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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SORRISO DO DIABO / Régine Deforges
O SORRISO DO DIABO / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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1944, a Segunda Guerra Mundial caminha para seu desfecho. É o momento do ajuste de contas, marcado por batalhas violentas. Neste terceiro volume da série A bicicleta azul, a jovem Léa Delmas envolve-se nas operações da resistência francesa e convive intensamente com o perigo. Afastada do seu amor, François Tavernier, ela tem que lutar para reencontrá-lo com as mesmas forças com que combate os inimigos alemães. Paixão, aventura e honra são os ingredientes que fazem dessa série uma saga envolvente e emocionante.

 


 


Capítulo 1

PARA LÉA começou, então, uma longa espera.
Os dias doces e chuvosos desse início de 1944 mudaram bruscamente na manhã de 14 de fevereiro e a temperatura baixou até cinco graus negativos.
Durante quinze dias, o vento Norte lutou contra a neve. Por fim, em meados de março, o tempo se aqueceu novamente, anunciando que a primavera se aproximava.
Em Montillac, Fayard, inquieto, observava o céu — nem uma nuvem, e há
muito que não chovia. Aquela seca desesperava os agricultores, que não sabiam
como alimentar o gado e comprometia a próxima colheita de forragem.
As relações entre os moradores do "castelo" e Fayard, o encarregado das
adegas, chegaram ao ponto de ruptura depois que um contador examinou os
livros da propriedade. Fayard viu-se forçado a reconhecer as vendas de vinho
para as autoridades da Ocupação, não obstante Léa o tivesse proibido e, antes
dela, o pai. Em sua defesa, o homem alegou que seriam os únicos proprietários
da região a não comercializar vinho com os alemães; a quem, aliás, já vendiam
desde muito antes da guerra, e a maior parte dos boches responsáveis daquela
região era de importantes negociantes de vinhos na Alemanha; tinham mesmo
agentes em Bordéus há mais de vinte anos. Alguns desses agentes eram
conhecimentos de longa data. Léa não se lembrava daquele velho amigo do
senhor d'Argilat que os visitara durante as vindimas de 1940?
A jovem recordava-se perfeitamente. Mas lembrava-se também de que seu
pai e o senhor d'Argilat haviam pedido ao honesto comerciante de Munique,
nessa época oficial da Wehrmacht, para não voltar a procurá-los enquanto
perdurasse a guerra.
Fayard reconheceu ter "posto de lado" as quantias provenientes dessas
transações, pois, sabendo das idéias da senhorita...
Garantiu, porém, que tencionava devolvê-las, De qualquer maneira, parte
dessa quantia fora empregada na manutenção e na substituição de material
agrícola. A senhorita não tinha idéia do custo do barril mais insignificante!
Mas Léa sabia, se sabia! O cheque generoso enviado por François
Tavernier fora acolhido com um suspiro de alivio pelo velho banqueiro de
Bordéus. Ele se sentia mal em pressionar a filha de seu antigo companheiro do
Liceu Michel Montaigne por causa de cheques sem fundos e letras por liquidar.
Infelizmente, as telhas da ala direita da casa tinham voado durante uma noite
de temporal e a conta bancária da propriedade estava novamente devedora, O
técnico mandado por Tavernier fizera um adiantamento, pensando ser
reembolsado dentro de pouco tempo, mas nem ele nem Léa recebiam notícias
de François desde meados de janeiro. Logo chegaria o final de março.
O contador terminou seu trabalho e diante dessa situação aconselhou-a
que negociasse com Fayard ou que apresentasse queixa por desvio de fundos,
Léa recusou as duas sugestões.
Sem o pequeno Charles, que, com seus gritos e brincadeiras, trazia um
pouco de alegria, a atmosfera de Montillac estaria sinistra. Cada uma das
mulheres, porém, fazia o maior esforço para esconder das outras a própria
angústia. Somente Bernadette Bouchardeau, por vezes, deixava que uma
lágrima lhe deslizasse pelo rosto magro. Camille d'Argilat vivia em suspense,
dia e noite, na escuta das mensagens da Rádio-Londres, esperando um sinal de
Laurent. Depois da morte do Dr.
Blanchard, Sidonie enfraquecera muito, e vivia entre a cama e a poltrona
instalada diante da porta. Desse posto, seu olhar abarcava todo o domínio e a extensa planície de onde subiam as fumaças das chaminés de Saint-Macaire e
de Langon. A passagem dos trens que atravessavam o Garonne marcava o
compasso das intermináveis horas solitárias e silenciosas.
A antiga cozinheira preferira regressar a Bellevue e todos os dias Ruth
levava-lhe comida. Também Léa, Camille e Bernadette passavam algum tempo
com ela. A doente resmungava, dizendo que perdiam tempo com visitas quando
tinham coisa melhor para fazer do que se ocupar com uma velha imprestável.
A própria Ruth, tão calma, também se sentia afetada por esse clima de
tristeza e de angústia. A dúvida assaltava-a pela primeira vez desde o começo
da guerra. O temor de ver surgir a Gestapo ou a milícia impedia que a sólida
alsaciana dormisse.
Para matar o tempo, Léa empenhava-se em revolver a terra da horta e em
arrancar as ervas daninhas que cresciam junto das cepas. Quando tal exercício
era insuficiente para cansar-lhe o corpo e entorpecer-lhe o espírito, pedalava
durante quilômetros, percorrendo os campos acidentados. De regresso a casa,
deixava-se cair no divã do escritório do pai, mergulhando num sono agitado e
pouco reparador. Quando despertava, quase sempre Camille estava a seu lado,
com um copo de leite ou um prato de sopa nas mãos. Trocavam então um
sorriso e ficavam caladas durante um longo tempo, olhando o fogo da lareira.
Quando o silêncio se tornava pesado demais, uma delas ligava o rádio sobre a
cômoda perto do divã, procurando captar a emissora londrina. Mas, devido a
interferências, cada dia se tornava mais difícil ouvir com clareza aquelas vozes,
agora tão preciosas, que lhes falavam de liberdade.
Honra e Pátria. Um prisioneiro fugido dos stalags, membro do comitê
diretor da Junta dos Prisioneiros de Guerra Franceses, François Morland lhes
fala.
Prisioneiros de guerra repatriados e fugitivos, meus camaradas dos grupos
de Resistência: em primeiro lugar, quero lhes repetir a boa nova..

Um crepitar abafou a voz do orador.
— Sempre a mesma coisa! Nunca saberemos que boa nova é essa —
exclamou Léa, desferindo grandes murros no aparelho.
— Espere. Sabe que isso não serve para nada — disse Camille, afastando a
amiga com suavidade.
Ligou e desligou o aparelho por diversas vezes. Estava quase desistindo
quando a mesma voz prosseguiu:
Em vosso nome, falei ao general De Gaulle da fé que nos anima. Também
em vosso nome, disse ao comissário Frenay, fugitivo, como nós, tudo aquilo que
constitui a nossa razão de viver. Mas esses homens, cujo mérito consiste em
acreditar no futuro, já haviam compreendido a esperança que acalentamos.
A volta das interferências permitiu que se ouvisse apenas alguns retalhos
de frases; depois cessaram bruscamente:
Mas o que eles exigem é mais amplo e mais generoso. Nos campos e nos
comandos aprenderam a se reconhecer, por isso, desejam agora uma pátria
livre das marcas do cansaço e do envelhecimento. E, porque se reencontraram,
querem uma pátria onde as classes, as categorias, os escalões se confundam
numa justiça mais forte ,que a caridade. E, porque, nas cidades e nos campos
do exílio, partilharam a mesma miséria com homens de todas as raças e de
todas as nações, aspiram a dividir com eles os benefícios da vida futura.
Sim, camaradas!, é por todos que combatemos e é por tudo isso que
escolhemos a luta. Recordemos o juramento feito no instante da partida, ao
deixar para trás os nossos. Eles nos diziam: "Acima de tudo não nos atraiçoem,
acima de tudo digam à França que venha ao nosso encontro com o seu mais
belo rosto".
Fugitivos, repatriados, os dos centros de auxílio mútuo, os dos grupos
clandestinos isolados, chegou o momento de cumprir essa promessa!
— Mais um idealista! — comentou Léa. — Ah, como é belo o rosto da
França! Esse tal Morland que venha ver aqui como é o rosto da França: inchado
de medo, de ódio e de cobiça, o olhar velhaco, a boca vomitando calúnias e
denúncias.
— Acalme-se, Léa! Você sabe muito bem que a França não é só isso, mas
também mulheres e homens como Laurent, como François, como Lucien, como
a senhora Lafourcade.
— Pouco me importa! — gritou Léa. — Essas ou já morreram ou vão
morrer e só os outros restarão.
Camille empalideceu.
— Oh, cale-se! Não diga uma coisa dessa.
— Ouça! As mensagens pessoais.

Aproximaram-se tanto do aparelho que as duas cabeças tocavam na
madeira envernizada.
Tudo se encarniça contra mim, tudo me assedia, tudo me tenta. Repito:
tudo se encarniça contra mim, tudo me assedia, tudo me tenta. Os patos de
Ginette chegaram bem. Repito: os patos de Ginette chegaram bem. A cadela de
Bárbara vai ter três cachorros. Repito: a cadela de Bárbara vai ter três
cachorrinhos. Laurent bebeu o copo de leite. Repito:
— Ouviu?
Laurent bebeu o copo de leite.
— Está vivo! Está vivo!
Rindo e chorando, lançaram-se nos braços uma da outra. Laurent d'Argilat
estava bem. Era uma das mensagens combinadas, informando-as de que não
deveriam se preocupar.
Nessa noite, tanto Léa como Camille dormiram tranqüilas.
Uma semana depois da Páscoa, um amigo comum, o açougueiro de Saint-
Macaire, que ajudara Adrien Delmas a fugir, veio visitá-las em sua camioneta.
O veículo fazia tanto barulho que as pessoas sabiam da sua chegada com
alguns minutos de antecedência. Quando o veículo entrou na propriedade,
Camille e Léa já se encontravam no limiar da porta da cozinha.
Com um amplo sorriso, Albert encaminhou-se para as duas jovens,
transportando um embrulho envolto num pano muito branco.
— Bom-dia, senhora d'Argilat. Bom-dia, Léa.
— Bom-dia, Albert. Que prazer em vê-lo! Há quase um mês que o senhor
não aparecia.
Oh!, dona Camille, hoje em dia não se faz o que se quer. Posso entrar?
Trouxe um belo assado e fígado de vitela para o pequeno. Mireille acrescentou
uma terrina de coelho. Depois me dirão se gostaram.
— Obrigada, Albert. Sem o senhor, quase não comeríamos carne aqui em
casa. Como está seu filho?
— Está bem, dona Camille. Ele disse que tem sido um pouco duro e que
sofreu muito devido às frieiras. Mas agora está melhor.
— Bom-dia, Albert. Quer uma xícara de café? — ofereceu a governanta —
Bom-dia, senhorita Ruth. Sim, com muito prazer. Café de verdade?
— Quase — respondeu, pegando a cafeteira que se conservava quente em
cima do fogão.
O açougueiro sorveu um gole e limpou os lábios com as costas da mão.

— Tem razão, é quase autêntico — admitiu ele. — Venham aqui. Tenho
coisas importantes para lhes dizer. Ontem recebi um recado do padre Adrien: é
possível que logo o vejamos por estas bandas.
Quando?
— Isso não sei. Conseguiram que os irmãos Lefèvre fugissem do hospital.
— Como estão eles?
— Estão sendo cuidados por um médico das redondezas de Dax. Assim
que se restabeleçam, irão se reunir ao grupo de Dédé, o Basco. Lembram-se de
Stanislas?
— Stanislas? — perguntou Léa.
— Aristide, se preferir.
— Sim, claro que me lembro.
— Voltou à região para reorganizar uma rede clandestina e punir traidores
que denunciaram camaradas.
— Trabalha com ele?
— Não, trabalho com os de La Réole. Mas como estamos no limite dos dois
setores, funciono como intermediário entre ele e Hilaire. É preciso que uma de
vocês vá avisar a Senhora Lefèvre que seus filhos estão bem.
— Eu faço isso — prontificou-se Léa. — Estou tão feliz por eles! Foi muito
difícil a fuga?
— Não, não foi. Tínhamos cúmplices dentro do hospital e os policiais de
vigia eram homens de Lancelot. Ouviram ontem a mensagem de Laurent na
emissora de Londres?
— Ouvimos. Depois de tantos dias de angústia, parece que as boas
notícias chegam todas ao mesmo tempo.
— Apenas para algumas pessoas. Não consigo deixar de pensar nos
dezessete rapazes de Maurice Bourgeois que esses bandidos fuzilaram em 27 de
janeiro.
Todos se lembraram da edição do La Petite Gironde de 20 de fevereiro, que
anunciava: Execução de Terroristas em Bordéus.
— Conhecia-os, Albert? — perguntou Camille em voz entrecortada.
— Conheci alguns deles. Naquela época prestávamos serviços uns aos
outros embora sejamos gaulistas e eles comunistas.
Gostava bastante de um deles em particular, de Serge Arnaud. Tinha a
mesma idade de meu filho. É triste morrer aos dezenove anos.
— Quando tudo isto vai acabar? — suspirou Ruth, enxugando os olhos.

— Espero que logo. É que nós não somos muitos. E os da Gestapo são
espertos. Depois das prisões, das deportações e das execuções no Gironde,
Aristide e os outros têm muita dificuldade para encontrar voluntários.
A campainha de uma bicicleta o interrompeu. A porta abriu-se e surgiu
Armand, o carteiro.
— Bom-dia, minhas senhoras. Uma carta para você, senhorita Léa. Espero
que seja bem mais agradável do que a que entreguei a Fayard.
— Mais uma carta do banco... — suspirou a jovem.
— Sabe o que havia dentro da outra? — prosseguiu Armand. — Não tente
adivinhar que não acerta. Uma urna.
As três mulheres exclamaram ao mesmo tempo.
— Uma urna?!
— É como lhes digo... uma pequena urna preta recortada num cartão. E
acho que vi inscrito nela o nome de Fayard — declarou o carteiro.
— Mas por quê? — Camille se surpreendeu.
— Ora, todos aqueles que colaboram com os boches têm recebido a mesma
coisa, avisando-os de que vão lhes arrancar a pele quando a guerra terminar.
— E isso por algumas garrafas de vinho — comentou Camille com
desprezo.
— Não só pelas garrafas, dona Camille — disse o açougueiro secamente.
Que quer dizer com isso, Albert? — perguntou Léa.
— Não há certeza, mas Fayard foi visto saindo da Kommandatur de
Langon pelo menos por duas vezes.
— Todos já fomos até lá por algum motivo.
— Claro, dona Camille. Mas os boatos correm e, além disso, há o filho.
Quando penso que o conheci garoto! Parece que ainda vejo vocês dois correndo
um atrás do outro pelo meio das vinhas, lambuzados de uvas. Lembra-se, Léa?
— Se me lembro! Mas parece que foi há muito tempo...
— Isso não vai contribuir para melhorar o humor de Fayard — interveio
Ruth, oferecendo um copo de vinho ao carteiro.
— Claro que não. Fayard ficou muito vermelho e depois empalideceu, ao
descobrir o que havia dentro do envelope. Saí sem dizer nada e me safei dali.
Num só gole, ele esvaziou seu copo:
— Isso não é tudo... Fico falando, fico falando... e ainda não terminei a
minha volta. Bem, até depois a todos. Até a próxima.
— Até logo, Armand.

— Preciso ir também — disse Albert, Léa acompanhou-o até o veículo.
— Dentro de alguns dias vão chegar armas em pára-quedas. Poderia
verificar se o esconderijo do Calvário não foi descoberto? Deve haver uma caixa
de cargas e outra de granadas.
— Irei amanhã.
— Se tudo estiver em ordem, trace uma cruz com giz branco na grade em
volta do anjo da encruzilhada — recomendou Albert.
— Combinado.
— Seja prudente. Seu tio não me perdoaria se alguma coisa lhe
acontecesse. E não confie em Fayard.
Tudo parecia normal na capela da encruzilhada; os caixotes estavam
intatos. Apesar do bom tempo, o Calvário estava deserto.
Na noite de 15 para 16 de abril, a chuva, caindo abundantemente, abrira
sulcos pelos caminhos em declive, acumulando nas zonas baixas montinhos de
detritos que escorregavam sob os pés.
Quando voltava para casa, Léa passou pelo cemitério. Deteve-se um pouco
junto ao jazigo dos pais, onde arrancou as ervas daninhas que escaparam aos
cuidados de Ruth. Não se via ninguém. Crianças gritavam por perto. "Hora do
recreio", pensou empurrando a porta da basílica. Estremeceu na umidade
glacial do interior.
Três velhinhas que rezavam voltaram a cabeça à sua entrada.
Mas o que estava fazendo ali? Sainte Exupérance em seu relicário tinha,
mais que nunca, o aspecto daquilo que era na verdade — uma grande boneca
de cera vestida com trajes empoeirados. Onde estaria a emoção de sua
infância? Onde estaria a maravilhosa imagem da pequena santa cujo nome ela
mesma havia adotado? Tudo aquilo estava se tornando ridículo e perigoso.
Um crescente mau humor a invadia. Uma vontade de mandar tudo para o
ar, de estar na Avenida Saint-Michel ou nos Campos Elísios com Laure e seus
amigos excêntricos, bebendo coquetéis de nomes e cores estranhos, dançando
nos bailes clandestinos ou ouvindo discos americanos proibidos, em vez de ficar
pedalando pelos campos e vinhedos para levar mensagens ou granadas, de
conferir contas e de aguardar, plantada diante do telefone, notícias de François,
de Laurent, ou do improvável desembarque dos Aliados. Estava farta de viver
no medo constante da chegada da Gestapo ou da polícia, da volta de Mathias e
da falta de dinheiro. François Tavernier deveria estar morto para não ter
mantido sua promessa. Esse pensamento quase a fez cair de joelhos. "Isso não,
meu Deus!" Acabrunhada, Léa saiu da igreja.
Uma enorme lassidão se apoderara dela. Seus sapatos de má qualidade,
com solas de madeira, pareciam pesar como chumbo. Quando passou diante da
última casa da aldeia, alguns cães magros seguiram-na por instantes, latindo, e
depois, tranqüilizados, voltaram para seus abrigos.

Na encruzilhada do anjo, Léa certificou-se de que não havia ninguém por
perto e marcou a grade enferrujada com uma cruz branca. Soaram seis horas
da tarde no campanário de Verdelais. Densas nuvens escuras varriam o céu.
Teria sido o apelo do vasto céu atormentado? Fosse o que fosse, Léa se viu
no caminho que conduzia à casa de Sidonie.
Suas dimensões mínimas eram irrisórias diante da imensidão da
paisagem. Como a velhinha teve razão ao querer voltar para Believue! Ali a
alma se evolava para a longínqua Landes, até o oceano ou perdia-se pelos céus
infinitos. Naquele ambiente familiar, Léa sempre experimentava a mesma
sensação de paz, um desejo de repouso, de sonho, de meditação, como teria
dito Adrien Delmas.
Um gemido veio arrancá-la desses pensamentos. Bela, a cachorrinha de
Sidonie, gemia baixinho, colada à porta. A jovem estendeu a mão para o
animal, que se pôs em pé, rosnando.
— Então, que é isso? Não me reconhece?
Ao ouvir a voz familiar, o bicho se aproximou da recém-chegada e deitou-
se a seus pés. Depois uivou sinistramente.
Subitamente inquieta, Léa empurrou a porta, entrando na casa.
No interior, reinava uma desordem incrível, como se um furacão tivesse
passado por ali, derrubando móveis, quebrando louça e dispersando a roupa e
os papéis. Os lençóis arrancados do leito e o colchão virado indicavam uma
busca insistente.
Quem teria se arremessado dessa maneira contra os míseros pertences de
uma velha enferma? Léa sabia a resposta, mas recusava-se a formulá-la.
— Sidonie! Sidonie! — chamou A cadela, agachada debaixo da cama, latia
de mansinho. A velha Sidonie jazia inconsciente, entalada entre a parede e a
madeira do leito. Léa conseguiu içá-la a custo e estendê-la em cima do colchão.
Tinha no rosto uma palidez terrosa, escorria-lhe da narina direita um fio de
sangue e na face esquerda havia um hematoma azulado.
Léa inclinou-se sobre ela. Da boca entreaberta saía um sopro hesitante.
Sob o decote da camisola de algodão branco viam-se marcas de dedos na pele
flácida do pescoço.
Bestificada, a jovem fitou o corpo estendido da mulher que, outrora, tantas
vezes lhe servira de consolo e lhe dera guloseimas escondido, quando a mãe ou
Ruth a castigavam. A lembrança dos momentos de carinho que ela lhe
dispensara no grande sofá do vestíbulo da cozinha de Montillac fez Léa soluçar,
ao mesmo tempo que gritava em voz subitamente infantil:
— Donie! Donie! Responda!
Lutando contra o entorpecimento mortal que a avassalava, a velhinha
descerrou as pálpebras. Léa atirou-se sobre ela.

— Por favor, Sidonie, fale comigo!
A mulher ergueu o braço lentamente e pousou a mão sobre a cabeça
inclinada. Seus lábios abriam e fechavam sem emitirem nenhum som.
— Faça um esforço — Léa insistiu. — Diga-me quem fez isto.
A mão da velha tornou-se mais pesada. A jovem colou o ouvido aos lábios
da moribunda.
— Fu... fu... fuja.
Depois a mão pesou ainda mais. Léa procurou libertar-se com suavidade,
murmurando:
— O que quer dizer?
Como que a contragosto, os dedos da mulher abandonaram a farta
cabeleira e o braço escorregou de repente, indo bater contra a madeira do leito
com um barulho oco. Bela recomeçou a uivar diante da morte.
Léa parou de chorar. Incrédula, perscrutava o velho rosto tão querido,
transformado repentinamente numa imagem estranha e hostil.
Não podia ser verdade! Ainda momentos antes sentira contra a face o
hálito morno e agora... agora... restava dela apenas um vulto impudico, com a
camisola erguida.
Com raiva, Léa recompôs a roupa. Ah, quem faria Bela se calar? Por que
uivava dessa maneira? Imbecil. Estaria chorando?
Ouviu um ruído atrás de si e voltou-se de repente. Havia um homem no
limiar da porta, petrificando-a de terror. O que ele fazia naquela casa
devastada, junto de um cadáver ainda morno? De súbito, pensou ter
encontrado a resposta. Um temor abjecto varreu para longe toda a sua
coragem.
— Por favor, por favor, não me faça mal! — suplicou.
Mas Mathias Fayard já deixara de olhá-la. Com a mão, afastou-a do
caminho e, pálido, de punhos cerrados, dirigiu-se até o leito.
— Como se atreveram.
Com ternura, uniu as mãos deformadas e fechou as pálpebras da mulher a
quem ele, quando criança, tratava por "Mamãe Sidonie e que tão bem sabia
como fazê-lo escapar dos sopapos do pai. Ajoelhou-se ao pé da cama, não para
rezar uma prece, há muito esquecida, mas vergado pelo sofrimento.
Léa fitava-o, receosa. Quando, porém, Mathias virou para ela o rosto
desfeito, devastado pelo pranto, correu até ele e caiu em seus braços, chorando
também.

Quanto tempo teriam assim ficado de joelhos, agarrados um ao outro,
diante daqueles despojos mortais que levavam consigo para o frio do túmulo
tudo o que lhe restava da infância?
Bela, empoleirada na cama, gemia, lambendo os pés da dona.
Mathias foi o primeiro a recompor-se.
— Você precisa ir embora — disse.
Léa não reagiu, porém. O rapaz tirou do bolso um lenço de aspecto
duvidoso, e enxugou os olhos da amiga, limpando os dele em seguida.
Inconsciente, Léa não se movia. Mathias sacudiu-a então suavemente, de
início, e, depois, quase com brutalidade.
— Ouça o que lhe digo, Léa. Precisa deixar Montillac. Alguém denunciou
você e Camille.
Diante da falta de reação de Léa, Mathias sentiu vontade de esbofeteá-la.
— Deus do Céu! Não ouve? — gritou — Os homens de Dohse e da polícia
virão até aqui para prendê-la!
Enfim ela pareceu compreendê-lo, vê-lo! O desgosto e o abatimento
estampados em seu rosto, pouco a pouco davam lugar a uma expressão de
horror incrédulo.
— E é você quem me avisa isso?!
Essa exclamação o fez abaixar a cabeça.
— Ouvi Denan dar ordens a Falux, a Guilbeau e a Lacouture — esclareceu
o rapaz.
— Pensei que você trabalhasse para eles — observou Léa. — Ela havia
recuperado bruscamente sua energia e seu desprezo.
— É isso. Mas, seja o que for que você pense de mim, não quero que lhe
ponham a mão.
— É bem verdade que você conhece os seus métodos.
Mathias ergueu-se e olhou o cadáver de Sidonie.
— Pensei que os conhecesse... — murmurou.
Seguindo o seu olhar, Léa levantou-se por sua vez, os olhos novamente
marejados de lágrimas.
— Mas por que ela?
— Ouvi Falux comentar que, por carta, alguém acusara Sidonie de
esconder seu primo Lucien e de saber onde estão os irmãos Lefèvre. Mas nunca
imaginei que viriam interrogá-la. Só pensei em você, em avisá-la. Mas o que não
compreendo é por que não passaram no "castelo" depois.
— Como sabe?

— Cortei pelas vinhas para chegar até aqui e teria visto ou ouvido os
carros deles, — explicou Mathias. — Só se estavam escondidos no bosque de
pinheiros.
Passei por lá na volta de Verdelais e não notei nada de anormal.
— Venha. Vamos embora daqui.
— Mas não devemos deixar Sidonie assim.
— Não podemos fazer mais nada por ela. Quando a noite cair avisarei o
padre. Apresse-se.
Léa beijou pela última vez a face já fria, e deixou a cadela, que não parava
de gemer, velando o corpo.
Lá fora, também o céu parecia cheio de ameaças.
Na base do terraço, Mathias interrompeu a caminhada.
— Espere-me aqui — ordenou. — Vou ver se tem alguém.
— Não. Vou com você.
O rapaz encolheu os ombros e ajudou-a a subir a ladeira. Tudo parecia
calmo. Agora estava tão escuro que mal se distinguia a fachada do edifício.
Léa observou que Mathias avançava encostado à folhagem ainda rala do
caramanchão, para ficar fora da vista dos anexos da fazenda e das cocheiras.
Não queria ser descoberto pelos pais.
Um facho de luz filtrava-se sob a porta-balcão que dava para o pátio.
Certamente Camille estava espreitando do interior, pois a porta se abriu de
repente sobre a jovem, que vestia um casaco azul- marinho, como se estivesse
preparada para sair.
— Até que enfim você apareceu! — exclamou.
Léa empurrou-a ao entrar em casa.
— Sidonie morreu — informou.
— O quê?
— Os amigos dele foram "interrogá-la".
Apertando as mãos sobre o peito, Camille fitava Mathias com expressão de
incredulidade.
— Não olhe para mim dessa maneira, senhora d'Argilat — disse o rapaz. —
Não se sabe ao certo o que aconteceu.
— Está ouvindo? "Não se sabe ao certo o que aconteceu." Pensa que somos
idiotas? Sabemos muito bem o que aconteceu.
— Quer que lhe diga o que foi?

— Não é necessário nem iria mudar o que está feito. Há coisas mais
urgentes. Você têm de sair daqui.
— E quem nos garante que isso não é uma armadilha e que você não irá
nos levar diretamente aos seus amigos da Gestapo?
Mathias, de maxilares cerrados, avançou para Léa erguendo o punho.
— Isso! Vamos, bata! Pode começar a tarefa deles! É do que você gosta...
de bater.
— Faça-a calar-se, Senhora D"Argilat. O tempo que perdemos aqui...
— Mas como saber que podemos confiar em você? — perguntou Camille.
— De fato, não podem. Mas a senhora, que ama o seu marido, não
acreditará em mim se lhe jurar que amo Léa e que, apesar de tudo o que nos
separa, apesar de tudo o que eu possa ter feito, estou disposto a morrer para
que nada lhe aconteça?
Camille pousou a mão no braço do rapaz.
— Sim, acredito. Mas, e eu, por que motivo procura me salvar?
— Léa nunca me perdoaria se a senhora fosse presa — respondeu
Mathias.
Nesse instante, Ruth entrou, trazendo uma sacola repleta que entregou a
Léa.
— Pegue. Coloquei alguns agasalhos, uma lanterna e dois frascos de
conserva. Agora, vão embora.
— Embora... embora... — cantarolava o pequeno Charles, o gorro
enterrado na cabeça até as orelhas.
— Vamos, apressem-se! — Ruth insistiu, empurrando-as para a porta.
— Mas você vem conosco!
— Não, não vou. Alguém terá de ficar para recebê-los quando vierem.
— Não quero que fique! — Depois do que fizeram a Sidonie.
— A Sidonie?!
— Eles a torturaram e a mataram.
— Meu Deus! — exclamou a governanta, benzendo-se.
— Então, dona Ruth, decida-se — interveio Mathias. — Vem ou não vem
conosco?
— Não, eu fico. Não posso abandonar a casa do Sr. Delmas. Não se
preocupem. Saberei lidar com eles. Só uma coisa me importa.
— Se nós duas estivermos aqui será mais fácil fazê-los acreditar que vocês
foram a Paris — disse Bernadette Bouchardeau, que acabara de entrar.

— Sua tia tem razão. A presença delas fará sua ausência parecer mais
natural — disse Mathias.
— Mas elas se arriscam a serem mortas!
— O risco não é maior do que se vocês estiverem aqui.
— Isso é verdade — apoiou Ruth. — Agora, vão embora. Já anoiteceu. Você
se responsabiliza por elas, Mathias?
— Eu já lhe menti alguma vez?
— O que pretende fazer?
— Levá-las até a casa de Albert para que ele arranje um esconderijo.
— Por que a casa dele? — perguntou Léa, quase gritando.
— Porque pertence a Resistência e saberá o que fazer com vocês.
— Por que você diz isso?
— Pare de me achar imbecil! Sei há muito que Albert esconde aviadores
ingleses, que conhece os locais dos pára-quedas e que participou na fuga dos
irmãos Lefèvre.
— E não o denunciou?
— Não faz parte dos meus planos denunciar ninguém.
— Então você não deve estar sendo bem-visto por seus patrões.
— Chega! — exclamou Camille secamente. — Ajustem contas mais tarde,
O que importa, agora, é não estarmos aqui quando eles aparecerem. A senhora
e Ruth têm certeza de que não querem vir conosco?
— Absoluta, Camille. Devo ficar, para o caso de Lucien ou de meu irmão
precisarem de mim. E, além do mais, estou muito velha para andar por aí
correndo pelos caminhos e dormindo ao relento. Mas vocês deviam deixar o
pequeno Charles conosco. Sabemos como cuidar dele.
— Agradeço-lhe muito, dona Bernadette. Mas fico mais tranqüila com ele
por perto.
— Vou até a casa de meus pais para evitar que eles vejam vocês saírem —
disse Mathias. — Nos encontramos em Montonoire dentro de quinze minutos, O
carro está lá.
Saiu pela cozinha.
As duas jovens e a criança engoliram a sopa, abotoaram os casacos e
saíram para a noite depois de mais uma vez beijarem Ruth e Bernadette
Bouchardeau.
Escondidas perto do carro preto, elas já esperavam por Mathias há quase
vinte minutos.
— Ele não vem. Garanto que ele não vem!

— Claro que sim. Fique quieta. Escute... Vem vindo alguém pela estrada.
Camille, agachada ao lado do veículo, apertou o filho contra si. A noite
estava tão escura que a silhueta do homem se confundia com o céu.
— Sou eu, Léa — anunciou Mathias.
Você demorou tanto!
Eu não conseguia interromper os gritos de meu pai e as lamentações de
minha mãe. Praticamente tive de fugir. Entrem logo.
Charles, segurando contra o corpo o urso de pelúcia de Léa, encontrado e
consertado pela governanta, entrou, rindo, no carro. Era o único a achar a
situação divertida.
Nunca as ruelas da pequena cidade medieval de Saint-Macaire lhes
pareceram tão estreitas e tão escuras. A claridade azulada dos faróis
camuflados não bastava para guiá-los. Finalmente chegaram diante da casa do
açougueiro.
Mathias desligou o motor. Nenhuma luz, nenhum ruído; apenas o silêncio
opressivo da noite opaca que parecia infindável.
No interior do carro, perscrutando as trevas, todos sustinham a
respiração, até mesmo Charles, o rosto enfiado no pescoço da mãe. Um estalido
assustou Léa — Mathias engatilhou a pistola.
— É melhor que você vá ver — ele cochichou a seu ouvido.
Com agilidade, a jovem deslizou para fora do veículo e foi bater à porta. À
quinta pancada, uma voz abafada perguntou:
— Quem é?
— Sou eu... Léa.
— Quem?
— Léa Delmas.
A porta abriu-se, e surgiu a mulher do açougueiro, de camisola, o xale
atirado aos ombros e uma lanterna na mão.
— Entre depressa, senhorita, Você me deu um susto! Pensei que tivesse
acontecido alguma coisa a Albert.
— Ele não está?
— Não. Foi a Saint-Jean de Blaignac para buscar uma carga que chega de
pára-quedas... Mas o que a traz aqui?
— A Gestapo. Estou com Camille d'Argilat e o filho dela. Foi Mathias
Fayard quem nos trouxe.
— Mathias Fayard aqui?! Aqui?! — exclamou a mulher. — Estamos
perdidos!

Nesse instante, empurrando Camille e a criança à sua frente, Mathias
entrou na casa e fechou a porta.
— Não tenha medo, Mireille. Se eu quisesse denunciá-los, já o teria feito
há muito tempo. Tudo o que peço, a Albert e aos camaradas, é que as
escondam. Nem quero saber onde, até o momento em que se encontre outra
solução.
— Não confio em você. Todo mundo sabe que trabalha para eles.
— Não me importa o que você sabe ou não. Não se trata de mim, mas
delas. E se isso servir para tranquilizar Albert e os amigos, então que prendam
meus pais como reféns.
Canalha! — Mireille murmurou com desprezo. Mathias encolheu os
ombros, respondendo:
— Tanto faz o que pensa de mim. O importante é que a Gestapo não as
pegue. Se Albert quiser falar comigo, que deixe recado no Lion d"Or, em
Langon. Irei encontrá-lo onde disser. E agora tenho que ir.
Quando Mathias se aproximou, Léa voltou-lhe as costas. Apenas Camille
apiedou-se dele ao ver o sofrimento estampado em seu rosto.
— Obrigada, Mathias.
As três mulheres continuaram imóveis na entrada da cozinha até o
barulho do motor se perder na distância. Perto da lareira apagada, o pequeno
Charles adormeceu sobre uma cadeira, sem largar o seu ursinho de pelúcia.
Eram três horas da madrugada quando Albert voltou. Acompanhavam-no
o soldado Riri, o garagista Dupeyron e o cantoneiro Cazenave. Todos traziam
metralhadoras ao ombro.
— Léa... Senhora d'Argilat! — exclamou o dono do açougue admirado. —
Mas o que está acontecendo?
— A Gestapo está à procura delas.
Os três homens ficaram tensos.
— E ainda não é tudo — prosseguiu Mireille em voz cada vez mais aguda.
— Eles assassinaram Sidonie e foi o filho dos Fayard quem as trouxe para que
você as esconda.
— O filho da puta! — trovejou o garagista.
— Vai nos denunciar — balbuciou o soldado.
— Não creio — murmurou o açougueiro com ar pensativo.
— Mathias disse que, caso não confiassem nele, prendessem os pais como
reféns — explicou Mireille atabalhoadamente.
Camille sentiu que era o momento de intervir na conversa.
— Tenho certeza de que Mathias não trairá ninguém.

— É possível, senhora d'Argilat, mas não podemos correr nenhum risco.
Acho, minha boa Mireille, que temos de desaparecer — disse Albert.
— Nem pense nisso! E a loja? E o nosso filho? E se ele precisar de nós e
nos procurar? Vá, se quiser. Eu fico.
— Mas, Mir...
— Não insista. Já decidi.
— Nesse caso, também fico.
Chorosa, Mireille atirou-se ao pescoço do marido, que a atraiu para si,
tentando esconder a emoção.
— Então... então... — disse ele. — Pensa que estou matando o boi da
senhora Lécuyer?
Esse comentário os fez sorrir.
— Isso não resolve o caso. O que vamos fazer com elas? — perguntou o
soldado mostrando Léa e Camille.
Albert levou os amigos para o outro lado da cozinha, onde cochicharam
durante alguns instantes. Em seguida, Riri e Dupeyron desapareceram.
— Se tudo correr bem, partiremos quando os dois voltarem — esclareceu
Albert. — Vamos levá-las até a casa de amigos fiéis, onde poderão ficar por uns
dias. Depois, vamos ver. Muitas coisas vão depender do que Mathias me disser
quando o encontrar. Ele virou- se para a mulher.
— Prepare um cesto bem recheado, Mireille.
— Não é preciso — disse Camille. — Trouxemos o necessário.
— Não, senhora. Não se sabe durante quanto tempo terão de ficar
escondidas.
O garagista voltou.
— Podemos ir — informou ele. — Tudo calmo. Riri ficou lá fora de vigia.
— Muito bem. Então vamos. Não fique preocupada se eu não estiver de
volta antes do final da noite, Mireille. Eu levo o pequeno. Cazenave levará o
cesto. Vamos, despeçam-se.
A camioneta não era um veículo dos mais confortáveis e saltava sobre os
sulcos do caminho.
— Ainda fica longe? — resmungou Léa.
— Não muito. É um pouco depois de Villandraut. A região é segura. São
camaradas nossos que estão na Resistência nesta zona. Seu tio os conhece
muito bem.
Acha que vamos ficar lá durante muito tempo?

— Não sei. Depois veremos. Depende da conversa com Mathias. Olhe,
estamos chegando!
Após uma rápida travessia por entre construções baixas, o veículo parou
em frente de uma casa um pouco afastada. Um cão ladrou e a porta se abriu.
Aproximou-se deles um indivíduo armado de espingarda.
— É você, Albert? — perguntou o desconhecido em voz baixa.
— Sim. Estou trazendo umas pessoas amigas em dificuldades.
— Podia ter avisado.
— Não foi possível. Tem lugar agora?
— Estão com sorte. Os ingleses foram embora ontem à noite. É para muito
tempo?
— Ainda não sei.
— Mulheres e uma criança! — resmungou o homem. — Não me agrada
nem um pouco. Tem sempre encheção de saco quando essas malditas fêmeas
estão metidas na história.
— Muito amável! — comentou Léa entre dentes.
— Não ligue — interveio Albert. — Léon está sempre resmungando, mas
não há homem com melhor pontaria nem com melhor coração em toda a
Landes.
— Não fiquem aí fora. Os vizinhos são gente nossa mas, hoje em dia, não é
difícil que um lobo se meta no meio do rebanho.
Entraram num compartimento comprido e baixo, com chão de terra
batida. No interior, havia três camas grandes e altas envoltas em cortinas de
um vermelho desbotado, pendentes dos caibros do teto e divididas por arcas de
madeira trabalhada.
A mesa enorme estava atulhada de armadilhas, de cartuchos azuis e
vermelhos, de uma metralhadora desmontada sobre um jornal, de louça suja e
de trapos velhos. Cadeiras desemparelhadas e um fogão escurecido por muitos
anos de uso constituíam o restante do mobiliário.
No parapeito da lareira de imponentes dimensões havia as inevitáveis
cápsulas de obus gravadas, da Primeira Guerra Mundial. Por cima da pia de
pedra muito gasta, pendiam alguns calendários amarelado e sujos de
cagadinhas de mosca. O de 1944, onde figurava uma ninhada de gatinhos, com
suas cores berrantes, nada tinha a ver com aquele ambiente, iluminado pela
claridade baça do candeeiro de querosene, suspenso do teto.
Tamanha rusticidade, aliada ao odor forte dos ramos de folhas de tabaco
pendentes dos caibros, fez com que as duas jovens se imobilizassem na soleira
da porta.

— Não esperava tão cedo a chegada de novos hóspedes. Ainda nem tive
tempo de arrumar as camas — esclareceu Léon, retirando alguns lençóis de
dentro de uma das arcas.
— Não há mais nenhuma peça? — Léa quis saber, falando em voz baixa a
Albert.
— Não, nenhuma — respondeu o anfitrião, cujo ouvido era muito apurado.
— É tudo o que posso lhe oferecer, minha menina.
Ajude-me a fazer as camas. Verá como são confortáveis. Colchões de
autênticas penas de ganso. Quando se deita nelas, não se quer sair mais.
Os lençóis eram de tecido áspero mas rescendiam deliciosamente a ervas
aromáticas.
— A privada é lá fora, atrás da casa. Espaço não falta — acrescentou o
homem em tom malicioso.
— E para nos lavarmos?
— Há uma pia lá fora, e o poço não fica longe.
A expressão de Léa devia ser cômica, pois Camille, apesar de moída de
cansaço, deu uma gargalhada.
— Vamos estar muito bem! Vai ver — garantiu ela. — Deixe-me ajudá-la.
O pequeno Charles não acordou nem mesmo quando a mãe o despiu e
colocou na cama.

Capítulo 2

HÁ MUITO TEMPO que Léa e Camille não dormiam tão bem. Mesmo a
criança, habitualmente a primeira a levantar-se, dormia ainda, apesar do
adiantado da hora.
Através do cortinado vermelho, filtrava-se uma luz suave e rosada.
Adivinhava-se lá fora um belo dia. A porta devia estar aberta e chegavam até
elas os pacíficos ruídos da fazenda: galinhas cacarejando, o ranger da corrente
do poço, o balde batendo nas bordas, rolas arrulhando, um relincho longínquo
e uma voz infantil chamando pela mãe. Parecia que nada poderia perturbar
aquela paz.
Alguém entrou na sala e colocou carvão no fogo. Pouco depois, espalhava-
se pelo ar um delicioso cheiro de café. Como se o aroma as chamasse, Camille e
Léa afastaram ao mesmo tempo os cortinados de suas camas. À vista das duas
cabeças despenteadas, Léon emitiu um grunhido semelhante a uma risada.
— Ora muito bem, minhas filhas! É preciso recorrer a grandes meios para
fazê-las saltar da cama... nada mais nada menos que café colombiano puro.
Léa apressou-se, e quase caiu da cama, pois se esquecera de como era
alta. Pegou a vasilha que Léon lhe estendia. Levou-a às narinas, aspirando com
volúpia o excelente aroma do café.
— Pus dois cubos de açúcar. Espero que não seja demais.
— Dois cubos de açúcar! Está ouvindo, Camille?
— Ouvi, ouvi — respondeu, aproximando-se também.
A camisola branca e comprida no corpo franzino dava-lhe um ar de
colegial. Léon ofereceu-lhe outra caneca de café, feliz com o contentamento de
ambas.
— Como tem tudo isso?
— Os ingleses deixaram-me um pacote de café quando foram embora. E
ainda não é tudo Da arca que devia servir de guarda-comida, Léon retirou um
pão enorme.
Depois me dirão se gostam ou não. Verdadeiro pão branco!
Tirou a navalha do bolso, abriu-a devagar e cortou três bons pedaços. Léa
enfiou o nariz no miolo espesso e fofo, aspirando-lhe o cheiro com avidez, como
se receasse que o seu pedaço fosse desaparecer de súbito e para sempre.
Camille contemplava a fatia que lhe coubera, com o mesmo ar sério que
costumava ter em tudo o que fazia.
— Pão... pão...

De pé na cama, Charles estendia as mãozinhas. Léon o pegou, sentou-o
nos joelhos e cortou mais um pedaço.
— É demais para ele, senhor. — Não conseguirá comer tudo.
— Um rapagão como ele? Eu me admiraria muito. Vamos, bebam o café,
senão esfria.
Tal como o velho landês dissera, Charles comeu todo o seu pão.
Passaram-se três dias bucólicos, O tempo estava bom, embora um pouco
frio.
Na noite do dia 21, Albert apareceu de novo. Encontrara-se com Mathias
em Langon. O rapaz concordara em acompanhá-lo de olhos vendados e de
mãos atadas, escondido no porta-malas de um automóvel, até uma base de
resistentes perto de Mauriac. Ao chegar, respondera sem reticências às
perguntas do açougueiro e de seus camaradas. Satisfeito com as respostas,
Albert o deixara à noite próximo da estação de La Réole.
— A Gestapo foi até minha casa? — Léa quis saber.
— A Gestapo não. Os homens do comissário Penot.
— Maurice Fiaux estava com eles?
— Não.
— O que aconteceu? Como estão Ruth e minha tia?
— Estão bem. Segundo Ruth, eles as interrogaram com delicadeza, mas
sem escutarem de fato as respostas.
— O que queriam saber?
— Se tinham recebido notícias do padre Adrien. Nada falaram sobre você
ou sobre a senhora d'Argilat.
— Que coisa mais estranha! Por que Sidonie, antes de morrer, me disse
para fugir? E por que Mathias pensou que seríamos presas?
— Porque, segundo nos disse, surpreendeu uma conversa entre Fiaux e
um dos chefes da polícia, na qual comentavam que vocês deveriam conhecer
detalhes sobre a fuga dos irmãos Lefèvre e o local onde seu primo Lucien e o
padre Delmas estão.
— Nesse caso, por que passaram primeiro por Bellevue?
— A polícia recebeu uma carta afirmando que Sidonie escondia
resistentes. E eu já imagino quem seja o remetente — garantiu Albert.
— Mas por que Mathias não nos avisou com mais antecedência?
— Talvez Denan o tenha retido por muitas horas em seu gabinete.
Mas, afinal, quem é Denan?

— Um canalha, esse Lucien Denan. Chegou a Bordéus com os refugiados.
Até 1942, foi vendedor na Dames de France, na seção de armarinho e de
malharia. Mal terminava o serviço, dirigia-se à sede do M.S.R., onde preenchia
fichas com todos os dados recolhidos sobre empregados da loja. Em breve se
transformou no agente número um deles. Depois, deixou a Dames de France e
foi nomeado inspetor-adjunto dos Assuntos Judaicos e, em seguida, inspetor
regional. Quando se criou a milícia em Bordéus, Denan tornou-se chefe do 2
Serviço. Diz-se que também trabalha para os serviços de informação alemães,
sob o nome de "Sr. Henri". E é assim o nosso homem. Mas, voltando ao caso do
Fayard filho: logo que pôde sair do gabinete de Denan, apanhou uma viatura de
serviço e foi até a casa de Sidonie. Mas, infelizmente para ela, chegou tarde
demais. Enterraram a pobre velha hoje de manhã e seu funeral não foi lá muito
concorrido.
Léa não conseguiu reter as lágrimas.
— Ruth cuidou de tudo — prosseguiu Albert. Levei Bela para minha casa.
Mas temo que o pobre animal logo irá se reunir à sua dona.
— Afinal, estão ou não à nossa procura? — perguntou Camille.
— Oficialmente não, segundo Mathias. Mas isso não quer dizer nada. Ele
acha que devem ficar escondidas por algum tempo.
— E Mathias sabe onde estamos?
— Claro que não! A nossa confiança nele não chega a tanto. Combinamos
de nos encontrar no dia 24, em Bordéus, na estação de Saint-Jean. Tentarei
voltar aqui amanhã. Até lá, não se mostrem muito por aí.
O dia estava quente e esplêndido, embora durante a manhã tivesse feito
muito frio. Inebriadas pelo odor do mar e dos pinheiros, Léa e Camille tinham a
sensação de estarem em férias. Sentiam o corpo e a mente mergulhados em
torpor, mas não procuravam furtar-se a esse entorpecimento. Os dias passados
na floresta, fazendo piquenique sob as árvores, dormindo numa reentrância do
terreno arenoso ou brincando de esconde-esconde com Charles, faziam com
que esquecessem a realidade.
Mas essa realidade atingiu-as de forma brutal quando um resistente veio
anunciar a Léon a prisão de Albert e da mulher.
Mireille estava detida no forte de Hâ; quanto ao marido, fora levado ao
número 197 da Estrada de Médoc (rebatizada com o nome de Avenida Marechal
Pétain) para ser interrogado.
Camille empalideceu ao recordar os dias horríveis passados nos
subterrâneos daquela construção sinistra e os gritos dos torturados.
— Quando ele foi preso?
— Quando ia se encontrar com o Fayard filho, na estação de Saint-Jean.
Mathias o denunciou! — gritou Léa.

— Não pensamos que tenha sido ele. Como medida de precaução,
tínhamos avisado Aristide. Ele pôs dois homens vigiando as imediações da
estação e um outro à espera de Mathias Fayard perto do local do encontro.
Tudo parecia normal. Cheguei lá com Albert e Riri cinco minutos antes da hora
prevista. Mas fomos separados pela multidão que descia do trem vindo de Paris.
Eu e Riri vimos Mathias aproximar-se e pareceu que vinha só. Depois nós nos
viramos. A uns dez metros estava Albert, rodeado por um oficial e dois soldados
alemães e três franceses à paisana. Nós o ouvimos dizer:
"O senhor está enganado". Camille emocionou-se ao ouvi-lo narrar aquelas
cenas. — Diante do agrupamento, a multidão se afastou e foi assim, segundo
creio, que Mathias percebeu o que acontecia.
Ficou pálido, deu alguns passos em direção ao grupo, mas depois parou.
Eu estava perto dele.
— Canalha! Vamos te arrancar a pele! — disse-lhe.
Olhou com ar de quem não compreendia.
— Não tenho nada a ver com isto. Não estou entendendo. Foi coincidência,
— Vai pagar caro essa coincidência.
— Deixe de bobagem! Ninguém além de mim sabia que eu vinha me
encontrar com ele.
— E isso não é uma prova?
— Pense o que quiser. Vamos segui-los. Quero saber para onde o levam.
Venha comigo.
— Para você fazer com que me prendam também?
— Olhe, pegue a minha pistola! Se achar que vou traí-lo, basta me matar.
E Mathias estendeu-me a arma, assim, sem mais nem menos, sem sequer
procurar escondê-la. Toda a gente podia nos ver.
— Tirei a pistola de sua mão, dizendo:
— Está louco?!
Verifiquei se estava carregada e a coloquei no bolso, e nos dirigimos para a
saída. Riri veio ao nosso encontro. Por sua expressão, temi que fosse abater
Mathias ali mesmo.
— Explique-lhe — disse Mathias com calma, encaminhando-se para o
carro estacionado sob as escadas.
Entretanto, a poucos metros de nós, Albert era arrastado para um Citroem
15 com chapa alemã. Entrei ao lado de Mathias, enquanto Riri se afastava.
— Ele não vem? — perguntou Mathias.
— Não confia em você e vai nos seguir com alguns companheiros que
temos na região.

— Nesse caso, que se apressem — disse ele> arrancando atrás do veículo
alemão.
Tirei do bolso a pistola e a apontei para Mathias, disposto a matá-lo a
menor dúvida. Virei-me para trás por diversas vezes, perguntando a mim
mesmo como Riri e os companheiros iriam nos seguir. Diante de nós, o carro
dos boches estava em boa velocidade.
— Merda! — exclamou Mathias. — Não vão pela estrada do Chapeau-
Rouge.
— O que há na estrada do Chapeau-Rouge?
— Um dos gabinetes de Poinsot.
— E que tem isso?
— Significa que vão entregá-lo aos alemães e que será mais difícil escapar
das patas deles do que das da polícia francesa.
Na Aristide-Bruand, viramos. Imaginei que o levavam ao forte de Ilâ. Mas
não; continuaram. Passamos ao lado da cadeia.
Na rua Abbé-de-L"Epée, Mathias me perguntou se meus companheiros
vinham atrás de nós. Além de algumas bicicletas e de um caminhão do Exército
alemão, não havia mais nenhum veículo. Só na Rua Croix-de-Seguey percebi
para onde se dirigiam. Numa barreira em Médoc, a polícia alemã nos mandou
parar. Voltei a colocar a pistola no bolso, morrendo de medo. Mathias exibiu
um cartão e nos fizeram um sinal para prosseguir. Não havia quase ninguém
nas ruas de Bouscat e nenhum carro, Mathias diminuiu a marcha para
aumentar a distância entre os dois carros.
Continuava sem vestígios dos camaradas. Quando o veículo da frente
parou, paramos também a uns cem metros dele.
Vimos que empurravam Albert para onde sabíamos que era o centro de
interrogatórios da Gestapo. Já não havia nada a fazer. Olhei para Mathias...
Continuava muito pálido e suas mãos, crispadas em volta do volante, pareciam
feitas de cera.
Tive vontade de matá-lo ali mesmo. Ele adivinhou, pois disse:
— Apenas serviria para fazer com que o prendessem também. É necessário
avisar sua mulher e os outros. Juro que não traí ninguém. Há traidores entre
vocês.
Deixei-o arrancar. Passamos em marcha lenta diante do número 224, a
mansão onde vive o comandante Luther, quase em frente do número 197. Tudo
estava calmo.
O homem engoliu o copo de vinho que Léon lhe servira.
— E depois? — perguntou Léa.

— Voltamos à estação de Saint-Jean, para ver se os outros estariam lá.
Depois de inspecionarmos a estação, Mathias disse:
— Não vamos ficar aqui; acabaremos por chamar a atenção. Vamos a
Saint-Macaire avisar Mireille.
Subimos a margem do Garonne. Um pouco antes de Rions, fomos parados
por policiais que procuravam os responsáveis por uma sabotagem ocorrida na
véspera. Na saída de Saint-Maixant, novo controle, desta vez por alemães.
Quando enfim, chegamos a Saint-Macaire, mais de três horas já haviam se
passado desde a prisão de Albert.
— É melhor passarmos pelo porto — disse Mathias.
Parou o carro junto das ruínas do antigo castelo, escondendo-o numa
gruta que serve de armazém aos destiladores.
Saltamos a grade, e logo estávamos nos fundos da igreja.
— Não faça barulho — ele recomendou, parecendo não notar a pistola que
eu continuava lhe apontando.
Não havia ninguém nas ruelas e, apesar do bom tempo, quase todas as
janelas estavam fechadas. Dois disparos ecoaram pelas ruas.
— O som vem do lado da casa de Albert — Mathias gritou.
Escondidos atrás de um portão, assistimos à detenção de Mireille, que um
suboficial alemão empurrava para dentro de uma viatura. Diante do açougue,
um cão se esvaía em sangue. Rindo, um dos soldados desferiu um pontapé no
cadáver do animal, que foi arremessado para perto de nós. Ouvi Mathias
murmurar:
— Bela... mataram Bela.
— A cadela de Sidonie! — exclamou Léa. — Coitada!
— E depois, o que vocês fizeram? — inquiriu o dono da casa.
— Obriguei-o a voltar e a me levar até perto de Bazas, onde o entreguei aos
homens de Georges, enquanto não se toma uma decisão.
— Como soube do lugar para onde levaram Mireille?
— Quando chegamos na casa de Georges, um camarada nosso, policial em
Bordéus, acabava de informá-lo da dupla detenção e do local para onde haviam
sido conduzidos — esclareceu o homem.
Tristonhos, todos permaneceram silenciosos. Léon foi o primeiro a retomar
a palavra, dirigindo-se às duas jovens que apertavam entre elas o pequeno
Charles, cujos olhos inquietos iam de uma para outra:
— Aqui vocês já não estão em segurança.
— Por que diz isso? Albert nunca nos trairá assegurou Léa com otimismo.

— Resistirá enquanto puder, estou certo disso. Mas não devemos nos
arriscar. Não se esqueça de que a mulher dele também foi presa. Se a
torturarem diante dele, ele falará.
— Tem razão.
Num gesto imprevisto, Léon retirou a espingarda do gancho onde a
pendurara, espingarda que habitualmente conservava escondida na cama, e
apontou-a para a porta. Todos se calaram. Ouviu-se um arranhar na madeira e
depois a porta se abriu, surgindo diante deles um homem de japona.
— My goodness, Léon, não me reconhece?
O velho baixou a arma, murmurando:
— Não é prudente entrar na casa de alguém assim, Aristide.
— Tem razão. Bom-dia, Léa. Lembra-se de mim? — perguntou o recém-
chegado.
— Muito bem. É um prazer revê-lo.
— É a Sra. d'Argilat, sem dúvida — disse Aristide, virando-se para Camille.
— Sim, bom-dia.
— Trago-lhe boas notícias. Seu marido deixou o Marrocos incorporado na
divisão criada pelo general Leclerc para um desembarque. Chegou na Inglaterra
no dia 21 de abril, no porto de Swansea, ao Sul do País de Gales. O próprio
general foi esperá-lo.
A alegria transfigurava Camille. "Como está linda" pensou Léa. Beijou-a
num impulso afetuoso. Como lhe parecia distante o tempo em que ela odiava a
mulher daquele que acreditara amar e que fora seu amante durante uma noite
nos subterrâneos de tijolo rosado em Toulouse! Sem segundas intenções Léa
compartilhava da felicidade daquela que se tornara sua amiga.
— Muito obrigada pela boa notícia, Sr. Aristide — Camille agradeceu.
— Creio que posso dizer que logo receberá outras. Mas, enquanto esperam,
é necessário saírem daqui. Eu as levaria até a casa de uma amiga em
Souprosses, mas tenho a impressão de que está sendo vigiada pelos homens de
Grand-Clément, que me procuram.
— E se voltássemos a Montillac, já que não estamos sendo procuradas?
— Não sabemos de nada. É melhor não arriscar.
— Poderiam ir para o pombal por alguns dias — sugeriu Léon. — É
impossível achá-lo na floresta. Não é muito confortável, mas...
— A vida vale muito mais que o conforto — disse Aristide.
— Tragam roupas e provisões para alguns dias, Vamos partir
imediatamente. Lá tem cobertores, Léon?
— Acho que sim. Mas vou buscar um limpo para o menino.

— Que vão fazer a Mathias? — perguntou Léa ao agente inglês.
— Se dependesse só de mim, mandava-o para o inferno — resmungou
Léon.
— Não podemos eliminá-lo sem mais nem menos; temos que interrogá-lo.
Eu, que desconfio de todo mundo, tendo a acreditar que seja inocente dessas
detenções.
— O que não o impede de trabalhar para eles.
— Ora, não é o único! Mas, até prova em contrário, ele, pelo menos, não
matou ninguém.
— Estamos prontas, Sr. Aristide — anunciou Camille, aproximando-se
com uma sacola de viagem na mão.
O coronel Claude Bonnier, delegado militar regional, conhecido pela
alcunha de Hipotenusa, tinha sido enviado à França pela Comissão Central de
Informação e Ação (B.C.R.A.), em novembro de 1943, com a tarefa de
reorganizar a Resistência na Aquitânia após a traição de Grand-Clément.
Foi aprisionado pela Gestapo em fevereiro de 1944, em Bordéus, na Rua
Galard, junto a seu rádio, no momento em que transmitia uma mensagem para
Londres (detido em conseqüência de denúncia, o operador, por sua vez,
denunciara o Hipotenusa, que caíra na armadilha organizada pelo tenente
Kunesch).
Conduzido a Bouscat, na estrada de Médoc, foi interrogado às dezoito
horas pelo próprio Dohse. Recusou-se obstinadamente a reconhecer ter sido
enviado por Londres, chamar-se Claude Bonnier ou Bordin (embora identificado
por Toussaint, pelos irmãos Lespine, por Durand e por Grolleau) e ter ordenado
a execução do coronel Camplan, suspeito de traição.
Depois de vinte minutos, Dohse, irritado, ordenou que o jogassem num
calabouço; recomeçaria o interrogatório depois de jantar.
Herói da guerra de 1914, Eugene Camplan bem cedo entrou para a
Resistência. Em outubro de 1943, foi incumbido pelo coronel Touny de
coordenar, como chefe da subdivisão sul da região B2, a ação das Forças
Francesas do Interior na área de Bordéus, que compreendia cinco
departamentos. Acusado de traição (encontros com Dohse e com Grand-
Clément) por Bonier, foi colocado na cela sem lhe retirarem as algemas. Com a
noite bastante adiantada, foram procurar Dohse à mesa dos oficiais —
aconteciam coisas estranhas na cela de Hipotenusa.
Quando o oficial alemão chegou ao porão do n.° 197 da estrada de Médoc
que funcionava como prisão, Bonnier jazia no solo, emitia débeis gemidos,
sacudido por convulsões, a boca espumando, o rosto e os lábios sujos de pó. O
chefe dos guardas, debruçado sobre o corpo do infeliz, levantou-se e falou em
alemão:
— Ele se envenenou com cianeto.

— Estou vendo, imbecil. Não o revistaram?
— Claro que sim, meu tenente. Com certeza ele escondeu a cápsula na
dobra do casaco — Como conseguiu pegá-la com as mãos algemadas?
— Deve ter apanhado a cápsula com os dentes, mas ela deve ter caído e ele
deitou-se no chão para lamber o líquido. Isso explica a poeira em seu rosto e o
fato de que não tenha morrido instantaneamente.
— Chamem um médico, rápido!
— Sim, meu tenente O chefe dos guardas saiu, gritando:
— Um médico, depressa, um médico!
Em vão os detidos das celas vizinhas tapavam as orelhas para não ouvirem
os gritos e os gemidos. Sentiriam remorsos esses jovens resistentes de 20 anos,
manipulados por Dohse, diante do sofrimento do homem que haviam
denunciado? Sem dúvida que não. Parecia-lhes justo que aquele que mandara
matar seu chefe, o coronel Camplan, o pagasse com a própria vida.
Claude Bonnier morreu ao romper do dia sem ter falado.
Profundamente impressionado, Frederick Dohse murmurava:
— Essa gente de Londres não é como os outros.
Paradoxalmente, essa morte terrível, que poderia ter paralisado todas as
energias, galvanizou os combatentes e reavivou suas forças. cepulutado por
homens deste Itimo em janeiro de 1944, próximo de Ruffec, nas matas de
Linaux. Depois da guerra, após um longo inquérito, o coronel Camplan, "vítima
de trágico equívoco", foi oficialmente reconhecido como tendo "morrido pela
França".
E o mesmo aconteceu quando Albert desapareceu.
O açougueiro também não era um homem como os outros. Seu
engajamento nas fileiras da Resistência provinha da sua profunda convicção de
que os alemães nada tinham a fazer na França e de que homens como ele
deveriam fazer tudo para expulsá-los, se não quisessem um dia se envergonhar
diante dos filhos.
Descendente de militar que combatera em Verdum e morrera em
conseqüência dos ferimentos recebidos, Albert fizera sua uma das frases
preferidas do pai. Quando passeava pelas colinas de Piau. de onde se avistava a
região, o antigo soldado detinha-se para contemplar aquela terra tão bela e tão
rica, comentando com calma:
— A França bem merece que se morra por ela.
Albert não possuía nenhuma cápsula de cianeto e Dohse não se interpôs
entre ele e os carrascos de Poinsot. Torturaram-no com requintes de crueldade,
servindo-se de facas... de açougueiro.
No início, Albert procurara gracejar:

— Não é que Deus quer me castigar por ter matado animais!
Retalharam-no então e encheram-lhe os cortes com dentes de alho.
Um verdadeiro carneiro de Páscoa!
Em seguida, polvilharam com sal e pimenta os músculos expostos do peito
e amarraram-no como uma peça de carne para assar.
Quando se fartaram de "preparar e temperar aquela carne", transformada
em massa inerte mas da qual não haviam conseguido extrair uma única
palavra, fizeram o corpo rolar pelas escadas do porão e fecharam-no na cela em
que Bonnier havia morrido. Albert recobrou os sentidos para ouvir torturadores
dizerem, com um riso torpe:
— Se amanhã não falar, esquartejaremos a açougueira diante dele.
"Falarei", disse Albert a si mesmo.
No decurso da noite interminável, o mais simples movimento provocava-
lhe dores de tal forma violentas que não conseguia reprimir os gritos. Durante
horas e horas, roeu o pedaço de corda que lhe imobilizava a parte superior do
braço. Apesar do frio úmido do subterrâneo, estava alagado de suor. Pouco
antes da aurora, a corda cedeu. Mas o esforço excessivo esgotara- lhe a carne
torturada. Albert desmaiou.
Quando recobrou os sentidos o dia já clareava. Tentou então libertar-se
das amarras enterradas na carne e a ela coladas com sangue. Por instantes,
aquele novo tormento suplantou-lhe as energias. Chorou como nunca fizera
desde a morte do pai, quando ele estava com 9 anos. Eram grandes soluços
ruidosos e ridículos que sacudiam seu corpo de homem forte, Caído no chão
sujo, atingiu o fundo do desespero.
Provavelmente teria confessado tudo se os carrascos voltassem nesse exato
momento para novo interrogatório. As lágrimas formavam duas poças de água
em sua face, onde se misturavam à poesia do chão. Seus dedos amassavam a
lama assim constituída. "Terra E foi dessa terra que Albert extraiu a força e a
raiva necessárias para acabar de se libertar das amarras.
Pelo respiradouro mal tapado, penetrava na cela uma tênue claridade.
Próximo da abertura havia uma grossa argola que Albert alcançou levantando o
braço. O encanamento seguia ao longo da parede; utilizando-o como degrau,
atou à argola uma das extremidades da corda. Na outra ponta fez um nó
corrediço que passou em volta do pescoço.
Depois, deixou-se cair... Seus pés se agitaram... Num derradeiro instinto
de sobrevivência ele tentou ainda alcançar o apoio do tubo. Mas a corda
delgada penetrou-lhe na carne do pescoço, esmagando aos poucos a laringe e
provocando-lhe demorada agonia.
Na cela vizinha, dois resistentes de um núcleo das F.T.P. de Sainte-Foy-la-
Grande entoavam em voz comovida e cada vez mais forte:

Amigo, quando cais
Logo outro da sombra sai
Em teu lugar.
Amanhã, em pleno sol
Sangue negro
Secará pelos caminhos
Assobiai, companheiros
Que na noite
A liberdade nos escuta.*

A mulher e os companheiros de Albert só souberam do seu horrível fim no
dia seguinte à libertação de Bordéus.

Capítulo 3

"QUERIDA Lea,
Não sei o que acontece em Montillac, mas aqui, em Paris, parece que todo
mundo enlouqueceu. Todos vivem à espera do desembarque e nunca como
agora os anglo-americanos e seus malditos bombardeios foram tão odiados pela
população.
Particularmente aterrador foi o bombardeio ocorrido na noite de 20 para
21 de abril. Estava em casa de amigos que moram no último andar de um
prédio na Praça do Panteão. Durante mais de uma hora, ficamos a contemplar
o espetáculo, bebendo champanhe e uísque. Era mais belo que o fogo de
artifício nas comemorações do 14 de julho! Não sobrou nenhum vitral no Sacre-
Coeur. Houve mais de seiscentos mortos. As tias ficaram muitíssimo abaladas.
Também senti desgosto mas prefiro não pensar no caso, pois, do contrário,
teria de fazer como elas e rezar durante dias inteiros refugiada no porão, no
metrô ou nas salas de cinema, que ficam abertas até as seis da manhã, para
servir de abrigo antiaéreo. Quase todas as noites soam os alertas, e mesmo
durante o dia. Isso não é vida.
Quanto aos gêneros alimentícios, estou me arranjando, felizmente; se não
fosse isso, seria a miséria na Rua da Universidade. Em Montillac deve ser mais
fácil.
Entre os meus amigos só se fala do Dr. Petiot e dos crimes da Rua
Lesueur. Tenho tido pesadelos por causa disso, e tia Lisa também. Ela recorta
nos jornais todas as notícias referentes a esse caso tão horrível.
Parece que os ingleses lançaram caixas de biscoitos explosivos sobre
Charentes. Você ouviu falar alguma coisa? Embora se suponha que seja
propaganda antibritânica, há pessoas que afirmam que os ingleses são bem
capazes de tal coisa.
Paris recebeu a visita do meu ex-ídolo. O Marechal veio em pessoa a Paris
para fazer-se aclamar na praça da Câmara. Eu e tia Albertine fizemos de tudo
para evitar que tia Lisa fosse até lá.
Vejo Françoise e o bebê de vez em quando. Na semana passada, Otto
esteve com eles durante uma licença de quarenta e oito horas. Continua sem
conseguir autorização para se casar e acho que Françoise sofre muito com isso,
embora não me diga nada. Finge divertir-se com outras mulheres que acredita
estarem na mesma situação; não passam, porém, de piranhas de soldados. Eu
a aconselhei a regressar a Montillac até que a guerra termine, mas não quer
nem ouvir falar nisso. Você devia lhe escrever. Otto voltou para a frente leste.
Vou tentar lhe enviar alguns cigarros e um belo retalho de tecido azul.

Vai achar graça, mas tenho me dedicado à leitura. Uma amiga emprestou-
me um livro publicado antes da guerra, eu creio.
Descreve a história de uma família e de uma propriedade idêntica às
nossas, exceto que se passa no Sul dos Estados Unidos, durante a Guerra da
Secessão. Chama-se E o Vento Levou; é um romance formidável. Você deveria
procurá-lo na Mollat de Bordéus.
Como estão Camille, Charles, Ruth e tia Bernadette? Dê-lhes um beijo por
mim. Não se esqueça também de um abraço para Sidonie. Receberam notícias
de Laurent? Você voltou a ver o estranho François Tavernier? Tio Luc e seu
filho encantador ainda são pró-alemães? Que aconteceu a Mathias? Custa a
crer que trabalhe para a Gestapo. E os seus queridos paizinhos ainda
continuam a nos roubar?
Não consegui arranjar o dinheiro que você me pediu. Falei com Françoise e
com as tias, mas você conhece bem sua situação financeira; têm apenas o
estritamente necessário para viver. Quando Otto soube de suas dificuldades
ficou realmente infeliz por nada poder fazer, mas o pai cortou-lhe a mesada.
Dispõe agora, somente, do soldo de militar. Talvez você devesse rever as
propostas de Fayard. O que Camille pensa a respeito? Sei que você dará pulos
de raiva por lhe sugerir que venda Montillac ou, pelo menos, uma parte da
propriedade.
Deixo-a, pois virão buscar-me para ir ao cinema. Vamos ao Heder ver O
Viajante sem Bagagem.
Escreva logo. Beijo-a,
Laure
P.S. - Apesar dos bombardeios, acho que você devia vir a Paris para
refrescar as idéias. Gostaria que fosse comigo ouvir jazz num porão do Quartier
Latin."

Léa sorriu ao terminar a leitura da carta. "Minha querida irmãzinha é
verdadeiramente inconsciente", pensou.
Depois desdobrou uma terceira folha de papel coberta por uma caligrafia
elegante.

"Minha filhinha,
Aproveito a carta de Laure para lhe dizer o quanto tenho pensado em você
e nessa casa tão querida que as viu nascer, a você e a suas irmãs, e de que
seus pais tanto gostavam.
A situação que você enfrenta inquieta-me muito e a Lisa também. Fizemos
e refizemos nossas contas, estamos praticamente arruinadas. Além do

apartamento da Rua da Universidade, não temos mais nada. Para podermos
comer, tivemos que vender as jóias mais bonitas que pertenceram à nossa mãe,
por preços ridiculamente baixos: as restantes só são valiosas pelas lembranças
que suscitam. Os investimentos que fizemos antes da guerra foram desastrosos
e o nosso banqueiro desapareceu com o ouro que lhe havíamos confiado. Isso
para lhe dizer que a menos que vendamos esta casa não podemos ajudá-la. Lisa
e eu estamos desesperadas por isso, Você já pensou em se aconselhar com seu
tio Luc? Sei que as relações são difíceis entre vocês, mas, por respeito à
memória de seu irmão, tenho certeza de que ele a auxiliará no que puder.
Há muita gente desonesta que procura abusar das mulheres que, devido à
guerra, têm de enfrentar sozinhas certas circunstâncias para as quais não
estavam preparadas. Mas a guerra acabará dentro em breve; se você puder se
agüentar até lá!
Laure nos preocupa bastante. Está sempre na rua, voltando tarde da
noite, traficando não se sabe o que; essa pequena nos preocupa quase tanto
quanto Françoise, cujo casamento parece bastante comprometido. O que será
dela depois?
Dê notícias suas com mais freqüência e também de Camille, que nos
tranqüiliza em sabê-la com você. Cumprimentos à sua tia, a senhora
Bouchardeau, e a Ruth.
Minha criança, perdoe-nos não poder ajudá-la. Todos os dias, eu e Lisa
rezamos por você e a abençoamos.
Sua tia que a ama,
Albertine"

Léa amassou a carta e atirou-a ao chão. Sentia-se desamparada,
abandonada. Fosse o que fosse, tinha de haver uma solução.
As jovens e a criança passaram apenas duas noites no pombal. Na manhã
do terceiro dia, Léa foi despertada por uma voz familiar. Mas, meio adormecida,
não conseguiu, de início, identificá-la.
— Esta pequena dorme como uma pedra!
— Que prazer em vê-lo, meu padre!
— Tio Adrien!
— Minha bela adormecida!
De cócoras sobre o cobertor, Léa não largava a mão do tio, fitando-o, feliz e
incrédula.
— Pensei que não o veria mais até o final da guerra.
O fim está próximo.

— Quando você chegou?
Fui lançado de pára-quedas esta noite, não muito longe daqui. Aristide
estava à minha espera e contou-me o que aconteceu a Albert e a Mireille —
informou o dominicano.
— Temos de fazer alguma coisa.
— Aristide e os seus homens estão cuidando do caso em conjunto com o
pessoal de La Réole. Por agora, nada podemos fazer.
— Não consigo deixar de pensar que foram presos por nossa causa —
interveio Camille.
— Não creio. Ao prender alguns elementos da Resistência, a Gestapo
encontrou certos documentos em seu poder; outros, sob tortura ou ameaças,
também revelaram nomes. Quando eu soube em Londres o nome do rapaz em
que Poinsot depositava absoluta confiança, logo temi pela sua segurança e pela
de Albert e Mireille. Ele sabia há muito tempo que Albert estava na Resistência.
— Mas por que não se manifestou antes?
— Por aí se vê a faceta particularmente perversa do indivíduo; quer ser ele
mesmo, sozinho, a dar um golpe espetacular, apresentando aos chefes os
cabeças da Resistência desta região.
— Mas se sabem quem é ele, por que o não fazem desaparecer? Uma
sombra perpassou o rosto emagrecido do dominicano, irreconhecível agora
devido ao soberbo bigode pintado de preto que lhe emoldurava o lábio. Léa
notou-lhe a súbita tensão do corpo. Pobre tio Adrien! A despeito da guerra,
continuava a ser o padre para quem abater o inimigo, apesar de traidor, seria
renegar o primeiro mandamento da lei de Deus: "Não matarás". Ah, se ela fosse
homem!..
Foi Camille quem formulou seu pensamento:
— Acho que sei a quem se refere, padre Adrien. Não passo de uma mulher,
mas estou disposta a matá-lo se me ordenar que o faça.
Perplexa, Léa olhou para a amiga. Decididamente, aquela Camille, que
durante tanto tempo considerara uma sonsa, a surpreendia sempre. Já em
Orleans não havia atirado no homem que as assaltara?
O dominicano olhou para a jovem com uma expressão terna e comovida:
— Não é tarefa para alguém como você. Está sempre acompanhado por
guarda-costas tão cruéis como ele mesmo.
— Mas de mim não desconfiaria — insistiu Camille d'Argilat.
— Não vamos mais falar nisso, está bem?
— Pelo contrário, devemos falar — interveio Léa. — Camille tem razão. Ele
não desconfiaria de nós.

— Vocês não sabem o que dizem. Essa gente é perigosa, muito perigosa
mesmo. Além disso, dispomos de suficiente número de homens experimentados
para a execução desse trabalho, caso devamos chegar a tal extremo.
— Mas...
— Não insista, Camille.
O tom de Adrien Delmas não admitia mais réplicas. Depois sorriu,
prosseguindo:
— Tenho uma surpresa para vocês. Não adivinham o que é?
— Esteve com Laurent!
— Estive. Quando me encontrei com o general Leclerc.
— Como está ele?
— Tão bem quanto possível. Concordei, embora seja expressa- mente
proibido, em trazer uma carta para você. Aqui está!
Camille estendeu a mão hesitante e pegou o envelope amarrotado que
Adrien Delmas lhe entregava.
— Acima de tudo, não a guarde — recomendou. — Destrua-a logo depois
de lê-la. Vem comigo, Léa? Vamos dar uma volta.
Quando ficou só, Camille virou e revirou o envelope, onde não se via
nenhuma inscrição. Por fim, resolveu rasgar o papel e o fez com uma violência
que não lhe era habitual. Retirou do invólucro duas folhas de papel
quadriculado, de má qualidade.

"Minha bem amada mulher,
Estou fazendo algo terrivelmente imprudente para nós dois e para o nosso
amigo, mas não agüento mais este silêncio prolongado. Não se passa uma noite
em que não sonhe com você e com o nosso filho, sonho esse em que os vejo em
casa de meu pai, onde por fim, regressei. E é por esse momento tão esperado
que continuo lutando. Os meses passados na África com homens
determinados, ao lado de um chefe que muitos consideram duro, mas que
todos veneram, transmitiram- me grande confiança no futuro.
Estamos admiravelmente instalados no meio de um parque magnífico. O
Estado-Maior ocupa o castelo, e os homens, em confortáveis acampamentos,
foram colocados a nosso dispor pelo governo britânico. Temos uma área de
treino de quatro mil hectares.
Penso sempre em você assim que entro no gabinete do general, situado na
biblioteca. A metade dos livros são obras francesas, do século XVIII, com
soberbas encadernações. Esta peça a agradaria. Suas janelas altas abrem-se
para um gramado em cujas bordas se erguem árvores enormes, de um verde
que não se vê igual na França.

Desde que nos instalamos aqui, há pouco tempo, o general decidiu jantar
com os oficiais mais importantes, o que me confere o privilégio de refeições
taciturnas e silenciosas, pois o chefe não é de muita conversa.
A este privilégio soma-se uma outra distinção que todos nós receamos, que
é a de ser escolhido para o "passeio do grande imbecil", se o tempo o permite,
ou para o "passeio do pequeno imbecil", se o dia não está bom. Um deles consta
de três quilômetros que podem se multiplicar por dois ou três, segundo seu
humor. Seus silêncios são entrecortados por relatos de suas recordações do
Chade ou de Ksar-Rhilane, de suas duas fugas, da sua travessia da França em
bicicleta.
Ontem à tarde, pediu-me para falar de nosso filho. É tão pouco habitual
da parte dele preocupar-se com a família dos subordinados que fiquei sem fala
por um instante. Isso o irritou.
— Por que não responde? Afinal, você é como todos os seus camaradas...
aborrece-se com estes passeios e com os monólogos sobre as minhas
campanhas. Mas sou capaz de me interessar por outras coisas além da guerra.
Sem dúvida isso é verdade, mas nenhum de nós pensa assim. Comecei
então a lhe falar a seu respeito, a respeito de Charles, da nossa região e das
pessoas que nela vivem, sem conseguir deter-me. E ele não me interrompeu
uma única vez.
Diante da porta do castelo, deu-me uma batida amigável no ombro e disse
com o sorriso que o rejuvenesceu e franziu seus olhos:
— Como vê, sei escutar. Boa-noite.
Os nossos dias começam antes da aurora e acabam muito tarde. Todos
nós estamos supertreinados, e um pouco com os nervos à flor da pele. Amanhã
à noite, iremos ao concerto na catedral, ouvir o Requiem de Brahms, e a Quinta
Sinfonia de Beethoven. Mais do que nunca pensarei em você e deixarei que a
música me conduza até você.
Cuide bem de você e de Charles, minha querida. Diga à nossa boa amiga
que me reconforta muito sabê-la junto de vocês. Transmita-lhe toda a minha
ternura. Peço a Deus para nos reunir a todos em breve. Fale de mim a Charles
de vez em quando para que ele me reconheça quando o abraçar.
Estas linhas serão as últimas que receberá de mim; mas não guarde a
carta.
Beijo o seu querido rosto e suas mãos tão belas. Amo-a.
Laurent"

Pelas faces de Camille corriam lágrimas de felicidade. Desde que o
conhecia, mesmo quando afastado, Laurent sempre fora presente e amante.
Quando tudo aquilo terminasse.

Ouviu-se um disparo. A jovem, perdida em seus sonhos amorosos,
estremeceu. Saiu para a clareira. Léon e três rapazes de cabeças cobertas por
grandes boinas empurravam diante deles, servindo-se das metralhadoras, um
outro jovem de feições alteradas e com uma das mãos ensangüentada aberta
sobre o peito. Uma coronhada mais violenta atirou-o aos pés de Léa e do tio.
— Um espião — informou um dos resistentes.
— Não é verdade — protestou o desconhecido.
— Bandido! Por que você se escondia?
— E a pistola. É para caçar coelhos, não?
— Esta região não é segura.
— Você sabe o que diz, malandro!
Uma coronhada desceu sobre a mão que sangrava. O prisioneiro soltou
um urro e Camille correu para ele.
— Não lhe batam! — gritou. — Está ferido!
— Fale, meu rapaz. O que está fazendo por aqui?
— Procurava juntar-me aos resistentes.
— Não acredite. Trata-se de um espião, estou lhe dizendo.
— Deixem-no conosco. Vamos obrigá-lo a falar.
— Peço-lhe, meu padre, impeça-os — implorou Camille, dirigindo-se ao
padre Delmas.
Léon nada dissera ainda. Sentado em cima de um toco, a boina atirada
para trás, contemplava a cena, rolando nos lábios uma ponta de cigarro
apagado. Ergueu-se meio a contragosto.
— O sujeito sangra como um boi. Dona Camille, veja se arranja um trapo
para lhe fazer uma atadura. Não chore, rapaz.
— Vamos ter uma conversa, nós dois.
O pequeno Charles, de quem todos se haviam esquecido, puxou a saia de
Léa.
— Por que estão maltratando aquele senhor? — perguntou. Camille
reapareceu com um pano limpo, e envolveu a mão machucada.
— Está bem assim — disse Léon. — Vocês voltem aos postos de vigia.
Acho, meu padre, que teremos de fazer as malas.
— Também acho.
— Não se mexa, garoto.
O prisioneiro, que se levantara, deixou-se cair de novo no solo arenoso,
gemendo.

Sempre de olho no rapaz, o velho landês acercou-se do dominicano para
lhe perguntar em voz baixa.
— Conhece as gargantas do Ciron, meu padre?
— Conheço.
— Temos homens por essas bandas. Precisa de guia?
— Apenas para sair daqui, do seu esconderijo. Depois disso conheço o
caminho.
— Em Bourideys, procure a casa com janelas azuis; é de um amigo meu.
Diga-lhe que Léon foi apanhar cogumelos. Ele atrelará a carroça, mandará
avisar Aristide e os levará até as grutas.
— Mas não ficam muito longe. Podemos ir a pé.
— Com elas e com o pequeno isso não é possível.
— Tem razão. O que vai fazer com ele?
— Interrogá-lo, ora!
— Sabe muito bem a que me refiro.
— Isso não é problema seu, meu padre. Este setor me pertence e tenho de
saber o que acontece por aqui. Muitos dos nossos têm sido apanhados
ultimamente.
— Eu sei. Aristide recebeu ordens de Londres para executar Grand-
Clément.
— Ele não é o único a colaborar com os boches.
— Infelizmente não. E por isso mesmo que estou aqui. GrandClément e
aqueles que arrastou consigo fizeram todo o mal que puderam, mas esforço-me
por acreditar que por detrás de suas relações com Dohse.
Por detrás de suas relações, como o senhor diz, meu padre — cortou Léon
—, está a traição de bons patriotas, a denúncia de 56 camaradas comunistas e
a perda de toneladas de armamento enviado pelos ingleses. Para mim, isso é
mais que suficiente... um patife assim deve ser abatido como um cão.
O dominicano encolheu os ombros num gesto de cansaço e encaminhou-se
para o prisioneiro.
— Fale, meu rapaz. Será melhor para todos.
— Principalmente para você — zombou Léon, empurrando o ferido com a
metralhadora.
Camille e Léa voltaram, já com suas bagagens. Léa empilhara os seus
pertences dentro de um grande pano quadrado de algodão azul, com as quatro
pontas atadas. Pendurou o fardo no cano da espingarda de caça do landês.
Com seu vestido de florezinhas, o chapéu de palha e as alpargatas, parecia uma
camponesa amável, levando o almoço para um trabalhador do campo.

— Jeanot! — chamou Léon.
Um jovem barbudo surgiu por de trás de um pinheiro.
— Mostre-lhes o caminho até a estrada. E abra bem os olhos e as orelhas!
Talvez ele não tenha vindo sozinho.
— Está bem, chefe.
— Até depois, Sr. Léon. Obrigada pela sua hospitalidade.
— Não tem de quê. Agora, vão.
Com uma emoção que a deixou surpresa, Camille percorreu com a vista o
velho landês, a cabana e a floresta. A jovem, habitualmente tão reservada,
beijou Léon com arrebatamento, os olhos cheios de lágrimas.
Nunca mais esquecerei os poucos dias que passei aqui. Espero voltar
novamente. Adeus.
Por que motivo aquela clareira cheia de sol pareceu a Léa, de repente, tão
fria?
— Então... — vamos? — disse ela, pegando a mão de Charles.
Caminharam através da mata durante cerca de uma hora. Adrien Delmas
pusera a criança nos ombros. A estrada de Bordéus estava livre.
Logo chegavam à casa indicada por Léon, onde estava o homem que os
guiaria até as grutas. O cavalo, atrelado à carroça, pareceu pouco satisfeito
com o fato de o obrigarem a puxar tanta gente. Relinchava e sacudia a cabeça
com um vigor que lhe faltava na marcha. Apesar do mau humor do animal, não
demoraram muito tempo a atingir Préchac. À entrada da aldeia, dois soldados o
mandaram parar.
— Ah, é você, Dumas!
— Olá, Renault! Olá, Laffont! O que acontece?
— Quem é essa gente? — perguntou Laffont, com desconfiança na voz.
— Pessoas amigas. Levo-as às grutas. Foi Léon, o landês, quem mandou.
Mas não me responderam... O que está acontecendo?
— Acontece que não pode ir até as grutas.
— Mas por quê?
— Porque os alemães estão vasculhando toda a área em conjunto com a
polícia.
— Parece que um sujeito importante de Londres desceu por aqui de pára-
quedas um dia destes.
Camille apertou o filho contra si. Num gesto maquinal, Léa torcia uma
madeixa de cabelos. Adrien Delmas cofiava o bigode excessivamente preto.
— Prenderam algum dos nossos? — perguntou Dumas.

— Ainda não. Mas estão bem informados, os malandros. Se não fosse um
menino de Marimbault que ia pescar, ao amanhecer, e que foi a Gillets avisar
os camaradas, teriam sido todos apanhados. Por pouco não pegaram Lancelot e
Dédé, o Bosco.
— Merda! O que vou fazer com eles? — disse o condutor da carroça,
indicando os passageiros.
O soldado Laffont fez sinal a Dumas que queria lhe falar em particular.
— Aquele, de bigodes, será de confiança? perguntou.
— Claro que é. Se não fosse assim, Léon não o mandaria. Acho mesmo que
é ele o sujeito que chegou de pára-quedas.
— Então está bem. Nós mesmos nos encarregaremos do caso. Vamos levá-
los no carro da polícia. E você, desapareça, pois não convém que o vejam por
aqui. Meus senhores e minhas senhoras, vamos descer! Têm algum lugar para
onde ir?
— Temos sim. Vamos para Brouqueyran, perto de Auros. Sabem onde é?
— Se sabemos! E se vão para casa de Sífflette, dêem aqui um aperto de
mão. É minha prima é uma excelente mulher.
— Você já vai começar com suas histórias de família! Vamos, é perigoso
ficar aqui.
— Você tem razão, tem razão. Vai buscar o carro. Venham, vocês! — disse
o homem.
— Até depois — gritou Charles, agitando os braços na direção de Dumas,
que obrigava o cavalo a dar meia volta.
Durante os sete quilômetros que separam Préchac de Captieux, não
trocaram nenhuma palavra. A criança adormecera nos joelhos da mãe. Na
entrada do povoado, Laffont, o cabo da polícia, virou-se para Adrien Delmas,
perguntando:
— Tem documentos?
— Tenho.
— E as senhoras?
— Também temos. Por quê?
— No caso de encontrarmos uma patrulha alemã que nos mande parar,
digam que vão passar uns dias na casa de parentes, a casa dos Puch, em
Grignois.
— Mas quem são esses Puch? — quis saber Adrien.
— Boa gente, que já salvou mais de uma pessoa.

Mas tudo foi bem; chegaram a Brouqueyran sem problemas. O local onde
seriam recebidos era a tabacaria-bar-mercearia- bazar-padaria da Sifflette,
prima do cabo.
A dona recebera aquele apelido porque costumava assobiar enquanto
servia os clientes e, sobretudo, gostava de beber seus copinhos de vinho
escondida por detrás do balcão.
— Bom-dia, primo — saudou a mulher. — Então, você me traz mais gente?
— Como sempre, prima.
Léa deu uma olhada em volta. Para além do velho balcão de madeira, as
prateleiras onde antes existira grande variedade de artigos estavam vazias. Aqui
e ali viam-se apenas algumas latas empoeiradas. No chão, encostado à parede,
um único saco de sementes e um rolo de arame. No meio da sala, ficava a
enorme mesa comum com seus bancos corridos e, sobre os ladrilhos gastos
pela passagem de muitos pés, estendia-se uma ligeira camada de serragem.
— Posso lhe dar uma palavrinha em particular? — perguntou o
dominicano à dona da casa.
— Vamos para o quintal — sugeriu a mulher. — Estaremos mais a
vontade. Façam de conta que estão em casa. Laffont, ofereça- lhes um copo de
vinho e dê uma limonada a este belo anjinho.
Saíram os dois, mas não demoraram. Ao voltarem, Charles já bebia a
limonada, o quepe de Laffont enterrado na cabeça até as orelhas. Ao vê-lo,
Sifflette riu com gosto.
— Com semelhante recruta, a guerra não vai durar muito — gracejou a
mulher.
— Bem, tenho de ir andando — declarou Laffont. — Caso contrário, meus
camaradas vão se perguntar o que terá me acontecido.
— Até logo, menino. Você me dá o quepe?
— Não. Quero ficar com ele.
— Vamos, querido, dê o quepe ao senhor — interveio Camille, procurando
tirá-lo. — Aliás, é grande demais para você.
— Não! Não! — gritou a criança.
— Largue isso! — trovejou Léa.
Com um gesto brutal, arrancou-lhe da cabeça o quepe, e o devolveu ao
dono. Omenino começou a gritar com mais força.
— Que ele se cale, senão o amasso! — exclamou a jovem, torcendo-lhe o
braço.
Charles ficou tão surpreso com a violência do tom, que ficou quieto,
esquecido da dor.

— Não é preciso falar assim com as crianças, senhorita. Ele ainda não
sabe o que faz — censurou-a Sifflette, pegando o menino ao colo.
Laffont pôs o quepe e partiu juntamente com Renault.
Assim que ambos deixaram a loja, o padre Delmas que, desde a chegada
ao pombal não havia largado a velha mala que parecia pesada, perguntou à
comerciante se a casa dispunha de algum lugar tranqüilo.
— Sobre o celeiro há um quarto que não é utilizado — informou ela. É lá
que guardo a roupa velha e os móveis sem uso. Eu pensei nele porque tem
duas entradas.
Charles e Léa trocavam olhares emburrados. Camille observava-os e não
pôde se impedir de sorrir.
— Pergunto a mim mesma qual de vocês será mais criança, Léa. Lembre-
se de que ele tem apenas quatro anos.
— Você é má... má. Não gosto de você. Não é mais minha amiga. E quando
for grande, não casarei com você.
— Tanto faz! Vou encontrar um outro muito mais bonito que você.
— Não é verdade! Eu sou o mais bonito. Não é assim, mamãe?
— perguntou o menino.
— É sim, meu amor. É o mais bonito e tenho certeza de que Léa também
acha.
— Ela não diz nada, mamãe... está vendo? Já não gosta de mim.
A tristeza de tal pensamento foi mais do que Charles pôde suportar, e ele
se desfez em soluços.
— Não chore, Charles, não chore. Estava brincando. Gosto de você, eu o
amo mais que tudo no mundo! — exclamou Léa, tirando a criança dos braços
da mãe e cobrindo-a de beijos.
— É verdade?
— Claro que é, meu querido.
— Então, por que me bateu?
— Desculpe-me. Bati apenas porque estava cansada e nervosa. Mas nunca
mais o farei, eu juro. Dê-me um beijo.
Durante momentos, houve farta distribuição de beijos e de carícias,
entremeados de risos, sob o olhar enternecido de Camille.
Então... os namorados já fizeram as pazes? — perguntou Sifflette.
Dirigiu-se ao balcão, assobiando, e encheu um pequeno copo de vinho,
engolindo-o de um trago.

— Devem estar com fome — observou a boa mulher. — Vou lhes preparar
uma omelete de cogumelos e uma salada da minha horta. Tenho ainda um
resto de bolo. Agrada-lhes?
— Muito, minha senhora. Obrigada. Posso ajudá-la em alguma coisa? —
perguntou Camille.
— Não vale a pena. Cuide do pequeno. Instalem-se no quarto. Fica no alto
das escadas, segunda porta à direita.
— Obrigada por tudo.
— Chega! Mais tarde me agradecerão. Cale-se, que aí vem alguém.
Entravam na venda três homens de idade, envergando os velhos casacos
de algodão típicos da zona de Bazas.
— Bom-dia a todos — Está com visitas, Sifflette? São também seus
parentes? perguntou, com ar falsamente sério, o do chapéu amarrotado.
— Deixe a mulher, Loubrie. Não temos nada a ver com seus problemas de
família.
— Tem razão, Ducloux. Sobretudo nos tempos de hoje.
— Então, seus beberrões, o que é que bebem?
— Ainda tem daquele vinho branco de ontem?
— É caro demais para sovinas como vocês. Ontem foi oferta da casa, mas
não se costumem.
— Que avarenta! Pare de protestar e sirva-nos alguma coisa que se beba.
A comerciante lhes trouxe três copos e uma garrafa de vinho rosé.
— Então não sabe? Os boches estão farejando não muito longe daqui!
— Parece que sim. Meu primo, aquele que é soldado, apareceu por aqui e
me falou do caso.
— Mas o que é que procuram?
— Ora, vá perguntar a eles, a esses filhos da puta!
— Pensa que sou doido? Não tenho vontade nenhuma de que me tomem
por um desses malditos terroristas.
— Não há perigo. Logo veriam que você não passa de um fanfarrão.
Os companheiros de Loubrie desataram a rir.
— Não é para Sifflette que vale a pena contar vantagens.
— Ela já te conhece, seu mulherengo.
— Seus estúpidos! Vocês não são os primeiros nem serão os últimos a dar
ouvidos às más línguas. Isso não impede que a patroa aqui fizesse melhor em
receber menos estranhos. já começou o falatório na aldeia.

— Se pensa que me dá medo com seus mexericos, sua besta velha, está
muito enganado.
— Não estou procurando assustá-la, mas lhe prestar um favor. Os
"frisados" começaram a ficar nervosos. E não são loucos.
— Também ouvem os aviões ingleses, tal como nós.
— E mesmo que não ouvissem, há por aí certos patifes que estão de olhos
e ouvidos bem abertos para poderem avisá-los.
Loubrie emborcou o copo do vinho tão rapidamente que se engasgou e um
fio de líquido escorreu pelo queixo mal barbeado.
Ducloux bateu em suas costas.
— Ora! Que babão! Não vale a pena ficar assim. Se não tem nada a se
reprovar, os caras da Resistência não lhe farão nenhum mal. Segundo se diz,
são bons rapazes. Olhe, deixe que eu limpe seu colarinho senão Raymonde,
com a sua mania das limpeza, é capaz de lhe dar uma surra — disse Sifflette,
rindo.
Loubrie repeliu a mão que procurava limpá-lo e ergueu-se, resmungando:
— Deixe de me paparicar como se eu fosse uma criança.
Os três velhos saíram da loja, seguidos pelas gargalhadas da dona, que
fechou a porta à chave.
— Assim estaremos mais sossegados — declarou. — Não confio nesses
bisbilhoteiros. Logo à noite, vou procurar saber notícias. Como é bonito, o
menino! Onde está o seu papai? Na guerra, é claro!
Sempre falando, Sifflette preparava a omelete. Na frigideira, colocada no
canto de um fogão velho e encardido, a gordura de ganso começava a fervilhar.
— Não se incomoda de pôr a mesa, senhorita? — pediu a mulher a Léa. —
Os pratos estão na prateleira do aparador. A comida não demora.
— Hum... como cheira bem! Isso me faz lembrar a infância, quando
Sidonie nos fazia omeletes de cogumelos ou de presunto — observou Adrien
Delmas, que acabava de entrar na sala. Depois, dirigindo-se à cozinheira,
recomendou: — Esta noite, minha senhora, terá de avisar o pessoal de Auros e
de Bazas para que fiquem de alerta. Eu avisarei os de Landraut e de Saint-
Symphorien. E você, Léa, irá a Langon e Saint-Macaire dizer à nossa gente.
Poinsot e seus homens estão a par de todos os esconderijos de armas e de
todos os locais de refúgio. Os alemães andam vasculhando as gargantas do
Ciron apenas por diversão. Maurice Fiaux foi incubido de chefiar as operações,
em conjunto com o tenente Kunesch. Dohse e a polícia querem impedir por
toda lei que Aristide reconstitua as redes. Procuram utilizar Grand-Clément,
mas mesmo os resistentes mais crédulos desconfiam dele. Londres voltou a dar
ordens para a sua execução, assim como a de Fiaux. Vamos para a mesa! A
noite promete ser longa.

— Eu também quero participar, padre — ofereceu-se Camille.
— Não. Você não.
— Mas por quê?
— Os seus deveres são para com seu filho. Além disso, o menino não pode
ficar aqui sozinho.
Camille baixou a cabeça e deixou escapar um suspiro.
— Claro... tem razão — concordou.
— Apressem-se! A omelete está esfriando. Gosta, pequeno? Vou lhe cortar
uma fatia de pão. Como está a minha omelete, padre?
— Lamentável! — respondeu Adrien Delmas, rindo.

Capítulo 4

O CÉU ESTAVA esplêndido, cheio de estrelas. Antes de atravessar o
Garonne em Langon, Léa parou em frente da igreja e desceu da bicicleta
emprestada por Sifflette, e que parecia ter andado na guerra de 1914. Sem
nenhum problema, já entregara a mensagem do tio ao cozinheiro do Nouvel-
Hôtel: "A lagoa do Pouy-Blanc já não recebe águas de Ciron".
— Diga-lhe que entendi — recomendou o cozinheiro. — A senhorita faz
muito bem. Seu pai teria muito orgulho de você.
Àquelas palavras, uma lufada de felicidade melancólica invadira a filha de
Pierre Delmas.
Como tudo estava calmo! Era quase impossível imaginar que, não muito
longe dali, talvez apenas a alguns passos, houvesse homens emboscados à
espera de ordens para matar.
Quando chegou ao cruzamento, Léa não virou à direita em direção a Saint-
Macaire, mas à esquerda, passando sob o viaduto. Precisava rever Montillac.
Era mais forte que ela.
Na subida, com todas as engrenagens rangendo, a bicicleta acusava sua
velhice. Léa viu-se obrigada a descer. A cruz de Borde continuava dominando a
propriedade de Prioullette com seus braços escuros. Fora aos pés daquele
cruzeiro que aceitara a primeira missão confiada por Adrien Delmas. Como isso
lhe parecia distante, porém!
O vulto negro das árvores de Montillac fez o coração de Léa bater mais
rapidamente. Lá estava a casa, ali bem perto! Parou em frente da alameda que
conduzia à construção, lutando contra o impulso de correr e de se refugiar na
velha casa, de aninhar-se nos braços de Ruth, antes de voltar a partir.
Um cão latiu, depois outro, e surgiu a luz no patamar da casa dos Fayard.
Chegou até ela, bastante distinta, a voz do encarregado das adegas ordenando
aos animais que se calassem. Não era prudente demorar-se. Tornou a montar a
bicicleta e deu meia volta.
Era uma hora da manhã quando Léa abriu a porteira da passagem de
Saint-Macaire. Abafou um grito ao ver surgir em sua frente um cão de guarda,
pulando e latindo, com um grande barulho de correntes arrastadas. Atravessou
a linha correndo, pedalou pela estrada e seguiu pela rua que conduzia à porta
de Benauge. Na estrada da República, parou diante da garagem de Dupeyron.
O soldado Riri veio abrir a porta. Mal reconheceu a moça, puxou-a para
dentro da casa.
— Senhorita Léa! O que a traz até aqui?

— Tenho um recado importante para o senhor: "A lagoa do Pouy-Blanc já
não recebe águas do Ciron".
— Oh, diabo! Tenho de avisar todos da região.
— Avisei o pessoal de Langon — informou a moça. — A esta hora também
os de Villandraut, de Saint-Symphorien, de Bazas e de Auros já devem estar
sabendo.
— Melhor! Dupeyron, encarregue-se de telefonar a Cazenave. Vou voltar
para a delegacia.
— Então, não vem conosco?
— Não posso abandonar o posto; seria prejudicial para os camaradas. Já
temos aborrecimentos de sobra.
— Receberam notícias de Albert e de Mireille? — quis saber a moça.
Notícias, verdadeiramente, não. Mireille está presa no quartel Boudet e
soubemos que, no que lhe diz respeito, as coisas não correm muito mal. Mas,
quanto a Albert, não sabemos nada. Mathias Fayard e René foram os últimos a
vê-lo. Depois disso, mais nada. Ninguém o viu sair da casa do Bouscat. Talvez a
senhorita ainda não saiba, mas Mathias conseguiu fugir ontem à noite, o que
forçou os rapazes de Mauriac que o guardavam a se dispersar pela região.
— Acha que ele os denunciará?
— Não sei. Não compreendo mais nada dessa juventude. Parece que
ficaram todos loucos, Conheço bem Mathias. Jogamos futebol juntos, íamos à
caça das perdizes, éramos como verdadeiros camaradas, embora eu seja mais
velho. Ele não era mau rapaz, mas a temporada na Alemanha modificou-o
completamente. Voltou de lá com idéias políticas. E política não é coisa boa,
sobretudo agora. Não acho que seja muito perigoso. Quem me dá medo é
Maurice Fiaux. Esse sim, é malvado, ele gosta do mal. E conhece bem a região.
Até logo, senhorita. Diga à pessoa que aqui a enviou que faremos o necessário e
que se quiser entrar em contato comigo já sabe onde estou. Não saia ainda.
Espere, vou dar uma olhada na rua.
— Venha... pode ir. Boa viagem, senhorita. Adeus...
Levantara-se um vento frio e cortante, que obrigava Léa a diminuir o
ritmo. Entretanto, ao atravessar a mata de Constantin, a jovem estava molhada
de suor. As mãos geladas crispavam-se no guidão enferrujado. No lugar
denominado Le Chapitre, estourou um dos pneus, já muito gasto. A bicicleta
derrapou.
Com os joelhos e as mãos arranhados, Léa ficou por um longo momento
estendida na estrada de terra, sem forças para se mexer. O frio obrigou-a a se
levantar. Sentia o sangue escorrendo pelas pernas. Doíam-lhe os joelhos,
embora menos que as mãos. Ergueu a bicicleta. As rodas não giravam,
bastante empenadas. Com raiva, Léa arremessou o velho engenho para o
acostamento e recomeçou a caminhar, mancando.

Pouco antes de chegar a Brouqueyran, o ronco de um motor fez com que
se atirasse numa valeta. A alguns metros dela, passaram três veículos
rapidamente. Amigos ou inimigos? Como saber?
A poeira ainda não havia assentado quando chegou a seus ouvidos o som
de vozes e o bater de portas — os carros tinham parado em Brouqueyran.
"Contanto que tio Adrien não tenha voltado ainda!", ela pensou, correndo em
direção da aldeia.
— Vamos, arrombem a porta! — gritou alguém.
A voz obrigou Léa a estacar; o medo apoderou-se dela instantaneamente.
Fugir... era preciso fugir. Em vez disso, porém, deixou-se cair de joelhos e nem
mesmo sentiu que a dor recrudescia.
Lá, os homens acabavam de forçar a porta. Outros revistavam os
pardieiros em volta do pobre café. Desde que não descubram o posto emissor! O
posto... mas que importava o posto! ... Camille e Charles estavam sozinhos
dentro da casa!
Léa ergueu-se e correu a descoberto... Os gritos de Camille interromperam
seu impulso.
— Não! Não! Não lhe faça mal!
Um homem transpunha o limiar, trazendo a criança, que se debatia. A
mãe saiu por sua vez, agarrando-se ao indivíduo que a repelia com pontapés,
sem conseguir que ela o largasse.
— Mamãe... mamãe.
Escondida atrás da parede do edifício da Junta, Léa perscrutava as trevas
à procura de uma arma.
Um clarão brotou da casa, iluminando a cena. Nem um só uniforme;
apenas duas braçadeiras com o distintivo da polícia... rostos jovens esculpidos
pelo clarão do incêndio que aumentava. metralhadoras agitadas como se
fossem brinquedos... garrafas empilhadas em arcas... risos... vozes francesas
que vomitam, que insultam, que ferem.
— Vai ou não vai dizer onde estão os outros, ordinária?
— E Sifflette? Também não a conhece, não é?
— E Albert e Mireille e Lucien e Aristide? E o puto do dominicano, isso não
lhe diz nada?
— Não sei do que estão falando. Devolvam meu filho!
— Só o devolvemos quando falar.
— Deixe-a, Jérôme. Dê-lhe o garoto. Vamos fazê-la falar em local seguro.
Com essa sua estupidez de atear fogo, vai alertar os resistentes da região.
— Merda! ... Não se preocupe, Maurice, estaremos à espera deles.

— Mamãe!
— Devolva-o, santo Deus! Entrem!
Apertando o filho contra si, Camille subiu para uma das viaturas. Maurice
Fiaux instalou-se ao volante.
— Vamos a La Réole — gritou aos outros.
Caída junto à parede da construção, Léa viu os carros se afastarem,
desaparecendo na noite, em direção a Auros.
Graças à claridade das chamas, Adrien Delmas encontrou a sobrinha,
tremendo de frio e de febre.
— Onde estão Camille e Charles?
— Fiaux... Maurice Fiaux.
Léa sacudia a cabeça, batendo os dentes, incapaz de dizer outra coisa. O
dominicano ergueu-a e, perturbado, encaminhou-se para as labaredas. Nesse
momento, tal como se fosse uma feiticeira, Sifflette pareceu emergir das
chamas.
— Santo Deus! Onde estão o menino e a mãe? — perguntou a mulher.
— Não sei disse Adrien Delmas. — Parece que Maurice Fiaux e seu bando
passaram por aqui.
— O que fizeram esses filhos do demônio?! Meu pai! ... Ela está ferida!
— Eu vi. Então não há ninguém por aqui?
— Se os conheço bem, fugiram como coelhos — respondeu Sifflette. — Mas
que desgraça a nossa! E pensar que pessoas como o senhor arriscam a vida por
esses trastes!
— Não diga isso. A senhora também arrisca a vida e perdeu o que tinha. A
igreja está aberta?
— Não. Mas sei onde o pároco esconde a chave. Olhe, meu padre, veja! O
celeiro ainda não está queimando. Talvez o seu posto.
Com cuidado, Adrien estendeu a sobrinha, ainda inconsciente, junto da
parede do pequeno cemitério e correu para o celeiro, enquanto chamava:
— Camille! Charles!
Sifflette retirou a chave de um buraco na parede e abriu a porta da igreja.
Sem muita dificuldade, arrastou a jovem para o interior do templo, até o altar.
Ali havia um tapete, suntuoso no passado, agora, porém, puído até a trama,
oferecido pelas castelãs do Mirrail. Assim mesmo era mais confortável que as
pedras frias e irregulares.
Depois de instalar Léa, tateou por detrás do grosso volume dos
Evangelhos, em busca da caixa de fósforos. Após várias tentativas, um dos
palitos consentiu em se inflamar. A mulher acendeu então os dois grandes

círios colocados de ambos os lados do tabernáculo, apoderou-se de um deles e
foi vasculhar a minúscula sacristia. Tudo o que descobriu para proteger a
ferida do frio úmido foi um tecido mortuário marcado com uma cruz branca,
com que se recobriam os caixões durante as cerimônias fúnebres.
Ao sair, Sifflette persignou-se num gesto maquinal.
O incêndio parecia ter diminuído. Vindo da direção de Bazas, ouvia-se o
som da sirene de um carro de bombeiros. Mas o ruído tranqüilizador provocou
apenas um encolher de ombros na proprietária do café-tabacaria-mercearia-
bazar de Brouqueyran A senhora tinha razão. O posto ainda lá estava —
esclareceu Adrien Delmas, apontando a mala pesada. — Olhe, os bombeiros
estão a chegar! Tenho de escondê-la.
— E o senhor, meu padre, também deve se esconder. Não podem vê-lo
aqui. Tome a chave da igreja e feche-se lá dentro. Se a pedirem, direi que se
perdeu.
— Nenhuma notícia?
— Não. Ia perguntar-lhe isso mesmo. Devem tê-los levado para Bordéus.
— Não sei se isso é o melhor que se possa lhes desejar.
— Não diga tal coisa, meu padre. Nem mesmo gente como aquela faria mal
a uma criança.
— Que Deus a ouça!
Mas Sifflette já não ouviu a frase desiludida do dominicano; corria à frente
dos bombeiros, gritando com enorme alarido.
Léa voltou a si sob a luz vacilante dos círios. Entorpecida pelo frio, nem
sequer conseguia tremer. Soergueu-se, apoiada aos cotovelos. Aquele local, o
pano fúnebre, os círios... Por segundos, pensou que estava morta. Uma
angústia violenta fez com que se pusesse em pé de um salto, repelindo a
cobertura macabra. O padre da localidade teria, sem dúvida, acreditado numa
aparição da Virgem.
Adrien Delmas entrava na igreja nesse exato momento. "Como é bela e ao
mesmo tempo terrível esta criança... Saída diretamente de um romance negro",
pensou, antes de fechar a porta à chave.
— Quem está aí? — perguntou Léa.
— Sou eu. Não tenha medo.
— Oh! meu tio!
Adrien aproximou-se da jovem. Pousou a mala e obrigou a sobrinha a
sentar-se no degrau do altar. Atraiu-a para si, voltando a cobri-la com o tecido
mortuário.
— Conte-me o que aconteceu.

Em voz baixa, mas firme, Léa narrou tudo.
Adrien Delmas inclinou a cabeça, acabrunhado, censurando-se por não ter
intervido a tempo.
Do exterior, abafadas, chegavam até eles as vozes dos bombeiros,
combatendo o fogo.
— Tem certeza de que ele se referiu a La Réole? — perguntou o
dominicano.
— Tenho.
— Mas por que La Réole? Há qualquer coisa que me escapa. Seria natural
que os levassem para Bordéus.
— Como souberam?
— Ora, como sempre sabem: por denúncia. Pensaram que iriam nos
prender a todos. Tem certeza de que não havia nenhum alemão com eles?
— Acho que não... todos falavam francês e nenhum deles estava
uniformizado.
— Isso parece confirmar os dados recebidos em Londres: a Gestapo não
está a par de todas as ações levadas a cabo por Fiaux e seu bando. Eles atuam
com objetivos pessoais, o que os torna ainda mais perigosos e imprevisíveis.
— Mas por que Fiaux faria isso? Sem ordens?
— Pode haver várias respostas, como sempre.
— Mas você o conhece bem!
— Sim, conheço. E, por isso mesmo, ele me assusta. Deseja vingar-se da
sociedade. Quer ser um chefe temido e respeitado. Além disso, como já provou,
gosta de matar, de torturar, de aviltar.
— Não podemos deixar Camille e Charles em suas mãos — disse Léa.
Uma pancada na porta veio interromper o diálogo.
— Abram. Sou eu, Sifflette.
De pistola em punho, Adrien deu a volta na chave.
A mulher entrou na igreja, empurrando à sua frente um rapaz com um
capacete de bombeiro grande demais para ele.
— Tivemos sorte que Déon tenha quebrado o braço. Veio Claude, o filho,
no lugar dele. O rapaz é meu conhecido. Trabalha para o grupo resistente de
Léon de Landes e vai entrar em contato com ele. Eu lhe falei sobre o menino e a
mãe.
— Muito bem. Parece que os levaram para La Réole — informou o
dominicano.

— Para La Réole?! — exclamou a mulher. — Espero que estejam
enganados. Segundo os boatos da região, a Gestapo da cidade cedeu aos
franceses um local nos subterrâneos do colégio para interrogatório dos
resistentes comunistas.
— E há provas disso?
— Não. Só se fala, é tudo.
— Esqueci de dizer, tio: Mathias fugiu.
— Nesse caso, talvez haja uma esperança.
— Tenho de ir. Meus colegas vão estranhar a minha ausência.
— Tem razão. Avise-me na casa do pároco de Auros. Perguntem por
Alphonse Duparc. Entendeu? — disse Adrien Delmas.
— Sim, senhor. Terá notícias amanhã.
A porta voltou a fechar-se após a saída de Sifflette e do bombeiro.
— O que quis dizer em relação a Mathias, tio?
— Descanse, deixe-me pensar.
— Vamos... vamos... nossos amigos soldados estão aqui — comunicou
Sifflette.
Léa abriu os olhos com dificuldade.
— Toma, pequena. Beba isto. Está quente.
A mulher estendia-lhe uma caneca contendo um líquido que parecia café.
Léa sorveu um gole e quase cuspiu.
— Mas o que é isto? Tem álcool misturado!
— Um café regado. Tira o gosto de aveia torrada. Vamos, beba, senão, com
o frio desta igreja, vai ficar doente — insistiu Sifflette.
A beira da náusea, Léa engoliu a mistura. É verdade que lhe fazia bem.
Sem muita dificuldade, esticou os joelhos feridos, cujas crostas endurecidas lhe
esticavam a pele.
Lá fora, o dia anunciava-se bom. Ainda fumegavam as ruínas calcinadas
do café-tabacaria. Os soldados Laffont e Dumas, encostados em seu carro,
observavam os escombros com expressão dura. Adrien Delmas consultava um
mapa.
— Onde vamos, tio?
— A La Réole.
Léa fitou-o sem compreender.

— Atravessaremos o Garonne em Castets, será mais prudente. Em
seguida, atingiremos a fazenda, acima de La Réole, por caminhos secundários
— esclareceu o dominicano.
— Mas por que La Réole?
— Toda esta área está quadriculada, não temos locais seguros para nos
escondermos. De onde estaremos, poderei entrar facilmente em contato com
Hilaire.
— Nunca mais voltei a La Réole depois da morte do senhor e da senhora
Debray — disse Léa.
Munida de uma forquilha, Sifflette revolvia os escombros em busca de
objetos poupados pelas chamas. Nenhuma queixa, nenhum gemido escapava
de seus lábios. Mas vê-la assim, vasculhando as cinzas ainda quentes, bastava
para compreender seu desespero. Uma vida inteira de trabalho desfeita em
cinzas! Não lhe sobrara sequer uma corda!
— Vamos, minha velha, temos de partir — disse Laffont, colocando a mão
com suavidade no cabo da forquilha.
— Tem razão. Não serve de nada revolver as lembranças.
Desfez-se da ferramenta com um gesto desiludido e subiu para o veículo
sem olhar para a casa consumida pelo incêndio.
Ninguém das vizinhanças acorrera para saber o que havia acontecido.
Da fazenda, podia-se ver a distância as pessoas que chegavam, como
afirmava Jean Callède.
Calorosamente acolhida, Sifflette ajudava a senhora Callède nos trabalhos
de cozinha. Muitos residentes estavam já familiarizados com suas famosas
salsichas grelhadas, bem regadas com vinho da região.
Mas estava escrito que Léa e Sifflette não gozariam da tranqüila
hospitalidade dos anfitriões. Na véspera da chegada do grupo, fora recebida de
Londres a seguinte mensagem: "A Honra suplantará a Audácia". Isso significava
que haveria um lançamento de pára- quedas na noite seguinte.
As duas mulheres insistiram em participar da ação. A pedido do padre
Delmas, os resistentes acabaram por concordar. Na opinião deles, as mulheres
serviam apenas para esconder armas e pára- quedas na cozinha.
Quanto a Adrien Delmas, via-se obrigado a partir para se encontrar com o
padre Dieuzayde do grupo Jade-Amicol e com Aristide, Dédé, o Basco, Lancelot
e Georges, a fim de estudarem um plano para a libertação de Camille d'Argilat e
do filho e para eliminar Maurice Fiaux.
São dez, contando com Lea e com Sifflette. Rodeiam o local do lançamento,
agachados, invisíveis no meio das trevas, postados a intervalos regulares e
munidos de lanternas.

Outros elementos do grupo encontravam-se dispersos pelos arredores,
vigiando os caminhos de acesso, com os ouvidos atentos.
A espera parece longa. De repente, ouve-se como um ronronar longínquo.
— Lá vem ele! — Callède sussurrou. — Atenção!
O ronronar acentua-se. Soa um apito e todas as lanternas se acendem
quase ao mesmo tempo. Um, dois, três, quatro, cinco... apagam-se. Um, dois,
três... acendem-se de novo.
O ronronar transforma-se agora em ronco de trovão. Um vulto negro
descreve uma curva por cima do campo balizado, desce e parece estabilizar-se,
com os motores produzindo um som mais abafado. Do aparelho projeta-se
então uma sombra. Há o estalido do pára-quedas se abrindo e logo outras
sombras o sucedem.
Atingem o solo com um tilintar metálico. O avião de reabastecimento
afasta-se em seguida, mas os dois últimos pára- quedas continuavam presos à
cabine como bandeiras brancas desfraldadas sobre La Réole. Se depois disso a
Gestapo e a polícia não fossem avisadas.
Os homens agiam em volta da carga. É necessário fazer desaparecer todo e
qualquer vestígio do lançamento. Sifflette e Léa soltam e dobram os pára-
quedas, levando-os para uma charrete atrelada a bois. Os resistentes pegam as
caixas que colocam em três caminhonetes para levarem à serraria de
Blenvenue. As armas são escondidas no fosso da serragem, outras em celeiros
ou em secadores de tabaco.
Tudo está calmo em La Réole. Sifflette conduz o carro de bois. Num
palheiro, Léa oculta os pára-quedas sob o feno.
Em volta da fazenda tudo está tranqüilo, mas ninguém consegue dormir.
Todos revêem as velas brancas dos pára-quedas flutuando acima do Garonne e
da velha cidade.
No dia seguinte, ao amanhecer, Depeyre chegou de bicicleta, irrompendo
sem fôlego pela casa.
— Os alemães partem em campanha! — anunciou ele. — Rigoulet nos
avisou. Verifiquem se as armas estão bem escondidas e tirem daqui as duas
mulheres.
— Mas onde quer que as leve? Para a casa dos Rosier?
— Não. É perto demais. Leve-as para a casa de Tore, em Morizes.
Pouco tempo depois da partida, surgiram os alemães. Vasculharam todos
os cantos, empurrando Callàde e a mulher, mas sem resultado.
Contudo... Jean Callède tremia de medo. Em sua precipitação, esquecera
dois pára-quedas de um desembarque anterior enrolados em toldos velhos e
das balas de Sten, enfiadas nas latas de açúcar.

Embora não tivessem descoberto nada, os alemães levaram Callède, depois
Loue, Depeyre, Bienavue, Charlot e Chianson, a fim de interrogá-los na sede da
Gestapo, em La Réole.
Quando o comboio parou em frente do colégio, quis o acaso que o
presidente do município de Gironde-sur-Dropt estivesse lá. Ele conhecia todos
os prisioneiros e ignorava suas atividades clandestinas. Pediu para falar ao
comandante e responsabilizou-se pelos compatriotas. Desse modo, todos foram
libertados, exceto Pierre Chianson. Fora denunciado, sem dúvida, por sua
participação no desembarque de pára-quedas de Saint-Félix-de-Foncaude.
Assim como Sifflette, Léa dispunha apenas das roupas que vestia na noite
do incêndio. Toda a sua bagagem fora destruída.
Sem falar com ninguém, decidiu ir a Montillac. Quando todos dormiam,
apoderou-se de uma bicicleta e partiu.
A noite estava bonita, não muito fria. Antes de chegar a SaintFoyla-
Longue, Léa parou para contemplar a planície imensa, onde a fita do Garonne
refulgia sob estrelas. A emoção apoderou-se dela como sempre acontecia diante
dessa paisagem familiar. Era sempre a mesma surpresa maravilhada! A mesma
sensação de paz absoluta!
A mesma certeza de que nada de mal poderia lhe acontecer em tal lugar!
Era a confiança que emana da terra durante seu repouso.
Tudo iria dar certo. O tio Adrien encontraria um meio de libertar Camille e
Charles. A lembrança do menino que queria se casar com ela trespassou-a de
dor. A paisagem se turvou diante de seus olhos.
Ela partiu novamente, com o coração oprimido. Em Saint-Andrédu-Bois,
quase atropelou um homem que urinava no meio da estrada e fugiu sob suas
imprecações.
Escondeu a bicicleta no mato, atrás do pedestal da cruz da missão,
atravessou a estrada e passou pelo prado, evitando a alameda por causa do
ruído dos passos sobre o pedregulho.
Um facho de luz filtrava-se por detrás das venezianas do escritório de seu
pai. "Ruth deve estar fazendo contas", pensou, aproximando-se. Chegou até ela
um som de vozes. Esforçou-se, mas não conseguiu identificá-las nem ouvir o
que diziam.
Aquela risada, porém... a risada novamente.
Sem, se preocupar que a ouvissem, Léa contornou a casa. A porta e os
pesados guarda-ventos da entrada estavam entreabertos. Evitando o obstáculo
dos móveis na obscuridade da sala mergulhada, chegou à porta do escritório e
empurrou-a.
— Léa!
O pequeno Charles correu para seus braços.

— Meu querido... meu queridinho... que alegria! Quando voltou?
— Esta noite. Foi Mathias quem o trouxe — disse Ruth.
— Mathias?!
— Brincamos de esconde-esconde... Mamãe quis brincar conosco... Mas
agora que você está aqui, vamos procurá-la. Você quer?
— Sim... sim...
Mathias estava ali, mais magro ainda, impecavelmente barbeado e vestido,
mas com os cabelos despenteados.
— Ruth!
Sem largar o menino, Léa abraçou a velha governanta, desfeita em
lágrimas.
— Minha filha, como estou feliz! Pensei que nunca mas a veria. Tanta
infelicidade se abatendo sobre esta casa... Mas não é imprudente vir aqui?
— Sem dúvida que é. Só que eu não tinha nada para vestir. Como
encontrou Charles, Mathias? E por que você não libertou Camille também?
— Eu não podia salvar os dois. Camille está esgotada e confiou- me o filho.
— Isso é incrível!
— Mas é assim. Ela também me encarregou de lhe dizer que, se morrer,
que você seja uma mãe para ele.
— Não quero que ela morra!
— Farei todo o possível para livrá-la. Tive de negociar com Fiaux durante
muito tempo para lhe arrancar o pequeno. Queria ficar com ele para obrigar a
mãe a falar. Interrogou-a sem resultado. Camille respondia apenas: "Não sei de
nada". Mas teria cedido se Fiaux espancasse a criança, como pensava fazer —
explicou Mathias.
— Ele é mau... aquele homem — balbuciou Charles que começou a chorar.
— Puxou meus cabelos e deu um grande pontapé na barriga de mamãe. Mesmo
que depois... ela não se mexia mais. Dei-lhe muitos beijos e, em seguida, ela
acordou... então já não senti medo... embora estivesse escuro. E ela cantou:
"Durma, Colas, meu irmãozinho...
Um ódio violento emergiu em Léa. Contra o seu peito, ela sentia tremer e
soluçar a criança que ajudara a vir ao mundo.
Injúrias contra o amigo de infância se acumulavam em sua boca, idéias
assassinas torturavam-lhe o espírito. Ah, fazê-lo desaparecer! Esmagá-lo, tal
como aos outros! Crescia dentro de si uma força desconhecida, uma vontade
irresistível de lutar, de matar.
— Sei o que está pensando — disse Mathias. — Mas o importante não é
isso... É preciso salvar Camille.

— Mas como? Você tem alguma idéia?
— Tenho. Tentarei obter a sua transferência, mas dispomos de pouco
tempo. Camille está esgotada. Se conseguir, mandarei avisar. Onde você está
escondida?
— Não digo.
— Mas é necessário.
— Ninguém sabe onde estou.
O rapaz fitou-a com expressão de desprezo.
— Não é de admirar que com semelhante disciplina os seus amigos se
deixem prender com tanta freqüência.
— Só são presos quando alguém os denuncia.
— Minha pobre amiga, acha então que os alemães precisam disso? Basta-
lhes ouvir as conversas nos cafés.
— Mas são os franceses que as escutam por eles.
— Nem sempre. Vocês cometem tamanhas imprudências que seria
necessário que eles fossem cegos para não notarem nada.
Ruth interpôs-se entre ambos:
— Não briguem, peço-lhes. Escute, Léa, acho que devemos confiar em
Mathias.
— É possível. Mas não posso lhe revelar o local onde estou e ele sabe
disso.
— Então, transmita a seu tio, aos homens de Aristide ou de Rilaire, a
seguinte proposta: assim que eu consiga a transferência de Camille para
Bordéus, farei com que você saiba. Eu lhe darei a composição da escolta, o
número de homens, que não serão muitos, na minha opinião, a hora da partida
e o itinerário. É preciso que os seus amigos parem o grupo e libertem Camille.
Léa continuava abraçando a criança que adormecera. Perguntou em voz
baixa:
— Acha, de fato, que isso é possível?
— Acho.
— Posso lhe fazer uma pergunta? Por que continua ligado a Fiaux e a seu
bando? Por dinheiro?
Mathias encolheu os ombros.
— Você não me acreditaria se lhe dissesse.
— Mesmo assim, diga.
— Onde estou, posso zelar melhor por você.

— Você tem razão, não acredito.
— Viu só? — ele falou com um sorriso desiludido, encolhendo os ombros.
— Que faremos com Charles? Não será perigoso tê-lo trazido para cá?
— Não, na medida em que Fiaux sabe que ele está aqui. Além disso, pedi a
meu pai que olhasse por ele.
— E ele aceitou?
— Não tinha muita escolha.
Com suavidade, Léa estendeu o menino no velho canapé e deixou-se cair
numa das cadeiras em volta da lareira.
— Estou com frio e com fome, Ruth. Você tem alguma coisa para comer?
— Claro que há, minha pequena! Mas, primeiro, vou lhe acender um bom
fogo.
— Deixe que eu faço isso, dona Ruth.
— Obrigada, Mathias.
Em breve subia uma chama clara e, durante alguns momentos, apenas se
ouviu o crepitar da madeira seca queimando. O ruído alegre, o calor e o local
familiar desfizeram por instantes a animosidade entre os dois jovens. Os olhos
de ambos, anteriormente perdidos na contemplação do fogo, acabaram por se
encontrar. Os de Mathias exprimiam adoração e amor ilimitados; os de Léa,
uma confusão e um cansaço infinitos.
O rapaz lutava para não a tomar nos braços, sabendo que seria repelido.
Léa, por sua vez, procurava tirar da memória o quadro sórdido daquela noite no
hotel sinistro de Bordéus, para se aninhar em seus braços e contar-lhe suas
tristezas, como fazia quando era pequena e eles se refugiavam no quarto das
crianças ou no meio do feno do palheiro.
Sem mesmo notarem, exalaram ao mesmo tempo um suspiro onde
tremularam todas as mágoas das quais não podiam mais se consolar.
Ruth voltou com uma bandeja onde havia duas tigelas de sopa, pasta de
carne feita em casa, pão e vinho tinto de Montillac.
Devoraram a modesta refeição com um apetite que fazia honra à sua
juventude. Tal como sempre que comia com gosto, Léa esqueceu por instantes
sua situação perigosa.
— É magnífica a sua pasta de carne! — elogiou ela, de boca cheia.
— Famosa, na verdade! — apoiou Mathias.
Acabaram de comer em silêncio, saboreando o momento de paz. Depois de
engolir o último copo de vinho, Léa disse:

— Ruth, perdi toda a minha roupa. Você pode me preparar uma mala? E
será que não tem dois ou três vestidos para uma pessoa do tamanho de tia
Bernadette? A propósito... como está ela?
— Não muito bem. Queixa-se das suas dores reumáticas e de que recebe
poucas notícias de Lucien.
— Coitada! Você vê se pode me arranjar os vestidos e alguma roupa de lã?
— Vou ver.
Charles agitou-se no sono. Léa cobriu-o com a manta escocesa em que seu
pai costumava se embrulhar quando trabalhava no escritório durante o
inverno.
— Temos de combinar um local de encontro — disse Mathias.
— Na igreja de La Réole?
— Isso não. Perigoso demais para você. Fiaux e os outros a conhecem e
podem prendê-la.
— Então, onde?
— Sabes onde fica o cemitério de Saint-André-du-Bois? — perguntou o
rapaz.
— Evidentemente — garantiu Léa encolhendo os ombros.
— Lembras-te do jazigo dos Le Roy de Saint-Arnaud, à direita de quem
entra?
— Lembro.
— Há uma fenda no tronco do cipreste que fica ao fundo, à esquerda.
Deixarei as mensagens ali. Passe por lá todos os dias. Se tiver algo para me
comunicar, utilize o mesmo buraco. Entendeu?
— Não sou idiota. Mas se não quiserem me deixar ir?
— Arranje uma maneira de os convencer. Trata-se da vida de Camille.
Ruth voltou, trazendo uma grande mala.
— Mas é muito pesada! — queixou a moça.
— Vou prendê-la ao bagageiro — ofereceu-se Mathias. — Onde deixou a
bicicleta?
— Atrás da cruz.
— Certo. Tem um cordão, dona Ruth?
— Sim, estava pensando em pegá-lo.
Enquanto Mathias prendia sua bagagem, Léa debruçou-se sobre a criança
adormecida, acariciando-lhe os cabelos claros.
— Você cuidará bem dele.

— Farei o possível, mas quase não temos dinheiro. Sua tia Bernadette pôs
o pinhal à venda, mas enquanto isso...
— Eu sei, Ruth... O que quer que eu lhe diga? Venda os móveis, se
arranjar comprador.
— Eu, eu não tenho nada.
Uma lágrima caiu sobre o rosto da criança, que resmungou, ainda
adormecida.
— Perdoe-me, minha querida. Não passo de uma velha tonta em lhe falar
disso agora.
— Eu me arranjarei.
— Nunca poderei lhe agradecer o quanto tem feito por nós.
— Quer ficar quieta? Era só o que faltava, ficar esperando agradecimento!
Chegaram algumas cartas durante a sua ausência, eu as coloquei na mala.
Mathias voltou, dizendo:
— Você pode partir quando quiser. Sua bagagem está bem presa, você
pode atravessar toda a França que nem se mexe.
— Adeus, Ruth — despediu-se a jovem. — Dê por mim um beijo em tia
Bernadette.
— Até depois, minha querida. Que Deus a proteja! Eu a confio a você,
Mathias.
— Não se preocupe, dona Ruth. Tudo estará bem.
Quando chegaram perto da bicicleta, Mathias ergueu-a do chão,
perguntando:
— Não queres que a acompanhe?
— Você sabe que não é possível... Deixe-me ir embora.
A contragosto, o jovem abandonou o guidão nas mãos da companheira.
Ficaram por um instante imóveis e silenciosos, infelizes. Léa estremeceu.
— Apresse-se — disse Mathias. — Você ainda tem vários quilômetros pela
frente, e não gosto de sabê-la pelas estradas, sozinha, durante a noite.
— Mathias... não entendo... Que está acontecendo conosco?
— O que quer dizer?
— Tu e eu... obrigados a nos esconder... inimigos um do outro e, ao
mesmo tempo.
— Ao mesmo tempo o quê?
Quanta esperança naquela voz... Mas, acima de tudo, que Mathias não
imaginasse que ela o perdoara!

— Nada. Acho que vivemos numa época muito estranha, em que não se
sabe mais quem são os amigos, pois até os mais queridos nos atraiçoam.
Mathias recusou-se a admitir a dureza do tom, e só reteve "os mais
queridos". Era ele o mais querido, não tinha a menor dúvida. Que importava se
ela pensasse que ele traía? Trair o que, aliás, se a ela ele nunca trairia? Todo o
resto não passava de política e isso nada tinha a ver com os seus sentimentos.
Fez-lhe um breve aceno de despedida e encaminhou-se para a casa, sem
se voltar. Léa, perturbada, olhava-o enquanto ele se afastava.

Capítulo 5

EM MORIZÈS, todos já estavam deitados. Só na cozinha onde haviam lhe
preparado uma cama, Léa olhava o fogo que se extinguia no fogão, fumando um
cigarro feito com o tabaco que Callède cultivava clandestinamente. O fumo acre
e forte irritava-lhe a garganta e fazia-lhe arder os olhos, mas, ao mesmo tempo,
aplacava-lhe um pouco a angústia de saber que Camille estava tão doente. A
Gestapo teve de se resolver a interná-la no hospital de Saint-Jean, em La Réole,
mas não autorizava nenhuma visita.
O padre Delmas encontrara-se com Mathias e aceitara o seu auxílio.
Aristide e os homens tinham concordado.
Desde então, limitavam-se a aguardar. Maurice Fiaux e sua equipe haviam
regressado a Bordéus.
Léa ergueu-se da cadeira baixa onde se instalara e foi ligar o rádio. Devido
às interferências, há vários dias que era impossível captar a emissora londrina.
Depois de algumas hesitações, a voz familiar, mas quase inaudível, de Jean
Oberle irrompeu do aparelho.
O poeta Max Jacob morreu no campo de Drancy. Internaram-no ali por ser
judeu e, contudo, convertera-se ao catolicismo há mais de trinta anos. Desde
essa época, toda sua obra respirava a mais intensa e sincera fé católica. Mas
que importância tem isso para os alemães?
Os alemães colam estrelas amarelas no peito daqueles que martirizam. A
estrela amarela constitui o estigma da desonra, e a cruz suástica é o símbolo da
honra. Católicos ou judeus, a todos encaram do mesmo modo, tomando Hitler
como Deus. Que interessa aos guardas do campo de Drancy que Max Jacob
tenha morrido? apenas um judeu a menos O poeta era um homem baixo, calvo,
e de olhar irônico por detrás de um monóculo. Era um ser de grande
espiritualidade, o mais maravilhoso contador de histórias surpreendentes, que
sabia ou que inventava.
Entregou-se ao "esnobismo" ao aproximar-se dos cinqüenta anos. Da
colina de Montmartre, onde convivera com pintores e outros poetas, passou
então aos salões mundanos, logo substituídos pelo mosteiro de Saint-Benost-
sur-Loire. Escrevia e pintava, nele vivendo retirado e tranqüilo. Servia de
cicerone nas visitas à basílica para os amigos que iam de Paris e de outros
lugares para vê-lo, O sino tocava, chamando para os ofícios religiosos, e Max
abandonava a caneta ou o pincel para rezar.
Estava com quase sessenta anos. Dois outros poetas amigos, Jean
Cocteau e André Salmon, foram a Drancy na esperança de libertá-lo, mas os
informaram que havia morrido.

Assim, o inimigo feroz que martiriza nosso país há quatro anos não poupa
mais os poetas que os jovens patriotas. Para os alemães, um é judeu e os
outros comunistas, muito simplesmente. E, aliás, para que servem os poetas
quando se dispõe de prosadores tais como Henriot e Déat?
Por todo o mundo, porém, os admiradores de Max Jacob, os que lhe relêem
a prosa e os poemas ou possuem os seus desenhos e guaches, esses
continuarão a mantê-lo vivo na memória. Também os amigos jamais esquecerão
o artista e o homem encantador que ele era. E lembrar-se-ão de que, tal como
tantos outros, Max Jacob foi igualmente vítima da barbárie alemã, morrendo
numa cela de um campo de concentração "Nem mesmo os poetas são
poupados" pensou Léa, desligando o aparelho.
Quando se despia na semi-obscuridade, lembrou-se de que seu tio Adrien
havia falado do encontro com Max Jacob em Saint-Benoit, quando de uma sua
curta temporada no mosteiro, e de sua ingênua fé de convertido.
Agora Max Jacob estava morto, tal como Raphael Mahl e talvez mesmo
Sarah, todos eles judeus. Ela teve um breve sentimento de vergonha por unir,
ainda que na morte, um ser tão desprezível como o colaborador-delator Mahl
com a combatente heróica e o frágil poeta.
Mas havia em Raphael um desespero que sempre a sensibilizava. Apesar
de toda a perversidade de que fora capaz para se fazer odiar nunca alcançara
seu objetivo, e seu fim horrível o absolvera para sempre. Sentia sua falta, tal
como nessa noite sentia falta de uma presença amiga.
Deslizou entre os lençóis enrugados e sempre um pouco úmidos. A
claridade fraca do braseiro dava à cozinha algo de irreal e tranqüilizador.
Através das pálpebras semicerradas, ela revia um outro braseiro num
outro quarto... O peso do edredom vermelho trouxe- lhe à memória o cobertor
de lã de vicunha.
O tecido áspero do lençol irritava-lhe a ponta dos seios, mesmo sobre a
camisola. Virou-se para a parede para se furtar às últimas chamas. Sobretudo
não pensar nele, não evocar as carícias de suas mãos, dos beijos sobre seu
corpo, esse corpo cujos desejos ela mal conseguia saciar, Há tanto tempo que
nenhum homem.
Com raiva ela se ergueu, furiosa por sentir emergir um desejo irrefreável
de fazer amor. Arrancou a camisola e, com brutalidade, apaziguou sua
exigência.
No dia seguinte, Adrien Delmas chegou a Morizès na companhia do
tenente Pierre Vicent, designado por Grand-Pierre, chefe do grupo resistente
sediado no Puy, próximo de Montsérgur e de três dos seus homens, que vinham
se reabastecer.
Todos estavam muito excitados ao comentar a destruição do depósito de
gasolina de Saint-Martin-de-Sescas, por catorze elementos do grupo, no dia de

maio. O tenente e o dominicano dificilmente conseguiam conter a empolgação.
Léa observava-os com inveja; eles, ao menos, agiam.
Depois da partida dos homens, Adrien Delmas aproximou-se da sobrinha.
— Graças ao abade Chailion, capelão do hospital, consegui visitar Camille.
Ela está muito melhor agora. Sua coragem é imensa. Não se queixa e sua única
preocupação é você e o filho.
— Posso vê-la?
— Parece difícil e considero isso um perigo inútil para ambas. Dia e noite
há homens da Gestapo montando guarda diante da porta de seu quarto. Um
deles, porém, tem certa fraqueza por vinho Sauternes.
— Nesse caso, vamos embebedá-lo!
Essa conclusão fez o dominicano sorrir.
— Veremos. Sua visita não é o mais importante. É preciso tirá-la dali.
— E Aristide, o que ele diz?
— Por enquanto, está muito ocupado em sua fazenda nos pântanos,
procurando aumentar os efetivos e escapar de Grand- Clément e seus homens,
que tentam eliminá-lo, e restabelecer a ordem nos diferentes grupos. Mas, se
precisarmos, mandará a equipe necessária.
— Teve notícias de Mathias?
— Não soube mais dele desde que nos informou da transferência de
Camille — respondeu Adrien Delmas.
— É a minha vez de ir a Saint-André-du-Bois.
— Não se esqueça de que, se algo correr mal, poderá recorrer a Jules
Coiffard, que vive na casa grande à beira da estrada.
Com alguns vizinhos, Jules serve muitas vezes de passador e de caixa de
correio. Esta tarde, estarei em Chapelle-de-Lorette. Os policiais e os alemães
multiplicam suas expedições no setor desde a queda da fortaleza volante
americana em Cours-Montsérgur. A destruição do depósito de Saint-Martin-de-
Sescas também não contribuiu para os acalmar. A Gestapo espalhou uma
dezena de agentes pela região. Foi graças a um deles, um certo Corbeau, antigo
dono de mercearia na Rua da Croix-Blanche, que se fez passar por oficial
canadense, que os soldados detiveram o capitão Levy, enviaram à Gestapo de
Toulouse.
— Torturaram-no antes de ser executado?
— Não sei. Mas é bem possível.
— Quando é que tudo isso acabará?
— Deus...

— Não me fale em Deus, tio! — gritou Léa. — Você acredita tanto nele
como eu.
— Fiquei quieta! — trovejou o dominicano, apertando-lhe o ombro.
Onde estava agora aquele homem afável, calmo e terno que Léa conhecera
desde sempre? O rosto macilento, os olhos febris, os traços torturados, os
lábios cerrados, guardando um segredo ardente, essas mãos tão belas agora
estragadas, mãos que se crispavam para reprimir o ímpeto de bater, não
podiam pertencer ao mesmo pregador cuja voz fizera vibrar milhares de cristãos
por todo o mundo, cuja fé ardente dominara por muito tempo o morno
episcopado de Bordéus, e cujo afeto paternal tantas vezes ajudara Léa e os
seus.
— Você está me machucando, tio!
O dominicano largou a sobrinha, apoiou a fronte sobre a cobertura da
chaminé, os ombros caídos, o ar subitamente envelhecido. Como parecia só e
desesperado! Era isso: ele estava só, desesperadamente só, diante de si mesmo
e no meio de homens rudes, cujas idéias geralmente não compartilhava.
Depois da morte dos pais, era ao tio que Léa se sentia mais visceralmente
ligada. De modo consciente ou não, ela sempre levava em consideração o que
ele dizia. Era uma espécie de guia, alguém a quem não desejava decepcionar,
um ideal humano difícil de atingir. Se a dúvida, o medo ou o ódio se
instalassem dentro daquele homem, isso representaria para Léa o naufrágio de
um mundo de equilíbrio, de inteligência e de bondade. Não podia suportar tal
idéia. Uma cólera surda fazia com que sua fronte se cobrisse de suor e
acelerava as batidas de seu coração.
Quando ele se voltou, após um tempo que lhe pareceu longo demais, a
irritação dos dois já se apaziguara um pouco.
— Desculpe-me, minha querida. O cansaço... sem dúvida. Neste momento
qualquer coisa me irrita. Você me perdoa?
— Sim, tio — ela respondeu, ainda trêmula, aconchegando-se em seus
braços.
Sentiu, porém, que uma barreira invisível acabava de se erguer entre eles.
Chegou, por fim, uma notícia alegre: a vinda de Jean e de Raul Lefèvre,
seus dois admiradores da época de adolescência.
Não os via desde a dramática missão dos dois e do Dr. Blanchard, no dia
do assassinato de Marie na praça de Verdelais.
Abraçados, os três jovens não conseguiam se separar, maravilhados por
ainda estarem vivos.
O jantar foi uma festa para todos. Léa, apertada no banco entre os dois
amigos reencontrados, os olhos brilhando de prazer, e pelo efeito do vinho
branco dos Callède, repousava a cabeça ora num ombro, ora no outro,

acariciava suas mãos sob a mesa e roçava-os com movimentos sedutores. Ria,
falava de tudo e de nada, inebriada por uma felicidade há tanto esquecida,
esfuziante de juventude e de beleza.
— Estamos muito felizes por vê-la assim — comentou o anfitrião. — Minha
mulher e eu começáramos a nos perguntar se você sabia rir e se divertir.
— Está como era antes — observou Jean, dando-lhe um beijo no pescoço.
— Ainda mais bonita — apoiou Raul, beijando-a por sua vez.
Léon de Landes enviara os dois irmãos para se reunirem aos homens de
Dedé, o Basco, em vista dos preparativos para uma sabotagem na estação de La
Réole. Em Chapelle-de-Lorette, souberam que a amiga estava em Morizès.
Fizeram o relato de sua fuga, dizendo o quanto Albert e os outros haviam
sido espertos e corajosos. A evocação de Albert sombreou por instantes a
reunião alegre, mas logo a lembrança da jovialidade do açougueiro de Saint-
Macaire, de quem continuavam sem notícias, afugentou a tristeza. A fim de
expulsá-la ainda mais rapidamente, Callède surgiu com nova garrafa de vinho.
Era muito tarde quando os convivas se separaram. Ficara combinado que
Raul e Jean só partiriam na manhã seguinte; passariam a noite enrolados em
cobertores diante da lareira.
Muito tempo depois da partida dos outros, eles continuavam a conversar,
bebendo e fumando. Instalados na cama, não se resolviam separar-se para
dormir.
Estreitamente enquadrada pelos dois rapazes no leito exíguo, Léa deixava-
se invadir aos poucos pelo bem-estar daquela presença e pelo calor de seus
corpos. Os dedos de Léa despenteavam os cabelos encaracolados dos jovens,
enquanto eles afundavam o rosto em seu pescoço, aspirando-lhe o perfume da
pele e cobrindo-a de pequenos beijos.
Naquele instante, o único desejo de qualquer um deles era apenas o de
estarem juntos, aninhando-se como faziam os animais jovens, entregues às
brincadeiras próprias da idade. Na alegria do reencontro, esqueceram-se de que
eram dois homens e uma mulher, de que eram jovens e de que a
clandestinidade não lhes favorecera ainda as relações amorosas.
Sem a mínima premeditação, os beijos dos rapazes tornavam-se mais
ternos e as mãos mais ousadas, descobrindo o corpo da amiga que, em vez de
se defender, oferecia-se a eles com aquele seu riso profundo que tanto os
perturbara antigamente.
Essas quatro mãos masculinas que a percorriam abriam-lhe espaços
luminosos, afastando a tristeza e a angústia dos últimos dias. Sem medo... sem
guerra... sem mortos.
Quando Jean a penetrou, foi nos lábios de Raul que Léa abafou o primeiro
grito.

A friagem do amanhecer reanimou os corpos nus. Inclinados sobre a moça,
os dois irmãos fitavam-se com horror, os olhos cheios de lágrimas.
— Estou com frio — murmurou ela.
Raul levantou-se e atirou um punhado de lenha sobre as cinzas ainda
quentes. Dentro em breve, um clarão vivo iluminava a cozinha.
— Perdoe-nos — balbuciou Jean, o rosto escondido nos cabelos da amiga.
Ela não respondeu. Com ar sério, percorria com o dedo a extensa cicatriz
que se estendia pelo peito e pelo ventre do rapaz.
— Vem cá — ela ordenou a Raul, que acabava de se vestir.
Com ar contrito, ele sentou-se na cama.
— Não temos de lamentar o que aconteceu, muito ao contrário. Nós três
sempre nos amamos, crescemos juntos e vocês dois sempre dividiram tudo...
— Mas não você!
Aquele grito vindo do coração a fez sorrir; a guerra não conseguira
modificar Jean. Continuava a ser o rapazinho exclusivista, repartido entre o
amor por ela e o afeto fraternal.
— Não ria — censurou Raul. — O que fizemos foi abominável.
O rosto de Léa ficou sério e o tom de sua voz endureceu.
— Não diga uma coisa dessas. Nós não somos abomináveis, mas sim as
circunstâncias. Talvez amanhã vocês estejam mortos e eu também e é natural
que aproveitemos a vida nos raros momentos em que isso seja possível. Não me
sinto envergonhada por ter feito amor com vocês. Não tenho nenhum remorso,
nenhum desgosto. O que lamento é não poder fazê-lo mais vezes.
— Fique quieta! Você é imoral.
— E você, você é um idiota. Não há mais moral.
— Se não há mais moral, pode me explicar por que escolheu a Resistência
em vez da colaboração? Podia estar muito tranqüila em Paris, circulando pelos
salões de chá juntamente com Françoise.
— Raul — exclamou Jean.
—... ou vendendo o seu vinho aos alemães, em vez de ficar correndo pelas
estradas, levando mensagens ou escondendo armamento, com risco de ser
presa e torturada. Vamos... diga! Diga por que está do nosso lado, se não há
mais moral!
— Não a aborreça — interveio Jean novamente.
— Deixe-o Jean, vou tentar lhe responder. Não é uma questão de moral,
pelo menos para mim. Você se lembra, antes da guerra, todas aquelas histórias
de alemães, de Aliados, da linha Maginot, da Polônia, me aborreciam; mas
queria ouvir falar disso, Depois, vocês todos partiram, você, Jean, Laurent e

outros mais. Em seguida, foi a ruína. Camille e eu percorrendo estradas sob
metralhadoras, gente morrendo à nossa volta, o corpo de Josette crivado de
balas, sua garganta aberta jorrando sangue, o homem que nos atacou, a morte
da senhora Le Ménestrel e dos dois filhos, a de mamãe durante o bombardeio...
a de papai... Mas tanto horror talvez não tivesse sido suficiente para me fazer
compartilhar das idéias de tio Adrien e das suas, sem a presença dos alemães
em Montillac, na casa que é minha. Cada vez que eu os via no terraço, nas
vinhas ou nas adegas, sentia-me desapossada e humilhada. Não tinham direito
de estar ali. Compreendi, então, o que significava perder a guerra, ser um país
submetido à Ocupação. E isso eu não pude aceitar. Como vê, nada de glorioso.
— Talvez não seja, mas nem todos os franceses reagiram como você.
— Talvez lhes falte um pouco de terra a qual se sintam ligados, da qual
tenham nascido e que lhes pertença.
— Você é como seu pai... apaixonada por Montillac — observou Jean,
beijando a amiga. — É você quem tem razão. Vamos guardar dessa noite
apenas a lembrança do instante maravilhoso em que esquecemos a guerra e a
moral.
— Então, Raul... não fique com essa cara! Não fizemos nada de errado.
O jovem olhava com verdadeira tristeza as duas criaturas de quem gostava
acima de tudo. Mas seu amor por Léa o tornava agora ciumento em relação a
Jean, coisa que, no passado, julgara impossível acontecer. Fazendo um esforço
enorme, conseguiu sorrir.
Depois de tomarem uma caneca de leite quente e de comerem um pedaço
de pão, os dois irmãos tornaram a partir para Chapeilede-Lorette.
No dia 11 de maio, Jean e Raul Lefèvre reuniram-se aos resistentes de
Grand-Pierre.
Em Sauveterre-de-Guyenne, houve um recontro entre alemães e
resistentes. Jean, ferido, foi levado por seu irmão ao castelo de Madailian;
depois, como ali não havia segurança, transferiu-o para a casa do padre de
Blasimon, o abade Maurice Gréciet, que concordou em escondê-lo.
Raul e seus companheiros ocultaram-se durante alguns dias nas matas de
Colonne, perto do castelo de Villepreux, antes de regressarem ao território do
Puy.
Não foi Léa quem descobriu o recado de Mathias anunciando a
transferência de Camille para o quartel de Boudet, em Bordéus, na segunda
feira, dia 15, mas sim um rapazinho enviado por Callêde. A partida da
prisioneira fora fixada para as treze horas.
Na véspera do dia previsto para a fuga, Léa, disfarçada de enfermeira, fez
uma visita a Camille em companhia do abade Chaillin, tirando partido da
escassez de pessoal desse domingo da festa de Joana d"Arc.

O alemão de guarda — aquele que apreciava o vinho Sauternes —
brindava junto com uma enfermeira, mulher de seios avantajados, tal como ele
gostava. Ela se incumbira de mantê-lo afastado de seu posto durante uns vinte
minutos, enquanto uma religiosa de São Vicente de Paulo vigiava perto da
entrada do hospital e uma outra, junto à capela.
Léa havia se preparado para encontrar Camille cansada e mais magra;
mas se assustou com o estado da amiga. Ela era só pele e osso, e os olhos,
encovados nas órbitas, estavam circundados por enormes vincos escuros. Léa
abraçou-a, procurando sorrir; não se conteve, porém, e... desatou a soluçar.
— Então... então... estou assim tão feia? — gracejou Camille. — Você está
magnífica nesse seu traje de enfermeira. Não chore. Eu estou muito melhor.
Não é verdade, senhor vigário?
— Sim, minha senhora — concordou o padre, desviando os olhos.
A custo, Léa conseguiu forçar um sorriso.
Apressem-se, não temos muito tempo. Vou verificar se o nosso beberrão
continua tranqüilo.
As duas amigas ficaram sós, as mãos enlaçadas, comovidas demais para
longos discursos. Camille foi a primeira a quebrar o silêncio:
— O abade tem razão: não temos muito tempo. Como vai Charles? Não
está muito infeliz? Teve notícias de Laurent?
— Charles está muito bem e não se sente infeliz. Não recebemos mais
notícias de Laurent mas, enquanto estiver na Inglaterra, não há motivo para
preocupações.
— E de François Tavernier?
— Nenhuma — respondeu Léa, sentindo o coração se apertar.
— Estou certa de que terá logo. Não é homem que se deixe apanhar com
facilidade. Tenha confiança. E com você, como estão as coisas?
Só pensa nos outros, Camille — ela disse, rindo sem alegria.
— Mas, e você?
— Eu estou muito bem.
— Tentaremos a sua fuga amanhã. Você se sente com forças para isso?
— Tenho. Quero ver meu filho.
— Nesse caso, escute bem o que vou lhe dizer.
Em poucas palavras, Léa lhe transmitiu o plano concebido pelos
resistentes. Mas esse plano não seria posto em prática.
De volta a Morizès, Léa informou o tio e os cinco homens enviados por
Aristide de que teriam de renunciar ao ataque à ambulância; Camille estava

enfraquecida demais para tentar fugir quando parassem o veículo. Com o abade
Chaillon, ela havia pensado em outra coisa.

Capítulo 6

A CHUVA tão ansiosamente esperada caía, enfim.
De faróis apagados, o carro esperava na Rua Perdue, em frente ao hospital.
Na praça Saint-Michel, dentro da caminhonete, Rigoulet e Sifflette espreitavam.
Na parte de trás, um jovem resistente, de mãos crispadas na coronha de uma
Sten, prendia a respiração. Havia mais dois homens emboscados na Rua das
Ecoles e um Outro diante do edifício do Prince Noir.
— Atenção! Lá vêm eles!
Um homem e uma mulher corriam pela Rua de Saint-Nicolas. O homem,
bastante alto, transportava alguém nos braços, o que o retardava.
Abriram-se as portas traseiras do carro, ao mesmo tempo que o condutor
fazia dois breves sinais de luzes com os faróis.
Os da caminhonete responderam. Os motores dos veículos começaram a
funcionar.
— Desmaiou!
Mathias colocou Camille no banco do veículo.
— Apressem-se! Não vão demorar para perceberem o desaparecimento
dela.
— Obrigado, meu filho. O que acaba de fazer redime os seus erros. Venha
reunir-se a nós; será bem-vindo — afirmou o dominicano.
— Não estou tão certo disso, meu padre — respondeu Mathias.
— Seja como for, para mim é tarde demais.
— Que vai fazer?
— Vigiar. Agora partam. Adeus, Léa.
— Adeus, Mathias. E obrigada.
O carro partiu. Não longe dele, a caminhonete o seguia.
Em tempo. Iluminavam-se algumas janelas do hospital, soavam apitos
misturados a gritos, enquanto as viaturas rumavam em direção a Bazas. A
menos de dois quilômetros da velha cidade, viraram à esquerda, parando em
Saint-Algnan, numa fazenda amiga.
Ainda inconsciente, Camille foi transportada para dentro de casa. Depois
de se assegurar de que tudo corria bem, Rigoulet partiu sozinho para La Réole,
enquanto o carro onde Camille viajara prosseguia pelo caminho de Bazas.

Fora o padre Delmas quem concebera os pormenores do golpe,
convencendo os companheiros de que os alemães jamais suspeitariam que sua
prisioneira estaria tão perto deles. Além disso, seria necessário tempo para
providenciarem o local de refúgio definitivo, assim como a rede de fuga para a
Suíça. Ficara combinado, também, que Léa, Sifflette e dois membros da
Resistência permanecessem junto da doente.
A fuga de Camille, aliada à destruição do depósito de combustível, à
colisão de Sauveterre e às inúmeras sabotagens e tentativas de atentados,
colocou em estado de alerta todos os efetivos alemães e policiais da região.
Pequenas vilas e aldeias assistiram então aos desembarques dos homens
em uniforme verde-acizentado e azul-marinho, que vasculhavam todas as
habitações, os celeiros e as igrejas. Saint-Pierre d"Aurillac, Frontenac,
Sauveterre, Rauzan, Blasimon, Mauriac, Peliegrue, Montsérgur e La Réole
receberam sua visita. Numerosos resistentes foram presos entre 17 e 20 de
maio: Jean Lafourcade, Albert Rigoulet, Jean Laulan, Georges Loubière,
Arnault Benquet, Noël Ducos, Jean Gallissaire, Pierre Espagnet, Gabriel
Darcos... Dezessete pertenciam ao grupo de Buckmaster. Alguns foram
torturados, mortos ou deportados. Catorze deles nunca mais voltaram.
No dia 19, acompanhada por Sifflette, Léa, de lenço amarrado na cabeça,
levou Camille a Morizès, escondida numa carroça de feno. Seu estado de saúde
estacionara.
Bem a tempo. No dia seguinte, a família Rosier, que lhes dera abrigo,
regressou a casa, vinda do mercado de La Réole.
Quando chegaram em Saint-Algnan, niãe e filha foram preparar o almoço
enquanto o pai bebia uns tragos com o carteiro e Manuel, o empregado.
O ronco de um motor soou na estrada. Há dez dias, avisados por amigos,
os Rosier tinham fugido na noite. Agora, porém, era mais grave.
Na parte baixa da propriedade, via-se o teto escuro de um carro. Sem
perderem tempo para pegarem qualquer coisa, o casal e a filha fugiram através
de campos e bosques até Morizès, onde Tore os recebeu. O carteiro também
conseguiu escapar.
Ninguém fora apanhado, mas os alemães descobriram sete tonéis com
armas escondidos no secador de tabaco.
Léa compreendeu que a saúde de Camille não melhoraria enquanto
estivesse separada do filho. Com a cumplicidade da Sra.
Rosier e de Sifflette decidiu, então, buscar Charles.
As três mulheres partiram de bicicleta. Léa separou-se das duas mulheres
em Saint-André-du-Bois. Sifflette deveria vir ao seu encontro duas horas mais
tarde.

Em Montillac reinava grande atividade junto das adegas, Fayard e três
desconhecidos carregavam caixas de vinho numa caminhonete. Ao ver Léa, o
encarregado quase deixou cair a caixa das mãos, tamanho foi o seu espanto.
— Bom-dia, senhorita — gaguejou. — Já está de volta?
Depois de se desembaraçar da caixa, Fayard tirou o chapéu, deixando à
mostra o crânio branco e quase calvo.
— Bom-dia, senhorita — gaguejou. — Já está de volta?
— Pode ficar tranqüilo que não será por muito tempo. Mas os meus amigos
logo lhe darão notícias minhas.
Por que ela dissera aquilo? Uma idéia que lhe passara pela cabeça, ao ver
o medo estampado em seu rosto. E também a lembrança de uma operação
punitiva realizada por um grupo de resistentes do Lot-et-Garonne contra um
traficante do mercado negro, suspeito de ter denunciado membros da
Resistência. Ela experimentou uma alegria maldosa vendo tremerem as mãos
calejadas desse homem, cujo amor pela terra e o gosto pelo lucro haviam
conduzido ao tráfico com o ocupante até se transformar num delator. E pensar
que poderia lhe tomar Montillac!
O ar estava pesado, prenunciando tempestade, mas a velha moradia
conservava ainda certo frescor invernal. Tudo parecia calmo, imutável. Pairava
no ar o cheiro da cera, misturado ao perfume do ramo de rosas brancas, as
primeiras do ano, das roseiras que cresciam encostadas à parede da adega,
mais expostas ao sol. Fora Isabelle Delmas quem plantara essas roseiras de
flores precoces e perfumadas.
Esse ramalhete colocado sobre a mesa do vestíbulo...! "Se fechar os olhos,
verei mamãe transpondo a porta."
— Léa!
Charles corria para ela, de braços abertos.
— Você voltou!.. Onde está mamãe? Quero ver a minha mamãe!
Já vai vê-la, meu querido. Vim buscar você.
— Buscar esta criança? Não está pensando nisso, está? — exclamou a
governanta.
— Ruth, é preciso. Senão Camille não vai sarar!
— Mas é perigoso demais!
— Por favor, Ruth, não tenho muito tempo. Pegue algumas roupas para
ele.
— Venha comigo, tenho muitas coisas para lhe contar — disse a
governanta. — Charles, vá procurar tia Bernadette.
— Não vou. Quero ficar com Léa.

— Obedeça a Ruth, Charles. Se ficar bonzinho, eu o levo para ver sua mãe.
— De verdade?
— Juro.
O menino desapareceu, chamando por Bernadette Bouchardeau.
Enquanto arrumava as roupas numa bolsa, Ruth contava a Léa o que
havia acontecido durante sua ausência.
— Seu tio Luc e seu primo estiveram aqui na semana passada. Queriam
avisá-la da visita do notário de Fayard por causa da venda de Montillac.
— Mas o que tio Luc tem a ver com isso?
— Fayard teria conseguido a aprovação de Françoise.
— O quê?!
Num gesto de raiva, Léa lhe Voltou as costas, dirigindo-se para casa.
— Eu disse "teria". É o notário dele quem diz. Laure é menor e seu tio Luc,
o seu tutor. Você, tendo se juntado aos terroristas, está fora da lei; coube a seu
tio a decisão de vender ou não.
— Mas isso é absurdo!
— Talvez. Mas seu tio e seu primo, como juristas, dizem que é isso mesmo,
sobretudo por sua ausência.
— Estou vendo... seria conveniente para todo mundo se eu fosse presa e
desaparecesse para sempre.
— Para Fayard, sem dúvida, mas não para seu tio. Você é filha de seu
irmão e ele gostaria que vocês conservassem a propriedade. Depois da partida
de Pierrot, ele mudou muito.
— Mudou! Muito me admiraria! Pelas últimas notícias, ele continua
colaboracionista.
— Não acredito. É a favor de Pétain, simplesmente.
— Seja como for, deixou que a filha se casasse com um alemão.
— É verdade. Mas não deixa de ser um homem honesto.
— São muitos os homens honestos como ele. Quer que lhe diga uma
coisa? Compreendo mais Fayard que tio Luc. É a terra o que ele quer e vê na
guerra apenas a oportunidade de conseguir os seus objetivos, de enriquecer.
Sejam franceses ou alemães, para ele tanto faz. Colabora com aqueles que lhe
parecem em melhores condições para lhe permitir apossar-se da propriedade.
Ele, um antigo combatente da guerra de 14, nem percebe que trai seu país!
Quanto a tio Luc, é mais grave, porque é um intelectual. Sabe o significado das
palavras e as conseqüências dos atos. Sua profissão, seu gosto pela ordem e
pelos valores burgueses levam-no a respeitar o poder legal. Para ele, só Pétain é
legítimo, e Pétain pediu aos franceses para colaborarem. Além disso, também

acho que tio Luc tem absoluta falta de imaginação. Do contrário veria que, cedo
ou tarde, a Alemanha irá perder a guerra e que os terroristas de hoje tomarão o
poder amanhã.
— Mas é exatamente isso que ele não quer retrucou Ruth.
— Diz que se os americanos desembarcarem e De Gaulle triunfar, a
França cairá nas mãos dos comunistas e os russos passarão a ser a nova
ordem no país. Para ele, apenas a Alemanha conseguirá preservar a Europa do
flagelo comunista. Está profundamente convencido disso.
— E o meu querido priminho pensa do mesmo modo que o pai,
evidentemente.
— Muito pior que ele! Fala em alistar-se na L.V.F.
— Muito me admiraria! Phillipe nunca primou pela coragem.
— Seu tio pensa que, para se evitar a venda de Montillac, você deverá
escrever uma carta negando seu consentimento. Não está certo de que isso seja
suficiente para impedir a transação, mas servirá, pelo menos, para ganhar
tempo.
— Falarei a esse respeito com tio Adrien e Camille.
— Mas não deixe que isso demore. — Olhe para mim... você não está bem.
Parece cansada.
Faço muitas vezes entre trinta e quarenta quilômetros por dia de bicicleta.
E nesta região a gente está sempre subindo. Se a guerra durar muito tempo,
terei os músculos das pernas iguais aos de Le Guevel ou de Van Uliet e poderei
concorrer ao Grande Prêmio de Bordeaux. Além disso, estou preocupada com
Camille.
— Pobre pequena! Aí está alguém que não tem sorte! Achas que eles a...?
Bem... sabe o que quero dizer?
— Que a torturaram? Não verdadeiramente, no sentido em que bandidos
como Denan o compreendem. Sabe que esses patifes da polícia inventaram um
nome mais elegante e mais encantador que a palavra tortura? Agora não
torturam. Eles "touyagam". "Touyagar" tornou-se a distração favorita deles.
— Touyagar?!
— Sim, uma palavra derivada de Touyaga.
— Touyaga?!
— É o nome de um contador preso pelos policiais depois de uma denúncia.
Pierre Touyaga foi queimado e espancado com cacetetes. Também lhe
arrancaram a pele e as unhas e queimaram seus pés e seus órgãos genitais.
Marcel Fourquey, do 2 Serviço de Polícia de Bordéus, ficou de tal forma
satisfeito que inventou esse novo verbo. Em Bordéus, atualmente, a polícia não
tortura, ela "touyaga".

— Que horror!
— Camille só teve direito a uma "touyagagem" leve: bofetadas, pontapés e
murros. Salvou-a sua fraqueza; não podiam continuar a "touyagá-la" sem que a
matassem. Mas ainda não conseguiu recompor-se desde então. Pensei que a
presença de Charles pudesse ajudá-la.
— Mas essa presença, com a vida precária que vocês levam, pode ser
perigosa.
— Não creio. Os resistentes têm as bases bem vigiadas e os alemães, após
a vaga de prisões destes últimos tempos, recolheram-se em seus quartéis. O
perigo maior vem de homens como Denan e Fiaux. Sei que Aristide recebeu
ordem de os neutralizar e que o tio Adrien está aqui para isso. Até lá, porém,
Camille e Charles irão se refugiar na Suíça. Você tem água quente? Gostaria de
lavar a cabeça. Não consigo me acostumar à água fria.
Depois do banho e de lavar os cabelos, Léa teve a sensação de ser outra
mulher. Apesar dos conselhos de higiene dispensados pelos chefes resistentes
ou difundidos pela emissora de Londres, os acampamentos e as fazendas que
lhes serviam de refúgio não eram propriamente modelos de limpeza.
Alguns comandantes locais tinham ido mais longe, procurando implantar
nas bases a disciplina militar; continência à bandeira, exercícios físicos, manejo
de armas, aspecto pessoal tão impecável quanto possível, respeito pela
hierarquia, limpeza do campo e asseio individual. Mas tais regras só se
tornavam viáveis em base de maior importância, tais como as de Limousin, de
Vercors ou da Bretanha.
Na Aquitânia, no início de 1944, os grupos ainda não tinham muitos
combatentes. As coisas alteraram-se a partir do mês de maio, e Aristide pôde,
então, transmitir para a Rua Baker o relatório detalhado dos novos efetivos;
quinhentos homens em Bordéus e em Bordeaux-Saint-Augustin; quarenta e
cinco homens em Mérignac; quinze homens na base de submarinos; quarenta
homens na rede Lermont; vinte homens no grupo de Pessac; cinco homens no
grupo de sabotagem do Bouscat; vinte e cinco homens na rede Bègles;
quinhentos homens no grupo de Léon de Landes; cento e quarenta e cinco
homens no grupo dos ferroviários; trezentos homens no grupo de Arcachon.
Um total de mil e quinhentos e noventa e cinco homens determinados à
luta e conhecedores de sua missão. Este efetivo pouco numeroso seria mais
tarde reforçado até atingir os quinze mil homens no Dia D. Mas, enquanto isso
não acontecia, o coronel Buckmaster mostrava-se satisfeito.
Léa abandonou com alívio a velha bicicleta emprestada pelos Tore,
trocando-a pela própria bicicleta azul.
Prendeu ao porta-bagagens uma cadeira de vime que serviria de assento a
Charles.

Teria de se apressar. Fayard era bem capaz de avisar a Gestapo de
Langon.
Transtornadas, Ruth e Bernadette Bouchardeau viram partir a criança,
única alegria de suas vidas; o menino ria e se agitava no assento.
— Pare de se mexer! Você vai nos fazer cair. Encontrou Sifflette depois da
subida de Bernille.
A felicidade que mãe e filho sentiram ao se reencontrar atenuou um pouco
a cólera de Adrien Delmas diante da imprudência cometida pelas três
mulheres.
Sifflette chamou a si todas as culpas, argumentando ser a mais velha e,
portanto, a única responsável. E o dominicano fingiu aceitar suas explicações.

Capítulo 7

MAURICE FIAUX e seu bando não digeriram a fuga de Camille do hospital
Saint-Jean.
O padre Delmas sabia que a polícia e a Gestapo haviam conseguido
infiltrar certos elementos seus em algumas bases de resistentes, tanto nas do
O.C.M., do Libé-Nord ou nas da F.T.O., o que não apresentara dificuldades
maiores, pois os jovens resistentes eram tão avoados como confiantes. Bastava
um copo de vinho a mais, uma moça bonita diante da qual quisessem se fazer
de heróis, uma palavra benevolente em relação à Resistência e ao general De
GaulIe ou um ar de franca camaradagem, para que numa conversa banal logo
soltassem a lingua, permitindo que Dohse ou Robert Franc fizessem detenções.
Falava-se mesmo de um homem de Grand-Clément introduzido no seio dos
comandos recrutados por Aristide. Os responsáveis pela Resistência viam
traidores por toda a parte.
As ordens de execução partiam de Londres. Até o momento, o antigo chefe
do O.C.M. conseguira esquivar-se a todas a armadilhas, mas o agente britânico
estava decidido a acabar com ele e com os que estavam a seu serviço. Um de
seus ajudantes, André Basilio, fora abatido em 22 de maio.
Era necessário agir rapidamente, pois Grand-Clément sabia que Aristide
estava de volta: em Bordéus, na véspera da execução de Basilio, o agente inglês
dera de cara com André Noel, antigo membro da sua rede que se passara para o
inimigo subjugado pelas teorias de Dohse — e daquele que continuava a
considerar como chefe — quanto à ameaça do boichevismo sobre a França.
Foram dadas ordens para abater Grand-Clément e Noel, mas ninguém
conseguiu encontrá-los; ambos haviam partido para Paris. Dohse, por sua vez,
vasculhou toda a cidade à procura do chefe do SOE., sem melhores resultados.
Aristide e o padre Delmas sabiam que o desembarque se aproximava.
Desde abril que o oficial inglês recebera ordens para executar a emissão
francesa da B.B.C., às dezenove horas dos dias 1, 2, 15 e 16 de cada mês, dias
em que poderiam ser transmitidas mensagens referentes ao desembarque.
Tudo teria de estar a postos para tal eventualidade, os preparativos feitos
com calma e em sigilo. Mas assim não acontecia.
Desde o começo do ano que pequenos grupos mais ou menos bem
armados não deixavam de incomodar o ocupante com sabotagens, ataques a
sentinelas, fugas de prisioneiros etc., pondo alemães e soldados em estado de
permanente alerta, e tornando precária a segurança dos grupos de resistentes
da Aquitânia.

Em meio a esse clima de espera e de tensão, chegou ao quartel- general de
Aristide, em Blaye-Saint-Luce, uma mensagem de Mathias Fayard, dirigida ao
dominicano. Houve um momento de confusão na base dos pântanos da
embocadura do Garonne. Como conheceria o rapaz o local que todos julgavam
tão seguro? Não foi possível extrair nenhum esclarecimento do "mensageiro",
um idiota filho de um pescador da região, preso no forte de Hâ muito antes do
regresso de Aristide, por distribuir jornais clandestinos. Para maior segurança,
detiveram o idiota.
O texto da mensagem era dos mais alarmantes. Segundo Mathias, Fiaux
conhecia a localização exata da maioria das bases da Resistência a leste de
Bordéus, o número de homens, o armamento de que dispunham e o nome dos
chefes. Mas, por um motivo que só ele conhecia, Fiaux não dera tais
informações nem à Gestapo nem à polícia.
— Mas como esse Mathias sabe de tudo isso? — exclamou Aristide.
— Ouça o que ele escreve — disse o dominicano:

"Como sabe, meu padre, vigio Fiaux com o objetivo de melhor proteger Léa.
Escondi-me no celeiro da casa onde ele mora, no Boucat. O quarto de Fiaux
fica exatamente embaixo. O teto é formado por simples tábuas e basta prestar
um pouco de atenção para se ouvir tudo. Foi no celeiro que ontem surpreendi
sua conversa com dois guarda- costas. Algumas de suas palavras me fazem
acreditar que tentará vender essas informações ao chefe da Gestapo, pois não
confia nos camaradas da polícia, 'que se apropriariam de seu pé-de-meia', como
ele diz.
Tive vontade de matá-lo, não seria impossível do lugar onde me
encontrava, mas pensei também que, se a tentativa falhasse, ele e os outros
não me poupariam e que ninguém poderia avisá-los nem proteger Léa.
Não demorem; é necessário impedi-lo de transmitir o que sabe. Eu próprio
me encarregaria de silenciá-lo, mas ele desconfia de mim e não permite
aproximações. Esta carta, que estou assinando, é a prova, de que não minto e
de que não procuro atraí-los a uma cilada. Se quiser me ver, mande avisar
meus pais, em Montillac, ou no Chapon-Fin. Pergunte por René, o ajudante de
cozinha. Ele sabe onde me achar e irá me transmitir o recado no mesmo dia.
Quero deixar bem claro que não faço isso para ajudar a Resistência, mas
por Léa.
Eu o saúdo respeitosamente
Mathias Fayard".

— Que história absurda! — comentou Lancelot. — Não tenho a mínima
confiança nesse bostinha.

— Qual é a sua opinião, meu padre? — quis saber Aristide.
— Acho que Mathias fala a verdade.
— Como poderemos saber que é assim?
— Ontem, em Castillon-La-Bataille, prendemos um rapaz suspeito de fazer
jogo duplo. Quando o interroguei, ele respondeu com ironia que todos nós
estávamos fodidos, que a polícia conhecia perfeitamente a localização das bases
dos resistentes e que logo passaria ao ataque. Nesse momento, o operador de
rádio veio me procurar para decifrar uma mensagem urgente de Londres.
Quando voltei, o rapaz estava morto.
— Morto?
— Sim, morto. Nossos rapazes começaram a maltratá-lo e talvez algum
deles tenha querido detê-lo, ameaçando-o com sua arma. Não consegui saber.
Seja como for, alguém disparou, matando-o de imediato.
— Não me diga que lamenta o sucedido?
— A morte de alguém é sempre uma infelicidade — replicou Adrien
Delmas.
— Sem dúvida. Mas estamos em guerra e na guerra mata-se e morre-se.
Por vezes é necessário matar um homem para evitar que morram dezenas ou
mesmo centenas deles.
— É o que sempre se diz em relação a todas as guerras, a fim de justificá-
las. Na Espanha, assisti ao sacrifício de tantas vidas sob esse pretexto.
— É possível, meu padre, mas não temos escolha. O desembarque dos
Aliados está próximo e não podemos correr o risco de ver nossos grupos
atacados e destruídos. É preciso eliminar Maurice Fiaux, os seus guarda-costas
e Mathias Fayard.
— Por que ele?
— Não compartilho da sua confiança.
— Conheço-o desde pequeno. O amor de Mathias por minha sobrinha o fez
cometer erros graves.
— Chama erros graves à sua colaboração com a Gestapo e com a polícia?
— interrompeu-o Lancelot.
— Proponho que o assunto seja votado — sugeriu Dedé, o Basco, que
permanecera em silêncio até aquele momento.
— De acordo — anuiu Aristide. — Quem se pronuncia pela execução dos
quatro?
Todas as mãos se ergueram, exceto a do dominicano.
— O caso está encerrado — declarou Aristide. — Ponha-lhes alguns
homens na pista, Lancelot. Localizem-nos e façam um relatório. É preciso que

dentro de quarenta e oito horas, no máximo, conheçamos seus hábitos, seus
domicílios, os pontos fracos das suas defesas. Compreendeu?
— Perfeitamente, chefe. O senhor deve ir ao Jard-de-Bourdillas, em Landes
de Bussac, enquanto espera que esses bandidos sejam eliminados.
— Talvez. Direi mais tarde. Mas não acredito que aqui eu corra grandes
riscos. Temos homens em Saint-Ciers, em Montendre, em Saint-Savin, em
Saint-André-de-Cubzac e em Bourg. O quartel-general está bem protegido. Meu
padre, gostaria de lhe falar em particular — disse Aristide.
Sozinho, diante do rosto marcado e do grande corpo emagrecido de Adrien
Delmas, o chefe resistente parecia ainda mais jovem e mais baixo.
— Como vai a senhora d'Argilat? — perguntou ele.
— Muito melhor.
— Fico feliz em saber. Conseguiu organizar sua partida para Lausanne?
— Ainda não. Foram presos muitos passadores e preparar a travessia de
uma mulher doente por todo o Sul da França não é problema fácil de se
resolver.
— Entrei em contato com Londres a fim de obter um avião, mas
responderam-me que no momento é muito perigoso.
Entretanto, se for verdade o que disse Fayard, ela e sua sobrinha não
podem ficar em Morizès. Podemos transferi-las para o grupo de Luze, próximo
de Arcachon.
— Preferia levá-las para o setor de Daniel Faux ou do tenente Vicent. Léa
conhece perfeitamente a região e, em caso de dificuldades, saberá onde se
esconder. Além disso, é em La Réole que espero o contato para a ida de Camille
para a Suíça.
— Como queira — concordou Aristide. — Mas, então, prefiro que elas
fiquem perto de Lorette.
— De acordo. Darei então instruções para sua transferência amanhã cedo.
Estamos em Pentecostes e esperemos que as luzes do Senhor nos iluminem.
— Encontramo-nos aqui na sexta-feira, às dezoito horas, para combinar os
pormenores da execução de Fiaux e seus acólitos.
— Meu padre, posso lhe dizer uma coisa?
— Diga.
— O senhor devia consultar um médico. Parece muito cansado.
— Depois se verá — respondeu Adrien Delmas com um leve sorriso.
No dia seguinte, o padre Delmas celebrou missa na igreja de Chapelle-de-
Lorette, na presença da maior parte dos resistentes. Todas as diferentes
tendências ali estavam representadas e confundidas, aumentadas pelo grupo

de Couthure, de Camille e de Léa. Charles fora deixado sob os cuidados de mãe
Faux, que preparara para todos, ajudada por Sifflette, seu "carneiro guisado", já
célebre entre os jovens comilões.
A Sra. Carnélos, cuja fazenda, situada acima de Lorette, servia de
observatório e de depósito de munição, preparava uma fritada de peixes do
Garonne.
Em volta das construções da fazenda, de paredes espessas, tinham sido
escavadas trincheiras, transformadas em postos de tiro. Havia F.M. instaladas
diante das aberturas atrás do muro que rodeava o poço da casa da família
Faux.
Desde o assassinato do capitão Levy pela Gestapo de Toulouse, muitos
jovens haviam se alistado nas fileiras da Resistência, O coronel Becq-Guerin,
que o sucedera, prosseguia o trabalho em andamento e iniciava no manejo das
armas os novos recrutas — os que tinham se negado a cumprir o serviço
militar, camponeses, operários e estudantes.
À saída da missa, as narinas de Léa sorveram com delícia o perrume do
carneiro guisado, um de seus pratos favoritos.
— Que fome que eu tenho! — exclamou a jovem, massageando o estômago
sem cerimônia.
— Eu também — disse Camille, que havia recuperado uma certa cor no
rosto.
A amiga fitou-a com uma expressão de surpresa feliz, comentando:
— Há anos que não a ouço dizer que está com fome!
— Tenho a sensação de que renasci. Me fez bem rezar; restituiu- me a
coragem. Sinto que estamos em segurança aqui.
Tal como na clareira de Landes, Léa estremeceu, apesar do sol quente
desse meio-dia de Pentecostes.
— Olhe quem vem vindo!
— Raul! Jean!
Os dois rapazes beijaram a amiga com certo embaraço. Mas o mal-estar de
ambos logo se desfez quando Léa os abraçou, rindo ec alegria. Jean não
conseguiu reter um grito.
— Oh, desculpe...! Tinha-me esquecido. Eu o machuquei? Dói muito? É
grave? .
— Não, mas ainda está dolorido.
— Jean teve muita sorte — comentou Raul. — Por mais um pouco a bala
acertava em cheio no coração. Estamos tão contentes de vê-la melhor, Camille!
Como vai Charles?

— Ele está aqui comigo.
Sempre conversando, chegaram ao pátio da família Faux onde haviam sido
colocadas mesas e cadeiras. Os resistentes já estavam instalados, esperando
com impaciência que os servissem. Ergueram- se para dar lugar às duas
jovens, mas Léa preferiu a sombra de uma tília na companhia dos dois irmãos
Lefèvre. Camille foi sentar-se junto do filho, cujo prato já estava cheio.
A refeição foi alegre e muito apreciada pelos convidados. Substituídas, as
sentinelas vieram almoçar, por sua vez, comendo aquilo que os camaradas lhes
haviam deixado. Para compensá-los das rações exíguas de guisado, a Sra. Faux
serviu-lhes doses duplas de um bolo que ela fazia tão bem quanto o seu famoso
prato de carneiro.
Quando chegou a hora de lavar a louça, Léa desapareceu. indo refugiar-se
no celeiro, arrastando Raul consigo.
— Beije-me — pediu.
— Mas... Jean?
— Fique quieto. Ele está ferido. Vamos, beije-me.
Rolaram no feno e, durante momentos, pensaram apenas no prazer de
seus corpos.
À noite, os resistentes voltaram para suas bases e o padre Delmas partiu
para Bordéus numa motocicleta requisitada a um garagista de Langon.
A noite excepcionalmente cálida desse fim de maio de 1944 parecia feita
para o religioso que dirigia sua máquina através das encostas cobertas de
vinhedos. Estava uma atmosfera densa de verão, tempo soberbo para a vinha,
mas desastroso para as outras culturas, que sofriam cruelmente com a falta de
água. Alguns relâmpagos tinham prenunciado chuva, mas a tempestade se
afastara.
Ao atravessar um pequeno bosque no fundo de uma depressão Adrien
Delmas foi tomado pelo odor forte de menta, de musgo do frio úmido da
vegetação rasteira sob as árvores.
Mesmo depois de tantos anos, era sempre para ele uma surpresa esses
trilhos modelados sem cessar pela ação humana, abertos no fundo dos vales
arborizados, trilhos que se furtavam ao sol e ao céu, emaranhados de moitas
hostis, de raízes sub-reptícias, de buracos cheios de água estagnada, habitados
por uma fauna rastejante.
Esses lugares, ainda mais selvagens pelo contraste com a restante
paisagem, provocavam-lhe sempre um ligeiro mal-estar.
Mesmo no mais alto verão, não se desejava repousar nessas sombras
malfazejas. Adrien Delmas não se recordava de alguma vez ter interrompido
uma caminhada para descansar ali. Nessa noite, porém, seu espírito e seu
coração estavam em harmonia com aquela vizinhança escura e pantanosa.

Desligou o motor da motocicleta e brecou. O calor da máquina tinha algo
de amigável que o fez demorar-se ainda por momentos sobre ela antes de
desmontar e de a encostar numa árvore.
Afastou os ramos, as lianas de hera e penetrou nas trevas vegetais.
Quando se erguiam da turfa, os pés produziam um ruído esponjoso. Barrou-lhe
o caminho um carvalho desenraizado e em decomposição. Deixou-se cair sobre
o tronco apodrecido, sem forças para lutar contra o desespero que o invadia.
Desde que a fé em Deus o abandonara bruscamente certa manhã, na
Espanha, diante daqueles jovens, quase crianças, que foram fuzilados,
nenhuma lágrima havia brotado de seus olhos ardentes. Quantas noites sem
sono não passara pedindo socorro a esse Deus em quem já não acreditava e
para o qual, no entanto, rezava todos os dias procurando, nas palavras
familiares, retomar o contato maravilhoso da fé?
Contara a um amigo espanhol, dominicano, tal como ele, e este o
abraçara, fitando-o com uma piedade imensa.
— Lastimo de todo o meu coração — disse o amigo —, mas não posso fazer
nada. Vivo o mesmo drama, um drama tão atroz que até pensei em me matar.
O que me deteve foi a idéia do desgosto que causaria a minha mãe.
Haviam-se separado mais abatidos ainda. Desde esse momento, Adrien
Delmas nunca mais falou nisso, tentando esquecer sua miséria por meio da
ação. Mas não conseguia. Era tamanho o sofrimento que pedia a morte com
todas as forças. O momento talvez tivesse chegado diante dele.
Sempre lhe parecera insuportável a morte dos outros, mesmo a morte dos
traidores e dos assassinos. Apesar disso, no meio daquelas trevas palustres,
acabava de tomar uma resolução decisiva: mataria Maurice Fiaux, evitando
assim que ele denunciasse os resistentes. seus amigos. Tendo tomado essa
terrível decisão, esse homem, esse padre que antes da guerra militara contra a
pena de morte, experimentou uma paz perdida há muito tempo.
Arquitetou um plano: conseguiria o endereço de Fiaux por intermédio de
sua mãe. O rapaz não desconfiaria dele. Além disso, ficaria contente demais em
prender esse chefe da Resistência, que até então escapara das polícias alemã e
francesa. Depois de o matar, não teria tempo para escapar. Morreria nas mãos
de um dos acólitos do jovem policial.
Muito calmo, Adrien Delmas deixou o pequeno bosque.
No dia seguinte, o dominicano ofereceu-se como voluntário para a
execução de Maurice Fiaux. Os que sabiam que era padre fitaram- no com
perplexidade, depois com horror, e em vão tentaram dissuadi-lo. Reivindicou o
crime para si, argumentando ser a única pessoa que poderia aproximar-se da
vítima e executá-la com um mínimo de risco. Como isso não bastasse para
convencê-los, valeu-se das ordens de Londres e da hierarquia que ocupava
dentro do exército secreto. Os companheiros se renderam, cheios de tristeza e
de constrangimento.

Adrien Delmas obteve também o adiamento da execução de Mathias
Fayard que continuava, no entanto, sob vigilância cerrada.
Mas um contratempo retardaria o último encontro: na noite do dia 30
Maurice Fiaux deixava Bordéus, em direção a Paris. Segundo sua mãe, no
entanto, estaria de volta em 6 de junho, o mais tardar. Que iria fazer na
capital? Comparecer a um meeting de Darnand, como recompensa por seu
zelo?

Capítulo 8

Aristide deu um salto na cadeira, quase arrancando o botão do receptor
que guiava há vários minutos, procurando sintonizar a B.B.C., para sua sexta
sessão de escuta obrigatória. Eram sete horas da tarde do dia 2 de junho de
1944.
"Repito. Filemon reclama seis garrafas de Saaternes."
Não havia dúvida — tratava-se da mensagem A, destinada à sua zona,
anunciando a iminência do desembarque e a ordem de colocar em estado de
alerta os grupos da Resistência.
À noite, Aristide reuniu seu estado-maior: Lancelot, François e J
acqueline, Dany e Marcel. Às três horas, convocou também os chefes de grupo
para uma reunião no número 29 da Rua Guynemer, em Caudéran, nos
subúrbios de Bordéus.
No dia seguinte, os homens compareceram ao encontro. Aristide recebeu-
os um por um, fornecendo-lhes instruções precisas. A Capdepont, responsável
pelos ferroviários, foi dada a ordem de sabotar locomotivas, sinais e linhas,
numa distância de duzentos quilômetros; Pierre Roland, do grupo do porto de
Bordéus, foi incumbido de destruir as instalações elétricas de deflagração das
minas colocadas ao longo dos cais pelos alemães.
Henri Mesmet comunicou que Léon de Landes dispunha de quinhentos
homens prontos para combater, mas que só a metade possuía armas. O oficial
do S.O.E. tranqüilizou-o; esperava três descarregamentos por pára-quedas
dentro de dois dias.
O capitão Duchez, do grupo de Arcachon, não tinha problemas desse
gênero — seus homens estavam bem armados e treinados no uso de armas
pesadas: metralhadoras, morteiros e bazucas.
Os quatro enviados dos grupos de Lège, Andemos, Facture e Arès tinham,
cada um, entre setenta a cem homens devidamente armados. Após a vaga de
detenções, havia apenas uns vinte combatentes no grupo de Mérignac, que
Pierre Chatanet acabava de pôr à disposição de Aristide. Sua missão seria a de
cortar as linhas telefônicas.
Os chefes de grupos de La Réole, Bègles, Pessac, Lermont, Bordeaux-
Saint-Augustin e de Blaye estavam lá. As patrulhas móveis de Dedé, o Basco,
esperavam com impaciência o momento de entrar em ação.
A operação consistia em retardar o mais possível as tropas alemãs
estacionadas na região do Sudoeste em sua marcha para o local do
desembarque, assim que fosse conhecido.

Ao deixarem Caudéran, havia grande esperança no coração de todos.
Grande esperança e também grande impaciência. Após quatro anos de
Ocupação, os poucos dias de espera iriam parecer bem longos a esses
punhados de homens que se recusavam a aceitar a derrota.
Léa havia terminado sua toalete sumária e, com um gesto amplo, atirou
para o pátio a água suja da bacia.
— Ei! Cuidado!
Ela se sentiu paralisada.
— O que aconteceu para ficar aí transformada em estátua de sal? Uma
gargalhada arrancou-a de seu torpor. A bacia caiu, fazendo soltar alguns
estilhaços de esmalte azul.
— François!
Esse grito surdo e selvagem atingiu Tavernier em pleno ventre. Apanhou o
corpo da jovem em vôo, com um rugido que nada tinha de civilizado.
Ela estava ali... bem viva... cálida... cheirando a sabão de má qualidade e a
esse característico perfume de cerejeira que era só seu!
François Tavernier farejava-a produzindo ruídos animalescos, mordiscava-
a, fungava no meio dos seus cabelos, abocanhava-lhe a língua e os lábios...
Sem nenhum pudor, a jovem esfregava-se nele, soltando gemidos que lhe
aguçavam o desejo.
Prestes a atingir o orgasmo, Tavernier afastou-a, devorando-a com olhar
faminto. Ah, aquela sem-vergonha, que saudade tivera dela! A lembrança do
seu corpo o deixara acordado durante noites a fio, incomodado por ereções
dolorosas que nem sua mão nem as acolhedoras auxiliares militares do
Exército britânico tinham conseguido aplacar. De início, divertira-o o fato de
sentir tanta energia viril por aquela jovem insuportável e ausente mas, com o
decorrer dos meses, aquilo o deixara num furor do qual se aproveitavam as
jovens britânicas e as prostitutas londrinas.
No contato com Léa, toda a civilidade o abandonara. Assaltavam-no
ímpetos de violador. Nada de carícias, de preliminares. Tomá-la ali mesmo,
nesse pátio de fazenda, sob os olhares zombeteiros e desejosos dos resistentes
que fingiam se interessar pelo manejo de suas Sten, revendo mentalmente
como funcionavam para não se deixarem perturbar.
"Para encher o carregador, colocar a arma por cima dele de modo que a
lingüeta (f) entre na fenda (g). Colocar os quatro dedos da mão esquerda sobre a
alavanca (a), de forma que o anelar fique em cima da abertura (b) da alavanca e
o indicador sobre o furo (c). Baixar o talão (d) sobre o qual assenta o dedo
mínimo e inserir com a mão direita uma cápsula vazia na abertura (e). Erguer a
alavanca com o anelar e empurrar para introduzir novo cartucho. Repetir a
operação até carregar vinte e oito cartuchos."

Um deles deixou cair os cartuchos. Corando, apanhou-os do chão e
afastou-se, seguido pela maioria dos camaradas.
No limiar da porta da casa, Sifflette, de mãos na cintura, observava o casal
com um sorriso de aprovação. Não havia dúvida — aqueles dois tinham sido
feitos um para o outro! De fato seria necessário alguém como aquele homem
maciço, com o seu ar de conquistador, para domar essa moça bonita e
insolente que fitava os homens com expressão ao mesmo tempo ingênua e
gulosa. Tomara que ela partisse para a Suíça com a meiga senhora d'Argilat o
mais depressa possível, senão os rapazes acabariam se matando por ela!
— Ei, namorados, aqui não é lugar para beijocas! Aqui não faltam lugares
mais tranqüilos! Ei... Ei... não me ouvem?
— Desculpe, minha senhora — disse François Tavernier, voltando a si.
— Não se desculpe. Se eu fosse um belo macho diante de semelhante
fêmea, faria a mesma coisa... apesar de que não ficaria plantado num pátio,
mas iria rápido rolar no secador de tabaco lá do fundo, onde há feno ceifado de
ontem.
— Muito obrigado por sua preciosa informação, minha senhora. —
agradeceu Tavernier. Depois, virando-se para Léa, perguntou:
— Sabe onde fica esse tal secador de tabaco?
— Venha.
Da soleira da porta, Sifflette os viu se afastarem correndo pelo caminho
pedregoso.
Os quinhentos metros que separavam a casa do secador lhes pareceram
intermináveis. Com a precipitação, tropeçavam nos buracos, torcendo os pés,
praguejando e rindo. François abraçava Léa pela cintura. No outro braço levava
o fuzil e a sacola.
A porta estava fechada com um cadeado cheio de ferrugem. Tavernier o fez
saltar, servindo-se do cano da arma como alavanca. O cheiro inebriante de
tabaco e da erva cortada há pouco acabaram por exaltar ainda mais seus
sentidos. François jogou a sacola e a arma, arrancou o casaco e arrastou Léa
para o meio do feno. Caíram juntos, lutando em busca do corpo um do outro,
impacientes por se entregarem.
Depois uniram-se sem doçura, com uma violência exasperante que os fazia
gritar. O prazer os submergiu, arrastando-os como uma onda impetuosa que os
atirava para o largo antes de arremessá-los de volta, desconjuntados e
insatisfeitos à sua cama rústica.
— Tire a roupa.
Sem perder de vista um único de seus gestos, Tavernier desembaraçou-se
da própria roupa. Nu, o sexo ereto, foi escorar a porta com a espingarda. Agora

não desejava ser incomodado; queria dispor de tempo para usufruir daquele
corpo fácil.
Quando, por fim, apaziguou essa grande fome que sentia, a tarde já estava
muito adiantada. Não haviam trocado nenhuma palavra além das palavras de
amor, tão banais de tanto que foram repetidas.
Soaram algumas batidas na porta. Rápido, Tavernier apoderou-se do fuzil.
— Quem é? — perguntou.
— Sou eu, meu comandante... Finot. Disseram-me que estava aqui.
Tavernier colocou a arma de lado e começou a se vestir.
— O que quer?
— Temos de partir, comandante, se não quiser perder o avião.
— Que horas são?
— Quatro horas, meu comandante.
— Santo Deus! — exclamou Tavernier. — Não podia ter vindo me avisar
mais cedo?
— Ninguém soube me dizer onde o senhor estava!
Léa, ainda nua e deitada, olhava-o, apoiada nos cotovelos.
— Vai embora?
— Aproveitei uma missão nesta região para te procurar. Em Montillac
ninguém quis ou soube me dizer onde você estava. Felizmente, lembrei-me da
senhora Lafoucade e dos filhos. Maxime prontificou-se a telefonar e... a
encontrei.
— Mas vai partir de novo.
— Sim, mas voltarei.
— Meu comandante...
— Já vou.
— François.
— Chiu, pequenina! Nada de gritos, nada de lágrimas. Tudo vai sair bem.
A guerra terminará logo.
— Mas... nem tivemos tempo para conversar!
— Eu sei, minha querida, eu sei. Nós nos falaremos mais tarde.
Ergueu a jovem e a manteve apertada contra si, tão frágil em sua nudez.
— Beije-me — pediu Léa.
— Meu comandante!

Quando François se separou de Léa, sentia na boca um gosto de sal, mas
não sabia dizer se era das lágrimas dela ou dele mesmo.
Empurrando o motorista, Tavernier subiu até o pátio onde o aguardava o
velho Mercedes preto, no qual se atirou.
Quando o veículo se pôs em marcha, François virou-se para trás. No limiar
da porta uma jovem que lhe parecia Camille d'Argilat e que dava a mão a um
garotinho lhe acenava com grandes gestos.
Lançado em pára-quedas na véspera para cumprir uma missão
relacionada com o próximo desembarque, François Tavernier embarcou
durante a noite num Blenhein da força aérea britânica, rumo a Londres.
À noite, quando Léa deixou o secador de tabaco, de olhos vermelhos e
rodeados de olheiras, Camille, que viera ao seu encontro, beijou-a com ternura
e disse simplesmente:
— Você tem sorte.
Entraram em casa de mãos dadas.
No final das contas, Léa se adaptara àquela vida clandestina e sem
conforto embora, de tempos em tempos, continuasse a se queixar da
rusticidade dos locais de refúgio e da promiscuidade. Camille, no entanto,
nunca protestava, mas a verdade é que começava a sofrer com essa vida rude.
E, acima de tudo, temia que a base fosse atacada. Sua saúde havia melhorado,
mas sua fraqueza era tão grande que mal conseguia andar. Sua fé em Deus e o
pensamento em seu marido e no filho mantinham-na de pé, porém.
Foi na noite de 5 para 6 de junho que se transmitiu a mensagem B, tão
ansiosamente aguardada por Aristide e seus homens, uma das trezentas
irradiadas durante essa mesma noite pela seção francesa do S.O.E. aos seus
oficiais: "Uma rosa na orelha" anunciava o desembarque aliado na Normandia e
a mobilização de toda a Resistência francesa.
As operações previstas se desencadearam, então, imediatamente. Desde o
amanhecer, as armas pacientemente armazenadas nos celeiros, nos secadores
de tabaco, nas adegas e nas grutas foram rapidamente distribuídas.
Destruíram-se os cabos subterrâneos que ligavam o Q.G. do general Von der
Chevailerie, comandante do 1.0 Exército estacionado em Bordéus, à base de
Mérignac e aos aquartelamentos c, mais tarde, aqueles que ligavam a Luftwaffe
às baterias de Chut foram destruídos.
No depósito da estação de Pessac, Pierre Chatanet e os seus homens
explodiram nove locomotivas, retardando por várias dias a partida de três mil
soldados alemães para a frente da Normandia. Cortaram também a linha
Lacanau-Saint-Louis.
Por sua vez, os elementos do grupo de Georges dinamitaram a via férrea
entre Le Puy e Lonzac, a ponte ferroviária entre Montendre e Chartressac,
cortaram os cabos telefônicos do Exército alemão em Souge e destruíram oito

torres de cento e cinqüenta mil volts, próximas de Ychoux e três de cento e
vinte mil volts em Boir.
Ao mesmo tempo, os ferroviários de Fernand Schmaltz, irritados com a
concorrência do grupo de Georges, fizeram um arremate e enviaram a Aristide o
balanço de quarenta e oito horas de operações. Destruição da ponte ferroviária
próxima de Fléac. Transporte alemão de tropas descarrilhado após uma colisão
com comboio de vagões-cisternas cheios de petróleo, nas vizinhanças de
Bordéus. Esta ação provocou um gigantesco incêndio na linha e causou sérias
perdas aos alemães, em particular a morte de um capitão e de um sargento.
Uma grua de trinta e três toneladas dinamitada caiu sobre uma locomotiva a
vapor, interrompendo a circulação ferroviária; a grua e a locomotiva ficaram
fora de uso. Via férrea cortada em Soulac...
O grupo de Arcachon, dirigido pelo comandante de Luze e pelo capitão
Duchez, agiu em duas torres de alta tensão, privando de eletricidade a zona sul
da rede ferroviária. Os cabos telefônicos e telegráficos da estância balneária
foram também destruídos, isolando-a do resto do mundo.
Dedé, o Basco, e Léon de Landes importunavam sem cessar os comboios
alemães que, por estradas secundárias, tentavam atingir as praias normandas.
Na noite do dia 6, na fazenda Carnélos, embora as interferências a
tornassem por vezes inaudível, as pessoas puderam ouvir a voz que durante
quatro anos tinha sustentado a honra da França.
Começou a batalha decisiva!
Depois de tantos combates, de tanto furor, de tantas dores, eis que chega
o confronto decisivo, o choque tão aguardado! É a batalha de França e é a
batalha da França!
Para os filhos da França, onde quer que se encontrem, quem quer que
sejam, o dever simples e sagrado é o de lutarem com todos os meios de que
disponham. É necessário destruir o inimigo que esmaga e macula a Pátria, o
inimigo detestado, o inimigo sem honra!
Mas esse inimigo tudo fará para escapar a seu destino. Vai se obstinar em
permanecer no nosso solo durante todo o tempo que puder. Há muito, porém,
que não passa de uma fera que recua..
Para uma nação que se bate, de pés e mãos atados contra o opressor
armado até aos dentes, a boa ordem na batalha exige diversas condições.
As três condições não puderam ser ouvidas; só o final do discurso do
general De Gaulle chegou até eles:
Começou a batalha de França. Agora, na Nação, no império, nos exércitos,
só existe uma única e mesma vontade, uma única e mesma esperança. Por
detrás da nuvem espessa de nosso sangue e de nossas lágrimas, eis que
reaparece o sol de nossa grandeza!

Quando soou a Marselhesa, muito naturalmente eles se puseram de pé.
Alguns choravam, sem procurar esconder as lágrimas.
Mais tarde, após as recomendações de um membro do estado- maior do
comando supremo das Forças expedicionárias interligadas às populações
situadas na zona do desembarque, Jacques Duchesne tomou a palavra no
programa intitulado "Os Franceses falam aos Franceses":
Não é por acaso, meus amigos, que esta noite não irão ouvir as palavras
habituais: "Hoje, ducentésimo vigésimo sétimo dia da invasão etc. etc." Não é
por esquecimento que não diremos "milésimo quadringentésimo quadragésimo
quarto dia da luta do povo francês pela libertação. Foram necessários mil
quatrocentos e quarenta e quatro dias para que essa libertação começasse, mas
estas duas fórmulas, nunca mais as ouvirão.
Todos aplaudiram o "nunca mais". Um pouco mais de paciência e nunca
mais teriam medo, nunca mais teriam de se esconder. Uns dias, umas semanas
a mais, e poderiam voltar para casa, retomar o caminho dos vinhedos, das
fábricas, dos escritórios ou, muito simplesmente, o caminho de casa. Dentro de
um ou dois meses, os prisioneiros estariam de volta, talvez ainda a tempo de
participarem das vindimas. Nessa noite, teceram-se belos sonhos na fazenda de
Antoine Carnélos.
Nada deixava prever o ataque alemão.
A atmosfera estava pesada e o céu encoberto nesse início de tarde do dia 9
de junho. Léa e Charles, rindo, desciam do bosque de Candale, famintos após o
longo passeio em busca de morangos selvagens. Tinham descoberto uma
dezena de frutos ainda mal amadurecidos, que dividiram entre si de modo
equitativo.
O menino adorava a jovem. Léa tratava-o como a um irmão adolescente e
brincava com ele com a mesma seriedade das crianças. Havia combinado fazer
um piquenique, mas a merenda preparada pela mãe Faux há muito fora
devorada. Por isso regressavam a casa mais cedo que o previsto, na esperança
de encontrarem restos do almoço.
Já sentiam o cheiro do carneiro guisado cotidiano. Apesar de gulosa, Léa
já começava a enjoar dele. De repente imobilizou- os o som de uma rajada de
metralhadora.
— Estão se divertindo — observou a criança com o ar importante de quem
sabe.
— Não me parece. Espere aqui. Não se mexa. Vou ver o que acontece.
— Não! Quero ir com você.
Nesse exato instante, soou nova rajada, logo seguida de uma outra.
— O som vem da fazenda!.. Prometa que não sairá daqui, vou procurar a
sua mãe.

Correndo, Léa subiu a encosta e imobilizou-se atrás da grande cerejeira
que pendia sobre as construções da fazenda Carnélos... A uma centena de
metros, capacetes verde-acinzentados dos militares alemães emergiam do
campo de trigo.
Estavam acompanhados por 119 policiais, reconhecíveis pelos uniformes
azuis-marinhos e pelos capacetes pretos. Um deles ergueu-se com um grito e
depois caiu, esmagando sob seu peso as espigas ainda tenras. Um tiroteio
intenso partia da fazenda. Do andar superior, as F.M. de Daniel Faux e de seus
camaradas varriam o campo. Alguns inimigos tombavam, mas logo surgiam
outros. De uma das janelas do andar térreo, Camille, armada de um fuzil,
também atirava. "Charles, Charles! Onde você está? Não corre perigo junto de
Léa"... Um grupo de resistentes passa correndo diante da cerejeira. Léa os
segue. Camuflados na orla do bosque, lançaram alguma Grammont em direção
do inimigo.
— Léa! Léa!
— Merda... o pequeno!
De fato, assustado pelo barulho e pelos gritos, Charles dispara por entre
as árvores. Léa corre atrás dele. O medo confere asas às suas perninhas. O
tiroteio continua furioso.
— Charles! Charles!
Mas a criança não ouve, pulando como um duende.
— Pare! Pare, por favor! — grita Léa, correndo atrás dele.
Charles ultrapassa o canto da parede, desaparece dos olhos.
"Meu Deus, proteja-o!"
— Mamãe! Mamãe!
— Charles!
Camille solta um grito animal... Joga seu fuzil, lançando-se em direção do
filho, Sifflette tenta detê-la, mas Camille se debate, grita.
De repente, faz-se um grande silêncio. A criança está de pé, no meio do
pátio. Léa já passou pelo canto da casa. Alguém a obriga a se atirar ao chão.
Camille surge no limiar da porta, corre de braços estendidos para o menino,
que se lança para a mãe. Como são belos! Mas não chegam a se encontrar... É
como um balé muito lento... Charles gira sobre si mesmo. Uma flor vermelha se
abre sobre sua camisa branca. Seus braços rasgam o espaço num movimento
lento, estrebucha. Salta de seu pé uma das sandálias de lona de um branco
esverdeado. De sua boca aberta não sai nenhum som.
Mas Camille vê bem que o filho a chama.
— Não tenha medo, estou aqui. Mamãe está aqui... meu pequeno.
Cuidado... você vai cair! Oh, meu querido, você se machucou? Está

sangrando... mas isso não é nada! Ah, não estou vendo você! Alguma coisa
quente escorre pela minha testa... pelos lá- bios... é salgada. Onde você está?
Ah, está aí! Mas o que está fazendo deitado no chão? É verdade... você caiu!
Está doendo?
Mamãe vai cuidar de você... Como é corajoso, meu filho! Não chore.
Espere... eu o levanto. Como está pesado! Ainda não estou muito forte, está
vendo? Vou chamar Léa. Ela virá ajudar.
À distancia, Léa vê o seu nome se formar nos lábios daquele rosto
ensanguentado. Debate-se para acorrer ao apelo mudo, mas Jean Lefèvre pesa
com todo o seu corpo sobre ela.
— Deixe-me! Camille precisa de mim.
— Não podemos fazer nada.
As balas crepitam à volta da mãe e do filho. O corpo da jovem tomba sobre
o da criança. Léa consegue escapar de Jean e chega junto de ambos ao mesmo
tempo que Sifflette, que arrasta Camille para dentro de casa.
Depois Sifflette cai. Léa ergue Charles e foge com ele para os bosquetes.
Não ousa olhar para o menino. O sangue cola em seus dedos. Corre... Corre...
Correu até Deymier. Ali, uma mulher, cujo filho fora morto em 1940, acolheu-a.
Léa tinha os braços e as pernas arranhados, a roupa rasgada. Devagar a
mulher tirou-lhe a criança dos braços.
— O menino está vivo!
A ordem de retirada chegou a Lorette às seis da tarde. Os alemães haviam
utilizado artilharia pesada.
Depois de minada a base, o grupo resistente se dispersou pelas matas,
levando consigo os feridos. Na fazenda abandonada ficaram os corpos de
Camille e de Sifflette, diante dos quais os homens se inclinaram e descobriram
a cabeça, antes de partir.
Alguns instantes depois, o inimigo invadiu a casa. O telhado preparado
com cargas de plástico ruiu sobre os assaltantes. O inimigo sofreu pesadas
baixas: quarenta e oito alemães e vinte e oito policiais mortos.
Os resistentes se reagruparam em Lamothe-Landerron. Foram evacuados
uns quinze feridos. Mas nem todos tiveram essa sorte. Apesar da coragem de
René Faux, ferido no calcanhar ao escondê-lo, Robert Liarcou foi descoberto
pelo inimigo, com o joelho esmagado. Arrastaram-no pelo cascalho. Um
enfermeiro envolveu-lhe o joelho ferido com palha mantida entre duas tábuas.
Atiraram-no inanimado num caminhão, onde se amontoavam cadeiras, víveres
e bicicletas. Foi levado para a sede da Gestapo no colégio de La Réole.
Encontrou aí um companheiro de infortúnio, Paul Gerard, nadando no próprio
sangue, os quatro membros desfeitos. Gerard fora descoberto na casa dos Faux
e os alemães encarniçaram-se contra ele. Morreu durante a noite, diversas

vezes apunhalado por um policial. O corpo, transportado num saco, foi lançado
numa vala comum aberta junto à margem do Garonne.
Vieram buscá-lo ao amanhecer e Robert Liarcou supôs que ia ser fuzilado.
Depois de uma passagem pela Gestapo de Langon conduziram-no ao forte de
Hâ, onde ficou sem cuidados médicos, socorrido por dois resistentes feridos
como ele: Laforesterie, de Puisseguin, e Marcel Guinot, de Bergerac. Alguns
dias depois, os carcereiros arrastaram-no para a enfermaria, onde o Dr. Poinot
fora autorizado a observá-lo. Diante da gravidade do ferimento, o médico tentou
persuadir o comandante do Forte a hospitalizar o jovem, que só consentiu
depois de cinco ou seis hemorragias. Amputaram-lhe a perna no hospital de
Béquet, em 14 de julho, depois de ficar trinta e três dias sem assistência
médica. Em agosto, reconduziram-no ao forte do Hâ.
Liarcou, ao menos, saiu-se bem. O mesmo não sucedeu a três outros
camaradas, também presos em La Réole, que foram deportados e nunca mais
voltaram: Bolzan, Labory e Zuanet.
Charles havia perdido muito sangue, mas apesar de sua aparência frágil
possuía uma forte constituição. Ferido no ombro, restabeleceu-se rapidamente.

Capítulo 9

FOI MAIOR A surpresa que a desconfiança de Maurice Fiaux, quando viu o
padre Delmas no limiar da porta. Deu uma olhada para a rua e depois ordenou
aos guarda-costas que os deixassem a sós.
— Não corro perigo na companhia de um religioso, não é verdade, padre?
— disse Fiaux, sorrindo com expressão zombeteira.
— O que quer de mim?
— A guerra está perdida para a Alemanha e pessoas como você serão
fuziladas. — Mas, enquanto isso não acontece, ainda temos necessidade de
vocês. Venho aqui enviado pelo pessoal de Londres para lhe fazer uma
proposta. Se concordar, poderá salvar a pele.
Fiaux olhava o dominicano com ar desconfiado.
— Quem prova que não é uma cilada?
Adrien Delmas o olhou com desprezo.
— Tem a minha palavra. A minha preocupação é a de poupar vidas
humanas. Vamos dar uma volta. Não posso me arriscar a que os seus capangas
escutem o que tenho para lhe dizer.
Maurice Fiaux hesitou por um momento. Depois, bruscamente, se decidiu.
— Como quiser, padre. Nesse caso, porém, sou obrigado a ordenar que nos
sigam.
— No seu lugar não o faria — Há possibilidade de ganhar dinheiro?
— Talvez — respondeu Adrien Delmas, disfarçando a custo a repugnância.
— Muito bem. Então, vamos. Seja como for, sou já suficientemente
crescido para me defender sozinho — disse, exibindo uma impressionante
Parabeilum.
Ao descerem, cruzaram com dois jovens que fumavam no patamar da
escada.
— Se dentro de uma hora eu não estiver de volta, avisem o comissário
Poinsot. Digam-lhe que tive um encontro com a personalidade importante da
Resistência que faltou a entrevista na base de Mérignac. Poinsot saberá a quem
me refiro.
— Não quer que o acompanhemos?
— Não vale a pena.

O ar estava pesado nesse fim de tarde de 9 de junho. Havia certa animação
na Rua da Porta Dijeaux, pois era a hora da saída dos empregados. Crianças de
tez pálida chapinhavam na água suja das valetas.
— Aonde vamos? — perguntou Fiaux.
— Ao cais — esclareceu Adrien Delmas. — É mais sossegado.
O outro traiu certa hesitação.
— Dei a minha palavra de honra — disse o dominicano com amargura.
— Deve ser muito importante o que tem a me dizer, para se arriscar a ser
reconhecido e preso — disse o policial. — Voltou a ver a sua encantadora
sobrinha? Informaram-me de que andava a brincar de guerra lá pelos lados de
La Réole. Espere... não me lembro bem onde é. Ah, agora me lembro! Em
Lorette. É aí, não é verdade? Nunca me passou pela cabeça que uma moça de
boa família pudesse se dar com comunistas. Segundo parece, também a
senhora d'Argilat se tornou comunista. Disseram- me que seu menino costuma
cantar a Internacional. Nisso não acreditei, porém. O filho de um herói de
Londres! É verdade que o senhor não lhes deu bons exemplos. Quando
freqüentava a casa do patrão de minha mãe, o senhor já alimentava idéias
bolchevistas. Muito estranho num padre católico! Felizmente nem todos os
padres são assim!
— Há mais do que você supõe — garantiu Adrien Delmas.
— Nós os conhecemos. Lembra-se do padre Jabrun, o jesuíta? Era seu
amigo?
— Sim.
— Parece que morreu o ano passado no campo de concentração de
Buchenwald.
Morrera então Louis de Jabrun! Antes da guerra, travavam freqüentes
discussões durante horas a fio, a propósito dos Tratados de Eckhat, das
confissões de Jacob Bobeme ou das Confissões de Santo Agostinho. Mais uma
pitada do sal da terra que desaparecia!
— Quanto ao padre Dieuzayde e ao abade Lassere, no lugar deles eu
rezaria as minhas últimas orações — comentou Maurice Fiaux.
"Talvez devesse rezar as suas também", pensou o dominicano com humor
macabro.
Caminharam em silêncio ao longo do cais de Richelieu na estrada de
Alsace-et-Lorraine. Em seguida, o padre Delmas virou em direção à Rua da
Porta de Portanets.
Depois de darem alguns passos, Fiaux interrompeu o passo, subitamente
inquieto. Sua mão crispou-se na pistola.

— Largue isso! Embora dispare bem, não passa de uma modesta arma
francesa.
— O senhor está louco! Que quer de mim?
— Entre aí.
Com violência, Adrien Delmas empurrou o companheiro para a sórdida
entrada de um edifício do século XVIII, outrora magnífico. Uma escada de pedra
de uma imundície repugnante conduzia aos andares superiores.
— Onde vamos?
— Ao segundo andar, à porta dos fundos. Não volte a pôr a mão no bolso
— avisou o dominicano.
Nunca nenhuma escadaria parecera tão íngreme a Fiaux. Subia-a,
crispado, imaginando, sem acreditar verdadeiramente nisso, que receberia uma
bala pelas costas de um momento para outro. Adrien Delmas erguia as pernas
num esforço penoso que o banhava em suor.
— Entre — ordenou. — Não está fechada a chave.
Depois da imundície do exterior, a grande sala parecia excessivamente
limpa. Um leito de campanha, uma mesa, uma caixa militar de provisões e
duas cadeiras compunham todo o mobiliário.
— Sente-se — disse o dominicano a Fiaux, tirando-lhe a arma.
— Não.
— Sente-se — insistiu o religioso, instalando-se numa das cadeiras.
Pálido, mas de olhar firme, Fiaux obedeceu.
— Que quer de mim? — perguntou ainda.
— Quero matá-lo.
O policial fitou o padre, de boca aberta, com expressão abobalhada.
Escorria-lhe pelo queixo um fio de saliva. Suas mãos crisparam-se no assento e
suas pernas amoleceram. Começou a tremer.
— Não tem o direito de fazer isso.
— E você? Tem o direito de matar, de torturar e de denunciar, como tem
feito até agora?
— Obedecia a ordens.
— Eu também obedeço.
— Não! Não é verdade! Quer apenas proteger a sua família.
— Cale-se! — cortou Adrien Delmas. — Se tem fé, encomende sua alma a
Deus.
O policial deslizou da cadeira e caiu de joelhos aos pés do padre.

— Mas o senhor não pode me matar! O senhor não!
— Eu sim. Se isto for pecado, então eu o assumo.
— Suplico-lhe... me conhece desde pequeno. Pense em minha mãe. Que irá
dizer a minha mãe?
Era verdade; Fiaux tinha mãe. Depressa... acabar com aquilo depressa.
Diante dele, Fiaux era apenas uma amálgama de medo da qual se
desprendia um cheiro infecto.
"Pobre rapaz!" pensou, apoiando o dedo no gatilho. A bala penetrou na
têmpora esquerda e o matou instantaneamente.
Sem emoção aparente, Adrien Delmas contemplou por instantes a sua
obra. Em seguida, virou o cadáver e revistou-lhe os bolsos. Na carteira de pele
de crocodilo e de ângulos rematados em ouro, encontrou a lista dos grupos
resistentes de Gironde e, em quase todos os casos, os nomes dos chefes e o
número de homens. O grupo de Lorette aparecia assinalado em vermelho com o
número 9; os de Libourne, de Targon, de Villandraut e de Podensac marcados
com um ponto vermelho.
Se os alemães se apossassem dessa lista, adeus Resistência da região
Sudoeste! Aristide precisava ser avisado o mais depressa possível.
Antes de sair, num gesto maquinal, Adrien Delmas fez o sinal-da- cruz
sobre o cadáver.
Tarde da noite, o padre Delmas conseguiu encontrar o quartel- general do
inglês, que mudava de local todos os dias desde o desembarque.
Informaram-no do ataque em Lorette e da morte de Camille e Sifflette.
Nada se sabia de Léa e nem de Charles, exceto que fora atingido ao mesmo
tempo que a mãe. O pequeno e a sobrinha haviam desaparecido no momento
do assalto final dos alemães.
Tais notícias, embora comunicadas com delicadeza por Léon de Landes,
representaram um tal choque para o dominicano que ele desmaiou. Os
companheiros correram então para ampará-lo, e ele conseguiu reagir. Por que
não matara mais cedo aquele demônio? Por que motivo hesitara em abatê-lo
durante dois dias? Por sua causa, por causa de seus escrúpulos imbecis,
tinham morrido duas mulheres e uma criança e havia homens feridos e presos.
Quem sabe se no dia seguinte, ou nessa noite mesmo, talvez outras pessoas
tivessem o mesmo destino por causa de sua indecisão em tirar a vida de um
patife?
Acabrunhado, Adrien Delmas fez o relatório das circunstâncias da
execução de Maurice Fiaux. Um silêncio penoso seguiu- se às suas palavras
secas e precisas.
— Vou a La Réole procurar saber o que terá acontecido a Léa e a Charles.
Têm alguma mensagem para lá?

Todos sabiam que seria inútil tentar retê-lo. Dédé, o Basco, e um jovem
resistente acompanharam-no até a saída da aldeia, onde o sentinela lhe
conseguiu uma bicicleta.
— Descanse um pouco, padre. Partirá um pouco mais tarde — aconselhou
Dédé, o Basco.
— Não. Tenho de ir agora. Adeus, amigos!
Preocupado, Dédé, o Basco, o olhou desaparecer na noite.
O dia nascera há horas quando Adrien Delmas avistou os telhados de La
Réole. Segurando a bicicleta, desceu a pé ruas inclinadas da cidadezinha. Na
Praça Jean-Jaures, entrou no Hotel Termius. O colégio, sede da Gestapo,
situava-se um pouco mais no alto, dominando o Garonne. O passador dos
fugitivos para a Suíça ficara de deixar uma mensagem nesse hotel.
Adrien Delmas caiu pesadamente na cadeira, em frente de uma das mesas
do restaurante. Sem que ele pedisse, uma criada lhe trouxe pão e uma porção
de patê.
— Quer um copo de vinho? — perguntou a moça.
— Sim, por favor!
Pouco depois, ela voltava com o copo e uma garrafa aberta. Enquanto ela
servia a bebida, o dominicano perguntou:
— Voltou a ver Helena?
Com expressão de alívio, ela lhe deu uma rápida olhada e respondeu:
— Sim. Deve estar chegando.
Tais palavras significavam que tudo estava pronto para a partida de
Camille e do filho.
— Não se sente bem? — perguntou a moça. — Está tão pálido.
— Não... não... estou bem. Apenas um pouco cansado. Quando ela chega?
— Ainda não sei bem. Logo, eu creio.
A sala estava deserta àquela hora. Pela porta da cozinha, entreaberta,
chegava até eles o barulho da louça.
— Tenho de acabar de pôr as mesas para o almoço — disse a jovem em voz
alta. E, abaixando o tom, continuou: — O senhor não devia estar se mostrando
pela cidade. Está sabendo o que aconteceu ontem?
— Estou. Quantos mortos?
— Fala-se em duas ou três mulheres e um menino.
— E quantos feridos?
— Uns quinze.

— Onde estão os outros?
Ouviu-se uma voz vinda da cozinha:
— Está atrasada, Germaine! Ponha as mesas.
— Sim, patroa, já vou. Depois, virando-se de novo para o dominicano,
informou:
— Estão entre Mongauzy e Lamothe-Landerron...
— Germaine!
— Já vou, já vou! O cliente está pagando a conta.
— Obrigado. Toma e fique com o troco.
— Obrigada, senhor.
Adrien Delmas saiu e pegou sua bicicleta. Em frente da ponte pênsil,
cruzou com uma patrulha alemã. Depois, montando na bicicleta, pegou a
estrada de Marmande. Pesavam em suas pernas os cinqüenta quilômetros
percorridos durante a noite.
Não conseguiria pedalar durante muito mais tempo.
Atingiu Mongauzy já ziguezagueando pela estrada. Em frente da igreja,
sentiu que sua vista se toldava por um véu vermelho; o rosto queimava. Tudo
girava a sua volta e sentia o peito se rasgar. Ao cair, reviu o rosto crispado de
medo do homem que assassinara.
Recobrou os sentidos deitado no leito do pároco.
— Que susto o senhor me pregou!
— Estou aqui há muito tempo? — perguntou Adrien Delmas.
— Há três dias.
— Preciso ir embora.
— Nem pense nisso! O médico afirmou que seu estado é muito grave. Ele
vai voltar ainda hoje. Senhor!.. — Deite-se!.. Como vê, não consegue ficar em
pé.
— Mas é necessário.
— Não sei por que tanto quer partir, nem quero saber. Mas acredite que
está seguro aqui. O médico, assim como o professor que me ajudou a trazê-lo
para cá, são pessoas de confiança.
Adrien Delmas observou o homenzinho. Vestia uma batina já esverdeada
de tanto uso e onde faltavam alguns botões. Era um padre de província, um
bom homem. Que teria feito se soubesse de seu crime?
— Ah, vejo que já está melhor! — exclamou o médico. — Não fale. Antes
disso quero auscultá-lo. Quando é que ele recobrou os sentidos, senhor pároco?

— Talvez há quinze minutos.
O médico o examinou cuidadosamente. Era muito velho e deveria estar
aposentado há muito tempo. As mãos, de longos dedos descarnados,
apalpavam o corpo magro do paciente com gestos precisos. Ao terminar o
exame, arrumou cuidadosamente o estetoscópio e limpou os óculos, numa
operação que pareceu muito longa ao pároco.
— Vamos, doutor, não nos faça sofrer.
— O senhor não está lá muito formoso — declarou o médico, por fim,
dirigindo-se a Adrien Delmas. — Que idade tem?
— Cinqüenta e cinco anos, doutor.
— Meu pobre amigo, o senhor tem o coração de um homem da minha
idade, mas já muito esgotado. É fundamental que repouse. Vou receitar uns
medicamentos, esperando que o farmacêutico os tenha. Eu os daria se pudesse,
mas há muito tempo que distribui todos os remédios de que dispunha. O que
aconteceu no outro dia acabou com o resto das minhas reservas.
— Refere-se ao ataque aos resistentes?
— Isso mesmo. Muitos deles ficaram bastante feridos.
— Havia mulheres entre eles?
— Feridas? Não. Mas havia duas infelizes que foram mortas.
— E a criança?
— Não vi nenhuma criança, nem morta nem viva.
Adrien Delmas cerrou as pálpebras, levando as mãos ao peito.
— Não fale mais. Cansa-se muito.
— Mais uma coisa, doutor. Terá por acaso ouvido falar por aqui, pelas
imediações, de uma moça e de um garoto que tenham se refugiado em algum
lugar?
— Não. Só se estiver relacionado com as palavras de um jovem resistente
ferido na cabeça que repetia sem parar: "Léa, não vá. Léa, não vá.
— É essa, de fato, a pessoa que procuro. Uma moça muito bonita, de vinte
anos.
— Não, não vi nenhuma moça bonita. Mas por que está à sua procura? É
de sua família?
— Sim. Minha sobrinha.
— Posso lhe informar. Por aqui as pessoas me conhecem e me dirão o que
souberem. Mas, com uma condição: que fique tranqüilo.
— Prometo.
— Muito bem. Se souber de alguma coisa, avisarei o pároco.

— Obrigado, doutor -- balbuciou o dominicano, antes de desmaiar
novamente.
— Pobre homem! — exclamou o médico. — Não lhe dou muito tempo. Reze
por ele, senhor pároco. Deve ter sofrido muito para estar tão acabado.
— O senhor tem alguma idéia de onde encontrar essa moça e a criança?
— Não, mas vou a Jaguenaux, onde os feridos estão sendo cuidados.
Voltarei à noite. Até logo.
— Até logo, doutor.
— Cuide bem do seu hóspede.
O médico só pôde voltar no dia seguinte, porém. Seu rosto estava
transtornado.
Ninguém sabe de nada. — A última vez que os viram vivos foi no momento
do assalto à base. A criança estava ferida ou mesmo morta. Algumas pessoas
afirmam que os alemães os atiraram dentro das casas incendiadas. Mas, por
enquanto, o local está sendo guardado e ninguém pode se aproximar.
Adrien Delmas escutava a explicação sem conseguir dizer nada.
— Por que teriam feito isso? São soldados, não animais.
— Meu pobre pároco, eles são muito piores que animais! São a besta
imunda de que falam as Escrituras.
— Mas o que aconteceu, doutor? Está tão transtornado!
— Aconteceu, senhor pároco, que os alemães massacraram todos os
habitantes de uma aldeia em Limousin.
— Não é possível!
As lágrimas que deslizavam pelo rosto envelhecido do médico o
confirmavam.
O vigário persignou-se e colocou a mão no ombro do velho.
— Que Deus os perdoe.
O médico endireitou-se, enraivecido.
— Que Deus os perdoe, o senhor diz? Se o raio do seu Deus existe, com
certeza não os perdoará. Durante toda a vida, presenciei muita miséria, muito
horror. Vi rapazes morrerem no meio da lama das trincheiras com as pernas
arrancadas, vi mutilados da Grande Guerra, os pescoços quebrados, vi os meus
melhores amigos reduzidos a mingau nos campos de Verdum. Sei o que é a
guerra e o que é a morte. Isso me revolta; aceito-o, porém, como uma
fatalidade. Mas daí ao massacre de mulheres, de crianças... sobretudo de
crianças... isso não posso aceitar.
— Acalme-se, doutor — pediu o padre.

— Acalmar-me! Sabe, por acaso, o que eles fizeram em Oradour sur-
Giane? Diga... sabe? Foi neste último sábado, dia 10 de junho. As pessoas se
aglomeravam para a distribuição de tabaco e os alunos estavam reunidos para
a visita médica. Cerca de duzentos refugiados tinham chegado na aldeia. Foi
depois do almoço que eles desembarcaram dos caminhões, envergando
uniformes de campanha, apontando as armas para as casas. O major, um tal
Otto Dickmann, mandou chamar o prefeito e depois o guarda rural.
Acompanhado por dois SS, ele deu uma volta pela aldeia, tocando um tambor.
"Avisss... à população!"
Sabe como é? Todos os guardas rurais franceses pronunciam a palavra
deste modo: aviss. Então anunciou sua mensagem:
"Homens, mulheres e crianças deverão reunir-se imediatamente, munidos
de seus documentos, no campo da feira, para verificação de identidade".
Doentes e inválidos são, então, arrancados de seus leitos pelos SS, que, a
coronhadas, os empurram para o campo da feira, assim como empurram os
agricultores arrebanhados pelos campos da vizinhança, as famílias dos
lugarejos vizinhos, os pescadores, as crianças que não caminham tão depressa.
Logo todos os habitantes estão reunidos.
Alguns disparos no outro extremo da aldeia assustam a massa bestificada.
Metralhadoras tomam posição um pouco por toda a parte. Mulheres e crianças
choram. Separam as mulheres dos homens. As mães apertam os filhos contra o
peito, crispam as mãos nos carrinhos de seus bebês. Cercadas por dez SS, são
conduzidas até a igreja, junto com os pequenos da escola, O vigário nunca
tinha visto tanta gente.
Os homens são alinhados em três fileiras. E, no meio do silêncio, ouve-se o
sino do trem de Limoges, que se prepara para atravessar a ponte. Soa um tiro.
Um soldado grita em excelente francês que os terroristas esconderam na aldeia
importante provisão de armas e de munições e que, sob pena de represália, os
habitantes deverão indicar onde estão escondidos. Um velho aldeão diz que tem
uma espingarda de caça.
— Isso não nos interessa — responde o soldado.
Dividem os homens em quatro grupos de quarenta a cinqüenta indivíduos.
Dois deles são encaminhados para a parte superior da aldeia, os outros dois
para a de baixo. Amontoam-nos em sete palheiros. Os alemães, de
metralhadoras apontadas para eles, conversam entre si, rindo.
De repente, com um grande grito, eles abrem fogo. Os corpos caem, uns
sobre os outros, as balas ricocheteiam contra a parede, os feridos urram.
Depois o tiroteio cessa. A tiros de pistola, acabam com todos aqueles que ainda
se mexem.
Em seguida os soldados vão buscar palha, feno, lenha, um carro de mão,
uma escada. Põem fogo nos montes de palha, atirando-os sobre os moribundos,

agitados pelos últimos espasmos, e fecham as portas. A mesma cena se
reproduz nos sete palheiros.
Dentro da igreja, quatrocentas mulheres e crianças, talvez mesmo
quinhentas, fitam com pavor o grupo de soldados que arrasta uma pesada arca
de onde saem diversos fios. Põem fogo nos fios e saem. Há uma explosão. Uma
densa nuvem de fumaça negra invade a igreja. Gritando de pavor, meio
asfixiadas, as mulheres e as crianças correm em todos os sentidos.
Pelo portal aberto, as metralhadoras crepitam. Granadas deflagram. Os
cabelos se incendeiam. Desaparece o cheiro do pó e do incenso, substituído
pelo odor de sangue, de merda e de carne queimada.
Rapazes de vinte anos atiram palha e lenha para o meio do formigueiro
humano. Um lança-chamas vomita fogo. Uma mulher arrasta-se, com a filha
morta perto dela. Refugiados no confessionário, dois garotos são abatidos. Mães
e filhos se enlaçam, queimando vivos. — O médico fez uma curta pausa e
depois exclamou: — Não ouve os gritos deles? Diga... não ouve os gritos? Não vê
as paredes do lugar santo maculadas pelo sangue das vítimas? As marcas dos
dedos desenhadas sobre as lajes? Esses rostos arrebentados? Esses membros
quebrados? Diga-me... não os vê?
Eles viam tão bem que o padre caíra de joelhos, rezando, e o velho médico
fechara os olhos com horror. Sem dizer nada, ele se voltou para a porta e
desapareceu nas trevas, vergado sob o peso de todas as desgraças do mundo.
Adrien Delmas levantara-se da cama, um gosto de náusea na boca. Com
esforço, ergueu suavemente o velho padre e deitou- o no leito que ele próprio
acabara de deixar. Vestiu-se e verificou o funcionamento da pistola.
Antes de sair, olhou mais uma vez para o padre prostrado e partiu sem
dizer nada.
Caminhou durante muito tempo por campos e vinhedos sem procurar
esconder-se. Cruzou com gente que o saudava, mas não respondeu aos
cumprimentos. As pessoas viravam-se, então, para trás, admiradas e um tanto
inquietas. Hoje em dia, sabe-se lá quem se pode encontrar pelos caminhos!
Numa fazenda, o dominicano pediu um copo de água e agradeceu
polidamente. Constrangidos, o fazendeiro e a mulher o ficaram olhando,
enquanto se afastava. Ela fez um rápido sinal-da-cruz, comentando:
— Parece que viu o diabo!
A delgada silhueta negra desaparecera há muito quando a mulher voltou a
entrar em casa.
Ao cair da noite, Adrien Delmas parou num bosquezinho úmido e
musgoso. Encostou-se ao tronco de uma árvore e o acariciou maquinalmente,
como fazia em criança, em Landes. Mas os pinheiros daquela região deixavam
nas mãos sua resina amarga e um cheiro persistente. Estremeceu a essa

evocação. Logo as expulsou, porém, obrigando seu espírito ao vazio total,
definitivo. Nada de pensamentos!
Então, de rosto erguido para o céu vazio, tirou sua arma do bolso.

Capítulo 10

O DESAPARECIMENTO de Adrien Delmas causou a Aristide uma
preocupação a mais. Ninguém voltara a vê-lo desde a reunião em que o
dominicano se oferecera para executar Maurice Fiaux. Temia- se que tivesse
caído numa cilada da polícia ou da Gestapo. Mas os espiões não conseguiram
obter nenhuma informação. Apesar dos conselhos dos camaradas, nem Aristide
nem Dédé, o Basco, aceitaram alterar as datas dos encontros e das ações
programadas, ambos convencidos de que o padre Delmas não falaria nem
mesmo sob tortura. Lancelot reprovou-lhes essa prova de confiança.
Depois do "acordo" entre Dohse e Grand-Clément, que tão caro custara já
à Resistência da região Sudoeste, a maioria dos chefes de grupo vivia sob a
obsessão da traição. Alguns dentre eles viam traidores em todo lugar.
Renaudin, delegado do Movimento de Libertação Nacional, incumbido de
reagrupar as forças da Resistência, era visto com muita freqüência na
companhia de Grand-Clément ou de seus homens; dizia-se que chefiava uma
rede de três mil homens.
Certo dia, Dédé, o Basco, compareceu a um encontro no parque de
Bordéus, acompanhado por Lancelot. Ao descer do trem, viu-se cara a cara com
Renaudin e com André Noel, já então condenado à morte pela Resistência. Noel
os abordou com um grande sorriso:
— Viva, inspetor! Dizem por aí que, depois de deixar a polícia, o senhor se
dedica a atividades muito importantes.
— Quer uma amostra disso? — respondeu Dédé, o Basco, enfiando a mão
no bolso.
— Ei, não seja idiota! Tudo mudou desde o desembarque. Tenho notícias
importantes para vocês. Venham amanhã, às onze horas, à Praça da Vitória
para discutirmos uma ação conjunta.
No dia seguinte, Dédé, o Basco, foi ao encontro acompanhado de Marc,
resistente de Toulouse, e de quatro homens armados. Ninguém apareceu,
porém. Por um momento pensaram ter visto Renaudin na esquina da Rua Elle-
Gintrac. Como ninguém aparecesse, decidiram abandonar o local.
Foi então que, por debaixo da porta de ferro semifechada de uma loja,
surgiram seis SS que pegaram os quatro resistentes que seguiam na frente,
sem que eles tivessem tempo de sacar suas armas.
Dédé, o Basco, e Marc conseguiram fugir, enquanto os soldados
arrastavam seus companheiros para o interior da loja de modas. Depois, três
deles se lançaram na perseguição dos fugitivos. Sem darem por ele, passaram
por Dédé, o Basco, escondido num portal. Quando os perseguidores viraram a

esquina, ele voltou e entrou na loja, atirando. Os resistentes, então, jogaram-se
sobre os guardas e os desarmaram. Não podendo aprisioná-los Dédé, o Basco,
ordenou-lhes que desaparecessem.
Os poucos transeuntes, que haviam se escondido nos prédios ou fugido ao
primeiro disparo, presenciavam a cena sem reagir.
De volta ao quartel-general de Aristide, Dédé, o Basco, e Marc fizeram seu
relatório. Diante da leitura do documento Aristide convenceu-se em definitivo
da traição de Renaudin. Nova detenção iria reforçar, se fosse necessário, essa
convicção: Pierre Roland, encarregado de sabotar a rede elétrica de comando
das explosões que destruiriam o porto e parte da cidade de Bordéus, conseguira
apenas executar algumas sabotagens pouco importantes. Havia sugerido a
Aristide que pedisse ao coronel Buckmaster para bombardear o setor onde os
cabos haviam sido localizados.
No dia seguinte ao da transmissão da mensagem, uns quinze
bombardeiros da 15a Força Aérea dos EUA neutralizavam todo o circuito de
deflagração. Dois dias após o bombardeio, Pierre Roland foi preso e conduzido
ao número 197 da estrada de Médoc. Torturado, morreu sem nada dizer.
Diante da ameaça que pesava sobre todos, Aristide, transtornado pelo
desgosto e pela raiva, constituiu um grupo de quatro homens determinados.
Seguiram Renaudin durante três dias. Em 29 de 1936, junho, tudo estava
pronto: abateram-no na esquina da Rua de Héron com a Rua Mouneyra.
Um policial, pensando que se tratava de uma agressão de malfeitores,
perseguiu-os disparando e ferindo dois homens: Mouchet e Langlade. Caído no
chão Mouchet atirou no policial, matando-o, enquanto Jules e Fabas
conseguiam fugir antes da chegada dos soldados alemães e da polícia francesa.
Os dois prisioneiros foram torturados pela Gestapo. Mouchet foi executado e
Langlade morreu em conseqüência das sevícias.
Mais tarde, em 11 de agosto, chegou a vez de André Noel, atraído por
Triangle a uma emboscada. Aqui, os resistentes incumbidos da execução não se
contentaram com abatê-lo; antes disso, moeram-no de pancadas, procurando
vingar, sem dúvida, os camaradas mortos ou deportados. Quando, enfim,
decidiram matá-lo, o traidor estava irreconhecível. Desembaraçaram-se do
cadáver atirando-o no Garonne.
Quanto a Grand-Clément, continuava desaparecido.
Em Deymier, Léa se recuperava com dificuldade do choque provocado pela
morte de Camille. Todas as noites acordava banhada em lágrimas, chamando
pela amiga. A senhora Larivierre, a mulher que recolhera Léa e Charles, voltava
a deitá-la, falando-lhe com doçura. A moça adormecia, mas por pouco tempo,
porque, então, a assaltava o mesmo pesadelo que a atormentava desde a mortc
do saqueador de Orléans, agora ampliado pelas imagens sangrentas, em que
Camille, Charles e Sifflette se debatiam.

Soubera pela senhora Larivierre que os resistentes haviam se dispersado, e
que alguns se reagruparam nos lados de Blasimon e de Mauriac. A boa mulher
não pôde ou não quis dizer mais nada. a não ser que Camille e Sifflette tinham
sido provisoriamente sepultadas em La Réole.
Concordou em mandar entregar uma carta a Ruth, em que Léa pedia à
governanta para enviar, pelo portador, algum dinheiro e roupas.
O rapaz que levara o recado voltou confuso, seguido por Ruth, que o
seqüestrara até que lhe dissesse de onde provinha a carta. A senhora Larivierre
encolerizou-se, clamando que os alemães viriam prendê-los e que era
necessário desaparecerem imediatamente.
A preço de ouro, Ruth comprou uma velha bicicleta para Léa e instalou a
criança na sua, dizendo:
— Teria vindo de trem para procurá-los, mas a estrada de ferro foi cortada
outra vez por um bombardeio.
Léa agradeceu calorosamente a anfitriã, que os viu partir com alívio.
Chegaram a Montillac muito tarde na noite seguinte, tal a fraqueza de Léa
e as difíceis estradas estreitas e sinuosas das colinas. Ruth conseguiu que
entrassem em casa sem que os Fayard os vissem.
Durante dois dias, Léa ficou de cama com febre alta. Quanto a Charles, a
quem Ruth proibira de sair, errava pela casa, triste e amuado, perguntando
pela mãe.
Quando Léa pôde falar, relatou em voz inexpressiva, sem derramar uma
lágrima, o fim de Camille e o combate a que assistira.
O que aconteceu a seu tio e aos irmãos Lefèvre? — quis saber a
governanta.
— Não sei. Tio Adrien não voltou depois da visita de François Tavernier.
Pensei que aqui tivessem notícias dele.
— Não temos. Sua tia Bernadette recebeu um cartão-postal de Lucien e foi
tudo. Seu tio Luc está muito preocupado por causa de Pierrot que estaria em
Paris. Depois que você partiu, chegou carta de Laure. Eu omei a liberdade de
abri-la.
— Que diz?
— Nada de especial... que o abastecimento dos parisienses é praticamente
nulo, que o metrô deixou de funcionar por falta de energia elétrica, que os
subúrbios são bombardeados quase todos os dias e que os alemães estão
ficando cada vez mais nervosos. Suas tias vão bem.
— Só isso?
— Só, a não ser que espera a sua ida a Paris.
— Não fala de Françoise?

— Não. Mas recebi também carta dela. Há três meses que não tem notícias
de Otto, em combate na frente russa.
— Otto não voltará.
— Por que diz isso?
— Porque todos nós vamos ser mortos, como Camille — vaticinou Léa,
virando-se para a parede e cobrindo a cabeça com o lençol.
Ruth olhava com sofrimento o vulto querido. Que fazer? Sentia- se velha e
imprestável. Transtornada pela morte de Camille, não sabia que decisão tomar
quanto à segurança de Léa. A jovem não podia ficar ali. A qualquer momento,
Fayard iria perceber sua presença e denunciá-la. Na região não sabia de
nenhum local suficientemente seguro onde escondê-la, pois a maior parte das
casas amigas estavam sob vigilância.
Vendo Léa ainda imóvel sob as cobertas, Ruth decidiu-se a deixar o quarto
das crianças, onde a moça pedira que a levassem.
Na noite de 15 de julho, com todas as persianas e janelas fechadas, apesar
do calor sufocante, Ruth e Léa, instaladas no escritório de Pierre Delmas,
ouviam a transmissão da rádio londrina. Jean Oberle referia-se ao assassinato
de Georges Mendel pela polícia.
— Com Phillippe Henriot, é o segundo deputado de Gironde assassinado
em poucos dias — comentou a governanta, que acabava de costurar uma
camisa para Charles, feita de um vestido velho.
— Tia Lisa é que deve estar triste com a morte de Henríot. Gostava tanto
de sua voz!
Imobilizou-as um arranhado no postigo da janela.
Ouviu?
— Ouvi. Desligue o rádio.
Léa obedeceu, de ouvido atento, o coração batendo com mais força. Ouviu-
se novamente o arranhar.
— Esconda-se. Vou abrir a janela.
— Quem é?
— Jean Lefèvre — disse uma voz abafada. — Estamos feridos.
— Abra logo.
O sol avermelhado mal desaparecera atrás das colinas de Verdelais,
tingindo ainda os campos, por mais alguns segundos, daquele rosa-dourado
que os tornava tão belos antes das noites de verão. Nesse momento, a luz
revestia com o seu esplendor os dois jovens cobertos de poeira e de sangue,
nimbando-os de uma auréola cintilante.

Léa, esquecida de seu cansaço, saltou pela janela que os rapazes, muito
enfraquecidos, não conseguiam transpor sozinhos.
Com a ajuda de Ruth, empurrou-os para dentro. Raul deslizou para o
assoalho, inconsciente.
— Perdeu muito sangue. É preciso chamar um médico — disse Jean, antes
de se deixar cair, por sua vez.
A enérgica Ruth começou a soluçar.
— Não é hora de chorar. Vá procurar um médico.
Com grande gestos, a governanta enxugou o rosto.
— E o médico vai querer vir? Eles têm medo da Gestapo.
— Você não precisa dizer que estão feridos. Diga... diga. ora, não sei... que
alguém cortou uma perna com uma foice, com um machado.
— Mas... e quando ele os ver?
— Trata-se de um médico. E o certo é que morrerão se não fizermos nada.
Tem razão. Vou telefonar.
— O telefone funciona?
— Funciona.
— Então, o que está esperando? — perguntou a moça — Vou buscar
toalhas.
Na penumbra da sala, Léa esbarrou em Bernadette Bouchardeau.
— O que está acontecendo? Ouvi barulho.
— Já que está aqui, vai nos ajudar. Jean e Raul Lefèvre estão feridos.
— Oh, meu Deus! Pobres pequenos!
— Vá buscar toalhas e o estojo de primeiros-socorros. Cuidado para não
acordar Charles.
No escritório Jean havia recuperado os sentidos.
—... Sim, é isso, doutor, domínio de Montillac, no cimo da colina, à
esquerda... Não demore, por favor — pediu Ruth. Depois de desligar, virando-se
para Jean, esclareceu:
— O médico já vem. É novo em Langon.
— Obrigado, Ruth. Como está meu irmão?
As duas mulheres não responderam. A governanta colocou uma almofada
sob a nuca do ferido.

Bernadette reapareceu trazendo as toalhas e os medicamentos. Quase
desmaiou ao ver os rapazes ensaguentados e começou a chorar, como Ruth
fizera.
— Ah, não! — gritou Léa, arrancando os panos das mãos da tia. — Vá
buscar água fervida.
Quando o Dr. Jouvenel chegou, encontrou os dois feridos já de rosto e
mãos lavadas. Era muito novo, ainda com aspecto de estudante. Empalideceu
ao vê-los.
— Por que me disse que se tratava de um acidente?
— Não tínhamos certeza de que viria se disséssemos a verdade — interveio
Léa.
— Sou médico, senhorita, e é minha obrigação cuidar de todos...
resistentes ou alemães.
— Aqui, trata-se de resistentes, doutor — comunicou Léa em voz branda.
Sem esperar mais, o médico começou a examinar Raul, ainda desmaiado.
— Tragam-me uma tesoura.
Cortou a calça endurecida pelo sangue. As três mulheres não conseguiram
reter um grito. O baixo ventre era todo ele uma chaga.
— O infeliz... Aqui, não posso fazer nada. Tem de ser transportado para o
hospital. Perdeu sangue demais.
— Não é possível, doutor — disse Jean, que se arrastava para junto do
irmão. — Se a Gestapo o apanhar, será torturado.
— Não permitirei.
— Se se opuser, é o senhor que eles irão prender.
O dr. Jouvenel encolheu os ombros.
— Jean... — murmurou Raul.
— Estou aqui, não tenha medo. Estamos em segurança. Vamos levá-lo ao
hospital.
— Eu ouvi o que disseram. Mas não vale a pena. Estarei morto antes de.
— Cale-se! Está dizendo bobagens. Vai ficar bom.
— Léa... é você?
— Sim, Raul.
— Estou feliz.
— Não fale — ordenou o médico, enquanto improvisava uma atadura.
— Isso já não importa, doutor... o senhor sabe muito bem. Léa... você está
aí?

— Estou.
— Me dê a mão. Eu estou bem, doutor. Cuide de meu irmão.
— Já terminei. Vou chamar a ambulância.
— Espere um pouco, doutor. Cuide de meu irmão — insistiu o moribundo.
— Faça o que lhe pede — interveio Ruth, dirigindo-se ao doutor Jouvenel.
Jean tinha uma bala cravada no ombro, outra na coxa e a mão bastante
ferida.
— O senhor também... tenho de levá-lo para o hospital. Não disponho de
instrumentos para extrair as balas.
— Pior assim — disse Jean. — Nesse caso, faça-me apenas o curativo.
— Arrisca-se a ter gangrena.
Léa chamou docemente:
— Raul... Raul...
— Não chore, Léa... Estou feliz... morro ao seu lado.
— Fique quieto!
— Você está aí, Jean?
— Estou.
— Então, está bem... Léa, eu a amo... Jean também a ama. É melhor
assim... Vocês se casarão depois da guerra.
— Depois da guerra, será você quem se casará com ela, não eu. Léa
sempre o preferiu. Não é assim, Léa?
— É verdade?
— É — murmurou a jovem, fascinada pelo rosto extenuado, os olhos
brilhantes, o nariz afilado e essa palidez cinzenta da morte que se propagava
naquele homem jovem que fora seu amante pelo espaço de uma noite de
loucura.
— Léa...
Oh! O peso repentino dessa cabeça! Como um relâmpago ela reviu a morte
de Sidonie. Como Raul era belo, apesar da barba de vários dias que encobria os
traços de seu rosto! Ele sorria. Devagar, Léa pousou os lábios na boca ainda
tépida.
Quando se levantou, sentiu a cabeça girar. Apoiou-se no braço do médico.
— Deite-se — recomendou ele.
Deitada, olhava para Jean, que chorava abraçado ao irmão morto.
A tia e Ruth também choravam. A ela, o desgosto sufocava sem lágrimas.

O médico, auxiliado por Ruth e por Léa, cavou um buraco no solo fofo
junto à parede da adega, por detrás dos galhos de alfaneiros e de lilases. O
cadáver, envolto num lençol, foi estendido na cova e coberto de terra. Soavam
as três da madrugada no campanário da basílica de Verdelais, num sono
comatoso.
Jean não reagiu quando o médico lhe aplicou a injeção antitetânica.
Também lhe deu um calmante que o mergulhou rapidamente num sono
comatoso Léa seguiu o Dr. Jouvenel até o lugar onde ele deixara a bicicleta.
Não valia a pena continuar a esconder-se, pois os Fayard, certamente, já
haviam notado sua presença.
— Deve sair daqui o mais depressa possível — aconselhou o Dr. Jouvenel.
— E ir para onde?
— Não tem família em qualquer outro lugar, além daqui?
— Tenho. Em Paris.
— A viagem para Paris não é muito cômoda agora. Os trens são poucos. No
seu lugar, porém, eu tentaria mesmo assim.
— Mas não posso deixá-los sozinhos!
— Vou pensar nisso. Se puder ajudá-la, eu o farei. Posso levá-la de carro
até Bordéus.
— Obrigada, doutor. Depois verei. São muito graves os ferimentos de
Jean?
— Não muito. Mas não pode continuar por muito tempo com as balas no
corpo. Até logo, senhorita.
Até logo, doutor.
Jean Lefèvre dormiu até a hora do almoço, no escritório de Pierre Delmas.
Bebeu avidamente a tigela de café fraco trazida por Ruth e comeu uma enorme
fatia de bolo de cerejas.
— Ah, já acordou — disse Léa entrando. — Você não está mal, está?
— Não. Vou embora.
— Para onde?
— Não sei, Vou procurar os outros, se é que não foram todos mortos ou
presos.
— O que aconteceu?
— Será que você tem um cigarro?
Léa tirou do bolso de seu vestido de florezinhas uma velha bolsa de tabaco
e uma carteira de papéis de cigarro Job e as estendeu ao rapaz.
— É tudo o que tenho.

Os dedos de Jean tremiam de tal maneira que não foi capaz de manter o
tabaco sobre a fina folha de papel.
— Dê aqui.
Com mãos experientes, enrolou o cigarro, umedeceu a borda gomada e o
acendeu. Jean fumou em silêncio por alguns momentos.
— Tudo começou na segunda-feira passada, dia 10 de julho. Eu e Raul
estávamos no grupo de Grand-Pierre. Captamos uma mensagem da B.B.C.
Parece que ainda ouço a voz do locutor: "O Bateforte dá medo"... Repetimos: "O
Bateforte dá medo".
Maurice Blanchet virou-se então para Maxime Lafourcade, dizendo:
— Pode reunir o grupo. É para esta noite.
Perguntei a Maxime qual o significado daquelas palavras e ele respondeu:
— Vai haver um lançamento de pára-quedas perto da fazenda de Bry, em
Saint-Léger-de-Vignague.
Era uma boa notícia, porque desde a briga em Saint-Martin-duPuy,
estávamos com pouca munição. Às dez da noite, éramos uns vinte homens em
volta do ponto de aterrissagem. Cinco de nós vigiavam a estrada próxima dali,
dois ficaram na caminhonete, escondida no bosque e os outros esperavam com
impaciência a chegada do avião. Enfim, depois de meia hora, ouvimos o ruído
do motor da fortaleza voadora e acendemos os archotes. A um sinal eu e três
camaradas corremos para o primeiro caixote, cheio de Sten e de ataduras; no
segundo havia tabaco, material de sabotagem e granadas. lamos abrir o terceiro
quando ouvimos um apito.
— São eles — gritou um sentinela.
— Apressem-se — disse Maxime.
Ainda conseguimos carregar na caminhonete o conteúdo de uma quarta
caixa. Maxime deu ordem de retirada no instante em que os alemães
começaram a disparar sobre nós. Conseguimos chegar à base de Duras e só no
dia seguinte soubemos o que havia acontecido a quatro de nossos camaradas.
Jean sugava nervosamente o cigarro apagado. Léa acendeu outro. Com voz
inexpressiva, ele continuou:
— Maxime ficara no local do lançamento junto com Roger Manieu, Jean
Clave e Elie Juzanx para proteger nos a retirada.
Fixaram uma metralhadora entre dois caixotes e varreram o terreno com
as munições recém-chegadas. Os alemães responderam, mas não se
mostraram. Quatro policiais aproximaram-se até uns quarenta metros do grupo
dos nossos, apesar das rajadas da metralhadora.
Os quatro resistentes, já feridos, tentaram então escapar, mas era tarde
demais. Depois, as munições se esgotaram. Os alemães os espancaram com as

coronhas das armas e, rindo, ficaram assistindo enquanto os malditos policiais
os torturavam. Arrancaram-lhes as unhas, deixaram seus músculos a
descoberto e os escalpelaram. Para terminar, os forçaram a reunir as últimas
energias para cavarem as próprias sepulturas.
Léa, de olhos secos, fitava Jean, que chorava.
— E depois, o que aconteceu?
— Depois, incendiaram as casas da fazenda de Bry e partiram, cantando,
em direção a Mauriac. Junto com os elementos do grupo de Duras, nós nos
postamos a uns cinqüenta metros na estrada de Blasimin, metralhando e
lançando granadas sobre o acantonamento. Os alemães e os policiais se
atiraram ao chão e começaram a responder. Então, Raul foi ferido no ombro e
eu na perna. Dois camaradas, Jean Koliosky e Guy Lazonons, morreram perto
de nós. Depois nos retiramos, ceifando mais alguns inimigos com a
metralhadora. Foi na chegada ao cemitério de Mauriac que nos ferimos
novamente. O padre Greciet nos recolheu e nos prestou os primeiros-socorros.
Diante da gravidade do estado de Raul, ele mandou avisar o Dr. Lacarer, de La
Réole, que pertencia à nossa rede. Mas, devido às barreiras alemãs nas
estradas, o médico não pôde nos levar para sua casa e nos deixou em Piau,
onde viemos a pé até aqui. O resto você já sabe.
Os dois amigos ficaram um longo tempo em silêncio de mãos dadas. Ruth
interrompeu seus pensamentos sombrios, entrando bruscamente na sala.
— Estou preocupada. Não há ninguém na casa dos Fayard e tudo está
fechado. Vocês têm de sair daqui.
— Mas para onde você quer que a gente vá?
— Para Paris, para a casa de suas tias.
— Não posso partir agora. Tenho de ir a Verdelaís avisar minha mãe.
— Eu me encarrego disso.
— Obrigado, Ruth, mas sou eu quem deve anunciar a mamãe a morte de
Raul.
— Compreendo, meu filho, compreendo. E depois... o que vai fazer?
— Continuar lutando. Perdoe-me, Léa, por deixá-la, mas não posso fazer
outra coisa.
— Leve a minha bicicleta, Jean. Irá mais rápido.
— Obrigado. Se puder, eu a devolverei. Adeus, Léa. Você também deve ir
embora.
Sem responder, Léa despediu-se dele com um beijo. Bernadette
Bouchardeau e Ruth o beijaram também, recomendando-lhe que se cuidasse.

Capítulo 11

NUMA SACOLA de marinheiro, fácil de transportar no ombro, Léa acabava
de colocar algumas roupas para Charles e para si, assim como um cofrinho
com as últimas jóias que haviam pertencido a sua mãe. Ruth lhe trouxe
sanduíches embrulhados num pano de cozinha branco e uma garrafa térmica
com água.
— Entreguei a Charles um saco com cerejas e o resto do bolo.
— Venha conosco, por favor, Ruth.
— Não, minha querida. Alguém precisa cuidar da casa e de sua tia
Bernadette.
— Tenho medo de deixá-las aqui sozinhas.
— O que você quer que aconteça a duas velhas como nós? Faz mal em se
preocupar. Tudo correrá bem.
— Ainda não há notícias de Fayard?
— Ainda não.
— A que horas o Dr. Jouvenel ficou de vir?
— Às três. Em princípio, o trem partirá às quatro se a linha já estiver
desimpedida.
— Acha que em Bordéus conseguiremos lugar no trem para Paris?
O Dr. Jouvenel disse que falaria com um amigo, funcionário da estação de
Saint-Jean.
— Léa, quando vamos embora? — perguntou Charles, que entrou correndo
no quarto.
— Daqui a pouco. Estamos esperando o médico.
— Ela vai nos levar para ver mamãe? — Não sei... talvez. Vá para o pátio.
Vou te encontrar.
Fechou a sacola e olhou em volta. Nunca mais verei esta sala, pensou.
De coração apertado, fechou a porta do quarto das crianças, onde tantas
vezes se consolara dos desgostos e acalmara suas raivas.
Lá fora, o céu estava sem nuvens, O sol do meio-dia dardejava sobre a
paisagem tão quente como na véspera. As vinhas tinham alguma vegetação já
queimada. Por que Fayard deixara Montillac num momento desses, com tanta
coisa para fazer?

— Vou levar a bagagem para a cabana perto da estrada, Ruth, assim o
médico não precisará entrar.
— Como quiser. Pegue algum dinheiro para a viagem. É tudo o que tenho.
— Obrigada, Ruth. Mas como vai fazer?
— Nós não precisamos de dinheiro.. Temos as verduras da horta e as
galinhas agora estão botando. Além disso, sua tia Bernadette receberá a pensão
no próximo mês. Não se demore que o almoço está quase pronto. E ponha um
chapéu, o sol está muito forte.
Para não contrariar a velha governanta, Léa foi ao vestíbulo buscar o
chapéu de palha. Ali, o frescor e a penumbra eram agradáveis depois do calor e
da luminosidade do pátio. Ela gostava muito daquele canto da casa, ponto de
encontro dos moradores, sempre um pouco desarrumado, pois todos deixavam
ali uma peça de roupa, um brinquedo, um livro, jornais ou uma costura,
esquecidos em cima da mesa ou das cadeiras.
Quando a guerra terminar, mandarei pintá-lo, pensou, observando as
paredes brancas, cuja nota alegre estava nas gravuras antigas representando
diversos momentos de Bordéus e os pratos de porcelana branca e amarela, em
estilo Diretório, decorado com personagens mitológicos.
O aparelho alto, embaçado e cheio de manchas, refletiu sua imagem.
Como emagrecera! Isso não agradaria a François, que gostava de mulheres de
formas arredondadas. Mas o que mais a surpreendeu foi o seu olhar, ao mesmo
tempo duro e apagado. Ela reviu os olhos mortos de Raul... Camille... Sidonie...
o Dr. Blanchard... Marie, a criada... o pai... a mãe... o casal Debray... Raphael
Mahl... todos esses mortos que ela amava. Quem mais teria morrido? Albert e
Mirelle? O tio Adrien? Laurent? Lucien? Pierrot, o primo querido?
— Onde vai com o chapéu, Léa?
A voz de Charles a arrancou de seus fantasmas.
— Vou levar a mala e dar uma volta. Quer vir comigo?
— Quero! Minha Léa! — exclamou o menino, atirando-se para ela.
Colocaram a sacola e a pequena mala no casebre e, de mãos dadas,
desceram ao longo do terreno abaixo do terraço. Apesar da falta de mão-de-
obra, o vinhedo estava bem tratado.
— Olha, a minha sandália se soltou!
Léa abaixou-se e apertou a fivela.
— Não se mexa!.. — ela cochichou de repente, obrigando a criança a se
atirar ao chão.
Ao longo do caminho bordejado de ciprestes, uns sete ou oito homens de
uniforme azul-marinho, andavam recurvados, segurando a metralhadora diante
do corpo. Interromperam a caminhada ao chegarem na parte de baixo do

terraço. Acima deles, um homem se debruçava sobre a balaustrada. Léa reteve
um grito. Atrás dele, soldados alemães corriam em silêncio.
De onde estava, Léa distinguia-lhes apenas os capacetes verde-
acinzentados. O oficial da Wehrmacht fez sinal aos policiais, que subiram para
o terraço.
Charles procurou libertar-se dos braços que o mantinham colado ao solo.
— Deixe-me. Está me machucando.
— Fique quieto, por favor! Os alemães estão em Montillac.
O pequeno corpo começou a tremer.
— Tenho medo... quero ver mamãe.
— Fique quieto, senão os alemães vão prender nós dois.
Charles se calou, chorando baixinho, sem mesmo notar que havia
molhado a calça.
Tudo parecia calmo sob o sol que esmagava a planície; tão calmo que Léa
se perguntava se não sonhara ter visto alemães e policiais. Aguçou o ouvido,
mas não ouvia nenhum barulho além do canto das cigarras. Talvez Ruth e tia
Bernadette os tivessem visto chegar e conseguido fugir.
Mas um grito sobre-humano logo varreu essa esperança. Sem refletir, Léa
ergueu-se e correu para o terraço, arrastando Charles pela mão e maldizendo o
vestido estampado, visível de longe.
Esconderam-se atrás de um cipreste, Alemães e policiais iam e vinham no
pátio, arrombando as portas das adegas a pontapés e a coronhadas. Rajadas de
metralhadoras despedaçaram todas as vidraças. Os móveis eram atirados da
janela do primeiro andar.
Por que eles fazem isso?, pensou Léa. Estava longe demais para ver e ouvir
com nitidez o que se passava. Os pilares quadrados do pátio a ocultavam
parcialmente. Uma caminhonete entrou, raspando de leve a pedra de um deles.
Começara a pilhagem. Risos, gritos e disparos chegavam até eles, tão
irreais nesse lugar familiar inundado de sol. Na horta, perto da casa dos
Fayard, dois policiais perseguiam as aves.
De repente, o horror: uma silhueta em chamas apareceu urrando, na parte
superior do carramanchão, rodopiou e caiu no cascalho da alameda.
Léa apertou contra si a criança, que não se mexia.
Com os olhos esbugalhados viu o corpo se retorcer, o corpo de uma das
mulheres das quais se separara momentos antes.
Seria Ruth ou a tia Bernadette? As chamas eram tão grandes que não se
distinguia o rosto. Aliás, o rosto já não existia... derretera-se. Do orifício negro

onde antes se abrira a boca não saía agora nenhum som. Restava apenas uma
carcaça enegrecida, ainda queimando.
Um soldado alemão empurrou-a com o cano de aço do aparelho ligado a
duas espécies de garrafões presos nas costas. Sem dúvida não achou o cadáver
suficientemente calcinado, pois um jato de chamas irrompeu do tubo de aço,
acompanhado de um assobio sinistro. A mão retorcida, os dedos afastados e
esticados para o céu, como que pedindo proteção divina, destacou-se, então,
sob a força do fogo. O soldado riu. Ele se voltou e entrou no pátio. Engradados
de vinho estavam sendo empilhados na caminhonete.
Paralisada, Léa não conseguia desviar os olhos dos despojos fumegantes,
cujo odor terrível chegava até ela. No meio desse pesadelo, soaram duas horas
no campanário de Saint-Maixant. Um trem passou sobre o viaduto. A linha de
ferro devia ter sido reparada em Saint-Pierre-d"Aurillac.
— Léa, você está me machucando — gemeu a criança. — Quero ir embora,
estou com medo.
Charles... ela quase se esquecera dele, de tanto que ele fazia parte dela
mesma. Com esforço, Léa se voltou. Ele começou a chorar olhando para ela.
Léa tapou-lhe a boca com a mão e o sacudiu.
— Fique quieto! Podem nos apanhar.
Havia tanta urgência em sua voz que ele parou de choramingar. As
lágrimas continuaram, porém, a correr abundantes em suas faces, molhando a
camiseta.
Ali em cima, perto da casa, o vinho escorria pelo queixo da canalha
uniformizada. Um policial saiu do pátio cambaleando com uma garrafa na mão.
Desabotoou a braguilha e, engasgando-se de tanto rir, mijou em cima da
carcaça humana fumegante. Depois, afastou-se fazendo o gesto de beber à
saúde da mulher massacrada. Léa vomitou. Charles puxou-a pelo vestido.
— Venha... vamos fugir daqui!
Charles tinha razão, era preciso fugir. Léa endireitou-se.
Não! Chamas irrompiam agora pela janela do quarto de seus pais, outras
pela janela do quarto de Ruth. Imóvel, visível de qualquer lugar, Léa não
conseguia desviar os olhos da casa que queimava.
Foi Charles quem a arrastou, e ela o seguiu de cabeça voltada para essa
moradia que sempre fora o seu ancoradouro, como fora de seu pai. Léa
queimava com ela.
— Não olhe para trás. Venha.
O menino a puxava com toda sua força. Como conseguiram chegar à
estrada sem serem vistos? Charles pegou a sacola e a mala da cabana e as
estendeu para Léa, que as pegou maquinalmente. Nesse instante, as chamas já

eram visíveis de longe e a sirene de SaintMacaire uivava sobre os campos
ensolarados.
De repente, Léa desviou o olhar daquele espetáculo. Alguma coisa dentro
dela começava a morrer ao mesmo tempo que a casa. Para que permanecer ali,
onde não havia mais nada?
Com um gesto decidido, Léa acomodou a sacola no ombro, jogou fora o
chapéu de palha de seus trabalhos campestres, cerrou com firmeza a mão de
Charles e afastou-se sem olhar para trás Os Fayard só regressaram a Montillac
na noite seguinte.
Graças à diligência dos bombeiros, a casa deles e todos os anexos da
quinta — celeiros, adegas e arrecadações — foram poupados das chamas. Mas
no castelo restavam apenas as paredes enegrecidas.
Quando os Fayard chegaram, os bombeiros ainda revolviam os escombros.
Interromperam sua sinistra tarefa ao verem o casal imóvel, contemplando
boquiaberto os estragos.
Um homem de certa idade, o rosto e os braços negros de fuligem, avançou
para eles. Olhou-os demoradamente e depois, com calma, cuspiu-lhes no rosto.
— Está louco, Baudoin! — exclamou Fayard — Que é que deu em você?
— Como se você não soubesse, canalha! — respondeu o bombeiro,
indicando as ruínas.
O outro o olhou, parecendo não compreender. Baudoin saltou sobre ele,
agarrando-o pela gola do casaco.
— Não se finja de inocente, filho da puta! Por acaso não foi você quem
chamou os "frisados"?.. Também não é você quem se pavoneia com eles e lhes
fornece o vinho dos seus patrões a bom preço? Diga! Traste! Não é você, não?
— Mas eu não queria que incendiassem o castelo!
— Quanto a isso, tenho minhas dúvidas. Há muito tempo que está de olho
na propriedade. Mas vai lhe custar um bom dinheiro reconstituir tudo isto. Por
Deus!
Um outro bombeiro avançou para a sra. Fayard.
— Então, Mélanie, não pergunta o que aconteceu às senhoras do castelo?
Ora, não é preciso tremer tanto! Nós não temos lança- chamas. Só temos
punhos para quebrar as suas caras.
— Calma, Florent... não vamos sujar as mãos.
Mélanie Fayard revirava os olhos assustados sob o chapéu de palha preto.
— Não entendo o que querem dizer. Estivemos na casa de minha irmã, em
Bazas.

— Isso comigo não pega, velha mentirosa! Vocês saíram daqui porque
denunciaram a senhorita Léa e a sra. d'Argilat à Gestapo.
— Não é verdade!
— ... e porque não queriam ser testemunhas do que iria acontecer. E!
Talvez lhes fizesse mal ver queimar como uma torrada a irmã do Sr. Delmas e a
senhorita Ruth jorrando sangue por todo lado. Quanto à senhorita Léa e ao
pequeno não os encontramos. Talvez estejam debaixo dos escombros. O que
seria preferível, a serem levados pelos alemães ou por quem os ajuda.
— Não sabíamos que a senhorita Léa e Charles tivessem voltado!
— Seriam os únicos a não saber. Nós, em Saint-Macaire, tivemos notícias
de que estavam de volta sem a sra. d'Argilat, morta em Lorette... Quanto mais
vocês, que vivem aqui ao lado. Se existe justiça, devíamos queimar vocês
também.
— Não se enerve, amigo. O fim da guerra está muito perto e pessoas deste
tipo irão pagar, pode crer. Serão julgadas e condenadas por tribunais
populares.
— Gente desta laia não merece julgamento.
— Juro que não fomos nós. É verdade que cobiço a fazenda há anos, que
vendi vinho aos alemães, mas não fiz mais do que os outros fazem. Como teria
podido tratar dos vinhedos, se não vendesse o vinho? Com que dinheiro pagaria
aos trabalhadores e compraria material? Podem me responder?
— Está zombando de nós? Pensa que não se sabe o que você tem posto
nos bolsos?
— Isso não passa de intriga, de inveja.
— E Mathias... o seu filho? Não vai me dizer, por acaso, que não andava de
olho na senhorita e na propriedade? E que não trafica com os boches, em
Bordéus?
— Não se trata de meu filho.
— Também lhe faremos a cama, pode crer. Mas enquanto isso não
acontece... Olhe... Tome!
— Parem com isso!
Dois soldados acabavam de descer de suas bicicletas. Um deles dirigiu-se
ao encarregado das adegas:
— Terá de vir depor na delegacia e reconhecer o corpo, Fayard.
— Mas que corpo?
— Pensamos que se trata da sra. Bouchardeau.
— Meu Deus! exclamou Mélanie Fayard, escondendo o rosto no lenço.
— Venham os dois amanhã cedo.

O soldado virou-se, então, para Baudoin:
— Encontraram mais alguma vítima?
— Não. Viramos tudo pelo avesso e eu ficaria surpreso se houvesse mais
alguém aqui.
— Melhor assim. No entanto, nos disseram que havia uma moça e uma
criança na casa, O que aconteceu a eles?
Baudoin fez um gesto de impotência.
— Bem, basta!
— Avisaram a família de Bordéus?
— O prefeito se encarregou disso. O advogado Delmas deve chegar
amanhã.
— Talvez ele tenha notícias da sobrinha. E o padre, também o avisaram?
— Está brincando! Sabe perfeitamente que ele é procurado pela polícia
francesa e pela Gestapo. Se souber onde ele está, denuncie-o. Oferecem boa
recompensa.
— Por quem me toma? — exclamou Baudoin. — Não sou pessoa para
comer desse pão.
— Nossos cidadãos não são tão orgulhosos assim. Não se passa um dia
sem que recebamos cartas anônimas denunciando judeus, resistentes, os que
ouvem a emissora de Londres ou pessoas que recolhem os chamados pilotos
ingleses. Logo mais, esses mesmos irão acusar as moças de que, aos domingos,
vão dançar com os soldados alemães no dancing das grutas de Saint-Macaire.
— E terão razão para fazê-lo — interveio um rapazinho briguento e
completamente estrábico.
— É a inveja que te faz falar, Belo Olho.
— Não me chame de Belo Olho! São todas umas putas, as moças que
dançam com os alemães! E ainda se só dançassem!
Mas não! Fornicam com eles enquanto os noivos estão presos, foram para
o S.T.O. ou combatem na Resistência. Mas deixe que a guerra acabe! Hão de
levar no focinho e no cu, essas porcas, para aprenderem e não se meterem com
boches!
— Não gostaria de estar na pele delas quando você e os parecidos com você
lhes botarem a mão. Bem, rapazes... voltem para casa. Não há mais nada a
fazer aqui.
Na manhã de 22 de julho, o corpo de Bernadette Bouchardeau foi
sepultado no jazigo da família Delmas, em presença do advogado Delmas, do
filho e de inúmeras pessoas, a maior parte das quais comparecera ao ato
apenas para manifestar a sua repulsa e a sua revolta.

Uma caminhonete de soldados estava parada sob as tílias da praça. Junto
ao túmulo de Toulouse-Lautrec havia dois policiais em trajes civis, vindos de
Bordéus. Observavam atentamente todas as pessoas que apresentavam
condolências ao advogado.
Os Fayard mantinham-se à parte, sem se atreverem a se aproximar,
conscientes da animosidade da maioria da assistência. Foi o próprio Luc
Delmas quem se dirigiu até eles para lhes apertar a mão com uma cordialidade
que pareceu excessiva a todos. A cerimônia decorreu sem incidentes.
No hospital de Langon, Ruth continuava entre a vida e a morte.

Capítulo 12

AS RIVALIDADES QUE, desde o início do ano de 1944, dividiam as
principais tendências da Resistência do sudoeste, faziam o jogo dos chefes
militares alemães da região. De fato, que importância tinha para eles que o
general Koening fosse o comandante das forças francesas do interior, que o
general Delmas tivesse sucedido a BourgèsMaunoury, que Triangle fosse o
general Galliard, delegado militar para a região B, que Aristide exercesse o
comando em Gironde em nome do general Koening, que Gaston Cusin fosse
comissário da República, que os gaulistas desconfiassem dos comunistas e que
o general Moraglia, enviado pela comissão de Ação Militar, a mais importante
comissão do Conselho Nacional da Resistência, não chegasse a consolidar sua
autoridade?
Cartas anônimas, denúncias espontâneas, revelações sob tortura ou
ameaça e colaborações diversas permitiam aos alemães exercer represálias
sangrentas sobre a população, aniquilar grupos de resistentes e proceder a
detenção de importantes elementos da Resistência.
Foi devido a uma traição que um grupo de trinta soldados alemães, sob o
comando do tenente Kunesch, apoiados por outro tanto de policiais
comandados por seu chefe regional, o tenente-coronel Franc, atacou a fazenda
de Richemont, perto de Saucats, onde dezoito rapazes, na maioria estudantes,
tinham acampado enquanto aguardavam um lançamento de pára-quedas com
armas e munições.
Na manhã de 24 de julho, estavam na fazenda doze desses jovens. Mal
armados, lutaram durante três horas.
Todos morreram: Lucien Anère, Jean Bruneau, Guy Célèrier, Daniel
Dieltin, Jacques Goltz, Christian Huault, Pogre Hurteau, François Mosse,
Michel Picou, Jaques Rouin, Roger Sabate e André Tailiefer. O mais velho tinha
22 anos, o mais novo 17.
Essa mesma traição permitiu aos alemães localizar, em 23 de junho, a
base de Medoc, comandada por Jean Dufuor. Alemães e policiais, secundados
por um grupo de indianos especialistas em infiltração nas matas, passaram ao
ataque ao amanhecer, no bosque de Vígnes-Oudines.
À frente de alguns homens, Jean Dufuor tentou retardar o avanço dos
perseguidores. Foi morto depois de esgotadas as munições. A caça aos
resistentes durou até o dia seguinte. Foram destruídos os acampamentos de
Vignes-Oudines, de Baleys e de Haut-Garnaut. A ação resultou numa centena
de mortos por parte dos alemães e dezessete resistentes. Um dos feridos foi
exposto na praça de Hourtin e morreu sem assistência médica.

Tal como acontecera no ataque a Soucats, os prisioneiros foram fuzilados e
os feridos liquidados. Policiais e soldados encarniçaram-se contra os habitantes
de Liard e contra o pessoal do castelo de Nodris, matando e prendendo diversas
pessoas. Os presos foram juntar-se no forte de Hâ, aos seis prisioneiros do
ataque frustrado à fábrica de pólvora de Saint-Helene, em 23 de junho.
Torturados, foram depois fuzilados ou deportados.
Ainda uma outra traição permitiu a detenção de Lucien Nouaux, que
adotara o nome de Marc, e de seu camarada Jean Berraud. Ainda uma vez,
Dohse, com suas ameaças e promessas, levou um jovem resistente, ele mesmo
denunciado por dois camaradas detidos pela polícia alemã em Pauillac, a
colaborar numa emboscada.
O rapaz marcou encontro com os companheiros perto do estádio
municipal, onde compareceu acompanhado de Roger, um agente da Gestapo.
Sem desconfiar, Marc viu os dois se encaminharem para ele. Nesse instante, os
alemães saíram dos esconderijos e os prenderam. Desarmados, foram
conduzidos à sede da Gestapo, para serem interrogados. Espancaram-nos com
crueldade antes de os levarem à presença de Dohse. Quando entraram em seu
gabinete, Marc empunhou uma pequena pistola escapada à revista, disparou e
feriu levemente dois soldados alemães, antes de ser alvejado por Roger. Com
ferimentos muito graves para ser submetido a interrogatório, atiraram-no a
uma cela do forte do Hâ, onde os carcereiros acabaram com ele na manhã
seguinte, dia 28 de julho.
Esse 28 de julho de 1944 foi particularmente sinistro para a região de
Bordéus.
O ar estava pesado e o céu encoberto, com alguns aguaceiros
intermitentes. Ao amanhecer, no campo de Souges, quarenta e oito homens
desciam de caminhões de Wehrmacht para serem fuzilados. Entre eles, uma
vítima de gabarito: Honoré (Robert Ducasse), que, sob o nome de Vergaville,
fora chefe do exército secreto e um dos principais responsáveis dos Movimentos
Unidos da Resistência da região de Lyon.
Preso em outubro de 1943, conseguira fugir em janeiro de 1944. Enviado a
Bordéus por Kriegel-Valrimont, fora nomeado chefe regional das forças
francesas do interior. Escondido em casa de amigos protestantes de Bordéus,
fez contato com a Comissão Departamental de Libertação, onde conheceu
Gabriel Delaunay. Em 22 de junho, na companhia de seus adjuntos, dois
homens e duas mulheres, Honoré dirigia-se a Sauveterre-en-Guyennr, de
bicicleta. Ia organizar uma ação de sabotagem e buscar munições escondidas
nas pedreiras de Daignac.
Ao atravessarem Creon, passaram em frente da delegacia. Sem dúvida, o
comportamento e o aspecto dos viajantes pareceu suspeito aos soldados que os
viram passar, pois avisaram os colegas de Targon, que saíram à sua procura e
os prenderam.

Os documentos encontrados com o grupo foram suficientemente
comprometedores para preocupar os soldados de Targon, que se apressaram
em avisar a polícia de Bordéus. Uma das mulheres, interrogada com
brutalidade, revelou o objetivo de sua presença na região. Internados no forte
de Hâ, o comissário Penot entregou-os depois à Gestapo. O tenente Kunesch
conduziu os interrogatórios.
Honoré foi fuzilado nesse 28 de julho, assim como dois companheiros,
René Pezat e Jacques Froment e outros quarenta e cinco resistentes. Uma das
mulheres conseguiu fugir. A outra foi deportada.
Também nesse mesmo dia era executado Grand-Clément assim como sua
mulher e um amigo.
Após a morte de Noel e de Renaudin, Grand.Clément sabia que seus dias
estavam contados. Colocou-se então sob a proteção de Dohse, que lhe ofereceu
uma vivenda em Pyla. Grand-Clément refugiou-se ali durante uns tempos sob o
nome de Lefrançais, com Lucette, sua mulher. Foi nessa pequena estância
balneária que Meirilhac, enviado pelo coronel Passy, desejoso de esclarecer as
circunstâncias da morte de Hipotenusa, o descobriu.
O agente da Comissão Central de Informação e Ação, após informar o
coronel Triangle da sua missão, entrou em contato com Jean Charlin, que
continuava a considerar Grand-Clément como chefe da OCM. do sudoeste.
Charljn concordou em transmitir uma mensagem ao "seu" chefe.
Os dois homens encontraram-se então na Rua do Hautoir, em Bordéus, no
restaurante Volant-Doré. Grand-Clément foi informado de que Londres gostaria
de ouvi-lo a fim de o ilibar das acusações de traição que pesavam sobre ele e de
que um Lusander o conduziria à Inglaterra. Encurralado, sem saber como agir,
Grand-Clément concordou em se encontrar com Meirjlhac.
Para iludir Dohse quanto às suas intenções, ficou combinado que
simulariam um seqüestro no domicílio do amigo e guarda- costa, Marc
Duluguet. Em 24 de julho, Meirilhac e três resistentes do grupo de Georges,
que chefiava a 3ª companhia das tropas de Aristide, compareceram à casa de
Duluguet, onde derrubaram os móveis e dispararam alguns tiros para que se
acreditasse num seqüestro. Grand-Clément exigiu que a mulher e Duluguet o
acompanhassem. A sra. Duluguet comprometeu-se a só avisar a polícia alemã
uma hora depois da partida do grupo.
Conduziram-nos primeiramente a Léognan e, na manhã seguinte,
Meirilhac entregou-os a Georges, que os interrogou.
Grand-Clément recusou-se a responder, de início, pedindo para ser levado
a Londres, como ficara combinado. Depois, sem dúvida temendo represálias
imediatas contra ele e contra os companheiros por parte daqueles homens
absolutamente convencidos da sua traição, concordou em responder as
perguntas. Reconheceu ter entregue armas aos alemães, ser responsável
indireto por três mil detenções e por trezentas execuções. Um processo verbal

foi redigido e assinado. Em 28 de julho, os três prisioneiros foram levados, sob
forte escolta, até as proximidades de Belin, para casa de Frank Cazenave,
membro da Resistência. Os resistentes, numerosos, tomaram posições em volta
da casa.
Por volta das treze horas, chegaram Aristide, Dédé, o Basco, e Lancelot. Ao
ver surgir o agente britânico, Grand-Clément compreendeu que estava perdido.
Aristide reuniu em volta de uma mesa os membros do tribunal encarregado de
o julgar. O prisioneiro teve de responder a novo interrogatório, acrescentando
que aceitara as propostas de Dohse para proteger a vida da mulher e da
família. O tribunal mandou então os prisioneiros saírem, a fim de deliberar.
A morte de Grand-Clément foi votada por unanimidade. Após demorada
polêmica, a mulher e o amigo foram igualmente condenados à morte.
No final da tarde, o antigo resistente foi colocado num carro.
Acompanhavam-no Lancelot e dois resistentes.
A mulher e o guarda-costas ocuparam outro carro, junto a Aristide e mais
dois homens. No trajeto mandaram- nos parar numa barreira guardada por
policiais. Lancelot saiu do carro e fez a saudação hitleriana. Supondo tratar-se
de pessoal da Gestapo, os dois policiais deixaram passar os dois veículos.
Grand-Clément não se movera.
Detiveram-se num bosque perto de Muret. Nesse local, Aristide comunicou
a sentença aos prisioneiros.
Depois tudo se passou rapidamente: Dédé, o Basco, levou GrandClément
para dentro de um curral e o abateu.
Lancelot executou Marc Duluguet, e Aristide encarregou-se do trabalho
que ninguém queria fazer.
Os homens de Georges enterraram os cadáveres no bosque.
Aristide enviou o relatório ao coronel Buckmaster, informando-o de que se
fizera justiça.

Capítulo 13

NA MARGEM DO SENA, deitada sobre uma toalha de praia, apesar da
dureza do pavimento, Léa, de pálpebras cerradas, deixava o espírito abandonar-
se à lembrança do murmúrio das ondas rebentando sobre a areia da praia de
Biscarrose, dos gritos das gaivotas e das crianças. O calor a entorpecia
suavemente e seu corpo revivia sob os raios do sol.
Espreguiçou-se com bem-estar e envolta numa bruma distante, com uma
sensação de irrealidade, quase de pecado, diante do prazer que sentia, não
obstante o horror dos últimos dias. Mas qualquer coisa lhe dizia para,
sobretudo, não pensar nisso, para fazer como se aquilo tudo não tivesse
acontecido, e não fosse mais que um pesadelo do qual despertaria sem se
lembrar dele.
Entreabriu os olhos. Uma gaivota atravessou seu campo de visão, rápida,
cruzando o céu de um azul sem nuvens. Uma criança riu, batendo palmas.
Imóveis, de cabeça coberta por bonés ou por chapéus de palha, pescadores com
varas olhavam suas bóias vermelhas, amarelas ou brancas. A água batia
docemente na margem. Um pintor de domingo misturava as suas tintas. Pelo
rio, deslizou uma barca onde iam moças vestidas de tons claros. Não longe dali,
um acordeonista tocava uma melodia da voga. Tudo era harmonia e
tranqüilidade.
Léa virou-se de bruços e pegou no livro que Laure lhe recomendara com
tanto entusiasmo.

"Agora, todos tinham ido dançar, exceto ela e as senhoras de idade. Toda a
gente se divertia menos ela. Avistou então Rhett Butler, logo atrás do médico.
Antes que tivesse tempo para mudar a expressão do rosto, ele a notou, contraiu
os lábios e franziu as sobrancelhas. Erguendo o queixo com arrogância, Scarlett
se levantou e, de repente, ouviu seu nome... seu nome pronunciado com aquele
sotaque inconfundível de Charleston, palavras que dominaram por instantes o
tumulto de vozes.
— Senhora Charles Hamilton... cento e cinqüenta dólares... em ouro!
À dupla menção do nome e da quantia, um repentino silêncio pesou sobre
os presentes. Scarlett ficara de tal modo surpresa que não conseguiu se mover.
Com o queixo entre as mãos, os olhos ainda maiores por causa da surpresa,
continuou sentada em seu lugar.
Todos se voltaram para observá-la. Viu o doutor inclinar-se, segredando
algo a Rhett Butler. Informava-o, sem dúvida, de que ela estava de luto, e que

lhe era impossível participar do baile. Rhett ergueu os ombros num gesto
displicente.
— Talvez uma outra das nossas bonitas jovens — sugeriu o médico em
tom bastante audível.
— Não — contrariou Rhett com firmeza, passeando o olhar negligente pela
assistência. — A sra. Hamilton.
— Já lhe disse que não é possível — insistiu o doutor. — A sra. Hamilton
não irá querer.
Scarlett ouviu então uma voz que, de início, não reconheceu.
— Quero sim — disse a sua própria voz".
(citação do livro E o vento levou...)

Que mulher insuportável, aquela Scarlett! Rhett Butler, porém... que
homem!
— Gosta do livro? — perguntou Françoise.
— Hum... hum...
— Não a incomode — interveio Laure com o ar mais sério do mundo, —
Não vê que ela está dançando com Rhett Butler? Passe-me a Silhouettes,
Françoise.
— Espere um pouco. Estou acabando de ver os modelos para crianças.
Gostaria de ter uma menina para vesti-la com roupas bem bonitas.
— Você se tornou muito fútil desde que veio para Paris e começou a
freqüentar costureiros famosos — observou a irmã. — Mudou muito a
Françoise de Montillac! Não se parece absolutamente nada com a
enfermeirazinha simples de Langon.
— Você não é nem um pouco amável ao me acusar de frivolidade, Laure.
Que queria que eu fizesse? Que me fechasse em casa com as cortinas cerradas
esperando o fim da guerra? Ou que partisse para a Alemanha como fazem
certas mulheres na mesma situação que eu? Ou, ainda, que fosse para a casa
do pai de Otto? Ele me expulsaria. E, além disso, será que ainda está vivo? E
Otto, onde estará? Talvez tenha morrido ou esteja gravemente ferido neste
exato momento.
— Desculpe-me. Não queria magoá-la. Veja como Charles se dá bem com o
pequeno Pierre. Parecem irmãos.
— Sim, são ambos muito engraçados. Toma a Silhouettes.
Françoise ergueu-se, ajustando o maiô de lã azul, e aproximou-se do
carrinho de bebê onde seu filhinho estava sentado.

— Leu o artigo de Lucien François? — perguntou Laure. — Contra o slip e
a favor da verdadeira lingerie? É de morrer de rir.
Ouça isto:
Os censores franzem as sobrancelhas à idéia de que se possa se
preocupar, na atual conjuntura, com essa coisa frívola e que, ainda por cima,
com um ressaibo de libertinagem: a roupa íntima feminina.
Com mente imbuída pelos "Frou/roas" de Mayol, estaríamos tentados a
lhes dar razão. Mas o caso muda de figura quando constatamos que a moda do
slip e do soutien-gorge de origem estrangeira deixou desempregados milhares
de operários das indústrias de renda e da roupa íntima fina, ambas
teluricamente bem francesas — Teluricamente! — exclamou Laure. — Vejam só!
Tenho a certeza de que se pensa que os soldados franceses perderam a guerra
porque suas mulheres usavam slips ingleses ou americanos. Ouça agora o
final.
Não existem povos fortes sem mulheres bem femininas ao lado de homens
verdadeiramente viris. É quando os sexos começam a se influenciar
mutuamente, que se anuncia o declínio de uma raça.
As andróginas de slips eram as companheiras dos rapazes que usam
camisas "bombom-derretido". Num casal, não há perigo de que, mesmo em
calças de montaria, uma mulher autêntica use cuecas.
— Não acha incrível que se perca tempo falando em cuecas quando não
temos eletricidade, não dispomos de gás, quando o metrô não circulará desde
as treze horas de hoje, sábado, até segunda- feira à mesma hora, quando
Estelle teve de permanecer na fila desde as sete da manhã, em frente do
armazém, na esperança de conseguir comprar ervilhas Porsper cozidas a vapor,
quando comemos apenas cavala salgada há três dias ou ainda quando os
bombardeios causam milhares de mortos? É incrível! Que época a nossa! Que
pensa disto, Léa?
Léa, que interrompera a leitura para ouvir a irmã, encolheu os ombros:
— Não mais incrível do que estarmos aqui deitadas de maiô à beira do
Sena, e de irmos ao Moulin Rouge logo mais, ouvir Edith Piaf cantar, enquanto
se luta na Normandia, na Bretanha, na Rússia e no Pacífico. O que é incrível é
que nós, as três, ainda estejamos vivas... Estou com fome. Françoise, você me
passa um sanduíche?
— Provocaremos um motim se nos virem comendo sanduíches de pão de
verdade e de salsichão autêntico. Não acha, Laure? — perguntou Françoise.
— Os outros que se arranjem como eu me arranjo. Não é preciso acreditar
que seja fácil conseguir pão e salsichão em Paris, a 3 de agosto de 1944.
— Acredito — garantiu Léa, mordendo ferozmente o sanduíche que
Françoise lhe entregara. — Com sua inclinação para negócios, deveria ter sido
você a tratar dos assuntos de Mont.

Léa empalideceu, interrompendo essa palavra que havia jurado para si
mesma nunca mais pronunciar. Laure percebeu e rodeou com o braço os
ombros da irmã.
— Reconstituiremos Montillac, verá.
— Isso nunca! Nunca! Você não viu o que eu vi. Não viu tia Bernadette
correndo envolta pelas chamas, ela que nunca fez mal a ninguém. E Ruth.
— Fique quieta. Está se machucando sem necessidade, Não serve de nada
remoer tais horrores. Esqueça-os.
— Esquecer?. Para você é fácil. O que você sabe da guerra? Conhece
apenas os míseros tráficos do mercado negro.
— Acabem com as discussões — interveio Françoise. — Todo mundo está
olhando para vocês. Vamos embora — concluiu, pegando suas coisas.
— Vocês vão se quiserem. Eu fico por aqui mais um pouco. Levem Charles
com vocês.
— Quero ficar com você, Léa.
— Não, meu querido. Seja bonzinho, vá para casa. Preciso ficar só.
O menino olhou a moça com expressão de intensa curiosidade. Pegou-lhe
a mão e apertou-a com força.
— Não vai se demorar?
— Não. Não demoro. Prometo.
— Esteja de volta lá pelas duas e meia — recomendou Laure.
— O espetáculo começa às três e meia e leva uma boa meia hora para se
chegar à Praça Blanche de bicicleta. É tudo subida até lá.
— Não se preocupe. Estarei em casa a tempo.
Sem mais se ocupar das irmãs e das duas crianças, Léa voltou a deitar,
fechando os olhos. Mas as imagens que se formavam por detrás das pálpebras
eram tão assustadoras que logo os reabriu.
Um banhista se levantou e, abandonando seu jornal, mergulhou no Sena,
respingando-a de leve. Léa pegou o jornal. Era o L"Oeuvre, de Mercel Deat.
Maquinalmente, começou a ler o artigo intitulado "Variedade da Fauna nas
Bases da Resistência", em que o autor destilava veneno sobre comunistas,
gaulistas socialistas e outros ""insetos".
Inteirou-se também do fechamento de cento e noventa e oito bares
americanos, a pedido da polícia francesa, chocada com o caráter imoral
daqueles estabelecimentos de prazer; da abertura, no Grand Palais, de uma
exposição cujo tema era "A alma dos campos".
Também ficou sabendo que o dr. Goebbels havia declarado: "O povo
alemão deve erguer-se em massa para forçar o destino"; que marinheiros

alemães, conduzindo engenhos especiais, tinham naufragado treze navios
anglo-americanos; que uma brigada de assalto francesa das Waffen SS
combatia na frente oriental; que, nesse dia, haveria corridas de cavalos em
Vincennes e no dia seguinte, domingo, em Auteuil; que na Bolsa de Paris o
mercado se mostrava mais ativo; que o Führer e o dr. Goebbles tinham enviado
um telegrama de felicitações a Knut Hamsun, pelos seus oitenta e cinco anos;
que o próximo conselho de revisão dos voluntários franceses das Waffen SS se
realizaria na segunda-feira, dia 7 de agosto, às nove horas e o da Legião dos
Voluntários Franceses contra o bolchevista seria no quartel de La Reine, em
Versailles; que um orfanato seria batizado com o nome de Philippe Henriot;
que, no dia seguinte, a partir das quinze horas, teria lugar o campeonato de
natação, com percurso desde a ponte de Austerlitz até a ponte Alexandre III;
que Elvire Popesco atuava no teatro Apoio na peça Minha Prima de Varsóvia, e
Jane Sourza e Raymond Souplex, no Casino de Paris, em No Banco; que no
Luna Parque podia-se aplaudir Georgius, Georgetre Plana e muitos outros
artistas; e que Edith Piaf.
Léa jogou o jornal e, sobre o maiô de duas peças, vermelho e branco,
enfiou o vestido de rayon com grandes flores, presente de Françoise. Prendeu
as tiras das sandálias de tela branca e saltos altos. Correndo, subiu as escadas
que conduziam à plataforma.
Em 11 de agosto, o rádio anunciou a morte de Saint-Éxupery, abatido no
sul da França, durante um vôo noturno. O locutor de- piorou o fato de o
escritor ter passado sobre o campo dos inimigos da França.
Nesse mesmo dia, Léa encontrou uma carta de Laurent dirigida para
Camille, colocada sob a porta das senhoras de Montpleynet. Perturbada, abriu
o envelope, tremendo.
"Minha bem-amada mulher, Aqui estou, por fim, de volta ao solo francês!
Não tenho palavras para exprimir a nossa alegria, a minha e a de meus
camaradas. Vi os homens mais rudes caírem de joelhos ao desembarcar e
chorando, beijaram o chão de sua terra, e outros colocando nos bolsos areia da
praia normanda, que os soldados aliados tiveram o privilégio de pisar antes de
nós. Como nos pareceu longa a espera desse dia! Pensamos que não chegaria
nunca!
Passei a primeira noite no banco de um jipe. Dormi apenas quatro horas,
mas nunca me senti tão novo e tão bem disposto.
Eu me dizia que estava na mesma terra que você, sob o mesmo céu, e que
em breve a abraçaria e a Charles. Era felicidade demais!
Desembarcamos em Saint-Mère-Eglíse numa manhã cinzenta, junto com o
general Leclerc, que mergulhava na areia à sua volta a ponta da bengala, tendo
no rosto uma expressão de incredulidade. Ouvi-o murmurar: Que sensação
mais estranha...

Depois, mais forte, olhando em volta com um sorriso que enrugava seus
olhos: Dá um prazer dos diabos.
Os fotógrafos do serviço cinematográfico das forças armadas nos
atropelavam, procurando fotografar o aperto de mão entre o general americano
Walker e o nosso general. Leclerc prestou-se a isso com má vontade,
recusando-se, porém, a voltar ao quebra-mar.
Acompanhei-o ao quartel-general do 3º Exército Americano, onde está
sediada a 2. Divisão Blindada. Aí conhecemos o general Patton. Que contraste
entre os dois homens! Um com uma grande cara de cowboy, grande bebedor de
uísque, colts pendurados na cintura, tal como vemos no cinema; e o
aristocrata, com seu boné ornado de duas estrelas — a terceira espera há mais
de um ano para ser pregada —, seu impermeável justo ao corpo, polainas
inglesas. Só a custo consentiu em se separar de uma espécie de bornal que lhe
batia nos rins.
Patton estava de excelente humor; a frente alemã fora finalmente rompida
em Avranches, localidade por onde passamos ao rumar para Le Mans.
Espetáculo de fim de mundo. Civis errando pelas ruas devastadas, revolvendo
os escombros, campos onde se amontoavam centenas de prisioneiros de olhar
perdido, cadáveres de americanos, de canadenses, de ingleses e de alemães
misturados uns aos outros.
Nas aldeias que atravessamos, as moças nos ofereciam flores, pão,
garrafas de vinho e de cidra. Nós passávamos alternadamente da alegria dos
libertados ao desespero daqueles que tinham perdido tudo.
No dia 10, sem ter descansado, passamos ao ataque com certa
precipitação. Os combates foram duros. Tivemos vinte e três mortos, perto de
trinta feridos e catorze carros de assalto destruídos ou perdidos.
No dia seguinte, em Champfleur, Leclerc, instalado sobre a pequena torre
do Tally, comandou a manobra de aproximação. Indiferente às balas e aos
morteiros, dirigiu os homens durante todo o dia, deslocando-se no jipe ou no
carro- patrulha. No final desse segundo dia de combate, o general mostrou-se
satisfeito, pois tínhamos libertado umas trinta aldeias e avançado quarenta
quilômetros. Extenuados, dormimos pelo chão, mas não por muito tempo; às
duas da madrugada, morteiros alemães caíram no prado onde Leclerc dormia,
destruindo um tanque e matando seus dois ordenanças. A noite terminara para
todos nós.
De 10 a 12 de agosto, a 2ª Divisão Blindada matou oitocentos alemães, fez
mais de mil prisioneiros e destruiu quinze Panzer. Na floresta de Ecouves, os
soldados inimigos renderam-se aos milhares.
Na sexta-feira, 13, atacamos a aldeia de Cercueil. Na descida para
Ecouché, vi a carnificina mais alucinante.
Devíamos pegar a estrada nacional 24 bis. Eu segui atrás do carro de um
amigo, Georges Buis, que comandava a vanguarda. Para lá dos prados

bordejados de sebes, surgiu-nos a estrada, atravancada, a perder de vista, por
veículos inimigos que pareciam flutuar sobre a vegetação. Durante segundos
tudo ficou em suspenso. Depois foi o apocalipse. Os canhões de todos os
nossos carros vomitaram fogo e o ar se encheu de gritos e de fumaça.
Progredindo através das ruelas, um destacamento conseguiu ultrapassar o
descomunal engarrafamento de carcaças retorcidas, de corpos mutilados, de
carros em chamas, atravessar a estrada nacional e chegar ao objetivo: a ponte
sobre o Orne."
A carta de Laurent terminava com palavras de carinho dirigidas à mulher e
de ternura para o filho. Léa dobrou-a com cuidado.
Pelo telefone, anunciavam a tentativa de suicídio de Drieu la Rochelle. O
telefone tocou.
— Alô? Ruth! É você? Você está bem?
— Sim, minha pequena, sou eu.
Léa, que desde a morte de Camille não havia derramado nenhuma lágrima,
sentiu suas faces se cobrirem de lágrimas mornas e salgadas ao ouvir a voz
fraca, mas perfeitamente reconhecível da mulher que acreditava morta. Apenas
conseguia gaguejar:
— Oh, Ruth!.. Ruth...
Françoise e Laure, uma após outra, falaram com a governanta, chorando
de alegria. Logo, todas as moradoras da Rua da Universidade se transformavam
em fontes. Laure foi a primeira a enxugar os olhos, exclamando:
— É a única boa notícia que recebemos desde há muito tempo. Vamos
comemorar!
Foi buscar uma garrafa de champanhe, onde ela chamava "sua reserva".
— Deve estar um pouco quente, mas não faz mal. Traga as taças, Estelle, e
venha brindar conosco.
Até mesmo Charles teve direito a um "dedo de champanhe", como Lisa
dizia.
Nem sequer nos lembramos de perguntar a Ruth o que aconteceu a
Montillac — notou Laure, esvaziando sua taça.
É verdade, pensou Léa. Na alegria de sabê-la viva eu me esqueci de
Montillac. Tanto melhor para mim, Montillac morreu.
Que me importa o que possa lhe acontecer agora? Já correu sangue
demais sobre aquela terra. Que Fayard fique com ela, isso não me interessa
mais!
— Imagine, senhorita Françoise... batatas a quarenta francos o quilo! —
comentava Estelle. — E três horas de fila no mercado de Saint-Germain para

trazer dois quilos! E manteiga! É coisa que não existe. E a mil francos o quilo, é
preciso ser milionário para comprá-la!
— Não se preocupe, Estelle — interveio Laure. — Amanhã eu arranjo
manteiga. Recebi tabaco e sabonetes, de modo que vou trocá-los por gêneros
alimentícios.
A velha criada fitou Laure com uma expressão admirada.
— Não sei como consegue, senhorita Laure — comentou ela, perplexa. —
Mas o fato é que, sem você, teríamos morrido de fome há muito tempo
Felizmente não liga para as palavras de dona Albertine.
— Cale-se, Estelle! — disse Albertine. — Faço muito mal em não me
mostrar mais severa com Laure e em concordar com esses tráficos de... de...
—... de mercado negro, minha tia, pode dizê-lo. Muito bem; faço negócios
no mercado negro, sim. A verdade é que não tenho o mínimo desejo de morrer
de fome enquanto espero pela chegada dos aliados. Mas não roubo; limito-me a
trocar os artigos, obtendo entretanto algum lucro. Dedico-me ao comércio.
Todos os meus amigos fazem a mesma coisa.
— Isso não é razão, minha pobre criança, para que você faça igual. Há
tantos infelizes sofrendo, desprovidos de tudo! Tenho vergonha do nosso bem-
estar — declarou Albertine.
Lisa, que se mantivera calada até esse instante, teve um sobressalto e, de
rosto repentinamente corado, voltou-se para a irmã, dizendo:
— Nosso bem-estar!. Você está brincando, espero... Vamos ver o que é o
nosso bem-estar: é não dispor de chá, nem de café, nem de chocolate, nem de
carne, nem de pão verdadeiramente comível! É não ter aquecimento, tal como
no inverno passado! E tudo isso por que a senhorita não quer satisfazer a sua
fome, não quer aquecer-se porque há desempregados, prisioneiros e pobres a
quem falta tudo! Mas não é pelo fato de nos privarmos que eles terão menos frio
ou menos fome.
— Sei disso perfeitamente, mas devemos nos mostrar solidários com a
desgraça alheia.
— Hoje em dia, já não existe solidariedade! — exclamou Lisa, exaltada.
— Como podes dizer isso? — murmurou Albertine, fitando a irmã, ao
mesmo tempo que uma lágrima lhe deslizava pela face enrugada, deixando um
traço sobre o pó-de-arroz.
Aquela lágrima acalmou a exaltação de Lisa que se precipitou para
Albertine, pedindo-lhe perdão. De braço dado, retiraram- se para o quarto de
Albertine.
— É sempre a mesma coisa — comentou Laure. — Basta que uma delas
chore para logo a outra correr a consolá-la. O que vai fazer esta tarde?
— Fala comigo? — perguntou Léa.

— Sim.
— Prometi a Charles levá-lo ao Luxemburgo, para dar uma volta no
carrossel.
— E você, Françoise?
— Vou para casa. Um amigo de Otto ficou de me telefonar à noite para dar
notícias dele.
— Tem muito tempo até a noite — garantiu Laure.
— - Nem por isso. Como a desativação do metrô, sou obrigada a voltar
para casa a pé. Umas boas duas horas. E você, o que vai fazer?
— Não sei. Desde que fecharam todos os bares americanos, eu e os amigos
já não sabemos o que fazer. Vou ver se o grupo está no Trocadero.
— Então, vamos juntas?
— Não. Você está a pé e eu prefiro ir de bicicleta.
— Como quiser. Se receber notícias de Otto, eu lhe telefono logo à noite.
Charles caminhava, comportado, de mão dada com Léa. De tempos em
tempos, apertava-lhe os dedos com mais força até que a jovem correspondesse
por uma pressão idêntica, que queria dizer: Estou aqui. Não tenha medo. Isso o
tranqüilizava. Apavorava-o a idéia de que ela desaparecesse como sua mãe.
Desde o momento que deixaram a enorme casa em chamas, dando-se as
mãos e sem se virarem para trás, Charles compreendera instintivamente que
não devia tocar em certos assuntos. A mãe fazia parte dessas coisas que não
devia falar.
Nunca a mencionava em suas conversas com Léa. Léa de quem ele gostava
tanto quanto sua mãe gostara. Pobre mamãe! Por que ela gritava tanto quanto
ele corria para ela, no dia em que os alemães disparavam por todos os lados?
Recordava-se de ter sentido uma dor, da mãe abraçando, depois o soltar e
depois... depois mais nada.
Às suas perguntas, respondiam-lhe sempre que a mamãe voltaria logo.
Mas sabia que não era verdade. Ela partira para longe, para muito longe
mesmo. Talvez já estivesse no céu. Quem sabe! A mamãe lhe dissera que as
pessoas iam para o céu quando morriam. Então, mamãe... O menino estancou,
a boca subitamente seca, o corpo coberto de suor.
Por que Charles havia parado justamente ali, diante do prédio da Avenida
Raspail, onde Camille havia morado? Léa evocou a jovem abrindo-lhe a porta de
casa com aquele seu doce sorriso que a deixava tão tocante. As mãos de Léa e
da criança, enlaçadas, muito apertadas, eram apenas uma. Charles ergueu os
olhos e a jovem baixou o seus. Devagar, sem o largar, agachou-se até ficar na
altura do menino e o apertou nos braços durante muito tempo.

Um oficial alemão, seguido do ordenança, parou olhando a cena com
expressão de ternura.
— Tenho um filho da idade dele. Mas esse não tem a sorte do seu. A mãe
foi morta num bombardeio junto com a minha filha mais velha — disse ele,
exprimindo-se em francês correto, mas elaborado, ao mesmo tempo que
acariciava a cabeça de Charles.
O garoto deu um pulo como se houvesse recebido uma pancada.
— Boche nojento! — exclamou. — Não me toque!
O oficial empalideceu e retirou a mão. O ordenança avançou para o
pequeno.
— Está insultando o capitão?
— Não tem importância, Karl. É natural que os franceses não gostem de
nós. Desculpe, minha senhora, mas deixei-me levar pelo sentimento. Por um
momento eu me esqueci dessa guerra que tanto mal tem causado aos nossos
dois países. Mas tudo acabará em breve. Adeus, minha senhora.
O oficial bateu os calcanhares e, com grandes passadas, dirigiu-se para o
hotel Lutércia, sobre o qual continuava tremulando a bandeira da cruz gamada.

Capítulo 14

NESSA TARDE DE 15 de agosto, havia uma verdadeira multidão
acotovelando-se sob as árvores do jardim de Luxemburgo e em volta do lago,
onde balançavam os barcos de aluguel. Os transeuntes passavam em frente do
Senado sem olhar para o edifício, ignorando as sentinelas atrás dos seus sacos
de areia e das barreiras de arame farpado.
Crianças e suas mães aguardavam o fim de uma sessão do espetáculo de
fantoches para entrarem por sua vez. O carrossel era tomado de assalto assim
como os veículos puxados por burros e pôneis. Podia-se acreditar que fosse
uma quinta-feira ou um domingo de junho, em plena época escolar, tal era o
número de crianças. A maior parte delas fora privada das férias devido à greve
dos ferroviários e, sobretudo, por causa dos combates que se travavam cada vez
mais perto da capital.
A brincadeira favorita dos dez aos doze anos de idade era a guerra, mas
todas as crianças queriam ser francesas, ninguém se oferecendo para
desempenhar o papel de alemães. Os jovens chefes de grupos viam-se
obrigados a tirá-los pela sorte e era sem convicção que os "alemães" se batiam
contra os "franceses".
Após três voltas no carrossel e sem conseguir apanhar a argola com o
bastão, Charles pediu um sorvete. Na entrada do jardim, que dava para Saint-
Michel, um sorveteiro com um soberbo carrinho de cores vivas, em forma de
carruagem, tinha sorvetes ditos "de morango". Léa comprou dois.
No coreto, músicos de uniformes verdes tocavam valsas de Strauss. Em
algumas árvores estavam afixados cartazes amarelos pretos, assinados pelo
novo governador militar de Paris, o general Von Choltitz, com apelos de calma à
população parisiense e anunciando que seriam tomadas medidas repressivas
muito severas e brutais, em caso de desordens, sabotagens ou atentados.
Mas a maior parte dos transeuntes que liam tais panfletos limitava-se a
sorrir — ao meio-dia, o rádio comunicara o desembarque aliado em Provence.
Algumas pessoas garantiam que os americanos estavam nas portas de Paris,
pois tinham ouvido o som dos canhões. Outras vinham de Notre-Dame, onde
tinham assistido à cerimônia comemorativa do juramento de Luís XIII, apesar
da proibição imposta pelo general Von Choltitz.
Desafiando a proibição, os parisienses haviam acorrido em grande número
ao apelo dos bispos. Era tanta gente que transbordava do templo para o meio
da praça, comprimindo-se em frente do pórtico principal onde, sobre um
palanque, se desenrolava uma cerimônia idêntica à celebrada no interior.
Enquanto isso, a procissão saía por um dos pórticos laterais e voltava a entrar
pelo outro.

Com fervor, a multidão respondia às orações proferidas por um
missionário do alto do palanque: Santa Joana d"Arc, libertadora da Pátria...
rogai por nós. Santa Genoveva, protetora de Paris.
rogai por nós. Santa Maria, Mãe de Deus, padroeira da França. rogai por
nós...
O missionário suspendera a ladainha por instantes para ouvir o que um
padre lhe dizia. Os que se encontravam mais perto da plataforma viram, então,
seu rosto se iluminar. Muitos deles caíram de joelhos quando, em voz vibrante,
o religioso gritou:
— Anunciam-nos que as tropas aliadas desembarcaram em Provence.
Oremos, caríssimos irmãos, para que Marselha e Toulon sejam poupadas da
destruição. Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, seja
feita a Vossa vontade.
A emoção atingiu o auge quando o cardeal Suhard pronunciou um
pequeno discurso improvisado, em que falava da última provação a atravessar.
Alguns soldados alemães postados em frente do Hotel-Dieu e da Prefeitura,
assistiam impávidos ao desenrolar dos acontecimentos. E, coisa curiosa!, não
havia nenhum guarda nas proximidades:
a polícia parisiense estava em greve desde a manhã, em protesto ao
desarmamento dos seus colegas dos comissariados de Asnières e de Saint-
Denjs.
No dia seguinte ao da Assunção, reapareceu o Je Suis Partout, que fora
suspenso, anunciando para sexta-feira, dia 25 de agosto, a publicação do seu
próximo número.
Caminhões repletos de policiais começaram a abandonar a capital em
direção leste. Pela avenida da Opera, Campos Elíseos e Saint-Michel, soldados
alemães desfilavam diante da população que os fitava com ironia.
É começo do fim, comentava-se.
No dia 17, a alegria popular atingiu o auge ao ver os carros de assalto, os
caminhões, as ambulâncias, os veículos sobrecarregados, cheios de alemães de
olhares apáticos e rostos vincados. Atrás deles, vinham os veículos mais
heterogêneos: carroças, carros puxados por cavalos, triciclos e mesmo carros de
mão que transportavam os despojos: aparelhos de rádio, máquinas de escrever,
quadros, sofás, camas, malões, malas e, coroando tudo aquilo, os inevitáveis
colchões, lembrando aos parisienses o seu próprio êxodo pelas estradas da
França.
Ah, que prazer ver se arrastar os resíduos do exército invencível! Onde
estariam os soberbos e bronzeados conquistadores do mês de junho de 1940?
Que fora feito dos uniformes de aspecto impecável?. Usados em quatro anos de
campanha nas estepes russas? Nos desertos africanos? Ou, ainda, nas cadeiras
do Hotel Meurice? Do Crillon? Ou do Intercontinental?

As pessoas instalavam-se nos bancos dos jardins dos Campos Elíseos para
presenciar comodamente a retirada, entretendo- se em contar os carros e as
caminhonetes. E os sorrisos não desapareciam quando passavam a pé soldados
jovens demais ou velhos demais, mal ajambrados em jaquetas pequenas ou
grandes demais, a barba por fazer, desalinhados, arrastando suas armas ou
com os braços atravancados de víveres ou de tecidos, que alguns não hesitavam
em vender à população.
Laure e Léa pedalavam ao longo das plataformas do Sena. Pairava no ar
uma espécie de euforia, não obstante a tensão reinante em certos bairros, o
ruído dos motores, os gritos, a fumaça da documentação da Gestapo e das
administrações que se queimava mesmo no pavimento das ruas, o nervosismo
dos fugitivos e o toque de recolher às vinte e uma horas.
Um automóvel comprido ultrapassou as duas irmãs. Dentro dele algumas
jovens excessivamente loiras e excessivamente elegantes, comprimiam-se a um
general de monóculo.
Os pescadores e os banhistas haviam marcado encontro nas margens do
Sena. No rio, veleiros oscilavam suavemente à luz crua do verão. A cidade
inteira esperava.
As duas se viram forçadas a desmontar para atravessar a ponte Royal,
interrompida por barreiras de arame farpado.
Na rua da Universidade, Charles esperava Léa, impaciente para lhe dar o
desenho em que trabalhara desde o início da manhã.
Estelle lamentava-se de suas pobres pernas cheias de varizes por causa
das filas. Lisa estava muito excitada — ao meio-dia, ouvira na emissora inglesa
a notícia de que os americanos já se encontravam em Rambouillet. Albertine
parecia preocupada.
Graças às reservas de Laure, o jantar, constituído por sardinhas em
conserva no azeite e num autêntico pão de centeio, lhes pareceu divino. A
energia elétrica voltou desde as 22 horas e meia, até a meia-noite, trazendo a
Lisa, uma decepção, afinal os americanos não estavam em Rambouillet mas em
Chartres e em Dreux.
Pouco antes do toque de recolher, alguns SS dispararam rajadas de
metralhadoras contra os panacas que observavam funcionários alemães
retirando documentos do Trianon-Hotel, na rua Vaugirard. Na praça da
Sorbonne e na avenida Saint- Michel, diversas pessoas ficaram feridas ou
morreram por esse mesmo motivo.
O sono dos parisienses foi perturbado pela explosão dos depósitos de
munições que os ocupantes explodiram antes de se retirarem.
— Esta manhã não há jornais — disse a Léa o dono do quiosque instalado
diante do Deux-Magots, em Saint-Germain. — As coisas vão mal para os
colaboracionistas. Olhe para a cara daquele tipo de óculos! É Robert Brasillach!

Vai tomar o seu café no Flore. Seu aspecto nunca foi muito bom, mas faz dois
dias que tem um ar francamente doente. Em seu lugar, eu iria embora junto
com meus amigos boches.
Então era ele esse Brasillach a quem Raphael Mahl se referia com tanta
admiração! Parecia um menino doente.
Léa também se instalou no terraço, não muito longe do escritor, e pediu
um café. O velho garçom, protegido por um longo avental branco, informou-a
que não poderia servir nada quente por causa do corte de gás. Ela teve de se
contentar com um diabolo-menthe, infecto.
Na mesa vizinha, um homem de uns trinta anos, alto e moreno, usando
pesados óculos de míope, escrevia num caderno com uma caligrafia redonda e
aplicada. Um jovem loiro e de aspecto frágil veio sentar-se junto a ele.
— Viva, Claude! Já trabalhando?
— Bom dia, Claude. Se quer assim. Quais são as novidades?
— Ontem houve muitos incidentes no bairro. Os alemães andaram
atirando na rua de Buci, em Saint-Germain.
— E houve mortos?
— Sim, alguns. Como vai o seu pai?
— Bem. Está em Vémars e irei vê-lo amanhã.
Detonações abafadas impediram Léa de continuar a seguir a conversa
entre os dois.
— Os depósitos de munições — disse um deles.
— Incendiaram entrepostos por detrás da Torre Eiffel e diversos cafés. O
fim está próximo. Os colaboracionistas fogem como ratos. Nunca mais
ouviremos a voz de Jean Hérold-Paquis, o Rádio-Joarnal se acabou. Os
Luchaire, os Rebatet, os Bucard, os Cousteau e os Bonnard, ditos gestapistas,
estão agora a caminho da Alemanha. Só ficou este e bem que eu gostaria de
saber por quê — disse o homem loiro, designando Brasillach.
— Talvez por causa de certa noção de honra. Não consigo mais odiá-lo, ele
me dá pena.
— E por que o odiava?
— Ora, uma velha história por causa de um artigo ignóbil sobre meu pai,
publicado em 1937.
— Ah, eu me lembro! Intitulava-se "A idade crítica do sr. Mauriac".
— Isso mesmo, as baixas injúrias de Brasillach me magoaram
profundamente. Eu quis lhe quebrar a cara.
Léa colocou o dinheiro sobre a mesa e ergueu-se. Os dois homens
seguiram-na com os olhos.

— Bonita moça!
— Sim, muito bonita!
Sem as explosões distantes dos depósitos de munições, aquele final de
manhã, de céu um tanto pesado, do dia 18 de agosto de 1944, teria parecido
um banal fim de manhã de verão.
Tudo estava calmo. Os transeuntes, pouco numerosos, tinham o passo
lento dos turistas. Jovens passavam de bicicleta, sorridentes, em seus vestidos
claros.
Diante da igreja de Saint-Germain-des-Prés, um grupo de jovens discutia
com animação. Na vitrine da livraria do Divan, alguns exemplares envelhecidos
da revista de Martineuau acabavam de amarelar. No pequeno largo próximo da
igreja, uma velha desdobrava um jornal com comida para gatos, talvez a sua
mesmo, colocando-a junto ao tronco de uma árvore.
— Bichano... bichano... — chamava ela. — Venham, meus meninos.
Na praça Furstenberg, os mendigos disputavam entre si os últimos tragos
de um vinho de má qualidade. Na rua de Seine, dois zeladores no limiar das
portas não paravam de falar sobre os acontecimentos da véspera.
As bancas de frutas e de legumes no cruzamento com a rua de Buci
estavam desesperadamente vazias, o que não impedia a formação de filas de
donas-de-casa resignadas. A rua Dauphine estava deserta. Na rua de Saint-
André-des-Arts, meninos se perseguiam armados de pedaços de pau em guisa
de pistolas, escondendo-se nos recantos do Pátio de Rohan.
— Pum... pum...! Renda-se ou morre!
Sem destino, Léa continuava a errar pelas ruas. Viu-se na praça Saint-
Michel. Havia um aglomerado em volta de um plátano. Aproximou-se, abrindo
caminho com os cotovelos. Preso à árvore, havia um cartaz branco, ostentando
as bandeiras tricolores entrelaçadas. Leu: Governo Provisório da República
Francesa.
Os aliados estão às portas de Paris. Preparem-se para o derradeiro
confronto com o invasor! Os combates já começaram em Paris. Esperem as
ordens para agir, ordens que serão transmitidas por cartazes ou pelo rádio. Os
combates terão lugar por bairros.
Nem um só parisiense desconhecia que nos próximos dias ou mesmo nas
próximas horas iria assistir à libertação de sua cidade ou à sua destruição.
Alguns habitantes preparavam-se ativamente. A maioria decidira não sair de
casa e aguardar a retirada dos alemães para manifestar sua alegria.
Léa, por sua vez, oscilava entre o ódio e o medo, entre a vingança e o
esquecimento. Passava de um sentimento a outro com uma rapidez que lhe
esgotava os nervos. Suas noites agitadas ou insones haviam deixado suas
marcas em volta dos olhos, aos quais o cansaço conferia uma limpidez de

malva. As mechas dos cabelos puxados para cima acentuavam a nova
fragilidade de seu rosto.
Teria de reagir e entrar em contato com os elementos dessa rede de que lhe
falara o jovem médico de Langon, que os havia apanhado pelo caminho,
conduzido a Bordéus e posto num dos últimos trens que partiam para Paris.
Viagem movimentada, que havia durado dois dias, por causa dos cortes na
estrada de ferro e dos bombardeios que obrigavam os passageiros a fugir dos
vagões para se deitar nos campos. Maquinalmente, Léa havia seguido os
outros, indiferente aos perigos assim como às queixas de Charles, que não
soltava sua mão.
A acolhida calorosa das tias e das irmãs não diminuíra seu desinteresse
por tudo. Apenas a voz de Ruth a havia tirado de sua apatia. As lágrimas que
então derramara fizeram com que reencontrasse um pouco de seu desejo de
viver, sem, no entanto, lhe restituírem a autoconfiança, o que antes era a sua
força.
Até o anoitecer, Léa vagou numa Paris tensa pela espera. Um pouco antes
da hora do toque de recolher, a fome a fez regressar à rua da Universidade,
onde Estelle apenas pôde apresentar-lhe um pouco de purê frio e um pedaço de
camembert farelento.
Albertine de Montpleynet, enfim tranqüilizada, não a censurou pela
ausência tão prolongada. Charles, que se recusara a ir para a cama sem que
Léa chegasse, adormeceu segurando sua mão.
Os pesadelos fizeram com que Léa ficasse acordada uma parte da noite. Só
ao amanhecer eles lhes deram algum descanso.

Capítulo 15

— ACORDE! ACORDE!
Sacudida por Laure, Léa soergueu-se e olhou para a irmã com ar perplexo.
— Acorde, Léa! As Forças Francesas do Interior tomaram a Delegacia. Há
combates de rua por toda a cidade. Os americanos estão chegando. Vá se
vestir!
Laure gesticulava pelo quarto, arquejante.
— Mas que história é essa?
— Os gaulistas ocupam a Delegacia de polícia. Os policiais também estão
lutando.
— Quem te falou isso?
— Franck, um amigo meu que você não conhece. Mora num apartamento
enorme em Saint-Michel, que dá para a avenida e também para a rua Huchette.
Ele me telefonou. Esteve dançando e bebendo durante toda a noite com alguns
amigos. Por causa do toque de recolher, todos dormiram em sua casa. Quando
Franck foi fechar as persianas, lá pelas sete da manhã, viu homens sozinhos ou
aos pares dirigindo-se para Notre-Dame. Intrigado pela quantidade deles,
Franck se vestiu novamente e foi para a rua. Ele os seguiu e chegou ao adro da
catedral, onde mil, duas mil pessoas esperavam, conversando em voz baixa.
Pelo que ouviu, Franck compreendeu que eram policiais à paisana. Depois
chegou uma caminhonete e foram distribuídas espingardas e cinco ou sete
metralhadoras aos agentes. Uma palavra de ordem deve ter sido dada, pois
avançaram para a grande porta da delegacia. Franck os acompanhou. A porta
abriu-se e a multidão invadiu o pátio em silêncio. Um homem alto, com um
terno pied-de-poule e tarja tricolor, gritava, empoleirado no capô de um carro:
"Em nome da República, em nome do general de Gaulle, tomo posse da
Delegacia de polícia!". Os homens de sentinela deixaram-se desarmar sem
resistência. Içaram a bandeira entoando a Marselhesa. Franck, que não é nem
um pouco sentimental, disse que quase chorou. Parece que nomearam um novo
delegado, Charles Lizet, eu creio. Venha, vamos até lá, vai ser divertido.
— Divertido? Não, de fato. Interessante talvez — disse Léa, levantando-se
da cama.
— Você dorme nua?
— Esqueci de trazer camisola quando vim para cá. Agora me deixe. Quero
me arrumar.
— Veja se se apressa. Espero por você na cozinha.

— Está bem. Mas não diga nada às tias.
— É claro que não. Não sou louca!
Os soldados alemães, de capacetes, que passavam pela avenida Saint-
Germain, sobre uma caminhonete descoberta, de espingardas e de
metralhadoras grudadas ao corpo, saudaram com gritos as duas jovens de
bicicletas quando as ultrapassaram na altura da rua do Bac.
— Não parecem muito assustados — disse Léa, virando-se para trás.
Agora deserta, a avenida estendia-se à sua frente. Na esquina da rua do
Dragon, um alemão lhes apontou a metralhadora.
— Desapareçam ou disparo!
Sobre as mesas do Deux-Magots e do Flore, xícaras e copos meio cheios
aguardavam a volta dos clientes, refugiados no interior dos cafés. Na rua de
Rennes, algumas pessoas corriam em todas as direções. Ouviu-se uma curta
rajada e duas delas caíram. Em Mabilion, jovens de camisa branca, com tarjas
da Cruz Vermelha, correram no sentido do tiroteio.
Um tanque barrava o caminho na encruzilhada do Odeon. Léa e Laure
viraram para a rua de Buci. As portas de ferro da maioria das lojas estavam
fechadas, e os donos dos cafés recolhiam as cadeiras às pressas. Cruzaram
com homens de tarjas tricolores, que seguiam apressados. Um deles disse: —
Voltem para casa, isto aqui está perigoso.
Tudo parecia surpreendentemente calmo na rua Saint-Andrédes-Arts, uma
zeladora varria a entrada da porta, como em todas as manhãs. O livreiro bebia
o habitual copito de vinho branco no balcão da tabacaria, acompanhado do
gráfico da rua Séguier; a mulher que vendia doces limpava os vidros cheios de
falsos bombons.
Em Saint-Michel, uns paspalhos olhavam com ar satisfeito para a
Delegacia e para Notre-Dame, sobre os quais flutuavam bandeiras tricolores.
Laure e Léa foram saudadas com gritos ao chegarem ao apartamento de
Franck.
— Trouxe minha irmã, Léa, de quem já lhe falei.
— -Fez bem. Bom-dia, Léa. É verdade que você é uma heroína da
Resistência?
— Não se deve acreditar em tudo o que Laure diz. Ela sempre exagera.
— Não exagerei nada...
— Fique quieta. Não gosto de falar nisso.
— Como quiser. Mas, resistente ou não, seja bem-vinda. Venha ver.
O jovem conduziu Léa para junto de uma das altas janelas do vasto salão.

— Olhe! É como se estivéssemos instalados em camarotes de primeira.
Minha mãe vai sentir muito ter ido para a Touraine.
Por nada do mundo perderia tal espetáculo. Tenho a certeza de que
convidaria todas as suas belas amigas se estivesse aqui.
Que é que acha? Bela perspectiva, não é verdade?
— Sim, muito boa.
— Tem alguma coisa para comer, Franck? Saímos tão depressa que não
tivemos tempo de comer nada.
— Já sabe como é: em casa de Franck não falta nada. Além de pão, um
pouco duro, aliás, há presunto, salsichão, patês, frango frio, alguns doces e
vinho, champanhe e uísque à vontade.
— É dono de alguma mercearia? — Léa perguntou secamente.
— Poderia ser, senhorita. Mas prefiro o comércio de meias de seda,
perfumes e cigarros. Você fuma? Cigarros ingleses ou americanos? A escolher.
O qual prefere?
— Americano. Mas, antes, quero comer. Estou com fome.
— Às suas ordens. Ei, vocês... tragam de comer e de beber à princesa!
Vossa Alteza se dignará a beber à saúde dos nossos futuros libertadores?
Pela primeira vez desde que havia chegado, Léa observou o jovem. Tinha
um jeito de amigo de infância, aquele que ouve as confidências, com quem se
partilha os segredos, mas a quem nunca se olha como homem. Não muito alto,
perdido dentro de um casaco de ombros excessivamente largos, calças curtas
demais, deixando à mostra as meias brancas e os inevitáveis sapatos de sola
tripla do perfeito excêntrico. Uma grande mecha de cabelos loiros, penteados
segundo os cânones de última moda, esmagava-lhe o rosto ingrato, de traços
ainda infantis.
Segundo Laure, aquele garoto era um dos reis do desembaraço e, sem o
conhecimento dos pais, acumulara fortuna trabalhando no mercado negro.
Generoso, gostava de presentear os amigos e os amigos dos amigos. Satisfeita
com o exame, sem dúvida, Léa dignou-se a lhe sorrir — É isso, bebamos à
libertação de Paris.
Sentada no parapeito da janela, Léa se surpreendia por estar tomando
champanhe nessa cidade insurreta, que se preparava para combater.
Agentes da defesa passiva atravessaram a praça Saint-Michel, gritando
que o toque de recolher seria dado às catorze horas.
— Não é verdade — garantiu um rapaz, entrando na sala. — Passei pelo
meu comissariado e informaram-me de que não sabiam de nada. As Forças
Francesas do Interior que o ocupam também não sabem de nada. Ora, gente
nova! Bom dia, eu me chamo Jacques.

— Bom-dia. E eu, Léa. De onde vem?
— Um pouco de cada lugar. Há muitas prefeituras em poder de
comunistas.
— Como sabe?
— São os boatos que correm por aí. Os comunistas são os únicos
suficientemente organizados e armados. Há postos de socorro com a bandeira
da Cruz Vermelha montados na rua Rivoli, na rua do Louvre, no Chatelet, na
République e na avenida Grande-Armée. Começou também a caça às armas.
Quem dispõe de uma faca alivia um soldado alemão de sua pistola ou de seu
fuzil, com o fuzil, apodera-se de uma metralhadora e, com a metralhadora,
consegue um caminhão de munições que distribui entre os camaradas. Um
boche para cada um é a palavra de ordem entre os novos recrutas.
— Também vai lutar? — perguntou Léa.
— E por que não? Seremos os heróis de amanhã. Pensarei no caso depois
de comer alguma coisa.
Todo o grupo, cinco rapazes e três moças, instalou-se na cozinha, onde
Laure e Muriel, uma bela loira, tinham posto a mesa.
— E que tal um disco? Seria mais divertido.
— Claro. Põe as irmãs Andrews — disse Muriel.
— De acordo. Que canção você quer?
— Pode ser Pennsylvania Polka ou Sonny Boy.
— Como conseguiram arranjá-los? — perguntou Léa, admirada. — Pensei
que a música americana fosse proibida.
— Temos as nossas influências. Nós lhe diremos quando a guerra
terminar.
As vozes das irmãs Andrews irromperam pela casa. A refeição decorreu
alegremente, cada um dizendo o seu gracejo, a sua palavra espirituosa. Eram
todos tão jovens e despreocupados que Léa se surpreendeu a rir com suas
piadas, sob o olhar aprovador de Franck, que voltou a encher seu copo de
vinho.
Depois, o dono da casa levantou-se para dar corda no gramofone. Em meio
ao relativo silêncio, ouviram-se diversos disparos.
— Venham depressa! Os alemães estão atacando.
Todos correram para as janelas.
Na avenida do Palais, os ocupantes de três caminhões atiravam contra a
porta da Delegacia e três carros de assalto rumavam em direção de Norte-
Dame. Disparos partiram do Palácio da Justiça e da Delegacia, abatendo
alguns agressores.

Em seguida, os caminhões desapareceram rumo ao Chatelet. Morteiros
explodiram. Pouco depois, outros caminhões pararam na avenida do Palais. De
onde se encontravam, os jovens viram homens em mangas de camisa, armados
de espingardas e de pistolas, esconderem-se na entrada do metrô e do café do
Départ, em cuja porta instalaram uma metralhadora.
Seu primeiro alvo foi um caminhão vindo da ponte Saint-Michel. Feriram
um soldado. Este tombou em cima da cabina do veículo, deslizando depois para
o piso da rua, O caminhão deteve-se, enquanto um outro ia esmagar-se contra
a Rotisserie Périgourdine, na esquina da plataforma dos Grands-Augustins,
saudado pelos gritos de alegria dos espectadores.
Elementos das Forças Francesas do Interior corriam para recolher os
corpos, abrigando-os nas escadas de acesso ao Sena, sob os olhares
interessados dos banhistas que se bronzeavam na margem oposta, encostados
ao muro da plataforma dos Orfèvres.
Na direção de Chatelet, subia uma fumaça negra de um caminhão
incendiado. Um veículo marcado com o V da vitória e a cruz de Lorraine virou
para o cais Saint-Michel com forte rangido de pneus, seguido por uma
ambulância e por um carro de bombeiros.
No adro de Notre-Dame, três tanques preparavam-se para investir contra a
Delegacia.
— Não conseguirão se agüentar — prognosticou Franck. — Mal dispõem
de munições e não será meia dúzia de sacos de areia que os protegerá dos
morteiros.
Um grupo de adolescentes passou correndo pela plataforma,
transportando uma velha metralhadora que Franck identificou como sendo
uma Hotchkiss. Um deles tinha uma tira de balas em volta do pescoço.
Chamava-se Jeanot, tinha quinze anos e não sabia que iria morrer pouco
depois na plataforma de Montebeilo, a garganta aberta por um projétil.
Uma garrafa incendiária, atirada de uma das janelas da Delegacia,
aterrissou em cima da pequena torre aberta de um tanque, que se inflamou
instantaneamente. Os gritos de regozijo dos sitiados atravessaram o Sena,
misturando-se aos dos habitantes do cais Saint-Michel que, apoiados em suas
janelas e inconscientes do perigo, não perdiam nenhuma pitada do espetáculo.
Surgiu um grupo de prisioneiros alemães escoltados por elementos da
Forças Francesas do Interior. Na praça, um transeunte foi atingido por uma
bala perdida. Um alemão coberto de sangue rodopiava, disparando para o ar.
Um projétil fez sua cabeça explodir. Durante segundos terrivelmente longos, ele
continuou a avançar, só depois tombando no meio da calçada. Léa foi a única a
não desviar os olhos.
Uma grande explosão sacudiu todo o bairro: um caminhão-tanque,
transportando gasolina, acabava de se chocar contra a parede do Hotel Notre-
Dame. As chamas incendiaram o toldo e subiram pela fachada do edifício.

Alguns F.F.I. abandonaram seus postos para tentar desviar o veículo e proteger
o velho prédio. Felizmente, muito rápido, se ouviu a sirene dos bombeiros.
Aproveitando um momento de calma, um dos rapazes do grupo decidiu dar
uma volta. Voltou depois de uma hora, informando que fora decidida uma
trégua para se recolherem os mortos e os feridos. A boa notícia foi saudada,
como convém, com a abertura de uma garrafa de champanhe, a qual depois de
esvaziada foi se juntar às suas irmãs dentro de uma banheira.
A noite anunciava-se pesada e tempestuosa. Os parisienses tinham
retomado posse das ruas da capital e passeavam, detendo-se por vezes junto a
uma poça de sangue já meio seca, subitamente silenciosos e meditativos.
— Ai! Não avisamos as tias! — exclamou Laure, lançando-se em direção do
telefone.
Acima do Pont-Neuf, o céu ficava cada vez mais ameaçador.
— Tia Albertine quer que a gente volte para casa imediatamente. Parece
que Charles está com febre muito alta.
— Não chamaram o médico?
— Não respondem na casa do dr. Leroy e os outros médicos se recusam a
sair de casa.
— Está bem, então eu vou. Você vem comigo?
— Não. Fico aqui. Se precisar de mim, telefone. Quer dar o número de seu
telefone para Léa, Franck?
— Claro que sim. Eu a acompanho — ofereceu-se o rapaz. — Estarei de
volta em menos de meia hora. Vou com a sua bicicleta, Laure.

Capítulo 16

LÉA PASSOU TODA a noite à cabeceira da criança que delirava. Pela
manhã, embrulhou-a num cobertor, pediu emprestado à zeladora o carrinho de
bebê caindo aos pedaços, onde deitou o menino, e dirigiu-se ao hospital mais
próximo.
O céu ainda não estava coberto pelas nuvens negras da tempestade
anterior. Do piso molhado subia um cheiro de pó. Não havia ninguém nas ruas
nessa manhã de domingo, que o silêncio opressivo tornava inquietantes.
No hospital Laennec, na rua de Sèvres, um interno de plantão ocupou-se
da criança. Manifestamente incapaz de saber qual a doença que Charles sofria,
o médico aconselhou a deixá-lo ali até a chegada do professor, e a voltar mais
tarde. Diante de sua recusa em abandonar a criança, levou-os então para um
quarto com duas camas, depois de ministrar um medicamento ao pequeno
doente.
Já era tarde quando Léa despertou ao som de uma voz.
— Ora bem, a mocinha tem um sono profundo! É seu filho?
— Não, não é meu.
— Onde estão os pais?
— O que ele tem, doutor?
— Uma forma de laringite aguda, complicada por um princípio de
congestão pulmonar.
— É grave?
— Pode ser. Seria conveniente interná-lo.
— E não é possível?
— Grande parte do pessoal está fora. Mas não respondeu à minha
pergunta: onde estão os pais da criança?
— A mãe foi morta pelos alemães e o pai está com o general De Gaulle —
explicou Léa.
— Pobre pequeno.
— Léa... Léa...
— Estou aqui, meu querido.
Charles agarrou-se a ela, gemendo. O médico observava-os com ar
preocupado.
— Leve-o para casa e siga à risca o que vou prescrever. Sabe dar injeções?

— Não sei.
— Não faz mal. Aprenderá logo.
— Mas...
— Não é muito complicado.
A porta do quarto abriu-se de repente.
— Chegaram algumas crianças feridas, doutor.
— Com gravidade?
— Ferimentos no ventre e nas pernas.
— Vou já. Leve-as para a sala de operações. Está vendo, senhorita? Era
isto que eu receava... a chegada de feridos quando não dispomos de pessoal
suficiente para atender os enfermos.
O médico acabou de redigir a receita e disse:
— Na entrada, peça à enfermeira o endereço da farmácia de plantão e
deixe-me o seu endereço. Tentarei passar por sua casa amanhã ou mandarei
um de meus colegas.
— Doutor, ele... não vai..
— Esteja descansada. É um homenzinho forte, muito capaz de sobreviver a
tudo isto. Dê-lhe os remédios pontualmente e vigie sua temperatura.
Durante os três dias seguintes, Léa dormiu apenas algumas horas,
completamente alheia ao mundo exterior, vivendo ao ritmo da respiração da
criança. Preces ingênuas brotavam de seus lábios pálidos. Suas mãos já não
tremiam ao aplicar as injeções. Ao amanhecer do dia 23 de agosto, a febre
diminuiu. O rapazinho, emagrecido, disse em voz fraca:
— Estou com fome.
Léa o cobriu de beijos e ele sorriu com ar cansado, mas feliz.
— O que está acontecendo? — perguntou Albertine, empurrando a porta
do quarto.
É maravilhoso, tia! Charles está curado: pediu comida.
— De fato, é uma boa notícia. Felizmente Laure conseguiu desencartar um
pouco de leite e biscoito. Vou dizer a Estelle que os traga.
O garoto triturou um biscoito e bebeu metade do leite, voltando a
adormecer instantaneamente sob os olhares enternecidos das quatro mulheres,
que abandonaram o quarto na ponta dos pés.
Tem água? — perguntou Léa. — Estou com vontade de tomar um banho.
— Tem. Mas fria, como sempre.

Fria? Ela estava verdadeiramente muito fria. Mas, mesmo que estivesse
ainda mais fria, Léa teria se banhado com o mesmo deleite, a fim de se
desembaraçar da angústia que, como a sujeira, colava à sua pele desde o
instante em que sentira a morte rondando Charles. Obstinando-se em salvá-lo,
pressentira os momentos mais críticos, aqueles em que o corpo se despoja de
suas defesas, e, tal como uma feiticeira, insuflara nele a própria energia através
das mãos. A tensão a esgotara. Sabia agora, porém, que a criança estava salva.
A angústia e o cansaço dissolviam-se na água que arrepiava sua pele. Em
movimentos vigorosos, esfregou o corpo com a luva de crina ensopada na
espuma do sabonete com perfume de junquilho, presente de Laure. Não
dispunha de shampoo, lavou os cabelos com sabão e depois molhou-os em
água com vinagre, para deixá-los brilhantes.
Sem indulgência, examinou-se no espelho do móvel de madeira dourada,
que dava um toque de luxo no singelo banheiro de ladrilhos brancos.
— Só tenho pele e osso — comentou em voz alta.
Havia emagrecido muito, sem dúvida, mas a imagem refletida no espelho
estava longe de a desagradar. Com complacência, acariciou os seios de pontas
endurecidas pelo frio, arqueou os rins e pensou ouvir a voz de François
Tavernier exclamando com admiração: Que belo cu! Enrubesceu a tal
lembrança, percorrendo-a um arrepio de prazer. Enrolou-se no roupão grosso e
secou os cabelos com energia. Nesse instante, o telefone tocou no vestíbulo.
— Laure quer falar com você — gritou Albertine do outro lado da porta.
— Já vou.
Com os cabelos em desalinho, Léa pegou no fone.
— Alô? Léa? Tia Albertine me disse que Charles está melhor. É verdade?
— Sim. Já não tem febre. Comeu alguma coisa esta manhã. Você poderia
conseguir mais leite?
— Está cada vez mais difícil, com a greve geral. Os caminhoneiros se
recusam a viajar pelo interior, O abastecimento de víveres não está assegurado,
exceto no que diz respeito à carne, graças às Forças Francesas do Interior, que
se apossaram de três mil e quinhentas toneladas armazenadas pelos alemães
nos frigoríficos de Bercy e de Vaugirard. Posso arranjar, mas preciso de senhas,
pois, neste momento, a fiscalização anda de olho no mercado negro.
— Passo por aí para levá-las.
— Tenha cuidado! A situação já não é a mesma desde sábado. No Quartier
Latin houve muita luta ontem e anteontem. Há barricadas por toda a parte,
policiais e alemães emboscados nos telhados disparando sobre os transeuntes.
Todos os dias, se empilham centenas de mortos no necrotério. Com este calor,
não é difícil imaginar o cheiro em Norte-Dame-de-Victores, onde se celebram as
missas. É lá que ficam as urnas, enquanto não são levadas para o cemitério de
Pantin, onde são enterradas na quadra destinada aos rebeldes. O pessoal da

Cruz Vermelha tem sido formidável! Não só socorrem os feridos como
substituem os empregados das agências funerárias que estão em greve. Tem
notícias de Françoise?
— Não... Acho que não.
— Estou preocupada com ela. Ontem na praça Saint-Michel, a multidão
linchou um colaboracionista. Foi um espetáculo horrível. As mulheres eram as
mais ferozes. Bateram-lhe com tudo o que tinham a mão, soltando gritos
histéricos.
Contaram-me que furaram os olhos dele com uma travessa de cadeira
quebrada. Deve ter sido horrível. E os gritos!.. O mais insuportável, porém,
eram esses panacas que se divertiam com o espetáculo, rindo e impedindo que
os elementos das Forças Francesas do Interior se aproximassem. Quando se
cansaram de bater, desapareceram com as mãos e as roupas sujas de sangue,
deixando na calçada uma massa informe. Alô? Ainda está aí?
— Sim, estou. Mas por que está me falando isso? Que relação pode ter com
Françoise?
Foi a vez de Laure ficar quieta, enquanto Léa gritava:
— Alô? Alô? Está me ouvindo?
— Sim.
— E então?.
— Também prendem as mulheres que dormiram com alemães.
— E que é que lhes fazem?
— Parece que raspam seus cabelos.
— Raspam os cabelos?!
— Sim. Isso já aconteceu em alguns lugares. Depois prendem os cabelos
nas grades e pintam cruzes gamadas nos crânios. É mais freqüente com
prostitutas ou com as galinhas denunciadas por vizinhos.
— Françoise não é nada disso! .
Eu sei. Mas você acha que eles irão se questionar? Tenho esperança de
que Françoise tenha seguido os meus conselhos e agora esteja a caminho da
Alemanha com o filho.
— Telefonou para a casa dela?
— Claro que telefonei. Mas ninguém respondeu. A última vez que falei com
ela foi na segunda-feira de manhã. Tinha acabado de receber a visita de um
oficial que ia buscá-la para levá-la a um hotel requisitado pelos alemães. Estão
levando para lá todas as mulheres na mesma situação que ela. Mas ela se
recusou a segui-lo.
— Qual é o hotel?

— Não sei. Não guardei o nome.
— Nesse caso, temos de telefonar para todos.
— Você sabe quantos hotéis existem em Paris, Léa?
— Não, mas não importa. Em primeiro lugar, telefonaremos para todos os
que constem do Michelin. Sabe se Franck tem algum desses guias?
— Tem... acho..
— Enquanto não chego aí, comece pelos hotéis que estão em último lugar.
Vou pedir as tias que telefonem para os primeiros da lista e que nos avisem se
acaso obtiverem algum resultado. Até já.
— Tenha cuidado...
Léa já havia desligado.
As senhoras de Montpleynet ficaram muitíssimo preocupadas quando ela
explicou a situação, mas Albertine se recompôs rapidamente, e começou a dar
telefonemas.
— Alô? É do Crilion?
— Ora, tia Albertine, eu me surpreenderia se Françoise estivesse no
Crilion, no Majestic, no Meurice, no Continental ou no Lutétia, todos ocupados
por repartições alemãs.
A rua da Universidade estava completamente deserta. Diante da Faculdade
de Medicina, na rua dos Saints-Pères, via-se a carcaça enegrecida de um
caminhão, ostentando a cruz de Lorraine. Na rua Jacob era a mesma
tranqüilidade.
Léa ia virar para a rua de Seine, a fim de atingir o cais pela rua
Guénégaud, quando se lembrou da prisão de Sarah Muistein.
Não havia mais passado por ali depois daquela noite fatídica.
Continuou em direção à rua de Buci. Em frente da padaria, uma enorme
fila de donas-de-casa arrastava-se desde o amanhecer. Apesar do cansaço e do
abastecimento precário, circulava no meio daquela gente uma espécie de bom
humor que não se via há quatro anos, como se a atmosfera de Paris estivesse
mais leve.
Na rua Dauphine, um jovem, de espingarda a tiracolo e um pacote de
jornais debaixo do braço, pedalava sua bicicleta, gritando:
— Comprem o L'Humanité! Quer o jornal, senhorita? — ele perguntou,
parando junto de Léa.
— Já estão publicando jornais novamente?
— Desde segunda-feira. Aqui está! São dois francos. Obrigado. Não vá para
o pont-Neuf — recomendou o rapaz. — Os alemães estão atacando atrás de
barricadas. Há pouco, uns bandidos que seguiam numa viatura com as iniciais

das Forças Francesas do Interior dispararam sobre patriotas e mataram dois.
Os boches fugiram pela rua Christine. Até logo!
Léa encostou-se num portão e começou a ler:
Paris inteira às barricadas!.. O comandante das Forças Francesas do
Interior para a Grande Paris conclama o levantamento geral dos parisienses...
— É necessário que todos, homens, mulheres e crianças, colaborem na
fortificação das ruas, dos prédios, dos edifícios públicos; que toda a população
participe com coragem e abnegação, no apoio às gloriosas Forças Francesas do
Interior. Formem, onde quer que estejam, grupos de Lutas Patrióticas! O ataque
é a melhor defesa. Persigam o inimigo! — NEM UM SÓ BOCHE DEVE SAIR
VIVO DA PARIS AMOTINADA!
A batalha se desenvolve em todas as frentes... A luta tem prosseguido feroz
durante todo o dia, no primeiro, quarto, quinto e sexto bairros, e por toda a
parte os patriotas levam vantagem... Guerra de todo o povo contra o boche
execrado... As mulheres comunistas lutam pela libertação de Paris... como uma
jovem foi torturada pela polícia... Engajem-se no partido armado!
Na praça de Saint-André-des-Arts, muita gente se agita, grita. Homens não
tão jovens, mulheres, muitas mulheres, novas e velhas, todos com a mesma
expressão de ódio estampada no rosto, o mesmo rito de raiva na boca,
vomitando maldições.
Erguem braços nus, com os dedos transformados em garras.
— Patife! Colaboracionista! Nojento! Vendido! Traidor! Assassino! — grita a
multidão.
Um homem alto e loiro debate-se no meio dessas fúrias. Unhas pintadas
rasgam-lhe as faces.
— Mas eu sou alsaciano — grita o homem.
— Alsaciano é o olho do cu! — responde uma voz com sotaque parisiense.
A frase fez o povaréu rir.
Da janela ocupada por elementos das Forças Francesas do Interior, um
indivíduo em trajes vagamente militares tenta se fazer ouvir. Uma moça zomba
dele encostando o polegar na ponta do nariz. Uma falsa loira, com uma fita
preta nos cabelos vocifera:
— É um boche! Eu o conheço. Tenho certeza. Matem-no!
Agarra-o pelos cabelos enquanto uma outra mulher cospe no rosto do
infeliz e outra ainda procura lhe desabotoar as calças, ironizando:
— Vamos ver se este porco tem ovos.
A multidão é sacudida por uma onda de risos e entoa: — O boche em pêlo!
O boche em pêlo!

Bestificado, procurando repelir as garras que o aprisionam, o homem
repete:
— Sou alsaciano! Sou alsaciano!
O sangue escorre de seu nariz e das faces. Um de seus olhos está fechado.
Cai pela primeira vez. Os pontapés chovem em cima dele. Um dos golpes o
atinge no nariz. Ele se ergue.
Um rapaz ostentando uma tarja das Forças Francesas do Interior tenta
intervir. Mas três homens o seguram pelos braços, o levantam e o colocam
gentilmente ao lado de Léa, que não consegue desviar os olhos do massacre.
Sem perceber, depois de alguns segundos, ela oscila para a frente e para trás,
como em geral fazem os cegos. Em sua cabeça, os pensamentos se chocam e
explodem em fragmentos desordenados.
Do buraco sangrento onde fora uma boca, sai agora um gorgolejar de
palavras:
— Chou... chou... alchachiano...
A náusea obriga Léa a desviar os olhos. O rapaz da tarja continua seu
lado. É muito jovem ainda. Sobre seu rosto pálido escorrem lágrimas, deixando
um rastro claro. Seus olhares se cruzam.
— Léa!
— Pierrot!
Atiram-se nos braços um do outro, tremendo de repugnância e de pavor.
Léa é a primeira a se soltar.
— Vão matá-lo — diz.
— Não podemos fazer nada. São muito numerosos.
— Você pertence às Forças Francesas do Interior... vai buscar os seus
camaradas.
— Não vão querer vir. Um deles quase foi linchado ontem em lugar do
colaboracionista que pretendia defender.
— Que horror!
— Não olhe. Venha comigo. Vamos ao PC do coronel Lizé na rua
Guénégaud.
— Mas eu não quero ir à rua Guénégaud! — gritou Léa.
Tamanha veemência surpreendeu Pierrot Delmas.
— Eu tenho de ir lá, Sirvo de agente de ligação entre Lizé e Rol.
— Quem é esse Rol?
Pierrot olhou-a com espanto e censura.

— Nunca ouviu falar no coronel Rol? É o chefe da insurreição, o chefe das
Forças Francesas do Interior.
— E Lizé?
— O coronel Lizé é outro chefe. Não entendi muito bem o papel dele;
histórias de política. Tudo o que sei é que Rol é comunista — explicou o rapaz.
— Seu pai ficaria muito satisfeito se o visse nessa companhia — Léa falou
com um sorriso triste.
— Não me fale de meu pai; não passa de um colaboracionista. Para mim
está morto.
Enquanto conversavam, Pierrot conduzia a prima até a rua Git-le-Coeur.
Parou diante da vitrine suja de uma pequena mercearia, subiu três degraus e
bateu à porta.
— Está fechada — resmungou uma voz vinda do interior.
— Abra. É Pierrot... de Bordéus.
A porta se entreabriu.
— Ah, é você! Entra, rapaz. Quem é essa aí?
— Minha prima Léa.
A mercearia também funcionava como restaurante. As paredes estavam
cobertas de cromos, de vistas de Epinal, de gravuras, de retratos de Napoleão
mais ou menos bem-sucedidos, tudo uniforme- mente revestido por escura
camada de sujeira. A sala era dividida por um curto balcão de madeira que
servia ao mesmo tempo de bar e de mostruário de eventuais mercadorias,
naquele dia representadas por latas de imitação de conservas. Atrás ficava a
sala de jantar, com mesas cobertas por toalhas xadrez de branco e vermelho, e
um fogão preto, enorme e antigo, com os cobres brilhantes, que, naquele
momento, servia apenas como suporte de um fogareiro a álcool, sobre o qual
cozinhava alguma coisa cujos eflúvios faziam lembrar vagamente coelho
guisado. O cheiro foi quase fatal para Léa.
— Cuidado com sua prima! Vai desmaiar! — gritou a mulher que lhes
abrira a porta.
Pierrot ajudou Léa a sentar-se e a beber o cálice de aguardente oferecido
pela dona-da-casa. Em suas faces reapareceu um pouco de cor e os objetos
voltaram aos seus lugares.
— Está melhor? Toma... beba mais um pouco.
— Não, obrigada.
Olhou em volta. O local parecia não ter mudado desde o começo do século.
Antes da guerra, talvez ali se comesse bem.

Adivinhava-se isso pelo fogão, conservado com amor. Léa sentiu-se mais
tranqüila; quem cozinhava bem não podia ser inteiramente mau. — Devem
estar com fome — resmungou a mulher, encaminhando-se para o fogão.
— Se tenho! — exclamou Pierrot, que comera a sua última refeição de fato
há vários dias.
— Não, muito obrigada, minha senhora — recusou Léa. — Tomarei apenas
um copo de água.
— Você faz mal em não comer — disse o primo. — Apesar das restrições, a
senhora Laetitia cozinha muito bem.
Instalaram-se à mesa, diante do prato fundo cheio de uma espécie de
guisado escuro, onde se desprendia espesso vapor.
— Não entendo como ainda tem vontade de comer — criticou Léa em tom
irritado.
Sob a sujeira que lhe manchava o rosto, Pierrot corou violentamente.
Deixou cair a garrafa que se preparava para enfiar na boca e olhou a prima com
ar tão infeliz que ela se censurou pela observação.
— Perdoe... Vamos... coma. E conte-me o que tem feito até agora.
De boca cheia, o rapaz contou:
— Quando soube que meu pai pretendia internar-me nos jesuítas, com
ordem para proibirem as saídas, decidi me reunir aos resistentes. Eu a poupo
dos pormenores das viagens, escondido em vagões de mercadorias, das noites
passadas nas valetas para escapar aos soldados, e das pilhagens que fiz pelos
campos. Fui perseguido por policiais na estação de Limoges, mas consegui
escapar graças à ajuda dos ferroviários. Esconderam-me durante vários dias
num velho vagão parado numa linha de estacionamento. Mas havia tantos
alemães e policiais vigiando todos os passageiros e todos os empregados que
não podiam me tirar de lá. Até que enfim, certo dia, me esconderam no vagão
de transporte de gado de um trem com mercadorias de partida para
Eymoutiers.
— Eymoutiers... Não fica em Limousin?
— Fica. Por quê? Conhece?
— Não, mas tive uma amiga judia que se refugiou lá durante algum tempo.
Mas continue.
— Em Eymoutiers, outros ferroviários ocuparam-se de mim e me levaram
à presença do chefe, o coronel Guingouin, a quem chamam o Grande, ou Raul.
Que homem aquele! É o terror dos alemães da 196 região. Dirigia tudo a partir
do seu PC, na floresta de Châteauneuf. Infelizmente, a chegada do inverno
obrigou-nos a abandonar a base de Trois-Chevaux. Foi bem em tempo, porque
alguns dias mais tarde três mil alemães chegaram à floresta.

Eles chamavam esse lugar de Pequena Rússia, de tanto que temiam as
emboscadas. Tinham tido muitos mortos ali. Durante os últimos seis meses,
servi de agente de ligação entre as diversas bases. Fiquei conhecendo todas as
aldeias, todas as matas. Graças à organização de Guingouin, estávamos
devidamente vestidos e alimentados. Todo o conjunto da população era a nosso
favor. Eu quis acompanhá-lo em sabotagens e em ataques a trens inimigos,
mas ele dizia que eu era jovem demais para isso. No início deste mês, enviou-
me aqui com uma mensagem para o coronel Rol. A greve e, em seguida, a
insurreição impediram-me de voltar. É tudo.
Léa olhou o primo com admiração. Como havia crescido esse garoto que
antigamente a olhava fascinado!
— E você, desde quando está em Paris?
— Também desde o início do mês.
— Como vai o pessoal de Montillac? Camille tem recebido notícias de
Laurent? E a tia Bernadette? E Ruth? E Mathias? Mas, que é que você tem?
De cabeça baixa, Léa esfregava a fronte num gesto maquinal.
— O que você tem? — repetiu Pierrot, ansioso.
— Camille e tia Bernadette morreram. Montillac já não existe.
— Que história é essa?
— Foram mortas pelos alemães e pelos policiais. E depois eles atearam
fogo na casa.
Ambos ficaram em silêncio durante muito tempo. Um grupo ruidoso
irrompeu pela mercearia-restaurante, arrancando-os dos pensamentos tétricos.
— Ah, está aqui, Pierrot? Nós o procuramos por toda a parte. Receamos
que o tivessem deixado no mesmo estado a que reduziram o colaboracionista
que se dizia alsaciano.
— E quase que aconteceu — interveio Léa.
O rapaz, pouco mais velho que Pierrot, voltou-se para a moça,
surpreendido pela violência do tom.
— É possível. Mas a população sofreu tanto que é natural o seu desejo de
se vingar.
— Natural? Acha natural essa carnificina?
— E os boches não se comportam como carniceiros? Sabe quantos
camaradas nossos eles assassinaram na cascata do bosque de Boulogne, na
semana passada? Não sabe? Trinta e cinco rapazes da sua idade! Magisson,
dezenove anos... Verdeaux, dezenove anos. Smet, vinte... Scholsser, vinte e
dois... — Dudraisil, a quem chamamos Philo, vinte e um... os irmãos Bernard,
vinte e vinte quatro anos... Quer que continue?

— Sei tão bem quanto você do que eles são capazes. Já os vi atuar. Mas
não é motivo para ser pior que eles.
Mediam-se com o olhar, ambos muito pálidos. Pierrot interveio:
— Deixe-a. Ela tem razão.
— Pode ser que tenha, mas não é o momento adequado para dizer.
— Você vai ver. Nunca será o momento.
Cale-se, Léa. Você vem comigo ao PC do coronel Lizé?
— Não. Preciso encontrar Laure. Estamos na casa das tias de Monpleynet.
Telefone. Gostaria de vê-lo de novo e de conversar com você.
— Eu telefono ou passo por lá assim que tiver tempo. Beije Laure por mim.
Separaram-se diante da loja.
Léa levou quase uma hora para atravessar a praça de Saint-Michel.
Atiradores emboscados nos telhados dos prédios disparavam sobre os
transeuntes que se arriscavam. Duas pessoas haviam sido abatidas.
Quando, por fim, Léa chegou à casa de Franck, parecia que um verdadeiro
ciclone devastara o local, agora ocupado por uns quinze elementos das Forças
Francesas do Interior. Do grupo habitual, restavam apenas Laure, Muriel e
Franck, que a receberam com alegria.
— Conseguiu localizar Françoise?
— Ainda não. Telefonamos para uns vinte hotéis, mas sem resultado.
— Temos de continuar. Encontrei-me com Pierrot na rua!
— Pierrot?!
— Sim. O nosso primo mais novo.
— O filho do tio Luc?
— Sim.
— Que bom! Que ele faz aqui?
— Anda de tarja e com uma grande pistola na cintura.
Na cozinha, dois jovens preparavam garrafas incendiárias, segundo a
receita de Frédéric Joliot-Curie, difundida pelo coronel Rol: basta uma garrafa
comum, que se enche com três quartos de gasolina e um quarto de ácido
sulfúrico. Fecha-se com rolha e coloca- se-lhe um rótulo embebido em clorato
de potássio. Quando a vasilha se quebra, o clorato em contato com a mistura
do interior se inflama instantaneamente. É uma arma temível no ataque aos
carros de assalto.
De súbito, um enorme estrondo fez com que os habitantes se
precipitassem para as janelas. Os defensores da rua da Huchette escalavam a
barricada para investigar o que acontecera. A mulher da padaria gritava:

— Os boches estão explodindo Paris!
Como um rastro de pólvora, o boato propagou-se de imediato pelo bairro
inteiro, provocando um começo de pânico. À distância, para os lados dos
Campos Elíseos, subia no ar espessa coluna de fumaça. Todos se contraíram, à
espera de novas deflagrações. Mas, exceto por alguns disparos isolados no lado
de Luxemburgo, nada mais se ouviu.
Pouco a pouco, combatentes e curiosos retomavam os hábitos adquiridos
nesses últimos dias, gritando à passagem de um grupo de uns quinze
prisioneiros alemães de fardas em desalinho, mãos cruzadas sobre a cabeça,
escoltados por três elementos das Forças Francesas do Interior, munidos de
espingardas, que iam reunir-se aos camaradas na Delegacia.
De repente, vinda do cais dos Grands-Augustins, uma moto surgiu a toda
velocidade e avançou sobre o grupo. Com uma rajada, o passageiro abateu um
dos homens da escolta e um clamor subiu da barricada. Um jovem escalou os
obstáculos defensivos e arremessou uma garrafa incendiária na direção dos
dois alemães. Mas não chegou a ver o resultado do gesto heróico, pois nova
rajada de metralhadora o prostrou sobre o amontoado de objetos que formavam
a barricada.
Irrompeu então, diante da motocicleta, uma enorme labareda e o condutor
não conseguiu evitá-la. Em segundos, os dois alemães viram-se transformados
em tochas vivas. O veículo em carreira desordenada, transportando duas
criaturas de fogo envoltas num clarão multicolor, foi chocar-se contra o
parapeito próximo da loja de sebo. Por momentos, tudo pareceu estático, exceto
o braseiro de onde emergia — acusadora? — uma mão apontando para o céu.
De dedos crispados no parapeito da janela, Léa revia o suplício da tia
Bernadette com a mesma e atroz sensação de impotência. Tanto o alemão como
a velha senhora tinham tido, ao morrer, o mesmo gesto de apelo. Será que a
morte pelo fogo elevava os corpos para Deus?
Depois daquela pausa, tudo se passou rapidamente, por detrás da
barricada da praça de Saint-André-des-Arts e das ruelas vizinhas, irrompeu
uma multidão ululante que se precipitou para os prisioneiros. Eles haviam
assistido, petrificados, à morte dos compatriotas. Os dois sobreviventes das
Forças Francesas do Interior tentaram se interpor, mas foram varridos pela
onda humana. Um deles saiu correndo para a Delegacia, em busca de auxílio.
Quando voltou, acompanhado de uma dezena de agentes policiais, três
alemães já estavam mortos. De um deles haviam arrancado os olhos, o outro
não tinha mais nariz e o rosto do terceiro desaparecera. Os camaradas,
enrodilhados sobre si mesmos, estavam feridos com maior ou menor gravidade
e esses soldados corajosos, muitos dos quais haviam lutado na frente russa,
choravam como crianças.
A chegada das Forças da Ordem, com alguns agentes uniformizados, fez
diminuir a fúria do povaréu. E toda aquela gente, boa gente, sem dúvida, se

afastou vacilando sob o efeito da embriaguez da carnificina, e em sua maioria a
tirou da memória.
Os espectadores, porém, os que assistiram, impotentes, ao massacre,
esses não o esqueceriam jamais.
No grande apartamento reinava agora um silêncio apavorado. Os jovens
não se atreviam a olhar uns para os outros. Os resistentes, sentados pelo chão,
de armas apoiadas nas pernas, mantinham os olhos baixos. Franck e os
amigos, em pé, contemplavam a parede diante deles. A chegada de um tenente
contribuiu para diminuir um pouco o mal-estar.
— Os boches puseram fogo no Grand-palaís! — anunciou o recém-
chegado.
— Então foi essa a explosão e a fumaça que vimos há pouco.
— Mas havia um circo lá dentro.
— Sim, o Circo Houcke. Não sei se o grupo de salvamento conseguiu
libertar as feras. Os cavalos escaparam. Um deles foi abatido no Rond-Point dos
Campos Elíseos. Vocês podem não acreditar, mas vi homens e mulheres com
facas, correndo para o corpo do animal a fim de o esquartejarem, sem se
importarem com as balas que vinham de todos os lados. Havia mesmo pessoas
de pratos em punho! Quando saí de lá já restava pouco do animal.
— Você podia ter trazido um pedaço.
— E você não queria mais nada? Aqueles bandidos teriam me enterrado
uma faca nas costas.
A frase pronunciada com sotaque parisiense provocou uma gargalhada
geral.
— Imagine a cena: as figuras de guardanapo branquinho preso ao pescoço,
instaladas em volta do Rond-Point, comendo carne crua com as mãos,
enquanto os leões, atrelados pelos Fritz, os miram com olhos esfomeados.
Depois da tensão de pouco antes, o riso lhes fazia bem; tinham recuperado
as brincadeiras de sua idade.
Enquanto isso, na praça e no cais, recolhiam-se os cadáveres dos
franceses e dos alemães e conduziam-se os feridos ao Hotel-Dieu.
O resto da tarde passaram telefonando para os hotéis de Paris. Em vão,
porém.
— Não, aqui não esteve nenhuma senhora Delmas com o filho, nem há
aqui nenhuma senhora enviada por esses senhores - foi a resposta invariável.
As duas irmãs estavam a ponto de desanimarem.
Tente mais este: Hotel Regina, Opera 74-02 — disse Léa.
Laure obedeceu.

— Alô? É do Hotel Regina?
— Depois disto, telefonaremos a tia Albertine para saber se encontrou
alguma coisa.
— Alô? Sim... isso mesmo... Quero falar com ela... Não é possível, como?.
Tem ordens?
Léa arrancou o fone das mãos da irmã.
— Ligue-me com a senhora Delmas... Não quero saber das suas ordens! ...
Ligue-me com ela. Alô? Alô? Quem está falando? O tenente que... Tenente ligue-
me com a senhora Delmas. Sou sua irmã... Ela ligará para mim?. Sem falta?.
Estamos muito preocupadas. Obrigada.
— Graças a Deus que a encontramos!
Encontramos, mas não conseguimos falar com ela. Espero que aquele
alemão não tenha mentido e dê o recado a Françoise.
Vou para casa. Você vem comigo?
— Não. Prefiro ficar aqui. Mas me deixe informada do que acontecer.
Escoltada por um rapaz das Forças Francesas do Interior, Léa atravessou
a praça Saint-Michel. O acompanhante separou- se dela em frente da livraria
Clavreuil.
Depois da gritaria e do tiroteio no Quartier Latin, a rua Jacob e a rua da
Universidade pareciam um oásis de tranqüilidade.
Charles, que passara parte do dia dormindo, acolheu Léa com
demonstrações de afeto, às quais ela correspondeu com uma ternura cansada.
Trouxera da casa de Franck meio litro de leite, alguns cubos de açúcar,
pão e carne, de que Estelle tomou posse como se recebesse uma fortuna.
Começou, então, a espera diante do telefone, Quando ele tocou, enfim, às
dez horas da noite, Léa e as tias já sabiam pela rádio londrina da libertação de
Paris. Nesse exato momento, uma rajada de metralhadora quebrou o silêncio do
bairro tranqüilo. Albertine de Montpleynet passara a mão comprida pela fronte,
comentando em tom inimitável:
— Esses senhores de Londres me parecem muito mal informados.
— Se dizem é porque deve ser verdade — respondeu a ingênua Lisa, que
acreditava piamente nas vozes emitidas pelo aparelho de rádio, tanto as de
Jean-Herold-Paquis e de Philippe Henriot como as de Maurice Schumann e de
Jean Oberle.
O som da campanhia do telefone impediu Léa de se mostrar descortês com
a boa mulher.

— Alô? É você, Françoise? Está tudo bem?. Por que você não veio para cá?
. Alô, alô, não desligue... Está me ouvindo? Você telefona de novo amanhã? .
Um beijo para você também. Até amanhã. Boa noite.
Léa colocou o fone no gancho, com certa inquietação. Françoise não
deveria continuar onde estava. O Hotel Regina poderia ser atacado de um
momento para Outro. Iria procurar Françoise no dia seguinte.
Apesar da angústia, Léa dormiu profundamente nessa noite.

Capítulo 17

QUANDO LÉA DESPERTOU, Paris estava cinzenta.
Na pequena cama junto à sua, Charles dormia, o rostinho bonito
emagrecido, mas tranqüilo. Como se parece com Camille, pensou, passando a
mão pelos cabelos loiros e finos.
Enfiou o roupão de algodão azul e dirigiu-se à cozinha. Felizmente havia
gás. Pôs um pouco de leite no fogo, enquanto bebia uma caneca do café de
Estelle, ainda quente. Do quarto de Lisa vinha o crepitar do aparelho de rádio.
A cara sonada de Charles surgiu na fresta da porta.
— Já para a cama! — ordenou Léa. — Ainda está doente e não pode se
resfriar.
— Não. Já estou curado. Tenho fome.
— Sente-se aqui. Vou lhe dar leite e bolachinhas.
— E depois? Vamos passear?
— Não, meu querido. É muito cedo ainda e há guerra lá fora — disse Léa.
— Mas eu quero ir lá para matar os boches malvados que fizeram mal a
mamãe.
Léa suspirou, olhando o menininho que falava em matar enquanto bebia
tranqüilamente o seu leite.
— Só as pessoas grandes fazem guerra.
— Então por que é que disparam contra os meninos?
Aquela pergunta, feita por um garoto de 4 anos, deixou Léa embaraçada.
— Diga, meu pai também está na guerra, Léa?
— Sim. Com o general De Gaulle.
— E quando é que ele volta?
— Daqui a pouco.
— É muito tempo!
Charles tinha razão, era muito tempo. Há quatro anos que aquilo durava,
quatro anos fingindo viver para não desanimar por completo. E quantos
mortos, quanto sofrimento no decorrer desses quatro anos!
— Papai vai ficar triste quando souber que mamãe morreu.
Então ele sabia! ... E há dois meses que fingia acreditar em suas
explicações confusas!

— Sim, vai ficar muito triste. Mas nós estamos aqui para confortá-lo. É
preciso que você o ame muito.
— Mas você também estará aqui. E você vai amar o meu pai, não é
verdade? Diga... Você vai amar o meu papai?
Pareceu-lhe estar ouvindo a voz de Camille, recomendando:
Promete que cuidará de Charles se algo me acontecer... e de Laurent
também... Laurent a quem amava com ternura, com amor fraternal, como a um
amigo muito querido, e não mais como a um amante.
Léa ainda se surpreendia pelo desaparecimento desse amor, supostamente
imortal. O amor morreria sempre antes do ser amado? Raphael Mahl dizia isso,
citando Chateaubriand e recusando a pequena apaixonado por Juliette
Recamier: "Às vezes acontece que, numa alma bastante forte, o amor perdure o
suficiente para se transformar em amizade apaixonada, para se tornar um
dever, para adquirir as qualidades da virtude. Nesse caso, o amor liberta-se do
seu enfraquecimento inato e passa a viver dos seus princípios imortais".
E se Raphael Mahl tivesse razão?
— Diga, Léa... você vai amar o meu papai?
Chovia. Léa cobriu os cabelos com um velho lenço de cabeça, comprado na
Hermes, e encaminhou-se para o Pont-Royal.
Havia telefonado para o Hotel Regina, mas sem resultado; ninguém
atendia. Decidiu ir até lá sem comunicar às tias o seu propósito.
As ruas estavam desertas e silenciosas. Mas, de vez em quando, ouvia-se
algum tiroteio. Os jovens alemães de sentinela na ponte a deixaram passar. O
jardim das Tuileries não passava agora de um vasto terreno vazio e enlameado
com sulcos abertos onde jaziam árvores enormes. Ao longe, o obelisco e o Arco
do Triunfo formavam uma cruz esguia contra o céu escuro.
Léa não conseguiu ultrapassar a barragem da rua de Rivoli. Um suboficial,
porém, concordou em tomar informações no Hotel Regina, em cuja fachada
dominava a estátua de Joana d"Arc. Ele voltou logo, dizendo que todas as
mulheres haviam deixado o Hotel naquela manhã, mas não se sabia para onde
tinham ido. Léa agradeceu e voltou para trás, desiludida.
No cais Voltaire e no cais de Conti, cruzou com viaturas da Cruz Vermelha
e com dois veículos apinhados de homens das Forças Francesas do Interior,
que entoavam o hino dos resistentes. Perto da rua Guénégaud, dois rapazes
ostentando braçadeiras tricolores interceptaram-na brutalmente, segurando o
guidão de sua bicicleta.
— Onde vai? — perguntaram.
Tal tratamento a irritou.
— Não é da sua conta.

A bofetada de um deles jogou sua cabeça para trás.
— Responda com delicadeza quando falarem com você. Acredite-me,
algumas bem mais valentonas que você acabaram com as gracinhas depois de
passarem pelo barbeiro da esquina.
— Larguem-me!
— Cuidado, minha linda, que podemos nos zangar! Por aqui ninguém
passa sem mostrar a credencial — disse o outro, que até então se mantivera
calado. — Há por aqui uns chefes importantes e então desconfiamos de espiões.
Responda com delicadeza. Onde vai?
Léa compreendeu que de nada lhe serviriam as teimosias e informou:
— Vou encontrar alguns amigos na praça Saint-Michel.
— Na barricada da rua da Huchette?
— Sim. No apartamento acima dela.
— O que está fazendo por aqui, Léa?
— Pierrot, você pode lhes dizer para me deixarem passar?
— Deixem-na. Eu a conheço; é minha prima.
— Muito bem. Apenas cumprimos ordens.
— Venha que eu lhe apresento um amigo, chefe da barricada — disse
Pierrot.
Como barricada, não podia existir melhor! Devem ter sido requisitadas
todas as camas desdobráveis do quarteirão e os porões esvaziados de suas
velharias: radiadores, bicicletas retorcidas, gaiolas de pássaros, carrinhos de
criança, barris, cestas para verduras, toda essa mistura consolidada por sacos
de areia. Havia até uma antiga banheira de cobre.
O corpo principal da barricada era constituído por um caminhão sem
rodas nem portas. Reforçavam ainda o amontoado alguns carrinhos de
vendedor ambulante e de transporte de carga, que serviam de ponto de apoio
aos atiradores.
Passaram por um caminho estreito ao longo do parapeito. Ouviram-se
disparos vindos de um prédio da ilha da Cité.
— Atenção! Escondam-se!
Léa e Pierrot refugiaram-se num dos recantos circulares da ponte, onde
dois homens já estavam agachados.
Léa reconheceu o rapaz míope do café de Flore e lhe sorriu. O jovem
também a reconheceu e retribuiu o sorriso.
Estão disparando dos telhados do City Hotel — disse ele, apontando na
direção do edifício.

Tem sido assim desde manhã — disse Pierrot. — Mas supõe-se que o
sujeito esteja sozinho. Deve ser um policial. Olhe! Há camaradas nossos nos
telhados.
De fato, algumas silhuetas de elementos armados das Forças Francesas do
Interior recortavam-se contra o céu que continuava sombrio.
— É você quem mora na praça Dauphine? — perguntou o chefe da
barricada ao companheiro do rapaz de óculos.
— Sou.
— Como se chama?
— Henri Berri.
— E você? — ele quis saber, dirigindo-se ao rapaz de óculos.
— Claude Mauriac.
Talvez seja filho do nosso vizinho de Montillac, pensou Léa. Não teve tempo
para lhe perguntar, pois o chefe lhes fez sinal de que podiam prosseguir,
gritando para os rapazes das Forças Francesas do Interior:
— Não atirem!
Os dois homens partiram correndo em direção à praça Dauphine,
enquanto Léa e Pierrot voltavam a passar por detrás da barricada. Pierrot não
havia largado a bicicleta.
— Não devia andar por aí, assim. É fácil ser atingido por uma bala
perdida. Está vendo? Eu não disse?
No cais dos Grands-Augustins, uma mulher acabava de cair. Ela se
arrastou para trás de uma árvore à procura de proteção.
Da rua dos Grands-Augustins, surgiram então dois jovens em camisa
branca, transportando o pavilhão da Cruz Vermelha.
Sem se importarem com as balas, recolheram a mulher e partiram
correndo para a enfermaria improvisada pelo dr. Debré.
— Vamos pelas vielas. É menos perigoso.
Tudo estava calmo na rua de Savoie. Alguns homens das Forças Francesas
do Interior montavam guarda em frente de uma velha mansão do século XVIII.
— É o PC de um dos chefes da Resistência — informou Pierrot, assumindo
o ar de importância de quem está a par dos acontecimentos.
— Precisa me ajudar a encontrar Françoise.
— Essa puta!
A jovem parou, surpresa com o insulto.
— Você tem idéia do que está pedindo? — prosseguiu o primo.

— Ajudar a salvar uma colaboracionista, uma traidora da pátria.
— Chega! — cortou Léa. — Françoise não é colaboracionista nem puta.
Não passa de uma pobre moça que teve a infelicidade de se apaixonar por um
alemão no momento em que os nossos dois países estavam em guerra.
Ninguém merece ser fuzilado por isso.
— Fuzilado talvez não — concedeu Pierrot. — Mas a cabeça raspada ou a
cadeia, sim.
— Cabeça raspada! Está louco? Preferia morrer a que me raspassem os
cabelos.
— Os cabelos crescem novamente — ironizou o rapaz.
Num movimento ágil, evitou a bofetada que Léa lhe dirigia.
Da rua Saint-André-de-Arts, chegou até eles o som de aplausos, de risos e
gritos. A multidão empurrava à sua frente um homem dos seus cinqüenta anos,
de cabeça descoberta e sem calça. Oferecia um espetáculo lastimoso e grotesco,
de meias, uma delas esburacada, sustentadas por ligas, com as calças e os
sapatos nas mãos; atrás dele, chorando, seguia uma jovem gorducha, de
vestido florido, ostentando na cabeça raspada uma suástica pintada com tinta
branca.
Léa sentiu-se invadida por uma onda de vergonha. Pierrot baixou a cabeça
e ambos permaneceram imóveis durante longos momentos. Depois o rapaz
segurou-a pelos ombros e disse:
— Anda. Vamos procurar Françoise. Vamos ao PC do coronel Rol.
Mas não chegariam ao PC subterrâneo Denfert Rochereau.
Perto das barricadas no cruzamento da avenida Saint-Michel com a Saint-
German, a que os parisienses chamavam de "encruzilhada da morte", uma
granada lançada de um dos telhados veio explodir diante deles. Léa, que
caminhava um pouco atrás do primo, sentiu apenas uma espécie de arranhão
na cabeça. Como num filme em câmara lenta, viu Pierrot elevar-se no espaço,
para, em seguida, tombar com um movimento gracioso.
Criaturas vestidas de branco agitavam-se em volta deles. Depois, o céu
cinzento pareceu ruir e as árvores da avenida abateram-se sobre ela.
— Isso não é nada. Pode voltar para casa.
Léa ergueu-se ainda um pouco aturdida. O médico, um rapaz novo,
ajudou-a a descer da mesa de exames. Tinha os traços muito vincados e
parecia exaurido.
— O seguinte.
Estenderam sobre a mesa um homem ferido no abdômen.
— Onde está o meu primo? — perguntou Léa.

— Não sei — respondeu o médico. — Pergunte na recepção.
Até a noite, com o vestido manchado de sangue e uma grande atadura na
cabeça, Léa errou pelos corredores do Hotel-Dieu à procura de Pierrot. Ninguém
sabia dizer o que lhe acontecera. Também não conseguiu encontrar os
enfermeiros que o haviam transportado ao hospital. Venha amanhã, era sempre
a resposta por todo o lado. Com a morte na alma, ela se resignou a deixar o
Hotel-Dieu.
Apiedado por seu desalento, um policial com a braçadeira das Forças
Francesas do Interior guiou-a através das barreiras espalhadas pelo adro de
Notre-Dame e a deixou na rua Saint-Jacques, no começo da rua da Huchette,
onde um "fifi" tomou conta dela, acompanhando-a até o apartamento da
avenida Saint-Michel.
Franck estava sozinho em casa. Sem comentários, instalou-a no próprio
quarto, abriu as torneiras da banheira e ajudou-a a se despir. Enquanto a água
corria, foi fazer chá. Léa bebeu-o, batendo o queixo, depois de tomar o banho
frio. Embrulhada no roupão grande demais para ela, Franck deitou-a na cama
e ficou segurando sua mão até que ela adormeceu.
Não tinham trocado uma só palavra.
— Sangrem! Sangrem! A sangria é tão boa em agosto como em maio.
O grito lançado por Tavannes na noite de São Bartolomeu, durante o
massacre dos protestantes, em 24 de agosto de 1572, martelava com
insistência na cabeça de Léa.
Nessa manhã, ao preparar o café para Charles, Léa havia olhado para o
calendário, e viu que era o dia de São Bartolomeu. A data lhe trouxera à
memória A Vida de Carlos IX de Brantome, que havia lido depois de ter
devorado A Senhora de Montesoreau, Os Quarenta e Cinco e A Rainha Margot,
de Alexandre Dumas, onde se inseria essa frase sinistra.
Em seu sonho surgiram agora, confundidos, alemães e homens pagos
pelos Guise, mulheres de cabeça raspada e o almirante de Coligny, rapazes das
Forças Francesas do Interior e o futuro Henrique IV, cadáveres lançados ao
Sena, corpos queimados por lança- chamas e Carlos IX disparando um obus da
janela de seu quarto, no palácio do Louvre.
— Acorde! Acorde! — gritou Franck.
Quase tão branca como a atadura de sua cabeça, Léa abriu os olhos.
— O que quer?
Franck, muito excitado, perdera a fleuma habitual. Ele girava os botões do
aparelho de rádio.
— Ouça!
"Regozijem-se, parisienses! Viemos lhes dar a notícia da libertação... A
divisão de Leclerc está em Paris! Dentro de minutos, estará na Câmara

Municipal. Não deixem de escutar esta emissão. Ouvirão a voz que há tanto
tempo esperam.
Estamos loucos de alegria. Esta emissão não foi preparada; transmitimos
em más condições; não comemos há três dias.
Há camaradas nossos que combatem de armas na mão e que também não
comem há três dias e que vêm aos microfones.
Talvez estejamos embriagados, mas embriagados de alegria, de felicidade,
por voltar à nossa querida cidade."

Léa se levantou e se aproximou de Franck. Impetuoso, ele a abraçou.

"Chegou agora uma informação; ela é bem curta: às nove e quinze, junto
ao quartel de Peupliers, foi vista uma coluna de franceses, espanhóis e
marroquinos. Onde é o quartel de Peupliers? Em Gentilly! O quartel Peupliers
fica em Issy. Ei-los!
Eles chegam... Nesse instante, à frente das tropas do general Leclerc, dois
carros blindados chegam na Câmara Municipal.
E num deles deve estar o general De Gaulle. O que é certo é que os aliados
estão na Delegacia de Polícia e na Câmara Municipal e é provável que o general
De Gaulle aí esteja também. Abram as janelas! Enfeitem as casas! Acabo de
receber um telefonema do secretário-geral da Informação. El me pede para
transmitir a todos os padres que escutam esta transmissão, que mandem tocar
os sinos imediatamente. Então, repito e certifico: daqui lhes fala Shaefjer,
encarregado da direção da Rádio da Nação Francesa, rádio que tomou posse
dos emissores há quatro dias sob a ocupação alemã. Fui enviado pelo
secretário-geral da Informação do Governo Provisório da República para falar
aos senhores padres que possam me ouvir ou então ser avisados
imediatamente. Eu lhes digo. mandem soar os sinos, anunciando a entrada dos
aliados em Paris."

Nos braços um do outro, Franck e Léa riem e choram. Correm para a
janela. Por toda a praça Saint-Michel batem persianas e as luzes se acendem,
uma por uma. Para o diabo a camuflagem! Para o diabo a defesa passiva! A
hora é de claridade e de alegria!

"Chegam à praça pessoas vindas de todos os lados e se atiram nos braços
umas das outras. Dos rádios, no máximo volume, saem os acordes da
Marselhesa. Na rua, todos se imobilizam, cantando em coro:
— Às armas, cidadãos!

Do oeste, um incêndio descomunal tinge de vermelho as nuvens sombrias
que rolam pelo céu."

Léa e Franck, entusiasmados pelas vozes vibrantes, cantam também, sem
mesmo perceberem isso, de mãos entrelaçadas com tanta força que se tornam
roxas.

"De súbito, um primeiro sino, tímido de início, se aventura pelo céu onde
se deita melancólico, o último dia da Ocupação de Paris. Os de Saint-Severin
lhe respondem e logo os de Saint-Julien-lePauvre, de Saint-Germain-des-Prés,
do Sacré-Coeur, de Saint-Étienedu-Mont, de Saint-Germain-l"Auxerrois, de
Saint-Sulpice, de SaintGeneviève, de Saint-Eustache e, por fim, o grande
carrilhão de Notre-Dame, que se reúne aos outros, envolvendo a cidade inteira
nessa louca alegria.
São vinte e uma horas e vinte e dois minutos e o capitão Raymond Dronne
acaba de parar o jipe batizado com o nome de "Morte aos Canalhas", os quinze
half-tracks e os três carros Sherman — o Montmirail, o Champaubert e o
Romilly — em frente da Câmara Municipal. Cento e trinta homens pisam pela
primeira vez depois de quatro anos o solo de sua capital."

O locutor, empolgado, declama versos de Victor Hugo:

Despertai! Basta de vergonha!
Tornai a ser a grande França!
Tornai a ser a grande Paris!

Na praça, as pessoas fizeram uma grande fogueira e dançam à sua volta.
De súbito, soam tiros. Todos ficam imóveis por instantes, depois fogem
gritando."
Separam-se as mãos de Léa e de Franck. Pela rádio, a voz, ainda há pouco
plena de entusiasmos, balbucia agora:

"Nós nos precipitamos, talvez... Ainda não terminou tudo. É melhor
fecharem as janelas. Não se deixem matar inutilmente."

Na praça, as luzes se extinguem uma a uma, as persianas se fecham
novamente, o medo volta.

"Lembremo-nos das regras de defesa passiva prescritas pelo coronel Rol...
Manifestem a alegria de outro modo."

Os sinos silenciam igualmente um a um, exceto um sininho azedo que se
ri do canhão a troar em Longchamp. Depois, tal como todos os outros, ele
também se cala, assim como o canhão e, por fim, a fuzilaria para os lados da
Câmara Municipal.

"Agora é noite em Paris. Em volta do Palácio no bairro do Odeon, que se
diz estar minado, pesadamente carregadas, descem para os porões.
Ainda não terminou a libertação de Paris."

Terrível tempestade desabou durante a noite. Léa ficou durante muito
tempo em pé, contemplando a desordem do céu, onde os relâmpagos se
sucediam em meio ao ribombar assustador dos trovões. O pont-Neuf, iluminado
por clarões esbranquiçados parecia um brinquedo sobre a fita imóvel e negra do
Sena, logo encrespada pelas grossas gotas de chuva.

Capítulo 18

Às OITO DA MANHÃ, Laure entrou como um pé-de-vento no quarto onde
Léa dormia.
— Estão chegando! Estão chegando!
Léa, acordada em sobressalto, soergueu-se tremendo.
— Quem?
— Os Leclerc! Estão chegando! Já estão na porta de Orléans. Levante-se.
Vamos até lá. Mas... o que você tem? Está machucada?
— Não é nada. Teve notícias de Pierrot ou de Françoise?
— Não. Pensei que você tivesse.
Léa começou a chorar em silêncio.
— Não chore. Vamos encontrá-los. Ande... levante-se. Vamos vê-los
passar.
Um "Rifi", como agora lhes chamavam, entrou correndo e anunciou:
— Estão na rua Saint-Jacques.
E voltou a desaparecer.
— Ouviu? Estão na rua Saint-Jacques! Apresse-se!
— Tenho certeza de que ele morreu.
— Mas de quem está falando?
— Está morto, eu lhe digo.
— Mas quem?
— Pierrot.
Bateram na porta entreaberta. Era Franck.
— Não fique parada em frente da janela, Laure — aconselhou ele,
arrastando a amiga para o meio do quarto. — Uma bala perdida... nunca se
sabe.
— Teve notícias de Pierrot? — Léa lhe perguntou, levantando- se da cama.
— Não. Percorri diversos hospitais, mas nenhum ferido recolhido no
Quartier Latin corresponde às características de seu primo.
— Seja como for, vivo ou morto, terá de estar em algum lugar.
— Mas o que aconteceu? — perguntou Laure.

— Léa e seu primo foram feridos ontem na "encruzilhada da morte".
Levaram sua irmã para o Hotel-Dieu. Quanto a Pierrot, nada se sabe.
Os três jovens ficaram silenciosos durante um longo momento. Franck
mudara bastante no decorrer desses últimos dias; parecia ter amadurecido.
Perdera o que ainda lhe restava de infantilidade e de negligência ao assistir à
morte de muitos rapazes da mesma idade, amigos e inimigos.
— Não se preocupe. Nós o acharemos.
Mas nenhum deles acreditava nem um pouco que isso fosse possível.
Laure foi a primeira a reagir.
— As tropas do general Leclerc estão chegando pela rua SaintJacques e
temos de ir até lá.
Léa fez uma rápida toalete e tirou a atadura, deixando apenas um pequeno
curativo sobre a ferida. Seu vestido estava inutilizado, rasgado e com manchas
de sangue. Franck foi vasculhar o guarda- roupa da mãe e voltou com uma
braçada de vestidos coloridos.
— Devem ficar um pouco grandes para você, mas talvez dê para ajeitá-los
com um cinto.
Léa escolheu um vestido de manga curta, estampado com florezinhas
sobre fundo azul, modelo Jeanne Lafaurie. Amarrou um lenço também azul, na
cabeça, disfarçando o curativo e calçou suas sandálias brancas.
Fora, fazia um tempo magnífico. Vindas de todas as direções, as pessoas
corriam para a rua Saint-Jacques: as mulheres com simples penteadores
atirados sobre as camisolas, os homens não tinham tido tempo para se
barbear, mães jovens transportando os filhos ao colo, garotos que se
esgueiravam por entre as pernas dos adultos, velhos combatentes da guerra de
14 exibindo as condecorações, estudantes, operários, vendedoras, colocavam-se
à frente da divisão Leclerc.
A rua Saint-Jacques era um grande rio de alegria onde singravam,
majestosos, os shermans do coronel Billotte, cobertos de mãos. Jovens
empoleiradas nos carros beijavam os soldados sem se importar com a sujeira
que os cobria. A multidão em delírio agitava os braços, atirava beijos aos
vencedores, chorando, rindo e gritando:
— Bravo! Viva a França! Obrigado! Viva o general De Gaulle! Bravo! Bravo!
Laure saltou para um carro-metralhadora e beijou o condutor que se
debatia rindo. Franck aplaudia e aclamava os soldados com efusão.
Léa, porém, no meio de toda aquela confusão alegre, sentia-se estranha,
quase indiferente. Desfilavam os tanques de guerra, batizados com nomes
sonoros: Austerlitz Verdun, Saint-Cyr, El Alemein, Mort-Homme, Exupérance...
Exupérance? De pé na torrinha do seu tanque, um oficial radioso, de rosto
sujo, saudava a multidão. O olhar dele aflorou por instantes o vulto de Léa.

— Laurent!
Mas o grito perdeu-se no meio do ronco dos motores e do rugido da
multidão.
Tentou então se aproximar do veículo, Recebeu, porém, violenta cotovelada
na cabeça ferida, o que lhe provocou ligeiro mal-estar. Um membro das Forças
Francesas do Interior notou e conseguiu libertá-la do aglomerado.
Recompôs-se num pequeno café da rua da Huchette.
— Aqui está, gracinha, tome um gole e ficará como nova. É uma boa pinga.
Estava guardando para festejar a vitória — disse o dono do café.
Léa pegou o cálice que lhe estendiam e engoliu de um trago o líquido cor
de âmbar. A bebida explodiu em sua boca e lhe deu quase que
instantaneamente uma sensação de bem-estar.
— Nada melhor que uma boa aguardente para dar cor às faces das moças.
Mais um gole?
Laurent estava em Paris! Ao vê-lo seu coração começou a bater com mais
força, tal como nos tempos em que pensava amá-lo. Talvez ainda o amasse.
Com a ajuda do álcool, Léa flutuava agora num nevoeiro cor-de-rosa. O
pesadelo terminara. Nesse instante, ouviram-se alguns disparos.
— Todos para dentro! Atenção aos atiradores dos telhados — gritou
alguém.
A rua se esvaziou como por encanto, reconduzindo Léa à realidade;
Laurent estava ali, de fato, mas Camille estava morta.
Sentiu-se desfalecer de novo com a idéia de que teria de lhe dar essa
notícia. Presenciar sua dor lhe parecia acima de suas forças. Que outra pessoa
lhe dissesse! Sentiu vergonha por sua covardia e corou. Ela e só ela tinha a
obrigação de lhe dar a notícia. Camille não gostaria que fosse de outro modo.
Os carros estavam parados no largo de Notre-Dame, mas Léa não
descobriu entre eles o que se chamava Exupérance.
Desfilava pelo cais uma coluna de carros-metralhadoras. Os parisienses
teciam comentários sobre o que viam:
Veja este material! Se tivéssemos tido isso em 1940, não teríamos perdido
a guerra.
— Com estes uniformes, tem certeza de que são franceses?
— É a farda americana.
— Apesar disso, não dá para reconhecer os nossos.
— Que é que interessam os uniformes? Ingleses, americanos ou russos, o
que importa é que chegaram aqui. Viva De Gaulle! Viva a França!

Léa caminhava ao longo do cais, indiferente aos encontrões, assaltada por
tamanho cansaço que se sentia incapaz de pensar com coerência. No cérebro
nublado, rodopiava-lhe um carrossel fantástico. Laurent está vivo! O que teria
acontecido a Pierrot? Eu me perdi de Laure e de Franck... Preciso dizer alguma
coisa às minhas tias... Terão notícias de Françoise? Será que Charles tomou
leite hoje? Laurent voltou! Laurent voltou! Como lhe dar a notícia da morte de
Camille? Mas por que será que toda esta gente aplaude, Santo Deus? Ah, sim,
chegaram as tropas de Leclerc, é isso! Laurent veio com elas. E François... onde
está?
— Com licença, senhorita — pediu um cinegrafista, a câmara apoiada no
ombro, que acabava de lhe dar um violento encontrão.
Léa chegou à praça Saint-Michel e subiu até o apartamento de Franck.
Não havia vestígios dele nem de Laure. Em contrapartida, uma quinzena de
"fifis" ocupavam o local.
Tentou em vão que a ouvissem. Em sua excitação, não escutavam nada.
Seria necessário deixar um recado, pois o telefone, que sempre funcionara
durante todos aqueles dias de loucura, parecia ter entrado em greve.
No quarto da mãe de Franck, Léa encontrou um batom, com que escreveu
em todos os espelhos que encontrou: Estou em casa das tias. Talvez Laurent,
Françoise e Pierrot estejam lá também.
Enquanto subia as escadas do apartamento de Franck essa esperança a
assaltara, fazendo com que corresse para o telefone.
Mas, diante do silêncio do aparelho, havia decidido voltar à rua da
Universidade.
Os tanques estavam reunidos na praça Saínt-Michel. Rodeava-os a
multidão em delírio, que aclamava e aplaudia. Léa conseguiu esgueirar-se até
um deles, subir na esteira e chegar até a torrinha.
— Sabe onde está o tenente d'Argilat? — perguntou ao soldado.
— Não. Não vi o capitão desde a porta de Orléans.
Ordens de comando sobrepuseram-se ao tumulto.
— Precisa descer, senhorita. Vamos atacar o Senado.
— Se o encontrar, diga-lhe, por favor, que Exupérance.
— Mas esse é o nome de seu carro.
— Eu sei. Diga-lhe Exupérance está em Paris, em casa das tias.
— Muito bem. Mas, em troca, quero um beijo.
Léa o beijou com muito gosto.
— Não vai se esquecer?

— É seu namorado? Ele tem sorte em ter uma amiga assim, tão fiel, Não
me esquecerei, palavra de homem. Exceto se for morto, evidentemente.
A frase agastou Léa. Evidentemente, se ele fosse morto.
Saltou do Sherman e ficou observando a manobra dos tanques. Entraram
pela estreita rua de Saint-André-des-Arts, seguidos pelos "bravos" da multidão
apinhada nas calçadas diante das lojas com as portas de ferro cerradas. Em
alguns deles figurava uma inscrição em giz: Atenção! O veículo n... das Forças
Francesas do Interior está ocupado por quatro policiais. Disparar contra ele!
A coluna virou à esquerda, rumo ao Odeon, Léa prosseguiu pela rua de
Buci. É só meio-dia, pensou, olhando o relógio, cujos ponteiros estavam
imobilizados no número 12.
Os cafés tinham reaberto as portas. Entrou num barzinho da rua
Bourbon-le-Chateau e bebeu meia cerveja junto aos moradores do bairro, que
comentavam os acontecimentos. Um deles garantia ter visto tanques e
caminhões americanos circulando pela pont-Neuf.
Bandeiras tricolores flutuavam aqui e ali nas janelas de alguns edifícios.
Grupos de pessoas trocavam impressões no limiar das portas, lançando, por
vezes, olhares inquietos aos telhados dos prédios.
Na rua da Universidade, a porta do apartamento das tias estava
escancarada. Na entrada, reinava uma desordem pouco habitual.
Meu Deus, Charles!... pensou Léa, correndo para o quarto do menino.
Sentado na cama, ele folheava comportado um álbum de Becassine que
pertencera à mãe de Léa. Um sorriso iluminou seu rostinho cansado.
— Ah, já voltou! Tive tanto medo que não voltasse!
— Como pôde pensar uma coisa dessas, meu querido? Nunca vou deixar
você. Já almoçou?
— Sim, mas não gostei. Vamos passear, Léa?
— Hoje não. Ainda há guerra nas ruas.
— Eu sei. Ouvi tiros e gente gritando. E a tia Albertine saiu chorando.
Talvez tenha sabido que Pierrot morreu, pensou Léa.
— Vou falar com tia Lisa e volto já.
Na cozinha, descobriu Lisa e Estelle em lágrimas.
— Até que enfim chegou! — exclamou a tia.
— Que é que vocês têm? O que aconteceu?
As duas mulheres redobraram o pranto. Abriam a boca para explicar, mas
não conseguiam emitir nenhum som.
— Então, querem ou não querem me dizer o que aconteceu?

Por fim, Estelle conseguiu articular:
— Françoise...
Léa sentiu-se subitamente gelada.
— Françoise o quê? Que lhe aconteceu?
— Foi... foi... presa.
— Quando?
A criada esboçou um gesto de ignorância.
— Foi a dona da leiteria da rua do Bac que nos avisou — explicou Lisa, de
um só fôlego. — Albertine saiu em seguida; sem mesmo ter tempo de pôr o
chapéu.
Em outras circunstâncias, a frase teria feito Léa sorrir. Mas o
esquecimento do chapéu dava a medida da gravidade do caso.
— Onde ela foi?
— Para a praça em frente da igreja.
— Faz muito tempo?
— Meia hora, talvez.
— Vou até lá. Cuidem do menino.
— Não vá! Não vá! — gritou Lisa, agarrando o braço da sobrinha.
Sem responder, Léa se desvencilhou e saiu.

Capítulo 19

O TEMPO ESTAVA magnífico e o clima era de festa. Rindo, Passavam pela
rua belas jovens, com vestidos curtos e claros, os cabelos enfeitados com
guirlandas ou com bandeirinhas tricolores. As mulheres elegantes que eram
habitualmente vistas na missa, ao domingo, tinham perdido um pouco sua
arrogância habitual. Velhas senhoras, de braço dado com cavalheiros idosos,
caminhavam com renovada agilidade. Todos se dirigiam para a praça.
Embora soubesse o que iria ver, Léa imobilizou-se surpreendida. O lugar
estava repleto de gente.
No topo da escadaria da igreja que antigamente assistira a espetáculo bem
diferentes, representava-se agora um melodrama diante de um auditório
zombeteiro, fanfarrão e gozador, que encorajava os atores por meio de ditos e de
gestos.
O cenário, extremamente sóbrio, impressionava apesar da simplicidade,
alguns bancos, uma cadeira de palha e, fixada à porta do templo com um
punhal, uma folha de papel branca onde a tinta negra escorria das palavras:
CORTAMOS CABELOS DE GRAÇA.
A peça já começara. Os comediantes interpretavam seus papéis com
perfeição. O arauto, um homem gordo em mangas de camisa, ostentando a
braçadeira das Forças Francesas do Interior, enumerava aos gritos, os crimes
das intérpretes femininas.
— Admirem a boa sra. Michaud que denunciou o marido à Gestapo!
Merece a demência do tribunal do povo?
— Não! — ululavam os espectadores.
— Nesse caso.
— Raspem-lhe os cabelos!
Ah!, ah!, ah!, ah!
Um riso homérico sacudia a assistência.
No palco improvisado, os auxiliares da justiça popular forçavam a senhora
Michaud a sentar-se na cadeira de palha. Surgiu então o cabeleireiro, munido
de enorme tesoura de alfaiate, que fazia girar e estalar sobre a cabeça com
trejeitos dignos de Maurice Chevalier, cantarolando:
— Viram a moda nova do chapéu do Zozo? É um chapéu, um chapéu
divertido. Tem na frente uma peninha de pavão E de lado um amor de
papagaio.

Ao lado de Léa, torcia-se de tanto rir, quase sufocada, uma moça gorda, de
avental branco de leiteira ou de açougueira, pendurada no braço de um
bombeiro.
— Isso vai me fazer mijar nas calças de tanto rir — declarou ela. — Ah!,
ah!, ah!, ah! Ainda faço xixi... estou falando. ah!, ah!, ah!, já fiz!
Uma vaga de riso agitava a multidão, provocando náusea em Léa. Viu as
grossas mechas de cabelo brandidas tal como caudas e orelhas de touros na
arena, saudadas por gritos que se assemelhavam aos dos espectadores de uma
corrida. Mãos estendiam-se tentando apoderar-se daqueles tristes troféus.
Depois do corte grosseiro, a tonsura. Abatida na cadeira, o rosto inchado,
sujo de lágrimas e de cuspidelas, a senhora Michaud era submetida ao seu
justo e merecido destino de ter, talvez, denunciado o marido à Gestapo. Não
importava que a mulher garantisse que o seu homem fugira para uma base de
resistentes de Correze, a fim de escapar ao Serviço de Trabalho Obrigatório.
Não fora vista por uma vizinha respondendo a um soldado alemão que lhe
pedira informações sobre o caminho a seguir?
Léa sentiu no seu próprio crânio o frio do metal da máquina de tosquiar.
Perto dela, algumas mulheres ficaram silenciosas.
Uma delas enxugou uma lágrima, talvez solidária, enfim, com aquela
criatura humilhada, ridícula, com sua cabecinha emergindo do vestido de flores
e o cartaz pendente do pescoço onde uma mão desajeitada escrevera: PUTA
QUE VENDEU O MARIDO.
Dois homens levantaram a mulher e a empurraram para junto das outras
já tosquiadas, que se ajeitaram no banco, dando-lhe lugar. Sentou-se ao lado
de uma mãe que embalava o filho.
Avidamente, Léa olhou para o grupo das que ainda tinham cabelos, à
procura de Françoise.
Uma moça alta, elegante e morena, veio substituir a senhora Michaud na
cadeira. — Olhem só, minhas senhoras e meus senhores!.. Olhem. Ao vê-la
assim tão séria e compenetrada, lhe dariam a comunhão sem confissão. Pois
bem, senhoras e senhores. — - é uma porca que preferiu dar o cu aos alemães
em vez de a um dos nossos heróis! O que é que isso merece?
— Raaaaaspem-na! Raaaaaspem-na!
Era um jogo, uma farsa, uma comédia, um mistério como os que
antigamente se representavam no patamar das catedrais para edificação dos
fiéis. Nesses tempos remotos, porém, não se tratava do Mistério das Virgens
Loucas e das Virgens Prudentes nem dos jogos do Casamento ou da Folhagem,
mas sim do Mistério da Paixão. Não era aquele que se representara em
Valenciennes, em 1547, e pelo qual os assistentes pagaram meio soldo ou seis
dinheiros, mas sim o quadro da época atual absurda e magnífica, covarde e

magnânima corajosa e estúpida, heróica e criminosa, vivida pela França nos
primeiros dias da sua libertação.
A mulher morena e elegante não chorava. Mantinha-se muito ereta, o rosto
altivo e pálido. Um anel de cabelos caiu-lhe em cima das mãos brancas,
cruzadas sobre os joelhos, e os dedos apertaram a mecha ainda tépida.
Fizera-se silêncio. A multidão, à espera de gritos e de lágrimas, teve direito
apenas a um sorriso de desdém, enquanto seus dedos largavam a mecha. Um
murmúrio de decepção percorreu a assistência.
Sem dúvida, enraivecido pela dignidade demonstrada, o cabeleireiro
improvisado fazia funcionar a tesoura com brutalidade, ferindo a cliente. O
sangue escorreu por suas faces.
— Oh!... — exclamaram os espectadores.
Léa cerrou os punhos e desviou o olhar. Não haveria ninguém capaz de
acabar com tal abominação? Felizmente Françoise não estava ali. Mas, nesse
exato momento, a mulher que embalava a criança acabava de levantar a
cabeça. Suas feições se pareciam vagamente com as de Françoise quando ela
saía da água após um banho no Garonne. O coração de Léa pulsou de dor.
Não... Não... não era Françoise que ali estava! Ainda bem que o papai e a
mamãe já morreram. Sofreriam demais ao ver isso, pensou ela.
Sentiu que alguém apoiava a mão em seu braço. Era Albertine de
Montpleynet. No rosto da velha senhora estampava-se todo o horror do mundo.
Léa rodeou-lhe os ombros com o braço, surpreendendo-se com seu gesto
adulto e de quanto sua tia havia minguado.
A tosquiadora acabara a sua obra. A vítima ergueu-se sozinha e com
tamanha expressão de desprezo que a massa humana rosnou, lançando-lhe
algumas injúrias, enquanto ela se instalava orgulhosa, no banco das
tosquiadas, sem se importar com o sangue que escorria para o vestido.
Uma outra mulher, gritando e chorando, foi então arrastada para a cadeira
de palha, de onde escorregou, deixando-se cair de joelhos, balbuciando:
— Perdão ... perdão... não faço mais... perdão.
Ameaçadora, a tesoura estalava sobre ela.
— Chega! Parem com isso!
Um jovem com calça de golfe, armado com um fuzil, subiu as escadas
correndo. O cabeleireiro o conhecia, com certeza, pois limitou-se a responder,
segurando uma mão cheia de cabelos da infeliz.
— Deixe-nos fazer o nosso trabalho.
Com um golpe seco de tesoura, cortou a mecha volumosa. O cano da arma
se abateu sobre os dedos do brutamontes, que deixou a tesoura cair.

— Não tem o direito de fazer isso — censurou o recém-chegado. — Se estas
mulheres tiverem culpa, serão julgadas com eqüidade. Devem ser entregues à
polícia.
Agentes uniformizados saíam, enfim, do comissariado, encravado entre o
templo e um prédio.
— Vamos circular... vamos circular. Não há nada aqui para ver. Não se
preocupem, estas mulheres serão punidas como merecem.
A praça esvaziava-se pouco a pouco. Os policiais conduziram as mulheres
para dentro da esquadra enquanto os justiceiros ajustavam as braçadeiras, as
cartucheiras e as pistolas, afastando-se, rindo.
Logo todos tinham ido embora. Na praça ficaram apenas Léa e a tia, que
não se moveram do lugar onde estavam. Num movimento simultâneo,
encaminharam-se, então, para o comissariado.
Reinava a maior confusão nas exíguas instalações. Os agentes não sabiam
o que fazer de todas aquelas mulheres prostradas ou desfeitas em lágrimas. O
jovem da calça de golfe falava ao telefone. Depois desligou.
— A prefeitura vai mandar um carro para levá-las.
— Para onde? Para a pequena Roquette? — perguntou um agente.
— Não. Para o Vel'd'Hiv, com escolta das Forças Francesas do Interior.
— É engraçado! — observou um outro agente. — Como aconteceu aos
judeus.
Léa recordou-se das palavras que Sarah Mulstein lhe escrevera a propósito
das milhares de pessoas detidas e concentradas no Vel'd'Hiv e fitou com
espanto o homem que achara isso divertido.
— Vão embora, minhas senhoras. Nada têm a fazer aqui — ordenou um
dos policiais.
— Vim buscar minha sobrinha, senhor — respondeu Albertine de
Montpleynet.
Os homens olharam espantados para aquela velha senhora de cabelos
brancos que dizia com calma e dignidade: Venho buscar minha sobrinha. Não
falta topete àquela velha!
— Não é possível, minha senhora. Estas mulheres são acusadas de
colaborarem com o inimigo e terão de ser ouvidas pelas autoridades
competentes.
— Françoise!
Ela ergueu o rosto, de olhar vazio, parecendo não reconhecer a irmã.
— Françoise, sou eu, Léa. Acabou-se. Viemos buscá-la.

— Não pense nisso, senhorita. Esta mulher foi presa junto com outras
amantes de oficiais alemães.
— Nunca dormi com nenhum alemão! — gritou Michaud. — Apanharam
estas mulheres na rua e me colocaram com elas por engano.
— Cale-se! O tribunal vai julgar — disse o policial. — Vão-se embora,
minhas senhoras.
— Peço-lhe, senhor agente. Eu me responsabilizo por ela. É minha
sobrinha e conheço-a desde pequenina.
— Não insista, minha senhora.
— Vão colocá-la na cadeia com o filho?
O jovem fitou Françoise e a criança, e depois a senhora de Montpleynet
com expressão de enorme perplexidade.
— Quanto à criança... bem... não sei. Concordo que a levem se a mãe
autorizar.
Reconhecendo Léa, o pequenino Pierre estendeu os braços em sua direção.
— Quer que o levemos conosco? — perguntou ela à irmã.
Sem uma palavra, Françoise entregou-lhe o menino.
— Deixem seus nomes e endereço — disse o mais velho dos policiais.
— Quando poderemos visitá-la?
— Não sei, minha senhora. Terão de aguardar. Nós avisaremos depois.
Françoise estendeu a mão para a irmã.
— Que quer? — perguntou Léa.
— Ah! Já sei! Como é que não pensei nisso? — falou, tirando o lenço azul
da cabeça. Com gestos amarrou-o sob o queixo de Françoise.

Capítulo 20

DEPOIS DE ACOMPANHAR a tia e o filho de Françoise à rua da
Universidade, Léa deixou o apartamento como se fugisse. Queria estar só, a fim
de refletir sobre tudo o que acontecera e, principalmente, para procurar
Laurent.
Até a igreja de Saint-Germain-des-Près, a avenida Saint-Germain se
transformara em local de passeio para todos os moradores do bairro. Depois da
rua Bonarte, o ambiente se modificava, os transeuntes despreocupados tinham
sido substituídos por grupos de indivíduos ostentando braçadeiras e armados
com fuzis, por jovens de camisas brancas com cruzes vermelhas e por donas-
de-casa caminhando rente às paredes em busca de alguma loja aberta na rua
de Buci. Uma delas obrigou Léa a parar, segurando-lhe o guidão da bicicleta.
— Não passe pela rua de Seine — avisou a desconhecida. — Há três dias
que os boches disparam obuses do Senado e a rua fica na linha de fogo. Várias
pessoas foram mortas ou feridas.
— Obrigada, minha senhora, mas preciso ir à praça Saint-Michel. Por onde
acha que devo passar?
— Em seu lugar, eu não iria. Toda a zona é perigosa. Os Leclerc preparam-
se para atacar o palácio do Luxemburgo.
Como para confirmar as palavras da mulher, um obus explodiu diante da
peixaria da rua de Seine, fazendo cair os últimos vidros das vitrines e ferindo
três transeuntes nas pernas e no rosto.
Empurrando a bicicleta, Léa voltou e foi sentar-se na pracinha perto do
antigo arcebispado. Todos os bancos estavam ocupados por gente que dormia.
Rapazes e moças, instalados na caixa de areia, faziam circular entre si uma
garrafa.
Léa sentou um pouco afastada, com as costas apoiadas ao tronco de uma
árvore. Fechou os olhos, tentando colocar em ordem a mente, onde se
entrechocavam imagens violentas e insuportáveis. Sacudia a cabeça para as
repelir e depois começou a bater com ela no tronco, cada vez com mais força,
sem notar as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
— Pare com isso! Vai se machucar.
Uma pequena mão suja e pegajosa acabava de imobilizar sua cabeça.
— Tome! Beba um pouco. Vai lhe fazer bem.
Léa pegou a garrafa e tomou um gole com tamanha avidez que o vinho lhe
escorreu pelo pescoço.

— Para uma moça, você tem uma garganta dos diabos! — comentou o
rapazinho, que ainda não tinha quinze anos, recuperando o vasilhame quase
vazio. — Não há nada melhor que uma boa pinga para elevar o moral. É
borgonha; nós a pegamos no Nicolas. Quer um cigarro?
Léa aquiesceu. Com volúpia, deu uma tragada e logo outra, engolindo a
fumaça. Sentiu-se tomada por uma leve embriaguez.
— Está melhor? Bom. Fomos buscar água na fonte... aqui está! Lave o
rosto.
Enquanto Léa obedecia, o rapaz continuava a fazer perguntas:
— Por que você chorava? Perdeu o namorado? O seu pai, então? Não quer
falar? Tanto pior. Tome, beba mais um gole. É muito bonita, sabia?
Léa sorriu, diante do tom admirado do garoto.
— Ora vejam! Ainda fica mais bonita quando sorri. Vocês não acham?
Os rapazes concordaram ruidosamente, empurrando-se uns aos outros e
dizendo piadas tolas. A única moça do grupo afastou-se de modo ostensivo.
— A sua amiga está com ciúmes — observou Léa.
— Rita? Não faz mal. Nada de grave — assegurou o rapaz. — Como se
chama?
— Léa. E você?
— Eu me chamo Marcel, mas todos me tratam por Cecel. Estes são os
meus amigos: Alphonse, Polo, Vonvon, Fanfan. O gordo é...
— Não sou gordo! — gritou o rapaz.
Léa e todos os outros riram.
— Não gosta que digam que é gordo. Mas magro é que ele não é, apesar
das restrições. Chama-se Minou e ela é a Rita.
Todos estenderam a mão a Léa, exceto Rita, que se limitou a um aceno
com a cabeça.
— Moramos todos no décimo-terceiro bairro — explicou o rapaz. — Mas
desde o dia 19 que não vamos para casa.
— Seus pais devem estar preocupados.
— Não se preocupe com eles, pois eles também não se preocupam conosco.
Segundo as últimas notícias, estavam brincando de guerra a favor da
República. Nós, desde o começo, servimos de mensageiros para o coronel Rol e
para o coronel Fabien.
— Nesse caso, devem conhecer meu primo, Pierrot Delmas, de Bordéus —
disse Léa, num tom ansioso.
— É possível. Mas eles são tantos!

— Foi ferido ontem na avenida Saint-Michel. Desde então, nunca mais
ninguém o viu.
— Ah, não! Não vai começar a chorar de novo! Prometo que iremos
procurar o seu primo. Como é ele?
— Mais ou menos do meu tamanho, cabelos castanhos-escuros, olhos
azuis.
— Como estava vestido?
— Vestia calça cáqui, camisa xadrez verde e azul, casaco de algodão
cinzento. E tinha braçadeira e pistola.
— Você, Vonvon, vá até os esgotos e informe-se sobre esse tipo — ordenou
Marcel. — Encontre-nos à noite no lugar de sempre. Você, Rita, procure nos
hospitais da margem esquerda e você, Minou, nos da margem direita. Nos
encontramos à mesma hora e no mesmo local. Entenderam?
— Sim, chefe.
— Você é o chefe?
— É como você diz. Vá à rua Abbé-de-Epée, Fanfan, junto com Polo, e
vejam se Fabien precisa de vocês. De passagem, diga bom-dia a meu irmão.
— Ia me surpreender se o encontrasse. Está combatendo no Senado, com
certeza.
— O seu irmão é da polícia?
— Não. É metalúrgico. Quando quiseram mandá-lo trabalhar na Alemanha
em 1943, fugiu e foi se reunir aos resistentes da HaiiteSaone. Foi lá que
conheceu Fabien, que também atende pelos nomes de Albert, de capitão Henri
e ainda de comandante Patria, após sua fuga. Meu irmão distribuiu panfletos
durante algum tempo, espiou e serviu de agente de ligação. Desde setembro,
participou de todas as ações de sabotagem efetuadas na região. Em conjunto
com o grupo Liberdade fez ir pelos ares a barragem de Conflandey e atacou um
posto alemão perto de Semondans, onde foram mortos três boches. Também
sabotou linhas de ferro, destruiu pontes e locomotivas, tudo isso sob o
comando de Fabien. Ele anunciou que hoje tomaria o Luxemburgo. Você vai ver
que vai dar certo, sobretudo agora que os Leclerc estão aí para ajudá-lo.
Léa se divertia com aquelas histórias contadas com admiração.
— Estou de barriga vazia — declarou Alphonse. — E se a gente fizesse
uma boquinha?
— Boa idéia. Vem conosco?
— Não sei — disse Léa, hesitante.
— Não pense demais, isso não é bom. Temos de comer para pôr as idéias
no lugar.

— Tem razão. Onde vamos?
— À rua do Dragon. Tem uma amiga de meu pai que trabalha num
barzinho lá. A dona tem um certo fraco por mim e o grude não é mau. Leve a
bicicleta, senão a afanam.
A amiga do pai de Cecel instalou-os numa mesinha colocada sob as
escadas em caracol. Sem admitir comentários, serviu- lhes um espesso purê de
ervilhas com salsichas e trouxe uma garrafa de vinho. Depois de duas garfadas,
Léa afastou o prato, incapaz de comer.
— Não tens fome?
— Não — disse ela, esvaziando o copo de vinho.
Engoliu do mesmo modo mais três ou quatro copos, sob os olhares
interessados de Cecel e de Alphonse.
Durante toda a tarde, Léa e os amigos recentes ingeriram uma
assustadora mistura de vinhos, de licores e de aperitivos. Às cinco horas,
Fanfan irrompeu pelo barzinho como um pé-de-vento, tão ofegante que não
conseguia falar.
— Assinaram... acabou... Choltitz assinou a capitulação — informou com
voz entrecortada.
— Hurra!
— E então? Acabou a guerra?
— Vamos, conte-nos. Com quem é que ele assinou?
— Segurem-se bem... nós também assinamos!
— Está brincando — disse Cecel em voz pastosa.
— Não, não estou — garantiu o outro. — O coronel Rol, comandante das
Forças Francesas do Interior da tle-de-France, assinou a carta de rendição
junto com o general Leclerc e o general Von Choltitz, — Bravo! Temos de
brindar a isso!
— Não acha que já bebeu demais?
Nunca se bebe demais quando se trata de celebrar a vitória. ainda muito
cedo para falar em vitória. Continuam a lutar em Luxemburgo, no quartel da
praça da República, no Palácio Bourdon, em algumas estações de metrô e
também nos arredores, sem dúvida.
— Isso não me preocupa. Fabien irá expulsá-los de lá. Como vão as
coisas?
— Vão bem — garantiu Fanfan. — Os Sherman de Leclerc ocupam a rua
de Vaugirard, as Forças Francesas do Interior e os spabis marroquinos do 6
Exército entraram no jardim pela rua Auguste-Comte e carros da Prefeitura
munidos de alto- falantes circulam pelo bairro anunciando um bombardeio

para as dezenove horas, se os alemães não se renderem. O cessar- fogo está
marcado para as dezoito e trinta e cinco. Mas acho que será preciso recorrer
aos aviões, Você vem comigo?
— Não podemos deixá-la assim. — respondeu Cecel.
— Quero ir com vocês — tartamudeou Léa, procurando levantar-se.
— Está maluca! Já viu em que estado está?
— Quero lutar com os tanques...
— Venha — insistiu Fanfan. — Não vai se chatear por causa de uma guria
bêbada.
— Não estou bêbada... bebi apenas um pouco a mais para comemorar a
chegada dos nossos heróis.
— Podem ir embora — interveio a garçonete. — Eu tomo conta dela.
Vamos, levante-se, pequena. Venha deitar um pouco lá em cima.
— Está bem. Mas, antes disso, quero mais um gole.
— Suba, que eu levo a bebida até lá.
— Você cuida dela? Promete?
— Sabe muito bem que pode confiar em mim, Cecel. Mas parece que está
apaixonado! Há alguém que não vai ficar muito satisfeita com isso.
O adolescente saiu, dando de ombros.
Com muita dificuldade, conseguiram levar Léa até o pequeno aposento no
andar de cima do café, que servia ao mesmo tempo de salão de emergência e de
quarto de dormir. Mal caiu na cama, começou a ressonar suavemente, com a
boca aberta.

Capítulo 21

LÉA DORMIU ATÉ a noite. Através da porta entreaberta, chegavam até o
quarto os ruídos do café, onde reinava a maior animação. A jovem levantou-se,
a cabeça latejando.
— Que estou fazendo aqui? — perguntou ela em voz alta a si mesma.
Passos estrondeavam pela escada em caracol. A porta do quarto abriu-se
brutalmente, dando passagem a Rita e a Alphonse. Rita encarou Léa com ar
demente.
— Por que é que o deixou ir embora? Por quê? — ela gritava, precipitando-
se de punho erguido para a jovem, que se desviou. Mas não tão rápido: recebeu
um soco no rosto que aumentou sua enxaqueca e reavivou a dor do ferimento.
Deslizou da cama, gemendo e segurando a cabeça entre as mãos. A adolescente
atirou-se contra ela, agarrou-a pelos cabelos e esbofeteou-a com força.
— Pare com isso! — trovejou Alphonse.
— Suma daqui! — gritou Rita. — Vou tirar a pele desta porca.
— Pare, já disse! Cecel não gostaria que você fizesse isso — disse Alphonse
tentando detê-la.
A mão que batia pareceu ficar suspensa. Devagar, os dedos de Rita
largaram a cabeleira de Léa, que caiu molemente.
Os olhos da moça iam do corpo prostrado ao rosto de Alphonse, como que
tentando compreender o que lhe acontecia. O companheiro esboçou um gesto
desajeitado, atraindo-a para si. Procurou acalmá-la.
— A moça não teve culpa — garantiu ele. — Quando viu o irmão ferido,
Cecel ficou como louco.
— Preferia que Cecel tivesse dormido com ela — balbucíou Rita.
Léa voltou a se levantar e olhava-os sem entender.
— Mas, afinal, o que aconteceu?
Antes de responder, o adolescente assou o nariz ruidosamente.
— Cecel foi morto na rua de Tournon.
— Oh, não!
Rita fitou Léa nos olhos e lhe atirou:
— Sim! E o seu primo também morreu!
— Fique quieta, Rita!

— Que é que tem? Por que só eu vou sofrer?
— Como souberam?
— Quem falou foi um tenente do coronel Rol. Seu primo foi transportado
para o Val-de-Gracê. Encontraram-no lá. Será melhor voltar para casa.
— E o que aconteceu com Cecel?
— Tínhamos chegado à zona dos combates. Na rua Garancière,
encontramos Clement, o irmão dele, que gritou para que nos abrigássemos.
Cecel não quis e os seguimos, caminhando rente às paredes da rua Vaugirard.
A coisa estava feia. Um boche saiu por detrás de um carro incendiado,
disparando em todas as direções. Clement foi atingido nas pernas. Arrastou-se
por momentos e, então, o Fritz, sem se apressar, descarregou a arma sobre ele
e afastou-se em direção ao Senado. Cecel gritava como louco. Procurei detê-lo.
Correu, desarmado, apanhou a espingarda do irmão e precipitou-se atrás do
tipo da metralhadora. O sujeito parou, voltou-se e me pareceu que sorria.
Ergueram as armas ao mesmo tempo. A bala de Cecel atingiu o rosto. As dele
transformaram meu amigo numa papa. Foi assim.
Os três jovens, em pé, de braços pendentes, como crianças perdidas,
choravam por aquele rapaz de 15 anos, que acabava de morrer nessa bonita
tarde de agosto de 1944, no dia em que Paris se libertava.
Enxugando os olhos sem dizer nada, Rita e Alphonse desapareceram.
Ficando só, Léa atirou-se sobre a cama soluçando e revendo, por vezes, o rosto
do primo, outras, o de Cecel, ouvindo suas risadas. — Estão mortos! Estão
mortos! — gritava ela para o travesseiro.
Em meio ao júbilo e a alegria, Paris desmontava suas barricadas, com
grandes goles de vinho e muito riso. O dia estava bonito. Na Pont-Neuf,
improvisou-se um baile ao som de um acordeão. Moças de cabelos presos na
nuca, em caracóis elaborados, rodopiavam nos braços de membros das Forças
Francesas do Interior ou dos Leclerc, em licença até a meia- noite.
Na rua Mazarine, na rua Dauphine e na rua Ancienne-Comédie,
caminhava-se sobre cacos de vidro. Ao longo do cais, e na praça Saint-Michel,
viam-se carcaças enegrecidas de viaturas, de caminhões. Em certos locais,
humildes ramos de flores colocados sobre o pavimento das ruas indicavam que
naqueles pontos havia caído um homem, uma mulher ou uma criança.
Algumas pessoas se ajoelhavam ao lado das manchas escuras.
Léa seguia devagar pelo cais dos Grands-Augustins, aflorando com os
dedos as pedras ainda tépidas do sol de tarde ou a madeira de tendas de livros
velhos.
Na praça Saint-Michel, os tanques manobravam, seguidos pelas
aclamações da multidão. Apoiada ao parapeito, Léa os via passar, infeliz e
desamparada. Aureolada pelo sol poente, a cabeleira da jovem parecia feita de

fogo. Dos carros os soldados a saudavam, fazendo-lhe sinais para que fosse
juntar-se às outras moças empoleiradas nos veículos à sua volta.
— Léa!
Apesar do barulho, a jovem ouviu seu nome e olhou em volta, procurando
quem a chamava.
— Léa!
Sobre um tanque, um homem gesticulava.
— Laurent!
Lutou contra a multidão para chegar até ele. Laurent mandou parar o
veículo e estendeu-lhe a mão, ajudando-a a subir. Sem se incomodar com os
olhares divertidos dos seus homens, manteve-a apertada contra si, balbuciando
seu nome.
Léa sentiu-se dominada por uma sensação de irrealidade. Que fazia ela ali,
em cima de um carro de assalto que se dirigia para a praça da Câmara
Municipal nesse soberbo crepúsculo, nos braços de um militar cujo cheiro de
pólvora, de óleo, de sujeira e de suor a deixava tonta?
Mas era Laurent... Laurent! Ele lhe falava da alegria de encontrá-la tão
bonita nesse dia abençoado entre todos, da felicidade de rever sua mulher e seu
filho. Do que ele falava? Não compreendia... Esse não era o momento para se
falar em coisas desagradáveis. Os dois estavam bem vivos, rindo e chorando
nos braços um do outro. Mas algo bramia dentro dela, tal como um animal
ansioso por sair da jaula. Como lhe dizer? Seria preferível esperar. Talvez
amanhã... sim, diria amanhã.
No Chatelet, carros americanos vieram juntar-se aos da Divisão Leclerc,
saudados pelos gritos dos parisienses.
— Viva a América!
— Viva a França!
— Viva De Gaulle!
O entusiasmo vibrante da multidão começava a contagiar Léa. Aninhou-se
mais nos braços de Laurent.
O tanque Exupérance parou junto da torre Saint-Jacques, onde estava o
capitão Buis.
— Ora, muito bem, d'Argilat! Pelo jeito você não se entendia! — exclamou
ele.
— Não é o que está pensando, Buis.
— Eu não penso nada. Apenas constato.
Laurent saltou do veículo e estendeu os braços para receber a
companheira.

À sua volta formavam-se os pares, os risos tornavam-se mais agudos, as
palavras mais intencionais, os gestos mais claros, os olhares inequívocos.
Todos se preparavam para festejar a libertação de Paris da maneira simples e
natural: fazendo amor.
Léa ergueu o rosto devagar para Laurent.
— Camille morreu — disse simplesmente.
Foi como uma deflagração. Tudo explode e depois se extingue em volta de
Laurent. Restam luzes de cores frias e nebulosas, formando auréolas nos
objetos e silhuetas humanas que se movem com lentidão irreal. Parecia que
uma noite de nevoeiro gelado tombava em pleno mês de agosto, e dali surgiriam
os mortos de Paris. O que iriam fazer a um militar francês de uniforme
americano, chorando junto da torre Saint-Jacques, apoiado ao veículo batizado
com o nome de uma santa já esquecida? Nada... Talvez apenas passassem por
ali, acordados pelos estribilhos musicais, pelos suspiros dos apaixonados que,
nessa noite, de Bolonha a Vincennes, das margens do Sena aos portais dos
edifícios, transformavam Paris na capital do prazer.
Léa presenciara o sofrimento do homem que amara antigamente.
Experimentava uma piedade enorme, mas sentia-se incapaz de lhe
proporcionar o tipo de conforto necessário e suficiente, pois ela mesma se
sentia privada de tudo, sem força nem esperança.
— Charles está bem — foi tudo o que encontrou para o consolar.
— Que tem você, meu velho? Más notícias? — perguntou o capitão Buis,
colocando a mão no ombro do amigo.
Laurent endireitou-se sem procurar esconder as lágrimas, que lhe
deslizavam pelo rosto sujo.
— Acabo de receber a notícia da morte de minha mulher.
— Sinto muitíssimo. Como ela morreu?
— Não sei — disse Laurent, voltando-se para Léa e interrogando-a com o
olhar.
— Foi morta pelos alemães e pelos policiais, durante o ataque a uma base
de resistentes.
Os três permaneceram silenciosos, alheios à alegria dos que os rodeavam.
Buis foi o primeiro a reagir.
— Venha, o patrão está chamando.
— Já vou. Léa, onde está o meu filho?
— Comigo, em casa de minhas tias, na rua da Universidade.
— Vou tentar obter uma licença para amanhã. Dê por mim um beijo em
Charles.

— Até depois, senhorita. Eu cuido dele.
Embrutecida pelo cansaço e pelo sofrimento, com a cabeça doendo a ponto
de querer gritar, Léa arrastou-se ao longo da rua Jacob empurrada por
transeuntes ébrios de alegria e de álcool. Ao chegar à rua da Universidade,
deixou-se ficar por muito tempo sentada na escuridão das escadas, sentindo-se
fraca demais para empreender a subida até o apartamento das tias.
A luz se acendeu. A luz já voltou, pensou. Arrastou-se pelas escadas acima
e apoiou o corpo na campainha.
— Então, que é isso... que é isso? Não são maneiras... Ah, senhorita Léa!
Não tem chave? Mas o que lhe aconteceu? Deus do Céu! Senhoras... senhoras!
— O que está acontecendo, Estelle?
— Léa! Depressa... Lisa... Laure!
Ajudada pela irmã e pela sobrinha, Albertine conduziu Léa para o divã da
sala de visitas. A palidez, as narinas afiladas e as mãos geladas de Léa
apavoraram Lisa.
Albertine molhou suas têmporas com água fresca. As narinas
distenderam-se, um estremecimento quase imperceptível percorreu-lhe o rosto,
as pálpebras se descolaram e depois, devagar, seu olhar percorreu todo o
aposento. Que sonho terrível! Quem seria a criança que Laure embalava? Por
que a irmã chorava ao pousar os lábios nos cabelinhos loiros e sedosos? Onde
estava a mãe do menino?
— Não! — gritou Léa.
O seu protesto desesperado assustou as quatro mulheres. A criança no
colo de Laure acordou e Charles acorreu, de olhos sonolentos. Subiu no divã,
aninhando-se contra a jovem.
— Não tenha medo — disse ele. — Eu estou aqui.
— Esteve chorando e chamando por ela o dia inteiro — cochichou Estelle a
Lisa. — E agora a conforta... Que criança mais estranha!
Léa, gemendo, levou a mão à cabeça.
— Quer preparar um chá de tília para a senhorita Léa, Estelle? E traga
também uma aspirina.
— Sim, senhora.
— Acalme-se, minha querida. Estávamos preocupadas por sua causa!
— Tiveram mais alguma notícia de Françoise?
— Não — respondeu Laure. — Vim o mais depressa que pude quando tia
Albertine me telefonou dizendo o que acabava de acontecer. Franck e um amigo
andaram por toda a parte onde pensavam encontrar Françoise, mas não

conseguiram nenhuma informação. Não se sabe para onde a levaram. E você,
onde esteve?
Léa não respondeu à pergunta, declarando simplesmente:
— Vi Laurent.
— Oh, até que enfim uma boa notícia!
— Pierrot morreu — acrescentou.
Laure nada disse; já sabia.
— Pobre pequeno! — lamentou Lisa — Rezarei por ele.
A velha senhora não notou o olhar de raiva que Léa lhe lançou.
— Tem um cigarro? — perguntou à irmã.
— Toma — disse Laure, atirando-lhe um maço verde com um círculo
vermelho.
— Lucky Strike... nunca fumei.
Estelle surgiu com os comprimidos de aspirina e as xícaras de chá de tília,
adoçado com o mel que descobrira na mercearia da rua de Seine.
Albertine pegou Charles, que adormecera, enquanto Lisa tomava conta do
filho de Françoise. As duas irmãs ficaram sozinhas, bebendo o chá em silêncio.

Capítulo 22

PELAS GRANDES JANELAS abertas, chegavam até elas gritos e canções
insólitas naquele bairro habitualmente tão sossegado. Laure se levantou e ligou
o rádio.
Atenção! — gritava o locutor. — Vamos retransmitir o discurso do general
De Gaulle, proferido na Câmara Municipal.
Por que haveríamos de ocultar a emoção que a todos assalta, aos homens
e às mulheres que aqui estão, em suas casas, na cidade de Paris que se ergueu
para se libertar e que soube fazê-lo por suas próprias mãos? Não, não
dissimularemos essa emoção profunda e sagrada. Há momentos que
ultrapassam cada uma de nossas próprias vidas(...
Paris! Paris ultrajada! Paris desfeita! Paris martirizada! Mas também Paris
libertada! Libertada por si mesma, por seus habitantes, com o concurso das
forças armadas francesas e o apoio e auxílio da França inteira, da nação que
combate, da única e verdadeira França... a França eterna.
Muito bem! Visto que capitulou em nossas mãos o inimigo que ocupava
Paris, é a França que entra na capital, que entra em sua casa. Vem sangrando,
mas cheia de determinação. Vem mais lúcida pela imensa lição recebida e
também mais consciente que nunca de seus deveres e direitos.
Nesse instante a corrente elétrica foi cortada, extinguindo a voz do homem
que, durante quatro anos, personificara a esperança dos franceses e que, nessa
noite, do Ministério da Guerra, abandonado pelos alemães poucas horas antes,
"governava a França".
Laure acendeu a lamparina de querosene colocada sobre a mesinha
redonda junto ao divã, onde a irmã ainda estava deitada.
— Vou para a cama e você deveria fazer o mesmo. Talvez amanhã a gente
veja as coisas com maior clareza.
— Sim, talvez. Boa-noite.
— Boa-noite para você também.
A claridade amarela da lamparina acentuava a tranqüilidade da sala de
visitas, cujo encanto antiquado fazia recordar um pouco o ambiente de
Montillac.
Com um suspiro, Léa acendeu outro cigarro. Pôs o maço de Lucky Strike
sobre a mesinha e notou, então, um jornal. Era o Figaro com uma notícia de
seis colunas sob o seguinte título: AS TROPAS FRANCESAS CHEGARAM
ONTEM ÀS VINTE E DUAS HORAS À PRAÇA DA CÂMARA MUNICIPAL.

O nome de François Mauriac figurava em primeira página. Léa começou a
ler o artigo intitulado: O PRIMEIRO DOS NOSSOS.
No mais triste momento do nosso destino, a esperança dos franceses
consubstanciou-se num homem. Essa esperança iria depois ser suprimida pela
voz desse mesmo homem — um homem solitário. Quantos foram, então, os
franceses que se apresentaram para compartilhar dessa solidão, os que
compreenderam o seu modo e o que significa fazer a dádiva de sua pessoa à
França?
As linhas dançavam em frente dos olhos de Léa.
A IV República é filha do martírio. Nasceu em meio ao sangue, o sangue
dos mártires. O sangue de comunistas, de concidadãos, de cristãos e de judeus
foi o sangue do nosso batismo comum e a figura do general De Gaulle
permanecerá entre nós como o seu símbolo vivo... Não temos ilusões quanto
aos homens...
Recordo os versos do velho Hugo com que, durante estes quatro anos,
tantas vezes acalentei o meu desgosto:

Ó França livre, por fim erguida!
Ó veste branca após a orgia!

O jornal deslizou das mãos de Léa. Adormecera.
Novamente o fantasma do homem de Orléans, desta vez armado com uma
tesoura descomunal. No exato momento em que seria atingida, Léa acordou
encharcada de suor. Só voltou a adormecer quando já amanhecia.
Aroma de café... café autêntico? De onde viria aquela raridade que a
arrancara do sono agitado? Estranhamente, apesar de uma leve dor de cabeça,
Léa sentia-se bem. Laure acabara de entrar na sala com uma bandeja onde
uma xícara fumegava.
— Café?
— Se quiser assim. Foi Laurent quem trouxe.
— Laurent está aqui?
— Sim. Está no seu quarto, com Charles.
Léa se levantou rapidamente.
— Não, não vá. Charles está lhe contando como a mãe morreu. Tome.
Beba enquanto está quente.
— Mas... parece café verdadeiro! O que é?
— Um pó feito de café. Coloca-se água quente em cima e fica pronto para
ser bebido. É americano, eu creio.

— Continuam sem saber nada de Françoise?
— Continuamos. Mas Franck deu notícias pelo telefone. Encontrou um
responsável pelas detenções, velho amigo do pai.
— Pensei que o pai dele fosse mais ou menos colaboracionista -- observou
Léa.
— É, e o outro também.
— Não estou entendendo.
— É muito simples: favorecida pelo clima de insurreição, muita gente
conseguiu se infiltrar nas Forças Francesas do Interior. Dizem que muitas
dessas pessoas deram mesmo provas de grande coragem — explicou Laure. —
Franck ficou admirado quando encontrou esse tal amigo do pai, armado de
metralhadora e com a braçadeira da Cruz de Lorraine. Reconhecendo Franck, o
colaboracionista teve medo que ele o denunciasse. Por isso mesmo se
prontificou a se informar sobre o local onde Françoise está presa. Se tudo
correr bem, deveremos ter notícias no final da tarde.
— E quanto a Pierrot?
— Seu corpo está no necrotério. Fui identificá-lo ontem.
— Ontem! Mas não me contou nada!
— Para quê? Temos que avisar tio Luc. Tia Albertine prometeu encarregar-
se disso assim que se restabeleçam as ligações telefônicas entre Paris e
Bordéus.
Bateram à porta.
— Entre.
Era Laurent com Charles ao colo. Ambos estavam com os olhos vermelhos.
— O papai voltou, Léa!
— Bom-dia, Léa. O general Leclerc me espera; não posso demorar. Voltarei
depois do desfile nos Campos Elíseos. Obrigado por tudo — acrescentou
beijando-a na testa. — Até logo à noite Charles.
— Quero ir com você no seu carro.
— Não é possível, meu querido. Fica para outra vez.
O garoto começou a choramingar. Léa apertou-o contra o corpo.
— Não chore — disse, — Iremos encontrar seu pai logo mais.
— De verdade?
— De verdade.
Após um último beijo no filho, Laurent foi embora.
Como ele parece infeliz, pensou Léa.

Uma enorme bandeira tricolor flutuava sob o Arco do Triunfo.
O dia estava magnífico; nenhuma nuvem. Os parisienses talvez mais de
um milhão — espalhavam-se ao longo do trajeto que fariam o general De
Gaulle, os generais Leclerc, Juim e Koening, os chefes da Resistência e as
Forças Francesas do Interior.
Da Étoile até Notre-Dame, passando pela Place de la Concorde, ruas e
passeios fervilhavam de gente. O pequeno avião das Atualidades Americanas
fazia círculos no espaço.
Léa e Laure, de mãos dadas com Charles, deixavam-se invadir aos poucos
pela euforia da multidão.
— Lá estão eles! Lá estão eles!
Sentados na balaustrada das Tuileries que dominava a Place de 1a
Concorde, viam avançar em sua direção um rio imenso, pontilhado de
bandeiras e de bandeirinhas, à frente do qual caminhava um homem alto e
solitário: o general De Gaulle, precedido por quatro tanques franceses:
Lauraguais, Limagne, Limousin e Vercelon. Ali, o cortejo suspendera a marcha
diante da Guarda que tocava a Marselhesa e a Marcha Lorraine. Os hinos
irrompiam de milhares de peitos.
— Viva De Gaulle! Viva a França!
Anos mais tarde, Charles de Gaulle escreveria em suas memórias:

Ah, é um mar! Uma multidão imensa, apinhada de um e de outro lado da
rua. Talvez dois milhões de almas. Também os telhados fervilham de gente.
Grupos compactos empilham-se em todas as janelas, misturados às bandeiras.
Há cachos humanos agarrados em escadas, em mastros, em lampiões. Até onde
a minha vista alcança só se distingue a vaga humana ao sol, sob o pavilhão
tricolor.
Sigo a pé. Não é o dia de passar revista, quando as armas cintilam e as
fanfarras soam. Trata-se, neste momento, da rendição de um povo a si próprio,
através do espetáculo de sua alegria e da evidência de sua liberdade, um povo
ontem esmagado pela derrota e disperso pela servidão.
Como o coração de cada um dos parisienses escolheu Charles de Gaulle
como recurso para suas aflições e símbolo de sua esperança, que todos o vejam
aqui, familiar e fraterno e que à sua vista resplandeça a unidade nacional (...
Acontece nesse momento um daqueles milagres da consciência nacional,
um desses gestos da França que, por vezes, durante séculos iluminaram a
nossa história. Nesta comunhão que é um só pensamento, um só ímpeto, um
só grito, as diferenças se apagam, os indivíduos desaparecem (...

Mas não existe alegria sem mácula, mesmo para quem segue o caminho do
triunfo. Às idéias felizes que se acumulam em meu espírito, mesclam-se muitas
preocupações. Eu sei muito bem que toda a França só aspira à libertação. O
mesmo ardor de voltar a viver, que explodia ontem em Rennes e em Marselha e
que hoje entusiasma Paris, se repetirá amanhã em Lyon, em Rouan, em Lille,
em Dijon, em Estrasburgo e em Bordéus. Basta abrir os olhos e os ouvidos para
constatar que o país deseja erguer-se novamente. Mas a guerra continua.
Resta-nos ganhá-la. Qual o preço total que será preciso pagar pelo resultado?

Preparavam-se para atravessar a rua Paul-Déroulède em frente do Arco do
Carrossel, quando os disparos recomeçaram.
Atiraram-se de barriga na grama. Em redor, as pessoas, tomadas de
pânico, fugiam na maior desordem. Era tamanha a confusão que os homens
das Forças Francesas do Interior, postados na outra margem do Sena,
começaram a disparar contra o pavilhão de Flore. Por sua vez, os das Tuileries,
julgando tratar-se de um ataque, responderam aos tiros.
— Seria estúpido demais morrer assim — comentou Léa, erguendo-se,
depois de uma saraivada de balas ter-se crivado não muito longe dela.
O general saudou a multidão com as duas mãos e depois subiu para o
enorme Renault preto conversível, que fora utilizado pelo marechal Pétain
durante sua visita anterior. Nesse instante, ouviram-se algumas detonações.
— Os bandidos atiram dos telhados!
— Deitem-se!
Algumas pessoas atiraram-se ao chão enquanto os responsáveis pelos
serviços da ordem, de pistolas em punho, empurravam mulheres e crianças
para trás dos carros de assalto e dos hall-tracws.
Que confusão, pensou Léa, contemplando a Place de la Concorde que não
passava agora de um amontoado de corpos enredados pelo medo, de saias
arregaçadas até em cima, de bicicletas caídas, de barreiras de arame farpado,
de jipes e de carros.
Agachou-se atrás da balaustrada quando Laure e Charles puxaram por
ela. O pequeno estava encantado com os acontecimentos.
Homens das Forças Francesas do Interior rebateram em direção ao
pavilhão de Marsan. O tiroteio mais intenso parecia vir da estação de Orsay e
da rua de Rivoli. Depois, tão subitamente como tinham começado, os tiros
cessaram. Os parisienses ergueram-se, embaraçados, olhando em volta.
As duas irmãs atravessaram correndo o jardim das Tuileries, transformado
em campo de manobras, rebocando pela mão a criança que se divertia com
aquilo tudo.
— Não está cansado? — perguntou Léa preocupada.

— Não estou... não estou — garantia ele rindo. — Quero ver papai no carro
dele.
Perto das bilheterias do Louvre, encontraram-se com Franck, com sua
bicicleta. Laure instalou Charles no porta-bagagens e eles foram para Notre-
Dame.
No pátio da catedral, De Gaulle acabara de descer do carro e beijava duas
garotas vestidas de alsacianas, que lhe entregaram um ramalhete tricolor.
Os carros estacionados no largo desapareciam sob cachos humanos.
Depois que o general partira da Place de la Concorde os disparos não haviam
cessado durante todo o trajeto até Notre-Dame, provocando monstruosas
confusões Aquela gente esgotada por quatro anos de privações, enervada pelos
combates que antecederam a libertação de Paris, gritava a sua alegria:
— Viva De Gaulle!
— Viva a França!
— Viva Leclerc!
O general De Gaulle encaminhava-se para o pórtico do Juízo Final quando
explodiu um tiroteio ainda mais intenso que os anteriores.
— Estão disparando das torres de Notre-Dame — gritou alguém.
A maioria das pessoas atirou-se de barriga no chão. De Gaulle, em pé,
fumava tranqüilamente um Craven, observando a cena com ar divertido.
Imediatamente, os Leclerc e os fif is começaram a disparar em direção à
catedral, mutilando as gárgulas, cujos estilhaços choveram sobre aqueles que
estavam junto ao pórtico. Oficiais da 2 Divisão Blindada corriam em todos os
sentidos, ordenando o cessar-fogo.
Vê-se que os seus homens não estão habituados a combates de rua —
disse o coronel Rol ironicamente ao tenente-coronel Jacques de Guiliebon, da
2ª Divisão Blindada.
— Não estão, mas pode crer que irão se habituar — ele respondeu,
medindo o outro com o olhar.
Enquanto o general Leclerc aplicava algumas bastonadas a um soldado em
pânico, que disparava em todas as direções, o general De Gaulle, irritado,
penetrava no templo sacudindo sua jaqueta.
O coronel Peretti abria-lhe caminho, distribuindo socos e pontapés. O
general chegara cerca de trinta minutos antes da hora prevista e o clero não
estava ali para recebê-lo. O órgão continuava em silêncio e o coro envolto em
penumbra, por falta de energia elétrica.
De Gaulle dera apenas meia dúzia de passos quando o tiroteio recomeçou
dentro da própria catedral. Os presentes, derrubando cadeiras e genuflexórios,

atiraram-se ao chão, aterrorizados pelo eco que ampliava o som das
detonações.
— Os soldados disparam da galeria dos Reis!
— Não são soldados. São homens da delegacia que estão lá em cima.
Impassível, De Gaulle venceu os sessenta metros da nave por entre filas de
cadeiras caídas e de fiéis prostrados contra o solo, as cabeças protegidas entre
os braços. Por instantes, um rosto emergia o tempo suficiente para gritar:
— Viva De Gaulle!
Atrás do general, Le Trocquer resmungava:
— Vêem-se mais traseiros do que caras.
Quando chegou ao coro, De Gaulle dirigiu-se para a cadeira colocada à
esquerda, na cruz do transepto, seguido por Parodi, por Peretti e por Le
Trocquer, enquanto as balas continuavam a assobiar.
Monsenhor Brot, arcebispo de Notre-Dame, encaminhou-se para De
Gaulle:
— Outra pessoa que não eu deveria estar aqui para recebê-lo, meu
general. Mas foi impedida pela força. Deste modo, encarregou-me de lhe
apresentar os seus calorosos e firmes respeitos.
De fato, o general De Gaulle deveria ter sido recebido pelo cardeal Suhard,
mas o governo Provisório fizera saber ao prelado, nessa mesma manhã, que sua
presença seria indesejável. Por quê? Censuravam-no por ter recebido o
marechal Pétain em sua catedral e de ter presidido as exéquias de Philippe
Henriot. No entanto, na cerimônia fúnebre, o cardeal recusara-se a usar da
palavra, embora as autoridades alemãs tivessem pedido, o que fez com que os
soldados dissessem:
— Suhard é gaulista.
Nem gaulista, nem colaboracionista; um homem de igreja, muito
simplesmente, devia pensar monsenhor Brot.
Mande tocar os órgãos — disse Le Trocquer.
— Não há corrente elétrica.
Nesse caso, dê ordem ao coro para cantar.
Um pouco hesitante, de início, o Magnificat retiniu sob as abóbadas. O
general De GaulIe cantava em voz alta, arrastando consigo a assistência, Os
disparos cessaram por instantes. Depois recomeçaram no meio do hino, ferindo
três pessoas.
Padres jovens davam a absolvição. Interrompido por momentos, o hino
elevou-se de novo sob as abóbadas seculares, acompanhado pelo assobio das
balas.

Dois rapazes de camisa branca recolhiam os feridos e as pessoas
acidentadas durante os momentos de desordem.
O Magnificat terminara, O local se tornava perigoso demais. Não haveria
Te Deum nesse dia.
Precedendo o general, abria-lhe caminho um magnífico bedel. Lá fora, a
multidão acolheu De Gaulle com vivas formidáveis.
— Viva De Gaulle!
— Que Deus salve De Gaulle!
— Que a Virgem guarde De Gaulle!
— Que Deus proteja a França!
O homem do dia saudou a massa humana agitando as duas mãos e foi se
instalar tranqüilamente em seu carro, que partiu seguido por aclamações.
Charles era o mais feliz e o mais orgulhoso dos meninos. Dominava o
mundo do alto da torrinha do tanque de seu pai.
Tinham reencontrado Laurent d'Argilat na Câmara Municipal, quando ele
voltava da Place de la Concorde. Informou-os de que voltaria a partir em menos
de uma hora.
— Apesar dos franco-atiradores, as pessoas aqui nem sequer desconfiam
de que os combates prosseguem nos subúrbios ao norte de Paris — disse
Laurent.
— Mas, então, os alemães não assinaram a rendição?
— A ata de rendição é válida para os que combatiam sob as ordens do
general Von Choltitz; não para os outros. Pelo menos, é o que afirmam os seus
chefes. Instalaram-se no Bourget e na floresta de Montmorency. Dispõem de
tropas recém-chegadas de bicicleta, vindas do Pas-de-Clais e, sobretudo, de
carros de assalto da 47 Divisão de Infantaria do general Wahle.
— Mostre como é que isso funciona, papai — pediu Charles.
Léa, empoleirada no tanque, deu um tapinha na mão da criança.
— Não mexa em nada — ordenou. Vai explodir tudo.
Laurent sorriu sem alegria. Beijou o filho, ergueu-o e, apesar de seus
protestos, estendeu-o a Franck.
— Cuide dele, Léa — recomendou. — Virei vê-los de novo assim que puder.
Depois falaremos de Camille. Quero saber tudo sobre a morte dela.
Charles e os três jovens ficaram observando a manobra do tanque. Depois,
seguiram-no até a avenida Sebastopol.
Franck acompanhou as duas irmãs e o menino à rua da Universidade. Ao
retirar-se prometeu voltar à noite com notícias de Françoise e também sobre o
abastecimento.

O passeio deixara Charles cansado e ele se queixava de dores de cabeça.
Estelle pôs o termômetro; tinha trinta e nove graus de temperatura. A velha
criada resmungava, dizendo que já sabia o que ia acontecer... que a criança não
deveria ter saído... - que ainda não se restabelecera por completo.
Léa deitou Charles em sua cama e ficou junto do menino, segurando-lhe a
mão até ele adormecer. Avaliara mal as suas próprias forças, sem dúvida, pois
também acabou dormindo.
Arrancou-a ao sono uma espécie de ribombar constante, Olhou o relógio:
onze horas e trinta minutos. O quarto estava mergulhado na penumbra. O
ribombar intensificava-se. Aviões! Sobrevoavam Paris. Deviam ser aparelhos
aliados e iam, por certo, bombardear a frente. As sirenes começaram a uivar.
Os aviões estavam agora mais perto e pareciam voar muito baixo. Léa correu
para a janela.
Depois de Orléans, nunca mais vira tantas aeronaves em conjunto. Os
riscos dos projéteis e os raros disparos da D.C.A. pareciam não incomodá-los.
De repente, ouviram-se grandes explosões nos lados da Câmara Municipal
e das Halles que abalaram todo o bairro, iluminando a noite.
— Temos de descer para os abrigos! — gritou Albertine, abrindo a porta do
quarto, com o bebê de Françoise no colo.
Lisa e Estelle passaram correndo pelo corredor, com os cabelos
desgrenhados.
— Desçam sem mim e levem Charles — disse Léa.
O menino, estremunhado, agarrou-se a ela, recusando-se a largá-la.
— Não quero! Não quero; fico com você.
— Está bem. Então fique.
Aninhado contra o corpo da amiga, ambos instalados numa das grandes
poltronas da sala de visitas, Charles voltou a adormecer.
Léa fumou um cigarro. As bombas alemãs caíram no Marais, na rua da
Morgue, no hospital Bichat — onde mataram sete enfermeiras — no mercado
dos vinhos, e provocaram um incêndio que iluminou a cidade como fogo de
artifício.
Por volta da meia-noite, soou o fim do alerta aéreo, O retinir das sinetas
dos bombeiros e as sirenes das ambulâncias substituíram então o estrondo das
bombas.
Todos voltaram para a cama, mas não por muito tempo. Às três horas da
madrugada, outro alerta arrancou novamente os parisienses de suas camas.
No dia seguinte, havia uma centena de mortos e cerca de quinhentos
feridos. Foi um rude despertar para todos aqueles que pensavam que a guerra
terminara.

Ao despontar do dia 27 de agosto de 1944, Paris cuidava de seus feridos.
Em Notre-Dame, desenrolava-se estranha cerimônia com todas as portas
fechadas, cerimônia dita de reconciliação.
Derramara-se na Catedral o sangue do crime, segundo a expressão
litúrgica consagrada, e o templo deveria ser reconciliado antes de reaberto aos
fiéis.
O arcebispo de Notre-Dame, monsenhor Brot, coadjuvado pelo cônego
Lenoble, percorreu todo o interior e o exterior da catedral benzendo as paredes
com água gregoriana, uma mistura de água, cinzas, sal e vinho. Depois da
cerimônia, realizada apenas em presença de membros do clero adstritos a
Notre-Dame, celebraram-se então normalmente a missa e os ofícios divinos.
Nessa manhã de domingo, foi celebrada uma missa numa das barricadas
da avenida Saint-Michel, pelo capitão das Forças Francesas do Interior, padre
das bases da Resistência da Aaute-Savoie, rodeado de bandeiras e diante de um
grande público em atitude de recolhimento.
Léa recusou-se a acompanhar as tias à missa cantada em Saint-
Germanin-des-Près.
Após diversas tentativas infrutíferas, Albertine de Montpleynet conseguiu,
enfim, falar com Luc Delmas pelo telefone. A ligação era bastante precária,
porém, e tiveram de gritar para se fazerem ouvir.
— Alô? Alô? Está me ouvindo? Quem fala é Albertine de Montpleynet, tia
das pequenas Delmas... Sim, estão aqui comigo... Vão bem. Telefono-lhe por
causa de seu filho... Sim, de Pierrot... Não, não... foi morto, lamento muito...
Pelos alemães... Infelizmente é possível. Fui ontem identificar o corpo. Não sei...
Estava com Léa na avenida Saint-Michel... Vou ver, ela ficou ferida. Não
desligue.
Albertine virou-se para a sobrinha, dizendo:
— Seu tio Luc está ao telefone e quer falar com você.
— Nada tenho para lhe dizer. É por sua causa que Pierrot morreu.
— Está sendo injusta. Seu tio é um homem massacrado pelo desgosto.
— Bem-feito!
— Não tem o direito de falar desse modo, Léa. Não se esqueça de que ele é
irmão de seu pai. Se não for por caridade cristã, ao menos fale com ele por
humanidade, em memória de seus pais.
Por que lhe falavam de seus pais naquele momento? Estavam mortos,
como Camille e como Pierrot.
— Alô? — gritou Léa, arrancando o fone das mãos da tia. — Alô? Sim, é
Léa. Encontrei Pierrot por acaso, há dias. Fazia parte da Resistência há um
ano. Havia se juntado aos comunistas. Enviaram-no a Paris para servir de

agente de ligação entre os chefes da revolta. Foi morto por uma granada... Não,
não sei se sofreu, pois também fiquei ferida e não nos levaram para o mesmo
hospital. Alô? Alô? Não desligue... Alô? Quem está falando? Ah, é você, Philippe.
Sim, é horrível... Fomos libertados aqui. O que está acontecendo em Bordéus?
Quê?! Esperam que os alemães expulsem os americanos?! Receio que ainda não
tenha percebido que os alemães já perderam a guerra e que, mais tarde ou
mais cedo, pessoas como você e como seu pai correm o risco de serem
fuziladas... Não, isso não me daria nenhum prazer. Seria indiferente. Pierrot
está morto... sim, sim, mudei bastante. Que querem que a gente faça quanto ao
enterro? Ligue para a casa de minhas tias... Littré 3-2... Tiveram notícias do tio
Adrien?
Léa desligou, subitamente pensativa.
— Foi terrível ouvi-lo chorar, tia Albertine — disse a jovem em voz sumida.

Capítulo 23

O MÊS DE SETEMBRO de 1944 seria para Léa o mês das grandes
decisões.
Tudo começou, de fato, na noite de 30 de agosto.
O telefone soou por volta das oito da noite. Albertine foi atender.
— Alô? Sim, minha sobrinha está aqui. Quem quer lhe falar? Como? Não
entendi... Sr. Tavernier? François Tavernier? Ah, boa-noite, sr. Tavernier! Onde
está o senhor? Em Paris? Quando chegou? Com o general De Gaulle? Que
alegria em ouvi-lo, sr. Tavernier!.. Sim, Léa está bem... A senhora d'Argilat?
Infelizmente a senhora d'Argilat morreu... Sim, sim, é terrível. O menino vive
agora conosco. Estivemos com o pai há dias. Neste momento, combate ao norte
de Paris... Não desligue. Vou lhe passar Léa.
Albertine de Montpleynet gritou para a sobrinha:
— Léa! Telefone!
A moça chegou de roupão de banho, os cabelos molhados.
— Quem é?
— O senhor Tavernier.
— Franç...
— Sim, François. Mas o que você tem, minha pequena? Está se sentindo
mal?
O sangue corria tão rápido em suas veias que todo o corpo lhe doía.
— Não... não... estou bem — respondeu Léa em voz fraca, sentando-se
antes de pegar o fone.
Albertine de Montpleynet olhou a sobrinha com uma expressão
enternecida, mas ao mesmo tempo inquieta. Daria tudo para ver a filha de
Isabelle feliz.
— Gostaria de ficar a sós, minha tia.
— Claro... claro, minha querida. Desculpe-me.
Léa hesitava em aproximar-se do fone, apesar de ouvir do outro lado do fio
alôs cada vez mais impacientes. Por fim decidiu-se:
— Alô, François? Sim, sim... Não, não estou chorando... Não. De verdade...
Onde? No Ministério da Guerra? Onde fica isso? Rua Saint-Dominique, n 14?
Vou já. É só o tempo de secar os cabelos... François... Muito bem... muito bem,
não vou perder tempo.

Louca de alegria, Léa desligou, rindo e chorando ao mesmo tempo, com
desejo de ajoelhar e agradecer a Deus por François estar vivo!
Tentava esquecê-lo desde a morte de Camille para não ter de chorar o
desaparecimento de mais uma pessoa querida. Ao rever Laurent e diante da
alegria que sentira, pensou ter conseguido. Mas agora, ao simples som da voz
de François, seu corpo estremecera como sob uma carícia. Depressa...
depressa... aninhar-se nos braços dele, esquecer todos os horrores, não pensar
mais em guerras e em mortes, pensar apenas no prazer.
Os cabelos ainda não estavam secos, ia ficar horrorosa. Correu para o
quarto, esfregando a cabeça com força.
Vasculhou o armário em busca de um vestido. Onde estaria aquele azul
que lhe ficava tão bem? Desaparecera. Talvez estivesse no cesto de roupa suja.
— Laure! Laure!
— Que é? Por que está gritando desse jeito? O que quer?
— Você me empresta o seu vestido vermelho e verde?
— Mas... é um vestido novo!
— Exatamente por isso. Vamos, seja boazinha, me empreste. Prometo ter
cuidado com ele.
— Está bem. Mas só para lhe fazer um favor. Onde vai?
— Tenho um encontro com François Tavernier.
— O quê! Ele voltou?
— Sim.
— Que sorte a sua! Vá logo. Não o faça esperar. Vou buscar o vestido.
Quando Laure voltou, Léa, completamente nua, espalhava talco pelo
corpo.
— Como você é bonita!
— Não mais do que você.
Claro que é! Todos os meus amigos acham. Pegue o vestido. Mas tenha
cuidado. O tecido é muito delicado.
Laure ajudou-a a colocar o vestido de crepe de musselina, com um grande
decote e mangas largas e curtas. O corpo justo fazia parecer mais ampla a saia
curta e franzida.
— Você sabe se cuidar, bem? Nada mais nada menos que um vestido de
Jacques Fath!
— Troquei-o por cinco quilos de manteiga e cinco litros de azeite —
explicou Laure.
— Não foi caro.

— Acha? A manteiga é um artigo mais raro que os vestidos de um grande
costureiro e, com a libertação, serão de graça os das ex-mulheres elegantes da
alta sociedade alemã.
— Você é engraçada, Laure! Quem diria que a mocinha de Bordéus
apaixonada pelo marechal Pétain se transformaria em negociante do mercado
negro.
— E que tem isso? Todos podem se enganar. Eu me enganei a respeito de
Pétain e você também poderá se enganar sobre o general De Gaulle. E quanto
ao mercado negro... ora!, sem ele você não teria comido todos os dias.
— Isso é verdade, bem que o reconheço. E simplesmente admiro seu jeito
para negócios. Quanto a De Gaulle, ainda bem que ele existe.
— Depois veremos... Não passa de um militar como qualquer outro.
Léa encolheu os ombros sem responder.
— Nenhuma notícia de Françoise?
— Nenhuma. Franck continua procurando. Fale a esse respeito com
François Tavernier. Talvez ele tenha alguma idéia. E quanto a Pierrot, que é que
fazemos?
— Combine com tia Albertine.
— A que horas você volta?
— Não sei. Diga para as tias que vou sair e cuide de Charles.
— Claro... as chateações são para mim! — falou Laure, fingindo-se
aborrecida. — Seja como for, divirta-se muito. E cuidado com o meu vestido!
— Cuidarei dele como da menina dos olhos — garantiu Léa. — Não sei
onde arranjar cinco quilos de manteiga e cinco litros de azeite para lhe pagar se
acontecer alguma coisa.
— Você está muito longe do preço atual. Agora já seriam necessários dez
quilos e dez litros.
— Continue assim e ficará rica.
— É o que pretendo. Vamos, suma daqui! Estou ouvindo tia Lisa e, se ela
vê que está saindo, vai ter que lhe dar explicações durante uma hora: Onde
vai? Com quem? Será adequado? Etc., etc.
— Já fui embora. Obrigada.
Léa desceu as escadas tão depressa que saltou o penúltimo degrau e foi
estatelar-se no chão de mármore da entrada. Torceu o pulso violentamente.
— Merda! — exclamou ela.
— Que palavra tão feia em boca tão bonita!

— E que frase tão vulgar! É você, Franck? Não se vê nada com esses
malditos cortes de luz.
— Sim, sou eu.
— Ajude-me a levantar.
Quando Léa se ergueu deixou escapar um grito.
— Machucou-se?
— Não é nada, Você está tão carregado! O que é isso?
— Provisões para Laure: Já sei onde está sua irmã.
— Por que não disse logo?
— Porque não me deu tempo.
— Então...?
— Está no Vel'd'Hiv. É aí que as Forças Francesas do Interior reúnem os
colaboracionistas.
— É fácil entrar lá?
— Sim, desde que raspe o cabelo.
Não achei graça.
— Desculpe. Não, não é fácil entrar. Diante dos portões há sempre uma
horda de energúmenos gritando injúrias, espancando e cuspindo nos que são
conduzidos para lá. Até os advogados, mesmo em companhia de responsáveis
das Forças Francesas do Interior, são tão maltratados como os outros.
— Veja se consegue se informar — pediu a jovem. — Vou encontrar um
amigo, chegado ao general De Gaulle e lhe falarei a esse respeito.
— Peça-lhe que mova todas as influências para tirá-la dali. Parece que as
condições de detenção não são muito severas - afirmou Franck. Depois
aconselhou: — Não é prudente andar por aí passeando sozinha à noite. Não
quer que a acompanhe?
— Não, obrigada. Vou à rua Saint-Dominique, que não fica longe daqui.
Agradeço-lhe o que tem feito por Françoise. Eu lhe telefonarei amanhã para
dizer alguma coisa.
— Então, até amanhã. Boa-noite.
Léa não ouviu as palavras de despedida, pois já estava na rua.
No Ministério da Guerra, depois de se identificar, a sentinela mandou que
a conduzissem ao primeiro andar. Fizeram-na entrar no grande salão, onde
ainda existiam vestígios dos ocupantes anteriores: o retrato do Führer retirado
da parede e jogado num canto, bandeiras e papéis timbrados com a suástica
espalhados pelo chão, caixotes cheios de pastas e documentos espalhados ao
acaso, atestando uma partida precipitada.

— Já avisamos o comandante. Ele pediu para a senhorita esperar alguns
minutos. Está com o general De Gaulle. Aqui estão alguns jornais para se
entreter.
Havia de fato dezenas de jornais de todos os recantos da França sobre as
mesas: La Nation, Les Aliobroges, Le Franc- Tireur, Libération, Combat,
Défeense de la France, La Marseiliaise, L'Aisne Nouveile, Lyon Liberé,
L'Humanite", Le Patriote Niçois, Le Libre Poitou, La Petite Gironde.
Bordéus também fora libertada! As Forças Francesas do interior tinham
entrado na cidade às seis e meia da manhã. Na primeira página, o La Petite
Gironde publicava a ordem do dia nº 1 do Conselho Regional de Libertação do
Sudoeste, do delegado militar regional Triangle (o coronel Gaillard) e do
delegado militar do War Office Major, Roger Landes (Aristide) às Forças
Francesas do Interior.
Aristide! Estava vivo! Tio Adrien devia estar junto com ele.
Bordéus festejou a sua libertação. Estava na manchete de um jornal que
Léa não conhecia. Mas, coisa curiosa, tinha o mesmo endereço e o mesmo
emblema do La Petite Gironde, de segunda-feira, dia 28 de agosto um galo
cantando —, embora o exemplar do jornal desconhecido tivesse saído em 29.
Chamava-se Sud-Quest.
Entregue aos seus pensamentos, Léa não notou a chegada de François e
se viu nos braços dele sem saber como.
— Largue-me! Oh... François!
— Você... Você... — murmurava Tavernier sem conseguir dizer mais nada.
Era como se uma onda os arrebatasse e logo os soltasse, os fizesse cair
rolando, como se os triturasse e os aniquilasse.
Enlaçados, oscilavam através da sala, de lábios colados, chocando com os
móveis, numa embriaguez tão grande que nem sequer perceberam que não
estavam a sós.
— Então, Tavernier, era esse o encontro importante?
— Desculpe, meu general. Mas, como pode ver, era da maior importância.
— Estou vendo... estou vendo. É uma pequena muito bonita. Quando
terminarem o encontro, dentro de uma hora, digamos, venha falar comigo.
— Muito bem, general. Obrigado, general.
Assombrada, Léa ficou olhando a alta silhueta voltar ao seu gabinete.
— É ele, de verdade? — balbuciou. — Estou envergonhada.
— Não tem do que se envergonhar. É um homem.
— Exatamente por isso.

— Enquanto espero, temos uma hora e a bênção dele — observou François
Tavernier.
— Quer dizer que...
— Sim.
Léa enrubesceu e François deu uma gargalhada.
— Não ria. Não tem graça nenhuma. O que ele irá pensar a meu respeito?
Mas, esquecendo-se da vergonha, a moça se deixou arrastar para o andar
superior.
— É aqui o gabinete do general — segredou François Tavernier, quando
passavam em frente de uma porta guardada por um jovem militar.
Ao fundo do corredor, depois de terem deixado para trás diversas outras
portas, Tavernier encontrou, por fim, aquilo que buscava. Era uma espécie de
dispensa iluminada por uma clarabóia, onde se empilhavam tapeçarias e
papéis de parede cuidadosamente enrolados. Reinava lá dentro um calor
sufocante e um cheiro de poeira e de naftalina.
Tavernier derrubou a jovem sobre um monte de tapetes Aubusson e
deixou-se cair sobre ela.
— Espere... beije-me — disse Léa.
— Isso fica para depois. Andei sempre com a coisa em pé, pensando em
você e no seu belo cu, e agora não posso esperar mais.
Febrilmente, Tavernier procurava tirar-lhe as calcinhas.
— Que chateação! Tecido de antes da guerra! — exclamou, puxando com
violência.
— Pare! Vai rasgar o vestido.
— Eu lhe comprarei dez. Ah.
Penetrou-a com tanta brutalidade que lhe arrancou um grito de dor e de
raiva.
— Está me machucando. Deixe-me!
— Antes morrer que deixá-la agora.
Léa debatia-se, procurando libertar-se daquele pênis que a maltratava.
— Patife!
— Foi essa a primeira palavra que ouvi de você.
— Patife! Patife! Pat...
Mas o desejo de François contagiara Léa e, tal como animais, ambos
grunhiam e se mordiam, chegando a um orgasmo rápido e sem requintes.

Mas aquele prazer tão brusco não bastou para lhes aplacar o desejo. Sem
se desprenderem, voltaram a se amar, experimentando uma volúpia que
desconheciam. Depois, extenuados e satisfeitos, deixaram-se cair sobre as
tapeçarias cor de púrpura que pareciam querer envolvê-los.
Permaneceram em silêncio durante longos momentos, sentindo ainda em
seus corpos as ressonâncias do prazer.
François soergueu-se, então, e contemplou a jovem. Raramente via tanto
abandono no ato do amor. Quando ele a tomava, Léa submetia-se a todos os
seus desejos sem o menor pudor.
Roçou com os seus aqueles lábios túrgidos. Através das pálpebras
semicerradas refletia-se uma fina tira de luz, o que provocou nele uma emoção
insuportável.
— Olhe para mim — pediu.
As pálpebras se abriram lentamente sobre um olhar baço, de uma tristeza
dilacerante. François interpretou erradamente aquela melancolia.
— Está zangada comigo?
A cabeça despenteada oscilou num aceno negativo, ao mesmo tempo que
as lágrimas caíam sobre o veludo cor de amaranto.
— Eu te amo, pequena. Não chore.
— Tive tanto medo... — Léa conseguiu articular.
— Isso terminou. Agora estou ao seu lado.
A jovem se endireitou e repeliu-o com raiva.
— Não, não terminou. Por toda a parte há pessoas que matam outras, que
as humilham.
— Eu sei, eu sei. Vamos... acalme-se, você vai me contar isso mais tarde.
Sei o que aconteceu a Camille.
— Sabe? E sabe o que aconteceu a Pierrot? A Raul? A Françoise?
— A Françoise?!
— Sim, a Françoise. Foi presa pelas Forças Francesas do Interior, que lhe
rasparam a cabeça.
— Como sabe que eram Forças Francesas do Interior?
— Tinham braçadeiras.
— Há muita gente pouco recomendável infiltrada nas Forças Francesas do
Interior. O general De Gaulle sabe disso. Mas tudo se fará para restabelecer a
ordem pública e castigar os culpados.
— Não sei se eram ou não essas pessoas pouco recomendáveis, como vocês
dizem, infiltradas no meio dos libertadores de Paris. Mas o que posso garantir é

que o conjunto dos assistentes ao espetáculo da tosquia de minha irmã e das
outras moças se divertiu muito com o que viu e achou absolutamente natural
que elas fossem punidas assim.
— A raiva continua lhe caindo muito bem, minha querida.
— Oh...!
— Desculpe-me. O que aconteceu a Françoise depois?
— Levaram-na para o Vel'd'Hiv.
— Está em boa companhia. Está junto com toda a alta-roda: Sacha Guitry,
Mary Marquet... Mas não se preocupe mais com isso. Nós a tiraremos de lá.
Meu Deus! Tenho que deixá-la. O general deve estar à minha espera. Eu lhe
telefono amanhã de manhã. Até lá, tenha juízo.
Começou a sair, ainda abotoando a calça.
— François!
— O que é? — ele perguntou, voltando para trás.
— Estou muito feliz por vê-lo de novo.
Tavernier ergueu-a e apertou-a contra o corpo, beijando-a com aquela
ternura que sempre a surpreendia.
Sonhadora, ela ouviu se afastarem os passos do homem ao lado de quem
ela se sentia cada vez mais segura e ao mesmo tempo em grande perigo. Pouco
dada a análises, procurava destrinchar as causas dos sentimentos
contraditórios que a assaltavam naquele cubículo do Ministério da Guerra.
François me assusta. Mas como sou idiota! Por que teria medo dele?
Nunca fez nada que justifique tal angústia. Será que eu tenho medo de que
não me ame? Que me deixe? Tenho medo disso, é claro. Mas sinto que essa não
é a verdadeira causa. É algo quase físico. Tremo de medo quando ele me trata
como meu anjo. E, no entanto, minha atração por François é tão forte que o
seguiria para onde quer que fosse. Mas... e ele? Diz que me ama sempre que
nos encontramos, salta em cima de mim sem mesmo se dar ao trabalho de me
dirigir a palavra a não ser para dizer: Venha... eu te quero. Confesso que isso
me excita, mas a verdade é que não sou indiferente a essa carícias da alma que
são as palavras como Raphael Mahl e Balzac diziam.
É estranho... por que ele tem o dom de me irritar? Ainda há pouco, a
propósito de Pierrot e de Françoise... É como se inconscientemente eu o
responsabilizasse pelo que lhes aconteceu. Não compreendo. Talvez porque ele
seja um homem de atitudes, de objetivos e de relações equívocas e eu suspeite
que esse tipo de gente seja responsável pela guerra. É uma idéia absurda, eu
sei. Camille encontraria a explicação, com certeza. Tenho saudade dela. Um
sentimento de abandono, de ausência, quase iguais aos que senti quando
mamãe morreu. E quando penso que a traí! Que eu quis lhe roubar o marido!
Perdoe-me, Camille. Há tantas coisas que não cheguei a lhe dizer! E que você

também não me disse! E, agora... agora tudo acabou... acabou. Oh, chega de
lágrimas! Não servem para nada... para nada.
Enraivecida, Léa tentava inutilmente recompor o vestido amarrotado. Ah,
esses tecidos! Teria um lindo aspecto, sem dúvida, quando passasse daquele
jeito em frente da sentinela!
Finalmente, precisava sair do cubículo das tapeçarias. Entreabriu a porta
e deu uma olhada para a direita e para a esquerda.
Depois, tranqüilizada por ver o corredor deserto, esgueirou-se até a
escadaria, descendo-a com o ar mais digno que conseguiu manter.
O vestíbulo estava cheio de rapazes, militares e membros das Forças
Francesas do Interior. Todos seguiram com o olhar a bela jovem de vestido
amarrotado e de cabelos em desalinho. Sentiram inveja do desconhecido que a
deixara em tal estado.
Léa passou por eles de cabeça erguida, fingindo não notar os assobios de
admiração que a saudaram na saída. Uma vez na rua, porém, desapareceu
correndo, vermelha de raiva e de vergonha.
Na rua da Universidade, Charles veio ao seu encontro, muito excitado.
— Como? Você ainda não foi dormir?
— Papai está aqui! Papai está aqui! — ele gritava, puxando-a para a sala
de visitas.
— Espere. Vou mudar de roupa.
— Não. Venha.
— Daqui a pouco, meu querido.
— Papai, papai — chamou a criança. — É Léa. Ela não quer entrar.
A silhueta alta e delgada de Laurent enquadrou-se no limiar da porta.
Léa foi beijá-lo. Como parecia cansado.
— Espere por mim. Vou mudar de roupa.
Era tarde demais, porém. Laure acabava de aparecer.
— Até que enfim chegou! Oh, o meu vestido! Em que estado o deixou!
— Desculpe-me... caí.
— Caiu?
Confusa, Léa correu a se esconder no quarto. Seria difícil fazer com que
Laure ouvisse a voz da razão.
Quando Léa entrou na sala de visitas, tia Albertine olhou-a com ar severo.
— Sabe que não gosto que você saia à noite sem me dizer nada.

— Desculpe-me, tia. Fui falar com François Tavernier a respeito de
Françoise. Ele vai cuidar disso. Sabe que vi o general De Gaulle? — acrescentou
rapidamente, para mudar de assunto.
— Como é ele?
Léa fez um breve relato do encontro, omitindo, é claro, as circunstâncias
exatas.
— O seu quarto está pronto, senhor d'Argilat — avisou Albertine.
— Muito obrigado, minhas senhoras. Muito obrigado por tudo.
— Não tem que nos agradecer. Boa-noite a todos.
Esgotadas por tantos acontecimentos, as senhoras da Montpleynet
retiraram-se.
Laure aproximou-se da irmã e cochichou — Espero que tenha valido a
pena. Se não foi assim, não a perdôo por ter estragado meu vestido.
O rubor de Léa lhe deu a resposta.
— Boa-noite. Vou deitar-me — despediu-se Laure. Brincar de ama-seca
esgotou-me. Boa-noite, Laurent. Durma bem. Venha comigo, Charles. É hora
de ir para a cama.
— Não vou. Quero ficar com papai.
Léa ergueu o menino, que a abraçou com força.
— Fique comigo, papai!
— Ficarei sempre com você — disse Laurent. — Mas já é tarde e você
precisa dormir. Irei lhe dar boa-noite.
— Léa também.
— Claro! Léa também irá despedir-se de você.
— Vamos, a caminho, sua peste!
— Boa-noite, Laure, e obrigado.
— Boa-noite.
Quando ficaram a sós, Léa e Laurent permaneceram muito tempo em
silêncio, fumando cigarros americanos. Depois, Laurent ergueu-se e
encaminhou-se para a janela aberta, onde ficou contemplando o céu estrelado.
Sem se voltar, pediu:
— Conte-me como foi que Camille morreu.

Capítulo 24

— DONA ALBERTINE, estão chamando a senhora ao telefone.
— Obrigada, Estelle.
— Alô?. Sim, sou eu... Bom-dia, senhor... claro. Evidentemente que
concordo em receber minha sobrinha e responsabilizar- me por ela... Quando?.
Hoje! Não sei como lhe agradecer, senhor Tavernier... Deixando Léa ir jantar
com o senhor? Parece- me um pouco difícil no mesmo dia da volta da irmã.
Quer que a chame? Ainda está dormindo. Passou parte da noite conversando
com o senhor d'Argilat... Muito bem. Eu lhe direi que o senhor volta a telefonar
esta tarde.
Albertine de Montpleynet desligou. Pensativa, dirigiu-se para o quarto,
cuja porta fechou com gravidade. Sentou-se na velha cadeira Voltaire, de que
gostava particularmente. Seu coração batia com força. As mãos úmidas
agarraram os braços da cadeira.
Dentro dela extinguia-se aos poucos a alegria que sentira por Françoise,
dando lugar a uma angústia progressiva. Como reagiriam os vizinhos, os
inquilinos do prédio, os comerciantes do bairro e os amigos, diante da presença
da moça a quem fora raspado o cabelo — fato de que todos estavam a par —
por ser amante de um alemão?
Durante toda a vida Albertine estivera em acordo com a sociedade e agora
se sentia marginalizada. Mas nos últimos meses de Ocupação, as pessoas já
não lhe poupavam comentários desagradáveis a respeito do noivo alemão de
Françoise e do comportamento de Laure. Lisa, mais sociável que ela, sofria
muito com o clima gerado à sua volta, a ponto de ter suspendido suas partidas
semanais de bridge.
Albertine se reprovava a própria falta de firmeza em relação às três filhas
de Isabelle, pelas quais se sentia responsável depois da morte dos pais.
Reconhecia ter sido completamente ultrapassada pelos conhecimentos e pelas
naturezas muito diferentes, mas do mesmo modo obstinadas, das sobrinhas.
Não estive à altura da minha missão e não soube proteger estas crianças,
pensava. Que diria a mãe? Que será da pobre Françoise depois da provação por
que passou? Otto morreu, com certeza. Mãe solteira, eis as palavras que lhe
atirarão na cara... se não for pior. E o filho, aquele anjinho? Oh, meu Deus,
tende piedade de nós! Concedei a Françoise forças suficientes para superar o
desgosto e a vergonha! E perdoai-me, senhor! Confiaste-me uma missão e
falhei... Perdoai-me, meu Deus!
Albertine chorava, com cabeça entre as mãos. Entregue à sua mágoa, não
percebeu que a porta se abrira.

— O que você tem, tiazinha?
Agachada aos pés da velha senhora, Léa procurava separar-lhe as mãos
marcadas de manchas escuras.
— Eu lhe suplico, tia Albertine! Acalme-se!
Os dedos se descerraram, por fim. Diante da face contraída pelo
sofrimento daquela mulher de aspecto frio e que pouco manifestava os
sentimentos, Léa sentiu-se tomada pela divida e pela piedade. Por quê? Até ela
reagia desse modo, a tia tão reservada, tão forte, tão digna! Era ainda um
mundo de certezas infantis que ruía, deixando-a ainda mais pobre, mais sem
nada.
Ao ver Montillac queimar, alguma coisa fora destruída dentro dela, a
isolara no desespero, deixando-lhe apenas a energia necessária para sobreviver
e proteger o filho de Camille. E, na noite anterior, esgotara o pouco que tinha
ao tentar reconfortar Laurent. Mas como se pode consolar quando se está
inconsolável? E agora? Que palavras usar para devolver a coragem àquela
mulher tão querida? Camille saberia como fazer.
Foi Albertine, porém, quem encontrou as palavras:
— Levante-se, minha querida — disse ela — Não passo de uma velha
tonta. Foi apenas um momento de cansaço. Não tenho o direito de me queixar
quando tanta gente sofre bem mais que eu.
Enxugou os olhos com cuidado antes de prosseguir:
O senhor François Tavernier telefonou. Françoise vem para casa esta
tarde.
E chorava por causa disso!?
Sim e não. Não quero que você se engane quanto à natureza das minhas
lágrimas... Estou muito feliz com a volta de sua irmã, mas estou também um
pouco preocupada.
François lhe deixou algum recado para mim?
— Queria convidá-la para jantar, mas eu lhe disse que hoje não seria
possível.
— Por que você disse isso?
Albertine ergueu-se com expressão severa.
— Sua irmã vai precisar do afeto de todos nós, Achei melhor que você
também estivesse aqui.
Léa abaixou a cabeça, sentindo-se cansada, muito cansada.
— Seja como for, o sr. Tavernier voltará a telefonar esta tarde declarou
Albertine. Depois pediu: — Não comente com Lisa a minha atitude de há pouco;
isso a faria sofrer. Como você sabe, sua natureza é simples e linear. Os

acontecimentos a perturbam muito mais do que a mim, o que não deixa de se
refletir em sua saúde. Promete ficar calada?
Léa beijou a tia.
— Prometo, sim, tia Albertine. Posso lhe pedir um conselho?
— Claro, minha pequena. De que se trata?
— Ora, bem, é que.
Léa interrompeu-se. Para que mencionar esse assunto quando todas as
idéias se confundiam em seu espírito?
— Por que parou, minha filha? É assim tão difícil de dizer?
— Decidi alistar-me na Cruz Vermelha.
— Na Cruz!..
Se Léa tivesse dito "quero alistar-me" em vez de "decidi alistar-me", talvez
ela não tivesse se lançado de cabeça nessa aventura. Ao exprimir uma decisão
tomada, não voltaria atrás, por orgulho ou teimosia.
— Foi isso que eu disse: decidi alistar-me na Cruz Vermelha.
— Mas você não é enfermeira! — exclamou a senhora de Montpleynet.
— Não me alistei como enfermeira, mas como condutora.
— Mas por que tal decisão no momento em que todos nós precisamos de
você? E Montillac? Não pensa em Montillac?
— Montillac foi destruída.
— Pode se reconstruir.
— Com o quê? Não temos dinheiro.
— Os notários.
— A propriedade está hipotecada até o pescoço.
— Léa!
— Ora, minha tia, por favor! O tempo das palavras bonitas já passou...
acabou. Tal como Montillac.
— Pense em suas irmãs e em Charles, que a ama como se fosse a mãe
dele.
— As minhas irmãs se viram muito bem sem mim. Vê como Laure se
transformou numa excelente mulher de negócios! E Charles tem o pai.
— Quando você tomou tal decisão? E por quê?
— Quando?... Não sei. Talvez na noite passada, constatando o sofrimento
de Laurent ou pensando na morte de Camille, de tia Bernadette, de Sidonie, de
Raul Lefèvre, de Pierrot e de tantos outros. Desejo acompanhar as tropas do

general Leclerc e entrar na Alemanha juntamente com ele. Gostaria de ser
homem para ter uma metralhadora, combater e matar centenas.
— Cale-se, minha filha! Está louca!
Fora de si, Léa tinha o rosto vermelho e crispado, os lábios contraídos, os
olhos cintilantes de ódio.
— Talvez esteja, sim. A verdade é que quero assistir à derrota dos alemães,
vê-los sofrer, vê-los se arrastarem pelas estradas sob os bombardeios, ver as
barrigas abertas, os olhos arrancados, os filhos queimados. E ainda as cidades
deles destruídas, os campos devastados, as casas em escombros. E, sobretudo,
quero presenciar a sua humilhação tal como eles presenciaram a nossa, vê-los
tão subservientes como nós fomos, rastejando de joelhos a nossos pés, quero
que desapareçam da face da Terra!
Os gritos da jovem chamaram a atenção de Laurent. Perplexo, o rapaz
escutava aquelas palavras horríveis. Léa não estava longe de uma crise
nervosa.
— Oh!
A bofetada de Laurent interrompeu seu delírio verbal. Estupefata, ela o
fitou. Nunca pensou que ele fosse capaz de bater numa mulher.
— Cuidado! Léa vai desmaiar! — gritou Albertine de Montpleynet.
Laurent correu para ampará-la, mas Léa se recompôs.
— Não é nada. Já estou melhor — disse.
— Desculpe-me — balbuciou Laurent.
— Não faz mal. No seu lugar eu teria feito a mesma coisa — ela respondeu,
olhando pela janela.
— Sabe o que Léa me dizia há pouco, senhor d'Argilat?
— Não, não sei.
— Que vai se alistar na Cruz Vermelha!
Laurent encaminhou-se para a moça e obrigou-a a encará-lo.
— Isso é verdade? — perguntou com ansiedade.
— É.
Atraiu-a para si, apertando-a com força nos braços.
— Talvez tenha razão — disse ele.
Encolhendo os ombros, Albertine de Montpleynet deixou o quarto.
Quando ficaram a sós, Léa e Laurent permaneceram em silêncio durante
muito tempo. Depois, aproximando-se dela, Laurent ergueu-lhe o queixo com
doçura. Teimosa, Léa tentou resistir.

— Por quê? — perguntou Laurent.
Oh, aquele olhar de criança perdida! Como gostaria de apagar de sua
memória todos os horrores que a assaltavam, restituir- lhe aquela
despreocupação que fazia parte do seu encanto! Mas ele mesmo estava
mergulhado em sofrimento para servir de socorro. Adivinhava que o seu
propósito de se alistar na Cruz Vermelha fora ditado apenas pela perplexidade
diante de um futuro que Léa entrevia envolto em sombras e cheio de
dificuldades.
— Por quê? — insistiu Laurent.
— Porque quero morrer.
Em outra circunstância, Laurent teria desatado a rir diante de tanta
veemência juvenil. Mas naquele momento...
— Não diga tolices — censurou. — Você tem a vida pela frente.
— Você fala como minhas tias.
— Eu lhe falo com bom senso.
— Ora, o bom senso!... Sabe, por acaso, o que é isso? Eu não sei. Não vi
nada que demonstrasse bom senso desde o início da guerra, mas sim o mais
completo absurdo. Será por acaso o bom senso que leva a multidão a linchar e
a raspar cabeças?
— Concordo que estamos no reinado do absurdo. Mas não acrescente a
esse absurdo uma decisão que não tem nada a ver com você. Reflita bem no
caso. Dentro de alguns meses a guerra estará terminada, tudo deverá ser
reconstruído, será preciso viver como antes.
— E acha que poderá viver como antes? Depois do que eles fizeram a
Camille?
Uma brusca contração de dor agitou o rosto de Laurent.
— É preciso. Devo pensar em Charles.
— Você tem Charles. Mas eu não tenho nada.
— Tem Montillac.
— Não quero mais ouvir falar em Montillac! Há mortos demais em
Montillac. Odeio aquele lugar. Nunca mais voltarei lá.
— Como você mudou desde ontem! — observou Laurent. — Pensei que
estivesse feliz por rever François Tavernier. É o homem de que você precisa.
— François Tavernier só pensa em...
— E que homem não pensaria ao vê-la?
— Você não!

As imagens da única noite de amor nos subterrâneos de tijolo de Toulouse
lhes veio à memória com uma nitidez que os fez corar.
— François Tavernier a ama; Camille me disse. Ela pensava que você
também o amasse.
— Enganou-se.
Camille raramente se enganava.
— Não me fale mais nela. Camille está morta... morta como Montillac.
Agora, deixe-me, Laurent. Deixe-me, por favor.
Laurent saiu fechando a porta de mansinho.
Léa apertou a cabeça entre as mãos. Sua boca se abriu num grito mudo
que ecoou apenas em seu corpo, fazendo com que ela estremecesse. Caiu de
joelhos apoiada na cadeira Voltaire e cravou os dentes na velha tapeçaria do
assento. Resmungava com voz entrecortada:
— Estou doente, não posso mais... eles me assediam por todos os lados...
querem me levar. Não! Não é verdade o que eu disse a Laurent; não quero
morrer! Mas eles... oh, eles, todas as noites me chamam tentando me apanhar.
Sinto suas mãos geladas e ensangüentadas. Oh, aqueles dedos! Tenho medo. E
aquele cheiro de carne queimada, o corpo calcinado que não pára de se agitar,
aqueles gritos! Ah, Sarah, o seu pobre rosto esburacado! Tenho a impressão de
que você me fala do inferno. E Sidonie... sua voz contém o mel de seus doces.
Nunca mais deixei de ver o seu velho corpo martirizado. Tenha piedade!
— Fique quieta!
— Oh, tia Bernadette, por favor, não grite dessa maneira! Ah, as chamas
que a envolvem! Raphael, vá embora, por piedade! Também um fogo me
queima. Perdão, tia Bernadette, perdão! Mamãe, proteja-me! Expulse-os! Eles
querem que eu os siga. Mamãe, diga a Pierrot que me largue... não é culpa
minha não ter morrido quando ele morreu. Agora é Sifflette... o sr. e sra.
Debray... e o pai Terrible... e as duas crianças com a mãe, em Orléans... e...
não, não, esse homem não! O homem que eu matei... Socorro! Mamãe... papai...
ele está me agarrando! Não deixem que ele me apanhe! Sangue... todo esse
sangue... Eles são tantos!...
— Léa, acalme-se! Léa! Tudo acabou dizia Tavernier. Depois, virando-se
para os outros, ordenou: Chamem um médico. Depressa!
Ergueu o corpo da amiga, inerte e coberto de suor e transportou-o para o
quarto, enquanto Laurent d'Argilat, ao telefone, procurava encontrar um
médico.
— Ligue para o dr. Prost, do Ministério da Guerra. É meu amigo. Peça-lhe
para vir imediatamente — recomendou François Tavernier.
Sem cerimônia, expulsou Laure e as senhoras de Montpleynet. Louco de
preocupação, olhava para a mulher que amava, inconsciente, o corpo por vezes

agitado em sobressaltos violentos. Depois estendeu-se ao lado dela, falando-lhe
com suavidade.
— Minha querida... querida do meu coração... não tenha medo, minha
pequenina. Estou aqui ao seu lado, para protegê-la.
A voz apaziguadora pareceu acalmá-la. François aproveitou para despi-la.
Sentiu-se comovido diante da beleza daquele corpo, ao mesmo tempo forte e
frágil, cuja posse era a cada vez um deslumbramento.
Mesmo neste instante, apesar da desordem causada pela doença, Léa
continuava emocionante e desejável. Era absolutamente necessário afastá-la de
Paris para que recuperasse o equilíbrio emocional. Deus do céu! Que teria
acontecido a Prost?
— D"Argilat — chamou Tavernier.
Laurent empurrou a porta entreaberta.
— Diga.
— Falou com o dr. Prost?
— Deve estar chegando. Como vai Léa?
— Acalmou-se um pouco. Aconteceu alguma coisa em especial desde
ontem?
— Que eu saiba, não. Ela me contou as circunstâncias em que Camille
morreu.
— Desculpe-me, meu velho — interrompeu Tavernier. — Queria dizer o
quanto... — Sabe eu gostava muito de sua mulher. estimava-a muito...
— Agradeço-lhe. Falaremos disso depois. Acho que o médico está
chegando.
— Não ouvi a campainha.
— Você se esquece que continuamos sem energia elétrica. Ouvi baterem na
porta.
O som de vozes chegava até eles.
— É aqui. Entre, por favor.
Um homem não muito alto, mas com ombros de lutador e pescoço de
touro, envergando farda com galões de capitão, entrou no quarto e se
encaminhou para François Tavernier.
— O que está acontecendo?
— Seus colegas parisienses não respondem. Então, pensei em você.
— Está doente?
— Eu não. Esta jovem.

— Muito bonita — elogiou o médico.
— Pare de fazer gracinhas. Não é o momento adequado.
— Claro. Onde poderei lavar as mãos?
— Aqui, doutor — respondeu Albertine, indicando-lhe a porta do lavabo.
— Pare de andar para lá e para cá, sr. Tavernier. Isso esta me fazendo mal.
— Desculpe-me, mas estou tão preocupado! Faz quase uma hora que o
médico a examina.
— Uma hora não, meu caro senhor. Apenas há dez minutos.
— Dez minutos ou uma hora é a mesma coisa: é tempo demais.
A sala de visitas parecia a sala de espera de um dentista. Laure estava
com o bebê de Françoise sentado nos joelhos, e Laurent, de pé, carregava
Charles. A criança não cessava de dizer em voz sumida e cada vez mais
ansiosa:
— Léa não vai morrer, não é, papai? Não vai morrer.
Lisa abanava-se com o lenço molhado de lágrimas, murmurando:
— Virgem Maria, rogai por nós.
Quanto a Albertine, mantinha-se muito ereta e de olhos fechados. Pelo
tremor de seus lábios adivinhava-se que rezava.
Por fim, a porta se abriu e o capitão fez sinal a Albertine de Montpleynet
para entrar. Tavernier, porém, correu para o quarto, chocando-se nela.
— Senhor Tavernier!
Sem ouvi-la, François correu para a cabeceira da cama e debruçou-se
sobre a doente, que parecia adormecida. Tranqüilizado, endireitou-se, virando-
se para Prost.
— E então?
Sem se dignar a lhe responder, o médico dirigiu-se à dona da casa.
— Ela é sujeita a síncopes?
— Que eu saiba não, É minha sobrinha, doutor, mas está aqui em casa há
apenas dois meses.
— Quando criança, sabe se ela teve alguma coisa desse tipo?
— Não, doutor. Ah, sim... Quando o noivo morreu. Léa esteve inconsciente
durante dias.
— Quantos?
— Não me lembro. Talvez dois ou três.

— Notei que teve ferida na cabeça por duas vezes. Algum desses
ferimentos teve conseqüências?
— Creio que não.
— Ela tem dores de cabeça freqüentes? — insistiu o Dr Prost.
— Raramente, mas são bastante fortes, a ponto de se ver forçada a se
deitar.
— Ora, tudo isso faz parte do passado — resmungou François Tavernier.
— Que tem ela agora?
— Coma vigile.
— Quê?
— Entrou em coma vigile.
— Que quer dizer isso?
— Quer dizer que se encontra em estado de coma, mas um coma vigilante,
o que significa que reage a certos estímulos, a certas dores. Não fique admirada
se ela gemer e se agitar, minha senhora. O seu espírito não está completamente
adormecido.
— Que devemos fazer? — perguntou Albertine.
— Nada.
— Nada... Como?
— Sim, nada. Só esperar.
— Por quanto tempo?
— Não sei. Dois dias... quatro dias... uma semana ou mais. Depende.
— Mas depende de quê? — perguntou François.
— Da natureza ou de Deus, se preferir.
— Deus que vá para o diabo e você também. Você é uma droga de um
médico que nem sequer sabe como tratá-la.
— Não grite assim. Ela precisa de calma. E a minha receita é que você
desapareça daqui.
— Senhores, por favor — interveio Albertine.
— Desculpe-me, minha senhora. Como já disse, nada mais há a fazer
senão esperar. Dêem-lhe de beber com regularidade e procurem fazê-la engolir
um pouco de sopa. Vigiem também a temperatura. Tem médico de família?
— Temos, mas não sei o que aconteceu com ele.
— Nesse caso, se até lá não conseguir arranjar um dos meus colegas,
voltarei aqui amanhã. Quero alguém permanentemente ao seu lado. Seria bom
que contratassem uma enfermeira.

— Não é necessário, doutor. Temos muita gente em casa e nos
revezaremos.
— Muito bem. Vamos, Tavernier?
— Não, fico mais um pouco. Depois irei encontrá-lo.
— Não se esqueça da reunião com a imprensa dentro de uma hora.
— E eu lá quero saber de reunião?
— Diga isso ao general. Até depois, minha senhora. E não se preocupe.
Sua sobrinha é uma pessoa saudável; ela sairá dessa.
— Que Deus o ouça, doutor!

Capítulo 25

QUANDO LÉA ABRIU os olhos pela primeira vez na penumbra de seu
quarto, doze dias já haviam se passado. Deu com Françoise sentada a seu lado,
olhando-a através de uma franja de cabelos presos num turbante elegante, de
cores outonais.
Nem sequer se admirou, os cabelos cresciam tão depressa!
— Léa... você está me ouvindo?
— Sim. Tenho a impressão de ter dormido durante muito tempo —
observou a jovem.
Françoise explodiu num riso misturado com lágrimas.
— Está dormindo há mais de uma semana.
— O quê?!
— Você esteve doze dias em coma.
— Doze dias! É verdade? Com certeza aconteceram coisas. Conte-me.
— Ainda não. Você não deve se cansar. Vou chamar os outros para lhes
dizer que, enfim, você acordou.
— Não, espere. Não me sinto cansada. Só que não me lembro muito bem.
A última coisa de que me recordo é de tia Albertine me falando da sua vinda. E,
depois, disso, já se passaram doze dias. Quando você voltou?
— Na mesma tarde em que você ficou doente. François Tavernier foi
buscar-me no Vel'D'Hiv. Nem acreditei quando um homem das Forças
Francesas do Interior me chamou e disse: Está livre, sua suja! Só queria que
você visse a alegria dos outros prisioneiros!
Uma atriz que não tinha sido tosquiada cortou uma mecha de cabelos e a
colocou sob meu lenço de cabeça.
— Compreendo.
— E me deu um beijo. Fiquei tão comovida com seu gesto que caí no
choro. Incumbiu-me de distribuir diversos recados e cartas a familiares de
alguns presos. Felizmente não tiveram tempo para revistar minha bolsa.
François Tavernier arrancou- a das mãos de um coronel sujo e verruguento,
famoso por seu prazer em humilhar os prisioneiros. Naquele momento ele
estava no maior apuro, virando e revirando o papel com o cabeçalho do
Ministério da Guerra, onde figuravam três ou quatro assinaturas e outros
tantos carimbos, ordenando a minha libertação imediata. Tavernier empurrou-

me para dentro de um carro com uma bandeirinha tricolor com a cruz de
Lorraine, conduzido por um motorista uniformizado, e me disse:
— Apressem-se. Tenho medo de que ele descubra que os documentos não
são muito regulares.
— Quase caí para trás diante da ousadia de François Tavernier. Felizmente
a coisa correu bem; assim, o meu nome já está riscado das listas de depuração.
— Listas de depuração?! Que é isso?
— Ah, é verdade! Você não está sabendo! Eles depuram, isto é, prendem,
interrogam, julgam e condenam todos os homens e mulheres que, de perto ou
de longe, estiveram relacionados com alemães. Tal coisa é igualmente válida
para homens de negócios, escritores, atrizes, diretores de jornal, gerentes de
hotel, prostitutas ou datilógrafas. Em resumo, diz respeito a toda a gente —
explicou Françoise.
— E que fazem a essas pessoas?
— São libertadas ou presas, conforme os casos, e algumas são fuziladas.
— Quem é que já prenderam?
— Entre as pessoas cujos homens podem lhe dizer alguma coisa estão
Pierre Fresnay, Mary Marquet, Arletty, Ginetty Leclerc, Sacha Guitry, Jérôme
Carcopino, Brasillach... Há outras que são procuradas, como Celine, Rebatet e
Drieu la Rocheile. Todos os dias há listas dos depurados no Figaro.
— A maior parte delas merece o que está lhes acontecendo.
— Sem dúvida. Mas muita gente é presa em conseqüência de denúncias de
colegas invejosos, de zeladoras mal-intencionadas ou pelo simples prazer de
prejudicar o próximo.
Léa fechou as pálpebras, não querendo entrar nesse tipo de polêmica com
a irmã.
— Você está cansada. Não fale mais. Vou avisar.
— Não — interrompeu a irmã. — Como está Charles?
— Está bem. Não pára de perguntar por você, sobretudo desde que o pai
partiu.
— Laurent já foi embora? — exclamou Léa, erguendo-se bruscamente.
— Acalme-se. Você pode piorar.
— Onde ele está agora?
— Faz parte da 2ª Divisão Blindada. Partiu na manhã do dia 8.
— E como ele estava?
— Não muito bem. Desesperado por partir e por se separar do filho.
— Deixou alguma coisa para mim?

— Deixou. Uma carta.
— Vá buscá-la.
— Está aqui na sua secretária.
Françoise abriu uma das gavetas e estendeu a carta para a irmã. Léa
estava tão nervosa que não conseguia rasgar o envelope.
— Abra... e leia para mim.

"Minha querida Léa.
Se você ler estas linhas é sinal de que recuperou a saúde. Sofri muito ao
vê-la inanimada, se debatendo em sua inconsciência, e eu ali, impotente para
aliviá-la e trazê-la de novo para junto de nós.
Entreguei Charles aos cuidados de suas tias e de suas irmãs, mas, agora
que se restabeleceu, é a você que o confio. Não recuse tal pedido, pois ele a ama
como a uma mãe e precisa de você. Eu sei que é responsabilidade pesada, mas
você é forte o suficiente para assumi-la; já deu prova disso. Espero que tenha
abandonado esse louco projeto de se alistar na Cruz Vermelha. O seu lugar é ao
lado dos seus, de meu filho e de suas irmãs.
Volte para Montillac. Escrevi ao notário que sempre se encarregou dos
negócios de meu pai, autorizando-o a vender uma parte das terras para ajudá-
la na reconstrução.
Estou ao mesmo tempo feliz e triste por voltar a lutar. Feliz porque, na
ação militar, quase esqueço o horror de ter perdido Camille; triste por deixá-los,
a você e a Charles.
Um beijo daquele que a ama.
Laurent
P.S. - Logo que puder, comunico quais são as medidas previstas para o
envio de correspondência."

— Laurent tem razão! É loucura você querer se alistar na Cruz Vermelha.
— Isso não é da conta de vocês. Faço o que quiser.
— Mas por quê?
— Não quero ficar aqui; eu me sinto mal. Preciso ver as coisas com maior
clareza.
— Léa, você voltou a si! A minha sobrinha está curada, doutor! —
exclamou Albertine.

— Tem toda a aparência disso, na verdade. Então, minha filha, quis
brincar de Bela Adormecida? Lastimo não ser o seu Príncipe Encantado. Como
se sente?
— Bem, doutor.
O velho médico da família, que finalmente fora encontrado, examinou a
jovem paciente.
— Perfeito... perfeito. A pressão está normal, o coração também. Dentro de
alguns dias, já poderá correr pela floresta em companhia do seu Príncipe
Encantado. E como esse príncipe se preocupou por sua causa!
Léa interrogou a irmã com o olhar. A resposta silenciosa de Françoise
significava: Como se você não soubesse.
— Gostaria de me levantar.
— Nunca antes de recuperar as forças. Nesse momento não conseguirá
manter-se em pé. Precisa de alimentação sadia e abundante.
— Abundante?! Não é assim tão fácil — comentou Françoise com
amargura.
— Eu sei, minha senhora. Mas terão de se arranjar. Para tanto, podem
contar com o Príncipe Encantado. É homem de grandes recursos. Que não fará
ele pela família de sua bem-amada? Bem... bem... basta de brincadeira.
Entendeu, minha senhora? A pequena precisa comer carne todos os dias,
laticínios, peixe, ovos.
— Em resumo, doutor: tudo aquilo que não existe no mercado.
— O sr. Tavernier há de encontrar todas essas coisas — garantiu o médico.
— Até depois, pequena. E deixe que a papariquem.
— Vou acompanhá-lo até a porta, doutor — disse Albertine de
Montpleynet.
Depois da partida da tia e do médico, Léa riu com gosto, um riso ainda um
pouco fraco. Sempre otimista e sagaz o velho apaixonado da tia Lisa!
— François veio aqui muitas vezes?
— Muitas vezes!.. Todos os dias, várias vezes por dia e, entre cada visita,
pelo menos um telefonema para saber como você estava!
— Mas hoje há pelo menos uma hora que não dá sinais de vida —
comentou Léa emburrada.
— Está sendo injusta com ele. Tavernier passou as noites na sua cabeceira
sempre que lhe foi possível, falando com você, embalando-a, sem dormir um só
instante. Dava pena vê-lo sair pela manhã, abatido, o rosto por barbear, os
olhos vermelhos, depois de engolir, com ar ausente, a xícara de café que eu lhe
trazia. Charles o esperava, por vezes, em frente da porta do seu quarto.
François mandava-o, então, entrar e tinham longas conversas aos pés da sua

cama. Quando saíam, os dois pareciam estar com melhor aspecto. Charles
adotou François, a quem chama o "seu grande amigo". Você tem sorte de ser
amada assim.
A tristeza do tom de Françoise comoveu Léa. Censurou-se pela indiferença
que sentia em relação aos desgostos de sua irmã. Pela primeira vez, desde seu
regresso a Paris, olhou para ela verdadeiramente. Como se modificara a antiga
enfermeira de Langon, a mulher que, com tanta arrogância, assumira o seu
amor por um alemão! Onde estava aquela auréola de beleza que lhe iluminara o
rosto um tanto vulgar de jovem burguesa provinciana da boa sociedade de
Bordéus? E sua galanteria de apaixonada ao descobrir os prazeres da capital?
E aquele reflexo cintilante de jovem mãe orgulhosa ao exibir o filho pelos cais
do Sena? Para onde fora tudo isso?
Léa fitou a desconhecida que era sua irmã, notando-lhe as rugas de
amargura desenhadas nos cantos dos lábios apertados, como que retendo um
segredo, as faces fundas onde o rouge mal aplicado destacava a palidez, os
olhos de expressão inquieta em perpétuo movimento, o turbante e a ridícula
mecha de cabelos, que parecia uma peruca de velha atriz de cinema mudo.
Depois observou-lhe as mãos, as pobres mãos convulsivamente fechadas.
E foram talvez os dedos trêmulos que fizeram Léa compreender em toda a
plenitude os sofrimentos físicos e morais pelos quais Françoise passara.
Desejou então apertá-la nos braços, pedir-lhe perdão por seu egoísmo,
mas uma súbita timidez a impediu. Com o coração cheio de piedade balbuciou:
— Você teve notícias de Otto?
Léa quase gritou ao ver a violenta metamorfose da irmã. A pele se tornou
acinzentada e seu corpo murchou; parecia uma velha.
Num gesto lento, Françoise retirou o turbante da cabeça. Depois, assim
exposta e ridícula, o crânio raspado, com aspecto de roído pela traça, de olhos
esbugalhados e, no entanto, cegos, começou a chorar em silêncio.
Léa foi tomada por um acesso de enjôo. Deixou cair a cabeça no
travesseiro.
As duas ficaram assim prostradas durante muito tempo. Quando a
sensação de náusea desapareceu, Léa soergueu-se e, arrastando-se sobre a
cama, aproximou-se daquela de quem tanto judiara em criança e acariciou-lhe
o rosto inundado de lágrimas, num gesto onde a compaixão e a repulsa se
confundiam.
Mas nenhuma palavra de consolo veio a seus lábios. Então, em silêncio,
servindo-se do lençol, enxugou as faces manchadas pela maquilagem até que
as lágrimas cessaram.
— Obrigada —. disse Françoise simplesmente, voltando a colocar o
turbante. — Vou chamar as tias.
Depois de uma pausa, completou:

— Não, não tive notícias de Otto.
Léa sentiu-se invadida por enorme cansaço. Voltou a deitar-se e fechou os
olhos.
Quando Albertine e Lisa de Montpleyner chegaram ao quarto, a sobrinha
já adormecera novamente.

Capítulo 26

À NOITE, foi um outro rosto que Léa viu inclinado sobre o seu.
— François!
Beijaram-se, e aquele beijo lhes revelou tudo aquilo que não podiam ou
não sabiam dizer. Quando, por fim, seus lábios se separaram, tanto um como
outro tinham readquirido o gosto pela vida que os tornava capazes de superar
as mais duras provações.
— Diga, minha bela amiga, é preciso preencher com carne todos esses
espaços vazios. Você sabe que não gosto de sacos-de-ossos — comentou
François.
— Com essa penúria, não vai ser fácil.
— Não se preocupe com esses detalhes caseiros. Deixe-os por minha
conta.
— Mas como você vai se arranjar? Os seus amigos do mercado negro
continuam com suas atividades lucrativas?
— Vejo que a doença não afetou a sua veia cáustica. Gosto disso. Os meus
amigos, como os chama, sumiram na fumaça, e, a esta hora, devem estar nos
palácios de Baden-Baden ou em estalagens espanholas. Mas foram
substituídos por outros igualmente empreendedores. Estelle agora está lhe
preparando uma canja de galinha, um ovo quente e queijo branco. Vai gostar!
Tudo isto regado a Lafite-Rothschild velho.
— Não é com isso que vou preencher os espaços vazios, como você diz.
— Não se esqueça de Kipling: "A pressa excessiva perdeu a serpente
amarela que queria engolir o sol".
— É muita amabilidade de sua parte comparar-me a uma serpente.
— Você é a mais encantadora viborazinha que eu já conheci — disse
François, acariciando-lhe os cabelos. — Vou mandar-lhe um cabeleireiro
amanhã; isto parece palha. Enquanto isso, tome um banho.
Depois do banho, que François lhe deu e que o deixou num estado que
tiveram de remediar, não sem antes fecharem a porta a chave, Tavernier
deitou-a de novo na cama.
Devoraram então o repasto preparado por Estelle, esvaziando a garrafa de
Lafite-Rothschild. O vinho restituiu as cores a Léa e fez seus olhos brilharem.
Os de François diziam claramente sua intenção de retomar o corpo-a-corpo que
o desejo excessivo abreviara. Isso não foi possível, porém, pois Françoise batia
cada vez mais forte na porta, gritando:

— Abram! Abram!
Tavernier correu até a porta e recebeu a jovem nos braços. Com olhos de
louca, ela gritava:
— Encontraram o casal Fayard no fundo de um poço!
Laure entrou no quarto atrás dela, com o rosto perturbado.
— Foram assassinados e lançados ao poço da vinha de baixo.
— Quem lhes deu a notícia?
— Ruth telefonou.
— E quem fez isso? — perguntou Léa, embora soubesse a resposta.
— Os resistentes.
Durante momentos, apenas se ouviu a respiração ofegante de Françoise.
— Parece que em Langon, em Saint-Macaire e em La Réole estão
acontecendo coisas terríveis. As mulheres são tosquiadas e exibidas nas ruas
diante da hilaridade geral, e cospem nelas. Enforcam pessoas nas árvores,
torturam e matam.
— Que horror! — gemeu Lisa, que ninguém viu entrar no quarto.
— Mas por que não os impedem de fazer isso? — gritou Léa.
— O general De Gaulle está empenhado em acabar com isso. Vocês já se
esqueceram das torturas dos alemães em mulheres e crianças? Não sei se
compreenderam, mas estamos à beira de uma revolução e será necessária toda
a autoridade do general para impedir que estoure, como desejam os
comunistas. É com esse objetivo que De Gaulle procedeu à formação de um
governo de unidade nacional.
— Com os comunistas? — perguntou Françoise, agressiva.
— É natural, já que também contribuíram.
— Eu sei. O Partido dos Fuzilados, como eles dizem.
— Não zombe. De todos os franceses, foram eles os que melhor
combateram os alemães e os que pagaram mais caro.
— Mais daí a colocá-los no governo... — interveio Lisa em voz sumida.
— Foi necessário. Não seria normal que todas as tendências existentes
dentro da Resistência fossem representadas? Não se estaria justamente
surpreso por não encontrar homens politicamente tão diferentes como
Jeanneney, Freney, Bidault, Tillon, Capitan, Teitgen, Mendès France, Pleven.
— Talvez você tenha razão, François. Somos tão ignorantes em matéria de
política! — disse Laure.
— Tiveram notícias do tio Luc e do filho, de Philippe?

— Não... de verdade — respondeu Laure, hesitante.
— Fale! O que foi que Ruth lhe disse?
— Correm boatos contraditórios. Algumas pessoas dizem que tio Luc está
preso no forte de Hâ. Outras, que ele e Philippe foram mortos.
— Como?
— Também não se sabe. Dizem que foram enforcados ou ainda que os
lincharam e fuzilaram. As ligações telefônicas entre Bordéus e Langon não
foram completamente restabelecidas.
— E do tio Adrien? Há notícias?
— Não. Absolutamente nenhuma. Mas encontraram Albert.
— Vivo? — gritou Léa.
— Não, morto. Torturado pela Gestapo.
— Pobre Mirellie! Não sei se a morte de Fayard e da mulher será suficiente
para o vingar. Uma vida perdida não restitui outra, é certo. Mesmo assim, como
desejamos matar quem provocou a morte daqueles que amávamos!
— Lembra-se de Maurice? — perguntou Laure a Léa.
— Acha que poderia me esquecer daquele estrume?
— Foi executado por ordem da Resistência.
Com que ar indiferente Laure pronunciara tais palavras! Laure, que
pensava estar apaixonada por aquele assassino! Quantas mortes ainda!
Quando isso terminaria?
— Como está Ruth?
— Não muito mal, Recompõe-se lentamente dos ferimentos. Mas as
circunstâncias da morte de Albert e depois as dos Fayard a abateram demais.
Não cessava de repetir ao telefone. Os homens estão loucos... os homens estão
loucos... Parece que foi horrível o que aconteceu aos Fayard. Deram-lhes
pauladas e os espetaram com forquilhas, arrastando-os através das vinhas até
o poço. Ali, os amarraram e os atiraram da borda. Soltaram um grito longo ao
mesmo tempo.
— Parece que estou ouvindo esse grito único até o baque final —
sussurrou Léa. — Ah, Mathias, eu não desejava tal coisa para os seus pais!
Coberta de suor, batendo os dentes, Léa voltou a cair na cama.
— Somos loucos de falar nisso na frente dela! Vão embora. Deixem-na
descansar — disse François Tavernier.
As mulheres saíram do quarto como em estado de choque.

François limpou a fronte de Léa, murmurando-lhe palavras meigas e
tranqüilizadoras. Pouco a pouco, a jovem acalmou-se e depois, esgotada,
adormeceu.
Apesar dessas emoções sucessivas, Léa se restabeleceu muito
rapidamente.
No domingo, dia 24 de setembro, tirando partido da visita de De Gaulle ao
quartel-general de De Lattre de Tassigny, no front, François Tavernier levou-a
para tomar um pouco de ar na floresta de Marly-le-Roy. Apesar de uma refeição
execrável num restaurante famoso de Saint-Germain-en-Laye, aproveitaram
plenamente a atmosfera pura da mata e também o musgo que acolheu seus
corpos impacientes - À noite, durante o jantar — esse sim, excelente — num
restaurante luxuoso dos Campos Elíseos, Tavernier anunciou a Léa a sua
próxima partida.
— Para onde vai?
— O general incumbiu-me de uma missão.
— Que tipo de missão?
— Não posso dizer. Mas não deve durar mais de um ou dois meses.
— Um ou dois meses! Você não pensou nisso?
— A guerra ainda não terminou.
— Não me deixe, François — implorou Léa.
— É preciso.
— Gostaria de ir com você.
Tavernier deu uma grande gargalhada que fez com que os outros clientes
se virassem e um criado se aproximasse.
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Sim. Uma garrafa do seu melhor champanhe.
— Para brindarmos a quê? — Léa perguntou secamente.
— A você, minha querida. Aos seus belos olhos, ao seu restabelecimento, à
vida.
Diante da tristeza de sua amiga, François mudou de tom e prosseguiu
falando com seriedade.
— Não se preocupe. Tudo correrá bem.
— Não sei por que, mas ainda sinto mais medo agora do que tive durante
estes quatro anos de Ocupação.
— É natural. Está prestes a nascer um mundo novo, um mundo com
qualidades e defeitos diferentes do anterior, e é esse desconhecido que a
assusta. Mas eu a conheço e sei que irá superar isso. Volte para Montillac e

reconstrua o que foi destruído. É essa a tarefa que deve empreender enquanto
espera por mim.
— Não voltarei a Montillac — declarou Léa. — Só se for daqui a muito,
muito tempo. E, depois, quem lhe disse que vou passar o tempo à sua espera?
Talvez gostasse de me ver tricotando para prisioneiros, fazendo pacotes para
órfãos, visitando doentes.
— Claro que sim! Eu bem que a imagino debruçada sobre os feridos
infelizes, consolando a viúva chorosa, sofrendo privações para arranjar uns
doces secos e uns brinquedos. Ai!
O violento pontapé de Léa acabava de acertar em cheio no alvo.
— É para aprender.
— Que bruta! Nunca será uma verdadeira mulher; não tem vocação para
isso.
— Como se atreve a dizer que não sou uma verdadeira mulher? — disse
ela, endireitando-se e arqueando o busto, as narinas frementes de raiva.
Era mais forte que ele — não podia ficar sem provocá-la. Nunca era tão
desejável como quando se encolerizava. Era uma autêntica mulher, não havia a
menor dúvida! Uma mulher tal como ele gostava, livre e submissa ao mesmo
tempo, coquete e natural, corajosa e fraca, alegre e melancólica, sensual e
pudica. Pudica... mas seria de fato? Não propriamente. Era mais provocante
que pudica. Não se comportava segundo padrões de uma jovem francesa bem-
educada. Parecia-se mais com essas heroínas das fitas americanas, aquelas
com ares de não estarem interessadas na coisa, mas que se sentavam erguendo
a saia o suficiente para que se pudesse vislumbrar a ponta das meias, e se
inclinavam de modo a exibir a curva dos seios.
Léa incluía-se entre elas. François sabia muito bem até que ponto ela
gostava de excitar o desejo dos machos. Desabrochava sob os olhares
masculinos. Isso não lhe provocava ciúmes, mas uma irritação divertida.
— Estava brincando, você sabe muito bem.
A chegada do garçom trazendo o champanhe serviu para distraí- los,
Beberam em silêncio, perdidos nos próprios pensamentos. Léa foi a primeira a
sair do mutismo.
— Quando parte?
— Depois de amanhã.
A jovem empalideceu e um frêmito doloroso veio perturbar a beleza do
rosto. Esvaziou o copo de um gole.
— Já?!
Diante daquele monossílabo dito com simplicidade, François teve de se
conter para não se levantar da cadeira e apertá-la nos braços.

— Venha!
Pagou a conta e saíram.
Na rua, atravessaram correndo os Campos Elíseos. Na rua Balzac, Léa
perguntou — Onde vamos?
— A um hotel.
Um desejo súbito se irradiou em seu corpo. Gostaria de se rebelar, de se
sentir chocada com aquela falta de modos, de lhe dizer que não queria ser
tratada como uma prostituta. Mas nada do que dissesse seria verdadeiro.
François Tavernier comportava-se exatamente como ela desejava.
A casa de encontros onde o companheiro a levou estava abarrotada de
tapeçarias cor-de-rosa, de lustres de cristal, de tapetes espessos, de silêncios
aveludados, de espelhos, de portas com nomes de flores e de empregados de ar
indiferente e ao mesmo tempo licencioso - No quarto, com uma cama imensa
encimada por um dossel, flutuava ainda o perfume da ocupante anterior.
Apareceu uma empregada, insinuante como deve ser, trazendo uma pilha
de toalhas cor-de-rosa.
Na parede, pendia uma bonita gravura de Fragonard, representando o
Ferrolho, que fez Léa sorrir. Havia uma igual em Montillac, no escritório do pai.
— Venha logo — disse Tavernier.
Léa compartilhava da impaciência de François. Atirou as peças de
vestuário ao acaso e encaminhou-se para ele, nua. Sem mesmo dar-se ao
trabalho de retirar a colcha de cetim rosa-velho, estendeu-se na cama,
oferecendo-se a ele.
A claridade filtrada pelo abajur de seda cor-de-rosa iluminava suavemente
os corpos estendidos dos dois amantes, que fumavam em silêncio. O de Léa
parecia feito de um material macio e frágil; o de François de uma matéria-prima
bruta, da cor da terracota.
A jovem soergueu-se e seguiu com a ponta dos dedos a longa cicatriz que
se estendia da virilha até a região do coração.
— Desde a Espanha, não foi ferido novamente?
— Nada de grave. Apenas uma bala no ombro. Gostaria de mim se eu
estivesse todo costurado?
— As costuras combinam muito bem com o seu tipo. E qual é o meu tipo?
— Mau... — como diria o tio Luc. Você precisava ouvi-lo: Esta pequena tem
mau jeito.
Sou da opinião dele; você tem muito mau jeito — gracejou Tavernier.
— Oh!..

Léa desferiu-lhe vários murros no peito, mas logo François aprisionou seus
pulsos e imobilizou suas pernas com as próprias pernas.
— E agora? Que é que faz? Está à minha mercê. Você me ama?
— Largue-me! — gritou ela. — Não lhe respondo enquanto.
— Enquanto o quê?
— Não, François! Tenho de voltar para casa.
— Tem tempo.
— Não, não! Tenho medo de ficar grávida!
Tavernier suspendeu a investida.
— E é agora que diz uma coisa dessas?!
— Só agora me ocorreu.
François deu uma gargalhada que a fez sobressaltar.
— Devia ter pensado nisso antes. Seria maravilhoso ter um filho seu.
— Está doido!
— Doido por você, minha bela!
— Deixe-me! Não quero filhos.
— É tarde demais.
Léa resistiu a princípio, em seguida simulou debater-se, para logo se
entregar por completo àquele prazer incessantemente renovado, proporcionado
pelo homem que amava sem que verdadeiramente o admitisse.
Depois do amor, a possibilidade de Léa ficar grávida preocupou Tavernier.
Fora sincero ao desejar um filho dela, mas avaliava a loucura de tal desejo
naquelas circunstâncias.
Tentara preveni-la por duas ou três vezes. Perguntara-lhe se ela queria que
ele tomasse precauções, mas Léa sempre evitara o assunto. Então, em atitude
egoísta, considerava o caso resolvido. E agora ela lhe declarava recear a
gravidez. Que criatura mais inconseqüente! O que fazer se ela ficasse esperando
um bebê? François conhecia uma aborteira nos arredores da estação do metrô
de Cambronne, mas por nada desse mundo consentiria que a mulher pusesse
suas mãos sujas naquele ventre. Só restava uma solução: casar-se com ela.
Durante muito tempo, à idéia de um casamento, tudo se revoltava dentro
dele: amava demais as mulheres e a liberdade. No entanto, ao pensar em Léa,
não era essa a primeira vez que lhe ocorria semelhante hipótese. E ela,
concordaria? Não estava certo disso. Nesse aspecto, Léa era bem diferente das
outras moças. Não vivia à espera de um marido, e era irrelevante aquele seu
desejo de garota por Laurent d'Argilat, desejo que se aguçara com o noivado
com Camille.

Em que mulher maravilhosa ela se transformara! Mas tão estranha, tão
imprevisível! Um temperamento que passava da alegria às lágrimas, da
temeridade mais louca ao medo mais irracional. François Tavernier atribuía
isso a tudo o que Léa havia passado e presenciado no decorrer dos últimos
anos, sem, no entanto, se convencer totalmente de que fosse assim.
— Ajude-me a me alistar na Cruz Vermelha — pediu ela.
De novo a mesma mania! Que diabo pretendia Léa fazer no meio da lama,
do sangue e de todos os tipos de horrores?
— A Cruz Vermelha não precisa de você. Sei que muitas moças de boas
famílias têm se alistado, mas não é para comparecerem a reuniões mundanas
— Eu sei. É muito sério. Ajude-me.
Na verdade, a coisa parecia séria. Seu coração se contraiu. E se aquilo não
passasse de pretexto para se afastar dele e se aproximar de Laurent?
— Mas por que, minha pequenina?
— Prepare-me um banho — ela disse, sem responder à pergunta.
Tavernier obedeceu e ficou durante muito tempo no banheiro olhando-se
no espelho, dizendo-se: Cuidado com o que vai fazer neste instante, meu velho!
Você tanto se arrisca a perdê-la como a se enforcar.
De volta ao quarto, François Tavernier perguntou novamente:
— Por quê?
— Não sei ao certo, mas alguma coisa me puxa para isso.
— Não sabe, mas faça um esforço. Não é decisão que se tome com
leviandade.
— Não é leviandade, embora eu não saiba por que quero ir. Sem ter de me
esforçar, poderia apresentar razões de sobra, todas elas excelentes. Uma coisa é
certa, porém: não quero mais ver minhas irmãs, minhas tias.
— Laurent lhe confiou o filho.
— É a única coisa que poderia me deter. Mas Françoise cuidará dele muito
melhor que eu.
— É a você quem ele ama.
— Eu sei, eu sei... não precisa me dizer. Quero ir-me embora. Sinto-me
confinada aqui... não tenho nada em comum com ninguém.
— Nem mesmo comigo?
— Com você é... como dizer? Algo de maravilhoso enquanto estou nos seus
braços. Depois... depois é como se todo aquilo que receio fosse cair em cima de
mim e me soterrar.
— Isso são apenas fantasmas, Léa, você bem sabe.

— Talvez, o que não altera as coisas. Se me ama, ajude-me, eu lhe peço.
Quanta angústia e determinação nesse pedido! François puxou-a para si e
acariciou-lhe a cabeça em que se entrechocavam tantas incoerências dolorosas.
— Vou fazer o que você quer. Se tivesse um pouco de paciência, porém, e
um pouco de confiança em mim, eu expulsaria todos esses fantasmas. Meu
coração se parte ao vê-la nesse estado e não poder fazer nada. Mas, se você
acha que esse é o melhor meio para recuperar o equilíbrio, eu vou ajudá-la.
— Obrigada, François. Oh!.. o banho!

Capítulo 27

NO DIA SEGUINTE, François anunciou a Léa, por telefone, que marcara
uma entrevista com a responsável pela Cruz Vermelha Francesa, encarregada
de examinar as candidaturas. A pedido de Tavernier, o sr. Bourbon-Busset
responsabilizava-se por ela.
— Mas quem é esse senhor? — perguntou ela.
— Foi ele quem fundou em Paris, em 24 de agosto passado, a delegação-
geral para repatriamento de prisioneiros de guerra, deportados e refugiados.
Além disso, é presidente e diretor-geral da Cruz Vermelha Francesa. Não há
melhor recomendação.
— Diga-lhe que lhe agradeço e que não terá do que se arrepender —
garantiu Léa.
— A entrevista é amanhã de manhã, às nove horas, na rua Octave-Feuillet,
n. 21. Fica no décimo-sexto bairro. Não se esqueça de levar todos os seus
documentos. Será recebida pela sra. Peyerimhoff. E seja pontual. Segundo
parece, ela é muito rigorosa em matéria de horários.
— Obrigada. Você é maravilhoso, François.
— Não me agradeça. Estou fazendo isso sem o menor prazer. Compreendi,
porém, que não renunciaria a isso; é teimosa como um burro. Vou partir
amanhã nas primeiras horas do dia e lhe imploro que passe a noite comigo.
— Vai ser difícil convencer minhas tias.
— Não se preocupe com isso. Eu cuido do caso. Passo para buscá-la às
sete horas. Esteja bonita.
O coração de Léa batia com mais força ao desligar. Não lhe agra dav a
idéia da partida de François. Uma inquietação sorrateira se insinuava em seu
espírito, mais forte ainda que a experimentada ao pensar em Laurent na frente
de combate. A idéia de que algo pudesse acontecer a François, uma enorme
fraqueza a invadia. Sem notícias de Laurent desde a sua partida, acomodava-se
a isso pensando que se ele tivesse sido ferido — recusava-se a encarar a
hipótese pior — seriam os primeiros a saber.
As flores e os chocolates operaram maravilhas junto das senhoras de
Montpleynet. Como objeção à saída, Albertine limitou-se a dizer que não seria
conveniente que Léa, ainda em convalescença, voltasse muito tarde para casa.
François Tavernier prometeu que logo a traria de volta e desapareceu com ela
num automóvel suntuoso, requisitado de um rico traficante do mercado negro.

Foram jantar num pequeno restaurante recentemente inaugurado em
Montparnasse. O lugar se parecia com o restaurante clandestino na rua Saint-
jacques.
— Que aconteceu aos seus amigos, Marthe e Marcel Andrieu? E ao filho,
René?
— Depois da detenção de René...
— Ah, René foi preso?!
— Foi. Eles o torturaram e o deportaram. Marthe, Jeannette e o pequeno
voltaram a Lot no início do ano passado. Marcel foi denunciado como
colaboracionista pela zeladora do prédio. Mas, como o comissário do bairro era
um dos melhores fregueses do restaurante, ilibou Marcel, dizendo que ele
pertencia à Resistência.
— E era verdade?
— Sim e não. Ajudou e acolheu muitos resistentes, mas nunca quis
pertencer a nenhuma rede, René, ele sim, fazia parte da Resistência.
— Pobre Marthe!
— Bebamos à saúde dela — sugeriu François. — Isso lhe daria prazer,
tenho certeza.
A refeição foi deliciosa e restituiu a alegria a Léa. Uma vez mais, Tavernier
admirou sua vitalidade.
Depois informou-a de que abrira uma conta em seu nome na Sociedade
Geral da avenida Saint-Michel. A moça agradeceu sem comentários. O único
que fez foi para si mesma: Vou poder comprar um par de sapatos.
Nessa noite, amaram-se com uma lentidão e uma meiguice nada habitual
em suas relações. Parecia que saboreavam, uma por uma, todas as parcelas do
corpo um do outro. O prazer crescia, descuidado, irrefreável, submergindo-os
numa ternura quase dolorosa, que lhes marejava os olhos. Para melhor o reter,
Léa entrelaçava as pernas nas dele e só deixava essa posição quando, feliz,
sentia intumescer o sexo do amante. E, de novo, o gozo máximo os fez esquecer
o presente.
Adormeceram então, por instantes, enlaçados. Léa foi a primeira a
despertar. Contemplou intensamente o homem que iria deixá-la dentro de
poucas horas. Alguma coisa lhe dizia que não voltaria a vê-lo durante muito
tempo.
Enchia os olhos da imagem desse rosto que, no abandono do sono, se
assemelhava ao de um adolescente. Que idade teria?
Nunca lhe perguntara. Como era possível ter tão poucos dados a seu
respeito, conhecendo-se como se conheciam há vários anos? Que motivos a
impeliam a não querer saber quem ele era verdadeiramente?

Agora, porém, ela queria saber tudo: sua infância, sua juventude. Teria
irmãs e irmãos? Como seriam seus pais? Ainda estariam vivos? Por que havia
lutado na Espanha? Que papel desempenhara no conflito? Conhecia bem o tio
Adrien? Que mulheres havia amado? Qual sua profissão antes da guerra? E
que iria fazer em seguida, quando ela terminasse? Perguntas sem resposta, já
que Tavernier partiria no dia seguinte.
Como era belo! Belo... seria a palavra certa? Sim, era. As feições vincadas,
o maxilar rude, mas suavizado pela boca magnífica de lábios cheios e bem
delineados, sobrancelhas espessas sublinhando o seu olhar tão duro e, no
instante seguinte, terno ou irônico. Muitas vezes essa ironia a ferira, embora
adivinhasse por detrás dela um interesse apaixonado por tudo o que lhe dizia
respeito. Perturbou-a a lembrança daquele seu jeito de olhar.
Os dedos de Léa acariciaram seus ombros largos e se perderam nos pêlos
do peito. Depois deslizaram ao longo do ventre, onde a mão forte de François os
imobilizou.
— Eu a peguei, meu coraçãozinho, abusando do sono de um pobre
homem.
Através das pálpebras semicerradas, ele a observava com uma acuidade
que não tinha nada a ver com o tom brincalhão das palavras. Incomodada pela
intensidade desse olhar, Léa procurou retirar a mão.
— Continue — ele pediu. — Gosto de vê-la inclinada sobre mim.
Sem protestar, ela prosseguiu o avanço dos dedos até o sexo em repouso.
As mãos juntaram-se e acariciaram-lhe o pênis até o sentirem duro e ereto. Em
seguida, Léa cavalgou o corpo do amante, envolvendo-o lentamente.
Fez amor com ele, controlando a progressão de seu prazer, diminuindo o
ritmo dos movimentos quando o sentia prestes a atingir o orgasmo, observando
os efeitos no rosto de François.
— Sou sua amante — disse, em tom de desafio.
Ligados pela carne vibrante, de olhar preso um no outro, aceitavam serem
vistos um pelo outro em sua manifestação menos refreável e mais indiscreta,
aquela em que o prazer desfigura a fisionomia, sublimando-a.
Irrefreável, o prazer atingiu Léa como uma torrente. Sustentada pelos
braços de François, ele se saciou daquela imagem antes de se saciar dentro
dela, os olhos perdidos nos olhos de Léa.
Quanto tempo teriam ficado assim, como que suspensos? Com um grito,
Léa deixou-se cair sobre François, colando-se a ele. Assim entrelaçados, ele a
fez oscilar enquanto duraram os espasmos.
Enfim, ela se acalmou e, por instantes, pareceu inconsciente. Com uma
toalha molhada, Tavernier umedeceu sua fronte e as têmporas. Depois
começou a limpar seu ventre e as coxas.

— Está frio ela murmurou, repelindo-o.
François vestiu-a como se veste uma criança. Mas não quis pentear seus
cabelos emaranhados. De pé, Léa parecia tão mole como uma boneca de pano.
Emocionado, Tavernier carregou-a até o automóvel e depois transportou-a
pelas escadas até o quarto. Quando a estendeu na cama, nua, Léa já
adormecera com aquele sorriso que às vezes brinca no canto da boca dos bebês
que sonham.
Tavernier arrancou-se dessa contemplação que, aos poucos, se
transformava em sofrimento, e deixou o apartamento da rua da Universidade
como se o perseguissem.

Capítulo 28

"BORDUS, TERÇA-FEIRA, 22 de agosto de 1944

Querida Léa,
Escrevo-lhe esta carta sem saber ao certo se chegará às suas mãos, ou
porque eu a rasgue antes de terminá-la ou porque o correio não funciona mais.
Nós, os colaboracionistas, os militares, os gestapistas e os voluntários para
combater na Alemanha, fazemos os preparativos da partida no meio de uma
enorme confusão. Você precisa ver os que ainda há pouco se pavoneavam pelos
Quinconces, pela rua de Saínt-Catherine ou pelo Regent, como agora se fazem
pequenos e caminham rente às paredes! Alguns procuram passar para as bases
de resistentes, mas os rapazes da Resistência desconfiam dos recrutas de
última hora. Depois do desembarque anglo-americano, correm aos milhares
para se alistar. Quando a guerra terminar, você verá que os grandes heróis das
Forças Francesas do Interior serão os colaboracionistas que agora acabam de
virar a casaca. Que nojo! Se houvesse nova mudança de situação, voltariam
outra vez para o colo do marechal.
Quanto a mim, tomei uma decisão oposta e farei minha essa causa
perdida. Serei como os heróis negros dos romances de nossa infância. Lembra-
se de como gostávamos deles, desses cavaleiros errantes que estabeleciam
pactos com o Diabo? Tudo perdiam, é verdade, mas com que preço faziam
pagar sua derrota.
Eu lhe digo todas essas coisas para que você saiba que não me alistei nas
Waffen SS por ideais políticos. Nada me resta para fazer aqui, todo o futuro está
vedado para mim.
Quando a guerra terminar, os novos vencedores terão em mente uma só
coisa: a vingança. E eu não serei um carneiro a espera do golpe que me
abaterá. Receio apenas uma coisa — que se vinguem em meus pais. Meu pai
recebeu diversas ameaças e o responsabilizaram injustamente pela morte de
sua tia e pelo incêndio de Montillac.
Acharam o cadáver de Maurice Fiaux. Foi executado pela Resistência.
Aristide também mandou matar Grand-Clément e a mulher. Agora são
senhores da região.
Encontrei-me com seu primo Philippe na semana passada e o aconselhei a
se esconder em lugar seguro. Segundo o que Philippe me contou, o pai não
pensa em fugir, pois afirma que não fez nada de reprovável. Mas não é essa a
opinião de alguns habitantes de Bordéus.

Ali acompanha-se muito de perto o que acontece em Paris. Suponho que
você esteja nas barricadas, lutando. Teria sido necessário muito pouco para
que eu também estivesse aí a seu lado.
Como talvez esta seja a última carta que lhe escrevo, quero lhe dizer o
quanto lastimo a maneira como me comportei em relação a você, mas eu a amo
loucamente. Sei que isto não é uma desculpa válida; faço questão, porém, que
você saiba.
Quero lhe pedir também para que conserve de mim apenas as recordações
felizes da nossa infância. Guardarei de você aquelas nossas corridas pelos
vinhedos, as perseguições em redor do Calvário de Verdelais, os mergulhos no
Garonne e as lutas no feno.
Pense em mim algumas vezes e saiba que você é a única mulher que amei
e amarei e que, até o fim, sempre estará presente em meu coração.
Seu amigo fiel
Mathias
PS. - Daqui a pouco, às dezessete e dez, sairá da estação de Saint-Jacques,
com destino à Alemanha, um trem de ferroviários alemães. Um vagão foi
reservado para nós."

Mathias! Onde estaria ele nesse momento? Morto ou vivo? A carta havia
demorado quase três meses para chegar às suas mãos. A distribuição de
correspondência ainda não fora completamente restabelecida. Não recebera
carta de Laurent nem de François.
Mas Léa não se preocupava demais com a falta de notícias, inteiramente
absorvida pelos treinos para condutores da Cruz Vermelha Francesa.
No dia da partida de Tavernier apresentara-se para a entrevista na rua
Octave-Feuillet.
Acordara tarde e mal tivera tempo de colocar um vestido. O metrô
apinhado parecia que se arrastava lentamente ao longo dos túneis onde os
DUBO... DUBON... DUBONNET... ritmavam a viagem. Na estação de Pompe,
empurrando os outros passageiros, Léa havia corrido para a saída. Já eram
nove horas e dez minutos.
A sra. De Peyerimhoff, impecável em seu uniforme bem talhado, a recebera
com frieza.
— Está atrasada.
— De fato estou, minha senhora. Peço-lhe desculpas.
— Vem recomendada pelo nosso presidente. Conhece-o?
— Não, não conheço.

— Estou vendo... — observara ela, medindo, a jovem com desdém.
Léa baixara a cabeça.
— Você sempre se penteia assim?
Como criança apanhada em falta, Léa se sentira corar.
— É moda nova? É preciso gostar muito, na verdade... No entanto, caso
aceitemos a sua candidatura, aconselho-a a usar um penteado mais compatível
com a nossa farda. Sabe dirigir?
— Sei, sim.
— E trocar um pneu? Consertar um motor?
— Isso não.
— Estou vendo... teremos de lhe ensinar tudo. Também desconhece os
primeiros socorros a feridos.
Léa sentia que sua paciência começava a se esgotar. Aquela mulher a
irritava com os seus ares de grande dama.
— Na verdade não sei.
— Por que quer se alistar?
— Para servir o meu país.
Aprendera bem a lição ensinada por François. A resposta parecera agradar
a sra. De Peyerimhoff, que dissera em tom um pouco menos áspero:
— Muito bem. Caso aceitemos a sua candidatura, terá de fazer um estágio
de seis semanas, durante as quais lhe serão ministrados rudimentos de
mecânica e de primeiros socorros aos feridos que irá transportar. Depois disso,
nós a enviaremos aos locais onde for necessária a sua presença.
— Quando saberei se fui ou não aceita?
— Durante esta semana. Temos muitas candidatas e só escolheremos
aquelas que nos parecerem mais capazes de desempenhar suas tarefas. Se for
aceita, receberá uma convocação.
Um aperto de mão vigoroso havia encerrado a entrevista.
Cinco dias mais tarde, Léa tomava a sua primeira refeição na rua
Francisco, em companhia das novas recrutas.
Logo de início ela se mostrara particularmente hábil na desmontagem de
rodas, na limpeza de velas e nos pequenos consertos de motor. Alix Auboineau,
que imperava na garagem das ambulâncias na rua de Passy, a elogiara diante
das colegas, o que levou uma delas a comentar com ar entendido:
— O chefe pele-vermelha se engraçou com você.
— Por que o chamam pele-vermelha?

— Foi Claire Mauriac quem lhe deu esse apelido.
— A filha de...?
— Sim. Ela está em Béziers, onde faz um trabalho magnífico. Espero que
volte logo.
Foi, sem dúvida, graças a esse ambiente de camaradagem e à matéria do
seu agrado, que Léa conseguiu superar o medo e o horror contidos na carta de
Ruth, que havia chegado no dia 7 de outubro. Começou a ler em voz alta para
as irmãs e as tias.

"Verdelais, 2 de outubro de 1944
Minhas queridas,
Há duas semanas que venho adiando o instante de lhes escrever. É tão
terrível o que tenho a dizer, que mal consigo segurar a caneta, o que explica
essas linhas trêmulas, Vocês precisarão de muita coragem, minhas pequenas,
depois de lerem o que vou contar. Albert morreu. Encontraram seu cadáver
enterrado no jardim da vivenda ocupada pela Gestapo, no Bouscat. A autópsia
revelou que ele provavelmente se suicidou, enforcando-se, depois de ter sido
torturado. Mireille demonstra uma coragem admirável; não derramou nenhuma
lágrima e, no entanto, continua sem notícias do filho, O enterro do marido
realizou-se em Saint-Macaire, com a presença do presidente da Câmara de
Bordéus e de inúmeros resistentes. Infelizmente, nessa ocasião, assistiu-se a
vergonhosas manifestações: espancamento e insultos a colaboracionistas ou
supostos colaboracionistas. Após a horrível morte da senhora Bouchardeau e
dos Fayard, o menor grito hostil me provoca tremores nervosos que se
prolongam por diversas horas. O médico afirma que isto passará com o tempo.
Seu tio, o advogado Delmas, e o filho foram linchados pela multidão, em
Bordéus.

— Deus do céu! — gritou Lisa.
A náusea fez com que corresse para o banheiro, enquanto as outras
mulheres pareciam ter-se apatetado e paralisado diante de sua atitude. Quando
Lisa voltou, de rosto pálido e desfeito, os cabelos molhados, nenhuma delas
ainda havia se mexido.
A velha solteirona pousou a mão no braço da irmã. O gesto de afeto
arrancou Albertine de sua letargia.
— Continue, Léa — disse em voz trêmula.
Só depois de diversas tentativas, a jovem conseguiu articular as palavras
que a martirizavam:

"... e os cadáveres levados pelas ruas da cidade antes de os abandonarem
no cais da Monnaie. A casa e o escritório foram pilhados. Foi horrível!
A senhora Dupuis, a velha criada, veio ver-me no hospital. Contou-me que,
após ter recebido a notícia da morte de Pierrot, seu tio nunca mais foi o mesmo.
Em poucos dias, envelheceu dez anos.
Philippe, o sr. Giraud, o mais antigo empregado do escritório e todos os
outros insistiram em vão para que ele se refugiasse em qualquer local onde não
o conhecessem.
Recusou, mas aconselhou o filho a partir. Diante da recusa do pai, seu
primo também ficou. A senhora Dupuis está convencida de que seu tio não
fugiu para se deixar matar.
Sei que tudo isto as faz sofrer, minhas queridas, e eu lhes peço que me
perdoem. O mais duro, porém, ainda está para ser dito...

— Não, ele não... — gemeu Léa, que tivera de interromper leitura por
diversas vezes.
— Quem mais morreu?! — exclamou Françoise.
— Pegue. Leia você. Não quero ver o nome dele.

Os soldados me convocaram para identificar um corpo. Lá estava também
um homem não muito alto, uniformizado, na companhia de dois membros das
Forças Francesas do Interior. Os três examinamos o cadáver e todos eles o
identificaram.
Eu me senti mal quando chegou a minha vez. É necessário, disse o
comandante. A senhora é o único membro da família Delmas aqui na região.
Então olhei. Parte do rosto tinha sido roída pelos animais, mas a outra era
perfeitamente reconhecível: o seu tio Adrien.

Léa soltou um grito e caiu no chão balbuciando:
— Eu sabia... eu sabia.
Albertine e Laure ergueram-na e a instalaram no canapé.
— Lisa, telefone ao médico.
— Como ele morreu? — Léa conseguiu articular, repelindo as mãos que a
amparavam.
— Françoise terminará a leitura da carta depois. Agora já sabem o mais
horrível. Não há necessidade de continuarmos com esta tortura — disse
Albertine.
— Não. Acabe de ler.

—... o médico legista concluiu pelo suicídio.

— Suicídio?! — elas exclamaram ao mesmo tempo.
— Um padre?! Não é possível! — declarou Albertine, fazendo o sinal da
cruz.
Esmagada pela dor, enrolada sobre si mesma, Léa não parava de bater os
dentes. Eu sabia, pensava ela. E deveria ter entendido quando ele me dava a
entender que perdera a fé. Mas por que terá feito isso? Era corajoso... E sua
ação na Resistência era importante. E isso, essa morte que nada tinha a ver
com ele.
Tudo nela tentava repelir a idéia do suicídio, mas alguma coisa dizia que
era verdade.
De joelhos e de mãos postas, Albertine e Lisa de Montpleynet rezavam.
Para aquelas católicas fervorosas não existia pecado maior que o suicídio. Ao
saberem eternamente condenado aquele homem cujas palavras de amor e de
paz tinham ecoado sob as abóbadas de Notre-Dame, orientando-lhes a
consciência melhor que as de seu confessor, isso não só lhes causava profundo
desgosto como também as deixava em dúvida quanto ao fundamento dessas
palavras. Com esse ato monstruoso, o padre Delmas refutava a existência do
Deus cristão. Isso elas percebiam claramente.
Laure apanhou a carta das mãos de Françoise e continuou a leitura:

Ninguém queria acreditar, mas logo tivemos de nos render à evidência,
diante das explicações do comandante e, sobretudo, diante dos esclarecimentos
do médico.
O seu infeliz tio foi sepultado no jazigo da família no cemitério de
Verdelais, junto dos despojos de sua tia e de seus pais.
Não houve missa nem bênção. Um enterro de pária, se as pessoas não
tivessem levado tantas flores.
Estou em Verdelais, na casa de minha amiga Simone, e ficarei por aqui até
recuperar a saúde. Depois disso, se o desejarem, irei encontrá-las.
As vindimas começaram há dois dias. A colheita parece abundante, mas o
vinho é de qualidade média. Tive de contratar prisioneiros de guerra alemães
para ajudar nos trabalhos. Têm tanto medo dos resistentes que trabalham com
eficácia.
É necessário tomarem providências quanto ao futuro da propriedade e
quanto à reconstrução da casa. Comecei a vasculhar a documentação dos

Fayard, mas isso tudo é muito confuso para mim. O notário morreu e teremos
de arranjar outro. Pensem no caso.
Mais uma vez peço-lhes desculpas, minhas queridas, pelas notícias
horríveis e saibam que continuo sempre a sua fiel, devotada e afetuosa
Ruth."

É verdade! É a época das vindimas, eu tinha me esquecido!, pensou Léa.
Durante todo o dia, cada uma delas ficou fechada em seu quarto. Charles
e Pierre se refugiaram na cozinha, junto de Estelle.
Léa faltou à aula de topografia. Albertine telefonou à sra. De Peyerimhoff,
explicando, em parte, o motivo da ausência da sobrinha.
Nos dias que se seguiram Léa conheceu uma solidariedade feminina da
qual nunca suspeitara.
Após os treinos nos caminhos esburacados da floresta de Marlyle-Roi, Léa
revelou-se excelente condutora e excelente mecânica.
O chefe da garagem da rua de Passy garantiu-lhe que, terminada a guerra,
obteria sem problemas emprego numa garagem.
Em contrapartida, nos socorros aos feridos, ela se mostrava reticente e
desajeitada.
— Cuidado! — gritava o médico que ministrava os cursos —, se você
levantar dessa maneira um homem ferido no abdômen, irá perder seus
intestinos... Devagar, senhorita, devagar... você lida com este homem, por certo
atingido na coluna vertebral, como se manuseasse um saco de batatas. Eu não
gostaria de cair em suas mãos...
À noite Léa encontrava-se com Laure e com os amigos do irmão, que
faziam contrabando de cigarros, de uísque, de gasolina e de meias com os
soldados americanos.
Por vezes, dançavam até a uma da madrugada, impelidas pela ânsia de
viver, de viver rapidamente, uma ânsia compartilhada pela maioria dos rapazes
e das moças de sua idade.
Embora muito cortejada, Léa não correspondia às investidas dos jovens
soldados vindos de longe para participar na libertação de Paris. Namoricava, ria
e bebia, permanecendo, porém, estranha- mente distante. Fingia-se presente,
mas estava longe, em qualquer outro lugar, inacessível e longínquo.
Nos braços daqueles homens empreendedores, podia mostrar-se lasciva
durante uma dança, a ponto de, certo dia, ter recebido uma bofetada de um
enorme sargento negro que não apreciara seu coquetismo.
Foi em meio a tal clima que, em 7 de novembro, chegou a primeira carta
de Laurent, datada de 28 de outubro.

"Querida Léa,
Por intermédio de François Tavernier, aqui em missão junto do general
Leclerc, soube que você já se restabeleceu. Foi tão grande a minha alegria que
fiquei sem palavras. Informou-me também que você continuava insistindo em
se alistar na Cruz Vermelha. Você sabe que não a aprovo inteiramente, mas
cada um é dono do seu destino.
Agradeça por mim às suas tias tudo o que têm feito por Charles. Peça-lhes
que lhe falem sobre mim, e você, sempre que estiver com ele, não deixe de lhe
contar coisas sobre sua mãe.
Estamos vivendo no meio da lama desde o dia 22 de setembro. Os ônibus
da T.C.R.P., que serviram para o transporte dos batalhões das Forças
Francesas do Interior parisienses incorporadas na 2ª Divisão Blindada,
afundam até os eixos e já fomos obrigados a abandonar dois deles e a renunciar
à idéia de fazê-los atravessar o Meurthe; outros foram rebocados pelos
Sherman. Ao vê-los, os operários parisienses afirmam que já cheiram à
atmosfera de Paname.
Você pensava ver esses pobres diabos patinando na lama, calçando
sandálias ou sapatos de sola fina, vestidos com as roupas mais diversas, sem
capacetes, uma só espingarda para dois homens! Eles patrulham as matas.
Embora protestem por qualquer coisa, não recuam diante de nenhuma missão.
Temos de agüentar quase ininterruptamente os tiros de morteiro. Não falta
munição ao inimigo, como aconteceu em agosto.
Nós nos impacientamos à espera de uma ofensiva real.
Nós, os dos tanques, não gostamos disto. Perdemos de maneira estúpida
dois oficiais notáveis que conhecemos na África e de quem ficamos amigos: os
capitães Dubut e Geoffry.
O mais enraivecido é o meu camarada Georges Buis. Seus pés começaram
a criar raízes, como ele diz. E resmunga dizendo que o destino de um militar de
cavalaria não pode ser o de se transformar em estátua de barro.
Nas casernas, o moral dos homens chegou ao nível mais baixo. Todos eles
já se vêem passando o inverno nesta "terra em decomposição".
Juntamente com Buis, sobrevoamos as linhas, num dos piper-cubs da
Artilharia. Visão desmoralizante através de uma cortina de chuva.
Estamos mais orgulhosos do número de quilômetros que percorremos num
dia do que dos prisioneiros capturados ao inimigo. Até mesmo o capitão Dere,
veterano da Tunísia, um cinqüentão alegre, fala em se alistar no Corpo
Expedicionário de partida para a Indochina, ao menos para conhecer o país,
conforme afirma.

Não é mais o entusiasmo da Libertação, mas o desânimo total. Já é tempo
para que o Estado-Maior nos faça passar à ação, senão a 2ª Divisão Blindada
irá se liquefazer.
Acabo de ler o que escrevi e constato que pintei um quadro muito pouco
glorioso da 2ª Divisão Blindada. Mas não é bem assim. Desde que partimos de
Paris temos lutado muito. Sem dúvida, o tempo execrável e esta semi-inação
são os responsáveis pelo meu desencanto.
Da mesa da cozinha onde estou escrevendo, à luz de um lampião, vejo
cair, através da janela da barraca, esta chuva que corrói o moral dos mais
endurecidos.
Interrompo aqui a minha tagarelice insípida. Ao dirigir-me a você por
escrito gostaria de sentir o raio de luz da sua beleza, mas tombam sobre mim e
sobre estas linhas as trevas da melancolia. Perdoe-me.
Dê um beijo em meu filho.
Com toda a ternura,
Laurent."

Laurent estava bem, graças a Deus, apesar da negra tristeza que
transparecia em cada frase.
E François, como estaria ele? Por que não dava sinais de vida? Léa estivera
no Ministério da Guerra, mas não lhe deram nenhuma notícia do comandante
Tavernier.
No dia 20 de novembro, Léa passou no exame, apesar do desastre da prova
de remoção dos feridos, quando o enfermeiro que fazia o papel de ferido caiu da
maca.
Após os discursos da sra, De Peyerimhoff, de Alix Auboineau e do médico
que lhe ensinara os primeiros socorros, Léa guardou com cuidado seu diploma
de condutora de ambulância da Cruz Vermelha Francesa.
Três dias depois, enviaram-na para Amiens, para o castelo da sra. De
Guillencourt, que funcionava como sede da Cruz Vermelha Ali, Léa dedicou-se
ao socorro de civis: crianças despedaçadas por minas, moribundos retirados da
frente, famílias belgas e francesas extraviadas, doentes por causa do frio, da
fome, de diarréias.
De início, pensou que não agüentaria o golpe, mas uma colega — Jeanine
Ivoy, uma moça tão baixinha que fora necessário lhe fazer uma farda sob
medida — tomou-a sob sua proteção e lhe insuflou coragem.
Finalmente, nos últimos dias de dezembro, Léa recebeu correspondência
de Paris; uma carta de Françoise, outra de tia Albertine, uma outra de Laurent
e ainda uma quarta, de François Tavernier. Correu para o quarto que dividia

com Jeanine Ivoy e abriu em primeiro lugar a carta de François Tavernier, de
17 de dezembro.

"Minha queridinha,
Não sei onde você irá receber estas linhas. Laure, com quem falei pelo
telefone há momentos, disse-me que você havia partido para Amiens, mas não
sabia se você ainda estaria lá.
Após a minha primeira missão, o general incumbiu-me de uma outra e
agora fui enviado a... não posso dizer onde. Mas você não perde por esperar,
pois encontrei um meio de lhe fazer uma surpresa em Amiens ou em qualquer
outro lugar onde você estiver.
Você me faz muita falta e tenho um desejo furioso de tomá-la nos braços e
de partir com você para bem longe da Europa.
Quando tudo isto terminar irá comigo para a casa de uns amigos no
Brasil. Passaremos nossos dias na praia, fazendo amor para nos esquecermos
destes quatro anos.
Cuide-se e não me queira mal por ser tão pouco loquaz, pois o avião que
me levará onde tenho de ir está à minha espera.
Já lhe disse alguma vez que a amava? Se não disse, digo-o agora.
Beijos por toda a parte.
François."

À leitura da carta, Léa evocou as carícias do amante e assaltou-a uma
onda de prazer. Também o amo, disse baixinho.
Com um suspiro de felicidade, escondeu a carta no decote, em contato
com o corpo, a fim de manter contra o peito esse pedaço de papel que François
tocara.
Depois abriu a carta da irmã:

"Querida irmãzinha,
Por aqui vamos sobrevivendo graças aos negócios de Laure, que consegue
nos arranjar um pouco de carvão e de comida. Ela me incumbiu de lhe mandar
um beijo e de dizer que vai tudo bem.
Ruth já está aqui conosco. Você não a reconheceria; é agora uma velha
que se assusta com o menor barulho.
Contratamos um novo notário para se ocupar dos negócios e ele encontrou
um homem de confiança, que agora toma conta das vinhas de Montillac. Na

próxima primavera, porém, teremos de tomar uma decisão — vender ou não a
propriedade.
Laure e eu estamos inclinadas a vendê-la, pois essa casa e essas terras
estão muito ligadas a lembranças infelizes demais.
Não temos dinheiro para mandar reconstruir a casa e nos desesperamos
ao sabê-la em ruínas. O que acha que devemos fazer?
Pierre vai bem, sempre aos pulos por todo o lado. Tem apenas seis dentes
e me pergunto se isto será normal. Charles é um rapazinho muito sisudo e
calado para a sua idade.
Chama por você com muita freqüência, sobretudo à noite. Mas, fora isso,
vai bem. As tias estão cada vez mais velhinhas, mas nos tratam sempre com
uma delicadeza deliciosa.
Os meus cabelos continuam a crescer e dentro em breve poderei sair sem
o turbante. Não recebi nenhuma notícia de Otto, mas sinto que ele está vivo. É
horrível não saber nada do homem que amo e não poder falar disso a ninguém,
exceto, por vezes, a Laure.
Ruth acolheu a notícia da libertação de Estrasburgo com a emoção que
você pode calcular.
As depurações prosseguem de vento em popa. Mas nem sempre os
condenados são os que têm as maiores culpas. Todo mundo escuta a emissora
francesa de Baden-Baden, onde se ouvem vozes conhecidas: Brinon, Déat,
Luchaire etc.
No outro dia, durante um espetáculo de gala da Resistência, na Comédie-
Française, foi lido um poema de Claudel dedicado à glória do general De Gaulle.
Era a minha primeira saída. Observei entre a assistência duas ou três cabeças
enfeitadas com belos turbantes... Ao meu lado, um jornalista dizia a seu vizinho
que o poema fora escrito em 1942, em homenagem ao marechal Pétain, e que
fora ligeiramente alterado para se adaptar às novas circunstâncias:
Eis a França entre os seus braços, sr. Marechal, a França que tem só ao
senhor e que em voz baixa ressuscita. França, escuta este homem idoso que
sobre ti se debruça e que te fala como pai!
Não é divertido?
Laure forçou-me a acompanhá-la ao bar do Crilion, onde se comprimia
uma verdadeira multidão de senhoras uniformizadas e de oficiais ingleses e
americanos de diferentes armas, rivalizando em elegância. Reconheci a antiga
amante de um general alemão, agora de braço dado com um coronel britânico.
Ela também me reconheceu e piscou-me o olho, com ar de quem dizia: Que se
há de fazer? É o trabalho!
Petiot foi preso, enfim — era tenente ou capitão das Forças Francesas do
Interior!

Fazemos os preparativos para o Natal das crianças. Sentiremos a sua falta.
Um beijo com ternura da irmã que a ama.
Françoise"

Françoise parecia estar superando a situação. Para sua tranqüilidade e
segurança, seria melhor que Otto estivesse morto. Ela era capaz de educar o
filho sozinha.
Que lhe importava o que acontecesse a Montillac? Até mesmo a idéia de ter
de pensar no assunto lhe era desagradável.
Devia esquecer, passar uma esponja sobre tudo o que antes fora a razão
de sua vida.
A carta da tia Albertine continha apenas recomendações e a notícia de que
iria lhe enviar, pelo Natal, meias de lã e roupas íntimas quentes, pois a leve
gabardina do uniforme da Cruz Vermelha não era suficiente para protegê-la da
brisa cortante que soprava naquela região descampada.
Léa virou e revirou entre os dedos a carta de Laurent, sem se decidir a
abri-la. Por fim, rasgou o envelope:

"Minha querida Léa.
Espero que você sofra menos com o frio que a 2ª Divisão Blindada. Diante
dos rostos congelados de seus homens, o general Leclerc mandou confeccionar
coletes em pele de coelho, o que lhe valeu a gratidão de todos nós. Os veículos
têm sofrido tanto como os homens.
Sem dúvida tem seguido a nossa progressão por intermédio da imprensa.
Depois da tomada de Barracat, bebemos champanhe nas taças gravadas com
um punho enluvado, destinadas a Goering.
Travei conhecimento com o coronel Fabien, comunista, antigo membro das
Brigadas Internacionais e adjunto do coronel Rol-Tanguy, chefe das Forças
Francesas do Interior, da Ilede-France, na época da liberação de Paris. É um
homem curioso, sempre com calças de bombachas e uma jaqueta abotoada até
o pescoço. Com três mil homens, quase todos vindos da periferia de Paris, ele
seguiu a 2ª Divisão Blindada em companhia das Forças Francesas do Interior,
vindos um pouco de cada lugar, sobretudo os do grupo Janson de Sailly.
Unida ao 3º Corpo do Exército Americano (Patton), a Brigada de Paris
adotou o nome de Agrupamento Tático de Lorraine. A seu pedido foi
incorporado ao 1º Exército, comandado pelo general De Lattre. No dia 10 de
dezembro, em Vesoul, o general passou em revista os novos recrutas; alguns
deles acabam de completar dezessete anos.

A sua integração nem sempre se faz sem problemas. Dificilmente aceitam
ordens de determinados oficiais e de oficiais subalternos, sobretudo daqueles
que usam uniformes reluzentes de tão novos. Eles os chamam de "naftalinas",
apelido que dispensa comentários.
Fabien é um homem fascinante. Alistou-se nas Brigadas Internacionais
aos dezessete anos e foi ferido. Em 30 de novembro de 1942, matou aquele
oficial alemão na estação do metrô da République. Preso e torturado, conseguiu
fugir, retomando a luta clandestina. Os alemães fuzilaram seu pai e deportaram
sua mãe.
Os dias que antecederam a marcha sobre Estrasburgo representaram uma
provação para todos nós. Segundo Buis afirma, é devido ao mau tempo que os
homens arranjam querelas por tudo e por nada. Durante esses dias, o general
Leclerc esteve com um humor terrível, medindo a grandes passadas as salas
úmidas do castelo de Birkenwald, o mesmo em que o futuro pai de Foucauld
passava férias. Na alvorada do dia 23 de novembro, chovia a cântaros, e o
general batia maquinalmente com sua bengala no assoalho, as sobrancelhas
franzidas e uma brusca contração da maçã direita do rosto, um sinal de que
estava muito agitado.
Só às dez e meia um motociclista entrou na sala onde se reuniam todos os
oficiais do P.C. Com os dedos enregelados, estendeu a folha de papel amarelo
enviada por Rouvillois. O texto estava em código: "O tecido está no lodo". Isso
significava que haviam entrado em Estrasburgo. Então, o general Leclerc soltou
uma gargalhada: "Vamos partir!", exclamou.
Felizmente tivemos muito poucas baixas, mas uma delas nos consternou:
a morte do capitão da Divisão, o padre Houchet, que acompanhava Leclerc
desde o Chade.
Ao receber a notícia, o general correu para o hospital em plena noite. Eu o
vi enxugar uma lágrima em frente dos restos mortais daquele cuja fé, alegria,
bondade e dedicação incansável tinham feito dele a pessoa mais querida e
respeitada de toda a Divisão. No dia seguinte, como os soldados designados
para conduzir o féretro não puderam chegar à capela, fomos nós, os oficiais,
que transportamos o corpo.
No domingo, dia 26, o estandarte do 12º Couraçado flutuava sobre a praça
Kleber, diante de uma multidão silenciosa e dispersa. Sentia-se no ar uma
grande tensão. Depois, aos poucos, as janelas começaram a se abrir e a se
desfraldarem as bandeiras. Os acordes da Marselhesa ergueram-se em surdina
ao longo das calçadas, para logo cessarem, Com a chegada do general Leclerc,
porém, a população entregou-se ao regozijo.
Depois de cinco dias, partimos ao encontro do 1º Exército Francês, que
conquistara Belfort e Mulhouse. Os alemães estavam agora isolados e
encurralados no Reno. Disse que voltamos a partir... mas o fizemos como um
burro que recua quando o puxam (meu pai teria dito), pois os Leclerc não
tinham nenhum desejo de serem incorporados ao 1º Exército.

O tempo está horrível — chuva, neve, trovoadas. Felizmente, o espírito da
2ª Divisão Blindada resiste a tudo. Nem o humor perde os seus direitos. Um
exemplo disso: no outro dia, nos abrigamos numa pequena estação da estrada
de ferro, onde, de um lado, lia-se partida e do outro chegada. Por cima das
linhas do trem, chegou até nós um saraivada de 88, o que era raro, pois os
alemães dispõem de pouca artilharia.
Quando nos levantamos, Georges Buis sacudiu o pó da farda com uma das
mãos e apontou com a outra o buraco aberto pelos obuses, comentando comigo
e com La Horie:
— Sempre conformistas, estes alemães.
Caímos na risada, pois os projéteis tinham entrado... pela chegada.
Esse tipo de piadas colegiais em meio aos combates mais duros e a
camaradagem que antigamente eu qualificaria de caserna, ajudam-me a não
enlouquecer ao pensar nos sofrimentos e na morte de Camille. Em certas
noites, quando não consigo dormir por causa do frio intenso, vejo o seu rosto
suave debruçado sobre mim. Tenho a sensação de que ela me chama, dizendo:
Vem... vem me encontrar... não me deixe só.
Sinto-me como que atraído por uma força emanada do além-túmulo.
Mas que estupidez a minha! Perdoe-me, querida Léa, se eu a entristeço.
Você também a amava.
Como está Charles? Talvez você não esteja ao seu lado. Talvez você
também esteja num desses lugares onde os homens morrem. Se não for assim,
não deixe de lhe falar sobre a mãe e sobre mim, construindo-lhe as recordações
de sua pequena infância.
Dentro em breve estaremos no Natal. Você já notou que nunca passei um
Natal com meu filho desde que ele nasceu? Dê- lhe muitos presentes, e não lhe
poupe guloseimas, brinquedos nem velas na árvore de Natal. Diga-lhe que seu
papai pensará ainda mais nele durante essa noite.
Para você, a minha terna amizade.
Laurent."

Ao pensamento de que estaria longe daqueles que amava nesse primeiro
Natal da França libertada, Léa começou a chorar como uma criança. Vieram-
lhe à mente todas as suas recordações de garotinha mimada: o fervor e o frio da
missa do galo na basílica de Verdelais ou sob as abóbadas medievais de Saint-
Macaire; a emoção diante do presépio, com o anjo que abanava a cabeça e
tocava os primeiros acordes de Nasceu o Menino Jesus... quando se introduzia
uma moeda na caixa de gesso que ele segurava; o misto de alegria e de espanto
diante da visão do pinheiro iluminado, erguido no pátio em frente da casa como
que por milagre; o coração palpitando, gritos e risos nervosos quando a porta

da sala de visitas se abria e, aí, junto da lareira onde crepitava o fogo, os
presentes de Natal, um monte de pacotes coloridos.
Depois de um certo tempo paradas, de um instante de falsa surpresa, as
três irmãs, empurrando-se, corriam, gritando como loucas, para a lareira, para
seus sapatos reluzentes.
Com que energia rasgavam os papéis, arrancavam as fitas e pulavam de
alegria, correndo para beijar os pais e Ruth, que suspeitavam serem cúmplices
de Papai Noel!
Mais tarde, depois de crescidas, tinham tido outros Natais igualmente
felizes e por nada queriam estar fora num dia como esse.
A guerra havia destruído tudo isso. Graças aos esforços de Léa em manter
a tradição, os Natais da Ocupação, embora tristes, sem exuberância e com
poucos presentes, tinham sido festejados.
Este seria o primeiro Natal que Léa passaria fora de casa. Nesse instante,
nada lhe parecia tão terrível como aquilo, fazendo-a esquecer o sofrimento que
a rodeava, a guerra que continuava e todos os mortos que haviam feito parte de
sua vida.
— O que você tem? Más notícias? — perguntou Jeanine Ivoy, entrando no
quarto.
Incapaz de responder, soluçando, Léa sacudiu a cabeça num gesto
negativo.
— Então, por que está assim?
— Porque... porque... é Natal! — Léa conseguiu articular.
Jeanine, de boca aberta, olhava-a perplexa. Depois, subitamente, também
começou a chorar.
Como a infância demora para morrer! Elas choraram durante algum
tempo, sem ousarem se fitar. Depois, seus olhos se encontraram e, sem
transição, elas começaram a rir, caindo nos braços uma da outra.
Em 24 de dezembro, foram para casa tarde, esgotadas pelo transporte de
feridos para os hospitais da região. Arrastando os pés, subiram os degraus do
patamar. O vestíbulo estava mergulhado na penumbra, mas, da sala, filtrava-se
uma luminosidade forte e chegava até elas o som de vozes alegres e animadas,
sobre- pondo-se o som do jazz. O que estava acontecendo? Aquilo não fazia
parte dos hábitos da casa.
Intrigadas, empurraram a porta. E viram, então, um pinheiro enorme,
iluminado por lâmpadas e enfeitado com pedaços de algodão como se fossem
flocos de neve. O fogo crepitava na lareira, em cujo friso um homem estava
apoiado, com um copo na mão. Encaminhou-se para elas, sorrindo.
— Vocês são as últimas a chegar. Entrem depressa e fechem a porta.

Léa obedeceu com gestos lentos. Depois, voltou-se, com as mãos atrás das
costas, ainda presas à maçaneta de cobre esculpido, cujas arestas
machucavam seus dedos.
Para não cair, encostou-se na almofada da porta, incrédula e maravilhada
ao ver avançar para ela, como através de um nevoeiro, aquele homem que a
desconcertava.
François Tavernier teve muita dificuldade em conseguir que Léa soltasse a
maçaneta da porta. A dona da casa dirigiu-se para eles.
— Está muitíssimo pálida, senhorita Delmas. Acalme-se. Sem dúvida é a
emoção de ver o noivo.
O noivo?! A quem a velha se referia?
A senhoria prosseguiu:
— Graças ao comandante Tavernier, vamos ter um autêntico Natal. Trouxe
no carro tudo o que é necessário a uma noite como esta. Vá mudar de roupa,
Léa; está toda suja.
François inclinou-se diante da senhora idosa e disse, com o seu sorriso
mais encantador:
— Se a senhora me permite, acompanharei a senhorita Delmas.
— Claro, comandante. Enquanto isso, vamos acabar de pôr a mesa.
Léa deixou-se levar como uma sonâmbula.
— Onde fica o seu quarto?
— Lá em cima.
Mal entraram no quarto, Tavernier lançou-se sobre ela, cobrindo-a de
beijos. Léa deixava-o prosseguir, incapaz de reagir.
François percebeu, afastou-se um pouco, e a examinou, prendendo-a pelos
ombros.
— Eu esperava mais entusiasmo.
Léa se exaltou imediatamente:
— Você aparece assim, sem avisar, quando eu o imaginava na casa do
diabo... você... você... apresenta-se como meu noivo... pula em cima de mim...
e... Por que está rindo?
— Agora é você de novo. Não é do seu jeito ser tão passiva.
Léa corou e debateu-se entre os braços que a apertavam novamente.
— Acalme-se. Temos pouco tempo. Arrisco-me a ser levado a conselho de
guerra por ter vindo vê-la. Devia estar em Colmar neste momento.
— Mas por que disse que era meu noivo?

— Para que ninguém se surpreendesse com minha visita imprevista e para
que me deixassem ficar a sós com você. Beije-me.
Eram uma estupidez aquelas suas questões mesquinhas. A verdade é que
sua alegria havia sido tanta ao vê-lo, que pensou que iria morrer. Então,
correspondeu a seus beijos e o arrastou para uma das camas.
— Venha.
Fizeram amor como se tivessem os minutos contados, desajeitadamente.
Mas os corpos acomodaram-se a essa urgência e logo o clímax do prazer os
deixava fora do tempo.
Algumas pancadas discretas na porta os trouxeram de volta à realidade.
Recompuseram as roupas, rindo loucamente.
— Entre — Léa falou.
A cabeça pequenina da companheira de quarto apareceu na fresta da
porta.
— Desculpem — disse Jeanine Ivoy, sem se atrever a encará-los. — Mas
preciso mudar de roupa.
— Sou eu quem deve se desculpar por ter retido Léa. Vou deixá-las.
As duas moças começaram a se despir sem dizer nada.
O champanhe, as ostras e o patê de fígado trazidos por François Tavernier
fizeram daquela reunião uma festa cheia de alegria. No final da refeição, quase
todos os convidados estavam levemente embriagados.
Pouco depois de meia-noite, Tavernier se levantou para sair.
— Já!.. — exclamaram todos em coro, exceto Léa, que abaixou a cabeça.
— Sim, infelizmente. Tenho de estar de volta pela manhã. Continuem a
festa sem mim — disse François. — Quer me acompanhar até o carro, minha
querida?
— Até depois, comandante. E obrigada por tudo.
Lá fora, desabava uma tempestade de neve. O veículo de tração dianteira
estava coberto por espesso manto branco.
Tavernier abriu a porta e puxou Léa para dentro. Suas mãos frias
tatearam sob sua saia até encontrarem o calor de seu ventre.
— Desabotoe — ele pediu.
— Não — contrariou Léa, obedecendo.
Atrapalhados pelas roupas, fizeram amor com violência, com brutalidade
desmentida pelas palavras de carinho que murmuravam.
Depois, com a respiração ainda ofegante, fitaram-se na tênue claridade da
lâmpada do teto, em silêncio, gravando na memória as imagens um do outro.

Talvez por causa do frio, pareceu a Léa que uma lágrima deslizava por sua face
e se perdia nos cabelos de seu amante.
Soaram duas da madrugada num campanário vizinho. Tavernier
estremeceu e saiu do carro.
— Preciso ir.
Ligou o motor. Em pé, junto da porta, Léa tremia, envolta numa manta de
viagem que cheirava a gasolina. Enquanto o motor funcionava, François tomou-
a nos braços.
— Onde vai? — ela perguntou.
— Para a Alsácia.
— Sozinho?
— Não. Meu ordenança ficou à minha espera num café. Minha querida,
não nos veremos durante muito tempo. Depois da Alsácia vou para a Rússia
como observador, enviado pelo general De Gaulle.
— Mas por que você?
— Talvez por uma razão muito simples: porque falo russo.
François falava russo! Nunca lhe dissera. Mas havia tanta coisa que
ignorava a seu respeito! Talvez uma só vida não bastasse para conhecê-las.
— François.
— Não fale. Se o fizer, certamente não terei coragem para partir. Diga a si
mesma que saberei encontrá-la onde quer que esteja e, a mim, diga-me apenas
algo que me ajude a ter paciência sempre que pensar em você.
— Eu te amo.
— Era isso mesmo que eu queria ouvir. Você é tão avara com os seus "eu
te amo". Agora entre depressa. Está gelada.
— Não. Beije-me.
François beijou-a.
— Vá embora!
Repelida com violência, Léa caiu. Tavernier conteve o impulso de correr
para ela. O carro arrancou de repente, projetando uma chuva de neve sobre a
jovem que não se movera.
Instante depois, preocupada com a ausência de Léa, uma de suas colegas
foi descobri-la na rua, enrodilhada sobre si mesma e quase sepultada sob a
neve.
Auxiliada pelo empregado do castelo, transportou Léa para o quarto.
Obrigaram-na a engolir uma grogue escaldante. Depois a puseram na cama,
sob uma pilha de cobertores e com um saco de água quente nos pés.

Ela dormiu até o meio-dia seguinte.

Capítulo 29

EM 6 DE FEVEREIRO, no dia seguinte ao Acordo de Yalta, Léa recebeu
duas cartas amarrotadas, enviadas ao mesmo tempo por intermédio da Cruz
Vermelha. Uma delas era de Laurent e vinha datada de 3 de janeiro:

"Minha querida Léa, Como de costume, quero lhe desejar um feliz Ano-
Novo. Que 1945 lhe traga a felicidade! Você a merece mais que ninguém. Há em
você uma força vital capaz de superar as maiores tormentas. Você não é como
eu, que sinto que a vontade de viver me abandona. É pensando em Charles que
luto o máximo possível contra essa atração mórbida, mas logo as idéias
lúgubres me conduzem aos dias felizes de um passado perdido para sempre.
Aqui, neste universo de chuva e de lama, a transição da vida para a morte
quase se transformou em banalidade.
A dignidade dos homens que aceitaram morrer por uma causa justa é
talvez o que mais me comoveu desde que entramos em combate. Nas vésperas
de um ataque onde se sabe que grande número cairá e que nós mesmos
podemos fazer parte desse número, há pelo acampamento uma espécie de
fervor contido. Os soldados trocam cartas, barbeiam-se, falam mais baixo.
Sabem quando o ataque está para ocorrer, antes mesmo que o Estado- Maior
tenha conhecimento. Não precisam de toques de clarim.
Se você visse como é belo, como fica limpo de toda a imundície o olhar do
homem que sabe que amanhã... É como se ele olhasse além do visível, mais
longe que ele mesmo. Isso também faz parte da guerra — a solidariedade muda,
a dignidade que transforma em bravos, em criaturas lendárias, em heróis,
indivíduos que, vistos separadamente, talvez não despertassem grande
interesse. Aqui, porém, se engrandecem pelo sacrifício pessoal, indo juntar-se,
nas páginas da História, às figuras do ano II, de Austerlitz ou do Mame.
Essas palavras em minha boca talvez a surpreendam, como surpreendem
a mim mesmo. Se por acaso eu não tivesse me reunido a Leclerc, se eu não me
encontrasse na 2 Divisão Blindada, é provável que minhas idéias fossem
outras, pacífico convicto que sou. Mas não se vive impunemente junto de
pessoas que morrem aos milhares pela liberdade, não apenas pela liberdade da
França, mas do mundo, sem se rever certos julgamentos favorecidos por uma
existência cor-de-rosa e pelo horror à violência.
Eu lhe falei sobre o coronel Fabien em minha última carta. Foi
estupidamente morto por uma mina, junto com três dos seus camaradas, no
dia 27 de dezembro. Pensei muito na filhinha que deixou.

Se me acontecer a mesma coisa, não se esqueça de que lhe confiamos o
nosso filho, eu e Camille. Por testamento, antes de partir, estipulei que você
seria a sua tutora.
Fale a Charles a respeito da guerra, mas para que ele a odeie. Diga-lhe, no
entanto, para não guardar rancor do povo alemão, que foi ludibriado. Antes da
guerra, conheci bem esse povo, falava a sua língua, escutava a sua música, lia
os seus poetas e admirava a sua coragem. Muitas vezes, eu e alguns amigos
berlinenses bebemos em homenagem aos Estados Unidos e à Europa. Depois
de tantos horrores, será necessário que homens e mulheres retomem a idéia e a
ponham em prática.
Neste início de ano, peço a Deus que a proteja, minha querida Léa, e que a
cumule de benefícios.
Um beijo onde vai tudo o que me resta de amor.
Seu amigo,
Laurent."

— Ele vai morrer — Léa murmurou com um estupor lasso.
Depois, ficou virando e revirando nas mãos a segunda carta coberta de
carimbos, tal como a anterior. A caligrafia com que fora escrita nada lhe
revelara.
Por fim, decidiu-se, e rasgou o envelope. Ao ler o nome à esquerda da folha
de papel ordinário, compreendeu então do que se tratava. Sem nenhuma
lágrima, começou a ler:

"Senhorita Delmas,
Ninguém gosta de ser mensageiro da desgraça. No entanto, por amizade e
por respeito à minha palavra, venho lhe dar uma má notícia: o capitão d'Argilat
morreu no dia 28 de janeiro.
Juntamente com ele, foram mortos dezesseis oficiais do Agrupamento
Tático, assim como o comandante Puig e o tenente-coronel Putz, durante a
tomada de Grussenheim, que custou à 2 Divisão Blindada mais baixas que a
ruptura da frente vosgiana e pré-vosgiana, a tomada de Salernes e de
Estrasburgo.
Recebemos ordens para transpor o III, alcançar o Reno e dividir em dois a
bolsa de resistência alemã, partindo de Selestat.
Havia cinqüenta centímetros de neve e de gelo. A enorme planície branca,
salpicada de pequenos bosques e cortada por canais e por ribeirões, oferecia
aos Horniss, aos Jagpanther e aos 88 um campo de tiro excelente.

A 3ª Companhia foi a primeira a entrar em ação, apoderando-se do famoso
cruzamento n 137. A 2ª a ultrapassou depois e recebeu ordens para tomar
Grussenheim a todo o preço.
Na retaguarda, o resto do regimento seguia com paixão o desenrolar do
combate e, embora invejando-os, receava pela sorte dos camaradas.
As unidades não comprometidas na luta se desfaziam das próprias
munições em favor da vanguarda, a fim de que ela reconstituísse as suas
reservas o mais rapidamente.
O nosso amigo morreu durante esse ataque. Seu tanque explodiu a alguns
metros do meu. Seu corpo foi lançado pela explosão.
Nós o recolhemos mais tarde. Parecia adormecido. Tinha o rosto sereno e
no corpo não se notavam ferimentos. Repousa agora no cemitério da aldeia,
enquanto não for transladado para o jazigo da família.
Todos os amigos sentiram muito a sua perda.
Laurent ia ao encontro da morte. Talvez a procurasse.
Você acreditaria se lhe contasse o que ele fez em Herbsheim porque seria
eu a dizê-lo, mas com certeza ficaria atônita. É muito pessoal a maneira como
se faz amor com a morte. É um segredo. As pessoas de envergadura que se
suicidam, antecipando-se assim aos desígnios divinos, deixam, em geral, um
papel, onde se lê apenas: Não procurem compreender. Eu mesmo não entendo.
— Não creio que alguém saiba verdadeiramente por que arrisca a vida na
guerra. Assim se faz, porque é assim. Laurent não deixou nenhum papel como
esse e está bem assim.
Um excelente oficial, elogiou-o certo coronel. Em sua boca de homem
cético, isso era um grande elogio. Para mim, porém, Laurent era bem mais que
isso, era uma criatura suficientemente corajosa para não deixar que ninguém
notasse suas fraquezas.
Senhorita, estou solidário com sua dor e compartilho sinceramente do seu
desgosto. Acredite na minha tristeza.
Os meus cumprimentos respeitosos.
Georges Buis.

Assim, ele tinha ido ao encontro de Camille! Apesar do desgosto, Léa
achava que aquilo estava certo. É verdade que havia Charles e que a morte de
Laurent poderia ser considerada uma covardia — deixava o filho abandonado,
sem família, exceto os Delmas. Mas Laurent desejara a morte.

— Pedimos-lhe que viesse aqui, senhorita Delmas, para informá-la de sua
próxima missão. Foi designada para transportar um oficial britânico

gravemente ferido, de Bruxelas a Cannes, que irá passar algumas semanas de
convalescença à beira do Mediterrâneo.
Léa mal pôde conter sua alegria. A cada dia seu trabalho ficava mais
penoso. Não era nenhum prazer dirigir em estradas esburacadas. Mas era
muito pior, um pesadelo sempre renovado, recolher feridos sem se esquecer de
braços e de pernas pendentes e inertes, prestar os primeiros socorros, escutar
os gemidos, ver correrem as lágrimas diante dos membros amputados, ouvi-los
chamar pelas mães antes de morrerem, arrancar dos escombros os recém-
nascidos, viver na lama, no pus, no sangue e entre dejetos.
Os pesadelos de Léa haviam recomeçado com maior intensidade após a
morte de Laurent. Não se passava uma noite sem que visse Camille se
arrastando para junto do filho, sem que lhe aparecesse o homem de Orléans
com a faca de açougueiro ou sem que lhe ecoassem na cabeça os gritos de
agonia da tia Bernadete Bouchardeau.
Sangue durante o dia, sangue pela noite adentro. Léa vivia no terror de
adormecer e na angústia de despertar.
Talvez ela suportasse sua tarefa se acaso não fosse objeto de inveja e de
zombaria por parte das novas colegas — com exceção de Jeanine Ivoy -- e
sobretudo da chefe do grupo.
Todos os trabalhos maçantes lhes eram destinados. Via-se obrigada a
limpar calçados, a lavar ambulâncias, a varrer gabinetes. Aceitara tudo aquilo,
de início, supondo que fizesse parte de suas funções. Mas logo compreendera
que não era bem assim.
Diante de suas objeções, deram-lhe, então, a perceber que passariam bem
sem os seus serviços. Assim, foi grande a sua surpresa ao ver-se incumbida de
uma missão que era tão importante como agradável.
— Vejo que ficou admirada — continuara sua interlocutora.
— Mas nós a escolhemos devido a seus conhecimentos de inglês. Fala bem
a língua, não é verdade? Está na sua ficha.
Léa confirmara, receando que a mandassem pronunciar algumas frases no
idioma de Churchill. Suas noções de inglês eram escolares e isso já fazia alguns
anos.
— Partirá amanhã, incorporada num comboio de viaturas que se deslocam
para a Bélgica. Em Bruxelas, entrará em contato com os organizadores da Cruz
Vermelha Belga. Dentro desta pasta estão todos os esclarecimentos necessários
assim como os documentos que a autorizam a circular pela Bélgica e pela
França. Tem carta branca até o momento da partida. Boa viagem.
— Obrigada, minha senhora. Até logo.
Léa aproveitou o meio dia de liberdade para lavar a cabeça no salão de
cabeleireiro instalado num barracão não muito distante do castelo. Quando

saiu, com os cabelos limpos e mais curtos, sentia-se outra mulher e se flagrou
encarando o futuro com uma leve esperança. Nessa noite não teve pesadelos.
No dia seguinte, despedia-se das colegas, abandonando sem saudade
aquela região do norte da França.

Capítulo 30

SEM AQUELES feridos transportados em pequenas viaturas, sem essa
confusão onde imperavam os uniformes aliados, Léa teria se sentido em férias.
De fato levava uma vida de ociosidade e de diversão há aproximadamente
um mês, em companhia do "seu" ferido.
Sir George McClintock, coronel de Exército de. Sua Graciosa Majestade
Britânica, era um irlandês original, grande fumante de grossos charutos, que
apreciava mais o bourbon que o chá, e as cartas de pôquer mais que as do
Estado-Maior. Dotado de um humor nunca desmentido, corajoso até a
insensatez, amante de saias como um tenente de Guarda — segundo
afirmavam os camaradas — e, além disso, muito rico.
Era este o indivíduo de quem Léa deveria supostamente cuidar.
McClintock fora ferido nas imediações de Dinan, durante a ofensiva de
Ardenner, e vira a morte perto demais para fazer economia do tempo que lhe
restava para viver.
Assim que pôde caminhar com a ajuda de muletas, a vida de Léa se
transformara num verdadeiro turbilhão coquetéis, gardenparties, piqueniques,
passeios no mar, excursões ao interior da região.
O convalescente exigia a presença constante de Léa a seu lado. Assim que
vira a jovem — afirmava McClintock — soubera que sua vida se modificaria
devido ao aparecimento daquela francesinha de cabelo sempre desalinhado, de
lábios trêmulos, de olhar altivo e inquieto e de corpo que se adivinhava cheio de
encantos sob o uniforme malfeito.
Ele exigia, mediante alguns punhados de libras, que ela tivesse um quarto
perto do seu no Hotel Majestic.
Cansado, McClintock dormira horas a fio nos primeiros dias. Na noite do
quinto dia, porém, ordenou que o transportassem para a sala de jantar do
hotel. Manifestou certo descontentamento quando viu Léa se sentar à sua
frente vestindo aquela farda impecável, o nó da gravata cuidadosamente feito e
os sapatos baixos bem engraxados.
— Não tem mais nada a vestir? — perguntou McClintock, com expressão
de contrariedade, naquele seu sotaque engraçado que, de início, deliciara a
jovem.
Léa corou, sentindo-se a mulher mais feia do mundo.
— Não, não tenho mais nada. Se o envergonho, posso comer no quarto.
— Não quis magoá-la, my dear. Desculpe-me. Está encantadora nesse
traje, mas... mas é um pouco monótono.

No dia seguinte, Léa via surgir no hotel os costureiros e os sapateiros da
Croisette. No início, recusou, mas acabou cedendo diante dos vestidos de noite.
Ficou com um em musselina preta e outro em tafetá verde e também um par de
magníficos sapatos italianos de couro autêntico — um luxo inaudito. E, como
as noites estivessem ainda um pouco frescas, o irlandês exigiu que Léa
escolhesse uma curta capa de raposa prateada.
Dois dias depois, o acompanhava à garden-party oferecido pelo Clube
Americano. O oficial sentiu-se orgulhoso de seu sucesso. Divertia-se ao ver qual
dos homens presentes lhe oferecia primeiro uma taça de champanhe, um copo
de suco de laranja ou de limonada, um prato de doces com frutas ou com
creme!
Léa ria, tendo recuperado seus trejeitos de menina mimada e sem
preocupações.
No início de março, depois da chegada do correio de Londres, George
McClintock anunciou a Léa que fora chamado para a Inglaterra. A jovem
suplicou-lhe que a levasse com ele; por nada no mundo desejava voltar a
Amiens.
— Você ainda precisa de mim — ela argumentava.
— A partir de agora, minha querida, precisarei sempre de você — garantiu
McClintock, com uma seriedade que não lhe era habitual.
— Está vendo... — disse Léa com simplicidade.
O irlandês sorriu, mencionando as dificuldades administrativas. De fato,
não foi fácil obter o consentimento da delegação de Cannes da Cruz Vermelha
Francesa e, depois, da sede em Paris.
A ordem de missão de Léa ostentava agora um impressionante número de
carimbos.
Apesar dos bombardeios e dos freqüentes alertas, do medo que as V1 e as
V2 inspiravam, a semana passada em Londres revelou- se tão cheia de loucura
como as de Cannes.
Parecia que toda a população jovem — moças e rapazes dos quais os mais
velhos ainda não tinham trinta anos — se dedicava à dança, ao namoro e à
bebida com uma bulimia frenética, para recuperar o tempo perdido e esquecer,
em meio ao álcool e ao fumo, o fato de que a guerra ainda não havia terminado.
Certa manhã, na bandeja do café da manhã, entre o bule do chá e o prato
de ovos com presunto defumado, Léa descobriu uma carta de Mathias. Fora
enviada de Paris por Laure, e chegara à França por estranhos caminhos que
passavam pela Suíça.
Não era possível decifrar as datas dos diversos carimbos impressos no
envelope. E Mathias se esquecera de datá-la.

"Minha bem-amada,
"A minha honra chama-se fidelidade". É esta a frase inscrita no arco de
entrada do campo de Wildflecken, onde vim me reunir aos Wafen SS franceses.
Ao pensar em você, faço minha esta divisa, que é igualmente o lema das Waffen
SS.
O campo situa-se numa montanha arborizada, no meio de um parque
imenso, muito bem cuidado. Pequenos edifícios dispersos entre a vegetação
ladeiam caminhos de aspecto impecável que conduzem à praça Adolf Hitler.
A disciplina é de ferro e os treinos, ferozes. No início muitos dos soldados
se sentiram mal durante os exercícios. Agora, porém, todos nós temos corpos
de atleta. Aliás, aqueles que não conseguem acompanhar este ritmo são
encaminhados para outras unidades. Tal disciplina é absolutamente necessária
para conter quatro ou cinco mil jovens ansiosos por lutar. Prefiro que seja
assim, pois a constante atividade me ajuda a não pensar demais em você.
No mês de novembro, vieram juntar-se a nós dois mil soldados. Tiveram de
prestar juramento a Hitler, mas alguns deles o fizeram de má vontade. A
cerimônia realizou-se no dia 12 de novembro, na presença de Darnand e de
Degrelle.
Estava um frio terrível. No meio de turbilhões de neve, os legionários da
L.V.F. desfilaram em perfeita ordem. O Brigadeführer Krukenberg e o
Oberführer Puaud passaram as tropas em revista.
Mas o que mais impressionou a guarda francesa foi o discurso de
monsenhor Mayol de Lupé, o nosso capelão, pronunciado do alto de sua
montaria, em uniforme de gala de oficial das Waffen SS, onde reluzia sua cruz
peitoral. Indiferente à neve que lhe fustigava o rosto, monsenhor Mayol de Lupé
referiu-se ao Führer como se falasse de Deus, e sua bênção se assemelhou à
saudação hitleriana.
Nesse cenário impressionante onde flutuavam a bandeira tricolor, a
bandeira de guerra do Reich e o estandarte negro das SS, os soldados, de
braços estendidos, repetiam as palavras proferidas por três de seus camaradas
que haviam avançado diante de um oficial com uma espada desembainhada:
"Juro obedecer fielmente a Adolf Hitler, chefe das Waffen SS, na luta contra o
bolchevismo, como um soldado leal". Notei que nem todos os braços se
ergueram.
Nunca mais esquecerei o dia do meu próprio juramento, cujo texto não foi
igual ao anterior. A cerimônia decorreu com grande sobriedade, entre dois
carvalhos, tal como o exige a tradição germânica. Os punhais onde se acha
inscrita a nossa divisa foram dispostos em cruz e, em nome de todos os
militares presentes, um oficial prestou juramento sobre as armas, em alemão.
Repetimos em francês: "Eu lhe juro, Adolf Hitler, Führer germânico e
reformador da Europa, ser fiel e corajoso. Juro obedecê-lo até a morte, ao
senhor e aos chefes que me designarem. Que Deus me ajude!".

Também não esquecerei nunca mais a primeira vez em que fiz a saudação
hitleriana, gritando: Heil, Hitler! Naquele dia, senti que rompia definitivamente
com o passado.
Aqui, não existem diferenças de tratamento entre oficiais e simples
soldados. Não há privilégios. Não há mesas separadas para soldados rasos,
oficiais subalternos e oficiais superiores; todos comem a mesma coisa. Se há
uma rodada de schnaps, uma forte bebida alcoólica. Servem primeiro os
soldados, e o resto é distribuído entre os oficiais. Quanto mais graduado é um
militar maior a soma de seus deveres.
Durante os jantares semanais que chamamos de Kamaradschat, o soldado
mais simples tem o direito de troçar de seus superiores, e as represálias são
proibidas sob pena de graves sanções.
Isto é o que mais nos surpreende, a nós, franceses, habituados a escutar
nossos chefes em posição de sentido e a viver em barracas, enquanto nossos
superiores circulam pelos salões dourados.
Aqui, fazem de nós homens novos. A vida em Wildfleken é muito dura:
despertar às seis horas e final das atividades às vinte. Submetemo-nos a
treinamento infernal: ducha gelada ao amanhecer, concentração geral,
saudação hitleriana, café e, em seguida, uma impiedosa sucessão de exercícios,
de marchas, de manobras.
As únicas horas de repouso de que dispomos são aquelas em que nos
ministram cursos teóricos sobre armamento e estratégia. À noite eu desabo na
cama e, invariavelmente, me arrancam dela com apitos, para os exercícios
noturnos. Então, nos equipamos às cegas, no escuro, e somos obrigados a sair
para a noite gelada que nos trespassa o corpo. Nestas duas últimas semanas
não consegui dormir mais do que quatro horas seguidas.
Também tenho a impressão de não comer nada. Ah, que saudade dos
lanches fartos de Montillac! As nossas refeições constam de sopa de couve e
batata ao meio-dia, salsichas às cinco horas e um pouco de margarina num
pão escuro e pegajoso. Estou espantado que isso seja suficiente para nos
alimentar e nos deixar lúcidos.
Até mesmo os mais franceses parecem se acomodar a esse regime.
No entanto, nem tudo são flores e já há algum tempo que este ambiente
está se degradando, sobretudo por causa dos soldados que não conseguem se
adaptar. Desde a constituição da Brigada Carlos Magno, quase todos os dias há
SS franceses que desertam para se juntarem a unidades em véspera de partida
para o front. Por isso, alguns deles estão na Divisão Wiking ou na Divisão
Totenkopf.
Nosso comandante é o Oberfiihrer Edgar Puaud, que chefiou a L.V.F. na
Rússia.

Já faz alguns dias que me transformei num verdadeiro SS — e tenho
tatuada, na axila do braço esquerdo, a letra correspondente ao meu tipo
sangüíneo. Com isso, temos maiores chances de nos salvarmos se formos
feridos, ou mortos se formos presos. Todos estamos impacientes por partir para
a frente de combate. Pensamos que isso seja questão de alguns dias.
Ontem, alguns camaradas conseguiram descobrir garrafas de vinho
alemão e trazê-la para o campo, o que é expressamente proibido. Quando as
abríamos, quase fomos apanhados pelo Brigadeführer Krukenberg. Penso, no
entanto, que ele não se deixou enganar, pois, ao sair, eu o ouvi dizer: Ah, estes
franceses! Depois da partida de Krukenberg, bebemos à sua saúde.
Não era mau o vinho, um branco seco, mas muito perfumado. E, claro,
não se comparava com o de Montillac. Eu me pergunto como terá sido a
colheita e se ela foi feita em melhores condições.
Onde você está? Não consigo imaginá-la em nenhum outro lugar que não
seja Montillac. Essa terra combina com você.
Se receber esta carta longa e tiver paciência de ler até o fim, será como se
tivéssemos conversado.
Não se esqueça de mim e saiba que pensarei em você até o meu último
momento.
Mathias.

O chá estava frio e a compota de laranja tinha um gosto esquisito.
Léa tentou imaginar Mathias em uniforme das SS, mas não foi capaz.
Tinha a sensação de que, na origem de tudo aquilo, houvera uma espécie de
incrível mal-entendido que transformara um rapaz delicado e alegre num bruto
disposto a tudo. No entanto seria isso mais absurdo que a sua presença em
Londres, naquele hotel antigo e esmerado, de vidraças substituídas por papel
oleado?
Bateram na porta.
— Então... recebeu notícias da terra? — perguntou George McClintock,
entrando no quarto.
O rosto simpático do irlandês provocou em Léa um sorriso triste.
— Que é que tem? Alguma coisa vai mal?
— Não, não. Não é nada.
— Nesse caso, de pé! Estamos de partida.
— De partida? Para onde?
— Para a Alemanha.
— Para a Alemanha?!

— Yes. Vou me reunir ao 2º Exército.
— Mas acaba de restabelecer!
— Um de meus amigos médicos declarou-me apto para todo o serviço. Não
concebo a idéia de ficar aqui enquanto os meus camaradas estão sendo mortos.
— E eu? O que vou fazer durante esse tempo? Espero tranqüilamente aqui
pelo fim da guerra, volto para Amiens ou para a sede de Paris?
— Nada disso. Você me acompanha.
— Acompa...
— Sim, me acompanha. Tenho um amigo que é... como é que vocês
dizem?... presidente da Cruz Vermelha Britânica.
— Pelo jeito, os seus amigos nunca acabam.
— Yes, o que é muito útil às vezes. Eu lhe falei sobre seus conhecimentos
de material rolante e sobre sua notável competência para cuidar de feridos.
— É o senhor que está dizendo. Será melhor que ele não me ponha à
prova.
— A pessoa que se ocupa aqui das condutoras de ambulâncias é uma
amiga da sra. De Peyerimhoff. Dentro de alguns dias, irá receber a sua
vinculação temporária aos serviços da nossa Cruz Vermelha — informou
McClintock.
Léa livrou-se dos cobertores e correu para beijar o oficial nas duas faces.
— Você é maravilhoso, George! Como adivinhou que eu gostaria de ir à
Alemanha?
— Ora, você não tem falado em outra coisa desde que chegamos aqui!
Uma semana depois, Léa recebia as suas ordens de serviço e era colocada
à disposição do médico militar, o general Gughes Glyn Hughes, chefe dos
serviços médicos do 2º Exército Britânico.
Na noite de 5 de abril, ela aterrissou perto de Duisburgo, a cinqüenta
quilômetros do Lront.
Então, começou para ela a descida ao inferno.

Capítulo 31

A CENTENAS DE quilômetros de Duisburgo, Mathias também vivia no
inferno.
No dia 12 de janeiro de 1945, três milhões de soldados russos, muito bem
armados, apoiados por carros de assalto e pela aviação, puseram-se em marcha
do Báltico à Tchecoslováquia, para esmagar definitivamente o que restava do
glorioso exército do Reich.
No dia 17 de fevereiro, partiam para o front as Waffen SS da Brigada
Carlos Magno, transformada em divisão.
No dia 22, chegavam a Hammerstein, importante povoado da Pomerânia.
Fazia muito frio e o vento gelado varria essa paisagem de lagos e de
bosques. As tropas instalaram-se no antigo campo da Wehrmacht, então
transformado em campo de concentração, enquanto aguardavam a chegada do
armamento pesado. Ouvia-se ao longe o estrondo dos canhões.
O regimento de Mathias, o 57, instalou-se a sudeste da cidade. Desde sua
chegada, o Obersturmführer Feunay partiu para inspecionar as posições
acompanhado pelo Oberjunker Labourdette e por Mathias.
Depois do frio, houve um súbito degelo, transformando num lamaçal os
caminhos de terra batida, onde os cavalos e as carroças cheias de material
pesado e de caixotes de munições escorregavam. Os homens, às dezenas, viam-
se obrigados a erguer os veículos com as mãos para os arrancarem do solo de
argila. À noite, que descia rapidamente, a geada recomeçava a cair.
Ao longo de todo o percurso, deparavam com intermináveis comboios de
refugiados que fugiam do avanço russo. Velhos, mulheres e crianças patinavam
na lama, desvairados, no meio de impressionante silêncio. Entre eles, viam-se,
por vezes, alguns SS detões sujos, de farda desabotoada, as mãos nos bolsos e
o olhar perdido.
O primeiro embate aconteceu próximo a Heinrichswalde. O massacre foi
rápido: cada soldado tinha de lutar contra dez inimigos apoiados por tanques
soviéticos. Obuses e morteiros esmagavam as posições das SS francesas. Perto
de Mathias um de seus camaradas se esvaía em sangue com uma perna
desfeita. Feunay deu ordem para resistirem.
Novos comboios chegaram durante toda a noite e foram diretamente para o
front. Logo as companhias do regimento 58 viram-se sob um dilúvio de fogo. À
alvorada, milhares de russos ululantes abateram-se sobre elas. Por duas vezes,
conseguiram repeli-los, mas logo foram devastadas pelo número elevado dos
adversários.

Foi dada a ordem de retirada. Os sobreviventes reagruparam-se e ficaram
à espera. Durante os combates, as comunicações eram precárias. A Divisão
Carlos Magno estava disposta em linha, sem nenhum rádio. Os estafetas iam e
vinham de uma companhia a outra, transmitindo as ordens do Estado-Maior.
À meia-noite, o ruído de tanques foi ensurdecedor. Os franceses
enterravam-se em buracos camuflados na orla das matas.
Através dos bosques, os homens de Feunay procuraram reunir-se ao
regimento 58, do qual encontraram apenas alguns grupos errando por entre o
arvoredo, arrastando atrás de si os feridos.
À noite, Mathias e os companheiros chegaram ao acampamento próximo
de Hammerstein, de onde haviam saído pela manhã. Esgotados, dormiram
sobre os catres cheios de parasitas nas barracas, depois de terem engolido um
creme de ervilhas.
Dos quatro mil e quinhentos homens que deixaram Wildfleken, mil e
quinhentos tinham morrido ou desaparecido. Era um balanço muito trágico
para uma luta que só havia durado dois dias. Os sobreviventes da Divisão
Carlos Magno conseguiram reagrupar-se em Neustettin, cidadezinha de
dezesseis mil habitantes, apinhada de refugiados e de soldados.
A notícia da morte de Jacques Doriot contribuiu para desmoralizar os seus
seguidores. No dia 3 de março, em Kirlin, lutaram com a fúria do desespero ao
lado de uma companhia de Wehrmacht. Um carro alemão explodiu não muito
longe de Mathias. Um soldado, com o uniforme em chamas, saiu correndo em
sua direção. O tenente médico da Divisão lançou-se sobre ele, tentando apagar
o fogo. Mathias correu também e ajudou o médico a arrastar para um abrigo o
homem que gemia baixinho. Perdera o capacete e tinha o dorso completamente
carbonizado.
Pobre sujeito!, pensou Mathias, afastando-se para voltar à luta. De
repente, porém, ele parou e retrocedeu. Inclinando-se sobre o moribundo,
limpou seu rosto com um punhado de neve e depois o enxugou com um trapo
engordurado. Não tinha dúvida.
— Capitão Kramer... está me ouvindo?
O rosto do ferido estremeceu ao escutar aquelas palavras ditas em francês.
Abriu os olhos a custo e fitou esse soldado alemão irreconhecível sob a camada
de sujeira e de barro.
— Sou Mathias, capitão Kramer... o Mathias de Montillac.
— Montillac.
— Sim, Montillac. Não se lembra? Léa.
— Françoise.
— Sim.
— Françoise... meu filho...

Otto tentou soerguer-se. Depois renunciou a tal propósito e disse em voz
cada vez mais fraca — Do meu bolso... tire... documentos... e uma carta para...
para Françoise. Se... se você sobreviver... entregue-lhe... assim como os
documentos... Jure.
— Sim, juro.
Mathias revistou a jaqueta. Retirou do bolso uma carteira cuidadosamente
protegida por um pedaço de oleado que lhe trouxe à memória aquele que
revestia a mesa da cozinha de Montillac. Depois colocou-a dentro da própria
camisa, em contato com sua pele.
O moribundo não deixava de olhar para ele. Com um gesto de cabeça,
aprovou o que Mathias fazia.
Os russos aproximavam-se; Mathias tinha que sair dali. Otto procurou
falar de novo e o rapaz adivinhou-lhe mais as palavras do que as ouviu:
— Por que... um francês... está aqui?
Mathias encolheu os ombros. O que poderia lhe responder?
Na noite gelada e calma, sob o clarão dos incêndios que iluminavam toda
Kiirlin, os homens do regimento 57 avançavam, escondendo-se de dia e
caminhando durante a noite, passando apenas a alguns passos dos Popofs,
como eles chamavam os russos.
Os encontros eram breves, mas violentos. Havia pouca munição e os
cavalos morriam ou fugiam. Há muito tempo que comiam apenas o que podiam
roubar nos lares dos civis alemães, onde choravam as mulheres e as moças
violadas. Quando já nada restava para roubar nas casas, alimentavam-se de
beterrabas cruas, que lhes provocavam disenterias.
Dormiam enroscados e apertados uns contra os outros para se protegerem
do frio. Acordavam afligidos pelos piolhos. A sujeira se acumulava nas dobras
do corpo. Alguns engraçadinhos diziam que a sujeira os ajudava a se manterem
quentes e a escaparem às investidas dos parasitas. Caminhavam como
autômatos, os rostos transformados em máscaras de cansaço, onde cintilavam
os olhos raiados de sangue, envoltos em círculos escuros. O inimigo estava em
toda a parte, perseguindo-os sem tréguas.
O frio cessou de repente e os campos logo se revestiram com um manto
verde delicado. No bosque onde pararam, extenuados, caminhava-se sobre um
tapete de violetas.
Mathias deitou-se sobre elas, aspirando-lhes o perfume. Pensou em Léa —
sempre fora para ela um grande momento do ciclo da vida, esse das primeiras
violetas que cresciam na parte abrigada do Calvário. Quando criança, ele
costumava preparar ramalhetes que iam depois perfumar o quarto da amiga.
Com as mãos calosas, Mathias colheu algumas flores sob os olhares
zombeteiros dos camaradas. Depois, movidos por um impulso instintivo, os
outros também começaram a colher violetas, guardando-as com cuidado nos

estojos de seus documentos. A colheita elevou o moral, dando-lhes esperança
de que a primavera voltasse a florir para eles também.
— Estamos nojentos — disse um deles.
Olharam uns para os outros. Estavam nojentos mesmo. Na borda do
bosque corria um riacho. Tiraram seus uniformes sujos e sacudiram as roupas
de onde caíam piolhos enormes.
Depois, atiraram-se à água.
Como estava fria! Não tendo sabão, esfregaram-se vigorosamente com
punhados de terra. Lutavam uns com os outros, rindo como crianças. Em
seguida, enxugaram o corpo correndo, nus, pelo meio das árvores. Pensativo,
Feunay os observava.
Há muito tempo que não usavam meias. Todos eles haviam adotado a
moda da meia russa: pegava-se um tecido quadrado sobre o qual se colocava o
pé. Em primeiro lugar cobriam-se os dedos. Dobrava-se a parte esquerda,
depois a direita e puxava-se com força a que ficava por detrás. Com as abas do
tecido bem cruzadas, colocavam as botas sem dificuldade.
Isso protegia e amparava os pés de modo admirável.
Às duas da madrugada, chegaram nas imediações de Belgard e passaram
pelo cemitério, para logo voltarem a desaparecer na noite. Por volta das quatro
horas, o Oberführer Puaud chegou também a Belgard com o grosso da Divisão
— cerca de três mil homens. Os postos russos disseminados pela área os
receberam com tiros de metralhadoras e morteiros. As Waffen SS infiltraram-se
na cidade, respondendo. Os que atravessaram a praça central de Belgard, à
claridade dos incêndios, tiveram de saltar sobre centenas de cadáveres de
velhos, de mulheres e de crianças.
Puaud, ferido na barriga da perna, caminhava como um sonâmbulo, o
rosto ainda mais vermelho do que de hábito. Pelos campos, o tiroteio havia
cessado, substituído pelo ronronar dos motores e pelo rangido das lagartas dos
tanques, que ressoavam lugubremente na planície.
O inimigo estava em toda a parte. A Divisão de Carlos Magno movia-se
dentro do nevoeiro. Pela manhã, quando a bruma se dissipou, constataram,
perplexos, que se encontravam bem no centro dos tanques do Exército
soviético, no meio de uma vasta área sem vegetação.
De uma e de outra parte, houve então uma espécie de estupor, o tempo
parou e tudo ficou em silêncio. Depois, de repente, começou a carnificina.
Em menos de duas horas, os russos aniquilaram o grosso da Divisão
Carlos Magno. Depois de matarem os feridos, os vencedores reuniram os
sobreviventes, que foram encaminhados para campos de concentração. Alguns
prisioneiros conseguiram escapar, fugindo através das matas.

Os quinhentos homens do batalhão de Mathias chegaram ao castelo de
Meseritz em estado lastimável, feridos e com diarréias. Mas sentiam-se felizes e
orgulhosos dos chefes que os haviam livrado temporariamente do "caldeirão".
Voltaram a partir dois dias depois, agora com sol, sem piolhos, barbeados,
com armas a tiracolo, sob o comando de Krukenberg, rumo à foz do Oder, junto
com duzentos e cinqüenta sobreviventes do regimento 38 da SS Hoistein, do 1º
Regimento Húngaro e da Divisão SS Nordland.
Transpuseram o Rega ao sul de Treptow. Depois, no final da tarde,
atingiram Horst, no litoral. Por toda a parte, misturados aos soldados exaustos,
viam-se refugiados aguardando embarcações para os conduzirem à Suécia.
À noite, Mathias e alguns companheiros chegaram à pequena estância
balneária de Rewahl. Tal como Horst, também a cidadezinha transbordava de
refugiados e de militares em fuga.
A multidão entregava-se a um desregramento frenético: lado a lado com
criaturas apáticas e embrutecidas, as moças faziam amor com o primeiro que
aparecia, deixando-se acariciar por homens sujos, cobertos de piolhos, bebendo
grandes goles de schnaps. As crianças olhavam tais cenas com indiferença,
enquanto os pais prosseguiam sua viagem desesperada sem mesmo as
notarem.
A atmosfera iodada do Báltico misturava-se agora ao cheiro dos motores,
do pus e do sangue dos feridos, ao odor adocicado do esperma, ao fedor de
merda, ao de milhares de corpos imundos e, dominando toda aquela massa
humana apavorada, o aroma persistente da sopa de couve que lhes era
distribuída.
— Os russos estão chegando! Apressem-se!
Então, homens e mulheres, caminhões, cavalos e carroças, todos se
atiraram uns contra os outros, lutando, empurrando, derrubando, esmagando
e destruindo qualquer obstáculo à sua fuga.
À beira-mar estendia-se uma longa procissão de condenados que
procuravam fugir das chamas do inferno — mães enlouquecidas apertando ao
peito magro os filhos mortos, moças lançando-se do alto da falésia para
escaparem da violação, homens atirando suas esposas sob as lagartas dos
tanques, soldados descarregando as armas sobre condutores de caminhões
para ocuparem seu lugar, gritos de crianças, relinchos de cavalos, uivos
lamentosos de cães, barulho de ondas, ribombo de canhões, assobio de obuses,
explosão de minas, morte... morte... morte.
Os soldados da Divisão Carlos Magno, em sua caminhada, combatiam e se
embebedavam se conseguiam encontrar vinho.
Seguindo as hordas de refugiados, avançavam ao longo do litoral em
direção oeste. De vez em quando, eram atingidos por disparos de obus, que
projetavam para o espaço atormentado os corpos desconjuntados de homens

misturados com a areia da praia. A multidão passava, indiferente aos gritos dos
feridos e aos gemidos dos moribundos.
Muito tarde da noite de 9 de março, alcançaram as linhas alemãs em
Dievenow. No dia seguinte, ao amanhecer, os russos os metralharam e
borbardearam, mas foram repelidos.
À tarde, foram abertos os depósitos da intendência alemã. Os homens
ficaram maravilhados ao tocarem nas espingardas automáticas de trinta e dois
tiros e nos uniformes novos, divertindo-se em experimentá-los, enquanto
fumavam como chaminés os cigarros que não queriam deixar ao inimigo.
Enfim, sob suas botas, ressoaram as pranchas de madeira e o ferro da
ponte de barcas sobre o Oder. Em boa ordem, com o Obersturmführer Feunay e
o Brigadeführer Krukenberg à frente, com luvas novas, deixaram o "caldeirão"
onde tinham ficado noventa por cento dos companheiros.
No dia seguinte, o grande quartel-general do Führer assinalava num
comunicado o papel dos sobreviventes da Divisão Carlos Magno na libertação
dos refugiados da Pomerânia. Esse fato lhes galvanizou o orgulho. Deixaram
Swinemünde cantando:
Por onde passamos, tudo treme E o diabo ri conosco Ha, ha, ha, ha, ha,
ha, ha!
A chama continua pura A Fidelidade é o nosso lema.
Reagruparam-se, enfim, a trezentos e cinqüenta quilômetros de Berlim, na
pequena cidade de Neustrelitz e nas aldeias vizinhas de Zinow, Karpin,
Goldenbaum e Ridlin; eram cerca de oitocentos voluntários, dos sete mil que
partiram de Wildfleken.
No dia 27 de março, Krukenberg mandou afixar a seguinte ordem do dia:

Camaradas de armas, Acabamos de viver dias de combates entremeados
com penosas caminhadas. Não lutamos como unidade fundida no Exército
alemão, mas sim como divisão francesa autônoma. A fama da bravura e da
resistência francesa renovou-se agora sob o nome de Carlos Magno. Por
diversas vezes a dureza dos combates nos unificou.
É com orgulho que nos lembramos que, ao sul de Bürenwald, detivemos o
inimigo que rompera as linhas da Wehrmacht, destruímos, em menos de uma
hora, nos arredores da cidade, perto de Elsenau e de Bdrenhutte, quarenta
carros T34 e J.S. Em Neustettin, a Flak-Batterie fez em pedaços os grandes
contingentes inimigos.
Nós, os SS, temos sempre dado provas de grande coragem, mas foi em
Kiirlin, sobretudo, que demonstramos que sabíamos combater até o fim,
quando o interesse do Exército alemão assim o exigia. O fato de havermos
largado e retomado por três vezes a aldeia, e de termos mantido a posição até

as primeiras horas da manhã do dia 5 de março, nos permitiu e a uma parte
dos exércitos alemães nos libertarmos do cerco russo.
Este êxito se deveu não apenas ao nosso espírito combativo, mas também
à nossa grande disciplina.
Não devemos esquecer os nossos camaradas SS e L.V.F. que, em Killberg,
foram várias vezes citados por ordem do Führer pelo general-comandante da
fortaleza da cidade, devido à bravura particularmente notável dos franceses.
Neste exato momento, elementos da nossa Divisão defendem a cidade de
Dantzig, ao lado dos seus irmãos de armas alemães. Nós, os SS, nós, L.V.F.,
contribuímos para deter ou para retardar por toda a parte a onda avassaladora
do bolchevismo. Esta luta difícil não se travou sem sérias e inúmeras perdas,
entre elas as dos nossos camaradas que caíram prisioneiros nas mãos do
inimigo e que ainda não conseguiram alcançar as nossas linhas. Esperamos
que o Oberführer Puaud esteja entre eles e que, ao lado de outros combatentes
heróicos, retome o seu lugar entre nós.
A luta nos unificou. A nossa Divisão, reduzida por gloriosos combatentes,
deverá nos incitar ainda mais a constituirmos um único bloco, um só conjunto.
Assim esmagaremos tudo o que se opuser a Adolf Hitler. A nossa bandeira
tremula sobre mais uma glória; nós sabemos que os franceses que lutam ao
nosso lado pela liberdade da pátria adotiva desejam uma nova ordem européia
e nos olham com orgulho.
Sempre afirmamos que somente poderiam colaborar no ressurgimento da
França aqueles que foram postos a prova como alemães nas situações mais
difíceis. Os nossos próprios inimigos reconheceram o valor dos soldados SS.
Franceses, após longos meses de instrução, pudemos demonstrar o
espírito que nos anima, espírito que, nos dias futuros, nos conduzirá a novos
sucessos até o instante tão ansiosamente esperado de intervirmos na libertação
do nosso país. Não teremos piedade para com os traidores. A história nos
ensina que não devemos sentir cansaço após a batalha, mas reunir todas as
nossas energias para novos combates.
O momento que vivemos é decisivo; animados por novo ardor, vamos
assegurar nossa vingança pelos camaradas desaparecidos das fileiras.
A glória de que L.V.F. se cobriu a leste, os sucessos da Sturmbrigade
Frankreich nos Cárpatos, os combates travados pela polícia em outros locais
cimentam o bloco amassado com o sangue francês vestido em prol do Nacional-
Socialismo, e ele dará origem a uma tradição digna dos ideais revolucionários
por que lutamos.
Nossa fé na vitória é inabalável, mesmo que tenhamos de lutar ferozmente
na sombra e sabotar, ao lado dos nossos irmãos de armas alemães, todos os
empreendimentos dos inimigos.
Seguiremos o Führer, decididos a vencer ou a morrer.

Heil, Hitler!
As SS marcham em país inimigo
Entoando o cântico do diabo
Na margem do Volga
Uma sentinela trauteia a meia voz:
Assobiamos por montes e vales
E tanto nos faz que o mundo
Nos louve ou nos maldiga
A seu bel-prazer.
Onde quer que estejamos, será sempre uma vanguarda
E é aí que o diabo continua a rir
Ha, ha, ha, ha, ha!
Lutamos pela liberdade
Lutamos por Hitler
E os vermelhos nunca terão sossego.

Krukenberg convocou os oficiais pedindo-lhes que ficassem apenas com
voluntários para futuros combates.
Os outros formariam um batalhão de trabalhadores que deixaria Karpin
imediatamente. Partiram então trezentos homens, acompanhados por um só
oficial.
Os que optaram por ficar assinaram uma fórmula de compromisso onde
juraram ao Führer fidelidade absoluta até a morte.
A Divisão Carlos Magno não escapava ao tédio e ao mau humor que
assaltam as tropas à espera de entrar em combate. Aqueles homens que
haviam se mostrado tão solidários durante as provações por que acabavam de
passar, que tinham sido corajosos até a temeridade diante do inimigo, agora
criavam conflitos sob o menor pretexto.
O maior motivo de discórdia era agora a alimentação: duzentos gramas de
pão, vinte gramas de margarina, uma sopa tão condimentada quanto doce
demais, um ersatz de café e dois cigarros por dia.
A rígida disciplina militar germânica não bastava para conter os franceses
quando gracejavam a respeito das armas secretas dos alemães pra salvar a
Alemanha. Já ninguém acreditava na vitória do Reich.
O moral da Divisão caiu até o nível mais baixo quando, em meados de
abril, quatro voluntários foram fuzilados por roubo no depósito de víveres. Os

soldados morreram sem soltar um grito, depois de receberem a absolvição do
padre da L.V.F., que substituÍa monsenhor Mayol de Lupé, retirado para um
mosteiro alemão.
No dia 20 de abril, em homenagem ao aniversário de Hitler, os militares
tiveram direito a biscoitos, a uma coisa esquisita designada pelo nome de
chocolate e a três cigarros. Festejaram os cinqüenta e seis anos do Führer
cantando e bebendo vinho, que Krukenberg conseguira obter da intendência.
Projetaram um filme de Zarh Leander, cuja voz rouca os virava do avesso.
Depois, viram um documentário de atualidades.
O apresentador alemão comentava imagens onde se via a multidão
correndo em todos os sentidos pelo pátio de Notre-Dame, tentando escapar aos
atiradores emboscados nos telhados, durante a entrada de De Gaulle em Paris.
Atribuía o tiroteio aos comunistas.
Os SS franceses deixaram a sessão de cinema ainda mais convencidos de
que eram o último reduto contra a invasão bolchevista. Alguns deles viam-se
mesmo acolhidos como heróis pelos compatriotas, e desfilando pelos Campos
Elíseos, aclamados por quem os considerava os defensores do Ocidente.
Os mais lúcidos, porém, não tinham ilusões — de uma maneira ou de
outra estaria à sua espera o pelotão de execução ou, na melhor das hipóteses,
muitos anos de encarceramento.
Na noite de 23 para 24 de abril, foi dada ordem ao Brigadeführer
Krukenberg para seguir para Berlim com os SS franceses da Divisão Carlos
Magno.
Os oficiais dirigiram-se aos acampamentos e mandaram alinhar os
soldados, ordenando:
— Voluntários para Berlim, um passo à frente!
Todos os homens avançaram.
Pela manhã, distribuiu-se o armamento: granadas, Sturmgewehr e
Panzerfaust. Os militares carregavam muito peso: cartucheiras cruzadas sobre
o peito, granadas de pinha penduradas nos botões e granadas de cabo seguras
no cinturão. Nunca estiveram tão bem munidos. Os quatrocentos voluntários
embarcaram nos oito caminhões cedidos pela Lutfwaffe, felizes com a idéia de
defenderem o Führer.
Os berlinenses que fugiam da capital olhavam atônitos para esse grupo de
rapazes que ali entrava cantando.

Capítulo 32

EM SEGUIDA AO pacto franco-soviético, o governo russo concordou com a
presença, no momento da entrada das tropas soviéticas na Alemanha, de um
certo número de observadores encarregados de verificar o material conquistado
aos arsenais franceses, para que fosse inventariado. De uma ou de outra parte,
fingia-se levar a sério tais missões.
François Tavernier, já conhecido pelos serviços de informação russos, foi
um dos oficiais escolhidos pelo governo francês. Antes da sua partida de Paris,
o professor Joliot-Curie lhe definiu exatamente o objetivo de sua missão: era
uma coisa mais séria do que simplesmente correr atrás de material enferrujado.
Até 15 de março, na Rússia, o comandante Tavernier disputou muitas
partidas de xadrez, enriqueceu o seu vocabulário russo com expressões
obscenas e embebedou-se de vodca com tamanha aplicação, que isso lhe valeu
a estima de Gheorghi Malenkov, chefe do Departamento Especial, incumbido de
recuperar na Alemanha os equipamentos industriais e científicos,
particularmente as armas secretas.
As semanas passadas por François Tavernier em Moscou, percorrendo os
Estados-Maiores dos diferentes exércitos soviéticos, quase lhe esgotaram a
paciência.
Nomeado pelo Estado-Maior do 1º Exército da Bielo-Rússia, deslocara-se
para o front nos últimos dias de março e, desde então, consumia-se de tédio,
tendo por único divertimento as partidas de xadrez e as conversas com o
general Vassillev, que conhecera em Argel, onde fora adido militar.
Soou, enfim, a hora da grande ofensiva sobre Berlim.
Às quatro da manhã de 15 de abril, sob as ordens de Jukov, três foguetes
de sinal vermelhos iluminaram as margens do Oder durante um tempo que
pareceu a todos muito longo, tingindo o céu e a terra com sua luz púrpura. De
repente, acenderam-se alguns projetores potentes assim como os faróis dos
tanques e dos caminhões, enquanto os feixes luminosos dos projetores
antiaéreos varriam as linhas inimigas. Reinava grande silêncio diante de toda
essa luz que prenunciava o fim do mundo.
Em seguida, riscaram o espaço três novos foguetes sinalizantes, agora
verdes, e a terra começou a tremer. Vinte mil canhões ventavam fogo. Um vento
quente varreu tudo à frente, inflamando as florestas, as aldeias, as colunas de
refugiados. Nesse pesadelo terrificante, o chiado agudo das katiucbkas cortava
o ar.
O primeiro Front da Bielo-Rússia, comandado por Jakov, o 2º Front da
Bielo-Rússia, chefiado por Rokossovski e o 1º Front da Ucrânia, dirigido por

Koniev, passaram ao ataque. Um milhão e seiscentos mil homens, na sua
maioria desejosos de vingar um pai, um irmão, um amigo tombado sob os
golpes dos nazis, avançavam através das planícies.
As cidades alemãs esvaziaram-se de seus habitantes, que deixavam
apenas cinzas atrás de si. Tavernier compreendia o ódio que animava os
combatentes russos de Stalingrado, de Smolensk, de Leningrado e de Moscou
que haviam atravessado toda a Rússia para chegar ao Oder. O tributo que
pagaram à guerra era um dos mais pesados da Europa. Para se vingarem do
que suas mães, suas mulheres e as filhas tinham sofrido, instituiu-se em todo
o Exército russo a lei do Talião e a vingança foi completa.
O oficial francês sentia amizade por aqueles soldados rudes e corajosos,
que lutavam com total desprezo pelo perigo e dividiam com os prisioneiros as
rações magras. Os russos, por sua vez, olhavam curiosos o homem que lhes
falava em sua língua, que bebia como uma esponja e que, embora sem
combater, sempre estava onde a luta era mais intensa. Isso lhe valeu uma coxa
trespassada por uma bala.
— Fique tranqüilo — aconselhou o general Vassillev quando foi visitar
François Tavernier na enfermaria de campanha, onde acabavam de cuidar de
seu ferimento.
— Gostaria de vê-lo em meu lugar — resmungou Tavernier.
— Não só não consigo encontrar nenhum material que nos pertença, como
também o senhor me deixa de lado. Eu me pergunto o que estou fazendo aqui
se não tenho o direito de combater a seu lado.
— São ordens, sabe disso muito bem — respondeu o general.
— Todos os oficiais aliados em missão de observação junto de nossas
forças estão na mesma situação que você.
Tavernier deu-lhe as costas, aborrecido. Morrer por morrer, antes de
armas na mão. Aquele trabalho de funcionário burocrático não fora feito para
ele.

Capítulo 33

SE LÉA TIVESSE tido dúvidas quanto à necessidade de esmagar a
Alemanha nazista, as cenas que viu naquele 15 de abril de 1945 confirmariam
seu ódio e seu desgosto.
George McClintock tentara em vão opor-se a que a jovem acompanhasse o
grupo de médicos e de enfermeiros do dr. Hughes, chefe dos serviços médicos
do 2 Exército Britânico, ao campo de concentração de Bergen-Belsen, que
acabava de ser libertado. O irlandês se rendeu diante de seu argumento:
— O pessoal não é suficiente. Tenho de ir também.
Prados e pinhais estendiam-se a perder de vista, O caminho subia em
direção ao campanário pontiagudo que dominava o casario da aldeia de Bergen.
As casas eram rodeadas por maciços de flores. Sem os tanques, os caminhões e
os soldados estacionados ao longo da estrada, parecia que a guerra se
desenrolava bem longe dali.
De repente, depois de uma curva do caminho, numa planície nua, surgiu a
visão de um universo de pesadelo, com as barreiras de arame farpado, torres de
vigia e filas de barracões esverdeados.
Criaturas esqueléticas, vestidas com sacos listrados, erravam sobre a areia
cinzenta. Alguns dos fantasmas aproximaram-se da cerca para vir ao encontro
dos recém-chegados. Estendiam-lhes os braços descarnados e procuravam
sorrir, enquanto as lágrimas lhes deslizavam pelos rostos desfeitos. Mas os
sorrisos eram de tal forma horríveis que amedrontavam os soldados. Ficaram
imóveis por instantes, como se temessem o que iriam descobrir.
O dr. Hughes mandou distribuir café quente. Depois entraram no campo.
Presos ao arame farpado viam-se cadáveres seminus. Pelo chão, mais
cadáveres de homens, de mulheres e de crianças, despidos ou cobertos de
farrapos, mísera escória da humanidade.
Lentamente, os ingleses penetravam num mundo além da imaginação,
povoado de criaturas que recuavam erguendo um braço diante do rosto, ou que
se adiantavam, eretas, transportando com dificuldade o peso do próprio corpo e
emitindo um som leve, semelhante ao roçar de milhares de patas de insetos.
Léa caminhava muito ereta, sem conseguir despregar os olhos dos rostos
de cores insólitas — bistre, verde, cinzento, ou violeta.
A multidão de mortos-vivos abria alas diante deles. Entraram por um
caminho de ronda, à esquerda, depois à direita. Esmagador e sombrio, todo o
horror do campo de concentração se revelava a eles.

Entre os barracões, a certa distância da cerca de arame farpado, alguns
seres sem idade definida estavam agachados. Outros, deitados no chão, não se
mexiam mais.
O dr. Hughes entrou num dos barracões, fazendo sinal aos companheiros
para que ficassem na porta. Quando saiu, um bom tempo depois, suas feições
pareciam uma máscara, seus olhos rolavam nas órbitas, enlouquecidos, e suas
mãos tremiam.
— Façam com que saiam dali — balbuciou McClintock impediu que Léa
entrasse.
— Vá buscar a ambulância. E diga aos outros que venham também e
tragam o caminhão dos cobertores.
Quando Léa voltou, dezenas de mulheres estavam estendidas no chão. De
todos aqueles corpos exalava um cheiro pestilento. Tiraram seus andrajos
infectos e enrolaram em cobertores as pobres carcaças cobertas de chagas e de
imundície.
Passou-se o dia transportando as infelizes, lavando-as e alimentando-as.
Quase todas sofriam de disenteria. Como não tinham forças para se erguer,
chafurdavam nos próprios excrementos. Uma centena delas morreu em pouco
tempo.
Durante toda a noite, médicos, enfermeiras e soldados ajudaram a retirar
as prisioneiras das suas cloacas. Sob a luz dos projetores, OS quarenta e cinco
barracões pareciam o cenário de um filme de terror: esqueletos oscilantes e
dementes, dançando em volta dos faróis, desarticulados, babando, deixando
atrás de si rastros escuros, rostos que eram apenas ossos pontiagudos e
grandes olhos dilatados, que seguiam com lentidão os movimentos de seus
libertadores.
O doutor Hughes pediu ao Estado-Maior que lhe instalasse um hospital de
catorze mil leitos e que lhe enviasse urgentemente mais médicos, enfermeiras e
milhares de toneladas de material e de produtos farmacêuticos, para que
pudesse tentar salvar as cinqüenta e seis mil pessoas internadas no campo de
Bergen-Belsen, que sofriam de fome, de gastrenterite, de tifo, de febre tifóide ou
de tuberculose.
No dia seguinte, ao amanhecer, constatou-se que havia mil mortos entre
os que receberam os primeiros cuidados.
Todo o ambiente parecia banhado em cinzas. Eram cinzentos o céu, as
pessoas e os barracões, o chão se transformara em lodaçal, os ouropéis
pendiam por todo o lado e havia detritos de todo o tipo sobre a lama. Chovia.
Os gestos eram de cansaço. Homens e mulheres morriam quietos, sem as
últimas convulsões.

Léa, acompanhada por George, dirigiu-se para a saída do campo de
concentração para descansar um pouco. Passaram ao lado de um fosso a céu
aberto, transbordante de cadáveres nus, de uma magreza assustadora.
A moça imobilizou-se em sua borda e observou avidamente o espetáculo
sem que um só músculo de seu rosto se mexesse.
Aqueles braços, pernas e faces pertenciam a homens e mulheres que
haviam rido, amado e sofrido. Isso lhe parecia inconcebível. O amontoado
disforme nada tinha de humano, não podia dizer respeito a seres vivos como
ela. Algo fugia à sua compreensão. Por quê? Por que isso? Por que eles?
— Venha, Léa — disse McClintock. — Vamos dar uma volta pela mata.
Léa o seguiu sem resistir.
— Ali! — ela gritou, apontando com o dedo.
Entre os pinheiros novos, alinhavam-se centenas de corpos. Um grupo de
civis alemães comandados por militares ingleses transportava mais cadáveres,
colocando-os ao lado dos anteriores.
Léa e o companheiro aproximaram-se. Lívidos, os alemães colocaram no
chão, perto deles, o corpo de uma mulher cuja roupa rasgada deixava a
descoberto as pernas cheias de equimoses e os ossos saltados por entre a pele.
A chuva que caía dava ao rosto um aspecto de afogado.
— Léa...
A jovem virou-se para George. Mas ele se afastara e conversava com um
dos soldados.
— Léa...
Quem a chamava com voz tão sumida que parecia brotar do interior da
terra? Baixou a vista, olhando o chão a seus pés. A mulher com aspecto de
afogada abrira as pálpebras e a fitava. Um medo terrível a paralisou.
— Léa...
Não estava sonhando, não. Era mesmo essa mulher que a chamava.
Fazendo um esforço enorme, Léa debruçou-se sobre aquele ser prostrado.
Os olhos imensos, profundamente encovados nas órbitas, prenderam-se então
nos seus, Quem seria aquela morta-viva que murmurava o seu nome? Não lhe
parecia familiar nenhum dos traços desse pobre rosto. Os lábios chupados, as
faces fundas, com marcas de... Não!
— Sarah! — exclamou a jovem.
O grito de Léa fez com que George e os soldados se voltassem em sua
direção. O oficial britânico dirigiu-se precipitadamente para ela.
— O que você tem?
— Sarah! É Sarah!

— Mas esta mulher ainda está viva! — exclamou um soldado que também
se aproximara.
McClintock ergueu o corpo, transportando-o correndo para a tenda
instalada às pressas e que servia de hospital improvisado. Estenderam a
enferma sobre um leito de campanha, libertando-a dos farrapos antes de a
protegerem com um cobertor.
Léa ajoelhou ao lado da amiga e pegou em sua mão.
— Está viva, Sarah! Está viva! Vamos levá-la para longe daqui e cuidar de
você.
— Nenhum dos prisioneiros está autorizado a deixar o campo, senhorita.
— Mas por quê?
— Para que as epidemias não se propaguem — explicou o médico. —
Observamos muitos casos de tifo. Além disso, a doente não resistirá ao
transporte.
— Mas...
— Não insista, Léa — interveio McClintock. — Devemos obedecer às
ordens do médico. Venha descansar. Voltaremos mais tarde.
— Não quero deixá-la.
— Vamos, seja razoável.
Léa inclinou-se sobre Sarah e beijou cada uma das faces que Masuy havia
queimado.
— Descanse, Sarah. O pesadelo acabou. Eu volto depois.
Dirigiram-se em silêncio para a cantina. Serviram-lhes chá e um pedaço de
bolo. Mas nenhum deles conseguiu comer.
McClintock então lhe estendeu um maço de Players.
— Ajude-me a tirá-la daqui, George.
— Tal como eu, você também ouviu o que o médico disse. Não devemos.
— Não quero saber o que devemos ou não devemos fazer! É preciso tirá-la
daqui.
— Mas para levá-la para onde?
— Para a Inglaterra.
— Para a Ingla....
— Sim. Deve existir um meio.
— Mas...
— Ache-o, George, eu lhe suplico.

— Oh! Léa, estamos vivendo um pesadelo e tenho a impressão de que vou
enlouquecer!
— Não é momento para gemer. Consiga um avião para a Inglaterra.
— Como você quer...? Há muitos...
— Há muitos o quê? Diga depressa.
— Há muitos aviões que estão repatriando os feridos — informou
McClintock.
— Isso mesmo! É uma excelente idéia! Você se arranjará para me
nomearem acompanhante do grupo.
— Talvez não seja impossível. E, depois, o mais difícil ainda será tirá-la do
campo. A vigilância da saída certamente será reforçada por ordem dos serviços
sanitários.
— Vamos encontrar um jeito. Informe-se sobre a data da partida do
próximo avião.
— Vou cuidar disso. Mas prometa que irá descansar um pouco.
— Prometo.
— Nos encontramos no final da tarde, junto de sua amiga.
Léa não teve oportunidade de descansar. À saída da cantina, Miss
Johnson, a chefe, enviou-a para ajudar no transporte dos doentes. Só muito
tarde da noite é que pôde ver Sarah. Encontrou George ao lado da doente. A
infeliz dormia.
— Até que enfim chegou, Léa! Há um vôo depois de amanhã — ele
cochichou. — O comandante é meu amigo desde que lhe salvei a vida.
Concordou em nos ajudar. Também arranjei um uniforme de um dos nossos
companheiros mortos. Amanhã, quando escurecer, vestiremos Sarah com a
farda e a levaremos para a ambulância que você trará aqui durante o dia. Já
está requisitada para o transporte de feridos, Léa. Irá acompanhá-los à
Inglaterra, onde serão distribuídos pelos diversos hospitais do país.
— Mas vão descobrir que é uma mulher!
— Um de meus amigos, médico da rainha, estará à sua espera na chegada
do avião. Por ordem de Sua Majestade, irá se encarregar de um certo número
de feridos.
— Você é formidável, George!
— Não cante vitória antes do tempo. Ainda falta conseguir o mais difícil:
tirá-la daqui viva.
— Viva...?! Viva... como?
— O dr. Murray acha que Sarah não sobreviverá a esta noite.
— Não acredito — disse Léa, aproximando-se do leito.

A respiração de Sarah estava difícil e suas mãos descarnadas queimavam
devido à febre. Debruçada sobre ela, Léa a olhava intensamente. A enferma
abriu as pálpebras devagar. Teve um sobressalto de medo e um movimento de
recuo ao perceber um rosto tão perto do seu.
— Não tenha medo, Sarah. Sou eu.
Alguma coisa, como a sombra de um sorriso, pairou sobre seus lábios.
— Vamos levá-la daqui. Mas é preciso que nos ajude, que recupere um
pouco de forças. É preciso, está entendendo? É preciso.
— Senhorita, não a canse. Deixe-a repousar — advertiu o médico.
— Adeus, Sarah — despediu-se Léa. — Volto amanhã. Vamos... deixe-me
ir embora.
A custo conseguiu libertar as mãos dos dedos que se agarravam aos seus.
Antes de abandonar a barraca, Léa aproximou-se do médico que
examinava uma criança de uns dez anos, salva do Revier, o hospital onde o
sinistro Kari havia trabalhado.
— Doutor Murray, do que sofre minha amiga? — perguntou a jovem.
O médico cobriu a criança com suavidade antes de se virar para Léa. Ela
recuou diante de sua expressão encolerizada.
— Do que sofre a sua amiga? — repetiu ele, arremedando Léa. — Mas que
pergunta interessante! Sofre de tudo! Ainda não tem tifo, ao contrário deste
aqui, a quem foi inoculado. Mas a ela talvez lhe tenham dado uma injeção de
bacilos de varíola, de peste ou de sífilis. Ou talvez a tenham esterilizado. A
menos que hajam implantado em seu útero um embrião de chimpanzé.
— Oh, não diga isso, doutor! — exclamou Léa.
— Se não quer ouvir, então não me pergunte do que ela sofre. Ela sofre. É
tudo.
E lhe deu as costas, inclinando-se sobre outra cama.
George aguardava Léa, mordendo o cano do cachimbo curto e apagado.
— O dr. Murray é completamente doido.
— Não é, mas arrisca-se a ficar dentro de pouco tempo. Nunca lhe passou
pela cabeça que pudesse existir tudo o que tem visto aqui nem, sobretudo,
imaginou que outros médicos concordassem com certas experiências. É todo o
seu mundo que se desmorona — disse McClintock. — Nunca deixará que
levemos Sarah.
— Você ouviu o que ele disse: Sarah não tem tifo. Pedirei ao dr. Hughes
que a transfira para um hospital de doenças não contagiosas.
— E se ele não concordar?
— Nós acharemos outra solução.

E, de fato, arranjaram. Às cinco da tarde, o coronel McClintock
apresentou-se na barraca-hospital do dr. Murray acompanhado por umas dez
pessoas.
— Trago comigo o grupo que vem substituí-los para que descansem um
pouco. Doutor Murray, apresento-lhe o doutor Collins.
— Mas, meu coronel.
McClintock interrompeu as objeções de Murray.
— São ordens do médico chefe — declarou.
— Muito bem — cedeu Murray. — Venha comigo, dr. Colins. Vou deixá-lo
a par dos casos mais prementes.
Por sorte, Sarah não fora incluída nesse número.
Após a partida do dr. Murray, McClintock manobrou de modo a desviar as
atenções do grupo dos recém-chegados. Léa, auxiliada pelo ajudante-de-campo
do coronel, vestiu em Sarah o uniforme roubado. Sem se manifestarem, as suas
companheiras de infortúnio acompanhavam com o olhar todo aquele
movimento.
Apesar dos esforços, Sarah não foi capaz de se manter em pé. Léa e o
ajudante-de-campo a sustentaram pelos braços.
— Mais um dos nossos homens que não conseguiu suportar tantos
horrores — mentiu George, interpondo-se entre o dr. Collins e Sarah.
Léa só respirou livremente quando chegaram ao local de embarque. Junto
com uma enfermeira, deitou Sarah na maca e transportou-a para o avião.
Apesar dos gritos e dos gemidos, no interior do aparelho quase reinava um
clima de partida para férias. A guerra terminara para a maior parte daqueles
rapazes.
Durante toda a viagem, Léa conservou a mão de Sarah presa nas suas.

Capítulo 34

EM SILÊNCIO, os berlinenses observavam a passagem dos caminhões
cedidos pela Divisão Nordland, transportavam tropas SS, em cujos uniformes
podia-se ver o escudo tricolor.
Em altos brados, os soldados cantavam ora em francês ora em alemão, e
marcavam o compasso batendo com os punhos contra as bordas dos veículos:

Os carros ardem por onde passamos
E o diabo ri conosco
Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!
A chama continua pura
A Fidelidade é o nosso lema.

Mulheres vestidas de preto corriam para eles e lhes estendiam as crianças
ou lhes ofereciam pedaços de pão escuro. As moças atiravam beijos. Os
militares acenavam com grandes gestos, para logo desaparecerem no meio das
ruínas. Ao longe, troavam os canhões.
Na noite de 25 de abril, Mathias comeu uma lata de aspargos antes de
dormir sobre um banco de uma cervejaria de Hermann Platz.
Nesse mesmo dia, no Elba, ao sul de Berlim, os soldados do 5 Exército da
1ª Frente da Ucrânia, comandada pelo marechal Koniev, fizeram sua junção
com os americanos do 1º Exército, nas proximidades de Torgau.
Durante a noite, em vagas poderosas, a aviação russa bombardeou a
cidade. O ruído das explosões despertou os defensores de Berlim, que correram
para suas armas dispostos a repelir um ataque soviético. Mas os aviões
desapareceram, dando lugar a um silêncio opressivo.
No dia seguinte, antes dos primeiros clarões da aurora, os soldados
dirigiram-se para a Câmara Municipal de Neukõlln. O dia que despontava
anunciava-se magnífico. Finalmente, receberam ordem de ataque.
Os russos disparavam de todos os lados. Rentes às paredes, os SS
franceses saltavam de portal em portal.
Com a ajuda de um Panzerfaust, Mathias destruiu o seu primeiro tanque.
Durante toda a manhã, a batalha foi violenta, morrendo uma centena de
voluntários. Tudo ruía à sua volta. Um pouco em cada lugar, os incêndios
tingiam o céu de vermelho. Logo, a poeira era tão densa que não se via nada a

uma distância de meio metro. O estrondo dos motores e das lagartas fazia com
que a terra trepidasse, abafando os gritos dos moribundos e os pedidos de
socorro dos feridos.
Atingido no pé, o Hauptsturmführer Feunay continuava a comandar as
operações.
Na Câmara Municipal de Neukilln, transformada em fortaleza, as tropas da
Divisão Carlos Magno, apoiadas por rapazes da Juventude Hitleriana e por
velhos soldados de cabelos brancos, disparavam através de todas as aberturas
do edifício.
Mas logo tiveram de se render à evidência — estavam cercados. Não
podiam mais contar com os tanques da Divisão Nordland, sem gasolina nem
munição. Com o coração oprimido, viram que se afastavam no meio da poeira.
Feunay deu então ordem de evacuar a Câmara Municipal e de se dirigirem
a Hermann Platz. A noite terminou com os soldados ocupando os porões do
Ópera.
A desordem era total e nenhuma ação eficaz fora prevista para assegurar a
defesa de Berlim. Restavam apenas alguns resíduos de divisões estrangeiras
das Waffen SS, garotos e velhos, para enfrentar centenas de milhares de
soldados soviéticos.
Na tarde de 27 de abril, Mathias explodiu três tanques de assalto T34.
Ferido na cabeça, foi tratado na enfermaria do bunker de Hitler. Depois
conseguiu atingir a estação do metrô de Stadmitte, para onde Krukenberg havia
transferido o seu P.C.
A maioria dos sobreviventes da Divisão Carlos Magno estava reunida ali.
Os vagões de vidros quebrados serviam como enfermaria, como escritórios e
como depósitos de víveres. Mathias fumou o seu primeiro cigarro depois de dois
dias.
Na plataforma da estação do metrô, o Brigadeführer impôs a Cruz de
Guerra àqueles que se distinguiram particularmente durante os combates em
Neukislln. Mathias olhou a sua com emoção.
Ao amanhecer de sábado, dia 28 de abril, a pressão russa tornou-se cada
vez mais forte. Escondidos nos portais e nas janelas, os SS franceses
esperavam. Na claridade cinzenta da manhã, os tanques soviéticos avançaram.
O disparo de um Panzerfaust atingiu em cheio o primeiro. Irromperam dele
as chamas, seguidas de uma série de pequenas explosões. Depois, houve uma
deflagração enorme que projetou para o ar fragmentos de aço. Do T34 restava
apenas um monte de ferragens retorcidas de onde saíam corpos carbonizados.
Mas os tanques prosseguiam o seu avanço inexorável. Choviam projéteis
por todos os lados. Mathias, de Sturmgewher ao ombro, disparou contra o
grupo de soldados de infantaria. Cinco homens tombaram no solo.

— Belo trabalho, Fayard! — elogiou o capitão Feunay, dando- lhe uma
pancada amigável nas costas.
Ferido no ombro, Mathias foi conduzido ao Hotel Adion, transformado em
hospital. Deixou o hotel à noite, ou melhor, no momento em que deveria ser
noite, pois a luz do dia já desaparecera há muito. Todos tinham perdido a
noção do tempo.
O edifício onde os franceses tinham se emboscado continuava em pé como
por milagre. Aos canhões antitanques russos juntavam-se agora os morteiros.
Os andares despencavam, soterrando uma dezena de voluntários.
Meio asfixiado, com os pulmões cheios de poeira amarela, Mathias
conseguiu libertar-se dos escombros. Seu ombro ferido doía. Os incêndios se
alastravam por toda a parte.
Os sobreviventes foram ocupar novas posições, evitando as vigas em
chamas, os pedaços de parede que rufam e as balas que assobiavam em seus
ouvidos. Ao romper do dia, haviam recuado até Puttkammerstrasse.
À noite estavam nas proximidades da estação de metrô de Kochstrasse,
posto avançado de defesa da Chancelaria. Depois de alguns instantes de
repouso no comando do batalhão, instalado numa enorme livraria devastada,
reiniciaram a luta em meio à bruma cor de sangue.
O dia 30 decorreu como os anteriores nesse universo dantesco para onde
os sonhos os haviam impelido — os sonhos ou as desilusões. Lutavam,
convictos de estarem protegendo o chefe a quem haviam jurado fidelidade ou
morte. Mas a verdade é que apenas protegiam um bunker juncado de
cadáveres. Hitler suicidara-se às quinze horas e trinta minutos juntamente com
Eva Braun, com quem casara pouco antes de morrer.
À tarde, os russos tomaram o Reichstag, depois de violentos combates. O
tenente Berest e dois sargentos ergueram a bandeira soviética no topo de um
monumento. Durante essa mesma noite, o general Krebs, chefe do Estado-
Maior da Wehrmacht, propôs ao general Tchukov negociar a capitulação de
Berlim.
Na tarde do dia 1 de maio, os SS franceses viram-se obrigados a evacuar a
livraria, indo se refugiar no subsolo do Ministério da Segurança.
À luz de velas presas em ultum — espécie de candelabros em terracota,
utilizados na noite do solstício de inverno —, Feunay distribuiu novas Cruzes
de Guerra, que pregou nos uniformes de camuflagem rasgados, muitos deles
manchados de sangue.
Mathias foi ferido novamente no peito e nas pernas, desta vez com
gravidade. Junto com outros fugitivos, arrastou-se até a estação de metrô de
Kaiserhof. Ajudado pelos camaradas, escondeu-se depois na estação de
Potsdamerplatz, onde assistiu, oculto por um monte de entulho, à captura de
Feunay e de meia dúzia de companheiros.

Ardendo em febre, foi encontrado por uma adolescente alemã que, com a
ajuda do pai, o escondeu no porão de seu edifício.

Capítulo 35

A AMIZADE DO comandante Klimenko possibilitou a François Tavernier
seguir apaixonadamente o desenrolar do avanço dos russos em Berlim,
admirando sua coragem ao longo dos combates. Com eles, gritou de alegria
quando viu a bandeira vermelha flutuando sobre o Reichstag: a besta agora
estava morta.
Na tarde de 4 de maio, Tavernier errava pelas ruas devastadas da capital.
A atmosfera estava suave, embora infestada pelo odor dos cadáveres em
decomposição sepultados sob as ruínas. Incongruentes, os esqueletos
calcinados dos prédios destacavam-se contra o céu claro.
Uma moça de rosto escuro de fuligem saiu do meio dos escombros
piscando e chocou-se com Tavernier.
— Cuidado, pequena! — ele exclamou em francês.
A adolescente olhou-o, incrédula.
— Você é francês? — ela perguntou em alemão.
— Sim.
— Venha.
Pegou-o pela mão e o guiou por entre as ruínas. Saltaram por cima de
montes de entulho, esgueirando-se depois através de uma passagem. Em
seguida, desceram alguns degraus atulhados de detritos. Por fim,
desembocaram num porão, iluminado por uma vela.
Ali estavam reunidas muitas pessoas prostradas no chão. Uma jovem mãe
embalava o filho que chorava e uma outra prendia uma atadura em volta da
cabeça de uma menininha.
Ao reconhecer o uniforme soviético que Tavernier vestia desde que seguia o
Exército Vermelho, houve um momento de medo. Mas a mocinha disse algumas
palavras que devolveram a serenidade ao grupo. Encaminhou então François
para o lugar onde o ferido gemia.
— Francês — esclareceu ela, apontando com o dedo o vulto humano
estendido, com a cabeça apoiada numa cesta de vime.
Tavernier aproximou-se, inclinando-se sobre um homem com o rosto
oculto pela barba, olhos cintilantes de febre, o peito envolto numa atadura suja
e embebida de sangue. De uma das pernas coberta de farrapos desprendia-se
um cheiro pestilento. O infeliz delirava.
— É preciso levá-lo a um hospital — disse a adolescente.

— É tarde demais. Ele vai morrer — respondeu Tavernier em alemão.
— Não. Precisa ajudá-lo.
— Está me ouvindo, meu velho? — perguntou Tavernier dirigindo-se em
francês ao doente.
Ele parou de gemer e virou a cabeça devagar.
— Estou com sede.
François Tavernier olhou para a mocinha, que esboçou um gesto de
impotência.
— Não temos mais água. Meu pai foi procurar um pouco.
No ponto em que este sujeito está, não é um pouco de vodca que vai lhe
fazer mal, pensou Tavernier. Tirou do bolso um recipiente de prata ganho no
pôquer de um oficial russo e, com cuidado, derramou algumas gotas de bebida
sobre os lábios do ferido.
— Obrigado... Fidelidade... eu me... sinto mal.
— Não se mexa — disse Tavernier. — Vou procurar socorro. A guerra
terminou. Não tem nada a temer.
— Não. — O ferido se opôs, agarrando-se à sua manga. — Os russos me
matarão.
François Tavernier olhou-o mais atentamente. Sim, claro! Era um daqueles
canalhas franceses que combatiam com uniforme alemão!
— Waffen SS?
— Sim... Carlos Magno. Divisão Carlos Magno... Perdi os camaradas...
todos mortos. É estúpido morrer aqui... bebendo...
Engoliu mal o líquido e começou a tossir. Gritou, sentindo que a dor
rasgava seu peito, enquanto um fio de sangue lhe escorria por entre os lábios.
A moça alemã enxugou-lhe o rosto com doçura.
— Léa... — ele murmurou.
— Não sou Léa. Chamo-me Erika.
— Léa... perdão...
— Como se chama? — perguntou Tavernier ao ferido.
— Léa...
— Ele se chama Mathias. Mas não me disse o seu nome de família.
Tavernier revistou-lhe o bolso interno da jaqueta rasgada. Encontrou um
embrulho cuidadosamente envolto em tecido impermeável e preso por um
elástico. O volume continha duas cadernetas militares.
Otto Kramer, leu ele. Aquele nome lhe dizia qualquer coisa.

— Otto Kramer — pronunciou em voz alta.
— Morreu... Eu o vi morrer... deu-me... uma carta.. para Françoise... tem
de enviá-la.
De dentro da segunda caderneta caiu uma fotografia. Erika apanhou-a.
— Como é bonita! — exclamou.
François Tavernier arrancou-lhe a foto das mãos. Léa o olhava, sorridente,
com a cabeça apoiada ao ombro de um rapaz. Sua atitude e sua expressão
indicaram claramente seu orgulho de tê-la junto a si. No verso da foto, Léa
havia escrito: Mathias e eu em Montillac - agosto de 1939.
Tavernier nunca soube verdadeiramente o que se passara entre Léa e o
rapaz. Sabia apenas que Mathias era para ela o mais querido dos companheiros
de infância.
Nesse momento, ouviu-se um vozerio na entrada do porão. Segundos
depois, cinco ou seis soldados russos irrompiam pelo subterrâneo.
As mulheres ergueram-se aos gritos, apertando os filhos contra o peito.
Um oficial aproximou-se de Tavernier. Fez-lhe continência ao reconhecer o
uniforme soviético.
— Saudações, camarada! Quem é ele?
— Não sei. É preciso levá-lo para um hospital. Está gravemente ferido.
O outro gracejou.
— Vai esticar. Não vale a pena.
Mandaram sair os civis. Ao partir, Erika lançou a Tavernier um olhar de
súplica.
Ficando sozinho, ele contemplou Mathias com expressão pensativa.
— Léa... — balbuciou o rapaz novamente.
Tavernier percebeu que continuava com a foto na mão. Guardou- a no
bolso, junto com as duas cadernetas militares.
Depois, sentou-se ao lado do moribundo. Acendeu um cigarro e o colocou
entre seus lábios.
— Obrigado — Mathias falou num sopro.
Fumaram em silêncio, os pensamentos de ambos voltados para a mesma
mulher. De vez em quando, o ferido deixava escapar um gemido.
Instantes depois, um acesso de tosse obrigou-o a cuspir o cigarro.
François, inclinado sobre ele, enxugava-lhe a testa.
— Escreva a Léa... O endereço... está... na minha caderneta militar... diga-
lhe que... morri pensando nela.

Soergueu-se e, com uma força incrível num moribundo, agarrou- se ao
companheiro.
— Diga-lhe também... que eu a amava... que... só a ela amei. Léa... perdão.
As mãos de Mathias se soltaram, tombando inertes. Ele nunca mais veria
as colinas cheias de sol por onde correra em companhia daquela que fora a sua
alegria e o seu tormento. Na morte, estampava-se em seu rosto uma expressão
de criança perplexa.
Com gestos suaves, François Tavernier cerrou-lhe as pálpebras e cobriu
seu corpo com um farrapo de cobertor. E saiu.

Capítulo 36

NA NOITE DE 7 de maio, um telegrama anunciava a François Tavernier a
chegada em Berlim do general De Lettre de Tassigny, nomeado pelo general De
Gaulle para participar da cerimônia da capitulação da Alemanha. Pedia- lhe
para recebê-lo no aeroporto de Tempelhof.
Chegou de jipe por volta das dez horas da manhã. Esperou o avião com
um grupo de oficiais russos e com o general Sokolovski, adjunto do marechal
Jukov, incumbido de acolher as delegações aliadas vindas para comparecer à
assinatura da rendição alemã.
O batalhão da guarda de honra manobrava impecavelmente, dividido em
fileiras de doze homens, com os fuzis voltados para a frente sobre o ombro do
camarada precedente.
Ao meio-dia em ponto, escoltado por caças soviéticos, o DC3 aterrissou na
pista, trazendo a bordo a delegação britânica, O almirante Burrough e o
marechal-de-ar Tedder desceram, seguidos por três pessoas uniformizadas.
Uma delas era uma mulher. O general Sokolovski adiantou-se então para
receber os recém- chegados. Num gesto galante, beijou a mão da mulher.
Após as apresentações, o batalhão fez a saudação militar de praxe.
Ao meio-dia e dez, o DC3 dos americanos também pousava na pista.
Sokolovski deixou os delegados ingleses para ir ao encontro do general da
aviação Spaatz.
Tal como antes, o batalhão prestou-lhe as honras militares, enquanto os
representantes britânicos se encaminhavam para os carros que os conduziriam
a Karlshorst, nos subúrbios de Berlim.
Maquinalmente, Tavernier seguia com os olhos a esbelta silhueta da
inglesa, dizendo-se que era uma das raras mulheres a manter a graça feminina,
apesar do uniforme. Mas havia algo de familiar na maneira como caminhava.
— O avião francês está quase aterrissando, comandante Tavernier. Está
me ouvindo, comandante?
Mas Tavernier empurrou o homem, correndo atrás dos ingleses. Retardado
pela confusão, ele chegou à saída do aeroporto apenas para ver que a porta do
automóvel se fechava sobre um par de bonitas pernas. O carro arrancou antes
que conseguisse se aproximar.
— Meu comandante...
Tavernier passou a mão pela testa. Vejo-a em toda a parte, pensou. Afinal,
o que Léa faria em Berlim, na companhia dos ingleses?

— Meu comandante...
— Sim, já vou.
Não era sem tempo; o general De Lettre de Tassigny, escoltado pelo coronel
Demetz e pelo capitão Bondoux, já se encaminhava para o general Sokolovski.
Os automóveis corriam a toda velocidade por entre as ruínas fumegantes
da capital do Reich. Nas esquinas, moças russas envergando uniformes
impecáveis, com os joelhos à mostra acima das botas altas, orientavam o
trânsito, servindo-se de pequenas bandeiras vermelhas e amarelas. Por toda a
parte formavam filas civis de aspecto miserável e bestificado, tentando recolher
água nas fontes ou nos hidrantes.
Tavernier escutava, distraído, a conversa de Bondoux. Quando chegou a
Karlshorst, a delegação francesa foi conduzida a uma escola de oficiais que
continuava praticamente intacta e onde estava o quartel-general do marechal
Jukov. Dali, passou para um dos pavilhões dos quadros da escola, onde ficou
instalada. As acomodações eram bastante sumárias, mas os colchões,
colocados diretamente no chão, ostentavam lençóis de brancura imaculada.
O general Vassillev apareceu e cumprimentou o general De Lettre, seu
conhecido desde os tempos de Argel. Os dois homens se reencontraram com
prazer.
Tavernier aproveitou essa oportunidade para sair em busca da delegação
britânica. De fato, encontrou o marechal Tedder e o almirante Burrough, mas
nenhum vestígio da jovem que os acompanhara. Estava fora de questão
perguntar a tão insignes personagens o que fora feito dela.
Consagrou o resto do dia a fabricar uma bandeira tricolor que pudesse
figurar ao lado das bandeiras aliadas, na sala onde iria ter lugar a cerimônia da
assinatura da capitulação. Cheios de boa vontade, os russos confeccionaram
uma com um pedaço de tecido vermelho retirado de um pavilhão hitleriano e
com dois outros pedaços de algodão branco e de uma sarja azul, cortada do
uniforme de um mecânico. Infelizmente, o resultado foi... a bandeira holandesa!
Tiveram de recomeçar tudo de novo. Finalmente, às vinte horas, a
bandeira francesa foi ocupar o seu posto entre a da Grã- Bretanha e a dos
Estados Unidos, encimadas pelo emblema soviético.
A meia-noite em ponto, o marechal Jukov, com o peito coberto por todas
as suas condecorações, abriu a sessão. Em primeiro lugar, dirigiu algumas
palavras de boas-vindas aos representantes aliados. Em seguida, deu ordem
para que se apresentasse a delegação alemã. Entrou então na sala o marechal
Keitel, em uniforme de gala e com uma bengala com que saudou a assistência
mergulhada num silêncio glacial. Ninguém se levantou.
Seus olhos percorreram os presentes, detiveram-se por momentos sobre as
bandeiras, e depois pousaram no general De Lettre de Tassigny — Ah —
resmungou —, os franceses também estão aqui! Só me faltava isso.

Com um gesto irritado, atirou a bengala e o quepe sobre a mesa e sentou-
se. À sua direita instalou-se o general Stumpfe, à esquerda, o almirante Von
Frendenburg. Atrás deles, foram postar-se em posição de sentido seis outros
oficiais alemães, todos eles ostentando a cruz de ferro com gládios e diamantes.
Soaram os estalos das câmeras dos fotógrafos autorizados a assistir à
cerimônia.
À meia-noite e quarenta e cinco, o marechal Keitel abandonou a sala.
Acabara de assinar a capitulação incondicional da Alemanha nazista. Os seis
oficiais de rostos perturbados mal conseguiam conter as lágrimas.
A noite terminou com o banquete oferecido pelo marechal Jukov às
delegações aliadas. Passava das sete da manhã quando os participantes se
dispersaram, Tavernier ainda não conseguira descobrir a jovem do aeroporto de
Tempelhof.
Às nove horas, os russos acompanharam os hóspedes ao campo de aviação
engalanado com as cores soviéticas, onde se desenrolou uma cerimônia
idêntica à da chegada.
Só nesse momento Tavernier soube que os membros da delegação
britânica e da delegação americana tinham partido logo após o banquete.
Despediu-se dos representantes e retomou o seu posto.
De volta a Berlim, cuidou do enterro de Mathias Fayard.
Um mês mais tarde, era novamente chamado a Paris.
Mal chegou, François Tavernier correu imediatamente para a rua da
Universidade. Mas ali ninguém soube lhe dar notícias de Léa. Sua última carta
viera de Londres e tinha a data de 30 de abril.
Na Cruz Vermelha, a senhora De Peyerimhoff comunicou a Tavernier o
deslocamento de Léa para a Alemanha.
Segundo os últimos dados, estava em Luneburgo e passava por noiva de
um oficial britânico.
Tavernier entregou a Françoise a caderneta de Otto Kramer, encontrada
com Mathias, assim como a última carta que lhe era endereçada. Françoise não
chorou. Agradeceu a Tavernier e fechou- se no quarto.

"Minha bem-amada.
Estou com vontade de conversar com você esta noite e de esquecer os
horrores que me rodeiam: meus camaradas mortos, o meu país destruído, para
só pensar nos momentos felizes que passamos juntos.
Momentos curtos demais, infelizmente roubados da guerra.
Você me deu tudo o que um homem pode desejar: o seu amor e um filho.
Esse filho a quem não pude dar o meu nome, educá-lo nos paradigmas da

honra e da dignidade. Ensine-o a amar o meu desventurado país e a contribuir
para a reconstrução de nossas duas nações.
Neste exato momento, combatemos em conjunto com estrangeiros
alistados nas Waffen SS. Não consigo compreender o que esses pobres diabos
vieram procurar numa luta que não lhes diz respeito.
Sonho com a hora do nosso reencontro, quando tudo estiver terminado,
nessa região de Bordéus que aprendi a amar. Fico imaginando você e nosso
filho, na velha casa ou no terraço que domina os vinhedos.
Volte para Montillac, lá você encontrará a paz. Nas longas noites de
inverno, sente-se ao piano para tocar nossas músicas preferidas. A música
constitui um imenso lenitivo para a alma.
Tenho de deixá-la, minha querida. Os russos se aproximam do prédio em
ruínas onde nos abrigamos. Vou para o meu posto, para o meu tanque. Estes
breves minutos passados com você deram-me uma paz profunda e eliminaram
a angústia destes últimos dias. Vou para a luta fortificado pelo nosso amor.
Adeus,
Otto."

Capítulo 37

APÓS A RÁPIDA incursão a Berlim, Léa foi reintegrada na Cruz Vermelha
Francesa. Fora ela, de fato, quem François Tavernier vira no aeroporto de
Tempelhof; como o DC3 que transportara a delegação britânica dispunha de
um lugar vago, pensou em estabelecer contatos com os organismos da Cruz
Vermelha dos outros países aliados. Isso, porém, se revelou impossível.
Depois do "seqüestro" de Sarah Mulstein, Léa se transformara numa
verdadeira heroína para o círculo de militares próximos do marechal
Montgomery. Eles intercederam junto ao marechal e a seus superiores
imediatos para evitar que ela fosse demitida.
De quarentena para que se evitasse um surto de tifo, Sarah se restabelecia
na Inglaterra. Nada restava da bela judia que tanto havia encantado Léa. Sarah
Mulstein era agora uma mulher arruinada, precocemente envelhecida, que
tremia se alguém levantava um pouco a voz. Recusava-se a contar o que
sofrera. Mas evocava sem cessar o instante em que Léa a descobrira, como por
milagre, e falava disso com um reconhecimento pungente.
Após a quarentena, George McClintock a recebeu no seio de sua família. O
oficial britânico confiou-lhe sua intenção de se casar com Léa, mas Sarah lhe
respondeu com uma voz suave e cansada:
— Léa não foi feita para você, George.
McClintock deixou-a, triste e magoado. Depois de pouco tempo, regressou
à Alemanha.
Após a conversa com Sarah, McClintock passou a observar Léa com muita
atenção. Ela havia mudado. Estava ao mesmo tempo mais terna e mais
provocante, aturdindo-se durante noites inteiras, bebendo e dançando na
companhia de jovens oficiais. Vivia rodeada de uma verdadeira corte de
admiradores devotados, que seduzia com desenvoltura irritante.
George mostrava-lhe a deselegância de tal comportamento, mas a jovem o
beijava, chamando-o de antiquado, embora pensasse que ele daria um marido
ideal. Por vezes, uma certa ânsia de repouso levava-a mesmo a pensar que
poderia se casar com McClintock.
Enviada pela Cruz Vermelha a Bruxelas e, em seguida, a Luxemburgo, Léa
encontrou-se de novo com Jeanine Ivoy e conheceu Claire Mauriac e Mistou
Nou de la Houplière.
Juntas, transportavam os deportados, em quem, através de sua juventude
e de sua beleza, incutiam a esperança de uma vida nova.

Substituíram os quepes por chapéus redondos, depois de terem percebido
que aquela cobertura vulgar lembrava as de seus carrascos. Apesar do horror
dos campos de concentração — ou talvez por causa dele —, reinava grande
alegria na seção francesa da Cruz Vermelha.
Chegaram a Berlim no começo de agosto e se instalaram no 96 de
Kurfürstendamm, no setor britânico, um dos raros edifícios que não sofreram
demais com os bombardeios. Apenas ela e suas colegas belgas tiveram
autorização para circular pelo território ocupado pelos russos à procura de
pessoas de seus países nos campos de concentração.
Mais de uma vez transportaram ingleses nas ambulâncias, o que lhes
valeu combustível e víveres por parte dos britânicos.
De todas as tarefas, a mais penosa era, sem dúvida, tirar dos alemães as
crianças nascidas de pais franceses ou belgas.
Quando era possível, passavam a noite no clube inglês, dançando com os
oficiais, ou bronzeavam-se à beira da piscina do Blue and White.
Mistou, Claire e Léa dividiam o mesmo quarto. Chamavam-no "o quarto
das cortesãs" por causa dos esforços que faziam para torná-lo atraente e,
sobretudo, por causa da beleza das três jovens, que provocava inveja nas
outras.
Bastava que entrassem num dos clubes militares aliados para que os
homens logo abandonassem suas parceiras e viessem convidá-las para dançar.
Os olhos risonhos e o sorriso radiante de Mistou provocavam verdadeiras
devastações. Claire, bela e melancólica, só tinha olhos para o capitão
Wiazemsky, libertado pelos russos, junto de quem terminara a guerra. Apesar
de lhe terem pedido, ele se recusava a voltar ao seu país e retomar o seu posto
no Exército francês.
Quanto a Léa, já se perdia a conta dos homens a quem havia levado ao
desespero.
Certa noite, ao voltar de uma missão particularmente dolorosa, em
companhia de Claire e do capitão Wiazemsky, Léa chocou-se com um oficial
francês.
— Desculpe-me.
Cansada demais para responder, ela continuou seu caminho, sem mesmo
olhar para ele.
— Léa!
Ela estancou, paralisada como na noite de Natal em Amiens. Não se
mexer, não se voltar, para não destruir aquela felicidade tão frágil!
— Léa!

François estava ali, à sua frente, mais alto do que se lembrava dele.
Esquecera-se também de como o seu olhar era límpido, e sua boca...
Não havia mais ruínas, nem alemães magros e obsequiosos, nem
esqueletos ambulantes, nem crianças abandonadas, nem sangue, nem mortos,
nem pavor! Só François, ali, junto dela, vivo, vivo e palpitante em seus braços.
Mas... por que ele chorava? Que louco, chorando num dia como esse! E ela...
também chorava? Sim, chorava e ria ao mesmo tempo e todos em volta deles
faziam a mesma coisa.
Mistou, que se aproximara, assoava-se sem cerimônia, murmurando; —
Oh, como é belo o amor!
— Pobre McClintock! — suspirou Jeanine.
Claire apertava com força a mão do seu belo capitão Wiazemsky.
— Desde maio que eu a procuro em todo lugar — François murmurou com
o rosto escondido em seus cabelos.
— Não tinha notícias suas. Pensei que tivesse morrido.
— Suas irmãs não lhe disseram que fui procurá-la quando estive em
Paris?
Não, Léa indicava com um gesto de cabeça, fungando. Mistou estendeu-lhe
o lenço.
— Não fiquem aqui. Se o patrão vê vocês, vai ser uma festa. É muito severo
quanto ao comportamento das suas meninas. Venha nos encontrar daqui a
pouco no clube inglês, Tavernier. Vamos tomar um banho. Estamos cheirando
a carne morta que é uma coisa!
— Mistou! — Claire gritou.
— E não é verdade? É tão verdade que você até me disse que ia ter uma
das suas famosas dores de cabeça.
— Gostaria que estivesse em meu lugar — disse Claire.
— Obrigada, mas pode ficar com elas. Só de pensar nas suas enxaquecas
eu já fico com dor de cabeça.
— Parem de brigar — Léa interveio.
Virou-se para Jeanine e perguntou:
— Você se lembra de François Tavernier?
— Se me lembro! Graças a ele tive a melhor noite de Natal de toda a minha
vida. Como está, comandante? Tenho muito prazer em revê-lo.
— Como vai?
— Vamos, meninas! Ao relatório! Não pensem que o dia já acabou. Até
depois, comandante.

Quando ficaram a sós, Tavernier e Wiazemsky mediram-se com o olhar e,
por fim, combinaram de se encontrar às oito da noite, no clube britânico.
Nessa noite, todos os homens que viram Léa rir e dançar com Tavernier
compreenderam que não tinham mais nenhuma chance. McClintock a olhava
com o coração oprimido. Mistou o notou e aproximou-se do oficial.
— Não faça essa cara, coronel — disse ela. — É melhor que me convide
para dançar.
Quando os dois pares se cruzaram, Léa endereçou à amiga um sorriso
agradecido.
François apertava-a com tanta força que Léa mal podia respirar. Mas por
nada no mundo se queixaria disso, sem dizer nada, muito além das palavras.
Deslizavam sem pensar em seus movimentos seguindo a música
instintivamente ou alterando-os de forma maquinal, convertidos num só corpo.
Como em Paris, na Embaixada da Alemanha, continuaram a dançar
mesmo depois que o último acorde se perdera no espaço. Risos e aplausos os
trouxeram de volta à realidade. Depois de beberem um pouco, deixaram o
clube.
A noite estava suave. Subiram no jipe estacionado próximo da saída.
Rodaram durante muito tempo em silêncio através de extensões de escombros.
Depois, atravessaram um parque devastado onde, à claridade da lua, os
troncos retorcidos e calcinados se assemelhavam a um exército em marcha.
François parou o veículo na Charlottenburgerstrasse. Parecia que a lepra
corroera a paisagem ao redor da coluna da Vitória. Apenas o símbolo dourado
de asas abertas se erguia intacto, inútil naquela cidade em ruínas, naquele país
vencido.
Com suavidade, Tavernier atraiu Léa para si. Ficaram abraçados, sem um
gesto, deixando-se invadir aos poucos pelo calor um do outro, de pálpebras
fechadas para melhor saborearem aquela felicidade surpreendente: a de estar
aniquilado de amor, de sentir seus corações contraídos num corpo que não lhes
pertencia mais.
Seria provavelmente a primeira vez, naqueles locais sinistros, que sua
ternura amorosa se desabrochava, arrastando-os no lento turbilhão das
sensações aguçadas. Nesse momento, não experimentavam o desejo sexual, tão
submersos que estavam na alegria transbordante de seus corações.
O canto próximo de uma ave noturna os fez rir ao mesmo tempo.
— As aves noturnas voltaram. É bom sinal — Léa comentou.
— Vamos voltar.
Passaram diante da igreja construída em homenagem ao imperador
Guilherme. Os quatro campanários erguiam suas torres na entrada de

Kurfürstendamm, semidestruídas, ainda dominadas pelo campanário central,
que parecia ter sido decapitado.
— Já vai me levar de volta?
— Não, minha querida. Só se você quiser. Quando a deixei há pouco fui
alugar um quarto não muito longe daqui, na casa de uma velha senhora.
— Como é que conseguiu? Não há nada para alugar.
— Eu me virei ...
Tavernier parou o carro numa ruazinha perto de Hohenzollerndamm. As
casas baixas haviam sido poupadas da fúria dos bombardeios.
Com uma chave enorme, Tavernie abriu a porta envidraçada de uma das
casas. Uma lamparina de óleo iluminava o vestíbulo. Um grande gato veio se
esfregar em suas pernas. Cada um pegou uma das velas que haviam sido
deixadas sobre uma cômoda, e subiram as escadas rindo muito.
No quarto reinava um perfume de rosas murchas. À luz vacilante das
velas, François desembaraçou-se do uniforme.
Depois, lenta- mente, fez deslizar as alças da combinação cor-de-rosa de
Léa. O ruído da seda exaltou-lhes os sentidos. A pele de Léa estremeceu sob a
carícia do tecido.
Léa saltou sobre a lingerie morna, onde Tavernier mergulhou o rosto,
aspirando com avidez o odor daquela mulher. Teve de se conter para não lhe
arrancar imediatamente a calcinha debruada de renda.
Quando Léa ficou nua, ele ainda continuou ajoelhado a seus pés,
contemplando-a. Ela deixava que ele a percorresse com esse olhar que a
devorava, deixando-a trêmula e obrigando-a a dobrar os joelhos.
Estremeceu quando os lábios de François procuraram o interior de suas
coxas. Sentiu seu sexo se abrir e ir ao encontro dos beijos de seu amante.
Atingiu o orgasmo assim em pé, as mãos convulsamente agarradas aos cabelos
de François.
Depois, ele a carregou para a cama e acabou de se despir sem deixar de
fitá-la. Penetrou-a com doçura. Confiante, Léa deixava-se conduzir. Quando
sentiu que o prazer irrompia, gritou:
— Mais depressa... mais depressa!
François Tavernier levou-a para casa antes do amanhecer. Léa entrou
silenciosamente no quarto das cortesãs, sem acordar as companheiras.
No dia seguinte, François e Léa contaram um ao outro o que viveram
desde o Natal passado em Amiens. Com uma alegria tão grande que quase
provocou os ciúmes da jovem, Tavernier soube da libertação de Sarah Muistein
e do seu lento restabelecimento na Inglaterra.

Não se atrevia a anunciar a Léa a morte de Mathias Fayard. Começou lhe
dizendo o que acontecera a Otto e contou sobre sua visita a Françoise.
— Você estava lá quando ele morreu?
— Não. Encontrei sua caderneta militar no bolso de um SS francês que o
conhecia.
Léa fechou os olhos.
— E que aconteceu a esse francês? — ela perguntou com voz sumida.
— Morreu.
Uma lágrima deslizou pelo seu rosto bonito.
— Como ele se chamava?
François abraçou-a e depois, baixinho, lhe contou tudo.
— Morreu chamando por você e lhe pedindo perdão. Chore, minha
querida, chore.
Léa soluçava como uma garotinha. Como era difícil deixar a infância!
À tarde, Léa quis ir ao túmulo de Mathias. Deixou ali algumas flores
compradas na floricultura da esquina da Konstanzerstrasse.
— Podemos transladá-lo para a França, se você quiser.
— Não. Ele morreu aqui e é aqui que deve ficar.
— O que está fazendo?
— Pegando um pouco desta terra para misturar com a de Montillac —
disse Léa, sentindo-se de repente assaltada por uma felicidade melancólica.
— Mas o que você tem?
Léa não tinha nada. Apenas, pela primeira vez desde há muito tempo,
acabava de encarar o eventual regresso à sua terra adorada. E era Mathias
quem o sugeria.
Com frenesi, Léa encheu o seu chapéu com terra. Quando se ergueu, um
novo brilho cintilava em seus olhos.
Viram-se todos os dias durante uma semana. Na medida do possível,
Claire e Mistou encobriam dos outros as ausências e os desvarios da colega.
Apesar disso, a tarefa desempenhada em Berlim pelas jovens da Cruz Vermelha
Francesa causava a admiração de todos.
Jeanine Ivoy, chefe da seção, escreveu à senhora De Peyerimhoff:

"Segundo os relatórios diários de serviços, poderá constatar o bom
andamento de nossos trabalhos.

Conseguimos obter dos ingleses a prorrogação da nossa intervenção neste
setor, graças ao trabalho que lhes prestamos. Como lhes foi negada autorização
para entrar na zona russa a fim de procurarem súditos britânicos
desaparecidos (cerca de trinta mil), assim, durante nossos trabalhos, fazemos
por eles o que faríamos pelos nossos. Por vezes, oltamos com centenas de
certidões de óbito ou de listas de sepulturas encontradas nas menores aldeias e
as separamos por nacionalidade. Quanta papelada!
Estamos reduzidas a cinco condutoras e a uma enfermeira em cada grupo,
pois os ingleses insistiram no corte do pessoal devido a dificuldades de
abastecimento.
Os alsacianos e os lorrainenses continuam chegando e é com alegria que
os encaminhamos: pobres sujeitos, sofreram tanto! Durante dez dias, nossas
jovens vestiram, alimentaram e cuidaram sete mil deles. Seu devotamento é
inesgotável e tem despertado a admiração das autoridades francesas e
britânicas.
Outros trens com alsacianos e lorrainenses (perto de três mil) são
continuamente esperados, e as autoridades inglesas nos avisarão por telefone.
Seu estado de saúde é extremamente precário e ficamos felizes, como Cruz
Vermelha Francesa, em poder lhes dar esse apoio moral e material de que tanto
necessitam.
Vemos com freqüência o general Keller, quando ele vem de Moscou. Ele
nos avisa da passagem dos trens. Há muitos internados em campos de
concentração nos confins da Rússia.
Na verdade tivemos muita sorte de poder circular pela zona russa.
Ganhamos a sua confiança e por toda a parte nos recebem de forma
encantadora. Durante a última passagem do trem dos serviços de saúde,
fizemos uma diligência junto a um importante general soviético, para trazermos
os doentes mais graves.
Diante de nós, o general telefonou para Moscou. A resposta foi negativa
mas, pelo menos, tentamos. O pedido não foi totalmente em vão, pois nesta
semana, irão nos entregar os doentes graves e eles partirão no trem sanitário
que acaba de chegar.
Reina aqui um ambiente magnífico. Só tenho elogios a tecer a todo o
pessoal e, muito particularmente, às senhoritas Mauriac, Nou de la Houplière,
Delmas, Farret d'Astier e d'Alvery, que formam um só bloco, sempre de mãos
dadas no esforço... ".

François Tavernier recebeu ordem para voltar a Paris, de onde partiria
para os Estados Unidos.
Depois de mais uma noite passada na pequena casa da velha alemã, Léa
acompanhou François ao aeroporto de Tempelhof.

Começou a tremer quando o viu entrar a bordo do Dakota e quase
desmaiou, presa do medo de nunca mais voltar a vê-lo.
Após sua partida, as amigas tudo fizeram para a distraírem. Mistou e
Claire saíram-se tão bem que conseguiram fazê-la recuperar uma parte da
antiga alegria.
Junto com o capitão Wiazemsky, visitaram a Chancelaria e o bunker de
Hitler. Saíram dali oprimidas por aquele lugar juncado de telegramas, de
jornais meio consumidos pelo fogo, de retratos rasgados do Führer, de caixotes
revolvidos, de condecorações manchadas.

Capítulo 38

EM MEADOS DE setembro, Léa recebeu ordem para conduzir um grupo de
crianças a Paris. Deixou Berlim e as colegas com tristeza, mas, ao mesmo
tempo, com certo alívio — ali havia ruínas demais, sofrimento demais, mortos
demais.
Quando chegou em Paris, a sra. De Peyerimhoff concedeu-lhe uma licença.
Léa correu para a rua da Universidade. Mas encontrou a porta fechada.
A zeladora lhe entregou as chaves do apartamento, informando-a de que
todos haviam partido para Gironde.
Léa não compreendia o que poderia ter acontecido.
Nessa mesma noite, ela, que se preparava com satisfação para passar
alguns dias na capital, viu-se correndo para a estação de Austerlitz.
O trem estava superlotado e os vagões eram muito desconfortáveis. Léa
passou a noite espremida entre um militar atrevido e uma mulher gorda e
rabugenta.
Cada vez que cochilava, ouvia invariavelmente os gritos de dor de tia
Bernadette ou os gemidos de Raul.
Durante quanto tempo esses fantasmas iriam persegui-la?
Era loucura aquela sua volta a Montillac. O que esperava encontrar?
Depois de ter visto tantos destroços para que acrescentar mais um nessa lista
de misérias acumuladas ano após ano? Para que voltar atrás, se nada
ressuscitaria os mortos nem a velha casa?
Chegou em Bordéus esgotada e decidida a embarcar de novo no próximo
trem para Paris. Na plataforma vizinha, o velho trem partia para Langon. Sem
pensar, Léa correu para ele. Pela porta aberta, alguém lhe estendeu a mão e ela
saltou.
A estação de Langon não havia mudado. Carregando sua mala, Léa dirigiu-
se para o centro da pequena cidade.
Era dia de feira. Dois soldados conversavam na frente do Hotel Oliver.
— Mas... é a senhorita Delmas! ... Senhorita!
Léa se voltou.
— Não nos reconhece, senhorita? Nós a levamos até a casa de Sifflette,
com seu tio e aquela pobre senhora baixinha.
Claro que Léa se lembrava!

— Então, voltou para sua terra? Ah, quantas coisas aconteceram por aqui!
E não foram coisas boas! Não tem mais a sua famosa bicicleta? Nesse caso, nós
vamos levá-la. Não queremos que se sinta em dificuldade. Não é, Laffont?
— Que pergunta, Renault! Ninguém poderá dizer que a polícia francesa
não é cortês.
Léa não sabia como recusar a oferta. Foi obrigada a subir no carro oficial.
Os dois homens tagarelavam sem parar, mas Léa não ouvia o que eles
diziam. Invadida pela emoção, enchia os olhos ávidos dessa paisagem tão
querida, que pensara nunca mais rever.
Renault e Laffont não insistiram quando a jovem pediu para que a
deixassem embaixo, na ladeira da Prioulette. Ficou esperando que o veículo se
afastasse e só depois começou a subir.
Era uma daquelas tardes bonitas de final de estação, com o sol dourando
os cachos de uvas e tingindo os vinhedos daquela luz que anunciava o outono.
A subida da encosta pareceu a Léa bastante íngreme, fazendo com que ela
diminuísse o passo. Por detrás dos maciços de árvores estava Montillac, ainda
invisível. Com o coração palpitante, chegou até a cerca pintada de branco.
Pairava no ar um cheiro novo, pouco habitual naquelas paragens — um
odor de madeira recentemente cortada. Sons familiares chegaram a seus
ouvidos: o cacarejar de galinhas, latidos de um cão, o arrulhar de pombos e
relinchos de um cavalo.
Por detrás das instalações da propriedade deveriam estar as ruínas da
casa. Uma ligeira brisa despenteou seus cabelos. Léa retomou a caminhada,
sofrendo a cada passo.
Depois ouviu o ruído lancinante de uma serra... as pancadas de um
martelo... E a voz do rapaz que cantava:
É uma flor de Páris
Do velho Páris que sorri
Pois é a flor do regresso
Do regresso aos belos dias.
Operários colocavam ardósia sobre a estrutura nova do telhado do castelo.
Uma de suas águas já estava toda recoberta. Uma porta escancarada mostrava
o interior inalterado da cozinha.
Vacilante, Léa recuou naquele pedaço do terreno que ela e suas irmãs
antigamente chamavam de rua.
Gritos de crianças e o som de risos chegavam a seus ouvidos. Léa queria
fugir, escapar daquela miragem, mas uma força irresistível a impelia para
aqueles gritos e aqueles risos.

O balanço oscilava entre as traves recobertas de glicínia. O tempo parou e,
de repente, ela saltou para o passado. Montada no balanço, havia agora uma
menina de cabelos revoltos que dizia:
— Mais alto, Mathias... mais alto!
Depois a imagem se desvaneceu e tudo retomou o seu lugar: as carpas
imóveis, as roseiras da alameda, as vinhas por entre os ciprestes, o trem
passando ao longe, o toque de um sino... Ela reconheceu a voz de suas irmãs.
Nada parecia ter mudado.
Léa avançou um pouco mais... Um homem, trazendo Charles pela mão,
vinha ao seu encontro.

 

 

                                                   Régine Deforges         

 

 

 

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