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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SONHO DO SÚCUBO / Richelle Mead
O SONHO DO SÚCUBO / Richelle Mead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Desejava que o cara sobre mim se apressasse, porque já estava ficando entediada.
Infelizmente, não parecia que ele ia acabar logo. Brad, Brian, ou seja lá qual fosse seu nome, estava medonho, os olhos bem apertados, com tamanha concentração, que dava para se pensar que fazer sexo era semelhante a uma neurocirurgia ou a levantar peso na academia.
- Brett - falei, ofegante. Era hora de resolver o problema.
Ele abriu um olho. - Bryce.
- Bryce. - Assumi minha expressão mais apaixonada, orgástica. - Por favor... por favor, não pare.
Ele abriu o outro olho. Os dois ficaram arregalados.
Um minuto depois, tinha acabado.
- Desculpe - falou, arfando, saindo de cima de mim. Ele parecia mortificado. - Não sei... foi sem querer...
- Está tudo bem, querido. - Senti só um pouquinho de remorso por ter usado o truque do “não pare” com ele. Nem sempre funcionava, mas, para alguns caras, plantar aquela semente os aniquilava totalmente. - Foi incrível.

 


 


E, na verdade, isso não era inteiramente uma mentira. O sexo em si fora medíocre, mas a torrente que se seguiu... a sensação de ter a vida e a alma dele jorrando
para dentro de mim... ah! Isso foi demais. Era para isso que nós, súcubos, vivíamos.
Ele deu um sorriso cansado. Sua energia agora fluía dentro do meu corpo. Perdê-la deixara-o exausto, extinguira seu fogo. Ele logo dormiria, e ficaria dormindo por
um bom tempo nos próximos dias. Sua alma fora boa, e eu peguei uma boa parte dela - assim como de sua vida. Ele agora teria um ano a menos de vida, graças a mim.
Tentei não pensar nisso enquanto vestia rapidamente as minhas roupas. Em vez disso, procurava me concentrar em como tinha feito o que precisava para sobreviver.
Além disso, meus mestres infernais exigiam que eu seduzisse e corrompesse boas almas de modo regular. Homens maus talvez diminuíssem a sensação de culpa, mas não
preenchiam a cota do inferno.
Bryce pareceu surpreso ao ver minha partida abrupta, mas estava muito cansado para reclamar. Prometi telefonar-lhe - sem nenhuma intenção de cumprir - e saí do quarto
ao mesmo tempo que ele ficava inconsciente.
Assim que fechei a porta, eu me metamorfoseei. Surgira para ele como uma mulher alta, com cabelo montado, mas agora reassumira minha forma favorita: pequenina, olhos
verdes amendoados e cabelo castanho-claro, quase dourado. Assim como quase toda a minha vida, meus traços físicos tinham a ver com meu humor, dificilmente ficando
estável.
Apaguei Bryce de minha mente, assim como fiz com a maioria dos homens com quem dormi, e cruzei a cidade na direção do que rapidamente estava se tornando a minha
segunda casa. Era um condomínio bege, em estuque, construído numa comunidade de outros condomínios que tentavam desesperadamente parecer construções modernas. Estacionei
meu Passat na frente, peguei as chaves na bolsa e entrei.
O condomínio estava silencioso, envolvido pela escuridão. Um relógio informou-me que eram três da manhã. Ao andar na direção do quarto, mudei novamente de forma,
trocando de roupas e passando a usar uma camisola vermelha.
Fiquei paralisada sob a soleira do meu quarto, surpresa por ter perdido o fôlego. Era de se achar que, depois de todo esse tempo, eu já teria me acostumado a ele,
que ele não mais mexeria comigo dessa forma. Mas ele conseguia. Todas as vezes.
Seth estava esparramado na cama, um braço jogado sobre a cabeça. Sua respiração era profunda e cortada, e os lençóis formavam uma trança ao longo de seu corpo comprido
e magro. O luar escondia a cor de seu cabelo, mas, no sol, o castanho-claro assumia um brilho avermelhado. Ao vê-lo, observá-lo, sentia meu coração ficar apertado.
Não imaginava sentir-me assim em relação a alguém novamente, não após séculos de tanto... vazio. Bryce não significara nada para mim, mas esse homem diante de mim
significava tudo.
Deslizei para a cama ao lado dele, e ele imediatamente me abraçou. Acho que foi instintivo. A ligação entre nós era tão profunda que, mesmo inconscientes, não conseguíamos
ficar afastados um do outro.
Encostei meu rosto no peito de Seth, a pele aqueceu a minha e consegui dormir. A culpa que sentia por Bryce se apagou, e então havia apenas Seth e meu amor por ele.
Comecei a ter um sonho quase imediatamente. Mas, bem, eu não estava exatamente nele, pelo menos não no sentido ativo da palavra. Eu estava me observando, vendo os
eventos acontecerem como se fosse um filme. Só que, ao contrário de um filme, eu podia sentir cada detalhe. As imagens, os sons... era quase mais vívido do que a
vida real.
A outra Georgina estava numa cozinha, uma que me era desconhecida. Era clara e moderna, bem maior do que alguém que não cozinha, como eu, precisaria. Minha personagem
estava na pia, com os braços enfiados numa água cheia de sabão, que exalava um cheiro de laranja. Estava lavando pratos, o que surpreendeu a minha versão real -
mas estava fazendo um trabalho ruim, o que não me surpreendeu em nada. No chão, via-se uma máquina de lavar louça quebrada, explicando assim a necessidade de trabalho
manual.
De outro cômodo, a melodia de “Sweet Home Alabama” chegava aos meus ouvidos. Minha personagem cantarolava enquanto lavava a louça, e naquela cena surreal, sonhada,
era possível sentir a alegria dela. Estava contente, tomada por uma alegria quase perfeita, que eu não conseguia compreender. Mesmo com Seth, raramente me sentia
tão feliz - e eu era muito feliz com ele. Não conseguia imaginar o que faria minha personagem do sonho sentir-se dessa forma, principalmente ao fazer algo tão comum
como lavar louças.
Acordei.
Para minha surpresa, já era de manhã, um dia ensolarado. Não percebi o tempo passando. O sonho parecera durar apenas um minuto, ainda que o despertador indicasse
que haviam se passado seis horas. Abandonar a felicidade que minha personagem sentia me deixou com dor de cabeça.
Mais estranho ainda era que eu... não me sentia bem. Levei um tempo para descobrir o problema: eu estava exaurida. A energia vital de que eu precisava para sobreviver,
a energia que eu roubara de Bryce, praticamente se esgotara. Na verdade, tinha agora menos do que antes de ir para a cama com ele. Não fazia sentido! Uma rajada
de vida como aquela deveria ter durado pelo menos algumas semanas, porém estava quase tão esgotada quanto ele. Não estava fraca o suficiente para começar a perder
minha habilidade de transformação, mas seria necessária uma nova dose nos próximos dias.
- Qual é o problema?
A voz sonolenta de Seth surgiu atrás de mim. Rolei para o lado e encontrei-o apoiado sobre um cotovelo, observando-me com um sorrisinho doce.
Não queria falar sobre o que acontecera. Fazer isso significaria contar em detalhes o que eu fizera com Bryce, e, apesar de Seth teoricamente saber o que eu fazia
para sobreviver, a ignorância nesse caso era uma bênção.
- Nada - menti. Sabia mentir bem.
Ele tocou-me no rosto. - Senti sua falta ontem à noite.
- Não, não sentiu. Estava ocupado com Cady e O’Neill.
Seu rosto apresentou um sorriso zombeteiro, mas, ainda assim, era possível ver seus olhos começarem a assumir aquela expressão sonhadora, secreta, de quando pensava
sobre os personagens de seus romances. Em minha longa vida, obrigara reis e generais a implorarem por meu amor, mas, certos dias, nem mesmo meus encantos conseguiam
competir com as pessoas que habitavam a cabeça de Seth.
Felizmente, hoje não era um desses dias, e sua atenção retornou para mim.
- Nada. Eles não ficam tão bonitos usando camisola. A propósito, isso é bem Anne Sexton. Uma coisa meio “coraçãozinho de canela numa loja de doces”.
Só Seth conseguia usar uma poeta bipolar para me elogiar. Abaixei a cabeça e passei a mão, despreocupadamente, pela seda vermelha. - Realmente é muito bonita - admiti.
- Acho que fico mais interessante com ela do que nua.
Ele brincou. - Não, Thetis. Não fica.
Sorri, como sempre faço ao escutar o apelido carinhoso que ele me colocou. Na mitologia grega, Thetis era a mãe de Aquiles, uma deusa metamórfica derrotada por um
mortal determinado. E então, num movimento que foi bastante agressivo para os seus padrões, Seth me girou e começou a beijar meu pescoço.
- Ei - falei, simulando me esforçar para sair dali. - Não temos tempo para isso. Tenho muita coisa para fazer. E quero tomar café.
- Certo - murmurou, movendo-se na direção de minha boca. Parei de reclamar. Seth tinha um beijo maravilhoso. Era aquele tipo de beijo que derrete em sua boca, exalando
doçura. Era como algodão-doce.
Mas não havia nada a derreter ali, não entre nós. Com um timing perfeito, quase como se controlado por um relógio, ele abandonou o beijo e sentou-se, afastando também
as mãos. Ainda sorrindo, abaixou a cabeça e observou minha posição indigna.
Sorri de volta, oprimindo a pequena sensação de arrependimento que sempre vem nesses momentos de recuo.
Mas era assim conosco, e honestamente funcionava muito bem levando- -se em conta todas as complicações de nosso relacionamento. Meu amigo Hugh, certa vez, brincou
que todas as mulheres roubam as almas dos homens se ficarem muito tempo juntos. No meu caso, não eram necessários anos de disputa. Um beijo bem demorado era suficiente.
Assim era a vida de um súcubo. Não era eu quem ditava as regras, e não me era possível interromper o roubo involuntário de energia que vinha de um contato físico
íntimo. Conseguia apenas controlar a ocorrência, ou não, de contato físico. Tinha desejo por Seth, mas não queria roubar sua vida, como havia feito com Bryce.
Também me sentei, querendo me levantar, mas Seth parecia arrojado naquela manhã. Colocou os braços ao redor de minha cintura e puxou-me para seu colo, encostando-se
em minhas costas de forma que seu rosto mal barbeado perdia-se em minha nuca e cabelo. Senti seu corpo estremecer com o influxo de ar pesado, profundo. Expirou lentamente,
como se buscando controlar-se, e então aumentou a força da pegada.
- Georgina - murmurou sobre minha pele.
Fechei os olhos, e a jovialidade tinha acabado. Uma intensidade sombria nos envolvia, queimando a ambos com desejo e o medo do que poderia acontecer.
- Georgina - repetiu. Sua voz estava baixinha, rouca. Senti-me derretendo novamente. - Sabe por que dizem que os súcubos visitam homens durante o sono?
- Por quê? - minha voz também estava fraca.
- Porque sonho com você todas as noites. - Em outras situações, aquilo teria soado banal, mas, vindo dele, era algo poderoso e faminto.
Apertei bem os olhos, enquanto um turbilhão de emoções dançava dentro de mim. Queria chorar. Queria fazer amor com ele. Queria gritar. Às vezes, era demais. Emoções
demais. Perigoso demais. Demais, demais.
Ao abrir os olhos, movi-me para que pudesse ver seu rosto. Ficamos nos encarando, ambos querendo mais e incapazes de nos satisfazer. Afastei o olhar, e saí pesarosamente
de seu abraço. - Venha. Vamos comer.
Seth morava no bairro universitário de Seattle - o Distrito U para os locais - e podia ir a pé a diversas lojas e restaurantes próximos ao campus da Universidade
de Washington. Encontramos uma pequena lanchonete, e as omeletes e a conversa logo afastaram o embaraço de antes. Depois, vagamos lentamente pela Via Universitária,
de mãos dadas. Eu tinha problemas para resolver, e ele precisava escrever, porém relutávamos em nos separar.
Seth parou de repente. - Georgina.
- Hmmm?
Ele ergueu as sobrancelhas ao olhar para algo do outro lado da rua.
- Veja, o John Cusack está ali.
Segui seu olhar incrédulo para onde estava de fato um homem muito parecido com o sr. Cusack, fumando um cigarro encostado num prédio. Suspirei.
- Não é John Cusack. É Jerome.
- Sério?
- É. Falei para você que ele parecia o John Cusack.
- Aí é que está: parecia. Aquele cara não se parece com ele. Aquele cara é ele.
- Acredite em mim: não é não. - Ao ver a expressão impaciente de Jerome, soltei a mão de Seth. - Já volto.
Atravessei a rua, e, conforme diminuía a distância entre mim e meu chefe, a aura de Jerome fez meu corpo estremecer. Todos os imortais têm uma assinatura única,
e a de um demônio como Jerome era especialmente poderosa. Pareciam ondas de um calor perturbador - como quando se abre o forno e não se fica a uma distância adequada.
- Seja rápido - disse-lhe. - Você está estragando meu momento romântico. Como sempre.
Jerome jogou o cigarro no chão e apagou-o com seu sapato Kenneth Cole. Virou a cabeça com desdém. - O quê? Aqui? Ora, Georgie. Isso não é romântico. O lugar não
inspira nem um pouco de romantismo.
Coloquei uma mão na cintura, demonstrando minha raiva. Sempre que Jerome interrompia minha vida pessoal, em geral anunciava uma série de contratempos com os quais
eu não queria me envolver. Algo me dizia que ali não seria nenhuma exceção. - O que você quer?
- Você.
Pisquei. - O quê?
- Temos uma reunião hoje à noite. Uma reunião com toda a equipe.
- Quando você diz “toda a equipe”, refere-se mesmo a toda a equipe?
Da última vez que o arquidemônio supervisor de Seattle reuniu toda a equipe da região, foi para nos informar que nosso demônio local não estava “suprindo as expectativas”.
Jerome permitira que todos nos despedíssemos do demônio e, então, expulsou o pobrezinho para as profundezas ardentes do inferno. Fiquei um pouco triste, mas meu
amigo Hugh o substituíra e eu superei a chateação. Torcia para que essa reunião não tivesse um propósito semelhante.
Ele olhou para mim com uma expressão de incômodo, deixando transparecer que eu estava desperdiçando seu tempo. - Essa é a definição de toda a equipe, não é?
- A que horas?
- Às sete. No apartamento de Peter e Cody. Não se atrase. Sua presença é essencial.
Merda. Torcia para que não fosse minha festa de despedida. Estava me comportando muito bem ultimamente. - E qual é o motivo?
- Descubra quando chegar lá. Não se atrase - repetiu.
Afastou-se da avenida, enfiando-se na sombra de um edifício, e desapareceu.
Fui tomada por uma sensação de apreensão. Nunca se deve confiar em demônios, principalmente quando se parecem com estrelas extravagantes do cinema e fazem convites
enigmáticos.
- Está tudo bem? - perguntou-me Seth quando me aproximei.
Hesitei. - Vou levando...
Ele preferiu, sabiamente, não seguir no assunto, e nós, por fim, acabamos nos separando para cuidar de nossas vidas. Queria muito saber o motivo daquela reunião,
mas estava louca para entender o que me fizera perder a energia durante a noite. E enquanto fazia algumas tarefas - supermercado, troca de óleo, Macy’s -, aquele
sonho estranho e curto não parava de se repetir em minha cabeça. Como podia um sonho tão breve ter sido tão vívido? E por que eu não conseguia parar de pensar nele?
Fiquei tão tomada por essa confusão, que deram sete horas e nem percebi. Resmungando, dirigi-me rapidamente à casa de meu amigo Peter. Que bom: ia me atrasar. Ainda
que essa reunião não tivesse nada a ver comigo ou com uma possível demissão, era possível que, pelo atraso, experimentasse um pouco da ira de Jerome.
A cerca de dois metros da porta do apartamento, senti o zumbido das assinaturas dos imortais. Muitos deles. As auras de meus amigos, conhecidas e queridas, tocaram-me
imediatamente. Algumas fizeram uma pausa, e tentei recordar a quem pertenciam; a grande área de Puget Sound tinha uma porção de funcionários diabólicos com os quais
quase nunca interagi. Havia uma assinatura que não reconheci de jeito nenhum. E uma... uma me pareceu um tanto conhecida. Porém não consegui definir a quem pertencia.
Ia bater na porta, mas concluí que uma reunião como aquela, com toda a equipe, merecia mais do que jeans e camiseta, e transformei minha roupa em um vestido marrom
com uma blusa decotada, que parecia sobrepeliz. Fiz um belo coque no cabelo. Ergui a mão na direção da porta.
Uma vampira irritada, de quem eu mal me lembrava, abriu a porta. Inclinou o queixo para mim, saudando-me, e então voltou a conversar com outra vampira - a qual eu
só tinha visto uma vez. Acho que eram de Tacoma, que, por mim, poderia ser anexada ao inferno. Meu amigo Hugh, robusto e de cabelos pretos, andava para lá e para
cá falando em seu celular. Jerome estava instalado em uma poltrona, com um martíni nas mãos. Suas tenentes demoníacas, quase nunca presentes, estavam num canto,
afastadas como sempre. Peter e Cody - meus bons amigos, os vampiros que moravam ali - gargalhavam na cozinha por algum motivo, acompanhados por outros funcionários
do inferno que eu não conhecia muito bem.
Parecia um coquetel como outro qualquer, quase uma celebração. Esperava que isso significasse que não haveria briga naquela noite, já que criaria um clima bem ruim.
Ninguém, à exceção de Jerome, notara minha chegada.
- Dez minutos atrasada - resmungou.
- Ei, é chique...
Fui interrompida, quando uma amazona loira quase me derrubou.
- Oh! Você deve ser Georgina! Estava louca para te conhecer.
Ergui meus olhos, passando por seus seios gigantescos, cobertos por spandex, e chegando até seus olhos azuis enormes, com cílios incrivelmente compridos. Um sorriso
de miss era-me oferecido.
Era raro eu perder a fala, mas isso acontecia. Essa Barbie viva era um súcubo. Um novinho em folha. Tão novo, que era um milagre não ranger. Descobri sua idade por
sua assinatura e por sua aparência. Nenhum súcubo de bom senso teria assumido aquela forma. Ela estava forçando a barra, reunindo aleatoriamente partes do corpo
feminino que alimentavam fantasias de pseudo-homens. Isso a transformou numa criação frankesteiniana, que era ao mesmo tempo de cair o queixo e anatomicamente impossível.
Sem se importar com minha surpresa e desdém, pegou minha mão e quase a quebrou com um cumprimento de mamute.
- Mal posso esperar para começarmos a trabalhar juntas - continuou.
- Estou prontinha para fazer os homens sofrerem.
Finalmente recuperei a voz. - Quem... quem é você?
- Ela é sua nova melhor amiga - disse uma voz próxima. - Uma concorrente sua. É difícil de competir com Tawny.
Um homem abria caminho, a cotoveladas, vindo em nossa direção, e todo aquele estranhamento que sentia em relação à presença do outro súcubo desapareceu como cinzas
ao vento. Até esqueci que ela estava lá. Senti meu estômago revirar quando identifiquei a assinatura misteriosa. Suor frio começou a escorrer por minha nuca e deslizar
para o tecido delicado de meu vestido.
O cara que se aproximava tinha praticamente a minha altura - ou seja, não era alto -, e sua pele era escura, num tom de oliva. Havia mais musse em sua cabeça do
que fios de cabelo. Seu terno era bonito - definitivamente feito sob medida. Um sorriso fino se espalhava por seu rosto, e meu desconforto aumentou.
- Pequena Letha, você cresceu e saiu para brincar com os adultos... - falou baixinho, num tom que só eu conseguia ouvir.
Para ser bem sincera, imortais como eu pouco tinham a temer neste mundo. Havia, contudo, três pessoas de quem eu tinha muito medo. Uma delas era Lilith, a Rainha
Súcubo, um ser de poder e beleza formidáveis, para quem teria dado minha alma - mais uma vez - em troca de um beijo. Outro que me assustava era um nefilim chamado
Roman. Era o filho meio humano de Jerome e tinha bons motivos para me perseguir e me destruir algum dia. A terceira pessoa que me enchia de medo era aquele homem
diante de mim.
Seu nome era Niphon, um demônio, assim como meu amigo Hugh. E, como todos os demônios, Niphon tinha dois empregos. Um era resolver problemas administrativos dos
demônios. O outro, o principal, era fazer contratos com mortais, negociando e comprando almas para o inferno.
E era o demônio que comprara a minha.
Capítulo 2
Por alguns segundos, minha cabeça saiu da festa. Minha mente voltou-se para mim, em pé num penhasco próximo à cidade onde fui criada, mal chegando à idade adulta
para os padrões de hoje. E Niphon estava lá, sorrindo, prometendo-me que tinha todas as respostas e que poderia fazer meus problemas desaparecerem...
Balancei a cabeça, tentando afastar as lembranças e retornando para a festa.
Seu sorriso ficou mais amplo, um sorriso diabólico que prometia ainda mais coisas diabólicas. Parecia que eu estava diante da própria serpente do Éden.
- Sabia que você tinha potencial - continuou, andando em minha direção. Sua voz mantinha-se suave. - Percebi no instante em que a vi. Estou curioso para saber, de
primeira mão, quão... experiente você ficou.
Assumi uma posição defensiva, e recuei. - Toque em mim, e quebro a porra do seu pescoço.
- Que ingratidão para com quem a transformou no que você é hoje.
- Fique longe de mim.
Ele voltou a se adiantar, e meu coração assumiu um ritmo de batimentos que teria matado a maioria dos seres humanos. De repente, a voz de Jerome surgiu sobre nós,
e percebi que a sala estava silenciosa. - Deixe-a em paz, Niphon. Ela falou “não”.
O demônio parou e assumiu uma expressão de súplica. - Ora, pare com isso, Jerome. Que demônio é esse que não compartilha seus dotes?
- Você não veio aqui para transar com o meu súcubo. Se não consegue fazer seu serviço, posso substituí-lo.
A voz de Jerome tinha um tom de ameaça que mesmo um idiota como Niphon não conseguia ignorar. Parecia que, naquela noite, alguém seria despachado para o inferno
de uma vez por todas. Infelizmente, o demônio inclinou sua cabeça em obediência e se afastou. O olhar que me deu indicava que conversaríamos mais tarde.
Fui até Jerome. - Você devia ter me alertado antes.
- E estragar o momento dos pombinhos? Difícil para um romântico como eu. Além do mais, disse-lhe para chegar cedo.
Hugh fechou seu celular e se dirigiu para nós. Deu-me um beijo no rosto. - Oi, querida. Coisas importantes vão acontecer aqui hoje.
Minha já enorme sensação de pavor ficou insuportável. - Como o quê?
- Reestruturação. A organização de Seattle foi redefinida. Terá um novo súcubo. Ou, bem, já temos um.
Meu queixo caiu, e recordei do que Niphon dissera há pouco. - Você só pode estar brincando.
- Receio que não. Esta é Tawny.
A Loira Robótica empinou-se sobre seus saltos altos e tentou cumprimentar-me novamente. Mantive-me a distância, protegendo meus ossos. Forcei um sorriso. - Oi, Tawny.
- Voltei-me para Jerome e apontei com a cabeça para Niphon.
- Por que ele está aqui, então?
- Eu a adquiri - explicou o demônio. “Adquirir” era uma maneira interessante de dizer que comprara a alma dela em troca do inferno, assim como fizera comigo. - Meu
trabalho é cuidar dela até que se ajuste e pegue sua primeira vítima.
- Ninguém nunca fez isso por mim - respondi. - Você meio que me jogou para os lobos. - Tive de ser uma espécie de brinquedinho sexual de um estalajadeiro em Constantinopla
por alguns anos, até me tornar um súcubo.
Niphon deu de ombros. - É a nova política do RH. Apenas pense em todo o tempo que teremos juntos para colocar as coisas em dia.
Olhando para Tawny de soslaio, esperava que seu desejo indomável de destruir homens significasse que ela aprenderia rápido. Mas, ao observar sua saia de pele de
leopardo, tive minhas dúvidas.
- Bem. Fantástico. Agora que estou a par das coisas, acho que não há por que ficar aqui...
Hugh balançou a cabeça, transformando-se de repente em “meu amigo, o demônio” em vez de “o demônio que cuida de tudo”. Podia dizer, pela expressão em seu rosto,
que eu não gostaria do que ele diria em seguida. - Há mais uma coisa que você precisa saber. Por um ou dois anos, você terá de ser a... uh... tutora dela.
- Tutora - repeti, seca.
Ele fez que sim com a cabeça, tentando parecer simpática. Jerome observava nossa conversa, deleitando-se.
- O que isso, er, significa exatamente?
Hugh colocou sua pasta numa mesinha e retirou o que parecia um daqueles manuais de impressão sob demanda. Jogou-o para mim. Ao pegá-lo, quase caí. A coisa devia
ter umas oitocentas páginas.
Guia oficial e completo de procedimentos para tutores do período inicial e probatório de novos súcubos (resumido).
- Resumido? - disparei para Jerome. - Diga-me que está se vingando por eu ter dito que você usa roupas da Old Spice.
- Você ainda me paga por isso - falou o demônio. - Aqui é coisa séria.
- Não posso fazer isso, Jerome. Não tenho tempo! Sabe quanta coisa tenho de fazer? Ainda estou treinando minha nova assistente no trabalho...
Ele ergueu-se numa velocidade de surpreender até mesmo um vampiro. Inclinou-se em minha direção, com uma expressão séria.
- Caramba, Georgie. Sinto muito por afastá-la de seu namorado humano, de seu emprego na livraria, que é tão fundamental para o mundo, e de todos os outros absurdos
de merda da sua vida! Vou lá contar para meus superiores que você tem coisas mais importantes a fazer do que responder aos poderes que controlam sua alma imortal
e que podem exterminá-la num piscar de olhos.
Senti minhas bochechas arderem. Não me agradava nem um pouco tomar uma porrada verbal na frente de Niphon e de toda a “equipe dos sonhos” de demônios de Seattle.
- Não quis dizer isso. Apenas...
- Não há o que discutir. - Suas palavras se entranhavam em minha pele.
Engoli seco. - Ok, Jerome. - Eu sabia quando recuar.
Ficamos em silêncio. Um sorrisinho falso surgiu no rosto de Niphon.
- Um namorado humano. Fantástico. Mal posso esperar para saber de tudo.
- Acho bonitinho - disse Tawny. - Espero que esteja fazendo ele sofrer.
- O romance deles é uma bela história de autoconhecimento - observou Hugh, sério.
Olhei para ele. Como uma solução sexual, Seth e eu descobrimos que podíamos fazer para nós mesmos o que não podíamos fazer um para o outro. Na verdade, nunca contei
a meus amigos sobre essa solução, mas eles meio que descobriram sozinhos.
Com o fim do drama, o resto do pessoal perdeu o interesse em mim. Mas Tawny não, e imediatamente começou a me contar a felicidade por destruir o coração dos homens
e vê-los chorar. Saí de perto o mais rápido que pude, andando pela sala para conversar com aqueles que não via há um tempo. Eu era boa em sorrir e fazer as pessoas
rirem, embora não conseguisse afastar de minha mente aquela nova complicação. Quando finalmente encontrei Cody, Peter e Hugh reunidos em um canto, soltei um suspiro
de alívio. Era possível dizer, pelas expressões em seus rostos, que aquela era a coisa mais hilária que viam fazia muito tempo.
Cody, jovem para um vampiro, mas velho se comparado a Tawny, colocou um braço ao meu redor. Seu cabelo loiro despenteado estava amarrado numa espécie de rabo de
cavalo. Estava sempre tranquilo e alegre, e sua “juventude” sempre produzia, em todos, um desejo de cuidar dele. - Ah, gente. Isso vai ser demais. Você está ferrada.
- Ah, é? - perguntei, desvencilhando-me dele. - Acha que tenho medo dela?
- Eu tenho - disse Peter, com um arrepio. Ele tinha cabelo castanho fino e usava trajes casuais, mas estranhamente combinantes, inclusive com meias de tricô em forma
de diamantes. Era um vampiro velho, quase da minha idade, e atuava como tutor de Cody. Antes, nunca tinha parado para pensar na relação tutor-aprendiz deles. Sempre
me parecera algo tranquilo, mas logicamente Cody não era Tawny.
Acompanhei o olhar de Peter para onde o novo súcubo contava, animadamente, uma história para uma estupefata demônia chamada Grace. Devido às perigosas sacudidas
dos seios de Tawny, parecia que a integridade estrutural da camisa dela não duraria muito.
- Não acho que você esteja com medo - disse Hugh, maliciosamente.
- Acho que está com inveja.
- Do que exatamente? Do mau gosto para se vestir? Do busto ergonomicamente irreal? Não tenho do que ter inveja.
- Deixa para lá. Vi seu rosto quando ficou sabendo que teríamos um novo súcubo. Parece que alguém não será mais a única garota em nossa panelinha.
- E daí?
- E daí que teremos uma nova irmãzinha para adular e aborrecer. Você terá de dividir os holofotes.
- Não vou dividir nada - falei, ressentida.
Peter riu. - Então isso te incomoda, sim. Mal posso esperar para ver penas voando para todos os lados.
- O destino dela está em suas mãos - falou Cody.
- Você deveria obrigá-la a te chamar de “Senhorita Georgina” - disse Hugh, com um sotaque sulista, zombando. - Ou pelo menos “madame”.
A presença de Niphon e as palavras de Jerome me deixaram um tanto nervosa. - Não vou ser tutora de ninguém. Ela está tão entusiasmada para enfrentar a população
masculina do mundo que nem precisa de mim.
Os três homens trocaram sorrisos. Cody imitou o som de gatos miando e arranhando o ar.
- Isso não é engraçado - falei.
- Lógico que é - replicou Cody. - Além do mais, você não quer ajudar os outros? Onde está o seu senso de bondade e caridade?
- Acho que o matei quando, sabe, vendi minha alma para o inferno.
Peter desdenhou com a mão. - São apenas detalhes. Agora é o momento de deixar de lado a animosidade e as rivalidades insignificantes. Você precisa assumir o espírito
de final de ano. Acredito que ainda nem montou sua árvore de Natal.
- Não vou montar uma árvore este ano.
O sorriso sumiu do rosto de Peter. - Como assim?
- Ah, merda. Agora ferrou - falou Hugh. - Já tive de ouvir esse sermão antes, por não montar uma também.
- Você é pão-duro - disse-lhe Peter, ainda olhando para mim. - Ninguém espera esse tipo de aclamação festiva de você. Mas, Georgina... você não tinha uma árvore
de Natal no ano passado?
- Sim. Alguém a queimou. Na minha festa de Natal regada a martíni.
- Eu estava lá - falou Peter. - Não me lembro disso.
- Você estava bêbado. Já tinha desmaiado.
- Que tipo de idiota queima uma árvore de Natal?
Hugh e eu nos olhamos. - Eis uma excelente pergunta - respondi, seca.
Peter parecia surpreso. - Foi você? - perguntou a Hugh.
- Não - respondeu o demônio. - Foi Carter.
- Sua árvore de Natal foi queimada por um anjo? - perguntou Cody. Ele não participou de nossas reuniões em dezembro passado, e assim tudo isso era novidade para
ele. E a Peter, pelo que parecia, também.
- Pois é. Por mais irônico que pareça - falei. - O cinzeiro dele estava muito próximo de um ramo da árvore.
- Bem, acho que ele te fez um favor - disse Hugh. - Você poderia comprar uma de plástico agora. São mais fáceis de cuidar. Não é necessário regar. Não junta bichinhos.
Além disso, é possível escolher uma que combine com sua decoração. Notou que a de Peter está “verde-oceano irritado”?
Peter suspirou. - É “verde-mar saturado”.
Acompanhei seus olhares até a monstruosa árvore de Natal de Peter. Três metros de folhas perfeitas drapejadas com enfeites dourados e ornamentos de vidro vermelho.
Tudo ali combinava. Na verdade, de repente me dei conta de que combinava com a roupa de Peter. A árvore parecia um modelo de vitrina de uma loja de departamentos.
O verde na estrela multicolorida e espalhafatosa no topo parecia realçar o azul no “verde-mar saturado”.
- Pelo menos, você não colocou um anjinho em cima - falei. - Pois isso teria sido um tanto estranho. E correria o risco de pegar fogo.
- Brinque quanto quiser - disse o vampiro -, mas você precisa ter uma árvore de Natal. Ah, sim... e ainda precisa sortear um nome para o amigo- -secreto.
Resmunguei. - Vamos fazer isso de novo?
- Deixe-me pegar a xícara - falou, correndo para a outra ponta da cozinha.
Olhei para os outros dois. - Um vampiro obcecado pelo Natal. Deve ser a coisa mais maluca de que já ouvi falar.
- Não é mais estranho do que um anjo queimando uma árvore de Natal - replicou Cody.
Peter retornou com uma caneca de renas com alguns pedacinhos de papel dentro. Apontou para mim. - Não sobraram muitos. Pegue um.
Peguei um papelzinho e o abri. Carter.
- Filho da puta - praguejei. - Odeio o Natal.
- Não odeia, não - falou Peter. - Você precisa comprar uma árvore. Isso vai te deixar melhor.
Afastei meu olhar da estrela, e observei Tawny e Niphon. - Na verdade, preciso é sair daqui - falei para eles, colocando o copo no balcão.
Despedi-me de todos e tive de aturar mais gozações a respeito da minha nova função de tutora. Ao me encaminhar para a porta, entreouvi Jerome dizendo para Grace:
- ... mas ficarei fora por alguns dias.
De repente, lembrei-me que precisava perguntar-lhe uma coisa. - Ei, Jerome.
Ele virou-se da demônia para mim, com um olhar impaciente. Utilizando o menor número de palavras possível, contei que tinha acordado sem a energia que havia roubado
na noite anterior. Jerome escutou, parecendo entediado.
- O que você fez na noite passada? Metamorfoseou-se sem parar? Lançou foguetes? Musculação pesada?
Não precisava que ele enumerasse para mim coisas que esgotariam minha energia. - Não fiz nada disso. Apenas dormi. Contudo, tive sonhos.
- Sonhos tiram a energia apenas de humanos, não de nós - afirmou secamente. - São eles que mantêm o inferno ativo.
Ao ver minha expressão, suspirou. - Não deve ser nada, Georgie. A exaustão mental faz isso com as pessoas. Você deve ter passado a noite lutando inconscientemente
contra a tentação sexual.
Não gostei daquela resposta petulante, mas não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Saí da reunião, dirigindo a uma velocidade bastante razoável para a hora.
Assim que cheguei em casa, joguei aquele manual ridículo no chão, o que causou um estrondo estremecedor, e até meu gato Aubrey ergueu o rabo.
- Desculpe-me - murmurei, afagando sua cabecinha preta, tentando consolá-lo.
Andando lentamente para o quarto, telefonei para Seth pelo celular.
- Oi - atendeu.
- Oi. Você precisa vir aqui hoje à noite.
Silêncio. - Bem, é possível, mas...
- Ora, vamos! Você não vai acreditar no que me aconteceu. Temos um novo súcubo.
Novo silêncio. - Não sei muito bem o que dizer quanto a isso.
- Não precisa dizer nada, apenas venha para cá. Preciso de você.
- Thetis... estou bem perto do fim. Faltam apenas quatro capítulos. E tive uma inspiração enquanto tomávamos café da manhã.
Resmunguei. Cady e O’Neill haviam me derrotado novamente. Antes de conhecer Seth pessoalmente, eu o considerava, à distância, um gênio da literatura; li várias vezes
seus romances. Mas agora conhecia a realidade obscura de ser a namorada de um autor de best-sellers.
Ao escutar meu silêncio, ele completou, contrariado. - Bem, quero dizer, se você precisa muito de mim.
- Não, não. Não se preocupe. Está tudo bem.
- Sua voz não é a de quem está bem. Sei como são as mulheres. Você diz isso, mas aí guarda rancor de mim para sempre. Literalmente.
- Não, sério. Está tudo bem. De qualquer forma, vou te ver amanhã. Além disso, assim que tirar este vestido, vou desmaiar. - Não estava a fim de ficar discutindo.
- Você está usando um vestido?
- Sim.
- Mas não estava usando mais cedo. Como ele é?
Comecei a rir. - Ah, está tentando fazer sexo por telefone comigo?
- Sexo por telefone? Nem pensar. Nem tivemos ainda um primeiro encontro por telefone.
- Ah, é bem simples. Sabe, eu te digo que o vestido é bem decotado e que não estou usando nada por baixo. Aí você fala que vai se aproximar, arrancá-lo e acariciar
meus...
- Ah, meu Deus. Não. Pode parar com isso.
Típico de Seth. Conseguia escrever cenas de sexo que faziam as páginas arder ou diálogos que impressionavam até a mim. Mas bastava pedir que usasse aquelas expressões
em voz alta, e ele engasgava. Era muito tímido, tinha medo de grandes grupos, sentindo-se mais confortável se não fosse notado. Eu compreendia, mas às vezes tinha
dificuldades para aceitar, já que para mim era comum ser o centro das atenções. Gostava de acreditar que ele melhorara muito desde que começamos a namorar, mas havia
muito a ser feito ainda.
- Exige um pouco de prática. Ora, vou te ajudar. Imagine a cena: estou de joelhos, lentamente abrindo seu cinto...
- Está bem, veja: se quer realmente seguir em frente, poderíamos, sabe, ligar o computador e conectar no MSN...
- Ah, caramba. Vá trabalhar no seu livro.
Desliguei e sentei-me na cama. Meu bom Deus. Meu fim de semana mudara totalmente de rumo. Querendo ou não, sabia que era questão de tempo para vir um novo súcubo
para cá. Seattle crescera de maneira significativa nos últimos anos, e eu não podia fazer nada. Mas um súcubo iniciante? Que eu precisava treinar? Se não soubesse
que tais decisões administrativas não dependiam dele, poderia acusar Jerome de o fazer de propósito. Era típico do senso de humor dele. Por que não trazer uma profissional
antissocial que cumprisse suas tarefas sem nunca interagir comigo?
E Niphon... ora, aquilo foi o golpe de misericórdia. Não gosto que me lembrem de meu passado, e eu não gostava dele. Algo me dizia que ele ia aprontar alguma para
mim, mas não conseguia entender por quê. Ele adquirira minha alma e recrutara meus serviços eternos. Que mais queria? Espere e veja, sussurrava uma voz em minha
cabeça. Senti um calafrio. O primeiro ataque de Tawny precisava demorar um pouco.
De repente, havia perdido a vontade de desmaiar. Queria sair. Não atrás de uma vítima... apenas, bem, sair. Paquerar um pouco. Talvez aliviasse um pouco minhas preocupações.
Fui até o Cellar, um boteco da moda para imortais da região. Depois da festa de apresentação de Tawny naquela noite, duvidava que alguém que eu conhecesse estivesse
ali. Um pouco de tempo sozinha me faria bem. Porém, ao entrar no bar lotado e passar por clientes bebendo e sorrindo, senti um frio percorrer meus sentidos imortais.
E me fez pensar em cristal e ozônio.
Após vasculhar o local com os olhos, acabei encontrando Carter sentado, na outra ponta do salão, a uma mesa redonda. O anjo mais poderoso de Seattle - aquele que
queimara minha árvore de Natal - também sentira minha presença e cumprimentou-me com um sorrisinho. Apesar de, logicamente, não ter participado da reunião de equipe
do inferno, ele costumava sair com minha panelinha. No início estranhei, mas com o tempo comecei a vê-lo como alguém presente em minha vida, embora estranho e malvestido.
Mais assustador do que vê-lo ali naquela noite, contudo, eram suas companhias. Três anjos e um humano - todos desconhecidos para mim. Ficaram me olhando, demonstrando
curiosidade e - por parte de um deles - desprezo pela minha presença. Que se dane. Não me importava com seu desprezo. Não seria um bando de anjos que me incomodaria,
depois de tudo o que me acontecera naquele dia. A companhia de Carter, de fato, pareceu-me estranha; nunca soube que trabalhava com outros. Uma curiosidade crescia
dentro de mim, querendo saber por qual motivo estavam ali reunidos - ainda mais com um humano.
Ao notar meu escrutínio, Carter piscou e fez um gesto convidando-me a me juntar a eles, para surpresa de dois anjos. Acenei com a cabeça agradecendo, mas primeiro
parei no bar e peguei um gimlet de vodca.
Um minuto depois, quando me aproximei, assumi uma postura de atrevimento, típica de súcubos, e sentei-me ao lado de Carter.
- Ora, ora - falei. - Parece que é o final de semana de calouros. Estamos todos recebendo convidados, não?
- Pelo que ouvi, sim - falou. Correu a mão por seu cabelo loiro, que ia até a altura do queixo. A não ser que eu estivesse enganada, fazia seis meses que não o lavava.
Esses convidados devem ser importantes. - Também ouvi dizer que uma de vocês ficou mais permanente.
Fechei a cara. - Não quero falar sobre isso, se não se importar.
- Podemos esperar uma briga de mulheres em breve?
- Essa piada já está tão batida. Me apresenta para os seus amigos?
Isso fez um dos anjos sorrir. Era bem bronzeada e tinha cabelos pretos, que brilhavam como seda. Um brilho de alegria surgiu em seus olhos quando estendeu uma mão
para mim.
- Yasmine. E você é Georgina.
Acenei com a cabeça, sem conter o sorriso. O sorriso dela era repleto de carinho e alegria. Talvez alguns anjos não fossem tão ruins. Além disso, fiquei feliz também
porque seus companheiros pareciam menos empolgados em se apresentar.
- Meu nome é Whitney - disse lentamente outra, uma bonita mulher negra, cujo cabelo consistia numa miríade de trancinhas. Vestia-se com um senso de moda que se aproximava
de meus padrões, e usava óculos de gatinho que a deixavam ao mesmo tempo bonita e com um ar inteligente. Demorou um pouco para me cumprimentar, mas o fez.
Olhei para o último anjo. Tinha cabelo castanho-escuro e olhos azuis, em um rosto comprido e fino. Seus olhos expressavam clara censura e uma frieza altiva. Agora
sim: esse era o comportamento que eu associava a anjos. Por um instante, acreditei que ele não falaria nada. Mas então, com afetação, falou:
- Meu nome é Joel. - Porém não me estendeu a mão.
Voltei-me para o humano. Ele sorriu quase com o mesmo entusiasmo de Yasmine e afastou seu cabelo escuro e comprido dos olhos. - Vincent Damiani. Prazer em conhecê-la.
- O prazer é meu. - Lancei para Carter um olhar malicioso. - E, todo esse tempo, nunca imaginei que você tivesse amigos.
- Não tire conclusões precipitadas, Filha de Lilith. - Ele bebericou um gole do que parecia ser uísque caubói. - Estão aqui a negócios.
- Aah, negócios ultrassecretos de anjos, então? O que irão fazer? Dançar em cabeças de alfinetes? Lobby pelo Dia Nacional do Cachorrinho Bonitinho?
O olhar já frio de Joel ficou pelo menos dez graus mais gelado. - Como se fôssemos discutir nossos assuntos com uma sombria sedutora do mal.
Yasmine deu-lhe uma cotovelada e girou os olhos. - Ela está brincando.
- É isso que ela quer que você pense - alertou, preocupado. - Eu, pelo menos, não vou baixar a guarda enquanto ela tenta usar seus capciosos e sinistros poderes
de sedução em nós.
Fixei o olhar nele, com um sorriso demorado e lânguido, e encostei-me na cadeira, cruzando as pernas de forma que minha saia subisse por minhas coxas. - Querido,
se eu estivesse usando meus capciosos e sinistros poderes de sedução, você seria o primeiro a saber.
Um rubor surgiu-lhe nas bochechas. Fixou o olhar em Carter. - Não sei o que você pensa que está fazendo, mas é melhor se livrar dela.
Carter seguiu inabalado. - Ela é inofensiva, a não ser que você seja um deus inebriante ou um nefilim. Ou um escritor introvertido.
Yasmine encolheu-se, seu semblante carinhoso ficou sério. - Não faça piadas com nefilins.
- Na verdade - continuou Carter, sem se importar -, ela poderia resolver aquele probleminha de logística. Georgina, acho que você não se importa de ser uma anfitriã,
não é? Vincent precisa de um lugar para ficar enquanto estiver na cidade.
Ergui uma sobrancelha, surpresa. Precipitando-se sobre meu silêncio, Vincent completou apressadamente: - Tudo bem se não quiser. Quero dizer, você nem me conhece.
Entendo que possa ser algo estranho.
- Não sei - disse-lhe, ainda mais curiosa quanto às intenções daquele grupo estranho. - Se os anjos te dão um voto de confiança... bem, não há recomendação melhor
que essa. Se não se importar em dormir no sofá, não me importo.
- Você é uma pérola entre os súcubos - declarou Carter.
Joel quase engasgou com a bebida. Por sua atitude filha da puta, duvidava que fosse algo alcoólico. Devia ser Kool-Aid ou Pepsi. Ou pior, Diet Pepsi.
- Você está louco? - perguntou. - Ela é um súcubo. Não pode submetê- -lo a isso. Pense na alma dele.
- Ela não dá a mínima para rapazes gentis - disse Carter. - Sério. Não correrá nenhum risco.
Yasmine olhou para Vincent com uma expressão zombeteira. - Mas ele não é tão gentil.
- Carter... - começou Joel.
- Já lhe disse: ela é legal. Deixa rolar. Você tem minha palavra. Além disso, ela não ficará fazendo perguntas, e isso dará a ele um lugar acessível para ficar enquanto
vocês fazem a busca.
Concentrei-me na palavra “busca”. Agora, sim. - O que vocês estão procurando?
A resposta foi um silêncio mortal. Whitney cruzou os braços. Vincent deu um gole em sua bebida.
- Está bem, saquei. - Bebi o gimlet num gole só. - Já entendi. Bico calado. Segredinho.
O sorriso fácil de Yasmine reapareceu. - Eu a adorei, Carter. Agora entendo por que você gosta dela.
E começou a falar sobre outro súcubo que conhecera em Boston, mudando de assunto com a mesma habilidade de Carter para isso. Carter adivinhou o que eu estava pensando,
encarou-me e sorriu. Girei os olhos, incomodada.
Contudo, conforme a noite passou, passei a gostar muito de Yasmine. Ela, Vincent e Carter conduziam a conversa na maior parte do tempo, e, apesar de anjos não serem
tão divertidos quanto os meus outros amigos, achei este grupo de certa forma divertido. Xingavam e bebiam muito menos, mas, bem, ninguém é perfeito.
Quando o bar fechou, levei Vincent comigo, mas não antes de Joel alertar sobre a santidade de alma humana. Vincent o escutou com paciência, concordando com a cabeça
de vez em quando.
- Ele é sempre assim? - perguntei, no caminho para casa.
Vincent gargalhou. - É inerente a ele. Mas não faz por mal. Está apenas preocupado comigo.
- Você está preocupado?
- Não. Você é muito bonita, mas, não, não estou preocupado. Já estou apaixonado por outra pessoa.
Pensei em brincar, dizendo que não havia como se proteger, que eu já seduzira muitos homens que acreditavam estar apaixonados, mas algo em sua voz interrompeu minha
gozação. A forma como ele falava indicava que estar apaixonado era, na verdade, uma proteção contra mim e todos os outros demônios do mundo. Falava como alguém invencível.
De repente, senti-me triste.
- Bom para você - respondi, com delicadeza.
Ele olhou-me de lado. - Você até que é legal para um súcubo.
- Legal o suficiente para me contar o que você e seus Superamigos vão fazer na cidade?
Um sorriso surgiu em seu rosto. - Não.
Já em casa, acomodei-o no sofá, produzindo pilhas de cobertores para aquecê-lo. Na maior parte do tempo, mantinha meu apartamento numa temperatura agradável, mas
era dezembro, e a parte de mim que ainda se lembrava de precisar se aconchegar próxima a fogueirinhas no passado nunca achava haver cobertores suficientes.
Fui dormir logo, enfiada sob meu próprio estoque de cobertores. Dessa vez, não sonhei.
Capítulo 3
Após uma boa noite de sono, fui trabalhar na manhã seguinte sentindo-me um pouco mais otimista em relação à vida. Imaginei que Tawny devia ter conquistado algo na
noite passada, e que Niphon estava a caminho do aeroporto. Além disso, logo encontraria Seth, já que ele escolhera meu local de trabalho, Emerald City Books & Café,
como espaço de escrita. Sim, não seria um dia tão ruim.
Devido à gravidez complicada de minha ex-gerente, recentemente herdei seu cargo. Isso deixara vaga minha antiga função de gerente-assistente, e acabamos contratando
Maddie Sato, que, por acaso, era a irmã do Doug Sato - o outro gerente-assistente. Fora uma impressionante exibição de favorecimento, e Doug se irritou, queixando-se
de que eu tinha caído dez pontos em seu conceito. Parecia que Maddie já morava com ele. Viera visitá-lo após sua última internação e nunca mais foi embora. Ela tinha
um segundo emprego, como escritora freelancer em uma revista feminista, mas a Emerald City representava uma fonte de renda mais estável.
Eu gostava de Maddie. Era esperta e capacitada e tinha um senso de humor parecido com o meu. Atendia bem aos clientes e sempre era muito educada, muito profissional.
Por exemplo, cheguei a encontrá-la conversando animadamente com Seth sobre literatura e a atividade do escritor. Mas, em temas mais amistosos e interpessoais, suas
habilidades sociais eram um tanto escassas. Após uma discussão sobre literatura particularmente analítica, Seth fizera um comentário repentino sobre a infância dela,
e Maddie ficou paralisada. Vê-lo com alguém ainda mais socialmente inepto do que ele era divertido, mas de qualquer forma me incomodava a recaída de Maddie. Já fora
um progresso tirá-la da sua concha e fazê-la entender que é uma pessoa divertida. Entretanto, eu queria que todos percebessem isso também.
Hoje, encontrei-a no mezanino do café, sentada à mesa que Seth demarcara com seu laptop. Não parecia ser conversa sobre literatura, já que Doug estava com eles.
Pelo que vi, ele e Maddie estavam em uma discussão acalorada. Seth estava no meio deles, parecendo desesperado para ir a outro lugar. Ao me ver, lançou-me um olhar
de súplica. Propositadamente, peguei uma cadeira e sentei-me ao seu lado, forçando Doug a se afastar um pouco. Ninguém sabia que Seth e eu estávamos namorando, e
os Sato estavam tão entretidos com a discussão que nem pararam para pensar sobre a localização das cadeiras.
- O que está acontecendo? - perguntei. - Espero que o que esteja retendo toda a administração seja o futuro da loja. - As férias se aproximavam, e ultimamente as
coisas estavam ficando malucas por lá.
Maddie olhou-me envergonhada, lembrando-se de repente de seus deveres. Abriu a boca para falar, mas Doug a interrompeu.
- Minha ilustre irmã é uma puta insensível.
Maddie girou os olhos. - Ele está com umas ideias loucas a respeito de Beth.
Suspirei. - Vejam, se isso tem a ver com a época em que Beth usava polainas aqui...
- Nem me lembre disso - resmungou Doug.
- Meu ilustre irmão está com essa ideia louca de que Beth acabou de romper um namoro - explicou Maddie.
Ambos olharam para mim, esperando que eu resolvesse essa disputa. Estarrecida, fiquei olhando de um para o outro.
- Mas por que isso é louco?
- Porque ela está resfriada - disse Maddie. - Ela disse que está resfriada. É por isso que está fungando.
- Ela está fingindo o resfriado - exclamou Doug. - Que mundo doentio e maluco é esse em que um babaca como eu é o único capaz de notar um coração destruído? Pelo
amor de Deus, os olhos dela estão vermelhos.
- Resfriado - repetiu Maddie, com resolução. Pensou um pouco. - Ou talvez esteja com um ataque alérgico.
- Em dezembro?
Os dois seguiram discutindo. Ao meu lado, Seth se esforçava - sem sucesso - para não rir. Notei que seus lábios se curvavam em um sorriso, admirando sua forma e
lembrando-me do gosto deles. Retornei minha atenção aos irmãos, curtindo o espetáculo. Por fim, uns cinco minutos depois, lembrei-me de que tinha um cargo de autoridade,
não era uma funcionariazinha qualquer.
- Mas qual é o problema disso? - perguntei.
- Ela está errada - falou Doug. - Estou apenas tentando provar isso.
Maddie suspirou. - Você parece criança.
- Não pareço - respondeu e deu um soco no braço dela.
- Está bem, chega. - Apontei para Doug. - Você, vá para o caixa.
- Apontei para Maddie. - Você, para a minha sala.
- Ah... você está frita - disse-lhe Doug.
- Vou ensiná-la a tirar pedidos - murmurei.
Os olhos de Maddie brilharam, empolgados, covinhas surgiram em suas bochechas redondas. Ela adorava funções novas.
- Favorecendo mulheres... - disse Doug. - Você gosta mais dela do que de mim, não? Tudo bem. Pode me dizer. Eu aguento.
- Vão lá para baixo. Vocês dois. Desço em um segundo.
Fiquei olhando para Seth quando saíram. - É por isso que não tenho filhos - falei. Logicamente, não era bem essa a verdade. Não mesmo. Filhos simplesmente não faziam
parte da vida de súcubos.
- Embora... ache que Doug está certo - refleti. - Por mais louco que pareça. Vi Beth enquanto vinha para cá.
Seth sorriu. - Maddie escreve bem e é muito inteligente, mas é meio cega em relação a outras pessoas.
Olhei-o com ironia. - Achava que isso valesse para todos os escritores.
- Uns são piores.
- Incrível. Você dirigiu com ela ao seu lado por um bom tempo... quatro horas? Sobre o que conversaram?
- Literatura.
Suspirei. - Queria que ela relaxasse quando estivesse com outras pessoas que não fossem Doug e eu. Ela é hilária. Veio com uma ideia idiota de sujar o carro de Doug
depois que ele disse que Betty Friedan estava com TPM ao escrever A mística feminina.
- Não sei se “hilária” é o termo correto; acho que prefiro “assustadora”. Além do mais, essa ideia foi sua - lembrou-me. - Você duas são perigosas. Essa coisa de
roubar almas que você faz parece brincadeira de criança em comparação com as tramoias suas e de Maddie.
Dei um sorriso. Era verdade. Nos últimos séculos, não tinha ficado muito tempo ao lado de mulheres, e percebi que estava defasada. - Você não percebe, mas, inepta
socialmente ou não, ela é a melhor coisa que me aconteceu nos últimos tempos.
- É?
- Bem, excluindo-se a presente companhia, é lógico.
- Claro. Se você diz...
- Ei. - Estava prestes a pegar-lhe a mão, quando lembrei que estávamos em público. - Não há concorrência. Você cozinha melhor. E beija melhor.
- Não sabia que você a tinha beijado.
- Ora, você sabe quanto gosto de escritores.
Meu sorriso esvaeceu um pouco enquanto minha mente ia para outros pensamentos. Fiquei pensando a manhã toda na minha perda de energia, principalmente porque teria
de buscar uma presa hoje à noite ou, no máximo, amanhã. Jerome tinha menosprezado o acontecimento, mas eu não podia ignorar. Decidi, então, que iria visitar meu
amigo Erik Lancaster, a fonte mortal de ciências ocultas de Seattle. Na maior parte do tempo, ele parecia saber mais do que meus colegas.
Estendi o convite a Seth, e ele concordou em ir comigo. Fiquei feliz. Sempre achei que podia lhe fazer bem conversar com outro humano que estudasse regularmente
o sobrenatural. Era a melhor oportunidade, e não podia ser desperdiçada.
Seth encontrou-me em minha casa quando saí do trabalho, e, antes de sairmos, fizemos um rápido jantar esquentado no micro-ondas. Enquanto descíamos as escadas do
meu prédio, ele voltou a me provocar a respeito de Maddie.
- Vocês ficaram um bom tempo trabalhando na sua sala. Tem certeza de que não estavam dando uns amassos?
- Não muito - garanti-lhe.
Ele riu e pegou minha mão. Puxei-o na minha direção. Nossos lábios formaram um beijo, e, quando o calor do seu corpo misturou-se ao meu, não tive mais nenhuma dúvida
sobre qual era a melhor coisa em minha vida. Após alguns instantes doces, nos separamos, mas nossa relutância desajeitou um pouco a execução da separação.
- Sim - disse a ele. - Ela definitivamente não beija tão bem quanto...
Interrompi a frase, fazendo uma careta ao ver Niphon vindo em nossa direção. Sua aura imortal era pegajosa e almiscarada. Afastei-me de Seth e olhei pela calçada
para o demônio que se aproximava. Ao me ver, acenou.
- Dê-me licença um instante - murmurei. Pulei o restante dos degraus e impedi que Niphon pudesse ser escutado por Seth. - O que você quer?
- Que violência, Letha - zombou. - Súcubos devem ser sempre charmosas e cordiais. - Ele olhava para atrás de mim. - É seu namorado humano? Posso conhecê-lo?
- Você pode sumir. Você devia estar de olho em Tawny.
- E tenho feito isso - falou, divertindo-se. - É por isso que vim te ver. Eu a segui na noite passada. Estava bem confiante em suas habilidades, mas acabou tendo
certa dificuldade para arranjar um parceiro. Coitadinha. Parece que vai levar mais tempo do que o esperado para conseguir se estabelecer. Felizmente, vou ficar com
ela até o fim.
Sua provocação entranhou-se em mim, era essa sua intenção. - É só isso que veio me dizer? Porque estou saindo agora. Preciso fazer algumas coisas.
- Claro, claro - sorriu, afetado. Apontou na direção de Seth. - Não pretendia interromper seu momento sensual, ainda que parecesse prestes a esfriar. - Um repentino
olhar de entendimento surgiu em seu rosto. - Você não dorme com ele, não é? Deve ter algum senso de nobreza quanto a absorver a vida dele. Pobre homem, coitado.
- Niphon riu. - Ah, Letha, você é uma das criaturas mais fascinantes que já conheci.
Dei as costas para ele e puxei Seth. - Venha, vamos embora.
- Quem era? - perguntou enquanto nos afastávamos.
- É um demônio. E um idiota.
A quase um quarteirão de distância, ainda podia sentir a risada zombeteira de Niphon. Tentei ignorá-la enquanto Seth e eu nos dirigíamos para o carro. Ouvir meus
amigos me provocando a respeito de Seth já era chato. Mas Niphon era insuportável. Felizmente me acalmei e Seth e eu fomos em frente. Concentrei-me em encontrar
Erik e torcer para que pudesse resolver o meu mistério.
Erik tinha uma loja em Lake City, chamada Arcana. Apesar de, infelizmente, ficar em uma pequena galeria, transmitia uma sensação acolhedora, aconchegante. A iluminação
fraca criava uma certa tranquilidade, e o borbulhar de pequenas fontes misturava-se aos sons suaves de um rádio que emitia música de harpa. Livros, joias, velas
e estátuas bagunçavam cada centímetro do lugar. O doce aroma de nag champa dominava o ar.
- Simpático - falou Seth, olhando a loja, ao entrarmos.
Erik ergueu a cabeça de onde ele estava, ajoelhado atrás de uma pilha de livros. Deixara crescer o bigode desde a última vez que o vi, e me agradava o modo como
seu cabelo grisalho era realçado por sua pele morena. Um sorriso gentil vicejou em seu rosto.
- Senhorita Kincaid, que prazer inesperado. E trouxe um amigo. - Ergueu-se e caminhou até nós, estendendo a mão para Seth.
- Erik, este é Seth Mortensen. Seth, Erik.
Cumprimentaram-se. - Prazer, senhor Mortensen. O senhor está em boa companhia.
- Sim - replicou Seth, também sorrindo. - Estou mesmo.
- Se estivermos com sorte - falei, com delicadeza -, Erik terá tempo para tomar um chá conosco. Ele só tem descafeinado, e isso deve te agradar.
- Claro que tenho tempo - disse Erik. - Duvido que haja algum homem que não tenha tempo para a senhorita.
Olhei com uma expressão provocadora para Seth quando Erik saiu para acender a chaleira. - Ah, eis uma pessoa que me aprecia. É impensável vê-lo me trocando por um
livro.
- Se a memória não me falha, você adora aqueles livros. Além disso, como poderia manter o estilo de vida com o qual você está acostumada?
- Se a memória não me falha, da última vez que saímos, eu paguei.
- Bem, sim. Estava apenas deixando-a bancar a liberal, para que você e Maddie vandalizassem o meu carro.
Quando nos reunimos diante da mesinha de canto de Erik para tomar o chá, fiquei surpresa ao ver Seth conversar com Erik sobre o que significava ser um mortal entre
imortais. Seth não costumava ser tão sociável, e fiquei pensando em quanto a esquisitice imortal o incomodava.
- Distorce totalmente o meu senso de tempo - observou Erik. - Vejo pessoas, como a senhorita Kincaid, que permanecem jovens e belas para sempre. Deixa-me com a sensação
de que o tempo não anda. Então olho para mim e vejo novas rugas. Sinto dores nos ossos. Dou-me conta de que serei abandonado... e eles seguirão moldando o mundo
sem mim. - Suspirou, mais por estupefação do que por tristeza. - Gostaria de poder prever o que vai acontecer.
- Sim - disse Seth, surpreendendo-me. Seus olhos pareciam escuros e solenes. - Sei o que quer dizer.
Olhei para ele, vendo algo que nunca tinha notado antes. Imaginava que ele pensasse no futuro e em sua própria morte - todos os mortais pensavam -, mas só agora
me dei conta de quanto ele realmente pensava nessas coisas. Observando os dois, lembrei-me de que eles iriam morrer, e isso gelou alguma coisa em meu peito. Com
o coração parado, consegui imaginar Seth enrugado e grisalho como Erik.
- Meio mórbidos vocês, hein? - perguntei, tentando parecer blasée. - Não vim aqui para entristecer todo mundo. Preciso do cérebro de Erik.
- Vá em frente - falou.
- Bem... o senhor sabe que preciso, er, de vida e energia para sobreviver, certo? - Uma afirmação idiota. Lógico que ele sabia. - Ontem de manhã, acordei e meu suprimento
tinha se esgotado.
Erik ficou pensativo. - Isso é normal, não? Diminui com o tempo.
- Mas não rápido assim. Principalmente porque... - parei de repente, percebendo que levar Seth ali pode não ter sido uma ideia tão boa - eu, hum, tinha acabado de
fazer recarga na noite passada.
Os rostos dos dois mantinham-se impassíveis. - E a senhorita não fez nada fora da rotina?
- Não, Jerome acha que foi cansaço mental. - Dei de ombros. - Não me lembro de estar tão cansada. Sonhei... um sonho estranho... mas nada cansativo.
- Os sonhos são poderosos - falou Erik. - E às vezes o cansaço pode tirar mais de nós do que imaginamos. Infelizmente, sei pouco sobre sonhos, mas... - Franziu o
cenho e, de repente, escondeu seu olhar.
- Mas o quê?
- Conheço uma pessoa que poderia ajudar. Especialista em sonhos.
- Quem? - Fiquei animada.
Erik demorou bastante para responder. Quando falou, não parecia feliz em dizer. - Alguém que poderia muito bem ser considerado demoníaco. Seu nome é Dante Moriarty.
Contive o riso. - Não pode ser seu nome verdadeiro.
- Não é, embora tenha certeza de que alguns demônios colegas seus o conheçam por outros nomes. É um charlatão... entre outras coisas. Ele se considera um feiticeiro
também.
- Lido com pessoas corrompidas o tempo todo - salientei. - Não me preocupo com isso.
- Verdade - concordou Erik. Ele ainda parecia perturbado, o que me causou estranheza. Embora não fosse do mal, costumava interagir comigo e com outros da minha laia
sem vacilar. Queria entender por que um humano o incomodava tanto. - Vou pegar o contato dele para a senhorita.
Foi buscar o cartão de Dante, e fiquei vasculhando a loja enquanto Seth foi ao banheiro nos fundos. Quando o encontrou, o velho lojista entregou-me o cartão.
- Gosto muito do senhor Mortensen.
- É. Eu também.
- Eu sei. Dá para perceber.
Ergui a cabeça, esperando que dissesse algo mais.
- Os senhores falam e interagem de uma maneira que talvez nem tenham consciência de o fazer. É como amantes costumam interagir... mas tem algo mais. Os senhores
demonstram uma percepção contínua um do outro, acho que mesmo quando não estão juntos. O ar fica aquecido entre os senhores.
Não sabia o que dizer. Ouvir aquilo foi bom - mas um tanto intimidador também.
- Não conheci outros do seu tipo que fossem como a senhorita. - Hesitou, e sua expressão, normalmente de sabedoria e competência, demonstrava incerteza. Era algo
raro nele. - Não sei no que isso vai dar.
Seth apareceu e percebeu que havia interrompido algo. Olhou para nós dois, e coloquei uma mão reconfortante em seu braço. - Vamos embora?
- Claro.
Sondei o resto do balcão de joias, mas sem dar muita atenção para o conteúdo. De repente, algo me atraiu e me debrucei sobre um estojo. - Erik, onde encontra essas
coisas?
Ele e Seth olharam por cima do meu ombro.
- Ah, sim - falou Erik. - Os anéis bizantinos. São do mesmo artista que fez o seu colar ankh.
- Que cuidado tem esse artista para detalhes, hein? São muito parecidos com os originais.
Ele circundou o balcão e ergueu a bandeja com os anéis. Retirei um. Era um anel simples de ouro. No topo, em vez de uma pedra preciosa qualquer, havia um disco liso
e plano, do tamanho de uma moeda de dez centavos. No metal, letras gregas gravadas.
- O que significam? - perguntou Seth.
Tentei explicar a tradição, há muito abandonada. - É uma bênção. Uma oração para o casal. Servia como uma aliança de casamento.
Examinei outro, com uma imagem de Cristo e da Virgem; e outro mostrava um homem e uma mulher minúsculos, um de frente para o outro.
- Tinha um anel bem parecido com este - falei, com delicadeza, virando- -o em minhas mãos. Nenhum deles disse nada, e, por fim, recoloquei-o na bandeja.
No caminho de volta, Seth perguntou: - O que aconteceu com o seu anel?
Fiquei encarando a janela. - Nada de mais.
- Conte-me.
Não respondi, e ele não me perguntou novamente. Quando chegamos em casa, não vi sinal de Vincent, e concluí que ele tinha saído para investigar com os anjos. Havia
jornais espalhados na mesa da cozinha; aparentemente, ele gostava de estar bem informado. Sobre eventos mórbidos, por assim dizer. Uma das manchetes era uma história,
que fiquei sabendo outro dia, sobre um maluco que tinha matado a esposa depois de ter uma visão em que a via com outro homem. Os mortais, às vezes, faziam coisas
arrepiantes. Na verdade, muitas vezes.
Seth sentou-se no sofá e inclinou-se para a frente, com as mãos juntas. Senti sua mudança de humor quando não respondi no carro.
- Thetis...
- Você quer que eu conte sobre o anel.
- O anel não importa muito. É que... bem, já vi você ficar assim. Tem uma coisa que a incomoda, algo no passado. Mas você não fala comigo sobre o assunto. Há dias
em que minha sensação é de que você não me conta nada.
Sentei ao seu lado, evitando contato visual, da mesma maneira que ele fazia com frequência. - Eu te conto muita coisa.
- Mas não sobre o seu passado.
- Tenho um passado enorme, e falo sobre ele o tempo todo.
- Sim... acho que sim. - Fez um carinho distraído em meu braço. - Mas não fala nada sobre seu passado mortal. Antes de você se tornar um súcubo.
- E daí? Que diferença faz? Você está comigo agora. Você sabe o tipo de pessoa que sou agora.
- Sei, sim. E amo essa pessoa. E quero saber o que é importante para você. O que a transformou nessa pessoa. Quero saber o que a magoa, para que eu possa ajudá-la.
- Você não precisa saber isso para saber quem sou. Meu passado humano não acrescenta nada - falei, com firmeza.
- Não acredito.
Mais uma vez, me calei.
- Não sei nada sobre essa parte da sua vida - continuou. - Não sei seu nome verdadeiro. Qual sua aparência. Onde você cresceu. Nem sei sua idade.
- Ei, não sou a única aqui. Há um monte de coisas sobre as quais você não fala também - comentei, tentando desviar a atenção.
- O que você quer saber?
- Bem... - Tentei lembrar alguma coisa sobre a qual não sabia muito.
- Você nunca fala sobre seu pai. Como ele morreu.
Seth respondeu de pronto, sem hesitar. - Não há muito a dizer. Câncer. Eu tinha treze anos. De acordo com um terapeuta que minha mãe nos fazia visitar, para lidar
com isso, recolhi-me a um mundo de fantasias.
Encostei minha cabeça em seu ombro, ciente de que ele exporia qualquer coisa que eu quisesse saber - do modo Seth de ser, bem desanimado. Era algo irônico, levando-se
em consideração sua reticência para conversar, mas era assim que ele funcionava. Acreditava que relacionamentos exigiam honestidade mútua e almas desnudas. Acho
que ele estava certo, mas havia muitas partes obscuras de minha alma que eu não queria compartilhar. Partes que eu temia que fossem assustá-lo.
Conhecia Seth o suficiente para saber que não iria insistir mais no assunto naquela noite, mas também conseguia sentir sua mágoa e desapontamento. Não fizera aquelas
perguntas para me chatear; perguntou por realmente gostar de mim. Mas, infelizmente, isso não facilitava as coisas, e lutei contra minha angústia e dor já entranhada
para oferecer-lhe algo. Qualquer coisa. Qualquer coisa para provar que eu me esforçava por aquele relacionamento. Meu rosto e nome originais morreram para mim, lembranças
obsoletas da mulher que deixei para trás, embora Niphon insistisse em me chamar de Letha. São coisas que Seth nunca ficaria sabendo.
Ficamos sentados, juntos, por um bom tempo, enquanto eu decidia o que lhe contaria. Por fim, com um nó na garganta, falei: - Nasci no Chipre. - O ar ficou tenso,
e ambos aguardávamos mais. - No começo do século V. Não sei com precisão em que ano. Não costumávamos registrar esse tipo de coisa.
Exalou. Eu não havia percebido que ele estava prendendo a respiração. Lenta e cuidadosamente, colocou um braço ao meu redor e encostou seus lábios em meu cabelo.
- Obrigado.
Enterrei meu rosto em seu ombro, sem entender do que me escondia. Dera-lhe quase nada - só umas trivialidades. No entanto, ceder aquele pedacinho de um espaço em
mim que eu tanto queria esconder teve uma força incrível. Senti-me exposta e vulnerável, sem entender muito bem por quê. Seth gentilmente acariciava meu cabelo.
- O anel é mais ou menos daquela época? - perguntou.
Confirmei com a cabeça.
- Acho que devia ter um valor enorme, então.
- Eu o perdi - sussurrei.
Ele deve ter notado a angústia em minha voz. Abraçou-me com mais força. - Sinto muito.
Naquela noite, ficamos ali mais um tempo, mas eu sabia que ele queria voltar para casa e trabalhar. Como não queria atrapalhá-lo, expulsei-o de lá, ainda que tivesse
um pressentimento de que, se eu pedisse, ele teria ficado.
Depois que ele saiu, fui para meu quarto e fechei a porta. Ajoelhada diante do armário, retirei todas as caixas, jogando-as pelo quarto. Faltava alguma coisa em
minha organização - como, por exemplo, organização -, e demorou um bom tempo para examinar aquele lixo todo. Por fim, encontrei uma caixa de sapatos coberta de pó.
Ao abri-la, perdi o fôlego. Cartas velhas e amarronzadas empilhadas com fotografias. Uma pesada cruz dourada com uma corrente desgastada no meio da papelada, além
de outros pequenos tesouros. Vasculhei com cuidado até encontrar o que queria: um anel de bronze, esverdeado pelo tempo.
Segurei-o entre minhas mãos, ainda conseguindo discernir o casal gravado no topo do disco. Era uma peça grosseira, mas muito semelhante às versões modernas de Erik.
Sem pensar no que fazia, passei meus dedos pelas bordas do anel. Até tentei colocar no dedo, mas não coube. Fora feito para dedos maiores do que os que tenho agora.
Preferi não me metamorfosear para o tamanho certo.
Segurei o anel por mais alguns minutos, pensando em Seth, Chipre e tudo o mais. Por fim, não conseguindo suportar a dor dentro de mim, coloquei o anel de volta na
caixa e enterrei-a novamente no armário.
Capítulo 4
o dia seguinte, fui ao endereço indicado no cartão de Dante. Ficava em Rainier Valley, que não era muito perto, mas também não era muito longe. As coordenadas levavam
a uma pequena loja enfiada entre uma barbearia e uma sombria loja de conveniências. Na janela, em neon vermelho, lia-se médium. A letra “U” estava queimada. Embaixo,
uma placa escrita a mão indicava: quiromancia e tarô.
Cheguei à porta e toquei a campainha. O interior era tão feio quanto o lado de fora. Um balcão estreito numa parede. O restante daquele espaço pequeno e desolado
estava vazio, com exceção de uma mesa redonda coberta de veludo vermelho com queimaduras de cigarro. Sobre ela, havia uma bola de cristal grudenta. Aquele espaço
parecia devastado, bem diferente da loja acolhedora e convidativa de Erik.
- Só um minuto - ouviu-se uma voz vinda dos fundos. - Só preciso...
Um homem entrou na sala e parou assim que me viu. Tinha mais ou menos 1,80 metro, cabelo preto preso num rabo de cavalo. Uma barba de dois dias cobria seu rosto,
e usava jeans e camiseta preta. Parecia ter quarenta anos, e era muito bonito. Observou-me dos pés a cabeça e me ofereceu um sorriso convencido, dissimulado.
- Ora, ora, o que temos aqui? - Inclinou a cabeça, ainda me estudando. - Com certeza não é humana. Demônio? Não, não é muito forte. Vampira? Não... a essa hora do
dia, não.
- Eu... - Parei, surpresa por ele ter sentido algo em mim. Ele não possuía nenhuma assinatura imortal; era definitivamente humano. Concluí que era como Erik. Um
mortal que conseguia sentir o mundo imortal, apesar de não ter habilidade suficiente para me definir. Decidi que não havia por que enrolar. - Sou um súcubo.
Fez que não com a cabeça. - Não, não é.
- Sim, sou, sim.
- Não é.
Fiquei surpresa por ter essa discussão. - Sou, sim.
- Não. Súcubos têm olhos flamejantes e asas de morcego. Todo mundo sabe isso. Não usam jeans e suéter. No mínimo, seus seios deveriam ser maiores. Qual é o tamanho:
34B mais ou menos?
- C - respondi, irritada.
- Se você diz.
- Veja, sou, sim, um súcubo. Posso provar. - Metamorfoseei-me em diversas variações femininas até retornar à minha forma usual. - Agora acredita?
- Puxa!
Tive a impressão de que ele estava brincando comigo. - Você é Dante?
- Por enquanto... - Aproximou-se e me cumprimentou, segurando minha mão. Virou-a para olhar minha palma. - Veio aqui para que eu leia sua mão? Vou mostrar-lhe como
metamorfosear sua mão de modo a garantir um bom futuro.
Puxei minha mão de volta. - Não, obrigada. Vim aqui porque tenho umas perguntas... perguntas que Erik Lancaster achou que você conseguiria responder.
O sorriso de Dante desapareceu. Girou os olhos e caminhou até o balcão. - Ah, foi ele.
- O que quer dizer com isso? Erik é meu amigo.
Dante encostou as costas no balcão e cruzou os braços. - Claro que é seu amigo. Ele é amigo de todo mundo. Porra de escoteiro. Se não fosse tão certinho e tivesse
vindo trabalhar comigo, poderia ter ganho uma fortuna.
Lembrei-me de Erik ter comentado que Dante era um charlatão, uma pessoa demoníaca. Não notei nenhuma vibração maléfica nele, mas havia uma abrasividade em sua atitude
que tornava plausível a avaliação de Erik.
- Erik tem consciência - alertei.
Dante gargalhou. - Ah, que ótimo. Um súcubo certinho. Isso vai ser divertido.
- Olha, poderia apenas responder as minhas perguntas? Não vai demorar.
- Claro - respondeu. - Tenho tempo, pelo menos até a próxima enxurrada de clientes. - O tom feroz de sua voz, enquanto apontava para a sala vazia, indicava que fazia
muito tempo que não havia uma enxurrada de clientes.
- Tive um sonho na noite passada - contei. - E, quando acordei, toda a minha energia tinha se esgotado.
- Você é um súcubo. Supostamente. Esse tipo de coisa acontece.
- Gostaria que todo mundo parasse de dizer isso! Não foi normal. E estive com um homem na noite anterior. Estava carregada, por assim dizer.
- Fez algo depois que teria esgotado sua energia?
Todo mundo perguntava isso também. - Não. Apenas fui dormir. Mas o sonho... foi muito estranho. Não sei explicar. Real demais. Nunca tinha sentido nada assim.
- Era sobre o quê?
- Uma, er, máquina de lavar louça.
Dante suspirou. - Alguém pagou para você vir aqui tirar sarro de mim?
Ainda que irritada, contei-lhe meu sonho.
- Só isso? - perguntou quando acabei.
- Sim.
- Sonho mais besta.
- Sabe o que ele significa?
- Provavelmente que você precisa consertar sua máquina de lavar louças.
- Mas não está quebrada!
Ele se endireitou. - Desculpe-me, mas não posso te ajudar.
- Erik disse que era sua especialidade.
- Suponho que seja mesmo. Mas, às vezes, um sonho é apenas um sonho. Tem certeza de que não quer eu leia a sua mão? É besteira pura, mas pelo menos posso inventar
algo para que você não sinta que perdeu a viagem.
- Não, quero entender a porra do meu sonho. Como pode ser apenas um sonho se acordei sem nenhuma energia?
Dante andou até mim e tirou um fio de cabelo de seu rosto. - Não sei. Você não me deu material suficiente para trabalhar. Quantas vezes aconteceu?
- Apenas essa vez.
- Querida, então deve ter sido apenas uma coincidência.
Voltei-me para a porta. - Bem, obrigada pela “ajuda”.
Apressando-se em minha direção, Dante pegou meu braço. - Ei, espere. Quer beber alguma coisa?
- Eu... o quê?
- Vou arriscar perder uma leva de clientes, mas posso fechar a loja por hoje. Há um bar excelente ali na esquina. Chope Budweiser, um dólar o caneco durante a happy
hour. Por minha conta.
Não contive o riso. Não sabia o que era mais absurdo: Dante acreditar que eu sairia com ele ou achar que eu beberia Budweiser. Sua beleza física não era suficiente
para compensar sua personalidade estranha.
- Desculpe-me, mas sou comprometida.
- Não pretendo ser seu namorado. Ficaria feliz com um sexo casual.
Encarei-o. Seus olhos eram cinza, parecidos com o de Carter, mas sem o tom prateado. Imaginei que estivesse brincando, mas, apesar do sorriso perpétuo, Dante parecia
estar falando sério.
- Por que diabos você acredita que eu faria sexo com você? Pareço fácil?
- Você disse que é um súcubo. Ou seja, por definição, é fácil. E, mesmo sem as asas de morcego e os olhos flamejantes, é muito bonita.
- Sua alma não te preocupa? - Mesmo sendo corrompido, como Erik insinuara, e eu ainda não estava convencida disso, Dante sofreria um golpe se dormisse comigo. Todos
os mortais sofriam. Claro, havia conhecido muitos homens, bons e maus, que se dispunham a arriscar a alma em troca de sexo.
- Não, minha alma já deixou de existir há muito. Seria apenas por diversão. Veja, se quiser pular a cerveja, podemos ir direto para o sexo. Sempre quis transar naquela
mesa.
- Inacreditável! - Abri a porta com tudo.
- Ora, vamos lá - implorou. - Sou um bom parceiro. E, ei, talvez seja o fraco desempenho sexual de seu namorado que a esteja estressando e esgotando sua energia.
- Improvável - disse-lhe. - Não fazemos sexo.
Fez-se um instante de silêncio, e então Dante jogou a cabeça para trás e gargalhou. - Já lhe passou pela cabeça que talvez seja isso que a está estressando? Fica
claro, agora, que a máquina de lavar louças é uma metáfora para sua vida sexual falida, que a força a lavar pratos “com a mão”.
Saí em direção à livraria, onde certamente seria mais respeitada. Que belo especialista em sonhos era esse Dante! Agora entendi por que Erik não gostava muito dele.
Também comecei a cogitar a possibilidade de todos estarem certos. Talvez eu estivesse apenas mentalmente esgotada. Talvez o sonho fosse apenas um sonho mesmo.
Estava entrando na livraria quando meu telefone tocou.
- Senhorita Kincaid? - perguntou uma agradável voz feminina. - É Karen da Aliança Infantil de Seattle. Estou ligando para confirmar sua participação em nosso leilão
esta semana.
- Como assim?
Silêncio. - Nosso leilão beneficente de encontros, para levantar fundos para a Aliança.
Ainda estava desnorteada. - Hum, parece-me uma causa importante, mas não tenho ideia do que você está falando.
Foi possível ouvir a moça mexendo em papéis. - Nós temos seu nome como voluntária aqui.
- Para quê? Para leiloarem um encontro comigo?
- Sim. Parece que... aqui está. Seu nome foi fornecido pelo dr. Mitchell.
Suspirei. - Posso te ligar de volta? - Desliguei e telefonei para Hugh. - Oi, dr. Mitchell. O senhor me listou como voluntária para ser leiloada?
- Nada muito diferente do que você costuma fazer - argumentou. - E é por caridade.
- Posso até aceitar essa babaquice de “luta pela paz mundial” de Peter e Cody, mas de você, não. Você não dá a mínima para aquelas crianças.
- Mas a diretora do grupo me interessa - falou Hugh. - É uma princesa. Consigo para ela voluntárias de alta qualidade, e talvez eu consiga levá-la para a cama.
- Está usando a caridade infantil para melhorar sua vida sexual?! Isso é horrível. E por que não ofereceu Tawny? Se existe alguém que precisa de um encontro, é ela.
- Ela? Jesus Cristo. Seria um desastre. Vamos tentar ganhar dinheiro. Você odeia as crianças, é?
- Não, mas não tenho tempo para isso. Faço um cheque para elas.
Desliguei, ainda ouvindo-o protestar, e virei na avenida Queen Anne. Era muito cedo para ir trabalhar, e decidi passar em casa para pegar uma maçã e uma barra de
cereais. Da última vez que trabalhei, tinha tanta coisa para fazer que deixei de almoçar. Achei que, desta vez, era melhor ir preparada. Minha imortalidade não permitiria
que eu morresse de fome, mas podia ficar tonta e fraca.
Na metade do hall para o meu apartamento, senti uma onda de choque de bondade cristalina. Auras angelicais. Abri a porta e encontrei a turma toda: Carter, Yasmine,
Whitney, Joel e Vincent. Ninguém falou nada; apenas me olharam, cheios de expectativa. Os anjos me sentiram muito antes de eu tê-los sentido. Estavam na sala, ocupando
calmamente meu sofá e minhas cadeiras, como se não fossem um grupo de guerreiros celestiais. Bem, nem todos estavam calmos. Joel estava ereto e formal, como quando
eu o conheci.
- Ah, caramba - falei, fechando a porta. - Parece aquela música do They Might Be Giants.
Vincent riu. - “She’s an Angel”?
Fiz que sim com a cabeça. - Somewhere they’re meeting on a pinhead...
- ... calling you an angel, calling you the nicest things - completou.*
- O que está fazendo aqui? - inquiriu Joel, interrompendo nossa “palhinha”.
- Que simpático... - murmurei. Virei o rosto para encarar Joel. - Eu moro aqui, lembra-se?
- Estamos numa reunião - falou.
- Ei, quando me perguntou se Vince podia ficar aqui, nunca me disse nada a respeito de transformar minha residência na sua casinha ultrassecreta sobre a árvore.
Não me importo se vocês quiserem ensaiar o coral aqui, ou o que quer que seja, mas não tente me expulsar de casa para fazer isso.
- Desculpe-me - disse Yasmine. Demorou para cair a ficha. Desculpas são artigos tão raros na boca de anjos quanto na de demônios. Pela expressão em seu rosto, Joel
também ficou surpreso. - Devíamos ter pedido primeiro. Podemos ir para outro lugar. - Inclinou-se sobre a mesinha de centro e começou a juntar os jornais. Interessante.
Parecia que a fixação de Vincent por noticiário era algo mais do que um hobby. Olhei de volta para Yasmine e tentei agir como se não tivesse percebido nada.
- Não, está tudo bem. Na verdade, já estou de saída. Vim aqui só para comer alguma coisa.
Ela retirou do rosto alguns fios de seu comprido cabelo escuro que haviam escapado do rabo de cavalo. - Quer que Vince lhe prepare algo?
Ele virou-se para ela, com uma expressão de surpresa no rosto, mas demonstrando simpatia. - Está achando que sou seu assistente pessoal?
- Não, basta ver o respeito com que se dirige a nós - resmungou.
Escondi o riso. - Obrigada, mas não há problema. Estou atrasada.
- Bom - disse Joel. - Então seja rápida.
Whitney soltou um suspiro, parecendo um pouco envergonhada, mas não o suficiente para contradizê-lo. Yasmine não era tão receosa e deu-lhe uma cotovelada nas costelas.
- Por que fez isso? - exclamou ele.
- Você não tem educação - repreendeu-o.
Com um sorriso no rosto, fui até a cozinha e peguei uma maçã. Quando abri o armário para pegar umas barrinhas de cereais, a caixa estava vazia. - Ei - falei, levando-a
para a sala. - Alguém comeu minhas barrinhas? Havia duas hoje de manhã.
Carter foi o primeiro a confessar. - Eu estava com fome.
Encarei-o, sem conseguir acreditar. - Você comeu as duas?
- Eu estava com fome - repetiu, não soando nem um pouco arrependido.
- E em algum momento você não está? - reclamei. - Primeiro a árvore de Natal, e agora isso? Você nem jogou fora a caixa!
- Esperava que você tivesse esquecido a árvore de Natal. Aquilo foi um acidente, e você sabe disso.
Soltei um suspiro alto e coloquei a maçã na bolsa.
- Vou passar no mercado depois - falou Vincent, tentando ajudar. Aubrey deu um pulo e colocou-se entre ele e Yasmine. As mãos dos dois instantaneamente passaram
a acariciá-la. Aubrey assumiu um olhar de gatinha convencida. - Compro mais, se você quiser.
- Compre mais para ele, para que não precise roubar os mantimentos dos outros. Até mais, gente. Nada de bagunça enquanto eu estiver fora. - Carter, Yasmine e Vincent
riram; Whitney e Joel, não.
Quando fechei a porta, fiquei parada no hall, desejando que houvesse uma maneira de espionar anjos. Infelizmente, não havia. Mal conseguia me esconder deles. Eles
conseguiam esconder suas assinaturas de mim, mas o inverso não funcionava. Na verdade, todos sabiam que eu ainda não havia ido embora. Incomodada, desci, mas a curiosidade
ardia dentro de mim. Por que estavam todos ali? Por que precisavam de um humano? E qual a função dos jornais?
Era sempre difícil descobrir o que anjos faziam. Quanto a nós, era muito simples. Estávamos sempre buscando consignar almas para o inferno e o fazíamos de uma maneira
bem controlada, microgerenciada. Contudo, as forças celestiais moviam-se de modo misterioso. A finalidade de Carter em Seattle era um enigma eterno para mim e meus
colegas, já que nenhum de nós jamais viu qualquer evidência de algo nobre que ele tenha feito, a não ser compartilhar seus cigarros. Sempre demonstrou muito interesse
por minha vida amorosa e não perdia a chance de dar conselhos enigmáticos, mas eu suspeitava que era mais por curiosidade do que por altruísmo.
Estava a poucas quadras do serviço e, como não estava chovendo, fui andando até lá. Assim que entrei na Emerald City, Maddie veio até mim, com uma expressão de desconforto
no rosto.
- Oi - falou, constrangida. - Eu, er, preciso de um conselho. Vou a um casamento amanhã e não sei o que vestir. É uma coisa estúpida... mas poderia dar uma olhada
nas minhas opções?
Olhei em volta e concluí que, por dez minutos, a loja funcionaria bem sem nós, principalmente porque Maddie precisara reunir muita coragem para falar sobre isso.
Nunca a vira preocupada com roupas antes. - Está bem. Vamos ver o que você tem.
Fomos até meu escritório, e ela experimentou três vestidos diferentes. Sem dúvida, Seth ficaria empolgado se soubesse que ela estava se trocando na minha frente.
Quando terminou, ofereci minha opinião sincera. - Nenhum te valoriza.
- Uma bela maneira de dizer que ficaram horríveis em mim. - Maddie enrolou um dos vestidos e jogou-o no chão. - Odeio esse tipo de coisa. Como posso escrever sobre
questões femininas e não saber como agir nesses casos?
- Bem... você escreve sobre diferentes questões. O problema é que você está usando roupas muito grandes para seu tamanho.
Seus olhos demonstravam surpresa. - Eu sou gorda. São roupas largas. Escondem minha barriga.
Maddie não era nem um pouco grande. Devia ser tamanho 38 ou 40, e o fato de ser baixinha enfatizava isso. Mas suas curvas eram proporcionais, e seu rosto era lindo.
Logicamente, comparada às modelos anoréxicas, tão populares entre os humanos nos dias de hoje, entendia sua atitude.
- Você não é gorda. Mas esses vestidos fazem você parecer gorda. Números menores vão melhorar sua aparência.
- Não posso usar roupas justas.
- Não precisam ser justas. Apenas têm de servir.
Maddie suspirou e passou as mãos em seus quadris. - Você não tem ideia do que é isso - falou, com um leve tom acusatório na voz. - Você é bonita e magra. Nem todos
têm a dádiva de serem fisicamente perfeitos o tempo todo.
- Ninguém é fisicamente perfeito o tempo todo - argumentei. - Eu, certamente, não sou. - Bem, na verdade, eu era. - Você precisa apenas encontrar as coisas certas.
E, na verdade, metade da beleza vem da atitude. Se você se sente sensual, você é sensual.
Maddie não parecia confiar muito no que eu dizia. - Não acho que seja tão fácil. Os homens não estão, assim, se matando para me chamar para sair. Sabe quanto tempo
faz que não saio com alguém?
- Mas isso tem a ver com sua atitude - falei. - Veja, não quero soar rude, mas nem sempre você transmite vibrações amistosas. Quero dizer, comigo, sim. E com Doug,
mais ou menos. Esse é o problema.
- Sei que não sou muito simpática com as pessoas - admitiu, cruzando os braços. - Mas é que não tenho paciência para papo furado.
- Sim, mas ainda assim você precisa conversar. A vida é assim.
- Bem, se os caras viessem conversar comigo de verdade, talvez eu até tentasse. Mas não vejo nenhum por perto que se disponha a isso. - Apontou para seu corpo. -
Por causa disso. E agora completamos o ciclo.
- E se eu te conseguisse um encontro? - perguntei, sentindo-me inspirada.
Formou-se um sorriso, transformando imediatamente seu rosto. - Você está me chamando para sair?
- Não, mas alguém vai, tenho certeza. Basta me deixar escolher sua roupa.
- Não vou usar nada vulgar.
- Não será vulgar - prometi. Levantei-me da cadeira. - Veja, preciso correr. Use o vestido amarelo no casamento. Com um cinto. Mais tarde, te passo os detalhes do
plano para um encontro. - Ela saiu, parecendo cética, mas fui trabalhar.
O resto do dia voou. Não cheguei a ver Seth no café e calculei que ele estivesse trabalhando em casa. Tínhamos um encontro mais tarde, assim sabia que iria vê-lo.
Desde que me tornei gerente, passava muito tempo enfiada em meu escritório, o que prejudicava um pouco minha vida social. Mas, de vez em quando, conseguia escapar
para cobrir a pausa de alguém ou arrumar uma prateleira.
Quando estava perto da seção de autoajuda, um rapaz com alguns livros na mão tropeçou ao meu lado e derrubou a prateleira. Torcendo para que não tivesse sido derrubado
por uma protuberância no carpete - e assim planejasse um processo -, ajoelhei-me para ajudá-lo.
- Não, não - falou, com as bochechas muito vermelha. Sua idade era a que eu aparentava ter, quase 30. Trinta e poucos, no máximo. - Não precisa...
Mas eu já estava empilhando-os, e logo entendi seu desconforto. Havia livros sobre tudo quanto é tipo de fetiche - principalmente exibicionismo e voyeurismo.
- Ah, Deus - falou, e entreguei-lhe os livros. - Estou muito envergonhado. Você deve achar que sou um pervertido.
- Não tem problema - disse-lhe. - Ninguém tem nada a ver com isso, todos temos nossas... er, preferências.
Ele parecia um pouco mais tranquilo, mas claramente ainda queria sumir. Tinha uma aliança na mão, e logo concluí que se tratava de um fetiche que não compartilhava
com sua esposa. Para ser sincera, fiquei surpresa por ele recorrer a livros quando se pode encontrar centenas de vezes mais fontes na internet. Talvez dividisse
um computador em casa com sua esposa, e temesse ser descoberto.
Foi Georgina, o súcubo, e não Georgina, a gerente da livraria, quem fez a pergunta seguinte. Georgina, a gerente de livraria, teria sido despedida se fosse pega.
- Você gosta de assistir ou fazer? - falei baixinho.
Ele engoliu seco, ficou me olhando para ver se eu não estava zombando e deve ter concluído que eu falava sério. - Hmm, fazer.
Por um instante, considerei a ideia de fazer sexo com ele. Precisava muito da energia. Era uma presa fácil, tomado por um desejo secreto que não conseguiria satisfazer
com outras pessoas. Mas isso significaria fazer sexo com este corpo, algo que não me agradava. Era minha forma preferida, do dia a dia. Não queria manchá-la com
negócios.
Assim, sorri e deixei-o ir, desejando, em silêncio, que satisfizesse seus desejos sexuais.
Telefonei para Seth, quando estava voltando para casa, a fim de confirmar nosso passeio. Íamos nos encontrar no Pacific Northwest Ballet para assistir ao Quebra-Nozes.
Apesar de ele apreciar espetáculos, conseguir convencê-lo a sair com o fim de seu livro se aproximando fora uma tarefa hercúlea, e eu ainda não podia acreditar que
aceitara. Na verdade, apenas concedeu depois que prometi que ele poderia chegar em cima da hora.
O único problema é que, aparentemente, tínhamos definições diferentes para “em cima da hora”, pois, quando as luzes se apagaram, ele ainda não havia surgido. O balé
iniciou-se, e eu girava o pescoço toda vez que ouvia uma das portas se abrir. A cadeira ao meu lado, infelizmente, permaneceu vazia. Agitada, perdi boa parte da
apresentação e não pude apreciar o sonho de Clara - um sonho tão vívido para ela como fora o meu para mim. Eu adorava balé. Fiz algumas apresentações ao longo de
minha vida, e não me cansava de ver musculaturas graciosas e figurinos primorosos.
No intervalo, peguei o celular e vi que Seth tentara telefonar. Liguei de volta para ele, sem nem ouvir a mensagem de voz. Quando atendeu, falei: - Por favor, diga-me
que um fã maluco o raptou ou quebrou suas pernas com um martelo.
- Hm, não. Você não ouviu minha mensagem?
- Ora, não, mas aqui indica que você a deixou meia hora atrás. Não estava ligada, porque eu estava assistindo a essa coisa. Sabe o Quebra-Nozes?
Ele suspirou. - Desculpe-me, não pude sair. Estava muito envolvido. Achei que se, er, te avisasse...
- Avisasse? Parecia mais um cartão de aniversário atrasado. Seis meses após a celebração.
Fez-se silêncio, e senti certa satisfação por saber que ele ficara quieto por reconhecer o erro.
- Sinto muito, Thetis. É que... eu não devia ter feito isso, mesmo estando atolando. Sinto muito mesmo. Você sabe como fico.
Agora foi minha vez de suspirar. Ele era tão sincero e carinhoso que me era muito difícil guardar rancor. Contudo, não era a primeira vez que ele me deixava na mão
ou ignorava nossa vida social. Às vezes, ficava me perguntando se eu era muito tolerante com ele. Ficava tão preocupada com minhas transgressões, achando que estava
me aproveitando dele; mas talvez fosse eu quem estivesse sendo explorada, sem nem perceber.
- Quer se encontrar depois da apresentação? - perguntei, tentando não parecer brava. - Cody convidou-me para ir a um bar com ele. Podíamos dar uma passada lá.
- Hm... bem, não.
- Não? - O desgosto que eu tentara calar surgiu novamente. - Acabei de te perdoar por me dar o cano e perder o dinheiro que gastei no seu ingresso, e agora você
está declinando de minha oferta conciliatória?
- Veja... eu sinto muito mesmo, mas ficar vendo você e seus amigos se embebedarem não é algo que me atraia muito.
Fiquei paralisada por um instante, estupefata para responder. Falara de seu modo tipicamente gentil, mas notei um pequeno escárnio em suas palavras. Seth não bebia.
Sempre tolerara meus excessos com bom humor, mas de repente fiquei desconfiada de que isso, na verdade, o irritava. Pareceu-me um pouco de arrogância de sua parte.
- Desculpe por estarmos abaixo de seu nível. Bem sabemos que não se pode esperar que você faça algo fora de sua zona de conforto.
- Por favor, pare. Não quero brigar com você - falou, exasperado. - Sinto muito, muito mesmo, por tudo isso. Não foi minha intenção dar um cano. Você sabe disso.
As luzes piscaram, indicando o fim do intervalo. - Preciso ir.
- Você... por favor, pode vir aqui hoje à noite? Saia com seus amigos, deixe-me acabar e vou compensá-la depois. Prometo. Eu... tenho um presente de Natal para você.
A hesitação em sua voz amoleceu meu coração. Um pouquinho. - Sim. Está bom. Pode ser um pouco tarde quando eu chegar aí.
- Eu aguardo.
Despedimo-nos e desliguei. Assisti, irritada, ao restante do show, e estava louca para que acabasse e eu pudesse curtir e beber com o pessoal.
* Em algum ponto, encontram-se perdidos/ chamando-te de anjo, sendo muito gentis.
Capítulo 5
Peter, Cody e Hugh já ocupavam uma mesa quando cheguei ao Cellar. Para meu desalento, Tawny estava com eles. Havia me esquecido completamente de minha aprendiz.
Pelo menos, Niphon não estava com ela. Torcia para que isso significasse que, enfim, ela tinha ensacado um cara, apesar de a falta daquele brilho pós-sexo sugerir
outra coisa. Nem Carter nem Jerome se dignaram a aparecer. Lembrei que Jerome estava fora da cidade e imaginei que o anjo estivesse com seus colegas. É possível
que ainda estivessem em meu apartamento.
- Oi - falou Cody, cumprimentando-me, enquanto abria espaço para mim ao seu lado. - Achei que você tivesse dito que estava ocupada.
- Bem, sim, mas os planos mudaram - resmunguei. Acenei para Hugh.
- Tem um cigarro?
Ele me repreendeu. - Querida, agora é proibido fumar em lugares públicos.
Resmungando, chamei uma garçonete. Fumar era um hábito feio que eu abandonara pelo bem dos mortais mais próximos de mim. Porém, depois de fumar por mais de um século,
descobri que ansiava por uma pitada ocasional durante períodos estressantes. A proibição de se fumar era boa para Seattle, mas extremamente inconveniente para mim
e para meu mau humor.
Cody não deixou passar minha resposta vaga. - Como assim, seus planos mudaram? Você não ia sair com Seth?
Hugh riu quando não respondi. - Uh-oh, paraíso em turbulência.
- Ele tinha coisas para fazer - respondi, séria.
- Coisas ou pessoas? - perguntou Peter. - Você não tinha dado permissão para ele ir para a cama com quem quisesse?
- Ele não vai fazer isso.
- Se isso faz você se sentir melhor... - provocou Hugh. - Ninguém fica tanto tempo escrevendo como ele alega fazer...
Como, aparentemente, meus amigos não tinham vida própria, eu tinha de suportar essas gozações. É provável que não fizessem por mal, mas conseguiam me magoar. Seth,
sem a contribuição deles, já havia me chateado o suficiente. Sentia uma fúria borbulhando dentro de mim, e tentei canalizá-la para minha taxa de consumo de gimlet,
protegendo meus amigos.
A única pessoa que parecia mais deprimida do que eu era Tawny. Estava com um tomara que caia vermelho, de corte quase idêntico ao tubinho de cetim que eu usara no
balé. Mas, diferentemente do meu, o dela era feito de spandex - por sinal, por que essa fixação dela com esse tecido? - e uns quinze centímetros mais curto. O meu
também caía melhor.
- Por que essa melancolia? - perguntei, esperando que os outros encontrassem outra pessoa em que se concentrar.
O lábio inferior dela tremeu, por tristeza ou por dificuldade para conter o peso de todo aquele colágeno. - Eu ainda não... sabe?
Isso foi suficiente para aliviar meu pesar. Também significava que Niphon ainda estava na cidade, como eu suspeitara ao vê-la. - Como assim? Isso não é possível.
Ela deu de ombros e inclinou-se com tristeza, encostando os cotovelos nos joelhos, que já estavam abertos numa posição bem masculina. Com todo esse encanto, não
era de estranhar que não conseguisse transar.
Fiz um círculo com a mão, apontando para as pessoas no bar. - Olhe, vá à luta, jovem súcubo. Este lugar é um bufê. Pegue um prato e se sirva.
- Ah, sim, como se fosse fácil.
- E é fácil. Talvez não consiga um padre ou algo similar, mas certamente há algo a se pegar por aqui.
- Talvez você consiga. Eu não... não sei o que dizer a eles.
Era difícil acreditar que aquela conversa estivesse ocorrendo. Era ainda mais estranho do que tentar convencer Dante de que eu era um súcubo. Maddie também tinha
dificuldades para conversar com rapazes, mas uma loira gigante, de proporções incríveis, se jogando sobre homens certamente conseguiria levar alguém para a cama.
Era uma das leis básicas da vida.
- Bem... se você realmente não sabe o que dizer, por que não experimenta ir lá e perguntar-lhes se querem fazer sexo? É grosseiro, mas certamente vai funcionar com
alguém.
Ela ridicularizou. - Certo. Simples assim...
- Simples assim - falei. Hugh retornou do banheiro, e o encarei. - Quer fazer sexo?
Ele nem piscou. - Lógico. Vou só pagar a conta.
Voltei-me para Tawny. - Viu?
- Peraí - disse Hugh, com uma mão no casaco. - Foi só brincadeira?
- Foi um exemplo instrutivo - explicou Peter.
- Porra!
Tawny balançou a cabeça, sacudindo suas despenteadas tranças loiras.
- Não consigo fazer isso.
- Oh, meu Deus. - Lutei contra a vontade de esfregar os olhos, para não estragar a maquiagem. - Tawny, não é engenharia espacial.
- Não foi você que comentou da dificuldade de fazer seu trabalho com seu amigo íncubo por perto? - perguntou Peter. Meu amigo Bastien, em uma visita recente, produzira
um verdadeiro esquadrão de admiradoras para ele, o que meus amigos homens chamaram de “o emprego mais difícil do mundo”.
- Cale a boca - vociferei. - Você está estragando minha tutoria.
- Mas não quero um homem ruim - falou Tawny, de modo petulante.
- Quero corromper um bom. Um que me dê muita energia.
- Comece por baixo. Não se preocupe com os bons... ainda mais quando você nem consegue descobrir quem são eles.
- Como encontrar um?
- É uma arte. Você vai aprender. Mas, por ora, te digo: comece por baixo.
Acabei dando a ela algumas dicas, já que supostamente era sua tutora. Analisamos alguns dos homens no bar, localizando alianças e uma despedida de solteiro. Um rapaz
prestes a se casar era um alvo muito interessante. Também aconselhei a respeito de comportamento: um homem quieto era em geral (mas, logicamente, nem sempre) melhor
do que um barulhento, odioso - isso se estiver procurando um bom. Mas não se pode esquecer que assassinos também costumam ser quietos. Na verdade, tudo se resumia
em compreender pessoas, o que não era algo que se podia aprender do dia para a noite. Com isso em mente, tentei reiterar que, por ora, ela devia tentar apenas os
mais fáceis.
- Gosto muito dessa sua catalogação da totalidade da população masculina - falou Peter, quando acabei minha palestra. - Fico feliz em saber que você não acredita
em estereótipos.
Dei de ombros. - Faz tempo que faço isso.
- Está bem, prove - falou Hugh. Ele e eu estávamos mais ou menos no mesmo nível de embriaguez. - Encontre três almas decentes aqui.
Forcei um sorriso. Demônios eram capazes de medir a força e a bondade da alma de uma pessoa numa só olhada. Aceitei o desafio e corri o olhar pelo lugar por um bom
tempo. Quando escolhi três, ele balançou a cabeça.
- Você acertou dois de três. Os dois que acertou são realmente bons. O que você errou é muito mau. Pelo menos, está lidando com extremos.
Tawny lamentou. - Está vendo? É difícil.
- Pelo amor de Deus - exclamei, engolindo outro gimlet numa talagada. - Não é. Pelo menos, não no nível amador em que você está agora. Quer uma dica? Arrume um emprego
que te dê acesso a homens.
- Não vou ficar rodando bolsinha - respondeu, ofendida.
- Então vá... sei lá. Participe do leilão de encontros do Hugh. - O demônio me encarou. - Ou vá trabalhar num clube de striptease. É o mais fácil para um súcubo.
Fique no bar depois da sua apresentação, e eles virão até você. Stripper é uma mercadoria poderosa, mesmo porque muitos homens vão achar que você é uma prostituta
de qualquer forma.
- Não sei. Ainda parece degradante.
- Você precisará transar para prover sua existência pelo resto da eternidade! Pare de frescura. Se demorar muito, seu suprimento de energia inicial, que foi um presente,
vai acabar. Fazer striptease é fácil. E divertido. E poderá usar roupas bonitas. Acredite em mim: você vai gostar.
- Acho que sim - falou, por fim. Suspirou longamente, e o movimento realçou ainda mais seus seios.
- Georgina é profissional - falou Hugh, aproximando-se para animá-la. Levando em consideração o fato de ele não ser do tipo afetivo e carinhoso, suspeitei que ele
apenas queria roçar nos seios dela. - Pelo menos, é o que ouvi dizer. Acho que nunca vou descobrir. - Olhou para mim com sarcasmo.
- Se isso é verdade - falou Tawny -, por que o namorado dela deu-lhe um cano?
Os rapazes soltaram um “ooh” coletivo e ficaram encarando-nos, parecendo ansiosos pela briga de mulheres que previam há tanto tempo. Toda a minha fúria de antes
ressurgiu, agora abastecida pelo álcool e pela incompetência de Tawny.
Agarrei o copo, fui até o bar para, eu mesma, servir-me de outra dose. Essas reuniões com os amigos estavam perdendo a graça. Um súcubo novato não tinha o direito
de me provocar a respeito de minhas dificuldades de namoro, ainda mais se ela nem conseguira arrastar um cara. Se eu quisesse, podia ter pego uns doze, só naquela
noite. Ao mesmo tempo.
E, ao meu lado, notei uma presa fácil, bem ali.
O cara da livraria, dos livros de fetiche, estava no bar, conversando com o barman. Não parecia estar em grupo. Rapidamente virei para o outro lado, para que não
me reconhecesse. Depois de pegar minha bebida, coloquei-a na mesa de meus amigos e corri para o banheiro, sem dizer mais nada. Costumava usar o banheiro como esconderijo
para me metamorfosear, e era inevitável naquelas situações. Dentro da cabine, assumi um corpo comprido, gracioso, com cabelo dourado - parecido com o das bailarinas
que vira naquela noite. Ensinaria Tawny como ser loira.
Ao sair, vi a expressão no rosto de Cody. Meus amigos conseguiam me reconhecer em qualquer forma, e ele parecia atordoado ao me ver dirigindo-me ao bar. Voltei para
o lado do rapaz da livraria e pedi outra bebida. Dessa vez, ele se virou e me viu. Sorri.
- Isso é bom? - perguntei, apontando com a cabeça para o drinque vermelho em sua mão.
- Acho que sim. - Ergueu o copo e ficou olhando-o. - É um cosmo de romã. Acho. Para falar a verdade, um pouco feminino... sem querer ofender.
- Imagina...
O barman deslizou um uísque com gelo para mim. O cara ao meu lado sorriu.
- Acho que me sinto um castrado - falou.
Dei um sorriso e estendi a mão, falando o primeiro nome que me veio à mente. - Clara.
- Jude.
- Hey, Jude.
Ele suspirou.
- Desculpe-me - falei. - Não resisti.
- Ninguém resiste.
- Está sozinho aqui? - perguntei.
Ele parecia envergonhado e ficou esfregando, sem se dar conta, o dedo onde estivera a aliança na última vez que o vi. - Sim.
- Eu também.
Ele me olhou de cima a baixo, tentando disfarçar, mas não foi bem-sucedido nisso. - Acho difícil de acreditar.
- Bem... - Olhei para a minha bebida, brincando com a borda do copo. - É uma longa história...
E, lenta e habilidosamente, criei uma história, contando que fora até lá encontrar um homem, que acabou me dando um cano. Teríamos combinado ir a um clube de sexo,
só que não entreguei o jogo logo de início. Seria demais para alguém como Jude, que estava interessado mas nervoso com toda essa ideia de sexualidade exótica. Assim,
no começo falei vagamente, com insinuações, dando pistas de meu interesse em exibicionismo, da minha vontade de conhecer esse tipo de lugar.
Quando terminei, usei a mesma frase que ele proferira na livraria. - Sinto- -me uma pervertida. Para falar a verdade... não sei por que estou te contando isso. Nem
te conheço. É que... - Encarei-o com meus grandes olhos azuis. - É fácil conversar com você.
Um longo silêncio se seguiu, enquanto Jude ficou me olhando. - Não acho... não vejo nenhum problema no que você está dizendo... o que você deseja...
Ponto! Comecei a enrolar.
- É mesmo?
- Sim... quero dizer, às vezes... eu meio que... sabe, desejei...
- É mesmo?
Ele fez que sim com a cabeça.
Permiti que hesitasse por alguns segundos. - Quer ir comigo? Apenas para, sabe, assistir?
Após alguma reflexão, Jude concordou. Previsivelmente, ele não conhecia nenhum clube de sexo na cidade. Mas, também previsivelmente, eu conhecia.
Nem olhei para meus amigos quando Jude e eu saímos do bar. Não havia cronometrado, mas tinha certeza de que minha conquista fora em tempo recorde. Isso ensinaria
a turma a não questionar meu profissionalismo.
O clube ao qual fomos era um que eu já visitara algumas vezes antes. Já cheguei a ir a melhores, mas gostava daquele basicamente pelo nome: Insolência.
Estabelecimentos que se dedicavam a sexo e fetichismo funcionavam de diferentes maneiras. Em lugares onde todos esperavam participar - como clubes de suingue -,
a entrada era rigorosa. Garotas solteiras sempre entravam, e para casais, normalmente, os requisitos eram poucos. Mas, para rapazes solteiros, era difícil. Em locais
como o Insolência, em que o foco era primordialmente assistir, a entrada era mais tranquila. Bastou pagar o ingresso, e lá estávamos. Porém o meu era ainda mais
barato.
O lugar estava lotado, e havia uma aura de danceteria. Música techno fazia pulsar o salão escuro, cuja única iluminação vinha de lâmpadas azuis e roxas no teto.
Quase toda a luz era concentrada em áreas cercadas, reservadas para aqueles que queriam “apresentar-se”. Eram como pequenos palcos onde os frequentadores podiam
se reunir. Alguns palcos eram temáticos - um lembrava o consultório de um médico com uma mesa de cirurgia -, embora em geral houvesse apenas sofás e camas. Não parecia
haver regras sobre quem podia usá-los. Era um sistema de “quem chegar primeiro usa”, e, como metade das plataformas estava vazia, não parecia haver muita pressa.
Mas os espectadores se juntavam, ansiosos, ao redor das áreas ocupadas, esticando seus pescoços para ver melhor.
- Está bem cheio aqui - disse-me Jude, enquanto abríamos caminho entre as pessoas.
- O mundo é assim - comentei.
- Acha que os homens se interessam mais por isso do que mulheres?
- De certa forma, sim. Homens costumam se ligar mais na imagem. Nesse sentido, coisas assim são excelentes. Muitas garotas curtem também, só que é mais difícil trazê-las
para lugares como esse. - Preferi me calar, percebendo que parecia muito experiente para uma novata tímida.
Por fim, conseguimos chegar à área reservada. Lá, assistimos a um homem enfiando avidamente em uma mulher curvada sobre uma mesa de jantar elegantemente posta. Jude
e eu ficamos olhando-os por um tempo, sem falar nada. Então passamos ao casal seguinte, um homem e uma mulher transando em uma cama comum. Ela trajava um bustiê
de couro brilhante, e sua saia estava levantada. Depois do terceiro casal - encostados na parede -, Jude enfim falou alguma coisa.
- Essas pessoas não são o que eu imaginava.
- Como assim? - perguntei.
- É que elas... parecem pessoas comuns.
Dei uma risada. - Mas elas são isso. O que esperava? Astros pornôs?
- Hmm, não. - Imaginei que estivesse corado.
- Todos têm o direito de fazer o que os excita. E, na verdade, quando se vê como estão transando... - Meu olhar voltou-se para o casal trepando encostado na parede.
A conexão visual deles era tão poderosa, tão intensa... deixava bem claro que tinham tesão um pelo outro. Senti um arrepio. - Sim, isso é muito sensual, ainda que
não seja glamoroso. Isso é real. Por isso, é excitante.
Ele não respondeu nada, mas olhou em volta, como se esperando reavaliar o que via. Enquanto isso, analisei seu perfil. Não era muito alto, mas tinha um torso interessante
e bem definido, cabelo loiro cor de areia. Ao perceber meu exame, virou-se para mim.
- Sabe - falei -, se está preocupado com a possibilidade de quebrar barreiras por aqui... bem, nós dois somos muito atraentes.
De início, não entendeu. - Sim, suponho que... oh. Oh. - Arregalou seus olhos castanhos.
Voltei a olhar para o casal da parede. - Já estamos aqui. Podíamos fazer uma apresentação para essas pessoas.
Seus olhos ficaram ainda mais arregalados, como se fossem saltar. - Eu... não conseguiria. Deus. Não na frente de todas essas pessoas. E se alguém que eu conheço
está aqui...
- Duvido. Além disso, o que vão fazer? Se contarem a alguém, terão de admitir que estavam aqui também. - Agarrei sua mão. - Vamos lá, sei que está interessado.
- Sim - admitiu. - Mas nunca... acho que não conseguiria...
Puxei-o para um dos palcos. - Nunca é tarde para começar. É fácil.
Jude parecia atemorizado, mas permitiu que eu o arrastasse. - Você age como se já tivesse feito isso antes. Pensei que fosse uma novidade.
- E é.
- Tem certeza? Talvez você se faça de inocente para seduzir homens para atos sexuais malucos.
Desdenhei de sua afirmação. - Isso é ridículo.
Assim que passamos por baixo das cordas do palco, um grupo logo se enxameou em torno de nós. Duvidava que fosse por Jude e por mim, mas, sim, por sermos um casal
iniciante. Ah, variedade. O tempero da vida.
Jude ainda parecia assustado, mas eu não estava mais com paciência para sua hesitação. A artista dentro de mim havia emergido. Todas aquelas pessoas aguardando ansiosas...
tínhamos de nos apresentar.
Nosso cenário consistia de uma chaise longue coberta de veludo branco, que irradiava o brilho azul das lâmpadas. Imaginei que o branco devia esconder certas manchas
melhor que outras cores.
- Vamos lá - falei, empurrando Jude para a chaise. - Deite-se.
Deitou-se, mas ainda parecia em pânico. - Clara...
- Você já está aqui - falei, ríspida. - O que vai fazer? Vai desistir na frente de todas essas pessoas? Você não me parecia covarde quando o conheci.
Eu havia me tornado outra pessoa, alguém com comando e que colocava medo nas pessoas. Ele balançou a cabeça.
Subi na chaise com ele, encaixando minhas pernas em seus quadris. Minha falta de energia de repente ardeu e começou a doer, e eu não podia mais ser gentil. Inclinando-me,
beijei-o com força, meus dentes roçando em seus lábios enquanto enfiava minha língua em sua boca. Ele emitiu um pequeno ruído de surpresa que se perdeu no beijo.
Minhas mãos já estavam desabotoando freneticamente a sua camisa. Acho que acabei arrancando um.
Jude permanecia deitado lá, sem ação, ainda em choque. Não me importava, desde que não resistisse a mim. E, pelo que podia sentir sob meus quadris, nem todo o seu
corpo estava mole.
Passei os dedos por seu peito, enterrando as unhas em sua carne. Minha porção gentil ficava se perguntando como ele explicaria à esposa aqueles arranhões. Porém
o restante de mim não se importava. Criara “Clara” com uma regata preta e saia cinza - simples mas sensual. Arranquei minha camiseta, balançando meu cabelo, depois,
como se fosse um véu dourado. Pensei em tirar o sutiã de rendinha preto, mas preferi mantê-lo.
Minha boca saiu de seus lábios, passando para seu pescoço e peito, parando para provocar um mamilo. Continuei descendo até sua calça. Desafivelei seu cinto e desabotoei
a calça com um único movimento. Puxei-a, junto com a cueca, para baixo, até a altura dos joelhos, o suficiente para me dar acesso à ereção. Peguei-a com minha boca,
deixando aquele eixo comprido deslizar para dentro de mim, quase até o fundo de minha garganta. Ele arfou, um som ecoado por alguns dos espectadores que nos apreciavam.
Sentia as primeiras pontadas de sua força vital. Cintilava como estrelas, penetrando-me. Assim, tive uma mostra de seus pensamentos e emoções, bem como de sua força
e caráter. Depois de colher energia em quantidade suficiente para avaliar a qualidade, quase caí na risada. Não era a primeira vez que ele fazia algo assim com uma
estranha. Na verdade, era a terceira. Ainda se sentia tímido, mas parte de sua inocência era fingida, uma isca para mulheres dominantes como eu. Hugh estivera certa
- nem sempre eu conseguia avaliar uma alma. Contudo, infidelidade ainda não combinava com Jude, e ele tinha bondade e força vital em quantidade suficiente para preencher
a lacuna que o sonho deixara dentro de mim.
Minha boca moveu-se com mais pressa, chupando e provocando. Ele gemia enquanto meus lábios deslizavam para a frente e para trás. Quando arqueou as costas, afastei-me,
temendo que, se eu não tomasse cuidado, a brincadeira poderia acabar bem ali. Saí de cima dele, fiquei de pé e puxei a saia para baixo, deixando-a cair em uma pilha
desordenada que estava no chão. Jude me olhava com uma expressão de súplica, ainda sem iniciativa, mas definitivamente querendo mais.
Havia uma cadeira de madeira, toda cheia de ornamentos, ao lado da chaise. Fui até ela e ajoelhei-me em seu assento estofado, encostando meus seios nos entalhes.
Olhei para Jude por sobre os outros.
- É hora do show - falei.
Esperava hesitação ou relutância, mas Jude, aparentemente, havia superado sua reticência inicial. Bom. Não queria mais sentir como se estivesse estuprando-o. Pulou
da chaise e veio na minha direção. Eu tinha deixado sua calça na altura dos joelhos, mas agora ele terminou o serviço e jogou-a para longe, com um chute. Posicionou-se
atrás de mim, colocou as mãos nas laterais de meus quadris, deixando os dedos deslizarem pela borda da calcinha preta que eu ainda usava.
Mexi-me, aproximando minha bunda. Jude suspirou. - Você é tão sensual.
- Eu sei - disse-lhe, sem paciência.
Ele puxou minha calcinha para baixo, deixando-a próxima de meus joelhos. Encostei-me nele e o senti entrar dentro de mim, uma penetração poderosa e profunda. Pegou-me
pela cintura e começou a mover-se para dentro e para fora, empurrando-me contra o encosto duro da cadeira a cada estocada. Eu gemia alto, mas não sabia dizer se
para animar ele ou os espectadores.
E, falando nos espectadores, eu estava literalmente numa posição que podia vê-los, com seus rostos e olhos voltados para mim. Perdera quase toda a inibição ao longo
dos anos, e certamente aquela não era a primeira vez que eu fazia sexo em público. Às vezes, gostava da privacidade, mas naquela noite adorei ser o centro das atenções.
Talvez fosse apenas meu desejo por mais energia vital. Precisava muito dela, não importando o que precisasse fazer. De qualquer forma, fiquei excitada ao fazer contato
visual com diferentes homens da plateia, e Jude continuava bombando dentro de mim.
Como já havia percebido, contato visual era uma coisa poderosa. É algo que te afasta da esfera do estudo superficial e te leva para uma instância mais profunda e
íntima. Preferia os rapazes que me olhavam com desejo ardente - por ver uma mulher sendo fodida com tudo e que só pensava em transar com eles depois. Ficava estimulada
ao pensar em todos os homens que eu estava excitando, todos loucos por sexo - todos me querendo.
Ao encarar meus admiradores, quase esqueci que era Jude quem estava atrás de mim. Podia ser qualquer daqueles homens, e a expressão em seus rostos indicava claramente
que gostariam muito de trocar de lugar com ele. Observei cada rosto, imaginando o que sentiria cada homem e que cada um deles devia foder de modo diferente. O estímulo
que isso produzia era tamanho, que minha mente logo passou a fantasiar mais de um homem ao mesmo tempo. Um nas costas, outro na frente...
Jude agarrou meu cabelo com uma das mãos e puxou minha cabeça para trás, enquanto a outra mão seguia firme em meus quadris. O movimento bruto afastou-me de minhas
fantasias, mas estava tão excitada que até gostei de sua agressão. Ele enfiou com mais força, empurrando-me dolorosamente para a cadeira, e torcia para que não caíssemos.
Era cada vez maior o prazer por sua energia vital entrando em mim, e senti seus pensamentos fluindo para dentro de mim também. Bom demais, bom demais, bom demais.
E era bom. Os voyeurs ao nosso redor e ele me comendo de quatro tinham me levado às alturas. Era um ato sujo, mas excitante e sedutor.
- Bom demais, bom demais - gritei, ecoando seus pensamentos. - Não pare, não pare, não... oh.
Isso, sim, era ironia.
O truque que eu usara com Bryce, ou Bruce, sei lá seu nome, tinha funcionado ali também. Só que, dessa vez, eu não queria que tivesse acabado. Talvez fosse o estilo
de Jude - breve e doce -, e não minha culpa. Entretanto, tinha acabado e eu nem tinha gozado. Droga!
Mas tinha conseguido minha dose de energia, uma explosão de vida e prazer que viera junto com seu orgasmo. Extático ou não, ele sentira uma pontada de culpa no último
instante, arrependido por seu desejo incontrolável de trair a esposa. Essa culpa fora um bônus para mim. Pecado era algo subjetivo e, muitas vezes, a magnitude de
um pecado era medida pelos olhos de quem o cometia. Eu o levara a pecar - algo que sempre agradava o inferno e me dava pontos a mais -, destruindo suas reservas
morais e me dando mais energia do que eu teria roubado se ele fosse totalmente corrompido. Sentia que a vida revigorava minha essência, fortalecendo minha imortalidade
e minha capacidade de metamorfosear-me.
Ele se afastou. Levantei-me da cadeira e peguei sua mão quando ele começou a ficar tonto. Algumas pessoas assobiaram e bateram palmas.
Jude parecia maravilhado... e exausto. Entreguei-lhe sua calça.
- Uau - murmurou. - Isso foi... uau.
- Sim - falei, com um sorriso no rosto. - Eu sei.
Capítulo 6
ão tinha percebido quão tarde era até chegar na casa de Seth, por volta das duas. Estranhamente, ele não estava escrevendo, e encontrei-o esticado no sofá, zapeando
pelos programas televisivos de fim de noite.
- Oi - falei, jogando meu casaco e minha bolsa perto da porta. Ele ergueu a cabeça. A luz do aparelho produzia sombras fantasmagóricas em seu rosto.
- Desculpe-me pela hora. Aconteceram umas coisas.
- Sim - falou, com a voz ainda desanimada. - Posso imaginar.
Logo compreendi o que pensava. Era um sinal de quão bem ele me conhecia e compreendia sinais sutis de um súcubo. Estava envolta pela energia vital de Jude. Imortais
a viam como um brilho literal. Mortais não conseguiam enxergar, mas podiam sentir algo insanamente encantador e atraente em mim. Normalmente, encaravam apenas como
um sinal de minha beleza. Mas Seth, não. Ao sentir aquilo, sabia o que eu tinha feito.
Eu o odiava por me ver dessa forma, mas era inevitável. - Desculpe-me. É o que faço para viver. Você sabe disso.
- Sim - concordou, parecendo cansado, mentalmente cansado, não fisicamente. Ele se endireitou. - Mas você precisava fazer hoje à noite? Está tentando me punir por
ter te dado o cano?
Sentei-me em uma poltrona em frente a ele. A energia de Jude ardia dentro de mim e fazia que eu me sentisse viva. Não queria brigar com Seth e arriscar destruir
meu bom humor, principalmente depois de ter ficado tão chateada a maior parte da noite.
- Fiz isso para sobreviver. Não estava querendo me vingar.
Ele suspirou e ficou olhando para um canto escuro. - Às vezes, é muito difícil.
Movi-me para o sofá, aconchegando-me ao seu lado. - Eu sei.
Ele colocou seu braço sobre meus ombros e ficou me olhando com uma expressão carinhosa e, ao mesmo tempo, aborrecida. Inclinou-se e esfregou seus lábios em meu pescoço.
Esse simples roçar fez meu sangue fervilhar.
- Deus, você está linda. Só não queria que isso fosse em decorrência de outro cara.
- Sim - falei. - Eu também.
- Desculpe-me por ter me descontrolado.
- Você acha que aquilo foi descontrole? - perguntei. - Não foi nada.
- E desculpe-me por ter lhe dado um cano. Isso não foi certo.
Seth subiu pelo meu pescoço e agora mordiscava minha orelha. Fechei os olhos e joguei a cabeça para trás.
- Está tudo bem - garanti-lhe. - Sério.
- Você é incrivelmente complacente.
- Ei, que poderia fazer? Natal significa amor e gentileza, certo?
Ele riu e acariciou meu cabelo. - Para alguém que se diz tão maléfica, certamente é uma pessoa boa.
- Bem - falei, encostando-me nele. - Não sou tão boa assim... Estou tendo uns pensamentos bem malvados neste exato momento.
- Sim, eu também. Se fôssemos condenados por nossos pensamentos, acho que iria diretamente para o inferno.
- Não, não iria. Hugh diz que sua alma é como uma supernova. Você vai direto para os portões do céu.
Estávamos envolvidos por amor, carinho e desejo, superando a tensão gelada. Contudo, quando estávamos aninhados e conversávamos sobre temas mais leves, foi triste
pensar que aquela era uma cena comum entre nós. Brigar. Refletir. Desculpar-se. Aninhar-se. Em todas as fantasias de um relacionamento estável que tive no último
milênio, esse padrão nunca fora parte deles.
Depois de um tempo, meio que deixamos os abraços de lado e partimos para algo mais adulto. Pelo menos, eu, sim. Às vezes, convencia Seth a saciar seu desejo, embora
isso sempre o deixasse incrivelmente tímido. Quanto a mim, adorava vê-lo gozar. Ele sempre tinha um ar tão blasé... e vê-lo perder o controle durante um orgasmo
quase funcionava como um clímax para mim também.
Ao que parece, ele tinha o mesmo sentimento em relação a mim, e ficou feliz em simplesmente me ver tocando-me naquela noite. Depois de não gozar com Jude, foi muito
bom poder resolver as coisas com minhas próprias mãos. Quando terminei, lânguida e contente, ele deitou-se no sofá ao meu lado, enlaçando seus dedos nos meus.
- Acho que nunca vou me cansar disso - suspirou.
- Você devia ir até o fim também.
- Estou bem.
- Tem certeza?
Ele sorriu. - Autocontrole, Thetis. Autocontrole. Além disso, tenho uma boa imaginação. Às vezes, basta imaginar que sou eu quem te leva ao gozo.
Senti um calafrio ao imaginar Seth, seu corpo dentro do meu enquanto eu gozava, seus músculos retesados, eu gritando seu nome enquanto enfiava minhas unhas em suas
costas.
- Jesus - falei, baixinho, fechando os olhos.
- Sim.
Percebemos que já era bem tarde e começamos a nos preparar para dormir. Quando saí do banheiro, depois de escovar os dentes, ele me esperava no quarto com uma caixinha.
E me entregou.
- Eu te disse que tinha um presentinho adiantado.
Virei o pacote em minhas mãos, passando as pontas dos dedos nas bordas. Estava embrulhado em papel dourado e tinha um lacinho vermelho. A julgar pelo embrulho malfeito
e pela fita desalinhada, podia apostar que fora ele quem o fizera. Ofereci-lhe um sorrisinho.
- Mas está muito adiantado. Presentes antes do Natal? Isso não é certo. Quero dizer, não sou tão diabólica.
Ele sentou-se na cama, encostado na cabeceira, parecendo incrivelmente satisfeito consigo mesmo. - Bem, eu sou. Acho que minha alma acabou de escurecer um pouco.
Abra.
Também me sentei e rasguei, hesitante, o papel. Não tinha a menor dúvida de que se tratava de uma caixinha de joia. A pergunta era: que joia? Seth, de vez em quando,
demonstrava um espírito romântico, mas não era do tipo que fazia coisas malucas como, por exemplo, pedir alguém em casamento. Pelo menos, eu achava que não.
Torcendo para que fosse uma pulseira, acabei encontrando um anel. Mas não era um anel de compromisso, pelo menos não era uma aliança comum. Era a réplica moderna
de um anel bizantino. Só que não era exatamente um daqueles que víramos na loja do Erik. Para começar, era de platina, emitindo um brilho suave e prateado sob aquela
iluminação fraca. O disco delicado no topo apresentava a gravação de um golfinho, decorado com safiras minúsculas incrustadas.
Fiquei observando-o, sem saber o que dizer.
- Gostou? - perguntou Seth, com uma certa hesitação na voz.
- Eu... sim. Sim, gostei. Muito - respondi aos poucos.
- Você me pareceu tão triste por ter perdido aquele outro, que achei que talvez esse seria um bom substituto.
Ele parecia tão extasiado e animado, que não tinha como lhe contar que não apenas eu não havia perdido o anel original como também o havia enfiado num canto no armário
para nunca mais vê-lo. Este era bem diferente, verdade, mas as semelhanças eram muito grandes para desencavar aqueles sentimentos sombrios que eu tentava manter
enterrados, lembranças de um dia ensolarado, muito tempo atrás, em que meu marido - o marido que acabei traindo - colocou o outro anel em meu dedo, em nosso casamento.
- É lindo - falei, após um longo silêncio, precisando tranquilizá-lo. Afinal de contas, fora muito gentil. Seth não conhecia minha história, tampouco a dor que a
envolvia. - Por que o golfinho?
- Sim... é bonitinho e está na moda, mas... bem, essas letras gregas não significavam nada para mim. Aí li um artigo que falava que golfinhos eram importantes para
algumas religiões antigas no Chipre, assim...
Isso me fez sorrir com sinceridade. - É verdade, eram mesmo. Mensageiros dos deuses marítimos. Traziam boa sorte e coisas assim. - De repente, lembrei-me de uma
coisa. - Vimos um desses na loja do Erik, alguns dias atrás... mas não era este. Como você o conseguiu? Ele tinha mais guardado? Ou foi a outro lugar?
Seus olhos se enrugaram, demonstrando que ele se divertia. - Ei, estou aprendendo seu poder de persuasão. Entrei em contato com o artista e encomendei.
Meu Deus. Seth encomendara um anel personalizado - um anel personalizado de platina -, pouco antes do Natal. E mandara fazer rapidamente. O custo deve ter sido estrondoso.
Meu desconforto ficou ainda maior. Ao observar meu silêncio, seu sorriso diminuiu.
- Tem certeza de que gostou?
- Sim, sim... lógico. É que... me desculpe, não sei o que dizer. É incrível. - Encaixei-o no meu anelar direito. Serviu perfeitamente. Hesitante, encarei-o.
- Este é, er, um anel de amizade, certo?
- Sim, não se preocupe. Se eu te pedir em casamento, você saberá. Principalmente porque vou ficar sem fôlego. - Um sorriso malicioso, surpreendentemente sensual,
surgiu em seus lábios. - E será um rubi.
- Rubis? Sem diamantes? Seria muito caro para o salário de um velho escritor, não?
Ele soltou um resmungo de desdém. - Não, apenas acho que diamante é uma coisa comum, só isso. Se eu me casar, será porque algo incomum está acontecendo. Além disso,
você usa muita coisa vermelha, não? Sei como você considera importante que os acessórios combinem.
Dei uma bufada e permiti que me levasse para a cama. Ele adormeceu rapidamente, como sempre, mas eu fiquei lá, tocando o anel. O metal ficara aquecido com a minha
pele, e fiquei tracejando o golfinho e as safiras com a ponta do dedo. As lembranças desagradáveis que o anel desenterrou não haviam sumido, mas, de alguma forma,
deitada em seu braço, pareciam um pouco menos dolorosas.
Por fim, consegui dormir, e imediatamente passei a sonhar... o sonho.
Estava novamente na cozinha, cercada pelas mesmas imagens, cheiros e sons vívidos de antes. Minhas mãos na água. O aroma do sabão laranja. - Sweet Home Alabama.
Era uma repetição do que eu vira antes: eu, em meu sonho, lavando louça e cantarolando a música. Olhei para trás, para outro cômodo. Fora lá que o sonho terminara
da outra vez. Mas agora continuava.
Uma garotinha sentada na sala de estar, por volta de dois anos de idade. Estava sobre um cobertor no chão, rodeada por bichinhos de pelúcia e outros brinquedos.
Tinha uma girafa felpuda nas mãos, que emitia um guizo quando chacoalhava. Como se notasse minha presença, a garotinha ergueu a cabeça.
Suas bochechas rechonchudas davam-lhe um ar de bebê gordinho. Tranças finas, castanho-claras, cobriam-lhe a cabeça, e seus olhos cor de avelã eram grandes e emoldurados
por cílios escuros. Era linda. Atrás dela, no sofá, Aubrey estava deitada, toda encurvada, como se fosse uma bolinha. Outro gato - cheio de manchas laranjas e marrons
- estava estirado ali. Nunca o vira antes.
Um sorriso de felicidade espalhou-se pelo rosto da garotinha, criando uma covinha em sua bochecha. Uma poderosa onda de amor e alegria tomou conta da minha personagem,
emoções que eu também sentia. Sabia que - sabia de uma forma que não conseguia explicar, mas tinha certeza absoluta - aquela garota era minha filha.
Acordei.
Assim como da última vez, a manhã chegara, e eu nem sentira o tempo passar. Os raios de sol se infiltravam pelas janelas, e, ao meu lado, Seth ainda dormia. Também
como da última vez, minha energia tinha sumido. Estava esgotada.
Mas a dor por ter perdido a energia não era nada quando comparada à dor que sentia por ter sido arrancada do sonho, por ter sido privada das emoções poderosas que
eu, no sonho, sentia por aquela garotinha. Minha filha no sonho. Minha filha.
Não, aquilo era inaceitável, repreendi-me. Súcubos não podem ter filhos. Abandonei essa pretensão ao vender minha alma.
Contudo, parecera tão real. Tão intenso. Eu não podia ter filhos, mas, naquele sonho, ela era minha. Sem dúvida alguma. Mesmo agora, sentia aquele instinto maternal,
e não ter minha filha ali despedaçava meu coração.
E, mais uma vez, dizia para mim que aquilo era uma estupidez. Sonhos não eram reais. É por isso que eram... ora, sonhos. E eu tinha problemas maiores para lidar.
Como a perda de energia.
Ao meu lado, Seth moveu-se e, sem perceber, puxou os cobertores, deixando-me descoberta. Puxei de volta, e ele virou-se para mim, abrindo seus olhos sonolentos.
- Ei - falou. - O que foi?
- Você quem começou.
- Mas você continuou.
- Olha, sou eu a diabólica aqui, lembra?
Ficamos nos provocando por um tempo, brincando de cabo de guerra com os cobertores. Fingi um sorriso para não precisar explicar meus problemas para ele. Por fim,
levantei-me, apesar de parte de mim desejar ficar na cama o restante do dia. Sonhando. Mas Seth precisava escrever, e eu tinha de assumir o turno da tarde.
Quando cheguei em casa, encontrei Vincent para cima e para baixo, preparando o café da manhã com Yasmine. Eles me cumprimentaram animadamente, rindo a respeito de
algo que conversavam antes de eu entrar.
- Quer ovos? - perguntou-me ele, agarrando um pote de manteiga que fora atirado por Yasmine. Pelo que parecia, foram fazer mercado, já que não havia manteiga ali
antes. Para falar a verdade, nem comida.
- Não, obrigada - falei, sentando-me em um banquinho. - Já comi.
- Você não sabe o que está perdendo - falou ela. - Vincent faz uns ovos tão gordurosos, que vai acabar indo para o inferno.
Colocou uma frigideira no fogão, ligou o gás e ficou ouvindo o clique feito pelo acendedor, já que demorou um pouco para acender. - Ah, então será culpa dos ovos?
Da última vez, disse que era por causa do jeito como eu estacionava.
Os olhos de Yasmine cintilavam de brejeirice. Ela fizera com seu cabelo preto um rabo de cavalo, o que a deixou com uma aparência mais jovial. Ironicamente, definir
sua idade estava além da compreensão humana ou de um súcubo.
- Ah, droga. É mesmo. Tinha me esquecido. Huh. Empatou, então. Já não sei mais o que vai te mandar para baixo antes: o pote de manteiga para cozinhar dois ovos ou
a fila dupla a um metro da calçada.
Ele bateu-lhe no braço com a colher de pau. - Um metro? Sabe que nunca te vi dirigindo? Você vai me deixar louco com essas provocações.
- Ah, sim, que seja. Você já era louco antes de eu aparecer.
Fiquei olhando de um para o outro, enquanto eles continuavam se provocando, e percebi que haviam esquecido que eu estava ali. Como me senti uma intrusa, discretamente
me afastei, dirigindo-me ao meu quarto. Fechei a porta e olhei, assombrada, para Aubrey: estava esparramada na minha cama, aquecida por um raio de sol.
- Foi assim a manhã inteira, Aub?
Bocejou, piscou para mim com seus olhos verdes e, então, enrolou-se, formando uma bola branca - em posição semelhante àquela em que eu a vira em meu sonho. Cobriu
o rosto com uma pata.
Hum, está bem. Foi algo inesperado. Será que eu estava louca, ou eles... Yasmine e Vincent estariam flertando? Quero dizer, certamente ela era um anjo sociável e
tudo o mais, mas aquilo... sim, quanto mais pensava no assunto, mais acreditava que estavam flertando, sim. Mais do que flertando. O mais estranho é que não era
o tipo de provocação que duas pessoas se fazem durante a fase de galanteio. Era o tipo de provocação familiar de duas pessoas que estão juntas há muito tempo, duas
pessoas que se sentem tão confortáveis uma com a outra que são praticamente capazes de completar as frases da outra. Era como o fenômeno que Erik notara entre Seth
e mim.
- Estão apaixonados - falei para Aubrey, sem acreditar. Ela continuou me ignorando.
Mas como funcionava? Eles não podiam dormir juntos. Aprendi, há algum tempo, que isso era motivo para fazer um anjo cair, e Yasmine ainda estava claramente no lado
da verdade e da justiça. E o que isso significava? Não haveria problemas em um anjo amar um humano, contanto que permanecessem separados fisicamente? Algo dentro
de mim achava que não. Depois de ver todo aquele melindre de Joel, tinha certeza de que mesmo um romance pudico não seria aceito por ele ou pelos outros. Assim,
era provável que ninguém soubesse, nem mesmo Carter. E, para falar a verdade, não sabia nem se eu queria saber. Era ingênua em relação a romances que tinham tudo
para dar errado - e esses relacionamentos nunca acabavam bem.
Peguei umas peças de roupa e fui tomar banho, quando me dei conta de que talvez estivesse presenciando um romance ainda mais difícil do que o meu. Quem imaginaria
isso? Acho que, entre anjos, milagres eram realmente possíveis.
Terminei o banho, sequei o cabelo e não parava de pensar na confusão desse romance. Voltei para a sala de estar, perguntando-me se veria mais algum comportamento
suspeito. Mas, em vez disso, o que encontrei foi uma assinatura conhecida e indesejada. Pegajosa e almiscarada.
Niphon estava sentado em meu sofá.
Capítulo 7
- Saia daqui - falei imediatamente.
Yasmine e Vincent, ainda tomando café, ergueram a cabeça, surpresos. Niphon apontou para eles.
- Eu fui convidado. Não achei que se incomodaria.
Anjo e humano pareciam claramente desconfortáveis, e era possível imaginar o que teria acontecido. Niphon aparecera e eles permitiram que entrasse, sem saber de
nossa animosidade. Devem ter imaginado que era meu parceiro na maldade, o que, tecnicamente, era mesmo.
Vincent levantou-se, apressado, e levou seu prato vazio para a pia. Yasmine fez o mesmo.
- Bem - disse Vincent. - Acho que está na nossa hora. - Não eram nada bobos. - Prazer em vê-los.
Saíram tão rapidamente que pareciam ter sido teletransportados.
Voltei minha atenção para Niphon. - Saia daqui - repeti.
Ele encostou-se em meu sofá, levando os braços para sobre a cabeça.
- Letha, Letha...
- E pare de me chamar assim.
- Como queira. E não se preocupe. Vou largar do seu pé logo. Apenas queria te contar como estão as coisas com Tawny.
Ah, Deus. Tawny. Implorava, em silêncio, para que ela tivesse tido sucesso na noite passada. Sua atitude no bar não tinha inspirado muita confiança, mas talvez a
forma como seduzi Jude servisse como um bom exemplo.
- Ainda não conseguiu nenhuma vítima.
Droga.
- Está bem, obrigada - falei, apontando para a porta. - Pode ir agora. E, da próxima vez, pode me telefonar para fazer um relatório. Preferivelmente, quando estiver
no táxi que vai levá-lo para o aeroporto, para que eu nunca mais precise ver essa sua cara de merda.
Ele levantou-se do sofá, com uma expressão de mágoa. - Certo, certo... Mas há outra coisa sobre a qual queria conversar com você.
- Não há nada que eu queira conversar com você. - Estava prestes a rosnar.
- Ah, não tenho tanta certeza quanto a isso. - Sua mão estava na maçaneta, mas ele não demonstrava nenhuma intenção de realmente sair. - Acho que te interessará,
e muito. É sobre sua vida amorosa.
- Não! Não vamos falar sobre isso.
- Let... Georgina, eu só quero ajudá-la - queixou-se. - Acho terrível vocês não poderem expressar inteiramente seu amor.
- Nós... estamos... bem. E não se encoste na porta. Não quero que seu cabelo a manche de óleo.
Niphon endireitou-se e passou uma mão, apreensivo, na parte de trás da cabeça. - Veja, sei por que você não quer dormir com ele. É uma atitude admirável. Quer proteger
a expectativa de vida dele, não quer destruí-lo, etc., etc. Mas e se isso não fosse um problema? E se eu lhe permitisse fazer sexo com ele sem sofrer os terríveis
efeitos colaterais?
- Certo. E você faria isso porque tem um coração bom.
- Bem... - Ele deu de ombros e ergueu as mãos. - Há sempre um preço a pagar.
- Não vale a pena. Não valeria a alma de Seth.
- Posso amenizar a barganha. Dar a ele uma maior longevidade... uma juventude mais longa...
- Não. Juro por Deus que, se você não sair agora, vou chamar Jerome. - Era um blefe, já que Jerome nem estava na cidade.
- Como eu disse, estava apenas tentando ajudar - falou Niphon.
- Assim como me ajudou antes? - perguntei, nem tentando esconder o sarcasmo.
De repente, a expressão provocadora, insolente, tinha desaparecido. O rosto de Niphon ficou rígido. Furioso. Assustador.
- Eu te ajudei, sim, pequena Letha. Você não era nada. Nada mesmo. A filha de um pobre pescador numa cidade de merda, no meio do nada. Uma puta numa cidade de merda,
no meio do nada. Sua vida estava fodida, e fui eu quem a consertou. Eu te fiz quem você é. Apaguei seus problemas. Salvei seu marido. Dei a você vida e beleza eternas.
Acima de tudo, você deve isso a mim.
- Não valeu a pena - falei, numa voz que se equiparava à sua expressão sombria. - Não valeu a pena.
- Não valeu? Preferiria ter assistido ao suicídio de seu marido? Preferiria ter morrido miserável e desgraçada?
Não respondi. Lembrei a expressão de desespero no rosto de meu marido quando descobriu que eu o havia traído. Mesmo tantos séculos depois, aquela expressão ainda
me assombrava. Ficara tão desesperado, que estava prestes a se matar. Ao vender minha alma e tornar-me um súcubo, fiz uma barganha com o inferno por meio da qual
ele e todas as outras pessoas que eu conhecia se esqueceriam de mim. Meu marido sobrevivera e seguira com sua vida, apagando de sua memória a minha existência. Valera
a pena?
Ao notar meu silêncio, o rosto de Niphon reassumiu aquela expressão zombeteira. Abriu a porta. - Até logo, Georgina. Se mudar de ideia, avise-me.
Ele saiu, e fiquei olhando para a porta um bom tempo antes de, por fim, forçar meus pés a se moverem. A oferta de compra da alma de Seth não me tentava nem um pouco.
Isso não me incomodou. Mas as outras coisas que dissera... as recordações de meu passado...
Suspirei. Não era hora para lidar com aquilo, nem com nada do que estava acontecendo em minha vida. E falando nisso... a duas horas de começar meu turno, decidi
arriscar novamente e tentar obter mais informações sobre meu sonho. Com Dante.
A loja dele parecia tão deserta quanto da última vez em que eu estivera lá, mas, dessa vez, havia pelo menos um cliente. Era uma jovem, provavelmente universitária,
com cabelo castanho encaracolado e um moletom cinza. Ao vê- -la, comecei a me afastar, mas ele acenou para que eu entrasse.
- Não, não, está tudo bem. Pode aguardar aqui. - Dante encarou a garota. Estavam sentados à mesa aveludada e gasta. - Você não se importa, não é verdade?
Ela mal me olhou. - Não! Não! Vamos lá. Quero saber mais sobre o homem.
Dante estava com um sorriso encantador no rosto, que me parecia um tanto falso, mas suspeitava que fosse muito eficiente com ela. Ao me aproximar, percebi que estava
lendo o tarô para ela. Havia várias cartas na mesa. Virou mais uma.
- Ah, o Hierofante. - Sua voz tinha um tom de mistério e sapiência.
- O que significa? - guinchou ela.
- Você não sabe? Não sabe nada a respeito dessa carta?
Ela fez que não com a cabeça. - Nada.
- Bem, o Hierofante é uma carta de amor. Representa um homem romântico, bonito e charmoso, que adora dar presentes e fazer pequenos agrados. Você conhece o tipo.
- Na verdade, não - respondeu, melancólica. - Todos os namorados que tive eram babacas.
- Bem, mas isso vai mudar - prometeu.
Eu sabia um pouco sobre tarô. O Hierofante representava tradição, sabedoria e religião. Não era exatamente uma figura romântica, principalmente considerando-se que
era normalmente representado por um sacerdote.
- Por que ele se veste de forma tão bizarra? - perguntou a garota. - Parece estar usando um robe.
- Não é bizarra - falou Dante. - É opulenta. Lembre-se: o tarô é um sistema antigo. Um cara vestido assim representa a mais alta moda da época. Sabe, do tipo que
agrada qualquer estilista.
Olhei para Dante e girei os olhos. Ele se mantinha impassível e virou a carta seguinte.
- As coisas estão ficando boas - declarou. - A Torre.
A Torre era, na verdade, a pior carta do baralho.
- Indica que vocês terão um futuro promissor.
- Por que está pegando fogo? - perguntou. - E por que as pessoas estão se jogando pelas janelas?
- É tudo simbólico - replicou rapidamente. - E, apesar de tudo parecer incrível quando você encontrar esse cara, significa que terá de ter cuidado e ler os sinais.
- Oh, uau - falou. - Espero que consiga.
Dante juntou as cartas e as empilhou direitinho. - Bem, se quiser, posso ajudá-la. Posso oferecer-lhe um pacote de leituras com desconto. Dessa forma, você terá
um guia ao longo do caminho. Estará preparada para quando conhecê-lo.
Duvidava que, algum dia, ela fosse encontrar esse rapaz mítico.
- Quanto? - perguntou, com hesitação.
- Hm, vejamos. - Dante ficou contemplativo. - Bem, em geral, custa cinquenta dólares. Costumo dar um desconto de cinco dólares em pacotes... mas, caramba, quero
muito que dê certo. Sou um romântico, sabe? É um pouco abaixo do que faço, mas que tal um pacote de seis reuniões a quarenta dólares cada? Pode pagar agora e vir
quando quiser que eu leia as cartas.
A garota ficou pensativa, e senti vontade de gritar para ela que era um golpe. Mas precisava dos conselhos de Dante e não queria ficar na sua lista negra. Não que
já não estivesse lá.
- Não quero pressioná-la - falou, com gentileza. - Por favor, não se sinta obrigada. Faça apenas o que seu coração disser. Quero dizer, se as cartas nos disseram
algo agora, é que você precisa proteger seu coração ao entrar nesta fase importante de sua vida.
Isso a convenceu. - Está bem. Vou fazer.
Fiquei olhando, sem acreditar, os dois dirigindo-se à caixa registradora. Ela deu duzentos e quarenta dólares - mais impostos -, e ele entregou-lhe um cupom de tarô,
bem parecido com o que se pega em um café ou lanchonete.
- Você devia ter vergonha do que fez - disse-lhe, depois que ela tinha ido embora.
- Súcubo, prazer em vê-la também.
- Não havia nada de romance nas cartas.
- Não - concordou, aproximando-se de mim. - Na verdade, sugeria que logo ela faria uma mudança de sexo e participaria de um culto suicida.
- Mas você disse a ela que falava de amor.
- Ela tem 20 anos. Nessa idade, amor é a única coisa que lhes interessa.
- Você vai para o inferno.
- Eu poderia ter dito isso a você. Na verdade, eu te disse da última vez que nos vimos, não? Mas que posso fazer por você? Mudou de ideia em relação ao sexo?
- Não. Lógico que não.
Ele parecia ofendido. - Lógico que não? Mas que agressividade. Não sou tão feio assim...
- Não - concordei. Ainda parecia não ter se barbeado, e havia algo de muito sensual nisso e no caimento de sua camiseta índigo. Não tinha notado antes que seu abdômen
era definido. Acho que a falta de clientes ali lhe propiciava muito tempo para malhar. - Mas não é por isso que estou aqui. E, para ser sincera, se esse comportamento
é apenas a ponta do iceberg, começo a acreditar que sua alma vai ser uma perda de tempo mesmo.
Ele jogou as mãos para o alto. - Ela vem, me insulta e ainda espera que eu a ajude. É isso que você quer? Sua máquina de lavar louça quebrou?
- Não, mas tive o sonho novamente. E com uma novidade.
Fiz um resumo e ele ficou escutando, impassível.
- Tem certeza de que não quer uma nova máquina de lavar louça? - perguntou, incerto.
- Não!
- E filhos?
- Que têm eles?
- Quer ter filhos?
Fiquei em silêncio, e, apesar de seu sorriso torto, notei que Dante me analisava. Podia ser um charlatão, mas era esperto. Os melhores sempre são. Pessoas como ele
ganhavam a vida desvendando os outros e explorando pequenas coisas - como o desejo daquela garota em ter um romance.
- Não importa - falei. - Você sabe disso. Não posso ter filhos.
- Não perguntei isso, súcubo. Perguntei se você queria ter.
Esquivei meu olhar, e fiquei analisando a bola de cristal. Pela forma como os raios de sol a atingiam, suspeitava que, na verdade, fosse de plástico.
- Lógico que sim. Queria ter já quando era mortal. Se pudesse ter filhos agora, eu os teria.
Ele aquiesceu, e, pela primeira vez, fiquei com a impressão de que estava quase me levando a sério. Quase. - E deixe-me adivinhar: você acordou sem energia.
- Sim, e tinha pego uma vítima na noite passada. Assim como da última vez.
Seu rosto ficou contemplativo. - Interessante. Só acontece quando você está carregada.
- O que acha que isso significa?
- Não tenho a menor ideia. Talvez não signifique nada.
- Mas precisa haver um significado! Estou perdendo energia sem nenhuma razão aparente.
- Você está estressada - argumentou. - E você é, tipo, uma das pessoas mais irritadas que já conheci, imortais ou não. Passa séculos desejando ser engravidada. E
agora tem esse namorado celibatário. E você trabalha para aquele demônio, certo? Aquele que parece o Matthew Broderick?
- John Cusack - corrigi. - Parece o John Cusack.
- Que seja. É suficiente para sobrecarregar qualquer um. Seus sonhos são manifestações de suas angústias, reveladas por seu subconsciente de maneiras vívidas, esgotantes.
- Você é um imprestável. Seu conhecimento sobre sonhos é uma farsa... assim como todo o resto.
- Nada. Nem tudo que faço é golpe. Sei muito sobre sonhos. Sei muito sobre feitiços. E sei o que poderia ajudá-la.
- O quê?
Ele apontou para o balcão. - Você e eu. Ali. Pelados. Horizontal.
Resmunguei. - Uau, você realmente não estava mentindo. É um verdadeiro romântico.
- Pragmático. E oportunista.
- Um babaca, que me trata como uma prostituta barata...
- Porra, faz meses que não transo, e de repente aparece um súcubo aqui querendo minha ajuda. Você também tentaria negociar por sexo.
Olhei para ele, com cautela. - Então é isso? Preciso dormir com você para ser ajudada?
Dante enfiou as mãos nos bolsos. - Não. Acho que seria mais divertido se você estivesse com vontade. Além disso, nem tenho com que te ajudar.
Desapontada, dei indicações de que iria embora. - Está bem. Obrigada... acho.
- Sabe que mais pode ajudar? - gritou atrás de mim.
- Se tiver a ver com sexo...
- Férias. Ou, pelo menos, uma massagem. Coisas simples que diminuem o cansaço.
Eram, de fato, coisas razoáveis, e fiquei bem surpresa ao ver que sua mente pensava em outras coisas além de sexo. - Ajudariam mesmo - disse-lhe. - Mas duvido que
uma massagem resolva os problemas de minha vida.
- Talvez sim, talvez não. Mas se quiser uma de brinde... uma massagem de corpo inteiro, nua...
Fui embora.
Eu já sentia que meu romance com Seth era uma espécie de fita cassete que se repetia infinitamente. O restante de minha vida, aparentemente, também era. Ter o mesmo
sonho, visitar Dante, não receber ajuda, ir trabalhar e ficar reflexiva. Porque era exatamente assim que meu dia se desdobrava, exatamente como antes.
Enfrentei a papelada e o atendimento a clientes no Emerald City sem parar de lembrar as imagens da garotinha do sonho e a doce fantasia de ter uma filha. Meu coração
doía ao vê-la novamente, ao ver aquele sorriso. Tudo no trabalho parecia superficial e sem significado quando comparado com ela.
Quando terminou meu turno, levei Maddie para meu apartamento a fim de cumprir minha promessa de conseguir-lhe um encontro.
- Você vai me vender? - perguntou-me, quando lhe contei o plano.
- É um leilão - falei. - Para uma instituição de caridade que ajuda crianças. Você gosta de crianças, não?
- Sim, mas...
- Então será perfeito. Experimente isso aqui. - Joguei-lhe uma sacola da BCBG. Ela ficou olhando-a com cautela.
- Não é uma loja para jovens?
- É uma loja para pessoas com estilo - afirmei.
Abriu a sacola e pegou o vestido, que ia até a altura dos joelhos, que eu comprara para ela no dia anterior. Tinha um chiffon de seda e uma estampa geométrica rosa-escura.
A cintura imperial vinha sob um top levemente franzido, e havia um laço amarrado abaixo do decote em V. Mangas esvoaçantes davam o toque final.
- Não posso usar isso - disse de imediato.
- Por quê? Porque você vai ficar bonita?
Ela me dardejou com os olhos. - Tem muito pouco pano aí.
- Como assim? Há bastante pano. - Eu tinha muitos vestidos que “tinham pouco pano”. Mas aquele era elegante e de bom gosto. Parecia amish se comparado a algumas
de minhas roupas. - Experimente, e veremos.
Ela o fez, relutando, e quase urrei de alegria quando ela saiu do banheiro. Tinha acertado em cheio o tamanho. Servia perfeitamente.
- Ficou bem apertadinho - queixou-se, puxando o tecido na região da cintura.
- Exatamente.
- Mas não me deixa gorda?
- Você fica linda. Se fosse spandex, talvez não ficasse legal, mas este tecido é leve e drapeado.
- O decote é muito profundo.
- Ah, para de história - resmunguei. - Vamos dar o acabamento no resto de você.
Fiz a maquiagem e deixei seu cabelo solto, para variar um pouco. Emitia um brilho sedoso preto quando escovado, e fiquei com pena por ela
usar aquele rabo de cavalo malcuidado com tanta frequência. Além disso, todo mundo sabe que, nos filmes, meninas tímidas sempre ficam lindas quando soltam os cabelos
e tiram os óculos. Maddie já usava lente de contato, mas o
princípio era o mesmo. O toque final foram os sapatos de saltinho que eu comprara para combinar com o vestido. Saltos mais altos teriam ficado melhor, mas sabia
que eu não podia abusar da sorte. Satisfeita com o resultado, seguimos para o leilão.
- Você é minha fada madrinha - murmurou enquanto entrávamos no hotel em que ocorreria o evento. - Mas eu continuo sendo uma abóbora.
Dei-lhe uma cotovelada. - Por que tanto pessimismo? Você devia montar uma banda de emo rock, angustiada, para concorrer com a de Doug.
- Aí sim. Isso seria bem... ei, não é Seth ali?
Estávamos atravessando o salão em que aconteceria o leilão, em direção à área dos voluntários. Havia muita gente, e a maior parte das mesas de frente para o palco
estava tomada. Segui seu dedo, para onde Seth estava sentado, numa das poucas mesas que ainda não estavam cheias. Ao notar que o tínhamos avistado, ergueu a mão
cumprimentando-nos.
- Ele veio para te dar apoio - disse a ela. Na verdade, ficara assustado ao saber que eu estava coagindo Maddie a participar daquilo, e viera basicamente por uma
curiosidade mórbida pelo que ele acreditava que poderia ser um desastre.
Mas Maddie, sem saber disso, ficou feliz com a surpresa. Ela sorriu, e eu quase desmaiei.
- Aquilo - falei. - Aquilo ali é o que você precisa fazer.
Seu sorriso sumiu. - Aquilo o quê?
Hugh quase passou por cima de outras pessoas quando nos viu. - Sabia que você não odiava crianças. Sabia que você entenderia e viria ajudar...
- Eu não - falei. - Maddie. - Coloquei uma mão em seu ombro.
O rosto de Hugh ficou branco. - É?
Foi então que surgiu uma morena alta, em um vestido de noite de cetim preto. Devia ser “a gostosona”. Estendeu sua mão. - Prazer, meu nome é Deanna, sou a coordenadora.
Você deve ser a amiga de Hugh.
- Georgina - falei, cumprimentando-a. - Mas Maddie é a voluntária. É jornalista de uma importante revista feminina.
Os olhos de Deanna se alegraram. - Ah! Adoramos celebridades. Deixe- -me pegar seus dados.
Ela conduziu Maddie para longe. Assim que saíram, Hugh virou-se para mim. - Mas que merda, hein? Eu peço Georgina e você me dá Georgy, a Feiticeira?*
- Você é um babaca. Que coisa horrível de se dizer...
Ele deu de ombros, olhando para Maddie. - Falo o que penso. Ela é enorme.
Eu também estava olhando para Maddie. Achei que ela parecia bem magra naquele vestido, mas Hugh era daqueles que gostava do tipo esquelético - contanto que os seios
fossem grandes.
- É por causa de homens como você que algumas mulheres têm problemas sérios de autoestima. Você acaba com elas.
- Veja, sei que ela não é de todo ruim - falou. - Deve ser boa no boquete...
Girei os olhos. - Que sedutor! Por que diz isso?
- Gordas sempre chupam bem. Precisam fazer isso. É a única forma de conseguirem homens.
Dei-lhe um soco no braço. Com força.
- Ai! Porra, isso doeu.
- Você é um idiota - disse-lhe. - Maddie é bonita.
- Ela é comum - falou, esfregando seu braço. - E não era bem isso que eu precisava hoje à noite... não com tanta concorrência...
Ele apontou para onde estavam algumas voluntárias. Logo entendi a quem ele se referia. Foi fácil ver, já que Tawny era mais alta do que as outras pelo menos uns
trinta centímetros.
- Jesus Cristo - falei. - Como assim?
Ele jogou as mãos para cima, parecendo indefeso. - Ela gostou da ideia quando você comentou no bar.
- Nem achei que ela estivesse me escutando - falei, justificando-me.
Hugh acenou na direção da multidão. - Tarde demais agora. Vá sentar-se, Brutus, para que o desastre possa começar. Você arruinou a noite. Não sei por que odeia tanto
crianças.
Olhei para ele com cara de “bons amigos” e saí para encontrar Seth. Os vampiros estavam ao seu lado.
- Vieram aqui para conhecer alguém ou para encontrar uma vítima? - perguntei.
- Nenhum dos dois - respondeu Peter. - Viemos assistir ao Show da Tawny.
Suspirei. - Deveria ser um evento de caridade, e as pessoas o estão tratando como se fosse um show de horrores. Hugh já me acusou de estragar tudo por trazer Maddie.
Seth parecia surpreso. - Mas por quê? Ela está linda.
Indiquei quem ela era para Peter e Cody, que também concordaram que estava bonita. - Ela vai se sair bem - falou Cody. - É com Tawny que temos de nos preocupar.
Ainda não consegui ver o que ela está usando. Espero que não seja nada extravagante.
- Espero que ela ganhe roupas melhores do amigo secreto - falou Peter, que então olhou para mim. - Já comprou o presente do seu?
- Hein? - É verdade. Carter. Tinha me esquecido totalmente. Comprar algo para aquele anjo cínico não estivera exatamente no topo da minha lista de prioridades. -
Eu, hum, tenho algumas ideias. Ainda estou pensando no que dar.
- E uma árvore de Natal? Já comprou?
- Hum, também ainda não.
- Não sabia que você queria uma árvore de Natal - disse Seth. - Precisa de ajuda para escolher?
- Bem, não...
O leilão havia começado, interrompendo-me. O leiloeiro, Nick, era um jovem, na faixa dos trinta anos, que de vez em quando devia fazer uns bicos como modelo, mas
algo que na verdade nunca o tiraria de Seattle. Sorria sem parar, e conseguia flertar com as mulheres ao mesmo tempo que contava piadas masculinas para os homens.
Lances vinham de todos os lados, e era fácil ficar empolgada.
- A próxima - disse o leiloeiro, lendo o nome num cartão -, é Tawny Johnson.
- Johnson? - perguntou Cody. - Que nome mais besta...
- Ela inventou ambos os nomes - falei. Súcubos costumam fazer isso.
- Acho que sua energia mental acabou depois de escolher o prenome.
- Ai - disse Seth. - Quanta maldade...
- É que você ainda não a conheceu - alertei.
Tawny apareceu, usando sapatos com saltos de mais de quinze centímetros, que pareciam feitos de aço inoxidável. Pareciam aparelhos de tortura medieval, mas combinavam
com o conjunto de shortinho, superjusto, de lamê prata e jaqueta.
- Ela não nos desapontou - disse Cody, analisando o traje.
Não foi nenhuma surpresa quando tropeçou nos últimos degraus, e Nick precisou se aproximar para endireitá-la.
- Cuidado aí - falou, exibindo seus dentes alvíssimos. - São os homens que têm de ficar caídos por você.
Ela demorou um pouco para entender a piada, e então começou a emitir risadinhas curtas e agudas. O barulho me tirava do sério, mas Nick parecia bem satisfeito por
ter alguém que curtisse suas piadas.
- Por que não nos conta um pouco mais sobre você, Tawny? - falou.
- Diz aqui que está atualmente desempregada. Significa que está à procura de algo no momento?
- Bem, Nick, no momento estou à procura de alguém... se entende o que quero dizer.
- Ah, meu Deus - falei.
- Até que foi engraçado - observou Peter.
- Não, não foi.
Ao que parecia, Nick concordou com Peter: ele jogou a cabeça para trás e sorriu. - Cuidado, rapazes... temos aqui uma mulher perigosa. Diga-me, Tawny, o que você
busca em um homem?
Ela apertou seus lábios vermelho-brilhantes e ficou pensativa. - Estou buscando um coração, Nick. Coração e alma. É só isso que importa.
Ouviu-se um “ooh” coletivo na plateia. Ao meu lado, Peter comentou: - Bem, essa coisa de alma foi bem engraçada. Só para nós, é lógico. Mas foi engraçada.
Tawny, então, piscou para o público. - Mas vigor físico e um bom talão de cheques podem compensar às vezes.
Nick aguardou que a risada da plateia diminuísse. - Está certo, vamos começar o leilão com cinquenta... oh, meu Deus.
Tawny havia tirado sua jaqueta, revelando um bustiê tomara que caia de zebrinha. Na verdade, “bustiê” era um termo meio duvidoso. Ao ser amarrado ao redor de seu
busto enorme, parecia mais uma fita elástica que servia apenas para cobrir seus mamilos.
Lances começaram a vir de todo lado, para assombro de meus amigos e de mim. O mais surpreendente foi quando Nick, o leiloeiro, começou a participar.
- Pessoal, sei que não é muito comum... mas, bem, não consigo evitar. Trezentos dólares.
- Trezentos e cinquenta!
- Quatrocentos!
No final, foi Nick quem acabou levando-a, ao pagar a assustadora soma de quinhentos e cinquenta dólares.
- Bem, estou danado - disse Peter.
Eu teria feito uma brincadeira com esse comentário se não estivesse tão chocada. Quando recuperei a voz, falei: - Ora... foi uma coisa boa, não? Aquele cara parece
com vontade de ir para a cama com ela agora mesmo.
- E - completou Cody - foi tudo em prol das crianças.
Lentamente, meu assombro transformou-se em alívio. Fora uma mudança inesperada de rumos. A questão Tawny estava resolvida. Aparentemente, bastaria termos colocado
um anúncio dela. Ela iria para a cama com ele, e Niphon me deixaria em paz. Uma coisa a menos para eu me preocupar - o que era bom, já que tinha muitas outras coisas
para resolver. Como Maddie, por exemplo.
Ela seria a próxima. Veio andando, com uma expressão séria, preparada para a batalha. Parecia, ao mesmo tempo, aterrorizada e aterrorizante. Apesar de seu semblante
duro, consegui vislumbrar uns rostos interessados na plateia.
- Sorria, sorria - murmurava, para ninguém em particular.
- Maddie Sato - falou Nick, com jovialidade. - Você escreve artigos de revista. Será que já a li?
- É provável que não - falou, ainda fazendo careta. - A não ser que leia publicações feministas...
- Feminista - falou, claramente divertindo-se. - Agora só falta você nos dizer que odeia os homens...
Ela olhou para ele, séria. - Só odeio homens estúpidos que não conseguem entender o que significa “feminismo”.
Ele riu. - E encontra muitos homens assim?
- O tempo todo.
- É mesmo?
- Agora mesmo, Nick, estou falando com um.
- Ah, não, ela não fez isso - disse Peter. Dei uma gemida.
Nick levou uns dez segundos para perceber que acabara de ser insultado. E então, pela primeira vez naquela noite, parou de sorrir. Virou-se para a plateia e falou,
sem nenhuma empolgação na voz: - Está bem, vamos começar os lances com cinquenta.
Fez-se silêncio. Os rostos interessados já não pareciam mais tão interessados. Engoli um grito. Não, isso não estava acontecendo. Eu prometera um encontro a ela.
Isso a deixaria arrasada. Depois do que pareceu uma eternidade, escutei uma voz vindo do fundo do salão.
- Cinquenta.
Aliviada, virei a cabeça e olhei. O homem que dera o lance estava na faixa dos cinquenta anos e era muito parecido com um pedófilo que eu vira certa vez num noticiário.
- Cinquenta - falou Nick. - Ouvi setenta e cinco?
Silêncio. Virei-me para Seth.
- Faça alguma coisa - sibilei.
Ele hesitou. - Mas o quê?
- Dou-lhe uma...
Dei-lhe uma cotovelada, e sua mão se levantou. - Setenta e cinco.
Ouviu-se um “ooh” coletivo no salão. Parecia que ninguém, inclusive Maddie, esperava uma guerra de lances pela hostil odiadora de homens. Os olhos dela ficaram arregalados
de surpresa.
- Cem - disse o sósia do pedófilo.
E, então, para acabar com isso rapidamente, ou porque sentia pena de Maddie, Seth falou: - Trezentos.
Ouviram-se mais murmúrios de surpresa. O outro licitante não poderia competir; ele devia ter gasto todas as suas economias na fiança.
- Vendida para o cavalheiro com a camiseta do Welcome Back, Kotter.
- Legal - falou Cody, enquanto Maddie descia do palco.
Peguei a mão de Seth e a apertei. - Obrigada.
Ele ofereceu-me um sorriso torto. - Tudo pelas crianças.
Nick virou a carta seguinte. - E agora temos... Georgina Kincaid.
Minha cabeça explodiu. No outro canto do salão, vi o sorriso maldoso de Hugh.
- Ah, não, ele não fez isso - falei, com os dentes cerrados.
Nick, perplexo, olhou na direção das outras voluntárias. - Georgina
Kincaid?
- Não há escapatória - disse-me Peter. - Trate de subir lá. Caso contrário, as pessoas vão achar que você odeia crianças.
- Essa piada já está cansando - resmunguei.
Prometendo estapear Hugh mais tarde, levantei-me, sem muita empolgação. Ao me ver, Nick ligou seu sorriso supernova. - Ah, lá está ela. A moda é chegar atrasada.
Falando em moda, gostaria de estar trajando algo tão bonito quanto o vestido de Maddie. Ainda que tivesse sido enganada a participar daquilo, queria fazer tudo direito.
Estava bonita; minha vaidade não permitiria o contrário. Estava com uma saia preta e um suéter de caxemira roxo; o cabelo em um rabo de cavalo. Com pequenos ajustes
- lentos e pequenos demais para alguém notar -, apertei o suéter em meu corpo e aumentei o decote. Assumi um rebolado e soltei o rabo de cavalo, sacudindo meu cabelo.
Tinha funcionado com Maddie e várias outras nerds em filmes. E funcionaria comigo, já que surgira de repente um problema sério para resolver.
Não havia como, nessa terra verde de Deus, eu ser vendida por menos do que Tawny.
- Georgina - falou Nick, ajudando-me a subir. - Minhas anotações dizem que você prefere Georgie. - Agora, sim, Hugh com certeza ia apanhar. - E você cuida de uma
livraria.
Se eu tivesse acabado de pegar uma vítima e ainda possuísse um pouco do glamour dos súcubos, não precisaria fazer nada a não ser ficar em pé lá. Nem precisaria sorrir.
Mas agora teria de me esforçar um pouco. Avaliei rapidamente a plateia. Os homens que frequentam eventos como aquele costumavam ser executivos com bons salários.
Era possível que alguns estivessem ali simplesmente porque filantropia era moda e pegava bem, e esta era uma maneira elegante de aparecer. Outros, embora talvez
não estivessem desesperados, eram intelectuais introvertidos que consideravam uma boa oportunidade para conhecer mulheres. Esses homens queriam mulheres inteligentes
e competentes - e que também fossem bonitas, é claro. E sagazes... sagacidade sempre era um atrativo.
Ofereci a Nick, e ao público, um sorriso encantador. - Isso mesmo. Organizo eventos, arrecado fundos, garanto que tudo saia bem e coloco as pessoas em forma.
- Parece dar muito trabalho - falou.
- O mesmo para que o primeiro encontro seja excelente - respondi.
Não foi um estrondo, mas minha brincadeira obteve as risadas que eu esperava.
- Você tem expectativas altas - comentou Nick.
- Bem, acho que todo mundo deve ter. Por que me contentar com pouco? Se um rapaz satisfaz minhas expectativas, preciso satisfazer as dele. E, afinal, tudo depende
de bom humor e uma conversa que não me deixe com sono. - Percebi que estava parecendo uma concorrente a Miss América, mas talvez a situação fosse bem parecida mesmo.
Podia ver pelas expressões do público que havia causado uma boa impressão.
- Essa é para casar - falou Nick. - Vamos começar com cinquenta por Georgie.
Consegui meus cinquenta, e um pouco mais. Lances vinham de todos os lados. Em um determinado momento, olhei para Seth. Nossos olhares se encontraram, e notei, pela
expressão em seu rosto, que estava prestes a dar um lance. Fiz que não com a cabeça. Ele era o único naquele salão com quem eu queria sair, mas eu não queria macular
a vitória de Maddie. Queria que ela se sentisse especial. Além do mais, também não queria que Seth gastasse tanto dinheiro.
Fui vendida por 1700 dólares.
- Não acredito - sussurrou Maddie para mim, depois. - Acho que foi a mais cara até agora. E o cara, ainda por cima, era bonitinho.
Era mesmo. Trinta e poucos anos. Terno Armani. Inofensivo. Ninguém com quem eu pretendesse estabelecer algo sério, mas serviria para um encontro casual. Talvez uma
dose de energia, se decidisse utilizar aquele corpo.
- Você também levantou uma boa grana - provoquei-a.
Seu olhar encontrou Seth, sentado na outra ponta do salão, e ficou analisando-o. - Seth deve ter feito isso por sentir pena de mim.
- Lógico que não - repliquei rapidamente. Ela ainda parecia cética.
- Bem, não importa. Prefiro tomar café e falar sobre livros com ele a sair com um carinha qualquer. O outro licitante lembrava um pouco aquele tarado que vi na tevê
certa vez...
Quando o leilão acabou, troquei dados de contato com meu comprador para marcarmos um encontro. Hugh grudou em Deanna e ficou o mais longe possível de mim. Não importa.
Eu teria tempo de sobra para cuidar dele depois. Tawny, felizmente, também ficou longe de mim, agarrada ao braço de Nick. Fiquei olhando para eles como uma mãe orgulhosa.
Aquela noite ia ser incrível.
Capítulo 8
- Súcubo.
A voz lacônica de Dante era a última coisa que eu esperava escutar quando meu telefone tocou, na manhã seguinte. Havia esquecido que lhe dera meu número. Minha surpresa
logo foi substituída por ansiedade. Talvez tivesse descoberto algo que pudesse me ajudar. Não perdera nada de energia depois do leilão, contudo também não tinha
feito nenhuma vítima. Não era muita coisa, mas aquele pequeno padrão que Dante indicara era um bom ponto de partida, e torcia para que tivesse mais a oferecer agora.
- Ei! E aí? - Sentei-me no sofá. Estava me arrumando para sair com Seth, maquiando-me à moda antiga a fim de preservar energia de metamorfose. Precisava me aproveitar
de meu encontro leiloado o mais rápido possível, a fim de readquirir um pouco da energia.
Houve silêncio no outro lado da linha, até que Dante voltou a falar. - Fiquei pensando... fiquei pensando que estamos tratando disso da forma errada.
Isso era inesperado. - É mesmo?
- Sim. Eu não estava levando a sério, e agora entendo por que você ficava tão puta.
Ouvi-lo admitir que estivera fugindo de meus problemas não era exatamente animador, mas apreciei sua honestidade.
- Bem... está certo. Fico feliz por talvez podermos avaliar as coisas. Estou ficando ansiosa.
- Eu também. - Mais silêncio, e então escutei Dante respirando fundo.
- Mas e aí? Conhece o El Gaucho?
A referência a uma churrascaria do centro de Seattle era tão sem sentido que fiquei sem responder por alguns segundos. E, quando falei, não consegui articular muito
bem.
- O quê?
- É um restaurante. No começo da Primeira...
- Sim, sim. Sei onde fica. Mas o que isso tem a ver com meus sonhos?
- Sonhos? Do que você está falando?
- O que você está... ah, meu Deus. Você está me convidando para sair?
- Claro que estou. Que ligação teria o El Gaucho com aqueles sonhos?
Resmunguei. - Não acredito! Cheguei até a acreditar que você tinha algo útil para me falar.
- Estou tentando ser gentil! Veja, os sonhos são uma causa perdida, mas nós dois, não. Você estava certa quando disse que eu estava sendo vulgar ao tratá-la como
uma puta. Então vamos lá! Estou tentando transar com você da forma correta.
Achei isso ainda mais peculiar do que o convite de Dante para irmos ao bar com rodada dupla de cerveja. - Não quero transar com você, está bem? Preciso de sua ajuda
para meus problemas. E quantas vezes tenho de te dizer que tenho um namorado?
- Quantas vezes você quiser. Apenas não aceito a ideia de que se trata de um relacionamento verdadeiro. Principalmente depois de você ter se vendido por mil e setecentos
dólares na noite passada.
- Como você sabe disso?
- Estava no jornal.
- Aquele encontro não conta.
- E um encontro comigo? Pode não contar também?
- Não! Pela última vez, tenho namorado. Vou sair com ele hoje à noite.
- Ao El Gaucho?
Desliguei.
Estava cacheando meu cabelo quando escutei uma batida na porta. Ao andar até a sala de estar, senti assinaturas imortais do outro lado da porta. Felizmente, não
havia nada almiscarado ou pegajoso ali. Eram assinaturas conhecidas e bem-vindas.
Mas, logicamente, não eram tão bem-vindas naquela noite.
- O que vocês estão fazendo aqui? - perguntei, abrindo a porta para Peter, Cody e Hugh. Meus três patetas. Os anões da minha Branca de Neve. - E por que sempre aparecem
quando estou prestes a sair?
Como sempre, se aconchegaram em minha sala sem sequer precisarem de convite. Cody entregou-me um bilhete do zelador do meu prédio a respeito de um pacote que eu
recebera. Fiz uma anotação mental para pegá-lo na próxima vez que o encontrasse.
- Estamos indo àquele lugar que faz umas margaritas profanas - falou Cody. - Pensamos em passar aqui para ver se queria ir conosco.
- E eis você, ingrata e maldosa - disse Peter. Correu o olhar pela sala.
- Ainda não vejo nenhuma árvore de Natal aqui.
Hugh ficou observando meu robe de seda vermelho. - Vai sair com isso aí?
- Lógico que não. Estou apenas me arrumando...
Os três trocaram olhares.
- A negócios ou com Seth? - perguntou Hugh.
- Seth.
- Merda - resmungou Peter. Tirou umas notas de dinheiro amarrotadas de sua carteira e entregou-as a Hugh.
- Vocês apostam a respeito de minha vida amorosa?
- Sim - respondeu Hugh. - O tempo todo. Precisa ver as apostas que estão rolando sobre a data em que você e Seth finalmente vão transar.
- Ora, fique firme, caubói. Isso não vai acontecer nunca. - Cruzei os braços e encostei-me na parede ao lado da televisão. - Logicamente, Niphon está se esforçando
muito para que isso aconteça. Ele também está na aposta?
- Ainda não. O que ele tem feito? - perguntou Cody.
Contei-lhes a respeito da oferta de Niphon pela alma de Seth. Para minha surpresa, não ficaram tão chocados e ofendidos como eu.
- Não sei - disse Hugh, lentamente. - Já tinha meio que pensado nisso antes.
Fiquei boquiaberta. - Pensado no quê? Em comprar a alma de Seth?
- Lógico. É o meu trabalho, ainda mais porque poderia te ajudar...
- Ah, meu Deus.
- Mas, se decidir aceitar - falou Hugh, em tom de alerta -, venha até mim primeiro. Posso cobrir qualquer oferta de Niphon.
- Se você intermediar a negociação, será desqualificado da aposta - avisou Peter.
- Ei! - gritou Hugh. - Isso não está certo.
- Lógico que está. Você teria uma vantagem injusta...
- Cristo. Calem a boca, todos vocês. Não consigo acreditar que estejam falando sério sobre comprar a alma de meu...
Uma nova assinatura propagou-se entre nós. Um perfume de maçã cristalizada. Mel aquecido sobre a pele.
- Tawny - falamos todos, em uníssono.
Abri a porta, e Tawny jogou-se em meus braços, berrando. Dei um grito e tentei não cair.
- Ah, Georgina - falou, soluçando, com o rímel escorrendo por suas bochechas como rios negros. - Nunca vou conseguir fazer. Nunca mesmo.
Tentei sair de seu abraço de amazona. - Calma, calma - falei, sem forças. - Tenho certeza de que vai.
Fungando, afastou-se e passou uma mão nos olhos, piorando ainda mais a maquiagem. - Não, não consigo. Já tentei de tudo... e nada funciona.
Olhei para os rapazes. Todos me encaravam, ansiosos, como se eu fosse capaz de explicar por que um súcubo não conseguia transar. Duvidava que alguém fosse capaz.
- Está bem - falei. - Acalme-se, e vamos analisar a situação. Mas, primeiro, recomponha-se. Você está um lixo.
- Não consigo - choramingava.
- Você está pensando como uma humana - comentei. - Você pode metamorfosear essa maquiagem.
- Não - respondeu, inflexível. - Você não entende. Eu não consigo.
Fiquei olhando-a, encafifada, quando então compreendi. Era quase impossível ver, mas havia um brilho que aparecia e sumia ao redor de seu corpo. Ela estava com dificuldades
para manter aquela forma. Sua energia estava tão baixa que ela estava perdendo seu poder de metamorfosear-se.
- Pare com isso já! - ordenei. Nunca tinha visto um súcubo em situação tão ruim. Eu cheguei a ficar mal uma vez, mas fora após uma sequência interminável de metamorfoses.
Lágrimas voltaram a se formar em seus olhos novamente. - O que vai acontecer? E se esgotar a minha energia e... - E ela não parava.
Suspirei. Há um momento na vida de toda garota em que ela deve escolher entre o menor dos males. Quando se é um súcubo, esses momentos surgem com certa frequência.
E, naquele instante, eu precisava optar. Podia correr o risco de Niphon nunca mais sair da cidade, ou podia dar um beijo em Tawny.
Dos males, o menor.
Na ponta dos pés, encostei meus lábios nos dela e encerrei sua tagarelice. Seus lábios tinham gosto de chiclete... devia ser o gloss. Foi um beijo bem comum - quase
sem língua -, mas foi suficiente. Um fluxo de energia saiu de mim e foi para dentro dela. Interrompendo o beijo, afastei-me e fiquei olhando para ela. Sua forma
tinha se estabilizado. Enquanto isso, minha energia tinha baixado, mas ainda era muito mais do que ela tinha antes.
Seus olhos azuis ficaram arregalados. - Como... assim?
- Um beijo - respondi, seca. - Parece que é mais uma coisa que você tem de aprender. - Ao ver sua expressão de assombro, balancei a cabeça. - Somos canais de energia
e vida, Tawny. Normalmente, entra em nossos corpos, mas, às vezes, podemos transferir para outras criaturas. Súcubos e íncubos podem compartilhar entre si. A dose
que eu te dei vai te manter por algum tempo.
- Não sei - falou Cody, repentinamente. - Acho que você devia dar-lhe um pouco mais, só por garantia.
Tawny tocou seus lábios, como se ainda pudesse sentir meu beijo. - Uau. - Ela mudou de forma, e a sujeira da maquiagem sumiu. Seu rosto normal, assustadoramente
perfeito, reapareceu.
Sentei-me no braço do sofá, ao lado de Peter. - Está bem. Agora vamos tentar descobrir como isso pode estar acontecendo. O que aconteceu com Nick, o leiloeiro? Vocês
pareciam estar se dando bem na noite passada.
- Bem - gaguejou, olhando para seus pés. - Mas não deu em nada.
- Como assim? Não deu em nada? Ele estava babando por você!
- Sim, mas ele precisou ficar para fechar as coisas por lá, e assim não pudemos sair ontem. Fui embora sem ele. Hoje, telefonei para marcar um encontro, e ele disse
que não queria. Que ficava satisfeito só de dar o dinheiro para uma instituição de caridade e que eu não precisava me importar com nada.
- Ele disse isso? - perguntei, incrédula. Olhei para ela, sem acreditar. - O que você disse para ele antes?
- Como assim?
- Você telefonou e já o convidou para sair?
- Hum, não... batemos um papinho. Não que tenha ajudado muito. Ele parecia meio entediado.
Mas que surpresa. Tawny não me parecia ser o melhor papo do mundo. Podia até imaginar o que teria dito a ele, a ponto de assustá-lo.
- Entendi - falei, desapontada. Para mim, Nick seria uma vítima fácil. - Acho que, talvez, você, sei lá, não devesse conversar com eles. E aquela ideia de trabalhar
num clube de striptease? Pensou no assunto?
Ela ergueu a cabeça para cima e parecia que ia chorar novamente. - Eu tentei! Disseram que eu não tinha as qualificações necessárias.
Nem mesmo os rapazes conseguiram se manter quietos naquela hora.
- Como alguém pode não ter as qualificações necessárias para ser uma stripper? - perguntou Cody.
- Sim, não basta tirar a roupa? - perguntou Hugh.
- Disseram que eu não sei dançar - explicou.
Ficamos nos olhando.
- Certo... - Fiquei me perguntando se, talvez, não fosse melhor ler o livro de tutoria. - Vamos ver isso.
- Ver o quê?
- Você. Dançando.
Tawny correu o olhar pela sala. - Aqui? - chiou. - Na frente de todos vocês?
- Se você não consegue tirar a roupa na frente de seus amigos - falou Peter -, na frente de quem conseguirá? - Dei-lhe um toque com o cotovelo.
- Não consigo - sussurrou.
- Tawny - esbravejei. Minha voz tinha um tom de autoridade semelhante ao de um sargento instrutor. Ela pulou. - Não vou ficar te beijando até o fim dos tempos. Se
você quer fazer isso, é melhor trabalhar. Agora, tire sua roupa.
- Oh - comentou Hugh. - Faz dez anos que espero ouvi-la dizer isso a outra mulher.
Encontrei o controle do rádio e o liguei. Começou a tocar “Tainted Love”.
- Não consigo fazer strip com uma música dos anos 80!
- Tawny!
Com uma expressão de terror, dirigiu-se para o centro da sala. No início, ela ficou ali parada, mas então, lentamente, tentou mexer-se de acordo com a música. Eu
disse tentou porque estava assustadoramente fora do ritmo. Acho que, nem se eu quisesse, conseguiria ficar tão fora de sincronia. Por fim, desistiu de mexer os pés
e passou a se concentrar unicamente na parte superior do corpo, balançando os braços e o rosto bem devagarinho. Era o espetáculo mais desajeitado e inquietante que
eu já vira.
No final, concluiu que havia “dançado” demais e começou a tirar a roupa. Porém, ao que parece, ela não conseguia fazer duas coisas ao mesmo tempo, e assim desistiu
de fingir que se mexia no ritmo da música. Em vez disso, permaneceu parada e começou a desabotoar sua blusa de zebrinha. Seus dedos atrapalharam-se com o terceiro
botão, e ela levou quase trinta segundos para abri-lo.
- Pare, por favor, pare - falei, desligando a música. - Seu objetivo é subtrair anos das vidas das pessoas, mas não dessa forma.
- Fui mal? - perguntou.
- Não - respondi. - Foi horrível.
Ela fez um bico.
- Ora, vamos lá - falou Cody, sempre o mais gentil do nosso grupo.
- Isso foi meio maldoso.
- Ei, minha função é ser professora, não uma amiga.
- A Escola da Georgina é muito rígida - entoou Peter de modo solene.
- Não é tão fácil assim - falou Tawny, olhando para mim de modo acusatório. - Se você é realmente minha professora, mostre-me como fazer.
Quatro rostos me olhavam, ansiosos. Pensei em protestar, mas então lembrei que ajudar Tawny significava que Niphon sairia de Seattle mais rapidamente. Saí do braço
do sofá e assumi sua posição no centro da sala.
- Está bem, em primeiro lugar, você está se esquecendo de duas coisas. Um, ouça a música e mexa-se de acordo com ela. Há uma batida. Encontre-a. Mexa seus pés e
seu corpo, seu corpo todo, no ritmo. Torne-se parte dele. - O olhar vazio de Tawny dizia-me que estava muito complexo para ela. - E, quando chegar a hora de tirar
a roupa, lembre-se que não está fazendo isso para ser prática. Você o está fazendo para outra pessoa. Faça com emoção. Faça com arte.
Liguei o rádio e coloquei na faixa seguinte do meu CD mixado. Era “Iron Man”.
- Ei - disse Tawny. - Por que, para você, é metal?
- Nem você consegue fazer striptease ao som de Ozzy - brincou Hugh.
Olhei para ele de esguelha. - Consigo fazer strip com qualquer música, querido.
Comecei a me mexer. Para mim, era algo inato. Fora dançarina desde meus dias de mortal. Adorava fazer isso. Não havia diferença entre a música e mim. Éramos um só
ser. Meu corpo fluía de acordo com a melodia e o ritmo, e todos os movimentos eram graciosos e sensuais. Nem prestava atenção em meus amigos. Apenas me deixava ser
levada pela música.
Não tinha muita roupa para tirar. Estava de calcinha e sutiã e um robe por cima, mas minha intenção era não tirar nada. Era próxima de meus amigos, mas nem tanto.
Entretanto, aproveitei ao máximo o robe, fazendo minhas mãos deslizarem sobre meu corpo coberto de seda. Desamarrei lentamente a faixa, prolongando aquela experiência,
e deixei que escorregasse para o chão. Tirei os sapatos com a mesma prudência.
Sem perder nenhuma batida, falei para Tawny: - Quando você chegar a esse ponto, passaremos à dança de colo.
Dirigi-me para onde Hugh estava sentado e posicionei minhas pernas de forma que eu ficasse montada sobre ele, mas sem o tocar. A maestria de uma stripper. Passei
a mão pelo cabelo, e meu corpo ainda ondulava.
- Ei, garanhão - falei.
Ele parecia, acima de tudo, curtir o momento. Colocou a mão no bolso e retirou uma nota de um dólar.
- Hugh - falei. - Não me insulte.
Com um suspiro, apareceu uma nota de cinco e ele a enfiou sob a alça de meu sutiã.
- Oi, Seth - disse Cody de repente.
Ergui a cabeça e vi Seth parado na entrada. Quando Tawny se derramou sobre mim, esqueci de fechar a porta. Estava com uma expressão zombeteira no rosto.
- Opa - falou, olhando para mim. - Então... o jantar é por sua conta.
Arrastei-me para fora do colo de Hugh e peguei a nota de cinco. - Só se você quiser ir ao Taco Bell.
Cody deu-me uma nota de vinte. - Pelo menos o Red Lobster.
Meus amigos se levantaram e dirigiram-se à porta, e garanti a uma perturbada Tawny que pensaria em uma forma de ajudá-la. Desisti de tentar me aprontar manualmente,
e assumi uma forma com jeans, botas de cano baixo e outro suéter de caxemira. Um casaco de lã três-quartos dava o toque final. Forcei um sorriso para Seth, que sacudia
sua cabeça, desapontado. Comparado a outras coisas que ele sabia que eu fazia, um striptease de improviso não era nada.
- E você achando que eu não sabia ganhar dinheiro.
- Sem comentários - falou, pegando minha mão.
Capítulo 9
-
ão entendo isso - disse Seth, brincando. - Eu te pego fazendo um strip-tease na frente de outros homens, mas sou eu quem acaba punido?
Peguei sua mão e o conduzi até o rinque de patinação no gelo. Assim como dançar, eu conseguia patinar com certa facilidade. Seth ia aos trancos e barrancos. Sem
minha mão, suspeitava que ele já teria caído.
- Isso é bom para você, Mortensen. Fica sentado a uma escrivaninha, ou mesa, sei lá, o dia todo. Isso vai movimentar seus músculos novamente. E faz seu sangue bombar
pelo corpo.
Seu sorriso zombeteiro transformou-se numa risada nervosa, sua mão apertava a minha desesperada. - Há centenas de maneiras de fazer isso.
- Mas essa é a mais divertida - garanti-lhe.
Seth era brilhante e divertido, mas não tinha muita coordenação motora. Durante o início de nosso relacionamento, tentei ensinar-lhe a dançar. Foi um sofrimento.
Depois de muito tempo, conseguiu aprender os passos básicos, mas não fora nada fácil - nem agradável - para ele. Desde então, eu o deixara em paz, forçando-o a sair
para dançar apenas uma vez. Ficara mais molenga agora, e por isso achei que aquela experiência seria muito boa para ele.
- Homens não foram criados para usar patins - disse-me, enquanto nos arrastávamos ao centro do rinque. Estávamos ao ar livre, num pequeno parque, e nossa respiração
produzia nuvens de gelo.
- Mulheres não foram criadas para usar salto alto - falei. - Mas você não me ouve reclamando disso.
- É diferente. Salto alto é excelente para as pernas. Mas e isso? Isso apenas me faz parecer idiota.
- Bem, então - falei -, está na hora de aprender. Falando nisso, vamos tirar as rodinhas. - Soltei sua mão.
- Ei! Mas que...
Saí de perto, soltando sua mão com uma risada. Ele ficou lá, paralisado, enquanto eu patinava para longe, circulando o rinque em voltas graciosas e com rodopios.
Após alguns giros, patinei até ele, finalizando com uma bela pirueta. Não havia saído do lugar onde eu o deixara, mas já não parecia irritado.
- Veja só você - falou, tocando meu rosto. - Bochechas rosadas. Flocos de neve no cabelo. É a Rainha do Gelo.
- Deus, espero que não. É uma história deprimente. Hans Christian Andersen tinha problemas.
- Todos os escritores têm problemas - garantiu-me.
Dei uma risada e peguei-lhe o braço, conduzindo-o numa patinação mais desajeitada. Minhas pernas e pés protestaram contra a lentidão, mas o restante de meu corpo
estava feliz por poder me divertir com Seth.
- Falando de escritores com problemas - disse -, qual é o problema de eu fazer um strip para outros homens se você tem um encontro com outra mulher?
Suspeito que Seth teria me dado uma cotovelada, se não corresse o risco de cair por isso. - É sua culpa - falou. - Você me obrigou a fazê-lo, portanto não fique
aí de ciuminho.
- Não estou com ciúme... mas acho que Maddie tem uma quedinha por você.
- Acho que não. Deve ser algum tipo de encantamento pelo escritor. - Olhou para mim com ironia. - Como algumas pessoas que conheço. Na verdade, se ela tem uma quedinha,
é por você.
- Ah, pelo amor de Deus, pare com essa fantasia de lesbianismo.
- Nada disso. Ela a idolatra, apenas isso. Você a está desencavando daquele exterior inseguro dela, e acho que ela está começando a entender o que conseguiria fazer.
E aí você é vista como um exemplo.
Não tinha pensando nisso. - É mesmo?
- Sim. Continue treinando-a, e teremos uma mini-Georgina nas mãos. - Seth deu uma risada enquanto fizemos uma curva meticulosamente lenta. - Somando ela, aquele
novo súcubo e minhas sobrinhas, acho que você pode abrir a Escola de Finalização para Mulheres. Como consegue ser uma influência tão boa, mas ao mesmo tempo ter
um...
- Emprego aviltante? - completei.
- Por aí. Logicamente, suponho que poderia ser pior.
Olhei de esguelha para ele. - Poderia?
- Sim, você poderia, tipo, vender Amway ou tentar me convencer a transferir grandes quantias de dinheiro da Nigéria.
- Isso realmente acaba com qualquer relacionamento - falei, solenemente.
Ele me encarou, algo bem corajoso, considerando-se a atenção intensa que dava a seus pés. Sob as luzes suaves do rinque, seu rosto expressava ternura. Seus lábios
formaram um sorriso curto, afetuoso, e seus olhos irradiavam um carinho que quase me deixava de joelhos. Talvez fosse um truque para me fazer tropeçar. E quase funcionou.
- Por você? - falou e parou de patinar. - Talvez valha a pena.
- Vale a pena limpar a conta bancária?
- Sim.
- Vale a pena ser parte de um esquema de pirâmide?
- Dizem que não fazem mais isso.
- E se estiverem mentindo?
- Thetis - disse, suspirando. - Vou te dizer uma coisa que nunca disse antes.
- O quê?
- Cale a boca.
E então ele se inclinou e me beijou, trazendo calor para meus lábios frios. Ao nosso lado, ouvi crianças rindo de nós, mas não me importei. Senti o beijo até nos
dedos do pé. Foi breve, como sempre, mas, quando Seth se afastou, meu corpo todo estava tomado por seu calor. Todos os meus nervos formigavam, uma sensação vívida
e maravilhosa. Mal sentia o frio ou as nuvens de gelo que nossa respiração formava. Ele entrelaçou seus dedos nos meus, e levei minha mão a seus lábios. Estava de
luvas, mas ele beijou exatamente onde estava o anel que ele me dera.
- Por que você é tão doce? - perguntei, baixinho. Meu coração estava disparado, e sentia que todas as estrelas brilhavam apenas para mim.
- Não acho que eu seja tão doce assim. Quero dizer, acabei de pedir que calasse a boca. Falta pouco para pedir-lhe que lave minha roupa ou prepare um sanduíche para
mim.
- Você entendeu...
Seth deu-me um beijo na testa. - Sou doce porque, com você, é fácil ser doce.
Entrelaçamos os braços novamente e seguimos no circuito. Estava com uma necessidade ardente de descansar minha cabeça em seus ombros, mas imaginei que isso fosse
pedir demais de sua coordenação motora.
- O que você quer de Natal? - perguntei, meus pensamentos já se adiantando para a semana seguinte.
- Não sei. Não preciso de nada.
- Ah, não - provoquei. - Você não é desses, é? Dessas pessoas para quem é impossível comprar algo...
Um pé de Seth perdeu o controle. Consegui manter-me em pé, mas ele foi ao chão, com as pernas dobradas.
- Oh, meu Deus - falei, ajoelhando-me. - Você está bem?
- Acho que sim - disse. Seus lábios enrijecidos informavam-me que estava doendo mais do que ele queria demonstrar. Coloquei meu braço em sua cintura e ajudei-o a
se levantar. A perna sobre a qual ele caíra estava um pouco bamba, mas depois ele conseguiu endireitá-la.
- Venha - falei, conduzindo-o na direção do portão. - Vamos embora.
- Acabamos de chegar.
- Ah, virou fã de uma hora para outra, Scott Hamilton?
- Não, mas você gosta. Foi apenas uma queda.
Talvez tivesse sido apenas uma queda, mas pensar em Seth se machucando doía em meu coração. - Não, não. Vamos embora. Estou com fome.
A expressão em seu rosto me dizia que ele sabia que eu não estava com tanta fome, mas não quis discutir mais. Quando substituímos os patins por calçados normais,
fiquei satisfeita ao ver que ele não estava mancando. Isso teria sido horrível: Seth machucado por culpa minha.
- Não sou feito de vidro - disse-me no caminho para o restaurante. Ele tinha o dom incrível de adivinhar o que eu estava pensando. - Não precisa me proteger.
- É instintivo - falei, brincando. Mas fiquei pensando na conversa desagradável que ele tivera com Erik. Eram mortais. Eles se machucavam. Podiam morrer.
Foi uma coisa que testemunhei várias vezes ao longo dos séculos. E sempre que eu ficava afeiçoada por um mortal, tentava fingir que nada iria acontecer com ele ou
ela. Mas sempre acontecia, e aquela realidade horrível me atingia, não importando quanto eu buscasse ignorá-la.
Na verdade, esse pensamento me consumiu pelo resto da noite com Seth. Sabia que era besteira me preocupar tanto por causa de uma queda, mas, em minha vida, presenciara
muitas coisas pequenas gerarem um desastre. Mais tarde, deitada na cama ao seu lado, fiquei recordando uma série de eventos que também começaram pequenos e terminaram
em tragédia.
Vários séculos atrás, eu vivia numa cidadezinha no sul da Inglaterra. Meu nome era Cecily, e utilizava um corpo com cabelo ruivo cor do fogo e olhos enormes, devoradores,
da cor da safira.
Há um fato engraçado a respeito da Idade Média. As pessoas de hoje sempre têm essa imagem de um povo devoto, temente a Deus, seguindo estritamente a letra da lei
divina. Embora, na época, de fato fossem devotos, toda essa coisa de fidelidade tinha suas falhas - até mesmo entre o clero. Não, pior: especialmente entre o clero.
Clérigos poderosos costumavam viver muito bem numa época em que os plebeus sofriam muito para sobreviver. Ironicamente, esse sofrimento contribuía para a riqueza
da Igreja, já que o povo esperava que seus lotes crescessem no além, e assim davam dinheiro com essa expectativa. No entanto, riqueza e poder levavam à corrupção,
e o bispo da cidade onde eu vivia era dos mais corrompidos.
E eu era sua amante.
Aparentemente, eu trabalhava como criada em sua casa, mas minha maior serventia ocorria na cama. Ele ficava em cima de mim e me abastecia com roupas boas e outras
bugigangas, e nosso relacionamento era conhecido por todos. As pessoas entendiam que, tecnicamente, era errado, mas a maior parte aceitava. Muitos outros bispos
- e papas - também tinham amantes, e, como falei, nem todo mundo era tão devoto como os românticos modernos gostam de acreditar.
O simples fato de viver em pecado com um bispo corrompido não satisfazia os requisitos para o meu emprego. Afinal de contas, eu era bem ambiciosa naquela época,
e não fora muito difícil desviá-lo do caminho. Se não fosse eu, outra pessoa teria feito o mesmo.
Assim, dormia com ele sempre que podia, obtendo doses regulares, e ainda, de brinde, de vez em quando, conseguia me divertir. Uma dessas ocasiões foi quando dois
monges brigaram com facas depois de descobrirem que eu dormia com os dois. Não sei o que queriam com aquilo. Quase nunca os via, já que o mosteiro ficava bem afastado
da cidade. Além disso, considerando a mediocridade do relacionamento com os dois, eu não tinha muito interesse em reencontrar nenhum deles.
No entanto, brigaram ferozmente, derramando uma boa quantidade de sangue, até que um padre local conseguiu separá-los. Assisti à disputa com uma expressão de inocência,
escondida em meio a uma plateia empolgada. Ninguém suspeitava de meu envolvimento, com exceção do padre que interveio.
Seu nome era Andrew, e eu o adorava. Bispos conduziam missas e outros sacramentos, mas também tinham responsabilidades administrativas. Portanto, Andrew realizava
diversos serviços do dia a dia. Em meio a suas viagens de trabalho, costumava passar pela casa onde eu morava para conversar comigo, como amigo e como pastor.
- Tu me odeias? - perguntei-lhe após a discussão.
Estávamos sentados no jardim da casa do bispo. Havia outros serviçais nas proximidades, mas longe demais para nos escutar. Andrew não citara especificamente meu
envolvimento na briga, mas mencionara o incidente assim que chegou, considerando uma vergonha o fato de dois irmãos terem sido levados a tais extremos.
Fechou os olhos e jogou a cabeça para trás. Havia uma pesada cruz dourada - um presente dado por meu bispo que Andrew sempre quis vender - em seu peito, brilhando
com a luz do sol. - Não, lógico que não.
Fiquei analisando-o, admirando sua juventude, seu rosto bonito, e pensando na crueldade que era seu celibato. O vento bagunçava seu sedoso cabelo castanho, e fiquei
me imaginando fazendo-lhe um cafuné.
- Tu pareces me desaprovar.
- Desaprovo o pecado, não a tua pessoa. - Ele se endireitou e abriu os olhos. - Por ti, eu rezo.
Mexi-me, desconfortável. Não gostava de ouvir sermões. - O que queres dizer com isso?
Ele sorriu para mim, e eu quase suspirei por sua beleza. Desejava muito conquistá-lo, mas até então ele se mostrara resistente. Logicamente, isso o deixava ainda
mais encantador. Às vezes eu sentia que, se algum dia conseguisse experimentá-lo, a energia de sua alma me abasteceria até o fim dos tempos.
- Rezo pela tua saúde física e espiritual. Rezo para que não peques mais. Rezo para que encontres um homem com quem possas te casar e ter filhos. - Fez uma pausa.
- Embora eu, talvez, preferisse que tu fizesses votos religiosos.
Ergui uma sobrancelha, surpresa. - Por quê?
- Por que não? Tu lês e escreves. És mais educada do que boa parte dos irmãos no monastério. Serias um grande bem da abadia.
Inclinei minha cabeça de forma que alguns fios de cabelo cobrissem meu rosto, ciente de que a luz o faria brilhar. Fiquei encarando-o com firmeza. - É só por isso?
Ou gostas da ideia de eu nunca mais dormir com outro homem?
Andrew afastou o olhar e demorou para responder. - Eu gostaria que fosses minha irmã em Cristo - respondeu, enfim. - Todos lutamos contra a tentação, e gostaria
de removê-la de ti. - Ao dizer isso, levantou-se para alongar suas articulações. Eu permaneci sentada. - Acho que vou embora. Já está tarde.
Começou a sair, mas gritei para ele. - E quanto a ti? Lutas contra a tentação?
Ele parou de andar e olhou-me por sobre os ombros. Um sorrisinho, pesaroso e triste, surgiu em seus lábios enquanto ele me encarava. - Lógico que sim. Tu és minha
grande tentação, e sabes disso. Gostaria de me livrar disso também.
- Tens certeza? - perguntei, com delicadeza.
Balançando a cabeça, mas com um sorriso no rosto, ele saiu do jardim.
Aquele fora nosso último dia realmente feliz juntos...
De volta ao presente, na cama, o sono começou a me tomar e interrompeu minhas recordações. Fiz uma marcação onde pararam meus pensamentos, relutante em abandonar
as lembranças de quando a vida com Andrew era tão doce e boa. Não conseguira impedir as consequências daquela história, mas, ao girar e observar Seth dormindo, rezei
para que a história não se repetisse.
Capítulo 10
Quando cheguei em casa no dia seguinte, havia outro bilhete preso na minha porta, lembrando-me do pacote. Tirei-o e entrei, e fui surpreendida por encontrar Vincent
novamente. Imaginei que seus afazeres de anjo o mantivessem preso e ocupado em algum outro lugar.
- Como estão as coisas? - perguntei. Fiquei vasculhando o armário em busca de comida. Não havia tomado café. - Quero dizer, se puder me contar sem ter de me matar.
Estava sentado à minha mesa de jantar, folheando jornais. - Ah, bem, ainda não posso te dar detalhes, logicamente, mas posso dizer que, hum, bem, não estão progredindo
tão rapidamente quanto desejávamos. Há um resto de lasanha na geladeira, se quiser.
Abri a geladeira. Como previsto. - Uau. Foi algum anjo que preparou essa maravilha para você?
- Se você considerar a culinária de Yasmine uma maravilha...
Tirei a tampa da forma. Parecia delicioso. Talvez ela tivesse mesmo talento. Coloquei um pedaço no micro-ondas e liguei.
Sentei-me diante dele e observei os jornais espalhados, lembrando-me de tê-los encontrado jogados no outro dia. - Você gosta mesmo de notícias.
Ele deu um sorrisinho. - A maior parte delas é deprimente.
Ao olhar por cima as manchetes, tive de concordar com ele. Assassinato. Corrupção. Assalto.
- Ficou sabendo do tiroteio policial no outro dia? - perguntei. - Aquilo foi realmente deprimente.
Vincent abandonou sua leitura de uma notícia sobre violência doméstica. - Não, o que aconteceu?
- Um policial estava do lado de fora de uma loja de conveniência e alega que alguém, lá dentro, atirava em seu parceiro. Assim, ele entrou correndo, com a arma em
mãos e começou a atirar. Acabou matando, ele mesmo, seu parceiro.
Vincent franziu o cenho. - Ai, não fiquei sabendo, não - murmurou. Pela expressão distraída em seus olhos, claramente ele tinha informações sobre essa notícia que
eu não conhecia.
Olhei para ele de esguelha. - Significa alguma coisa para você? Talvez para essa missão celestial de vocês?
Seu sorriso fácil retornou. - Você é boa, mas não tanto. Sabe que não posso falar nada a respeito.
O micro-ondas apitou e fui pegar minha comida. Quando garfei um pedaço daquela massa, lembrei-me do que ele falou sobre a culinária de Yasmine. Fiquei tomada de
curiosidade. Como sempre acontecia.
- Vince... - comecei lentamente, sem tirar os olhos da comida. - Sei que não tenho nada a ver com isso...
Ele riu. - Adoro quando as pessoas iniciam um assunto assim, e então vão em frente e se intrometem de qualquer forma.
Corada, não falei mais nada.
- Não, não - falou, claramente se divertindo. - Vá em frente. O que você ia dizer?
- Eu, bem, na verdade não é nada. É que, quero dizer, não tenho nada a ver com isso... mas eu meio que notei que você e Yasmine parecem, hum, próximos.
Sua simpatia desapareceu. Rapidamente ergueu a cabeça e fiquei encarando-o, buscando me desculpar.
- Sinto muito - disparei. - Esqueça que falei alguma coisa.
- Não... é que, não sei. - Dobrou o jornal, olhando para ele, mas sem ver nada. - Sim, eu acho. Conheço-a há muito e, depois de um certo tempo, é fácil... bem, é
fácil gostar dela.
- É verdade.
Ficou um bom tempo em silêncio. Quando voltou a falar, notei carinho em sua voz. - Eu a conheci numa feira em Akron, vinha gente de todo canto... há mais ou menos,
oh, quinze anos. Não sabia o que ela estava fazendo lá, nunca se sabe as intenções dos anjos, mas a vi saindo de um estande de uma lanchonete. Estava com um algodão-doce
gigante. Juro, era mais alto do que ela. E, como eu sabia que ela era um anjo, a situação era ainda mais absurda.
A história me fez sorrir também. Também esclareceu por que ele estava lá com o Esquadrão Classe A. Eu conseguia ver que ela era um anjo. Ele era um humano dotado,
assim como Erik e Dante, que conseguiam sentir o mundo imortal. - E você foi lá conversar com ela?
- Não pretendia, mas, de repente, o algodão-doce começou a cair, eu fui ajudá-la e acabei comendo metade da guloseima.
- Que doce... - falei. - Er, sem trocadilho. - Não importava que, nos últimos meses, eu tivesse fodido um cara numa cadeira de escritório, usado um chicote de couro
com outro e caído de boca em outro no quartinho dos fundos de uma danceteria miserável. Ainda assim, adorava histórias românticas.
- Depois disso, de vez em quando, ela solicitava minha ajuda, sabendo o que eu era capaz de fazer. Supostamente deveria ser apenas isso... nada além de, sabe, questões
profissionais. Mas, algum tempo depois, foi inevitável. Ficamos juntos o tempo todo agora.
Engoli outro pedaço de lasanha. Estava divina. Mesmo. - Algum anjo sabe?
- Pior que sim. Joel não vai muito com a minha cara agora...
- Mas, obviamente, vocês não estão, hum, não podem estar...
- Não, mas não importa. Não precisa ser algo físico. Sério, é irônico. Anjos são criaturas amorosas. Supostamente, devem amar todo mundo. Apenas não podem amar uma
pessoa mais do que as outras.
- Isso é estúpido - comentei, brava.
- Para você, talvez. E para mim também, acho. Mas para ela... bem, ela devota toda sua existência para servir a uma força e uma causa maiores do que todos nós. Amar
uma coisa, ou outra pessoa, é complicado. Não se pode servir a dois mestres sem, eventualmente, trair um deles.
Abaixei a cabeça novamente, pensando sobre o que ele acabara de dizer. - E, ainda assim, vocês permanecem juntos. Mais ou menos.
Ele deu de ombros. - Do jeito que nos é possível. Talvez eu devesse seguir com minha vida, mas, honestamente, não consigo pensar em outra pessoa com quem gostaria
de estar. Aceito o que ela é. É por isso que a amo. Prefiro estar com ela de um modo limitado a não poder mais vê-la.
Senti um arrepio na nuca. Ele acabara de falar uma variante do que Seth me dizia o tempo todo, na época em que eu o encorajava a me abandonar e procurar outra pessoa.
Mas agora já havia aceitado sua escolha, e, honestamente, não conseguia imaginar minha vida sem ele. Só que, ainda assim... às vezes não conseguia entender como
ele não se incomodava com esse nosso relacionamento; era animador ouvir outra pessoa com a mesma visão das coisas.
Como se estivesse lendo minha mente, Vincent perguntou-me, com gentileza: - Isso está lhe soando muito familiar? Carter mencionou um namorado...
- Não. Sim. Não sei. Seth, meu namorado, diz o mesmo que você. Que, se não pode ser de outra forma... bem, que assim seja, então.
- Exatamente. E a vida continua... - Vincent começou a juntar os jornais. - Vou te dizer uma coisa: acho que a situação de vocês duas é bem ferrada, não tem nada
de engraçado. Qual é a razão dessas regras? Por que um súcubo, quando está com alguém, sempre tem de tirar um pedaço da vida dessa pessoa? Por que não pode escolher?
E por que Yasmine não pode fazer amor? Por que não pode se apaixonar?
Boa pergunta. Acho que Vincent, na verdade, não esperava uma resposta, mas mesmo assim eu precisava dizer alguma coisa.
- Porque as coisas são assim. É assim que funciona o sistema. E sempre foi assim.
- O sistema é uma merda - falou.
Pensei um pouco e concordei com a cabeça. - Não posso negar.
Sorrindo, pegou seu casaco e o vestiu. - Para um súcubo, até que você é legal.
Vincent saiu, para fazer sabe-se lá o que se faz com um grupo de anjos. Eu quase o invejava, já que tinha que fazer algo que não me animava muito. Era outro mal
necessário.
Tinha de conseguir um emprego para Tawny.
Após o fracasso da aula de dança, disse a ela que a ajudaria. Talvez não pudesse fazer muito a respeito da minha misteriosa perda de energia ou de romances angelicais,
mas, com certeza, podia fazer algo para acelerar a partida de Niphon.
Dirigi até Seatac, uma cidade que deve sua existência unicamente ao Aeroporto Internacional de Seattle - Tacoma. Parece mais uma sombra, na verdade, que se espalha
pelo aeroporto, uma zona de estacionamentos de longa duração e hotéis baratos. Também possui uns clubes de strip... afinal, que mais podem fazer executivos viajando
a trabalho em seus momentos de descanso?
Era fim de tarde, portanto o movimento estava baixo quando entrei no Low Blow. Havia alguns clientes parecendo entediados no estabelecimento, que era sujo e precisava
de uma redecoração. Ou, na verdade, de uma decoração. Alguns rapazes olharam com interesse quando passei por eles. Aparentemente, eu atraía mais do que a pobre morena
tentando de tudo para foder um poste no ritmo da melodia de “Young Lust” do Pink Floyd.
Abri a boca para falar com o barman, mas uma voz atrás de mim me interrompeu.
- Pu... ta... merda. Não acredito. Caralho, não acredito.
Virei-me e vi o rosto comprido e estreito de Simon Chesterfield, o orgulhoso proprietário daquele pardieiro. Seu rosto e seu corpo magricela davam-lhe a aparência
de uma doninha. O bigode moreno nunca parecia capaz de crescer por completo, e ele sempre usava roupas de marca alguns tamanhos abaixo do seu. Era simpático com
os funcionários locais do inferno, e havia rumores de que estava na fila para se tornar um demônio, vendendo sua alma em troca da imortalidade e da possibilidade
de ser um vendedor diabólico.
- Finalmente aceitou dançar para mim, boneca?
- Fica sonhando...
Para um sujeito desprezível que administrava um estabelecimento desprezível, era de surpreender o gosto sincero de Simon pela dança. Eu já o vira tentando coreografar
suas strippers e fiquei impressionada com seu senso de estética e ritmo. Suas funcionárias não entendiam muito bem. Seu talento era um desperdício para aquele lugar,
e eu ficava me perguntando por que ele não levava seu negócio para um subúrbio mais abastado, onde poderia conseguir dançarinas de melhor qualidade. A razão para
ficar, descobri depois, era que ali era um lugar melhor para todos os outros negócios escusos que ele realizava.
Ainda assim, Simon tinha um olhar afiado e reconhecia em mim uma boa dançarina. Há anos tentava me convencer a ir trabalhar para ele.
- Precisamos conversar - expliquei. - Negócios.
- Certo, gostei. - Com um gesto, apontou para uma porta ao lado do bar. - Vamos para o meu escritório, então.
Seu “escritório” era, na verdade, um almoxarifado, mas tinha um banquinho para eu me sentar. Descansando os pés sobre um bar de meia altura, trouxe os joelhos para
a altura do peito. Isso fez minha saia de linha cinza subir um pouco. Simon ficou olhando, demonstrando um interesse mais profissional do que pessoal.
- Porra, mina. Vem dançar para mim, vamos ganhar uma fortuna. - Ele balançou a cabeça e deixou-se cair em uma cadeira giratória de couro falso.
- Um súcubo no meu palco. Porra.
Inclinei a cabeça. - Legal você mencionar isso, porque é mais ou menos por isso que estou aqui.
Acho que meu tom inocente o deixou alerta. Ele ficou me olhando com suspeita. - Acreditava que você tinha dito que não queria um emprego.
- Não é para mim. Acabamos de receber um novo súcubo, e ela está procurando um bico. Não ficou sabendo?
- Não.... - Franziu o cenho. - E ela quer dançar? Aqui?
- Sim - respondi, loquazmente. - Está ansiosa para tirar a roupa. - Não era bem a verdade.
Simon encostou-se na cadeira e colocou os pés sobre a mesa. Pose casual ou não, ainda estava receoso. - Qual é a pegadinha?
- Por que tem de ter uma pegadinha? Você devia estar animado com isso. Estamos te fazendo um favor.
- Você oferecendo jogar um súcubo no meu colo. Parece muito bom para ser verdade, portanto é muito bom para ser verdade. - Fez uma pausa, ainda pensativo. - E por
que é você quem está aqui, e não ela?
- Sou uma altruísta.
- Georgina - falou, num tom de advertência.
- Está bem - admiti. - Ela é meio... nova.
- Muito nova?
- Bem nova. Ainda está na garantia.
- Ainda acho que haja uma pegadinha aqui.
- Bem, ela é...... - Vasculhei meu arquivo mental de adjetivos. - Inepta.
Ele ergueu uma sobrancelha. - Inepta?
- Ainda está aprendendo a pegar homens. - Como era provável que Simon estivesse atrás de mulheres sensuais trabalhando para ele, imaginei que não valia a pena mencionar
que Tawny não apenas era uma aprendiz, mas também ainda estava tentando encontrar o caminho para a sala de aula. - E ela, hum, dança mal.
- Muito mal?
- Mal.
- Pode ser um pouco mais específica quanto ao nível de inépcia com que estamos lidando?
- Lembra-se de Gigli?
- Jesus! Então por que você acha que eu aceitaria uma dançarina de merda?
- Simon - exclamei. - Todas as suas dançarinas são de merda.
- Nem todas - falou. - E não é que não interessam novas dançarinas. Mas nós temos padrões.
Dei-lhe um olhar afiado.
- Está certo. - Passou uma mão em seu cabelo escuro cheio de gel. - O que recebo em troca?
Agora era minha vez de ficar indignada. - Como assim? Estou te dando uma dançarina súcubo. O que mais precisa?
- Estou fazendo uma caridade por um súcubo. Sou eu quem está fazendo um favor. - Seus olhos demonstravam sagacidade. Sim. Um dia seria um bom demônio. Estava bem
próximo de fechar um contrato. - Quero você. Dance para mim por duas noites nesta semana.
- Não.
- Só uma noite.
- Simon, não há nada neste mundo que me convença a dançar aqui, nem mesmo uma caridade por um súcubo. Escolha outra coisa.
- Está bem. - Ficou pensativo. - Você. Quero você.
- Ei, acabei de te dizer...
- Não, não. Não como dançarina. Mas agora. Sobre a mesa.
Suspirei. Esse desejo...
- Veja, se tenho de contratar um súcubo ruim, tenho o direito de pegar um bom.
- Lógica interessante. Não fica preocupado quanto a sua alma?
Simon olhou para mim como se não conseguisse acreditar que eu tivera a audácia de perguntar isso. Era um olhar semelhante ao que eu fizera quando ele dissera que
Low Blow tinha padrões.
- Fechado. - Levantei-me. - Mas não com esse corpo. Escolha outra forma.
Simon bufou. - Acha que estou interessado numa mistura de pin-up girl com uma modelo da Ann Taylor? Porra! Quero uma versão de dezesseis anos de idade de Liza Minnelli.
Em uniforme escolar.
Fiquei olhando para ele. - Não tenho a menor ideia do que seria isso.
Ele começou a tirar a calça. - Você é uma garota esperta. Tente descobrir.
Suspirei novamente e me transformei, assumindo um corpo pequeno com um corte de cabelo de fadinha. Pele de bebê. Saia xadrez verde combinando com um colete. Simon
deu um resmungo de aprovação.
Girei sobre os calcanhares, encostei as mãos na mesa e me debrucei, expondo meu rabo para ele. Torcia para que acabasse logo. Se eu conseguisse apagar da cabeça
a comparação com a doninha, seria muito mais fácil.
Senti suas mãos deslizarem por minhas pernas e ele puxou minha saia para cima. De repente, percebi que ficou parado.
- Calcinha fio dental? Está maluca, mulher?
- Você é um pervertido - disse-lhe. A calcinha transformou-se numa calcinha branca de algodão.
- E eu não sei disso?
Ele puxou a calcinha para baixo e enfiou. Bem, acho que foi uma estocada. Simon não era muito bem dotado. Estava com vontade de dizer algo como “Já entrou?”. Ah,
essa situação da Tawny era horrível. Não podia arriscar, com uma piada, que Simon mudasse de ideia a respeito dela, ainda que fosse engraçada.
Mas o que Simon tinha de pequeno, ele compensava no entusiasmo. Agarrou meus quadris, enterrando suas unhas em minha pele nua enquanto enfiava. Tive de me segurar
com força na mesa. De vez em quando, buscando variar, Simon corria a língua pelas minhas costas. Desabotoou minha blusa e meu sutiã, expondo peitinhos atrevidos,
que tinham acabado de “florescer”. Olhando para eles, e não para o meu rosto, agarrou minhas pernas e as esticou de forma que meus tornozelos praticamente pousavam
sobre seus ombros.
Voltou à atividade, e, quando finalmente gozou, tive de admitir que a explosão de energia foi muito bem-vinda. Não era muita - o cara praticamente já era funcionário
do inferno -, mas eu precisava disso. Simon saiu de mim, e eu me sentei, um tanto satisfeita em termos de energia, ainda que não tanto fisicamente. Para falar a
verdade, fiquei mentindo o tempo todo ali, mas ele me olhava como se tivéssemos acabado de passar por todo o Kama Sutra.
- Definitivamente vale a pena aceitar um súcubo inepto - falou, com alegria, colocando novamente a calça.
Pensei em falar que, talvez, fosse melhor não julgar até finalmente conhecer Tawny, mas preferi apenas sorrir. Sabia quando me controlar.
Capítulo 11
Simon não tivera muito para me oferecer, mas, assim como das outras vezes em que me abastecera recentemente, tive o sonho.
Foi o mesmo de sempre, começando com os pratos, seguindo até a minha ida à sala para sorrir para a garotinha. Alguns instantes depois, volto aos pratos. Em silêncio,
peço para ela ter cuidado. Estava apaixonada por aquela garota. Ela me deixava muito feliz. Queria absorvê-la. Podia ficar cuidando dela para sempre, admirando aqueles
olhos com cílios compridos e suas tranças finas.
E então, como se ela pudesse me escutar, virei o rosto para o outro cômodo. A garota tinha sumido. Tiro as mãos da água, em tempo de ouvir um estrondo e uma batida.
A seguir, o som de um grito, e então acordei.
A manhã já estava no fim, e minha energia se fora. Isso já não mais me surpreendia. Junto com a perda, entretanto, viera uma sensação nova. Sentia frio, arrepiada
até os ossos. Minha pele também transmitia a sensação de estar molhada, como se eu estivesse submersa na água. Mas, quando passei os dedos pelo braço, estava perfeitamente
seca. Vesti o suéter mais quente que encontrei, e assim o frio diminuiu.
No trabalho, fiquei ocupada - embora não tivesse sido um dia muito agitado - até quando Maddie me lembrou que havíamos combinado de sair depois. Quase fiquei petrificada
quando ela disse isso. Na pressa, ontem, sem me dar conta de que já tinha combinado com Seth, falei com Maddie para sairmos depois do trabalho. Costumava fazer esse
tipo de coisa quando estava estressada. Sentia-me tão popular. E, como sempre fazia naquele tipo de situação, resolvi os meus dois enganos com uma única solução.
- Maddie queria sair hoje à noite - disse a Seth. - Acho que está se sentindo sozinha. Se importa de eu levá-la para essa coisa de cuidar de crianças?
- Lógico que não - falou, sem tirar a cabeça do laptop.
- Seth precisa de ajuda com as crianças hoje à noite - disse a Maddie. - Se importa de fazermos isso hoje à noite?
Maddie pensara um pouco mais sobre a proposta do que Seth. Parecia mais indecisa do que chateada. - Faz muito tempo que não lido com crianças. Não é que não goste
delas... é que é sempre meio estranho.
- As sobrinhas dele são legais - garanti-lhe. - Você vai mudar de opinião.
Senti-me um pouco mal por coagi-la a participar da aventura da família Mortensen. Ela ficou em silêncio durante a maior parte do caminho, guardando seus pensamentos
para si. A família de Seth morava no norte da cidade, em Lake Forest Park. Todas as casas eram idênticas na rua, mas suspeitava que fosse um mal necessário para
acomodar dois adultos e cinco meninas.
- Oh, meu Deus - disse Maddie, quando entramos na casa. Todas as cinco meninas Mortensen estavam lá. Suas idades iam de quatro a catorze anos, todas com o cabelo
loiro e os olhos azuis da mãe. Aparentemente, havíamos chegado em meio a uma discussão. - Talvez... não tenha sido uma boa ideia vir aqui...
Corri o olhar pela sala. Seth havia chegado antes, e Terry e Andrea já tinham saído para fazer compras. Brandy, com catorze anos, tentava sobrepor sua voz à de Kendall,
com nove, e as gêmeas McKenna e Morgan, de seis. Apenas Kayla, quatro anos, sentada no sofá ao lado do tio, ouvia em silêncio. Era impossível saber sobre o que discutiam.
- Ele pode fazer teias! - gritou Kendall.
- Não, não pode. Ele é aranha apenas de nome. - Brandy parecia cansada. As outras não lhe estavam prestando atenção.
- O chifre cortaria as teias! - gritou McKenna. Morgan a apoiou, fazendo um gesto de corte com a mão.
- Não se o macaco o pegasse primeiro - replicou Kendall.
- O unicórnio corre rápido. O macaco não ia conseguir pegá-lo.
- Então é um covarde! - Kendall parecia triunfante. - Se não encarar a briga, automaticamente é considerado perdedor.
As gêmeas pareciam estupefatas com aquela lógica.
- É um argumento idiota - disse Brandy. - Unicórnios não existem.
As outras três meninas voltaram-se contra ela e começaram a protestar.
- EI! - Gritei, tentando interromper a cacofonia. Todas ficaram em silêncio e olharam para mim. Acho que as garotas não haviam notado que eu chegara. - O que está
acontecendo?
- Um debate sobre quem venceria uma luta entre um unicórnio e um macaco-aranha - respondeu Seth.
Ao meu lado, Maddie produziu um ruído estranho, que tinha o som suspeito de uma risada esganiçada.
- Foi convincente e bem argumentado - completou Seth, bem cara de pau.
Brandy resmungou. - Unicórnios não existem.
- Macacos-aranha não existem! - respondeu McKenna.
- Sim, existem - falou Brandy. - Essa discussão não faz sentido.
Kendall ficou encarando-a. - É hipócrita.
- Hipotética - corrigi.
- Não se preocupem - disse Seth para Maddie e para mim. - Está bem civilizado se comparado ao debate sobre sereia versus centauro.
- Pessoal - falei. - Esta é Maddie. - Falei o nome das meninas para ela, uma a uma.
- Oi - disse Maddie, nervosa. Olhou para cada garota, e depois para Seth, um tanto insegura. Desde o leilão, tem agido de modo diferente quando ele está por perto,
e fiz uma anotação mental para me lembrar de cobrá-lo a respeito do encontro. - Acho que não foi uma boa ideia...
Ele ofereceu-lhe um daqueles sorrisos doces que deixavam qualquer pessoa sentindo-se melhor. Ela sorriu de volta, relaxando um pouco. - Não. Precisamos de toda a
ajuda que pudermos conseguir. - Seth levantou-se, fazendo com que Kayla afundasse no sofá. - Na verdade, enquanto todas as que têm menos de nove anos são levadas
para a cama, preciso de alguém que distraia as outras. - As gêmeas gritaram, revoltadas.
Olhei para Brandy e Kendall. - Parece algo fácil de fazer.
- Não tenha tanta confiança - alertou Brandy.
Kendall já estava agindo. Saiu correndo da sala e retornou com uma caixa de papelão comprida, e quase a enfiou em meu rosto. - Olhe o que vovó me deu. - Banco Imobiliário.
- Edição da Revolução Industrial? - perguntei, pasma.
- Talvez seja a única edição que ainda não tinham feito - observou Seth. - Acho que estão tentando de tudo.
- Ganhou de Natal? - perguntei. - Tinha pedido isso de Natal?
- Quando eu crescer, quero ser uma mamata do setor imobiliário - explicou.
- Magnata - corrigi. - Mas achava que você queria ser pirata...
Ela me olhou com uma expressão de piedade. - Eles não têm um bom convênio médico.
Apontei para a caixa. - Mas por que a Revolução Industrial? Você não prefere, por exemplo, a edição da Barbie? Ou a Sephora? - Na verdade, esta última era eu quem
queria.
- A Revolução Industrial foi um período importante para a civilização ocidental. Os desenvolvimentos na produção e na indústria mudaram para sempre a face de nossa
cultura e de nosso status socioeconômico. - Ela fez uma pausa. - Quer jogar?
- Tem uma fiandeira automática? - perguntou Maddie.
Seth riu. - Pior que tem...
- Estou dentro - respondeu ela.
Kayla, que estava nos braços de Seth, parecia prestes a cair no sono. Suas formas rechonchudas lembravam-me a garota do sonho, e senti um aperto no coração. De repente,
tinha perdido o interesse pelo Banco Imobiliário. Fui até Seth. - Vamos fazer o seguinte: você joga e eu coloco as crianças na cama.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Ele a passou para mim, e ela colocou os braços em volta do meu pescoço. Com as gêmeas a reboque, deixei os outros preparando o jogo. Maddie parecia visivelmente
incomodada por ter sido abandonada, mas sabia que ficaria bem. Às vezes, ser obrigado a socializar é a melhor maneira de aprender.
Foi surpreendentemente fácil colocar as gêmeas para dormir, talvez porque dormissem no mesmo quarto. Quando se tem uma irmã para cochichar e brincar, ir para a cama
não é algo tão chato. Supervisionei a escovação de dentes e pedi que vestissem os pijamas. Saí deixando um aviso de que logo viria vê-las.
Ainda equilibrando Kayla na coxa, levei-a para o quarto que dividia com Kendall. Kayla quase nunca falava, assim não fiquei muito surpresa por ela não reclamar por
ter uma camisola rosa enfiada pela cabeça e ser colocada debaixo das cobertas. Sentei-me na beira da cama e entreguei-lhe um unicórnio de pelúcia que encontrei no
chão. Ela o abraçou.
- Acho que ele ganharia do macaco-aranha - disse a ela.
Kayla não falou nada, mas ficou me encarando com aqueles seus enormes olhos azuis. Transmitiam muita confiança e doçura - assim como minha filha no sonho. Acho que
seria incrível fazer isso todas as noites... Colocar alguém para dormir e beijar-lhe a testa, e então acordar com ela todas as manhãs...
De repente, por medo de chorar na frente de uma criança de quatro anos, comecei a me levantar. Para meu espanto, ela esticou a mão e tocou meu braço.
- Georgina.
Sua voz era baixinha, aguda e doce. Voltei a me sentar. - Sim?
- Não vá embora - falou.
- Oh, querida. Tenho que ir. Você precisa dormir.
- Mas os monstros vão aparecer.
- Que monstros?
- Os do mal.
- Ah, entendi. Eles estão debaixo da cama? - Tinha certeza de que era lá que a maioria dos monstros vivia. Além daqueles com quem eu jogava pôquer ou comprava presentes
de amigo-secreto.
Ela fez que não com a cabeça e apontou para o teto. - Eles vivem ali. No espaço.
- São alienígenas? - Por mais que odiasse a ideia de ela ter medo de dormir, estava bem fascinada por ter, pela primeira vez, uma conversa com ela. Era tão articulada
quanto as outras garotas - embora isso não fosse de surpreender.
- Não. São monstros. Eles descem e entram nos sonhos das pessoas.
Percebi que estava relutando em ir dormir. - Você tem tido pesadelos?
- Não, mas os monstros estão lá. Posso senti-los.
Algo em suas palavras e a seriedade de seu rosto me deixaram arrepiada. - Quer que eu fique até você dormir? Isso vai mantê-los longe?
- Talvez - respondeu. Ela tocou meu braço novamente. - Você é mágica.
Fiquei pensando se Kayla não era uma paranormal em formação, assim como Erik ou Dante. A forma como falava implicava mais do que uma crença infantil em mágica. Parecia,
na verdade, uma especialista. Valia a pena ficar atenta ao seu desenvolvimento, mas não naquele momento. Não queria ficar perguntando-lhe a respeito de auras.
- Está bem - falei. - Eu fico.
Deitei-me ao seu lado, e ela ficou me olhando em silêncio. Comecei a cantarolar uma canção antiga, o que lhe abriu o sorriso e fechou-lhe os olhos. Quando terminei,
ela voltou a abrir os olhos.
- O que quer dizer?
- Er... - Isso era difícil de responder. Era uma canção de quando eu era mortal, composta num dialeto cipriota antigo que ninguém mais falava. Meu marido costumava
cantá-la para mim. Por saber que não conseguiria reproduzir as rimas ou fazer uma tradução adequada, simplesmente cantei para ela na língua original. As sílabas,
conhecidas mas estranhas, surgiram esquisitamente em meus lábios.
Quando terminei, Kayla não se mexeu nem falou nada. Aguardei mais alguns minutos e lentamente saí da cama. Ela continuou dormindo. Apaguei a luz, saí do quarto e
voltei para os jogadores de Banco Imobiliário. Seth sorriu ao me ver e abriu espaço para mim ao seu lado no chão.
- Ludditas queimaram o seu moinho. Pague quinhentos dólares. - Brandy fez uma careta ao ler sua carta de Sorte. - Saco.
- É menos do que tive de pagar quando a Lei Trabalhista impediu que eu empregasse crianças, algumas rodadas atrás - informou Maddie. Como eu tinha imaginado, ela
já parecia totalmente confortável.
Kendall girou o dado e moveu seu Oliver Twist de peltre três casas para a frente. - Queria ter um emprego, assim poderia poupar capitalismo para meus investimentos.
- Capital - dissemos todos os outros, em uníssono.
Kendall ergueu a cabeça para mim. - Eu poderia trabalhar na sua livraria. Debaixo da mesa.
- Empilhando livros debaixo da mesa? - perguntou Brandy.
Kendall a ignorou. - Não precisa de mais um funcionário?
Fiz um cafuné nela. - Só depois que você ficar mais velha.
Maddie moveu sua fiandeira de peltre. - Ainda não aprendeu nada com esse jogo? Você nos faria fechar as portas. Georgina não precisa desse tipo de complicação.
- Como é ser gerente agora? - perguntou Brandy. - É mais difícil?
- Na maior parte do tempo... é diferente.
Kendall teve um vislumbre. - Eu poderia ter seu antigo cargo.
- Desculpe. Não há vagas. Maddie assumiu minhas funções.
Kendall suspirou.
Seth pousou num moinho de seda que ninguém havia comprado ainda e começou a contar o dinheiro. - Foi fácil colocar as meninas para dormir?
- Sim... Kayla demorou um pouco. Anda tendo pesadelos.
Ele ergueu a cabeça, surpreso. - Ela te contou isso? Ela... falou?
- Sim, tivemos uma boa conversa. Rimos, choramos, compartilhamos nossas expectativas e medos. Acho que ela tem uma bela carreira com oratória pela frente.
- O que significa “oratória”? - perguntou Kendall.
- Significa falar em público - explicou Maddie. - Fazer discursos. Falar na frente de outros.
- Ah. Tio Seth não tem uma carreira com oratória.
Todos rimos. - Não - concordou Maddie. - Não tem. E eu, certamente, também não.
Seth deu-lhe um tapinha na mão. - Introvertidos unidos.
Brandy pegou outra carta de Sorte e resmungou. - Surto de cólera! De novo, não!
Quando a noite acabou, e o irmão e a cunhada de Seth chegaram em casa, fiquei feliz em saber que Maddie tinha se divertido bastante.
- Até que crianças não são tão ruins, principalmente se forem da brilhante prole dos Mortensen. Terry e Andrea são legais também. Esse grupo tem boa genética.
- Sim - concordei. Maddie definitivamente precisava de mais socialização. Estava animada e contente, com os olhos brilhando. Aquela fora uma boa noite.
Deixei-a na casa de Doug e voltei para o meu apartamento. Os deuses do estacionamento não estavam do meu lado, e acabei parando a cinco quadras de distância. No
caminho, passei por uma máquina de jornais do Seattle Times. Costumava ler as manchetes na loja, mas não tinha feito isso naquele dia. Parei em frente a ela, já
que um artigo me chamou a atenção.
Era uma história estranha sobre um homem que ficara louco. Sonhara que, se atravessasse Puget Sound a nado, isso traria riqueza e segurança para sua família, que
estava em dificuldades. Infelizmente, não fora muito longe, acabando por se afogar nas águas geladas. A ironia era que, embora alguns considerassem suicídio aquele
feito, seu seguro de vida era poderoso e iria compensar. Sua família teria riqueza e segurança.
Olhando fixamente para o jornal, pensei no pobre homem sucumbindo e desaparecendo sob as ondas escuras. Lembrei-me de repente daquela manhã, e era como se eu voltasse
a ter aquela sensação de frio, de molhado. Por meio segundo, não consegui respirar. Era como se meus pulmões estivessem cheios de água, sufocando-me. Senti um calafrio
e, sem perceber, passei as mãos por meus braços, praticamente dominada pelo déjà vu. Água. Água por toda parte. Fria. Escura. Sufocante...
Depois do arrepio, finalmente voltei a andar, precisando encontrar um lugar aquecido.
Capítulo 12
- ão acredito: você sempre volta - disse-me Dante quando apareci em sua loja no dia seguinte. E não me surpreendeu o fato de o lugar estar vazio.
- Nem eu - admiti. Nunca me senti bem-vinda ali, contudo não sabia mais para onde ir. - Como é que você se mantém?
- Não faço a menor ideia. Acho que não veio aqui para me propiciar a melhor noite de minha vida. Porém você perdeu a chance de conhecer o El Gaucho.
- Vim aqui porque tive outro sonho.
- Você está me usando, súcubo. - Ele suspirou e sentou-se sobre a mesa brega. - Está bem. Pode desabafar.
Sentada diante dele, recapitulei os eventos do último sonho.
- Não me parece haver muitas novidades... - comentou, no final. - Teve, na verdade, o quê? Uns trinta segundos a mais de enredo.
- Isso significa alguma coisa?
- Sei lá, caramba.
Estreitei os olhos. - Você é o pior interpretador de sonhos que já conheci.
- Nada... - Ele pousou o queixo na mão, com os cotovelos na mesa. Sua expressão era a típica de um preguiçoso. - Sou um interpretador muito bom. Contudo não há nada
a ser interpretado em seu sonho; apenas que seu subconsciente está lamentando a infertilidade. Isso é óbvio. Também sugere que seu gosto musical é bem ruim. Jura
que “Sweet Home Alabama” toca em todos os sonhos?
Agora foi minha vez de suspirar.
- Os sonhos claramente não são proféticos, já que sabemos que é impossível você ter filhos. - Ele batucou os dedos na mesa, pensativo. - Tem certeza de que não poderia
adotar, ou algo assim?
- Era minha filha - respondi com firmeza. - Minha carne e sangue. Podia sentir isso.
- Está bem. Longe de mim querer discutir instintos maternais ilusórios. Mas, como disse, não importa muito. O conteúdo, quero dizer. O que importa aqui, acho, é
a perda de energia.
Senti vontade de abraçá-lo. - Finalmente alguém pensa que essa porra tem alguma relevância.
- Tornou-se um padrão. Não pode mais ser classificado como uma anomalia.
- Mas o que significa?
- Tem certeza de que quer a opinião do pior interpretador de sonhos que já conheceu?
- Meu Deus! Vamos logo...
- Se você fosse humana, eu diria, sem hesitar, que estava se tornando uma presa.
Recuei. - O quê? Como assim?
Ele esticou-se sobre a mesa e pegou minha mão, virando-a enquanto pensava. Fiquei encafifada com a palavra “presa” para me preocupar com ele me tocando. As palavras
da pequena Kayla surgiram em minha mente.
São monstros. Eles descem e entram nos sonhos das pessoas.
- Você e eu sabemos que há muitos seres sobrenaturais andando pelo mundo. Alguns entram no mundo dos sonhos e não tem, na verdade, a melhor das intenções em relação
a seres humanos. Não que você tenha também. E, para falar a verdade, muitos não diferem em quase nada de você. Suplicam por vida e energia humanas, e conseguem sugá-las
de dentro dos sonhos.
- Mas podem fazer isso comigo?
- Hmm. - Ele soltou minha mão. - Não vejo como poderiam. Você não produz energia. Você a rouba também. Mas quem sabe?...
Senti um arrepio. Era de enojar a ideia de uma criatura - um parasita - penetrando o meu corpo e sugando a minha vida. E logo me dei conta da hipocrisia, já que
eu fazia exatamente a mesma coisa o tempo todo.
- Então... que tipo de criatura é capaz de fazer isso?
- Sei lá. Não é minha especialidade.
- Mas você é especialista em sonhos! Não deveria saber sobre criaturas do sonho?
- Criaturas sobrenaturais são coisas do Erik, não minhas. Você devia perguntar a ele.
- Você é o pior interpretador de sonhos que já conheci.
- Foi o que ouvi dizer. - Sua seriedade de antes desapareceu. - Então... vamos fazer sexo agora?
Levantei-me. - Não! Lógico que não.
Dante ergueu as mãos. - O que mais você quer? Dessa vez, eu lhe dei informações úteis. E você poderia muito bem usar a dose, ainda que seja pequena.
- Tem muito mais coisas envolvidas - falei. De repente, comecei a hesitar. - Eu... eu o conheço agora.
- O que quer dizer com isso?
- Se você fosse um anônimo, talvez houvesse uma chance. Mas agora você é como um... - Amigo não era a palavra que eu procurava. - ... um conhecido.
Ele parecia genuinamente desnorteado. Era quase divertido. - Não estou entendendo muito bem, súcubo.
- Tenho um namorado, lembra-se? Quando faço sexo anônimo, casual, não é bem uma traição. Mas, se faço com alguém...
- ... de quem você gosta? - Seria minha imaginação, ou havia uma certa esperança em seus olhos quando perguntou isso?
- Não, não acho que gosto de você. Mas também não desgosto. A questão é que você não é anônimo. Seria traição.
Ficou me olhando por um bom tempo, e aquele vislumbre de esperança que eu tinha visto desapareceu por completo. - Não é de estranhar que súcubos sejam tão habilidosos
em se passar por mulheres humanas. Você evidentemente sabe brincar com a mente e tem uma total falta de sensibilidade...
- Preciso ir embora.
- Você sempre precisa ir. Para onde agora? Encontrar um anônimo?
Ergui-me. - Não. Vou encontrar-me com Erik para ver se pode, de fato, me dar alguma informação útil.
- Mas eu lhe dei informações úteis!
- Há controvérsias.
- Bem, deixe-me trancar a loja, e vamos ver o que Lancaster tem a dizer.
Fiquei paralisada. - O que quer dizer com “vamos”?
Dante pegou umas chaves atrás do balcão. - Você me despertou a curiosidade. Quero ver o que vai acontecer. Além disso, você me deve uma, já que, pelo jeito, não
vai tirar a roupa...
- Devo mesmo? - murmurei.
Ele andou até a porta comigo. - Já lhe ocorreu que, apesar de me achar um inútil, ainda estou meio preocupado sobre o que anda acontecendo com você?
- Não - respondi. - Na verdade, não.
Mas deixei que me acompanhasse até a Arcana. Quando entramos, encontramos Erik desfazendo uma caixa de livros. Ele sorriu sem erguer a cabeça, ao sentir minha presença.
- Senhorita Kincaid, é sempre um... - Ele parou quando viu Dante. Pela primeira vez desde que nos tornamos amigos, vi Erik furioso. Fiquei incomodada. Até mesmo
assustada. - Senhor Moriarty.
Dante acenou com a cabeça. - É sempre bom vê-lo.
A expressão no rosto de Erik mostrava que os sentimentos não eram mútuos. Ele se levantou e andou até o balcão. Cruzou os braços e ficou nos olhando.
- O que posso fazer pela senhorita? - Hoje não seria um anfitrião cordial, nem conversaríamos tomando um chá. O ar entre os dois de repente ficou espesso e opressivo.
Falei sem muita segurança. - Nós... isto é, Dante acha que tem uma resposta para os meus problemas de sonho.
Dante riu, aquele sorriso falso tradicional. Se também tinha aquela mesma animosidade em relação a Erik, sabia escondê-la muito bem. - Não chamaria de resposta,
súcubo. É mais uma teoria.
- Tive o sonho novamente - contei a Erik. - Mais de uma vez agora. E continuo perdendo minha energia. Dante diz que pode ser uma espécie de... criatura dos sonhos
me pegando como presa. - Vacilei nas palavras. O conceito ainda era muito ridículo. - Mas não sabe que tipo é. Disse que talvez o senhor saiba.
Erik olhou para Dante e, depois, para mim. Era visível que o velho ainda estava desconfortável com o fato de nós dois estarmos ali, mas gostava muito de mim e não
conseguia deixar de me ajudar. Queria saber em que momento, ao longo dos anos, passara a merecer tal apreço. E por quê. Ele suspirou e apontou para que nos sentássemos
à mesa. Foi o que fizemos, mas não nos foi oferecido chá.
- É difícil imaginar algo que vá atrás de um súcubo - enfim comentou Erik.
- Foi o que pensei - disse Dante.
Sua máscara de jovialidade tinha ficado de lado. Sua aparência era bem similar à que tinha na loja, pensativo e curioso. Lembrava um engenheiro mecânico que conheci.
O cara não se continha quando lhe apareciam problemas técnicos. Bastava dar-lhe algo em pedaços, e ele sentia a necessidade de analisar e compreender. Dante podia
ser um pouco difícil de lidar, mas sua natureza, corrompida ou não, não lhe permitia se afastar nesse momento.
Os olhos de Erik ficaram me analisando, sérios e atentos. Era um quebra- -cabeça intrigante para ele também.
- Se tivesse de dar uma opinião... diria que os sintomas levam a Oneroi.
Eu ouvira falar deles. Faziam parte da mitologia grega que me foi ensinada quando pequena. - Espíritos do sonho?
Dante ficou pensativo. - Mais que espíritos. São os filhos de Nyx e Erebus.
Senti um calafrio. Ouvira falar deles também. Nyx e Erebus. Noite e Escuridão. Entidades originárias do caos. Eram poderosas e perigosas. O mundo realmente nascera
do caos, mas é também verdade que - e até a ciência concordava - o universo estava sempre tentando retornar para o caos. Nyx e Erebus eram destrutivos - tanto que
agora estavam presos, para evitar que destruíssem o mundo. A possibilidade de seus filhos estarem sugando minha vida fez eu me sentir mal novamente.
Dante ainda estava analisando essa teoria. - Sim, isso é bem possível. Mas ainda não é uma certeza.
- Não existe certeza - admitiu Erik. - Nunca ouvi falar de nada que atacasse um súcubo.
- O que exatamente fazem os Oneroi? - perguntei.
Os dois trocaram olhares, esperando que o outro explicasse. Foi Erik quem começou.
- Eles visitam mortais em seus sonhos e se alimentam das emoções que os sonhos produzem. Vítimas de Oneroi acordam esgotadas e doentes. - Mais ironia ainda. A lenda
diz que os súcubos visitavam homens em seus sonhos também e tiravam-lhes a vida.
- É isso que está acontecendo comigo - comentei. - Por que não podem ser eles?
- Podem ser eles - concordou Dante -, mas, como dissemos, os detalhes não batem. Oneroi podem assumir o controle e modelar os seus sonhos. Mas os sonhos que provocam
em geral são pesadelos. Medo e outras emoções sombrias costumam ser mais intensas - oferecem mais matéria para os Oneroi se alimentarem. Seus sonhos são curtos e
são... fofinhos.
- Fofinhos?
- Bem, não sei. Não são pesadelos. Eles te agradam. Produzem emoções... emoções de fascínio e alegria. Estão lhe dando reações viscerais, acho, mas não do tipo que
os Oneroi buscam.
- E - continuou Erik - há também o fato de a senhorita não ser a opção ideal para eles. A senhorita não serve. É como um conduíte, um canal para o mundo mortal e
sua energia. Se os Oneroi estiverem roubando da senhorita, eles precisam aguardar que a senhorita consiga forças de alguém antes. Seria muito mais simples pegaram
diretamente de um humano.
De repente, me dei conta de que havia esquecido uma coisa. - Outra coisa estranha aconteceu... mais do que a perda de energia... - Contei-lhes que estava acordando
com a sensação de frio e molhado.
- Acho que isso é meio estranho - falou Dante -, mas não sei se tem alguma relação com o caso.
- Bem, só que naquele dia, mais tarde, li um artigo sobre um cara que ficou louco e tentou atravessar o Sound a nado. Achou que isso ajudaria sua família, e ajudou,
porque se afogou e eles receberam o dinheiro do seguro. Quando li a notícia, a sensação de frio e molhado retornou. Foi como se... por um instante, eu fosse ele.
Senti exatamente o que ele sentiu. Como se eu estivesse me afogando também.
- Empatia - concluiu Dante. - Você leu e imaginou qual seria a sensação.
- Não. - Franzi o cenho, tentando trazer a sensação de volta. - Eu... eu era ele. Sabia que estava sentindo o que ele sentia. Aquele cara. Da mesma forma que sabia
que a menina era minha filha. Foi algo bem interno.
Dante parecia incomodado. - Teria sido útil eu saber disso antes.
- Eu me esqueci. Não via como algo relevante até esse momento.
- Algo parecido já lhe havia acontecido antes? Saber alguma coisa que você não tivesse vivido?
- Acho que não.
Erik olhou para Dante. - Clarividência?
- Não sei. Acho que não. Variáveis demais. Nenhuma delas bate. - Dante voltou a olhar para mim. - Já falou com os seus colegas sobre isso?
Fiz que não com a cabeça. - Jerome sumiu. Contei-lhe o primeiro sonho antes de ir, mas não pareceu dar muita atenção.
- Bem, não sei o que dizer... - comentou Dante.
- Nem eu - disse Erik, com gentileza. - Mas vou pesquisar para a senhorita.
- Obrigada - respondi. - Eu gostaria muito.
Levantamo-nos, e logo a trégua momentânea entre Erik e Dante havia acabado. Erik voltara a parecer colérico. Dante parecia presunçoso e altivo.
- Senhorita Kincaid - falou Erik, sério. - Sabe que tenho o maior apreço pela senhorita, e ficaria muito feliz em ajudá-la em qualquer coisa que precise. Também
tenho consciência de que o senhor Moriarty pode lhe oferecer ajuda. Mas preferiria que...
- ... que não me traga mais aqui - completou Dante. Fez um cumprimento. - Já estou sabendo, meu velho. Eu a encontro no carro, súcubo. - Ele girou e saiu da loja.
O humor de Erik não aliviou com a partida de Dante. Ainda conseguia sentir fúria sendo irradiada. Erik dissera que Dante era corrompido, mas, na verdade, eu também
era. Contudo, Erik não tinha esse mesmo tipo de reação quando comigo. Havia algo ali que eu não sabia.
- Sinto muito - falei a Erik. - Não sabia que isso lhe incomodaria tanto.
- A senhorita não teria como saber - respondeu, cansado. - E, afinal de contas, fui eu quem lhe deu os contatos dele.
- Vou mantê-lo longe daqui - prometi.
Agradeci-lhe novamente e saí para encontrar Dante. Estava encostado em meu carro, escondendo seus pensamentos com um sorriso falso.
- Por que Erik te odeia tanto? - perguntei.
Dante olhou para mim. - Porque sou um homem mau, que faz coisas más.
- Há mais coisa aí - falei. - E você não me parece tão mau. As piores coisas que faz é enganar clientes e fornecer informações inúteis. Apesar de... bem, você ter
sido bem útil agora há pouco. Mas, como disse, não acho que seja tão mau quanto sua reputação implica.
- Como você tem tanta certeza?
Dei de ombros. - Instinto.
Com um movimento rápido, Dante enfiou sua mão na minha nuca e puxou-me para ele. Coloquei uma mão em seu peito e tentei afastá-lo, mas logo parei. Havia um calor
em seu corpo, a ânsia de um homem que há muito tempo estivera privado de alguma coisa. Para minha surpresa, senti uma excitação ardente dentro de mim - uma nostalgia
de tocar alguém que não fosse apenas a negócios. Tivera aquela sensação muitas vezes, e normalmente me criava problemas. Minha natureza de súcubo despertou, curiosa
para saber se haveria energia a caminho.
E, apesar de minha conversa imponente sobre não dormir com conhecidos, de repente senti vontade de beijá-lo. Queria sua energia - só para experimentar.
Sua boca moveu-se na direção da minha. Comecei a fechar os olhos e separar os lábios... mas, então, de modo abrupto, ele se endireitou. Soltou-me e se afastou. Abri
meus olhos, encarando-o, surpresa.
- Que foi? - perguntei. - Você recuou. Depois de tanta encheção para eu dormir com você.
- Você está exaurida e esfomeada, súcubo - falou. - Seria como me aproveitar de uma garota bêbada.
- Certo. Como se você nunca tivesse feito isso...
- Sim, bem, não tenho mais dezoito anos. - Abriu a porta do carro.
- Vamos logo?
Fiquei analisando-o mais um pouco, e voltara a ver aquela esperança e compaixão de antes. Fiquei me perguntando se muito daquela esperteza não era apenas bravata,
escondendo as mesmas inseguranças que todo mundo tinha. Entretanto, guardei essa psicanálise para mim, e entrei no carro. Voltamos para sua loja, e nossas brincadeiras
levianas de sempre deixaram de lado a impressão de que algo sério poderia ter acontecido.
Capítulo 13
- Fique tranquila: não sou um assassino serial. É que parecia uma oportunidade muito boa para ser desperdiçada.
- Cara - falei -, se eu recebesse um centavo para cada vez que escuto isso...
Liam, o rapaz que me comprara no leilão, riu e abriu a porta do carro para mim. Ele dirigia um Lotus Elise preto que importara do Reino Unido. Causou boa impressão.
Parecia que tinha acabado de ser encerado. Isso também causou boa impressão - e uma certa tristeza, já que parecia que ia chover a qualquer momento.
- E deve ser muito boa - completou, dando ignição no motor. - Assim, espero que goste e não ache que seja coisa de gente maluca tão próximo das festas de fim de
ano...
Não estava com muita vontade de levar adiante meu encontro de caridade, mas sabia que ele teria de acontecer cedo ou tarde. Quando Liam telefonou para contar que
comprara ingressos para uma apresentação teatral de três contos de Edgar Allan Poe naquela noite, considerei uma boa oportunidade para resolver logo isso. Além disso,
gostava de Poe. Era, de fato, um encontro meio sinistro para se ter tão próximo do período mais alegre do ano, mas isso era culpa do teatro, não de Liam.
O espetáculo começava cedo, assim combinamos de assistir primeiro e depois jantar. No caminho, ele era bem próximo daquilo que eu imaginara. Inteligente. Gentil.
Um tanto engraçado. Trabalhava para uma firma de investimentos no centro da cidade, e tinha bom senso o suficiente para não me entediar com detalhes. Fizemos brincadeiras
leves, compartilhando anedotas e experiências. Ainda preferiria estar com Seth, mas Liam era um rapaz interessante para uma noite, e achei que ele merecia se divertir
depois de doar tanto dinheiro.
A peça era maluca mesmo. Começaram com “A máscara da morte escarlate” seguida por “O barril de Amontillado”. “O coração delator” fechou a noite, pois, honestamente,
que tipo de festival de Poe seria completo sem um conto que agrade a plateia?
- Nunca tive ouvido falar de “A máscara da morte escarlate” - disse Liam, no final. Decidimos deixar o carro e andar os seis quarteirões até o restaurante onde ele
havia feito reservas. - Li os outros na escola. Acho que é uma espécie de alegoria, mas é incrível como não se consegue escapar da morte, não? Ainda que você se
tranque em algum lugar, é inevitável.
- Na verdade, é mais que uma alegoria - comentei. - Historicamente, aquela não era uma maneira incomum de as pessoas lidarem com pragas e doenças: trancarem-se em
algum lugar. Caso contrário, teriam de sair da cidade fugindo. Às vezes, expulsavam os doentes da cidade e trancavam as portas, por assim dizer.
- Isso é terrível - disse Liam. Entramos no restaurante, uma pequena cantina italiana, que estava quase sempre lotada. Tinha de admitir: ele estava se saindo bem.
- As pessoas eram ignorantes - falei. - Não sabiam o que causava doenças, e, além de boa higiene e sorte, houve poucos tratamentos para as epidemias da Antiguidade
e da Idade Média.
- O leiloeiro não disse nada a respeito de você ser uma aficionada por história - provocou.
- Ah, é? Você não teria dado um lance?
- Está brincando? Uma mulher bonita que usa expressões como “epidemias da Antiguidade e da Idade Média” no primeiro encontro? Teria aumentado meus lances.
Dei uma risadinha e permiti que o maître nos conduzisse até a mesa. Fiquei feliz por Liam apreciar meu conhecimento de história, mas precisava ter cuidado para não
parecer muito nerd. Sabia mais do que a média das garotas e era capaz de entrar em níveis de detalhes que as pessoas de hoje não teriam como conhecer. Mudei de assunto.
- Bem, acho que o leiloeiro ficou distraído por outras concorrentes.
- Ah, está se referindo à feminista xiita que foi antes de você?
Fechei a cara. - Não, àquela loira gigante, toda prateada, que ele “adquiriu”.
- Ah, sim - concordou Liam. - Ela era louca. Atraente, mas louca.
- Você achou mesmo ela bonita?
- Lógico. Mas certamente não tanto quanto você - completou, rapidamente, entendendo mal a minha pergunta. - Mas parece que o leiloeiro não concordou comigo. Não
conseguia tirar as mãos dela.
- Ah, para com isso. Ele mal a tocou.
- Bem, não durante o leilão, é lógico. Mas depois...
- Como assim?
Fui interrompida pela aproximação do garçom. Tive de aguardar que Liam pedisse o vinho antes que pudesse completar a história.
- Depois do leilão. Eu estava lá ajudando a empacotar as coisas. Deanna é amiga de minha ex-esposa. Quando terminamos, Nick e aquela loira estavam bem agarradinhos
e os deixamos sozinhos.
- Isso... não é possível.
Tawny dissera que tinham saído separados. Não havia como ela e Nick terem se pegado na noite do leilão. Logo na noite seguinte ela havia aparecido para a aula de
dança. Mesmo que estivesse mentindo sobre as coisas não terem dado certo com Nick - e, na verdade, por que o faria? -, era óbvio que ela estava sem suprimento de
energia. Metamorfose massiva, na escala de formas não humanas, talvez esgotasse energia tão rapidamente assim, mas não havia como um súcubo novo ter essa habilidade.
Nada disso fazia sentido. Liam, obviamente, não entendia minhas dúvidas.
- Por que é tão difícil acreditar? - perguntou.
Balancei a cabeça. - É que... deixa para lá. Espero que tenham se divertido. Agora... que tipo de vinho pediu? Não prestei atenção.
Sem querer estragar o jantar, deixei o enigma Tawny num escaninho de minha mente e me esforcei para fazer valer os 1.700 dólares de Liam. Após o jantar, voltamos
para o carro, curtindo um ritmo vagaroso. A noite, apesar de úmida, estava mais quente, por volta de 10 graus. Os invernos inconstantes de Seattle faziam isso de
vez em quando, mas logo voltava a gelar um ou dois dias depois. Quando Liam pegou minha mão, eu permiti, mas isso representou um dilema para mim.
Ele não era alguém que eu pretendesse ver novamente. Em respeito a Seth e numa tentativa de levar uma vida normal, evitava romances casuais com aquele corpo. Todos
esses motivos significavam que eu não podia permitir que a noite se transformasse em algo mais do que um amistoso aperto de mão de despedida. Mas, ao mesmo tempo,
sentia que meu suprimento de energia estava baixo. Fizera-me muito bem receber de Simon - contudo me fora roubada antes que pudesse aproveitá-la. Seria muito bom
ter aquela sensação de novo, ir para casa com Liam e conseguir o que eu precisava.
Quando chegamos ao seu carro, ele ainda segurava minha mão e virou- -me para que ficássemos de frente um para o outro. - E agora? - perguntou.
- Não sei. - Ainda estava em dúvida sobre o que fazer. - Estou aberta a sugestões.
Liam riu, um sorriso bonitinho que realçava seus olhos azuis também. - Bem, que tal isso? - Inclinou-se e me beijou, da mesma forma que Dante quase fizera.
Oh, Liam. Liam era um homem bom. Um homem bom, muito bom. Do nível de Seth. No instante em que nossos lábios se tocaram, senti a doçura de sua energia vital escorrendo
para dentro de mim. Meu desejo despertou, e me encostei nele. Ainda que não gostasse de usar aquele corpo, as circunstâncias eram incomuns. Tomei minha decisão.
Dormiria com ele e me distanciaria. Era um cara legal, não um agressor psicótico. Talvez ficasse desapontado, mas ele não sofreria por eu querer que fôssemos apenas
amigos na manhã seguinte.
Ele me beijou com intensidade, empurrando-me sobre a lateral do carro. Um beijo, e toda aquela energia. O sexo seria incrível.
Sim, sim. Mais. Mais. Alimente-me.
Empurrei Liam para longe.
Ele ficou me olhando, legitimamente preocupado. - Qual é o problema?
Fora um sussurro em minha mente. Fraco, mas real. Viera junto com um anseio, um desejo profundo pela energia de Liam, que rivalizava com minha própria necessidade
- mas não fora um sussurro meu. Pertencia a alguém - ou algo. De repente, surgiu um monte de coisas em minha mente. As conversas com Dante e Erik. Uma criatura roubando
minha energia. É fato que era o que eu fazia com os homens... mas, bem, não podia evitar a sensação. E então senti náuseas ao pensar em uma criatura parasitária
vindo até mim naquela noite por eu estar cheia de energia. Fez minha pele se arrepiar toda. Era horrível saber que aquela coisa estava me usando. Também me usava
para usar Liam.
Olhei de volta para ele; era tão bonito e gentil. Balancei a cabeça. Não podia fazer aquilo. Precisava da energia, mas ia adiar quanto fosse possível. Não daria
àquela coisa o que ela queria.
- Liam... - falei lentamente. - Preciso lhe dizer uma coisa. Eu, hum, acabei de sair de um relacionamento duradouro, e fui ao leilão porque achei que poderia, sabe...
Ele suspirou, parecendo mais pesaroso do que bravo. - Você não está pronta.
Fiz que não com a cabeça. - Sinto muito mesmo. Queria ajudar o leilão, e achei que podia seguir com a vida.
Ele apertou a mão que ainda segurava e a soltou. - Bem... fico triste, mas entendo. E gosto de você... se ele sair de sua mente, gostaria de tentar algo sério. Isso
não pode acontecer enquanto você não estiver pronta, e não pretendo forçá-la a nada.
Ah, Deus. Cara legal, muito legal.
- Sinto muito, muito mesmo - falei. E falei sério. Queria muito a energia dele.
- Não há por que se desculpar - disse-me, sorrindo. - Vamos lá, eu a levo para casa.
Ele me devolveu a Queen Anne, e dei-lhe um beijo na bochecha antes de sair do carro. Disse-me para lhe telefonar quando estivesse pronta para ter outro encontro,
e prometi-lhe que o faria.
Depois que ele saiu, não entrei em casa. Em vez disso, telefonei para Dante.
- É seu súcubo favorito - falei quando ele atendeu.
Escutei-o bocejando. - Há controvérsias. O que você quer? É tarde.
- Preciso conversar com você. Aconteceu uma coisa estranha.
- Estou deitado, súcubo. A não ser que pretenda se juntar a mim, não tenho intenção de receber visitantes agora.
- Por favor, Dante. É importante.
Ele suspirou. - Está certo, estou te esperando.
- Não sei onde você mora.
- Lógico que sabe. Veio aqui um zilhão de vezes.
- Você mora na loja?
- Por que pagar aluguel por dois lugares diferentes?
Fui até a loja. A placa dizia fechado, mas era possível ver uma luz fraca no interior. Dante abriu a porta quando bati. Trajava jeans e camiseta, como sempre, mas
o cabelo embaraçado indicava que estava realmente na cama.
- Desculpe-me - disse-lhe. - Talvez fosse melhor eu ter esperado.
- Tarde demais para se arrepender. Entre.
Atravessamos a loja e fomos até a portinha que eu costumava ver fechada. Do outro lado, havia uma sala grande que parecia ser uma mistura de sala de estar, escritório,
depósito e... oficina.
- Erik estava certo - falei, andando em direção a uma estante alta. As prateleiras estavam repletas de garrafas de ervas e líquidos não identificados.
- Você é um feiticeiro. - Fiquei pensativa. - Ou pelo menos finge ser.
- Não tem fé em mim mesmo. Deve ser esperta. - Apontou para um pufe e uma poltrona xadrez. - Escolha se não quiser ir para a cama.
Escolhi a poltrona. - Bem, não é que não confie em você... mas tudo o que você faz é uma farsa. Logicamente, Erik deve odiá-lo por algum motivo justo, mas não teria
me mandado aqui se você não tivesse alguma espécie de talento.
- Lógica interessante. Talvez me odeie por minha personalidade charmosa. - Esfregou os olhos e bocejou novamente. Com o movimento, notei punções no centro de seu
braço que ainda não havia visto devido às mangas compridas.
- Talvez ele o odeie por causa de seus vícios.
Dante olhou para onde meus olhos estavam voltados. Deu de ombros, sem se preocupar muito. - Que é isso... Lancaster tem coisas melhores para se preocupar do que
uma dosezinha de vez em quando.
- Pelo que sei, não existe essa coisa de dosezinha de vez em quando...
- Mas então... veio aqui para fazer uma intervenção, súcubo?
- Não - admiti. Não tinha tempo nem interesse em corrigir Dante. - Mas escutei uma voz hoje à noite.
- Escutei uma voz também. Me telefonou e me acordou.
- Dante!
Irritada, expliquei a situação. O sorriso sarcástico permaneceu, porém parecia realmente preocupado.
- Humm. Interessante. Finalmente mostrou as caras...
- O que acha que significa?
- Não tenho a menor ideia, até sabermos o que é. Meu único palpite é que estava desesperado por algum motivo. Até agora, tinha conseguido se esconder bem... a não
ser pelo roubo de energia, obviamente. - Ele aliviou um pouco a expressão. - Espero que não esteja aqui agora, incentivando-a a pular sobre mim...
- Desculpe-me.
- Ah, bem. Acho que não sou uma vítima tão boa quanto o Homem de Mil e Setecentos Dólares. Seu predador tem padrões.
Senti um calafrio, odiando a ideia de ter um predador. Olhei para Dante e devia estar parecendo realmente patética, já que uma expressão de assombro cruzou-lhe o
rosto.
- Dante, você precisa me ajudar. Sei que não temos as respostas ainda... mas, bem, estou com medo dessa coisa. Não posso me permitir pegar uma vítima porque tenho
medo de que esse monstro volte. Não quero nem ir dormir.
Seus olhos acinzentados ficaram me avaliando, e, para minha surpresa, ele quase parecia gentil. Isso o transformou por completo. - Ah, súcubo. Você pode dormir hoje
à noite. Sem energia, não será visitada. Duvido que o beijo tenha sido suficiente.
- Mas um dia... um dia terei de me abastecer... e até que eu consiga conversar com Jerome sobre tudo isso...
- Bem, talvez eu possa preparar um feitiço para você. Uma proteção para afastar essa coisa.
- Você consegue? - Tentei esconder o ceticismo de minha voz, mas não funcionou. Seu rosto voltou a ficar amargo.
- Se não quer minha ajuda...
- Não! Eu quero. Sinto muito. Isso não foi legal da minha parte. Pedi sua ajuda, mas depois recuei.
- Bem, como você disse, eu não lhe inspiro muita credibilidade.
- Aceito qualquer ajuda que conseguir - respondi com honestidade.
Ele se levantou e se alongou. Então foi até a estante, estudando os frascos. - Tem certeza? Talvez você não goste do que tenha de fazer para preparar isso. Quer
muito mesmo?
Lembrei-me daquela voz, da necessidade daquela criatura dentro da minha cabeça. - Preciso muito. Contato que você, tipo, não me dê um colar feito de tripas de carneiro,
não vejo problemas.
Seus olhos ainda estavam fixos nas prateleiras e jarros. Ficou um bom tempo pensando. - Sinto que vou precisar de mais tempo para isso. Seria muito mais fácil se
soubesse com que estamos lidando. Mas como não sabemos, preciso tentar preparar uma espécie de feitiço genérico, que pode ou não funcionar. Além disso, os de espectro
mais amplo são sempre difíceis.
- Logo, nada para hoje à noite?
Ele voltou até mim. - Não terá problemas hoje à noite, lembra-se? Logicamente, é bem-vinda se quiser ficar aqui... ficarei acordado, certificando-me de que nada
lhe acontecerá.
Não consegui esconder o riso. - Assim como Kayla.
- Quem?
- A sobrinha do meu namorado... - Quase havia me esquecido de nossa conversa maluca. - Ela disse umas coisas engraçadas. Mas não sei se foi apenas imaginação infantil,
ou se ela tem realmente alguma habilidade psíquica.
- É complicado com crianças - falou. - Se ela tiver poderes, tenho certeza de que ciência e disciplina irão arrancá-los dela. O que ela disse?
- Dizia que eu era “mágica”. E que havia monstros no ar que penetravam os sonhos das pessoas. - Como ele não falou nada, perguntei: - Acha que poderia nos ajudar
com isso?
Ele balançou a cabeça. - Não. Ainda que ela seja paranormal, ou tenha um dom, ela é jovem e não tem experiência para saber que o que vê possui alguma utilidade real.
- Mas ela pode, talvez, sentir o que está me seguindo.
- Certamente. Se for realmente uma paranormal astuta, seria sensível a anomalias nos mundos mágico e espiritual.
Interessante. A pequena Kayla, com um possível potencial para grandes poderes espirituais. - O que me aconselha?
- Hein? - perguntou.
- Para alguém como ela. Para desenvolver suas habilidades e garantir que ciência e disciplina não as arranquem dela.
- Meu conselho? - Ele soltou uma gargalhada rude. - Deixe que as tirem dela. Seria um favor para ela.
Fiquei sentada, em silêncio, por um bom tempo, olhando para meus pés. Quando finalmente ergui a cabeça, perguntei-lhe: - Por que você é tão infeliz?
- Quem disse que sou infeliz? Ganho dinheiro sem fazer nada.
Apontei para a sala. - Tudo indica que você seja infeliz. Sua atitude. Seu braço. A pilha de garrafas de cerveja ali. O fato de, embora reclamar que eu lhe incomodo,
continuar me ajudando e sempre parecer feliz quando estou por aqui.
- A miséria adora companhia. Você também não é a maior expressão da felicidade...
- Sou muito feliz com minha vida - argumentei.
- Bem, então volte para ela e me deixe dormir. - Foi até a porta e a abriu, uma indicação não muito sutil. - Vou trabalhar no seu feitiço e entro em contato novamente.
Pensei em responder à dispensa abrupta, mas ele parecia tão cansado que não consegui fazê-lo. Além disso, sabia que tinha razão. Dante Moriarty era um homem muito
infeliz que usava sarcasmo e entorpecentes como uma fuga. Queria saber o que o atormentava tanto - o que teria obscurecido sua alma.
- Algum dia irá me contar por que Erik o odeia tanto? - perguntei, baixinho.
Dante apontou para a porta. - Boa noite, súcubo. Tenha bons sonhos.
Capítulo 14
aquele dia fiz o turno da tarde, e tinha planos de almoçar com Maddie. Ela e eu havíamos feito vários turnos juntas nas últimas semanas, mas as coisas estavam tão
malucas na loja que foi difícil encontrarmos um momento para conversar.
- Somos bem rebeldes, não? - falou, quando o garçom trouxe duas margaritas para a mesa. Estávamos naquele lugar “profano” que Peter, Cody e Hugh tentaram, algumas
noites atrás, me convencer a não frequentar.
- Nada - falei, lambendo a borda do meu copo. A combinação de sal e suco de limão era prova da existência de Deus. E tequila era prova da existência do Satanás.
- Só vamos trabalhar daqui a três horas. Até lá, estaremos sóbrias. Além disso, sou sua superior, e não vejo problema nisso. - Brindamos e bebemos.
- Tenho a impressão de que sou chata - disse-me em meio a nossa refeição.
- Não é verdade.
- É, sim. Não faço nada com a minha vida. - Segurava o copo pela haste, girando o conteúdo de um lado para o outro. - Doug sai todas as noites, para jogar, ir a
uma festa ou sei lá. E eu? Se não estou trabalhando, fico em casa escrevendo artigos ou assistindo a reality shows na tevê.
- O que gostaria de fazer em vez disso?
- Não sei. Há tantas coisas que me passaram pela cabeça. Paraquedismo. Viajar. Sempre quis conhecer a América do Sul. Mas é difícil, sabia? Esses tipos de coisas
forçam a pessoa a sair de sua zona de conforto.
- Não existe um motivo que a impeça de fazer tais coisas. Você é esperta e capaz, e acho que é mais corajosa do que imagina ser.
Ela sorriu. - Por que você me dá tanto apoio?
- Porque você é incrível. - A verdade era que, como eu começava a perceber, Maddie lembrava a mim mesma quando eu era mortal. Não totalmente confortável com o meu
corpo (era alta demais). Nem sempre sociável (minha atitude mordaz causou-me muitos problemas). Essa versão de mim era de séculos atrás, mas uma parcela dela permaneceria
dentro de mim para sempre. Gesticulei para o garçom e sacudi meu copo para ele. - Ei, Josh. Pode me servir?
Josh, o garçom, que parecia muito jovem para beber, pegou o copo com um sorrisinho. - Lógico que sim. O mesmo?
- Sim. Porém... odeio dizer isso, mas este estava um pouco fraco.
Josh assumiu um ar de ofendido. - Estava mesmo? Vou gritar com o barman. Talvez eu o obrigue a vir aqui para pedir desculpas de joelhos.
- Não é necessário - falei, com altivez. - Apenas mande que coloque uma dose extra dessa vez.
Fez uma reverência galante e piscou. - Como quiser, senhora.
Maddie reclamou quando ele saiu. - Viu? Não consigo flertar assim. Principalmente com um gatinho como ele.
- Lógico que consegue.
Ela balançou a cabeça. - Não. Não tenho sorte com homens.
- Ora, para com isso... Sempre acho graça nas coisas que diz. Você tem bom humor.
- Você não é homem. E não tenho medo de você - explicou.
- Você tem medo de Josh, o garçom?
- Bem... não, não exatamente. Mas fico muito constrangida. Perturbada...
Inclinei-me para a frente e falei num tom conspiratório. - Um segredinho: todos ficam constrangidos. Aja como se não estivesse, e será uma estrela.
Josh trouxe minha margarita. Agradeci-lhe com mais um flerte, enquanto Maddie parecia pensativa.
Quando ele foi verificar outra mesa, ela suspirou. - Sabia que só dormi com dois homens até hoje?
- E daí?
- E daí que tenho 29 anos! Não é triste?
Pensei em meu histórico. Nem fazia sentido tentar contar. - Significa que você tem padrões altos.
Ela sorriu. - Diz isso porque não conheceu os caras.
- Então encontre um bom. Há uma porção deles por aí. - Tive um déjà vu estranho em relação às conversas que tive com Tawny.
- Não vejo nenhum. Bem, exceto talvez Seth. Ele é um dos bons. - Ela suspirou. - Ele ainda não marcou nosso encontro.
- Ainda não? - Tinha de lembrá-lo disso.
- Não. A não ser que cuidar de suas sobrinhas conte. - Deu de ombros. - Está tudo bem. Como disse, sei que fez aquilo só porque estava com pena. Foi gentil o gesto.
Ah, ei, escutei Seth dizendo alguma coisa para Doug sobre você querer uma árvore de Natal. Está com dificuldades para encontrar uma?
Resmunguei. - Por favor, de novo, não.
- Mas... então não quer uma? Ou quer? Você parece o tipo de pessoa que gosta de árvores de Natal.
- Sendo bem sincera? Sou indiferente. - Balancei a cabeça. - É algo que meu amigo Peter iniciou e, então, contou para Seth.
Ela me olhava com suspeita. - Sabe, parece que você e Seth se encontram bastante.
- Ei, é possível ser amiga de homens legais também. - Não sabia muito bem por que ainda sentia a necessidade de manter em segredo meu relacionamento com Seth. Meu
instinto dizia-me que era o mais certo.
- Que pena - disse Maddie, finalizando sua margarita. - Aposto que ele trata a namorada como princesa.
- Sim - concordei, irônica. - Desde que essa princesa não se incomode com uma amante. Às vezes, acho que a escrita sempre está na frente de tudo o mais.
Para minha surpresa, Maddie não riu ou pareceu ofendida. - Bem, acho que é o preço que se tem de pagar se quiser ficar com um homem como aquele. Talvez valha a pena.
Agora fui eu quem ficou pensativa, analisando o que ela acabara de dizer. Será que eu pegava pesado com Seth e sua falta de atenção? Quando terminamos de almoçar,
voltamos andando - um pouquinho embriagadas - para a livraria. Cutuquei Maddie quando entramos.
- Está bem, vamos combinar o seguinte: na próxima semana, quero que faça três coisas ousadas.
Ela parecia surpresa. - Que tipo de coisas ousadas?
- Não sei. - Fiquei pensativa, parecendo mais bêbada do que imaginava. - Do tipo ousado. Sair para dançar. Usar batom vermelho. Não importa. Tudo que sei é que haverá
um questionário depois, está bem?
- Isso é ridículo. Não é tão fácil assim... - disse, com uma careta, virando- -se. - Não se consegue fazer isso acontecer de uma hora para outra.
- Acabei de escutar você dizendo para Maddie sair para dançar? - perguntou a voz de Seth logo em seguida. Ela já estava na outra ponta da loja, e duvidava que tivesse
aceitado meu desafio. Que pena. Girei para encará-lo.
- Estou tentando ajudá-la a viver a vida.
- Bebendo durante o dia? - provocou.
Apontei para o andar de cima. - Você não tem um livro para finalizar? Converso com você depois. Tenho algumas coisas importantes para fazer.
Não me senti muito mal por dispensá-lo, já que pretendíamos jantar e nos veríamos mais tarde. Ele saiu para escrever, e eu me enfiei no trabalho. Uma funcionária
estava doente, assim precisei ficar ali durante o frenesi de compras do final de ano. Maddie cuidava de um caixa ao meu lado, e eu ficava feliz ao vê-la sendo atenciosa
e carismática com os clientes.
Perto da hora de fechar, parei diante dos jornais, procurando... bem, sei lá o quê. Mas não me havia esquecido daquela pobre vítima de afogamento. Queria saber se
havia mais notícias sobre ele - ou sobre alguma coisa que talvez me ajudasse a descobrir o que acontecia comigo enquanto dormia. Infelizmente, as manchetes não apresentavam
nada.
Seth e eu fomos até Pioneer Square para jantar e, o que não era de surpreender, não encontramos lugar para estacionar. Acabamos parando vários quarteirões à frente
e estávamos congelando quando finalmente entramos no restaurante. Porém a jornada valia a pena. O lugar era um dos meus favoritos: servia culinária cajun, bem apimentada,
o que afastava o gelo do inverno. Com gumbo e étouffée, era difícil ficar tremendo muito tempo.
Estávamos terminando a sobremesa quando meu celular tocou. Não reconheci o número.
- Alô?
- Oi, Georgina. É Vincent.
- Oi - falei, surpresa por escutá-lo.
- Veja, preciso muito conversar com você, pessoalmente. Há como nos vermos?
- Agora?
- Sim... é meio importante.
Olhei para Seth, que estava dando a última colherada em seu pudim de pão. Estava tão tranquilo, que duvidava que se importaria se Vincent passasse ali.
- Estou com Seth...
- Serão só alguns minutos - prometeu Vincent.
- Está bem. - Disse-lhe onde estávamos, e ele falou que logo estaria ali.
E não mentiu. Ainda estava explicando a situação para Seth quando Vincent entrou no restaurante.
- O que você fez? Veio voando? - perguntei quando ele ocupou uma cadeira ao nosso lado.
- Não, estava perto daqui. - Ele apontou para os restos de nossas sobremesas. - Parece bom.
- Estava delicioso - falei. - Mas e então?
Ele hesitou e olhou para Seth.
- Não tem problema. Seth sabe de tudo - garanti-lhe. A garçonete apareceu, deixando nosso recibo e o troco.
Vincent analisou Seth mais um pouco, e então se virou para mim. - Está certo. É só uma pergunta rápida. Podemos conversar enquanto saímos.
Nós três nos enfiamos no frio novamente, dirigindo-nos para o carro de Seth.
- Então - começou Vincent. - Lembra-se daquela história que me contou um tempo atrás? Sobre um policial que atirou no próprio parceiro?
- Sim.
- Onde você escutou isso?
Andamos em silêncio por alguns instantes, enquanto eu tentava me lembrar. - Não sei. Deve ter sido na televisão. Ou uma manchete na loja. Não consigo recordar.
- Não mesmo?
Franzi o cenho. - Não.
Vincent suspirou. - Bem, veja só. Pesquisei aquela história e foi muito difícil descobrir alguma coisa. Nunca veio a público. Na verdade, precisei investigar com
algumas fontes dentro da polícia.
- Mas deve ter vindo a público. Como mais eu poderia saber?
- É isso que estou tentando descobrir.
Revirei meu cérebro. Onde tinha escutado aquilo? Não tinha a menor ideia. Apenas sabia quando conversei com Vincent naquele dia. Mas, obviamente, não tinha brotado
em minha mente do nada.
- Conhece alguém na polícia? - sugeriu.
- Ninguém com quem tenha conversado. Talvez tenha escutado alguém conversando. Sério, não... não consigo lembrar.
- Qual é a história? - perguntou-me Seth.
O quebra-cabeça, de repente, começou a se formar. O policial era exatamente como o homem que nadou em Puget Sound. Ambos tiveram uma visão de algo que não era verdade,
mas suas ações subsequentes funcionaram. E eu ficara sabendo de ambas as histórias antes que fosse possível conhecê-las.
- Georgina? - perguntou Seth.
- Um policial ficou maluco numa loja e começou...
- Parem aí. Parem já aí, caralho.
Paramos assim que ouvimos uma voz na escuridão. Ao nos dirigirmos àquele estacionamento distante, havíamos nos afastado bastante do rebuliço de Pioneer Square. E,
de um canto escuro, emergira um homem que precisava se barbear e de roupas limpas. Do lado dele, Carter parecia um cavalheiro. Assaltos eram raros em Seattle, mas
estatísticas pouco importavam quando se estava sendo assaltado. O homem tinha um revólver apontado para nós.
- Deem-me tudo o que têm - berrou. Ele tinha os olhos arregalados, uma expressão de paranoia, parecendo drogado. Mas, novamente, isso pouco importava. Ele tinha
um revólver. Nós, não. - Tudo, caralho. Carteira. Joias. E tudo o mais. Vou atirar. Juro por Deus, vou atirar.
Dei um passo e fiquei à frente de Seth e Vincent, bem delicadamente, mas
o suficiente para me colocar na linha de fogo. Já levara tiro antes. Doía,
mas não me matava. Eram os meus humanos que corriam perigo.
- Lógico - falei, colocando a mão na bolsa. Mantinha a voz baixinha e tranquilizadora. - O que quiser...
- Vamos logo - bravejou. Seu revólver estava apontado diretamente para mim agora, o que era bom.
Atrás de mim, escutei Seth e Vincent pegando suas carteiras também. Com uma pontada de dor, lembrei que precisaria entregar o anel de Seth, que eu estava usando
em uma correntinha em volta do pescoço naquela noite, mas era um preço pequeno a pagar se todos saíssemos daquilo sãos e salvos.
De repente, vi movimento em minha visão periférica. Antes que pudesse impedi-lo, Seth lançou-se em direção ao homem e jogou-o contra a lateral de um prédio de tijolos.
Nunca imaginei que Seth fosse do tipo brigão, mas foi impressionante. Infelizmente, não era necessário ali.
Vincent e eu corremos em direção à briga, exatamente ao mesmo tempo. O cara fora obrigado a abaixar o revólver quando Seth o jogou contra a parede, mas o bandido
lutava com a ferocidade de um urso. Vincent e eu tentamos ajudar, principalmente tentando arrancar o revólver de suas mãos. Foi um daqueles instantes que pareciam
ao mesmo tempo muito longos e muito curtos.
E então o revólver disparou.
Meus dois companheiros e eu paramos de nos mover. O cara aproveitou a breve calmaria para se desvencilhar e fugir para a noite. Soltei um suspiro de alívio, grata
por aquilo ter acabado.
- Georgina... - disse Vincent.
Seth ficou de joelhos, e foi quando vi sangue. Estava espalhado por sua coxa esquerda, escuro e espesso sob a luz bruxuleante do poste. Seu rosto estava pálido,
e seus olhos arregalados demonstravam choque.
- Oh, Deus. - Joguei-me ao seu lado, tentando olhar a perna. - Ligue para o 911! - gritei para Vincent. Antecipando-se, já estava com o celular na mão.
Parte de meu cérebro escutava-o falando freneticamente ao telefone, mas o restante de minha atenção estava em Seth.
- Oh, Deus... oh, Deus - falei, arrancando meu casaco. Não parava de emanar sangue do ferimento. Pressionei o casaco sobre o buraco, tentando aliviar o sangramento.
- Fique comigo. Oh, por favor, por favor, fique comigo.
Os olhos de Seth me encaravam, demonstrando ao mesmo tempo ternura e dor. Abriu um pouquinho os lábios, mas não disse nada. Ergui o casaco e observei o ferimento.
Vincent ajoelhou-se ao meu lado.
- Não para, não consigo parar - murmurei.
Vincent olhou por sobre meus ombros. - Artéria femural.
Depois de mais de um milênio, eu conhecia o corpo humano e sabia o que o matava. Teria notado que tipo de tiro fora aquele se não estivesse tão histérica.
- Isso vai drená-lo - sussurrei, apertando o casaco em sua perna novamente. Já vira aquilo acontecer antes, ficando ao lado de pessoas que sangraram até morrer.
- Isso vai matá-lo antes de o socorro chegar. A bala acertou em cheio.
Ao meu lado, escutei Vincent respirar fundo, tremendo. E então suas mãos ficaram sobre as minhas. - Tire o casaco - falou com delicadeza.
- Preciso aliviar o sangramento.
Mas ele, gentilmente, afastou minhas mãos, retirando também o casaco. Havia sangue por todo lado. Imaginei ter visto vapor de sangue no ar gélido.
Vincent colocou as mãos na coxa de Seth, sem se preocupar com a sujeira. Palavras chegavam à ponta da minha língua, mas nunca saíam. O ar ao nosso redor começou
a queimar, e uma sensação de formigamento percorreu meu corpo. Por um instante, Seth parecia banhado em luz branca. De Vincent, de repente senti lavanda seca e umidade.
Tingido em outra coisa... algo que esperava nunca mais sentir novamente.
Então tudo se dissipou. Vincent retirou as mãos, e, quando olhei para baixo, não havia mais sangue saindo da coxa de Seth.
- Sinto muito - gaguejou Vincent. - Não sou muito bom em curar, e, se fizer mais alguma coisa, os outros vão me sentir. Isso vai mantê-lo vivo até que a ambulância
chegue.
À distância, ouvi o ruído fraco de sirenes. Em meu peito, meu coração batia forte. O mundo ficou mais lento. Há quanto tempo Vincent disse que conhecia Yasmine?
Quinze anos. Era tempo demais. Ele não parecia ter mais de trinta. Não teriam se conhecido quando ele era um adolescente. Não fazia sentido. Nem o fato de que ele
tinha acabado de curar um ferimento grave.
Mas nada daquilo era tão significativo quanto o que eu já descobrira. Por apenas um instante ele baixara suas defesas, e eu sentira... uma assinatura imortal. E,
apesar de cada imortal ter características bem próprias, todos os tipos de imortais têm alguns atributos que os identificam por classe. Súcubos. Vampiros. Anjos.
Demônios. A assinatura de Vincent foi desvendada.
Os outros vão me sentir.
Olhei para Vincent quando luzes piscantes vermelhas viraram a esquina. Meus olhos estavam tão arregalados quanto os de Seth.
- Você é um nefilim - murmurei.
Capítulo 15
Os médicos disseram que era um milagre o fato de Seth ter sobrevivido. E era mesmo.
Os policiais que nos interrogaram achavam que a atitude de Seth fora imprudente - mas também admirável.
Defender uma donzela costuma provocar aquela reação, e, como Seth não fora morto, ninguém vira sua defesa cavalheiresca da mesma forma que eu. Porque honestamente...
Achei uma estupidez.
Achei uma estupidez tremenda, e estava irritada. Mais do que irritada. Já tinha passado desse ponto, chegando a uma zona desconhecida de fúria.
O que ele estava pensando?
- Não estava pensando - falou-me, baixinho, quando o questionei na sala de emergência. Os outros haviam saído por um instante, para cuidar de outras coisas, e ficamos
sozinhos. Seth deitado na cama, com o rosto ainda pálido, mas pelo menos vivo e são. - O cara tinha um revólver. Você estava na linha de fogo dele.
Abri a boca, para argumentar contra aquela lógica imbecil, mas um médico retornou. Precisava examinar Seth, e saí da sala antes de dizer algo pelo que depois me
arrependesse. Seth talvez tivesse agido como um idiota, mas estava no hospital com um ferimento sério. Estourar naquele momento talvez não fosse o mais adequado
para o seu processo de cura.
Em vez disso, procurei Vincent. Depois de ser interrogado pela polícia, ele foi para um corredor, encostou-se na parede e enfiou as mãos nos bolsos. Jogou a cabeça
para trás, olhando sem muito ânimo para o teto.
- Oi - falei, tendo o cuidado de manter um espaço seguro entre nós.
Ele olhou para mim. - Oi. Como ele está?
- Bem... levando-se em consideração o que aconteceu. Os médicos ficaram surpresos pela bala “não ter pego em cheio”.
Vincent virou o rosto e ficou olhando o corredor. Não falava nada.
Não sabia o que dizer. Então... você é um nefilim. E como você lida com isso?
Para ser sincera, era possível adivinhar como ele lidava. Era terrível. Nefilins eram descendentes de anjos e seres humanos. E esses anjos eram agora, logicamente,
demônios. Não se pode dormir por aí com seres humanos quentes e ainda jogar na equipe do céu - como eu notara que acontecia com Yasmine. Foi por isso que Jerome
tinha caído. No que provavelmente era a coisa mais injusta do mundo, muitos nefilins eram caçados e mortos por anjos e demônios - alguns até mesmo por seus próprios
pais. O céu e o inferno viam nefilins como abominações perigosas. Como nefilins costumavam ter uma natureza indisciplinada e não conseguiam controlar seus impulsos,
sua reputação não era muito boa.
Devido a essa perseguição, os nefilins costumavam andar disfarçados pela terra, escondendo o peso de seu poder - que rivaliza com o de seus pais -, assim como as
assinaturas imortais que poderiam entregá-los. E, apesar de sentir pena deles, eles me deixavam morta de medo. Muitos tinham rancor de anjos, demônios e todos os
outros imortais. O filho de Jerome, Roman, era assim. Viera para Seattle alguns meses atrás e iniciou uma onda de assassinatos revanchistas. Olhando para Vincent
agora, queria saber se estava lidando com o mesmo tipo de coisa.
- E Yasmine... ela sabe? - perguntei, após um bom tempo de desconforto.
Seus olhos voltaram-se para mim. - Lógico. - Disse com o mesmo tom prosaico de quando falara sobre o relacionamento deles. Era um tom que implicava a pergunta: como
ela não saberia? Como se fosse absurdo esconder alguma coisa da mulher que amava.
- Isso arrebenta com ela - falou, suspirando. - Está corroendo ela por dentro.
- Porque... você... é o que é?
- Não. - Seus olhos transmitiam tanta tristeza que quase esqueci que ele era de uma raça de psicopatas megapoderosos. - Ela não se importa com isso. O que não suporta
é ter de manter segredo. Precisar esconder tudo. Sabe que eles não conseguem mentir... mas ela não está exatamente dizendo a verdade. Está ludibriando, e odeia isso.
E odeio que ela odeie isso. Tentei terminar nossa... coisa alguma vezes, mas ela não quer porque...
- Porque te ama - completei.
Vincent deu de ombros e afastou o olhar novamente.
- Sinto muito - disse-lhe, por fim. E sentia mesmo. Yasmine amar alguém já era bem perigoso, mas para ela amar uma das criaturas mais desprezadas de nosso mundo...
bem... Isso levava a questão para um nível totalmente diferente. Um anjo deveria relatar a existência de Vincent, não escondê-la.
Vincent voltou sua atenção para mim. - Para quem você irá contar? Carter? Jerome?
Encarei aqueles olhos escuros, muito escuros, olhos repletos de tanta aflição e tanto amor. Não tinha mais medo dele. Ele não era Roman.
- Ninguém - respondi, baixinho. - Não vou contar para ninguém.
Ele não acreditou. - Por quê? Você sabe o que sou. Sabe que poderia ter problemas por me esconder. Por que não contaria?
Pensei sobre o assunto. - Porque o sistema é uma merda.
Depois disso, fui para o quarto de Seth, e, mais tarde, quando voltei ao corredor, Vincent tinha ido. Também não estava em meu apartamento quando cheguei em casa
naquela noite.
Seth foi liberado na manhã seguinte, e faltei no trabalho para ficar com ele.
- Não preciso ser mimado, Thetis - disse-me, por gentileza, apesar de eu poder jurar que havia um levíssimo toque de aborrecimento em sua voz. - Estou bem. Não vou
quebrar.
Estávamos em sua sala de estar, lado a lado no sofá. Ele mexia em seu laptop, enquanto eu me entretinha com um romance. Dobrei uma ponta da página em que estava
e fechei o livro.
Queria dizer a Seth que ele quebrava, sim, que essa era a diferença dos mortais. Queria dizer-lhe milhares de coisas, assim como sentira vontade de fazer no hospital,
mas novamente engoli meus sentimentos.
- Você apenas precisa pegar leve - falei. - E quero ter certeza de que não fará nenhuma maluquice.
- Certo. Porque meu estilo de vida é fisicamente bem vigoroso.
Ele tinha razão. Passava a maior parte do tempo sentado e escrevendo. Não era muito provável que estourasse outra artéria.
- Apenas quero que tenha cuidado - argumentei, teimosa. - Você levou um tiro na noite passada, lembra-se? Não é o mesmo que sofrer uma queda no gelo.
- Você exagerou um pouco daquela vez também.
- Qual é o problema de eu me importar com você?
Ele suspirou e voltou a trabalhar. Tinha a sensação de que não era a única ali que estava poupando palavras de fúria. Passamos boa parte do dia falando pouco. Sempre
que ele expressava interesse em alguma coisa - comida, bebida, etc. -, eu rapidamente me levantava e ia pegar para ele. Era a enfermeira/criada perfeita. Por fim,
perto da hora do jantar, ele parecia prestes a estourar.
- Seus amigos não vão fazer alguma coisa hoje à noite? - perguntou, sério.
- Está tentando se livrar de mim?
- Estou apenas perguntando.
- Vão jogar baralho.
- E você não vai?
- Não, vou ficar aqui com você.
- Você devia ir.
- Não quero deixá-lo sozinho. De repente, você precisa de alguma coisa.
- Então me leve contigo.
- O quê? - surpreendi-me. - Mas você precisa...
- ... ficar tranquilo, descansar, não me esforçar. Eu sei, eu sei. Mas veja, estou começando a sentir claustrofobia aqui, e, para falar a verdade, acho que poderia
ser bom para mim ter alguma distração.
- Seth...
- Georgina - interrompeu. - Não será muito diferente do que isso aqui. Apenas ficar sentado, só que com...
- Companhias melhores?
- Não foi isso que quis dizer - falou.
Ficamos discutindo, e enquanto isso fiquei pensando quando havíamos chegado àquele ponto de nosso relacionamento. Até então, entre nós tudo era alegre e sentimental.
Como havíamos cruzado a fronteira para a perturbação mútua? Quando havíamos começado a irritar o outro? Nos filmes, experiências de risco de morte costumam unir
mais as pessoas.
Por fim, apiedei-me e fomos até a casa de Peter e Cody. A turma - que naquela noite consistia em Hugh, Peter, Cody e Carter - ficou surpresa ao nos ver, já que Seth
costumava evitar eventos sociais de imortais. Mas, ainda que fosse socialmente inepto, Seth gostava de jogar baralho. Era o tipo de atividade analítica que ele curtia,
e muitas vezes conseguia ganhar sem precisar falar muito.
Pouco antes de o jogo começar, Niphon apareceu. Ele e eu nos olhamos rapidamente e logo passamos a ignorar a presença do outro.
Inevitavelmente, o tiro que Seth levou virou assunto de conversa.
- Você se jogou na frente de um revólver por ela? - perguntou Peter, claramente impressionado.
- Bem - disse Seth, um pouco desconfortável com todos aqueles olhos sobre ele. - Na verdade, tentei jogá-lo para longe.
- Quer dizer, desarmá-lo?
- Humm... não. Mais como... ir de encontro a ele. Não sei muito bem como “desarmar” alguém.
- Imaginei que, talvez, você tivesse feito aulas de combate para poder escrever aquelas cenas de luta em seus livros - comentou Peter.
Seth fez que não com a cabeça. - Em toda a minha vida, nunca briguei. Pelo menos até aquela noite.
- Isso é incrível - falou Cody. - Arriscar sua vida em nome do amor.
Fiquei olhando, sem acreditar, para os vampiros tagarelando sobre o heroísmo da ação de Seth. Animavam-no com mais perguntas sobre o ataque, e a raiva que eu tentava
aliviar desde a noite anterior não parava de crescer. Na outra ponta da mesa, Niphon escutava tudo com um sorrisinho no rosto. Carter, como sempre, escondia seus
sentimentos. Queria saber por que não havia saído com os outros anjos, mas o assunto Seth tinha prioridade sobre minha curiosidade.
Uma coisa foi estranha. Hugh, que escutava sem falar nada, parecia tão furioso quanto eu. Esperava que ele se empolgasse como os outros vampiros, importunando Seth
por detalhes cheios de ação e elogiando-o pelo heroísmo de seu ato. Mas o rosto do demônio parecia sombrio e petrificado, com os olhos fixos em suas cartas.
- O cara devia estar loucão - observou Peter. - Nunca se sabe o que pode acontecer. Quando se pensa sobre o que acontecer, pular sobre ele dessa forma foi algo bem
corajoso.
Não aguentaria mais aquilo.
- Foi estúpido! - berrei. As cabeças de todos viraram-se para mim. Ignorei-os, fixando meu olhar em Seth. - Foi algo imbecil e idiota e... e... - Não conseguia pensar
em mais sinônimos; assim, fiquei quieta. - Você não devia ter feito isso. Ele não teria como me machucar. Não teria como me matar. Você devia ter permitido que eu
cuidasse daquilo!
Sabia que Seth odiava ser o motivo de uma comoção como aquela, mas ele retornou meu olhar com uma expressão surpreendentemente furiosa.
- Georgina, havia um homem com um revólver num beco escuro. Você estava diante dele. Acha mesmo que eu iria analisar todos os tipos de cenários lógicos naquela hora?
Ah, vejamos. Ela é imortal, assim, se levar um tiro, não há nada com que me preocupar.
- Sim - resmunguei. - É isso que você deveria ter pensado.
- Na hora, o que eu pensava era: “A mulher que amo está em perigo, e prefiro morrer a permitir que algo lhe aconteça”.
- Mas comigo não teria acontecido nada!
- É um instinto básico dos seres humanos proteger aqueles que ama. Mesmo que sejam imortais.
- Mas isso não faz sentido.
- É porque faz muito tempo que você deixou de ser mortal - disparou.
Foi como levar um tiro. Levantei-me da cadeira e corri para o banheiro. Lágrimas de raiva marejavam meus olhos, e me recusei a permitir que aparecessem diante de
meus amigos. Encostei a cabeça no espelho, tentando todos os tipos de truques para me acalmar. Respirar fundo. Contar até dez. Nada funcionava.
Não conseguia entender. Simplesmente não conseguia entender. E, pelo que parecia, tampouco Seth entendia. Por que ele não conseguia entender? Levar um tiro - na
cabeça, no coração, ou sei lá onde - doeria muito. A dor seria excruciante. Mas, no dia seguinte, já estaria recuperada. Seguiria em frente.
Mas Seth, não. Por que ele não entendia que isso era sério? A morte era para sempre. Fechei os olhos com força, tentando bloquear a imagem de Seth morto. Gelado.
Paralisado. Sem nenhuma faísca naqueles olhos marrons. Sem mais mão quentinha para segurar a minha. Um choro formou-se dentro de mim, e forcei para que sumisse.
Depois de mais algumas respiradas fundas, finalmente senti que podia retornar para o convívio dos outros. Mas, assim que saí do banheiro e andei pelo corredor para
chegar à cozinha, ouvi mais gritos. Hugh.
- Foi um ato de coragem, está bem? Nobre. Galanteador. Valeria uma estrela dourada. Mas ela está certa. Foi estúpido. Foi tão estúpido, que você é ainda mais estúpido
por não se dar conta disso, caralho.
- Entendi - falou Seth. Podia sentir o cansaço e a irritação em sua voz.
- Eu poderia ter morrido. Eu sei disso, está bem? Mas não estava pensando nas grandes manobras do universo. Estava pensando nela.
- Não - disse Hugh. - Não estava. Estou cansado para caralho de ouvir todo mundo dizendo como deve ser difícil ser você. Todos ficam falando sobre como é incrível
você conseguir lidar com esse relacionamento com ela. Mas, Deus. Sério, qual é a dificuldade disso? Você tem uma namorada linda, brilhante, que não envelhece nunca,
porra. Ela te ama. Sei que não podem fazer sexo, e todo mundo age como se fosse o fim do mundo, mas caramba... Ela te deu sinal verde para ir buscar em outros lugares.
Não vejo tanto sofrimento assim...
- O que quer dizer com isso? - perguntou Seth.
- Estou dizendo que é ela quem sofre. Ela sabe que sua vida é uma bomba- -relógio. Quanto tempo mais você tem, talvez cinquenta anos? E isso se uma doença ou um
acidente não o levar antes. Cinquenta anos, e você já era. Ela tem de conviver com isso todos os dias, sabendo que, de uma hora para outra, sua vida pode acabar.
- Ouvi Hugh fazendo um estalo com os dedos. - Sem dor. Sem sofrimento. Foi-se. Ela vai ficar vendo você envelhecer, seu cabelo ficar grisalho e cair, e, quando finalmente
morrer, ficará destruída.
Houve um momento de silêncio, então escutei Seth dizer, inseguro:
- Cinquenta anos não são nada comparados à extensão da vida dela. Ela superará a minha perda. Como todo mundo não se cansa de me lembrar, ela é imortal.
- Isso só significa que ela tem mais tempo para se lamentar. Se tivesse algum apreço por ela, porra, teria encerrado esse romance estúpido muito tempo atrás. Vocês
nunca teriam se envolvido. De início, ela ficou com dúvidas, mas agora está totalmente envolvida. Não vai abrir mão de você. Você poderia se transformar no maior
cuzão do mundo, e ainda assim ela não o abandonaria - não com todos esses ideais românticos que tem hoje. Ela se apaixona muito facilmente... e se machuca muito
facilmente também.
Com o silêncio que se seguiu, finalmente apareci. Todos olharam para o outro lado, com exceção de Niphon. Ele claramente estava gostando de tudo aquilo. Sentei-me,
e o carteado começou. Mas ninguém estava prestando atenção. A atmosfera estava pesada, a conversa forçada e hesitante. Era o velho provérbio do elefante na sala.
Quando Peter, estranhamente, falou que estava cansado, nenhum de nós demorou para levantar e ir embora.
Quando estava vestindo meu casaco, Carter veio até mim.
- Seth tem o direito de tomar suas próprias decisões - disse Carter, com gentileza. O anjo me olhava de uma forma que sempre me deixava arrepiada. Alguém com um
boné de beisebol tão feio não podia ter esse tipo de habilidade. Para ser bem sincera, por que seus bonés estavam sempre tão sujos? - Não se pode ficar com raiva
de qualquer coisa, pois, afinal de contas, os mortais levam a vida da forma que querem. Não é nossa função interferir nisso.
- Lógico que é - falei. - É isso que vocês fazem. É isso que todos nós fazemos. E esse é o sentido dessa batalha entre o céu e o inferno... nós interferimos, propositalmente,
nas vidas das pessoas.
- Sim, mas isso é diferente.
- Não, não é. - Atrás dele, vi Niphon dizendo alguma coisa para Seth. Legal. O demônio devia estar tentando comprar sua alma. Era exatamente o que eu não precisava
naquele instante. Voltei-me para Carter. - Veja, preciso ir. Mande um abraço para a Nossa Turma quando os vir.
Arrastei Seth para longe de Niphon, e fomos para casa. Achei que fosse impossível que as coisas entre nós pudessem ficar mais desconfortáveis do que ficaram na casa
de Peter, mas a viagem de carro mostrou que eu estava errada. Mais cedo, Seth e eu combináramos de ele ficar na minha casa, mas, assim que peguei a I-5, ele pediu:
- Gostaria de trabalhar um pouco mais. Se importa de me deixar em casa?
Parecia que o elefante havia se juntado a nós no carro. Sorri, séria, e não tirei os olhos da estrada. - Lógico. Sem problemas.
Capítulo 16
Ao entrar no meu prédio, depois de deixar Seth, fiquei surpresa ao ver o porteiro ainda trabalhando. Ele normalmente ia para casa na hora do jantar. Uma pilha de
papéis em suas mãos indicava algum tipo de hora extra obrigatória. Ele abriu o sorriso quando me viu.
- Senhora Kincaid! Tenho uma coisa para a senhora.
Fiquei surpresa por um instante, mas logo me lembrei dos lembretes diários em post-it na minha porta. Já eram três agora. - Ah, sim - falei. - Desculpe- -me, ainda
não tive oportunidade de pegá-lo. Sempre esqueço.
Ele já estava se revirando para pegar uma coisa atrás dele, do outro lado do vidro. Dei uma volta, quando ele levantou uma caixa enorme e a colocou sobre o balcão.
A etiqueta na lateral estava de ponta-cabeça, mas ainda consegui ler: Árvore de Natal - Austrian Fir.
- Ai, caramba - resmunguei. - Isso é armação de alguém...
Mas o cara já estava trazendo outra caixa para o balcão, uma menor, com fotos na lateral mostrando a “árvore de fibra ótica pré-decorada” que havia dentro. E mais
uma outra caixa, um pouco menor do que a Austrian Fir, e uma menorzinha, que tinha 60 x 60 cm. As últimas duas estavam embrulhadas em papel celofane verde, num capricho
tão grande que apenas um ser que habitava a Terra era capaz de fazer: Peter.
O porteiro analisou as caixas. - A senhora deve gostar mesmo do Natal.
- Pensei que cada um daqueles bilhetes fosse um lembrete para o mesmo pacote.
- Não. Um novo a cada dia. Precisa de ajuda?
Rebocamos as árvores até o meu apartamento e as deixamos no chão da sala. Agradeci-lhe, e, assim que ele saiu, Aubrey apareceu e começou a atacar as caixas.
- Tem bastante pinheiro aí - disse uma voz que surgiu de repente atrás de mim.
Dei um pulo e girei sobre os calcanhares. Yasmine. - Não faça isso. Carter costuma fazer a mesma coisa.
- Desculpe-me - falou, parecendo encabulada. - Não foi minha intenção. Acabei de chegar. - Ela foi até as caixas e inclinou a cabeça para lê-las. Usava jeans e um
moletom da Louisiana State University, com o já tradicional rabo de cavalo que a fazia parecer ter dezessete anos. - Por que tanta coisa?
Tirei meu casaco e me afundei no sofá, com um suspiro. - Meu amigo Peter começou um burburinho dizendo que eu precisava de uma árvore de Natal depois que Carter
queimou a minha. Assim, acho que todo mundo resolveu ajudar.
- Espere um pouco - falou. - Você disse que Carter queimou sua árvore de Natal?
- Sim, é uma longa história.
- Ele deve estar se sentindo culpado.
Ela apontou para a pequena árvore de fibra ótica, aquela que já estava decorada. Havia palavras rabiscadas na lateral da caixa, com uma letra araneiforme, quase
ilegível:
G...
Imaginei que não teria problemas com essa. Pronta e decorada!
... C
P. S. ... E antichamas.
- Hmm - refleti. - “C” poderia ser Cody também.
- Não. Reconheci a péssima caligrafia. É Carter.
- Está bem, então o anjo se arrependeu. Mas de quem são as outras?
Logo descobrimos. O embrulho nas duas caixas idênticas já tinha entregue Peter. A caixa maior continha uma árvore muito bonita, muito cara, com folhas “verde-musgo”
levemente polvilhadas com glitter prateado. A caixinha menor trazia um conjunto de luzes e enfeites, todos roxos e fúcsia. Parecia que Peter não confiava no meu
gosto para decorar o seu presente.
A Austrian Fir era da equipe da livraria. Um cartão de Maddie: Surpresa! Todos participamos da “vaquinha”. Agora você pode deixar de ser mão de vaca. Estava assinado
por outros funcionários da livraria, e também por Seth.
Fiquei olhando de uma caixa para outra. - É um milagre de Natal. Não tinha nenhuma árvore. Agora tenho uma floresta.
- Vamos lá - disse Yasmine. - Vou te ajudar a arrumá-las.
Olhei para ela, surpresa. - Você não veio aqui para se encontrar com Vince?
Ela fez que não com a cabeça. - Vim aqui conversar com você.
Uh-oh.
Não estava muito animada para arrumar as árvores de Natal, mas um ser muito mais poderoso do que eu estava; assim, aceitei participar. A árvore de Carter foi a mais
fácil, já que tudo que precisei fazer foi ligar na tomada. Coloquei-a no peitoril de uma janela, bem sobre uma tomada. As folhas de fibra ótica ficavam rosa-clarinhas,
depois roxas, depois verde-azuladas e, por fim, brancas.
- Meu Deus - falei. - É uma árvore de Natal estilo lâmpada de lava.
- Eu gosto - comentou Yasmine. - Exige coragem. - Ela parecia muito animada. Parecia uma criança na manhã de Natal. Eu achava que, depois de tantos Natais (e árvores)
em sua existência, isso perderia a graça. Ela apontou para a árvore de Peter. - Vamos cuidar da meticulosa agora.
Estávamos pendurando luzes roxas na árvore “verde-musgo” quando ela finalmente iniciou A Conversa.
- Então... Vincent contou-me o que aconteceu. - Fez uma pausa enquanto dava uma volta com as luzes num ramo. - Fico feliz por seu amigo estar bem.
- Eu também. Ele teve sorte... se Vincent não estivesse lá...
Mais silêncio. Não conseguia entender muito bem aonde Yasmine iria com aquilo. Meu palpite é que ela estava preocupada com a possibilidade de eu contar a alguém
sobre Vincent. Tinha certeza, contudo, que não ia ameaçar arrebentar meus joelhos, ou algo assim, para que guardasse segredo. Na verdade, percebi que o que ela queria
mesmo era uma garantia. Era uma ideia louca e assustadora. Acima de tudo, ela era um anjo. Um ser de esperança e paz, um ser para quem os outros pediam conforto.
Porém, lá estava ela, implorando para mim - uma criatura do inferno.
- Falei sério - disse a ela -, quando falei para ele. Não vou contar a ninguém.
- Acredito em você - comentou, ainda demonstrando muita confusão. Anjos sabiam quando os outros diziam a verdade. - Mas não entendo. Por quê? Por que não contaria?
Você poderia ter problemas se seus superiores... se Jerome... descobrisse que você sabia e não contou. - Vincent dissera a mesma coisa. Era verdade. - Seu pessoal
costuma ficar puto com esse tipo de coisa.
- Mas e o seu, não fica? Será que te perdoariam se descobrissem?
Ela afastou o olhar, voltando sua atenção para pendurar um pombo de vidro rosa.
- Veja - falei. - Trabalho para o inferno, mas não, tipo, me satisfaço com o sofrimento dos outros. Principalmente porque gosto de vocês dois. Não quero criar problemas
para vocês. Nem acho que estejam fazendo algo errado. Perigoso, talvez, mas não é errado.
- Que parte? A paixão ou a coisa do nefilim?
Dei de ombros. - Tudo é arriscado.
Ela sorriu para mim. - Você fica calma ao falar sobre nefilins. A maioria das pessoas, em nosso círculo, fica morrendo de medo.
- Conheci um certa vez. Tive um namoro com ele. - Pendurei uma bola roxa toda enfeitada na árvore. - E era assustador para caramba. Tinha essa coisa de revanchismo
homicida, que de certa forma diminuía sua sensualidade. Mas, no final... não sei. Não era bem um monstro. Não tinha culpa por ter nascido assim.
Fiquei feliz por ter me libertado de Roman, feliz por ele estar bem longe de mim. Ele significava uma ameaça para mim e para aqueles que eu amava. Ainda assim, havia
algo nele que eu achava encantador. E foi por isso que tivemos uma ligação antes de tudo ir literalmente para os ares. Entendia seu desgaste com as disputas entre
o céu e o inferno.
Ele se ofereceu para fugir comigo, para longe de tudo isso, e houve dias em que eu acordava e desejava ir com ele.
- Não - concordou Yasmine. - Não têm culpa por terem nascido assim. Não podem evitar. Mas sua existência é uma recordação de nossos erros... de nossas fraquezas.
- Ela abriu as mãos diante de seu corpo, analisando-as como se tivessem respostas. - Nenhum de nós, imortais superiores, quer ser confrontado com sua própria fraqueza.
Acho que é nosso excesso de confiança. Principalmente os anjos. Ninguém é perfeito, mas gostamos de acreditar que somos. - Ela suspirou e deixou as mãos caírem.
- Devia me afastar disso tudo. Há muito tempo...
Joguei a cabeça para cima. - Mas você o ama.
- Às vezes, amar alguém significa que você precisa fazer primordialmente o que é certo. Fazer o que precisa em vez de fazer o que quer.
- Acho que sim. Mas acabar com isso parece uma atitude extrema. Deve haver uma forma de... sei lá, ter tudo.
A porta se abriu, e Vincent entrou. Não parecia surpreso por nos ver, mas também deve ter sentido nossas auras. Seus olhos encontraram os de Yasmine, e parecia uma
chuva de raios em minha sala. Ambos se acenderam, brilhando de uma forma que meu glamour súcubo não daria nem para o começo.
Ele demonstrou surpresa quanto à minha Floresta Natalícia, mas logo veio nos ajudar, parecendo tão animado quanto Yasmine. Os dois nunca se tocavam, mas notei a
mesma coisa que acontecera naquele café da manhã: uma intimidade no modo como interagiam. Não precisavam se tocar. O relacionamento era óbvio, e queria entender
como era possível que nenhum dos anjos jamais tivesse percebido. Talvez fosse aquilo que Yasmine comentara sobre o excesso de confiança dos anjos. Talvez anjos sempre
acreditassem ser perfeitos e fossem cegos para ver erros nos outros, enquanto alguém como eu - que explorava fraquezas - sabia o que procurar.
Terminamos a árvore de Peter e, então, encontrei os meus enfeites do ano anterior - aqueles que não foram destruídos pelo fogo - e os aproveitei na árvore da livraria.
Quando meu paraíso arborizado ficou enfim pronto, Yasmine e Vincent se despediram e saíram. Ainda não tinha a menor ideia do que era essa missão divina deles em
Seattle, mas acreditava que teria consequências universais. Causou-me uma sensação estranha pensar que ela fora deixada de lado por um tempo para decorar minha casa.
Enquanto limpava as caixas, não parava de pensar no que Yasmine havia dito sobre precisar versus querer. De certa forma, era isso que Seth e eu fazíamos. Queríamos
fazer sexo. Precisávamos evitá-lo.
Acabei lembrando de Andrew novamente, aquele padre irritantemente bom que me causara tantas dores de cabeça. Não pensara muito nessa história desde a semana passada,
mas, enquanto meu corpo completava tarefas quase automaticamente, as imagens começaram a reaparecer em minha mente.
Apesar de meus esforços, ele permanecera um bastião de pureza e força de vontade. Embora frustrante, o jogo era muito divertido. E, ainda que não tenha apreciado
a situação à época tanto quanto agora, eu meio que sentia prazer em apenas estar perto dele. Era uma companhia, e passou a significar mais para mim do que apenas
uma conquista sexual. Era óbvio que ele se importava comigo também.
Mas, infelizmente, brigamos, num dia bonito, ensolarado. Lembro-me com detalhes daquele instante. Fui até a igreja de que ele cuidava e sentei-me ao seu lado no
jardim. Fiquei longe da terra, preocupada com o vestido de seda amarelo que meu bispo tinha acabado de me dar. Andrew, menos preocupado, trabalhava de joelhos, enfiando
a mão na terra - literalmente - sem hesitar e cultivando o pequeno pomar da igreja.
- Não tens outras pessoas para fazer isso em teu lugar?
Entortando os olhos por causa do sol forte, ele sorriu. - Nada se compara à satisfação de fazer algo sozinho.
- Se achas isso...
Ele voltou ao trabalho, e eu continuei sentada, quietinha, observando-o e a linda vista daquela tarde dourada. Não muito longe, escutavam-se os sons do movimento
diário. Gostava dessa cidade - era uma boa ruptura com as cidades grandes, bagunçadas, em que passara a maior parte do meu tempo de súcubo. Mas sabia que, um dia,
perderia a paciência e me mudaria para um lugar um pouco mais agitado.
Virei-me para Andrew. - Thomas Brewer acabou de retornar de Cadwell. Diz que a doença está se alastrando por lá.
Andrew aquiesceu. - As pessoas estão ficando doentes em todos os lugares. Há ataques em muitas cidades ocidentais.
- Estás preocupado?
Ele deu de ombros. - O que tiver de ser será. Nenhum de nós pode mudar a vontade de Deus.
Dei um sorrisinho. Ouvira falar dessa doença, que gerações futuras chamariam de Peste Negra. O ataque rápido. A pele escurecida. Os caroços. Ainda que não pudesse,
tecnicamente, me machucar, não queria que ela se espalhasse ali.
- Não acho que Deus seja tão misericordioso como dizes nas missas, se Ele acaba infligindo algo assim em Seu povo.
- É um teste, Cecily. Deus está sempre nos testando. Isso nos deixa mais fortes.
- Ou mortos.
Ele não respondeu.
- O que farás se a doença chegar? - provoquei. - Geoffrey diz que irá fugir. Irás com ele?
Suas sobrancelhas negras ergueram-se mostrando surpresa, como se eu houvesse lhe perguntando se o sol ia tirar um dia de folga. - Lógico que não. Quero dizer, como
bispo, tenho certeza de que Geoffrey deve... fazer o que for necessário para seguir cumprindo suas obrigações... mas eu? Eu sirvo às pessoas. E continuarei servindo
às pessoas. Se estiverem doentes, cuidarei delas.
Meu sarcasmo transformou-se em choque, e deixei-me cair, ficando ao seu lado. - Não podes fazer isso! Não ouviste sobre a doença? As pessoas não se curam. A única
coisa a ser feita é ir embora e deixar que tudo se ajeite.
Era verdade. Pode me chamar de cruel, mas, conforme havia dito a Liam em nosso encontro pós-leilão, era assim que o mundo havia lidado com epidemias ao longo de
boa parte da história humana. Certamente, algumas pessoas se preocupavam e cuidavam umas das outras, mas, quando a doença ficava realmente terrível, sem nenhuma
solução à vista, a ignorância e o medo reinavam absolutos. A maioria das pessoas daquela época achava que a solução mais simples era manter a maior distância possível
delas e da doença.
Andrew também se levantou, com uma expressão de tanta sabedoria e serenidade que até me incomodou. - Se é isso que se tem de fazer, então se deve fazer isso. Meu
lugar é aqui.
Nem pretendia seduzi-lo quando peguei suas mãos e segurei-as com força. Ele recuou, surpreso, mas não soltou as mãos.
- Isso é estupidez - disse-lhe, séria. - Não se pode impedi-la. Irás morrer, e eu... eu não posso ficar vendo isso.
- Então vai. Vai com Geoffrey. Ou... vai para o convento. É isolado. Estarás a salvo lá.
Fiz cara de brava. - De novo, não.
- Quero apenas o que é melhor para ti, só isso. - Uma de suas mãos pegou meu queixo. - Também não quero que sofras.
Percebi, então, como estávamos próximos. O calor emitido por nossos corpos rivalizava com aquele do sol bem sobre nossas cabeças. Andrew, ao também perceber isso,
começou a tentar se afastar. Segurei sua mão, com a raiva inflando meu peito.
- Então é isso que deixarás acontecer? Passas a vida inteira na pobreza e na castidade, tudo isso para morreres numa pilha de cadáveres malcheirosos com feridas
protuberantes e peles apodrecidas?
- Se é isso que Deus...
- Para - falei, inclinando-me para a frente. - Para, está bem? Não ententes? Deus não se importa. Não está sequer prestando atenção.
- Cecily...
Não permiti que terminasse. Em vez disso, coloquei minha boca sobre a sua, moldando meu corpo no dele. Não sei se já havia beijado alguém antes, mas, se não, ele
aprendia rápido. Não se separou de mim. Na verdade, podia jurar que havia um desejo em seus lábios enquanto exploravam os meus, deixando sua língua mexer-se e dançar
com a minha.
E ah, Deus me ajude, ele era tão bom e nobre que senti uma explosão de energia só com aquele beijo. Para mim, teve gosto de mel, glorioso e doce.
E, surpreendentemente, fui eu quem interrompeu o beijo, apesar de ainda permanecer encostada em seu corpo, abraçando-o.
- Não vês que isso é uma estupidez? - sussurrei, com os lábios tão próximos dos seus que podíamos compartilhar a respiração. - Vais morrer sem ter vivido? Sem ter
experimentado tudo que é bom? Vais realmente precipitar sua morte assim, sem mais nem menos?
Seus olhos me analisavam, e suas mãos descansavam em minha cintura.
- Não preciso de prazeres carnais para integralizar a minha vida.
- Estás mentindo - disse-lhe. - Queres isso.
- Querer e precisar são duas coisas diferentes. - Ele se afastou de mim, e senti-me incompleta sem seu corpo encostado no meu. Tive um vislumbre passageiro de uma
ligação maior do que nós dois, mas logo desapareceu.
- Uma vida mais longa nada significa se for vazia e sem propósito. É melhor ter uma vida curta repleta de coisas importantes.
- És um idiota - disparei. - Não ficarei aqui para vê-lo morrer.
- Então vai!
E fui.
Capítulo 17
o dia seguinte trabalharia apenas meio turno, mas, quando vi como as coisas estavam corridas na livraria, suspeitei que seria difícil sair dali. Seth não estava
trabalhando no café, mas encontrei um bilhete em minha escrivaninha. Aparentemente, ele estivera ali antes.
Thetis...
Tenho algumas coisas para resolver, mas gostaria de te ver mais tarde. Estou com saudades, e não sei como estão as coisas entre nós. Quando puder, apareça. Ficarei
em casa a noite toda.
Com amor,
Seth
Eu também tinha algumas coisas para resolver e, depois de ler aquele bilhete, senti uma grande vontade de cuidar de tudo logo para poder vê-lo. Quando estava saindo,
Maddie me viu e me puxou para a seção de livros de história. Para minha surpresa, puxou a gola de sua camisa para baixo, expondo seu ombro.
- Uau - brinquei. - Você não acha que está indo rápido demais?
- Veja - sussurrou, apontando para a alça do sutiã de renda que fora revelado.
- É vermelho.
- É mesmo - concordei, ainda sem entender direito.
- É a número um.
- O quê?
- Minhas três coisas ousadas. Comprei um sutiã vermelho.
Fiquei olhando para ela, incrédula. - Pensei... pensei que você tivesse dito que minha ideia era ridícula...
Ela desviou o olhar. - Achei mesmo... mas, então, bem... fiquei sabendo de Seth. O que aconteceu a ele. Você estava lá, certo?
Meu assunto favorito. - Sim, estava.
- Isso não te deixou maluca? Quero dizer... bem ali na sua frente: vida e morte.
- Sim, mais ou menos.
Balançando a cabeça, olhou de volta para mim. - Ficar sabendo o que aconteceu com ele, acho, mexeu comigo. Disse-lhe que não seria fácil ser ousada, mas de repente
concluí que talvez fosse. Tinha de assumir o controle.
Sorri. - Com um sutiã vermelho.
Sua bochecha ruborizou-se. - Ei! Sei que todas as suas lingeries são vermelhas e comestíveis, mas este é o primeiro sutiã que compro que não é branco ou preto.
Contive uma piada e ofereci a ela um sorriso genuinamente simpático.
- Estou orgulhosa de você, Maddie. Estou mesmo.
- Não seja condescendente - alertou.
- Não estou. Está lindo. Comprou uma calcinha da mesma cor.
Agora ela parecia realmente envergonhada. - Estilo fio dental.
Reprimi a vontade de assobiar. - Bom trabalho, soldado.
Ela saiu, de volta para os caixas. Pouco depois, senti uma assinatura imortal e um toque em meu ombro. Girei sobre os calcanhares e encontrei os seios enormes de
Tawny praticamente enfiados em meu rosto. Mal ouvira falar do súcubo depois que telefonei para ela para contar-lhe que tinha lhe arrumado um emprego no Simon’s.
A presença de Niphon no jogo de pôquer fora a única indicação de que ela ainda não tinha transado com um cara.
- Georgina... - choramingou, com o lábio inferior tremendo.
- Não, não - interrompi. Peguei seu braço e levei-a para o escritório.
- Aqui, não.
Consegui fechar a porta pouco antes de ela se derramar em lágrimas. Resmunguei.
- O que aconteceu agora?
- Conheci um rapaz na noite passada. - Ela deixou-se cair em minha cadeira, e, por incrível que pareça, seus seios não bateram em seu rosto.
Encostei-me na parede, cruzando os braços, como se estivesse querendo me proteger. - Certo... não há nada ruim nisso.
Ela engoliu o choro, e me controlei para não querer limpar as manchas de maquiagem em seu rosto. Agora, honestamente, por que usava tanta maquiagem? - Nós nos divertimos...
bebemos, conversamos e tudo o mais.
- Também não há nada ruim nisso.
Ela fez que não com a cabeça. - Mas, no final da noite, ele me disse que queria apenas ser amigo.
- Ele... espere. Chegou no nível de amizade com alguém que acabou de conhecer?
Tawny aquiesceu.
- O que você disse a ele? Tipo... pediu ele em casamento?
- Bem... perguntei se ele queria me encontrar no banheiro e experimentar esse gel aquecedor de chocolate mentolado que acabei de comprar.
- Você... o quê?
Tawny colocou a mão na bolsa e puxou um tubo de algo. Fiz sinal indicando que não precisava ver.
- Não, não. Não quero ver.
- O que fiz de errado? - berrou.
- Bem... - Não sabia se devia rir ou chorar. Tawny nunca iria se consertar. Nunca. - Acho que você pegou muito pesado. E, para falar a verdade... gelzinho? É um
pouco estranho.
- Pensei que rapazes gostassem desse tipo de coisa.
- Alguns... mas não sei. Como ele era? Ele trabalha com o quê?
- É caixa.
- Humm. Certo. Nada mau.
- Na Imagens Sagradas.
- Na... você se ofereceu a um rapaz que trabalha em uma loja de produtos religiosos?
- Queria um que fosse bonzinho - respondeu. - Não havia lugar melhor.
- Oh, meu Deus. Tawny... - Não sabia nem por onde começar. A sedução tinha tantas nuanças, tantas táticas e estratégias. Ela não conhecia nenhuma, e desconfiava
que talvez não conseguisse sequer aprendê-las. - Consigo um emprego num clube de strip... por que está atacando lojas de produtos religiosos? Deve estar chovendo
homem em cima de você após suas apresentações. - Mas algo me incomodou. - Você ainda está trabalhando lá, certo? - Acreditei que Simon manteria sua palavra, mas
não se podia ter certeza com gente de sua laia.
- Sim... - murmurou. - Mas aqueles caras não são...
- Vou te dizer pela última vez: esqueça os bonzinhos! Você ainda não pode ficar escolhendo muito. - Fiquei olhando para ela. Nitidamente, estava com energia baixa.
Com o cenho franzido, lembrei-me de meu encontro com Liam. - Então... Tawny... não deu nada certo com Nick, o leiloeiro?
Ela pegou um lenço da caixa e assoou o nariz de modo bem barulhento. - Não. Eu te disse. Telefonei e ele disse que não estava interessado.
Eu sabia ler as pessoas, era boa nisso. Foi por isso, bem, que me tornei uma estrela entre os súcubos. E procurei naqueles olhos azuis lacrimosos algum sinal de
mentira. Qualquer sinal. Mas não encontrei nada. Quem estava mentindo? Tawny ou Liam? E por que qualquer um dos dois mentiria para mim? Liam não tinha motivos para
isso - pelo menos, não a respeito de Tawny. Tawny, acredito, podia estar em conluio com Niphon. Talvez ele quisesse prolongar as coisas simplesmente para me provocar.
Era um jogo perigoso para os dois. Sua animosidade não era suficiente para arriscar irritar Jerome. E sabia que Jerome ficaria irritado se descobrisse que a tutoria
de Tawny estava sendo usada com segundas intenções.
Havia ainda o fato de que a energia de Tawny não apresentara o brilho pós-sexo no dia seguinte ao que Liam vira-a com Nick. Não tinha nenhum. Era a única evidência
concreta que havia nisso tudo.
Todos esses pensamentos flanavam pela minha mente. Se Tawny estivesse de fato me enganando, logo ela descobriria não ser a única capaz de fazer isso. Mantendo uma
expressão de aborrecimento e inocência, falei: - Tawny... não... consigo entender isso. Não consigo entender nada.
- Só isso? - perguntou. - Você é minha tutora, e só consegue me dizer isso?
- Eu te consegui o emprego! Não sei mais o que fazer. Talvez possamos sair juntas e... Deus me ajude... fazer um ménage ou algo assim. - Havia pouquíssimas coisas
que podia imaginar que seriam piores que isso, mas era um período de desespero. O rosto de Tawny demonstrava sentimentos semelhantes.
- Não sei... - falou. - Acho que não faço esse tipo de coisa.
Girei os olhos. - Em um outro século, você veria que faria qualquer coisa.
Ela assoou o nariz novamente. - Bem... quero continuar tentando sozinha antes de fazer algo assim. Até lá... acha... acha que poderia...
- Poderia o quê?
- Você sabe...
- Não, não sei. - Dela, um pedido podia ser qualquer coisa.
Tawny engoliu saliva. - Aquela coisa de beijo novamente.
- Não! Eu te disse que foi só aquela vez.
- Mas... mas... estou tão fraca...
Ela voltou a se derramar em lágrimas. E sim, ela estava bem fraca. Muito fraca. Na manhã seguinte, corria o risco de perder sua forma novamente. Porra. Não era possível.
Tinha de ser uma pegadinha, mas por que e como? Niphon realmente comandava toda essa chateação só para me manter irritada? Porra.
- É a última vez - resmunguei.
Ela interrompeu o choro no meio. - É mesmo?
Suspirei. - Venha aqui.
Com um certo temor, beijei-a novamente. Meu desconforto tinha menos a ver com o ato de beijá-la do que com a percepção de que tinha acabado de me colocar em limites
de energia perigosos. Agora era eu quem precisava de uma dose antes da manhã seguinte. E, se recebesse um suprimento de energia, era possível que predador dos sonhos
retornasse...
Com o influxo de vida, Tawny conseguiu apagar sua forma desgrenhada. - Obrigada, Georgina! Você é a melhor! - Ela começou a me abraçar, mas eu a afastei.- Apenas
vá e transe logo, está bem?
Doug enfiou sua cabeça na sala nesse exato instante, pedindo minha ajuda. Felizmente, parecia que não tinha escutado nossa discussão. Arregalou os olhos ao ver Tawny.
Expulsei-a do escritório, alertando para que não esquecesse o que havíamos conversado.
- Ela é solteira? - perguntou ele, enquanto a observava sair. A calça de couro deixava o cofrinho à mostra.
- Sim - falei. - Bem solteira. Mas a manutenção é cara.
Depois que terminei minha verificação da livraria, saí para cuidar de diversas coisas. Por fim, ao chegar à casa de Seth, encontrei-o esparramado em seu sofá, com
o laptop aberto como sempre. Assim que entrei, ele se sentou e fechou o computador.
- Oi, Thetis - falou.
- Oi - respondi.
Sentei-me ao seu lado, e ficamos nos olhando em silêncio total. A atmosfera não era de raiva, mas também não ardia de amor. Foi um momento de especulações. Estávamos
avaliando um ao outro. Ele levou a mão até a gola em V do meu suéter, o que me deixou hesitante. Então senti seus dedos passando pela corrente em que eu havia prendido
seu anel. Seth puxou o anel e passou os dedos sobre o golfinho.
- No pescoço, é? Isso não é coisa de colegial?
- Poderia ser - falei. - Mal chegamos ainda à segunda base, não é?
Ele sorriu e soltou o anel, movendo seus dedos até minha bochecha. - Sim, é verdade. - Suspirou. - Parece que temos brigado muito ultimamente, não?
- Sim. - Ajeitei-me no conforto do sofá. - E nem é mais por causa de sexo.
- Percebi isso. Na verdade, é sempre por coisas chatas.
- Chatas?
Ele deu de ombros. - Sabe, coisas típicas de relacionamentos. Passar mais tempo juntos. Confiança. Comunicação. O amor nem sempre tem a ver com forças superiores
do universo nos separando.
A não ser, pensei, que se levasse em consideração a diferença entre o tempo de vida de um mortal e de um imortal. Não sabia por que a expectativa de Seth vinha me
incomodando ultimamente. Entendia as complicações, em termos intelectuais, quando começamos a sair, mas passara a ter tais reações viscerais havia pouco tempo. E
acho que o tiro que levou não ajudou muito. E falando nisso...
- Nunca te agradeci - falei.
- Pelo quê?
- Por arriscar sua vida por mim.
- Mas você não pode mor...
- Sim, sim. Já concordamos a respeito disso, acho, umas cem vezes. E deixando de lado a inteligência... ou a falta... de suas ações, foi um gesto gentil e corajoso
e... e, bem, obrigada.
Seth colocou sua mão sobre a minha e a apertou. - Não precisa me agradecer.
Levantei-me. - Bem, agora que deixamos essa coisa sentimental de lado, vamos logo tratar de negócios. Tire suas roupas.
Seth ficou surpreso. - Espe... o quê?
- Bem - completei -, pode deixar a cueca.
- Finalmente vamos chegar à segunda base?
- Apenas faça o que digo.
Enquanto ele se despia, peguei algumas coisas em sua cozinha e juntei com outras que havia trazido na mochila. Ao voltar para a sala, ele estava sentado no centro
do sofá apenas de cueca. Era uma flanela cinza. Delicada.
Sentei-me no chão, de frente para ele, colocando uma tigela de água quente ao meu lado. Mergulhei um pano na água e comecei a, lentamente, esfregar seus pés.
Seth ficou quieto por um bom tempo. De repente: - Está fazendo uma cena bíblica comigo? Não teve alguém que lavou os pés de Jesus?
Voltei a molhar o pano e comecei a subir por uma de suas pernas. - Não se preocupe - disse. - Não espero que você transforme esta água em vinho. Pelo menos, não
enquanto eu estiver fazendo isso. - Passei o pano sobre a panturrilha de Seth. Era um pouquinho musculosa, coberta por pelos castanhos-claros. - A tradição de lavar
os pés é maior que a Bíblia. É vista em tudo quanto é lugar, desde muito antes do Novo Testamento, em muitas outras culturas. Reis. Generais. Todos recebiam esse
tratamento.
- Já lavou os pés de muitos reis e generais? - provocou.
- Sim, já.
- Ah. Bem, acho que estou num nível abaixo deles.
Sorri e passei para a outra panturrilha. - Não é verdade. Poetas e trovadores costumavam ter o mesmo prestígio de reis. Muitos receberam esse mesmo tratamento.
- Sinto falta dos velhos tempos. Agora, só conseguimos isso pagando.
Lavei sua coxa, tomando o cuidado de evitar o ferimento protegido. - É verdade. Mas as pessoas também não mais ameaçam decapitá-lo se não gostarem do que escreveu.
- Fica claro que você não leu algumas críticas aos meus textos.
- Só li as boas.
Terminei as duas pernas e joguei o pano na água. Coloquei a tigela de lado. Seth começou a se levantar, mas o empurrei de volta para baixo.
- Não. Ainda não acabou. - Peguei um frasco de óleo de massagem, que eu havia trazido, e passei um pouco nas mãos. Tinha aroma de amêndoas.
- Isso foi apenas para limpá-lo.
Com o mesmo cuidado com que eu realizara a limpeza, massageei sua pele com o óleo, começando novamente pelos pés. Limpar pode ser sensual, mas acariciar alguém com
óleo é duas vezes mais. Talvez até três vezes. A coisa entre nós ficou séria. Seth simplesmente assistia, maravilhado e excitado, enquanto eu subia. Mas, observando
sua expressão, via mais do que apenas aquelas sensações. O amor em seus olhos era poderoso, eu não podia enfrentá- -lo. Seth tinha um domínio incrível da língua
inglesa, porém havia dias em que aquela habilidade não era nada quando comparada com o que podia me dizer por meio de olhares.
Quando terminei suas pernas, subi para o sofá, atrás dele, e comecei a cuidar de seu peito e costas também. Eu aplicava massagens havia quase o mesmo tempo que eu
dançava. Sabia exatamente o que fazer, sabia onde ficavam os grupos musculares e como aliviá-los. Seth estava muito duro e cheio de nós nas costas, provenientes
de má postura por causa do laptop ou de estresse. Talvez de ambos.
Finalmente eu havia terminado. Não se preocupando em lambuzar a mim ou ao sofá, ele inclinou-se para trás e puxou-me para o seu peito. Meu rosto descansava em sua
pele macia, escorregadia, e o perfume de amêndoas e Seth me envolveu.
- Ah, Georgina - suspirou. - Queria poder retribuir isso.
- Vou fingir que você retribuiu.
Ele suspirou novamente. - Odeio fingimento.
- É...
- Estou falando sério. Odeio mesmo.
A veemência em sua voz me preocupou. Ergui a cabeça. - Você está bem?
- Sim... estou apenas... não sei. - Ele balançou a cabeça. - Frustrado, acho.
- Frustrado sexualmente?
- Lógico... mas é mais do que isso. Já chegou a pensar em nós... sabe, transando ao menos uma vez?
- Não - respondi de pronto. - De jeito nenhum.
- Eu encararia o risco.
- O tiro deteriorou o seu cérebro. Você sempre foi o forte entre nós, lembra-se?
- O tiro me fez pensar no significado da vida, só isso. - Ele falava como Maddie. Como podia um gesto tão idiota por parte dele inspirar tanta gente? Será que eu
estava saturada demais? Não conseguia mais me relacionar com seres humanos? - E falo sério, não consigo nem retribuir uma simples massagem. Você me satisfaz o tempo
todo... mas o que recebe em troca? Você é quem deve estar frustrada sexualmente. Essas coisas que você faz por aí... bem, isso não importa. Às vezes, acho que Hugh
estava certo. Você sofre mesmo mais do que eu.
- Não, não sofro. Essa coisa de sexo me incomoda, mas consigo lidar.
- Espero que eu consiga - falou Seth. - Quando eu estava no hospital, comecei a ter uns pensamentos estranhos: escrevo coisas cheias de ação, mas não vivo nada disso.
O’Neill tem dezenas de romances legais, mas e eu? Não posso sequer viver um.
- É uma droga - concordei. - Mas, com os riscos... bem. Sabemos que tem de ser assim.
- E quanto ao resto?
- Hum?
Seth moveu-se um pouco para o lado de modo a poder me encarar.
- Pensa mesmo no risco de eu morrer? Preocupa-se comigo?
- Às vezes.
- No final, vou acabar te causando dor?
- Não - respondi, indiferente. - Lógico que não.
Ele me puxou de volta para o seu peito. - Eu te amo, Georgina. Você me dá mais alegrias do que jamais esperei encontrar nesta vida. Quero ficar com você... - Ele
passou uma mão em meu cabelo, enrolando seus dedos. - Mas desde que isso não cause mais estragos do que coisas boas. Não quero que você sofra. Não quero que passe
o resto de minha vida preocupando-se com meu corpo e com minha alma. Não quero que chore quando eu me for.
Senti um inchaço em minha garganta e que podia começar a chorar a qualquer momento. Havia algo em sua voz, uma nota estranha e nefasta que me assustava de um modo
que eu não conseguia explicar. Passei meus dedos em sua pele e encostei-me ainda mais nele.
- Vamos parar - sussurrei. - Não quero mais falar sobre isso. Não importa.
Seth reforçou sua pegada e não respondeu. Depois disso, fomos para a cama sem falar nada. Nós nos abraçamos, e minha cabeça ficou em seu peito. Eu passava meus dedos
em seu cabelo, absorvendo seu perfume. Quando ele adormeceu, pensei no que dissera sobre o que traz significado para a vida. Pensei em querer e precisar.
E, naquele momento, eu precisava de energia. Tawny havia me exaurido, e não havia como começar a me metamorfosear para o corpo com o qual eu nascera. Ainda tocando
o cabelo de Seth, pensei na facilidade que seria me abaixar e beijá-lo. Beijá-lo de verdade. E beijá-lo e beijá-lo...
Querer e precisar.
Pesarosa, pulei da cama. Seth tinha um sono profundo e simplesmente girou para o outro lado, nem ameaçando acordar. Com um olhar desejoso, saí do apartamento e usei
o restante de energia que tinha para assumir uma forma diferente. Encontrar uma vítima não foi difícil - reforçando ainda mais o absurdo da situação de Tawny -,
e, em menos de duas horas, estava de volta à cama com Seth e recarregada. Aquela voz tenebrosa não falou comigo, pelo que fiquei grata. Triste, mas saciada, caí
no sono.
E sonhei.
Capítulo 18
o sonho, saí correndo da cozinha na direção do som de um choro. Aubrey e o gato misterioso ergueram suas cabeças, surpresos com o meu movimento repentino. No outro
lado da sala, a garotinha estava sentada no chão ao lado de uma mesa com cantos afiados, uma mãozinha em sua testa. Lágrimas escorriam por sua face enquanto choramingava.
Rapidamente, fiquei de joelhos e envolvi a garotinha num abraço apertado. Sentia exatamente o que minha figura do sonho sentia, e quase chorei também com a sensação
daquele corpo macio e quente nos meus braços. Balançava a menina, murmurando palavras tranquilizadoras, sem sentido, com os lábios encostados em seus cabelos sedosos.
Por fim, os soluços da menina pararam, e ela encostou a cabeça em meu peito, feliz por simplesmente ser amada e acariciada.
Abri os olhos e olhei para o teto branco do quarto de Seth. Ele estava deitado ao meu lado, todo enrolado, próximo ao meu corpo e ainda exalando óleo de massagem.
Mesmo acordada, as imagens do sonho ainda eram fortes e reais. Lembrava exatamente a sensação transmitida pelo cabelo de minha filha, o seu cheiro, o ritmo de seu
coração. Meu coração batia tão forte por ela naquele instante, que quase foi possível ignorar o fato de que a energia da noite anterior havia sumido.
Isso estava se transformando num problema sério.
Sentei-me, gentilmente empurrando Seth para longe de mim. Mas, enquanto tentava imaginar o que fazer a respeito desse último sonho, um pensamento estranho continuava
pressionando minha mente.
Erik. Não conseguia parar de pensar em Erik. Não era nada específico. Nenhum problema em particular. Mas, sempre que tentava pensar em outra coisa - meu trabalho,
a perda de energia, Seth -, era o rosto de Erik que aparecia em minha mente. Não entendia por que, e era algo que me preocupava.
Os braços de Seth tentaram me agarrar quando saí da cama, mas consegui evitá-los. Peguei meu celular na bolsa e fui para a sala de estar. Ninguém atendeu quando
liguei para a Arcana. Já eram quase dez... normalmente, já estava aberta a essa hora. Liguei para o auxílio à lista para descobrir o telefone residencial de Erik,
porém parecia que não estava listado.
Uma sensação de pavor crescia dentro de mim. Desesperada, liguei para a loja de Dante.
- Dante, acho que aconteceu alguma coisa com Erik, mas não tenho o telefone de sua casa e...
- Uou, uou, súcubo. Devagar... Comece pelo início.
Contei que havia tido aquele sonho novamente e que acordara obcecada por Erik.
- Pode não ser nada, mas depois daquela coisa do afogamento... não sei. Tem o número da casa dele?
- Sim - respondeu Dante, um bom tempo depois. - Tenho. Vou... vou ligar para ele e ver se está tudo bem, e te ligo de volta.
- Obrigada, Dante. De verdade.
Desliguei, e ao mesmo tempo um sonolento Seth saiu do quarto. - Quem é Dante? Foi uma ligação a cobrar para o inferno?
- Não aceitam ligações a cobrar - murmurei, ainda perturbada. O rosto de Seth ficou sério.
- Qual é o problema?
Fiquei hesitante, não porque tivesse medo de contar-lhe sobre Dante, mas porque não sabia se queria que ele se envolvesse nisso.
- Tem a ver com intrigas imortais - alertei. - E as forças superiores do universo.
- Adoro essas coisas - falou, irônico, ajeitando-se numa poltrona. - Conte-me.
E foi o que fiz. Ele sabia sobre minha primeira perda de energia, mas não das outras. Não contei o conteúdo dos sonhos; apenas que drenavam minha energia. Também
falei das profecias que se autoconcretizaram e que, certo dia, acordara úmida, e que hoje estava pensando em Erik. Quando terminei, olhei para o celular, preocupada.
- Droga. Por que ele não liga de volta?
- Por que sempre sou o último a saber? - perguntou Seth. - Faz tempo que tem te perturbado. Pensei que tivesse ocorrido uma única vez.
- Não queria incomodá-lo. E sei que você tira sarro dessas coisas imortais.
- Coisas que a afetam, que possam estar prejudicando você, não me incomodam. Quero dizer, bem, incomodam, mas não é esse o ponto. Tudo isso tem a ver com comum...
O telefone tocou.
- Dante? - perguntei, nervosa. Nem me preocupei em verificar o número.
Mas era ele. Sua voz parecia austera.
- Você precisa vir aqui. No Erik.
- Na loja?
- Não, na casa dele. Fica perto da minha.
- O que aconteceu?
- Apenas venha.
Dante informou um endereço e deu as coordenadas. Com uma rápida metamorfose, me vesti e estava prestes a disparar pela porta. Seth pediu que eu esperasse e, em menos
de um minuto - ainda que não fosse tão bom quanto eu, era bom -, estava pronto também.
Nunca pensei em Erik tendo uma casa. Para mim, era como se ele existisse apenas na loja. O endereço ficava a mais ou menos 1,5 km da casa de Dante, em um bairro
antigo porém bem cuidado. A casa de Erik era um dos pequenos bangalôs, tão típicos de Seattle, e o jardim da frente estava repleto de rosas que hibernavam durante
o inverno. Enquanto subíamos os degraus, tive uma breve visão de Erik ali fora cuidando das flores no verão.
Dante abriu a porta antes que eu conseguisse bater. Fiquei me perguntando se havia me sentido ou simplesmente nos vira pela janela. Não demonstrou nenhuma reação
específica à presença de Seth e nos conduziu na direção do único quarto da casa.
O interior da casa parecia não ter sofrido atualizações havia algum tempo. Na verdade, boa parte dos móveis lembrava os estilos da metade do século XX. Um sofá com
tecido xadrez áspero. Uma poltrona de veludo puído na cor dourada da década de 1970. Uma televisão que eu duvidava pudesse transmitir em cores.
Contudo, nada disso produziu em mim algum tipo de reação. O que me espantou foi uma fotografia emoldurada sobre uma estante. Era Erik, bem mais jovem - talvez na
faixa dos quarenta anos -, com menos rugas em sua pele escura e menos cabelos brancos. Estava com o braço ao redor de uma morena, na casa dos trinta, com enormes
olhos acinzentados e um sorriso tão grande quanto o dele. Dante me cutucou quando parei, com uma expressão estranha no rosto.
- Vamos lá.
Erik estava deitado na cama. Para meu alívio, vivo. Não havia me dado conta, até aquele instante, de quão preocupada estava. Meu subconsciente temia o pior, mesmo
que eu me recusasse a admitir.
Mas, vivo ou não, não parecia muito bem. Estava suando e tremendo, com os olhos arregalados e o rosto pálido. Sua respiração era difícil. Quando me viu, demonstrou
medo, e, por meio segundo, vi terror em seus olhos. Então o medo desapareceu, e forçou um sorriso.
- Senhorita Kincaid. Desculpe-me por não poder recebê-la adequadamente.
- Jesus - suspirei, sentando-me na beira da cama. - O que aconteceu? Você está bem?
- Ficarei bem.
Analisei-o, tentando descobrir o que havia acontecido. - O senhor foi atacado?
Seu olhar voltou-se para Dante, que deu de ombros.
- De certo modo - falou Erik, por fim. - Mas não da forma que está pensando.
Dante encostou-se na parede, parecendo menos preocupado do que antes. - Não desperdice o tempo dela com enigmas, meu velho. Conte logo.
Os olhos de Erik estreitaram-se, com um certo fogo reluzindo em suas profundezas. Então se virou para mim. - Fui atacado... mentalmente, não fisicamente. Uma mulher
veio até mim hoje à noite... fantasmagórica, inumana... rodeada de energia. O tipo de energia bela e fascinante que já vi a senhorita emitir algumas vezes. - Era
uma forma gentil de descrever meu brilho pós-sexo.
- Ela tinha asas de morcego e olhos flamejantes? - perguntei, lembrando da piada que Dante fizera, havia muito tempo, sobre a descrição mitológica dos súcubos.
- Creio que não seja um súcubo. Teria sido mais simples. Não, isso... acredito... foi Nyx.
- Você... disse Nyx? - Lógico que era isso que havia dito, mas esperava que iniciasse uma discussão sobre os Oneroi, não sua mãe. Nyx não fazia sentido. Uma coisa
era espíritos dos sonhos aparecerem no seu quarto e em seus sonhos. Mas uma entidade primitiva monstruosa do caos, fundamental na criação do mundo como o conhecemos,
surgir em seu quarto era algo totalmente diferente. Era como dizer que Deus havia parado para comer uns waffles no caminho para o trabalho. Talvez Erik ainda estivesse
delirando.
- Nyx - confirmou, adivinhando meus pensamentos. - Caos em pessoa. Ou, mais precisamente, a Noite em pessoa.
Num canto, Dante deu uma risadinha. - Agora estamos todos fodidos.
- Ela é a mãe dos Oneroi - lembrou-me Erik. - E, apesar de sonhos não serem seu único território, ela também participa deles.
- Então... - Tentei compreender as implicações. - Está dizendo que ela é responsável pelo que tem acontecido comigo?
- Quase faz sentido - disse Dante.
Erik, aparentemente, concordava. - Ela tem ligação com o tempo e com toda a miríade de destinos possíveis que existem para o universo. Destino e tempo estão sempre
se aproximando do caos, da entropia, e é disso que ela se alimenta. Está tentando criar mais caos no mundo, tentando nos deixar mais próximos da desintegração final.
Mas ainda está bem longe de conseguir isso, assim se contenta com pequenos atos de caos.
Eu não estava entendendo. - Meus sonhos e a perda de energia são atos de caos?
- Não. - Erik olhou novamente para Dante. - Acreditamos que você seja o instrumento dela. Como ela está ligada tanto ao tempo como ao espaço, tem a capacidade de
ver partes do futuro. E não há maneira melhor de causar caos neste mundo do que revelando o futuro para os mortais. Tais visões são desgastantes, e, produzidas de
uma certa forma, podem levar uma pessoa à loucura. Essa pessoa ficará obcecada pela visão, lutando para impedir que aconteça, ou forçando para que aconteça, de um
modo que não deveria se desenrolar. Ambas as opções são inúteis. O futuro não pode ser controlado. Ao se tentar alterá-lo, tudo o que conseguimos é fazer com que
venha mais rapidamente.
- Como a história de Édipo - observou Seth. - Foram as tentativas de seu pai de modificar o resultado da profecia que possibilitaram que ela se concretizasse.
Erik aquiesceu. - Exatamente.
Agora eu também entendia. - Assim como o policial que viu seu parceiro levando um tiro. E o homem que viu sua família se beneficiando de sua travessia do Sound a
nado.
- É assim que Nyx age. Tudo que ela lhes mostra é verdade... só que a verdade não é da forma que se espera. A loucura subsequente e a destruição acarretada ao se
mostrar aos mortais os seus futuros, futuros que acabam se concretizando, a alimentam.
- Mas onde me encaixo nessa história? - perguntei. - Ela não está me mostrando meu futuro ou me fazendo realizar coisas malucas.
- É aí que termina a teoria, súcubo - falou Dante. - Você é parte dela, absolutamente. E ela precisa que você faça tudo isso... mas não sabemos os mecanismos...
- Isso é insano - falei, com cara de boba. - Sou o instrumento de uma onda de caos e destruição de uma superpoderosa divindade primitiva.
- Isso é meio radical - disse Dante, brincando. - Não é como trabalhar para o Google ou algo assim.
Seth tocou gentilmente meu ombro. - Posso fazer uma pergunta? Estou confuso... err, bem, como é possível que vocês estejam percebendo apenas agora que essa... Nyx...
está por aí? Quero dizer, se ela é poderosa como dizem... Não sei. Por que não pensaram nela desde o início? Por que isso não aconteceu antes?
- Porque ela está presa - falei. - Ou, bem, deveria estar. O céu e o inferno têm seus planos para o mundo; não querem perder o controle e deixar que vire uma bagunça.
Se for ela mesmo, não tenho a menor ideia de como escapou. Ela devia estar protegida por anjos, e se há um grupo que poderia... - Dei uma respirada que se transformou
num rugido.
Os outros ficaram me olhando. - O que aconteceu? - perguntou Seth.
- É por isso que eles estão aqui - falei. - Sou uma idiota. Há um regimento monstruoso de anjos na cidade. Sabia que estavam procurando alguma coisa, mas não sabia
o quê. - Isso também explicaria o interesse de Vincent no noticiário; ele estava buscando padrões de Nyx que forneceriam uma pista de onde ela está. Ele até começara
a pesquisar o que eu sabia sobre o caso do policial, mas o tiro em Seth e a revelação de que ele era um nefilim nos distraíram.
- Sim, bem, estão fazendo um ótimo trabalho - disse Dante.
Levantei-me da cama de Erik. - Preciso dizer-lhes o que sabemos. Talvez entendam o que ela está fazendo comigo.
- Tenha cuidado - alertou Erik. - Ela está desconfiada agora... acho que é por isso que veio atrás de mim. Eu estava pesquisando isso, e ela não queria que eu tivesse
sucesso.
Lembrei-me de mais uma coisa. - Erik... ela te mostrou uma visão?
Ele fez que sim com a cabeça.
- O que foi? - O que quer que tenha sido, deve ter sido horrível. Ele estava claramente em choque quando Dante o encontrou.
Erik olhou para mim e, por um instante, vi aquele mesmo terror em seus olhos que eu vira quando entrei no quarto. Mas logo desapareceu.
- Não importa, senhorita Kincaid. Ela queria me assustar, impedir que eu ajudasse você... mas não funcionou. O futuro irá ocorrer conforme o previsto. - Ao ver minha
expressão de dúvida, ele sorriu novamente e apontou para a porta. - Pare de se preocupar comigo. Ficarei bem. Vá encontrar seus amigos anjos antes que algo pior
aconteça.
Dei-lhe um rápido abraço antes de ir para a sala, com Seth e Dante. Mais uma vez, parei para analisar a foto de Erik e a mulher. Assim como sempre imaginei Erik
morando na loja, nunca tinha presumido que tivesse alguma espécie de vida pessoal. Obviamente, era besteira de minha parte. Quem era aquela mulher? Esposa? Amante?
Apenas uma amiga?
Ao meu lado, Dante esticou a mão para Seth e se apresentou. Os dois ficaram se avaliando.
- Ouvi falar muito de você - disse Dante, com gentileza.
- Eu nunca tinha ouvido falar de você até hoje de manhã - observou Seth.
Meus olhos ainda estavam na fotografia. Perto da borda da moldura, notei uma dobra na foto. Não sei o que me incentivou a fazer isso, mas peguei a moldura e tirei
a foto. Um terço da imagem fora dobrado, escondendo outra pessoa que estava com Erik e a mulher. Dante.
Ergui a cabeça, surpresa. Dante pegou a fotografia e a moldura e colocou- -as no lugar. - Não temos tempo para isso, súcubo.
- Mas...
- No momento, temos coisas mais importantes para cuidar do que de sua curiosidade...
Olhei, desconfortável, para a porta fechada do quarto de Erik. Dante estava certo. - Acha que talvez poderia...
Dante suspirou, antecipando minha pergunta. - Sim, súcubo. Venho olhar como ele está mais tarde.
Por um instante, achei ter visto algo em seu rosto... algo que não fosse apenas uma tentativa de me acalmar. Como se talvez - talvez - ele também se importasse com
Erik. Foi estranho, mas, por outro lado, todos pareciam muito felizes na fotografia. Os piores inimigos muitas vezes eram aqueles que antes foram amigos. Esse enigma
Erik-Dante ficava cada vez mais estranho.
Comecei a me afastar, quando de repente Dante falou. - Ah, ei, acho que posso preparar um feitiço para você, agora que sabemos o que é.
Senti uma onda de esperança dentro de mim com a ideia de voltar a ter sonhos seguros novamente. - É mesmo?
- Se ainda quiser... - completou, com cautela.
Acho que estava sutilmente se referindo ao meu ceticismo - que ainda não fora totalmente eliminado. Contudo, agora que meu predador tinha um nome, estava mais ansiosa
do que nunca para receber todo tipo de proteção que conseguisse. - Lógico. Se você achar que vai funcionar...
- Pelo menos, na teoria, sim. Nyx não é exatamente uma entidade comum. Vou ver o que consigo fazer.
Levei Seth de volta para seu apartamento, ansiosa para deixá-lo lá, para que pudesse fazer algumas buscas. - Preciso encontrar os anjos - disse-lhe.
- Eu te encontro mais tarde.
- Então... nada de cinema hoje à noite?
- Eu... o quê? Ah, droga. - Havia me esquecido dos planos para aquela noite. Ele havia comprado ingressos para um filme alternativo que teria uma única apresentação.
- Sinto muito... sinto mesmo...
- Bem - disse Seth, irônico -, considerando-se que é uma questão de vida ou morte, acho que posso perdoá-la dessa vez.
- Sabe o que você devia fazer? Leve Maddie. Você ainda deve um encontro a ela.
Ele sorriu. - Tenho a melhor namorada do mundo, sempre tentando me empurrar para os braços de outra mulher.
- Estou falando sério! Ela está carente. Acha que você não gosta dela.
- Gosto muito dela. É apenas que tudo isso é muito estranho. Acho que vou perguntar se Terry quer ir ao cinema. Não me olhe assim - alertou.
- Ainda vou levá-la a algum lugar. Mas não hoje.
Demos um beijo de despedida, e Seth prometeu me dar um toque mais tarde. Assim que ele saiu do carro, parti em busca de meus anjos guardiões.
Capítulo 19
Encontrá-los não foi nada fácil. Não havia ninguém em meu apartamento, e Vincent não atendeu ao telefone. Fui até o Cellar, com a esperança de que todos tivessem
decidido começar a beber ao meio-dia. Nada. O pub estava vazio, com apenas uns clientes entediados sentados no bar.
Frustrada, telefonei para Hugh, decidindo que era hora de conseguir ajuda de minhas próprias fontes.
- Jerome já retornou?
- Não - disse o demônio. - Precisa dele?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos?
- É uma longa história.
- Estou na cidade para uma reunião. Quer ir almoçar comigo e contar o que está acontecendo? Estou quase na sua rua. Eu te encontro em casa e saímos para comer.
Era a primeira vez que conversava com Hugh desde a discussão na casa de Peter a respeito de Seth e de mim. Eu ainda estava me recuperando daquilo, mas também queria
a opinião de outro imortal. Além disso, rapidamente me via sem opções.
Levou apenas dez minutos para ele aparecer, mas pareceu ter passado quase uma hora.
- Puta merda - falou Hugh, quando viu as árvores de Natal ao entrar.
- Seu apartamento é um parque nacional.
- Para com isso.
- Estou falando sério. Você precisa de um patrulheiro florestal aqui.
- Vamos almoçar logo.
Fomos, a pé, até uma deli no final da rua. Assim que nos sentamos, com nossa comida, comecei a explicar por que eu precisava de Jerome. Quando terminei de relatar
a história de Nyx, a alegria de Hugh havia sumido.
- Porra - falou, dando uma mordida num enorme Reuben. - Acho que realmente vale a pena incomodar Jerome.
- Onde ele está? - perguntei. - Mais um treinamento?
Hugh deu de ombros. - Não tenho certeza. Ele não deixou muito claro. Grace e Hiroko insinuaram que ele estava tendo um “conflito pessoal” com outro demônio e que
havia saído para acertar as coisas.
- Ah, Deus - falei. - Espero que não seja um duelo...
- Não sei. Espero que não. Aquelas putas malucas pareciam bem animadas, assim é provável que estejam torcendo por alguma oportunidade para competir pelo poder. Sabe
como elas são. Contudo... acho que você pode procurá-las e pedir ajuda nesse caso.
Poderia... entretanto, se Jerome estava tendo algum tipo de problema, não queria ser enredada por suas lugares-tenentes e, talvez, ser aproveitada de alguma forma.
As duas demônias trabalhavam para ele, mas aproveitavam qualquer chance para se promover, e, sempre que tremores políticos balançavam nossa terra, todos eram rápidos
em explorar os outros.
- Vou ficar com os anjos por ora - falei. - Enquanto puder espaçar minhas doses de energia, acho que não terei problemas. Se não conseguir encontrar Carter e seus
amigos nos próximos dias, aí considerarei a possibilidade de conversar com Grace e Hiroko.
- Posso entrar em contato com ele, se você realmente precisar - falou Hugh.
Sorri, devido ao tom de desconforto em sua voz. - Sim, mas suas instruções foram para evitar incomodá-lo a qualquer custo, certo?
O demônio fez que sim com a cabeça.
- Não tem problema. Vou aguardar os anjos. Se tiver de procurar Grace e Hiroko, talvez elas saibam decidir se vale a pena interromper Jerome, ou não. Quero dizer,
a evidência é bastante sólida... mas, bem, se estivermos errados, e não for nada... Jerome ficará puto por eu tê-lo incomodado com base na palavra de dois humanos.
- Puto com todos nós.
- Sim. - Fiquei fazendo furinhos em meu sanduíche com o palito que o unia.
- Está com medo? - perguntou Hugh. - De Nyx?
- Sim, estou. Não gosto da ideia de alguma coisa invadindo meu sonho. E, principalmente, algo tão poderoso assim. O rapaz que mencionei, Dante, vai tentar fazer
um feitiço para afastá-la de mim.
Hugh bufou. - Nenhum humano é capaz de fazer um feitiço para isso.
- Ele é um feiticeiro. Diz que consegue.
- Querida, Nyx é uma divindade, caralho... não, mais do que isso. Uma divindade superior. Uma força do universo que participou da criação. Foi perdendo força ao
longo do tempo, sim, mas nenhum pseudoparanormal idiota pode produzir um feitiço poderoso o suficiente para assustá-la. Há muito poucos humanos no mundo que conseguiriam,
e para conseguir esse tipo de poder... - Hugh balançou a cabeça. - Não sei. Com base no que você me contou, acho que não vai funcionar.
Também tinha minhas dúvidas em relação a Dante, mas havia conseguido deixá-las de lado e continuar esperando o melhor. Ao ouvir Hugh, senti todos os meus temores
voltando.
- Porra - falei.
Ficamos em silêncio, enquanto mastigávamos um pouco os nossos sanduíches. A chuva caía lá fora, e clientes famintos se enfiavam ali dentro para se proteger. Hugh
ficou olhando uma bela morena fazendo seu pedido no balcão, e então voltou a dar atenção a mim.
- Tem uma ideia de quando Niphon vai embora?
Franzi o cenho. - Quando Tawny conseguir uma vítima.
Agora foi Hugh quem franziu o cenho. - Mas ela já conseguiu, não?
- Conseguiu?
- Não sei. Foi que o Simon disse. Ou, pelo menos, ele achou que ela tinha conseguido. Disse que ela estava lá dançando, cheia de brilho, duas noites atrás. Perfeita
para o trabalho de merda que arrumou.
Duas noites atrás...
- Não... isso é impossível. Eu a vi quase na mesma hora, e ela ainda não havia pego ninguém. Estava fraca e tive de beijá-la novamente. Ele se enganou.
- Talvez o brilho seja proveniente do beijo. - Hugh soava um tanto animado. - Você usa muito a língua?
- Não foi assim um beijão... Nenhum brilho. Apenas o suficiente para sobreviver.
- Huh. - Ele ficou girando o gelo de sua Diet Coke. - Acho que Simon estava enganado. Achei que ele fosse bom em perceber esse tipo de coisas.
Eu também achava. - Hugh... isso pode parecer estranho, mas acho que Tawny pode estar fingindo sua inépcia.
Ele pareceu legitimamente surpreso. - Por que caralho ela faria isso?
- Não sei. Acho que é para ajudar Niphon. Nada disso faz sentido. É a segunda vez que ouço de ela ter conseguido um cara, mas então eu a vejo logo em seguida e ela
me parece bem fraquinha para ter esgotado seu suprimento tão rapidamente.
- Talvez ela esteja enfrentando o mesmo problema que você.
- Tenho muitos problemas.
- Essa coisa da Nyx. Talvez Tawny também esteja perdendo sua energia.
Uau. Interessante... E por que não? Se Nyx estava predando um súcubo, por que não dois? E isso explicaria como Tawny estava perdendo energia tão rapidamente. Porém...
- Se Nyx estiver roubando a energia dela, isso significa que ela está recebendo de algum lugar. Mas Tawny sempre me diz que não fez sexo.
- Huh. Uma serva do inferno mentindo. Que novidade...
- Sim, mas por quê? Niphon está arriscando, com essa merda, arrumar muitos problemas para ambos, caso Jerome ou outra pessoa descubra. Está se arriscando demais
só para ficar por aqui me irritando. E se o inferno achar que Tawny não está fazendo seu trabalho, irão chamá-la de volta.
Hugh olhou-me de um modo engraçado.
- O quê? - perguntei. - Por que essa cara?
- Você não leu o livro, não é?
- Que livro?
- O manual súcubo.
- Você sabe que não li.
- E aquele que te dei era a versão resumida - falou, parecendo ofendido.
- Hugh - resmunguei. - Mas o que quer dizer com isso?
- A questão é que, como tutora dela, você é responsável por suas ações. Se ela não consegue uma vítima, é você que eles chamarão para conversar.
- O quê? Isso é ridículo.
- As regras são essas agora.
- Mas e aí? Levo uma palmada no punho por ela não se dar bem?
- Palmada no punho? Por ser um súcubo que não consegue ensinar outro a fazer sexo? É algo tão absurdo, que provavelmente nunca aconteceu antes. Não sei o que fazem.
No mínimo, seria repreendida. Talvez transferissem você para trabalhar sob o domínio de um súcubo sênior.
- Eu sou um súcubo sênior.
Ele deu de ombros.
- Mas, se ela estiver mentindo...
- Então prove.
Esfreguei os olhos. - Isso é uma maluquice. Por que Niphon me odeia tanto? Pelo amor de Deus, ele já adquiriu minha alma. Que mais ele quer?
Esperava alguma observação engraçadinha. Mas, em vez disso, recebi silêncio. Olhei para Hugh. - O quê? Que foi agora? - Ele, visivelmente, afastou o olhar. - Hugh!
- Não sei, Georgina. - Hugh raramente me chamava pelo primeiro nome. Em geral, era querida ou amorzinho. - Às vezes fazemos acordos que parecem incontestáveis, mas
alguma coisa dá errado.
- Como assim?
- Trabalhei com outro demônio quando vivi em Dallas. Raquel. Ela intermediou o acordo com um rapaz que ficou puto quando sua esposa o abandonou, após ter descoberto
que ele era estéril. Não poderiam ter filhos. - Hugh tentou ajudar, ilustrando o que aquilo significava apontando para a parte inferior de seu corpo.
- Sei o que significa estéril, senhor Mago. Continue, por favor...
- Então, ele vendeu sua alma com a única condição de que sua ex-esposa também não pudesse ter filhos. Aparentemente, estava chateado e pensando em justiça ideal.
Queria puni-la com o que ela o punira. Assim, abriu mão de sua alma, e nosso lado deu a ela uma espécie de inflamação que destruiu totalmente suas trompas de falópio
e maculou seu útero. Não sei. Coisas de menina. - Tive de conter um olhar de desdém. Hugh podia fingir ignorância sobre “coisas de menina”, mas tivera tempo em seus
anos de corrupção para frequentar uma escola de medicina. Sabia mais sobre isso do que eu.
- Dureza - falei. - Mas adequado pelo ponto de vista do rapaz, acho.
- Sim. Deveria ser um bom acordo, mas alguma coisa deu errado. Ou, bem, certo. Seus ovários ainda funcionavam, ela produzia ovos, ainda que não conseguisse ter a
gestação. Ela e seu novo marido encontraram uma barriga de aluguel. A esposa doou os óvulos, misturaram-no num prato Petri, e a mãe de aluguel fez a gestação. Pum!
- A esposa teve um filho - concluí. - Uau. O inferno foi derrotado pela ciência. Todos aqueles filósofos do iluminismo estavam corretos.
Hugh ignorou minha brincadeira. - Foi estupidez. Alguém... refiro-me a Raquel... deveria ter pensado nisso quando escolheu a infecção como uma forma de tornar infértil
a mulher. Raquel fodeu tudo. O rapaz conseguiu levar o caso de volta para o inferno e recuperou sua alma por ruptura de contrato.
- Ah, uau - falei. - Aposto que isso funcionou. O que Raquel faz hoje em dia?
Ele deu um sorrisinho. - Acho que somos felizes por não saber.
Concordei. - Mas o que isso tem a ver comigo? É um caso meio raro.
- Eh, acontece com mais frequência do que você imagina. Na maior parte das vezes, o vendedor não nota algo que acontece de errado. Mas, se o demônio, ou outro que
esteja comandando o negócio, percebe, já os vi movendo o céu e a terra, trocadilho não intencional, para solucionar o problema.
- Então, você está querendo dizer que a presença de Niphon aqui, nessa trapaça com Tawny, deve-se a algo que fez errado em minha aquisição?
Hugh esticou as mãos, em defesa. - Não sei. Tudo que sei é que, quando um demônio aparece e se preocupa tanto com uma coisa, a evidência sugere que seja algo grande.
Talvez não seja uma situação como a de Raquel, talvez não seja uma ruptura de contrato, mas outra coisa.
- Meu contrato é bem antigo - murmurei. - Todos os envolvidos já estão mortos. Se havia um problema, teria de ter aparecido há muito tempo.
- Como falei, não sei. Talvez esteja tirando conclusões precipitadas.
- Pode dar uma olhada? Você poderia dar uma lida no contrato?
- Não. - A resposta de Hugh veio quase antes de eu terminar de perguntar. - De jeito nenhum.
- Mas se houver alguma cláusula que eu não conheça...
- Acha que posso simplesmente ir até o arquivo do inferno e buscar um contrato de que não participei? - perguntou. - Porra. Se fosse pego, o que aconteceu a Raquel
pareceria uma promoção.
- Mas...
- Não - disse novamente, sério. - Sem discussão. Eu te amo, querida. Sabe que amo. É como uma irmã, e faria quase tudo por você, mas isso não. Sinto muito. - Fiquei
olhando para ele, que me encarou. - Veja, quer um conselho? Livre-se de Niphon. E de Tawny, se puder. Denuncie-os se estiverem realmente tramando algo, e Jerome
assumirá a partir daí.
- Jerome nem está por aqui! Droga. Por que não pode me ajudar com isso? Foi tão prestativo quando tentou ajudar minha vida amorosa ao conversar com Seth na outra
noite.
Hugh estreitou os olhos. - Foi provavelmente a melhor coisa que já fiz por você.
- Está maluco? Agora ele não para mais de falar sobre isso... todo preocupado com a possibilidade de me machucar e me deixar infeliz.
- Bom - replicou Hugh. - E deve ficar mesmo.
Coloquei os restos na bandeja e me levantei. - Te vejo depois. Obrigada por... bem, por nada.
Hugh me acompanhou até as lixeiras. - Você está sendo irracional. Em tudo o que está acontecendo.
- Nunca te tratei da forma que você está me tratando - falei, jogando as coisas no lixo. - Sou sua amiga.
- Amizade não tem nada a ver com isso.
- Tem tudo a ver com isso!
Ele colocou sua bandeja sobre as outras e olhou o relógio. - Veja, tenho de ir. Sinto não poder dar as respostas que você quer. Te vejo hoje à noite no Peter? -
Peter, incapaz de perder uma oportunidade de dar festas, ia realizar um jantar de Natal, ainda que parecesse estranho.
- Não. Vou estar com Seth. A não ser que termine comigo depois do seu belo conselho...
Hugh mordeu o lábio devido a alguma observação que provavelmente não seria lisonjeira. Balançando a cabeça, virou-se e saiu.
Capítulo 20
ão esperava que Dante me procurasse tão rapidamente. Baseado no que ele dissera sobre a dificuldade do feitiço para Nyx, imaginei que levaria um tempo para preparar
- isso se conseguisse. As observações de Hugh apenas reforçaram meu ceticismo cada vez maior sobre as habilidades de Dante.
- Consegui sua proteção - disse-me Dante ao telefone. - Ou, pelo menos, o mais próximo disso. Se quiser, venha buscar. - E desligou.
Fui até Rainier Valley, e encontrei a loja de Dante vazia como sempre.
- Acho que os negócios dão uma caída perto do Natal, não?
- Na verdade - contou-me, saindo do quarto dos fundos -, você ficaria surpresa se visse o tipo de desespero que as festas produzem nas pessoas. Aqui, pegue.
Ele me jogou uma coisa do tamanho de uma bola de beisebol. Peguei-a, ficando um pouco desapontada ao observar de mais perto. Parecia uma bola de vime, feita de palha
bem fina e escura. Através das fendas, era possível ver algumas coisas dentro. Entre elas, uma pedra e uma pena. E a coisa parecia um chocalho quando eu a balançava.
- É isso? - perguntei. - Isso vai me manter livre de uma entidade superpoderosa dos sonhos? Parece um acessório da Bruxa de Blair.
- Não é para afastá-la - falou. - Nada consegue fazê-lo. Mas pode fazer com que pense duas vezes. É mais como... um repelente.
- Como citronela?
Ele girou os olhos. - Sim, como citronela. Dependendo da carga de energia dela, é possível que passe por cima. Mas, se estiver fraca... bem, talvez seja contida.
Examinei a bola novamente. Não parecia muita coisa para mim. Não sentia nenhum poder ou magia ali, mas nem todos os objetos tinham uma aura que eu conseguisse sentir.
Para ler objetos inanimados, um paranormal mortal costumava ser mais competente do que um imortal inferior. Meu silêncio parecia incomodar ainda mais Dante.
- Veja - disparou -, não precisa usá-la, mas foi preciso uma cacetada de poder para fazê-la, está bem? Seria legal de sua parte se conseguisse conter seu sarcasmo
de sempre por pelo menos cinco minutos em agradecimento.
- Meu sarcasmo de sem...
Interrompi a explosão que começava a irromper dentro de mim. Dante era uma das pessoas mais cínicas que eu conheci, mas eu também não era exatamente uma Poliana.
Desde a primeira vez que fora até lá em busca de ajuda, nunca facilitei as coisas para ele. E agora, analisando-o, percebi que estava pálido e parecia cansado. Seus
olhos estavam vermelhos. A bola podia ser inútil, mas ele claramente se esforçara para produzi-la.
- Você está certo - falei. - Desculpe-me. Obrigada. Obrigada por isso.
Ergueu as sobrancelhas, e consegui ver o esforço que teve de fazer para não zombar de minha sinceridade. Ele aquiesceu. - Por nada. - Ambos ficamos aguardando que
o outro começasse a falar. Acho que não sabíamos como nos tratar sem sarcasmo. - Então... encontrou seus amigos anjos?
- Não. Parece que preciso de uma porra de Bat-sinal, ou algo do tipo. Jerome se foi também. Hugh, meu amigo demônio, poderia contatá-lo, mas é provável que Jerome
fique puto se estivermos enganados. - Fiz uma careta ao lembrar a conversa na deli. - De qualquer forma, Hugh está me deixando puta ultimamente, assim, nem sei se
quero sua ajuda.
Dante sorriu. - Achei que súcubos fizessem amigos por todo canto. Ou é mais um mito, como as asas de morcego e os olhos flamejantes?
- Ele tem falado umas babaquices a respeito de Seth.
Dante olhou para mim, esperando que eu continuasse. Suspirei.
- Ele acha que nosso namoro é uma perda de tempo. E não tem nada a ver com o sexo. Ele acha que vou me machucar.
- Oh, um demônio altruísta. Mas, por outro lado, considerando-se sua pseudomoral, começo a achar que não se pode presumir nada a respeito de vocês. - Ele deu uns
passos em minha direção e deu-me um tapinha no nariz, brincando. - E quanto a você? Acha que vai se machucar?
- Não. E, se me machucar, sou eu quem tem de lidar com isso. Hugh não devia se preocupar. E tampouco deveria fazer Seth se preocupar!
- Não fique tão chateada com as pessoas que se preocupam com você. Isso significa que gostam de você. Se mais de nós fôssemos assim, o mundo seria bem menos doloroso.
Foi uma observação inesperada de Dante. - Talvez. Mas também haveria muito menos estresse desnecessário.
Ele deu uma risada e pegou minha mão. Virou-a e olhou para minha palma. - Uma série aleatória de linhas para esse corpo? - perguntou.
Fiz que sim com a cabeça.
- Consegue voltar para a forma original?
- Para quê? Para que você possa lê-la? Achei que fosse mentira...
- Às vezes.
Esperei um pouco, mas a brincadeira não veio. Seus olhos acinzentados estavam sérios e pensativos. Algo neles me convenceu, e com grande relutância metamorfoseei
minhas mãos de volta para aquelas com as quais nasci. Não havia usado meu corpo original desde o dia em que me tornei um súcubo, e esta pequena mudança parecia estranha.
Odiava essa forma. Como minhas mãos originais eram enormes, elas pareciam desproporcionais a essa forma minúscula que eu utilizava, ficando estranhas e inadequadas.
Dante segurou minhas mãos e ficou olhando de uma palma para outra. Depois de alguns segundos, ele bufou e deixou as duas caírem. - Surpresa, surpresa.
Transformei as mãos de volta ao que estavam antes. - Que foi? - perguntei.
- Destra?
- Isso.
Ele apontou para a mão esquerda. - Aquelas linhas indicam as características... com que você nasceu. A mão direita é aquela que mostra como você cresce, modifica-se
e se adapta àquilo com que nasceu. Natureza e educação.
- E daí?
- As linhas são idênticas nas duas mãos. A linha de seu coração está alta na palma... ou seja, você tem uma natureza intensa, apaixonada. Nenhuma surpresa aí. Mas
está repartida em milhões de pedaços. Toda recortada. - Ele deu um tapa em minha mão esquerda. - Seu destino era um ataque cardíaco. - Deu um tapa em minha mão direita.
- E você vai repetir esse padrão para sempre. Você não vai aprender. Você não vai mudar.
- Se meu destino for esse, qual a ligação de aprendizado e mudança com tudo isso? Não é um assunto encerrado? - Não gostava do tom de censura em sua voz, como se
fosse minha culpa ter essas palmas.
- Não comece - falou. - Não sou filósofo e não quero iniciar uma discussão sobre destino e livre-arbítrio. Além disso, ler mãos é pura besteira.
- É - falei, irônica -, foi o que ouvi dizer.
Para minha surpresa, Dante colocou seu braço ao redor de mim e me puxou para uma espécie de semiabraço. - Tenha cuidado, súcubo. Há uma porrada de coisas perigosas
acontecendo em sua vida agora. Em todos os frontes. Também não quero que se machuque.
Permaneci em seu abraço e encostei minha cabeça em seu peito. - Quando você se tornou tão gentil? Ainda está tentando me levar para a cama?
- Estou sempre tentando levá-la para a cama. - Ele me deu um beijo na testa, no meu nariz e, então, em meus lábios. - Mas acho que gosto de você. Apenas se cuide.
Fui para casa depois daquilo, um tanto confusa com o comportamento surpreendente de Dante. Pensando nele, sem perceber, logo cheguei a Queen Anne. Não encontrei
nem Vincent nem os anjos em meu apartamento e decidi ir para a livraria. Era meu dia de folga também, mas sabia que a loja estava cheia e que uma ajuda iria bem
a calhar. Precisava me distrair.
Pouco antes de fechar, Seth me ligou no celular e perguntou se eu podia pegá-lo na casa de seu irmão. Ele e Terry foram mesmo assistir ao filme, mas o carro de Seth
estava, na verdade, ali em Queen Anne, e ele precisava de uma carona, já que Terry o havia buscado. Terminei o que estava fazendo em meu escritório e saí.
Terry e Andrea me cumprimentaram com carinho quando apareci, lembrando-me de ir jantar com eles no Natal - ainda que já tivesse dito, muito tempo atrás, que estaria
lá. Sempre consideraram meu relacionamento com Seth como uma coisa tênue, frágil (e era mesmo) e sentiam-se obrigados a fazer o possível para protegê-lo. As garotas
ficaram animadas como sempre ao me ver, e me atacaram com perguntas e tagarelice.
Todas menos Kayla. Ao que parecia, fora-lhe permitido ficar acordada até tarde naquela noite. De certa forma, seu silêncio não surpreendia. Com exceção da surpreendente
conversa na outra noite, ela quase nunca falava mesmo. Mas, normalmente, ela vinha com as outras garotas para me cumprimentar. Naquela noite, simplesmente ficou
no sofá, olhando-me, séria. Quando Seth deu indicações para irmos embora, separei-me das garotas e fui até Kayla.
- Olá - falei, sentando-me ao seu lado. - Como estão...
Eu não a havia tocado, mas Kayla de repente se afastou de mim como se estivesse queimando. Recuou, saiu do sofá e saiu correndo da sala. Ouvimos seus passinhos na
escada enquanto ela fugia para seu quarto.
Surpresa, olhei para os outros. - O que fiz?
- Não tenho a menor ideia - respondeu Andrea, confusa. - Ela estava bem a noite toda.
- Algo deve tê-la enchido - falou Terry. - É impossível prever como agirão as crianças. Principalmente as meninas. - Ele bagunçou o cabelo de Kendall, que gritou.
Rapidamente todos se esqueceram de Kayla e continuaram se despedindo de Seth e mim. Contudo, eu falava com eles de coração partido. Kayla sempre ficava feliz em
me ver, e da última vez ela havia demonstrado uma confiança especial em mim. Hoje, ela tinha me olhado com um horror abjeto. Por quê? Seria irritação de garotinha?
Ou será que havia em mim algo de outro plano que eu não conseguia ver?
Pouco antes de sair, perguntei se podia me despedir de Kayla e tentar mais uma vez conversar com ela. No andar de cima, encontrei-a encolhida numa ponta da cama,
agarrada ao unicórnio. Seus olhos se arregalaram ao me ver, e parei sob a soleira da porta do quarto.
- Oi - falei. - Você está bem?
Nenhuma resposta, apenas aqueles olhos arregalados.
- Não vou me aproximar - disse. - Prometo. Mas, por favor... me diga. O que você está vendo? Por que está com medo de mim?
Por um instante, achei que ela não responderia. Então, finalmente, falou numa voz que eu mal conseguia escutar.
- Você é má - sussurrou. - Por que você é tão má?
Não era bem isso que eu estava esperando. Pensei que talvez ela fosse me dizer que havia uma bruxa espectral zanzando sobre a minha cabeça. Algo nas palavras de
Kayla me deixou mal. Eu sabia que era diabólica - era uma espécie de definição de serva do inferno. Vivia o meu dia a dia com uma tarefa eterna: seduzir e corromper
homens. Mas, de certo modo, uma garotinha dizendo-me que eu era “má” atingiu-me da forma mais cruel possível, uma acusação muito profana. Sem falar nada para ela,
desci as escadas.
Enquanto levava Seth de volta para minha casa, contei-lhe a história dos anjos e minha subsequente falta de progresso.
- Há uma criatura que a está atacando, e ainda assim você vai trabalhar? - Ele parecia ao mesmo tempo estar irritado e brincando. - Você podia muito bem ter ido
ao cinema comigo.
- Ah. - Sentia-me uma estúpida. - Não queria interromper uma atividade fraterna.
- E - completou - você se esqueceu.
- Nunca me esqueço de você - falei, resoluta. - Mas estava meio distraída.
- Engraçado como essa nunca é uma boa desculpa quando se está do outro lado...
Meu apartamento ainda estava vazio quando chegamos lá. Deixei meu casaco e o feitiço de Dante no quarto e fui descansar no sofá com Seth. - Odeio esperar - falei.
- Por que isso sempre acontece? Uma crise enorme, sobrenatural, aparece em minha vida, e sempre acabo sentada e sentindo-me uma inútil. Sempre dependo dos outros.
- Não, você não é - Seth respondeu, enroscando sua mão na minha.
- Você é maravilhosa e capaz. Mas não pode querer fazer tudo.
- Apenas queria poder fazer algo que não fosse me metamorfosear e ficar bonita. Queria conseguir, sei lá, soltar raios laser dos dedos ou algo assim.
- Acha que isso obstruiria Nyx?
- Não. Mas seria legal de fazer.
- Quanto a mim, sempre quis o poder de congelar.
- Poder de congelar?
- Sim. - Seth apontou, com dramaticidade, para a minha mesinha de centro. - Já que o assunto é ter poderes de super-heróis. Se tivesse o poder de congelar, podia
balançar a mão e, de repente, aquela coisa ficaria coberta de gelo.
- Como o gelo iria ajudá-lo no combate ao crime?
- Bem, não sei se iria. Mas seria legal de fazer.
Dei uma risada e me aninhei em Seth, sentindo-me melhor. Eu conseguiria aguardar.
- Está com fome? - perguntei-lhe. - Yasmine e Vincent têm travado aqui uma espécie de competição para ver quem é o melhor chef.
Fomos até a cozinha e encontramos o maior estoque já visto ali desde que me mudei para lá. Desembrulhei um prato que parecia ser de fatias de um bolo de frutas recém-assado.
Seth apontou para a geladeira.
- Se houver morangos ali, terei certeza de que Deus existe.
Abri a porta e dei uma espiada. - Prepare-se para uma experiência religiosa - disse-lhe, puxando uma tigela de morangos cortados e açucarados. Com a outra mão, puxei
uma tigela maior coberta com plástico. - E chantili.
- Aleluia - falou.
Fizemos pilhas de bolo e morangos, e de repente as entidades dos sonhos pareciam totalmente banais. Desembalei o chantili, e Seth enfiou um dedo na tigela.
- Animal - esbravejei.
- Divino - afirmou, lambendo o creme.
Ele enfiou outro dedo na tigela e apontou na minha direção. Inclinei-me para a frente e passei a língua bem na ponta. Uma doçura magistral inundou minha boca.
- Humm - falei, fechando os olhos.
- Humm - disse Seth.
Abri os olhos. - Está falando sobre o chantili?
- Não exatamente.
- Está falando sobre isso?
Ainda havia chantili em seu dedo. Coloquei-o em minha boca e chupei-o com delicadeza, limpando o restante de creme e acariciando a pele de Seth com minha língua.
Quando terminei, ele soltou um longo suspiro.
- Obrigado pela limpeza.
- Ouvi falar que limpeza tem a ver com religião.
- Acho que ainda estou sujo... - falou.
- É mesmo? - perguntei. - Onde?
Ele lambuzou o dedo com mais chantili. - Bem aqui.
Lambi também, chupando e beijando todos os dedos de sua mão - não apenas aquele que estava sujo. Quando terminei, virei sua mão e beijei a parte superior.
- Pronto. Está tinindo.
Seth balançou a cabeça. - Ah, não.
- O quê?
- Você também está melecada...
- Estou? Onde?
Ele pegou mais chantili e espalhou em meus lábios, meu queixo e meu pescoço.
- Por toda parte - falou.
Antes que eu conseguisse formular uma resposta, sua boca estava em meu pescoço, lambendo e beijando com a mesma sensualidade que eu empregara em seus dedos. O erotismo
do momento me deixou estupefata - e era difícil eu me surpreender com tais coisas. Instintivamente, movi meu corpo na direção do seu, jogando a cabeça para trás
enquanto seus lábios continuavam subindo. Senti sua língua, quente e incrivelmente habilidosa, limpando cada gota de chantili em meu pescoço antes de deslizar para
meu queixo e, por fim, minha boca.
Beijamo-nos com força, ignorando a sobremesa (ou a ideia de nos alimentarmos). Senti seus lábios perfeitamente encaixados nos meus. Estava encostada no balcão, e
Seth pressionava seu corpo contra o meu, me prendendo. Quando consegui me desvencilhar do beijo, mal conseguia respirar.
- Uau - falei, com os olhos arregalados. - É por isso que não cozinho. Só cria problemas.
Seth, ainda bem próximo a mim, olhou de um lado para o outro. Havia uma expressão ardente, selvagem, em seus olhos, que me causaram um calafrio. - Não vi nada ruim
acontecendo.
- Ainda não - admiti. - Mas você conhece o esquema...
Ele deu de ombros. - Sim. Mas nada ruim está acontecendo agora.
- Irá se nós... mmphf!
Seth estava me beijando novamente, e dessa vez seus braços me pegaram pela cintura, deixando-nos mais próximos ainda. Joguei meus braços ao redor de seu pescoço,
virando meu rosto para cima a fim de aproveitar mais o beijo. Era apimentado, perigoso e incrível, e eu não queria parar. Sabia, contudo, que tinha de parar imediatamente
e estava imaginando uma forma de interromper, quando Seth se afastou primeiro.
- Ah - provoquei. - Recuperou o juízo.
Seth sorriu para mim, e meu coração disparou com a mistura de desejo animal e a típica expressão de descaramento em seu rosto. - Não - falou.
- Vamos ver até onde conseguimos ir.
- Você já sabe - disse. - Já medimos antes.
Isso foi um pouco exagerado. Nunca usamos um cronômetro ou algo assim, mas tínhamos uma boa ideia de quanto tempo e com quanta intensidade podíamos nos beijar antes
de perdermos o controle.
Ele fez que não com a cabeça. - Não estou falando de beijo, mas disso.
Eu estava com uma regatinha preta sob um casaquinho vermelho. Seth esticou os braços, abriu os três botões grandes do suéter e o tirou. Jogou-o no chão e colocou
suas mãos sobre meus braços, seus dedos quentes sobre minha pele desnuda. Olhou para mim cheio de tesão.
- Estamos medindo quanto tempo você leva para tirar meu suéter? - perguntei.
- Pergunta errada. Nem sempre tem a ver com você.
Afastou as mãos, pegou a parte inferior de sua camiseta Cap’n Crunch e tirou-a por cima da cabeça. Puxou-me para seu peito, e de repente eu estava diante da pele
dourada e perfumada de Seth. Muita pele. Resistindo ao desejo de começar a beijar seu peito, ergui a cabeça e o encarei, tentando demonstrar frivolidade.
- É uma espécie de strip pôquer? Mas sem... o jogo de pôquer?
- Isso, Thetis - falou, pegando a alça de minha regatinha -, é um teste. Um teste para vermos até onde conseguimos ir em todas as dimensões. Não apenas no beijo.
Devia tê-lo interrompido, mas o toque de suas mãos deslizando pelo meu tronco era inebriante. A regata passou sobre a minha cabeça e juntou-se às outras roupas no
chão da cozinha.
Dei uma risada. - Então... sabemos até onde podemos nos beijar. Agora você está tentando ver quão pelados conseguimos ficar?
- Sim - respondeu. Ele forçava um ar de dignidade. - É uma experiência científica.
- Mas parece que você está apenas tirando minhas roupas.
- Faz parte. Sabemos até onde podemos nos beijar. Mas podemos nos beijar pelados? Por quanto tempo? Vale o mesmo que vestidos?
- Não se...
Mais uma vez, ele me interrompeu com um beijo, e meu corpo ficou dormente quando meus seios tocaram em seu peito. Não havia nada entre nós, apenas pele sobre pele,
e era incrível. Entre esse instante e o beijo, fiquei tonta.
E então a experiência de Seth progrediu. Ele removia peças de roupa, uma a uma, e depois me beijava, fazia uma pausa e avaliava os resultados. Quando estávamos totalmente
nus, ele se afastou e ficou admirando meu corpo, seu rosto demonstrando alegria e satisfação.
- Acho que essa coisa de súcubo não está funcionando - falou.
- Ah, está sim, acredite em mim - falei, nervosa. Cada centímetro de meu corpo queria ser tocado, acariciado e assolado. Minha pele ardia. E a fome dentro de mim,
o instinto que me fazia desejar alimentar-me de energia humana, ficou imensa ao perceber que estava próxima da hora da refeição. Isso havia começado como um jogo
divertido, mas de repente percebi que ficara perigoso demais. - Tem menos relação com a nudez do que com esses beijos constantes. Lembra aquela vez que começamos
a nos pegar na cama? Roubei um pouco de sua energia, e estávamos vestidos. Avance demais, ou comece a fazer coisas com outras partes de nossos corpos, e será fim
de jogo. - Afastei-me e fui na direção de minha regata. - Mas obtivemos um bom progresso científico hoje à noite, tenho de admitir.
Seth agarrou meu punho antes que eu conseguisse pegar a regata. Puxou- -me de volta para ele. - Só um pouquinho mais. Só para vermos. - Ainda estava com a mesma
intensidade de excitação. Já o vira dessa forma antes, mas nunca tanto assim.
- O que mais podemos fazer? - perguntei.
- Só mais um beijo - falou, fingindo inocência. - Um... beijo de despedida.
- Ah, meu Deus.
- Um beijo, Thetis. Só isso.
Hesitei um pouco, mas concordei. - Está bem. Certo. Mas estou de olho em você. Não ache que vai se safar dessa.
- Certo.
Pelo menos, acho que foi isso que ele disse, porque veio meio abafado, já que sua boca estava esmagando a minha. Fui pressionada contra o balcão novamente, e sua
mão desceu pela minha bunda, até a parte de trás de minha coxa. Estávamos coladinhos. Bem apertadinhos. Nunca havíamos ficado assim, tão nus. Certamente nunca havíamos
ficado nus e nos beijado antes. Senti-me viva e acesa, desejando-o tanto como súcubo quanto como mulher. As comportas explodiram, e toda a paixão que represávamos
nos inundou. Podia senti-lo, sua ereção e quanto me queria. Meu corpo respondia, se encostando no dele, provocando-o. A mão em minha coxa ficou tensa e puxou minha
perna para cima. Estava quase na altura de seus quadris quando senti... aquilo.
Aquilo.
A vida de Seth. Mais doce que beijo, mais doce que chantili. Entrou em mim pura e brilhante, diferente de tudo que eu já experimentara - bem, a não ser daquela vez
que eu roubara um pouco dele. Teria gemido se minha boca não estivesse ocupada.
Recuperei a razão, e me esforcei para me desvencilhar. Mas não foi suficiente, e tudo que consegui fazer foi afastar minha boca. Ele simplesmente moveu-se para baixo,
beijando meu pescoço. A energia não tinha fim.
- Seth. Seth. Já entendemos. Sabemos até onde podemos ir.
Seus olhos, repletos de desejo e paixão, ficaram me encarando. - Por favor, Georgina... estamos tão perto... só dessa vez...
Estávamos muito perto. Perto demais.
- Não. - Coloquei minhas mãos em seu peito. - Seth! Pare. - Empurrei com força. - Pare! - Consegui me livrar e fui cambaleando para trás, apoiando-me no balcão para
não cair. A transferência de energia foi interrompida abruptamente. Ele esticou uma mão para me ajudar a ficar em pé, mas evitei seu toque.
- Você... você está bem? - perguntou.
- Estou legal - falei, respirando fundo. - Mas você, não. Peguei um pouco... um pouco de sua energia.
- Um pouco não representa nada.
- Não para mim - falei, ainda mantendo distância.
- A energia não é sua - falou. Seus olhos ainda estavam ardentes e esfomeados. - É minha. E acho que vale a pena. - Ele deu um passo para a frente. - E acho que
valeria a pena, mesmo que perdesse mais.
Estiquei a mão, com a palma para a frente. - Pare. Não se aproxime. Não confio em você.
Seu rosto demonstrava menos desejo e mais confusão. - Você... não confia em mim? Nunca pensei que fosse escutá-la dizendo isso.
- Não é isso que quis dizer exatamente. Quer dizer, não sei. Não acho que vá me forçar ou algo assim, mas você é... er, persuasivo. E ultimamente você está mudado.
Desde que levou o tiro. Você tem... sei lá, se arriscado. Como se estivesse enfrentando uma crise de meia-idade.
- Estou enfrentando uma crise de vida, Thetis. Não quero ser uma dessas pessoas que descobrem, no leito de morte, que não fizeram nada. Por que não consegue entender
isso? Você é tão rápida para encorajar Maddie a fazer coisas divertidas, mas continua tentando me proteger.
- É... é diferente.
- Por quê? - perguntou. - Por que não vê problema quando ela se arrisca, mas se preocupa comigo?
- Porque há uma grande diferença entre escalar uma montanha e dormir com alguém que vai tirar anos de sua vida. Quanto tempo vai durar esta fase? Sempre disse que
nossa relação não dependia de sexo.
- Não depende - argumentou, decidido. - Não depende mesmo. Eu te amo por... muitos motivos. Nem consigo começar a descrever. Mas não quero morrer sem tê-la tocado
uma única vez. E tocado-a de verdade.
Fiquei olhando para ele. Falava sério. Como conseguia dizer que não queria morrer sem ter me tocado quando me tocar o deixaria mais próximo da morte?
- Só está dizendo isso porque há muito tempo não faz sexo - repliquei.
- Ficou todo excitado, e agora não está conseguindo pensar direito.
- Estou excitado mesmo - concordou. - Por você. A mulher que amo. - Ele deu mais um passo em minha direção, mas permaneceu a uma distância em que não nos tocávamos.
- Eu te quero, Georgina. Tanto, que me destrói por dentro. Sei que você me quer também. Como podemos continuar tendo medo de algo que nunca tentamos? Eu quero arriscar,
sim, porque, se continuarmos assim por anos... sem nem saber... - Ele balançou a cabeça e suspirou. - Por favor, Georgina. Só dessa vez. Fiquemos juntos... juntos
de verdade.
Engoli seco. Ele era tão convincente. Tão doce. Tão sensual. E, sei lá, o que ele dizia fazia sentido. A forma como ele falava quase me fez acreditar que não importava,
que se eu permitisse que nossos corpos se unissem, a perda seria pequena e irrelevante. Avaliei seu olhar e tentei me convencer de que estava sendo racional, e acabei
recordando o que Carter e os outros haviam dito. Seth é quem tinha de escolher; eu não tinha por que me preocupar.
Mas, logicamente, havia, sim.
- Não - falei. - Não posso. Por favor, Seth. Não faça isso. Não me olhe assim. Eu te amo também... muito, muito mesmo. Mas não podemos fazer isso. Estou te dizendo,
você só precisa fazer sexo. Saia e encontre alguém... qualquer pessoa. Não importa. Não me importo. Vai resolver as coisas e vai facilitar as coisas entre a gente.
- Você se importaria - falou, com a voz bem tranquila. - Você diz que não, mas se importaria, sim.
- Não se for para protegê-lo.
- Minha proteção não importa.
- Lógico que importa, droga! - gritei, me arremessando para a frente. Joguei meus punhos, bem delicadamente, em seu peito, e toda a emoção que foi se formando ao
longo dessa discussão de repente explodiu. - Você não entende? Preciso protegê-lo! Se alguma coisa acontecer a você, se eu for responsável por algo que lhe aconteça,
vou ficar destruída. Vou. Ficar. Destruída. Não vou me perdoar. Não vou me perdoar se algo acontecer a você. Vou ficar destruída!
Parei de gritar e fiquei encarando Seth. Nenhum de nós falava nada. E, enquanto nos avaliávamos, eu sabia o que ele estava pensando. Porque eu estava pensando exatamente
a mesma coisa. Eu havia acabado de repetir o que Hugh dissera, aquilo que incomodava Seth. Em meu estouro, tinha mudado o foco do risco. Não tinha mais a ver com
machucar Seth. Mas sim com eu me machucando.
Gentilmente, ele pegou meus punhos. Afastou-os de seu peito e deixou que caíssem. Foi para trás, ainda sem falar nada, pegou suas roupas e começou a se vestir. Fiquei
onde estava, nua e paralisada.
- Seth... - falei, lentamente. - Não quis dizer isso.
- Está tudo bem, Thetis - falou, abotoando a calça, sem me encarar. - Eu entendo. Sinto muito. Sinto muito por tê-la pressionado.
- Não, não... não é...
- Está tudo bem - repetiu. Sua voz não demonstrava nenhuma emoção. Fria demais. Não era algo natural. - Sério. Mas acho que preciso ir. Acho que é melhor para nós
dois, e Deus sabe quantas coisas você tem para se preocupar... não posso ser mais um motivo.
Senti lágrimas formando-se em meus olhos. - Não queria dizer...
- Sei o que quis dizer - falou. Ajeitou a camisa e finalmente me olhou.
- Mas, sério... tenho de ir. Nos falamos... sei lá. Nos falamos depois. - Esticou o braço, como se fosse tocar minha bochecha, mas logo deixou-o cair. Com outro
suspiro, despediu-se e saiu.
Fiquei exatamente onde estava, ainda sem me mexer. Parecia que fora jogado ácido em meu coração. Estava ardendo e todo esfolado. Por fim, espalhou-se por todo o
corpo. Meus joelhos cederam e me deixei afundar no chão. Estava frio e duro, no toque com minha pele nua. Joguei os joelhos para cima e enterrei o rosto entre eles,
tentando entender o que havia feito. Parte de mim gritava para que fosse atrás dele, para implorar que voltasse, para dizer-lhe que podíamos fazer amor e ter tudo
com o que sempre sonhamos. Outra parte, razoável e orgulhosa, me continha.
Era a mesma parte que me impedira de ir atrás de Andrew naquele dia no jardim, depois de discutirmos sobre a Peste Negra. Eu permitira que ele partisse e seguira
meu caminho para evitar encontrá-lo depois daquilo. Quando a peste finalmente chegou a nossa cidade, meu bispo foi um dos primeiros a sair. Fui com ele e o restante
de nossa paróquia. Assim como em A máscara da morte escarlate, não havia onde se esconder da doença. Ainda assim, alguns lugares eram melhores do que outros, e meu
bispo tomou o cuidado de ficar nos melhores lugares. Ele sobreviveu.
Meses se passaram, e corriam histórias e boatos sobre a cidade em que vivêramos. Naquele ponto, eu havia me cansado de Geoffrey e decidira que era hora de seguir
em frente. Recebi a permissão de meu arquidemônio para me transferir para Florença, e fugi da casa de Geoffrey durante a noite, seguindo em minha jornada. Nossa
velha cidade ficava no caminho, e uma semana depois passei por ela.
Uma cidade empesteada não é exatamente o que as pessoas de hoje podem imaginar. Não havia pilhas de corpos jogados nas ruas ou algo assim. Nem sempre. Afinal de
contas, a Europa sobrevivera à Peste Negra, e a civilização continuara funcionando durante seus piores momentos. Ainda havia plantações, casas em pé e bebês recém-nascidos.
Mas a cidade parecia mais silenciosa e mais melancólica do que quando eu vivia lá. Andrew não estava na igreja quando passei, e um ancião, cuidando da horta, contou-me
que ele tinha saído para ajudar uns párocos dos distritos pobres.
Encontrei-o lá, dentro da casa de um cervejeiro. Esse cervejeiro tinha uma família grande - oito filhos -, além de alguns irmãos que moravam com ele. A casa era
pequena, apertada e suja. Todos ali estavam doentes, com exceção da esposa do cervejeiro, que, mesmo desgastada, tentava ajudar Andrew a cuidar de sua família.
- Cecily? - perguntou, surpreso, ao me ver. Estava ajoelhado ao lado de um adolescente. Em meu peito senti florescerem alegria e alívio. Andrew estava vivo. Ele
permanecera, lutara contra a doença e vencera.
Ajoelhei-me ao seu lado. A esposa, oferecendo água a uma garotinha, ficou me olhando, desconfortável. Não estava usando seda, ou algo parecido, mas eu claramente
era de uma classe diferente, e ela não sabia muito bem como me tratar.
- Estás vivo - sussurrei. - Eu fiquei tão preocupada. Preocupada com a possibilidade de nunca mais ver-te.
Ele me ofereceu aquele seu sorriso gentil, e vi mais rugas ao redor dos seus olhos do que antes. - Deus ainda não quis nos separar - falou.
Olhei para o garoto. Imaginei que Andrew estivesse alimentando-o ou algo assim, mas depois percebi que o padre, na verdade, estava dando-lhe a extrema-unção. O menino
estava sem camisa, e era possível ver em seu pescoço e nas axilas as reveladoras pústulas escuras que davam à peste esse nome. A peste costumava agir em mais ou
menos uma semana, mas, por sua expressão definhada, tinha-se a impressão de que ele estava moribundo havia anos. Seus olhos pareciam febris, e nem sei se ele percebeu
que estávamos lá.
Senti um gosto amargo na garganta e desviei o olhar. Levantei-me e disse a Andrew: - Vou deixar... vou deixar que termines isso e aguardarei lá fora. - Saí da casa,
em direção a um lugar quente onde não houvesse coisas morrendo.
Um pouco depois, Andrew me encontrou. Não perguntei se o garoto ainda estava vivo. Em vez disso, falei: - Quantos ainda estão vivos? De todos aqueles por quem tu
arriscas tua vida, quantos ainda vivem?
Ele deu de ombros. - Três quartos. Às vezes, metade, se forem muito jovens ou muito velhos.
- Metade - repeti, desanimada. - Isso não é um bom número.
- Se mais uma pessoa sobreviver por minha causa, então é um número muito bom.
Olhei para aquele rosto confiante e sereno, e suspirei. - Tu és um frustrado.
Ele sorriu. Suspirei novamente.
- Que posso fazer para ajudar?
O sorriso desapareceu. - Não subestimes isso, Cecily.
- Não estou. Diz o que tenho de fazer.
E foi assim que acabei bancando a enfermeira numa cidadezinha no interior da Inglaterra. Para falar a verdade, não havia nada de glamoroso nessa luta contra a peste.
Era algo bem básico: manter as pessoas limpas e fazer com que se alimentassem e bebessem o máximo que conseguissem. O resto estava nas mãos de seus sistemas imunológicos
e, segundo Andrew, Deus. Quando meus pacientes começavam a passar de um ponto em que não havia mais volta, em geral eu parava de ajudar. Não suportava ver aquilo,
e deixava-os com Andrew e suas orações.
Mas, algumas vezes, vi pessoas se recuperando, pessoas de quem eu havia desistido, e aí eu quase acreditava na existência de uma força superior. Pelo menos, acreditei
nisso até que Andrew ficou doente.
De início, foi devagar, febre e dores, mas ambos sabíamos o que aquilo significava. Ele ignorou sua situação e continuou trabalhando até que os sintomas passaram
a piorar. Por fim, não conseguia mais lutar contra a doença. Negligenciando os outros pacientes, devotei-me inteiramente a ele.
- Deverias ajudar os outros - disse-me certo dia. Sua pele estava rosada e manchada, e começavam a aparecer pontos escuros ao redor das glândulas linfáticas. Apesar
da doença e do abatimento, ele ainda me parecia bonito.
- Não te preocupas comigo.
- Tenho de me preocupar contigo. Sou a única. - É verdade. Andrew ajudara tanta gente, mas ninguém viera ficar ao seu lado, ignorando o fato de que sobreviventes
à peste não costumavam pegá-la novamente.
- Não importa - falou-me Andrew, com uma voz frágil. - Estou feliz por terem sobrevivido.
- Tu irás também - falei, teimosa, embora os sinais começassem a sugerir outra coisa. - Precisas te recuperar para que continues fazendo tuas obras irritantemente
boas.
Ele conseguiu sorrir. - Espero que sim, mas acho que meu tempo neste mundo está chegando a um fim. Tu, porém... - Ele me olhou, olhou de verdade para mim, e fiquei
assustada com o amor que vi ali. Sabia que ele tinha atração por mim, mas nunca imaginava que fosse tanto. - Tu, Cecily... tu não ficarás doente. Tu seguirás em
frente, forte, saudável e bonita. Posso sentir isso. Deus te ama.
- Não - repliquei, triste. - Deus me odeia. É por isso que Ele me mantém viva.
- Deus apenas nos dá tarefas que sabe que podemos realizar. Aqui, pega isto. - Colocou a mão na cruz dourada que estava em seu pescoço, mas estava muito fraco para
tirá-la. - Leva contigo quando eu me for.
- Não, Andrew, tu não irás...
- Pega - repetiu, com a voz mais firme que conseguia. - Pega e, sempre que a vires, lembra que Deus te ama e sabe que nenhuma tragédia que enfrentas é insuperável.
Tu és forte. Tu aguentarás.
Lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto. - Não deverias ter feito isso - disse-lhe. - Não deverias tê-los ajudado. Se não o tivesses feito, sobreviverias.
Ele balançou a cabeça. - Sim, mas então não seria capaz de viver comigo mesmo.
Andrew resistiu mais alguns dias depois disso. Fiquei com ele, mas foram instantes de agonia. Odiei assistir ao que aconteceu com ele, e fiquei mais convencida do
que nunca de que não havia, mesmo, nenhuma força benevolente cuidando dos seres humanos.
Ele morreu em paz e em silêncio, assim como havia vivido. Outro padre veio para administrar extrema-unções, quando necessário, e os últimos instantes conscientes
de Andrew refletiam esperança e fé absoluta no que lhe aconteceria. Fiquei para certificar-me de que haveria um funeral decente, mas sem muita fanfarra ou coisas
assim. Não havia velórios ou funerais chiques naquela época - pelo menos, não para homens como ele.
Logo saí da Inglaterra e fui para o continente, e, depois de um tempo, a dor de sua morte começou a assumir uma nova forma. Ah, ainda sentia falta dele - ainda doía,
queimava e parecia que parte de mim fora subtraída. Mas, além disso, a culpa criava uma nova dor. Sentia que devia ter cuidado melhor dele. Devia ter insistido para
que fosse embora comigo quando a peste apareceu. Ou talvez devesse ter me empenhado mais para ajudá-lo no trato com os doentes; poderia tê-lo mantido longe de quem
o infectou.
Florença era uma cidade bonita, em meio ao Renascimento quando cheguei lá. Mesmo morando em meio a todo aquele esplendor e arte, a morte de Andrew me atormentou
por muitos anos, a dor da culpa e da saudade incrustadas em meu coração. Nunca se esvaiu, mas diminuiu - de qualquer forma, levou um bom tempo. Como Hugh dissera,
uma vida longa significava apenas mais tempo para se lamentar.
Capítulo 21
Cinco minutos depois que Seth saiu, percebi que havia cometido um erro. Não por recusá-lo - isso era o certo a fazer. Mas não devia ter permitido que saísse daquela
forma. Não era uma boa maneira de encerrar uma briga.
Ainda estava nervosa, tantos anos depois de Andrew ter morrido por ajudar aquelas pessoas. Ainda sofria a sua perda. Até hoje, acreditava que minha posição no jardim
fora correta, mas, por outro lado, sempre me culpava pela separação que se seguiu. Raiva e orgulho surgiram entre nós, nos separando até um ponto em que já era quase
tarde demais. Mesmo discordando da posição do outro, não deveríamos ter nos separado. Deveríamos ter conversado e tentado encontrar algum acordo.
Recusei permitir que essa briga criasse mais problemas de comunicação e confusão entre Seth e mim. Não permitiria que roubasse tempo que poderíamos ficar juntos.
Tinha de consertar as coisas. Decidida, peguei meu casaco e bolsa e saí pela porta atrás dele.
Fui meio andando, meio correndo, até a direção da livraria, onde ele havia deixado seu carro, mas já não estava mais lá. Sentia sua falta. Olhei para o estacionamento
vazio por alguns instantes e então entrei. Finalmente havia comprado o estúpido presente do amigo-secreto para Carter e deixara-o em meu escritório mais cedo. Mas,
quando voltei para dentro e enfiei o presente na bolsa, percebi que não tinha forças para sair de lá novamente. Em vez disso, me deixei afundar na cadeira e enterrei
o rosto em minhas mãos. Como permiti que as coisas ficassem tão complicadas entre Seth e mim? Será que o tiro havia, de fato, dado a ele uma nova perspectiva de
vida? Ou isso teria acontecido de qualquer forma?
A assinatura de Yasmine, de repente, preencheu a sala, e ergui a cabeça em tempo de ver ela e Vincent se materializando diante de mim. Imediatamente esqueci Seth.
- Oi, Georgina - falou Vincent. - Recebi sua mensa...
- Sei tudo sobre Nyx - revelei.
Um silêncio atônito dominou o ambiente. Não tinha muita certeza se nefilins também eram assim, mas sabia que raramente anjos eram pegos de surpresa. Yasmine claramente
fora.
E, como era um anjo, nem tentou negar nada a respeito de Nyx. Simplesmente perguntou: - Como?
- Por ela estar me usando para fazer seu serviço sujo. - Suas expressões indicavam ainda mais surpresa. - Só... não sei exatamente como ela está fazendo isso.
Os dois se olharam, e então se viraram para mim. - Comece do início - falou Yasmine.
E foi o que fiz, primeiro contando-lhes sobre meus sonhos e a perda de energia. Depois, fui para minha percepção estranha de eventos trágicos e os sentimentos residuais
quanto às atividades de Nyx. Por fim, expliquei como Erik e Dante haviam chegado a essa conclusão, conectando o que vinha acontecendo comigo a essas notícias infelizes.
Yasmine sentou-se numa cadeira dobrável, jogando a cabeça para trás enquanto pensava. Era bem parecido com o que Vincent fizera no hospital ao tentar raciocinar.
Imaginei que talvez fosse um daqueles gestos inconscientes que casais costumam copiar um do outro. - Hum... brilhante. Então é assim que ela age para que não a achemos.
- Nunca teria pensado nisso - concordou Vincent, lentamente. - O que, logicamente, explica por que agiu assim.
- Então vocês sabem o que ela está fazendo comigo? - perguntei, ansiosa. Não saber estava me matando.
- Sim - falou Yasmine. - Mas vamos reunir os outros antes.
- Os outros...
A pergunta não foi completada, já que três figuras se materializaram na sala: Carter, Joel e Whitney. Auras angelicais estalavam ao meu redor. Não consegui evitar
uma certa inveja. Eu levava dias para encontrar imortais superiores, mas Yasmine fazia isso sem o mínimo esforço.
Carter sorriu ao me ver. Joel parecia ofendida. Whitney parecia confusa.
- O que está acontecendo? - perguntou Joel. Parecia tão furioso quanto da outra vez que eu o vira. Ele só não morreu, alguns anos atrás, de pressão alta porque era
imortal. - Por que você nos trouxe para este... este... lugar? - Dava a impressão de que ele estava num antro de ópio, e não num minúsculo escritório com paredes
mal pintadas.
Yasmine inclinou-se para a frente na cadeira, com as mãos no queixo e os cotovelos nos joelhos. Seus olhos escuros faiscavam de empolgação. - Pegamos ela. Nós a
encontramos... ou melhor, Georgina a encontrou.
Joel e Whitney pareciam impressionados. Carter, não. Pelo olhar em seu rosto, senti que ele já esperava isso.
- Não acredito que tenham levado tanto tempo para descobrir - brincou.
Whitney não estava exatamente se divertindo. - Explique.
Yasmine explicou e, quando terminou, os outros ficaram tão impressionados quanto ela e Vincent ficaram antes. Até mesmo Joel parecia um pouco menos aborrecido.
- Que engenhoso - murmurou. - Toda vez que escapa, ela sempre pensa numa nova forma de nos ludibriar.
Olhei cada rosto daquela sala. Minhas emoções ficaram inflamadas depois da briga com Seth, e estava realmente sem nenhuma paciência naquele instante. - Será que
alguém pode finalmente me dizer onde me encaixo nisso?
Carter veio até mim. Usava uma camisa de flanela azul meio gasta e um boné dos mariners que parecia ter passado por um cortador de lenha. Ele ainda sorria.
- Você já deve saber que Vincent é um paranormal. Ele está sintonizado com nosso mundo e, de alguma forma, tem uma sensibilidade para atividades sobrenaturais mais
alta do que alguns de nós. Às vezes, isso acontece com humanos. - Era verdade. Anjos eram onipotentes e não possuíam todos os dons. Acenei com a cabeça, não deixando
transparecer que eu sabia que Vincent, na verdade, era um nefilim paranormal. - Em condições normais, ele seria capaz de encontrar o rastro dela bem rapidamente.
Quando ela sai por aí alimentando-se loucamente de caos entre os mortais, fica uma espécie de, sei lá... resíduo mágico nos locais onde esteve. A energia que rouba
serve apenas de autossustento; não é suficiente para que se esconda. Alguém como Vincent pode...
Vincent ajudou-o: - ... farejá-la. Sou um cão de caça paranormal. - Yasmine tentou conter o riso.
- Até agora, ele não havia sentido nada - continuou Carter -, e é por isso que estamos sendo obrigados a fazer buscas mundanas, como se estivéssemos procurando padrões
indicativos no noticiário.
- Então... ela estava escondendo seu rastro. - Dei de ombros. - Como me encaixo nisso?
- Ela estava te usando para se esconder. De várias formas. Na verdade, não tinha como dar errado. Ao roubar energia de você e de vítimas humanas, ela conseguia dobrar
seu suprimento. E ficava mais fácil se esconder de nós. Quando sua força diminuía, acho que ela, na verdade... escondia-se em você.
- Argh. - De repente, senti-me violada. - Como isso é possível? Ela... ela está aqui agora? - Olhei para meu corpo, como se pudesse realmente ver alguma coisa.
Ele me observou. - Não, acho que não. Ela deve ter energia suficiente para ficar escondida por um tempo. E quanto ao modo como ela faz isso... bem, vida e energia
entram e saem de você, e, em algum nível, ela é essas duas coisas. Você é um canal para essas forças.
- Gostaria que as pessoas parassem de me chamar assim. Fico me sentindo uma máquina.
- É difícil. A fundição que ela tem com você é o modo pelo qual, de vez em quando, te permite sentir o que ela está fazendo. Alguns detalhes de suas travessuras
vazam para dentro você, apesar de ela se esforçar para escondê- -los... e esconder a si mesma.
- Como?
- Os sonhos - falou Vincent. - Ela está te distraindo com eles. Você está começando a ficar obcecada por esses sonhos alegres e intensos. Seu subconsciente fica
tão envolvido por eles à noite, que nem percebe a perda de energia enquanto dorme.
Encostei-me na cadeira, pasma. Lidara com muitas merdas estranhas em minha vida - e, para falar a verdade, boa quantidade delas acontecera nos últimos meses -, mas
isso estava disparado no topo da lista. Minha pele estava solta, e eu tinha a sensação surreal de que meu corpo não mais me pertencia.
Também estava um pouco incomodada com o fato de que meus sonhos haviam sido digressões, com o intuito de me impedir que visse o que estava acontecendo. Eram tão
agradáveis... tão poderosos. Eu os apreciava, porém parecia que eram apenas mentiras. Ilusões criadas por um monstro para esconder seu controle parasítico sobre
mim. Essa ideia destruía a beleza do que eu vira. Amava a garotinha. Queria acreditar na existência dela. Queria que ela fosse real.
- Bem - disse Joel, bruscamente, com seus olhos estreitos fixos em mim. - Temos de usar o súcubo para atrair Nyx. - Apontou para mim. - Vá. Saia e seduza alguma
pobre alma, para que Nyx retorne.
Eu hesitei. Yasmine olhou para ele. - Não percebe que ela está chateada? Demonstre um pouco de compaixão.
- Habitantes do inferno não merecem isso - murmurou.
No outro lado da sala, Whitney estava ao lado da porta. Ela falava pouco, assim, sua voz me assustou. - Todas as criaturas merecem compaixão. - Ergui a cabeça e
analisei seus olhos. Eram escuros e infinitos, repletos de poder e emoção. Ficava com a sensação de cair naquele negrume, bem parecido com o que sentia com Carter
de vez em quando. Concluí que não gostava da companhia de anjos. Eles vasculham muito a alma... e normalmente isso incluía a minha. Mais silêncio de desconforto.
- Está bem, está bem - falei. - Não precisamos expressar nossos sentimentos aqui, nem andar de mãos dadas. Digam-me o que querem que
eu faça.
- Você servirá como isca, Georgina - falou Carter.
- Sempre sirvo de isca - resmunguei. - Por quê? Por que esse tipo de coisa sempre acontece comigo? - Não muito tempo atrás, tive de bancar a isca para um semideus
estuprador. Ficara tão feliz quanto agora...
Esperava uma brincadeira, mas a resposta de Carter foi séria. - Porque você é um desses poucos indivíduos que costumam reunir em torno de si as grandes forças do
universo.
Isso era pior do que ser um canal. Não queria nada daquilo. Não queria ser um alvo. Queria de volta minha vida pacata, em que eu trabalhava numa livraria e tinha
um relacionamento perfeito, delicioso, com meu namorado. Ok, sei que nunca tive esse relacionamento, mas uma garota tem o direito de sonhar.
Sonhar.
Escolha ruim de palavra.
- Infelizmente - disse Yasmine, de modo gentil -, Joel está correto até certo ponto. De fato, precisamos que você, er, reabasteça sua energia a fim de atrair Nyx.
- Joel deu um sorrisinho.
Suspirei. - Sei que isso é importante... não quero que ela machuque mais ninguém, mas, poxa, precisa ser hoje à noite? Não podemos fazer amanhã? É que... não me
sinto muito animada para isso. - Principalmente depois de Seth. E ainda mais depois disso tudo. Estava mentalmente exausta. Sexo me parecia repugnante, com energia
ou não.
Joel fechou os punhos. - Não se sente animada? Não é hora de frescura! Vidas estão em jogo...
- Joel - falou Carter.
Uma única palavra, mas dura e poderosa. Nunca tinha escutado o relaxado e sarcástico Carter falar naquele tom. Ele e Joel ficaram se encarando. Não conseguia medir
o poder de imortais superiores, mas sabia que Carter era forte demais. Até mesmo mais forte do que Jerome. - Deixe-a em paz. Nyx apenas ataca quando rouba mais energia.
Não há problema em aguardarmos mais uma noite.
Se eu não soubesse das coisas, diria que Joel tinha medo de Carter. Joel parecia estar com vontade de replicar, mas recuou.
- Está certo - falou entre dentes.
Ofereci a Carter um olhar de alívio. Da forma que me sentia naquela noite, era bem provável que, ao tentar seduzir alguém, tivesse a mesma sorte de Tawny. Falando
no outro súcubo, fiquei pensando se devia mencionar minha suspeita de que Tawny estivesse sendo drenada por Nyx também. Mas achei melhor não comentar. Toda aquela
situação ainda era uma suposição.
Yasmine levantou-se e colocou uma mão em meu ombro. - Descanse. Sua aparência está horrível. Precisa se preparar para amanhã.
- Ai. Posso ter a aparência que eu quiser. Quando alguém me diz que minha aparência está horrível, é algo realmente sério.
Ela sorriu. - Não é apenas a aparência física. - E sumiu. Whitney e Joel fizeram o mesmo alguns segundos depois. Apenas Carter permaneceu com Vincent e mim.
- Vai dar tudo certo - disse-me Carter.
- Não sei. Há um monstro maluco que se alimenta de caos me habitando de vez em quando - falei. - Você irá tentar pegá-lo. Parece que há uma grande probabilidade
de as coisas não terminarem muito bem.
- Tu tens pouca fé. - Ele também desapareceu.
Vincent e eu permanecemos lá por um bom tempo. Por fim, suspirei mais uma vez.
- Merda de anjos...
Ele tocou-me o ombro. - Vamos voltar para casa.
Aventuramo-nos no frio e fomos andando até meu apartamento, falando muito pouco. Vincent parecia cansado e pensativo, sem dúvida devido a toda essa coisa de Nyx.
Quando nos aproximamos de meu apartamento, contudo, sua expressão começou a mudar. De início, ele simplesmente parecia confuso. Depois ficou surpreso, e então assustado,
passando para amedrontado e, por fim, enojado. Paramos nos degraus do prédio.
- Qual é o problema? - perguntei.
Ele apontou para cima. - Há algo... diabólico lá.
- Tipo... em meu apartamento? Porque, sabe, tecnicamente eu sou diabólica...
Vincent balançou a cabeça. - Não, não. É um tipo diferente de maldade. Você é diabólica por natureza, sem querer ofender. Isso é algo diferente. Uma maldade criada.
É escura e errada. Artificial. Conhece alguém que mora em seu prédio que jogue para o lado de vocês?
- Não. Apenas eu.
Ele fez uma careta. - Bem, vamos entrar e ver de onde está vindo, então. Argh. Pelo que sinto, é como... lixo apodrecido.
Entramos, e não demorou muito para ele descobrir de onde vinha essa maldade diferente. De meu próprio apartamento.
- Eu te disse que era a única coisa diabólica aqui - brinquei. Mas fiquei um pouco desconfortável com sua reação.
Vincent não respondeu e, simplesmente, passou correndo por mim, vasculhando de uma forma que me trouxe à mente a imagem do cão de caça de antes. Ele desapareceu
em meu quarto e reapareceu com o projeto artesanal de Dante.
- Isso - declarou Vincent, segurando-o com o braço esticado.
- Isso? - perguntei, estupefata. - Isso não é... nada.
- Onde conseguiu isso?
- Foi um cara que conheço quem fez. Aquele que estava me ajudando. Ele é, sei lá... um pseudoparanormal. Talvez seja realmente paranormal. Interpreta sonhos e alega
ser um feiticeiro. - Fiquei olhando para a bola de vime. - Está me dizendo que ele pode ser, de fato, um feiticeiro?
- Ah, certamente ele conhece alguma coisa. Esta coisa é tão imunda que não acredito que você não consiga sentir. Bem, acredito... quero dizer, é um tipo diferente
de feitiço daquele com o qual está acostumada, mas Jesus. Faz- -me sentir como se estivesse... sei lá, nadando num esgoto.
- Bem... sei que deveria ser algo, er, ruim... ele e outro amigo me disseram isso. Mas... não sei. Pensei que fosse um exagero.
- Há coisas ruins e coisas bem ruins - disse Vincent. - E isto é bem ruim. Esta coisa é um repelente, certo? Ele te deu para manter Nyx longe daqui?
- Sim... mas não tinha certeza de que funcionaria...
- Ah, funcionaria. Isso manteria quase tudo longe daqui. Para fazer algo assim... cara, Georgina. É incrível... o tipo de poder necessário. Muito poucos humanos
nascem com este tipo de poder. E certamente ele não é um deles. É um poder roubado.
- Todo mundo rouba poderes - observei, seca. - Eu, Nyx...
O olhar de Vincent ficou sério. - Você e ela sugam das pessoas. Isso foi arrancado de alguém. Assim como se arranca o coração do peito de alguém.
- Então, o que... - Olhei para ele. - Está me dizendo que Dante matou alguém para fazer isso?
- Para fazer isso aqui especificamente? Talvez. Mas esse alguém precisaria já possuir um grande poder, independentemente do que ele poderia colocar dentro disso
aqui, até para se arriscar a fazer isso. E esse alguém com este tipo de poder, em primeiro lugar, teria de ter feito algo, em algum momento de sua vida, que fosse
muito ruim.
- Como... matar alguém.
- Mais que isso. Um assassinato especial... envolvendo um sacrifício. Você sabe a espécie de poder que esse tipo de ritual pode produzir.
Sabia mesmo. Não tinha como evitar essa minha coisa de súcubo, de roubar almas, mas tentava ficar longe de outras atrocidades. Ainda assim, era impossível trabalhar
para o inferno e não conhecer uma variedade enorme de maldades que existem por aí e saber como realizá-las.
- E - continuou Vincent - você sabe que, quanto maior o impacto, maior o significado de um assassinato sacrificial...
- Certo. Maior o poder. - Senti um arrepio no pescoço quando percebi onde Vincent queria chegar com tudo aquilo.
- Não sei o que ele fez para obter esse tipo de poder, mas não foi um assassinato aleatório, limpo. Tinha um significado para ele. E foi terrível. Ele teria de se
entregar, abrir mão de parte de sua humanidade, para obter esse tipo de poder.
Fiquei olhando para a bola de vime. Não conseguia sentir tudo aquilo que Vincent sentia, mas agora também me sentia enjoada e desconfortável com aquele objeto. E,
de repente, a repulsa de Kayla já não mais me parecia tão estranha. O feitiço estava em minha bolsa quando a vi. Ela dissera que eu era “má” muito provavelmente
porque eu estava coberta pelo poder do feitiço. O que será que Dante tinha feito? Que ato aquele sarcástico e lacônico Dante poderia ter feito para alcançar o tipo
de poder que tanto Vincent quanto Hugh disseram ser necessário para fazer esse tipo de feitiço? Não importa o que era, mas era por isso que Erik o odiava.
Senti um calafrio. - Pode destruí-la?
Vincent fez que sim com a cabeça. - Quer que eu o faça?
Uma minúscula parte de mim lembrou que aquilo podia repelir Nyx. Mas isso não faria com que desaparecesse, e precisávamos que ela retornasse se queríamos impedir
seus atos para sempre. Engoli seco e concordei. - Sim, vá em frente.
Levou apenas alguns segundos. Uma luz verde envolveu a esfera de vime, e então a mão de Vincent ficou vazia. Não senti nenhuma alteração de poder, ou algo assim,
mas o nefilim parecia aliviado.
Exalei. - Bem. Não há nada que a impeça de agir agora, certo?
- Não - respondeu, esfregando as mãos. - Prepare-se.
Capítulo 22
Seth não estava na livraria no dia seguinte, o que assumi como um mau sinal. Normalmente, essa era sua reação passivo-agressiva sempre que tínhamos uma briga.
Não consegui esquecer-me dele enquanto trabalhava, pensando naquela briga horrível. Tivemos muitas conversas desagradáveis no tempo em que ficamos juntos, mas nunca
nada daquele jeito. Não conseguia entender o que exatamente me incomodava - além do óbvio -, mas tinha a sensação de que fora um momento fundamental, algo que teria
efeitos a longo prazo. Isso me assustava, e eu queria consertar as coisas.
E, logicamente, ainda tinha de me preocupar com Nyx. Iria encontrar uma vítima após o trabalho, e então Vincent disse que os anjos apareceriam enquanto eu estivesse
dormindo - quando Nyx começasse a agir.
- Você está bem?
Ergui a cabeça de uma pilha de cheques que eu estava assinando em meu escritório. Maddie estava lá, com uma saia-lápis preta e uma blusa branca justa que a deixavam
linda. Ela também soltara o cabelo.
- Uau - falei. - O que vai acontecer hoje?
- Nada - falou, dando de ombros. - Revisão de guarda-roupas. - Ela ergueu um pé, revelando saltos pretos de sete centímetros.
- Puta merda - falei. - Você não faz nada pela metade.
Ela brilhava, e notei alguma coisa nela que não tinha nada a ver com as roupas novas. Havia alegria em seus olhos - uma felicidade que a deixava confiante e ainda
mais radiante. Estava bem diferente daquela mulher amarga que aparecera no leilão.
- O que está acontecendo? - perguntei, pela primeira vez no dia dando atenção a outra pessoa que não fosse eu.
Seu sorriso ficou maior, revelando uma covinha fantasma. Logo em seguida, ficou séria. - Mais tarde eu te conto. São boas novidades. Mas e você... qual é o problema?
Você parece mal.
Yasmine dissera a mesma coisa na noite passada. Quando um súcubo não conseguia ficar por cima, o dia era realmente triste. Balancei a cabeça.
- É... complicado. - Dei um sorriso fraco. - Mas vou resolver, não se preocupe. Agora, vamos lá. Prefiro ouvir alguma coisa agradável. Diga-me o que está acontecendo.
- Não posso. Precisam de mim lá fora. Apenas passei aqui para deixar isso. - Colocou uma pilha de papéis em minha mesa. Praticamente se mesclaram com as outras pilhas
que eu já tinha. Meu escritório estava tão caótico que podia servir de toca para Nyx.
- Fale logo, o suspense está me deixando maluca - brinquei.
- Bem... acha que pode me dar uma carona até o aeroporto amanhã? Vou para casa no Natal.
- Doug vai com você?
- Não. Ele é seu presente de fim de ano. Mas vou revelar o furo se me der uma carona. Acho que terei de sair por volta das cinco.
- O tráfego das cinco na sexta-feira antes do Natal. Vamos ter muito tempo para conversar.
Um pouco do seu nervosismo de sempre reapareceu. - Se for complicado para você...
- Não. De qualquer forma, vamos fechar cedo. E depois saímos.
Maddie saiu, e acabei ficando momentaneamente distraída pelas novidades dela. O que quer que fosse, era algo bom. Gostava da mudança que tinha produzido. Esse tipo
de alegria e confiança caía-lhe bem.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo toque de telefone. Atendi, e era Seth.
- Oi - falei, torcendo para soar calma e confiante, e não desesperada e aliviada.
- Oi. - Seguiu-se uma longa pausa. - Eu... só... queria certificar que vamos passar o Natal juntos.
Meu coração ficou em cacos. Nada de “senti sua falta”. Nada de “sinto muito”.
- Lógico. Não perderia por nada.
Falando em Natal, tive uma sensação estranha de déjà vu. Estivemos com seu irmão no Dia de Ação de Graças. E, assim como agora, também estivemos brigando. E eis
novamente: minha vida, um loop sem fim. Não aprendo nada. Nada muda.
Logicamente, Seth e eu havíamos aliviado a outra briga. Talvez aquele tipo de solução se repetisse agora. Afinal de contas, supostamente as festas são mágicas, não?
- Está bem - disse-me. - Eu te busco.
- Está bem.
Mais uma longa pausa. - Ia passar aí hoje, mas... bem. O livro...
O livro. Sempre o livro. Por outro lado, eu tinha de cuidar de divindades do caos hoje. - Sim, eu sei. Tudo bem.
- Conversamos no Natal.
- Está bem.
Desligamos. Senti um calafrio. Mais uma vez. Eu não tinha dons ou premonições, mas meu instinto - que não tinha nada a ver com as visões do futuro de Nyx - dizia-me
que algo grande estava prestes a acontecer.
Depois do trabalho, fui até Bellevue, o bairro mais rico e mais pretensioso de Seattle. Uma cidade autossustentável, Bellevue era exatamente o oposto de SeaTac.
Hotéis, restaurantes e lojas surgiam continuamente em sua faixa central, e a entrada de dinheiro da Boeing e da Microsoft possibilitava a substituição de prédios
mais velhos, simples, por uma arquitetura mais cativante e estilosa.
Bellevue era também onde morava um rapaz que eu conhecia chamado Kevin. Conheci-o havia alguns anos num bar. Ele não tinha nada de extraordinário. Não era um pecador,
mas também não era santo; ocupava um terreno intermediário fértil que gerava uma quantidade decente de energia toda vez que eu dormia com ele. Sua característica
mais notável era estar eternamente disponível. Trabalhava em casa - acho que alguma coisa com web - e parecia nunca sair, embora fosse bonito e sociável. Não o questionava
muito, afinal era adequado aos meus propósitos sempre que precisava de sexo rápido e fácil com alguém que eu não odiava totalmente.
- Sandra - falou, alegre, abrindo a porta de seu apartamento para mim. Tinha cabelo castanho-escuro e uma barba bem aparada, novíssima, e que me agradou. Ficou me
encarando, encantado, com aqueles seus olhos castanhos- -escuros. - Quanto tempo...
Minha forma de “Sandra” tinha uma compleição física delicada, similar à que eu costumava usar. Mas a semelhança terminava aí. Meu cabelo estava agora encaracolado
e preto, meus olhos num azul que pareciam violeta de vez em quando. Por baixo de meu casaco preto comprido, usava um vestido azul- -marinho sem manga, que era confortável
e inadequado para o frio daquela época do ano.
- Faz mesmo - concordei. - Isso significa que não vai me convidar para entrar?
Ele sorriu e deu um passo para trás, pomposamente me colocando para dentro. - Acha que sou louco, é? Só um idiota iria dispensá-la.
Segui Kevin pelo corredor, até sua sala de estar. Fora redecorada desde a última vez que estive ali, e a mudança foi legal. Os móveis e a decoração eram agora em
tons de um azul-acinzentado, lembrando crepúsculo invernal. Uma fogueira crepitava num canto da sala, e uma comprida janela de sacada dava vista para outro prédio
de apartamentos. Coloquei meu casaco sobre uma cadeira e ajeitei o vestido.
- Quer alguma coisa para beber? - perguntou, com as mãos nos bolsos.
Fiz que não com a cabeça. - Não tenho muito tempo.
Ele me ofereceu um sorriso triste. - Você nunca tem. Sabe, às vezes me sinto usado.
- Isso é um problema para você?
- Problema? - perguntou, com desdém. - Uma mulher bonita querer fazer sexo comigo sem compromisso? Está bem longe de ser um problema.
- Deu uns passos em minha direção. - Use-me o quanto quiser.
Ele chegou ainda mais perto, e nos beijamos. Sem demora, sem preâmbulos. Embalei seu pescoço com meus braços e abri meus lábios, ansiosa para senti-lo e saboreá-lo.
Suas mãos ficaram em minha cintura por um instante, mas logo subiram. Pegou as alças de meu vestido e colocou-as para baixo, expondo meus seios, sem parar de me
beijar. Foi para a frente e prensou-me contra a parede, próximo à fogueira. Senti o calor na pele de minhas pernas. Suas mãos estavam em meus seios, com os polegares
deslizando sobre meus mamilos, apertando-os. Ele variava a intensidade, às vezes com força, às vezes com delicadeza.
Interrompi o beijo, para que pudesse inclinar a cabeça na direção da janela aberta atrás dele. - A janela...
Ele apertou sua boca contra a minha. Nossas línguas dançaram juntas rapidamente, mas logo ele se afastou e falou: - Eu sei. - O tom de sua voz dizia- -me que ele
não apenas sabia - ele queria que fosse assim. Não o questionei. Aparentemente, era uma temporada de exibicionismo.
Por fim, afastou sua boca da minha e desceu beijando meu pescoço. Joguei a cabeça para trás e arqueei o restante do meu corpo em sua direção. Uma de suas mãos continuava
sobre meu seio, mordiscando um mamilo, dedos e língua deixando-me excitada. Sua outra mão puxou minha saia para cima, buscando avidamente minha calcinha e o que
ela protegia.
O desejo por sua energia e seu toque fluía dentro de mim. Gemi baixinho quando ele desceu seus lábios pelo meu corpo. Foi até o chão e ficou de joelhos, mantendo-me
encostada na parede. Puxou a calcinha até embaixo, deixando-a ao redor de meus tornozelos. Deslizou as mãos entre minhas coxas, separou-as um pouquinho e então enfiou
a cabeça entre elas... sua barbinha produzia cócegas. Eu estava ardendo e molhada, mais do que imaginava, e quando sua língua tocou meu clitóris, gemi mais alto
e senti meus joelhos tremerem um pouco.
Comecei a dizer-lhe que não precisava fazer aquilo, que não havia problemas se quisesse ir direto para o evento principal. Mas, ao sentir sua língua movendo-se para
a frente e para trás, aumentando o tesão e o êxtase dentro de mim, engoli minha fala. Os últimos três homens com quem transara não me levaram ao orgasmo, e, embora
aquela visita fosse estritamente funcional e parte do plano Nyx, de repente, de maneira egoísta, senti vontade de aproveitar mais do que apenas sua energia vital.
Sua língua ia para a frente e para trás, mudando o tempo todo de velocidade e intensidade. Quando seus pensamentos começaram a escorrer para dentro de mim, percebi
que ele gostava de fazer aquilo não apenas para sair do comum, mas também porque gostava de ver a forma como eu reagia a cada pequena mudança. Era um daqueles homens
que gostam realmente de deixar uma mulher feliz. O ponto ardente que ele reacendera entre minhas pernas ficou cada vez maior, expandindo-se para além do toque de
sua língua, para além de minhas coxas. Espalhou-se com firmeza por todo o meu corpo, até as pontas dos dedos da mão. Eu parecia o fogo em pessoa - ou melhor, em
súcubo -, retorcido contra a parede, contra ele. Meus joelhos falharam quando o prazer cáustico atingiu um ponto crítico dentro de mim, e suas mãos desceram até
minhas pernas para me manter em pé.
Por fim, meu centro explodiu, o fogo transformando-se em pura luz, uma verdadeira glória. Gritei pela forma como fui consumida pelo orgasmo, pela forma como sua
língua continuou me provocando mesmo durante os espasmos de meu clímax. E chegou a um ponto em que nem ele mais conseguia me manter em pé. Minhas pernas viraram
gelatina, e afundei no chão diante dele. Ele sorriu, genuinamente satisfeito, e inclinou-se para me beijar. Senti meu gosto em seus lábios.
- Vamos lá - falou, pegando minhas mãos e ajudando-me a me levantar. Levou-me até a janela e despiu o resto de meu vestido. Colocou-me num banquinho alto na janela.
Retirou suas roupas também e murmurou: - Vou buscar uma camisinha.
Minha respiração estava rápida, meu coração, disparado. - Não, quero sentir você... só você. - Peguei sua mão e coloquei-a entre minhas pernas, guiando seus dedos
para dentro de mim. - Quero que você me sinta.
Eu já estava molhada antes de começar tudo isso, mas naquele momento estava encharcada, depois do que ele havia acabado de fazer. Seus dedos deslizavam facilmente
dentro de mim, deixando-o com os olhos arregalados com o que sentia. Havia indecisão em seu rosto, mas logo ele concordou. Se tivesse de aconselhar algum de meus
amigos humanos, eu certamente defenderia o sexo seguro. Contudo, para mim, pessoalmente, não importava, já que eu não pegava nenhuma doença e tampouco podia ficar
grávida. Muitas vezes, convencia as vítimas a não usar nenhum tipo de proteção, a fim de aumentar o sentimento de culpa. Com Kevin, naquela noite, não queria que
usasse preservativos simplesmente porque não queria perder tempo. Minha urgência e desejo estavam muito fortes. Queria ele naquele instante.
Deslizei minhas mãos até sua virilha e senti sua ereção. Ele também me queria. Envolvi-o com meus dedos, acariciando-o, massageando-o e amando a forma como crescia
dentro da minha mão. Encostada no vidro gelado, joguei os joelhos para trás, ficando bem aberta, parecendo uma borboleta. O banco da janela era da altura perfeita,
permitindo que encostássemos nossos quadris quando o conduzi para dentro de mim.
Ambos arfamos quando ocorreu o contato. Ele enfiou o máximo que pôde, nossos quadris bem apertados. Nosso encaixe era perfeito, preenchendo- -me. Como eu podia me
metamorfosear, era possível ficar o mais apertadinha possível, e amava perceber que ele testava os limites de minha resistência. Ele parou por um instante, simplesmente
saboreando a sensação de união de nossos corpos, e então lentamente começou a entrar e sair de mim, empurrando- -me contra a janela a cada estocada.
E assim sua vida começou a jorrar para dentro de mim. Quase exalei de alívio. A sensação daquela energia me abastecendo era equiparável à de seu corpo dentro do
meu. Estava com muita saudade daquilo, saudade da alegria e da maravilha causadas por aquela energia pura, indescritível, gerada pela alma humana. Nyx estivera roubando
uma parte de mim, e fiquei feliz por recuperar aquilo, ainda que apenas por pouco tempo. Os pensamentos que vinham junto com sua energia eram felizes e contentes,
revelando o prazer que tinha por estar comigo. Uma parte secreta, safada, dele estava excitada com a possibilidade de seus vizinhos estarem assistindo. Torcia para
que estivessem. Torcia para que ficassem com inveja.
Os movimentos ficaram cada vez mais fortes, e ele não parava de sussurrar que eu era maravilhosa, linda. Ainda sensível por ele ter me chupado, gozei mais duas vezes,
meu corpo derretendo enquanto espasmos de orgasmo me sacudiam. Finalmente senti seu corpo tenso e vi em seu rosto que estava prestes a perder o controle. Cravei
minhas unhas em seus braços e pedi-lhe para gozar dentro de mim. E foi o que fez, empurrando-me com tanta força contra a janela que torci para que o vidro não se
espatifasse. O pico da sua energia atingiu-me ao mesmo tempo que seu clímax, e, já relaxados, suspiramos felizes.
Não o abandonei tão rapidamente quanto eu tinha feito com Bryce, mas também não fiquei muito tempo relaxando no arrebol da tarde. Ajudei-o a se vestir e a acomodar-se
confortavelmente no sofá antes de sair. Afinal de contas, eu gostava dele e esperava vê-lo novamente em uma outra situação casual. Seu rosto estava lânguido e satisfeito
quando nos despedimos.
- Você é a mulher mais exaustiva com quem já estive - contou-me, pestanejando, fatigado.
Não escondi um sorriso. Lógico que eu era. Outras amantes não lhe roubavam a alma - pelo menos, não literalmente.
- Isso significa que você quer que eu fique mais tempo da próxima vez?
Ele sorriu e bocejou. - Não, de jeito nenhum.
Ainda sorrindo, saí e voltei para a cidade. Mas, ao me aproximar do centro, transbordando de energia, minha sensação de alegria sumiu. Lembrei-me do motivo para
ter ido vê-lo e do que ia acontecer naquela noite. Meu corpo, tão desejosamente quente uma hora atrás, ficou frio.
Ao retornar ao meu apartamento, Vincent, Carter e Yasmine já estavam me aguardando. Nenhum deles teceu comentário algum sobre o meu brilho. Em vez disso, já começaram
a discutir o plano.
- É bem provável que Nyx apareça hoje à noite - explicou Carter. - E, quando ela vir que você tem energia novamente, vai agir.
Yasmine concordou com a cabeça. - Não podemos estar aqui quando isso acontecer. Vincent estará por perto, na sala de estar. Ela não vai suspeitar dele; vai imaginar
que é um humano comum. Mas, quando ele sentir que ela está se alimentando de você, vai nos avisar. E, então, apareceremos e a amarraremos.
Não gostava muito da ideia geral - nem da alimentação, nem da amarração. - O que quer dizer com isso?
- Nós a tiraremos de volta e a prenderemos - falou Carter. Imaginei que, ao falar “tirar” referia-se a “tirar” de dentro de mim. Argh.
- E então a levaremos de volta para a prisão - completou Yasmine.
A confiança deles me acalmou, e suspeitei que estava sendo influenciada pelo carisma angelical. Mas não havia como escapar daquilo, não se quisesse afastar minha
visitante das madrugadas.
- Está certo - falei. - Vamos lá.
Os anjos saíram. Ainda era início de noite, e, assim, fiquei com Vincent. Jogamos cartas e assistimos a filmes ruins. Ficar com ele de forma tão casual me fazia
esquecer que ele era um nefilim. Quando era quase meia-noite, levantei-me e me espreguicei.
- Acho que não consigo dormir - observei. - É como tentar ir para a cama na véspera de Natal. Muita tensão para relaxar. E a diferença é que... não é o Papai Noel
que estou esperando chegar.
Ele sorriu. - Bem, tente. Se precisarmos, podemos te dar um sedativo, ou algo assim, mas acho que funcionaria melhor sem isso.
Levou um bom tempo - fiquei deitada por quase duas horas - até eu conseguir dormir. Não era fácil relaxar quando se estava convidando uma criatura do caos para vir
se alimentar de você. E ainda assim, enquanto era levada pela imaginação, não consegui evitar uma certa ansiedade. Eu ia ter aquele sonho novamente.
E tive.
Começou do início, como sempre, indo até a parte em que a garotinha cai e eu a conforto. As lágrimas da menina estavam secando quando as duas ouvem o som da porta
de um carro sendo fechada. Eu me ajeito. Um sorriso se forma em minha boca ao olhar para ela, minha filha, com aquela empolgação exagerada de adultos com crianças.
- Ouviu isso? - pergunto. - Papai chegou.
É notável a alegria no rosto da garota quando me levanto, ainda segurando a menina e equilibrando-a atrás de mim. Foi um ato que exigiu alguma coordenação motora,
já que eu era bem pequena.
Andamos até a porta da frente e saímos para a varanda. Era noite, uma escuridão silenciosa, com exceção de uma lamparina pendurada na varanda, que fazia brilhar
uma longa faixa contínua de neve branca no gramado e na calçada. Ao redor, caía mais neve, num fluxo constante. Não reconheci o lugar, mas certamente não era Seattle.
Aquele monte de neve deixaria a cidade em pânico, colocando todos em alerta de Armagedão. Eu estou bem à vontade, apenas observando a neve. Onde quer que estivéssemos,
nevar era algo comum.
Acaba de chegar um carro na garagem. Sinto meu coração inchar de felicidade. Um homem está parado, uma figura escura, irreconhecível sob a iluminação fraca. Pega
uma mala de rodinhas e fecha o porta-malas com tudo. A menina aperta as mãos, animada, e eu aceno em saudação. O homem me cumprimenta de volta enquanto caminha em
direção à casa, e tento desesperadamente ver seu rosto. Está muito escuro. Preciso que ele se aproxime, só um pouquinho mais perto...
Não consegui chegar mais próximo, porque, bem nessa hora, senti minha alma sendo arrancada de mim.
Sentei-me na cama, quase gritando em agonia pela dor que corria dentro de mim. Os quatro anjos, e mais Vincent, cercavam a sala. O poder que pulsava ao nosso redor
parecia esfumaçado. Eu mal conseguia respirar.
E lá, ao lado de minha cama, estava Nyx.
Parecia-se muito com a descrição que Erik fizera: uma mulher velha, definhando. Sua pele e cabelo eram brancos, seus olhos escuros afundados e inumanos. Um vestido
esfarrapado e leve cobria-lhe o corpo. Tinha uma aparência quase translúcida, como se não fosse totalmente sólida e uma aura cintilasse ao seu redor.
Não conseguia ver todas as forças que agiam ali, mas sentia cada uma delas. Os anjos a haviam temporariamente aprisionado em paredes de força, mas ela não estava
presa, ainda não. Ela arremeteu contra seus carcereiros com uma força considerável, o que me deixou boquiaberta. Qualquer um daqueles anjos era muito mais forte
do que eu - contudo, somando-se os poderes de todos eles, ainda assim era uma briga igual. Era espantoso, e eu não conseguia compreender por que ela precisava da
minha energia, já que tinha tanta disponível. E, na verdade, ela ainda tinha um pouco da minha. Havia roubado pelo menos metade antes de eles a afastarem de mim.
Nyx gritava de raiva, ainda resistindo a eles. Então, pouco a pouco, foi surgindo uma desvantagem. Quanto mais usava suas forças, mais ia se enfraquecendo. A dos
anjos seguia firme. Eles estavam sobrepujando-a. Ela percebeu isso, e seu rosto demonstrava pânico. Olhava, apavorada, para todos os anjos, até que, por fim, fixou
o olhar em Yasmine. Ainda havia entre nós alguma ligação, mesmo que fraca, e logo percebi o que Nyx pretendia fazer. Ela visava a menos poderosa do quarteto. Reunindo
suas últimas forças, explodiu na direção de Yasmine, esperando arrebentar a frente unida dos anjos e, ao mesmo tempo, ferir Yasmine de forma a causar uma distração.
Um segundo antes de Nyx desferir o ataque, observei o rosto de Vincent. Ele também percebera o que ela ia fazer. Moveu-se para a frente, e senti sua máscara caindo.
A reveladora assinatura de nefilim passou sobre mim, e sua força preencheu a sala. Era muito poderoso. No beco, ele fora contido.
Nyx disparou uma energia invisível na direção de Yasmine, tentando destruir o anjo. Mas Vincent estava lá, bloqueando o ataque e lançando-o de volta para Nyx. Mais
uma vez, ao ver suas defesas se despedaçarem, ela gritou. Os outros anjos aproveitaram a oportunidade, e feixes de luz fecharam-se ao redor de Nyx. Pouco depois,
os raios diminuíram, mas as presilhas estavam lá, ainda que eu não conseguisse mais vê-los. Estava encurralada, numa versão distorcida de um mímico preso numa caixa.
Ela não conseguia transpor as paredes em que a haviam prendido.
Tinham conseguido. Recapturaram Nyx. Mas nenhum dos anjos estava preocupado com ela.
Todos olhavam para Vincent.
- Você - vociferou Joel.
Ele não hesitou. Atirou-se na direção do nefilim, e vi o corpo de Joel começar a brilhar. Estava prestes a assumir sua forma verdadeira, uma forma de beleza e poder
incríveis.
Mas Yasmine foi mais rápida.
A mulher pequenina, de cabelo escuro, transformou-se em pura luz. Era, ao mesmo tempo, todas as luzes do arco-íris e nenhuma delas. Uma espada de chamas surgiu em
suas mãos. Ela colocou-se na frente de Vincent - que gritava para que parasse - e atacou Joel. A lâmina o atingiu, o que o fez gritar.
Uma sensação horrível, de queimação, começava a me inundar. Rapidamente, protegi meus olhos e desviei o olhar, percebendo o que quase me acontecera. A verdadeira
forma de um anjo era algo indescritível, exigindo sentidos que um humano - ou um humano que virou um súcubo - não possuía. Olhar para ela poderia me causar danos
enormes. O simples fato de estar na mesma sala que ela machucava.
Mas, antes de afastar o olhar, eu vira o que precisava ver. Vira o ataque de espada. Yasmine havia atacado Joel. Nyx imaginara que ela fosse a mais fraca dos quatro,
mas Yasmine e Joel pareciam ter praticamente a mesma força. E pegá-lo de surpresa daquela forma deu a ela alguma vantagem.
O ar na sala girava, parecendo um furacão. Forças estouravam ao redor de mim, como um sol se transformando em supernova. Só se via fogo e vento. E gritos. Gritos
gêmeos: de Yasmine e de Joel. Envolvi-me com meus braços, escondendo meu rosto, certa de que ia morrer. A energia explodindo sobre mim chegou a um ponto em que dava
a certeza de que derrubaria o prédio, detonaria o mundo. E ficava cada vez mais forte.
De repente, tudo mudou. As forças saíram do meu canto da sala, retornando na direção dos anjos. Era como se tivesse surgido um buraco negro, sugando tudo para dentro
dele. Logicamente, estava apenas puxando a energia, não os objetos físicos, mas mesmo assim senti que também estava me arrastando. Agarrei o edredom da cama, usando-o
como uma âncora para me segurar. O tempo deixou de ter significado. Na minha cabeça, poderiam ter se passado dez segundos ou dez horas, não fazia diferença.
Finalmente, a torrente terminou e a calma retornou. A atmosfera voltou ao normal. Não havia mais níveis insanos de poder. Via-se apenas o que se esperava de uma
sala com três anjos, um nefilim, um súcubo e uma entidade primitiva do caos. E esta tinha deixado de ser o centro das atenções.
Yasmine reassumira sua forma “humana”. Voltou a ser seguro para mim. Ergui a cabeça, esperando que Carter e Whitney se arremetessem num ataque contra ela. Mas estavam
paralisados. Não havia mais sinal de Joel. Ele tinha sumido, fora destruído. O tufão de força havia marcado sua morte.
Yasmine estava de joelhos, com os dedos enterrados no rosto. Soluçava, murmurando frases que pareciam orações frenéticas. Vincent, assim como os anjos, mantinha
distância dela. Ela acabara de matar Joel. Eu não conseguia entender por que ninguém fazia nada. Por que permaneciam parados? Parecia que todos estavam à espera
de alguma coisa.
De repente, uma voz sibilou ao meu lado, em minha mente, não fora dita em voz alta.
- Súcubo.
Olhei para os olhos cavernosos de Nyx. Assim como Vincent e os anjos, eu havia me esquecido dela. Ela estendeu a mão em minha direção, e tentei me encolher. Felizmente,
as presilhas invisíveis impediam que ela se aproximasse mais.
- Súcubo - repetiu. - Toque as paredes. Use o que lhe restou de forças para me libertar.
- O quê? Não! - Dividia minha atenção entre ela e os outros. O grupo angelical permanecia paralisado.
- Liberte-me, e vou ajudá-la a completar sua vingança.
- Vingança? De quem você está falando?
- Daquele que me enviou até você quando eu escapei - estrilou. - Daquele que te prometeu para mim.
Não tinha a menor ideia do que ela falava.
- Mas... quem te libertou?
Ela olhou, desconfortável, para trás. O tempo corria contra ela.
- Não, você me foi prometida! Mas posso ajudá-la. Ajudá-la a punir...
- Não - falei. Ela era perigosa demais. Não importa que vingança insana era essa, não valia a pena quando se considerava o que ela poderia fazer contra os humanos
se fosse libertada.
Seu desespero cresceu. Os anjos logo voltariam sua atenção a ela, e ambas sabíamos disso.
- Vou te mostrar o fim de teu sonho! - berrou. - Vou te mostrar o homem. O homem no sonho.
Meu coração parou de bater.
- Ele não é real - murmurei. - Era tudo mentira. Você o usou para me ludibriar.
- Não! Tudo que mostro é verdadeiro. Sempre a verdade.
- Não pode ser... é impossível. - Engoli seco e senti lágrimas começando a se formar em meus olhos. Queria que aquilo fosse verdade. Queria muito.
- Isso nunca irá acontecer comigo.
Nyx socou as paredes invisíveis de sua prisão. - É real! É o futuro! Eu vi. Toque as paredes, e eu te mostro. Vou te mostrar o homem no sonho!
Queria aquilo. Queria vê-lo. Precisava vê-lo. O homem no sonho. O homem que poderia, talvez, tornar realidade aquele futuro...
Minha mão moveu-se para a frente, como se estivesse sendo controlada por uma força exterior. Os olhos de Nyx se arregalaram, ansiosa e esfomeada.
De repente, um grito interrompeu tudo.
Não, era mais que um grito. Quando Yasmine destruíra Joel, aquilo fora um grito. Agora era mais que isso. Era o ruído mais horrível do universo, um fenômeno que
ia além de um simples som. Assim como meus olhos não conseguiam perceber com exatidão a aparência de um anjo, meus ouvidos não conseguiam compreender com perfeição
aquilo.
Minha mão afastou-se de Nyx, e voltei meu olhar para os anjos. Yasmine ainda estava de joelhos, e chamas começavam a consumi-la. Mas não era uma fogueira comum.
Lembrava a luz de sua forma real: ao mesmo tempo, todas as cores e nenhuma cor. Carter e Whitney observavam, rostos impassíveis.
Vincent também observava. Ele se aproximara de mim, afastando-se da fogueira. Seu olhar parecia uma mixórdia de emoções, todas ruins. Eu ainda não entendia o que
estava acontecendo a Yasmine, mas sabia o que aconteceria a ele.
- Saia daqui - disse-lhe, baixinho.
Seu rosto estava pálido, tão pálido quanto o de Nyx. Ele parecia ter envelhecido uns cem anos. - Não posso... não posso deixá-la...
- Você precisa. Eles irão destruí-lo. E, se não forem eles, alguém irá fazê- -lo. Outros nesta cidade devem ter notado isso. Sabe que estou certa.
Seus olhos ainda estavam fixos em Yasmine. Eu, contudo, não conseguia mais vê-la. Estava totalmente coberta pelas chamas - chamas que ficaram negras.
- Vá! - exclamei. - É isso que ela desejaria que você fizesse. Ela fez isso por você!
Vincent tremeu ao ouvir isso e, finalmente, olhou para mim. Toda a força de seu pesar fez com que as lágrimas contidas em meus olhos começassem a se derramar por
meu rosto.
- Vá. Por favor - implorei. Joel fora destruído. Parecia que Yasmine seria a próxima. Não suportaria mais nenhuma morte.
Ele não falou nada, mas, vários segundos depois, ficou invisível. Senti sua aura indo embora.
Na outra ponta da sala, as chamas começavam a se apagar. Yasmine reaparecia lentamente, incólume. Não parecia diferente, mas algo em sua assinatura havia mudado.
Senti a mesma luz dourada, a impressão de açafrão e olíbano. Mas estava orlada de outra coisa. Não tinha mais a mesma qualidade cristalina, aguda, das auras angelicais.
Isso havia sumido, substituído por uma sensação escura e enfumaçada - uma fumaça que não tinha nada a ver com o fogo.
As chamas finalmente desapareceram de vez, e Yasmine permanecia ajoelhada no chão. Segundos depois, outra assinatura se juntou a nós, uma que eu conhecia bem. Jerome
estava na sala; aparentemente tinha terminado o assunto clandestino que tinha saído para cuidar.
Olhou cada rosto ali e, por fim, focou em mim. - Jesus Cristo. O que você fez agora?
Ignorei-o, incapaz de parar de olhar Yasmine. Ela estava com a mesma aparência, exatamente idêntica. Contudo ela não estava...
Ela havia notado a mudança também. Esticou os braços diante de seu corpo, analisando-os como se nunca os tivesse visto antes. Havia horror em seus olhos.
- Não - lamentou. - Não... - E voltou a chorar.
Carter finalmente parou de observá-la e encarou Jerome. - Isso pertence a você agora, Charon.
Jerome aquiesceu e andou na direção de Yasmine. - É hora de irmos.
Ela ergueu a cabeça para ele, o rosto reluzente devido às lágrimas. Yasmine não falou nada, mas nem precisava. Sua expressão dizia tudo. Era um apelo, um apelo para
que nada daquilo fosse real, para que houvesse uma possibilidade - apenas uma possibilidade - de que Jerome conseguisse fazer tudo desaparecer. Ele balançou a cabeça
e tocou-lhe o ombro. Os dois sumiram.
A sala ficou em silêncio, um silêncio artificial que quase parecia opressivo. Minha voz soava estranha e deslocada.
- O qu... quê aconteceu? - perguntei a Carter. Percebi agora que Whitney estava chorando.
- Yasmine caiu - falou, baixinho. - Ela é um demônio agora.
Capítulo 23
ão consegui ficar em meu quarto depois daquilo, não depois de ver dois anjos morrerem - um fisicamente e outro espiritualmente. Precisava sair dali, daquele apartamento.
Nenhum dos outros pareceu notar ou se preocupar com o fato de eu fugir. Com Nyx capturada, havia coisas maiores no universo para se preocupar do que com um súcubo
confuso.
Dirigi por mais ou menos dez minutos antes de me dar conta de para onde ia. A loja de Dante. A conversa de Vincent sobre o feitiço diabólico de repente não parecia
importante. Naquele momento precisava conversar com alguém sobre o que vira. Seth não entenderia muito bem, e, além disso, as coisas ainda não estavam acertadas
entre nós. Às vezes, para mim, discutir coisas sérias com vampiros era difícil. Ainda estava brava com Hugh. Não queria incomodar Erik, já que ainda estava em fase
de recuperação. Dante foi o que me sobrou.
Ele abriu a porta da loja depois de eu ficar batendo por uns cinco minutos. O cabelo desgrenhado e a roupa amassada indicavam que eu o havia acordado novamente.
Como sempre, pareceu incomodado quando entrei.
- Não funcionou? Falei para você... - Ele me olhou melhor. - O que aconteceu?
Fui cambaleando até uma cadeira e desabei sobre ela, com as mãos em minhas têmporas. Eu estava semelhante àquela imagem de Yasmine. Abri a boca para falar, para
contar o que acontecera... mas não conseguia dizer nada. Ele se ajoelhou ao meu lado.
- Súcubo, você está me deixando angustiado. O que aconteceu?
Fiquei olhando sem expressão para ele por um bom tempo, antes de enfim conseguir encarar seu rosto preocupado. - Ela caiu.
- Hein? Nyx?
- Não... Yasmine.
- Quem?
Meus olhos voltaram a ficar desfocados quando recordei aquela chama preta. O som horrível. Pisando, tentei apagar aquela imagem e voltei minha atenção para Dante.
- Ela é um anjo. Era um anjo. Talvez ainda seja. Não sei. Porra, não sei. Não sei o que ela é.
Ele se aproximou e agarrou meus braços, sacudindo-me para que eu recuperasse a atenção. - Você está me deixando perdido. Não sei qual é a relação entre a queda de
um anjo e Nyx. Se houver... Você precisa se acalmar e começar do início. Respire fundo. - Foi o que fiz. - Agora novamente. - Respirei. - Agora fale.
Falei.
No início, foi difícil, e tive de fazer algumas pausas. Contudo, por fim, consegui me recuperar e narrar a briga dos anjos para Dante. A história foi lentamente
sendo vazada por meus lábios, e contei tudo o que acontecera para ele: a captura de Nyx, a morte de Joel e a queda de Yasmine.
Ele mantinha suas mãos em meus braços quando terminei, e depois me dei conta de que era para me acalmar. Eu estava tremendo. Ficamos um bom tempo sentados ali, sem
falar nada. Até que ele exalou e balançou a cabeça.
- Caralho, súcubo. Quanta coisa para uma noite... Mesmo para você. - Tocou meu queixo com a mão e ergueu minha cabeça. - Mas você sabe que anjos caem. Sabe que ainda
caem. O tempo todo.
- Mas nunca tinha visto isso - sussurrei. - Em todo esse tempo... nunca tinha conhecido alguém que fora um anjo e se tornara um demônio. Todos os demônios que conheço...
bem, eles sempre foram demônios. Nunca os vi quando eram anjos.
- Há uma primeira vez para tudo.
Encarei-o. - Mas eu gostava dela.
Esperava algum comentário como “coisas ruins acontecem para todo mundo”. Em vez disso, ele apenas balançou a cabeça. - Sinto muito.
Engoli as lágrimas - já havia chorado demais naquela noite - e me inclinei para a frente, encostando minha cabeça em seu peito, assim como fizera na noite passada.
Ele fazia carinho em minha cabeça, me acalmando.
- Que esperança posso ter? - perguntei. - Se até os anjos caem, que esperança podemos ter?
- Não há esperança - falou. - Estamos por conta própria. E temos de fazer as escolhas que acreditamos ser as melhores para nossa sobrevivência. Se sua amiga anjo
tivesse pensado assim, ela não teria caído.
- Mas eis o ponto... anjos não pensam em si mesmos, certo? São abnegados.
- Talvez - falou, pensativo. - Ela deixou as coisas chegarem bem longe com o nefilim... isso não foi bem uma abnegação. Agora ambos estão ferrados, e temos um novo
membro no clube.
- Que clube?
- O clube. Nosso clube. Aquele cujos sócios cometem um erro e são punidos para sempre por isso. - Fez uma pausa. - É um clube bem grande.
Gentilmente saí de seu abraço. - O que você fez?
- Humm?
- Seu único erro. Vincent encontrou o feitiço... disse que era horrível. Magia negra. Disse que você deveria ter feito algo bem ruim para conseguir produzir aquilo.
Os olhos de Dante demonstravam tristeza ao me observar. - Quer mesmo saber?
Aquiesci.
- Não. Você não quer. Neste exato momento, pela primeira vez, você conversa comigo como se, talvez, eu não fosse o maior idiota do mundo. E aí eu te conto a verdade...
e você perde todo o respeito por mim.
- Não irei perder. Vou te respeitar ainda mais.
Ele girou os olhos. - As pessoas sempre dizem coisas nobres em situações hipotéticas. “Nunca trairia a minha esposa.” “Se eu encontrasse na rua um milhão de dólares,
eu devolveria.” Mentira.
- Não é não - argumentei. - Respeito a verdade.
- Mas você não vai gostar. Por que acha que não te beijei naquele dia do lado de fora da casa do Erik? Brinco sobre minha vontade de dormir com você, caramba, e
quero mesmo dormir com você, mas, se tivéssemos ido para a cama, você sentiria como minha energia é bem fraca...
- Acredito nessa história de energia baixa, mas ainda quero saber a história por trás disso.
Estreitou os olhos, frustrado. - Veja, súcubo. Acho que, nem se quisesse, eu conseguiria contar-lhe a história. É muito dura para mim.
Seu comentário sobre o beijo de repente me inspirou.
- Poderia demonstrar?
- O quê?
Movi-me em sua direção. - Beije-me. É possível que não consiga tirar nenhuma energia de você, mas, se abrir sua memória, talvez eu consiga sentir partes dela.
Esperava que isso, pelo menos, fosse possível. Apesar de os pensamentos e sensações de meus amantes virem para mim durante o sexo, não era exatamente um sistema
que podíamos controlar. Eu não conseguia coletar coisas específicas. Normalmente, o que eu sentia era o que o cara estivesse pensando naquele exato momento. Muitas
vezes, era uma admiração, ou talvez uma consciência culpada sobre a parceira que estivesse sendo traída.
Mas talvez... talvez, se Dante estivesse pensando especificamente no que havia feito, aquilo viria pra mim. Valia a pena tentar. Aproximei-me dele. Ele não se mexeu,
então tive de tomar a iniciativa e beijá-lo.
De início, foi apenas um beijo - totalmente físico. Aos poucos, comecei a receber um pouco de sua força vital - mas era como ele havia dito. Sua alma era muito sombria.
A energia vital que fluía para dentro de mim era um filete. Apenas algumas gotas, como uma torneira mal fechada. E então... depois que avaliei sua energia, senti
algo diferente. Senti sua alma - senti por que ela era tão escura, tão destituída da vida brilhante que a maioria das pessoas tinha. Aquela escuridão começou a emanar
para dentro de mim, aquele mal doentio e nojento... e lá, por trás de tudo, havia desespero, fúria, desesperança e frustração. Era repugnante. Escuridão e sangue.
Queria me afastar, mas precisava descobrir o que ele escondia.
As lembranças chegaram até mim em imagens desarticuladas, mas consegui reuni-las e formar uma narrativa. Vi uma irmã. Dez anos mais velha do que ele. Cuidara dele
durante sua infância - como mãe e como instrutora. Ela também era paranormal. Ensinara-o a controlar seu poder, a explorar a mágica do mundo que era invisível para
a maioria das pessoas. Ela fora poderosa, mas ele era ainda mais forte. Porém isso não era suficiente. Ele queria mais do que simplesmente controlar seu poder -
queria aumentá-lo. Mas, como Hugh e Vincent me disseram, poucos humanos nasciam com a magnitude de poder que ele almejava.
Então ele o pegara. Arrancara à força.
Dela.
Vi seu rosto quando a matou, senti sua dor quando a adaga tocou-lhe a garganta. Era, para ele, meio irmã e meio mãe, mas, mesmo assim, tirara-lhe a vida. E, ao fazer
isso, seu poder crescera exponencialmente - por ter recebido o dela e por causa do feitiço envolvido. O sangue do inocente sempre traz poder, e a magia negra que
envolvia essa morte trouxe poder em abundância. Deixara-o sentindo-se um deus.
E desejando ter morrido.
Ele se amaldiçoou. Ainda amava o poder, ainda amava o fato de detê-lo... mas, depois de matar a irmã, passara a se odiar. Ele se afastara do mundo, tentando enterrar
suas lembranças nas drogas e no álcool, usando seus poderes apenas ocasionalmente, para pequenas trapaças.
Interrompi o beijo, não querendo ver ou sentir mais nada. Se fôssemos em frente, eu provavelmente veria o que ele teve de fazer para preparar o feitiço. Não seria
algo tão ruim quanto o que ele fizera a sua irmã, mas para mim bastava. Com os olhos arregalados, afastei-me dele.
- Ela era a namorada de Erik - falei, baixinho. Tive um rápido vislumbre de Tanya - era esse o nome dela - e Erik juntos. - Era ela a mulher na foto. É por isso
que ele te odeia.
Dante fez que sim com a cabeça. - Nós três... íamos fazer grandes coisas. Éramos talentosos para caralho, sabe? - Colocou uma mão na cabeça, os olhos cheios de pesar.
- Como era de se esperar, Erik preferiu acabar com nossa amizade depois disso. Queria me matar... devia ter feito isso. Devia mesmo. Mas, bem. Ele não é desse tipo
de gente.
- Não - concordei, gélida. - Não é, não. - Levantei-me e me afastei ainda mais de Dante, que permanecia sentado no chão.
Ergueu a cabeça e percebeu o que eu estava fazendo. O rosto triste virou uma expressão de fúria. - Já vai embora?
- Sim.
- Bem, obrigado por aparecer. E obrigado por mostrar que eu estava certo.
- Sobre...?
Ele jogou as mãos para o alto. - Sobre isso. Eu te disse que você me odiaria.
- Eu não... - Parei. Eu o odiava, sim. Foi inevitável, principalmente depois de ver que ele e sua irmã amavam-se tanto. Depois de perceber quanto isso deve ter feito
Erik sofrer. - Dante... o que você fez...
- Foi um erro. Que eu tentaria desfazer, se pudesse. Um erro que me amaldiçoa para sempre. Assim como sua amiga anjo. Assim como você.
- Não - falei. - Não é a mesma coisa. Yasmine caiu por amor.
- Ela caiu por ter sido egoísta - argumentou. - Mas não vou discutir isso. Fale-me sobre você. Você caiu por amor?
Não falei nada. Eu havia caído por luxúria. Traíra meu marido porque estava magoada, solitária e entediada e... bem, porque consegui.
Dante me olhou sério. - Viu? Eu sei. Você também fodeu as coisas. Eu te entendo... e são poucas as pessoas que te entendem. Aposto que seu namorado não é uma dessas.
- Ele me aceita.
- Mas ele entende? Já lhe contou, em detalhes sórdidos, o que você fez?
- Não, mas isso não importa.
Dante levantou-se e se aproximou. - Importa, sim! Esse relacionamento de vocês é uma piada. Não tem como funcionar. Também não estou dizendo que você terá um futuro
romântico e feliz comigo, mas, pelo menos, você deveria ficar com pessoas que sabem de onde você veio.
- Certo. Ficar com você significaria bebedeira e ódio à vida.
- O que quer dizer com isso?
- Seth me faz ter esperanças em um futuro melhor. Me faz querer ser melhor.
- Mas não faz sentido - ralhou Dante. - Por que não consegue entender? As coisas não irão mudar para você. Até suas mãos dizem isso.
- Não... Nyx falou... Nyx falou que o sonho poderia tornar-se realidade. O homem no sonho...
- ... era ela te enganando. Você também teria caído nessa, se seu anjo não tivesse caído primeiro.
Cerrei os dentes. - Os sonhos dela são verdadeiros. Seth e eu...
- ... vão se casar? Fugir quando o sol se pôr? Ter filhos? Súcubo! Acorde! - Dante estava gritando, com o rosto a poucos centímetros do meu. - Não tem como acontecer.
Não para você. Talvez para ele... mas não com você. Todo dia que você passa com ele apenas garante que a vida dele será tão vazia e sem sentido quanto a sua.
- Isso não é verdade - gritei. - Somos felizes. Vamos ser felizes juntos, e não me importa se você não acredita em mim. Nunca mais quero te ver ou conversar contigo.
Sei por que Erik te odeia, e eu também te odeio. - Abri a porta com um chute. - Você merece arder no inferno.
Fui embora, mas não conseguia me forçar a ir para casa. Sem ter mais nada a fazer, achei uma lanchonete aberta 24 horas e bebi um café, explicitamente ignorando
todos que conversavam comigo. Fiquei olhando o sol aparecer sobre as Montanhas Olímpicas e, quando a loja abriu, fui trabalhar. Ajudei com a correria de véspera
de Natal, realizando tarefas tediosas e mecânicas. Fecharíamos cedo naquele dia, e todos estavam realizando as últimas compras. Foi agitado e maluco, mas permitiu
que meu corpo zumbi fizesse alguma coisa.
Quando fechamos, já era quase hora de levar Maddie para o aeroporto. Ela precisava fazer as últimas compras de Natal e perguntou se eu queria dar um giro pelo centro
com ela. Depois de testemunhar a morte de um anjo, fazer compras parecia ser a coisa mais sem graça do mundo. Ainda assim... eu não tinha mais nada para fazer, portanto
concordei. É bem provável que tivesse aceitado fazer qualquer coisa.
O centro de Seattle estava enfeitado para o Natal, com luzes e coroas de flores penduradas por todo o centro de compras próximo à Quarta Avenida. Às quatro da tarde,
já estava escuro. Chuva caía sobre o asfalto, o tipo de aguaceiro torrencial que a maioria das pessoas acreditava que tínhamos o ano todo. Na verdade, chovia apenas
no inverno, e normalmente era uma garoa. Essa coisa pesada era bem rara, como se o céu estivesse de luto por Joel.
Através de uma janela, fiquei observando a chuva e os pedestres lutando com guarda-chuvas, enquanto Maddie entrava na Banana Republic para comprar alguma coisa para
sua irmã. Com o coração partido, procurei um presente para Seth, mas minha motivação foi sumindo aos poucos, e, de qualquer forma, não havia como competir com o
anel. Ainda estava com ele ao redor do pescoço. E hoje parecia pesado.
Além de meu pesar sobre o que havia acontecido a Yasmine, ainda estava pensando em Nyx. Particularmente pensando no que ela me dissera. O homem no sonho. Quem era
o homem no sonho? A pergunta me consumia, ainda que fosse fútil. Fiquei repetindo o que Dante me dissera, tentando me convencer de que não importava - de que aquilo
tudo fora uma armadilha. Mas aquela silhueta escura ainda assombrava minha mente, e parte de mim acreditava que, se eu soubesse sua identidade, então talvez fosse
possível ser real.
- Georgina?
Virei o rosto e encontrei Vincent diante de mim. Atrás dele, Maddie, absorta, vasculhava uma pilha de casaquinhos de lã. Achei que sua aparência, no apartamento,
era de alguém tomado pela dor, mas aquilo não era nada quando comparado ao que eu via agora. Ele estava aflito e pálido. Seus olhos estavam vidrados e vermelhos,
mas não sabia dizer se devido ao choro ou à falta de sono. Talvez as duas coisas.
Entregou-me a chave de meu apartamento. - Queria apenas te devolver isso.
Peguei-a. - Não precisava vir até mim para isso. Podia ter deixado lá.
- Sim. - Enfiou as mãos nos bolsos e olhou para o chão. - Acho que... queria conversar com alguém.
- Tem, err, visto Yasmine?
Balançou a cabeça. - Não. Não sei o que aconteceu a ela. Quero dizer, eu sei... ela está em algum lugar do inferno. Talvez tenham um período de tutoria, ou algo
assim. Não sei. Mas deve ser horrível. E é culpa minha.
- Não é, não - falei automaticamente. - Foi escolha dela.
- Mas ela fez isso por mim.
- Não importa o motivo. A questão é que ela fez porque quis. Você não tem o direito de questionar as decisões dela.
Enquanto falava, tive um instante “puta merda”. Estava dizendo exatamente o mesmo que todos me diziam a respeito de Seth. Falava exatamente o que o próprio Seth
me dizia havia muito.
- Acho que sim. Não sei. - Ele deu um suspiro. - É estúpido para caralho. Todos esses anos, fomos tão cuidadosos em não nos aproximarmos, para que ela não caísse.
Estávamos indo tão bem, evitando fazer aquilo que queríamos. E aí, devido a um instante de confusão e paixão, o resultado é o mesmo. Tudo foi tão rápido, sabe? Agi
para protegê-la, e ela agiu para me proteger... - Ele ficou quieto e pareceu prestes a chorar. Eu sentia o mesmo. Como Dante dissera, era um clube bem grande.
- Mas... se ela já caiu... bem. Talvez agora vocês possam ficar juntos.
Vincent balançou a cabeça e me ofereceu aquele sorrisinho que o fazia parecer mais triste do que quando não sorria. - Não sei. Nem sei se ela vai se encontrar comigo
agora. Algo me diz que ela não vai querer que eu a veja assim.
- E como você se sente?
- Eu a amo demais... ou, bem, pelo menos... amava demais Yasmine, o anjo. Ela não é mais aquela mulher. Quero dizer, ela pode odiar o que lhe aconteceu... ela pode
estar devastada. Mas uma hora vai acabar melhorando. Sempre melhoramos. E então ela será um deles. Não será a mesma Yasmine, e não sei se posso amá-la ou se ela
pode me amar. Parte de suas boas qualidades era o fato de ela resistir àquela tentação... e acho que ela sentia o mesmo em relação a mim.
Esqueci Vincent por um instante, já que minha atenção voltara-se para mim, para minha própria situação. E percebi que era algo bem parecido com o que Seth e eu tínhamos.
A tensão contínua em nosso acordo era uma dor, contudo a moral em que se baseava era parte do que nos atraía. Ele podia dizer que não via problema no fato de não
fazermos sexo, mas acho que parte dele me amava devido a minha recusa constante de ceder. Da mesma forma, eu amava sua firmeza - não apenas ao se abster de mim,
mas também de outras amantes. E talvez por isso a briga tenha sido tão chocante. Não esperava que ele fosse fraco.
No entanto... mesmo que admirássemos um ao outro por causa de nossos princípios, valia a pena? E teria sido mesmo uma fraqueza de sua parte? Vincent e Yasmine ficaram
muito mais tempo juntos do que Seth e eu, torturando-se da mesma forma. No final, isso não lhes valera de nada. Não dera nada certo.
- Amor malfadado não é tão glamoroso quanto parece - falou Vincent, talvez adivinhando meus pensamentos.
- Nunca achei que fosse.
- Às vezes acho... bem, talvez tivesse sido melhor se nós nunca tivéssemos ficado juntos. Todos esses anos foram maravilhosos... mas, poxa, ela ainda seria a mulher
que eu amo, mesmo que nunca tivéssemos nos envolvido.
Não sabia disso. Breves instantes de alegria compensavam a dor que vinha em seguida? Não era por isso que eu estava com Seth, mesmo sabendo que ele, algum dia, morreria?
Talvez Seth estivesse certo sobre se arriscar. A vida é curta. Talvez fosse necessário buscar o máximo de momentos bons possíveis. Tudo era muito confuso, e, de
repente, senti vontade de conversar com Seth sobre isso - sobre viver a vida e assumir riscos, sobre o que fazia com que nos amássemos e sobre o que em nosso relacionamento
valia a pena brigar. Não queria cometer os mesmos erros de Yasmine e Vincent. Seth e eu precisávamos nos sentar, com as mentes abertas, e fazer essa coisa entre
nós funcionar.
- O que você vai fazer agora? - perguntei a Vincent. Achei que aquele não era o melhor momento para discutir filosofia de relacionamentos com ele.
Ele apontou vagamente para trás. - Sair da cidade. Mesmo camuflado, sei que estão atrás de mim. Preciso me esconder em algum lugar.
Aquiesci. Fiquei triste por vê-lo indo embora, mas sabia o que os outros anjos e demônios fariam se o encontrassem. Assim, desejei-lhe tudo de bom e nos abraçamos
rapidamente antes de ele partir. Ao vê-lo saindo, fiquei considerando o exemplo de alerta que ele representava. Com a ansiedade aumentando, torci para que a ida
até o aeroporto fosse bem rápida, de forma que eu pudesse telefonar para Seth.
Fui até o outro canto da loja e encontrei Maddie pagando pelas compras.
- Quem era aquele cara? - perguntou-me, entregando seu cartão de crédito para a caixa. - Ele era bonitinho. Desgrenhado... mas bonitinho.
- Ele teve um dia complicado - respondi. E uma longa eternidade para enfrentar. - É apenas um amigo.
- Solteiro?
Pensei no que responder. - Sim, acho que é.
Enquanto a aguardava, fiquei olhando um espelho. Maddie seguia forte com seu novo estilo elegante e bonita. Também cortara o cabelo, e as mechas faziam seu rosto
parecer delicado e encantador. A calça e o suéter, embora simples, ficavam finos e elegantes nela.
Em contraste, eu parecia a meia-irmã feia. Ah, ainda tinha a bela feição e o rosto bonito criados pela metamorfose, mas estava usando um jeans e um casaco velhos,
não dando muita importância à alta moda naquele momento. Também não havia me preocupado em metamorfosear meu cabelo. Simplesmente o penteara, fazendo um rabo de
cavalo alto. Mas o mais significativo era meu rosto. Apresentava o mesmo sofrimento que Vincent. Havia uma concavidade em meus olhos que até a mim surpreendia. Isso
tudo ofuscava a beleza de meus traços. Ao olhar novamente para Maddie, dei-me conta de que ela era a gostosa do dia.
Quando finalmente pegamos o carro para ir ao aeroporto, o trânsito estava como eu imaginava: horrível. A I-5 estava parada, e, com a minha sorte de ultimamente,
era provável que tivesse ocorrido um acidente lá na frente para completar a hora do rush e a bagunça do feriado. Suspirei e me encostei no banco do carro.
- Muito bem - falei para Maddie, precisando desesperadamente me distrair. - E o seu relatório? Que coisas arriscadas tem feito? Tenho certeza de que realizou mais
do que sua meta.
- Bem - começou. - Como se pode ver, tenho as novas roupas. Você viu algumas delas, e meu guarda-roupas tem mais lingerie do que jamais teve em toda a minha vida.
Sempre tive um pouco de receio, mas há umas peças muito bonitas por aí, sabia?
- Sim, lógico que sei.
- Também adquiri uns sapatos de salto alto. Ainda estou aprendendo a andar com ele, mas estou indo bem... acho. - Ela deu um gemido e voltou a parecer a escritora
feminista sensível de sempre. - Sinto-me como... bem, como uma menina.
Sorri e olhei para os carros à frente de nós. Todas as variáveis indicavam um acidente; logo, eu precisava ter cuidado. Nesse tipo de marcha lenta, as pessoas costumavam
parar de prestar atenção e ficar tontas. Era assim que se acertavam as traseiras dos carros. Também era de estranhar que os motoristas de Seattle tivessem dificuldade
para dirigir na chuva.
- Você me parece estar lidando bem com saltos altos. Que mais fez? Além de compras?
- Inscrevi-me na turma de judô.
- Você não fez isso!
- Fiz, sim - falou, rindo. - Foi a aula mais maluca que encontrei. Além disso, poderei finalmente revidar as malcriações que Doug fez contra mim em todos esses anos.
- Merecidamente - falei. Passei para a pista da esquerda, com a esperança inútil de que estivesse se movendo um pouquinho mais rápido. - Algo mais?
- Humm... bem. Comecei a procurar um lugar para morar sozinha.
- Que boa ideia!
- E pesquisar voos para lugares que sempre quis conhecer.
- Outra boa ideia.
- E dormi com Seth.
Quase subi na calçada.
- O quê? - falei, jogando o volante de volta para minha pista. Maddie esticou as mãos para se proteger. - Você disse Seth?
- Sim...
- Seth Mortensen?
Ela parecia não entender. - É lógico. Quem mais?
Era uma daquelas coisas tão absurdas, que eu nem conseguia reagir. Era como dizer: “Ei, você percebeu que a Terra acabou de explodir?”. Não era algo real porque
todos os outros dados encontráveis no mundo diziam que aquilo era impossível. Meu cérebro ainda não conseguira processar a ideia. Células desperdiçadas.
- Como... quero dizer, o que... - Balancei a cabeça. - Explique.
Podia ver em seu rosto que ela estava louca para fazê-lo. Era isso que estava queimando dentro dela em meu escritório no dia anterior.
- Bem, duas noites atrás, voltei para a livraria, depois de fechá-la, porque tinha esquecido uma coisa. Vi Seth no estacionamento. Tinha ido a algum lugar e voltara
para pegar seu carro.
“Algum lugar” era o meu apartamento. Fora a noite da briga.
- De qualquer forma - continuou -, ele parecia um pouco abatido, e lembrei-me do que você havia dito sobre assumir riscos. Além disso, ele ainda me devia um encontro,
certo? Assim, convidei-o para beber alguma coisa, e ele concordou na hora.
Tentei não subir na calçada novamente. - Ele não bebeu, certo?
- Não, nada alcoólico. Mas ficamos lá até bem tarde, e nos divertimos muito. Você não tem ideia de como é legal conversar com ele. Ele parece tímido, mas, assim
que se o conhece melhor... - Ela suspirou, feliz. - Ele pensa como eu... quer fazer todos os tipos de coisas, conhecer lugares... Então, o lugar fechou, e ele perguntou
se eu queria ir até sua casa.
Mal conseguia olhar para ela. - Seth... te convidou para conhecer a casa dele?
- Bem, se fôssemos para a minha, teríamos de dividir espaço com Doug, e nós precisávamos conversar mais. E foi o que fizemos... quer dizer, bem, depois de um tempo...
paramos de conversar. E uma coisa levou a outra. - Ela soltou um longo suspiro, como se ainda não conseguisse acreditar no que fizera. - Não costumo fazer coisas
assim. Não tão rapidamente. Mas, bem, ele é um cara legal, sabe? E queria fazer alguma coisa arriscada...
Não, não, não. Isso não podia estar acontecendo. Isso era um sonho. Era Nyx revidando por eu não a ter ajudado. Enviara um pesadelo para mim, do qual eu esperava
acordar logo.
Não havia me dado conta de quanto tempo ficara quieta até que Maddie, receosa, perguntou: - Georgina? Ainda está aqui? Você não acha... que fui fácil demais, acha?
- Sua voz indicava medo, medo de me desapontar e de ser repreendida.
- Hein? Não... não... lógico que não. - Respirei fundo. - Então, er, foi bom?
- Ah, sim! - Ela soltou uma risadinha nervosa. - Mal posso acreditar que estou falando sobre isso. Mas, sim, Seth é muito bom na cama. Muito atencioso.
- Sim, imagino que seja mesmo.
- Deus, não consigo acreditar que isso aconteceu.
Éramos duas. - E agora? O que vai acontecer? Foi... por apenas uma noite? - Afinal de contas, que mais poderia ser? Seth estava comigo, certo? Não havia motivo para
eu ficar chateada. Eu lhe dera sinal verde para fazer sexo com outras pessoas. Na verdade... disse-lhe isso naquela noite. Se ele quisesse dormir com ela, não havia
problema. Mas, obviamente, aquilo não significara nada. Tinha de ser por apenas uma noite, certo?
Certo?
- Não sei - admitiu. - Espero que não. Gosto mesmo dele... e foi muito bom. Sinto que temos uma ligação real... como se o leilão não tivesse ocorrido unicamente
por ele ter sentido pena de mim. Disse que telefonaria e que sairíamos novamente algum dia. - Ela voltou a ficar tímida e insegura. - Você não acha... que ele é
do tipo que diz essas coisas sem realmente ser sincero, acha? - Voltara a ser a Maddie que eu conhecia, que me olhava e esperava minhas orientações. Aquela que não
confiava em homens.
Não desviei o olhar da estrada e concluí que, talvez, o céu estivesse se lamentando por mim. Depois de um bom tempo, finalmente falei: - Não, Maddie. Se diz que
quer sair, ele fala sério. É assim que ele é.
Capítulo 24
Eu sabia que viveria para sempre, mas às vezes me era difícil entender quanto tempo isso significava. Durante a ida ao aeroporto, contudo, pude experimentar a sensação
do que é eternidade.
Maddie ficou quase o tempo todo falando sobre Seth. Na verdade, tenho certeza de que o único instante em que ela não o fez foi quando parou para verificar o relógio
e calcular se conseguiríamos chegar a tempo. Eu sabia que conseguiríamos, já que, se houvesse o risco de ela perder o voo e precisar retornar comigo para a cidade,
eu pararia o carro e a carregaria nas costas. Quando ela concluiu que não estávamos tão atrasadas, voltou a falar de Seth. Seth, Seth, Seth.
Tenho certeza de que há apenas umas três pessoas no mundo que não imaginariam estar me zuando quando contassem uma história como essa. Infelizmente, Maddie era uma
delas. Contava a verdade. Estava escrito em seu rosto, e algo dentro de mim - talvez a parte que entendia bem a seriedade de minha briga com Seth - conseguia sentir
isso.
Depois de um tempo, minha mente ficou um pouco dormente, e parei de pensar no assunto. Finalmente deixei-a no aeroporto e voltei para casa, sem me preocupar com
o trânsito que tive de enfrentar no caminho. Quando retornei ao meu apartamento, jantei e assisti a Um cântico de Natal. A seguir, um longo banho quente e cinco
doses de vodca me derrubaram naquela noite. Dormi no sofá porque não conseguia suportar a ideia de entrar num quarto em que um anjo havia caído. Que bela noite de
Natal...
Seth apareceu na manhã seguinte para me levar para jantar na casa de Terry e Andrea. Ele irradiava desconforto, mas ainda sorriu ao me ver.
- Você está linda.
- Obrigada.
Eu sabia que estava. Ficara duas horas me arrumando, sendo que os últimos trinta minutos foram passados simplesmente diante do espelho. Fiquei lá, cuidando de cada
detalhe de minha aparência. O vestido vermelho de alcinha. A curva de meu pescoço sob a gargantilha preta brilhante. A forma como meu cabelo castanho-dourado, hoje
liso e penteado, caía sobre minhas costas. Sombra dourada e delineador preto emolduravam meus olhos. Meus lábios brilhavam com um gloss de cor pêssego-claro. Mesmo
com uma cinco-quartos, minhas pernas pareciam compridas e suaves. Meu rosto, moldado com bochechas altas e pele impecável, estava lindo.
Eu era linda.
Chame de vaidade ou egoísmo, mas era verdade. Eu era muito linda mesmo. Mais linda do que Maddie. Mais bonita do que qualquer mulher mortal. Olhando para aquele
reflexo maravilhoso, implorava para que Seth me dissesse que me preferia. Ele tinha de me preferir. Como poderia não preferir?
Mas eu sabia que toda a beleza do mundo não conseguiria mascarar a dor dentro de mim. E, depois de algum tempo, Seth percebeu isso também. Seu sorriso desapareceu.
- Como você descobriu? - perguntou.
Deixei cair o casaco que eu segurava. - Como você acha? Ela me contou. Estava ansiosa para me contar.
Ele suspirou, sentou-se no braço de meu sofá e ficou olhando para o vazio.
- É só isso? Você não tem mais nada para me dizer? - perguntei.
- Sinto muito. Deus, sinto muito mesmo. Não queria que você descobrisse assim.
- Mas você ia me contar algum dia?
- Sim... lógico.
Sua voz era tão doce e tão gentil, que momentaneamente a fúria que desejava explodir dentro de mim foi desativada. Fiquei olhando para ele, encarando bem aqueles
olhos cor de âmbar. - Ela disse... ela disse que você não bebeu, mas você bebeu, certo? Foi isso que aconteceu? - Eu parecia ter a idade de Kendall e suspeitava
estar com a mesma expressão implorante de Yasmine para Jerome.
O rosto de Seth permaneceu impassível. - Não, Thetis. Eu não estava bêbado. Não bebi nada.
Deixei-me afundar na poltrona à frente dele. - Então... então... o que aconteceu?
Demorou um pouco para ele começar a contar a história. Era visível que estava dividido: parte queria ser aberto, e parte odiava contar-me coisas que eu não gostaria
de escutar.
- Fiquei tão chateado depois daquilo que aconteceu entre nós. Quase telefonei para aquele cara... como ele se chama? Niphon. Não conseguia suportar... queria resolver
as coisas entre nós. Mas, antes de fazer isso, fui até Maddie. Eu estava tão... não sei. Muito confuso. Perturbado. Ela me convidou para irmos comer, e, quando percebi,
aceitei. - Ele passou uma mão em seu cabelo, sua expressão de neutralidade transformando-se em confusão e frustração. - E estar com ela... ela é tão legal. Dócil.
Fácil de conversar. E depois de nosso contato físico abortar, fiquei meio... humm...
- Excitado? Com tesão? Tomado pela luxúria?
Ele deu um sorrisinho. - Algo assim. Mas não sei. Havia mais coisas ali.
A fita de minha mente foi rebobinada. - Você disse que ia telefonar para Niphon?
- Sim. Nós conversamos no pôquer... e ele me telefonou uma vez. Disse que, se algum dia eu quisesse... podíamos fazer um acordo. Na hora achei que seria loucura,
mas depois que saí de sua casa naquela noite... não sei. Fiquei pensando se, talvez, não valesse a pena viver a vida que eu queria, de uma maneira que não te deixasse
tão preocupada.
- Então a aparição de Maddie foi uma bênção - murmurei. Cristo. Seth pensara seriamente em vender sua alma. Eu precisava mesmo conversar com Niphon. Ele não me levara
a sério quando eu dissera para deixar Seth em paz. Estava com vontade de arrancar a garganta do demônio, mas minha vingança teria de esperar. Respirei fundo.
- Bem - falei. - Então é isso. Não posso dizer que gosto da ideia... mas, bem... acabou.
Ele inclinou sua cabeça, confuso. - O que quer dizer com isso?
- Isso. Essa coisa com Maddie. Finalmente você teve uma transa. Sempre concordamos com a ideia de você ter uma, certo? Quero dizer, não é justo que só eu possa fazer
sexo. Agora podemos seguir em frente.
Um longo silêncio tomou a sala. Aubrey pulou ao meu lado e esfregou sua cabeça em meu braço. Acariciei seu pelo agradável enquanto aguardava a resposta de Seth.
- Georgina - enfim falou. - Sabe... eu te disse... bem. Eu não consigo ter apenas transas.
Minha mão ficou paralisada sobre as costas de Aubrey. - O que você está dizendo?
- Que... eu não consigo apenas transar.
- Está dizendo que quer ter alguma coisa com ela?
Ele parecia deprimido. - Eu não sei.
Não. Isso não podia estar acontecendo.
- O que significa em relação a nós?
- Eu não sei.
A fúria retornou, e eu pulei da poltrona, para infortúnio de Aubrey.
- Você sabe alguma coisa? - perguntei. - Ao menos sabe por que fez isso?
- Havia muitas coisas acontecendo... - falou. - Muitos fatores. Aconteceu...
Coloquei as mãos em minha cintura e andei em sua direção. - Ah, é? Foi mesmo? Porque não tenho tanta certeza...
Sua expressão de perturbação transformou-se em desconfiança. - Como assim?
- Acho que estava se vingando de mim por eu não ter cedido naquela noite. Eu te deixei maluco. Te machuquei. Assim, você está tentando me machucar. Dar-me uma lição.
- Eu... o quê? Está maluca? Acha que eu faria alguma coisa assim para te dar uma lição? Acha que tenho vontade de te machucar? Só porque se recusou a fazer sexo
comigo?
- Por que não? - perguntei. - Rapazes sempre querem fazer sexo comigo. Por que você seria diferente?
- Georgina - falou, sem acreditar. - Não posso crer nisso. Sempre foi mais do que sexo. Você deve saber isso. Cansei de te falar. Nunca iria machucá- -la de propósito.
Mas...
- Mas o quê?
Ele afastou o olhar, voltando-se para o carpete. - Não sei se conseguimos continuar sem eu te magoar.
- Bem, se você não dormir com minhas amigas...
- Não é só isso. Poderiam ser várias outras coisas. Eu poderia ser atropelado amanhã ou pegar alguma doença. Se você não resistir algum dia e dormir comigo, vai
se odiar para sempre. E se eu não resistir e vender minha alma, isso vai te aborrecer também. De uma forma ou de outra, você ficará magoada. É apenas uma questão
de tempo. Vi isso naquela noite na cozinha, observei seu rosto enquanto gritava comigo. Foi quando descobri que não havia o que fazer.
- Eu... estava chateada - disse-lhe. - E, quero dizer... sabíamos que esse relacionamento não seria fácil. No início, você não via problemas... o sexo e tudo o mais.
- As coisas mudam - falou, sem rodeios. Encarei-o, e vi novamente a divisão dentro dele. - E naquela época achava que eu é quem seria machucado, não você. Eu consigo
suportar.
- Está dizendo que eu não consigo?
- Estou dizendo que não quero descobrir. E, para falar a verdade, não tem nada a ver com sexo. Temos questões de comunicação, questões de tempo... não sei. Droga,
temos questões de morte. Não sei mesmo se devemos seguir assim.
A sensação era a mesma que tive quando Joel morreu, como se toda a energia estivesse sendo sugada de mim.
- Como - inquiri -, você consegue sempre fazer sermões sobre comunicação aberta e, de repente, despejar isso em mim agora? Se já se sente assim faz algum tempo...
deveria ter falado sobre isso antes, não o usando como um blefe durante uma discussão de separação.
- Não tenho muita certeza do que significa essa última parte, mas não estou blefando. E tentei conversar com você sobre isso. Tentei na noite em que você me massageou,
e você não quis escutar. - Seth respirou fundo. - Georgina... estou falando sério. Acho que devemos nos separar.
Fiquei pasma. Não, isso não estava certo. De jeito nenhum. Esperava uma briga, uma que logo superaríamos, como sempre. Esperava que ele pedisse perdão. Esperava
que definíssemos novos limites em nosso relacionamento. Esperava que eu tivesse a primazia e decidisse se iríamos continuar com aquilo ou não.
Não esperava ter de implorar.
- Não. Não. Seth... temos de fazer funcionar. Veja, vou superar essa coisa com Maddie, está bem? E, se você quiser dormir com outras mulheres... bem, não tem problema.
Sempre disse que você podia. É que foi a primeira vez... bem, foi um choque, só isso. - Ele continuava me olhando em silêncio, e acabei tagarelando sem parar. -
Mas podemos fazer funcionar. Sempre conseguimos. Vamos descobrir um jeito. Você não pode simplesmente seguir em frente e decidir uma coisa assim sozinho. Somos duas
pessoas nessa situação, sabe?
- Sim - disse ele. - Eu sei. E sou uma das duas. E eu quero me separar.
- Não - falei, perdendo o controle. - Eu não quero. É só um período... não sei. Você não está falando sério.
O silêncio de Seth foi mais enervante do que se ele tivesse replicado. Ele ficava apenas me olhando, permitindo que eu falasse. Sua expressão mostrava tanto pesar...
mas muita determinação também.
- Foi você quem me disse que superaríamos tudo - gritei. - Por que não agora?
- Porque é tarde demais.
- Não pode ser. Se você fizer isso... tudo terá sido à toa... você terá me magoado de qualquer forma. A mim e a Maddie.
- É uma mágoa pequena quando comparada ao que poderia ter acontecido - falou. - E, quanto a Maddie... não pretendo magoá-la. Eu... eu gosto dela.
- Mas você me ama.
- Sim, amo. E, provavelmente, amarei para sempre. Mas talvez isso não seja suficiente. Preciso seguir em frente. Não podemos fazer isso. Acho que talvez... não sei.
Acho que pode surgir algo bom entre mim e Maddie. De certa forma, ela é parecida com você, apenas...
Seth havia começado a divagar da forma que fazia às vezes, quando estava bem nervoso. Mordeu seu lábio, como se tentasse rebobinar as palavras, e afastou o olhar.
- Apenas o quê? - perguntei. Mal conseguia escutar minha própria voz.
Ele voltou-se para mim, firme e resoluto. - Apenas... é mais humana.
E foi isso. Toda a fúria e a tristeza se desvaneceram. Não havia mais nada dentro de mim. Nada mesmo. Fui esvaziada.
- Saia - falei.
Ele ficou pálido. Algo em minha voz e rosto deviam estar verdadeiramente assustadores. Ainda tentou estender uma mão, hesitante.
- Nunca foi minha intenção te magoar. Thetis, sinto mui...
- Nunca mais me chame assim - disse-lhe, afastando-me. Não sei como conseguia falar isso. Era como se outra pessoa estivesse me controlando. - Vá embora. Agora.
Seth abriu a boca, e achei que toda aquela resolução que ele acabara de mostrar ia desmoronar. Mas não aconteceu.
Ele foi embora.
Capítulo 25
Jurei que nunca mais voltaria ao meu quarto, mas naquele exato momento precisava de minha cama. Passei o restante do dia nela, toda curvada na famosa posição fetal.
Assim como quando expulsei Seth de casa, eu não sentia nada. Estava morta por dentro. Não havia mais nada, nada em minha vida, nada que me impedisse de seguir em
frente. Uma parte inteligente de meu cérebro dizia que eu devia chorar. Sabia que estava magoada por dentro, uma mágoa que algum dia iria emergir. Mas, por ora,
estava bloqueada, com medo de reconhecer que tudo aquilo fora real ou de enfrentar as consequências. Dei-me conta de que fora esse o motivo que fizera Yasmine gritar.
Era terrível ser afastada de algo que se amava tanto. Ser afastada daquilo que dava significado a sua existência.
Horas se passaram, e luz e sombras moviam-se por meu quarto conforme o sol começava a descer. Meu quarto ficou escuro, mas não me preocupei em acender as luzes.
Não tinha energia, nem motivação.
Não sei quanto tempo se passou até que escutei a batida. De início, não tinha certeza do que se tratava. Então veio a batida novamente - definitivamente havia alguém
batendo a minha porta. Fiquei na cama, não querendo ver ou conversar com ninguém. E se fosse Seth? Parte de mim agarrava-se a essa esperança, de que talvez ele tivesse
mudado de ideia. O restante de mim não acreditava nisso. Vira a expressão em seus olhos. A resolução. Não ia voltar. E, como ele não ia voltar, não havia motivo
para ser sociável.
Meu visitante bateu uma terceira vez, ainda mais alto. Ao meu lado, Aubrey virou sua cabeça na direção da sala, e depois para mim, sem dúvida querendo entender por
que eu não havia colocado um fim no barulho. Com um suspiro, saí da cama e fui até a frente do apartamento. Na metade do caminho, parei. Não era Seth.
- Georgina! - lamentava uma voz de soprano fanhosa. - Sei que você está aí. Posso senti-la. - Eu também sentira Tawny, logicamente, e foi por isso que parei de andar.
Suspirei novamente, imaginando se seria possível ignorá-la. Muito provável que não. Mesmo que não atendesse a porta, corria-se o risco de ela ficar lá o dia inteiro,
agora que sabia que eu estava em casa.
Abri a porta, esperando ser empurrada para dentro com lágrimas e trombetas. Em vez disso, encontrei Tawny aguardando calmamente diante de minha porta, sem saber
se devia entrar ou não. Seus olhos, de fato, estavam úmidos, mas ela parecia estar se esforçando para se conter. O tremor em seu lábio sugeria que não seria fácil.
E ela possuía um brilho.
- Po-posso entrar? - perguntou.
Coloquei-me de lado e fiz sinal para que entrasse. - Quer que eu te leve para beber alguma coisa a fim de celebrarmos sua conquista?
Bastou isso. Ela não se conteve. Lamuriando-se com o rosto enterrado nas mãos, deixou-se afundar em meu sofá. Ainda entorpecida devido à discussão com Seth, estava
sem energia mental para lidar com aquilo. Sem energia suficiente para odiá-la, nem tampouco para ter pena dela. Estava apática.
- Tawny, eu...
- Sinto muito! - interrompeu-me. - Sinto muito mesmo. Não queria fazer isso. Não queria mesmo. Mas ele me disse que, se eu fizesse, seria bom para nós dois, que
ele puxaria as cordinhas para que eu subisse mais rapidamente e que eu...
- Ei, calma lá - falei. - Quem é “ele”? Niphon?
Ela aquiesceu e retirou um pacote de lenços da bolsa. Pelo menos, ela agora viajava preparada. Assou o nariz antes de continuar. - Ele me disse para fingir... fingir
que era ruim. Quero dizer... bem, na verdade, eu sou meio ruim. Ok, bem ruim. Não consigo flertar como você. E não sei mesmo dançar. - Fez uma pausa, como se isso
lhe causasse dores. - Mas você estava certa que era impossível eu não conseguir fazer sexo com alguém. Eu consegui. Apenas menti, dizendo que não conseguia.
Era exatamente o que eu suspeitava fazia algum tempo, mas ouvir sua confirmação não foi nada animador. Era apenas mais um lembrete de todas as coisas miseráveis
que aconteceram em minha vida nas últimas semanas. Olhei para ela, mas mesmo assim não consegui sentir raiva. Em parte porque ainda estava vazia de sentimentos,
e em parte porque não valia pena. Niphon usara-a para me enganar, mas ele a enganara também.
- Você é uma boa mentirosa - disse-lhe. - Nunca tive certeza de que você estava dizendo a verdade... mas parecia estar. Em geral, sou boa para decifrar as pessoas.
Tawny sorriu, só um pouquinho, quase parecendo orgulhosa. - Enganei muitas pessoas quando era mortal. Dei alguns golpes. - O sorriso desapareceu. - Até que aquele
cuzão me trocou por uma puta loira. Ela não sabia o que estava fazendo, mas ele nem se importou. Babaca. Agora está arrependido. Os dois estão.
Pisquei. Não esperava escutar aquilo. Não tinha certeza de que queria escutar aquilo. De repente, o desejo inicial de Tawny, de fazer tudo quanto é homem sofrer,
fazia muito mais sentido - assim como o motivo para ela ter vendido sua alma. Esperava que sua aparência atual não fosse uma cópia maluca da puta loira. Porque isso
seria meio assustador.
- Bem, humm... tenho certeza de que sim. E, sabe, as habilidades para se dar golpes não são diferentes daquelas necessárias para se seduzir. - Talvez fossem o movimento
e a conversa, mas, sentada ali, meu cérebro ocioso começou a dar sinais de vida e analisar a situação. - Tawny, por que está me contando isso? Se você está trabalhando
para Niphon, é bem provável que ele não goste muito do fato de você destruir seu disfarce.
- É verdade. Ele não sabe que estou aqui. Mas... mas eu estava com medo. Sei que muita coisa aconteceria se você o denunciasse, e não quero descer junto com ele!
Pensei que, se viesse, conversasse com você e contasse o que aconteceu, talvez... talvez você pudesse me perdoar. Estou começando a gostar daqui. Não quero ir embora.
E se o punirem, irão me punir também e...
- Espere, espere. Pare. Puni-lo pelo quê? Por convencê-la a mentir?- Franzi o cenho. - E o que seria isso que eu denunciaria?
Tawny ficou tão surpresa que se esqueceu de fungar. - Sobre ela.
- Ela?
- Aquela... aquela bruxa. Aquela que surgia em meus sonhos...
- Nyx? Ah. Então foi assim que você ocultou seu brilho. Hugh estava certo.
- Odiei isso - disse Tawny, com veemência. - Todas as vezes que ele me obrigou a ir até ela para que ela me limpasse. E então eu tinha aqueles sonhos malucos.
Pense, Georgina, pense! Tudo faria sentido ali, se conseguisse afastar meu desastre romântico da mente por um instante.
- Você... ia até Nyx por vontade própria? Para ter sua energia sugada, e assim eu não descobrisse que você estava mentindo? - Tawny fez que sim com a cabeça. Meu
cérebro doía. - E ele, Niphon, obrigando você e... - Parei de falar. - Niphon sabia sobre Nyx. Vocês dois sabiam. E sabiam como encontrá-la.
- Foi ele quem conseguiu trazê-la para cá quando ela escapou. Prometeu- -lhe dois súcubos - fungou Tawny. Ela me olhava confusa. - Achei... achei que você soubesse
disso tudo... Fiquei sabendo que você estava lá quando a capturaram...
Tawny parecia um pouco nervosa, como se estivesse em dúvida se não teria errado ao trair a confiança de Niphon. Quanto a mim, estava relembrando a batalha que ocorrera
em meu quarto e a oferta de Nyx para me ajudar na vingança contra aquele que a havia enviado até mim.
Niphon.
- Niphon? - perguntei. - Niphon enviou uma deusa do caos maluca atrás de mim? Por quê? Por que ele me odeia tanto?
Os olhos de Tawny ficaram arregalados, sem dúvida surpresa ao perceber minha fúria repentina. - Eu... eu não sei. Apenas disse que queria dificultar um pouco as
coisas para você. Destruir a sua vida. Talvez te mandar embora.
Lembrei o que Hugh me dissera. Tudo que sei é que, quando um demônio aparece e se preocupa tanto com alguma coisa, a evidência sugere que seja algo grande.
Meu coração disparou, e segurei a mão dela. - Tawny. Ele algum dia falou alguma coisa a respeito de meu contrato? Ou de algum contrato?
Ela balançou a cabeça freneticamente, deixando seus cachos loiros ainda mais desgrenhados do que estavam. - Não, não enquanto eu estava por perto.
- Tem certeza? Pense bem! Pense em qualquer coisa, qualquer coisa que ele possa ter dito que explique seus motivos para agir contra mim.
- Não, nada! - Ela afastou sua mão. - Desta vez, estou te dizendo a verdade. Ele simplesmente fazia parecer como se... bem, como se não gostasse de você. Queria
que você ficasse infeliz. Que sofresse. Não sei.
Niphon. Culpado de tantas coisas.
De acordo com Tawny, ele a usara para que eu parecesse uma tutora ruim (o que, de certa forma, eu era) e talvez fosse mandada embora. O demônio também conversara
com Seth sobre vender sua alma - ignorando meus avisos. Era verdade que fora Seth que decidira terminar comigo. Mas, pelo que percebi, Niphon tivera um papel fundamental
ao fazer Seth pensar em tais coisas. A distração que Nyx causara - o que aparentemente também fora culpa de Niphon - impediu que eu passasse mais tempo com Seth.
Ao perceber quão próximo estivera de vender sua alma, Seth se afastara. O medo de como isso afetaria o nosso relacionamento fora muito forte - tão forte, que ele
preferiu se afastar de mim.
- Georgina?
Tomei uma decisão. Isso não alteraria o que acontecera entre Seth e mim, mas iria me deixar melhor.
- Georgina? - repetiu Tawny, olhando-me. - Você está bem? Você não vai pedir que me mandem embora, vai? Georgina?
Levantei-me da cadeira, surpresa ao notar como meus músculos estavam retorcidos. Sem muita vontade de me arrumar, troquei, por metamorfose, meu vestido por um jeans
e um suéter decotado. Preto. Assim como meu ânimo. Olhei para Tawny.
- Quer ir a uma festa comigo?
Fomos de carro até a casa de Peter e Cody, onde ocorreria a festa “diabólica”. Mal percebi que estava chovendo novamente. Subi a escada do prédio como se estivesse
indo a meu próprio funeral, carrancuda e resoluta - e numa velocidade que obrigou Tawny a se virar para não cair de cima de seus saltos altos. Quando senti as assinaturas
imortais dentro do apartamento, um alívio de satisfação me inundou com a descoberta de que Niphon ainda estava lá.
Peter abriu a porta antes que eu terminasse de bater. Usava um suéter vermelho com um enfeite de Papai Noel. Combinava com a árvore, é lógico.
- Veja isso - falou, sarcástico. - Ela se dignou a aparecer e se juntar a nós humildemente...
Passei por ele sem falar uma palavra. Isso o deixou pasmo. Andei pela sala, de cujos ocupantes eu estava vagamente ciente. Jerome. Cody. Hugh. Mas não queria nenhum
deles.
Niphon, em pé com uma taça de vinho, olhava-me com curiosidade enquanto eu ia direto até ele. Considerando-se que eu costumava evitá-lo sempre que possível, minha
aproximação sem dúvida o surpreeendeu.
Mas não tanto como quando lhe dei um soco.
Nem precisei metamorfosear muita massa em meu punho. Eu o pegara de surpresa. A taça de vinho caiu de sua mão, batendo no chão e derramando a bebida, como se fosse
sangue. O demônio foi para trás, atingindo o bufê de Peter com um estrondo. Niphon desmoronou, com os olhos demonstrando choque. Não parei. Ajoelhada, agarrei sua
camisa estampada e puxei-o na minha direção.
- Fique fora da minha vida, caralho, ou vou te destruir - vociferei.
O terror tomou-lhe os traços. - Está maluca, porra? O que está... - De repente, o medo desapareceu. Ele começou a rir. - Foi ele, não foi? Ele terminou com você.
Não sabia se ele conseguiria fazer isso, mesmo depois do discurso sobre como seria melhor para ambos. Ah... isso é lindo. Todo o seu charme não foi suficiente para...
ahh!
Puxei-o para mais próximo de mim, enterrando minhas unhas nele, e finalmente senti alguma coisa. Fúria. A culpa de Niphon era maior do que eu imaginava. Meu rosto
estava a poucos centímetros do dele.
- Lembra quando você disse que eu não passava de uma garota do mato, de um vilarejo de pescadores fedorentos? Você estava certo. E tive de sobreviver em circunstâncias
difíceis, em situações que você nunca seria capaz de suportar. E sabe o que mais? Passei a maior parte de minha infância tirando as tripas de peixes e outros animais.
- Passei um dedo pelo pescoço dele. - Posso fazer isso com você também. Poderia cortá-lo da garganta até o estômago. Poderia arregaçá-lo, e você imploraria para
ser morto. Desejaria não ser imortal. E poderia ficar fazendo isso infinitamente.
Isso apagou o sorrisinho de escárnio do rosto de Niphon. Atrás de mim, o resto da sala acordara.
- Puta que pariu - berrou Jerome. - Tirem-na de cima dele.
Mãos fortes me puxaram: Cody e Hugh pegaram-me pelos braços. Resisti contra eles, lutando para voltar ao ataque ao encolhido Niphon. Meus amigos eram fortes demais.
Não consegui me libertar e não tinha energia suficiente para metamorfosear mais massa.
- Livre-se dele, Jerome! - gritei. - Livre-se dele, ou, juro por Deus, vou mesmo cortá-lo em dois. Ele armou para que minha tutoria a Tawny não funcionasse. Trouxe
Nyx para cá, porra! Livre-se dele!
Observei o rosto de meu chefe. Ele não gostava de pessoas gritando para ele ou dando-lhe ordens - principalmente na frente de outros. Seu rosto estava rígido e furioso.
Sabia que ele ia me dizer para calar a boca, mas algo em sua expressão suavizou-se. Ele voltou sua atenção para Niphon.
- Saia daqui - disse o diabo.
Niphon ficou olhando, boquiaberto. Parecia mesmo um peixe.
- Jerome! Você não pode simplesmente...
- Saia. Sei o que você estava tentando fazer, mas não devia ter feito isso pelas minhas costas. Volte para seu hotel, e não esteja mais nesta cidade amanhã.
Niphon ainda tentou protestar. Mas, então, olhou para Jerome, olhou para mim e voltou a olhar para Jerome. O demônio engoliu seco, conseguiu colocar-se de pé e pegou
uma pasta que estava sobre o sofá. Olhou-me mais uma vez e saiu correndo pela porta.
O olhar de Jerome voltou-se para Tawny, que estava encostada na parede, uma tentativa inútil de desaparecer.
- Não é culpa dela - falei, rapidamente. - Não a puna.
Jerome analisou-a por mais algum tempo, antes de suspirar de impaciência. - Mais tarde. Cuidarei de você mais tarde. - Não tinha certeza se isso era algo bom ou
ruim, mas o fato de ele não a ter castigado na hora era um sinal positivo. A julgar pelo olhar de gratidão em seu rosto, ela concordava.
Cody e Hugh ainda me prendiam com força, mas, depois de um tempo, me soltaram. Arqueei-me de exaustão, surpresa ao perceber que respirava com dificuldade.
A tensão dominava a sala. Por fim, Cody falou: - Onde você aprendeu esse gancho de direita?
- Era impossível sobreviver na Idade Média sem saber fazer coisas assim - brincou Peter. Ele olhou para o vinho derramado e suspirou. - Nem clube soda vai tirar
essa mancha.
- Georgie - falou Jerome, numa voz tonitruante. - Nunca mais fale comigo desse jeito.
Recuperei o fôlego e engoli toda a sede de sangue que corria dentro de mim. Encarei os olhos escuros de Jerome de modo desafiador.
- Certo - falei. E então, incapaz de lidar com os olhares de meus amigos, de espanto e preocupação, saí correndo do apartamento. Desci um lance de escadas antes
de desmoronar e sentar-me numa plataforma. Enterrei o rosto nas mãos e comecei a chorar. A dor finalmente vencera.
Alguns minutos depois, ouvi passos na escada. Hugh sentou-se ao meu lado e me abraçou. Encostei meu rosto em seu peito e continuei chorando.
- Você vai superar isso - falou, baixinho.
- Não. Nunca vou superar isso. Sou uma pessoa solitária. Queria morrer.
- Não, não queria. Você é maravilhosa e há muitas pessoas que a amam.
Ergui minha cabeça e olhei para ele. Nunca o vira tão compadecido, tão sério - com exceção daquela vez que gritara para Seth durante o pôquer. Assoei o nariz e passei
uma mão sobre meus olhos molhados.
- Nós nos separamos. É isso que você queria. Não queria que eu e Seth ficássemos juntos.
Hugh balançou a cabeça. - Eu gosto de Seth. Quero que você seja feliz. Se vocês conseguissem ficar juntos superando todas as dores de cabeça, eu daria a minha bênção.
Mas não acho que isso seja possível. É melhor assim, então.
- Você lhe disse que a única forma que eu permitiria tal separação seria se ele me magoasse, se ele fosse um idiota. Acha que é por isso que fez isso? Por isso que
dormiu com Maddie? Porque somente algo drástico nos afastaria?
Hugh pareceu surpreso quando mencionei Maddie. - Não sei, querida. Não sei o que ele estava pensando.
Suspirei e me encostei nele. - Nunca irei superar isso.
- Irá, sim.
- Vai demorar um bom tempo.
- Bem, você tem muito tempo pela frente.
Capítulo 26
éspera de ano novo.
Warren, o proprietário de Emerald City, realizara uma festa ostentosa em sua casa e convidara todos os funcionários, além de mais umas cinquenta pessoas. Sua residência
era enorme, e ele não poupou dinheiro. Garçons serviam as pessoas. Um barman fazia drinques cheio de floreios. Um DJ cuidava da música num canto. Devia ser a festa
mais bem cuidada em que estive naquele ano todo. Todos estavam se divertido.
Bem, com exceção de mim, logicamente.
Maddie e Seth estavam lá. Juntos. Era estranho vê-los como um casal tão expostos, depois de todo aquele tempo em que ele e eu ficamos escondendo nosso relacionamento.
Mas, quando retornou para Seattle, alguns dias atrás, ela não se esforçou para manter segredo. Todos na loja, em questão de 24 horas, já sabiam, e foi motivo de
muita boataria e especulação. O consenso geral era que formavam um casal bonito.
E, ao vê-los, acho que, se não estivesse tão intimamente envolvida, eu também os consideraria um casal bonito. Mas eles me deixavam com vontade de vomitar o caviar
que eu acabara de comer. Ficaram juntos, conversando com outros funcionários, de mãos dadas. Maddie brilhava como um súcubo, falando animadamente com Beth sobre
alguma coisa. Seth, enfim bem-vestido e lindo, escutava com um pequeno sorriso no rosto - mas havia algo de formal em seus olhos. Ele parecia desconfortável, e eu
tinha uma forte desconfiança de que fora forçado a ir até lá por Maddie. Não acho que ele seria do tipo que viria para esfregar seu relacionamento na minha cara,
mas, por outro lado, também nunca achei que ele fosse terminar comigo.
De repente, ergueu a cabeça para observar a sala e me encarou. Não sabia dizer se fora por acidente ou propositalmente. Ficamos nos olhando por algum tempo. Sua
expressão demonstrava incômodo, melancolia. Não sabia como estava meu rosto. Um instante depois, ele voltou sua atenção para os outros. Mas o sorrisinho havia sumido.
- Dá vontade de ir escovar os dentes, não?
Doug aproximou-se, tendo nas mãos o que eu imaginava ser sua quinta Cuba Libre. Apontei para a bebida.
- O quê? Todo esse açúcar que você está bebendo?
Ele sorriu. - Estou falando de minha irmã e Mortensen, não se faça de desentendida.
Olhei mais uma vez para eles, mas depois virei-me para Doug. - Todo mundo acha que formam um casal bonito.
- Acho que sim. Não consigo definir o que sinto. - Ele virou sua bebida. - Quero dizer, ele está dormindo com a minha irmã, certo? Eu deveria ficar, tipo, ofendido
ou ter vontade de defender sua honra. Ou algo assim. Mas, por outro lado, fico pensando que é possível que se deem tão bem que ela acabe indo morar com ele. E isso
meio que me deixa... feliz.
Argh. Já era ruim o suficiente o fato de estarem namorando. Morando juntos? Nem conseguia pensar nessa possibilidade. Estavam juntos há apenas uma semana. Contei,
silenciosamente, até cinco e tentei não dizer nada de que depois me arrependesse.
- Quem sabe? - murmurei, vagamente.
Doug inclinou a cabeça enquanto me observava. - Sempre imaginei que você é quem dava em cima dele, devido a sua adoração por heróis e pelas histórias eróticas que
te envolviam. - Referia-se a um conto de Seth que aparecera numa revista não muito tempo atrás. A heroína pervertida possuía uma misteriosa - e totalmente coincidente
- semelhança comigo.
Podia dizer, pelo seu olhar e voz, que Doug estava brincando. Ele nunca imaginou que houvesse algo entre Seth e mim. Também não perceberia que chegara muito próximo
da realidade com aquela brincadeira.
- Bem - disse-lhe. - Parece que é sua irmã quem estará presente nas histórias eróticas agora.
Doug ficou branco. - Oh, meu Deus. Nunca pensei nisso. - Olhou para seu copo vazio. - Preciso pegar mais um.
Fiquei olhando para ele e senti um sorriso puxando meus lábios, apesar de minha resolução de parecer triste.
E estava definitivamente me saindo bem nisso. Não me aproximei de ninguém na festa, e troquei apenas algumas poucas palavras com aqueles que tentaram conversar comigo.
Tinha recusado o convite de vários homens que tentaram me levar uma bebida ou dançar comigo. Queria ficar sozinha. Na verdade, não deveria ter ido.
- Nunca imaginei vê-la sozinha num evento como este.
Sentira sua presença atrás de mim antes de escutá-la.
- Carter, bicão de festas. Sei que não foi convidado.
- Ei, ouvi falar que aqui havia uma festa imperdível.
- Penetrar não é um dos sete peca... puta merda.
O anjo viera para a minha frente. Seu cabelo loiro, na altura do queixo, fora lavado e penteado, e usava uma calça cáqui e uma polo azul. O conjunto era totalmente
casual e também nunca o vira mais bem-arrumado.
Ele sorriu, sabendo que eu ficara surpresa. - Não podia aparecer como de costume. Ainda estou malvestido, quando comparado a você. - Eu estava com um vestido colado
de cetim, com um colarinho que subia até meu pescoço. Preto. Assim como meu humor.
- Sim - falei -, mas, se estivéssemos usando como base de comparação a roupa que costumamos usar, você seria a pessoa mais bem vestida da festa.
- É uma festa legal - falou, observando a sala. Estava com uma bebida na mão, e eu juraria que ela tinha aparecido em questão de segundos. - Você não parece estar
se divertindo muito...
Ainda não estava pronta para conversar sobre isso, não com ele. Esquivei o olhar, sem prestar muita atenção, para onde Doug flertava com uma mulher por volta de
vinte anos mais velha do que ele. A música que o DJ escolhera para aquele momento havia acabado, e surgiram as notas de guitarra de uma nova. “Sweet Home Alabama”.
- Ah, porra - falei.
- Que foi? - perguntou Carter.
- Odeio essa música.
- É mesmo? Sempre gostei dela.
Suspirei. - O que aconteceu com Yasmine?
Seu humor zombeteiro sumiu. - Você sabe o que aconteceu com ela. Agora ela pertence ao inferno. Tenho certeza de que saberão aproveitá-la.
- Mas ela aceitará? - perguntei. - Será que ela realmente se voltará contra o céu?
- Sempre aceitam. - Era exatamente o que Vincent dissera. - Depois que passar algum tempo sendo evitada por outros anjos e não puder ver o rosto do divino... bem,
ela terá vontade de lutar contra o céu.
- Isso é estupidez. É como se ela... sei lá. Como se ela estivesse sendo forçada a ser má.
- Ela escolheu cair.
- Fez isso por amor! Você não se cansa de me dizer que o amor é a coisa mais maravilhosa do universo.
- E é mesmo. Mas o amor de um anjo deve ser oferecido, primeiro, às forças superiores e, então, para a humanidade como um todo. Não pode ser concedido para apenas
uma única pessoa - humano ou nefilim.
- Que besteira. Acho que o nefilim estava certo quando comentou que todos estamos ferrados. - Entreguei minha taça para uma garçonete que passava. Estava vazio fazia
algum tempo já. Hesitando um pouco, comentei sobre uma coisa que ainda estava me incomodando, algo que aquela canção não me permitia esquecer. - Carter... e Nyx?
As visões dela... são sempre verdadeiras?
- Pelo que sei, sim. Apenas não ocorrem sempre como as pessoas imaginam. Por que pergunta?
- Por nada. Bem, quero dizer, fiquei curiosa pelo que ela me mostrou.
- Ah. Sim, é complicado. - Fez uma careta. - Como ela estava, na verdade, te manipulando, é difícil dizer... não sei tudo sobre ela. O que ela te mostrou?
- Não é import...
A música parou de repente, e no outro lado da sala escutei alguém gritando números. - Dez... nove...
Olhei para um relógio. Quase meia-noite.
- Oito... sete...
Pessoas pegavam aparelhos para fazer barulho e bebidas. Casais se aproximavam.
- Seis... cinco...
Maddie aproximou-se de Seth. Ele se inclinou em sua direção, parecendo nervoso.
- Quatro... três...
Agarrei-me ao braço de Carter. Não podia assistir àquilo. Não podia assistir a um beijo de Seth e Maddie. - Tire-me daqui - implorei, de repente com dificuldades
para respirar.
- Dois...
- Carter! Tire-me...
O mundo explodiu em cores ao meu redor. O ar gelado da noite detonou meu rosto. Desorientada, cambaleei e senti Carter me segurar pelo braço. Estávamos no topo de
um telhado, bem de frente para Space Needle. Rojões estouravam chuvas de faíscas de arco-íris. O ruído me assustou, e fiquei com medo. No horizonte, outros fogos
brilhavam.
- A melhor vista da cidade - brincou Carter.
Fiquei olhando de um lado para o outro, ainda confusa, até que finalmente consegui triangular nossa posição. - Estamos no topo da livraria.
Ele soltou meu braço, e ficamos ali, assistindo ao foguetório por um bom tempo. Estávamos tão perto do Space Needle que logo foi possível sentir o cheiro da fumaça
que o vento trazia até nós. Comecei a esfregar os braços, mas logo me lembrei de metamorfosear um casaco.
- Um novo ano sempre representa possibilidades, Georgina - disse, enfim, Carter, com os olhos ainda vidrados no espetáculo.
- Para mim, não. Perdi todas as esperanças. Perdi Seth. Estraguei tudo.
- Não é sua culpa. Relacionamentos são simbióticos. São necessárias duas pessoas para dar certo, e duas pessoas para não dar certo. Seth tem muita culpa nisso.
Balancei a cabeça. - Não... as coisas que ele fez. Foi minha culpa.
- Você não está tendo uma visão das coisas, Filha de Lilith. Está se esquecendo de Niphon. O que ele tentava fazer?
- Arruinar minha vida - falei, amarga. - Ele teve participação, sim, mas apenas complicou o que eu já tinha estragado.
- Por quê? Por que ele faria isso?
- Porque me odeia.
Carter suspirou. - Você não está entendendo.
Virei-me para ele. - Como assim? Que mais preciso entender?
- Só posso te dizer isso. Só posso interferir até aí. - Ele ficou em silêncio quando um estouro de faíscas prateadas deslumbrantes iluminou o céu noturno.
Recordei a conversa, na deli, com Hugh. - Ele... ele realmente errou alguma coisa em meu contrato? Seria um contrato inválido?
- Isso não tem nada a ver comigo. Não posso falar nada a respeito disso. - Ele suspirou novamente. - Posso te dizer que a eternidade é um tempo bastante longo para
continuar acumulando culpa e levando-a para todo canto.
- Por que se preocupa tanto com isso? - inquiri. - Por que se preocupa tanto com o que acontece entre mim e Seth?
Ele olhou-me de novo. - Gosto de finais felizes. Gosto de dar uma mão para que aconteçam.
- Sim, bem... Mas nesse você meio que ferrou tudo.
Seu velho sorriso cínico retornou. - Quer ir para casa?
Voltei-me na direção do Space Needle. - Quero terminar de ver o espetáculo.
- Está bem.
- Ah, ei. Espere. - Coloquei a mão na bolsa e retirei um chapéu de tricô. Entreguei-o a ele. - Feliz Natal. Desculpe-me por não ter embrulhado.
Carter examinou seu presente de amigo-secreto e, então, o colocou. - Legal.
Quando ele, enfim, me levou para casa, usou o mesmo teletransporte angelical que sempre me deixava um pouco enjoada. Aubrey recebeu-me na entrada, esfregando-se
em minhas pernas enquanto eu buscava os interruptores. No andar de baixo, parecia que meus vizinhos estavam dando uma festa.
Tirei os sapatos no meio da sala e fui até meu quarto, desabotoando o vestido enquanto andava. Deixei-o cair no chão, feliz por ficar livre do tecido justo. Abri
a porta do armário, ajoelhei-me e comecei a vasculhar até desenterrar a velha caixa de sapatos.
Levei a mão até um ponto pouco acima do esterno e encontrei o anel de Seth na correntinha. Desamarrei e segurei o anel por um bom tempo, observando sua superfície
delicada, brilhante, e as safiras cintilantes. Tirei o velho anel da caixa e coloquei-o na outra mão. Fiquei um bom tempo ali, sentada, olhando de um anel para o
outro. Eram diferentes... e, mesmo assim, tão parecidos. Seu destino é ter dores de cabeça. E isso vai se repetir para sempre. Não vai aprender nada. Não vai mudar
nada.
Com um suspiro, coloquei os dois anéis na caixa, ao lado de uma pesada cruz dourada. Fechei a tampa e enfiei-a de volta no armário.
Acabara. Acabara tudo.
Ainda seminua, fui até onde jogara minha bolsa e peguei meu celular. Disquei um número e aguardei.
- Alô?
- Dante? É Georgina.
- Quem?
Surpresa, dei-me conta de que nunca lhe havia contado meu nome. - O súcubo.
- Ah. - Tive a sensação de que ele reconhecera minha voz. - Feliz Ano Novo.
Respirei fundo. - Está livre hoje?
Houve uma pausa comprida, prolífica. - E o homem do sonho? - por fim perguntou.
- Não há homem do sonho.

 

 

                                                   Richelle Mead         

 

 

 

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