Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O Soro da Vida
A pesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.
Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.
Será que os dois agentes enviados a Tolimon obedecem a estas instruções, no momento em que dão início à busca d’o Soro da Vida...?
Enquanto o cruzador leve deixava o planeta Hellgate, levando a bordo, como prisioneiro, o solitário do tempo, Atlan, dirigindo-se ao planeta Terra, situado a 12.348 anos-luz, Perry Rhodan tomou lugar diante da memória do hipercomunicador. Só agora teve tempo para deixar desfilar diante de si as mensagens dos últimos meses, expedidas pelos agentes que se encontravam no planeta Tolimon.
Por enquanto, notícias de terceira categoria lhe feriam o ouvido. Rhodan mal prestava atenção. Lançou os olhos para fora da abóbada de aço, que era o único lugar daquele planeta supersaturado de calor em que a vida humana podia manter-se, e contemplou o deserto que tremeluzia sob os raios amarelo-pálido do sol ZW-2536-K-957.
Rhodan escolhera Hellgate, o único astro que gravitava em torno desse sol, e que constituía um mundo inútil e sem vida, para servir de base secreta situada nos limites extremos do Império de Árcon, a fim de ficar o mais próximo possível do planeta Tolimon. A oitenta e um anos-luz de Hellgate esse planeta gravitava, como segundo de um grupo de seis mundos, em torno da estrela Revnur, um sol do tipo G.
Há um ano — mais precisamente, em maio de 2.039 — Perry Rhodan tivera pela primeira vez sua atenção despertada para Tolimon. Estava interessado mais do que nunca em saber o que estariam fazendo os aras, os mais geniais dentre os médicos galácticos. E Tolimon era um mundo dos aras. Talvez ocupasse uma posição sem par no seio da imensa Galáxia: era formado por um único zoológico.
Rhodan chegou a uma conclusão lógica: médicos galácticos mais zoológico, igual a pesquisa. A conclusão levou-o a empregar seus agentes em Tolimon. E a essa hora o telepata John Marshall e a mutante Laury Marten encontravam-se há oito meses nesse mundo dos aras, empenhados na solução de um problema específico. E Rhodan deixava desfilar diante de si justamente os comunicados que os agentes haviam enviado a intervalos irregulares para Hellgate por meio do hipercomunicador.
O dispositivo de memória estava reproduzindo uma mensagem transmitida três semanas atrás. A voz de John Marshall era inconfundível. Apenas disse três frases. E cada uma dessas frases continha uma informação negativa. John Marshall e Laury Marten não estavam conseguindo nada em Tolimon.
Depois disso, a memória do aparelho emudeceu.
Perry Rhodan desligou. Para ele, o longo tempo de espera começaria. Acontece que não dispunha de tempo para esperar muito.
O que estava em jogo era a vida de Thora, sua esposa, e de Crest. Os dois estavam envelhecendo de repente. A arte médica, que até então conseguira deter o processo, começava a revelar-se ineficaz. Um novo soro, produzido na Terra, também não conseguiu retardar a decadência biológica. E no planeta Peregrino, o mundo da vida eterna, aquilo recusava a ducha celular aos dois arcônidas.
O fim natural parecia aproximar-se inexoravelmente, quando seus agentes chegaram à Terra com boatos que falavam num certo planeta Tolimon, um mundo pertencente aos médicos galácticos. Segundo esses boatos, há séculos alguns seres humanos estariam sendo conservados num zoológico dos aras existente em Tolimon, sem apresentar qualquer sinal de envelhecimento.
Será que a notícia não passava de boato? Ou seria algo mais que isso?
O amor que sentia pela esposa e por seu amigo Crest fez com que recorresse aos mutantes John Marshall e Laury Marten para encontrar a resposta a essa pergunta, enviando-os a Tolimon.
Será que os médicos galácticos, os aras, haviam descoberto um soro prolongador da vida, cuja eficácia era muitíssimo superior ao dos arcônidas?
Se é que esse soro existia, Perry Rhodan tinha que apoderar-se dele; era o mínimo que poderia fazer por Thora e Crest. Por isso, encontrava-se em Hellgate, sob a proteção da abóbada de aço, aguardando que, depois de tanto tempo, John Marshall e Laury Marten finalmente conseguissem aproximar-se do objetivo.
O saltador Ixt saiu de seu luxuoso escritório, situado na Rua do Grande Mo, no centro recém-construído da cidade de Trulan, e entrou discretamente no salão amplo e moderno destinado às vendas.
Um ara de ombros largos regateava em voz alta com dois vendedores.
— Isso não é nenhum preço; é uma extorsão. Em qualquer lugar consigo os gegerutavis pela metade. Amigos, estou disposto a pagar cento e oitenta. De acordo?
— Cento e oitenta por peça! — disse Futgris, o melhor vendedor de Ixt, com um sorriso amável para o ara enfurecido.
— Cento e oitenta o casal — fungou este. — Em Aralon estes bichos são vendidos a quarenta o casal.
Futgris sorriu.
— É verdade. Compramos os gegerutavis em Aralon. Acontece que de Aralon para Tolimon temos as despesas de transporte: são cerca de dez mil anos-luz.
— É o cúmulo da sem-vergonhice — disse o ara enfurecido, batendo com o punho numa gaiola. Um dos hiobargulus, que dormiam nesta, assustou-se e fez um barulho tremendo.
No mesmo instante, o ara deu um enorme salto, fitou a pequena gaiola da qual vinha o barulho infernal e, depois que o hiobargulu se tinha acalmado, gaguejou:
— Isso é um truque para levar seus fregueses a pagar os preços extorsivos pedidos pelo senhor?
Futgris respondeu com o maior sangue-frio:
— Vendemos os hiobargulus muito barato: apenas vinte por peça. Para o casal, fazemos o preço de trinta e cinco. Dão cria oito vezes por ano; são seis filhotes de cada vez.
O ara não deixava de ter seu senso de humor. Subitamente um largo sorriso cobriu seu rosto.
— Pode embrulhar um casal, desde que garanta que estes bichos fazem este barulho infernal toda vez que são assustados.
— Ora — apressou-se Futgris em asseverar. — Não há problema. Não sabe que uma das características destas criaturas é a de que só não fazem barulho enquanto estão dormindo? No momento, colocamos estes bichos num estado de profunda sonolência; por isso estão quietos. Permite que pergunte qual é a experiência que pretende realizar com os hiobargulus?
O ara sorriu e esfregou as mãos.
— Que experiência, que nada! — exclamou. — Trata-se de presente. Minha sogra faz anos amanhã. Em vez de um casal de gegerutavis cantores eu lhe dou estas crias do inferno. Será que o senhor poderia pôr os animais para dormir, de tal forma que só comecem a fazer barulho amanhã ao meio-dia? Será muito divertido!
Futgris teve o atrevimento de perguntar:
— Será que o senhor não está exagerando com a senhora sua sogra?
O ara logo desanimou. Acenou gravemente com a cabeça e disse em tom deprimido:
— Talvez o senhor tenha razão. Embrulhe também um casal de gegerutavis, para qualquer emergência.
Mas resolveu experimentar de novo. Bateu com o punho sobre a gaiola e, mais uma vez, ouviu-se o barulho infernal.
Afetado visivelmente pela nova orgia de sons, o homem atreveu-se a olhar para dentro da gaiola. Um animalzinho azul e peludo, de cerca de dez centímetros de comprimento, com os olhos azuis superdimensionados e uma pelanca bamboleante no pescoço, estava agachado num canto, apoiado sobre três barbatanas, e fitava-o com os olhos sonolentos. Outro animalzinho dormia sob o efeito dos narcóticos, com a cabeça enfiada na pelanca.
— O que é isso? — gritou a voz potente do ara, que lançou um olhar desconfiado para Futgris e voltou a bater na gaiola. — Não venha me dizer que um bichinho como este faz um ruído tão infernal...
O barulho recomeçou.
O homem ainda estava meio surdo quando saiu da grande casa de animais de Ixt, carregando seu mini-zôo.
Todos os vendedores seguiram-no com os olhos, inclusive Ixt, que se mantivera discretamente nos fundos. Não havia nada em seu rosto que revelasse a enorme preocupação que o afligia. Não havia nenhum sinal que traísse o fato de que não era um saltador, que desse a perceber que seu aspecto exterior era apenas um excelente disfarce. Quando atravessou a grande sala de exposições e vendas para voltar ao seu luxuoso escritório, cumprimentou os empregados que se encontravam à direita e à esquerda, conforme costumava fazer todas as manhãs.
Os pensamentos de Ixt estavam longe dali. Pensava no ara que acabara de comprar um casal de hiobargulus e um casal dos caríssimos gegerutavis com o dinheiro do governo.
Ixt lia todos os pensamentos do ara, que vivia maldizendo a tarefa absurda de vigiar esse saltador, só porque os dados sobre o lugar do nascimento e o clã por ele fornecidos apresentavam alguns pontos obscuros, que, apesar de todas as indagações, não puderam ser esclarecidos.
Depois de ter fechado a porta atrás de si, Ixt resmungou:
— Parece que na Terra alguém cometeu um erro.
Teria que tomar suas providências até a manhã do dia seguinte. Achou que seria muito arriscado usar o sistema de comunicações da cidade de Trulan para entrar em contato com Rohun, um comandante dos saltadores.
Dali a dez minutos, ao retirar-se da casa, disse de passagem a Futgris:
— Só voltarei à tarde. Represente-me condignamente.
— Sim senhor — asseverou o vendedor com os olhos radiantes de alegria. Nunca tivera um chefe como Ixt. Sentia verdadeiro prazer em trabalhar na firma.
Depois de ter dado dez passos na rua, John Marshall já se esquecera de que era dono de uma grande casa de animais, que se encontrava entre as mais sofisticadas de Trulan.
Naquele momento, só tinha um problema: chegar ao esconderijo, no bairro dos cortiços, sem ser percebido.
— Arga — disse Gege Moge em tom contrariado, apontando nervosamente para o ser estendido sobre a mesa estofada. — Ainda não percebeu que mais uma vez nos encontramos diante de um choque anafilático? Quantas vezes ainda terei de lhe dizer que, no estágio das experiências preliminares, estas reações violentas não devem surgir em nenhuma hipótese? Agora corremos o risco de perder todo o trabalho das experiências preliminares. Mande levar o binn imediatamente ao setor de dissecação. A pesquisa terá de revelar por que esse ser é supersensível ao próprio soro. Por que o soro U-1f54, extraído do binn, não pode ser empregado nas categorias de inteligência situadas abaixo do grupo C, enquanto pode ser usado sem receio e com os melhores resultados nos grupos B e F? Avise o setor de dissecação de que preciso do resultado amanhã de manhã. Vamos, providencie logo!
O médico ara seguiu a estudante arcônida Arga Slim com um olhar contrariado. Depois disso, fitou o binn. Tratava-se de um ser que nenhum homem seria capaz de classificar. Tratava-se de um ser situado entre os reinos animal e vegetal; absorvia o ar à maneira das plantas, mas no que dizia respeito à comida e à bebida apresentava traços animais inconfundíveis. Apesar disso, o binn não era nem planta nem animal, mas um ser dotado de inteligência, muito embora esta fosse bastante limitada, situando-o na categoria do quociente C.
Gege Moge contemplou com olhos de cientista o cadáver chato como uma folha, dotado de cinco membros, que serviam tanto à locomoção quanto à apreensão de objetos e ao trabalho. O binn tinha menos de um metro de altura e pesava cerca de quarenta quilos. A cabeça em forma de caule de flor fechara as dobras que escondiam os órgãos dos sentidos. Não se via absolutamente nada da boca, da abertura destinada ao sentido de orientação ou dos olhos. A criatura de sangue quente estava estendida sobre o leito duro, fria e enrijecida; morrera do soro produzido por seu próprio corpo.
— Coitado! — disse o cientista ara com certa emoção. — Já o conheço há mais de trezentos anos, e de repente sua vida termina de uma hora para outra. É uma pena, binn. Sempre gostei de trabalhar com você.
Saiu da sala e, no corredor, voltou a encontrar-se com a estudante arcônida Arga Slim. Dirigiu-se a ela.
— Vá ao zoológico ainda hoje e escolha dois dos novos binns. Preciso deles para amanhã de manhã.
— Não tenho permissão para entrar na parte reservada do zoológico, Moge — ponderou a estudante.
Seus lindos olhos brilhantes fitaram-no com uma expressão de expectativa.
Enquanto se afastava, o médico ara respondeu:
— Providenciarei para que a administração lhe conceda uma permissão perpétua. De qualquer maneira, dirija-se à administração antes de ir ao zoológico, para verificar se está tudo em ordem.
“O homem não está mentindo”, pensou a estudante de Árcon. “Realmente diz apenas o que pensa. Finalmente estou em condições de comunicar um pequeno êxito a John Marshall.”
Laury Marten, disfarçada numa estudante arcônida, sabia ler os pensamentos dos outros, tal qual John Marshall. Pensativa, caminhou em direção ao elevador antigravitacional, que a levou ao pavimento em que residia há vários meses.
Seus pensamentos já estavam formulando o texto do comunicado que pretendia transmitir a John Marshall.
O comandante dos saltadores, Rohun, nunca poderia trair John Marshall e Laury Marten. Tinha-se relacionado muito profundamente com os agentes de Perry Rhodan para que lhe fosse possível recuar. E, no fundo, não era o tipo do traidor; Marshall controlara muitas vezes seus pensamentos e nunca encontrara motivo para desconfianças.
Agora estava sentado diante dele. Quando o saltador estava insistindo para que Marshall abandonasse seu negócio de animais — em vez de procurar ocultar-se nos gigantescos cortiços de Trulan — o rosto do chefe dos mutantes, subitamente assumiu uma expressão rígida, que o mercador galáctico já observara mais de uma vez.
John Marshall acabara de transformar-se num receptor telepático.
Laury Marten, filha de Ralf Marten e Anne Sloane, estava transmitindo seu primeiro êxito de maior importância.
— Ixt — disse Rohun, inclinando-se para a frente — o senhor ainda me ouve?
Marshall fez um ligeiro gesto de impaciência. Rohun compreendeu que deveria ter calma e voltou a reclinar-se.
Concentrado ao extremo, com os olhos semicerrados e sem fazer o menor movimento, Marshall mantinha-se em atitude rígida. A seguir transmitiu a Laury Marten, por via telepática, a ordem de, durante sua visita ao zoológico, não deixar de certificar-se se ali realmente eram mantidos homens terranos atrás de grades de radiações.
— Procure descobrir a nacionalidade, o ano do nascimento e o sexo, Laury Marten. Recorra à desintegração sempre que isso se torne necessário. Em hipótese alguma, deixe de estabelecer contato com eles. Existem vários relatórios de nossos agentes, segundo os quais no zoológico são mantidos homens. Laury, a senhora tem de descobri-los. Entendido?
— Entendido — foi o impulso mental de. Laury Marten que ele captou. Após isso, o contato entre os dois humanos foi interrompido.
John Marshall parecia um homem despertando de um leve cochilo. Atirou a cabeça para trás, abriu os olhos e descontraiu-se.
Retomou o fio da palestra no mesmo ponto em que interrompera o mercador galáctico.
— Não pretendo desistir do comércio de animais, Rohun. Enquanto o serviço secreto dos aras realiza investigações, ainda não existe um perigo concreto. Apenas preciso saber se numa emergência poderei contar com seu auxílio. Foi por isso que resolvi procurá-lo. O que me diz?
Marshall controlou automaticamente os pensamentos do comandante dos saltadores. Rohun aborrecera-se com a pergunta de seu interlocutor.
— Não tenho nada a dizer — resmungou. — Não arrisquei o pescoço juntamente com meu clã? Assim que der o alarma, meus agentes mais capazes serão colocados em campo para tirá-lo do aperto. Se for necessário, arriscarei até minha nave.
Mais uma vez Marshall fez um movimento brusco com a cabeça. Por um instante seus olhos refletiram a preocupação, mas logo a máscara apática dos saltadores voltou a surgir.
— Rohun — disse — os serviços de defesa dos aras não dormem. Daqui a pouco o senhor deverá receber uma visita. O mesmo ara que apareceu na minha firma hoje de manhã já se encontra na nave e está a caminho de seu camarote. Existe algum lugar em que possa esconder-me?
O mercador, homem impetuoso e calculista, soltou alguns sons desconexos. Já tivera várias oportunidades de constatar que Marshall possuía um tipo de sexto sentido para o perigo. Mas o fato de que esse sentido lhe dava a capacidade de perceber nitidamente acontecimentos futuros, constituía novidade para ele.
— Saia por aqui! — exclamou Rohun em tom exaltado, colocando-se junto a uma porta estreita.
— Não. Prefiro ficar no seu camarote. O ara não sabe que me encontro a bordo. Veja logo onde posso esconder-me. Rápido!
Rohun estava bastante desconfiado. Tal qual todos os mercadores galácticos, não dava muito valor às percepções extra-sensoriais, e aquilo que Marshall lhe estava oferecendo era exatamente uma percepção desse tipo. Mas acabou cedendo diante do olhar hipnotizante do outro, não voluntariamente, mas com certa relutância.
— Não torne o homem desconfiado — preveniu Marshall. — Ele não fará muitas perguntas.
Com estas palavras, Marshall estirou-se de frente e enfiou-se embaixo do leito de Rohun, que o encobria completamente.
Pouco depois um membro do clã entrou no camarote do mercador galáctico e perguntou-lhe se concordava em receber Huxul, funcionário do Serviço de Vigilância de Estrangeiros.
— Não tenho outra alternativa — respondeu Rohun.
Huxul, o ara que comprara um casal de gegerutavis e um de hiobargulus na firma de Ixt, entrou no camarote.
— O senhor é o comandante dos saltadores, Rohun? Se for, eu lhe digo que não acredito nessa mentira do defeito do transmissor audiovisual. Digo-lhe mais...
Embora o mercador não se sentisse satisfeito com a visita do funcionário do serviço secreto dos aras, não conhecia o medo e nunca toleraria um atrevimento desse tipo.
Interrompeu o visitante em tom áspero:
— Acredite no que quiser! Se não estiver disposto a falar em tom civilizado, eu o expulso da nave. Faça o favor de sentar ali.
Ofereceu a Huxul a poltrona em que John Marshall estivera sentado há pouco.
Mal Huxul acomodou-se, perguntou com um sorriso matreiro:
— Onde está a pessoa que esteve sentada nesta poltrona há poucos instantes?
Rohun não pestanejou.
— Huxul, não sou um ara. Sou um mercador galáctico. Minha nave é um mundo, por si. O comandante é a única pessoa que faz perguntas aqui. O comandante sou eu, mas nunca me daria na cabeça formular uma pergunta idiota e estúpida como a sua.
— O senhor interpretou mal as minhas palavras — respondeu Huxul apressadamente e com uma amabilidade desconcertante.
Transformara-se de uma hora para outra: de repente, apresentava-se como um homem cortês, amável e pouco interessado no seu trabalho. Rohun ficou surpreso.
Nem desconfiava da existência do projetor mental de John Marshall, que irradiava toda sua potência sobre o agente dos aras, sugestionando-o para que considerasse sua missão como cumprida e transformasse o tempo restante de sua permanência na nave numa palestra amável.
A modificação começou a assustar Rohun. De repente, John Marshall ouviu que o comandante dos saltadores se tornava enérgico.
— Huxul, diga logo por que veio até aqui! Qual é a suspeita que pesa sobre mim?
No mesmo instante, Marshall aliviou a pressão sugestiva que irradiava sobre o ara. O homem do serviço secreto não desconfiou de nada quando disse toda a verdade. Muito interessado e com a mente tensa, Rohun prestava atenção às suas palavras. Finalmente reclinou-se confortavelmente na poltrona, riu gostosamente e respondeu:
— Vejo que sua visita não é nada amigável, Huxul. Sim, estou lembrado do tal do Ixt. É um homem inteligente, um perito na área da zoologia. Aliás, a zoologia também é um hobby meu. É por isso que consigo lembrar-me de Ixt. Se não me engano, tomou a nave no terceiro planeta do sol J5457-K1, e veio a Tolimon em vôo direto. Meu caro Huxul, nós, os mercadores galácticos, aproveitamos qualquer negócio que aparece e muitas vezes transformamos nossas naves em veículos turísticos, para levar os passageiros de um mundo para outro, mediante uma paga adequada, evidentemente. Mas essa história já é bastante antiga. O que é que eu tenho a ver com Ixt?
John Marshall, no seu esconderijo, obrigou o agente dos aras a mais uma vez dizer a verdade. Huxul nem se deu conta de que com isso estava adotando um comportamento inadmissível para um agente secreto. Aludiu ao controle rotineiro exercido pelo cérebro positrônico instalado em Tolimon, e disse que esse aparelho infalível, ao examinar os dados relativos a Ixt, descobrira alguns erros.
— E desde ontem, isto é, a partir de ontem, tenho de ocupar-me com essas ninharias — disse Huxul, concluindo suas explicações. — Estou muito mais interessado em descobrir quem, apesar do controle dos robôs, conseguiu roubar na fábrica de soro G-F 45 o processo mais recente de conservação do soro imunizador X-1076. Nunca houve um roubo como este, Rohun. E tive que desistir de uma tarefa dessas, para andar espionando o negociante de animais Ixt. É claro que o senhor não me pode dar qualquer informação sobre ele, não é?
Com o rosto mais sincero deste mundo, Rohun respondeu:
— Como poderia ter informações sobre ele?
Com o maior prazer deu a mão a Huxul, que se despediu, e sentiu um prazer ainda maior quando viu o homem do serviço secreto dos aras retirar-se.
Marshall e Rohun voltaram a ficar sentados frente a frente.
— Gostaria de comprar os dados sobre o processo de conservação — disse Marshall.
Rohun sacudiu a cabeça.
— Por estranho que possa parecer, desta vez nem eu nem meus agentes temos qualquer coisa a ver com isso. Mas acho que sei quem arranjou isso. Quer que entre em contato com o outro clã, por ordem e conta do senhor? Quanto está disposto a pagar pelo processo?
— Não dou mais de quinze mil — respondeu Marshall. — Quando poderei saber se o outro grupo está disposto a fazer o negócio?
— Amanhã — disse Rohun.
— Está bem — disse Marshall. — Amanha de manhã precisarei de um sósia de primeira linha. Para isso arranjarei uma máscara. O senhor dispõe de três fabricantes de máscaras. Avise seus homens para que reproduzam meu aspecto exterior no objeto que lhes será apresentado, de tal forma que eu mesmo fique sem saber quem é o verdadeiro Ixt.
— Trata-se de alguma missão perigosa? — perguntou Rohun com um triste pressentimento. Aos poucos a iniciativa de Ixt começava a amedrontá-lo.
— Amanhã de manhã Huxul voltará a aparecer na minha casa de animais para restituir o casal de hiobargulus e, ao mesmo tempo, tentar gravar com sua gaiola meu modelo de vibrações cerebrais.
Rohun levantou-se de um salto. De repente aquele homem encanecido, de quase dois metros de altura, sentiu medo. Sacudiu a cabeça, num gesto de recusa.
— Por que pronunciou a palavra gaiola com tamanha ênfase, Ixt?
— Porque Huxul aparecerá com uma gaiola especial, que não permitirá que o berreiro infernal dos hiobargulus chegue ao exterior. Mas na realidade, a mesma conterá um aparelho destinado ao registro de vibrações cerebrais.
Os olhos de Rohun iluminaram-se.
— O que acontecerá depois, Ixt?
John Marshall sorriu.
— Quando estiver sentado diante de sua mesa de trabalho, Huxul ficará dando tratos à bola para descobrir o motivo por que não captou meu modelo de vibrações cerebrais. E, para escapar a outra repreensão de seu chefe, inventará um relatório que não passará de uma grande fraude.
— O senhor consegue enxergar o futuro? — perguntou Rohun em tom desconfiado. — Ixt, à medida que o tempo passa o senhor me assusta cada vez mais. Se me lembro de como Huxul se tornou amável de repente... O que andou fazendo com o homem enquanto estava deitado embaixo de minha cama?
— O que poderia ter feito? — disse Marshall, esquivando-se à pergunta. — Quem será a pessoa que o senhor me mandará amanhã com a minha máscara, Rohun?
— Otznam. Tem a estatura do senhor. Ixt, o senhor está fazendo um jogo muito arriscado. Está na hora de dizer o que pretende descobrir em Tolimon. Será que pretende libertar alguém que se encontra no zôo galáctico? Se sua intenção for essa, eu o previno para que tenha cuidado. Os aras equiparam o zoológico com todos os dispositivos de segurança. Por que não me coloca a par dos planos? Será que não confia em mim e nos meus agentes?
— Não quero expô-los a um risco desnecessário. A situação ainda se tornará muito perigosa, e quando isso acontecer, quanto menos saibam, melhor será para todos.
Dali a meia hora, John Marshall saiu da nave cilíndrica do comandante dos saltadores Rohun. Estava satisfeito com os resultados da visita que acabara de fazer ao mercador galáctico. Tomando todas as precauções, levou duas horas para chegar ao seu esconderijo, situado nos gigantescos cortiços de Trulan.
Tolimon, o segundo planeta da estrela de Revnur, recebia tamanha profusão de luz de seu astro rei, que a temperatura média ao meio-dia chegava a 45 graus na sombra. Isso acontecia em Trulan, capital de Tolimon, não na área em que os aras haviam instalado um zoológico de dimensões fantásticas.
Em meio a um gigantesco deserto de pedra e areia, cortado por uma cadeia de montanhas nuas e poeirentas, os aras haviam realizado algo que não tinha igual em toda a Galáxia.
Um areal do tamanho da França, da Bélgica e dos Países Baixos, fora transformado num jardim zoológico em que cada ser dispunha de boa área para mover-se livremente. As condições reinantes no ambiente nativo haviam sido reproduzidas artificialmente, e tudo fora feito para reduzir ao mínimo a pressão psicológica resultante do aprisionamento.
Laury Marten, uma moça de vinte e três anos, de cabelo escuro e corpo fascinante, filha de Ralf Marten e Anne Sloane, penetrou pela primeira vez nesse zoológico, usando um caminho que não era acessível ao público.
A administração já anunciara sua chegada. Depois de um ligeiro controle, no qual foi confirmada sua identidade como a da arcônida Arga Slim, pôde atravessar a barreira de radiações. Um ara muito gentil colocou um carro à sua disposição, explicando-lhe o funcionamento do indicador automático de rota.
O ara nunca vira uma arcônida que irradiasse tamanho charme. Não se cansava de admirar os olhos, que tendiam para o formato oblíquo, e o rosto oval. Laury percebeu tudo. Um dos pontos fundamentais do treinamento dos agentes do Exército de Mutantes de Perry Rhodan consistia na aquisição da capacidade de perceber imediatamente qual era a impressão que causava nos outros.
Laury ficou satisfeita com o resultado de suas observações. Como telepata que era, lia os pensamentos do ara como se fossem palavras escritas num livro aberto. O jovem ara apresentou-se com o nome de Lo Pirr.
Laury Marten desenvolveu todos os seus encantos, sem ultrapassar os limites da conveniência, a fim de transformar-se numa criatura inesquecível para Lo Pirr. Era bem possível que ainda tivesse muitos contatos com o mesmo.
Quando seu carro disparou pela faixa de rolamento, sentiu que o olhar dele a seguia.
Trulan, a capital planetária de Tolimon e o maior porto espacial desse mundo, constituía, pela forma desordenada de sua construção, a expressão patente de evolução precipitada.
Já fazia oito meses que John Marshall se mantinha oculto nessa cidade sob o disfarce de mercador galáctico. Porém a metrópole sempre o impressionava.
Além de servir de ponto de encontro das raças galácticas, Trulan era o trampolim para o espaço desconhecido. O poderio do Império Arcônida não chegava além do sistema de Revnur. Naquele setor, Tolimon era o último dos mundos governados pelo cérebro positrônico de Árcon.
John Marshall compreendia perfeitamente que os aras precisavam de um organismo mastodôntico para exercerem controle, mesmo superficial, sobre todos os estrangeiros que permaneciam no planeta por alguns dias ou semanas. Estes últimos faziam negócios normais ou escusos, estabeleciam contatos decentes ou clandestinos, para depois de tudo isso desaparecerem nas profundezas da Via Láctea.
Uma coincidência traiçoeira arrastara-o para dentro das engrenagens do cérebro positrônico infalível. Ao que tudo indicava, ainda havia um erro nos documentos galácticos falsificados que lhe haviam sido entregues. Certamente esse erro fora cometido por alguma pessoa negligente que se encontrava na Terra. Por enquanto acreditava que o perigo não era muito grave.
Mesmo sob o disfarce de mercador galáctico John Marshall tinha o aspecto de um homem de trinta e cinco anos. E não se sentia mais velho que isso, embora já tivesse noventa e quatro anos de vida.
Fora a ducha celular do planeta Peregrino, o mundo do imortal, que realizara esse milagre biológico. Após isso, a decadência celular fora detida por mais de seis decênios por uma forma incompreensível. A idade de noventa e quatro anos era apenas uma indicação numérica ligada à pessoa de Marshall, que não resistiria a qualquer exame médico de sua constituição orgânica.
Será que neste mundo de Tolimon não existiam milagres parecidos?
O milagre da vida eterna.
Era nisso que estava pensando quando o elevador radial o deixou nos confins da cidade, e ele atravessou a pé o limite para a zona dos cortiços.
O calor da tarde sufocava os desfiladeiros formados pelas ruas e vielas. O fedor saturava o ar. À medida que John Marshall penetrava na área dos cortiços, a miséria e a sujeira iam aumentando.
Agora pegou uma entrada. Atravessou um restaurante e desapareceu num toalete que possuía três saídas. Marshall não era o único que o usava para enganar eventuais perseguidores. Diante dele, um arcônida maltrapilho olhou ligeiramente para trás, passou pela segunda porta e desapareceu por uma área nos fundos.
Marshall usou a terceira saída.
Entrou num corredor escuro que cheirava a mofo, atirou-se no elevador antigravitacional e subiu oito andares.
Uma vez lá em cima executou um giro rápido, viu-se diante de outro poço e deixou-se cair três andares.
O corredor em forma de hall estava deserto. O terceiro quarto da esquerda acolheu-o. Um sujeito velho e esfarrapado, deitado num leito, virou-se à sua entrada e exibiu um sorriso familiar. Marshall colocou uma cédula sobre a mesa e desapareceu na pequena peça contígua sem dizer uma palavra. Uma vez lá, trocou de roupa com alguns movimentos rápidos. Seu traje distinto foi colocado num esconderijo muito bem instalado. Estava usando alguns trapos. Um espelho de radiações mostrou-lhe que se parecia com um saltador em ruína.
Colocou as mãos contra uma parede estreita que ligava a porta ao armário. A mesma recuou silenciosamente, deixando livre um corredor no qual Marshall entrou.
Um elevador antigravitacional muito estreito, que mal dava para um saltador corpulento, levou-o ao porão. Passando por entre o lixo e os objetos abandonados à luz mortiça das luminárias, seguiu seu caminho com segurança absoluta, até atingir uma escada.
Trinta e seis degraus da escada em caracol levaram-no para cima. Ao pisar no último degrau, parou e aguçou o ouvido. Depois afastou com os braços uma pilha de roupas usadas, esgueirou-se e viu-se entre as fileiras de cabides de uma loja de confecções.
Fazendo o papel de um homem que não consegue decidir-se a respeito de uma compra, Marshall saiu da loja aberta com uma hesitação fingida. Sudf, o dono barbudo da loja, piscou às escondidas quando cruzou por ele.
Encontrava-se num beco que ficava três andares abaixo da entrada do estranho restaurante. Quatro quadras adiante, ficou diante da fachada arruinada do prédio, sob cujo telhado se encontrava seu esconderijo. Ao virar-se, viu surgir no fim do beco, por cima dos telhados e junto à coluna esguia do Grande Mo, uma peça de aço de trezentos metros de altura, que na base só tinha um metro de diâmetro. A construção não possuía juntas nem soldas, e nela, a palavra Mo estava escrita em caracteres luminosos arcônidas.
Mo era um gênio médico, que há mais de três mil anos morrera numa experiência que fizera no próprio corpo. Em Tolimon, tal qual nas outras bases dos aras, era venerado como uma divindade.
O alojamento de Marshall, situado no 15o andar, logo abaixo do telhado, parecia tão sujo como todas as peças situadas naquele corredor escuro. Mas a porta, feita de chapa fina de aço arcônida, era mais que a entrada imunda de um quarto abafado que possuía apenas uma pequena clarabóia.
Dispositivos de segurança dos mais sofisticados impediam que qualquer pessoa forçasse a entrada.
Quando John se aproximou da porta, sentiu um impulso quase imperceptível, que provocou um formigamento de sua pele. Era o sinal de que ninguém tentara penetrar por ali na sua ausência. Abriu o fecho e esperou que a porta recuasse. Depois entrou e fechou-a atrás de si.
Descerrou a pequena clarabóia, abriu a torneira de água quente e deixou que o líquido jorrasse. Atirou-se à cama, cruzou as mãos sob a nuca e assobiou a melodia de uma canção da moda dos saltadores.
Naquele instante, o hipercomunicador instalado embaixo do telhado, fora do quarto, começou a esquentar. Ao mesmo tempo, o dispositivo de memória ligou-se automaticamente.
A água continuava a jorrar. A clarabóia não devia ser fechada. O sinal acústico era necessário para ligar o hipercomunicador, e o minúsculo alto-falante do hipercomunicador estava embutido no relógio que Marshall trazia no pulso esquerdo.
Tanto ele como Laury Marten haviam sido equipados para esta missão com os instrumentos mais sofisticados que, em muitos pontos, constituíam novidade até mesmo para os aras e os arcônidas.
John Marshall ouviu um sinal breve saído do hipercomunicador. Sentiu a necessidade de respirar profundamente.
O chefe encontrava-se no planeta quente de Hellgate, aguardando notícias sobre os resultados de seu trabalho.
Marshall refletiu ligeiramente.
Se há pouco parte de seu relógio se transformara no alto-falante do hipercomunicador, agora, a outra parte, tão minúscula quanto a anterior, passou a servir de microfone, depois que Marshall comprimiu um botão quase invisível, embutido na caixa do relógio.
O deformador e o condensador estavam funcionando.
John Marshall resumiu em oito frases o primeiro êxito alcançado por Laury Marten. Omitiu o fato de que o serviço secreto dos aras andava no seu encalço.
Fechou a torneira de água quente e a clarabóia, fez saltar o botão embutido na caixa do relógio e, com isso, apagou todas as pistas que poderiam conduzir ao seu hipercomunicador.
Ficou sentado na cama em atitude pensativa. Refletiu detidamente sobre todos os problemas. Em hipótese alguma deveria permitir que seu esconderijo fosse descoberto. O pequeno quarto representava o último elo que o ligava a Perry Rhodan.
Marshall estava prestes a sair de seu alojamento quando foi atingido pelo impulso emitido por Laury Marten. Parou com a mão estendida em direção à porta. Seu rosto iluminou-se e de seus lábios saiu uma exclamação:
— Até que enfim!
O indicador de rota instalado no carro fizera com que, apesar da grande distância, Laury Marten logo encontrasse o areal dos binns. Porém viu-se diante da barreira de radiações, que formava um obstáculo invencível.
Lançou os olhos em torno, à procura de um frogh, e estremeceu ao lembrar-se do momento em que, pela primeira vez, se vira diante de um desses seres em forma de cobra, com seis metros de comprimento.
Também desta vez teve de esforçar-se para ver nos froghs seres inteligentes, e não animais repugnantes. Muitos froghs dominavam, além do intercosmo, vários dialetos arcônidas. Para comunicar-se entre si recorriam ao vocabulário riquíssimo de sua língua materna. Eram os amigos mais fiéis dos aras e os guardas mais temidos pelos habitantes do zoológico. Até então nenhuma das inteligências trancadas ali conseguira escapar. Os froghs sempre alcançavam os fugitivos nos confins do deserto, cujas dimensões eram planetárias.
Laury Marten caminhou lentamente junto à barreira de radiações. Não sabia explicar por que o frogh não aparecia para perguntar o que desejava. Subiu uma pequena elevação, lançou os olhos em torno e viu o ser em forma de cobra envolvido numa palestra com um jovem ara.
Este sentiu o olhar de Laury Marten, virou a cabeça e fitou-a com uma expressão de espanto.
No mesmo instante, o frogh virou-se abruptamente. Com uma voz que tinha um tom surpreendentemente humano perguntou o que Laury desejava. Esta lhe pediu que abrisse a barreira de radiações por um instante, para que pudesse escolher dois binns no interior do areal.
Enquanto ainda conversava com o frogh, que erguera o terço anterior de seu musculoso corpo de cobra e a fitava com os olhos rígidos, o ara aproximou-se.
O homem esbelto, de rosto intelectualizado, avaro nos menores movimentos e reticente nas palavras, era o primeiro ara que falava um arcônida refinado, dentre todos aqueles com que Laury já havia se defrontado. Esta logo se interessou por ele e fez com que se estabelecesse uma palestra animada.
Dedicou palavras corteses à informação de que Laury estudava zoologia. O fato de encontrar-se em Tolimon para preparar-se para os exames finais obrigou-o a desejar-lhe muitas felicidades nas provas. No entanto, quando Laury Marten passou, com uma indiferença fingida, do fenômeno do artus ao tema da necrose e exprimiu sua dúvida de que uma parte morta do organismo, restrita a uma área limitada, pudesse ser restituída à vida por meio de ativadores, o ara subitamente demonstrou o maior interesse.
O médico galáctico não poderia mesmo desconfiar de que essa jovem, treinada por meio dos métodos hipnóticos mais eficientes dos arcônidas, além de ser entendida em zoologia, também possuía um saber médico muito extenso.
O ara apresentou-se como Man Regg.
Laury Marten prosseguiu no seu jogo. Lia os pensamentos de seu interlocutor e não tinha a menor intenção de tomar a iniciativa. Qualquer idéia importante teria que vir de Man Regg.
Man Regg, o ara, não era apenas um dos cem mil médicos que atuavam nesse mundo. Man Regg era o ara que, na qualidade de chefe, controlava a produção do soro prolongador da vida.
E Laury Marten lançou sua isca. Um segundo depois, dizia aquilo que seu interlocutor acabava de pensar, mas sob seus próprios pontos de vista. Nos casos em que Man Regg demonstrava dúvida, exprimia uma dúvida ainda maior, e quando acreditava poder formular um juízo seguro, mostrava-se reticente em suas idéias.
Um dos crânios mais inteligentes de Tolimon estava sendo manipulado pelas artes telepáticas de uma jovem do planeta Terra.
E Man Regg caiu no blefe.
Quando perguntou onde e com quem trabalhava, Laury Marten leu em seus pensamentos a intenção de ordenar que essa mulher de inteligência extraordinária fosse incluída em sua equipe de pesquisas.
Subitamente Laury Marten virou-se para o frogh. O olhar rígido daquele ser em forma de cobra incomodou-a.
Pensou aflita:
“Será que os froghs também são telepatas?”
Com um grande susto, teve de constatar que não estava informada sobre este ponto.
Mas logo surgiu a indagação de Man Regg sobre se estaria interessada em concluir os preparativos para o exame sob orientação dele.
Laury Marten já se imaginava de posse do processo de fabricação do soro prolongador da vida. Teve de esforçar-se para não exprimir seu júbilo por meio da luminosidade dos olhos.
— Muito bem, Arga Slim — disse Man Regg. — Tomarei todas as providências e tenho certeza de poder cumprimentá-la amanhã na divisão X-p.
Com dois binns dóceis, seu carro disparou em direção ao limite do zoológico.
Quando voou em direção a Trulan, com os dois binns a bordo, irradiou para John Marshall a notícia do êxito que acabara de alcançar. Sentiu-se orgulhosa ao perceber o alívio que havia no “até que enfim!” de Marshall.
John Marshall ficou grudado nos calcanhares de Otznam, agente dos saltadores, em meio ao burburinho das ruas de Trulan. No seu íntimo admirava o comandante Rohun e seu clã, pois o que os fabricantes de máscaras haviam feito de Otznam era uma coisa inacreditável. John Marshall teve de reprimir constantemente o desejo de fitar seu próprio rosto a fim de verificar que impressão causaria nos outros sob o disfarce de um saltador.
O mercador galáctico Ixt não era ele, mas Otznam, que sob seu disfarce caminhava pela Rua do Grande Mo, sem desconfiar de que o verdadeiro Ixt lhe seguia todos os passos, transformado num astronauta robusto e barbudo.
John Marshall leu os pensamentos do outro. O homem praguejava contra sua missão com a mesma violência com que Huxul o fizera no momento em que saía da casa de animais com um casal de hiobargulus e gegerutavis, para voltar à sua repartição.
Otznam estava preocupado por ainda não ter recebido instruções precisas sobre a maneira de conduzir-se na firma de Ixt. Quando Marshall iniciou o tratamento com o projetor mental, não percebeu nada.
Depois de poucos segundos, o agente dos saltadores familiarizou-se com os rostos de todos os funcionários de Ixt. Conhecia seus nomes e sabia quais as funções que cada um devia desempenhar. Otznam não se surpreendeu com o fato de conhecer, em linhas gerais, o escritório do chefe. Entrou na loja pela entrada principal, tal qual Ixt costumava fazer todas as manhãs.
Acenou para a direita e a esquerda, recebeu os cumprimentos de Futgris e fez esta observação:
— Tudo bem, Futgris?
Marshall também entrou em sua loja e, com uma observação áspera, afastou o vendedor que se aproximou solicitamente.
— Vou dar uma olhada no que existe por aqui. Se resolver comprar alguma coisa, avisarei.
Enquanto dizia estas palavras, John Marshall observou discretamente seu vendedor tão ativo e controlou os seus pensamentos. Verificou que não estava identificando a voz disfarçada de seu chefe, nem seus movimentos.
Tranqüilizado, Marshall voltou a dedicar sua atenção a Otznam, agente dos saltadores, fazendo-o dizer a Futgris:
— Se houver algo de importante, estou no escritório.
— Perfeitamente — confirmou Futgris e dirigiu-se ao grande depósito, onde estava sendo descarregada uma remessa de animais vinda do planeta Oka.
Nem desconfiou de que o chefe, disfarçado num astronauta barbudo, exercia uma influência hipnótica sobre ele, enviando-o ao depósito e ordenando-lhe que, em hipótese alguma, procurasse o chefe em seu escritório.
Dali a dez minutos, John Marshall saiu de sua loja e ficou perambulando nas proximidades. Aguardava a chegada de Huxul.
Sua paciência foi submetida a uma prova muito dura. Por mais que tateasse em busca dos impulsos mentais de Huxul, nada percebeu. Só pelo meio-dia captou-os repentinamente.
Fervendo de raiva, Huxul caminhou em direção à casa de animais.
Marshall entrou antes dele na ampla sala de exposição com a profusão desconcertante de animais. Escondeu-se atrás de uma grande jaula, junto aos encantadores kikkis, animais em forma de macaco. Acabara de afastar um vendedor insistente quando o agente dos aras entrou no recinto, com uma gaiola especial na mão.
Futgris era o homem competente para resolver sobre a troca de animais. Teve de ser chamado no depósito.
Futgris riu ao reconhecer o homem que, com os hiobargulus, queria pregar uma peça à sogra. Subitamente seu rosto assumiu uma feição séria. Marshall acabara de transmitir-lhe a ordem, reforçada por meios hipnomecânicos, de determinar que o chefe decidisse sobre a troca.
Huxul exibiu um largo sorriso enquanto resmungava seu “de acordo”. Segurou a gaiola especial com ambas as mãos, encostou-a ao peito e colocou-a numa posição em que uma das faces apontava ligeiramente para cima.
Marshall perscrutou os pensamentos de Huxul. O agente dos aras ainda fervia de raiva. Lembrava-se da bronca que tivera de agüentar no dia anterior, ao regressar da nave cilíndrica de Rohun. Acusaram-no de negligência no desempenho de suas funções e de uma conduta injustificável, arrasando com ele em questão de capacidade. Também foi recriminado por ter adquirido os animais tão caros, muito embora a idéia não tivesse partido dele, mas do chefe.
Naquele instante, estava Futgris saindo do escritório, juntamente com o falso Ixt.
John Marshall ativou o contato do projetor mental escondido em seu bolso. Tratava-se de versão miniaturizada do conhecido aparelho dos arcônidas, que funcionava somente porque John Marshall reforçava sua ação por meio do dom telepático de que era dotado. Por isso mesmo não havia o menor perigo de que o mini-projetor mental fosse descoberto.
Huxul descansou a gaiola entre as paredes acústicas onde estavam guardados os hiobargulus com sua voz potente. Ixt recusou-se a aceitar os animais de volta. Mostrou-se interessado na gaiola acústica. O agente dos aras foi a amabilidade em pessoa e concordou plenamente quando Otznam, sob o disfarce de Ixt, pegou a gaiola para examiná-la mais detidamente. Ao fazê-lo, executou um giro de cento e oitenta graus.
Através de Huxul, John Marshall ficara sabendo em que ponto se localizava o contato destinado à captação do modelo de vibrações cerebrais. O agente dos aras implorou para que Ixt aceitasse os animais de volta e devolvesse o dinheiro. Disse que desde a manhã daquele dia a sogra não o deixava em paz. Estava arrependido da brincadeira de mau gosto e não sabia como acalmar a velha.
Otznam, disfarçado como Ixt, teve tempo para registrar o modelo de vibrações cerebrais de Huxul. No momento em que colocou a gaiola no chão por ordem de Marshall, este lhe deu ordem de aceitar os bichinhos de volta. Futgris saiu apressadamente com a gaiola, desapareceu no depósito e, logo a seguir, a trouxe vazia.
Huxul recebeu de volta o preço da compra, agradeceu com a maior amabilidade, pegou a gaiola vazia e saiu da loja com uma pressa surpreendente.
O falso Ixt voltou ao escritório, e Futgris ao depósito.
Assim, John Marshall considerou concluída sua intervenção, mas Huxul ainda precisaria de tratamento intensivo.
Seguiu-o lentamente, esgueirando-se por entre o tráfego da trepidante Rua do Grande Mo. Aos poucos, foi alcançando o agente dos aras.
Seguiu-o com um olhar pensativo quando este entrou no gigantesco edifício do serviço secreto dos aras, segurando a gaiola como se fosse um objeto extremamente frágil.
Huxul esperou que o laboratório lhe fornecesse o modelo de vibrações cerebrais com uma interpretação completa. Enquanto isso pretendia redigir o relatório, mas havia alguma coisa em sua cabeça que o impedia de conceber qualquer idéia clara. Tornou-se cada vez mais difícil lembrar o que havia acontecido há uma hora na casa de animais de Ixt.
Finalmente a fita rolante trouxe o modelo de vibrações cerebrais acompanhado da respectiva interpretação.
O círculo estrelado que se via no canto inferior esquerdo representava o sinal de que o modelo passara pelo cérebro positrônico.
Entusiasmado, acenou com a cabeça, quando descobriu o número de código.
— O que é isso? Ixt já está registrado aqui e tem um número de identificação dos aras — disse Huxul em tom de espanto e passou a mão pela testa.
Subitamente passou a desenvolver uma atividade intensa. Entrou em contato com a divisão positrônica H. Era ali que estavam armazenados todos os algarismos de identificação dos aras. Transmitiu o número de código. Quase no mesmo instante, a tela que se encontrava sobre sua escrivaninha iluminou-se.
Levou alguns segundos para compreender que aquilo que estava lendo eram seus próprios dados pessoais. E levou mais cinco segundos para compreender que já não compreendia mais nada.
Logo lembrou-se das ameaças que os dois chefes a que estava subordinado haviam formulado no dia anterior.
Isso bastou para uma ação precipitada.
Huxul redigiu um relatório que, em nenhum dos seus detalhes, correspondia à verdade dos fatos. Porém, por enquanto, isto o livraria de uma repreensão ainda mais intensa dos chefes. Evidentemente esse relatório era extremamente favorável ao mercador galáctico Ixt, que explorava o comércio de animais numa loja da Rua do Grande Mo. As divergências insignificantes em seus dados pessoais foram atribuídas a um lapso.
Apenas, Huxul se esquecia, ao redigir seu relatório fictício, que inevitavelmente haveria de chegar o momento em que o grande cérebro positrônico examinaria o relatório sob o aspecto da coerência lógica. Aí então, a mentira fatalmente seria descoberta.
John Marshall, que continuava parado diante do edifício, controlando os pensamentos de Huxul, lembrou-se desse fato. Mas nem por isso ficou preocupado. Não estava em condições de impedir a investigação, que se encontrava em curso, sobre sua pessoa. Porém cada dia queconseguisse ganhar dava a ele e a Laury Marten novas chances de atingir o objetivo a que se tinham proposto.
Em Hellgate, a cerca de oitenta e um anos-luz de Tolimon, Perry Rhodan, protegido pela abóbada de aço, aguardava o resultado de seus esforços.
Aquilo que Man Regg, o médico dos aras, designara diante da barreira energética como X-p, surgiu diante dos olhos de Laury Marten como uma construção gigantesca. E, pelo que sabia da arquitetura dos médicos galácticos, supôs que o complexo penetraria na terra numa profundidade equivalente a três vezes sua altura.
Por cima da entrada principal, via-se esta inscrição singela: X-p.
X-p ficava praticamente no centro do zoológico continental, bem longe das áreas acessíveis aos curiosos, em meio a um desolado deserto de pedras, aquecido dia após dia pelos raios causticantes do sol.
O edifício de oito pavimentos, que parecia fundido numa única peça, estendia-se a uma distância de vários quilômetros.
Laury teve dificuldade em determinar o formato da construção. À primeira vista, pensou num cano superdimensionado de extremidades arredondadas, mas agora, que se encontrava bem diante do mesmo, contemplando a fachada tingida num azul-pálido, não teve tanta certeza.
Sentiu o coração palpitar ligeiramente quando penetrou no setor de controle. Tratava-se de ampla sala decorada com um luxo discreto, de cores sóbrias e com uma atmosfera agradavelmente refrigerada. Os tapetes abafavam os sons.
Qualquer controle envolvia o perigo de que, graças à sua constituição orgânica, Laury fosse desmascarada como não-arcônida. Muito embora na Terra houvessem sido tomadas todas as providências possíveis para que o fato não pudesse ser revelado por meio de simples radioscopia, não se deveria esquecer que havia uma diferença enorme entre a tecnologia de Árcon e a dos aras.
A evolução milenar dos médicos galácticos, tal qual a dos mercadores galácticos, ambos descendentes da raça dos arcônidas, processara-se por trilhas próprias. O simples fato de que o abastecimento de medicamentos aos mundos dominados por Árcon fosse feito pelos aras, se transformara numa idéia consagrada e bastava para deixar claro o caminho extraordinário tomado pela evolução autônoma dos médicos galácticos. Formavam uma população de bilhões de habitantes que corporificava um saber ao qual os arcônidas nada poderiam contrapor na área da medicina. Foi só graças ao cérebro gigante positronizado instalado em Árcon, que numa função autárquica decidia sobre a existência de todos e em todos os sentidos, que a tentativa de apoderar-se do Império de Árcon, realizada há muito tempo pelos aras, terminara num fracasso.
Foram essas as idéias que passaram pela cabeça de Laury Marten enquanto a mesma se encontrava no setor de controle, onde foi testada pelas lentes de cristal.
O sinal azul-claro de liberação, que surgiu repentinamente diante dela, aliviou-a da tensão. No mesmo instante, pôs-se em movimento e não se espantou quando a grande porta transparente P II recuou silenciosamente diante dela, deixando livre o interior de X-p.
Uma abóbada radiante estendia-se acima de sua cabeça. Uma abóbada no interior da construção em forma de tubo? Avançou a passos hesitantes. A luz fosforescente que saía das aberturas do teto e se refletia palidamente em torno do centro do soalho compacto deixou-a confusa. O saber hipnótico que lhe fora ministrado não conseguia explicar esses reflexos luminosos.
Uma voz sonora mandou que se aproximasse do círculo luminoso desenhado no centro do soalho e caminhasse uma vez por sua periferia. Só mais tarde ficou sabendo que dessa forma a parte exterior de seu corpo seria libertada de germes.
Surpresa, Laury obedeceu. Não sentiu nada enquanto caminhava de um feixe luminoso a outro. Mas mal havia concluído o giro, a mesma voz indagou sobre seus desejos.
Em voz baixa, Laury declarou ter sido transferida para X-p por ordem de Man Regg. A seguir, pronunciou seu nome arcônida, Arga Slim, e aguardou novas ordens.
Já fazia cinco minutos que se encontrava no interior do edifício, e até então não havia visto um único ara ou robô.
À sua direita, a parede da abóbada abriu-se em forma de diafragma. Surgiu uma abertura circular e, pela última vez, ouviu a voz sonora, que lhe ordenou que atravessasse a abertura e deixasse o resto por conta da fita transportadora.
Mais uma vez, Laury Marten sentiu a tensão formiguenta que já se apossara dela quando atravessou a entrada do edifício.
Espantou-se ao perceber que entrara numa sala fechada. Não viu nenhuma fita. Apenas, o chão começou a trepidar ligeiramente assim que, atrás dela, o diafragma se fechou silenciosamente.
Pensou na possibilidade de outro controle. Afinal, X-p era o lugar em que era produzido o maior segredo dos médicos galácticos: o soro prolongador da vida.
Laury Marten espantou-se com o próprio nervosismo quando a parede que se encontrava diante dela subitamente se abriu para os lados e ela se viu diante de Man Regg, o homem que conhecera no dia anterior.
Seus olhos exprimiram certo orgulho quando notou a perturbação da moça. Depois de cumprimentá-la, disse:
— Nós, os aras, não progredimos apenas no terreno da medicina. A tecnologia, que tem sido negligenciada por muito tempo, experimentou novo impulso entre nós, Arga.
Sentaram-se frente a frente.
Mais uma vez, Laury Marten fez o jogo do gato e do rato com Man Regg. Lia seus pensamentos e formulava as respostas de acordo com os mesmos.
Recorria ao genial saber do cientista para fazer seus blefes contra o mesmo. Isso só lhe foi possível porque, antes de lhe ser confiada a missão, boa parte do saber médico dos arcônidas lhe fora transmitido por meio de um processo de aprendizagem hipnótica. Especializara-se principalmente nas áreas da zoologia galáctica e da soroterapia.
De repente, uma expressão de desconfiança surgiu nos olhos de Man Regg.
Laury Marten se descuidara. Exprimira seus pensamentos de forma quase inalterada. Mas o piornão era isso. O fato era que nenhum arcônida poderia dispor desse conhecimento, por se tratar de um dos numerosos segredos cuidadosamente guardados de X-p.
Apesar da falha a mutante teve sorte. A lição que Perry Rhodan vivia inoculando nos seus homens transformou-se em sua salvação.
O erro que acabara de cometer não a deixou perturbada. De repente, Laury Marten se tornou fria, isenta de qualquer influência emocional; transformou-se no protótipo do homem lógico.
Tomado por um princípio de desconfiança, Man Regg formulou em pensamento as linhas gerais do processo que, para seu espanto, a arcônida mencionara como que por acaso.
Sua pergunta terminante e inequívoca ainda pendia no ar, mas Laury Marten já preparara a resposta.
Sorriu. Inclinou-se para a frente. Jogou com todo charme que possuía, e brilhou com seu saber.
— O problema resume-se numa seqüência de conclusões lógicas, Man... — principiou, e passou a expor sua opinião.
Com um sorriso nos lábios, observou o efeito que suas palavras produziam no rosto de Regg. Ao lado da desconfiança, viu o espanto e a admiração, que acabaram por prevalecer. O cientista, geralmente tão prosaico, acabou por entusiasmar-se com a lógica tão bem elaborada de Laury Marten, a ponto de exclamar impulsivamente:
— Estou pensando em outra coisa, Arga. A senhora gostaria de trabalhar na minha equipe pessoal?
Ao concordar, Laury Marten acreditava encontrar-se próxima ao objetivo.
John Marshall captou a mensagem telepática de Laury Marten quando se encontrava a caminho da nave de Rohun, o comandante dos saltadores. Sua exposição otimista forneceu-lhe certo estímulo moral. A disposição eufórica perdurou até que atingisse o gigantesco espaçoporto de Trulan e procurasse em vão localizar a nave cilíndrica de Rohun.
Rohun decolara sem avisá-lo!
No mesmo instante, John Marshall — ainda sob a máscara de um barbudo — colocou seu espírito num estado de alarma rigorosíssimo.
Naquele instante, recebeu o impulso de Laury Marten.
O movimento intenso do espaçoporto desapareceu diante dos olhos de Marshall. Não via decolar e pousar as naves e não deu a menor atenção ao que se passava em torno dele. Apenas perscrutou-se, a fim de ouvir o relato da mutante.
John Marshall enfureceu-se! Acabara de conhecer os menores detalhes do que se passara entre Laury Marten e Man Regg. Soube inclusive de sua resposta leviana e sua tentativa de livrar-se da situação embaraçosa em que se encontrava através de novas peripécias com o saber de Man Regg.
Ainda pertencia ao círculo de colaboradores pessoais do cientista, mas no espírito de Man Regg haviam surgido dúvidas sobre a pessoa de Laury Marten.
Em X-p, Man Regg entrara em contato não só com a Divisão de Segurança, mas também com o serviço secreto sediado em Trulan, pedindo-lhe que realizasse um exame acurado da estudante de zoologia Arga Slim. O argumento de maior peso, que Man Regg formulou em apoio a suas suspeitas, culminou nestas palavras:
— Como estudante de zoologia, a arcônida Arga Slim dispõe de um saber que infelizmente tenho procurado em vão entre os meus médicos.
O rosto de John Marshall assumiu uma expressão rígida.
Lembrou-se de suas preocupações, que desde o início giravam em torno de Laury Marten. Ainda lhe faltava a prática, o último retoque da personalidade, que faria com que não superestimasse suas próprias habilidades e, principalmente, a necessária visão global das coisas. Ainda era capaz de embriagar-se com um êxito momentâneo, e essa embriaguez a levava a cometer erros.
“Se nos dados de Laury também houver alguma divergência, todo o mundo de Tolimon se colocará em nosso encalço”, pensou e teve uma sensação de desconforto.
Arrancou-se violentamente em meio às suas preocupações. Antes de mais nada, precisava descobrir por que Rohun decolara com a nave.
Marshall encontrava-se sobre a fita-guia, que levava ao setor G-8 do espaçoporto. Era o lugar em que ainda ontem estivera estacionada a nave de Rohun. Mais uma vez passou os olhos pelo enorme campo de pouso. Viu que uma nave arcônida com sua típica forma esférica rompeu silenciosamente a delgada camada de nuvens e pousou suave. Virou-se em direção ao distribuidor, um sistema de elevadores antigravitacionais, a fim de que este o conduzisse à via elevada, onde tomaria uma condução que o levasse de volta ao centro da cidade.
Finalmente descobriu, em meio à confusão, Egmon, um dos agentes de Rohun estacionados em Tolimon.
Aquele saltador mais se parecia com um arcônida. Seus cabelos louro-claros chamavam a atenção de qualquer um. Mas havia em Egmon outro detalhe ainda mais estranho, que sempre voltava a fascinar Marshall: o aspecto dos olhos do agente mudava constantemente, da mesma forma que um camaleão muda a cor da pele.
— Egmon — disse Marshall, ao passar por ele.
O agente dos saltadores ouvira seu nome, mas não conhecia o barbudo que lhe dirigira a palavra.
John dirigiu-se a um dos numerosos robôs de informações. Indicou o número da nave de Rohun e procurou saber para onde se dirigira o mercador galáctico.
— Não posso dar nenhuma informação — rangeu, um tanto mecanizada, a voz do robô.
Marshall não esperara outra coisa. Sentiu que alguém se encontrava bem atrás dele. No mesmo instante, usou seu dom telepático para alcançar os pensamentos desse alguém.
Os pensamentos de Egmon podiam ser tudo, menos pacíficos. O agente de Rohun via naquele sujeito um espião dos aras e, para estar preparado para qualquer iniciativa, mantinha engatilhado o radiador de impulsos que trazia no bolso.
Ao virar-se, Marshall cochichou:
— Se eu fosse você, não apertaria o gatilho, Egmon.
O saltador ainda estava desconfiado, porém havia na voz de Marshall alguma coisa que lhe parecia conhecida. Mas Egmon só se tranqüilizou quando o mutante citou seu nome.
— O que o torna irreconhecível não é a barba, mas os ombros largos — disse Egmon em tom perplexo. — Por todas as estrelas, Ixt, estou esperando pelo senhor há várias horas. Nosso chefe recebeu más notícias. Por isso decolou e encontra-se a meio caminho entre Tolimon e Hellgate, onde aguarda o desenrolar dos acontecimentos.
— Que acontecimentos?
— Um homem do clã de Estgal foi apanhado e submetido à lavagem cerebral.
Marshall não sabia quem era Estgal, patriarca dos saltadores.
— O clã de Estgal vive contrabandeando medicamentos dos aras. Os aras sabem disso, mas nunca conseguiram pegar Estgal em flagrante ou desmontar sua organização que age na superfície. Caso Estgal se tivesse mantido no mesmo ramo, poderia ter ficado muito velho.
— Estgal está morto?! — indagou admirado, Marshall. De repente, passou a interessar-se por esse desconhecido patriarca.
— Há três ou quatro horas foi destruído em pleno espaço com dezoito naves, por uma formação bélica dos aras. É por isso que este lugar está cheio de espiões dos aras.
Egmon, que Marshall tinha na lembrança como um agente de Rohun, fechado e de poucas palavras, estava desenvolvendo uma verbosidade irritante enquanto apresentava seu relatório. Foi só graças ao treinamento a que eram submetidos os colaboradores de Rhodan que Marshall conseguiu dominar-se:
— Faça o favor de limitar-se ao essencial, Egmon. O que foi que Estgal quis arranjar?
— Já havia arranjado — cochichou o agente louro-claro. — Por meio de um ara subornado, conseguiu arranjar na fábrica de soro G-F 45 o processo de conservação do soro imunizador X-1076...
Estas palavras pareciam familiares a Marshall. Lembrou-se de ter lido os pensamentos de Kuxul, que também se haviam ocupado com esse processo e seu desaparecimento.
— E depois?
— Na última noite Hduzz, membro do clã de Estgal, foi preso e submetido à lavagem cerebral. Depois disso, também o ara corrupto foi preso e submetido ao mesmo tratamento. Quando tudo isso terminou, o dia já estava amanhecendo. Estgal recebeu um aviso e fugiu para o espaço com suas naves. Mas as naves de guerra dos aras já o esperavam e destruíram seus veículos cilíndricos. Já compreende por que meu chefe resolveu deslocar-se para um ponto situado a quarenta anos-luz deste planeta?
Marshall deixou a pergunta sem resposta.
— Vocês mantiveram contatos muito estreitos com os agentes de Estgal?
— Essa informação só pode ser dada por Tulin ou Otznam — respondeu o saltador, enquanto a cor de seus olhos mudou de novo.
Marshall realizou um exame rápido para verificar se Egmon estava dizendo a verdade. Não descobriu nenhuma mentira em seus pensamentos. Limitou-se a pedir:
— Amanhã a esta hora quero encontrar-me com Tulin neste lugar. Será que você poderia avisá-lo?
— Ele poderá estar aqui dentro de uma hora — disse Egmon, enquanto seus olhos emitiram um brilho esverdeado.
— Será amanhã! — disse Marshall em tom decidido. Fez um gesto quase imperceptível para Egmon e desapareceu em meio à confusão dos transeuntes.
Entrou no distribuidor, ou seja, o lugar através do qual se atingiam as diversas ruas por meio dos elevadores antigravitacionais. Subiu e, uma vez na via elevada número quatro, tomou o expresso radial que corria velozmente em direção ao centro da cidade.
Seus pensamentos estavam absortos na missão que Perry Rhodan havia confiado a ele e a Laury Marten.
Respirava pesadamente. A missão parecia-lhe quase insolúvel.
Man Regg sacudiu a cabeça pela terceira vez, mas não interrompeu o relatório do ara de sua Divisão de Segurança. Com a paciência de um homem bem equilibrado, ouvia-o atentamente.
Man Regg, o médico genial dos aras, não era o único ouvinte. Três colegas encontravam-se em sua companhia, e estes também não interrompiam o relatório.
— Pode retirar-se! — com estas palavras, Man Regg dispensou o chefe da Divisão de Segurança de X-p.
Quando se viu sozinho com os colegas, perguntou:
— Então?
Três vezes ouviu esta opinião:
— Tudo perfeito, mas...
O mas, três vezes repetido, dizia respeito a Laury Marten.
O serviço secreto dos aras penetrara até o centro do império estelar dos arcônidas, por meio do hipercomunicador, em busca do passado de Laury Marten. A central de Trulan seguira outros caminhos que os da Divisão de Segurança do conjunto X-p, mas ambas chegaram ao mesmo resultado.
Arga Slim era uma arcônida de vinte e três anos, vinda do planeta Dewen. Era estudante de zoologia e, dentro em breve, teria de prestar os exames finais. Segundo a opinião dos professores, era dotada de um talento médico extraordinário.
Não havia o que objetar nos dados. O retrato recebido de Dewen pelo hipercomunicador correspondia aproximadamente ao aspecto de Laury Marten. A diferença devia provir da falta de nitidez da transmissão.
Apesar disso, Man Regg não estava satisfeito com o resultado obtido por dois caminhos diferentes. Estava formulando uma sugestão. Era claro que, sendo o chefe, só ouviria aplausos à mesma.
Gelte, um zoólogo ara, examinaria Arga Slim em presença dos seus colegas Kelisse e Assa. Man Regg permaneceria na sala contígua, onde acompanharia tudo pelo sistema de comunicação audiovisual.
Man Regg dirigiu-se à sala contígua. Arga Slim — ou melhor, Laury Marten — recebeu ordem para apresentar-se ao chefe. Os três cientistas aras acreditaram que tivessem diante de si uma arcônida desprevenida. Laury deixou que permanecessem nessa convicção. Sabia do que se tratava.
Entrou com um sorriso amável nos lábios e fingiu-se espantada quando em vez de Man Regg notou três aras desconhecidos à sua frente. Sentou e logo se viu envolvida num exame bastante duro.
Precisou lançar mão de toda energia e concentração de que era capaz para não cair do extremo da estudante superdotada para o extremo oposto, pois isto seria uma tolice fora do comum.
O saber médico arcônida que lhe fora transmitido durante o processo de aprendizagem hipnótica não lhe teria adiantado muito. Mas, da mesma forma que aproveitara o saber de Man Regg para brilhar, valeu-se dos conhecimentos dos três examinadores para escapar sã e salva de todos os obstáculos e armadilhas do caminho. Embora fosse telepata e pudesse ler pensamentos, via-se obrigada a realizar um trabalho de mestre para controlar três cérebros, concentrar-se nas respostas e continuar a oferecer a imagem de uma arcônida segura e confiante.
Subitamente sentiu-se perturbada por um impulso mais intenso, vindo da sala contígua.
Isso aconteceu no momento exato em que seus examinadores formularam uma pergunta importante.
Laury Marten recorreu ao meio empregado em todas as estrelas, dizendo que não havia entendido a pergunta. Dessa forma, ganhou tempo para descobrir quem se encontrava na sala contígua e concentrava seus pensamentos sobre ela. Ao mesmo tempo, aproveitou o novo lapso de tempo para formular a resposta.
De repente, tornou-se confiante demais. Os examinadores começaram a ver nela um verdadeiro fenômeno médico. Passou a responder às perguntas por meio dos pensamentos de Man Regg, mas ela o fez de tal forma que apontou como observações menos corretas tudo aquilo que Regg considerava certo, apresentando três argumentos que representavam os pontos mais fracos da série de pesquisas de Man Regg.
— Será que Árcon já avançou tanto no campo da pesquisa genética que os estímulos genéticos, os quais até agora não se tornaram conhecidos dos médicos, já passaram à categoria de informações que são do domínio público!? — surpreso, Assa exclamou de modo interrogativo.
Laury Marten respondeu com a maior amabilidade:
— Dos dados a respeito de minha pessoa consta a prova de que durante um ano fui assistente de Moguld, que também em Tolimon goza de certa fama.
— Acontece que não nos consta que Moguld se ocupe com a biologia da hereditariedade, Arga Slim.
Arga continuou amável como antes.
— Será que no Império de Árcon se conhecem todas as pesquisas que já foram realizadas nos mundos dos aras?
— Isso não é argumento — falou Assa em tom furioso.
— Será que a teoria de Moguld representa um forte argumento, quando este afirma que o segredo da vida eterna se encontra nos cromossomos?
— Tolice! — resmungou Assa.
— Será que ainda se pode falar em tolice se aumentarmos artificialmente o número dos cromossomos ligados à espécie e obrigarmos os cromossomos adicionais a suspenderem a divisão indireta das células?
Laury Marten sorriu, mas por dentro fervilhava. Naquele instante, Kelisse, Assa e Gelte não passavam de um feixe de receios. Viram que o mais importante dos seus segredos havia sido descoberto. Até esse ponto, haviam refletido sobre o problema, e Laury Marten rogava aos deuses para que um deles refletisse sobre o problema em seu aspecto global, para revelar o processo sofisticado de produção do soro prolongador da vida. Quando isso acontecesse, o problema estaria resolvido. Perry Rhodan ficaria livre da tensão psicológica insuportável causada pelo fato de que Thora, a mulher amada que se encontrava a seu lado, envelhecia a cada dia, enquanto Crest, o amigo arcônida, se transformava num ancião.
Leu novos pensamentos. Eram apenas fragmentos, mas bastaram para que reconhecesse que os três aras que tinha diante de si pretendiam alcançar um prolongamento infinito da vida sem recorrer a qualquer soro. E, ao que parecia, não se encontravam muito longe do objetivo.
Tentou influenciar os aras hipnoticamente para esse fim, mas nesse instante Man Regg veio da sala contígua e felicitou-a.
Lamentou a interrupção. As reflexões dos três médicos aras haviam revelado parte do segredo sobre a maneira pela qual pretendiam alcançar a imortalidade.
Conseguiu enrubescer com o elogio de Man Regg e, ao mesmo tempo, felicitou no seu íntimo o Serviço de Defesa do Sistema Solar por ter forjado seus dados pessoais com tanto cuidado. Enquanto Laury Marten elogiava os homens de Terrânia, John Marshall os repreendia por suas negligências. Ambos não sabiam que o Serviço de Defesa do Sistema Solar nunca teria sido capaz de fornecer dados tão precisos, se não contasse com a cooperação de certos mercadores galácticos.
Os dados sobre Moguld eram corretos. E também era verdade que existia uma estudante de zoologia arcônida chamada Arga Slim. Mas só Rhodan e um comandante dos saltadores sabiam que a verdadeira Arga Slim se encontrava há mais de oito meses numa nave cilíndrica, realizando em mundos distantes estudos zoológicos in loco.
Mais uma vez, Laury teve que realizar uma obra-prima da telepatia, mesmo sob a desconfiança de Assa. Apesar de tudo, conduziu uma conversação especializada fluente, intercalando vez por outra algumas observações científicas de alto gabarito, que deixavam os aras perplexos.
Se John Marshall participasse da palestra, teria colocado uma poderosa barreira mental, para que Laury Marten com seu espírito um tanto infantil não se deslocasse para o terreno das areias movediças.
— Sugiro — disse Man Regg, encerrando a reunião — que Arga Slim passe a trabalhar na Divisão de Geomorfismo. Ou será que pensam de forma diferente?
A Divisão de Geomorfismo estudava as alterações trópicas da pele do rosto de inteligências jovens, que muitas vezes adquiria o aspecto envelhecido, apesar do uso do soro prolongador da vida.
Nenhum dos três médicos teve qualquer objeção contra a sugestão do chefe. Nem mesmo Assa.
O hipercomunicador instalado no luxuoso escritório de Ixt não representava nada de extraordinário. Era uma das ferramentas de um negociante em grande escala de animais raros. Nos últimos meses fizera várias compras de animais esquisitos pelo rádio, enquanto a nave dos saltadores que os trazia a bordo ainda se encontrava no espaço, a milhares de anos-luz, e muitas vezes levava semanas para chegar a Tolimon.
Naquela manhã, John Marshall esquentou seu hipercomunicador. Futgris estava sentado à sua frente e deveria socorrê-lo com seus conhecimentos especializados se isso se tornasse necessário.
Tulin, um dos agentes de Rohun, lhe contara no dia anterior que Bet, um saltador, se aproximava de Tolimon, com metade da nave cheia de animais dos tipos mais estranhos.
Chamou a Bet-765 pelo hipercomunicador. John Marshall pretendia entrar no negócio a todo vapor. O encontro — que no dia anterior tivera no espaçoporto com Tulin, um ruivo impetuoso — fornecera-lhe estímulo para isso. Uma frase dita ao acaso transformara-se subitamente num impulso muito intenso.
“Quanto mais estreitamente a gente colabora com os aras, mais confiantes eles se tornam.”
E a experiência de oito meses ensinara a Marshall que a melhor isca para os médicos galácticos eram os animais que ainda não fossem conhecidos em Tolimon.
A Bet-765 respondeu. Na tela, surgiu o rosto de Bet, um saltador jovem e robusto.
Bet sorriu ligeiramente ao ouvir o motivo pelo qual Ixt, um negociante de animais, estabelecido em Trulan, estava entrando em contato com ele.
— Tudo que tive de fazer foi carregar os animais de um planeta que em cada canto exala um cheiro diferente. Aposto que nem um único destes animais é conhecido no Império de Árcon. Pretendia fornecer toda a carga aos aras, mas se o senhor me pagar um preço aceitável, eu os vendo ao senhor, Ixt. Um instante! Vou mostrar-lhe meu zoológico de bordo.
A imagem de Bet desapareceu. Logo a seguir, os animais começaram a surgir na tela. John Marshall, que durante as ações desempenhadas em muitos planetas já se acostumara às coisas mais estranhas e monstruosas, reteve a respiração.
Bet tinha uma coleção de monstros terríveis a bordo. Eram lagartos, morcegos gigantes, anfíbios e outros seres que não poderiam ser enquadrados em qualquer categoria.
Ixt lançou um olhar indagador para Futgris. Este também não sabia o que fazer, mas em seus olhos brilhava a chama do entusiasmo.
As negociações consumiram meia hora.
Depois, o negócio tomou um fim. Futgris ficou perplexo quando o chefe voltou a confirmar opreço da compra. Eram 1,3 milhões.
O contato pelo hipercomunicador não foi interrompido.
Enquanto a Bet-765 ainda se encontrava a 5.299 anos-luz do planeta Tolimon, John Marshall catalogou, com o auxílio de Futgris, os animais que se encontravam a bordo da nave cilíndrica de Bet.
Quando o último dos animais acabara de ser fixado fotograficamente, Marshall pediu que até o meio-dia o vendedor lhe entregasse trinta exemplares do catálogo.
Dali a duas horas, os trinta exemplares estavam sobre a mesa de John Marshall. Futgris foi brindado com um elogio todo especial. Depois disso, o ara estaria disposto a fazer pelo chefe tudo que estivesse ao seu alcance. Felicitava-se constantemente por ter resolvido há oito meses entrar para o serviço da firma recém-fundada.
Divisão de Compras.
Era lá que se encontrava John Marshall. Passara por cima de dezoito instâncias competentes, apontando para seu robô de trabalho, que carregava trinta catálogos. Naquele momento, encontrava-se sentado diante de Kolex, um velho ara, curvado pelos anos, mas que nem por isso deixava de ser uma raposa esperta. Numa atitude de espreita, seus olhos fitavam John Marshall. Deixou que falasse. Sua boca permaneceu fechada, mas seus dedos não ficaram quietos nem por um segundo.
John sabia o que a velha raposa estava fazendo com os dedos, pois lia os pensamentos de Kolex. Estava pondo em polvorosa todos os setores do gigantesco aparelho, que poderiam estar interessados na aquisição de animais desconhecidos.
A palestra estava sendo vista e ouvida em mais de vinte lugares. Apenas o catálogo ainda não havia sido apresentado. O robô de trabalho de Ixt ainda mantinha os exemplares seguros nas mãos de aço, mantendo-se imóvel atrás do chefe.
Kolex comprimiu mais uma tecla para estabelecer outra comunicação. John Marshall conteve-se para não deixar perceber o triunfo. O biomédico Man Regg acabara de ser colocado na linha.
— Um catálogo! — pediu Marshall, dirigindo-se ao robô.
Colocou-o exatamente diante da lente de cristal do projetor de campo. No mesmo instante a sala foi escurecida automaticamente. A imagem do primeiro animal foi projetada sobre a tela de radiações com uma dimensão de quatro metros por cinco.
John Marshall armou-se de paciência. A única coisa em que estava interessado eram os pensamentos de Kolex. Enquanto se mantinha de olhos semicerrados, lia-os.
Aquilo que o chefe da Divisão de Compras dos aras ocultava, acabava sendo revelado através dos seus pensamentos. Vivia lutando contra a tendência de irromper em demonstrações de entusiasmo. Estava reprimindo o desejo de levantar-se de um salto para exprimir seu espanto. Fazia mais de oitocentos anos de Tolimon que exercia as funções de chefe da Divisão de Compras, mas em todos esses séculos nunca vira tamanha profusão de coisas terrificantes, novas e extraordinárias.
A projeção durou nada menos que uma hora. Quando terminou, a luz ofuscante do sol voltou a encher a sala.
O mutante de Perry Rhodan disse o preço. Pediu 2,1 milhões. Não se sentiu embaraçado ao indicar a soma. Conhecia os pensamentos de Kolex. E este estava disposto a chegar até lá.
Mas em vez de aceitar a pretensão de Marshall, o ara formulou uma ameaça velada:
— Esses seres ainda não chegaram às suas mãos, Ixt. Pelo que diz, o negócio foi fechado pelo hipercomunicador. Acredita que eu teria algum problema em descobrir qual é o saltador que tem essa carga a bordo e negociar diretamente com ele? Posso perfeitamente dar a entender, de forma diplomática, que terá dificuldade se não fizer o negócio conosco...
Era exatamente o que Kolex estava pensando.
John Marshall, sob o disfarce da extraordinária máscara de saltador, respondeu com um sorriso condescendente.
— Ora, Kolex, faça-me o favor!
Não disse mais nada.
A atitude de espreita nos olhos de seu interlocutor tornou-se mais intensa. Pediu apressadamente uma ligação com o serviço de vigilância de hipercomunicação.
A ligação foi completada. Um ara prometeu fornecer num instante os dados solicitados.
Mas esse instante não chegou.
O sorriso condescendente de John Marshall tornou-se mais intenso.
— Kolex — disse em tom enfático. — Eu sou um saltador. Meu hipercomunicador foi construído pelos saltadores.
Com estas palavras, deu a entender que o serviço de vigilância de hipercomunicações de Tolimon não estava em condições de verificar com quem havia falado.
Quase no mesmo instante, veio a resposta da Divisão de Vigilância de Hipercomunicações, dada em tom modesto, de que não era possível fornecer a informação solicitada.
Kolex ainda teve o atrevimento de formular uma pergunta:
— O senhor acha que em Tolimon é permitido o uso de hipercomunicadores desse tipo?
John Marshall resolveu falar grosso:
— Será que estou aqui para ser interrogado ou para tratar de negócios? O senhor sabe perfeitamente que os mercadores galácticos negociam com todos os povos do Império; tenho outros interessados além do senhor. Vamos dar a palestra por encerrada. De acordo?
O calor do meio do dia, que chegava a quarenta e cinco graus à sombra, pendia sobre Trulan, quando a Divisão de Compras dos aras e Ixt, o mercador galáctico, fecharam o contrato para o fornecimento de animais, no valor de dois milhões.
Quando John Marshall se despediu de Kolex, os dois se haviam tornado bons amigos.
Dois dias depois, a Bet-765 pousou no espaçoporto de Trulan. A chegada da nave provocara sensação, pois nunca se vira tamanha quantidade de jaulas transportáveis.
Também em Trulan não faltavam os curiosos. Mas, quando a grande comporta da Bet-765 se abriu, deixando à mostra o depósito F, a multidão fugiu em disparada, e quem possuísse um sentido de olfato humano tapava o nariz e lutava desesperadamente para reprimir as náuseas causadas pelo terrível fedor.
Marshall logo colocou seu aparelho de respiração, respirou profundamente algumas vezes e enxugou o suor que lhe cobria a testa.
A onda olfativa — espalhada como uma densa neblina e reforçada incessantemente pelo cheiro que saía do interior do depósito da Bet-765 — era de intensidade inigualável.
Alguns zoólogos dos aras, que já estavam acostumados a muita coisa em matéria de mau cheiro, haviam desmaiado. Outros fugiam junto com o grupo de curiosos. Só depois de uma hora, quando a onda olfativa penetrante se aproximava inexoravelmente do gigantesco edifício da recepção do espaçoporto, a descarga dos animais pôde ser iniciada.
Kolex, que estava parado ao lado de Marshall junto à grande rampa, viu um monstro de dez metros, com o formato de pólipo, ser agarrado pelos raios de tração que o colocaram atrás da grade energética da jaula destinada ao transporte.
— Estes animais respiram oxigênio e espalham um fedor destes! — suspirou Kolex, em tom exaltado. — Tal fato já constitui uma novidade. Diga-me uma coisa: Por que todos esses seres exalam um cheiro tão insuportável?
— Se eu soubesse disso — disse John Marshall, bancando o mercador galáctico em toda extensão — não teríamos feito o negócio por dois milhões.
Esta observação fez Kolex lembrar-se de que procurara exercer pressão sobre o mercador de animais. Na intenção de reparar alguma coisa, disse:
— Nosso negócio se tornou conhecido em toda cidade, Ixt. Ontem recebi a visita do pessoal do serviço secreto. O senhor já fez alguma coisa contrária às nossas leis no mundo dos aras? O funcionário quis saber com todas as minúcias como foi que fechamos o negócio. Confie em mim, Ixt, e procurarei ajudar. Minha influência junto ao serviço secreto é bem considerada.
John Marshall sentiu um calafrio. Exerceu um controle instantâneo dos pensamentos de Kolex. O chefe da Divisão de Compras dos aras estava dizendo o que pensava.
— Eu? — disse Marshall em tom de espanto. — Não me lembro de ter violado qualquer lei. O funcionário não explicou o motivo de sua visita?
— Explicou, Ixt. Diz que os dados relativos à sua pessoa não são corretos. É bem verdade que existe um mercador galáctico de animais, mas pelo que dizem este reside em Xylon, no sistema de Hogur. Ixt, quando olho para a beleza que o senhor nos vendeu, meu coração se abre. Mesmo que fosse um agente, faria tudo para ajudá-lo. Confie em mim, saltador!
John Marshall surpreendeu-se porque o chão não se abriu sob seus pés para engoli-lo.
Não poderia deixar de responder a uma observação como esta. Mas nesse exato momento foi atingido pela mensagem telepática de Laury Marten.
— Daqui a pouco! — telepatou de volta. — Agora não! Daqui a dez minutos, se for necessário, mas não agora, Laury!
— Acontece que encontrei humanos trancados no zoológico, sobre os quais correm boatos entre os saltadores, Marshall. Tenho necessidade absoluta...
Até mesmo um palavrão pode ser transmitido por via telepática. John Marshall não se importou com o fato de que Laury Marten era mulher. Era o chefe do comando, e proibia a perturbação telepática de Laury.
Respirou profundamente.
Fitou Kolex.
— Qual foi a expressão que o senhor usou, Kolex? — riu. — Obrigado — prosseguiu. — Não me esquecerei do que o senhor se dispôs a fazer por mim, mas nunca haverá necessidade disso. Todavia, tenho um pedido. Gostaria de saber por que o serviço secreto está interessado na minha pessoa. Eu sou Ixt, logo conclui-se que o tal do Ixt, que se encontra em Xylon, é um trapaceiro.
— De qualquer maneira, o senhor nos vendeu o lote de animais mais sensacional do milênio, Ixt — respondeu Kolex num tom que, além de ser ambíguo e reticente, encerrava uma advertência.
Marshall examinou os pensamentos do ara. Não encontrou nada de importante além daquilo que o mesmo lhe dissera. Qual seria então o motivo da advertência inequívoca de Kolex? Estaria agindo por intuição?
Ao passar por uma ondulação do terreno em que ficava o zoológico continental, Laury Marten viu subitamente uma construção parecida com uma casa de camponeses suecos.
Dirigia-se à grade, atrás da qual eram mantidos os bombos. Tratava-se de seres semelhantes a macacos, que tinham cabeça dupla e, além de possuírem braços curtos em formato humano, sabiam falar, ler e escrever.
O controle de rota de seu veículo fora regulado para essa grade e foi por simples coincidência que conseguiu ver a casa camponesa sueca. A quinhentos metros do lugar em que se encontrava, cercada de alamos prateados, com o telhado de palha que quase tocava o chão, parecia uma lembrança do planeta Terra.
Freou subitamente e imobilizou o veículo. Desceu e aproximou-se da grade energética, enquanto olhava em torno para ver se havia algum frogh por perto.
Até onde alcançava a vista, não via nenhum frogh. Quando Laury esbarrou contra a parede energética e foi atirada para trás uns trinta centímetros, sua decisão havia sido tomada.
Não era apenas telepata. Também possuía o dom da desintegração, que lhe permitia dissolver aglomerações moleculares pela simples força de sua vontade. Essa faculdade incrível lhe permitia transpor paredes compactas e barreiras energéticas, sem que sua vida corresse o menor perigo.
Estendeu a mão em direção à barreira energética invisível, concentrou-se, fez sua vontade atuar sobre uma área reduzida da barreira. Como se o desejo tivesse atravessado uma lente, sentiu a resistência da barreira, reforçou a concentração da mente. Deu um passo amplo e sorriu aliviada. A barreira energética encontrava-se atrás dela. Estava intacta; não deixaria passar mais ninguém.
A parte do zoológico em que se encontrava ficava a mais de duzentos quilômetros da área acessível ao público. Por onde quer que passasse, notava que os aras se esforçavam em manter seus prisioneiros num ambiente que correspondia ao mundo do qual haviam vindo.
A casa de campo sueca da qual Laury se aproximava poderia perfeitamente estar na Suécia. Não havia nada de diferente. Todos os detalhes haviam sido incluídos naquela construção.
Estacou diante dela.
“Qual será a idade desta casa?”, pensou, espantada. Sacudiu a cabeça ao ver a maçaneta desajeitada, feita de ferro forjado, e as dobradiças, que tinham quase um centímetro de grossura.
Quando resolveu lançar um olhar para o interior da casa viu um fogo aberto e, pendurado num tripé, um tacho de cobre enegrecido pela fuligem.
“Estamos em plena Idade Média”, pensou perplexa e procurou descobrir os habitantes da casa. Mas nem mesmo com suas energias telepáticas conseguiu encontrar qualquer pessoa.
Virou-se apressadamente e voltou a examinar o terreno, para ver se descobria algum dos ligeiros froghs, sempre desconfiados. Sorriu aliviada. Nenhuma das criaturas em formato de cobra estava à vista. Correu em torno da casa. Já agora a construção e os alamos prateados a encobriam.
Passou a andar mais devagar. A trilha estreita, perfeitamente visível, subia por um barranco. Aguardava outra surpresa, mas o quadro que se ofereceu diante de seus olhos obrigou-a a ficar parada.
Perplexa, fitou um edifício construído em estilo asteca. Seriam astecas?
As idéias de Laury Marten desfilaram pelas fases da história.
Os astecas, habitantes indígenas da América Central, foram subjugados por Cortez, de 1.519 a 1.521. Ao mesmo tempo, verificou-se a destruição de sua cultura e o extermínio da religião cruel e sanguinária que praticavam...
Esses dados resumiam tudo que sabia a respeito dos astecas. E agora, a construção que via diante de si — um palácio — lembrava os espetáculos relativos à cultura asteca que conhecia.
Seria o século dezessete?
Será que a casa de campo sueca era do século dezessete?
Subitamente estremeceu. Um homem saiu da grande porta lateral do palácio asteca. Laury Marten sentiu o coração palpitar.
Um homem, que nem desconfiava de sua presença, saíra do palácio e caminhava para o lado esquerdo, em direção à casa achatada que se parecia com a cobertura de um poço.
Como caminhava! Seu passo era majestático. E majestática também eram sua figura e sua postura.
Era alto e de ombros largos. Os cabelos sedosos e brilhantes desciam em cachos escuros. Sentou no muro baixo. A mutante foi caminhando devagar. O homem ainda não a havia notado. De repente, Laury tropeçou. Uma pedra bateu na outra. O silêncio propagou o som.
O homem levantou a cabeça, viu-a, levantou, colocou a mão direita sobre a espada e com a esquerda tirou o chapéu de aba larga. Deu um pequeno passo para trás e executou uma mesura profunda e elegante. Voltou a endireitar o corpo.
E Laury Marten viu-se frente a frente com o conde Rodrigo de Berceo!
Fitou-o boquiaberta, como uma mocinha inexperiente. Era um mestiço. A união do sangue asteca com o sangue espanhol haviam feito do conde Rodrigo um exemplar de beleza masculina.
Como chamejavam seus olhos! E como era altiva a expressão da boca!
O tamanho do nariz era um tanto exagerado, mas era justamente o ligeiro excesso desse órgão que conferia ao rosto másculo o feitio do combatente fogoso, do homem altivo.
O jovem homem sorriu para ela. Laury viu o tremor das narinas e notou o olhar, em que se lia uma veneração extraordinária.
— Quem é o senhor? — Laury Marten formulou a pergunta na língua dos aras, falando como uma mocinha tímida.
— Sou o conde Rodrigo de Berceo, filho da princesa asteca Uxatelxin e do conde espanhol Juan de Berceo. Nasci no ano da graça de mil seiscentos e cinqüenta e dois e com a idade de vinte e dois anos fui raptado e levado para Tolimon. Deseja mais alguma informação?
Nascido em mil seiscentos e cinqüenta e dois!
A Terra já estava no mês de maio do ano de dois mil e quarenta e dois!
Aquele homem, que tinha o aspecto de pessoa de trinta anos, vivera quatrocentos anos?
Quando Laury Marten teve a idéia de usar suas faculdades telepáticas em relação ao conde Rodrigo, vários minutos haviam sido consumidos em perguntas formuladas e respondidas às pressas, que provocavam um espanto cada vez maior na moça.
Não se cansava de olhá-lo, e à medida que o contemplava familiarizava-se com suas vestes medievais: botas de cano estreito e revirado que chegavam até os quadris, a calça bem justa feita por um material que se parecia com o veludo. O colete curto e sem mangas estava cingido por um cinto largo. O colarinho de renda caía elegantemente por cima do colete. As mangas largas da camisa branca também terminavam em preciosas rendas. O cinturão brilhava e a espada presa a uma corrente de prata balançava de um lado para outro. O chapéu era de aba larga, e o penacho preso ao mesmo era agitado pelo vento.
A pesada corrente de ouro que trazia ao pescoço não parecia uma peça de ostentação. Formava parte integrante da vestimenta do século XVII, tal qual o amuleto que representava o Deus Sol dos astecas.
Laury Marten teve a impressão de que seria um crime investigar os pensamentos do conde Rodrigo. Mas lembrou-se de sua missão; apesar disso, ela o fez com grande relutância. Parecia mudada; não sabia o que estava acontecendo com ela.
Numa fração de segundo enxergou tudo com a maior clareza.
Este homem de trinta anos realmente nascera no México, em 1.652!
“Devo avisar Marshall”, foi este seu único pensamento. Enquanto o conde Rodrigo a admirava à distância, conseguiu estabelecer contato com John Marshall, que se encontrava em Trulan.
Mas o contato durou poucos segundos. Marshall só estava disposto a ouvir sua mensagem mais tarde. Acontecia que precisava informá-lo sobre a descoberta que acabara de fazer; procurou convencê-lo da importância do fato. Mas, no mesmo instante, captou sua resposta: uma repreensão áspera. E logo depois John Marshall “desligou”.
Rodrigo pensou que o susto de Laury Marten tivesse sido causado por sua pessoa e pela admiração que estava demonstrando.
Subitamente aquele homem do século XVII ajoelhou-se diante dela, segurou sua mão, comprimiu os lábios contra a mesma, num beijo gentil, e pediu perdão pelo fogo que sentia no coração.
Em qualquer outra oportunidade, essa fala talvez teria provocado um sorriso de compaixão em Laury Marten, filha do século XXI. Mas agora só via nela a homenagem de um homem que receava ter ido longe demais nas manifestações de entusiasmo por uma bela jovem.
Laury Marten não retirou a mão.
John Marshall encontrou-se no pavilhão dos sonhos com Egmon e Tulin, agentes de Rohun, conforme combinara com este último.
Não poderia haver um ponto de encontro mais discreto que esse local mal-afamado, que era proibido para todo e qualquer ara. Ali se encontrava tudo quanto era entorpecente. Tudo aquilo que o inferno tivesse descoberto para intoxicar o homem, no pavilhão dos sonhos não haveria o menor problema para ser encontrado...
John Marshall fechou a grade de radiações. Há pouco ainda se encontrara num gigantesco salão. Agora, porém, estava invisível para qualquer pessoa que ali penetrasse; tal qual acontecera com ele há pouco, o visitante apenas veria o vazio da gigantesca abóbada.
Deitou no chão. A droga herfnis estava a seu lado. Não tinha a menor intenção de esfregá-la entre as mãos para entregar-se aos efeitos da toxina, que o faria enxergar uma verdadeira orgia de cores.
Sua energia telepática atravessou a grade de radiações e, na entrada principal do edifício, captou os pensamentos dos seres viciados, que acorriam ao lugar à procura de distrações e davam o primeiro passo que os conduziria ao abismo.
A repugnância deixou-o arrepiado. Amaldiçoou a idéia de encontrar-se no Palácio dos Sonhos, quando captou os pensamentos de Tulin e Egmon, que não eram viciados nem sentiam o desejo de brincar com o entorpecente.
Tulin, o impetuoso, cochichou para Egmon:
— Como poderemos encontrá-lo num lugar como este?
John Marshall recorreu ao projetor mental e obrigou-os a atravessar o labirinto de cabines de radiações, parando diante da barreira que o protegia.
Abriu a grade de radiações por alguns segundos. Egmon e Tulin olharam-no perplexos, sorriram ao vê-lo deitado no chão e sentaram a seu lado, já que não havia outro lugar em que pudessem acomodar-se.
Os saltadores atiraram alguns grãos no canto. Tulin mandou uma praga junto com eles.
— Tenho pena do dinheiro que gastei. Pérolas de sonho; era só o que me faltava para acrescentar aos meus pesadelos.
Marshall não sabia o que eram pérolas de sonho, mas estava interessado nos pesadelos de Tulin.
— Meu pesadelo são os novos robôs dos aras que foram colocados nas fábricas de soro, Ixt — explicou em tom contrariado. — Já sabemos por que o clã de Estgal deixou de existir. Os aras sempre inventam novas infâmias para dificultar nosso trabalho. Colocaram robôs de controle entre os robôs de trabalho; por fora uns não se distinguem dos outros, mas o que há dentro dos controladores é de pasmar. São vigias positrônicos. Um alarma vivo. Trabalham tal qual os outros, mas sua tarefa consiste em avisar qualquer incidente ocorrido durante o processo de produção, por mais insignificante que seja. Pelo amor dos deuses, Ixt, será que aqui ninguém pode ouvir-nos?
— Ninguém — garantiu Marshall.
— Tomara que realmente não haja ninguém — disse Egmon, um homem louro introvertido, e voltou a mergulhar em suas meditações.
— Pois bem. O ara que conseguimos subornar fracassou por culpa de um robô de controle, quando procurou roubar o processo de conservação...
— Mas este processo não é parte do processo de produção! — interveio John Marshall em tom enérgico.
Tulin cocou a cabeça ruiva.
— Pois nesse caso, os espias positrônicos estão em toda parte, Ixt. É verdade! Não podem deixar de estar em toda parte, e com isso nosso negócio, que até agora tem sido tão próspero, foi paralisado. É uma vergonha!
John Marshall não conseguiu achar graça nessas palavras. Não estava interessado em saber se os agentes dos saltadores enganavam os aras ou não. Acontece que a utilização dos robôs de controle também representava o fracasso definitivo de sua missão.
Laury Marten poderia interromper os estudos que estava realizando no zoológico continental. Se os agentes dos saltadores, que já haviam passado por tudo quanto era experiência, confessavam abertamente que no momento estavam com as mãos atadas, o máximo que os dois mutantes poderiam conseguir era que os aras os desmascarassem como seres terranos. E, há mais de cinco decênios, o planeta Terra deixara de existir para o Império Arcônida, tendo sido transformado num sol.
De repente Egmon, que continuava absorto em suas reflexões, levantou a cabeça:
— Hoje de noite receberei cinco mil shaks!
John Marshall também levantou a cabeça e fitou Egmon. As palavras que o saltador louro acabara de proferir desmentiam as informações de Tulin.
Este proferiu uma ameaça indisfarçada contra seu irmão de clã:
— Egmon, se você...
— É com isto! — disse Egmon, tirando do bolso um diapasão, ou melhor, o instrumento que na Terra é designado por este nome. regozijou com o espanto de seus interlocutores. — É bom que os aras tratem de fazer suas diabruras médicas — prosseguiu — e deixem de aventurar-se no terreno da construção de robôs. Os controladores têm um ponto fraco. Os aras ainda não descobriram.
Seu sorriso tornou-se mais acentuado.
— Será que hoje em dia ainda se consegue adquirir em Trulan um único diapasão do tipo antiquado?
John Marshall confessou que não estava compreendendo mais nada. Egmon piscou os olhos.
— Os controladores têm uma alergia toda especial para o tom da nota si. Não sei o que acontece com seu aparelho positrônico quando ouvem esse tom, mas o fato é que, assim que a nota atinge seu ouvido, caem por terra sem avisar sequer a central sobre o defeito surgido em seu mecanismo. É por isso que hoje de noite receberei os cinco mil shaks.
As pastilhas shaks eram o único remédio contra a doença de ferm, uma alergia traiçoeira provocada pela transição das naves espaciais, que matava dentro de poucos meses.
— Você quer dizer que com isso se consegue neutralizar um robô? — Tulin ainda não estava acreditando no que Egmon acabara de dizer. Egmon insistia em sua afirmativa.
Antes que a troca de palavras pudesse degenerar em discussão, Marshall lembrou-os da finalidade do encontro.
— Ainda tenho outro motivo que me traz pesadelos — disse Tulin, lançando o olhar para além de John Marshall. — Estamos trabalhando com dezoito agentes, Ixt. Por pouco Egmon não foi preso. Fiquei agüentando a mulher de Huxul durante duas horas. Enquanto isso, Huxul sofreu um acidente. Está internado no hospital. Os aras já devem ter descoberto nosso truque, mas só daqui a dez dias conseguirão despertar Huxul.
— Foi atacado? — perguntou Marshall em tom áspero.
Teve uma sensação desconfortável, pois conhecia Tulin. Por algum motivo, que aquele homem de trinta anos nunca chegara a explicar, o mesmo odiava todos os aras e, sempre que usasse os meios mais radicais na luta contra eles, Marshall temia pelo pior.
— Não foi atacado — resmungou Tulin. — Apenas recebeu um jato de gerf.
— O que vem a ser gerf? — indagou Marshall.
— É uma substância que o serviço secreto dos aras também usa nos seus serviços. Quando esse narcótico entra no sangue de alguém, a pessoa dorme durante dez dias e tem de ser alimentada artificialmente, senão...
— Para que serve um recurso tão primário? — Marshall sentiu-se tomado de um tremendo nervosismo. Os agentes de Rohun haviam procedido como crianças, e, dessa forma, o perigo tornara-se ainda maior.
A essa hora, o serviço secreto dos aras não poderia deixar de perceber que alguma coisa não estava em ordem com eles.
— Pois é... — desta vez foi Egmon, que deu uma risada gostosa. Espantado, Marshall pegou a ficha que este lhe ofereceu.
— O que é isto? — perguntou sem desconfiar de nada.
— É a prova chegada às mãos dos aras, segundo a qual o senhor não é o mesmo Ixt que reside em Xylon, no sistema de Hogur. Afinal, quem é mesmo o senhor?
— Também estou curioso para descobrir isso — interveio Tulin. — Se não soubesse que Rhodan e a Terra não existem mais, diria que o senhor é um ser vindo daquele planeta e...
— Felizmente esse sujeito não existe mais e a Terra foi transformada num sol escaldante — retrucou Marshall com o maior cinismo, embora no seu íntimo se sentisse angustiado.
Apressou-se em controlar os pensamentos dos agentes dos saltadores. O resultado do exame deixou-o um pouco mais tranqüilo. Não estavam acreditando em suas próprias insinuações. Fazia mais de cinco decênios que Perry Rhodan desaparecera com a Titan em qualquer lugar do espaço e a Terra se transformara numa fornalha nuclear sob a ação das bombas arcônidas.
Marshall ainda não compreendia por que a ficha que segurava na mão seria tão importante como Egmon queria fazer crer.
— Ixt — disse Egmon, falando devagar e em tom cativante. — Se Rohun não nos tivesse pedido que fizéssemos tudo para atender aos seus desejos, eu não teria arriscado uma coisa dessas. A ficha que o senhor tem na mão representa a interpretação positrônica do resultado das investigações sobre sua pessoa, realizadas pelo serviço secreto dos aras.
— Devem notar a falta desta ficha! — Marshall sabia de que maneira os aras faziam sua guerra de papéis. O procedimento não era menos complicado e preciso que o seguido na Terra.
— Trabalhamos com dezoito agentes, Ixt — ponderou Tulin. — Três deles trabalham no Serviço de Vigilância de Estrangeiros. Em Tolimon, não existe qualquer outro registro sobre sua pessoa. Será que isso não basta?
Subitamente todas as grades de radiações entraram em colapso no interior do pavilhão dos sonhos.
Arcônidas, saltadores, humanóides vindos de mundos distantes, que estavam prestes a entregar-se ao vício, irromperam em ruidosos protestos. Em toda parte, viam-se pessoas embriagadas jogadas no chão. As barreiras energéticas que as tornavam invisíveis haviam desaparecido. A segurança do Palácio dos Sonhos, tão afamada, deixara de existir.
Uma voz retumbante saiu do gigantesco alto-falante:
— O Serviço de Vigilância de Estrangeiros dos aras ocupou todas as saídas. Ninguém poderá abandonar o Palácio dos Sonhos.
Tulin e Egmon fitaram John Marshall. Em seus rostos, lia-se uma idéia: desta vez nos agarraram!
Com a maior tranqüilidade, John Marshall enfiou a ficha no bolso e levantou-se. Fez um sinal para os dois agentes dos saltadores. Bem perto deles, um grupo de mercadores galácticos gesticulava exaltadamente. Numa atitude indiferente, John Marshall juntou-se ao grupo. Tulin e Egmon seguiram-no, pois pouco lhes importava em que lugar estivessem no momento em que fossem revistados.
Enquanto Marshall oferecia o aspecto de saltador que escutava atentamente a conversa que se desenvolvia em torno dele, concentrou-se ao máximo para lembrar quantas saídas possuía o Palácio dos Sonhos.
Eram oito!
Controlou rapidamente uma saída após a outra. Quando chegou à quinta, sorriu.
Fez um sinal discreto para que Tulin e Egmon o seguissem.
Caminharam em direção à saída número cinco como pessoas que estivessem entorpecidas. Também esta estava ocupada por seis elementos do serviço secreto. Eram aras armados. Três deles estavam muito contrariados com a missão que tinham que desempenhar. Pois esta lhes estragara o programa daquele dia. Ao projetar o controle, Marshall havia captado sua raiva.
E esses aras já se transformaram em vítimas do projetor mental quando o grupo ainda se encontrava no meio do Palácio dos Sonhos. Marshall passou a agir sobre os três aras bem dispostos para o serviço. Egmon tentou perturbá-lo, mas sua ação não passou da tentativa. Marshall brindou-o com um olhar tão furioso que, de tão assustado, Egmon mudou a cor dos olhos e ficou um passo atrás dos outros.
O projetor mental irradiava ininterruptamente a vontade de Marshall sobre os aras. Transmitiu-lhes a ordem de deixá-los passar depois de fingir um controle rigoroso.
Enquanto em três das saídas, especialmente na principal, o barulho e os protestos se tornavam cada vez mais intensos, os seis aras que se encontravam na saída número cinco praticamente não tinham nada a fazer.
Com uma expressão de curiosidade, fitaram o grupo que se aproximava.
Tulin disse com um suspiro:
— Tenho comigo três projetores diferentes. Vou jogá-los fora e...
— O senhor não vai jogar fora coisa alguma! — disse Marshall e conseguiu introduzir um intervalo ligeiríssimo no tratamento hipnótico que estava dispensando aos aras.
Tulin calou-se sob a força do olhar de Marshall.
Chegaram à saída número cinco.
Cada um dos mercadores galácticos tornou-se alvo das atenções de dois aras. John Marshall foi revistado por dois funcionários furiosos. Tulin transpirou por todo o corpo. Encontrava-se logo atrás de Marshall e viu a ficha do cérebro positrônico na mão de um dos aras. Lembrou-se dos três radiadores que trazia no bolso.
Naquele instante, as armas passaram às mãos dos aras.
“Está tudo no fim”, pensou Tulin. Não se atrevia a respirar. Os aras voltaram a enfiar os radiadores em seu bolso.
— Podem passar — rangeu a voz de um dos aras, que ainda os brindou com uma maldição.
Egmon e Tulin alegraram-se, como crianças, por terem conservado a liberdade, embora não compreendessem por que haviam escapado dessa forma.
— Vocês querem saber por que o serviço secreto encenou a batida no Palácio dos Sonhos? — perguntou Marshall depois que, do lado de fora, se haviam misturado à multidão.
— Não deve ter sido por nossa causa — disse Tulin em tom não muito confiante, lembrando-se dos três radiadores que os aras haviam descoberto ao revistá-lo, sem que, contudo, reagissem ao achado e o prendessem.
— Foi por causa de Egmon — disse John Marshall, fitando-os um por um. — Os aras devem ter colocado seus robôs de controle em todos os lugares ao mesmo tempo. Um deles viu quando Egmon pegou a ficha do cérebro positrônico e deu o alarma.
O saltador alto e louro empalideceu. Imaginava as conseqüências de seu ato. Mas Tulin, o ruivo impetuoso, era de um feitio muito diferente. Lançou um olhar desconfiado para Marshall.
— Ixt, à medida que o tempo passa o senhor me deixa cada vez mais apavorado. Por que recorre a uma mentira infame como essa para exercer pressão contra nós? Merecemos um tratamento como este?
Tulin tinha motivo de sobra para formular a pergunta. Partia do pressuposto que o negociante dos animais nada sabia da ação em grande escala que haviam lançado contra o serviço secreto dos aras. Por isso mesmo, a afirmativa de que Egmon havia sido observado por um robô de controle quando se encontrava nas proximidades do cérebro positrônico só poderia ser uma mentira rematada.
— Cuidado! — cochichou Marshall no último instante.
Mal teve tempo para dedicar sua atenção a um ara do serviço secreto, que podia ser identificado por seu rosto frio de burocrata. Naquele instante, aproximava-se rapidamente, vindo de um lado onde a multidão era mais rala.
Num instante, o ara viu-se diante do saltador louro. O volume do bolso no qual enfiara a mão mostrava que tinha a arma de radiações engatilhada e apontada para Egmon.
— Egmon do clã de Rohun... — chiou o ara, estendendo a mão em sua direção.
Num gesto quase automático, John Marshall conseguiu dar uma pancada no braço levantado do ruivo Tulin. Este soltou uma praga típica dos saltadores. Mas logo se sentiu esbaforido, pois a frieza do rosto do ara cedera lugar a uma expressão de amabilidade. O gesto violento da mão terminou numa batidinha no ombro de Egmon, seguida destas palavras:
— Tive um prazer imenso em revê-lo. Até a próxima e muitas felicidades.
Despedindo-se com um aceno de cabeça, tirou a mão do bolso em que estava guardada a arma.
Os dois saltadores, perplexos, perguntaram:
— Ixt, o senhor é um sujeito medonho. O que fez com o ara para que ele mudasse de atitude tão depressa?
— Da próxima vez provavelmente não teremos tanta sorte — disse John Marshall, esquivando-se da pergunta. — Egmon, o senhor já acredita que um robô de controle o viu quando se encontrava diante do cérebro positrônico?
Correram por entre a massa de gente, em direção ao distribuidor que os levou a uma das ruas situadas mais abaixo, onde tomariam qualquer condução que os levasse o mais depressa possível para fora do centro de Trulan. Só depois de alguns minutos, Egmon teve oportunidade para formular sua pergunta:
— Por todas as estrelas, Ixt, como foi que o senhor soube disso?
Mais uma vez, John Marshall ficou devendo a resposta.
— O que pretende fazer, Egmon?
Egmon resmungou:
— Rohun terá de chegar até aqui para me recolher a bordo. Um homem caçado pelos aras sempre acaba capturado. O negócio dos cinco mil shaks caiu na água.
O mutante de Perry Rhodan não pôde deixar de admirar o sangue-frio do agente dos saltadores.
Durante dois dias o mutante viveu numa tensão ininterrupta. De um instante para outro, aguardava uma ação fulminante do serviço secreto dos aras. Como nada acontecesse, voltou a acalmar-se.
A segunda visita que fez a Kolex, chefe da Divisão de Compras dos aras, não foi uma simples visita de cortesia. Esperava que aquele homem influente o ajudasse a entrar em contato com o círculo dos médicos galácticos que lidavam com a produção do soro prolongador da vida. Fora justamente por esse motivo que se dirigira em primeiro lugar a Kolex, para oferecer-lhe o lote de animais desconhecidos vindos do planeta do fedor. Pouco lhe interessava o fato de com isso ter feito um bom negócio.
Kolex revelou-se de uma amabilidade cativante. Sua conversa naturalmente girou em torno desses animais.
— ...a designação não é correta — retificou Kolex. — Só oito exemplares pertencem à classe dos animais. Os demais são inteligências, Ixt. Alguns deles chegam a ser mais inteligentes que nossos froghs. A maior sensação foi esta. O senhor nem imagina quantos elogios tenho recebido por ter arriscado esta compra de dois milhões.
Kolex estava radiante, e seus pensamentos, controlados pelo mutante, eram um hino de louvor a Marshall.
— Será que esses estranhos não são uns coitados? — perguntou John.
Com estas palavras tocara num ponto sensível. Kolex protestou. Seu gênio descontrolou-se. Começou a falar em pesquisas, nos diversos fabricantes de soro.
— ...se não dispusermos de portadores de soro, nossas mãos estarão atadas, Ixt! E o portador de soro tem de ser uma criatura sadia, pois do contrário a doença conduz a um resultado falho. Garanto-lhe uma coisa. Não existe nenhum lugar no Universo em que as inteligências prisioneiras passem tão bem como em nosso zoológico.
— Será que as inteligências vindas do planeta do fedor também foram trancadas atrás de grades energéticas?
Kolex manteve-se fiel à verdade.
— Por enquanto sim, Ixt. Não posso falar demais a este respeito, mas há uma ordem de âmbito galáctico que nos obriga a agir dessa forma. Nós, os aras, somos verdadeiros artistas na área da medicina, mas não podemos fazer milagres, e... Ixt, não me olhe desse jeito; até parece que quer recriminar-me e desafiar-me. Sei perfeitamente o que está pensando. O senhor deve conhecer a lei do regente positrônico de Árcon tão bem quanto eu... Ixt, quando se trata de algo extremamente importante, até mesmo a violação da lei encontra justificativa.
— Hum — respondeu o mutante e leu os pensamentos de Kolex, que pensava incessantemente no soro prolongador da vida. Segundo seus pensamentos, a produção do mesmo dependia de inteligências cujos quocientes intelectuais os incluíssem nas classes C, B e mesmo A. Tal procedimento dos aras transgredia uma das leis mais rigorosas de Árcon. A revelação do crime que estavam cometendo ao abusarem de seres dotados de inteligência elevada, utilizando-os como portadores de soro, poderia significar a destruição total dos mundos dos aras.
O cérebro robotizado de Árcon não conhecia emoções. Sua atuação resumia-se na lógica mais pura, traçada pela programação.
Com suas insinuações, Kolex revelara tantos dados que não poderia deixar de ser considerado um irresponsável. E seus pensamentos revelavam muito mais.
A reunião das duas séries de dados permitiu que Marshall concluísse que o projeto dos aras já passara da fase experimental. O soro prolongador da vida estava sendo fabricado em grandes quantidades.
“Tomara que não surja nenhum incidente com o serviço secreto dos aras”, foi tudo que John Marshall desejou depois que se tinha despedido de Kolex e, passando pela Rua do Grande Mo, caminhava em direção à firma.
Quatro homens do século XVII do planeta Terra viviam no gigantesco zoológico de Tolimon, presos atrás de uma grade energética intransponível.
Laury Marten conhecera todos eles: Mutumbo, um africano supersticioso e Alf Tornsten, o camponês sueco que vivia apaticamente seu dia-a-dia, deprimido pelo fato de que não envelhecia.
A terceira pessoa era Nara, uma mongol velha e gasta, cuja tenda fora erguida atrás da grade. Era uma doente mental incapaz de articular uma palavra sensata.
Mutumbo e Alf Tornsten arranhavam o intercosmo e a língua arcônida. Já o conde Rodrigo de Berceo brilhava nessas línguas. Quando Laury Marten o visitou pela terceira vez às escondidas, conversaram no arcônida dos “primeiros dez mil”.
O palácio asteca encerrava um segredo que representava a felicidade de dois seres humanos: Laury Marten e o conde Rodrigo amavam-se.
Aquilo desabara sobre ela com a força de um dilúvio: foi impetuoso, violento e belo. Os quatro séculos que os separavam eram transpostos pela força do amor.
A mutante bela e apaixonada esquecia constantemente que Perry Rhodan a enviara a Tolimon para cumprir uma missão de cujo êxito dependia a vida de Thora e de Crest. A compaixão transformara-se em amor.
Seu bem-amado contou-lhe que, quando tinha vinte e dois anos, certo dia estava passeando a cavalo quando viu alguma coisa cilíndrica baixar das nuvens. Teve medo e fugiu, mas um pequeno objeto voador alcançou-o e levou-o a bordo. Os saltadores trancaram-no num camarote no qual já se encontravam três humanos: Mutumbo, Alf Tornsten e Nara. Quase não se ocuparam com eles até o momento em que foram descarregados em Trulan, onde passaram a viver no zoológico como se fossem animais.
Laury preferiu não explicar-lhe o significado da palavra zoológico. Mas, por ocasião de sua segunda visita, não se esquecera de perguntar a Rodrigo de Berceo por que nesses quatro séculos só envelhecera alguns anos.
Ao responder, Rodrigo lhe falara num imenso palácio. À medida que se demorava na descrição do mesmo, Laury reconheceu nele o setor X-p. Lá dentro fora apresentado inúmeras vezes a médicos aras. Consumiram alguns dias no exame de seu organismo e finalmente deram-lhe uma injeção de soro prolongador da vida.
— Há de chegar o dia em que provarei aos aras, com a minha espada, que não sou nenhum asteca arruinado, mas o conde Rodrigo. Olhe, minha flor, contemple esta lâmina fulgurante, que se tingirá de vermelho com o sangue dos homens que me maltrataram.
Num gesto teatral, que no século XVII talvez representasse um costume da corte, arrancou a espada curta da bainha.
Laury Marten, uma moça prosaica do século XXI, amava. E o amor transformava todas as coisas como que por encanto. Ser chamada de minha flor, fitar os olhos chamejantes do bem-amado, sentir o braço forte que a enlaçava, tudo isso fez com que se sentisse muito feliz. Seus pensamentos moviam-se exclusivamente em torno do desejo de libertar Rodrigo das garras dos aras.
Rodrigo não pôde dar uma indicação precisa sobre o dia em que recebera pela última vez a injeção do soro revitalizador. Pelo calendário terrano, devia fazer cerca de noventa anos.
E noventa anos não significavam nada para os aras, que graças aos recursos de sua medicina muitas vezes viviam mais de oito séculos.
As informações, que Laury obteve através de Rodrigo, tornavam-se importantes porque confirmavam o fato de que em X-p estava sendo fabricado o soro.
Laury Marten percebia constantemente no íntimo a advertência que lhe fazia lembrar o motivo de sua vinda a Tolimon. Eram horas de auto-recriminação e censura. Cada vez que isso acontecia tomava a decisão de, por ocasião do primeiro contato telepático que mantivesse com John Marshall, confessar o amor que sentia por Rodrigo de Berceo.
Até então, John Marshall ainda não sabia.
Laury desprendeu-se violentamente dos braços de Rodrigo. Passara mais de duas horas de Tolimon em sua companhia.
Usando o dom desintegratório de que era dotada, atravessou a barreira energética e dirigiu-se ao veículo. Naquele instante, a cabeça de um frogh saiu da fenda comprida e profunda que se encontrava à sua esquerda e fitou-a com olhos viperinos.
Laury Marten sentiu-se grudada ao solo. O desespero tomou conta de sua mente. Tentou em vão captar os pensamentos do frogh. De tão nervosa que estava, não conseguiu descobrir a freqüência em que funcionava o cérebro dessa criatura.
— Arga Slim, os aras estarão muito interessados em saber que a senhora consegue atravessar uma barreira energética sem que a mesma tenha sido desativada — disse o frogh com a voz fria.
O brilho dos olhos dele foi ainda mais frio.
Seu primeiro impulso foi o de destruir o frogh com seu radiador, mas a lei de Perry Rhodan, segundo a qual só se devia matar em legítima defesa, estava por demais enraizada em sua mente.
Encontrava-se numa situação de legítima defesa, mas a mesma fora provocada por sua própria negligência. Ainda teve energia para não mentir a si mesma. Mas sentiu-se exausta; enfiou a mão no bolso e tirou o concentrado energético. Engoliu-o.
O efeito foi imediato e tão patente, que o frogh lançou uma pergunta:
— O que é isso que a senhora acaba de tomar, Arga Slim?
Arga disse o que era, enquanto procurava desesperadamente descobrir uma saída.
— Permite que eu experimente o concentrado?
A víbora centopéica saiu da fenda no solo, aproximou-se rapidamente, colocou-se diante de Laury Marten e estendeu um dos braços dotados de mãos preênseis.
Para ganhar tempo, Laury entregou um tablete ao frogh. Não acreditava que fosse adiantar alguma coisa. O frogh engoliu o concentrado e enrijeceu. A mutante teve medo da cobra-gigante. Enfiou discretamente a mão no bolso em que se encontrava o radiador. Estava decidida a matar o frogh.
A risada penetrante dele a fez recuar alguns passos. A gargalhada do frogh tornou-se mais sonora. A criatura levantou o terço anterior do corpo e passou a contemplar a agente de Perry Rhodan a uma altura de dois metros.
— Eu lhe meti medo, Arga Slim? Queira desculpar. Apenas pretendia agradecer-lhe.
— Quer agradecer pela oportunidade de me entregar aos aras? — disse Laury em tom furioso.
Sentia que o frogh estava escarnecendo de sua perplexidade.
— Ora, Arga Slim! — disse o frogh e sua voz transformou-se num cochicho. — Nunca falarei sobre isso se amanhã a senhora me trouxer mil tabletes destes. Se fizer isso por mim, serei o servo mais fiel que a senhora já teve — a estranha proposta terminou num riso borbulhante.
De repente, Laury descobriu a disposição de ânimo do frogh. O concentrado provocara-lhe um estado de euforia; transformara-se num estimulante, que provocava uma alegria exagerada.
O estado do frogh tornava-se cada vez mais perturbador. A expressão viperina desapareceu de seus olhos, que pareciam irradiar uma bondade quase humana. Voltou a implorar que amanhã ou depois Laury lhe trouxesse uma quantidade maior do concentrado.
— Posso pensar nisso, desde que possa confiar em sua discrição, Agzt — disse Laury.
O frogh respondeu:
— Posso até desligar qualquer barreira energética para a senhora, Arga Slim. Acho que isso já poderia servir de base a um estado de confiança recíproca.
Ao anoitecer, quando Laury Marten terminou sua jornada diária no setor X-p, nenhuma informação do frogh Agzt sobre a travessia da barreira energética havia sido recebida naquele setor.
Aos poucos, começou a acreditar que as intenções de Agzt eram sinceras.
John Marshall acabava de expedir de seu escritório a quinta mensagem de telecomunicação destinada a Hellgate. Agora estava mudando para a faixa de Rohun.
Não tinha o menor receio de que o serviço secreto dos aras pudesse interceptar sua mensagem. O transmissor especial de que se servia, da mesma forma que aquele instalado em seu quartel-general na área dos cortiços, dispunha de dispositivo especial que evitava a escuta, mesmo que a estação receptora só dispusesse de um hiper-comunicador comum. Apesar de tudo, Marshall e Rohun acoplaram um condensador e um deformador de mensagens, uma vez completada a ligação.
— Rohun, estou precisando de minha nave. Quem poderia trazê-la até aqui? Otznam?
O rosto do comandante dos saltadores transformou-se numa careta.
— Ixt — disse, prevenindo Marshall — já está na hora de desistir do jogo perigoso que está realizando com os aras. As notícias que acabo de receber de Egmon me fizeram envelhecer cem anos. Se as coisas continuarem nesse ritmo, acabarei figurando na lista dos aras. O senhor sabe perfeitamente o que significaria isso.
Isso significaria o desaparecimento total, a morte, a destruição.
Marshall não se impressionou com o aviso que Rohun acabara de lhe dar.
— Quando souber que a nave chegou, eu me sentirei muito melhor, Rohun. Quando poderei contar com a chegada? É Otznam que vai trazê-la, não é?
— Está certo. Mas não quero que Otznam participe da ação — exigiu Rohun. — Quando é que o senhor se dignará a explicar as coisas esquisitas que aconteceram em sua loja quando o tal do Huxul, um ara do Serviço de Vigilância de Estrangeiros, apareceu com a jaula com os dois hiobargulus e procurou devolver os animais? Se não tivesse passado por coisa semelhante com o tal do Huxul, já teria entregado Otznam a um hospital dos aras para submetê-lo a um exame de sanidade mental.
Marshall preferiu não responder. Tranqüilizou o comandante dos saltadores.
— Prometo-lhe que Otznam não participará da ação, Rohun. Mas acho que poderei contar com aquilo que o senhor me prometeu, isto é, com sua ajuda irrestrita quando eu o chamar.
— Ixt, fique sabendo que não sou nenhum ara, mas um mercador galáctico — berrou Rohun para dentro do microfone que se encontrava a quarenta anos-luz. — Otznam partirá imediatamente em sua nave. Há alguns dias dei uma olhada naquilo: é um verdadeiro couraçado! Onde é que essas naves são construídas, Ixt?
Mais uma vez, o mutante fez como se não tivesse entendido.
— Onde está Tulin, Rohun? Não consigo encontrá-lo aqui em Trulan.
— Está aqui! — exclamou Rohun. — Mas voltará com Otznam, pois tenho uma tarefa para ele. O senhor não poderá utilizá-lo na execução de seu plano.
— Está com medo? — perguntou John Marshall em tom lacônico.
— Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos aras.
Mais uma vez, tivera de ouvir uma alusão desse tipo. Agora partira de Rohun, comandante dos saltadores.
— Cobaia dos aras! Apesar das leis de Árcon! Fim, Rohun! — disse Marshall ao mercador galáctico e desligou.
A mensagem telepática de Laury Marten estava interferindo na palestra pelo telecomunicador.
Marshall perscrutou seu interior.
Uma hora depois, foi transmitida a sexta mensagem condensada de hipercomunicação destinada a Hellgate, onde Rhodan esperava, protegido por uma abóbada de aço.
Laury Marten descobrira uma sala do setor X-p onde estava guardada uma ampola do soro revitalizador, que dentro em breve seria utilizada numa experiência.
Quando Futgris entrou no escritório do chefe, Ixt estava debruçado sobre o primeiro relatório enviado por Kolex. Este relatório continha informações sobre a escala intelectual em que deviam ser incluídas as criaturas por ele vendidas ao zoológico.
Vinte e uma espécies, totalmente diferentes no aspecto exterior, pertenciam à escala intelectual A-l.
Era o grupo ao qual pertenciam os arcônidas, os aras e os mercadores galácticos.
Quando levantou os olhos e reconheceu Futgris, John Marshall teve de recuperar-se do abalo que sofrera.
Sentia-se como um homem que acabara de cometer um crime. Os seres que, em virtude de seu aspecto terrificante, haviam sido considerados animais, possuíam o grau mais elevado de inteligência; e ele os transformara em peças de exibição do zoológico. Colocara-os nas mãos dos aras. A exclamação de Rohun ressoava no ouvido de Marshall:
“Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos aras.”
Lançou um olhar indagador para Futgris.
O ara, que admirava e venerava o chefe, procurou ocultar o tremor da voz:
— Chefe — disse com os olhos errantes — três funcionários do serviço secreto querem falar com o senhor.
— Ah, é? — respondeu John Marshall sem trair o nervosismo. Foi empurrando para o lado o relatório que acabara de receber de Kolex. — Convide-os a entrarem, Futgris. Nunca se deve fazer esperar um funcionário do serviço secreto.
Agzt, o frogh, parou na beira da estrada quando Laury Marten se aproximou velozmente com seu veículo, freou e desceu. Entregou-lhe uma sacola, que a mão preênsil segurou avidamente. Examinou o conteúdo.
— Mais uma vez, apenas cinqüenta cápsulas de concentrado? — perguntou em tom decepcionado.
Laury, que perdera todo medo do corrupto monstro viperino, colocou a mão no pescoço do mesmo. A pele do frogh parecia couro. Laury notou seu estado eufórico e advertiu-o:
— Em cada visita eu lhe trarei cinqüenta cápsulas, Agzt; nada mais. Não quero que este preparado, que é totalmente inofensivo para os aras e os arcônidas, transforme você num doente ou num viciado. Gaste suas reservas com muita parcimônia, pois poderá acontecer que vários dias se passem entre uma visita e outra.
A sacola com os tabletes estava no interior da enorme mão preênsil. O frogh saltitava sobre seus inúmeros pés e voltava a asseverar ininterruptamente que não era nenhum ingrato.
Tal qual fizera por ocasião de suas visitas anteriores, Laury pediu-lhe que prestasse atenção e a avisasse imediatamente assim que qualquer outro veículo se aproximasse desse setor do zoológico. Depois, recorreu ao dom da desintegração, atravessou a barreira energética como se esta não existisse e saiu correndo.
Do alto da elevação pôde ver o palácio asteca. Como sempre, Rodrigo estava parado junto à enorme entrada principal, mas hoje não abanou o chapéu de penacho em sua direção.
Olhou-a sem dizer uma palavra e seu rosto permaneceu imóvel quando Laury se encontrava diante dele.
— Aconteceu alguma coisa, querido?
Rodrigo de Berceo se mantinha rígido.
Seu olhar vagou ao longe. A boca estava reduzida a um traço e os olhos chispavam de indignação. Laury enlaçou-o e implorou que falasse.
— Amanhã terei de ir ao lugar em que estão os aras!
Para Laury, isso equivaleria ao fim do mundo de Tolimon.
— Não, Rodrigo! Não é possível! Oh, não... — o desespero apertou-lhe a garganta. Foi sacudida por um soluço sem lágrimas.
Mas logo se controlou. E com a calma recuperou a capacidade de raciocinar. Seu plano estava formado.
— Rodrigo, quando os aras virão buscá-lo? — perguntou apressadamente.
— Amanhã. Mas não receie por minha vida. Eu, o conde...
— Amanhã, quando? De manhã? A que hora?
O conde Rodrigo de Berceo falava o arcônida e o intercosmo, mas não tinha conhecimento do que seria “hora”.
Só depois de muitas perguntas, Laury conseguiu descobrir a hora aproximada em que Berceo seria levado para submeter-se à experiência.
— Ouça — disse e o triunfo estava escrito em seus olhos. — Amanhã os aras encontrarão esta grade vazia. Fugirei com os quatro humanos que estão aqui. Vamos pedir aos outros que se preparem.
Laury Marten não se deu conta de que naquele instante estava renunciando aos ensinamentos que recebera como agente do Exército dos Mutantes. Seu plano não era apenas uma obra de diletantismo, mas uma temeridade, pois obrigaria John Marshall a praticar atos que nunca teriam entrado nas cogitações desse mutante extremamente ponderado.
Alf Tornsten, o camponês sueco, foi o primeiro que recusou. Nara, a velha mongol, nem compreendeu o que a moça desejava e limitou-se a fazer soar sua risada de louca. Mutumbo, o africano, apenas a brindou com um palavrão e deixou-a falando só.
Rodrigo não esperara outra coisa. E comentou de modo altivo:
— Nem me sentiria bem na presença desses idiotas.
A moça respondeu com uma frieza na voz:
— Peço-lhe que procure compreender que, hoje em dia, na Terra, um conde não vale mais que o mais miserável dos homens. Rodrigo, quatrocentos anos se passaram, e você terá que dar um salto por cima desse tempo. Por favor, permita que eu o ajude! Esqueça-se de que é o conde de Berceo. Comece com isso e...
Mais uma vez, a moça sucumbiu ao charme do conde, ao seu sorriso e ao seu amor. Seu beijo a fez calar-se. Sentiu-se segura nos seus braços, até que a realidade cruel evocasse o amanhã em seu espírito.
— Rodrigo, você não estará mais aqui amanhã, quando chegarem os aras! — com essa jura solene despediu-se e, após poucos minutos, seu veículo corria vertiginosamente em direção ao setor X-p.
Durante a viagem estabeleceu contato telepático com John Marshall.
— Não perturbe! — foi a resposta que captou.
Laury Marten estava tão preocupada com o destino de Rodrigo que nem chegara a sentir a agitação furiosa da mente de Marshall.
Como que num estado de transe penetrou no setor X-p, atravessou os feixes de luz que a desinfetaram e entrou em seu gabinete. Só viu o médico ara Assa quando já estava sentada atrás de sua escrivaninha, olhando desesperadamente para a frente.
— O que está sentindo, Arga?
A pergunta a fez estremecer.
— Dor de cabeça — respondeu.
No mesmo instante compreendeu que, ao proferir estas palavras, pronunciara sua sentença de morte.
Nos mundos pertencentes ao Império de Árcon, quer fossem eles habitados pelos arcônidas, pelos aras e pelos saltadores, a dor de cabeça era desconhecida. O cérebro dessas raças tão semelhantes nunca experimentara esse mal.
Por outro lado, porém, nesse mesmo instante Laury Marten voltara a transformar-se na agente de Rhodan.
Não perdeu o autocontrole. Com o maior sangue-frio, deu jogo à sua capacidade telepática para revolver a mente de Assa.
Este revistara o gabinete durante sua ausência.
E pela segunda vez, mandara espiões atrás dela para descobrir por que ia tantas vezes ao zoológico.
Não confiava nela.
E a esta hora nem acreditava que fosse uma arcônida. Fez reviver suas lembranças. Aí encontrou Perry Rhodan, os aras, o planeta da medicina, Aralon, a lua Laros. Sim, depois disso houve a destruição da Terra, o planeta de Perry Rhodan, e o desaparecimento deste juntamente com a gigantesca Titan.
De repente, Assa achou que a suspeita de que essa jovem pudesse manter contato com Perry Rhodan era ridícula. Mas as dores de cabeça?
Quem seria essa mulher?
Laury Marten leu tudo isso num espaço de poucos segundos e controlou seu procedimento de acordo com esses pensamentos. Partiu para o ataque. Com um gesto discreto, ligou o aparelho de comunicação audiovisual e disse:
— Informarei Man Regg de que o senhor andou revistando este gabinete na minha ausência.
O trunfo com que estava jogando era muito perigoso, mas produziu efeito. O ara gritou sem refletir:
— Como soube disso? Quem con...? — a última sílaba não chegou a ser formada. Assa recuperara totalmente o controle de si mesmo.
— Obrigada — disse Laury Marten com um sorriso, apontando para o audiovisual ligado. Não havia a menor dúvida de que ao menos cem aras haviam ouvido o diálogo. Laury Marten não precisaria de outras testemunhas.
Foi-se levantando.
— Sei perfeitamente que não consegui grangear sua simpatia, Assa, mas possuo bons amigos. Quer que eu lhe diga onde estive hoje no zoológico? Dessa forma eu lhe pouparia o trabalho de mandar espiões atrás de mim pela terceira vez...
Soltou uma risada cristalina quando Assa se retirou com o rosto pálido, chiando alguma coisa que não conseguiu ouvir direito. Mas leu pensamentos dele, e estes se resumiam num feixe de receios de que Laury pudesse realizar sua ameaça de informar Man Regg sobre os incidentes.
Mas este já soubera de tudo através da comunicação audiovisual.
Meia hora depois um robô procurou Assa por ordem de Man Regg e lhe deu ordem para que deixasse o setor X-p num prazo extremamente curto e se apresentasse imediatamente para trabalhar em Durrha.
Durrha figurava no catálogo estelar de Árcon como o planeta que trazia maior número de sinais de advertência. Era ali que os aras estudavam as epidemias para as quais ainda não conheciam antídoto. Quem pusesse os pés naquele mundo, nunca mais sairia dali.
Assa dirigiu-se ao espaçoporto, acompanhado por dois robôs. Estes robôs permaneceram a seu lado até o momento em que entrou na nave. Depois disso, ficaram parados junto à entrada da mesma até o momento da decolagem. Após o pouso em Durrha, essa nave seria transformada em sucata.
John Marshall viu os três homens do serviço secreto dos aras chegarem e saírem.
Tal qual Huxul e muitos outros, acabaram por ser atingidos pela combinação entre a telepatia e a ação do projetor mental, feita pelo chefe dos mutantes. Apesar disso Marshall não se entregou à ilusão de que o perigo tivesse sido eliminado.
Era exatamente o contrário. O perigo teria que desabar sobre ele com a força de uma avalanche assim que ficassem livres da influência hipnótica. De qualquer maneira, a visita não deixara de trazer sua vantagem. Marshall ficou sabendo por que o serviço secreto dos aras o assediava tanto. A destruição dos dados não poderia eliminar a memória dos dois funcionários, que eram os chefes de Huxul.
Os três aras tinham vindo unicamente para realizar mais um exame minucioso de todos os dados ligados à sua pessoa. Pediram os documentos e pretendiam gravar o modelo das vibrações cerebrais dele. Porém acabaram retirando-se depois de três horas sem que tivessem feito o registro. Mas no dia seguinte, pelo meio-dia, a influência hipnótica devia cessar, e então se dariam conta de que algo de inexplicável havia acontecido por ocasião da visita ao estabelecimento de Ixt.
Marshall sabia perfeitamente que essa conjunção de fatos inexplicáveis provocaria o grau mais elevado de alarma no serviço secreto dos aras. E quem ponderasse todos os aspectos dessa situação, chegaria à conclusão de que a única alternativa que restava ao serviço secreto era a ação brutal.
Essas reflexões foram interrompidas por um chamado do sistema de comunicações locais. Era Otznam, que se encontrava no espaçoporto. Há poucos minutos havia pousado com a pequena nave de John Marshall. O mutante esteve a ponto de formular outra pergunta quando Otznam desligou.
“Pode deixar”, pensou e concentrou a mente. Chamou Laury Marten. Esta pretendia entrar em contato com ele no momento em que exercia sua influência hipnótica sobre os três aras que se encontravam em seu escritório.
Laury Marten não respondeu!
Voltou a tentar, intensificou a concentração de sua mente, e finalmente a encontrou. Mas desta vez a mutante pediu que não a perturbasse.
Marshall logo reduziu a intensidade de sua transmissão telepática. Procurou identificar o que conseguira entender em seu breve contato telepático com Laury Marten.
O que estaria ela procurando no setor X-p? A energia telepática da moça atingira-o com a força de um curto-circuito, não com a intenção de absorver seus pensamentos, mas de os repelir.
O Setor X-p nunca funcionava em ponto morto.
Isso resultava do próprio conteúdo de suas atribuições, e os aras aceitavam a situação com a maior boa vontade. Neste ponto todos eles pareciam loucos. Em todos eles ardia a chama do desejo de desvendar os últimos segredos da vida. Mas, embora tantas vezes acreditassem encontrar-se no limiar do objetivo, sempre se viam diante de terras novas, ainda desconhecidas, banhadas pela luz do mistério.
O trabalho de Laury Marten estava concluído. O episódio com Assa, que ocorrera há três horas, mergulhou no esquecimento. Rodrigo de Berceo, o mexicano jovem e altivo, ocupava todos os pensamentos da moça. Mas naquele instante, devia esquecê-lo para concentrar-se em seu plano.
Estendida no leito, com os olhos fechados e as mãos entrelaçadas sob a cabeça, fez sua energia telepática perambular por todos os recintos do setor X-p que em sua opinião se destinavam à produção do soro revitalizador.
“Vamos à sala seguinte. Três aras. Seus pensamentos? Nada. Outra sala. Vazia? Não; só havia robôs.”
Apesar da concentração de sua mente lembrou-se da advertência de Marshall relativa aos robôs de controle recentemente colocados em serviço.
“Outra sala...”
As horas passaram. O sol desceu sob a linha do horizonte. A noite cobriu o setor X-p e o zoológico continental.
Laury Marten não desistiu. Procedeu assim para salvar Rodrigo, e poder aparecer diante de Perry Rhodan. Não queria ser a primeira mulher do Exército de Mutantes que, por uma questão de amor, falhasse no desempenho de sua missão.
Nada, nada... Em todos os lugares, nada.
Não encontrou a menor indicação sobre o lugar em que poderia encontrar as informações sobre o processo de fabricação do soro.
Já era meia-noite. Laury Marten continuava estendida sobre o leito, concentrada ao máximo. Não se cansava de procurar. Mas foi em vão.
Estava banhada em suor. Levantou. Devia entrar em contato com Marshall?
Decidiu outra coisa. Tomou banho, mudou de roupa e saiu do apartamento.
O elevador antigravitacional levou-a ao quinto pavimento do subsolo. Quando procurou abrir a porta que dava para essa área, a mesma não se movia.
Para Laury Marten, isso não representava qualquer problema. Possuía o dom da desintegração. Sabia neutralizar as ligações moleculares, transformando qualquer parede, fosse qual fosse o material de que era feita, numa simples nebulosa que atravessava sem a menor dificuldade.
Mantendo-se no mesmo lugar no interior do elevador, eliminou a barreira representada pela porta. Depois que a atravessou, esta voltou a adquirir sua configuração estável.
À sua frente estendeu-se o corredor monótono, que tinha o mesmo aspecto em todos os pavimentes e áreas do setor X-p.
Neutralizou duas barreiras de radiações. O alarma que deveria ter desencadeado não surgiu. O corredor estendia-se à sua frente, vazio e ameaçador. Não se perturbou com a solidão, nem com a extensão do caminho que teve de percorrer. Intensificou seu tato telepático, à procura de aras. Estes permaneciam atrás das portas pelas quais passava, debruçados sobre o trabalho. Ninguém deu a menor atenção ao ruído de seus passos.
Adiante! Nunca desempenhara uma tarefa com tamanha tranqüilidade.
Subitamente lembrou-se de Thora, esposa de Perry Rhodan. Antes que ela e John Marshall partissem para a missão, Perry Rhodan explicara-lhes objetivamente o que estava em jogo.
De repente Thora e Crest, os arcônidas, começaram a apresentar sinais de envelhecimento que não podiam ser detidos por nenhum dos meios empregados. O preparado produzido na Terra teve um efeito que pouco durou. Os soros dos arcônidas também não detinham o processo de envelhecimento. Ele ou Aquilo, o Ser de Peregrino, o planeta da vida eterna, recusara a ducha celular aos arcônidas. Ao que tudo indicava, o destino de Thora e Crest estava selado. Mas logo certos boatos sobre um soro revitalizador, capaz de prolongar a vida, começaram a circular entre os mercadores galácticos. Este soro era produzido pelos aras. Com isso Perry Rhodan recuperou a esperança. Naquele instante, Laury Marten se encontrava a caminho da sala de paredes grossas onde uma porção desse soro estava sendo guardada num frasco. E os dois arcônidas tanto precisavam desse revitalizador.
Bem longe, uma porta abriu-se. Um ara saiu para o corredor, lançou um olhar indiferente para a moça e uns dez metros à sua frente entrou num laboratório.
O passo da mutante não se tornara mais lento, nem revelava qualquer insegurança.
Ro-dri-go, soavam seus passos. Esse nome dava-lhe uma força imensa. E ela bem que precisava dessa força.
Aquela área do setor X-p, situada cinco pavimentos abaixo do solo, abrigava os centros de pesquisa mais secretos dos aras. Todo o resto era coisa de segunda ou terceira categoria. Aqui a vida estava guardada em ampolas. Quem recebesse uma injeção desse soro poderia continuar a viver; os outros teriam de morrer.
Laury Marten pôs a mão no bolso. Estava vazio. Acabara de tomar banho, mudara de roupa e se esquecera de tirar o diapasão do bolso do jaleco. Por que pensara tanto em Rodrigo? Devia voltar?
Ro-dri-go, diziam seus passos. Não voltou. Sentiu que só esta hora lhe poderia trazer a felicidade.
Teria de percorrer mais trinta passos.
Mais dez passos...
Mais dois! Viu-se diante da porta.
Tateou com sua energia telepática. O laboratório devia estar vazio, pois não encontrou impulsos de pensamentos.
A porta perdeu a coesão molecular. Sob o efeito desintegratório das energias da mutante transformou-se em um nada. Laury atravessou-a. Sabia onde estava guardada a ampola. O ara que hoje a guardara ali era um sujeito pedante. Ao largá-la, ficou refletindo sobre se realmente esse seria o lugar mais seguro. E Laury absorvera-lhe os pensamentos como uma esponja.
O laboratório brilhava na profusão das luzes. Num tom suave, os relês batiam, as espulas zumbiam, os líquidos pulsavam através de condutos transparentes, alguma coisa fervia e borbulhava.
A mutante parou de costas para a porta, que logo recuperou sua coesão molecular.
Três robôs estavam observando o curso da experiência.
O alarma soou na mente de Laury Marten. Qual dos três robôs seria o controlador?
Pôs a mão no bolso. Os dedos cingiram a coronha do radiador. Os olhos procuraram em vão localizar qualquer sinal que distinguisse as máquinas. Ouviu as juntas metálicas rangerem levemente, viu os movimentos quase humanos e continuou parada junto à porta.
Teria de passar por todos os três. A ampola com o soro estava do outro lado.
“Como é que fui esquecer o diapasão?”, pensou, autorecriminando-se. Sabia perfeitamente quanto trabalho custara fabricar nas oficinas do setor X-p um diapasão que soasse exatamente a nota si.
De repente, teve a impressão de que estava vendo o rosto de Rodrigo e ouvia sua voz, que repetia estas palavras:
— ...mas amanhã não me darão nenhuma injeção de soro revitalizador. Em vez disso terei de respirar um gás que precipita o processo de envelhecimento. O ara, que me disse isso com uma risada, há vários anos fez a mesma experiência com Nara, a mongol. Quando vieram buscá-la, era uma moça alegre; quando voltou, transformara-se numa velha idiota.
Laury Marten não hesitou mais. Sabia como haviam sido programados os robôs do setor X-p, e fazia votos de que nessa área não houvesse nenhuma exceção.
Passou pelos três homens mecânicos. Estes nem sequer levantaram a cabeça.
Virada de lado, a mutante estendeu a mão em direção à ampola. Esperara encontrar um recipiente pequeno. Seus dedos fecharam-se em torno da ampola quando leu a anotação junto ao suporte. Eram apenas umas poucas palavras:
Hutwasd — C-3 — 0,75 cudd...
Hutwasd era um dos ocupantes do zoológico dos aras. Com exceção da cabeça, monstruosa, tinha um aspecto bastante humano. No que dizia respeito à inteligência, situava-se acima dos homens. Apesar disso, os aras o haviam enquadrado na categoria C-3, que era aquela na qual também Rodrigo estava catalogado.
0,75 cudd correspondiam a três centímetros cúbicos.
Laury Marten não conseguiu prosseguir na leitura. Um dos robôs virara-se em sua direção.
Era o controlador!
Em sua testa metálica achatada, um diafragma abriu-se por uma fração de segundo, deixando a descoberto uma lente fluorescente dirigida exatamente sobre Laury.
Naquele instante, não só o alarma estava soando no setor de Defesa de X-p, mas até seu retrato estava sendo apresentado. Dentro de alguns minutos, todos os aras que se encontravam no gigantesco centro de pesquisas saberiam que a arcônida Arga Slim fora observada quando estava furtando uma porção do soro secreto.
O disparo da arma de radiações contra o robô foi um movimento de puro reflexo. O raio derreteu seu cérebro positrônico. Laury saltou para o lado, segurando a ampola de soro na mão, e o corpo metálico caiu ao chão, produzindo um ruído enorme.
O alarma não estava soando?
O próximo disparo de Laury Marten desfez o aparelho de comunicação audiovisual. Laury examinou o teto, enfiou a ampola num bolso interno, correu em direção à porta, subiu ao armário que se encontrava junto desta e fez com que o teto perdesse a coesão molecular. A mutante passou as mãos por este, segurou-se nas bordas estáveis e puxou o corpo para cima.
Viu-se diante de um velho ara que tremia que nem vara verde. O homem não conseguia compreender como a moça conseguiu atravessar o soalho do laboratório. Laury colocou-se de joelhos e apontou a arma de radiações para o ara.
— Vire-se! — gritou. Subiu a uma mesa e, dali, escalou outro armário. Mais uma vez fez, com que o teto se tornasse “transparente” e viu-se diante de Sagala, que viera da sala contígua por ter sua atenção despertada por um ruído.
Laury Marten só havia visto o chefe do zoológico galáctico uma única vez e só trocara poucas palavras com ele. Enquanto Laury Marten apontava-lhe o radiador, Sagala respirava com dificuldade. Naquele instante era apenas a agente de Rhodan, fria e bem treinada.
— Sagala — ordenou ao chefe do zoológico, que na escala hierárquica ficava ainda acima de Man Regg. — Acho que o senhor me ajudará a sair deste edifício. Ou será que prefere morrer neste instante?
Sagala não respondeu, não fez o menor movimento, apenas fitou a moça que estava com a arma na mão.
No setor X-p, as sereias de alarma continuavam a uivar. Os alto-falantes transmitiram a advertência do Centro de Defesa:
— Todas as saídas estão bloqueadas por robôs de combate. Quem se atrever a sair do setor X-p será destruído.
Num tom que quase chegava a ser gentil Laury perguntou a Sagala:
— Não quer ter a bondade de acompanhar-me a uma das saídas? É justamente na sua presença que me sinto mais segura. Por favor, Sagala!
O chefe do zoológico cedeu à ameaça da arma. Enquanto passou por ela, dirigindo-se à porta, chiou:
— A senhora não irá longe, sua espiã arcônida!
Descreveu uma curva enorme em torno do lugar em que Laury penetrara pelo soalho. Não confiava na resistência daquela área. Quando se virou e viu que a mulher passava tranqüilamente por ali, empalideceu.
Quando chegou à porta, seu rosto adquiriu a cor da cera, pois Laury Marten lhe gritara uma advertência:
— Sagala, antes que o senhor possa dar o alarma, apertarei o gatilho.
Sagala nem desconfiava de que a moça lia seus pensamentos, mas a advertência reforçada pela ameaça roubou-lhe o resto de disposição máscula. Tremendo de covardia saiu para o corredor, seguido de perto por Laury.
John Marshall sobressaltou-se em meio ao sono profundo.
A mensagem telepática expedida por Laury Marten atingiu-o com uma intensidade tremenda.
Quais seriam as notícias que pretendia dar-lhe?
Uma fuga através do zoológico? Quem estava com ela? O conde Rodrigo de Berceo? O que acontecera? Naquele instante, o setor X-p estava alarmando todo o planeta e mobilizava os guardas do zoológico, os terríveis froghs.
— Não poderia deixá-lo na mão, John Marshall. Neste momento estamos fugindo na direção sul-sudoeste e procuramos mergulhar no deserto com o carro.
John Marshall soltou uma praga e vestiu-se apressadamente. Sua partida parecia agora uma fuga precipitada. Apesar de tudo, não perdeu a visão de conjunto da situação. Sempre que se lembrava de Laury Marten, fervia por dentro. O que haveria com essa moça? Estaria apaixonada por Rodrigo de Berceo? Só agora estava sabendo disso!
— Está ficando maluca! — desabafou John Marshall, mas esse desabafo em nada alterava o fato de que o alarma estava soando em todo o planeta dos aras e todo um mundo estava saindo à caça da mutante Laury Marten e de Rodrigo.
John Marshall teria esbravejado ainda mais se soubesse que caminho Laury Marten havia tomado para sair do setor X-p.
Mal atingira o pavimento térreo, sempre acompanhada de Sagala, quando três robôs de combate surgiram diante da saída do elevador antigravitacional, seguidos por mais de uma dezena de aras muito exaltados.
— Está aqui! — gritou Sagala num gesto de desespero, esperando ser morto pela arcônida, quando subitamente não havia mais ninguém atrás dele. Graças à sua força desintegradora Laury Marten atravessou as paredes do setor X-p, atravessou laboratórios e outras instalações, transformando-se num fantasma para muitos aras, que a viam sair da parede, atravessar a sala e desaparecer na parede oposta.
Finalmente atingiu o ar livre, bem longe das saídas vigiadas. Logo encontrou um veículo à luz das estrelas. Saiu em disparada, penetrando no zoológico galáctico, em direção ao lugar em que há quatro séculos seres humanos estavam sendo mantidos presos atrás de grades de radiações, como se fossem animais.
Agzt, o frogh que levitava num estado eufórico, desligou a barreira energética quando viu Laury aproximar-se com o carro. O monstro viperino, que se agitava numa alegria tumultuosa, nem percebeu que com isso pronunciara sua sentença de morte. Os froghs, despertados pelo alarma, acorreram de todos os lados e viram com seus penetrantes olhos de notívagos que um dos ocupantes do zoológico estava entrando num carro. Perceberam como a fuga se tornara possível, e a vida de Agzt cessou.
Laury Marten acelerou o carro ao máximo, dirigindo-se para sul-sudoeste a fim de sair do zoológico e mergulhar no deserto juntamente com Rodrigo.
John Marshall nunca achara o caminho até o espaçoporto de Trulan tão longo como nessa noite.
Finalmente chegou ao distribuidor. Marshall saiu ligeiro do trem expresso, atirou-se no antígravo, abriu caminho entre a confusão de gente e de inteligências humanóides e por fim se conteve, para não chamar a atenção em virtude da pressa.
Seu pequeno veículo espacial, que Otznam acabara de trazer da nave cilíndrica de Rohun, encontrava-se na extremidade oposta do espaçoporto de Trulan.
Entrou no apertado distribuidor. Tratava-se de um sistema de elevadores que penetrava no subsolo, onde as faixas rolantes se cruzavam em vários níveis, passando por baixo do campo de pouso nas direções mais diversas, a fim de que os tripulantes e passageiros das naves pudessem atingir os veículos espaciais pelo caminho mais rápido.
John Marshall, o mais antigo dos mutantes de Rhodan, sentiu-se um pouco mais tranqüilo. No entanto, não deveria pensar no comportamento incompreensível de Laury Marten.
O simples fato de que ela se apaixonara por Rodrigo não o abalou; não podia haver nada que fosse mais humano.
Acontece que Laury só o informara sobre isso num pedido de socorro telepático, e era isso que Marshall não compreendia.
Era um abuso de confiança. Isso mesmo! E quem sabe se a moça ainda lhe ocultava outras coisas?
Quando chegou ao fim da estrada deslizante e foi levado para cima por um elevador antigravitacional, viu-se sozinho. Olhou para todos os lados e saiu do elevador. Apenas o centro do porto espacial estava inundado pelas luzes, além das três áreas onde se situavam os gigantescos estaleiros nos quais podia ser reparada qualquer nave, por maior que fosse.
John Marshall enxugou o suor da testa. Mesmo à meia-noite, Tolimon era uma mundo tão quente que qualquer esforço se transformava num martírio.
Sem deter-se e sem ser observado atingiu a pequena nave. Mesmo ao olhar de uma pessoa desconfiada, a nave pareceria um simples veículo de passeio. Na verdade, porém, era aquilo que Rohun, com certo exagero, designara como um couraçado. Era uma nave super-rápida e bem armada, que possuía a qualidade de poder ser manobrada nas camadas mais densas da atmosfera com a mesma facilidade com que o era no espaço vazio.
O propulsor estava esquentando. A localização, o aparelho de radiocomunicação, tudo estava entrando em funcionamento. John Marshall olhou para o relógio. Mais cinco minutos. Depois poderia decolar.
Três dos alto-falantes de microfone captaram mensagens.
O inferno estava às soltas em Tolimon.
O aparelho de localização confirmou o fato. Tudo quanto era nave policial estacionada nesse mundo dos aras encontrava-se no ar e disparou na direção sul-sudoeste.
E John Marshall teria que penetrar nesse montão de naves empenhadas na busca, para encontrar Laury Marten e Rodrigo, recolhê-los a bordo e fugir.
Os últimos cinco minutos do tempo de aquecimento haviam passado.
Marshall soltou uma praga e decolou. Estava empenhado numa missão na qual as chances dele e de Laury Marten eram inferiores a um por cento.
— Rodrigo, guarde a espada! Esse brinquedo me deixa nervosa — pediu Laury Marten, pela terceira vez, em tom enérgico, enquanto seu veículo desenvolvia a velocidade máxima, penetrando cada vez mais profundamente naquele triste deserto de pedra. Descreveu uma curva, subindo uma imensa encosta, e dobrou repentinamente à esquerda, para desviar-se de um desfiladeiro.
Com isso, aproximava-se dos froghs que encetavam a perseguição pelo sul. A resistência desses monstros viperinos dotados de muita inteligência a fez suar de medo. Já compreendera que, mais tempo ou menos tempo, cairia nas garras desses guardas zoológicos, a não ser que John Marshall viesse em seu auxílio.
Os froghs ganhavam terreno ininterruptamente. Estavam chegando mais perto.
— Segure-se, Rodrigo!
O filho de um nobre espanhol e de uma princesa asteca, que fora mantido por quatrocentos anos numa jaula energética, só uma única vez, quando foi raptado na Terra, tivera oportunidade de entrar em contato direto com a tecnologia dos mundos de Árcon. Para ele, o veículo em que se encontrava devia ser uma obra do diabo.
Não se segurou. Sua reação veio tarde. A cabeça tombou para a frente no momento em que Laury freou para desviar-se de uma pedra, descrevendo uma curva arriscada. Rodrigo de Berceo não chegou a ouvir o grito angustiado de Laury Marten:
— Rodrigo!
O corpo inconsciente estava pendurado no cinto; a cabeça balançava de um lado para outro.
A noite passou. O dia estava raiando em Tolimon. O alvorecer cinzento surgiu e, também, a mensagem telepática de Marshall.
Queria que ela lhe desse sua posição.
Laury Marten não sabia em que ponto do deserto se encontrava.
O carro estava penetrando num vale estreito. As montanhas gastas pelo tempo aproximaram-se, transformando o vale num desfiladeiro. Naquele instante um raio azul-pálido penetrou naquela estreita passagem, algumas centenas de metros à sua frente. A energia mortífera gaseificou a rocha.
Eram as naves policiais dos aras!
A caçada estava sendo feita também pelo ar.
John Marshall devia ser capaz de localizar o desprendimento de energia.
Enquanto o veículo freado começou a derrapar, passando rente ao paredão, Laury ainda teve sangue-frio para informar Marshall sobre o ataque da nave dos aras.
— Já consegui — foi a resposta.
Poucos segundos depois, um minúsculo sol surgiu sobre o deserto do planeta Tolimon. O fogo deste consumiu a nave dos aras cujo raio azul-pálido só errara a nave de Laury por algumas centenas de metros.
Em meio a essa orgia de luzes, surgiu a nave de John Marshall, enfiou-se no vale estreito, sobrevoou a rocha que continuava a fervilhar, pousou a menos de vinte metros de Laury Marten. Marshall já estava de pé na pequena comporta, gesticulando para que a moça se apressasse.
O conde inconsciente representava uma carga excessiva para Laury Marten. John Marshall saltou e correu. Tirou o homem inconsciente dos braços da moça e berrou:
— Vamos embora!
A vinte metros do lugar em que se encontravam, a pequena nave transformou-se numa nuvem gasosa. Um raio energético vindo do céu cinzento atingiu a nave, chegou a alcançar o carro, onde provocou um chiado e um borbulhar. Não havia mais nenhum veículo, apenas três seres humanos, dois dos quais corriam para salvar a vida. Corriam de volta, na mesma direção da qual vinham os froghs!
— Vamos! — gritou John Marshall para Laury Marten e Rodrigo. — Os froghs ainda estão atrás de nós. Este foi o terceiro e...
Viu a expressão de pavor nos olhos de Laury. Virou-se instantaneamente.
O quadro com que se deparou apertou-lhe a garganta.
Os froghs vinham de três lados. Aproximavam-se das vítimas numa velocidade tresloucada.
O conde Rodrigo de Berceo, já refeito, passou rapidamente por cima do barranco e, com a espada desembainhada, correu ao encontro de um dos froghs.
— Que idiota! — esbravejou Marshall, e suas armas de impulsos chiaram.
Mas o quinto frogh ainda estava vivo. E Rodrigo corria em sua direção. John e Laury não poderiam atirar sem colocar a vida de Rodrigo em perigo.
— Para trás! — berrou Marshall num tremendo desespero.
Era tarde.
Marshall fechou os olhos. Não queria assistir à morte do conde.
Laury soltou um grito estridente:
— Está dando outro golpe de espada.
O conde Rodrigo de Berceo, nascido em 1.652, no México, estava provando que era o melhor espadachim de seu século.
O corpo gigantesco do frogh girou, o monstro soltou um berro, ergueu o terço anterior do corpo, as oito ou dez “pernas” dobraram-se e o animal rolou de lado para não se mexer nunca mais.
— Será que este sujeito ficou maluco? — gemeu Marshall quando viu o conde Rodrigo de Berceo aproximar-se daquela criatura, para logo em seguida dar um enorme salto para trás a fim de escapar à boca do frogh que procurou agarrá-lo.
Foi o último movimento do inimigo subjugado. John Marshall sentiu a expressão de felicidade no olhar da mutante. Olhou para Laury.
— Se este conde soubesse adaptar-se à nossa técnica com a mesma habilidade com que maneja a espada e emprega sua coragem, talvez teríamos uma chance de sair vivos disto aqui.
Olhou Laury Marten.
— Por que fica mexendo nesse bolso? — perguntou em tom contrariado. A duração da fuga, a sede que torturava todos eles, as lutas diurnas e noturnas com os froghs, tudo isso contribuiu para criar uma tensão extrema.
— Quer saber o que tenho no bolso? É isto.
Tirou a grande ampola com o soro revitalizador.
John Marshall fitou o cilindro de vidro, depois passou a olhar a mutante. Naquele momento, Rodrigo já voltara a juntar-se a eles. Só então o telepata conseguiu gaguejar:
— É só agora que a senhora me conta isso? Santo Deus, Laury Marten, isso só representa metade do caminho andado? Como pôde esquecer de me avisar?
Laury guardou cuidadosamente a ampola e disse:
— Pois eu lhe transmiti a informação de que conhecia o lugar em que estava guardado o soro...
— Mas só agora me comunicou que a senhora já o conseguiu, Laury. É uma diferença considerável.
Para remate da confusão, Rodrigo achou que devia assumir o papel de protetor. Falando em tom enfático, disse:
— Quando tivermos voltado ao México, Laury levará uma vida digna de sua condição no castelo dos meus antepassados. Será venerada pelas damas da corte e pelos pajens, será admirada...
— Coitado... — interrompeu-o John Marshall, sacudindo a cabeça. — Temos que prosseguir no nosso caminho. Se não encontrarmos água até hoje de noite, estaremos perdidos.
Já era noite, e nada de água. As montanhas desérticas irradiavam um calor igual ao do meio-dia. O ar era seco e escaldante. De todos os lados, o vento tangia nuvens de pó.
Três seres humanos cambaleavam através do vale, subiram pesadamente a primeira montanha, desceram aos tropeções, caíram, voltaram a pôr-se de pé, começaram a enxergar alucinações, soltavam gritos nervosos...
Estavam sendo golpeados pelo deserto selvagem e desolado de Tolimon. E os golpes eram mais cruéis que os dos aras e dos froghs.
Laury Marten foi a primeira que ficou parada e caiu. Também Rodrigo caiu de joelhos. Quando Marshall se virou para ver por que ninguém o seguia, suas forças também haviam chegado ao fim.
A sede os enlouquecia. Os lábios rachados e os olhos inflamados deixavam-nos desesperados. Enquanto cambaleava para trás, Marshall descobriu a caverna.
Uma esperança nascida do desespero surgiu em sua mente. Associou a palavra caverna à idéia de água.
Realmente encontraram água.
A poça refletiu a luz da lanterna. Era uma poça de cerca de cinco centímetros de profundidade e três metros de diâmetro.
— Água! — balbuciou Rodrigo e deixou-se cair de joelhos para sorver o líquido. Naquele instante um radiador de impulsos chiou a seu lado e numa fração de segundo evaporou o líquido da poça.
John Marshall sentira o mau cheiro e agira sem perda de tempo.
Com um grito tresloucado, o conde atirou-se sobre o telepata. O punho de John Marshall teve mais força que o do nobre, pois este ainda continuava debilitado. Rodrigo caiu sem dizer uma palavra. John sentiu o olhar desesperado de Laury e logo ouviu seus soluços secos e desinibidos.
Será que o fim seria ali, numa caverna cuja temperatura era suficientemente baixa para restituir a três homens, sem que eles o percebessem, apenas a força suficiente para que pudessem raciocinar?
“Hipercomunicador”, cochichou alguma coisa num incerto local do cérebro de Marshall. E, depois de longa espera, novamente: “Hipercomunicador.”
Acontece que por ocasião da destruição de sua nave também o hipercomunicador fora gaseificado. Foi só graças à sua precaução que estavam equipados ao menos com um bom sortimento de armas de radiações. Se não as tivesse levado quando pretendia recolher Laury e Rodrigo, o resultado da caçada dos froghs teria sido bem diferente.
— Descobri! — gritou John Marshall. As paredes da caverna devolveram o eco. — Não perguntem nada... não perguntem nada — cochichou, antes que pudessem investir contra ele com perguntas. — Preciso concentrar-me... concentrar-me ao máximo...
Estava quase louco de sede. Apesar disso, devia transmitir seus impulsos telepáticos com a potência máxima, devia realizar alguma coisa que mesmo em condições normais representaria um máximo de desempenho. Se qualquer processo de mentalização exige certo dispêndio de energia, o impulso telepático representa um múltiplo dessa energia.
Rohun teria que ajudá-los. Rohun devia aparecer. Neste instante, Rohun devia cumprir sua promessa.
Concentração... Não conseguiu realizá-la.
Dispunha de um meio de entrar em contato com Rohun, comandante dos saltadores. O hipercomunicador.
— Só falta um copo de água, John Marshall. — O martírio da sede retornara à sua mente, roubando-lhe as últimas reservas de energia. — Beber, beber apenas um gole de líquido fresco!
Bateu com as mãos na cabeça. Procurou espantar o martírio da sede. Concentrar-se. Concentrar-se ao máximo.
Não desistiu. Perry Rhodan nunca desistira. Não poderia abandonar Perry Rhodan. Este nunca abandonara seus colaboradores quando se encontravam em situação difícil.
Agora... Mas nada, nada. Outra tentativa. Mais outra.
Isso!
O impulso telepático chegara ao destino. Teria sido bastante forte para ligar o fantástico aparelho suplementar instalado sob o telhado de seu alojamento situado num cortiço?
Apalpar... apalpar em direção a Trulan, para certificar-se de que não se entregava a qualquer ilusão.
O hipercomunicador estava funcionando. Tinha certeza. Certeza absoluta.
Novo impulso energético dirigido ao aparelho suplementar. A regulagem telepática para a faixa de Rohun.
De repente, John Marshall sentiu-se forte. Superara a loucura da sede.
Ouviu a voz do comandante dos saltadores.
Sim, e agora... agora o aparelho estava processando os impulsos telepáticos, transformando-os em palavras. O condensador e o deformador foram intercalados. Nenhum ara seria capaz de acompanhar a troca de mensagens.
— Irei até aí, Ixt! — foram estas as últimas palavras de Rohun.
Esperaram.
Rohun estava furioso. Contemplou Otznam e Tulin com os palavrões mais fortes de seu repertório. John Marshall, Laury Marten e Rodrigo assistiram à demonstração de fúria sem dizer uma palavra. Otznam e Tulin nem conseguiram falar.
— Será que vocês estão sendo cavalgados por todos os demônios das galáxias? Como puderam trazer essa gente a bordo? Coloquem-nos na nave auxiliar, e desçam com eles para Tolimon. Quem terá sido o idiota que concebeu uma idéia como esta?
Mas para que tantas palavras? Levem-nos de volta para Tolimon. Levem-nos ao lugar que escolherem, mas não assumam qualquer risco. Não estou com vontade de ser transformado numa nuvem de gases juntamente com todas as naves de meu clã. Fora!
Marshall já se encontrava junto à escotilha quando o saltador o chamou de volta. O mercador galáctico lutava com o patife que havia dentro dele.
— Ixt — disse em tom deprimido. — Mantenho minha palavra. Otznam e Tulin...
— Está bem — interrompeu John Marshall. — Se os agentes do senhor nos levarem sãos e salvos até Tolimon, continuaremos amigos.
Estava sendo sincero, pois era quem melhor podia avaliar o que o mercador galáctico arriscara para salvá-los. Seria uma desfaçatez pedir que Rohun fizesse mais do que isso, pois traria o perigo de ele e seu clã serem destruídos por um golpe implacável dos aras.
Dali a pouco, estavam os cinco na pequena nave auxiliar, que os levaria de volta para Tolimon, um mundo dos aras.
Trulan, capital de Tolimon, estava do lado diurno. Otznam preferiu não arriscar a aproximação por esse lado.
— O ar está fervilhando de impulsos de localização — disse em tom desanimado e apontou para os instrumentos que reagiam constantemente.
Marshall estava acomodado no assento do co-piloto. Não via nenhuma possibilidade de pousar sem ser notado. Devia haver outra circunstância que desencadeara novo alarma no mundo dos aras. Naquela altura, nem desconfiara de que ele mesmo era o motivo desse alarma.
Mais uma vez, Tulin olhou-o de lado. O olhar despertou a atenção do telepata e fez com que este lesse os pensamentos do agente dos saltadores.
Por coincidência, Tulin se encontrava ao lado do comandante Rohun quando o mercador recebeu o pedido de socorro de Marshall. Nem o comandante nem ele mesmo haviam reconhecido a voz de Marshall. Apenas a senha lhes deu certeza de que a mensagem não era uma armadilha.
— O que houve com o senhor? — indagou o telepata ao agente ruivo.
— Fico me perguntando todo o tempo onde está o hipercomunicador com que nos chamou, Ixt. Quando pousamos junto à caverna, o senhor não tinha nenhum hipercomunicador. Além disso, quando recebemos o chamado, até parecia que as palavras estivessem sendo pronunciadas por um cérebro positrônico. O que Rohun e eu ouvimos não foi uma voz humana.
— Aqui está meu hipercomunicador — mentiu Marshall com o maior sangue-frio, exibindo seu cronômetro. — Isto é o alto-falante, e esta saliência pequenina contém o microfone. Nem sempre um hipercomunicador tem que ser um aparelho gigantesco.
Marshall sabia perfeitamente que estava usando um blefe infame, mas não tinha outra alternativa.
Os dois saltadores arregalaram os olhos.
— O hipercomunicador está dentro daquilo?
Otznam não acreditava numa palavra do que Marshall acabara de contar. Este leu o que pretendia dizer quando surgiu uma nave dos aras e tomou a direção do ponto em que se encontravam.
— Oba! — gritou o saltador. — Agora é para valer!
Antes que Marshall pudesse esboçar qualquer reação, Otznam colocou a minúscula nave de cabeça para baixo e disparou numa velocidade infernal em direção ao planeta Tolimon.
Marshall compreendeu as intenções do agente.
Otznam dirigia-se ao espaçoporto policial dos aras. O tráfego por ali era intensíssimo. E esse tráfego era sua única chance de escaparem aos aparelhos de localização, mergulhando em meio à confusão de naves que decolavam e pousavam.
A atmosfera, que já se tornara mais densa, começou a uivar em torno da nave. Otznam desceu numa velocidade medonha. A nave dos aras que os perseguia não esperara a manobra e demorara demais para modificar a rota. O agente dos saltadores ganhou alguns segundos muito preciosos.
— Preparem-se para saltar! — gritou John Marshall, dirigindo-se a Laury Marten e Rodrigo. Tal qual os outros, também o homem do século XVII estava enfiado num traje espacial arcônida de boa qualidade. Laury Marten vivia tentando explicar a Rodrigo o que era um campo de deflexão, como se voava num traje espacial, o que vinha a ser a gravidade e como a mesma podia ser neutralizada. O conde não compreendia nada.
— Muito obrigado, saltadores! — gritou Marshall para Tulin e Otznam quando, seguindo os companheiros, se enfiou na pequena comporta e fechou-a atrás de si.
A cinqüenta quilômetros de altura os três abandonaram a nave.
O conde Rodrigo de Berceo flutuava entre os outros. Mais uma vez acreditava que se tratasse de uma arte do demônio quando viu que pouco acima deles Otznam, o agente dos saltadores, girou a nave e disparou para o espaço. Desceram na vertical. Marshall e Laury Marten sabiam que suas presenças podiam ser constatadas pelas estações de superfície. Quanto mais depressa chegassem até ela, maiores seriam suas chances.
Rodrigo se debatia, pendurado num cabo de plástico. Acreditava ter chegado ao fim da vida e pensava que estava descendo às profundezas do inferno. Perdera a noção do tempo. Soltou um grito de pavor quando uma pressão invisível ameaçou esmagá-lo. Nesse instante, Marshall soltou um “graças a Deus”.
Pousaram a menos de um quilômetro do espaçoporto policial e junto a uma estrada.
— Saiam dos trajes espaciais! — ordenou Marshall. — Enquanto usarmos estes trajes, todo mundo desconfiará de nós.
Esconderam os preciosos trajes arcônidas na moita mais próxima. Marshall lançou os olhos pela noite, para examinar o espaçoporto policial profusamente iluminado. Brincava cada vez mais intensamente com a idéia de arriscar, a partir dali, o salto para Trulan. Laury, que conhecia seus pensamentos, entusiasmou-se com o plano. Quando disse:
— Dentro de três horas será dia. Marshall respondeu num tom que quase chegava a ser ameaçador:
— Nessa hora, já estaremos em Trulan! Dali a uma hora, haviam chegado ao espaçoporto policial dos aras mas, por mais que lançassem os olhos em torno, não descobriram nenhuma nave que pudesse servir aos seus propósitos.
Finalmente uma pequena nave-correio surgiu da escuridão e pousou no campo espacial. Levava dois homens. Um dos aras saiu da nave. O piloto cochilava no seu assento.
John Marshall e Laury Marten dividiram a presa. Laury encarregou-se do ara, que entrou num carro e foi levado ao edifício da administração. Marshall já estava trabalhando o piloto com seu projetor mental. Depois disso, o homem não poderia ficar admirado ao ver três pessoas entrarem no aparelho e pedirem que as levasse a Trulan.
Laury Marten ficou perplexa com os pensamentos que extraiu do cérebro do oficial ara.
O tumulto reinante em Tolimon fora provocado por John Marshall. Era ele que estava sendo procurado febrilmente pelos aras. Estes dispunham de provas cabais de que o mutante de forma alguma poderia ser Ixt, o mercador galáctico.
— Tudo pronto, Laury Marten! — disse Marshall e levantou-se. — Encareça ao conde a necessidade de não dizer uma única palavra, aconteça o que acontecer. Laury, a senhora responde por ele.
Mais uma vez, caminharam com o conde entre eles. Laury cochichava ininterruptamente para ele.
Encontraram-se com três aras. Passaram a menos de três metros. Dois tratamentos hipnóticos de curta duração influenciaram os médicos galácticos pela forma desejada. A nave-correio surgiu diante deles. A comporta estava aberta e a rampa havia sido descida. O piloto nem sequer se virou quando John Marshall parou junto à comporta interna para deixar que Rodrigo e Laury Marten passassem à sua frente.
— Tudo pronto? — perguntou o ara que se encontrava no assento do piloto.
As escotilhas da comporta fecharam-se com um chiado.
— Tudo pronto! — respondeu John Marshall com a maior tranqüilidade, embora tremesse por dentro.
Será que o serviço de controle do espaçoporto não ficaria desconfiado ao notar que uma nave decolava sem aviso?
Corriam atrás da noite que deslizava pelo planeta de Tolimon. Quando Trulan surgiu à sua frente, o crepúsculo começava a descer sobre a capital planetária.
Foi quando o serviço de controle constatou sua presença. Exigiu informações sobre as características da nave. O piloto identificou o aparelho. No mesmo instante o ara que se encontrava no setor de controle do espaçoporto de Trulan demonstrou uma gentileza extraordinária.
— Reservamos a posição de estacionamento número onze para o senhor e mandaremos um carro.
Marshall e Laury Marten trocaram um olhar ligeiro. Jogariam seu jogo atrevido até o fim.
Por que andar se insistiam em levá-los de carro? E onde poderiam estar mais seguros que num veículo da policia ou do serviço secreto dos aras?
O piloto — que fora influenciado apenas no setor da inteligência, para não se preocupar com o destino do vôo e a identidade dos passageiros e retornar imediatamente ao espaçoporto policial — pousou levemente na posição número 11.
O carro já os esperava.
Os mutantes não perderam nem um segundo. Submeteram o motorista e o oficial do serviço secreto à força sugestiva.
Mais uma vez, Marshall foi o último a entrar, com o radiador de impulsos engatilhado no bolso.
E mais uma vez, não aconteceu coisa alguma.
— Aonde vamos? — perguntou o motorista, virando-se para os passageiros, enquanto o ara do serviço secreto olhava fixamente para a frente, sem tomar conhecimento da presença deles.
— Para a Rua do Grande Mo — respondeu Marshall.
Foi quando surgiu o incidente com o qual não contavam.
A central do serviço secreto dos aras chamou justamente o carro em que iam.
O motorista e o oficial não reagiram ao chamado.
O chamado foi repetido. Marshall decidiu levar o atrevimento ao grau de uma insolência inacreditável.
Obedecendo à ordem de Marshall, reforçada pelo projetor mental, o motorista gritou para dentro do microfone:
— Viatura KK-107 em missão especial. Objetivo tem de ser mantido em segredo, porque existe perigo de escuta. Voltarei a chamar dentro de meia hora. Fim.
— Desligue o transmissor — ordenou Marshall.
O motorista desligou.
Com a segurança de um sonâmbulo, o piloto fazia a viatura policial correr em direção à Rua do Grande Mo. John Marshall não se interessava nem pela confusão do tráfego, nem pelos movimentos da multidão. Procurou captar os pensamentos de Futgris, para descobrir as novidades ocorridas durante sua ausência.
Futgris não estava mais na loja dos animais.
Não havia nenhum vendedor por lá!
Em compensação, havia aras. Eram nove elementos do serviço secreto, que naquele instante revistavam cuidadosamente o escritório.
“Acabarão encontrando o novo aparelho de telecomunicação!”, foi esta a primeira idéia que acudiu a Marshall.
— Onde devo parar? — perguntou o motorista hipnotizado em meio às suas reflexões.
— Aqui não — respondeu Marshall laconicamente. — Novo destino da viagem: a coluna do Grande Mo.
O motorista não se espantou. O oficial sentado a seu lado olhava fixamente para a frente. O projetor mental de Laury Marten mantinha-os em estado hipnótico.
John Marshall não via nem ouvia mais nada. Concentrou-se. Pensava em seu escritório. Pensou na pequena bomba incendiaria que havia no interior do mesmo. Encontrava-se sobre a escrivaninha e, sem o envoltório que a camuflava, não era maior que uma noz.
— Deflagrar! — ordenaram seus pensamentos.
Aquela impressão voltou a surgir atrás de sua testa. Era algo de indefinível; parecia que um contato se fechava.
Marshall respirava pesadamente; reclinou-se no assento. Tinha certeza de ter conseguido. Dali a pouco, as sereias de alarma soariam na Rua do Grande Mo e a casa de animais de Ixt ficaria queimada até os alicerces. O fato de que, dali a alguns dias, os aras ainda se esforçariam para descobrir por que aquele fogo, parecendo tão inofensivo, não pôde ser apagado de forma alguma, não o preocupava nem um pouco.
Mais uma vez, a central do serviço secreto dos aras chamou:
— Viatura KK-107, responda imediatamente e...
De repente, John Marshall teve um sexto sentido para o perigo.
— Pare! — disse ao motorista.
O carro ainda estava andando quando Marshall saltou, puxou Laury Marten e arrastou Rodrigo. Naquele instante, viu duas viaturas do serviço policial pararem do outro lado.
Dali a quatro horas, quando a porta de aço arcônida se fechou atrás deles, Rodrigo de Berceo contemplou o alojamento de Marshall com um olhar de desprezo e Laury Marten sorriu pela primeira vez. Naquele instante, John Marshall sabia perfeitamente que a caçada dos aras ainda não havia chegado ao fim.
A pista que tinham deixado era muito nítida.
Esta pista se chamava Rodrigo de Berceo, o homem que usava botas cujos canos iam até os quadris, calça apertada no corpo, colete sem mangas com rendas no decote e chapéu de aba larga encimado por um penacho balouçante.
Rodrigo de Berceo levaria os aras ao esconderijo na área dos cortiços.
— Temos uma bela perspectiva diante de nós — disse Marshall, absorto em seus pensamentos, e sacudiu a cabeça ao olhar para Laury Marten.
Esta não resistiu ao olhar. Sentada sobre a cama, baixou a cabeça.
Perry Rhodan aguçou os ouvidos. O hipercomunicador da abóbada de aço de Hellgate chamou.
Era outra mensagem de John Marshall.
Desta vez foi uma mensagem mais longa. À medida que Perry Rhodan ouvia, seu rosto tornava-se mais sério. Só uma vez exprimiu uma alegria imensa; foi quando Marshall o informou sobre a ampola de soro.
— E os saltadores? — perguntou em tom áspero.
John Marshall não conseguia estabelecer contato com eles. Haviam-se retirado. O assunto era muito arriscado.
— Nesse caso irei pessoalmente. Não faça mais nada. Cuide bem do soro. Agüente até minha chegada, Marshall. Demorarei alguns dias.
Kurt Brand
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