava ali agachado a ouvir a
noite chegar.
Com qu`então tá aqui, disse o Luster. Olhe o qu @u arranjei. Sabe onde
é qu`os arranjei. Foi Miss Quentin que mos deu. Eu bem sabia que não
iaficá sem ir. O que tá afazê aqui. Jájulgava que se tinha escapado
Z@paJora. Inda não chorou hoje que chegue, sem tê de se vi.r escondê
aqui nesta sala vazia, com as suas choradeiras. Venhapà cama, pa vê se
consigo chegá Zd antes daquilo começá. Hoje não possoficá a aturá-lo
toda a noite. Assim qu ouvir o primeiro toque, vou-me embora.
Não fomos para o nosso quarto.
- Aqui é onde temos o sarampo - disse a Caddy. - Por que é que temos
de dormir aqui esta noite.
- Qu'lmportâ-ncia tem o sítio onde dormem - disse a Dilsey. Fechou a
porta, sentou-se e começou a despir-me. O Jason começou a chorar. -
Cale-se - disse a Dilsey.
- Quero dormir com a Vóvó - disse o Jason.
- Ela está doente - disse a Caddy. - Podes dormir com ela quando
melhorar. Pode, não pode, Dilsey.
- Agora tej a caladinho - disse a Dilsey. O Jason calou-se.
- As nossas camisas estão aqui e tudo - disse a Caddy. como se
mudássemos de casa.
- É melhor vestirem-nas - disse a Dilsey. - Desabotoe a roupa do
Jason.
A Caddy desabotoou as roupas do Jason. Ele começou a chorar.
- Veja lá se quê apanhá - disse a Dilsey. O Jason calou-se. Quentin,
disse a Mãe do corredor.
O que é, disse a Quentin através da parede. Ouvimos a Mãe fechar a
porta à chave. Abriu a nossa porta, entrou, debruçou-se sobre a cama e
deu-me um beijo na testa.
Depois de o deitares vai dizer à Dilsey se não se importa de me
arranjar o saco de água quente, disse a Mãe. Diz-lhe que se lhe der
muita maçada, @W terei depassar sem ela. Diz-lhe que sópergunto
porperguntar.
66
Sissiô, disse o Luster. Vamos. Tocà tirá as calças.
O Quentin e o Versh entraram. O Quentin vinha a esconder
a cara. - Estás a chorar porquê - disse a Caddy.
- Cale-se - disse a Dilsey. - Vá, dispam-se todos. Tu podes ir pa
casa, Vérsh.
Despi-me, olhei para o meu corpo e comecei a chorar Cale-se, disse o
Luster. Não serve de nada andá à procura deles. Foram-se embora. Se
continua a portar-se dessa maneira, nunca mais lhe fazemosfesta de
anos. Vestiu-me a camisa de dormir. Galei-me, e
nisto o Lusterparou a olharpara ajanela. Depoisfoi até àjanela e
olhou Uparajora. Voltoupara dentro epegou-me no braço. Lá vai ela,

disse ele. Agora fique calado. Fomos até à janela e olhámos lá
parafora. O vulto saiu dajanela do quarto da Quentin e empoleirou-se
na árvore. Vimos a árvore a abanar Ouvimos o vulto a descerpela árvore
e depois vimo-lo saltar da árvore e ir-se embora pela relvaJora.
Depois deixámos de o ver. Venha, disse o Luster. Pronto. Tá a ouvir as
cornetas. Meta-se na cama queu vou,5U bpé.
Havia duas camas. O Quentin meteu-se na outra. Virou a cara para a
parede. A Dilsey deitou o Jason ao lado do Quentin. A Caddy despiu o
vestido.
- Olhe só para os seus culotes - disse a Dilsey. - Dê-se por muito
contente de a sua mãe não a tê visto.
- Eu já fiz queixa dela - disse o Jason.
- Isso já era d'esperá - disse a Dilsey.
- E vê lá o que ganhaste corri isso - disse a Caddy. - Queixinhas.
- O que é que eu ganhei com isso - disse o Jason.
- Por que não veste a camisa de dormir - disse a Dilsey. Ajudou a
Caddy a despir o corpete e os culotes. - Olhe só pó estado em que tá -
disse Dilsey. Pegou nos culotes e esfregou corri eles o rabo da Caddy.
- Ficou toda suja - disse ela. Mas esta noite não lhe vou dá banho. -
Véstiu-lhe a camisa de dormir e a Caddy subiu para a cama e a Dilsey
dirigiu-se para a
porta e disse, com a mão na luz: - Agora fiquem todos caladinhos,
estão a ouvir.
- Está bem - disse a Caddy. - Hoje a Mãe não vem cá disse ela. - Por
isso ainda têm de fazer o que eu mandar.
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- Pois têm - ffisse a Dilsey. - Vá, toca a dormi.
- A Mãe está doente - disse a Caddy. - Ela e a Vóvó estão ambas
doentes.
- Calem-se - disse a Dilsey. - Toc'à dormi.
O quarto ficou todo preto menos a porta. Depois a porta também ficou
preta. A Caddy disse: - Está caladinho, Maury
- e pôs-me a mão em cima. E eu calei-me. Nós ouvíamos as nossas vozes,
e ouvíamos a escuridão.
A escuridão foí-se embora e o Pai estava a olhar para nós. Olhou para
o Quentin e para o Jason, depois veio dar um beijo à Caddy e fez-me
uma festa na cabeça.
- A Mãe está muito doente - disse a Caddy.
- Não - disse o Pai. - És capaz de tomares conta do Maury@
- Sou - disse a Caddy.
O Pai foi até à porta e olhou para nós outra vez. Depois a
escuridão voltou, e ele ficou todo preto à porta, e depois a porta
ficou preta outra vez. A Caddy abraçou-me e eu ouvia-nos a todos nós e
à escuridão, e uma coisa que eu podia cheirar. Depois já conseguia ver
as janelas onde as árvores estavam a zumbir. Então a escuridão começou
a girar com formas suaves e brilhantes, como sempre acontece, mesmo
quando a Caddy diz que eu
estive a dormir.
Doís dejunho de 1910
Foi entre as sete e as oito que a sombra dos caixilhos apareceu nos
cortinados e eu entrei outra vez no tempo, ao som do despertador. Era
do Avô, e quando o Pai mo deu disse dou-te o mausoléu da esperança e
do desejo; chega a ser dolorosamente justo que o uses para alcançares
o reducto absurdum de toda a experiência humana, que responderá às
tuas necessidades individuais tão bem como respondeu às do teu avô ou
às do pai dele. Dou-to, não para que te lembres constantemente do
tempo, mas
para que te possas esquecer dele de vez em quando, sem depois te
esfalfares na ânsia de o recuperares. Porque, como ele dizia, nenhuma

batalha se pode considerar ganha. Nem sequer travada.
O campo de batalha apenas revela ao homem a sua própria loucura e
desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos.
Estava encostado à caixa dos colarinhos e eu deitado a escutá-lo. Isto
é, apenas a ouvi-lo. Não creio que haja alguém que deliberadamente
escute um relógio ou um despertador. Nem é preciso. Podemos abstrairnos
do som por largo tempo, e nisto, num segundo de atenção, ele
recria na nossa mente o longo período de tempo que não ouvimos. Tal
como o Pai dizia que se podia ver Jesus a caminhar nos longos e
solitários raios de luz. E o bom São Francisco de Assis, que dizia
Irmãzinha Morte, ele que nunca teve uma irmã.
Através da parede ouvi as molas do colchão do Shreve e depois os seus
chinelos a arrastarem pelo chão. Levantei-me, fui até à cómoda e
percorri-a com a mão até tocar no despertador; virei-o com o mostrador
para baixo e voltei para a cama. Mas a sombra dos caixilhos ainda lá
estava e eu tinha aprendido a deci69
frá-la quase até ao minuto, pelo que tive de lhe virar as costas,
acometido de uma comichão como se tivesse os olhos que os animais
tinham antigamente na parte de trás da cabeça, quando a traziam
erguida. Arrependemo-nos dos hábitos ociosos que adquirimos. Era o que
o Pai dizia. E que Cristo não foi crucificado: foi-se esgotando no
ínfimo tic-tac de máltiplas rodinhas. Ele que não tinha irmã.
E quando percebi que não o podia ver, comecei a tentar des- cobrir que
horas seriam. O Pai dizia que a especulação constante sobre a posição
de uns ponteiros ligados a um mecanismo sobre um mostrador arbitrário
é sintoma de actividade mental. Um excremento, dizia o Pai, como o
suor. E eu dizia Esta Dem. Tenta descobrir. Tenta sempre descobrir.
Se o dia tivesse amanhecido nublado, podia ter olhado para a janela a
pensar no que ele costumava dizer sobre os hábitos ociosos. A pensar
como devia ser bom para eles lá em New London, se o tempo se
conservasse assim. E por que não havia de conservar? O mês das noivas,
a voz que sussurrava. Ela saiu a correr do espelho, dos aromas
concentrados. Rosas. Rosas. Mr. e Mrs. Jason Ríchmond Compson têm o
prazer de anunciar o casamento de. Rosas. Mas virgens, não como as
flores de laranjeira e de cerejeira-brava. Eu disse que tinha cometido
incesto, Pai, eu disse. Rosas. Astuto e sereno. Andar um a-no em
Harvard e não ver a regata devia dar direito a reembolso. O Jason que
fique com ele. Mande o Jason um ano para Harvard.
O Shreve apareceu à porta, a abotoar o colarinho, com os óculos a
brilharem rosáceos, como se ele os tivesse lavado juntamente com a
cara. - Vais baldar-te esta manhã?
- Já é assim tão tarde? Olhou para o relógio. - A campainha toca daqui
a dois minutos.
- Não reparei que já era tão tarde. - Ele continuava a olhar para o
relógio, de boca à banda. - Tenho de me apressar. Não posso apanhar
outra falta. O deão já me avisou a semana passada... - Voltou a meter
o relógio no bolso. Calei-me.
- O melhor era enfiares as calças e dares uma corrida - disse ele.
Saiu do quarto.
70
Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro a ouvi-lo
através da parede. Ouvi-o na nossa sala comum a dirigir-se para a
porta.
- Ainda não estás pronto?
- Ainda não. Despacha-te. Eu vou já. Saiu. A porta fechou-se. Ouvi-lhe
os passos no corredor. Nisto, outra vez o relógio. Parei de andar de
um lado para o outro, fui até à janela, afastei as cortinas e fiquei a
vê-los correrem para a capela, os mesmos de sempre, a debaterem-se com
aquelas enormes mangas de sempre, os livros de sempre e os colarinhos

de sempre, a esvoaçar, passando velozes diante dos meus olhos como
detritos levados pela torrente, e o Spoade. Dizer que o
Shreve é meu marido. Não lhe ligues, disse o Shreve, se ele não tem
mais que fazer do que andar atrás dessas porcas desavergonhadas, que
temos nós com isso. No Sul é vergonha ser virgem. Os rapazes. Os
homens. Até mentem a esse respeito. Com as
mulheres já não é assim, disse o Pai. Disse que foram os homens que
inventaram a virgindade, não as mulheres. O Pai disse que é
como a morte - apenas um estado em que os outros se encontram, e eu
disse: Mas não importa acreditar nisso ou não, e ele disse: É isso que
é triste, em relação ao que quer que seja: não apenas à virgindade, e
eu disse: Por que é que não podia ser eu e
não ela a ser desvirginado, e ele disse: É também por isso que é tão
triste; nem sequer vale a pena mudar nada, e o Shreve disse se ele não
teria mais nada que fazer do que andar atrás daquelas porcas
desavergonhadas e eu disse já tiveste uma irmã? já? já?
No meio deles, o Spoade parecia um cágado numa rua
coberta de folhas secas arrastadas pelo vento, com o colarinho a
chegar-lhe às orelhas, avançando no seu passo paulatino do costume.
Era finalista e vinha da Carolina do Sul. No clube vangloriava-se de
nunca ter tido de correr para chegar a tempo ao serviço religioso, nem
ter chegado mesmo em cima da hora, nem ter faltado uma só vez em
quatro anos, nem ter chegado nunca à capela ou à primeira aula da
manhã com a camisa vestida ou as meias calçadas. Entrava no Thompson
por volta das dez horas, pedia duas chávenas de café, sentava-se,
tirava as
meias do bolso e descalçava os sapatos e calçava as meias
enquanto o café arrefecia. Por volta do meio-dia já andava de camisa e
colarinho como toda a gente. Os outros passavam por ele a correr, mas
ele nunca acelerava o passo. Daí a pouco o pátio ficou deserto.
Um pardal cruzou o ar pela frente do sol, veio pousar no
peitoril da janela e pôs-se a olhar para mim. O olho dele era
redondo e brilhante. Primeiro observou-me só com um olho, depois, zás!
e era o outro que me observava, enquanto a garganta palpitava mais
célere que qualquer pulso. Começaram a
dar horas. O pardal desistiu de trocar de olhos e fitou-me
intensamente com o mesmo olho até as badaladas se calarem, como se
também ele estivesse a escutá-las. Nisto, saltou do peitoril e
desapareceu.
Foi mesmo antes de a última badalada ter deixado de vibrar. Pairou no
ar por largo tempo, mais latente do que audível. Como se todos os
sinos vibrassem ainda nos longos raios de luz que esmoreciam enquanto
Jesus falava com São Francisco sobre a irmã. Se existisse apenas o
inferno e nada mais. Se fosse tão simples como isso. Assunto arrumado.
Se as coisas se acabassem em si próprias. Mais ninguém presente além
de ela e de mim. Se ao menos tivéssemos podido fazer alguma coisa de
tão terrível que todos eles tivessem fugido para os infernos, excepto
nós. Cometi incesto disse eu Paifuí eu nãofoi o Dalton Ames. E quando
ele me pôs Dalton Ames. Dalton Ames. Dalton Ames. Quando ele me pôs a
pistola na mão não fui capaz. Foi por isto que não fui capaz. Ele
estaria lá. E ela. E eu. Dalton Ames. Dai- ton Ames. Dalton Ames. Se
ao menos tivéssemos podido fazer qualquer coisa de tão terrível que o
Pai dissesse É triste que duas pessoas não só não consigam fazer nada
de verdadeiramente terrível, mas que também não consigam sequer fazer
nada de terrível, nem se consigam lembrar amanhã do que hoje lhes
parecia tão terrível e eu disse: Podemos sempre fugir às
responsabilidades e ele disse: Ali, podemos? E eu olharei para baixo e
verei os meus ossos a rangerem e a água profunda como o
vento, como um telhado de vento, e ao fim de muito tempo eles não
poderão distinguir sequer os ossos na areia solitária e inviolada. Até

que, no Dia em que Ele disser Levantai-vos, só o
72
ferro de engomar virá à superfície. Não é quando descobrimos que nada
nos pode ajudar - religião, orgulho, qualquer coisa
- é quando percebemos que não precisamos de ajuda. Dalton Ames. Dalton
Ames. Dalton Ames. Se eu pudesse ter sido a mãe dele, jazendo de corpo
aberto soerguido sorridente, agarrando o pai dele com esta mão,
segurando-o, vendo, assistindo à sua morte antes de ele ter vivido.
Ela permaneceu à porta por um minuto.
Fui à cómoda e peguei no relógio, ainda com o mostrador para baixo.
Bati com o vidro na esquina da cómoda, juntei na
palma da mão os fragmentos, deit 'ei-os para o cinzeiro, arranquei
os ponteiros e pu-los também no cinzeiro. O relógio continuou a
trabalhar. Voltei-o com o mostrador para cima, agora vazio e com
minúsculas rodas dentadas a baterem por detrás dele sem parar, sem
outra alternativa. Jesus a andar pela Galileia e Washington sem dizer
mentiras. O Pai trouxe ao Jason um prenda da Feira de Saint Louis: um
óculo de ópera miniatural por onde se espreitava com um olho e se via
um arranha-céus, uma
Roda Gigante toda riscada como uma tela de aranha e as Cataratas do
Niagara na cabeça de um alfinete. Havia uma mancha vermelha no
mostrador. Quando dei por ela, senti o polegar a
arder. Pousei o relógio, fui ao quarto do Shreve buscar a tintura de
iodo e pintei o golpe. Com uma toalha, limpei os vidros que ainda
estavam agarrados ao aro exterior.
Tirei dois conjuntos de roupa interior, e também meias, camisas,
colarinhos e gravatas, e fiz a mala. Meti tudo lá dentro excepto o meu
fato novo e outro já muito velho, dois pares de sapatos e dois
chapéus, e todos os meus livros. Levei os livros para a sala e
empilhei-os em cima da mesa, tanto os que tinha trazido de casa como
os que O Pai disse que antigamente se conhecia um cavalheíropelos
livros que tinha; agora conhece-sepelos que não devolveu fechei a mala
e enviei-a. Soou o quarto de hora. Parei e fiquei a ouvi-lo até os
sinos se calarem.
Tomei banho e fiz a barba. A água fez-me arder ligeiramente o dedo e
pus-lhe por isso mais tintura. Vesti o fato novo, pus o relógio e meti
o outro fato, os acessórios, a navalha de barba e as
escovas na mala de viagem, e em seguida embrulhei a chave do
'3
baú numa folha de papel e coloquei-a num sobrescrito dirigido ao meu
pai, escrevi os dois bilhetes e selei-OS.
A sombra não tinha desaparecido ainda do peitoril. Deixei-me ficar
encostado à porta por mais algum tempo a ver a sombra deslocar-se.
Avançava quase perceptivelmente, rastejando para dentro da porta,
empurrando a sombra para trás até à porta. Só que elajá ia a correr
quando eu me dei conta. já ia a correr dentro do espelho antes que eu
pudesse perceber do que se tratava. Veloz, com a cauda do vestido
deitada sobre o braço, saiu do espelho a correr como uma nuvem, com o
véu esvoaçante cintilando em longos reflexos, os saltos dos
sapatosfinos e apressados, segurando o vestido no ombro com a outra
mão, saiu a correr do espelho de aromas de rosas na voz que soprava
sobre o Éden. Depois atravessou o alpendre e eujá não ouvia os saltos
dos sapatos e depois à luz do luar, como uma nuvem, com a
sombraflutuante do véu deslizando sobre a relva, em direcção ao
alarido. Parecia que saía do vestido e, agarrando o véu, corria de
encontro ao alarido onde o T P na orvalhada dava Vivas ao Benjy da
Salsaparrilha que gritava debaixo do caixote. O peito do Pai agitavase
sob uma couraça de prata emJorma de V
O Shreve disse: - Bem, tu não... Trata-se dum casamento ou dum

velório?
- Não cheguei a tempo - disse eu.
- Pudera, com tantos arrebiques. Que foi? julgaste que era domingo?
- Acho que não vou preso por ir de fato novo, ao menos
uma vez - disse eu.
- Estava a pensar na estudantada toda lá em baixo no pátio. Vão pensar
que vais para Harvard. Ou achas-te bom de mais para ires às aulas?
- Primeiro vou comer. - A sombra desaparecera do parapeito. Saí para a
luz do sol e encontrei de novo a minha sombra. Desci os degraus mesmo
à frente dela. A meia hora soou. As badaladas foram-se extinguindo até
cessarem por completo.
O Diácono também não estava nos correios. Selei os dois sobrescritos e
enviei um ao Pai. O outro, o do Shreve, guardei-o no bolso. Foi então
que me lembrei de onde tinha visto o Diáco74
no pela última vez. Fora no Decoration Day,1 em pleno cortejo, vestido
com o uniforme do G. A. R.' Se pudéssemos ficar à espera encostados a
uma esquina, íamos encontrá-lo em todos os cortejos. A penúltima tinha
sido no Dia de Colombo, ou seria de Garibaldi, ou talvez no
aniversário de outra personagem qualquer. Desfilava na secção dos
Varredores de Rua, com um chapéu em forma de chaminé e uma bandeirinha
italiana na mão, a
fumar o seu charuto, por entre uma multidão de pás e vassouras.
Mas a última fora a do C. A. R., porque o Shreve disse:
- Olha. Vê só o que o teu avô fez àquele pobre negro.
- Pois é - disse eu. - Agora, ele já pode passar a vida nos cortejos.
Se não fosse o meu avô, tinha de andar a trabalhar como os brancos.
Não o encontrei em lado nenhum. Mas também nunca vi um funcionário
preto que fosse fácil de encontrar quando precisamos dele, e ainda
mais se vive dos rendimentos. Passou um eléctrico. Fui até à cidade e
tomei um belo pequeno-almoço nu
café do Parker. Quando estava a comer, ouvi um relógio dar horas. Acho
todavia que se leva pelo menos uma hora a perder a
noção do tempo quando se anda desde antes da própria história a tentar
entrar na sua cadência mecânica.
Quando terminei, comprei um charuto. A empregada disse que os melhores
eram os de meio dólar e eu comprei um, acendi-o e saí para a rua.
Deixei-me ficar ali parado e tirei duas boas fumaças, posto o que, de
charuto na mão, me dirigi para a esquina da rua. Passei pela montra de
um relojoeiro, mas desviei os olhos a tempo. Ao chegar à esquina, fui
assaltado por dois engraxadores negros a gritarem-me os seus pregões,
um de cada lado, estridentes e roufenhos como melros. Dei o charuto a
um deles
e um níquel ao outro, e deixaram-me em paz. O que levou o
charuto começou logo a tentar vendê-lo ao outro pelo níquel.
Havia um relógio lá alto, no sol, e pensei em como, quando não
queremos fazer qualquer coisa, o nosso corpo nos tenta convencer a
fazê-la, sem nos darmos conta. Senti os músculos da nuca muito tensos
e ouvi o relógio dentro do bolso - tic-tac,
1. Dia 30 de Maio. Dia dedicado à memória dos heróis da Guerra da
Secessão. (N. da T)
2. Grand Army of the Republic ("Crande Exército da República"). (N. íz
T)
75
tic-tac; e, daí a pouco, tinha-me fechado a todos os outros sons e
restava apenas o relógio a trabalhar dentro do bolso. Voltei a subir a
rua, até à montra. Ele estava a trabalhar sentado à mesa, perto da
montra. Estava a ficar calvo. Tinha um óculo preso no olho - um tubo
de metal enroscado na cara. Entrei.
O local estava cheio de tic-tacs que soavam como os grilos em

Setembro, nos relvados; ouvi um grande relógio de parede, pendurado
por cima da minha cabeça. Ele levantou os olhos para mim. O seu olho
era enorme, desfocado e inquiridor, atrás da lente. Tirei o meu
relógio do bolso e estendi-lho.
- Parti o relógio. Virou-o sobre a palma da mão: - E está bem partido.
Até parece que lhe saltou em cima.
- Pois foi. Bati com ele na cómoda e saltei-lhe em cima no escuro. E,
mesmo assim, continua a trabalhar.
Ele abriu a tampa do mecanismo e examinou o interior. Parece tudo em
ordem. Mas só posso ter a certeza depois de lhe fazer um exame
completo. Logo à tarde vejo isso.
- Então trago-o mais logo - disse eu. - Importa-se de me dizer se
algum destes relógios da montra está certo?
Ainda com o meu relógio na palma da mão, ele olhou para mim com o seu
olho desfocado e inquisitivo.
- Fiz uma aposta com um amigo - disse eu. - E esta manhã esqueci-me
dos óculos.
- Não tem importância - disse ele. Pousou o relógio e, soerguendo-se
no banquinho, espreitou para dentro da montra por cima da separação.
Depois olhou para a parede. - São vint...
- Por favor, não me diga - pedi eu. - Diga-me só se algum deles está
certo.
Ele olhou para mim outra vez. Voltou a sentar-se no banco e puxou o
óculo para a testa, ficando com um círculo vermelho à volta do olho.
Sem óculo e sem círculo a cara do homem parecia nua. - O que é que se
está a comemorar hoje? - disse ele. - A regata é só para a semana, não
é?
- É, sim. Hoje é uma comemoração particular. Um aniversário. Algum
deles está certo?
76
- Não. Mas também ainda não foram acertados. Se está a pensar comprar
algum...
- Não, não. Não preciso de nenhum relógio. Temos um de parede na salacomum.
Quando precisar, mando arranjar este.
Estendi a mão.
- O melhor é deixá-lo já ficar.
- Prefiro trazê-lo depois. - Entregou-me o relógio. Meti-o no bolso.
Agora, no meio de tantos relógios, já não o ouvia. Muitíssimo
obrigado. Espero não lhe ter tomado muito tempo.
- Não faz mal. Traga-o quando entender. E o melhor é adiar a
comemoração até ganharmos a, regata.
- Também acho. Saí, fechei a porta e os tic-tacs ficaram lá dentro.
Olhei para trás, para a montra. O homem observava-me, por detrás do
vidro. Havia cerca de doze relógios na montra, todos com horas
diferentes, cada um com a mesma certeza afirmativa e contraditória que
o meu também tinha, mesmo sem ponteiros. Contradiziam-se uns aos
outros. Ouvia o meu a trabalhar dentro do bolso, mesmo que ninguém o
visse, mesmo que não pudesse dizer nada, se alguém o pudesse ver.
Por isso, disse para mim mesmo que tinha de levar aquele. Porque o Pai
dizia que os relógios matam o tempo. Dizia que o
tempo está morto enquanto se for esgotando no tic-tac de minúsculas
rodas de engrenagens; só quando os relógios param é que o tempo ganha
vida. Os ponteiros estavam estendidos, não rigorosamente na
horizontal, mas com uma ligeira inclinação, como uma gaivota planando
ao vento. Prenúncio de tudo o que me costumava entristecer, como a lua
nova é prenúncio de chuva, como os negros dizem. O relojoeiro voltara
ao trabalho, debruçado sobre a bancada, com o tubo enfiado na cara.
Tinha o cabelo apartado ao meio, e o risco subia até à calva,
lembrando um pântano drenado, de Dezembro.
Reparei na loja de ferragens do outro lado da rua. Não sabia que se

podiam comprar ferros de engomar a peso.
- Talvez esteja interessado num ferro de alfaiate - disse o caixeiro.
- Pesam cinco quilos. - Porém, eram maiores do que eu pensava. Comprei
então dois mais pequenos, de três quilos
cada, pois dariam a impressão de um par de sapatos embrulhados. Os
dois juntos tornavam-se bastante pesados, mas pensei outra vez no que
o Pai tinha dito acerca do reducto absurdum da experiência humana,
pensando nesta como a última oportunidade para a minha admissão em
Harvard. Talvez no próximo ano; pensando que talvez fossem precisos
dois anos para aprender a fazer as coisas como deve ser.
No entanto, eram muito pesados para levar na mão. Chegou um comboio.
Não reparei no destino. Ia cheio; gente, na sua maioria de aspecto
abastado, a ler o jornal. O único lugar vago era ao lado de um negro.
Levava chapéu de coco e sapatos bem engraxados e segurava uma ponta
apagada de charuto. Eu costumava pensar que era dever de todo o
Sulista mostrar sempre consideração pelos negros. Achava que era isso
que os do Norte esperavam dele. Quando vim pela primeira vez para o
Leste, costumava pensar Tens de te esforçar por pensares neles como
pessoas de cor e não como negros, e, se não fosse ter vindo encontrar
tantos por aqui, teria perdido muito tempo e energia até descobrir que
a melhor maneira de lidar com as pessoas, sejam elas pretas ou
brancas, é tomá-las por aquilo que julgam ser e deixá-las em paz. Foi
nessa altura que percebi que ser-se
negro não é tanto o ser-se uma pessoa, é mais um comportamento, uma
espécie de reflexo dos brancos com quem convivem. A princípio, porém,
julguei que ia sentir a falta dos negros à minha volta, porque pensava
que era isso que os do Norte achavam que eu sentia, mas só naquela
manhã em Virgínia é que me apercebi de como sentia a falta do Roskus e
da Dilsey, e de todos eles. Quando acordei o comboio estava parado e
eu subi a per- siana e espreitei lá para fora. A carruagem estava
mesmo em cima de uma passagem de nível, onde duas cercas brancas
desciam a encosta e se ramificavam para os lados e para baixo como um
esqueleto, e vi um negro montado num burro, plantado sobre os sulcos
ressequidos da estrada, à espera de que o comboio arrancasse. Não
sabia há quanto tempo ele ali estava, sei só que estava escarranchado
no burro, com a cabeça embrulhada num bocado de uma manta, como se os
dois tivessem sido ali postos com a
cerca e a estrada, ou até com a colina, esculpidos na própria coli78
na, como um aviso que dissesse Estás de novo em casa. Montava sem sela
e os pés chegavam quase ao chão. O burro mais parecia um coelho. Puxei
a janela para cima.
- Eh, Tiozinho - disse eu. - É este o caminho?
- Siô? - Olhou para mim e depois abriu a manta e destapou as orelhas.
Prenda de Natal!' - disse eu. É pa já, patrão. Desta vez levou-m'à
certa. Olá se levou. Por esta escapas. - Tirei as calças da bagageira
e tirei do bolso uma moeda de vinte e cinco cêntimos. - Mas para a
próxima tem cuidado. Passo ou 'tra vez por aqui dois dias depois do
Ano Novo; fica de olho alerta. - Atirei-lhe a moeda da janela.
Compra qualquer coisa para o Natal- Sim, siô - disse ele. Desceu do
burro, apanhou a moeda e limpou-a à perna. - Obrigado, patrãozinho.
Obrigadinho.
- O comboio pôs-se de novo em movimento. Debrucei-me da janela, a
olhar para trás, a apanhar o ar gelado. Lá estava ele ao lado da
pileca que mais parecia um coelho, estáticos os dois, andrajosos,
impacientes. O comboio balançou ao descrever uma curva e a locomotiva
soltou umas apitadelas breves, desabridas; e assim desapareceram os
dois suavemente, envoltos no
seu ar de miséria e infinita paciência, de estática serenidade: aquela
mistura de incompetência espontânea e infantil e paradoxal honestidade

que guarda e protege aqueles que ama sem
razão e constantemente os rouba e foge às responsabilidades e
obrigações, recorrendo a meios demasiado visíveis para se lhes chamar
subterfiígios, e que é encarada no roubo ou na evasão
com a admiração franca e espontânea que todo o cavalheiro sente por
aquele que o vence em combate leal; no fundo, uma
tolerância afectuosa e inesgotável para com as extravagâncias dos
brancos, semelhante à de um avô para com netos imprevisíveis e
endiabrados, e de que eu já não me lembrava. Durante todo o dia,
enquanto o comboio contornava ravinas e precipícios onde apenas se
ouvia o som laborioso dos rodados gemendo de exaustão, e onde as
montanhas eternas se perdiam na
1. Saudação tradicional da época de Natal. Quem a recebia tinha de dar
uma pequena lembrança a quem lha dirigia. (N. da T)
79
espessura dos céus, eu ia pensando na nossa casa, na estação deserta,
na lama, nos negros e no povo, acorrendo lentamente à praça principal
com os seus macaquinhos de peluche, carroças, sacos de rebuçados e
fogo de artifício, e as entranhas revolviam-se-me, como na escola,
quando a sineta tocava.
Só começava a contar depois de o relógio dar as três horas. Nessa
altura sim, contava até sessenta e dobrava um dedo, a pensar nos
restantes catorze dedos à espera de serem dobrados, ou
treze ou doze ou oito ou sete, até que, de repente, me apercebia do
silêncio das mentes iluminadas e dizia: - Sim, Senhora Professora? - O
teu nome é Quentin, não é verdade? - dizia Miss Laura. Depois, o
silêncio voltava e com ele a crueldade das mentes iluminadas e das
mãos que se agitavam no silêncio. Diz ao Quentin quem descobriu o rio
Mississípi, Henry. DeSoto. Depois as mentes iam-se embora, e eu ficava
com medo de me ter atrasado e punha-me a contar mais depressa e
dobrava mais um dedo, mas depois tinha medo de estar a ir depressa de
mais e abrandava, mas tinha medo e contava depressa outra vez. Por
isso nunca chegava ao fim a par da sineta e do tumulto dos pés a
caminho da liberdade, sentindo já a terra por baixo do soalho, e
o dia quebrava-se com um som agudo e frágil de vidraça, e eu
ficava sentado com as entranhas às voltas. Movia-me sentado sem me
mexer. As minhas entranhas revolviam-se por ti. Daí a um
m in u to ela su rgiu à p o rta. Benjy. A gri ta r. Benja m 1 n o fru
to da mi .nha velhice a gritar. Caddy! Caddy!
Vo u'fuTir. Ele começou a chorar elafoí ter com ele efez-lhe uma
carícia. Pronto. Já nãofujo. Pronto. Ele calou-se. Dilsey.
Ele cheira o que lhe dizemos quando quê. Não precisa douvir nem dejaU
Será querUpelo cheiro deste nome qu;igora lhe deram? Será que
6Upelo cheiro da má sorte?
Pa quhá-de ele preocupar-se ca sorte? A sorte não o pode apoquentá.
Pa que lhe mudaram então o nome se não lhe traz melhor sorte? A
carruagem arrancou, parou, arrancou outra vez. Por baixo da j anela
viam-se cocurutos de cabeças a passar por baixo de chapéus de palha
novinhos em folha, ainda não comidos pelo sol.
80
Agora já iam mulheres na carruagem com as cestas das compras, e já se
viam mais homens em fato de trabalho do que com sapatos bem engraxados
e colarinhos brancos.
O negro tocou-me no joelho. - Desculpe - disse ele. Virei as pernas
para o lado de fora e deixei-o sair. íamos a passar por
um muro completamente nu, e o eco do ruído do comboio vol- tava para a
carruagem, para as mulheres com as cestas das compras ao colo e um
homem de chapéu todo manchado com um
cachimbo enfiado na fita. Senti um cheiro a água e vislumbrei por uma

fenda do muro uma nesga de água cintilante com dois
mastros e uma gaivota suspensa no ar, entre os mastros, como se presa
por arame invisível. Levei a mão ao peito, por cima do casaco, e
apalpei as cartas que escrevera. Quando o comboio parou, apeei-me.
A ponte estava levantada para dar passagem a uma escuna.
Vinha a reboque e o rebocador puxava-a suavemente, colado ao
flanco, deixando um rasto de fumo; mas o navio propriamente dito
parecia deslocar-se sem meios visíveis de propulsão. Um homem nu da
cintura para cima enrolava um cabo no castelo de proa. Tinha um corpo
bronzeado, cor de folha de tabaco. Um outro homem, de chapéu de palha
já sem copa, ia postado ao
leme. O navio passou pela ponte, deslizante, com os mastros despidos,
como um fantasma em pleno dia, corri três gaivotas a
sobrevoarem a popa, brinquedos pendurados em arames invisíveis.
Quando a ponte baixou, passei para o outro lado e debrucei-me do
parapeito sobre os hangares dos barcos a remos. A prancha estava
deserta e as portas fechadas. As tripulações só treinavam ao fim da
tarde, depois de algumas horas de repouso. A sombra da ponte, as
grades da balaustrada e a minha sombra estendida sobre a água, que eu
tinha sabido aliciar tão bem que nunca mais me abandonara. Tinha pelo
menos quinze metros de comprimento; se ao menos eu tivesse alguma
coisa com que pudesse empurrá-la para baixo e mantê-la debaixo de água
até ela se afogar, como por exemplo a sombra do embrulho que parecia
conter sapatos. Dizem os negros que a sombra dos afogados fica sempre
dentro de água a vigiá-los. Brilhava e cintilava,
81
parecia respirar, e a prancha também, agitando-se lentamente
como se respirasse, e os detritos meio-submersos de volta ao mar, às
cavernas, às grutas marinhas. A deslocação de uma massa de água é
igual a qualquer coisa de qualquer coisa. Reducto absurdum de toda a
experiência humana, e dois ferros de engomar de três quilos cada pesam
mais que um ferro de alfaiate. Que desperdício, que pecado, diria a
Dilsey. O Benjy sentiu quando a
Avó morreu. Pôs-se a gritar. Ele sentiu-lhe o cheiro. Ele sentiu-lhe o
cheiro.
O rebocador voltou para trás, apartando as águas, formando longos
cilindros rolantes e fazendo finalmente balançar a prancha à sua
passagem, fazendo-a ir de encontro ao cilindro rolante
com um sonoro chapinhar e um audível safanão, quando a porta
articulada se abriu e apareceram dois homens transportando uma canoa.
Meteram-na na água e logo a seguir surgiu o Bland com os remos. Vestia
de calças de flanela, casaco cinzento e chapéu de palha enformado. Ele
ou a mãe deviam ter lido algures que os estudantes de Oxford remavam
de calças de flanela e chá- péu de palha e, assim, no princípio de
Março compraram ao Gerald uma canoa de dois lugares e ele lá foi para
o rio de calças de flanela e chapéu de palha. Os funcionários do
hangar ameaçaram chamar a polícia, mas ele teimou em ir. A mãe chegou
num carro alugado, enrolada em peles como um explorador do Ártico,
para o ver partir impelido por um vento que soprava a sessenta
quilómetros por hora e navegar rodeado de um rebanho de blocos de gelo
flutuantes que o acompanhavam como carneiros enxovalhados. Desde então
fiquei convencido de que Deus não é só um cavalheiro e um desportista;
Deus é também do Kentucky. Quando ele partiu, ela fez inversão de
marcha e desceu o rio outra vez, seguindo a par dele, com o carro em
primeira. Diz quem viu que ninguém suspeitaria de que já se conheciam,
os dois por ali fora, como rei e rainha, sem olharem sequer um para o
outro, atravessando de lés a lés o Massachussets, em percursos
paralelos, como dois cometas.
Ele entrou para a canoa e partiu. Remava com ímpeto. Também não
admira. Diziam que a mãe o tinha tentado obrigar a desistir do remo

para fazer outra coisa que o resto da turma não
82
soubesse ou não quisesse fazer, mas pelo menos dessa vez ele venceu
pela teimosia. Se é que se pode chamar teimosia a ficar sentado em
pose principesca e enfadada, com os loiros caracóis, os olhos violeta,
as longas pestanas e os fatos comprados em
Nova lorque, a ouvir a mãe falar-nos dos cavalos do Gerald e dos
negros do Gerald e das mulheres do Gerald. Deve ter sido um alívio
para os pais e maridos do Kentucky quando ela mandou o Gerald para
Cambridge. Ela tinha um apartamento na cidade e o Gerald tinha outro,
além do quarto na universidade. Ela gostava que o Gerald andasse
comigo porque eu dava pelo menos mostras de um sentido 'algo
desconcertante do noblesse oblíge, ao ter conseguido nascer a sul de
Mason e de Dixon, e de mais algumas cidades cuja geografia
correspondia aos seus padrões (mínimos) de exigência. Era, pelo menos,
desculpável. Ou tolerável. Porém, desde o dia em que viu o Spoade pela
primeira vez à saída da capela e Ele disse que ela não podia ser uma
senhora pois nenhuma senhora andaria na rua àquela hora da noite ela
nunca mais fora capaz de lhe perdoar por usar cinco nomes, incluindo o
de uma actual casa ducal inglesa. Tenho a
certeza de que se consolou tentando convencer-se de que algum
Maingault ou Mortemar degenerado se tinha metido com a filha do
caseiro. O que era bem provável, tivesse-o ela ou não inventado. O
Spoade era o campeão dos fleumáticos, permitindo-se todos os devaneios
e todas as trapaças.
A canoa era, agora, apenas um pontinho, com os remos a brilhar ao sol,
intermitentemente, como se tivesse luz própria. Já tiveste uma irmã?
Não, mas elas são todas umas cabras. já tiveste uma irmã? Por um
minuto. Umas cabras. Sem ser cabra surgiu à portapor um minuto. Dalton
Ames. Dalton Ames. Camisas Dalton. Estava convencido que eram de
caqui, de caqui como as
camisas militares, até ver que eram feitas de seda chinesa muito
grossa ou de flanela fina, e que era por isso que lhe faziam a cara
tão morena e os olhos tão azuis. Dalton Ames. Faltava-lhe apenas um
toque de classe. Puro adereço teatral. Tudo papelão. Toque-se e Ah,
amianto. Nem sequer bronze. Mas não o verão U em casa.
A Gaddy é também mulher não te esqueças. Há-defazer certas coisaspor
razõesfeminínas.
83
Por que não o trazes cápara casa, Caddy? Por que nãoJazes comofazem as
negras aípelosprados, pelos valados, pelas moitas sombrias, que se
escondem ardentes defúria nas moitas sombrias.
Passado algum tempo já tinha ouvido o meu relógio durante um bom
bocado e sentia as cartas estalarem no bolso do casaco de encontro ao
parapeito, e eu continuava debruçado a observar a minha sombra e como
a tinha enganado. Guiei-a para dentro da sombra do cais. Depois
caminhei rumo a leste.
Harvard meu estudante de Harvard Harvard harvard Aquele miúdo cheio de
borbulhas que ela encontrou no dia das provas de atletismo com fitas
coloridas. Correndo ao longo da cerca
assobiando-lhe como a um cão. Como não o tínhamos conseg or uido
convencer pela lisonja a entrar na casa de jantar a Mãe acreditava que
ele ia enfeitiçá-la quando ficasse a sós com ela. Como qualquer
canalha Ele estava deitado ao lado do caixote debaixo dajanela a
gritar quepudesse chegar numa limusine com umaflor na lapela. Harvard.
Quentin este é o Herbert. O meu estudante de Rarvard. O Herbert vai
ser como um irmão mais velhojá oprometeu aojason.
Cordial, do tipo viajante do celulóide. Dentadura de lés a lés muito
branca, mas poucos sorrisos. já U ouvíJalar nele. Muitos dentes mas

poucos sorrisos. És tu que vais guiar?
Entra Quentin. És tu que guias.
O carro é dela não te sentes orgulhoso por a tua irmãzínha ser dona do
primeiro automóvel da cidadepresente do seu Herbert. O Louis tem
andado a dar-lhe lições todas as manhãs não recebeste a minha carta
Mr. e Mrs. Jason Richiriond Compson têm o prazer de anunciar o
casamento da sua filha Candace com Mr. Sydney Herbert Head no dia
vinte e cinco de Abril de mil novecentos e dez em Jefférson no
Mississípi. Os noivos oferecem a
sua casa a partir do dia um de Agosto na Avenida South Bend Número Tal
Andar Tal Indiana. O Shreve disse Não vais ao menos abri-Ia? Três
dias. Vezes. Mr. e Mrs. Jason Ríchmond Compson O jovem Lonchinvar
partiu do oeste um pouco cedo de mais, não foi?
Eu sou do sul. És um tipo um tanto estranho, não és?
84
Ah sim sabia que de algum lado havias de ser. És estranho, não és.
Devias ir para o circo. E eu fui. E foi assim que dei cabo dos olhos a
dar de beber às pulgas dos elefantes. Três vezes. Estas raparigas da
província. Nunca se sabe, pois não. Bem, seja como for, Byron nunca
viu o seu desejo satisfeito, graças a Deus. Mas nunca bater num homem
com óculos Não vais sequer abri-Ia? Estavam em cima da mesa com uma
vela a arder em cada extremo sobre o sobrescrito atadas com uma liga
suja cor-de-rosa duasflores artificiais. Nunca bater num homem com
óculos.
Gente da província coitados nunca viram um automóvel olha tantos toca
a buzina Candace para Ela nem para mim olhou eles saírem do caminho
nem para mim olhou o teu pai não ia
gostar que atropelasses algum deles acho que o teu pai agora não vai
ter outro remédio senão comprar um automóvel quase lamento que o tenha
trazido Herbert gostei imenso é claro há a
caleche mas muitas vezes quando eu quero sair Mr. Compson tem os
pretos ocupados com qualquer coisa era o fim do mundo se os
interrompesse ele insiste que o Roskus está à minha disposição o tempo
todo mas eu sei o que isso significa sei quantas vezes as pessoas
fazem promessas só para aliviarem as
suas consciências veja lá se vai tratar assim a minha menina Herbert
mas eu sei que não vai o Herbert tem-nos estragado a
todos com mimos Quentin já te mandei dizer que ele vai levar o Jason
para o banco quando o Jason acabar o liceu o Jason vai
dar um banqueiro de primeira ele é o único dos meus filhos com algum
sentido prático da vida podes agradecer-me a mim por isso ele sal à
minha família os outros saem todos aos Compsons OJasonJornecía
afarinha. Elesfaziam papagaios na varanda das traseiras e vendiam-nos
a um níquel cada um, ele e ofilho do Patterson. Ojason era o
tesoureiro.
Neste comboio não ia nenhum negro e os chapéus de palha novinhos em
folha continuavam a passar por baixo da janela. Ir para Harvard.
Vendemos Ele estava deitado no chão por baixo da janela a gritar,
Vendemos a pastagem do Benjy para o Quentin poder írpara Harvard o teu
irmão. O teu irmãozinho.
Devias ter um carro fez-te muito bem não achas Quentin
85
está a ver eu já lhe chamo Quentin de tanto ouvir a Candace falar
nele.
E por que não havia de chamar eu quero que os meus filhos sejam mais
do que amigos sim Candace e Quentin. mais do que amigos Pai eu cometi
que pena não teres irmãos nem irmãs Nenhuma irmã nenhuma irmã não
tinha nenhuma irmã Não pergunte ao Quentin ele e Mr. Compson sentem-se
os dois um pouco insultados quando eu tenho forças suficientes para

vir
sentar-me à mesa agora ando uma pilha de nervos e vou pagar por isso
depois de tudo terminar e o Herbert ter levado a minha filhinha para
longe de mim A minha írmãzínha não tinha nenhum. Se eu pudesse dizer
Mãe. Mãe.
A menos que faça o que estou tentada a fazer e a leve a si não creio
que Mr. Compson pudesse alcançar o carro.
Ah Herbert Candace estás a ouvir isto Ela nem para mim
olhava doce voluntariosa queixofirme sem se virarpara trd não precisas
de ter ciúmes ele está só a ser lisonjeiro para uma
velha senhora com uma filha já casada não acredito.
Que disparate parece uma rapariga muito mais nova do que a Candace a
cor das suas faces é de rapariga Um rosto ressentido lacrimejante e o
cheiro a cân/ora e a L@grímas uma voz carpindo suave e persistente por
detrás da porta incendiada de crepúsculo o
aroma a madressilva tingião de crepúsculo. Arrastando baús vazios
pelas escadas do sótão abaixo como quem arrasta caixões French Lick.'
Não encontrar a morte na salina
Com chapéus ainda por desbotar e sem chapéu. Três anos
sem usar chapéu. Não era capaz. Estava. Será que há chapéus uma vez
que eu não estava nem tão pouco se falava em Harvard. Onde o melhor
dos pensamentos dizia o Pai se agarra como gavi- nhas mortas a velhos
tijolos mortos. Harvard não. Não para mim, pelo menos. Outra vez. Mais
triste do que antes. Outra vez. Mais triste que nunca. Outra vez.
O Spoade tinha uma camisa vestida; então deve ser. Quando voltar a ver
a minha sombra se não tiver cuidado como quando a
atraí para a água caminharei outra vez sobre a minha sombra
1. Estância termal (Trad.: "Salina Francesa"). (N. da T)
86
impenetrável. Mas nem uma irmã. Eu não o teria feito. Não consinto que
andem a espiar a minhafilha Não teria.
Como é que heí-de controlar qualquer um deles quando tu sempre lhes
ensinaste a não me respeitarem nem a mi .in nem às mi.nhas vontades
sei que desprezas a minhajamília mas isso não é razão para
industríares os meusfilhos os meus própriosfilhos por quem passei
sofrimentos a não me terem respeito Espezinhava os ossos da minha
sombra no chão de cimento com os tacões e nisto ouvi o relógio e
apalpei as cartas por cima do casaco.
Não consinto que tu o Quentín ou quem quer que seja andem a espiar a
minhafilha síja o quejorguepensem que elajez.
Pelo menos concordas que há razão para a trazer vigiada Eu não o teria
feito eu não o teria feito. Sei que não terias não foi minha intenção
ser tão duro mas as mulheres não têm respeito nenhum umaspeZas outras
nem por si mesmas
Mas comofoi que ela As badaladas soaram quando eu pisei a
minha sombra, mas era o quarto de hora. O Diácono não se via em parte
nenhuma. pensar que eu teriapodido
Ela não ofez por mal é assim que as mulheresfazem as coisas é por amar
tanto a Caddy
Os candeeiros desciam pela estrada abaixo e depois subiam em
direcção à cidade eu caminhava em cima da barriga da minha sombra.
Podia estender a mão para fora dela. sentir o Pai atrás de Mim para U
da escuridío irritante do Verão e de Agosto os candeeíros o Pai e eu
protegemos as mulheres umas das outras e delas mesmas as nossas
mulheres As mulheres são assim não aprendem a
conhecer as pessoas nós é que nascemos para isso elas apenas nasceram
com a capacidade prática de desconfiarem tão desenvolvida que a todo o
momentofazem uma verdadeira colheita de suspeitas
geralmentejundamentadas elas têm uma propensão para o mal o talento
defornecerem ao mal o que lhefalta para nele se enrolarem

i.nsti.nti.vamente como nos enrolamos a dormir nos
cobertoresfertilizando a mentepara o receber até que ele atinja o seu
objectivo quer esse objectivo tenha existido ou não Ele vinha ladeado
por dois caloiros. Ainda não tinha recuperado do desfile, pois fez-me
uma continência muito militar.
- Preciso de falar contigo - disse eu, estacando.
87
- Falar comigo? Está bem. Até logo, rapazes - disse ele, parando e
voltando para trás -; gostei de falar com vocês. Aquele sim, era o
Diácono, dos pés à cabeça. Por falar em psicólogos natos... Diziam que
em quarenta anos nunca tinha perdido um cortejo de abertura do ano
lectivo, e que só de olhar identificava logo os naturais do sul. Nunca
se enganava e depois de os ouvir falar era até capaz de identificar o
estado de onde vinham. Tinha um uniforme especial para cortejos, uma
espécie de fatiota à cabana do Pai Tomás, com remendos e tudo.
- Si, siô. Por aqui, patrãozinho, sê por aqui - dizia, pegando nas
malas. - Aqui, rapaz, vem cá pegá nestas tralhas. - E uma montanha
ambulante de bagagens aproximava-se, transformando-se num rapaz branco
de cerca de quinze anos, e o Diácono punha mais uma mala em cima da
montanha e mandava-o embora. - Agora vê lá se deixas cair isso. Si,
siô, patrãozinho, dê o número do seu quarto ao nêgo velho e quando lá
chegá já lá tá tudo.
Daí em diante, e até nos ter completamente subjugados, passava a vida
a entrar e a sair do quarto, castiço e pairador, embora os seus modos
se fossem aproximando gradualmente dos do norte e a forma de vestir
também, até que, por fim, quando já nos tinha gozado o suficiente e
nós já começávamos a ficar desconfiados, ele nos tratava por Quentin
ou por o que quer que fosse
o nosso primeiro nome, e, quando o voltássemos a encontrar, já ele
trazia um velho fato da alfalataria Brooks e um chapéu com uma fita já
não me lembro de que clube de Princeton que alguém lhe tinha dado e
que ele estava plena e orgulhosamente conven- cido de se tratar de uma
tira da faixa do uniforme de gala de Abe Lincolti. Quando ele, há uns
a-nos atrás, apareceu pela primeira vez na Universidade vindo sabe-se
lá de onde, alguém espalhou o boato de que ele se tinha formado em
teologia. Ele, quando percebeu o que isso significava, ficou tão
orgulhoso que passou ele próprio a contar a história, até acabar por
acreditar que era mesmo verdade. O certo é que contava intermináveis
histórias sem nexo dos seus tempos de estudante, referindo-se com
familiaridade a professores já mortos e afastados que tratava pelos
primeiros nomes, geralmente errados. Fosse como fosse, tinha
88
sido guia, mentor e amigo de incontáveis fornadas de caloiros ingénuos
e solitários, e estou convencido de que apesar de todas as suas
pequenas hipocrisias e aldrabices não estava mais mal visto aos olhos
de Deus do que qualquer outro.
- Há três ou quatro dias que não o vejo - disse ele, fitan- do-me do
alto da sua aura ainda militar. - Teve doente?
- Não. Estou bem. Mas tenho andado muito ocupado. Mas olha que eu vite.
- Ah, sim?
- No cortejo, no outro dia.
- Ah, aí. Tava lá, sim. Não qu'eu ligue a essas coisas, tá a perceber,
mas os rapazes gostam qu'eu vá com eles, os finalistas sobretudo. Sabe
com'é, as senhoras querem lá ver todos os finalistas. E eu tenho de
lhes fazer a vontade.
- E no dia da festa da Italianada também - disse eu. Nessa altura
estavas lá a pedido da Liga Anti-alcoólica, se bem me lembro.
- Dessa vez? Dessa vez tava lá por causa do meu genro. O sonho dele é

arranjar um emprego na Câmara Municipal- Varredor de ruas. E eu
costumo dizer-lhe que tudo o que ele quer é
uma vassoura pá s'arrimar. Viu-me, não viu?
- Das duas vezes.
- Quer dizer, co uniforme. O qu'é qu'achou?
- Que estavas uma maravilha. Melhor que qualquer dos outros. Deviam
fazer-te general, Diácono.
Tocou-me ao de leve no braço, com a mão gasta e macia
como são as mãos dos negros. - Oiça. Isto não é pa sair daqui. Não me
importo de lhe contar porque o Quentin e eu semos a bem dizer da mesma
massa. - Chegou-se mais perto e começou a falar rapidamente, sem olhar
para mim. -já tou a preparar as coisas. Espere só pelo ano que vem e
vai ver onde é qu'eu vou marchar. Nem preciso de lhe dizer como é que
vou fazer; espere e verá meu rapaz. - Finalmente olhou para mim, deume
uma palmadinha no ombro e rodou nos calcanhares, meneando a cabeça.
- Sim senhor. Não me fiz Democrata há três anos p'ra nada. O meu genro
na Câmara; e eu... Sim, senhor. Se ao menos fazer-me Democrata pusesse
aquele filho da mãe a
89
trabalhar.. E quanto a mim: é só pôr-se ali naquela esquina de
anteontem a um ano e logo verá.
- Espero bem que sim. TU mereces, Diácono. E enquanto penso no que me
disseste... - Tirei a carta do bolso. - Leva esta carta amanhã ao meu
quarto e dá-a ao Shreve. Ele depois dá-te uma coisa. Mas só amanhã,
estás a ouvir.
Ele pegou na carta e examinou-a. - Está fechada.
- Pois está. E lá dentro está escrito: Só vale abrir amanhã.
- Hum - fez ele. Mirou o sobrescrito muito sério. - Uma coisa para
mim, não foi o que disse?
- Foi. Uma prenda que eu te dou. Estava com os olhos postos em mim, e
o sobrescrito branco na mão preta, à chapa do sol. Os seus olhos eram
doces, sem íris, acastanhados, e de repente vi o Roskus a observar-me
por detrás de todos aqueles adereços de homem branco: os uniformes, a
política, o estilo Harvard, desconfiado, secreto, inexpressivo,
triste. - Não está a pregar uma partida ao negro velho, pois não?
- Sabes bem que não. Já algum sulista alguma vez te pregou uma
partida?
- Tem razão. São boa gente, mas não para se viver com eles. -já alguma
vez tentaste? - disse eu. Mas o Roskus já lá não estava. Ele voltara a
ser o indivíduo que há muito se tinha habituado a ser aos olhos do
mundo pomposo, espúrio, mas não completamente grosseiro.
- Farei o que me pede, meu rapaz.
- Mas só amanhã, não te esqueças.
- Claro - disse ele. - Entendido, meu rapaz. Bem...
- Espero que... - disse eu. Ele olhou-me lá do alto com os
seus olhos bondosos e profundos. Num impulso estendi-lhe a
mão e cumprimentámo-nos, ele com gravidade, dos píncaros do seu sonho
municipal e militar. - És um bom tipo, Diácono. Espero que... já
ajudaste muitos rapazes.
- Tento tratar bem toda a gente - disse ele. - Não faço distinções
sociais. Para mim, um homem é sempre um homem, onde quer que o
encontre.
- Só espero que encontres tantos amigos como os que tens feito.
90
- A rapaziada. Gosto deles. E eles também não me esquecem - disse,
agitando o sobrescrito. Meteu-c, no bolso e abotoou o casaco. - Sim,
senhor - disse ele. - Tenho feito bons amigos.
As badaladas soaram outra vez; era a meia-hora. E eu parado sobre a
barriga da minha sombra a ouvir as batidas, tranquilas e espaçadas, à

luz do sol entre as folhas delicadas e imóveis. Espaçadas, suaves e
serenas, com aquele toque outonal sempre presente nos sinos mesmo no
mês dos noivados. Deitado no chão a chorar debaixo dajanela Bastou-lhe
olhar para ela uma vez só e percebeu. Pela boca das crianças. -Os
candeeiros As badaladas cessaram. Voltei para os correios, pisando no
chão a minha sombra. descem a encosta e depois sobem-na em direcção à
cidade, como lampíjes pendurados uns por cima dos outros na parede. O
Pai disse que para ele amar a Caddy é porque gosta das pessoas pelo
seus defeitos. O Tio Maury de pernas estendidas em frente ao lume
ergueu a mão apenas o tempo necessário para brindar ao Natal. O Jason
ia a correr com as mãos nos bolsos, caiu espalmado que nem um frango
pronto para o churrasco até o Versh o ajudar a levantar. Por que não
tira as mãos dos bolsos quando vai a correr assimjá não se
desequilibrava. Rebolar a cabeça no berço e bater com ela de um lado e
do outro. A Caddy disse ao Jason e ao Versh que a razão por que o Tio
Maury não trabalhava era porque costumava rebolar a cabeça no berço
quando era bebé.
O Shreve vinha a subir a rua, a arrastar os pés, todo ele obesidade e
boa fé, com as lentes a cintilarem como minúsculas poças de água sob
as ramadas frondosas.
- Dei ao Diácono uma lista de coisas para ele vir buscar. Esta tarde
sou capaz de não estar cá, não o deixes levar nada até amanhã,
percebes?
- Está bem. - E continuou, olhando para mim: - Ouve lá, que vais fazer
hoje? Todo bem vestido e por aí às voltas como
se te preparasses para um sati. Foste esta manhã à aula de Psicologia?
- Não tenho nada que fazer. Pelo menos até amanhã.
- O que levas aí?
91
- Nada. É só um par de sapatos a que mandei pôr meias-solas. Não lhe
dês nada até amanhã, ouviste?
Pronto, está bem. Ah, é verdade, viste uma carta que estavá em cima da
mesa esta manhã?
- Não.
- Então ainda lá está. Da Semiramís. Trouxe-a o motorista esta manhã.
- Deve ser mais algum recital da orquestra. Tchim-pum, Gerald, toma lá
mais um. "Um pouco mais de ânimo no tambor, Quentin." Safa. Ainda bem
que não sou menino-bem. Seguiu o seu caminho, agarrado a um livro, um
pouco disforme, com obesa determinação. Os candeeíros da rua pensas
assim por um dos nossos antepassados ser governador e outros três
generais, e os da Mãe não
qualquer homem vivo está melhor do que qualquer homem morto, mas
nenhum homem vivo ou morto está muito melhor do que outro homem vivo
ou morto Era assunto arrumado na cabeça da Mãe. Nada afazer. Nada
afazer. E entãofomos todos envenenados Estás a confundir pecado com
moralidade as mulheres não fazem isso a tua mãe está a pensar na
moralidade, se é pecado ou não nem sequer lhe ocorreu
Tenho de me ir embora Jason fica com os outros eu levo o Jason e vou
para onde ninguém nos conheça para ele poder crescer e esquecer tudo
isto os outros não gostam de mim nunca
gostaram de nada têm o egoísmo e o falso orgulho dos Comp- sons O
Jason era o único a quem entregava sem receios o meu coração
disparate o Jason está bem estava a pensar que assim que te sentires
melhor tu e a Caddy podiam ir para as termas de French Lick
e deixarem aqui o Jason sem mais ninguém além de ti e dos negrinhos
ela vai esquecê-lo e o falatório acaba por esmorecer não encontrar a
morte nas salínas
Talvez lhe conseguisse arranjar marido a morte nas salínas não
O carro aproximou-se e parou. Os sinos ainda batiam a
meia-hora. Entrei e pôs-se de novo em marcha, sobrepondo-se

92
à meia-hora. Não: eram os três quartos de hora. Nessa altura já só
faltavam dez minutos. Deixar Harvard o sonho da tua mãe vendeu
apastagem do Benjypor
o que fiz eu para ter filhos como estes o Benjamin já era castigo
suficiente e agora ela que não mostra qualquer consideração pela
própria mãe sofri por ela sonhei e fiz planos e sacrifiquei-me desci
às profundezas e no entanto desde que abriu os olhos ela nunca pensou
em mim desinteressadamente às vezes olho para ela e pergunto-me como
pode ela ser minha filha só o Jason é que não esse nunca me deu o mais
pequeno desgosto desde o
momento em que o segurei nos brraços soube logo que seria a
minha alegria e a minha salvação pensei que o Benjamin já era
castigo suficiente para os pecados que eu possa ter cometido pensei
que ele era o meu castigo por pôr o orgulho de lado e casar
com um homem que se julgava melhor do que eu não me queixo eu amava-o
mais do que a todos eles por isso mesmo porque era meu dever embora o
Jason me cortasse o coração mas vejo agora que não sofri o bastante
vejo agora que tenho de pagar pelos teus pecados e pelos meus que
fizeste tu que pecados lan- çou sobre mim a tua família tão distinta e
tão poderosa mas tu
saberás justificá-los sempre encontraste desculpas para os teus
parentes só o Jason é que se porta mal porque ele é mais Bascorrib do
que Compson enquanto a tua própria filha a minha menina a minha
pequenina não é não é melhor do que isso quando eu era pequena era
infeliz era apenas uma Bascorrib, ensinaram-me que não há meio termo
que uma mulher ou é uma senhora ou não é mas nunca imaginei quando a
apertava nos braços que filha minha pudesse chegar a esse ponto sabes
que me
basta olhar para os olhos dela e perceber podes julgar que ela te
conta mas ela não conta nada é de guardar segredo tu não a conheces eu
sei de coisas que ela fez que antes queria morrer do que tu vires a
sabê-las é isso mesmo continua a criticar o Jason a
acusares-me de o mandar vigiá-la como se isso fosse um crime enquanto
a tua própria filha pode eu sei que tu não gostas dele que fazes por
lhe arranjar defeitos que sabes que ele não tem sim metê-lo a ridículo
como sempre fizeste com o Maury não me
podes magoar mais do que os teus filhos já me magoaram e não
93
tarda eu desapareço e o Jason não terá ninguém que o ame que o proteja
de tudo isto olho para ele todos os dias temendo ver o sangue dos
Compsons a tomar conta dele finalmente com a irmã a fugir de casa para
ir ter com o não sei quê já alguma vez o viste deixas-me ao menos ver
se descubro quem ele é não por mim por mim não suportaria vê-lo mas
por ti para te proteger mas que se pode fazer quando o sangue é ruim
tu nem me deixas tentar ternos de ficar quietos de mãos tolhidas
enquanto ela não só arrasta o teu nome pela lama como polui o ar que
os teus filhos respiram Jason tu tens de me deixar ir embora eu não
aguento mais deixa-me ficar com o Jason e fica tu com os outros esses
não são do meu sangue como ele são uns estranhos nada têm a ver comigo
e tenho medo deles eu posso pegar no Jason e ir para onde ninguém nos
conheça hei-de ajoelhar-me e pedir perdão pelos meus pecados para que
ele se livre desta maldição e tente esquecer que os outros existiram
Se aquilo eram os três quartos de hora, não faltariam agora mais de
dez minutos para a hora. Um comboio tinha acabado de partir e já havia
gente à espera do seguinte. Perguntei, mas ele não sabia se ainda
partia outro antes do meio-dia ou não, isto dos interurbanos... Bem, o
primeiro era outro comboio. Entrei. Sente-se quando é meio-dia. Será
que até os mineiros nas entranhas da terra também sentem. É para isso

que servem as sirenes: porque há gente que sua, e se estamos
suficientemente afastados do suor não ouvimos as sirenes e dentro de
oito minutos estaríamos em Boston a essa distância do suor. Dizia o
Pai que um homem é o somatório das suas desgraças. Até que um dia
pensa que as desgraças se hão-de cansar, mas nessa altura é o tempo a
sua desgraça. Uma gaivota planava riscando o espaço suspensa de um
arame invisível. Levamos para a eternidade o símbolo da nossa
frustração. Aí, dizia o Pai, as asas são maiores, mas quem sabe tocar
harpa.
Ouvia o tic-tac do meu relógio sempre que o comboio parava, mas alguns
já estavam a comer Quem tocaría uma Comer essa coisa de comer dentro
de nós o espaço também o espaço e o tempo confundidos o Estômago a
dizer meio-dia e o cérebro a dizer horas de comer Muito bem perguntome
que horas serão que se
94
passa. As pessoas iam saindo. O comboio já não parava tantas
vezes, esvaziado pela vontade de comer.
Agora era a meia-hora. Desci e fiquei parado em cima da minha sombra e
daí a pouco passou outro comboio e entrei e voltei para a estação
interurbana. Estava um comboio prestes a partir e eu arranjei um lugar
à janela e ele pôs-se em marcha e eu a vê-lo arrastar-se por terras
alagadas da beira-rio e depois árvores. De
vez em quando avistava o rio e pensava em como devia ser bom para os
habitantes de New London se o tempo e a canoa do Gerald singrassem
solenemente a manhã cintilante e perguntava-me o que quereria agora a
velha, para me mandar um recado antes das dez da manhã. E que
fotografia do Gerald e eu Dalton Ames oh o amianto o Quentin disparou
em pano de fundo. Qualquer coisa onde aparecessem raparigas. As
mulheres têm a sua voz
sempre acima da algaraviada uma voz que respirava afinidade com o mal,
por não acreditarem que mulher alguma é digna de confiança, mas que
alguns homens são ingénuos de mais para se protegerem delas. Raparigas
simples. Primas afastadas e amigas da família cujo conhecimento
fortuito se impunha como uma espécie de dever de sangue noblesse
oblige. E ela ali sentada a dizer-nos à frente delas que era uma
vergonha o Gerald ter ficado com toda a beleza da família, ele que
como homem nem precisava, que até passava bem sem ela, mas que sem ela
uma rapariga estava simplesmente perdida. A falar-nos das namoradas do
Gerald num O Quentin matou o Herbert ele matou a sua voz através do
chão do quarto da Caddy tom de consolada aprovação. "Quando ele tinha
dezassete anos eu disse-lhe um dia "Que vergonha teres uma boca como
essa essa boca devia estar na cara de uma rapariga" e sabem os
cortinados co"s ao crepúsculo sobre o aroma da macieira a cabeça dela
desenhando-se no crepúsculo os braços atrás da cabeça abríndo asas de
químono a voz que sussurrava do Éden as roupas sobre a cama puxadas
até ao nariz vislumbrado acima da maçã e sabem o que ele me respondeu?
e só tem dezassete anos, vejam bem. "Mãe" disse ele "e muitas vezes
está." " E ele sentado todo ele pose a olhar para duas ou três através
das pestanas. Pestanas que se lançavam em voos picados de andorinha. O
Shreve dizia que sempre se perguntara Vais tomar conta do Benjy e do
Paz
95
Quanto menosfalares do Benjy e do Pai quando pensares neles tanto
melhor Caddy
Promete Não precisas de tepreocupares com eles vais-te embora sem
problemas
Promete estou doente tens deprometer quem teria inventado aquela
anedota mas por outro lado ele sempre havia considerado Mrs. Bland uma
mulher extraordinariamente bem conservada dizia ele que ela andava a

treinar o Gerald para seduzir uma duquesa. Ela chamava ao Slireve
canadiano gordo e arranjou-me por duas vezes um novo companheiro de
quarto sem me consultar, uma vez era eu que tinha de mudar de quarto,
a outra
Ele abriu a porta e saiu para o crepúsculo. A cara dele parecia uma
tarte de abóbora.
- Bem, é com ternura que me despeço. O destino cruel pode separar-nos,
mas nunca amarei inais ninguém. Nunca.
- De que estás tu a falar?
- Estou a falar do destino cruel dentro de oito metros de seda cor de
alperce e mais quilos de metal por centimetro quadrado do que um
forçado das galés e da única dona e proprietária da incontestada e
peripatética cloaca da defunta Confederação.
- Depois contou-me como ela fora ter com o vigilante para o obrigar a
sair do quarto e como o vigilante dera mostras de uma deplorável
teimosia insistindo em consultar primeiro o Shreve. Então ela sugeriu
que ele mandasse chamar imediatamente o
Slireve e fizesse o que tinha a fazer, mas ele não cedeu, e daí em
diante ela passou a tratar o Slireve muito mal. - Faço questão de
nunca ser grosseiro com as senhoras - dizia o Slireve - mas
aquela mulher tem mais modos de puta do que qualquer outra senhora
destes estados e domínios. - E agora, Carta colocada por mão própria
em cima da minha mesa, encomendar orquideas perfumadas coloridas Se
ela soubesse que eu tinha passado quase por baixo da janela sabendo
que a carta lá estava sem
Minha Querida Senhora ainda não tive oportunidade de receber a sua
mensagem mas peço-lhe desculpa antecipadamen- te por hoje ontem ou
amanhã ou qualquer outro dia Porque me
lembrei de que a sua próxima história será de como o Gerald ati96
1 ra o criado negro pela escada abaixo e como o negro implora que o
deixem ir para a faculdade de teologia para estar perto do patrão
patrãozinho Gerald e Como foi a correr até à estação ao
lado da caleche com os olhos rasos de água quando o patrãozi- nho
Gerald partiu Ficarei à espera da outra sobre o marido car- pinteiro
que veio à porta da cozinha com uma espingarda aperrada e o Gerald se
atirou a ele e partiu a espingarda em duas e lha devolveu e depois
limpou as mãos ao lenço de seda e atirou o lenço para o lume Só ouvi
essa duas vezes
matou-o através do vi-te entrar aqui e aproveitando a oportunidade vim
ter contigo pensei qne podíamos conhecer-nos melhor fumar juntos um
charuto Obrigado não fumo Não as coisas devem ter mudado por lá desde
os meus tempos importas-te que acenda um
Faz favor Obrigado ouvi dizer tantas coisas acho que a tua mãe não se
importa se eu deitar o fósforo para trás do biombo pois não tantas
coisas de ti a Candace falava de ti a toda a hora lá nas termas até
fiquei cheio de ciúmes. E disse cá para comigo quem será este Quentin
dê lá por onde der tenho de ver como é o animal porque fiquei
apanhadinho de todo mal vi a rapariga e não me importo de reconhecer
que nunca me passou pela cabeça que era do irmão que ela passava a
vida a falar não teria falado mais de ti nem que tu fosses o único
homem sobre a terra nem que fosses seu marido não queres mesmo um
charuto Não fumo Nesse caso não insisto apesar de ser de muito boa
qualidade custaram-me a vinte e cinco o cento comprados por grosso a
um
amigo de Havana sim acho que muita coisa mudou por lá passo a vir a
prometer a mim mesmo que hei-de lá ir mas nunca mais
me decido há dez anos que ando a dar no duro não posso deixar o banco
em tempo de aulas os novos hábitos de licenciado alteram as coisas que
pareciam importantes para um estudante estás a perceber conta-me como
vão as coisas por lá Não vou dizer nada nem aos meus pais se é isso

que queres saber Não vou dizer nada não vou oh isso isso é no que
estás a falar será
97
que não percebes que tanto se me dá que contes ou não vê se percebes
que uma coisa como essa é um azar mas não é crime não
sou o primeiro nem serei o último tive azar nada mais tu poderias ter
tido mais sorte Estás a mentir Fica calmo não te estou a tentar
obrigar a contares nada que não queiras não te quero ofender claro um
jovem como tu iria considerar uma coisa dessas muito mais grave do que
se fosse daqui a
cinco anos Eu só conheço uma maneira de tratar a mentira e não acho
que Harvard. me faça mudar de ideias Isto ainda é melhor que uma
comédia deves ter ensaiado bem bom tens razão não há necessidade
nenhuma de lhes dizer o melhor é esquecer o que lá vai lá vai eli não
há nenhuma razão para que tu e eu deixemos que uma coisa sem
importância como essa se intrometa entre nós Eu gosto de ti e do
Quentin gosto do vosso aspecto não se parecem com os outros
provincianos ainda bem que resolvemos assim a questão prometi à tua
mãe fazer qualquer coisa pelo Jason mas também gostava de te ajudar
o
Jason podia perfeitamente aqui ficar mas num buraco como este não há
futuro para um jovem como tu Obrigado mas é melhor ficares-te pelo
Jason ele saberá retribuir a gentileza melhor do que eu
Desculpa lá aquilo mas eu não passava de um miúdo naquela época e
nunca tinha tido uma mãe como a tua para me ensinar boas maneiras e se
ela tivesse sabido isso só a ia magoar desnecessariamente sim tens
razão não há necessidade e à Candace também não naturalmente Eu disse
aos meus pais Olha bem para mim quanto tempo achas que te aguentas
comigo Não tenho de me aguentar muito tempo se tu também aprendeste a
lutar na escola experimenta e verás quanto tempo eu Olha o puro dum
raio onde é que queres chegar Experimenta e verás Meu Deus o charuto
que diria a tua mãe se encontrasse uma queimadura no rebordo da
chaminé foi por pouco ouve lá Quentin
98
tu estás a preparar-te para fazeres alguma coisa de que ambos nos
vamos arrepender eu gosto de ti gostei de ti assim que te vi disse até
deve ser um tipo porreiro tenha lá os defeitos que tiver senão a
Candace não gostava tanto dele ouve eu ando por aí no mundo há dez
anos e as coisas passam a ter menos Importância tu depois verás vamos
fazer as pazes tu e eu filhos da velha Universidade de Harvard e tudo
acho que já não reconheceria o lugar é o melhor lugar do mundo para um
rapaz hei-de para lá mandar os meus
filhos dar-lhes melhor sorte do que eu tive espera não te vás ainda
vamos conversar mais sobre isto um jovem mete estas ideias na cabeça e
eu apoio-o inteiramente -fazem-lhe bem enquanto el@ anda na
universidade moldam-lhe o carácter a universidade é boa para manter a
tradição mas quando ele sai para o mundo tem de se desenrascar o
melhor que pode porque vê que os outros estão todos a fazer o mesmo
que diabo vá apertemos as mãos e o que lá vai lá vai pela saúde da tua
mãe lembra-te de como ela é frágil vá dá cá a tua mão toma olha
acabadinha de sair do convento vês nem uma mancha ainda nem sequer foi
dobrada estás a ver vá Vai para o diabo mais o teu dinheiro Não não vá
lá eu agora sou da família vês eu sei como se sente um rapaz da tua
idade metido em negócios secretos e é sempre dificil levar o velhote a
descoser-se eu sei então não passei já por isso e nem foi assim há
tanto tempo mas agora vou-me casar e tudo vá não sejas tolo
especialmente agora que estás lá longe ouve quando tivermos mais tempo
para conversar quero falar-te de uma viúva lá da cidade Também já ouvi
essa podes guardar a merda do dinheiro Então aceita-o como um

empréstimo num abrir e fechar de olhos estás com cinquenta anos
Tira as tuas mãos de cima de mim e é melhor tirares o charuto de cima
da chaminé Então conta e vai para o diabo hás-de ganhar muito com isso
se
não fosses tão idiota terias percebido que eu as tenho bem seguras
para que um irmãozeco qualquer armado em cavaleiro andante a tua mãe
falou-me de ti sempre cheio de ideias entra entra querida o Quentin e
eu estávamos a tentar conhecer-nos melhor a conversar sobre Harvard
queres alguma coisa a minha
menina não consegue estar longe do velhote pois não Sai por um
instante Herbert quero falar com o Quentin Entra entra toca a
conversar para nos conhecermos melhor eu estava precisamente a dizer
ao Quentin Vá Herbert sai só por um bocadinho Pronto está bem tu e o
maninho querem estar juntos mais um bocadinho não é É melhor tirares
esse charuto de cima da chaminé Certo como sempre meu rapaz bem vou
andando deixa-os fazerem de ti o que quiserem enquanto podem Quentin a
partir de depois de amanhã tens de pedir por favor ao velhote não é
querida dá cá um beijinho minha linda Oh pára com isso guarda isso
para depois de amanhã Nessa altura vai ser com juros não deixes o
Quentin fazer nada que ele não possa acabar ah a propósito não sei se
já contei ao Quentin aquela do papagaio do homem e do que lhe
aconteceu uma história bem triste lembra-me para lhe contar e tu pensa
nela também adeuzinho Bem Bem Que estás tu a tramar agora Nada Andas
outra vez a meter-te na minha vida não te chegou o que fizeste o Verão
passado Deves estar com febre Caddy Estás doente doente como
Simplesmente doente. Não posso perguntar. Matou a voz dele através do
Esse canalha não Caddy De vez em quando o rio cintilava para lá das
coisas com uma espécie de reflexos deslizantes à hora do meio-dia e já
mais tarde. Bem mais tarde agora, embora tivéssemos passado por ele
remando ainda rio acima majestoso sob o olhar dos deuses de deus.
Melhor. Deuses. Deus seria também um canalha em Boston no
Massachussetts. Ou talvez não propriamente um marido. Os remos
molhados fazendo-o luzir à medida que avançava entre longas piscadelas
e mãos abertas de mulher. Adulador. Adulador mesmo não sendo marido
sem se importar com Deus.
100
Esse canalha, Caddy O rio desapareceu cintilante para lá de uma
curva fechada.
Estou doente tens deprometer Doente estás doente como Simplesmente
doente por enquanto não posso pedir a ninguém maspromete-me que ofarás
Se elesprecisam de quem tome conta deles épor tua causa estás doente
como Ouvimos o carro arrancar mesmo por baixo da j anela e partir para
a estação, para ir esperar o comboio das oito e dez. Para ir buscar as
primas. Cabeças.' Progredindo cabeça a cabeça, mas nada de barbeiros.
Manicuras. Um dia tivemos um puro-sangue. Mas só no estábulo porque
quando lhe púnhamos a sela era uma fera. O Quentin matou todas as suas
vozes através do chão do quarto da Gaddy
O comboio parou. Saltei para cima da minha sombra. Os carris eram
atravessados por uma estrada. Havia um cartaz de madeira com um velho
a comer qualquer coisa de dentro de um cartucho, e depois o ruído. A
estrada avançava por entre árvores, que faziam sombra, mas a folhagem
de junho na Nova Inglaterra não é muito mais densa que em Abril na
minha terra. Avistei uma chaminé. Virei-lhe as costas, calcando a
minha sombra na poeira. Por vezes à noite sentia algo terrível dentro
de mim algo que me sorria que eu via que me sorria através deles
através das caras deles mas agora desapareceu e sínto-me doente
Caddy Não me toquespromete só Se está doente não pode Posso sim e
depoisfica tudo bemjá não tem importância não os deixes mandarem-no
parajackson promete

Prometo Gaddy Gaddy Não me toques não me toques Como é Gaddy Como é
Isso que te sorri essa coisa que te sorriatravés deles Ainda via a
chaminé. Era lá que a água devia estar, a cami1. Head: apelido de
Herbert (Trad.: <@Cabeça"). (N. da T)
101
nho do mar e das grutas repousantes. Correndo lentamente, e
quando Ele dizia Erguei-vos só os ferros de engomar. Quando o
Versh e eu passávamos o dia a caçar nunca levávamos almoço, e
ao meio-dia dava-me a fome. Ficava com fome até cerca da uma hora, mas
depois, de repente, até me esquecia de que já não eesta-va com fome.
Os candeeiros da rua descem a encosta e depois ouvi o carro a descer a
encosta. O braço,,@W cadeira liso efrio sob a minha testa moldando a
cadeira os ramos da macieira a tocarem-me o cabelo sobre as roupas do
paradisíacas puxadas até ao nariz Estás com febre também ontem estive
é como estar perto do fogão.
Não me toques. Caddy se estás doente não podes fazer isso. O canalha.
Tenho de casar com alguém. Então disseram-me que tinham de voltar
apartir o osso
Deixei finalmente de ver a chaminé. A estrada seguia ao longo de um
muro. As árvores arrimavam-se ao muro, aspergidas de sol. A pedra
estava fria. Sentia-se o frio quando passávamos ao
lado. Só que a nossa região não era como esta região. Sentia-se
qualquer coisa só de andar a passear. Uma espécie de fecundidade
serena e violenta que satisfazia até os mais esfomeados. Flutuando à
nossa volta sem se deter protegendo as mais ínfimas pedras. Uma
espécie de estratagema para que o verde não faltasse às árvores e o
azul distante não fosse essa rica quimera. disseram-me que o
osso tinha de serpartido outra vez e cá por dentro desatei a gritar Ai
AiAleasuar. Quero U saber seio que é umapernapartida sei muito bem não
há-de ser nada só vou ter deficar em casa umpouco mais é tudo e os
músculosfacia' aficarem entorpecidos e a minha boca a
is
dizer Esperem Esperem só u m m i n uto encharcada de suor ai ai aípor
detrds dos dentes e o Pai maldito cavalo maldito cavalo. Fspera a culpafoi
minha. Ele vinha pela cercafora todas as manhãs direito à
cozi.nha com um cesto na mão correndo um pau pela vedaçãofora e
todas as manhãs eu me arrastava até àjanela com gesso e tudo eficava à
espreita com um bocado de carvão a Dilsey dizia vai dã cabo de si* não
tem tino na cabeça sópassaram quatro dias desde qu @apartÍu. Espera eu
habituo-me num i .nstante espera só um minuto eu vou
Até o som parecia sumir-se no ar, como se o ar estivesse gasto e
cansado de transportar sons há tanto tempo. A voz de um
102
cão chega mais longe que o ruído de um comboio, pelos menos na
escuridão. E a de algumas pessoas. Dos negros por exemplo. O Louis
Hatcher nunca usou a trompa quando a
levava mais o velho lampião. E eu disse: - Louis quando foi que
limpaste o lampião pela última vez?
- Limpei-o há pouco tempo. Lembra-se quando as águas da cheia
arrastaram as pessoas por aí fora? Limpei-o nesse dia. Nes- sã noite a
velha e eu sentados em frente ao lume e vai ela e diz "Louis, qu'é tu
vais fazê s'a cheia chega ré qui?" e vou eu e digo "Lá isso é verdade.
Acho qu'o melhor é limpá o lampião". E por isso limpei-o nessa noite.
-A cheia andava lá para cima para a Pensilvânia - disse eu. Não podia
chegar cá tão abaixo.
- Isso é o que vomecê diz - disse o Louis. - A auga pode subir tão
alto e alagar tanto em jefferson como na Pensilvânia, acho eu. São os
que dizem qu'a cheia não chega ré qui qu' apare- cem a boiar no alto
dos telhados.

- Chegaste a sair de casa com a Martha nessa noite?
- Ai não que não saí. Limpei o lampião e depois eu e ela passámos a
noite no alto da colina atrás do cemitério. E s'eu soubesse doutra
mais alta era pa lá que tínhamos ido.
- E desde então nunca mais limpaste o lampião?
- Pa qu'hei-de eu limpá-lo se não há precisão?
- Queres tu dizer até vir outra cheia?
- O qu'eu sei é que nos livrou da outra.
- Ora, Tio Louis, deixa-te disso - disse eu.
- Si siô. Pense vomecê pela sua cabeça qu'eu penso pela minha. Se tudo
o qu'eu tenho de fazer pa me livrar da cheia é limpar este lampião,
não vou discutir com ninguém por causa disso.
- O Ti'Louis nem cum lampião caçava nada - disse o Vérsh.
- Olha rapaz, já eu andava por aí a caçar opóssuns, e inda elas tinham
de esfregar a cabeça do teu pai com petróleo pa matar os piolhos -
disse o Louis. - E apanhava-os, si siô.
- Isso é verdade - disse o Vérsh. - Acho qu'o Ti'Louis apanhou mais
opóssuns nas redondezas do que qualquer outro.
103
- Si siô - disse o Louis. - Tinha luz que chegava p@)s opóssuns verem
bem, si siô. Nunca os ouvi refilar. Agora calem-Se. Lá vem um. lupi.
Vá, cão, agarra-o. - E lá ficávamos, sentados nas folhas secas que
sussurravam com a palpitação lenta da espera e a respiração lenta da
terra e daquele Outubro sem
vento, com o cheiro pestilento da lanterna a empestar o ar macio, a
ouvir os cães e o eco da voz do Louis a perder-se ao longe. Ele nunca
elevava a voz, mas mesmo assim, numa noite calma ouvíamo-la da varanda
da frente. Quando ele chamava os
caes, a voz dele parecia mesmo a trompa que levava pendurada ao ombro
e nunca usava, mas ainda mais clara, mais suave, como se a sua voz
pertencesse à escuridão e ao silêncio, dele saindo e a ele voltando em
sucessivas ondulações. HooUuuuuu. HooUuuuuu. HooUuuuuuuuuuuuuu. Tenho
de casar com alguém
Tiveste muitos Caddy Não tive de mais tomas conta do Benjy e do Pai
Então não sabes de quem é e ele sabe Não me toques tomas conta do
Benjy e do Pai Comecei a sentir a água antes de chegar à ponte. A
ponte era
de pedra gris, coberta de líquenes e impregnada de uma humidade
persistente semeada de fungos. Em baixo a água estendia-se límpida e
estática, sombreada, murmurando e batendo em torno das pedras em
fugidios remoinhos de céu rodopiante. Caddy esse
Tenho de casar com alguém O Versh falou-me de um homem que se mutilou.
Foi para a floresta e fê-lo com uma navalha sentado numa vala. Uma
navalha partida atirando-os para trás das costas e com idêntico
movimento atirou a pele ensanguentada para trás a direito não em arco.
Mas não é isso. Não é não os ter. É nunca os ter tido e então poderia
dizer Oh Isso Isso é chinês e
eu não sei chinês. E o Pai disse é, por seres virgem: não percebes? As
mulheres nunca são virgens. A pureza é um estado negativo e como tal
contrário à natureza. É a natureza que te está a magoar e não a Caddy
e eu disse Isso são só alavras e ele disse Também
p a virgindade e eu disse isso é que não sabe. Não tem como saber e
ele disse Sim. No momento em que nos apercebemos disso a
tragédia perde todo o seu efeito.
104
Onde batia a sombra da ponte eu podia ver até muito fundo, mas não até
ao fundo. Quando deixamos uma folha na água durante muito tempo daí
por um bocado o tecido vegetal desfaz-se e as fibras delicadas oscilam
lentamente como quando adormecemos. Nunca se tocam por mais

entrelaçadas que tivessem estado anteriormente, por mais agarradas que
tivessem estado aos ossos. E talvez quando Ele disser Erguei-vos
também os
olhos venham à superfície, saídos da paz e do sono profundo para
contemplarem a glória. E passado algum tempo os ferros viriam à
superfície. Escondi-os por baixo da extremidade da ponte, fui até ao
parapeito e debrucei-me.
Não conseguia ver o fundo, mas os meus olhos penetraram fundo na
inquietação das águas antes até se darem por vencidos, e então vi uma
sombra suspensa como uma seta larga na
corrente. As borboletas entravam e saíam da sombra da ponte rasando a
superfície. Se ao menos do lado de N houvesse um inferno: a chama
purificadora e nós dois mais do que mortos. Então só me terás a mim
então só a mim então os dois no meio da maledicência e do horrorpara
lí da chamapurificadora A seta aumentava com os movimentos, e nisto
uma truta apanhou uma mosca
por baixo da superfície com a delicadeza descomunal de um elefante a
apanhar um amendoim. O vértice fugaz perdeu-se rio abaixo e depois vi
de novo a seta, de bico contra a corrente, oscilando suavemente
impelida pela água sobre a qual volteavam borboletas em voos rasantes
e depois pousavam. Então só tu e eu
ei d nom o a maledicência e do horror cercadospela chamapurificadora
A truta parou, delicada e imóvel, entre as sombras ondulantes.
Chegaram à ponte três rapazes com canas de pesca e ficámos todos
debruçados a olhar para a truta. Eles conheciam bem o peixe. Era uma
personagem famosa por aquelas bandas.
- Há vinte e cinco anos que andam a ver se apanham esta
truta. Há uma loja em Boston que oferece uma cana de pesca de vinte e
cinco dólares a quem conseguir.
- Então por que não a apanham vocês? Não gostavam de ter uma cana de
pesca de vinte e cinco dólares?
- Gostávamos - disseram eles. Debruçaram-se mais do
105
parapeito, a olharem para a truta. - Lá isso gostava - disse o
primeiro.
- Eu cá não queria a cana para nada - disse o segundo. Antes queria o
dinheiro.
- Talvez eles não to dessem - disse o primeiro. - Aposto que o homem
te obrigava a ficares com a cana.
- Nesse caso vendia-a.
- Mas ninguém te dava vinte e cinco dólares por ela.
- Nesse caso contentava-me com o que me dessem. Consigo pescar tantos
peixes com esta cana como com uma de vinte e cinco dólares. - Depois
começaram a discutir o que fariam com os vinte e cinco dólares.
Falavam todos ao mesmo tempo, com vozes peremptórias, contraditórias e
impacientes, fazendo da irrealidade possibilidade, depois
probabilidade e logo facto incontroverso, como toda a gente faz quando
os desejos ganham voz.
- Eu cá comprava um cavalo e uma carroça - disse o segundo.
- Isso é que era bom - disseram os outros.
- Isso é que comprava. Até sei onde posso arranjar uma por vinte e
cinco dólares. Conheço o homem que a vende.
- Quern é ele?
- Isso é comigo. Posso comprar uma por vinte e cinco dólares.
- Tretas - disseram os outros. - Ele não sabe de nada. É só conversa.
- Isso é o que vocês julgam - disse o rapaz. Os outros continuaram a
gozá-lo, mas ele não disse mais nada. Debruçou-se do parapeito, a
olhar lá para baixo para a truta que ele já tinha gasto e, de repente,
a acrimónia, o conflito, desapareceram das suas vozes, como se também
eles achassem que ele tinha de facto pescado o peixe e comprado o

cavalo e a carroça, todos três experimentando aquela sensação adulta
de se ficar convencido de qualquer coisa por força de uma atitude de
serena superioridade. Suponho que as pessoas, à força de se gastarem
tanto a si e aos outros pelas palavras, são pelo menos coerentes ao
reconhecerem sabedoria numa língua calada, e, por instantes, senti os
106
outros dois rapidamente à procura de um meio de desfeitearem o amigo,
de o privarem do cavalo e da carroça.
- Tu não conseguias vender a cana por vinte e cinco dólares
- disse o primeiro. - Aposto o que quiseres como não conseguias.
- Ele ainda não apanhou a truta - disse o terceiro subitamente, e
depois gritaram os dois em coro:
- Pois, o qu'é qu'eu te disse? Como é que se chama o homem? Desafio-te
a dizeres o nome. Não conheces homem nenhum.
- Cala-te - disse o segundp. - Olha, lá vem ela outra vez.
- Debruçaram-se do parapeito, sem se mexerem, todos iguais, com as
canas finas desenhando-se oblíquas contra o sol, também elas todas
iguais. A truta subiu sem pressas à superfície. Uma sombra que
aumentava em ténues ondulações; e de novo o pequeno vortex desapareceu
rio abaixo. - Bolas - murmurou o primeiro.
- Vamos desistir de querer apanhá-la - disse ele. - Ficamos só a ver
os de Boston virem cá tentar.
É este o único peixe que por aqui anda? É. Correu com os outros todos.
Por estas bandas, o melhor sítio para pescar é lá em baixo no
Sorvedouro.
- Não é nada - disse o segundo rapaz. - Em Bigelows Mill é muito
melhor. - Depois puseram-se a discutir qual era o
melhor local para pescar e de repente debruçaram-se de novo do
parapeito para verem a truta vir mais uma vez à superfície e o
remoinho engolir um bocadinho do céu. Perguntei-lhes a que distância
ficava a cidade mais próxima e eles disseram-me.
- Mas a mais perto de comboio é para aquele lado - disse o segundo,
apontando para trás, para a estrada. - Para onde é que vai?
- Para lado nenhum. Ando só a passear.
- Anda na Universidade?
- Ando. Há fábricas nessa tal cidade?
- Fábricas? - ficaram a olhar para mim.
- Não - disse o segundo. - Lá não. - Miraram-me da cabeça aos pés. -
Anda à procura de trabalho?
- E Bigelow's Mill? - disse o terceiro. - É uma fábrica.
- Fábrica uma ova. Ele quer mesmo uma fábrica a sério.
- Uma que tenha sirene - disse eu. - Ainda não ouvi nenhuma sirene
tocar a uma hora.
- Ah - disse o segundo. - Há um relógio na torre da igreja unitária.
Pode ir lá ver as horas. Mas, oiça lá, isso aí pendurado na corrente
não é um relógio?
- É, mas parti-o esta manhã. - Mostrei-lhes o relógio e eles
examinaram-no muito sérios.
- Ainda trabalha - disse o segundo. - Quanto custa um
relógio destes?
- Foi um presente - disse eu. - Deu-mo o meu pai quando acabei o
liceu.
É canadiano? - disse o terceiro. - Tinha o cabelo ruivo. Canadiano?
Ele não fala como eles - disse o segundo. - já os ouvi falar. Este
fala como as pessoas falam nas pantomimas de negros.
- Ouve lá - disse o terceiro. - Não tens medo que ele te bata?
- Bater-me?
- Tu disseste que ele fala como os negros.
- Ora, vai-te catar - disse o segundo. - Quando chegar ao cimo daquela

colina vê logo a torre.
Agradeci-lhes. - Desejo-vos boa sorte. Mas não apanhem o
bicho. já é velhote e merece que o deixem em paz.
- Ninguém consegue pescar aquela truta - disse o primeiro.
Debruçaram-se do parapeito, a olharem para a água, com as
três canas de pesca descendo na diagonal como três fios de fogo contra
o sol. Avancei pela minha sombra acima, empurrando-a de novo para a
sombra sarapintada das árvores. A estrada curvava, subindo a encosta e
afastando-se da água. Atravessava a colina e depois descia
serpenteante, guiando a vista e a mente por um aprazível túnel
verdejante até à cúpula quadrada que se elevava por detrás das árvores
e ao mostrador redondo do relógio, muito longe. Sentei-me na berma da
estrada. A erva chegava-me aos tornozelos. Era espessa. As sombras da
estrada eram tão estáticas como se tivessem sido pintadas com lápis de
raios de sol.
108
Mas era apenas um comboio e, passado algum tempo o ruído prolongado
desapareceu por entre as árvores e eu ouvi o meu relógio e o comboio a
desvanecerem-se, como se estivessem a atravessar um outro mês ou um
outro Verão algures noutro lugar, desaparecendo velozes sob a estática
gaivota e todas as coisas correndo velozes. Excepto o Gerald. Esse
seguiria imponente, remador solitário no meio-dia, remando
precisamente para lá do meio-dia, em apoteose, subindo a corrente rumo
ao clarão da tarde, ascendendo a uma bebedeira de infinito onde só ele
e a gaivota, esta terrivelmente imóvel, ele em remadas vigorosas e
compassadas, eram a imagem da própria inércia, com o mundo subjugado
sob as suas sombras projectadas no sol. Caddy esse canalha esse
canalha Caddy
As vozes deles aproximavam-se pela colina acima, e as três canas
finíssimas eram três fios de fogo a balançar. Olharam para mim sem
abrandarem o passo.
- Bem - disse eu. - Não vos vejo trazer nada.
- Nem sequer tentámos pescá-la - disse o primeiro. Aquele peixe não é
para ser pescado.
- Lá está o relógio - disse o segundo, apontando. Quando estiver mais
perto já vê as horas.
- Pois é - disse eu. - Está bem. - Levantei-me. - Vocês vão para a
cidade?
- Vamos para o Sorvedouro, para as carpas - disse o primeiro.
- Mas no Sorvedouro não se apanha nada - disse o segundo.
- Se calhar achas melhor irmos para a azenha, com uma data de tipos
a chapinharem e a afugentarem os peixes.
- Mas no Sorvedouro não se apanha peixe nenhum - disse o segundo.
- Se não nos apressarmos é que não apanhamos peixe em lado nenhum -
disse o terceiro.
- Não percebo por que é que vocês só falam do Sorvedouro disse o
segundo. - Lá não se apanha nada.
- Se não quiserem não venham - disse o primeiro. - Não estão amarrados
a mim.
109
- Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro.
- Eu cá vou pescar para o Sorvedouro - disse o primeiro. Vocês façam o
que quiserem.
- Ouve lá, há quanto tempo não ouves ninguém dizer que apanhou lá
peixe? - disse o segundo para o terceiro.
- Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro. A cúpula mergulhou
lentamente por detrás do arvoredo, com o mostrador redondo do relógio
ainda muito longe. Continuámos a
caminhada e entrámos na sombra pintalgada. Chegámos a um

pomar, todo ele rosa e branco. Estava cheio de abelhas; já as
ouvíamos.
- Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro. Ao lado do porriar
abria-se uma vereda. O terceiro rapaz abrandou e parou.
O primeiro continuou, com os raios de sol a reflectírem-se na
cana e a projectarem-se sobre o seu ombro e as costas da camisa.
- Venham daí - disse o terceiro. O segundo rapaz parou também. Por que
hás-de ter de casar com alguém Gaddy
Queres que seja eu a dizê-lo achas que se eu o disser não será
- Vamos subir até à azenha - disse ele. - Vá, venham daí.
O primeiro rapaz seguiu em frente. Os seus pés descalços não se ouviam
caminhar, mais leves na poeira fina do que a folhagem. No pomar as
abelhas pareciam vento a levantar-se, com
um zumbido suspenso como por magia no limiar do crescendo e aí
inantido. A vereda corria paralela ao muro, sob arcos de folhagem,
abrindo-se em flor e dissolvendo-se depois no arvoredo. Os raios de
sol penetravam-no, escassos e sôfregos. Borboletas amarelas cintilavam
na sombra como centelhas de sol.
- Para que queres ir para o Sorvedouro? - disse o segundo rapaz. - Se
quiseres, também podes pescar na azenha.
- Ora, deixa-o ir - disse o terceiro. E ficaram a ver o primelro
rapaz, afastar-se. O sol deslizava em manchas sobre os seus ombros
bamboleantes, cintilando sobre a cana como formigas douradas.
- Kenny - disse o segundo. Diz ao Pai está bem eu digo sou o
Progenitor do meu paifui eu que o i .nventeifui.eu que o criei Diz-lho
mas não será mais assim porque ele dirá que não então tu e eu
seremos desde aífiloprogenitores
110
- Vá, venham - disse o terceiro rapaz. - Eles já lá vão. Seguiam com
os olhos o primeiro rapaz. - Vai-te embora disseram eles de repente. -
Vai, menino da mamã. Se se põe a nadar e molha a cabeça, leva uma
coça. - Meteram pela vereda e lá foram, com as borboletas amarelas a
rodopiarem à volta deles pela sombra fora.
éporque não há mais nada em que eu acredite há mais alguma coisa
maspode ser que não seja e então eu Tu descobrirás que nem a injustiça
vale aquilo que tu acreditas ser Ele não me ligou. O queixo desenhavase-
lhe de perfil e a cara estava ligeiramente virada para o lado por
baixo do chapéu roto. , - Por que não vais nadar com eles? - disse eu.
aquele cana- lha Caddy
Estava a quererprovocar uma briga com ele estavas Um mentiroso e um
patife Caddyfoi expulso do clubeporfazer batota com as cartas e
mandado para Coventry e aí apanhado a copiar nos exames e expulso
Sim e depois eu não voujogar cartas com
- Gostas mais de pescar que de nadar? - disse eu. O som das abelhas
diminuiu, suspenso ainda, como se em vez de mer- gulhar no silêncio, o
silêncio se limitasse a aumentar entre nós e elas, como água a subir.
A estrada curvava novamente e transformava-se numa rua ladeada de
relvados sombreados e casas brancas. Caddy esse canalha serás capaz de
pensares no Benjy e no Pai e fazê-lo, mas nãopor mim
Em que mais posso eu pensar em que mais tenho eu pensado O rapaz saiu
da rua. Saltou por cima de uma cerca sem olhar para trás e atravessou
o relvado até chegar a uma árvore, pousou a
cana no chão, empoleirou-se na árvore e deixou-se ficar sentado de
costas para a rua, com o sol finalmente imóvel sarapintando-lhe a
camisa branca. em que mais tenhopensado nem sequerposso chorar morri o
ano passado disse que tinha morrido mas nessa altura não sabia o que
isso signíficava não sabia o que dizia Lá há dias como este no fim de
Agosto, em que o ar fica fino e sôfrego como aqui, com um não sei quê
de nostálgico, de triste e familiar. O homem é o somatório das suas
experiências climáticas dizia o Pai. O homem era o somatório de tudo e

mais alguma
111
coisa. Um problema de propriedades impuras fastidiosamente arrastado
para um invariável nada: um impasse entre o pó e o desejo. mas agora
que sei que estou morta digo-te que
Entãopor que lhe dás ouvidospodemosfugír tu o Benjy e eupara onde
nínguém nos conheça para onde A sege era puxada por um
cavalo branco, com os cascos toc-toe pela estrada poeirenta fora; as
rodas, aracnídeas, estalavam em secos murmúrios, subindo a
ladeira sob um manto enrugado de folhas. Ulmeiros. Não: olmos. Olmos.
De quê do dinheiro para os teus estudos do dinheiro quefizeram com a
venda da pastagem para poderes irpara flarvard não vês que agora tens
de acabar o curso se não acabares elefica sem nada
Venderam a pastagem A camisa branca estava imóvel sobre o tronco, na
sombra crivada de cintílações. As rodas eram aracnídeas. Por baixo da
sege os cascos batiam rápidos e audíveis ao ritmo de uma senhora a
bordar, diminuindo sem se afastarem
como no teatro quando alguém se mete num tambor e desaparece do palco
como por encanto. A rua curvava novamente. já
via a cúpula branca e o mostrador peremptório, redondo e estúpido, do
relógio. Venderam apastagem
Dizem que o Pai morre daqui a um ano se não deixar de beber e ele não
vai deixar não pode deixar desde que eu desde o último Verão e depois
mandam o Benjyparajackson não consigo chorar nem chorar eu consigo num
minuto ela estava à porta e no minuto seguinte ele estava a puxarlhepelo
vestido e a berrarfazendo a voz repercutir-se pelas paredes em
ondas de som e ela encostada à parede toda encolhida cada vez mais
pequena com o rosto muito branco e os o lhos co m o se tivessem sido
afu nàa@s po r u m polegar a té ele a p uxa r
Parafora do quarto com a voz em ondas a ecoarpela casafora como se
impedida depararpelo seu próprio estado como se não houvesse lugarpara
ela no silêncio a gritar
Quando a porta se abriu soou uma campainha, um toque apenas, agudo,
cristalino e breve, na penumbra bem definida, como se estivesse
regulada e afinada para produzir aquele único e breve tinido, como se
para evitar que a campainha se gastasse ou para não se ter de esbanjar
silêncio em demasia para a fazer voltar ao normal quando a porta se
abria para o cheiro morno do
112
pão acabadinho de cozer; uma criança suja com olhos de urso de peluche
e duas tranças envernizadas.
- Olá, miúda. - No vazio cálido e doce da padaria, a cara
dela parecia uma chávena de leite com um pingo de café. - Não está
aqui ninguém? 1
Ela, porém, limitou-se a olhar para mim até uma porta se
abrir e aparecer uma senhora. Por detrás do balcão, repleto de formas
estaladiças enfileiradas dentro da vitrina, assomaram-se
o seu rosto acinzentado e limpo, o cabelo arrepiado e ralo colado à
cabeça pequena e acinzentada, uns óculos muito limpos de aros
acinzentados, encavalitados,no nariz e projectando-se como se puxados
por um arame, ou como a gaveta da caixa registadora de uma loja.
Parecia uma bibliotecária. Alguém perdida entre prateleiras poeirentas
de certezas bem ordenadas e de há muito divorciadas da realidade,
ressequindo tranquilamente como o
sopro de ar de quem vê ser cometida uma injustiça
- Duas destas, por favor, minha senhora. Tirou uma folha de papel de
jornal de debaixo do balcão, colocou-a sobre o balcão e pegou nas duas
arrufadas. A garota tinha os olhos presos nelas, sem pestanejar, como
duas amoras bolando estáticas numa chávena de café fraco Terra de

judeus pátria de italianos. A mulher olhou para o pão, com as mãos
acinzentadas e muito limpas onde um enorme anel de ouro pontificava no
indicador esquerdo, apertado ao dedo por uma
junta azul.
É a senhora mesma quem coze o pão? Meu senhor? - disse ela. Sem tirar
nem pôr. Meu senhor? Como no teatro. Meu senhor? - São cinco cêntimos.
Deseja mais alguma coisa?
- Não, minha senhora. Para mim não. Mas aqui esta senhorinha deseja
qualquer coisa. -A estatura não permitia à mulher ver por cima da
vitrina e chegou-se por isso para a ponta para poder ver a garota.
- Vem consigo?
- Não, minha senhora. já cá estava quando entrei.
- Ah, sua atrevida - disse ela. Saiu de trás do balcão, mas
não tocou na garota. - Tens alguma coisa nos bolsos?
- Ela nem bolsos tem - disse eu. - Não estava a fazer mal nenhum.
Estava só aqui parada à sua espera.
- Então por que é que a campainha não tocou? - disse a mulher olhandome
triunfante. Tudo do que ela precisava era
de um monte de interruptores e de uma lousa atrás dos seus
2 x 2= 5. - Ela esconde-o debaixo do vestido e a gente não dá por
nada. Eh, menina, como foi que entraste?
A garota não respondeu. Olhou para a mulher e depois lançou-me um
olhar negro e fugidio, e voltou a fixar os olhos na mulher. - Estes
estrangeiros - disse a mulher. - Como é que ela entrou sem fazer tocar
a campainha? _ Entrou quando eu abri a porta - disse eu. - Tocou só
uma vez e entrámos os dois. Além disso, daqui ela não consegue chegar
a nada. Nem creio que fosse capaz. Não eras capaz, pois não,
pequenina? - A garota deitou-me um olhar secreto, contemplativo. - O
que é que tu queres? Pão?
Estendeu a mão fechada, que se desenrolou, mostrando um
níquel húmido e muito sujo numa palma da mão húmida e muito suja. A
moeda estava molhada e morna. Sentia-lhe o cheiro ténue a metal.
- Dá-me um cacete de cinco cêntimos por favor, minha senhora?
Ela tirou de debaixo do balcão uma folha quadrada de papel de jornal,
colocou-a em cima do balcão e embrulhou o cacete. Pus a moeda em cima
do balcão e juntei-lhe outra. - E mais uma dessas arrufadas, minha
senhora, se faz favor.
A mulher tirou da vitrina mais uma arrufada. - Dê cá o embrulho -
disse ela. Dei-lhe o embrulho e ela desembrulhou-o, meteu lá a
terceira arrufada, voltou a embrulhá-lo e pegou nas moedas; depois
tirou duas moedas de troco do bolso do avental e deu-mas. Entreguei-as
à garota. Os deditos dela fecharam-se sobre as moedas, molhados e
mornos, como larvas.
- Vai dar-lhe essa arrufada? - disse a mulher.
- Sim senhora - disse eu. - Espero que o seu pão lhe cheire tão bem a
ela como me cheira a mim.
Peguei nos dois embrulhos e dei o cacete à garota, perante o
olhar de fria certeza da mulher, que nos mirava, toda ela acin114
zentada, por detrás do balcão. - Espere um instante - disse ela. Foi
às traseiras do estabelecimento. A porta abriu-se e
fechou-se outra vez. A garota não tirava os olhos de mim, com o
pão bem apertado contra o vestido enxovalhado.
- Como te chamas? - disse eu. Ela baixou os olhos, mas
não se mexeu. Parecia nem respirar. A mulher voltou. Trazia na
mão uma coisa deveras curiosa. Pegava-lhe como se tivesse sido um
ratinho de estimação, agora morto.
- Toma - disse ela. A garota fitou-a. - É para ti - disse a mulher, e
estendeu-lhe a tal coisa. - Só é esquisito de aspecto. Acho que quando
comeres não notas a diferença. Vá, pega. Não posso ficar aqui à espera

o dia todo. - A garota pegou-lhe, sempre sem desviar os olhos da
mulher. A mulher limpou as mãos ao avental. - Tenho de mandar arranjar
esta campainha - disse ela. Foi até à porta e abriu-a com ímpeto. A
campainha tocou uma vez, sumida, cristalina e invisível. Dirigimo-nos
para a porta e a mulher olhou para trás.
- Obrigado pelo bolo - disse eu.
- Estes estrangeiros - disse ela, espreitando para o recanto
escuro onde a campainha se anichava. - Siga o meu conselho e mantenhase
longe deles, meu rapaz.
- Sim, senhora - disse eu. - Anda, miúda. - Saímos da loja. - Muito
obrigado, minha senhora.
Ela encostou a porta e depois abriu-a outra vez com força, obrigando a
campainha a soltar a sua nota breve e solitária. Estrangeiros - disse,
perscrutando a campainha.
Seguimos o nosso caminho. - Bem - disse eu - e que tal um gelado? -
Ela trincou o bolo ressequido. - Gostas de gelados? - Ela voltou-me
uns olhos estáticos e negros, sem parar de mastigar. - Vem comigo.
Entrámos na pastelaria e comemos os gelados. Ela não queria pousar o
pão. - Por que não o pousas para comeres mais à vontade? - disse eu,
oferecendo-me para lho segurai@ Mas ela não o largava, chupando o
gelado como se fosse um caramelo. O bolo já dentado estava em cima da
mesa. Comeu o gelado de uma
assentada e voltou ao bolo, olhando em volta para as vitrinas. Acabei
o meu gelado e saímos.
115
- Para que lado moras? - disse eu. Uma sege, e era a do cavalo branco.
Só que o doutor Peabody manda peso. Cento e cinquenta quilos. Com ele
é preciso agarrares-te bem pela estrada acima. Crianças. Andam melhor
do que se agarram pela encosta acima. Jáfoste ao médícofoste ao
médico Gaddy
Nãopreciso de ir agora não lhepossoperguntar depoísjá nãofaz maljá não
tem importância
Porque as mulheres são muito delicadas muito misteriosas dizia o Pai.
O delicado equilíbrio da imundície periódica entre duas luas. Luas
dizia ele cheias e amarelas como as luas das colheitas as suas ancas
as suas coxas. Fora fora delas sempre mas.
Amarelas. Como solas dos pés depois de muito caminharem. E depois
saber que um homem guardava todos aqueles segredos misteriosos e
imperiosos. Com tudo isso dentro das formas internas uma suavidade
exterior à espera de ser tocada. Putrefacção líquida como coisas
afogadas flutuando como borracha des- botada e pouco inchada
impregnada do aroma das madressilvas.
- Era melhor levares o pão para casa, não achas? Ela olhou para mim.
Mastigava silenciosa e convictamente; a
intervalos regulares, um pequeno alto escorregava-lhe suave- mente
pela garganta. Abri o meu embrulho e dei-lhe uma das minhas arrufadas.
- Adeus - disse eu.
Continuei a andar. Nisto olhei para trás. Ela estava mesmo atrás de
mim. - Moras para este lado? - Não respondeu. Ia ao meu lado, quase
por baixo do meu cotovelo. Continuámos. Estava tudo muito sossegado,
quase não se via vivalma impregnando-se do aroma das madressilvas Ela
ter-me-ia ditopara não me deixar ali sentado nos degraus a ouvi-la
atirar com a porta no crepúsculo a
ouvir o Benjy ainda a chorar A hora da ceia ela ia ter de descer e
impregnar-se do aroma das madressilvas Chegámos à esquina.
- Bem, agora sigo por aqui - disse eu. - Adeus. - Ela parou também.
Engoliu o resto do bolo e começou a comer a
arrufada, espiando-me por cima dela. -Adeus - disse eu outra vez.
Virei para a outra rua e continuei a andar, só parando na
esquina seguinte.

- Para que lado moras? - disse eu. - Será para este? 116
Apontei para o extremo da rua. Ela não tirava os olhos de mim,
- E para ali que moras? Aposto que moras perto da estação, onde estão
os comboios. Moras, não moras? - Ela não tirava os olhos de mim,
serenos e secretos, sempre a mastigar. A rua estava deserta nos dois
sentidos, ladeada por silenciosos relvados e
casas bem inseridas no arvoredo, mas não se via ninguém a não ser lá
muito para trás. Demos meia volta e retrocedemos. Vimos dois homens
sentados em frente a uma loja.
- Conhecem esta menina? Não me larga e eu não consigo descobrir onde
ela mora.
Eles desviaram os olhos de mim para a garota.
- Deve pertencer a uma dessas novas famílias italianas disse um. Tinha
vestida urna sobrecasaca cor de ferrugem. - já a vi antes. Como te
chamas, miúda? - Ela pousou neles o olhar negro por um instante,
sempre com o queixo em movimento. Engolia sem parar de mastigar.
- Talvez ela não fale inglês - disse o outro.
- Mandaram-na ao pão - disse eu. - Há-de ser capaz de dizer alguma
coisa.
- Como se chama o teu pai? - disse o primeiro. - Pete? Joe? Nome John,
hem? - Ela deu outra dentada na arrufada.
- Que hei-de fazer com ela? - disse eu. - Não me larga e
tenho de voltar para Boston.
- Anda na Universidade?
- Ando sim. E tenho de regressar.
- Podia subir a rua e entregá-la ao Anse. Encontra-o na cocheira. É o
xerife.
- Acho que é isso mesmo que vou fazer - disse eu. Tenho de a deixar em
qualquer lado. Muito obrigado. Anda daí, miúda.
Subimos a rua, pelo lado da sombra, onde a sombra das fachadas em
ruínas ia lentamente ocupando a rua. Chegámos à cocheira. O xerife não
se encontrava lá. Sentado numa cadeira inclinada para trás e encostada
à porta larga e baixa por onde corria uma aragem fria e escura que
passava entre as baias alinhadas e tresandava a amónia, estava um
homem que me mandou ir procurá-lo nos correios. Também ele não a
conhecia.
11/1
- Estrangeirada. Cá para mim são todos iguais. Também a
pode levar para o lado de lá da linha, que é onde eles vivem. Talvez
alguém a conheça.
Fomos aos correios. Ficavam no outro extremo da rua. O homem da
sobrecasaca estava a abrir um jornal.
- O Anse acabou de sair da cidade - disse. - Acho que o
melhor é ir para o lado de lá da estação até àquelas casas junto ao
rio. Lá alguém há-de conhecê-la.
- Acho que é isso que vou fazer - disse eu. - Vem daí, miúda. - Ela
enfiou na boca o último bocado de arrufada e engoliu-o. - Queres mais?
- disse eu. Sempre a mastigar, ela fitou-me com os olhos negros e
pestanudos, afectuosos. Tirei do cartucho as outras duas arrufadas,
dei-lhe uma e dei uma dentada na outra. Perguntei a um homem onde
ficava a estação e ele indicou-me o caminho. - Anda, miúda.
Chegámos à estação e atravessámos a linha férrea, no sítio onde
passava o rio. Havia uma ponte e uma rua pejada de casas
de madeira, paralela ao rio. Era uma rua miserável, mas com um ar
heterogéneo e fervilhante de vida. No centro de um terreno abandonado
cercado por uma vedação de estacas já muito desdentada estava uma
carroça tombada e uma casa a cair aos bocados, com um vestido cor-derosa
berrante pendurado no estendai numa das mansardas.
- Achas que é ali a tua casa? - disse eu. Ela olhou-me por cima da

arrufada. - É esta? - disse eu, apontando. Ela só mastigava, mas
pareceu-me discernir-lhe no olhar algo de afirmativo, de aquiescente,
apesar de não mostrar qualquer entusiasmo.
- É esta? - disse eu. - Então vem daí. - Entrei pelo portão
desengonçado. Olhei para trás, para ela. aqui? - disse eu.
Achas que é esta a tua casa? Ela acenou afirmativamente com um meneio
rápido, sem
tirar os olhos de mim, cravando os dentes na meia-lua humedecida da
arrufada. Avançámos. Um carreiro de lajes partidas e espalhadas ao
acaso, entremeadas de tufos de ervas ásperas, conduzia à escada-ria em
ruínas. Não se via movimento pela casa, e o vestido cor-de-rosa lá
estava pendurado na mansarda na tarde sem vento. Havia uma campainha
de puxar com urna maçaneta
118
de porcelana na ponta que, quando desisti de puxar e resolvi bater, vi
que estava presa a um arame com cerca de dois metros. A garota tinha a
côdea meio atravessada a sair da boca e continuava a mastigar.
Veio uma mulher abrir a porta. Olhou para mim e começou a falar muito
depressa com a garota em italiano, numa entoação crescente seguida de
uma pausa interrogativa. Voltou a falar com a garota, que a olhava por
cima da ponta da côdea, empurrando-a para dentro da boca com a mão
suja.
- Ela diz que mora aqui - disse eu. - Encontrei-a na cidade. Este pão
é seu?
- Não falar - disse a mulher. Falou de novo com a garota, que se
limitou a olhar para ela.
- Não morar aqui? - disse eu. Apontei para a garota, depois para ela,
e depois para a porta. A mulher abanou a cabeça. Falava muito
depressa. Veio até ao portão e apontou para o fundo da rua, sempre a
palrar.
Eu acenei vigorosamente com a cabeça. - Vir mostrar? disse eu. Pegueilhe
no braço, apontando com a mão para o fundo da rua. Ela falava
muito depressa e apontava também. Senhora vir mostrar - disse eu,
tentando fazê-la descer os degraus.
- Si, si - disse ela, recuando, mostrando-me onde estava o
que me queria dizer. Acenei outra vez.
- Obrigado. Obrigado. Obrigado. - Desci a escada e dirigi-me para o
portão, sem correr, mas em passo acelerado. Ao chegar ao portão, parei
e fiquei por momentos a olhar para a
garota. A côdea já tinha desaparecido e ela olhava-me com os seus
olhos negros, afectuosos. A mulher observava-nos do cimo da escada.
- Anda - disse eu. - Mais tarde ou mais cedo havemos de
encontrar a casa certa.
Ela ia a andar mesmo por baixo do meu cotovelo. Continuámos. As casas
pareciam todas vazias. Não se via vivalma. Só aquela sensação de
abaf@mento que parece invadir as casas vazias. No entanto, não podiam
estar todas vazias. Todos os quartos vazios, se pudéssemos cortar as
paredes de repente. Minha
119
senhora, a sua filha, faça favor. Não. Minha senhora, por amor
de Deus, a sua filha. E ela sempre ao meu lado, mesmo por baixo do meu
cotovelo, com as tranças luzidias e muito apertadas, até que surgiu a
última casa e a rua se perdeu por detrás dela para lá de um muro,
paralela ao rio. Uma mulher assomou-se ao portão quebrado, com um
xaile pela cabeça bem apertado com a
mão por baixo do queixo. A rua descrevia uma curva e seguia deserta.
Encontrei uma moeda e dei-a à garota. Eram vinte e
cinco cêntimos. -Adeus, miúda. - Desatei a correr.
Corri o mais que pude, sem olhar para trás, o que só fiz mesmo ao

chegar à curva. Ela estava parada no meio da rua, pequenina, apertando
o pão contra o vestido imundo, com os olhos estáticos e negros,
imperturbáveis. Continuei a correr.
Da rua partia um carreiro. Meti por ele e, passado algum tempo,
abrandei a corrida para passo acelerado. O carreiro passava por
traseiras de casas - casas por pintar, com mais roupa garrida
pendurada nos arames, um estábulo com as traseiras em ruínas,
apodrecendo calmamente entre as árvores alinhadas de um pomar, todas
elas por podar e infestadas de ervas daninhas, todas elas rosa e
branco, fervilhantes de sol e de abelhas. Olhei para trás. A entrada
do carreiro estava deserta. Abrandei ainda mais, com a minha sombra a
caminhar ao meu lado, arrastando a cabeça pelas ervas que escondiam a
cerca.
O carreiro ia dar a um portão de grades, desaparecendo entre as ervas,
transformando-se depois num mero trilho que tranquilamente abria
caminho para um novo prado. Saltei o portão e
achei-me num espaço arborizado que atravessei até chegar a um
outro muro, rente ao qual segui, com a minha sombra agora atrás de
mim. Havia vinhedos e trepadeiras onde na minha terra encontraria
madressilvas. Não paravam de vir, especialmente à noitinha quando
chovia, impregnando do aroma das madressilvas como se sem isso não
fosse já suficiente mau, suficientemente insuportável. Por que é que o
deixaste beíjar beíjar
Eu não o deixei eu obriguei-o ao sentir afúria a apoderar-se de mim
Que me dizes tu a ísto?A Marca Vermelha da minha mão subindo-lhepe&
cara acendendo uma luzpor baixo da tua mão e os olhos dela a
incendiarem-se
120
Nãofoi por o teres beijado que te dei uma bofetada. Os cotovelos da
raparígas de quinze anos dizia o Pai engolem-se como se tivéssemos uma
espinha na garganta que se passa contigo e com a Caddy do outro lado
da mesapara não olharempara mim. Folpor deixares quejosse
esseparvalhão da cidade que te dei uma bofetada agora vais nao vais
acho que vais dizer que não vale nada. A minha mão toda vermelha a
afastar-se da cara dela. Que achas tu disto esfregar-lhe a cabeça em.
As ervas emaranhadas cravando-se na carne ardendo esfregando-lhe a
cabeça. Diz que não vale nada vá diz
Pelo menos não beijei nenhuma porcalhona como a Natalie O muro
penetrou na sombra e a segu@r foi a minha sombra, já lhe tinha pregado
a partida outra vez. Tinha-me esquecido de que o rio acompanhava a
curva da estrada. Trepei o muro e dei com ela * ver-me saltar para o
outro lado, com o cacete apertado contra * vestido.
Por um instante fiquei ali, de pé, no meio das ervas, eu a
olhar para ela e ela a olhar para mim.
- Por que não me disseste que era para este lado que moravas? - O pão
ia saindo lentamente para fora do papel; já precisava era de ser
embrulhado outra vez. - Bom, vem daí então e
mostra-me onde é a tua casa. não umaporcalhona como a Nata- lie.
Estava a chover ouvíamos a chuva no telhado, suspirando nas
alturas através da doce soli,@,Uo do estábulo.
AÍ? Tocando-lhe Aí não Aí? não chovia muito mas não conseguíamos ouvir
mais nada além do telhado nem se era o meu sangue ou o seu sangue
Ela empurrou-mepela escada abaixo efugiu a correr deixando-me ali
sozinho a Caddyfez isso mesmo
Foi aí que te doeu quando a Cad<yJugíuJoí aí Oh Ela ia ao meu lado
mesmo por baixo do meu cotovelo, roçando-lhe com o alto da cabecita
envernizada, com o cacete já meio fora do jornal.
- Se não chegares a casa depressa ainda ricas sem o pão, e depois o
que é que a tua mãe vai dizer? Aposto que sou capaz de te p@çar ao
colo

Não és nada sou muito pesada
121
A Caddyfoí-se emborafoipara casa não consegues ver o estábulo da nossa
casajá alguma vez tentaste ver o estábulo da
A cu,@aJoi dela ela empurrou-me elajugiu Sou capaz de tepegar ao colo
sim vês como sou Ob o sangue dela e o meu sangue Oh Continuámos a
caminhar pela estrada coberta de poeira fina, com pés silenciosos de
borracha, pisando a poeira fina onde os lápis de sol riscavam sombras
por entre as árvores. E de novo senti a proximidade da água a
correr veloz e mansa no segredo das sombras.
- Moras muito longe, não moras? És muito esperta para ires sozinha
para a cidade de tão longe. Écomo dançar sentadojá alguma vez dançaste
sentado? Ouvíamos a chuva, um rato na manjedoura, o estábulo vazio de
cavalos. Como é que te agarraspara dançar é assim que te agarras para
dançar
Ob Eu costumava agarrar-me assim tu pensavas que eu não tinha força
suficiente não pensavas
Ob Ob Oh Oh Eu agarrava a costumar-me assim quero dizer ouviste o que
eu disse eu disse que
oh oh oA, oh A estrada continuava, silenciosa e deserta, batida por
raios de sol cada vez mais oblíquos. As tranças dela, rígidas e
apertadas, estavam amarradas na ponta com tiras de tecido carmesim.
Uma ponta do embrulho adejava à medida que ela andava, deixando a
descoberto o bico do cacete. Parei.
- Ouve lá, é mesmo nesta estrada que moras? Há mais de um quilómetro
que não encontramos nenhuma casa, ou quase.
E ela sempre a fitar-me com aqueles olhos negros, secretos,
afectuosos.
- Onde moras tu, miúda? Não será lá para trás, para a cidade?
Havia um pássaro algures no arvoredo, para lá dos raios de sol cada
vez mais escassos, intermitentes.
- O teu pai vai ficar aflito. Não vês que vais apanhar por não teres
voltado direitinha para casa com o pão?
O pássaro piou outra vez, invisível, um pio profundo e
122
desprovido de sentido, de inflexáo, terminando como se abruptamente
cortado por uma faca, e de novo piou, e aquela sensação da água, veloz
e mansa, por lugares secretos, apenas sentida, nem
vista nem ouvida.
- Ora bolas, miúda. - Metade do papel já estava todo pendurado, meio
desfeito. - Agora já não serve para nada. Rasguei-o e atirei-o para a
berma da estrada. - Vá. Temos de voltar para a cidade. Vamos seguir o
rio.
Saímos da estrada. Por entre o musgo havia florinhas a crescer, tal
como crescia a sensação da água, muda e invisível. Eu agarrava a
costumar-me assim quero dizer eu costumava agarrar-me Ela estava
entreportas a olharpara nós com as mãos nas ancas
Tu empurraste-me a culpajoí tua também me magoei' Estávamos a dançar
sentados aposto que a Gaddy não sabe dança r sentada
Pára com issopára com isso Estava só a sacudir a terra da parte & trás
do teu vestido Não meponhas em cima essas tuas mãos nojentas a
culpajoi tua
tu é que me empurraste estotífuriosa contigo
Quero lá saber que ela estivesse a olharpara nósficajuriosa à vontade
elafoí-se embora Começámos a ouvir gritos, gente a chapinhar; vi um
corpo castanho brilharpor um instante.
Ficafuriosa. Tinha a camisa encharcada e o cabelo. Através do telhado
o telhado ouvía-se agora bem vi a Natalie a atravessar o jardim à
chuva. Isso mesmo encharca-te bem espero que apanhes umapneumonía

vaípara casagrande vaca. Saltei com quantajorça tinha para dentro do
chiqueiro a lama toda amarela chegava-me à cintura continuei a
chafurdar até me deixar cair e começar a rebolar - Estás a ouvi-los
dentro de água, miúda? Não me raiava nada de estar a fazer o mesmo. -
Se tivesse tempo. Quando tiver tempo. Ouvia o tic-rac do meu relógio.
a lama era mais quente do que a chuva mas cheirava horrorosamente mal.
Ela estava de costas voltadas eu dei a volta e coloqueí-me nafrente
dela. Sabes o que é que eu estava afazer? Ela virou-me as costas eu
pus-me de novo nafrente dela a chuva infiltrava-se na lama colava-lhe
a combínafão ao cor
po por baixo do vestido cheirava terrivelmente mal Eu estava a abraçála
era isso o que eu estava afazer.
123
Ela voltou-me as costas eu dei a volta e pus-me diante dela. Estava a
abraçá-lajá te disse.
Quero U saber do que estavas afazer Ah não queres ah não queres vais
ver vais ver se queres ou não. Ela empurrou-me a mão eu sujei-a de
lama com a outra mão nem senti .apalmada molhada que ela me deu limpei
a lama das minhas pernas e espalhei-a no seu corpo molhado e rígido
que se contorcia ouvindo os seus dedos virem direitos à minha cara mas
não os senti
nem mesmo quando a chuva nos Ubíos começou a ter um sabor doce
Eles viram-nos da água primeiro, cabeças e ombros. Gritaram e um deles
soergueu-se agachado e saltou de repente entre os outros. Pareciam
castores, com a água a chegar-lhes ao queixo, a gritarem.
- Leve daqui essa miúda! Para que trouxe uma miúda para aqui? Vá-se
embora!
- Ela não vos faz mal. Só queremos ficar aqui um bocadi- nho a olhar
para vocês.
Agacharam-se dentro de água. As cabeças reuniram-se em
molho, observando-nos, e nisto precipitaram-se na nossa direcção,
atirando chapadas de água com as mãos. Saímos dali rapidamente.
- Oiçam lá, rapazes; ela não vos faz mal.
- Vai-te embora, Harvard! - Era o segundo rapaz quem falava, o que na
ponte tinha sonhado com o cavalo e a carroça.
Atirem-lhes água, rapazes!
- Vamos sair da água e atirá-los a eles cá para dentro - disse um
outro. - Eu não tenho medo de rapariga nenhuma.
- Molhem-nos! Molhem-nos! - Corriam para nós a atirar- -nos chapadas
de água. Recuámos. - Vão-se embora! - gritavam eles. - Vão-se embora!
Fomo-nos embora. Eles juntaram-se perto da margem, com as cabeças
escorridas em fiada a despontar da água cintilante. Continuámos a
andar. - Aquilo não é coisa para nós, pois não?
- O sol brilhava no musgo, aqui e ali, quase rasante. - Pobre miúda,
és uma rapariga, que se há-de fazer. - Cresciam florinhas pelo meio do
musgo, pequeníssimas, como eu nunca tinha visto. -.És apenas uma
rapariga, pobrezinha. - Havia um trilho para124
leio à água. A água estava de novo silenciosa, escura e silenciosa, e
veloz. - Apenas uma rapariga. Pobrezinha. - Estávamos deita- dos na
erva molhada ofegantes com a chuva a bater-me nas costas fria como
balas. E agorajá queres saberjá queres
Santo Deus estamos num lindo estado não haja dúvida levanta- -te.
Começou a arder onde a chuva mepíngava na testa a minha mão vinha
vermelha a escorrer água cor-de-rosa à chuva. Dói-te muito
Claro que dói o que é que achas Tentei arrancar-te os olhos meu Deus
cheiramos mesmo mal o melhor é ver se nos lavamos no riacho - Lá está
a cidade outra vez, miúda. Agora tens de ir para casa, não tens? - mas
ela apenas me respondeu com o olhar estático, negro, secreto e
afectuoso, com o cacete meio desembrulhado apertado de encontro ao

peito. - Está molhado. julguei que tivéssemos fugido a tempo. Tirei o
lenço do bolso e tentei limpar o pão, mas a côdea começou a esfarelar
e parei. - Temos de o deixar secar. Pega-lhe assim. - Ela pegou-lhe
assim. Parecia que tinham andado ratos a comê-lo. e a água a subir a
subirpelas costas curvadas a lama agarradiça epestilenta a vir à
tonaiuntando-se à superficie como gordura numapanela ao lume. Eu
disse-te que te iafazer
Quero U saber do que tufazes Nisto, ouvimos alguém a correr; parámos,
olhámos para trás e vimo-lo a correr pelo trilho acima, com a sombra a
cruzar-lhe as pernas horizontalmente.
- Vem com pressa. O melhor... - e então vi outro homem, já velho, a
correr pesadamente, agarrado a um pau, e um rapaz nu da cintura para
cima, a segurar as calças enquanto corria.
- Olha o Julio - disse a garota, e foi então que lhe vi bem a
cara, de italiano, e os olhos, quando ele se atirou a mim. Caímos no
chão. As mãos dele cravaram-se no meu rosto e o homem dizia qualquer
coisa e tentava morder-me, acho eu, mas os outros apartaram-nos e
seguraram-no; arfava e estrebuchava, aos gritos por se ver manietado e
tentava dar-me pontapés, até que eles o puxaram para trás. A garota
chorava, abraçada ao pão. O rapaz seminu corria e saltava, agarrado às
calças, e alguém me puxou a tempo de ver uma outra personagem
completamente nua contornar
125
a correr a plácida curva do caminho, mudando a meio de direcção e
saltando para o meio das árvores, levando as roupas atrás de si,
rígidas como tábuas. O tal Julio debatia-se ainda. O homem que me
tinha puxado disse: - Chega. Caçámos-te. - Trazia um colete, mas
estava sem casaco. Sobre o colete, um escudo de metal. Na outra mão,
bem seguro, um pau nodoso e polido.
- O senhor é o Anse, não é? - disse eu. - Andava à sua procura.
Porquê isto agora?
- Aviso-te de que tudo o que disseres será usado contra ti disse ele.
- Estás preso.
- Eu matar ele - dizia o homem chamado Julio. E continuava a debaterse.
Dois homens agarravam-no. A garota chorava sem parar, agarrada ao
pão. - Tu roubares mia irmã - disse o Julio. - Soltem.
- Roubar-lhe a irmã? - disse eu. - Essa agora, pois se eu
tenho andado...
- Cala-te - disse o Anse. - Podes contar essa ao juiz.
- Roubar-lhe a irmã? - disse eu. O tal Julio libertou-se e
atirou-se a mim outra vez, mas o xerife meteu-se de permeio e
engalfinharam-se os dois até os outros lhe prenderem outra vez os
braços. O Anse soltou-o então, ofegante.
- Estrangeiro dum raio - disse ele. - Estou com vontade de te levar
também preso, por assalto e briga. - depois voltou-se para mim: - Vens
a bem ou é preciso algemas?
- Vou a bem - disse eu. - Faça qualquer coisa, só para eu encontrar
alguém... faça qualquer coisa... Roubar-lhe a irmã dizia eu. - Roubarlhe...
- já te avisei - disse o Anse. - Ele está a preparar-se para te acusar
de tentativa de violação com premeditação. Eli, tu, vê lá se fazes a
miúda calar-se.
- Oh - disse eu. Nisto comecei a rir. Mais dois rapazes com os cabelos
a escorrer e os olhos muito redondos saíram de detrás dos arbustos a
abotoarem as camisas que já estavam com os ombros e os braços
molhados, e eu esforcei-me por parar de rir, mas sem resultado.
- Olho nele, Anse, acho que o tipo é maluco.
- Eu p-paro j-já - disse eu. - Est-tou q-quase a p-parar.
126

Da outra vez foi ah ah ah - disse eu, sem conseguir conter o riso.
- Deixe-me sentar um bocadinho. - Sentei-me, sob o olhar vigilante dos
homens e da garota, com a cara sulcada de lágrimas e o cacete todo
ratado, e a água a correr veloz e mansa lá em baixo. Daí a pouco o
riso dissipou-se, mas a minha garganta não queria deixar de rir, era
como as náuseas em estômago vazio.
- Agora chega - disse o Anse. - Vê se te controlas.
- Vou tentar - disse eu, contraindo a garganta. Apareceu outra
borboleta amarela, um reflexo de sol voando à solta. Passado um bocado
já não tinha de apertar tanto a garganta. Levantei-me. - Estou pronto.
Para que Iado vamos?
Fomos pelo carreiro fora, os outros dois sempre de olho no Julio e a
garota e os rapazes mais atrás. O caminho seguia ao lon- go do rio até
à ponte. Atravessámo-la e a linha férrea também. As pessoas assomavamse
às portas para nos verem passar e foram-se juntando mais rapazes
vindos sabe-se lá de onde, até que, quando entrámos na rua principal,
o cortejo já ia longo. Â porta do armazém estava parado um automóvel,
dos grandes, mas só o reconheci quando Mrs. Bland disse:
- Mas é o Quentin! O Quentin Compson! - E então vi o Gerald, e o
Spoade no banco de trás, com a cabeça apoiada ao
encosto. E o Shreve. Não conhecia as duas raparigas.
- Quentin Compson! - disse Mrs. Bland.
- Boa-tarde - disse eu, tirando o chapéu. - Vou preso. Lamento não ter
recebido o seu recado. O Shreve contou-lhe?
- Preso? - disse o Shreve. - Desculpem - disse ele. Levantou-se,
passou por cima das pernas delas e saiu do carro. Trazia vestidas as
minhas calças de flanela que lhe assentavam como uma luva. Não me
lembrava de me ter esquecido delas. Mas também não me lembrava de
quantos queixos e duplos-queixos tinha Mrs. Bland. A rapariga mais
bonita ia à frente com o Gerald. Elas observavam-me por detrás dos
véus com
requintado horror. - Quem é que foi preso? - disse o Shreve.
Que vem a ser isto?
- Gerald - disse Mrs. Bland. - Manda essa gente embora. Entre para o
carro, Quentin.
O Gerald saiu do carro. O Spoade nem se mexeu.
127
Que fez ele, Capitão? - disse ele. - Assaltou algum galinheiro?
Veja lá como fala! - disse o Anse. - Conhece o prisioneiro?
- Se o conheço? - disse o Shreve. - Oiça bem...
- Toca a vir também apresentar-se ao juiz. Está a obstruir a justiça.
Vamos. - E puxou-me pelo braço.
Bem, então muito boa-tarde - disse eu. - Estou contente por os
encontrar a todos. Só lamento não vos poder ficar a
fazer companhia.
- Faz qualquer coisa, Gerald - disse Mrs. Bland.
- Oiça lá, senhor guarda - disse o Gerald.
- já o avisei de que está interferir com um representante da lei -
disse o Anse. - Se tem alguma coisa a declarar, pode vir ao e
identificar o prisioneiro. - Continuámos a andar. Era uma bela
procissão, com o Anse e eu à cabeça. Ouvia-os a contarem-lhes o que se
tinha passado e o Spoade a fazer perguntas, e
nisto o Julio gritou qualquer coisa ofensiva em italiano e eu olhei
para trás e vi a garota parada na berma, a olhar para mim com o
seu olhar afectuoso e imperscrutável.
- Vai a casa - berrou-lhe o Julio. - lo ti mato de porrada. Descemos a
rua e virámos para um relvado onde, um pouco recuado, se elevava um
edifício de um só piso, todo em tijolo e
debruado a branco. Seguimos pelo carreiro empedrado até à porta; aí, o
Anse mandou parar toda a gente, menos nós, obrigando-os a esperar do

lado de fora. Entrámos para urna sala vazia, a
cheirar a tabaco velho. No centro de um caixote de madeira cheio de
areia havia um fogão de ferro, na parede estava pendu1
rado um mapa já muito sumido e uma placa da cidade muito su a. Por
detrás de uma mesa toda riscada e pejada de papéis estava sentado um
homem de grenha hirsuta, cor de aço, que nos
olhava por cima de uns óculos também de aço.
- Apanhaste-o, não foi, Anse? - disse ele. -Apanhei, sim, i uiz.
O homem abriu um calhamaço poeirento e puxou-o para si, mergulhando
uma caneta nojenta num tinteiro que continha algo parecido com pó de
carvão.
128
- Oiça... - disse o Shreve.
- O nome do prisioneiro - disse o juiz. Eu disse o meu
nome. Escreveu-o sem pressas, arranhando o papel com a caneta com
excruciante determinação.
- Oiça lá, xerife - disse o Shreve. - Nós conhecemos este homem.
Nós...
Ordem no tribunal - disse o Anse. Cala-te, pá - disse o Spoade. -
DeLixa-o fazer as coisas à maneira dele. Afinal é como ele as vai
fazer.
Idade - disse o juiz. Disse-lhe a idade. Ele tomou nota, mexendo a
boca enquanto escrevia. Ocupação. - Também lhe disse. - Com que
então Harvard, hem? - Levantou os olhos do livro e fitou-me,
inclinando um pouco o pescoço para me olhar por cima dos óculos. Os
seus olhos eram claros e frios, como os de um bode. - Que ideia foi
essa de vires para aqui raptar crianças?
- Eles estão doidos, Senhor Juiz - disse o Shreve. - Quem disser que
este rapaz anda a raptar..
O Julio saltou logo. - Doido? - disse ele. - Não os apanhar, hem? Não
ver com meus olhos...
- Isso é mentira - disse o Shreve. - Você nunca...
- Ordem, ordem - disse o Anse, erguendo a voz.
- Estejam calados - disse o juiz. - Se não se calarem põe-nos lá fora,
Anse. - Eles calaram-se. O juiz olhou para o Shreve, depois para o
Spoade, e por fim para o Gerald. - Conhecem este rapaz? - disse ele ao
Spoade.
- Sim, Meretíssimo - disse o Spoade. É apenas um rapaz da
província que anda na universidade. Não pretendia fazer mal a ninguém.
Penso que o xerife apurará que se tratou de um equívoco. O pai dele é
pastor congregacionista.
- Hurrurim - disse o juiz. - Exactamente, o que andavas tu a fazer? -
Expliquei-lhe, e ele sempre a fitar-me com os seus olhos pálidos e
frios. - Que te parece, Anse?
- É capaz de ser verdade - disse o Anse. - Estrangeirada dum raio.
- Eu americano - disse o Julio. - Eu ter papéis.
- Onde está a miúda?
129
- Ele mandou-a para casa - disse o Anse,
- Ela estava assustada ou coisa parecida?
- Só quando o Julio se atirou ao prisioneiro. Eles iam só a
passear à beira rio, em direcção à cidade. Uns rapazes que estavam a
nadar é que nos disseram para que lado tinham ido.
- Trata-se de um equívoco, Senhor Juiz - disse o Spoade. As crianças e
os cães passam a vida atrás dele. O que é que ele há-de fazer?
- Hummin - disse o juiz. Foi até à janela e olhou lá para fora. Nós
não tirávamos os olhos dele. Ouvi o Julio a coçar-se. O juiz olhou
para trás.
- Você aí, reconhece que a garota não sofreu maus tratos?

- Não sofrer ainda - disse o Julio, mal encarado.
- Deixou o trabalho para a ir procurar?
- Claro. Eu correr. Correr muito. Procurar aqui, procurar ali, e homem
dizer ver este dar comida a ela. Ela ir com ele.
- Hummin - disse o juiz. - Bem, meu rapaz, acho que deves dar ao Julio
alguma coisa por o teres feito largar o trabalho.
- Sim, senhor - disse eu. - Quanto?
- Um dólar, acho eu.
Dei um dólar ao Julio.
- Bem - disse o Spoade. - Se é tudo... Acho que ele está livre, não é
assim, Senhor Juiz?
O juiz nem para ele olhou. -A que distância daqui o encontraste?
- Quatro quilómetros, pelo menos. Só passadas duas horas é que o
apanhámos.
- Hurrim - disse o juiz. Matutou por uns instantes. E nós a olhar para
ele, com a grenha hirsuta e os óculos na ponta do nariz. O reflexo
amarelo da janela aumentava pelo chão fora, até chegar à parede e
subir por ela acima. A poeira rodopiava à luz,
em riscas diagonais. - Seis dólares.
- Seis dólares? disse o Shreve. - Para quê?
- Seis dólares disse o juiz. Olhou para o Shreve por um instante,
e depois para mim.
- Oiça - U'L@sse o Shreve.
130
- Cala-te - disse o Spoade. - Dá-lhos, menino, e vamos
embora. As senhoras estão à nossa espera. Tens aí seis dólares?
- Tenho - disse eu. Dei-lhe os seis dólares.
- Caso encerrado - disse ele.
- Pede um recibo - disse o Shreve. - Pede um recibo assinado como
prova de que pagaste esse dinheiro.
O juiz olhou para o Shreve com complacência. - Caso encerrado - disse
ele sem elevar a voz.
- Raios me partam... - disse o Shreve.
- Anda embora - disse o Spoade, pegando-lhe no braço. Boa-tarde,
Senhor Juiz. Muito 6brigado. - Quando íamos a
sair, a voz do Julio elevou-se de novo, violenta, mas calou-se de
seguida. O Spoade olhava para mim, com os olhos castanhos inquiridores
e um pouco frios. - Então, menino, acho que daqui em diante é melhor
ficares por Boston quando quiseres andar atrás de criancinhas.
- És parvo ou quê - disse o Shreve. - Que raio de ideia foi essa de
vires para aqui meteres-te com esta italianada?
- Vamos embora - disse o Spoade. - Elas já devem estar impacientes.
Mrs. Bland estava a conversar com elas. Eram Miss Holmes e Miss
Daingerfield e deixaram de lhe prestar atenção para olharem para mim
com aquele seu horror requintado e
curioso, com os véus puxados sobre os narizinhos muito brancos e os
olhos brilhando fúgidios e misteriosos por baixo dos
véus.
- Quentin Compson - disse Mrs. Bland. - Que diria a sua mãe. É natural
que um rapaz se meta em encrencas, mas ser levado a pé para a cadeia
por um polícia. O que é que eles julgavam que ele tinha feito, Gerald?
- Nada - disse o Gerald.
- Pode lá ser. O que foi, hem, Spoade?
- Ele estava a preparar-se para raptar aquele garota muito suja, mas
eles apanharam-no a tempo - disse o Spoade.
- Pode lá ser - disse Mrs. Bland, mas a voz sumiu-se-lhe na
garganta, fitou-me por um momento, e as raparigas respiraram fundo com
audível inquietação. - Absurdo - disse Mrs.
131

Bland, sacudida. mesmo coisa destes labregos do norte.
Entra, Quentin.
O Shreve e eu sentámo-nos nos dois bancos rebatíveis. O Gerald deu à
manivela, entrou para o carro e pusemo-nos em marcha.
- Agora, Quentin, vai contar-me toda esta embrulhada disse Mrs. Bland.
Contei-lhes, com o Shreve todo encolhido e furioso no seu banquinho e
o Spoade ao lado de Miss Daingerfield, com a cabeça de novo encostada
para trás.
- E a melhor é que o Quentin nos enganou o tempo todo disse o Spoade.
- Nós a pensarmos que ele era aquele menino exemplar a quem se pode
confiar uma filha, até a polícia o apanhar com a boca na botija.
- Cale-se, Spoade - disse Mrs. Bland. Descemos a rua, atravessámos a
ponte e passámos pela casa onde estava pendurado o vestido rosa
berrante. - Isto é o que acontece por não ter lido o meu recado. Por
que não foi buscá-lo? Mr. MacKenzie disse-me que lhe tinha dito que
estava lá.
- Pois é. Tencionava ir buscá-lo, mas não voltei ao quarto.
- Se não fosse Mr. MacKenzie, tinha-nos deixado ficar à espera. E
depois, quando ele disse que não tinha voltado, ficou a
sobrar um lugar e convidámo-lo para vir connosco. É um prazer tê-lo
connosco, mesmo assim, Mr. MacKenzie. - O Shreve não disse nada.
Estava de braços cruzados a olhar em frente por cima do boné do
Gerald. Era o boné usado pelos automobilistas em
Inglaterra. Era Mrs. Bland quem o dizia. Passámos por a tal casa e por
mais três e ainda por um quintal onde vimos a garota junto ao portão.
Agora já não estava a segurar o pão e a cara dela parecia ter sido
esfregada com carvão. Acenei-lhe, mas ela não respondeu. Só a cabeça
se voltou lentamente quando o carro
passou, seguindo-nos com o seu olhar imperturbável. Depois passámos
rente a um muro, e as nossas sombras corriam pelo muro fora, até que,
passado algum tempo, passámos por um
bocado de jornal amachucado atirado para a berma da estrada, e
eu comecei a rir outra vez. Sentia o riso na garganta e pus-me a olhar
para as árvores banhadas pela luz do entardecer, a pensar nessa tarde
e no pássaro e nos rapazes a nadar. Mas, mesmo
132
assim, não conseguia parar e percebi que, se me esforçasse demasiado,
acabava por chorar, e pensei então em como tinha achado que não podia
ser virgem, com tantas a passearem à sombra, sussurrando com as suas
vozes doces de raparigas pelos recantos sombrios, e as palavras que
diziam e o perfume e os olhos que eu
sentia sem os ver, mas se era assim tão simples de fazer, então não
valia nada, e se não valia nada, quem era eu afinal, e nisto Mrs.
Bland disse: - Quentin? Ele estará mal disposto, Mr. MacKenzie? - e a
mão sapuda do Shreve tocou-me no joelho e o Spoade começou a falar e
eu desisti de tentar travar o riso.
- Se aquela cesta incomoda o Quentin, puxe-a para o seu
lado, Mr. MacKenzie. Trouxe uma cesta com vinho, porque penso que os
jovens devem beber vinho, embora o meu pai, o
avô do Gerald já alguma vezfizeste isso já alguma vezfizeste isso
Napenumbra cinzenta uma luzínha as mãos dela entrelaçadas
- Bebem, quando o arranjam - disse o Spoade. - Eh, Shreve? os
seusjoelhos e o seu rosto virado para o céu o aroma da madressilva no
seu rosto e no seu pescoço
- E cerveja também - disse o Shreve. A mão dele tocou-me outra vez no
joelho. E outra vez eu afastei o joelho. como
umafina camada de tinta cor de liNsfalando dele metendo-o
- Tu não és um cavalheiro - disse o Spoade. entre nós até a
1.magem dela se desfocar mas não com a escuridío
- Pois não. Sou canadiano - disse o Shreve. falando dele as

pás dos remosfazendo-o luzir à medida que avançavafazendo luzir o boné
de automobilista estilo inglês e o tempo que se esvaía e eles os dois
confundidos um no outropara sempre ele tinha an" no exército tinha
matado outros homens
- Adoro o Canadá - disse Miss Daingerfield. - Acho-o uma terra
maravilhosa.
- Já alguma vez beberam perfume? - disse o Spoade. com
uma mão elepodia levantá-la e deitá-la sobre o ombro e correr com ela
correr Correr
- Não - disse o Shreve. correr com a besta de dois dorsos e ela
desfocada nos remos cintilantes correr com osporcos de Eubeleu correr
e copular com quantos Caddy
Eu também não - disse o Spoade. não conheço muitos
133
havia em mim algo de terrívelalgo de terrívelPaí eu cometijá alguma
vezfizeste isso Nós não nós nãofizemos isso pois não
- e o avô do Gerald apanhava sempre a sua hortelã-pimenta antes do
pequeno-almoço, enquanto ainda estava orvalhada. Nem o velho Wilkie
ele deixava tocar-lhe lembras-te Gerald colhia-a ele sempre para fazer
o seu julep. 1 Era tão meticuloso
com o seu julep como uma velha solteirona, medindo todos os
ingredientes escrupulosamente segundo uma receita que sabia de cor. Só
houve um homem a quem deu essa receita; e esse
homem erafizemos sim como podes ígnorá-lo se esperares dígo-te
comofoífoí um crime nós cometemos um crime tenível que não se
pode esconder tupensas quepode mas espera Pobre Quentin tu
nuncafizeste isso pois não pois eu vou-te contar comofoí e vou contar
ao Pai e então tem de serporque tu amas o Pai e então temos de sair de
casa entre a maledicência e o horror e a chama purificadora hei-de
fazer-te dizer que ofizemos sou maisforte do que tu hei-defazer-te
aceitar que ofizemos tu pensaste que eram eles mas era eu ouve eu
enganeí-te era sempre eu tu pensavas que eu estava dentro de casa
1.Mpregnada da maldita madressilva tentando não pensar no baloíço nos
cedros nos impulsos secretos na respíraçãofechado a beber a respiração
descomandada o sim Sim Sim sim - nunca deixou que o convencessem a
beber vinho, mas dizia sempre que uma cesta de vinho em que livro
leste isso foi naquele em que a indumentária de remo do Gerald cor de
vinho era complemento indispensável da cesta de piquenique de todo o
cavalheiro que se preza tu amava-lgs Caddy tu amava-los Quando eles me
tocavam morria
num minuto ela estava ali de pé e no outro ele estava a gritar e a
puxar-lhe pelo vestido foram para o vestíbulo e subiram as escadas a
gritar e ele a empurrá-la pela escada acima até à porta da casa
de banho e ela encostou-se à porta com o braço à frente da cara a
gritar e a tentar empurrá-la para dentro da casa de banho quando ela
velo cear o T. P estava a dar-lhe de comer e ele começou
outra vez a princípio só a choramingar até ela lhe tocar e ele então
pôs-se a gritar e ela ali com os olhos como ratos acossados e eu corri
para as trevas cinzentas havia o cheiro da chuva e os
1. Refresco feito com hortelã-pimenta e uma bebida alcoólica. (N. da
T)
134
aromas de todas as flores no ar húmido e quente e a interminável
cantilena dos grilos na relva que me acompanhava com uma
pequena ilha itinerante de silêncio a Fancy observava-me por detrás da
cerca sarapintada como uma manta pendurada num
estendal e eu pensei cos diabos aquele negro esqueceu-se de lhe dar de
comer outra vez e corri pela encosta abaixo naquele vácuo de grilos
como um sopro sobre um espelho ela estava deitada na água com a cabeça

na areia a água dava-lhe pelas ancas havia um pouco mais de luz na
água a saia dela ensopada ondulava-lhe à volta das ancas ao sabor das
águas propagando ondas sem destino que se renovavam a si próprias no
se@ próprio movimento eu
estava na margem e sentia na água aromas de madressilva o ar parecia
impregnado de madressilva e do cantar dos grilos tanto
que se sentia na carne o Benjy ainda está a chorar não sei não não sei
pobre Berijy sentei-me na margem a erva estava húmida mas não muito
depois encontrei os meus sapatos todos molhados sai já da água estás
maluca mas ela não se mexeu a cara dela era uma mancha branca
emoldurada pelo cabelo na mancha de areia agora sai ela sentou-se
depois levantou-se a saia batia-lhe no corpo ela pingava trepava pela
margem com as roupas a ade- jar sentou-se
por que não a torces queres apanhar uma constipação sim a água
redemoinhava e gorgolejava na língua de areia e mais além na escuridão
entre os salgueiros do lado de lá do vau a água enrugava-se como um
pano retendo ainda um pouco de luz como só a água sabe fazer ele
atravessou todos os oceanos à volta do mundo depois ela falou dele com
as mãos crispadas sobre os joelhos molhados
135
a cara atirada para trás na luz cinzenta o aroma das madressilvas
havia uma luz no quarto da mãe e no do Benjy onde o T. P. o
estava a meter na cama tu ama-lo a mão dela velo eu não me mexi
deslizou-me pelo braço e ela colocou a minha mão contra o seu peito
o seu coração pulava não não ele forçou-te da outra vez ele forçou-te
a fazeres isso deixa-o ele era mais forte do que tu e ele amanhã eu
mato-o juro mato-o o pai não precisa de saber por enquanto só depois e
nessa altura tu e eu ninguém precisa de saber podemos usar o dinheiro
dos estudos podemos anular a minha matrícula Caddy tu odeia-lo não
odeias ela segurou-me a mão contra o peito dela o coração pulava
virei-me e agarrei-lhe o braço Caddy tu odeia-lo não odeias ela levoume
a mão até à garganta o seu coração agora martelava nela pobre
Quentin a cara dela estava virada para o céu baixo tão baixo que todos
os
cheiros e todos os sons da noite pareciam ter-se juntado ali como
debaixo de uma tenda especialmente o da madressilva tinha entrado na
minha respiração cobria-lhe a cara e o pescoço como tinta o seu sangue
pulsava na minha mão eu estava apoiado no
meu outro braço mas ele começou a abanar e a ceder e eu tive de
respirar fundo para extrair algum ar do aroma-espesso e cinzento das
madressilvas sim eu odeio-o a ponto de morrer por ele já morri por ele
morro
por ele mais e mais cada vez que isto acontece quando levantei a mão
sentia ainda os vincos emaranhados deixados pelos troncos e as ervas a
arderem-me na palma da mão pobre Quentin ela deitou-se para trás
apoiando-se nos braços e com as mãos a abraçarem os joelhos isto nunca
tu fizeste pois não o quê fiz o quê
136
aquilo que eu aquilo que eu fiz sim sim muitas vezes com muitas
raparigas então comecei a chorar a mão dela tocou-me outra vez e eu
chorava encostado à sua blusa húmida e então ela deitada de costas a
olhar por cima da minha cabeça para o céu vi uma orla branca sob as
íris abri a minha navalha lembras-te do dia em que a Vóvó morreu
quando tu te sentaste dentro de água com os culotes sim encostei-lhe o
fio da navalha à garganta não leva mais de um segundo um segundo
apenas e depois posso ser eu posso ser eu e então consegues fazê-lo
sozinha sim a lâmina é suficientemente longa o Benjy já está na cama
sim
não leva mais que um segundo tentarei não te fazer doer muito está bem

fecha os olhos não assim tens de apertar com mais força põe aí a mão
mas ela não se mexeu os seus olhos estavam arregalados a olhar para o
céu por cima da minha cabeça Caddy lembras-te de como a Dilsey ralhou
contigo por teres os culotes sujos de lama não chores eu não estou a
chorar Caddy aperta então não vai queres que eu sim aperta põe lá a
mão não chores pobre Quentin mas eu não conseguia parar ela seguravame
a cabeça de encontro ao seu peito molhado e rígido e eu ouvia o seu
coração bater com força mas compassadamente agora sem martelar e a
água a gorgolejar entre os salgueiros na escuridão e ondas de
madressil- va elevando-se no ar o meu braço e o ombro estavam torcidos
sob o meu corpo
137
o que é que estás tu a fazer os músculos dela contraíram-se e eu
senteí-me é a minha navalha deixei-a cair ela sentou-se que horas são
não sei
ela pôs-se de pé eu tacteei no chão à nossa volta vou-me embora deixaa
ficar
para casa sentia-a ali sentia o cheiro das roupas molhadas sentia-a
ali está algures por aqui deixa-a ficar a-manhã logo a encontras anda
espera um segundo hei-de encontrá-la estás com medo cá está ela estava
mesmo aqui o tempo todo ah estava vamos levantei-me e comecei a
caminhar subimos a encosta com os grilos a sussurrarem à nossa frente
é engraçado como podemos estar sentados e perder qualquer coisa e ter
de correr tudo à procura dela cinzento estava tudo cinzento com o
orvalho a reflectir-se no céu cinzento e as árvores a perder de vista
maldita madressilva quem dera que parasse costumavas gostar chegámos
ao cimo e continuámos em direcção às árvores ela veio de encontro a
mim depois afastou-se um pouco a vala era uma negra cicatriz na erva
cinzenta ela veio de encontro a
mim olhou para mim e afastou-se chegámos à vala vamos por este lado
para que vamos ver se ainda consegues ver os ossos da Nancy há muito
tempo que não venho ver e tu estava coberta de lianas e de silvas
negras era aqui mesmo que estavam não sabes se os estás a ver ou não
pois não
138
pára Quentin anda a vala apertava-se fechava-se ela virou-se para as
árvores pára Quentin Caddy pus-me de novo à frente dela Caddy pára
agarrei-a tenho mais força do que tu
ela estava imóvel rígida inflexivel mas calada não vou lutar pára o
melhor é parares Caddy não faças isso Caddy não vai servir de nada não
sabes que não vai larga-me a madressilva envolvia-nos envolvia-nos
ouvia os grilos à nossa
volta a observarem-nos ela recuou passou por detrás de mim e
dirigíu-se para as árvores volta para casa não precisas de vir comigo
eu continuei por que não voltas para casa
maldita madressilva chegámos à cerca ela passou de rastos para o outro
lado eu passei também de rastos quando me levantei e endireitei ele
vinha a sair de entre as árvores para a clareira cinzenta na nossa
direcção caminhando na nossa direcção alto espalmado e silencioso
movendo-se como se estivesse parado e ela foi ter com ele este é o
Quentin estou molhada estou toda molhada não és obrigado se não
quiseres as sombras deles uma sombra a cabeça dela erguia-se acima da
dele no céu mais alto as cabeças deles não és obrigado se não quiseres
depois já não eram duas cabeças a escuridão cheirava a chuva a erva
molhada e folhas molhadas a luz cinzenta caindo como chuva o aroma das
madressilvas elevando-se em ondas de humidade eu via a cara dela uma
mancha sobre o ombro dele ele entrelaçava-a com um braço como se ela
não fosse maior que uma criança estendeu-me a mão
139

prazer em conhecê-lo apertámos as mãos depois ficámos ali os dois e a
sombra dela elevava-se esguia ao lado da sombra dele uma sombra só que
vais fazer Quentin andar por aí acho que vou pela mata até à estrada e
volto pela cidade comecei a andar boa-noite Quentin parei que queres
na mata as rãs das árvores cheiravam a chuva no ar soavam como caixas
de música difíceis de pôr a tocar e a madressilva vem cá
que queres vem cá Quentin voltei para trás ela pôs-me a mão no ombro
encostando a sua sombra à mancha da sua cara encostando-se do alto da
sua sombrarecuei cuidado
vai para casa eu não estou com sono vou dar uma volta espera por mim
no riacho vou dar uma volta Não demoro espera por mim estás a ouvir
não eu vou pela mata nem olhei para trás as rãs das árvores não me
ligaram nenhuma a
luz cinzenta era como musgo invadindo as árvores mas não chovia
passado algum tempo voltei para trás para a orla da mata assim que lá
cheguei comecei a sentir o cheiro das madressilvas outra vez via as
luzes reflectidas no relógio do tribunal e o clarão da cidade o
quadrado projectado no céu e os salgueiros negros ao longo do riacho e
a luz nas janelas do quarto da mãe e ainda a luz no quarto do Benjy e
baixei-me e atravessei a cerca e corri até ao outro lado do prado
correndo pela erva cinzenta entre grilos e
madressilvas sentindo-me cada vez mais forte e o cheiro da água e
então vi a água da cor da madressilva cinzenta deitei-me na
140
margem com a cara encostada ao chão para não sentir o cheiro da
madressilva e já não o sentia e deixei-me ali estar a sentir a terra
entrar-me pela roupa dentro a ouvir a água e passado um bocado já não
me custava tanto respirar e deixei-me ficar ali deitado a pensar que
se não mexesse a cabeça não tinha de respirar fundo e sentir o cheiro
e depois já não pensava em nada e ela veio pela margem fora e parou
não me mexi
é tarde vai para casa o quê vai para casa é tarde está bem a roupa
dela restolhava não me mexi deixou de restolhar vais voltar como te
disse ou não eu não ouvi nada Caddy está bem vou se tu quiseres eu vou
sentei-me ela estava sentada no chão abraçando os joelhos com
as rriãos vai para casa como te mandei está bem farei tudo o que
quiseres tudo sim ela nem sequer olhou para mim agarrei-lhe no ombro e
sacudi-a com força cala-te sacudi-a cala-te cala-te está bem ela
levantou o rosto e percebi que não estava sequer a olhar para mim vialhe
a orla branca levanta-te puxei-a ela estava inerte obriguei-a a
pôr-se de pé agora vai o Benjy ainda estava a chorar quando saíste vai
atravessámos o riacho avistámos o telhado depois as janelas mais altas
agora ele já está a dormir Tive de parar e trancar o portão ela
continuou na luz cinzenta
141
cheirava a chuva mas a chuva não vinha e o aroma das madressilvas
começava a sentir-se para lá da cerca do jardim ela penetrou na sombra
ouvia os seus passos e então Caddy parei nos degraus não ouvia os seus
passos Caddy Ouvi os seus passos e a minha mão tocou na dela nem
quente nem fria apenas inerte as roupas um pouco húmidas ainda e agora
ainda o amas sem respirar a não ser muito lentamente como uma
respiração distante então Caddy ainda o amas
não sei fora da luz cinzenta as sombras das coisas eram como coisas
mortas em água estagnada quem dera que estivesses morta ah sim vens
agora estás a pensar nele agora
não sei
diz-me no que estás a pensar diz-me pára pára Quentin cala-te cala-te
estás a ouvir o que eu te digo cala-te calas-te ou não está bem eu

paro senão fazemos muito barulho eu mato-te estás a ouvir vamos até ao
baloiço aqui eles ouvem-nos
eu não estou a chorar estás a dizer que eu estou a chorar não agora
cala-te senão acordamos o Benjy vai tu para casa agora vá lá eu sou
não chores eu sou má não há nada que possas fazer há uma maldição
sobre nós a culpa não é nossa
cala-te vá lá e agora vai deitar-te não podes obrigar-me há uma
maldição sobre nós finalmente vi-o ele ia precisamente a entrar no
barbeiro ele olhou cá para fora eu aproximei-me e fiquei à espera há
dois ou três dias que ando à tua procura querias falar comigo
142
vou falar contigo enrolou rapidamente um cigarro em dois tempos e
acendeu o fósforo no polegar aqui não podemos falar e se nos
encontrássemos noutro lugar
vou ter contigo ao teu quarto estás no hotel não isso não é lá grande
ideia conheces aquela ponte sobre o
ribeiro ali para aquele lado atrás de sim já sei
à uma hora está bem está dei meia volta e afastei-me estou-te muito
agradecido olha parei e olhei para trás ela está bem ele parecia feito
de bronze a camisa era de caqui ela agora só me tem a mim estarei lá à
uma hora ela ouviu-me dizer ao T. P para selar o Prince para a uma
hora ela passava a vida a vigiar-me quase não comia veio também que
vais fazer nada será que já não posso ir dar um passeio a cavalo
quando me apetece vais fazer alguma coisa o que é nada da tua conta
puta puta o T. R tinha o Prince à espera no portão lateral já não
preciso dele vou dar uma volta a pé desci a rampa e saí o portão meti
pela vereda e desatei a correr antes de chegar à ponte vi-o debruçado
do parapeito o cavalo estava escondido na mata ele olhou para mim por
cima do ombro depois voltou-se de costas não levantou os olhos até eu
chegar à ponte e parar tinha um bocado de casca de árvore na mão e
partia bocadinhos que atirava para a água Vim dizer-te que saias da
cidade ele olhou para mim foi ela que te mandou dizer isso eu é que te
estou a dizer não é o meu pai nem mais ninguém sou
143
eu que o digo ouve guarda isso para depois o que eu quero saber agora
é se ela está bem eles não a têm aborrecido isso é coisa com que não
te deves preocupar e então ouvi-me a dizer tens de sair da cidade até
ao pôr-do-sol ele partiu um bocadinho da casca e deitou-o à água
depois pousou a casca sobre o parapeito e fez um cigarro corri os tais
dois gestos rápidos e acendeu o fósforo no varão da ponte que vais tu
fazer se eu não me for embora
mato-te e se julgas que não o faço só por achares que sou um miúdo o
fumo saiu-lhe em dois jactos das narinas e espalhou-se-lhe pela cara
que idade tens comecei a tremer as minhas mãos estavam agarradas à
balaustrada pensei que se as escondesse ele ia perceber porquê tens
até ao pôr-do-sol ouve lá miúdo como te chamas o Benjy é o idiota não
é e tu és o Quentin a minha boca disse-o não fui eu dou-te até ao pôrdo-
sol Quentin limpou a cinza do cigarro escrupulosamente ao parapeito
muito devagar e com todo o cuidado como se estivesse a aparar um lápis
as minhas mãos tinham deixado de tremer. ouve não vale a pena levar
isso tão a peito a culpa não foi tua
miúdo teria sido outro qualquer já alguma vez tiveste uma irmã já não
mas elas são todas umas desavergonhadas assentei-lhe em cheio com a
mão aberta resistindo ao impulso de chegar com ela fechada à cara dele
a mão dele avançou tão depressa como a minha o cigarro foi pelos ares
tomei balanço com a
outra mão e ele agarrou-a também antes de o cigarro tocar na
água prendeu-me os dois pulsos só com uma mão e levou a outra mão à
cova do braço por baixo do casaco por detrás dele o sol descia e um

pássaro cantava algures para lá do sol ficámos a olhar um
144
para o outro enquanto o pássaro cantava e ele soltou-me as mãos ouve
lá tirou a casca da árvore do parapeito e atirou-a para a água ela
ficou a flutuar a corrente levou-a sempre a flutuar a mão dele estava
pousada no parapeito segurando frouxamente na pistola esperámos agora
já não lhe acertamos pois não ia a flutuar o arvoredo estava
silencioso ouvi o pássaro outra vez
e a água depois a pistola ergueu-se ele nem fez pontaria e a casca
desapareceu depois havia só bocados espalhados a boiar ele acertou em
mais dois desses bocados de casca de árvore que não eram
maiores que um dólar de prata acho que já chega puxou o tambor para
fora e soprou para dentro do cano uma réstia de fumo dissipou-se ele
recarregou as três câmaras fechou o tambor estendeu-me a pistola de
coronha virada para mim para quê nem vale a pena tentar fazer melhor
pelo que me disseste precisas dela dou-ta porque já viste o que ela
pode fazer vai para o diabo mais a tua pistola agredi-o ainda tentava
acertar-lhe já muito depois de ele estar a segurar-me nos pulsos mas
eu continuava a tentar era como se estivesse a vê-lo através de um
vidro multicor sentia o sangue a pulsar e depois vi o céu outra vez e
os ramos projectados nele e o
sol a baixar brilhando por entre eles e ele a agarrar-me obrigando-me
a ficar de pé querias acertar-me não ouvia nada o quê sim como te
sentes estou bem solta-me ele soltou-me encostei-me ao parapeito
sentes-te bem deixa-me em paz estou bem achas que consegues chegar a
casa
vai-te embora deixa-me em paz
145
é melhor não tentares ir a pé leva o meu cavalo não vai-te embora
podes pendurar as rédeas no arção e deixá-lo ir ele volta para o
estábulo deixa-me em paz vai-te embora e deixa-me em paz encostei-me
ao parapeito a olhar para a água ouvi-o desamarrar o cavalo e afastarse
e daí a pouco já não ouvia mais nada a não
ser a água e depois o pássaro outra vez saí da ponte e fui sentarme
encostado a uma árvore com a cabeça encostada também à árvore e fechei
os olhos um raio de sol bateu-me em cheio nos olhos e eu cheguei-me
mais para o outro lado ouvi o pássaro outra vez e a água e então foi
como se tudo fugisse para muito longe e já não sentia nada sentia-me
quase bem depois de tantos dias e tantas noites em que o aroma das
madressilvas se elevava da escuridão até ao meu quarto onde eu tentava
adormecer mesmo quando passado algum tempo percebi que ele não me
tinha atingido que ele não tinha mentido por ela também e que eu tinha
acabado de desmaiar como uma donzela mas isso também já não tinha
importância e deixei-me ficar ali sentado encostado à árvore com o sol
a roçar-me na cara como folhas amarelas na ponta de um ramo a ouvir a
água e a não pensar em
nada absolutamente em nada e mesmo quando ouvi o cavalo a aproximar-se
a toda a pressa continuei sentado com os olhos fechados a ouvir os
cascos varrerem a areia sibilante e o som dos passos em corrida e as
mãos dela duras a correr idiota idiota estás ferido abri os olhos às
mãos dela corriam-me pela cara
só soube para que lado era quando ouvi a pistola não sabia onde
estavam não pensei que ele e tu fugissem assim viessem assim não,
pensei que ele tivesse ela segurava-me a cara entre as mãos e batia-me
com a cabeça na árvore pára pára com isso agarrei-lhe os pulsos acaba
com isso já disse eu sabia que ele não se atrevia eu sabia que não ela
tentava dar-me com a cabeça na árvore
146

disse-lhe para ele não falar mais comigo disse-lhe ela tentava soltar
os pulsos solta-me pára com isso eu tenho mais força do que tu agora
chega deixa-me tenho de o apanhar e perguntar-lhe solta-me Quentin
solta-me por favor solta-me de repente ela desistiu os pulsos ficaram
moles posso sim posso dizer-lhe posso fazê-lo acreditar no que eu
quiser quando eu quiser posso sim Caddy ela não tinha amarrado o
Prince e ele podia voltar para casa se
lhe desse na gana ele acredita em mim quando eu quiser e tu ama-lo
Caddy achas que não ela olhou para mim então os seus olhos ficaram
vazios a olhar para mim como olhos de estátua vácuos cegos e serenos
põe aqui a mão na garganta pegou na minha mão e encostou-a à garganta
agora diz o nome dele Dalton Ames senti o primeiro afluxo de sangue
pulsando com batímentos acelerados diz outra vez a cara dela estava
virada para as árvores onde o sol se escondia e onde o pássaro diz
outra vez Dalton Ames o sangue vinha em ondas a pulsar a pulsar na
minha mão Pulsou assim por muito tempo, mas a minha cara ficou fria e
quase morta, e os meus olhos também, e o golpe do dedo começou a arder
de novo. Ouvia o Shreve a dar à bomba, depois voltou com a bacia onde
flutuava uma bola de crepúsculo com uma orla amarela como um balão a
esvaziar-se e, depois, o meu tosto reflectido. Tentava ver nela o meu
rosto.
- Já parou? - disse o Shreve. - Dá cá o lenço. - Tentou tirar-mo da
mão.
147
- Cuidado - disse eu. - Eu faço isso. já está quase a parar. molhei o
trapo outra vez, quebrando o balão. O trapo manchou a água. - Quem me
dera ter outro limpo.
- Precisas de pôr um bife nesse olho - disse o Shreve. Diabos me levem
se amanhã não tens o olho todo negro. O filho da puta - disse ele.
- E eu, fiz-lhe alguma mossa? - espremi o lenço e tentei limpar o
sangue do colete.
Isso já não sei - disse o Shreve. - Tens de o mandar limpar. Vá
segura-o em cima do olho, por que não seguras?
- Pelo menos tiro o maior - disse eu. Mas não fazia grandes
progressos. - Como está o meu colarinho?
- Não sei - disse o Shreve. - Deixa estar isto encostado ao olho.
Toma.
- Cuidado - disse eu. - Eu mesmo faço. E eu, fiz-lhe alguma mossa?
- Pode ser que lhe tenhas acertado. Eu posso ter olhado para o lado
nessa altura ou fechado os olhos ou qualquer coisa. Ele deu-te uma
tareia. Arrasou com vocês todos. Que ideia foi essa
de lutares com ele? Parvalhão. Como te sentes?
- Sinto-me bem - disse eu. - Vamos a ver se arranjo maneira de limpar
o colete.
- Ora, deixa lá o fato. Dói-te o olho?
- Estou bem - disse eu. Tudo estava quedo e em tons de violeta, e o
céu era verde a escorregar para o dourado por detrás da empena da casa
e uma pluma de fumo elevava-se da chaminé no ar sem vento. Ouvi de
novo a bomba. Era um homem a encher um balde, e a olhar para nós por
cima do ombro que bombeava. Uma mulher passou pela porta, mas não
olhou cá para fora. Ouvia uma vaca algures a mugir.
- Vamos - disse o Shreve. - Deixa lá o fato e põe o lenço no olho.
Amanhã de manhã mando o teu fato para limpar.
- Está bem. Só lamento não ter pelo menos sangrado um
bocado para cima dele.
- Filho da puta - disse o Shreve. O Spoade saiu da casa, pareceu-me
vê-lo a falar com a mulher, e atravessou o pátio. Olhou para mim com
os seus olhos frios, inquiridores.
148

- Então, menino - disse ele, olhando para mim. - Diabos me levem se tu
não és perito em arranjares um monte de sarilhos só para te
divertires. Primeiro rapto, depois andas à pancada. Como é que passas
as férias? A deitares fogo às casas?
- Eu estou bem - disse eu. - O que é que Mrs. Bland disse?
- Ela está a dizer das boas ao Gerald por te ter posto a sangrar. E tu
vais ouvir das boas, quando ela te vir, por teres consentido. Ela não
tem nada contra uma boa luta, é o sangue que a incomoda. Acho que
desceste um pouco na sua consideração por não saberes reter melhor o
teu sangue. Como te sentes?
- Claro - disse o Shreve. - Se não podemos ser um Bland, o melhor é
cometer adultério com alguém que seja, ou então embebedarmo-nos e
lutar com ele, conforme os casos.
- É isso mesmo - disse o Spoade. - Mas eu não sabia que o Quentin
estava bêbado.
- E não estava - disse o Shreve. - Desde quando é preciso estar bêbado
para bater naquele filho da puta?
- Bom, eu acho que tinha de estar muito bêbado para tentar, depois de
ver o estado em que o Quentin ficou. Onde é que ele aprendeu a lutar?
- Tem ido treinar ao ginásio do Mike todos os dias, na cidade - disse
eu.
- Ah sim? - disse o Spoade. - E tu já sabias disso quando o atacaste?
- Não sei - disse eu. - Acho que sim. Sabia sim.
- Molha o lenço outra vez - disse o Shreve. - Queres que mude a água?
- Está bem assim - disse eu. Mergulhei o pano outra vez e encostei-o
ao olho. - Só queria arranjar qualquer coisa para limpar o colete. - O
Spoade continuava a olhar para mim.
- Diz-me cá uma coisa - disse ele. - Por que é que lhe bateste? O que
foi que ele disse?
- Não sei. Não sei por que foi.
- Só me lembro de te ver dar um salto de repente e perguntares "Já
tiveste uma irmã? Já?", e quando ele disse que não, atiraste-te a ele.
Reparei que não tiravas os olhos dele, mas parecia
149
que não estavas a ligar a nada do que se dizia até ao momento em que
deste um salto e lhe perguntaste se ele tinha alguma irmã.
- Ora, ele tinha começado com os seus trocadilhos, como
de costume - disse o Slireve - a gabar-se das suas conquistas. Tu
sabes como é: como ele faz sempre que há raparigas, para elas não
perceberem bem do que está a fidar. Tudo subentendidos e mentiras e
uma data de histórias sem sentido. A falar-nos duma gaja qualquer
corri quem combinou encontrar-se num baile em Atlantic City e que
deixou pendurada porque resolveu ir para o
hotel dormir e os remorsos que sentiu por estar ali na cama e ela no
pontão à espera dele, sem ninguém para lhe dar o que ela queria. A
falar da beleza do corpo e do triste fim a que conduz e
da má sorte das mulheres que não podem fazer mais nada senão passar a
vida deitadas de costas. Não sei se estás a ver. Tipo Leda no bosque,
a gemer e a chorar pelo cisne. O filho da puta. Eu também lhe dava. Só
com uma diferença: eu agarrava na cesta do vinho que ela trouxe e
dava-lhe com ela na cabeça como se
fosse minha.
- Olha o campeão das damas - disse o Spoade. - Menino, tu não estás só
de espantar, estás de meter medo. - Olhou para mim, frio e inquisidor.
- Santo Deus - disse ele.
- Para que é que eu lhe bati? - disse eu. - Será que estou com muito
mau aspecto para voltar lá e resolver a questão?
- Pedir desculpa, isso é que era bom - disse o Slireve. Eles que vão
para o diabo. Nós vamos para a cidade.
- Ele devia voltar para eles saberem que luta como um cavalheiro -

disse o Spoade. - Ou melhor, que sabe apanhar como
um cavalheiro.
- Neste estado? - disse o Shreve. - Com o fato todo sujo de sangue?
- E por que não? Mas está bem - disse o Spoade -, tu é que sabes.
- Ele não pode andar por aí em mangas de camisa - disse o Shreve. -
Ainda não é finalista. Vá, vamos até à cidade.
- Vocês não precisam de vir - disse eu. - Voltem para o piquenique.
- Eles que vão para o diabo - disse o Shreve. - Anda cá.
150
- E o que é que eu lhes digo? - disse o Spoade. - Digo-lhes que tu e o
Quentin também andaram à pancada?
- Não lhe digas nada - disse o Shreve. - Diz-lhe que a
opção dela expirou ao pôr-do-sol. Vamos, Quentin. Vou perguntar àquela
mulher onde é a estação interurbana mais...
- Não - disse eu. - Eu não volto para cidade.
O Shreve parou e olhou para mim. De lado os seus óculos pareciam
pequenas luas amarelas.
- Então que vais fazer?
- Não vou ainda para a cidade. Voltem vocês para o piquenique. Digamlhes
que eu não quis voltar porque tinha o fato todo sujo.
- Ouve lá - disse ele -, o que é que tu vais fazer?
- Nada. Está tudo bem. Tu e o Spoade voltem para lá. A gente amanhã
vê-se. - Atravessei o pátio em direcção à estrada.
- Sabes onde fica a estação? - disse o Shreve.
- Eu dou com ela. Até amanhã. Peçam desculpa por mim a Mrs. Bland por
lhe ter estragado o passeio. - Eles ficaram a olhar para mim. Dei a
volta à casa. Havia um caminho empedrado até à estrada. Seguia pela
encosta abaixo, em direcção à mata, e eu ainda conseguia ver o
automóvel parado na berma da estrada. Subi a encosta. A luminosidade
aumentava à medida que eu subia, e antes de chegar ao cimo ouvi um
carro. Parecia vir muito longe, dos confins do crepúsculo e eu parei e
fiquei à escuta. já não via o automóvel, mas via o Slireve parado na
estrada em frente à casa, a olhar para o alto da colina. Por detrás
dele, a luminosidade amarelada parecia uma demão de tinta no telhado.
Acenei-lhe e desci para o outro lado da colina, sempre a ouvir
o automóvel. Nisto, a casa desapareceu no arvoredo e eu parei no meio
da luz verde e amarelada a ouvir o ruído do carro cada vez mais
próximo, até que, mal começou a diminuir, cessou completa-mente.
Esperei até o ouvir de novo. Depois continuei.
À medida que descia a encosta, a luz foi-se desvanecendo lentamente,
sem no entanto perder a luminosidade, como se
fosse eu que mudava e não a luz, diminuindo sempre, embora ainda se
pudesse ler o jornal quando a estrada meteu pelo meio das árvores.
Logo a seguir encontrei uma vereda. Meti por ela.
151
Era mais estreita e escura do que a estrada, mas quando desembocou no
apeadeiro do comboio... mais um cartaz de madeira... a luz continuava
inalterada. Depois da vereda, o ar parecia mais brilhante, como se
tivesse caminhado toda a noite na vereda e saísse agora dela para o
amanhecer. O comboio não demorou. Entrei. As pessoas viraram-se para
olharem para mim e eu procurei um lugar. Arranjei um do lado esquerdo.
O comboio levava as luzes acesas e, enquanto fomos por entre as
árvores, não conseguia ver mais nada a não ser a minha própria cara e
uma mulher do outro lado da coxia com um chapéu no alto da cabeça com
uma pena partida, mas quando saímos das árvores vi outra vez o
crepúsculo, uma luminosidade como se o tempo tivesse realmente parado
por momentos, com
o sol suspenso sob a linha do horizonte, e então passámos pelo cartaz
onde o velho estivera a comer coisas de dentro de um cartucho, e a

estrada continuava banhada pelo crepúsculo, penetrando no crepúsculo,
e a sensação da água mais além, mansa e
veloz. Depois o comboio continuou, com uma corrente de ar persistente
a entrar pela porta aberta até se espalhar por todo o
interior transportando o odor do Verão e da escuridão, mas não da
madressilva. O odor da madressilva era o mais triste de todos, acho
eu. E lembro-me de tantos. O das glicínias era um. Nos dias de chuva
quando a Mãe não se sentia tão doente que tivesse de ficar sentada à
janela costumávamos ir brincar para a chuva. Quando a Mãe ficava na
cama a Dilsey vestia-nos roupas velhas e deixava-nos ir para a chuva
porque dizia ela a chuva nunca fez mal aos catraios. Mas se a Mãe
estava levantada começávamos por ficar a brincar no alpendre até ela
dizer que estávamos a fazer muito barulho, e então íamos brincar lá
para fora para debaixo do caramanchel das glicínias.
Aqui foi onde vi o rio pela última vez esta manhã, foi mais ou
menos por aqui. Sentia a água para lá do crepúsculo, sentia-lhe o
cheiro. Quando as árvores estavam em flor na Primavera e estava a
chover o cheiro espalhava-se por toda a parte não se notava tanto nas
outras vezes mas quando chovia o cheiro entrava pela casa
dentro com o crepúsculo ou chovia mais à hora do crepúsculo ou
então era qualquer coisa que a luz tinha mas cheirava sempre mais
152
nessa altura e eu na cama a pensar quando é que isto acaba quando é
que isto acaba. A corrente de ar cheirava a água, um bafo húmido e
persistente. Às vezes conseguia adormecer repetindo o
mesmo vezes sem conta até que depois de a madressilva se misturar com
o outro cheiro o conjunto de odores passava a simbolizar a noite e o
desassossego e eu parecia estar ali deitado nem acordado nem a dormir
estendendo o olhar ao longo de um corredor de penumbra acinzentada
onde todas as coisas estáveis se tinham tornado sombras todas elas
paradoxais tudo o que eu tinha feito sombras tudo o que eu tinha
sentido e sofrido tomava formas visíveis medonhas e perversas sem
referências @cias próprias inerentes à negação do significado que
deviam reafirmar pensando que era e não era ao mesmo tempo quem não
era não era quem.
Sentia o cheiro dos meandros do rio para lá do ocaso e vi o derradeiro
reflexo supino e tranquilo repousar sobre o areão como estilhaços de
um espelho, e então mais além as luzes come- çavam a acender-se no ar
pálido e cristalino, cintilantes como borboletas volteando ao longe.
Benjamin filho de. Como ele se
sentava em frente àquele espelho. Infalível refúgio onde o conflito se
apaziguava silenciava reconciliava. Benjamin o filho da minha velhice
feito refém no Egipto. Oh Benjamin. A Dilsey dizia que era por a Mãe
ter vergonha dele. É assim que eles entram na vida dos brancos sem
mais nem menos, infiltrações negras que deixamos factos brancos
isolados por um instante numa verdade inabalável como se na lâmina de
um microscópio; o mais das vezes apenas vozes que riem quando não há
nada que dê vontade de rir, lágrimas quando não há razão para elas.
São capazes de apostar par ou ímpar no número de pessoas pre- sentes
num funeral. Um bordel cheio delas em Memphis veio para a rua em
pelota durante um transe fanático. Foram precisos três polícias para
dominarem uma delas. Sim Jesus Oh Jesus homem bom Oli aquele homem tão
bom.
O comboio parou. Saí e eles a olharem para o meu olho. O outro comboio
que chegou vinha cheio. Tive de ficar em pé na plataforma da
rectaguarda.
- Há lugares à frente - disse o condutor. Olhei lá para a frente. Não
vi lugares vagos do lado esquerdo.
153

- Não vou para longe - disse eu. - Prefiro ficar aqui. Atravessámos o
rio. Isto é, a ponte, erguendo-se em arco no espaço lentamente, muito
alta, entre o silêncio e o vazio, onde as luzes - amarelas, verdes e
vermelhas - cintilavam no ar limpido, repetindo-se.
- O melhor é ir lá para frente e sentar-se - disse o condutor.
- Vou sair já - disse eu. - São só mais dois quarteirões. Desci antes
de chegarmos aos correios. A estas horas eles deviam estar sentados
por aí em qualquer lado, e então comecei a ouvir o meu relógio e a ver
se ouvia as badaladas e apalpei a carta para o Shreve por baixo do
casaco, com a sombra dentada dos ulmeiros a brincar na minha mão. E
então quando ia a virar para o pátio da Universidade soaram as
badaladas e eu segui em frente enquanto as notas me chegavam em ondas
como numa lagoa, passando por mim e seguindo, dizendo um Quarto para
as
quantas? Sim, um Quarto para as quantas.
As nossas janelas estavam às escuras. A entrada estava deserta. Entrei
e avancei encostado à parede do lado esquerdo, mas tudo estava
deserto: só as escadas que curvavam e se perdiam nas sombras ecos de
passos na geração da tristeza como poeira leve roçando nas sombras que
os meus pés despertavam como pó, levemente, para logo assentar.
Vi a carta antes mesmo de acender a I uz, encostada a um livro em cima
da mesa para eu a ver bem. Dizer que ele era meu marido. E então o
Spoade disse que iam não sei onde, que voltariam tarde e que Mrs.
Bland ia precisar de um outro oficial à ordens. Mas eu tê-lo-ia visto
e ele não consegue apanhar outro carro antes de uma hora porque já
passa das seis. Tirei o meu relógio do bolso e fiquei a ouvi-lo a
trabalhar, sem saber que ele não podia sequer mentir. Depois pousei-o
na mesa com o mostrador para cima peguei na carta de Mrs. Bland
rasguei-a deitei os bocados para o cesto dos papéis e tirei o casaco,
o colete, o colarinho, a gravata e a camisa. A gravata também estava
estragada, mas depois as negras. Talvez ele dissesse que a mancha de
sangue era
a que Cristo usava. Encontrei a gasolina no quarto do Shreve, deitei o
colete em cima da mesa, para ficar bem estendido, e abri a lata da
gasolina.
154
o primeiro carro para a cidade uma rapar@ga Rapariga precisamente o
que ojason nãopodia suportar o cheiro da gasolina apô-lo mal disposto
e depois maisfurioso do que nunca porque uma rapari@a Rüpar@ga não
tinha nenhuma irmã mas o Benjamin o Benjaminfilho do meu
arrependimento se eu ao menos tivesse uma mãe parapoder dizer Mãe Mãe
Gastei imensa gasolina, e por fim já não sabia se aquilo ainda era a
nódoa ou apenas a gasolina. A gasolina tinha feito o golpe começar a
arder de novo e por isso quando fui lavar-me pendurei o colete nas
costas de uma cadeira e baixei o fio do candeeiro para a lâmpada secar
o molhado. Lavei a cara e as mãos, mas até fiessa altura eu lhe sentia
o cheiro pestilento, irritante, se contraísse um pouco as narinas.
Depois abri o saco e tirei a camisa, o colarinho e a gravata, meti lá
os que estavam sujos de sangue e fechei o saco. Vesti-me. Estava eu a
escovar o cabelo quando deu a meia hora. Mas faltavam ainda os três
quartos, excepto suponho eu vendo apenas a sua cara na escuridío
emfuga nada depena quebrada a menos quejossem duas mas
não duas assim indo para Boston na mesma noite e depois a minha
cara a cara delepor um instante no ruído do choque quando saindo
1lumínad,,Lç da escuri@o duasjanelas chocam na rígidaJuga
desapareci.das a sua cara e a minha só v4@o vi será que vi não é adeus
ao cartaz ondejá ninguém está a comer a estrada vazia na escurídio no
siléncio aponte arqueando-se no silêncio a escuridío dorme a água
mansa e veloz não é adeus
Acendi a luz e fui para o meu quarto, longe da gasolina mas

ainda lhe sentia o cheiro. Fui até à janela as cortinas vieram
lentamente da escuridão tocar-me na cara como a respiração de alguém
que dorme, respirando devagar outra vez para a escuridão, deixando o
toque. Depois de eles irempara cima a Mãe recostou-se na cadeira,
levando à boca o lenço perfumado de cân/ora. O Pai nem se mexeu
continuava sentado ao " dela pegando-lhe na
mão os gritos martelavam cada vez mais longe como se no siléncio, não
houvesse lugarpara eles Quando eu era pequeno havia uma
gravura num dos nossos livros, um lugar escuro onde apenas entrava um
único raio de luz iluminando oblíquo dois rostos saídos da sombra.
Sabes o que eufazia sejosse rei? ela nunca era rainha nem fada ela era
sempre rei ou gigante ou general entra155
vapor ali dentropuxava-os cáparafora e dava-lhes uma bela sova Estava
rasgado, desfeito. Ainda bem. Tinha de lá voltar até a
masmorra ser a Mãe em pessoa ela e o Pai a subirem para a
penumbra de mãos dadas e nós perdidos algures cá em baixo sem um raio
de luz. E então a madressilva invadia-o. Assim que apagava a luz e
tentava adormecer começava a entrar-me em ondas pelo quarto, mais
forte cada vez mais forte até me obrigar a respirar fundo para
conseguir inspirar algum ar até ter de me levantar e ir às apalpadelas
como quando era pequeno as mãos vêem tocam a mente moldam invisível a
porta Porta agora as mãos nada vêem O meu nariz via a gasolina, o
colete em cima da mesa, a porta. O corredor continuava deserto de pés
da geração da tristeza em busca de água. porém os olhos cegos
cravavam-se como dentes não descrentes mas duvidando até da ausência
de dorperna tornozelojoelho o desenrolar longo invisível efluído da
balaustrada da escada onde um passo emfalso na escuridão mergulhava no
sono Pai Mãe Caddy)ason MauryPorta eu
não tenho medo só Mãe Pai Caddyjason Maury chegaram tão longedormindo
que eu adormecerei depressa quando euportaPortaporta Vazios também
estavam os cachimbos, as porcelanas, as
paredes plácidas e manchadas, o trono da contemplação. Tinha-me
esquecido do vidro, mas podia as mãos podem ver dedos refrescados ín
visíveis colo de cisne o nde menos do que a vara de Móisés o vidro
toca a medo batendofino no colofresco batendo refrescando o metal o
vidro cheio a transbordar refrescante o vidro os dedos desprendendo
sono deixando o travo do sono molhado no longo silÊncio da garganta
voltei para trás, pelo corredor, acordando os passos perdidos para
batalhões de murmúrios no silêncio, para a gasolina, o relógio
contando a sua furiosa mentira sobre o tampo escuro da mesa. E depois
as cortinas respirando da escuridão para cima da minha cara, soltando
o sopro no meu rosto. Um quarto de hora ainda. E depois já não serei.
De todas as palavras as mais tranquilizantes. As palavras mais
tranquilizantes. Nonfui. Sum. Fui. Non Sum. Algures um dia ouvi os
sinos. No Mississípí ou no Massacliussetts. Eu fui. Não sou. No Massachussetts
ou no Mississípi. O Shreve tinha uma garrafa no baú. Ná,9
vais sequer abri-la Mr. e Mrs. Jason Ríchmond anunciam o
156
Três vezes. Dias. Não vais sequer abri-Ia casamento da sua filha
Candace a bebida ensina-nos a confundir osfins com os meios Eu sou.
Bebe. Eu não fui. Vamos vender a pastagem do Benjy para que o Quentin
possa ir para Harvard e eu possa apertar os meus ossos uns contra os
outros cada vez mais. Vou morrer daqui a.
Terá sido um ano que a Caddy disse. O Shreve tem uma garrafa no baú.
Pai, eu não preciso do dinheiro do Shreve vendi a pastagem do Benjy e
já posso morrer em Harvard a Caddy disse nas
cavernas e nas grutas marinhas balançando em paz ao sabor das marés
que por Harvard ser uma palavra que soa tão bem quarenta acres não é
um preço elevádo demais para um som tão belo. Um som belo e mortal

trocaremos a pastagem do Benjy por um som belo e mortal. Vai dar-lhe
para muito tempo porque ele não o pode ouvir a não ser que o possa
cheirar assim que ela apareceu à porta ele começou a chorar pensei
sempre que fosse um desses finórios da cidade por causa de quem o Pai
estava sempre a meter-se com ela antes. Não reparei nele mais do que
em qualquer outro desconhecido, vendedor ou coisa parecida, pensei que
eram
camisas do exército até que de repente percebi que ele já não estava a
pensar em mim de modo nenhum como uma possível fonte do mal mas que
era nela que pensava quando olhava para mim olhava para mim através
dela como através de um vidro multicor por que te metes na minha vida
não sabes que não serve de nadapensei que tinhas deíxado isso a cargo
da Mãe e dojason
a Mãe terá mesmo mandado o Jason espiar-te eu não o teria feito,
As mulheres só usam os códigos de honra de outraspessoas épor ela
gostar tanto da Caddy ficava lá em baixo mesmo quando estava doente
para o Pai não se meter com o Tio Maury à frente do Jason o Pai dizia
que o Tio Maury era muito fraco em mitologia clássica para fazer o
papel do imortal menino cego devia ter escolhido o Jason porque o
Jason teria cometido o mesmo erro que o Tio Maury em pessoa e não um
que lhe valesse um olho negro ainda por cima o filho dos Pattersons
era mais pequeno do que o
Jason eles vendiam os papagaios por um níquel até surgir o problema
financeiro o Jason arranjou outro sócio ainda mais pequeno ou pelo
menos suficientemente pequeno porque o T. P. disse
157
que o Jason ainda era o tesoureiro mas o Pai disse por que é que o Tio
Maury havia de trabalhar se ele o meu pai podia sustentar cinco ou
seis negros que não faziam nada senão ficarem sentados a aquecerem os
pés no fogão ele podia muito bem dar cama
e comida ao Tio Maury de vez em quando e emprestar-lhe algum dinheiro
de modo a manter intacta a crença do Pai dele na origem divina da sua
estirpe e a Mãe punha-se a chorar e a dizer que o Pai estava
convencido de que a família dele era melhor do que a dela que ele
fazia pouco do Tio Maury para nos
ensinar a fazer o mesmo ela não via que o Pai nos estava a ensinar que
todos os homens são apenas acumuladores bonecos cheios de serradura
varrida do monte de desperdícios para onde todos os bonecos anteriores
foram atirados deitados fora jorrando serradura por que chaga de que
lado que não foi por mim que morreu. Eu costumava imaginar a morte
como um homem parecido com o Avô um amigo um amigo muito especial como
achávamos que era a secretária do Avô em que não podíamos tocar nem
sequer falar alto dentro da sala onde ela estava imaginava-os sempre
juntos algures a toda a hora à espera de que o velho Coronel Sartoris
descesse e se viesse sentar com eles à espera num local elevado para
lá dos cedros o Coronel Sartoris estava ainda num local mais elevado a
olhar sabe-se lá para onde e eles à espera de que ele acabasse de
olhar e descesse o Avô estava de uniforme e nós ouvíamos o murmúrio
das suas vozes para lá dos cedros eles não paravam de falar e o Avô
tinha sempre razão.
Os três quartos começaram a bater. Soou a primeira nota, calma e
contida, serenamente peremptória, esvaziando o silêncio paulatino
abrindo caminho à seguinte e foi tudo se ao menos as pessoas pudessem
substituir-se umas às outras para sempre por esse processo fundirem-se
como labareda que rodopia por um instante e logo se apaga na fresca e
eterna escuridão em vez de ficar ali estendido tentando não pensar no
baloiço de rede até todos os cedros adquirirem aquele odor pungente e
defunto de perfume que o Benjy tanto detestava. Só de imaginar a mata
de cedros me parecia ouvir murmúrios desejos secretos cheirar o bater
do sangue quente sob a carne selvagem e dis- ponível ver nas pálpebras

vermelhas os porcos enlouquecidos
158
copulando furiosamente e atirando-se ao mar acopulados e ele nós temos
de estar alerta para ver o mal ser praticado mas não por muito tempo
nem é preciso tanto tempo para um homem de coragem e ele achas que a
coragem e eu sim senhor tu e ele não cada homem é árbitro das suas
próprias virtudes quer isso seja ou não considerado corajoso é mais
importante do que o acto propriamente dito do que qualquer acto ou não
poderiamos estar a falar a sério e eu tu não acreditas eu estou a
falar a sério e ele eu acho que és demasiado sério para me dares
motivo para preocupações senão não te terias sentido impelido a
lançares mão do expediente de me dize@es que tinhas cometido incesto e
eu eu não estava a mentir eu não estava a mentir e ele tu querias
sublimar um pedaço de loucura humana perfeitamente natural
transformando-a num horror e depois exorcisá-la com a
verdade e eu era para a isolares do mundo do som para que ele tivesse
forçosamente de nos fugir e então o seu som seria como se não tivesse
nunca existido e ele fez isso tenta tu obrigá-la a fazer isso e eu eu
tinha medo eu tinha medo de que ela pudesse e
depois de nada teria servido mas se eu te pudesse contar nós fizemo-lo
teria sido assim e então os outros não seriam assim e o mundo rugiria
e ele e agora este outro tu agora também não estás a mentir mas
continuas cego para o que te vai lá dentro para aquela parcela da
verdade universal a sequência dos acontecimentos naturais e as suas
causas que ensombram a fronte de todo o homem até mesmo dos benjys tu
não estás a pensar na finitude estás a contemplar uma apoteose na qual
um estado de espírito temporário se tornará simétrico se elevará acima
da carne e tomará consciência tanto de si próprio como da carne não te
dispensará propriamente nem sequer morrerás e eu temporário e
ele não suportas pensar que um dia já não te magoará assim finalmente
estamos a chegar ao âmago da questão tu pareces encarar o facto
meramente como uma experiência que te embranquecerã o cabelo da noite
para o dia por assim dizer sem te alterar minimamente a aparência tu
não o farás nestas condições será um jogo e o mais estranho é que o
homem que é concebido por acidente e cujo sopro de vida mais não é do
que um molde fresco já calibrado corri dados jogados contra si se
recusa a enfren159
tar aquela etapa final que ele sabe de antemão que tem de enfrentar
sem recorrer a expedientes que podem ir da violência à mentirola que
nem a uma criança consegue enganar até que um dia no auge do
desencanto ele aposta tudo sem ver nenhum homem o faz à primeira fúria
de desespero remorso ou luto fá-lo só quando percebe finalmente que
nem o desespero nem o remorso nem o luto são particularmente
importantes para o
negro jogador de dados e eu temporário e ele é tão dificil acreditar
pensar que um amor ou uma dor são obrigações da bolsa compradas sem
objectivo e que têm um prazo de reembolso quer o queiramos quer n o e
que são reembolsadas sem aviso e substituídas por outra qualquer
emissão em que os deuses estiverem empenhados no momento não tu não o
farás enquanto não acreditares que talvez até mesmo ela não valesse
todo esse teu desespero e eu eu nunca o farei ninguém sabe o que eu
sei e
ele penso que o melhor seria ires para cambridge imediatamen- te podes
ir para o norte para o maine por um mês se fores poupado até consegues
seria bom sentires o dinheiro tem sarado mais chagas que jesus e eu
suponho eu imagino aquilo em que tu acreditas hei-de imaginar lá na
próxima semana ou no próxi- mo mês e ele e então lembrax-te-ás que a
tua ida para harvard foi o sonho da tua mãe desde que nasceste e
nenhum compson jamais desiludiu uma senhora e eu temporário será

melhor para mim para todos nós e ele cada homem é árbitro das suas
virtudes mas que nenhum homem passe a outro homem receitas de bem
estar e eu temporário e ele era a palavra mais triste de todas nada
mais existe no mundo não é o desespero até ao fim do tempo não é
sequer o tempo até dizermos foi
A última nota soou. Por fim deixou de vibrar e na escuridão de novo se
fez silêncio. Entrei na sala e acendi a luz. Vesti o colete. O cheiro
a gasolina era agora muito ténue, mal se notava, e no espelho a nódoa
não se via. Não tanto como o meu olho, apesar de tudo. Vesti o casaco.
A carta para o Shreve estalou por baixo do tecido e eu tirei-a do
bolso de dentro examinei o endereço e meti-a no bolso lateral. Depois
levei o relógio para o quarto do Shreve meti-o numa gaveta fui ao meu
quarto buscar um lenço lavado dirigi-me para a porta e levei a mão ao
interruptor. Nisto
160
lembrei-me de que não tinha escovado os dentes, e tive por isso de
abrir o saco outra vez. Encontrei a escova dos dentes fui buscar a
pasta do Slireve e escovei os dentes. Sequei a escova o mais que pude
voltei a guardá-la no saco e fechei-o, dirigindo-me de novo para a
porta. Antes de apagar a luz olhei em volta para ver
se faltava mais alguma coisa, e vi que me tinha esquecido do chapéu.
Tinha de passar pelos correios e fazer por encontrar alguns deles, e
eles haviam de pensar que eu era um estudante de Harvard a fazer-se
passar por finalísta. Tinha-me também esquecido de o escovar, mas o
Shreve tinha urna escova e não era preciso abrir o saco outra vez.
Seis de Abril de 1928
Quem nasce puta morre puta, é o que eu digo. Cá para mim, tem
muita sorte se a única coisa que a preocupa é ela faltar às aulas. Cá
para mim, ela devia era estar lá em baixo na cozinha, neste momento,
em vez de estar lá em cima no quarto a pintar-se toda à espera que
seis negros lhe preparem o pequeno-almoço, seis negros que nem se
conseguem levantar de uma cadeira a não ser que tenham uma panela
cheia de pão e carne para os equilibrar. E diz a Mãe:
- Mas levar a Direcção da escola a pensar que eu não tenho mão nela,
que eu não posso...
- Bem - digo eu. - E não pode, pois não? Nunca tentou fazer nada dela
- digo eu. - Como é que quer começar agora, que ela já tem dezassete
anos? Agora é tarde.
Ficou pensativa.
- Mas levá-los a pensar que... Eu nem sabia que ela tinha uma
caderneta. Disse-me no começo das aulas que este ano tinham acabado
com elas. E agora o Professor Junkin telefona-me e diz-me que se ela
falta mais uma vez que seja, tem de sair da escola. Como é que ela
faz? Para onde é que ela vai? Tu passas o dia na cidade; tu deves vê-
Ia se ela andar pela rua.
- Sim - digo eu. - Se ela andar pelas ruas. Mas não creio que ela
falte às aulas só para fazer qualquer coisa que possa fazer em público
- digo eu.
- Que queres dizer com isso? - diz ela.
- Não quero dizer nada - digo eu. - Só respondi à sua pergunta. -
Então ela começou a chorar outra vez e a dizer
como os seus próprios filhos, a carne da sua carne, se revoltavam
contra ela e a amaldiçoavam.
163
- Para que perguntou? - digo eu.
- Não me referia a ti - diz ela. - Tu és o único que não me
envergonha.
- Claro - digo eu. - Nunca tive tempo para isso. Nunca tive tempo para

ir para Harvard ou matar-me de tanto beber. Eu tinha de trabalhar. Mas
claro que se quer que eu a siga e veja o que ela anda a fazer, posso
deixar a loja e arranjar um emprego onde possa trabalhar à noite.
Assim posso vigiá-la durante o dia e pode incumbir o Berijy do turno
da noite.
- Eu sei que não passo de um problema e de um fardo nas
tuas costas - diz ela, a chorar agarrada à almofada.
Eu já tinha obrigação de saber isso - digo eu. - Há trinta anos que
não me diz outra coisa. Até o Benjy já devia saber. Quer que fale com
ela?
- Achas que serve de alguma coisa? - diz ela.
- Não, se for lá abaixo meter-se na conversa precisamente quando eu
estiver a começar - digo eu. - Se quer que eu faça alguma coisa dela,
é só dizer e não se meter. Sempre que eu tento, vem logo meter a
colherada e ela fica a rir-se dos dois.
- Lembra-te de que ela é da mesma carne e do mesmo sangue que tu - diz
ela.
- Claro - digo eu. exactamente nisso que estou a pensar..
carne. E um bocadinho de sangue também, para ser como eu gosto. Quando
as pessoas se comportam como pretos, seja lá quem for, a única coisa a
fazer é tratá-las como pretos.
- Tenho medo que percas a cabeça - diz ela.
- Bem - digo eu. - O seu sistema não deu grandes resul- tados. Quer
que eu faça alguma coisa ou não? Diga lá, ou sim ou não; tenho de ir
trabalhar.
- Eu sei que te matas a trabalhar por nossa causa - diz ela. Sabes bem
que, se eu pudesse, tinhas o teu próprio escritório na cidade e um
horário digno de um Bascorrib. Sim, porque tu és um Bascorrib, apesar
do teu nome. Eu sei que, se o teu pai tivesse podido adivinhar..
- Bem - digo eu -, acho que ele tinha o direito de se enganar de vez
em quando, como toda a gente, mesmo os Smittis
ou os Jones. - Ela começou a chorar outra vez.
164
- Ouvir-te falar assim do teu falecido pai - diz ela.
- Está bem - digo eu. - Está bem. Faça como quiser. Mas eu não tenho o
meu escritório e tenho de ir para aquilo que tenho. Quer que lhe diga
alguma coisa?
- Tenho medo que percas a cabeça - diz ela.
- Está bem - digo eu. - Então não digo nada.
- Mas alguma coisa tem de ser feita - diz ela. - Não posso deixar as
pessoas pensarem que é com o meu consentimento que ela falta à escola
e anda aí pelas ruas, ou que não sou capaz de a impedir.. Jason, Jason
- diz ela. - Como foste capaz. Como foste capaz de me deixares com
este peso às costas.
- Pronto, pronto - digo eu. - Assim vai adoecer. Por que não a fecha
em casa todo o dia ou então não ma entrega e deixa de se preocupar?
- A minha própria carne - diz ela, a chorar. E eu digo:
- Está bem. Eu trato dela. Agora pare de chorar.
- Mas não percas a cabeça - diz ela. - Lembra-te de que ela não passa
de uma criança.
- Não - digo eu. Não vou perder. - Saí e fechei a porta.
- Jason - diz ela. Não respondi. Segui pelo corredor fora. -
Jason - diz ela de trás da porta. Desci as escadas. Não estava ninguém
na casa de jantar, e foi então que a ouvi na cozinha. Estava a tentar
convencer a Dilsey a dar-lhe mais uma chávena de café. Entrei.
- Suponho que esse seja o teu uniforme escolar, ou não? digo eu. - Ou
será que hoje é feriado?
- Só meia chávena, Dilsey - diz ela. - Por favor.
- Nã siô - diz a Dilsey. - Não vou fazê mais. Não tem nada que tomá
mais duma chávena, uma menina de dezasset'anos, sem contá co que Miss

Cdline diz. Vá vestir-se pá escola, pa ir pá cidade co Jason. Tá a
preparar-se pa chegá atrasada outra vez.
- Não está não - digo eu. - Vamos já tratar disso. - Ela olhou para
mim, com a chávena na mão. Afastou os cabelos da cara, com o quimono
descaído, deixando-lhe um ombro a desco- berro. - Pousa a chávena e
chega aqui um instante - digo eu.
165
- Para quê? - diz ela.
- Vá - digo eu. - Põe a chávena no lava-loiça e vem cá.
- Qu@é que vai fazê agora, Jason? - diz a Dilsey.
- Tu podes julgar que passas por cima de mim como fazes com a tua avó
e todos os outros - digo eu. - Mas estás muito enganada. Tens dez
segundos para pousares a chávena como te mandei.
Ela desistiu de olhar para mim. Pôs-se a olhar para a Dilsey. Que
horas são, Dilsey? - diz ela. - Quando passarem os
dez segundos, assobia. Só meia chávena, Dilsey, po...
Puxei-a pelo braço. Ela largou a chávena, que se partiu no
meio do chão. Deu um puxão com força, sempre a olhar para mim, mas eu
tinha-lhe o braço bem agarrado. A Dilsey levantou-se da cadeira.
- Então, Jason - disse ela.
- Solta-me - diz a Quentin. - Olha que te bato.
- Ai bates? - digo eu. - Pá bates? - Ela esboçou uma
bofetada. Agarrei-lhe também a mão e prendi-a como se faz a um gato
bravo. - Ai bates? - digo eu. - É o bates!
- Então, Jason! - diz a Dilsey. Arrastei-a para a casa de jan- tar. O
quimono desapertou-se, esvoaçando em torno do seu corpo, quase nu. A
Dilsey veio a coxear atrás de nós, mas eu virei-me e com um pontapé
fechei-lhe a porta na cara.
- Não te quero aqui, ouviste - digo eu.
A Quentin estava encostada à mesa, a apertar o quimono. Olhei para
ela.
- Agora - digo eu - quero saber o que pretendes com
essa história de faltares às aulas, mentires à tua avó, falsificares a
assinatura dela na caderneta e matá-la de desgosto. O que é que
pretendes?
Ela não respondeu. Apertava o quimono junto ao pescoço, traçando-o
muito, e olhava para mim. Ainda não se tinha pintado e a cara dela
parecia que tinha sido polida com um pano de polir espingardas.
Aproximei-me e agarrei-lhe o pulso. - Vá, diz lá, o que pretendes? -
digo eu.
- Não tens nada com isso - diz ela. - Larga-me. A Dilsey apareceu à
porta. - Então, Jason - diz ela.
166
- Sai já daqui como eu mandei - digo eu, sem olhar para trás. - Quero
saber para onde vais quando faltas à escola digo eu. - Na rua não
andas, senão eu via-te. Com quem andas então? Vais para a mata com
algum desses parvalhões de cabelo embrilhantinado? É para aí que vais?
- Estúpido... Intrometido! - diz ela. Debatia-se, mas eu
tinha-a bem agarrada. - Intrometido dum raio! - diz ela.
- Eu digo-te quem é intrometido - digo eu. - Podes meter medo a uma
velha, mas agora vou mostrar-te quem manda em ti. - Segurei-a com uma
mão e ela desistiu de lutar e olhou para mim, com os olhos negros
desmedidamente abertos.
- Que vais fazer? - diz ela.
- Espera só até eu tirar o cinto e já vais ver - digo eu, puxando o
cinto. Mas a Dilsey agarrou-me o braço.
- Jason - diz ela. - Pare, Jason! Não tem vergonha?
- Dilsey - diz a Quentin. - Dilsey.
- Eu não deixo ele batê-lhe - diz a Dilsey. - Não s'afiija, menina. -

E não me largava o braço. Nisto, o cinto soltou-se e eu dei-lhe um
empurrão e libertei-me. Ela foi aos tropeções chocar com a mesa. Era
tão velha que só a custo se mexia. Mas não fazia mal: era preciso
alguém na cozinha para comer os restos que os novos deixam ficar. Ela
meteu-se entre nós dois, a
cambalear, tentando agarrar-me outra vez. - Bata-m'antes a mim - diz
ela - s'o que quê é batê em alguém. Vá, bata-me
- diz ela.
-Julgas que não sou capaz? - digo eu.
- Eu sei que mais ruindade qu'a sua não existe - diz ela. Nesta
altura, ouvi a Mãe nas escadas. já tinha obrigação de saber que ela
não ia deixar de se meter. Soltei-a. Ela caiu para trás desamparada,
aos trambolhões, de encontro à parede, sempre a
segurar o quimono.
- Está bem - digo eu. - Vamos ter de adiar a nossa conversa. Mas não
penses que levas a melhor comigo. Eu não sou
nem uma velha, nem uma negra meio morta. Grande cabra digo eu.
- Dilsey - diz ela. - Dilsey, quero a minha mãe. A Dilsey foi ter com
ela. - Pronto, pronto - diz ela. 167
Enquanto eu aqui tivé ele não lhe toca nem cum dedo. -A Mãe desceu as
escadas.
- Jason - diz ela. - Dilsey!
- Pronto, pronto - diz a Dilsey. - Eu não deixo qu'ele lhe toque. - A
velha afagou a Quentin com a mão, mas ela sacudiu-a.
- Negra velha dum raio! - diz ela. E correu para a porta.
- Dilsey - diz a Mãe das escadas. A Quentin passou por ela a correr
escada acima. - Quentin - diz a Mãe. - Então, Quentin. - A Quentin não
ligou. Ouvi-a chegar lá acima e depois os passos dela pelo corredor.
Depois o estrondo da porta.
A Mãe tinha parado. Depois continuou a descer. - Dilsey diz ela.
- Pronto - diz a Dilsey. - Tou a ir. Agora vá buscar o carro e espere
um bocadinho - diz ela - pá ir levá à escola.
- Não te preocupes - digo eu. - Eu levo-a e desta vez ela vai lá
ficar. Já que me meti nesta alhada, vou levá-la até ao fim.
- Jason - diz a Mãe das escadas.
- Vá, vá-se embora - diz a Dilsey, encaminhando-se para a porta. - Ou
tamém. quê qu@ela comece? Vou já, Miss Ca'line.
Saí. Ouvia-as nas escadas. - Vá, volte pá cama - ( Dilsey. - Não sabe
que não tá com forças pa se levantá? Vá, volte pa cima. Eu faço-a
chegá a horas à escola.
Saí pelas traseiras para tirar o carro de marcha atrás, e depois tive
de dar a volta toda até à frente da casa para as encontrar. _ Julguei
que já te tinha dito para pores esse pneu na maia do carro - digo eu.
- Não tive tempo - diz o Luster. - Não há ninguém pé vigiá enquanto
a'nha mãe tivé na cozinha.
- É - digo eu. - Ando eu a encher a barriga a uma cozinha cheia de
negros para passarem a vida atrás dele, mas quando quero um pneu
trocado, tenho de ser eu a fazê-lo.
- Nã tinha ninguém com quem o deixá - diz ele. E nisto ele pôs-se a
gemer e a chorar.
- Leva-o para as traseiras - digo eu. - Para que diabo queres ficar
com ele aqui para as pessoas o verem? - Pu-los a andar antes que ele
desatasse a berrar. já chega aos domingos, com o
168
campo cheio de pessoas que não têm nada com que se entreter, nem seis
negros para sustentar, e passam o dia a bater num raio duma espécie de
bola de naftalina gigante. E ele não pára de correr a cerca para cima
e para baixo, a gritar de cada vez que vê alguma, e lá chegará o dia
em que me hão-de querer obrigar a

pagar cota, e então a Mãe e a Dilsey vão ter de arranjar um par de
maçanetas das portas em porcelana e uma bengala e começarem a treinar,
a menos que eu vá jogar à noite à luz da lanterna. E depois mandam-nos
a todos nós para Jackson, muito provavelmente. Até eram capazes de
celebrar a semana da Terceira Idade quando isso acontecesse. 1
Voltei para a garagem. Lá estava o pneu encostado à parede, mas diabos
me levassem se era eu que o ia colocar. Dei um passo atrás e volteime.
Ela estava na alameda. E vou eu e digo:
- Vejo que não tens livros nenhuns, e queria só perguntar-te o que
lhes fizeste, se é que tenho esse direito. Claro que não tenho direito
de perguntar coisa nenhuma - digo eu. - Eu só me limitei a pagar onze
dólares e sessenta e cinco por eles em Setembro.
- Quem me compra os livros é a minha mãe - diz ela. Eu não quero nem
um cêntimo do teu dinheiro. Antes morrer de fome.
- Ah sim? - digo eu. - Conta essa à tua avó e verás o que ela diz. Não
me parece nada que andes despida - digo eu apesar de essas porcarias
que pões na cara te taparem mais do que o que trazes em cima do corpo.
- Julgas que foi o teu dinheiro ou o dela que pagou alguma destas
coisas? - diz ela.
- Pergunta à tua avó - digo eu. - Pergunta-lhe o que
aconteceu aos cheques. Lembro-me bem de que a viste queimar um. - Mas
ela nem me ouvia, com aquela cara toda borrada da pintura e os olhos
de aço como os de um cão de fila.
- Sabes o que é que eu fazia se soubesse que o teu dinheiro ou o dela
tinham comprado alguma destas coisas? - diz ela, pondo a mão no
vestido.
- Não, o que é que fazias? - digo eu. - Vestias-te com uma barrica?
169
- Rasgava tudo e atirava a roupa para a rua - diz ela. Não acreditas?
- Claro que acredito - digo eu. - Passas a vida a fazer isso.
- Vais ver! - diz ela. Meteu as duas mãos no decote do vestido e fez
menção de o rasgar.
- Rasga o vestido e levas uma tareia aqui mesmo de que te vais lembrar
para o resto da vida - digo eu.
- Vais ver se rasgo ou não - diz ela. Percebi que estava mesmo a
tentar rasgá-lo, a tentar arrancá-lo aos bocados. Quando desliguei o
carro e lhe agarrei as mãos já havia cerca de uma dúzia de pessoas a
assistir. Naquele momento, fiquei tão desvairado que ceguei por
completo.
- Faz outra como esta e vais arrepender-te de ter nascido digo eu.
- já estou arrependida - diz ela. Desistiu e depois os olhos dela
ficaram esquisitos e eu disse cá para mim, se te pões a chorar dentro
do carro, aqui no meio da rua, vais apanhar. Dou cabo de ti. Sorte
dela não ter começado. Soltei-lhe os pulsos e arranquei. Felizmente
estávamos perto de uma travessa por onde eu podia meter e apanhar uma
rua secundária, para fugir à praça principal .já estavam a montar a
tenda no terreno do Beard. O Earl já me tinha dado as duas entradas.
Ela ia sentada com a cara virada para o outro lado, a morder o lábio.
- Agora estou arrependida
diz ela. - Não sei para que havia de ter nascido.
- E eu conheço pelo menos uma outra pessoa que não entende tudo o que
sabe sobre o assunto - digo eu. Parei em frente à escola. A sineta já
tinha tocado e os últimos alunos já iam a entrar. - Hoje chegas a
horas para variar - digo eu. Vais entrar e deixares-te ficar lá
dentro, ou é preciso eu ir lá contigo e obrigar-te? - Ela saiu e bateu
com a porta. - Lembra-te do que eu disse - digo eu. - Olha que falei a
sério. Livra-te de que eu oiça dizer mais alguma vez que andas aí
pelos becos na vadiagem com algum desses valdevinos.
Ela voltou-se e disse: - Eu não ando na vadiagem. Como se
as pessoas soubessem tudo o que eu faço.

- O pior é que sabem - digo eu. - Toda a gente nesta cidade sabe quem
tu és. Mas agora acabou-se, estás a ouvir? Por
170
mim, não me interessa o que tu fazes - digo eu. - Mas tenho um nome a
preservar nesta cidade e não admito que ninguém da minha família se
porte como uma preta ordinária. Estás a ouvir?
- Quero lá saber - diz ela. - Sou ruim e hei-de ir parar ao inferno,
mas não me importo. Antes quero estar no inferno do que ao pé de ti.
- Se volto a saber mais alguma vez que não foste à escola, aí sim,
vais desejar ir para o inferno - digo eu. Ela deu meia volta
e correu pelo pátio fora. - Mais uma vez que seja, lembra-te bem -
digo eu. Ela nem olhou para trás.
Fui aos correios buscar a cortespondência, segui directamente para o
armazém e estacionei o carro. O Earl olhou para mim quando eu entrei.
Dei-lhe oportunidade de fazer algum reparo por eu chegar atrasado, mas
ele disse apenas:
- As capinadeiras já chegaram. É melhor ires ajudar o Job a montá-las.
Fui até ao celeiro, onde o velho Job as estava a tirar dos caixotes, à
velocidade de uns três parafusos por hora.
- Devias estar a trabalhar em minha casa - digo eu.
Metade dos negros estropiados desta cidade comem na minha cozinha.
- Eu trabalho pa quem me paga 6 sábado à noite - diz ele. E depois
disso não me sobra muito tempo pa dá às outras pessoas. - Tirou mais
um parafuso. - Não há por aí muita gente que trabalhe a não sê os
negros do algodão - diz ele.
- Devias dar-te por feliz de não andares numa plantação agarrado a
essa capinadeira - digo eu. - Morrias antes que te
tirassem de lá.
- Isso é bem verdade - diz ele. - Aquilo é duro nas plantações.
Trabalhá todos os dias da semana é, calor, chova 6 faça sol. Sem um
alpendre onde a gente s'assente a ver crescer as
melancias e os sábados nem se dá por eles.
- Se fosse eu que te pagasse, também não davas pelos sábados - digo
eu. - Vá tira essas coisas dos caixotes e leva-as lá para dentro.
Abri a carta dela em primeiro lugar e tirei o cheque. Mesmo coisas de
mulher. Seis dias de atraso. E depois querem convencer
1/11
os homens de que são capazes de tomar conta de um negócio. Quanto
tempo se ia aguentar um homem que pensasse que o
mês começava no dia seis? E já se vê que quando lhe mandavam o
extracto da conta, ela queria saber por que é eu nunca depositava a
mesada antes do dia seis. As mulheres nunca pensam nestas coisas.
Não respondeste à minha carta sobre o vestido da Quentin para a
Páscoa. Chegou em boas condições? Ela não respondeu às duas últimas
cartas que lhe escrevi, apesar de o cheque que lhe mandei com a
segunda ter sido levantado com o outro che- que. Ela está doente?
Manda-me dizer depressa, senão vou aí para ver com os meus próprios
olhos. Prometeste que me dizias quando ela precisasse de qualquer
coisa. Espero ter notícias tuas antes do dia 10. Não, o melhor é
mandares-me já um telegrama. Tu abres as cartas que eu lhe escrevo.
Sei-o tão bem como se estivesse a ver-te. O melhor é mandares-me já um
telegrama para esta morada a dizeres-me como ela está.
Mais ou menos nessa altura, o Earl começou a gritar com o Job e eu
guardei as cartas e fui ter com eles para ver se o espevitava. Do que
este país precisa é de mão-de-obra. branca. Deixem esta pretalhada
inútil morrer de fome durante uns tempos, e eles logo aprendem a dar
valor ao que têm.
Perto das dez horas fui até à loja. Estava lá um caixeiro-viajante.
Faltavam dois ou três minutos para as dez e convidei-o para vir beber

um copo ali perto. Começámos a falar de colheitas.
- Não tem nada que saber - digo eu. - O algodão é uma cultura para os
especuladores. Enchem de esperanças o agricultor e levam-no a cultivar
uma plantação imensa para depois lançarem a colheita no mercado para
lucro desses oportunistas. Acha que o agricultor ganha mais alguma
coisa do que um cachaço vermelho e uma corcunda nas costas? Acha que o
homem que tem de suar para cultivar todo aquele algodão ganha alguma
coisa que lhe dê para mais do que o estritamente neces- sário? - digo
eu. - Se a colheita for muito grande, nem vale a pena apanhá-la; se
for muito pequena, não ganha nem para o gin. E para quê? Para que um
bando de judeus do leste, não que
1172
eu tenha nada contra os que seguem a religião judaica- digo eu. -Já
conheci judeus que eram até muito boas pessoas. Você se calhar até é
um deles - digo eu.
- Não - diz ele. - Eu sou Americano.
- Sem ofensa - digo eu. - Que eu cá respeito toda a gente,
independentemente da religião ou de outra coisa qualquer. Isoladamente
não tenho nada contra os judeus - digo eu. Estou a falar da raça, no
seu conjunto. Há-de concordar que não produzem nada. Seguem os
pioneiros por toda a parte para lhes venderem roupa.
- Deve estar a referir-se aos Arménios - diz ele. - Para que é que um
pioneiro havia de querer roupas novas?
- Sem ofensa - digo eu. - Não julgo um homem pela sua religião.
- Claro - diz ele. - Eu sou Americano. A minha família tem sangue
francês, é por isso que tenho este nariz. Mas o que eu
sou é Americano.
- E eu também - digo eu. - já não restamos muitos. Do que eu estava a
falar era desses tipos que estão repimpados lá em
Nova Iorque a aproveitarem-se dos pequenos especuladores.
- É isso mesmo - diz ele. - Os pobres nunca podem especular. Devia
haver uma lei que o proibisse.
- Não acha que tenho razão? - digo eu.
- Acho - diz ele. - Acho que tem razão. O agricultor é quem se lixa
sempre.
- Eu sei que tenho razão - digo eu. - Nunca se ganha nada, a não ser
que se consigam obter informações de alguém que esteja por dentro das
tramóias. Por acaso estou ligado a
algumas pessoas que estão muito bem informadas. Têm por conselheiro o
maior especulador de Nova lorque. É sempre assim que eu faço - digo
eu. - Nunca arrisco muito de uma vez. O que lhes interessa a eles é o
tipo que julga que sabe tudo e
quer fazer fortuna com três dólares. Para isso é que eles montaram o
negócio.
Bateram as dez horas. Fui até ao posto do telégrafo. As coisas estavam
um pouco melhores, tal como eles tinham dito. Fui para um canto e
tirei outra vez o telegrama do bolso, só para me cer1 ;73
tificar. Enquanto olhava para ele, chegaram as cotaçóes. Tinham subido
dois pontos. Toda a gente comprava. Percebi que era
assim pelo que mandavam dizer. Atiravam-se de cabeça. Como se não
soubessem que o resultado só podia ser um. Como se houvesse uma lei ou
coisa parecida que proibisse tudo menos comprar. Bem, acho que esses
judeus do leste também têm direito à vida. Mas diabos me levem se as
coisas não vão por mau caminho quando qualquer estrangeiro dum raio,
que não consegue sobreviver no país onde Deus o pôs, se dá ao luxo de
vir para este país roubar o dinheiro dos bolsos dos americanos. Tinha
subido mais dois pontos. Quatro pontos. Mas, que diabo, eles estavam
lá e sabiam tudo o que se passava. E, se não fosse para seguir os
conselhos deles, para que havia eu de lhes estar a pagar dez dólares

por mês. Vim-me embora, mas de repente lembrei-me, voltei atrás e
mandei um telegrama: "Tado bem. A Q escreve hoje".
- Q? - disse o telegrafista.
- Sim - digo eu. - Q. Não sabe escrever Q?
- Só perguntei para ter a certeza - diz ele.
- Mande-o como eu escrevi e garanto-lhe que está bem digo eu. - Mande
à cobrança.
- O que é isso, Jason? - diz o Doc Wright, espreitando por cima do meu
ombro. É alguma mensagem em código a mandar comprar?
- Não é da vossa conta - digo eu. - Pensem o que quiserem. Vocês sabem
mais disto do que os tipos lá de Nova lorque.
- Bem, eu tinha obrigação de saber - diz o Doc. - Teria ganho bom
dinheiro este ano se o tivesse aplicado a dois cêntimos a libra.
Chegaram mais cotações. Tinham baixado um ponto.
- O Jason está a vender - diz o Hopkins. - Olhem para a
cara dele.
- O que eu faço é cá comigo - digo eu. - Vocês que sigam
a vossa intuição. Os ricaços judeus de Nova lorque precisam de ganhar
o deles como toda a gente - digo eu.
Voltei para o armazém. O Earl andava todo atarefado na loja. Sentei-me
à secretária e li a carta da Lorraine: "Querido paizinho gostava que
estivesses aqui. Não há festas que prestem
174
quando os paizinhos não estão na cidade tenho muitas saudades do meu
querido paizinho". Acho bem que tenha. Da última vez dei-lhe quarenta
dólares. Nunca prometo nada a uma
mulher para ela não saber quanto lhe vou dar. É a única maneira de as
ter na mão. Mantê-las na expectativa. E se não nos ocorrer melhor
maneira de as surpreendermos, é dar-lhes um murro nos queixos.
Rasguei-a e queimei-a no escarrador. Tenho uma regra que não guardar
nenhum papel escrito por uma mulher, e também nunca lhes escrever. A
Lorraine anda sempre atrás de mim para eu lhe escrever, mas o que eú
lhe digo é: qualquer coisa que me
tenha esquecido de te dizer tem de esperar até eu voltar a Memphis; e
digo ainda: não me importo que me escrevas de vez em quando num
sobrescrito sem remetente, mas se tentares telefonar-me, Memphis não
vai chegar para te esconderes; é o que eu digo. Quando lá estou sou
igual aos outros, mas não quero mulher nenhuma atrás de mim ao
telefone. Toma digo eu e dou-lhe quarenta dólares. Se alguma vez te
embebedares e te passar pela cabeça telefonares-me, lembra-te do que
te disse e conta até dez antes de pegares no telefone.
- Quando é que vai ser? - diz ela.
- O quê? - digo eu.
- Quando é que voltas? - diz ela.
- Logo se vê - digo eu. Ela então quis pagar-me uma cerveja, mas eu
não deixei. - Guarda o dinheiro - digo eu. Compra um vestido com ele.
- Dei também cinco dólares à criada. Afinal, como eu digo sempre, o
dinheiro não tem valor; o que tem valor é a maneira como o gastamos.
Não pertence a
ninguém, para quê poupá-lo. O dinheiro pertence àqueles que conseguem
arranjá-lo e conservá-lo. Há aqui um homem em Jefferson que fez uma
fortuna a vender produtos estragados aos
pretos, e que vivia num quartinho, por cima do armazém, que mais
parecia uma pocilga e até era ele que cozinhava e tudo. Há cerca de
quatro ou cinco anos adoeceu gravemente. O susto foi tão grande que
quando ficou bom entrou para uma igreja e
comprou um missionário chinês, cinco mil dólares por ano. Penso muitas
vezes na fária que lhe vai dar quando morrer e desco175
brir que o céu não existe e ele se lembrar dos cinco mil dólares por

ano. É o que eu digo, o melhor era ter morrido logo e assim poupava o
dinheiro.
Quando a carta já tinha ardido por completo, e eu já me preparava para
meter as outras no bolso do casaco, de repente alguma coisa me disse
para abrir a da Quentin antes de chegar a casa, mas nessa altura o
Earl começou a gritar por mim da loja, e eu tive de as deixar ficar
para ir atender um labrego qualquer e esperar que ele decidisse se
levava uma correia de charrua de vinte cêntimos ou de trinta e cinco.
- Eu se fosse a si levava a melhor - digo eu. - Como é que vocês hãode
querer progredir, a trabalharem com equipamento barato?
- S'esta aqui não presta - diz ele - pra que a tem à venda?
- Eu não disse que não prestava - digo eu. - O que eu
disse é que não era tão boa como a outra.
- E como é que sabe que não é? - diz ele. - já as experimentou?
- É porque não custa trinta e cinco cêntimos - digo eu.
Por isso é que eu sei que não é tão boa.
O homem pegou na de vinte cêntimos e fê-la correr entre os dedos. -
Acho qu'é mesmo esta aqui qu 1eu vou levar - diz ele. Pergunteilhe
se queria que lha embrulhasse, mas ele enrolou-a e meteu-a no
bolso do fato de macaco. Depois tirou do outro bolso um saco de
tabaco, desamarrou-o com toda a calma e despejou algumas moedas em
cima do balcão. Deu-me vinte cêntimos. Os outros quinze cêntimos já me
dão pró almoço - diz ele.
- Como quiser - digo eu. - O senhor é quem manda. Mas depois não se
venha queixar daqui a um ano quando tiver de comprar outra.
- A colheita do próximo ano inda vem longe - diz ele. Finalmente vi-me
livre do homem, mas, de cada vez que pegava na carta, surgia qualquer
coisa. Eles vinham de todos os lados para o espectáculo. Chegavam aos
magotes, prontos a gastarem o seu dinheiro numa coisa que em nada
beneficiava a
cidade e que nada deixava ficar a não ser o que os chupistas da Câmara
Municipal iam dividir entre si, e o Earl a correr de um
176
lado para o outro como uma galinha tonta, e a dizer: - Sim, minha
senhora, Mr. Compson vai já atendê-la. Jason, mostra a esta senhora
uma batedeira de manteiga, ou, avia-lhe cinco cêntimos de colchetes.
Enfim, o Jason gosta de trabalhar. É o que eu digo, nunca
tive a vantagem de ir para a universidade porque em Harvard só nos
ensinam como nadar à noite sem saber nadar e em Sewanee nem sequer nos
ensinam o que é a água. E vou eu e digo podem mandar-me para a
universidade estadual: talvez eu aprenda a fazer parar aqui a
maquineta com um inalador nasal e depois podem mandar o Ben para a
Marinha digo eu ou então para a Cavalaria, porque na Cavalaria castram
os cavalos. E depois quando ela mandou a Quentin também lá para casa
para eu sustentar, eu disse acho que também está certo, em vez de eu
ir para o norte procurar um emprego, eles mandam-me o
emprego para aqui e então a Mãe começou a chorar e vou eu e digo não é
que eu tenha alguma coisa contra ficar aqui: se isso
lhe dá prazer deixo o trabalho e fico a tomar conta dela e a Mãe
e a Dilsey que tratem de encher a despensa, ou o Ben. Aluguem-no a um
circo; devia haver muita gente que pagasse um dólar para o ver, e ela
pôs-se a chorar ainda mais e a dizer meu pobre menino coitadinho e vou
eu e digo sim sim ele há-de servir-lhe de muito quando crescer ele que
ainda só é uma vez e meia maior do que eu e ela então diz que vai
morrer em breve e será um alívio para todos e então eu digo pronto,
pronto, faça corno quiser. É sua neta, e isso nenhum dos outros avós
pode dizer com
segurança. Só que é uma questão de tempo digo eu. Se acredita que a
outra vai fazer o que prometeu e não vai tentar vê-Ia, está a
enganar-se a si mesma porque a primeira vez foi quando a Mãe não

parava de dizer graças a Deus que não és um Compson a não ser de nome,
porque vocês são tudo o que me resta, tu e o Maury,
e vou eu e digo cá por mim passava bem sem o Tio Maury e
depois eles chegaram e disseram que estavam prontos para começar.
Nessa altura a Mãe parou de chorar. Puxou o véu para a cara e descemos
as escadas. O Tio Maury vinha a sair da casa de jantar, a tapar a boca
com o lenço. Eles a modos que abriram alas e nós saímos a porta mesmo
a tempo de ver a Dilsey que
177
vinha a virar a esquina com o Ben e o T P Descemos os degraus e
entrámos para o carro. O Tio Maury só dizia Pobre mana, pobre mana, a
mastigar as palavras e a dar palmadinhas na mão
da Mãe. A mastigar não sei o quê com as palavras.
- Puseste o fumo no braço? - diz ela. - Porque é que eles não partem
antes que o Benjamin apareça e faça um escarcéu. Pobre criança. Não
sabe de nada. Nem sequer imagina.
- Pronto, pronto - diz o Tio Maury, batendo-lhe na mão, e continuando
a mastigar as palavras. É melhor assim. Deixa-o viver sem conhecer o
sofrimento enquanto puder.
- As outras mulheres podem contar com os filhos em alturas como esta -
diz a Mãe.
- Tu tens-me a mim e ao Jason - diz ele.
- Custa-me tanto - diz ela. - Perder assim os dois em menos de dois
anos. _ Pronto, pronto - diz ele. Passado um bocado levou a mão
disfarçadamente à boca e deitou-os pela janela. Foi então que percebi
donde vinha o cheiro que eu sentia. Cravos de cabecinha. Acho que ele
pensou que era o mínimo que podia fazer no fime- ral do Pai ou talvez
o aparador tivesse pensado que era ainda o Paí e lhe tivesse passado
uma rasteira. É o que eu digo, se ele tinha de vender alguma coisa
para mandar o Quentin para Harvard, tínhamos ficado todos bem melhor
se ele tivesse vendido o aparador e com parte do dinheiro tivesse
comprado uma camisa de forças com um braço só. Acho que a explicação
que tod Compson deram antes de o dinheiro me chegar às mãos, corno diz
a Mãe, é que ele o bebeu todo. Pelo menos, não me lembro de o ouvir
falar em vender fosse o que fosse para me mandar para Harvard.
Ele continuava a dar-lhe palmadinhas na mão e a dizer: Pobre mana - a
dar-lhe palmadinhas com uma das luvas pretas de que recebemos a
factura daí a quatro dias no dia vinte e seis que era o mesmo dia do
mês em que o Pai a foi buscar para a trazer para casa recusando-se a
dizer onde a mãe dela estava, e a
Mãe a chorar dizia: - E tu nem sequer falaste com ele? Nem sequer
tentaste obrigá-lo a dar algum dinheiro para a criança? e o Pai
respondeu: - Não, ela não quer o dinheiro dele para
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nada - e a Mãe disse: - Por lei ele pode ser obrigado sustentá-Ia. Não
pode provar nada, a menos que... Jason Compson. Não me digas que foste
estúpido a ponto de contar..
- Cala-te, Caroline - diz o Pai, e em seguida mandou-me ir ajudar a
Dilsey a trazer do sótão um berço velho, e eu digo:
- Bem, hoje trouxeram-me o trabalho para casa. - Porque sempre tivemos
esperanças de que eles se entendessem e ele não a mandasse embora
porque a Mãe não se cansava de dizer que ela teria pelo menos
consideração suficiente pela família para não me estragar as
oportunidades depois de ela e o Quentin terem tido as deles.
- E pa onde mais havia de ir? - diz a Dilsey. - Quem mais
havia de a criá senão eu? Não criei já todos os outros?
- E fizeste um lindo trabalho - digo eu. - Além disso, sempre dá à Mãe
um bom motivo para se preocupar. - Trouxemos o berço para baixo e a
Dilsey levou-o para o antigo quarto dela. A Mãe desatou a chorar.

- Então, Miss Ca'line - diz a Dilsey. - Assim vai acordá-Ia.
- Aí? - diz a Mãe. - Para ser contaminado por essa atmosfera? A
herança que recebeu já lhe vai custar bastante a suportar.
- Chega - diz o Pai. - Não te portes como uma tonta.
- Por qu'é qu'ela não há-de dormir aqui - diz a Dilsey no mesmo quarto
onde eu deitei a mãe todas as noites da vida dela desde que teve idade
pa dormir sozinha?
- Tu não sabes nada - diz a Mãe. - Ver a minha filha escorraçada pelo
marido. Pobre inocentinha - diz ela, olhando para a Quentin. - Nunca
saberás o sofrimento que causaste.
- Cala-te, Caroline - diz o Pai.
- Pa que se põe com essas coisas à frente do Jason? - diz a Dilsey.
- Tenho tentado protegê-lo - diz a Mãe. - Sempre tentei protegê-lo de
tudo isto. Pelo menos posso fazer os possíveis para a defender.
- Só gostava de sabê corr@é que dormi neste quarto lhe pode fazê mal -
diz a Dilsey.
mais forte do que eu - diz a Mãe. - Sei que só dou
1;79
trabalho, mas também sei que as pessoas não podem desrespeitar
impunemente as leis de Deus.
- Tolices - diz o Pai. - Bom, Dilsey, leva lá o berço para o quarto de
Miss Caroline.
Podes dizer que são tolices - diz a Mãe. - Mas ela não pode nunca vir
a saber. Não pode ouvir nunca esse nome. Estás a ouvir, Dilsey,
proíbo-te de dizeres esse nome na frente dela. Quem me dera, meu Deus,
que ela pudesse crescer sem nunca
saber que teve mãe.
- Não sejas tonta - diz o Pai.
- Nunca interferi com a maneira como os educaste - diz a Mãe. - Mas
agora chega. Isto tem de ficar decidido esta noite. Ou o nome não será
nunca pronunciado à sua frente, ou então uma de nós terá de se ir
embora. A escolha é tua.
- Está caladinha - diz o Pai. - Isso são nervos. Arma o berço aqui,
Dilsey.
- E o sinhô tamém tá a modos que doente - diz a Dilsey. Parece uma
alma penada. Meta-se na cama e eu faço-lhe um toddy e depois veja se
dorme. Aposto que nunca teve uma noite de sono desde que partiu.
- Não - diz a Mãe. - Não sabes o que disse o médico? Para que lhe hásde
falar em bebida? Pois se esse é que é o problema dele. Olha para
mim. Eu também estou a sofrer, mas não sou fraca ao ponto de me matar
com uísque.
- Tretas - diz o Pai. - O que é que os médicos sabem? Ganham a vida
a dizer às pessoas para fazerem o contrário do que elas fazem, e isso
é tudo o que eles sabem sobre estes macacos degenerados que nós somos.
- Ao ouvir isto, a Mãe pôs-se a chorar novamente e ele saiu do quarto.
Desceu as escadas e logo a seguir ouvi barulho no aparador. Acordei e
lá ia ele outra vez pela escada abaixo. A Mãe devia ter adormecido ou
coisa parecida, pois a casa estava finalmente em silêncio. Ele próprio
se esforçava por não fazer barulho, porque eu a bem dizer não o ouvia,
apenas a fralda da camisa a roçar-lhe nas pernas nuas díante do
aparador.
A Dilsey armou o berço, despiu-a e meteu-a lá dentro. Ela ainda não
tinha acordado desde que ele a trouxera.
180
- já tá quase grande de mais pé, berço - diz a Dilsey. Pronto, já tá.
Vou deitar um colchão no chão ali no corredor qu'é pa não tê de se
levantá de noite.
- Não vou conseguir dormir - diz a Mãe. - Vai para tua casa. Eu não me
importo. Sinto-me feliz a dedicar-lhe o resto da minha vida, se ao

menos puder..
- Vá, reja caladinha - diz a Dílsey. - A gente vai tomá conta dela.
E agora vá pá cama tamém - diz ela, falando comigo. - Amanhã tem d'ir
pá escola.
Saí do quarto, mas a Mãe chamou-me outra vez e agarrou-se a mim a
chorar. 1
- Tu és a minha única esperança - diz ela. - Todas as noites agradeço
a Deus por existires. - Enquanto esperávamos que eles começassem, ela
diz Graças a Deus, já que Ele mo quis levar também, que ficaste tu
comigo e não o Quentin. Graças a Deus que tu não és um Compson, porque
tudo o que me resta agora és tu e o Maury e vou eu e digo, Enfim eu cá
passava bem sem o Tio Maury. Bem, ele continuava a dar-lhe palmadinhas
na mão com a luva preta, falando com a boca virada para o lado. Só as
tirou quando chegou a vez de ele pegar na pá. Foi para junto dos
primeiros, dos que estavam protegidos por chapéus de chuva, a bater
corri os pés no chão para sacudirem a lama que se lhes agarrava aos
sapatos e às pás, e que caía com um ruído seco, e quando voltei para
trás e me abriguei atrás da carreta vi-o escondido por detrás de uma
campa, de garrafa na mão a beber um trago. Julguei que nunca mais
acabava e eu que estava de fato novo e tudo, mas por acaso ainda não
havia muita lama acumulada nas rodas, mas a Mãe viu-o e diz não sei
quando vais poder ter outro e o Tio Maury diz: - Pronto, pronto, não
te preocupes. Eu estou aqui para o que for preciso.
E estava mesmo. Sempre. A quarta carta era dele. Mas nem precisava de
abri-la. Podia escrevê-la eu ou dizer-lha de cor, juntando-1h e dez
dólares pelo sim pelo não. No entanto tinha um pressentimento quanto à
outra carta. Parecia-me que já estava na hora de ela recomeçar com os
velhos truques. Ela percebeu com quem estava a lidar logo da primeira
vez. Percebeu rapidamente que eu não era feito da mesma massa que o
Pai. Quando
181
eles começaram a enchê-la até acima claro que a Mãe desatou a chorar,
e o Tio Maury meteu-a no carro e levou-a dali. Tu podes voltar com
outra pessoa diz ele alguém te há-de dar boleia. Tenho de ir levar a
tua mãe e eu tive vontade de dizer, Então devia ter-se lembrado de
trazer duas garrafas em vez de uma mas lembrei-me do sítio onde
estávamos e deixei-os partir. Bem se importavam eles se eu estava
muito ou pouco molhado. E depois sempre era um bom pretexto para a Mãe
se preocupar com a pneumonia que eu podia apanhar.
E enquanto pensava nisto, ia-os vendo deitar a terra lá para dentro,
calcando-a como se estivessem a fazer um cigarro de mortalha ou coisa
parecida, ou um muro, mas comecei a ficar mal disposto e resolvi ir
dar uma volta. Achei que se seguisse em direcção à cidade, eles
acabavam por me alcançar e haviam de querer por força dar-me boleia.
Por isso caminhei na direcção do cemitério dos negros. Abriguei-me
debaixo de uns ciprestes, onde não chovia muito, só pingava, e de onde
podia ver quando terminassem e se fossem embora. Daí a pouco já se
tinham ido todos embora. Esperei mais um minuto e saí do meu
esconderijo.
Como tive de ir pelo carreiro para não pisar a relva empapada, só
quando já estava muito perto é que a vi, de pé, embrulhada numa capa
preta a olhar para as flores. Reconheci-a logo, mesmo antes de ela se
voltar e olhar para mim, levantando o véu.
Olá, Jason - diz ela, estendendo-me a mão. Apertámos
as mãos.
- Que vieste cá fazer? - digo eu. - Então não lhe prometeste que nunca
mais voltavas? Julguei que tivesses mais bom senso.
- Ah julgaste? - diz ela. Olhou de novo para as flores. Deviam valer
cinquenta dólares. Alguém tinha colocado também um ramo na campa do
Quentin. - Sério? - diz ela.

- Mas não estou surpreendido - digo eu. - De ti já espero tudo. Não
ligas ao que ninguém diz. Não queres saber de ninguém para nada.
- Ah sim - diz ela -, o teu emprego. - Olhou para a sepultura. -
Lamento muito, Jason.
- Está-se mesmo a ver - digo eu. - Agora és toda falinhas
182
mansas. Mas não precisavas de ter voltado. Não ficou nada. Pergunta ao
Tio Maury, se não acreditas em mim.
- Eu não quero nada - diz ela. Olhou para a sepultura. Por que não me
mandaram dizer? - diz ela. - Soube por acaso, pelo jornal. Na última
página. Calhou.
Não respondi. Estávamos ali os dois a olhar para a sepultura e então
lembrei-me de quando éramos pequenos e coisas assim e comecei outra
vez a sentir-me mal, como se estivesse a enlouquecer, a pensar que
agora o Tio Maury ia passar a vida metido lá em casa, a pôr e a dispor
como agora que me deixara voltar para casa debaixo de chuva. E então
vou eu e digo:
- Está-se mesmo a ver que lamentas. Vires a correr meter o nariz assim
que ele morreu. Mas não te serve de nada. Não penses que vais
aproveitar isto para te vires meter aqui outra vez. Se não te aguentas
no cavalo que arranjaste, anda a pé - digo eu.
- já nem sabemos o teu nome lá em casa. Estás a perceber? já nem
sequer sabemos o teu nome. Era bem melhor para ti se tivesses ficado
com ele e com a Quentin - digo eu. - Sabias?
- Eu sei, Jason - diz ela, olhando para a sepultura. - Se arranjares
maneira de eu a ver só por um bocadinho, dou-te cinquenta dólares.
- E onde é que tu tens cinquenta dólares? - digo eu.
- Fazes-me isso? - diz ela, sem olhar para mim.
- Mostra-os lá - digo eu. - Não acredito que tenhas cinquenta dólares.
Vi-a vasculhar por baixo da capa, e depois estender-me a
mão. Diabos me levem se não estava cheia de dinheiro. E até vi duas ou
três das amarelas.
- Ele ainda te dá dinheiro? - digo eu. - Quanto é que ele te manda?
- Dou-te cem - diz ela. - Então?
- Espera lá - digo eu. - Mas tem de ser como eu disser. Não quero que
ela descubra. Nem por mil dólares.
- Está bem - diz ela. - Será como tu disseres. Só quero vê-Ia por um
bocadinho. Não vou pedir para ficar nem nada. Vou-me logo embora.
Dá-me o dinheiro - digo eu.
183
- Só depois - diz ela.
- Não confias em mim? - digo eu.
- Não - diz ela. - Conheço-te bem. Crescemos juntos.
- Olha quem fala - digo eu. - Bom - digo eu tenho
tenho de sair desta chuva. Adeus. - Fingi que me ia embora.
- Jason - diz ela. Parei.
- Sim? - digo eu. - Despacha-te. Estou a ficar todo molhado.
- Está bem - diz ela. - Toma. - Não se via ninguém. Voltei para trás e
peguei no dinheiro. Ela tinha-o ainda bem seguro. - Vais fazer o que
te pedi? - diz ela, fixando-me por baixo do véu. - Prometes?
- Abre a mão - digo eu. - Queres que passe alguém e nos veja?
Ela abriu a mão. Meti o dinheiro no bolso. - Fazes-me isso, Jason? -
diz ela. - Se houvesse outra maneira, não te pedia.
- Podes estar certa de que não há mesmo outra maneira digo eu. - Claro
que faço. Já disse que fazia, não disse? Mas tens de fazer o que eu
disser.
- Está bem - diz ela. - Eu faço. - Disse-lhe onde havia de esperar e
fui até à cocheira. Estuguei o passo e cheguei lá precisamente quando
eles estavam a desatrelar a carreta. Perguntei se já tinham pago o

trabalho e ele disse que Não e eu disse que Mrs. Compson se tinha
esquecido de uma coisa e que precisava dela, e eles deixaram-me levar
a carreta. O cocheiro era o Mink. Comprei-lhe um charuto e fomos dando
voltas até começar a
escurecer nas árvores mais afastadas onde eles já não o podiam ver.
Nessa altura o Mink disse que tinha de levar de volta os
cavalos e eu disse-lhe que lhe comprava outro charuto e então metemos
pela rua das traseiras e eu entrei em casa pelo pátio. Fiquei no
corredor até ouvir a Mãe e o Tio Maury lá em cima, e
nessa altura voltei para a cozinha. Ela e o Ben estavam lá com a
Dilsey. Disse à Dilsey que a Mãe a estava a chamar e levei-a para a
sala. Encontrei a gabardina do Tio Maury, embrulhei-a nela, peguei-lhe
ao colo, saí pelas traseiras e subi para a carreta. Disse ao Mink que
fosse até à estação. Ele estava com medo de passar pelo estábulo, e
por isso tivemos de ir de volta. Vi-a na esquina
184
junto ao candeeiro e disse ao Mink que passasse rente ao passeio e que
quando eu dissesse Agora lhes desse com o chicote. Tirei-a da
gabardina, encostei-a à janela e a Caddy, ao vê-Ia, deu um
salto para a frente.
- Chega-lhes, Mink! - digo eu, e o Mink deu-lhes com o
chicote e passámos por ela como um foguete. - Agora mete-te
no comboio como prometeste - digo eu. Pela janela de trás vi-a a
correr atrás de nós. - Dá-lhes com força - digo eu. Vamos para casa. -
Quando dobrámos a esquina ela ainda vinha a correr.
À noite, contei o dinheiro outra vez e guardei-o. Já não me
sentia tão mal. Foi para aprenderes digo eu. Agora já percebeste que
não me podes fazer perder o emprego e ficares a rir. Nunca me passou
pela cabeça que ela fosse faltar ao prometido e não apanhasse o
comboio. Mas a verdade é que não conhecia as mulheres; era
suficientemente ingénuo para acreditar em tudo o que diziam, pois na
manhã seguinte, diabos me levem se ela não me entrou pelo armazém
dentro; mas, vá lá, teve o bom senso de cobrir a cara com o véu e não
falar com ninguém. Era sábado de manhã, porque eu estava lá dentro e
ela entrou que nem um furacão e veio direita à minha secretária.
- Mentiroso - diz ela. Grande mentiroso.
- Estás doida ou quê? digo eu. - Que vem a ser isto? Entrares
por aqui dentro dessa maneira? - Ela ia a falar, mas eu calei-a. - já
me custaste um emprego; vê lá se também queres que eu perca este? Se
tens alguma coisa para me dizer, encontramo-nos depois de escurecer. E
o que é que tens para me dizer? digo eu. - Não fiz tudo o que prometi?
Disse-te que a vias por um minuto, não foi? E tu viste-a, não viste? -
Ela limitou-se a ficar ali parada a olhar para mim, a tremer como se
estivesse com as febres, com as mãos crispadas e a abanar a cabeça. -
Fiz exactamente aquilo que prometi - digo eu. - Tu é que mentiste.
Prometeste que apanhavas aquele comboio, não prometeste? Prometeste ou
não prometeste? Se julgas que te devolvo o dinheiro, experimenta só -
digo eu. - Nem que fossem mil dólares. Ainda me estavas a dever
dinheiro pelo risco que eu corri. E se eu descubro ou se me vêm dizer
que o comboio 17 partiu
185
e tu ficaste na cidade - digo eu - conto tudo à Mãe e ao Tio Maury e
então podes mirrar à espera de a tornares a ver. - Ela continuava ali
na minha frente, a olhar para mim e a torcer as mãos.
- Diabos te levem - diz ela. - Diabos te levem.
- Podes dizer o que quiseres - digo eu. - Mas lembra-te, depois de
partir o número 17, conto-lhes tudo.
Depois de ela sair, senti-me melhor. Agora vai pensar duas vezes antes
de me privar de um emprego que me estava prome- tido penso eu. Nessa

altura eu era ainda um miúdo. Acreditava nas pessoas quando elas
diziam que iam fazer coisas, mas aprendi a lição. Além disso, é o que
eu digo, não preciso de ninguém, sei muito bem cuidar dos meus
interesses como sempre fiz. Nisto, lembrei-me da Dilsey e do Tio
Maury. Lembrei-me como
ela era capaz de convencer a Dilsey e que o Tio Maury faria qualquer
coisa por dez dólares. E ali estava eu, sem poder sair do armazém para
defender a minha própria mãe. É como ela diz, se um de vocês tinha de
partir, graças a Deus que foste tu que ficaste contigo eu posso contar
e eu digo bem não me parece que chegue alguma vez a ir para tão longe
do armazém que deixe de estar ao seu alcance. Alguém tem de zelar pelo
pouco que nos resta, acho eu.
Por isso, assim que cheguei a casa tratei de passar um responso à
Dilsey. Disse-lhe que a outra tinha lepra e fui buscar a bíblia e lilhe
a passagem onde falava de como a carne de uma pessoa apodrecia, e
disse-lhe que se ela se chegasse ao Ben ou à Quentin eles também a
apanhavam. julgava eu que estava tudo resolvido até ao dia em que
cheguei a casa e dei com o Ben a gritar. Berrava que se fartava e
ninguém o conseguia calar. A Mãe disse, Bem, lá vão ter de lhe dar o
chinelo. A Dilsey fingiu que não ouvira. A Mãe repetiu o que tinha
dito e eu ofereci-me para o ir buscar porque já não suportava aquele
maldito barulho. É o que eu digo, sou capaz de suportar muita coisa
não espero nada deles, mas se tenho de trabalhar o dia todo no raio do
armazém tenho ao menos o direito de ter um pouco de paz e sossego ao
almoço. Disse então que ia lá eu e a Dilsey diz muito depressa: -
Jason!
Pronto, percebi imediatamente o que se passava, mas só para
186
ter a certeza fui buscar o chinelo e, tal como eu pensava, ele mal o
viu parecia que o íamos matar. Então, obriguei a Dilsey a confessar e
depois contei tudo à Mãe. Tivemos de a levar para a
cama, e quando as coisas serenaram um pouco a Dilsey ouviu das boas.
Pelo menos tanto quanto vale a pena ralhar com um negro. É o problema
dos criados pretos; quando já estão na família há muitos anos acham-se
tão importantes quejá não valem nada. Pensam que mandam na família
toda.
- Sempre gostava de sabê que mal faz deixá a pob'e criança vê a sua
próp'ia filha - diz a Dilsey. - Se Mr. Jason inda estivesse vivo
tud'era bem diferente.
- Só que Mr. Jason não está - digo eu. - Sei que não me
ligas nenhuma, mas acho que à Mãe sempre ligas alguma coisa. Continua
a arreliá-la assim até a mandares também para a sepultura, e então já
podes encher a casa de canalhas e de cabras. Mas para que a havias de
ter deixado ver aquele desgraçado?
- O menino é um homem muito duro, Jason, s'é que chega a sê um homem -
diz ela. - Dou graças b Sinhô por me tê dado mais coração qu'a si,
mesmo qu'o meu seja negro.
- Pelo menos sou homem suficiente para ter sempre a despensa cheia -
digo eu. - E se voltas a fazer isto, nunca mais de lá comes nada.
Assim, quando ela voltou, disse-lhe que se convencesse outra
vez a Dilsey, a Mãe a despedia, mandava o Ben para Jackson, pegava na
Quentin e se ia embora para muito longe. Ela ficou parada a olhar para
mim. Não havia nenhum candeeiro perto e
por isso não lhe via bem a cara. Mas sentia o seu olhar pousado em
mim. Quando éramos pequenos e ela se zangava e não podia fazer nada o
seu lábio superior começava aos saltos. De cada vez que saltava
deixava mais um bocado dos dentes a descoberto, e
ela continuava hirta que nem um pau, sem mover um músculo, excepto o
do lábio, que saltava cada vez mais alto. Mas não dizia nada. E ela só
diz:

- Está bem. Quanto queres?
- Bom, se para a veres da janela pagaste cem... - digo eu. E daí em
diante passou a portar-se muito bem, e só uma vez é que pediu para ver
o extracto da conta.
1811
- Sei que estão em nome da Mãe - diz ela. - Mas quero ver o extracto
bancário. Quero ver com os meus olhos para onde
vão os cheques. _ Isso é um assunto privado da Mãe - digo eu. - Se
julgas que tens algum direito de bisbilhotar os seus assuntos
privados, eu digo-lhe que estás convencida de que os cheques estão a
ser desviados e que queres fazer uma auditoria porque não confias
nela.
Ela não disse nada nem se mexeu. Ouvi-a apenas murmurar
Maldito, maldito, maldito.
- Podes dizê-lo bem alto - digo eu. - Acho que não é segredo nenhum o
que pensamos um do outro. Se calhar queres que te devolva o dinheiro -
digo eu.
- Ouve, Jason - diz ela. - Agora não me mintas sobre ela. Eu não vou
pedir para ver nada. Se não chegar, passo a mandar mais todos os
meses. Só quero que prometas que ela... que ela... Tu podes, se
quiseres. Coisas para ela. Trata-a bem. Pequenas coisas que eu não
posso, que eles não me deixam... Mas tu não vais fazer nada. Nunca
tiveste um pingo de bondade aí dentro
- diz ela. - Se convenceres a Mãe a deixá-la voltar para mim, dou-te
mil dólares.
- Tu não tens mil dólares - digo eu. - Sei que estás a mentir.
- Isso é que eu tenho. Vou ter. Posso arranjá-los.
- E até sei como é que os vais arranjar - digo eu. - Vais arranjá-los
da mesma maneira que a arranjaste a ela. E quando ela tiver idade
suficiente... - Nessa altura pensei que ela fosse bater-me, e depois
fiquei sem saber o que é que ela ia fazer. Por um momento, parecia um
boneco a que se tivesse dado corda de mais, pronto a rebentar.
- Estou louca - diz ela. - Completamente louca. Eu não posso criá-la.
Fiquem vocês com ela. Não sei o que me deu. Jason
- diz ela, agarrando-me no braço. As suas mãos ferviam. Tens de me
prometer tomar conta dela, ela é da tua família; do teu sangue.
Promete, Jason. Tu tens o nome do Pai, achas que eu
tinha de lhe pedir duas vezes? Uma que fosse? _ Achas? - digo eu. -
Ele de facto deixou-me alguma coi188
sa. Que queres que eu faça? - digo eu. - Que compre um avental e um
carrinho de bebé? Não fui eu que te meti nesta alhada - digo eu. -
Corro mais riscos do que tu, porque tu não tens nada a perder. Por
isso se esperas que...
- Não - diz ela, e começou a rir e a tentar conter o riso ao
mesmo tempo. - Não. Eu não tenho nada a perder - diz ela, fazendo
aquele ruído característico, levando as mãos à boca. N-n-nada - diz
ela.
- Toma - digo eu. - Pára com isso!
- Estou a t-t-tentar - diz ela, tapando a boca com as mãos. Meu Deus,
meu Deus. 1
- Vou-me embora - digo eu. - Não quero que me vejam aqui. E agora sai
da cidade, estás a ouvir?
- Espera - diz ela, prendendo-me o braço. - Já parou. Não volta a
acontecer. Prometes, Jason? - diz ela, e eu sentia em mim os olhos
dela como se estivessem a tocar-me. - Prometes? A Mãe... aquele
dinheiro... se ela às vezes precisar de alguma coisa... Se eu mandar
cheques para ela, além dos outros, dás-lhos? E não dizes nada? Ajudasme
a que ela tenha coisas como
as outras meninas?

- Claro - digo eu. - Desde que te comportes e faças o
que eu mandar.
E depois o Earl apareceu de chapéu na mão e diz: - Vou dar um pulo ao
bar do Roger e comer qualquer coisa. Não vai dar para irmos almoçar a
casa.
- Por que é que não vai dar tempo? - digo eu.
- Por causa do espectáculo que estão a montar na cidade diz ele. -
Também vão actuar de tarde, e as pessoas querem despachar as compras a
tempo de irem para o espectáculo. Por isso o melhor é irmos num
instante ao Roger.
- Está bem - digo eu. - O estômago é seu. Se quer ser
escravo do negócio, por mim está tudo bem.
- Então tu nunca serás escravo de nenhum negócio - diz ele.
- Só se for de um negócio do Jason Compson - digo eu.
Por isso quando voltei para dentro e abri a carta a única coisa que me
surpreendeu foi ser uma ordem de pagamento e não um
189
cheque. Sim, senhor. Não se pode mesmo confiar nelas. Depois do que me
arrisquei, arriscando-me a que a Mãe descobrisse que ela vinha à
cidade uma ou até duas vezes por ano, e eu a ter de contar mentiras à
Mãe. E agora era esta a paga. E não me admirava nada se ela tivesse
avisado os correios para não deixarem ninguém levantar o dinheiro a
não ser a outra. Dar cinquenta dólares a uma miúda daquelas. E eu que
nunca vira cinquenta dólares até ter vinte e um a-nos, e ver os outros
rapazes com as tardes e os sábados todos livres e eu a trabalhar no
armazém. É como eu digo, como é que eles querem que alguém a controle,
com ela a dar-lhe dinheiro pelas nossas costas? Ela tem a mesma casa
que tu tiveste, digo eu, e a mesma educação. Parece-me que a Mãe sabe
melhor o que ela precisa do que tu, que nem sequer tens uma casa para
morar. - Se lhe queres mandar dinheiro - digo eu manda-o para a Mãe,
não lho dês directamente a ela. Para eu continuar a correr este risco
mês sim mês não, tens de fazer o que eu digo. Se não acabou-se.
E precisamente quando eu me preparava para começar, porque se o Earl
pensava que eu ia numa fugida ao Roger para engolir à pressa dois
patacos de indigestão por causa dele, estava muito enganado. Posso não
estar propriamente com os pés plantados em cima de uma secretária de
mogno, mas ganho por aquilo que faço dentro do armazém e, se quando
saio para a rua não posso levar uma vida civilizada, vou procurar o
lugar onde isso seja possível. Sei cuidar dos meus interesses; não
preciso das secretárias de mogno de ninguém. Por isso, precisamente na
altura em que eu estava pronto para começar, tive de largar tudo e ir
a correr vender meia dúzia de pregos a um labrego, enquanto o Earl
comia à pressa a sanduíche e já estava muito provavelmente de
regresso, e foi então que descobri que já não tinha cheques na
caderneta. Lembrei-me até de que já tinha reparado que era preciso ir
buscar mais, mas agora já era muito tarde, e
então levantei os olhos e lá estava ela. Na porta das traseiras.
Ouvi-a perguntar por mim ao velho Job. Só tive tempo de meter tudo na
gaveta e fechá-la.
Ela aproximou-se da secretária. Olhei para o relógio. -já almoçaste? -
digo eu. - É meio-dia; ouvi bater o reló190
gio mesmo agora. Deves ter ido a casa num instante, para já estares
aqui.
- Não vou almoçar a casa - diz ela. - Recebeste alguma carta hoje?
- Estavas à espera de alguma carta? - digo eu. - Tens algum namorado
que saiba escrever?
- É da minha mãe - diz ela. - Veio alguma carta da minha mãe? - diz
ela, olhando para mim.
- A Mãe recebeu uma dela - digo eu, - Mas não a abri. Tens de esperar

até ela a abrir. Ela depois mostra-ta, acho eu.
- Por favor, Jason - diz ela, sem prestar atenção. - E para mim veio
alguma?
- O que é que se passa? - digo eu. - Nunca te vi tão ansiosa por causa
de ninguém. Deves estar à espera de que ela te mande dinheiro.
- Ela disse que... - diz ela. - Por favor, Jason - diz ela.
- Veio?
- Hoje finalmente deves ter ficado na escola - digo eu. Onde te
ensinaram a pedir por favor. Espera um instante, vou atender aquele
freguês.
Fui atender o homem. Quando me virei para voltar para dentro, ela
estava escondida atrás da secretária. Corri. Contornei a secretária e
apanhei-a quando ela tirava a mão da gaveta. Para lhe tirar a carta
tive de lhe bater com os nós dos dedos na secretária até ela a largar.
- Querias, não querias - digo eu.
- Dá-ma - diz ela. - Tu já a abriste. Dá-ma cá. Por favor, Jason. É
minha. Vi o meu nome.
- Dou-te é umas boas correadas, isso sim - digo eu. Isso é que eu te
dou. A mexer nos meus papéis.
- Traz algum dinheiro? - diz ela, tentando agarrá-la. Ela disse que me
mandava dinheiro. Ela prometeu. Dá-ma.
- Para que queres tu o dinheiro? - digo eu.
- Ela disse que mandava - diz ela. - Dá-me a carta. Por favor, Jason.
Nunca mais te peço nada, se ma deres desta vez.
- Dou-ta, mas tens de esperar - digo eu. Tirei a carta do sobrescrito
com a ordem de pagamento e dei-lhe a carta. Ela não
191
quis saber da carta e só queria agarrar a ordem de pagamento. Primeiro
tens de assinar aqui - digo eu.
- Quanto é? - diz ela.
- Lê a carta - digo eu. - Lá deve dizer. Ela leu-a a correr, num abrir
e fechar de olhos.
- Não diz - diz ela, olhando para mim. Deitou a carta para o chão. -
Quanto é?
- São dez dólares - digo eu.
- Dez dólares? - diz ela, trespassando-me com o olhar.
- E devias estar muito contente por receberes esse dinheiro digo eu. -
Uma miúda da tua idade. Que pressa é essa agora para receberes o
dinheiro?
- Dez dólares - diz ela, como se falasse a dormir. - Só dez dólares? -
Tentou agarrar a ordem de pagamento. - Estás a mentir - diz ela. -
Gatuno! - diz ela. - Gatuno!
- Querias, não querias? - digo eu, mantendo-a à distância.
- Dá-me isso! - diz ela. - É minha. Ela mandou-o para mim. Quero vêlo.
já disse.
- Ah queres? - digo eu, agarrando-a. - E como é que vais fazer?
- Deixa-me vê-lo, Jason. - diz ela. - Por favor. Nunca mais te peço
nada.
- Julgas que estou a mentir, não julgas? - digo eu. - Só por causa
disso, não te deixo ver.
- Mas só dez dólares - diz ela. - Ela disse que... ela disse-me que...
Jason, por favor.. por favor. Eu preciso do dinheiro. Preciso mesmo.
Dá-me isso. Faço qualquer coisa para mo dares.
- Diz-me para que precisas tanto do dinheiro - digo eu.
- Preciso, pronto - diz ela. Olhava-me bem de frente. De repente
deixou de olhar para mim, embora os olhos continuassem na mesma
posição. Percebi que ia mentir. - É que devo um dinheiro - diz ela. -
Tenho de o pagar. E tem de ser hoje.
- A quem? - digo eu. Ela torcia as mãos. Vi que estava à procura de
uma mentira para dizer. - Tens andado a fazer compras a crédito outra

vez? - digo eu. - Nem precisas de responder. Se houver alguém nesta
cidade que te venda alguma coisa a
crédito depois do que eu lhes disse, já cá não está quem falou.
192
- É uma rapariga - diz ela. - É uma rapariga. Pedi dinheiro emprestado
a uma rapariga. E tenho de lho pagar. Dá-me isso, Jason. Por favor. Eu
faço qualquer coisa. Eu preciso disso. A Mãe depois paga-te. Eu
escrevo-lhe para ela te pagar e digo-lhe que nunca mais lhe peço nada.
Podes ver a carta que eu escrever. Por favor, Jason. Eu preciso desse
papel.
- Diz-me para que o queres, e logo se vê - digo eu. - Vá diz lá. - Mas
ela ficou parada a torcer o vestido com as mãos. Está bem - digo eu. -
Se dez dólares não te chegam, leva a
ordem de pagamento para casa para a Mãe e já sabes o que acontece. Mas
claro, se estás assim tão rica, não precisas de dez dólaEla continuou
parada, de olhos no chão, a resmungar sozinha. - Ela disse que me
mandava dinheiro. Ela aqui diz que manda dinheiro e tu dizes que não.
Ela diz aqui que mandou muito dinheiro. E diz que é para mim. Que
parte é para mim. E tu dizes que não velo dinheiro nenhum.
- Sabes tanto do assunto como eu - digo eu. - Viste o que aconteceu
àqueles cheques.
- Pronto, está bem - diz ela, sem tirar os olhos do chão. Dez dólares
- diz ela. - Sejam dez dólares.
- E agradece a Deus serem dez dólares - digo eu. - Toma
- digo eu. Pus a ordem de pagamento virada ao contrário sobre a
secretária, e prendi-a com a mão. - Assina aqui.
- Deixas-me ver? - diz ela. - Só quero olhar. Seja o que for que lá
venha, só quero os dez dólares. Tu podes ficar como
resto. Só quero ver.
- Não depois da maneira como te portaste - digo eu.
Tens de aprender uma coisa, que é que quando eu te digo para fazeres
qualquer coisa, tens mesmo de fazer. Assina aqui nesta linha.
Ela pegou na caneta, mas em vez de assinar, ficou parada de cabeça
curvada, com a caneta a tremer na mão. Tal e qual a mãe.
Meu Deus - dizia ela. - Meu Deus.
- É - digo eu. - É uma coisa que tens de aprender nem
que seja a última coisa que aprendes. Vá, assina e sai daqui para
fora.
193
Ela assinou. - Onde está o dinheiro? - diz ela. Peguei na
ordem de pagamento, sequei-a com o mata-borrão e meti-a no bolso.
Depois dei-lhe os dez dólares.
- Agora volta para a escola, estás a ouvir? - digo eu. Não respondeu.
Amarfanhou a nota na mão como se fosse um trapo e
saiu pela porta da frente no preciso momento em que o Earl vinha a
entrar. Entrou com ele um cliente e pararam ta.
junto à porta.
- Muito trabalho? - diz o Earl.
- Nem por isso - digo eu. Ele olhou lá para fora.
- A@uele carro ali é o teu? - diz ele. - É melhor não pensares em ires
almoçar a casa. Deve aparecer muita gente antes de o espectáculo
começar. Vai comer qualquer coisa ao Roger e
manda pôr na minha conta.
- Muito agradecido - digo eu. - Mas ainda posso pagar o meu almoço.
E lá ficou ele, a vigiar a porta como um falcão até eu voltar. Bem,
foi só por pouco tempo; eu despachei-me o mais depressa que pude. Da
última vez tinha dito olha é o último; não te podes esquecer de ir
buscar mais. Mas quem pode lembrar-se de alguma coisa nesta correria?
E logo o raio do espectáculo havia de chegar no dia em que eu tinha de

correr a cidade à procura de um cheque, além de tudo o mais que tinha
de fazer na loja e o Earl à porta, de olho alerta como um falcão.
Fui à tipografia e disse que queria pregar uma partida a um amigo, mas
ele não tinha nada. Todavia mandou-me ir ao antigo teatro da ópera,
onde tinham arrecadado uma data de papelada que viera do antigo Banco
Merchant & Farmer, quando faliu, e eu lá meti por mais umas tantas
ruelas para o Earl não me ver até que encontrei o velho Simmons que me
deu a chave e fui até lá procurar. Acabei por encontrar um maço de
cheques de um banco de Saint Louis. E claro que havia de ser desta vez
que ela ia olhar bem para o cheque. Mas não tinha outro remédio. Não
podia perder mais tempo. Voltei para o armazém. Esqueci-me de uns
papéis que a Mãe quer pôr no banco - digo eu. Fui para a secretária e
passei o cheque. Com a pressa com que estava, digo até para comigo que
é muito bom a vista dela estar a enfraquecer, com aquela putazinha
dentro de casa, uma cristã
194
temente a Deus como a Mãe. Digo sabe tão bem como eu no
que ela se vai tornar, mas Isso é lá consigo, se a quer manter e criar
só por causa do Pai. E ela começa a chorar e a dizer que ela é do seu
sangue e eu limito-me a dizer Está bem. Faça o que quiser. Eu aguento
se a Mãe aguentar.
Dobrei a carta muito bem, fechei-a e saí.
- Vê se não te demoras mais que o estritamente necessário
- diz o Earl.
- Está bem - digo eu. Fui ao posto do telégrafo. Os espertalhões
estavam lá todos.
- Então já algum de vocês'ganhou o tal milhão? - digo eu.
- Quem é que pode fazer alguma coisa com um mercado destes? - diz o
Doc.
- Como é que está? - digo eu. Entrei e olhei. Estava três pontos
abaixo da abertura. - Eh rapazes, vocês não se vão deixar abater por
uma coisa sem importância como o mercado do algodão, pois não? - digo
eu. - Julguei que fossem mais espertos.
- Espertos uma ova - diz o Doc. - Estava doze abaixo ao meio-dia.
Limpou-me.
- Doze pontos? - digo eu. - E por que é que não me disseram? Por qu 'é
que não me disseram? - digo eu ao telegrafista.
- Eu transmito o que me chega às mãos. Não dirijo nenhuma bolsa
clandestina.
- Está a armar-se em esperto, ou quê? - digo eu. - Parece-me que com o
dinheiro que aqui gasto, podia bem ter-se dado ao trabalho de me
telefonar. Ou será que a sua maldita empresa está de conluio com os
especuladores do leste?
Não respondeu. Fingiu que estava muito ocupado.
- Está a pisar o risco. Se continua assim, ainda vai ter de ir
trabalhar para ganhar a vida.
- O que é que se passa consigo hoje? - diz o Doc. - Ainda está com
três pontos de vantagem.
- Sim - digo eu. - Se estivesse a vender. Mas não me lembro de ter
dito que estava. E vocês, tudo raso?
-A mim apanharam-me duas vezes - diz o Doc. - Inverti mesmo a tempo.
195
- Bem - diz o 1. O. Snopes -, eu às vezes ganho; é justo que de vez em
quando sejam eles a ganhar.
Deixei-os a comprar e a vender uns aos outros a um níquel o
ponto. Encontrei um negro e mandei-o buscar o meu carro e
fiquei à espera na esquina. Não conseguia ver o Earl a olhar para um
lado e para o outro e a consultar o relógio, porque de onde estava não
via a porta do armazém. Demorou para aí uma semana para trazer o

carro.
- Por onde andaste? - digo eu. - Às voltas por onde essas
pegas te vissem?
- Vim o mais depressa que pude - diz ele. - Mas tive de contornar a
praça, com aqueles carros todos.
Ainda estou para encontrar o negro que não tenha um alibi perfeito o
que quer que seja. Mas deixem um à solta num carro e ele tem de se
exibir. Entrei e dei a volta à praça. Vi o Earl do outro lado, à
porta.
Fui direito à cozinha e disse à Dilsey que se despachasse com •
almoço.
- A Quentin inda não chegou - diz ela.
- E depois? - digo eu. - Daqui a pouco estás a dizer que • Luster
ainda não tem fome. A Quentin sabe a que horas se
come nesta casa. Despacha-te.
A Mãe estava no quarto. Dei-lhe a carta. Abriu-a, tirou o cheque e
ficou sentada com ele na mão a olhar para ele. Fui buscar a
pá da lareira e dei-lhe um fósforo. - Vá - digo eu. - Acabe com isso.
Não tarda está a chorar.
Ela pegou no fósforo, mas não o acendeu. Ficou sentada a olhar para o
cheque. Tal como eu previra.
Detesto fazer isto - diz ela. - Tornar ainda mais pesado o teu fardo
com a Quentin...
- Cá nos havemos de remediar - digo eu. - Vá, acabe
com isso.
Mas ela continuava imóvel de cheque na mão.
- Este é de um banco diferente - diz ela. - Os outros têm sido sobre
um banco de Indianapolis.
- Pois é - digo eu. - As mulheres também fazem destas
coisas.
196
- Fazer o quê? - diz ela.
- Ter dinheiro em dois bancos diferentes - digo eu.
- Oli - diz ela. E examinou o cheque. - Fico contente por saber que
ela está tão... que tem tanto... Deus sabe que estou a fazer o que é
certo - diz ela.
- Então - digo eu. - Vamos lá. Acabe com a brincadeira.
- Brincadeira? - diz ela. - Quando penso que...
- Julguei que era por brincadeira que queimava todos os
meses estes duzentos dólares - digo eu. - Vá. Quer que eu
acenda o fósforo?
- Podia fazer um esforço,e aceitá-los - diz ela. - Pelos meus filhos.
Não tenho amor-próprio.
- Nunca se sentiria bem - digo eu. - Sabe que não. Está dito, está
dito. Nós cá nos havemos de arranjar.
- Deixo tudo ao teu cuidado - diz ela. - Mas por vezes
receio que ao fazer isto vos esteja a privar do que por direito vos
pertence. Talvez venha a ser castigada. Se quiseres, engulo o orgulho
e aceito os cheques.
- Qual seria a vantagem de começar agora, depois de ter passado quinze
anos a destruí-los? - digo eu. - Se continuar a fazê-lo, não perdeu
nada, mas se começasse agora a aceitá-los, teria perdido cinquenta mil
dólares. E cá nos temos arranjado, não temos? - digo eu. - Ainda não a
vi na sopa dos pobres.
- É - diz ela. - Nós, os Bascorribs, não precisamos da caridade de
ninguém. E muito menos da de uma mulher perdida.
Acendeu o fósforo, pegou fogo ao cheque e deixou-o a arder em cima da
pá; depois fez o mesmo ao envelope e ficou a vê-los consumir-se.
- Tu não sabes o que isto é - diz ela. - Graças a Deus nunca saberás o
que sente uma mãe.

- Há muitas mulheres no mundo na situação dela - digo eu.
- Mas não são minhas filhas - diz ela. - Não é por mim
diz ela -, eu recebia-a de volta de bom grado, com os seus pecados e
tudo, porque é sangue do meu sangue. É pela Quentin.
Bem, podia ter-lhe dito que não havia grande probabilidade
197
de alguém magoar a Quentin, mas como sempre digo, não sou
muito exigente, mas quero poder comer e dormir sem ter de aturar um
par de mulheres a chorarem pelos cantos e a lamentarem-se.
- E por ti - diz ela. - Sei o que pensas dela.
- Deixe-a voltar - digo eu. - Lá por isso...
- Não - diz ela. - Devo isso à memória do teu Pai.
- Quando ele passava a vida a tentar convencê-la a deixá-la voltar
para casa quando o Herbert a pôs fora? - digo eu.
- Tu não percebes nada - diz ela. - Sei que não pretendes tornar isto
ainda mais difícil para mim, mas é a mim que compete sofrer pelos meus
filhos - diz ela. - Eu aguento.
- Parece-me que exagera - digo eu. O papel ardeu todo. Levei-o para a
chaminé e deitei as cinzas lá para dentro. - Só me parece uma pena
queimar dinheiro bom - digo eu.
- Que eu nunca vej a o dia em que os meus filhos tenham de aceitar
este dinheiro, o salário do pecado - diz ela. - Antes queria ver-te
morto no caixão.
- Faça como quiser - digo eu. - Vamos já almoçar? digo eu. - É que, se
não vamos, tenho de voltar para o armazém. Hoje há muito movimento. -
Ela levantou-se. - Eu já lhe disse - digo eu. - Mas parece que ela
está à espera da Quentin ou do Luster ou coisa assim. Deixe, eu chamoa.
Espere. - Mas ela foi até ao cimo das escadas e charnou-a.
- A Quentin'irida. não chegou - diz a Dilsey.
- Bem, nesse caso tenho de ir - digo eu. - Posso comer uma sanduíche
na cidade. Não quero complicar a vida da Dilsey
- digo eu. Isto foi o suficiente para ela começar outra vez a chamá-
Ia, e a Dilsey a arrastar-se de um lado para o outro e a resmungar:
- Tá bem, tá bem, vai pá mesa o mais depressa que eu pudé.
- Eu quero ver-vos a todos satisfeitos - diz a Mãe. - Tento facilitarvos
a vida o mais possível.
- Não me estou a queixar, pois não? - digo eu. - Disse alguma coisa a
não ser que tinha de voltar para o trabalho?
- Eu sei - diz ela. - Sei que não tivestes as oportunidades que os
outros tiveram, que tiveste de te enfiar num armazém de
198
província. Mas eu queria que fosses mais longe. Sabia que o teu pai
nunca iria perceber que tu eras o único com jeito para o negócio, e
depois quando tudo o resto falhou, convenci-me de que quando ela
casasse, e o Herbert... depois do que ele tinha prometido...
- Bem, esse estava também a mentir - digo eu. - Se calhar nunca teve
um banco. E, se tinha, não me parece que fosse preciso vir até ao
Mississípi para encontrar um gerente.
Fomos comer. Ouvia o Ben na cozinha, onde o Luster lhe estava a dar a
comida. É o que eu digo, se temos de alimentar mais uma boca e ela não
quer aceitar o dinheiro, por que não o
mandamos para Jackson? Lá seria mais feliz, entre pessoas como ele. E
vou eu e digo Deus sabe que nesta família há bem pouco espaço para o
orgulho, mas não é preciso ser-se muito orgulhoso para não se gostar
de ver um homem de trinta anos a brincar no terraço com um rapaz
preto, a correr ao longo da cerca e a mugir
como uma vaca quando eles andam lá fora a jogar golfe. Acho que se o
tivessem mandado logo para Jackson, hoje estaríamos todos bem melhor.
E vou eu e digo, já cumpriu o seu dever para com ele; já fez tudo o

que se podia esperar de si e muito mais do que outros teriam feito,
por que não o manda então para lá deduz os encargos nos impostos? E
ela diz: - Em breve partirei. Sei que sou um fardo para ti - e eu
digo: - já diz isso há tanto tempo que começo a acreditar - só que
digo eu o melhor é não me avisar do dia em que vai morrer, porque
meto-o logo nessa
noite na carreira 17 e acho que sei de um lugar para onde a posso
mandar a ela também e o nome desse lugar não é de certeza nem rua da
Fortuna nem avenida da Felicidade. Ela começou a chorar e eu digo Está
bem está bem tenho tanto orgulho nos
meus parentes como qualquer outra pessoa mesmo que às vezes não saiba
de onde eles vêm.
Fomos comendo. A Mãe mandou a Dilsey para a porta para ver se via a
Quentin.
Já lhe disse que ela não vem - digo eu. Ela sabe que tem de vir - diz
a Mãe. - Sabe muito bem que eu não a deixo andar por aí a passear
pelas ruas em vez de vir para casa na hora das refeições. Viste bem,
Dilsey?
199
- Então não a deixe sair - digo eu.
- Que posso eu fazer - diz ela. - Vocês nunca me obedeceram. Nunca.
- Se não andasse sempre a interferir, eu fazia-a obedecer digo eu. -
Não precisava de mais de um dia para a endireitar.
- Ias ser muito bruto com ela - diz ela. - Tens o feitio do Tio Maury.
Isto fez-me lembrar da carta. Tireí-a do bolso e entreguei-lha. - Não
precisa de a abrir - digo eu. - O banco depois diz-lhe quanto foi
desta vez.
- Vem dirigida a ti - diz ela.
- Vá, abra-a - digo eu. Ela abriu-a, leu-a e entregou-ma.
Meu querido sobrinho - começava ele Vais gostar de saber que me surgiu
agora uma oportunida- de em relação à qual, e por razões que depois
explicarei, não poderei entrar de momento em grandes detalhes, até ter
a possibilidade de to comunicar de uma maneira mais segura. A minha
experiência nos negócios ensinou-me a ter o cuidado de não revelar
nada que seja confidencial de outro modo que não seja a viva voz, e a
minha extrema precaução nesta matéria será suficiente para te dar uma
ideia da importância do que está em
jogo. Escusado será dizer, acabei de examinar pormenorizadamente todos
os aspectos da questão e é sem a mínima hesitação que te digo que se
trata de uma daquelas oportunidades que aparecem uma vez na vida, e
vejo claramente nela ao meu alcance aquele objectivo que há muito
venho implacavelmente a perseguir: isto é, a solidificação definitiva
dos meus
negócios, através da qual poderei restituir à posição que por direito
lhe pertence a família da qual eu tenho a honra de ser o
único descendente do sexo masculino; a família na qual sempre incluí a
senhora tua mãe e os seus filhos.
Acontece que, de momento, não me encontro numa situação financeira que
me permita corresponder às exigências que a
oportunidade envolve, mas em vez de recorrer a estranhos para o
fazer, preferi recorrer à conta bancária da tua Mãe, de onde hoje
mesmo levantei uma pequena quantia, o necessário para completar o meu
investimento inicial, da qual junto, por mera formalídade, uma nota de
dívida a oito por cento ao ano. Escusado será dizer, trata-se de mera
formalidade, para garantia da tua Mãe
200
caso se verifique aquela circunstância da qual o homem é sempre
joguete, peça do destino. Irei naturalmente aplicar esta soma como se
fosse minha e permitir assim à tua mãe aproveitar esta oportunidade

que a minha análise exaustiva mostrou ser um filão de primeira água -
se me é permitido o chavão - e da mais pura qualidade.
Isto é uma revelação confidencial, como certamente compreenderás, de
um homem de negócios para outro; nós damos conta sozinhos dos nossos
recados, não é verdade? Conhecendo a saúde delicada da tua mãe e o
receio com que todas as senhoras sulistas de esmerada educação, como
ela,
encaram os negócios, e aindala sua encantadora propensão para
divulgarem involuntariamente tais assuntos nas suas conversas,
atrevo-me a sugerir que não lhe digas nada. Melhor ainda, aconselho-te
a que o não faças. Seria melhor restituir simplesmente a quantia ao
banco num futuro mais ou menos próximo, digamos, num montante global
adicionada das outras pequenas quantias que lhe devo, e não dizer
nada. É nosso dever protegê-la o mais possível deste mundo crasso e
materialista em que vivemos.
Com todo o afecto do teu Tio,
Maury L. Bascomb.
Que pensa fazer? - digo eu, atirando a carta pela mesa fora.
- Eu sei que tu reparas no que eu lhe dou - diz ela.
- O dinheiro é seu - digo eu. - Se quiser atirá-lo aos pássaros, isso
é lá consigo.
- Ele é meu irmão - diz a Mãe. - O último Bascomb. Quando partirmos os
dois, já não haverá mais.
- O que supostamente será duro para alguém - digo eu. Está bem, está
bem - digo eu. - O dinheiro é seu. Faça dele o que quiser. Quer que dê
autorização ao banco para lho pagar?
- Sei que não gostas dele - diz ela. - Vejo o peso que tens nos
ombros. Quando eu me for tudo será mais fácil para ti.
- Eu cá tornava as coisas mais fáceis desde já - digo eu. Está bem,
está bem, não digo mais nada. Traga para cá os mendigos todos se lhe
apetecer.
- Ele é meu irmão - diz ela. - Mesmo que se encontre numa situação
aflitiva.
201
- Vou-lhe buscar o livro de cheques - digo eu. - Vou levantar hoje o
meu cheque do ordenado.
- Ele fez-te esperar seis dias - diz ela. - Tens a certeza de que o
negócio é seguro? Acho estranho que um negócio solvente não possa
pagar a tempo e horas aos empregados.
- O negócio é sólido - digo eu. - Seguro como um banco. Eu é que lhe
digo que não se preocupe com o meu ordenado até fecharmos as cobranças
todos os meses. É por isso que às vezes se atrasa.
- Eu não ia suportar que perdesses o pouco que eu tenho para investir
em ti - diz ela. - Penso muitas vezes que o Earl não é um bom
negociante. Sei que ele não te dá a confiança que o valor do teu
investimento no negócio devia requerer. Vou falar com ele.
- Não, deixe-o em paz - digo eu. - O negócio é dele.
- Ora essa, tu tens lá mil dólares.
- Deixe-o em paz - digo eu. - Eu estou atento. Tenho a sua procuração.
Não tem problema.
- Nem sabes o conforto que me dás - diz ela. - Sempre foste a minha
alegria e o meu orgulho, mas quando vieste ter comigo por tua própria
iniciativa e insististe em depositar o teu salário todos os meses na
minha conta, agradeci a Deus teres sido tu a ficar, já que Ele me
tinha querido levar os outros.
- Eles eram bons - digo eu. - Faziam o mais que podiam, acho eu.
- Quando falas assim, sei que estás a pensar mal da memória do teu pai
- diz ela. - E tens razões para o fazeres, acho eu.
Mas parte-me o coração ouvir-te dizer isso.
Levantei-me. - Se vai começar a chorar - digo eu -, vai ter de chorar

sozinha, porque eu tenho de voltar para o trabalho. Vou buscar o livro
de cheques.
- Eu vou lá - diz ela.
- Deixe-se estar - digo eu. - Eu vou. - Fui lá acima, tirei o livro de
cheques da gaveta dela e voltei para a cidade. Fui ao banco e
depositei o cheque, a ordem de pagamento e os outros dez dólares, e
passei pelo posto do telégrafo. Estava um
ponto acima da abertura. Eu já tinha perdido treze pontos, e
202
tudo porque ela,teve de vir fazer-me a vida negra ao meio-dia, por
causa daquela carta.
- A que horas chegaram essas cotações? - digo eu.
- Há cerca de uma hora - diz ele.
- Há uma hora? - digo eu. - E para que é que nós lhe pagamos? - digo
eu. - Para nos entregar relatórios semanais? Como é que quer que um
homem assim possa fazer alguma coisa? O raio da escala podia rebentar
e nós nem sabíamos.
- Eu não espero que faça nada - diz ele. - Eles alteraram a lei para
as pessoas que jogam no algodão.
- Ah alteraram? - digo eu. - Não ouvi dizer nada. Devem ter mandado as
notícias pela Western. Union.
Voltei para o armazém. Treze pontos. Raios me partam se acredito que
alguém sabe alguma coisa do raio deste negócio excepto os tipos que
estão todos repimpados lá nos escritórios de Nova lorque a ver os
tansos dos provincianos irem levar-lhes o
dinheiro de mão beijada. Bem, um homem que só paga para ver
mostra que não tem confiança em si próprio, é o que eu digo, se
não for para seguir os conselhos que nos dão, então para que serve
estar a pagar para os receber? Além disso, estas pessoas estão mesmo
no centro dos acontecimentos; sabem de tudo o que se passa. Sentia o
telegrama no bolso. Só tinha de provar que estavam a usar a companhia
dos telégrafos para defraudarem pessoas. E isso faria deles uma bolsa
clandestina. E também não ia perder tempo. Que raio, pelo menos seria
de esperar que uma
companhia tão grande e tão rica como a Western Union fosse capaz de
receber as cotações da bolsa a tempo e horas. Pelo menos com metade da
velocidade com que nos mandam um telegrama a dizer que temos a conta a
zero. Eles querem lá saber das pessoas. São unha com carne com essa
corja de Nova lorque. Qualquer um podia ver isso.
Quando entrei, o Earl olhou para o relógio. Mas não disse nada até o
cliente sair. Nessa altura disse:
- Foste comer a casa?
- Tive de ir ao dentista - digo eu, porque onde eu como
não é da conta dele, mas tenho de passar a tarde com ele no
escritório. E ainda por cima a ouvi-lo resmungar depois de tudo por
203
que eu já tinha passado. Não há como um lojista de meia tigela, é o
que eu digo, não há como um homem que não tenha mais de quinhentos
dólares para se preocupar com o negócio como se ele valesse cinquenta
mil.
- Podias ter-me avisado - diz ele. - Esperava que voltasses logo.
- Troco este dente consigo quando quiser e ainda lhe dou dez dólares
por cima - digo eu. - O combinado é uma hora para a refeição - digo eu
- e se não lhe agrada o que eu faço, já sabe o que tem a fazer.
- Há algum tempo que ando a pensar nisso - diz ele. - Se não fosse
pela tua mãe, já o tinha feito há muito tempo. Mas ela é uma senhora e
eu tenho muita pena dela, Jason. É uma pena que outras pessoas que eu
conheço não possam dizer o mesmo.
- Pois pode ficar com ela - digo eu. - Quando precisarmos da sua pena

eu aviso-o com antecedência.
- Há muito tempo que te dou cobertura para o negócio que sabes, Jason
- diz ele.
- Sim? - digo eu, deixando-o continuar, para ouvir o que ele tinha a
dizer antes de o fazer calar.
- Aposto que sei muito mais acerca de onde veio aquele automóvel do
que ela.
- Julga que sim, não julga? - digo eu. - E quando é que vai espalhar a
notícia de que o roubei à minha mãe?
- Eu não vou dizer nada - diz ele. - Sei que ela te deu uma
procuração. E também sei que ela ainda está convencida de que tem mil
dólares aqui investidos.
- Está bem - digo eu. - Já que sabe tanto, vou dizer-lhe também mais
esta: vá ao banco e pergunte-lhes em que conta é que eu tenho
depositado cento e sessenta dólares no dia um de cada mês desde há
doze anos.
- Eu não vou contar nada - diz ele. - Só te peço para teres mais
cuidado daqui para a frente.
Nunca mais lhe disse nada. Não adianta. Descobri que quan- do um homem
embica para um lado, o melhor é deixá-lo. E que quando um homem mete
na cabeça que tem de fazer queixa de nós para nosso próprio bem, nada
feito. Ainda bem que não
204
tenho uma consciência tão frágil que tenha de cuidar dela como
de um cachorrinho doente. Estava bem arranjado se fosse tão cuidadoso
com as minhas coisas como ele é para evitar que o seu
negócio de meio pataco lhe renda mais de oito por cento. Chego a
pensar que está convencido de que são capazes de o prender por usura,
se tirar um lucro superior a oito por cento. Que raio de sorte há-de
ter um homem amarrado a uma cidade como esta
e a um negócio como este? E eu podia tomar-lhe conta do negócio por um
ano e dar-lhe tanto a ganhar que ele nem ia precisar mais de
trabalhar. Só que ele ia de certeza dar tudo para a igreja ou coisa
parecida. Se há coisa que'me irrite é um hipócrita. Um homem que pensa
que tudo aquilo que não entende muito bem como se faz deve ser
desonesto e à primeira oportunidade se sente moralmente impelido a ir
contar à terceira parte o que não tinha nada de contar. É o que eu
digo, se de cada vez que um homem faz qualquer coisa que eu não
entendo completamente eu digo que ele deve ser um vigarista, acho que
não me ia custar nada encontrar alguma coisa nos livros que achasse
que não valia a pena ir a correr contar a alguém que eu achasse que
entendia, quando eles já deviam saber disso há muito mais tempo do que
eu, e se não sabiam a culpa não era minha e ele diz: - Os meus livros
estão à disposição de toda a gente. Qualquer que tenha, ou
ache que tem, direitos sobre este negócio, pode vir consultá-los e
será muito bem recebido.
- Claro que não vai dizer nada - digo eu. - Isso iria contra a sua
consciência. Limitava-se a levá-la lá e deixava-a encontrar a resposta
sozinha. O senhor contar, não contava.
- Não estou a querer intrometer-me nos teus negócios diz ele. - Sei
que ficaste privado de algumas coisas que o Quentin teve. Mas a tua
mãe também teve uma vida infeliz, e se ela viesse aqui perguntar-me
por que te tinhas demitido, eu tinha de lhe dizer a verdade. Não é
pelos mil dólares. Sabes isso muito bem. É porque um homem nunca chega
a lado nenhum se os factos não estão de acordo com os livros. E não
vou mentir, nem
por mim nem por mais ninguém.
- Então está bem - digo eu. - Acho que a sua consciência é uma
empregada mais zelosa do que eu; pelo menos não tem de
205

ir almoçar a casa ao meio-dia. Mas por favor não a deixe interferir
com o meu apetite - digo eu, porque como raio hei-de eu
fazer alguma coisa como deve ser com aquela maldita família e
ela sem se preocupar em controlá-la a ela ou a qualquer dos outros,
como daquela vez em que viu um deles a beijar a Caddy e no dia
seguinte andou todo o dia vestida de preto e com um
véu pela cara e nem o Pai lhe conseguiu arrancar uma palavra que fosse
além do choro e de que a sua filhinha estava morta e a Caddy, na
altura apenas com quinze anos, daí a três anos já tinha usado
crinolina e talvez a lixa. Julgas que posso admitir que ela ande por
aí com todos os viajantes que passam pela cidade, digo eu, e que eles
digam uns aos outros por essas estradas onde podem arranjar uma das
boas quando vierem a Jefferson? Não tenho um orgulho por aí além, não
posso dar-me a esse luxo com a cozinha cheia de negros para alimentar
e a privar o manicómio da sua estrela. Sangue, digo eu, governadores e
generais. É uma
sorte nunca termos tido reis nem presidentes; estávamos todos em
Jackson a caçar borboletas. E eu digo já que seria péssimo se
ele fosse meu; pelo menos teria a certeza de ser bastardo, para
começar, e agora nem o Senhor provavelmente tem a certeza.
Passado um bocado ouvi a banda começar a tocar, e as pessoas começaram
a escassear. Era vê-los a irem todos para o espectáculo. A regatearem
uma correia de vinte cêntimos para pouparem quinze, para os irem dar a
um bando de Yankees que vêm aí e
pagam à vontade dez dólares pelos direitos. Voltei para os fundos.
- Bem - digo eu. - Se não tens cuidado, esse parafuso ainda te cresce
na mão. E depois vou buscar um machado e corto-ta. O que é que tu
achas que os gorgulhos vão comer se não
montares as capinadeiras a tempo de se plantarem as culturas?
digo eu. - Sálvia?
- Aqueles fartam-se de tocá as cornetas - diz ele. - Disseram-me qu'há
lá um homem quIa modos que toca música cuma serra. Pega nela como se
fosse um banjo.
- Ouve - digo eu. - Sabes quanto é que aquele espectáculo vai render à
cidade? Cerca de dez dólares - digo eu. - Os dez dólares que o Buck
Turpin tem neste momento no bolso dele.
- Porqu@é que deram dez dólares é Mr. Buck? - diz ele.
206
- Para terem autorização para actuar aqui - digo eu.
Por aí já podes calcular quanto vão gastar contigo.
- Quê dizê qu'eles dão dez dólares só para darem aqui o
espectáculo? Se tivesse de dar, eu dava dez dólares só pa vê o tal
homem pegá na serra. Por esse preço acho qu'amanhã de manhã ainda lhe
estava a devê nove dólares e seis moedas.
E depois ainda os Yankees nos dão cabo da cabeça a tentarem
convencer-nos de que os pretos estão a ir em frente. Pois que os
deixem ir em frente, é o que eu digo. Deixem-nos ir tão em frente que
já nem com os cães se consiga encontrar um a sul de Louisville.
Porque, quando lhe disse que eles vinham no sábado à noite para
cobrarem pelo menos mil dólares na região, ele diz:
- Não lhes quero mal por isso. Eu posso bem gastar as duas moedas.
- Duas moedas uma ova - digo eu. - Isso é só o começo. E os dez ou
quinze cêntimos que vais gastar numa caixa de rebu- çados de dois
cêntimos ou coisa assim. E o tempo que já estás a
perder agora, a ouvires a música?
- Lá isso é vedade - diz ele. - Bem, e s'eu não morrê té à noite são
mais duas moedas qu'eles levam da cidade, lá isso é.
- Então não passas de um idiota - digo eu.
- Bem - diz ele. - Isso eu não discuto. S'isse, fosse um crime, nem

todos os forçados eram negros.
Bem, mais ou menos nessa altura olhei para a travessa e vi-a. Quando
me meti para dentro e olhei para o relógio não reparei na altura quem
ele era porque estava a olhar para o relógio. Eram só duas e meia,
quarenta e cinco minutos antes da hora a que ela devia sair da escola.
Quando olhei a primeira coisa que vi foi a
gravata vermelha que ele trazia e pus-me a pensar que raio de homem
seria capaz de usar uma gravata vermelha. Mas ela já se
ia a esgueirar pela travessa, a olhar para a porta, e eu não pensei
nada acerca dele até eles desaparecerem. Perguntava se ela teria tão
pouco respeito por mim que não só faltava à escola depois de
eu a ter proibido de sair de lá, como ainda por cima passava mesmo em
frente do armazém para me desafiar. Porém não podia ver para dentro da
porta, porque o sol batia nela em cheio e era o mesmo que tentar
enxergar para lá dos faróis de um automóvel.
Por isso fiquei a vê-Ia passar, com a cara pintada que nem um palhaço
e o cabelo todo torcido e empastado e um vestido que se
alguma mulher o tivesse trazido para a rua, mesmo que fosse nas
ruas mal afamadas dos meus tempos de rapaz, sem mais nada a tapar-lhe
as pernas e o rabo, ia logo presa. Raios me partam se elas não se
vestem como se quisessem que todos os homens por que passam na rua
estendam a mão e lho apalpem. E por isso eu
estava a pensar que tipo de homem usaria uma gravata toda vermelha
quando de repente percebi que se tratava de um dos artistas do
espectáculo. Bem, eu aguento muito; se não fosse assim, já estaria
metido nalguma embrulhada das boas. Por isso, quando eles viraram a
esquina, fui atrás deles. Eu, em cabelo, no meio da tarde, a ter de
andar a espiá-la pelas vielas para defender o bom nome da minha mãe. É
o que eu digo, não há nada a fazer com uma mulher assim, se aquilo já
nasceu com ela. Se lhe está na massa do sangue, não há nada a fazer. A
única coisa a fazer é livrarmo-nos dela, deixá-la ir viver com as da
sua laia.
Saí para a rua, mas eles estavam escondidos. E ali estava eu, em
cabelo, com um ar ainda mais doido do que ela. Como qualquer pessoa
naturalmente pensaria, um deles é pateta, o outro afogou-se e a outra
foi posta na rua pelo marido, por que é que os outros não háo-de ser
doidos também? Via que as pessoas não tiravam os olhos de mim, como
falcões, à espera de uma
oportunidade para dizerem Bem, não me apanhou de surpresa, já era de
esperar, a família é toda doida. Venderem terras para o
mandarem para Harvard e pagarem impostos para o dinheiro ir para uma
universidade estatal que eu não vi entrar mais que duas vezes num jogo
de basebol e não deixar que o nome da filha seja pronunciado em casa
até que daí a pouco tempo o Pai já nem à cidade ia passando os dias em
casa agarrado à garrafa eu bem lhe via a fralda da camisa de dormir e
as pernas e ouvia a garrafa tilintar até que por fim já tinha de ser o
T. P a encher-lhe o copo e vem ela agora dizer Tu não respeitas a
memória do teu pai e eu digo não sei porquê conservada está ela e por
muito tempo simplesmente se eu fosse doido também sabe Deus o que eu
faria fico doente só de olhar para a água e mais depressa bebia um
copo de gasolina que um copo de uísque e a Lorraine
208
a dizer-lhes sabem ele não pode beber mas se julgam que é menos homem
por isso eu digo-lhes como hão-de fazer para tirar isso a limpo e
depois diz Se te apanho com alguma destas putas sabes o que é que eu
faço diz ela agarro-me a ela e dou-lhe tantas que a mato e eu digo se
não bebo é cá comigo já alguma vez te faltei com alguma coisa digo eu
vou-te comprar tanta cerveja que até podes tomar banho nela se te
apetecer porque tenho muito respeito por uma puta honesta porque com a

saúde da Mãe e depois de tudo o que eu faço para manter a dignidade da
família é duro vê-Ia ter tão pouco respeito pelo que eu tento fazer
por ela que faça do nome dela do meu nome e do nome da minha Mãe nomes
de passe na cidade.
Ela tinha-se enfiado nalgum canto. Viu-me e meteu por algum beco,
andava a correr ruas e travessas na companhia do raio de um artista de
variedades de gravata vermelha ao pescoço com toda a gente a olhar
para ele e a pensar mas que raio de homem será este para andar assim
de gravata vermelha. Bem, o
rapaz não se calava e eu peguei no telegrama sem prestar atenção. Só
quando ia assinar é que percebi do que se tratava, e abri-o sem
grande ansiedade. Acho que sempre soube o que era. Era a última coisa
que faltava acontecer-me, especialmente depois de já ter registado o
cheque no livro. Francamente não sei como uma cidade do tamanho de
Nova lorque pode albergar gente suficiente para extorquir o dinheiro
dos papalvos da província. Mata-se uma pessoa a trabalhar o dia
inteiro todos os dias e de repente recebe um bocado de papel. A sua
conta fechou a 20.62. Entusiasmam-na, deixam-na acumular uns lucros e
zás! A sua conta fechou a 20.62. E, como se não bastasse, ainda paga
dez dólares por mês a um tipo que lhe diz como há-de fazer para perder
o dinheiro mais depressa, um tipo que ou não percebe nada do assunto
ou está feito com a companhia telegráfica. Bem, para mim chega. Foi a
última vez que me levaram à certa. Qualquer idiota, excepto um que
seja tão estúpido que acredite na palavra de um judeu, seria capaz de
dizer que as cotações iam continuar a subir com o maldito delta
prestes a ficar alagado de novo e o
algodão levado na enxurrada ano após ano, e eles em Washington a
gastarem cinquenta mil dólares por dia para manterem um
209
exército na Nicarágua ou lá onde é. Claro que as inundações vão
repetir-se e o algodão vai passar para sessenta cêntimos o quilo. Bem,
eu só quero ganhar-lhes uma vez e recuperar o meu dinheiro. Não ando
atrás de nenhuma fortuna; isso é coisa para estes papalvos da
província, eu só quero recuperar o dinheiro que esses judeus dum raio
me tiraram com as suas tramóias. E depois acabou-se; nunca mais vão
ver a cor do meu dinheirinho.
Voltei para o armazém. Eram quase três e meia. já não dava tempo de
fazer grande coisa, mas já estou habituado. E não precisei de ir para
Harvard para aprender isso. A banda tinha parado de tocar. já tinha
entrado toda a gente e agora podiam poupar o fôlego. E diz o Earl:
Ele encontrou-te, não encontrou? Passou por aqui há bocadinho. Pensei
que estivesses lá para as traseiras.
Encontrou - digo eu. - E trouxe-me as notícias. Não podiam escondê-las
de mim durante toda a tarde. A cidade é muito pequena. Vou ter de sair
por um instante - digo eu.
Pode dizer que não, se isso o confortar.
Vai lá - diz ele. - Eu dou conta do recado. Não são más
noticias, espero.
Se quiser saber tem de ir ao telégrafo - digo eu. - Eles lá têm tempo
de sobra para lhe contar. Eu não.
- Só perguntei por perguntar - diz ele. - A tua mãe sabe que pode
contar comigo.
Ela vai gostar de saber - digo eu. - Vou procurar não me demorar mais
que o necessário.
Demora o tempo que for preciso - diz ele. - Eu dou conta do recado.
Podes ir.
Fui buscar o carro e voltei para casa. Uma vez esta manhã, duas ao
meio-dia, e agora outra vez, a ter de correr a cidade toda atrás dela
e de lhes mendigar um pouco de comida que sou eu que pago. Às vezes
penso que nada vale a pena. Depois de tudo o que já se passou devo

estar doido para continuar. E agora sou
capaz de chegar a casa e ter de sair à procura de um cesto de
tomates ou coisa parecida e ter de voltar depois para a cidade a
cheirar que nem uma fábrica de cânfora se não quiser ficar com a
cabeça como se estivesse prestes a explodir a todo momento.
210
Estou farto de lhe dizer que a aspirina não passa de farinha e água
para doentes imaginários. A senhora sabe lá o que é uma dor de cabeça
digo eu. E digo também julga que eu ia a andar para aí às voltas com o
carro se pudesse evitá-lo. Passo bem sem ele aprendi a passar sem
muitas coisas mas se se quiser arriscar a ir nessa cale- che a cair
aos bocados com um rapazola negro a conduzir então vá porque Deus
protege os que são da laia do Ben, Deus sabe que devia fazer qualquer
coisa por ele mas se julga que eu vou entregar uma máquina que vale
mil dólares nas mãos de um negro seja ele ainda miúdo ou já grande,
então o melhor é comprar-lhe um carro porque eu sei que gosta de andar
de carro e a
senhora também sabe disso.
A Dilsey disse que ela estava em casa. Quando entrei no vestíbulo pusme
à escuta mas não ouvi nada. Subi a escada e, precisamente quando ia
a passar pela porta do quarto, ela chamou-me.
- Só queria saber quem era - diz ela. - Passo aqui tanto tempo sozinha
que dou fé de todos os ruídos.
- Não precisa de estar sempre aqui metida - digo eu. - Se quisesse,
podia passar o dia a fazer visitas como as outras senhoras. Ela
abriu a porta.
Pensei que estivesses mal disposto - diz ela. - Depois de teres tido
de comer à pressa.
- Por acaso não estou, mas para a próxima talvez acerte digo eu. - O
que é que quer?
- Passa-se alguma coisa? - diz ela.
- Por que é que se havia de passar? - digo eu. - já não posso vir a
casa a meio da tarde sem pôr tudo em alvoroço?
- Viste a Quentin? - diz ela.
- Está na escola - digo eu.
- Já passa das três - diz ela. - Ouvi o relógio dá-Ias pelo menos à
meia hora. Ela já cá devia estar.
- Acha que sim? - digo eu. - Quando é que já a viu chegar antes de
anoitecer?
- Mas ela devia estar em casa - diz ela. - Quando eu era rapariga...
- Tinha alguém que a obrigava a portar-se bem - digo eu.
Ela não.
211
- Não consigo fazer nada dela - diz ela. - Eu bem tento.
- E, sabe-se lá porquê, não me deixa a mim tentar - digo eu. - Por
isso devia sentir-se satisfeita. - Entrei para o meu quarto. Fechei a
porta à chave muito devagarinho e esperei que a maçaneta rodasse
sozinha. Nessa altura ela diz:
lason.
- O que é? - digo eu.
- Estava só a pensar que poderia ter acontecido alguma coisa.
- Mas não aconteceu nada - digo eu. - Bateu na porta errada.
- Só não quero preocupar-te - diz ela.
- Ainda bem - digo eu. - Mas olhe que não parece. Até pensei que
pudesse estar enganado. Quer alguma coisa?
Daí a pouco ela diz: - Não. Nada. - E depois foi-se embora. Tirei a
caixa, contei o dinheiro, voltei a esconder a caixa, dei a volta à
chave e saí. Pensei na cânfora, mas agora era tarde de mais. Agora só
tinha de fazer mais uma viagem. Ela estava à espera à porta do quarto.

- Quer alguma coisa da cidade? - digo eu.
- Não - diz ela. - Não que eu goste de me meter nos teus assuntos, mas
não sei o que faria se alguma coisa te acontecesse, Jason.
- Eu estou bem - digo eu. - É só uma dor de cabeça.
- Devias tomar uma aspirina - diz ela. - Sei que não vais deixar de
levar o carro.
- O que é que o carro tem a ver com isso? - digo eu. Como é que um
carro pode provocar uma dor de cabeça?
- Sabes que o cheiro da gasolina sempre te fez mal - diz ela. Desde
pequeno. Devias tomar uma aspirina.
Isso, continue a insistir - digo eu. - Sempre se entretém. Meti-me no
carro e arranquei em direcção à cidade. Tinha acabado de entrar na rua
principal quando vi um Ford vir como louco direito a mim. De repente
travou. Ouvi os pneus chiarem,
o carro derrapou e rodopiou e, quando eu estava a pensar que diabo
pretendiam eles com aquilo, vi a gravata vermelha. E a
seguir vi a cara dela à janela a olhar para trás. O carro desapare212
ceu por uma ruela. Vi-o aparecer de novo, mas quando lá cheguei já ele
se ia embora a toda a velocidade. A gravata era vermelha. Quando
reconheci a gravata vermelha, depois do que já lhe tinha dito, varreuse-
me tudo da mente. Só me lembrei da cabeça quando cheguei ao
primeiro cruzamento e tive de parar. Fartamo-nos de gastar dinheiro
com a manutenção das estradas mas diabos me levem se não é como guiar
por cima de chapa ondulada. Gostava de saber como é que eles querem
que um
homem conduza como deve ser, nem que seja um carrinho de mão. Tenho
muito amor ao meu carro para o meter aos saltos por ali fora como o
outro fez @o Ford. O mais provável era terem-no roubado. Para que se
haviam de preocupar. É o que eu digo, o sangue fala sempre mais alto.
Quando se tem sangue da qualidade do dela, é-se capaz de qualquer
coisa. E eu digo, seja qual for a dívida que a senhora possa ter para
com ela, já está paga; e
digo mais, de agora em diante só tem de se culpar a si própria pois
sabe bem o que é que faria qualquer pessoa sensata. E digo ainda se é
para eu passar metade do tempo a fazer de detective, pelo menos que
seja para quem me pague.
E então tive de parar no cruzamento. Foi nesse momento que me lembrei
da cabeça. Parecia que tinha alguém lá dentro a martelar, a bater-lhe
com toda a força. E então digo tenho tentado evitar que se preocupe
com ela; cá por mim, é deixá-la ir para o inferno tão depressa quanto
quiser e quanto mais cedo melhor. E digo ainda a que mais pode ela
ambicionar para além dos caixeiros viajantes e dos artistas de meiatigela
que passam pela cidade quando já nem os rufias cá da terra
querem saber dela. A senhora não sabe o que se passa digo eu, não ouve
o que eu tenho de ouvir, mas pode ter a certeza de que não os deixo ir
sem o troco. O que eu lhes digo é já a minha família era dona de
muitos escravos e vocês não passavam de uns reles comerciantes e
lavradorzecos de pedaços de terra para quem nem um negro olharia duas
vezes.
E se calhar nem os cultivavam. Foi uma sorte Deus ter feito alguma
coisa por esta terra; os que cá vivem nunca fizeram nada. Sexta-feira
à tarde. Daqui onde estava podia avistar uns bons quilómetros de terra
que nem sequer tinha sido lavrada, e os
213
homens válidos da região enfiados na cidade a assistir ao espectáculo.
Se eu fosse um forasteiro a morrer de fome, não ia encontrax vivalma
que me indicasse sequer o caminho para a cidade. E ela a querer que eu
tomasse uma aspirina. E eu digo quando quiser pão como-o à mesa. E
depois digo está sempre a falar do que se sacrifica por nós quando

podia muito bem comprar dez vestidos novos todos os anos com o
dinheiro que gasta no raio dos remédios que toma. Do que eu preciso
não é de um remédio que cure as dores de cabeça, é só de não ter nada
que mas provoque, mas entretanto tenho de trabalhar dez horas por dia
para encher a barriga a uma cozinha cheia de negros, e com a fartura a
que estão habituados, e ainda por cima mandá-los para o espectáculo
com todos os outros negros da região, só que este já estava atrasado.
Quando lá chegasse já o espectáculo tinha acabado.
Logo a seguir, aproximou-se do carro e quando eu finalmente consegui
fazê-lo perceber a minha pergunta, se tinha visto passar duas pessoas
num Ford, disse que sim. Sendo assim, segui em frente e quando cheguei
ao cruzamento com o trilho das carroças vi marcas de pneus. O Ab
Russell estava na propriedade dele, mas nem me dei ao trabalho de lhe
perguntar fosse o que fosse, e ainda não estava muito longe do
estábulo dele quando vi o Ford. Tinham tentado escondê-lo. Com tanto
êxito como tudo aquilo em que ela se metia. É o que eu digo, não é que
eu seja totalmente contra, talvez ela não se consiga controlar; é por
ela não ter consideração pela família e não ser minimamente discreta.
Estou sempre com medo de ir dar com eles no meio da rua ou debaixo de
alguma carroça no meio da praça a portarem-se como caes.
Estacionei o carro e saí cá para fora. E agora tinha de ir de volta e
atravessar um campo lavrado, o único que eu vira desde que saíra da
cidade, parecendo cada vez que poisava os pés no chão que vinha alguém
atrás de mim a dar-me com um pau na cabeça. Só pensava que quando
acabasse de atravessar o campo teria pelo menos terreno plano à minha
frente, sem ter de me desequilibrar a cada passo, mas quando me
embrenhei no arvoredo, vi que o piso estava intransitável, cheio de
mato rasteiro, e tive de me desviar, indo ter a um valado cheio de
silvados. Segui
214
por esse valado por algum tempo, mas o mato tornava-se cada vez mais
denso e, durante todo este tempo, o Earl estava provavelmente a
telefonar para minha casa para saber de mim e a deixar a Mãe toda
aflita.
Quando finalmente cheguei ao fim, vi que me tinha desviado tanto que
tive de parar e ver se descobria onde estava o carro. Sabia que eles
não podiam estar longe, estavam provavelmente atrás do arbusto mais
próximo, e por isso dei meia volta e vim em direcção à estrada. Mas
como não sabia a que distância estava, o melhor era parar e pôr-me à
escuta; e assim, como as minhas pernas ja não consumiam tanto sangue,
ele afluiu-me todo à cabeça pondo-ma como se fosse explodir a todo o
momento, e o sol a declinar e a bater-me em cheio nos olhos e aquele
zumbido nos ouvidos que não me deixava ouvir nada. Continuei a andar,
tentando não fazer barulho e nisto ouvi um
cão ou coisa parecida e percebi que quando ele me pressentisse vinha
por aí que nem uma seta e estava tudo estragado.
Eu estava todo coberto de bichos, troncos e porcarias do gênero, por
dentro e fora da roupa e até nos sapatos, e então olhei em volta e vi
que tinha a mão em cima de um monte de urtigas. Só não percebia por
que razão logo havia de ser urtigas e não uma cobra ou coisa assim.
Mas nem me dei ao trabalho de tirar a mão. Deixei-me ficar muito
quieto até o cão se ir embora. Depois continuei.
Não fazia a mínima ideia de onde estaria o carro. Não conseguia pensar
em mais nada a não ser na minha cabeça, e ali estava eu parado a
cogitar se teria realmente visto mesmo um Ford, e já nem queria saber
se tinha visto ou não. É o que eu digo, ela que se deite debaixo de
tudo o que usa calças na cidade, quero lá saber. Não devo nada a uma
pessoa que tem tão pouca consideração por mim que não se ralou nada de
me meter o Ford ao caminho para me fazer perder a tarde e o Earl poder
levar a outra

ao escritório para lhe mostrar os livros só porque é estuporadamente
honesto para este mundo em que vivemos. Vais passar um mau bocado no
céu sem poderes atrapalhar a vida das outras pessoas, mas não deixes
que eu te apanhe com a boca na botija digo eu, se fecho os olhos é por
causa da tua avó, mas livra-te de
215
que eu te apanhe a fazer isso neste lugar, onde vive a minha mãe.
Olha-me só para estes rufias de cabelo embrilhantinado, con- vencidos
de que fazem o diabo a quatro, eu mostro-lhes quem faz o diabo a
quatro digo eu, e a ti também. Se ele pensa que pode andar aí pelas
matas com a minha sobrinha, quando eu lhe deitar as mãos àquela
gravata vermelha até vai pensar que ela é o cordão que abre as portas
do inferno.
Com o sol a bater-me nos olhos e tudo o resto, o sangue a latejar de
uma maneira que eu pensava que a cabeça me ia estoirar a cada momento,
e com as silvas e tudo o mais a prender-me, cheguei finalmente à vala
de areia onde eles tinham estado e reconheci a árvore onde o carro
tinha ficado, e precisamente quando ia a sair da vala e começar a
correr, ouvi o carro arrancar. Partiram como loucos, a tocar a buzina.
Não paravam de buzinar, como se dissessem Aahhh. Aabhh. Aaaalihhhhhhh,
enquanto se afastavam. Cheguei à estrada mesmo a tempo de os ver
desaparecer.
Quando cheguei ao sítio onde tinha deixado o meu carro, já não os via,
mas a buzina não se calava. Bem, não me ocorreu mais nada a não ser
Corre. Correr de volta à cidade. Correr para casa e tentar convencer a
Mãe de que não te vi dentro desse carro. Tentar fazê-la acreditar que
não sabia quem ele era. Tentar fazê-la acreditar que não te deitei a
mão naquela vala por um triz. Tentar fazê-la acreditar que estavas de
pé.
E a buzina a dizer Aahhhhh, Aahhhhh, Aaaahhhhhhhh, a perder-se na
distância. Por fim calou-se e ouvi uma vaca a mugir no estábulo do
Russe11. E mesmo assim não me passou pela cabeça. Aproximei-me da
porta, abri-a e levantei o pé. Na altura pareceu-me que o carro estava
um pouco mais inclinado que a inclinação natural da estrada, mas só
descobri o que era quando entrei e me pus em marcha.
Enfim, ali estava eu sentado. O pôr-do-sol aproximava-se e
a cidade estava a cerca de sete quilómetros. Eles nem ganas tiveram
para o furarem, para lhe abrirem um buraco. Limitaram-se a deixar sair
o ar. Fiquei ali um bocado, a pensar naquela cozinha cheia de negros e
nem um tinha tido tempo de pôr um pneu em cima do porta-bagagens e
apertar uns parafusos.
216
Chegava até a ser engraçado, porque ela não era tão esperta que se
tivesse lembrado de tirar a bomba de ar com antecedência, a
menos que se tivesse lembrado disso enquanto ele esvaziava o
pneu. Mas o mais provável era que alguém a tivesse tirado para a dar
ao Ben para ele brincar como se fosse uma pistola de água, porque se
ele quisesse até me desfaziam o carro, e a Dilsey a
dizer, Ninguém lhe tocou no carro. Pa que havíamos nós d'ir lá mexê? e
eu digo Sorte tua que és negra. Nem sabes a sorte que tens. Troco
contigo de lugar quando quiseres, porque só um
branco é idiota ao ponto de se preocupar com o que faz uma
cabra duma rapariga.
Fui até à propriedade do Russe11. Ele tinha uma bomba. Uma pequena
falha da parte deles, quanto a mim. Só continuava a não acreditar que
ela tivesse tido a coragem. Isso não me saía da cabeça. Não sei
porquê, mas não consigo aceitar que uma mulher seja capaz de fazer uma
coisa assim. Não parava de pensar, Vamos esquecer por momentos o que
eu sinto por ti e o que tu sentes por mim: eu não te fazia uma coisa

destas. Eu não te fazia uma coisa destas fosse lá o que fosse que tu
me tivesses feito. Porque como eu sempre digo, a voz do sangue é a voz
do sangue e não há nada a fazer. Não é teres-me pregado uma partida de
que qualquer miúdo de oito anos se podia lembrar, é deixares o teu
próprio tio servir de escárnio a um
tipo que até usa uma gravata vermelha. Chegam à nossa cidade, chamamnos
um bando de labregos e acham que a cidade é pequena demais para
eles. Pois ele nem sabe como tem razão. E ela também. Se é assim que
pensa, então o melhor é pôr-se a
andar e boa viagem.
Parei, devolvi a bomba ao Russell e voltei para a cidade. Fui ao bar
tomar um comprimido e depois fui até ao posto do telégrafo. As
cotações tinham fechado a 20.2 1, quarenta pontos abaixo. Quarenta
vezes cinco dólares; compra alguma coisa com
isso se puderes, e ela vai dizer Mas eu estou a precisar, estou mesmo
a precisar e eu digo Que maçada, vais ter de pedir a outra pessoa, eu
estou sem dinheiro; tenho andado demasiado ocupado para ter tempo de o
ganhar.
Limitei-me a olhar para ele.
217
- Vou dar-lhe uma novidade - digo eu. - Vai ficar espantado de saber
que por acaso estou interessado na bolsa do algodão - digo eu. - Nunca
tal coisa lhe tinha passado pela cabeça, pois não?
- Eu fiz tudo o que pude para lho entregar - diz ele. Tentei falar-lhe
para o armazém por duas vezes e telefonei-lhe para casa, mas não
sabiam onde estava - diz ele, vasculhando na gaveta.
- Entregar o quê? - digo eu. Ele estendeu-me um telegrama. - A que
horas chegou? - digo eu.
- Cerca das três e meia - diz ele.
- Eu tentei entregar-lho - disse ele. - Mas não o encontrei.
- Não é culpa minha, pois não? - digo eu. Abri-o, só para ver qual era
a mentira que me queriam impingír desta vez.
Devem estar em muito má situação para precisarem de vir até ao
Mississípi roubar-me dez dólares por mês. Venda, era o que dizia. A
bolsa vai estar instável, com tendência para descer. Não fique
alarmado com os relatórios oficiais.
- Quanto custa um telegrama como este? - digo eu. Ele disse-me.
- Eles já pagaram - diz ele.
- Então devo-lhes isso - digo eu. - Eu já sabia disto. Mande este à
cobrança - digo eu, pegando num impresso. Compre, escrevi eu, Bolsa
apenas a um ponto de rebentar. Oscilações passageiras para levar à
certa mais uns quantos papalvos que ainda não foram ao posto do
telégrafo. Não há razão para alarme. - Mande à cobrança - digo eu.
Ele olhou para a mensagem, depois para o relógio. - A Bolsa fechou há
uma hora - diz ele.
- Bom - digo eu - isso também não é culpa minha. Não fui eu que a
inventei; só comprei algumas acções enquanto julguei que a companhia
telegráfica me mantinha devidamente informado.
- A lista das cotações é afixada quando chega - diz ele.
- Pois é - digo eu. - E em Memphis eles afixam-na num
quadro de dez em dez segundos - digo eu. - E eu que ainda esta tarde
estive a cem quilómetros de Memphis.
218
O homem olhou pua a mensagem. - Quer enviar isto? disse ele.
Ainda não mudei de ideias - digo eu. Escrevi outro telegrama e contei
o dinheiro. - E mande este também, mas veja lá se sabe escrever c-o-mp-
r-a-r.
Voltei para o armazém. Ouvia a banda a tocar ao fundo da rua. A Lei
seca é uma grande coisa. Antigamente era vê-los chegar num sábado só

com um par de sapatos para toda a família e
era o pai que os trazia, e iam todos até à estação de recepção de
encomendas levantar uma encomenda; agora vão todos ao
espectáculo descalços, com og comerciantes à porta, à espreita como
tigres numa jaula, a vê-los passar. E o Earl diz:
- Espero que não tenha sido nada de grave.
- O quê? - digo eu. Olhou para o relógio. Depois foi à porta e olhou
para o relógio do tribunal. - Deve ter um relógio que não presta para
nada - digo eu. - Assim não lhe custa tanto acreditar que ele lhe está
a mentir.
- O quê? - diz ele.
- Nada - digo eu. - Espero não lhe ter causado grande transtorno.
- Não houve muito que fazer - diz ele. - Foram todos ao espectáculo.
Não faz mal.
- Se fizer - digo eu - já sabe o que tem a fazer.
- já disse que não faz mal - diz ele.
- Eu ouvi - digo eu. - E se fizer mal, já sabe o que tem a fazer.
- Queres deixar o emprego? - diz ele.
- Isso não é comigo - digo eu. - Os meus desejos não contam. Mas não
lhe passe pela cabeça que está a proteger-me deixando-me ficar.
- Davas um belo negociante se quisesses, Jason - diz ele.
- Pelo menos sei tratar da minha vida e deixar a dos outros
em paz - digo eu.
- Não sei por que razão estás a tentar fazer com que eu te despeça -
diz ele. - Sabes que te podes ir embora quando quiseres sem ser
preciso saíres a mal.
Talvez seja por isso que não saio - digo eu. - Enquanto
219
for fazendo o meu trabalho, é para isso que me paga. - Fui lá para
dentro, bebi água e saí para as traseiras. O Job já tinha as
capinadeiras todas montadas. Estava tudo calmo lá atrás e daí a pouco
a dor de cabeça melhorou. Agora ouvia-os cantar e depois a banda
voltou a tocar. Bem, eles que levassem para lá todos os
trocos das redondezas; um homem que vive até à minha idade e
não sabe quando deve desistir é um idiota. Sobretudo porque não me diz
respeito. Se ela fosse minha filha, isso era outra coisa, porque nem
ia ter tempo para essas coisas; ia era ter de trabalhar para encher a
barriga a um punhado de inválidos, idiotas e
negros, mas como é que eu ia ter cara de levar alguém lá a casa? Tenho
muito respeito pelas pessoas para lhes fazer isso. Eu sou
homem, tenho de aguentar, são a minha família, e gostava de ver a cor
dos olhos do homem que faltasse ao respeito a alguma mulher que fosse
minha amiga, quem o faz são o raio destas mulheres que se dizem boas
almas, ainda gostava de encontrar uma mulher honesta e temente a Deus
que chegasse aos calcanhares da Lorraine, puta ou não. É o que eu lhe
digo, se resolvesse casar- -me sabe bem que ficava toda inchada e ela
diz o que eu quero é que sejas feliz e cries uma família em vez de te
matares a trabalhar para nós. Mas qualquer dia desapareço e nessa
altura podes arranjar uma mulher mas nunca encontrarás uma mulher que
te mereça e eu digo que sim que arranjava. Sabe tão bem como eu q
ue se levantava logo da campa. E eu digo não muito obrigado já tenho
mulheres que cheguem para me dar trabalho, se me casasse ia acabar por
descobrir que ela era drogada ou coisa assim. É só o que nos falta na
família, digo eu.
O sol já se tinha escondido por detrás da Igreja Metodista, e os
pombos esvoaçavam em torno do campanário; quando a banda se calou
ouvi-os a arrulhar. Ainda não tinham passado quatro meses desde o
Natal, e eles já eram mais do que nunca. Cá para mim, o Padre Walthall
apanhava umas boas barrigadas. Até parecia que andávamos a matar
pessoas, pela maneira como ele pregava e como se agarrava às nossas

espingardas quando eles vinham em bando. Falava da paz na terra, da
boa vontade entre os homens e nem um pardal no chão. Mas a ele que lhe
importa quantos são, ele não rem nada que fazer: que lhe interessa a
ele
220
que horas são. Não paga impostos, não tem de ver o seu dinheiro ir
todos os anos para a limpeza do relógio do tribunal para funcionar
sempre bem. Pagavam quarenta e cinco dólares a um homem para o limpar.
Contei para mais de cem pombos novos
no chão. Pensar-se-ia que seriam suficientemente espertos para
deixarem a cidade. Ainda bem que eu não tenho mais laços que me
prendam do que um pombo, hei-de dizer-lhe esta.
A banda tocava outra vez, era uma música rápida e aguda, como se
estivessem prestes a acabar. Eles deviam estar a gostar. Talvez
levassem para casa música que chegasse para os entreter enquanto
faziam os vinte ou vinte e cinco quilómetros de regresso, desatrelavam
a carroça na escuridão, davam de comer aos
animais e ordenhavam as vacas. Tudo o que tinham de fazer era
assobiarem as melodias, contarem as piadas aos habitantes dos
estábulos e calcularem o que tinham poupado por não levarem também os
animais ao espectáculo. Podiam calcular que se um
homem tivesse cinco filhos e sete mulas, ganhava vinte e cinco
cêntímos se levasse a família toda ao espectáculo. Tão simples como
isto. O Earl apareceu com dois embrulhos.
- Aqui está mais mercadoria - diz ele. - Onde está o Job?
- Foi ao espectáculo, acho eu - digo eu. - Não o deve ter vigiado bem.
- Ele não se escapava assim - diz ele. - Nesse eu posso confiar.
- Está a referir-se a mim - digo eu.
Foi até à porta e pôs-se a olhar lá para fora, de ouvido à escuta.
- É uma bela banda - diz ele. - já era altura de terminarem.
- A menos que tenham resolvido tocar pela noite fora digo eu. As
andorinhas já tinham começado a chegar e ouvia os pardais a invadirem
as árvores do pátio do tribunal. De vez em
quando avistava um bando a esvoaçar por cima do telhado, desaparecendo
em seguida. Cá para mim são tão incomodativos
como os pombos. Por causa deles nem nos podemos sentar um bocado nos
bancos do pátio do tribunal. Mal nos sentamos, zás. Mesmo em cheio no
chapéu. Mas era preciso sermos milionários para os conseguirmos matar
a todos, a cinco cêntimos cada
221
tiro. Se ao menos deitassem veneno na praça, viam-se livres deles de
um dia para o outro, e se um comerciante não for capaz de impedir a
sua criação de andar a correr pela praça fora, o melhor é negociar
noutra coisa além de Lplínhas, qualquer coisa que não coma, como por
exemplo charruas ou cebolas. E se um homem não alimentar os seus cães,
é sinal que já não os quer ou que não devia tê-los. É o que eu digo,
se todos os negócios de uma cidade forem geridos como os negócios do
campo, acabamos por ter
uma cidade do campo.
- Não vai adiantar grande coisa se acabarem agora - digo eu. - Têm
de se apressar e meter-se à estrada, se quiserem chegar a casa antes
da meia-noite.
- Bem - diz ele -, o que importa é que se divirtam. Deixá-los gastar
algum dinheiro num espectáculo de vez em quando. Os lavradores que vêm
dos montes trabalham muito e
ganham pouco.
- Ninguém os obriga a cultivarem a terra dos montes digo eu. - Ou
qualquer outra terra.
- O que seria de ti e de mim, se não fossem os lavradores? diz ele.

- Eu cá já estava em casa a estas horas - digo eu. - Deitado na cama
com um saco de gelo na cabeça.
- Tens essas dores de cabeça muitas vezes - diz ele. - Por que não
vais a um bom dentista? Ele examinou-te bem os dentes esta manhã?
- Ele quem? - digo eu.
- Esta manhã disseste que ias ao dentista.
- É contra eu ter uma dor de cabeça nas horas de expedien- te? - digo
eu. - É isso? - Eles já vinham a atravessar a rua, de regresso do
espectáculo.
Lá vêm eles - diz ele. - Acho que o melhor é ir para a
porta da loja. - E lá foi. É curioso que, seja do que for que urna
pessoa se queixe, os homens nos digam todos para irmos ao dentista e
as mulheres para nos casarmos. E é sempre alguém que nunca fez grande
coisa na vida que nos vem dizer como havemos de governar a nossa. É
como esses professores da universidade, que nem um par de peúgas têm
de seu, a ensinarem-nos como
222
ganhar um milhão em dez anos, e uma mulher que nem marido conseguiu
arranjar a dar-nos conselhos sobre como criar uma família.
O velho Job chegou com a carroça. Parou e levou o seu tempo a enrolar
as rédeas à volta do cabo do chicote.
- Então - digo eu. - Foi bom o espectáculo?
- Ainda lá não fui - diz ele. - Mas esta noite hei-de ir dê lá por
onde dê.
- Uma ova é que não foste - digo eu. - Desde as três horas que ninguém
te vê. Mr. Earl esteve mesmo agora aqui à tua procura.
1
- Andei a trará da minha vida - diz ele. - Mr. Earl sabe ond'é qu'eu
fui.
- Podes enganá-lo à vontade - digo eu. - Eu não digo nada.
- O Ben é o único qu'eu podia tentá enganá - diz ele. Porqu'havia eu
de tentá enganá um home que tanto se me dá qu'o veja sábado à noite
como não? A si não tent'enganá-lo diz ele. - É esperto de mais pa mim.
É si sinhô - diz ele, fingindo-se muito ocupado a meter cinco ou seis
embrulhos
pequenos na carroça. - É esperto de mais pa mim. Não há home nesta
cidade que se lh`acompare em esperteza. Até engana um home que chega a
ser esperto de mais pa ele mesmo.
E quem é ele? - digo eu. É Mr. Jason Compson - diz ele. - Toc'andar,
Dan! Uma das rodas estava prestes a saltar. Fiquei a olhar para ver se
ele saía da rua antes de ela saltar. É o que dá meter um veículo nas
mãos de um negro. Eu digo essa traquitana está uma
miséria e a senhora há-de conservá-la na cocheira por mais cem
anos só para esse rapaz poder ir ao cemitério uma vez por semana. E
digo ainda ele não é o primeiro a ter de fazer coisas de que não
gosta. Cá por mim obrigava-o a ir no carro, como deve ser, ou então
ficava em casa. Ele sabe lá onde vai ou como vai, e nós a termos de
manter uma caleche e um cavalo só para ele ir passear aos sábados à
tarde.
Bem se ralava o Job se a roda ia saltar ou não, desde que depois não
tivesse de andar muito até casa. É o que eu digo, o
223
lugar deles é no campo, a trabalharem do nascer ao pôr-do-sol. Não
suportam nem a prosperidade nem o trabalho leve. É deixá-los privar
com os brancos e já não valem nem o trabalho de os matarmos. Ficam de
tal maneira que nos enrolam com toda a facilidade mesmo debaixo do
nosso nariz, como o Roskus, cujo único erro foi ter morrido um dia por
distracção. Passam a vida a preguiçar, a roubar e a tentarem levar-nos
na conversa, levar-nos na conversa, até que um dia não temos outro

remédio senão dar-lhes uma rareia e mandá-los embora. Bem, o Earl lá
sabe. Mas eu, se fosse ele, não queria ver o meu negócio anunciado
pela cidade por um negro trôpego e uma carroça que de cada vez
que dava uma curva parecia que se partia toda.
O sol era agora apenas um reflexo no céu, e lá dentro já começava a
ficar escuro. Fui até à porta. A praça estava deserta. O Earl estava
lá atrás a fechar o cofre e o relógio começou a dar horas.
- Fecha tu a porta das traseiras - diz ele. Fui lá fechá-la e voltei
para a loja. - Se calhar vais logo ao espectáculo - diz ele.
- Ontem dei-te umas entradas, lembras-te?
- Claro - digo eu. - Quere-as de volta?
- Não. Não - diz ele. - Só já não me lembrava se tas tinha dado ou
não. Era uma pena desperdiçá-las.
Trancou a porta, disse Boa-noite e foi-se embora. Os pardais
chilreavam ainda nas árvores, mas a praça estava deserta tirando meia
dúzia de carros. Estava um Ford parado diante do bar; mas
nem para ele olhei. Sei quando já tenho a minha conta. Não me importo
de tentar ajudá-la, mas sei quando tenho a minha conta. Acho que podia
ensinar o Luster a guiar e assim já podia andar atrás dela o dia
inteiro se quisesse, e eu podia ficar em casa a brincar com o Ben.
Entrei e comprei dois charutos. Depois resolvi tomar mais um
comprimido para as dores de cabeça só para prevenir, e fiquei por ali
a dar dois dedos de conversa.
- Então - diz o Mac. - Ouvi dizer que este ano apostou nos Yankees.
- Para quê? - digo eu.
- Na Pennant - diz ele. - Não há ninguém na Liga que lhes ganhe.
224
- Isso é que era bom - digo eu. - Têm os dias contados digo eu. -
julga que uma equipa pode ter uma sorte daquelas toda a vida?
- Eu não lhe chamo sorte - diz o Mac.
- Eu nunca apostaria em nenhuma equipa onde jogasse esse gajo, o Ruth
- digo eu. - Mesmo que soubesse que ia ganhar.
- Ah não? - diz o Mac.
- Posso dizer o nome de uma dúzia de jogadores em cada liga que são
melhores que ele - digo eu.
- O que é que você tem contra o Ruth? - diz o Mac.
- Nada - digo eu. - Não tenho nada contra ele. Nem sequer gosto de
olhar para a fotografia dele. - Vim-me embora. As luzes começavam a
acender-se e as pessoas regressavam a casa' Às vezes os pardais só se
calavam quando era já noite fechada. Na noite em que colocaram os
candeeiros novos junto do tribunal eles acordaram e passaram a noite a
esvoaçar à volta do edifício e a irem de encontro ás lâmpadas. Andaram
nisto duas ou três noites, até que uma manhã tinham desaparecido
todos. Mas passados cerca de dois meses, voltaram outra vez.
Meti em direcção a casa. As luzes ainda não estavam acesas, mas eles
haviam de estar todos à janela e a Dilsey a resmungar na cozinha como
se fosse a comida dela que tinha de manter quente até eu chegar. Quem
a ouvisse havia de pensar que só havia uma ceia no mundo, e era a que
ela tinha de manter à espera por alguns minutos por minha causa. Bem,
pelo menos daquela vez não encontrei o Ben e o negro dele pendurados
no portão como o urso e o macaquínho no jardim zoológico. É só chegar
o pôr-do-sol e lá vai ele para o portão como uma vaca para o estábulo,
pendurando-se nele, a abanar a cabeça e a gemer. É para aprender. Se o
que lhe tinha acontecido por brincar com portões abertos me tivesse
acontecido a mim, nunca
mais queria ver um portão na minha vida. Perguntava-me muitas vezes no
que estaria ele a pensar enquanto se pendurava no portão a ver as
miúdas virem da escola, a tentar querer qualquer coisa que ele já não
podia nem queria ter. E o que pensaria ele quando eles o estavam a
despir e ele olhava para o seu corpo e desatava a chorar como sempre

fazia. Mas é o que eu digo ainda
225
o deviam fazer mais vezes. E digo mais, eu sei do que tu precisas do
que tu precisas é do que eles fizeram ao Ben e então ias portar-te
como deve ser. E, se não sabes o que foi que lhe fizeram, pede à
Dilsey que te conte.
Havia luz no quarto da Mãe. Arrumei o carro e entrei pela cozinha. O
Luster e o Ben estavam lá.
- Onde está a Dilsey? - digo eu. - A pôr a ceia na mesa?
- Tá lá em cima cá Miss Wine - diz o Luster. - Aquilo é que tem sido.
Desde que Miss Quentin chegou. A minha mãe tá lá em cima pá elas não
se pegarem. O espectáculo já chegou, Mr. Jason?
-já - digo eu.
- Pareceu-me ouvi a banda - diz ele. - Quem me dera ir diz ele. - E ré
podia, se tivesse vinte cinco cêntimos. A Dilsey apareceu. - Ah já
chegou - diz ela. - Qu@andou a fazê té à noite? Sabe qu'eu tenho muito
que fazê; porque não chegou a horas?
- Se calhar fui ao espectáculo - digo eu. - A ceia já está pronta?
- Quem me dera ir - diz o Luster. - E podia se tivesse a minha moeda.
- Não tens nada qu'ir pó espectáculo - diz a Dilsey. - Vai pá casa e
fica manso - diz ela. - Não vás lá pá cima pô-lo a
chorá outra vez.
- O que é que se passa? - digo eu.
- A Quentin entrou há bocadinho e disse qu'o menino andou a segui-Ia
toda a tarde e então Miss Cá line deu-lhe uma descompostura. Porque
não a deixa em paz? Não é capaz de vivê
na mesma casa com a sua própria sobrinha sem brigá co ela?
- Não posso brigar com ela - digo eu - porque não a vejo desde esta
manhã. O que é que ela diz que eu fiz desta vez? Que a obriguei a ir à
escola? Que malvadez! - digo eu.
- É tratá da sua vida e deixá a dela em paz - diz a Dilsey. Eu tomo
conta dela s'o menino e Miss Cá line deixarem. Vá lá para dentro e
porte-se bem até eu pôr a sopa na mesa.
- S'ao menos eu tivesse a minha moeda - diz o Luster podia ir 6
espectáculo.
226
- E se tivesses asas podias voar pó céu - diz a Dilsey. Não quero ouvi
falá mais nesse espectáculo.
- É verdade - digo eu. - Tenho aqui dois bilhetes que eles me deram. -
Tirei-os do casaco.
- Tá a pensá usá-los? - diz o Luster.
- Eu não - digo eu. - Não ia lá nem que me dessem dez dólares.
- Atão dê-m@um, Mr. Jason - diz ele.
- Vendo-te um - digo eu. - Que tal?
- Mas eu não tenho dinheiro - diz ele.
- Que pena - digo eu. Fingi que me ia embora.
- Dê-fiium, Mr. Jason - diz ele. - Não vai precisá dos dois.
- Cala a boca - diz a Dilsey. - Não sabes qtMe nunca dá nada a
ninguém?
- Quanto quê por ele? - diz ele.
- Cinco cêntimos - digo eu.
- Não tenho que chegue - diz ele.
- Paciência - digo eu. E dirigi-me para a porta.
- Mr. Jason - diz ele.
- Porque não te calas? - diz a Dilsey. - Ele tá só a arreliar- -te.
Ele vai usá os bilhetes. Vá-s,embora, Jason, e deixe-o em paz.
- Eu não os quero para nada - digo eu. Voltei para junto do fogão. -
Entrei aqui para os queimar. Mas se quiseres comprar um por um
níquel... - digo eu, olhando para ele e abrindo a porta da fornalha.

- Eu não tenho tanto dinheiro - diz ele.
- Paciência - digo eu. - Deitei um dos bilhetes para dentro do fogão.
- Oh, Jason - diz a Dilsey. - Não tem vergonha?
- Mr. Jason - diz ele. - Po'favô, siô. Eu conserto-lh`os pneus todos
os dias durante um mês.
- É do dinheiro que eu preciso - digo eu. - É teu por um níquel.
- Cala-te, Luster - diz a Dilsey. E deu-lhe um empurrão. Vá - diz ela.
- Deite-o lá pa dentro. Vá lá. Acabe lá co'isso.
- É teu por um níquel - digo eu.
227
- Vá lá - diz a Dilsey. - Ele não tem um níquel. Vá. Deite-o lá pa
dentro.
- Então está bem - digo eu. Deitei-o lá para dentro e a Dilsey fechou
a porta do fogão.
- Um homem do seu tamanho - diz ela. - Fora da minha cozinha. Caluda -
diz ela ao Luster. - Queres qu'o Benjy comece? Logo eu peço vinte e
cinco cêntimos à Frony e amanhã vais. Agora cala-te.
Fui para a sala. Não conseguia ouvir nada do que se passava lá em
cima. Abri o jornal. Daí a pouco o Ben e o Luster entraram. O Ben foi
para o sítio escuro da parede onde costumava
estar o espelho, e pôs-se a esfregar as mãos na mancha, a gemer e a
choramingar. O Luster pôs-se a atiçar o lume.
- Que estás a fazer? - digo eu. - Hoje não é preciso acender o lume.
- É pa vê s'ele se cala - diz ele. - A Páscoa é sempre muito fria -
diz ele.
- Só que não estamos na Páscoa - digo eu. - Deixa o lume em paz.
Ele pousou o atiçador, foi buscar a almofada à cadeira da Mãe, deu-a
ao Ben e ele encolheu-se em frente da lareira e calou-se.
Comecei a ler o jornal. Continuava a não se ouvir nada lá em cima
quando a Dilsey entrou e mandou o Ben e o Luster para a cozinha,
dizendo que a ceia estava pronta.
- Está bem - digo eu. Ela saiu. Eu fiquei sentado a ler o jornal. Daí
a nada vi a Dilsey a espreitar à porta.
- Por que não vem comê? - diz ela.
- Estou à espera da ceia - digo eu.
- já tá na mesa - diz ela. - já o chamei.
- Ah sim? - digo eu. - Mas não ouvi ninguém descer.
- Elas não vêm - diz ela. - Venha o menino comê, pa eu depois lhes
levá qualqué coisa lá cima.
- Então estão doentes? - digo eu. - E o que disse o médico? Espero que
não seja varíola.
- Venha lá, Jason - diz ela. - Pa vê s'eu me despacho.
- Está bem - digo eu, e peguei outra vez no jornal. Estou à espera da
ceia.
228
Sentia o olhar dela a observar-me da porta. Continuei a ler o jornal.
- Pa que faz isso - diz ela - q'ando sabe bem todo o trabalho qu'eu
tenho?
- Se a mãe estiver pior do que estava quando veio almoçar, então está
bem - digo eu. - Mas enquanto eu pagar a comida de pessoas mais novas
do que eu, elas têm de vir comê-la à mesa.
Avisa-me quando a ceia estiver pronta - digo eu, voltando para
o meu jornal. Ouvi-a subir as escadas, a arrastar os pés, a gemer
e a queixar-se, como se os degraus fossem a pique e tivessem um metro
de altura. Ouvi-a parar junto à porta do quarto da Mãe, depois ouvi-a
chamar a Quentin, que devia ter a porta fechada à chave, e depois
voltar para o quarto da Mãe e então foi a Mãe que foi chamar a
Quentin. Finalmente vieram para baixo. Eu continuava a ler o jornal.
A Dilsey voltou a aparecer à porta da sala. - Venha - diz ela. -Antes

que se lembre dout'a maldade. Esta noite ninguém
o atura.
Fui para a casa de jantar. A Quentin estava sentada de cabeça baixa.
Tinha-se pintado outra vez. O nariz dela parecia um isolador de
porcelana.
- Ainda bem que se sente com disposição de vir comer à mesa - digo eu
à Mãe.
- É o mínimo que posso fazer por ti, vir comer à mesa diz ela - por
muito mal que me sinta. Sei muito bem que quando um homem trabalha o
dia todo gosta de se ver rodeado pela família à hora da ceia. E eu
gosto de te ver contente. Só queria que tu e a Quentin se dessem
melhor. Ficava muito mais tranquila.
- Nós damo-nos bem, sim - digo eu. - Não me importo que ela fique
fechada no quarto o dia todo se lhe apetecer. Mas não estou disposto a
aturar amuos e disparates à hora das refeições. Sei que é pedir-lhe de
mais, mas é assim que eu quero as coisas em minha casa. Na sua casa,
queria eu dizer.
- A casa é tua - diz a Mãe. - Agora és tu o chefe de família. A
Quentin ainda não tinha levantado os olhos da mesa. Eu servi os pratos
e ela começou a comer.
229
- Apanhaste um bocado bom de carne? - digo eu. - Se não gostas, posso
escolher um melhor.
Não respondeu.
- Estás a ouvir, apanhaste um bocado bom de carne? digo eu.
- O quê? - diz ela. - Sim. Está bom assim.
- Vê lá se queres mais um bocadinho de arroz? - digo eu.
- Não - diz ela.
- Deixa-me só pôr mais um bocadinho - digo eu.
- Não quero mais - diz ela.
- Obrigada - digo eu. - Não tens de quê.
- A dor de cabeça já te passou? - diz a Mãe.
- Que dor de cabeça? - digo eu.
- Pensei que estavas a ficar com dores de cabeça - diz ela. Esta
tarde, quando vieste a casa.
- Ali, isso - digo eu. - Não, não chegaram a aparecer. Tivemos tanto
que fazer esta tarde que até me esqueci delas.
- Foi por isso que chegaste tão tarde? - diz a Mãe. Percebi que a
Quentin era toda ouvidos. Olhei para ela. O garfo e a faca não
pararam, mas apanhei-a a olhar para mim, baixando rapidamente os olhos
para o prato. E então digo:
- Não. Emprestei o meu carro a um tipo por volta das três horas e tive
de esperar que ele mo trouxesse. - Continuei a comer.
- Quem era ele? - diz a Mãe.
- Era um daqueles artistas que estão na cidade - digo eu.
Parece que o marido da irmã dele andava aí pela cidade com uma mulher
e ele queria ir atrás deles.
A Quentin continuou a mastigar, perfeitamente imóvel.
- Não devias emprestar o teu carro a gente dessa - diz a Mãe. - És bom
de mais. É por isso que, se eu puder evitá-lo, nunca te peço nada.
-A certa altura eu também fiquei com receio - digo eu. Mas ele voltou
sem novidade. Disse que tinha encontrado o que procurava.
- Quem era a mulher? - diz a Mãe.
- Eu depois digo-lhe - digo eu. - Não gosto de falar destas coisas à
frente da Quentin.
230
A Quentin já tinha acabado de comer. De vez em quando bebia água, e
depois pôs-se a esmigalhar uma bolacha, com a
cara quase em cima do prato.

- Pois é - diz a Mãe. - Acho que as mulheres que passam o dia fechadas
em casa como eu não fazem a mínima ideia do que se passa nesta cidade.
- Pois é - digo eu. - Não fazem mesmo.
- A minha vida foi tão diferente - diz a Mãe. - Graças a
Deus que não sei nada dessas coisas ruins. E nem quero saber. Não sou
como muita gente.
Eu não disse mais nada. A Quentin ficou ali a esmigalhar a
bolacha até eu acabar de comer. Depois, sem olhar para ninguém, disse:
- Posso levantar-me?
- O quê? - digo eu. - Claro que podes. Estavas à nossa espera?
Ela olhou para mim. já tinha esmigalhado o pão todo, mas as
mãos dela continuavam a mexer como se ainda estivessem a esmigalhar
alguma coisa, e os olhos eram os de alguém que se
sentia acossada ou coisa assim, e depois começou a morder os lábios
como se quisesse envenenar-se com tanta vermelhidão.
- Avó - diz ela. - Avó...
- Queres comer mais alguma coisa? - digo eu.
- Por que é que ele me trata assim, Avó? - diz ela. - Eu não lhe faço
mal nenhum.
- Eu quero que vocês se dêem todos bem - diz a Mãe. São tudo o que me
resta agora, e quero que passem a dar-se melhor.
- A culpa é dele - diz ela. - Ele não me deixa em paz, e eu
tenho de o aturar. Se ele não me quer aqui, por que não me deixa
voltar para...
- Chega - digo eu. - Nem mais uma palavra.
- Então por que não me deixa ele em paz? - diz ela. Ele... Ele só...
- Ele é o pai que tu nunca tiveste - diz a Mãe. ele que compra
o pão que nós comemos. É natural que queira que tu lhe obedeças.
231
A culpa é dele - diz ela. Deu um salto. - Ele obriga-me a ser assim.
Se ele ao menos... - olhou para nós, com uns olhos acossados, abanando
os braços, pendidos ao longo do corpo.
- Se eu ao menos o quê? - digo eu.
- Tudo o que eu fizer a culpa é tua - diz ela. - Se eu sou má, é
porque tenho de ser assim. És tu que me obrigas. Quem me dera morrer.
Quem dera que morrêssemos todos. - Saiu a correr. Ouvimo-la pela
escada acima. Depois a porta bateu.
- É a primeira coisa acertada que lhe ouvi dizer - digo eu.
- Ela hoje não foi à escola - diz a Mãe.
- Como é que sabe? - digo eu. - Esteve na cidade?
- Sei, é tudo - diz ela. - Gostava que não fosses tão duro com ela.
Se eu fizesse isso, tinha de arranjar maneira de a ver mais de uma vez
ao dia - digo eu. - Tem de a obrigar a vir para a mesa a todas as
refeições. Assim, podia dar-lhe mais um bocado de carne a cada
refeição.
- Há pequenas coisas que podias fazer - diz ela.
- Como por exemplo não ligar nenhuma quando a Mãe me pede que veja se
ela vai à escola? - digo eu.
Ela hoje não foi à escola - diz ela. - Sei que não foi. Ela diz que
esta tarde foi passear de carro com um rapaz e que tu a seguiste.
Como é que eu podia ter feito uma coisa dessas - digo eu
se andava outra pessoa com o meu carro? Se ela foi à escola ou não
isso agora já não interessa - digo eu. - Se se quer preocupar com
isso, espere até segunda-feira.
Eu queria tanto que tu e ela se dessem bem - diz ela. Mas ela herdou a
obstinação toda da família. E do Quentin também. Na época pensei darlhe
este nome para reforçar a herança que já trazia. Às vezes penso
que ela é o instrumento de vingança da Caddy e do Quentin sobre mim.
Meu Deus - digo eu. - Que cabeça complicada a sua.
Não admira que ande sempre doente.

- Como? - diz ela. - Não estou a entender.
- Espero bem que não - digo eu. - Uma mulher digna não entende muita
coisa que é melhor nem saber.
232
- Eram os dois assim - diz ela. - Quando eu tentava corrigi-los,
punham-se logo ao lado do teu pai contra mim. Ele passava a vida a
dizer que eles não precisavam de ser controlados, que já sabiam muito
bem o que era a pureza e a honestidade, que é tudo o
que se pode ensinar a alguém. Espero que ele agora esteja satisfeito.
- A senhora tem o Ben. - digo eu. - Anime-se.
- Eles mantiveram-me deliberadamente fora da vida deles
- diz ela. - Era sempre ela e o Quentin. Sempre a conspirarem contra
mim. E contra ti também, embora tu fosses muito pequeno para
perceberes. Olharam-te sempre a ti e a mim como dois estranhos, como
faziamcom o Tio Maury@ Eu sempre disse ao teu pai que tinham liberdade
a mais, que andavam de mais um
com o outro. Quando o Quentin entrou para a escola tivemos de a deixar
ir logo no ano seguinte, para poder estar ao pé dele. Ela não
suportava que algum de vocês fizesse alguma coisa que ela não pudesse
fazer. já era a vaidade, a vaidade e o falso orgulho. E depois quando
a vida dela se começou a complicar eu
sabia que o Quentin ia achar que tinha de fazer também qualquer coisa
ruim. Mas nunca acreditei que ele pudesse ser egoísta ao ponto de...
Nunca imaginei que...
- Talvez ele soubesse que ia ser uma rapariga - digo eu.
E que outra como ela era mais do que ele podia suportar.
- Ele podia tê-la dominado - diz ela. - Ele parecia ser a
única pessoa por quem ela tinha alguma consideração. Mas isso também
faz parte da vingança, acho eu.
- Enfim - digo eu. - Foi uma pena não ter ido eu no lugar dele. A
senhora agora estaria muito melhor.
- Dizes isso só para me magoares - diz ela. - Mas eu mereço. Quando
começaram a vender as terras para o Quentin poder ir para Harvard
disse ao teu pai que ele devia dar-te o valor equivalente. Depois,
quando o Herbert se ofereceu para te levar para o banco eu disse O
Jason já tem um emprego e quando as
despesas começaram a subir e eu me vi forçada a vender a inobilia e o
resto das pastagens, escrevi-lhe imediatamente a dizer que ela tinha
de compreender que ela e o Quentin já tinham recebido a parte deles e
um bocado da parte do Jason também e que dependia agora dela compensar
o irmão. Disse-lhe que devia
233
isso ao pai. Na altura ainda acreditava nessas coisas. Mas não passo
de uma pobre velha; fui criada a acreditar que as pessoas eram capazes
de renunciarem a si mesmas para ajudarem a família. A culpa é minha.
Tiveste razão em me recriminares.
- Julga que eu preciso da ajuda de alguém para governar a minha vida?
- digo eu. - E muito menos de uma mulher que nem pode dizer quem é o
pai da própria filha.
- jason! - diz ela.
- Pronto - digo eu. - Não quis dizer isso. Sabe bem que não.
- Se eu achasse que isso era possível, depois de tudo o que já sofri.
- Claro que não - digo eu. - Não quis dizer isso.
- Espero ao menos ser poupada a isso - diz ela.
- Claro que sim - digo eu. - Ela parece-se demais com eles para
termos dúvidas.
- Não ia suportar uma coisas dessas - diz ela.
- Então não pense mais nisso - digo eu. - Ela tem-na continuado a
aborrecer para sair à noite?

- Não. Fi-la entender que era para o bem dela e que um dia ainda me
havia de agradecer. Leva os livros para o quarto e fica lá a estudaL
Às vezes são onze horas e a luz ainda está acesa.
- Como sabe que ela está a estudar? - digo eu.
- Não sei que mais havia de estar a fazer lá sozinha? - diz ela. -
Nunca foi de grandes leituras.
- Não - digo eu. - A senhora não sabe, e dê graças a Deus digo eu. Mas
para quê dizê-lo em voz alta. Só se fosse para ela me começar a chorar
no ombro outra vez.
Ouvi-a subir as escadas. Depois chamou a Quentin e a Quentin, de
dentro do quarto, diz O que é? Boa-noite, diz a
Mãe. Depois ouvi a chave rodar na fechadura e a Mãe ir para o quarto.
Quando terminei o charuto e fui para cima, a luz ainda estava acesa.
Via a fechadura vazia, mas não ouvi barulho. O estudo era silencioso.
Talvez tivesse aprendido isso na escola. Dei as boas-noites à Mãe, fui
para o meu quarto, tirei a caixa e contei-o outra vez. Ouvia o Grande
Capão dos Estados Unidos a roncar
234
como uma plaina mecânica. Li algures que fazem isso aos homens para
eles ficarem com voz de mulher. Talvez ele não soubesse o que lhe
tinham feito. Acho que ele nem sabia o que tinha tentado fazer, ou por
que razão Mr. Burgess lhe batera com uma
estaca que arrancou da vedação. E se o tivesse mandado para Jackson
enquanto estava sob os efeitos do éter, ele não ia dar pela diferença.
Mas isso era simples de mais para passar pela cabeça de um Compson.
Tinha de ser pelo menos duas vezes mais complicado. Esperarem para
fazer isso até ele fugir e tentar atirar-se a uma garota no meio da
rua na frente do pai e tudo. Bem, é o que eu digo, começaram tarde
derríais com os cortes e acabaram demasiado cedo. Sei pelo menos de
mais dois que precisavam de qualquer coisa do gênero, e um deles não
está nem a dois quilómetros de distância. Mas acho que nem isso ia
valer de alguma coisa. É o que eu digo, quem nasce puta morre puta. Só
queria vinte e quatro horas sem ter um desses malditos judeus de Nova
lorque a dizer-me o que se deve fazer. Não quero ganhar uma fortuna;
isso é coisa para papalvos. Só quero uma oportunidade de recuperar o
meu dinheiro. E quando isso acontecer podem trazer cá para casa os
bordéis em peso e os manicómios e então podem dormir dois na
minha.cama e outro pode ficar com o meu lugar à mesa.
Oito de Abril de 1928
O dia amanheceu frio e fristonho, trazendo de nordeste uma muralha de
parda luminosidade que, em vez de se dissolver em humidade, parecia
desintegrar-se em minúsculas partículas venenosas, quase pó, que,
quando a Dilsey abriu a porta do casebre e
se assomou ao relento, se lhe infiltraram lateralmente pela carne,
deixando uma camada, não de gotículas de água, mas de uma substância
semelhante na textura a um óleo muito fino e semi-solidificado. Trazia
um chapéu rígido de palha todo preto plantado em cima do turbante e
uma capa de veludo castanho, com uma barra de pele indefinida e
carcomida por cima de um vestido de seda de cor púrpura, e ficou
parada à porta, erguendo para o ar
o rosto milenário e encovado e uma mão descarnada de palma mole como a
barriga de um peixe, a testar a atmosfera, afastando em seguida a capa
para o lado e examinando a frente do vestido.
O vestido caía-lhe solto desde os ombros sobre os peitos descaídos,
cintava ligeiramente sobre o ventre e alargava de novo
para baixo, em balão, sobre os saiotes de tons esplêndidos, mas
esvaídos, que ela ia tirando um a um à medida que a Primavera avançava
e os dias quentes se instalavam. Outrora de fartas carnes, o seu
esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o

embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico,
como se tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força de que
os dias e os anos se tinham alimentado, até nada mais restar além do
indomável esqueleto, erecto como ruína ou marco milenário sobre as
sonolentas e imperscrutáveis entranhas, e encimado por um rosto
descarnado, onde os próprios ossos pareciam sair da carne, um rosto
que ela virava
237
para o dia que nascia com uma expressão a um tempo fatalista e
de pueril desilusão, após o que deu meia volta, entrou em casa e
fechou a porta.
O terreno junto à porta era pelado, coberto de uma espécie de pátina
do pisar de gerações de pés descalços, semelhante a
prata velha ou às paredes das casas mexicanas caiadas à mão. Ao lado
da casa, dando-lhe sombra no Verão, havia três amoreiras de folhas
cobertas de penugem que mais tarde se abririam plácidas e lisas como a
palma de uma mão ondulando ao sabor das brisas. Um casal de gaios
surgidos do vazio rodopiou com as rajadas como tiras de pano ou de
papel de cores garridas e pousou num ramo de amoreira, onde ficou a
baloiçar-se para baixo e
para cima soltando pios guturais e lançando gritos ao vento, que o
vento dilacerava e propagava como tiras de papel ou de pano. E logo
mais três se lhes juntaram e todos se baloiçavam e saltitavam nos
ramos retorcidos, sem pararem de gritar. A porta do casebre abriu-se e
Dilsey apareceu mais uma vez, agora de chapéu de feltro, à homem, e
capote militar de bainha esfiapada, por baixo do qual caía em tufos
incertos um vestido azul de algodão, que ondulava em torno dela quando
atravessou o pátio e
subiu os degraus da entrada da cozinha.
Voltou a aparecer daí a nada com um chapéu-de-chuva aberto, que virava
contra o vento, foi até à pilha de lenha e pousou o chapéu-de-chuva,
mas sem o fechar. Deitou-lhe a mão imediatamente para não voar e ficou
com ele na mão a olhar em volta. Depois fechou-o, deitou-o no chão e
apanhou um braçado de lenha para acender o fogão, apertando-o contra o
peito com o braço em ângulo recto, apanhando em seguida o chapéu-de-
Chuva e abrindo-o finalmente, encaminhando-se de novo para os degraus
com a lenha em equilíbrio precário, enquanto se
esforçava por fechar o chapéu-de-chuva que encostou a um canto mesmo
por detrás da porta. Deitou a lenha para dentro de um
caixote que estava atrás do fogão. Tirou o capote e o chapéu, pôs um
avental imundo que estava pendurado na parede e acendeu o lume no
fogão. Enquanto se entregava a esta tarefa, raspando as barras da
grelha e batendo com as tampas da fornalha, Mrs. Compson começou a
chamá-la do cimo das escadas.
238
Trazia um roupão de cetim preto acolchoado, que apertava com a mão por
baixo do queixo. Na outra mão tinha um saco de borracha vermelho de
água quente e estava ao cimo das escadas das traseiras a gritar
Dilsey, sem inflexão e a espaços cadenciados, gritando pela escada
abaixo, a chamar para a escuridão, que clareava onde se projectava no
chão o reflexo tíbio da janela. Dilsey - chamava ela, sem ênfase,
inflexão ou pressa, como se não esperasse uma resposta. - Dilsey.
Dilsey respondeu, parando de traquinar no fogão, mas, sem lhe dar
tempo de atravessar a cozinha, Mrs. Compson chamou-a outra vez, e
ainda outra, anté's de ela sair pela casa de jantar e a sua cabeça se
assomar na mancha de penumbra da janela.
- Pronto - disse Dilsey. - Pronto, já cá tou. Encho-o assim qt@houvé
água quente. - Apanhou as saias e subiu a escada, tapando a luz. -
Deixe-o aí e volte pá cama.

- Não estava a perceber o que se passava - disse Mrs. Compson. - Há
pelo menos uma hora que estou acordada e não ouvia barulho nenhum na
cozinha.
- Deixe-o ficá e volte pá cama - disse Dilsey. Arrastava-se pela
escada acima, informe, respirando a custo. - O lume tá pronto num
minuto e a água ferve em dois.
- Há pelo menos uma hora que estou acordada - disse Mrs. Compson. -
Pensei que estivesses à espera de que eu descesse para acenderes o
lume.
Dilsey chegou ao cimo das escadas e pegou no saco de água quente. - Tá
pronto num minuto - disse ela. - O Luster deixou-se dormir esta manhã,
esteve até às tantas no tal espectáculo. Eu mesma acendo o lume. Agora
vá, pa não acordar os
outros enquanto eu não tive despachada.
Se deixares o Luster fazer coisas que interferem com o
trabalho dele, tu é que sofres as consequencias - disse Mrs. Compson.
- Se o Jason sabe disto não vai gostar nada. Sabes bem que não.
- Não foi co dinheiro do Jason qiMe lá foi - disse Dilsey. Disso pode
tê a certeza. - Desceu a escada. Mrs. Compson voltou para o quarto.
Quando se metia outra vez na cama ouviu a Dilsey a descer a escada com
uma lentidão dolorosa e aterrado239
ra, que seria de endoidecer se não tivesse cessado depois de ela
passar as portas de batente da copa.
Entrou na cozinha, acendeu o lume e começou a preparar o pequeno
almoço. Deixou-o a meio, foi à janela e olhou na direcção da casa
dela. Depois foi até à porta, abriu-a e gritou para a intempérie:
- Luster! - chamou ela, pondo-se à escuta, desviando a
cara do vento. - Então, Luster! - Escutou de novo, e, quando se
preparava para gritar outra vez, apareceu Luster a dobrar a esquina da
cozinha. _ Siôra? - disse inocentemente, tão inocentemente que
Dilsey o olhou de alto a baixo por um momento, imóvel, com
um olhar que era bem mais que mera surpresa.
- Onde tavas tu metido? - disse ela.
- Em parte nenhuma - disse ele. - Só n'adega.
- Que tavas tu a fazê n'adega? - disse ela. - Não fiques aí à chuva,
meu palerma - disse ela.
- Não tava a fazê nada - disse ele, subindo os degraus.
- Não t'atrevas a entrá por esta porta sem um braçado de lenha - disse
ela. - já tive d'acartá a tua lenha e acendê o teu lume. Não te disse
ontem à noite pa não saíres sem deixares aquele caixote cheio de lenha
inté cima?
- E eu enchi-o - disse Luster.
- Então p'ond'é qu'ela foi?
- Não sei, eu cá não a levei pa lado nenhum.
- Tá bem, então agora enche-o outra vez - disse ela. - E vai lá cima
ver o Benjy.
Fechou a porta. Luster dirigiu-se para a pilha de lenha. Os cinco
gaios esvoaçaram à volta da casa, a gritarem, e voltaram para as
amoreiras. Ele observou-os. Apanhou uma pedra e atirou-lha. - Chôô -
disse ele. - Voltem pé inferno qu'é lá o vosso lugá. Hoje inda não é
segunda-feira.'
Apanhou uma montanha de achas para o fogão. Mas como
não via nada por cima delas, foi a cambalear até aos degraus e
de encontro à porta da cozinha, espalhando algumas. Dilsey
1. Dia em que, segundo a crença local, os gaios, pássaros do inferno,
saíam de lá para descerem à terra. (N. da T)
240
abriu-lhe a porta e ele entrou aos tropeções pela cozinha dentro. -
Então, Luster! - exclamou ela, mas ele já tinha atirado a lenha para

dentro do caixote com grande estrondo. - Safa!
disse ele.
- Queres acordar toda a gente? - disse Dilsey, dando-lhe uma palmada
no pescoço. - E agora vai lá cima e trata de vestires o Benjy.
- Sissiô - disse ele, e dirigiu-se para a porta das traseiras.
- Onde vais? - disse Dilsey.
- Achei qu@era melhor ir de volta e entrá pela frente, pá não acordá
Miss Cá line e os outros. @
- Vai pela escada das traseiras como eu te mandei e trata de vestires
o Benjy - disse Dilsey. - Vá, toc'andar.
- Sissiô - disse Luster. Voltou para trás e saiu pela porta da casa de
jantar. Passado algum tempo a porta deixou de bater. Dilsey preparavase
para fazer bolachas. Enquanto peneirava a farinha para cima da
tábua com mão firme, ia cantarolando, primeiro só para si, uma
cantilena sem música nem palavras, repetitiva, tristonha e chorosa,
austera também, enquanto peneirava e a farinha caía fina e em monte em
cima da tábua do pão. O calor do fogão já começara a aquecer a cozinha
e a enchê-la com o crepitar da lenha, e ela cantava agora mais alto,
como se também a sua voz tivesse descongelado com o calor, e nisto
Mrs. Compson chámou-a outra vez lá de cima. Dilsey levantou a cabeça,
como se os
seus olhos pudessem de facto penetrar nas paredes e no tecto e ver •
velha senhora no alto das escadas com o seu roupão acolchoado, •
chamá-la com maquinal regularidade.
- Valha-me Nosso Sinhô! - disse Dilsey. Pousou a peneira, sacudiu o
avental, limpou as mãos, tirou o saco de água quente da cadeira onde o
tinha deixado e, usando a ponta do avental, pegou na pega da chaleira
que começava a fumegar. - Só um minuto - gritou ela. - A água só agora
é qu'aqueceu.
Porém, não era do saco de água quente que Mrs. Compson precisava; mas
Dilsey, pegando-lhe pelo gargalo como uma galinha morta, chegou-se ao
fundo das escadas e olhou para cima.
- Então o Luster não tá lá em cima co ele? - disse ela.
- O Luster não esteve cá em cima. Tenho estado deitada a ver
241
se o oiço. já sabia que ele se ia atrasar, mas tinha esperança de que
chegasse a tempo de evitar que o Benjamin incomodasse o Jason no único
dia da semana em que o Jason. pode dormir até tarde.
- Não sei com'é que quê cas pessoas consigam dormir consigo aí no
corredô a gritá desde madrugada - disse Dilsey. Começou a subir as
escadas, arrastando-se a custo. - Eu mandei o rapaz aí pa cima há meia
hora.
Mrs. Compson olhava para ela, apertando o roupão rente ao queixo. -
Que vais fazer? - disse ela.
- Vou vesti o Berijy e trazê-lo pá cozinha, ond'ele não acor- de o
Jason nem a Quentin - disse Dilsey.
- já começaste a fazer o pequeno almoço?
- Eu trato disso tamém - disse Dilsey. melhor ir metêse
na cama ré o Luster lhe acendê o lume. Tá muito frio esta manhã.
- Sei bem que está - disse Mrs. Compson. - Tenho os pés que nem gelo.
Estavam tão frios que até acordei. - Ficou a ver Dilsey subir as
escadas, o que foi tarefa demorada. - Sabes
como o Jason fica irritado quando o pequeno almoço se atrasa disse
Mrs. Compson.
- Só posso fazê uma coisa de cada vez - disse Dilsey. Volte pá cama,
antes qtíinda me dê trabalho esta manhã.
- Se vais largar tudo para ires vestir o Benjamin, o melhor é eu ir
para baixo e fazer o pequeno almoço. Sabes tão bem
como eu como o Jason fica quando o pequeno almoço se atrasa.
- E quem é qu'o vai comê? - disse Dilsey. - Sim, diga-me lá. Vá-se

deitar - disse ela, continuando a arrastar-se pela escada acima. Mrs.
Compson estava parada a vê-Ia subir, apoiada à parede com uma mão e a
segurar o roupão com a outra.
- Vais acordá-lo de propósito só para o vestires? - disse ela. Dilsey
parou. Ficou ali, com o pé no ar a caminho do degrau de cima, a mão na
parede e o clarão cinzento da janela atrás das costas, imóvel e
informe, perplexa.
- Então ele 'irida não tá acordado? - disse ela.
- Não estava quando espreitei - disse Mrs. Compson. Mas já está na
hora. Ele nunca acorda depois das sete e meia. Sabes bem que não.
242
Dilsey não disse nada. Não esboçou qualquer gesto, mas, embora não a
pudesse ver a não ser como uma forma indistinta
e sem dimensão, Mrs. Compson sabia que ela tinha baixado um
pouco a cabeça, na postura característica das vacas quando chove, com
o saco de água quente vazio pendurado pelo gargalo.
Não és tu quem sofre as consequencias - disse Mrs. Compson. - A
responsabilidade não é tua. Tu podes ir-te embora. Não tens de
carregar esta cruz dia após dia. Não lhes deves nada a eles, nem à
memória de Mr. Compson. Sei que nunca gostaste do Jason. E também
nunca fizeste nada para disfarçares.
Dilsey não respondeu. Virou-se muito devagar e desceu as escadas,
levando o corpo atrás, degrau a degrau, como fazem as crianças
pequenas, apoiando-se à parede com a mão. - Vá-se deitá e deixe-o em
paz - disse ela. - Não volte lá. Eu mando o Luster assim qu'o
encontrá.
Voltou para a cozinha. Espreitou para o fogão e depois pôs o
avental pela cabeça, o capote pelas costas, abriu a porta do pátio e
olhou para um lado e para o outro. A morrinha batia-lhe na cara,
áspera e miudinha, mas não se via nada que mexesse. Desceu os degraus,
cautelosamente, como se não quisesse fazer barulho, e contornou a
cozinha. Nesta altura apareceu Luster todo lampeiro e inocente a sair
da porta da adega.
Dilsey parou. - Qiandas tu a fazê? - disse ela.
- Nada - disse Luster. - Mr. Jason mandou-me vê donde é que vem a água
que pinga r@adega.
- E quando é qu'ele te mandou fazê isso? - disse Dilsey. Foi no Dia
d'Ano Novo que passou, não foi?
- Achei que podia ir lá vê enquanto eles dormiam - disse Luster.
Dilsey dirigiu-se para a porta da adega. Ele afastou-se e
ela espreitou para baixo, perscrutando a penumbra impregnada de um
cheiro a terra molhada, bolor e borracha.
- Hum! - disse Dilsey. Olhou outra vez para Luster. Ele enfrentou o
seu olhar com uns olhos transparentes, inocentes, francos. - Não sei o
qu'andas a fazê, mas não tens nada de vi p'aqui. Andas a vê se
m'atentas esta manhã, como os outros, não é? Vai já lá cima tratá do
Benjy, ouviste?
243
- Sissiô - disse Luster. E dirigiu-se lesto para os degraus da
cozinha.
- Vem cá - disse Dilsey. - Acarta-me outro braçado de lenha enquanto
aqui estás.
- Sissiô - disse ele. - Passou por ela nos degraus e foi até à pilha
de lenha. Quando daí a pouco foi de encontro à porta novamente, outra
vez invisível e sem ver nada, ajoujado sob o feixe de lenha, Dilsey
abriu a porta e guiou-o pela cozinha fora com mão firme.
- Vá, agora vê lá s'atiras pó caixote outra vez - disse ela. vá.
- Tem de sê - disse Luster, ofegante. - Não pode sê doutra maneira.
- Então fica aí co ela e espera um instante - disse Dilsey. E começou

a arrumar a lenha acha por acha. - Que te deu esta manhã? Té hoje,
sempre que te mandei à lenha nunca trouxeste mais de seis cavacos de
cada vez pa não te cansares. O qu'é que tu me quês pedi agora? Os
músicos inda não se foram embora?
-já, sissiô. já foram. Ela meteu no caixote o último cavaco. - Agora
vai lá cima trará do Benjy com'eu te disse - disse ela. - E não quero
ouvi mais ninguém a chamá por mim do cimo das escadas té eu tocá a
campainha. Tás a ouvir?
- Sissiô - disse Luster. E desapareceu pela porta de batente. Dilsey
deitou mais lenha no fogão e voltou para a tábua do pão, retomando a
cantoria.
A cozinha estava cada vez mais quente. Enquanto andava de um lado para
o outro a juntar os ingredientes necessários para o pequeno almoço, a
pele de Dilsey depressa adquiriu uma tonalidade rica e lustrosa,
comparada com a que a dela e a de Luster tinham antes, como se
estivessem cobertas por uma fina camada de cinza. Na parede, por cima
do aparador, invisível excepto à noite, quando a luz do candeeiro lhe
incidia, e mesmo assim conservando uma certa profundidade enigmática
por ter apenas um ponteiro, soava o tic-tac de um relógio de caixa,
que a certa altura, e depois de emitir um som preliminar como se a
apurar a garganta, acabou por dar cinco badaladas.
244
- Oito horas - disse Dilsey. Parou e levantou a cabeça, para escutar.
Mas só se ouvia o ruído do relógio e do lume. Abriu o forno e olhou
para o tabuleiro, ficando ali curvada enquanto alguém descia a escada.
Ouviu passos na casa de jantar, depois a porta abriu-se e Luster
entrou, seguido de um
homenzarrão que parecia ter sido talhado de um material cujas
partículas não quiseram ou não puderam aderir umas às outras ou à
forma que as moldou. A sua pele era mortiça e sem pêlos; hidrópico
também, movia-se com passo incerto e balançado, como um urso
amestrado. O cabelo era claro e ralo. Tinha sido suavemente escovado
sobre a restá como o dos meninos nos daguerreótipos. Os olhos eram
límpidos, azul pálido como as fidalguinhas-dos-jardins, e a boca de
lábios grossos pendia aberta, deixando escapar um fio de baba.
- Ele terá frio? - disse Dilsey. Limpou as mãos ao avental e tocou-lhe
na mão.
- S'ele não tem, tenho eu - disse Luster. - A Páscoa é sempre fria.
Nunca falha. Miss Ca'line diz que se vomecê não tivé tempo de lhe
prepará o saco d'água quente não faz mal.
- Valha-me Nosso Sinhô - disse Dilsey. Puxou uma cadel- ra para o
canto, e meteu-a entre o caixote da lenha e o fogão. O homenzarrão
sentou-se nela, obediente. - Vai à casa de jantá e
vê ond'é qu'eu pus o saco - disse Dilsey. Luster foi buscar o
saco de água quente à casa de jantar e Dilsey encheu-o e deu-lho.
- Vá despacha-te - disse ela. - Vê s'o Jason já tá acordado. Diz-lhes
que tá tudo pronto.
Luster saiu da cozinha. Ben ficou sentado ao lado do fogão. Deixara-se
cair abandonado na cadeira, sem se mexer, excepto a cabeça, que
balançava sem parar, enquanto fixava em Dilsey o
olhar doce e ausente, seguindo-lhe os movimentos. Luster voltou.
- Ele já tá a pé - disse ele. - Miss Ca'line diz pa pô na mesa. -
Chegou-se para o fogão e estendeu as mãos com as pal- mas para baixo
por cima da fornalha. - Ele já tá a pé - disse ele. - E não tá pa
graças.
- O qu'é qu'aconteceu? - disse Dilsey. - Sai daí. Como é qu'eu posso
fazé alguma coisa contigo em cima do fogão?
- Tenho frio - disse Luster.
245

- Devias tê pensado nisso enquanto tavas lá em baixo dadega - disse
Dilsey. - O qdé qu 'o Jason tem?
- Diz qu'eu e o Benjy partimos o vidro da janela do quarto dele.
E tá mesmo partido? - disse Dilsey. É o qu'ele diz - disse Luster. -
Diz que fui eu.
Corno é qu'isso pode sê, s'ele tem o quarto fechado à chave de dia e
de noite?
- Diz qu'o parti a atirá-lhe pedras - disse Luster.
- E partiste?
- Nassinhô - disse Luster.
- Não mintas, rapaz - disse Dilsey.
- Não fui eu - disse Luster. - Pergunte é Benjy se fui eu. Nem pa lá
olhei.
- Então quem pode tê sido? - disse Dilsey. - Ele tá co'isso qulé só
p1acordá a Quentin - disse ela, tirando o tabuleiro das bolachas do
forno.
- Deve sê - disse Luster. - Gente maluca. Inda bem que não sou
com@eles.
- Não és como quem? - disse Dilsey. - Pois sempre te digo uma coisa,
negrinho duma figa, tens tanta ruindade dos Compsons nesse corpo como
qualquer deles. Tens mesmo a certeza que não partiste a janela?
- E pa qu'é qu'eu ia parti-la?
- E pa qu'é que tu fazes as outras maldades? - disse Dilsey.
- Toma conta dele agora, pa ele não queimar a mão outra vez enquanto
eu acabo de pô a mesa.
Foi para a casa de jantar, e eles ouviram-na andar de um lado para o
outro, e depois voltou para a cozinha, pôs um prato em cima da mesa e
encheu-o de comida. Ben observava-a, choramingando, emitindo sons
leves e ansiosos.
- Pronto, meu amô - disse ela. - Aqui tá o seu pequen'almoço. Traz a
cadeira dele p'aqui, Luster. - Luster trouxe a cadeira e Ben sentouse,
a gemer e a choramingar. Dilsey atou-lhe um pano ao pescoço e
limpou-lhe a boca com a ponta. E vê se desta vez não lhe sujas o fato
todo - disse ela, dando uma colher a Luster.
246
Ben parou de gemer. Observava a colher enquanto ela subia até à sua
boca. Era como se nele até a ansiedade fosse muscular e a fome
inexpressiva, sem que ele soubesse que era fome. Luster dava-lhe de
comer com perícia e indiferença. De vez em quando a atenção voltava
por tempo suficiente para lhe permitir fazer uma finta com a colher e
obrigar Ben a fechar a boca em falso, mas era evidente que Luster
estava com a cabeça muito longe. Tinha a mão livre pousada nas costas
da cadeira e os dedos tamborilavam tentativainente, suavemente, sobre
a superficie inerte, como se do vazio se elevasse uma música
inaudível, e uma vez chegou mesmo a esquecer-se de fazer negaças a Ben
com a colhá, enquanto os seus dedos faziam negaças na madeira
arrancando um arpeio mudo e arrebatado, até Ben lhe chamar a atenção
pondo-se de novo a choramingar.
Dilsey andava de um lado para o outro na casa de jantar. Nisto, tocou
uma campainha sonora e cristalina, e Luster ouviu na cozinha Mrs.
Compson e Jason a descerem a escada, e a voz de Jason, e pôs-se a
escutar de olhos em alvo.
- Claro, foram lá eles que o partiram - dizia Jason. - Claro que não.
Se calhar foi o mau tempo.
- Não sei como isso foi possível - disse Mrs. Compson.
O teu quarto fica fechado à chave o dia todo, desde que sais para a
cidade. Nenhum de nós lá entra a não ser ao domingo, para fazer
limpeza. Não quero que penses que eu era capaz de entrar onde não sou
desejada, ou que deixava entrar lá alguém.
- Não disse que foi a Mãe que o partiu, pois não? - disse Jason.

- Eu não quero entrar no teu quarto - disse Mrs. Compson. - Respeito
muito a privacidade de toda a gente. Não passava do limiar da porta,
nem que tivesse a chave.
- Eu sei - disse Jason. - Sei que as suas chaves não entram na
fechadura. Foi por isso que a mudei. O que eu quero saber é como foi
que o vidro se partiu.
- O Luster garante que não foi ele - disse Dilsey.
- Isso já eu sabia mesmo sem lhe perguntar - disse Jason.
- Onde está a Quentin? - disse ele.
- Ond'há-de ela tá é domingo de manhã? - disse Dilsey.
- O qu'é que lhe deu nestes últimos dias?
- Bem, tudo isso vai mudar - disse Jason. - Vai lá acima e diz-lhe que
o pequeno almoço está pronto.
- Deixe-a tá em paz, Jason - disse Dilsey. - Ela levanta-se pa tomá
o pequeri'almoço tod'a semana, e Miss Ca'line deixa-a ficá na cama ó
domingo. Sabe bem qu'é assim.
- Não posso sustentar uma cozinha cheia de negros para estarem à
disposição dela, por mais que gostasse de o fazer disse Jason. - Vai
dizer-lhe para vir tomar o pequeno almoço.
- Nunca ninguém teve d'a servir - disse Dilsey. - Eu deixo-lh`o
pequen'almoço na estufa e ela...
- Ouviste o que eu te disse? - disse Jason.
- Ouvi - disse Dilsey. - É só o qu'eu oiço quando tá em
casa. Se não é ca Quentin ou ca sua mãe, é co Luster ou co Benjy.
Porqu'é qu'o deixa sê assim, Miss Uline?
- É melhor fazeres o que ele diz - disse Mrs. Compson. Ele agora é o
chefe da família. Tem todo o direito de querer que respeitemos os seus
desejos. Eu tento, e se eu posso, tu também podes.
- É preciso sê mesmo muito malvado p'obrigá a Quentin a
leventá-se só porque Ih`apetece - disse Dilsey@ - Se calhá julga que
foi ela que partiu a janela.
- Capaz disso era ela, se se lembrasse - disse Jason. - Vá, vai fazer
o que eu te mandei.
- E não era eu qu 1a censurava s'o fizesse - disse Dilsey,
dirigindo-se para as escadas. - Consigo sempre a implicá co ela quando
tá em casa.
- Cala-te Dilsey - disse Mrs. Compson. - Não é da tua conta nem da
minha dizer ao Jason o que ele há-de fazer. Às vezes
acho que ele está errado, mas procuro fazer-lhe as vontades para * bem
de todos. Se eu tenho força suficiente para vir para a mesa, * Quentin
também tem de ter.
Dilsey saiu. Ouviram-na subir as escadas. Ouviram-na durante muito
tempo a subir as escadas.
- Tem uns criados de primeira - disse Jason. Serviu a mãe e serviu-se
a ele. - Já alguma vez teve algum que valesse ao
menos o trabalho de o matar? Deve ter tido vários antes de eu ter
idade suficiente para me lembrar.
248
- Tenho de os tratar bem - disse Mrs. Compson. Dependo deles para
tudo. Não é como quando tinha saúde. Quem me dera. Quem me dera ser
capaz de tratar da casa sozinha, Pelo menos tirava esse peso das tuas
costas.
- E havíamos de viver numa linda pocilga - disse Jason. Despacha-te
Dilsey - gritou ele.
- Sei que me censuras por lhes ter dado hoje folga para irem à igreja
- disse Mrs. Compson.
- Irem aonde? - disse Jason. - O raio do espectáculo ainda cá está?
- À igreja - disse Mrs. Çompson. - Os negros vão fazer uma celebração
especial de Páscoa. Prometi à Dilsey há duas semanas que os deixava

ir.
- O que quer dizer que vamos comer o almoço frio - disse Jason - Se é
que vai haver almoço.
- Sei que a culpa foi minha - disse Mrs. Compson. - Sei que me
censuras por isso.
- Por isso o quê? - disse Jason. - Não foi a Mãe que ressuscitou
Cristo, pois não?
Ouviram Dilsey subir os últimos degraus e depois os pés a
arrastarem-se lentamente pelo corredor.
- Quentin - disse ela. Quando ela chamou da primeira vez Jason pousou
o garfo e a faca e ele e mãe pareceram ficar os
dois suspensos, à espera, cada um na sua cabeceira da mesa, em poses
idênticas; ele, frio e astuto, de cabelo frisado, castanho e
espesso, penteado com dois caracóis de cada lado sobre a testa,
lembrando a caricatura de um dono de restaurante, e com uns olhos de
avelã orlados a negro, como dois berlindes; e ela, fria e sofrida, de
cabelo completamente branco, e olhos inchados, baços e tão negros que
pareciam só pupila ou só íris.
- Quentin - disse Dilsey. - Levante-se meu amô. Eles tão à sua espera
pé> pequen'almoço.
- Não consigo perceber como é que a janela se partiu disse Mrs.
Compson. - Tens a certeza de que foi ontem? Podia já estar assim há
muito tempo, com o tempo quente que tem feito. O caixilho superior,
por detrás da persiana, assim...
É a última vez que lhe digo que foi ontem que isto acon249
teceu - disse Jason. - Acha que não conheço o quarto onde durmo? Acha
que eu era capaz de dormir nele uma semana com um buraco na janela por
onde passa uma mão... - a voz sumiu-se-lhe, apagou-se-lhe na garganta,
e ele pousou na mãe uns olhos vazios de tudo. Era como se os olhos
sustivessem a respiração, enquanto a mãe olhava para ele, com o rosto
flácido e sofrido, interminável, clarividente e, no'entanto, obtuso.
Estavam eles assim quando Dilsey repetiu:
- Quentin. Não teja a brincá comigo. Venha tomá o pequen'almoço, meu
amô. Eles tão à sua espera.
- Não percebo - disse Mrs. Compson. - Parece mesmo que alguém tentou
assaltar a casa... - Jason deu um salto. A cadeira caiu para trás. - O
que... - disse Mrs. Compson, olhando para ele boquiaberta, quando o
viu passar por ela a correr e galgar as escadas desvairado, cruzandose
com Dilsey. A cara dele estava na sombra e Dilsey disse: _ Ela tá
ca birra. A sua mãe não abriu... - Mas Jason continuou a correr e
meteu pelo corredor fora direito à porta dela. Não a chamou. Agarrou a
maçaneta e tentou rodá-la. Depois ficou com a mão na maçaneta e a
cabeça ligeiramente curvada, como se estivesse a escutar qualquer
coisa vinda de muito mais longe do que o espaço que o quarto
delimitava, qualquer coisa que ele já tinha ouvido antes. A sua
atitude era a de alguém que finge escutar para se convencer de que não
ouve o que realmente está a ouvir. Atrás dele veio Mrs. Compson, a
subir a escada e a chamar por ele. Nisto, viu Dilsey e parou de o
chamar, começando então a chamar pela Dilsey.
-Já lhe disse qu'ela 'irida não destrancou essa porta - disse Dilsey.
Quando ela falou, ele voltou-se e correu para ela, mas a sua
voz era calma''natural. - Ela traz a chave com ela? - disse ele.
Quero dizer, tem-na com ela agora, ou será que...
- Dilsey - disse Mrs. Compson das escadas.
- O qu'é? - disse Dilsey. - Por que não deixa...
- A chave - disse Jason. - A chave do quarto. Ela trá-la sempre com
ela, não traz? A Mãe. - Nisto, viu Mrs. Compson e foi ter com ela ao
fundo das escadas. - Dê-me a chave - dis250
se ele, pondo-se a vasculhar nos bolsos do vestido preto ruçado que

ela trazia. Ela resistiu.
- jason - disse ela. - Jason! Será que tu e a Dilsey querem pôr-me de
cama outra vez? - disse ela, tentando afastá-lo.
- Não podes ao menos deixar-me passar um domingo sossegada?
- A chave - disse Jason, agarrando-a. - Dê-ma cá. Olhou para trás,
para a porta, como se esperasse vê-Ia abrir-se por encanto antes de
ele lá voltar com a chave que ainda não tinha na mão.
- Dilsey! - disse Mrs. Compson, apertando o vestido contra o corpo.
- Dê-me a chave, sua parva! - gritou jason subitamente. Tirou-lhe do
bolso um molho enorme de chaves ferrugentas enfiadas numa argola de
ferro, à carcereiro medieval, e correu pelo corredor fora seguido
pelas duas mulheres.
- Ouve, jason! - disse Mrs. Compson. - Ele nunca mais dá com ela -
disse ela. - Sabes bem que nunca dou as chaves a ninguém, Dilsey -
disse ela. E começou a chorar.
- Cale-se - disse Dilsey. - Ele não lhe vai fazê nada. Eu não vou
deíxá.
- Mas num domingo de manhã, na minha própria casa
dizia Mrs. Compson. - Quando passei por tantos sacrifícios para os
educar como bons cristãos. Deixa-me procurar a chave, jason - disse
ela, agarrando-lhe o braço. Depois começou a
lutar com ele, mas ele deu-lhe uma cotovelada e olhou-a por um
instante, com os olhos frios e acossados, voltando-se de novo para a
porta e para as indecifráveis chaves.
- Cale-se - disse Dilsey. - Olí, jason!
- Aconteceu alguma coisa terrível - disse Mrs. Compson, de novo a
chorar. - Sei que aconteceu. Espera, Jason - disse ela, agarrando-se a
ele outra vez. - Ele nem sequer me deixa procurar a chave de um quarto
da minha própria casa!
- Pronto, pronto - disse Dilsey. - Não vai acontecê nada. Eu tou aqui
e não o deixo fazê-lhe mal. Quentin! - disse ela, elevando a voz. -
Não tenha medo, meu amô, eu tou aqui.
A porta abriu-se para dentro do quarto. Ele ficou parado à
251
entrada, por uns instantes, e depois entrou. - Entrem - disse, com uma
voz cava e sumida. Elas entraram. Aquilo não era o quarto de uma
menina. Não era o quarto de ninguém, e o vago perfume a cosméticos
baratos, bem como os poucos objectos femininos e algumas outras provas
que atestavam o esforço grosseiro e infrutífero de o tornar mais
feminino, apenas conseguiam torná-lo ainda mais anónimo, conferindolhe
a transitoriedade inexpressiva e estereotipada das casas de passe.
A cama não tinha sido desfeita. No chão estava uma peça de roupa
interior já muito suja, num tom de rosa talvez berrante de mais, e da
gaveta meio aberta de uma cómoda pendia uma meia de vidro desirmanada.
A janela estava aberta. Quase encostada à janela havia uma pereira.
Estava em flor e os ramos batiam e raspavam na parede exterior, e o ar
de mil partículas, entrando pela janela, trazia até ao quarto o aroma
perdido das flores em botão.
- Pronto, pronto - disse Dilsey. - Eu não lhe disse qu'ela tava bem?
- Bem? - disse Mrs. Compson. Dilsey foi com ela até ao quarto e
acarinhou-a.
- Vá, venha-se deitá um bocadinho - disse ela. - Eu encontro-a num
instante.
Mrs. Compson empurrou-a. - Vê se encontras o bilhete disse ela. - O
Quentin deixou um bilhete quando fez aquilo.
- Tá bem - disse Dilsey. - Eu procuro. Vá, venha pó seu quarto.
- Sempre soube que isto ia acontecer desde o momento em que lhe
chamaram Quentin - disse Mrs. Compson. Dirigiu-se à escrivaninha e
começou a revolver os objectos que já estavam todos espalhados:
perfumes, frasquinhos, uma caixa de pó de arroz, um lápis todo roído,

uma tesoura com uma lâmina partida em cima de um lenço enfarruscado,
sujo de pó e manchado de ruge. - Vê se encontras o bilhete - dizia
ela.
- Tou à procura - disse Dilsey. - Agora venha. Eu e o Jason vamos
procurá-lo. Venha pó seu quarto.
- Jason - disse Mrs. Compson. - Onde está ele? - Encaminhou-se para a
porta. Dilsey foi atrás dela pelo corredor fora até uma outra porta.
Estava fechada. - Jason - chamou ela.
252
Não obteve resposta. Tentou rodar a maçaneta e voltou a chamá-lo. Mas
continuou a não obter resposta, pois ele estava ocupado a tirar tudo
para iora do roupeiro: roupas, sapatos, uma mala de viagem. Nisto,
saiu de dentro do roupeiro com uma tábua canelada que atirou para o
chão, voltando a entrar e aparecendo a seguir com uma caixa de metal.
Colocou-a em cima da cama e quedou-se a olhar para a fechadura
arrombada enquanto tirava do fundo do bolso um molho de chaves de onde
escolheu uma, ficando com ela na mão por mais algum tempo, a olhar
para a
fechadura. Voltou a guardar as chaves e virou cuidadosamente o
conteúdo da caixa para cima da cama. Separou os papéis também com
muito cuidado, pegando num de cada vez e sacudindo-os. Depois virou a
caixa ao contrário e sacudiu-a também, guardou de novo os papéis e
ficou ali, de caixa nas mãos e cabeça caída, a olhar para a fechadura
arrombada. Lá fora, ouviu os
gaios passarem em turbilhão rente à janela, soltando gritos agudos que
o vento levava consigo, e um automóvel passar ao longe perdendo-se na
distância. A mãe voltou a chamá-lo do corredor, mas não se mexeu.
Ouviu os passos de Dilsey pelo corredor fora e uma porta fechar-se.
Então, tornou a meter a caixa dentro do roupeiro, atirou as roupas lá
para dentro, desceu as escadas e correu para o telefone. Dilsey
apareceu nas escadas quando ele estava à espera, de auscultador
encostado ao ouvido. Olhou para ele sem se deter e seguiu em frente.
Do outro lado atenderam. - Fala Jason Compson - disse ele, com uma voz
tão cava e tão rouca que teve de repetir. - É Jason Compson - disse
novamente, controlando a voz. Tenha um carro pronto daqui a dez
minutos; mande um dos seus ajudantes, se o senhor não puder ir. Eu vou
para aí agora...
O quê?... Roubo. Em minha casa. Sei quem... Sim, roubo. Tenha um carro
pron... O quê? Então não é para fazer respeitar a lei que lhe pagamos?
Sim, estou aí dentro de cinco minutos. Tenha o carro pronto para
partir imediatamente. Se não tiver, participo de si ao Governador.
Bateu com força com o auscultador, atravessou a casa de jantar, onde
jazia já frio o pequeno almoço interrompido e entrou
na cozinha. Dilsey estava a encher o saco de água quente. Ben
253
estava sentado, tranquilo e ausente. A seu lado, Luster parecia um cão
de fila, de olhar atento e vigilante. Estava a comer qualquer coisa.
Jason atravessou a cozinha.
- Então não vem acabar o pequen'almoço? - disse Dilsey. Ele não ligou.
- Vá tomá o seu pequedalmoço, Jason. Ele foi-se embora, batendo a
porta das traseiras. Luster levantou-se, foi à janela e olhou lá para
fora.
- Ena pá - disse ele. - O qdé que se passou lá em cima? Ele bateu na
Miss Quentin?
- Cala essa boca - disse Dilsey. - Se fazes o Ben chorar, dou cabo de
ti. Vê s'ele tá calmo té eu voltar. - Atarrachou a válvula do saco de
água quente e saiu da cozinha. Ouviram-na subir as escadas e logo a
seguir Jason partiu com o carro. Depois, os únicos sons que se ouviam
na cozinha eram o murmúrio da chaleira e o tie-tac do relógio.

- Sabe o qu'é qu'eu aposto? - disse Luster. - Aposto qu@ele lhe bateu.
Aposto que lhe bateu na cabeça e agora foi buscá o médico. Aposto que
sim. - O relógio continuava a trabalhar, solene e grave. Dir-se-ia que
era o pulsar insensível da própria decadência daquela casa; passado
pouco tempo, deu o
aviso, apurou a garganta e bateu seis badaladas. Ben ergueu os
olhos para o relógio e depois para o contorno fusiforme da cabeça de
Luster, desenhado na janela, e recomeçou a abanar a dele e a babar-se.
E também a choramingar. _ Cale-se, seu idiota - disse Luster sem se
voltar. - Parece que não vai sê hoje que vamos à igreja. - Mas Ben
continuava imóvel na cadeira, com as manápulas pendentes entre os
joelhos, a gemer baixinho. De repente começou a chorar, num lamento
longo, contido e sem sentido. - Cale-se - disse Luster. Voltou-se para
trás e levantou a mão. - Quer que lhe bata? - Mas Ben limitou-se a
olhar para ele, sempre a soluçar baixinho ao
compasso da respiração. Luster aproximou-se e abanou-o. Cale-se
imediatamente! - gritou. - Venha p'aqui - disse ele. Obrigou Ben a
levantar-se da cadeira, virou-a de frente para o
fogão, abriu a portinhola da fornalha e puxou-o, fazendo-o sentar-se
outra vez. Parecia um rebocador a puxar um petroleiro numa doca
exígua. Ben sentou-se, calado, a olhar para a porta
254
toda rubra. Nisto, ouviram de novo o relógio e Dilsey a descer a
escada com lentidão. Quando a viu entrar, pôs-se a choramingar outra
vez. E depois a chorar de rijo.
- Que lhe fizeste? - disse Dilsey. - Logo hoje tinhas de passá a manhã
a atazaná-lo. Deix'ó em paz.
- Eu não fiz nada - disse Luster. - Foi Mr. Jason qu'o assustou, isso
sim. Ele não vai matá Miss Quentin, pois não?
- Cale-se, Benjy - disse Dilsey. Ele calou-se. Ela foi à j anela e
olhou lá para fora. - Já parou de chovê - disse ela.
-Já, sissiô - disse Luster. - Há muito tempo.
- Então vão lá pa fora um bocado - disse ela. - Mesmo agora acabei de
acalmá Miss Ca1ine.
- Vamos à igreja? - disse Luster.
- Logo se verá. Vê s'o aguentas lá por fora ré eu vos chamá.
- Podemos ir pó prado?
- Tá bem. Desde que não o deixes vir pa casa. já não tou com cabeça pa
mai nada.
- Sissiô - disse Luster. - Adonde foi Mr. Jason, vó?
- Isso já é querês sabê de mais, não achas? - disse Dilsey. Começou a
levantar a mesa. - Cale-se, Benjy. O Luster vai levá-lo a passear.
- Qu'é qu'ele fez a Miss Quentin, vó? - disse Luster.
- Não lhe fez nada. Vá vão brincá lá pa fora.
- Aposto qu'ela já cá não tá - disse Luster. Dilsey olhou para ele. -
Como é que sabes?
- Eu e o Benjy vimo-la saltá da janela onte à noite. Não vimos, Benjy?
- Viste mesmo? - disse Dilsey, olhando para ele muito séria.
- Nós temo-Ia visto fazê isso todas as noites - disse Luster. Sairá
pela janela e descê pela pereira.
- Não me mintas, negrinho - disse Dilsey.
- Não tou a mentir. Pergunte 6 Benjy.
- Então porqu'é que não disseste nada?
- O qu'é qu'eu tinha co isso? - disse Luster. - Não me meto na vida
dos brancos. Venha, Benjy. Vamos lá pa fora.
Saíram os dois. Dilsey ficou encostada à mesa por algum
255
tempo, e depois foi levantar a mesa do pequeno almoço, tomou o dela e
arrumou a cozinha. Tirou o avental, pendurou-o, foi até ao fundo das

escadas e ficou de ouvido à escuta. Nem um som. Vestiu o capote, pôs o
chapéu na cabeça e foi para casa. A chuva tinha parado. O vento tinha
virado para sudeste, deixando o céu semeado de clareiras azuis. Para
lá das árvores, dos telhados e dos torreões da cidade, o sol repousava
sobre a crista de uma colina,
como um remendo, esmorecido. O ar vibrou com o repicar de um sino, e
logo, como se obedecendo a um sinal, outros se lhe juntaram, imitandoo.
A porta do casebre abriu-se e Dilsey apareceu, outra vez com a capa
castanha e o vestido púrpura. Trazia também calçadas um par de luvas
brancas encardidas que lhe chegavam ao cotovelo, mas desta vez não
levava turbante. Veio até ao meio do pátio e chamou Luster. Esperou
uns momentos, e depois contornou a casa, sempre colada à parede,
aproximou-se sorrateira da porta da adega e espreitou lá para dentro.
Ben estava sentado nos degraus. Luster estava do outro lado, sentado
no chão húmido. Tinha uma serra na mão esquerda, com a lâmina
ligeiramente flectida sob a pressão da mão, e percutia a lâmina com o
velho pilão de que ela se servia há mais de trinta anos para moer a
farinha. A lâmina vibrou com um gemido único, arrastado, que logo se
extinguiu, sem brilho nem ardor, fazendo a serra descrever uma curva
bem pronunciada entre a mão de Luster e o chão: parada,
imperscrutável, abaulada.
- Era assim qu'ele fazia - dizia Luster. - Só inda não encontrei uma
coisa ideal para lhe bater.
- Com qu'então é isso qu'andas a fazê? - disse Dilsey. Traz-me cá esse
pilão - disse ela.
- Não o estraguei - disse Luster.
- Traz-mo cá - disse Dilsey. - E vai pô essa serra ond'a encontraste.
Ele foi arrumar a serra e trouxe-lhe o pilão. Ben começou de novo a
soltar gemidos longos, desesperados. Mas não era nada de importância.
Apenas sons. Dir-se-ia que, por uma conjunção de planetas, nele
encontravam voz por um instante todo o tempo, toda a injustiça e toda
a pena.
256
- Olhe pa ele - disse Luster. - Está assim desde que nos
mandou embora. Não sei que tem ele esta manhã.
- Trá-lo cá - disse Dilsey.
- Venha, Benjy - disse Luster, descendo os degraus e
pegando-lhe por um braço. Ele veio, obediente e choroso, produzindo
aquele som lento e rouco dos navios, que parece começar antes mesmo de
o som propriamente dito se ter iniciado, e
parar depois de o som propriamente dito já ter cessado.
- Vai a corrê a casa buscar-lhe o boné - disse Dilsey. - E não faças
barulho, pa Miss Ca'line não ouvir. Vá, despacha-te. já ramos
atrasados. 1
- Se não o fizé calá, ela vai ouvi-lo na mesma - disse Luster.
- Ele cala-se quando sairmos daqui - disse Dilsey. - Está a sentirlhe
o cheiro. É o que é.
- O cheiro de quê, vó? - disse Luster.
- Vai buscar-lhe o boné - disse Dilsey. Luster foi. Estavam os dois na
escada da adega. O céu estava agora fragmentado em
mil pedaços que arrastavam consigo as sombras fugidias para lá do
jardim pouco cuidado, passando por cima da cerca partida e
atravessando o pátio. Dilsey afagou a cabeça de Ben, com gestos
lentos, repetidos, alisando-lhe as farripas. Ele choramingava
baixinho, compassadamente. - Esteja caladinho - disse Dilsey.
- Vá, agora não chore. Estamos quase a sair. Esteja caladinho. Mas ele
chorava baixinho, sem parar. Luster voltou, trazendo na cabeça um
chapéu de palha novinho em folha avivado com uma fita colorida e um
boné de pano na mão. Aos olhos de um observador, o chapéu parecia

evidenciar cada ângulo e plano da cabeça de Luster como um foco
luminoso. A sua forma era tão singular que à primeira vista o chapéu
parecia estar na cabeça de alguém que estivesse por detrás de Luster.
Dilsey olhou para o chapéu.
- Por que não trouxeste antes o velho? - disse ela.
- Não fui capaz de dá co ele - disse Luster.
- Aposto que não. Aposto que lhe deste sumiço ontem à
noite só pa não o encontrares. Meteste na cabeça qu'hádes dá cabo
desse.
257
- Oh, vó - disse Luster. - Não vai chovê.
- E com'é que sabes? Vai buscá o chapéu velho e deixa lá ficá esse.
- Oh, vó.
- Então vai buscá o guarda-chuva.
- oh, vó.
- Tens d'escolhê - disse Dilsey. - O chapéu velho ou o guarda-chuva.
Tanto se me dá.
Luster foi à cabana. Ben chorava baixinho.
- Vamos - disse Dilsey. - Eles já nos apanham. Vamos ouvir os
cânticos. - Deram a volta à casa e dirigiram-se para o portão. -
Esteja caladinho - ia dizendo a Dilsey enquanto desciam a rampa até ao
portão. Chegaram ao portão. Dilsey abriu-o. Luster vinha um pouco mais
atrás com o chapéu-de-Chuva. Vinha também uma mulher. - Lá vêm eles -
disse Dilsey. Saíram o portão. - Então - disse ela. Ben parou de
chorar. Luster e a mãe passaram-lhes à frente. Frony levava um vestido
de seda azul muito brilhante e um chapéu enfeitado com flores. Era uma
mulher magra, com uma cara achatada e simpática.
- Tens seis semanas de trabalho em cima - disse Dilsey. Que vais fazê
se chovê?
- Molhá-me, acho eu. - disse Frony. - Inda não consigo fazê pará de
chovê.
- A vó tá sempre a dizê que vai chovê - disse Luster.
- Se não for eu, quem se vai preocupá com vocês - disse Dilsey. -
Vamos lá. já tamos atrasados.
- Hoje é o Revendo Shegog que vai fazer a pregação - disse Frony.
- É? - disse Dilsey. - Quem é ele?
- Vem de Saint Louis - disse Frony. um grande pregadô.
- Hum - disse Dilsey. - Do qu'estes negrinhos sem préstimo precisam é
dum homem que lhes mostre o caminho do bem.
- O ReVendo Shegog sabe fazê isso muito bem - disse Frony. o que
todos dizem.
258
Foram andando. Pela rua tranquila, os brancos, em grupos
resplandecentes, dirigiam-se para a igreja, respondendo ao chamado dos
sinos trazido pelo vento, banhados de vez em quando por um sol tímido,
irregular. O vento soprava afoito de sudeste, frio e rijo, deixando
para trás os dias quentes.
- Gostava mais que não o trouxesse sempre consigo pá igre- a, mãe -
disse Frony. - As pessoas falam.
- Que pessoas? - disse Dilsey.
- Eu bem as oiço - disse Frony.
- Eu sei quais são os que falam - disse Dilsey. - Escumalha branca.
Esses é que falam. Acham qu'ele não serve pa entrá na igreja dos
brancos, mas qu'é bom de mais pa entrá na dos negros.
- As pessoas falam sempre - disse Frony.
- Manda-as falá comigo - disse Dilsey. - Diz-lhes que Nosso Sinhô não
quê sabê s'ele é esperto ou não. Ninguém quê sabê disso, só os
brancos.
Chegaram a uma rua que fazia esquina com aquela por onde iam, e que

descia em ladeira, transformando-se numa estrada de terra batida. O
terreno descia íngreme de cada lado, formando em baixo uma planície
salpicada de pequenas cabanas cujos telhados corroídos pelo mau tempo
ficavam à altura da estrada. As cabanas estavam situadas em lotes de
terreno pelado, pejado de coisas partidas, tijolos, tábuas, loiças,
coisas que haviam tido outrora utilidade. O pouco verde que havia eram
as ervas bravas e as árvores - amoreiras, cássias e sicórnoros - ,
árvores que partilhavam da secura hedionda que rodeava as casas;
árvores cujos rebentos pareciam ser os restos tristes e teimosos de
Setembro, como se a Primavera os tivesse ignorado, deixando-os alimentar-
se do odor espesso e inconfundível dos negros que impregnava o
ar onde cresciam.
Quando passavam, os negros cumprimentavam-nos da porta de casa,
dirigindo-se geralmente a Dilsey:
- Irmã Gibson! Então como tá esta manhã?
- Tou bem. E a irmã, tamém tá?
- Tou muito bem, 'brigada. Saíam das cabanas e subiam a custo a
ladeira argilosa até à
259
estrada. Os homens solenemente vestidos de preto ou castanho escuro,
com correntes de relógio em ouro e um por outro com uma bengala; os
rapazes com fatos azul berrante ou de riscas, e
chapéus aperaltados; as mulheres engomadas e restolhantes; e as
crianças, com roupas compradas aos brancos em segunda mão, olhavam
para Ben com o olhar esquivo dos animais nocturnos:
- Aposto que não és capaz de lá ires e tocás nele.
- Pdque'é que não hei-d'ir?
- Aposto que não és capaz. Aposto que tens medo.
- Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho.
- E então um maluco não faz mal às pessoas?
- Este não. já lhe toquei.
- Mas aposto qu'agora não tocas.
- Se Miss Dilsey estivé a vê.
- Não tocas de maneira nenhuma.
- Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho. Os mais velhos davam
todos a salvação a Dilsey. Mas, a
menos que fossem muito velhos, Dilsey deixava ser Frony a res- Ponder.
- A minha mãe não se sente muito bem esta manhã.
- Que pena. Mas o Rev'endo Shegog póe-na boa. Vai dar-lhe conforto e
aliviá-IWa alma.
A estrada subia outra vez até ao que parecia um pano de cenário.
Escavada no barro vermelho, coroada de carvalhos, a
estrada parecia acabar abruptamente, como uma fita cortada. De um dos
lados, uma igreja depauperada erguia um excêntrico campanário, como
numa pintura, e toda a cena era tão plana e falha de perspectiva como
se pintada num cartão e colocada na beira do mundo, virada ao vento e
ao sol, no espaço aberto, em Abril, numa manhã impregnada de sinos.
Acorriam nume- rosos à igreja com a pausada determinação do sabbath.
As mulheres e as crianças entraram e os homens ficaram cá fora a
conversar em grupos, em voz baixa, até o sino se calar. Nessa altura
entraram também.
A igreja estava enfeitada com meia dúzia de flores apanhadas nas sebes
e nos jardins, e tiras de papel colorido. Por cima do púlpito estava
suspenso um sino de Natal já amachucado,
260
daqueles que se desdobram em harmónio. O púlpito estava
vazio, embora os elementos do coro já estivessem no lugar, a abanaremse
com leques, apesar de não estar calor nenhum.
A maior parte das mulheres estavam reunidas em grupos num dos lados da

igreja, a conversarem. O sino soou - uma badalada -, e elas
dispersaram e tomaram os seus lugares, os fiéis, todos sentados,
aguardavam, expectantes. O sino soou de novo
- outra badalada. O coro levantou-se e começou a cantar e toda a
assembleia virou a cabeça em uníssono à entrada de seis crianças ainda
pequenas - quatro raparigas de tranças apertadas e atadas com laços de
tiras de pano colorido como borboletas, e dois rapazes de cabeça quase
rapada - que avançaram pela coxia, central, enfeitada com fitas
brancas e grinaldas de flores. Seguiam-nas dois homens. O que ia atrás
era corpulento, da cor de café claro, imponente no seu fraque e laço
branco. A cabeça era magistral e profunda, e o pescoço caía sobre o
colarinho em grossos refegos. Mas todos o conheciam bem e, por isso,
as cabeças continuaram voltadas depois de ele passar, e só quando o
coro se calou é que perceberam que o pregador visitante já tinha
entrado; e quando viram o homem que vinha à frente do pastor subir ao
púlpito, ainda à sua frente, elevou-se da assembleia um rumor
indescritível, um suspiro fundo, um som de espanto e desapontamento.
O visitante era franzino e vestia um casaco de alpaca já coçado. A
cara era negra e chupada, de macaco velho. E enquanto o
coro voltava a cantar e as seis crianças se levantavam e cantavam com
vozes finas e assustadas, soltando átonos murmúrios, todos olhavam
visivelmente consternados para o homenzinho insignificante sentado ao
lado do pastor, cuja volumosa imponência o
reduzia a dimensões liliputianas. Ainda o fitavam incrédulos e
consternados, quando o pastor se pôs de pé e o apresentou com palavras
fluentes e tonitroantes cujo fervor ainda mais aumentou a
insignificância do visitante.
- E foram eles a Saint Louis pá buscá isto - cochichou Frony.
já vi Deus servir-se de coisas inda mais estranhas - disse Dilsey. -
Esteja caladinho - disse ela a Ben. Eles já vão cantá
outra vez.
261
Quando o visitante se levantou para dar início à sua prega- ção,
parecia um branco. A sua voz era fria e monocórdica. Parecia forte
demais para sair dele, e a princípio todos o escutaram por mera
curiosidade, como fariam se um macaco ali estivesse a falar. Olhavam
para ele como se estivesse a fazer equilíbrio no arame. Esqueceram-se
até da sua insignificância levados pelo virtuosismo com que corria,
parava e mergulhava no fio gélido e inflexível da voz, até que, por
fim, quando ele, com uma espécie de pirueta voltou para junto da
estante de leitura, apoiando-se a ela com um braço levantado à altura
do ombro, e com o seu corpo de macaco tão despojado de movimento como
uma múmia
ou um recipiente vazio, a assembléia soltou um suspiro, como se
acordasse de um sonho colectivo, mexendo-se nos lugares. Por detrás do
púlpito, o coro abanava-se com convicção. Dilsey murmurou: - Agora
fique calado. Eles já voltam a cantá.
Nisto, uma voz disse: - Irmãos.
O pregador não se mexera. O seu braço estava ainda sobre a estante,
conservando a mesma pose enquanto a voz se extinguia em sonoridades
que o eco repercutia pelas paredes. Um tom tão diferente do primeiro
como a noite do dia, um som triste, de timbre semelhante ao de uma
trompa de contralto, que lhes penetrava o coração e lhes falava por
dentro mesmo depois de se extinguir em múltiplos ecos perdidos.
- Irmãos e irmãs - disse outra vez. O pregador tirou o braço da
estante e começou a andar para trás e para a frente diante dela, com
as mãos atrás das costas, com a sua figura franziria, curvada sobre si
mesma, como de alguém de há muito empenhado numa luta solitária contra
o mundo implacável: - Eu tenho a memória e o sangue do Cordeiro! - E
continuou a andar para trás e para a frente com passadas firmes, por

baixo das decorações em papel frisado e do sino de Natal, alquebrado,
com as mãos atrás das costas. Era um rochedo já gasto pela erosão das
vagas sucessivas da sua própria voz. Parecia alimentar com o seu corpo
aquela voz que, como um súcubo, nele cravava os dentes ávidos de
carne. E os fiéis pareciam assistir impávidos, enquanto a voz o
consumia até o reduzir a nada e os reduzir a nada e já nem
voz existir, só corações que falavam uns aos outros através dos
262
cânticos, sem precisarem de palavras, de tal maneira que, quando ele
se veio apoiar na estante, com a cara de macaco erguida alto, e
a postura serena e torturada de um cristo crucificado que transcendia
a sua própria insignificância e indigência, tornando-as inexistentes,
um suspiro longo e lamentoso se elevou da assembleia, e uma voz
isolada de mulher, uma voz de soprano, entoou:
Sim, meu Jesus! À medida que as nuvens avançavam fugazes em ondas
sucessivas, as lúgubres vidraças acendiam-se e apagavam-se em
fantasmagórica alternância. Na estrada passou um carro, derrapou na
areia e perdeu-se na distância. Dilsey estava sentada muito hirta com
a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas lágrimas rolavam-lhe pelas
faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos
sacrifícios, a abnegação e tantos anos.
- Irmãos - disse o pastor num sussurro rouco, sem se mexer.
-Sim, meujesus!-disse avozdemulher, agoraemsurdina.
- Irmãos e irmãs! - Soou de novo a sua voz, com as trompetas.
Desapoiou o braço da estante, ficou parado e ergueu as mãos: - Eu
trago a rècordação e o sangue do Córdeiro! - Nem notaram que a
entoação e a pronúncia se haviam tornado negras, apenas se inclinavam
para um lado e para o outro, sempre sentados, deixando que a voz os
levasse com ela.
- Quando os longos e gélidos... Olí, digo-vos eu, irmãos, quando os
longos e gélidos... Eu vejo a luz e eu vejo a palavra, pobre pecadô!
Elas passaram pelo Egipto, as quadrigas balançantes; passaram pelas
gerações. O home qu'era rico: onde tá el'agorã, meus irmãos? O home
qu'era pobre: onde tá el'agora, minhas irmãs? Ah, eu vou-vos dizê, se
não tiverdes o leite e o orvalho d'antiga salvação, quando os longos e
gélidos anos passarem por vós!
- Sim, meu Jesus!
- Eu vou-vos dizê, irmãos, eu vou-vos dizê, irmãs, eles a seu
tempo chegarão. Diz o pobre pecadô Deixai-me repousá no
Sinhô, deixai-me repousá o meu fardo. E então, irmãos, que vai
dizê Jesus? E então, irmãs, que vai dizê Jesus? Trazes a rècordação e
o sangue do Cè>rdeiro? Não quero sobrecarregá o céu!
263
Meteu a mão no bolso, tirou um lenço e limpou a cara.
Um som cavo, concertado, perpassou a assembleia: Mmmmmmmmmmmmm! E a
voz da mulher soou: Sim, Jesus! Meu Jesus!
- Irmãos! Olhai pa estas criancinhas sentadas entre vós. Jesus um dia
foi assim. A sua mãe sofreu a glória e os tormentos. Talvez o tenha
abraçado um dia, ao cair da noite, cos anjos a embalá-lo; talvez tenha
olhado lá pa fora e visto a ronda Romana passá. Continuava a andar
para trás e para a frente, limpando a cara com o lenço. - Escutai,
irmãos! Eu tou a vê esse dia. Vejo Maria sentada à porta com Jesus ao
colo, o seu menino Jesus. Oiço os anjos a cantá cânticos de paz e de
glória; vejo os Seus olhos a fechá-se; vejo Maria dá um salto, vejo a
cara dos soldados: Vamos matá! Vamos matá! Vamos matá o teu menino
Jesus! Oiço o pranto e os lamentos da pobre mãe sem salvação, sem a
palavra de Deus!
- Mmmmmmmmmmmmmmmm! Meu Jesus! Meu Menino Jesus! - e uma outra voz,
elevando-se:

- Eu vejo, oh, Jesus! Eu vejo! - E outra ainda, sem palavras, soando
como bolhas de ar subindo dentro de água.
- Eu vejo tudo, irmãos! Eu vejo tudo! Uma visão atroz que deixa meus
olhos cegos! Vejo o Calvário e os três troncos sagrados, vejo o ladrão
e o assassino e Aquele qu@ind'é menos qtieles; oiço a chacota, as
provocações: S'és mesmo Jesus, ergu'a tua cruz e anda! Oiço o pranto
das mulheres e as lamentaçóes nocturnas; oiço o choro e os gemidos e a
face voltada de Deus: eles mataram Jesus; eles mataram o Meu Filho!
- Mmmmmmmmmmmmm. Oli, Jesus! Eu vejo, oli, Jesus!
- Oli, cego pecadô! Eu digo-vos, irmãos. Eu digo-vos, irmãs, quando o
Sinhô voltou a Sua face omnipotente, disse, Não vou sobrecarregar o
céu! Vejo Deus inconsolável fechá a
Sua porta; vejo o dilúvio chegá avassaladô; vejo as trevas e a
condenação eterna abatê-se sobre as gerações. E então, irmãos,
atentem! Sim, irmãos! Que vejo eu? Que vejo eu, oli, pecadô? Vejo a
ressurreição e a luz; vejo o doce Jesus que diz Eles mataram-me pa que
vós possais vivê de novo; morri pa que aquele que vê e
acredita não morra nunca. Irmãos, oh, irmãos! Vejo a aurora a
despontar e as trompetas a anunciarem a glória, e os mortos
264
a levantarem-se, que têm o sangue e a récordação do Córdeiro! Ben
continuava sentado, com o seu olhar azul e doce, envolvido pelas vozes
e pelas mãos que se agitavam. Dilsey, muito direita a seu lado,
chorava convictamente e em silêncio abandonada ao sangue e à lembrança
do Cordeiro.
E chorava ainda, alheia às conversas, quando subiam a estrada de areão
sob o sol do meio-dia, e os grupos dispersavam, trocando comentários
entre si.
- Gande pregadô, hem! A princípio não parecia, mas
depois... Coisa fina!
- Ele viu o podê e a glória.
- Si sinhô. Viu mesmo. Cara a cara. Isso é que viu. Dilsey ia calada,
sem um trejeito, deixando as lágrimas seguirem o seu curso cavado e
sinuoso, caminhando de cabeça levantada, sem qualquer esforço sequer
para as limpar.
- Por que não pára com isso, mãe? - disse a Frony. - Com toda esta
gente a vê. Não tarda ramos a encontrá brancos.
- Vi o começo e o fim - disse Dilsey. - Não te preocupes.
- O começo e o fim de quê? - disse Frony.
- Não te preocupes - disse Dilsey. - Vi o começo e agora vejo o fim.
Todavia, antes de chegarem à rua principal, Dilsey parou, pegou na
ponta da saia e limpou os olhos à barra do saiote de cima. Depois
continuaram. Ben arrastava os pés ao lado de Dilsey, com
os olhos postos em Luster, que ia à frente a fazer cabriolas, com o
chapéu-de-chuva na mão e o chapéu de palha novo atrevidamen- te à
banda, reluzindo ao sol; dir-se-ia um canzarrão tonto e desajeitado a
admirar um cachorrinho vivaço. Chegaram finalmente ao portão e
entraram. E logo Ben desatou na caramunha do costume, e por momentos
todos olharam para o cimo da rampa, para
a casa quadrada, sem pintura, com a porta apodrecida.
- Que aconteceu por lá hoje? - disse Frony. - Alguma coisa foi.
- Nada - disse Dilsey. - Trata da tua vida e deixa os brancos trará da
deles.
- Alguma coisa foi - disse Frony. - Ouvi-o logo pela manhã. Mas não
tenho nada co isso, tá claro.
265
- E eu ré sei o que foi - disse Luster.
- Sabes mais qu'è> que devias - disse Dilsey. - Não ouviste a tua mãe
dizê que não é da tua conta? LeVó Benjy pás traseiras e vê s'o

entreténs ré eu tê o comê pronto.
- Eu sei onde tá Miss Quentin - disse Luster.
- Então guarda pa ti o que sabes - disse Dilsey. - Quando a Quentin
precisá dos teus conselhos, eu aviso-te. Vá toc'à ir brincá lá pa
trás.
-já sabe o que vai acontecê mal eles se puserem a j ogá além co aquela
bola - disse Luster.
- Inda é cedo pa começarem. E nessa altura já cá tá o T. R pé> levá a
passeá. Vá, dá cá o chapéu novo.
Luster deu-lhe o chapéu e depois foi com Ben para o pátio das
traseiras. Ben continuava a chorar, mas em surdina. Dilsey e Frony
foram para a cabana. Daí a nada Dilsey saiu, de novo com
o vestido de algodão desbotado, e dirigiu-se para a cozinha. O lume
estava quase apagado. O silêncio era absoluto. Pôs o avental e foi ao
andar de cima. Não se ouvia nada em lado nenhum.
O quarto da Quentin estava tal e qual o tinham deixado. Entrou,
apanhou a roupa caída no chão, meteu a meia de vidro na gaveta e
voltou a fechá-la. A porta do quarto de Mrs. Compson estava fechada.
Dilsey parou cá fora por um instante a escutar. Depois abriu-a e
entrou, penetrando num odor intenso a cânforã. Como as persianas
estavam descidas, e o quarto e a cama na penumbra, ela pensou que Mrs.
Compson estava a dormir; porém, quando ia a fechar a porta, a outra
falou.
- Então - disse ela. - O que é?
- Sou eu - disse Dilsey. - Quê alguma coisa? Mrs. Compson não
respondeu. Passado um instante, e sem
mexer a cabeça, disse: - Onde está o Jason?
- Inda não voltou - disse Dilsey. - O qu'é que lhe quê? Mrs. Compson
não respondeu. Como tantas outras pessoas frias e fracas, ao ver-se
agora conftontada com uma calamidade irremediável, ia buscar sabe-se
lá onde uma espécie de força, de coragem. No seu caso era uma
convicção inabalável num acontecimento ainda por deslindar. - Bem -
disse por fim. Sempre encontraste?
266
- Encontrei o quê? Tá a falá de quê?
- Do bilhete. Ela devia pelo menos ter tido por mim a
consideração, suficiente para deixar um bilhete. Até o Quentin deixou.
- De qu'é que tá a falá? - disse Dilsey. - Então não sabe qu'ela tá
bem? Aposto que vai entrá por aquela porta antes d'anoitecê.
- Isso sim - disse Mrs. Compson. - Está-lhe na massa do sangue. Tal
tio, tal sobrinha. Ou tal mãe, tal filha. Nem sei o que seria pior.
Mas também já não me interessa.
- Pa que continua a fálá dessa maneira? - disse Dilsey. Por qu'é
qu'ela havia de querê fazê uma coisa dessas?
- Sei lá. E o Quentin, que motivos tinha? Sim, em nome de Deus, que
razões tinha ele? Só pode ter sido para me afrontar, para me magoar.
Esteja Deus onde estiver, Ele não ia permitir tal coisa. Eu sou uma
senhora. Pode pensar-se que não, a avaliar pelos filhos que tenho, mas
sou.
- Tenha calma e espere - disse Dilsey. - Logo à noite ela vai estar
aqui, nesta cama, olá se vai. - Mrs. Compson não disse nada. Um lenço
embebido em cânfora estava pousado sobre a
sua testa. O roupão preto deitado aos pés da cama. Dilsey parada à
porta, com a mão na maçaneta.
- Bem - disse Mrs. Compson - O que queres? Vais fazer o almoço para o
Jason e o Benjamin, ou não?
- O Jason inda não voltou - disse Dilsey. - Vou prepará qualqué
coisa. Tem a certeza que não quê nada? E o saco, inda tá quente?
- Podes dar-me a Bíblia?
- Dei-lhe esta manhã antes de sair.

- Puseste-a à beirinha da cama. Quanto tempo achas que se aguentoulá?
Dilsey foi da porta até à cama e, às apalpadelas, procurou no
escuro, acabando por encontrar a Bíblia caída debaixo da cama. Alisou
as páginas dobradas e colocou de novo o livro em cima da cama. Mrs.
Compson nem abriu os olhos. Os seus cabelos eram da cor da almofada, e
sob aquele toucado feito com o terapêutico lenço canforado, parecia
uma velha freira a rezar. - Não a
267
ponhas aí outra vez - disse ela, sem abrir os olhos. - Aí foi onde a
puseste antes. Parece que queres que eu saia da cama para ter de a ir
apanhar.
Dilsey passou a Bíblia por cima dela e pousou-a do lado da cama que
estava vazio. - Não pode lê com esta luz. Nem pensá
disse ela. - Quê que suba a persiana um bocadinho?
- Não. Deixa-a estar como está. Vai é preparar qualquer coisa para o
Jason comer.
Dilsey foi-se embora. Fechou a porta e voltou para a cozinha.
O fogão estava quase frio. Nessa altura, o relógio que estava por cima
do aparador bateu dez vezes. - Uma hora - disse ela em voz alta. - O
Jason não vem pa casa. Vi o começo e vejo o fim
- disse ela, olhando para o fogão arrefecido. - Vi o começo e vejo o
fim. - Pôs algumas coisas frias em cima da mesa, sempre a cantar
enquanto andava para trás e para a frente, entoando um
hino. Cantou-o inteiro, mas repetindo sempre os dois primeiros versos.
Preparou a refeição, foi à porta, chamou Luster e, passado pouco
tempo, Luster e Ben entraram na cozinha. Ben gemia ainda, como se
chorasse para dentro.
- Não há maneira de se calá - disse Luster.
- Vá, venham comê - disse Dilsey. - O Jason não vem almoçá. -
Sentaram-se à mesa. Ben conseguia comer sozinho
as coisas sólidas, embora, mesmo tratando-se de um almoço só de coisas
frias, Dilsey lhe tivesse posto um pano ao pescoço. Ele e Luster iam
comendo. Dilsey andava pela cozinha a cantar os únicos dois versos do
hino de que se lembrava. - Podem comê à vontade - disse ela. - O Jason
não vem pa casa.
Nessa altura estava ele a trinta e tal quilómetros de distância.
Depois de sair de casa, dirigiu-se a toda a velocidade para a cidade,
ultrapassando os grupos mais atrasados para o sabbath e até o repicar
peremptório dos sinos no ar cortado de vento. Atravessou a praça
deserta e virou para uma rua estreita que ainda estava mais
silenciosa, parou diante de uma casa de madeira e foi até ao alpendre
pelo caminho ladeado de flores. Por detrás da porta de rede havia
gente a falar. Quando levantou a mão para bater, ouviu passos e
susteve o gesto até a porta ser aberta por um homem corpulento de
calças largas de sarja preta e uma camisa branca de peiti268
lho engomado. Tinha uma farta cabeleira rebelde e grisalha e uns
olhos acinzentados, redondos e pequeninos de menino. Apertou a mão de
Jason e levou-o para dentro, ainda a apertar-lhe a mão.
- Entre - disse ele. - Entre.
- Está pronto para partir? - disse Jason.
- Entre - disse o outro, empurrando-o pelo ombro para uma sala onde
estavam sentados um homem e uma mulher. já conhece o marido da Myrtie,
não conhece? Jason Compson, Vernon.
Sim, sim - disse Jason. Nem sequer olhou para o homem e, enquanto o
xeri e trazia uma cadeira, ó homem disse:
- Nós saímos, para vocês poderem falar à vontade. Anda, Myrtle.
- Não, não - disse o xerife. - Deixem-se estar sentados. Não é nada de
muito grave, pois não Jason? Sente-se.
- Eu conto-lhe no caminho - disse Jason. - Pegue no chapéu e no

casaco.
- Nós saímos - disse o homem, pondo-se de pé.
- Deixe-se estar sentado - disse o xerife. - Eu e o Jason vamos ali
para o alpendre.
- Vá buscar o chapéu e o casaco - disse Jason. - Eles já levam doze
horas de avanço. - O xerife dirigiu-se para o alpendre. Um homem e uma
mulher que iam a passar cumprimenta- ram-no. Ele respondeu com um
gesto caloroso e floreado. Ainda repicavam sinos para os lados da zona
da cidade conhecida por o
Poço dos Negros. - Vá buscar o chapéu, xerife - disse Jason.
O xerife puxou duas cadeiras.
- Ora sente-se lá e conte-me o que se passou.
- já lhe contei ao telefone - disse Jason, continuando de pé. - Fi-lo
para ganhar tempo. Será que tenho de apelar para a
lei para o obrigar a cumprir o seu dever?
- Sente-se e conte-me tudo - disse o xerife. - Eu já trato de si.
- Trata uma ova - disse Jason. a isto que chama tratar de mim?
- Você é que nos está a atrasar - disse o xerife. - Ora sen- te-se e
conte-me lá o que se passou.
269
Jason contou-lhe, mas era tal o peso do ultraje e da impotência, que
depressa esqueceu que tinha pressa, embarcando num turbilhão violento
de autojustificação e desagravo. O xerifé observava-o atento com os
olhos frios e perspicazes.
Mas não sabe se foram eles - disse ele. - Apenas julga que foram.
Como pode dizer que não sei - disse Jason - quando dois dias a
persegui-Ia por becos e travessas, tentando J passei
afastá-la dele, depois de lhe ter dito o que lhe fazia se os apanhasse
juntos, e vem agora dizer-me que eu não sei que aquela p...
- Calma - disse o xerifé. - já chega. É melhor parar por aí. - E pôsse
a olhar para a rua, de mãos nos bolsos.
- E quando venho ter consigo, um representante da lei... disse Jason.
Esta semana o espectáculo vai para Mottson - disse o
xeri e.
Pois vai - disse Jason. - E se eu tivesse conseguido encontrar um
representante da lei que estivesse minimamente interessado em defender
os cidadãos que o elegeram, a estas horas já eu lá estava. - Repetiu a
história, recapitulando amargamente os factos, como se retirasse
prazer do ultraje e da impo- tência. O xerife parecia nem ouvir.
Jason - disse ele. - Que fazia você com três mil dólares escondidos em
casa?
O quê? - disse Jason. - O sítio onde eu guardo o meu dinheiro é da
minha conta. Da sua é ajudar-me a recuperá-lo.
- A sua mãe sabia que tinha tanto dinheiro em casa?
- Oiça uma coisa - disse Jason. - A minha casa foi assaltada. Sei quem
são os ladrões e sei onde estão. Venho ter consi go, como
representante da lei, e mais uma vez lhe pergunto, vai ajudar-me a
recuperar o que é meu, ou não vai?
- O que tenciona você fazer com a rapariga, se os apanhar?
- Nada - disse Jason. - Absolutamente nada. Nem lhe toco. Aquela
cabra, que me custou um emprego, a única oportunidade que tive de
singrar na vida, que matou o meu pai, que está a dar cabo da vida da
minha mãe e que fez do meu nome
270
bombo de festa da cidade... Não lhe vou fazer nada - disse ele. -
Absolutamente nada.
- Você levou a rapariga a fugir, Jason - disse o xerife. -A maneira
como eu governo a minha família não é da sua conta - disse Jason. -
Vai ajudar-me ou não?

- Obrigou-a a fugir de casa - disse o xerife. - E tenho cá as minhas
suspeitas de que sei a quem pertence esse dinheiro, mas acho que nunca
vou ter a certeza.
Jason continuava de pé, a torcer a aba do chapéu, e disse calmamente:
- Então não vai fazer nada para me ajudar a apanhá-los?
- Isso não é nada comigo, Jason. Se você tivesse provas concretas,
nesse caso eu tinha de agir. Mas sem elas acho que não tenho nada a
ver com o assunto.
É essa então a sua resposta? - disse Jason. - Pense bem. É essa, é,
Jason. Muito bem - disse Jason. Pôs o chapéu na cabeça. - Vai
arrepender-se. Não vou ficar sem ajuda. Não estamos na Rússia, onde um
homem é imune só porque usa uma chapa de metal ao peito. - Desceu os
degraus, entrou no carro e pôs o motor a trabalhar. O xerife ficou a
vê-lo afastar-se, inverter a marcha e passar a acelerar em frente à
casa, a caminho da cidade.
Os sinos repicaram outra vez, sons agudos na luz fugaz, em
acordes sincopados, desencontrados. Parou numa estação de gasolina e
mandou verificar os pneus e encher o depósito.
- Vai de viagem? - perguntou-lhe o negro. Não respondeu. - Parece qu'o
tempo vai melhorá, finalmente - disse o negro.
- Melhorar, uma merda - disse Jason. - Ao meio-dia vai estar a chover
a potes. - Olhou para o céu, a pensar na chuva, nas estradas
escorregadias de terra argilosa, e nele, empanado algures a
quilómetros e quilómetros da cidade. Pensava nisso com um espécie de
sentimento triunfal, em como iria faltar ao almo- ço, em como,
partindo imediatamente, cedendo à premência da pressa, estaria à
distância máxima possível de ambas as cidades quando o meio-dia
chegasse. Parecia-lhe que neste particular as
circunstâncias estavam a seu favor, e disse então ao negro:
271
- Que raio estás tu a fazer? Alguém te pagou para reteres aqui o carro
o máximo que pudesses?
- Este pneu não tem ar nenhum - disse o negro.
- Então salta dali para fora e dá cá a bomba - disse Jason.
- já tá cheio - disse o negro, pondo-se de pé. - Já pode partir.
Jason entrou para o carro, pôs o motor a trabalhar e arrancou. Meteu a
segunda, o motor roncava ofegante e ele insistia, carregando no
acelerador e fechando e abrindo a entrada de ar com violência. - Vai
chover - disse ele. - Quando chegar a
meio do caminho vai chover a potes. - E lá foi a acelerar, deixando
para trás a cidade e o repicar dos sinos, e já se imaginava atolado em
lama à procura de uma parelha de mulas. - E todos estes estupores vão
estar na igreja. - Imaginava como finalmente acabaria por encontrar
uma igreja, e conseguiria arranjar a tal parelha de mulas, e como o
dono viria cá fora a correr, a gritar com ele, e ele o atirava ao chão
e dizia: - Sou Jason Compson. Experimenta travares-me o passo.
Experimenta elegeres um xerife que me consiga travar o passo - dizia
ele, imaginando-se a
entrar no tribunal escoltado por soldados e trazendo à força o xerife.
- Pensa que pode ficar de braços cruzados a ver-me perder o emprego.
Eu mostro-lhe o que é perder o emprego. - Não era na sobrinha que
pensava, nem no valor relativo do dinheiro. Nenhum deles tinha tido
para ele existência real nos últimos dez anos: simbolizavam apenas, em
conjunto, o emprego no banco, do qual se vira privado antes mesmo de o
ter conseguido.
O tempo clareou, as sombras fugidias eram agora um bom prenúncio, e
parecia-lhe que o facto de o dia estar a desanuviar era mais um golpe
da sorte traiçoeira, da nova batalha para que se dirigia carregado de
velhas feridas. De vez em quando passava por igrejas, barracões de
madeira por pintar, com campanários de chapa, rodeados de parelhas de

pílecas e automóveis estropiados, e parecia-lhe que cada uma delas era
mais um posto de vigia de onde a guarda-recuada das Circunstâncias o
espiava. - E vai-te lixar Tu também - dizia ele. - Experimenta
deteres-me
- e imaginava-se ao comando da sua escolta de soldados, com o
xerife algemado na retaguarda, arrancando a Omnipotência à
272
força do seu trono, se tal fosse necessário; imaginava as legiões do
céu e do inferno guerreando-se e ele abrindo caminho por entre elas
para finalmente deitar as mãos à sobrinha.
O vento que soprava de sudeste fustigava-lhe o rosto, certeiro. Dirse-
la que sentia o golpe de ar, persistente, penetrar fundo no seu
cérebro e, de súbito, impelido por uma velha premonição, carregou nos
travões, parou e quedou-se imóvel e sentado. Depois levou a mão à
cabeça e começou a praguejar, e assim continuou, sentado e a
praguejar, num rouco sussuro. Quando tinha de guiar por muito tempo,
munia-se de um lenço embebido em cânfora que atava à volta do pescoço
mal saía da cidade, para inalar os vapores; saiu por isso do carro e
levantou a almofada do assento, na esperança de encontrar algum lenço
esquecido. Espreitou debaixo dos dois bancos e deixou-se ficar fora do
carro mais um pouco, a praguejar, imaginando-se coberto de ridículo
pelo seu próprio triunfo. Fechou os olhos e encostou-se à porta. Podia
voltar para trás e ir buscar a cânfora, ou seguir em
frente. Em qualquer dos casos, sentiria a cabeça a estalar, mas
em casa sabia que encontraria cânfora ao domingo, ao passo que se
continuasse não sabia se a conseguiria arranjar. Porém, se voltasse
para trás, só daí por hora e meia chegaria a Mottson. Talvez se eu for
devagar... - disse ele. - Talvez se eu for devagar, a pensar noutra
coisa...
Entrou para o carro e arrancou. - Vou pensar noutra coisa disse,
pondo-se a pensar na Lorraine. Imaginou-se na cama com ela, mas apenas
deitado ao lado dela, pedindo-lhe que o ajudasse, mas logo voltou a
pensar no dinheiro, e em como
tinha sido enganado por uma mulher, uma miúda ainda. Se ao menos
pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas ver-se roubado
daquilo que era a sua compensação pelo emprego gorado, privado daquilo
que ele tinha juntado com tanto esforço e risco, do próprio símbolo do
emprego perdido, e, pior que tudo, por uma cabra daquelas. Seguiu em
frente, protegendo a cara do vento certeiro com a gola do casaco.
Via as forças adversas do destino e da vontade reunirem-se agora,
rapidamente, numa aliança irrevogável; estava a ficar astucioso. Não
posso falhar, dizia de si para si. Só havia uma saída,
273
sem alternativas: tinha de a usar. Estava convencido de que qualquer
deles o reconheceria à primeira vista, ao passo que ele tinha de
tentar descobri-Ia a ela primeiro, a menos que o homem ainda trouxesse
a gravata vermelha. E o facto de depender de uma gravata vermelha
parecia-lhe ser sinal da fatalidade iminente; podia quase sentir-lhe o
cheiro, senti-lo no latejar das têmporas.
Transpôs a última colina. Pairava fumo sobre o vale e viam-se alguns
telhados e um ou dois pináculos despontando das árvores. Desceu a
encosta e entrou na cidade, abrandando a marcha, mentalizando-se de
que todo o cuidado era pouco, procurando a tenda antes de mais nada.
Estava com a vista algo afectada, e
sabia que era a fatalidade que teimava em dizer-lhe que fosse procurar
qualquer coisa para as dores de cabeça. Numa estação de serviço
disseram-lhe que a tenda ainda não estava montada, mas que as
caravanas estavam num parque junto à estação dos comboios. Foi pois
para lá que se dirigiu.

Encontrou duas carrinhas estacionadas, pintadas em cores
garridas. Inspeccionou o local ainda antes de sair do carro.
Esforçava-se por respirar superficialmente para que o sangue não lhe
latejasse tanto nas fontes. Saiu do carro e seguiu rente ao muro da
estação, sempre atento às caravanas. Havia algumas peças de roupa
estendidas nas janelas, pingonas e enrodilhadas, como se tivessem
acabado de ser lavadas. No chão, junto aos degraus de uma
delas, estavam três cadeiras de lona. Mas não detectou sinais de vida
até um homem de avental imundo se assomar à porta e despejar um
alguidar de água da loiça com um gesto largo, fazendo reflectir o sol
no bojo metálico voltando em seguida para dentro.
Agora tenho de o apanhar de surpresa, antes de ele os avisar, pensou.
Nem lhe passou pela cabeça que podiam não estar nas caravanas. Que
podiam nem sequer estar ali, que o desenlace não iria depender de quem
visse primeiro quem, contrariando a
natureza, o ritmo dos acontecimentos. Mais do que isso: ele tinha de
ser o primeiro a vê-los e recuperar o dinheiro; o que fizessem depois
já não teria importância, ao passo que de outra
maneira, o mundo inteiro ficaria a saber que ele, Jason Compson, tinha
sido roubado pela Quentin, sua sobrinha, uma puta.
Fez novo reconhecimento do terreno. Depois aproximou-se
274
da carrinha, subiu os degraus, rápido e silencioso, e parou junto à
porta. A cozinha da caravana era escura e tresandava a comida
estragada. O homem era uma mancha esbranquiçada, e cantarolava com voz
de tenor, trémula e de cana rachada. Um velho, pensou ele, e mais
pequeno do que eu. Entrou no carro e o homem levantou os olhos para
ele.
- Sim? - disse o homem, parando de cantar.
- Onde estão eles? - disse Jason. - Vá, rápido. Na carava- nadormitório?
- Onde está quem? - disse o homem.
- Nada de mentirolas - disse Jason. Eavançou para o
homem na penumbra, por entre a desarrumação geral.
- Mas que vem a ser isto? - disse o outro. - A quem está você a chamar
mentiroso? - E quando Jason lhe deitou a mão ao ombro, ele exclamou: -
Eh lá, camarada!
- Nada de mentiras - disse Jason. - Onde estão eles?
- Filho da puta - disse o homem. O braço dele, fino e frá- gil, estava
bem preso nas garras de Jason. Tentou libertar-se, e
depois virou-se e começou a tactear entre a tralha que pe' ) ava a
mesa por detrás dele.
- Vamos - disse Jason. - Onde estão eles?
- Espera lá que eu já te digo onde eles estão - guinchou o homem. - É
só eu encontrar a minha faca e vais ver,
- Oiça lá - disse Jason, tentando segurar o outro. - Só estou a fazerlhe
uma pergunta.
- Filho da puta - guinchava o outro, vasculhando por cima da mesa.
Jason tentou prender-lhe os dois braços para lhe acalmar a fúria, mas
o corpo do homem era tão velho e frágil, mas, não obstante, tão
fatalmente determinado, que Jason viu claramente pela primeira vez a
fatalidade para a qual se precipitava.
- Pronto! - disse ele. - Pronto. Pronto! Eu saio já. É só o
tempo de sair.
- A chamar-n-ic mentiroso - indignava-se o outro. - Deixa-me. Solta-me
e vais ver o que eu te faço.
Jason olhava tresloucado para todos os lados, sem o largar. Lá fora o
dia estava soalheiro, brilhante, vivo e vazio, e ele pensou nas
pessoas que não tardariam a regressar a casa calmamente, com
275

circunspecto decoro, para o seu almoço de domingo, e pensou em si
próprio, tentando deter aquele homenzinho furioso e fatal, sem se
atrever a soltá-lo para lhe poder voltar as costas e fugir.
- Promete que se controla até eu sair? - disse ele. - Promete? - Mas o
outro continuava a debater-se, e Jason soltou uma das mãos e bateu-lhe
na cabeça. Um golpe desastrado, atabalhoado, não muito violento, mas o
outro tombou de imediato, rolando com estrépito por cima de baldes e
panelas. Jason ficou de pé a olhar para ele, ofegante, à escuta.
Depois deu meia volta e
correu para a porta. Aí, dominou-se e desceu os degraus mais devagar,
ficando parado cá fora. A sua respiração produzia um
sonoro há há há e ainda ele estava ali parado, a ver se se acalmava,
olhando para um lado e para o outro, quando uma restolhada atrás de si
o fez voltar-se mesmo a tempo de ver o homenzinho saltar em fúria da
caravana, brandindo um machado ferrugento.
Jason agarrou-se ao machado, sem sentir o choque, mas
sabendo que tombava e pensando É então assim que isto vai acabar,
convencido de estar prestes a morrer, e quando uma coisa o atingiu na
nuca pensou Como é que ele me conseguiu atingir aqui? Só se já me
bateu há muito tempo, pensou ele, e só agora é que senti. E pensou
Depressa. Depressa. Acaba com isso, e de repente foi tomado pelo
desejo imperioso de não morrer e desatou a lutar, ouvindo o velho a
gemer e a praguejar na sua voz de cana rachada.
Lutava ainda quando o puseram de pé, mas agarraram-no e acabou por
parar.
- Estou a sangrar muito? - disse ele. - A nuca. Estou a sangrar? -
Ainda a dizer o mesmo, sentiu-se subitamente empurrado, ao mesmo tempo
que ouvia a voz do homem, esganiçada e furiosa, a perder-se na
distância. - Vejam a minha cabeça - dizia ele. - Esperem, eu...
- Esperem, uma ova - disse o homem que o agarrava. Aquele danado ainda
o mata. Ponha-se a andar. Não está ferido.
- Ele agrediu-me - disse Jason. - Estou a sangrar?
- Vá-se embora - disse o outro. Dobrou a esquina e levou Jason até à
estação, até à plataforma vazia onde estava parado um
vagão de mercadorias perto de um sítio onde a erva crescia den276
sa num terreiro orlado de flores rígidas, com um anúncio luminoso que
dizia: Fique de <3> em Mottson, estando o espaço preenchido por um
olho humano com uma pupila eléctrica, O homem soltou-o.
- Agora - disse ele - vá-se embora e não volte mais aqui.
O que é que queria fazer? Suicidar-se?
- Vim à procura de duas pessoas disse Jason. - Só lhe perguntei
se sabia onde elas estavam.
- Anda à procura de quem?
- De uma rapariga - disse Jason. E de um homem. Ele andava ontem
em Jefferson com uma gravata vermelha. Fazia parte do espectáculo.
Eles roubaram-me.
- Ah - disse o homem. - Então você é o tal. Pois é, mas
eles não estão aqui.
- Acho que não - disse Jason. Encostou-se ao muro, levou a mão à nuca
e olhou para a palma da mão. - Julguei que estava a sangrar - disse
ele. - Julguei que ele me tinha batido com o machado.
- Você bateu com a cabeça nos carris - disse o homem.
O melhor é ir-se embora. Eles não estão aqui.
- Sim, ele de facto disse que não estavam. Mas pensei que estivesse a
mentir.
- E eu, acha que estou a mentir? - disse o homem.
- Não - disse Jason. - Sei que eles não estão aqui.
- Disse-lhes que se pusessem a andar daqui para fora. Os dois - disse
o homem. - Não quero daquilo no meu espectáculo. Eu dirijo um

espectáculo respeitável, com um elenco respeitável.
- Claro - disse Jason. - E não sabe para onde foram?
- Não. Nem quero saber. Nenhum dos meus artistas pode fazer avarias
dessas. Você é... irmão dela?
- Não - disse Jason. - Isso não interessa. Só queria encontrá-los. Tem
a certeza de que ele não me bateu? Quero dizer.. que não me fez
sangue?
- Tinha corrido sangue, mas era se eu não chegasse quando cheguei.
Fique longe daqui. Aquele danado é capaz de o matar. Aquele ali é o
seu carro?
277
É. Ora bem, trate de se meter nele e de voltar para Jefferson. Se os
encontrar, não vai ser no meu espectáculo. O meu espectáculo é um
espectáculo respeitável. Diz que o roubaram?
- Não - disse jason. - Não interessa. - Entrou para o
carro. E agora o que vou fazer? pensou ele. Nisto, lembrou-se. Pôs o
motor a trabalhar e seguiu devagar pela rua acima até encontrar uma
farmácia. A porta estava fechada. Ficou parado por uns instantes com a
mão no puxador e a cabeça ligeiramente curvada. Depois veio-se embora
e, quando daí por um bocado passou um homem, perguntou-lhe se havia
alguma farmácia aberta na cidade, mas não havia. Depois perguntou-lhe
a que horas partia o comboio para o norte, e o homem disse-lhe que às
duas e meia. Atravessou o passeio, entrou outra vez no carro e deixouse
ficar sentado. Algum tempo depois passaram dois rapazes pretos.
Chamou-os.
- Algum de vocês sabe guiar um carro?
- Si, siô.
- Quanto querem para me levarem agora mesmo para jefferson?
Eles entreolharam-se e conferenciaram.
- Dou-vos um dólar - disse jason. Conferenciaram de novo. - Por esse
preço, não posso disse um.
- Então por quanto?
- Tu podes ir? - disse um.
- Não posso sair daqui - disse o outro. - Por que não o
levas tu? Não tás a fazê nada.
- Isso é qu'eu tou.
- E o qu'é que tás a fazê? Puseram-se de novo a cochichar e a rir. -
Dou-vos dois dólares - disse jason. - A cada um.
- Eu tamém não posso - disse o primeiro.
- Está bem - disse jason. - Então passem bem. Deixou-se ficar sentado
por mais algum tempo. Ouviu um
relógio dar a meia hora e depois começaram a passar pessoas com os
seus fatos pascais e domingueiros. Algumas olhavam para ele,
278
para aquele homem tranquilamente sentado ao volante de um carro
pequeno, com a saga invisível da sua vida enredada à sua volta como
urna peúga velha, e seguiam o seu caminho. Passado um bocado apareceu
um negro de fato de macaco.
É o sinhô que quê ir pa Jefferson? - disse ele. Sou - disse jason. -
Quanto levas? Quatro dólares. Dou-te dois. Não poss'ir po menos de
quatro. - O homem do carro continuou tranquilamente sentado. Nem para
o outro olhava.
O negro disse então: - Quê ou não quê os meus serviços?
- Está bem - disse Jason. - Entra. Chegou-se para o lado e o negro
sentou-se ao volante. jason fechou os olhos. Hei-de encontrar qualquer
coisa assim que chegar a jefferson, dizia para si mesmo, tentando
descontrair-se para suportar os solavancos, lá hei-de encontrar alguma
coisa. Seguiram por ruas onde as pessoas regressavam às suas casas
para o almoço de domingo, e saíram da cidade. Era nisso que ele

pensava. Não pensava na sua própria casa, onde Ben e Luster comiam um
almoço frio na mesa da cozinha. Alguma coisa - a ausência de
fatalidade, de ameaça, um estado de mal permanente - permitia-lhe
esquecer JefiFérson como um lugar que nunca
tivesse visto, e onde a sua vida iria recomeçar.
Quando Ben e Luster terminaram, Dilsey mandou-os lá para fora. - E vê
s'o deixas em paz té às quatro horas. É q'ando chegló T. E
- Sissiô - disse Luster. Saíram para o pátio. Dilsey almoçou também
e arrumou a cozinha. Depois foi até ao fundo das escadas e pôs-se à
escuta, mas não se ouvia nada. Passou pela cozinha, saiu pela porta
das traseiras e parou nos degraus. Ben e
Luster não estavam por ali, mas ouviu de novo um ruído vindo dos lados
da adega e para lá se dirigiu, abrindo a porta e esprei- tando para
baixo, numa repetição da cena dessa manhã.
- Era assim qtMe fazia - dizia Luster. Contemplava a serra imóvel com
uma espécie de esperançada dejecção. - Não tenho uma coisa apropriada
pa lhe bate - dizia ele.
- E tamém não vai sê aí qu'a encontras - disse Dilsey. 279
Leva-o já p'apanhá sol. Vocês inda apanham os dois uma pneumonia aqui
em baixo neste chão molhado.
Ficou à espera a vê-los atravessar o pátio até ao tufo de cedros junto
à cerca. Depois foi para a cabana.
- Agora, não comece - disse Luster. - Hoje já me deu trabalho que
chegue. - Havia uma rede de baloiço feita de aros de barril enfiados
numa rede de arame. Luster deitou-se a balançar, mas Ben continuou a
deambular sem destino. E logo recomeçou a chorar. - Teja calado -
disse Luster. - Tou a vê qu'inda tenho de lhe batê. - Deitou-se outra
vez na rede. Ben estava quieto, mas Luster ouvia-o choramingar. - Vaise
calá ou não vai? - disse Luster. Saltou da rede e foi ter com Ben,
agachado junto a um monte de terra. De cada lado do monte estava
enterrado na terra um frasco vazio de vidro azul que antes contivera
veneno. Dentro de um deles estava uma folha seca de erva-do-diabo. Ben
estava de cócoras a olhar para o frasco e a chorar baixinho. Sempre a
chorar, procurou à volta, encontrou um tronquinho e meteu-o no outro
frasco. - Por que não se cala? - disse Luster. - Veja lá se quê qu'eu
lhe dê uma boa razão pá chorá. E s'eu por exemplo lhe fizess'isto?
Ajoelhou-se e, agarrando de repente no frasco, escondeu-o atrás das
costas. Ben calou-se. Continuou de cócoras a olhar para a cova onde o
frasco tinha estado, mas, quando ia encher os pulmões de ar, Luster
fez aparecer outra vez o frasco. Chiu! - sibilou. - Não s'atreva a
berrá! Tá a ouvi? Já aqui tá. Tá a vê? Tome lá. já vi que vai chorá
s'aqui ficá. Venha daí. Vamos vê se já começaram a bate na bola. -
Puxou Ben pelo braço para o ajudar a levantar, foram até à cerca e
ficaram os dois lado a lado, a espreitarem por entre as folhas da
madressilva que ainda não estava em flor.
- Ali - disse Luster. - Lá vêm uns. Tá a vê-los? Viram um grupo de
quatro jogadores atirarem a bola e seguirem para o buraco seguinte.
Ben observava-os, a choramingar, e
a gemer. Quando a equipa se afastou, seguiu-os ao longo da cerca, a
gemer e a chorar. Um deles disse:
- Vá, ca,@Uie, traz o saco.
- Cale-se, Benjy - disse Luster, mas Ben continuou a
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segui-los, no seu passo desajeitado, agarrado à cerca, a chorar com a
sua voz rouca e infeliz. Os homens iam jogando e iam-se afastando, e
Ben a segui-los até a cerca acabar, e ele ficar agarrado a ela a ver
as pessoas cada vez mais longe, até desaparecerem.
- E agora, vai-se calá? - disse Luster. - Vai-se calá ou não vai? -
Abanou o braço de Ben. Ben estava agarrado à cerca, no seu choro rouco

e continuado. - Vai pará ou não? - disse Luster, - Então? - Ben tinha
o olhar fixo para lá da cerca. Então tá bem - disse Luster. - Quer que
lhe dê uma razão pa chorá? - Olhou para trás, para a casa, ppr cima do
ombro, e murmurou: - Caddy! Vá, berre agora. Caddy! Caddy! Caddy!
Passados uns instantes, Luster ouviu a voz de Dilsey a cha- má-los,
nos intervalos em que Ben se calava. Pegou no braço de Ben e foram ao
encontro dela.
- Eu bem lhe disse qu'ele não ia ficá calado - disse Luster.
- Ah, malandro! - disse Dilsey. - O qu'é que tu lhe fizeste?
- Eu não fiz nada. Eu bem lhe disse que quando os outros
começassem a jogá ele desatava a chorá.
- Venham p'aqui - disse Dilsey. - Vá, Benjy. Agora esteja caladinho. -
Mas ele não se calava. Atravessaram o pátio e
foram para a cabana. - Vai depressa buscá o sapato - disse Dilsey. - E
não incomodes Miss Ca'line. S'ela dissé alguma coisa, diz-lhe qu'ele
tá comigo. Vá, vai lá num instante. Acho qu'isso consegues fazê
direito. - Luster saiu. Dilsey levou Ben para a cama e deitou-o ao
lado dela e abraçou-o, embalando-o, enquanto lhe limpava a baba com a
barra da saia. - Agora esteja caladinho - dizia ela, afagando-lhe a
cabeça. - Esteja caladinho. A Dilsey está ao pé de si. - Mas ele
chorava de mansi- nho, inconsolável, sem verter lágrimas; era o
lamento desesperado e mudo de toda a miséria existente à face da
terra. Luster voltou, trazendo na mão um chinelinho de cetim branco.
Agora já estava amarelo, rasgado e sujo, mas quando o puseram na mão
de Ben, ele sossegou por uns momentos. Mas choramingava ainda, e não
tardou a elevar a voz.
Achas que consegues encontrá o T E? - disse Dilsey.
281
- EFontem disse qu'ia hoje a St. Jolin. Disse que voltav'às quatro.
Dilsey embalava Ben e afagava-lhe a cabeça.
- Há quanto tempo, Sinhô - dizia ela - Há quanto tempo.
- Eu consigo guiá a caleche, vó - disse Luster.
- Vais é matar-vos aos dois - disse Dilsey. - Dizes isso pa
m'atentares. Eu sei que esperteza não te falta. Mas não és de
confiança. Vá, esteja caladinho - disse ela. - Vá. Chhh.
- Não vou nada - disse Luster. - Eu guio como T R Dilsey balançava
para trás e para a frente, abraçando Ben. - Miss Ca'line diz que se
não conseguir qu'ele se cale, ela levanta-se e
vem cá.
- Chhh, meu amô - disse Dilsey, afagando a cabeça de Ben. - Luster,
meu amô - disse ela -, vais fazê o qu'a tua avó diz e guiares a
caleche direita?
- Sissíô - disse Luster. - Vou guiá-la tão bem como o T. E Dilsey
continuou a afagar a cabeça de Ben, embalando-o para trás e para a
frente. - Eu faço o que posso - disse ela. Deus sabe que sim. Vai lá
buscá-la - disse, levantando-se. Luster saiu a correr. Ben continuava
agarrado à chinelinha, a chorar. - Agora cale-se. O Luster vai buscá a
caleche e levá-lo ao cemitério. Nem m'atrevo a ir buscá o seu boné -
disse ela. Foi a um roupeiro feito num canto do quarto com uma cortina
a servir de porta e tirou o chapéu de feltro que tinha levado à
igreja. - Inda havemos de chegá a pior do qu'isto, ah, s'as pessoas
soubessem - disse ela. - O menino tamém é filho de Deus. E eu tamém
vou tê com ele não tarda, louvado seja o
Sinhê. Tome. - Pôs-lhe o chapéu na cabeça e abotoou-lhe o casaco. Ele
não parava de chorar. Tirou-lhe a chinela da mão, arrumou-a e saíram.
Luster apareceu com um velho cavalo branco atrelado a uma caleche
desengonçada, toda tombada para um lado.
- Vais tê muito cuidado, Luster, não vais? - disse ela.
- Sissiô - disse Luster. Dilsey ajudou Ben a subir para o banco
traseiro. Ele já tinha parado de chorar, mas depressa recomeçou.

- É a flor - disse Luster. - Espere, eu vou-lhe buscá uma.
- Deixa-te aí está - disse Dilsey. Foi para junto do cavalo e
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segurou-lhe o freio. - Agora vai depressa apanhá uma. - Luster foi de
volta até ao jardim e voltou com um narciso.
- Esse tá partido - disse Dilsey. - Por que não IUarranjas um melhor?
- Foi o único qu'encontrei - disse Luster. - Vocês levaram-nos todos
na sexta feira pá decorá a igreja. Espere, eu conserto-o. - E enquanto
Dilsey segurava o cavalo, Luster fez uma
estaca para a flor com um tronquinho e dois bocados de cordel e deu-a
a Ben. Depois subiu para a caleche e pegou nas rédeas. Dilsey ainda
não tinha largado o freio.
- Sabes o caminho? - disse ela. -, Pela rua acima, dás a
volta à praça, vais direito ao cemitério e depois voltas pá casa.
- Sissiô - disse Luster. - Toc'andá, Queenie.
- Vê lá se tens cuidado.
- Sissiô. - Dilsey largou o freio.
- Toc'andá, Queenie - disse Luster.
- Vá - disse Dilsey. - Passa pá cá o chicote.
- Oli, vó! - disse Luster.
- Dá-mo cá - disse Dilsey, encostando-se à roda. Luster deu-lho com
relutância.
- Assim a Queenie nunca mais anda.
- Não te preocupes - disse Dilsey. - A Queenie sabe melhor pá onde vai
do que tu. Tudo o que tens a fazê é ires aí sentado a segt@rares as
rédeas. Sabes o caminho?
- Sissiô. E o caminho qu@o T. P. faz todos os domingos.
- Então faz tu a mesma coisa este domingo.
- Claro que vou fazê. Então eu não guiei já pelo T. P. mais de cem
vezes?
- Então hoje é mais uma - disse Dilsey. - Agora vai. E se
magoares o Benjy, negrinho duma figa, nem sei o que te faço. Vais pós
trabalhos forçados, e tão depressa qu'inda lá chegas antes deles
estarem à tua espera.
- Sissiô - disse Luster. - Toc'andá, Queenie. Bateu com as rédeas no
dorso largo da Queenle e a caleche arrancou com um solavanco.
- Olha lá, Luster! - disse Dilsey.
- Vamos. Toc'andá! - disse Luster. - Bateu-lhe outra vez
283
com as rédeas. Acompanhada de ruídos subterrâneos, Queenie trotou
calmamente pela rampa abaixo, até à rua, onde Luster a
espevitou para um trote vivo que se assemelhava a uma queda para a
frente, prolongada e em suspensão.
Ben parou de chorar. Ia sentado no meio do banco, com a
flor consertada espetada na mão, de olhar sereno e inefável. Mesmo à
sua frente, a cabeça fusiforme de Luster voltava-se continuamente até
perder a casa de vista. Assim que isso aconteceu, parou na berma da
estrada, desceu e foi cortar um ramo a uma sebe. Queenie baixou a
cabeça e pôs-se a aparar a relva até Luster subir outra vez para a
caleche, puxar-lhe a cabeça para cima e pô-Ia outra vez em marcha;
depois, ele dobrou os braços e, com o
ramo e as rédeas ao alto, adoptou uma pose fanfarrona, completamente
despropositada para a cadência tranquila dos cascos da Queenie e os
sons graves de órgão do seu acompanhamento interior. Passavam por eles
carros, e pessoas; uma vez foi um grupo de rapazolas negros.
Olá, Luster. Pa onde vais, Luster? Pé campo dos ossos? É - disse
Luster. - Mas não pé mesmo campo d'ossos onde vocês hão-d'ir pará.
Adiante, elefante.
Aproximavam-se da praça, onde o soldado da Confederação vigiava, de

olhar vazio sob a mão de mármore, fustigado por
ventos e intempéries. Luster foi ainda mais longe e golpeou o
dorso da imperturbável Queenie com o chicote improvisado, espraiando
os olhos pela praça. - Tá ali o carro de Mr. Jason disse ele, ao mesmo
tempo que avistava um outro grupo de negros. - Vamos mostrá a estes
negros como é que se guia, Benjy - disse ele. - Disse alguma coisa? -
Olhou para trás. Ben ia sentado com a flor na mão, de olhar sereno e
despreocupado. Luster fustigou de novo a Queenie e obrigou-a a virar
bruscamente à esquerda junto ao monumento.
Por momentos, Ben viveu um hiato de pânico. Depois desatou a gritar.
Grito a grito, a sua voz elevava-se cada vez mais, quase sem pausas
para respirar. Havia nela mais do que espanto; era horror; choque; uma
agonia sem olhos e sem língua; apenas som, e os olhos de Luster
revirando-se para trás por um lapso de brancura. - Valha-me Deus -
disse ele. - Cale-se! Cale-se!
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Valha-me Deus! - Rodopiou outra vez e bateu na Queenie com
o ramo. Mas ele partiu-se e Luster deitou-o fora, e, com a voz de Ben
subindo de tom num crescendo inimaginável, pegou na
ponta das rédeas e inclinou-se todo para a frente no momento em que
Jason atravessava a praça a correr e saltava para o estribo.
Com um golpe desferido com as costas da mão, Jason empurrou Luster
para o lado; agarrou as rédeas, puxou o freio, dobrou as rédeas e
fustigou os flancos da Queenie. Golpeava-a sem parar, metendo-a a
galope desenfreado, enquanto os gritos roucos de Ben, em agonia,
ressoavam por toda a praça. Depois fê-la virar à direita do monumento.
Nisto, desferiu um murro na
cabeça de Ben.
- Não sabes que não é para a esquerda? - disse ele. Virou-se para trás
e bateu em Ben, voltando a partir a haste da flor. Cala-te! - disse
ele. - Cala-te! - Fez Queenie estacar e saltou para o chão. - Vai para
o inferno, leva-o para casa. Se tornas a passar daquele portão com
ele, dou cabo de ti!
- Si, siô! - disse Luster. Pegou nas rédeas e bateu na Queenie com as
pontas. - Levante-se! Vá, levante-se, Benjy. Por amô de Deus!
A voz de Ben soava cada vez mais alto. A Queenie pôs-se de novo a
passo, os cascos retomaram o seu toc-toc cadenciado e
Ben calou-se de imediato. Luster olhou-o de relance por cima do ombro
e seguiu em frente. A flor partida pendia da mão de Ben e os seus
olhos eram vazios, azuis e serenos outra vez, à medida que comija e
fachada deslizavam de novo da esquerda para a
direita; postes e árvores, janelas, portas e cartazes, cada qual no
seu devido lugar.

 

 

                                                                  William Faulkner

 

 

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