Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O SONHO MAIS DOCE
Segunda Parte
Apesar de recusado, o guisado de Frances estava, no entanto, a ser oferecido para quem quisesse servir-se de mais.
Johnny chegou, mas não vinha só. Acompanhava-o James. Usavam ambos casacos pretos à Mao e botas do armazém de excedentes do exército. Johnny, que estivera recentemente em Cuba com Fidel, usava um lenço de pescoço com as cores de Cuba; James era agora um homem corpulento, sorridente, afável e considerado bom tipo por todos. Havia alguém que não ficasse satisfeito por ver James? Impossível! Abraçou Frances, bateu nas costas de Andrew e Colin, beijou Sophie, abraçou uma magra e resistente Sylvia e cumprimentou Julia com a saudação do punho cerrado, ao nível do ombro — uma modificação para fins sociais. «É bom estar aqui de novo», disse. Sentou-se numa cadeira desocupada, na expectativa, e Johnny foi sentar-se a seu lado, mas, sentindo-se diminuído com a postura perpendicular e ao mesmo nível dos outros, levantou-se e regressou à posição antiga, de costas para a janela, braços abertos e mãos apoiadas no parapeito.
— Já comi — declarou. — Como está, Mutti?
— Como vês.
James estava ocupadíssimo a comer.
— Estás a perder um petisco de truz — disse ao seu guia e mentor. Falava cockney, o que provocou estalinhos de língua incomodados a Julia.
Johnny hesitou, mas depois sucumbiu e sentou-se ao mesmo tempo que lhe era posto um prato à frente, pois Frances já soubera que iria dar nisso.
— Isto é sério — disse Sylvia. — Johnny, James, estamos a ter uma discussão séria.
— Quando é que há situações que não são sérias? — perguntou Johnny, que acenara com a cabeça aos filhos ao chegar e agora disse a Andrew: — Passa-me o pão.
— A vida — declarou Colin — é intrinsecamente séria.
— Cada vez mais séria, na parte que me toca — comentou Andrew.
— Parem com isso — pediu Sylvia. — Convidámos o Johnny a vir cá por uma razão.
— Venha ela! — disse Johnny.
— Somos um grupo de jovens médicos. Formámos um comité. Há algum tempo que andamos todos preocupados, mas o factor que desencadeou a nossa decisão foi uma carta trazida da União Soviética...
Num gesto dramático, Johnny largou o garfo e a faca e levantou a mão para a deter. Sylvia continuou:
— É de um grupo de médicos da União Soviética. Eles dizem que tem havido acidentes em instalações nucleares, muitas mortes e estão pessoas a morrer. Grandes áreas do país estão contaminadas por chuvas radioactivas...
— Não estou interessado em propaganda anti-soviética — disse Johnny, e regressou ao seu lugar de costas para a janela, deixando o seu prato. Relutante, James deixou também o dele e foi colocar-se a seu lado: capitão e tenente.
Sylvia continuou:
— A carta foi trazida por alguém que lá esteve numa delegação. Trazida às escondidas. Chegou às nossas mãos. É autêntica.
— Em primeiro lugar — disse Johnny, em tom cada vez mais cortante —, os camaradas da União Soviética são responsáveis e jamais permitiriam instalações nucleares defeituosas. E em segundo lugar, não estou disposto a ouvir informações tão obviamente provenientes de fontes fascistas.
— Oh, meu Deus! — exclamou Sylvia. — Não tem vergonha, Johnny? Sempre a mesma coisa, sempre a repetir a mesma velha treta que já toda a gente sabe...
— E quem é essa toda a gente? — perguntou, desdenhoso, Johnny. Julia interveio:
— Quero saber por que motivo a tua... tropa fandanga... insiste que é de algum modo criminoso um governo e a Família Real estarem em segurança em caso de guerra. Não os compreendo.
— É perfeitamente simples — disse Andrew. — Estas pessoas odeiam, naturalmente, quem quer que detenha autoridade.
James respondeu, a rir:
— E com toda a razão. — E repetiu, carregando no cockney: — E com toda a razão.
— Crianças — disse Julia. — Crianças idiotas. E com tanta influência. Se tivessem vivido durante uma guerra, não diriam semelhantes disparates.
— Esquece que o camarada Johnny combateu na Guerra Civil de Espanha — lembrou James.
Fez-se silêncio. Os mais novos quase não tinham ouvido falar das proezas de Johnny, ao passo que os mais velhos há muito tempo que tentavam esquecê-las. Johnny limitou-se a olhar modestamente para baixo e depois acenou com a cabeça, recuperou o domínio da situação e disse:
— Se a bomba cair, então cai o pano para toda a gente do mundo.
— Que bomba? — perguntou Julia. — Por que estão sempre a falar na bomba, na bomba?
— Não é com a União Soviética que devem preocupar-se — declarou Johnny. — É com as bombas americanas.
— Oh, Johnny, gostaria que falasse a sério! — protestou Sylvia. — Diz sempre tantos disparates.
Acirrado por aquela insignificante, por aquela amostra de rapariga, Johnny ia perdendo pouco a pouco a paciência.
— Não é frequente dizerem-me que digo disparates.
— Isso acontece porque só lidas com pessoas que dizem disparates — declarou Colin.
Frances, que estava calada, pois a partir do momento que Johnny entrara soubera que nada de sensato poderia ser dito ou conseguido, estava a retirar os pratos e a substituí-los por taças de vidro com creme de limão, musse de damascos e natas batidas. Ao vê-las, James gemeu autenticamente de gula e voltou para o seu lugar à mesa.
— Quem faz sobremesa, hoje em dia? — perguntou Johnny.
— Só a adorável Frances — respondeu Sophie, a regalar-se.
— E não é com frequência — esclareceu Frances.
— Muito bem, Johnny — disse Sylvia —, presumamos que esses terríveis acidentes nucleares na União Soviética nunca aconteceram...
— É claro que nunca aconteceram.
— Então por que se opõem a que as pessoas deste país se protejam contra a radioactividade? Nem sequer admitem que exista informação acerca de como preparar uma casa contra chuvas radioactivas. Não admitem espécie alguma de protecção do povo. Não entendo. Nenhum de nós entende. Basta a mera ideia de qualquer tipo de protecção para vocês desatarem todos a berrar.
— Porque uma vez admitidos os abrigos se presume a inevitabilidade da guerra.
— Mas isso não é, simplesmente, lógico — disse Julia.
— Para uma mente comum, não é — concordou Rupert.
— Resume-se a isto, Johnny: nenhum governo deste país poderia sequer sugerir a protecção do povo, ainda que fosse com um mínimo de abrigos contra radioactividade, por sua causa e do seu grupo — disse Sylvia. — A Campanha pelo Desarmamento Nuclear Unilateral tem tanta força que o governo a teme.
— Exactamente — confirmou James, no seu cockney. — E é assim que deve ser.
— Por que fala dessa maneira tão feia? — perguntou Julia. — Não precisa de falar desse modo.
— Quem não fala feio é fino — respondeu Colin, falando fino. — E não arranja trabalho neste país livre. Outra tirania.
Johnny e James fizeram menção de sair.
— Vou voltar para o hospital — decidiu Sylvia. — Pelo menos lá posso manter uma conversa inteligente.
— Quero ver a carta de que falou — disse Johnny.
— Porquê? — perguntou Sylvia. — Não está sequer disposto a discutir o que ela diz.
— É óbvio que ele quer informar a Embaixada Soviética, aqui, do seu conteúdo — disse Andrew. — Para que a sua origem possa ser localizada e os seus autores mandados para campos de trabalho ou fuzilados.
— Não existem campos de trabalho — asseverou Johnny. — E se alguma vez existiram, em certa medida, as notícias da sua existência foram exageradas. Mas agora não existem.
— Valha-me o Senhor — disse Andrew. — És realmente um chato, Johnny.
— Um chato não é perigoso — observou Julia. — O Johnny e os da sua laia são perigosos.
— Isso é perfeitamente verdade — concordou Wilhelm, delicadamente, como sempre, dirigindo-se a Johnny. — São pessoas muito perigosas. Dá-se conta de que, se houver um acidente nuclear, aqui, neste país, ou algum louco lançar uma bomba, para não falar no caso de uma guerra, milhões de pessoas poderão morrer por vossa causa?
— Bem, obrigado pelo petisco — disse Johnny.
— Obrigada por nada — respondeu Sylvia, quase em pranto. — Eu devia saber que não valia a pena tentar, sequer.
Os dois homens saíram. Andrew e Sophie saíram, enlaçados. O sorriso sardónico de Colin, ao vê-los assim, não lhes passou despercebido, nem a eles nem a ninguém.
— Pelo menos há um comité — disse Sylvia. — Por enquanto é só de médicos, mas vamos expandir-nos.
— Alista-nos a nós todos — pediu Colin —, mas está atenta, pois podes encontrar vidro no teu vinho e rãs enfiadas pela abertura da caixa do correio.
Sylvia abraçou Julia e saiu.
— Não acham estranho que pessoas estúpidas tenham tanto poder? — perguntou Julia, quase a chorar por causa da despedida casual de Sylvia.
— Não — respondeu Colin.
— Não — respondeu Frances.
— Não — respondeu Wilhelm Stein.
— Não — respondeu Rupert.
— Mas estamos em Inglaterra, estamos em Inglaterra... — insistiu Julia.
Wilhelm enlaçou-a e levou-a para cima.
Restavam Frances e Rupert, Colin e o cão. Havia uma pequena complicação: Rupert queria passar lá a noite e Frances também queria que ele passasse, mas tinha medo — não podia evitá-lo — da reacção de Colin.
— Bem, vocês dois — disse Colin, e fê-lo com esforço —, acho que são horas de ir para a cama.
Tendo-lhes dado assim a sua permissão, começou a provocar o cãozinho até ele ladrar.
— Estão a ver? — perguntou. — Ele tem sempre a última palavra.
Duas semanas depois, Frances e Rupert, Julia e Wilhelm, e Colin, compareceram a uma reunião convocada pelos jovens médicos. Estavam presentes cerca de duzentos. Sylvia iniciou a sessão e falou bem. Seguiram-se outros médicos e depois mais pessoas. Membros da oposição tinham tido conhecimento da reunião e encontrava-se lá um grupo de trinta, que não parava de gritar, assobiar e soltar gritos de Fascistas! Instigadores da Guerra! CIA! Alguns pertenciam ao pessoal do The Defender. Quando o nosso grupo saía, alguns jovens que esperavam no exterior agarraram Wilhelm Stein e atiraram-no contra o gradeamento. Colin atirou-se logo a eles e pô-los em fuga. Wilhelm ficou abalado, supôs-se que não seria mais do que isso, mas ficara com algumas costelas rachadas e teve de ser levado para casa de Julia e metido lá na cama.
— E assim, minha querida — disse numa voz asmática e velha. — E assim, Julia, realizei o impossível. Estou finalmente a viver contigo. — Era a primeira vez que os outros ouviam dizer que Wilhelm queria mudar-se para lá.
Instalaram-no no quarto que fora de Andrew e Julia revelou-se uma enfermeira dedicada, ainda que meticulosa. Wilhelm detestava isso, pois vira-se sempre como o cavaleiro de Julia, o seu namorado. E Colin, aquele jovem áspero, também surpreendeu os outros, e talvez a si próprio, com a atenção encantadora e carinhosa que dedicou ao idoso cavalheiro. Sentava-se junto dele e contava-lhe histórias acerca da «minha vida perigosa no Parque e nos bares de Hampstead», nas quais o Fera aparecia como algo que não ficava muito aquém do Cão dos Baskervilles. Wilhelm ria-se e pedia-lhe que parasse, porque lhe doíam as costelas. O Dr. Lehman veio e disse a Frances , a Julia e a Colin que o idoso senhor estava mal: «Estas quedas não são nada boas na sua idade». Receitou-lhe sedativos e uma variedade de comprimidos para Julia, a quem permitiu, finalmente, que pensasse em si como velha. No The Defender, Frances e Rupert fizeram valer o seu direito a uma opinião contrária à dos partidários do desarmamento unilateral e escreveram um artigo que deu origem a dúzias de cartas quase todas furiosamente discordantes ou ofensivas. O ambiente nos escritórios do jornal estava muito agitado e Frances e Rupert encontravam bilhetes grosseiros ou irritados nas respectivas secretárias, alguns deles anónimos. Compreenderam que aquela fúria estava enterrada demasiado profundamente no inconsciente colectivo para merecer ser discutida. Não se tratava de proteger ou não proteger a população: não faziam ideia alguma do que na realidade se tratava. A permanência no The Defender tornou-se muito desagradável. Resolveram vir-se embora, muito antes de convir, no aspecto financeiro, a qualquer deles. Estavam simplesmente no lugar errado. Sempre tinham estado, achou Frances. E todos aqueles longos e bem fundamentados artigos sobre questões sociais? Qualquer um poderia tê-los escrito, disse Frances. -Rupert arranjou quase imediatamente outro emprego num jornal descrito como fascista por um viciado típico do The Defender, mas como Tory pela populaça. «Suponho que devo ser um tory», disse Rupert, «se vamos tomar a sério todos estes rótulos.»
Na semana em que se demitiram foi metido em casa de Julia um pacote de fezes, mas não pela porta da frente e, sim, pela do apartamento de Phyllida, pelos degraus exteriores da cave.
Frances recebeu uma ameaça de morte, anónima. E Rupert também recebeu uma ameaça de morte, juntamente com algumas fotografias de Hiroxima depois da bomba. Phyllida subiu — pela primeira vez em meses — para dizer que não estava disposta a ser arrastada para aquele «ridículo debate». Não se encontrava em condições de lidar com merda, fosse a que nível fosse. Ia-se embora. Ia partilhar um apartamento com outra mulher. E depois foi-se mesmo embora.
Quanto aos venenosos debates sobre proteger ou não proteger a população, em breve se chegou à conclusão geral de que a guerra tinha sido evitada durante tanto tempo porque as nações possivelmente beligerantes tinham armas nucleares e não as usavam. Havia, porém, questões a que este convencimento não respondia. Podiam acontecer, e aconteciam com frequência, acidentes em instalações nucleares, mas eram abafados. Na União Soviética houvera acidentes que tinham contaminado regiões inteiras. Havia no mundo loucos que não hesitariam em lançar «a bomba», ou várias bombas, mas era no mínimo estranho que esta ameaça fosse geralmente mencionada no singular. A população continuava desprotegida, mas a violência, o veneno, a fúria dos debates dissiparam-se, simplesmente, pararam. Se alguma vez existira uma ameaça, era agora. Mas a histeria evaporou-se. «Coisa estranha», disse Julia, na sua voz agora lenta e lamentosa.
Wilhelm ainda estava em casa de Julia e o seu grande e luxuoso andar continuava vazio. Estava sempre a dizer que ia trazer todos os seus livros para ali e pôr um fim a esta «espantosamente absurda situação» em que nem vivia com Julia nem não vivia. Estava constante-mente a marcar e desmarcar encontros com o pessoal das mudanças. Não era o mesmo. Precisava de que lhe fizessem as vontades. Julia também estava desolada. Os dois juntos eram agora como pessoas doentes que queriam cuidar uma da outra, mas cuja própria fraqueza lho impedia. Julia foi atacada por uma pneumonia e, durante algum tempo, os dois doentes estiveram em pisos diferentes, enviando bilhetes um ao outro. Depois Wilhelm insistiu em subir e ir visitá-la. Ela viu aquele velho entrar-lhe no quarto a arrastar os pés, agarrado às arestas das portas e às costas das cadeiras, e julgou que estava a ver uma tartaruga velha. Ele vestia um casaco escuro e um pequeno barrete escuro, pois tinha sempre a cabeça fria, e andava com ela espetada para a frente. E Julia...Wilhelm ficou chocado com o seu aspecto, os ossos salientes do rosto, os braços como paus de osso.
Estavam ambos tão tristes, tão desolados. Como pessoas sofrendo de uma depressão grave, a paisagem cinzenta que os envolvia agora parecia ser a única verdade. «Parece que sou um velho, Julia», trocava ele, tentando reanimar em si o requintado cavalheiro que lhe beijava a mão e se colocava entre ela e todas as dificuldades. Essa fora a aparência. Mas agora percebia que não tinha sido nada de semelhante, mas apenas um velho solitário dependente de Julia para, bem, para tudo. E ela, a benévola e graciosa dama, cuja casa abrigara tanta gente, apesar de resmungar com frequência a esse respeito, sem ele teria sido uma velha tonta emocionalmente indigente, enfeitiçada por uma rapariga que nem sua neta era. Por isso, nos dias maus pareciam um ao outro, e a si mesmos, sombras de um ramo nu que jaz na terra, um rendilhado difuso e oco, sem calor de carne em parte alguma — e beijos e abraços nada mais do que fantasmas hesitantes, tentando encontrar-se.
Johnny soube que Wilhelm estava a viver em casa de Julia e veio para dizer que esperava não houvesse questão alguma de lhe vir a ser deixado dinheiro. «Não tens nada que ver com isso», respondeu-lhe Julia. «Não discuto o assunto. E já que vieste, aproveito para te dizer que tive de ajudar as tuas mulheres e os teus filhos abandonados e, por isso, não te deixo nada. Por que não pedes ao teu querido Partido Comunista que te dê uma pensão?»
A casa seria deixada a Colin e Andrew e tanto Frances como Phyllida seriam contempladas com pensões decentes, embora não sumptuosas. Sylvia dissera: «Oh, Julia, por favor, não faça isso. Eu não preciso de dinheiro.» Mas Julia manteve o nome dela no seu testamento; ela podia não precisar, mas Julia precisava de fazê-lo.
Sylvia estava prestes a deixar a Grã-Bretanha, provavelmente por muito tempo. Ia para África, para uma missão no mato, em Zimlia. Quando Julia soube disso, disse: «Então não voltarei a ver-te.»
Sylvia foi despedir-se da mãe, mas depois de lhe ter telefonado. «É bondade tua informares-me», disse Phyllida.
O seu andar ficava num grande quarteirão senhorial em Highgate, e no botão do telecomunicador lia-se que ali podiam ser encontradas a Dr.a Phyllida Lennox e Mary Constable, fisioterapeuta. Um pequeno elevador subiu pelos andares inferiores, como uma gaiola de pássaros. Sylvia tocou, ouviu um grito e foi recebida não pela mãe, mas por uma senhora alentada e alegre, que ia a sair. «Deixo as duas uma com a outra», disse Mary Constable, denunciando que houvera confidências. O pequeno vestíbulo tinha um aspecto eclesiástico que, depois de examinado, revelou que o aspecto se devia a um grande painel de vidro colorido, em tons de caramelo, representando São Francisco com os seus pássaros — moderno, com certeza. Estava encostado a uma cadeira, como uma tabuleta anunciadora de espiritualidade.
A porta abriu-se e mostrou uma grande sala, cuja principal característica era uma espaçosa cadeira envolta numa espécie de tapete oriental e um divã, inspirado pelo de Freud em Maresfield Gardens, severo e desconfortável. Phyllida era agora uma mulher robusta, com cabelo grisalho preso em duas tranças grossas, uma de cada lado de um rosto de matrona. Vestia um cafetã multicolorido e usava muitas contas, brincos e pulseiras. Sylvia, que trouxera no espírito uma mulher flácida, chorosa e débil, teve de adaptar-se a esta mulher vigorosa, que se tornara claramente confiante.
— Senta-te — convidou Phyllida, indicando uma cadeira fora da área terapêutica da sala. Sylvia sentou-se cuidadosamente, na beirinha. Havia um cheiro acre, provocante... teria Phyllida passado a usar perfume? Não, tratava-se de incenso, que provinha da sala contígua, cuja porta estava aberta. Sylvia espirrou. Phyllida fechou a porta e sentou-se na sua cadeira de confessor.
— Consta-me, Tilly, que vais converter os pagãos. É verdade?
— Vou para um hospital, como médica. E um hospital missionário e eu serei o único médico da aérea.
A mulheraça forte e rapariguinha dez reis de gente — como continuava a parecer — estavam a tomar consciência das suas diferenças.
— Que cara descorada! És como o teu pai, que era um autêntico lingrinhas. Eu costumava chamar-lhe camarada Lírio, porque o seu segundo nome era Lillie, em homenagem a um antigo revolucionário de Cromwell. Bem, tinha de me vingar de alguma maneira, quando ele armava em comissário comigo. Ainda era pior do que o Johnny, por muito que te custe a crer. Sempre a serrazinar, a serrazinar por tudo e por nada. A maldita revolução deles era apenas uma desculpa para serrazinarem as pessoas. Costumava obrigar-me a aprender textos revolucionários de cor. Tenho a certeza de que ainda hoje seria capaz de te recitar o Manifesto Comunista. Mas no teu caso é o regresso à Bíblia.
— Regresso porquê?
— O meu pai foi sacerdote. Em Bethnal Green.
— Como eram eles, os meus avós?
— Não sei. Quase nunca os vi, depois de me mandarem embora. Não queria vê-los. Fui viver com a minha tia. Era evidente que não me queriam ver, de contrário não me teriam mandado embora daquela maneira durante cinco anos. Sendo assim, por que havia de querer vê-los?
— Tem algumas fotografias deles?
— Rasguei-as.
— Gostaria de as ver.
— Por que te importas com isso? Agora vais-te embora. Para tão longe quanto podes, suponho. Uma coisinha fraca como tu. Devem estar doidos, para te enviarem.
— Como queira. Mas vim dizer-lhe uma coisa importante. E o que significa aquele «Doutora» na placa com o seu nome?
— Sou doutora em Filosofia, não sou? Estudei Filosofia na universidade.
— Mas neste país não usamos a palavra «doutor» com esse sentido. Só os alemães o fazem.
— Ninguém pode dizer que não sou doutora.
— Ainda arranja sarilhos.
— Ainda ninguém se queixou.
— Foi a esse respeito que vim falar-lhe, mãe... a respeito dessa terapia que faz. Sei que não precisa de nenhum treino especial para isso, mas...
— Estou a aprender com o trabalho. Acredita, aprende-se.
— Eu sei. Há pessoas que me têm dito que as ajudou. Phyllida pareceu transformar-se numa pessoa diferente: corou,
inclinou-se para a frente a apertar as mãos, sorridente e confusa de prazer.
— Disseram? Disseram-te coisas boas?
— Disseram, sim. Mas o que queria sugerir era... por que não tira, realmente, um curso? Há alguns bons.
— Estou a sair-me bem assim.
— Chá e simpatia é muito bom, mas...
— Garanto-te que houve tempos em que me teria contentado com chá e simpatia... — a sua voz deslizava para o âmago das suas lamentações. Os músculos de Sylvia já estavam a impulsioná-la para se levantar, quando Phyllida disse: — Não, não, senta-te, Tilly.
Sylvia sentou-se e tirou de uma pasta uma rima de papéis que estendeu à mãe.
— Fiz uma lista dos bons. Um destes dias alguém vai queixar-se de uma dor de cabeça ou de estômago e a mãe diz-lhes que é psicossomático, mas é cancro ou um tumor. Depois terá remorsos.
Phyllida ficou calada, a segurar os papéis. Mary Constable chegou, toda sorrisos confidenciais.
— Apresento-te a Tilly — disse Phyllida.
— Como está, Tilly — cumprimentou Mary, indo ao extremo de abraçar a relutante Sylvia.
— Também é psicoterapeuta?
— Sou fisioterapeuta — respondeu a companheira — amante? — de Phyllida. Quem podia saber, nos tempos que corriam? — Treino estudantes de fisioterapia. Costumamos dizer que entre as duas tratamos da pessoa inteira — explicou a bem-disposta Mary, irradiando uma intimidade persuasiva e ténues vapores de incenso.
— Tenho de ir — disse Sylvia.
— Mas mal chegaste — protestou Phyllida, satisfeita por Sylvia se estar a comportar como ela esperara.
— Tenho uma reunião.
— Até pareces o camarada Johnny.
— Espero que não.
— Então adeus, envia-me um postal do teu paraíso tropical...
— Eles acabam de sair de uma guerra terrível — esclareceu Sylvia.
Sylvia ligou a Andrew em Nova Iorque, foi informada de que ele estava em Paris e depois, aí, que estava no Quénia. De Nairobi ouviu a sua voz fraca e crepitante.
— Andrew, sou eu.
— É quem? Maldita linha. Paciência, não arranjamos outra melhor. Tecnologia do Terceiro Mundo — gritou.
— É a Sylvia.
Apesar da crepitação, ouviu a voz dele mudar:
— Oh, querida Sylvia, onde estás?
— Estava a pensar em ti, Andrew.
E estivera, precisada da sua voz tranquilizadora e confiante, mas este fantasma longínquo estava a perturbá-la, como uma mensagem a dizer-lhe quão pouco podia fazer por ela. No entanto, o que esperara?
— Pensava que estavas em Zimlia — gritou ele.
— Para a semana. Oh, Andrew, tenho a sensação de estar a atirar-me de um penhasco.
Recebera uma carta do Padre Kevin McGuire, da Missão de São Lucas, que a forçara a olhar com firmeza para um futuro que não imaginara, de modo algum, até àquele momento. Junto com a carta vinha uma lista das coisas que devia levar. Provisões clínicas cuja existência tomara por certa, coisas tão básicas como seringas, aspirina, antibióticos, anti-sépticos, agulhas de suturar, um estetoscópio, etc. etc. «E certas coisas de que as senhoras precisam, pois não as encontrará facilmente aqui.» Tesouras de unhas, agulhas de tricotar, agulhas de croché, novelos de lã... «E dê um gosto a este velho, que adora a marmalade de Oxford.» Pilhas para um rádio. Um pequeno rádio.
Uma boa camisola de lã, tamanho 10, para Rebecca. «É a rapariga que trata da casa. Anda com tosse.» Uma edição recente do Irtsh Times. Outra do Tbe Observer. Algumas latas de sardinhas, «se puder arrumá-las num canto qualquer.» Com cumprimentos, Kevin McGuire. «P.S. E não se esqueça dos livros. Todos quantos puder. Fazem muita falta.»
— Aquilo lá foi um bocado violento — tinham-lhe dito.
— Andrew, acho que estou em pânico.
— Não há-de ser assim tão mau. Nairobi não é muito mau. Só um bocado pindérico.
— Estarei a centenas de quilómetros de Senga.
— Olha, Sylvia, passarei por Londres no regresso e ver-te-ei.
— O que estás aí a fazer?
— A distribuir fartura.
— Ah, sim, eles falaram-me nisso. Dinheiro Global.
— Estou a financiar uma barragem, um silo, irrigação... tudo e mais alguma coisa.
— Tu}
— Agito a minha varinha mágica e o deserto floresce.
Enfim, estava bêbado. Nada poderia ter sido pior para Sylvia naquele momento do que aquelas fanfarronices vindas do éter. Andrew, o seu arrimo, o seu amigo, o seu irmão... bem, quase, a mostrar-se tão idiota, tão pretensioso. Gritou: «Adeus», desligou o telefone e chorou. Aquele foi o seu pior momento: não teria outro tão mau. Convencida de que Andrew se esqueceria da conversa, não o esperava, mas ele telefonou de Heathrow dois dias depois.
— Cá estou, minha pequena Sylvia. Aonde podemos ir e conversar?
Ligou a Julia do aeroporto e perguntou se ele e Sylvia podiam ir lá a casa e ter uma boa conversa. O andar dele estava alugado e Sylvia partilhava um pequeno apartamento com outro médico, perto do hospital.
Julia ficou silenciosa, antes de responder:
— Não compreendo. Estás a perguntar se tu e a Sylvia podem vir a esta casa? Que conversa é essa?
— Não gostaria se aparecêssemos sem mais nem menos. Novo silêncio.
— Suponho que ainda tens uma chave? — e desligou o telefone. Quando os dois chegaram, foram ter directamente com ela. Julia
estava sentada sozinha, com ar severo, à sua mesa, a fazer uma paciência. Inclinou uma face a Andrew, tentou fazer o mesmo a Sylvia, não conseguia e levantou-se para a abraçar.
— Pensava que tinhas ido para Zimlia — observou.
— Eu não iria sem me despedir.
— Então isto é a despedida?
— Não, é para a semana.
Os velhos olhos penetrantes observaram os dois, demoradamente. Queria dizer que Sylvia estava demasiado magra e que não lhe agradava o aspecto de Andrew. Que se passava?
— Vão ter a vossa conversa — disse-lhes, pegando na sua mão de cartas.
Eles desceram, sentindo-se culpados, para a grande sala cheia de recordações e deixaram-se cair, enlaçados, no grande e velho sofá vermelho.
— Oh, Andrew, sinto-me mais à vontade contigo do que com qualquer outra pessoa.
— E eu contigo.
— E com a Sophie? Uma gargalhada irritada.
— À vontade! Mas isso acabou.
— Oh, pobre Andrew! Ela voltou para o Roland?
— Ele mandou-lhe um bonito ramo de flores e ela voltou.
— Que flores, exactamente?
-— Calêndulas, que significam mágoa. Anémonas, que significam abandono. E, é claro, para aí um milhar de rosas vermelhas. Que significam amor. Sim, a ele basta-lhe dizê-lo com flores. Mas não durou. Não, não durou muito. Ele começou a comportar-se como é da sua natureza e ela enviou-lhe um ramo que dizia guerra: cactos.
— Ela está com alguém?
— Está, mas não sabemos com quem.
— Pobre Sophie.
— Mas pobre Sylvia primeiro. Por que não falas de ti e de algum tipo fantasticamente afortunado?
Sylvia ter-se-ia afastado dele, mas Andrew segurou-a.
— Sou apenas... azarenta.
— Estás apaixonada pelo padre Jack? Desta vez ela endireitou-se e empurrou-o.
— Não, como podes... — mas vendo o rosto dele, que tinha uma expressão compreensiva, confessou: — Sim, estive.
— As freiras apaixonam-se sempre pelos seus padres — murmurou ele, e ela não percebeu se o fez com intenção cruel.
— Eu não sou freira.
— Volta para aqui — disse, e puxou-a de novo para junto de si.
Foi então que ela disse, num fio de voz que lhe lembrou a pequenina Sylvia:
— Creio que há alguma coisa errada em mim. Fui para a cama com alguém, um médico do hospital e... o problema é esse, compreendes, Andrew. Não gosto de sexo. — E soluçou, enquanto ele a abraçava.
— Bem, e eu acho que não sou tão eficiente nessa matéria como deveria ser... A Sophie tornou muito claro que, comparado com o Roland, sou um caso perdido.
— Oh, pobre Andrew.
— E pobre Sylvia.
Choraram até adormecerem, como crianças.
Foram visitados enquanto dormiam. Primeiro por Colin, porque o desassossego do cãozinho lhe dizia que estava lá em casa alguém que não deveria estar. A sala estava na penumbra. Colin parou um momento a olhar para os dois, apertando as mandíbulas do cão para o impedir de ladrar.
— És uma boa criaturinha — disse ao Fera, que entretanto se tornara um velho cão desgrenhado, enquanto desciam a escada.
Mais tarde, chegou Frances. A sala estava às escuras. Acendeu uma pequena luz, que fora em tempos a luz de vela de Sylvia, que tinha medo do escuro, e ficou parada, como antes fizera Colin, a olhar para o que conseguia ver: apenas as suas cabeças e rostos. Sylvia e Andrew... oh, não, não, pensou Frances como uma mãe, como se fizesse figas contra o mau olhado. Seria uma tragédia. Ambos precisavam — sem dúvida? — de alguma coisa mais robusta... Mas quando iriam os seus filhos assentar e ficar em segurança {segurança? Estava com certeza a pensar como uma mãe, aparentemente isso era inevitável)? Já iam ambos nos trinta e tal anos. E tudo culpa nossa, pensou, referindo-se a todos eles, à geração mais velha. E depois, para se consolar: Talvez precisem de tanto tempo como eu para serem felizes. Por isso, não devo perder a esperança.
Ainda muito mais tarde, Julia desceu a escada. Pensava que não estivesse ninguém na sala, embora Frances lhe tivesse dito que os dois ainda lá estavam, perdidos para o mundo. Pelo brilho da pequena luz, viu os rostos, o de Sylvia debaixo do de Andrew, no seu ombro. Tão pálidos, tão cansados... conseguiu ver isso mesmo à luz fraca. Envolvia-os um negrume profundo, pois o sofá vermelho intensificava a escuridão, como quando um pintor usa uma base carmesim para intensificar e dar brilho ao negro. As janelas de cada extremidade da grande sala só deixavam entrar luz suficiente para acinzentar a escuridão, nada mais. Estava uma noite enevoada, sem lua nem estrelas. São, com certeza, demasiado jovens para parecerem assim, tão esgotados, pensou. Os dois rostos eram como cinzas espalhadas no escuro.
Ficou muito tempo ali parada, a olhar para Sylvia, a fixar aquele rosto na memória. E, de facto, não voltou a vê-la. Houve uma confusão com a hora da partida do avião e um telefonema de Sylvia: «Julia, oh, Julia, lamento tanto. Mas tenho a certeza de que voltarei a Londres em breve.»
Wilhelm morreu. Houve um funeral a que assistiram umas duzentas pessoas. Qualquer pessoa que alguma vez tivesse bebido uma chávena de café no Cosmo devia ter ido ao funeral. Colin e Andrew, com Frances, mantiveram-se juntos a amparar Julia, que se manteve muda e sem lágrimas e dir-se-ia recortada em papel. «Meu Deus, deve estar aqui toda a gente do comércio livreiro», ouviram dizer a toda a volta. Não faziam ideia da popularidade de Wilhelm Stein nem de como ele era visto pelos seus concorrentes. Havia um sentimento geral de que ao sepultarem o cortês, bondoso e erudito velho negociante de livros estavam a dizer adeus a um passado muito melhor do que o presente poderia ser agora. «O fim de uma época», havia quem murmurasse, e algumas pessoas choravam por causa disso. Os dois filhos, chegados nessa manhã, de avião, dos Estados Unidos, agradeceram delicadamente aos Lennox qualquer incómodo que pudessem ter tido por causa do funeral e disseram que agora se encarregariam de tudo: Wilhelm deixara uma boa quantidade de dinheiro.
Julia meteu-se na cama e, evidentemente, não faltou quem dissesse que a morte de Wilhelm acabara com ela, mas havia mais alguma coisa, uma coisa assustadora, uma dor de coração que ninguém da família compreendia.
Quando o segundo romance de Colin saiu, tornou-se claro que Sick Death não seria tão bem recebido como o primeiro. E não era tão bom, pois tratava-se virtualmente de um panfleto acerca de um governo criminosamente irresponsável que descurava proteger o seu povo de resíduos radioactivos, bombas, etc. Uma eficiente campanha de propaganda, inspirada por agentes de uma potência inimiga estrangeira, gerou uma atmosfera histérica que fez com que este governo, preocupado com a sua popularidade, ignorasse as suas responsabilidades. O romance inspirou gritos de indignação aos vários movimentos relacionados com A Bomba. Algumas críticas foram acrimoniosas, entre elas a de Rose Trimble. O seu perfil do Presidente Matthew Mingozi pusera-a no mapa e foram-lhe proporcionadas oportunidades de toda a espécie, mas ela trabalhava agora no Daily Post, famoso pela sua virulência, e sentia-se muito bem lá. Serviu-se do livro de Colin como ponto de partida para atacar aqueles que queriam construir abrigos, e em particular os jovens médicos, com especial destaque para Sylvia Lennox. Quanto a Colin, «deve ser conhecido que tem antecedentes nazis. A sua avó, Julia Lennox, foi membro da Juventude Nazi». Rose sentia-se segura. Por um lado, o Daily Post era um jornal que esperava pagar — frequentemente — indemnizações por calúnia; por outro, sabia que Julia não se dignaria a tomar conhecimento de semelhante ataque. «Velha cabra nojenta», resmungou.
Um amigo do Cosmo mostrara esse artigo a Wilhelm. Ele pensara se deveria dizer a Julia e achara que sim: e, ainda bem, porque uma alma caridosa lhe enviou o recorte anonimamente. «Não ligues importância» dissera ela a Wilhelm. «Eles não passam de merda. Tenho toda a justificação para usar a sua palavra preferida, não tenho?» «Minha querida Julia», tinha dito Wilhelm, divertido, mas também chocado por ouvir semelhante palavra saída da boca dela.
Julia estava sentada, recostada em almofadas, com enfermeiras a entrar e a sair, sem esperança de dormir e com o recorte na mesa de cabeceira. Com que então agora, ela, Julia von Ame, era uma nazi. O que a magoava era a indiferença com que se faziam semelhantes coisas. E claro que aquela mulher — Julia lembrava-se de uma rapariga antipática — não sabia o que estava a fazer. Todos eles usavam, a toda a hora, palavras como fascista, qualquer pessoa com a qual tivessem um desentendimento era uma fascista. Eram tão ignorantes que nem sequer sabiam que houvera fascistas a sério, que tinham desgraçado a Itália. E nazis... havia artigos de jornais, programas de rádio e televisão, a respeito deles, que ela lia e via por se sentir tão directamente interessada, mas obviamente nenhum daqueles jovens percebia coisa alguma. Pareciam não saber que fascista e nazi eram palavras que significavam que tinham sido presas e torturadas pessoas, que milhares delas tinham morrido naquela guerra. Eram a ignorância, o desinteresse, que enchiam os olhos de Julia de lágrimas de raiva. Sentia-se cancelada, obliterada: a sua história, e também a de Philip, reduzida a epítetos usados por uma jovem jornalista ambiciosa num pasquim de sarjeta. Sentava-se, insone (desfazia-se discretamente dos comprimidos para dormir quando as enfermeiras não estavam a ver), envenenada pela sua impotência. É claro que não processaria, nem sequer escreveria uma carta: para quê dignificar aquela canaille com o simples facto de reconhecer a sua existência? Wilhelm trouxera-lhe o rascunho de uma carta, dizendo que os von Arne eram uma antiga família alemã que nunca tivera quaisquer ligações com os nazis. Ela pediu-lhe que a esquecesse, que não a enviasse. Estava enganada: a carta devia ter sido enviada, quanto mais não fosse para apaziguar o seu coração. E também estava enganada a respeito de Rose Trimble. Desinteresse e indiferença perante a história, sim, nisso era como a sua geração, mas o que a inspirava era um ódio fundo contra os Lennox, a necessidade de se vingar. Esquecera o que, para começar, a levara para casa deles e até que alegara que Andrew a engravidara. Não, o que a enfurecia era aquela casa, a sua tranquilidade, o modo como tomavam tudo por certo e olhavam uns pelos outros. Sylvia, essa pequena cabra afectada; Frances, a nojenta velha abelha-mestra, ou melhor, vespa; Julia, mandando em toda a gente. E os homens, uns sacanas complacentes. Fora buscar a matéria para o seu artigo aos abismos de bílis que fervilhavam e silvavam eternamente dentro de si e que só se apaziguavam, embora apenas temporariamente, quando conseguia escrever palavras que iam directas ao coração das suas vítimas. Imaginava, enquanto escrevia, como elas ofegavam e se convulsionavam enquanto liam. Imaginava-as a chorar de dor. Era por isso que Julia estava a morrer antes de tempo. Tinha a sensação de ter sido subitamente atacada por alguma coisa maligna. Sentava-se encostada às almofadas num quarto onde a luz entrava pela janela e se movia do chão para a cama e para a parede, e de novo ao longo das paredes para a janela, numa débil resposta à escuridão que descia de forças inimigas desconhecidas e que a envolvia. Parecia-lhe que passara toda a sua vida a fugir delas, mas agora estava a ser engolida por um monstro de estupidez, hediondez e vulgaridade. Estava tudo distorcido e conspurcado. E por isso ficava na cama e, mentalmente, regressava ao seu tempo de rapariga, quando tudo fora tão belo, tão schon, schon, schon, mas esse paraíso fora invadido por aquela guerra antiga e o mundo ficara cheio de fardas. A noite, quando a pequena luz que tinha sido de Sylvia e fora trazida da sala para o seu quarto, era a única iluminação no escuro, os seus irmãos e Philip, belos e corajosos jovens, cercavam a sua cama, vestindo uniformes elegantes e imaculados, sem um único salpico ou mancha. Ela suplicava-lhes que ficassem com ela, que não partissem e a deixassem.
Falava docemente em alemão e inglês, e no seu Francês comme-il-faut, e Colin ficava sentado com ela, às vezes durante horas, segurando o feixe de pequenos ossos que era a sua mão. Ele sentia-se infeliz e com remorsos, pensando que nunca ouvira realmente falar de Ernst, Frederich e Marx; mal ouvira, até, falar do seu avô. Atrás dele havia um abismo, ou precipício, no qual a normalidade se despenhara, a vida familiar normal caíra, e ele estava ali sentado, um neto, mas não conhecera o seu avô nem a família alemã de Julia. Que era também a sua família... Inclinava-se para Julia e pedia: «Julia, por favor, fale-me dos seus irmãos, do seu pai e da sua mãe Teve avós? Fale-me deles.» Ela saía do seu sonho e perguntava: «Quem? De quem falaste? Morreram. Foram mortos. Agora não há família nenhuma. Não há casa. Agora não resta nada. É terrível, terrível...»
Não gostava de que a arrancassem às suas recordações ou sonhos. Não gostava do presente, de todos aqueles remédios, comprimidos e enfermeiras, e detestava o velho corpo amarelado que era exposto quando a lavavam. Detestava, acima de tudo, uma diarreia persistente, que significava que por muito que lhe mudassem a roupa da cama e a camisa de dormir, ou a lavassem, ficava sempre um cheiro no quarto. Mandava espalhar água-de-colónia no quarto e esfregava-a nas mãos e no rosto, mas o odor a fezes persistia e ela sentia-se envergonhada e desditosa. «Terrível, terrível, terrível», murmurava, uma velha irada que às vezes chorava lágrimas furiosas.
Morreu, e Frances encontrou na sua mesa-de-cabeceira o recorte do jornal dizendo que Julia fora nazi. Mostrou-o a Colin, e riram-se do absurdo. Colin ameaçou que se encontrasse Rose Trimble talvez considerasse a ideia de a espancar, mas Frances, como Julia, disse que aquela gente não merecia que lhe ligassem importância.
O funeral de Julia não foi tão consolador como o de Wilhelm.
Parecia que ela era ou tinha sido mais ou menos católica, mas na sua última doença não pedira a presença de um padre nem no seu testamento havia alguma indicação quanto ao seu funeral. Decidiram-se por um serviço indefinido e interconfessional, mas pareceu-lhes muito deprimente até se lembrarem de que Julia gostara de poesia. Seriam, pois, lidos poemas. Mas que poemas? Andrew procurou nas estantes dela e depois encontrou na gaveta da sua mesa-de-cabeceira um exemplar de Gerard Manley Hopkins. Tinha sinais de ter sido muito lido e alguns poemas estavam sublinhados. Eram os poemas «terríveis». Andrew achou que não, que era demasiado doloroso lê-los.
Não existe nada pior. Clímax após clímax de sofrimento... Não.
Escolheu The Caged Skylark, de que ela gostara, pois havia um risco a lápis ao lado dos versos, e depois o poema Spring and Fall, dedicado a uma criança pequena e que começava assim:
Sofres, Margaret, Porque Goldengrov se desfolha?
Este também tinha um traço a lápis ao lado, mas eram os poemas tristes que tinham duplos e triplos traços negros ao lado e também trémulos pontos de exclamação. Por isso a família achou que estaria a trair Julia se escolhesse os poemas mais suaves. Mas também tiveram de admitir que não tinham conhecido Julia e, por isso, jamais poderiam imaginar o significado daqueles carregados traços pretos ao lado de
Acordo e sinto o descer das trevas e não do dia. Que horas, oh que negras horas passámos...
Devia haver alguma poesia alemã, mas Wilhelm não estava presente para aconselhar.
Andrew leu os poemas. A sua voz era suave, mas suficientemente forte para a ocasião: estavam poucas pessoas presentes, além da família. Mrs. Philby manteve-se bem afastada deles, no mais carregado dos lutos, desde o chapéu, reservado para funerais, às botas, que brilhavam, como se os censurassem: ela continuava a representar o seu papel, que consistia em reprovar os hábitos desleixados da família. Nenhum deles estava de preto, só ela. O seu rosto tinha uma expressão rancorosa, de rectidão. Mas chorou, no fim. «Mrs. Lennox era a minha amiga mais antiga», disse a Frances, em tom de ríspida censura. «Não voltarei lá para casa. Só ia por causa dela.»
A meio da cerimónia chegou um vulto magro, com as madeixas brancas e as roupas soltas a esvoaçar ao vento que soprava por entre as pedras tumulares, e dirigiu-se, hesitante, na direcção do grupo presente no funeral. Era Johnny, tristonho, infeliz e parecendo muito mais velho do que deveria. Manteve-se afastado de todos eles, meio de lado, como se preparado para fugir. Era evidente que as palavras do serviço fúnebre constituíam uma afronta para ele. No fim, os filhos e Frances dirigiram-se-lhe, para o convidarem a voltar para casa, mas ele limitou-se a acenar com a cabeça e a afastar-se a passos largos. Nos limites do cemitério voltou-se e envolveu todos numa saudação com a mão direita aberta e voltada para eles, ao nível do ombro.
Sylvia não assistiu ao funeral. Uma tempestade forte avariara as linhas telefónicas da Missão de São Lucas.
Entretanto, a vida de Frances com Rupert não estava a correr como tinham esperado. Ela vivia virtualmente em casa dele, embora os seus livros e papéis estivessem na de Julia. A casa não era grande. A sala, que era também onde comiam, com uma pequena cozinha do outro lado de um postigo, tinha um terço do tamanho da de Julia. O grande quarto era adequado. Os dois quartos pequenos eram para os dois filhos de Rupert, Margaret e William, que vinham aos fins-de-semana. Quando Meriel se fora embora para viver com outro homem, Jaspar, houvera planos para comprar qualquer coisa maior. Frances gostava das crianças e estava convencida de que elas não antipatizavam com ela: eram bem educadas e obedientes. Iam para a escola do apartamento da mãe e para férias com a mãe e Jaspar. Até que num fim-de-semana se mostraram tensas, caladas, e disseram que a mãe não estava bem. E não, Jaspar não estava lá em casa. Embora não olhassem uma para a outra, ao dar esta informação dir-se-ia que trocavam olhares cheios de medo.
Foi neste momento que a vida real se lhe atravessou de novo no caminho: foi pelo menos isso que ela sentiu. Nos meses — não, já eram anos — que tinha passado com Rupert tornara-se uma pessoa diferente e fora aprendendo lentamente a considerar a felicidade como um dado adquirido. Santo Deus, imaginem, se não houvesse Rupert, teria continuado na mesma rotina enfadonha e determinada, com obrigações e sem amor, sexo, nem intimidade.
Rupert foi com os filhos a casa da mãe deles e encontrou o que temia. Anos antes, depois do nascimento de Margaret, ela tivera uma depressão das valentes. Ele acompanhara-a e ela melhorara, mas vivia no terror de que pudesse voltar. E voltara. Meriel estava enroscada num canto do sofá, de olhos fixos no vazio, com um roupão sujo e o cabelo por lavar e pentear. As crianças pararam de cada lado do pai, a fitar a mãe, e depois chegaram-se muito para ele, para que as envolvesse nos braços.
— Onde está o Jaspar? — perguntou ele à mulher silenciosa, que se encontrava visivelmente muito distante, fechada no interior do terrível sofrimento dos depressivos.
Passados momentos repetiu a pergunta e ela respondeu, irritada com a interrupção:
— Foi-se embora.
— Vai voltar?
— Não.
Ele teve a impressão de que não a ouviria dizer mais nada, mas depois ela disse, num murmúrio espesso e indiferente, sem se mexer nem voltar a cabeça:
— É melhor levares os miúdos. Eles aqui não terão nada. Rupert recolheu livros, brinquedos, roupas e material escolar, sob
a orientação de Margaret e William, e depois foi de novo ter com Meriel.
— Que vais fazer? — perguntou-lhe.
Seguiu-se um longo silêncio. Ela abanou a cabeça, como se quisesse dizer deixa-me em paz, e depois, quando os três já estavam à porta, acrescentou, no mesmo tom:
— Mete-me num hospital. Em qualquer hospital. Tanto me faz. As crianças voltaram a instalar-se nos seus antigos quartos e em
breve toda a casa estava cheia das suas coisas. Estavam assustadas e silenciosas.
Rupert ligou para o médico deles, que se encarregou de conseguir internar Meriel numa enfermaria psiquiátrica. Tentou ligar a Jaspar, mas não obteve resposta.
Frances andava com pensamentos frios e complicados. Sabia que Jaspar provavelmente não voltaria para Meriel, se fugira assustado com a experiência de viver com uma depressiva. Era dez anos mais novo, uma figura do mundo da moda, criava roupas desportivas e ganhava dinheiro. O seu nome aparecia com frequência nos jornais. Por que se prendera a uma mulher com dois filhos meio crescidos? Rupert dissera estar convencido de que o jovem gostara de se ver como uma pessoa madura e responsável. Tinha fama de demasiado moderno para seu próprio bem, de se meter em drogas e festas loucas — tudo isso. Cenário a que presumivelmente regressara. Isso significava que Meriel estava sem homem e muito provavelmente quereria o seu marido de volta. E ali estavam duas crianças em choque emocional, e ali estava ela como mãe substituta. E, é verdade, apoderara-se dela aquele sentimento atemorizado e apavorado que surge quando a vida se repete num padrão já conhecido. Pensava: corro o risco de ficar com estas duas crianças a meu cargo... não, já as tenho a meu cargo. Quero isso?
Margaret tinha doze anos e William dez. Não tardariam a ser adolescentes. Não receava que Rupert sacudisse a responsabilidade para ela, mas sim de que a sua intimidade não só sofresse — o que era infalível —, mas também pudesse desaparecer, sugada pelas exigências insensatas dos adolescentes. No entanto, gostava tanto de Rupert... amava-o. Podia dizer, com toda a seriedade, que não amara nunca até agora... sim, aceitaria o que quer que acontecesse. E, no fim de contas, até as depressões se tratam e depois as crianças quereriam ficar de novo com a mãe.
Do hospital onde Meriel estava vinham garatujas — não se podia chamar-lhes letras —, uma caligrafia desvairada: «Rupert, não deixes as crianças virem aqui. Não será bom para elas. Frances, a Margaret tem asma, precisa de uma nova receita.»
A Os médicos, a quem Rupert telefonava, diziam que ela estava muito doente, mas se refaria. A sua doença anterior durara dois anos. Frances e Rupert estavam deitados lado a lado, às escuras, a cabeça dela no ombro direito dele, a mão direita de Rupert no seio direito dela. A mão dela na parte interior da coxa dele, com os nós dos dedos a roçar os seus testículos, um peso suave mas seguro de si que lhe infundia confiança. Era com esta cena conjugal consagrada pelo tempo que passavam a meia hora antes de adormecerem, quer se tivessem amado quer não. O assunto que tinham andado a contornar tinha de ser discutido.
— Onde esteve a Meriel quando esteve doente, naqueles dois anos?
— Na cama, sobretudo. Não podia fazer muito mais.
— Ela não pode ficar dois anos no hospital...
— Não, precisará de cuidados.
— Suponho que o Jaspar não vai candidatar-se a isso?
— Achas provável?
Ele falava calmamente, despreocupadamente, até, mas com uma coragem triste que lhe comoveu o coração.
— Olha, Frances, isto não podia ser pior para ti. Não imagines que eu não sei. — Como não ia dizer-lhe que não era mau, Frances hesitou e ele acrescentou muito depressa: — Não te censurarei se te fores embora... — A sua voz tornara-se espessa.
— Eu não me vou embora. Estou apenas a pensar. — Rupert beijou-lhe a face e ela ficou a saber que a cara dele estava molhada. — Se vendesses esta casa e juntássemos o nosso dinheiro e comprássemos outra maior, mesmo assim o problema subsistiria: seria a primeira mulher e a segunda em quartos separados, como um polí-gamo africano.
— Ou como o cartoon do Thurber. Não vejo, realmente, a Meriel em cima de um armário.
Riram-se. Riram-se.
— Temos dinheiro suficiente para uma casa? — perguntou ela.
— Não numa parte decente de Londres. E não uma casa grande.
— Presumo que Meriel não vai ganhar dinheiro?
— Ela nunca foi uma mulher de carreira. — A voz dele tornou-se seca; ela sabia que havia uma história. — A Meriel é uma mulher antiquada. Ou o último grito em feminismo. E, evidentemente, não ia trabalhar quando estava com o Jaspar; gozava a boa vida em grande. Portanto, é verdade, podemos partir do princípio de que terá de ser mantida. — Uma pausa. — Eles, os médicos, dizem que temos de presumir que a depressão será recorrente.
— Tenho estado a pensar, Rupert. Seriam duas mulheres na mesma casa, mas pelo menos não no mesmo andar.
— Suponho que já fizeste isso?
— Tenho muita prática na matéria.
— Estás a planear casar comigo, Frances?
— Seria com certeza melhor para as crianças, se o fizesse. Amancebada passa a esposa. Nunca subestimes o conservadorismo das crianças.
Frances telefonou a Colin e perguntou-lhe se podiam falar, e ele sugeriu que ela viesse e ele cozinharia. Foi assim que se encontrou de novo em casa de Julia, na cozinha, sentada a uma mesa reduzida às mais ínfimas dimensões. Nunca a vira tão pequena. Duas cadeiras. Colin chegou, a respirar boas-vindas por todos os poros.
Abraçaram-se.
— Onde está o cãozinho? — perguntou Frances.
Ele hesitou, virou as costas para tirar pratos do frigorífico — usando esse gesto como ela fizera tantas vezes para evitar ou adiar novidades. Pôs-lhe sopa fria à frente e sentou-se defronte dela.
— O Fera está com a Sophie. Ela está lá em baixo. Frances pousou a colher e absorveu o choque.
— Ela e tu estão juntos?
— Ela está doente. É uma espécie de colapso nervoso. O homem com quem esteve depois do Andrew... não prestava. Recorreu a mim.
Frances absorveu toda aquela novidade e depois prestou atenção à sopa. Ele era um bom cozinheiro.
— Bem, não há dúvida de que assim as coisas mudam de figura.
— Elucida-me.
Ela assim fez e ele mostrou que tinha apreendido o essencial ao responder:
— Bom, mãe, és uma glutona por castigo.
— A verdade é que realmente... — ia a dizer gosto, mas emendou — amo este homem. Amo-o.
— Ele é bom tipo — disse o filho.
— Já te mudaste para o andar de Julia?
— E uma peça de estilo, de muito estilo, e não sou capaz de a demolir. Mas, sim, evidentemente, vamos usá-lo.
— E se puséssemos a mulher do Rupert na cave?
— Como a pobre Phyllida.
— Mas eu espero que não seja para sempre. O Rupert diz que ela está ansiosa por se ver livre dele. A grande idiota.
— Nesse caso, está bem. A Meriel na cave. A Sophie e eu no último andar. Usaremos o antigo quarto da Sylvia e eu continuarei a trabalhar na sala.
Assim, tu, o Rupert e os dois miúdos terão as seis divisões do piso do Andrew e meu, e as suas salas. E, claro, há ainda esta sempre fiel cozinha.
— Eu não teria pensado no assunto se não soubesse que a casa estava praticamente vazia. E dar-nos-ia espaço para respirarmos até...
— Não é má ideia. — Com a energia que punha em tudo, levantou os pratos da sopa e serviu peixe grelhado. Deitou vinho, bebeu o seu e deitou mais.
— E tu e a Sophie?
— O Andrew não servia para a Sophie. Era mais do mesmo. Ela diz que na hora do aperto, o Roland era como um buraco negro, e o Andrew... bem... todo cheio de boas intenções, mas ele é um bocado peso-pluma, como não podes deixar de concordar. Não se empenha — explicou, com um sorriso que esperava cumplicidade na compreensão. — Ao passo que eu — continuou, defendendo o seu caso — cuido das pessoas. Tenho no meu passado vítimas que o provam, bem escavacadas e destroçadas, mas cuidadas. Não, tu não sabes nada a respeito delas, mãe. Tomei a Sophie a meu cargo.
— Dois chalados numa casa — comentou Frances.
— Elegantemente descrito.
— E não pela primeira vez. Mas não se preocupem com crianças de dez e doze anos; em breve serão adultas, não serão?
— Em primeiro lugar, não dei por que o Andrew e eu, ou a Sylvia, não precisássemos de uma base familiar, mesmo quando adultos, e em segundo lugar... bem, eu não tinha compreendido a tua atitude peremptória em relação ao tempo até recentemente. O que são quatro anos? Seis anos? Dez? Nada. Um mero sopro. Não há nada como uma morte para nos dar consciência disso... e há ainda outra coisa. Já te passou pela cabeça que os miúdos podem preferir-te, a ti, à sua delinquente mãe?
— Delinquente! Ela está doente.
— Ela pôs-se a andar com o seu amante louco, não pôs? Largou-os, não largou?
— Não. Levou-os com ela. Mas agora eles estão... largados.
— Espero que sejam pelo menos suportáveis. São?
— Por enquanto, têm-se comportado o melhor possível. Não sei.
— Não te sentes atormentada por toda esta recorrência?
— Sinto. E é pior do que tu supões. A Meriel é filha de Sebastian Heath... provavelmente não te lembras do nome? Lembras? Foi um comunista famoso, como o Johnny. Foi preso pelos camaradas na União Soviética e desapareceu para sempre.
— Acho que ter um pai que foi baleado na nuca pelo seu próprio lado é suficiente para explicar uma certa dose de destrambelhamento emocional.
— E depois a mãe dela suicidou-se. Também era comunista. Meriel foi criada por uma família comunista... mas agora não são comunistas. Aparentemente.
— Então ela teve aquilo a que se poderia razoavelmente chamar uma infância destroçada.
— Daí a minha sensação de estar a ser perseguida por mais do mesmo.
— Pobre, mãe — disse Colin, alegremente. — Não te importes. E não penses que os teus problemas de habitação ficarão permanentemente resolvidos se vieres para aqui. Tenciono casar-me.
— Sophie!
— Santo Deus, não. Não sou doido a esse ponto. Ela é apenas a minha parceira. Somos parceiros. Mas ando definitivamente à procura de uma mulher. E casarei e terei quatro miúdos, não me contento com os teus dois e meio. E depois precisarei desta casa.
— Com certeza — concordou a sua mãe. — É justo.
Terminado o jantar, Frances observou que estava a ficar tarde e eram horas de Margaret e William irem para a cama. A rapariga levantou-se, com a virginal fronte clara, levemente sardenta, virada para ela como a de um pequeno touro prestes a investir. «Por que havemos de ir? Não nos pode dar ordens. Não é a nossa mãe.» E William disse o mesmo. Era evidente que os dois tinham discutido a situação e decidido marcar posição. Dois rostos obstinados, dois corpos antagonistas, e Rupert a observar, pálido como eles.
— Não, eu não sou a vossa mãe, mas enquanto olhar por vocês acho que terão de fazer o que eu disser.
— Eu não farei — disse Margaret.
— Eu não farei — repetiu William.
Margaret tinha um rosto redondo, de rapariguinha à espera de se definir feições que, de alguns metros de distância, pareciam desaparecer em contornos pálidos onde apenas se impunha uma pequena boca rosada. Boca que, neste momento, tinha uma expressão de desaprovação afectadamente virtuosa.
— Nós odiamo-la — disse cuidadosamente William, que tinha ensaiado a fala com Margaret.
Frances sentiu-se descontrolada e irracionalmente furiosa.
— Sentem-se — ordenou, e, surpreendidos, os miúdos reocuparam as suas cadeiras. — E agora ouçam. Eu não esperava ter de olhar por vocês.
Não era algo que quisesse. — Neste ponto, olhou para Rupert, que estava magoadíssimo com toda aquela desagradável situação, e continuou: — Não me importo de fazer coisas para vocês. Não me importo de cozinhar, tratar-lhes da roupa e tudo isso... mas não aceito disparates. Podem esquecer quaisquer ideias de amuos e cenas, porque não as tolerarei. — Estava realmente a tomar balanço e os dois rostos pálidos e assustados não bastavam para a fazer parar. — Vocês não sabem — como poderiam saber? —, mas tenho a minha conta de bater de portas, rebeliões de adolescentes e todos esses disparates infantis. — Estava a gritar-lhes. Nunca, jamais, gritara antes a uma criança. — Estão a ouvir? E se começarem com essas coisas vou-me embora.
A falta de fôlego calou-a. As sobrancelhas de Rupert, geralmente prontas para a ironia, indicavam-lhe que estava a exceder-se.
— Peço desculpa — disse, mais para ele do que para eles, e depois acrescentou. — Não, não peço desculpa coisa nenhuma. Disse o que disse porque é o que tenciono fazer. Portanto, pensem no assunto.
Sem uma palavra, as crianças levantaram-se e dirigiram-se silenciosamente para os seus quartos. Mas iriam juntar-se, no de um ou no de outro, para falarem a respeito de Frances.
— Bem feito — disse Rupert.
— Achas que sim? — Frances sentou-se flácida, trémula, assustada consigo mesma. Baixou a cabeça para os braços.
— É claro que foi. Era inevitável não haver um confronto em qualquer altura. E, a propósito, não estou a partir do princípio de que ficas. Não te censuraria se, simplesmente, te fosses embora.
— Não me vou embora — e estendeu a mão para a dele, que tremia. — Oh, meu Deus, tudo isto é tão... — Ele estendeu os braços para ela e Frances empurrou a sua cadeira para a dele e ficaram muito juntos, enlaçados, partilhando o mútuo desalento.
Uma semana depois, houve uma repetição do «Não é a nossa mãe, então porque havemos de...», etc. Frances estivera todo o dia a tentar adiantar o pesado livro sociológico que estava a escrever e a ser interrompida por telefonemas da escola das crianças, do hospital de Meriel e de Rupert a perguntar, do jornal, o que devia levar para casa para jantar. Tinha os nervos em franja, tensos e praguejantes. Estava a reagir a toda aquela situação. Que fazia ela ali? Em que armadilha caíra... gostava sequer das crianças? Daquela rapariga, com a afectada boquinha virtuosa, do rapaz (do pobre rapaz), tão assustado com o que estava a acontecer que mal conseguia olhar para ela, ou para o pai, e andava de um lado para o outro como um sonâmbulo, com um sorriso amedrontado que tentava parecesse sarcástico.
— Pronto, chega — disse, e levantou-se do seu lugar à mesa, afastando o seu prato. Não olhou para Rupert, pois o que estava a fazer era imperdoável: agredia-o quando ele estava caído.
— O que quer dizer? — perguntou a rapariguinha, pois no fim de contas ainda era isso que ela era.
— O que te parece? Vou-me embora. Eu disse-te que o faria.
E dirigiu-se para o quarto que partilhava com Rupert, devagar porque as suas pernas estavam rígidas, não de indecisão, mas por querer que a levassem para longe de Rupert. Tirou roupa do armário e empilhou-a na cama, procurou malas e, metodicamente, começou a enchê-las. Encontrava-se num estado de espírito oposto a tudo quanto sentira durante semanas. Como uma noiva ou um noivo que tivessem sido arrebatados pela maré dos acontecimentos, apenas com um momento ocasional de apreensão, e davam consigo na véspera do casamento a perguntar-se como podiam ser tão loucos. Uma situação que lhe parecera suficientemente razoável, ainda que difícil, fazia-a agora sentir-se como se estivesse a ser transportada, atada de pés e mãos, para uma prisão. Que diabo a levara a dizer que tomaria conta dos filhos dele, ainda que temporariamente? E como sabia que seria temporário? Tinha de fugir, antes que fosse tarde demais. A única parte do seu pensamento que permanecia nas proximidades do que tinha sido era a que se relacionava com Rupert. Não podia desistir dele. Bem, isso era simples. Compraria finalmente a sua própria casa, a sua casa, e... A porta abriu-se apenas uma fresta, e depois um pouco mais, e o rapaz apareceu.
— A Margaret pergunta o que está a fazer?
— Vou-me embora — respondeu Frances. — Fecha a porta.
A porta fechou-se, em movimentos cuidadosos, como se cada pequeno grau de encerramento fosse imobilizado por uma mudança de opinião: deveria ele entrar de novo?
As malas estavam feitas e enfileiradas quando Margaret entrou de mansinho, de olhos baixos e boca entreaberta, aquela afectada pequena boca rosada; mas agora a rapariga tinha o rosto inchado de lágrimas.
— Vai-se realmente embora?
— Vou, sim. — E Frances, que estava convencida de que ia, acrescentou: — Fecha a porta... sem fazer barulho.
Mais tarde, saiu do quarto e encontrou Rupert ainda sentado à mesa do jantar.
— Aquilo foi mal feito, desculpa.
Ele abanou a cabeça, sem a olhar. Era uma figura solitária e corajosa, e a sua dor isolava-o dela. Não pôde suportar. Sabia que não se iria embora, pelo menos desta maneira. Estava a pensar, num derradeiro e desvairado momento de rebelião: «Primeiro arranjo a minha casa e ele que se arranje com a trapalhada da Meriel e dos miúdos e, se quiser, pode ir-me visitar e...
— É claro que não me vou embora — disse. — Como poderia? Ele não se mexeu, mas depois, devagar, estendeu o braço próximo
dela. Ela puxou uma cadeira, instalou-se no arco do braço, e uniram as cabeças.
— Bem, pelo menos eles não te vão fazer de novo a vida negra — disse Rupert. — Quero dizer, se decidires ficar.
A situação exigia que cimentassem as suas fragilidades fazendo amor. Ele foi para o quarto de ambos e ela preparava-se para o seguir, apagando as luzes. Aproximou-se do quarto da rapariga, com a intenção de entrar, desejar-lhe boa noite e dizer: «Esquece, eu não ia fazer aquilo.» Mas ouviu soluços, um soluçar terrível, baixo e desamparado, que já devia durar há algum tempo. Frances parou junto da porta e depois encostou a cabeça à madeira, numa explosão de Oh, não, não posso, não posso... Mas o som do sofrimento da criança levou a melhor. Respirou fundo, entrou no quarto, viu a rapariga levantar-se num sobressalto da almofada e depois encontrou-a nos seus braços.
— Oh, Frances, Frances, desculpe, eu não queria dizer aquilo...
— Está tudo bem. Eu não vou. Na altura, falei a sério, mas agora mudei de ideias.
Beijos, abraços e um novo começo.
Com o rapaz ia ser mais difícil. Uma criança magoada, fechada numa armadura de orgulho, ele recusou lágrimas, recusou braços reconfortantes, incluindo os do pai; não confiava neles. Vira a sua mãe, tão doente e silenciosa, fechar-se tão fundo dentro de si própria que não o ouvia quando lhe falava, e era essa visão que o acompanhava quando fazia obedientemente o que lhe diziam, ia para a escola, fazia os deveres de casa, ajudava a levantar a mesa, fazia a sua cama. Se Frances e Rupert soubessem o que se passava dentro de William, se compreendessem a sua desesperada angústia solitária... mas que poderiam eles ter feito? Sentiam-se até tranquilizados com aquele rapaz obediente que estava a tornar-se — não estava? — mais fácil de aturar do que Margaret.
Sylvia estava nas Chegadas do aeroporto de Senga, que acomodava a passadeira rolante da bagagem, a Imigração e a Alfândega, e todas as pessoas desembarcadas do avião que, à primeira vista, podiam ser definidas como negras, e em grossos fatos de três peças, e brancas, de jeans e T-shirts, com as camisolas com que tinham saído de Londres atadas à volta dos quadris. Os negros estavam eufóricos e colocavam frigoríficos, fogões, televisores e mobiliário nos lugares devidos para receberem a aprovação da Alfândega, que não lhes era negada, pois os funcionários sentiam-se muito felizes por serem generosos e marcarem com garatujas a giz vermelho todos os grandes caixotes que lhes eram postos à frente. Sylvia tinha uma pequena mala de viagem para os seus objectos pessoais e duas grandes malas para os aprovisionamentos clínicos e outros que o Padre McGuire lhe tinha pedido: tinham chegado listas e listas a Londres, cada qual acompanhada pelas palavras: «Não se sinta obrigada a trazer isto, se causar transtorno.» No avião, Sylvia ouvira brancos falar da Alfândega, da sua imprevisibilidade e da sua parcialidade em relação aos negros, a quem era permitido trazer mobílias para casas inteiras. Ao lado de Sylvia viajara um homem silencioso, vestido como outros de jeans e T-shirt, mas com uma cruz de prata pendente de uma corrente, ao pescoço. Sem saber se se tratava de uma ostentação de moda, ela perguntou-lhe timidamente se era sacerdote, e ficou a saber que se tratava do Irmão Jude, da missão qualquer coisa — o seu ouvido não fixou o nome pouco familiar —, e se devia esperar problemas com as suas grandes malas. Ao ouvir a sua história e para onde se dirigia — ele conhecia o Padre McGuire —, disse-lhe que a ajudaria na Alfândega, onde ela o encontrou mesmo à sua frente, na bicha. Ele ia-se deixando ficar para trás, dando a vez a outros, pois estava à espera de um jovem negro que o cumprimentou pelo nome, perguntou se as malas eram para a Missão, autorizou a sua passagem e depois foi apresentado a Sylvia e às suas malas. «É uma amiga do Padre McGuire. É médica. Traz aprovisionamentos para o hospital de Kwandere.» «Oh, uma amiga do Padre McGuire», repetiu o jovem, todo amizade e sorrisos, «queira dar-lhe cumprimentos meus, os meus melhores cumprimentos.» E garatujou o místico sinal vermelho nas malas. Sylvia não teve dificuldades na Imigração, pois tinha todos os documentos em ordem, e depois encontraram-se nos degraus exteriores do aeroporto, numa manhã quente e clara, e Sylvia viu vir direita a si uma mulher nova, de calções azuis folgados, uma T-shirt florida e uma grande cruz de prata. «Ah», disse o salvador de Sylvia, «vejo que está em boas mãos. Viva, Irmã Molly», e partiu, na direcção de um grupo que o esperava.
A Irmã Molly ia conduzi-la de carro para a Missão de São Lucas. Disse que não valia a pena demorarem-se em Senga e deviam partir imediatamente. E lá foram, numa camioneta escalavrada, direitas a uma paisagem africana que Sylvia estava disposta a admirar quando se habituasse a ela. Agora era-lhe estranha. E na verdade muito quente. O vento que soprava através da cabina da camioneta era empoeirado. Sylvia agarrou-se à porta e escutou Molly, que não parava de falar, sobretudo a respeito do lado masculino do seu estabelecimento religioso composto todo ele por porcos chauvinistas. Esta frase, que perdera o condimento da novidade em Londres, saía, como se tivesse sido acabada de cunhar, dos lábios sorridentes da irmã. Quanto ao Papa, era reaccionário, fanático, burguês, velho demais e contra as mulheres e, que Deus lhe perdoasse dizer semelhante coisa, era uma pena parecer que gozava de boa saúde.
Não fora isto que Sylvia esperara ouvir. Não se importava muito com o Papa, embora, como católica, soubesse que deveria, e nunca achara que a linguagem do feminismo extremo se coadunasse muito com a sua experiência. A Irmã Molly conduziu muito depressa, ao princípio por boas estradas, mas que depois foram piorando crescentemente até, decorrida cerca de uma hora, o carro parar junto de um grupo de edifícios que lhe pareceram ser de uma quinta. Molly descarregou aí Sylvia e as suas malas e disse-lhe:
— Deixo-a aqui. Não permita que o Kevin McGuire mande em si. Ele é um querido, não digo que não seja, mas todos esses sacerdotes antiquados são a mesma coisa. — Arrancou, acenando a Sylvia e a quem mais estivesse a olhar.
Sylvia foi convidada para o chá matinal por Edna Pyne, cuja voz, a abarrotar de vogais pouco familiares, tinha sobretudo um travo de au-tocompaixão que Sylvia conhecia bem demais. E o rosto idoso mostrava descontentamento. Cedric Pyne tinha pernas compridas e queimadas, vestia os shorts mais curtos que ela alguma vez vira e os seus olhos, como os da sua mulher, eram azuis e avermelhados. Era tal o clarão de luz que brilhava na varanda onde se sentaram que Sylvia fixava os olhos no casal, evitando a crua luz amarela, e na realidade nesta primeira visita não viu nada além deles. Era evidente que deixar pessoas e coisas na propriedade dos Pyne fazia parte de uma espécie de tráfico regular, pois quando voltaram a estar num carro, desta vez um jipe, havia maços de jornais e cartas para o Padre McGuire, além de dois jovens negros, um dos quais Sylvia viu imediatamente que se encontrava muito doente. «Vou para o hospital», disse o doente, e Sylvia respondeu: «Eu também.» Os dois negros iam na parte de trás do veículo e ela ia com Cedric que conduzia, como a Irmã Molly, como se estivesse a fazer uma aposta. Durante mais de quinze quilómetros foram aos trancos e solavancos por uma estrada de terra solta, e à frente apareceu um edifício baixo, com telhado de chapa ondulada, e para lá dele, num cume, mais edifícios espalhados entre mais árvores empoeiradas.
— Diga ao Kevin que não posso esperar — disse-lhe Cedric Pyne. — Faça-nos uma visita quando quiser. — E com isto se foi, deixando nuvens de poeira no ar.
Sylvia estava com uma dor de cabeça. Ia a pensar que praticamente nunca saíra de Londres em toda a sua vida e isso parecera-lhe, até agora, uma coisa normal, em vez da privação que começava a suspeitar que fosse. Os dois jovens negros dirigiram-se para o hospital, dizendo: «Ver-nos-emos de vez em quando.» A frase pareceu descontraída, mas o rosto do doente denunciava uma necessidade urgente.
Sylvia dirigiu-se, com as suas malas, para uma pequena varanda de cimento verde polido. Depois entrou numa sala pequena onde havia uma mesa de tábuas manchadas, cadeiras com assentos de tiras de couro, prateleiras de livros enchendo uma parede inteira e alguns quadros, dos quais apenas um não representava Jesus e era uma vista brumosa do pôr do Sol nas Montanhas de Mourne.
Apareceu uma mulher negra, baixa e magra, toda sorrisos de boas-vindas, que disse ser Rebecca e que ia mostrar a Sylvia o seu quarto.
O quarto, que ficava ao lado do principal, tinha tamanho suficiente para conter uma estreita cama de ferro, uma pequena mesa, duas cadeiras de madeira e algumas prateleiras para livros. Nas paredes havia pregos e cabides para as suas roupas. Desaguara ali uma pequena cómoda do tipo das que, em tempos, todos os hotéis tinham. Por cima da sua cama, um pequeno crucifixo. As paredes eram de tijolo, o chão de tijolo e o tecto de meias canas. Rebecca disse que lhe traria chá e saiu. Sylvia deixou-se cair numa cadeira, tomada por um sentimento que não sabia identificar. Novas impressões, sim: era verdade que as esperara e soubera que se sentiria estranha e deslocada. Mas o que era isto que sentia agora? Invadiam-na vagas de amargo vazio e quando olhava para o crucifixo, à procura das suas coordenadas, sentia apenas que o próprio Cristo devia estar surpreendido por Se encontrar ali. Mas ela, Sylvia, não estava seguramente surpreendida por encontrar Cristo num lugar de tamanha pobreza? Do que se tratava, então? Lá fora arrulhavam pombos e galinhas mantinham a sua eterna conversa. Sou apenas um fedelho mimado, disse a si mesma, usando uma palavra que emergiu de algures muito profundo da sua infância. Catedral de Westminster — sim; uma barraca de tijolo, aparentemente, não. Passava poeira pela janela, levada pelo vento. A julgar pelo seu aspecto exterior, esta casa não podia ter mais do que três ou quatro divisões. Onde ficava o quarto do Padre McGuire? Onde dormia Rebecca? Nada fazia sentido, e quando Rebecca lhe trouxe o chá Sylvia disse-lhe que lhe doía a cabeça e se ia deitar.
— Sim, doutora, deite-se e em breve sentir-se-á melhor — respondeu-lhe a outra, com uma boa disposição identificável como cristã: os filhos de Deus sorriem e estão prontos para tudo. (Como os hippies, os Filhos da Flor.) Rebecca correu as cortinas, de riscado de colchão preto e branco que Sylvia desconfiou seria considerado o último grito do chique em certos círculos de Londres. — Eu chamo-a para o almoço.
Almoço. O dia durava há tanto tempo que Sylvia pensava que já devia estar a anoitecer. Mas eram apenas onze horas.
Deitou-se, com a mão a cobrir os olhos, viu a luz definir os seus dedos magros, adormeceu e foi acordada por Rebecca meia hora depois, com mais chá e um pedido de desculpa do Padre McGuire, que dizia ter ficado detido na escola e a veria ao almoço, e sugeria que levasse as coisas com calma até ao dia seguinte.
Transmitido este conselho, Rebecca anunciou que o doente da fazenda de Pyne estava à espera de falar com a doutora, além de haver outras pessoas à espera, e se ela poderia... Sylvia estava a vestir uma bata branca, gesto que Rebecca observava, mas de uma maneira que levou Sylvia a perguntar:
— O que devo usar, então? — Rebecca respondeu imediatamente que a bata não permaneceria branca por muito tempo e talvez a doutora tivesse um vestido velho que pudesse usar...
Sylvia não usava vestidos. Vestira os seus jeans mais velhos para a viagem. Prendeu o cabelo com um lenço, o que a tornou parecida com Rebecca. Desceu um caminho indicado pela mulher, que se retirou para a sua cozinha. Ao longo do carreiro poeirento onde cresciam hibiscos, espirradeira e dentelária, todos empoeirados, mas dando a impressão de estarem nos seus lugares certos sob um calor seco e um sol num céu sem uma nuvem. O caminho virou para uma ladeira rochosa e à frente dela alguns telhados de colmo apoiados em estacas cravadas na terra avermelhada, e um barracão com a porta entreaberta, de onde saiu uma galinha. Havia outras deitadas de lado debaixo de arbustos, a ofegar de bicos abertos. Os dois jovens que tinham vindo no banco de trás do carro estavam sentados debaixo de uma grande árvore. Um deles levantou-se e disse:
— O meu amigo está doente. Está muito doente. Sylvia já tinha percebido.
— Onde é o hospital?
— Isto aqui é o hospital.
Sylvia reparou então que havia pessoas deitadas debaixo de árvores, arbustos ou dos abrigos de colmo. Algumas eram aleijadas.
— Há muito tempo nenhum doutor — disse o jovem. — E agora doutora de novo.
— Que aconteceu ao doutor?
— Andava a beber muito, muito. E por isso o Padre McGuire disse que tinha de ir embora. E por isso temos estado à espera da doutora.
Ela olhou em redor, para ver onde estariam os seus instrumentos e medicamentos — as ferramentas do seu ofício —, e dirigiu-se para o barracão. De facto, encontrou três séries de prateleiras e, nelas, um frasco grande de aspirina — vazio. Vários frascos de comprimidos para a malária — vazios. Um tubo grande de pomada — sem nome e vazio. Um estetoscópio pendia de um prego atrás da porta. Não funcionava. O amigo do jovem doente parou ao lado dela, sorrindo.
— Acabaram-se os remédios todos — disse.
— Como se chama?
— Aaron.
— É da quinta dos Pyne?
— Não, eu moro aqui. Fui ter com o meu amigo quando soube que vinha um carro.
— Como chegou lá?
— A andar.
— Mas... é uma grande distância, não é?
— Não, não é muito longe.
Voltou com ele para junto do jovem doente, que estivera inerte e flácido, mas tremia agora violentamente. Não precisou de estetoscópio para fazer o diagnóstico.
— Ele tem tomado alguns medicamentos? É malária.
— Sim, ele tomou um remédio de Mr. Pyne, mas agora acabou.
— Para começar, precisa de beber.
Encontrou no barracão três grandes vasilhas de plástico de água, com rolha de rosca em cima, mas cheirava um pouco a choco. Disse a Aaron que levasse alguma água ao doente. Mas não havia nem uma chávena, uma caneca ou um copo, nada.
— Penso que houve roubos, quando o outro médico se foi embora.
— Compreendo.
— Sim, receio que foi isso que aconteceu.
Sylvia compreendeu que estava a ouvir aquele «receio que» como devia ter soado há muito tempo, quando a expressão era recente.
Ele empregava as palavras como um pedido de desculpas. Há muito tempo, quando diziam receio que, esperavam uma pancada ou uma reprimenda?
Que sorte ter trazido um estetoscópio novo e alguns medicamentos básicos.
— Esta porta tem uma fechadura?
— Receio não saber. — Aaron fez alguns movimentos, como se procurasse, como se a fechadura pudesse encontrar-se no chão, na poeira. — Oh, aqui está — exclamou, ao encontrá-la metida no colmo do barracão.
— E a chave?
Ele procurou de novo, mas uma chave era pedir demais.
Sylvia não ia confiar o seu pequeno abastecimento a um barracão sem chave. Enquanto pensava, indecisa, que não compreendia nada do que a rodeava, que precisava de uma chave e não apenas do barracão, Aaron disse:
— Olhe, doutora. Receio que as coisas não estejam bem aqui... olhe. — Empurrou os tijolos da parede do fundo do barracão e eles caíram. Uma certa extensão fora cuidadosamente liberta da sua argamassa, de modo que era possível abrir um buraco suficientemente grande por onde alguém podia entrar.
Fez uma pequena ronda pelos seus pacientes, deitados aqui e ali, mas às vezes era difícil distingui-los dos amigos ou familiares que estavam com eles. Um ombro deslocado. Colocou-o logo no seu lugar e disse ao homem que ficasse a descansar e não usasse aquele braço durante algum tempo. Mas ele embrenhou-se a cambalear no mato. Havia alguns golpes, infectados. Outro caso de malária, ou assim lhe pareceu. Uma perna tão inchada que parecia um travesseiro e com a pele aparentemente prestes a rebentar. Voltou ao seu quarto e regressou com uma lanceta, sabão, uma ligadura e uma bacia obtida de Rebecca, e, acocorada, lancetou a perna, da qual correu grande quantidade de pus que empapou a poeira e gerou, sem dúvida, uma nova e excelente fonte de infecção. A doente gemia de gratidão, era uma mulher nova, cujos dois filhos estavam sentados perto dela, um a sugar-lhe o peito, apesar de parecer ter pelo menos quatro anos, e o outro agarrado ao seu pescoço. Sylvia ligou-lhe a perna, na esperança de a proteger de alguma poeira, e disse-lhe que não se esforçasse muito, embora isso fosse provavelmente absurdo, e a seguir examinou uma grávida perto do fim do tempo. O bebé apresentava-se na posição errada.
Sylvia recolheu os seus instrumentos e a bacia e disse que tinha de falar com o Padre McGuire. Perguntou a Aaron o que ele e o doente com malária tencionavam comer. O rapaz respondeu que talvez Rebecca fosse bondosa com eles e lhes desse um pouco de sadza.
Sylvia encontrou o Padre McGuire à mesa, na sala da frente, a almoçar. Era um homem forte, com uma batina modesta e uma generosa cabeleira branca, olhos escuros compreensivos e um ar de joviais boas-vindas.
Sylvia foi convidada a partilhar com ele um pouco de arenque enlatado — que ela própria trouxera —, e aceitou. E, instigada de novo, comeu uma laranja.
Rebecca, que os observava de pé, disse que no hospital se murmurava que Sylvia não podia ser médica, pois era demasiado magra e pequena.
— Deverei mostrar-lhes os meus diplomas? — perguntou ela.
— Eu mostrar-lhes-ia o peso da minha mão — replicou o Padre McGuire. — Que impertinência é essa que estou a ouvir?
— Preciso de um barracão que se feche à chave — informou Sylvia.
— Não posso transportar tudo de um lado para o outro o dia inteiro.
— Eu digo ao construtor que arranje o buraco da parede do barracão.
— E uma fechadura? Uma chave?
— Bem, isso já não é muito fácil. Terei de ver se temos alguma. Podia pedir ao Aaron que fosse aos Pyne e lhes pedisse uma fechadura e uma chave.
Estava a acender um cigarro e ofereceu outro a Sylvia. Ela quase nunca fumara, mas agora sentiu-se grata pelo cigarro.
— Teve um dia muito longo — observou o padre. — É sempre assim, no primeiro dia. O nosso dia começa às cinco e meia e termina
— pelo menos o meu — às nove da noite. E acredite que a essa hora estará pronta para ir para a cama, seja o que for que pense agora, com os seus hábitos londrinos.
— Até já estou pronta agora.
— Nesse caso, deve dormir uma pequena sesta, como eu vou fazer.
— E aquelas pessoas, lá fora? Posso ter ao menos uma caneca, para lhes dar água?
— Pode. Pelo menos isso podemos fazer. Temos canecas. Sylvia dormiu meia hora e foi acordada por Rebecca, com chá.
Rebecca tinha dormido? A mulher sorriu, quando Sylvia lhe perguntou. Aaron e o seu amigo tinham comido alguma coisa? A doutora Sylvia não se devia preocupar com eles, foi a resposta sorridente.
Sylvia voltou para o grupo de barracões, abrigos e árvores de sombra onde os doentes estavam deitados, à espera. Tinham chegado muitos mais, ao saberem que havia uma médica. Agora havia um bom número de mutilados, sem um braço ou uma perna, fendas antigas que nunca tinham sido convenientemente suturadas ou limpas. Eram os feridos da guerra, que finalmente terminara, havia pouco tempo. Sylvia pensou que se tinham arrastado para o «hospital» porque ali, pelo menos, o seu estado seria ratificado e definido. Eram feridos de guerra e tinham direito a comprimidos — analgésicos, aspirinas, unguentos, fosse o que fosse. No fim de contas, estes homens muito jovens, alguns deles não mais do que rapazes, eram os heróis da guerra e tinham direito a alguma coisa. Mas Sylvia dispunha de muito poucos comprimidos e tinha de ser parcimoniosa. Por isso receberam canecas de água e perguntas compreensivas. «Como perdeu essa perna?» «A bomba explodiu quando me sentei.» «Sinto muito, isso foi muito azar.» «Sim, foi demasiado azar.» «E o que aconteceu ao seu pé? «Caiu uma pedra lá do alto da colina, bateu numa mina terrestre e eu estava lá.» «Sinto muito. Deve ter-lhe doído muito.» «Se doeu! Eu gritei e os meus camaradas fizeram-me calar, porque o inimigo não estava longe.»
Mais tarde, quando o sol estava baixo e amarelo, apareceu um homem muito alto e muito magro, com rosto furioso e todo encurvado, que disse chamar-se Joshua e ter por missão ajudá-la.
— É enfermeiro? Recebeu treino?
— Não, não recebi nada. Mas trabalho sempre aqui.
— Então onde esteve até agora? — perguntou Sylvia, que queria informação e não pretendia repreendê-lo.
Mas ele respondeu com intenção insolente, mas uma insolência formal, como quando se diz, Diabos a levem:
— Por que havia de estar aqui se não havia doutor?
Estava sob a influência de qualquer coisa. Não, não era de álcool... do que seria, então? Cheirava a marijuana.
— O que esteve a fumar?
— Dagga.
— Isso cresce aqui?
— Sim, cresce em todo o lado.
— Se quer trabalhar comigo, não pode fumar dagga. Balançando-se ora num pé ora no outro, com os braços pendentes
oscilantes, ele replicou:
— Eu não esperava trabalhar hoje.
— Quando se foi embora o outro doutor?
— Há muito tempo. Faz um ano.
— O que fazem as pessoas doentes quando chove?
— Se não há espaço para elas debaixo dos telhados, molham-se. São negros, isso basta para eles.
— Mas agora têm um governo negro e, por isso, as coisas mudarão.
— Sim — disse, ou melhor, rosnou. — Sim, agora tudo mudará e nós também teremos as coisas boas.
— Joshua — disse ela, a sorrir —, se vamos trabalhar juntos, então temos de tentar dar-nos bem.
Desta vez o homem mostrou uma espécie de sorriso.
— Sim, seria uma coisa boa se... nos déssemos bem.
— Presumo que não se dava bem com o que partiu. A propósito, era um doutor branco ou um doutor negro?
— Um doutor negro. Bem, talvez não fosse um verdadeiro doutor. Mas bebia demais. Era um skellum.
— Um quê?
— Um homem mau. Não como você.
— Espero pelo menos não beber demasiado.
— E eu também, doutora.
— Chamo-me Sylvia.
— Doutora Sylvia.
Continuava encurvado e a balançar, e estava com cara de poucos amigos. Como se tivesse decidido: agora devo mostrar antagonismo.
— A doutora Sylvia vai para casa do Padre McGuire — informou ela. — Ele disse-me que estivesse lá quando escurecesse, para jantar.
— E eu espero que a doutora Sylvia goste do jantar.
Meteu por um carreiro direito ao mato, a rir. Depois ela ouviu-o cantar. Era uma canção estimulante, pensou: devia ser um canto de guerra, revolucionário, para insultar os brancos.
O Padre McGuire estava sentado à mesa, com um sibilante candeeiro a parafina a seu lado, a beber sumo de laranja. Esperava-a também um copo de sumo.
— Temos electricidade, mas houve um corte de corrente — explicou ele.
Rebecca apareceu com um tabuleiro e a informação de que Aaron mandara dizer que passaria aquela noite com o amigo, no hospital.
— O quê, ele vive aqui?
Sem olhar para ela, o padre disse que Aaron tinha uma família na aldeia, mas agora passaria a dormir à noite naquela casa.
O rosto de Rebecca e o do padre diziam-lhe que se tratava de uma situação que os embaraçava, e ela perguntou porquê.
Era uma coisa absurda, disse o Padre McGuire, uma coisa ridícula, e só lhe restava pedir desculpa, mas o homem passaria a viver na casa para salvar as aparências. Sylvia não compreendeu. O padre parecia impaciente, até mesmo ofendido com ela, por o obrigar a ser claro.
— Não é considerado adequado — declarou — um padre ter uma mulher a viver com ele.
— O quê? — exclamou Sylvia, tão incomodada como ele. Rebecca comentou que as pessoas falavam sempre e, por isso, era
de esperar.
Sylvia disse asperamente, e também afectadamente, que as pessoas tinham mentalidades sujas, e o Padre McGuire concordou placidamente que sim, era verdade.
Depois acrescentou, mas após uma pausa, que fora sugerido que Sylvia vivesse com as freiras, no monte.
— Que freiras?
— Temos as boas irmãs numa casa lá em cima, no monte. Mas como você não é religiosa, achei que ficaria melhor aqui.
Havia muita coisa que não estava a ser dita, e Sylvia olhou do padre para Rebecca.
— As nossas boas irmãs deviam ajudar no hospital, mas nem todas são capazes de fazer o trabalho sujo da enfermagem.
— São enfermeiras?
— Não, eu não diria isso. Fizeram cursos de enfermagem básica. Mas eu sugiro que reserve para elas a lavagem de ligaduras, pensos e roupas de cama. Não tem reservas de pensos descartáveis, pois não? Não, claro. Mande o Joshua levar o que precisa de ser lavado para a casa das irmãs, todos os dias. Eu far-lhes-ei compreender que devem fazer esse trabalho como um serviço a Deus.
— O Joshua não gostará de fazer isso, padre — disse Rebecca.
— E como você também não gostará de o fazer, teremos dificuldades.
— É trabalho dele e não meu.
— Portanto, aqui tem uma pequena dificuldade para resolver, Sylvia, e eu fico à espera, com interesse, para ver como se sai.
Levantou-se, deu as boas-noites e foi para a cama, e Rebecca, sem olhar para Sylvia, deu igualmente as boas-noites e saiu.
Tinha passado um mês. O buraco do barracão estava consertado e havia uma chave e uma fechadura. À volta de dois dos abrigos de colmo havia cortinas feitas com o tecido de juta usado para embalar tabaco, que podiam ser ajustadas para não deixarem entrar o vento nem a poeira, se não a chuva forte. Fora construída uma nova cabana grande, com paredes e tecto de colmo e buracos cortados nas paredes para deixarem entrar a luz. O interior era fresco e o chão de terra batida. Ali se podiam abrigar as pessoas realmente doentes. Sylvia curara casos de surdez de longa duração, causados apenas por acumulação de cera antiga. Curara cataratas. Obtivera medicamentos vindos de Senga e podia fazer alguma coisa pelos casos de malária, mas a maioria deles eram antigos. Tratou membros fracturados e cauterizou e suturou feridas e deu remédios para gargantas inflamadas e tosses, servindo-se por vezes, quando faltavam remédios, de mezinhas de mulheres idosas de que o padre McGuire se lembrava, da Irlanda. Tinha uma clínica de maternidade e fazia partos de bebés. Tudo isto era bastante satisfatório, mas não a impedia de se sentir permanentemente frustrada por não ser cirurgiã. Precisava de ser. Casos graves e urgentes podiam ser transportados para um hospital a mais de trinta quilómetros de distância, mas às vezes as demoras eram prejudiciais ou fatais. Precisava de ser capaz de fazer cesarianas e operar apendicites, amputar uma mão ou abrir um joelho gravemente fracturado. Havia uma área obscura onde era difícil saber se estava dentro da lei ou não: podia abrir um braço para chegar a uma úlcera ou uma ferida supurante para a limpar, usando instrumentos de cirurgia. Se tivesse sabido até que ponto precisaria tanto das técnicas de um cirurgião quando andara a fazer toda a espécie de cursos que não lhe eram úteis agora...
Também andava a fazer o género de trabalho que não aparecia aos médicos na Europa. Tinha percorrido aldeias vizinhas para inspeccionar a qualidade da água e encontrara regatos sujos e poços poluídos. A água escasseava naquele período do ano e muitas vezes conservava-se em charcos estagnados que geravam bilhárzia. Ensinava as mulheres dessas aldeias a identificar algumas doenças e explicava-lhes quando deviam levar-lhes os doentes. Era cada vez maior o número de pessoas que a procurava, porque estava a ser vista como uma espécie de operadora de milagres, sobretudo por causa do uso da seringa para lhes limpar os ouvidos de cerume. A sua reputação era propagada por Joshua, pois ajudava a dele, ensombrada pela associação com o mau médico. Ele e Sylvia estavam «a entender-se», mas ela ignorava as acusações, frequentemente violentas, que ele fazia aos brancos. Ás vezes ela respondia-lhe perguntando:
— Mas, Joshua, como posso ser culpada, se não estava cá?
— Azar o seu, Dr.a Sylvia. Eu digo que é culpada. Agora temos um governo negro, que eu aceito. E um dia este será um óptimo hospital e teremos os nossos próprios doutores negros.
— Espero que sim.
— E então poderá regressar a Inglaterra e curar os seus próprios doentes. Têm gente doente em Inglaterra?
— É claro que temos.
— E gente pobre?
— Sim.
— Tão pobre como nós?
— Não, nada que se pareça.
— Isso é porque nos roubaram tudo a nós.
— Se você o diz, Joshua, assim seja.
— E por que não está na sua terra a tratar dos seus próprios doentes?
— Aí está uma excelente pergunta. Faço-a muitas vezes a mim própria.
— Mas não vá, por enquanto. Ainda precisamos de si até termos os nossos doutores.
— Mas os vossos doutores não virão trabalhar em lugares pobres como este. Quererão ficar em Senga.
— Mas isto não será um lugar pobre. Será um belo lugar rico como a Inglaterra.
O Padre McGuire disse-lhe:
— Não, escute-me, minha filha, vou falar-lhe muito a sério, como seu confessor e conselheiro.
— Sim, padre.
A situação tornara-se um pouco cómica: embora não correspondesse à verdade que ela abandonara o catolicismo, o certo é que se sentia obrigada a redefinir as suas convicções. Tornara-se católica por causa do Padre Jack, um homem magro e austero que se consumia num ascetismo que não se coadunava com ele. Os seus olhos condenavam o mundo à sua volta e os seus movimentos eram todos eles de vigilância contra o erro e o pecado. Ela apaixonara-se por ele e estava convencida de que lhe não era indiferente. Até agora, tinha sido o amor da sua vida. O padre Jack. Ele defendera o sacerdócio, a Fé e a sua religião, e agora ela estava nesta casa no mato com o Padre McGuire, um homem idoso e bonacheirão, que gostava de comer. Dir-se-ia que não era possível ser gourmet com uma dieta de papas de aveia, carne de vaca e tomates e, principalmente, fruta enlatada, só raramente fresca. Disparate. O Padre Kevin gritava com Rebecca se as papas não estavam em condições, e o seu bife tinha de estar no ponto, meio passado, e as batatas... Sylvia gostava de Kevin McGuire, ele era um bom homem, como a Irmã Molly dissera, mas ao que ela reagira fora à abstinência apaixonada de um homem muito diferente, e às glórias da Catedral de Westminster e — uma vez — a uma breve visita a Notre Dame, que ardia na sua memória como a materialização de tudo aquilo que mais amava. Uma vez por semana, ao entardecer de domingo, numa igrejinha feita de tijolo não adornado e mobilada com bancos e cadeiras feitos de madeiras nativas, o povo das imediações vinha à missa, era orientado na língua local e dançava... as mulheres levantavam-se dos seus lugares e exprimiam a sua adoração dançando vigorosamente, e cantavam — oh, cantavam de modo tão belo, sim, cantavam —, e era uma ruidosa ocasião de convívio, como uma festa. Sylvia perguntava-se se alguma vez fora, de facto, uma verdadeira católica, e se o era agora, apesar de o Padre McGuire, no papel de seu mentor, a tranquilizar. Perguntava-se se teria gostado mais se na pequena capela onde a poeira entrava, o serviço fosse conduzido em latim e os fiéis se levantassem e ajoelhassem de acordo com o costume antigo. Sim, teria; detestava a missa como o Padre Kevin McGuire a oficiava, detestava as danças carnais e a exuberância dos cantos que sabia serem um afrouxar dos laços que travavam as suas pobres vidas contidas. E não gostava, de modo algum, das freiras nos seus hábitos azuis e brancos, como uniformes de colégios femininos.
— Sylvia, deve aprender a não levar as coisas tão a peito — dizia-lhe o sacerdote.
Ao que ela explodia:
— Não posso suportar, padre. Não posso tolerar o que vejo. Nove décimos daquilo são desnecessários.
— Sim, sim, sim. Mas as coisas são como são. Como são agora. Mudarão, estou certo. Sim, mudarão, com certeza. Mas, Sylvia, vejo em si a substância dos mártires, e isso não é bom. Iria para a fogueira com um sorriso, Sylvia? Sim, acredito que iria. Está a consumir-se. E agora sou eu quem lhe vai receitar, do mesmo modo que a Sylvia receita a essa pobre gente. Tem de comer três refeições decentes por dia. Tem de dormir mais — vejo a luz por baixo da sua porta às onze horas, à meia-noite ou ainda mais tarde. E deve dar todas as noites uma caminhada no mato. Ou fazer visitas. Pode levar o meu carro e visitar os Pyne. São boas pessoas.
— Não tenho nada em comum com eles.
— Mas, Sylvia, não os acha suficientemente bons para si? Sabia que declararam guerra àquela casa... estiveram cercados. Dei taram -lhes fogo à casa, por cima das suas cabeças. São gente boa e corajosa.
— Mas pela causa errada.
— Sim, é verdade... sem dúvida foi. Mas não são demónios pelo simples facto de os novos jornais dizerem que todos os agricultores brancos o são.
— Farei o possível para ser melhor. Sei que me deixo envolver demasiado.
— A Sylvia e a Rebecca... são as duas como coelhinhos de pedra num ano de seca. Mas no caso da Rebecca ela tem seis filhos e nenhum deles tem o suficiente para comer. A Sylvia não se alimenta por qualquer espécie de...
— Nunca comi muito. Parece que não ligo importância à comida.
— É uma pena não podermos partilhar os dois certas características. Eu gosto de comer. Deus me perdoe, mas gosto.
A vida de Sylvia tornara-se um circuito, do seu pequeno quarto para a mesa na sala principal, daí para o hospital e depois o inverso, sempre à roda. Quase nunca estivera na cozinha, que era o domínio de Rebecca, nunca entrara no quarto do Padre McGuire e sabia que Aaron dormia algures, nas traseiras. Quando o sacerdote não apareceu à mesa do jantar, e Rebecca disse que ele estava indisposto — sim, ele estava com frequência indisposto —, Sylvia foi pela primeira vez ao seu quarto. Havia um cheiro forte a suor fresco e antigo, os odores acres da doença. Estava amparado por almofadas, mas a escorregar para o lado, com a cabeça pendente nos ombros. Estava muito quieto, embora o seu peito arquejasse. Malária. A fase sossegada do ciclo. Pequenas janelas, uma estalada, abriam-se acima da terra húmida, de onde vinha uma frescura que competia com os odores. O Padre McGuire estava frio e húmido, com a camisa de dormir suada colada ao corpo, e tinha o cabelo emaranhado. Apesar da estação quente, podia resfriar-se. Sylvia chamou Rebecca e as duas levaram-no, a protestar, para uma cadeira de palha, que cedeu sob o seu peso.
— Eu quero mudar a roupa da cama quando o padre está doente — disse Rebecca —, mas ele diz sempre o mesmo: «Não, não, deixe-me em paz.»
— Pois eu vou mudá-la.
Mudada a roupa, o paciente deitou-se e depois, enquanto se queixava de dores de cabeça, Sylvia deu-lhe um banho de esponja. Rebecca desviou os olhos da evidência da masculinidade do padre e não parou de murmurar que sentia muito.
— Sinto muito, padre. Sinto muito.
Uma camisa de noite lavada. Limonada. Começou um novo ciclo, com os tremores selvagens e os suores da malária, enquanto ele cerrava os dentes e se agarrava às grades de ferro da cabeceira da cama. As febres palúdicas, a febre quarta, a febre terçã, as tremuras, os arrepios, a rigidez, as convulsões da doença que não havia ainda muito tempo se gerara nos pântanos de Londres, nos pântanos italianos levados de regiões do mundo onde havia águas estagnadas, não tinham sido presenciados por Sylvia até chegar ali, apesar de ter lido a esse respeito no avião. E agora parecia não haver um dia em que uma pessoa debilitada e exânime não caísse nos colchões de juncos debaixo dos telhados de colmo e ali ficasse a tremer.
— Tem tomado os seus comprimidos? — gritou Sylvia, pois a malária ensurdece, e o Padre McGuire respondeu que sim, mas que, como tinha os tremores três ou quatro vezes por ano, estava convencido de que já não lhe produziam efeito.
Quando acabou este acesso estava de novo encharcado em suor e a cama teve de ser novamente mudada. Rebecca denunciou os seus receios enquanto levava os lençóis para fora do quarto. Sylvia perguntou se não havia na aldeia uma mulher que pudesse ajudar na lavagem da roupa. Rebecca respondeu que andavam ocupadas. «Então e as Irmãs?» perguntou ela ao doente, que respondeu: «Não creio que Rebecca gostasse disso.» Rebecca era ciosa da sua posição e não queria partilhá-la. Como já desistira de tentar compreender aquelas complicadas rivalidades, Sylvia sugeriu Aaron. O sacerdote tentou brincar, disse que Aaron agora era um intelectual e não lhe podia ser pedido semelhante trabalho: estava a iniciar um estudo com o Padre McGuire que faria dele um padre.
Seria Aaron demasiado bom para ir por entre as árvores e arbustos procurar larvas de mosquitos? «Penso que, de facto, achará que ele é bom demais para isso.» «Por que não as freiras, então?» Sylvia conteve-se e não disse que lhe parecia que elas não faziam grande coisa, mas o Padre McGuire respondeu que elas não reconheceriam as larvas se as vissem. «As nossas boas Irmãs não se sentem muito atraídas pelo mato.»
Os mosquitos põem os seus ovos em qualquer água que encontram. As larvas negras, tão vigorosas nesta fase das suas vidas como serão quando procurarem quem possam devorar, podem estar nas pregas de uma velha folha seca de papaia, ou na tampa enferrujada de uma caixa de biscoitos escondida debaixo de um arbusto. Na véspera, Sylvia vira-as numa minúscula cova escavada por um fio de água que escapara de um rio, debaixo das raízes arqueadas de uma planta de milho. O sol estava a evaporar a água enquanto ela olhava e, como as larvas estavam condenadas, não as matara, mas duas horas depois houve uma chuvada e, se elas não tivessem sido arrastadas para a terra para morrerem, estariam a completar triunfante-mente o seu ciclo.
O Padre McGuire parecia semiconsciente. Ela pensou que ele estava pior do que supunha — a longo prazo; em breve estaria refeito deste ataque. Em virtude de ter o rosto vermelho, uma certa palidez subjacente, ou mesmo uma tonalidade amarelada, não se notaria facilmente. Estava anémico. A malária causa isso. Precisava de tomar comprimidos de ferro. Precisava de umas férias. Precisava...
Cá fora, na noite, formas brancas rodopiavam no vento prenunciador da chuva que se aproximava: a grande trouxa de roupa que Rebecca lavara antes. Sylvia ficou sentada junto do sacerdote dormitante, à espera do próximo paroxismo, e, com a atenção liberta, olhou em redor do quarto.
Paredes de tijolo, como as do seu, o mesmo tecto de juncos abertos ao meio, chão de tijolo. A um canto, a estátua da Virgem. Nas paredes, de novo a Virgem, imagens convencionais inspiradas, ainda que longinquamente, na Renascença italiana, azuis e brancas e de olhos baixos, e sem dúvida deslocadas, ali no mato, não? Mas, espera, num tamborete de madeira escura, e talhada na mesma madeira escura, uma Maria nativa, uma jovem vigorosa, amamentava um bebé. Isso era melhor. Pendente de um prego, na parede próxima da cama de modo a que o padre lhe pudesse chegar, um rosário de ébano.
Nos anos 60, os tumultos ideológicos que atormentaram o mundo tinham assumido uma forma local na Igreja Católica, numa agitação efervescente que ameaçara destronar a Virgem Maria. A Santa Mãe estava out e, com ela, os rosários. Sylvia não tivera uma infância católica, nunca molhara os dedos em pias de água benta, enrolara neles bonitos rosários, se benzera ou trocara santinhos com outras meninas. («Dou-te três São Jerónimos em troca de uma Virgem Maria.») Nunca rezara à Virgem, apenas a Jesus. Por isso, quando aderiu à Igreja, não sentiu a falta do que nunca conhecera e só lentamente, quando conhecia padres ou freiras mais velhos ou membros da igreja, tomava conhecimento de que houvera uma revolução que deixara muitos enlutados, em especial pela Virgem. (Que seria reempossada décadas mais tarde.) Entretanto, em lugares do mundo onde olhos atentos à heresia ou à reincidência não chegavam, os padres e as freiras mantinham os seus rosários e a sua água benta, as suas estátuas e gravuras da Virgem, na esperança de que ninguém notasse.
A alguém como Rebecca, que tinha um pequeno cartão com a imagem da Santa Mãe pregado no poste central da sua cabana, este argumento ideológico teria parecido demasiado pateta para perder tempo com ele: mas na verdade nunca ouvira sequer falar nele.
Na parede do quarto de Sylvia estava pregada, directamente no tijolo, uma grande reprodução da Virgem das Rochas de Leonardo, juntamente com algumas outras virgens mais pequenas. Teria sido fácil concluir, por aquela parede, que esta religião venerava as mulheres. Em comparação, o crucifixo era uma insignificância. Às vezes, Rebecca sentava-se aos pés da cama de Sylvia, com as mãos entrelaçadas, a olhar para a reprodução de Leonardo e a suspirar, com as lágrimas a correr em fio. «Oh, são tão belas!» Poder-se-ia dizer que a Virgem se introduzira pelos interstícios do dogma pela via da arte. Sylvia não soubera que se interessava particularmente pela Santa Mãe, mas sabia que não podia viver sem reproduções das imagens que mais amava. As traças estavam a atacar os cantos dos cartazes. Tinha de pedir a alguém que lhe arranjasse novas gravuras.
Adormeceu na cadeira, a olhar para a insípida estatueta do Padre McGuire e a perguntar-se por que escolheria alguém aquilo quando podia ter uma estatueta verdadeira. Não lhe passaria pela cabeça dizer isso ao sacerdote, que fora criado em Donegal numa pequena casa com muitas crianças e viera directamente do colégio teológico para ali, para Zimlia. Não gostaria do Leonardo? Ficara parado um longo momento à entrada do quarto de Sylvia, porque Rebecca lhe dissera: «Padre, padre, venha ver o que a Dr.a Sylvia nos trouxe.» As suas mãos entrelaçadas sobre o estômago, e envoltas pelo rosário, subiam e desciam, enquanto ele olhava. «São os rostos de anjos» declarou por fim, «e o pintor deve tê-los visto numa visão. Nenhuma mulher mortal jamais teve esse aspecto.»
Na manhã seguinte, enquanto a roupa lavada por Rebecca secava de novo depois de encharcada pela tempestade, Sylvia perguntou a Aaron se revolveria o mato à procura de larvas, mas ele respondeu que lamentava, mas tinha de ler os seus livros para o Padre McGuire.
Ela foi à aldeia, procurou alguns jovens — que deveriam estar na escola — e disse-lhes que lhes daria dinheiro se revistassem o mato. «Quanto?», perguntaram, e ela disse-lhes. «Dou-lhes uma importância e depois vocês dividem-na.» «Mas quanto?» No fim, estavam a pedir bicicletas, livros escolares e T-shirts novas. Faziam-no porque viam cada pessoa branca como sendo rica e com acesso a tudo quanto eles precisavam. Ela desatou a rir, e depois eles também, e ficou combinado que receberiam o que ela tinha na mão: um punhado de dólares de Zimlia que chegava para comprarem algumas guloseimas na loja. Lá foram a rir e na brincadeira para o mato: a busca seria à toa. Depois foi para o hospital, onde encontrou Joshua a suturar um golpe comprido e profundo.
— A Dr.a Sylvia não estava aqui — explicou o homem.
— Estaria aqui em cinco minutos.
— Como podia eu saber?
Esta era uma questão constante entre eles. Ele agora cosia feridas, e fazia-o bem. Mas estava a aventurar-se em feridas que exigiam mais do que a perícia que tinha, e por isso ela mandou-o parar. Observavam ambos o rosto do rapaz, que fitava o ponto do seu braço onde a agulha penetraria na carne trémula. Era corajoso e mordia os lábios. Joshua parou desajeitadamente e Sylvia recebeu a agulha da sua mão e continuou o trabalho. Depois foi ao barracão fechado à chave para ver as existências de remédios. Ele seguiu-a, deixando no ar o fedor a dagga.
— Camarada Sylvia, quero ser médico. Foi isso que quis toda a minha vida.
— Ninguém quererá aceitar um homem que fuma dagga para o treinar.
— Se eu estivesse a aprender, pararia de fumar.
— E quem pagaria?
— A doutora pode pagar. Sim, a doutora deve pagar por mim. Ele sabia, assim como toda a gente, que Sylvia pagara as novas
construções e estava a pagar os remédios e o salário dele. Supunha-se que por trás dela estava um dos dadores internacionais, uma organização de auxílio. Ela tinha dito a Joshua que não, que o dinheiro era seu, mas ele não quisera acreditar.
Num velho tabuleiro de cozinha, cedido por Rebecca, Sylvia dispôs pequenas taças com medicamentos, montinhos de comprimidos, muitos deles de vitaminas. Levou o tabuleiro para a árvore debaixo da qual estavam deitados ou sentados muitos dos pacientes e começou a distribuir taças, e comprimidos, com água.
— Quero ser médico — insistiu Joshua, asperamente.
— Sabe quanto custa ensinar alguém a ser médico? — perguntou-lhe ela, por cima do ombro. — Olhe, ensine a este rapaz como deve engolir isto. Eu sei que tem mau gosto.
Joshua falou e o rapaz protestou, mas acabou por engolir a poção. Tinha cerca de doze anos, estava subnutrido e tinha vermes, diversas variedades deles.
— Então diga-me lá, quanto custa?
— Bem, calculando por alto, com tudo incluído, talvez cem mil
libras.
— Então pague a doutora por mim.
— Eu não tenho essa quantidade de dinheiro.
— E quem pagou por si? Talvez o governo? Foi a Protecção Internacional?
— Foi a minha avó quem pagou por mim.
— Tem de dizer ao nosso governo que me deixe ser médico e que eu serei um bom médico.
— Por que haveria o seu governo negro de ouvir esta terrível mulher branca, Joshua?
— O Presidente Matthew disse que devíamos ter todos uma educação. A educação que eu quero é essa. Ele prometeu-nos isso, enquanto os camaradas ainda estavam a combater no mato, o nosso Camarada Presidente prometeu a todos nós uma educação secundária e ensino. Por isso, vá ter com o presidente e diga-lhe que faça o que nos prometeu.
— Vejo que acredita nas promessas dos políticos — comentou ela, ajoelhando-se para levantar uma mulher que estava fraca por ter dado à luz e que perdera o bebé. Segurou-a, sentindo debaixo das mãos a pele que deveria estar morna e macia, mas estava fria e áspera.
— Políticos — resmungou Joshua. — Chama-lhes políticos? Ela compreendeu que o Camarada Presidente e o governo negro
— dele — ocupavam no seu pensamento um lugar diferente dos políticos, que eram brancos.
— Se eu fizesse uma lista das promessas que o seu camarada Mungozi fez quando os camaradas estavam a lutar no mato, podíamos dar todos umas boas gargalhadas — respondeu Sylvia, enquanto deitava cuidadosamente a cabeça da mulher num pedaço de tecido dobrado, para a proteger da terra enlameada pela chuva, e depois perguntou: — Esta mulher tem algum parente que lhe dê comida?
— Não. Ela vive só. O marido morreu.
— Morreu de quê?
A sida começava a entrar na consciência geral e Sylvia desconfiava de que algumas das mortes a que assistia não se deviam ao que parecia.
— Ele tinha feridas, estava muito magro e depois morreu.
— Alguém devia alimentá-la.
— Talvez a Rebecca pudesse trazer-lhe alguma da sopa que faz para o padre.
Sylvia ficou em silêncio. Este era o pior dos seus problemas. Segundo a sua experiência, os hospitais alimentavam os seus doentes, mas aqui, se não havia familiares, então não havia comida. E se Rebecca trouxesse sopa ou qualquer outra coisa da mesa do padre, isso suscitaria ressentimentos. E também era preciso que Rebecca estivesse pelos ajustes: havia desacordo entre ela e Joshua sobre quem devia fazer o quê. E Sylvia pensava que a mulher ia morrer. Num hospital decente, viveria, quase com certeza. Mas se a metessem num carro e a levassem para o hospital, a pouco mais de trinta quilómetros de distância ela morreria antes de chegar. Sylvia tinha nas suas reservas algum Complan, que não descrevia como comida, mas como medicamento. Pediu a Joshua que fosse misturar algum para a mulher, enquanto pensava que estava a desperdiçar recursos preciosos com uma moribunda.
— O quê? — perguntou Joshua. — Ela não tarda a morrer. Sem uma palavra, Sylvia foi ao barracão, que descuidadamente se
esquecera de fechar à chave, e encontrou uma velha a esticar-se para uma prateleira, para tirar um frasco de remédio.
— O que é que quer? — perguntou-lhe.
— Preciso muti, doutora. Preciso muti.
Sylvia ouvia estas palavras mais do que quaisquer outras. Preciso remédio. Preciso muti.
— Então vá para onde os outros me esperam para os examinar.
— Oh, obrigada, doutora, obrigada — disse a velha, entre pequenas gargalhadas, e saiu do barracão a correr e embrenhou-se no mato.
— Ela é uma má skellum — disse Joshua. — Quer vender os medicamentos na aldeia.
— Esqueci-me de fechar o dispensário — como chamava ao barracão, zombando intimamente de si mesma.
— Por que está a chorar? Tem pena de mim por não poder ser médico?
— É também por isso.
— Eu sei o que a doutora sabe. Observo-a e aprendo o que faz. Talvez não precisasse de muito estudo.
Sylvia misturou o Complan e levou-o à mulher, que já não precisava dele: estava quase morta, com a respiração a sumir-se em pequenos arquejos.
Joshua disse ao rapazinho sentado junto da mãe doente:
— Volta à aldeia e diz ao Esperto que abra uma sepultura para esta mulher. A doutora paga-lhe.
O rapazinho partiu a correr e Joshua disse a Sylvia:
— Quero que ensine o meu filho Esperto; ensine-o, ele pode aprender aqui.
— Esperto? É esse o nome dele?
— Quando ele nasceu, a mãe disse que tinha de se chamar Esperto, para ser esperto. E é, ela tinha razão.
— Que idade tem?
— Seis anos.
— Devia estar na escola.
— De que serve ir para a escola se não há director nem livros por onde aprender?
— O director será substituído.
— Mas não há livros na escola. — Era verdade. Sylvia hesitou e Joshua atacou: — Ele pode vir para aqui e aprender o que a doutora sabe. E eu posso ensinar-lhe o que sei. Podemos ser ambos médicos.
— Não compreende, Joshua. Eu só utilizo aqui uma pequena parte do que sei. Não percebe? Isto não é um hospital como deve ser. Um hospital como deve ser tem... — Virou-se, desesperada e a abanar a cabeça com a enormidade de tudo aquilo, exactamente como Joshua teria feito, pois tratava-se de um gesto africano. Depois baixou-se, pegou num graveto e começou a desenhar um edifício na terra macia e molhada. O que diria Julia se pudesse ver-me agora — perguntava-se. Estava acocorada, de joelhos afastados, defronte do acocorado Joshua, mas ele apoiava-se leve e facilmente nos seus músculos tensos, enquanto ela se equilibrava com uma mão apoiada a seu lado. Com a outra desenhava um edifício de muitos andares, enquanto olhava para Joshua e dizia: Este é o aspecto de um hospital. E tem Raios X... sabe o que são Raios X? Tem... — Estava a pensar no hospital onde se formara, enquanto olhava para os telhados de colmo por cima dos tapetes de juncos, para o barracão do dispensário, a cabana onde as mulheres davam à luz, em cima de esteiras. Chorava de novo.
— Está a chorar porque este é um hospital mau, mas quem devia estar a chorar era eu, o Joshua.
— Sim, tem razão.
— E tem de dizer ao Esperto que pode vir para aqui.
— Mas ele deve ir para a escola. Não pode ser médico, nem sequer enfermeiro, sem fazer os seus exames.
— Eu não posso pagar a escola para ele.
Sylvia pagava a escola a quatro dos filhos dele e a três dos de Rebecca. O padre McGuire pagava a dois dos de Rebecca, mas ele não ganhava muito como padre.
— Ele é um dos seus para quem estou a pagar agora?
— Não. A doutora ainda não está a pagar para ele.
Em teoria, as escolas eram grátis. E tinham sido, no começo. Os pais de todo o país, a quem fora prometida instrução gratuita para os filhos, ajudavam a construir escolas, de graça e construíam-nas com a mais sincera devoção, por não haver nenhumas. Mas agora havia propinas, cujo valor subia a cada período.
— Espero que não tenha mais filhos, Joshua. É uma tolice.
— Nós sabemos que deixarmos de ter filhos é uma conspiração dos brancos, para nos tornarmos fracos e vocês poderem fazer o que lhes apetecer.
— Isso é tão ridículo! Por que acredita nesse disparate?
— Acredito no que vejo com os meus próprios olhos.
— Da mesma maneira que vê uma conspiração dos brancos para matá-los com sida. — Ele chamava-lhe Magreza. «Ele tem Magreza», diziam as pessoas; ele, ela, tem a doença que nos faz perder peso. Joshua aprendera tudo o que sabia a respeito da sida e provavelmente estava mais bem informado do que os membros do governo que continuavam a negar a existência da doença. Mas tinha a certeza de que a doença fora deliberadamente introduzida pelos brancos, a partir de algum laboratório dos Estados Unidos, uma doença criada para enfraquecer os africanos.
O Selous Hotel, em Senga, que muito antes da Libertação fora inter-racial e alvo de muito descrédito, era agora um lugar confortável e antiquado, usado com frequência para reuniões sentimentais de pessoas que tinham sido encarceradas sob o domínio dos brancos — brancos por brancos —, ou banidas, ou desterradas, ou simplesmente acossadas e atormentadas. Ainda era um dos melhores hotéis, mas os novos, de estatuto internacional, erguiam-se já velozmente para o céu como setas para o futuro — um comentário feito pelo Presidente Matthew e muitas vezes citado em brochuras de promoção.
Esta noite, uma mesa com cerca de vinte pessoas sobressaía no centro da sala de jantar, onde hóspedes de menor proeminência diziam uns aos outros: «Olha, aqueles são do Dinheiro Global», e «aqueles são gente da Cooperação Internacional». A uma das cabeceiras encontrava-se Cyrus B. Johnson, director do departamento da Dinheiro Global que tratava com aquela espécie de Oliver Twist que era a África, um homem de cabelo branco e muito bem arranjado, com o hábito da autoridade. Ao lado dele estava Andrew Lennox e, do outro lado, Geoffrey Boné, Dinheiro Global e Cooperação Internacional, respectivamente. Havia alguns anos que Geoffrey era um especialista em assuntos africanos. À sua empresa se devia o facto de centenas dos mais modernos e aperfeiçoados tractores doados a uma ex-colónia do norte estarem a apodrecer e a enferrujar nas margens de outros tantos campos: por falta de peças sobresselentes, técnica e combustível, independentemente do acordo das pessoas locais que teriam preferido algo menos grandioso. Foi igualmente ele o causador de se ter plantado café em áreas de Zimlia onde o insucesso fora instantâneo. No Quénia, milhões de libras desembolsadas por ele tinham desaparecido em algibeiras sôfregas. Estava a desembolsar milhões ali, em Zimlia, aos quais esperava o mesmo destino. Estes erros não tinham de modo algum prejudicado a sua carreira, como poderia ter acontecido em tempos menos sofisticados. Era o director-adjunto da Cl, em discussão constante com o DG. A seguir a ele encontrava-se o seu sempre fiel admirador Daniel, cuja cabeleira ruiva continuava a ser o mesmo farol de sempre. Daniel foi recompensado pelas suas décadas de dedicação com um cargo chorudo, como secretário de Geoffrey. James Patton, agora deputado trabalhista de Shortlands, nas Midlands, estava ali em viagem de informação, mas na realidade tal facto devia-se ao camarada Mo, de visita a Londres, o ter conhecido em casa de Johnny e dito: «Por que não vais visitar-nos?» Isto não significava que o camarada Mo fosse agora mais um cidadão de Zimlia do que de qualquer outra parte de África. Mas ele conhecia o camarada Matthew — é claro que parecia conhecer todos os novos presidentes — e quando estava em casa de Johnny convidava pessoas para uma espécie de África genérica, um lugar benevolente e em expansão sempre de braços abertos. Fora graças ao camarada Mo e aos seus contactos que Geoffrey alcançara a sua eminência; em virtude de o camarada Mo ter comentado com uma pessoa importante que Andrew Lennox era um advogado inteligente e em ascensão, que ele conhecia bem, que «conhecera desde criança», a Dinheiro Global caçara-o a uma empresa rival qualquer. Outras pessoas à roda daquela mesa, entre elas o camarada Mo, tinham sido habitués da casa de Johnny: a ajuda internacional era o legítimo herdeiro espiritual dos camaradas. Na outra extremidade da mesa, defronte de Cyrus B. — como era afectuosamente conhecido por meio mundo —, estava o camarada Franklin Tichafa, ministro da Saúde, um corpulento homem público com um ventre avantajado e um ou dois queixos excedentários, sempre afável, sempre sorridente, mas cujos olhos tinham, hoje em dia, uma tendência para fugir a perguntas. Ele e Cyrus B. estavam mais luxuosamente vestidos do que qualquer dos outros, mas não mais satisfeitos consigo mesmos. Aquela gente, com uma diversidade de representantes de outras organizações de beneficência, dispersa esta noite por outros hotéis, passara alguns dias a percorrer Zimlia de carro, ficando em cidades que tinham hotéis aceitáveis, e visitara lugares bonitos e alguns famosos parques de caça. Tinham todos concordado, em almoços, jantares e viagens de autocarro — que é onde as decisões que afectam nações são realmente tomadas —, que do que Zimlia precisava era de um rápido desenvolvimento da indústria secundária, já firmada, embora algumas vezes apenas de modo embrionário. Mas havia problemas com o Presidente Matthew, que ainda estava na sua fase marxista, o qual impedia todas as tentativas para fazer de Zimlia um país moderno, e não faltava, pelo contrário, quem manobrasse para ficar numa posição em que pudesse beneficiar dessa maré.
No dia seguinte, festejava-se a Celebração dos Heróis da Libertação e o camarada Franklin queria que comparecessem todos. «Agradaria muito ao nosso camarada Presidente», dizia. «Encarregar-me-ei pessoalmente de arranjar bons lugares para todos.»
— Eu tenho reserva para partir para Moçambique amanhã de manhã — disse Cyrus B.
— Cancele! Eu arranjo-lhe um bom lugar no avião do dia seguinte.
— Lamento, mas tenho um encontro marcado com o Presidente.
— Tu não dirás não — ordenou Franklin a Andrew, com a voz áspera por causa de qualquer desentendimento de que já não se lembrava bem.
— Tenho de dizer não. Vou de carro visitar a Sylvia... lembras-te dela?
Franklin ficou calado e desviou o olhar.
— Creio que lembro — disse depois. — Sim, julgo recordar-me de que era uma espécie de parente qualquer.
— Está a trabalhar como médica em Kwadere. Espero ter pronunciado bem a palavra.
Franklin sorria.
— Kwadere? Não sabia que já lá havia um hospital. Não é uma região desenvolvida da Zimlia.
— Mas eu vou visitá-la e por isso não posso assistir à tua maravilhosa cerimónia. — Uma espécie de escuridão ensombrara o brilho de Franklin, que ficou calado e de sobrancelhas franzidas. Depois o seu rosto brilhou de novo e exclamou:
— Mas tenho a certeza de que o nosso bom amigo Geoffrey estará presente.
Geoffrey era agora um belo e sólido homem, que atraía os olhares como quando era rapaz, e a que os milhões que tinha sob a sua alçada tinham dado um lustro prateado quase visível, o brilho da auto-suficiência.
— Estarei com certeza, ministro, não perderia isso por nada.
— Mas um amigo tão antigo não devia tratar-me por ministro — disse Franklin, dispensando-o da formalidade com um sorriso.
— Obrigado — agradeceu Geoffrey com uma pequena inclinação de cabeça. — Ministro Franklin, talvez?
Franklin soltou uma grande gargalhada satisfeita.
— E antes que partas, Geoffrey, quero que vás ao meu gabinete para te mostrar aquilo.
— Esperava que me convidasses para conhecer a tua mulher e os teus filhos. Ouvi dizer que tens seis filhos, é verdade?
— Tenho, seis, e em breve serão sete. Filhos e problemas de dinheiro — disse Franklin, a olhá-lo fixamente. Mas não o convidou a ir a sua casa.
Risos, risos compreensivos. Foi pedido mais vinho. Mas Cyrus B. alegou que era um homem idoso, que precisava do seu sono, e foi-se embora, dizendo que esperava vê-los na conferência das Bermudas, no mês seguinte.
— Creio que a nossa amiga Rose Trimble se saiu muito bem — observou Franklin. — O nosso Presidente gosta muito do trabalho dela.
— Rose está, com certeza, a sair-se bem — comentou Andrew com um sorriso encantado, que Franklin interpretou mal.
— E vocês são todos excelentes amigos. É agradável ouvir isso. Quando a vires, por favor apresenta-lhe os meus mais calorosos cumprimentos.
— Quando a vir, apresentarei — respondeu Andrew, em tom ainda mais agradável.
— E assim, em breve, podemos esperar auxílio generoso — continuou Franklin, que estava ligeiramente embriagado. Auxílio generoso e para o nosso pobre povo explorado.
Neste ponto, o camarada Mo, que ainda não contribuíra para a conversa, declarou:
— Na minha opinião, não devia haver ajuda alguma. A África deve manter-se apoiada nos seus dois pés.
Foi como se tivesse atirado uma bomba para cima da mesa. Estava sentado a pestanejar um pouco, a mostrar os dentes num sorriso embaraçado perante os olhares de surpresa. Ele e todos os seus coevos tinham ignorado ou aplaudido todas as notícias vindas da União Soviética e, com muito menos camaradas, celebrado cada novo massacre na China; ele e ainda menos, tinham arruinado a agricultura do seu país obrigando infortunados agricultores a constituir herdades colectivas, com os valentaços do Estado a espancarem e atormentarem quem resistisse — poucas das Causas que encorajara ou promovera se tinham tornado alguma coisa a não ser escandalosas, mas ali, naquele momento e àquela mesa, naquela companhia, o que ele estava a dizer era inspirado, era a verdade, e por tê-lo dito deveria com certeza ser-lhe perdoado todo o resto.
— Não nos servirá de nada — afirmou. — Não no longo prazo. Sabiam que a Zimlia, quando da Libertação, estava ao mesmo nível da França imediatamente antes da Revolução?
Risos, risos de alívio. Por um lado, a França fora evocada, a Revolução: estavam de novo em terreno firme.
— Não, a Revolução deveu-se a más colheitas, mau tempo, a França era fundamentalmente próspera. E este país também... ou era até serem adoptadas certas políticas ligeiramente infortunadas.
Fez-se um silêncio que raiou o pânico.
— O que está a dizer? — perguntou Daniel, acalorado e ofendido, com o rosto flamejante sob o cabelo ruivo. — Está a dizer-nos que este país estava melhor sob o domínio dos brancos?
— Não — respondeu Mo. — Eu não disse isso. Quando foi que eu disse isso? — A sua voz tornara-se arrastada: perceberam todos, com alívio, que ele estava um pouco bêbado. — O que eu digo é que este é o país mais desenvolvido da África, tirando a África do Sul.
— E o que quer dizer com isso? — perguntou o ministro Franklin, cortês, mas disfarçando a cólera.
— Estou a dizer que deviam construir sobre os vossos muito fortes alicerces e apoiar-se nos vossos próprios pés. Caso contrário, o Dinheiro Global, e a Ajuda Internacional, e este Fundo, e mais aquele Fundo, exceptuando os aqui presentes — disse desastradamente, erguendo o copo numa saudação circular —, vão todos dizer-lhes o que devem fazer. Não se trata de este país ser uma zona de calamidade, como alguns que poderíamos mencionar. Vocês têm uma economia sólida e uma boa infra-estrutura.
— Se eu não o conhecesse tão bem — disse o camarada ministro Franklin, a olhar nervosamente em redor para ver se alguém ouvira aquelas palavras desastrosas — diria que estava a soldo da África do Sul. Que era um agente do nosso grande vizinho.
— Está bem — disse o camarada Mo. — Mas não chames ainda . a polícia ideológica. Ainda há poucos dias foram detidos e encarcerados jornalistas por emitirem opiniões erradas. Estou entre amigos, digo o que penso. Disse o que penso, mais nada.
Silêncio. Geoffrey olhava para o relógio. Obedientemente, Daniel olhava para ele. Começaram a levantar-se várias pessoas, sem olharem para o camarada Mo, que continuou sentado, em parte por obstinação, mas em parte, também, porque estava com dificuldade em andar direito.
— Talvez possamos ter uma discussão a este respeito? — sugeriu a Franklin. Falava com naturalidade, em tom íntimo: no fim de contas, não se conheciam todos há anos e não discutiam acerca de África, ruidosa mas amigavelmente, sempre que se encontravam?
— Não — respondeu o camarada Franklin. — Não, camarada, não creio que diga mais alguma coisa a este respeito. — Levantou-se. — Dois negros, até então silenciosos numa mesa próxima, levantaram-se também, revelando-se como seus auxiliares ou guardas. Ele fez a saudação do punho cerrado, à altura do ombro, a Geoffrey e Daniel, e a vários outros representantes da generosidade internacional, e saiu com um gorila de cada lado.
— Vou para a cama — disse Andrew. — Amanhã tenho de me levantar cedo.
— Suponho que o camarada Franklin se esqueceu de que nos prometeu lugares para a celebração de amanhã — disse Geoffrey, amuado. Proferiu aquelas palavras como uma repreensão ao camarada Mo.
— Eu encarrego-me disso — prometeu Mo. — Basta dizerem o meu nome. Reservo-lhes lugares na bancada dos VIP.
— Mas eu também quero um lugar — disse MP James.
— Oh, não se preocupe — tranquilizou-o o camarada Mo, agitando as mãos como se distribuísse dinheiro, convites, bilhetes. — Não percam o sono por causa disso. Entrarão, vão ver. — O seu momento de verdade passara, derrotado pelo demónio da pressão dos seus pares.
Na manhã em que Andrew era esperado houve problemas no hospital. Quando Sylvia voltou a descer por entre os novamente empoeirados arbustos, viu galinhas caídas, ofegantes, com os bicos escancarados, e desta vez não se tratava de uma defesa contra o calor. Não havia água nas latas de onde bebiam. Não havia comida nos comedouros. Encontrou Joshua de pé, cambaleante, com uma faca na mão, inclinado para uma jovem mulher acocorada e aterrorizada, com ambas as mãos levantadas para se proteger. Ele tresandava a dagga. Aparentava querer assassinar a mulher, que tinha um braço inchado. Sylvia tirou-lhe a faca e disse-lhe:
— Eu avisei-o de que, se voltasse a fumar dagga, seria o fim. Isto é o fim, Joshua. Compreende? — O seu rosto enfurecido e os seus olhos avermelhados, o seu possante corpo ameaçador, avantajavam-se sobre ela.
— E as galinhas estão a morrer. Não têm água.
— Isso é trabalho da Rebecca.
— Vocês combinaram que você se encarregaria disso.
— É ela que tem de o fazer.
— Agora vá-se embora. Ande.
Ele afastou-se para uma árvore a cerca de vinte metros de distância, escorregou e sentou-se debaixo dela, com o rosto nos braços. Caiu quase de imediato para a frente, adormecido ou inconsciente. O seu filho pequeno, Esperto, observava. Habituara-se a andar por ali, na esperança de lhe darem qualquer pequena coisa para fazer.
— Esperto — perguntou-lhe Sylvia —, dás comida e água às galinhas?
— Sim, Dr.a Sylvia.
— Presta atenção, enquanto eu te mostro como se faz.
— Eu sei como é.
Ela observou-o enquanto ele ia buscar água, enchia as latas e atirava milho para o chão. As galinhas correram para as latas de água e beberam, beberam... Mas uma estava muito mal e ela disse ao rapaz que a levasse a Rebecca.
Andrew teve dificuldade em arranjar o tipo de carro a que estava habituado na firma de aluguer. Eram todos velhos e metiam medo. «É só isto que tem?» Ele sabia que alguns novos carros que importavam iam directamente para a nova elite, mas, por outro lado, andavam a tentar captar turistas. Disse à jovem negra que o atendia atrás do balcão: «Têm de arranjar carros melhores do que estes se querem atrair turistas.» O rosto dela disse-lhe que concordava, mas não se atreveria a criticar os seus superiores. Ele escolheu um Volvo amolgado, perguntou se havia um pneu sobresselente e foi-lhe dito que sim, mas não era muito bom. Como o tempo estava a passar, decidiu arriscar. Sylvia dera-lhe instruções pormenorizadas, no género de: Segue pela estrada para a Barragem de Kudu, atravessa o Desfiladeiro do Boi Preto e depois, quando vires uma aldeia grande, mete pela estrada de terra que curva para a direita, percorre cerca de dez quilómetros, vira à direita na grande baobá, conduz quinze quilómetros e verás o sinal para a Missão de São Lucas no mesmo poste que indica a Quinta dos Pyne.
Ele achou a paisagem impressionante de um modo grandioso mas hostil, muito seca e com o ar cheio de poeira, embora soubesse que chovera recentemente. Visitara Zimlia muitas vezes, mas nunca tivera de encontrar nenhum lugar sozinho. Perdeu-se no caminho, mas por fim passara pela placa de sinais dos Pyne quando viu na estrada em frente um homem alto a agitar os braços. Andrew parou e o homem disse: «Sou Cedric Pyne. Importa-se de levar estas coisas para a Missão?
Tivemos conhecimento de que ia a caminho de lá.» Uma grande saca foi atirada para as traseiras do carro e o lavrador retrocedeu na direcção da casa, a algumas centenas de metros de distância. Andrew deduziu que ele, ou alguém em seu lugar, estivera atento à poeira levantada pelo carro. Ainda estava à espera de ver a Missão quando viu uma casa de tijolo baixa, com árvores de borracha à volta e, para lá dela, os edifícios baixos e planos, como casernas, que ele sabia serem uma escola. Estacionou. Uma negra sorridente apareceu na varanda e informou-o de que o padre McGuire estava na escola e a Dr.a Sylvia vinha já.
Seguiu-a para a varanda e entrou na sala da frente, onde foi convidado a sentar-se.
A experiência de Andrew fora com a África de presidentes e governos, funcionários e hotéis agradáveis, mas nunca descera à África que estava a ver agora. Aquela miserável pequena sala ofendia-o, precisamente por ser um desafio. Quando falava de Dinheiro Global, quando distribuía Dinheiro Global como uma fonte de inesgotável riqueza, era disto que se tratava, não era? Mas isto era uma missão, pelo amor de Deus! Isto era a Igreja Católica, não era? Não se supunha que eram ricos? Havia um rasgão na cortina de cretone que tentava impedir a entrada do clarão esbraseado de um sol que acabava apenas de subir o suficiente para não o atingir directamente. Rastejavam no chão pequenas formigas pretas. A negra trouxe-lhe um copo de sumo de laranja. Morno. Não tinham gelo?
A cozinha onde a negra estava abria para a sua direita. À sua esquerda havia outra porta, entreaberta, de onde pendia um robe, suspenso de um prego: sabia que era de Sylvia, lembrava-se dele. Entrou no quarto. O chão nu de tijolo vermelho, as paredes de tijolo e o brilhante e claro tecto de juncos que eram agora para Sylvia como uma segunda pele pareceram-lhe ofensivamente pobres. Era um quarto tão pequeno, tão vazio. Na pequena cómoda havia fotografias, em molduras de prata. Ali estava Julia, e ali estava Frances. E havia também uma dele, com cerca de vinte e cinco anos, de rosto afável e caprichoso a sorrir-lhe directamente. Magoava-o, aquele seu jovem eu, e voltou-se, passando inconscientemente as mãos pela cara, como se quisesse restaurar aquele rosto confiante e sem marcas, aquele rosto inocente. Pensou, zombando do que o cercava e que lhe parecia tão inamistoso — aquele pequeno crucifixo —, que então ainda não provara o fruto do bem e do mal. Fitou conscientemente o crucifixo, que definia uma Sylvia que ele não conhecia de modo algum, tentando aceitá-lo, tentando aceitá-la. As suas roupas pendiam de pregos nas paredes. Os seus sapatos, sobretudo sandálias, alinhavam-se ao longo de uma parede. Virou-se e viu o Leonardo na parede. Ignorou as outras gravuras de Virgens e meninos. Bem, havia uma coisa decente no quarto.
Ouviu alguém aproximar-se, foi até à janela aberta na varanda e viu Sylvia vir pelo caminho. Vestia jeans, uma espécie de túnica semelhante à que vira na criada negra e tinha o cabelo descolorido pelo sol e preso atrás com um elástico. Tinha uma ruga profunda entre os olhos. Estava queimada pelo sol, de um castanho escuro e seco. Não se lembrava de alguma vez a ter visto tão magra. Ele saiu e ela viu-o e correu ao seu encontro, e trocaram um longo abraço cheio de amor e recordações. Andrew queria ver o hospital; Sylvia mostrou-se relutante, pois sabia que ele não compreenderia o que via: como poderia compreender, quando ela própria precisara de tanto tempo? Mas caminharam juntos pelo carreiro e ela mostrou-lhe o barracão a que chamava dispensário, os vários abrigos e a grande cabana de que parecia orgulhar-se. Havia algumas pessoas negras deitadas por ali, em esteiras, debaixo de árvores. Chegaram dois homens do mato, levantaram uma mulher, que ele julgara adormecida, para uma padiola feita de ramos, com frondes de folhas amarradas para a tornar mais macia, e partiram com ela por entre as árvores.
— Morta — disse Sylvia. — De parto. Mas estava doente. Eu sei que tinha sida.
Andrew não sabia como ela queria que reagisse ou se esperava sequer uma reacção. Parecia... o quê? Zangada? Estóica?
De novo em casa, verificaram que o padre McGuire chegara. Andrew antipatizou com ele e começou a falar, como era seu hábito em situações difíceis. Passava a maior parte da sua vida em comissões, ou congressos, ou conferências, sempre a presidir e a controlar pessoas de uma centena de países e que representavam interesses e exigências antagónicos. Jamais homem algum merecera tanto o adjectivo técnico de conciliador, era isso que ele era e a sua missão consistia em aplanar caminhos e abrir avenidas. Alguns conciliadores recorrem ao silêncio, ficando sentados e sem falar até entrarem na refrega com palavras conclusivas, mas outros falam, e os afáveis e urbanos rios de palavras de Andrew dirimiam discórdias e ele estava habituado a ver rostos zangados ou suspeitosos descontraírem-se em sorrisos esperançados.
Estava a falar do jantar da noite passada, que segundo a sua descrição se transformara numa comédia social levemente humorística, e teria feito rir ouvintes que soubessem alguma coisa dos antecedentes. Mas aqueles dois — e aquela mulher negra ali parada — não sorriam sequer e Andrew pensou: «Claro, eles são como camponeses, não estão habituados a...» E, no entanto, Sylvia e o padre mantinham-se de pé junto das suas cadeiras, enquanto ele já se sentava, pronto para dominar a situação e à espera de que eles sorrissem. Mas não estava a conquistá-los, de modo algum, e um olhar trocado pelos dois esclareceu-o, de súbito: queriam dar graças. A irritação contra si mesmo fê-lo corar.
— Peço muita desculpa — disse, e levantou-se.
O padre McGuire proferiu algumas palavras em latim, que Andrew não compreendeu, e Sylvia disse ámen numa voz clara e fraca que ele recordava daquela outra vida distante.
Sentaram-se os três. Andrew sentia-se tão atrapalhado com o que considerava a sua gafe social que se remeteu ao silêncio.
A mulher negra, que ele sabia ser Rebecca, serviu o almoço. Havia galinha, a que morrera naquela manhã de desidratação. Estava dura. O padre disse a Rebecca que não valia a pena cozinhar uma galinha acabada de morrer, mas ela respondeu que quisera cozinhar alguma coisa decente para o visitante. Fizera uma geleia, e o Padre McGuire comentou, enquanto se deliciava, que deviam ter visitas com mais frequência.
Sabendo que Andrew estava a observar, Sylvia tentou comer a galinha e colheres de geleia, como se fossem remédio.
Ele quis saber a história do hospital. Chocara-o, assim como o chocara o facto de Sylvia ali estar. Como era possível chamar hospital a uma coisa tão miserável? A sua antipatia pelo lugar, a sua desconfiança, estavam a ser transmitidos e a ser sentidos por Sylvia, pelo sacerdote e por Rebecca, que permanecia de costas para a sua cozinha, de mãos entrelaçadas, a escutar. Andrew não gostava de Rebecca. E não lhe agradava nada, mesmo nada, o facto de Sylvia parecer como ela: o top de estilo nativo, certos maneirismos, expressões do rosto e dos olhos de que ela não tinha consciência. Andrew passava a maior parte do seu tempo com gente de cor — e o que se podia chamar a Sylvia, com aquele aspecto e quase tão escura como Rebecca? Sabia que não tinha preconceitos raciais. Não, mas tratava-se de preconceito de classe, e os dois confundem-se com frequência. Por que estava Sylvia a abandonar-se daquela maneira?
Estes pensamentos, todos eles visíveis no seu rosto, apesar de sorrir e se mostrar socialmente encantador, como era seu hábito, estavam a voltar os três contra ele. O trio, com dois componentes do qual antipatizava inteiramente, estava unido na crítica contra ele.
As emoções do padre McGuire manifestavam-se assim: «Esse fato branco... o que lhe deu para vestir isso, a fim de nos vir visitar a esta terra empoeirada?»
E Andrew sabia, de facto, que fora idiota. Tinha cerca de uma dúzia de fatos de linho branco ou creme, que o levavam para o Terceiro Mundo com um ar fresco elegante. Mas hoje estava sujo de poeira e surpreendera Sylvia a inspeccioná-lo de modo crítico, vendo o fato como um sintoma.
— Ainda bem que não viste o hospital como ele era quando eu cheguei — disse-lhe ela.
— Isso é verdade — concordou o padre. — Se está chocado com o que vê agora, o que teria dito então?
— Eu não disse que estava chocado.
— Suponho que estamos habituados a ver certas expressões nos rostos dos nossos visitantes — explicou o Padre McGuire —, mas se quer compreender aquele hospital pergunte às pessoas da aldeia o que pensam dele.
— Nós pensamos que a Dr.a Sylvia nos foi enviada por Deus — declarou Rebecca.
Estas palavras silenciaram Andrew. Continuaram sentados à mesa a beber café fraco, pelo que o sacerdote pediu desculpa — era difícil encontrar café decente, tudo quanto era importado era muito dispendioso, havia escassez de tudo, e isso devia-se a incompetência, a incompetência e nada mais... Continuou a dissertar sobre o tema, num tom duro e desagradado, até que se ouviu a si mesmo suspirar e se calou.
— E que Deus me perdoe por me queixar de uma coisa como mau café.
Andrew percebeu que a história do hospital não ia ser contada e soube que a culpa era sua. Queria ir-se embora, mas fora planeada uma visita à escola. Teriam de sair para o clarão de luz quente que se via através da janela. O Padre McGuire disse que ia dormir a sua pequena sesta e partiu para o seu quarto. Sylvia e Andrew sentaram-se, querendo ambos dormir, mas resistindo. Depois Rebecca veio levantar a mesa.
— Trouxe os livros? — perguntou directamente a Andrew. A maneira como Sylvia mantinha os olhos baixos significava que quisera fazer a mesma pergunta, mas receara. Enviara-lhe uma lista de livros, depois de ele ter telefonado a dizer que viria. Ele esquecera-se, embora ela tivesse escrito no fim da lista: Por favor, Andrew, por favor. Andrew respondeu a Rebecca: «Esqueci-me. Peço desculpa.» Os olhos dela estavam fixos: Não... Depois desfez-se em lágrimas e correu para fora da sala, deixando a travessa na mesa. Sylvia empilhou pratos e copos na travessa e continuou sem olhar para ele.
— Significam muito para nós — disse por fim. — Sei que não poderás compreender quanto.
— Eu mando-tos.
— Provavelmente seriam roubados no caminho. Deixa lá, esquece.
— É claro que não esqueço.
Lembrou-se, de súbito, de que quando estivera no quarto dela vira uma estante na parede e, por cima, um cartão pintado com a palavra «Biblioteca.» «Espera», disse, e entrou no quarto dela. Sylvia seguiu-o. Havia dois livros na estante: um dicionário ejane Eyre. Ambos a fazer-se aos bocados. Pregada numa parede, uma folha de papel: Livros da Biblioteca. Emprestados: Devolvidos. The Pilgrim's Progress. O Senhor dos Anéis. Cristo Parou em Eboli. As Vinhas da Ira. Chora, Terra Bem-Amada. The Mayor of Casterbridge. A Bíblia Sagrada. O Idiota. Mulherzinhas. O Senhor das Moscas. O Triunfo dos Porcos. Santa Teresa de Ávila. Estes eram os livros que Sylvia trouxera com ela, um acervo aumentado quando vinham pessoas, com os livros que traziam, pedidos e doados àquela estante.
— Uma curiosa pequena colecção — disse Andrew, humildemente. Estava comovido até às lágrimas...
— Compreendes, nós precisamos de livros. Eles adoram livros e nós não podemos comprá-los. E estes estão todos num estado lastimoso.
— Eu mando-te o que pediste. Palavra.
Sylvia não disse nada. Não disse nada de uma maneira que ele compreendeu que ela aprendera e estava a pôr em prática. Desconfiou de que, intimamente, estava a rogar por paciência.
— Compreendes, não imaginas o que os livros significam. Vemos alguém sentado numa cubata a ler, à luz da vela... vemos alguém quase analfabeto a esforçar-se... — A sua voz tremia.
— Oh, Sylvia, sinto muito.
— Deixa lá.
Tinha a lista que ela lhe mandara na pasta que trouxera com ele: porquê? Porque a trazia sempre com ele.
As Florzinhas de Maria. A Teoria e a Prática da Boa Agricultura na África Sub-Sariana. Como Escrever Bom Inglês. As Tragédias de Shakespeare. Os Nus e os Mortos. Gawain and the Green Knight. O Jardim Secreto. The Centre Can Not Hold. Engenharia: Aprenda você mesmo. Mowgli. As Doenças do Gado na África do Sul. Shaka, o Rei Zulu. Judas o Obscuro. O Monte dos Ventos Uivantes. Tarzan. Etc.
Voltou para a sala e verificou que o Padre McGuire reaparecera, refeito. Os dois homens saíram para o clarão exterior e Sylvia deixou-se cair na cama. Chorou. Prometera a toda a gente que ali fora, e tornara a ir a pedir livros, que vinha a caminho um novo carregamento. Sentia-se abandonada. Mentalmente, Andrew representava para ela a ternura perfeita, a bondade, era o meigo irmão mais velho a quem podia dizer tudo... mas agora tornara-se um desconhecido. Aquele esplendoroso fato branco! Linho branco, vestido para visitar a Missão de São Lucas, francamente! Linho branco que é como esfregar creme espesso entre os dedos. Sentia, de alguma maneira subtil, que aquele fato era um insulto para ela, para o Padre McGuire, para Rebecca. Uma vez, há muito tempo, teria podido dizer-lho, poderiam ter-se rido a esse respeito.
Sylvia dormiu, acordou e fez chá — Rebecca só voltaria à hora do jantar. Tinha feito umas bolachas para o visitante.
Os dois homens regressaram. Andrew sorria, mas de lábios cerrados e tinha um ar exausto — bem, não dormira.
— Aqui está o meu chá — disse o Padre McGuire. Posso garantir-lhe, minha filha, que preciso bem dele, oh se preciso.
— Então? — perguntou Sylvia a Andrew. Parecia agressiva, pois sabia o que ele vira.
Seis edifícios, cada um com quatro salas de aula, a rebentarem pelas costuras com crianças, de muito pequenas até homens e mulheres jovens. Mostraram-se todos exuberantes nas suas boas-vindas e queixaram-se àquele representante das altas esferas do poder de que precisavam de livros de estudo, que era coisa que não tinham. Às vezes havia um para uma classe inteira. «Como podemos fazer os nossos trabalhos de casa, senhor? Como podemos estudar?»
Não havia um globo terrestre nem um atlas em toda a escola. Quando ele perguntara, as crianças não tinham sabido a que se referia. Jovens professores atormentados e frustrados chamavam-no à parte e pediam-lhe que lhes arranjasse livros que os ensinassem a ensinar. Eles próprios tinham dezoito ou vinte anos e praticamente nenhumas qualificações, e com certeza nenhuma que os habilitasse a ensinar.
Andrew nunca vira um lugar tão deprimente: podia ser tudo menos uma escola. O Padre McGuire acompanhara-o de edifício em edifício, caminhando pela poeira para se proteger do sol e voltando às extensões de sombra, e apresentava-o como um amigo de Zimlia. A sua fama como pertencendo ao Dinheiro Global — embora o Padre McGuire não tivesse referido esse nome mágico — alastrara por toda a escola. Era acolhido com gritos de boas-vindas e cânticos e fosse para onde fosse que olhasse via rostos expectantes.
O padre tinha-lhe dito:
— Eu conto-lhe a história deste lugar. Nós, a Missão, dirigimos aqui uma escola durante anos, desde que a colónia começou. Era uma boa escola. Não tínhamos mais do que cinquenta alunos. Alguns deles estão agora no governo. Sabia que a maioria dos líderes africanos vieram de escolas missionárias? Durante a guerra, o camarada Presidente Matthew prometeu uma boa educação secundária a todas as crianças do país. Construíram-se apressadamente escolas em todo o lado e agora estão a multiplicar-se. Mas não há professores, não há livros, não há cadernos de exercícios. Quando o governo se apoderou da nossa escola, foi o fim. Não imagino que as crianças que viu hoje acabem no gabinete ministerial ou, pela mesma ordem de ideias, em qualquer lugar que exija instrução.
Depois, quando bebera um pouco de chá, acrescentou:
— As coisas melhorarão. Agora estamos a ver o pior. Esta região é pobre.
— Há muitas escolas como esta?
— Sim, com certeza — respondeu o sacerdote com equanimidade. — Muitas. Muitas, mesmo.
— Então o que acontecerá àquelas crianças? Embora algumas já pareçam adultas...
— Ficarão desempregadas. Sim, com certeza, ficarão desempregadas.
— Acho que tenho de ir andando — disse Andrew. — Preciso de apanhar um avião às nove horas.
— E, se me é permitida a ousadia de perguntar, existe a possibilidade de poder fazer alguma coisa por nós? Pela escola? Pelo hospital? Pensará em nós quando regressar à paz e à tranquilidade de... onde disse que se encontra?
— Nova Iorque. E creio que não entendeu bem. Nós enviaremos dinheiro — um grande empréstimo — para Zimlia, mas não...
— Quer dizer, não somos dignos da sua atenção?
— Não da minha — respondeu Andrew, sorrindo. — Mas a Dinheiro Global tem por objectivo elevados níveis de... No entanto, falarei com alguém. Falarei com a Cooperação Internacional.
— Ficaríamos devidamente gratos — disse o Padre McGuire. Sylvia manteve-se calada. O vinco entre os seus olhos fazia-a parecer uma pequena bruxa carrancuda.
— Sylvia, por que não vais passar umas férias a Nova Iorque?
— Devia, realmente, ir — concordou o padre —, devia sim, minha filha.
— Obrigada. Pensarei no assunto. — Mas não olhou para ele. - — Leva-nos uma coisa nossa para os Pyne? Basta largá-la lá, não precisa de entrar, visto estar com pressa.
Foram para o Volvo e o saco para os Pyne foi posto na retaguarda. ; — Eu envio-te os livros, minha querida — disse a Sylvia.
Duas semanas depois, chegou um saco por mensageiro especial, vindo de Senga de motocicleta. Livros de Nova Iorque, transportados de avião para Senga, recebidos pela InterGlobe que se encarregava da alfândega e levados por portador até ali.
— Quanto custou isso? — perguntou o Padre McGuire, oferecendo chá ao exilado das luzes brilhantes de Senga.
— Refere-se a tudo? — indagou o mensageiro, um jovem negro de uniforme elegante. — Bem, está aqui. — Tirou os papéis. — Terá custado ao remetente cerca de cem libras, para os fazer chegar até aqui — disse, admirado com o elevado valor da mercadoria.
— Podíamos construir uma sala de leitura com isso — comentou Sylvia —, ou um infantário.
— A cavalo dado... — lembrou o sacerdote.
— Eu não estou a olhar os dentes do cavalo — respondeu Sylvia, a percorrer a lista dos livros. Andrew dera a lista à sua secretária, que a interpretara mal. Por isso, mandara alguém à grande livraria mais próxima e encomendara todos os bestsellers, sentindo-se complacente e até saciada, como se os tivesse, realmente, lido ela própria: tencionava, de facto, começar a lê-los em breve. Os romances eram todos impróprios para a biblioteca de Sylvia. Em devido tempo, foram oferecidos a Edna Pyne, que se queixava constantemente de ter lido todos os livros uma centena de vezes. «Aquela que tem, será dado.»
A história do hospital, que Andrew não ouvira contar, era a seguinte: Durante a Guerra da Libertação, toda aquela região, quilómetros e quilómetros, estivera cheia de combatentes, porque era montanhosa e tinha cavernas e ravinas, boa portanto para guerra de guerrilha. Uma noite, o Padre McGuire acordara e vira um jovem a apontar-lhe uma arma e a dizer: «Levante-se e ponha as mãos no ar.» O padre estava entorpecido pelo sono, e era lento a maior parte das vezes, e o jovem praguejou contra ele e disse-lhe que seria fuzilado se não se despachasse. Mas tratava-se de um jovem muito novo, com dezoito anos ou menos, e estava mais assustado do que o Padre McGuire: a espingarda tremia. «Vou já», disse o padre, levantando-se desajeitadamente da cama, mas impossibilitado de pôr as mãos no ar, pois necessitava delas. «Tenha calma» recomendou, «eu vou». Vestiu o roupão, enquanto a arma oscilava perto dele, e depois perguntou:
— O que deseja?
— Precisamos de remédios, precisamos de muti. Um dos nossos está muito doente.
— Então venha à casa de banho. — No armário dos remédios não havia muito mais do que comprimidos para a malária, aspirina e algumas ligaduras. — Leve o que precisar.
— É só isso? Não acredito em si — declarou o jovem, mas apoderou-se de tudo o que havia e acrescentou: — Precisamos de um médico.
— Vamos para a cozinha — convidou o sacerdote e, chegados lá, disse: — Sente-se.
Fez chá, pôs biscoitos na mesa e ficou a observar enquanto eles desapareciam. Pegou em dois dos pães que Rebecca acabara de fazer e estendeu-lhos, com alguma carne fria. Essas coisas desapareceram numa trouxa de pano.
— Como posso arranjar aqui um médico? O que hei-de dizer? Vocês estão sempre a fazer emboscadas nesta estrada.
— Diga que está doente e precisa de um médico. Quando o esperar, ate um pedaço de pano àquela janela. Nós estaremos atentos e traremos o nosso camarada, que está ferido.
— Vou tentar — prometeu o padre.
Quando o jovem desapareceu na noite, voltou-se e ameaçou:
— Não diga à Rebecca que estivemos aqui.
— Quer dizer que conhece a Rebecca?
— Nós conhecemos tudo.
O padre McGuire pensou no assunto e depois escreveu a um colega que estava em Senga, dizendo-lhe que precisava de um médico para um caso fora do vulgar. Devia vir de carro durante o dia e não parar para nada, e certificar-se de que trazia a sua arma. «E tenha cuidado para não alarmar as nossas boas Irmãs.» Um telefonema: uma troca de palavras discreta, aparentemente acerca do tempo e do estado das colheitas. Depois: «Vou visitá-lo com o Padre Patrick, que estudou medicina.»
O sacerdote atou um pano à janela e esperou que Rebecca não reparasse. Ela não disse nada: ele sabia que ela compreendia muito mais do que deixava perceber. O carro chegou, com os padres. Nessa noite apareceram dois guerrilheiros e disseram que o seu camarada estava demasiado mal para ser transportado. Precisavam de antibióticos. Os padres tinham trazido antibióticos, assim como uma boa reserva de medicamentos. Foram todos entregues, enquanto o Padre Patrick receitava. A despensa voltou a ser esvaziada do que restava, depois de dois jovens meio esfomeados terem comido tudo o que podiam.
O Padre McGuire continuou a viver naquela casa onde qualquer pessoa podia entrar quando quisesse. As freiras viviam no interior de uma cerca de segurança, mas ele detestava isso: dizia que se sentia como um prisioneiro, mesmo quando lá entrava para as visitar. Na sua própria casa estava exposto e sabia que estava a ser observado. Esperava ser assassinado: tinham sido mortas pessoas brancas não muito longe dali. Depois a guerra acabou. Dois jovens apareceram lá em casa e disseram que estavam ali para lhe agradecer. Rebecca deu-lhes de comer, quando recebeu ordens nesse sentido, mas disse ao padre: «Eles são gente má.»
O sacerdote perguntou o que acontecera ao homem ferido: morrera. Depois disso, viu-os nas imediações: estavam desempregados e zangados, porque tinham acreditado que a Libertação lhes arranjaria belos empregos e boas casas. O padre empregou um deles na escola, para serviços avulsos. O outro era o filho mais velho de Joshua, que iniciou a escola numa aula cheia de crianças pequenas: falava muito bem inglês, mas não sabia ler nem escrever. Agora estava doente, muito magro e com pústulas.
O Padre McGuire não tinha contado estas coisas a ninguém, até as contar a Sylvia. Rebecca não falava delas. As freiras não tinham conhecimento delas.
Precisava de ter em casa um fornecimento cada vez maior de remédios, porque as pessoas lhos iam pedir. Construiu as cabanas e o barracão na base do monte e pediu a Senga que lhe mandasse um médico: o camarada Presidente Matthew prometera remédios grátis para toda a gente. Enviaram ao padre um jovem que não tinha acabado o curso de medicina por causa da guerra: fora sua intenção ser cabo enfermeiro. O Padre McGuire só soube disto numa noite em que o jovem se embebedou muito e disse que queria acabar o curso. O Padre McGuire não podia ajudá-lo? «Quando deixares de beber», foi a resposta. «Enviarei uma carta em teu nome.» Mas a guerra destruíra este guerreiro, que tinha vinte anos quando ela terminara: não conseguia deixar de beber. Este era «o doutor» a respeito do qual Joshua falara a Sylvia. O Padre McGuire, numa carta loquaz para Senga, queixara-se de que não havia um hospital num raio de trinta quilómetros, nem nenhum médico. Quisera o acaso que um padre de visita a Londres conhecesse Sylvia, com o Padre Jack. E fora assim que tudo tinha acontecido.
Mas havia planos para um bom hospital a pouco mais de quinze quilómetros de distância, e quando ele fosse inaugurado este miserável lugar — dizia Sylvia — poderia deixar de existir.
— Miserável porquê? — perguntou o padre. — Faz coisas boas. Foi um bom dia para todos nós quando a Sylvia chegou. Você é uma bênção para nós.
E por que não tinham as boas Irmãs, lá em cima no monte, sido uma bênção?
As quatro que tinham assistido aos perigos da guerra nem sempre haviam estado protegidas atrás da sua rede de segurança. Tinham ensinado na escola, quando esta ainda era boa. A guerra terminara e elas partiram. Eram mulheres brancas, mas as freiras que as substituíram eram negras e jovens, que tinham fugido da pobreza, da soturnidade e, por vezes, do perigo nos uniformes azuis e brancos que as colocavam à parte das outras mulheres negras. Não eram instruídas e não podiam ensinar. Encontraram neste lugar, que era um horror para elas, não uma fuga da pobreza, mas uma lembrança dela. Eram quatro: a Irmã Perpétua, a Irmã Grace, a Irmã Ursula e a Irmã Boniface. O «hospital» não era tal coisa, e quando Joshua lhes ordenava que viessem todos os dias, elas voltavam àquilo de que tinham fugido: sob as ordens de um negro que esperava ser servido. Arranjavam desculpas para não ir, e o Padre McGuire não insistia. A realidade era esta: elas eram muito inúteis. Tinham escolhido a boa vida, não membros supurantes. Quando Sylvia chegou, a inimizade entre elas e Joshua era tal que cada vez que o viam lhe diziam que rezariam por ele, e ele provocava-as, insultava-as e amaldiçoava-as em resposta.
Lavavam ligaduras e pensos enquanto se queixavam de que eram sujos e repugnantes, mas as suas energias iam na realidade para a igreja que era tão bonita e bem arranjada como as igrejas que as tinham tentado a tornar-se freiras quando eram raparigas. Aquelas igrejas tinham sido os edifícios mais bonitos e limpos quilómetros em redor, e agora nesta, da Missão de São Lucas, como nas outras, nunca havia um grão-zinho de pó, pois era varrida várias vezes ao dia, e as estátuas de Cristo e da Virgem estavam impecáveis e reluzentes. Quando a poeira turbilhonava, as freiras corriam logo a fechar portas e janelas e a varrê-la, antes que tivesse tempo de assentar, sequer. As boas Irmãs serviam a igreja e o Padre McGuire e, como dizia Joshua imitando-as, cacarejavam como galinhas sempre que ele se aproximava.
Estavam muitas vezes doentes, porque assim podiam regressar a Senga e à sua casa mãe.
Joshua passava todo o dia debaixo de uma grande acácia, enquanto a luz do sol e a sombra desfilavam por cima dele, e observava o que se passava no hospital, mas por vezes com olhos que deturpavam o que via. Fumava dagga quase continuamente. O seu filho pequeno, Esperto, estava sempre com Sylvia. Depois passaram a ser dois: Esperto e Zebedee. Não podiam ser mais diferentes da adorável criança negra de longas sobrancelhas arqueadas que comove os corações sentimentais. Eram magros e tinham rostos ossudos onde ardiam enormes olhos famintos de aprender e — como se tornou evidente — também de comida. Chegavam ao hospital às sete horas, sem terem comido, e Sylvia obrigava-os a ir com ela à casa onde lhes cortava grossas fatias de pão barradas de geleia, enquanto Rebecca observava — uma vez, comentou que os filhos dela não comiam pão com geleia, mas apenas papas de aveia frias, e nem sempre. O Padre McGuire observava e dizia que Sylvia era agora mãe de dois filhos e ele esperava que ela soubesse o que estava a fazer. «Mas eles têm mãe», respondeu ela, e ele disse que não, que a sua verdadeira mãe tinha morrido nas estradas violentas de Zimlia, e o seu pai morrera de malária, e por isso se tinham tornado responsabilidade de Joshua, a quem chamavam pai. Sylvia sentiu-se aliviada ao ouvir esta história. Joshua já perdera dois filhos — outro acabara de morrer — e ela sabia porquê, e qual era a verdadeira razão — que não fora a «pneumonia» que constava das certidões de óbito. Os dois não eram, portanto, de Joshua pelo sangue: que útil, que dolorosamente pertinente se tornara essa antiga frase. Eram ambos inteligentes, como Joshua afirmara a respeito de Esperto: dissera que o seu irmão fora professor e a cunhada a primeira da sua classe. Os rapazinhos observavam cada movimento que ela fazia, imitavam-na e examinavam o seu rosto e os seus olhos enquanto ela falava, de modo que sabiam o que ela queria que fizessem antes mesmo de lho pedir; tratavam da criação e das galinhas chocas, apanhavam os ovos sem nunca partirem nenhum, e corriam de lado para lado com canecas de água e medicamentos para os doentes. Acocoravam-se um de cada lado dela, quando engessava pernas ou lancetava inchaços, e ela tinha de se recordar constantemente que eles tinham apenas quatro e seis anos e não o dobro dessa idade. Eram esponjas sempre prontas para absorver informação. Mas não frequentavam a escola. Sylvia mandava-os ir à casa às quatro horas, quando acabava o trabalho do hospital, e passava-lhes lições. Outras crianças quiseram juntar-se ao grupo: para começar, os filhos de Rebecca. Em breve, tinha a seu cargo uma espécie de escola infantil. Mas quando os outros quiseram ser como Esperto e Zebedee e trabalhar no hospital, disse-lhes que não. Por que os favorecia? Não era justo. Desculpou-se dizendo que eram órfãos. Mas havia outros órfãos na aldeia.
Bem, minha filha — disse o padre —, agora começa a compreender por que motivo o coração das pessoas se parte em África. Sabe a história do homem a quem perguntaram por que andava ao longo da praia, depois de uma tempestade, devolvendo à água as estrelas do mar que a corrente arrastara para terra quando havia milhares delas que deviam morrer? Ele respondeu que o fazia porque as poucas que podia salvar voltariam para o mar e seriam felizes.
— Até à próxima tempestade, não era o que ia dizer, padre?
— Não, mas talvez o pensasse. E interessa-me o facto de você estar a pensar do mesmo modo.
— Quer dizer que estou a pensar de modo mais realista, como costuma dizer, padre?
— Quero, sim, é isso mesmo. Mas já lhe disse muitas vezes que tem muito mais estrelas nos olhos do que lhe conviria para o seu próprio bem.
A camioneta Studebaker, uma carripana ruidosa oferecida pelos Pyne à Missão para substituir a camioneta da Missão, que entregara finalmente a alma, esperava no carreiro. Sylvia pedira a Rebecca que dissesse na aldeia que ia ao Centro de Desenvolvimento e podia levar seis pessoas na caixa. Já tinham subido umas vinte. Com Sylvia iam Rebecca e os seus dois filhos — ela teimara que desta vez eles deviam ter esse privilégio, eles e não os filhos de Joshua.
Sylvia disse às pessoas da caixa que os pneus estavam muito velhos e podiam rebentar facilmente. Ninguém se mexeu. A Missão já requisitara pneus, mesmo que fossem em segunda mão, mas as esperanças eram poucas. Depois Rebecca falou primeiro num dialecto local, a seguir noutro e por fim em inglês. Ninguém se mexeu e uma mulher disse a Sylvia: «Conduza devagar e correrá tudo bem.»
Sylvia e Rebecca saltaram para o banco da frente, com as duas crianças. A camioneta arrancou, vagarosa. Ao passarem pelo desvio da propriedade dos Pyne receberam sinal de parar do cozinheiro da família, que disse precisar de ir ao Centro de Desenvolvimento, pois não havia comida em sua casa e a sua mulher... Rebecca riu-se e soaram muitos outros risos na retaguarda, enquanto ele subia e conseguia instalar-se. Rebecca, sentada ao lado de Sylvia voltou-se para ver a retaguarda — onde toda a gente se ria e provocava o cozinheiro: havia um drama qualquer que Sylvia nunca viria a conhecer.
O Centro de Desenvolvimento ficava a menos de dez quilómetros da Missão. O governo branco criara a ideia de que devia haver uma rede de núcleos à volta dos quais deviam desenvolver-se municípios: uma loja, um edifício governamental, a polícia, uma igreja, uma garagem. A ideia teve êxito e o governo negro reclamou-a como sua, Ninguém o contradisse. Este Centro de Desenvolvimento ainda estava em embrião, mas a expandir-se: havia meia dúzia de pequenas casas e um novo supermercado. Sylvia estacionou do lado de fora do edifício governamental, uma pequena construção assente na poeira clara onde vários cães dormiam. Saíram todos em magote da camioneta, mas os filhos de Rebecca tiveram de ficar, para guardarem o veículo, caso contrário tudo seria roubado, incluindo os pneus. Deram-lhes Pepsi e um bolinho a cada um, assim como instruções para, no caso de aparecer alguém com ar de tencionar roubar, um deles fosse a correr chamar a mãe.
As duas mulheres entraram juntas no escritório, em cuja sala de espera já estava uma dúzia de pessoas, e sentaram-se na extremidade de um banco. Sylvia era a única pessoa branca presente, mas com a sua pele queimada, e o lenço na cabeça, por causa da poeira, ela e Rebecca eram como quaisquer outras, duas mulheres magras e baixas, ambas com o rosto preocupado, naquele cenário intemporal, peticionárias à espera, embaladas pelo enfado. De trás de uma porta que tinha escrito, em tinta branca desbotada sobre tinta castanha, o nome de Mr. M. Mandizi, vinha uma voz alta e autoritária. Sylvia fez uma careta a Rebecca, que lhe respondeu com outra. O tempo passava. A porta abriu-se, de súbito, e saiu uma jovem negra, em pranto.
— Que vergonha — disse um velho negro, que se encontrava bem para o fim da bicha. Estalou a língua, abanou a cabeça e repetiu «Que vergonha», em voz alta, quando um negro alto e imponente, com o fato de três peças da praxe, parou à entrada e os impressionou a todos.
— O seguinte — disse e recuou, fechando a porta, para que o peticionário seguinte tivesse de bater e ouvi-lo responder: «Entre.»
O tempo passou. Este saiu bem-sucedido: pelo menos não vinha a chorar. Bateu silenciosamente palmas, devagar e sem olhar para ninguém, de modo que a saudação ou o aplauso só podiam ser para si próprio.
A voz forte, do interior, ordenou: — Seguinte.
Sylvia deu algum dinheiro a Rebecca e mandou-a ir comprar qualquer coisa para as crianças almoçarem, e uma bebida, e certificar-se de que ainda lá se encontravam.
Estavam adormecidos. Rebecca regressou com uma Fanta, que as duas mulheres partilharam.
Decorreram duas horas.
Chegou a vez delas e o funcionário, vendo que uma era branca, preparava-se para chamar o homem que se lhes seguia quando o velho disse:
— Que vergonha. A mulher branca está à espera como os restantes de nós.
— É a mim que compete dizer quem entra a seguir — declarou Mr. Mandizi.
— Pois sim — admitiu o velho —, mas o que está a fazer não está certo. Nós não gostamos do que está a fazer.
Mr. Mandizi hesitou, mas depois apontou para Sylvia e voltou para dentro.
Sylvia sorriu, num agradecimento ao velho, e Rebecca falou-lhe suavemente na sua língua. Soaram risos por todo o lado. Qual era a piada? Mais uma vez, pensou Sylvia, nunca o saberia. Mas Rebecca segredou-lhe, enquanto entravam no gabinete: «Disse-lhe que ele era como um touro velho que sabe como manter os jovens na ordem.»
Chegaram à frente de Mr. Mandizi ainda a sorrir. Ele levantou os olhos dos papéis, franziu a testa, viu que Rebecca estava presente e preparava-se para lhe falar rispidamente quando ela iniciou o ritual das saudações:
— Bom dia... não, já é de tarde. Portanto, boa tarde. — Boa tarde — respondeu ele.
— Espero que esteja bem.
— Eu estou bem se você estiver bem.... — e continuou a lengalenga que, mesmo truncada, era um lembrete impressivo de boas maneiras.
Depois, dirigindo-se a Sylvia, perguntou:
— O que quer?
— Mr. Mandizi, sou da Missão de São Lucas e vim perguntar-lhe por que motivo o fornecimento de preservativos não foi enviado. Deviam tê-lo mandado o mês passado.
Mr. Mandizi pareceu inchar e soergueu-se da cadeira; o seu olhar surpreendido tornou-se ofendido. Acalmou-se e perguntou:
— E por que tenho de falar com uma mulher a respeito de preservativos? Não esperava ouvir semelhante coisa.
— Sou a médica do hospital da Missão. O ano passado, o governo disse que seriam postos preservativos à disposição de todos os hospitais do mato.
Era evidente que Mr. Mandizi não ouvira falar em semelhante decreto, mas ganhou tempo enxugando a testa, reluzente de suor,
com um enorme lenço branco. Possuía o tipo de rosto que tem de se esforçar para mostrar autoridade. Era por natureza afável e desejoso de agradar: a expressão carrancuda que lhe impunha destoava dele.
— E é-me permitido perguntar o que vai fazer com todos esses preservativos?
— Mr. Mandizi, deve ter ouvido falar que há uma doença grave... é uma doença nova e muito má que se transmite por via sexual.
O seu rosto era o de um homem obrigado a engolir coisas desagradáveis.
— Sim, sim, mas nós sabemos que essa doença é uma invenção dos brancos. Pretendem obrigar-nos a usar preservativos para não termos filhos e o nosso povo ficar enfraquecido.
— Perdoe-me, Mr. Mandizi, mas está desactualizado. É verdade que o seu governo andou a dizer que a sida não existe, mas agora diz que talvez exista e, por isso, os homens deviam usar preservativos.
Fantasmas de ironia perseguiram-se ao longo do seu agradável e grande rosto negro, desalojando a expressão carrancuda. Então Rebecca falou-lhe directamente, na língua de ambos, e parece que falou bem, pois Mr. Mandizi escutou-a com o rosto voltado para o dela, para aquela mulher a quem, na sua cultura, não teria de ouvir falar de semelhantes assuntos, pelo menos em público.
Dirigiu-se a Sylvia:
— Pensa que essa doença está aqui, nesta região, connosco? A Magreza está aqui?
— Sim, sei que está. Sei que está, Mr. Mandizi. Há pessoas a morrer dela. Sabe, o problema é o diagnóstico. As pessoas podem estar a morrer de pneumonia, ou de tuberculose, ou de diarreia, ou de lesões cutâneas — pústulas —, mas a verdadeira razão é a sida. E a Magreza. E há muita gente doente. Muita mais do que quando eu cheguei ao hospital.
Rebecca voltou a falar e Mr. Mandizi escutou-a sem a olhar, mas a acenar com a cabeça.
— E querem que eu telefone à sede e lhes diga que me mandem os preservativos?
— E também não recebemos os comprimidos para a malária. Não recebemos quaisquer medicamentos.
— A Dr.a Sylvia tem estado a comprar remédios para nós com o seu próprio dinheiro — disse Rebecca.
Mr. Mandizi acenou com a cabeça, pensativo. Depois, transformado noutro homem, por sua vez um peticionário, inclinou-se para a frente e perguntou:
— Pode dizer, olhando, se alguém tem a Magreza?
— Não. Há exames para determinar isso.
— A minha mulher não anda bem. Está constantemente a tossir.
— Não é forçoso que isso seja sida. Ela perdeu peso?
— Está magra. Está muito, muito magra.
— Devia levá-la ao hospital grande.
— Levei. Deram-lhe muti, mas continua doente.
— Às vezes envio amostras para Senga, se alguém não está demasiado doente.
— Está a dizer que se alguém está muito doente não envia amostras?
— Algumas pessoas procuram-me quando estão tão doentes que eu sei que vão morrer. E é inútil desperdiçar dinheiro em exames.
— Na nossa cultura — declarou Mr. Mandizi, recuperando a sua autoridade mercê desta fórmula tão frequentemente usada —, na nossa cultura temos bons medicamentos, mas eu sei que vocês, brancos, os desprezam.
— Eu não desprezo. Sou amiga do nosso n'ganga local e às vezes peço-lhe ajuda. Mas ele próprio diz que não pode fazer nada pela sida.
— Talvez tenha sido por isso que os remédios dele não a ajudaram?
Mas, ao ouvir as suas próprias palavras, todo o seu corpo pareceu petrificado de pânico e ele ficou sentado, rígido e de olhos fixos, e depois levantou-se e disse:
— Têm de vir comigo agora... agora, agora-já, ela está aqui na minha casa, são cinco minutos.
Empurrou as duas mulheres à sua frente, para fora do gabinete e pelo meio dos peticionários silenciosos, enquanto dizia:
— Eu estarei de novo no meu escritório daqui a dez minutos. Esperem.
Sylvia e Rebecca foram conduzidas pelo poeirento clarão da tarde a uma das casas novas, dez delas em fileira, como caixas depositadas na poeira, mas idênticas às grandes casas novas que estavam a ser construídas em Senga, embora numa escala decrescente de acordo com a importância do Centro de Desenvolvimento de Kwadere. Sobre elas, buganvílias cor de púrpura e magenta assinalavam-nas, como sinal de distinção: ali moravam todos os funcionários locais.
— Entrem, entrem — convidou Mr. Mandizi, e elas encontraram-se numa pequena sala atravancada com um jogo de poltronas de três peças, um aparador, um frigorífico e um pufe, e depois num quarto cheio com uma grande cama onde estava deitado alguém doente e, a seu lado, uma negra bonita e roliça abanava quem dormia com um ramo de folhas de eucalipto, cujo cheiro se esforçava por abafar os odores da doença. Mas estaria a doente a dormir? Sylvia inclinou-se para ela e viu, chocada, que aquela mulher estava muito doente, muito doente, mesmo: estava a morrer. Em vez de um saudável preto brilhante, a sua cor era cinzenta, tinha o rosto coberto de crostas, estava magra e na cabeça que repousava na almofada adivinhava-se o crânio. Quase não tinha pulsação e a sua respiração mal se ouvia. Tinha os olhos semicerrados. Os dedos de Sylvia ficaram frios de lhe tocar. Voltou-se para o desesperado marido, incapaz de falar, e Rebecca, a seu lado, começou a lamuriar baixinho. A jovem roliça olhava em frente e continuava a abanar. Sylvia cambaleou para a outra sala e encostou-se à parede.
— Mr. Mandizi — chamou. — Mr. Mandizi...
Ele veio ter com ela, pegou-lhe na mão, inclinou-se para lhe fitar o rosto e murmurou:
— Ela está muito doente? A minha mulher...
— Mr. Mandizi...
Ele deixou o corpo pender para a frente, apoiando o rosto no braço encostado à parede. Estava tão perto que Sylvia lhe passou o braço pelo ombro e o apertou enquanto ele soluçava.
— Receio que ela morra — murmurou ele.
— Sim. Lamento, mas acho que ela está a morrer.
— Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?
— Tem filhos, Mr. Mandizi?
— Tivemos uma menina, mas morreu. Pingavam lágrimas para o chão de cimento.
— Mr. Mandizi — murmurou ela, pensando na mulher roliça e saudável perto da porta —, deve prestar-me atenção, deve... por favor, não tenha relações sexuais sem usar preservativo.
Era tão terrível dizer semelhante coisa num momento como aquele, que chegava a ser ridículo, mas a terrível urgência da situação dele obrigou-a.
— Por favor, eu sei que isto deve parecer-lhe horrível e, peço-lhe que não fique zangado comigo. — Ainda estava a murmurar.
— Sim, sim, sim, ouvi o que disse e não estou zangado.
— Se quiser que eu venha mais tarde, quando estiver... eu posso vir e explicar-lhe.
— Não, eu compreendo. Mas você é que não compreende uma coisa. — Abandonou o apoio da parede e ficou muito direito.
Depois falou normalmente: — A minha mulher está a morrer. A minha filha está morta. E eu sei quem é responsável. Consultarei de novo o nosso bom n'ganga.
— Mr. Mandizi, não pode, simplesmente, estar a dizer...
— Sim, estou a dizer. É isso que estou a dizer. Algum inimigo me amaldiçoou. Isto é obra de um bruxo.
— Oh, Mr. Mandizi, o senhor é um homem instruído...
— Eu sei o que está a pensar. Sei como vocês pensam.
Estava ali parado diante dela, com o rosto contorcido pela cólera e pela suspeita. — Irei até ao fim desta questão. — Depois ordenou: — Digam no escritório que voltarei dentro de meia hora.
Sylvia e Rebecca começaram a caminhar na direcção da camioneta.
Ainda o ouviram dizer:
— É aquele dito hospital da Missão... Nós sabemos a seu respeito. Felizmente que o nosso novo hospital será construído em breve e teremos alguma medicina a sério na nossa região.
Sylvia disse a Rebecca:
— Por favor não me diga que concorda com o que ele está a dizer. É ridículo.
Ao princípio, Rebecca ficou silenciosa, mas depois disse:
— Compreende, Sylvia, na nossa cultura não é ridículo.
— Mas trata-se de uma doença. A cada dia sabemos mais a seu respeito. É uma doença terrível.
— Então por que é que algumas pessoas a apanham e outras não? Pode explicar-me isso? E a questão é essa, compreende o que estou a dizer? Talvez haja alguma pessoa que tenha querido fazer mal a Mr. Mandizi, ou que tenha querido livrar-se da mulher dele?... Viu aquela mulher nova no quarto, com Mrs. Mandizi? Talvez ela quisesse ser ela própria Mrs. Mandizi...
— Está bem, Rebecca, não vamos concordar uma com a outra.
— Não, Sylvia, não vamos concordar.
Na camioneta, já havia pessoas à espera para entrarem, mas Sylvia disse-lhes:
— Ainda não vou conduzir para casa. E só deixarei ir seis pessoas, apenas seis. Vamos ao novo hospital e a estrada é má. — Via onde ela principiava, um carreiro irregular, através do mato.
Rebecca transmitiu ordens precisas. Seis mulheres subiram para a parte de trás do veículo.
— Venho buscá-los dentro de meia hora — prometeu Sylvia, e a camioneta lá foi, aos trancos e solavancos, sobre raízes, pedras e covas durante mais cerca de quilómetro e meio, até chegarem onde os contornos de um edifício tinham sido traçados numa clareira entre árvores. Aquelas eram grandes árvores velhas; aquele era mato antigo, um pouco empoeirado, mas denso e verde.
As duas mulheres e as crianças desceram da cabina da camioneta e as outras seis seguiram-lhes o exemplo. As mulheres ficaram paradas a olhar para o que era descrito como o novo hospital.
Suecos? Dinamarqueses? Americanos? Alemães? O governo de algum país dedicado aos sofrimentos de África fizera encaminhar uma quantidade de dinheiro para ali, para aquela clareira, e os resultados estavam à frente deles. Como acontecia com a planta do arquitecto, estes observadores tinham de usar o cérebro para perceberem a forma das coisas que surgiriam daqueles alicerces, e das paredes começadas e não acabadas, porque o problema residia no facto de a próxima remessa de dinheiro ter levado muito tempo para chegar e as salas, enfermarias, corredores, teatros operatórios e farmácias estarem cheios de poeira clara. Algumas paredes chegavam à altura da cintura, outras à altura dos joelhos, e blocos de cimento armado tinham buracos cheios de água. Com a esperança de encontrarem alguma coisa útil, as mulheres da aldeia, avançaram e recolheram um par de garrafas e meia dúzia de latas, que sacudiram da poeira e depois depositaram cuidadosamente em grandes panos de viagem. Alguém fizera ali um piquenique ou algum viajante acendera uma fogueira para passar a noite e manter os animais à distância. Os rostos destes visitantes tinham as expressões vistas com tanta frequência no nosso tempo: não vamos comentar, mas alguém fez asneira. E quem fora? E porquê? Corriam boatos de que o dinheiro destinado a este hospital tinha sido roubado no caminho; e havia mesmo quem dissesse que o governo em questão ficara simplesmente sem fundos.
Do outro lado da clareira, debaixo da árvore, viam-se grandes caixotes de madeira. As seis mulheres foram até lá, para ver, e Sylvia e Rebecca seguiram-nas. Um caixote rebentara: lá dentro havia equipamento dentário: uma cadeira de dentista.
— É uma pena eu não ser dentista — comentou. — Far-nos-ia sem dúvida jeito uma.
Outro caixote, rebentado nos lados, revelava que no interior se encontrava uma cadeira de rodas.
— Oh, doutora — disse uma das mulheres —, não devemos levar a cadeira. Talvez um dia o hospital seja construído.
— Precisamos de uma cadeira de rodas — respondeu Rebecca, a puxar a cadeira para fora.
— Mas eles quererão saber de onde veio e o nosso hospital não tem categoria para ter uma cadeira de rodas.
— Devemos levá-la — insistiu Rebecca.
— Está partida — disse a mulher. — Já alguém tentou tirá-la do caixote de madeira e uma roda soltou-se.
Havia mais quatro caixotes por ali. Duas das mulheres dirigiram -se para um e começaram a soltar a madeira apodrecida. No interior havia arrastadeiras. Sem olhar para Sylvia, Rebecca levou seis arrastadeiras para a camioneta e voltou. Outra mulher encontrou cobertores, mas estavam comidos pelos insectos, havia ninhos de ratos neles e pássaros tinham arrancado fios para forrar os seus ninhos.
— Será um bom hospital — disse uma mulher, a rir.
— Teremos um belo hospital novo em Kwadere — disse outra. As aldeãs riam-se, divertidas, e depois Sylvia e Rebecca fizeram
coro com elas. No meio do mato, a quilómetros dos filantropos de Senga (ou, pela mesma ordem de ideias, de Londres Berlim e Nova Iorque), as mulheres riam-se.
Regressaram ao Centro de Desenvolvimento, recolheram as restantes pessoas e seguiram, devagar, para a Missão, sempre de ouvido atento ao rebentar de um pneu. A sorte esteve com elas. Rebecca e Sylvia levaram as arrastadeiras para o hospital. As pessoas gravemente doentes da grande barraca nova construída por Sylvia, quando chegara, tinham estado a utilizar garrafas velhas, latas e utensílios de cozinha deitados fora. «Que coisas são essas?», perguntaram os filhos pequenos do irmão de Joshua, e quando compreenderam ficaram encantados e trataram de mostrá-los a quem estivesse suficientemente bem para se importar com isso.
Colin abriu a porta, ao ouvir um toque tímido e viu o que pensou ser uma criança mendiga, ou uma cigana, e depois, com um grito de «É a Sylvia, é a pequena Sylvia», ergueu-a ao ar e levou-a para dentro. Abraçou-a, e ela molhou-lhe as faces de lágrimas, dobrada para enxugar as suas, como uma saudação de gatinhos.
Na cozinha ele sentou-a à mesa, à mesa, de novo aberta em toda a sua extensão. Encheu um copo grande de vinho e sentou-se defronte dela, todo ele boas-vindas e satisfação.
— Por que não disseste que vinhas? Mas isso não importa. Nem sei dizer como estou feliz por te ver.
Sylvia tentava erguer a sua boa disposição ao nível da dele, pois estava desanimada. Às vezes, Londres produz este efeito em londrinos que estiveram ausentes e que, enquanto ali viviam, faziam uma ideia tão pequena da sua força, dos seus múltiplos dons e capacidades. Londres, depois da Missão, estava a dar-lhe um soco algures na região do estômago. É um erro vir tão depressa de, digamos, Kwadere para Londres: uma pessoa necessita de algo equivalente a uma câmara de descompressão.
Estava sentada a sorrir, a beber golinhos de vinho, com receio de fazer mais do que isso, pois ultimamente não estava habituada a beber vinho, e a sentir a casa como uma criatura a toda a sua volta, por cima e por baixo dela, a sua casa, a casa que melhor conhecera como lar quando estivera consciente do que se passava nela, da atmosfera e do ambiente de todas as salas e extensões de escadas. Agora a casa estava populosa, podia senti-lo, estava cheia de pessoas, mas eram presenças estranhas, não as que lhe tinham sido familiares, e sentia-se grata por Colin, ali sentado a sorrir-lhe. Eram dez horas da noite. Em cima, alguém estava a tocar uma melodia que ela devia conhecer, provavelmente qualquer coisa famosa, como «Blue Suede Shoes» — soava-lhe a isso —, mas não sabia dizer-lhe o nome.
— Pequena Sylvia. E está a parecer-me que precisas de te alimentar, como sempre. Posso dar-te alguma coisa para comeres?
— Comi no avião.
Mas ele já se tinha levantado e aberto a porta do frigorífico, e estava a olhar para as prateleiras. Sylvia sentiu de novo uma pancada no coração, sim, foi no coração, doeu-lhe, pois estava a pensar em Rebecca na sua cozinha, com o seu pequeno frigorífico e o seu pequeno armário, que para a sua família, na aldeia, representavam uma certa dose de sorte, abastecimento generoso: estava a olhar para os ovos que enchiam metade da porta do frigorífico, para o cintilante leite limpo, para as embalagens empilhadas, a fartura...
— Este não é francamente o meu território, é o da Frances, mas tenho a certeza... Tirou um pão e um prato de frango frio. Sylvia sentiu-se tentada: fora Frances que o cozinhara, Frances alimentara-a; com Frances de um lado e Andrew do outro, sobrevivera à sua infância.
— Qual é então o teu território? — perguntou, enquanto comia uma sanduíche de frango.
— Eu estou lá em cima, no topo da casa.
— Na parte da Julia?
— Eu e a Sophie.
Isto surpreendeu-a ao ponto de pôr de parte o resto da sanduíche, como se desistisse por momentos da segurança.
— Tu e a Sophie!
— Tu não sabias, é claro. Ela veio para cá para se refazer, e depois... Estava doente, compreendes.
— E depois?
— A Sophie está grávida, e por isso estamos prestes a casar.
— Pobre Colin — disse Sylvia, e depois corou de vergonha. No fim de contas, não sabia realmente...
— Não inteiramente pobre Colin. No fim de contas, gosto muito da Sophie.
Ela pegou na sanduíche, mas largou-a de novo. A notícia de Colin dera-lhe um nó no estômago.
— Bem, continua. Vejo que estás desolado.
— Perspicaz Sylvia. Bem, sempre o foste, embora aparentemente não passasses de uma menina franzina que nem queria que dessem por ela.
Isto magoou, como aliás ele pretendera.
— Não, não, desculpa, a sério, desculpa. Não estou em mim. Apanhaste-me num... Bem, afinal talvez esteja mesmo em mim.
Deitou mais vinho.
— Não bebas enquanto eu não souber tudo. Ele pousou o copo.
— A Sophie tem quarenta e três anos. É tarde.
— Sim, mas é muito frequente as mães mais velhas.... — Viu-o estremecer.
— É exactamente isso. Uma mãe velha. Mas, quer acredites quer não, os bebés com a síndroma de Down — são tão engraçados, não são? — e todos os outros horrores não são o pior. A Sophie está convencida de que eu estou convencido de que ela quis o bebé no seu útero relutante para me usar, porque estava a tornar-se tarde para ela. Eu sei que não o fez de propósito; isso não é da sua natureza. Mas não dá tréguas. Dia e noite, ouço os seus lamentos de culpa: «Oh, eu sei o que estás a pensar...» — E Colin repetia as palavras do lamento, com perfeição — Sabes uma coisa? É claro que sabes. Não existe prazer capaz de competir com o prazer da culpa. Ela mergulha nele, chafurda nele, a minha Sophie, está a viver o grande momento da sua vida, sabendo que a detesto porque me encurralou e que nada que eu possa dizer lhe porá fim porque dá um grande gozo ser culpada. — Sylvia nunca o ouvira dizer nada tão selvagem, e viu-o levantar o copo e beber o vinho que restava de um trago.
— Oh, Colin, vais ficar bêbado e eu vejo-te tão poucas vezes!
— Tens razão, Sylvia — respondeu, a encher de novo o copo. — Mas eu caso com ela, já está de sete meses. Viveremos lá em cima, no antigo apartamento da Julia — quatro divisões —, e eu trabalharei no fundo da casa, quando ficar vago. — Ao dizer isto, o seu rosto avermelhado e furioso iluminou-se com aquela euforia de prazer que é própria da contemplação do implacável sentido dramático da vida. — Sabias que a Frances ficou com dois filhos do seu novo parceiro?
— Sim, ela escreveu a dizer.
— E disse-te também que há uma mulher, uma depressiva? Está lá em baixo, no apartamento onde a Phyllida esteve.
— Mas...
— Sem mas. Tem corrido tão bem como seria de esperar. Ela refez-se da depressão. Os dois miúdos estão lá em cima, onde o Andrew e eu costumávamos ficar, e a Frances e o Rupert no apartamento que ela sempre ocupou.
— Então deu resultado?
— Mas os dois miúdos pensam, com razão, que agora que a mãe rompeu com o amante com quem vivia, por que não hão-de o seu pai e a sua mãe juntar-se de novo e a Frances desaparecer do mapa.
— Quer dizer que andam a ser horríveis com a Frances?
— De modo nenhum. Muito pior do que isso. Mostram-se muito corteses e razoáveis. A miúda, que diga-se de passagem é uma verdadeira cabrinha, diz coisas do género: «Mas seria muito melhor para nós se você se fosse embora, não seria, Frances?» É a rapariga que diz estas coisas, na realidade, não o rapaz. O Rupert, porém, não abre mão da Frances por nada deste mundo. O que é compreensível, para quem conhece a Meriel.
Sylvia estava a pensar em Rebecca com os seus seis filhos, dois deles mortos, provavelmente de sida — ou talvez não — , e o seu usualmente ausente marido, a trabalhar dezoito horas por dia sem nunca se queixar.
Suspirou e viu o olhar de Colin.
— Que sorte a tua, Sylvia, por estares tão longe das nossas pouco edificantes trapalhadas emocionais.
— Sim, às vezes sinto-me satisfeita por não ter casado... mas desculpa, continua. A Meriel...
— A Meriel... bem, ela é um caso raro. E fria, manipuladora e egoísta e sempre tratou mal o Rupert. E feminista, compreendes? Com toda a lei da selva por trás. Sempre disse ao Rupert que é seu dever mantê-la, e fê-lo pagar um curso qualquer que ela tirou, uma parvoíce qualquer, parece-me que se chama crítica avançada. Nunca ganhou um centavo. E agora está a tentar obter um divórcio em que ele a mantenha perpetuamente. Pertence a um grupo de mulheres, uma sociedade secreta — não acreditas? —, cujo objectivo é lixar os homens e apanhar-lhes tudo quanto puderem.
— Estás a inventar.
— Minha doce Sylvia, lembro-me de que nunca foste capaz de acreditar nos aspectos mais desagradáveis da natureza humana. Mas agora o Destino mudou e tu nunca acreditarás... A Meriel procurou a Phyllida para fazer terapia e a Frances pagou. Depois a Frances procurou a Phyllida, que no fim de contas é uma mulher muito razoável... estás surpreendida?
— É claro que estou.
— E ela pediu-lhe que ensinasse a Meriel a ser conselheira, que ela pagaria.
Sylvia desatou a rir.
— Oh, Colin! Oh, Colin!
— Sim, foi mesmo assim. Porque, sabes, a Meriel não tem qualquer qualificação, não terminou o seu curso. Mas como conselheira será auto-suficiente. O aconselhamento tornou-se o recurso da mulher sem qualificações, substituiu a máquina de costura das gerações anteriores.
— Em Zimlia, não. A máquina de costura está viva e recomenda-se e a permitir o sustento das mulheres. — E voltou a rir-se.
— Finalmente — comentou Colin. — Começava a pensar que nunca sorririas. — E deitou-lhe mais vinho. Ela tinha despejado o seu copo. E deitou mais para ele próprio. — Resumindo, a Meriel vai mudar-se e morar com a Phyllida, porque a sócia desta se vai estabelecer por conta própria como fisioterapeuta independente, a nossa cave ficará vaga e eu poderei usá-la para escrever. E, evidentemente, para fugir às minhas responsabilidades de pai.
— O que não resolve o problema da Frances no papel de madrasta cruel. Independentemente das crianças, ela é feliz?
— Está delirante. Primeiro, gosta realmente do Rupert, e quem lho pode censurar? Mas, não sabias? Ela voltou ao teatro.
— O que queres dizer? Não sabia que ela alguma vez lá tinha estado.
— Como sabemos pouco a respeito dos nossos pais. Sucede que o teatro foi sempre o primeiro amor da minha mãe. Está numa peça com a minha Sophie. Neste preciso momento ecoam aplausos para ambas. — A sua voz tornou-se um pouco arrastada e ele franziu a testa, concentrando-se no que dizia. — Bolas, estou bêbado.
— Por favor, querido Colin, não bebas. Por favor!
— Falaste como a Sônia. Muito bem.
— Oh, Tchekov. Sim, percebo. Mas eu estou do lado dela. — Riu-se, mas tristemente. — Há um homem na Missão... — Mas como podia transmitir a realidade de Joshua a Colin? — Um negro que quando não está ganzado em erva está bêbado. Bem, se soubesses a vida dele...
— E a minha, não justifica o álcool?
— Não, não justifica. Está bem, preferias que não fosse a Sophie...
— Preferia que não fosse uma mulher de quarenta e três anos. — Saiu de dentro dele uma espécie de uivo, que esperara durante todo aquele tempo. — Sabes, Sylvia, eu sei que é ridículo, sei que sou um triste idiota patético, mas eu queria famílias felizes, queria mamã e papá e quatro filhos. Queria tudo isso e com a minha Sophie não vou ter nada que se pareça com a minha Sophie.
— Não — admitiu Sylvia.
— Não. — Ele esforçava-se para não chorar esfregando os punhos na cara como uma criança. — E se não queres estar aqui para saudar a minha feliz Sophie e a minha triunfante mãe, ambas embriagadas com Romeu ejulieta...
— Queres dizer que a Sophie está a representar Julieta?
— Parece ter uns dezoito anos. Tem um aspecto maravilhoso. É maravilhosa. A gravidez fica-lhe bem. Quase nem se nota que está grávida. Mas os jornais estão a fazer um escarcéu por causa disso. Sarah Bernhardt representou Julieta com cento e um anos e uma perna de pau... esse tipo de coisas. Uma Julieta grávida acrescenta uma dimensão inesperada a Romeu ejulieta. Mas o público adora-a. Nunca recebeu maiores aplausos. Usa vestidos brancos soltos e flores brancas no cabelo. Lembras-te do cabelo dela, Sylvia? — E começou finalmente a chorar.
Sylvia foi ter com ele, convenceu-o a levantar-se da cadeira e depois a subir a escada e a ir para onde ela se sentara com Andrew. Abraçou-o e ouviu-o soluçar até adormecer.
Não sabia onde podia encontrar uma cama nesta casa. Por isso deixou um bilhete para Colin. A dizer-lhe que queria que ele «escrevesse a verdade sobre Zimlia». Alguém deveria escrevê-la.
Saiu para a rua e quando viu um hotel entrou.
Tinha dito que apareceria para almoçar. De manhã foi às livrarias e comprou, comprou: duas grandes caixas de livros chegaram com ela a casa de Julia — ainda era isso, para Sylvia. Foi recebida por Frances, que, como Colin fizera, a levou para a cozinha, a abraçou como a uma filha há muito desaparecida e a instalou no seu antigo lugar, ao lado dela.
— Não me diga que preciso de comer — disse-lhe Sylvia. — Por favor.
Frances pôs na mesa um cesto cheio de pão cortado em fatias, e Sylvia olhou para ele e pensou como o Padre McGuire se deliciaria com aquele espectáculo: havia de levar-lhe um bom pão, quando regressasse. Um prato cheio de reluzentes caracóis de manteiga: bem, isso não poderia levar. Olhou para a comida e pensou em Kwadere, enquanto Frances andava de um lado para o outro a pôr a mesa. Era uma bela mulher robusta, com o cabelo louro — pintado — num corte que devia ter custado os olhos da cara. Estava bem vestida: Julia teria, finalmente, aprovado.
Quatro lugares... quem? Entrou uma criança alta, que parou a examinar Sylvia, a desconhecida. «Este é o William», apresentou Frances. «Esta é a Sylvia e costumava morar aqui. É filha da Phyllida, a amiga da Meriel.»
— Olá — disse William, com a formalidade de um «como está?», e sentou-se. Era um bonito rapaz, com as sobrancelhas louras unidas e franzidas, enquanto tentava decifrar tudo aquilo. Depois desistiu. — Frances, tenho de estar na piscina às duas horas. Posso comer depressa, por favor?
— E eu tenho de estar no ensaio. Sirvo-te primeiro.
Foram aparecendo pratos feitos de toda a espécie e Frances pôs uma piza no microondas e depois à frente de William, que começou logo a comer.
— Salada — ordenou Frances.
Com um ar de heróico esforço, o rapaz tirou dois pedaços de alface e um rabanete para o prato e comeu-os como se tomasse remédio.
— Muito bem — elogiou Frances. — Suponho que o Colin te contou as nossas notícias, Sylvia?
— Penso que sim. — As duas mulheres entreolharam-se, comunicando entre si. Sylvia deduziu que Frances diria mais coisas se a criança não estivesse presente. — Parece que vou perder um casamento.
— Eu dificilmente lhe chamaria isso. Uma dúzia de pessoas no registo civil.
— Mesmo assim, gostaria de estar presente.
— Mas não podes. Não gostas de deixar o teu... hospital?
Esta hesitação disse a Sylvia que Andrew descrevera desagradavel-mente o lugar a Frances.
— Não podemos julgar lá pelos nossos padrões de cá.
— Eu não estava a julgar. Mas perguntamo-nos se as tuas aptidões não estarão a ser desperdiçadas. No fim de contas, tiveste alguns empregos muito bons.
Sophie apareceu neste momento. Trazia vestida qualquer coisa semelhante a um robe antiquado, oupeignoir, branco com grandes flores pretas, e parecia uma visão, como Ofélia a flutuar na água, com o comprido cabelo preto dramaticamente raiado de branco e os olhos adoráveis intactos. A sua gravidez era o volumezinho mais elegante que se pudesse imaginar.
— Sete meses — disse Sylvia. — Como consegues? Desapareceu no abraço de Sophie. Choraram ambas, e enquanto
isto não era mais do que se podia esperar de Sophie, e lhe ficava bem, Sylvia exclamou «Raios»!, e enxugou os olhos. Frances também estava a chorar. O rapaz observava a cena com uma seriedade desprendida, enquanto comia pedaços de piza. Sophie reclinou-se na grande cadeira do fundo da mesa, com as mãos eloquentes a delinearem o ventre.
— Sylvia — disse dramaticamente —, tenho quarenta e três anos.
— Eu sei. Anima-te. Fizeste os testes?
— Fiz.
— Então...
— Mas o Colin... — e recomeçou a chorar. — Alguma vez me perdoará?
— Que disparate! — disse Frances, impaciente, pois já estava farta daquela cena em particular.
— Pelo que ele disse a noite passada — observou Sylvia —, não creio que perdoar ou não perdoar seja a questão.
— Oh, Sylvia, és tão bondosa. São todos bondosos. E vir para aqui para esta casa, esta casa, que sempre considerei como o meu verdadeiro lar, e a Frances... como a minha mãe que agora morreu, pobre alma.
— Não tanto uma mãe como uma ama — lembrou Frances.
— É verdade, já sabes que ela está a fazer a Ama... oh, é maravilhoso. Mas agora vamos ter uma ama verdadeira nesta casa, porque eu continuarei a representar e, é claro, a Frances também está a representar.
— Não me sinto preparada para tomar conta de um bebé pequenino — disse Frances.
— É claro que não — concordou Sophie, mas era evidente que, na realidade, esperara precisamente isso.
— Além de que — continuou Frances — estás a esquecer-te de que eu, o Rupert e as crianças nos vamos mudar.
— Oh, não — gemeu Sophie —, por favor, não. Por favor. Há espaço suficiente para todos.
O rapaz estava sentado muito direito, a fitá-las com uma expressão de pânico.
— Porquê, para onde vamos? Porquê, Frances?
— Bem, agora esta casa é do Colin e da Sophie e eles vão ter um bebé.
— Mas há tanto espaço — lembrou William em voz muito alta, como se pretendesse calá-las. — Não vejo porquê.
— Fala baixo — pediu Sophie, sem resultado, e olhou para Frances, para que tranquilizasse o desespero do rapaz.
— Gosto desta casa — insistiu William. — Não me quero ir embora. Por que havíamos de ir? — e começou a chorar, com as lágrimas sufocadas e dolorosas de uma criança que chora muito, mas sozinha, esperando que ninguém a ouça. Levantou-se e saiu a correr. Ninguém disse nada.
Depois Sophie perguntou:
— Mas, Frances, o Colin não disse que deviam ir-se embora, pois não?
— Não, não disse.
— Eu também não quero que vão.
— Esquecemos sempre o Andrew. Ele com certeza tem planos quanto ao que fazer com esta casa.
— Porquê? Está a divertir-se à grande a dirigir o mundo. Não haveria de querer que fôssemos infelizes.
— Não deves exagerar, Sophie — aconselhou Sylvia. — Com certeza não vais continuar a.representar até ao fim? — Agora que já não estava esfuziante com a excitação das boas-vindas, via-se que estava tensa e, evidentemente, exausta.
Sophie torceu as mãos sobre o volume do ventre.
— Bem... eu pensara... mas talvez...
— Tem um pouco de bom senso — aconselhou Frances. — Como se não bastasse...
— Eu ser tão velha, oh, sim, eu sei.
— Bem — disse Sylvia —, queria falar com o Colin.
— Ele está a trabalhar — disse Sophie. — E ninguém ousa interrompê-lo quando ele está a trabalhar.
— Lamento muito, porque tenho de lhe falar.
Quando Sophie passou por Frances, para subir, abraçou-a de súbito
e disse:
- Não vá, Frances. Por favor, não vá. Tenho a certeza de que ninguém quer que vá.
Frances seguiu-a e encontrou William encolhido na sua cama, como um animal receoso de perigo, ou como alguém em sofrimento. Repetia em voz alta: «Não quero ir. Não quero ir.» Ela envolveu-o nos braços e disse:
— Pára. Pode nunca acontecer. Provavelmente não acontecerá.— Prometa, então.
— Como posso eu prometer? Nunca devemos prometer uma coisa de que não temos a certeza.
— Mas tem quase a certeza, não tem?
— Sim. Suponho que tenho.
Esperou, enquanto ele se preparava para ir nadar, e depois disse:
— Não acho que a Margaret esteja assim tão interessada em continuar aqui, pois não?
— Não. Ela quer viver com a mãe. Mas eu não quero. A Meriel detesta-me porque eu sou um homem. Eu queria ficar consigo e com o meu pai.
Frances foi preparar-se para o ensaio, pensando que tinha passado muito tempo desde que se lembrava, sequer, de que tencionara arranjar uma casa sua e viver nela, auto-suficiente e independente. O dinheiro que poupara para a comprar fora-se sumindo alarmante-mente. Uma parte destinara-se a pagar a terapia de Meriel, cuja pensão mensal ainda estava a pagar. Rupert vendera o apartamento de Marylebone, mas dois terços do dinheiro tinham ido para Meriel. Rupert e Frances pagavam conjuntamente uma renda razoável para morarem ali, naquela casa — os dois e os dois filhos dele. Ele pagava as despesas da escola das crianças. Frances ganhava dinheiro de vários livros, panfletos e reedições, mas quando fazia as suas continhas, uma boa parte fora parar às mãos de Meriel. Encontrava-se numa situação familiar nos nossos tempos: mantinha uma primeira mulher.
Entrou no quarto conjugal, com as suas duas camas: aquela onde dormira sozinha durante tanto tempo e a outra, grande, que era agora o centro emocional da sua vida. Sentou-se na cama de solteira e olhou para o pijama de Rupert, dobrado em cima da sua almofada. Era de uma popelina azul-esverdeada, um pijama sóbrio, na aparência, mas quando se lhe tocava tornava-se sedoso e macio. Quando conhecemos Rupert, ele deve dar uma impressão de solidez, de força, mas quando vemos a delicadeza do seu rosto, as mãos sensitivas... Frances sentou-se no lado dele da cama e acariciou o pijama.
Estava arrependida de ter dito sim a Rupert, aos seus filhos, à situação... não-situação? Não, nunca, nem por um momento.
Ela tinha a sensação de que, demasiado tarde na sua vida, como num conto de fadas, encontrara inesperada e repentinamente uma clareira cheia de sol, e até sonhava com cenas semelhantes e sabia que era com Rupert que sonhava. Tinham sido ambos casados, tinham pensado que se podia dizer que os desagradáveis companheiros dessas uniões representavam a súmula do casamento, mas haviam descoberto uma felicidade que não esperavam, em que nem sequer tinham acreditado. Tinham ambos vidas exteriores atarefadas, ele no seu jornal e ela no teatro, e ambos conheciam o que lhes parecia serem centenas de pessoas, mas tudo isso era um mundo exterior e o que estava no coração do que os unia era esta grande cama, onde tudo era compreendido e nada precisava de ser dito. Frances acordava de um sonho e dizia a si mesma, e depois a Rupert, que tinha estado a sonhar com felicidade. Quem quisesse que zombasse, e não faltava quem o fizesse, mas havia uma coisa chamada felicidade e estava ali, assim como eles estavam ali, ambos, contentes como gatos ao sol. Mas estas duas pessoas de meia-idade — como a cortesia mandaria que se lhes chamasse — guardavam bem guardado, para si, um segredo que, sabiam-no, feneceria se fosse exposto. E não eram os únicos: a ideologia decretara semelhante condição impossível e, por isso, as pessoas calavam-se.
Regressar a uma casa que nos amou, que nos recebeu, que nos manteve em segurança, a uma casa que nos envolveu nos seus braços, que pusemos sobre a cabeça como um cobertor e nos aninhámos nela como um animalzinho perdido... mas agora já não é a nossa casa, é a casa de outras pessoas... Sylvia subiu aquela escada, com os seus pés a identificarem cada degrau, cada curva: aqui encolhera-se a escutar o barulho e o riso da cozinha, pensando que nunca, jamais, seria aceite por ela; e aqui Andrew encontrara-a e transportara-a para a cama, aconchegara-a, dera-lhe chocolate que tirara do seu bolso. Aqui fora o seu quarto, mas agora tinha de o deixar para trás e subir. Aqui fora o quarto de Andrew e o de Colin. E agora ela dirigia-se para o último andar, o de Julia, e no patamar não soube em que porta bater, mas não se enganou na tentativa, pois a voz de Colin respondeu-lhe «Entre», e ela encontrou-se na antiga sala de Julia e Colin estava à... não, aquela não era a pequena secretária de Julia, mas outra grande, que ocupava uma parede. Se todas as coisas que tinham sido de Julia tivessem sido retiradas e agora só houvesse móveis novos, teria sido fácil, mas estavam ali a cadeira de Julia e o seu pequeno escabelo, e era como se o aposento lhe desse as boas-vindas e, ao mesmo tempo, a repelisse. Colin parecia completamente desfigurado. Era um homenzarrão inchado, que em breve seria só gordura balofa se...
— Sylvia — disse ele, interrompendo-lhe os pensamentos —, por que te foste embora assim, sem mais nem menos? Quando me disseram, esta manhã...
— Deixa lá isso, não tem importância. Queria realmente falar contigo a respeito de uma coisa.
— E eu peço-te desculpa. Esquece o que te disse a noite passada. Apanhaste-me num mau momento. Se estive a criticar a Sophie... esquece. Eu amo-a. Amei-a sempre. Lembras-te, fomos sempre... uma equipa?
Sylvia sentou-se na cadeira de Julia, pois sabia que o seu coração não aguentaria se não se acautelasse, por causa de Julia, e ela não queria isso, não queria perder tempo com... Colin estava defronte dela, de costas para a grande secretária e sentado numa cadeira giratória. Estava ali esparramado, de pernas estendidas, e depois sorriu, com a brutal autocrítica da sua embriaguez.
— E há outra coisa: que direito temos nós de esperar qualquer espécie de normalidade? Com a história da nossa família? Só guerras, rupturas e os camaradas? Que disparate! — Riu-se, e o cheiro a álcool encheu a sala.
— Tens de parar de beber, se queres ter um bebé. Podes deixá-lo cair ou...
— O quê? Eu posso o quê, minha pequena Sylvia?
Ela suspirou e disse docemente, humildemente, apresentando-lhe o caso como se lhe mostrasse uma imagem num livro.
— Joshua, é o homem de que te falei... um negro, evidentemente... deixou cair o filho de dois anos no lume. Ficou tão gravemente queimado que... é claro, se tivesse acontecido neste país teria havido o tratamento adequado para ele.
— Bem, Sylvia, eu não penso que vá deixar cair o nosso filho no lume. Tenho perfeita consciência de que sou... de que podia ser mais satisfatório. — Aquilo era tão cómico que ela se riu e Colin também, mas não logo. — Estou uma desgraça. Mas o que esperas da progénie do camarada Johnny? Sabes uma coisa? Enquanto fui apenas um urso numa caverna, saindo para ir até um bar ou um caso aqui e uma relação — aqui tens uma palavra que dá pano para mangas —, bem, nesse tempo não me considerei uma desgraça. Mas assim que a minha Sophie se mudou para cá e passámos à fase das famílias felizes, soube que não passava de um urso e nunca seria possível adestrar-me para a domesticidade. Não sei por que motivo ela me atura.
— Colin, gostava realmente de te falar de uma coisa.
— Eu digo-lhe que se perseverar ainda pode fazer de mim um marido.
— Por favor, Colin.
— O que queres que eu faça?
— Quero que vás a Zimlia, vejas as coisas com os teus próprios olhos e escrevas a verdade.
Silêncio. O sorriso dele tornou-se suavemente satírico.
— Como me fazes recuar no tempo! Lembras-te, Sylvia, de quando os camaradas estavam sempre a ir à União Soviética ou a países comunistas associados para verem pessoalmente e regressarem para nos dizerem a verdade? Na realidade, temos o direito de concluir, com todos os discernimentos com que, afortunados herdeiros, fomos dotados, que se há uma maneira de não descobrir a verdade é indo a algum lado para vermos com os nossos olhos.
— Não queres, portanto, fazê-lo?
— Não, não quero. Não quero saber nada a respeito de África.
— Eu podia contar-te. Não compreendes? O que está a passar-se não tem nada que ver com o que os jornais dizem.
— Espera um momento. — Girou a cadeira, abriu uma gaveta, tirou um recorte de jornal e perguntou, estendendo-lho:
— Viste isto? Assinatura: Johnny Lennox.
— Vi. A Frances mandou-mo. É um disparate tão grande. O camarada Líder não é como o jornal o descreve.
— Surpresa, surpresa!
— Quando vi o nome do Johnny, não pude acreditar. Quer dizer que ele se tornou um perito em África?
— Por que não? Todos os ídolos deles revelaram ter pés de barro, mas anima-te! Há uma reserva ilimitada de grandes líderes em África, bandidos, fanfarrões e ladrões, de modo que todas as pobres almas que têm de amar um líder podem amar os líderes pretos.
— E quando há uma chacina, ou uma guerra tribal, ou alguns milhões que desaparecem, a única coisa que têm de fazer é murmurar: «É uma cultura diferente» — disse Sylvia, sucumbindo aos prazeres do despeito.
— E, no fim de contas, o pobre Johnny precisa de comer, coitado. Deste modo, é sempre convidado de um ditador ou outro.
— Ou discute numa conferência a natureza da Liberdade.
— Ou num simpósio sobre a Pobreza.
— Ou num seminário convocado pelo Banco Mundial.
— Na realidade, essa é parte do problema: os velhos vermelhos não podem perorar sobre Liberdade e Democracia, e é isso que consta das nossas agendas. Johnny já teve mais procura do que tem. Oh, Sylvia, sinto tanto a tua falta! Por que vives tão longe? Por que não podemos viver todos juntos, para sempre, nesta casa e esquecer o que se passa lá fora? — Estava animado, perdera a palidez da ressaca, ria-se.
— Se eu te desse todos os factos, o material, poderias escrever alguns artigos.
— Por que não pedes ao Rupert? Ele é um jornalista sério. — E acrescentou: — É um dos melhores. É bom.
— Mas quando eles são tão conhecidos não gostam de correr riscos. Andam todos a dizer que Zimlia é maravilhosa. Sozinho, expunha-se, ficava em desvantagem.
— Costuma dizer-se que eles gostam de ser os primeiros.
— Então por que não é ele um deles? Eu podia pedir ao Padre McGuire que fizesse o esboço de um artigo e tu poderias usá-lo como uma base.
— Ah, sim, o Padre McGuire. O Andrew disse-me que nunca tinha compreendido antes o verdadeiro significado de um capão engordado. — Sylvia mostrou-se aborrecida. — Desculpa.
— Ele é um bom homem.
— E tu és uma boa mulher. Nós não somos dignos de ti... desculpa, desculpa, mas, pequena Sylvia não compreendes que te invejo? É essa tua candura, de olhar limpo e coração puro... onde a arranjaste? Oh, sim, evidentemente, és católica. — Levantou-se, sentou Sylvia no seu joelho e aninhou o rosto no pescoço dela. — Juro que cheiras a luz do Sol. A noite passada, quando foste tão simpática comigo, foi isso que pensei: cheira à luz do Sol.
Sylvia sentiu-se pouco à vontade. E ele também. Era incongruente, aquela posição, para ambos. Ela deslizou para a sua cadeira.
— Vais tentar não beber tanto?
— Vou.
— Prometes?
— Sim, Sylvia, sim, Sônia,(4) prometo.
— Enviar-te-ei material.
— Farei o melhor que puder.
Sylvia bateu à porta do apartamento da cave, ouviu um ríspido «Quem é?», espreitou pela abertura da porta e, do fundo da escada, uma mulher magra de elegantes calças de tom bronzeado, blusa a condizer
*4. Referência a uma personagem da peça de Tchekov O Tio Vânia. (NT)
e cabelo acobreado, cortado curto, olhou para cima, para ela. Era uma mulher como uma faca.
— Em tempos morei nesta casa — informou Sylvia. — E ouvi dizer que vai morar com a minha mãe.
Meriel não abrandou a inspecção hostil. Depois virou as costas a Sylvia, acendeu um cigarro e disse, no meio de uma nuvem de fumo:
— Sim, de momento é esse o plano.
— Sou a Sylvia.
— Já calculava que fosse.
As divisões que Sylvia olhava eram, como recordava, mais parecidas com as instalações de um estudante do que outra coisa, mas agora estavam muito arrumadas. Pareceu-lhe que Meriel estava a fazer as malas. Voltou-se, para dizer:
— Eles querem este espaço. A sua mãe teve a amabilidade de me oferecer um abrigo enquanto procuro qualquer coisa.
— E vai trabalhar com ela?
— Quando acabar o curso trabalharei por minha conta.
— Compreendo.
— E quando tiver a minha própria casa terei as crianças comigo.
— Bem, espero que corra tudo bem, como deseja. Desculpe tê-la incomodado. Só queria... ver, em memória dos velhos tempos.
— Não bata com a porta. Esta casa é muito barulhenta. As crianças fazem o que lhes apetece.
Sylvia meteu-se num táxi para casa da mãe. Ali pouca coisa mudara. Incenso, símbolos místicos em almofadas e cortinas, e a sua mãe, corpulenta e furiosa, mas toda sorrisos e boas-vindas.
— Que simpático da tua parte dares-te ao trabalho de me visitar.
— Regresso a Zimlia esta noite.
Phyllida examinou a filha lenta e minuciosamente.
— Bem, Tilly, estás com um aspecto completamente ressequido. Por que não usas cremes para a pele?
— Passarei a usar. Tem razão. Mãe, acabo de conhecer a Meriel.
— Sim?
— O que aconteceu à Mary Constable?
— Tivemos uma troca de palavras.
Esta frase trouxe repentinamente à memória de Sylvia um tumulto de recordações: ela e a mãe, nesta pensão ou naquele quarto mobilado, sempre a mudar-se, geralmente por causa de rendas por pagar; senhorias que eram as melhores amigas mas se tornavam inimigas, e aquela frase: «Tivemos uma troca de palavras.» Tantas palavras, tão frequentemente. E depois Phyllida casou com Johnny.
— Lamento.
— Não lamentes. Não falta quem queira. Pelo menos a Meriel teve filhos. Sabe o que é roubarem-lhe os filhos.
— Bem, vou andando. Só passei por cá...
— Não esperava que te sentasses e tomasses uma chávena de chá.
— Eu tomo uma chávena de chá.
— Aqueles fedelhos da Meriel, aquilo são umas prendas...
— Nesse caso, talvez ela se livre deles?
— Para aqui não vêm; portanto, ela escusa de pensar nisso.
— Se vamos tomar chá, é melhor tomá-lo. São quase horas de partir para o aeroporto.
— Nesse caso, é melhor ires andando, não achas?
Sylvia estava de novo nas Chegadas do aeroporto de Senga, tão apinhado como quando ali estivera a última vez, e com as mesmas duas espécies de pessoas divididas pela cor, mas também, e muito mais, pelo estatuto. Mas houvera uma mudança. Quatro, não, cinco anos atrás tratara-se de uma multidão vigorosamente confiante, mas tão pouco tempo decorrido depois dessa guerra os rostos e a postura dos corpos ainda revelavam uma apreensão experimentada, como se as notícias da paz não tivessem sido realmente assimiladas pela pessoa inteira. Os nervos ainda estavam alerta à espera de más notícias. Mas agora esta multidão estava exuberante, triunfante com as boas compras feitas em Londres, que sobrecarregavam a pequena e rangente passadeira rolante ao ponto de grandes malas, frigoríficos, bagagem vária e móveis caírem e serem perseguidos pelos seus sorridentes proprietários. Nunca houvera uma população de viajantes mais francamente satisfeita consigo mesma do que esta; no avião, entre os brancos, tinham circulado, com a satisfação da coscuvilhice, as palavras a nova nomenclatura.
E, uma vez mais, a mesma divisão no modo de vestir, a nova elite negra nos seus fatos de três peças, enxugando o copioso suor dos rostos radiantes, e os brancos de práticos jeans e T-shirts a caminho de cem diferentes humildes postos no mato ou na cidade. Em breve, ambas estas tão diferentes categorias concentravam o olhar no mesmo ponto: uma jovem negra dos seus dezoito anos, muito bonita, ostentando o vestuário avançado de um qualquer estilista, saltos altos como espetos e o petulante rosto franzido de jovem mimada. Requisitara os serviços de dois dos carregadores e estavam a ser retiradas da passadeira rolante uma, duas, três, quatro — seria tudo? —, não, sete, oito malas Vuitton. «Rapaz, traz aquela para aqui», dizia-lhes, na voz alta e peremptória que aprendera com as madames brancas de outros tempos, nenhuma das quais ousaria usá-la agora. «Rapaz, despacha-te.» Avançou para a frente da bicha. «Rapaz, mostra as minhas malas ao funcionário.» Um negro forte, da bicha, disse-lhe qualquer coisa em tom avuncular e solícito, como se quisesse revelar à turba o seu relacionamento com aquela deslumbrante criatura, enquanto ela sacudia a cabeça e lhe respondia com um sorriso entre meio satisfeito e meio Quem és tu para me dizeres o que devo fazer. Todos os negros observavam orgulhosamente aquele feito da sua Independência, enquanto os rostos brancos dos mortais inferiores não denunciavam qualquer comentário, embora não houvesse dúvida quanto a uma troca de olhares. Discutiriam o incidente mais tarde, na segurança das suas casas. Na Alfândega ela declarou: «Sou filha de Fulano de Tal», — um ministro importante —, e depois disse aos carregadores: «Rapaz... rapaz... sigam-me.» E passou assim pela Alfândega e depois pela Imigração como se elas não existissem.
Sylvia tinha quatro malas grandes e uma pequena maleta para as suas roupas, e enquanto observava recheios inteiros de casas a serem marcados com o visto a giz dos funcionários alfandegários, sabia que não podia esperar o mesmo. Desta vez não tivera sorte com quem se sentara a seu lado no avião. Perscrutou os rostos dos funcionários da Alfândega à procura do rosto jovem e amigável da última vez, mas ou ele não estava de serviço ou evoluíra e tornara-se um daqueles funcionários correctos. Quando chegou ao início da bicha, confrontou-a um homem carrancudo.
— O que traz aqui?
— São duas máquinas de costura.
— E para que quer máquinas de costura? São para o seu negócio?
— Não, são presentes para as mulheres da Missão de Kwadere.
— Presentes. E o que lhes pagam elas em troca?
— Nada — respondeu Sylvia, sorrindo: sabia que as máquinas tinham impressionado o homem; talvez tivesse visto a mãe ou uma irmã a trabalharem numa. Mas o dever levou a melhor.
— Têm de ir para o depósito. Depois será informada do que terá de pagar por elas. — As duas caixas foram colocadas de lado. Sylvia sabia que provavelmente não voltaria a vê-las. «Extraviar-se-iam.»
— E o que é tudo isto? — Bateu nos lados das duas caixas como se fossem portas.
— Livros. Para a Missão.
Apareceu de imediato no rosto do homem uma expressão que ela conhecia demasiado bem: avidez. Pegou numa alavanca e introduziu-a no topo de uma das caixas: livros. Pegou num, folheou-o com vagar, e suspirou. Pôs os livros no lugar e usou a alavanca para colocar a tampa. Parecia indeciso.
— Por favor... esses livros fazem muita falta.
Foi por um triz. «Está bem», disse ele. Ela trocara duas máquinas de costura pelos livros, mas sabia o que as mulheres da Missão escolheriam.
Passou sem dificuldade pela Imigração, e lá estava a Irmã Molly à espera, sorridente, aureolada por aquela luminosidade que significava ter a chuva limpo recentemente o ar. A estação das chuvas chegara. Tarde, mas chegara. A questão agora era: tinha vindo para ficar? Nos últimos três ou quatro anos as chuvas tinham quebrado, de facto, a longa seca, mas depois abalaram de novo. A região encontrava-se oficialmente em estado de seca, mas hoje não se sabia, com complacentes nuvens brancas a vogar no azul e poças por todo o lado. O sol reflectia-se da cruz da Irmã Molly e irradiava das suas fortes pernas bronzeadas. Saudável, era a palavra adequada para ela. Como saudável era aquela paisagem, onde tudo era forte e vigoroso, árvores e arbustos recém-lavados e uma multidão bem-humorada a desaparecer em carros oficiais e modestos autocarros. Sylvia sentia-se de novo ela mesma. A sua visita a Londres não fora um êxito, a não ser no tocante às caixas de livros. Mas a experiência fechou-se bruscamente atrás dela. Londres parecia-lhe irreal: real era aquilo ali.
O banco de trás do velho carro da Irmã Molly abaulou-se sob o peso dos grandes caixotes. Ela começou imediatamente a falar, anunciando que houvera escândalos. Ministros tinham sido acusados de aceitar subornos e roubar. Falava com o deleite que confirma uma satisfação de que está tudo a correr como se esperava.
— E o Padre McGuire disse que havia uns problemas quaisquer na Missão. A São Lucas foi acusada de roubo.
— Isso é um disparate.
— Os disparates podem ter muita força. — Sylvia teve a impressão de que o olhar que lhe lançava aquela freira — pois afinal era isso que ela era — parecia demasiado admoestador — um aviso? — para a ocasião. Havia algo errado. Não devia ignorar tudo o que ela dizia. Tratava-se de uma jovem muito dotada. Dirigia um plano que trazia professores da América e da Europa para ensinarem dois anos em Zimlia, devido à escassez de professores negros, e isso era — por enquanto — visto com bons olhos pelo governo negro, porque permitia poupar nos ordenados dos professores. Alguns encontravam-se em escolas situadas em áreas remotas, e a Irmã Molly andava quase permanentemente em viagem para ver como iam os seus protegidos.
«Alguns deles são provenientes de famílias abastadas e não fazem a mínima ideia daquilo a que vêm, e depois encontram-se numa escola como a de Kwadere e podem reagir mal.» Crises nervosas, períodos de depressão, esgotamentos de toda a espécie eram enfrentados por esta jovem mulher competente como um risco do trabalho: era bondosa e confortadora e às vezes uma jovem apaparicada de Filadélfia ou de Los Angeles podia dar consigo a ser embalada ao som do profundo «Então, então, vamos lá...», nos braços desta Molly que iniciara a vida num lar pobre de Galway.
— E ouvi dizer que há de novo sarilhos na escola, que o director fugiu com o dinheiro e o Padre McGuire está outra vez a trabalhar a dobrar. É curioso, não acha? Todos aqueles directores e ladrões desavergonhados parecem convencidos de que são invisíveis para os restantes de nós e para a polícia. O que se passará naquelas pobres cabeças?
Mas ela não queria uma resposta, o que queria era continuar a falar e que Sylvia a ouvisse. Não tardou a regressar ao seu verdadeiro centro de gravidade, que era o Santo Padre e as suas deficiências, pois além de ser um homem estava a «meter ideias» nas cabeças de padres que trabalhavam em várias partes do mundo. Ouvir esta sequência de palavras, neste contexto — porque uma das principais queixas dos brancos fora que as missões «metiam ideias» nas cabeças dos negros —, era uma estranha satisfação, a mesma utilizada como combustível por Colin nos seus livros — a infinita incongruência de que a vida era capaz. (Não muito antes de partir para Londres, Sylvia ouvira Edna Pyne dizer que a presente delinquência dos negros era consequência das ideias que lhes tinham sido metidas na cabeça cedo demais no seu desenvolvimento evolutivo.)
— E que ideias podem ser essas? — conseguiu Sylvia perguntar, e como resposta obteve apenas o velho refrão de Molly de que o Papa era sexista e não compreendia as provações das mulheres. A chave era o controlo dos nascimentos, disse a Irmã Molly, e o Papa podia ter as chaves do Céu e ela não queria discutir a esse respeito, mas não compreendia esta terra. Se ele se visse com uma tribo de nove pirralhos e sem dinheiro suficiente para lhes encher a barriga, outro galo cantaria.
E, num estado de branda e agradável indignação, a Irmã Molly conduziu todo o caminho até à Missão de São Lucas, onde deixou Sylvia com as suas caixas de livros.
— Não, não entro. Caso contrário, terei de visitar o convento das freiras. — E Sylvia ouviu o que a outra pretendera que ouvisse, de facto: «a capoeira».
A casa do padre erguida na poeira, as hirsutas árvores da borracha, o sol a assinalar o convento e a meia dúzia de telhados da escola na colina — tudo isto parecia tão miserável, uma incursão tão superficial à antiga paisagem — e tinha regressado a casa, sim, era isso que sentia — e também que tudo poderia ser levado por um sopro. Parou, com o cheiro de terra molhada nas narinas e um calor a subir dela para as suas pernas. Depois Rebecca apareceu, a gritar «Sylvia, oh, Sylvia», e as duas mulheres abraçaram-se. «Oh, Sylvia, senti tanto a sua falta.» Mas Sylvia sentia que aquilo que estava a abraçar condizia com os seus sentimentos de evanescência, de fugacidade. O corpo de Rebecca era como o mais frágil molho de ossos frágeis, e quando Sylvia a afastou para a olhar no rosto viu os olhos dela afundados no crânio, sob o velho e desbotado lenço.
— O que aconteceu, Rebecca?
— Muito bem — respondeu a mulher, como se dissesse, eu conto-lhe. Mas primeiro pegou na mão de Sylvia e levou-a para o interior da casa, onde a sentou à mesa e se sentou defronte dela. — O meu Tenderai está doente. — Nenhuma dissimulação, enquanto os dois pares de olhos se devassavam mutuamente. Dois dos filhos de Rebecca tinham morrido, outro estivera muito tempo doente, e agora era a vez de Tenderai. A fonte da doença era o marido de Rebecca, ainda aparentemente de boa saúde, mas magro e a beber. Segundo todas as regras da probabilidade, Rebecca devia ser HIV positiva, mas sem análises quem poderia saber? E se fosse, o que se podia fazer? Ela não era mulher para andar a dormir por aí, espalhando a fatal doença.
Sylvia estivera ausente uma semana.
— Muito bem — disse Sylvia por sua vez, usando aquela nova, ou moderna, expressão que parecia agora iniciar todas as frases. Queria dizer que compreendera a informação e partilhava os receios de Rebecca. — Eu examino-o e vejo. Talvez seja apenas uma doença temporária.
— Espero que sim — disse Rebecca e, deixando para trás as preocupações familiares, acrescentou: — E o Padre McGuire anda a trabalhar demais.
— Já ouvi dizer. E que história é essa do roubo?
— Uma idiotice. E a respeito dos caixotes de equipamento do hospital aonde fomos. Andam a dizer que você os roubou.
Sylvia andara a pensar, pois em Londres todos os seus pensamentos tinham sido relacionados com a Missão, que seria sinal de bom senso voltar às ruínas do hospital e levar tudo quanto pudesse ter utilidade. Mas havia mais alguma coisa além daquilo, e Rebecca não se abria.
Olhava vagamente para o ar e o seu rosto estava tenso de embaraço e com a apreensão dos problemas.
— Diga-me, por favor, Rebecca. O que é?
Rebecca continuou sem olhar para Sylvia, mas repetiu que era tudo uma grande idiotice. Havia um encantamento nos caixotes — usou a palavra inglesa e depois acrescentou: «O riganga disse que aconteceriam coisas más a quem tivesse roubado alguma coisa do hospital.» E levantou-se e declarou que eram horas de preparar o almoço do Padre McGuire, e que esperava que Sylvia também tivesse fome, pois ela fizera um pudim de arroz especial.
Enquanto Rebecca estivera sentada defronte dela, e na mente de ambas tinham estado Tenderai e os filhos, mortos e vivos, houvera entre as duas mulheres uma franqueza e uma confiança absolutas. Mas agora Sylvia sabia que Rebecca não lhe diria mais nada, pois nesse aspecto sabia que ela não compreenderia.
Sylvia sentou-se na sua cama cercada por paredes de tijolo, a olhar para as mulheres de Leonardo com a sensação de que lhe estavam a dar as boas-vindas ao lar. Depois voltou-se para o crucifixo atrás da sua cama, com a intenção deliberada de afirmar certas ideias que tinham estado a crescer clamorosamente no seu pensamento. Ninguém que subscrevesse os milagres da Igreja Católica Romana deveria acusar outras pessoas de superstição: este era o rumo do seu pensamento e estava longe de ser uma crítica da religião. Aos domingos, era dito aos fiéis que vinham receber a Eucaristia do Padre McGuire que iam beber o sangue e comer a carne de Cristo. A pouco e pouco, fora compreendendo quão profundamente as vidas das pessoas negras entre as quais vivia estavam impregnadas de superstição, e o que ela queria era compreender tudo, e não transformar o que pensava em «inteligentes comentários intelectuais». Do tipo dos que Colin e Andrew fariam, disse para consigo. Mas o facto persistia: havia uma área onde ela, Sylvia, não podia penetrar, nem devia criticar, em Rebecca, assim como em qualquer casual trabalhador negro, embora Rebecca fosse a sua boa amiga.
Teria de recorrer aos Pyne, se o Padre McGuire não ajudasse. Durante o almoço tocou no assunto, enquanto Rebecca escutava do aparador, e acrescentou, quando o sacerdote recorreu a ela à procura de confirmação:
— Muito bem. É verdade. E agora quem tirou as coisas está a ficar doente e é por causa do que o ríganga disse.
O Padre McGuire não tinha bom aspecto. Estava amarelo e as manchas febris das suas largas bochechas irlandesas pareciam arder.
Mostrava-se impaciente e irritado. Era a segunda vez em cinco anos que tinha de ensinar durante o dobro das suas horas normais. E a escola estava a cair aos bocados e Mr. Mandizi limitava-se a repetir que informara as autoridades de Senga da situação. O padre voltou para a escola sem a sua sesta habitual, e Sylvia e Rebecca desencaixo-taram os livros e improvisaram prateleiras com tábuas e tijolos. Em breve, uma parede inteira de cada lado da pequena cómoda estava coberta de livros. Rebecca chorara ao saber que as máquinas de costura tinham sido apreendidas — esperara ganhar algum dinheiro extra a coser na sua —, mas as suas lágrimas, quando olhou e tocou nos livros, eram de alegria. Chegou mesmo a beijá-los.
— Oh, Sylvia, é tão maravilhoso que tenha pensado em nós e nos tenha trazido os livros!
Sylvia foi ao hospital, onde Joshua estava sentado a dormitar debaixo da sua árvore, como se não a tivesse deixado na sua ausência, e onde os rapazinhos a acolheram clamorosamente e ela cuidou dos seus doentes, muitos deles em consequência de tosses e resfriados resultantes das súbitas mudanças de temperatura no início das chuvas. Depois meteu-se no carro e foi a casa dos Pyne, que preenchiam um espaço precioso na sua vida: quando precisava de informação, era a eles que recorria.
Os Pyne tinham comprado a sua fazenda nos anos 50, depois da Segunda Guerra Mundial, naquela última leva de imigração branca. Cultivavam principalmente tabaco e tinham sido bem-sucedidos. A casa ficava numa elevação de onde dominava os altos montes desordenados, que na estação seca o fumo e a neblina tornavam azuis, mas se apresentavam agora de um verde vivo, da folhagem, e cinzentos dos blocos de granito. A varanda de pilares tinha largura suficiente para lá se darem festas, festas que antes da Liberação tinham sido muitas, mas eram agora poucas, devido a terem partido tantos brancos. O chão era vermelho polido e estava cheio de mesas baixas, cães e alguns gatos. Cedric Pyne estava sentado a tomar chá, enquanto afagava a cabeça do seu cão preferido, uma cadela de lombo arqueado chamada Lusaka. Edna Pyne, elegante de calças e camisa e com a pele reluzente de cremes solares, estava sentada junto do bule, com a sua cadela, Sheila, irmã de Lusaka, tão perto quanto podia da sua cadeira. Ouvia o marido pronunciar-se sobre as deficiências do governo negro. Sylvia bebeu chá e escutou os dois.
Se tivera de ouvir a Irmã Molly falar do assunto do Papa e do seu machismo inveterado; se tinha de escutar todos os dias o Padre McGuire dizer que estava velho, já não se sentia à altura e ia regressar à Irlanda; se tivera de ouvir Colin lamentar a sua situação com Sophie, agora tinha de ter calma e esperar uma oportunidade para falar das suas próprias preocupações.
As dificuldades da situação — os agricultores brancos — eram fáceis de compreender. Constituíam os alvos principais do ódio dos negros e choviam insultos sobre eles todas as vezes que o Líder abria a boca, mas eram eles que obtinham a moeda estrangeira que mantinha o país a funcionar, principalmente para pagar os juros dos empréstimos concedidos por... Mentalmente, Sylvia via Andrew, um indivíduo sorridente e afável, a estender um grande cheque com inúmeros zeros enfileirados, enquanto com a outra mão aceitava outro cheque com um igual número de zeros. Esta era a estenografia visual a que ela recorria para explicar a engrenagem de Dinheiro Global a Rebecca, que dera uma pequena gargalhada, suspirara e dissera «Está bem».
Em virtude do socialismo do Líder, abraçado já num ponto avançado da sua vida com toda a força de uma conversão, várias políticas que ele considerava essenciais para o marxismo tinha adquirido a força de mandamentos. Uma delas era a de que nenhum trabalhador podia ser despedido, o que significava que cada patrão carregava um peso morto de trabalhadores que, sabendo-se em segurança, bebiam, não trabalhavam, preguiçavam ao sol e roubavam tudo — exactamente como os seus superiores. Este era um dos artigos da litania de queixas que Sylvia ouvia com muita frequência. Outro é que não podiam comprar peças sobresselentes para máquinas que se avariavam e era impossível comprar máquinas novas. As que eram importadas iam direitas para os ministros e para as suas famílias. Estas queixas, as mais frequentes, eram menos importantes do que a principal, que, como acontece com tantos factos principais, cruciais, básicos, era raramente referida, simplesmente por ser demasiado obviamente importante para precisar de ser dita. Por serem constantemente ameaçados de expulsão e de as suas propriedades serem expropriadas, não tinham nenhuma segurança, não sabiam se deviam ou não investir, viviam na dúvida de um mês para o outro. Edna Pyne interrompeu a conversa e disse que estava farta e se queria ir embora. «Eles que fiquem com ela para aprenderem o que perderam quando nos formos embora.»
Esta fazenda, comprada com os seus hectares virgens e sem um campo limpo sequer, quanto mais aquela grande casa, estava agora equipada com toda a espécie de edifícios e apetrechos agrícolas: celeiros, barracões, cercados para cavalos, poços, furos e, como recente melhoria, uma grande barragem. Todo o capital deles estava ali. Não tinham nada quando chegaram.
Cedric respondeu à mulher, num tom áspero que Sylvia já ouvira antes:
— Não vou desistir. Eles terão de vir e pôr-me fora.
Começaram as lamentações de Edna. Desde a Libertação que era difícil comprar produtos básicos como café decente ou uma lata de peixe. «Eles» não podiam ter sequer uma reserva decente de farinha de trigo para os trabalhadores, tinham de manter um armazém cheio até ao tecto com farinha para a próxima vez que a força laboral aparecesse a reclamar comida. Estava farta de ser desconsiderada. Eles — os Pyne — pagavam agora a escola a doze crianças negras, mas nenhum daqueles pulhas negros do governo dava, nunca, crédito aos fazendeiros por nada do que faziam. Eram todos prosápia e incompetência, eram ineficientes e só se preocupavam com quanto apanhavam para eles próprios, estava farta de...
O marido sabia que ela tinha de desabafar, assim como ela sabia que ele também tinha, sempre que uma cara nova aparecia na varanda, e estava sentado em silêncio, a olhar para os campos de tabaco — verdejantes —, para onde as nuvens da estação das chuvas se acumulavam para o que prometia ser uma tarde tempestuosa.
— És doido, Cedric — disse-lhe a mulher na cara, numa evidente repetição de muitas altercações em privado. — Devíamos agir enquanto é tempo e ir para a Austrália como os Freeman e os Butler.
— Já não somos tão novos como éramos. Esqueces-te sempre disso.
Mas ela persistiu.
— E os disparates que temos de aturar. A mulher do cozinheiro está doente porque lhe deitaram o mau olhado. O que ela tem é malária, porque não gosta de tomar os comprimidos. Eu digo-lhes, estou sempre a dizer-lhes, se não tomam os comprimidos para a malária adoecem. Mas digo-lhes uma coisa, aquele riganga deles tem mais responsabilidade no que se passa neste distrito do que qualquer funcionário governamental.
Sylvia intrometeu-se no jorro de lamentações:
— Era isso que queria perguntar-lhes. Preciso dos vossos conselhos.
Acto contínuo, fixaram-se nela dois pares de olhos azuis: dar conselhos era aquilo que eles se sabiam preparados para fazer. Sylvia esboçou a história.
— E por isso, agora, sou uma ladra. E que mau olhado é esse que foi lançado novo hospital?
Edna permitiu-se uma gargalhada leve e furiosa.
— Lá está isso outra vez. Está a ver? Pura estupidez. Quando o dinheiro para o novo hospital se esgotou...
— Esgotou-se porquê? Umas vezes ouço dizer que foram os suecos, outras que foram os alemães... quem foi, afinal?
— Que interessa? Suecos, dinamarqueses, os ianques, o não sei quantos... O que importa é que o dinheiro desapareceu da conta bancária em Senga e eles afastaram-se. O Banco Mundial, ou o Dinheiro Global, ou a Cooperação Internacional, ou seja quem for, há centenas desses benfeitores idiotas que tentam arranjar novos fundos, mas até agora sem sucesso. Não sabemos o que está a acontecer. Entretanto, os caixotes de equipamento apodrecem, segundo dizem os negros.
— Sim, eu vi-os. Mas por que mandam o equipamento antes de o hospital estar sequer construído?
— Isso é típico — declarou Edna Pyne com a satisfação de, mais uma vez, demonstrar que tinha razão. — Não pergunte porquê... se é maldita incompetência, não pergunte, sequer. Pressupunha-se que o hospital estaria pronto e a funcionar num prazo de seis meses, ora eu pergunto-lhe, que estupidez, que diabo se espera dos idiotas de Senga? O Grande Chefe local, Mr. Mandizi, como ele próprio se intitula, foi ter com o n'ganga e pediu-lhe que fizesse constar que rogaria uma praga a alguém que roubasse alguma coisa dos caixotes ou pusesse sequer um dedo neles.
Cedric Pyne soltou uma gargalhada seca e breve.
— Muito bem achado — declarou. — Confessa, Edna, essa foi de mestre.
— Se assim o dizes, querido. Bem, funcionou. Mas depois parece que a Sylvia foi lá e se serviu, e isso quebrou o encantamento.
— Meia dúzia de arrastadeiras. Não tínhamos nem uma no hospital.
— Agora têm meia dúzia a mais. — disse Cedric.
— Por que é que ninguém me disse? Estavam comigo e com a Rebecca seis mulheres da aldeia. Elas apenas... se serviram. Não me disseram nada.
— Não seria de esperar outra coisa, pois não? Vocês são a Missão, vocês são Deus Pai e a Igreja e o Padre McGuire está sempre a ralhar-lhes por serem supersticiosos. Mas consigo ali, provavelmente pensaram que o muti de Deus era mais forte do que o do feiticeiro.
— Bem, não foi. Porque agora há gente a morrer e dizem que é por terem roubado dos caixotes. Isso é o que a Rebecca diz. Mas trata-se de sida.
— Oh, sida.
— Por que diz isso dessa maneira? É um facto.
— Oh, essa é a maldita última gota — declarou Edna Pyne —, aí tem porquê. Eles vêm da aldeia e querem muti. Eu digo-lhes que não há muti para a sida e eles parecem pensar que eu tenho muti, mas não lho quero dar.
— Eu conheço o ri ganga — disse Sylvia. — Às vezes peço-lhe que me ajude.
— Bem — comentou Cedric —, isso equivale a entrar inocentemente no covil do leão.
— Não lhe toque — disse Edna, irritada, sem paciência, e querendo demonstrar que o estava.
— Quando tenho casos que a nossa medicina não alcança — o que tem acontecido — peço-lhe que venha quando a Rebecca me diz que lhes deitaram o mau olhado. Peço-lhe que lhes diga que não foram... amaldiçoados, ou lá o que é... explico-lhe que não me quero imiscuir na sua medicina, que só desejo a sua ajuda. A última vez ele dirigiu-se às pessoas que lá estavam deitadas e que eu pensava que iam morrer. Não sei o que ele lhes disse, mas alguns levantaram-se e foram-se embora... estavam curados.
— E os outros?
— Os n'gangas estão informados a respeito da sida... da Magreza. Sabem mais a esse respeito do que as pessoas do governo. Ele disse que não podia curar a sida. Disse que podia tratar alguns dos sintomas, como as tosses. Compreendem... eu sinto-me grata por usar os seus remédios; tenho tão poucos. Metade das vezes nem sequer disponho de antibióticos. Quando esta tarde entrei na barraca dos remédios — eu estive em Londres — quase não havia lá nada, a maior parte do que tinha fora roubado. — Falava em voz aguda que depois se tornou chorosa.
Os Pyne entreolharam-se e Edna disse:
— Está a tornar-se mais forte do que você. Não é bom levar as coisas tanto a peito.
— Olha quem fala — disse Cedric.
— Tens razão — admitiu Edna, e acrescentou, para Sylvia: — Eu sei como é. Chega de Inglaterra cheia de adrenalina, vai em frente com todas as forças e de repente, zás!, está descontrolada e durante uns dias não se pode mexer. Vá deitar-se e descanse uma hora. Eu telefono à Missão e digo-lhes.
— Um momento — pediu Sylvia, lembrando-se da coisa mais importante que queria perguntar-lhe. Ao almoço ouvira dizer que ela — Sylvia — era uma espia sul-africana.
A chorar, porque parecia incapaz de se conter, contou-lhes esse pormenor e Edna riu-se e disse:
— Não ligue importância a isso. Não desperdice as suas lágrimas com esse assunto. Supostamente, nós também somos espiões. Quando nos põem um rótulo, não há como tirá-lo. Podem roubar-se fazendas a agricultores sul-africanos com a consciência tranquila.
— Não sejas pateta, Edna — disse Cedric. — Eles não precisam disso. Podem apoderar-se simplesmente delas.
Envolta no círculo do braço forte de Edna, Sylvia foi conduzida a um grande quarto nas traseiras da casa e deitada numa cama. Edna cerrou as cortinas e saiu. Os movimentos das nuvens faziam passar sombras rápidas sobre o algodão fino das cortinas; o sol amarelo do fim da tarde voltou e depois fez-se de súbito escuro, estrondearam trovões e a chuva caiu no telhado de ferro como num pandemónio. Sylvia dormiu. Foi acordada por um negro sorridente com uma chávena de chá. Durante a Guerra da Libertação, o cozinheiro de confiança dos Pyne indicara aos guerrilheiros a maneira de entrarem em casa e depois partira para se lhes juntar. «Não lhe restava outra alternativa senão juntar-se a eles», dissera o Padre McGuire. «Não é mau homem. Agora está a trabalhar para os Finlay, em Koodoo Creek. Não, evidentemente que não sabem a sua história, de que valeria isso?» Os comentários do padre sobre acontecimentos passados eram tão desprendidos como os de um historiador, ainda que os seus resmungos pessoais o não fossem. Interessante: a julgar pelo tom de voz, as indigestões do Padre McGuire eram da mesma escala de importância da desaprovação da Irmã Molly a respeito do Papa, as queixas dos Pyne acerca do governo negro — ou as lágrimas de Sylvia porque a barraca dos remédios estava vazia.
Aperitivos na varanda: a tempestade passara, os arbustos e as flores cintilavam, os pássaros esfalfavam-se a cantar. Paraíso. E se ela, Sylvia, tivesse feito esta fazenda, construído esta casa, trabalhado tanto, não sentiria o que os Pyne sentiam, envenenados por um violento sentimento de injustiça? Enquanto as bebidas eram servidas, e guloseimas atiradas a Lusaka e a Sheila, enquanto as suas garras raspavam e batiam no cimento, enquanto elas saltavam, de mandíbulas abertas, e enquanto Sylvia escutava, os Pyne falavam, falavam sem cessar, obcecados e amargos. Uma vez ela dissera nesta varanda — mas então era uma neófita:
— Mas se vocês, quero dizer, os brancos, tivessem educado os negros, não haveria agora todos estes problemas, pois não? Eles estariam instruídos e seriam eficientes.
— O que quer dizer? É claro que nós os educámos.
— Havia um limite na Administração Pública — disse Sylvia. — Eles não podiam ultrapassar um nível muito baixo.
— Disparate.
— Disparate, não — admitiu Cedric. — Não, nós cometemos erros.
— Nós quem? — perguntou Edna. — Nessa altura nós ainda cá não estávamos.
Mas se há erros inscritos numa paisagem, num país, numa história, então... Há cem anos os brancos tinham chegado a um país do tamanho da Espanha, com um quarto de milhão de negros em todo esse enorme território. Seria natural pensarmos — o sujeito aqui é o Olho da História, a observar do futuro — que, com tanta terra, não haveria necessidade alguma de tirar a terra a ninguém. Mas o que esse Olho estava a descurar, para usar um ponto de vista de bom senso, eram as pompas e a cobiça do Império. Além disso, se os brancos queriam terra, para possuir e manter, com cercas bem colocadas e limites bem traçados, enquanto a atitude dos negros para com a terra era a de que ela era a sua mãe e não podia ser individualmente possuída, então havia também a questão da mão-de-obra barata. Quando os Pyne tinham chegado, nos anos 50, ainda havia apenas um milhão e meio de negros naquela bela terra, e os brancos nem chegavam aos duzentos mil. Uma paisagem vazia, de acordo com os olhos da sobrepovoada Europa. Quando os Pyne tinham tomado a sua fazenda, o movimento nacional de Zimlia ainda não começara. Almas inocentes, para não dizer ignorantes, tinham vindo de uma pequena cidade provinciana de Devon, preparados para trabalharem duramente e prosperarem.
Agora estavam sentados a observar os pássaros descendo a pique das poinsétias cintilantes de gotas de água da chuva para os bebedouros, viam os montes, que pareciam erguer-se perto por causa do ar lavado pela chuva, e um deles dizia que nada o convenceria a partir, enquanto o outro, ela, se dizia farta de lhe chamarem vilã e não queria mais.
Sylvia agradeceu-lhes, do coração, a amabilidade, ciente de que a consideravam uma criaturinha estranha com ideias excessivamente sentimentais, e regressou de carro, pelo meio do mato que escurecia, à Missão. Ao jantar voltou a abordar o assunto de ser uma espia sul-africana e o Padre McGuire disse que ele próprio tinha sido acusado do mesmo. Isso sucedera quando reclamara a Mr. Mandizi que a escola era uma vergonha para um país civilizado. Onde estavam os manuais de ensino?
— Anda por aí uma forma muito avançada de paranóia, minha filha — disse ele. — Seria bom se não moesse o juízo a esse respeito.
As cinco horas da manhã seguinte, quando o sol ainda era uma fraca luminosidade atrás das árvores da borracha, Sylvia foi à pequena varanda e viu à luz da alvorada uma figura trágica, com as mãos apertadas à frente do corpo e a cabeça curvada pela dor ou pela mágoa. Reconheceu Aaron.
— O que aconteceu?
— Oh, Dr.a Sylvia, oh Dr.a Sylvia... — aproximou-se dela, a cambalear de lado, com o passo travado pela luta que se travava dentro dele: corriam-lhe lágrimas pelas faces habitualmente alegres. — Não era minha intenção. Oh, lamento tanto, tanto... Perdoe-me, Miss Sylvia. O demónio entrou em mim. Tenho a certeza de que foi por isso que o fiz.
— Aaron, não faço a mínima ideia do que estás a falar.
— Roubei a sua fotografia e foi por isso que o padre me bateu.
— Aaron, por favor...
Ele deixou-se cair no chão de tijolo, encostou a cabeça ao pilar estreito e soluçou. Ainda era demasiado cedo para Rebecca estar na cozinha. Sylvia sentou-se ao lado do rapaz, sem dizer nada, apenas ali. E foi aí que o Padre McGuire os encontrou poucos minutos depois, ao sair para saborear a primeira frescura da manhã.
— O que vem a ser isto? Eu disse-te que não dissesses à Dr.a Sylvia.
— Mas eu estou envergonhado. Por favor, peça-lhe que me perdoe.
— Onde estiveste nestes últimos três dias?
— Tive medo. Estive escondido no mato.
Aquilo explicava o seu tremor: estava com frio porque estava faminto. O calor começava já a emanar do Oriente.
— Vai para a cozinha, faz um bom chá forte com muito leite e açúcar e corta umas fatias de pão com geleia.
— Sim, padre. Sinto muito, padre.
Aaron afastou-se, sem pressa, para a sua reconfortante refeição, apesar de dever estar desesperado por ela: olhava para Sylvia por cima do ombro, enquanto se afastava.
— Então, padre?
— Ele roubou a sua pequena fotografia, na bonita moldura de prata.
— Mas...
— Não, Sylvia, não lha deve dar. Está de novo na sua mesa. Ele disse que gostava do rosto da mulher idosa e queria olhar para ele. Suponho que não tem a mínima noção do valor da prata.
— Então o assunto está arrumado.
— Mas eu bati-lhe, e com demasiada força. Houve sangue. Este velho não anda num dos seus momentos mais sensatos e melhores. — O Sol subira, quente e amarelo. Uma cigarra iniciou a sua cegarrega, e depois outra, e uma pomba fez coro com o seu lamento. — Vou ter de passar mais tempo no purgatório.
— Tem tomado os seus comprimidos de vitaminas?
— Posso dizer em minha defesa que este povo compreende muito bem que para estragar a criança temos de poupar a vara. Mas... isso não é desculpa. E supõe-se que eu ando a ensinar Aaron a ser um homem de Deus. E não lhe deve ser permitido roubar.
— Do que precisa é de vitamina B, padre. Para os seus nervos. Trouxe-lhe algumas de Londres.
Ouviram-se vozes a altercar na cozinha: Rebecca e Aaron. O padre gritou:
— Rebecca, o Aaron precisa de ser alimentado. — As vozes silenciaram-se. — Está a ficar quente. Vamos para dentro.
Ele entrou e ela seguiu-o, e encontraram Rebecca a pôr na mesa o tabuleiro com o chá da manhã.
— Ele comeu o pão todo que eu cozi ontem.
— Nesse caso, Rebecca, tens de cozer mais algum.
— Sim, padre. — A mulher hesitou. — Penso que ele tencionava pôr a fotografia no seu lugar. Só queria olhar para ela enquanto a Sylvia estava ausente.
— Eu sei. Bati-lhe com demasiada força.
— Está bem.
— Sim.
— Sylvia, quem é aquela senhora idosa? — perguntou Rebecca. — Tem um rosto simpático.
— Julia, chamava-se Julia. Morreu. Era minha... penso que talvez me tenha salvado a vida quando eu era muito novinha.
— Está bem.
Um homem pode ser austero por temperamento mais do que em consequência de uma decisão para castigar a carne. O Líder estava longe de ser alguém que examinava a sua vida com a intenção de melhorar o seu carácter, convencido de que o facto de ter sido aceite pelos jesuítas era garantia suficiente para alcançar o Céu. E quando chegou ao seu conhecimento que a frugalidade era considerada uma coisa boa, lembrou-se de uma primeira infância em que muitas vezes tivera carências de comida e de tudo o mais. Em algumas partes do mundo as virtudes da abstinência são facilmente adquiridas. O seu pai trabalhava numa missão jesuíta, como pau para toda a obra, e embriagava-se com frequência. A sua mãe era uma mulher silenciosa e quase sempre doente, e ele era filho único. Quando bêbado, o pai era capaz de o espancar e de espancar também a mulher a pretexto da sua impossibilidade de ter mais filhos. Ainda não tinha dez anos quando enfrentou o pai, protegendo a mãe, e as pancadas que eram para ela atingiram-lhe os braços e as pernas, deixando cicatrizes.
Era um rapazinho inteligente, que não passava despercebido aos padres, e foi escolhido para receber uma educação superior. Magro como um cão vadio — assim o descrevia o Padre Paul —, baixo, fisicamente desajeitado, tinha pouca habilidade para jogos e era muitas vezes alvo de chacota, em especial do Padre Paul, que antipatizava com ele. Havia outros padres, professores e salvadores de almas, mas a sua experiência do mundo branco recebeu-a por intermédio do Padre Paul, um homenzinho seco de Liverpool, formado por uma infância amarga e com uma língua que ressumava desdém pelos negros. Os cafres eram selvagens, animais, pouco mais do que babuínos. Mais ainda do que os outros professores, não poupava a vara. Batia em Matthew por obstinação, por insolência, pelo pecado do orgulho, por falar a sua própria língua e por ter traduzido um provérbio Shona para inglês e havê-lo usado num exercício. «Não discutas com o teu vizinho se ele for mais forte do que tu.»
Aos olhos do Padre Paul, era uma grande responsabilidade libertar os seus pupilos de semelhante atraso. Matthew detestava tudo no padre Paul: o seu cheiro nauseava-o, suava desalmadamente, não se lavava o bastante e as suas sotainas pretas exalavam um odor animal acre. Matthew detestava os pêlos avermelhados que lhe irrompiam das orelhas, das narinas e das costas das suas ossudas mãos magras. A repulsa física do rapaz era por vezes tão forte que sentia despertar nele impulsos assassinos, que continha a tremer, com os olhos em fogo.
Era um rapaz silencioso. Ao princípio, lia livros religiosos, mas depois um aluno de outra missão veio fazer um retiro na sua e Matthew foi apanhado pelo fascínio da sua personalidade exuberante e brincalhona, mas mais ainda das suas opiniões. Este rapaz, mais velho do que ele, tinha uma consciência política conforme com as normas imaturas da época — muito antes dos movimentos nacionais — e deu-lhe autores negros, da América, para ler — Richard Wright. Ralph Ellison, James Baldwin — e os panfletos de uma seita religiosa negra que advogava a matança de todos os brancos como sendo a progénie do Diabo.
Matthew, ainda brilhante, ainda silencioso, foi para a universidade, deixando para trás o Padre Paul, e aí veio a ser descrito muito mais tarde, quando já se tornara o Líder, como «um jovem observador e calado, um asceta, sempre a ler livros políticos, inteligente, incapaz de fazer amigos — um solitário».
Quando os movimentos nacionalistas explodiram, Matthew encontrou o seu lugar, e bem depressa, como líder do seu grupo local. Como não lhe era fácil participar em argumentos e discussões, porque se mantinha muitas vezes afastado, embora na realidade ansiasse por ser como os outros, de trato tão fácil e tão sociáveis, adquiriu a reputação de ser um homem de julgamento sereno e capacidade política e, claro, bem informado, em virtude de ler tanto. Depois tornou-se líder do partido, após uma desagradável pequena luta pelo poder. Os fins justificam os meios: eis o seu dito preferido. A Guerra da Libertação começou e ele chefiou um dos exércitos rebeldes. Fez promessas de todo o tipo, como é próprio dos políticos, sendo a mais geradora de danos futuros a de que cada pessoa negra do país receberia terra suficiente para cultivar. Absurdos menores, como dizer que desinfectar gado era uma crueldade demoníaca do homem branco, e manter curvas de nível mero servilismo ao preconceito branco, eram bagatelas comparadas com este logro fundamental: que haveria terra para toda a gente. Mas a verdade é que então ele não sabia que acabaria por se tornar o Líder de todo o país. Quando, na Libertação, o seu partido ficou em primeiro lugar, achou secretamente difícil de acreditar que podia ser escolhido em desfavor de outros candidatos mais carismáticos ao poder: não acreditava que gostassem dele. Respeitado... temido... oh, sim, precisava disso, o cão vadio precisava disso, e precisaria durante o resto da sua vida. Quando — uma vez mais graças a uma personalidade forte e persuasiva — se converteu ao marxismo, proferiu os discursos retóricos copiados de outros líderes comunistas. Admirava, até ao mais profundo da sua natureza, chefes fortes e brutais. Como chefe de uma nação, viajava constantemente, como é próprio dos líderes, à América, ou à Etiópia, ou ao Ghana, ou à Birmânia, escolhendo raramente a companhia de brancos, pois não gostava deles. Em virtude de ter de mostrar uma fachada de estadista, tinha de ocultar o que sentia, mas detestava os brancos, detestava até estar na mesma sala que eles. No estrangeiro, gravitava por instinto para a esfera dos ditadores, alguns dos quais cairiam em breve, como as estátuas de Lenine que se espalhariam pela ex-União Soviética. Amava a China, admirava o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural, e fora lá mais do que uma vez, levando consigo, no seu séquito, o camarada Mo, que os instruíra quanto às necessidades do poder muito antes de ele o ter alcançado.
Assim que chegou ao poder tornou-se prisioneiro do seu medo das pessoas. Não se reunia com ninguém a não ser com alguns velhos compinchas e uma jovem mulher da sua aldeia, com quem dormia; nunca saía da sua residência sem uma escolta armada; o seu carro era à prova de bala, oferta de um ditador, e tinha uma guarda especial que lhe fora oferecida pelo déspota mais odiado da Ásia. Todas as noites, enquanto o Sol se punha, a rua defronte da sua residência era fechada ao trânsito geral, de modo que os cidadãos tinham de seguir por ruas fora do seu caminho. Entretanto, apesar de estar isolado como qualquer vítima de uma história obrigada a construir a muralha à sua volta com as próprias mãos, não havia em toda a África líder mais amado pelo seu povo nem de quem mais se esperasse. Poderia fazer tudo o que quisesse com a populaça, para o bem ou para o mal: como os camponeses de tempos antigos, olhavam-no como a um rei que corrigiria tudo quanto estava errado; para onde ele os guiasse, eles segui-lo-iam. Mas ele não guiava ninguém. Este homenzinho assustado vivia encolhido na prisão que ele próprio construíra.
Entretanto, a «opinião progressista» do mundo também o adorava, e todos os Johnny Lennox, todos os ex-estalinistas, os liberais que sempre têm amado um homem forte, diziam: «Ele é muito sensato, sabem? O camarada Presidente Matthew Mungozi é um homem inteligente.» E aqueles que tinham sido privados da retórica apaziguadora do mundo comunista reencontravam-na em Zimlia.
Nesta fortaleza escorada pelo medo podia ter sucedido que ninguém encontrasse um caminho, mas alguém o encontrou: uma mulher, pois na recepção à Organização da Unidade Africana ele viu-a, viu aquela bela negra Gloria, à volta da qual todos os homens clamavam, enquanto ela coqueteava e distribuía sorrisos, mas os seus olhos estavam na realidade no homem que se mantinha afastado, observando cada movimento dela como um cão observa comida transportada para outras bocas que não a sua. Ela sabia, soubera, quem ele era, gizara os seus planos e esperava que fosse tudo fácil — como foi. De perto, fascinava, cada pequenino pormenor respei- tante a ela o seduzia. Tinha uma maneira especial de mexer os lábios, como se estivesse a esmagar fruta com eles, e os seus olhos eram suaves e riam — não dele, que se certificava de que tal não acontecia, tão convencido estava de que as pessoas se riam dele. E ela estava completamente à vontade onde ele não estava, na carne, naquele corpo magnífico, no movimento e no prazer do movimento, e na comida, e na sua própria beleza. Ele sentia que estava a ser liberto simplesmente por se encontrar a seu lado. Gloria disse-lhe que precisava de uma mulher assim, como ela, e ele soube que era verdade. Mas também a temia por causa da sua sofisticação: frequentara a universidade na América e em Inglaterra, tinha amigos em toda a parte entre os famosos, por causa da sua natureza e não da política. Falava de política com um cinismo sorridente que o escandalizava, embora ele tentasse acompanhá-la. Em resumo, era inevitável que em breve houvesse um casamento sumptuoso, e ele vivia imerso em prazer. Tudo era fácil onde antes fora difícil — não, onde frequentemente fora impossível. Ela dizia que ele era sexualmente reprimido, e curou-o disso na medida em que a natureza dele o permitia. Ela disse que ele precisava de se divertir mais, que nunca soubera viver. Quando ele lhe falou da sua miserável e muito punida infância, beijou-o, com grandes beijos ruidosos, puxou-lhe a cabeça para os seios maciços e acariciou-a.
Ria-se dele por tudo.
Ora, no início do seu governo, Matthew desencorajara os camaradas, os seus associados, a liderança, de saciarem a sua ganância. Proibiu-os de enriquecerem. Esta foi a derradeira das influências da sua infância e, depois, dos jesuítas que lhe tinham ensinado que a pobreza estava mais perto da religiosidade: os padres podiam ter sido tudo o mais, mas eram de certeza pobres e não cediam à indulgência. Mas Gloria disse-lhe que era louco, e que ela compraria esta grande casa, e aquela grande fazenda, e depois quis outra fazenda, e uns hotéis que começavam a aparecer no mercado à medida que os brancos partiam. Disse-lhe que ele precisava de ter uma conta num banco suíço e certificar-se de que tinha dinheiro nele. Que dinheiro? — quis ele saber, e ela troçou da sua ingenuidade. Mas quando lhe falou de dinheiro ele ainda viu nas magras mãos da mãe as míseras notas e moedas que o pai lá depositava no fim do mês, e ao princípio, quando decretara um ordenado para si mesmo, tivera o cuidado de que não fosse mais elevado do que o de um alto funcionário público. Gloria mudou tudo isso, afastando-o com a sua troça, o seu riso, as suas carícias e o seu sentido prático, pois apoderara-se da vida dele e, como Mãe da Pátria, podia arranjar facilmente maneira de que o dinheiro jorrasse para o seu lado. Era ela quem, calmamente, desviava grandes somas que chegavam de obras de caridade e de benfeitores para as suas próprias contas. «Oh, podes ser um idiota à vontade», gritava-lhe quando ele protestava. «Está em meu nome. Não é responsabilidade tua.»
As batalhas pela alma de alguém raramente são tão claras e fáceis de ver — além de breves — quanto aquela em que o Demónio lutava pela alma do camarada Matthew. E Zimlia, que antes fora mal governada por causa de marxismo mal digerido e chavões dogmáticos, ou frases recordadas de manuais de economia, mergulhou rapidamente na corrupção. Iniciou-se imediatamente a desvalorização firme e rápida da moeda. Em Senga, os tubarões gordos engordavam ainda mais a cada dia que passava, e em lugares como Kwadere o dinheiro que correra num fiozinho secou por completo.
Gloria tornou-se mais fascinante, mais bela e mais rica, adquiriu outra fazenda, uma floresta, hotéis e restaurantes, que usava como se fossem colares. E agora, quando o Presidente Matthew ia ao estrangeiro encontrar-se com a sua gente preferida, os imensamente ricos, dissolutos e corruptos governantes da nova África e da nova Ásia, não se sentava em silêncio quando eles exibiam a sua riqueza e se vangloriavam da sua avareza. Agora podia vangloriar-se da dele, e fazia-o, e quando esses homens mostravam como o admiravam, cumulando-o de presentes e lisonjas, aquele lugar vazio que havia nele, e onde haveria sempre um minúsculo e magro cão vadio com a cauda entre as pernas, enchia-se, pelo menos por uns tempos, e Gloria acariciava-o e afagava-o, e aconchegava-o, e lambia-o, e chupava-o, e apertava-o contra aqueles grandes seios, e beijava as antigas cicatrizes das suas pernas. «Pobre Matthew, pobre, pobre rapazinho.»
No anoitecer antes de partir para Londres, Sylvia estivera onde terminavam os arbustos de loendros, hibiscos e dentilária e olhara para baixo, para o hospital, com uma dose de orgulho maior do que a perdoável. Agora qualquer pessoa podia chamar «hospital» àquele aglomerado de construções. Há muito tempo que não vinha dinheiro nenhum por intermédio do camarada Mandizi, mas a queda livre da moeda de Zimlia significava que pequenas quantias em Londres se tornavam grandes ali. Dez libras, que em Londres davam para um pequeno saco de artigos de mercearia, chegavam ali para construir uma cabana de palha ou repor a reserva de analgésicos ou comprimidos para a malária.
Agora havia duas «enfermarias», compridos barracões cobertos de palha, que descia até ao chão do lado de onde vinha frequentemente a chuva e era mais alta do outro lado. Em cada uma delas havia uma dúzia de colchões com bons cobertores e almofadas. Ela planeava construir outro barracão, pois as camas existentes estavam a ficar ocupadas pelas vítimas da sida ou Magreza, que o governo acabara de decidir reconhecer inteira e francamente, com apelos de ajuda a dadores estrangeiros. Sylvia sabia que nas aldeias se chamava a essas construções «os barracões da morte» e planeava construir mais um para pacientes que sofriam apenas de malária ou estavam em trabalho de parto — as mais frequentes dores da carne. Mandara construir uma pequena casa como devia ser, de tijolo, a que chamava o consultório e onde havia uma cama alta, feita por rapazes da aldeia com tiras de couro esticadas numa armação e, sobre elas, um bom colchão. Era aí que examinava as pessoas, receitava, engessava braços e pernas partidos e ligava feridas. Em tudo isto contava com a ajuda de Esperto e Zebedee. Pagara do seu bolso os novos edifícios e os medicamentos: pagara tudo. Sabia que na aldeia havia quem dissesse: e por que não havia de pagar? Para começar, roubou-nos tudo a nós. O inspirador destes resmungos era Joshua. Rebecca defendia-a, dizendo a toda a gente que se não fosse Sylvia não haveria hospital nenhum.
No anoitecer depois de regressar de Londres, parada exactamente no mesmo lugar, olhara para baixo, para o seu hospital, e sentira-se atacada pelo desânimo e falta de objectivo que tantas vezes aflige as pessoas acabadas de regressar da Europa. O que via lá em baixo, o conjunto de pobres barracas ou barracões, só era tolerável se não pensasse em Londres, ou na casa de Julia com a sua solidez, a sua segurança, a sua permanência, a sala cheia de coisas que tinham um objectivo certo, serviam uma necessidade entre uma multiplicidade ; de necessidades, de modo que todos os dias qualquer pessoa que lá vivesse se sentia como se estivesse apoiada por outros tantos servos com utensílios, ferramentas, aparelhos, superfícies para se sentar ou colocar coisas em cima — um labirinto de coisas que se multiplicavam constantemente.
De manhãzinha cedo, Joshua rolava do seu lugar perto do lenho que ardia no meio da cabana, estendia a mão para a vasilha onde as papas de aveia da noite passada tinham coagulado e, com o pau que servia para as mexer, retirava alguns pedaços que comia rapidamente, aconchegando o estômago com o necessário, bebia água de um jarro de folha que se encontrava na espécie de prateleira que cercava a cabana, e depois caminhava alguns passos até ao mato, urinava, por vezes agachava-se para defecar, pegava num bordão feito de madeira do mato e caminhava os mais de mil e quinhentos metros até ao hospital, onde encostava as costas ao tronco da árvore para escorregar e ficar ali sentado todo o dia.
Por certo ela, uma «religiosa», como Rebecca lhe chamava — «disse na aldeia que você é uma religiosa» —, devia admirar esta prova dos pobres de riqueza, e provavelmente de espírito, embora Sylvia não se considerasse preparada para julgar isso. Aquela enorme cidade, com tantos quilómetros quadrados, tão rica, tão rica... e depois aquele grupo de miseráveis barracas e barracões: África, bela África, que oprimia o seu espírito com a sua carência, a sua necessidade e falta de tudo, e onde em toda a parte gente branca e negra trabalhava tão duramente para... bem, para quê? Para pôr um pouco de adesivo numa velha ferida supurante. E isso era o que ela estava a fazer.
Sylvia tinha a sensação de que o seu ser verdadeiro eu, a sua substância, aquilo de que é feita a fé, se esvaíam enquanto estava ali parada. Um poente, um ocaso do Sol numa estação chuvosa... De uma nuvem negra no horizonte vermelho irrompiam espessos e pesados raios, como espigões de ouro à volta da cabeça de um santo. Sentia-se alvo de zombaria, como se um ladrão astuto a estivesse a roubar e a rir enquanto a roubava. Que fazia ela ali? E que bem fazia, realmente? E, acima de tudo, onde estava aquela fé inocente que a sustivera quando chegara? Em que acreditava, na realidade? Em Deus, sim, podia dizer isso, desde que ninguém a pressionasse para apresentar definições. Sofrera uma conversão, tão clássica nos seus sintomas como um ataque de malária, uma conversão à Fé — como o Padre McGuire lhe chamava, e ela sabia que começara por causa do ascético Padre Jack, por quem estivera apaixonada, embora na altura ela tivesse dito que era a Deus a quem amava. Nada restava de toda essa corajosa certeza e ela sabia apenas que tinha de cumprir o seu dever ali, naquele hospital, porque o Destino para lá a mandara.
O estado da sua mente também podia ser descrito clinicamente: vinha numa centena de manuais religiosos. Os médicos da sua fé dir-lhe-iam: Não ligues, não é nada, estações de seca acontecem a todos nós.
Mas ela não precisava desses especialistas da alma, não precisava do Padre McGuire; sabia diagnosticar-se a si mesma. Por que precisava, então, de um mentor espiritual, se não ia dizer-lhe, simplesmente porque sabia o que ele lhe diria?
Mas a questão genuína era: por que era tão fácil ao Padre McGuire dizer «uma estação de seca», enquanto para ela era como uma auto-excomunhão? O que trouxera para a sua conversão fora um coração faminto e necessitado, e cólera também, embora só recentemente o tivesse reconhecido. Conseguia ver-se, como fora então, em Joshua, em quem a cólera ardia sempre, expelida dele à força em agrestes acusações e exigências. Quem era ela para criticar Joshua?
Soubera o que era estar irada ao ponto de a ira a envenenar, embora na altura tivesse pensado que precisava de braços confortadores, dos braços de Julia. E agora criticava Julia porque o seu amor não fora suficiente para apaziguar essa necessidade que a levara para o Padre Jack? O que apaziguara a necessidade? Trabalho, sempre, e unicamente, trabalho. E por isso ali estava, numa encosta seca de África, sentindo que tudo quanto fazia, ou alguma vez poderia fazer, seria tão eficaz como deitar água de um púcaro (de folha) sobre a poeira de um dia quente.
Pensou: Não há ninguém na Europa (se não esteve aqui e viu) que possa compreender este nível de necessidade absoluta, esta falta de tudo, em pessoas a quem tudo fora prometido pelos seus líderes. E era isto que parecia impregná-la de um horror mudo. Como o horror da sida, a doença silenciosa e secreta que viera não se sabia de onde — de macacos, dizia-se, talvez até dos macacos que às vezes brincavam nas árvores, ali. O ladrão que vem pela calada da noite: era isto que ela pensava da sida.
O coração doía-lhe... tinha de dizer a Zebedee e a Esperto que dissessem aos construtores que era precisa ali outra boa construção de tijolo e ela diria sim aos pedidos da aldeia para que houvesse mais aulas.
O Padre McGuire ouviu falar em mais aulas e disse que ela parecia cansada, que devia cuidar de si.
Aí estava um momento em que poderia ter mencionado a sua estação de seca e talvez até brincado a esse respeito, mas em vez disso respondera que ele devia lembrar-se de tomar as suas vitaminas e perguntara-lhe por que não andava a dormir a sua sesta. Ele escutava pacientemente as repreensões dela, sorrindo, assim como ela escutava as dele.
Sylvia apelara a Colin para «fazer pessoalmente alguma coisa por África» — e ele lembrava-se de como descrevera essa ideia no seu íntimo e zombara para consigo: «África!» Como se não estivesse bom da cabeça. Havia esse continente lá de baixo, representado na mente de muita gente como uma criança estendendo uma caixa de esmolas. Mas o que Sylvia dissera não fora África, mas sim Zimlia. Era dever dele ajudar Zimlia. E quantas vezes troçava dizendo que Mrs. Jellaby, de Dickens, resumira isso muito bem ao dizer que as pessoas se preocupavam tanto com África quando fariam melhor se se preocupassem com as necessidades locais. Porquê África? Por que não Liverpool? A Esquerda da Europa a preocupar-se, como de costume, com acontecimentos de outros lugares: identificara-se com a União Soviética e, como resultado, metera-se em encrencas. Agora era a África, a índia, a China, sei lá que mais, mas principalmente África. Era dever dele fazer alguma coisa por África. Mentiras, dissera Sylvia, estavam a ser ditas mentiras. Bem, e onde estava a novidade? O que podia alguém esperar? Colin resmungava e rezingava deste modo, enjaulado em aposentos que se tinham tornado demasiado pequenos agora que o bebé nascera, um pouco bêbado, mas não muito, pois tomara a sério as recomendações de Sylvia. E o que a levava a pensar que estava preparado para escrever a respeito de África? Ou que conhecia pessoas capazes de se importarem com isso? Não conhecia ninguém naquele mundo de jornais, semanários, televisão; vivia muito isolado a escrever os seus livros... mas, espera, conhecia exactamente a pessoa indicada, conhecia...
Durante aquele longo tempo em que frequentara bares e conversara com pessoas em bancos de jardins, com o cãozinho, arranjara um parceiro, um bom compincha. Anos 70: Fred Cope passava a sua jovem vida, como era então de rigueur, manifestando-se, agredindo polícias, gritando palavras de ordem e, de modo geral, tornando-se notado, mas quando estava com Colin, que desprezava tudo isso, era por vezes possível persuadi-lo a criticar também semelhante procedimento. Ambos os jovens sabiam que o outro era um aspecto de si mesmo contido por uma trela. No fim de contas, se o seu pensamento lho não proibia, o temperamento de Colin dava-lhe gosto pelo confronto ruidoso. Quanto a Fred Cope, descobriu a sobriedade e a responsabilidade nos anos 80. Casou. Comprou uma casa. Dez anos antes, tinha zombado de Colin por viver em Hampstead: a palavra estava a ser usada como pejorativa por quem aspirava a estar de harmonia com os tempos. Os socialistas de Hampstead, o romance de Hampstead, Hampstead como lugar, tudo isso era bom motivo para desdenhar; mas assim que se podiam dar a esse luxo, esses críticos compravam casas em Hampstead. E foi o que Fred Cope fez. Era agora editor de um jornal, The Monitor, e às vezes os dois encontravam-se para uma bebida.
Alguma vez houve uma geração que não visse, admirada — embora, entretanto, isso já fosse de esperar, não é verdade? —, os calaceiros, delinquentes e rebeldes da sua juventude tornarem-se porta-vozes do pensamento sensato? Colin telefonou a Fred Cope, sem no entanto deixar de ter em mente que os possuidores do pensamento sensato tinham por vezes dificuldade em recordar loucuras passadas. Encontraram-se num bar, num domingo, e Colin foi fundo:
- Tenho uma irmã que está a trabalhar em Zimlia. Veio visitar-me e disse que andamos todos a dizer disparates a respeito do querido camarada Presidente Matthew: que ele é, na realidade, um corrupto.
— Não o são todos? — murmurou Fred Cope, regressando ao seu papel passado de céptico experiente no tocante a qualquer espécie de autoridade, mas acrescentou: — Mas ele é, sem dúvida, um dos bons?
— Encontro-me numa situação delicada — disse Colin. — Esta é a voz de Colin, mas as palavras são de Sylvia. Ela veio visitar-me, num estado lamentável. Creio que talvez valesse a pena... obter uma segunda opinião.
O editor sorriu.
— O problema é que não podemos julgá-los pelos nossos padrões. As suas dificuldades são imensas. E é uma cultura completamente diferente.
— Não podemos porquê? Isso é, sem dúvida, uma atitude condescendente. E não nos fartámos nós de não julgar os outros pelos nossos padrões?
— S-sim... Compreendo onde queres chegar. Bem, eu darei uma vista de olhos ao assunto.
Ultrapassado o que ambos consideravam um constrangimento, tentaram recuperar a gloriosa irresponsabilidade dos seus tempos passados, em que as opiniões de Colin tinham sido de tal ordem que quase não ousava emiti-las fora da segurança da sua casa, e a juventude de Fred lhe parecia agora um prolongado festival de licenciosidade e anarquia. Mas em vão. Fred estava à espera de um segundo filho. Colin, como de costume, só pensava no romance que estava a escrever. Sabia que provavelmente deveria estar a fazer mais alguma coisa a favor de Sylvia, mas desde quando não era estar no meio de um romance a melhor das desculpas? Além disso, sentia-se sempre culpado a respeito dela e não compreendia porquê. Esquecera o quanto se ressentira por ela ir para casa de Julia e como censurara a mãe dela. Agora recordava esse tempo com orgulho: ele e Sophie, ambos, e quem quer que viera e partira então, podiam falar afectuosamente de como tudo fora divertido. Mas sabia que sempre invejara a facilidade com que o seu irmão lidara com Sylvia. Agora achava irritante a religião dela e o que via como a sua necessidade neurótica de sacrifício e abnegação. E esta sua última visita, em que acabara por lhe pegar e sentá-la no joelho... que embaraço para ambos! E, no entanto, tinha-lhe afecto, tinha, sim, e sentira-se na obrigação de fazer alguma coisa por África, e fizera.
Mas espera, interveio Rupert, que o ouvira, e disse, como Fred Cope, que eles (referindo à África, a toda a África?) não deviam ser julgados pelos nossos padrões. «Mas e a verdade, onde fica a verdade no meio de tudo isso?», perguntou Colin, sabendo, graças a longa e dolorosa experiência, que a verdade seria sempre uma parente pobre. Ora, Rupert não era um dos herdeiros espirituais do camarada Johnny: se fosse, talvez tivesse achado pactuar com a verdade uma espécie de toque de clarim. Embora «a verdade» ainda só tivesse saído da União Soviética a conta-gotas, em comparação com as grandes quantidades que estariam disponíveis dentro de uns dez anos; embora esse grande império ainda existisse (apesar de ninguém, por muito vagamente de esquerda que pudesse ser, sonhasse pensar, sequer, descrevê-la como um império), já viera e continuava a vir a lume o suficiente para constituir um lembrete de que a verdade devia constar da agenda de toda a gente. Mas Rupert, que nunca fora mais do que um bom liberal, agora perguntou:
— Não achas que, às vezes, dizer a verdade faz mais mal do que bem?
— Não, com certeza absoluta, não acho — respondeu Colin. Depois esqueceu-se do apelo de Sylvia na tarefa de mudar o seu
lugar de trabalho para o apartamento da cave, uma vez que Meriel já se fora embora. Tinha de acabar aquele novo livro: no fim de contas, o dinheiro que Julia deixara não era tanto que qualquer deles pudesse preguiçar, levar as coisas com calma.
Fred Cope desenterrou artigos acerca de Zimlia de arquivos do seu jornal e de outros, e concluiu que era verdade. Zimlia recebia constantemente o benefício de qualquer dúvida. Um dos peritos cujo nome aparecia com frequência em artigos acerca de Zimlia era Rose Trimble. Bem, ela nunca se mostrara crítica; sendo assim a quem recorrer? The Monitor tinha um correspondente independente em Senga, e convidaram-no a escrever um artigo: «A Primeira Década de Zimlia». O artigo que chegou era mais crítico do que a maioria, apesar de recordar aos leitores que a África não devia ser julgada pelos padrões europeus. Fred Cope enviou uma cópia do artigo a Colin. «Espero que isto esteja mais na linha do que sugeriste?» E num post scriptum: «Que dirias a escrever um artigo sobre se a frase de Proudhon, "Toda a propriedade é roubo", será a culpada da corrupção e do colapso da sociedade moderna? Eu seria o primeiro a admitir que os meus pensamentos sobre o assunto foram inspirados pelo facto de a nossa casa ter sido assaltada três vezes em dois anos.»
O artigo publicado no The Monitor chamou a atenção de um jornal para o qual Rose Trimble escrevera regularmente acerca de Zimlia e do camarada Presidente Matthew, e agora convidaram-na a ir a Zimlia verificar se o que encontrava apoiava o artigo crítico do The Monitor.
Entretanto, Rose adquirira nome no mundo jornalístico. Devia-o aos elogios oportunos feitos a Zimlia, mas isso fora apenas o começo. Tudo correra bem para ela. Podia, sem dificuldade, ter dito: «Deus seja louvado, por me igualar com a Sua hora»(5) — se alguma vez tivesse lido uma linha de poesia ou fosse capaz de usar a palavra Deus sem uma careta. Enquanto vivera em casa de Julia sentira-se inferior, mas uma vez fora dela quem pareciam inferiores eram eles. Estava igualada com os anos 80. As suas qualidades eram as agora vigentes, no tempo em que progredir, enriquecer, rebaixar o próximo, era oficialmente aplaudido. Ela era implacável, era ávida, era por instinto desdenhosa dos outros. Ao mesmo tempo que mantinha uma relação com o jornal relativamente sério para o qual escrevia os seus artigos sobre Zimlia, encontrara o seu nicho no World Scandals, onde a sua missão consistia em desenterrar fraquezas ou boatos e depois perseguir uma vítima qualquer, dia e noite, até poder apresentar triunfantemente uma denúncia. Quanto mais alta fosse a posição desse infeliz na vida pública, melhor. Acampava à porta das pessoas, remexia nos seus caixotes de lixo, subornava parentes e amigos para revelarem ou inventarem factos prejudiciais: era boa neste trabalho de fossar em carniça, e era temida. Era especialmente famosa pelos seus «retratos», elevando o jornalismo a novas alturas de vingança, e achava a tarefa fácil porque era genuinamente incapaz de ver algo de bom em alguém: sabia que a verdade acerca das pessoas só podia ser desonrosa e que era no desagradável que se encontra a verdadeira essência de uma pessoa. Este tipo de troça, de sarcasmo, este ridículo, vinha do seu ser mais profundo e condizia com uma geração de gente semelhante. Era como se alguma coisa horrenda e cruel tivesse sido exposta em Inglaterra, alguma coisa que estivera oculta antes, mas era agora como um mendigo a afastar os farrapos que o cobriam para revelar úlceras. O que fora respeitado era agora desdenhado; decência, respeito pelos outros, eram agora uma coisa ridícula. O mundo estava a ser apresentado aos leitores através de um ecrã grosseiro, que obliterava tudo quanto fosse agradável ou estimável: o tom era dado por Rose Trimble e os da sua laia, incapazes de acreditar
*5. Adaptação de um verso — Now, God be thanked Who has matched us with His Hour — do soneto Peace, de Rupert Brook, o primeiro da sua famosa Sonnet Sequence, sobre a I Guerra Mundial, na qual morreu em 1915. (NT)
que alguém pudesse fazer alguma coisa a não ser por interesse próprio. Rose odiava sobretudo pessoas que liam livros, ou fingiam lê-los: era apenas um fingimento; detestava as artes, denegria em particular o teatro — vangloriava-se de ter inventado a palavra «luwies» para descrever as pessoas do teatro — e gostava de filmes violentos e cruéis. Só se encontrava com pessoas como ela, que frequentavam certos bares e clubes e não faziam a mínima ideia de que eram um novo fenómeno, algo que gerações anteriores teriam desprezado e ignorado como a imprensa de sarjeta, que só servia para os estratos mais baixos da sociedade. Mas a expressão parecia-lhe agora vagamente elogiosa, uma garantia de coragem na procura da verdade. No entanto, como podia ela, ou eles, saber? Desdenhavam a história porque não tinham aprendido nenhuma. Só uma vez na vida ela escrevera com aprovação e admiração, e fora acerca do camarada Presidente Matthew Mungozi e depois, mais recentemente, da camarada Gloria, que adorava por causa da sua dureza e crueldade. Só uma vez a sua caneta não pingara veneno. Leu o artigo do correspondente do Tbe Monitor com fúria e, também, com algo semelhante ao dealbar do medo.
Num encontro com um jornalista que trabalhava no The Monitor ficou a saber que o instigador do artigo tinha sido Colin Lennox. Mas quem diabo era Colin para ter uma opinião acerca de África?
Detestava Colin. Vira sempre romancistas e poetas como uma espécie de aldrabões, que criavam alguma coisa a partir de nada e se safavam com isso. Estava há muito pouco tempo em cena quando do primeiro romance dele, mas classificara de refugo o segundo, e os Lennox, e o terceiro provocara-lhe paroxismos de fúria. Era a respeito de duas pessoas, aparentemente diferentes uma da outra, mas que se dedicavam mutuamente um amor terno e quase extravagante — que ele continuasse, parecia a ambos uma partida do destino. Enquanto envolvidos com outros parceiros, noutras aventuras, encontravam-se como conspiradores, para partilharem aquele sentimento mútuo, o facto de se compreenderem um ao outro como ninguém jamais conseguiria. Os críticos em geral gostaram do livro e acharam-no poético e evocativo. Um disse que era «elíptico», uma palavra que acirrou ainda mais o furor de Rose; teve de procurar o significado no dicionário. Leu o romance, ou tentou lê-lo — mas na realidade era incapaz de ler alguma coisa mais difícil do que um artigo de jornal. Era, evidentemente, acerca de Sophie, aquela cabra convencida. Bem, que se acautelassem ambos. Rose tinha um dossiê sobre os Lennox, com toda a espécie de material, algum roubado deles próprios há muito tempo, quando ela bisbilhotava na casa para ver o que encontrava. Era sua intenção «apanhá-los», um dia. Sentava-se a folheá-lo, agora que se tornara uma mulher gorda, com um sorriso maldoso permanentemente fixo no rosto, o qual, quando sabia que encontrara a palavra ou frase que os magoaria, realmente, se transformava numa gargalhada sarcástica.
No avião para Senga, foi sentada ao lado de um homem corpulento, que ocupava demasiado espaço. Pediu que lhe arranjassem outro lugar, mas o avião estava cheio. O homem mexia-se no seu lugar, de uma maneira que Rose considerava agressiva, e contra ela, e lançava-lhe olhares de soslaio, cheios de pulhice masculina. O seu braço estava no separador dos lugares entre eles, sem deixar qualquer espaço para o dela. Colocou o antebraço ao lado do dele, para reclamar os seus direitos, mas ele não se mexeu, e para manter o seu assim Rose precisava de se concentrar, ou ele deslizaria. Ele retirou-o, quando pediu à assistente que andava a oferecer bebidas um uísque, o bebeu imediatamente e pediu outro. Rose admirou o modo autoritário como lidava com a funcionária cujos sorrisos, sabia-o, eram falsos. Pediu também um uísque, despejou-o de um trago, para não ficar atrás, e esperou com o copo na mão que lhe servissem outro.
— Malditas calinas — resmungou o homem, que Rose sabia ser seu inimigo, como mulher. — Julgam que podem safar-se com tudo.
Rose não sabia do que se queixava ele e limitou-se a responder, usando uma fórmula que dava para tudo:
— São todos a mesma coisa.
— Sem dúvida. Não há por onde escolher entre qualquer deles.
Rose viu dois negros, que tinham estado na retaguarda do aparelho, a ser encaminhados para a frente por uma assistente, para a Classe Clube ou talvez, até, para a Primeira Classe.
— Olhem para aquilo! A exibirem o seu peso, como de costume. A ideologia mandava que Rose protestasse, mas ela conteve-se: sim,
este era um dos brancos incorrigíveis, mas tinha pela frente nove horas de estreita proximidade.
— Se gastassem menos dinheiro a exibir-se e mais a governar o país, isso, sim, seria alguma coisa.
O seu braço e o seu ombro ameaçavam agora comprimir Rose.
— Desculpe, mas estes lugares são muito apertados — e, vigorosamente, empurrou-o para o seu assento com o ombro. Ele abriu os olhos semicerrados para a fitar. — Está a ocupar demasiado espaço.
— Você também não é exactamente um peso-pluma — respondeu o passageiro, mas afastou o braço.
Foi servido o jantar, mas ele recusou, com um aceno.
— Estou habituado a boa comida na minha fazenda.
Rose aceitou o pequeno tabuleiro e começou a comer. Estava sentada ao lado de um fazendeiro branco. Não admirava que o detestasse. Voltou a pensar se devia insistir em mudar de lugar. Não, aproveitaria esta oportunidade e veria se podia conseguir um artigo. Ele observava-a claramente a comer. Ela sabia que comia demais e resolveu rejeitar a sobremesa.
— Eu como isso, se não quer —, e estendeu o braço para o copinho creme, que engoliu de uma vez. — Não valia grande coisa. — Ainda por cima era um bronco. — Estou habituado a boa comida. A minha mulher é uma óptima cozinheira. E o meu rapaz da cozinha é outro.
Rapaz da cozinha.
— Nesse caso está bem servido — disse Rose, usando o calão político do momento.
— Perdão? — Sabia que ela o estava a criticar, mas não porquê. Rose resolveu não se incomodar. — O que faz, quando está em casa? E, a propósito, onde fica a casa? Está de regresso ou de partida?
— Sou jornalista.
— Oh, Jesus, não me faltava mais nada. Suponho que planeia outro artigozinho acerca das delícias do governo negro?
O profissionalismo tomou a dianteira e ela respondeu:
— Muito bem, fale.
E ele obedeceu. Ele falou. Em redor deles continuava a azáfama do serviço de refeições, das bebidas e do duty free, e depois as luzes apagaram-se e ele continuou a falar. Chamava-se Barry Angleton. Fora fazendeiro em Zimlia toda a sua vida, e o seu pai antes dele. Tinham tanto direito como... etc. Rose não estava a ouvir as suas palavras, pois entretanto compreendera que o indivíduo lhe agradava, embora com certeza não gostasse dele, e aquela voz quente e forte fazia-se sentir como se estivesse a dissolver-se em melaço tépido.
As relações de Rose com os homens estavam condenadas ao infortúnio, por causa dos tempos. Era, evidentemente, uma feminista rigorosa. Casara no fim dos anos 70 com um camarada que conhecera numa manifestação defronte da Embaixada Americana. Ele concordava com tudo quanto ela dizia a respeito de feminismo, homens, a sorte das mulheres: concordava com ela, sorrindo, com formulações tão progressistas como as dela, mas Rose sabia que isso não passava de condescendência superficial e que ele não compreendia, realmente, as mulheres nem a sua herança fatal. Criticava-o por tudo e ele alinhava com ela, concordando que milhares de anos de delinquência não poderiam ser corrigidos num dia. «Acho que tens razão nisso, Rosie», dizia, circunspecto, com um arzinho de judiciosa avaliação, enquanto ela desbobinava uma arenga que abrangia tudo, desde o preço da noiva até à circuncisão feminina. E sorria. Sorria sempre. O seu rosto claro, gorducho e ansioso por agradar enfurecia-a. Detestava-o, ao mesmo tempo que dizia a si mesma que ele era, essencialmente, bom material. Sentia-se confusa porque, em virtude de embirrar com quase tudo, embirrar com o marido não era razão suficiente para autocrítica, embora às vezes se perguntasse se o seu hábito de fazer admoestações irritadas quando estavam na cama não poderia explicar o facto de ele se ter tornado impotente. Mas quanto mais ele concordava com ela, quanto mais ele sorria, acenava com a cabeça e lhe tirava as palavras da boca, mais ela o desprezava, e quando pediu o divórcio ele disse: «Tudo bem. Tu és demasiado boa para mim, Rosie. Eu sempre o disse.»
Este homem, Barry... este seria diferente.
Nos degraus do lado de fora do edifício do aeroporto viu-o dar dinheiro a um bagageiro de uma maneira que a fez ferver, de tão autoritária e arrogante. Depois, observando-a com a sua grande mala, à procura do carro que pedira, ele foi ao seu encontro e disse: «Eu deixo-a na cidade.» Pegou na sua mala, ao mesmo tempo que na dela, e dirigiu-se para o parque de estacionamento. Num instante, um grande Bukk parou diante de Rose, com a porta da frente aberta. Ela entrou. Aparecera um negro que arrumara as malas dos dois no carro. Barry deu mais dinheiro.
— Eu pedira um carro.
— É pena. Ele arranjará outro cliente.
No avião, terminara a dissertação com: «Por que não vai à fazenda e vê com os seus olhos?» Ela recusara e agora estava arrependida. Neste momento, ele disse:
— Venha até à fazenda e tome o pequeno-almoço.
Rose estava familiarizada com os acessos à cidade de Senga, que achava um lugarejo enfadonho e cheio de empáfia. Na realidade, o que de facto pensava a respeito de Zimlia era o oposto do que escrevia. Só o camarada Presidente Matthew justificava a sua atitude, e agora...
Hesitou, mas acabou por responder:
— Por que não?
— Por que não, diz ela, e espera uma resposta.
Em vez de atravessarem a cidade, deixaram-na para trás e, num instante, estavam no mato. Nem toda a gente ama África e, depois de a deixar, só anseia por regressar a uma promessa eternamente sorridente e convidativa. Rose sabia que tais pessoas existiam: como podia não saber, sendo os amantes do continente tão ruidosos e falando sempre como se o seu amor fosse a prova de uma virtude interior? Para começar, era demasiado grande. Havia uma desproporção entre a vila — que se auto-intitulava uma cidade —, as terras de cultivo e a selva. Demasiado mato e montes desordenados e, sempre, a ameaça de uma adversa deslocação da ordem. Rose raramente estivera fora das cidades, a não ser para breves caminhadas num parque. Gostava de passeios e bares, de câmaras municipais com gente a fazer discursos lá dentro e de restaurantes. Nesta altura disse a si mesma que era bom ir, de facto, conhecer uma fazenda de brancos e um fazendeiro branco, embora não pudesse, evidentemente, escrever as reclamações dele, que eram quase exclusivamente a respeito dos negros e isso estava, pura e simplesmente, fora de questão. Podia dizer, sem mentir, que estava a alargar os seus horizontes.
Quando pararam do lado de fora de uma grande casa de tijolo nu, num aglomerado de árvores da borracha que achou feias, ele observou que ela devia dirigir-se para a frente da casa, subir os degraus e entrar, enquanto ele ia à cozinha pedir o pequeno-almoço. Ainda eram apenas sete e meia, altura em que ela normalmente esperaria dormir mais uma hora. O Sol estava alto e quente, as cores demasiado brilhantes, numa mistura de escarlates, púrpuras e verdes fortes, e cobria tudo uma poeira rosada, na qual os seus sapatos quase desapareciam.
Ouviu-o dizer, ao afastar-se: «A minha mulher está fora esta semana. Tenho eu próprio de organizar o raio da cozinha.» Isto não lhe parecera um convite para se meter na cama e saltar os preliminares. Quando chegou ao cimo dos degraus e se encontrou numa varanda aberta em três lados, que ao princípio julgou tratar-se ainda de uma sala inacabada, ele apareceu momentaneamente para dizer:
— Há o diabo de uma crise com os barracões. Entre e o rapaz serve-lhe o pequeno-almoço. Eu não me demoro.
Ela não tomou o pequeno-almoço; não lhe apetecia, agora. Mas entrou numa grande sala que lhe pareceu precisar de uma certa suavidade — umas almofadas bonitas, talvez? — e daí passou para uma sala onde havia uma grande mesa e um velho sorria.
— Queira sentar-se, por favor — disse o criado, e ela sentou-se e viu a toda a sua volta pratos com ovos, bacon, tomates e salsichas.
— Tem café? — perguntou ao criado, sendo aquela a primeira vez que se dirigia a um — quer dizer, a um criado negro.
— Oh, sim, por favor, café. Tenho café para a senhora — disse o velho e deitou café, que ela ficou agradavelmente surpreendida por ver sair negro e forte do bico de prata da cafeteira.
Serviu-se de um ovo e uma tira de bacon, e nessa altura entrou o dono da casa. Atirou um pedaço de metal para cima de uma cadeira, puxou outra, arrastando-a, e sentou-se.
— Só isso? — perguntou Barry, referindo-se com desdém ao prato dela e enchendo o seu. — Vá, esforce-se.
Ela serviu-se de outro ovo e perguntou, sabendo que não pareceria tão casual quanto pretendia:
— E onde disse que está a sua mulher?
— A passear. (Na giraldinha?) As mulheres passeiam, não sabia? Rose sorriu cortesmente: acabara de saber, poucas horas antes,
que a revolução feminista ainda não chegara a todas as partes do mundo.
Ele empilhou ovos e bacon no prato, bebeu várias chávenas de café e depois disse que tinha de dar uma volta pela fazenda para ver o que os cafres tinham andado a fazer na sua ausência. Ela também podia ir e ver com os seus próprios olhos. Ao princípio, Rose disse que não, mas depois aceitou, perante o olhar fixo e a testa franzida dele. «Faz-se sempre rogada», comentou o homem, mas aparentemente sem nenhuma segunda intenção. Ela teria gostado se ele lhe tivesse dito: «Vá para aquele quarto, encontrará uma cama, meta-se nela e eu irei lá ter.» Em vez disso, passou algumas horas aos solavancos numa camioneta de um ponto da fazenda para outro, onde um grupo de negros, ou algum mecânico ou indivíduo de fato-macaco, o esperavam e onde ele dava ordens, discutia, discordava, e cedia, «Sim, está bem, você talvez tenha razão, experimentaremos à sua maneira», ou «Pelo amor de Deus, veja o que fez, eu bem lhe disse, eu disse-lhe, não disse? Agora volte a fazer, e desta vez bem feito». Ela não fazia a mínima ideia do que estava a ver ou do que estavam a fazer, e quando apareciam algumas vacas malcheirosas, sabia que era de esperar numa fazenda, mas tirando isso não percebia mais nada e doía-lhe a cabeça. De novo em casa, trouxeram chá quando ele bateu palmas. Estava suado, tinha o rosto vermelho e molhado e óleo na manga: ela estava a achá-lo irresistível, mas ele disse que tinha de ir tratar do raio de uma papelada, que o governo estava a matá-los com tanto papel, e pediu-lhe que, se não se importasse, se entretivesse com qualquer coisa até à hora do almoço. Ela sentou-se na varanda, que a envolvia num clarão atenuado por cortinas de cretone tranquilizadoramente identificável, e folheou revistas da África do Sul. Presumivelmente, o mundo da mulher dele — e o dela também.
Passou uma hora. Almoço. Carne, muita carne. Rose sabia que comer carne era politicamente incorrecto, mas adorou e comeu muita.
Depois sentiu-se ensonada. Ele lançava-lhe olhares que ela pensava que poderiam ser interpretados como um convite, mas afinal não eram, pois disse:
— Vou dormir uma sesta. O seu quarto é por ali.
Ele afastou-se numa direcção e ela encontrou a sua mala num chão de pedra ao lado de uma cama, na qual caiu e adormeceu até ouvir um forte bater de palmas e o grito de «Chá!». Saiu atabalhoada da cama e encontrou Barry na varanda, com as compridas pernas bronzeadas estendidas numa extensão que parecia de metros, e com um tabuleiro de chá à frente.
— Era capaz de ter dormido uma semana — disse ela.
— Oh, não se queixe, não passou muito mal a noite passada, a ressonar no meu ombro.
— Oh, eu não...
— Oh, você sim. Vamos, sirva. Faça de mãe.
Lá fora alongava-se a tarde africana, toda ela um clarão amarelo, e cantavam pássaros. Havia poeira nas suas mãos e no chão da varanda.
— Maldita seca. Há três anos que não chove decentemente nesta fazenda. O gado não se aguentará se não chover em breve.
— Porquê nesta fazenda?
— Sombra das montanhas, que não deixam passar a chuva. Não sabia, quando a comprei.
— Oh.
— Bem, espero que comece a fazer uma ideia. Pelo menos, se vai regressar e escrever que somos uma cambada de Simon Legrees, deve dar-se ao trabalho de ver com os seus olhos.
Rose não sabia quem era Simon Legree, mas supôs que, logicamente, devia ser um racista branco.
— Estou a fazer o possível.
— E ninguém pode fazer melhor do que isso.
Ele parecia de novo inquieto e levantou-se de repente.
— Vou dar uma vista de olhos aos bezerros. Quer vir? Embora soubesse que deveria responder que sim, respondeu que
ficava ali sentada.
— É uma pena a minha cara metade não estar cá. Teria alguém com quem dar à língua.
Saiu e regressou quando começava a escurecer. Jantar. Depois o noticiário radiofónico, durante o qual ele praguejou contra o locutor negro por ter pronunciado mal uma palavra, e depois disse:
— Desculpe, tenho de me ir deitar. Estou estoirado. — E foi para a cama.
E assim se passou uma estada que duraria cinco dias. Rose ficava acordada na sua cama, na esperança de que os sons que ouvia fossem os pés dele a aproximarem-se sorrateiramente, mas não teve semelhante sorte. Andou com ele pela fazenda e tentou apreender o que podia. Durante as conversas, que pareciam sempre demasiado breves e interrompidas por uma ou outra urgência, todas elas dramáticas de uma maneira que parecia — era certamente? — excessiva — um tractor avariado, um fogo de mato, uma vaca atingida por uma cornada —, ficou a saber que o seu velho parceiro Franklin era «um dos piores daquela quadrilha de ladrões», e que o seu ídolo, o camarada Matthew, era corrupto como os que o eram e tinha uma ideia tão clara de como governar um país como ele, Barry Angleton, de governar o Banco de Inglaterra. Ela aludiu ao nome de Sylvia Lennox, mas embora ele o tivesse ouvido a única coisa que sabia a seu respeito era que estava com os missionários em Kwadere. Acrescentou que outrora, quando era miúdo, ninguém tinha uma boa palavra para dizer dos missionários, que estavam a educar os cafres acima do seu merecimento, mas agora as pessoas começavam a pensar, e ele concordava com elas — note! —, que era uma pena não terem recebido uma educação completa, pois do que o país precisava era de alguns cafres convenientemente educados. Bem, é viver e aprender.
A sua mulher não regressou enquanto Rose permaneceu na fazenda, embora tivesse telefonado e deixado uma mensagem para o marido.
— Ainda bem que está aí — disse a complacente esposa. — Assim ele tem mais alguma coisa em que pensar além de em si mesmo e na fazenda. Ora, os homens são todos iguais.
Este comentário, expresso nas palavras creditadas pelo tempo da reclamação feminista, mas tão distantes da sofisticação do grupo de mulheres de Rose, permitiu-lhe responder que os homens eram os mesmos em todo o mundo.
— De qualquer maneira, diga ao meu velho que esta tarde vou visitar a Betty e levo para casa um dos seus cachorrinhos. — E acrescentou: — E agora seja justa connosco, para variar, e escreva alguma coisa simpática.
Barry recebeu estas notícias com:
— Bem, acho melhor ela não pensar que esse cão vai dormir na nossa cama, como o anterior.
A próxima paragem no itinerário de Rose, que estivera planeada para ser a primeira se o destino e Barry Angleton não se tivessem intrometido, era um velho amigo do camarada Johnny Lennox, Bill Case, que fora um comunista sul-africano, estivera preso, fugira para se refugiar em Zimlia, e para continuar a sua carreira na advocacia, falando em nome dos desprotegidos, dos pobres, dos maltratados que estavam a tornar-se mais ou menos a mesma coisa sob um governo negro ou sob um branco. Bill Case era famoso e um herói. Rose estava ansiosa por ouvir dele, finalmente, «a verdade» acerca de Zimlia.
Quanto a Barry, para quem teria aberto as pernas em qualquer momento, o mais que obteve, nesse capítulo foi o comentário, quando a deixou na cidade, de que se não fosse um homem casado a convidaria para almoçar fora. Mas ela identificou as palavras como uma galantaria tão rotineira como o seu «Adeus. Voltaremos a ver-nos».
Bill Case... A respeito dos comunistas africanos durante o apartheid havia que dizer, primeiro, que poucas pessoas alguma vez foram tão valentes, poucas combateram a opressão mais sinceramente... calma, porém: exactamente na mesma ocasião, os dissidentes da União Soviética defrontavam a tirania soviética com igual determinação. Rose lidara com o problema da viragem na União Soviética não pensando no assunto: não era responsabilidade sua, pois não? E ainda não estava em casa de Bill Case havia uma hora e já sabia ser essa também a atitude dele. Clamara durante anos que a União Soviética era uma nova civilização que abolira para sempre as antigas desigualdades, sendo o preconceito racial a mais relevante para o caso actual. E agora até nas províncias, que, capital ou não, era onde Senga se situava, estava a ser admitido que a União Soviética não era o que se apregoara. E claro que tal não era admitido pelo governo negro, comprometido com as glórias do comunismo. Mas Bill não falava do grande sonho falhado, mas de um sonho local: Rose estava a ouvir da sua boca o que ouvira durante dias da boca de Barry Angleton. Ao princípio, pensou que Bill estava a divertir-se, e a diverti-la, parodiando o que devia saber que ela andara a ouvir; mas não, as suas queixas eram tão reais, pormenorizadas e furiosas como as do fazendeiro. Os fazendeiros brancos eram maltratados, eram o bode expiatório de todos os fracassos do governo, e contudo tinham de proporcionar a moeda estrangeira, e quanto a impostos estavam a ser tributados injustamente. Que pena que este país se tivesse prestado a ser o pequeno lambe-rabos e lacaio do Banco Mundial, do FMI e do Dinheiro Global!
Durante estes dias, Rose descobriu finalmente uma coisa penosa: apostara no cavalo errado ao apoiar o camarada Matthew. Tinha de bater em retirada, de arrepiar caminho, de fazer alguma coisa para recuperar a sua reputação. Era cedo demais para escrever um artigo descrevendo o camarada Líder como ele merecia: tinham decorrido apenas três meses desde o último elogio que lhe fizera. Não, teria de usar jogo de cintura, de descobrir uma pequena manobra de diversão, usar outro alvo.
Da casa de Bill Case foi à de Frank Diddy, o amável editor do The Zimlia Post, que era amigo de Bill. Agradava-lhe a hospitalidade natural de África: era Inverno em Londres e ela estava a viver em liberdade. Sabia que The Post era desprezado por alguém inteligente — ou melhor, pela maioria dos cidadãos do país. Os seus editoriais eram todos do género: «O nosso grande país ultrapassou com êxito outra dificuldade menor. A central eléctrica falhou, a semana passada, devido às exigências da nossa economia em rápido desenvolvimento e, diz-se, aos esforços dos agentes secretos da África do Sul. Não podemos abrandar, nunca, a nossa vigilância contra os nossos inimigos. Não devemos esquecer, nunca, que a nossa Zimlia é o centro de atracção para tentativas de desestabilização do nosso bem-sucedido país socialista. Viva Zimlia!»
Descobriu que Frank Diddy considerava este tipo de textos como um osso atirado para acalmar os cães de guarda do governo que suspeitavam de que ele e os seus colegas «escreviam mentiras» acerca do progresso do país. Os jornalistas do The Post não tinham tido tarefa fácil desde a Libertação. Tinham sido presos, mantidos sob prisão sem acusação, soltos, presos novamente e ameaçados, e os gorilas da polícia secreta, conhecidos em escritórios como os do The Post simplesmente como «Os Rapazes», passavam regularmente pelos escritórios do jornal e pelas casas dos jornalistas ameaçando com prisão e encarceramento ao mais leve sinal de recalcitração. Quanto ao resto, à verdade sobre Zimlia, ouviu o mesmo que em casa de Barry Angleton e Bill Case.
Sem se atemorizar, tentava arranjar uma entrevista com Franklin, embora tencionasse perguntar-lhe alguma coisa como: «Andam a dizer que tens quatro hotéis, cinco fazendas e uma floresta de madeiras duras, que estás a abater ilegalmente. É verdade?» Sentia que o bicho da verdade devia sair, coleante, dos nós da madeira da ocultação. Era igual a ele. Franklin era um amigo, não era?
Embora se vangloriasse constantemente desta amizade, não o via há alguns anos. Nos tempos de camaradagem do princípio da Libertação, chegara a Zimlia, telefonara e fora convidada a encontrar-se com ele, embora nunca a sós, porque ele estava com amigos, colegas, secretários e, numa ocasião, com a sua mulher, uma criatura tímida que mal sorria e não abriu a boca nem uma vez. Franklin apresentou Rose como «A minha melhor amiga quando estive em Londres». Depois, quando lhe telefonara de Londres ou à chegada a Senga, tinham-lhe respondido sempre que ele estava numa reunião. Que ela, Rose, pudesse ser despachada com uma mentira daquelas era um insulto. E quem diabo julgava ele que era? Devia estar grato aos Lennox, que tinham sido tão bons para ele. Nós fomos tão bons para ele.
Desta vez, quando telefonou para o gabinete do camarada Ministro Franklin, ficou surpreendida por ele atender imediatamente e com um caloroso: «Oh, Rose Trimble, há quanto tempo! És exactamente a pessoa com quem quero falar.»
E foi assim que ela e Franklin voltaram a sentar-se juntos, desta vez num canto da sala do Butler's Hotel, um lugar chique concebido para que dignitários de visita não fizessem comparações desfavoráveis entre esta capital e qualquer outra. Franklin estava enorme, enchia por completo a poltrona, e o seu grande rosto derramava-se em queixos sucessivos e reluzentes bochechas pretas. Os seus olhos eram pequenos, embora ela os recordasse como grandes, atraentes e suplicantes.
— Precisamos da tua ajuda, Rose. Ainda ontem o nosso camarada Presidente disse que precisávamos da tua ajuda.
O faro profissional disse a Rose que esta última frase equivalia ao seu próprio «O camarada Franklin é um bom amigo». Toda a gente falava do camarada Matthew frase sim, frase não, invocando-o ou amaldiçoando-o. As palavras Camarada Matthew deviam tilintar e pulsar através do éter como a música indicativa de um programa de rádio popular.
— Sim, Rose, é óptimo estares cá — insistiu ele, sorrindo e lançando-lhe rápidos olhares desconfiados.
São todos paranóicos, ouvira dizer a Barry, a Frank, a Bill e aos hóspedes que entravam e saíam das casas de Senga com um à-vontade colonial — eh, alto aí! pós-colonial.
— É verdade que, segundo ouvi, estão a ter problemas, Franklin?
— Problemas! O nosso dólar voltou a descer esta semana. Vale um trigésimo do que valia na Libertação. E sabes por culpa de quem? — Inclinou-se para a frente, a sacudir um dedo gordo à frente da cara dela. — Da comunidade Internacional.
Rose esperara ouvir que a culpa era de agentes sul-africanos.
— Mas o país está a ir tão bem. Ainda ontem li isso no The Post. Ele sentou-se energicamente na sua poltrona, para melhor a enfrentar, apoiando o grande corpo nos cotovelos.
— Sim, nós somos uma história de sucesso. Mas não é isso que os nossos inimigos andam a dizer. E é aí que tu entras.
— Ainda há três meses, apenas, escrevi um artigo acerca do Líder.
— Um excelente artigo, um excelente artigo. — Ela percebeu que ele não o tinha lido. — Mas estão a aparecer outros que lesam o bom nome deste país e acusam o nosso camarada Presidente de muitas coisas.
— Franklin, andam a dizer que vocês estão todos muito ricos, compram fazendas, que tu tens fazendas e hotéis... tudo.
— E quem diz isso? É mentira. — Agitou as mãos, como se enxotasse as mentiras, e voltou a recostar-se na poltrona. Ela não disse nada. Ele olhou-a, erguendo a cabeça para o fazer e deixando-a cair de novo. — Sou um homem pobre — lamentou-se. — Um homem muito pobre. E tenho muitos filhos. E todos os meus parentes... tu compreendes, eu sei que compreendes que, na nossa cultura, quando um homem se sai bem na vida aparecem todos os seus parentes e nós temos de os manter e educar todos os seus filhos.
— Trata-se de uma excelente cultura — respondeu Rose, que achava de facto o conceito comovedor. Bastava olhar para ela! Quando se encontrara desamparada, há tantos anos, onde estivera a sua família? Depois o filho rico de uma exploradora família capitalista aproveitara-se dela...
— Sim, nós orgulhamo-nos dela. Os nossos velhos não morrem sozinhos em lares frios e não temos órfãos.
Rose sabia que isso não era verdade. Tinha ouvido falar dos resultados da sida — órfãos sem amparo, velhas avós a criar filhos sem pais.
— Queremos que escrevas a nosso respeito. Que digas a verdade a nosso respeito. Estou a pedir-te que descrevas o que vês aqui em Zimlia, para que essas mentiras não alastrem mais. — Olhou em redor da elegante sala do hotel para os sorridentes criados de libré. — Podes ver com os teus próprios olhos, Rose. Olha à tua volta.
— Eu vi uma lista num dos nossos jornais. Uma lista dos ministros e dos altos funcionários públicos e do que vocês todos têm. Alguns chegam a ser donos de doze fazendas.
— E por que não havíamos nós de poder ter uma fazenda? Está-me vedado possuir terra porque sou ministro? De que viverei, quando me reformar? Acredita que gostaria muito mais de ser um simples fazendeiro e viver com a minha família na minha própria terra. — Franziu a testa. — E agora temos esta seca. Lá em baixo, no vale Buvu, todos os meus animais morreram. A fazenda é só poeira. O meu novo furo secou. — Caíam-lhe lágrimas pelas faces. — É terrível ver os nossos mombies morrerem. Os fazendeiros brancos não sofrem, todos eles têm represas e furos.
Ocorreu a Rose que talvez tivesse ali uma matéria. Podia escrever a respeito da seca, que parecia estar a atingir toda a gente, com montanhas de permeio ou não, e isso significaria que não teria de tomar partido. Não percebia nada de secas, mas podia recorrer a Frank e Bill para a elucidarem e redigir qualquer coisa que não ofendesse os dirigentes de Zimlia: não queria cortar essa proveitosa ligação. Não, podia tornar-se uma combatente ecológica... estes pensamentos passavam-lhe pela cabeça enquanto Franklin perorava sobre o papel de Zimlia na vanguarda do progresso e das conquistas socialistas, encerrando o discurso com o perigo dos agentes sul-africanos e a necessidade de vigilância.
— Esses espiões sul-africanos..?
— Sim, espiões. Essa é a palavra certa. Estão em toda a parte. São eles os culpados pelas mentiras. A nossa gente da Segurança tem provas. O objectivo deles é desestabilizar Zimlia para que a África do Sul possa anexar o nosso país e juntá-lo ao seu império do mal. Sabias que estão a atacar Moçambique? Agora alastram por todo o lado. — Fitou-a, para ver o efeito que estava a fazer. — E então, vais escrever alguns artigos a nosso favor, nos jornais ingleses, explicando a verdade?
Começou a mexer-se na cadeira, um pouco ofegante.
— A minha mulher diz que preciso de começar a fazer dieta, mas é difícil, quando estamos sentados diante de uma boa refeição... e infelizmente, nós, ministros, temos de comparecer a muitas recepções...
No momento da separação, Rose sentia-se hesitante. Uma vaga reminiscência de simpatia pelo jovem Franklin, para quem, afinal de contas, roubara roupa — não, mais do que isso, a quem ensinara a roubar pessoalmente —, insistia para que o abraçasse. E se ele a abraçasse isso teria uma grande importância. Mas ele estendeu-lhe a mão e ela pegou-lhe.
— Não, Rose, não é assim. Deves usar o nosso aperto de mão africano, assim, e assim... — e de facto era inspirador, o aperto de mão que dizia ser difícil abandonar um bom amigo. — Fico à espera de ter boas notícias tuas. Envia-me cópias dos teus artigos. Fico à espera. — E saiu pela porta da sala onde o aguardavam dois calmeirões — os seus guarda-costas.
Tinha dito a Frank Diddy que conseguira uma entrevista com o ministro Franklin e percebera que ele tinha ficado impressionado. Agora descreveu a entrevista como um êxito e, mais, uma vantagem sobre ele, mas a única coisa que ouviu em resposta foi: «Junta-te a nós. Talvez te interesse experimentar um dos nossos pequenos editoriais?»
Resolveu que afinal não queria escrever sobre a seca: qualquer um podia fazer isso. Precisava de qualquer coisa... No The Post, que estava a ler com desdém profissional à mesa do pequeno-almoço, chamou-lhe a atenção o seguinte: «A Polícia anuncia o roubo de equipamento do novo hospital de Kwadere. Desapareceu material avaliado em milhares de dólares. Suspeita-se que os ladrões são gente local.»
O pulso de Rose acelerou-se, inequivocamente. Mostrou o artigo a Frank Diddy, mas ele encolheu os ombros e disse:
— Esse género de coisas acontece constantemente.
— Onde poderia informar-me?
— Não te incomodes, não vale a pena.
Kwadere. Barry dissera que Sylvia estava lá. Sim, e havia mais alguma coisa. Quando Andrew viera a Londres isso tinha sido muito anunciado pelos jornais. Andrew era notícia, ou pelo menos o Dinheiro Global era. Ligara-lhe a última vez havia cerca de três meses:
— Olá, Andrew, fala Rose Trimble.
— Olá, Rose.
— Presentemente estou a trabalhar no World Scandals.
— Não creio que o que faço interesse ao World Scandals.
Mas houvera uma ocasião anterior, alguns anos atrás, em que ele acedera em encontrar-se com ela para um café. Porquê? O primeiro pensamento dela fora, culpa, era isso! Embora tivesse esquecido que uma vez dissera que ele a engravidara — os mentirosos têm a memória curta —, tinha a certeza de que ele lhe devia alguma coisa. E esse encontro recordou-lhe que em tempos o achara tão atraente que não fora capaz de o deixar. Ele continuava atraente: aquela elegância natural, aquele encanto. Disse a si própria que lhe despedaçara o coração. Sentira-se capaz de elevar Andrew à posição de «O homem que mais amei na minha vida»; mas pouco a pouco compreendera que ele estava a avisá-la. Todos aqueles sorrisos evasivos destinavam-se a dizer-lhe que devia deixar os Lennox em paz. Quem se julgava ele?! Como jornalista, competia-lhe dizer a verdade! Aquela arrogância de classe superior! Estava a tentar subverter a liberdade de imprensa! A chávena de café durou bastante tempo, enquanto ele ia insinuando isto e aquilo, todo não me toques, mas ela conseguira arrancar-lhe notícias da família, entre elas que Sylvia estava em Kwadere e era médica. Sim, ela guardara isso no fundo da memória. E agora estava de posse do facto de que Sylvia, a quem ainda odiava, era médica em Kwadere, onde fora roubado equipamento hospitalar. Encontrara a sua matéria.
Alguns dias depois de Sylvia e Rebecca terem arrumado os novos livros ao longo das paredes do quarto de Sylvia, um grupo de aldeãos esperava-a quando ela saiu para ir para o hospital. Um jovem aproximou-se, a sorrir:
— Doutora Sylvia, dê-me um livro, por favor. A Rebecca disse-nos que nos trouxe livros.
— Agora tenho de ir para o hospital. Voltem ao anoitecer. Com que relutância se afastaram, lançando olhares para trás, para
a casa do Padre McGuire, onde os novos livros os chamavam!
Ela trabalhou o dia inteiro com Esperto e Zebedee, que tinham tomado conta das coisas enquanto estivera em Londres. Eram tão inteligentes, tão ágeis, e causavam-lhe uma dor no coração quando pensava no seu potencial e no que era provável acontecer-lhes. Pensava — tinha de pensar — onde havia em Londres, não, em Inglaterra ou na Europa, crianças tão ávidas de saber como estas. Tinham aprendido sozinhos a ler inglês nos rótulos dos pacotes de comida. Depois de terminado o trabalho com ela, sentavam-se ambos em casa a ler, à luz de velas, livros gradualmente mais difíceis.
O pai continuava a passar o dia sentado debaixo da árvore a dormitar, com uma grande mão esquelética abandonada num joelho soerguido, que era um alto ossudo entre dois ossos esguios cobertos de pele seca acinzentada. Tivera várias vezes pneumonia. Estava a morrer de sida.
Ao pôr do Sol, uma multidão de cem pessoas esperava do lado de fora da casa do Padre McGuire. O sacerdote estava lá parado, quando ela chegou do hospital.
— E agora, minha filha, é tempo de fazeres alguma coisa.
Ela voltou-se para a multidão e disse que ia decepcioná-los esta noite, mas trataria do necessário para os livros serem colocados na aldeia.
— E quem os manterá em segurança para si? — perguntou uma voz. — Serão roubados.
— Não, ninguém os roubará. Amanhã tratarei disso.
Ela e o sacerdote observaram de novo as pessoas decepcionadas a afastarem-se no mato a escurecer, por entre pedregulhos e erva alta, ao longo de caminhos que não eram visíveis para eles, e o padre disse:
— Às vezes penso que eles vêem com os pés. E agora venha para dentro, sente-se e coma, e depois partilhe o serão comigo, a ouvir rádio. Temos as pilhas novas, que nos trouxe.
Rebecca não estava lá à noite. Deixava uma refeição preparada e posta em pratos no frigorífico, e ia para a sua própria casa por volta das duas da tarde. Mas neste dia entrou enquanto eles estavam a comer e explicou:
— Vim porque tenho de lhes dizer.
Havia uma espécie de protocolo, aparentemente nunca formalmente acordado, segundo o qual Rebecca não se sentava à mesa com eles quando se encontrava na sua capacidade de criada, e sugestões do Padre McGuire para que o fizesse tinham sido vetadas por ela: não estaria certo. Mas quando se encontrava de visita, como agora, sentava-se e, quando convidada, tirava um biscoito de um prato e punha-o à sua frente: eles sabiam que o levaria para casa, para os filhos. Sylvia empurrou o prato para ela e Rebecca tirou mais cinco biscoitos. Perante o olhar interrogador deles — ela tinha três filhos sobreviventes — explicou que estava a alimentar Zebedee e Esperto.
— Temos de resolver o assunto dos livros. Falei do assunto com toda a gente. Há uma cabana vazia — a do Daniel, sabem quem era?
— Enterrámo-lo no domingo passado — disse o padre.
— Muito bem. E os filhos dele também morreram, antes. Mas agora ninguém quer aquela cabana. Dizem que dá azar — estava a empregar a palavra deles.
— Daniel morreu de sida e não por causa de qualquer disparate relacionado com mau muti. — Usando a palavra dela para as poções do ríganga.
Rebecca e o padre tinham tido muitas discussões durante o seu longo relacionamento, discussões de que ele tivera de sair vencedor em virtude de ser o padre e ela uma cristã, mas agora a mulher sorriu e disse: «Está bem.»
— Quer dizer que não dá azar para os livros?
— Não, Sylvia, é verdade: para os livros está bem. E por isso levamos as prateleiras e os tijolos do seu quarto e fazemos as estantes na cabana do Daniel, e o meu Tenderai olha por eles.
Este jovem estava muito doente, provavelmente restavam-lhe poucos meses de vida: toda a gente sabia que lhe tinham rogado uma praga. Rebecca leu os rostos deles e disse calmamente:
— Ele está suficientemente bem para guardar os livros. E pode tirar prazer deles e, por isso, não se sentir tão infeliz.
— Não há livros suficientes para toda a gente.
— Há os suficientes. O Tenderai fará com que levem um livro durante uma semana e o devolvam. Forra-os de papel de jornal. Fará com que todos paguem... — E, como Sylvia se preparava para protestar, explicou: — Não, poucochinho, apenas, talvez, dez cêntimos. Eu sei que não é nada, mas é o suficiente para dizer a toda a gente que os livros são caros e devemos todos cuidar deles.
Levantou-se. Não estava com bom aspecto. Sylvia repreendia-a por trabalhar demais, com os filhos doentes a acordá-la de noite, e agora voltou a dizê-lo:
— Trabalha demais, Rebecca.
— Sou forte. Sou como a Sylvia, posso trabalhar bem porque não sou gorda. Um cão gordo deita-se ao sol com as moscas a passear nele e dorme, mas um cão magro está acordado e ladra às moscas.
O padre riu-se.
— Usarei essas palavras no meu sermão de domingo.
— Às ordens, padre. — Fez-lhe a sua pequena vénia, como lhe tinham ensinado a fazer na escola aos mais velhos. Uniu as mãos magras e sorriu-lhe.
Depois disse a Sylvia:
— Vou arranjar alguns rapazes para virem buscar e levar os seus livros para a cabana, assim como as tábuas e os tijolos. Ponha os seus livros em cima da cama, para eles não os levarem também.
E saiu.
— Que pena a Rebecca não poder governar este pobre país em vez dos incompetentes que temos de aturar.
— Devemos, realmente, acreditar que um país tem o governo que merece? Não acho que esta pobre gente mereça o seu governo.
O Padre McGuire acenou com a cabeça e depois disse:
— Já pensou que estes palhaços podem não ter sido degolados pelos povos porque estes gostariam de estar no seu lugar, mas sabem que fariam o mesmo se tivessem essa oportunidade?
— Acredita realmente nisso?
— Não é sem motivo que a oração diz: «Não nos deixeis cair em tentação.» E outra, sua companheira: «Obrigado, Senhor, por me livrares do mal.»
— Está realmente a dizer que a virtude é uma mera questão de não ser tentado?
— Ah, virtude, aí está uma palavra que tenho dificuldade em usar. Era evidente que Sylvia estava à beira das lágrimas, e o sacerdote
viu-o. Foi a um armário e regressou com dois copos e uma garrafa de bom uísque — que ela trouxera da viagem. Deitou uma quantidade generosa para cada um, fez-lhe uma inclinação de cabeça e bebeu o seu uísque.
Sylvia olhou para o líquido dourado, que desenhava padrões à luz do candeeiro, um remoinho de uma oleosidade rica que se firmou num pequeno lago de âmbar. Bebeu um gole.
— Penso muitas vezes que podia tornar-me numa alcoólica.
— Não, Sylvia, não podia.
— Compreendo por que, antigamente, tomavam uma bebida ao pôr do Sol.
— Antigamente porquê? Os Pyne tomam pontualmente a sua bebida do pôr do Sol.
— Quando o Sol se põe, penso muitas vezes que era capaz de despejar uma garrafa. É tão triste, quando o Sol se põe.
— E a cor do céu, a lembrar-nos dos esplendores do Senhor de que estamos exilados. — Ela surpreendeu-se: o padre não costumava falar daquela maneira. — Eu próprio desejei muitas vezes estar longe de África, mas basta-me ver o Sol pôr-se sobre aqueles montes e nada deste mundo me faria partir.
— Outro dia passado e nada realizado — disse Sylvia. — Nada mudou.
— Ah, afinal é dos que desejariam mudar o mundo.
As palavras tocaram numa corda sensível. Pensou: Talvez os disparates do Johnny tenham entrado em mim e me tenham estragado.
— Como podia alguém não querer mudá-lo?
— Como podia alguém não o querer mudado? Mas querer mudá-lo pessoalmente... não, aí há coisa do Diabo.
— E quem poderia discordar, depois do que aprendemos?
— Se aprendeu isso, então teve mais sorte do que a maioria. Mas é um sonho demasiado forte deixar escapar as suas vítimas.
— Padre, está a querer dizer-me que quando era jovem nunca teve um momento em que gritou nas ruas e atirou pedras aos Britânicos?
— Esquece que eu era um rapaz pobre. Tão pobre como algumas destas pessoas aqui da aldeia. Só havia um caminho para mim. Sempre tive apenas uma estrada. Não tive escolha.
— Sim, eu não consigo vê-lo como outra coisa qualquer a não ser um padre, por natureza.
— É verdade... nenhuma escolha, mas a única para mim.
— No entanto, quando ouço a Irmã Molly falar, falar, acho que se não trouxesse uma cruz ao peito ninguém diria que era uma freira.
— Alguma vez pensou que para raparigas pobres, em qualquer ponto da Europa, só havia uma escolha? Tornavam-se freiras para pouparem às famílias a despesa de as alimentarem. E foi assim que os conventos se encheram de jovens mulheres que estariam melhor a criar as suas famílias ou... a fazer qualquer outro tipo de trabalho. Há cinquenta anos, a Irmã Molly daria em louca num convento, porque nunca deveria para lá ter ido. Mas agora... não sabia?... ela disse às suas superioras: «Vou sair deste convento e ser freira no mundo.» E espero que um dia diga a si mesma: «Não sou freira. Nunca fui freira.» E deixará simplesmente a sua Ordem, assim, sem mais. Era uma rapariga pobre e tomou o caminho que se lhe abria, mais nada. Sim, e eu sei o que está a pensar: não será tão fácil para aquelas pobres freiras negras lá de cima, do monte, sair como é para a Irmã Molly.
Quando Sylvia descia todos os dias a pé para a aldeia, depois do almoço, verificava que à porta de todas as cabanas, ou debaixo das árvores, ou sentadas em troncos ou bancos, havia pessoas a ler, ou então, com o livro de exercícios à frente ou nos joelhos, a esforçarem-se para aprender a escrever. Dissera-lhes que viria entre a uma hora e as duas e meia para supervisionar as classes. Por sua vontade, teria dito a partir do meio-dia, mas sabia que o Padre McGuire não a deixaria passar o almoço. Mas a sesta era outra coisa, pois não precisava de dormir. No espaço de umas duas semanas qualquer coisa como sessenta livros estava a transformar uma aldeia no mato onde as crianças iam para a escola mas não obtinham instrução, e onde a maioria dos adultos devia ter andado quatro ou cinco anos na escola. Sylvia tinha ido a casa dos Pyne, que iam a Senga, fora com eles e comprara uma quantidade de cadernos de exercícios, esferográficas, lápis, um atlas, um pequeno globo e alguns manuais sobre como ensinar. No fim de contas, não fazia a mínima ideia de como um profissional ensinaria e os professores da escola da colina, onde naquela altura a poeira se acumulava em montes ou voava em nuvens, não tinham recebido nenhum treino sobre a arte de ensinar. Fora também ao depósito da alfândega perguntar pelas suas máquinas de costura, mas ninguém ouvira falar delas.
Sentava-se do lado de fora da cabana de Rebecca, onde uma árvore alta proporcionava uma sombra densa no meio do dia, e ensinava o melhor que sabia até cerca de sessenta pessoas, ouvindo-as ler e fazendo modelos de escrita, e encostava o atlas a uma prateleira improvisada num tronco para dar lições de geografia. Entre os seus alunos podiam encontrar-se professores da escola que a ajudavam, mas ao mesmo tempo também aprendiam.
Os pombos arrulhavam nas árvores. Era a hora sonolenta do dia para todos eles, e a necessidade de sono de Sylvia tornava-lhe as pálpebras pesadas, mas ela não se deixava vencer, não dormia. Rebecca distribuía água em bacias de aço inoxidável e alumínio roubadas do hospital abandonado. Mas a quantidade de água era reduzida; a seca estava a fazer-se sentir: havia mulheres a levantar-se às três e quatro horas da manhã para irem a pé a um rio mais distante, pois o mais próximo estava quase seco e fétido, com cântaros e latas à cabeça. Não se faziam muitas lavagens e a roupa, essa, não era lavada. Já era muito o esforço que as mulheres tinham de fazer para conseguirem água suficiente para beber e cozinhar. O cheiro da multidão era forte. Sylvia associava agora esse cheiro a paciência, a resignação e a cólera contida. Quando bebia um golinho das bacias roubadas de Rebecca sentia o que deveria sentir, mas não sentia, ao beber o sangue de Cristo na comunhão. Os rostos do grupo, de todas as idades, de crianças a homens e mulheres velhos, estavam extasiados, silenciosos, atentos a cada palavra. Instrução, isto era a instrução por que muitos tinham ansiado durante a vida inteira e haviam esperado conseguir quando lhes fora prometida pelo seu governo. Às duas e meia, Sylvia chamava da multidão um rapaz ou uma rapariga mais adiantado no estudo do que os outros e pedia-lhe que lesse alguns parágrafos de Enid Blyton — uma grande favorita —, de Tarzan — outro —, de O Livro da Selva, que era mais difícil, mas apreciado, ou do preferido de todos eles, O Triunfo dos Porcos, que era a sua própria história, como diziam. Ou então o atlas ia de mão em mão, aberto numa página que tinham acabado de estudar, para fixarem melhor o que sabiam.
De qualquer maneira, ela visitava a aldeia todas as manhãs, depois de se certificar de que estava tudo bem no hospital. Levava consigo Esperto ou Zebedee, pois um deles tinha de ficar a tomar conta dos doentes. Tinha pacientes nas cabanas, aqueles atingidos por doenças prolongadas, sobre os quais ela e o riganga trocavam olhares que confirmavam o que tinham o cuidado de não dizer. Pois se havia uma coisa que este médico do mato compreendia tão bem, ou melhor, do que qualquer médico comum era a importância de uma mente animada. E era evidente que muitos dos seus muti, encantamentos e práticas eram elaborados com esse único propósito: manter um sistema imunitário optimista. Mas quando ela e esse homem inteligente trocavam um certo olhar, isso significava que o seu paciente estaria em breve entre as árvores, no novo cemitério, que na realidade se tratava do cemitério da sida ou Magreza e ficava bem afastado da aldeia. As sepulturas eram cavadas bem fundo, porque se receava que o mal que matara aquelas pessoas pudesse escapar-se e matar outras.
Sylvia sabia, porque Esperto lhe dissera — a própria Rebecca não tocara no assunto —, que esta mulher sensata e prática, com a qual ela e o sacerdote contavam, acreditava que os seus três filhos tinham morrido e um quarto estava doente porque a mulher do seu irmão mais novo, que sempre a detestara, recorrera a um n'ganga mais poderoso do que o local para atacar as crianças. Ela era estéril, o problema era esse, e estava convencida de que a culpada disso era Rebecca, por ter pago encantamentos, poções e feitiços para que ela não tivesse filhos.
Havia, no entanto quem acreditasse que ela não tinha filhos porque na sua cabana havia mais coisas roubadas do hospital abandonado do que em qualquer outra. O objecto tido por mais perigoso, entre todos os outros roubados, era a cadeira de dentista, que em tempos estivera no meio da aldeia, onde as crianças brincavam em cima dela, mas fora levada e atirada para uma ravina, a fim de se livrar das suas influências malignas. Macaquinhos brincavam-lhe em cima e, uma vez, Sylvia vira sentado nela um velho babuíno, com uma folha de erva entre os lábios, olhando em redor de modo contemplativo, como um avô que passava os seus dias sentado num alpendre.
Edna Pyne metera-se na velha camioneta e fora à Missão, porque estava a ser perseguida por aquilo a que chamava o seu cão preto, o qual até tinha um nome. «Plutão anda de novo a ladrar-me às canelas», dizia às vezes, afirmando que os dois cães da casa, Sheba e Lmaka, sabiam quando esse fantasmal perseguidor estava presente e lhe rosnavam. Em vez de se rir desta pequena fantasia da mulher quando ela a referia de brincadeira, Cedric dizia que ela estava a ficar tão má como os pretos com os seus disparates supersticiosos. Cinco anos atrás, apenas, Edna tivera amigas em fazendas vizinhas, que podia visitar quando se sentia em baixo, mas agora não restava nenhuma. Estavam a exercer a agricultura em Perth, na Austrália, ou em Devon, tinham «dado o salto» para a África do Sul — em suma, tinham-se ido embora. Sentia uma falta muito grande de conversas de mulheres, sentia-se num deserto de masculinidade: o marido, os homens que trabalhavam na casa e no jardim, as pessoas que iam lá a casa, inspectores governamentais, agrimensores, especialistas do cultivo em curvas e os novos intrometidos negros sempre a impor mais e mais normas. Todos homens. Esperava encontrar Sylvia livre para uma pequena conversa, embora não gostasse da médica tanto como sabia que ela merecia: era digna de admiração, sem dúvida, mas um bocado chalada. Quando chegou, a casa do Padre McGuire pareceu-lhe vazia. Avançou pelo interior fresco e Rebecca apareceu vinda da cozinha trazendo nas mãos um pano que já devia ter sido mais limpo. Mas a seca estava a limitar a limpeza na sua própria casa: o furo nunca estivera tão baixo.
— A Dr.a Sylvia está?
— Está no hospital. Há uma rapariga a dar à luz. E o Padre McGuire meteu-se no carro e foi visitar o outro padre, na Missão Velha.
Edna sentou-se, como se tivesse levado uma pancada nos joelhos. Inclinou a cabeça toda para trás e fechou os olhos. Quando os abriu, Rebecca ainda estava defronte dela, à espera.
— Meu Deus — queixou-se Edna —, estou farta, estou realmente farta.
— Vou fazer-lhe um chá — disse Rebecca, voltando-se para a deixar.
— Quanto tempo acha que a doutora se demora?
— Não sei; é um parto difícil. O bebé apresenta-se de nádegas.
A frase clínica fez Edna arregalar os olhos. Como muitos dos antigos brancos, tinha uma mentalidade compartimentada, isto é, mais compartimentada do que a maioria de nós. Sabia que alguns negros eram inteligentes como a maioria dos brancos, mas inteligente para ela significava educado, instruído, e Rebecca estava a trabalhar numa cozinha.
Quando o tabuleiro do chá foi colocado à sua frente e Rebecca se voltou para a deixar, Edna ouviu-se a si mesma dizer:
— Sente-se, Rebecca. — E acrescentou: — Tem tempo? Rebecca não tinha tempo, andara toda a manhã numa lufa-lufa.
Desde que o filho, o que lhe ia buscar a água ao rio, estava com o pai, que na noite anterior bebera até ficar bêbado varrido, ela, Rebecca, tivera de levar água desta cozinha, com autorização ao padre, não uma, mas cinco vezes. A água no poço da casa estava baixa: parecia estar a escorrer de novo para as entranhas da terra, em toda a parte, tornando-se cada vez mais difícil de alcançar. Mas Rebecca compreendeu que esta mulher estava num grande estado de agitação e precisava dela. Por isso, sentou-se e esperou. Estava a pensar que era uma sorte Mrs. Pyne encontrar-se ali com o seu carro, porque o padre levara o dele e Sylvia dissera que talvez fosse necessário levar a paciente para o hospital, para uma cesariana.
Palavras que durante horas, durante dias, tinham borbulhado e fervilhado dentro de Edna saíram num jorro irado, ressentido, acusador e autocompassivo, apesar de Rebecca não ser a melhor pessoa para as ouvir. Nem Sylvia seria, vendo bem as coisas.
— Não sei o que fazer — disse Edna, com os olhos muito abertos e fixos não em Rebecca, mas no debrum de contas azuis da rede que cobria o tabuleiro. — Estou completamente desorientada. Penso que o meu marido endoideceu. Bem, eles são loucos, os homens, não acha?
Rebecca, que passara a noite anterior a fintar pancadas e abraços do seu desvairado marido, sorriu e disse que sim, que os homens às vezes eram difíceis.
— Pode repeti-lo. Sabe o que ele fez? Comprou outra fazenda, comprou mesmo! Diz que se a não tivesse comprado um dos ministros lhe deitaria a mão, e sendo assim, por que não ele? Quero dizer, se vocês ficassem com ela, estaria bem, seria outra coisa, mas ele diz que pode pagá-la, foi oferecida ao governo e eles não a querem, por isso comprou-a. Vai construir lá uma represa, perto dos montes.
— Uma represa — disse Rebecca, da sonolência em que mergulhara ali sentada. — Está bem... uma represa... está bem.
— Mas no momento em que ele a construir um desses porcos negros deita-lhe a mão, é o que eles fazem, esperam que nós façamos alguma coisa boa, como uma represa, e depois deitam-lhe a mão. Sendo assim, perguntei-lhe, para que vais fazer isso, mas ele diz...
Edna estava sentada com um biscoito numa mão e a chávena na outra. As suas palavras saíam de roldão, demasiado depressa para a deixarem beber o chá.
— Quero ir-me embora. Censura-me por isso, Rebecca? Censura? Este não é o meu país, são vocês que o dizem e eu concordo com vocês, mas o meu marido diz que é tanto dele como de vocês e, por isso, comprou... — Escapou-lhe um lamento. Pousou a chávena e depois o biscoito, abriu um lencinho que tirou da mala de mão e enxugou a cara com ele. Depois ficou um momento silenciosa, inclinada para a frente e a esfregar entre os dedos, de testa franzida, as contas azuis. — Bonitas contas. Foi você que fez isso?
— Fui, sim.
— Bonito. Bem feito. E há ainda outra coisa. O governo critica-nos constantemente, chama-nos todos esses nomes. Mas na nossa cerca está o triplo das pessoas que lá deveriam estar, chegam todos os dias da terra comunal e nós alimentamo-las, alimentamos toda essa gente que morre de fome na terra comunal por causa da seca, sabe isso, não sabe, Rebecca?
— Está bem. Sim, é verdade. Morrem de fome. E o Padre McGuire estabeleceu um ponto de alimentação na escola, porque as crianças chegam lá tão cheias de fome que só se sentam e choram.
— Aí tem. Mas o governo de vocês nunca tem uma boa palavra para nenhum de nós.
Estava a chorar, num pranto desolado, como uma criança excessivamente cansada. Rebecca sabia que aquela mulher não estava a chorar pelas pessoas famintas, mas por causa daquilo a que ela chamava o demasiado. «É demasiado», dizia a Sylvia, «é demasiado para mim.» E sentava-se, levantava as mãos para o rosto, balançava o corpo e prosseguia o lamento, enquanto Sylvia ia buscar comprimidos — sedativos — que Rebecca engolia obedientemente.
— Às vezes penso que é tudo demasiado, é superior às minhas forças — choramingou Edna, mas na realidade parecia melhor. — Já era bastante mau antes da seca, mas agora, a seca, o governo e tudo o mais...
Neste momento, Esperto apareceu à porta para dizer a Rebecca que a Dr.a Sylvia o mandara ir a correr à fazenda dos Pyne e pedir a alguém que trouxesse um carro para levar para o hospital a mulher em trabalho de parto.
E Edna Pyne estava ali! O rosto do rapaz iluminou-se e ele deu uns passos de dança, ali mesmo, na varanda.
— Bem, agora ela não morre. O bebé está encalhado — informou-as —, mas se ela puder chegar ao hospital a tempo... — Desatou a correr pela encosta abaixo e pouco depois apareceu Sylvia, amparando uma mulher embrulhada num cobertor.
— Parece que afinal tenho algum préstimo — disse Edna, e foi ajudar Sylvia a amparar a mulher, que soluçava e gemia.
— Se ao menos eles andassem para a frente com o novo hospital — lamentou-se Sylvia.
— Sonhar é fácil.
— Ela está assustada, com medo da cesariana, apesar de eu lhe dizer que não custa nada.
— Por que não pode fazer a Sylvia a operação?
— Nós às vezes cometemos erros. O meu terrível, estúpido, ridículo e imperdoável erro foi não me formar em cirurgia. — Falava em tom seco e monocórdico, mas que Edna reconheceu como a sua própria explosão emocional: Sylvia estava a soltar vapor, não se devia dar importância ao que dizia. — Mando o Esperto consigo. Tenho um homem muito doente lá em baixo.
— Espero não ter de trazer um bebé ao mundo.
— Se tiver sair-se-á tão bem como qualquer pessoa. Mas o Esperto é muito bom. E eu dei à rapariga uma coisa para atrasar um pouco o bebé. A irmã dela também vai.
Uma mulher esperava no carro. Estendeu os braços, a parturiente acolheu-se neles e começou a chorar.
Sylvia correu pela colina abaixo para o seu hospital. O carro arrancou. A estrada era má e a viagem durou quase uma hora, porque a paciente gritava sempre que encontravam uma lomba no caminho. Edna levou as duas negras ao hospital, que era velho e tinha sido construído pelos brancos para atender poucos milhares de pessoas, mas agora esperavam que se desenvencilhasse com meio milhão.
Edna sentou-se no lugar do motorista e Esperto sentou-se ao lado dela. Ele deveria ir no banco de trás, pensou ela, mas sem muita indignação. Escutou-o enquanto ele tagarelava a respeito da Dr.a Sylvia e das aulas debaixo das árvores, dos livros, dos cadernos de exercícios, das esferográficas, que eram muito melhores do que a escola. Sentiu-se curiosa e, em vez de deixar o rapaz na viragem do caminho, para seguir a pé para a Missão, seguiu até lá e estacionou.
Ainda era apenas meio-dia e meia hora. Sylvia estava sentada à mesa com o padre, a almoçar, onde ela, Edna, estivera não havia muito tempo. Convidada para se sentar e almoçar, preparava-se para aceitar, mas Sylvia disse que tinha de ir para a aldeia, que não lhe levasse a mal... Por isso, Edna, uma mulher que apreciava comida, deixou o padre preparar-lhe uma sanduíche de rodelas de tomate entre fatias de pão sem manteiga — sim, naquele momento era difícil arranjar manteiga, por causa da seca — e seguiu Sylvia. Não sabia o que esperar e ficou impressionada. Toda a gente sabia quem Mrs. Pyne era, evidentemente, e não faltaram sorrisos de boas-vindas. Foram-lhe buscar um banco e esqueceram a sua presença. Ela sentou-se com a sanduíche metida na mala, pois desconfiava de que alguns dos presentes estariam com fome e não podia comer diante deles. Santo Deus, pensou. Quem poderia acreditar que eu veria dois bocados de pão seco e uma rodela de tomate como um luxo perverso?
Ouviu Sylvia ler em inglês, pronunciando lentamente cada palavra de um escritor africano de que ela nunca ouvira falar, embora soubesse que havia negros que escreviam romances, enquanto as pessoas a escutavam como se... meu Deus, era como se estivessem na igreja. Depois Sylvia convidou um jovem, e a seguir uma rapariga, para dizerem aos outros do que tratava a história. Fizeram-no bem, e Edna deu-se conta de que se sentia aliviada por isso: desejava que aquele empreendimento fosse um sucesso e sentia-se satisfeita consigo própria por o desejar.
Sylvia estava a pedir a uma mulher idosa que lhe falasse de uma seca de que se lembrava de quando era pequena. A mulher falou num inglês hesitante e entrecortado, e Sylvia pediu a uma jovem que repetisse num inglês melhor. Aquela seca não parecia muito diferente da de agora. O governo branco distribuíra milho às áreas afectadas, disse a velha, e ouviram-se algumas palmas de apreço que só podiam ser uma crítica ao seu próprio governo actual. Quando a história acabou, Sylvia disse aos que podiam que escrevessem o que se lembravam, e os que não podiam que inventassem uma história para contarem no dia seguinte.
Eram duas e meia. Sylvia deixou na sua casa a idosa que contara a história da seca aos outros — cerca de cem —, e foi com Edna para casa. Agora tomariam uma chávena de chá e ela e Sylvia podiam sentar-se e conversar, ela poderia ter finalmente a sua conversa... mas, curiosamente, a necessidade de falar e ser ouvida parecia tê-la abandonado.
— Eles são uma gente tão boa — disse Sylvia. — Custa-me, não suporto a maneira como estão a ser desperdiçados.
Estavam paradas do lado de fora de casa, perto do carro.
— Bem — respondeu Edna —, suponho que todos nós somos melhores do que nos dão uma oportunidade de ser.
Percebeu, pela maneira como Sylvia se virou para a olhar com atenção, que aquelas não eram palavras que as pessoas esperassem ouvir dela. E por que não?
— Gostaria que eu a ajudasse com a sua escola... ou os seus pacientes?
— Oh, sim, faria isso, faria realmente isso?
— Informe-me quando precisar de mim — respondeu Edna, e meteu-se no carro e partiu, sentindo que dera um grande passo numa nova direcção.
Não sabia que se tivesse perguntado a Sylvia, logo ali, «Posso começar agora?», ela lhe teria respondido gratamente: «Oh, sim, venha ajudar-me com aquele homem doente. Está tão atacado de malária que morrerá de tanto tremer.» Mas Sylvia pensou que as palavras de Edna tinham sido ditadas pela cortesia e não voltou a pensar na sua oferta.
Quanto a Edna, toda a sua vida achou que perdera uma oportunidade, que se abrira uma porta mas ela optara por não a ver. O problema estava no facto de andar há anos a troçar dos benfeitores, das almas caridosas, e por isso tornar-se um deles, assim de repente... No entanto, fizera a oferta com sinceridade. Por um momento, não fora a Edna Pyne que conhecia, mas alguém muito diferente. Não disse a Cedric que tinha levado a negra ao hospital: e se ele resmungasse a respeito da gasolina e da dificuldade em arranjá-la? Disse-lhe que vira a aldeia onde as coisas roubadas do hospital inacabado estavam em evidência. «Bom para eles», foi o comentário do marido. — É melhor isso do que ficarem a apodrecer no mato.
Mr. Edward Phiri, inspector escolar, escrevera ao director da Escola Secundária de Kwadere a informar que chegaria às nove horas da manhã e esperava almoçar com ele e com o pessoal. O seu Mercedes, comprado em terceira mão — afinal, ele não era ministro e digno de um novo - avariara-se não longe do letreiro da fazenda dos Pyne. Saiu do carro e, com um mau humor dos diabos, percorreu a pé as poucas centenas de metros até à casa do fazendeiro. Encontrou Cedric e Edna a tomarem o pequeno-almoço. Apresentou-se, disse que precisava de falar com Mr. Mandizi do Centro de Desenvolvimento, para que viesse buscá-lo e o conduzisse à escola, mas foi informado de que a linha do telefone caíra havia já um mês.
— Então por que não foi arranjada?
— Acho que deve fazer essa pergunta ao Ministro das Comunicações. A rede telefónica está sempre a avariar-se e pode levar semanas para ser consertada.
Foi Edna quem falou, mas Mr. Phiri olhou para o marido — o homem, cujo papel é dirigir. Mas Cedric pareceu alheado dessa responsabilidade e não disse nada.
Mr. Phiri estava parado, a olhar para a mesa do pequeno-almoço.
— Vocês tomam o pequeno-almoço tarde. A mim parece-me que tomei o meu há muitas horas.
Edna replicou, na mesma voz acusadora:
— O Cedric já estava lá fora, nos campos, logo depois das cinco horas. Ainda não era propriamente claro. Talvez queira sentar-se e tomar chá... ou talvez um novo pequeno-almoço?
Mr. Phiri sentou-se, com o bom humor recuperado.
— E talvez queira. Mas surpreende-me saber que trabalha tão cedo
— disse a Cedric. — Tinha a impressão de que vocês, fazendeiros brancos, levavam as coisas com calma.
— Creio que tem muitas falsas impressões — respondeu Cedric.
— Mas agora devo pedir-lhe que me dê licença. Tenho de voltar para a represa.
— Represa? Represa? Não há nenhuma represa assinalada no mapa. Edna e Cedric entreolharam-se. Começavam a desconfiar de que
aquele funcionário fingira uma avaria para ter oportunidade de dar uma vista de olhos à sua fazenda. Ele praticamente o admitira, ao mencionar o mapa.
— Quer que mande fazer chá fresco?
— Não, o do bule serve muito bem. E talvez aqueles ovos que sobraram? Acho que é uma pena desperdiçá-los.
— Não seriam desperdiçados. O cozinheiro come-os no seu pequeno-almoço.
— Isso agora surpreende-me. Não sou apologista de estragar o pessoal com mimos. Os meus rapazes comem sadza, não ovos frescos da fazenda.
Mr. Phiri não tinha, aparentemente, consciência da sua indelicadeza e sentou-se, sorridente, quando Edna lhe encheu o prato de ovos fritos, bacon e salsichas. Quando começou a comer, disse:
— Talvez possa acompanhá-lo para ver a represa, já que não estou claramente destinado a chegar à escola esta manhã.
— Por que não? — perguntou Edna. — Eu levo-o lá no meu carro. E quando terminar alguém da Missão o conduz ao Centro de Desenvolvimento.
— E o meu carro, fica abandonado na estrada? Será roubado.
— Isso parece-me mais do que provável — disse Cedric, no mesmo tom seco, de antipatia, que usara desde o princípio e contrastava com a voz agastada e emotiva da mulher.
— Então talvez pudesse mandar um dos seus trabalhadores guardar o meu carro?
Marido e mulher voltaram a entreolhar-se. Edna regressou à sua personalidade responsável movida pela fúria do marido, à qual Mr. Phiri parecia alheio, e pediu silenciosamente complacência. Cedric levantou-se, foi à cozinha, voltou e disse:
— Pedi ao cozinheiro que mandasse o rapaz do jardim guardar o seu carro. Mas talvez devêssemos tomar providências para o reparar, não acha?
— Que excelente ideia — disse Mr. Phiri, que acabara de comer os ovos e estava a devorar uns pedaços de doce cobertos de açúcar, que lhe agradavam visivelmente. — E como fazemos isso?
Edna sabia que Cedric tinha de reserva alguma coisa do género de «E que me interessa isso?», o que a levou a sugerir, muito depressa:
— Cedric, podias experimentar o rádio.
— Oh, quer dizer que tem um rádio?
— As pilhas estão fracas. Neste momento não se encontram à venda nas lojas, como suponho que tu própria já verificaste.
— Isso é verdade, mas não podias experimentar?
Cedric não quisera admitir a existência do rádio porque não queria desperdiçar com Mr. Phiri a pouca energia que lhe restava.
— Vou tentar, mas não prometo nada — resmungou, e saiu de novo da sala.
— Que coisa deliciosa é esta que estou a comer? — perguntou Mr. Phiri, sem parar de se empanturrar.
— Papaia cristalizada.
— Tem de me dar a receita. Pedirei à minha mulher que o faça.
— Ela já a deve ter. Ouvi-a no programa de rádio Como Tirar o Melhor Partido dos Nossos Produtos.
— Surpreende-me que ouça um programa para mulheres negras pobres.
— Esta mulher branca pobre ouve programas para mulheres. E se a sua mulher é importante demais para os ouvir, está a perder muito.
— Pobre... — Mr. Phiri riu-se de bom grado, genuinamente, e depois, dando-se conta de que acabara de ouvir um comentário que fora feito com intuitos de grosseria, disse acidamente. — Foi uma boa piada.
— Ainda bem que gostou.
— Está bem — respondeu querendo dizer que bastava. Mas Edna continuou:
— É um programa muito bom, com o qual aprendi muito. Tudo quanto vê nesta mesa é feito com produtos da fazenda.
Mr. Phiri examinou com vagar o que estava na mesa, mas não quis admitir que algumas das coisas lhe eram desconhecidas: pasta de peixe, pasta de fígado, caril de peixe...
— As compotas, claro. Posso provar esta? — Estendeu a mão para um frasco. — Rosella... rosella... Mas isto cresce bravio por toda a parte, não cresce?
— Que importa, se faz boa geleia — Mr. Phiri afastou o frasco sem provar. — Disseram-me que as freiras da Missão não comem os maravilhosos pêssegos que crescem no pomar, só comem pêssegos enlatados, porque não querem ser consideradas primitivas. — Riu-se, maliciosamente.
— Ouvi dizer que o seu marido comprou a fazenda a seguir a esta...
— Estava à venda. Vocês não a queriam, ela foi-lhes oferecida. Garanto-lhe que a comprou muito contra a minha vontade.
Olharam um para o outro, o que não tinha acontecido até agora; os seus olhos tinham estado a fazer tudo excepto exprimir uma vontade de tentar gostar um do outro.
Mr. Phiri não gostava desta mulher. Primeiro, por uma questão de princípio: era a mulher de um fazendeiro branco, na qual pensava antes de mais nada como uma das mulheres que tinham pegado em armas na Guerra da Libertação e defendido propriedades, estradas pontos de munições: esta era uma área onde a guerra fora violenta. Sim, podia vê-la facilmente em traje de combate e com uma arma, apontada talvez a ele próprio. Mas ele era um rapaz, durante a guerra, e estivera em segurança em Senga: a guerra não lhe tocara, absolutamente.
Ela antipatizava com este tipo de funcionário negro, chamava-lhes pequenos Hitlers e deliciava-se a repetir todas as coisas más que ouvira a seu respeito. Tratavam os seus criados negros como lixo, pior do que alguém jamais fizera, e os negros não queriam trabalhar para outros negros, preferiam trabalhar para brancos. Abusavam do poder, aceitavam subornos, eram — e este era o verdadeiro pecado — incompetentes. Com este homem, em especial, antipatizara desde o primeiro olhar. As duas pessoas, a branca excessivamente tensa e o negro corpulento e confiante, olhavam um para o outro, deixando os rostos falar por eles.
— Está bem — disse Mr. Phiri, por fim. Felizmente, Cedric chegou.
— Consegui transmitir uma mensagem imediatamente antes da maldita engenhoca se apagar. Mas ele diz que hoje não se sente bem.
— Tenho a certeza de que Mr. Mandizi será o mais rápido que puder, mas teremos tempo de ver a sua nova represa.
Os dois homens dirigiram-se para a camioneta, estacionada debaixo de uma árvore, e nenhum deles olhou sequer para a mulher. Ela sorriu para consigo, com o amargo e habituado franzir de lábios de quem se alimenta de amargura.
Cedric conduziu depressa pelas estradas acidentadas da fazenda e através de campos, kopjes e extensões de mato. Mr. Phiri quase nunca na sua vida saíra de Senga e, como Rose, não sabia interpretar o que via.
— E o que está plantado aqui?
— Tabaco. É o que mantém viva a economia de vocês.
— Ah, então isto é o famoso tabaco?
— Quer dizer que nunca viu crescer tabaco?
— Quando saio de Senga para inspeccionar escolas venho sempre cheio de pressa, sou um homem muito ocupado. É por isso que estou tão satisfeito por ter esta oportunidade de ver uma fazenda verdadeira, com um fazendeiro branco.
— Alguns dos seus fazendeiros negros estão a cultivar bom tabaco. Não sabia disso?
Mr. Phiri ficou calado, porque estavam a passar ao longo da base de um monte alcantilado e, diante deles, havia um deserto de solo amarelo escalvado, em montículos e ondulações, e uma escavadora trabalhava, equilibrada em declives e ladeiras inverosímeis.
— Cá estamos — anunciou Cedric, saltando da camioneta e avançando sem olhar para trás, para ver se o inspector o seguia. Um negro, o ajudante do condutor da escavadora, foi ao encontro do fazendeiro e pararam os dois, ao lado um do outro, a observar um mapa qualquer, na beira de um buraco no denso solo amarelo. Mr. Phiri avançava cautelosamente, entre os montes amarelos, tentando manter os sapatos limpos. Voava poeira do cimo dos montículos. O seu melhor fato já estava todo empoeirado.
— Pronto, cá estamos — repetiu Cedric.
— Mas onde está a represa?
— Ali — apontou.
— Mas... quando estiver pronta que tamanho terá? Cedric apontou de novo:
— Ali... ali... daquela linha de árvores até à colina e daí até onde estamos aqui parados.
— Uma grande represa, então?
— Não será a Kariba.
— Está bem — disse Mr. Phiri. Estava decepcionado. Esperara ver um lago de doce água castanha, com vacas metidas nela até meio do corpo e, por cima, árvores espinhosas de onde pendiam ninhos de tecelões. Não se lembrava, conscientemente, de alguma vez ter visto essa cena, mas era o que uma represa significava para ele. — Quando ficará cheia?
— Talvez possa conseguir-nos alguma boa chuvada. Esta é a nossa terceira estação praticamente sem chuva.
Mr. Phiri riu-se, mas estava a sentir-se como um colegial e isso não lhe agradava. Não conseguia imaginar a extensão de água que haveria ali sob os montes.
— Se quer apanhar o Mandizi, é melhor voltarmos.
— Está bem. — Este era um está bem no seu sentido essencial: Sim, concordo.
— Vou levá-lo por outro caminho — disse Cedric, embora fosse contra os seus interesses impressionar aquele homem que tencionava roubar-lhe a sua fazenda. Queria partilhar o seu orgulho enternecido pelo que conseguira fazer do mato. A cerca de quilómetro e meio de casa, uma manada de gado comia maçarocas de milho secas. Tinham o olhar inquieto de animais tensos pela seca. O que Mr. Phiri viu foi gado, mombies, e ansiou por possuí-los. Fascinado pela maravilha daqueles animais, não se deu conta de que estavam em apuros.
— Vou ter de abater os vitelos a tiro, quando nascerem.
A sua voz tornara-se ríspida. Mr. Phiri sentiu-se chocado e gaguejou:
— Mas... mas... sim, eu li no jornal... mas é horrível. — Viu lágrimas correrem pelas faces do branco.
— Deve ser horrível — disse, suspirando e, com tacto, tentou não olhar para Cedric. Estava a sentir verdadeira simpatia por ele, mas não sabia o que faria se o branco se fosse abaixo e chorasse. — Abater vitelos a tiro.... mas não há nada... nada...
— Não haverá leite nos úberes — respondeu Cedric. — E quando as vacas estão assim tão magras, os vitelos nascem de fraca qualidade.
Estavam em casa. Mr. Mandizi vinha a chegar, mas ao princípio Cedric pensou que fosse um substituto: o homem estava pela metade do que fora.
— Perdeu muito peso — observou.
— Sim, é verdade.
Deixara o mecânico junto do Mercedes e abriu a porta de trás do carro e disse a Mr. Phiri:
— Entre, por favor. — E a Cedric, num tom de voz oficial: — Precisa de arranjar o seu rádio. Mal consegui ouvi-lo.
— Isso também eu queria — respondeu-lhe Cedric.
— E agora para a escola — disse Mr. Phiri, que estava desanimado por causa dos vitelos. Não falou enquanto era conduzido para a Missão.
— Esta é a casa do padre.
— Mas eu quero a casa do director.
— Não há director nenhum. Infelizmente, está na prisão.
— Mas por que não foi substituído?
— Pedimos um substituto, mas, compreende, não é um posto atraente. Preferem todos ir para uma cidade. Ou para o mais perto possível de uma.
A cólera devolveu a vitalidade a Mr. Phiri, que entrou na pequena casa seguido pelo seu subordinado. Não estava ninguém à vista. Bateu palmas e Rebecca apareceu.
— Diz ao padre que estou aqui.
— O Padre McGuire está na escola. Se subir aquele caminho, encontra-o.
— E por que não vais tu buscá-lo?
— Tenho uma coisa no forno. E o Padre McGuire está à sua espera.
— E que está ele lá a fazer?
— Ele ensina as crianças crescidas. Creio que ensina muitas classes, porque o director não está cá. — Rebecca voltou-se para regressar à cozinha.
— E aonde julgas que vais? Eu não disse que podias ir. Rebecca fez uma vénia profunda e lenta e ficou parada, com as
mãos entrelaçadas e os olhos baixos.
Os olhos de Mr. Phiri coruscavam. Não olhou para Mr. Mandizi, que sabia que ele estava a ser alvo de troça.
— Muito bem, agora podes ir.
— Está bem — disse Rebecca.
Os dois homens enveredaram pelo carreiro empoeirado, com o sol a bater-lhes com força nas cabeças e nos ombros.
Desde as oito horas daquela manhã que as muitas salas de aula daquela escola estavam num pandemónio, com as crianças agitadas à espera do homem importante. Os seus professores, que no fim de contas não eram muito mais velhos do que alguns deles, estavam igualmente entusiasmados. Mas não chegou nenhum carro, ouvia-se apenas o arrulhar de pombos e algumas cigarras na mancha de arvoredo perto do tanque da água, que estava vazio. Havia semanas que todas as crianças andavam sequiosas e algumas tinham fome e, na realidade, não tinham comido nada além do que o Padre McGuire lhes dera para o pequeno-almoço, nacos de espesso pão branco e leite em pó. Nove horas, depois dez... As aulas recomeçaram, com as repetições necessárias, devido à inexistência de livros e cadernos de exercícios, audíveis a quase um quilómetro da escola, e só cessaram quando Mr. Phiri e Mr. Mandizi apareceram, afogueados e a transpirar.
— Que vem a ser isto? Onde está o professor?
— Aqui — respondeu um jovem humilde, sorrindo apesar da angústia apreensiva que o dominava.
— E que classe é esta? Porquê todo este barulho? Não me lembro de que façam parte do nosso currículo lições orais. Onde estão os cadernos de exercícios?
Cinquenta exuberantes crianças responderam em coro:
— Camarada inspector, camarada inspector, nós não temos cadernos de exercícios, nós não temos livros, por favor, dê-nos alguns cadernos de exercícios. E alguns lápis, sim, alguns lápis, não se esqueça de nós, camarada inspector.
— Por que não têm eles cadernos de exercícios? — perguntou Mr. Phiri, autoritariamente, a Mr. Mandizi.
— Nós enviámos as requisições, mas não nos enviaram nem os cadernos de exercícios nem os livros. — Já lá iam três anos, mas ele não tinha coragem para dizer isso na presença das crianças e do seu professor.
— Mas se estão atrasados, então inste com eles, em Senga. Não teve outro remédio senão explicar:
- — Há três anos que esta escola não recebe quaisquer livros ou cadernos de exercícios.
O inspector fitou-o, fitou o jovem professor, fitou as crianças.
O jovem professor disse:
— Camarada Inspector, excelência, nós fazemos o melhor que podemos, mas sem livros é difícil.
O camarada inspector sentiu-se encurralado. Sabia que em algumas escolas — bem poucas — havia escassez de livros. O facto era que ele raramente ia a locais fora das cidades, certificava-se de que as escolas que inspeccionava eram urbanas. Aí havia escassez, mas bem vistas as coisas não era nada de terrível, pois não, se quatro ou cinco crianças partilhassem um livro ou se servissem de papel de embrulho usado para escreverem as lições? Mas nem um livro, nada! Explodiu, numa fúria:
— E olhem para este chão. Há quanto tempo não é varrido?
— Há tanta poeira — disse o professor, em voz baixa e envergonhada. — Poeira...
— Fale alto!
As crianças gritaram:
— A poeira entra, e assim que a varremos entra de novo.
— Levantem-se quando falarem comigo.
Como os funcionários tinham chegado à porta sem cerimónia, o jovem professor não mandara as crianças levantar-se, mas agora houve um grande arrastar de pés e carteiras.
— E como se explica que as crianças não saibam saudar o representante do governo?
— Bom dia, camarada inspector — soou a muito ensaiada saudação, com todas as crianças a sorrir e animadas por causa desta visita de que resultaria receberem, finalmente, cadernos de exercícios, lápis e talvez, até, um director.
— Trate do chão — ordenou o visitante ao professor, que sorria como um mendigo a quem fora negada esmola.
— Mr. Phiri, camarada inspector, excelência... — disse a correr atrás dos funcionários, que se dirigiam para a sala de aula seguinte.
— Se pudesse pedir ao departamento que nos envie os nossos livros...
— Agora corria ao lado deles como um mensageiro a tentar transmitir uma mensagem urgente e, perdida toda a aparência de dignidade, juntava as mãos e chorava. — Camarada inspector, é tão difícil ensinar quando não temos...
Mas os funcionários entraram na sala de aula seguinte, na qual soaram quase imediatamente os gritos e imprecações provocados pela fúria de Mr. Phiri. Demorou-se apenas um minuto e seguiu para a sala seguinte, onde soou a mesma tempestade de gritos. O professor da primeira sala, que estivera parado a ouvir e a tentar refazer-se, endireitou-se e voltou para junto dos seus alunos, que esperavam cheios de esperança. Cinquenta pares de olhos fitaram-no, brilhantes: Ob, dê-nos algumas boas notícias.
— Bem — disse ele, e os rostos das crianças perderam o brilho. Ele esforçava-se o mais possível para não chorar. Estalaram línguas,
em sinal de compreensão, e ouviram-se murmúrios de «Pouca vergonha».
— Vamos dar uma lição de escrita. — Virou-se para o quadro e com um pedaço de giz escreveu numa caligrafia redonda e infantil: «Hoje veio à nossa escola o camarada inspector.» — E agora, Mary.
Uma jovem gorda, dos seus dezasseis anos, mas parecendo mais velha, saiu do meio das carteiras encostadas umas às outras, pegou no pedaço de giz e escreveu de novo a frase. Fez uma pequena vénia ao professor, que fora aluno daquela classe dois anos antes, e voltou para o seu lugar. Ficaram silenciosos, a ouvir os gritos que vinham de uma sala de aula da barraca seguinte. Todas as crianças esperavam ser chamadas para mostrarem o que sabiam fazer no quadro. O problema era a escassez de giz. O professor tinha o fragmento e dois paus inteiros que mantinha escondidos na algibeira, porque os armários da escola tinham sido assaltados, apesar de estarem praticamente vazios. Estava fora de questão chamar todos os alunos, um por um, para copiarem a frase.
A tempestade de ruído constituída por Phiri e Mandizi aproximava-se, mesmo do lado de fora da sala de aula... oh, voltariam a entrar? Pelo menos estava uma frase agradável escrita no quadro... Mas não, passaram adiante. As crianças correram para as janelas para verem o inspector partir. Duas costas desapareciam na direcção da casa do padre. Atrás delas via-se a sotaina preta empoeirada do Padre McGuire, que lhes acenava e gritava para pararem.
Silenciosamente, as crianças voltaram para as suas carteiras. Era quase meio-dia, a hora do intervalo para o almoço. Nem todos traziam comida, mas sentavam-se a ver os colegas comer uma bola de papas de aveia ou um bocado de abóbora.
— Depois do intervalo temos educação física — disse o professor.
Um coro de contentamento. Todos eles gostavam daqueles exercícios que se realizavam nos espaços vazios entre os barracões. Não havia qualquer equipamento, nem barras, nem cavalo de saltos, nem cordas para trepar, nem tapetes onde pudessem deitar-se. Os professores davam a aula por turnos.
Os dois homens irromperam pela casa do padre, com este logo atrás deles.
— Não o vi na escola — disse Phiri.
— Creio que não inspeccionou a terceira série de salas de aula, onde eu estava.
— Ouvi dizer que ensina na nossa escola. Como é isso?
— Dou aulas de recuperação.
— Não sabia que tínhamos lições de recuperação.
— Ensino crianças que estão três ou quatro anos atrasadas em relação ao ano em que deviam estar, por causa do estado lamentável da sua escola. Chamo a isso recuperação. E é voluntário. Não implica nenhum salário. Não custo nada ao governo.
— E aquelas freiras que eu vi. Por que não estão a ensinar?
— Não têm as qualificações necessárias, nem mesmo para esta escola.
Phiri teria gostado de barafustar e gritar — talvez até de bater em alguma coisa ou alguém —, mas sentia a cabeça a latejar: o médico recomendara-lhe que não se exaltasse demasiado. De pé, olhava para o almoço posto na mesa: algumas fatias de carne fria e alguns tomates. Um pão fresco emanava odores deliciosos. Pensou em sadza. Era disso que precisava. Se pudesse sentir o peso e o calor reconfortantes de um bom prato de sadza no seu pobre estômago, que roncava movido por uma centena de emoções...
— Talvez queiram partilhar a nossa refeição? — convidou o padre. Rebecca entrou com um prato de batatas cozidas.
— Fizeste sadza}
— Não, senhor. Não sabia que era esperado para o almoço. O padre McGuire interveio muito depressa, com:
— Infelizmente, como todos nós sabemos, uma boa sadza leva meia hora para ficar bem feita, e nós não o insultaríamos oferecendo-lhe sadza de qualidade inferior. Mas talvez um pouco de carne de vaca? Lamento dizer que a carne de vaca abunda por aí, com os pobres animais a morrerem em consequência da seca.
O estômago de Mr. Phiri, que começara a descontrair-se com a expectativa da sadza, enovelou-se de novo, e ele gritou a Mr. Mandizi:
— Vá ver se o meu carro está consertado. — Mr. Mandizi, que estava a olhar para o pão, olhou com ar de protesto para o seu superior. Tinha direito à sua refeição. Não se mexeu. — Depois volte e diga-me, pois se não estiver arranjado regresso consigo ao seu escritório.
— Tenho a certeza de que a esta hora já deve estar arranjado. O mecânico dispôs de umas boas três horas.
— Como se atreve a desafiar-me? Sou ou não sou seu chefe? E isso a juntar à incompetência que hoje vi. Compete-lhe prestar atenção às escolas locais e comunicar as deficiências. — Gritava, mas a sua voz estava tensa e fraca. Estava prestes a debulhar-se em lágrimas de impotência, de cólera e de vergonha pelo que vira naquele dia.
O Padre McGuire valeu-lhe mesmo a tempo, obedecendo ao mesmo impulso que fizera Phiri desviar os olhos das lágrimas de Cedric Pyne por causa dos vitelos.
— Faça o favor de se sentar, Mr. Phiri. Estou muito feliz por tê-lo aqui, porque sou um velho amigo do seu pai, sabia? Ele foi meu aluno... sim, nessa cadeira, e Mr. Mandizi...
— Ele faz o que lhe mandei e vai saber do meu carro.
Sem nunca olhar para Phiri, Rebecca aproximou-se da mesa, cortou duas boas fatias de pão, pôs-lhe carne no meio e ofereceu-as a Mandizi com uma pequena vénia, que estava longe de ser trocista.
— O senhor não está bem — disse-lhe. — Sim, vejo que não está bem.
Ele ficou com a sanduíche na mão, sem responder.
— Afinal o que é que tem, Mr. Mandizi? — perguntou Phiri. Sem responder, Mandizi saiu para a varanda, onde Sylvia, que
vinha do hospital, o encontrou.
Ela pôs-lhe a mão no braço e falou com ele em voz baixa e persuasiva. No interior da sala, os outros ouviram:
— Sim, estou doente e a minha mulher também.
Com o braço a enlaçá-lo — ele perdera tanto peso que era fácil enlaçá-lo —, Sylvia acompanhou-o ao carro.
O padre McGuire falava, falava, enquanto empurrava a carne, as batatas e os tomates na direcção do convidado.
— Encha o seu prato. Deve estar com muita fome, pois já passou tanto tempo desde o pequeno-almoço. Eu também estou com fome. E o seu pai, está bem? Era o meu aluno preferido, quando ensinei em Guti. Um rapaz muito inteligente.
Phiri estava com os olhos fechados, a refazer-se. Quando os abriu, viu sentada à sua frente uma mulher franzina, acastanhada. Seria de cor? Não, aquela era a cor com que ficavam quando apanhavam demasiado sol... oh, sim, era a mulher que estivera há pouco com Mandizi e sorria a Rebecca. Seria aquele sorriso um comentário a respeito dele? A raiva, que o abandonara sob a influência da boa carne e das batatas, acometeu-o de novo e ele perguntou:
— É você a mulher que, segundo me disseram, tem estado a levar o nosso equipamento escolar para as suas lições, ou ditas lições?
Sylvia olhou para o padre, que lhe fazia sinal, com os lábios cerrados, para não dizer nada.
— A Dr.a Lennox comprou cadernos de exercícios e um atlas com o seu próprio dinheiro, não precisa de ter nenhuma preocupação a esse respeito.
Gostava que me desse notícias da sua mãe — ela foi minha cozinheira durante uns tempos e eu posso dizer com sinceridade que o invejo por ter tal cozinheira como mãe.
— E que lições são essas que anda a dar aos nossos alunos? É professora? Tem diploma? É médica, não é professora.
Mais uma vez, o Padre McGuire impossibilitou Sylvia de responder:
— Sim, esta é a nossa boa doutora, é médica e não professora, mas não há necessidade de diploma de professora para ler a crianças, para as ensinar a ler.
— Está bem — disse Phiri, que comia com a pressa nervosa de quem usa a comida como um calmante. Puxou o pão para ele e cortou uma grande fatia: não havia sadza, mas pão em abundância fazia quase o mesmo efeito.
De súbito, Rebecca intrometeu-se:
— Talvez o camarada inspector queira descer e ver como a nossa gente gosta do trabalho que a doutora está a fazer, da forma como ela nos está a ajudar?
O Padre McGuire conseguiu controlar uma grave irritação:
— Sim, sim — disse. — Sim, sim, sim. Mas num dia quente como este estou certo de que Mr. Phiri preferirá ficar aqui connosco, no fresco, e tomar uma boa chávena de chá forte.
Rebecca saiu. Sylvia preparava-se para interrogar Phiri a respeito dos livros e dos cadernos de exercícios em falta, e o padre, que o sabia, antecipou-se:
— Sylvia, tenho a certeza de que o inspector gostaria de ouvir falar da biblioteca que organizou na aldeia.
... — É verdade — concordou Sylvia. —Já temos quase cem livros.
— E posso perguntar quem os pagou?
— A doutora teve a grande amabilidade de os pagar pessoalmente.
— Deveras. Nesse caso, suponho que devemos estar gratos à doutora. — Suspirou e acrescentou um «Está bem» que soou como outro suspiro.
— Sylvia, não comeu nada.
— Acho que tomo apenas uma chávena de chá.
Rebecca trouxe um tabuleiro com o chá, dispôs as chávenas e os pires e, muito lenta e deliberadamente, colocou a rede com a orla de contas azuis sobre a leiteira e empurrou o grande bule para Sylvia. Normalmente, era Rebecca quem servia o chá, mas desta vez regressou à cozinha. O inspector franziu a testa, consciente de ter havido insolência, mas sem saber em que aspecto.
Sylvia serviu, sem nunca levantar os olhos do que as mãos estavam a fazer. Pôs uma chávena perto do inspector e empurrou o açucareiro para ele, e sentou-se a fazer montinhos de migalhas com o seu pão. Fez-se silêncio. Rebecca cantarolava na cozinha uma das canções da Guerra da Libertação, com o intuito de aborrecer Phiri, mas ele não pareceu identificá-la.
Soou, felizmente, o barulho de um carro, que depois parou levantando nuvens de poeira para todos os lados. Dele saiu o mecânico, no seu bonito fato-macaco azul. Phiri levantou-se.
— Vejo que o meu carro chegou — disse vagamente, como alguém que perdeu alguma coisa, mas não sabe o quê nem onde. Desconfiava de que se comportara de maneira incorrecta, mas não, certamente que não, pois tivera razão a respeito de tudo.
— Desejo muito que diga ao seu pai e à sua mãe que nos encontrámos e que rezo por eles.
— Direi, quando os vir. Eles vivem no mato, para lá do Centro de Desenvolvimento de Pambili. Agora estão velhos.
Saiu para a varanda. Os hibiscos estavam cobertos de borboletas. Ouvia-se um lóri, a quase um quilómetro de distância. Dirigiu-se para o carro, entrou para o banco de trás e o veículo arrancou num mar de poeira.
Rebecca voltou à sala e, ao contrário do que era seu hábito, sentou-se à mesa com eles. Sylvia serviu-lhe chá. Durante um bocado, ninguém falou. Depois Sylvia disse:
— Ouvi, no hospital, os gritos daquele idiota. Se alguma vez vi um candidato a uma apoplexia, foi o camarada inspector.
— Sim, sim — concordou o padre.
— Aquilo foi vergonhoso — continuou Sylvia. — Havia semanas que aquelas crianças andavam a sonhar com o inspector. O inspector fará isto, o inspector fará aquilo, arranjar-nos-á os livros...
— Sylvia, não aconteceu nada — disse o Padre McGuire.
— O quê? Como pode dizer...
— Vergonha — disse Rebecca. — É uma vergonha.
— Como pode ser tão razoável a este respeito, Kevin? — perguntou Sylvia, que raramente tratava o sacerdote pelo seu nome. — É um crime. Aquele homem é um criminoso.
— Sim, sim, sim — concordou o padre e, após um longo silêncio, perguntou: — Nunca pensou que aquilo é a história da nossa História? Os poderosos tiram o pão da boca dos povos... e os povos arranjam maneira de ir sobrevivendo.
— E os pobres estão sempre connosco? — perguntou Sylvia, sarcástica.
— Alguma vez observou alguma coisa diferente? sr
— E não há nada a fazer, e continuará tudo assim?
— Provavelmente. O que me interessa é como vemos isso. Ficamos sempre surpreendidos com a injustiça. Mas as coisas foram sempre assim.
— Mas prometeram-lhes tanto. Na Libertação prometeram-lhes... enfim, tudo.
— Os políticos fazem promessas e não as cumprem.
— Eu acreditei em tudo — disse Rebecca. — Fui uma grandíssima idiota, a gritar e a dar vivas à Libertação. Pensava que falavam a sério.
— É claro que falavam — disse o padre.
— Penso que todos os nossos líderes se tornaram maus porque somos amaldiçoados.
— Oh, Deus nos valha — exclamou o padre, perdendo por fim a paciência. — Não vou ficar aqui sentado a ouvir esses disparates. — Mas não se levantou da mesa.
— Sim — insistiu Rebecca. — Foi a guerra. Foi porque não enterrámos os nossos mortos da guerra. Sabia que há esqueletos lá em cima, nas cavernas dos montes? Sabia isso? O Aaron disse-me. E sabe que se não enterramos os nossos mortos de acordo com os nossos costumes eles voltarão para nos amaldiçoar.
— Rebecca, você é uma das mulheres mais inteligentes que conheço e...
— E agora há a sida. E isso é uma maldição para nós. Que outra coisa pode ser?
— É um vírus, Rebecca, não uma maldição — corrigiu Sylvia.
— Eu tinha seis filhos e agora tenho três e em breve só terei dois. E todos os dias há uma nova sepultura no cemitério.
— Alguma vez ouviu falar na peste negra?
— Como posso ter ouvido? Não fui além da primeira. — Isto significava que tinha ouvido, sabia mais do que daria a entender e queria que eles lhe dissessem.
— Houve uma epidemia na Ásia, na Europa e no Norte de África. Um terço das pessoas morreram — explicou Sylvia.
— Ratos e moscas — disse o padre. — Foram eles que trouxeram a doença.
— E quem disse aos ratos aonde ir?
— Rebecca, foi uma epidemia. Como a sida. Como a Magreza.
— Deus está zangado connosco — disse Rebecca.
— Que o Senhor nos proteja a todos — pediu o padre. — Estou a ficar velho demais, vou regressar à Irlanda. Vou para casa.
Estava rabugento, como um velho. E também não parecia bem — no caso dele, pelo menos, não podia ser sida. Tivera de novo malária, recentemente. Estava exausto.
Sylvia começou a chorar.
— Vou-me deitar uns minutos — disse o Padre McGuire. — E sei que não vale a pena dizer-lhe que faça o mesmo.
Rebecca aproximou-se de Sylvia, levantou-a e dirigiram-se as duas para o quarto da primeira. Rebecca deixou-a escorregar para a cama, onde se deitou com uma das mãos a cobrir os olhos. Rebecca ajoelhou-se junto da cama e enfiou o braço por baixo da cabeça da médica.
— Pobre Sylvia — disse e cantarolou baixinho uma canção infantil, de adormecer. A manga da túnica de Rebecca era solta. Mesmo defronte dos seus olhos, através dos dedos, Sylvia viu o braço negro magro e, neste, uma chaga do tipo das que conhecia bem de mais. Naquela manhã fizera o penso a uma, numa mulher, no hospital. A criança chorosa que fora até àquele momento partiu e a médica voltou. Rebecca tinha sida. Agora que o sabia, tornou-se óbvio e ela teve consciência de que o soubera, durante muito tempo, sem o admitir. Rebecca tinha sida e não havia nada que ela pudesse fazer a esse respeito. Fechou os olhos e fingiu mergulhar no sono. Sentiu a outra retirar-se, de mansinho, e sair do quarto.
Ficou estendida, a ouvir o telhado de ferro estalar, sob o calor. Olhou para o crucifixo, de onde o Redentor pendia. Olhou para várias Virgens nos seus vestidos azuis. Tirou um rosário de vidro do prego, junto da cama, e deixou-o repousar nos dedos: o vidro das contas estava quente como carne. Voltou a pendurá-lo.
No lado oposto, as mulheres de Leonardo enchiam metade de uma parede. Traças tinham atacado os belos rostos, as orlas do quadro pareciam de renda e as pernas roliças das crianças estavam manchadas.
Levantou-se da cama e foi para a aldeia, onde devia esperá-la muita gente decepcionada.
Neta de uma conhecida nazi, filha de um comunista de carreira, Sylvia Lennox encontrou um esconderijo rural em Zimlia, onde possui um hospital particular abastecido com equipamento roubado do hospital governamental local.
O problema residia no facto de este país ignorante ainda não ter percebido que o comunismo era politicamente incorrecto, além de que a palavra nazi não provocava reacções idênticas às que provocava em Londres.
Ali, havia muita gente que gostava dos nazis. Apenas dois epítetos davam a garantia de provocar uma reacção. Um era «racista»; o outro, «agente sul-africano».
Rose sabia que Sylvia não era racista, mas, em virtude de ser branca, muitos negros estariam dispostos a dizer que era. Mas bastaria uma carta de um negro publicada no Post a dizer que Sylvia era amiga dos negros... não, e que tal espia? Isso também era arriscado. Naquele tempo imediatamente anterior à queda do apartheid, a febre nos vizinhos da África do Sul estava no auge. Alguém que tivesse nascido na África do Sul ou lá tivesse vivido, que lá tivesse ido de férias recentemente ou lá tivesse parentes, alguém que criticasse Zimlia fosse pelo que fosse ou insinuasse que as coisas podiam ser mais bem feitas, pessoas que «sabotassem» uma empresa ou um negócio qualquer perdendo ou danificando equipamento, como por exemplo uma caixa de sobrescritos ou meia dúzia de parafusos, fosse quem fosse que se tivesse tornado alvo de desaprovação, ainda que leve, podia ser, e geralmente era, descrito como agente da África do Sul — que, é claro, fazia tudo quanto podia para desestabilizar os vizinhos. Por isso, em semelhante atmosfera, era fácil para Rose acreditar que Sylvia fosse uma espia sul-africana, mas havendo tantos espiões não era suficiente.
Depois Rose teve um acaso de sorte. Um telefonema do gabinete de Franklin convidava-a para uma recepção ao embaixador chinês, na qual o Líder estaria presente. No Butler's Hotel. No melhor. Rose vestiu um vestido e dirigiu-se para lá cedo. Após algumas semanas, apenas, quando ia a alguma festa para aquilo que descrevia como a «malta alternativa», já os conhecia a todos, pelo menos para os cumprimentar. Jornalistas e editores, os escritores, a gente das universidades, os expatriados, os das ONG — uma multidão mista e, para mais, inteligente, qualidade de que desconfiava porque imaginava sempre que as pessoas se riam dela e que ainda era mais branca do que negra. Eram informais, irreverentes, trabalhavam muito e, na sua maioria, ainda estavam cheios de fé no futuro de Zimlia, embora também houvesse alguns desgostosos e que já tinham perdido a fé. Era com a outra «malta», aquela com quem estaria esta noite, que se sentia à vontade: dirigentes e patrões, líderes e ministros, os que tinham poder, e onde havia mais negros do que brancos. Rose parou a um canto da grande sala, cujo estilo geral e elegância a apaziguavam, lhe diziam que estava no lugar certo, e esperou que Franklin chegasse. Teve o cuidado de não beber muito, por enquanto. Embebedar-se-ia mais tarde. A sala foi-se enchendo, depois ficou cheia, e Franklin não apareceu.
Rose estava ao lado de um homem cujo rosto conhecia do The Post. Não diria que era uma jornalista de Londres, uma raça muito detestada por este governo, mas disse:
— Camarada ministro, é uma honra estar no seu maravilhoso país. Estou cá de visita.
— Muito bem — respondeu ele, satisfeito, mas sem dúvida pouco disposto a perder tempo com aquela criatura pouco atraente, que devia ser a mulher de alguém.
— Estou enganada ou é o ministro da Educação? — perguntou Rose, sabendo muito bem que não era, e ele respondeu amavelmente, mas com indiferença:
— Não. Por acaso, sou o secretário de Estado da Saúde. Sim, tenho a honra de ser isso.
Esticava a cabeça, acima e em redor das cabeças à sua frente; queria chamar a atenção do Líder, quando ele entrasse. Este, embora famoso em todo o mundo como um homem do povo, dava aos seus ministros poucas oportunidades de o verem. Nas raras reuniões do Gabinete a que comparecia dava a conhecer as suas opiniões e ia-se embora: o camarada Líder gostava pouco de acamaradar. Havia algum tempo que o secretário de Estado desejava ter uma oportunidade de discutir certas coisas com o Chefe e, esta noite, esperava mesmo algumas palavras dele. Além disso, estava secretamente apaixonado pela fascinante Gloria. Quem não estava? Aquela mulher exuberante e irreprimivelmente voluptuosa, com o seu rosto como um convite... onde estava ela? Onde estavam eles, o camarada Presidente e a Mãe da Nação?
— Pergunto-me se saberá alguma coisa a respeito de um hospital em Kwadere? — dizia Rose — ou melhor, repetia, pois ele não a ouvira a primeira vez. Aquilo era, sem dúvida, um solecismo. Para começar, ao nível dele, não era de esperar que estivesse informado a respeito de hospitais individuais, e depois porque estavam numa recepção oficial, o que significava que não era nem o lugar nem o momento. Mas, por acaso, ele estava informado a respeito do Kwadere. As pastas tinham estado na sua secretária naquele dia: três hospitais começados mas não acabados porque os fundos tinham sido — para não estar com subterfúgios linguísticos — roubados. (Ninguém podia lamentar mais do que ele que tais coisas acontecessem, mas, por outro lado, era previsível que acontecessem erros.) Para dois dos hospitais, os furiosos mas entretanto cépticos dadores tinham apresentado um plano segundo o qual se eles, os benfeitores originais, recolhessem metade dos fundos necessários, o governo teria de contribuir com o mesmo.
Caso contrário, paciência, era uma pena, adeus hospitais. Em Kwadere o dador original enviara uma delegação ao hospital abandonado e depois dissera não, não se propunham financiá-lo. O problema é que aquele hospital fazia muita falta e o governo não tinha, pura e simplesmente, o dinheiro necessário. Havia uma espécie de hospital na Missão de São Lucas, com uma médica, mas um relatório recebido não fora encorajador. A realidade é que aquele hospital era embaraçoso, tão pobre e atrasado: Zimlia esperava melhor. E depois chegara um relatório dos Serviços de Segurança, dizendo que o nome da médica constava de uma lista de possíveis agentes sul-africanos. O seu pai era um comunista muito conhecido, unha com carne com os Russos. Zimlia não gostava dos Russos, que tinham desdenhado o camarada Matthew quando ele estava a combater — ou melhor, quando as suas tropas estavam a combater — no mato. Quem apoiara o camarada Matthew tinham sido os Chineses. E ali estava o embaixador chinês, com a sua mulher, uma amostra de gente, ambos sorrindo e dando apertos de mão. Agora tinha de avançar depressa, porque onde estava o embaixador chinês era onde o Líder estaria.
— Tem de me dar licença — disse a Rose.
— Por favor, posso ir visitá-lo... talvez no seu gabinete?
— E para quê? — perguntou ele com alguma rudeza. Rose improvisou.
— A médica do hospital de Kwadere é... bem, é minha prima e eu ouvi dizer que...
— Ouviu bem. A sua prima devia ser mais cuidadosa com as companhias que tem. Sei, de fonte fidedigna, que está a trabalhar para... bem, não interessa para quem.
— E... por favor, espere um momento, que conversa é essa a respeito de ela ter roubado equipamento de...
Ele não ouvira nada a tal respeito e sentiu-se irritado com os seus conselheiros por não ter ouvido. Todo aquele assunto era irritante e não queria pensar nele. Não fazia a mínima ideia de como resolver o problema do hospital de Kwadere.
— O que vem a ser isso? — perguntou, voltando-se para falar enquanto se infiltrava na multidão. — Se isso é verdade, então ela será punida, asseguro-lhe, e lamento que seja sua familiar.
E dirigiu-se para onde a adorável Gloria aparecera de chiffon escarlate e colar de diamantes. Onde estava o Líder? Mas parecia que ele não viria, que a sua mulher faria as honras da recepção.
Rose saiu silenciosamente e foi para um café onde fervilhavam sempre os mexericos e as novidades. Aí falou da recepção formal, da ausência do Líder, do chiffon vermelho e dos diamantes da Mãe da Nação e dos comentários do secretário de Estado acerca do hospital de Kwadere. Estava em Senga uma funcionária nigeriana, para a conferência sobre a Saúde das Nações. Informada da espia de Kwadere, essa mulher disse que, desde que chegara a Zimlia, não tinha ouvido falar de mais nada senão de espiões e mais espiões, e que, falando por experiência própria do que acontecia no seu país, espiões e guerras eram úteis quando as coisas não corriam bem na economia. As suas palavras provocaram uma animada discussão, na qual em breve todos os presentes no café estavam envolvidos. Um homem, jornalista, fora preso como espião, mas solto. Outros conheciam pessoas suspeitas de serem agentes e... Rose compreendeu que agora iam passar a noite toda a falar de agentes sul-africanos, escapou-se e entrou num pequeno restaurante, ao dobrar da esquina. Dois homens que a tinham seguido do café, sem ela dar por isso, perguntaram se podiam partilhar a sua mesa: a casa estava cheia. Rose estava com fome e um pouco embriagada, e agradaram-lhe aqueles dois homens que lhe pareceram impressionantes, de uma maneira difícil de definir. Provavelmente, qualquer pessoa de Zimlia teria percebido à primeira vista eles eram da polícia secreta, mas, para usar aquela fórmula tão útil, há tanto tempo que a Grã-Bretanha foi invadida que os seus cidadãos adquiriram uma certa inocência. Rose, essa, estava de facto a pensar que naquela noite devia estar com um aspecto atraente. Na maioria dos países do mundo — isto é, daqueles com um vigoroso serviço secreto — seria imediatamente evidente que com tais homens se devia manter a boca fechada. Quanto a eles, queriam informar-se a respeito dela: por que saíra tão precipitadamente do café quando tinham começado a falar de espiões?
— Pergunto-me se sabem alguma coisa acerca do hospital missionário de Kwadere — foi ela tagarelando. — Tenho uma prima a trabalhar lá, uma médica. Acabei de falar com o secretário de Estado da Saúde e ele disse-me que ela é suspeita de ser espia.
Os dois homens entreolharam-se. Sabiam da médica de Kwadere, porque tinham o nome dela na sua lista. Não tinham levado o caso muito a sério. Para começar, que mal poderia ela fazer, enfiada naquele fim de mundo? Mas se o próprio secretário de Estado...
Estes dois não estavam há muito tempo no Serviço Secreto. Tinham arranjado empregos porque eram parentes do ministro. Não eram dos tempos da pré-Libertação. Muitos novos estados, apesar de terem efectuado uma mudança de governo completa, mantêm o Serviço Secreto do governo anterior, em parte por se sentirem impressionados com o âmbito e a extensão do conhecimento dessas pessoas, que tão recentemente ainda os espiavam, e em parte porque um bom número tem segredos que não quer que sejam revelados. Estes homens ainda precisavam de fazer nome e de impressionar os seus superiores.
— Zimlia alguma vez teve de expulsar alguém por ser um agente? — perguntou Rose.
— Oh, sim, muitas vezes.
Não era verdade, mas pertencerem a um serviço tão severo e eficiente fazia-os sentir-se importantes.
— Deveras? — Perguntou Rose, muito animada, farejando uma história.
— Um chamava-se Matabele Smith. — O outro corrigiu: — Matabele Bosman Smith.
Uma noite, no café de onde Rose acabara de sair, alguns jornalistas tinham gracejado a respeito dos boatos de espiões e inventado um espião com um nome que personificasse, para a mentalidade do presente governo, o número máximo de características desagradáveis. (Tinham vetado Whitesmith por causa da analogia com Blacksmith.) Esta personagem era um sul-africano que vinha frequentemente a Zimlia tratar de negócios e tentara fazer explodir as minas de carvão de Hwange, a sede do governo, o novo estádio desportivo e o aeroporto. Tinha divertido o café durante algumas noites, mas depois fora perdendo o interesse. Entretanto, chegara aos ficheiros da polícia. No café, o nome de Matabele Bosman Smith tornou-se sinónimo da mania da espionite e os agentes que frequentavam o lugar ouviam o nome, mas nunca conseguiram descobrir, de facto, mais nada.
— E deportaram-no? — perguntou Rose.
Os dois homens ficaram calados, entreolharam-se, e depois um deles disse: ; — Sim, deportámo-lo.
E o outro:
— Deportámo-lo para a África do Sul.
No dia seguinte, Rose completou o seu parágrafo a respeito de Sylvia com as palavras: «Sabe-se que Sylvia Lennox foi amiga íntima de Matabele Bosman Smith, que foi deportado como espião sul-africano.»
O estilo geral e o ataque deste artigo era adequado para os jornais que ela gostava de usar como receptáculo das suas inspirações na Grã-Bretanha, mas ela resolveu mostrá-lo a Bill Case e depois a Frank Diddy. Ambos os homens conheciam a origem do famoso deportado, mas não lhe disseram. Não gostavam dela. Rose ultrapassara havia muito as boas-vindas iniciais. Além disso, agradava-lhes a ideia daquele famoso Smith injectado com nova vida,(6) para proporcionar um ou dois serões divertidos no café.
O artigo foi publicado por The Post, que dificilmente repararia num parágrafo inflamado entre tantos outros. Ela enviou-o para o World Scandals e chegou ao conhecimento de Colin, obedecendo à norma de que, se alguma coisa desagradável é impressa a respeito de alguém, então ser-lhe há enviada por uma alma caridosa. Colin processou imediatamente o jornal, exigindo uma indemnização avultada e um pedido de desculpas, mas como costuma acontecer com semelhantes jornais a correcção foi feita num tipo tão pequeno que poucas pessoas dariam por ela. Julia foi de novo estigmatizada como nazi; a sugestão de que Sylvia era uma espia pareceu a Colin demasiado ridícula para se incomodar com ela.
O Padre McGuire viu o parágrafo no The Post, mas não o mostrou a Sylvia. Acabou por chegar ao conhecimento de Mandizi, que o pôs na pasta da Missão de São Lucas.
Aconteceu uma coisa que Sylvia temera durante todos os anos que passara na Missão. Esperto e Zebedee transportaram da aldeia uma rapariga com apendicite aguda. O Padre McGuire levara o carro para visitar a antiga missão. Sylvia também não conseguiu telefonar aos Pyne: ou o telefone deles ou o da Missão estava avariado. A rapariga precisava de ser operada imediatamente. Sylvia imaginara muitas vezes esta emergência, ou algo parecido, e decidira que não operaria. Não podia. Operações simples — e bem-sucedidas —, sim, podia arriscar, mas uma fatalidade, não: cair-lhe-iam imediatamente em cima.
Os dois rapazes, nas suas impecáveis camisas brancas (passadas a ferro para eles por Rebecca), com o cabelo perfeitamente penteado e as mãos muito bem lavadas e tornadas a lavar, ajoelharam de cada lado da rapariga, no interior do barracão com tecto de colmo a que chamavam uma enfermaria, e olharam-na, com os olhos cheios de lágrimas prestes a correr.
— Ela está a arder, Sylvia — disse Zebedee. — Toque-lhe.
— Por que não me procurou antes? Se nos tivesse chegado isto ontem... Por que não veio? Isto está constantemente a acontecer. —
*6. A diversão decorre do facto de Matabele, ou Matabeleland, ser o nome de uma região da parte central do Zimbabué, Bosman um apelido frequente na África do Sul e Smith, como é sabido, um dos apelidos mais correntes em Inglaterra e não só. (NT)
Tinha a voz tensa e áspera, mas de medo. — Fazem ideia de quanto o caso é grave?
— Nós dissemos-lhe que viesse, nós dissemos-lhe.
Não seria culpa sua se a rapariga morresse, mas se ela, Dr.a Sylvia, operasse e a rapariga morresse, então a culpa ser-lhe-ia atribuída. Os dois rostos jovens, lavados em lágrimas, suplicavam-lhe, por favor, por favor. A rapariga era prima deles e também parente de Joshua.
— Vocês sabem que não sou cirurgiã. Eu disse-lhes, Esperto e Zebedee, vocês sabem o que isso significa.
— Mas tem de a operar — disse Esperto. — Sim, Sylvia, por favor, por favor.
A rapariga tinha os joelhos erguidos para o ventre e gemia.
— Muito bem. Arranjem-me a mais afiada das nossas facas. E alguma água quente. — Inclinou-se, de modo a ficar com a boca junto do ouvido da rapariga. «Reza», disse-lhe. «Reza à Virgem.» Sabia que a rapariga era católica: vira-a na pequena igreja. Este sistema imunitário ia precisar de toda a ajuda possível.
Os rapazes trouxeram os instrumentos. A rapariga não estava na «mesa de operações», porque não devia ser movida, mas debaixo do colmo, perto da poeira do chão. As condições para uma operação não poderiam ser piores.
Sylvia disse a Esperto que mantivesse o pano ensopado em clorofórmio (guardado para uma emergência) o mais longe possível do seu rosto, que devia virar de lado. Disse a Zebedee que levantasse a bacia com os instrumentos o mais alto que pudesse do chão, e começou assim que os gemidos da rapariga pararam. Não tentaria a cirurgia em cruz, que lhes descrevera, e disse-lhes:
— Vou fazer um corte antigo. Mas quando fizerem os vossos estudos acho que descobrirão que este género de grande corte é obsoleto: ninguém o fará.
Assim que cortou, soube que era tarde demais. O apêndice rebentara e havia pus e impurezas por todo o lado. Não tinha penicilina. No entanto, limpou e enxugou e depois suturou o comprido corte
— Creio que ela morrerá — disse, num murmúrio, aos rapazes. Eles choraram alto, Esperto com a cabeça nos joelhos e Zebedee
com a sua nas costas de Zebedee.
— Vou ter de comunicar o que fiz.
— Nós não fazemos queixa — segredou Esperto. — Não diremos a ninguém.
Zebedee agarrou-lhe nas mãos, que estavam ensanguentadas, e disse:
— Oh, Sylvia, oh Dr.a Sylvia, vai ter problemas?
— Se eu não comunicar o sucedido e eles descobrirem que vocês sabiam, vocês também terão problemas. Tenho de comunicar.
Puxou para cima a saia da rapariguinha e a sua blusa para baixo. Estava morta. Tinha doze anos.
— Digam ao marceneiro que precisamos de um caixão, muito depressa.
Foi para casa, encontrou lá o Padre McGuire que tinha acabado de chegar e disse-lhe o que acontecera.
— Tenho de dizer ao Mandizi.
— Sim, acho que deve dizer. Não se lembra de eu lhe ter dito que isto podia acontecer?
— Lembro, sim.
— Eu ligo ao Mandizi e peço-lhe que venha pessoalmente.
— O telefone não está a funcionar.
— Mando o Aaron, de bicicleta.
Sylvia voltou para o hospital, ajudou a meter a rapariga no caixão, foi ter com Joshua que estava a dormir debaixo da sua árvore e disse-lhe que a rapariga morrera. Ultimamente, o velho levava tempo a apreender qualquer informação. Ela não queria esperar para o ouvir amaldiçoá-la, coisa que faria com toda a certeza — não era preciso ser bruxo para prever isso —, e disse aos rapazes para dizerem na aldeia que não iria naquela tarde, mas que eles, Esperto e Zebedee, ouviriam as pessoas ler e corrigiriam os exercícios de escrita.
Em casa, o padre tomava chá.
— Sylvia, minha querida, acho que devia fazer umas pequenas férias.
— E de que serviria isso?
— Daria tempo para esquecer.
— Pensa que será esquecido? O sacerdote não respondeu.
— Para onde irei, padre? O que sinto agora é que esta é a minha casa. Até o outro hospital ser construído, estas pessoas precisam de mim aqui.
— Vejamos o que diz o Mandizi quando chegar. Presentemente, Mandizi era um amigo e havia muito tempo que
não se mostrava rude nem desconfiado, mas quem aí vinha agora era um funcionário no cumprimento do seu dever.
Quando ele chegou, não havia nada que o identificasse, a não ser o seu nome. Era Mr. Mandizi, èle próprio o disse, mas na realidade estava terrivelmente doente.
— Mr. Mandizi, não devia estar na cama?
— Não, doutora. Posso fazer o meu trabalho. Na cama está a minha mulher. Ela está muito doente. Nós dois, lado a lado... não, não creio que isso me agradasse.
— Fizeram os exames?
Após um silêncio, ele suspirou e respondeu:
— Sim, Dr.a Sylvia, fizemos os exames.
Rebecca trouxe a carne, os tomates e o pão para o almoço, viu o funcionário e exclamou, chocada:
— Que tristeza, oh, que tristeza, Mr. Mandizi!
Como Rebecca fora sempre magra e pequena e usara o lenço a cobrir-lhe o rosto ossudo, ele não pôde perceber que ela estava doente e, por isso, sentou-se ali como o homem condenado no banquete, rodeado por pessoas saudáveis,
— Sinto muito, Mr. Mandizi — disse Rebecca e voltou para a cozinha a chorar.
— Agora deve contar-me tudo, Dr.a Sylvia. Ela contou-lhe.
— Ela teria morrido se não a operasse?
— Teria.
— Havia uma possibilidade de a salvar?
— Uma pequena possibilidade. Não muita. Compreende, não tenho penicilina, esgotou-se e...
Ele fez o gesto com a mão que ela conhecia tão bem: não me critique por coisas que não posso evitar.
— Terei de dizer ao hospital grande.
— Com certeza.
— Provavelmente vão querer uma autópsia.
— Terão de ser rápidos. Ela está no caixão. Por que não diz apenas que a culpa foi minha, porque não sou cirurgiã?
— É uma operação difícil?
— Não, é uma das fáceis.
— Um verdadeiro cirurgião poderia ter feito alguma coisa diferente?
— Não muito, não, na realidade.
— Não sei que dizer, Dr.a Sylvia.
Era evidente que ele queria dizer mais alguma coisa. Estava sentado de cabeça baixa, mas depois olhou para ela, desconfiadamente, e a seguir para o padre. Sylvia percebeu que eles sabiam alguma coisa que ela não sabia.
— O que se passa?
— Quem é esse seu amigo, Matabele Bosman Smith?
— Quem?
Mandizi suspirou, sentado com a comida intacta à frente. Assim como Sylvia. O padre comia normalmente, de testa franzida. Mandizi apoiou a cabeça numa das mãos e disse:
— Dr.a Sylvia, sei que não há nenhum muti para o que eu tenho, mas ando a sentir umas dores de cabeça, umas dores de cabeça... não sabia que podia haver dores de cabeça assim.
— Tenho uma coisa para as suas dores de cabeça. Dou-lhe os comprimidos antes de se ir embora.
— Obrigado, Dr.a Sylvia. Mas tenho de dizer uma coisa... há uma coisa... — Olhou de novo para o padre, que acenou com a cabeça, a tranquilizá-lo. — Eles vão fechar o seu hospital.
— Mas esta gente precisa do hospital.
— Haverá o nosso hospital novo, em breve... — O rosto de Sylvia pareceu iluminar-se; percebeu que o funcionário queria apenas animá-la e acenou com a cabeça.
— Sim, haverá um hospital, tenho a certeza disso — afirmou Mandizi. — Sim, é essa a situação.
— Está bem — respondeu Sylvia.
— Está bem — disse Mandizi.
Uma semana depois, chegou uma breve carta dactilografada dirigida ao Padre McGuire, dando-lhe instruções para encerrar o hospital «a partir desta data». Na mesma manhã, apareceu um polícia numa motocicleta. Era um jovem negro, talvez dos seus vinte, vinte e um anos, e sentia-se pouco à vontade no seu papel de autoridade. O Padre McGuire convidou-o a sentar-se e Rebecca fez-lhes chá.
— E agora, meu filho, em que posso ser-lhe útil?
— Procuro bens roubados.
— Agora compreendo. Bem, não encontrará nenhum nesta casa. Rebecca estava de pé junto do aparador, sem dizer nada.
O polícia dirigiu-se a ela:
— Talvez vá consigo a sua casa e procure pessoalmente.
— Nós vimos o novo hospital — disse-lhe Rebecca. — Vivem lá porcos do mato.
— Eu também visitei o novo hospital. Sim, há lá porcos do mato e creio que babuínos, também. — Riu-se, parou e suspirou. — Mas suponho que há um hospital aqui e tenho ordens para o ver.
— O hospital está fechado. — O padre estendeu a carta oficial, o
polícia leu-a e disse:
— Se está fechado, então não vejo nenhum problema.
— Essa é também a minha opinião.
— Suponho que devo discutir esta situação com Mr. Mandizi.
— Boa ideia.
— Mas ele não está bem. Mr. Mandizi não está bem e eu creio que em breve vamos precisar de um substituto. — Levantou-se sem olhar para Rebecca, cuja casa sabia que devia investigar. E lá foi na sua motocicleta, roncando através do mato silencioso.
Entretanto, Sylvia devia estar a fechar o seu hospital. Havia doentes acamados, mas Esperto e Zebedee estavam a distribuir medicamentos.
— Vou a Senga falar com o camarada ministro Franklin — disse ela ao padre. — É um amigo. Passou férias connosco. Era amigo do Colin.
— Ah, não existe nada mais aborrecido do que as pessoas que nos conheceram antes de sermos um camarada ministro.
— Mas vou tentar.
— Não seria aconselhável, talvez, vestir um bonito vestido lavado.
— Sim, sim. — Foi para o quarto e saiu pouco depois com o fato de linho verde de ir à cidade.
— Não deveria levar também um vestido de noite, ou lá o que se usa para a noite.
Ela voltou a ir ao quarto e voltou com uma maleta.
— E agora devo ligar aos Pyne e perguntar-lhes se planeiam uma ida a Senga?
Edna Pyne disse que vinha a calhar um pretexto para sair da maldita quinta e chegou passada meia hora. Sylvia saltou para o banco ao lado dela e acenou ao Padre McGuire.
— Até amanhã.
E foi assim que partiu para o que seria uma ausência de semanas.
Edna foi-se queixando durante todo o caminho até à cidade e depois disse que tinha uma coisa escandalosa para contar. Não devia mencionar o assunto, mas não se podia calar. Cedric tinha sido abordado por um daqueles vigaristas que lhe dissera que em troca de abandonar as suas fazendas «já-já» seria depositada na sua conta bancária em Londres uma importância equivalente a um terço do seu valor.
Sylvia ouviu aquilo e riu-se.
— Exactamente, ria-se. É a única coisa que podemos fazer. Eu disse ao Cedric que aceitasse e nos fôssemos embora, mas ele afirma que não vai aceitar um terço do valor. Diz que só a nova represa fará subir em metade o valor da nova fazenda. Eu só quero ir-me embora. O que não posso suportar é a maldita hipocrisia. Causam-me náuseas.
Edna Pyne tagarelou assim durante todo o caminho para Senga, onde deixou Sylvia à porta dos gabinetes governamentais.
Quando soube que Sylvia Lennox queria vê-lo, Franklin entrou em pânico. Embora tivesse pensado que ela «poderia tentar alguma coisa», não esperara que fosse tão cedo. Assinara a ordem para encerrar o hospital havia uma semana. Ganhou tempo: «Diga-lhe que estou numa reunião.» Estava sentado à secretária, com as palmas das mãos apoiadas à sua frente, a olhar sombriamente para o retrato do Líder que adornava todos os gabinetes de Zimlia.
Quando se lembrava daquela casa da parte norte de Londres onde passara férias, era como se tivesse tocado nalgum lugar abençoado, como uma árvore de sombra, que não tinha relação com alguma coisa de antes ou depois. Fora lar quando se sentia sem lar, bondade quando ansiava por ela. Quanto à mulher idosa, vira-a, como uma velha serpentária, nas suas idas e vindas, mas mal reparara nela, nessa terrível nazi. No entanto, nunca ouvira nenhuma conversa nazi naquela casa, pois não? E houvera a pequena Sylvia, com as suas madeixas brilhantes de cabelo dourado e o seu rosto de anjo. Quanto a Rose Trimble, quando pensava nela dava consigo a sorrir: uma vigaristazinha e tanto, mas como fora beneficiado com isso não devia queixar-se. E agora escrevera aquele artigo horrível... ela fora, com certeza, uma hóspede naquela casa, como ele. No entanto, estivera lá muito mais tempo do que ele e, por isso, o que escrevia devia ser levado a Sério. Mas o que mais lembrava era o bom acolhimento, o riso, a boa comida e Frances, em particular, como uma mãe. Mais tarde, quando estivera em casa de Johnny, as coisas tinham sido diferentes. Não era um apartamento grande, nada que se parecesse com o casarão onde Colin tinha sido tão bondoso, mas estava sempre cheio de gente de toda a parte, americanos, cubanos, pessoas de outros países da América do Sul, de África. O apartamento de Johnny tinha sido uma educação para a revolução. Lembrava-se de pelo menos dois negros (com nomes falsos) deste país que estavam a treinar em Moscovo para guerra de guerrilha. E a guerra de guerrilha foi ganha e ele devia o facto de estar aqui sentado, a esta secretária, um ministro importante, a homens como esses. Embora os procurasse em comícios e grandes manifestações, nunca mais voltara a vê-los. Provavelmente tinham morrido. Agora estava a acontecer algo que o deixava confuso. Sabia o que se dizia a respeito da União Soviética, não era um daqueles inocentes que nunca saíam de Zimlia. A palavra comunista estava a tornar-se uma espécie de maldição: noutros lados, não aqui, onde bastava dizer a palavra marxismo para receber uma boa nota dos antepassados. (E que tinham eles a ver com tudo isso?) Uma coisa curiosa: sentia que aquela casa em Londres tinha mais em comum com a paz e o calor das cabanas dos seus avós na aldeia (por sinal, não muito longe da Missão de São Lucas) do que qualquer outra coisa que viera depois. E, no entanto, na pasta que tinha à sua frente estava aquele artigo horrível. A cada minuto que passava sentia um ressentimento mais profundo... contra Sylvia. Por que fizera ela aquelas coisas más? Roubara coisas do novo hospital, fizera operações que não devia e matara uma paciente. Que esperava que ele fizesse agora? Sim, que esperava ela? Aliás, aquele seu hospital nunca tivera existência legal. A Missão decide criar um hospital, manda vir uma médica, nada nos ficheiros registava que tivessem sido pedidas, ou concedidas, autorizações... estes brancos vêm para cá e fazem o que lhes apetece, não mudaram, ainda...
Mandou vir sanduíches para o almoço, não fosse Sylvia estar em qualquer lado à espera de o apanhar, e quando o segundo pedido dela chegou — «Por favor, Franklin, tenho de te ver» — garatujado num sobrescrito — quem pensava ela que era, para o tratar assim — ordenou que lhe dissessem que tivera de se ausentar para tratar de um assunto urgente.
Foi à janela, levantou uma ripa da gelosia, e lá estava Sylvia, a andar, em baixo. Acusações apaixonadas que poderia razoavelmente ter dirigido à própria vida concentraram-se nas costas de Sylvia com tal intensidade que ela com certeza as devia ter sentido: pequena Sylvia, aquele pequeno anjo, tão fresca e luminosa na sua memória como um santo numa estampa religiosa... mas ela era uma mulher de meia-idade, com cabelo seco e baço preso por uma fita preta, em nada diferente de qualquer daquelas madames brancas enrugadas para que tentava não olhar, tanto lhe desagradavam. Teve a sensação de que Sylvia o traíra. Chorou, chorou mesmo, um pouco, ali parado a agarrar a ripa da gelosia e a ver a mancha verde que era Sylvia confundir-se com a multidão do passeio.
Sylvia foi contra um cavalheiro alto e distinto, que a envolveu nos braços e disse: «Querida Sylvia.» Era Andrew e estava com uma rapariga de óculos escuros e boca muito vermelha, que lhe sorria, a ela. Italiana? Espanhola?
— Esta é a Mona — apresentou Andrew. — Casámos. E receio que a decrepitude das ruas de Senga sejam um choque para ela.
— Que disparate, querido. Acho-as engraçadas.
— Americana — informou Andrew. — É uma modelo famosa e tão bonita como o dia, como podes ver.
— Só quando estou pintada — disse Mona e desculpou-se com a necessidade de se deitar para descansar; tinha a certeza de que eles tinham muito que conversar.
— A altitude está a incomodá-la — explicou Andrew, beijou-a, solícito, e indicou-lhe o Butlers Hotel, a poucos passos de distância.
Sylvia ficou surpreendida ao ouvir que mil e oitocentos metros eram considerados altitude, mas não se importou: este era o seu Andrew e agora iam sentar-se para conversarem — palavras dele — ali no café. Entraram e deram as mãos, enquanto chegavam bebidas gasosas e Andrew exigia saber tudo a respeito dela.
Ela abrira a boca para começar, pensando que ali estava um dos homens importantes do mundo e que certamente a pequena questão do encerramento do hospital da Missão de São Lucas podia ser invertida com uma palavra da sua parte, quando um grupo de pessoas muito bem vestidas encheu o café e ele as saudou, e foi saudado por elas, e começaram a trocar uma quantidade de ditos espirituosos a respeito da conferência a que iam todos assistir ali, em Senga.
— É o lugar novo mais chique para conferências, mas não é exactamente as Bermudas — disse alguém.
Sylvia não sabia que Senga tinha sido promovida como o lugar ideal para qualquer espécie de reuniões internacionais e, ao ver aquelas pessoas elegantes e inteligentes, compreendeu quanto se afastara, devido às rigorosas exigências de Kwadere, da possibilidade de conseguir participar naquele tipo de conversas. Andrew continuava a pegar-lhe na mão e sorria-lhe com frequência, e depois disse que aquele talvez não fosse o lugar adequado para uma conversa. Foram chegando mais delegados, que troçavam da pequenez do café que de algum modo comparavam com a falta de sofisticação de Zimlia, e esses peritos em absolutamente tudo quanto se possa imaginar, neste caso particular, «A Ética da Ajuda Internacional», lembravam crianças comparando os méritos de festas que os respectivos pais tinham oferecido recentemente. Era tanto o barulho, os risos e o divertimento que Sylvia pediu a Andrew para a deixar ir embora. Mas ele disse que ela tinha de assistir ao jantar daquela noite.
— É um grande jantar para encerramento da conferência e tu tens de ir.
— Não tenho um vestido.
Ele observou-a com ar franco, dando um certo desconto, e respondeu:
— Mas não é necessário vestido de noite, podes ir assim.
E agora ela precisava de arranjar um lugar qualquer onde passar a noite. Viera sem dinheiro suficiente: tomou consciência de que partira de uma maneira ineficiente, não planeada e tola. Era tudo uma espécie de névoa: lembrava-se de o Padre McGuire assumir o comando da situação. Talvez ela estivesse um pouco indisposta? E agora, estaria? Não se sentia ela própria, fosse o que fosse que isso significasse, pois se não era a Dr.a Sylvia que todos conheciam no hospital, quem era então?
Ligou para a Irmã Molly, que atendeu, e pediu-lhe para a deixar passar a noite com ela. Meteu-se num táxi para lá, foi bem recebida e ouviu uma boa dose de zombaria, de modo geral bem intencionada, a respeito das conferências sobre a Ética da Ajuda Internacional e todas as outras conferências semelhantes.
— Eles falam — disse a Irmã Molly. — São pagos para viajarem a qualquer lugar bonito e dizer disparates que ninguém acreditaria.
— Eu dificilmente chamaria um lugar bonito a Senga.
— Isso é verdade, mas eles saem todos os dias para verem os leões, as girafas e os queridos macaquinhos, e não creio que reparem sequer que a seca está a destruir a cidade.
Durante o jantar, Sylvia disse a Molly que só tinha o que trazia vestido e ouviu em resposta ser uma pena que Molly vestisse pelo menos quatro tamanhos maiores do que o dela, mas que podia emprestar-lhe o seu único vestido e providenciar pessoalmente para que o fato fosse limpo e estivesse pronto às seis horas. Esquecida destas amenidades da verdadeira civilização, Sylvia sentiu-se talvez desproporcionadamente comovida e despiu o fato, deitou-se na sua pequena cama de ferro, igualzinha à da Missão, e adormeceu. A Irmã Molly ficou alguns momentos debruçada para ela, com o fato dobrado no braço e o rosto a irradiar feixes de benevolente curiosidade judiciosa e experiente: no fim de contas, passava a sua vida a avaliar pessoas e situações de uma ponta a outra de Zimlia. Não gostou do que viu. Inclinando-se mais, observou esta e aquela feição, a fronte suada, os lábios secos e o rosto ruborizado, e levantou a mão de Sylvia para olhar o pulso, onde batia uma pulsação visivelmente acelerada.
Quando Sylvia acordou, o seu fato pendia da porta, preso com alfinetes e muito bem arranjado. Na cadeira estava uma selecção de cuecas e uma combinação de seda: «Estou gorda demais para caber nisso.» Havia também uns sapatos elegantes. Sylvia lavou a cabeça, para a livrar da poeira, vestiu-se e calçou os sapatos, esperando ainda ser capaz de andar com saltos, e meteu-se num táxi para o Butlers. Desconfiava de que estava febril, mas como seria tão inconveniente adoecer, ignorou isso e decidiu que não estava.
Fora do Butler's, o grupo internacional tagarelava, acenando uns aos outros e reatando conversas que talvez tivessem sido interrompidas em Bogotá ou Benares. Andrew esperava por Sylvia nos degraus da entrada. Mona estava ao lado dele num esvoaçante vestido cor-de-rosa que lhe dava o aspecto de uma espécie de tulipa com pétalas irregulares recortadas de luz cristalizada. Sabia que Andrew estava ansioso quanto ao aspecto dela, pois embora o traje de noite não fosse obrigatório nenhuma das mulheres se apresentava menos elegante do que Mona. Mas o seu sorriso disse-lhe que ela estava bem e ele deu-lhe o braço. Dirigiram-se os três para a escada que era suficientemente grandiosa para servir de cenário de um filme, embora no melhor gosto possível. Conduziu-as a um terraço onde pequenas árvores floridas e uma fonte enchiam o crepúsculo de frescura. Luzes vindas do interior realçavam um rosto, o brilho de um fato branco, o fulgor de um colar. As pessoas saudavam Andrew: como era popular, aquele elegante e distinto cavalheiro de cabelo grisalho, que devia merecer a glamorosa rapariga que o acompanhava, visto o fait accompli do casamento demonstrar que merecia.
Entraram para jantar numa sala reservada, mas suficientemente grande para cerca de cem convidados, um primor de sala, correspondendo aos desígnios de quem a concebera: que os privilegiados que a ocupassem não pudessem distinguir se estavam em Benares, Bogotá ou Senga.
Sylvia reconheceu alguns rostos daquela manhã, no café, mas a outros teve de os olhar e tornar a olhar... sim, santo Deus, estava ali Geoffrey Boné, elegante como sempre, e a seu lado a cabeça incendiária, agora mitigada para um castanho-avermelhado bem escovado, de Daniel, a sua sombra. E lá estava também James Patton. No caso de algumas pessoas, era preciso esperar décadas para se compreender o que a natureza lhes reservara desde o início: neste caso, ele atingira o seu apogeu como homem do povo, afável e amável, confortavelmente rotundo, com a mão direita sempre de prontidão para se estender e apertar qualquer outra que se lhe apresentasse. Ei-lo membro do Parlamento, num seguro assento trabalhista, e nesta ocasião hóspede da Cooperação Internacional a convite de Geoffrey. E Jill... sim, Jill, uma mulher forte com um penteado grisalho, vereadora superior de um município de Londres, famosa pela sua má administração de fundos, embora a palavra corrupta não pudesse certamente ser jamais associada a esta cidadã cujos dias de rebeldia contra a polícia e desordens e manifestações contra a embaixada americana tinham ficado tão para trás que se podia ter a certeza de que ela os esquecera ou então murmurava: Oh, sim, em tempos fui um bocado vermelha.
Sylvia não ficou ao lado de Andrew, que ocupava a cabeceira da mesa flanqueado por dois sul-americanos importantes, mas ao lado de Mona, a alguns lugares de distância. Ela sabia que era tão invisível como um anónimo passarinho castanho ao lado de um pavão de leque aberto, pois as pessoas olhavam com muita frequência para Mona, cujo nome toda a gente conhecia desde que estivesse a par da moda. E por que estava Mona ali? Ela disse a Sylvia que assistia à conferência como secretária pessoal de Andrew e, às gargalhadinhas, felicitou Sylvia pelo seu novo estatuto de secretária assistente de Andrew, pois era assim que estava a ser identificada quando era apresentada. Sylvia pôde observar tranquilamente e imaginar como Esperto e Zebedee pareceriam naquelas elegantes fardas vermelhas e brancas e tão vistosas em contraste com a pele negra dos criados sorridentes. Sabia muito bem como estes jovens tinham de trabalhar, intrigar e mendigar estes empregos, e como os seus pais se tinham sacrificado por eles, para que pudessem servir a estas estrelas internacionais comida de que a maioria deles nunca ouvira falar até ir para aquele hotel.
Deram a Sylvia a escolher entre caudas de crocodilo com maionese rosa e corações de palmitos importados do Sudeste Asiático, e durante todo esse tempo o coração dela chorava, sim, havia dentro dela um choro silencioso, ali sentada ao lado da bela noiva de Andrew. Aquele casamento não duraria, bastava ver como se apresentavam, com a complacência elegante de gatos bem alimentados, para saber que ela aceitara Andrew provavelmente por nenhuma razão melhor do que a de sentir prazer em dizer «sempre gostei de homens mais velhos», para irritar os mais novos, e que ele, que nunca fora casado e tivera de suportar os boatos habituais, apesar de ter sido o «amigo» de uma dúzia de mulheres famosas, precisara finalmente de esclarecer as coisas, e esclarecera, pois ali estava ela, sua noiva-menina.
Sylvia olhava em redor e desesperava, pensava no seu hospital fechado enquanto havia na aldeia pessoas doentes ou que tinham partido uma perna ou um braço ou... Nunca havia menos de trinta ou quarenta pessoas por dia precisadas de ajuda. Pensava na falta de água, na poeira, e na sida, e não podia evitar todos estes pensamentos antigos e insistentes, que já tinham sido pensados vezes demais e em vão. Imaginava os rostos de Esperto e Zebedee, desconsolados porque tinham sonhado ser médicos... como gerira tudo mal, sim, devia ter gerido tudo muito mal, para acabar assim.
Mona conversava com o homem à sua esquerda a respeito das suas origens num bairro de lata em Quito: Dera nas vistas de um visitante, delegado de uma conferência sobre Trajes do Mundo. Estava a confidenciar ao companheiro de mesa que Zimlia era um inferno, que via nas ruas demasiadas coisas que lhe lembravam aquilo de que fugira: «Fundamentalmente, do que gosto é de Manhattan. Tem tudo, não tem? Não vejo motivo para alguém querer sair de lá, nunca.»
Agora todos falavam da conferência nacional a realizar em breve, com duzentos delegados de todo o mundo, que duraria uma semana e teria como ponto principal um discurso sobre «As Perspectivas e Implicações da Pobreza». Onde se realizaria? A delegada da índia, uma bela mulher com um sari escarlate, sugeriu o Sri Lanka, embora fosse preciso cuidado por causa dos terroristas, mas não havia lugar mais bonito no mundo. Geoffrey Boné disse que passara três noites no Rio, numa conferência sobre a Eco-estrutura Mundial Ameaçada, e havia lá um hotel... mas, disse um cavalheiro japonês, a última conferência anual tinha sido na América do Sul, que havia um excelente hotel em Bali e que a honra devia caber a essa parte do mundo. A conversa sobre hotéis e os seus atractivos demorou a maior parte do tempo da refeição, tendo-se chegado ao consenso de que era altura de favorecer a Europa, que tal Itália, embora devesse ser essencial um policiamento rigoroso, pois eles, conferencistas, eram todos alvos apetecíveis para raptores.
Na realidade, iriam todos para a Cidade do Cabo, porque o apar-theid da África do Sul estava prestes a desaparecer e eles desejavam demonstrar a sua aprovação a Mandela.
O café foi servido numa sala adjacente, onde Andrew proferiu um discurso que parecia dispensá-los a todos, ao mesmo tempo que dizia quanto ansiava por voltar a vê-los em Nova Iorque — numa conferência. E depois Geoffrey, Daniel, Jill e James foram ter com Sylvia para lhe dizerem que não a tinham reconhecido e quanto gostavam de a ter visto. Os rostos sorridentes diziam-lhe também quanto se sentiam chocados com o que viam.
— Eras uma rapariguinha tão bonita — confidenciou Jill. — Oh, não, não estou a dizer... mas eu achava que parecias uma fadazinha.
— E olhem para mim agora.
— E olhem para mim! Bem, as conferências não são muito boas para a nossa figura.
— Podias tentar fazer dieta — sugeriu Geoffrey, que continuava magro como sempre.
— Ou uma estância especializada — opinou James. — Eu vou todos os anos para uma. Tem de ser. Há demasiadas tentações na Câmara dos Comuns.
— Os nossos antepassados iam para Baden-Baden ou Marienbad para perderem a gordura acumulada durante um ano a comer em excesso. — disse Geoffrey.
— Os teus antepassados — disse James. — Eu era neto de um merceeiro.
— Oh, bem achado — comentou Geoffrey.
— E o meu avô era escriturário de um agrimensor — informou.
— E o meu outro avô foi trabalhador agrícola em Dorset — acrescentou James.
— Parabéns — felicitou Geoffrey. — Ganhaste. Nenhum de nós pode competir com isso. — E afastou-se com um aceno de mão a Sylvia, logo seguido por Daniel.
— Foi sempre um pedante — disse Jill.
— Eu diria um maricas — declarou James.
— Então, então, o mínimo que podemos esperar aqui é que sejamos politicamente correctos.
— Tu podes esperar o que quiseres. Pela parte que me toca, o politicamente correcto é mais uma pequena amostra do imperialismo americano — sentenciou o homem do povo.
— Debate — pediu Jill. E, debatendo, afastaram-se.
Rose Trimble pairava agitadamente nos degraus do Butler's, com um vestido elegante, na esperança de que Andrew a convidasse para o jantar; mas ele não tinha respondido às suas mensagens.
Jill apareceu e ignorou Rose, que descrevera o seu município como uma vergonha para os princípios e os ideais da democracia.
— Limitei-me a fazer o meu trabalho — disse Rose, nas costas de Jill.
Depois foi a vez do primo James, cujo rosto endureceu:
— Que diabo estás aqui a fazer? Há falta de lodo em Londres? — E afastou-a para o lado com um empurrão.
Quando Andrew desceu com Mona e Sylvia, disse de imediato:
— Oh, Rose, é absolutamente delicioso ver-te.
— Não recebeste as minhas mensagens?
— Mandaste-me mensagens?
— Dá-me uma dica, Andrew. Como decorreu a conferência?
— Tenho a certeza de que virá tudo nos jornais de amanhã.
— E esta é Mona Moon... oh, dê-me uma dica, Mona. Como vai a vida de casada?
Mona não respondeu e seguiu com Andrew. Rose não reconheceu Sylvia, ou talvez só mais tarde tenha pensado que aquela amostra de gente sensaborona devia ser Sylvia.
Abandonada, disse amargamente aos delegados que iam passando:
— Os malditos Lennox. Foram a minha família.
Sylvia foi abraçada por Andrew, delicadamente beijada por Mona e metida num táxi. Eles seguiram para uma festa.
A casa da Irmã Molly estava às escuras e fechada à chave. Sylvia teve de tocar mais de uma vez. Estalido de trancas, ranger de correntes, girar de chaves e Molly apareceu numa camisa de dormir azul baby-doll, com a cruz de prata a deslizar sobre os seios.
— Desculpa, mas hoje em dia todos nós temos de viver em fortalezas.
Sylvia foi para o seu quarto, cuidadosamente, como se pudesse entornar-se como uma geleia. Achava que comera demais e sabia que o vinho não lhe assentava muito bem. Sentia a cabeça oca e tremia. A Irmã Molly observou-a, enquanto ela se baixava para a cama e se deixava cair.
— É melhor tirares isto — observou, e livrou-a de uma camada exterior de tecido, dos sapatos e das meias.
— Pronto, bem me parecia. Quando tiveste malária pela última vez?
— Oh... há um ano... parece-me.
— Então tens de novo. Fica quieta. Estás com uma febre dos diabos.
— Passa.
— Só por si, não passa.
E foi assim que Sylvia passou por outra crise de malária, que não era do tipo mau, da cerebral, que é tão perigosa, mas era suficientemente má para a fazer tremer e tiritar e obrigar a tomar os seus comprimidos — regresso ao antiquado quinino, visto os novos medicamentos não produzirem efeito nela —, e quando voltou a ficar bem a Irmã Molly disse:
— Essa foi má, mas já lá vai e vejo que estás outra vez connosco.
— Por favor, liga ao Padre McGuire e diz-lhe.
— Por quem nos tomas? É claro que já lhe telefonei há semanas.
— Semanas?
— Deu-te forte. Eu diria mesmo que foi malária mais uma espécie de colapso generalizado. E estás anémica, para começar. E precisas de comer.
— O que disse o Padre McGuire?
— Oh, não te preocupes. Está tudo a correr como de costume. Na realidade, Rebecca morrera, assim como o seu filho doente,
Tenderai. Os dois filhos que restavam tinham sido levados pela cunhada que Rebecca suspeitava de a envenenar. Era cedo demais para dar a Sylvia a má notícia.
Sylvia comeu, bebeu o que lhe pareceram litros de água e foi para a casa de banho, onde se livrou finalmente dos suores da febre. Estava fraca, mas lúcida. Estendeu-se na sua pequena cama de ferro e disse a si mesma que a febre a libertara de idiotices sem as quais podia muito bem passar. Uma delas era o Padre McGuire: durante tempos difíceis dissera a si mesma que o Padre McGuire era um santo, como se isso justificasse tudo, mas agora pensava: quem demónio sou eu, Sylvia Lennox, para andar para aí a julgar quem é um santo e quem não é?
Disse à Irmã Molly:
— Compreendi que não sou católica, pelo menos uma católica verdadeira, e provavelmente nunca o fui.
— Ah, sim? É assim tão simples, ou somos ou não somos? Nesse caso és uma protestante? Pois bem, eu tenho de confessar que, na minha opinião, o bom Deus tem coisas mais importantes para fazer do que preocupar-se com as nossas pequenas questiúnculas, mas nunca digas que eu disse isso em Belfast... não quero que me dêem um tiro nas rótulas da próxima vez que lá for de férias.
— Andei a cometer o pecado do orgulho, eu sei.
— É provável. Não andamos todos? Mas, se da tua parte é verdade, admira-me que o Kevin nunca o tenha mencionado. Ele leva muito em conta o pecado do orgulho.
— Espero que sim.
— Bem, paciência, e agora leva as coisas com calma. Quando estiveres suficientemente forte pensa um pouco no que vais fazer a seguir. Temos sugestões para ti.
Sylvia ficou deitada, a descansar, e convenceu-se de que não esperavam que regressasse à Missão. Mas o que estaria a acontecer ao Esperto e ao Zebedee?
Telefonou. As suas vozes, tão jovens, desesperadas: Ajude-me, ajude-nos.
— Quando regressa? Volte, por favor.
— Em breve, assim que puder.
— Agora que a Rebecca nos deixou, as coisas estão tão difíceis...
— O quê?
Foi assim que soube a notícia. Deitada na cama, não conseguia chorar; era mau de mais para isso.
Sylvia estava amparada na sua cama, a ingerir poções nutritivas, enquanto a Irmã Molly, parada com as mãos nas ancas e sorrindo, a observava a esforçar-se para comer. Durante todo o dia, e até tão tarde quanto os hábitos madrugadores dos cidadãos de Zimlia permitiam, chegavam pessoas do género de Andrew Lennox, ou turistas, ou parentes de visita, ou pessoas que durante o governo branco não tinham sido bem-vindas e nunca se tinham encontrado até agora. E Sylvia não as conhecera até agora.
Estava a sentir-se forçada a reflectir que embora lugares como Kwadere existissem em Zimlia, até mesmo em demasia, talvez as experiências dela tivessem sido tão limitadas, à sua maneira, como as de pessoas que não teriam acreditado que pudessem existir aldeias como a da Missão de São Lucas. No fim de contas, havia escolas que ensinavam, realmente, os seus alunos, que tinham pelo menos alguns cadernos de exercícios e livros escolares, hospitais que tinham equipamento e cirurgiões e até laboratórios de investigação. Fora a sua natureza que se encarregara de a enviar para um lugar o mais pobre possível, compreendia isso tão claramente como compreendia que era absurdo preocupar-se com os graus de fé ou falta de fé.
A um nível muito distante das embaixadas ou das salas do Butler's Hotel, ou das feiras comerciais, ou dos chefes corruptos da alta esfera da hierarquia (a que a Irmã Molly se referia como «bolo de chocofete») havia quem dirigisse organizações com pequenos orçamentos, muitas vezes financiadas por pessoas individuais, que obtinham mais resultados com o seu dinheiro do que a Cooperação Internacional ou o Dinheiro Global podiam sonhar, e que trabalhavam em lugares difíceis para conseguirem uma biblioteca, um abrigo para mulheres vítimas de abusos, capital para um pequeno negócio ou concediam pequenos empréstimos de um valor que os bancos comuns desdenhavam. Eram negros e eram brancos, cidadãos de Zimlia ou expatriados, e formavam um estrato de vigoroso optimismo que alastrava e abarcava funcionários menores e modestos funcionários públicos, pois nunca houvera um país que dependesse tanto dos seus pequenos funcionários, que são competentes e não corruptos e trabalham esforçadamente. Heróis não cantados e passando na sua maioria despercebidos. Mas quem compreendesse isso ia procurar auxílio a qualquer repartição relativamente modesta, gerida por um homem ou por uma mulher que, se houvesse justiça, estaria claramente a governar o país e de quem, na verdade, tudo dependia. A casa da Irmã Molly, e uma dúzia de outras semelhantes, formavam uma camada ou rede de pessoas sãs. Não se discutia política, não por nenhuma questão de princípio, mas sim por causa da natureza das pessoas envolvidas: em alguns países a política é inimiga do bom senso. Se, por acaso, o camarada Líder era mencionado, ou os seus parceiros corruptos, era como quem falava do tempo: uma coisa que tinha de se suportar. Uma grande decepção, o camarada Presidente, mas onde estava a novidade?
Sylvia via-se confrontada com uma dúzia de possibilidades para o seu futuro. Era médica, as pessoas sabiam que organizara um hospital no mato onde nenhum existira. Caíra em desgraça relativamente ao governo, o que era lamentável, mas a Zimlia não era o único país da África.
Uma frase nos nossos livros escolares reza mais ou menos o seguinte: «Na última parte do século XIX, e até à I Guerra Mundial, as grandes potências lutaram pela África como cães por um osso.» O que lemos com menos frequência é que a África, considerada um osso, não foi menos alvo de lutas durante o resto do século XX, embora as matilhas de cães não fossem as mesmas.
Um médico ainda novo, natural da Zimlia (e branco), regressara recentemente das guerras na Somália. Sentava-se na dura cadeira de espaldar direito do quarto de Sylvia e escutava enquanto ela falava compulsivamente (a Irmã Molly dizia que se tratava de uma auto-terapia) do destino das pessoas da Missão de São Lucas, morrendo de sida e aparentemente invisíveis para os olhos do governo. E depois falava ele, do mesmo modo compulsivo, e ela escutava.
A Somália fizera parte da esfera de influência da União Soviética, que instalou o seu aparelho habitual de prisões, câmaras de tortura e esquadrões da morte. Depois, por uma pequena e inteligente manobra de prestidigitação, a Somália tornou-se americana, trocada por outro pedaço de África. Cidadãos ingénuos esperavam e acreditavam que os Americanos desmantelassem o aparelho de segurança e os libertasse, mas não tinham aprendido a lição, tão essencial nos nossos tempos, de que não há nada mais estável do que esse aparelho. Marxistas e comunistas de várias facções que tinham proliferado no tempo dos Russos, torturando, prendendo e matando os seus inimigos, davam agora consigo a ser torturados, presos e mortos. O outrora razoavelmente aceitável Estado da Somália dava a impressão de um ninho de formigas sobre o qual fora lançada água a ferver. A estrutura de vida decente foi destruída. Agora reinavam os senhores da guerra e bandidos, chefes tribais e famílias poderosas, criminosos e ladrões. As agências internacionais de socorro, apesar de todos os seus esforços, não estavam à altura de semelhante situação, em especial porque o acesso a grandes partes do país lhes estava barrado pela guerra.
O médico ficava horas sentado na sua cadeira dura e falava, falava, porque passara meses a ver pessoas matarem-se umas às outras. Pouco antes de partir, parara ao lado de um caminho que atravessava uma paisagem reduzida a poeira, de tão seca, a observar a passagem de refugiados da fome. Uma coisa é ver isso na televisão, como ele disse (tentando desculpar-se da sua verbosidade), enquanto a fitava sem a ver, pois só conseguia ver o que estava a descrever, e outra é estar presente. Talvez Sylvia estivesse tão preparada como a maioria para visualizar o que ele lhe dizia, porque tinha apenas de colocar mentalmente, ao longo daquele caminho poeirento, três mil quilómetros a norte, pessoas da aldeia moribunda de Kwadere. Mas ele vira também refugiados fugindo das tropas assassinas de Mengistu, alguns deles golpeados e sangrando, alguns moribundos, alguns transportando crianças mortas: ele vira-o durante dias, e a experiência de Sylvia não condizia com aquilo e, por isso, era-lhe difícil ver. E além do mais não havia televisão em casa do Padre McGuire.
Ele era médico e vira, impotente, pessoas necessitadas de medicamentos, de um refúgio, de cirurgia, e a única coisa que tinha para as ajudar eram algumas caixas de antibióticos que se tinham esgotado em poucos minutos.
O mundo está agora cheio de pessoas que sobreviveram a guerras, genocídio, seca e cheias, e nenhuma delas esquecerá aquilo por que passou; mas há também as pessoas que observaram: passar dias inteiros a ver um povo passar aos milhares, às centenas de milhares, um milhão, sem nada nas suas mãos... bem, este médico estivera lá e fizera isso, e os seus olhos estavam atormentados, e o seu rosto desvairado, e ele não podia parar de falar.
Uma médica dos Estados Unidos queria Sylvia para o Zaire, mas perguntava se ela estava em condições: era tudo muito duro, lá. Sylvia disse que estava óptima, que era muito forte. Disse também que tinha efectuado uma operação sem ser cirurgiã, mas ambos os médicos ficaram admirados: no campo, médicos não cirurgiões faziam o que podiam. «Desde que não fossem transplantes... e eu arriscaria mesmo um by-pass.»
No fim, ela concordou em ir para a Somália, como parte de uma equipa financiada pela França. Entretanto, tinha de regressar à Missão para ver Zebedee e Esperto, cujas vozes, quando falava com eles pelo telefone, pareciam gritos de pássaros apanhados por uma tempestade. Não sabia o que fazer. Já não descrevia aqueles dois rapazes como crianças, mas como adolescentes, à Irmã Molly e aos dois médicos, e sabia que uma, que via crianças daquelas todos os dias da sua vida de trabalho, pensava que ambos estavam destinados ao desemprego (mas ela estaria atenta, talvez fosse possível arranjar-lhes trabalho como criados?), e os outros, com as cabeças cheias de milhares de famintos, infindas filas de pobres vítimas, só com dificuldade conseguiam inclinar a sua imaginação para pensar nos dois infelizes que tinham sonhado ser médicos, mas agora... Mas onde estava a novidade?
A Irmã Molly teve de conduzir cerca de oitenta quilómetros para lá de Kwadere a fim de reatar o trabalho interrompido pela doença de Sylvia. Combinara com Aaron para ir buscar Sylvia à curva do caminho. Os seus protestos acerca do Papa e da hierarquia masculina da igreja foram interrompidos quando avistaram seis silos de cereais ao longo da estrada, cujo conteúdo — o milho da última estação — fora vendido por um ministro importante a outro país africano devastado pela seca e o valor da transacção embolsado pelo dito ministro. Estavam a viajar por uma região faminta; ao longo de quilómetros, em ambas as direcções, só se via mato seco em consequência do atraso da estação das chuvas.
— Não gostaria de ter a consciência dele — disse Sylvia, e a Irmã Molly replicou que certas pessoas pareciam ainda não ter compreendido que havia gente que nascia sem consciência. Isto lançou Sylvia no seu monólogo acerca da aldeia da Missão, e a Irmã Molly escutou-a e disse:
— Sim, é isso. Tens razão nesse ponto.
Na curva da estrada, Aaron esperava no carro da Missão.
— Pronto, cá estás — disse a Irmã Molly a Sylvia. — Espero ver-te por aí.
— Pois sim. Nunca esquecerei o que fizeste por mim.
— Esquece — respondeu a Irmã Molly, e seguiu viagem com um aceno da mão que foi como uma porta a fechar-se.
Aaron estava animado, ansioso, no limiar de uma nova vida: ia para a Velha Missão continuar os seus estudos para se tornar padre. O Padre McGuire ia-se embora. Estava toda a gente a ir-se embora. E a biblioteca?
— Lamento dizer que os livros já não são muitos. Compreende, com a morte de Tenderai e de Rebecca, e a doutora ausente, quem ia olhar por eles?
— E o Esperto e o Zebedee?
Aaron, que nunca gostara deles, nem eles dele, limitou-se a dizer:
— Estão bem.
Estacionou o carro debaixo das árvores da borracha e foi-se embora. A tarde ia alta e a luz estava a desaparecer rapidamente das nuvens douradas e rosadas. Do outro lado do céu, uma meia-lua, uma simples mancha esbranquiçada, aguardava o momento de adquirir dignidade com a chegada da escuridão.
Quando chegou à varanda, os dois rapazes apareceram a correr. Pararam, a olhá-la. Sylvia não sabia o que estava errado. Enquanto estivera doente, perdera o bronzeado e tornara-se branca como leite, e o seu cabelo, cortado por causa da transpiração, era uma mata de farripas e frondes amarelas. Eles só a tinham conhecido com a pele de um tom castanho amigável e tranquilizador.
— Alegra-me tanto vê-los — disse Sylvia, e eles correram para ela, que os abraçou. Havia muito menos substância neles do que houvera antes.
— Não anda ninguém a alimentá-los?
— Anda sim, Dr.a Sylvia — responderam, enquanto a abraçavam e choravam. Mas ela sabia que andavam a comer mal. E as luminosas camisas brancas estavam sujas, porque Rebecca não estava ali para cuidar delas. Os olhos deles suplicavam, através das lágrimas: por favor, por favor.
O Padre McGuire chegou, perguntou-lhes se tinham comido e eles disseram que sim. Mas ele tirou um pão do aparador e os rapazes partiram-no ao meio e comeram-no famintamente, e depois foram para a aldeia; voltariam ao nascer do Sol.
Sylvia e o padre sentaram-se nos seus lugares à mesa. A luz da única lâmpada eléctrica dizia ao sacerdote quanto ela estivera doente, e a ela que ele era um velho.
— Verá as novas sepulturas na colina, e há novos órfãos. Eu e o Padre Thomas — é o padre negro da Velha Missão — vamos instalar um refúgio para os órfãos da sida. Obtivemos fundos do Canadá, que Deus os abençoe, mas, Sylvia, já pensou que da maneira que as coisas estão a passar-se haverá talvez um milhão de crianças sem pais?
— A Peste Negra destruiu aldeias inteiras. Quando tiram fotografias da Inglaterra, do ar, pode ver-se onde estavam as aldeias.
— Esta aldeia não estará aqui em breve. Eles estão a ir-se embora porque dizem que o lugar está amaldiçoado.
— E o padre diz-lhes no que eles deviam pensar?
— Digo.
A luz eléctrica faltou, de súbito. O padre acendeu duas velas de emergência, a cuja luz jantaram, servidos pela sobrinha de Rebecca, uma jovem mulher forte e saudável — bem, por enquanto — que viera ajudar a tia moribunda e partiria quando o padre partisse.
— Ouvi dizer que há, finalmente, um novo director para a escola.
— Sim, mas compreende, Sylvia, eles não gostam de vir para estes lugares distantes, e este já teve problemas com a bebida.
— Estou a ver.
— Mas tem uma grande família e ficará nesta casa.
Sabiam ambos que havia mais a dizer, e por fim ele perguntou:
— E agora, o que vai fazer com aqueles dois rapazes?
— Não devia ter alimentado as suas esperanças como alimentei. Embora nunca lhes tenha prometido nada.
— Ah, mas a promessa é o grande e maravilhoso mundo rico lá de fora.
— Nesse caso o que devo fazer?
— Deve levá-los consigo para Londres. Mandá-los para uma escola a sério. Deixá-los aprender a ser médicos. Deus sabe que este pobre país precisará dos seus médicos.
Ela ficou calada.
— Sylvia, eles são saudáveis. O seu pai morreu antes de haver a sida. Os verdadeiros filhos de Joshua morrerão, mas não estes dois. A propósito, ele está à espera de a ver.
— Surpreende-me que ainda esteja vivo.
— Está vivo só para a ver. E agora está completamente louco. Deve ir preparada para isso.
Antes de lhe dar uma vela para levar para o seu quarto, levantou a sua para a olhar no rosto e disse:
— Sylvia, eu conheço-a muito bem, minha filha. Sei que está a censurar-se por tudo.
— Estou.
— Há muito tempo que não me pede para a confessar, mas eu não preciso de ouvir o que tem para dizer. No estado de espírito em que se encontra e fraca da doença, não deve confiar no que está a pensar a seu respeito.
— O demónio espreita na ausência de glóbulos vermelhos.
— O demónio espreita quando a saúde é má. Espero que tome os seus comprimidos de ferro.
— E eu que tome os seus.
Abraçaram-se, ambos com necessidade de chorar, e separaram-se para irem para os respectivos quartos. Ele partia de manhã cedo e disse que provavelmente não a veria, o que significava que não queria passar por outra separação. Não ia dizer, como a Irmã Molly, vemo-nos por aí.
Na manhã seguinte, tinha partido. Aaron conduzira-o à curva da estrada, onde seria recolhido pelo carro da Velha Missão.
Zebedee e Esperto esperavam Sylvia no caminho para a aldeia. Metade das cabanas estavam vazias. Um cão faminto farejava na poeira. A cabana onde Tenderai tomara conta dos livros estava aberta e os livros tinham desaparecido.
— Nós tentámos procurá-los, tentámos.
— Não se preocupem com isso.
A aldeia, antes de ela partir, parecera atormentada e estava ameaçada, mas estivera viva: agora o seu espírito partira. Fora Rebecca quem partira. Em instituições e aldeias, em hospitais e em escolas, a alma do lugar é frequentemente uma pessoa, embora ele ou ela possam ser o porteiro, um presidente ou a criada de um padre. Quando Rebecca morreu, a aldeia morreu.
Os três subiram pelo meio do mato para onde estavam as sepulturas, agora já cerca de cinquenta. A de Rebecca e a do seu filho Tenderai encontravam-se entre as mais recentes, dois rectângulos de terra vermelha debaixo de uma grande árvore. Sylvia parou, a olhar, e os rapazes, vendo a sua cara, aproximaram-se e abraçaram-na, e então ela chorou, com os rostos deles na sua cabeça: estavam mais altos do que ela.
— E agora deve ver o nosso pai.
— Sim, eu sei.
— Por favor, não se zangue connosco. A polícia veio e levou os remédios* e as ligaduras. Nós dissemos-lhes que a doutora os tinha pago, com o seu dinheiro.
— Não tem importância.
— Nós dissemos-lhes que era roubo, que os remédios eram seus.
— Não tem, realmente, importância.
— E as avós estão a usar o hospital para as crianças doentes. Por toda a parte, em Zimlia, mulheres idosas e às vezes homens
idosos, cujos filhos adultos tinham morrido, ficavam com crianças pequenas que tentavam alimentar e manter.
— Como estão a alimentá-los?
— O novo director disse que lhes dará comida.
— Mas eles são muitos, como pode ele alimentar todos? Encontravam-se numa pequena elevação, oposta àquela onde a casa
do padre se erguia e a olhar para baixo, para o hospital de Sylvia. Três mulheres idosas estavam sentadas à sombra debaixo dos telhados de colmo, com cerca de vinte crianças pequenas. Idosas pelos padrões do terceiro mundo: em países com mais sorte estas mulheres de cinquenta anos andariam a fazer dieta e a arranjar amantes.
Debaixo da grande árvore de Joshua estava um monte de farrapos, ou qualquer coisa parecida com uma grande pitão, sarapintado de sombras. Sylvia ajoelhou ao lado dele e disse: «Joshua.» Ele não se mexeu. Há pessoas que, antes de morrerem, têm o mesmo aspecto que terão depois de morrerem, em virtude de o esqueleto estar tão colado à pele. O rosto de Joshua era só osso, com pele seca afundada nas cavidades. Abriu os olhos e passou a língua gretada pelos lábios espumosos. «Há água?», perguntou Sylvia, e Zebedee e Esperto correram para as velhas que pareceram protestar: para quê desperdiçar água com alguém quase morto? Mas Zebedee meteu uma chávena de plástico na água que se encontrava num balde de plástico destapado, exposto à poeira e às folhas que voavam, e trouxe-a para o pai, ajoelhou-se e encostou a chávena aos lábios gretados. De súbito, o ancião (de meia-idade, segundo outros padrões) pareceu despertar e bebeu desesperadamente, com as cordas da garganta a movimentar-se. Depois estendeu uma mão, como a de um esqueleto, e agarrou o pulso de Sylvia. Era como estar presa num círculo de osso. Ele não podia sentar-se, mas soergueu a cabeça e começou a entaramelar o que ela sabia deverem ser pragas, imprecações, com os olhos afundados nas órbitas a arder de ódio.
— Ele não fala a sério — disse Esperto.
— Não, não fala — confirmou Zebedee. Depois Joshua murmurou:
— Leve os meus filhos. Deve levá-los para Inglaterra.
A apertada pulseira de osso estava a magoar o pulso de Sylvia.
— Largue-me, Joshua, está a magoar-me. Ele apertou ainda mais.
— Tem de me prometer, já-já, tem de prometer. — Tinha a cabeça levantada do corpo quase morto, como uma serpente levanta a sua quando lhe partem a espinha.
— Joshua, largue-me o pulso.
— Tem de me prometer. Que os leva... — Entaramelou as suas pragas com os olhos bem fixos nos dela, e a sua cabeça inclinou-se para trás. Mas os seus olhos não se fecharam nem o jorro de palavras de ódio se estancou.
— Muito bem, prometo, Joshua. Agora largue-me. — A pressão não diminuiu: ela pensava desvairadamente que ele morreria e ela ficaria algemada a um esqueleto.
— Não acredite no que ele diz, Dr.a Sylvia — murmurou Zebedee.
— Ele não sabe o que fala — acrescentou Esperto.
— Talvez seja melhor eu não saber o que ele está a dizer.
A algema de osso soltou-se do seu pulso. A mão de Sylvia estava dormente. Acocorou-se ao lado do quase cadáver, a sacudir a mão.
— Quem vai olhar por ele?
— As velhas olham por ele.
Sylvia foi ter com as mulheres e deu-lhes dinheiro, quase todo o que tinha, ficando apenas com o suficiente para regressar a Senga. Daria para manter aquelas crianças alimentadas durante um mês.
— E agora arranjem as vossas coisas, pois vamos partir.
— Já? — Afastaram-se dela, sob o impulso da surpresa; aquilo por que tinham ansiado chegara, estava perto — e era uma separação de tudo o que conheciam.
— Eu arranjo-lhes roupas em Senga.
Eles correram para a aldeia e ela subiu a encosta entre os loendros e a dentilária, a caminho de casa, onde tudo quanto ia levar já estava num saco. Disse à sobrinha de Rebecca que se quisesse os seus livros podia ficar com eles. Podia ficar com tudo o que quisesse. Mas o que a rapariga pediu foi a gravura das mulheres, da parede. Gostava daquelas caras, disse.
Os rapazes chegaram, cada um com um saco de plástico com tudo o que tinham.
— Comeram alguma coisa?
Não, era claro que não tinham comido nada. Sentou-os à mesa, cortou pão e pôs o boião da geleia entre eles. Ela e a sobrinha de Rebecca ficaram a vê-los espalhar a geleia com as facas, todos atrapalhados. Tudo isso tinha de ser aprendido. O coração de Sylvia pesava de tanta angústia: aqueles dois — órfãos, pois era isso que eram — iam ter de se habituar a Londres, de aprender tudo, desde como empregar facas e garfos até como serem médicos.
Ligou a Edna Pyne, que disse que Cedric estava doente e não o podia deixar; pensava que tinha bilharziose.
— Não se preocupe, vamos de autocarro para Senga
— Não pode ir naqueles autocarros nativos, são fatais.
— As pessoas vão neles.
— Antes você do que eu.
— Estou a despedir-me, Edna.
— Está bem. Não se preocupe. Neste continente os nossos actos ficam escritos na água. Oh, meu Deus, que estou eu a dizer... na areia. Isso é o que Cedric anda a dizer, ele está deprimido, apanhou a minha neura. «Os nossos actos são escritos em água», diz. Está a tornar-se religioso. Bem, era só o que faltava. Então adeus. Voltaremos a ver-nos.
Os três encontravam-se onde a estrada para os Pyne e para a Missão se juntava a uma das principais estradas para norte. Era uma única faixa de alcatrão muito esburacada e tão gasta nas margens como o póster que a sobrinha de Rebecca tirara da parede naquela manhã. Estava na hora do autocarro, mas ele chegaria atrasado: chegava sempre. Esperaram de pé e depois esperaram sentados numas pedras ali colocadas para esse fim, debaixo de uma árvore.
Pensar-se-ia que não era grande coisa aquela estrada, que seguia curvando para o interior do mato, com o seu brilho cinzento apagado pelas extensões de areia sopradas pelo vento que a cobriam, mas uma quantidade dos carros mais elegantes do país tinham por ali passado velozmente, não havia muito tempo, para o casamento do camarada Líder com a sua nova esposa, já que a Mãe da Nação morrera. Tinham sido convidados todos os líderes do mundo, fossem ou não camaradas, e tinham sido transportados por esta estrada do mato, ou de helicóptero, para um Centro de Desenvolvimento que não ficava longe do lugar de nascimento do camarada Líder. Perto, entre árvores, haviam sido erguidas duas grandes tendas. Dentro de uma delas, mesas assentes em cavaletes ofereciam pãezinhos e Fanta aos cidadãos locais, enquanto na outra estava disposto um banquete, sobre toalhas brancas, para a elite. Mas o serviço religioso onde o casamento estava a ser solenizado demorou tempo demais. Consumidos os pãezinhos, os povos, ou plebe, irromperam pela tenda destinada às grandes personalidades e devoraram toda a comida, enquanto os criados protestavam em vão. Depois desapareceram nas suas casas do mato. Foi preciso mandar vir mais comida de Senga, de helicóptero. Este acontecimento foi edificante... oh, mas lembrou tanto um conto de fadas que não precisa de ser descrito.
Ao longo desta estrada, dentro de não muito mais do que dez anos, os homens de mão e os bandidos do Partido do Líder correriam, munidos de machados, facas e cacetes, para espancarem trabalhadores agrícolas que queriam votar nos adversários do Líder. Entre eles encontravam-se os jovens — ex-jovens — a quem o Padre McGuire dera medicamentos na guerra. Parte deste exército saíra desta estrada para a estrada mais pequena da fazenda dos Pyne, que pareciam desconhecer que fora adquirida à força por Mr. Phiri, embora os Pyne ainda não tivessem partido. Cerca de duzentos bêbados chegaram ao relvado da frente da casa e exigiram que Cedric Pyne matasse uma rês para eles. Ele matou um boi gordo — a seca suavizara-se —, acendeu-se uma grande fogueira no relvado e o boi foi assado. Os Pyne foram arrastados da varanda e ordenaram-lhes que entoassem palavras de ordem em louvor do Líder. Edna recusou. «Diabos me levem se vou dizer mentiras para lhes agradar», respondeu, e por isso agrediram-na até ela repetir com eles: «Viva o Camarada Matthew.» Quando Phiri chegou para tomar posse das duas fazendas, o jardim da casa estava sujo e enegrecido e o poço da casa cheio de lixo.
Ao longo desta estrada, havia oito anos, Sylvia fora conduzida de carro, estonteada e ofuscada pela estranheza do mato e a magnificência desconhecida, enquanto ouvia a Irmã Molly avisá-la contra a intransigência do mundo masculino: «Aquele Kevin ainda não se deu conta de que o mundo mudou à volta dele.»
Junto desta estrada, não longe dali, numa área montanhosa cheia de cavernas, fendas rochosas e baobás, há um lugar aonde o camarada Líder era convocado de tempos a tempos por curandeiros do espírito {rigangas, feiticeiros, xamanes) para sessões nocturnas onde homens (e uma ou duas mulheres) — que podiam trabalhar numa cozinha ou numa fábrica — pintados e usando peles de animais e pêlo de macacos dançavam até ficar em transe e o informavam de que ele devia matar ou expulsar os brancos se não queria desagradar aos seus antepassados. Ele rastejava, chorava, prometia fazer melhor, e depois era conduzido de carro para a cidade, para a sua casa-fortaleza, a fim de planear a sua próxima viagem para se encontrar com os líderes mundiais ou uma conferência com o Banco Mundial.
O autocarro chegou. Era velho, chocalhava e estremecia e soltava nuvens de gorduroso fumo preto que se estendia quilómetros atrás dele, assinalando a estrada. Estava cheio, mas lá se descobriu um pequeno espaço para acomodar Sylvia e os seus dois... o que eram eles? Criados? Mas as pessoas do autocarro, predispostas para se mostrarem críticas daquela mulher branca, viram-na pôr os braços à volta dos rapazes, que se chegaram muito para ela, como crianças. Eles estavam tristes e esforçavam-se para não chorar, com medo do que os esperava. Quanto a Sylvia, sentia-se em pânico. O que estava a fazer? Que outra coisa podia ter feito? No meio do barulho do autocarro perguntou-lhes, em voz baixa: «O que teriam vocês feito se eu não tivesse voltado?» E Esperto respondeu: «Não sei. Não temos lugar nenhum para onde ir.» Zebedee disse: «Obrigado por nos ter vindo buscar. Estávamos com muito-muito medo de que não viesse procurar-nos.» Da estação do autocarro foram a pé para o velho hotel, que o Butler's deixara numa posição muito secundária, e ela alugou um quarto para os três, receando expor-se a comentários, mas não os houve: nos hotéis de Zimlia um quarto pode ter meia dúzia de camas para acomodar uma família inteira.
Dirigiu-se com eles para o elevador, sabendo que nunca tinham visto nenhum, nem, provavelmente, ouvido sequer falar da sua existência, explicou-lhes como funcionava e seguiram por um corredor onde brilhava um sol empoeirado. No quarto mostrou-lhes a casa de banho e o lavatório: como abrir e fechar torneiras e puxar autoclismos e abrir e fechar janelas. Depois levou-os ao restaurante e pediu sdaza para eles, explicando-lhes que não deviam usar os dedos para comer, e depois uma sobremesa, da qual também se desenvencilharam com a ajuda de um criado simpático.
Eram duas horas e ela levou-os para cima e telefonou para o aeroporto, a fim de marcar lugares para a noite seguinte. Disse-lhes que ia arranjar-lhes passaportes, explicou-lhes o que eram passaportes e disse-lhes que se quisessem podiam dormir. Mas quando ela saiu eles estavam demasiado agitados e aos pulos nas camas, soltando gritos que tanto podiam ser de alegria como lamentos.
Sylvia dirigiu-se para o edifício dos ministérios e quando estava parada, perguntando a si mesma o que devia fazer a seguir, Franklin saiu do seu Mercedes. Ela agarrou-lhe no braço e disse: «Vou entrar contigo e não te atrevas a dizer que tens uma reunião.» Ele tentou soltar-se e estava prestes a gritar por socorro quando viu que era Sylvia. O seu espanto foi tão grande que ficou imóvel, sem resistir, e por isso ela largou-o. Quando a vira semanas atrás ela fora uma impostora que dizia chamar-se Sylvia, mas agora estava ali aquilo que ele recordava, uma criatura frágil cuja brancura parecia brilhar, com macio cabelo dourado e enormes olhos azuis. Usava uma blusa branca, não aquele horrível fato verde de madame branca. Parecia completamente transparente, como um espírito, ou uma Nossa Senhora de cabelos dourados dos seus longínquos tempos de escola.
Desarmado e indefeso, disse-lhe: «Vem.» E lá foram, percorrendo os corredores do poder e subindo escadas, até ao seu gabinete, onde ele se sentou, suspirando mas sorridente, e lhe indicou uma cadeira.
— O que é que queres?
— Tenho comigo dois rapazes de Kwadere, de onze e treze anos. Não têm família. Morreram todos de sida. Vou levá-los para Londres e quero que arranjes passaportes para eles.
Ele riu-se.
— Mas eu não sou o ministro certo. O meu departamento não é esse.
— Por favor, trata disso. Tu podes.
— E por que havias tu de roubar as nossas crianças?
— Roubar! Eles não têm família. Não têm futuro. Não aprenderam nada nas vossas ditas escolas onde não há livros. Eu tenho-os ensinado. São crianças muito inteligentes. Comigo receberão instrução. E querem ser médicos.
— E por que farias tu isso?
— Prometi ao pai deles, que está a morrer de sida. Aliás, suponho que a esta hora já está morto. Prometi-lhe que educaria os seus
filhos.
— É ridículo. Está fora de questão. Na nossa cultura, alguém
olhará por eles.
— Tu nunca sais de Senga, por isso não sabes como as coisas são. A aldeia está a morrer. Agora há mais gente no cemitério do que na
aldeia.
— E eu tenho culpa de que o pai deles tenha sida? Essa coisa terrível é culpa nossa?
— Bem, nossa não é, como vocês não param de dizer. Acho que devias saber que nas regiões do interior as pessoas andam a dizer que a culpa é do governo, por vocês se terem tornado uma tal corja de bandidos.
Franklin desviou o olhar. Bebeu um gole de água e enxugou o
rosto.
— Surpreende-me que dês ouvidos a essa mexeriquice. São boatos espalhados por agentes sul-africanos.
— Isto é uma perda de tempo, Franklin, reservei lugares para o voo de amanhã à noite, para Londres. — Empurrou para ele uma folha de papel com os nomes dos rapazes, o nome do seu pai e o seu lugar de nascimento. — Aqui tens. Tudo quanto é preciso é um documento para os levar para fora do país. E eu tratarei do necessário para terem passaportes ingleses quando chegarmos a Londres.
Ele ficou a olhar para o papel. Depois levantou cautelosamente os olhos, que estavam cheios de lágrimas.
— Disseste uma coisa muito terrível, Sylvia.
— Tens obrigação de saber o que as pessoas dizem.
— Dizer semelhante coisa a um velho amigo.
— Ontem eu ouvi... o velho amaldiçoou-me, para me fazer levar os filhos para Londres. Amaldiçoou-me... Estou tão cheia de maldições que devem estar a transbordar de mim.
Ele agora sentia-se verdadeiramente inquieto.
— O que estás a dizer, Sylvia? Estás a amaldiçoar-me, também?
— Eu disse isso? — Mas entre os seus olhos havia o vinco de profunda tensão que a fazia parecer uma pequena bruxa. — Franklin, alguma vez te sentaste ao lado de um velho a morrer de sida enquanto ele te amaldiçoava de todas as formas e feitios? Eram coisas tão terríveis que os seus filhos não me querem dizer o que significavam. — Estendeu o pulso envolto numa nódoa negra, como uma pulseira.
— O que é isso?
Ela inclinou-se por cima da secretária e prendeu-lhe o pulso com tanta força como sentira o seu apertado na véspera. Manteve-o assim, enquanto ele tentava empurrá-la, e depois largou-o.
Ele ficou sentado de cabeça baixa, lançando-lhe de vez em quando olhares de pânico.
— Se o teu filho quisesse ir amanhã à noite para Londres e precisasse de um passaporte, não me digas que não lho poderias arranjar.
— Está bem — disse ele, por fim.
— Espero pelos documentos dos rapazes no Selous Hotel.
— Estiveste doente?
— Estive. Com malária, não sida.
— Isso pretende ser uma brincadeira?
— Desculpa. Obrigada, Franklin.
— Está bem.
Quando Sylvia ligou do aeroporto para casa, antes de embarcar, disse que chegaria de manhã com dois rapazes, sim, negros, e que prometera educá-los, que eram muito inteligentes — um chamava-se Esperto. Esperava que não estivesse muito frio porque, evidentemente, os rapazes não estariam habituados a isso... e continuou a falar até Frances lhe dizer que a chamada devia estar a custar uma fortuna. «Sim, desculpe, oh peço muita desculpa», e finalmente desligou com a promessa de lhes contar tudo no dia seguinte.
Colin ouviu a notícia e disse que, evidentemente, Sylvia tencionava que os rapazes fossem viver ali.
— Não sejas idiota, como poderiam? Além disso, ela disse que ia para a Somália.
— Bem, aí está.
Rupert, depois de pensar um pouco, como era seu hábito, disse esperar que William não ficasse transtornado. O que significava que ele também pensava que os rapazes seriam deixados com eles.
Nem Frances nem Rupert podiam estar presentes para dar as boas-vindas a Sylvia, pois estariam a trabalhar, mas Frances sugeriu um jantar de família. Esta conferência familiar era prejudicada pela falta de informação. «Ela parecia dementada», disse Frances.
Foi Colin quem abriu a porta a Sylvia e aos rapazes. Tinha nos braços a sua filha e de Sophie, Célia, uma criança encantadora com caracóis pretos, olhos pretos aduladores, covinhas no rosto e toda bonita num vestidinho vermelho. Lançou um olhar aos rostos negros e desatou a chorar.
— Que disparate — disse o pai dela e apertou as mãos dos rapazes, que notou estarem frias e a tremer. Estava um dia agreste de Novembro.
— Ela nunca viu rostos negros tão próximos — explicou-lhes Sylvia. — Não se preocupem.
Foram para a cozinha e depois sentaram-se à fiel mesa. Os rapazes estavam visivelmente em estado de choque, ou coisa parecida. Se é possível rostos negros estarem pálidos, os deles estavam. Tinham um ar acinzentado e tremiam de frio, apesar de cada um vestir uma camisola grossa nova. Sentiam-se no lugar errado; Sylvia sabia-o porque também sentia o mesmo: uma transição demasiado rápida das cabanas de colmo, das rajadas de poeira e das novas sepulturas da Missão.
Uma mulher nova e bonita, de jeans e com uma bonita T-shirt às riscas, entrou na cozinha e apresentou-se: «Olá, sou a Marusha.» Pôs a cafeteira ao lume e esperou que fervesse. Era a au pair. Em breve, Sylvia e os rapazes tinham à frente grandes canecas de chá e Marusha punha biscoitos num prato e empurrava-o para eles, a sorrir delicadamente. Era polaca e estava absorvida, de mentalidade e imaginação, na desintegração da União Soviética, que se encontrava em processo acelerado. Depois de colocar Célia na anca, disse: «Quero ver o noticiário da televisão», e subiu a escada a cantarolar. Os rapazes observaram Sylvia a pôr biscoitos no seu prato e juntar leite e depois açúcar ao seu chá. Copiaram exactamente os seus gestos, sem desviarem os olhos da cara e dos movimentos dela, como a tinham observado durante anos no hospital.
— Esperto e Zebedee — disse Sylvia. — Têm-me ajudado no hospital. Pô-los-ei na escola assim que puder. Vão ser médicos. Estão tristes porque o seu pai acaba de morrer. Não lhes resta mais ninguém da família.
— Ah — disse Colin e, com uma inclinação de cabeça, deu as boas-vindas aos rapazes, cujos sorrisos assustados pareciam permanentemente fixos. — Sinto muito. Compreendo que tudo isto deve ser terrivelmente difícil para vocês. Mas habituar-se-ão.
— A Sophie está no teatro?
— A Sophie está intermitentemente com o Roland... não, não me deixou, de facto. Eu diria que está a viver com ambos.
— Compreendo.
-— É assim que as coisas estão.
— Pobre Colin.
-— Ao mínimo pretexto, ele envia-lhe quatro dúzias de rosas vermelhas ou mensagens cheias de significado em amores-perfeitos ou miosótis. Eu nunca penso nessas coisas. É bem feito para mim.
— Oh, pobre Colin.
— E, pelo teu aspecto, pobre Sylvia.
— Ela está doente. A Sylvia está muito doente — disseram os rapazes.
A noite passada, no avião, tinham-se sentido assustados, não só com o aparelho desconhecido, mas também com o facto de Sylvia estar sempre a vomitar e a adormecer, e a despertar com um grito e lágrimas. Quanto a eles, mostrara-lhes como as casas de banho funcionavam e eles julgaram ter compreendido, mas Esperto devia ter premido um botão errado, porque da vez seguinte que se dirigiu para lá estava escrito na porta «Fora de Serviço». Tiveram ambos a impressão de que as assistentes de bordo os olhavam de modo crítico e pensaram que se fizessem alguma coisa estúpida o avião poderia despenhar-se por sua causa.
Agora, quando Sylvia pôs os braços à volta deles, quando se sentou entre ambos, sentiram que ela estava fria, através da sua roupa, e a tremer. Não se surpreenderam. A vista pela janela do carro, quando vinham do aeroporto, só céus cinzentos e ressumantes, edifícios intermináveis e tantas pessoas tão cheias de roupas que pareciam embrulhos, fê-los desejar meter as cabeças debaixo de um cobertor.
— Suponho que nenhum de vocês pregou olho no avião? — perguntou Colin.
— Nem por isso — respondeu Sylvia. — E os rapazes estavam tão espantados com tudo. São de uma aldeia, compreendem. Tudo isto é novidade para eles.
— Compreendo — disse Colin, e compreendia, pelo menos na medida em que alguém que não passou pelas coisas pode compreendê-las.
— Está alguém no antigo quarto do Andrew?
— Eu trabalho lá.
— E no teu antigo quarto?
— É o quarto do William.
— E no quarto pequeno desse piso? Podemos pôr os dois lá.
— Não achas que fica um pouco atravancado demais, com duas camas?
Zebedee disse:
— Viviam cinco pessoas na nossa cabana antes de a minha irmã morrer.
— Ela não era realmente nossa irmã — explicou Esperto. — Era nossa prima, se vocês calcularem isso da mesma maneira que nós. Temos um sistema de parentesco diferente. — E acrescentou: — Ela morreu. Ficou muito doente e morreu.
— Eu sei que os sistemas não são iguais. Espero que vocês me expliquem. — Colin estava a começar a distinguir os rapazes um do outro. Esperto era o magro e atento, com enormes olhos suplicantes; Zebedee era mais encorpado, com ombros largos e um sorriso que lhe recordava Franklin.
— Podemos ver aquele frigorífico? Nunca vimos um frigorífico tão grande.
Colin mostrou-lhes o frigorífico, com as suas muitas prateleiras, a sua iluminação interior, os seus compartimentos de congelação. Eles soltaram exclamações, admiraram-se e abanaram a cabeça, e depois começaram a bocejar.
— Venham — disse Colin, e subiu a escada com os braços nos ombros dos rapazes e Sylvia atrás deles. Escadas e mais escadas, coisa que nunca tinham visto até ficarem no Selous Hotel. Foram subindo, passando pelo piso da sala, pelo quarto de Frances e Rupert e pelo pequeno quarto onde, outrora, Sylvia estivera, até ao piso que abrigara Colin e Andrew enquanto cresciam. No quartinho já havia uma cama grande e, enquanto Colin dizia: «Nós arranjamos-lhes qualquer coisa melhor», os dois atiraram-se para cima da cama e adormeceram, logo.
— Pobres miúdos — disse Colin.
— Quando acordarem, ficarão em pânico.
— Vou dizer à Marusha que esteja atenta... e tu, onde vais dormir, já pensaste nisso?
— Posso ficar na sala até...
— Sylvia, não estás a pensar em largar os rapazes connosco e partir para... onde disseste que era?
— Somália.
Sylvia não estivera a pensar. Fora transportada por uma série de acontecimentos desde a sua promessa a Joshua e não se permitira pensar ou encaixar os dois factos: que era responsável pelos rapazes e que prometera estar na Somália dentro de três semanas.
Desceram a escada, sentaram-se à mesa e sorriram um ao outro.
— Sylvia, pensaste que a Frances já está entradota, passou dos setenta? Fizemos-lhe uma grande festa. Mas não quero dizer que pareça ter essa idade ou proceda como se a tivesse.
— E já tem o William e a Margaret.
— Só o William.
E, com vagar — dispunham de todo o tempo do mundo —, contou-lhes a história. Margaret decidira, sem discutir o assunto com eles, que ia viver com a mãe. Também não lho perguntara a ela, aparecera simplesmente em casa de Phyllida e dissera a Meriel:
— Vim viver consigo.
— Não há espaço — respondeu prontamente Meriel. — Pelo menos até eu arranjar uma casa.
— Então tem de a arranjar — ordenou-lhe a filha. — Temos dinheiro suficiente, não temos?
O problema era o seguinte: Meriel resolvera ir para a universidade e formar-se em psicologia. Frances ficou furiosa, pois esperara que Meriel começasse a ganhar algum dinheiro; mas Rupert não se surpreendeu.
— Eu sempre disse que ela não tinha a mínima intenção de ganhar a sua vida, não disse?
— Disseste, é verdade.
— Ninguém o diria, olhando para ela, mas a Meriel é uma mulher muito dependente.
— Vamos ter de mantê-la perpetuamente?
— Não me surpreenderia.
Era por isso que Meriel não queria, realmente, deixar Phyllida: não queria ficar sozinha. Entretanto, Phyllida queria que ela se fosse embora. Houvera alguma satisfação obscura, nunca verdadeiramente analisada, em ter a ex-mulher de Rupert ali, com ela, como uma extensão da casa dos Lennox, mas havia limites para tudo. Não antipatizava, de facto, com Meriel, mas a sua maneira de ser áspera e cortante às vezes tornava-se deprimente. Quando Margaret se mudou para lá, Phyllida teve a sensação de estar a reviver um antigo pesadelo, de se ver em Meriel com a rapariga, mãe e filha, disparatando, rosnando e beijando-se e fazendo as pazes, e tudo ruidoso, muito ruidoso, lágrimas, discussões e gritos e os longos silêncios da reconciliação.
Depois Meriel teve uma recaída e foi para o hospital. Phyllida e Margaret ficaram juntas. Phyllida sugeriu que, uma vez que a sua mãe já ali não estava, Margaret podia voltar para casa dos Lennox, mas a rapariga respondeu que gostava mais de estar com ela. «A Frances é uma vaca velha», declarou. «Não se importa realmente com ninguém a não ser com o Rupert. Acho repugnante, pessoas velhas como eles de mãos dadas. E gosto de facto de estar consigo.» Disse as últimas palavras timidamente, hesitando, com receio de uma recusa, oferecendo-se por assim dizer como substituta da sua mãe: «Quero estar consigo.»
Phyllida sentiu-se, de facto, comovida, ao ouvir a rapariga dizer que gostava dela. Como era diferente da dissimulada e enganadora Sylvia, que não descansara enquanto não se afastara dela.
— Está bem, mas quando a tua mãe estiver melhor acho que devem ter a vossa própria casa.
Meriel não dava quaisquer sinais de melhorar. Margaret não ia visitá-la, alegava que isso a transtornava muito, mas William ia quase todas as noites e sentava-se junto da mãe enroscada na cama, na ausência cinzenta que é a depressão, e contava-lhe, no seu modo cauteloso, reservado e sério, como fora o seu dia e o que fizera. Mas ela não respondia nem se mexia para o olhar.
E quando Colin acabou de contar o que se passava com Meriel, falou-lhe de Sophie. E de Frances que andava a escrever livros, um misto de história e sociologia, que estavam a ter muito bom acolhimento. E de Rupert, do qual disse ser a melhor coisa que acontecera naquela casa. «Imagina, alguém deveras sensato, finalmente.»
Os dois conversaram pela tarde fora, enquanto a menina fazia encantadoras aparições nos braços de Marusha que ficava mais exultante a cada nova revoada de telenotícias sobre a total humilhação da velha inimiga da Polónia. Depois Frances chegou com os braços cheios de comida, como nos velhos tempos. Os três abriram a mesa para ficar com as dimensões iniciais, como se preparassem o palco para festivais antigos.
Enquanto Frances cozinhava, chegou William, precisamente quando os dois rapazes negros desciam a escada. Foram apresentados. «Esperto e Zebedee vão ficar aqui um tempo», disse Colin. Sem dizer nada, Frances começou a pôr a mesa para nove pessoas. Sophie viria juntar-se-lhes mais tarde.
Frances ocupou o seu lugar à cabeceira da mesa, com Colin no extremo oposto e um lugar a seu lado para Sophie, depois o lugar para Marusha e a seu lado a cadeira alta da bebé. Dez pessoas, se contassem com Célia. Rupert ficava num dos lados de Frances e William no outro. Sylvia e os dois rapazes ficavam no meio. Sylvia falou do grande jantar no Butler's Hotel e de todas as pessoas luxuosas presentes, algumas das quais em tempos se tinham sentado àquela mesa, e depois da noiva de Andrew, acrescentando sem rodeios que o casamento não poderia durar. Falava numa voz vazia, limitando-se a comunicar informação, sem nenhum do prazer da mexeriquice, das improváveis reviravoltas da vida.
Os rapazes não paravam de a olhar, para verem o que estava a sentir, pois a sua voz parecia determinada a não o desvendar: foi a atenção deles que alertou os outros para o facto de que deviam preocupar-se com Sylvia. Na verdade, ela sentia-se flutuar, algures, e não se tratava apenas de falta de sono. Estava cansada, sim, muito cansada, e tinha dificuldade em manter a sua atenção ali, mas sabia que tinha de o fazer porque os rapazes dependiam dela e ela era a única pessoa que podia compreender como aquilo era difícil para eles. Rupert fazia perguntas, como bom jornalista, porque sabia que ela precisava de ser mantida ali em baixo, como um papagaio de papel demasiado ansioso por subir: era sensível à angústia dela por causa da longa atenção que prestava a William, que sofria tanto e dependia dele, Rupert, para o compreender. E durante tudo aquilo a bebé balbuciava e palrava e lançava olhares aduladores a todos eles, incluindo os dois rapazes negros, agora que já se habituara a eles.
Sophie chegou impetuosamente, numa nuvem de perfume. Estava mais gorda e «mais Madame Bovary do que Dama das Camélias», como ela própria dizia. Vestia de branco elegante e volumoso e tinha o cabelo preso num carrapito. Lançou a Colin olhares apaixonadamente culpados até ele a beijar e dizer:
— Agora cala-te, Sophie. Esta noite não podes ser o centro das atenções.
— Que se passa contigo, Sylvia, pelo amor de Deus? — exclamou Sophie. — Pareces a morte em pessoa.
As palavras causaram um calafrio, mas Sophie não podia saber que o pai dos rapazes acabava de morrer e que as tardes de sábado deles havia meses que eram passadas em funerais de pessoas que tinham conhecido toda a vida.
— Acho que vou dormir um pouco — disse Sophie, e levantou-se da cadeira. — Sinto-me... — Beijou Frances. — Minha querida Frances, estar de novo aqui consigo, se soubesse... querida Sophie... — Sorriu vagamente a todos e depois pôs a mão trémula no ombro de Esperto e a seguir no de Zebedee. — Até logo. — Saiu, agarrando-se à ombreira da porta e depois à porta.
— Não se preocupem — disse Frances aos rapazes. — Nós olharemos por vocês. Só têm de nos dizer o que precisam, pois nós não compreendemos do modo como a Sylvia compreende.
Mas o olhar deles seguia Sylvia, e era fácil compreender que era tudo demasiado para eles. Queriam voltar para a cama, e voltaram, acompanhados por Marusha, com Célia ao colo. Depois Sophie seguiu-os: parecia que tencionava passar lá a noite.
Frances, Colin e Rupert olharam para William, sabendo o que aí vinha.
Ele era agora um jovem alto, esguio e louro, bonito, mas tinha a pele pálida esticada sobre o rosto e era frequente ter marcas de tensão em redor dos olhos. Amava o pai, estava sempre o mais perto dele que podia, mas Rupert dizia a Frances que não se atrevia a envolvê-lo nos braços, a abraçá-lo. William parecia não gostar. E era reservado, dizia Rupert, não partilhava os seus pensamentos. «Talvez seja melhor não os conhecermos», respondia Frances. Sentia William, que a consultava a respeito de pequenas dificuldades, como tomado por uma angústia controlada que ela não acreditava poder ser alcançada por um abraço ou um beijo. E ele trabalhava tanto, tinha de ter boas notas na escola, parecia estar sempre a debater-se com anjos invisíveis.
— Eles vão morar aqui?
— Parece que vão — respondeu Colin.
— Mas porquê?
— Então, meu velho, não sejas assim — disse-lhe o pai.
O sorriso de William para Colin, de quem só podiam deduzir que ele gostava, parecia um lamento, um pranto.
— Eles não têm família — respondeu Colin. — O pai acaba de morrer. — Teve medo de acrescentar de sida, por causa do terror que a palavra causava, apesar de nesta casa a sida ser uma coisa tão distante como a Peste Negra. — São órfãos. E muito pobres... Não creio que pessoas como nós possam compreender. E não andaram na escola, só receberam as lições que Sylvia lhes deu. — No espírito de todos apareceu brevemente a imagem de uma sala com carteiras, um quadro e um professor a falar.
— Mas porquê aqui? Por que temos de ser nós? — Esta reacção rotineira — Mas porquê eu? — só podia ser respondida com apelos às majestosas injustiças do universo.
— Alguém tem de os acolher — disse Frances.
— Além disso, a Sylvia estará aqui. Ela compreenderá o que deve fazer. Concordo que nós não estamos à altura.
— Mas como pode ela estar aqui? Onde ficará? Onde dormirá?
Se o espírito de Sylvia era uma mancha de pânico dada a impossibilidade de estar na Somália e em Londres ao mesmo tempo, estes três adultos encontravam-se num estado similar: William tinha razão.
— Havemos de encontrar uma maneira — disse Frances.
— E teremos de os ajudar — acrescentou Colin.
Isto significava, como William sabia muito bem: esperamos que os ajudes. O facto de serem mais novos do que ele tornava ainda mais provável que dependessem dele.
— Se eles não se derem bem aqui ir-se-ão embora?
— Podíamos enviá-los de volta — disse Colin. — Mas pelo que sei toda a gente da sua aldeia morreu de sida, ou vai morrer.
William empalideceu.
— Sida! Eles têm sida?
— Não. Nem podem ter, segundo Sylvia disse.
— Como é que ela sabe? Pronto, está bem, ela é médica, mas mesmo assim por que parece tão doente? Tem um aspecto horrível.
— Ela ficará boa. E os rapazes precisarão de explicações, primeiro, para porem as lições em dia, mas estou convencido de que conseguirão.
— Não podem chamar-se Esperto e Zebedee, pelo menos aqui. Serão mortos, com nomes como esses. Espero que não vão para a minha escola.
— Não lhes podemos, pura e simplesmente, tirar os verdadeiros nomes.
— Bem, eu não vou travar as suas batalhas por eles.
Disse que tinha de subir, para fazer os deveres de casa. Saiu: eles sabiam que antes dos deveres de casa brincaria um pouco com a bebé, se ela estivesse acordada. Adorava-a.
Sylvia não reapareceu. Tinha-se lançado para o seio do velho sofá vermelho, de braços abertos: adormeceu logo. Mergulhou profundamente no seu passado, em braços que a esperavam.
Rupert e Frances estavam a despir-se, no quarto, quando Colin apareceu para dizer que fora ver Sylvia, que dormia como se estivesse morta. Mais tarde, por volta das quatro da manhã, uma inquietação acordou Frances, que desceu e depois voltou para dizer a Rupert, que acordara quando ela se levantara, que Sylvia estava mergulhada num sono de morte. Preparava-se para se meter na cama, mas ouviu o que acabara de dizer e, retrospectivamente, o que Colin dissera.
— Não estou a gostar disto — disse. — Alguma coisa está errada. Rupert e Frances desceram e entraram na sala onde Sylvia estava,
de facto, mergulhada num sono de morte: estava morta.
Os rapazes choravam nas suas camas. O instinto de Frances, que era envolvê-los nos braços, foi contido pela mais antiga das inibições: os seus não eram os braços que eles queriam. À medida que o dia avançava e o choro não cessava, ela e Colin foram ao pequeno quarto e, ela com Esperto e ele com Zebedee, fizeram-nos sentar-se, chegaram-se a eles, envolveram-nos nos braços, embalaram-nos e disseram que deviam parar de chorar, para não ficarem doentes, deviam descer e tomar uma bebida quente que ninguém levaria a mal que estivessem tristes.
Os primeiros dias maus foram ultrapassados e depois o funeral, com Zebedee e Esperto em lugares proeminentes entre os enlutados. Foram feitas tentativas para telefonar para a Missão, mas uma voz que os rapazes não conheciam informou-os de que o Padre McGuire levara todas as suas coisas e partira e o novo director da escola ainda não chegara. Foram deixados recados. A Irmã Molly, a quem fora deixado um, ligou imediatamente e falou numa voz alta e clara, apesar de estar tão longe. Perguntou logo: «Estão a pensar no que fazer com os rapazes?» Estava convencida de que provavelmente poderia ser arranjado trabalho para eles na Velha Missão, a cuidar dos órfãos da sida. Quando o padre telefonou, a linha estava tão má que a sua preocupação por causa de Sylvia só intermitentemente se conseguia ouvir: «Pobre alma, matou-se a trabalhar.» E: «Se pudessem encontrar uma maneira de ficar com os rapazes seria o melhor. Isto aqui é uma tristeza.»
O desgosto dos rapazes era terrível, era desmesurado, estava a assustar os seus novos amigos, que admitiam que fora realmente tudo excessivo: no fim de contas, estas crianças — pois era isso que eles eram — tinham sido afastadas do que conheciam e depois lançadas num... Mas «choque cultural» estava longe de parecer apropriado, já que essa útil expressão pode descrever uma agradável deslocação sentida ao viajar de Londres para Paris. Não, não era possível imaginar os abismos do trauma que Esperto e Zebedee tinham sofrido, e por isso não havia maneira de identificar aqueles rostos que pareciam máscaras trágicas e aqueles olhos trágicos. Olhos acossados?
Havia algo de que os novos amigos não tinham qualquer concepção e não podiam ter compreendido: os rapazes sabiam que Sylvia morrera por causa da maldição de Joshua. Se ela ali estivesse para se rir deles e dizer: «Oh, como podem pensar tal disparate?», eles poderiam não acreditar nela, mas a culpa teria sido menor. Assim, sentiam-se esmagados pela culpa e não podiam suportá-la, e por isso, como todos nós fazemos com a pior e mais profunda dor, começaram a esquecer. No seu espírito mantinha-se claro cada minuto dos longos dias em que tinham esperado que Sylvia regressasse de Senga para os salvar, enquanto Rebecca morria e Joshua adiava a morte até ao regresso de Sylvia. A longa agonia de ansiedade: isso não esqueciam, nem aquele momento em que Sylvia reapareceu como um pequeno fantasma branco, para os abraçar e trazê-los consigo.
Depois disso, começava uma espécie de mancha, de névoa, a tenaz ossuda da mão de Joshua no pulso de Sylvia e as suas palavras assassinas, o avião assustador, a chegada a esta estranha casa, a morte de Sylvia... não, tudo isso se esbateu e em breve Sylvia tornara-se numa amigável presença protectora que recordavam ajoelhada na poeira a pôr talas numa perna, ou sentada no rebordo da varanda entre eles, a ensiná-los a ler.
Entretanto, Frances continuava a acordar com o estômago apertado de ansiedade e Colin também dizia que andava a dormir mal. Rupert dizia-lhes que o problema residia no facto de não se ter pensado o suficiente naquela decisão.
Frances, ao acordar com um sobressalto e um grito, viu-se amparada por Rupert.
— Vamos lá para baixo. Eu faço chá.
Quando chegaram à cozinha, Colin já estava à mesa, com uma garrafa de vinho à frente.
Do lado de fora da janela reinava a escuridão das quatro horas de uma noite de Inverno. Rupert correu as cortinas, sentou-se ao lado de Frances e passou-lhe o braço pelos ombros.
— Agora vocês dois têm de decidir. E seja o que for que decidam têm de pôr a outra opção totalmente fora do pensamento. Caso contrário, ficam ambos doentes.
— Está bem — disse Colin e, trémulo, estendeu a mão para a garrafa do vinho.
Rupert interveio:
— Olha, meu filho, porta-te como um bom tipo e não bebas mais. Frances sentiu a apreensão que uma mulher deve sentir quando o
seu homem, que não é o pai do seu filho, assume o papel de pai. Rupert falara como se fosse William quem ali estava sentado. Colin afastou a garrafa.
— Esta é uma porra de uma situação impossível.
— É, sim — concordou Frances. — No que nos estamos a meter? Já pensaram que estarei morta quando eles acabarem os estudos?
O braço de Rupert cerrou-lhe mais os ombros.
— Mas temos de ficar com eles — disse Colin, agressivo e lacrimoso, suplicante. — Se dois gatinhos rastejam para fora do balde onde estão a ser afogados, não os empurramos de novo lá para dentro. — Havia anos que Frances não via nem ouvia o Colin que estava a falar agora: Rupert não conhecera esse jovem apaixonado. — É uma coisa que simplesmente não se faz — continuou Colin, inclinando-se para a frente, com os olhos a procurar os da mãe e depois os de Rupert.
— Não se empurram de novo lá para dentro. — Irrompeu dele um uivo que Frances não ouvia há muito tempo. Deixou pender a cabeça para os braços, em cima da mesa. Rupert e Frances olharam-se em silêncio.
— Penso — disse Rupert — que só há uma maneira de decidirem.
— Sim — disse Colin, levantando a cabeça.
— Sim — repetiu Frances.
— Então isso está assente. Agora ponham a outra maneira para fora da cabeça. Já.
— Penso que uma casa dos anos 60 será sempre uma casa dos anos 60 — disse Colin. — Não, este não é o meu pequeno aperçu, é o da Sophie. Ela acha que é tudo encantador. Chamei-lhe a atenção para o facto de não ser ela que ia ter o trabalho. Ela respondeu que alinharia com tudo... com tudo. — Riu-se.
De novo na cama, Rupert disse:
— Não creio que pudesse suportar se tu morresses. Mas felizmente as mulheres vivem mais tempo do que os homens.
— E eu não posso imaginar ficar sem ti.
Estas duas pessoas da palavra dificilmente tinham, alguma vez, dito uma à outra mais do que este género de coisas. «Não nos saímos muito mal, pois não?» — era mais ou menos o limite. É preciso uma certa coragem para estar totalmente desfasado do seu tempo: um homem e uma mulher ousando amar-se tão completa-mente... enfim, não era a bem dizer coisa que se confessasse, mesmo um ao outro.
— Que conversa era aquela a respeito de gatinhos? — perguntou ele.
— Não faço ideia. Não nesta casa, e estou certa de que não na sua escola. As escolas progressistas não afogam gatinhos. Bem, pelo menos de modo que os seus alunos vejam.
— Onde quer que tenha acontecido, feriu fundo.
— E ele nunca o mencionou antes.
— Quando era rapaz, vi um bando de miúdos torturar um cão doente. Isso ensinou-me mais a respeito da natureza do mundo do que qualquer outra coisa, alguma vez.
As lições começaram. Rupert ensinou Matemática a Esperto e Zebedee: tirando a tabuada de multiplicar, eram como folhas em branco, segundo ele disse, mas aprendiam tão depressa que em breve estariam actualizados. Frances achou que as leituras deles tinham sido extraordinárias: a memória dos rapazes retinha passagens inteiras de Mowgli, Enid Blyton: O Triunfo dos Porcos e Hardy, mas não tinham ouvido falar de Shakespeare. Propôs-se preencher esta lacuna e eles já andavam a ler tudo quanto havia nas prateleiras da sala. Colin contribuiu com Geografia e História. O pequeno atlas de Sylvia prestara bons serviços e o conhecimento do mundo que os rapazes tinham era vasto, se não profundo. Quanto a História, não sabiam muito além do que tinham lido The Renaissance Popes, um livro da estante do Padre McGuire. Sophie levá-los-ia ao teatro. E depois, sem lho ter sido pedido, William começou a ensinar-lhes a partir de velhos manuais escolares e foi isso que realmente lhes fez bem.
William dizia que a aplicação deles o afligia: ele próprio tinha de se esforçar, mas comparado com eles... «Dir-se-ia que as suas vidas dependem disso», e acrescentou, fazendo a descoberta por si mesmo: «E suponho que sim, que as suas vidas dependem disso. No fim de contas, eu tenho sempre a possibilidade de ser...» «O quê?», indagaram os adultos, aproveitando esta oportunidade para vislumbrarem o que se passava realmente na sua cabeça. «Jardineiro. Podia ser jardineiro em Kew», respondeu William, gravemente. «Sim, era isso que realmente gostava de ser. Ou podia ser como Thoreau e viver sozinho, perto de um lago, e escrever acerca da natureza.»
Sylvia morrera intestada e, por isso, disseram os advogados, o seu dinheiro iria para a mãe, como parente chegada. E era uma boa quantia, muito capaz de financiar a educação dos rapazes. Foi feito um apelo a Andrew, como antigo amigo de Phyllida e, ao passar por Londres, ele foi visitá-la e travaram a seguinte conversa:
— A Sylvia teria querido que o dinheiro fosse para educar os dois rapazes africanos que parece ter adoptado.
— Ah, sim, os rapazes negros. Ouvi falar deles.
— Estou aqui para lhe pedir formalmente que prescinda desse dinheiro, porque temos a certeza de que era isso que ela teria desejado.
— Não me lembro de ela me ter dito alguma coisa a esse respeito.
— Mas Phyllida, como poderia ter dito?
Phyllida sacudiu levemente a cabeça, com um pequeno sorriso triunfante e, também, divertido, como alguém a aplaudir os caprichos do Destino depois de ter ganho uma fortuna nas apostas de corridas de cavalos, por exemplo.
— Quem achou, guardou. E, de qualquer maneira, eu mereço alguma coisa agradável; é assim que vejo o assunto.
Houve uma discussão de família.
Rupert, apesar de ser editor sénior no seu jornal, e ganhar adequadamente, sabia que mesmo quando acabasse de pagar as propinas da escola de Margaret (Frances pagava agora as de William), teria de manter Meriel.
Os romances inteligentes de Colin, descritos por Rose Trimble como «romances elitistas para as classes intelectualóides», não dariam para manter mais do que a filha e Sophie, que como actriz estava frequentemente a descansar. Com ele gastava tão pouco que mal contava.
Frances encontrou-se numa situação que lhe era familiar. Tinham-lhe oferecido um emprego para ajudar a dirigir um pequeno teatro experimental: o desejo do seu coração, muito divertimento, mas pouco dinheiro. Os seus livros sérios e fiáveis, comprados por todas as livrarias do país, rendiam bom dinheiro. Teria de dizer não ao teatro e escrever livros. Disse que se responsabilizaria por Esperto e Andrew faria o mesmo por Zebedee.
Andrew tinha intenção de constituir uma família, mas ganhava tão bem que podia arcar com as despesas de Zebedee. As coisas não correram como ele esperava. O casamento, já com problemas, dissolver-se-ia em breve, ao fim de não muito mais do que um ano, apesar de Mona estar grávida. Seguir-se-iam anos de batalhas judiciais, mas quando Andrew conseguiu arrancar tempo com a sua filha à ciosa mãe, a menina passava a maior parte do tempo com a sua prima Célia, partilhando a au pair do momento e a atenção do papá de Célia. Colin, como Sophie lamuriava com frequência, era um pai maravilhoso enquanto ela era uma péssima mãe. («Deixa lá», balbuciava Célia quando Sophie dizia isso, «tu és uma mamãzinha tão bonita que nós não nos importamos.»)
Onde ia meter-se toda a gente?
Esperto ficaria com o antigo quarto de Andrew e Zebedee com o de Colin. Este servir-se-ia da sala para trabalhar. William estava num quarto no piso do seu pai e de Frances. A aupair usava o antigo quarto de Sylvia.
E o apartamento da cave? Alguém lá estava: Johnny.
Frances ia a caminho de uma paragem de autocarro quando ouvira passos apressados atrás dela e uma voz chamar: «Frances, Frances Lennox.» Voltara-se e vira uma mulher cujo cabelo branco esvoaçava enquanto ela se esforçava por manter um lenço no seu lugar. Frances não a conhecia... espera, conhecia, pouco, mas conhecia: era a camarada Jinny dos velhos tempos, e não parava de falar:
— Oh, eu não tinha a certeza, mas é você... bem estamos todos a ficar velhos, não estamos, meu Deus, tive simplesmente de... trata-se do seu marido, compreende, estou muito preocupada com ele.
— Deixei o meu marido muito bem, não há ainda cinco minutos.
— Meu Deus, meu Deus, como sou tola, referia-me ao Johnny, ao camarada Johnny. Se vocês dois soubessem o que significaram para mim quando eu era jovem, uma inspiração tão grande, os camaradas Johnny e Frances Lennox...
— Olhe, peço desculpa, mas...
— Espero não estar a intrometer-me...
— Diga-me apenas do que se trata.
— Ele está tão velho agora, pobrezinho...
— É da minha idade.
— Sim, mas algumas pessoas envelhecem melhor do que outras. Eu achei apenas que devia saber — disse a outra, afastando-se com assustados, mas agressivos, acenos da mão.
Frances contou a Colin, o qual disse que o que acontecia ao pai não o aquecia nem arrefecia, e Frances disse que diabos a levassem se ia apanhar os cacos da vida de Johnny. Restava Andrew, que passou por lá uma tarde, no regresso de Roma. Encontrou Johnny num quarto muito agradável, em Highgate, em casa de uma mulher que descreveu como o sal da terra. Era um velho frágil, com tufos de cabelo prateado à roda de uma calva brilhante e branca, patético e vulnerável. Ficou satisfeito por ver Andrew, mas fez questão de não o demonstrar.
— Senta-te — disse. — Tenho a certeza de que a Irmã Meg fará um chá para todos.
Mas Andrew permaneceu de pé e disse:
— Vim porque soubemos que está a passar tempos difíceis.
— O que não te acontece a ti, segundo me consta.
— Agrada-me confirmar que o que lhe consta é verdade.
Não seriam muitas as pessoas do mundo que considerariam tempos difíceis ao que calhara em sorte a Johnny, mas no fim de contas ele devia ter passado dois terços da sua vida em hotéis de luxo para camaradas na União Soviética, na Polónia, na China, na Checoslováquia, na Jugoslávia, no Chile e em Angola e Cuba — onde quer que tivesse havido uma conferência de camaradas, Johnny estivera: o mundo fora o seu barril de ostras, o seu pote de mel, o seu boião sempre aberto de caviar Beluga, e ei-lo agora ali num quarto — um quarto decente, mas um quarto. A viver da sua pensão de velhice.
— E, é claro, o passe da terceira idade ajuda.
— Finalmente um bom membro do proletariado — disse Andrew, sorrindo benevolamente, do conforto das suas benesses, ao seu desprovido pai.
— Ouvi dizer que casaste. Começava a pensar que eras maricas.
— Quem sabe, hoje em dia? Mas não se importe com essas bagatelas. Nós pensámos que talvez quisesse ir viver no apartamento da cave...
— É a minha casa, de qualquer modo; por isso, não fales como se me estivessem a fazer um favor.
Mas eram duas boas divisões, e com tudo pago, e ele estava satisfeito.
Colin desceu para o ajudar a instalar-se e disse que não esperasse que Frances o servisse.
— É novidade para mim que ela alguma vez o tenha feito. É uma má dona de casa.
Mas Johnny estava longe de se encontrar dependente da sua família para companhia. As visitas levavam-lhe presentes e flores, como se fossem a um santuário, e Johnny estava em vias de se tornar um homem santo, seguidor de um homem santo indiano superior, e era agora frequente ouvi-lo comentar: «Sim, em tempos fui um bocado vermelho.» Sentava-se amparado por almofadas na sua cama, de pernas cruzadas, e o seu antigo gesto, de palmas estendidas para a frente como se se oferecesse a um público, condizia muito bem com a sua novapersona. Tinha discípulos e ensinava meditação e o Quádruplo Caminho Sagrado. Em troca, mantinham-lhe as duas divisões limpas e cozinhavam-lhe pratos em que as lentilhas representavam um papel principal.
Mas este era o seu novo eu, talvez pudéssemos descrevê-lo como um papef, numa peça onde Irmãs e Irmãos e Santas Mães substituíam os camaradas. O seu eu antigo ressurgia às vezes, quando outros visitantes, velhos camaradas, apareciam para recordar, como se o grande fracasso da União Soviética nunca tivesse acontecido, como se aquele Império ainda estivesse em marcha. Velhos e velhas, cujas vidas tinham sido iluminadas pelo grande sonho, sentavam-se a beber vinho numa atmosfera que não diferia daqueles antigos serões combativos a não ser numa coisa: agora não fumavam ao passo que em tempos teria sido difícil ver de um extremo ao outro de uma sala por causa do fumo que passara pelos pulmões deles.
Tarde, antes de os visitantes partirem, Johnny baixava a voz e erguia o copo, e propunha um brinde: «A Ele.»
E, com terna admiração, bebiam àquele que fora, possivelmente, o mais cruel assassino que jamais existira.
Diz-se que durante décadas depois da morte de Napoleão velhos soldados se encontravam em tabernas e bares e, secretamente, nos tugúrios uns dos outros, erguiam os seus copos Ao Outro: eram os poucos sobreviventes da Grand Armée (cujos feitos heróicos não tinham conseguido absolutamente nada, excepto a destruição de uma geração), homens estropiados, cuja saúde se perdera e que tinham sobrevivido a indizíveis sofrimentos. Mas onde está a surpresa, se é sempre O Sonho que conta?
Johnny tinha outra visita, Célia, que descia pela mão de Marusha, ou Bertha, ou Chantal e corria para Johnny.
— Pobrezinho Johnny.
— Mas é o teu avô, não podes tratá-lo assim.
A angelical criança não fazia caso, acariciava a velha cabeça, beijava-a e entoava a sua pequena canção: «Este é o meu avozinho, este é o meu pobrezinho Johnny.»
A união de Colin e Sophie gerara um estranho ser: toda a gente o sentia. Os rapazes crescidos, William, Esperto e Zebedee, brincavam delicadamente com ela e, muitas vezes, Sophie também, na refeição da noite que podia prolongar-se indefinidamente, e a que a criança vinha juntar-se a correr, esquivando-se à hora de se deitar. Queria estar perto deles, mas não que lhe pegassem, a segurassem ou sentassem num joelho. Estava profundamente embrenhada no seu jogo, ou brincadeira, falando baixinho consigo mesma, confidencialmente, com vozes que aprenderam a reconhecer. «Célia está aqui, está sim, esta é a Célia e ali está a minha Frances, e ali está o meu Esperto...» A menina pequenina, no seu vestidinho colorido, a tagarelar, mas para consigo, talvez com um pedaço de pano, ou uma flor, ou um brinquedo para fazer as vezes de alguma pessoa ou personagem ou imaginário companheiro de brincadeira — era tão perfeitamente bonita que os emudecia, os deixava a olhá-la, encantados, temerosos... «E ali está o meu William...», estendia a mão para lhe tocar, para ter a certeza da presença dele, mas sem o olhar, olhando talvez para a flor ou para o brinquedo, «...e o meu Zebedee...». Colin levantava-se, corpulento e desajeitado, tão grosseiro e pesado ao lado dela, e ficava a olhá-la. «E ali... o meu Colin, sim, é o meu papá...» Colin, com as lágrimas a correr, curvava-se para ela numa espécie de reverência de todo o seu ser, estendendo as mãos com um gemido, «Oh, Frances, oh Sophie, alguma vez viram uma coisa tão...»
Mas a menina não queria ser agarrada e segurada e girava sobre ela própria, cantando para si mesma e só para si mesma. «Sim, meu Colin, sim, minha Sophie, sim, e há o pobrezinho do meu Johnny...»
Doris Lessing
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