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Maria Alexandrovna Moskalev é a senhora mais importante de Mordasov. Esta afirmação não admite discussões. Conduz-se com inteira independência, como se todo o mundo lhe obedecesse. É verdade que quase ninguém gosta dela e que muitos a odeiam sinceramente, mas não é menos certo que todos a temem e é isto o que ela deseja, revelando com isso os seus altos dotes diplomáticos. Só assim se compreende que, perante o seu majestoso porte, a ninguém ocorra considerá-la a maior mexeriqueira do mundo, ou pelo menos de Mordasov, uma mulher que morre por intrigas e que não pode dormir tranquila no dia em que se deita sem saber qualquer novidade.
Dir-se-ia, pelo contrário, que toda a mexeriquice cessa na sua presença, que as mulheres mais desbocadas coram e tremem, como colegiais apanhadas em travessura flagrante pelo professor, e desviam a conversa para assuntos mais elevados. Sabe coisas tão graves e escandalosas de alguns vizinhos que, se algum dia se decidisse a contá-las, a torná-las públicas, como só ela o sabe fazer, produziriam em Mordasov um terramoto como o de Lisboa; mas mantém-se sempre muito reservada sobre tais segredos e só em casos extremos os confia às suas mais íntimas amigas. Habitualmente, contenta-se com amedrontar as pessoas, aludindo ao que sabe, e prefere conservar um homem ou uma mulher em contínua ansiedade a aniquilá-los com um golpe decisivo.
Aquilo é que é inteligência e diplomacia! Maria Alexandrovna distinguiu-se sempre entre nós pelo seu inatacável comme il faut, que todos procurávamos imitar. Nesse particular não tem rival em Mordasov. Pode, por exemplo, matar, destroçar, aniquilar um adversário com uma só palavra, façanha de que todos temos sido testemunhas, e, no entanto, dir-se-ia que a pronunciou sem dar conta disso. Como é sabido, esta habilidade é um elemento característico da mais alta fidalguia.
As suas relações são inumeráveis. Muitos personagens que visitaram Mordasov e gozaram as delícias da sua hospitalidade continuam a corresponder-se com ela. Houve até quem lhe fizesse versos que Maria Alexandrovna nos recitava com orgulho. Um literato dedicou-lhe uma novela que lhe ia lendo durante os serões, o que produziu uma impressão enternecedora. Um sábio alemão, que veio de Karlsruhe com o fim exclusivo de estudar uma espécie rara de vermes cornúpetos que vivem na nossa terra e sobre os quais escreveu quatro volumes in-quarto, ficou tão encantado com a amável hospitalidade de Maria Alexandrovna que ainda hoje mantém com ela correspondência num tom elevada mente moral e respeitoso.
Chegou até a comparar-se, sob um certo aspeto, Maria Alexandrovna com Napoleão. Claro que se trata de uma brincadeira dos seus inimigos, posta a correr mais por sarcasmo do que por amor à verdade. Admitindo a inexatidão da comparação, quero permitir-me uma pergunta ingénua: por que é que Napoleão sentiu vertigens quando atingiu o ponto mais alto da sua carreira? Os partidários da antiga dinastia costumam atribuir isso ao facto de Napoleão não ser de sangue real nem sequer de elevada nobreza. Daí — diziam eles — o ter-se alarmado ao ver-se em posição tão elevada. Apesar de tão engenhosa explicação, digna da época em que a corte de França brilhava em lodo o seu esplendor, aventuro-me a acrescentar por conta própria: por que é que Maria Alexandrovna não perdeu a cabeça em nenhuma circunstância e continuou a ser sempre a dama mais importante de Mordasov? Houve ocasiões em que dizíamos a nós próprios: «Vamos a ver o que faz Maria Alexandrovna em tão difíceis circunstâncias». Mas, quando a situação complicada aparecia, era vencida e superada sem que nada se desse; tudo continuava na mesma ou melhor do que antes. Toda a gente se recorda como seu marido, Afanasy Matveich, perdeu o seu lugar por causa da sua inépcia e imbecilidade, o que provocou as iras de um inspetor da capital, e todos esperavam que sua mulher se mostraria abatida, humilhada, suplicante; mas, longe disso e compreendendo que nada conseguiria com súplicas, manteve a sua altivez tão sabiamente que aquele episódio em nada diminuiu o seu prestígio social, e a sua casa continuou a ser a mais importante de Mordasov. Ana Nicolaevna Antipov, mulher do delegado e sua inimiga declarada, apesar da sua aparente amizade, já cantava vitória; mas, quando vimos que não era fácil confundir Maria Alexandrovna, verificámos que eram muito mais profundas do que supúnhamos as raízes da sua dignidade e supremacia.
Digamos de passagem, já que nos referimos a ele, quatro palavras sobre seu marido, Afanasy Matveich. É um homem de maneiras irrepreensíveis e de bons princípios; mas, em casos difíceis, desconcerta-se facilmente como um cordeiro diante da porta de um redil que nunca viu. Tem um porte majestoso, sobretudo quando põe a sua gravata branca nos jantares de cerimónia; mas todo o seu ar de dignidade e a sua compostura se desvanecem quando começa a falar. Então não há como a gente tapar os ouvidos com algodão. Realmente não é digno de Maria Alexandrovna e, segundo a opinião geral, conserva a sua posição graças aos raros méritos da mulher que, em minha opinião, já o devia ter posto como espantalho numa horta. Ali, e só ali, poderia ser de alguma utilidade para os camponeses. Maria Alexandrovna procedeu admiravelmente em mandá-lo para a aldeia de cento e vinte servos, que possuíam a duas milhas e meia da cidade, e que era o único património, a única fortuna com que ela mantinha o esplendor da sua casa. Todos compreenderam que tinha suportado o marido em atenção ao seu cargo e ao ordenado que recebia do governo... além de outros emolumentos. Agora que já não ganhava nem sabia angariar outros lucros, desfazia-se dele, afastando-o e arrumando-o como um traste inútil. Toda a gente louvava a clara inteligência e o temperamento decisivo de tal dama.
Afanasy Matveich vivia na abundância. Fui vê-lo ao campo e passei com ele uma hora deliciosa. Prova constantemente as suas gravatas brancas, engraxa as botas ele próprio, não por necessidade mas por amor à arte e por gostar de as ver luzidias, toma chá três vezes por dia, adora os banhos e está encantado com a vida.
Recordam-se do formidável escândalo que se armou em redor de Zinaida Afanasyevna, filha única de Maria Alexandrovna e de Afanasy Matveich? Zinaida é de uma formosura indiscutível e de esmerada educação, embora tenha chegado solteira aos vinte e três anos. Entre as razões aduzidas para explicar este facto, avulta poderosamente o vago rumor sobre certas relações misteriosas que manteve há cerca de ano e meio com um pobre mestre de escola — rumor que ainda corre. Fala-se também de uma carta amorosa, escrita por Zina, que andou de mão em mão; mas eu gostava de saber quem viu essa carta. Se andou de mão em mão, onde é que para? Todos ouviram falar dela mas ninguém a viu. Pelo menos, nunca encontrei ninguém que a tivesse visto com os seus próprios olhos. Se se faz alguma alusão a essa carta na presença de Maria Alexandrovna, ela não se dá por achada. Mas suponhamos que tenha havido alguma coisa, que Zina escreveu a carta amorosa, como eu próprio admito que o tenha feito. Como se destaca em tudo isso o talento de Maria Alexandrovna! Com que destreza se conduziu ela neste assunto escandaloso, para afastar o perigo e vencê-lo! Sem deixar vestígios, nem o menor indício! Maria Alexandrovna finge ignorar essa baixa calúnia e, não obstante, só Deus sabe quanto lhe custou a salvar a honra da filha da mais leve beliscadura. Quanto ao facto de Zina não se ter casado, é perfeitamente natural: não há para ela um partido decente. Zina só pode contrair matrimónio com um príncipe reinante. Já viram, por acaso, mais bela mulher? É certo que é demasiado orgulhosa. Diz-se que Mozglyakov pediu a sua mão, mas é muito pouco provável que chegue a obtê-la. Quem é Mozglyakov? É jovem, na verdade, bem parecido, elegante, proprietário de cento e cinquenta servos, não tem nada hipotecado e foi educado em S. Petersburgo. Mas, como sabem, não tem a cabeça muito no seu lugar; é atordoado, fala pelos cotovelos e mostra simpatia pelas ideias avançadas. Agora digam-me o que vale uma fortuna de cento e cinquenta almas, especialmente quando se tem ideias avançadas. O casamento não se realizará.
***
Tudo o que o amável leitor acaba de ler escrevi-o há cinco meses, unicamente por capricho, ainda que — apresso-me a confessá-lo, — levado por uma certa admiração por Maria Alexandrovna, desejasse fazer o elogio de tão magnífica dama, em forma de carta a um amigo, no estilo das que são publicadas pelo Northern Bell e outras revistas dessa idade de ouro que, graças a Deus, não voltará. Mas, como não tenho quem me apadrinhe, e me domina, em assuntos literários, uma timidez inata, deixei o escrito numa gaveta da minha mesa, como primeira tentativa literária e agradável recordação de horas de ócio e bem-estar.
Tinham-se passado cinco meses quando, repentinamente, se deu em Mordasov um acontecimento extraordinário. Um dia, de manhã cedo, chegou o Príncipe K. e hospedou-se em casa de Maria Alexandrovna. As consequências desta visita iam ser incalculáveis. Só três dias permaneceu o Príncipe em Mordasov, mas esses três dias deixaram graves e indeléveis recordações. Direi mais: o Príncipe produziu na nossa cidade uma revolução, ou pouco menos, e o relato desta revolução constitui um dos mais interessantes capítulos dos anais de Mordasov. São essas páginas que, depois de grandes hesitações, me decidi a juntar, dando-lhes forma literária para as submeter ao julgamento do respeitável público. Conterão a completa e maravilhosa história da exaltação, glória e decadência de Maria Alexandrovna e de sua família — digno e sedutor assunto para um escritor. Mas, para descrever a maneira admirável como o Príncipe K. chegou à nossa cidade e se hospedou em casa de Maria Alexandrovna, vejo-me obrigado, antes, a dizer algumas palavras a respeito do próprio Príncipe. Além disso a biografia deste personagem é absolutamente indispensável para o lógico desenvolvimento da nossa história. Começo, portanto, por aí.
CAPÍTULO II
Tenho que dizer antes de mais nada que o Príncipe K. não era extraordinariamente velho, mas estava tão decrépito, tão gasto, que, ao vê-lo, pensar-se-ia que cairia aos pedaços quando menos se esperasse. Em Mordasov corriam de boca em boca as coisas mais fantásticas acerca do Príncipe, chegando a dizer-se que não tinha o juízo todo. Ninguém compreendia que o dono de uma propriedade com quatro mil servos, membro de uma família distinta, que podia ter, se quisesse, grande influência na província, vivesse retirado nas suas propriedades como um ermitão. Muitos que conheciam o Príncipe, quando esteve em Mordasov, há seis ou sete anos, asseguravam que não podia estar sozinho um momento, nem se parecia, em nada, com um eremita.
Eis os dados que consegui obter de pessoas autorizadas:
Na sua juventude, já longínqua, o Príncipe teve na sociedade um acolhimento brilhante, divertiu-se muito, namoriscou, viajou pelo estrangeiro, cantou romanças, contou anedotas e nunca se distinguiu pelos dotes brilhantes da inteligência. Não é preciso dizer, portanto, que dissipou toda a sua fortuna e foi surpreendido pela velhice sem um chavo. Alguém o aconselhou então a visitar a sua propriedade, que tinha começado a vender em hasta pública. Fez a viagem e chegou a Mordasov, onde passou seis meses. A vida de província agradou-lhe muito, e nesses seis meses gastou o que lhe restava até ao último centavo, empregando o tempo a jogar e em intrigas com as damas da província. Era, além disso, de um feitio excelente, não isento de certo ar principesco, o que em Mordasov se considerava o sinal da mais alta aristocracia, e de que todos gostavam em vez de se molestarem. As senhoras, sobretudo, não saíam do êxtase que lhes provocava um hóspede tão encantador.
A esse respeito conservam-se em Mordasov curiosas recordações. Dizia-se, entre outras coisas, que passava a maior parte do dia em frente do toucador e que o seu corpo se compunha de várias peças, ou pelo menos assim parecia, e ninguém percebia como ele tinha chegado àquela ruína física.
Usava cabeleira, bigode, suíças e pera, tudo postiço, até ao último pelo, e de um negro magnífico. Pintava-se e punha pó de arroz todos os dias. Dizia-se também que escondia as rugas da cara, por meio de pequenas molas, escondidas com uma arte especial debaixo dos pelos. Assegurava-se além disso que usava espartilho, por ter perdido uma costela ao saltar, com pouca destreza, de uma janela, numa das aventuras amorosas que tivera em Itália. Coxeava da perna esquerda e havia quem afirmasse que essa perna era postiça, uma perna de cortiça de modelo especial, que substituía uma que partiu em Paris, numa aventura do mesmo género. Mas o que é que o mundo não é capaz de dizer? O certo é que o seu olho direito era de vidro, embora maravilhosamente imitado, usava dentadura postiça e passava o dia a lavar-se com águas medicinais, perfumando-se e pondo pomadas.
É preciso prevenir que, nessa altura, o Príncipe começou a enfraquecer a olhos vistos e se tornou insuportavelmente loquaz. Parecia ter chegado ao fim da sua carreira. Toda a gente o sabia arruinado. De súbito, inesperadamente, um dos seus mais próximos parentes, uma velha que passara muitos anos em Paris e de quem ele não esperava nada, morreu um mês após o falecimento do seu único herdeiro. O Príncipe encontrou-se, inesperadamente, na posse de uma grande fortuna, herdando uma propriedade magnífica de quatro mil servos, a quarenta milhas de Mordasov. Imediatamente se dirigiu a S. Petersburgo para arrumar os seus assuntos.
As senhoras ofereceram-lhe, por subscrição, um banquete de despedida, no qual o Príncipe se mostrou jovial e sedutor como nunca, fazendo rir toda a gente com os seus ditos de espírito e anedotas extraordinárias, prometendo voltar, logo que pudesse, a Dukanovo — a sua nova propriedade — e dar no seu regresso uma série interminável de festas, jantares, bailes e fogos de artifício.
Durante um ano inteiro, falaram as damas destas promessas, esperando impacientemente o velho e encantador amigo. E, para enganar a sua expectativa, organizaram excursões a Dukanovo, onde puderam admirar uma casa solarenga antiquíssima, um jardim com acácias cuja folhagem imitava leões, colinas artificiais, lagos por onde deslizavam barquinhos com estátuas na proa, a imitar turcos tocando flautas, caramanchões, pavilhões, canteiros e outras maravilhas.
Por fim, o Príncipe voltou; mas, com geral assombro e desencanto, passou sem parar em Mordasov e encerrou-se em Dukanovo para viver como um ermitão. Começaram a circular estranhos rumores e, a partir dessa altura, a história do Príncipe torna-se obscura e fantástica. Afirmou-se desde o primeiro momento que não tinha tido muita sorte em S. Petersburgo e que alguns parentes e herdeiros tentaram obter vantagens da sua fraqueza mental, constituindo-lhe um curador, receosos de que dissipasse outra vez os seus bens. Mais ainda: afirmavam alguns que tinham querido interná-lo numa casa de loucos; mas que um dos seus parentes, homem de grande influência, o tinha defendido, demonstrando com toda a clareza que o pobre Príncipe, meio morto e já reduzido a um manequim, depressa morreria, e assim herdariam sem necessidade do manicómio. Mas o que é que as pessoas não são capazes de dizer e, sobretudo, as de Mordasov?
Tudo isto, afirmava-se, aterrorizou o Príncipe enormemente, ao ponto de lhe mudar o caráter e convertê-lo num ermitão. Algumas pessoas da classe média foram visitá-lo por curiosidade, mas não as recebeu ou ficaram surpreendidas com o seu acolhimento. Nem sequer reconheceu os seus velhos amigos e estes asseguravam que não quis reconhecê-los. O governador, que também lhe fez uma visita, voltou dizendo que o Príncipe estava louco, e desde então punha-se de mau humor quando alguém aludia à sua visita a Dukanovo. As senhoras ferviam de indignação.
Por fim, descobriu-se uma coisa muito interessante. O Príncipe estava inteiramente dominado por uma mulher chamada Stepanida Matveyevna, de quem ninguém sabia outra coisa senão que chegou com ele de Petersburgo, que era gorda e velha, sempre vestida de percal e com as chaves na mão; que o Príncipe lhe obedecia em tudo como um menino e não se atrevia a dar um passo sem sua licença; que o lavava com as suas próprias mãos, o desnudava, o amimava e o consolava como a uma criança e que afastava dele as visitas, especialmente as dos parentes que se arriscavam a ir até Dukanovo, para ver como iam as coisas. Em Mordasov discutiu-se longamente acerca destas incompreensíveis relações, principalmente entre as senhoras. Acrescentava-se que Stepanida Matveyevna manejava com inteira liberdade toda a fortuna do Príncipe; substituía os mordomos, os administradores e os criados, e recebia as rendas; mas sabia administrar tão bem que era abençoada pelos camponeses.
Quanto ao Príncipe, parece que passa lodo o dia no seu toucador provando cabeleiras e trajes, e, quando não faz isto, entretém-se com a governanta a jogar às cartas. Só raras vezes dá um passeio a cavalo numa égua inglesa muito mansa, seguido sempre por Stepanida em carro fechado, receosa de um desastre, visto que o Príncipe monta a cavalo apenas por vaidade e mal se sustém no selim. Às vezes sai a pé, de capa e chapéu de palha, protegendo o pescoço com uma manta, de monóculo e com uma cestinha para apanhar cardos, cogumelos e flores silvestres. Stepanida Matveyevna acompanha-o sempre, seguida por dois robustos lacaios, e de carro para o que der e vier. Quando se encontra com um camponês, que se afasta para o lado, se descobre e o saúda com o tradicional: «Bons dias, Príncipe, sua excelência o nosso sol», o Príncipe volve para ele o monóculo, faz uma graciosa inclinação de cabeça e responde afavelmente:
— Bonjour, mon ami, bonjour!
Tudo isto se dizia em Mordasov, que não esquecia o Príncipe. E como era possível, estando ele tão perto? Mas qual não seria o assombro geral quando, um belo dia, rebentou a notícia de que o Príncipe, aquele original ermitão, tinha chegado a Mordasov em pessoa e se hospedara em casa de Maria Alexandrovna! Tudo era alvoroço e agitação! Todos davam mil explicações e perguntavam o que significava aquilo. Alguns preparavam-se para visitar Maria Alexandrovna. A chegada do Príncipe surpreendera toda a gente como um fenómeno maravilhoso. As senhoras escreviam-se, visitavam-se e enviavam as criadas aos maridos em busca de notícias. Não podiam conformar-se com a ideia do Príncipe se ter alojado precisamente em casa de Maria Alexandrovna. Aquilo era surpreendente e inexplicável. Ana Nikolaevna mostrava-se mais ressentida que todas, porque o Príncipe era seu parente afastado. Para sair desta confusão geral, é necessário que visitemos Maria Alexandrovna, para cuja casa convidamos cordialmente o amável leitor. Não são com certeza mais que dez da manhã, mas não creio que se negue a receber um amigo íntimo. A nós, pelo menos, não nos fechará a porta.
CAPÍTULO III
Dez da manhã. Encontramo-nos em casa de Maria Alexandrovna, na rua principal da cidade, e no próprio aposento a que a dona da casa chama o salão, nas ocasiões solenes, para o distinguir da saleta familiar onde habitualmente passa o tempo. O salão está soalhado com engenhosa arte e as paredes cobertas com papel do melhor gosto. Nos móveis, mais ou menos toscos, predomina o vermelho berrante. Há uma chaminé que sustém um grande espelho em que se reflete um relógio de bronze com um detestável Cupido. Entre as janelas, outros dois espelhos sem molduras e em frente deles mais dois relógios. Quase num canto, encostado à parede, brilha um piano que foi preciso comprar para Zina, porque Zina é amante de música. Junto da chaminé acesa, uma mesita rodeada por cadeiras dispostas ao acaso. No canto oposto ao do piano, ferve um samovar de prata sobre uma mesa com uma toalha de imaculada brancura, onde luz um bonito serviço de chá — que está ao cuidado de Nastasya Petrovna Zyablov, uma senhora que vive com Maria Alexandrovna na qualidade de parenta afastada.
Duas palavras a respeito desta mulher. É viúva, de trinta anos, morena, fresca, com uns olhos negros e um olhar muito vivo, toda ela de agradável aspeto. É muito dada ao riso, divertida e dissimulada, além disso amiga de mexeriquices e com certa disposição para fazer pequenos negócios. Tem dois filhos em não sei que colégio e faz uma vida muito independente. No entanto gostaria de tornar a casar-se. O marido dela era oficial do exército.
Maria Alexandrovna está nas suas sete quintas, sentada junto do lume, com o seu vestido azul celeste, que a favorece tanto, radiante de prazer com a chegada do Príncipe, que neste momento se encontra no andar de cima a cuidar da sua pessoa. É tal a sua alegria que nem sequer pensa na necessidade de dissimulá-la.
De pé, em frente dela, está um rapaz que conta qualquer coisa calorosamente; na expressão do seu rosto vê-se a satisfação de se sentir escutado com agrado. Tem vinte e cinco anos e as suas maneiras seriam corretas, sem os frequentes arrebatamentos a que se deixa levar e se não pretendesse ser gracioso e interessante. Veste com elegância e cuidado e é quase bonito. Já tínhamos falado dele: é o Sr. Mozglyakov, de quem se esperam grandes coisas. Maria Alexandrovna, no seu foro íntimo, considera-o um cabeça de vento mas dispensa-lhe um cordialíssimo acolhimento. É um pretendente à mão de sua filha Zina, de quem o jovem se confessa loucamente enamorado. Volta-se, a cada momento, para ela, tentando arrancar-lhe um sorriso com as suas graçolas e ditos de espírito, mas Zina conserva-se a distância, fria e indiferente, folheando um almanaque, junto do piano.
Zina é uma dessas mulheres que, ao aparecer numa sala, provocam um sentimento geral de admiração. É uma beleza prodigiosa: alta, morena, com olhos quase negros de feiticeira, feições encantadoras e porte esbelto e airoso. Os ombros e os braços são os de uma estátua antiga e os pés fascinam com o seu andar de rainha. Hoje está bastante pálida, mas os seus lábios vermelhos, esquisitamente cinzelados, entre os quais brilha o fio de pérolas dos seus dentes regulares e miudinhos, tirar-vos-iam o sono durante três dias seguidos se os fitásseis uma vez.
O Sr. Mozglyakov parece que teme o seu olhar penetrante, pois mostra um embaraçado retraimento quando se volta para ela, que o fita com altiva indiferença. Traz um vestido simples de musselina branca, que lhe cai com muita graça, o que lhe acontece com todos os vestidos. Na mão usa um anel de cabelos entrançados, que pela cor não são de sua mãe. Mozglyakov nunca se atreveu a perguntar-lhe de quem são. Esta manhã, Zina está melancólica e taciturna como se alguma coisa a preocupasse; sua mãe, ao contrário, parece decidida a não se calar nunca, embora dirija de vez em quando um olhar de receio, que procura dissimular, a sua filha, como se ela também temesse a rapariga.
— Estou tão contente, tão contente, Pavel Alexandrovich, que de boa vontade me poria a gritar a minha alegria, da janela, a quem passa na rua! Não falo da deliciosa surpresa que o senhor nos deu, a Zina e a mim, chegando quinze dias antes da data que tinha anunciado; isso já se sabe! O que me enche de regozijo é que nos tenha trazido o Príncipe. Se soubesse como adoro esse velhito sedutor! Mas não, não; o senhor não pode compreender! Vocês, os jovens, são incapazes de compreender o meu entusiasmo, por mais explicações que lhes dê! O senhor não sabe o que ele foi para mim, noutros tempos, há seis anos... Recordas-te, Zina? Desculpa, esquecia que estavas em casa de tua tia! O senhor não acreditará, Pavel Alexandrovich, mas eu fui o seu guia, a sua irmã, a sua mãe! Obedecia-me como um menino! A nossa amizade era ingénua, terna, nobre e digna! Realmente não sei como defini-la! Por isso, por gratidão, só pensou na minha casa ce pauvre prince! Sabe, Pavel Alexandrovich, que talvez o tenha salvado, trazendo-o? Durante os últimos seis anos tenho estado em constante angústia, pensando nele. Quer crer que não me deixava dormir? Dizem que essa harpia o embruxou, arruinando-o; mas por fim o senhor conseguiu arrancá-lo das garras dela. Sim; havemos de aproveitar a ocasião para o salvar completamente. Mas conte-me outra vez como se arranjou o senhor, para o conseguir. Descreva-me o seu encontro tão minuciosamente quanto possa. Há pouco estava tão excitada que só tomei atenção ao principal; mas o que dá, por assim dizer, sabor às coisas são os pormenores. A mim encantam-me sempre, por insignificantes que pareçam, e às vezes o que primeiro me chama a atenção são as coisas mais diminutas... e enquanto ele se está preparando...
— Mas se já lhe contei tudo, Maria Alexandrovna — apressou-se a responder o jovem, pronto a contar, complacentemente, o sucedido pela décima vez. — Tinha viajado durante toda a noite sem dormir. A senhora pode imaginar a pressa que eu tinha — acrescentou voltando-se para Zina. — Tive que gritar, praguejar, fazer barulho para arranjar cavalos; nas mudas armava escândalo e discutia com os estalajadeiros. Se o escrevesse dava uma novela do género picaresco. Mas não vem ao caso. Adiante! Às seis da manhã cheguei à última paragem: Ygiskevo. Estava gelado mas não desejava aquecer-me, e pus-me a gritar pedindo cavalos. A mulher do cocheiro, que dava o peito a uma criança, até se assustou e creio que lhe deve ter secado o leite... O nascer do sol era um espetáculo magnífico! A geada era um manto de prata e carmesim! Mas não dei atenção a nada: estava cego, embriagado pelo desejo de chegar quanto antes! Apoderei-me dos cavalos, de assalto, tirando-os a um conselheiro a quem estive quase para desafiar em duelo. Disseram-me que um quarto de hora antes tinha partido um Príncipe que viajava com cavalos seus, depois de passar ali a noite. Mal ouvi. Saltei para o trenó e parti voando como quem escapa do presídio. Qualquer coisa de semelhante conta Fet numa das suas elegias. A umas seis léguas dali, num cruzamento com a estrada que se dirige para o mosteiro de Svyetozersky, vi que tinha sucedido qualquer coisa de estranho. Um carro enorme tinha-se voltado; o cocheiro e dois lacaios não sabiam o que haviam de fazer, enquanto do carro saíam gritos e lamentos de cortarem a alma. Pensei passar de largo: «Que se arranjem; não é da minha conta!» disse de mim para mim. Mas dominou-me o sentimento de humanidade que, como diz Heine, nos faz meter o nariz em tudo. Detive-me. Com o meu criado e o meu cocheiro (verdadeira alma russa) apressei-me a oferecer-lhe os meus serviços e os seis pusemos o carro sobre as rodas. Alguns camponeses, carregados de lenha, que ali passavam, também nos ajudaram. A estes dei-lhes umas moedas. Eu pensava se seria o carro do Príncipe... Olhei e... santo Deus! O próprio! O Príncipe Gavrila! Que encontro! «Príncipe! Tio!», exclamei gritando. A princípio quase me não reconheceu, mas quase me conheceu... ao fitar-me bem. Embora, para dizer a verdade, só com muito trabalho veio a saber quem sou e até suponho que me toma por outro e que não se recorda do nosso parentesco. Vi-o haverá uns seis anos em S. Petersburgo... Mas, claro, eu era então um rapazinho. Lembro-me dele porque me impressionou... «Mas como há de ele recordar-se?», pensei e apresentei-me a mim próprio. Ficou encantado e abraçou-me tremendo de medo e chorando a valer. Vi-o com os meus próprios olhos! Abraçava-me e chorava ao mesmo tempo. Consegui persuadi-lo a que subisse para o meu trenó e que viesse descansar um dia, pelo menos, em Mordasov. Aceitou sem vacilar... Disse-me que ia ao mosteiro de Svyetozersky visitar o monge Misail a quem estima e respeita; que Stepanida Matveyevna... (qual dos nossos parentes não ouviu falar de Stepanida Matveyevna, que me pôs fora de Dukanovo o ano passado?) que Stepanida Matveyevna tinha recebido uma carta comunicando-lhe que alguém da sua família estava a morrer em Moscovo, o pai ou a filha, não me recordo bem, nem me faz falta, talvez o pai e a filha ao mesmo tempo, ou quem sabe se também um sobrinho, moço de taberna... Enfim, ficou tão transtornada, que teve que decidir-se a abandonar o Príncipe por dez dias e partiu precipitadamente para honrar a capital com a sua presença. O Príncipe passou um dia sem se mexer, outro provando cabeleiras e pondo pomadas e pinturas; experimentou a fortuna com as cartas, jogando a feijões, mas não conseguiu distrair-se sem Stepanida Matveyevna. Mandou então atrelar o carro e partiu para o mosteiro de Svyetozersky. Um dos seus criados, com medo de Stepanida, quis dissuadi-lo, mas o Príncipe teimou em fazer a viagem e partiu ontem depois do jantar. Passou a noite em Ygiskevo e prosseguiu na viagem ao romper da manhã. Ao tomar a estrada que conduz à residência do padre Misail, por um triz não se precipitou, com carruagem e tudo, num barranco. Salvei-o e persuadi-o a vir comigo, visitar a nossa comum e respeitabilíssima amiga Maria Alexandrovna. Disse-me que a senhora era a mulher mais encantadora que tinha visto... e aqui o tem. Agora está a arranjar-se com a ajuda do criado, de quem não quis separar-se e de quem por nada deste mundo prescindiria, pois preferiria morrer a consentir em apresentar-se perante uma senhora sem certos ingredientes de toucador que o tornam uma verdadeira obra-prima... Aqui tem a senhora a história completa.
— Mas que gracioso que é, Zina! — exclamou Maria Alexandrovna depois de o escutar em silêncio. — Que bem que sabe contar as coisas! Ouça, Paul, uma pergunta: Explique-me com exatidão o seu parentesco com o Príncipe. O senhor não lhe chama tio?
— Essa é boa, Maria Alexandrovna! Nem eu próprio sei como nem por que parte sou parente dele. Creio que estou pelo menos em sétimo grau ou talvez no septuagésimo multiplicado por sete. Mas não tenho culpa nenhuma... Quem a tem é minha tia Aglaya Mikalovna, que não faz outra coisa senão as contas da parentela, embora as faça pelos dedos. Foi ela que me obrigou a ir vê-lo o verão passado a Dukanovo. Antes tivesse ido ela! Chamo-lhe tio e ele responde. Por agora é todo o nosso parentesco...
— De qualquer forma teve uma inspiração do céu em trazê-lo cá para casa. Tremo só de pensar no que poderia acontecer ao pobrezito se tem caído noutras mãos. Ter-se-iam atirado a ele, tê-lo-iam despedaçado, comido! Cairiam sobre ele como sobre uma mina de ouro. Atrevo-me a afirmar que o despojariam! Não pode imaginar que gente vil e astuta há por aqui, Pavel Alexandrovich!...
— Por Deus! Que está dizendo, Maria Alexandrovna? Para onde poderia ele vir senão para esta casa? — interveio a viúva Nastasya Petrovna enquanto servia o chá. — Decerto não vai supor que ele podia ter ido para casa de Ana Nikolaevna!
— Mas, por que demorará tanto? É estranho — disse Maria Alexandrovna levantando-se impacientada.
— A senhora fala do tio? Pois eu creio que tem ainda para cinco horas. Além disso, como perdeu por completo a memória, talvez tenha esquecido que está de visita em sua casa! Já sabe que ele é um personagem extraordinário, Maria Alexandrovna!
— Vamos, deixe-se de tolices!
— É verdade, Maria Alexandrovna! Não é um homem, mas um boneco com corda! Há seis anos que o não vê, mas eu acabo de vê-lo. É a sombra de um homem, um cadáver que se esqueceram de enterrar. Os olhos são artificiais, as pernas de cortiça, todo ele é um conjunto de molas; até fala por meio de um mecanismo especial.
— Por Deus! Que má língua a sua! E eu a ouvi-lo! — exclamou Maria Alexandrovna com severidade. — Não se envergonha, sendo tão novo e além disso seu parente, de falar assim de um respeitável ancião? Pondo de lado a sua inesgotável bondade — e a sua voz tomou uma entoação comovedora — lembre-se de que é uma relíquia, um produto, por assim dizer, da nossa aristocracia. Meu amigo, mon ami. Estou a ver que essa ligeireza é o fruto das ideias modernas de que estão sempre a falar. Mas, por quem é!, eu também sigo essas ideias. Compreendo que, no fundo, o seu modo de pensar é generoso e digno de respeito; compreendo que haja qualquer coisa de elevado e sublime nessas ideias novas; mas isso não me impede de ver o lado prático, por assim dizer, o aspeto real das coisas. Vi alguma coisa do mundo, vi mais que o senhor e, além de tudo, sou mãe, e o senhor é ainda muito novo. Por isso esse velho parece ridículo aos seus olhos! Mais ainda: a última vez que nos vimos, o senhor disse que queria manumitir os seus servos, que queria fazer alguma coisa pelo bem público, e isso vem-lhe de ler o Shakespeare e outros como ele. Creia-me, Pavel Alexandrovich, o seu Shakespeare passou à história e, se ressuscitasse, com todo o seu talento, não entenderia nada da nossa vida. Se há alguma coisa de cavalheiresco e majestoso na nossa sociedade contemporânea, encontra-se só na alta aristocracia. Um Príncipe metido num saco será sempre um Príncipe; até numa cabana será tão Príncipe como num palácio. Aí tem o senhor o marido de Natália Dmitryevna, que construiu uma casa como um palácio... pois é o marido de Natália Dmitryevna e nada mais. E, por mais que ela faça, não deixará de ser a mesma Natália Dmitryevna. O senhor também representa de certa maneira a velha aristocracia, porque dela descende. Eu própria não me considero afastada da aristocracia, e é um malnascido quem rebaixa o seu próprio berço. Mas o senhor há de vê-lo por si próprio, mon cher Paul, melhor do que eu lhe posso dizer, e então esquecerá o seu Shakespeare... Eu lho prognostico. Estou convencida de que mesmo agora não sente nenhum entusiasmo por essas ideias e fala assim por ser chic. Mas já falei demasiado. Espere aqui, mon cher Paul, que vou ver o que o Príncipe está a fazer. Talvez precise de alguma coisa, e com os imbecis dos meus criados...
E Maria Alexandrovna saiu correndo, a pensar nos seus criados imbecis.
— Maria Alexandrovna parece muito satisfeita por essa lambisgoia da Ana Nikolaevna não ter merecido a honra da visita do Príncipe, apesar de pretender ser parente dele. Deve estar morta de raiva! — observou Nastasya Petrovna; mas, vendo que não faziam caso dela e percebendo que era de mais em face da atitude de Zina e de Pavel Alexandrovich, deixou o salão como se fosse buscar alguma coisa.
No entanto, para se compensar da sua discrição, ficou a escutar atrás da porta.
Pavel Alexandrovich voltou-se logo para Zina muito agitado.
— Não está aborrecida comigo, Zinaida Afanasyevna? — perguntou-lhe timidamente, com ar de súplica e voz trémula.
— Consigo? Porquê? — respondeu erguendo os seus admiráveis olhos que brilhavam como duas estrelas.
— Por ter vindo tão depressa, Zinaida Afanasyevna! Não podia resistir, não aguentava quinze dias mais de separação... Sonhava consigo. Vim para conhecer o meu destino... Mas está a mostrar má cara... parece enfadada! Negar-se-á a dizer-me qualquer coisa de decisivo?
Zinaida estava de facto séria.
— Já esperava que me falasse nisso — respondeu baixando os olhos e numa voz firme em que vibrava uma intenção humilhante. — E como esta situação é muito aborrecida, quanto mais depressa acabar, melhor... O senhor insiste por que lhe dê uma resposta. Pois bem; repetir-lhe-ei que não tenho outra resposta a dar-lhe senão esta: espere! Volto a dizer-lhe: ainda me não decidi a nada e não posso prometer-lhe que serei sua esposa. Isso não se consegue à força, Pavel Alexandrovich. Mas, para o tranquilizar, acrescentarei que não o repilo definitivamente. Fica entendido que, se lhe permito esperar um resultado favorável, não o faço por consideração à sua inquietação e à sua impaciência. Repito-lhe que quero tomar a minha resolução com inteira liberdade e que, se acabar por lhe dizer que não consinto, não deve culpar-me por lhe ter dado esperanças. Ficamos entendidos!
— E que alcance têm as suas palavras? — suplicou Mozglyakov. — São uma esperança? Posso fundar nelas alguma esperança, Zinaida Afanasyevna?
— Tenha presente o que lhe digo e funde o que quiser... O senhor verá, e não lhe quero dizer mais nada. Não o repilo ainda e limito-me a dizer-lhe que espere. Repito-lhe que me reservo o direito de o repelir, se me apetecer. Tenho que fazer-lhe ainda outra advertência, Pavel Alexandrovich: se veio antes do dia fixado com o fim de proceder por caminhos indiretos, conquistando a influência de minha mãe, ou recorrendo a outros meios que possam influir na minha decisão, os seus cálculos são errados. Se assim fosse, agora mesmo o repeliria, percebeu? E por agora basta: peço-lhe que não volte a dizer-me uma palavra sobre este assunto antes do tempo devido.
Tudo isto ela lhe disse, seca, firmemente e sem vacilações como um discurso aprendido de cor. Monsieur Paul sentiu que tinha feito um papel ridículo. Naquele momento Maria Alexandrovna tornou a entrar e, quase atrás dela, a Sra. Zyablov.
— Creio que vai descer já, Zina! Nastasya Petrovna, depressa, serve o chá! — gritou ela um pouco transtornada.
— Ana Nikolaevna já mandou pedir notícias. Anyutka entrou a correr na cozinha, e atordoou-me com perguntas. Apostava em como está furiosa! — disse a viúva enquanto mexia no samovar.
— E a mim que me importa! — replicou Maria Alexandrovna, pronunciando as palavras por cima do ombro. — Como se me interessasse o que possa pensar Ana Nikolaevna! Não há perigo que eu mande alguém à cozinha dela. E surpreende-me, realmente surpreende-me, o teu empenho em considerar-me inimiga da pobre Ana Nikolaevna, e não só tu mas também toda a cidade! Julgue o senhor, Pavel Alexandrovich! O senhor conhece-nos a ambas. Ora vejamos. Por que hei de eu ser inimiga dela? Para sobressair? Mas isso a mim não me dá cuidado! Que seja ela, que seja ela a primeira; eu, primeiro que ninguém, estou disposta a ir felicitá-la. Acresce que isso é falso. Defendê-la-ei, sou obrigada a defendê-la! Caluniam-na. Por que é que se ocupam dela? Por ser nova e gostar de vestir bem... Não terá razão nisso? Em minha opinião, é preferível a afeição aos bons vestidos que a outras coisas... como aquelas que Natália Dmitryevna aprecia... e das quais não se pode falar. É por andar sempre a passear e não poder parar em casa? Mas, Deus meu! Que há de ela fazer, se não tem instrução e é incapaz de abrir um livro sem adormecer e de ocupar-se dois minutos seguidos da mesma coisa? Que é faceira e aparece à janela olhando para todos os que passam pela rua; mas por que é que toda a gente diz que é tão formosa, quando é pálida como uma defunta? Faz rir quando dança? Mas, então, por que lhe dizem que dança maravilhosamente a polca? Usa chapéus e penteados impossíveis? Mas terá culpa de que Deus lhe não tenha dado bom gosto e a tivesse feito tão ingénua que, se lhe disserem que lhe fica bem um cartucho de cor, seria capaz de o pôr na cabeça? É mexeriqueira... mas isso é corrente aqui; não há ninguém na cidade que não murmure. Sushilov, com os seus bigodes, passa lá a manhã, a tarde, e quase a noite... Mas, valha-me Deus! Isso não é de admirar, se o marido joga até às cinco da manhã. Além disso, abundam tanto os maus exemplos! No entanto, é possível que tudo isto sejam calúnias. Enfim, tomarei sempre a sua defesa, sempre! Mas, céus! Vem aí o Príncipe! É ele, é ele! Reconhecê-lo-ia entre mil! Até que enfim veio, mon Prince — gritou, correndo para o receber à porta.
CAPÍTULO IV
À primeira vista ninguém tomaria o Príncipe por um velho. Só examinando-o de perto e atentamente mostrava que era um boneco movido à força de mecanismos. Recorrera-se a todos os artifícios para disfarçar de jovem aquela múmia. Uma cabeleira assombrosa, suíças, bigode e pera, tudo de um negro exagerado, cobriam quase por completo o seu rosto arranjado com tantas pomadas e habilidade que não ficara o menor vestígio do que era. Que tinham feito das rugas? Ninguém o sabia. Vestido à última moda, parecia um figurino acabado de sair de um escaparate. Trazia um casaco próprio para visitas, ou qualquer coisa de parecido — palavra de honra que o não sei ao certo — que era a última novidade, desconhecida até àquela data, e criada precisamente para visitas matinais. As luvas, a gravata, o colete, a camisa, era tudo de uma brancura deslumbrante e de um gosto refinado. O Príncipe coxeava um pouco, mas, com tal elegância que isso parecia prescrito pela moda. Trazia monóculo num olho, precisamente no de vidro, e estava saturado de perfumes. Ao falar, arrastava certos vocábulos de maneira especial, talvez por debilidade senil, talvez porque a dentadura era toda postiça, ou então por motivos de dignidade. Pronunciava certas sílabas com extraordinária doçura, acentuando de maneira especial certas vogais. Si, por exemplo, convertia-se nos seus lábios em si-i. Na sua apresentação havia um certo descuido e à vontade, restos talvez da vida elegante que conservava inconscientemente como uma vaga reminiscência, como vestígios de além-túmulo, que ruem cosméticos, nem alfaiates, nem perfumistas, nem barbeiros podiam — ai! — ressuscitar. De forma que faremos bem, confessando, ao começar, que, se não perdera o juízo, havia tempo que tinha perdido a memória e se atrapalhava continuamente, repetindo-se e falando sem nexo nem lógica. Para falar com ele era preciso um dom especial. Mas Maria Alexandrovna podia confiar em si própria; e, na presença do Príncipe, deixou-se arrebatar pelo entusiasmo.
— Mas não mudou! O senhor não mudou nada! — exclamou agarrando nas duas mãos do Príncipe e fazendo-o sentar numa cadeira. — Sente-se, Príncipe, sente-se! São seis anos, seis anos completos sem nos vermos, e nem uma carta, nem uma linha, em todo esse tempo! Que mal se portou comigo, Príncipe! Que zangada estava consigo, mon cher Prince! Mas, o chá! O chá! Por Deus, Nastasya Petrovna! O chá!
— Obrigado, obrigado, sinto muito — gaguejou o Príncipe (tínhamo-nos esquecido de dizer que tartamudeava um pouco, mas fazia-o como se fosse moda). — Sin...in...to! Imagine a senhora que o ano passado pensava vi...ir sem falta — acrescentou, passeando a vista pelo salão — mas assustaram-me; disseram-me que havia o có...ólera aqui...
— Não, Príncipe; não houve cólera — disse Maria Alexandrovna.
— Foi peste que atacou o gado, tio! — interrompeu Mozglyakov para fazer figura.
Maria Alexandrovna olhou-o de cima abaixo com severidade.
— É verdade! Peste no gado ou qualquer coisa assim... Por isso fiquei em casa. Mas como está seu marido, minha querida Ana Nikolaevna? Continua ainda tão zeloso na magistratura?
— Não, Príncipe — respondeu a dona da casa, bastante desconcertada — o meu marido não é magistrado...
— Aposto que o tio a confunde, tomando-a por Ana Nikolaevna Antipov! — exclamou o leviano Mozglyakov, mas imediatamente se retraiu, vendo o efeito que as suas palavras causaram na dona da casa.
— Ah, sim, sim, Ana Nikolaevna e... e... já me recordo. Ah, sim! Antipov, Antipov, é isso — confirmou o Príncipe.
— Não, Príncipe! O senhor está enganado! — corrigiu Maria Alexandrovna com um sorriso amargo. — Eu não sou Ana Nikolaevna, e confesso-lhe que não esperava que me tivesse esquecido. Deixa-me admirada, Príncipe! Eu sou a sua velha amiga, Maria Alexandrovna Moskalev. O senhor recorda-se, Príncipe, de Maria Alexandrovna?
— Maria A-lex-andro-ovna! Quem diria! E eu que supunha que a senhora era... como se chama?... ah, sim, Ana Vassilyevna... C’est delicieux. Isso quer dizer que não acertei com a casa. E eu que pensava, querido amigo, que o senhor me levava para junto de Ana Matveyevna! C’est charmant. Isto sucede-me com frequência... Encontro-me sempre onde não esperava! Estou contente, sempre contente, seja como for. Com que então não é Nastasya Vassilyevna? É interessante.
— Maria Alexandrovna, Príncipe, Maria Alexandrovna! Oh! Que mal se comportou comigo! Esquecer-se da sua melhor... da sua melhor amiga!
— Sim, a minha melhor amiga... perdão, perdão — balbuciou o Príncipe, reparando em Zina.
— É Zina, minha filha. O senhor não a conhece, Príncipe. Estava fora quando cá veio pela última vez em 18... Recorda-se?
— É sua filha? Charmante, charmante! — murmurou o Príncipe contemplando a rapariga. — Mais quelle beauté! — acrescentou visivelmente comovido.
— O chá, Príncipe! — disse Maria Alexandrovna desviando a atenção do velho para um criado que se aproximava com uma bandeja. O Príncipe pegou numa xícara, e olhando fixamente para o criado, que era um rapaz corado e gordo, disse:
— A...ah! É seu filho? Lindo rapaz! E então, está bom de saúde?
— Mas, Príncipe — apressou-se a interromper Maria Alexandrovna — contaram-me o seu terrível desastre! Confesso-lhe que me horrorizou até à loucura... Não se magoou? Diga-me a verdade! Não é prudente descuidar essas coisas.
— Foi ele que me tirou. Foi o cocheiro que me tirou! — exclamou o príncipe com extraordinária animação. — Supus que tinha chegado o fim do mundo, ou qualquer coisa de parecido, e tenho que confessar que tive medo... Que os santos do céu me perdoem, mas eu não sabia se estava de cabeça para cima ou para baixo! Não o esperava! Não o esperava! Não o esperava de maneira alguma. E tudo por culpa do Teófilo, do meu cocheiro! Em ti confio completamente, amigo; faz o que for necessário para pôr as coisas a claro. Estou persuadido de que foi um atentado contra a minha vida.
— Muito bem, tio, muito bem — respondeu Pavel Alexandrovich. — Farei as investigações oportunas. Mas ouça, tio: perdoe-lhe por esta vez, quer? Que lhe parece?
— Por nada deste mundo lhe perdoarei. Estou certo de que pretendia matar-me. Ele e Lavrenty, que ficou em casa. Imaginem que se deixou influenciar por certas ideias modernas! Defende um certo ceticismo... enfim é um comunista em toda a extensão da palavra! Tenho medo de me encontrar com ele.
— Ah, como é verdade o que diz, Príncipe! — exclamou Maria Alexandrovna. — Se soubesse o que sofro por causa desses pândegos! Imagine: arranjei dois criados novos e confesso-lhe que são tão estúpidos que ando às voltas com eles todo o santo dia. Não pode supor como são estúpidos!
— Sim, sim. Mas previno-a de que prefiro um lacaio um pouco imbecil — disse o Príncipe, a quem, como a todos os velhos, agradava que o escutassem com respeito. — A estupidez, de certa maneira, fica muito bem a um criado, e às vezes quando está unida à ingenuidade transforma-se numa virtude. Torna-os mais imponentes, dá mais solenidade à sua apresentação, dá-lhes um ar de boa educação; e o que eu mais aprecio neles é a bo...oa edu...cação. Aí tem a senhora o meu Terenty! Recorda-se do bom do Terenty? Não? Apenas o vi, compreendi que o céu o destinava para porteiro. O cúmulo da estupidez! Mas que imponente majestade! Que ar tão solene! Com uma gravata branca, que lhe sobe sempre, produz um destes efeitos... Fico entusiasmado! Às vezes contemplo-o em êxtase. Dá a impressão que está a defender uma tese. Que porte tão solene! Olha para as pessoas como um carneiro que mata a sede. Parece um filósofo alemão... um verdadeiro Kant, ou melhor: um peru de ceva. Perfeitamente comme il faut para um criado.
Maria Alexandrovna riu entusiasmada e até bateu as palmas. Pavel Alexandrovich imitou-a espontaneamente; o tio divertia-o a valer. Nastasya Petrovna também soltou uma gargalhada e a própria Zina sorriu.
— Mas que humorismo, que alegria, que espírito tão vivo o senhor tem, Príncipe! — exclamou a dona da casa. — Que preciosa faculdade para descobrir a nota mais subtil e pitoresca!... E desaparecer da sociedade, e isolar-se durante cinco anos seguidos! Com esse talento! Mas o senhor poderia escrever, Príncipe! Poderia ser outro von Vizin, outro Griboyedov, outro Gogol!...
— Oh! Sim! Oh! Sim! — concordou o Príncipe radiante de prazer. — Eu creio que poderia. A senhora sabe lá a graça que eu tinha noutro tempo! Até escrevi um vaudeville para o teatro. Tinha trechos esquisitos... embora não se chegasse nunca a estrear...
— Seria encantador lê-lo, e sabes tu, Zina, que viria mesmo a calhar? Estamos justamente agora a organizar representações teatrais com fins patrióticos, Príncipe... em benefício dos feridos... O seu vaudeville seria o êxito dos êxitos!
— Pois claro! Estou disposto a escrevê-lo de novo... Pois claro! Embora o tenha esquecido por completo. No entanto, lembro-me de que havia duas ou três cenas assim — e o Príncipe beijou as pontas dos dedos — e em geral quando viajava pelo estrangeiro fazia furor. Lembro-me de Lord Byron. Éramos muito amigos. Dançava maravilhosamente a cracoviana no Congresso de Viena.
— Lord Byron, tio? Por todos os santos! O que quer dizer?
— Pois sim, Lord Byron. E daí talvez não fosse Lord Byron, mas outro qualquer... É isso mesmo: não era Lord Byron, mas um polaco. Agora me recordo perfeitamente, um polaco que se fazia passar por conde, mas que se descobriu que era cozinheiro ou coisa parecida... Mas bailava a cracoviana deliciosamente e acabou por partir uma perna. Eu escrevi uns versos nessa ocasião:
Vamos ver o polaco pequenino
Fazendo o seu papel de dançarino.
E o que é que vem a seguir? Não me recordo.
Quando por fim a perna se quebrou,
Também a cracoviana terminou.
— Isso deve ter continuação, tio — opinou Mozglyakov, fazendo troça.
— Creio que era isto, querido amigo, ou qualquer coisa parecida. Mas, ainda que o não seja, o certo é que os versos tiveram grande êxito. Acontece-me esquecer certas coisas. Isso é devido às minhas muitas ocupações.
— Mas conte-nos, Príncipe: que fez durante todo este tempo na solidão? — perguntou Maria Alexandrovna com muito interesse. — Pensei tanto em si, meu caro Príncipe, que ardo em desejos de saber tudo.
— O que fazia? Pois de uma maneira geral já sabe que tenho muitas ocupações. Às vezes descanso, outras saio a passear e outras ainda fico a pensar em coisas inimagináveis...
— O senhor deve ter um grande poder de imaginação, tio!
— Um poder extraordinário, querido. Às vezes imagino tais coisas que eu próprio fico pasmado. Quando estava em Kaduev... A propósito: tu não eras governador de Kaduev!
— Eu, tio? Por favor! O que está a dizer? — exclamou Pavel Alexandrovich.
— Imagina, meu querido amigo, que te tomava pelo governador. Bem dizia eu que não podias ter mudado tão rapidamente de fisionomia!... Porque o outro tinha uma cara respeitável e inteligente... era um homem de uma inteligência excecional. Estava sempre a compor versos sobre qualquer assunto... De perfil parecia-se com o rei de ouros...
— Não, Príncipe — interveio Maria Alexandrovna. — Eu juro-lhe que essa vida seria a sua perdição. Encerrar-se durante cinco anos na solidão sem ver nem ouvir ninguém! Mas o senhor é um homem perdido, Príncipe. Pregunte aos amigos que lhe querem de verdade e todos lhe dirão que é um homem perdido.
— Realmente! — exclamou o Príncipe.
— Asseguro-lhe; falo-lhe como uma amiga, como uma irmã. Falo-lhe assim, porque lhe quero, porque a recordação da nossa velha amizade me é sagrada. Que ganharia em enganá-lo? Não; deve mudar radicalmente de vida ou ficará doente, consumir-se-á e morrerá...
— Valha-me Deus! Vou assim morrer tão depressa? — exclamou o Príncipe tremendo de pavor. — E a senhora adivinha-o? As hemorroidas já me trazem morto de medo... e quando me atacam apresento uns sintomas... Vou enumerá-los... Em primeiro lugar...
— Para outra vez falará disso — atalhou Pavel Alexandrovich —; agora talvez fosse melhor sairmos.
— É verdade! Para outra vez, se quiserem. Agora lembro-me de que não seja interessante para as senhoras que eu fale nisto... Por outro lado é uma enfermidade muito curiosa. Tem episódios muito variados... Lembra-mo esta noite, querido; contar-lhes-ei ponto por ponto uma coisa que me aconteceu...
— Ouça, Príncipe — interrompeu de novo Maria Alexandrovna — o senhor devia ir ao estrangeiro tratar-se.
— Ao estrangeiro? Sim, sim. Irei ao estrangeiro com certeza. Recordo-me que era muito divertido quando tinha vinte anos e ia para o estrangeiro. Estive quase para casar com uma viscondessa francesa. Enamorei-me perdidamente dela e queria consagrar-lhe a minha vida. Mas não me casei; casou-se outro. Passou-se uma coisa extraordinária: ausentei-me duas horas de ao pé dela e um barão alemão roubou-ma. Depois tiveram que o meter num manicómio.
— Mas, caro Príncipe, o que quero dizer-lhe é que o senhor devia pensar seriamente na sua saúde. Há muito bons médicos no estrangeiro... além de que uma mudança de vida convinha-lhe muito.
— Na verdade! Há muito tempo que tomei esta decisão e, sabe a senhora?, penso experimentar a hidroterapia.
— A hidroterapia?
— A hidroterapia. Já experimentei uma vez a hidroterapia. Estava numas termas. Ali conheci uma senhora de Moscovo... não me lembro como se chamava, mas apenas que apreciava a poesia e que tinha uns setenta anos. Tinha uma filha de cinquenta anos, viúva, com muita expressão nos olhos. Falava quase sempre em verso. Depois teve uma grande desgraça: matou uma das suas criadas e foi processada. E, reparem, elas fizeram o possível para que eu fizesse uma cura de águas. Asseguro-lhes que não tinha nada de importante nessa ocasião, mas elas insistiram: «Trate-se, trate-se». Por mera cortesia, comecei a beber as águas pensando que me poria melhor. E bebi, bebi, bebi... numa tal quantidade que formaria uma cascata. Como a senhora sabe a hidroterapia é uma coisa muito boa e faz-me muito bem, tanto que, se não tivesse caído doente, asseguro-lhes que estaria perfeitamente...
— É uma verdade de La Palice, tio. Diga, tio, estudou lógica?
— Olha que pergunta! — interveio Maria Alexandrovna, mostrando-se severa e escandalizada.
— Sim, querido, estudei; mas há muitos anos. Estudei também filosofia na Alemanha. Um curso inteiro, mas não posso recordar-me quando foi. Mas... devo confessar... assustaram-me com essa doença; estou transtornado. Volto já.
— Aonde vai, Príncipe?— gritou alarmada Maria Alexandrovna.
— Volto já, já... Vou só anotar uma ideia nova... au revoir.
— Que tipo tão cómico! — exclamou Pavel Alexandrovich, soltando uma gargalhada.
Maria Alexandrovna perdeu a paciência.
— Não compreendo, não compreendo absolutamente por que se ri — disse com calor. — Rir-se de um ancião venerável, de um parente! Abusar da sua bondade angélica e ridicularizar cada uma das suas frases! Envergonha-me, Pavel Alexandrovich. É capaz de me dizer o que acha ridículo nele? Nada observei que faça rir.
— Mas se não conhece ninguém e só diz tolices!
— Isso é o resultado da horrível vida que leva, de ter estado cinco anos sequestrado sob a severa vigilância dessa mulher diabólica. É razão para a gente se compadecer e não para se rir. Nem sequer a mim me reconheceu. O senhor mesmo é testemunha. É um exemplo palpável. Temos que o salvar a todo o transe. Se o aconselhei a partir para o estrangeiro foi só para o libertar das garras dessa... mulher ordinária.
— Sabe uma coisa? Temos que lhe arranjar uma mulher, Maria Alexandrovna — gritou Pavel Alexandrovich.
— E continua! O senhor é incorrigível, Sr. Mozglyakov.
— Não, Maria Alexandrovna, não. Agora falo a sério. Por que não havemos de casá-lo? É uma ideia, uma ideia como qualquer outra. Que mal lhe podia fazer, tenha a bondade de me dizer? Pelo contrário: no estado em que se encontra só uma coisa dessas o poderia salvar. Ainda é legalmente apto para o matrimónio. Em primeiro lugar libertá-lo-íamos dessa «barata», perdoe-me a expressão. E, além disso, imagine que escolhe uma rapariga, ou ainda melhor, uma viúva bonita, inteligente, terna e, é claro, pobre que o trate como um pai, olhando-o como o seu benfeitor, agradecida pelo favor que lhe fez dando-lhe o título de esposa. Que melhor para ele que uma mulher de coração nobre e generoso, que lhe pertença e esteja sempre a seu lado, em vez dessa... megera? É claro que tinha que ser bonita porque o tio ainda rende culto à beleza. A senhora reparou como ele olhava para Zinaida Afanasyevna?
— Mas onde encontrará o senhor essa noiva? — perguntou Nastasya Petrovna, que ouvia atentamente.
— Ah, isso é fácil. Em si própria, se quiser! Permita-me uma pergunta: a senhora não é um excelente partido para o Príncipe? Em primeiro lugar, é bonita; segundo, é viúva; terceiro, é uma senhora a valer; quarto, é pobre, pois suponho que não nada em dinheiro; quinto, é uma alma sensível e por conseguinte estimá-lo-ia e tratá-lo-ia como um objeto precioso e frágil que se envolve em algodão... Poria na rua essa mulher, acompanharia o Príncipe ao estrangeiro, dar-lhe-ia pudins e doces até que o Príncipe deixasse este mundo transitório, o que dentro de um ano e provavelmente dentro de dois ou três meses se viria a dar. Então a senhora seria uma princesa, uma viúva rica e, como prémio da sua abnegação, voltaria a casar-se com um marquês ou com um general. C’est joli, não é verdade?
— Mas, Deus meu! Julgo que me apaixonaria por esse amável Príncipe, sem ter em conta a gratidão, se ele manifestasse a menor pretensão a esse respeito — exclamou a Sra. Zyablov com os olhos brilhantes. — Mas é loucura pensar nisso.
— Como? Loucura? Se a senhora quiser não será loucura. Diga uma palavra e deixo cortar um dedo se não for noiva do Príncipe hoje mesmo! Não há nada tão fácil como persuadi-lo de qualquer coisa! Casá-lo-emos sem que ele dê conta de nada. Casá-lo-emos enganando-o, mas será feliz graças a nós. Vista o melhor que tiver e esteja disposta a tudo, Nastasya Petrovna.
O entusiasmo do Sr. Mozglyakov não conhecia limites. À Sra. Zyablov crescia-lhe a água na boca.
— Já sei que estou muilo mal vestida, sem que o senhor mo diga — replicou — e que nunca tive gosto para isso. Nunca tive ambições também. Mas pareço assim tão mal?
Maria Alexandrovna permanecia sentada com uma estranha expressão nos olhos. Posso afirmar, sem me enganar, que ouviu a proposta de Pavel Alexandrovich com desalento e que ficou desconcertada... Por fim voltou a si e disse com mordacidade:
— Tudo isso está muito bem, reconheço-o; mas é uma ridícula insensatez, e além disso... uma impertinência.
— Mas, minha querida Maria Alexandrovna, por que há de ser ridículo e impertinente? — replicou Mozglyakov a quem a insinuação era dirigida.
— Por muitas razões e principalmente porque o senhor está em minha casa e o Príncipe é meu hóspede, e porque não permito a ninguém que se exceda em minha casa. Não posso considerar as suas palavras senão como uma brincadeira, Pavel Alexandrovich. Mas graças a Deus que o Príncipe está de volta.
— Cá estou — gritou este, entrando. — É assombroso, meu caro amigo, como estou hoje fecundo em ideias. Às vezes (os senhores não acreditam?) parece que não tenho nada na cabeça. Nem uma ideia.
— Isso deve ser a queda que lhe alterou os nervos, tio, e aí está a razão...
— É o que eu pensava, amigo, e, como o acidente deu resultados tão proveitosos, estou resolvido a perdoar ao Teófilo. Sabem que afinal já não acredito que tenha querido atentar contra a minha vida? Que lhes parece? Por outro lado já o castiguei bastante cortando-lhe a barba.
— Cortando-lhe a barba, tio? Como, se usa umas barbas tão grandes como o império alemão?
— Ah, sim! Tão grandes como o império alemão! As tuas comparações são sempre acertadíssimas, rapaz. Mas são postiças. E agora ouçam como isso sucedeu. Mandaram-me um catálogo com amostras: as mais estupendas barbas para lacaios e cavalheiros, importadas recentemente do estrangeiro. Havia, além disso, suíças, bigodes, pêras, tudo a preços ínfimos. Por curiosidade, pedi uma barba de cocheiro e mandaram-me uma, magnífica! Mas aconteceu que a de Teófilo era o dobro em tamanho, e, claro, ficámos perplexos sem saber o que havíamos de fazer: se rapar Teófilo, se deixar-lhe a barba, devolvendo a postiça. Depois de muitas reflexões cheguei à conclusão de que lhe convinha mais a barba artificial.
— Por que é que pensou que a arte é melhor do que a natureza, tio?
— Por isso precisamente. Que pena o pobre rapaz teve quando o raparam! Como se com a barba tivesse perdido uma carreira brilhante! Mas não são horas de sairmos, querido?
— Como quiser, tio.
— Príncipe, espero que irá somente ver o governador — exclamou emocionadíssima Maria Alexandrovna. — O senhor é meu, Príncipe; pertence à minha família durante todo o dia. A sociedade daqui não é de aconselhar. Talvez o senhor queira visitar Ana Nikolaevna e eu não tenho o direito de dissuadi-lo disso; por outro lado estou convencida de que a sua experiência lhe ensinará o que eu lhe poderia dizer. Mas não esqueça que sou sua hospedeira, sua irmã, sua servidora, durante todo o dia, e que estarei a tremer por si, Príncipe. O senhor não conhece essa gente, não a conhece bem.
— Confie em mim, Maria Alexandrovna. Tudo se passará como lhe prometi — disse Mozglyakov.
— Com uma cabeça tão louca, confiar em si! Espero-o para jantar, Príncipe. Jantaremos cedo. E quanto sinto que meu marido esteja no campo. Que feliz se sentiria, vendo-o! Com o respeito que lhe tem! Quer-lhe com toda a alma.
— Seu marido? A senhora tem marido?
— Deus meu! Que esquecido que o senhor é, Príncipe. Mas esqueceu por completo, por completo, o passado! O meu marido, sim, Afanasy Matveich. Não pode tê-lo olvidado. Agora está no campo, mas antes viu-o mais de cem vezes. Lembra-se, Príncipe, de Afanasy Matveich?
— Afanasy Matveich? No campo, está a dizer? Mas é delicioso! Com que então também tem marido? Que coisa extraordinária! É como num vaudeville: «O meu marido está à porta, enquanto ela foi...» Perdão, mas esqueci o resto. A mulher saiu para qualquer parte, para Tula, ou para Jaroslav, mas, fosse para onde fosse, é muito cómico.
— «O marido está à porta, enquanto ela foi para a horta», tio — disse Mozglyakov servindo de ponto.
— Isso, isso! Obrigado, querido, para a horta. Encantador, encantador! Assim rima bem. Tu fazes tudo em verso, querido! Não me lembrava se tinha ido para Jaroslav ou para Kostroma, mas sim que ela tinha ido para qualquer parte. Encantador! Encantador! Não me recordo bem do que ia a dizer... Ah, sim, vamo-nos, amigo. Au revoir, Madame. Adieu, ma charmante demoiselle — acrescentou voltado para Zina e beijando-lhe as pontas dos dedos.
— O jantar, o jantar, Príncipe! Não se esqueça de voltar depressa — gritou Maria Alexandrovna, acompanhando-o até à porta.
CAPÍTULO V
— Podias dar uma volta pela cozinha, Nastasya Petrovna — disse quando o Príncipe saiu. — Tenho o pressentimento de que esse monstro do Nikita nos deixa queimar o jantar. Já deve estar bêbado a estas horas...
Nastasya Petrovna obedeceu, mas ao sair olhou para ela e notando a sua extraordinária agitação, em vez de ir vigiar o monstro do Nikita, deslizou pelo corredor para os seus aposentos e entrou num quarto escuro, cheio de malas, vestidos velhos e roupa suja amontoada em grandes fardos. Em pontas dos pés, aproximou-se de uma porta fechada e pôs-se a escutar pelo buraco da fechadura. Era uma das três portas que davam acesso à sala onde Maria Alexandrovna e Zina tinham ficado e a única que estava sempre fechada e fora de uso.
Bem conhecia Maria Alexandrovna a astúcia e a excessiva curiosidade de Nastasya Petrovna e, sem dúvida, considerava-a capaz de espreitar pelos buracos das fechaduras; mas naquele momento estava demasiado excitada para tomar certas precauções. Sentou-se, pois, numa cómoda cadeira e dirigiu a Zina um olhar significativo que produziu na rapariga um efeito desagradável e deprimente.
— Zina!
Zina voltou para a mãe o rosto pálido e ergueu os olhos negros e sonhadores.
— Queria falar-te num assunto de grande importância, Zina.
Zina pôs-se em frente da mãe e com os braços cruzados esperou, tentando em vão ocultar certa expressão humilhante e sarcástica.
— Queria perguntar-te o que te pareceu hoje esse Mozglyakov.
— Já há muito tempo que sabes a minha opinião sobre ele — respondeu Zina de mau modo.
— Sim, mon enfant; mas parece-me que se está a tornar muito impertinente com as suas atenções.
— Como disse que gostava de mim, pode perdoar-se-lhe a insistência.
— É estranho! Não costumavas antigamente... perdoar-lhe com tanta facilidade; pelo contrário, punhas-te sempre contra, quando eu me referia a ele.
— Também é extravagante que tu agora o condenes, tu que o defendias como um bom partido para mim.
— Tens quase razão. Não o nego, Zina: desejava casar-te com Mozglyakov. Fazia-me sofrer a tua tristeza, a tua desdita, que sou muito capaz de compreender (embora penses outra coisa) e que me tirava o sono. Convenci-me de que só uma mudança radical de vida podia salvar-te, e essa mudança tem que ser... o matrimónio. Não somos ricas e não podemos, portanto, ir para o estrangeiro. Os asnos que abundam por aqui surpreendem-se por te verem solteira, aos vinte e três anos, e para o explicarem inventam calúnias. Mas por acaso estaria bem que te desse por marido um pobre conselheiro ou um Ivan Ivanovich, como o nosso procurador? Há aqui algum homem digno de ti? Mozglyakov apesar de ter a cabeça cheia de serradura é o mais aceitável de todos. Pertence a uma família distinta, tem boas relações, possui cento e cinquenta servos e mais vale isso do que viver de fraudes e subornos, ou Deus sabe de que maquinações. Por isso me fixei nele. Mas juro-te que nunca me foi simpático e estou convencida de que isto foi uma advertência da Providência. Se Deus se dignasse enviar-te um partido melhor, era uma sorte que não estivesses comprometida com ninguém. Suponho que não lhe prometeste nada hoje, não é verdade, Zina?
— Para quê esse discurso, mamã, se tudo se diria em duas palavras? — replicou Zina, irritada.
— Discurso, Zina, discurso! Como podes falar assim à tua mãe! Bem digo eu: há já tempo que desconfias de mim. Há muito que me consideras mais como inimiga do que como tua mãe.
— Deixa-te de coisas, mamã! Não vamos guerrear por palavras! Não nos conhecemos bem? Parece que já é tempo de nos deixarmos disso!
— Estás a ofender-me, filha! Não compreendes que estou disposta a tudo, absolutamente a tudo, para te fazer feliz?
Zina olhou para a mãe com desgosto e replicou numa voz incisiva:
— Desejas casar-me com o Príncipe para ver-me feliz?
— Não te disse nada disso; mas, já que a isso te referes, dir-te-ei que, se se oferecesse ocasião, seria uma felicidade incomparável para ti e estaria muito longe de o considerar uma insensatez.
— Uma insensatez é o que a mim me parece! — gritou Zina indignadamente. — Uma insensatez, uma insensatez! Também creio que tens uma imaginação muito romântica; és uma poetisa no mais completo sentido da palavra; é o que pensa toda a gente. Estás sempre cheia de projetos. Não te deténs nem perante as coisas absurdas e impossíveis. Quando estava aqui o Príncipe adivinhei que te passou isso pela cabeça. Quando Mozglyakov começou a fazer de parvo dizendo que era preciso arranjar uma mulher para o velho, li nos teus olhos o teu pensamento. Apostava em como não pensavas noutra coisa e por isso me fizeste falar. Mas os teus planos de grandeza enfastiam-me, torturam-me e acabarão por me matar... Suplico-te que não me fales mais nisso, ouves, mãe? Nem uma palavra mais. Agradecer-te-ei que não esqueças o que te digo.
— És uma criança, Zina, uma criança doente e colérica — insistiu Maria Alexandrovna com voz lacrimosa e comovida. — Faltas-me ao respeito e ofendes-me. Nenhuma mãe suportaria o que eu todos os dias te suporto! Mas és nervosa, estás doente, sofres, e eu sou tua mãe, e, além de tudo, sou cristã. Tenho que suportar e perdoar. Uma palavra, Zina: se realmente tivesse pensado nesse casamento, por que o havias de considerar uma insensatez? Em minha opinião Mozglyakov nunca falou melhor do que quando demonstrava a necessidade que o Príncipe tinha de se casar... mas não com essa suja da Nastasya. Com isso não concordo.
— Ouve, mamã, diz-me francamente se me falas assim por falar ou com algum fim determinado.
— Só te pregunto por que é que te havia de parecer insensato.
— Que aborrecimento! Que vida a minha! — exclamou a rapariga batendo com o pé no chão. — Dir-te-ei, se o não sabes: aproveitar-se da circunstância de esse velho ser imbecil, para não falar de outras coisas, para o enganar, para casar com ele (uma ruína) apenas para lhe subtrair dinheiro e depois desejar, hora a hora, dia a dia, a sua morte é, em meu entender, não só uma insensatez mas uma baixeza que não posso admitir. Não te felicito por essa ideia, mamã.
Houve um momento de silêncio.
— Lembras-te, Zina, do que se passou há dois anos? — perguntou a mãe, de repente.
Zina estremeceu e disse com severidade:
— Mamã! Prometeste-me solenemente não falar mais nisso.
— E eu suplico-te que me libertes, por uma só vez, da minha promessa a que não faltei até agora, Zina! Chegou o momento de uma franca explicação. Foram horríveis estes dois anos de silêncio! Não posso permitir que se prolonguem... Estou disposta a suplicar-te de joelhos que me deixes falar, ouves, Zina? É a tua mãe quem to pede de joelhos! E ao mesmo tempo dou-te a minha palavra solene, palavra de mãe desgraçada que adora a filha, de que nunca mais, sob nenhum pretexto, e ainda que me custasse a vida, te voltarei a falar nisto. É a última vez, mas agora é absolutamente necessário.
Maria Alexandrovna calculava que estas palavras produzissem um efeito favorável.
— Fala — disse Zina empalidecendo.
— Obrigada, Zina. Há dois anos, o teu pobre irmão, Mitya, tinha um precetor...
— Mas, mamã, a que vem um preâmbulo tão solene? Para quê tanta eloquência, tantos pormenores escusados, penosos, e que já conhecemos demasiado? — atalhou a rapariga apressada e amarguradamente.
— Porque, minha filha, eu, que sou tua mãe, devo justificar-me perante ti. Porque desejo expor-te tudo sob um ponto de vista muito diferente do que tu costumas vê-lo. Tenho que começar pelo princípio para que vejas claramente o que se segue. Não penses que jogo com os teus sentimentos, filha. Não, Zina; sempre encontrarás em mim uma verdadeira mãe, e talvez prostrada a meus pés, aos pés desta mulher a quem chamaste vil, me implorarás uma reconciliação que durante tanto tempo e tão orgulhosamente tens repelido; aqui tens por que tenho de dizer-te toda a verdade, Zina, começando pelo princípio. De outra forma seria preferível calar-me.
— Fala — repetiu Zina, maldizendo, de todo o coração, a eloquência da mãe.
— Continuarei, Zina. Nunca pude compreender como esse mestre-escola chegou a impressionar-te, um rapazito ainda! Confiava no teu bom senso, no teu honesto orgulho e sobretudo na sua completa insignificância (porque é preciso dizer toda a verdade) e por isso não suspeitava de que houvesse alguma coisa entre os dois. E de repente chegas junto de mim e dizes-me que queres casar-te com ele. Zina! Foi uma punhalada no coração! Soltei um grito e caí sem sentidos. Mas... lembras-te de tudo? Não preciso de dizer-te que tive de usar de toda a minha autoridade... a que chamaste tirania. Pensa bem: um rapaz, filho de um sacristão, com um ordenado de doze rublos por mês, um autor de versos detestáveis, publicados por favor na «Biblioteca de boas leituras», um rapaz que não sabe falar noutra coisa senão nesse maldito Shakespeare, um rapaz assim, teu marido, marido de Zinaida Moskalev! Perdoa, Zina, mas só pensar nisso me põe frenética! Neguei o meu consentimento, mas nada te desviou da tua ideia. O teu pai não fazia mais que piscar os olhos, sem entender palavra, por mais que eu lhe explicasse. Mantiveste relações com esse rapaz, encontravas-te com ele e, o que é pior, atreveste-te a escrever-lhe. Espalharam-se certos rumores pela cidade, os vizinhos começaram a mortificar-me com alusões: a satisfação é grande, o som das trombetas vibra estridente e depressa todas as minhas predições se cumprem ao pé da letra. Zangaram-se por qualquer ninharia e mostrou-se indigno de ti esse belo rapaz (não posso chamar-lhe homem) ameaçando-te de que exibiria as tuas cartas. Foi então que, cheia de indignação, lhe deste uma bofetada. Sim, Zina, também conheço esse pormenor! Sei tudo! Nesse mesmo dia o miserável mostrou uma das tuas cartas ao canalha do Zanshin e a carta não tardou uma hora a chegar às mãos de Natália Dmitryevna, minha figadal inimiga. Na mesma noite o tresloucado, desesperado de remorsos, tentou envenenar-se. Enfim, foi um escândalo formidável. Essa porca da Nastasya veio a correr dar-me a noticia: havia uma hora que Natália Dmitryevna tinha em seu poder a carta. Uma hora mais e toda a cidade ficaria inteirada da tua vergonha. Não perdi a calma, não desmaiei, mas que grande golpe foi aquele, Zina! Essa sem-vergonha, essa porca da Nastasya pediu duzentos rublos, jurando que por essa soma se apoderaria da carta. Eu própria corri em chinelas e sobre a neve a casa do judeu Bumstein e empenhei o meu guarda-joias, recordação de minha santa mãe! Antes de duas horas tinha a carta nas minhas mãos: Nastasya tinha-a roubado. Arrombou um cofrezito, e a tua honra ficou salva (ninguém poderia provar nada). Mas que angústia me fizeste passar naquele dia! No dia seguinte, pela primeira vez na minha vida, apareceram os meus primeiros cabelos brancos, Zina! Tu tinhas formado a tua opinião sobre a conduta desse rapaz, e concordarás, embora sorrindo amargamente, que teria sido o cúmulo da loucura confiar-lhe o teu futuro. Mas desde então tens vivido inquieta, atormentando-te, minha filha; não tens podido esquecê-lo, não a ele precisamente, que sempre foi indigno de ti, mas ao sonho do teu primeiro amor. Esse desgraçado está agora deitado no seu leito de morte, tísico, e tu, anjo de bondade, não queres casar-te enquanto ele for vivo para lhe evitar esse sofrimento, porque ainda agora está devorado pelos ciúmes, embora eu esteja persuadida de que nunca te teve um amor puro e elevado. Consta-me até que, desde que Mozglyakov começou a pensar em ti, nunca mais deixou de te espionar, de indagar e de querer saber notícias. Tu perdoaste-lhe, minha filha. Adivinhei o teu segredo e Deus sabe com que lágrimas amargas eu tenho molhado a minha almofada!
— Por Deus, mamã! Deixa lá isso — interrompeu Zina com indizível desgosto. — Não sei o que a tua almofada tem que ver com isto. Não podes falar sem retórica e sem declamar?
— Tu não me acreditas, Zina! Não compreendo por que me tratas tão mal! Durante estes dois anos os meus olhos nunca secaram, embora ocultasse as minhas lágrimas; e posso jurar-te que sofri muito durante estes dois anos. Sempre compreendi os teus sentimentos mas só agora dei conta da profundidade da tua mágoa. Podes, por acaso, culpar-me, por ter considerado o teu carinho como uma loucura romântica inspirada por esse maldito Shakespeare, que se mete sempre aonde não é chamado? Que mãe me censuraria o medo que tenho, as precauções que tomo ou o rigor das minhas decisões? Mas agora, agora que vejo quanto tens sofrido estes dois anos, compreendo e aprecio os teus sentimentos. Acredita-me: compreendo-te melhor que tu própria, e estou convencida de que não amas esse rapaz pervertido mas apenas os teus dourados sonhos, a tua felicidade perdida, as tuas elevadas ilusões. Eu também amei e talvez com mais amor que tu; também sofri, e também tive as minhas ilusões. E ninguém pode recriminar-me, agora! E principalmente, podes tu condenar-me, se considero um casamento com o Príncipe como o recurso mais agradável para salvar-te e o mais necessário na tua atual situação?
Zina ouviu com assombro esta discursata, adivinhando que sua mãe não mantinha aquele tom sem algum desígnio, mas a conclusão a que chegou deixou-a confusa.
— Podes propor-me a sério o casamento com o Príncipe? — gritou olhando para a mãe, com espanto e vim certo receio. — De maneira que não é mera fantasia, uma simples experiência, mas um propósito firme? E... e... que relação tem o que acabas de dizer... com toda essa história? Realmente, mamã, não te compreendo.
— E eu admiro-me que haja quem deixe de compreender, meu anjo! — exclamou Maria Alexandrovna, animando-se por sua vez. — Em primeiro lugar, passarias a viver noutra esfera e noutra sociedade! Deixarias para sempre esta aldeia detestável, cheia de recordações terríveis para ti e onde não tens amigos nem afetos; onde foste caluniada, onde todas estas gralhas te odeiam por causa da tua beleza. Já nesta primavera poderias ir para o estrangeiro, para Itália, para a Suíça, para a Espanha; a Espanha, Zina, a Espanha, onde está a Alhambra e o Guadalquivir e não este imundo regato que tem um nome ridículo!...
— Mas perdoa, mamã; tu falas como se eu já estivesse casada, ou, pelo menos, como se o Príncipe se me tivesse declarado.
— Não te preocupes com isso, meu anjo; eu sei o que digo. Mas deixa-me continuar. Referi-me ao primeiro ponto; vamos agora ao segundo. Compreendo, minha filha, a repugnância com que te casarias com Mozglyakov.
— Eu sei, sem que mo digas, que nunca serei sua mulher! — respondeu Zina com animosidade e com os olhos a brilhar.
— E se soubesses, querida, como compreendo a tua repulsa! É terrível jurar amor perante o altar a uma pessoa a quem não se pode amar e também pertencer a alguém a quem nem sequer se tem respeito! E ele pretende o teu amor; por isso quer casar contigo. Reparei bem nos olhares que te lançava quando voltavas o rosto! É horrível simular um amor que não se sente. Durante vinte e cinco anos tive que suportar essa provação. Teu pai destruiu a minha vida, envenenou a minha juventude, e quantas vezes não viste tu correr as minhas lágrimas!
— O papá está no campo. Deixa-o em paz.
— Tu defende-lo sempre, já sei. Ah, Zina! Como o meu coração sangrava quando, por prudência, eu desejava o teu casamento com Mozglyakov! Mas com o Príncipe não teria razões para dissimular. É ocioso dizer que o não poderias amar... o que se chama amar; além disso ele também não exigirá o teu amor...
— Quanta loucura! Afirmo-te que te enganas por completo sobre o mais importante, e permite-me que te diga que eu não estou disposta a sacrificar-me seja pelo que for; que não desejo casar-me com ninguém e que ficarei solteira. Há dois anos que me fazes sermões por eu não me casar. Pois bem, conforma-te com saber o que te vou dizer. Não me caso porque não quero. Nem mais, nem menos.
— Mas Zinotcha, filhinha, pelo amor de Deus, não te irrites com o que eu te vou dizer. Que depressa te exaltas! Deixa-me expor-te a questão debaixo do meu ponto de vista e imediatamente concordarás comigo. O Príncipe viverá no máximo um ou dois anos, e, em minha opinião, é preferível ser viúva jovem que velha solteirona, sem contar que a sua morte te tornaria, além de princesa, livre, rica e independente. Talvez, minha filha, estes cálculos te inspirem desprezo... os cálculos fundados sobre a morte desse homem. Mas eu sou mãe, e que mãe condenaria a minha previsão? Finalmente, se, como um anjo de bondade que és, ainda sentes compaixão por esse rapazito até ao ponto de recusares casar-te enquanto ele viver (e é isso o que eu suspeito) pensa que lhe darás coragem e confiança casando-te com o Príncipe. Se ainda lhe resta uma migalha de bom senso, compreenderá o que haveria de absurdo e ridículo em ter ciúmes do Príncipe, e que te casaste por prudência e necessidade. Compreenderá sem dúvida (eu creio que é perfeitamente compreensível) que te poderias voltar a casar quando o Príncipe morresse.
— O que isto mais claramente significa: casar-me com o Príncipe, despojá-lo e esperar pela sua morte para me casar depois com o bem-amado... Que contas tão bem feitas! Tentas seduzir-me oferecendo-me... Compreendo-te, mamã, compreendo-te, perfeitamente! Não podes prescindir dos teus nobres sentimentos nem sequer nos assuntos mais rasteiros. Valia-te mais dizer, nua e francamente: «Zina, isto é mau, mas é conveniente: aceita-o». Pelo menos seria mais nobre.
— Mas, minha filha, por que te obstinas em considerar o assunto sob o ponto de vista do engano, da astúcia e do interesse? Supões que os meus cálculos se baseiam numa baixa hipocrisia; mas, por todos os santos! Que há nisto de hipocrisia? Que há nisto de baixeza? Olha para o espelho. És tão formosa que qualquer homem daria um reino pelo teu amor! E tu, tão formosa, sacrificas os teus melhores anos a um velho! Como uma estrela magnífica alumias o ocaso da sua vida; como a hera verde enlaças a sua velhice, tu, e não essa urtiga, essa abominável velha que o embruxou e está acabando com a sua pouca seiva. Crês, por acaso, que o seu principado e o seu dinheiro valem mais do que tu? Onde está a hipocrisia, onde está a baixeza? Tu não sabes o que dizes, Zina!
— Devem valer tanto como eu, se por sua causa me ligo a um homem decrépito. A hipocrisia será sempre hipocrisia seja qual for o fim que com ela se pretende.
— Pelo contrário, minha filha, pelo contrário. Podes até ver o caso sob um ponto de vista muito elevado e até cristão. Disseste-me um dia, num momento de entusiasmo, que gostarias de ser irmã de caridade. O teu coração tinha sofrido, tinha passado por provas cruéis e supunhas que já não podias amar. Se não crês no amor, põe o teu coração num objeto mais elevado, recolhe-te na oração com a pureza de uma criança, com toda a tua fé e todo o teu fervor... e Deus te abençoará. Esse velho também sofreu, é desgraçado, é perseguido; conheço-o há muitos anos e sempre me inspirou uma simpatia inexplicável, semelhante ao amor, como se pressentisse já qualquer coisa. Sê sua amiga, sua filha, seu brinquedo, se se pode falar em brinquedos; mas reconforta o seu coração e farás uma obra de caridade e de virtude. Que é ridículo? Não penses nisso. Que já não é um homem? Tem piedade dele, que para alguma coisa és cristã. Vence-te a ti mesma; tais atos requerem o domínio de nós próprios. Custa tratar feridas num hospital; repugna respirar o ar infetado das salas de operações; mas há anjos de caridade que o fazem e ainda dão graças a Deus pela sua vocação. Aí tens um bálsamo para o teu coração dorido. A abnegação e o sacrifício curarão as tuas feridas. Onde está o egoísmo, aonde está a baixeza? Mas não me crês. Supões talvez que estou fingindo quando te falo de dever e de abnegação. Não concebes que uma mulher frívola e mundana possa ter coração, sentimentos e princípios. Pois bem; não me creias e insulta a tua mãe, mas reconhece, ao menos, que as suas palavras são prudentes e salutares. Imagina que não sou eu, mas qualquer outra pessoa que te fala; fecha os olhos, vira a cara para a parede e supõe que uma voz misteriosa te está falando... O que te aborrece sobretudo é a questão de dinheiro como se se tratasse de um negócio sujo. Pois bem, renuncia ao dinheiro se te é tão odioso. Toma para ti o estritamente indispensável e dá o resto aos pobres. Ajuda, por exemplo, esse desgraçado rapaz que está a morrer...
— Não aceitará nada — disse Zina docemente, como se falasse consigo própria.
— Ele não aceitará, mas aceitará a mãe dele — replicou Maria Alexandrovna, com ar de triunfo. — Ela aceitará sem que ele o saiba. Vendeste os teus brincos, presente da tua tia, para o socorrer há seis meses, sei-o. E sei que sua velha mãe tem que lavar roupa para poder cuidar do pobre filho...
— Em breve não precisará de ajudas.
— Sei o que queres dizer também — disse Maria Alexandrovna, agarrando-se à frase para a utilizar de maneira inesperada. Sei ao que aludes. Dizem que está tísico e que não deve viver muito. Mas quem o diz? Há dias interroguei a esse respeito Kalist Stanislavich. Estava preocupada com esse rapaz porque eu também tenho coração, Zina. Kalist Stanislavich respondeu-me que a doença era grave, que não se tratava de tuberculose, mas de outra afeção do peito. Pergunta-lho tu própria. Disse-me que em Espanha (já o sabia e até já o li), que em Espanha há uma ilha extraordinária (creio que se chama Málaga, como certo vinho) onde não só os fracos de peito mas até os tísicos se curam graças ao clima. De toda a parte vão ali para se curar pessoas de posição, grandes personagens e até comerciantes, desde que sejam ricos. A maravilhosa Alhambra, os mirtos, os limoeiros, os espanhóis montados em mulas! Só isto basta para exercer uma ação salvadora sobre um temperamento poético. Supões que recusará o teu dinheiro, a tua ajuda, para a viagem! Se tens pena engana-o. O engano pode perdoar-se quando se trata de salvar uma vida humana. Dá-lhe esperanças, promete-lhe o teu amor, diz-lhe que casarás com ele quando enviuvares. Tudo se pode dizer quando se diz honradamente. Tua mãe não te ensinará nada de desonesto, Zina. Se o fizeres para salvar a vida dele, tudo te é permitido. Com a esperança lhe infundirás coragem e começará a preocupar-se com a saúde, tratar-se-á, e obedecerá ao médico. Se se curar, embora não te cases com ele, sempre lhe terás dado a saúde, sempre o terás salvo e chamado à vida. É preciso tratá-lo com simpatia; talvez a desgraça tenha sido para ele uma lição, e mude de conduta. Se for digno de ti, casa com ele quando enviuvares. Serás rica e independente. Devolvendo-lhe a saúde poderás dar-lhe uma posição e uma carreira. O teu casamento seria então mais desculpável; agora nem seria bom falar nisso! Que seria de vós se vos aventurásseis a semelhante loucura? O desprezo de todos, a miséria, ele a consumir-se em Mordasov, a puxar as orelhas à garotada, que é a sua profissão, os dois a ler Shakespeare, e por fim a sua morte precoce e inevitável! Ao passo que, restituindo-lhe a saúde, conquista-lo para uma vida útil e virtuosa. Perdoa-lhe e adorar-te-á. A sua abominável ação amedrontou-o, mas, se lhe abres uma nova vida e lhe perdoas, dar-lhe-ás esperança e reconciliá-lo-ás consigo próprio. Pode fazer-se oficial, pode subir e, ainda que não se restabeleça, morrerá satisfeito, em paz, nos teus braços (porque poderás estar a seu lado nesse transe), certo do teu amor, do teu perdão, à sombra dos mirtos, dos limoeiros, sob o azul do céu estrangeiro. Oh, Zina! Tudo isso está nas tuas mãos! Tudo podes conseguir mediante o teu casamento com o Príncipe.
Maria Alexandrovna tinha terminado. Seguiu-se um longo silêncio. Era indiscutível o estado de agitação de Zina.
Em vão tentaríamos explicar os seus sentimentos e nem sequer nos aventuraremos a conjeturas; mas parecia que Maria Alexandrovna tocara a fibra sensível do seu coração. Sem saber ao certo que espécie de sentimentos dominavam a filha, pôs-se a divagar em todas as direções até se sentir em caminho direito e seguro. Então atacou sem precauções o ponto mais vulnerável da ferida, exibindo, por inveterado costume, todo o arsenal de um nobre sentimentalismo que de outra forma não podia enganar Zina. «Que importa que não me acredite — pensava a mãe — se a semente não cair sobre pedras, se compreender o que lhe não posso dizer francamente?» E a mãe porfiou e conseguiu o seu fim. As suas palavras tinham produzido o desejado efeito. Zina ouvia com ansiedade, as faces ardiam-lhe, o seio arquejava violentamente.
— Ouve, mamã — disse por fim resoluta, embora a súbita palidez que lhe cobria o rosto revelasse o esforço da sua decisão. — Ouve, mamã!
Mas naquele momento, um ruído que vinha do vestíbulo e uma voz destemperada que perguntava pela dona da casa fizeram Maria Alexandrovna saltar da cadeira.
— Meu Deus! Que diabo nos traz essa gralha da coronela se ainda não há quinze dias a pus fora da nossa casa — acrescentou desesperada. — Mas agora é-me impossível não a receber! Impossível! Traz notícias, sem dúvida, senão não teria coragem de cá vir. Isto é grave, Zina... Tenho que saber... Não me convém deixar nada ao acaso!... Ah! Quanto lhe agradeço a sua visita — gritou precipitando-se ao encontro da recém-vinda. — A que se deve o ter pensado em mim, querida Sofia Petrovna? Que encantadora surpresa.
Zina fugiu da sala.
CAPÍTULO VI
A «coronela» Sofia Pelrovna Karpukin só tinha com a gralha uma semelhança moral; no físico parecia-se mais com o pardal. Era miúda, com os olhitos penetrantes e a cara cheia de sardas amarelas. Tinha perto de cinquenta anos e o seu corpo seco, envolto num vestido de seda que rangia sempre, porque a coronela não estava um momento quieta, aguentava-se sobre as pernas mirradas e fortes como patas de pardal. Era rancorosa e desbocada. O ser «coronela» enlouquecera-a. Guerreava com o marido e dava-lhe bofetadas com frequência. Além disso bebia quatro copos de vodka pela manhã, outros tantos à tarde e odiava, até ao delírio, Ana Nikolaevna Antipov, que a tinha posto fora de casa na semana anterior, e Natália Dmitryevna Paskudin, que presenciara o facto.
— Venho por um momento, minha querida — gorjeou. — Nem devia ter-me sentado. Vim só inteirá-la dos estranhos acontecimentos que se estão passando. Toda a cidade anda à volta do Príncipe. Essas velhacas, vous comprenez, perseguem-no, atraem-no, arrebatam-no umas às outras e enchem-no de champanhe... não faz ideia! Como consentiu que ele saísse daqui? Sabe que ele está agora em casa de Natália Dmitryevna?
— Em casa de Natália Dmitryevna? — exclamou Maria Alexandrovna preocupada. — Mas se saiu só para cumprimentar o Governador, e talvez Ana Nikolaevna, mas essa mesma só por um momento, sem se demorar!
— Só por um momento! Não lhe digo nada! Arranque-o de lá se pode! Não encontrou o Governador e foi ver Ana Nikolaevna prometendo-lhe jantar com ela; mas Natália Dmitryevna, que está sempre lá, levou-o para casa. Ora aí está o que fez o seu Príncipe!
— Mas, e... e Mozglyakov? Ele prometeu-me...
— Sim, o seu Mozglyakov! Boa vai ela! Foi com ele. Só falta que se ponham a jogar às cartas e a perder todo o dinheiro como da outra vez! O Príncipe também o deixaram limpo como um prato! E as coisas que essa Natália anda a propalar! Diz em voz alta que você anda a tentar intrujar o Príncipe, com determinado fim... compreende? Está a dizê-lo a ele próprio. É claro que o Príncipe não percebe nada. Está como um gato molhado e responde a tudo: «Ah, sim! Ah, sim!» Além disso apresentou-o a Sonka, imagine, uma menina de quinze anos com saias pelos joelhos; pense bem... Até mandaram buscar Maska, essa orfãzita que também usa ainda as saias curtas... vi-o eu com os meus óculos. Puseram-lhe um chapelito vermelho, enfeitado com plumas, na cabeça, eu cá não sei para quê!, e fizeram-nas dançar a dança cossaca ao piano, na presença do Príncipe. Já conhece a fraqueza dele: caía-lhe a baba, de gozo! «Que contornos, que contornos», murmurava. Contemplava-as embevecido, que elas marcavam bem a dança! Estavam encarnadas, levantavam as pernas e exibiam-se com tal descaramento que me envergonhei e acabei por não olhar. Uf! E chamam àquilo uma dança! Eu também bailei a dança do xaile, numa festa realizada no colégio de Madame Jarnés e aquilo, sim, que foi um espetáculo sério. Até senhores, que lá estavam, me aplaudiram! Nesse colégio educavam-se as filhas de muitos príncipes e condes. Mas isto é um can-can e nada mais. Morreria de vergonha, morreria com certeza! Não pude resistir!...
— Mas... você estava em casa de Natália Dmitryevna? Porque, você...
— Sim, insultou-me a semana passada e eu digo-o sinceramente a toda a gente. Mas, minha querida, eu queria ver o Príncipe, ainda que fosse apenas através da fenda de uma porta, e fui. De que outra maneira o poderia ver? Se não fosse por causa desse extraordinário Príncipe não teria ido lá tão cedo. Imagine que ofereceu chocolate a toda a gente menos a mim; não me deram os bons dias e nem sequer me dirigiram a palavra durante todo o tempo. Fez isso para me mortificar, a grande porca! Mas há de pagar-mas! E agora, adeus minha querida. Tenho pressa, muita pressa. Vou ver Akulina Panfilovna, para lhe contar... Ah! Pode rezar pela alma do Príncipe que ele não voltará. Já sabe que não tem memória e que Ana Nikolaevna o levará para casa. Temem que você... compreende? Por Zina.
— Quelle horreur!
— Asseguro-lhe que toda a cidade fala do mesmo! Ana Nikolaevna está empenhada em fazê-lo jantar em casa dela e em retê-lo a seu lado. E tudo para a humilhar a si, minha querida! Dei uma vista de olhos pelo pavilhão dos criados... que desordem ali reina! Que barulho de pratos e travessas! Até encomendaram champanhe! Vá depressa e agarre-o na rua quando ele se dirigir para lá. Não é seu hóspede e não prometeu jantar cá? Porque é que lho hão de tirar? Não consinta que essa pécora, essa cadela se ria de si! Não vale nem as solas dos meus sapatos, embora seja mulher do delegado! Eu também sou a «coronela» e fui educada no pensionato aristocrático de Madame Jarnés. Não faltava mais nada! Adeus, meu anjo! Se o meu trenó não estivesse à minha espera, acompanhá-la-ia...
O diário ambulante (era conhecida por esse nome) desapareceu.
Maria Alexandrovna tremia toda, mas o conselho da «coronela» era prático e claro em extremo. Não havia tempo a perder, mas ainda restava a maior dificuldade. Maria Alexandrovna correu ao quarto de Zina.
Zina passeava cabisbaixa e presa de funda perturbação. Através das lágrimas que lhe velavam os olhos, fitou a mãe resolutamente, esforçando-se por conter o pranto e cerrando os lábios com um sorriso irónico.
— Mamã — disse antecipando-se — puseste muita eloquência nas tuas palavras, demasiada até, mas não me deslumbraste: não sou uma menina. Animar-me a que me sacrifique como uma irmã de caridade para o que nunca senti vocação; justificar, com nobres motivos, baixos egoísmos é mera casuística, que não pode enganar-me. Entendes? Que não pode enganar-me! E interessa-me que o saibas!
— Mas, meu amor! — exclamou Maria Alexandrovna abatida.
— Cala-te, mamã. Ouve com paciência até que eu acabe. Embora reconheça perfeitamente que é tudo puro embuste, embora me dê conta da baixeza desse procedimento, aceito a tua proposta, entendes? Em absoluto! Estou disposta a casar-me com o Príncipe e a secundar todos os teus esforços para o decidir ao matrimónio. Não precisas de saber qual o motivo da minha resolução; basta-te saber que a tomei e que estou decidida a tudo: a calçá-lo, a servi-lo, a bailar para o contentar, a humilhar-me perante ele. Farei o impossível para que não se arrependa de ter casado comigo. Mas, em troca, insisto em que me digas como te vais arranjar para o lograr. Conheço-te bem; não terias porfiado tanto sem ter um plano determinado. Sê franca, uma vez na vida. A sinceridade é condição indispensável. Não darei um passo sem saber exatamente como pensas resolver tudo.
Foi tão grande o assombro de Maria Alexandrovna que ficou por momentos petrificada, com os olhos fixos nos da filha e dominada por um medo singular. Ia preparada para lutar com o obstinado romantismo de sua filha, cuja retidão de consciência a preocupava, e, misteriosamente, encontrava-a de acordo e decidida a tudo contra as suas próprias convicções. O assunto estava simplificado e isto enchia-a de alegria.
— Zinotcka! — exclamou com entusiasmo. — És a carne da minha carne, o sangue do meu sangue!
E, sem poder continuar, apertou a jovem contra o peito.
— Deus meu! Não te peço abraços, mamã! — gritou Zina impaciente e desgostosa. — Não quero esses arrebatamentos. Quero que respondas à minha pergunta e nada mais.
— Mas, Zina, se eu te amo! Adoro-te e tu repeles-me... Bem sabes que faço o que posso para que sejas feliz.
E lágrimas sinceras corriam-lhe pelo rosto, porque amava a filha, à sua maneira, e, perante aquele êxito, o seu coração derretia-se de terna emoção. Zina, apesar de certa dureza de expressão, confessava a si própria que sua mãe a adorava, e aceitava esse amor como um fardo.
— Bem, mamã, não te desgostes. Estou tão atordoada! — disse para a tranquilizar.
— Sim, não me desgosto, minha querida, não me desgosto — replicou Maria Alexandrovna recuperando coragem. — Compreendo que estejas aturdida. Bem, filha, insistes em que seja franca... e eu vou ser completamente franca, garanto-te. E para começar confesso-te que não tenho plano definitivo, quer dizer, concreto, o que, aliás, não me convém, como uma rapariga inteligente como tu compreenderá imediatamente... Prevejo certos obstáculos... Essa gralha acaba de encher-me a cabeça com a sua conversa idiota... Céus! Devo apressar-me. Já vês como sou franca! Mas juro-te que conseguirei o meu intuito — acrescentou com entusiasmo. — A minha confiança não é mera fantasia como tu dizias há pouco, meu anjo; baseia-se na realidade, na absoluta imbecilidade do Príncipe, que é a talagarça onde bordarei a meu gosto. O principal é que não me estorvem! Mas seriam capazes de pensar que essas parvas me atemorizam! — afirmou dando uma pancada na mesa, com os olhos brilhantes. — Deixem-nas comigo! O que é preciso é começar quanto antes e deixar tudo resolvido, hoje até, se for possível.
— Perfeitamente, mamã; mas escuta... uma franqueza a mais: sabes por que me interessa tanto conhecer o teu plano e pôr nele toda a minha confiança? É porque não tenho confiança em mim própria. Já te disse que estou decidida a cometer essa baixeza; mas, se os pormenores do teu plano forem demasiado repugnantes, participo-te que deitarei tudo a perder. Confesso-te que estou resolvida a cometer uma vileza; e fazer cara feia às porcarias com que se elabora é prova de maior ruindade; mas não o posso remediar. Será inevitável!
— Mas, Zinotcha, que há de vil nisto tudo, minha querida? — protestou a mãe com timidez. — Não se trata senão de um casamento vantajoso e toda a gente procura fazê-lo. Olha-o sob este ponto de vista e tudo terá um aspeto nobre...
— Mamã, por Deus, peço-te: não tentes enganar-me! Já vês que concordo com tudo; com tudo! Que mais queres? Mas não te alarmes se chamo às coisas pelo seu nome. Talvez eu faça disso, agora, a minha única consolação.
E os seus lábios abriram-se num amargo sorriso.
— Perfeitamente, perfeitamente, minha querida; podemos não ser da mesma opinião e respeitarmo-nos mutuamente. Quanto ao meu plano, asseguro-te que nem uma gota de lodo salpicará a tua alma. Crês-me capaz de te comprometer aos olhos dos outros? Confia em mim e tudo se resolverá com absoluta dignidade. Acima de tudo, a dignidade! Não haverá o menor escândalo, mas mesmo que houvesse um bocadinho, coisas que, às vezes, não se podem evitar, que importa? Afastar-nos-íamos daqui! Supões que íamos ficar? Que murmurem o que quiserem; pouco nos importará! É claro que há de haver invejosos, mas não merecem senão desprezo. Parece mentira, Zinotcha... não te aborreças... por que é que os temes, com o teu orgulho?
— Mamã, eu não temo ninguém! Não me compreendeste — respondeu Zina, irritada.
— Vamos, vamos, meu amor, não te aborreças! Queria dizer que esses velhacos todos os dias fazem porcarias, e se nós uma vez na vida... Mas sou tonta! Que estou a dizer? O que nós vamos fazer não é sujo. Que há nisto de sujo? Pelo contrário, é perfeitamente digno! Provar-to-ei, Zina. Digo e repito que tudo depende do teu ponto de vista...
— Basta, mamã, não quero mais provas!'— gritou Zina acaloradamente, batendo com um pé no chão.
Seguiu-se um curto silêncio. Maria Alexandrovna esperou timidamente que sua filha falasse, olhando-a nos olhos como um cãozito que teme a reprimenda do dono.
— Não sei como te vais arranjar — insistiu Zina com repugnância. — Estou certa de que vais conseguir uma afronta. A mim pouco me importa o que disserem, mas isto será para ti uma vergonha.
— Se é isso que te inquieta, tranquiliza-te, meu anjo. Peço-te, suplico-te. Desde que estejamos de acordo não te deves preocupar comigo. Se soubesses as tormentas que tenho vencido! Os perigos em que me vi metida e as dificuldades que tive de afrontar! Não; deixa-me tentar. Em todo o caso é preciso não perder tempo e trazer o Príncipe para aqui. É por aí que se tem de começar. O resto não o posso prever. Levantar-se-ão em armas, mas... não importa. Contê-los-ei em respeito. Quem me assusta é Mozglyakov, que...
— Mozglyakov! — repetiu Zina com desprezo.
— Sim, Mozglyakov; mas não receies nada, Zinotcha. Pô-lo-ei em tais apertos que ele próprio nos ajudará. Não me conheces, Zinotcha! Não sabes do que sou capaz quando se trata de sair de um apuro. Ah, Zinotcha querida! Mal soube que o Príncipe tinha vindo, logo a ideia me passou pela cabeça. Foi como uma revelação, como um raio de sol que me iluminasse a cabeça. E quem pensaria que ele se hospedaria em minha casa? Nem em mil anos se nos apresentaria uma oportunidade como esta! Zinotcha, meu anjo, não é nenhuma desonra casar-se com um velho decrépito, como seria aceitar um homem que não pudesses suportar e a quem te visses ligada como mulher. Não serás de facto a mulher do Príncipe. Não te vais casar, propriamente falando, mas firmar um contrato doméstico que, no final de contas, redundará em benefício para esse imbecil a quem vais conceder uma felicidade inapreciável. Ah, que formosa estás hoje, Zinotcha! Formosa! Bem mais: és uma rainha de beleza! Se eu fosse homem dar-te-ia a metade de um reino que me pedisses! São todos uns parvos! Quem pode resistir a beijar a tua mão? — e a mãe beijou gulosamente a mão da filha. — És a carne da minha carne! Casaremos à força esse velho louco! E como nós viveremos as duas, Zinotcha! Não te separarás da tua mãe, quando fores feliz? Embora a gente guerreie, nunca encontrarias uma mãe que te quisesse tanto como eu, nunca...
— Mamã, se estás decidida, talvez sejam horas... de fazeres alguma coisa. Estás perdendo o tempo! — opinou Zina, com impaciência.
— São horas, Zina, são horas! E eu aqui a tagarelar! Tentam seduzir o Príncipe para o reter. Irei num trenó e chegarei lá num momento. Chamarei Mozglyakov e depois... Trá-lo-ei à força se for necessário! Adeus, Zinotcha, adeus, querida; não te aflijas, não temas nada, nem fiques triste... sobretudo não fiques triste. Tudo se resolverá perfeitamente; tudo se levará a cabo com dignidade e decoro. Nisto consiste a diferença do nosso modo de ver o assunto... Bem, adeus, adeus.
Maria Alexandrovna abençoou Zina com o sinal da cruz, mirou-se, e compôs-se em frente do espelho do seu quarto; e dez minutos depois deslizava pelas ruas de Mordasov no trenó que àquela hora esperava sempre para a levar às visitas. Maria Alexandrovna vivia à grande.
Não!, pensava ao subir para o trenó, não me afastarão. Zina consente e isso significa para mim metade do caminho andado. Eu deixar-me vencer! Tolices! Vamos! Zina finalmente concordou! É uma alma sentimental e comoveu-a a ideia do futuro pintado com cores tão vivas. Mas que formosa estava hoje! Com a sua beleza eu arrastaria atrás de mim toda a Europa. Quem viver, verá!... Quando ela começar a sua vida de princesa e tiver visto duas ou três coisas... adeus Shakespeare! O que é que conhece agora? Mordasov e o tal mestre-escola... Bah! E que princesa vai ser! Eu admiro o seu orgulho, a sua altivez; não há ninguém que se lhe compare. Quando fita alguém parece uma rainha. Como podia deixar de compreender as vantagens que isto lhe trará. Por fim, viu e ainda há de ver o resto... Eu ficarei ao pé dela e acabará por me acreditar em tudo. Eu própria serei uma princesa. Conhecer-me-ão em S. Petersburgo. Adeus, horrenda cidade de Mordasov! O velho morre e eu então casá-la-ei com um príncipe reinante. Só receio uma coisa: não terei confiado demasiado nela? Não terei sido excessivamente franca? Não me terei deixado levar longe de mais pelos meus sentimentos? Esta rapariga faz-me medo, medo!
E Maria Alexandrovna abismou-se nos seus pensamentos, que, não é preciso dizer, se cruzavam em tropel na cabeça.
Zina, só, passeou muito tempo pelo seu quarto, de braços cruzados, pensativa. Inconscientemente repetia: «Já são horas, já são horas, demasiado o sei!» Que significava essa lacónica exclamação? Por mais de uma vez as lágrimas brilharam nas suas longas e finas pestanas e nada fez para as reter ou para as enxugar. Mas sua mãe não tinha necessidade de inquietar-se nem de se esforçar para penetrar os pensamentos da filha. Zina tinha tomado uma resolução e estava disposta a arrostar com todas as consequências.
Ora esta!, pensava Nastasya Petrovna ao sair do quarto escuro quando a coronela se despediu. E eu que pensava pôr um laço encarnado para receber esse infeliz Príncipe e era tão parva que supunha que se ia casar comigo! Ah, Maria Alexandrovna! Com que então sou uma porca, uma pedinte que exige duzentos rublos como suborno? É-me bem feito por não te ter deixado só e não ter aceitado nem um rublo de uma mulher tão soberba como tu. Peguei no dinheiro honradamente para os gastos que o trabalho requeria... Podia ter ficado com uma comissão! Supõe ela por acaso que arrombei a fechadura com as minhas mãos? Está bem! Enquanto eu estava realizando essa porcaria em seu benefício, ela permanecia tranquilamente sentada com os braços cruzados. Borda, borda à tua vontade nesta talagarça. Já vos demonstrarei às duas se sou uma porca. Ides aprender a abusar de Nastasya Petrovna e da sua bondade!
CAPÍTULO VII
Mas dir-se-ia que um génio protetor guiava Maria Alexandrovna. O seu projeto era grande e audacioso: casar a filha com um homem opulento, com um Príncipe, com um cadáver ambulante, e casá-la sem que ninguém o soubesse, aproveitando a imbecilidade e, omnímoda resignação do seu hóspede, roubando-o como mais tarde os outros diriam. Não se pode negar que era um projeto audaz e temerário que, se oferecia as suas vantagens, ocasionaria também ao autor a maior das vergonhas se fracassasse. Maria Alexandrovna sabia-o muito bem, mas não desesperava. «Não sabes tu de que tormentas saí indemne» tinha dito a Zina, e era verdade. De outra forma não seria considerada uma heroína.
Sem dúvida que tudo aquilo parecia coisa de bandoleiros, mas a dama não prestava muita atenção a isso, escudando-se numa frase admirável que não tinha réplica: «Uma vez casada, já não pode descasar-se». Ideia sensata, mas que lhe excitava a imaginação ao ponto de a fazer estremecer, só com o pensamento das suas proveitosas consequências. Agitada e nervosa lá ia no trenó, como se a arrastassem sobre brasas. Como mulher de inspiração, dotada de verdadeira faculdade criadora, tinha o seu plano traçado de antemão; mas a traços largos e de uma forma confusa. Esperava uma série de circunstâncias imprevistas mas confiava em si própria e a sua agitação não era provocada pelo medo do fracasso, mas pelo afã de começar a refrega quanto antes. A sua impaciência, muito compreensível, causava-lhe febre, só de pensar nas demoras e obstáculos. E, já que falamos de obstáculos, permitam-nos que nos expliquemos mais claramente.
Maria Alexandrovna esperava as maiores dificuldades das suas concidadãs, e sobretudo das mais categorizadas senhoras de Mordasov, cujo implacável ódio contra ela demasiado conhecia. Estava completamente certa, por exemplo, de que naquele momento todos sabiam já quais eram as suas intenções, embora ninguém lhes tivesse dito nada. Uma triste experiência ensinava-lhe que o menor incidente ocorrido em sua casa, de manhã, ainda o mais secreto, era conhecido à tarde, até pela mais humilde vendedeira da praça, ou pelo mais modesto empregado de comércio. É claro que ela não fazia mais que pressentir o perigo, mas os seus pressentimentos nunca a tinham enganado e também a não enganariam agora. O que sucedera então, e ela ignorava, era isto: pelo meio-dia, umas três horas depois da chegada do Príncipe, começaram a circular por Mordasov estranhos rumores. Ninguém sabia donde provinham mas o caso é que se propagaram rapidamente. Toda a gente afirmava que Maria Alexandrovna tinha concedido ao Príncipe a mão de sua filha Zina, sem dote e com vinte e três anos; que Mozglyakov fora corrido e tudo estava assente e combinado. Em que se fundavam semelhantes rumores? Pretenderiam, por acaso, conhecer tão a fundo Maria Alexandrovna que penetrassem os seus mais secretos pensamentos e propósitos? Nem a inverosimilhança de tais rumores, dentro da ordem estabelecida das coisas (pois um assunto assim não se resolve numa hora), nem a impossibilidade de descobrir a origem da notícia poderiam dissuadir a gente de Mordasov. O rumor difundiu-se e arreigou-se com extraordinária obstinação. E o mais notável é que começou a circular no momento preciso em que Maria Alexandrovna e Zina começaram a falar sobre o mesmo tema.
Que olfato tão fino têm os provincianos! A intuição desses boateiros chega às vezes a ser milagrosa e explica-se perfeitamente. É baseada na maneira interessada com que se estudam uns aos outros muito de perto, e durante anos e anos. Todo o provinciano se mostra como se vivesse numa casa de cristal, sem que seja possível ocultar nada da vista dos seus honrados vizinhos. Conhecem os outros de memória, e sabem dos outros certas coisas que até eles próprios ignoram. O provinciano devia ser, por sua própria natureza, um psicólogo, um especialista da natureza humana. Daqui o meu constante assombro, por não encontrar na província psicólogos mas, pelo contrário, tão grande quantidade de palermas. Mas isto é um aparte, uma digressão supérflua.
A notícia difundiu-se com a rapidez de um relâmpago. O casamento com o Príncipe parecia a toda a gente tão vantajoso, tão brilhante que a ninguém ocorreu pensar o que nele haveria de estranho. Mas havia outra circunstância ainda: Zina quase que era mais odiada do que Maria Alexandrovna. Por que razão? Não sei. Talvez seja preciso pensar na beleza de Zina e no facto de sua mãe, ao fim e ao cabo, se parecer com todas as senhoras de Mordasov, e ser por elas considerada da sua igualha. É possível até que, se um dia desaparecesse da cidade, para cuja animação tanto contribuía com os seus atos, lhe sentissem a falta. Talvez, sem ela, a cidade se tornasse mais aborrecida. Zina, ao contrário, vivia mais nas nuvens do que em Mordasov; não estava ao nível daquela gente nem parecia sua igual. E, talvez, sem se dar conta, se conduzisse com demasiada altivez para que a suportassem com agrado. Além disso, Zina, da qual se contava uma história escandalosa, a orgulhosa, a altiva Zina ia converter-se em milionária e princesa, e ingressar assim na mais alta aristocracia. Em poucos anos enviuvaria para se casar com um duque ou um general, e talvez quem sabe se com um Governador (o de Mordasov era precisamente viúvo e sentia grande fraqueza pelo belo sexo). Tornar-se-ia então a mulher mais poderosa da província, o que era uma coisa intolerável e explicava que nenhuma notícia pudesse produzir tanta indignação em Mordasov como a do seu casamento com o Príncipe.
Houve um clamor unânime de protesto. Dizia-se que era uma indignidade, uma vileza, e que o Príncipe estava doido; que tinham enganado o velho valendo-se da sua imbecilidade; que era um assalto, um ato de bandoleirismo, uma imoralidade, que era preciso salvá-lo da rapacidade da mãe e da filha, e que outras jovens valiam tanto como Zina e tinham igual direito a casar-se com o Príncipe.
Tudo isto era simples suposição, mas era o suficiente para ela, que estava certa da guerra sem quartel que todas, absolutamente todas, lhe declarariam para a fazer fracassar. E começavam por disputar-lhe o Príncipe, de tal maneira que se via obrigada a arrebatá-lo à viva força. E, se o conseguisse, não poderia retê-lo sempre a seu lado.
Quem lhe assegurava que naquele mesmo dia, dentro de duas horas, não teria todas as mulheres de Mordasov reunidas em solene conclave no seu próprio salão? Quem impediria que a fossem visitar com um pretexto que tornasse impossível o deixar de as receber? E, se lhes fechasse a porta, entrariam pela janela... proeza quase impossível, mas não sem precedentes em Mordasov. Em todo o caso, tinha que aproveitar o tempo, pois tudo estava por fazer.
De súbito, uma ideia genial nasceu e amadureceu num momento no espírito de Maria Alexandrovna. Mas já falaremos dessa ideia em seu devido tempo. Por agora só diremos que a nossa heroína voava a toda a velocidade pelas ruas de Mordasov, com as sobrancelhas unidas, inspirada, decidida a dar batalha para reconquistar o Príncipe. Não sabia ainda como proceder nem onde o encontraria mas estava certa de que primeiro derrocaria Mordasov do que fracassasse um só pormenor do seu projeto. O seu primeiro passo não podia ser mais feliz. Teve a sorte de encontrar o Príncipe na rua e levá-lo a jantar. Se me perguntarem como conseguiu triunfar nisto, apesar das ciladas dos seus inimigos, como se Ana Nikolaevna fosse uma estúpida, ver-me-ei obrigado a dizer que considero a pergunta uma ofensa para Maria Alexandrovna. Quem era Ana Nikolaevna para lutar com ela? Deteve singelamente o Príncipe que se dirigia para casa da sua rival, e apesar de tudo — inclusive dos protestos de Mozglyakov, que temia um escândalo — fê-lo subir para o trenó. Era isto precisamente o que distinguia Maria Alexandrovna de todas as suas rivais: no momento crítico não se detinha com medo ao escândalo, respeitando o seu lema de que o êxito justifica tudo. É escusado dizer que o Príncipe opôs fraca resistência e que, esquecendo tudo imediatamente, como sempre, se mostrou encantado. No jantar nunca deixou de conversar, animado como nunca, divertindo-os a todos com as suas graças e ditos de espírito, contando anedotas que não acabavam, e passando de um tema a outro sem dar por isso.
Em casa de Natália Dmitrievna tinha bebido três taças de champanhe, durante o jantar bebeu mais e ficou completamente embriagado. A própria dona da casa tratava de lhe encher a taça. Os acepipes eram bons porque o monstro do Niquita não se lembrou de queimar o jantar. Maria Alexandrovna alegrava a mesa com as suas graças admiráveis, mas os outros pareciam ter-se posto de acordo para se manterem graves. Zina guardava um silêncio majestoso. Mozglyakov comia pouco, estava pensativo, taciturno, e isto, que era nele muito raro, preocupava a dona da casa. Nastasya Petrovna, tristonha, fazia sinais a Mozglyakov, que não reparava nela. Sem a vivacidade do hóspede, o jantar leria parecido um banquete fúnebre.
Maria Alexandrovna esforçava-se por esconder a sua profunda excitação. Zina assustava-a com o seu ar triste e os seus olhos chorosos. Tinha que se apressar e pôr mãos à obra, e aquele maldito do Mozglyakov estava ali como um cabeçudo, imperturbável, atravessado no caminho! Impossível ir para a frente se ele não se afastasse. Presa de viva inquietação, Maria Alexandrovna levantou-se da mesa, e qual não seria o seu assombro, o seu agradável espanto, se nos é permitida a expressão, quando o rapaz se aproximou dela para lhe anunciar inesperadamente que, com grande pesar seu, se via obrigado a despedir-se.
— Onde vai o senhor? — perguntou-lhe a dona da casa mostrando-se aborrecida.
— Ora ouça, Maria Alexandrovna — começou Mozglyakov com certo embaraço, — aconteceu-me uma coisa muito aborrecida. Realmente não sei como lhe explicar... Por Deus! Dê-me um conselho.
— Mas o que há?
— Meu padrinho Boroduev, o comerciante que conhece, encontrou-me hoje. Está muito irritado comigo e disse-mo, chamando-me orgulhoso. Já é a terceira vez que venho cá sem que ele me veja. «Vem hoje tomar o chá comigo», disse-me. São já quatro horas e ele toma o chá, segundo o costume antigo, depois da sesta. Que hei de fazer? É um contratempo. Maria Alexandrovna diga-me lá... Foi ele quem salvou o meu pai da forca quando jogou o dinheiro do Estado, e a isto se deve que fosse meu padrinho. Se me couber a felicidade de me casar com Zina Afanasyevna, não terei mais que cento e cinquenta servos. Ora ele é milionário, não tem filhos e já passa dos sessenta anos, repare bem! Se estiver em boas relações com ele pode deixar-me cem mil rublos em testamento.
— Santo Deus! Que faz o senhor aqui? Porque perde tempo? — gritou Maria Alexandrovna com mal dissimulado alívio. — Vá vê-lo, vá vê-lo! Não deixe escapar a ocasião! Afirmo-lhe que durante o jantar percebi a sua preocupação. Vá, meu amigo, vá! Já lhe devia ter feito uma visita esta manhã para lhe demonstrar que aprecia a sua bondade. Ah, estes rapazes, estes rapazes!
— Mas se até a senhora, Maria Alexandrovna, me deitava em cara essas relações! — exclamou Mozglyakov assombrado. — Dizia a senhora que era um camponês barbudo, parente de estalajadeiros e de gente de ínfima classe.
— Oh, mon ami! Quantas coisas se dizem sem refletir. Eu também me posso enganar como qualquer outra... não sou uma santa. Não me recordo, mas é possível, em certo estado de espírito... Além disso, nessa altura, o senhor não cortejava Zina... Claro que é egoísmo da minha parte mas vejo-me obrigada a olhar as coisas sob outro ponto de vista, e que mãe me poderia criticar? Vá, não perca um momento! Passe com ele a tarde... e ouça: dê-lhe lembranças da minha parte. Diga-lhe quanto o aprecio, quanto o estimo, quanto o respeito; mas diga-lho com muito tato, com muita delicadeza! Deus meu! Como o pude esquecer! Se eu própria devia ter-lho aconselhado!
— A senhora tranquiliza-me por completo, Maria Alexandrovna — disse Mozglyakov encantado. Agora obedecer-lhe-ei em tudo. É que... envergonhava-me dizer-lho! Bem, adeus! Vou-me... Desculpe-me perante Zina Afanasyevna, embora depressa...
— Dou-lhe a minha bênção, meu amigo. Não deixe de lhe falar de mim. É um velho amabilíssimo. De há um tempo para cá mudei a opinião que tinha a respeito dele. Embora, para dizer a verdade, sempre apreciasse nele os antigos costumes russos. Até à vista, meu amigo, até à vista!
Graças ao diabo que o leva! Mas não; vejo nisto a mão de Deus que nos ajuda, pensava sufocada de alegria.
Pavel Alexandrovich estava já no vestíbulo pondo o sobretudo quando lhe apareceu Nastasya Petrovna, vinda não se sabe donde.
— Onde vai o senhor? — perguntou-lhe agarrando-lhe num braço.
— Ver Boroduev, que teve a bondade de me apadrinhar. É um homem rico e velho que me deixará alguma coisa e a quem devo ir ver.
Pavel Alexandrovich estava radiante de satisfação.
— Vai ver Boroduev? Pois bem, pode despedir-se da sua noiva — disse Nastasya Petrovna, rudemente.
— Que quer dizer? Despedir-me?
— Como lhe digo. Supõe que ainda é sua quando pensam em casá-la com o Príncipe! Eu própria o ouvi!
— Com o Príncipe! Por piedade, Nastasya Petrovna!
— Sim, por piedade! Quer ver com os seus próprios olhos? Tire o sobretudo e siga-me.
Pavel Alexandrovich tirou o sobretudo e, como um autómato, deixou-se conduzir ao quarto escuro, onde ela estivera escutando de manhã.
— Meu Deus! Nastasya Petrovna, não compreendo!
— Compreenderá quando ouvir. Não tarda em começar a farsa.
— Qual farsa?
— Não fale tão alto! A farsa desta vez é contra si. Esta manhã, quando o senhor saiu, Maria Alexandrovna esteve mais de uma hora a persuadir Zina a casar-se com o Príncipe declarando que não havia nada mais fácil do que enganá-lo e alegando tais razões que senti náuseas. Ouvi tudo daqui. Zina consentiu. O que as duas disseram de si! Chamaram-lhe parvo e Zina afirmou que por nada deste mundo se casaria consigo. Eu também sou uma parva! Pois não pensava pôr um laço encarnado! Ouça! Ouça!
— Mas isso seria uma felonia! — murmurou Pavel Alexandrovich olhando para Nastasya Petrovna com uma expressão idiota.
— Ouça e convencer-se-á.
— Mas como hei de ouvir?
— Aplicando o ouvido ao buraco da fechadura.
— Nastasya Petrovna... eu não costumo escutar às portas.
— Não há tempo para pensar nisso. Guarde a honra no bolso para melhor ocasião e, já que veio, escute.
— Mas...
— Se se considera incapaz disso, não se faça de parvo. Tive pena da sua situação e agora o senhor aparece-me com esses escrúpulos. A mim que me importa? Nem me aquece nem me arrefece. Esta mesma noite me irei embora daqui.
Pavel Alexandrovich, dominando os seus escrúpulos, baixou-se até pôr o ouvido no buraco da fechadura. O coração batia-lhe apressado, doíam-lhe as fontes e mal dava conta do que lhe sucedia.
CAPÍTULO VIII
— Divertiu-se muito em casa de Natália Dmitryevna, Príncipe? — perguntou Maria Alexandrovna, examinando o campo de batalha com os olhos de ave de rapina e esforçando-se por começar a conversa da forma mais inocente, embora o seu coração batesse de emoção e de impaciência.
Depois do jantar conduziu o Príncipe ao salão, onde o recebera pela manhã e onde tinham lugar todos os atos solenes da casa. Maria Alexandrovna estava orgulhosa daquele aposento. O velho, que bebera seis taças de champanhe, mal se podia suster. Mas não deixava de falar e a sua conversa era mais seguida e animada.
Maria Alexandrovna compreendeu que aquela excitação não podia durar muito e que em breve o seu hóspede ficaria amodorrado pelo efeito das libações. Tinha que aproveitar o momento. Examinando o campo de batalha, notou com alegria que o libidinoso ancião olhava para Zina com olhos de desejo e o seu coração maternal regozijou-se.
— Mui...tí...ssimo! — respondeu o Príncipe. — Bem sabe que Natália Dmitryevna é uma mulher incomparável... in...com...parável!
Apesar de preocupada com o seu plano, aquele elogio da sua rival sobressaltou Maria Alexandrovna e arrancou-lhe um protesto.
— Ora Príncipe! Não sei o que hei de dizer-lhe a propósito da opinião de Natália Dmitryevna ser uma mulher incomparável! O senhor diz isso porque não conhece a nossa sociedade, nem sabe nada a esse respeito. É tudo uma exibição de artificiosas qualidades e de enganosos sentimentos, apenas uma farsa: percalina e ouropel. Afaste as aparências e encontrará um verdadeiro inferno, e um ninho de víboras que o comeriam a si até aos ossos!
— Será possível?! — exclamou o Príncipe. — Deixa-me assombrado!
— Juro-lhe que é assim! Ah, mon Prince! Sabes, Zina, que me creio no dever de contar ao Príncipe aquele ridículo e indigno incidente que aconteceu com Natália Dmitryevna a semana passada? Recordas-te? Sim, Príncipe, trata-se de Natália Dmitryevna a quem admira tanto. Oh, querido Príncipe! Asseguro-lhe que não aprecio a bisbilhotice, mas tenho que lhe contar isto para o divertir e para que veja de um modo vivo, como se o estivesse contemplando num espelho, o que é a nossa gente. Há quinze dias Natália Dmitryevna veio ver-me. Serviu-se café e eu tive que sair da sala por algum tempo. Recordo-me perfeitamente do muito açúcar que havia no açucareiro de prata: estava cheio. Quando voltei e olhei, restavam apenas no fundo três torrões. Natália Dmitryevna tinha ficado só. Que lhe parece? É proprietária de uma casa e tem dinheiro em abundância! Isto é cómico e ridículo; mas o senhor não pode avaliar o nível da nossa sociedade.
— Será possí...vel? — repetiu o Príncipe sinceramente surpreendido. — Que gulosa! Comeu-o ela todo?
—Já vê que mulher tão incomparável, Príncipe! Não lhe parece um incidente vergonhoso? Eu creio que preferia cometer um assassinato a praticar um ato tão repugnante.
— Com certeza, com certeza... Mas é uma tão belle femme.
— Natália Dmitryevna! Pelo amor de Deus, Príncipe, com aquela barriga! Ah, Príncipe, Príncipe! O que o senhor está a dizer! Supunha que tinha melhor gosto.
— É verdade, com aquela barriga... mas tão engraçada... e a rapariga que dançava é também... tão engraçada...
— Sonitchka? Mas é uma criança! Não tem mais de catorze anos.
— Uma criança... mas é tão ágil e possui uns contornos... que desenvolvimento o dessas rapariguitas encantadoras! E a outra que bailava com ela também está desenvolvida...
— Ah, é uma pobre órfã, Príncipe. Está sempre lá.
— Uma órfã! É uma rapariga suja que bem podia lavar as mãos... Embora também seja sedutora...
E, enquanto falava, o Príncipe contemplava Zina com crescente avidez.
— Zina, toca-nos, ou melhor, canta-nos alguma coisa! Vai ver como ela canta, Príncipe! É uma artista, uma artista! E se o senhor soubesse, Príncipe — e Maria Alexandrovna prosseguiu em voz baixa, enquanto Zina se aproximava do piano com aquele seu andar lento e cadenciado que comovia o velho. — Se o senhor soubesse como é boa filha! Que boa alma que ela tem e como é terna comigo! Que coração! Que sentimentos!
— É isso... sentimentos... e a senhora sabe que só conheci na minha vida uma mulher que se lhe podia comparar em beleza? — interrompeu o Príncipe com a boca cheia de água. — Era a condessa Naiusky que morreu há trinta anos. Uma mulher fas...ci...nan...te, um prodígio de beleza... Depois casou com o cozinheiro...
— O cozinheiro dela, Príncipe?
— Sim, cozinheiro dela... um francês, um estrangeiro. Arranjou depois um título de conde. Era um homem muito bem parecido, de grande ilustração, com uns bigodes curtos como os meus.
— E... e como é que se davam, Príncipe?
— Davam-se muito bem, mas não levaram muito tempo a separar-se. Ele roubou-a e fugiu. Zangaram-se por causa de um guisado.
— Que toco, mamã? — perguntou Zina.
— Será melhor que nos cantes alguma coisa, Zina. Que bem que ela canta, Príncipe! O senhor gosta de música?
— Oh, sim. Charmant, charmant! Gosto muito. Dava-me com Beethoven no estrangeiro.
— Beethoven! Ouves, Zina? O Príncipe era amigo de Beethoven — exclamou Maria Alexandrovna cheia de alegria. — Deveras, Príncipe, o senhor conheceu Beethoven?
— Creio-o bem... éramos amigos; tinha sempre o nariz metido na caixa do rapé. Era um tipo divertido!
— Beethoven?
— Sim, Beethoven; e daí talvez não fosse Beethoven, mas algum outro alemão. Havia lá tantos! Creio que os confundi.
— O que canto, mamã?
— Ah, Zina! Canta essa romanza tão cavalheiresca, aquela da castelhana e do trovador... Oh, Príncipe! Como eu gosto dos tempos da cavalaria! Aqueles castelos, aqueles castelos! Aquela vida da Idade Média! Aqueles trovadores, arautos e torneios!... Eu acompanho-te, Zina. Sente-se mais perto, Príncipe! Ah, os castelos, os castelos!
— Decerto, os castelos. A mim também me agradam os castelos — tartamudeou o Príncipe com entusiasmo, fixando em Zina o seu único olho. — Mas... eu conheço essa canção. Ouvi há muito tempo essa canção. Evoca-me tais recordações... Ah! bons tempos!
Não me atrevo a descrever o que aconteceu ao Príncipe quando Zina começou a cantar. Cantava uma velha romanza francesa que estivera muito em voga e cantava-a maravilhosamente. A sua pura voz de contralto ia direito ao coração: o seu formoso rosto, os olhos magníficos, os dedos finos que passavam as páginas, os cabelos abundantes e negros, o seio forte, toda a sua pessoa, altiva e bela, fascinava o pobre velho. Não tirou os olhos de Zina enquanto ela cantou. O seu coração decrépito, aquecido pelo champanhe, a música e as recordações, palpitava cada vez mais forte, como não tinha palpitado há muito tempo e quando Zina acabou, o pobre velho estava quase a chorar.
— Oh, ma charmante enfant! — exclamou beijando-lhe os dedos. — Vous me ravissez! Agora, agora me lembro... Mas... mas... Oh! ma charmante enfant!...
E o Príncipe não pôde continuar. Maria Alexandrovna supôs que era chegado o momento.
— Está a deitar-se a perder, Príncipe! — exclamou solenemente. — Quanto sentimento! Quanta energia! Quanta riqueza moral! E pensar que se enterrou vivo na sua solidão! Que foge do mundo e dos seus amigos! É imperdoável! Reflita, Príncipe! Olhe para a vida, por assim dizer, com novos olhos. Evoque as recordações do seu coração... os seus tempos juvenis, aqueles tempos dourados da sua liberdade sem preocupações. Volte a vivê-los, reintegre-se na sociedade. Volte à vida e para o seio dos seus amigos! Vá ao estrangeiro, a Itália, a Espanha... a Espanha, Príncipe! O senhor precisa de um guia, de um coração que o ame, que o aprecie, que o compreenda. Mas o senhor tem amigos! Chame-os e eles acudirão em tropel para junto de si! Eu serei a primeira a abandonar tudo para acudir, correndo, a um simples sinal. Não esqueci a nossa amizade, Príncipe. Abandonaria meu marido para o seguir... e, se fosse mais nova, se fosse tão bonita e atraente como minha filha, seria sua companheira de viagem, sua amiga, sua esposa, se assim o desejasse...
— Estou certo de que, no seu tempo, a senhora foi uma pessoa encantadora — disse o Príncipe assoando-se e com as lágrimas nos olhos.
— Voltamos a viver nos nossos filhos, Príncipe — respondeu Maria Alexandrovna, efusivamente. — Eu também tenho o meu anjo da guarda que é a minha filha, a amiga da minha alma, que compartilha dos meus pensamentos, Príncipe. Já recusou sete pretendentes para não se separar de mim.
— Dessa forma virá connosco quando a senhora me acompanhar ao estrangeiro? Nesse caso não deixarei de ir ao estrangeiro — exclamou o Príncipe animando-se, por momentos. — Irei com certeza. E se pudesse conceber a esperança... Mas é uma rapariga encantadora, encan...ta...dora! Ah, minha encantadora menina!... — E o Príncipe pôs-se a beijar a mão da jovem. O pobre homem queria cair de joelhos a seus pés.
— Mas... mas, Príncipe, por que é que diz «se eu pudesse conceber a esperança»? — replicou Maria Alexandrovna sentindo a inspiração do momento. — Que complicado o senhor é, Príncipe! Considerar-se-á, por acaso, indigno das atenções de uma mulher? Não é a juventude que nos torna agradáveis. Lembre-se de que o senhor é, por assim dizer, uma relíquia da antiga aristocracia. O senhor é o protótipo do homem que possui os mais refinados e cavalheirescos sentimentos. Recordo-me de ter lido que Lauzun, aquele elegante marquês da corte de Luís... não me lembro qual dos Luíses, no ocaso, sendo já velho, conquistou o coração de uma das belezas da Corte... E quem lhe disse ao senhor que era velho? Quem lhe inculcou essa ideia? Os homens como o senhor não envelhecem. O senhor, tão rico de sentimentos, de alegria, de engenho, de vitalidade! Apresente-se em quaisquer termas do estrangeiro com uma mulher nova, tão bela como Zina, e verá o efeito sensacional que faz! O senhor, uma sobrevivência da aristocracia; ela, uma rainha de beleza! Se o senhor a levar pelo braço, em triunfo; se ela cantar numa sociedade aristocrática, enquanto o senhor, pela sua parte, fizer fulgurar o seu talento, todas as termas se agruparão ao vosso lado. Por toda a Europa ressoaria o seu nome, por todos os periódicos, todas as gazetas das termas falariam do mesmo...
— As gazetas... Oh, sim! Nos periódicos... — balbuciou o Príncipe, sem compreender nem a metade do discurso de Maria Alexandrovna e enlanguescendo, por momentos. — Mas... minha filha, se não está cansada, repita a canção que acaba de cantar...
— Ah, Príncipe! Ela sabe outras mais bonitas! Lembra-se o senhor de L’Hirondelle, Príncipe? Conhece-a?
— Sim, já me recordo, ou antes, esqueci-a. Não, não, a mesma de há pouco; essa que acaba de cantar. Não quero a L’Hirondelle, desejo ouvir a mesma canção — teimou o Príncipe como um menino.
Zina tornou a cantar. O Príncipe, sem poder conter-se, caiu de joelhos diante dela.
— Oh, ma belle châtelaine! — exclamou com voz trémula de emoção e de velhice. — Minha doce menina! Que remotas recordações fizeste acudir à minha memória... Supunha então que eram aqueles os melhores tempos... Nesses dias cantava eu a duo... com a viscondessa... essa mesma canção... e agora, agora não sei que...
Falava, perturbado de comoção, e a língua entaramelava-se-lhe; algumas palavras eram ininteligíveis. Era evidente que estava transtornado. Maria Alexandrovna apressou-se a deitar lenha na fogueira.
— Príncipe! O senhor está a enamorar-se da minha Zina!
— Amo-a com loucura — gritou o velho num repto, tremendo todo de comoção. — Estou pronto a sacrificar a minha vida e, se pudesse esperar... Mas levanto-me, que estou cansado... Se... se pudesse esperar que aceitasse o meu coração, então... cantar-me-ia todos os dias e eu contemplá-la-ia sem cessar... contemplá-la-ia sem cessar...
— Príncipe! Príncipe! Olhe que lhe está a oferecer a sua mão! Quer roubar a minha Zina, o meu amor, o meu anjo? Não te deixarei partir, Zina! Terá que arrebatar-ma, que arrancá-la dos meus braços, dos braços de sua mãe!
Maria Alexandrovna lançou-se sobre a filha, estreitando-a nos braços, embora se expusesse a ser repelida com violência. A mãe exagerava e Zina via-o com desgosto, mas aceitava a farsa sem dizer nada, que era o que a mãe desejava.
— Já recusou nove partidos, para não se separar de mim! — exclamou. — Mas agora o meu coração pressente a separação. Esta manhã reparei como ela o olhava. O senhor impressionou-a com as suas maneiras aristocráticas, Príncipe, com a sua distinção. Oh! O senhor vai-nos separar. Tenho um vivo pressentimento...
— Adoro-a! — murmurou o Príncipe, tremendo ainda como uma folha.
— Abandonas a tua mãe? — exclamou Maria Alexandrovna, lançando-se outra vez ao pescoço da filha.
Zina, que ansiava por terminar a cena, estendeu a sua mão adorável ao Príncipe e esforçou-se por sorrir. O Príncipe apoderou-se da mão branca e cobriu-a de beijos.
— Agora começo a viver — murmurou, desfalecendo de amor.
— Zina! — exclamou a mãe solenemente. — Olha para este homem! É o mais nobre, o mais honrado dos homens! É um cavaleiro medieval! Ela já o sabe, Príncipe; já o sabe, por desgraça minha... Oh! Por que é que o senhor veio? Confio-lhe o meu tesouro, o meu anjo! Cuide dela, Príncipe! É a mais ardente súplica de uma mãe. E que mãe poderia estranhar a minha mágoa?
— Já basta, mamã — murmurou Zina.
— O senhor a defenderá, Príncipe! A sua espada brilhará à vista de qualquer desbocado ou caluniador que intente difamar a minha Zina!
— Basta, mamã, ou...
— Sim, sim, brilhará — balbuciou o Príncipe. — Agora começo a viver... Quero celebrar a boda imediatamente, agora mesmo... Quero enviar alguém a Dukanovo, já... Tenho lá brilhantes... Quero pô-los a seus pés.
— Que ardor, que entusiasmo! Que nobreza de alma! — exclamou Maria Alexandrovna. — E é possível ter feito até agora vida de ermitão? Digo-o e repeti-lo-ei mil vezes! Fico fora de mim ao pensar nessa diabólica...
— Que podia eu fazer? Tinha tanto medo! — tartamudeou o Príncipe, assustado. — Queriam meter-me num manicómio... Tinha medo.
— Num manicómio! Os infames! Miseráveis! Abortos do inferno! Tinha-o ouvido dizer, Príncipe! Mas essa gente estava louca? E porquê? Porquê?
— Eu próprio não sei! — respondeu o velho, deixando-se cair numa cadeira, morto de fadiga. — Estava num baile e contei uma anedota que lhes não agradou e por isso armaram uma contenda.
— Só por isso, Príncipe?
— Não. Depois joguei às cartas com o Príncipe Pyotr Dementiich e não tive sorte. Tinha dois reis e três damas... ou talvez três damas e dois reis... Não, um rei! Depois vieram-me as damas...
— E por isso? Por isso? Oh, malvada humanidade! Não chore, Príncipe! Isso não lhe tornará a suceder mais! Agora ficarei a seu lado, porque não abandonarei Zina, e veremos quem se atreve a dizer uma palavra!... E com certeza, Príncipe, o seu casamento dará que falar. Enchê-los-á de vergonha ver que o senhor ainda está apto... Compreenderão que esta beldade não se casaria com um louco! Pode andar com a cabeça bem alta e arrostar com os seus olhares!
— Oh, sim! Arrostarei com os seus olhares — balbuciou o Príncipe, cerrando os olhos.
Está dormindo, pensou Maria Alexandrovna, e estamos perdendo o tempo.
— Príncipe, vejo que está fatigado; precisa de quietação, de descanso, depois de tanta agitação — disse-lhe inclinando-se para ele maternalmente.
— Oh, sim! Deitar-me-ia um pouquito.
— Sim, sim! Acalme-se, Príncipe!... Estas emoções... Espere, eu o acompanho... eu o deito, se for preciso. Está a olhar para este retrato, Príncipe? É o retrato de minha mãe; um anjo, mais do que uma mulher. Se ela estivesse agora connosco... Era uma santa, Príncipe, uma santa! Não posso dar-lhe outro nome.
— Uma santa? C’est joli. Eu também tinha uma mãe... princesa, mas repare, era extraordinariamente gorda... Bem, não é isso que eu queria dizer... Estou um pouco cansado. Adieu, ma charmante enfant... Agradou-me... Hoje... Amanhã... Mas não importa. Au revoir, au revoir! — Tentou enviar-lhe um beijo, mas escorregou junto da porta e esteve prestes a cair.
— Cuidado, Príncipe! Ampare-se ao meu braço! — gritou Maria Alexandrovna.
— Charmant, charmant — murmurou o velho, enquanto se afastava. — Comecei hoje a viver!
Zina ficou só com o coração cheio de amargura, enojada e desprezando-se a si própria. Ardiam-lhe as faces. Imóvel, com os punhos cerrados e cabisbaixa, começou a chorar lágrimas de vergonha... Naquele momento abriu-se a porta e Mozglyakov apareceu na sala.
CAPÍTULO IX
Tinha ouvido tudo, tudo. Não se atreveu a irromper no salão durante a farsa, mas entrava agora, pálido de emoção e de fúria. Zina olhou para ele, espantada.
— Afinal já sei quem você é — proferiu com voz entrecortada.
— Quem sou eu? — replicou Zina, olhando-o como a um louco com os olhos brilhantes de cólera. — Como se atreve a falar-me assim? — acrescentou aproximando-se.
— Ouvi tudo! — replicou Mozglyakov, retrocedendo um passo.
— Ouviu? Quere dizer que estava a escutar? — disse Zina lançando-lhe um olhar de desprezo.
— Pois estava! Sim, cometi essa baixeza; mas assim soube que você é a mais... não encontro palavras para qualificar a sua conduta! — respondeu ele sentindo-se cada vez mais encolhido sob o olhar de Zina.
— Embora tenha ouvido, de que pode acusar-me? Com que direito me acusaria? Com que direito me fala tão grosseiramente?
— Eu? Com que direito? É a senhora que mo pergunta? Vai casar-se com o Príncipe e não terei eu o direito... Como se não me tivesse dado a sua palavra!
— Quando?
— Quando?
— Esta manhã, quando o senhor me importunava, respondi-lhe sinceramente que não podia dizer-lhe nada de positivo.
— Mas não me repeliu, nem me disse que não. Tinha-me de reserva para o caso de...
Uma expressão de pena, de íntima dor, transformou o semblante de Zina; mas soube dominar o seu sentimento.
— Se o não repeli — respondeu com voz grave e medida, na qual havia um tremor impercetível — foi por pena de si. O senhor próprio me rogava que esperasse e não lhe dissesse que não, até que o conhecesse melhor e «então», disse-me o senhor, «quando se convencer de que sou um homem digno de respeito, talvez me não repila». Foram estas as suas próprias palavras no começo das nossas relações; não pode negá-lo. E agora atreve-se a dizer que lhe dei esperanças? Bem pôde observar o desgosto que me produziu o seu regresso, quinze dias antes do que esperava. Não tentei dissimulá-lo. Pelo contrário: manifestei-o bem e o senhor o frisou ao perguntar-me se estava aborrecida por ter vindo mais cedo. Não sei que esperanças dá quem não pode nem procura dissimular a sua aversão. E tem o senhor a insolência de afirmar que o tinha de reserva? Pois saiba que pensava de si que, se não era muito inteligente, seria um bom rapaz com quem me poderia casar. Mas agora convenceu-me, com grande alívio para mim, de que não passa de um néscio e, o que é pior, de um néscio maldoso a quem só me resta desejar muita sorte e boa viagem. Adeus.
E, dizendo isto, Zina voltou-lhe as costas para se dirigir para a porta. Vendo tudo perdido, Mozglyakov fervia de raiva.
— Com que então sou um néscio!? Concluiu então que sou um néscio! Está bem, adeus! Mas, antes, quero dizer-lhe que toda a cidade há de saber como a senhora e a sua mãe seduziram o Príncipe depois de o emborrachar. Toda a gente o saberá! hão de lembrar-se de Mozglyakov!
Zina deteve-se, abalada, e com o propósito de replicar; mas, pensando bem, encolheu os ombros e fechou a porta atrás dela.
Nesse instante apareceu Maria Alexandrovna. Tinha ouvido as últimas palavras de Mozglyakov e, adivinhando o seu alcance, tremeu de medo. Mozglyakov não tinha partido ainda, estava perto do Príncipe, contaria tudo, e o segredo era necessário por algum tempo, pelo menos. Maria Alexandrovna deitou os seus cálculos e, num momento, dominou a situação e concebeu um plano para acalmar o rapaz.
— Que se passa, mon ami? — perguntou avançando para ele e estendendo-lhe a mão, afetuosamente.
— Que é isso de mon ami!? — gritou furioso. — Depois do que maquinou ainda me chama seu amigo? Quer-me passar a mão pelo pelo! Supõe que me vou deixar enganar outra vez?
— Lamento muito vê-lo em semelhante estado de espírito, Pavel Alexandrovich. Que linguagem é essa? Nem diante de uma senhora mede as suas palavras?
— Diante de uma senhora! Você... você será tudo o que quiser menos uma senhora!
Não sei o que quis exprimir com isto, mas suspeito que qualquer coisa tremenda. Maria Alexandrovna dirigiu-lhe um olhar penalizado e, indicando-lhe a cadeira em que, momentos antes, estivera sentado o Príncipe, disse-lhe tristemente:
— Sente-se.
— Mas ouça, Maria Alexandrovna — disse Mozglyakov, perplexo. — A senhora trata-me como se não tivesse nada de que se culpar e eu a tivesse ofendido. Não vá por esse caminho! Deixe-se de vaidades! Isto é intolerável, sabe?
— Meu amigo! — respondeu a dama. — há de permitir-me que lhe chame assim porque não tem melhor amiga do que eu. Amigo! O senhor é infeliz, sofre e sente o coração ferido... e não é de admirar que me fale nesse tom. Mas vou-lhe explicar tudo; vou-lhe abrir o coração, tanto mais que, de certo modo, me considero culpada para consigo. Sente-se e falemos.
A sua voz era dorida e ela parecia sofrer. Mozglyakov sentou-se atordoado a seu lado.
— Ficou a escutar? — perguntou-lhe com ar de censura.
— Sim, escutei. Se o não tivesse feito estaria ainda iludido. Agora, ao menos, sei o que maquinam contra mim — respondeu Mozglyakov, áspero e apaixonado na sua cólera.
— E o senhor, o senhor com a sua educação, com os seus princípios deixou-se arrastar a coisa tão indigna? Pelo amor de Deus!
Mozglyakov levantou-se de um salto.
— Isto é intolerável, Maria Alexandrovna! Pense no que a senhora fez dos seus princípios e então poderá julgar os outros!
— Outra pergunta — disse ela iludindo a resposta. — Quem o induziu a escutar, quem lhe falou, quem espia em minha casa? É o que eu quero saber.
— Perdoe, mas isso não lhe direi.
— Muito bem, eu o saberei. Confesso-lhe, Pavel, que o tratei mal, mas, se tem presentes todas as circunstâncias, verá que, se sou culpada, é apenas pelo desejo de conseguir o seu bem.
— O meu bem? O meu bem? Isto passa das marcas! Previno-a de que não troçará assim de mim. Não sou tão ingénuo como supõe!
E Mozglyakov mexia-se na cadeira até a fazer estalar.
— Acalme-se, meu amigo, peço-lhe. Ouça-me com atenção e concordará comigo em tudo. Queria dizer-lho de começo, pô-lo ao corrente de todos os pormenores deste assunto, e o senhor teria sabido tudo, sem necessidade de se rebaixar escutando atrás das portas. Se lho não expliquei antes foi porque não passava de um projeto e podia fracassar. Já vê que não posso ser mais franca. Não culpe minha filha, que o ama até à loucura e que me custou esforços inauditos a convencer, para o sacrificar a si e aceitar o Príncipe.
— Acabo de receber uma prova convincente do louco amor que me tem —replicou Mozglyakov, com ironia.
— Está bem. Mas como a tratou o senhor? É essa a linguagem de um namorado? É assim que se exprime um homem bem-nascido? O que é que esperava, se começou por ofendê-la, por irritá-la?
— Não se trata aqui de boa educação, Maria Alexandrovna. Esta manhã, quando saí com o Príncipe, depois de ter recebido de ambas o mais afetuoso tratamento, puseram-me como um esfregão. Não se cansaram de me insultar... Diga-se a verdade. Sei tudo, sei.
— E, decerto, pela mesma pérfida via! — disse Maria Alexandrovna com um sorriso de desprezo. — Sim, Pavel Alexandrovich, desacreditei-o, falei mal de si e devo confessar que bom trabalho me custou. Mas o facto de ter tido que o injuriar e de o caluniar perante ela, prova quanto me foi difícil conseguir que Zina renunciasse a si. O senhor não vê um palmo adiante do nariz! Se Zina o não amasse, que necessidade tinha eu de depreciar o seu caráter, de o meter a ridículo e de o rebaixar? Para que havia eu de recorrer a tais extremos? E ainda não sabe tudo. Tive que valer-me de toda a minha autoridade de mãe para o desenraizar do seu coração, e, depois de incríveis esforços, não consegui obter dela mais que uma aparência de consentimento. Se o senhor esteve à escuta, devia ter observado que não lhe pude arrancar nem uma palavra, nem um gesto de ajuda perante o Príncipe. Não pronunciou uma só frase durante todo o tempo e cantou como uma autómata. A sua alma sofria desesperadamente e tive tanta pena dela que fiz sair o Príncipe. Estou certa de que chorou quando se viu só; o senhor deve ter notado as suas lágrimas quando entrou...
Mozglyakov lembrou-se de que, com efeito, Zina chorava quando ele entrou.
— Mas a senhora, a senhora, Maria Alexandrovna, por que se põe contra mim? Por que deprecia o meu caráter e me calunia, como a senhora própria confessa?
— Ah! Isso já é outra coisa e, se mo tivesse perguntado de começo, ter-lhe-ia dado já uma resposta adequada. Sim, o senhor tem razão! Foi tudo coisa minha, exclusivamente minha! Por que o fiz? Respondo-lhe que, em primeiro lugar, por Zina. O Príncipe é rico, aristocrata, com boas relações e, com ele, Zina fará um esplêndido casamento. Além disso, quando ele morrer, talvez dentro de pouco tempo, pois todos somos mais ou menos mortais, Zina será uma viúva jovem, uma Princesa da mais alta sociedade e, possivelmente, muito rica. Poderá então casar com quem quiser, tornando-se um partido vantajoso. Mas, claro, casará com o homem a quem antes amava e cujo coração lacerou ao casar-se com o Príncipe. O remorso levá-la-á a reparar a falta cometida para com quem amava.
— Hum! — grunhiu Mozglyakov, contemplando pensativamente as botas...
— Em segundo lugar... Serei breve, porque talvez o senhor o não compreenda. O senhor lê Shakespeare e põe nele os seus mais nobres ideais, mas, na vida real, embora o senhor seja muito bom, é demasiado jovem e eu sou mãe, Pavel Alexandrovich. Escute: caso Zina com o Príncipe, em parte por ele próprio, para o salvar com o casamento. Há muito tempo que sou amiga desse ancião nobre, bondosíssimo, cavalheiresco. É um desgraçado nas garras dessa mulher infernal que o levará à cova. Deus é testemunha de ter obtido o consentimento de Zina mostrando-lhe toda a grandeza do seu sacrifício e da sua heroica abnegação; deixou-se levar pela nobreza dos seus sentimentos, pelo encanto irresistível de um ato de sacrifício. Há também nela muito de cavalheiresco. Apresentei-lhe como uma ação do mais elevado cristianismo o facto de se tornar em amparo, em consolação, em amiga, em filha, em ídolo de um homem a quem resta apenas um ano de vida e que precisa, nos seus últimos dias, de quem o anime, lhe dê afeto e calor, em vez de o odiar, aturdindo-o e desanimando-o. Os seus últimos dias parecer-lhe-ão um paraíso. Onde está nisto o egoísmo? Diga-me! Não é isto tão nobre como a conduta de uma irmã de caridade?
— Então fá-lo somente pelo Príncipe, como o sacrifício de uma irmã de caridade? — perguntou Mozglyakov em tom irónico.
— Compreendo a sua pergunta, Pavel Alexandrovich; é bastante clara. Supõe o senhor, por acaso, que o interesse que tomo pelo Príncipe se inspira na vantagem que pode trazer-me? Pois bem: pode ser que essa consideração tenha influído, mas de um modo inconsciente. Compreendo que o deixará assombrado uma confissão tão sincera, mas só lhe peço uma coisa, Pavel Alexandrovich, não meta Zina neste assunto: ela não faz cálculos, é pura como uma pomba e é incapaz de outra coisa além de amar, a pobrezita! Se alguém calculou, fui eu, eu só. Mas consulte a sua consciência e diga-me quem, no meu caso, deixaria de calcular. Todos olhamos para os nossos interesses, até nos atos mais generosos, mais elevados, inevitavelmente, sem darmos conta. Enganamo-nos a nós próprios quando afirmamos que procedemos só por nobreza de alma. Eu não quero enganar-me; por mais puros que sejam os motivos, confesso que calculei. Mas, diga-me: procuro o meu interesse pessoal? Eu, Pavel Alexandrovich, de nada preciso; já tenho o meu modo de vida. Pensei nela, no meu anjo, na minha filha e que mãe me poderia censurar?
Brilharam as lágrimas nas faces da dama e o rapaz ouvia, meio atordoado, a ingénua confissão, fazendo gestos de incredulidade.
— Bem, sim, que mãe? — pôde dizer por fim. — A senhora fala muito bem, Maria Alexandrovna; mas... tinha-me dado a sua palavra! Tinha-me feito conceber esperanças... E eu, como fico? Veja! Colocou-me numa situação ridícula!
— Mas não dirá que me esqueci de si, meu querido Pavel. As suas vantagens, neste caso, são tão grandes que posso dizer que foi principalmente por si que meti mãos à obra.
— Vantagens para mim? — exclamou Mozglyakov, inteiramente desconcertado. — Quais?
— Apre! Será possível que haja homens tão ingénuos e curtos de vista? — lamentou Maria Alexandrovna erguendo os olhos para o teto. — Oh, juventude, juventude! Ora aqui está o resultado de se deixar deslumbrar por Shakespeare: criar a ilusão de que se pensa por conta própria, quando, afinal, se vive só de ideias emprestadas! Pergunta-me, meu bom Pavel Alexandrovich, onde está o seu interesse no assunto? Permita-me, para melhor compreensão, uma breve digressão. Zina ama-o a si; isso é indubitável. Mas notei que, apesar do seu amor evidente, desconfia um pouco dos seus bons sentimentos, das suas inclinações; reparei que, às vezes, se porta com certa frieza estudada, que denota falta de confiança. O senhor não reparou, Pavel Alexandrovich?
— Sim, hoje mesmo o notei... mas que pretende dizer com isso, Maria Alexandrovna?
— Ora aí está: o senhor também reparou. De forma que não me enganava. Falta-lhe confiança na firmeza do seu caráter. Eu, que sou mãe dela, não posso desconhecer o coração de minha filha. Imagine o senhor agora que, em vez de se lhe apresentar com queixas de mau gosto e até com injúrias, irritando-a, ofendendo a sua pureza, a sua formosura e o seu orgulho, confirmando assim as suspeitas que ela já tinha das suas más inclinações... imagine que tinha recebido esta surpresa, com doçura, com lágrimas de pena e até de desespero, mas com nobreza de sentimentos e elevação de vistas...
— Hum!
— Não, não me interrompa, Pavel Alexandrovich. Quero pintar-lhe um quadro que fique bem marcado na sua imaginação. Suponha que se tinha aproximado dela e lhe dizia: «Zina, amo-te mais do que a minha vida; mas razões de família nos separam. Trata-se da tua felicidade e eu não me atrevo a opor-me, Zina. Perdoo-te. Sê feliz, se podes». E então o senhor lançar-lhe-ia um olhar, um olhar de cordeiro que marcha para o sacrifício, se posso exprimir-me assim. Imagine o efeito que estas palavras produziriam no seu coração!
— Sim, Maria Alexandrovna, suponhamos tudo isso; compreendo tudo... Mas que teria eu conseguido?
— Não, não, não, querido! Não me interrompa. Deixe que lhe pinte com todas as cores este quadro que tão boa impressão lhe há de produzir. Suponha o senhor que a encontra mais tarde na alta sociedade, nalgum baile, num salão esplendidamente iluminado, entre os acordes de uma embriagadora música e o revolutear de elegantes mulheres, e que, no mais animado da festa, o senhor está triste, melancólico, pálido, apoiando-se a uma coluna (de modo que todos possam vê-lo) contemplando-a no redemoinho vertiginoso do baile. Porque ela dança, enquanto em volta pairam os perturbadores acordes de Strauss e as frases brilhantes da mais alta sociedade... e o senhor continua só, pálido, devorado pelo seu amor apaixonado. Que supõe o senhor que Zina pensará? Com que olhos olhará para si! «E eu», dirá ela consigo, «duvidei deste homem que sacrificou tudo por mim, tudo! e que pelo seu amor calcou o coração!» E o seu antigo amor reviverá com uma força irresistível.
Maria Alexandrovna deteve-se para tomar fôlego. Mozglyakov mexeu-se na cadeira até de novo a fazer estalar. A dama continuou:
— Por conveniência da saúde do Príncipe, Zina irá ao estrangeiro, a Itália, a Espanha... a Espanha, o país dos mirtos, dos limoeiros, do céu azul, onde corre o Guadalquivir, a terra do amor em que se não pode viver sem amar; o país das rosas, onde os beijos, por assim dizer, flutuam no ar. O senhor acompanhá-la-á, sacrificando a sua carreira, as suas amizades, tudo. Ali começará para si um amor novo, irresistível; amor, juventude! Espanha, Deus meu! O vosso amor é puro e santo, bem o sei, embora enlanguesçam quando mutuamente se olham. O senhor compreende-me, meu amigo! Eu sei: não faltará gente vil, malvada e infame que diga que não foi a consideração por um parente velho, necessitado de tratamento, que o levou ao estrangeiro. Refiro-me à pureza do seu amor, precisamente porque haverá quem lhe dê outro significado. Mas eu sou mãe, Pavel Alexandrovich, por que é que havia de gostar de o perverter? Claro que o Príncipe não estará em condições de os vigiar mas não importa. há de a gente fazer caso de uma calúnia tão baixa? Por fim, ele morrerá abençoando o seu destino. E diga-me: com quem casará Zina senão consigo? O seu parentesco com o Príncipe é muito longínquo e não servirá de obstáculo ao matrimónio... Quando se casarem ela será jovem, rica, distinta e, imagine, em circunstâncias em que os elementos mais elevados da nossa nobreza teriam orgulho em casar com ela. Por ela alcançará o senhor honras nos círculos mais aristocráticos; por ela conquistará uma elevada posição. Agora tem o senhor cento e cinquenta servos, mas então será um potentado; o Príncipe regulará no seu testamento. Eu farei com que assim seja. E, finalmente, o mais importante: ela recobrará a confiança em si, no seu coração, nos seus sentimentos e, a seus olhos, o senhor aparecerá como um herói de bondade e de abnegação... E ainda pergunta onde estão as suas vantagens? É preciso estar cego para não ver as vantagens que estão a dois passos de si, que o olham e lhe sorriem, gritando-lhe: aqui nos tens, aceita-nos!
— Maria Alexandrovna! — exclamou o rapaz com indescritível emoção. — Agora compreendo tudo. Conduzi-me grosseiramente, como um vilão, como um mentecapto.
E levantou-se, puxando pelos cabelos.
— Como quem não reflete — acrescentou Maria Alexandrovna — sobretudo como quem não reflete.
— Sou um asno, Maria Alexandrovna! — gritou cheio de desespero. — Agora está tudo perdido, porque a amava com loucura.
— Talvez não tudo! — disse a Sra. Moskalev com doçura, como se de súbito lhe tivesse ocorrido uma ideia.
— Oh, se fosse possível! Ajude-me, aconselhe-me, salve-me!
E Mozglyakov desatou a chorar.
— Querido — disse Maria Alexandrovna com voz magoada e estendendo-lhe a mão. — O senhor procedeu com excessivo ardor deixando-se levar pela sua paixão; quere dizer, pelo seu amor por ela. No seu estado de desespero não sabia o que fazia. É preciso que ela o compreenda...
— Amo-a até à loucura e estou pronto a sacrificar tudo — gritou Mozglyakov.
— Eu lhe digo; arranjarei tudo com ela justificando a sua conduta.
— Maria Alexandrovna!
— Sim, eu me encarrego disso. Farei com que os dois se vejam. O senhor deve dizer-lhe tudo, como eu acabo de lho dizer.
— Meu Deus! Que boa a senhora é, Maria Alexandrovna! Mas... não seria possível falar-lhe imediatamente?
— Deus nos livre! Que inábil é o senhor, meu amigo! Orgulhosa como ela é tomaria isso como um novo insulto, como uma insolência. Amanhã resolverá tudo; por agora vá ver, por exemplo, esse comerciante... e volte à noite, se lhe parecer, mas não lho aconselharia.
— Vou... vou... Deus meu! Restitui-me a vida! Uma pergunta só: e se o Príncipe não morre tão depressa?
— Ah, Deus meu! Que cândido que é, mon cher Paul! Pelo contrário, deve rogar pela sua saúde. Temos que desejar de todo o coração que esse velho querido, amável, cavalheiresco, viva muito. Eu serei a primeira a rogar, dia e noite, com lágrimas nos olhos, pela felicidade da minha filha. Mas, ai! Temo que seja um caso desesperado. Além disso terá que visitar S. Petersburgo para fazer a apresentação de Zina na sociedade, e receio, oh, receio que isto seja demasiado para ele. Mas rogaremos, querido Pavel, pelo que mais convenha e deixaremos o resto... nas mãos de Deus... Vai-se embora? A minha bênção o acompanhe, meu amigo! Espere, tenha paciência e seja homem. Nunca duvidei da nobreza dos seus sentimentos...
Apertou-lhe calorosamente a mão e o rapaz saiu em bicos dos pés.
— Sempre me consegui livrar deste imbecil! — murmurou Maria Alexandrovna. — Ainda restam os outros...
Abriu-se a porta e entrou Zina, mais branca que de costume e com os olhos brilhantes.
— Mamã, ou acabas depressa ou não posso suportar mais. É tudo tão vil e tão repugnante que me dá vontade de fugir de casa. Não me atormentes, não me irrites! Estou doente, percebes? Doente de tanta porcaria.
— Zina! Que tens, meu anjo? Tu também... também estiveste a escutar à porta? — exclamou Maria Alexandrovna olhando fixa e inquietamente para a rapariga.
— Sim, estive a escutar e não me envergonharás como a esse imbecil. Ouve, juro-te que se continuas a atormentar-me desta maneira, dando-me, nesta farsa vil, os mais humilhantes papéis, deitarei tudo a perder e acabará tudo num momento. Já basta eu ter-me resolvido a desempenhar o papel mais importante. Mas... nem eu própria me conhecia! Ficarei afogada em tanta imundície.
E saiu atirando com a porta. Maria Alexandrovna seguiu-a, pensativa, com o olhar.
— Pronto, pronto! — exclamou levantando-se. — Ela é a minha preocupação, o maior perigo; e se esses canalhas não nos deixam sós e começam a espalhar a notícia pela cidade, como decerto já o fizeram a estas horas, está tudo perdido. Zina não poderá suportar as murmurações e negar-se-á. Custe o que custar, tenho que levar o Príncipe para o campo sem perder um momento. Vou eu primeiro, voando, e trago o palerma do meu marido. Para alguma coisa há de servir. Entretanto, o velho terá dormido e, quando acordar, partiremos.
Tocou uma campainha.
— Os cavalos? — perguntou quando o criado apareceu.
— Já estão à espera há muito tempo — respondeu.
Maria Alexandrovna tinha dado ordem para atrelar quando acompanhara o Príncipe aos seus aposentos. Depois de se vestir correu ao quarto de Zina a pô-la em breves palavras ao corrente do seu plano e a dar-lhe instruções. Mas Zina não quis ouvi-la. Estava deitada na cama, de cara na almofada, com os braços nus, chorando desesperadamente e com a abundante e linda cabeleira despenteada. Só de vez em quando era sacudida por um estremecimento, como se um calafrio lhe percorresse os membros. Maria Alexandrovna falou-lhe atabalhoadamente mas a filha nem voltou a cabeça. Depois de estar um bocado ao lado de Zina, Maria Alexandrovna saiu preocupada e, para afugentar as suas inquietações, subiu para a carruagem e ordenou ao cocheiro que conduzisse os cavalos a toda a velocidade.
— O pior foi Zina ler ouvido a minha conversa com Mozglyakov. Convenci-o com as mesmas razões que usei para a convencer a ela. É orgulhosa e ficou ofendida... Ora! O que importa é agir com rapidez, para que tudo fique resolvido antes que esta gente o possa farejar. Que pena! Só faltava que esse imbecil não estivesse em casa!
Ao pensar nisto foi acometida por um acesso de fúria que nada de bom pressagiava para Afanasy Matveich. Não se continha de impaciência. Os cavalos seguiam a galope.
CAPÍTULO X
O carro voava. Já dissemos que tinha ocorrido a Maria Alexandrovna uma ideia genial quando, naquela manhã, percorria a cidade em busca do Príncipe, e prometemos referi-la em seu devido tempo; mas o leitor conhece-a já. Não consistia noutra coisa senão em apoderar-se do Príncipe e levá-lo precipitadamente para as suas propriedades do campo, onde vegetava o seu venturoso marido. Não temos que ocultar a inexplicável intranquilidade que se apoderava por momentos do ânimo de Maria Alexandrovna, como sucede, por vezes, aos próprios heróis no momento de alcançar o triunfo. Um instinto especial de que era dotada advertia-a do perigo de permanecer em Mordasov. Uma vez no campo, pensava ela, pouco me importa que toda a cidade se alvoroce.
Mas nem no campo tinha tempo a perder. Podia aparecer qualquer dificuldade, e ela previa tudo; mas não acreditemos no que mais tarde fizeram circular acerca da nossa heroína os seus inimigos, apresentando-a, naqueles momentos, dominada pelo medo da polícia. Ela só pensava que se devia celebrar a boda de Zina com o Príncipe o mais depressa possível e, para isso, tinha os meios ao seu alcance. O padre da aldeia os casaria na sua própria casa de campo. A cerimónia podia marcar-se para daí a dois dias e, se fosse necessário, até para o dia seguinte. Existiam precedentes de casamentos realizados poucas horas após o noivado. Apresentariam ao Príncipe como uma necessidade de bom gosto a urgência, a falta de festas, de esponsais e de padrinhos; seria uma coisa comme il faut; impressioná-lo-iam apresentando-lhe o caso como mais elegante e aristocrático; far-lhe-iam ver o aspeto de aventura romântica que oferecia, tocando-lhe assim as fibras mais sensíveis do coração. Se tudo isto não bastasse, embriagá-lo-iam ou, melhor, mantê-lo-iam em estado de contínua embriaguez. Depois, sucedesse o que sucedesse, Zina seria Princesa. E ainda que depois da boda fosse inevitável o escândalo, que podia surgir em S. Petersburgo ou em Moscovo onde o Príncipe tinha parentes, para tudo se encontraria solução. Em primeiro lugar, isso viria depois, além de que Maria Alexandrovna estava persuadida de que nas altas esferas sociais nada sucedia sem escândalo, sobretudo em assuntos matrimoniais, e tudo aquilo era chic, embora imaginasse que os escândalos da alta sociedade tinham um cunho especial pela sua grandeza e pela sua índole, qualquer coisa no estilo do Conde de Monte Cristo e das Memórias do Diabo. Quanto a Zina, bastar-lhe-ia apresentar-se em sociedade, com sua mãe ao lado como aia e conselheira, e todos, absolutamente todos, ficariam conquistados sem que nenhuma daquelas condessas ou princesas fosse capaz de resistir à sedução com que Maria Alexandrovna era capaz de as dominar a todas e a cada uma de per si, como dominava as suas conterrâneas de Mordasov.
Com estas ideias corria a dama para as suas propriedades de campo à busca de Afanasy Matveich, cuja presença, segundo os seus planos, era necessária na cidade. Com efeito, levar o Príncipe para o campo era como levá-lo a ver Afanasy Matveich a quem talvez não quisesse conhecer. Se Afanasy Matveich o convidasse, já o caso mudaria de aspeto. A chegada de um respeitável pai de família, com gravata branca, fraque e chapéu na mão, que vem de longe precipitadamente por saber que o Príncipe está, podia produzir um grande efeito e excitar o amor-próprio deste. Ser-lhe-ia difícil recusar um convite tão afetuoso. Por fim, depois de correr duas milhas e meia, Sofron, o cocheiro, parou em frente de um grande edifício de madeira gasta e enegrecida pelo tempo, com uma fila de janelas no andar único e rodeado de tílias. Era a casa de campo e a residência de verão de Maria Alexandrovna. Já estavam acesas as luzes.
— Onde está esse estúpido? — gritou Maria Alexandrovna atravessando as salas como um furacão. — Que faz aqui esta toalha? Ah! Está a enxugar? Já voltou à mania dos banhos? Com que então a tomar chá? Por que olhais assim para mim, imbecis? Eh! Por que não lhe cortaram o cabelo? Grichka! Grichka! Por que não cortaste o cabelo ao teu patrão, como te ordenei na semana passada?
Maria Alexandrovna propunha-se tratar o esposo com mais amabilidade, mas, ao ver que acabava de sair do banho e estava sorvendo o chá com a sua pachorra de bem-aventurado, não pôde refrear a indignação. O contraste dos seus cuidados e ansiedades, com a pasmosa tranquilidade daquele inútil, pô-la fora de si. O estúpido, ou, para falar com mais respeito, o que assim era chamado, permanecia com a mandíbula caída e com os olhos escancarados, olhando com espanto, quase petrificado de terror, aquela que acabava de aparecer, empurrando, desde a porta, como um boneco de palha, o desajeitado Grichka.
— Não lho cortei porque não me deixou — respondeu o criado com voz enfadonha e rouca. — Aproximei-me dele mais de dez vezes com as tesouras, dizendo: «A senhora vai aparecer de um momento para o outro e nós os dois é que temos de aguentar; verá o que sucede então». «Não», respondia-me, «espera um pouco. Tenho que o frisar no domingo e preciso dele comprido».
— Como!? Frisar o cabelo!? Quer dizer que te frisas na minha ausência? Que moda é essa? Mas que efeito farão os caracóis na tua cabeça de cortiça? Meu Deus! Quanta porcaria há nesta casa! Que cheiro é este? Ouves, bruto? Donde vem este cheiro insuportável? — vociferou a dama, increpando cada vez mais furiosa o pobre imbecil do marido.
— M... mãe! — tartamudeou a inocente vítima, olhando com olhos suplicantes para a sua despótica senhora e tão morto de medo que nem se atrevia a levantar-se da cadeira. — M... mãe!
— Quando te meterei nessa cabeça de burro que não quero que me chames «mãe»? Eu, tua mãe, meu insignificante? Como ousas dirigir-te nesse tom a uma dama distinta, cujo lugar apropriado é entre a melhor sociedade e não ao lado de um asno como tu!
— Mas... tu sabes, Maria Alexandrovna, que és minha esposa legítima e que eu te trato como... minha mulher — protestou Afanasy Matveich, não sem levantar as mãos para proteger os cabelos.
— Asqueroso! Cobarde! Não tens outra resposta mais estúpida! Com que então, esposa legítima! Bonita coisa nos nossos dias! Ninguém na boa sociedade põe nos seus lábios essas palavras néscias, clericais, repelentes: Mulher legítima! E como te atreves a recordar-me que sou tua mulher quando eu faço tudo para o esquecer? Por que pões as mãos na cabeça? Mas como estão os teus cabelos! Para quê tão molhados? Nem em três horas secam! Como o hei de levar assim? Como posso consentir que os outros o vejam? Que hei de fazer agora? Vamos ver...
E Maria Alexandrovna levantava os braços como uma fúria dando voltas pelo aposento, não porque o contratempo fosse grave ou difícil de remediar, mas porque ela não podia dominar o seu caráter imperioso e arrebatado. Sentia um irresistível impulso de descarregar a sua ira contra o infeliz marido, porque a tirania gera sempre a violência, e todos sabemos de que cenas são capazes no seio das famílias até as senhoras de certa educação; tal é o contraste que me proponho expor aqui.
Afanasy Matveich, que observava, tremendo, os movimentos de sua mulher, começou a suar copiosamente.
— Grichka! — gritou por fim a dama. — Veste imediatamente o teu patrão; fraque, calças, gravata, colete. Pronto! Onde está o pente? Onde está a escova?
— Mãe! É que... acabo de sair do banho e apanho uma constipação se vou à cidade...
— Não tenhas medo!
— Tenho a cabeça molhada...
— Vamos já secá-la. Grichka, traz a escova da cabeça e esfrega-a até que seque. Mais forte, mais forte, mais forte! Assim, assim!
O fiel e obediente Grichka esfregava o amo com todas as suas forças, depois de o ter deitado no sofá para que a tarefa resultasse mais eficaz. O pobre homem contraía as feições e quase chorava.
— Agora vem cá! Levanta-o, Grichka! Onde está a pomada? Agacha-te, agacha-te, papa-açorda, agacha-te, mandrião.
E Maria Alexandrovna untou com as suas próprias mãos a cabeça do marido, esfregando-o cruelmente, dando-lhe puxões nos caracóis que, por sua desgraça, o mísero deixara crescer. Afanasy suportou a operação com caretas e suspiros de dor, submissamente, reprimindo qualquer queixa.
— Estás a dar-me cabo da saúde, porco! — disse a mulher. — Curva-te mais, curva-te!
— Como é possível que eu te dê cabo da saúde, mãe? — murmurou o pobre, inclinando a cabeça o mais que podia.
— Pedaço de cortiça! Não és capaz de entender uma metáfora. Agora penteia-te; e tu veste-o, mas depressa.
Ela acomodou-se numa cadeira e esteve fiscalizando a realização daquela obra de asseio corporal. Afanasy Matveich respirou e pôde serenar, até ao ponto de ousar emitir uma opinião sobre a elegância e formosura do nó da gravata quando, após muitos esforços, conseguiu pô-la a seu gosto. E quando por fim vestiu o fraque, reconquistou o seu aprumo e bom humor, e viu-se ao espelho com certo respeito.
— Onde me levas, Maria Alexandrovna? — perguntou pavoneando-se em frente do espelho.
Maria Alexandrovna não queria dar crédito aos seus ouvidos.
— Como? Ouviram este espantalho? Ainda te atreves a perguntar onde te levo?
— É que, mãe... uma pessoa deve saber...
— Cala-te! E lembra-te que se tornas a chamar-me mãe, especialmente no lugar onde vamos, passas um mês sem chá!
O marido calou-se, aterrorizado.
— Uf! Nem uma condecoração conseguiu ganhar este estafermo — prosseguiu ela, contemplando-o com desprezo.
O marido ofendeu-se, por fim.
— As condecorações concede-as o Governo, mãe, e eu sou um conselheiro e não um estafermo — replicou com uma indignação de bom-tom.
— Quê? O quê? De maneira que aprendeste aqui a replicar? Olhem o grosseirão, o ranhoso! A tua sorte é não poder perder tempo; senão ensinava-te... Mas não o esquecerei... Dá-lhe o sobretudo, Grichka! E tu, durante a minha ausência, arruma estes três aposentos e a sala verde. Tudo bem varrido! Tira as capas aos espelhos e aos relógios; quero tudo limpo numa hora. Depois vestes-te de fraque e dás as luvas aos criados. Ouves, Grichka, ouves?
Subiram para o carro. O marido, perplexo e admirado; a mulher, pensativa, estudando a forma de meter na cabeça daquele homem certas advertências indispensáveis em tão crítica situação. Ele antecipou-se rompendo inesperadamente o silêncio em que se mantinham.
— Sabes uma coisa, Maria Alexandrovna? Esta manhã tive um sonho peregrino.
— Olha que palermice! Deus sabe o que pensava que me ias dizer! E sais-me com o teu sonho estúpido que o diabo leve. Como ousas distrair-me com os teus sonhos de ignorante! Peregrino! Como se tu soubesses o que significa peregrino! Ouve-me: pela última vez te digo que, se te atreves a pronunciar hoje uma só palavra do teu sonho ou qualquer outra estupidez nesse género, não sei o que será de ti, não sei! Ouve bem: o Príncipe K. hospedou-se em minha casa. Recordas-te do Príncipe K.?
— Recordo-me, mãe, recordo-me. Que veio fazer?
— Acalma-te que isso não é contigo. Como dono da casa deves convidá-lo com muita cortesia a vir para o campo connosco. Por isso te venho buscar. Hoje mesmo devemos tratar disso. Mas se te atreves a dizer uma palavra em toda a tarde, ou amanhã, ou depois, ou qualquer outro dia, ponho-te a guardar gansos um ano inteiro. Não digas nada, nem uma palavra. É tudo quanto tens a fazer. Compreendes?
— E se me fazem perguntas?
— Não importa, cala-te.
— Mas tu sabes que não é possível estar sempre calado, Maria Alexandrovna.
— Nesse caso responde com monossílabos como «hum» ou qualquer coisa parecida, com o que provarás que és um homem de senso, que pensa antes de falar.
— Hum!
— Entende bem o que te digo: levo-te porque tiveste notícias do Príncipe e, encantado com a sua visita, te apressas a apresentar-lhe os teus cumprimentos e a convidá-lo para o campo. Compreendes?
— Hum!
— Nada de grunhidos, agora, idiota! Responde-me!
— Perfeitamente, mãe, far-se-á como tu dizes. Mas por que hei de eu convidar o Príncipe?
— Como, como? Continuas? Que te importa a ti isso? E ainda te atreves a perguntar-me?
— É que, mãe... não sei como o hei de convidar, se tenho que estar calado.
— Eu falarei por ti. Tu só tens que cumprimentar, ouves, cumprimentar com o chapéu na mão. Compreendes?
— Compreendo, Maria Alexandrovna.
— O Príncipe é dotado de um grande talento. A tudo quanto diga, ainda que se não dirija a ti, deves responder-lhe com um sorriso alegre e bondoso. Compreendes?
— Hum!
— E lá voltas tu! Deixa-te de «hum» comigo e responde sensatamente ao que te pregunto. Ouves?
— Ouço, Maria Alexandrovna, claro que ouço. E se respondo «hum» é para me exercitar a fazer como disseste. Mas ainda estou pensando no mesmo, mãe: vamos a ver. Quando o Príncipe falar dizes-me que o olhe e que sorria. Muito bem. Mas se ele me perguntar alguma coisa?
— És parvo. Já te disse: cala-te. Eu responderei por ti; tu não tens mais que olhar e sorrir.
— O caso é que suporá que sou mudo — grunhiu o marido.
— Como se isso te importasse! Deixa-o pensar! Assim, ao menos, não te tomará por louco.
— Hum!... E o que farei se outro qualquer me fizer uma pergunta?
— Ninguém te perguntará nada, porque não haverá ninguém. E se houver alguém (do que Deus nos livre!) e te fizerem alguma pergunta ou te disserem alguma coisa responde logo com um sorriso sarcástico. Tu sabes o que significa um sorriso sarcástico?
— Significa ter espírito, não é verdade, mãe?
— Eu já te ensinarei a ter espírito, papalvo! — murmurou entre dentes. — Este homem resolveu consumir-me. No final de contas tinha sido melhor deixá-lo no campo.
Absorta nas suas reflexões e presa de viva agitação, Maria Alexandrovna deitava, com frequência, a cabeça fora do carro, dando pressa ao cocheiro. Os cavalos iam a toda a velocidade, mas qualquer marcha lhe parecia lenta. Afanasy Matveich permanecia encolhido a um canto como quem rumina uma lição. O carro chegou por fim à cidade e deteve-se em frente da casa dos donos. Logo que desceu, Maria Alexandrovna viu um trenó de dois lugares que se aproximava de sua casa e, pela capota, reconheceu o veículo em que Ana Nikolaevna costumava passear. Quando se certificou de que dentro iam a própria Ana Nikolaevna e a sua amiga e companheira inseparável Natália Dmitryevna, desfaleceu-lhe o ânimo.
Ainda não refeita, viu que outro veículo se aproximava: um trenó que lhe trazia sem dúvida novas visitas. Houve uma algaraviada de jubilosas exclamações.
— Maria Alexandrovna! E com Afanasy Matveich! Acabais de chegar? Donde vindes? Que sorte! Vínhamos precisamente passar aqui a tarde! Que surpresa!
As visitas juntaram-se à porta, falando como periquitos. Maria Alexandrovna não dava crédito aos seus sentidos.
Lá as vamos ter, pensou. Isto apresenta todos os sintomas de uma intriga. Muito olho! Mas... não vos tenho medo, gralhas... Esperem um pouco...
CAPÍTULO XI
Mozglyakov separou-se de Maria Alexandrovna num estado feliz de consolação. De tal forma ela exaltara a sua fantasia que desdenhou a visita a Boroduev pelo prazer de estar só. Um caudal de romantismo e de desejos heroicos inundavam toda a sua vida. Imaginava uma explicação solene com Zina durante a qual correriam lágrimas generosas de perdão; a sua palidez de desesperado no esplêndido baile de S. Petersburgo; Espanha e o Guadalquivir; o amor correspondido e o Príncipe unindo as mãos dos jovens no seu leito de morte. Então a amável viúva consagrar-se-ia a ele por completo, rendida de admiração perante o seu heroísmo e ternos sentimentos, e, de vez em quando, na paz do matrimónio, os favores de alguma condessa da mais alta sociedade na qual o introduziria sua mulher Zina, viúva do Príncipe K.; um cargo de vice-governador; dinheiro, tudo, enfim, quanto lhe descrevera Maria Alexandrovna com tanta eloquência passou, como uma cálida carícia, pela sua alma agradecida, lisonjeando-lhe a vaidade.
E não sei como explicar a reviravolta súbita que se passou no seu espírito quando estava no melhor destes sonhos. Talvez o cansaço de tanta felicidade o levasse à mais humilhante das reflexões: tudo aquilo pertencia ao futuro, e agora acabava de ser repelido como um tolo. Quando lhe ocorreu isto, ia caminhando por um bairro afastado e solitário de Mordasov. Anoitecia. Pelas ruas de casitas pobres e térreas, ladravam cães, que nas cidades de província se reúnem em matilhas alarmantes, precisamente nos bairros em que não há nada que guardar nem roubar. Começava a nevar e a neve fundia-se ao cair; cruzava a cada momento com um operário de passo lento ou uma camponesa de botas altas. Tudo aquilo lhe produzia uma aflição inexplicável: mau sintoma, pois, quando as coisas marcham bem encontramos em tudo um atraente encanto.
Pavel Alexandrovich recordava-se agora do posto proeminente que até então ocupara na opinião de Mordasov. Tinha sentido sempre a profunda satisfação de ser considerado em todas as casas como um bom partido, e como tal o distinguiam. A sua juventude e a grande aceitação que tinha entre as raparigas casadoiras enchiam-no de orgulho e agora aparecia diante de todos derrotado e numa situação humilhante. Rir-se-iam dele e, claro, não poderia dar uma explicação satisfatória. Não podia contar a história do baile de S. Petersburgo em salões com colunas ou a do Guadalquivir! E, pensando nisto, confundido e atordoado, chegou à conclusão que já pressentia como causa do entorpecimento da sua marcha. «Aquilo seria verdade? Sucederia tudo como Maria Alexandrovna o tinha pintado?» E, ao chegar a este ponto, lembrou-se de que aquela senhora era uma imaginativa incorrigível, que, embora digna de respeito, não cessava de murmurar e de mentir durante todo o dia, que alguma razão teria para o afastar aquelas horas e que pintar o futuro com as mais agradáveis cores estava ao alcance de qualquer pessoa. Pensou em Zina, recordando-se do seu olhar de despedida, que exprimia tudo, menos uma paixão refreada, e isso sem contar que uma hora antes o tratara de néscio. A tal recordação, Pavel Alexandrovich deteve-se como se os pés se lhe tivessem enterrado e corou de vergonha até lhe chegarem as lágrimas aos olhos.
Como um sarcasmo da sorte, pouco depois ocorreu-lhe um incidente desagradável; resvalou no pavimento de madeira e caiu sobre um montão de neve. Ainda fazia esforços para se levantar quando se viu acometido por cães que o seguiam ladrando; um deles, o mais pequeno e mais agressivo, fincou-lhe os dentes no sobretudo de peles. Fugindo aos cães, praguejando em voz alta e maldizendo a sua sorte, com o sobretudo rasgado, uma tristeza imensa na alma, Pavel Alexandrovich tomou pela primeira esquina e só então deu conta de que estava perdido. Todos sabemos que quem se encontra desorientado num bairro que não conhece, especialmente de noite, jamais se decide a seguir a direito por uma rua; uma força desconhecida leva-o a voltar por todas as que encontra. Seguindo este impulso, Pavel Alexandrovich viu-se de repente inteiramente perdido. Que o diabo carregue todas estas quimeras!, :dizia cuspindo de raiva. Que o diabo leve os nobres sentimentos e o Guadalquivir!
Não afirmaremos que Mozglyakov estivesse simpático naquele momento. Depois de andar duas horas perdido pelas ruas, chegou cansado, extenuado à porta de Maria Alexandrovna, ficando surpreendido por ver tantos carros parados. Serão visitas? Haverá alguma festa?, pensava. Com que fim? Interrogou o primeiro criado que encontrou e soube que Maria Alexandrovna trouxera do campo Afanasy Matveich e que o Príncipe estava acordado mas ainda não tinha descido para cumprimentar as visitas.
Sem dizer nada a ninguém, Pavel Alexandrovich precipitou-se pela escada acima para o quarto de seu «tio», nesse estado de espirito em que um homem de caráter débil é capaz de cometer por vingança a mais horrível e a mais estupenda das ações, sem considerar um momento que terá de arrepender-se durante toda a vida.
Encontrou o Príncipe sentado numa poltrona diante da mala, ostentando suíças e pera sob uma calva completa. O seu velho criado de quarto e favorito Ivan Pahomich, tinha nas mãos a cabeleira e estava a moldá-la com um ar reflexivo e quase de veneração. O Príncipe, que ainda se não tinha refeito das suas recentes libações, oferecia um triste espetáculo: prostrado, pestanejante, encolhido e macilento, olhou para Mozglyakov como se não o reconhecesse.
— Como está o senhor, tio? — perguntou o rapaz.
— O quê?... Ah... és tu? — disse o «tio» ao fim de alguns momentos. — Acabo de fazer uma sestazinha, rapaz. Caramba! — exclamou subitamente como quem desperta. — Sim... sim, não pus a minha cabeleira!
— Não se inquiete, tio. Eu... eu próprio o ajudarei a pô-la, se quer.
— Mas agora já sabes o meu segredo. Devíamos fechar a porta. Ouve, querido: tens que me dar a tua palavra de honra de que não descobrirás o meu segredo e não dirás a ninguém que a minha cabeleira é postiça.
— Palavra de honra, tio! Como pode supor-me capaz de uma coisa tão ruim? — perguntou Mozglyakov desejando captar-lhe a confiança para servir os seus desígnios.
— É verdade, é verdade! E como vejo que és um homem honrado... seja; vou fazer-te uma surpresa... e descobrir-te todos os meus segredos. Que te parecem os meus bigodes, querido?
— Magníficos, tio! Maravilhosos! Como pôde conservá-los tanto tempo?
— Estás em erro, querido; são ar...ti...fi...ciais — confessou o Príncipe dirigindo um olhar de triunfo ao seu interlocutor.
— É possível? Não parecem. E as suíças? Confesse, tio, que as pinta.
— Pintá-las? Não é preciso: são artificiais.
— Artificiais? Não, tio; o senhor pode dizer o que quiser, mas não acredito. Está a troçar de mim.
— Parole d’honneur, mon ami! — exclamou o Príncipe com ar triunfal. — Calcula que todos se enganam como tu. A própria Stepanida Matveyevna não se resolve a acreditar, embora ela, às vezes, mas ponha. Mas estou certo, filho, que guardarás segredo. Dá-me a tua palavra de honra...
— Palavra de honra, tio, que o guardarei. Considera-me capaz de tal vileza?
— Ah, querido! Que queda eu dei hoje, enquanto estavas fora! Teófilo voltou a atirar-me do carro abaixo.
— Atirou-o outra vez? Quando?
— Quando íamos para o mosteiro...
— Já sei, tio, esta manhã...
— Não, não; há duas horas. Íamos para o mosteiro e atirou-me do carro abaixo. Oh, que susto! Ainda não se me acalmou o coração.
— Mas se o senhor dormiu, tio! — disse Mozglyakov perplexo.
— Ah, sim. Dormi... e depois saímos de carro ainda que certamente... ainda que talvez... Quem percebe isto?
— Asseguro-lhe, tio, que sonhou! Depois de comer, o senhor não fez outra coisa senão dormir.
— Deveras? — perguntou o Príncipe pensativo. — Ah! Sim, talvez tenha sido um sonho, embora me recorde de tudo o que sonhei. Primeiro foi um terrível touro e depois um procurador que também parecia que tinha cornos...
— Não seria Nikolay Vassilich Antipov, tio?
— Ah, sim, talvez fosse ele; e então sonhei com Napoleão Bonaparte. Sabes, querido? Todos dizem que me pareço com Napoleão e que, de perfil, pareço mesmo um pope velho. Que dizes tu, querido? Parecer-me-ei com um pope?
— Eu creio que se parece mais com Napoleão, tio.
— Ah, sim, na cara. Isso penso eu também, querido. Pois sonhei com ele quando estava na ilha. Era tão comunicativo, tão fantástico, um companheiro tão jovial! Aquilo é que era divertir-se!
— O senhor fala de Napoleão, tio? — perguntou o jovem contemplando o velho pensativamente. Começava a germinar no seu cérebro uma ideia que não podia definir com clareza.
— Sim, sim; de Napoleão. Discutimos os dois sobre filosofia. Dói-me a alma, querido, que os ingleses o tratassem com tanta dureza. Claro que, se o não tivessem acorrentado, ter-se-ia lançado outra vez contra nós. Era um temerário e ainda o sinto por ele. Eu não o teria tratado assim. Levá-lo-ia para uma ilha deserta...
— Por quê, para uma ilha deserta? — perguntou Mozglyakov distraído.
— Bem, talvez para uma habitada; mas habitada por pessoas decentes. E ter-lhe-ia dado toda a espécie de divertimentos; teatros, concertos, bailes; tudo a expensas do Governo. Permitir-lhe-ia que passeasse, sob custódia, porque senão fugiria logo. Gostava muito de pasteizinhos. Pois bem; eu dar-lhe-ia pasteizinhos todos os dias. Tratá-lo-ia como um pai, por assim dizer, e, em vista das minhas atenções, arrepender-se-ia...
Mozglyakov escutava, como quem ouve chover, a tagarelice do velho, ainda não desperto de todo, e cerrava os punhos de impaciência, porque desejava levar a conversa para o assunto do casamento e, como não sabia ao certo para quê, consumia-se de insatisfação. De repente o velho gritou surpreendido:
— Oh, meu amigo! Esquecia-me de te dizer uma coisa. Imagina que me declarei hoje.
— Que se declarou, tio? — exclamou Mozglyakov saindo da sua distração.
— Sim; fiz uma declaração em regra. Vai-te embora, Pahomich! Perfeitamente. C’est une charmante personne. Mas, confesso, querido, procedi levianamente. Só agora o compreendo. Valha-me Deus!
— Perdoe-me, tio. Quando é que o senhor fez essa declaração?
— Confesso-te, querido, que não sei precisamente quando. Não o terei sonhado, por acaso? Que coisa tão extraordinária!
Mozglyakov estremeceu de prazer. Por fim acudiu-lhe a ideia.
— Mas a quem se declarou o senhor e quando foi isso, tio? — disse impaciente.
— À filha da casa, meu amigo... cette belle personne... Embora lhe tenha esquecido o nome. Mas tu compreendes, querido!... Eu realmente não me posso casar... O que hei de fazer agora?
— Sim, esse casamento seria a sua ruína. Mas permita-me que lhe pregunte uma coisa, tio: está convencido de que fez realmente essa declaração?
— Oh, sim... disso estou certo.
— E se o sonhou apenas, como sonhou ter caído outra vez do carro?
— Ah, Deus meu! Talvez tenha sido também um sonho! Agora não sei como hei de conduzir-me com elas. Como é, querido, que poderemos saber ao certo se a pedi em casamento, ou não? Imagina tu em que situação me encontro.
— Parece-me que não há necessidade de o averiguar.
— Porquê?
— Porque tenho a certeza de que o sonhou.
— Isso creio eu, querido, e sobretudo porque esses sonhos são em mim muito frequentes.
— Já o senhor vê, tio. Pense que ao almoço bebeu um bocado, outro bocado ao jantar, e no final...
— Sim, sim, querido; deve ser isso, sem dúvida.
— Além disso, tio, ainda que estivesse animado, o senhor em nenhumas circunstâncias podia fazer tão louca proposta de um modo formal. Conheço-o bastante, tio, e tenho-o por uma pessoa das mais sensatas, e...
— Decerto, decerto!
— Pense o senhor só o que sucederia se os seus parentes, que são tão seus inimigos, se inteirassem disso.
— Deus do céu! — exclamou o Príncipe alarmado.— Que sucederia então?
— Ah, pode estar certo! Começariam a gritar que o senhor não estava bom da cabeça quando fez tal disparate, que estava doido, que tinha sido enganado, e talvez o encerrassem em alguma parte, bem vigiado.
Mozglyakov bem sabia o que assustava mais o Príncipe.
— Meu Deus! — exclamou o velho, tremendo como uma folha. — Achas que me internariam?
— Mas será possível, tio, que o senhor tenha feito tão insensata proposta, estando acordado? Pense nos seus interesses. Asseguro-lhe solenemente que foi tudo um sonho.
— Certamente que deve ter sido um sonho, certamente! — repetiu o Príncipe, tomado de pânico. — Querido, fico-te sinceramente agradecido por me teres feito entrar na razão.
— Estou contentíssimo por ter voltado hoje. Imagine se eu não estou aqui! Podia ter-se visto envolvido numa trapalhada supondo-se noivo e apresentando-se em baixo como tal! Veja que perigo! Lembre-se de que essa rapariga tem vinte e três anos, ninguém se quer casar com ela e, de repente, o senhor rico e nobre pretende-a! Aceitariam imediatamente a ideia, comprometê-lo-iam e obrigá-lo-iam a casar-se, calculando que o senhor morreria depressa.
— Deveras?
— E compreenda, tio, que um homem com as suas qualidades...
— Ah! Sim, com as minhas qualidades...
— Com a sua inteligência e a sua amabilidade...
— Sim, sim, com a minha inteligência, sim!
— E, além disso, o senhor é um Príncipe. Seria um excelente partido se, por qualquer razão, desejasse contrair matrimónio. Imagine o que diriam os seus parentes!
— Oh, querido! Matar-me-iam! Fui vítima de tantas maldades, de tantas ignomínias... Queres crer que pretendiam meter-me numa casa de doidos? Já viste, querido, alguma coisa mais absurda? O que é... o que é que eu faria numa casa de doidos?
— Por isso mesmo, tio, eu não quero abandoná-lo quando descer. Há visitas.
— Visitas! Deus meu!
— Não tenha medo, tio, eu descerei consigo.
— Quanto te agradeço, querido! És o meu salvador! Sabes que gostaria mais de me ir embora?
— Amanhã, tio, às sete da manhã. Hoje pode o senhor despedir-se de todos, anunciando-lhes a partida.
— Com certeza... partirei a ver o padre Misail... Mas, filho, e se elas tomaram a sério o noivado?
— Não tenha medo, tio, eu estarei a seu lado e, digam e façam o que quiserem, o senhor responda sempre que sonhou... e essa é a pura verdade...
— Oh, sim, deve ter sido um sonho. Mas se tu soubesses que sonho tão encantador! Ela é uma delícia, e que cara!
— Bem, tio, até logo. Vou para baixo, e o senhor...
— Como! Vais deixar-me sozinho? — exclamou o Príncipe alarmado.
— Não, tio; desceremos os dois, mas não juntos. Eu primeiro e depois o senhor. Assim será melhor.
— Ah, muito bem. Tinha precisamente que apontar uma ideia.
— É isso, tio; aponte a ideia e depois desça logo. Amanhã de manhã cedo...
— Amanhã de manhã cedo vou ver o Padre Misail, sim, o Padre Misail! Mas sabes, querido, que é uma rapariga de...li...ci...osa? Que contornos! E se eu tivesse de me casar...
— Deus o livre, tio.
— Ah, sim! Deus me livre!... Adeus, querido; desço já... é só apontar... A propósito, há muito tempo que to queria perguntar: leste as memórias de Casanova?
— Sim, tio, li; porquê?
— Porquê, porquê? Já me não lembro do que queria dizer...
— Recordar-se-á mais tarde, tio. Agora, adeus!
— Adeus, querido, adeus! No entanto era um sonho delicioso, um sonho de...li...cio...so!
CAPÍTULO XII
— Viemos todas, todas! Praskovya Ilyinitchna também vem e Luísa Karlovna pensa vir — gorjeava Ana Nikolaevna, entrando no salão e examinando-o com curiosidade.
Era uma mulher pequena, quase bonita, que trazia um vestido caro mas de cores berrantes, e muito vaidosa da sua formosura. Suspeitava que o Príncipe estivesse escondido com Zina nalgum canto.
— Catalina Petrovna também virá e Felisa Mihalovna prometeu-nos que viria logo que pudesse — acrescentou Natália Dmitryevna, mulher de enorme corpulência, o que lhe dava o aspeto de um granadeiro e tanto divertira o Príncipe.
Trazia preso à nuca uma amostra de chapéu. Há três semanas que era a amiga predileta de Ana Nikolaevna, cuja amizade tinha conquistado depois de um longo cerco e a quem podia engolir de uma vez, com ossos e tudo.
— Não sei exprimir a satisfação que tenho ao vê-las em minha casa esta noite — declarou Maria Alexandrovna, já refeita da sua perturbação. — Mas, digam-me, que milagre as trouxe cá, quando eu já duvidava que me fosse concedida tão elevada honra?
— Meu Deus, que desmemoriada a senhora é, Maria Alexandrovna! — disse Natália Dmitryevna com um acento melífluo e voz mimada e presumida, que oferecia um curioso contraste com o seu aspeto.
— Mais, ma charmante — cacarejou Ana Nikolaevna — é preciso, já sabe, é preciso que deixemos ultimado o assunto do teatro. Ainda hoje mesmo Pyotr Mihalovich dizia a Kalist Stanislavich que estava enfadado, que isto não caminhava bem, e que nós não fazemos outra coisa senão discutir. Por isso reunimos esta tarde e dissemos: vamos a casa de Maria Alexandrovna e pôr-nos-emos de acordo definitivamente. Natália Dmitryevna preveniu as outras e virão todas. De forma que assim poderemos falar do caso, e tudo se resolverá em bem. Não consentiremos que nos digam que só sabemos discutir. Não é verdade, mon ange? — acrescentou buliçosa e beijando a dona da casa.
— Meu Deus! Zinaida Afanasvevna! Está cada vez mais formosa!
Ana Nikolaevna correu a encher Zina de beijos.
— Como não tem mais nada que fazer senão tornar-se mais formosa! — explicou Natália Dmitryevna com afetada amabilidade, esfregando as mãos enormes.
— Que vão para o diabo! Que me importa a mim o teatro delas? Que bico afiado trazem estas gralhas! — murmurou Maria Alexandrovna fora de si.
— Além disso, meu anjo, esse amável Príncipe está em sua casa e a senhora deve lembrar-se de que os antigos proprietários de Dukanovo tinham um teatro. Informámo-nos e sabemos que conserva tudo muito bem guardado em determinado lugar: pano, bastidores e até a indumentária. O Príncipe esteve hoje em minha casa; mas a visita dele deixou-me tão surpreendida que nem lhe falei nisso. Agora falar-lhe-emos do teatro, com a sua ajuda e o Príncipe dará ordem para que nos tragam todo o material. Quem seria capaz de nos fazer aqui uma decoração? E, além disso, desejamos que o Príncipe se interesse pela nossa empresa. Deve subscrever; a senhora já sabe que é para fins de beneficência. Talvez até aceite um papel... É tão condescendente e prestável! Seria um êxito retumbante!
— Eu creio que aceitará! Pode-se-lhe fazer representar qualquer papel — acrescentou Natália Dmitryevna com intenção.
Ana Nikolaevna tinha informado bem Maria Alexandrovna. Sem cessar iam chegando mais senhoras. Maria Alexandrovna mal tinha tempo de as receber a todas com as exclamações que exigem em tais circunstâncias as conveniências e as regras da etiqueta.
Não vou descrever cada uma das visitas: só direi que em todos os semblantes se notava uma expressão de refinada astúcia; todos atraiçoavam um desejo bárbaro e uma impaciência de animais famélicos; algumas senhoras vinham com o único fito de presenciarem um escândalo extraordinário e ficariam aflitas e indignadas se não se produzisse. Todas procuravam pôr a máscara de uma excessiva amabilidade, mas Maria Alexandrovna mantinha-se em guarda para qualquer arremetida. Choviam as perguntas sobre o Príncipe como a coisa mais natural; mas em todas transparecia a ponta de uma alusão ou de um gracejo.
Serviu-se o chá e sentaram-se todas. Um grupo encostou-se ao piano convidando Zina a tocar, mas a rapariga negou-se, declarando-se indisposta. A palidez do seu rosto confirmava as suas palavras e as senhoras começaram a fazer perguntas solícitas, mas sem perder a oportunidade de motejar. As perguntas dirigidas a Zina eram referentes a Mozglyakov. Maria Alexandrovna desenvolvia naquele momento uma energia espantosa. Estava ao mesmo tempo nos quatro cantos da sala e não lhe escapava uma palavra do que cada uma das mulheres (cerca de uma dúzia que lá estavam) dizia, respondendo às perguntas imediatamente, sem hesitar numa palavra. Tremia por Zina, surpreendida de ela não se retirar, como costumava fazer em tais ocasiões, e não perdia de vista Afanasy Matveich de quem todas troçavam, para ferir, na pessoa dele, Maria Alexandrovna. Mas naquela tarde queriam tirar alguma coisa do ingénuo e incauto marido, e sua mulher estava em contínuo alarme vendo como o assediavam. Às perguntas que lhe faziam respondia: «Hum!», mas com um ar tão infeliz e de maneira tão pouco natural que Maria Alexandrovna temia perder a linha.
— Maria Alexandrovna: o que tem seu marido que não nos quer falar — queixou-se uma descarada de olhinhos vivos que não temia ninguém e não se afastava por nada. — Diga-lhe que se mostre mais cortês com as senhoras.
— Realmente não sei o que ele tem hoje — respondeu, sorridente, Maria Alexandrovna, interrompendo a sua conversa com Ana Nikolaevna e Natália Dmitryevna. — Está muito pouco comunicativo. Mal me disse uma palavra. Por que não respondes a Feliseta Mihalovna, Atanásio? O que é que lhe perguntava?
— Mas... mas, não foste tu própria que me disseste, mãe?... — pôs-se a tartamudear Afanasy Matveich, cheio de surpresa e confusão.
Estava de pé junto do fogão, com as mãos no colete, numa atitude pitoresca que lhe agradava, e bebia o chá a pequenos sorvos. As perguntas das damas atordoavam-no e corava como uma menina. E, quando começava a justificar-se, tropeçou num olhar tão furioso da mulher que por pouco não desmaiou de terror. Na sua atrapalhação, não sabendo o que fazer, e para que a sua dignidade e os seus direitos não fossem por água abaixo, agarrou na chávena e bebeu-a de um trago, mas o chá estava muito quente e queimou-lhe a boca. O pobre homem atirou com a chávena, engasgou-se, gritou e fugiu para fora da sala, com grande surpresa de todos os presentes, para ocultar a sua vergonha.
Tudo estava esclarecido. Maria Alexandrovna já não duvidava de que as suas visitas sabiam o que se passava e se tinham reunido com as piores intenções. A situação era perigosa. Podiam engazupar o marido e embrulhá-lo ali na sua presença; e até podiam enganar o Príncipe inimizando-o com ela e conquistá-lo e seduzi-lo. Podia esperar tudo. Mas a sorte reservava-lhe uma nova provação: a porta abriu-se e apareceu Mozglyakov, a quem supunha em casa de Boroduev, e cuja visita era a que menos esperava naquela tarde.
A dama estremeceu como se lhe tivessem partido o coração.
Mozglyakov deteve-se à porta, olhando-as a todas, um pouco confuso, sem poder dominar a comoção que lhe aparecia no rosto.
— Ah, Pavel Alexandrovich! — exclamaram várias vozes ao mesmo tempo.
— Sim, é Pavel Alexandrovich! Não nos tinha dito, Maria Alexandrovna, que ele tinha ido a casa de Boroduev? Nós supúnhamos que se tinha escondido em casa de Boroduev, Pavel Alexandrovich! — gritou Natália Dmitryevna.
— Escondido? — repetiu Mozglyakov com um sorriso forçado. — Que maneira de dizer! Perdoe-me, Natália Dmitryevna, mas eu não me escondo de ninguém... nem quero encobrir ninguém! — acrescentou, dirigindo um olhar significativo a Maria Alexandrovna.
Esta tremia dos pés à cabeça.
Este bruto também se sublevará?, pensava perscrutando os desígnios de Mozglyakov. Não, isso seria o fim.
— É verdade, Pavel Alexandrovich, que lhe deram para trás?... Quero dizer... na sua repartição... — perguntou com todo o descaramento a insolente Feliseta Mihalovna, dirigindo-lhe um olhar sarcástico.
— Para trás? Fui transferido, simplesmente. Tenho agora um destino: S. Petersburgo — respondeu o rapaz com frieza.
— Sendo assim, felicito-o. Quando pensei que pretendia um lugar em Mordasov, tive medo por si. Os empregos aqui não são de confiança, Pavel Alexandrovich; não são seguros.
— Em todo o caso o senhor podia encontrar aqui uma vaga: a de mestre-escola do distrito — observou Natália Dmitryevna.
A indireta era tão clara e tão grosseira que Ana Nikolaevna se envergonhou e tocou com o pé na sua maliciosa amiga.
— Mas então imagina que Pavel Alexandrovich ocuparia com gosto o lugar de um infeliz mestre-escola? — interveio Feliseta Mihalovna.
Pavel Alexandrovich não soube o que responder e voltou-se dando uma cotovelada em Afanasy Matveich que entrara novamente e lhe estendia a mão. Em vez de a apertar, inclinou-se com uma ironia de idiota e para desafogar a sua má disposição dirigiu-se para Zina e disse-lhe, olhando-a aborrecido:
— Tu tens a culpa de tudo. Espera um pouco e verás se sou parvo.
— Não é preciso demonstrá-lo, porque bem se vê agora — replicou Zina em voz alta e medindo dos pés à cabeça o seu primeiro pretendente, com um olhar de aversão.
Mozglyakov afastou-se imediatamente, com medo que a ouvissem.
— Viu Boroduev? — arriscou-se por fim a perguntar Maria Alexandrovna.
— Não; vi o tio.
— O tio! Mas estava agora com o Príncipe?
— Então o Príncipe não está a dormir? E tinham-nos dito que descansava! — exclamou Natália Dmitryevna dirigindo a Maria Alexandrovna um olhar maligno.
— Não se preocupe com o Príncipe, Natália Dmitryevna — respondeu Mozglyakov — está acordado e agora, graças a Deus, está de posse de todas as suas faculdades. Esta manhã bebeu demais, primeiro na sua casa e depois aqui e, como já não tem a cabeça muito forte, acabou por a perder. Mas agora, graças a Deus, conversámos um bocado e recobrou o senso comum. Vai descer imediatamente para se despedir de si, Maria Alexandrovna, e para lhe agradecer a sua hospitalidade. Amanhã, ao nascer do sol, partiremos os dois para o mosteiro e eu próprio o acompanharei a Dukanovo para evitar outro acidente como o de hoje. Ali o deixarei ao cuidado de Stepanida Matveyevna (que já deve ter regressado de Moscovo) e que lhe não permitirá expor-se de novo aos perigos de uma viagem... Eu respondo por isso.
Dizendo isto, Mozglyakov olhava com desprezo para Maria Alexandrovna, que permanecia na sua cadeira, petrificada de medo. Confesso que pela primeira vez na sua vida se sentia acobardada.
— Mas vai-se embora amanhã? Como assim? — perguntou Natália Dmitryevna, dirigindo-se à dona da casa.
— Como é possível? — perguntaram em coro várias vozes com um tom ingénuo. — Mas não diziam... mas é muito estranho...
A dona da casa não atinava com a resposta.
De súbito, todas as atenções se voltaram para o mais extraordinário dos episódios. Do compartimento contíguo chegou um ruído estranho, de roucas exclamações, e a seguir, de um modo inesperado, apareceu na sala a própria Sofia Petrovna Karpukin. Era indiscutivelmente a mulher mais extravagante de Mordasov; de tal forma que lhe estavam fechadas quase todas as portas. Todas as tardes, às sete, com uma regularidade matemática, bebia um gole de não sei quê — para aquecer o estômago, conforme dizia — e depois ficava num estado de completa emancipação mental, seja dito com indulgência. E nesse estado apareceu na reunião.
— É essa, Maria Alexandrovna — gritou para que todos a ouvissem — é essa a maneira de tratar-me? Não, não te incomodes; venho só por um momento e não quero sentar-me. Só venho saber se é verdade o que me disseram. Com que então dás bailes, banquetes, festas de esponsais, e Sofia Petrovna há de ficar em casa a fazer meia? Convidaste toda a cidade menos a mim! E fazes isso a quem esta manhã era a «tua melhor amiga» e «mon ange» quando te veio contar o que estavam a fazer com o Príncipe em casa de Natália Dmitryevna! E agora cá está a visitar-te Natália Dmitryevna a quem punhas como um esfregão, como ela te punha a ti. Não te incomodes, Natália Dmitryevna; não quero o teu chocolate... Tenho em casa melhores bebidas! Bah!
— Bem se vê! — observou Natália Dmitryevna.
— Mas, por Deus, Sofia Petrovna! — exclamou Maria Alexandrovna, corando de vergonha. — O que é que tem? Acalme-se.
— Não te preocupes, Maria Alexandrovna; sei tudo, tudo! — chiou, esganiçando-se, Sofia Petrovna, a quem já todas as visitas rodeavam, encantadas com tão divertida cena. — Descobri tudo. Nastasya veio a correr inteirar-me de tudo. Agarraste no Príncipe, que é um imbecil, fizeste-o beber e obrigaste-o a oferecer a mão a tua filha, com quem já ninguém se quer casar, e imaginas por isso que és uma águia, uma duquesa de sangue real! Bah! Não te incomodes que eu sou uma coronela e os teus esponsais não me preocupam. Estou relacionada com gente mais distinta que tu. Jantei com a condessa de Zalikvalsky. O comissário geral quis dar-se comigo. Como se me fizesse falta o teu convite!
— Ouça, Sofia Petrovna — respondeu Maria Alexandrovna, perdendo a paciência — previno-a de que não é essa a maneira de entrar em casa de uma senhora e ainda menos no estado em que se encontra; e se não me livra da sua presença e dos seus eloquentes queixumes, tomarei as necessárias medidas para isso.
— Já sei. Darás ordens aos teus criados, que são uns porcos, para me porem fora. Não te irrites, que eu encontrarei a porta sem a ajuda de ninguém. Adeus! Por mim, casa a tua filha com quem quiseres. E tu, Natália Dmitryevna, faz o favor de não troçares de mim; o teu chocolate não me faz falta! Embora não seja convidada, não danço para divertir o Príncipe. De que te ris, Ana Nikolaevna? Sushilov partiu uma perna; acabam agora de o levar para casa. E tu, Feliseta Mihalovna, se não ordenas ao cambaio do teu Matryoshka que meta a tua vaca no estábulo sem perder tempo, de forma que não muja todos os dias debaixo da minha janela, partir-lhe-ei as pernas. Adeus, Maria Alexandrovna, felicidades!
Sofia Petrovna desapareceu. Todos riram e Maria Alexandrovna agitava-se na maior das atrapalhações.
— Parece-me que bebeu demais — observou com doçura Natália Dmitryevna.
— Mas que insolência!
— Que mulher abominável!
— No entanto, torna-se divertida.
— Ah, e disse coisas tão chocantes!
— O que é que ela disse de uma festa de esponsais? — perguntou com sarcasmo Feliseta Mihalovna.
— É horrível — proferiu por fim Maria Alexandrovna — que existam monstros que espalhem às mãos cheias as calúnias mais absurdas! Mas não é de admirar, Feliseta Mihalovna, que essas senhoras estejam entre nós; o que é mais surpreendente é que as procurem, que as escutem, que as animem, que as acreditem, que...
— O Príncipe! O Príncipe! — gritaram subitamente todas as vozes.
— Deus meu! Le cher Prince!
— Graças a Deus! Agora saberemos tudo — murmurou Feliseta Mihalovna ao ouvido da sua vizinha.
CAPÍTULO XIII
Entrou o Príncipe com um doce sorriso nos lábios desvanecendo-se-lhe, como por encanto, à vista das damas, o medo que lhe tinha infundido Mozglyakov. Derretia-se num momento como um bombom. As damas tratavam-no como a um avô e faziam sempre dele o que queriam. Feliseta Mihalovna dizia nessa mesma manhã — embora seja de supor que não fosse a sério — que estava disposta a sentar-se-lhe nos joelhos, se com isso o alegrasse, porque «era um velhito amabilíssimo, incomparavelmente amável!»
Maria Alexandrovna atravessava-o com os olhos, tentando descobrir naquele rosto qualquer coisa que lhe desse a medida da sua difícil situação, pois era evidente que Mozglyakov lhe tinha dito coisas horríveis comprometendo o êxito dos seus planos. Mas no rosto do Príncipe não se lia nada: era o mesmo que de manhã e que sempre.
— Bondade divina! Cá está o Príncipe! Há tanto tempo que estamos à sua espera! — exclamaram várias senhoras.
— Com impaciência, Príncipe, com impaciência! — acrescentaram outras.
— Isso é muito lisonjeiro — balbuciou o Príncipe, sentando-se junto da mesa em que fervia o «samovar».
Foi imediatamente rodeado por todas as senhoras, menos por Ana Nikolaevna e Natália Dmitryevna, que ficaram ao lado de Maria Alexandrovna. Afanasy Matveich sorria respeitosamente. Mozglyakov também sorria, olhando com ar de desafio para Zina, a qual, sem fazer caso dele, foi sentar-se junto ao fogão, ao lado de seu pai.
— É verdade que nos vai deixar? — perguntou Feliseta Mihalovna.
— Sim, mesdames, vou partir, quero ir imediatamente para o estrangeiro.
— Para o estrangeiro, Príncipe? Para o estrangeiro? — exclamaram todas à uma. — Que ideia!
— Para o estrangeiro — repetiu o Príncipe alardeando. — Sim, desejo ir para o estrangeiro sob o impulso das ideias novas.
— Que quer o senhor dizer «sob o impulso das ideias novas?» Que novas ideias? — perguntaram as senhoras trocando olhares irónicos.
— É isso; pelas ideias novas — repetiu o Príncipe com ar de profunda convicção. — Todos vão agora para o estrangeiro em busca de novas ideias e eu também quero tê-las.
— Deseja por acaso entrar numa loja maçónica, tio? — perguntou Mozglyakov dando-se ares de rapaz sabido e desembaraçado.
— Sim, querido; tens razão — respondeu o velho inesperadamente. — Nos meus bons tempos pertencia a uma loja maçónica estrangeira; eu já tinha então ideias nobres em grande abundância. Nessa altura tentei grandes coisas para a cultura do povo e decidi manumitir em Frankfurt o meu servo Sidor, que tinha levado da Rússia. Mas, com grande surpresa minha, ele próprio fugiu. Era um homem fantástico. Depois encontrei-o em Paris cheio de orgulho com as suas suíças, num boulevard, de braço dado com uma mademoiselle. Olhou-me e baixou a cabeça, e a mademoiselle que ia com ele era de uma vivacidade... um lince!... Que mulherzita sedutora!...
— Ouça, tio! Se agora vai para o estrangeiro é capaz de emancipar todos os camponeses — gritou Mozglyakov rindo.
— Adivinhaste exatamente o meu desejo, querido — respondeu o Príncipe sem vacilar. — Quero emancipá-los a todos.
— Por amor de Deus, Príncipe! Não vê que depois fugiam todos? Aonde iria então buscar o dinheiro? — disse Feliseta Mihalovna.
— A senhora supõe que fugiriam? — exclamou o Príncipe atónito.
— Fugiriam; fugiriam imediatamente, abandonando-o — confirmou Natália Dmitryevna.
— Livra! Assim já não lhes concedo a liberdade. Mas eu não queria dizer isso.
— Mais vale assim, tio — aprovou Mozglyakov.
Maria Alexandrovna ouviu em silêncio, até que se convenceu que o Príncipe a tinha esquecido por completo e decidiu remediar tão lamentável distração.
— Permita-me, Príncipe — gritou com toda a dignidade — permita-me que lhe apresente meu marido, Afanasy Matveich, que veio da nossa casa de campo logo que soube que o senhor era nosso hóspede.
Afanasy Matveich sorriu vaidoso e satisfeito, como se ouvisse uma amabilidade.
— Ah! Encantado, Afanasy Matveich! — disse o Príncipe. — Realmente creio lembrar-me de alguma coisa. Afanasy Matveich, sim, é o cavalheiro do campo. Charmant, charmant, encantado. Querido! — exclamou de súbito voltando-se para Mozglyakov. — É o mesmo, recordas-te? O mesmo desta manhã... Como é que eu disse? «O marido está à porta, enquanto ela foi...» Ah! sim! A mulher foi fazer não sei quê à cidade.
— Sim, Príncipe: «O marido está à porta e a mulher foi para a horta». Sim é do vaudeville que se representou aqui o ano passado — afirmou Feliseta Mihalovna.
— É isso: para a horta, esquece-me sempre. Charmant, charmantl Com que então o senhor é o tal homem? Estou encantado por o conhecer — disse o Príncipe estendendo a mão a Afanasy Matveich sem se levantar da cadeira. — Como está?
— Hum...
— Está perfeitamente, Príncipe, perfeitamente — apressou-se a responder Maria Alexandrovna.
— Oh! Sim, vê-se que está perfeitamente. E vive sempre no campo? Mas que faces tão coradas, e como se ri!
Afanasy Matveich continuava sorrindo, inclinando-se e esfregando os pés; mas ao ouvir a última observação do Príncipe não pôde conter-se e, da maneira mais inoportuna, como um louco, desatou à gargalhada. Todos riram. As senhoras chiaram de prazer. Zina corou e com os olhos fulgurantes contemplou sua mãe, que rebentava de raiva. Já era tempo de mudar de conversa.
— Dormiu bem, Príncipe? — perguntou com voz melíflua enquanto lançava um olhar ameaçador ao marido, ordenando-lhe quietação e silêncio.
— Dormi muito bem. E sabem que tive um sonho encantador? Um sonho en...can...ta...dor!
— Um sonho! Gosto tanto que me contem sonhos!— exclamou Feliseta Mihalovna.
— Também eu! — exclamou Natália Dmitryevna.
— Um sonho encantador! — repetiu o Príncipe com um sorriso contrafeito. — Mas é um segredo mortal.
— Como, Príncipe! Não no-lo conta? Deve ter sido um sonho admirável — opinou Ana Nikolaevna.
— Um segredo mortal! — repetiu o Príncipe, gozando em provocar a curiosidade das mulheres.
— Que interessante que deve ser! — disseram elas.
— Aposto que sonhou que caiu de joelhos diante de uma formosa rapariga e que lhe fez uma declaração amorosa! — gritou Feliseta Mihalovna. — Vamos, Príncipe! É ou não verdade? Confesse, querido Príncipe!
— Confesse, Príncipe, confesse — disseram as outras em coro.
O Príncipe escutava em êxtase e com ar de triunfo aqueles gritos. A suposição das damas lisonjeava a sua vaidade.
— Embora tenha dito que o meu sonho é um segredo de morte — respondeu por fim, depois de hesitar — tenho de admitir, senhoras, que, com grande surpresa minha, adivinharam quase completamente.
— Adivinhado! — gritou Feliseta Mihalovna batendo as palmas. — Agora, Príncipe, é indispensável que nos diga quem é a formosa rapariga!
— Tem que nos dizer!
— Ouça, querido Príncipe! É necessário que no-lo diga, suceda o que suceder! — gritaram de todos os lados.
— Mesdames, mesdames! Por mais que insistam só lhes posso dizer uma coisa: que é a mais se...du...to...ra e posso acrescentar a mais vir...tu...osa rapariga que conheço — balbuciou o Príncipe derretendo-se como cera.
— A mais sedutora e... vive aqui! Quem será? — perguntaram as damas trocando olhares significativos e piscando os olhos umas às outras.
— Pois está claro! A que aqui goza fama de mais bela... — disse Natália Dmitryevna, esfregando as mãozorras vermelhas e fitando Zina com os seus olhos felinos.
Todas olharam para Zina.
— Se o senhor tem desses sonhos, Príncipe, por que não se casa? — perguntou Feliseta Mihalovna, dirigindo às outras um olhar significativo.
— O senhor seria um partido excelente — opinou uma.
— Case-se, querido Príncipe — sugeriu outra.
— Case-se, case-se! — repetiram várias. — Por que não se há de casar?
— Sim! Por que não me hei de casar? — concordou o Príncipe atordoado com o alarido.
— Tio! — exclamou Mozglyakov.
— Sim, querido; compreendo. Queria dizer-lhes, mesdames, que não posso casar-me e que, depois de passar um serão delicioso com os meus hospedeiros, partirei amanhã para visitar o padre Misail no mosteiro e depois partirei para o estrangeiro, a embeber-me de cultura europeia.
Zina empalideceu e olhou para a mãe com indizível amargura. Mas Maria Alexandrovna havia tomado uma resolução. Até ali tinha esperado, observando tudo e dando por malogrado o seu projeto perante as grandes vantagens das suas inimigas. Por fim, dominando com um olhar a situação, decidiu-se a decepar de um só golpe todas as cabeças da hidra. Levantou-se majestosamente e, aproximando-se com passo resoluto da mesa, olhou dos pés à cabeça, com um olhar altivo, o seu cobarde adversário. Nos seus olhos brilhava a luz da inspiração. Ia desconcertar e reduzir a nada todas aquelas comadres, confundir Mozglyakov como a um caçapo e reconquistar, num supremo esforço, a sua influência perdida sobre o idiota do Príncipe.
Era preciso para isso uma audácia extraordinária; mas a Maria Alexandrovna não lhe faltava audácia.
— Mesdames — começou num tom solene e digno, porque a Maria Alexandrovna agradava muito o solene — mesdames: há já um pedaço que ouço a vossa conversa cheia de alegre e espirituoso bom humor e suponho que é tempo de eu tomar a palavra. As senhoras sabem que nos encontramos aqui reunidas esta noite... quase por casualidade, com a qual estou muito satisfeita, muito satisfeita... Nunca me teria decidido eu própria a revelar-lhes um importante segredo de família, nem até a fazê-lo em público antes de me ter sido exigido pelo mais elementar sentimento de decoro. Tenho que pedir perdão, especialmente ao meu querido hóspede; mas inclino-me a crer que ele próprio, com as suas alusões indiretas a esta circunstância, me deu a compreender que não lhe será desagradável a revelação formal e amistosa do segredo da nossa família e que, de facto, a deseja... Não é assim, Príncipe? Acertei?
— Oh! Sim! Acertou... e eu estou encantado! — respondeu o Príncipe sem fazer a mais pequena ideia do que se tratava.
Para produzir mais efeito, Maria Alexandrovna fez uma pausa, respirou fundo e olhou para as pessoas presentes.
Todas a escutavam com maligna e impaciente curiosidade. Mozglyakov tremia. Zina levantou-se para ocultar a vermelhidão que lhe inundava o rosto. Afanasy Matveich, na previsão de qualquer coisa de extraordinário, assoou-se ruidosamente.
— Sim, mesdames; estou disposta a confiar-lhes gostosamente o segredo da família. Hoje, depois do jantar, o Príncipe, rendido pela formosura e... pelas virtudes de minha filha, deu-lhe a honra de lhe oferecer a sua mão. Príncipe — terminou, com lágrimas e a voz trémula de comoção — querido Príncipe, não deve, não, não pode enfadar-se com a minha indiscrição! Só a minha imensa alegria de mãe pôde arrancar do meu coração, antes de tempo, tão precioso segredo... e que mãe mo deitaria em rosto?
Não tenho palavras para descrever o efeito que produziu tão inesperada confissão. Todos pareciam petrificados de surpresa. As pérfidas senhoras que pensavam assustar Maria Alexandrovna, mostrando-se conhecedoras do seu segredo, e atormentá-la com alusões ficaram estupefactas perante uma franqueza tão audaciosa. Aquela valentia era sinal de domínio e de triunfo. «Isso indica que o Príncipe se casa com Zina por sua própria vontade; que não o tentaram, não o fizeram beber, não o enganaram; que não o obrigam a casar-se valendo-se de enredos e por meios desonestos. Isso indica que Maria Alexandrovna não teme ninguém e que será impossível impedir o casamento». Houve um murmúrio de vozes que se transformou numa gritaria de júbilo. Natália Dmitryevna foi a primeira a abraçar Maria Alexandrovna; Ana Nikolaevna imitou-a e logo a seguiu Feliseta Mihalovna. Todas se levantaram tumultuosamente; algumas senhoras estavam pálidas de despeito. Felicitavam Zina e até abraçavam Afanasy Matveich. Maria Alexandrovna estendeu os braços em atitude dramática e quase à força atraiu a si a filha para a estreitar contra o peito. O Príncipe contemplava a cena com surpresa sem deixar o seu costumado sorriso. Aquilo agradava-lhe pelo seu aspeto sentimental. Ao ver unidas a mãe e a filha num abraço, tirou o lenço e enxugou uma lágrima que lhe brilhava nos olhos. Também ele recebeu parabéns.
— Em boa hora, Príncipe! Em boa hora! — exclamaram as senhoras de todos os lados.
— De forma que o senhor vai-se casar!
— Com que então é verdade casar-se?
— Querido Príncipe! Então vai-se casar deveras?
— Deveras, deveras! — respondeu o Príncipe cheio de prazer por tanto entusiasmo e felicitações. — E confesso que nada me agrada tanto como a simpatia que as senhoras me demonstram e que nunca esquecerei. Charmant! Charmant! Até me fazem chorar.
— Venha um beijo, Príncipe! — gritou Feliseta Mihalovna, elevando a sua voz acima das outras.
— E tenho que confessar — prosseguiu o Príncipe a quem todas interrompiam — que sobremaneira me surpreende que Maria Ivanovna, minha respeitável hospedeira, tenha adivinhado o meu sonho com tão extraordinária perspicácia! Ex...tra...ordi...ná...ria perspicácia!
— Então ainda fala em sonho, Príncipe?
— Vamos, Príncipe, confesse, confesse lá! — gritaram todas rodeando-o.
— Sim, Príncipe; não é preciso ocultar nada; chegou a hora de revelar o nosso segredo! — disse Maria Alexandrovna, formal e resolutamente. — Compreendi a sua fina alegoria, a esquisita delicadeza com que me mostrou o seu desejo de que tornasse público o seu oferecimento. Sim, mesdames, é verdade; esta tarde o Príncipe caiu de joelhos perante minha filha e não em sonhos, mas na realidade, fez-lhe uma proposta de casamento em regra.
— Exatamente como na realidade e com as mesmas circunstâncias — repetiu o Príncipe. — Mademoiselle — acrescentou voltando-se com acentuada cortesia para Zina que não tinha saído ainda do seu assombro. — Mademoiselle, juro-lhe que nunca teria ousado pronunciar o seu nome se os outros o não tivessem repetido antes. Foi um sonho encantador, um sonho en...can...ta...dor, e sinto-me duplamente feliz que me seja permitido contá-lo. Charmant! Charmant!
— Mas valha-me Deus! Como é isso? Continua a falar de sonho! — murmurou Ana Nikolaevna aproximando-se de Maria Alexandrovna que estava inquieta e um pouco pálida. Aquelas palavras quebravam-lhe o coração e faziam-lhe vacilar a energia.
— Como é isso? — murmuravam as damas, olhando umas para as outras.
— Por Deus, Príncipe! — protestou Maria Alexandrovna com um contrafeito e amargo sorriso. — Deixa-me assombrada! Que história é essa do sonho? Até agora pensava que era brincadeira, mas... se é brincadeira, começa a tornar-se demasiado pesada... Eu queria atribuí-la a uma distração, mas...
— Talvez se deva a uma distração — insinuou Natália Dmitryevna.
— Ah, sim! Talvez seja uma distração — afirmou o Príncipe sem compreender claramente o que pretendiam dele. — E a propósito quero contar-lhes uma anedota. Em S. Petersburgo convidaram-me para um funeral numa casa, maison bourgeoise, mais honnête; fiz confusão e pensei que se tratava de uma festa onomástica. Ora esta festa tinha sido na semana anterior. Comprei pois um ramo de flores para a senhora que festejava o santo e quando entrei vi um homem respeitável, de corpo presente, deitado no caixão. Fiquei surpreendido e, claro, sem saber o que havia de fazer de mim e do ramo das flores.
— Vamos, Príncipe; não é momento para histórias! — interrompeu Maria Alexandrovna despeitada. — A minha filha não tem necessidade de andar à procura de noivos, mas esta tarde junto deste piano o senhor fez-lhe uma proposta. Eu não o convidei a dar esse passo... que me deixou, posso dizê-lo, atónita. A seguir ocorreu-me uma ideia triste, mas não quis expor-lha até que o senhor despertasse. Não se esqueça de que sou mãe e ela é minha filha... O senhor acaba de falar de um sonho e eu supus que, em forma alegórica, se quisesse referir ao seu compromisso. Bem sei que procuraram dissuadi-lo... e eu suspeito quem... mas explique-se, Príncipe, imediata e convenientemente. Não se brinca assim com uma família respeitável.
— Oh! Não se brinca assim com uma família respeitável — concordou o Príncipe como um fonógrafo, embora começasse a sentir um certo mal-estar.
— Isso não é responder à minha pergunta, Príncipe. Peço-lhe uma resposta categórica: confirme imediatamente, confirme perante todos o oferecimento que fez esta tarde a minha filha.
— Ah, sim! Estou pronto a confirmá-lo, embora já tenha contado tudo e Feliseta Mihalovna tenha adivinhado exatamente o meu sonho.
— Não foi sonho, não foi sonho! — gritou Maria Alexandrovna num paroxismo de raiva. — Não foi sonho, foi realidade, Príncipe. Realidade, ouve o senhor? Realidade!
— Realidade! — exclamou o Príncipe surpreendido, levantando-se de um salto. — Bem, amigo; tudo se passa como me preveniste lá em cima! — acrescentou voltando-se para Mozglyakov. — Mas asseguro-lhe, respeitável Maria Alexandrovna, que está em erro. Estou completamente convencido de que não foi mais que um sonho.
— Deus misericordioso! — exclamou Maria Alexandrovna.
— Não se aflija, Maria Alexandrovna — interveio Natália Dmitryevna. — Talvez o Príncipe tenha esquecido. Ele se recordará.
— A senhora não me faça rir, Natália Dmitryevna — replicou indignada a dona da casa. — Podem, por acaso, esquecer-se coisas destas? Como é que alguém o pode esquecer? Vamos, Príncipe! Está a troçar de nós ou quer representar o papel de galã libertino do tempo da Regência, descrito por Dumas... um certo Faire-la-Cour ou um tal Lauzun? Mas, além de que esse papel não é próprio para a sua idade, juro-lhe que não terá êxito. A minha filha não é uma viscondessa. Aqui mesmo, esta tarde, ela lhe cantou uma romanza e, transportado pela sua voz, o senhor caiu de joelhos oferecendo-lhe casamento. Estou agora a sonhar também? Estou a dormir? Fale, Príncipe: durmo ou estou acordada?
— Oh, sim!... embora, talvez, não... — respondeu o Príncipe atordoado. — Quero dizer, creio que não sonho agora. A senhora bem vê, eu esta tarde dormi e enquanto dormia tive um sonho...
— Valha-me o céu! Mas que trapalhada é esta? Que sim, que não, que sonho, que não sonho... Que o diabo o decifre. O senhor delira, Príncipe?
— Oh, sim, que o diabo o decifre... embora eu creia que... já não sei onde ando — disse o homem tornando a olhar para todos os lados com inquietação.
— Mas como pode tê-lo sonhado — insistiu Maria Alexandrovna com angústia — se lhe estou dando todos os pormenores do sonho antes que no-lo tenha contado?
— É possível que o Príncipe o tenha contado a alguém... — disse Natália Dmitryevna.
— Sim, talvez o tenha contado a alguém — repetiu o Príncipe completamente transtornado.
— Isto é uma farsa — murmurou Feliseta Mihalovna à sua vizinha.
— Santo Deus! Isto é superior a toda a paciência! — exclamou Maria Alexandrovna torcendo as mãos em atitude de desespero. — Zina cantava-lhe, cantava-lhe uma romanza! Também o sonhou?
— Oh, sim! Com efeito; creio que cantava uma romanza — murmurou o Príncipe pensativo.
E, de súbito, uma recordação animou o seu semblante.
— Querido! — exclamou dirigindo-se a Mozglyakov. — Esqueci-me de te dizer que, com efeito, havia uma romanza e que apareciam constantemente castelos nessa romanza, de forma que parece que havia ali uma grande abundância de castelos, e depois vinha um trovador. Sim, recordo-me de tudo... Até derramei lágrimas... E agora estou em dúvida. Parece-me que sucedeu realmente e que não foi um sonho.
— Tenho que lhe dizer, tio — interveio Mozglyakov com tanta calma quanta lhe foi possível, sem poder evitar que a voz lhe tremesse de comoção — tenho que lhe dizer que me parece fácil explicar isso de um modo satisfatório. Suponho que efetivamente o senhor ouviu cantar Zinaida Afanasyevna, que, na verdade, canta deliciosamente. Depois de jantar vieram para aqui e Zinaida Afanasyevna cantou-lhe uma romanza. Eu não estava presente para observar o efeito, mas com certeza o comoveu ao senhor a recordação dos tempos antigos, a recordação daquela viscondessa com quem o senhor cantava romanzas e de quem nos falou esta manhã. E depois, quando se deitou, impressionado por tão agradáveis recordações, sonhou que estava enamorado e que a pediu em casamento.
Maria Alexandrovna ficou petrificada perante tanta audácia.
— Ah, querido! Foi assim precisamente! — gritou o Príncipe cheio de alegria. — Consequência de tão agradáveis recordações. Lembro-me com efeito que me cantaram uma romanza, e por isso, depois, quando sonhava, desejei casar-me. E isso da viscondessa também é verdade... Com que penetração esclareceste tudo, querido. Bem, agora estou certo de que sonhei! Maria Vassilyevna! Asseguro-lhe que está confundida! Foi um sonho! De outra forma nunca me permitiria brincar com os seus estimáveis sentimentos...
— Agora, agora vejo claramente quem é o autor de tudo isto! — gritou fora de si Maria Alexandrovna, dirigindo-se a Mozglyakov. — Foi o senhor; o senhor, patife. Isto é obra sua. O senhor enganou este pobre homem para se vingar de ter sido corrido. Mas há de pagar-mas, seu patife! há de pagar-mas! há de pagar-mas!
— Maria Alexandrovna! — gritou Mozglyakov, vermelho como um caranguejo. — As suas palavras são tão... não sei como qualificá-las... Nenhuma senhora bem-nascida se permitiria... E, além disso, eu defendo o meu parente. Confesse que enganar assim...
— É isso; enganar assim... — repetiu o Príncipe tentando ocultar-se por detrás de Mozglyakov.
— Afanasy Matveich! — chiou Maria Alexandrovna esganiçando-se. — Não vês como nos ultrajam e desonram? Ou perdeste todo o sentimento do dever? És o chefe da família ou um pau podre? Outro marido já teria lavado com sangue, há muito tempo, este ultraje à sua família!
— Mulher! — respondeu Afanasy Matveich com dignidade, orgulhoso por ser finalmente necessário. — Mulher! Não terás sonhado tudo isso e depois, ao despertar, não terás confundido tudo, com o teu desejo?
Mas Deus não quis que o marido acabasse a sua engenhosa interpretação. As visitas que até ali se tinham refreado, adotando um ar de hipócrita cortesia, não puderam mais e romperam numa gargalhada que encheu toda a sala. Perdendo a compostura, Maria Alexandrovna atirou-se contra o marido, sem dúvida na intenção de lhe arrancar os olhos. Contiveram-na à força e Natália Dmitryevna aproveitou aquela circunstância para acrescentar outra mordidela venenosa.
— Maria Alexandrovna! Talvez seu marido tenha razão e está a irritar-se sem motivo — disse com a mais melíflua das vozes.
— Como! Que diz? — gritou Maria Alexandrovna sem perceber bem.
— Já sabe, Maria Alexandrovna, que às vezes sucede isso.
— Que sucede? Quer fazer-me doida?
— Talvez o tenha sonhado, efetivamente.
— Sonhá-lo, eu? Sonhá-lo! E atreve-se a dizer-me isso na minha cara?
— Sim, talvez tenha sido assim — repetiu Feliseta Mihalovna.
— Oh, sim! Talvez tenha sido assim — murmurou o Príncipe.
— Ele também, ele também! Deus me valha! — exclamou Maria Alexandrovna, juntando as mãos.
— Não se aflija, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos nos vêm do céu. Se é a vontade de Deus, ninguém pode opor-se-lhe; todos estamos nas suas mãos. É inútil aborrecer-se por uma coisa destas.
— Oh, sim! Não é bom aborrecer-se por uma coisa assim — repetiu o Príncipe.
— Os senhores tomam-me por louca? — perguntou Maria Alexandrovna debilmente e sem alento.
E como aquilo era superior às forças humanas, procurou precipitadamente uma cadeira e caiu desmaiada. Produziu-se uma confusão na sala.
— Isto é que é saber desmaiar oportunamente — sussurrou Natália Dmitryevna ao ouvido de Ana Nikolaevna.
Mas naquele momento, quando era maior a confusão geral e a situação mais crítica, adiantou-se uma pessoa que até aí tinha permanecido calada... e imediatamente se mudou o aspeto da cena.
CAPÍTULO XIV
De Zinaida Afanasyevna pode dizer-se que tinha um caráter exageradamente romântico. Eu não sei se era devido, como o sustentava Maria Alexandrovna, a uma excessiva leitura «desse louco do Shakespeare» com o «seu infeliz mestre-escola». O certo é que nunca, no decorrer da sua vida em Mordasov, Zina se tinha permitido um ato de tão extraordinário romantismo, ou melhor, de heroísmo como o que vamos agora descrever.
Pálida, com os olhos brilhantes de resolução, trémula, admiravelmente bela na sua cólera, avançou, dirigiu a todos os presentes um olhar lento e provocador e voltou-se para a mãe, que ao primeiro movimento da filha tinha voltado a si e aberto os olhos.
— Mamã — disse — para quê continuar fingindo? Para que nos havemos de sujar mais na mentira? Enlameou-se tanto o assunto que não vale a pena usar de vis recursos para dissimular!
— Zina, Zina! O que tens? Repara no que estás a dizer! — gritou a mãe saltando da cadeira.
— Eu preveni-te, eu preveni-te, mamã, de que não poderia suportar esta vergonha — prosseguiu Zina. — É preciso que nos envileçamos ainda mais, que continuemos a enlamear-nos? Mas eu já te disse, mamã, que assumia a responsabilidade, porque sou a mais culpada por ter consentido que esta baixa intriga fosse por diante! Tu és mãe, tu amas-me, tu procuravas a minha felicidade à tua maneira, de acordo com as tuas ideias. A ti podem perdoar-te, mas a mim nunca.
— Mas ousas falar, Zina?... Deus meu! Bem pressentia eu que esta espada de dor me havia de atravessar o coração!
— Sim, mamã; falarei claro. Estou desonrada... as duas estamos cobertas de vergonha!
— Exageras, Zina! Estás transtornada e não sabes o que dizes! E para quê contá-lo? Sim, é absurdo... A desonra não é nossa. Vou-te provar imediatamente que a desonra não é nossa.
— Não, mamã; não me quero calar mais perante esta gente a quem desprezo e que veio aqui fazer pouco de nós — gritou Zina tremendo de ira. — Não tolero que estas mulheres me insultem. Nenhuma delas tem o direito de me atirar com lama, porque todas estão dispostas a proceder cem vezes pior do que tu ou eu! Como se atreveriam, como poderiam ser nossos juízes?
— Lindíssimo! Mas não a ouvem? O que significa esta linguagem? Está a injuriar-nos! — comentaram várias vozes.
— A menina não sabe o que diz! Ora esta! — acrescentou Natália Dmitryevna.
E tenho que concordar que ela tinha razão; porque se Zina não considerava aquelas senhoras dignas de a julgar a que vinha a sua pública confissão perante elas? Zinaida Afanasyevna procedeu precipitadamente. Tal foi a opinião das pessoas mais sensatas de Mordasov. Tudo se poderia compor, tudo se poderia justificar. É verdade que Maria Alexandrovna também tinha comprometido o caso pela sua impaciência e presunção. Ter-lhe-ia bastado meter a ridículo o velho imbecil e mandá-lo passear. Zina, porém, propositadamente e em oposição ao bom senso e à prudência de toda a população, dirigiu-se ao Príncipe.
— Príncipe — disse ao velho, tão comovido pela sua presença e linguagem que se levantou imediatamente dando provas de respeito. — Perdoe-me, Príncipe, perdoe-nos. Enganámo-lo! Induzimo-lo...
— Calas-te ou não, desgraçada? — gritou Maria Alexandrovna delirante.
— Madame, madame! Ma charmante enfant... — murmurou o Príncipe profundamente impressionado.
O caráter orgulhoso, impulsivo e romântico de Zina arrastou-a naquele momento para além de toda a prudência que a situação exigia, esquecendo-se até de sua mãe que, ao ouvi-la, sofria angústias mortais.
— Sim; as duas enganámo-lo, Príncipe; minha mãe decidindo casá-lo comigo e eu consentindo. O senhor bebeu muito e eu prestei-me a cantar e a representar um papel perante si. Como o exprimiu Pavel Alexandrovich, nós intrujámo-lo, valendo-nos da sua debilidade e abandono, porque pretendíamos a sua fortuna e o seu título. Confesso que é uma ação digna de vilãos e arrependo-me disso. Mas juro-lhe, Príncipe, que não me levou a essa vileza o menor impulso ignóbil. Eu queria... mas que vou dizer se ainda é mais vil justificar um ato como este? Juro-lhe, Príncipe, que se tivesse aceitado alguma coisa de si, lho pagaria com excesso, convertendo-me em seu joguete, sua criada, em sua bailarina, em sua escrava... Tinha-o prometido a mim própria e cumpriria a minha promessa.
Um nó na garganta impediu-a de continuar. Todas as visitas, imóveis como estátuas, escutavam-na com os olhos desorbitados. A estranha saída de Zina, que para eles era inteiramente incompreensível, deixou-os perplexos. Só o Príncipe ficou comovido até às lágrimas embora não compreendesse metade do que ela dizia.
— Casar-me-ei contigo, ma belle enfant, se assim o desejares — murmurou — e será uma grande honra para mim. Embora te garanta que me parecia um sonho realmente... É que eu sonho tudo o que se passa neste mundo... Para que se hão de afligir tanto? Não chego a perceber, mon ami — acrescentou voltando-se para Mozglyakov. — Anda, explica-mo...
— E o senhor, Pavel Alexandrovich — disse Zina voltando-se também para Mozglyakov. — O senhor a quem eu cheguei um dia a considerar como meu futuro esposo; o senhor que tão cruelmente se vingou de mim, como se pode unir a esta gente para me atormentar, para me encher de ignomínia? E o senhor jurava que me queria? Mas eu não sou a pessoa indicada para o censurar, porque sou mais culpada que o senhor. Eu enganei-o; animava-o com promessas e todas as minhas palavras eram mentiras; um tecido de falsidades. Nunca o amei e, se tivesse consentido em casar-me consigo, teria sido apenas para fugir desta maldita cidade, para livrar-me desta cidade corrompida... Mas juro-lhe também que teria encontrado em mim uma esposa boa e fiel... O senhor vingou-se cruelmente e, se isto satisfaz o seu orgulho...
— Zinaida Afanasyevna! — gritou Mozglyakov.
— Se ainda lhe inspiro um sentimento de ódio...
— Zinaida Afanasyevna!
— Se ainda me guarda — prosseguiu Zina retendo as lágrimas — se ainda me guarda um pouco de amor!!!
— Zinaida Afanasyevna!!!
— Zina, Zina, minha filha — gemeu Maria Alexandrovna.
— Sou um canalha, Zinaida Afanasyevna; sou um canalha e não mereço outro nome — declarou Mozglyakov, produzindo grande agitação nos circunstantes que soltaram exclamações de surpresa e de protesto. Mozglyakov ficou paralisado, incapaz de pensar e de falar.
Para os carácteres débeis e superficiais, acostumados a constante submissão, que um dia se atrevem a desafogar-se em protestos, a ser resolutos e firmes, há sempre um limite em que se pulveriza a sua consistência, um limite a que chegam depressa. O seu protesto é de começo vigoroso, a sua energia leva-os ao arrebatamento; lançam-se contra um obstáculo de olhos fechados e aceitam sempre tarefas superiores às suas forças. Mas chega o momento em que o arrebatamento se detém, com grande surpresa para eles próprios, e em que perguntam atordoados: que fiz eu? Depois sentem-se fracos, choram, dão explicações, caem de joelhos, pedem perdão, suplicam que tudo fique como estava, mas que seja depressa, o mais depressa possível. Foi isto o que aconteceu com Mozglyakov. Depois de se ter deixado arrebatar pela cólera, de ter provocado aquela cena cuja causa se atribuiu depois, por inteiro, de ter satisfeito a vaidade e desafogado a indignação, sem deixar de se odiar a si próprio, deteve-se alarmado, ferido na sua consciência, pelas queixas de Zina cujas últimas palavras acabaram de o aniquilar. Passar de um extremo a outro era para ele coisa de um momento.
— Sou um burro, Zinaida Afanasyevna! — gritou num arranco de sincero arrependimento. — Um burro? Isso não é nada. Sou incomparavelmente pior do que um burro! Mas quero demonstrar-te, Zinaida Afanasyevna, quero demonstrar-te que até um burro pode ser uma pessoa honrada! Tio! Eu enganei-o; fui eu quem o enganou! O senhor não dormia; o senhor fez, realmente, um pedido de casamento e eu, eu, como um canalha, como vingança de ter sido repelido, persuadi-o de que tudo tinha sido um sonho.
— Magnífico! Estamos ouvindo coisas surpreendentes! — murmurou Natália Dmitryevna ao ouvido de Ana Nikolaevna.
— Querido — respondeu o Príncipe — acalma-te, por Deus! Assustas-me com os teus gritos. Asseguro-te que estás em erro. Estou disposto a casar-me de qualquer maneira; mas tu próprio me asseguraste que era tudo um sonho.
— Oh, como poderei desenganá-lo agora? Digam-me, como há de ser? Tio! Tio! O senhor compreende que se trata de um assunto de grande importância, que envolve a honra de uma família. Reflita. Considere!
— Sim, querido; vou refletir. Espera, deixa-me ordenar as minhas recordações. Primeiro sonhei com o meu criado Te...ó...fi...lo...
— Mas agora não se trata de Teófilo, tio.
— Bem; suponho que não se trata dele. Depois vem Napoleão e depois estamos tomando chá e chegou uma senhora que roubou o açúcar todo.
— Mas, tio — gritou Mozglyakov, com a cabeça completamente perdida — isso foi o que nos contou esta manhã Maria Alexandrovna de Natália Dmitryevna! Eu estava aqui e ouvi. Quer dizer, estava escondido e via-o ao senhor pelo buraco da fechadura...
— Como, Maria Alexandrovna! — interveio Natália Dmitryevna. — Com que então também disse ao Príncipe que lhe tirei o açúcar do açucareiro? Quer dizer que venho aqui roubar-lhe o açúcar, não é verdade?
— Saia-me da frente! — gritou Maria Alexandrovna num arrebatamento de desespero.
— Não, não saio, Maria Alexandrovna. Como se atreve a tratar-me assim? Com que então eu roubo-lhe o açúcar? Há muito tempo que você se entretém a contar de mim coisas indecentes. Sofia Petrovna pôs-me ao facto de tudo... Roubo-lhe então o açúcar, não é verdade?
— Mas, mesdames — gritou o Príncipe — se não foi mais que um sonho! Não veem que eu sonho tudo o que se passa neste mundo?
— Maldita cuba! — murmurou Maria Alexandrovna em voz baixa.
— Sou então uma cuba? — chiou Natália Dmitryevna. — E você o que é? Há muito tempo que sei que você me chama sempre «a cuba». Eu, pelo menos, tenho um marido e você não tem mais que um bobo...
— Ah, sim; agora me lembro que também havia uma cuba — murmurou o Príncipe aludindo inconscientemente à sua conversa com Maria Alexandrovna nessa manhã.
— O senhor também insulta uma dama? Como se atreve, Príncipe, a insultar uma senhora? Se eu sou uma cuba, a si faltam-lhe as pernas.
— Como? Faltam-me as pernas?
— Sim, as pernas e também os dentes. O senhor é um boneco partido.
— E um olho — acrescentou Maria Alexandrovna.
— Usa espartilho em vez de costelas — disse Natália Dmitryevna.
— A sua cara aguenta-se com alfinetes.
— O senhor é calvo.
— O grande idiota usa bigode postiço!
— Deixe-me ao menos o nariz, Maria Stepanovna — gritou o Príncipe, vexado por tão súbita franqueza. — Querido! Tira-me daqui! Porque lhes disseste que eu usava cabelos postiços?
— Tio!
— Não, querido; não posso ficar aqui nem mais um momento. Leva-me... que sociedade! Por que me trouxeste para aqui, Deus meu?
— Imbecil! Canalha! — gritou Maria Alexandrovna.
— Querido! — prosseguiu o pobre Príncipe. — De momento esqueci-me do que vim cá fazer, mas depois me recordarei. Leva-me, querido, senão fazem-me em pedaços! Entretanto... tenho que apontar uma ideia...
— Vamos, tio; ainda não é demasiado tarde. Levá-lo-ei para um hotel e ficarei junto de si.
— Sim, a um hotel. Adieu, ma charmante enfant... Só tu... só tu... és boa e virtuosa. És uma rapariga honesta. Vamos, rapaz; vamos, querido, querido!
Não descreverei a cena desagradável que se seguiu à saída do Príncipe. As senhoras foram desaparecendo no meio de um escândalo de gritos e insultos. Maria Alexandrovna ficou só entre as ruínas da sua passada glória. Ah! Poder, fama, importância... tudo se desvaneceu naquela tarde. Maria Alexandrovna considerava-se caída para sempre do seu pedestal. Ali acabava o período da sua tirania, exercida durante tanto tempo sobre a sociedade de Mordasov. Que lhe restava agora? Entregar-se à filosofia? Mas não era filósofa. Passou uma noite infernal. Zina ficava desonrada e as murmurações e o escândalo não teriam fim! Um horror!
Como fiel historiador, devo consignar aqui que foi Afanasy Matveich quem pagou as consequências daquele aborrecimento. Refugiou-se no quarto de arrumações e ali ficou tremendo de frio até à manhã seguinte, que não trouxe nada de bom. Uma desgraça nunca vem só.
CAPÍTULO XV
Quando alguém é perseguido pela desgraça nunca mais acaba de receber golpes. Isto há muito tempo que está dito. A Maria Alexandrovna não tinham bastado a vergonha e a contrariedade sofridas na véspera: o destino ainda lhe reservava coisa pior. Antes das dez da manhã já se tinha espalhado por toda a cidade um boato estranho e incrível mas que todos acolhiam com mostras de desprezo e de malévola alegria, como era acolhido sempre qualquer escândalo que dissesse respeito aos vizinhos.
— Isso chama-se perder todos os escrúpulos e toda a vergonha! — ouvia-se dizer por todos os lados. — Descer ao que há de mais ínfimo; não ter nem uma migalha de decoro, atropelar todas as conveniências, etc., etc.
Eis o que sucedeu. De manhã cedo, um pouco antes das seis, uma pobre velha de aspeto lamentável, olhos de pranto e olhar de desespero, subiu a casa de Maria Alexandrovna e suplicou à criada que acordasse a menina, mas só a menina e em segredo, de forma que a mãe o não soubesse. Zina, pálida e atribulada, correu imediatamente ao encontro da velhinha. Esta caiu-lhe aos pés, beijou-os, banhou-os com as suas lágrimas e suplicou-lhe que fosse com ela para junto de seu filho Vasya que passara a noite tão mal, tão mal, que talvez na acabasse o dia. Entre soluços, a pobre velha dizia que Vasya lhe rogava que fosse para se despedir dela, pela última vez, antes de morrer; suplicava-lho pelos anjos do céu, por tudo o que se tinha passado entre eles, e, se recusasse, morreria desesperado. Embora soubesse que aceder a tal súplica seria confirmar tudo o que se murmurava acerca da carta intercetada e do seu escandaloso procedimento, Zina resolveu ir. Sem avisar a mãe, deitou uma capa por cima dos ombros e acompanhou a velhota, através da cidade, até um dos bairros mais pobres de Mordasov, no qual, numa das ruas mais escuras, havia uma casinha arruinada, sem outras janelas além dumas fendas, com as paredes inclinadas, como se se estivesse a desmoronar, e quase enterrada sob grandes montões de neve.
Num quarto pequeno e tétrico, sobre uma cama de madeira tosca que, com o grande fogão, ocupava quase todo o espaço, jazia um rapaz, tapado com um velho capote que deixava ver um colchão delgadíssimo. Tinha o rosto pálido e chupado, os olhos com um brilho de febre, as mãos débeis como vimes e a respiração fatigada e ruidosa. Podia ver-se que tinha sido belo, embora a doença tivesse desfigurado as delicadas linhas do seu rosto que inspirava piedade como o de todos os tísicos, ou melhor, o de todos os agonizantes. Sua velha mãe, que tinha vivido todo aquele ano com a esperança de o salvar, acabara por se convencer de que seu filho já não era deste mundo e permanecia a seu lado, transida de dor, com os olhos secos e as mãos torcidas, olhando-o, como se nunca o olhasse bastante, sem poder afazer-se à ideia de que daí a poucos dias Vasya, a menina dos seus olhos, estaria coberto pela terra gelada do velho cemitério que desaparecia agora sob a neve espessa.
Mas Vasya não a via naquele momento. Seu rosto consumido e sulcado de sofrimento resplandecia. Via, enfim, na sua frente aquela com quem, a dormir ou acordado, sonhara durante ano e meio nas suas longas noites de doente. Compreendia que fora perdoado, visto que ela acudia, como o anjo do Senhor quando o chamam das portas da morte, e lhe apertava as mãos, chorava com ele, sorria-lhe e voltava a fitá-lo com os seus olhos adoráveis, e... e todo o passado ressuscitava na alma do moribundo. A vida alumiava-lhe de novo o coração como para que o desgraçado visse como é triste a despedida.
— Zina, Zinotchka! Não chores por mim, não te aflijas, não tenhas pena, não te lembres de mim, que vou morrer em breve. Deixa-me olhar-te como te estou olhando agora para sentir, outra vez, as nossas almas unidas e me sentir perdoado. Deixa-me beijar-te as mãos como nos bons dias e morrerei sem dar por isso. Emagreceste, Zinotchka! Com que bondade olhas para mim, anjo meu! Recordas-te como te rias dantes? Recordas-te?... Ah, Zina! Não quero implorar o teu perdão; não quero recordar o passado, Zina, porque se tu me perdoaste eu jamais me perdoarei. Que noites tão longas eu tenho passado, Zina! Noites de insónia, noites horrorosas! E durante essas noites e nesta cama tenho pensado em muitas coisas e reconheci que vale mais morrer; sim, por Deus, é melhor! Não sou apto para a vida, Zinotchka!
Zina chorava em silêncio apertando as mãos do enfermo, como se quisesse prendê-las para sempre.
— Por que choras, meu anjo? Porque eu morro? Só por isso? Fica sabendo que a minha vida tem sido uma contínua morte e que a enterrei há muito tempo! Tu és mais inteligente que eu, mais pura, e por isso sabes, há muito tempo, que sou um homem indigno. Amas-me ainda? Quanto tenho sofrido por saber que tu conhecias a minha maldade e as minhas fraquezas! E quanto orgulho havia nisto, talvez um nobre orgulho... nem eu sei! Oh, minha amada! Toda a minha vida tem sido um sonho. Sonhava, sonhava sempre, mas não vivia. Era orgulhoso e desprezava os demais. Em que era eu superior aos outros? Não sei. Talvez na pureza do coração, na nobreza de sentimentos? Quanto líamos juntos Shakespeare, Zina, era tudo sonho; mas, na prática, eu devia provar a minha pureza e a minha retidão de sentimentos.
— Basta! — interrompeu Zina. — Basta! Não fales assim; é inútil e estás a matar-te!
— Por que me mandas calar, Zina? Sei que me perdoas e talvez me tenhas perdoado há muito tempo; mas estudaste-me e compreendeste que homem eu era; é isso que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Tu foste sempre honesta e magnânima até na prática; disseste a tua mãe que te casarias comigo e com mais ninguém, e terias cumprido a tua palavra, porque em ti as palavras não são desmentidas pelos factos. Ao passo que eu, eu!... na prática... Sabes, Zina, que não teria compreendido o sacrifício que farias casando comigo? Nem sequer compreendia que podias morrer de fome. Nem isso me ocorreu; não pensava senão que te casarias com um grande poeta, poeta em embrião. Não queria atender às razões que alegavas para me dissuadir do nosso casamento; martirizava-te, recriminava-te, amedrontava-te e desprezava-te, para acabar ameaçando-te com aquela carta. Naquele momento não fui apenas um canalha, mas um verme da terra! Oh, como devias desprezar-me! Sim; é justo que morra e é justo que não tivesses casado comigo. Não teria compreendido o grande sacrifício que fazias. Ter-te-ia atormentado, ter-te-ia amargurado a vida com a nossa pobreza; teriam passado os anos e... (quem sabe?) talvez tivesse chegado a odiar-te como um obstáculo para o meu futuro. Assim é melhor. Ao menos agora sinto o coração purificado pelas lágrimas. Oh, Zinotchka! Ama-me um pouco como noutros tempos... ao menos nesta última hora... já sei que não mereço o teu amor; mas... mas... Ah, anjo meu!
Muitas vezes quis Zina interrompê-lo, entre soluços; mas ele não a atendia, devorado pela sede insaciável de falar e continuava com a voz quebrada pelo esforço:
— Se não me tivesses conhecido, se não me tivesses amado, estarias bom — disse Zina. — Deus meu! Para que foi que nos conhecemos?
— Não, minha amada; não te culpes da minha morte — prosseguiu o enfermo. — Eu tenho culpa de tudo. Quanta vaidade há no que te vou contar! Que romantismo tão louco! Não conheces o meu caso, Zina? Há dois anos havia aqui um preso, um miserável assassino que, ao aproximar-se o dia do castigo, se converteu no ser mais cobarde. Sabendo que não se bate nos doentes, arranjou um pouco de aguardente, deitou-lhe tabaco dentro e bebeu. Declarou-se-lhe uma enfermidade com vómitos de sangue tão repetidos que os pulmões foram atacados. Foi levado para o hospital onde morreu, ao cabo de poucos meses, com uma tuberculose galopante. Pois bem, meu anjo; eu recordei-me desse preso naquele mesmo dia... depois daquela carta, e resolvi matar-me do mesmo modo. E por que supões que escolhi a tísica? Por que não me enforquei ou me afoguei? Porque tive medo de uma morte repentina? Talvez, sim; mas suponho que ainda nisto se revelou o meu louco romantismo. Nesse tempo, pelo menos, agradava-me sonhar com um quadro pitoresco: eu estendido moribundo na cama, enquanto tu te sentisses desgraçada e atormentada com remorsos por me teres conduzido a tal estado. Virias confessar-te culpada; cairias de joelhos perante mim... eu perdoar-te-ia e morreria nos teus braços. Uma loucura, Zinotchka, uma loucura! Não é verdade?
— Não fales disso! — pediu Zina. — Não o digas! Tu não és assim. Falemos doutras coisas: dos momentos felizes que passámos.
— Falo disto, porque é mais amargo, querida. Há ano e meio que te não vejo e queria abrir-te o meu coração. Todo esse tempo o passei completamente só, e nem um momento deixei de pensar em ti, meu tesouro. Se tu soubesses, Zinotchka, como desejava fazer alguma coisa, para recobrar a tua amizade! Até há pouco não acreditava na minha morte. Vivi muito tempo sem ir à cama, passeando, até que a gravidade da doença me prostrou. Que projetos ridículos eu fazia! Sonhava, por exemplo, que era um grande poeta e que publicava nas Memórias da Pátria um poema superior a tudo o que se conhecia no mundo. Pensava pôr nele todos os meus sentimentos, a minha alma inteira, e assim chegaria a ti, onde quer que te encontrasses. O meu poema servir-te-ia de incessante recordação, e o melhor do meu sonho era que te convencerias, por fim, acabando por dizer: «Não; não é tão mau como eu supunha!» Que loucura! Não é verdade, Zina?
— Não, não, Vasya! — disse Zina e, inclinando a cabeça sobre o peito do doente, beijou-lhe as mãos.
— Como me atormentaram os ciúmes durante todo este tempo! Se tivesse ouvido falar do teu casamento ter-me-ia matado. Indagava, vigiava, espiava... Minha mãe andava sempre à procura de notícias. É verdade que não amas Mozglyakov, não é assim? Anjo meu! Lembrar-te-ás de mim, depois de morto? Eu sei que te lembrarás; mas passarão os anos, endurecer-se-á o coração, esfriarás, sentirás o inverno na tua alma e esquecer-me-ás, Zinotchka!
— Não, não, nunca! Não me casarei... Tu és o meu primeiro amor... e serás o último.
— Tudo morre, Zinotchka, até a recordação... Morrem os nobres sentimentos e são substituídos pelo senso-comum. Goza a vida, Zina. Vive e sê muito feliz. Ama outro se puderes amar. Para que hás de amar um morto? Basta que te recordes de mim, de vez em quando, mas esquece o que eu tenho de mau, em nome do que há de bom no nosso amor, Zinotchka. Ai! Dias de luz que não voltarão mais! Ouve, meu anjo: sempre gostei do pôr do sol. Pensa em mim a essas horas! Oh, não, não! Morrer, para quê? Ah, como desejo voltar à vida! Recorda-te, querida, recorda-te; lembra-te daquele tempo: era na primavera, brilhava um sol tão lindo, os campos cobriam-se de flores, era tudo uma festa à nossa volta, e agora, olha, olha!
E apontou com a mão esquelética os vidros da janela, cheios de geada. Depois agarrou nas mãos de Zina e, apertando-as contra os seus olhos, chorou, chorou amargamente. Os soluços rebentavam-lhe o peito enfraquecido.
Todo o dia gemeu de angústia e de desventura. Zina esforçava-se por o consolar, sem conseguir outra coisa senão aumentar a sua mágoa. Disse-lhe que nunca o esqueceria, que nunca amaria outro como o amava a ele. Ele acreditava-a, sorria, beijava-lhe as mãos, mas as tristes recordações do passado vertiam novo fel na sua alma aflita. Assim decorreu todo o dia.
Entretanto, Maria Alexandrovna, que estava em grande desassossego, mandava, pela décima vez, buscar Zina, pedindo-lhe que voltasse se não queria acabar com o pouco prestígio que lhe restava e, quando começou a anoitecer, louca de horror, decidiu ela própria ir buscar Zina. Chamou a filha ao compartimento contíguo e implorou-lhe, quase de joelhos, «que lhe evitasse aquela última espada de dor». Zina ouviu a mãe, sem perceber o que ela dizia, e voltou para junto do enfermo. Ardia-lhe a cabeça.
Maria Alexandrovna teve que partir, com manifestações de desespero, porque Zina estava disposta a ficar ao lado do moribundo. Durante toda a noite não abandonou a sua cabeceira. O enfermo piorava a olhos vistos e ao amanhecer já não restava esperança de que passasse o dia. A mãe andava de um lado para o outro como louca, dando-lhe remédios que ele não queria tomar. A agonia foi longa. O enfermo não podia falar; da sua garganta saiam sons frouxos e inarticulados. Até ao último momento olhou para Zina, como se lhe falasse com os olhos, e quando se lhe obscureceu o olhar, procurou-lhe a mão para a prender nas suas. Aquele dia de inverno passou rapidamente e quando deixou de se refletir nos vidros gelados o último raio de sol, e o quarto ficou mergulhado numa triste penumbra, a alma do rapaz abandonou o seu corpo para se lançar em perseguição da luz que fugia. A velha mãe, vendo morto na sua frente o filho adorado, juntou as mãos, soltou uma exclamação e lançou-se sobre o cadáver.
— Tu, víbora, foste a sua perdição! Tu, maldita, separaste-nos com as tuas malas-artes; mataste-o!
Mas Zina não ouvia. Estava junto do morto como inconsciente. Por fim, inclinou-se, fez sobre ele o sinal da cruz, beijou-o, e saiu do quarto como uma autómata. Ardiam-lhe os olhos, a cabeça andava-lhe à roda. As angústias sofridas e as duas noites de vela privaram-na quase do uso das suas faculdades, e sentia, de um modo vago, uma renovação na sua alma. Desaparecia o passado e encetava uma nova vida, triste e escabrosa.
Não tinha dado dez passos quando, como que saído da terra, lhe apareceu Mozglyakov, que parecia estar à sua espera.
— Zinaida Afanasyevna — disse em voz baixa e tímida, olhando para ela com receio. — Zinaida Afanasyevna, sim, sou um animal. Mas, se tu quiseres, já o não sou, porque, como vês, procedo nobremente, no final de contas. Porém conservo ainda o sentimento de ter sido um burro... Perdoa o meu atordoamento, devido a tantas coisas...
Zina olhou-o como a um estranho e continuou andando em silêncio. Como não podiam ir juntos pelo passeio e Zina não lhe deixava lugar, Pavel Alexandrovich desceu para a rua e continuou a andar com a cara voltada para ela.
— Zinaida Afanasyevna, refleti, e se isso não te desgosta, estou disposto a renovar o meu oferecimento, a esquecer tudo, Zinaida Afanasyevna, toda a vergonha, a perdoar tudo, mas com a condição de que tudo fique em segredo enquanto permaneceres aqui. Sairás desta cidade o mais depressa possível e eu seguir-te-ei sem dizer nada a ninguém; casar-nos-emos em qualquer parte, sem testemunhas, e partiremos para S. Petersburgo, viajando em diligência, de modo que só poderás levar a bagagem mais indispensável. Sim? Concordas, Zinaida Afanasyevna? Vamos, responde-me. Não posso esperar, porque nos poderiam ver juntos.
Zina não respondeu. Limitou-se a olhar para Mozglyakov de tal maneira que ele compreendeu-a imediatamente. Tirou o chapéu, inclinou-se cumprimentando e perdeu-se na sombra de uma travessa.
Como se explica isto?, pensava. Anteontem era toda doçura e sentimento, e atribuía-se a culpa de tudo. Muda todos os dias!
Entretanto, em Mordasov, os acontecimentos precipitavam-se. O Príncipe, a quem Mozglyakov tinha levado para um hotel, caiu gravemente doente naquela noite. No dia seguinte espalhou-se por Mordasov a notícia. Calixto Stanislavich — o médico — não abandonava o doente. De tarde houve conferência entre os médicos da cidade. Os convites para a reunião foram escritos em latim; mas, apesar do latim, o Príncipe não recobrou a razão, que havia perdido. Delirava e deu-lhe para pedir a Calixto Stanislavich que lhe cantasse uma romanza e lhe falasse de cabeleiras. Às vezes, acometido de terror, gritava. Os médicos foram de opinião que a hospitalidade de Mordasov lhe produzira uma inflamação estomacal que depois — provavelmente naquele mesmo dia — lhe passara para o cérebro. Admitiram também a possibilidade de uma comoção moral. Estiveram de acordo em afirmar que o Príncipe estava já há muilo predisposto a uma morte certa e que irremediavelmente morreria. E acertaram, porque o pobre velho morreu no hotel, três dias depois.
Tão fatal desenlace deixou a cidade consternada. Ninguém esperava que os acontecimentos tivessem tão sérias consequências. Aos grupos, acudiram ao hotel onde jazia o Príncipe, em corpo presente; comentavam, discutiam, sacudiam a cabeça e acabavam por condenar severamente «os assassinos do desgraçado Príncipe», designando assim Maria Alexandrovna e a filha. Todos concordavam em que aquele assunto, dado o seu caráter escandaloso, alcançaria grande publicidade e teria consequências terríveis, fazendo acerca disto os mais fantásticos vaticínios.
Mozglyakov andava de um lado para outro, sem saber o que fazer. A sua cabeça era um remoinho. Assim estava ele quando encontrou Zina. E a sua situação era difícil, com efeito. Tinha trazido o Príncipe para a cidade, levara-o para o hotel e agora não sabia o que havia de fazer do morto, nem aonde o enterrar, nem a quem prevenir da sua morte. Hesitava em transportá-lo para Dukanovo. Além disso, passava por sobrinho e tremia ao pensar que podiam acusá-lo da morte do venerável ancião. Provavelmente falar-se-á disto na alta sociedade de S. Petersburgo, dizia consigo, cheio de medo. Era-lhe impossível obter um conselho, uma advertência dos seus amigos em Mordasov; todos estavam abatidos por tão rude golpe e afastavam-se do cadáver, deixando Mozglyakov no mais triste abandono.
Mas, de súbito, tudo mudou. No dia seguinte, de manhã, chegou à cidade uma nova visita de quem Mordasov falou a seguir; mas falou discreta e misteriosamente, espreitando-a por todas as fendas, por todas as janelas, quando passou no seu carro pela rua principal em direção à casa do Governador. O próprio Pyotr Mihalovich parecia intimidado, sem saber que atitude adotar perante tal personagem, que não era outro senão o famoso Príncipe Shtchepetilov, parente do defunto Príncipe, jovem ainda, de uns trinta e cinco anos, com dragonas e galões de coronel e cuja simples presença semeava o terror entre a oficialidade subordinada. O chefe da polícia perdeu por completo a cabeça — no sentido moral, é claro — pois exteriormente adotou um porte demasiado rígido e rude. Soube-se, por fim, que o Príncipe Shtchepetilov vinha de S. Petersburgo e, não encontrando ninguém em Dukanovo, procurou seu tio em Mordasov, onde o surpreendeu a notícia da sua morte e os rumores referentes às circunstâncias em que tinha ocorrido. Pyotr Mihalovich não pôde reprimir o nervosismo que o dominava ao dar-lhe as necessárias explicações, ao mesmo tempo que todos os habitantes de Mordasov traziam cara de réu. O personagem tinha um aspeto tão severo, tão pesaroso que se tornava incompreensível tendo de herdar uma tão grande fortuna. Imediatamente assumiu a direção de tudo e Mozglyakov, reduzido a nada perante o verdadeiro sobrinho, desapareceu sem deixar rasto. Decidiu-se a trasladar o cadáver para o mosteiro, onde se celebraria uma missa de requiem.
O parente do velho Príncipe dispunha tudo, dando ordens breves, secas e severas, mas com grande tato e dignidade. No dia seguinte toda a cidade se reuniu no mosteiro para assistir à missa de requiem. Entre as senhoras espalhou-se o boato de que Maria Alexandrovna se apresentaria na igreja para pedir perdão, em voz alta, ajoelhada perante o caixão, como a lei prescrevia. Mas aquele boato era uma parvoíce. Maria Alexandrovna não foi à igreja. Esquecemo-nos de dizer que logo que Zina voltou para casa, a mãe decidiu mudar-se nessa mesma noite para a casa de campo, julgando insuportável a sua permanência na cidade. Do seu retiro escutava ansiosamente os rumores de Mordasov. Mandou colher notícias acerca do recém-chegado e vivia num estado de excitação febril. O caminho do mosteiro para Dukanovo passava a menos de três quartos de milha da sua propriedade; e Maria Alexandrovna pôde ver da janela a passagem do longo cortejo, depois do ofício fúnebre. O ataúde ia sobre um grande carro, seguido por uma interminável fila de veículos que o escoltaram até onde a estrada se bifurca em direção à cidade. Depois, destacando-se na brancura da neve que cobria a planície, podia ver-se avançar triste e lentamente o carro fúnebre, com melancólica majestade. Mas Maria Alexandrovna, não podendo suportar mais aquela visão, retirou-se da janela.
Uma semana depois partiu para Moscovo com a filha e Afanasy Matveich, e, ao cabo de um mês, correu a notícia de que a sua casa de campo e a da cidade estavam à venda. Assim se perdeu para Mordasov esta senhora comme-il-faut! Mas até isto foi objeto de maledicência. Afirmavam que Afanasy Matveich linha sido posto à venda com as propriedades... Passaram um, dois anos, e Maria Alexandrovna foi quase esquecida. Coisas da vida! Dizia-se, no entanto, que tinha adquirido outra casa de campo e se instalara noutra cidade da província, onde, é claro, dominava toda a gente; que Zina continuava solteira, que Afanasy Matveich... Mas não vale a pena transcrever boatos tão pouco dignos de crédito.
***
Três anos passaram desde que acabei a primeira parte da minha crónica de Mordasov. Quem havia de pensar que teria algum dia ocasião de abrir o manuscrito para acrescentar uma página interessante ao meu relato? Pois bem: ei-la.
Começarei por Pavel Alexandrovich. Ao abandonar Mordasov, foi diretamente para S. Petersburgo, onde conseguiu ocupar o cargo que há muito lhe tinham prometido. Foi apanhado pelo remoinho da vida mundana, esquecendo rapidamente os incidentes de Mordasov. Divertiu-se, dissipou o tempo em frívolos galanteios, enamorou-se e, como foi repelido e não pôde suportar que tivessem recusado a sua proposta, decidiu, aconselhado pela fraqueza do seu caráter versátil, juntar-se a uma expedição que se dirigia a um dos mais remotos confins do nosso vasto país, para fazer uma inspeção ou talvez para outro fim qualquer. Não o sei ao certo. Os que a compunham atravessaram sem incidentes bosques e desertos, e depois de uma longa jornada chegaram à capital dessa distante região e foram visitar o Governador-Geral. Era um homem alto, débil, um respeitável general, um veterano que tinha sido ferido duas vezes no campo de batalha e ostentava no peito duas estrelas e uma cruz branca. Recebeu os expedicionários com dignidade e cortesia, e convidou os oficiais para o baile com que naquela mesma noite se celebrava o dia onomástico da sua esposa. Pavel Alexandrovich estava muito satisfeito. Vestido como competia a um elegante de S. Petersburgo, entrou na espaçosa sala de baile, certo de produzir um efeito deslumbrante, com o seu ar ágil e desenvolto; mas, ante o esplendor dos numerosos convidados que ostentavam condecorações, galões e dragonas, nos seus uniformes militares ou civis, sentiu-se diminuído e acobardado. Devia apresentar os seus cumprimentos à Governadora, jovem e formosa, segundo lhe tinham dito, e aproximou-se com cortesão aprumo. Mas, de súbito, ficou paralisado de assombro. Perante ele estava Zina que, deslumbrante de sedas e de joias, orgulhosa da sua posição, não se dignou reconhecê-lo e desviou o olhar para outro lado. Confundido com tal receção, Pavel Alexandrovich desviou-se e, atravessando pelo meio dos convidados, procurou a companhia de um oficial que parecia amedrontado com tanta elegância.
Pavel Alexandrovich interrogou-o e soube por ele as coisas mais interessantes. O Governador tinha casado, havia dois anos, durante uma visita a Moscovo, com uma rapariga riquíssima, de uma família muito distinta. A Governadora era uma «linda mulher, uma beleza de primeira ordem, mas muito orgulhosa; tanto que só queria dançar com generais», que naquele baile eram nove. «A Governadora tinha mãe que vivia com ela e era uma dama da mais alta sociedade e muito inteligente», embora a filha a dominasse por completo, como submetia também o general a todos os seus caprichos. Mozglyakov arriscou uma pergunta sobre Afanasy Matveich, mas naquela longínqua região não faziam a menor ideia da sua existência. Mozglyakov arranjou coragem para passar de uma sala a outra e viu logo Maria Alexandrovna, que ostentava um luxuoso vestido e se abanava com um leque de plumas enquanto falava animadamente com um convidado, rodeada por várias damas, ansiosas por lhe agradarem. Maria Alexandrovna mostrava-se muito atenciosa com todos, e quando Mozglyakov se atreveu a apresentar-se, dominou imediatamente a sua ligeira perturbação e dignou-se amavelmente reconhecê-lo, perguntando pelas suas relações de S. Petersburgo e dizendo-lhe que o supunha no estrangeiro. Nem sequer aludiu a Mordasov, como se essa cidade nunca tivesse existido no mapa. Por fim, depois de fazer referência a um ilustre príncipe de S. Petersburgo a quem Mozglyakov não conhecia nem de retrato, voltou-se de maneira quase impercetível para um grande personagem que se aproximava no meio de uma onda de perfume e imediatamente Pavel Alexandrovich foi esquecido.
Pavel Alexandrovich ficou um momento imóvel em frente dela até que, com um sorriso mortificado e o chapéu na mão, voltou ao salão de baile. Humilhado, ferido no fundo da sua alma sem saber porquê, resolveu não dançar. Durante toda a noite teve estereotipado no rosto um sorriso de mefistofélica e íntima abstração. Apoiado, numa atitude espetacular, contra uma coluna — porque se deu o caso de haver colunas no salão — permaneceu todo o baile, que durou muitas horas, imóvel, contemplando Zina. Mas, ai!, como a ideia que outrora fazia das coisas, e todas as suas recônditas ilusões deviam ficar postergadas! Zina nem sequer reparou nele. Por fim, com a alma saturada de amargura, as penas doridas por tão longas horas de plantão e o estômago vazio, porque, como amante desprezado, não se compreendia que ceasse, voltou para a hospedaria, cansado e moído, como se lhe tivessem dado uma carga de pancada. Não se deitou logo e pôs-se a recordar o passado que durante tanto tempo esquecera. Na manhã seguinte os expedicionários receberam novas instruções e Mozglyakov teve a consolação de que lhe confiassem o seu cumprimento. Quando saiu da cidade, respirou com alívio. Caía neve, como branca mortalha, na deserta e ilimitada planura e, nos limites do horizonte, aparecia a negra franja de um bosque.
Os valentes cavalos avançavam rapidamente levantando neve com os cascos. A campainha do trenó tocava sonolentamente, e Pavel Alexandrovich deixou-se embalar pelos seus pensamentos que em breve se transformaram em sonhos, e, por fim, adormeceu docemente. Despertou na terceira paragem, descansado, rejuvenescido e com pensamentos muito diferentes.
Fiódor Dostoiévski
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