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Eu sou um homem ridículo.
Agora, eles me chamam de louco. Isso até seria subir na hierarquia, se eu, ainda assim, não continuasse sendo, para eles, tão ridículo quanto antes. Mas, agora, eu nem me irrito mais, agora todos eles são queridos para mim e, até quando riem de mim, são, de algum modo, particularmente queridos. Eu mesmo riria com eles, não digo que de mim, mas por amor a eles, se eu não ficasse tão triste ao olhar para eles. Fico triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é difícil ser o único a conhecer a verdade! Mas eles não entenderão isso. Não, não entenderão.
Antes, eu ficava muito aborrecido por parecer ridículo. Não parecia, eu era. Eu sempre fui ridículo, e talvez saiba disso desde o meu nascimento. Talvez aos sete anos já soubesse que era ridículo. Depois, ingressei na escola, depois, na universidade, e então? Quanto mais eu estudava, mais aprendia que era ridículo. De maneira que, para mim, foi como se todo o meu estudo universitário só tivesse existido, no fim das contas, para me provar e explicar, à medida que me aprofundava nele, que eu era ridículo. Tal como no estudo, aconteceu na vida. A cada ano, crescia e fortalecia-se dentro de mim aquela mesma consciência de meu aspecto ridículo em todos os sentidos. Todos riam de mim o tempo inteiro. Mas nenhum deles sabia e sequer imaginava que, se alguém na Terra reconhecia de fato que eu era ridículo, esse alguém era eu mesmo, e era justamente essa a coisa mais ofensiva para mim, que eles não soubessem disso; mas eu mesmo era o culpado: sempre fui tão orgulhoso que nunca quis, de jeito nenhum, reconhecer isso a ninguém. Esse orgulho foi crescendo dentro de mim com os anos, e, se tivesse acontecido de me permitir reconhecer, a quem quer que fosse, que eu era ridículo, creio que, ali mesmo, naquela mesma noite, eu teria arrebentado minha cabeça com um tiro de revólver. Ah, como eu sofri em minha adolescência pensando que não suportaria e, de repente, de alguma maneira, confessaria tudo aos meus companheiros, por conta própria. Mas, desde que me tornei rapaz, e embora a cada ano reconhecesse mais e mais a minha horrível qualidade, por alguma razão fiquei um pouco mais tranquilo. Por alguma razão, mesmo, já que, até agora, não consigo definir qual razão. Talvez porque, em minha alma, crescesse uma terrível angústia, por conta de uma circunstância que já era infinitamente maior do que eu: a saber, era essa convicção, que se formava dentro de mim, de que no mundo, em toda parte, dava tudo na mesma. Fazia muito tempo que eu pressentia aquilo, mas a convicção plena surgira no último ano, como que de repente. Eu senti de repente que, para mim, dava na mesma se o mundo existisse ou se não houvesse nada em lugar nenhum. Comecei a perceber e a sentir, com todo o meu ser, que não havia nada ao meu redor. No início, ainda me parecia que, antes, em compensação, houvera muita coisa, mas depois me dei conta de que antes também não houvera nada, eu só tivera essa impressão, por algum motivo. Pouco a pouco, eu me convenci também de que nunca haveria nada. Então, de repente, eu parei de me irritar com as pessoas e comecei quase que a não notá-las. Juro, isso se manifestava até nas ninharias mais insignificantes: acontecia, por exemplo, de eu andar pela rua e esbarrar nas pessoas. E não era por estar pensativo — em que haveria eu de pensar? À época, eu tinha parado totalmente de pensar: para mim, dava na mesma. E seria bom se estivesse resolvendo problemas; ah, eu não resolvi nenhum, e quantos eles não eram! Mas, agora, para mim dava na mesma, e todos os problemas tinham se afastado.
E então, logo depois disso, eu conheci a verdade. Conheci a verdade no último novembro, precisamente no dia 3 de novembro, e, desde então, eu me recordo de cada instante. Foi numa noite sombria, uma das mais sombrias que poderia haver. Eu, então, estava voltando para casa, perto das onze horas, e eu me lembro justamente de ter pensado que não poderia ser uma hora mais sombria. Até no sentido físico. A chuva tinha caído o dia inteiro, e era uma chuva das mais frias e sombrias, uma chuva até ameaçadora, lembro-me disso, ela tinha uma evidente hostilidade contra as pessoas, e aí de repente, perto das onze horas, ela parou, e começou uma terrível umidade, ficou mais úmido e mais frio do que quando chovia, e de todas as coisas saía uma espécie de vapor, de cada pedra na rua e de cada travessa, se, a partir da rua, você olhasse lá adiante, bem no fundo dela. Pareceu-me de repente que, se a luz a gás se apagasse em toda parte, tudo ficaria mais agradável, pois com a luz a gás o coração sentia-se mais triste, porque ela iluminava tudo aquilo. Naquele dia, eu quase não tinha almoçado e, desde o fim da tarde, estivera na casa de um engenheiro, onde também estavam outros dois amigos. Passei o tempo todo calado, e, pelo visto, eles ficaram aborrecidos comigo. Falavam sobre alguma coisa controversa e de repente até se exaltaram. Mas, para eles, dava na mesma, eu via isso, e eles se exaltavam por se exaltar. De repente, eu lhes disse justamente isto: “Senhores, mas dá na mesma para os senhores”. Eles não se ofenderam, mas todos riram de mim. Isso porque eu falei sem qualquer tom de censura, e simplesmente porque, para mim, dava na mesma. E eles viram que para mim dava na mesma, e ficaram alegres.
Quando eu estava na rua, pensando sobre a luz a gás, olhei para o céu. Ele estava horrivelmente escuro, mas era possível divisar com clareza umas nuvens despedaçadas e, entre elas, umas manchas negras insondáveis. De repente, numa dessas manchas, notei uma estrelinha e comecei a olhar fixamente para ela. Isso porque essa estrelinha me deu uma ideia: eu determinei que me mataria naquela noite. Isso já havia sido determinado com firmeza por mim dois meses antes, e, por mais pobre que eu fosse, comprei um revólver magnífico e, no mesmo dia, carreguei-o. Mas dois meses já haviam se passado, e ele continuava dentro da caixa; mas a tal ponto tudo dava na mesma para mim, que eu quis finalmente achar um momento em que não desse tanto na mesma — por que isso, eu não sei. E, dessa maneira, durante aqueles dois meses, toda noite, ao voltar para casa, eu pensava que me mataria com um tiro. Estava só à espera do momento. E então, agora, aquela estrelinha me deu aquela ideia, e determinei que seria já naquela noite, sem falta. E por que a estrelinha me deu aquela ideia, isso eu não sei.
E então, quando eu olhava para o céu, de repente esta menina me agarrou pelo cotovelo. A rua já estava vazia e não havia quase ninguém. Ao longe, um cocheiro dormia numa carruagem. A menina tinha uns oito anos, usava um lencinho na cabeça e só um vestidinho, estava toda molhada, mas eu guardei particularmente na memória os sapatinhos dela, molhados e rotos, e lembro deles até agora. Eles me saltaram aos olhos em particular. A menina de repente começou a me puxar pelo cotovelo e a me chamar. Ela não chorava, era como se gritasse de maneira entrecortada umas palavras que não conseguia articular bem, porque tiritava por inteiro, em calafrios. Estava horrorizada por alguma razão e gritava, desesperada: “Minha mamãezinha! Minha mamãezinha!”. Fiz menção de virar o rosto na direção dela, mas não disse uma palavra e continuei a caminhar, mas ela corria e me puxava, e em sua voz ressoava aquele som que, nas crianças muito assustadas, denota desespero. Conheço esse som. Embora ela não conseguisse terminar as palavras, entendi que sua mãe estava morrendo em algum lugar, ou que alguma coisa tinha acontecido com elas, e ela tinha corrido para chamar alguém, achar alguma coisa para ajudar a mãe. Mas não fui atrás dela, e, ao contrário, de repente veio-me à mente a ideia de enxotá-la. Primeiro, disse a ela que procurasse um guarda. Mas, de repente, ela cruzou os braços e, soluçando, ofegante, continuou correndo ao lado e não me largou. Foi aí que eu dei um pisão na direção dela e gritei. Ela apenas berrou: “Patrão! Patrão!...”, mas de repente me soltou e, a toda pressa, atravessou correndo a rua: outro transeunte tinha aparecido ali, e ela visivelmente largou de mim e foi atrás dele.
Subi até o meu andar, o quinto. Moro numa pensão cujos donos alugam quartos. Meu quarto é pobre e pequeno, e a janela é uma trapeira1 semicircular. Tenho um sofá de oleado, uma mesa, sobre a qual ficam uns livros, duas cadeiras e uma poltrona confortável, bem velhinha, mas, em compensação, em estilo Voltaire.2 Sentei, acendi uma vela e comecei a pensar. Ao lado, no outro cômodo, atrás da divisória, continuava a algazarra. Já era o terceiro dia que estavam naquilo. Morava ali um capitão reformado, e ele tinha convidados — uns seis imprestáveis —, que bebiam vodca e jogavam chtos3 com cartas velhas. Na noite anterior, acontecera uma briga, e eu sei que dois deles passaram um bom tempo puxando um ao outro pelos cabelos. A dona da casa queria queixar-se, mas ela tem um medo terrível do capitão. Os demais moradores de nossa pensão eram só uma senhora magrinha de baixa estatura, esposa de um militar, recém-chegada, e seus três filhos pequenos, que adoeceram já aqui na nossa pensão. Tanto ela quanto as crianças quase desfalecem de medo do capitão e toda noite ficam tremendo e benzendo-se, e a criança menor até mesmo teve uma espécie de ataque por causa do pavor. Sei bem que esse capitão, às vezes, para os transeuntes na Niévski e pede esmola. Ele não consegue serviço algum, mas, o que é estranho (e é por isso que eu estou contando), durante todo o mês, desde que começou a morar conosco, o capitão nunca provocou em mim nenhuma irritação. É claro que evitei travar relações com ele desde o início, e ele mesmo ficou enfastiado comigo logo na primeira vez, porém, por mais que eles gritassem atrás da divisória, e por mais gente que houvesse ali, para mim sempre dava na mesma. Fico sentado a noite inteira e juro que não os ouço, a tal ponto eu me esqueço deles. Afinal, todas as noites, eu fico sem dormir até o amanhecer, e é assim já faz um ano. Fico à noite inteira sentado à mesa, na poltrona, e não faço nada. Livros, eu só leio durante o dia. Fico sentado e nem penso, fico assim, com uns pensamentos vagando, e dou liberdade a eles. A vela queima inteira durante a noite. Sentei-me à mesa tranquilamente, tirei o revólver e coloquei-o diante de mim. Quando o coloquei ali, eu me lembro de ter me perguntado: “Será isso mesmo?”, e de ter respondido com total convicção: “Isso mesmo”. Ou seja, eu me mataria. Eu sabia que certamente me mataria naquela noite, mas, quanto tempo ainda passaria ali sentado à mesa até o momento chegar, isso eu não sabia. E teria certamente me matado, não fosse por aquela menina.
1 Janela aberta no telhado. [N. de T.]
2 Nome que se dá, na Rússia, a uma poltrona larga e confortável, com espaldar alto. [N. de T.]
3 Jogo de cartas semelhante ao faraó. [N. de T.]
II
Vejam só: embora tudo desse na mesma para mim, dor, por exemplo, eu sentia.
Se alguém me batesse, eu sentiria dor. Era do mesmíssimo modo no sentido moral: se acontecesse algo de dar pena, eu sentiria pena, do mesmo modo que antes, quando na vida ainda não dava tudo na mesma para mim. Agora mesmo eu havia sentido pena: uma criança eu teria certamente ajudado. Então por que não ajudei a menina? Pois foi graças a uma ideia que surgiu então: quando ela estava me puxando e me chamando, de repente apareceu diante de mim, naquele momento, um problema, e eu não pude resolvê-lo. Era um problema fútil, mas eu me enraiveci. Eu me enraiveci graças à conclusão de que, se eu já havia decidido que me suicidaria naquela mesma noite, então, por conseguinte, agora, mais do que nunca, tudo no mundo deveria dar na mesma para mim. Por que é que, de repente, eu senti que não me dava tudo na mesma e que eu tinha pena da menina? Lembro-me de ter ficado com muita pena dela; ao ponto até de sentir uma dor estranha, até totalmente inacreditável em minha situação. Juro, não sei transmitir melhor a minha sensação fugaz daquele momento, mas a sensação continuou também em casa, quando eu já tinha me instalado à mesa, e fiquei muito irritado, como havia tempos não ficava. As reflexões fluíam uma atrás da outra. Parecia-me claro que, se eu era uma pessoa, e ainda não era um nada, e até então não tinha me tornado um nada, então eu estava vivo e, por conseguinte, podia sofrer, irritar-me e sentir vergonha dos meus atos. Que assim fosse. Mas, se eu me matasse dali a duas horas, por exemplo, que me importaria a menina e que teria eu então a ver com a vergonha e com tudo no mundo? Eu me tornaria um nada, um nada absoluto. E será que a consciência de que logo mais eu deixaria de existir completamente e de que, portanto, nada existiria, não poderia ter a menor influência nem no sentimento de pena da menina, nem no sentimento de vergonha depois do meu ato vil? Afinal, eu tinha dado um pisão e gritado com uma voz selvagem para uma criança infeliz justamente porque “não só não sinto pena”, teria eu dito, “como, se tive uma atitude vil e desumana, agora eu posso, porque daqui a duas horas tudo haverá de extinguir-se”. Vocês acreditam que foi por isso que gritei? Agora estou quase convicto disso. Parecia-me claro que a vida e o mundo como que dependiam de mim agora. Seria até possível dizer que o mundo, agora, tinha sido como que feito só para mim: eu me mataria com um tiro e não haveria mais mundo, pelo menos para mim. Isso sem falar que, talvez, realmente não houvesse nada para ninguém depois de mim, e o mundo todo, logo que a minha consciência se extinguisse, haveria de extinguir-se imediatamente como um espectro, como um atributo somente de minha consciência, e seria abolido, pois, talvez, o mundo todo e todas essas pessoas fossem apenas eu mesmo. Lembro que, sentado e refletindo, eu dava a todos esses novos problemas, que se aglomeravam uns sobre os outros, uma direção até completamente diferente e inventava coisas já completamente novas. Por exemplo, de repente me ocorreu a estranha reflexão de que, se eu tivesse vivido antes na Lua ou em Marte, e tivesse cometido lá algum ato dos mais indecentes e infames que se pudessem imaginar, e fosse lá ultrajado e desonrado por causa dele, de um modo que se pode sentir e imaginar talvez somente às vezes num sonho, num pesadelo, e se, vendo-me depois na Terra, eu continuasse a ter consciência daquilo que eu havia feito no outro planeta e, além disso, soubesse que não voltaria nunca para lá, de jeito nenhum — então, ao olhar da Terra para a Lua, tudo daria na mesma para mim ou não? Eu sentiria vergonha por esse ato ou não? Os problemas eram fúteis e supérfluos, uma vez que o revólver já estava diante de mim, e eu sabia, com todo o meu ser, que aquilo certamente aconteceria, mas eles me perturbavam, e eu me encolerizava. Era como se, agora, eu não pudesse mais morrer sem ter resolvido certas coisas previamente. Resumindo, aquela menina me salvou, porque, com aqueles problemas, eu adiei o tiro. No quarto do capitão, nesse ínterim, tudo também começava a aquietar-se: eles tinham terminado o jogo de cartas, estavam se ajeitando para dormir e, enquanto isso, resmungavam e terminavam preguiçosamente sua briga. Foi então que, de repente, peguei no sono na poltrona junto à mesa, o que nunca tinha acontecido comigo antes. Caí no sono absolutamente sem perceber. Os sonhos, como se sabe, são uma coisa muitíssimo estranha: um aparece com nitidez horripilante, com um nível de detalhamento e minúcia digno de um joalheiro, e o outro você passa por cima de tudo, sem perceber, até mesmo do espaço e do tempo. Quem governa os sonhos, aparentemente, não é a razão, e sim o desejo, não é cabeça, e sim o coração, e, no entanto, que coisas engenhosíssimas minha razão não realizava durante um sonho! Entretanto, acontecem com ela, em sonho, coisas totalmente inconcebíveis. Meu irmão, por exemplo, morreu cinco anos atrás. Às vezes, sonho com ele: ele participa dos meus afazeres, ficamos muito entretidos, e, no entanto, ao longo de todo o sonho, eu sei e lembro perfeitamente que meu irmão morreu e está enterrado. Como é que eu não fico admirado que, mesmo morto, ele esteja ainda assim ali, ao meu lado, cuidando dos afazeres comigo? Por que a minha razão admite plenamente tudo isso? Mas chega. Passarei ao meu sonho. Sim, eu tive então esse sonho, meu sonho do dia 3 de novembro! Eles me provocam agora, dizendo que, afinal, foi só um sonho. Mas por acaso não dá na mesma se foi um sonho ou não, se esse sonho me anunciou a Verdade? Afinal, uma vez que você descobriu e viu a verdade, você sabe que ela é a verdade, e não há e nem pode haver nenhuma outra, seja dormindo ou na vida. Pois que seja um sonho, que seja, mas esta vida, que vocês tanto glorificam — eu queria extingui-la com o suicídio, e o meu sonho, o meu sonho, oh, ele me anunciou uma vida nova, grandiosa, renovada e forte!
Escutem.
III
Eu disse que peguei no sono sem perceber e até como se continuasse a refletir sobre aquelas mesmas matérias.
De repente, sonhei que pegava o revólver e, sentado, apontava-o diretamente para o coração — para o coração, e não para a cabeça; e, antes, eu tinha determinado que daria o tiro na cabeça, sem falta, e mais precisamente na têmpora direita. Ao apontar para o peito, esperei um segundo ou dois, e a minha vela, a mesa e as paredes de repente puseram-se a se mover e a balançar diante de mim. Depressa, eu disparei.
Num sonho, você às vezes cai das alturas, ou morre, ou apanha, mas você nunca sente dor, a menos que de algum modo se machuque mesmo na cama, aí você vai sentir a dor e quase sempre acordar por causa dela. Foi assim também no meu sonho: não senti dor, mas tive a impressão de que, com o meu disparo, tudo dentro de mim estremeceu e de repente apagou-se, e, ao meu redor, tudo ficou terrivelmente preto. Fiquei como que cego e mudo e, então, eu estava deitado em algo duro, eu estava esticado, de costas, sem ver nada nem fazer o menor movimento. Ao meu redor, alguém andava e gritava, o capitão falava com sua voz grave, a dona da casa gania — e, de repente, outra interrupção, e já estavam me carregando num caixão fechado. E eu sentia o caixão balançando, e refletia sobre isso, e de repente, pela primeira vez, fui surpreendido pela ideia de que tinha morrido, tinha morrido mesmo, sabia disso e não tinha dúvidas, não via nada e não me movia e, entretanto, sentia e refletia. Mas eu logo me conformei com aquilo e, como é costume nos sonhos, aceitei a realidade sem discussão.
E aí me colocaram debaixo da terra. Todos foram embora, fiquei sozinho, totalmente sozinho. Não me movia. Antes, sempre que eu imaginava, acordado, como eu seria sepultado em meu túmulo, relacionava, particularmente com o túmulo, apenas a sensação de umidade e de frio. E, assim, agora eu sentia que estava com muito frio, em especial nas pontas dos dedos dos pés, mas não sentia mais nada.
Eu jazia ali e, estranhamente, não esperava por nada, aceitando, sem discussão, que um morto não tem pelo que esperar. Mas estava úmido. Não sei quanto tempo se passou — uma hora, ou alguns dias, ou muitos dias. Mas então, de repente, em meu olho esquerdo, que estava fechado, caiu uma gota de água que se infiltrara pela tampa do caixão; um minuto depois dela, veio outra, um minuto depois, uma terceira, e assim por diante, e assim por diante, sempre de minuto em minuto. Uma profunda indignação ardeu de repente em meu coração, e, de repente, eu senti nele uma dor física: “É a minha ferida”, pensei, “é o tiro, a bala que está ali...”. E a gota continuava a pingar, a cada minuto e bem no meu olho fechado. E, de repente, eu clamei, não com minha voz, pois estava imóvel, mas com todo o meu ser, ao soberano de tudo aquilo que estava acontecendo comigo:
— Quem quer que você seja, mas se você está aí, e se existe algo mais razoável que o que está acontecendo agora, permita que se dê também aqui. Se você está se vingando de mim, por meu irrazoável suicídio, através do horror e do absurdo da continuidade da existência, saiba que nenhum tormento que me possa caber nunca poderá comparar-se ao desprezo que sentirei em silêncio, ainda que ao longo de milhões de anos de tormento!...
Eu clamei e me calei. Durante quase um minuto, continuou um silêncio profundo, e até caiu mais uma gota, mas eu sabia, eu sabia e acreditava, de maneira infinita e indestrutível, que agora certamente tudo mudaria. E eis que, de repente, o meu túmulo descerrou-se. Quer dizer, não sei se ele foi aberto e escavado, mas fui tirado dali por algum ser obscuro e desconhecido, e nós fomos parar no espaço. De repente, vi com clareza: era noite cerrada, e nunca, nunca antes existira tamanha escuridão! Nós voávamos pelo espaço, já distantes da Terra. Não perguntei nada àquele que me levava, eu estava à espera e orgulhoso. Eu tentava me convencer de que não sentia medo e pasmava de admiração com o pensamento de que não sentia medo. Não lembro quanto tempo voamos, e nem consigo imaginar: tudo se deu como sempre acontece nos sonhos, quando você salta pelo espaço e pelo tempo, e pelas leis da existência e da razão, e se detém somente naqueles pontos que o coração devaneia. Lembro que, de repente, vi uma estrelinha na escuridão. “É Sirius?”, perguntei, de repente sem conseguir me conter, pois eu não queria perguntar nada. “Não, é aquela mesma estrelinha que você viu em meio às nuvens ao voltar para casa”, respondeu-me o ser que me carregava. Eu sabia que ele tinha uma face como que humana. Uma coisa estranha é que eu não gostava desse ser, sentia até uma profunda repugnância por ele. Eu havia esperado pela completa inexistência, e por isso dera um tiro no coração. Mas eis que estava nos braços de um ser obviamente não humano, mas que era, que existia: “Então quer dizer que existe uma vida após a morte!”, pensei, com a estranha frivolidade do sonho, mas a essência de meu coração permanecia comigo em toda a sua profundidade: “E, se é preciso ser novamente”, pensei, “e viver novamente, pela intransponível vontade de alguém, não quero ser derrotado e humilhado!”. “Você sabe que eu o temo, e por isso me despreza”, eu disse de repente a meu companheiro de viagem, sem conseguir evitar a pergunta humilhante, em que se encerrava uma confissão, e sentindo como que a picada de um alfinete em meu coração humilhado. Ele não respondeu à minha pergunta, mas de repente senti que não me desprezavam, e que não riam de mim, e nem tinham pena de mim, e que nosso caminho tinha um objetivo, desconhecido e misterioso, e que concernia somente a mim. O medo ia crescendo em meu coração. Algo mudo, mas tormentoso, me era transmitido por meu silencioso companheiro de viagem e como que penetrava em mim. Nós voávamos por espaços escuros e desconhecidos. Já fazia um tempo que eu havia parado de ver as constelações familiares aos meus olhos. Sabia que havia certas estrelas, no espaço celestial, cujos raios alcançavam a Terra somente depois de milhares ou milhões de anos. Talvez nós já tivéssemos percorrido esses espaços. Eu esperava por algo, com uma angústia terrível, que atormentava meu coração. E, de repente, um sentimento familiar e altamente convidativo me fez tremer: vi de repente o nosso Sol! Eu sabia que não podia ser o nosso Sol, que gerou a nossa Terra, e que nós estávamos a uma distância infinita dele, mas eu soube, por alguma razão, com todo o meu ser, que aquele era o mesmíssimo Sol que o nosso, repetido e duplicado. Um sentimento doce e convidativo ressoou com êxtase em minha alma: a afetuosa força da luz, aquela mesma que me gerara, ecoou em meu coração e ressuscitou-o, e eu senti a vida, a vida de antes, pela primeira vez depois do meu túmulo.
— Mas, se esse é o Sol, se é o mesmíssimo Sol que o nosso — exclamei —, onde está a Terra, então? — E o meu companheiro de viagem indicou-me uma estrelinha que cintilava, na escuridão, com um brilho esmeraldino. Nós voamos diretamente bem na direção dela.
— E será possível que existam tais repetições no universo, será possível que esta seja a lei da natureza?... E, se essa aí é a Terra, será que ela é a mesma Terra que a nossa... a mesmíssima que a nossa, infeliz, pobre, mas querida e eternamente amada, e que provoca o mesmíssimo amor torturante por ela até em seus filhos mais ingratos?... — exclamei, estremecendo com um amor irresistível e extasiado pela nossa querida Terra de antes, aquela que eu abandonara. A imagem da pobre menina que eu ofendera passou voando diante de mim.
— Você verá tudo — respondeu meu companheiro de viagem, e ouviu-se certa tristeza em sua voz.
Mas nós nos aproximávamos rapidamente do planeta. Ele crescia diante de meus olhos, e eu já distinguia o oceano, o traçado da Europa, e, de repente, um estranho sentimento de um grandioso e sagrado ciúme ardeu em meu coração: “Como é que pode haver semelhante repetição, e a troco de quê? Eu amo, eu posso amar apenas aquela Terra que eu deixei, na qual ficaram os respingos do meu sangue quando eu, ingrato, extingui minha vida com um tiro em meu coração. Mas nunca, nunca deixei de amar aquela Terra, e, naquela noite, ao despedir-me dela, talvez eu a tenha até amado de maneira mais tormentosa do que em qualquer outro momento. Será que existe tormento nessa nova Terra? Na nossa Terra, podemos amar verdadeiramente apenas com o tormento e só através do tormento! De outro modo não sabemos amar e não conhecemos outro amor. Quero o tormento para amar. Eu quero, eu anseio, neste instante, beijar, coberto de lágrimas, apenas aquela Terra que eu deixei, e não quero, não aceito a vida em qualquer outra!...”.
Mas meu companheiro de viagem já me deixara. De repente, de maneira como que totalmente imperceptível para mim, eu surgi nessa outra Terra, debaixo da forte luz de um dia ensolarado e maravilhoso, como num paraíso. Eu estava, aparentemente, numa das ilhas que compõem, na nossa Terra, o arquipélago da Grécia, ou em algum lugar na costa do continente adjacente àquele arquipélago. Oh, tudo era exatamente como aqui na nossa, mas, por toda parte, as coisas pareciam resplandecer com uma espécie de festividade e com um triunfo grandioso, sagrado e finalmente alcançado. O carinhoso mar esmeraldino rumorejava tranquilamente contra as margens e as beijava com um amor nítido, visível, quase consciente. As altas e belas árvores erguiam-se em toda a magnificência de sua cor, e suas incontáveis folhinhas, estou convicto disso, saudavam-me com seu ruído tranquilo e carinhoso e como que proferiam algumas palavras de amor. A relva ardia em vistosas flores aromáticas. Os passarinhos revoavam em bandos pelo ar e, sem medo de mim, pousavam em meus ombros e em minhas mãos e com alegria batiam em mim suas asinhas encantadoras e tremulantes. E, finalmente, vi e conheci os seres humanos daquela feliz Terra. Eles mesmos vieram até mim, eles me rodearam, me beijaram. Filhos do Sol, filhos de seu próprio Sol — ah, como eles eram belos! Nunca vi, em nossa Terra, tamanha beleza no ser humano. Talvez apenas em nossas crianças, em seus primeiríssimos anos de idade, seja possível encontrar um reflexo distante, ainda que fraco, daquela beleza. Os olhos daqueles humanos felizes cintilavam com um brilho vivo. Em seus rostos, resplandeciam a razão e uma espécie de consciência, plena até o ponto da tranquilidade, mas aqueles rostos estavam contentes; nas palavras e na voz daqueles humanos soava uma alegria infantil. Oh, no mesmo instante, ao primeiro olhar para o rosto deles, compreendi tudo, tudo! Aquela era a Terra que não fora maculada pelo pecado original, nela viviam humanos que não pecaram, eles viviam no mesmo paraíso em que tinham vivido, de acordo com as tradições de toda a humanidade, os nossos antepassados pecadores, só com a diferença de que, ali, toda a Terra era, por toda parte, um único paraíso. Rindo alegremente, aqueles humanos aglomeraram-se ao meu redor e me acariciaram; levaram-me para sua morada, e todos eles tentaram me tranquilizar. Oh, eles não me indagaram a respeito de nada, mas como que já sabiam de tudo, ao que me pareceu, e desejavam arrancar, o quanto antes, o sofrimento do meu rosto.
IV
Vejam vocês, mais uma vez: pois bem, que tenha sido um sonho! Mas a sensação de amor daqueles seres humanos ingênuos e belíssimos permaneceu em mim para sempre, e eu sinto que o amor deles, de lá, derrama-se sobre mim até agora.
Eu mesmo os vi, eu os conheci e me dei conta deles, eu os amei, depois sofri por eles. Ah, eu compreendi de imediato, até na hora que não compreenderia inteiramente muita coisa a respeito deles; para mim, como progressista russo contemporâneo e petersburguês abjeto, parecia inconcebível que eles, sabendo tanta coisa, não tivessem, por exemplo, a nossa ciência. Mas logo compreendi que o conhecimento deles era repleto e alimentado por percepções diferentes das nossas aqui na Terra e que suas aspirações também eram completamente diferentes. Eles não desejavam nada e estavam tranquilos, não aspiravam ao conhecimento da vida assim como aspiramos a tomar conhecimento dela, porque a vida deles era repleta. Mas seu conhecimento era mais profundo e mais elevado que a nossa ciência; pois a nossa ciência busca explicar o que é a vida, ela mesma aspira a tomar conhecimento dela para ensinar os outros a viver; mas eles, sem ciência alguma, sabiam como viver, e isso eu entendi, mas não consegui entender o conhecimento deles. Eles me mostravam as suas árvores, e eu não conseguia compreender aquele grau de amor com que olhavam para elas: era como se falassem com seres que lhes eram semelhantes. E saibam que talvez eu não esteja enganado se disser que eles falavam com elas! Sim, eles descobriram a língua delas, e estou convicto de que elas os entendiam. Também olhavam assim para toda a natureza — para os animais, que viviam pacificamente com eles, não os atacavam, e sim os amavam, dominados pelo próprio amor deles. Apontavam para as estrelas e me falavam sobre coisas que eu não conseguia entender, mas tenho a convicção de que eles como que mantinham algum contato com as estrelas do céu, não só em pensamento, mas através de algum meio vivo. Oh, aqueles humanos não tentavam fazer com que eu os entendesse, eles me amavam mesmo assim, mas, em compensação, sei que também nunca me compreenderiam, e, por isso, eu quase nem falava com eles da nossa Terra. Eu somente beijava, diante deles, aquela terra em que viviam e, sem dizer nada, adorava-os, e eles viam isso e deixavam que eu os adorasse, sem se envergonhar por eu adorá-los, porque eles mesmo amavam muito a si mesmos. Eles não sofriam por mim quando eu, em lágrimas, por vezes beijava-lhes os pés, conhecendo, em meu coração, com alegria, a força do amor com que me responderiam. Por vezes, eu me perguntava, surpreso: como é que eles conseguiam, o tempo todo, não ofender alguém como eu e não provocar, uma vez sequer, em alguém como eu, um sentimento de ciúme e de inveja? Muitas vezes fiquei me perguntando como eu, fanfarrão e mentiroso, conseguia não falar para eles de meus conhecimentos, dos quais, evidentemente, eles não tinham noção alguma, como conseguia não desejar impressioná-los com isso, ainda que só por amor a eles? Eles eram vivos e alegres como crianças. Vagavam por seus magníficos bosques e florestas, cantavam suas magníficas canções, alimentavam-se com comida leve, com os frutos de suas árvores, com o mel de suas florestas e com o leite de seus amorosos animais. Por seu alimento e por suas vestes, labutavam apenas um pouco, de leve. Eles tinham o amor, e geravam filhos mas nunca percebi arroubos daquela voluptuosidade cruel que acomete quase todos em nossa Terra, do primeiro ao último, e serve de fonte única para quase todos os pecados de nossa humanidade. Eles se alegravam com as crianças que surgiam em seu meio como novos participantes de sua bem-aventurança. Entre eles, não havia brigas e não havia ciúme, e nem mesmo entendiam o que aquilo significava. Seus filhos eram filhos de todos, porque todos constituíam uma só família. Quase não tinham doença alguma, embora existisse a morte; mas seus idosos morriam, tranquilos, como que adormecendo, cercados por aqueles que se despediam deles, abençoando-os, sorrindo para eles e para si mesmos, como votos de despedida, com sorrisos radiantes. Naqueles momentos, não vi pesar ou lágrimas, havia apenas um amor que parecia aumentar até alcançar o êxtase, mas um êxtase tranquilo, que se tornava pleno, contemplativo. Seria possível pensar que eles ainda mantinham contato com seus falecidos mesmo depois da morte, e que a unidade terrena entre eles não era interrompida pela morte. Eles quase não me entendiam quando eu lhes perguntava da vida eterna, mas era visível que tinham uma convicção tão grande e espontânea dela, que isso não constituía uma questão para eles. Não tinham templos, e sim uma unidade essencial, viva e ininterrupta com o Todo do universo; não tinham crença, mas, em compensação, tinham o firme conhecimento de que, quando a alegria terrena os preenchesse até os limites da natureza terrena, chegaria para eles, tanto para os vivos, como para os mortos, uma expansão ainda maior do contato com o Todo do universo. Esperavam por esse momento com alegria, mas sem pressa, sem sofrimento, mas como se já o possuíssem nos pressentimentos de seus corações, que eles comunicavam uns aos outros. À noite, antes de se recolherem para dormir, adoravam formar coros, coordenados e harmoniosos. Nessas canções, transmitiam todas as sensações proporcionadas pelo dia que acabava, glorificavam-no e despediam-se dele. Glorificavam a natureza, a terra, o mar, as florestas. Adoravam compor canções uns sobre os outros e louvavam uns aos outros, como crianças; eram as canções mais simples, mas elas brotavam do coração e tocavam o coração. E não era somente nas canções, dava a impressão de que viviam a vida inteira unicamente para admirar uns aos outros. Era uma espécie de paixão completa e generalizada uns pelos outros. Algumas de suas canções, porém, solenes e exaltadas, eu não entendia quase que absolutamente. Mesmo entendendo as palavras, eu de jeito nenhum conseguia penetrar em todo o seu significado. Ele permanecia como que inacessível à minha mente, mas meu coração, em compensação, era como que penetrado por ele de maneira espontânea, cada vez mais e mais. Eu lhes dizia com frequência que já pressentira tudo aquilo antes, havia muito tempo, que toda aquela alegria e aquela glória manifestavam-se em mim, ainda em nossa Terra, por uma angústia convidativa, que por vezes chegava ao ponto de um pesar intolerável; que eu pressentira todos eles, e também sua glória, nos sonhos de meu coração e nos devaneios de minha mente, que eu com frequência não conseguia olhar, em nossa Terra, para o Sol poente sem lágrimas... Que, em meu ódio pelos seres humanos da nossa Terra, encerrava-se sempre uma angústia: por que é que eu não podia odiá-los sem amá-los, por que não podia não perdoá-los. No entanto, em meu amor por eles, havia uma angústia: por que não podia amá-los sem odiá-los? Eles me escutavam, e eu via que não podiam imaginar o que estava dizendo, mas não me arrependia de falar com eles sobre isso: sabia que compreendiam toda a força da minha angústia por aqueles que eu deixara. Sim, quando eles olhavam para mim, com o olhar afetuoso e impregnado de amor, quando eu sentia que, na presença deles, meu coração tornava-se tão inocente e sincero como o deles, eu não lamentava por não compreendê-los. A sensação de plenitude da vida fazia com que eu perdesse o fôlego, e, em silêncio, eu os venerava.
Oh, agora todos riem da minha cara e tentam me convencer de que, num sonho, é impossível ver todos os detalhes que estou relatando agora, que, em meu sonho, vi ou senti apenas uma sensação gerada pelo meu próprio coração durante o delírio, e que eu mesmo criei os detalhes, depois de acordar. E, quando eu lhes revelei que, talvez, aquilo tivesse de fato acontecido — meu Deus, que risada não deram da minha cara e que diversão eu não lhes proporcionei! Oh, sim, óbvio que fui dominado pela sensação daquele sonho, e somente ela ficou incólume em meu coração ferido e ensanguentado: mas, em compensação, as imagens e formas reais do meu sonho, ou seja, aquelas que eu vi de fato, bem no momento do meu sonhar, eram repletas de tamanha harmonia, eram tão encantadoras e belas, e a tal ponto verdadeiras, que, depois de acordar, era óbvio que eu não tinha forças para personificá-las em nossas fracas palavras, de maneira que elas deveriam como que esvair-se em minha mente, e, portanto, talvez eu tenha sido mesmo forçado, de maneira inconsciente, a criar mais tarde os detalhes e, óbvio, desfigurei-os, devido especialmente ao meu desejo tão intenso de transmitir pelo menos alguns deles e o quanto antes. Mas, por outro lado, como eu poderia não acreditar que tudo aquilo acontecera? Será que não foi mil vezes melhor, mais radiante e mais alegre do que aquilo que eu contei? Pode até ter sido um sonho, mas tudo aquilo não poderia não existir. Sabem, vou lhes contar um segredo: talvez nada disso tenha sido um sonho coisa nenhuma! Pois aconteceu ali certa coisa, algo tão horrivelmente verdadeiro, que não poderia ter ocorrido apenas em sonho. Vá lá que o meu coração tenha gerado o meu sonho, mas será que só o meu coração teria forças para gerar aquela horrível verdade que depois aconteceu comigo? Como é que eu poderia tê-la inventado sozinho ou sonhado com o coração? Seria mesmo possível que o meu coração mesquinho e a minha mente caprichosa e insignificante pudessem ter-se elevado a tamanha revelação da verdade? Oh, julguem por si mesmos: até este momento tentei esconder, mas, agora, contarei até essa verdade.
Acontece que eu... corrompi todos eles!
Sim, sim, eu acabei corrompendo todos eles!
Como isso pôde se realizar eu não sei, não me lembro claramente. O sonho passou voando através de milênios e deixou em mim apenas a sensação do todo. Só sei que o motivo do pecado original fui eu. Como uma triquina nojenta, como um átomo de peste, que contamina nações inteiras, também eu contaminei, comigo mesmo, toda aquela terra feliz e, até minha chegada, sem pecado. Eles aprenderam a mentir e amaram a mentira e conheceram a beleza dela. Oh, talvez isso tenha começado de maneira inocente, com uma piada, uma denguice, um jogo amoroso, talvez realmente com um átomo, mas esse átomo da mentira penetrou em seus corações, e eles gostaram. Depois, nasceu rapidamente a voluptuosidade; a voluptuosidade gerou o ciúme; o ciúme, a crueldade... Ah, não sei, não me lembro, mas foi pouco depois, logo depois que o primeiro sangue jorrou: eles ficaram surpresos e horrorizados, e começaram a se dispersar, a se dividir. Surgiram alianças, mas, dessa vez, umas contra as outras. Começaram as reprimendas, as recriminações. Eles conheceram a vergonha, e elevaram a vergonha à categoria de virtude. Nasceu a noção de honra, e, em cada aliança, ergueuse o seu estandarte. Passaram a torturar os animais, e os animais afastaram-se deles, em direção às florestas, e tornaram-se seus inimigos. Começou uma luta pela divisão, pelo isolamento, pela individualidade, pelo meu e pelo seu. Passaram a falar em línguas diferentes. Conheceram o pesar e amaram o pesar, ansiavam pelo tormento e diziam que a Verdade só é alcançada através do tormento. Foi então que, entre eles, surgiu a ciência. Quando se tornaram maus, começaram a falar de fraternidade e de humanidade e compreenderam essas ideias. Quando se tornaram criminosos, adquiriram a justiça e elaboraram para si códigos inteiros para mantê-la, e, para a observância dos códigos, colocaram uma guilhotina. Lembravam-se somente de um pouquinho daquilo que haviam perdido, nem queriam acreditar que outrora haviam sido tão inocentes e felizes. Até mesmo riam da possibilidade daquela felicidade pregressa e chamavam-na de devaneio. Eles sequer podiam imaginá-la em formas e imagens, mas, o que é estranho e miraculoso: tendo perdido qualquer crença na antiga felicidade, tendo-a chamado de conto de fadas, eles a tal ponto quiseram ser inocentes e felizes de novo, outra vez, que sucumbiram ao desejo de seu coração, como crianças, endeusaram esse desejo, construíram templos e puseram-se a venerar a sua própria ideia, o seu próprio “desejo”, ao mesmo tempo crendo plenamente na impossibilidade de realizá-lo e de cumpri-lo, mas adorando-o e prostrando-se diante dele, em lágrimas. E, no entanto, se ao menos pudesse acontecer de voltarem àquele estado inocente e feliz que haviam perdido, e se de repente alguém o mostrasse a eles de novo e perguntasse: “Querem voltar a ele?”, certamente teriam recusado. Eles me respondiam: “Podemos ser mentirosos, maus e injustos, nós sabemos disso e choramos por isso, e nós mesmos nos torturamos por causa disso e nos maltratamos e punimos talvez até mais que o Juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não conhecemos. Mas nós temos a ciência e, através dela, encontraremos novamente a verdade, mas então nós a tomaremos de maneira consciente. O conhecimento está acima do sentimento, a consciência da vida está acima da vida. A ciência nos dará a sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade está acima da felicidade”. Eis o que disseram, e, depois de tais palavras, cada um passou a amar a si mesmo mais que todos os outros, e nem poderiam ter feito de outra maneira. Cada um tornou-se tão zeloso de sua individualidade, que apenas tentava, com todas as forças, rebaixá-la e depreciá-la nos outros, e nisso empenhavam sua vida. Surgiu a escravidão, surgiu até a escravidão voluntária: os fracos submetiam-se de bom grado aos mais fortes, só para que aqueles os ajudassem a oprimir os ainda mais fracos que eles próprios. Surgiram os justos, que iam até aqueles humanos, em lágrimas, e lhes falavam de seu orgulho, da perda da medida e da harmonia, do sumiço de sua vergonha. Os outros riam-se deles ou batiam neles com pedras. Sangue sagrado foi vertido nas soleiras dos templos. Em compensação, começaram a surgir humanos que se puseram a imaginar: como todos poderiam unir-se novamente, de maneira que cada um, sem deixar de amar a si mesmo acima dos outros, ao mesmo tempo não atrapalhasse mais ninguém, e que, desse modo, vivessem todos juntos, como que numa sociedade harmoniosa? Guerras inteiras foram travadas por causa dessa ideia. Todos os beligerantes acreditavam firmemente, ao mesmo tempo, que a ciência, a sabedoria e o sentimento de autopreservação fariam finalmente o ser humano reunir-se numa sociedade racional e harmoniosa, e por isso, para acelerar as coisas, os “sábios” tentaram exterminar, o quanto antes, todos os “não sábios” e todos aqueles que não entendessem sua ideia, para que não atrapalhassem seu triunfo. Mas o sentimento de autopreservação começou rapidamente a enfraquecer, surgiram os arrogantes e os voluptuosos, que logo exigiram tudo ou nada. Para a obtenção de tudo, recorriam ao delito, e, se não tivessem êxito, ao suicídio. Surgiram religiões que cultuavam o nada e a autodestruição em nome de uma serenidade eterna na nulidade. Finalmente, esses humanos extenuaram-se numa labuta sem sentido, e em seus rostos surgiu o sofrimento, e esses humanos proclamaram que sofrimento é beleza, pois é apenas no sofrimento que existe senso. Eles decantaram o sofrimento em suas canções. Eu andava no meio deles e, levando as mãos à cabeça, chorava por eles, mas talvez eu os amasse ainda mais do que antes, quando em seus rostos ainda não havia sofrimento, e quando eles eram tão inocentes e belos. Passei a amar aquela Terra, profanada por eles, ainda mais do que quando era um paraíso, apenas porque nela surgira o infortúnio. Ai, eu sempre amei o infortúnio e o pesar, mas apenas para mim, para mim, por eles eu chorava, lamentava por eles. Estendia-lhes a mão, acusando, amaldiçoando e desprezando a mim mesmo, em desespero. Dizia-lhes que tudo aquilo havia sido feito por mim, somente por mim, que eu lhes havia trazido a depravação, a contaminação e a mentira! Supliquei que me crucificassem, ensinei a eles como fazer uma cruz. Não consegui, não tive forças para me matar por conta própria, mas eu queria que eles me torturassem, eu ansiava pelas torturas, ansiava que, naquelas torturas, meu sangue fosse derramado até a última gota. Mas eles só riam de mim e, já perto do fim, começaram a me considerar um desvairado. Eles me absolviam, diziam haver recebido apenas aquilo que eles mesmos desejaram, e que tudo deveria continuar assim. Finalmente, declararam que eu estava me tornando perigoso e que me colocariam num hospício se eu não me calasse. Então, o pesar entrou em minha al-ma com tamanha força que meu coração confrangeu-se, e eu senti que morreria, e aí... bem, foi aí que eu acordei.
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Já era manhã, quer dizer, ainda não amanhecera, mas eram seis horas, aproximadamente. Recobrei os sentidos naquela mesma poltrona; minha vela havia queimado inteira; no quarto do capitão, todos dormiam, e, ao redor, havia um silêncio raro em nossa casa. A primeira coisa que fiz foi dar um salto, em enorme admiração; nunca acontecera comigo nada parecido, nem com detalhes tão ínfimos: nunca antes havia pegado no sono daquele jeito, na minha poltrona, por exemplo. Então, de repente, enquanto eu estava de pé e voltando a mim, de repente surgiu, na minha frente, o meu revólver, pronto, carregado — mas, no mesmo instante, eu o empurrei para longe de mim! Oh, agora seria a vida, a vida! Ergui as mãos e clamei pela verdade eterna; não clamei, mas pus-me a chorar; um êxtase, um êxtase incomensurável elevou todo o meu ser. Sim, a vida — e a pregação! Decidi pela pregação naquele mesmo instante e, evidentemente, para toda a vida! Irei pregar, quero pregar — o quê? A verdade, pois eu a vi, vi com meus próprios olhos, vi toda a sua glória!
E eis que, desde então, venho mesmo pregando! Além disso, amo todos aqueles que riem de mim, mais até que os outros. Por que é assim, não sei e não consigo explicar, mas que assim seja. Eles dizem que até agora eu me perco, quer dizer, se agora já fiquei tão perdido, que será mais para a frente? Verdade verdadeira: eu me perco, e talvez mais para a frente será ainda pior. E é claro que me perderei algumas vezes até descobrir como pregar, quer dizer, com que palavras e com que ações, porque isso é muito difícil de realizar. Agora mesmo vejo tudo isso de modo tão claro como o dia, mas escutem: quem é que não se perde?! E, entretanto, todos, afinal, caminham em direção à mesmíssima coisa, pelo menos todos aspiram à mesmíssima coisa, do sábio até o último dos bandidos, só que por caminhos diferentes. Essa é uma verdade antiga, mas o que é novo aqui é o seguinte: eu nem posso me perder muito. Porque eu vi a verdade, vi e sei que os seres humanos podem ser belos e felizes, sem perder a capacidade de viver na Terra. Eu não quero e não posso acreditar que o mal seja o estado normal dos seres humanos. Mas é só dessa minha crença que todos riem. Mas como eu poderia não acreditar: eu vi a verdade — não é que a inventei com a mente, eu a vi, eu vi, e sua imagem viva preencheu minha alma para sempre. Eu a vi numa completude tão plena, que não posso crer que ela não possa existir para os seres humanos. Então, como é que vou me perder? É claro que vou me desviar, até diversas vezes, e talvez até fale com palavras alheias, mas não por muito tempo: a imagem viva daquilo que eu vi estará sempre comigo e sempre me corrigirá e dará a direção. Oh, tenho ânimo, tenho frescor, eu caminharei, caminharei, ainda que por mil anos. Vocês sabem, no início, queria até esconder que havia corrompido todos eles, mas isso foi um erro — já temos aí o primeiro erro! Mas a verdade me sussurrou que eu estava mentindo, e me protegeu e me deu a direção. Mas, como erigir o paraíso, eu não sei, porque não consigo transmitir em palavras. Depois do meu sonho, perdi as palavras. Pelo menos as palavras importantes, as mais necessárias. Mas que seja: seguirei e falarei tudo, incansavelmente, porque, de todo modo, vi com meus próprios olhos, embora não consiga recontar o que vi. Pois é isso que os zombeteiros não compreendem: “Teve um sonho”, dizem eles, “um delírio, uma alucinação”. Ora essa! Será que é tão complicado?! E eles são tão orgulhosos! Um sonho? Que é um sonho? E a nossa vida não é um sonho? Digo mais: pois bem, que isso nunca se cumpra e que o paraíso não exista (pois isso eu entendo!) — mesmo assim, hei de pregar. E, entretanto, é simples: num só dia, numa só hora, tudo logo se arranjaria! O principal é amar os outros como a si mesmo, isso é que é o principal, e só isso, não precisa de rigorosamente mais nada: imediatamente você descobre como se arranjar. E, entretanto, isso é só uma velha verdade que foi repetida e lida um bilhão de vezes, mas que não se assentou! “A consciência da vida está acima da vida, o conhecimento das leis da felicidade está acima da felicidade”: é contra isso que se deve lutar! E hei de fazê-lo. Se todos ao menos quiserem, no mesmo instante tudo há de arranjar-se.
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E eu encontrei aquela menina pequena... E caminharei! E caminharei!
Nota da ilustradora
Sonho desenhos ridículos
Gostaria de comentar algo importante em meu processo de contato com a obra e, para isso, começo em minha adolescência, quando se iniciaram minhas experiências durante o sono. Acordava quase todas as noites em catalepsia projetiva (para quem não sabe, é um fenômeno que ocorre quando estamos dormindo: nossa consciência desperta, mas não conseguimos nos mexer). Foram inúmeros os roteiros que percorri ao longo desses momentos, contando com muito medo e angústia, onirismos e a visão clara de meu entorno, mesmo estando fisicamente de olhos fechados. Iniciei, então, estudos científicos e espirituais em busca de respostas sobre o que estaria acontecendo comigo.
Logo encontrei histórias sobre experiências similares, incluindo algumas muito mais radicais e impressionantes que as minhas. Pessoas relatavam ter a capacidade parapsíquica de projeção da consciência para fora do corpo físico, especialmente ao dormir, e diziam que, a partir disso, seria possível visitar lugares e até mesmo encontrar entidades extrafísicas. A multiplicidade de histórias era imensa, incluindo rotas interplanetárias, visitas ao passado, simulações de realidades. Pois ao ler “O sonho de um homem ridículo”, senti que tinha, sem dúvida, mais um relato em mãos.
Conduzida nessa viagem, me senti convidada a explodir lógicas cronológicas enquanto desenhava, sob a impressão de que essa porta não fora aberta por mim, mas pelo autor, por ter escrito no século XIX, relatando o presente e fazendo previsões.
Apatia, culpa, calma, plenitude, desespero e esperança caminham ao longo do texto e, a partir disso, imaginei como o estado de espírito que a humanidade vivencia modela os espaços, em sua concepção física e na plasticidade do astral. Penso em substância cósmica ao nomear o que constitui tudo o que há, e para este livro não me mantive comprometida a desenhar exatamente o que estava descrito, mas a traduzir essas transformações por meio da grafia plasmática que percorre as páginas.
Diversas vezes, quando estamos inseridos em um contexto racional e materialista, vejo, na apresentação de narrativas fantasiosas, uma oportunidade para falarmos sobre experiências pouco concebíveis. Identifico uma oportunidade para sermos ouvidos e percebidos a partir de outras instâncias sensíveis, sem rotularmos ou isolarmos qualquer manifestação à concepção de crença que parece inadequada para quem vivencia a lucidez.
Dessa maneira, se torna ridículo seguir radicalmente o tempo convencional, e ridiculamente absurdo é aquele que esboça outras possibilidades. O que é mais interessante nesse processo, para mim, é a estranha combinação que passa a nos acompanhar pela vida, dos limites claros, e da expansão possível, de nossa consciência.
Helena Obersteiner é artista visual e tem o desenho como dispositivo de investigação. É designer têxtil, tatuadora e, como professora, seu interesse está ligado essencialmente à possibilidade de autoconhecimento a partir de diálogos coletivos.
O sonho de olhos abertos do homem ridículo
Por Flávio Ricardo Vassoler
A peculiaridade do conto “O sonho de um homem ridículo” (1877), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), reside no fato de que, à diferença de boa parte da obra do escritor russo, a trajetória do personagem o leva dos círculos mais infernais do suicídio a uma descoberta espiritual que supera o niilismo e religa o homem ridículo àquilo que ele desvela como o sentido último e primeiro da vida: a transcendência e a eternidade, a superação do ego e a comunhão, Deus e a continuidade da vida após a morte.
É bem verdade que, no romance Crime e castigo (1866), o duplo homicida Ródion Raskólnikov passa por um longo e doloroso processo de conversão, algo como o castigo e a expiação moral em face do crime. Também é verdade que o príncipe Míchkin (O idiota, 1869), fusão dostoievskiana de Jesus Cristo e Dom Quixote, e o monge Aliócha Karamázov (Os irmãos Karamázov, 1880) procuram cicatrizar os conflitos à sua volta com a bondade que lhes é peculiar. Ainda assim, podemos dizer que apenas o homem ridículo refaz o arco narrativo-espiritual completo da Divina comédia (1472), ao longo de cuja trajetória o poeta italiano Dante Alighieri percorre os mais agônicos círculos do inferno, consegue atravessar o purgatório sombrio e, ao fim, aterrissa no paraíso ao som de harpas e cítaras.
No princípio de “O sonho de um homem ridículo”, a razão cética e niilista do (anti-)herói o leva a um beco sem saída: se a vida é um punhado de pó, som e fúria que, do início ao fim, não significa nada; se os projetos humanos são completamente arbitrários e desprovidos de razão em face do universo alheio e sem consciência sobre si mesmo e sobre nós; se, em suma, somos órfãos de sentido, viver ou morrer — isto é, viver ou se matar — tornam-se duas faces da mesma moeda. Quando, numa lúgubre noite de inverno em São Petersburgo, o homem ridículo joga a moeda para o alto — cara para o suicídio, coroa para a (sobre)vida —, nosso (anti-)herói decide que é hora de partir.
Nesse momento, a engenhosidade de Dostoiévski leva o niilismo do homem ridículo às últimas consequências: se o personagem considera que tudo no mundo lhe é indiferente, que o suicida iminente dê as costas, então, a uma criança maltrapilha, frágil e indefesa que, inusitadamente, aparece entre as alamedas gélidas e clama por ajuda. Em países como a Rússia e o Brasil, inúmeras pessoas em situação de pobreza tentam sobreviver, enquanto os vencedores e vencedoras ensimesmados em seus medos e desejos os ignoram como se seres humanos fossem nada mais que danos colaterais. Para falarmos como não poucos líderes das mais poderosas nações, para os quais a morte de civis inocentes em ataques aéreos seria um revés impossível de ser erradicado pelo imperialismo que manipula os artefatos mais tecnológicos que a história humana já produziu. Ainda assim, sempre que vemos crianças indefesas pedindo esmolas quando os semáforos se fecham, engolimos em seco uma dor que a sociopatologia da vida cotidiana nos ensina a não reservar aos homens e mulheres que dormem ao relento.
Não é a única vez que Dostoiévski põe à prova o sentido da vida em face do sofrimento de uma criança trêmula e indefesa. Em “A revolta”, quarto capítulo do livro V (“Pró e contra”) do romance Os irmãos Karamázov, o intelectual bastante propenso ao niilismo/ateísmo Ivan Karamázov coloca a teologia cristã de seu irmão monge Aliócha contra a parede, tendo em vista o sofrimento de uma criança inocente. Ivan relata que, nos tempos obscuros da servidão na Rússia (relação odiosa de exploração do trabalho dos servos e servas que só foi abolida em 1861), um militar reformado/dono de vasta propriedade junta um séquito de comparsas para caçar o filho de um dos seus servos, que, sem querer, ferira a pata de seu galgo favorito. Com a imagem da criança estraçalhada pelo sadismo, Ivan afirma que um mundo assentado sobre a lágrima de inocentes que não comeram do fruto proibido não vale a pena e não faz, isto é, não pode fazer sentido. O personagem que chegou a ser considerado pelo próprio Dostoiévski como sua maior criação literária sentencia que é preferível devolver a Deus o bilhete de entrada na vida. Ainda que não negue Deus, Ivan denega o mundo criado pela divindade, mundo que pressupõe o choro e o ranger de dentes das crianças para nos içar da cama a cada segunda-feira.
É bem verdade que, com o ímpeto do penhasco em mente, o homem ridículo, qual um completo canalha, enxota a criança que clama em desespero por ajuda para sua mãe. Ainda assim, a centelha da discórdia conseguiu trincar a cara de caveira do suicídio: se o homem ridículo vai se matar, como é possível que ele sinta comiseração pela criança e por sua mãe?
Enquanto se autoflagela ao sentir que a fraternidade e a compaixão se esgueiram pelas frestas de seu niilismo, o homem ridículo cai no sono com o revólver ao lado de sua poltrona. Tem início, então, uma viagem intergaláctica que levará o personagem a um planeta muito parecido com a Terra — trata-se, como o homem ridículo pôde descobrir, da mesma estrela que brilhara no céu, na noite anterior, bem no momento em que ele decidira se matar. Se Dante Alighieri se vê guiado pelo poeta romano Virgílio e, ao fim, já nas alamedas celestiais, por sua musa Beatriz, o homem ridículo é resgatado de seu caixão (ele se mata no início de seu sonho) por um ser (um anjo da guarda, um espírito-guia?) que o leva, universo adentro, rumo a uma nova forma de vida e amor.
Quem já deparou com a agonia moral de personagens como o homicida Ródion Raskólnikov, o suicida Kiríllov (Os demônios, 1872) e o cúmplice de parricídio Ivan Karamázov tem sensações inusitadas e reconfortantes ao aterrissar com o homem ridículo no novo planeta. Como se estivéssemos envoltos pelas aquarelas do pintor francês Claude Monet, encontramos um mundo repleto de seres que vivem na mais harmônica e bela simbiose. Não há sequer a cisão entre os reinos animal, vegetal e mineral. No duplo da Terra, os seres são um só, ainda que existam como si mesmos. O ego, esse centro do desejo que várias tradições espirituais consideram o cerne de nossas tensões, parece inexistente. Os seres não são em si, mas entre si. O eu e o outro formam (e irmanam) aquilo que, em nossa língua como em nossas ações na Terra, desponta apenas de forma retórica: nós. Os seres se amam sem dor, posse ou ira. Mesmo a morte, esse fantasma que tanto nos assombra, lhes parece algo tranquilo, uma vez que, como o homem ridículo logo descobre, os seres daquele planeta parecem ter uma noção inata da eternidade. A morte, então, seria uma mera travessia. Não o adeus, mas um até breve. Como se diz em russo, ?? ???????? (do svidania): até a próxima vez que nos virmos.
Apegado à dor para amar, o homem ridículo se sente deslocado entre aqueles seres que exalam fraternidade e ternura. Como ele não entende de que modo é possível amar sem duvidar, amar sem sentir e impingir dor, o homem ridículo começa a disseminar o pomo da discórdia entre aqueles homens e mulheres amorosos, como que a mimetizar a serpente sorrateira do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia judaico-cristã. Irrompem, assim, o ego, a disputa e a separação entre o meu e o teu. A partir de tal momento, desavenças pontuais se irradiam, como uma metástase, para os pontos mais longínquos da Terra, como se a ruptura de uma amizade e de um namoro fosse o prenúncio da Terceira Guerra Mundial.
Ao descobrir que fora, como a serpente diabólica, o motivo da queda e da perdição daquelas pessoas, o homem ridículo sente, movido pelo remorso (e, quiçá, também pelo despeito), que é preciso levá-los de volta à comunhão. Após ter sobrevivido ao próprio suicídio, em seu sonho, e ter renascido para uma descoberta tantas vezes proferida em rituais e tantas vezes esvaziada pelo cotidiano (“Ama o próximo como a ti mesmo”), a personagem desperta, relega prontamente o revólver, lembra-se da criança com gratidão e tenta encontrar as palavras com as quais pretende revelar às pessoas seu caminho de redenção para além do próprio calvário. Assim, “O sonho de um homem ridículo” tem seu desfecho como uma tentativa (a bem dizer, um chamado) para que o núcleo redentor e repleto de acalento do mais famoso sermão que Jesus Cristo proferiu sobre o cume de uma montanha seja levado por nós (e para nós) até a planície (ou, pior, até o deserto de gelo) da história humana.
A descoberta redentora e transcendental de “O sonho de um homem ridículo” aproxima-se de nós de maneira bastante ambígua, ao ressoar a esperança de uma época que ainda acreditava ser possível transformar a natureza da história e dos seres humanos. Hoje, quando olhamos para o futuro com temor tanto pela potencial escassez de trabalhos, em decorrência do emprego em massa da inteligência artificial e das crescentes contradições do turbocapitalismo neoliberal, quanto pela devastação ambiental, a descoberta do homem ridículo transcende seu conteúdo moral para se transformar em um projeto de efetiva democracia social. Nesse momento, o pomo da discórdia desponta ainda uma vez: será que conseguiremos superar nossa ridícula condição afeita ao ego para vivenciarmos, com (e como) o sonho espiritual de Dostoiévski, a dimensão de que nenhum ser humano é uma ilha, inteiramente isolado, e de que a dor de qualquer ser nos diminui, porque somos partes de um mesmo todo, somos partes de uma mesma humanidade? Até que consigamos vivenciar tal comunhão (se é que um dia o faremos), não será possível proferir, como o fez o poeta inglês John Donne em sua “Meditação XVII”, que, “se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa [o homem ridículo diria: a Terra] fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio”. Até que incorporemos tal máxima como sabedoria e prática de nossas vivências, os torrões de terra que somos continuarão a se ver como ilhas autossuficientes, ainda que nos sintamos, a cada dia, como barquinhos de papel em alto-mar.
A agonia decorrente da pandemia do coronavírus parece ter exacerbado, dostoievskianamente, nossas tendências para a contradição (a bem dizer, para o paradoxo). Se não poucas vezes o pão chegou a ser partilhado antes mesmo de ser oferecido; se o auxílio emergencial pôde ser aprovado (e deveria se prolongar por muito e muito tempo, como parte do pagamento da dívida histórica que as classes dominantes brasileiras têm para com os humilhados e ofendidos do nosso país), também vimos como a sociedade pode ser alheia à dor que, acossando o outro ao nosso lado, ainda assim parece não nos dizer respeito. É como se, em isolamento social e com máscaras não sobre as vias respiratórias, mas sobre os olhos e ouvidos, nós déssemos as costas para a criança inocente que clama, em desespero, por ajuda para a mãe. É como se pulássemos do topo de um prédio, coletivamente, e passássemos a entoar, em queda livre, o seguinte mantra: até aqui vai tudo bem, até aqui vai tudo bem. Assim, uma máxima do homem ridículo, a reboque de seu sonho, chega até nós não apenas como uma pregação moral, mas como uma barricada em prol do nosso futuro: “Não quero, não posso acreditar que o mal seja a condição normal das pessoas”.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor e youtuber, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA).
Um paraíso perdido
por Cecília Rosas
“O sonho de um homem ridículo”, escrito em 1877, é uma das obras-chave da fase tardia de Dostoiévski. Na época em que foi lançado, o conto não recebeu nenhuma atenção especial da crítica.1 Posteriormente, ele viria a ser considerado uma pequena obra-prima, na qual grandes obsessões que atravessam toda a obra de Dostoiévski aparecem condensadas num texto conciso e impactante.
O conto foi publicado em abril no Diário de um Escritor, uma revista mensal escrita inteiramente por Dostoiévski que circulou (de forma descontínua) entre 1876 e 1881. Nela, o autor publicava artigos, ensaios, comentava os temas do momento e ocasionalmente publicava obras de ficção. Naquele ano de 1877, essa foi a única obra ficcional a figurar no periódico.2 Em breve, o autor faria a publicação do romance Os irmãos Karamázov, visto como uma de suas obras maiores, e viria a falecer pouco depois de completá-la, em 1881.
Com o subtítulo “conto fantástico”, “O sonho de um homem ridículo” remete a uma série de autores que Dostoiévski apreciava, como Edgar Allan Poe, Aleksandr Púchkin, Nikolai Gógol e E.T.A. Hoffmann. Poe, por exemplo, é mencionado em um dos rascunhos do texto.3 Além disso, críticos identificam clara influência de “A dama de espadas”, de Púchkin, na estrutura do conto. A. Batiuto e A. Beriozkin, em comentário às Obras Completas do autor, notam que um dos elementos que Dostoiévski considerava fascinante no conto de Púchkin era a ausência de fronteiras a separar sonho e realidade. Essa ambiguidade e o nivelamento entre sonho e vida, segundo os críticos, seriam absorvidos por Dostoiévski em seu conto.4
Outros autores apontados como possíveis influências para o grande escritor russo são Swedenborg, que Dostoiévski havia lido recentemente, e Cyrano de Bergerac, com o qual o conto compartilha em particular o tema da viagem fantástica.5
Dostoiévski via com alarme os rumos políticos de uma parcela radicalizada da juventude russa da segunda metade do século XIX. Chamados de niilistas a partir do romance Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, esses jovens progressistas recusavam uma atuação política reformista — como aquela proposta pela geração anterior — e advogavam a ação direta, muitas vezes com o uso da violência, como única saída para romper com a rigidez política e o atraso social do Império Russo. Eram homens e mulheres que pregavam a primazia da ciência e a recusa do que consideravam questões abstratas e irrelevantes para o progresso social, como as discussões artísticas da intelligentsia aristocrática de Moscou e São Petersburgo. Alguns desses grupos protagonizaram ações contra autoridades russas — chegando inclusive a matar num atentado o tsar Alexandre II em 1881.
Dostoiévski, que frequentara círculos progressistas na juventude, mas passara a adotar uma posição política cada vez mais conservadora, nacionalista e religiosa, dedicou-se à crítica desses grupos em seus artigos e na ficção, como no romance Os demônios, de 1871.
Em “O sonho de um homem ridículo”, o autor retoma o tema numa nova chave, fantástica e utópica. Na primeira parte do conto, somos apresentados a um representante desses homens modernos, um “progressista russo e petersburguês sórdido”, nas palavras do protagonista. Trata-se do indivíduo que, imerso na racionalidade moderna, afastou Deus da própria vida e se vê apartado do mundo e de seus semelhantes, segundo a concepção dostoievskiana. Como aponta o biógrafo Joseph Frank, é interessante notar que, na descrição dessa Petersburgo lúgubre, o autor lança mão das imagens usadas pela Escola Natural, movimento literário que ele integrara na juventude.6 A melancolia, a indiferença e a condição de ridículo lhe trazem profundo sofrimento, intensificado pela aspereza da cidade e pela má convivência com os outros, e o protagonista decide se matar.
Não por acaso, Bakhtin diz que “O sonho de um homem ridículo” é “quase uma enciclopédia completa dos principais temas de Dostoiévski”.7 O suicídio — uma das questões mais recorrentes para o autor — surge como consequência dessa vida esvaziada de sentido. Nesse aspecto, “O sonho de um homem ridículo” retoma outro de seus personagens famosos: Kírillov, de Os demônios.
No mesmo Diário de um Escritor, em 1876, Dostoiévski escrevera que
as pessoas de repente veriam que já não têm vida, não têm liberdade de espírito, não têm vontade e individualidade, que alguém roubou tudo delas de uma vez [...] Reinarão o tédio e a angústia: tudo está feito e já não há mais nada a fazer, tudo está aprendido e não há nada mais a aprender. Os suicídios aparecerão em multidões, e não como agora, pelos cantos; as pessoas se juntarão em massa, dando as mãos e exterminando a si mesmas todas de uma vez, aos milhares, de alguma forma nova, descoberta por elas junto com todas as descobertas.8
Ainda no mesmo âmbito, um tema apontado por Bakhtin como particularmente frequente na obra do autor é o das últimas horas de vida antes do suicídio. Atormentado em suas reflexões, o personagem propõe a si mesmo jogos morais. Dostoiévski retoma aqui a questão que será novamente posta em Os irmãos Karamázov (e que está presente em boa parte de sua obra): a de que se Deus não existe, tudo é permitido.9
Porém, decidido a se matar, o homem ridículo é abordado por uma criança, e, apesar de afugentá-la, sente-se depois atormentado pela situação. Este é outro tema apontado por Bakhtin: a imagem da criança ofendida, que também seria retomada em Os irmãos Karamázov, no personagem Iliucha. A profunda impressão causada pelo contato com a menina representa um embate entre a consciência niilista e a consciência moral, segundo a estudiosa Natalia Arsentieva.10 Depois, em casa, diante do revólver carregado, ele tenta por via da razão se convencer de que não há motivo para se importar com aquilo, já que vai se matar de toda maneira, mas não consegue. Para Dostoiévski, a saída desse estado de crise só é possível pela via do sentimento, já que a razão não oferece as respostas necessárias.
Assim, o protagonista adormece e começa a sonhar. “Quem governa os sonhos, aparentemente, não é a razão, e sim o desejo, não é cabeça, e sim o coração”, reflete. É nos sonhos que o protagonista reencontra o irmão morto: é aí que está a vida verdadeira, o afeto longe da razão. O sonho de crise, que muda a vida do personagem e o faz renascer, é outro tema clássico dostoievskiano.11 Boris Schnaiderman comenta que no começo do século XIX, fez sucesso uma obra chamada O simbolismo dos sonhos, que influenciou o autor alemão E.T.A. Hoffmann, muito lido por Dostoiévski. De autoria de um certo professor Schubert, o livro atribuía ao “divino”, uma espécie de precursor do inconsciente de Freud, a matéria formadora dos sonhos.12
Em sonho, o homem ridículo dá cabo de sua intenção, mas não dá o tiro na cabeça, como pretendia, e sim no peito. Depois de morto e enterrado, manifesta sua indignação pelo “absurdo da continuação da existência”, já que sua expectativa era o não ser.
Quando o personagem é levado para outro planeta, chegamos a um importante tema apontado por Bakhtin como integrante da enciclopédia dostoievskiana: o paraíso terrestre, que encontra forma no mito da Idade de Ouro, e a “transformação instantânea da vida em paraíso”.13 Trata-se, no conto, do mundo ideal, regido pelo amor, visto inicialmente pelo homem ridículo em seu sonho. O conhecimento deste mundo lhe restitui a vontade de viver, dá a ele a visão da verdade e o transforma.
A Idade de Ouro já havia aparecido em outras obras do autor, como O adolescente e Os demônios (em um capítulo que terminou sendo excluído da edição final), e era uma presença constante em suas anotações para outros romances.14 Tomado da antiguidade clássica, em particular do poema “Os trabalhos e os dias”, de Hesíodo, o mito situa essa época no passado, na “infância da humanidade”,15 e constitui uma tradição da literatura europeia que passa pela Idade Média e chega até a contemporaneidade.16 Seria uma era de harmonia; uma “Terra não profanada pelo pecado original, nela vivia uma gente sem pecado, vivia no mesmo paraíso em que viveram, como rezam as lendas de toda a humanidade, os nossos antepassados pecadores”.
De início, para o “petersburguês progressista” é inconcebível que a sabedoria daquele povo não contemple a ciência. No entanto, ele vê que a verdadeira felicidade vivida pelos habitantes de seu sonho está fora do âmbito da compreensão intelectual e racional. Segundo Frank, “esta oposição entre cabeça e coração, entre razão e sentimento, torna-se em si o centro de toda a história espiritual da humanidade”.17
Há uma discussão entre críticos quanto a se Dostoiévski teria se baseado nos socialistas utópicos franceses, como Fourier e Cabet, para formar sua imagem da Idade de Ouro. Eram autores lidos nos grupos que Dostoiévski frequentara nos anos 1840; posteriormente, no entanto, o escritor se tornaria crítico do socialismo. No entanto, Frank aponta que ele
sempre continuara a ter simpatia pelos objetivos morais dos socialistas-utópicos, embora tenha acreditado, depois, que esses objetivos somente poderiam ser alcançados algum dia sob a inspiração do Cristo Deus-homem, cujos ensinamentos estavam incorporados no povo russo. (...) De fato, a versão de Dostoiévski era uma resposta às utopias racionais dos socialistas. Assim, o conto de Dostoiévski não é antiutópico; ao contrário, como diz Prutskov com correção, “seu alicerce é o anti-Iluminismo (o primado das sensações do coração e sua oposição às verdades da cabeça, a precedência de ações morais suscitadas pela consciência em oposição àquelas ações motivadas pelas convicções)”.18
Batiuto e Beriozkin apontam uma direção semelhante. Depois de percorrer “um esboço ímpar, fortemente individual da história da humanidade, sustentado por motivos de amor torturante e extático pela terra e o universo, sofrimento e voluptuosidade cruel”, o movimento do homem ridículo é uma oposição à visão científica do mundo, vista como necessariamente autodestrutiva para a humanidade.19
É interessante notar que a forma do conto tampouco faz uso de uma argumentação discursiva lógica. Para Bakhtin, o mais impressionante do conto é sua capacidade de, sendo tão universal, ser ao mesmo tempo muito conciso, chegando mesmo a uma espécie de laconismo. O crítico aponta que Dostoiévski é capaz de sentir artisticamente essa ideia com precisão.20 Assim, é possível dizer que na própria forma, no laconismo e na parcimônia da argumentação, Dostoiévski realiza sua proposta de predomínio dos sentimentos sobre a racionalidade. O apelo ao leitor para a Verdade revelada pelo profeta, a Idade de Ouro, não se dá pela argumentação racional, mas pela via da sensibilidade artística.
É o narrador que, sem saber como, leva o pecado original para aquela terra. Tudo começa pela mentira, e daí seguem-se os outros pecados, como a volúpia, o ciúme, a vergonha. Neste momento, o conto evoca o mito da queda do Paraíso. Como observa Arsentieva, o herói termina por fazer o papel do demônio que introduz a tentação naquele mundo harmonioso. “‘O sonho de um homem ridículo’, portanto, pode ser considerado um relato mítico que reproduz o tópico do paraíso perdido, uma variante do mito escatológico da queda.”21
Aspectos do mundo moderno, como a individualidade, a ciência e a justiça, aparecem nesse mundo como sintomas da queda. Os caídos reproduzem o discurso criticado por Dostoiévski:
temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas dessa vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida — superior à vida. O conhecimento nos dará a sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.
O narrador por fim tenta se sacrificar em nome da redenção de todos — pede inclusive para ser crucificado —, mas só consegue retornar ao que era no começo do conto: objeto de riso geral. Nikolai Berdiáiev propõe uma interpretação interessante: o paraíso de “O sonho de um homem ridículo” não pode ser digno dos filhos de Deus, pois não traz em si o pleno conhecimento do bem e do mal. Propõe-se então o tema do paraíso perdido e irrecuperável, já que, segundo esta interpretação, só é possível chegar a uma verdadeira harmonia entre todos pela livre escolha e trilhando um caminho de sofrimento. Apenas percorrendo o trágico processo global a humanidade pode conquistar uma liberdade verdadeira. 22
Ao acordar, o protagonista está completamente mudado. Ele afasta de si o revólver carregado e decide dedicar a vida à pregação da verdade vista no sonho. O que temos aí é mais um dos grandes temas dostoievskianos: o “louco sábio”, que, apesar de ridicularizado pelo mundo, segue sendo o único capaz de dizer a verdade.23 Sua condição, no entanto, não lhe provoca raiva pelos que o ridicularizam, mas amor. Desta forma, o conto tem um encerramento extático, no qual o protagonista se sente enfim imbuído de uma missão, de uma verdade e de um sentido que lhe oriente a vida. Convertido em profeta, ele agora pretende espalhar sua palavra.
Como aponta Bakhtin, as obras de Dostoiévski têm uma temporalidade particular: como se tudo acontecesse simultaneamente, o antes e o depois estão excluídos. É o que o crítico chama de tempo de crise, diferente do tempo biográfico comum. No tempo de crise, as durações podem se equivaler, e um momento pode ter uma duração de anos.24 Em “O sonho de um homem ridículo”, ainda que dure uma só noite, o tempo transcorrido é o de toda a história da humanidade.
Natalia Arsentieva indica que a estrutura do conto, construída a partir de fontes literárias e religiosas, remete ao gênero da confissão medieval: o protagonista primeiro percorre sua própria vida de pecados para, no fim, chegar à expiação e à redenção. “A diferença entre as obras medievais e escritura moderna consiste em que nas primeiras trata-se de provas submetidas à carne, e nas segundas, de provas do espírito.”25
A estrutura do conto como uma história religiosa é essencial, já que o homem ridículo percorre um caminho de iluminação e redenção característico das narrativas de santos. O desfecho encontra eco nas ideias messiânicas do autor. Segundo Frank, há uma perspectiva dupla no conto: ao mesmo tempo que a Idade de Ouro serve de inspiração moral, ela remete à perda de um paraíso inocente. Dostoiévski, no entanto, via no amor cristão pelo sofrimento um caminho para alcançar a redenção e recuperar esse paraíso. 26
De fato, era na religião que Dostoiévski via a possibilidade de mudança para uma ordem mais justa. Como aponta Giuliana Almeida, o escritor via na Rússia um destino espiritual grandioso: por meio do Cristianismo Ortodoxo, indicar um caminho para a resolução da questão social europeia, e, o que era essencial, um caminho pacífico e não revolucionário. Esse caminho seria conduzido pelo tsar e pela classe dirigente russa, que atuariam a partir das ideias cristãs de comunhão já presentes no povo. Dostoiévski via na cultura russa uma capacidade de assimilar características de outras populações e reconciliar suas contradições. “Assim, o Reino de Deus na terra seria alcançado na Rússia pioneiramente como um reflexo da fraternidade e do desejo de união inerente ao povo russo.”27 Em 1880, Dostoiévski expressou essas mesmas ideias em um discurso em homenagem a Púchkin num festival literário em Moscou. A repercussão foi enorme, e o autor, que já era uma celebridade, foi aclamado pela multidão, no que talvez tenha sido seu maior momento de consagração em vida. Como o herói de “O sonho de um homem ridículo”, o próprio autor também se tornou profeta.
Cecília Rosas é tradutora, mestre e doutora em Literatura e Cultura Russa pela USP. Traduziu recentemente para o português Viagem sentimental, de Viktor Chklóvski (Editora 34, 2018), e A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2016), entre outros títulos. Participa do coletivo de tradução Sycorax.
1 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, “Komentári: F. M. Dostoiévski. Dnievnik pissátelia. 1877. Glava vtoraia. Son sméchnogo tcheloveka. Fantastítcheski rasskaz”, in: F. M. Dostoiévski, Sobranie sotchinéni v 15 tomakh. São Petersburgo: Naúka, 1995. Tomo 14, p. 585. Disponível em https://rvb.ru/dostoevski/02comm/264.htm.
2 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. p. 589.
3 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. p. 580.
4 Idem, ibidem.
5 Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 156.
6 Joseph Frank, Dostoiévski: o manto do profeta, 1871-1881, tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2007, p. 443.
7 Mikhail Bakhtin, op. cit, p. 170.
8 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. pp. 588-9.
9 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 174.
10 Natalia Arsentieva, “El sueño de un hombre ridículo: el viaje hacia la verdad”, in Caderno de Literatura e Cultura Russa: Dostoiévski, n. 2, maio de 2008. São Paulo: Ateliê Editorial, p. 270.
11 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 174.
12 Boris Schnaiderman, Dostoiévski Prosa Poesia, São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 142.
13 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 176.
14 Joseph Frank, op. cit, p. 442.
15 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. p. 587.
16 Idem, ibidem.
17 Joseph Frank, op. cit, p. 444.
18 Joseph Frank, op. cit, pp. 448-9.
19 A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. p. 588.
20 Mikhail Bakhtin, op. cit., pp. 156-7.
21 Natalia Arsentieva, op. cit., p. 275.
22 Nikolai Berdiáiev, Mirossozertsánie Dostoiévkogo, Praga, 1923, p. 161, apud A. I. Batiuto; A. M. Beriozkin, op. cit. p. 588.
23 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 170.
24 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 201.
25 Natalia Arsentieva, op. cit., p. 279.
26 Joseph Frank, op. cit, p. 443.
27 Giuliana Teixeira de Almeida, “Púchkin como o Deus da literatura russa e Dostoiévski como seu Profeta: uma análise do discurso proferido por Dostoiévski no Festival Púchkin”. RUS (São Paulo), 1(1), p. 65. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.rus.2012.88682.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, G. T. de. (2012). “Púchkin como o Deus da literatura russa e Dostoiévski como seu Profeta: uma análise do discurso proferido por Dostoiévski no Festival Púchkin”. RUS (São Paulo), 1(1), 59-68. https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.rus.2012.88682.
ARSENTIEVA, Natalia, “El sueño de un hombre ridículo: el viaje hacia la verdad”, in Caderno de Literatura e Cultura Russa: Dostoiévski, n. 2, maio de 2008. São Paulo: Ateliê Editorial.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
BATIUTO, A. I.; BERIOZKIN, A. M., “Komentári: F. M. Dostoiévski. Dnievnik pissátelia. 1877. Glava vtoraia. Son sméchnogo tcheloveka. Fantastítcheski rasskaz”, in: F. M. Dostoiévski, Sobranie sotchinéni v 15 tomakh. São Petersburgo: Naúka, 1995. Tomo 14. Disponível em https://rvb.ru/dostoevski/02comm/264.htm.
FRANK, Joseph. Dostoiévski: o manto do profeta, 1871-1881, tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2007.
SCHNAIDERMAN, Boris. Dostoiévski Prosa Poesia, São Paulo: Perspectiva, 1982.
Sob a égide do sonho
Por Celso Frateschi
Em 2005, eu e meus parceiros do Teatro Ágora montamos uma adaptação teatral de “O sonho de um homem ridículo”. Eu havia recém-encerrado minha experiência como secretário de Cultura da cidade de São Paulo e fora consumido pela função pública por quase quatro anos. Durante esse tempo, o romance Memórias do subsolo, também de Dostoiévski, me acompanhou — ou, talvez fosse melhor dizer, me perseguiu, ou ainda se impôs, como um espelho revelador das monstruosidades que vivem no subterrâneo do cotidiano. Lançando mão do distanciamento crítico teatral, a convivência com esse personagem me manteve minimamente sadio no enfrentamento do cotidiano burocrático. Durante algum tempo, tentei adaptar esse livro genial para o palco, feito que só consegui muitos anos depois com a Trilogia do Subterrâneo. Enquanto tentava, entrei em contato com “O sonho de um homem ridículo”, o que então me apontou outros caminhos.
Foi mesmo como um sonho que a novela me apresentou um conjunto de signos, os quais de alguma forma conversavam diretamente não só com a minha subjetividade, mas com a própria realidade do país. Vivíamos uma tentativa de reconstrução social e, nesses momentos, é sempre interessante recuperar a potência das nossas possibilidades e os desvios e descaminhos que nos colocam frente aos enigmas e abismos da existência.
Todos os balanços de gestão já tinham sido feitos e o saldo de nossas realizações foi muito positivo. Isso me deixava feliz. Mas percebi que não carecíamos de avaliações objetivas sobre as políticas públicas, e sim uma avaliação subjetiva, que colocasse a questão de “...se na urgência na execução das metas de partida, esquecemos as razões de nossa partida...”. Ao mesmo tempo, ao final da jornada me perguntava: “...O que mudou de nosso nome e de nosso rosto?”.
Lembro quando entramos naquele andar administrativo da Galeria Olido, no dia 02 de janeiro de 2002. Era um espaço gigantesco. A mudança da antiga sede da Secretaria de Cultura tinha acontecido durante o recesso de final de ano. As divisórias ainda não tinham sido instaladas. Os servidores improvisaram, dividindo as salas e distribuindo por elas pilhas enormes de processos. Entrar naquele espaço kafkiano, patético e opressivo, com todos aqueles servidores buscando se entender com montanhas de processos, como se suas vidas tivessem sido embaralhadas por uma avalanche de papéis cujo sentido dependia de estarem devidamente organizados e carimbados, nos impressionou muito e acabou sendo um dos pontos de partida para a nossa adaptação. Eu e meus parceiros achamos naquele momento oportuno apresentar o sonho como provocação, principalmente o sonho de um homem que tem consciência e se assume como ridículo. Eu, Roberto Lage, Sylvia Moreira, Marlene Salgado, Vivien Buckup, Aline Meier e Wagner Freire partimos para o desconhecido da criação guiados por Dostoiévski.
O espetáculo foi construído sob a égide do sonho.
“Os sonhos, como se sabe, são uma coisa muitíssimo estranha: um aparece com nitidez horripilante, com um nível de detalhamento e minúcia digno de um joalheiro, e o outro você passa por cima de tudo, sem perceber, até mesmo do espaço e do tempo.
Quem governa os sonhos, aparentemente, não é a razão, e sim o desejo, não é cabeça, e sim o coração”
Em A interpretação dos sonhos, Freud cita, logo no início do texto, o fisiólogo Burdach, que afirma que o sonho entra em contato com o nosso estado de espírito e representa a realidade em símbolos. Em certa medida, não é isso também o que a arte proporciona? Pois então não poderíamos dizer que os sonhos e o teatro (ou a arte em geral), em alguma medida, nos servem a propósitos semelhantes? A diferença é que o espetáculo teatral se concretiza a partir da criação do artista, que elabora um conjunto de signos, cujo sentido se dá apenas quando recebidos e elaborados pelo público, participante ativo desse fenômeno. Se o sonho é um processo involuntário, subjetivo e estritamente pessoal, o teatro é uma ação voluntária e necessariamente social, já que proporciona uma espécie de “sonho coletivo”, que espelha e mobiliza a sensibilidade e a inteligência, também a partir de um conjunto de signos. A arte, portanto, nos provoca a sonhar na vigília. Não é um sonho que nos aliena, mas que nos desperta, nos instiga e só se realiza nesse paradoxo. Encanta ao desencantar, ao nos revelar o até então desconhecido. Assim, nos instiga a lidar com a descoberta.
A pequena novela “O sonho de um homem ridículo” é narrada pelo próprio homem ridículo. Solitário a ponto de não ter nome, com plena consciência de que é, sempre foi e sempre será ridículo. “Eu mesmo riria com eles, não digo que de mim, mas por amor a eles, se eu não ficasse tão triste ao olhar para eles.”
Num primeiro momento, simpatizamos e nos identificamos com a sua consciência e embarcamos cúmplices e curiosos na sua jornada. Quando ele desce mais alguns degraus em direção ao seu subterrâneo, já não conseguimos mais nos separar dele, mesmo sabendo que estamos sendo arrastados para um lugar desconhecido e assustador.
Decidido a tirar a sua própria vida insignificante, busca o momento certo. Ele se apresenta como um homem qualquer, que se identifica com o nada, busca o nada. Numa noite de inverno de São Petersburgo, ao voltar para casa por volta das onze horas, observa uma pequena estrela que sobressai em um buraco negro em meio às nuvens. A estrela é o sinal, as estrelas sempre são sinais. A mais famosa para os cristãos anunciava a chegada do filho de Deus. Para o nosso herói, a estrela anunciava que a hora de puxar o gatilho havia chegado. Os signos que Dostoiévski constrói são desenhados com clareza e se oferecem a múltiplas traduções. Ele nos envolve na melancolia patética do personagem. A noite, a umidade da garoa, o nevoeiro que brota de cada canto, de cada beco, de cada pedra da rua. Identificamo-nos com esse estado de espírito. Se os lampiões apagassem, ao menos não se veria aquele triste cenário. Contudo, esse momento de introspecção é surpreendentemente quebrado e a narrativa nos leva a descer mais um degrau em direção ao nosso subsolo.
No meio de sua conversa com a pequena estrela, o homem ridículo é abordado por uma menina de uns oito anos de idade, encharcada de chuva e tremendo de frio, a ponto de não conseguir articular as palavras. Tem apenas um pequeno lenço como agasalho. Ele guarda na memória seus sapatinhos rotos e molhados. A menina, com um grunhido quase animal, pede ajuda para socorrer a mãe que está morrendo perto dali. Nosso herói não apenas nega a ajuda, como ameaça a menina aos berros, passando a enxotá-la. Nos espantamos com seu gesto e o rejeitamos, mas ao mesmo tempo não deixamos de sentir compaixão: não somente pela menina, mas em alguma medida também pelo homem ridículo. Na descrição da ação violenta e deplorável, transbordam também o lado humano e o desespero de nosso herói. Aqui já começamos a ouvir a polifonia que Dostoiévski irá desenvolver em seus grandes romances.
Ao voltar para casa, o personagem apanha da gaveta de sua mesa um revólver carregado, adquirido um mês antes exatamente para a ocasião. No entanto, sua atitude com a menina o perturba e essa perturbação nos aproxima ainda mais dele. Adormece pousando a arma no peito, na altura do coração. Sem perceber a fronteira do sono, continua, em sonhos, a raciocinar sobre os mesmos problemas. Já no limiar do adormecimento ele aperta o gatilho, mas apesar de ter planejado meter a bala na cabeça, é o coração que ele atinge. Sonha com seu funeral e com seu enterro. É enterrado numa cova profunda. Sem saber se depois de uma hora, um dia ou vários dias, se desespera com a umidade que penetra em seu caixão em pequenas gotas que caem seguidamente em seu olho esquerdo. “Um minuto depois dela, veio outra, um minuto depois, uma terceira, e assim por diante, e assim por diante, sempre de minuto em minuto.” A precisão das imagens nos estimula e nos prepara para embarcar completamente no relato do personagem. Aqui, já sonhamos o seu sonho; que passa a ser também meu, também nosso.
O caixão se abre e ele é transportado por um ser estranho por caminhos desconhecidos que o distanciam da terra onde derramou seu sangue. Ele desejava o nada, por isso havia metido uma bala no seu corpo, mas estava sendo carregado por um ser que não era humano, mas que não deixava de ser. Portanto, ele pensava: há vida além da morte! A velocidade de seu pensamento é delirante, assim como a viagem que realizamos. O homem ridículo descobre um outro sol igual ao nosso e uma outra terra, também igual à nossa, e lamenta profundamente ter abandonado a nossa soturna e enxovalhada Terra. Para que haveria de existir uma cópia da Terra que tanto amou?
De repente, ele já está nessa outra terra, que o recebe carinhosamente. Reconhece a natureza e os homens que trazem em seus rostos a inteligência e a sabedoria. Conclui ser o mesmo paraíso em que viveram em harmonia nossos antepassados. Entra em contato com habitantes dessa terra feliz que o cercam e o levam para suas casas. Nessa terra não havia doenças, nem templos e nem crenças. Morriam suavemente cercados de olhares de boa viagem. A vida pode ser plena e prazerosa, isso aprendemos com seu sonho. “Quem governa os sonhos não é a razão, e sim o desejo.” Nós agora saímos do subsolo e atingimos a altura das nuvens. Somos inundados pelas possibilidades do prazer de viver e pela plenitude da vida. Dostoiévski abre a nossa alma e nos deixa totalmente livres para, mais uma vez, nos conduzir ao abismo mais profundo e terrível de nossa existência.
Num relato vertiginoso, o autor nos mostra como o átomo da mentira penetrou em nossos corações e como gostamos disso. Surgem a propriedade e a briga “pelo meu e pelo seu”. Mais uma vez aparece diante de nosso homem o mundo dividido e desigual, a escravidão e a servidão voluntária, onde os mais fracos se juntam aos mais fortes, desde que estes oprimam os que são mais fracos que aqueles.
Mas nosso herói proclama ser o único culpado por perverter essa gente e esse planeta. Deseja ser crucificado e até os ensina a construir uma cruz, mas eles apenas riem e dizem que ele é um maluco e que devem prendê-lo. Assim, num curto espaço de tempo, os dois planetas se assemelham em suas dores e em suas misérias. Ele procura oferecer-se em sacrifício, mas as pessoas se limitam a rir dele. Resolve mais uma vez morrer, mas acorda de seu sonho e, ao acordar, percebe que aquela pobre menina que ele ofendeu aos berros apontava para uma outra possibilidade de vida. Decide continuar procurando, “E caminharei! E caminharei!”.
Nessa pequena obra encontramos várias caraterísticas do grande escritor. O seu personagem típico, um homem do subsolo, vivenciando ao mesmo tempo o terrível e o sublime. A polifonia da alma humana se manifestando corajosamente e nos revelando as nossas possibilidades, as nossas misérias e virtudes. Um sonho de um homem ridículo que nos proporciona um sonho grandioso, capaz de explodir em nós a consciência, a dor e o prazer que nos caracterizam como seres humanos.
Há momentos na vida em que se acumulam sobre as nossas verdades o pó dos tempos. A verdade se solidifica e perde o brilho; o que nos movia adiante passa a nos paralisar, e o pó umedecido pelos lamentos seca numa triste argamassa de certezas que nos petrifica. Romper a estagnação é tarefa dos artistas. Foi esta busca que trouxe esta provocação de Dostoiévski. Não possuo as suas crenças, mas desejo a sua inquietação. Busco no seu sonho, ridículo como todos os sonhos, aquilo que rejuvenesce e religa a velhice do contemporâneo ao imaginário da infância da humanidade. Talvez, mais do nunca, necessitemos de um projeto ridículo de nos entendermos como um todo. Talvez ainda sejamos ridículos o suficiente para crer em algumas criações da humanidade como a ética e a estética. Talvez a beleza, mesmo que ridícula, ainda possua algum sentido. Quem sabe as coisas são como são porque as forjamos assim e não porque são inevitáveis e por isso valha a pena o ridículo de tentar transformá-las?
Celso Frateschi é ator, professor e diretor teatral. Encenou Dostoiévski em diversas adaptações literárias para o teatro, com destaque para o monólogo “O sonho de um homem ridículo”. Foi Secretário de Cultura do Município de São Paulo, Presidente da Funarte e atualmente é Diretor do Ágora Teatro.
Fiódor Dostoiévski
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