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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TALISMÃ / Peter Straub e Stephen-King
O TALISMÃ / Peter Straub e Stephen-King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TALISMÃ

 

Jack Sawyer, um garoto de 12 anos está prestes a iniciar uma jornada fantástica: a empolgante e assustadora busca de um talismã. Jack sabe que correrá muitos riscos, que terá sua coragem e resistência física testadas a cada segundo, mas vai lutar até o fim: de seu sucesso depende a vida de sua mãe... Para atingir sua meta, Jack terá de lutar contra um inimigo furioso e cruel, que está disposto a fazer qualquer coisa para destruí-lo e atravessar não apenas os Estados Unidos de costa a costa, mas também os Territórios, uma região assombrosa e ameaçadora.  

Onde ficam os Territórios? Como chegar a esta região fantástica e mítica que não pode ser alcançada de modo comum? Em que plano da existência se situa esse mundo tão intrigante quanto a Atlântida? Jack vence estes mistérios ao atravessar para os Territórios. Aí, descobre a desconcertante existência dos “Duplos”, reflexos de pessoas que conhece na Terra como a Rainha Laura, o “Duplo” de sua mãe, que também está com a vida por um fio.       

Jack não tem muito tempo e é longa a viagem. A cada passo de sua jornada, precisa enfrentar inimigos perigosos que o perseguem nos dois mundos. No entanto, ele persiste, pois só terá sossego quando o valioso talismã estiver em suas mãos...

 

A POUSADA DOS JARDINS DO ALHAMBRA

A 15 de setembro de 1981, um menino chamado Jack Sawyer estava onde a terra e o mar se encontram, mãos nos bolsos do jeans, contemplando o impetuoso Atlântico. Tinha 12 anos e era alto para a sua idade. A brisa marinha lhe repuxava o cabelo castanho, provavelmente comprido demais, da testa lisa e delicada. Permanecia ali, a cabeça cheia das confusas e dolorosas emoções com que aprendera a conviver nos últimos três meses — desde o momento em que a mãe fechara a casa onde moravam na Rodeo Drive em Los Angeles e, numa balbúrdia de mobília, cheques e imobiliárias, alugara um apartamento no Central Park West. Foi desse apartamento que escaparam para aquele tranqüilo local de veraneio na pequena costa de New Hampshire. Ordem e rotina desapareceram do mundo de Jack. Sua vida parecia tão tumultuada, tão sem controle quanto a água agitada diante dele. Sua mãe levava-o pelo mundo, movendo-se daqui para lá, puxando-o de um lugar para outro; mas o que movia sua mãe?

A mãe estava fugindo, fugindo.

Jack olhou em volta, contemplou a praia deserta, primeiro à esquerda, depois à direita. À esquerda ficava o Arcadia Funworld, um parque de diversões que vivia sempre cheio de gente e barulho de fins de maio a inícios de setembro. Agora estava quieto e vazio, como um coração entre duas batidas. A monta­nha-russa era um conjunto de andaimes contra a monotonia nublada do céu; os pilares de sustentação, as cantoneiras de ferro pareciam pinceladas de carvão. Lá embaixo estava seu novo amigo, Speedy Parker, mas agora o menino não podia pensar em Speedy Parker. À direita ficava a Pousada dos Jardins do Alhambra, e foi lá que os pensamentos implacáveis tomaram conta dele. No dia da chegada, Jack pensou ter visto um arco-íris sobre as águas-furtadas do telhado holandês. Sinal de sorte, promessa de coisas boas. Mas não havia arco-íris. Um cata-vento, caído num vento cruzado, girava da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Ele saltara do carro alugado, ignorando o desejo da mãe para que tomasse al­guma providência com relação à bagagem, e erguera os olhos. Acima do galo de latão do cata-vento havia apenas um céu esbranquiçado.

— Abra a mala e pegue a bagagem, filhinho — a mãe gritara. — Esta velha e cansada atriz quer en­trar logo no hotel e procurar alguma coisa para beber.

— Um martini seco — Jack dissera.

— “Você não é tão velha”, é isso que devia dizer, Jack.                                                  

Ela se ergueu com esforço do assento do carro.

— Você não é tão velha.

A mãe assumiu um ar luminoso — um lampejo da velha e arrogante Lily Cavanaugh (Sawyer), rai­nha, durante duas décadas, das produções classe B do cinema. Empinou as costas.

— Aqui vai ser muito bom, Jacky — ela dissera. — Tudo vai ser muito bom aqui. É um ótimo lugar. Uma gaivota esvoaçou pelo telhado do hotel e, por um segundo, Jack teve a inquietante sensação de que o cata-vento alçara vôo.

— Vamos ficar livres dos telefonemas por algum tempo, certo?

— Claro — Jack dissera. Ela queria se esconder do tio Morgan, não queria mais brigas com o sócio do falecido marido, queria se arrastar para a cama com um martini seco e cobrir a cabeça com o cobertor...

Mamãe, o que está havendo com você?

Havia muita morte, a morte ocupava metade do mundo. A gaivota gritou lá em cima.

— Vamos lá, rapaz, vamos lá — a mãe dissera. — Vamos entrar no Reino das Maravilhas.

Então, Jack pensou: Pelo menos, se as coisas ficarem realmente pretas, há sempre o tio Tommy para ajudar.

Mas o tio Tommy já tinha morrido; só que a notícia ainda estava na outra ponta de um monte de fios de telefone.

 

O alhambra se inclinava sobre as águas, uma grande massa vitoriana apoiada em gigantescos blocos de granito que, quase imperceptivelmente, pareciam fundir-se com um raso promontório — Clavicula saliente de granito nos poucos e parcos quilômetros da costa de New Hampshire. Os jardins simétricos naquele pedaço de terra mal eram visíveis do ponto da praia onde Jack se encontrava — uma ponta verde-escura de cerca de fícus, mais nada. O galo de latão continuava contra o céu, hesitando entre o vento do oeste e o do noroeste. No saguão, uma placa anunciava que fora lá, em 1838, que a Conferência Metodista do Norte realizara a primeira das grandes manifestações abolicionistas da Nova Inglaterra. Daniel Webster fizera um discurso inspirado, apaixonado. Segundo a placa, Webster disse: “De hoje em diante, saibam que a escravidão como instituição americana começou a definhar, e logo deve morrer em todos os nossos estados e territórios.”

 

Assim chegaram eles, naquele dia da última semana que dera fim ao tumulto dos meses que passaram em Nova York. Em Arcadia Beach não havia advogados empregados por Morgan Sloat pulando de automóveis e sacudindo papéis que tinham de ser assinados, tinham de ser encaminha­dos, Sra. Sawyer. Em Arcadia Beach, os telefones não tocavam sem. parar do meio-dia às três da manhã (o tio Morgan parecia esquecer que quem morava no Central Park West não partilhava do horário da Califór­nia). De fato, em Arcadia Beach os telefones jamais tocavam.

Entrando na pequena cidade de veraneio, a mãe dirigindo com dupla concentração, Jack vira ape­nas uma pessoa nas ruas — um velho louco empurrando aleatoriamente um carrinho de mercado vazio por uma calçada. Acima deles ficava aquele céu cinza e vazio, um céu incômodo. Em total contraste com Nova York, naquele lugar só havia o barulho contínuo do vento. O vento soprava por ruas desertas que, sem tráfego para ocupá-las, pareciam largas demais. E havia lojas vazias com tabuletas nas janelas: só abre nos fins de semana ou, pior ainda, volto em junho! Havia uma centena de lugares vazios para estacionar diante do Alhambra; havia mesas vazias no Arcadia Tea and Jam Shoppe, que ficava ao lado do hotel.

E pobres velhos loucos empurrando carrinhos de mercado por ruas desertas.

— Passei as três semanas mais felizes da minha vida neste lugarzinho engraçado — disse Lily, ul­trapassando o velho (o velho virou a cabeça, Jack notou, para olhá-los por trás com atemorizada desconfiança — ele estava falando alguma coisa, mas Jack não saberia dizer o quê). Sacolejando, o carro seguiu o caminho sinuoso que atravessava os jardins na frente do hotel.

Foi para chegar ali que tinham enfiado todas as coisas sem as quais não podiam viver em malas, valises e sacos de compras de plástico, depois virado a chave na fechadura da porta do apartamento (ig­norando o toque estridente do telefone, que pareceu atravessar o buraco da fechadura e persegui-los pelo corredor). Foi para chegar ali que tinham enchido o bagageiro e o banco traseiro do carro alugado com todas as sacolas e malas transbordando de coisas, que gastaram horas se arrastando para o norte pela Ro­dovia Henry Hudson, depois horas e mais horas avançando pela estrada 1-95 — porque, certa vez, Lily Cavanaugh Sawyer fora feliz ali. Em 1968, um ano antes do nascimento de Jack, Lily fora indicada para um prêmio da Academia por seu desempenho numa fita chamada Labareda. Labareda era melhor do que a maioria dos filmes em que Lily tinha trabalhado, e nele fora capaz de demonstrar um talento bem maior do que tinha revelado em seus habituais papéis de moça má. Ninguém esperava que Lily vencesse, muito menos ela; mas para Lily, o surrado clichê de que a verdadeira honra está na indicação, não na vitória, era mesmo verdade. Ela se sentia profunda e sinceramente orgulhosa, e para comemorar aquele momento de real reconhecimento profissional, Phil Sawyer tomara a sábia decisão de levá-la para três semanas de férias na Pousada dos Jardins do Alhambra, do outro lado do continente. Ali viram a festa do Oscar pela televi­são, tomando champanha na cama. (Se Jack fosse mais velho e já tivesse tido ocasião de pensar nisso, talvez fizesse as contas e descobrisse que o Alhambra era o lugar onde ele fora concebido.)

Segundo uma lenda de família, quando foram lidas as indicações para melhor atriz coadjuvante, Lily resmungara para Phil:

— Se eu ganhar esta coisa sem estar lá, vou enfiar aqueles saltinhos afiados do meu sapato no seu peito.

Mas quando Ruth venceu, Lily comentou:

— Certo, ela merece, é uma grande garota — e imediatamente cutucou o peito do marido, acres­centando: — Mas é melhor você me arranjar outra festa como essa! Afinal, é ou não é um mandachuva?

Não houve mais festas como aquela. O último papel de Lily, dois anos depois da morte de Phil, foi o de uma cínica ex-prostituta num filme chamado Maníacos de motocicleta.

 

Era essa ocasião que Lily estava comemorando agora, Jack sabia disso enquanto tirava a bagagem da mala e do banco traseiro. Uma sacola D’Agostino rasgara de cima a baixo depois do grande D’Ag e uma misturada de meias enroladas, fotos soltas, peças de xadrez e livros de histórias em quadrinhos se es­palhou por todo canto. Jack conseguiu enfiar a maior parte das coisas dentro de outras sacas. Lily ia subin­do devagar a escada do hotel, apoiando-se no corrimão como uma velha.

— Vou chamar um empregado do hotel — disse ela sem se virar para trás.

Jack se empinou entre as sacas e olhou de novo para o céu, onde tinha certeza de ter visto um ar­co-íris. Não havia arco-íris, só aquele céu incômodo e incerto.

Então:

— Venha até aqui! — disse alguém atrás dele numa voz baixa mas perfeitamente audível.

— O quê? — ele perguntou, olhando em volta. Os jardins vazios e a estrada estendiam-se na sua frente.

— Falou comigo? — a mãe perguntou. Parecia estar com cãibra nas costas, curvada sobre a maça­neta da grande porta de madeira.

— Não — disse ele. Não havia voz, nem arco-íris. Esqueceu as duas coisas e olhou para a mãe, que lutava com a enorme porta. — Espere, vou ajudar! — gritou e correu pelos degraus, carregando desajeita­damente uma grande maleta e uma sacola de papel abarrotada de suéteres.

 

Até o encontro com Speedy Parker, Jack atravessou os dias no hotel tão inconscien­te da passagem do tempo quanto um cachorro dormindo. Toda a sua vida lhe pareceu quase um sonho durante aqueles dias, um sonho cheio de sombras e inexplicáveis transições. Mesmo a terrível notícia sobre o tio Tommy que chegara pelos fios do telefone na noite anterior não conseguira despertá-lo inteiramen­te, por mais chocante que tivesse sido. Se Jack fosse um místico, podia ter achado que forças desconheci­das tinham se apoderado dele e estavam manipulando sua vida e a de sua mãe. Afinal, Jack Sawyer, um menino de 12 anos, precisava de coisas com que se ocupar, e a mansidão silenciosa desses dias, após o tumulto de Manhattan, tinha-o desconcertado e afetado de alguma maneira fundamental.

Jack se descobrira de pé na praia sem qualquer lembrança de ter ido até lá, absolutamente nenhu­ma idéia do que estava fazendo lá. Achava que estava sentindo a morte do tio Tommy, mas era como se sua mente tivesse ido dormir, deixando que o corpo se virasse sozinho. Não conseguia se concentrar o bastante para entender o enredo dos seriados que ele e Lily viam à noite na TV, muito menos guardar na cabeça as nuances das histórias.

— Você está cansado de todo este movimento — dizia a mãe, tragando profundamente o cigarro e espreitando-o através da fumaça. — O que você precisa, Jack, é descansar um pouco. Este é um bom lugar. Vamos desfrutá-lo o máximo que pudermos.

Bob Newhart, num tom ligeiramente vermelho na tela de TV, olhava estupidamente para o sapato que segurava na mão direita.

— É isso o que estou fazendo, Jacky — ela sorriu. — Relaxando e aproveitando.

Ele deu uma espiada no relógio. Já estavam sentados há duas horas diante da televisão e ele não conseguia se lembrar de nada que acontecera antes daquele programa.

Tinha se levantado para ir dormir quando o telefone tocou. Será que o velho tio Morgan Sloat ha­via descoberto onde estavam? As notícias do tio Morgan nunca eram muito boas, mas aquela sem dúvida devia ser uma bomba e tanto, mesmo pelos padrões do tio Morgan. Jack parou no meio do quarto, vendo o rosto da mãe ir ficando pálido, mais pálido, palidíssimo. Ela levou a mão à garganta, onde nos últimos meses tinham aparecido novas rugas, e fez uma leve pressão. Praticamente não falou nada até o fim da conversa, quando então sussurrou “Obrigada”, e desligou. Depois virou-se para Jack, parecendo mais ve­lha e angustiada que nunca.

— Você vai ter de ser forte, Jacky, tudo bem?

Ele não se sentia forte.

Ela pegou sua mão e contou:

— O tio Tommy morreu atropelado hoje à tarde, Jack.

Jack suspirou, como se o ar tivesse sido arrancado de dentro dele.

— Estava atravessando o Bulevar La Cienega quando foi atingido por um caminhão. O caminhão fugiu. Uma testemunha disse que era preto e tinha as palavras criança rebelde escritas do lado, mas foi só... só isso.

Lily começou a chorar. Pouco depois, Jack também começou a chorar.

O choro o pegara quase de surpresa. Tudo isso tinha acontecido três dias atrás, e para Jack parecia uma eternidade.

 

A 15 de setembro de 1981, um menino chamado Jack Sawyer estava contemplando o impetuoso mar numa praia desconhecida. Havia um hotel que parecia um castelo tirado de um romance de Sir Walter Scott. Queria chorar, mas não conseguia soltar as lágrimas. Estava cercado pela morte, a morte ocupava metade do mundo, e não existiam arco-íris. O caminhão criança rebelde tirara tio Tommy do mundo. Tio Tommy, morto em Los Angeles, longe demais da costa leste, onde mesmo um garoto como Jack sabia que era o lugar dele. Um homem que punha uma gravata para comer um sanduíche de rosbife no Arby’s não tinha nada de ir para a costa oeste.

O pai de Jack morrera, o tio Tommy morrera, a mãe podia estar morrendo. Jack sentia a morte tam­bém ali, em Arcadia Beach, onde ela falava pelos telefones com a voz do tio Morgan. Não era uma coisa tão corriqueira ou óbvia quanto a sensação de melancolia de um lugar de veraneio fora da estação, onde não se pára de tropeçar nos fantasmas de verões passados; não, a morte parecia estar na textura das coi­sas, um cheiro na brisa do oceano. Ele tinha medo... e já tinha medo há muito tempo. No meio da calma de Arcadia Beach, ele começara a perceber esse medo... E começara a achar que talvez a morte tivesse subido toda a estrada I-95 com eles, desde Nova York, espreitando através da fumaça de cigarro e pedin­do-lhe que achasse alguma música boa no rádio do carro.

Podia lembrar — vagamente — do pai dizendo que ele já era um homem feito, mas não era assim que se sentia agora. Agora Jack se sentia muito criança. Com medo, ele pensou. Estou com um medo terrível. Este lugar é o fim do mundo, certo?

Gaivotas cruzaram o ar cinzento. O silêncio era tão cinzento quanto o ar — tão sinistro quanto os círculos cada vez maiores embaixo dos seus olhos.

 

Quando, depois de não saber mais há quantos dias vagava entorpecido pelo tem­po, Jack caminhou até o parque de diversões Funworld e encontrou Lester Speedy Parker, aquela inerte sensação de estar em suspenso o abandonou um pouco. Lester era um homem preto com cabelo grisalho, crespo, e Sulcos profundos cortando-lhe o rosto. Não tinha absolutamente nada de notável apesar do que pudesse ter feito no passado, quando era músico de blues e não parava de viajar. Também não dissera qualquer coisa fora do comum. Contudo, assim que Jack entrou por acaso no pátio do Funworld e se de­parou com os olhos pálidos de Speedy, sentiu o entorpecimento abandoná-lo. Voltara a ser ele mesmo. Era como se uma energia mágica tivesse passado diretamente do velho para Jack. Speedy sorrira e dissera:

— Bem, parece que vou ter um pouco de companhia. O pequeno viajante acabou de chegar.

Era verdade, Jack não estava mais em suspenso: um segundo atrás, sentia-se envolvido numa nu­vem de algodão doce e penugem meio úmida, mas agora se libertara dela. Um halo prateado pareceu girar um instante em volta do velho, uma fina auréola de luz que desapareceu assim que Jack piscou. Pela primeira vez, Jack percebeu que o homem estava segurando o cabo de uma grande e pesada vassoura.

— Tudo bem com você, filho? — O homem pôs a mão nos rins e esticou as costas. — Acha que o mundo está ficando pior ou melhor?

— Hã, melhor — disse Jack.

— Então eu diria que você chegou ao lugar certo. Como se chama?

Pequeno viajante, fora assim que Speedy o chamara naquele primeiro dia, seja bem-vindo, peque­no viajante! Ele inclinara o corpo alto e anguloso contra a vassoura, os braços em volta do cabo como se pegasse uma moça para dançar. O sujeito que você está vendo se chama Lester Speedy Parker, que antiga­mente também viajava bastante, isso mesmo, filho... Oh, Speedy conhecia a estrada, conhecia todas as estradas... Mas isto foi nos bons tempos. Eu tinha uma banda, Jack Viajante, e tocava blues. Blues em gui­tarra. Também gravei alguns discos, rapaz, mas não vou deixá-lo encabulado perguntando se já ouviu al­gum. Cada sílaba de Speedy tinha sua própria cadência rítmica, cada frase uma melodia e sonoridade pró­prias; Speedy Parker carregava uma vassoura em vez da guitarra, mas ainda era músico. Nos primeiros cinco segundos da conversa, Jack percebeu que seu pai, amante do jazz, teria gostado muito da compa­nhia daquele homem.

Durante três ou quatro dias, andara quase todo o tempo atrás de Speedy, vendo-o trabalhar e aju­dando-o quando podia. Speedy deixava-o martelar um ou dois pregos, lixar alguma estaca que precisasse ser pintada; essas tarefas simples, feitas sob a supervisão de Speedy, eram a única coisa de que podia se ocupar, mas o faziam se sentir melhor. Agora Jack via seus primeiros dias em Arcadia Beach como um pe­ríodo de angústia contínua, da qual fora resgatado por aquele novo amigo. Pois Speedy Parker era um amigo infalível — assim como era infalível que havia nele uma certa dose de mistério. Desde que Jack se livrara do seu atordoamento (ou desde que Speedy o libertara, dispersando a nuvem sombria com um lampejo dos olhos coloridos de luz), Speedy Parker se tornara mais íntimo dele do que qualquer outro amigo, com a possível exceção de Richard Sloat, que Jack conhecia praticamente desde o berço. E agora, para contrabalançar o terror com a perda do tio Tommy e o medo de que a mãe também estivesse mor­rendo, Jack sentia a força da presença esperta e calorosa de Speedy. Isso o impedia de perder o equilíbrio.

Mas de novo, e incomodamente, Jack experimentava a velha sensação de estar sendo dirigido, de estar sendo manipulado: como se um fio invisível o tivesse puxado junto com a mãe para aquele lugar abandonado na beira do mar.

Eles, quem quer que eles fossem, o queriam ali.

Ou será que isso era apenas loucura? Em sua visão interior, ele via um velho curvado, evidente­mente meio maluco, falando sozinho e empurrando um carrinho de compras vazio pela calçada.

No ar, uma gaivota gritou, e Jack prometeu a si mesmo que se obrigaria a falar sobre algumas de suas sensações a Speedy Parker. Mesmo que Speedy ficasse achando que ele não estava regulando bem; mesmo que risse na sua cara. Mas, no fundo, Jack sabia que ele não ia rir. Eram amigos do peito e uma das coisas que Jack compreendia do velho zelador do parque era que podia contar a ele quase tudo o que lhe viesse à cabeça.

Só que ainda não estava preparado para uma conversa dessas. Tudo era muito doido, ele não en­tendia muito bem o que estava acontecendo. Quase com relutância, virou as costas para o parque Funworld e avançou penosamente pela areia em direção ao hotel.

 

O FUNIL SE ABRE

Mais um dia se passara, mas Jack Sawyer continuava na mesma. À noite, porém, ti­vera um dos maiores pesadelos de toda a sua vida. No sonho, uma criatura terrível vinha avançando para sua mãe, uma monstruosidade atarracada, com olhos no lugar errado e pele podre, furada como queijo. Sua mãe está quase morta, Jack! Não quer dizer aleluia?, rosnara o monstro, e Jack sabia — do modo como se sabe das coisas nos sonhos — que o monstro era radioativo, que se o tocasse também iria mor­rer. Acordara com o corpo encharcado de suor, à beira de um grito estridente. Foi pelas pancadas cons­tantes da rebentação das ondas que voltou a saber onde estava, mas levou horas para conseguir dormir de novo.

De manhã, teve vontade de contar o sonho à mãe, mas Lily tinha se levantado amarga e pouco co­municativa, escondida numa nuvem de fumaça de cigarro. Só quando saiu da cafeteria do hotel num pas­so enganosamente firme é que lhe dispensou um sorriso.

— Vá pensando no que quer comer esta noite.

— Qualquer coisa?

— É. Menos sanduíches. Não fiz toda essa caminhada de Los Angeles a New Hampshire para me envenenar com cachorros-quentes.

— Por que não vamos a um daqueles restaurantes de frutos do mar na Praia Hampton? — Jack per­guntou.

— Boa idéia. Agora vá brincar.

Agora vá brincar, Jack pensou com uma amargura que não lhe era habitual. Oh, sim, mamãe, já estou indo! Tudo bem! Estou indo brincar! Mas com quem? Mamãe, porque você está aqui? Por que nós estamos aqui? Você está doente? Por que não me fala mais do tio Tommy? O que o tio Morgan anda fazendo? O que...

Perguntas, perguntas. E nenhuma delas valia um caracol, pois não havia ninguém para respon­dê-las.

A não ser que Speedy...

Mas isso era ridículo; como podia um preto velho que ele acabara de conhecer resolver algum de seus problemas?

Contudo, a imagem de Speedy Parker dançava em sua mente quando ele trotava pela calçada da praia e descia para a areia deprimentemente vazia.

 

Aqui é o fim do mundo, certo?, Jack pensou outra vez.

Gaivotas cruzavam o ar cinzento. O calendário dizia que ainda era verão, mas em Arcadia Beach o verão terminava no início de setembro. O silêncio era cinzento como o ar.

Jack olhou para os sapatos de lona e viu que havia uma substância preta e pegajosa grudada neles. Lama da praia, pensou. Alguma espécie de poluição. Mas não tinha a menor idéia de onde sujara o sapato daquela maneira e, meio inquieto, saiu da beira d’água.

As gaivotas rodavam no ar, mergulhando e gritando. Uma delas piou em cima de sua cabeça e Jack ouviu um estalo sonoro, quase metálico. Virou-se a tempo de vê-la completar um vôo desajeitado e ater­rissar num monte de pedras. A ave virou a cabeça em movimentos rápidos, quase robóticos, como se qui­sesse certificar-se de que estava sozinha. Depois pulou para a areia lisa e um tanto úmida, onde jazia o marisco que havia pego. O marisco rachara como um ovo e Jack viu carne crua dentro dele, ainda se con­torcendo. Ou talvez fosse apenas sua imaginação.

Não quero ver isto.

Mas antes que pudesse dar meia-volta, o bico amarelo e curvo já estava puxando a carne, esticando-a como um elástico. Foi como se uma escorregadia mão lhe apertasse o estômago. Pôde ouvir na cabeça o grito do tecido sendo distendido — nada coerente, só um pedaço estúpido de carne gritando de dor.

Novamente tentou desviar os olhos da gaivota e não conseguiu. O bico se abriu, proporcionando uma breve visão da goela rosada e suja. O marisco se contraiu na concha rachada e de repente a gaivota virou-se para Jack, uma escuridão mortal nos olhos confirmando a horrível verdade: os pais morrem, as mães morrem, os tios também morrem, mesmo se estudaram em Yale, mesmo se parecem tão sólidos quanto paredes de banco e usam elegantes ternos e coletes Savile Row. As crianças também devem mor­rer. No final das contas, talvez só reste um estúpido grito irracional de tecido vivo.

— Ei! — disse Jack em voz alta, inconsciente de estar fazendo qualquer coisa além de pensar den­tro de sua cabeça. — Ei, me dê uma chance de escapar!

A gaivota subiu em cima da presa, contemplando Jack com os olhos negros e líquidos. Então co­meçou de novo a escavar a carne. Quer um pedaço, Jack? Ainda está se mexendo! Meu Deus, está tão fres­ca que é capaz de nem saber que morreu!

O forte bico amarelo curvou-se de novo sobre a carne e puxou. Esticaaaaaaaaando...

Depois a gaivota engoliu. Ergueu a cabeça para o nublado céu de setembro e pôs a garganta para funcionar. E de novo pareceu virar-se para Jack, do modo como os olhos de certas gravuras parecem sem­pre nos contemplar, por mais que nos desloquemos diante deles. E os olhos... Ele conhecia aqueles olhos.

De repente, Jack queria sua mãe, os profundos olhos azuis da mãe. Não se lembrava de ter ansiado tão desesperadamente por ela desde que era muito, muito pequeno. La-ra-lá, ele a ouvia cantar dentro da cabeça, e sua voz era a voz do vento, do vento que estava ali e que logo estaria também em outro lugar. Boi, boi, boi; boi da cara preta; leva esse menino que tem medo de careta. E toda essa coisa... Memórias de ser embalado, a mãe fumando um Herbert Tareyton atrás do outro, dando talvez uma olhada num script... Páginas melancólicas, ela dizia. Ele se lembrava disso: páginas melancólicas. La-ra-lá, tudo em paz, Jacky meu bem. Mamãe ama você, Jacky. Shhh... durma. La-ra-la-rá...

A gaivota estava olhando para ele.

Com um súbito horror, que lhe entupiu a garganta como água salgada e quente, Jack percebeu que a ave estava realmente olhando para ele. Aqueles olhos negros (olhos de quem?) o estavam vendo. E ele conhecia aquele olhar.

Um pedaço de carne crua ainda pendia do bico. A gaivota sorveu-o. O bico se abriu num estranho mas inequívoco sorriso.

Então Jack se virou, abaixou a cabeça e correu, olhos fechados contra as lágrimas de sal quente, sa­patos de lona cavando a areia. Se houvesse um jeito de subir, subir e subir para os olhos de alguma gaivo­ta, só Jack, só as pegadas de Jack quebrariam a sombra daquele dia; Speedy Parker esquecido, Jack Saw­yer, 12 anos e sozinho, voltando às pressas para a pousada, a voz quase perdida nas lágrimas e no vento gritando sem parar: não, não e não.

Sem fôlego, ele parou na ponta da praia. Uma pontada de dor, vinda do meio das costelas, subiu-lhe pelo lado esquerdo até o fundo do sovaco. Sentou-se num dos bancos que a Prefeitura instalara para gente velha e tirou o cabelo dos olhos.

Controle-se, homem. Se o Sargento Fúria entrar na Seção Oito, quem vai ser escolhido para chefiar os Comandos Relâmpagos?

Ele sorriu e de fato se sentiu um pouco melhor. De onde estava, a quase 20 metros da água, as coi­sas pareciam melhores. Talvez por causa da mudança de pressão barométrica, alguma coisa desse tipo. O que acontecera ao tio Tommy era horrível, mas tinha de superar aquilo, tinha de aceitar o fato. Pelo me­nos, fora o que a mãe dissera. Ultimamente as notícias trazidas pelo telefone eram as piores possíveis... Bem, o telefone sempre fora uma peste.

E quanto à mãe... Afinal, era uma grande mãe, não era?

Na realidade, ele pensou, sentado no banco e cavando com o dedo do pé a areia junto à calçada, na realidade podia estar tudo bem com a mãe. Podia estar tudo bem, sem dúvida era possível. Afinal, não tinha aparecido ninguém dizendo que era o grande C, certo? Não. Se ela estava com câncer, não o teria le­vado para Arcadia Beach, teria? Era muito mais provável que estivessem na Suíça, a mãe tomando banhos frios de água mineral, comendo coisas horríveis, algo do gênero. É o que ela faria, claro!

Então, talvez...

Um som murmurante, baixo e seco, introduziu-se em sua consciência. Ele baixou a cabeça e os olhos se arregalaram. A areia começara a se mover junto à ponta do sapato do pé esquerdo. Os grãos brancos e finos iam deslizando num pequeno círculo, com talvez um dedo de diâmetro. A areia ia sumin­do no meio do círculo, formando uma cavidade de uns cinco centímetros de profundidade. As paredes da cavidade continuavam em movimento: rodando, rodando, rodando com rapidez no sentido contrário aos ponteiros do relógio.

Não é real, ele disse imediatamente para si mesmo, mas o coração começou a disparar. A respira­ção também se acelerou. Não é real, é um daqueles sonhos de olhos abertos, só isso. Talvez seja um caran­guejo, um bicho qualquer...

Mas não era um caranguejo e não era um dos sonhos de olhos abertos — não era o outro lugar, o lugar que sua cabeça imaginava quando as coisas estavam chatas ou um tanto assustadoras. E, sem a me­nor sombra de dúvida, não era um caranguejo.

A areia começou a rodopiar mais depressa, fazendo um barulho árido, seco, fazendo Jack pensar em eletricidade estática, a eletricidade de uma experiência que fizera no ano anterior na escola com uma garrafa de Leyden. Mais que árido e seco, o som diminuto parecia um longo e profundo suspiro, a respira­ção final de um homem morrendo.

Mais areia desmoronava e começava a rodopiar. Agora já não era uma cova; era um funil na areia, uma espécie de redemoinho. O amarelo brilhante de uma embalagem de goma de mascar apareceu, sumiu, apareceu, sumiu, apareceu de novo... A cada vez que a goma aparecia (e o funil se alargava), Jack ia conseguindo ler a embalagem, fr, depois fru, depois fruto suc. O funil aumentava e a areia ia saindo de cima da goma. Era um movimento tão rápido e tão rude quanto o de um braço irritado atirando ao chão as cobertas de uma cama feita. fruto suculento era o que estava escrito. Então a goma veio vindo à tona.

A areia girava cada vez mais depressa, numa fúria sibilante. Hhhhhhaaaaahhhhhhhh era o som que a areia fazia. Jack não desviava os olhos, a princípio fascinado, depois apavorado. A areia ia se abrin­do como um grande olho negro: era o olho da gaivota que derrubara o marisco e depois puxara a carne viva de dentro dele como um elástico.

Hhhhhhhaaaaahhhhh, zombava o esguicho da areia numa voz seca, fria. Não era uma voz gentil. E por mais que Jack quisesse que ela só existisse na sua cabeça, era uma voz de verdade.

A dentadura dele voou, Jack, quando ele foi atropelado pela criança rebelde; a dentadura voou longe, foi chocalhando longe! Yale ou não Yale, quando o velho caminhão criança rebelde aparece e põe a nocaute seus dentes postiços, você tem de ir junto, Jacky. E sua mãe...

Então Jack estava correndo de novo, às cegas, sem olhar para trás, o cabelo pulando da testa, os olhos arregalados, aterrados.

Jack cruzou o mais rápido que pôde o escuro saguão do hotel. A atmosfera do lu­gar o impedia de correr; tudo era silencioso como uma biblioteca e a luz sombria que se filtrava pelos pai­néis das janelas altas suavizava e borrava os tapetes, por si só já desbotados. Mas Jack irrompeu num trote acelerado depois de ultrapassar o balcão da recepção, e o porteiro do dia, de ombros curvos e pele cinza, escolheu justamente aquele momento para emergir do arco de madeira de um corredor. O porteiro não disse nada, mas sua carranca permanente puxou os cantos da boca um pouco mais para baixo. Para Jack, fora como ser apanhado correndo dentro de uma igreja. O garoto limpou a testa com a manga da camisa e concluiu o resto do caminho para os elevadores, andando. Apertou um botão, sentindo a cara feia do por­teiro se abrasar entre os ombros. Durante toda a semana, a única vez que Jack vira o empregado sorrir foi quando ele reconheceu sua mãe. E mesmo assim o sorriso pareceu atender apenas às exigências mínimas de uma recepção amável.

— Imagino como uma pessoa tem de ser velha para se lembrar de Lily Cavanaugh — a mãe co­mentou assim que se viu sozinha com Jack.

Houve uma época, e não há muito tempo, em que ser identificada, reconhecida por algum espec­tador dos 50 filmes que fizera nos anos 50 e 60 (“Rainha das Produções B”, costumavam chamá-la; e ela mesma dizia: “Sou a pérola dos filmes de drive-in”), fosse um motorista de táxi, um garçom ou a mulher que vendia blusas no Wilshire Boulevard Saks, levantava-lhe horas a fio o moral. Agora, mesmo esse pe­queno prazer perdera toda a graça para Lily.

Jack andava de um lado para o outro diante da porta imóvel do elevador; ouvia uma voz fantástica e familiar sair de um funil rodopiante de areia. Por um instante, viu Thomas Woodbine, o solidamente ins­talado tio Tommy Woodbine (que devia ter sido um de seus guardiães, um sólido muro contra problemas e confusão) atropelado e morto no Bulevar Cienega, os dentes espalhados como pipoca sete metros à frente, na sarjeta. Apertou outra vez o botão.

Anda logo!

Então viu uma coisa pior: a mãe arrastada para um carro por dois homens de rosto impassível.

De repente, Jack teve vontade de urinar e achatou a palma da mão contra o botão. O homem cinza e torto atrás do balcão proferiu um catarrento som de desagrado. Jack apertou com a ponta da outra mão aquele lugar mágico logo abaixo do estômago que diminuía a pressão na bexiga. Agora podia ouvir o zumbido lento do elevador descendo. Fechou os olhos, apertou uma perna contra a outra. Sua mãe permanecia vacilante, perdida, confusa. E os homens a forçaram a entrar no carro tão facilmente quanto se ela fosse um frágil cachorrinho collie. Mas aquilo não estava realmente acontecendo, ele sabia; era uma lembrança — parte da coisa deve ter acontecido num dos sonhos de olhos abertos, e por certo acontecera não à mãe, mas a ele.

As portas de mogno do elevador deslizaram para revelar um interior sombrio e ele deparou com o próprio rosto num espelho manchado, descascado. Então uma imagem de quando tinha sete anos envol­veu-o brutalmente. Viu dois homens. Os olhos de um deles ficaram amarelos e a mão do outro se transfor­mou numa espécie de garra, feroz e inumana... Jack pulou no elevador como se tivesse sido espetado por um garfo.

Não era possível: os sonhos de olhos abertos eram impossíveis, ele não vira os olhos de um ho­mem passando de azul a amarelo e tudo sempre esteve bem, ótimo, com a mãe. Não havia nada a temer, ninguém estava morrendo e só havia perigo para a presa da gaivota. Fechou os olhos e o elevador subiu lentamente.

Aquela coisa na areia tinha rido para ele.

Jack se espremeu pela fresta assim que a porta começou a abrir. Passou correndo pelas bocas fe­chadas de outros elevadores, virou à direita para o corredor de madeira, atravessou em disparada os candelabros das paredes e os quadros. Correr ali não parecia um sacrilégio. Ocupavam o 407 e o 408, um conjunto formado por uma pequena cozinha, dois quartos e uma sala de estar que davam para o contorno longo e suave da praia e a vastidão do oceano. A mãe conseguira flores em algum lugar, arrumara as flo­res em jarros e colocara a pequena coleção de porta-retratos junto delas. Jack aos cinco anos, Jack aos 11 anos, Jack como um bebê nos braços do pai. O pai, Philip Sawyer, no volante do velho DeSoto em que ti­nha ido para a Califórnia junto com Morgan Sloat — naquela época (inimaginável) eram tão pobres que freqüentemente tiveram de dormir no carro durante a viagem.

Jack escancarou o 408, porta da sala de estar, e gritou:

— Mamãe! Mamãe!

As flores se depararam com ele, as fotografias sorriam; não houve resposta.

— Mamãe!

A porta bateu atrás dele. Jack sentiu um frio no estômago. Disparou pela sala de estar em direção ao grande quarto à direita.

— Mamãe!

Outro jarro de flores compridas e brilhantes. A cama estava vazia, a colcha parecia engomada, pas­sada a ferro, e alguém dobrara cuidadosamente o acolchoado. Na mesa-de-cabeceira havia um grande sortimento de vidros marrons com vitaminas e outros compridos. Jack recuou. A janela da mãe mostrava ondas negras rolando em sua direção.

Dois homens nebulosos, saltando de um carro nebuloso, avançavam para ela...

— Mamãe! — ele gritou.

— Já ouvi você, Jack! — veio a voz da mãe pela porta do banheiro. — Que diabo...?

— Oh — ele exclamou e sentiu todos os músculos relaxarem. — Desculpe. Eu não sabia onde você estava.

— Tomando banho — disse ela. — Estou me aprontando para o jantar. Não tenho esse direito?

Jack percebeu que não precisava mais ir ao banheiro. Deixou-se cair numa das poltronas e cerrou os olhos de alívio. Ela ainda estava bem...

Por ora ainda está bem, uma voz sombria sussurrou e ele viu se abrir de novo em sua mente o funil de areia. Rodopiando.

 

Subindo 12 ou 13 quilômetros a estrada da costa, logo na saída do município de Hampton, encontraram um restaurante chamado O Castelo da Lagosta. Jack fizera um relatório bastante incompleto de seu dia. Contudo, já estava dominando o que sentira na praia; o terror ia diminuindo em sua memória. Um garçom de paletó vermelho com uma lagosta amarela desenhada nas costas indicou uma mesa junto de uma janela comprida de veneziana.

— Gostaria de beber alguma coisa, madame?

O garçom tinha um rosto inexpressivo e indiferente, típico da Nova Inglaterra. Pressentindo atrás de seus lacrimosos olhos azuis uma indignação por não estar usando um bonito casaco esporte Ralph Lauren como o dele e por ter de servir uma mulher que trajava com negligência um surrado vestido esporte da Halston, Jack sentiu a alfinetada de um terror mais familiar: simples saudades de casa. Mamãe, se você não está realmente maluca, que diabo estamos fazendo aqui? O lugar está vazio! É de dar calafrios! Jesus!

— Pode me trazer um martini seco — disse ela. — Ou melhor, um martini elementar.

O garçom levantou as sobrancelhas.

— Como, madame?

— Gelo no copo — disse ela. — Azeitona no gelo. Gim Taqueray sobre a azeitona. Depois... Está anotando o que estou dizendo?

Mamãe, pelo amor de Deus, não está vendo os olhos dele? Você acha que está sendo encantadora; ele acha que está debochando dele! Não está vendo os olhos?

Não. Ela não estava. E aquela falta de percepção, quando fora sempre tão sensível aos sentimentos das outras pessoas, era uma pedra atirada no coração de Jack. A mãe estava definhando... em todos os sentidos.

— Sim, madame.

— Depois — ela continuou — pegue uma garrafa de vermute, qualquer marca, e vire uma dose no copo. Aí guarde o vermute na prateleira e me traga o copo. OK?

— Sim, madame.

Olhos frios e lacrimosos da Nova Inglaterra fitavam sua mãe sem qualquer simpatia. Nós dois esta­mos sozinhos aqui, Jack pensou, percebendo isso pela primeira vez. Jesus, SÓ nós dois!

— Alguma coisa, meu jovem?

— Eu queria uma Coca — disse Jack angustiado.

O garçom se afastou. Lily revirou a bolsa e pegou um maço de Herbert Tarrytoons (desde que Jack era bebê, era assim que Lily chamava os cigarros Herbert Tareyton; “Traga os meus Tarrytoons, Jacky!”, di­zia ela. “Estão aí na prateleira!” Jack não conseguiria imaginar cigarros com qualquer outro nome). Acen­deu um deles. Tossiu a fumaça em três ásperas explosões.

Era mais uma pedra contra o coração de Jack. Dois anos atrás, a mãe parara totalmente de fumar. Jack tinha esperado a recaída com aquele estranho fatalismo que é o lado irreverente da credulidade e inocência infantis. A mãe sempre fumara, logo, voltaria a fumar. Mas não tinha voltado... Não até três me­ses atrás, em Nova York. Carltons. Rodando pela sala de estar do apartamento no Central Park West, tirando baforadas como uma locomotiva, se acocorando diante do aparelho de som, remexendo seus velhos discos de rock ou os velhos discos de jazz do falecido marido.

— Está fumando cigarros de novo, mamãe? — ele perguntou.

— Não, estou fumando folhas de repolho — ela respondeu.

— Queria que não fumasse.

— Por que não liga a TV? — ela perguntou virando-se para o filho com uma aspereza que não lhe era própria, lábios contraídos. — Talvez veja Jimmy Swaggart ou o Reverendo Ike. Fique cantando aleluia com eles e dizendo amém com as beatas.

— Desculpe — ele murmurou.

Bem... era apenas Carlton, um cigarro suave. Mas não! Ali estava um Herbert Tarrytoons, o mesmo antiquado maço azul e branco, as ponteiras que pareciam filtros mas não eram. Lembrava-se vagamente de ter ouvido o pai comentar com alguém que ele fumava Winstons, mas a mulher fumava Pulmões Negros.

— Alguma coisa errada, Jack? — ela perguntou, os olhos muito brilhantes fixos nele, o cigarro na velha e ligeiramente excêntrica posição entre o segundo e o terceiro dedos da mão direita. Ai dele se dis­sesse alguma coisa! Que se atrevesse a dizer: “Mamãe, vejo que voltou a fumar Herbert Tarrytoons. Acha então que não tem mais nada a perder?”.

— Não — ele respondeu. Aquela angustiante, desnorteante saudade de casa envolveu-o de novo. Teve vontade de chorar. — O problema é este lugar. É um pouco estranho.

Ela olhou ao redor e sorriu. Dois outros garçons, um gordo e um magro, ambos de paletó verme­lho com uma lagosta dourada atrás, permaneciam ao lado da porta de vaivém que dava para a cozinha. Conversavam baixo. Uma corda de veludo, estendida desde a entrada, separava o saguão onde Jack e a mãe estavam de uma enorme sala de jantar. As cadeiras estavam viradas em formas piramidais sobre as mesas. O salão parecia uma gruta sombria. Lá no fundo, uma enorme janela envidraçada dava para uma sacada. E na sacada havia um arco gótico que fez Jack se lembrar da Noiva da morte, um filme em que a mãe trabalhara. Fazia o papel de uma jovem cheia de dinheiro que, contra a vontade dos pais, tinha se ca­sado com um bonito e sinistro estrangeiro. O bonito e sinistro estrangeiro levou-a para uma grande casa perto do oceano e tentou enlouquecê-la. Noiva da morte fora um filme mais ou menos típico da carreira de Lily Cavanaugh; Lily fizera um grande número de filmes em preto-e-branco onde atores bonitos, mas logo esquecidos, andavam de chapéu em Fords conversíveis.

A tabuleta pendurada na corda de veludo impedia o acesso à gruta sombria com uma ordem ridi­culamente atenuada: circulação restrita.

— É um tanto desagradável, não é? — disse ela.

— É como a região Além da Imaginação — ele respondeu, e Lily explodiu num riso estridente, contagiante, gostoso até certo ponto.

— Isso mesmo, Jacky, Jacky querido! — disse ela inclinando-se sorridente para alisar-lhe o cabelo comprido demais.

Jack empurrou-lhe a mão, também sorrindo (mas oh, os dedos dela pareciam ossos, não é? Ela está quase morta, Jack...).

— Não me despenteie.

— De jeito nenhum.

— Você ainda está muito em forma, mamãe!

— Oh, rapaz, já está querendo que eu lhe dê o dinheiro do cinema desta semana, não é?

— É.

Os dois sorriram e Jack não se lembrava de jamais ter tido uma necessidade tão forte de chorar. Também não se lembrava de ter sentido tanto amor pela mãe. Havia em Lily uma espécie de resistência desesperada... Voltar aos Pulmões Negros fazia parte disso.

As bebidas chegaram. Lily bateu seu copo contra o de Jack.

— À nossa.

— OK.

Beberam. O garçom trouxe o cardápio.

— Acha que dei trabalho demais com o martini, Jacky?

— Um pouco — disse ele.

Lily pensou um instante, depois deu de ombros.

— O que vai querer?

— Um linguado, eu acho.

— Peça para nós dois.

Ele chamou o garçom e fez o pedido, sem jeito, encabulado, mas sabendo que era isso que a mãe esperava. E quando o garçom foi embora, pôde ver nos olhos dela que não desempenhara mal o papel. Parte do êxito era obra do tio Tommy. Após uma ida ao Hardee’s, tio Tommy dissera:

— Acho que ainda podemos ter esperanças com você, Jack, mas precisamos curar essa sua revol­tante obsessão em fazer tudo direitinho.

 

A comida veio. Jack atacou vorazmente o linguado, que ainda estava bem quente, com bastante limão, e gostoso. Lily apenas mexeu os talheres, comeu algumas ervilhas, mudou as coisas de lugar no prato.

— As aulas já começaram há duas semanas — Jack anunciou no meio da refeição. Ver os grandes ônibus amarelos com escola do distrito de Arcadia escrito do lado fizera-o se sentir culpado; provavelmente qualquer culpa seria absurda naquelas circunstâncias, mas aconteceu. Estava matando aula.

Lily o contemplou com um ar interrogativo. Ela pedira e já acabara de tomar um segundo drinque; agora o garçom servia o terceiro. Jack sacudiu os ombros.

— Falei por falar.

— Quer voltar à escola?

— Eu? Não! Nada disso!

— Sorte minha — disse ela. — Não tenho seus malditos atestados de vacinação. Não vão deixá-lo entrar na escola sem esse pedigree, meu peixinho.

— Não me chame de peixe — Jack reclamou, mas Lily não abriu um sorriso nem prolongou o gracejo.

Rapaz, por que você não está na escola?

Ele piscou como se a voz tivesse falado alto e não apenas em sua mente.

— O que foi? — Lily perguntou.

— Nada... Bem... Há um sujeito no parque de diversões Funworld. É zelador, porteiro, qualquer coisa assim. Um preto velho. Me perguntou por que eu não estava na escola.

Ela inclinou a cabeça, o rosto sem humor, a expressão quase assustadoramente severa.

— O que você contou a ele?

Jack balançou os ombros.

— Eu disse que estava me recuperando de uma bronquite. Está lembrada de quando o Richard teve bronquite? O médico disse ao tio Morgan que o Richard tinha de ficar seis semanas sem ir à escola, mas que podia sair, passear e tudo. — Jack sorriu. — Fiquei com inveja da sorte dele.

Lily relaxou um pouco.

— Não gosto que fale com estranhos, Jack.

— Mamãe, ele é apenas um...

— Não me interessa quem ele é. Não quero que fale com estranhos.

Jack pensou no preto, os flocos duros de lã do cabelo grisalho, os sulcos profundos no rosto, o tom estranho do brilho dos olhos. Empurrava uma vassoura no grande pátio sobre o píer — o pátio era apenas uma parte do Arcadia Funworld, que ficava aberto grande parte do ano, mas que agora estava de­serto... Só havia Jack, o preto e dois outros velhos lá no fundo. Esses dois estavam sempre arrastando as vassouras num silêncio impassível.

Mas agora, sentado naquele restaurante um tanto horripilante com a mãe, não era o homem preto quem fazia a pergunta: era ele mesmo.

Por que eu não estou na escola?

Foi como ela explicou, filho? Você não foi vacinado e não tem pedigree? E será que ela trouxe sua certidão de nascimento? Será que ela trouxe? Ela está fugindo, rapaz, e você está fugindo junto com ela. Você...

— Soube alguma coisa do Richard? — ela o interrompeu, e sem dúvida as palavras não o atingiram com suavidade. Estalaram dentro dele. Suas mãos se contorceram e o copo caiu da mesa; se espatifou no chão.

Ela está quase morta, Jack.

A voz do funil de areia que rodopiava. A voz que ele escutara dentro da cabeça.

Fora a voz do tio Morgan. Não havia dúvida nem talvez, não fora apenas uma voz parecida. Fora uma voz real. A voz do pai de Richard.

 

No carro, a caminho do hotel, ela perguntou:

— O que houve com você no restaurante, Jack?

— Nada. Foi alguma coisa dentro do meu corpo, uma espécie de jazz. — Deu umas batidas no pai­nel do carro para demonstrar. — Umas pancadas desse tipo pelas minhas veias, como naquela cena do Hospital Geral.

— Não invente coisas, Jacky!

Ela parecia pálida e desfigurada no brilho que vinha do painel do carro. Um cigarro ardia lenta­mente entre o segundo e o terceiro dedos da mão direita. Dirigia muito devagar (jamais passando dos 60), como costumava fazer quando bebia demais. Pusera o banco na vertical e, na ponta do vestido levantado, os joelhos flutuavam, meio vacilantes, de ambos os lados da coluna de direção. O queixo estava caído so­bre o volante. Por um instante, pareceu uma bruxa, e Jack desviou rapidamente os olhos.

— Não estou — ele murmurou.

— O quê?

— Não estou inventando — disse ele. — Foi como se eu tivesse levado um safanão, foi isso. Sinto muito.

— Tudo bem — disse a mãe. — Pensei que fosse alguma coisa sobre Richard Sloat.

— Não.

O pai dele falou comigo de um buraco na areia da praia, foi só isso. Falou comigo dentro da minha cabeça, como num filme onde se ouve uma voz. Disse que você estava quase morta.

Tem saudades dele, Jack?

— De quem, de Richard?

— Não, de Spiro Agnew! De Richard, é claro!

— Às vezes.

Agora Richard Sloat estava indo para a escola em Illinois — uma daquelas escolas particulares onde era obrigatório rezar na capela e ninguém tinha acne.

— Você vai vê-lo de novo.

Ela passou a mão em seu cabelo.

— Tem certeza disso, mamãe?

As palavras tinham explodido de dentro de Jack. Ele podia sentir seus dedos agarrando e apertan­do as coxas.

— Sim — ela respondeu, acendendo outro cigarro (para fazê-lo, diminuiu a velocidade para me­nos de 40; um velho utilitário passou voando por eles, tocando a buzina). — Não se preocupe.

— Quantos quilos você emagreceu?

— Jacky, você nunca pode ser magro demais nem gordo demais.

Lily fez uma pausa e sorriu. Era um sorriso cansado e magoado que dizia toda a verdade que ele precisava saber.

— Mamãe...

— Não fale mais — disse ela. — Está tudo bem. Palavra de honra. Veja se consegue achar um be-bop no FM.

— Mas...

— Ache a música, Jacky, e fique de boca fechada.

Encontrou jazz numa estação de Boston — o solo de um saxofone repetindo All the Things You Are. Mas sob ele, num contraponto incessante e absurdo, ouvia-se o oceano. E daí a pouco Jack pôde ver o grande esqueleto da montanha-russa contra o céu. E os contornos vagos da Pousada dos Jardins do Alhambra. Se aquilo era um lar, já estavam em casa.

 

SPEEDY PARKER

No dia seguinte, o sol voltou — um sol forte e brilhante que se estendeu como tin­ta sobre a areia da praia e sobre as telhas vermelhas de uma faixa inclinada de telhado que Jack podia ver da janela do quarto. Uma onda fraca e comprida, lá longe no mar, pareceu crescer sob a luz e atirar uma flecha de brilho bem na direção de seus olhos. Para Jack, aquele sol era diferente do sol da Califórnia. Pa­recia um pouco mais débil, mais frio, menos capaz de agasalhar. A onda no oceano fundo se desman­chou, depois se elevou de novo e um ofuscante raio de luz dourado saltou sobre ela. Jack se afastou da ja­nela. Já tomara banho, já se vestira e o relógio o informava de que estava na hora de se pôr a caminho para pegar o ônibus escolar. Sete e quinze. Mas evidentemente não teria de ir à escola, nada era mais nor­mal, ele e a mãe apenas perambulariam como fantasmas por outras 12 horas de luz do sol. Nem horários, nem responsabilidades, nem deveres de casa, nem obrigações de qualquer espécie, exceto a obrigação de comer na hora das refeições.

Mas será mesmo que era um dia de escola? Jack parou ao lado da cama, sentindo um ligeiro início de pânico. Seu mundo se tornara demasiado vago... Achava que não era sábado. Contou para trás até o primeiro dia que a memória podia identificar com segurança, isto é, o domingo anterior. Contando depois para a frente dava quinta-feira. Às quintas-feiras ele tinha as aulas de computador do Sr. Balgo e uma hora de educação física. Pelo menos era o que acontecia quando sua vida era normal, uma época que agora, embora só tivesse chegado ao fim poucos meses atrás, parecia irremediavelmente perdida.

Passou do quarto para a sala de estar. Quando puxou o cordão das cortinas, o sol forte e brilhante inundou o aposento, esbranquiçou a mobília. Então apertou o botão da televisão e deixou-se cair num sofá um tanto duro. A mãe ia demorar pelo menos 15 minutos para acordar. Talvez mais, levando-se em conta que tomara três drinques no jantar da noite anterior.

Jack olhou para a porta do quarto.

Vinte minutos depois ele bateu devagar.

— Mamãe?

Um resmungo rouco foi a resposta. Jack abriu uma fresta da porta e deu uma espiada. Ela estava le­vantando a cabeça do travesseiro e espreitando por olhos semicerrados.

— Jacky. Já é de manhã? Que horas são?

— Umas oito.

— Deus. Está com fome?

Lily sentou-se na cama e apertou os olhos com as palmas das mãos.

— Mais ou menos. Mas estou cansado de ficar sentado aqui. Eu não sabia a que horas você ia acordar.

— De preferência o mais tarde possível, Jack. Se não se importa, desça até o salão e tome o seu café. Depois vá passear na praia, está bem? Sua mãe será muito mais agradável à tarde, se você deixá-la fi­car mais uma hora na cama.

— Tudo bem — disse ele. — Pode ficar. Vejo você mais tarde.

A cabeça de Lily já mergulhara no travesseiro.

Jack desligou a televisão e, após certificar-se de que sua chave estava no bolso do jeans, saiu do apartamento.

O elevador tinha cheiro de cânfora e amônia (uma empregada derramara uma garrafa de desinfetante de um carrinho de limpeza). A porta se abriu e o porteiro cinzento atrás do balcão da recepção fran­ziu a testa e virou ostensivamente as costas. Ser filho de uma estrela de cinema não o torna nada especial por aqui, rapaz... E por que não está na escola? Jack virou no corredor do arco de madeira e foi para uma sala de jantar chamada “Lombo do Cordeiro”. Viu filas e filas de mesas vazias numa vastidão sombria. Tal­vez houvesse seis mesas postas. Uma garçonete de blusa branca e saia vermelha e amarrotada viu-o che­gar e desviou os olhos. Dois velhos de aparência exausta sentavam-se frente a frente no fundo da sala. Não havia mais ninguém. Quando Jack levantou os olhos, o velho inclinou-se sobre a mesa e, sem qual­quer inibição, cortou o ovo estrelado da esposa em quatro partes.

— Café para um?

A mulher encarregada do Lombo do Cordeiro durante o dia se materializara a seu lado e já puxara um dos cardápios empilhados numa mesa de serviço.

— Desculpe, mudei de idéia.

Jack escapou.

A cafeteria do Alhambra, Arco da Rebentação, ficava no fim do vestíbulo e se prolongava pelo lon­go e triste corredor de um balcão de vidro. Jack perdeu a fome ao se imaginar sentado sozinho naquele balcão, contemplando uma pequena cozinha deserta através de fatias de bacon numa grelha chamuscada. Ia esperar a mãe acordar; ou melhor, ia sair e procurar uma rosquinha e um copo de leite numa das pada­rias da rua que ia dar na cidade.

Puxou a pesada porta da frente do hotel e saiu para o sol. Por um instante, o brilho repentino lhe ofuscou os olhos — o mundo era apenas um clarão indistinto. Jack contraiu as pupilas, pensando que não devia ter esquecido os óculos escuros. Atravessou o pequeno pátio de pedras vermelhas e desceu os qua­tro degraus redondos que levavam ao caminho central do jardim do Alhambra.

O que ia acontecer se a mãe morresse?

O que ia acontecer a ele? Para onde iria, quem ia tomar conta dele se a pior coisa do mundo acon­tecesse, se ela morresse, se morresse de todo lá em cima naquele quarto?

Jack sacudiu a cabeça tentando afastar o terrível pensamento antes que um pânico incontrolável pulasse dos bem-tratados jardins do Alhambra e o soterrasse. Não, não ia chorar, não ia deixar que aquilo acontecesse... E não ia mais pensar nos Tarrytoons, nos quilos que a mãe perdera, nem na sensação que ele às vezes tinha de que a mãe estava completamente desamparada e desnorteada. Já estava andando de­pressa e, com as mãos nos bolsos, percorreu num instante o caminho sinuoso que cortava o jardim do ho­tel e levava à rua. Ela está fugindo, filho, e você está fugindo com ela. Mas fugindo de quem? E para onde? Para cá? Para este lugar abandonado?

Alcançou a estrada que ia até a cidade acompanhando a costa e achou que a paisagem desolada que se abria diante dele não passava de um redemoinho capaz de sugá-lo e cuspi-lo num lugar muito es­curo, onde nunca havia paz ou segurança. Uma gaivota sobrevoou a estrada deserta, fazendo uma curva bem aberta e depois mergulhando em direção ao mar. Jack viu a ave se afastar, diminuindo cada vez mais, até se transformar num pontinho branco sobre o confuso contorno da montanha-russa.

Lester Speedy Parker, um homem preto com grandes rugas cortando-lhe o rosto e cabelo grisalho e crespo, estava lá embaixo, em algum lugar do Funworld. Speedy era a pessoa que ele tinha de ver. Para Jack, isto era tão claro quanto fora clara a lembrança repentina da voz do pai de seu amigo Richard.

Uma gaivota guinchou, uma onda atirou um raio dourado em sua direção e ele viu o tio Morgan e o novo amigo Speedy como figuras quase alegoricamente opostas, estátuas do dia e da noite espetadas em suas bases, estátuas do sol e da lua — a luz e a escuridão. O que Jack compreendeu assim que soube que o pai teria gostado de conhecer Speedy Parker foi que o ex-músico de blues não tinha nenhuma maldade dentro dele. O tio Morgan, porém... Bem, era um tipo de pessoa completamente diferente. O tio Morgan vivia para os negócios, para negociar e vencer todos os obstáculos; era tão ambicioso que tirava proveito de cada hesitação do adversário numa quadra de tênis, tão ambicioso que não admitia perder uma única vez no jogo de cartas, mesmo que jogasse com o filho. Por fim, Jack imaginava que o tio Morgan trapaceasse algumas vezes no jogo... Não era um homem que soubesse perder com esportividade.

noite e dia, lua e sol, escuridão e luz. O homem preto era a luz nessas polaridades. Quando a mente de Jack se convenceu disso, todo aquele pânico que conseguira afugentar no cuidado jardim do hotel avançou de novo para ele. Jack pôs os pés em movimento e correu.

 

Quando viu speedy ajoelhado do lado de fora da sombria e descascada fachada do parque (passando uma fita isolante em volta de um fio elétrico, os duros caracóis de lã do cabelo qua­se encostando no chão, as nádegas magras escapando do gasto pano verde das calças, as solas empoeiradas das botas como duas pranchas de surfe na vertical), Jack percebeu que ainda não tinha idéia do que tencionava lhe dizer, nem se pretendia mesmo dizer alguma coisa. Speedy passou mais uma vez o rolo de fita isolante em volta do fio, balançou a cabeça num gesto satisfeito, tirou um velho canivete Palmer do bolso da camisa e cortou a ponta da fita com uma precisão cirúrgica. Se pudesse, Jack também teria corri­do dali; afinal, estava atrapalhando o trabalho do homem e, sem dúvida, era maluquice achar que Speedy poderia ajudá-lo de alguma forma. Que espécie de ajuda poderia obter do velho zelador de um parque de diversões deserto?

Então Speedy virou a cabeça e registrou a presença do garoto com uma expressão de irrestritas e calorosas boas-vindas (não era bem um sorriso, antes um aprofundamento de todas as grandes rugas do rosto). Jack viu que pelo menos não estava atrapalhando.

— Jack Viajante! — disse Speedy. — Já estava com medo que nunca mais viesse conversar comigo. E justamente quando começávamos a fazer amizade! É uma satisfação vê-lo de novo, filho!

— Oi — disse Jack. — Para mim também é uma satisfação.

Speedy guardou o canivete no bolso da camisa e levantou os ossos do corpo com tanta facilidade, num gesto tão elástico, que pareceu uma pessoa sem peso aos olhos de Jack.

— Isto aqui está precisando de muitas reformas — disse ele. — Faço um pouquinho de cada vez, mas é o bastante para que tudo funcione mais ou menos como devia. — Fez uma pausa e deu uma boa olhada no rosto de Jack. — Parece que as coisas não estão andando muito bem aí por fora, não é? Jack Viajante parece curvado sob um fardo de preocupações. Acertei?

— É, acho que sim — Jack começou, mas ainda não tinha idéia de como ia expressar as coisas que o perturbavam. Elas não podiam ser colocadas em frases comuns, pois frases comuns fazem tudo parecer racional. Um... dois... um... dois...: o mundo de Jack não marchava mais numa linha tão reta. Mas tudo o que não conseguia dizer pesava em seu peito.

Jack olhou angustiado para o homem alto e magro à sua frente. Speedy enfiara as mãos nos bolsos; as sobrancelhas grossas e grisalhas voltaram-se para o profundo sulco vertical que havia entre elas. Os olhos de Speedy, tão luminosos que pareciam quase desprovidos de cor, deslocaram-se da tinta fina do píer e encontraram os de Jack. E de repente Jack voltou a se sentir melhor. Não entendia bem por quê, mas Speedy parecia capaz de lhe comunicar facilmente emoções: era como se já se conhecessem há anos, não apenas há uma semana; como se já tivessem trocado bem mais que algumas palavras na arcada de um parque de diversões.

— Bem, agora chega de trabalhar — disse Speedy, erguendo os olhos na direção do Alhambra. — Se insistir, vou estragar o que já fiz. Acho que ainda não viu meu escritório, não é?

Jack balançou a cabeça.

— É hora de refrescar a cabeça, rapaz! É a hora certa.

Ele se afastou da fachada do parque com seu passo largo e Jack correu atrás. Quando desceram os degraus do píer e começaram a atravessar o gramado ralo e o chão de barro marrom na direção das cons­truções do outro lado do pátio, Speedy surpreendeu Jack com uma canção:

 

Jack Viajante,

Jack sempre a viajar,

Ir é um longo caminho,

Mais longo ainda é voltar.

 

Ele não estava exatamente cantando, Jack pensou. Era algo a meio caminho entre cantar e falar. Se não fosse pelas palavras, Jack teria gostado de ouvir a voz rude e confiante de Speedy:

 

Longo, longo caminho vai o rapaz avançar.

Mais longo ainda é voltar.

 

Speedy lançou-lhe por cima do ombro um olhar quase cintilante.

— Por que você me chama desse jeito? — Jack perguntou. — Por que Jack Viajante? Porque sou da Califórnia?

Tinha atingido a barraca azul-clara no cercado de entrada da montanha-russa. Ali eram vendidos os ingressos. Speedy enfiou de novo as mãos nos bolsos da calça verde e folgada, girou nos calcanhares e entrou no cercado — a precisão e a rapidez de seus movimentos tinham uma característica quase teatral. E, como se soubesse de antemão que naquele momento a pergunta seria exatamente aquela, cantou:

 

Diz que vem da Califórnia,

Por certo ele sabe que tem de voltar...

 

O rosto compacto, de traços bem marcados, estava cheio de uma emoção que pareceu um tanto forçada a Jack.

 

Vejam o caminho por onde vem,

Pobre Jack Viajante,

De voltar ele tem...

 

— O quê? — disse Jack. — Voltar? Eu acho que minha mãe até já vendeu a casa... Ou alugou, sei lá... Não sei que diabo você está tentando dizer, Speedy!

Ele se sentiu aliviado quando Speedy não lhe respondeu com sua cantilena monótona e ritmada, mas disse numa voz normal:

— Aposto que você não se lembra de ter me encontrado antes, Jack. Estou certo ou não?

— Já ter encontrado você? Onde foi isso?

— Na Califórnia... pelo menos. Acho que nos encontramos lã. Não é de admirar que não se lembre, Jack Viajante. Foram apenas alguns minutos agitados e você tinha... deixe-me ver... você tinha cerca de quatro ou cinco anos. Foi em 76.

Jack o fitou com uma expressão atordoada. Setenta e seis? Teria então sete anos.

— Vamos dar uma olhada no meu escritório — disse Speedy e puxou-o do cercado da bilheteria com a mesma agilidade sem peso.

Jack foi atrás dele, serpenteando entre os altos suportes da montanha-russa — sombras negras, re­des de um estranho diagrama estendido no chão empoeirado, onde velhas latas de cerveja e embalagens de doce ainda salpicavam aqui e ali. Os trilhos da montanha-russa pendiam sobre eles como um edifício inacabado. Speedy se movia, Jack percebeu, com a flexibilidade de um jogador de basquete, a cabeça empinada, os braços balançando. A curva de seu corpo, sua postura na escuridão axadrezada sob as longarinas eram as de um jovem — Speedy tinha a aparência de um rapaz de 20 anos.

Então o zelador despontou de novo na áspera luz do sol e 50 anos extras tingiram-lhe o cabelo, mancharam-lhe a nuca. Jack parou ao atingir a última fileira de pilastras. Teve a sensação de que o ilusó­rio rejuvenescimento de Speedy Parker podia indicar que não estava longe de um sonho de olhos abertos. Talvez alguma coisa já estivesse flutuando à sua volta.

Mil novecentos e setenta e seis? Califórnia? Jack foi ficando atrás de Speedy, que agora se dirigia para um pequeno barracão de madeira, pintado de vermelho, junto à cerca de arame no fim do parque de diversões. Tinha certeza de nunca ter encontrado Speedy na Califórnia... mas a quase visível presença de suas fantasias ali ao redor tinha lhe trazido uma memória específica daquele tempo, as visões e sensações de um fim de tarde quando tinha seis anos, brincando com um táxi preto de brinquedo atrás da poltrona do escritório do pai... E, inesperadamente, magicamente, ouviu o pai falando com o tio Morgan a respeito dos sonhos de olhos abertos.

Eles têm magos como nós temos físicos, certo? Uma monarquia agrária, usando a magia em vez da ciência. Mas já imaginou a porra do choque que íamos provocar se déssemos a eletricidade a eles? Se levássemos armas modernas para alguns membros da tribo? Tem idéia do que isso significaria?

Vá com calma, Morgan! Consigo ver um monte de coisas que você não ê capaz de enxergar...

Jack quase podia ouvir a voz do pai, e o estranho e inquieto reino dos sonhos de olhos abertos pa­receu se agitar no deserto sombrio sob a montanha-russa. Começou de novo a correr atrás de Speedy, que abrira a porta do pequeno barracão vermelho e se encostara junto à entrada, sorrindo sem sorrir.

— Você está com alguma coisa na cabeça, Jack Viajante. Alguma coisa zumbindo aí dentro como uma abelha. Entre na suíte executiva e me diga o que há.

Se o sorriso tivesse sido mais largo, mais óbvio, Jack poderia ter virado as costas e corrido: o espec­tro do ridículo pairava humilhantemente perto. Mas toda a figura de Speedy parecia expressar um interes­se saudável (era esta a mensagem de todos aqueles sulcos profundos no rosto dele). Jack cruzou a porta e entrou no barracão.

O “escritório” de Speedy era um pequeno cômodo retangular — o mesmo vermelho que no exterior —, sem uma escrivaninha ou um telefone. Dois engradados alaranjados, encostados na parede ao lado de um aquecedor elétrico, lembravam a frente de um Pontiac dos anos 50. No meio da sala, uma carteira es­colar com encosto redondo de madeira fazia companhia a uma poltrona de forro desbotado, cinzento.

Os braços da poltrona pareciam ter sido arranhados pelas garras de várias gerações de gatos: pu­nhados sujos do enchimento saltavam como mechas de cabelo. Nas costas da carteira havia uma comple­xa teia de iniciais rabiscadas. A mobília era um traste. Num dos cantos viam-se duas pilhas de livros, nou­tro a tampa corroída de um toca-discos barato. Speedy esticou a cabeça para o aquecedor e disse:

— Se vier aqui em janeiro ou fevereiro, rapaz, vai ver por que tenho isso. Frio? Um verdadeiro gelo!

Mas Jack olhava agora para as gravuras coladas na parede sobre o aquecedor e os engradados amarelos. Com exceção de uma, todas eram nus tirados de revistas masculinas. Mulheres com seios maio­res que as cabeças, reclinadas em cascos de árvores, poses sinuosas, pernas estendidas. Para Jack, aquelas mulheres tinham rostos ao mesmo tempo fascinantes e vorazes — como se suas bocas se transformassem em bicos quando beijavam alguém. Algumas não eram mais jovens que a mãe, outras só pareciam alguns anos mais velhas que ele. Os olhos de Jack roçaram por aquelas carnes; todas elas, jovens e velhas, rosa­das, cor de chocolate ou de mel, pareciam ansiar pelo seu toque, mas ele estava demasiado consciente da presença de Speedy Parker a seu lado. Então viu a paisagem no meio daqueles nus fotográficos. E por um segundo deve ter esquecido de respirar.

Era também uma foto, e também parecia chamá-lo de alguma forma, até mesmo tocá-lo, como se fosse tridimensional. Uma longa planície cheia de relva estendendo-se até uma pequena cadeia de monta­nhas. Sobre a planície e as montanhas via-se um céu extremamente límpido. Jack quase podia cheirar o frescor do panorama. Conhecia aquele lugar. Sem dúvida nunca estivera lá, mas conhecia o lugar. Era um dos lugares dos sonhos de olhos abertos.

— Não se pode tirar os olhos daí, não é? — perguntou Speedy, e Jack se lembrou de onde estava. Uma mulher asiática inclinava para a câmera um traseiro em forma de coração e sorria por sobre os om­bros. Sim, Jack pensou.

— É realmente um lugar muito bonito — disse Speedy. — Essa quem colou fui eu. Todas as outras já estavam aqui quando eu mudei. Não tive coragem de rasgá-las. Elas me fazem lembrar dos bons tem­pos, quando eu andava por este mundo afora.

Jack olhou assustado para Speedy, e o velho pestanejou.

— Você conhece esse lugar, Speedy? — Jack perguntou. — Quero dizer... sabe onde ele fica?

— Talvez sim, talvez não. Pode ser a África... Algum lugar no Quênia. Ou pode ser que minha me­mória não ande muito boa. Sente-se aqui, Jack Viajante. Aproveite a poltrona.

Jack virou a poltrona para poder contemplar a gravura do lugar dos sonhos de olhos abertos.

— Isso é a África?

Talvez seja um pouco mais perto. Talvez seja um lugar aonde se pode ir... aonde se pode ir a qualquer hora. Pelo menos se quisermos conhecê-lo bem.

E de repente Jack percebeu que estava tremendo, que já estava tremendo há algum tempo. Seus punhos se fecharam formando duas bolas e ele sentiu o tremor se transferir para o estômago.

Não tinha certeza de que queria ver o lugar dos sonhos de olhos abertos, mas olhou interrogativa­mente para Speedy, que tinha se empoleirado na carteira escolar.

— Não é um lugar da África, é?

— Bem, eu não sei. Talvez seja. Eu lhe dei um nome especial, filho. Chamo isto aí de “Os Territórios”.

Jack tornou a olhar para a foto — a comprida e ondulada planície, as pequenas montanhas mar­rons. Os Territórios. Estava bem; era esse o nome.

Eles têm magos como nós temos físicos, certo? Uma monarquia agrária... armas modernas para al­guns membros da tribo... tio Morgan tramando. O pai respondendo, pisando um pouco no freio: Temos de penetrar lá com muito cuidado, parceiro... Lembre-se, temos obrigações com eles. E isto é sério: temos real­mente obrigações com eles.

— Os Territórios... — ele disse para Speedy, seus lábios saboreando o nome ao mesmo tempo que faziam uma pergunta.

— Ar puro como o melhor vinho na adega de um homem rico. Clima suave. Esse é o lugar, rapaz!

— Você já esteve lá, Speedy? — Jack perguntou, esperando ardentemente uma resposta direta.

Mas Speedy o decepcionou, como Jack tinha quase certeza que aconteceria. O zelador sorriu; dessa vez era um sorriso de verdade, não apenas um brilho subliminar de simpatia.

E após um instante Speedy falou:

— Diabo, eu nunca saí dos Estados Unidos, Jack Viajante. Nem mesmo durante a guerra. Nunca passei do Texas e do Alabama.

— E como sabe sobre... Os Territórios?

O nome estava começando a se ajustar à sua boca.

— Um homem como eu ouve histórias de todo tipo. Histórias de papagaios de duas cabeças, de homens que têm asas e voam, de homens que se transformam em lobos, histórias sobre rainhas, rainhas doentes...

... magos como nós temos físicos, certo?

— Anjos e lobisomens.

— Já ouvi histórias sobre lobisomens — disse Jack. — Já vi até em desenhos animados. Eles não são de verdade, Speedy!

— Provavelmente não. Mas já ouvi dizer que se alguém tira um rabanete da terra, uma pessoa a quase um quilômetro de distância pode sentir o cheiro do rabanete... pode sentir um perfume se o ar for puro.

— Mas anjos...

— Homens com asas.

— E rainhas doentes — disse Jack, encarando a coisa como piada. Ei, seu bruxo de vassoura, você tem muita coisa maluca na cabeça! Mas no instante exato em que pensou essas palavras, sentiu-se um tanto enjoado. Tinha se lembrado de uma gaivota arrancando um marisco da concha, o olho negro fixo nos seus; e podia ouvir o agitado, o afobado tio Morgan perguntando se ele seria capaz de fazer a Rainha Lily andar na linha.

Rainha das produções B. Rainha Lily Cavanaugh.

— Sim — disse Speedy em voz baixa. — Há problemas por toda parte, filho. Rainhas doentes... tal­vez morrendo. Morrendo, rapaz! E alguma coisa esperando lá fora, esperando para ver se alguém é capaz de salvá-la.

Jack o encarou de boca aberta, sentindo-se mais ou menos como se o zelador tivesse lhe dado um chute no estômago. Salvá-la? Salvar sua mãe? O pânico começou a inundá-lo mais uma vez. Como poderia ele salvá-la? E será que toda aquela conversa maluca queria sugerir que ela estava realmente morrendo, morrendo lá embaixo naquele quarto?

— Você tem uma tarefa, Jack Viajante — disse Speedy. — Uma tarefa que ninguém pode fazer em seu lugar e que é a verdade do Senhor. Eu gostaria que não fosse assim...

— Não estou entendendo o que você está falando — disse Jack. Sua respiração parecia ter sido comprimida num pequenino bolso quente situado na base do pescoço. Olhou para outro canto do pe­queno quarto vermelho e, na penumbra, viu uma velha guitarra encostada na parede. Ao lado dela havia um colchão fino e bem enrolado. Speedy dormia perto de sua guitarra.

— É de admirar — disse Speedy —, pois parece saber muito bem o que estou querendo dizer... Você sabe mais do que pensa que sabe. Muito e muito mais.

— Mas eu não... — Jack começou e então se levantou de repente. Acabara de se lembrar de algu­ma coisa. Agora estava ainda mais assustado; outro pedaço do passado se arremessara contra ele, exigin­do sua atenção. Subitamente estava coberto de suor e a pele parecia muito fria (como se o jato fino de uma mangueira o tivesse molhado). Fora esta lembrança que tentara reprimir ontem de manhã, de pé na porta do elevador, fingindo que a bexiga não estava à beira de explodir.

— Eu não disse que era hora de refrescar a cabeça? — Speedy perguntou, abaixando-se para em­purrar uma tábua solta do assoalho.

Jack viu outra vez dois homens de aparência comum empurrando a mãe para dentro de um auto­móvel. Uma árvore enorme estendia as copas frondosas sobre o teto do carro.

Speedy tirou suavemente uma garrafa de meio litro de uma fenda entre as tábuas do assoalho. A garrafa era verde-escura e o líquido lá dentro parecia negro.

— Isto vai ajudá-lo, filho. Só precisa tomar um golinho... Isto vai enviá-lo a alguns lugares que ain­da não conhece, vai ajudá-lo a começar a tarefa que eu disse que terá de enfrentar.

— Não posso ficar mais tempo, Speedy — Jack falou de repente, agora desesperadamente apressa­do para voltar ao Alhambra. Speedy tentou disfarçar a surpresa no rosto e tornou a colocar a garrafa sob a tábua solta. Jack já estava de pé. — Estou preocupado — disse.

— Com sua mãe?

Jack assentiu com a cabeça, recuando em direção à porta aberta.

— É, é melhor ir ver como ela anda. Mas pode voltar aqui quando quiser, Jack Viajante.

— Tudo bem — disse o menino, e só hesitou um segundo antes de caminhar para a porta. — Acho... acho que estou me lembrando... Já nos encontramos antes, Speedy!

— Não, não! Foi uma confusão dos meus miolos — disse o velho balançando a cabeça e sacudin­do as mãos. — Você estava certo. Só nos conhecemos na semana passada. Volte para junto de sua mãe e procure se divertir.

Jack saiu do barracão e atravessou correndo um espaço ensolarado e amplo. Num instante viu o grande arco que ia dar na rua se aproximando. Em cima dele, pôde ler o letreiro dlrownuf aidacra rabis­cado contra o céu (à noite, lâmpadas coloridas espalhariam o nome do parque em ambas as direções). Seus tênis levantavam poeira. Jack fez pressão nos músculos, forçando-os a correrem mais rápido e mais firme. Quando passou embaixo do arco, era como se estivesse voando.

Mil novecentos e setenta e seis. Jack estava subindo a Rodeo Drive numa tarde de junho... Ou seria julho? De qualquer modo, era uma tarde na estação seca, antes daquele período do ano em que todo mundo começa a querer fugir para o campo. Não conseguia se lembrar aonde tinha ido. À casa de um amigo? Não estava com pressa naquela tarde. Tinha alcançado um estágio onde já não ficava mais pensan­do no pai a cada segundo livre do seu tempo (por muitos meses após a morte de Philip Sawyer numa ca­çada, sua sombra continuara correndo atrás de Jack, emparelhando-se com ele sempre que o garoto esta­va menos preparado para encontrá-la). Jack tinha apenas sete anos, mas sabia que uma parte da infância lhe fora roubada (seu modo de ser aos seis anos já lhe parecia extremamente ingênuo e tolo). Aprendera, no entanto, a confiar na força da mãe. Ameaças disformes e selvagens não mais se escondiam nos cantos escuros, nas portas entreabertas dos armários, nas ruas sombrias, nos quartos vazios.

Os acontecimentos daquela absurda tarde do verão de 1976 eliminaram essa paz temporária. De­pois do que houve, Jack dormiu por seis meses de luz acesa; pesadelos agitavam-lhe o sono.

O carro surgiu na rua poucas casas acima da casa colonial de três andares e paredes brancas onde moravam os Sawyers. Era um carro verde, e a única coisa que Jack sabia além disso é que não era um Mercedes (o Mercedes era o único automóvel que reconhecia). O homem na direção tinha aberto a janela e sorrira para ele. Seu primeiro pensamento foi que já tinha visto aquele homem — por certo era um velho conhecido do pai que queria apenas lhe dar um alô. No sorriso do homem havia alguma coisa espon­tânea, natural, familiar. Ao lado dele ia um sujeito que inclinou a cabeça e o examinou por trás de óculos de cego: redondos e tão escuros que pareciam quase totalmente negros. Esse segundo homem estava usando um terno muito branco.

Por algum tempo o motorista falou apenas com o sorriso; depois perguntou:

— Filho, sabe como se chega ao Beverly Hills Hotel?

Bem, afinal era um desconhecido. Jack experimentou um estranho lampejo de desapontamento. Apontou para cima da rua. O hotel ficava bem lá no alto, tão perto que o pai às vezes caminhava até lá para tomar o café da manhã na cafeteria.

— Bem em frente? — o motorista perguntou, ainda sorrindo.

Jack confirmou balançando a cabeça.

— Você é um garotão muito simpático — disse o homem, e o outro começou a rir. — Fica muito lá em cima?

Jack fez que não com a cabeça.

— Só algumas quadras?

— É.

Estava começando a se sentir mal. O motorista ainda sorria, mas agora o sorriso parecia brilhante demais, duro e vazio. A risadinha do outro se tornava ofegante, era uma espécie de chiado, como se o su­jeito estivesse se engasgando com alguma coisa molhada.

— Cinco quadras, talvez? Seis? O que me diz?

— Cinco ou seis, eu acho — disse Jack recuando um passo.

— Bem, tenho mesmo de agradecer a você, garotão — disse o motorista. — Aposto que gosta de doce, não é? — Ele estendeu um punho fechado pela janela, virou a palma da mão para cima e abriu os dedos: era uma maria-mole. — É seu. Pegue.

Com relutância, Jack deu um passo à frente, ouvindo em sua cabeça as palavras de mil advertências contra gente desconhecida e doces. Mas o homem continuava dentro do carro; se tentasse alguma coisa, Jack podia estar a meio quarteirão de distância antes que ele conseguisse abrir a porta. E não apanhar o doce seria até falta de educação. Jack deu mais um passo à frente. Fitou os olhos do homem, que eram azuis e tão duros e brilhantes quanto o sorriso. Os instintos de Jack disseram-lhe para recuar a mão e cor­rer. Mas acabou deixando que ela avançasse mais alguns centímetros na direção da maria-mole. Seus de­dos fizeram um pequeno gancho para agarrar o doce.

Então a mão do motorista cravou-se sobre a dele e o sujeito com óculos de cego riu em voz alta. Atônito, Jack olhou dentro dos olhos do homem que lhe agarrara o braço e viu-os começarem a passar (pensou ter visto eles começarem a passar) do azul ao amarelo.

Mas sem dúvida ficaram amarelos.

O homem no outro banco abriu uma porta e avançou pela traseira do carro. Usava uma pequena cruz dourada na lapela da jaqueta de seda. Jack tentou freneticamente se soltar, mas o motorista deu mais um sorriso muito brilhante, muito vazio e segurou-o com força.

— Não! — Jack gritou. — Socorro!

O homem de óculos escuros abriu a porta traseira ao lado de Jack.      

— Socorro! — Jack gritou.

O homem pegou-o e começou a espremê-lo de forma que ele pudesse passar pela porta do carro. Jack dava pontapés, sempre gritando, mas o homem o apertava cada vez mais. Jack agarrou-lhe as mãos, tentando soltá-las de seu corpo. E com horror percebeu que o que estava sentindo sob os dedos não era pele. Torceu a cabeça e viu que aquilo que o segurava e se projetava da manga escura era uma coisa dura, metálica, que lembrava uma garra ou uma mão mecânica. Jack gritou outra vez.

De cima da rua veio uma voz:

— Ei, deixem esse menino em paz! Vocês! Larguem o garoto!

Jack arquejou de alívio e contorceu-se o quanto pôde nos braços do homem. Correndo do fim da quadra vinha um preto alto e magro, sempre gritando. O homem jogou-o na calçada e de novo fez a volta pela traseira do carro. A porta da frente de uma das casas atrás de Jack se escancarou: outra testemunha.

— Vamos embora, embora — disse o motorista, já pisando no acelerador.

O Paletó Branco pulou rapidamente para seu banco, as rodas giraram e o carro saiu em diagonal, guinchando pela Rodeo Drive, quase batendo num comprido Clenet branco dirigido por um homem bronzeado, com roupa de jogar tênis. A buzina do Clenet fez barulho.

Jack se levantou da calçada. Estava meio tonto. Um homem careca de jaqueta de safári apareceu ao seu lado e perguntou:

— Quem eram eles? Ficou sabendo o nome deles?

Jack balançou a cabeça.

— Como está se sentindo? Devíamos chamar a polícia.

— Só quero me sentar — disse Jack, e o homem recuou um passo.

— Quer que eu chame a polícia? — disse ele; Jack não quis.

— Não posso acreditar no que vi — disse o homem. — Mora por aqui? Já vi você antes, não foi?

— Eu me chamo Jack Sawyer. Minha casa fica bem ali.

— A casa branca — disse o homem balançando a cabeça. — Você é o menino de Lily Cavanaugh. Se quiser, posso levá-lo em casa.

— Onde está aquele homem? — Jack perguntou. — O preto, o homem que estava gritando?

Num passo incerto, Jack se afastou do homem de jaqueta de safári. Fora os dois, a rua estava vazia.

Lester Speedy Parker fora a pessoa que correra para socorrê-lo. Speedy lhe salvara a vida naquela ocasião, Jack percebia agora... E correu ainda mais depressa para o hotel.

— Tomou seu café? — a mãe perguntou, soltando uma nuvem de fumaça no ar.

O lenço que usava na cabeça parecia um turbante e, com o cabelo assim escondido, o rosto se tor­nara esquálido, muito vulnerável aos olhos de Jack. Um centímetro e meio de cigarro ardia entre o segun­do e o terceiro dedos. Quando Lily viu o filho olhando para o toco, espetou-o no cinzeiro sobre a penteadeira.

— Ah, não, não de verdade — disse ele, hesitando na porta do quarto.

— Oh, diga-me claramente sim ou não — disse Lily, virando-se para o espelho. — A ambigüidade está me matando!

O punho no espelho e a mão no espelho, aplicando a maquiagem no rosto de Lily, pareciam ma­gros como um palito.

— Não — disse ele.

— Bem, espere um segundo e quando sua mãe estiver mais bonita vai levá-lo até lá embaixo e pe­dir o que você tiver vontade de comer.

— Tudo bem — disse ele. — Achei muito deprimente ficar ali sozinho.

— Juro que não entendo. Por que tinha de se sentir deprimido? — Inclinou-se para a frente e exa­minou o rosto no espelho. — Você se importaria de esperar na sala, Jacky? Gosto de fazer isto sozinha. Segredos da tribo.

Jack virou-se em silêncio e foi para a sala.

Quando o telefone tocou, ele deu um pequeno salto.

— Atendo? — gritou.                                                 .

— Claro, Jack — respondeu a voz fria da mãe.

Jack pegou o fone e disse alô.

— Ei, garoto, finalmente o peguei — disse o tio Morgan Sloat. — Pelo amor de Deus, o que está se passando na cabeça de sua mãe? Podíamos estar enfrentando problemas muito sérios se eu não estivesse aqui para cuidar de certos detalhes. Ela está, Jack? Diga que tem de falar comigo. Não importa o que ela acha, mas tem de falar comigo. Confie em mim, garoto!

Jack deixou o telefone ficar pendurado em sua mão. Teve vontade de desligar, entrar no carro com a mãe e ir com ela para outro hotel em outro estado. Mas não desligou.

— Mamãe! Tio Morgan está no telefone! Diz que você tem de falar com ele!

Ela continuou um momento em silêncio; Jack gostaria de estar vendo seu rosto.

— Vou atender aqui, Jacky — ela disse por fim.

Jack já sabia o que ia fazer. A mãe fechou a porta do quarto; ele a ouviu caminhar para a penteadeira. Lily atendeu o telefone,

— OK, Jacky! — ela gritou do outro lado da porta.

— OK! — ele respondeu.

Então, tornou a pôr o fone no ouvido e, para que ninguém o ouvisse respirar, tapou o bocal com a mão.

— Fez uma grande proeza, Lily! — disse o tio Morgan. — Fantástica! Se ainda estivesse fazendo fil­mes, talvez pudéssemos tirar algum dinheiro disso! Algo tipo “Por que desapareceu a atriz?”. Mas não acha que já está na hora de agir como uma pessoa racional?

— Como me encontrou?

— Acha que é difícil encontrá-la? Dê-me uma trégua, Lily! Quero que volte a instalar seu traseiro em Nova York! Já está na hora de parar de fugir.

— Acha que é isso que estou fazendo, Morgan?

— Você não tem exatamente todo o tempo do mundo, Lily, e eu não tenho tempo para ficar procu­rando você por toda a Nova Inglaterra. Ei, seu filho não desligou a extensão!

— Claro que desligou.

O coração de Jack parara completamente de bater.

— Saia da linha, rapaz! — disse a voz do tio Morgan Sloat.

— Não seja ridículo, Sloat — disse a mãe.

— Vou lhe dizer o que é ridículo, minha senhora... Esconder-se no fim do mundo quando devia estar no hospital, isto é ridículo! Deus, não sabe que temos mais de um bilhão de assuntos a resolver? Também estou preocupado com a escola do garoto, e tenho toda a razão! Parece ter ficado inteiramente irresponsável, Lily!

— Não quero mais falar com você — Lily falou.

— Não quer, mas tem de falar. Vou até aí e, se for preciso, coloco você à força num hospital. Te­mos de fazer certos acertos, Lily. Tem metade da companhia que tento administrar... E Jack vai ficar com a sua metade quando você se for. Quero ter certeza de que ele vai ter uma boa educação. Se pensa que está cuidando bem de Jack nesse maldito New Hampshire, então está muito mais doente do que imagina!

— O que você quer, Sloat? — Lily perguntou numa voz cansada.

— Você sabe o que eu quero. Quero que todo mundo esteja seguro. Quero o que é justo! Posso to­mar conta de Jack, Lily. Posso lhe dar 50 mil dólares por ano... Pense nisso, Lily. Farei com que ele vá para uma boa universidade. Você não consegue sequer mantê-lo na escola.

— Está bem, Sloat — disse a mãe.

— Acha que isso é resposta? Lily, você precisa de ajuda e é o que estou lhe oferecendo.

— Qual é o seu interesse nisso, Sloat? — a mãe perguntou.

— Você sabe muito bem. Quero o que é justo. Quero a sua parte, suas ações na Sawyer and Sloat. Dei até a última gota do meu sangue por essa companhia e ela deve ser minha. Podemos resolver tudo numa única manhã, Lily... E depois podemos nos concentrar em cuidar de você.

— Como Tommy Woodbine cuidou de mim — disse ela. — Às vezes penso que você e Phil tive­ram êxito demais, Morgan. A Sawyer and Sloat era mais manejável antes de vocês entrarem nos investi­mentos imobiliários e nos grandes contratos de produção. Lembra-se de quando seus únicos clientes eram alguns cômicos apagados e meia dúzia de atores e roteiristas esperançosos? Eu achava a vida melhor antes das negociatas.

— Queria uma empresa mais manejável? Deve estar brincando! — gritou o tio Morgan. — Não con­segue sequer manejar a si mesma! — Fez um esforço para se controlar. — E vou esquecer que mencionou Tom Woodbine. Esse conseguia estar até mesmo abaixo de você, Lily!

— Vou desligar, Sloat. Fique longe daqui. E fique longe de Jack.

— Você vai para um hospital, Lily, e essas andanças vão...

A mãe desligou no meio da frase do tio Morgan; Jack pousou delicadamente o fone no gancho. Depois se aproximou um pouco da janela, como se não quisesse ser visto perto do telefone. Do quarto fechado só vinha o silêncio.

— Mamãe? — disse ele.                               

— Sim, Jacky?

Jack percebeu um ligeiro tremor na voz dela.

— Você está bem? Está tudo bem?

— Eu? Claro.

Os passos de Lily se aproximaram suavemente da porta que, com um estalo, começou a se abrir. Os olhos dos dois se encontraram, azul contra azul. Lily acabou de abrir a porta. Por um momento de desagradável intensidade, os olhos se encontraram de novo.

— É claro que está tudo bem. Por que não haveria de estar?

Os olhares se separaram. Uma espécie de conhecimento se comunicara entre os dois, mas o quê? Jack se perguntou se a mãe suspeitava que ele tinha ouvido a conversa; então achou que o conhecimento que tinham acabado de compartilhar era o fato de que ela estava doente.

— Bem... — disse ele, um tanto embaraçado. A doença da mãe, aquele grande assunto sinistro, crescera obscenamente aos olhos dos dois. — Eu não sei exatamente. Tio Morgan parecia...

Ele sacudiu os ombros. Lily estremeceu e Jack chegou a outra conclusão. A mãe estava com medo; pelo menos com tanto medo quanto ele.

Lily enfiou um cigarro nos lábios e abriu com um piparote o isqueiro. Outro olhar fulminante de seus olhos profundos.

— Não dê importância a essa peste, Jack! Só estou um pouco irritada porque parece que nunca vou conseguir me livrar dele. Seu tio Morgan gosta de me atormentar. — Soltou uma fumaça cinzenta. — Acho que já perdi meu apetite para o café. Por que não desce e dessa vez faz um verdadeiro desjejum?

— Venha comigo — pediu ele.

— Gostaria de ficar um pouco sozinha, Jack. Tente compreender.

Tente compreender.

Confie em mim.

Essas coisas que dizem os adultos, significando algo completamente diferente.

— Estarei mais sociável quando você voltar — disse ela. — Prometo!

E o que ela estava realmente dizendo era: Quero chorar, não posso suportar mais isto, saia, saia!

— Quer que eu traga alguma coisa?

Ela balançou a cabeça, atirando-lhe um sorriso duro. Jack saiu do apartamento, embora também já não tivesse mais vontade de tomar o desjejum. Desceu o corredor até os elevadores. De novo só havia um lugar aonde podia ir, mas dessa vez sabia disso antes mesmo de ter atingido o saguão sombrio e a cara cinzenta, reprovadora do homem da recepção.

Speedy Parker não estava no pequeno barracão vermelho que era seu escritório, não estava no longo píer, na arcada onde os dois outros velhos jogavam bocha como se fosse uma guerra que ambos sabiam que iam perder; também não estava no pátio sob a montanha-russa. Jack Sawyer ficou meio desnorteado naquele sol forte, contemplando os caminhos vazios, os pátios desertos do parque. O medo de Jack comprimia-o até a garganta. E se tivesse acontecido alguma coisa a Speedy? Era impossível, mas e se o tio Morgan tivesse descoberto sobre Speedy (mas descoberto o quê?) e tivesse... Mentalmente, Jack viu a criança rebelde virando uma esquina, as engrenagens rangendo e fazendo o caminhão ganhar velocidade.

Pôs-se bruscamente em movimento, sem saber muito bem para onde pretendia ir. No pânico que lhe envolvera a alma, viu o tio Morgan atravessar uma fileira de espelhos que o transformaram numa série de figuras monstruosas e deformadas. Nasceram chifres na testa calva, surgiu uma corcunda entre os om­bros gordos, os dedos enormes viraram pás de jardim. De repente Jack guinou para a direita e, quando deu por si, estava caminhando para uma estranha construção quase redonda, feita de tábuas brancas.

De dentro dela vinha um tap tap tap ritmado. O menino correu para o som: uma chave inglesa ba­tendo num cano, um martelo numa bigorna — um barulho de trabalho. No meio das tábuas, encontrou a maçaneta e abriu uma frágil porta de madeira.

Jack avançou pela escuridão e o som ficou mais alto. A escuridão alterava as formas em volta dele, modificava as dimensões. Estendeu os braços e as mãos tocaram uma lona. A lona deslizou; imediatamente, uma brilhante luz amarela caiu sobre ele.

— Jack Viajante! — disse a voz de Speedy.

Jack se virou para a voz e viu o zelador sentado no chão, ao lado de um carrossel parcialmente desmontado. Tinha uma chave inglesa na mão e, junto dele, empalado da sela à barriga por uma compri­da estaca de prata, havia um cavalo branco. A crina parecia espuma. Speedy encostou a chave inglesa no chão.

— Está pronto para falar agora, filho?

 

A PASSAGEM

            — Sim, estou pronto — Jack respondeu numa voz perfeitamente calma e, então, explodiu em lágrimas.

— Vamos lá, Jack Viajante — disse Speedy, largando a chave inglesa e se aproximando dele. — Vamos lá, filho, não se afobe, não se afobe...

Mas Jack não podia deixar de se afobar. De repente era demais, aquilo era demais, e se não choras­se ia submergir numa grande onda de escuridão, uma onda que nenhum raio dourado, por mais brilhante que fosse, seria capaz de iluminar. As lágrimas o magoavam, mas ele sentia que o terror o destruiria se não as deixasse cair.

— Chorar faz bem, Jack Viajante — disse Speedy pondo os braços em volta dele. Jack encostou o rosto quente e inchado na camisa fina de Speedy. O cheiro do velho lembrava especiarias, lembrava cane­la, lembrava livros que há muito tempo ninguém tirava da biblioteca. Cheiros bons, cheiros agradáveis. Seus braços tatearam e também abraçaram Speedy; as palmas das mãos sentiram os ossos das costas do negro, próximos à superfície, cobertos por uma camada muito reduzida de carne.

— Chore se isso faz você se sentir melhor — disse Speedy embalando-o nos braços. — Às vezes acontece. Eu sei. Speedy sabe como você já esteve longe, Jack Viajante, e o quanto ainda tem de caminhar. Speedy sabe como está cansado. Chore se isso faz você se sentir melhor, rapaz.

Jack quase não entendeu as palavras, mas percebeu os sons que elas fizeram — suaves e tranqüilizadores.

— Minha mãe está mesmo doente — disse ele por fim, encostado no peito de Speedy. — Acho que ela veio pra cá para fugir do velho sócio do meu pai, o Sr. Morgan Sloat.

Jack fungou com força, se afastou de Speedy, recuou um passo e esfregou os olhos vermelhos com as costas da mão. Ficou surpreso com sua falta de constrangimento; antes, as lágrimas sempre o envergonhavam e amarguravam... Era quase como molhar as calças. Será que reagia assim porque a mãe fora sempre tão dura? Achava que tinha alguma coisa a ver com isso; Lily Cavanaugh não gostava muito de lágrimas.

— Mas não foi só por isso que ela veio pra cá, foi?

— Não — disse Jack em voz baixa. — Acho... que ela veio para morrer. — O timbre se tornara bem mais agudo na última palavra, como um guincho de dobradiça sem óleo.

— Pode ser... — disse Speedy olhando com firmeza para Jack. — E pode ser que você esteja aqui para salvá-la. Ela... e uma mulher igual a ela.

— Quem? — Jack perguntou entre lábios dormentes. Ele sabia quem era. Não sabia o nome, mas sabia quem era.

— A rainha — disse Speedy. — O nome dela é Laura DeLoessian. É a rainha dos Territórios.

 

— Me ajude — Speedy pediu. — Suspenda a velha Dama Prateada por baixo da cauda. Sei que é um pouco de abuso, mas tenho de colocá-la no lugar certo. Acho que ela não vai se importar se você ajudar.

— É assim que a chama? Dama Prateada?

— Sim, rapaz — disse Speedy sorrindo, mostrando talvez uma dúzia de dentes em cima e embaixo. — Todos os cavalos do carrossel têm um nome, não sabia? Suspenda, Jack Viajante!

Jack pôs a mão sob a cauda de madeira do cavalo branco e fez pressão com os dedos. Grunhindo um pouco, Speedy colocou as grandes mãos pretas em volta das patas dianteiras da Dama. Juntos, trans­portaram o cavalo de pau para o respectivo disco do carrossel, as pontas do mastro (desagradavelmente lambuzadas de óleo lubrificante) viradas para baixo.

— Um pouco mais para a esquerda — disse Speedy com voz ofegante. — Bom... Agora é só enfiar, Jack! Com força!

Fixaram o cavalo e recuaram um pouco, Jack ofegando, Speedy sorrindo e respirando ruidosamen­te. O negro limpou o suor da testa e dirigiu um sorriso para Jack.

— Não ficou bonita?

— Você acha? — Jack perguntou sorridente.

— Se eu acho? Claro que sim!

Speedy levou a mão ao bolso traseiro e puxou a garrafa verde-escura de meio litro. Tirou a rolha, tomou um gole e, por um momento, Jack teve uma estranha certeza: podia ver através de Speedy. Speedy se tomara transparente, tão fantasmagórico quanto os espíritos dos filmes de terror de um dos canais de TV de Los Angeles. Speedy estava desaparecendo. Desaparecendo, Jack pensou, ou indo para algum outro lugar? Mas era uma idéia maluca; não fazia qualquer sentido.

Então Speedy voltou a ficar sólido como antes. Fora apenas uma peça que seus olhos lhe tinham pregado, uma momentânea...

Não. Não fora. Por um segundo ele quase desapareceu!

... alucinação.                                                                     

Agora Speedy o fitava com ar sarcástico. Começou a aproximar a garrafa de Jack, mas acabou ba­lançando os ombros. Voltou a tampá-la e colocou-a outra vez no bolso de trás. Virou-se para contemplar a Dama Prateada, de novo ajustada no carrossel, só precisando de um apertão nos pinos do mastro. Abriu um sorriso.

— Não podia estar melhor, Jack Viajante!

— Speedy...

— Todos eles têm nome — disse Speedy, caminhando lentamente em volta do disco do carrossel, os passos ecoando dentro do cercado. Lá em cima, perto do xadrez sombrio das vigas do teto, algumas andorinhas arrulhavam suavemente. Jack foi atrás de Speedy.

— Dama Prateada... Meia-Noite... Este pampa aqui é o Escoteiro... Esta égua é a Ella Speed. O negro jogou a cabeça para trás e começou a cantar, alvoroçando as andorinhas e fazendo-as esvoaçar:

— Ella Speed tinha um namorado engraçado... Vou contar o que fez o velho Bill Marhn... Ei! Jack! Olhe as andorinhas voando!

Ele riu, mas quando se virou para Jack, estava sério de novo:

— Não quer tentar salvar a vida de sua mãe, Jack? A vida dela e a vida daquela outra mulher de quem lhe falei?

— Mas... — mas como?, ele pretendia dizer; então, uma voz interior (vinda daquele mesmo quarto trancado que de manhã revelara a memória dos dois homens e a tentativa de seqüestro) ergueu-se vigorosamente: Você sabe! Você pode precisar de um empurrão inicial do Speedy, mas você sabe como, Jack. Você sabe!

Ele conhecia bem essa voz. Era a voz do pai.

— Vou tentar, se me disser como — disse Jack, sua voz aumentando e diminuindo ao pronunciar a frase.

Speedy caminhou para a parede mais distante do cercado — uma grande forma circular feita de pequenas tábuas de madeira, onde havia um primitivo mas extremamente expressivo mural de bonitos cavalos. Para Jack, a parede parecia a tampa da escrivaninha do pai (a escrivaninha estava no escritório de Morgan Sloat da última vez que ele e a mãe estiveram lá, Jack se lembrou de repente; o pensamento lhe despertou uma leve e confusa sensação de raiva).

Speedy pegou uma gigantesca argola de chaves, remexeu-as com ar pensativo, encontrou a que queria e encaixou-a num cadeado. Girou a chave e o cadeado estalou. Depois guardou a chave num dos bolsos da frente e fez toda a parede recuar sobre um trilho. O brilho magnífico do sol se derramou pelo cercado, obrigando Jack a fechar os olhos. Os reflexos das ondas dançaram agradavelmente pelo teto. Junto ao carrossel do Arcadia Funworld, eles puderam se defrontar com uma magnífica vista do oceano. Se montassem nos cavalos e os pusessem em marcha, veriam a encosta em movimento sempre que a Dama Prateada, o Meia-Noite e o Escoteiro girassem por aquele lado do cercado. Uma leve brisa marinha suspendia o cabelo da testa de Jack.

— É melhor ter a luz do sol se vamos conversar sobre estas coisas — disse Speedy. — Venha até aqui, Jack Viajante. Vou lhe contar o que puder... que não é tudo que sei. Deus não gostaria se eu lhe con­tasse tudo.

 

Speedy falava em voz baixa. Para Jack, era um tom tão macio e agradável quanto um sapato velho de couro. Jack ouvia, às vezes franzindo a testa, às vezes abrindo a boca.

— Sabe essas coisas que você chama de sonhos de olhos abertos?

Jack assentiu com a cabeça.

— Essas coisas não são sonhos, Jack Viajante. Nem sonhos de olhos abertos, nem sonhos de qual­quer espécie. O lugar onde elas se passam é um lugar real. Bastante real, mesmo. É um lugar diferente da­qui, mas é real.

— Speedy, minha mãe diz...

— Isso agora não importa. Ela não conhece os Territórios... Mas, em certo sentido, sabe da existên­cia deles. Porque seu pai, Jack, seu pai sabia. E esse outro homem...

— Morgan Sloat?

— É, acho que sim. Ele também sabe.

Então, secretamente, Speedy acrescentou: “Sei muito bem quem é ele nos Territórios. Sei muito bem, não é?”.

— A gravura em seu escritório... Não é a África?

— Não é a África.

— Não é um truque?

— Não é um truque.

— E meu pai foi a esse lugar? — Jack perguntou, mas seu coração já conhecia a resposta. Era uma resposta demasiado lógica para não ser verdadeira. Mas, verdade ou não, Jack não sabia até que ponto queria acreditar naquilo. Terras mágicas? Rainhas doentes? A idéia o deixava inquieto. A idéia o deixava confuso sobre o que estaria disposto a fazer. E afinal, quando ele era pequeno, a mãe não o advertira ve­zes sem conta para não confundir os sonhos de olhos abertos com o que existia de verdade? Sempre fora muito severa a esse respeito e chegara a assustá-lo um pouco. Talvez, Jack agora pensava, ela mesma esti­vesse um pouco assustada. Poderia ter vivido tanto tempo com seu pai sem saber de alguma coisa? Essa não era a opinião de Jack. Talvez, ele pensou, mamãe não saiba de muita coisa... mas sabe o bastante para ficar com medo.

Ficando malucas. Era isso que ela dizia. Pessoas que não conseguem ver a diferença entre coisas reais e coisas de faz-de-conta estão ficando malucas.

Mas o pai tinha conhecido uma verdade diferente, não tinha? Sim. Ele e Morgan Sloat.

Eles têm magos como nós temos físicos, certo?

— Seu pai foi muitas vezes a esse lugar. E esse outro homem, Groat...

— Sloat...

— Sim, rapaz! Ele mesmo! Ele também foi. Só que seu pai, Jacky, ia para ver e aprender. Mas o outro sujeito... bem, ele ia apenas com a intenção de conseguir uma enorme fortuna.

— Foi Morgan Sloat quem matou meu tio Tommy? — Jack perguntou.

— Não sei nada a esse respeito. Procure apenas me ouvir, Jack Viajante. Porque o tempo é curto. E se esse tal de Sloat estiver mesmo disposto a aparecer por aqui...

— Seria terrível! — disse Jack. O simples pensamento do tio Morgan chegando a Arcadia Beach dei­xava-o nervoso.

—... então o tempo é mais curto que nunca. Porque ele talvez não se importe nem um pouco que sua mãe morra. E o Duplo dele está sem dúvida esperando que a Rainha Laura morra.

— Duplo?

— Há pessoas neste mundo que têm Duplos nos Territórios — disse Speedy. — Não muitas, por­que lá há muito menos gente. Talvez uma pessoa para cada 100 mil daqui. Mas os Duplos podem ir e vir com a maior facilidade.

— Esta rainha... é minha mãe? O Duplo dela?

— É, parece que sim.

— Mas minha mãe nunca...

— Nunca. Nunca foi até lá. Não havia motivo.

— Meu pai teve um... Duplo?

— Teve sim. Um ótimo sujeito.

Jack molhou os lábios. Que conversa maluca! Duplos e Territórios!

— E quando meu pai morreu aqui, seu Duplo também morreu nos Territórios?

— Sim. Não exatamente ao mesmo tempo, mas quase.

— Speedy?

— Hã?

— Eu tenho um Duplo? Nos Territórios?

Speedy o encarou com uma expressão tão grave que Jack sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha.

— Você não, filho. Você é único. E especial... E esse tal de Smoot...

— Sloat — disse Jack, sorrindo um pouco.

— Sim, não importa o nome, ele sabe disso. Essa é uma das razões que muito em breve devem tra­zê-lo pra cá. E uma das razões pelas quais você tem de pôr os pés no caminho.

— Ora! — Jack explodiu. — De que vai adiantar se ela estiver com câncer? Se é mesmo câncer e ela está aqui em vez de ter ido para uma clínica, é porque não há mais saída. Se ela está aqui, veja bem, isto significa que... — As lágrimas o ameaçaram de novo, mas Jack as engoliu freneticamente. — Isto sig­nifica que não tem mais jeito.

Ela não tem mais jeito. Sim. Essa era outra verdade que seu coração sabia: a verdade da acelerada perda de peso da mãe, a verdade das olheiras fundas sob os olhos. Ela não tem mais jeito, mas pelo amor de Deus, ei Deus, por favor, homem, ela é minha mãe...

— O que não entendo — ele concluiu numa voz rouca — é o que esse lugar dos sonhos de olhos abertos pode fazer de bom!

— Acho que por ora já tagarelamos bastante — disse Speedy. — Só quero que acredite no seguin­te, Jack Viajante: jamais eu lhe pediria que fosse, se isso de nada servisse para sua mãe.

— Mas...

— Fique tranqüilo, Jack. Não adianta mais falar antes de você ver alguma coisa com seus próprios olhos. Seria inútil. Venha comigo.

Speedy pôs o braço em volta dos ombros de Jack e contornou com ele o disco do carrossel. Saíram pelo outro lado do cercado e desceram um dos caminhos desertos do parque de diversões. À esquerda fi­cava o Trem Fantasma, agora fechado, com as persianas arriadas. À direita, havia uma série de galpões, to­dos fechados: o jogo de argolas, o bar Famous Pier Pizza & Dough-Boys, o tiro ao alvo (nas tábuas do tiro ao alvo saltitavam figuras desbotadas de animais selvagens: leões, tigres, ursos, oh, Deus!).

Chegaram ao largo caminho central, que era chamado Avenida do Cais, numa vaga imitação de Atlantic City (Arcadia Funworld tinha um píer, não um verdadeiro cais). O pátio estava agora 100 metros à esquerda deles e o arco que marcava a entrada do Arcadia Eunworld cerca de 200 metros à direita. Jack podia ouvir o chiado, o ronco contínuo das ondas quebrando na praia e os gritos solitários das gaivotas.

Ele se virou para Speedy, querendo perguntar quando poderia ir aos Territórios ou se tudo não passava de uma piada de mau gosto... Mas não disse coisa alguma. Speedy estava lhe oferecendo a garra­fa verde.

— Mas isso... — Jack começou.

— Leve-a com você — disse Speedy. — A maioria das pessoas que visitam o lugar não precisa de nada desse tipo, mas há muito tempo você não vai lá, não é Jack?

— É.

Quando abrira pela última vez os olhos no mundo mágico dos sonhos de olhos abertos, aquele inundo de cheiros exuberantes e agradáveis, de céu profundo e transparente? No ano passado? Não. Antes disso... na Califórnia... depois da morte do pai. Teria então...

Os olhos de Jack se arregalaram. Nove anos? Foi há tanto tempo assim? Há três anos?

Era assustador pensar com que modéstia, com que discrição aqueles sonhos, às vezes doces, às ve­zes sombriamente inquietantes, tinham escapulido — como se uma boa parte de sua imaginação, sem avi­so e de modo indolor, tivesse se dissipado.

Tirou rapidamente a garrafa das mãos de Speedy, quase deixando-a cair. Sentiu um ligeiro início de pânico. Alguns sonhos de olhos abertos tinham sido perturbadores, e as advertências cuidadosamente dosadas da mãe para que ele não misturasse realidade e fantasia (em outras palavras: não vá me ficar ma­luco, Jacky, cuidado com essa cabecinha, OK?) tinham deixado uma pequena cicatriz. Mas Jack percebia agora que realmente não estava disposto a perder esse mundo.

Olhou nos olhos de Speedy e pensou: Ele sabe disso, também. Sabe de tudo que eu penso. Quem é você, Speedy?

— Quando a pessoa fica muito tempo sem ir aos Territórios, acaba esquecendo como se faz para chegar lá — disse Speedy e inclinou a cabeça para a garrafa. — É por isso que trago sempre comigo este suco mágico. É uma coisa especial.

Speedy falara a última palavra quase num tom de veneração.

— Isto vem de lá? Dos Territórios?

— Não, rapaz. Também temos alguma magia por aqui, Jack Viajante. Não muita, mas um pouco. Este suco mágico veio da Califórnia.

Jack fitou-o com ar incrédulo.

— Vamos lá! Tome um pequeno gole e aposto que a travessia vai começar. — Speedy sorriu. — Se beber bastante deste suco, poderá ir praticamente a qualquer lugar que deseje. Está olhando para alguém que conhece o assunto.

— Incrível, Speedy, mas...

Ele começou a sentir um certo medo. A boca ressecara, o sol parecia brilhante demais, podia sentir a pulsação disparando nas têmporas. E tinha um gosto de cobre na língua. É assim, Jack pensou, que deve ser o gosto do “suco mágico”: horrível!

Se ficar com medo e quiser voltar, basta tomar outro gole — disse Speedy.

— A garrafa vai junto comigo? Tem certeza? Promete?

A idéia de ficar perdido por lá, naquele outro lugar místico, com a mãe doente e a peste do Sloat quase chegando, era terrível.

— Prometo.

— Tudo bem.

Levou a garrafa aos lábios... e então afastou-a um pouco. O cheiro era penetrante, horroroso, rançoso.

— Não quero tomar, Speedy — ele murmurou.

Lester Parker encarou-o. Os lábios estavam sorrindo, mas não havia sorriso nos olhos; os olhos pa­reciam severos... intransigentes... assustadores. Jack lembrou de muitos olhos negros: olhos de gaivota, olhos de redemoinhos. Foi tomado pelo terror.

Passou a garrafa para Speedy.

— Não pode devolvê-la? — ele perguntou, e concluiu num murmúrio fraco: — Por favor...

Speedy não deu resposta. Não lembrou a Jack que a mãe estava morrendo ou que Morgan Sloat es­tava chegando. Não chamou-o de covarde, embora Jack nunca tenha se sentido tão covarde, nem mesmo no dia em que recuou do trampolim da piscina de uma colônia de férias e foi vaiado por alguns garotos. Speedy simplesmente lhe virou as costas e começou a assobiar com ar distraído.

Agora a solidão juntou-se ao terror, deslizando irremediavelmente pelo seu corpo. Speedy se afas­tava dele; Speedy tinha lhe virado as costas.

— Tudo bem — disse Jack bruscamente. — Tudo bem, se é isso que você quer!

Ergueu de novo a garrafa e, antes de ter tempo para pensar, bebeu.

O gosto era pior do que qualquer coisa que se pudesse imaginar. Já bebera vinho antes, já chegara até mesmo a gostar de vinho (principalmente dos vinhos brancos e secos que a mãe servia com carne ou peixes, como o linguado ou o espadarte). Aquilo tinha alguma coisa a ver com vinho, mas ao mesmo tem­po era uma piada comparado a todos os vinhos que tomara. O sabor, apesar de doce, era muito forte, péssimo. Não era um gosto de uvas frescas, mas de uvas mortas cuja vida não fora nada boa.

Quando sua boca se encheu daquele horrível sabor pastoso e adocicado, ele pôde realmente ver essas uvas: sem brilho, poeirentas, obesas, grosseiras, fermentando uma goma suja, um xarope gorduro­so, expostas ao enxame barulhento de muitas moscas quebrando o silêncio do sol.

Engoliu o líquido e uma trilha serpenteante de fogo desceu-lhe pela garganta.

Fechou os olhos com uma careta, a garganta ameaçando reagir. Não vomitou, mas achou que teria vomitado se tivesse comido qualquer coisa no desjejum.

— Speedy...

Abriu os olhos e as palavras foram sufocadas. Esqueceu o enjôo daquela horrível paródia de vinho. Esqueceu da mãe, do tio Morgan, do pai e de quase qualquer outra coisa.

Speedy tinha desaparecido. Os graciosos arcos da montanha-russa contra o céu tinham desapareci­do. A Avenida do Cais tinha desaparecido.

Estava em algum outro lugar. Estava...

— Nos Territórios — Jack sussurrou, o corpo inteiro formigando com uma mistura maluca de terror e alegria. Podia sentir o cabelo se arrepiando na base da nuca, podia sentir um sorriso estúpido repuxando os cantos da boca.

— Speedy, estou aqui, meu Deus, estou nos Territórios! Eu...

Mas o espanto fez com que se calasse. Levou a mão à boca e girou lentamente, completando um círculo, apreciando o lugar para onde o “suco mágico” de Speedy o transportara.

 

O oceano ainda estava lá, mas tinha uma cor mais forte, um azul mais exuberante, o azul mais autêntico que Jack já vira. Por um instante, ficou paralisado, a brisa do mar lhe agitando o cabelo, os olhos fixos na linha do horizonte, onde aquele oceano índigo se unia ao algodão desbotado do céu.

A linha do horizonte mostrava um9 débil, mas inequívoca curvatura.

Ele balançou a cabeça, franzindo a testa, e virou-se para outro lado. Plantas marinhas, altas, selva­gens, emaranhadas, espalhavam-se pelo promontório onde, um minuto antes, erguia-se o cercado do carrossel. O píer também desaparecera; em seu lugar, uma série de rochas de granito corriam para o oceano. As ondas atingiam a base das rochas e penetravam em fendas e grutas circulares com um enorme e cavernoso estrondo. Espuma branca como claras de ovos batidas erguiam-se no ar e eram sopradas pelo vento.

Bruscamente, Jack apertou a face esquerda entre o polegar e o indicador. Beliscou com força. Seus olhos ficaram marejados, mas nada se alterou.

— É de verdade — ele sussurrou, enquanto uma onda, levantando enormes labaredas de espuma, estourava sobre o promontório.

Então Jack percebeu que, de uma certa maneira, a Avenida do Cais ainda estava lá... Um rústico caminho de carro de bois descia do topo do promontório (do ponto em que, no que sua mente insistia em chamar de “mundo real”, se situava um galpão do parque). O caminho passava perto dele e seguia para o norte, exatamente como a Avenida do Cais corria para o norte, onde, depois de ultrapassar os limites do Funworld, se transformava na Avenida Arcadia. Plantas marinhas cresciam ao longo da trilha, mas bastou um olhar mais calmo e atento para Jack perceber que aquele caminho ainda era usado, pelo menos de vez em quando.

Começou a andar para o norte, mantendo a garrafa verde na mão direita. Achou que, em algum lu­gar, num outro mundo, Speedy ainda estaria segurando a rolha que a tampava.

Será que desapareci bem na frente dele? Acho que sim. Meu Deus!

Depois de uns 40 passos pelo caminho, chegou a um emaranhado de amoreiras silvestres. Sem dú­vida por causa do efeito maléfico daquele “suco mágico”, seu estômago fazia um barulho alto de coisa roncando.

Amoras silvestres? Em setembro?

Não importava. Depois de tudo o que acontecera naquele dia (e ainda nem eram dez horas), depa­rar-se com amoras silvestres em setembro era mais ou menos como não querer tomar uma aspirina depois de ter engolido uma maçaneta.

Jack estendeu a mão, pegou um punhado de amoras e atirou-as na boca. Eram extremamente do­ces; extremamente gostosas. Sorrindo (seus lábios tinham adquirido um nítido aspecto azulado), achando bem possível que estivesse fora de si, pegou outro punhado de amoras... e depois um terceiro. Nunca provara nada tão bom — embora, ele pensou mais tarde, não se tratasse apenas das amoras; parte de sua satisfação vinha da incrível limpidez do ar.

Arranhou-se algumas vezes quando pegava uma quarta porção. Era como se os arbustos estives­sem lhe dizendo para não amolar, já comera demais, já chega! Sugou o sangue do arranhão maior, debai­xo do polegar, e continuou andando para o norte entre os sulcos paralelos da trilha. Caminhava devagar, querendo ver tudo de uma vez.

Parou um pouco à frente das amoras silvestres para olhar para o sol, que parecia um tanto menor, ainda que mais ardente que no outro mundo. E não tinha uma aparência ligeiramente alaranjada, como naquelas velhas gravuras medievais? Jack pensou que sim. Então...

Um grito, áspero e enervante como um prego enferrujado sendo lentamente arrancado de uma tá­bua, assomou à sua direita e dispersou-lhe os pensamentos. Jack virou-se na direção do grito, os ombros se empinando, os olhos se alargando.

Era uma gaivota e seu tamanho era desconcertante, quase inacreditável (mas a ave era sólida como pedra, real como uma casa). De fato, tinha o tamanho de uma águia. A cabeça lisa, branca e redonda inclinava-se para um dos lados. O bico em anzol abria e fechava. O agitar das grandes asas encrespava as plantas marinhas.

E então, aparentemente sem medo, ela pousou e começou a saltitar perto de Jack.

Em surdina, Jack ouviu o som límpido e metálico de um conjunto de cometas tocando ao mesmo tempo. Sem nenhuma razão lógica, pensou na mãe.

Atraído pelo som, olhou momentaneamente para o norte, na direção que estava seguindo. O som o encheu de um estranho sentimento de urgência. Era, ele pensou (havia tempo para pensar), como ter fome de alguma coisa específica que há muito não se come: sorvete, batatas fritas, quem sabe uma tortilla mexicana... Até se ver a coisa (e até se comê-la) existe apenas uma necessidade sem nome, que deixa a pessoa inquieta, nervosa.

Recortados contra o céu, viu bandeirolas e a cúpula do que poderia ser uma grande tenda, um pavilhão.

É lá que fica o Alhambra, ele pensou, e então a gaivota guinchou. Jack se virou e ficou alarmado ao vê-la a menos de dois metros de distância. O bico se abriu, mostrando aquela suja boca rosada, fazen­do com que ele se lembrasse da véspera, da gaivota que derrubara o marisco perto da rocha e que fitara a presa com o mesmo olhar terrível com que aquela outra ave o estava observando. Mas, apesar do olhar, a gaivota sorria para ele; tinha certeza disso. Quando a ave chegou ainda mais perto, Jack pôde sentir um mau cheiro desagradável, repugnante: cheiro de peixe morto e algas apodrecidas.

A gaivota silvou e agitou as asas.

— Vá embora — disse Jack em voz alta. O coração martelava rapidamente no seu peito e a boca parecia ressecada, mas ele não pretendia se deixar intimidar por uma gaivota, mesmo daquele tamanho. — Fora!

A gaivota abriu novamente o bico... E então, numa série de terríveis pulsações pela garganta aber­ta, ela falou (ou pareceu falar):

— Mãiiiii morrrrenunn, Ack... Mãiiiiifiii momrennunn...

Mãe morrendo, Jack..,

A gaivota deu mais alguns passos trôpegos em sua direção, pés escamosos se agarrando na relva do chão, bico abrindo e fechando, olhos negros fixos nos de Jack. Quase inconsciente do que estava fazendo, Jack ergueu a garrafa verde e bebeu.

De novo aquele gosto horrível fez seus olhos fechados se contraírem... E quando voltou a abri-los estava olhando estupidamente para a tabuleta amarela que mostrava as silhuetas de duas crianças correndo: um menino e uma menina, cuidado — crianças, dizia a tabuleta. Uma gaivota — esta de um tamanho perfeitamente normal — deu um guincho e esvoaçou, sem dúvida assustada pela repentina aparição de Jack.

Olhou em volta e se sentiu totalmente desorientado. O estômago, cheio de amoras silvestres e do repugnante “suco mágico” de Speedy, estava embrulhado e roncava. Os músculos das pernas começaram a fraquejar e ele acabou desabando no meio-fio da calçada, bem embaixo da tabuleta. Sentara-se com ta­manho baque que o impacto lhe subiu pela espinha e fez os dentes rangerem.

Num movimento brusco, curvou a cabeça entre os joelhos e abriu bastante a boca, certo de que ia vomitar tudo o que tinha no corpo. Em vez disso, soluçou duas vezes, deu um pequeno arroto e sentiu o estômago ir lentamente se relaxando.

Foram as amoras, ele pensou. Se não tivessem sido as amoras, eu teria sem dúvida vomitado.

Levantou os olhos e sentiu a irrealidade envolvê-lo de novo. Não caminhara mais de 60 passos pelo caminho de carro de bois do mundo dos Territórios. Tinha certeza disso. Digamos que seu passo fos­se de 60 centímetros, ou melhor, 80 (para não fazer uma estimativa exagerada). Isto significava que não teria andado mais de 50 metros. No entanto...

Jack olhou para trás e viu o arco, com as grandes letras vermelhas: Arcadia Funworld. Embora sua visão fosse de 100%, a tabuleta estava agora tão longe que ele mal conseguia ler. À direita ficavam as alas irregulares do Alhambra, os cuidados jardins na frente e o oceano do lado.

No mundo dos Territórios, ele caminhara 50 metros.

Ali, andara quase um quilômetro.

— Meu Deus — murmurou Jack Sawyer, e cobriu os olhos com as mãos.

 

— Jack! Ei, rapaz! Jack Viajante!

A voz de Speedy conseguia se sobrepor ao ronco de máquina de lavar de um velho caminhão de seis cilindros. Jack ergueu os olhos (a cabeça parecia absurdamente pesada, os membros vacilavam numa fraqueza extrema) e viu um velhíssimo International Harvester rolando devagar em sua direção. As escoras do bagageiro eram de fabricação caseira e, à medida que o caminhão avançava, jogavam de um lado para outro como dentes frouxos. A carroceria fora pintada num horrível tom azul-turquesa. Speedy estava ao volante.

Encostou no meio-fio, deu uma última acelerada (uhup! uhup! uhup-uhup-uhup!) e desligou o motor (hahbhhhhhh...). Saltou rapidamente.

— Tudo bem com você, Jack?

Jack passou a garrafa para Speedy.

— Seu suco mágico é realmente horroroso, Speedy — disse com uma expressão abatida.

Speedy pareceu magoado, mas acabou sorrindo:

— Já ouviu alguém dizer que tomou um remédio gostoso, Jack Viajante?

— Acho que não.

Jack sentia que sua energia estava voltando, aos poucos, ao mesmo tempo que o sentimento de desorientação ia se dissipando.

— Agora acredita, Jack? Jack assentiu com a cabeça.

— Não — disse Speedy. — Assim não serve. Diga em voz alta.

— Os Territórios... — disse Jack. — Eles existem mesmo. São reais. Eu vi um pássaro...

O menino parou e estremeceu.

— Que espécie de pássaro? — Speedy perguntou num tom de grande interesse.

— Uma gaivota. A maior gaivota que já vi em toda a minha vida. — Jack balançou a cabeça. — Você não acreditaria. — Pensou um pouco e acrescentou: — Não, acho que só você ia acreditar. Ninguém mais, mas você sim.

— Ela falou alguma coisa? Muitos pássaros dos Territórios falam. A maioria só fala bobagens. Mas alguns conseguem dizer uma ou duas palavras que fazem sentido... Mesmo que seja um sentido meio ma­luco ou a mais deslavada mentira.

Jack concordava com a cabeça. O simples fato de ouvir Speedy falar daquelas coisas, como se elas correspondessem a fatos racionais, dignos de uma conversa lúcida, já o fazia se sentir melhor.

— Acho que falou. Mas era como... — Ele fez força para pensar. — Na escola de Los Angeles em que eu e o Richard estudávamos, havia um garoto chamado Brandon Lewis. Ele tinha um problema de fala e quando abria a boca era muito difícil entender o que queria dizer. O pássaro era desse jeito. Mas eu sei o que ele disse. Disse que minha mãe estava morrendo.

Speedy pôs os braços em volta dos ombros de Jack e sentou-se com ele no meio-fio. O empregado da recepção do Alhambra, a mais pálida, esquálida e suspeita de todas as coisas vivas do universo, saiu com um grande malote de correspondência. Speedy e Jack viram-no encaminhar-se para uma esquina da estrada da praia e depositar a correspondência na caixa do correio. Ele deu meia-volta, registrando com olhos um tanto rasos os vultos de Jack e Speedy, e entrou no caminho de acesso ao saguão do hotel. O topo de sua cabeça mal despontava sobre a lona do malote que ele transportava no ombro.

O som da grande porta do Alhambra abrindo e fechando foi nitidamente audível, e Jack foi atingi­do pela terrível sensação da desolação do outono naquele lugar. Ruas largas e desertas. A praia comprida com dunas desertas, brancas como açúcar. O parque de diversões vazio, com os carros da monta­nha-russa encostados num desvio e cobertos de toldos. Todas as bilheterias fechadas a cadeado. Ocor­reu-lhe que o lugar para onde a mãe o levara parecia-se muito com o fim do mundo.

Speedy inclinou a cabeça para trás e cantou num tom suave e uniforme:

— Vou deitar por aí... Ou brincar por aí... Esta vila perdeu o riso... O verão já quase foi, oh, o inver­no já manda aviso... O inverno já manda aviso... Ah, vontade eu tenho e piso... O chão pra brin­car... E por aí viajar...

Parou e virou-se para Jack.

— Tem vontade de viajar, Jack?

Um terror debilitante moveu-se furtivamente pelos ossos do garoto.

— Acho que sim — disse ele. — Se isso puder ajudá-la. Ajudar minha mãe. Posso mesmo ajudar minha mãe, Speedy?

— Pode — Speedy respondeu num tom de gravidade.

— Mas...

— Oh, há um excesso de mas em sua boca, garoto! — disse Speedy. — Um trem carregado de mas e mas, Jack Viajante! Como posso lhe garantir que vai ser o vencedor da festa? Como posso lhe prometer o sucesso, rapaz? Como posso prometer que vai voltar inteiro, ou que vai voltar inteiro e com a cabeça no lugar?

— É diferente quando a gente anda pelos Territórios. Os Territórios são muito menores. Já notou isso?

— Já.

— E aposto que já encontrou coisas incríveis naquela estrada, não foi?

Speedy não respondeu e uma outra pergunta ocorreu a Jack. Ele tinha de saber, mesmo que tives­se de mudar de assunto:

— Eu desapareci, Speedy? Você me viu desaparecer?

— Você sumiu — disse Speedy, batendo palmas num gesto vigoroso — exatamente assim.

 Jack sentiu um sorriso vagaroso e relutante lhe repuxando os lábios... Speedy também sorriu.

— Eu queria fazer alguma coisa desse tipo na aula de computadores com o Sr. Balgo — disse Jack, e Speedy riu como uma criança. Jack também começou a rir, e as risadas foram ficando gostosas, quase tão gostosas quanto as amoras.

Pouco depois, Speedy parou de rir.

— Você tem uma boa razão — disse ele — para ir até os Territórios, Jack! Há uma coisa que você tem de fazer lá. Algo extremamente importante.

— E tudo tem de acontecer nos Territórios?

— Sim, rapaz.

— E isso vai ajudar minha mãe?      

— Ela... e a outra.

— A rainha?

Speedy confirmou com um gesto de cabeça.

— Mas o que é? Onde está? Quando eu...

— Espere aí, rapaz! Calma! — Speedy exclamou levantando a mão. Seus lábios estavam sorrindo, mas os olhos pareciam graves, quase pesarosos. — Uma coisa de cada vez! E, Jack, eu não posso lhe dizer o que não sei... ou o que não tenho permissão de contar.

— Permissão? — Jack indagou, desconcertado. — Quem...

— Aí está você de novo com as perguntas — disse Speedy. — Escute, Jack Viajante... Você precisa partir o mais breve possível, antes que esse tal de Bloat apareça por aqui para atormentá-lo.

— Sloat!

— Sim, ele. Você tem de agir antes que ele chegue.

— Mas ele vai deixar minha mãe maluca — disse Jack, sem saber se estava dizendo isso porque era verdade ou porque era uma desculpa para se esquivar da viagem que, como uma refeição que podia mui­to bem estar envenenada, Speedy colocava na sua frente. — Você não conhece ele. Sloat...

— Eu o conheço — disse Speedy em voz baixa. — Já o conheço há muito tempo, Jack Viajante. E ele também me conhece. Tem minhas marcas no corpo. Elas estão escondidas, mas estão nele. Sua mãe pode cuidar de si mesma. Pelo menos por algum tempo terá de se virar sozinha... Pois você tem de ir.

— Para onde?

— Para o oeste — disse Speedy. — Deste oceano para o outro.

— O quê — Jack gritou, aterrado pelo pensamento de tamanha distância. E então se lembrou de um comercial que vira há uns três dias na TV: um homem escolhendo gulodices no carrinho de uma aero­moça a dez mil metros de altura, doces de aparência deliciosa num vôo de costa a costa, Jack voara mais de duas dúzias de vezes com a mãe e ficava deliciado pelo fato de que quando se voa de Nova York a Los Angeles tem-se 16 horas de luz do sol. Era como enganar o tempo. E era fácil.

— Posso ir voando? — ele perguntou a Speedy.

— Não! — Speedy quase gritou, seus olhos se alargando com uma certa irritação. Apertou o ombro de Jack com força. — Não deixe que nada o leve para os ares! Não se atreva! Se quiser saltar sobre os Territórios quando estiver naquele outro mundo...

Não disse mais nada; não tinha de dizer. Repentina e assustadoramente, Jack se viu desabando da­quele céu sem nuvens, muito claro... Um garoto-projétil zumbindo, de jeans, com uma camisa de listras vermelhas e brancas, mergulhando sem pára-quedas.

— Apenas ande — disse Speedy. — Peça até carona se puder... Mas não deixe de ter cuidado, por­que há estranhos ali. Alguns não passam de malucos, maricas que gostariam de encostar a mão em você ou bandidos que gostariam de atacá-lo. Mas há verdadeiros estranhos, Jack Viajante! Pessoas com um pé em cada mundo, pessoas terríveis de duas caras. Acho que não vão demorar muito tempo para saber de sua chegada. E estarão à espreita!

— Eles são... — Jack hesitou — Duplos?

— Alguns são. Outros não. Por ora não posso lhe dizer mais nada. Mas tente atravessar. Tente atra­vessar para o outro oceano. Não vai ser difícil viajar nos Territórios e você poderá se deslocar bem mais rápido que aqui. Tome um pouco do suco...

— Eu detesto ele!

— Não importa o que você detesta — disse Speedy com ar severo. — Você vai atravessar e encon­trará um lugar... outro Alhambra. Tem de ir até lá. É um lugar um tanto assustador, um mau lugar. Mas tem de ir até lá.

— Como vou encontrá-lo?

— Ele vai chamá-lo, rapaz. Você o ouvirá em alto e bom som.

— Por quê? — Jack perguntou molhando os lábios. — Por que tenho de ir lá se é um lugar tão mau?

— Porque é onde está o talismã... — disse Speedy. — Em alguma parte desse outro Alhambra.

— Não entendo o que está dizendo!

— Vai entender — disse Speedy.

Ele se levantou e pegou a mão de Jack que também se levantou. Os dois ficaram frente a frente, o velho preto e o jovem menino branco.

— Escute — disse Speedy, e sua voz adquiriu uma cadência lenta, rítmica. — O talismã deve che­gar às suas mãos, Jack Viajante. Não é grande demais; também não é pequeno demais. É parecido com uma bola de cristal. Ouça bem, Jack Viajante! Você irá até a Califórnia para buscá-lo. Mas aqui é que está a cruz mais pesada, o fardo maior: se deixá-lo cair, tudo estará pedido!

— Ainda não entendo o que está dizendo — Jack repetiu com uma obstinação assustada. — Você tem de...

— Não — disse Speedy, num tom gentil. — Esta manhã tenho de concluir meu trabalho naquele carrossel, Jack, é o que tenho de fazer. Não há tempo para mais conversa mole. Preciso voltar ao parque e você tem de seguir em frente. Por ora não posso lhe dizer mais nada. Mas acho que, de certa forma, velando por você. Aqui... ou do outro lado.

— Mas eu não sei o que fazer! — disse Jack quando Speedy subiu na cabine do velho caminhão.

— Já sabe o bastante para pôr os pés no caminho — disse Speedy. — Você chegará ao talismã, Jack. Ele vai atraí-lo.

— Eu nem sei o que é um talismã!                                                      

Speedy riu e ligou a ignição. O motor do caminhão entrou em movimento soltando uma fumaceira azulada pelo cano de descarga.

— Dê uma olhada no dicionário! — ele gritou e engatou a marcha à ré.

O caminhão recuou, depois foi à frente e completou a curva. Logo estava chocalhando para o Arcadia Funworld. Jack continuou junto ao meio-fio, vendo o veículo se afastar. Nunca se sentira tão sozi­nho em toda a sua vida.

 

JACK E LILY

Quando o caminhão de Speedy saiu da estrada e desapareceu sob o arco do Funworld, Jack começou a caminhar para o hotel. Um talismã. Em outro Alhambra. Na margem de outro oceano. Seu coração tinha uma sensação de vazio. Sem Speedy do lado, a tarefa parecia impossível, gi­gantesca; muito vaga também. Ouvindo Speedy falar, Jack tivera a impressão de estar quase compreen­dendo aquela salada de sugestões, advertências e instruções. Agora a salada perdera todo o tempero. Os Territórios, porém, eram reais. Esta certeza não o abandonava e, ao mesmo tempo que o encorajava, lhe dava calafrios. Era um lugar de verdade e ele ia lá outra vez. Mesmo se ainda não entendesse muito bem por que, mesmo como um peregrino ignorante. Sem dúvida estava disposto a ir. Agora tudo o que tinha a fazer era tentar convencer sua mãe. “Talismã”, repetiu consigo mesmo. A palavra parecia uma coisa sem sentido. Atravessou a deserta Avenida do Cais e subiu os degraus que levavam ao caminho entre as cercas de fícus. A escuridão do Alhambra, assim que a grande porta de entrada bateu, não deixou de sobressaltá-lo. O saguão era uma caverna funda; seria preciso uma lamparina para dispersar as sombras. O pálido empregado da portaria mexeu-se atrás do balcão, cravando uns olhos esbranquiçados em Jack. Havia uma mensagem naquele olhar: sim! Jack engoliu em seco e virou o rosto. A mensagem fez com que se sentisse mais forte, deu-lhe coragem, embora fosse apenas uma mensagem de desprezo.

Caminhou para os elevadores com o corpo empinado e o passo lento. Andando por aí com negros, não é? Deixando que ponham a mão em seu ombro, hem? O elevador zumbiu como uma grande e pesada ave, as portas deslizaram e Jack entrou. Levantou o braço para apertar o botão onde brilhava um 4. O por­teiro continuava como um espectro atrás do balcão e a mensagem ecoava. Anda com negros, anda com negros, anda com negros (então é assim, hem, guri? Gosta da macacada, não é?). Felizmente as portas fe­charam. Jack sentiu o estômago cair para os pés, o elevador guinou para cima.

O rancor do porteiro ia ficando lá embaixo no saguão: o próprio ar dentro do elevador ficara me­lhor assim que o térreo foi ultrapassado. Agora, tudo o que Jack tinha a fazer era dizer à mãe que precisa­va ir sozinho para a Califórnia.

Não deixe tio Morgan assinar qualquer papel para você...

Quando saiu do elevador, Jack se perguntou pela primeira vez na vida se Richard Sloat sabia que tipo de homem era o seu pai.

 

Depois de uma fileira de candelabros de parede e gravuras de pequenos barcos sin­grando mares encapelados de espuma, a porta do 408 deslizou a um simples toque, revelando um pedaço do carpete da suíte. O sol que vertia das janelas da sala formava um grande retângulo numa das paredes internas.

— Ei, mamãe! — Jack entrou gritando. — Você não fechou a porta! Que falta de cuidado... — ele se viu sozinho na sala — ... é essa?

Só a mobília o ouviu. O aposento destilava uma certa desordem: um cinzeiro cheio até a borda, um copo com água pela metade esquecido na mesa-de-cabeceira.

Dessa vez, prometeu Jack a si mesmo, não entraria em pânico.

Virou-se num círculo lento. A porta do quarto da mãe estava aberta; o quarto parecia tão escuro quanto o saguão porque Lily nunca abria as cortinas.

— Ei, eu sei que você está aqui — disse ele e, depois de cruzar o quarto vazio, bateu na porta do banheiro.

Nenhuma resposta. Jack abriu a porta e viu uma escova de dentes cor-de-rosa ao lado da pia e uma escova de cabelo abandonada num toucador — cerdas enroscadas com alguns fios de cabelo. Laura DeLoessian, anunciou uma voz na cabeça de Jack e ele foi saindo do pequeno banheiro; aquele nome o dei­xou aflito.

“Oh, não de novo”, disse para si mesmo. “Onde ela terá ido?”

Jack já estava vendo a coisa.

Viu a coisa quando atravessou de novo a sala; viu quando abriu a porta de seu próprio quarto e contemplou a cama por fazer, a mochila, a pequena pilha de livros de bolso, o par de meias enrolado so­bre a mesa-de-cabeceira. Viu a coisa quando foi procurar no seu próprio banheiro, toalhas esparramadas por todo lado como num bazar oriental: no chão, nos bancos de fórmica, do lado da banheira...

Conseguia ver a coisa. Morgan Sloat atravessando a porta, agarrando os braços da mãe, arrastando-a para baixo...

Jack voltou correndo à sala e dessa vez procurou atrás do sofá.

... arrancando-a do hotel por uma porta lateral, empurrando-a para um carro, os olhos dele ficando amarelos...

Pegou o telefone e ligou para a portaria.

— Aqui é, hã, Jack Sawyer e estou no, hã, quarto 408. Minha mãe deixou algum recado pra mim? Ela devia estar aqui e... e por alguma razão... hã...

— Vou verificar — disse a telefonista, e Jack ficou apertando com extrema ansiedade o fone. Final­mente a moça voltou: — Nenhum recado para o 408, sinto muito.

— E para o 407?

— É o mesmo escaninho — disse a moça.

— Ah... Sabe se ela recebeu alguma visita na última meia hora? Alguém veio esta manhã? Alguém veio vê-la?

— Só a recepção poderia informar — disse a moça. — Eu não sei. Quer que eu verifique?

— Por favor — disse Jack.

— Oh, felizmente tenho alguma coisa para fazer neste necrotério — disse ela. — Fique na linha!

Outra espera terrível. De repente a voz dela voltou:

— Não houve visitas. Talvez sua mãe tenha deixado um bilhete aí mesmo na suíte.

— É, vou procurar — disse Jack num tom angustiado, e desligou. Será que o homem da recepção sabia da verdade? Ou será que Morgan Sloat teria molhado a mão dele com uma nota de 20 dólares enro­lada como um canudo? Isso Jack também podia imaginar.

Deixou-se cair no sofá, sufocando um desejo irracional de olhar embaixo das almofadas. Pensando melhor, era evidente que o tio Morgan não poderia ter vindo pessoalmente seqüestrá-la; ele ainda estava na Califórnia. Mas podia ter mandado alguém fazer o serviço. Uma daquelas pessoas que Speedy mencio­nou, os estranhos que tinham um pé em cada mundo.

Então Jack percebeu que não ia conseguir mais ficar na suíte. Pulou do sofá e voltou para o corre­dor, fechando a porta atrás de si. Depois de já ter avançado alguns passos, deu meia-volta, voltou e tornou a abrir a porta com sua chave. Deixou uma fresta de porta aberta e retomou o caminho dos elevado­res. Era ainda possível que ela tivesse saído sem levar a chave... Quem sabe não teria ido à loja do saguão para comprar alguma coisa, uma revista, um jornal?

Pois sim. Ele não via a mãe abrir um jornal desde o início do verão. Ouvia pelo rádio todas as notí­cias que podiam interessá-la.

Quem sabe, então, não teria saído para dar um passeio?

Sim, fazer algum exercício e respirar ar puro. Correr na praia, por exemplo. Talvez Lily Cavanaugh tivesse resolvido dar uma pequena corrida de 100 metros rasos. Ou podia estar procurando saltar algumas pedras na areia, como se estivesse treinando para as próximas olimpíadas...

Quando o elevador despejou-o no saguão, ele se dirigiu para a loja. Atrás do balcão, uma loura idosa espreitou-o por cima das bordas dos óculos. Animais empalhados, uma pequena pilha de jornais, bonitos vidros de perfume numa prateleira. Enfiadas em sacolas de couro penduradas nas paredes viam-se algumas revistas: People, Us, New Hampshire Magazine.

— Não é nada... — disse Jack, e virou as costas.

Quando deu outra vez por si estava fitando uma placa de bronze ao lado de uma enorme e abatida samambaia.... começou a definhar, e logo deve morrer.

A mulher da loja pigarreou. Jack imaginou que ela devia passar grande parte do dia contemplando as palavras de Daniel Webster.

— Quer alguma coisa? — a mulher perguntou atrás dele.

— Desculpe — disse Jack —, não é nada mesmo.

Foi para o centro do saguão. O homem detestável da recepção ergueu uma sobrancelha, depois se virou de lado e passou a fitar uma escada deserta. Jack obrigou-se a se aproximar do sujeito.

— Por favor... — disse, parando defronte ao porteiro. O homem murmurava algo, fingindo tentar se lembrar da capital da Carolina do Norte ou do principal produto de exportação do Peru. — Por favor... — Jack repetiu. O homem franziu a testa: estava quase lembrando, não podia ser distraído...

Aquilo não passava de teatro, Jack sabia, e por isso insistiu:

— Será que não podia me ajudar?

Finalmente o homem se dignou a encará-lo:

— Depende do tipo de ajuda que precisa, filho.

Deliberadamente, Jack decidiu ignorar o sorriso disfarçado de zombaria.

— Minha mãe deve ter saído ainda há pouco. O senhor não a viu?

— O que significa ainda há pouco?

Agora o riso era quase visível.

— Viu-a sair? É isso que estou perguntando.

— Está com medo de que ela tenha visto você lá embaixo, apertando a mão daquele seu amigo?

— Cara, você é de dar nojo, hem? — Jack chegou a se espantar com a coragem que teve de dizer aquilo. — Não, não é disso que tenho medo. Só estou querendo saber se ela saiu do hotel, e se você não for o chato que parece ser, vai me dar essa informação.

O rosto de Jack se tornara vermelho e ele percebeu que tinha cerrado os punhos.

— Bem, está bem, ela saiu — disse o homem, virando-se para a estante de escaninhos atrás do bal­cão. — Mas é melhor ter cuidado com a língua, rapaz — disse ele de lá. — É melhor se desculpar pelo que me disse, meu caro pequeno Sawyer. Eu também tenho olhos. Sei de certas coisas.

— Você cuida da sua boca e eu cuido da minha vida — disse Jack, tirando a frase de um dos ve­lhos discos de jazz do pai. Talvez ela não se ajustasse inteiramente à situação, mas o efeito foi bom: o empregado voltou a olhá-lo e piscou satisfatoriamente.

— Talvez sua mãe esteja nos jardins, eu não sei — disse num tom sombrio, mas Jack já estava a ca­minho da porta.

Ele percebeu de imediato que a musa dos drive-ins, a rainha das produções B não estaria em parte alguma do jardim. Se estivesse por lá, ele a teria visto quando entrou no hotel. Além do mais, Lily Cavanaugh não gostava de perambular por jardins: isto se ajustava tão pouco a ela quanto corridas de obstáculos na areia.

Alguns carros rolavam pela Avenida do Cais. Uma gaivota berrou lá no alto e o garoto sentiu um aperto no coração.

Jack passou os dedos pelo cabelo e examinou de cima a baixo a rua iluminada de sol. Quem sabe ela não teve vontade de conhecer Speedy? Quem sabe não quis saber quem era aquele novo e singular colega do filho? Quem sabe não resolveu dar uma caminhada até o parque de diversões?... Mas era tão di­fícil imaginá-la no Arcadia Funworld quanto passeando pitorescamente nos jardins. Então Jack virou-se na direção do que lhe era menos familiar: o comércio da cidade.

Separado dos terrenos do Alhambra por uma alta e grossa cerca de fícus, o Arcadia Tea and Jam Shoppe iniciava uma fileira de lojas com fachadas vistosamente coloridas. Ele e a Farmácia New England eram os únicos estabelecimentos que, mesmo depois de setembro, permaneciam abertos naquele terraço à beira-mar. Jack hesitou um momento entre as fendas da calçada. Seria extremamente improvável encon­trar a musa dos drive-ins numa mistura de cafeteria com restaurante. Mas como era o lugar mais à mão, decidiu caminhar alguns passos e dar uma espiada.

Uma mulher de penteado alto fumava diante da caixa registradora. Na parede oposta havia uma garçonete de vestido cor-de-rosa de raiom. A princípio, Jack não viu fregueses, mas observando melhor reparou que, numa das mesas da ponta da loja que ficava mais perto do Alhambra, uma velha mulher er­guia uma xícara de chá. Estava sozinha. Jack viu-a pousar delicadamente a xícara no pires e tirar um cigar­ro da bolsa. Com um tremor de surpresa, percebeu que era sua mãe. E, quase no mesmo instante, a im­pressão de estar vendo uma velha desapareceu.

Mas ele podia se recordar da sensação. Por um momento foi como se a estivesse vendo através de estranhas lentes bifocais. Lily Cavanaugh Sawyer e aquela frágil e velha mulher estavam no mesmo corpo.

Jack abriu vagarosamente a porta, mas ainda assim os sinos de recepção (que ele sabia que esta­vam ali) não deixaram de tocar. A loura da caixa registradora convidou-o a entrar balançando a cabeça e sorrindo. A garçonete esticou o corpo e alisou a frente do vestido. A mãe olhou para o filho com um au­têntico ar de espanto, mas logo lhe abriu um largo sorriso.

— Ora, Jack Andarilho, você está tão alto que parecia seu pai quando atravessou aquela porta — disse ela. — Às vezes eu chego a esquecer que só tem 12 anos.

 

— Você me chamou de “Jack Andarilho”? — disse ele, puxando uma cadeira e sen­tando-se ao lado da mãe.

O rosto de Lily estava muito pálido e as manchas sob seus olhos pareciam quase contusões.

— Seu pai não o chamava assim? Falei por acaso... Afinal, você esteve toda a manhã passeando, não foi?

— Ele me chamava de Jack Andarilho?

— Ou alguma coisa desse tipo... Por certo que chamava. Quando você era pequenino... Jack Via­jante!— ela disse com convicção. — Era isso! Ele costumava chamá-lo de Jack Viajante. Oh, você andava aos trambolhões pelo gramado. Era engraçado, eu acho... Escute, eu deixei a porta da suíte aberta. Fiquei com medo que tivesse esquecido de levar sua chave.

— Eu já estive lá — disse ele, ainda formigando com a informação que a mãe lhe passara.

— Quer comer um sanduíche? Não posso suportar a idéia de almoçar naquele hotel.

A garçonete aparecera ao lado deles.

— O rapazinho quer alguma coisa? — a moça perguntou erguendo um bloco de notas.

— Você achou que eu ia encontrá-la aqui?

— Onde mais eu poderia ir? — a mãe perguntou com uma certa lógica, e virou-se para a garçone­te: — Traga o desjejum três estrelas. Este menino está crescendo um palmo por dia.

Jack recostou-se na cadeira. Como poderia abordar o assunto?

A mãe o fitou com ar curioso, e ele começou, ele tinha de começar agora:

— Mamãe, se eu tivesse de ir pra fora por algum tempo, tudo bem com você?

— O que está querendo dizer com tudo bem? E o que significa ir pra fora por algum tempo?

— Você seria capaz de... Bem, acho que o tio Morgan pode lhe dar alguma dor de cabeça.

— Eu sei lidar com o velho Sloat — disse Lily com um sorriso tenso. — Pelo menos por enquanto ainda posso enfrentá-lo muito bem. Por que está preocupado com isso, Jacky? Você não vai a lugar algum.

— Tenho de ir — disse ele. — Verdade mesmo!

Então percebeu que estava parecendo uma criança implorando um brinquedo. Felizmente, a gar­çonete chegou com uma bandeja de torradas e um copo largo de suco de tomate. Ele se virou um instante para o lado, e quando seus olhos voltaram à mesa, a mãe tirava geléia de um pote e lambuzava um peda­ço de torrada.

— Tenho de ir — disse ele. A mãe passou-lhe a torrada; algum pensamento atravessou-lhe o rosto, mas ela não disse nada.

— Talvez você não me veja durante algum tempo, mamãe — disse ele. — Vou tentar ajudá-la. É por isso que tenho de ir.

— Ajudar-me? — ela perguntou, e seu ar de incredulidade, Jack avaliou, era 75% autêntico.

— Quero tentar salvar sua vida — disse ele.

— É mesmo?

— Vou conseguir.

— Vai conseguir salvar minha vida! Isto é muito divertido, rapaz! Daria um ótimo quadro de hu­mor. Por que não tenta uma das redes de TV?

Ela pousara a faca com manchas de geléia vermelha e os olhos se alargaram com uma expressão de troça. Mas sob aquele jeito de se fazer de desentendida, Jack viu duas coisas: um lampejo de seu terror e uma débil, quase imperceptível esperança de que ele fosse mesmo capaz de fazer alguma coisa.

— Mesmo se você disser que não deixa, eu vou de qualquer maneira. Por isso bem que você podia me dar sua permissão.

— Oh, mas que proposta maravilhosa! Ainda mais maravilhosa porque não tenho a menor idéia do que está falando!

— Acho que não é bem assim, mamãe... Você deve fazer alguma idéia do que estou dizendo. O pai, por exemplo, saberia exatamente do que se trata.

O rosto de Lily ficou vermelho; os lábios se apertaram.

— Isto não é justo! É uma atitude baixa, Jacky! Você não pode usar o que Philip pode ter sabido como uma arma contra mim.

— O que ele sabia, não o que ele pode ter sabido.

— Não está falando coisa com coisa, filho!

Visivelmente cheirando a comida, a garçonete parou ao lado de Jack com uma bandeja de ovos mexidos, batatas fritas e salsichas. Depois que ela pousou a bandeja na mesa, Lily sacudiu os ombros:

— É difícil entender onde você quer chegar, principalmente com essa garçonete rondando por aqui. Mas, como dizia Gertrude Stein, acho que quando se abre a boca para dizer besteira, sai merda em qualquer idioma.

— Vou salvar sua vida, mamãe — ele repetiu. — Mas para isso tenho de fazer uma viagem e me apoderar de uma coisa. E é isso o que vou fazer!

— Gostaria muito de entender o que está dizendo...

Não passava de uma conversa como qualquer outra, Jack pensou. Era como pedir permissão para passar uma ou duas noites na casa de um amigo. Cortou uma salsicha ao meio e pôs um dos pedaços na boca. Ela o fitava atentamente. Depois de mastigar e engolir a salsicha, Jack pegou uma garfada dos ovos mexidos. A garrafa de Speedy no bolso da calça era como uma pedra em sua nádega.

— Eu também gostaria — disse ela — que jamais se esquecesse dos meus conselhos quando se afastar do hotel, por mais estranhos que eles possam parecer.

Jack devorou impassível os ovos. Quanto mais ficasse em silêncio, mais sua mãe lhe daria atenção quando falasse. Fingiu se concentrar no desjejum, ovos salsichas batatas, salsichas batatas ovos, batatas ovos salsichas, até sentir que Lily estava prestes a gritar.

Meu pai me chamava de Jack Viajante, ele pensou. E é isso mesmo; não podia ter sido mais

— Jack...

— Mamãe — disse ele —, às vezes papai não telefonava de um lugar muito longe quando você achava que ele tinha de estar na cidade?

A mãe ergueu as sobrancelhas.

— E às vezes você não, hã, não entrava no quarto porque achava que ele estava lá, talvez até soubesse que ele estava lá... e ele não estava?

A mãe ruminou a coisa.

— Não — disse Lily.

Os dois deixaram a negativa se enfraquecer.

— Muito raramente.

— Mamãe, isso chegou até a acontecer comigo — disse Jack.

— Havia sempre uma explicação, você sabe que havia.

— Meu pai (isto é o que você sabe) nunca se saía muito mal quando tentava explicar as coisas. Principalmente as coisas que não podiam ser explicadas. Era muito bom nisso. E é por esse motivo que foi um empresário tão bem-sucedido.

Ela ficou em silêncio.

— Bem, eu sei aonde ele ia — disse Jack. — Eu também estive lá. Fui lá hoje de manhã. E, se vol­tar, posso tentar salvar sua vida.

— Minha vida não precisa ser salva por você, não precisa ser salva por ninguém — a mãe sibilou.

Jack baixou os olhos para o prato vazio e resmungou alguma coisa.

— Que idéia foi essa? — Lily sondou o garoto.

— Foi isso mesmo que eu disse.

Seus olhos encontraram os da mãe.

— Vamos supor — disse Lily — que eu lhe pergunte como pretende “salvar minha vida”... Estou repetindo suas palavras, Jack.

— Não posso responder. Porque ainda não entendo muito bem a coisa... Mamãe, eu não estou mesmo na escola... Me dê uma chance, vamos! Talvez eu só demore uma semana.

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Claro, posso demorar um pouco mais — ele admitiu.

— Acho que não está bom da cabeça, Jack! — disse a mãe. Mas Jack percebeu que uma parte dela queria acreditar em alguma coisa e as palavras que disse a seguir deixaram isso bem claro. — Se... se... eu fosse suficientemente louca para deixá-lo partir nessa andança misteriosa, teria de ter certeza de que não correria nenhum perigo.

— O papai sempre voltou — disse Jack.

— Eu antes preferia arriscar minha vida à sua — disse ela, e por algum tempo essa verdade pairou pesadamente entre os dois.

— Me comunico com você sempre que puder. Mas não fique preocupada se eu passar uma ou duas semanas sem dar notícias. Eu vou voltar, exatamente como o papai.

— Isto é uma conversa de doidos — disse ela. — E eu no meio! Como pretende chegar a esse lugar aonde quer ir? Onde ele fica? Tem dinheiro que chegue?

— Tenho tudo do que vou precisar — disse ele, esperando ardentemente que a mãe não começas­se a enchê-lo de perguntas. O silêncio se prolongou mais e mais. — Acho — disse por fim — que será ba­sicamente uma caminhada. Mas não posso falar muito sobre isso, mamãe.

— Jack Viajante — disse a mãe —, estou quase acreditando...

— Sim — disse Jack. — Sim. — Sacudiu a cabeça. E talvez, pensou, você até saiba alguma coisa do que ela, a rainha verdadeira, sabe. É por isso que está encarando a coisa com tanta naturalidade.

— É isso, mãe. Eu também acredito. É por isso que não posso deixar de ir.

— Bem... Como desde o início você me avisou que iria de qualquer jeito...

— É isso, mãe...

— Nesse caso, pouco importa o que eu ache ou deixe de achar... — Ela o fitou com uma expressão decidida. — Mas para mim importa, filho! Quero que volte o mais depressa possível, está certo? Bem, ain­da nos falamos antes de você ir.

— Não. — Ele respirou profundamente. — Tenho de ir já! Logo que nos separarmos.

— Estou quase acreditando nesse monte de bobagens. Você é mesmo filho de Phil Sawyer. Será que não encontrou alguma mocinha no lugar para onde quer ir, hem?... — Ela o fitou com grande interes­se. — Não? Nada de garotas? Tudo bem. Então salve minha vida. Sinal verde.

A mãe balançou a cabeça e Jack pensou ter visto um brilho em seus olhos.

— Se tem de ir, vá logo, Jacky. Mas telefone amanhã!

— Se puder. Ele se levantou.

— Se puder, é claro. Desculpe a distração.

A mãe levantou a cabeça e o menino observou que seus olhos estavam embaçados. Manchas ver­melhas lhe ardiam nas faces.

Jack se inclinou para beijá-la, mas Lily acenou para que ele fosse logo. A garçonete contemplava os dois como se assistisse a uma peça de teatro. Apesar do que a mãe dissera, Jack achou que conseguira re­duzir sua descrença a uns 50%; o que significava que ela não sabia mais em que acreditar.

Por um instante, Lily voltou a concentrar os olhos no filho e Jack viu de novo uma luminosidade fe­bril ardendo naquele olhar. Raiva, lágrimas?

— Tome cuidado — disse ela, e fez sinal para a garçonete.

— Gosto muito de você — disse Jack.

— Procure não sair da linha, filho. — Agora ela estava quase sorrindo. — Parta para sua viagem, Jack. Vá depressa antes que eu perceba a loucura que estou fazendo.

— Eu vou — disse ele, virando as costas e saindo do pequeno restaurante. Sentia uma pressão na cabeça, como se os ossos do crânio tivessem ficado grandes demais para seu envoltório de carne. A desolada luz amarela do sol atacou-lhe os olhos. Jack ouviu a porta do Arcadia Tea and Jam Shoppe fechar e os sininhos tocarem. Pestanejou. Atravessou correndo a Avenida do Cais sem olhar para os lados. Quando atingiu a outra calçada, descobriu que tinha de voltar à suíte para pegar algumas roupas. A mãe ainda não saíra do Arcadia quando Jack abriu a grande porta da frente do hotel.

O homem da recepção deu um passo atrás e fitou-o com ar sombrio. Jack sentiu uma espécie de emoção exalando do homem, mas por um instante não pôde entender por que o sujeito reagia com tanta veemência à sua presença. A conversa com a mãe — de fato muito mais breve do que ele imaginara — parecia ter durado dias. Lembrou-se que, antes do vasto fosso de tempo que passara no Tea and Jam Shoppe, havia chamado o empregado de nojento. Devia se desculpar? Já até se esquecera do que provo­cara sua ira contra o homem.

A mãe tinha concordado com a viagem; dera-lhe permissão para empreender a jornada... Quando Jack atravessou o fogo cruzado do olhar do porteiro, finalmente entendeu por quê. Ele não mencionara o talismã, pelo menos não explicitamente, mas mesmo que o tivesse feito (se tivesse tido a coragem de abordar o aspecto mais lunático de sua missão), ela também teria concordado. E se tivesse dito que ia buscar uma borboleta de quase meio metro para assá-la no forno, ela também concordaria em comer a borboleta assada. Em qualquer hipótese, haveria sempre uma concordância irônica, mas efetiva. Isto comprovava que o medo de Lily era tão profundo que ela seria capaz de se agarrar a qualquer migalha de salvação.

Mas ela o fazia porque, em certo sentido, sabia que talvez se tratasse de um verdadeiro bote sal­va-vidas. A mãe lhe dera permissão para ir porque uma parte dela sabia dos Territórios.

Será que nunca acordara no meio da noite com aquele nome, Laura DeLoessian, ecoando na mente?

Jack subiu ao 407-408 e atirou algumas roupas na mochila. A escolha foi quase aleatória. Seus de­dos puxaram o que encontraram numa ou noutra gaveta: camisas, meias, um suéter, bermudas. Enrolou dois jeans desbotados e comprimiu-os sobre as outras peças. Então percebeu que o fardo se tornara inco­modamente pesado, e tirou de lá a maioria das camisas e meias. O suéter também saiu. No último momento, lembrou-se da escova de dentes. Por fim, acomodou as correias nos ombros e testou o peso nas costas: não parecia excessivo. Seria capaz de andar um dia inteiro carregando aqueles poucos quilos. Então ficou um momento imóvel no meio da sala. Sentia — uma sensação inesperadamente intensa — a ausência de qualquer pessoa ou coisa a que pudesse dizer adeus. A mãe só voltaria à suíte quando já tivesse certeza de que o filho partira: se o visse agora, não poderia deixar de lhe ordenar que ficasse. Jack não podia dizer adeus àqueles três cômodos: não eram como uma casa que tivesse amado. Quartos de hotel aceitam partidas sem qualquer emoção. No último minuto, resolveu pegar o bloco de notas (que es­tampava uma gravura do Alhambra num papel fino e frágil) e, com um lápis pequeno e rombudo, escre­veu em três linhas o máximo que podia dizer:

 

Obrigado

Amo você

e vou voltar.

 

Jack desceu a Avenida do Cais sob o fraco sol setentrional. Não sabia muito bem onde devia... “passar”. Era a palavra exata. E não seria bom falar mais uma vez com Speedy antes de “pas­sar” para os Territórios? Era como se precisasse conversar de novo com Speedy, pois sabia muito pouco sobre o lugar para onde ia, quem poderia encontrar, o que exatamente estava procurando... É parecido com uma bola de cristal. Seria apenas isso que Speedy lhe podia dizer sobre o talismã? Isso e a advertên­cia para não deixá-lo cair? Jack não se sentia muito à vontade com essa falta de preparação; era como se tivesse de prestar um exame final sobre uma matéria que nunca tinha estudado.

Achava que podia “passar” ali mesmo onde estava. Sentia-se impaciente para começar, para se me­xer, para pôr decididamente os pés no caminho. O mais urgente era estar de novo nos Territórios, ele compreendeu com toda a clareza; no tumulto de suas emoções, no meio de sua ansiedade, brilhava esse raio de lucidez. Queria respirar aquele ar; ansiava por aquele ar. Os Territórios, as vastas planícies e cadeias de pequenas serras, estavam chamando por ele; os campos de relva alta e os regatos que cintilavam também. Todo o seu corpo suspirava por essa paisagem. E ele teria tirado ali mesmo a garrafa do bolso e enfiado pela goela o pavoroso suco, se não tivesse acabado de ver o antigo dono da poção. Speedy estava acocorado junto de uma árvore, o traseiro nos calcanhares, as mãos entrelaçadas em volta dos joelhos. Ao lado dele, havia uma sacola marrom de supermercado, e no alto da sacola despontava um enorme sanduíche que parecia ser de paio e cebola.

— Então está de partida! — disse Speedy, abrindo um sorriso. — Vai seguir seu caminho, eu sei. Fez suas despedidas? Sua mãe sabe que ficará algum tempo longe de casa?

Jack assentiu com a cabeça e Speedy pegou o sanduíche.

— Não está com fome? Isto é muito pra mim.

— Acabei de comer agora — disse o garoto. — Mas estou contente de poder me despedir de você.

— E estou vendo que o velho Jack está impaciente, louco para ir embora — disse Speedy, jogando para os lados a cabeça comprida. — E está mesmo em tempo!

— Speedy?

— Mas não quero que vá sem umas coisinhas que trouxe para você. Estão aqui na sacola, está vendo?

— Speedy?

Da base da árvore, Speedy lançou um olhar enviesado a Jack.

— Você sabia que meu pai costumava me chamar de Jack Viajante?

— Oh, posso ter ouvido isso em algum lugar — disse Speedy abrindo um sorriso. — Venha ver o que eu trouxe... Mas acho que tenho de lhe dizer aonde deve ir em primeiro lugar, certo?

Aliviado, Jack aproximou-se da árvore. O velho pôs o sanduíche no colo e puxou a sacola.

— Um presente — disse Speedy, e tirou da bolsa um grande e velho livro. Era, Jack logo desco­briu, um velho mapa rodoviário.

— Obrigado — disse Jack, recebendo o livro da mão estendida de Speedy.

— Lá não existem mapas, mas tente se guiar pelos caminhos deste velho atlas. Vai conseguir che­gar aonde quer.

— OK — disse Jack, e tirou a mochila dos ombros para acomodar o atlas dentro dela.

— A próxima coisa que vou lhe dar não precisa ir nesse pedaço de lona que você tem nas costas — disse Speedy. Pôs de novo o sanduíche na sacola e se levantou com um movimento suave, lento. — Pode levá-la no bolso.

Speedy enfiou os dedos no bolso esquerdo da camisa. O que saiu de lá, preso entre o dedo indica­dor e o médio como um dos cigarros de Lily, foi um objeto branco e triangular. Jack demorou um pouco para reconhecer uma palheta de violão.

— Pegue e leve com você. Vai querer mostrá-la a um homem. Ele o ajudará.

Jack virou a palheta nos dedos. Nunca vira nenhuma como aquela: marfim ornado de filigranas e arabescos, linhas curvas serpenteando ao redor como uma espécie de escrita de outro mundo. Bonita em suas formas abstratas, parecia pesada demais para ser manuseada com facilidade.

— Quem é o homem? — Jack perguntou guardando a palheta num dos bolsos da calça.

— Ele tem uma grande cicatriz no rosto. Você o verá pouco depois de chegar aos Territórios. É um guarda. Na realidade, é Capitão dos Guardas do Exterior e o conduzirá a um lugar onde você vai ver uma determinada dama. Uma dama que não pode deixar de conhecer. Então ficará a par da razão pela qual está se arriscando. Esse meu amigo lá do outro lado vai perceber o que você está fazendo nos Territórios. E vai descobrir um meio de levá-lo até a senhora.

— Essa senhora... — Jack começou.

— Sim — disse Speedy. — Você já entendeu.

— É a rainha.

— Dê uma boa olhada nela, Jack! Você vai ter uma visão, uma sensação fantástica. Vai ver o que ela é, compreende? Depois, então, siga seu caminho para o oeste.

Speedy o contemplou com um ar solene. Como se não tivesse muita certeza de que ia encontrá-lo outra vez. As rugas de seu rosto se contraíram.

— Cuidado com o velho Bloat! — disse Speedy. — Fique atento aos movimentos dele: dele e de seu Duplo. Se não for cuidadoso, Bloat poderá descobrir aonde foi, e se ele descobrir, correrá atrás de você como raposa atrás de ganso.

O velho pôs as mãos nos bolsos e contemplou Jack outra vez, como se quisesse dizer mais alguma coisa.

— Pegue o talismã, filho. Pegue o talismã e traga-o em segurança. Vai ser um fardo pesado, mas você tem de ser mais forte que ele.

Jack estava tão concentrado nas palavras de Speedy que chegava a contrair as pupilas diante dos sulcos profundos do rosto do velho. Um homem com uma cicatriz, esse tal Capitão dos Guardas do Exterior. A rainha. E Morgan Sloat... atrás dele como um predador. Um lugar perigoso do outro lado do país. Um fardo pesado.

— Tudo bem! — disse ele, desejando de repente estar ainda do lado da mãe no Tea and Jam Shoppe.

Speedy abriu um sorriso caloroso, dentes à mostra.

— Isso mesmo, rapaz! Sempre soube que Jack Viajante era um sujeito e tanto! — O sorriso ficou mais sério. — E não acha que já está na hora de tomar um golinho desse suco especial, hã?

— Acho que sim — disse Jack.

Ele tirou a garrafa escura do bolso de trás e puxou a rolha. Olhou de novo para Speedy, cujos olhos pálidos cravaram-se nos seus.

— Speedy o ajudará sempre que puder.

Jack agradeceu com a cabeça, piscou e levou o gargalo à boca. O cheiro podre e adocicado que saltou da garrafa fez sua garganta se contrair num espasmo involuntário. Inclinou a garrafa e o sabor do mau cheiro invadiu-lhe a boca. Sentiu um aperto no estômago. Engoliu. Um líquido pastoso, que ardia como fogo, escorreu-lhe pela goela.

Bem antes de abrir os olhos, pela exuberância e limpidez dos cheiros à sua volta, Jack soube que passara para os Territórios. Cavalos, relva, um odor vertiginoso de frutas verdes, terra, ar puro.

 

SLOAT NESTE MUNDO (I)

— Sei que trabalho demais — disse Morgan Sloat a seu filho Richard naquela noite.

Estavam falando ao telefone, Richard no aparelho público do corredor do andar de baixo de seu dormitório, e o pai na escrivaninha da cobertura de um dos primeiros e mais bem-sucedidos investimen­tos imobiliários da Sawyer & Sloat em Beverly Hills.

— Mas eu lhe digo, garoto, muitas vezes tenho de fazer pessoalmente as coisas para que elas fi­quem bem-feitas. Principalmente quando são assuntos que envolvem a família de meu falecido sócio. É apenas uma pequena viagem, eu espero. Provavelmente vou ter tudo sob controle naquele maldito New Hampshire em menos de uma semana. Quando tudo estiver arranjado, lhe telefono de novo. Talvez faça­mos uma viagem de trem à Califórnia... Como nos velhos tempos! Temos todo o direito a isso. Confie no seu velho pai!

A negociação do prédio de Beverly Hills fora particularmente favorável à empresa, graças à habili­dade de Sloat para resolver as coisas a seu modo. Primeiro, ele e Sawyer negociaram um curto contrato de arrendamento; depois (após uma batalha judicial), um contrato a longo prazo; por fim, fixaram suas pró­prias taxas de sublocação por metro quadrado, fizeram as alterações necessárias, e publicaram anúncios à procura de novos inquilinos. O único inquilino antigo era o restaurante chinês do térreo, que pagava um aluguel equivalente a um terço do valor da área. Sloat tentara uma conversa amigável com os proprietários, mas quando os chineses perceberam que ele estava mesmo disposto a extrair um aluguel maior, perde­ram subitamente a capacidade de falar ou entender inglês.

As tentativas de negociação de Sloat ficaram em banho-maria durante alguns dias. Foi então que ele viu por acaso um dos empregados da cozinha do restaurante saindo por uma porta traseira com uma tina de gordura. Já se sentindo um pouco melhor, seguiu o sujeito até um beco escuro e estreito, onde o viu despejar a gordura numa lata de lixo. Não precisava mais que isso. No dia seguinte, uma corrente separava o beco do restaurante e, dois dias depois, um fiscal da Secretaria de Saúde apresentou-se no restaurante com uma queixa e uma intimação. Agora o servente tinha de passar com todo o lixo da cozinha, inclusive a gordura, pelo salão de jantar e depositá-lo na calçada fronteira ao estabelecimento. Os negócios decaíram: os fregueses sentiam os desagradáveis e penetrantes odores que vinham do lixo próximo. Os donos do restaurante reaprenderam o idioma inglês e se dispuseram a dobrar o aluguel. Com uma sorridente cortesia, Sloat recusou a proposta. E naquela noite, tendo se regalado com três doses de martini, foi até o restaurante, tirou um bastão de beisebol da mala do carro e deixou em pedaços a comprida vitrine, que já proporcionara uma agradável vista da rua, mas dava agora para um corredor cercado de latas de lixo e correntes de ferro.

Ele fez essas coisas... Mas, afinal, estava um tanto fora de si.

Na manhã seguinte, os chineses pediram para ter mais uma conversa e dessa vez ofereceram o quádruplo do aluguel original.

— Agora estão fazendo uma proposta decente! — disse Sloat encarando o rosto metálico dos chi­neses. — E tem mais! Para provar que jogamos todos do mesmo lado, estou disposto a pagar metade do custo da nova vitrine.

Nove meses depois, a Sawyer & Sloat adquiria todo o edifício. Os aluguéis tinham aumentado sig­nificativamente; os custos da manobra tinham sido bastante modestos e as expectativas de lucro foram largamente ultrapassadas. Mesmo assim, aquele prédio representava um dos mais modestos empreendimen­tos da Sawyer & Sloat, mas Morgan Sloat tinha tanto orgulho dele quanto das novas e sólidas estruturas que possuía no centro da cidade. Toda manhã, quando passava defronte ao restaurante a caminho do es­critório, lembrava-se do quanto contribuíra para a grandeza da empresa que fundara com Sawyer. Sem dúvida, suas reivindicações eram mais que justas!

Esse senso da justiça de suas pretensões lhe ardia no peito enquanto ele falava com Richard. Afi­nal, era por causa de Richard que queria se apoderar da parte de Phil Sawyer na companhia. Richard, em certo sentido, representava a sua imortalidade. O filho freqüentaria as melhores escolas de Administração e se formaria em Direito antes de entrar na companhia. E com. esse nível de preparo, Richard Sloat faria todo o complexo e delicado mecanismo da Sawyer & Sloat entrar brilhantemente no novo século. A ridí­cula ambição do rapaz de se tornar químico não sobreviveria muito tempo à determinação paterna em su­focá-la. Richard era suficientemente inteligente para ver que o trabalho do pai era muitíssimo mais interes­sante, e financeiramente muito mais compensador, do que lidar com tubos de ensaio aquecidos a bicos de gás. Essa mania de “experiência química” se dissiparia num piscar de olhos quando o rapaz desse uma olhada no mundo real. E se Richard passasse a se preocupar com o destino de Jack Sawyer, não seria difí­cil convencê-lo de que 50 mil dólares por ano e a garantia de uma educação universitária eram não ape­nas justo, mas magnânimo. Principesco! Além do mais, quem podia saber se Jack ia querer uma parte do negócio ou se revelaria algum talento empresarial?

E, sem dúvida, acidentes acontecem. Quem podia garantir que Jack Sawyer iria passar dos 20 anos?

— Bem, é apenas uma questão de colocar em ordem alguns títulos de propriedade, acertar uma papelada — Sloat disse ao filho. — Há muito tempo Lily vem se escondendo de mim. A cabeça dela não anda funcionando muito bem, pode crer! Provavelmente tem menos de um ano de vida. Se me puser a caminho e forçá-la a tomar uma decisão, ainda haverá tempo para as providências legais. Poderei, por exemplo, depositar sob custódia judicial todas as somas que prometi... Acho que a mãe de seu amigo não me deixará administrá-las livremente... Bem, não quero preocupá-lo com meus problemas! Só telefonei para dizer que ficarei alguns dias fora de casa. Se quiser, me mande uma carta ou coisa parecida. E vá pensando na viagem de trem, OK? Temos de fazê-la outra vez!

O rapaz prometeu escrever, estudar bastante e não se preocupar com o pai, nem com Jack, nem com Lily Cavanaugh.

E um dia, quando aquele filho obediente estivesse, digamos, no último ano de Stanford ou Yale, Sloat o apresentaria aos Territórios. Richard seria então seis ou sete anos mais jovem do que ele era quan­do Phil Sawyer, enlouquecido de trabalho no primeiro escritório da firma da zona norte de Hollywood, o havia deixado, primeiro, confuso, depois, enfurecido (porque Sloat achara que Phil estava zombando dele), mas por fim conseguira lhe despertar o interesse (pois sem dúvida Phil era muito pobre de imagina­ção para inventar toda aquela trama de ficção científica sobre um outro mundo). Quando Richard visse os Territórios teria a maior emoção de sua vida. Se ainda fosse preciso, os Territórios modificariam completa­mente sua maneira de pensar. Mesmo uma pequena espiada nos Territórios minaria a confiança de qual­quer um na onisciência dos cientistas.

Sloat passou a palma da mão sobre o brilhante cocuruto da cabeça e depois acariciou com volúpia o bigode. De uma forma suave e sutil a voz do filho o consolara. Atrás dele havia Richard, por isso tudo estava muito, muito bem; o curso que as coisas seguiam era bom. Já era noite em Springfield, no Illinois. Na ala Nelson do Colégio Thayer, Richard Sloat seguia um corredor verde de volta a seu alojamento, talvez pensando nos bons momentos que passou e tornaria a passar ao lado do pai, nas horas felizes a bor­do de um trem nas costas da Califórnia. Já estaria dormindo quando o jato do pai rompesse a resistência do ar bem lá no alto, centenas de quilômetros ao norte. Mas Morgan Sloat puxaria a janela de sua poltrona de primeira classe e daria uma espiada lá fora, procurando a lua e uma abertura entre as nuvens.

 

Queria voltar imediatamente para casa (que ficava a 30 minutos do escritório), queria mudar de roupa e pôr alguma coisa no estômago, nem que fosse apenas um gole de Coca-Cola antes de ir para o aeroporto. Mas o problema é que ainda tinha de dar uma boa acelerada por uma longa rodovia para se encontrar com um cliente que estava metido em encrencas e à beira da ruína. Depois teria de enfrentar uma multidão de imbecis clamando que o projeto da Sawyer & Sloat em Marina del Rey ia poluir a praia. Essas coisas não podiam ser adiadas. Mas Sloat prometera a si mesmo que, assim que tivesse resolvido o caso de Lily Cavanaugh e seu filho, começaria a se preocupar um pouco menos com sua atual lista de problemas. Afinal, já estava na hora de se voltar para coisas bem maiores. Agora haveria mundos inteiros para explorar, e por certo sua parte nos bolos não se limitaria mais a 10%. Revendo o passado, Sloat não entendia muito bem como conseguira tolerar Phil Sawyer por tanto tempo. O sócio nunca jogara realmente para vencer, não seriamente; fora um homem demasiado tolhido por noções sentimentais de lealdade e honra, acreditando nas histórias que os pais contam aos filhos para mantê-los semicivilizados antes que chegue a hora de lhes arrancarem decididamente a venda dos olhos. Sem dúvida os Sawyers lhe deviam muita coisa. E enquanto calculava o quanto deviam ao velho Morgan, a indigestão lhe apertou o peito como um ataque de coração. Antes de ter atingido o carro estacionado numa vaga ainda ensolarada, já enfiara a mão no bolso do paletó e tirara de lá um pacote amassado de sal de frutas.

Phil Sawyer o subestimara, e isso ainda o amargurava. Phil o considerava uma espécie de cascavel domesticada que só podia ser deixada fora da jaula sob vigilância. Também outros o tinham olhado com um certo desprezo.

O guardador de carros, um caipira com um amassado chapéu de caubói, viu-o andar em volta do pequeno carro, procurando arranhões. O sal de frutas começava a dissolver a bola que lhe ardia no peito. Mas Sloat sentia o colarinho pegajoso de suor. O guardador tentava manter um rosto sorridente: há algu­mas semanas, Sloat tinha tirado o pêlo do homem verbalmente após descobrir um pequeno arranhão na porta do BMW. No meio de sua arenga, vira a violência começar a escurecer os olhos verdes do caipira. Num impulso repentino, cambaleou na direção do homem, continuando a lhe soltar os cachorros, quase esperando levar um soco. Mas de repente o guardador pareceu perder todo o ânimo; debilmente, num tom de desculpas, sugeriu que talvez fosse apenas um arranhãozinho de nada. E quem sabe não fora feito no estacionamento de um restaurante, hem? Aqueles sujeitos não têm o menor cuidado com os carros, o senhor sabe... E à noite, sem muita luz...

— Pare de dizer bobagens! — gritara Sloat. — Este arranhãozinho de nada, como diz você, vai me custar cerca de duas vezes o que você ganha numa semana. Eu devia despedi-lo agora mesmo, caubói, e só não vou fazer isso porque há 1% ou 2% de possibilidade de que possa ter razão. Quando saí do Chasen’s, ontem à noite, talvez não tenha olhado sob a maçaneta da porta: talvez tenha e talvez não tenha. Mas se alguma vez voltar a abrir essa boca para dizer alguma coisa, se disser uma palavra além de “Como vai, Sr. Sloat”, ou “Boa noite, Sr. Sloat”, pode ter certeza que vou despedi-lo tão depressa que você nem vai saber o que aconteceu.

O caipira, então, via-o inspecionar o carro, sabendo que, se Sloat encontrasse qualquer imperfei­ção, ele seria posto no olho da rua sem ter tempo sequer de dizer até logo. Às vezes, da janela que dava para o estacionamento, Sloat observava o guardador tirando freneticamente um cisco, um cocô de passa­rinho ou um respingo de lama da carroceria do BMW. E tudo isso era fruto de sua competência gerencial!

Quando ia retirando o carro da vaga, deu uma olhada no retrovisor e viu no rosto do caipira uma expressão muito semelhante à cara de Phil Sawyer em seus últimos momentos de vida, lá nos confins de Utah. Subiu sorrindo a rampa do estacionamento e pegou a estrada.

 

Phil Sawyer subestimara Morgan Sloat desde o primeiro encontro dos dois, quando eram calouros em Yale. Naquela época, Sloat refletiu, talvez fosse um tanto fácil subestimá-lo. Afinal, ele era apenas um gorducho rapaz de 18 anos vindo de Akron, um sujeito sem graça, carregado de ansiedades e ambições, que tinha saído de Ohio pela primeira vez na vida. Diante da fluência com que os colegas de classe falavam de Nova York, do 21, de terem visto Brubeck na Rua Basin e Erroll Garner no Vanguard, tinha de suar um bocado para esconder sua ignorância.

— Eu gosto muito do centro comercial — ele falava o mais descontraidamente possível. Secura nas palmas das mãos, dedos se cravando nelas. (Freqüentemente Sloat encontrava nas mãos arranhões feitos pelas próprias unhas.)

— Que centro comercial, Morgan? — Tom Woodbine perguntava. Os outros riam.

— Você sabe, a Broadway e o Village. Por aí!

Novas risadas, mais fortes. Ele não era atraente e não se vestia bem; seu guarda-roupa consistia em dois ternos, ambos cinza-escuro e aparentemente feitos sob medida para um homem com ombros de espantalho. Começara a perder cabelo já nos últimos anos do colégio e um ponto rosado aumentava cada vez mais no meio do penteado curto e grudado na cabeça.

Não, Sloat nunca fora bonito, e isso também o incomodava! Os outros sempre o fizeram se sentir muito mal: os arranhões que via de manhã na palma das mãos não passavam de fotos sombrias dos punhos fechados de sua alma. Os demais rapazes, interessados em teatro como Phil Sawyer, possuíam boni­tos perfis, barrigas nada salientes, modos descontraídos e elegantes. Espalhavam-se pelas espreguiçadeiras de Davenport enquanto Sloat, suando dos pés à cabeça, preocupava-se em evitar rugas nas calças dos ternos (para que não começassem a desbotar com lavagens sucessivas). Às vezes os colegas, suéteres de casemira jogados sobre os ombros como o velocino de ouro, lembravam muito as vitrines das lojas caras. Estavam em vias de se tornar atores, dramaturgos, compositores. Sloat gostava de se imaginar como dire­tor: enredando a todos numa teia de intrigas e planos que só ele saberia desemaranhar.

Sawyer e Tom Woobdine, rapazes que pareciam fantasticamente ricos aos olhos de Sloat, eram seus companheiros de quarto. Woodbine tinha apenas um fraco interesse pelo teatro e só completava seu seminário de dramaturgia para fazer companhia a Phil. Menino dourado das caras universidades particula­res, Thomas Woodbine diferia dos outros porque era bem mais sério e bem mais seguro de si. Queria se tornar advogado e parecia ter a probidade e a imparcialidade de um juiz. (De fato, a maioria dos amigos de Woodbine já o imaginava na Suprema Corte, o que deixava o rapaz um tanto encabulado.) Woodbine não possuía o tipo de ambição de Sloat, pois estava muito mais interessado em viver corretamente do que em viver bem. Naturalmente, ele já tinha de tudo, e se por acaso lhe faltasse alguma coisa haveria sempre quem preenchesse a lacuna num piscar de olhos. Como então poderia ele, tão favorecido pelo nascimen­to e com tantas amizades, ser um homem ambicioso? Quase inconscientemente, Sloat detestava Woodbi­ne, e nunca conseguira chamá-lo com naturalidade de “Tommy”.

Sloat dirigiu duas peças de teatro durante seus quatro anos em Yale: Sem saída, que o jornal estudantil rotulou de “uma furiosa confusão”, e Volpone. Esta foi descrita como “tumultuada, cínica, sinistra e quase inacreditavelmente caótica”. Sloat foi apontado como o responsável pela maior parte dessas qualidades. Talvez, afinal, não tivesse talento para ser diretor: seu mundo era demasiado intenso e desordenado.

Mas as ambições não se extinguiram, apenas mudaram de alvo. Se não estava destinado a ficar atrás de um palco ou de uma câmera, podia estar atrás das pessoas que ficavam na frente das câmeras. Phil Sawyer também começava a pensar da mesma forma. Phil nunca tivera certeza de onde seu amor pelo teatro poderia levá-lo, e achou que talvez tivesse talento para ser agente de atores e escritores.

— Vamos abrir uma agência em Los Angeles — Phil lhe disse no último ano da universidade. — Não deixa de ser uma loucura e nossos pais vão nos odiar por isso, mas talvez a coisa funcione. Mesmo que tenhamos de batalhar por alguns anos!

Já nos tempos de calouro, Sloat ficara sabendo que, afinal, Phil Sawyer não era filho de família rica. Apenas parecia rico.

— E quando abrirmos a coisa, podemos deixar Tommy ser nosso advogado. Afinal, ele vai se for­mar em Direito.

— Sem dúvida é uma boa idéia — disse Sloat, achando que seria melhor esperar uma hora melhor para afastar Tommy do negócio. — Que nome vamos dar à firma?

— Você escolhe! Sloat and Sawyer, por exemplo! Ou devíamos seguir a ordem alfabética?

— Sawyer and Sloat, sem dúvida. Em ordem alfabética — disse Sloat, furioso no íntimo porque imaginava que o futuro sócio pretendia deixá-lo para trás para sempre, sugerindo que Sloat seria secundá­rio a Sawyer.

Como Phil previra, os pais dos dois abominaram a idéia, mas os sócios da futura agência de talen­tos foram para Los Angeles no velho DeSoto (um carro de Morgan; outra demonstração do quanto Sawyer devia a ele), abriram um escritório num prédio da zona norte de Hollywood (onde havia uma turbulenta população de ratos e pulgas) e começaram a rondar pelos clubes, passando de mão em mão seus novos cartões de visitas. Nada. Quase quatro meses de total fracasso. Tiveram um cômico que tinha de se embebedar para ser engraçado, um escritor que não conseguia escrever, uma moça que fazia strip-teasee, com medo de ser enganada, exigia que a pagassem no ato. Mas num fim de tarde, com maconha e uísque na cabeça, Phil Sawyer falara rindo a Sloat sobre os Territórios.

— Você sabe o que se pode fazer, seu mestre da ambição? Oh, podemos viajar, parceiro! Sempre viajar!

Pouco depois, ambos ainda um tanto altos, Phil Sawyer encontrou uma promissora e jovem atriz numa festa de estúdio. Daí a uma hora, tinham sua primeira cliente importante. E três amigos dela também não estavam satisfeitos com seus agentes. Um desses amigos tinha um caso que escrevera um bom roteiro cinematográfico e precisava de um agente, e o caso tinha outro amigo... Antes do fim do terceiro ano, Sloat e Sawyer já possuíam um novo escritório, novos apartamentos, uma fatia, em suma, da torta de Hollywood. De uma forma que Sloat aceitara mas nunca compreendera, os Territórios tinham-nos abençoado.

Sawyer lidava com os clientes; Sloat com o dinheiro, os investimentos, a parte financeira da agên­cia. Sawyer gastava dinheiro (almoços, passagens aéreas), Sloat poupava. E essa era a justificativa de que precisava para, sem remorsos, deslizar para o bolso um pouco do creme do doce. E sem dúvida foi Sloat quem os empurrou para novas áreas: imóveis, comércio, investimentos financeiros. Quando Tommy Woodbine chegou a Los Angeles, a Sawyer & Sloat já era um negócio de cinco milhões de dólares.

Mas Sloat logo descobriu que ainda detestava o velho companheiro de universidade; Tommy Woodbine engordara 15 quilos, e no terno de colete azul parecia e agia mais que nunca como um juiz. Suas faces estavam sempre ligeiramente avermelhadas (seria alcoólatra?, Sloat se perguntava), seus modos continuavam gentis e um tanto excessivamente formais. A vida já lhe deixara algumas marcas no rosto: pequenas rugas nos cantos dos olhos e os próprios olhos infinitamente mais cautelosos que os do filhinho de papai de Yale. Sloat percebeu quase de imediato, e sabia que Phil Sawyer jamais notaria qualquer coisa a não ser que o informassem, que Tommy Woodbine vivia com um enorme segredo: fosse qual fosse sua personalidade quando era rapaz, Tommy era agora homossexual. Provavelmente, ele próprio se chamaria de gay. E isso tornava tudo mais fácil. Sem dúvida, seria muito mais fácil livrar-se de Tommy.

Porque bichas ou entendidos estão sempre sendo mortos, não é? E será que alguém ia querer que um veado de 100 quilos fosse responsável pela educação de um adolescente? Podia-se dizer que Sloat es­tava apenas poupando a Phil Sawyer as futuras conseqüências negativas de um sério erro de julgamento. Se Sawyer tivesse nomeado Sloat seu executor testamentário e tutor do filho, não haveria problemas. Os assassinos dos Territórios — aquela dupla que tentara seqüestrar o garoto — tinham forçado passagem através de um sinal vermelho e quase foram presos antes de conseguirem voltar para casa.

Tudo teria sido bem mais simples, Sloat refletiu pela milésima vez, se Phil Sawyer não tivesse se ca­sado. Se não existisse Lily, não existiria Jack; e sem Jack, não haveria problemas. Talvez Phil nem mesmo tivesse dado uma olhada no relatório sobre a vida de Lily Cavanaugh; informações cuidadosamente reuni­das por Sloat: elas revelavam onde, com que freqüência e com quem, e teriam dado o golpe de misericór­dia naquele romance, com a mesma presteza do caminhão negro transformando Tommy Woodbine numa massa de carne no meio da rua. E se Sawyer se preocupou em ler o meticuloso relatório, sem dúvida (e surpreendentemente) não se deixou afetar. Quis se casar com Lily Cavanaugh e foi o que fez. Da mesma forma como o amaldiçoado Duplo de Sawyer se casara com a Rainha Laura. Mais uma subestimação — o relatório. Tudo aquilo, porém, seria pago na mesma moeda, o que parecia bastante justo.

Após o acerto de alguns detalhes, pensou Sloat com uma certa dose de satisfação, tudo entraria fi­nalmente nos eixos. Depois de tantos anos... enfim! Quando voltasse de Arcadia Beach, teria toda a Saw­yer & Sloat no bolso. E nos Territórios, tudo estava do mesmo jeito: pairando na corda, pronto a cair em suas mãos. Assim que a rainha morresse, o governo ficaria nas mãos de um homem de sua confiança, ca­paz de introduzir todas as pequenas e interessantes novidades que ele desejava. Depois era ver o dinheiro rolar, pensou Sloat deixando a estrada e pegando o acesso para Marina del Rey. Depois era ver tudo rolar!

Seu cliente, Asher Dondorf, morava no segundo bloco de um novo condomínio numa das estreitas ruas de Marina del Rey, aléias que iam dar na praia. Dondorf era um velho ator coadjuvante que Obtivera um surpreendente nível de respeitabilidade e celebridade no fim dos anos 70 graças a um seriado de TV; fazia o papel de caseiro do jovem casal — detetives particulares, ambos tão engraçadinhos quanto bichinhos de pelúcia —, que era a estrela da série. Dondorf fora tão bem-sucedido em suas poucas aparições nos primeiros episódios que os roteiristas aumentaram-lhe o papel, transformando-o num pai não-oficial dos jovens detetives, deixando-o resolver um ou dois assassinatos, colocando-o em situações de perigo, etc. etc. Seu salário dobrou, triplicou, quadruplicou e, quando seis anos mais tarde a série foi cancelada, ele voltou para o longa-metragem. Foi então que surgiram os problemas. Dondorf se julgava uma estrela, mas os estúdios e os produtores ainda o viam como ator coadjuvante: popular, sem dúvida, mas de maneira alguma um grande trunfo para um projeto. Dondorf queria flores no camarim, queria seu próprio cabeleireiro e um auxiliar na memorização dos diálogos, queria mais dinheiro, mais respeito, mais amor, mais tudo, enfim! Na realidade, Dondorf se considerava um superastro.

Ao parar o carro na vaga do estacionamento e se esgueirar com cuidado por uma fresta da porta para não arranhar a pintura no tijolo do prédio, Sloat chegou a uma conclusão: se nos próximos dias vies­se a saber ou suspeitar que Jack Sawyer descobrira a existência dos Territórios, não teria outra alternativa senão matá-lo. A entrada de Jack nos Territórios seria um risco inaceitável.

Sloat sorriu consigo mesmo, pondo outro antiácido na boca, e empurrou com força a porta do con­domínio. Já sabia o que ia acontecer: Asher Dondorf ia se matar... Faria isso no living, para criar a maior confusão possível. Um tolo temperamental como seu futuro ex-cliente ia achar que um suicídio realmente chocante seria uma vingança adequada contra o banco que ameaçava executar sua hipoteca. Quando um pálido e trêmulo Dondorf abriu a porta, o calor do cumprimento de Sloat pareceu inteiramente sincero.

 

O PAVILHÃO DA RAINHA

Os recortes denteados das folhas da relva bem na frente de Jack pareciam com­pridos e afiados como sabres. Em vez de se curvar ao vento, cortavam-no. Jack gemeu ao levantar a cabe­ça. Ele não possuía tanta dignidade. Seu estômago ainda parecia ameaçadoramente líquido, a testa e os olhos ardiam. Ficou de joelhos e depois fez força para ficar de pé. Uma carroça comprida, puxada a cavalo, movia-se barulhentamente em sua direção pela poeira da estrada. O condutor, um homem barbado de rosto vermelho, mais ou menos da mesma forma e tamanho dos barris de madeira chocalhando atrás dele, não tirava os olhos de Jack. Jack cumprimentou-o com a cabeça, esforçando-se ao máximo para manter uma aparência de menino vadio, que tivesse acabado de tirar uma soneca na beira do caminho. Depois que se levantou, não se sentiu mais enjoado; sentia-se, de fato, melhor do que nunca desde que deixara Los Angeles; não apenas saudável, mas em perfeita harmonia, misteriosamente sintonizado com seu cor­po. O ar quente dos Territórios, agitado pela brisa, acarinhava-lhe o rosto com o mais doce e perfumado dos toques. Um delicado aroma de flores podia ser nitidamente percebido sob o forte odor de terra que o vento carregava. Jack passou as mãos pelos olhos e deu uma olhada no condutor da carroça, o primeiro exemplar que encontrava de um habitante dos Territórios.

Se o condutor se dirigisse a ele, como responderia? Será que ao menos falavam inglês por ali? E se­ria o mesmo tipo de inglês falado por ele? Por um instante, Jack se imaginou tentando passar despercebi­do num mundo onde as pessoas falassem um idioma arcaico, medieval. Achou que nesse caso o melhor que tinha a fazer era se fingir de mudo.

O condutor finalmente tirou os olhos de Jack e cacarejou alguma coisa para os cavalos, sons que não correspondiam de forma alguma a uma linguagem de 1980. Mas quem sabe... talvez fosse apenas um jeito de falar com os animais.

— Ucha, ucha!

Jack recuou um pouco para a grama da margem, achando que devia ter se levantado alguns segun­dos antes. O homem olhou-o de novo, e surpreendeu-o com um aceno de cabeça — um gesto nem amistoso nem hostil, uma simples comunicação entre duas pessoas. É, tenho muito trabalho pela frente, meu jovem! Jack devolveu o aceno, tentou pôr as mãos nos bolsos e, por um momento, seu assombro deve tê-lo deixado com um ar um tanto imbecil. O condutor riu; não foi um riso desagradável.

As roupas de Jack tinham se modificado. Ele usava agora pesadas e grossas calças de lã em vez de jeans de veludo fino. Cobria o peito com uma jaqueta bem justa, de fazenda azul e macia. Mas em vez de botões, a jaqueta (um gibão?, ele especulou) tinha uma fileira de presilhas. Como as calças, era nitidamen­te feita à mão. Também os tênis tinham desaparecido, sendo substituídos por sandálias de couro. A mo­chila se metamorfoseara num saco de couro seguro em seu ombro por uma fina correia. O condutor da carroça usava uma roupa quase exatamente igual à sua, mas o couro do gibão estava muito manchado, anéis dentro de anéis de manchas, como a casca de uma velha árvore.

Fazendo muito barulho e levantando pó, a carroça passou por Jack. Os barris exalavam um odor de levedo de cerveja. Atrás dos barris, havia três pilhas do que, irrefletidamente, Jack tomou por pneus de caminhão. Sentiu o cheiro dos “pneus” e percebeu de imediato que eles eram absolutamente carecas. Ti­nham um aroma cremoso, que enchia o paladar de sugestões de prazeres sutis. Instantaneamente, sentiu fome. Aquilo era queijo, um queijo diferente do tipo que estava acostumado a comer. E atrás das imensas rodas de queijo, na traseira da carroça, havia um monte de carne crua: grandes pedaços de bife que pare­ciam sem gordura, grandes quartos de alcatra (além de um punhado de miúdos pegajosos, que ele não sa­bia bem o que era, e que deslizavam sob um brilhante enxame de moscas). O cheiro penetrante da carne crua atingiu Jack, tirando-lhe o apetite despertado pelo queijo. Ele foi para o meio da trilha e contemplou o carro sacolejar para a crista de uma pequena elevação. E então começou a caminhar para o norte, se­guindo o mesmo caminho da carroça.

Cobrira a metade da distância até o topo da colina quando viu de novo o pico da grande tenda, rí­gida no meio de uma fileira de pequenas bandeiras que flutuavam. Aquele, presumiu, seria o seu destino. Alguns metros depois das amoreiras silvestres onde parara da última vez (lembrando-se de como as frutas eram gostosas, colocou duas enormes na boca) pôde ver toda a tenda. Na realidade, era um grande e sóli­do pavilhão, com alas compridas de ambos os lados, com portões e um pátio. Como o Alhambra, aquela estrutura excêntrica (um palácio de verão, disseram os instintos de Jack) ficava bem acima do oceano. Pequenos grupos de pessoas entravam, saíam e perambulavam pelo grande pavilhão, aparentemente impe­lidos por forças tão poderosas e invisíveis quanto o efeito de um ímã. Os pequenos grupos se encontravam, se dividiam, juntavam-se de novo.

Alguns homens usavam roupas brilhantes, de aspecto vistoso; outros vestiam-se tão modestamente quanto Jack. Algumas mulheres, de longas e brilhantes batas ou túnicas brancas, caminhavam através do pátio, decididas como generais. Do lado de fora dos portões, havia um aglomerado de tendas menores e cabanas de madeira cuja construção ainda não parecia concluída; também ali havia gente em atividade — comendo, fazendo compras ou conversando, embora mais à vontade, mais descontraidamente que os ou­tros. Lá, no meio daquela agitada multidão, Jack teria de encontrar um homem com uma cicatriz.

Olhou para trás, ao longo dos sulcos da estrada, para ver o que acontecera ao Funworld.

A uns 50 metros de distância, viu dois pequenos cavalos negros puxando arados, e achou que o parque de diversões tinha se transformado numa fazenda, mas então notou a multidão fitando do alto do campo o desempenho dos animais. Tratava-se de uma competição, de uma corrida. Depois seu olhar foi atraído pelo espetáculo de um enorme ruivo, nu até a cintura, girando velozmente em torno de si mesmo. As mãos estendidas seguravam um objeto comprido e pesado. De repente, o homem parou de rodar e soltou o objeto, que percorreu um longo caminho antes de cair com um baque na relva. Jack descobriu que era um martelo. Funworld, então, se transformara numa feira, não numa fazenda. Havia mesas cheias de comida e crianças nos ombros dos pais.

E aquele homem no centro da feira, certificando-se de que cada correia, de que cada arreio estava no lugar, de que cada forno estava bem abastecido de lenha... não era Speedy Parker? Jack gostaria que fosse.

E será que sua mãe ainda estava sentada sozinha no Tea and Jam Shoppe, sem entender muito bem por que deixara o filho partir?

Jack virou-se para trás e viu a barulhenta carroça atravessar os portões do palácio de verão e guinar para a esquerda, abrindo caminho entre as pessoas como um automóvel virando na Quinta Avenida, separando fluxos de pedestres junto aos sinais de tráfego. Um instante depois, Jack saía no rastro da carroça.

 

Jack teve medo de que todas as pessoas nas imediações do pavilhão fossem arrega­lar os olhos em sua direção, percebendo de imediato que ele era diferente. Procurou, então, cautelosamente, manter os olhos baixos, fingindo ser um garoto qualquer perambulando por ali. Seus pais o teriam mandado comprar... digamos, um certo número de coisas; o franzido no rosto mostrava a força que fazia para não confundir o que ia dizer: uma pá, duas picaretas, um rolo de barbante, uma lata de banha... Mas, aos poucos, foi tomando consciência de que nenhum dos adultos que rodeavam o palácio lhe dis­pensava qualquer atenção. Andavam de um lado para o outro, paravam, examinavam as mercadorias — tapetes, potes de ferro, braceletes — expostas em pequenas tendas, bebiam de canecões de madeira, pu­xavam a manga de alguém para fazer um comentário ou entabular conversa, discutiam com os guardas do portão. Todos, em suma, pareciam totalmente absorvidos por seus próprios afazeres. O disfarce que Jack tentava simular era tão desnecessário que chegava a ser ridículo. Então ele empinou a cabeça e começou a andar com passo mais firme, movendo-se num semicírculo em direção ao portão.

Mas quase de imediato percebeu que não seria fácil atravessá-lo. Os dois guardas postados de cada lado paravam e interrogavam quase todo mundo que se dirigia para o interior do palácio. Os homens ti­nham de exibir certas credenciais, distintivos ou selos para terem acesso ao pavilhão real. Jack só possuía a palheta de violão que Speedy Parker lhe dera, e não achava que ela fosse de alguma utilidade diante da vigilância dos guardas.

Exatamente naquele momento, um homem se aproximou do portão exibindo um distintivo redon­do de prata e os guardas o deixaram prosseguir. O sujeito que ia atrás dele foi barrado e começou a discu­tir com um dos guardas. De repente, sua argumentação se tornou mais enfática e Jack percebeu que, na realidade, ele estava implorando. O guarda balançou a cabeça e lhe ordenou que se afastasse.

— Os homens dele entram com a maior facilidade — disse alguém à direita de Jack, instantanea­mente resolvendo o problema do idioma dos Territórios. Jack virou a cabeça para ver se a pessoa estava falando com ele.

Mas o sujeito de meia-idade a seu lado conversava com um companheiro, ambos vestidos com a roupa simples, modesta, da maioria dos homens e mulheres fora dos domínios do palácio.

— Estão agindo muito mal — respondeu o companheiro. — Ele já está a caminho. Deve chegar hoje mesmo, eu acho.

Jack postou-se atrás dos dois e seguiu-os até o portão.

Os guardas deram um passo à frente quando os homens se aproximaram. A dupla ficou discutindo com um dos guardas, enquanto o outro gesticulava alguma coisa para alguém nas redondezas. Jack recuou. Ainda não vira ninguém com uma cicatriz, nem qualquer oficial. Os guardas eram os únicos soldados que havia por ali, ambos jovens e rústicos. Com os rostos muito vermelhos saindo de uniformes de pregas cuidadosamente engomadas, pareciam agricultores com fantasias de carnaval. Os dois sujeitos que Jack seguira deviam ter passado pela prova dos guardas, porque após alguns momentos de conversa os camponeses de uniforme retrocederam e lhes deram passagem. Então um dos soldados olhou atentamente para Jack. Ele desviou a cabeça e de novo recuou.

A não ser que encontrasse o capitão com a cicatriz, jamais conseguiria entrar no palácio.

Um grupo se aproximou do guarda que inspecionara Jack e começou imediatamente a discutir. Ti­nham uma entrevista marcada, era crucial que os deixassem entrar, havia muito dinheiro envolvido, em­bora, lamentavelmente, não tivessem credenciais. O guarda balançava a cabeça, coçando o queixo que despontava da gola franzida do uniforme. Enquanto Jack assistia à cena, ainda sem saber como encontra­ria o Capitão dos Guardas do Exterior, o líder do grupo agitou os braços e deu um soco na palma da pró­pria mão. Seu rosto se tornara tão vermelho quanto o do guarda. Finalmente começou a espetar o indica­dor no peito do guarda. Então, o outro soldado juntou-se ao colega: ambos pareciam irritados, hostis.

Um homem alto com um uniforme ligeiramente diferente do uniforme dos guardas (o que mais chamava a atenção era o modo como ele portava o uniforme, pois o traje dava a impressão de poder ser­vir numa batalha ou num camarote de opereta) aproximou-se discretamente. Não usava gola franzida e, Jack notou um segundo depois, o chapéu era bicudo e não de três pontas. Conversou com os guardas e depois se voltou para o líder do pequeno grupo. Não houve mais gritos nem ameaça de indicadores. O homem falava num tom calmo. Jack viu a hostilidade do grupo refluir. O líder começou a deslocar os pés num gesto de descontração e os ombros dos outros se abaixaram. Por fim, o grupo começou a se afastar. O oficial contemplou a retirada; depois disse mais alguma coisa aos guardas.

No momento em que o oficial virou o rosto na direção de Jack, afugentando de vez o grupo de ho­mens com sua atitude, o menino viu uma comprida e pálida cicatriz que descia em ziguezague do olho di­reito quase até o queixo.

O oficial inclinou a cabeça para os guardas e começou a se distanciar num passo rápido. Sem olhar para lado nenhum, Jack forçou caminho através do aglomerado de gente que agora, aparentemente, se para o lado do palácio, e correu atrás dele.

— Senhor! — gritou, mas o soldado continuou marchando entre o lento rastejar da multidão.

Jack contornou correndo um grupo de homens e mulheres que carregava um porco para uma das pequenas tendas, passou por uma brecha entre dois grupos de pessoas e, por fim, conseguiu se aproxi­mar o suficiente do oficial para estender o braço e tocar-lhe o cotovelo.

— Capitão?

O oficial deu meia-volta, fazendo Jack congelar no lugar onde estava. De mais perto, a cicatriz pa­recia mais nítida, mais grossa, uma criatura viva cavalgando no rosto do homem. Mesmo sem cicatriz, Jack pensou, aquele rosto expressaria uma vigorosa impaciência.

— O que há, rapaz? — perguntou o soldado.

— Capitão, tenho de falar com o senhor. Preciso ver a senhora, mas acho que não me deixarão en­trar no palácio. Oh, o senhor precisa ver isto!

Enfiou a mão no largo bolso da calça rústica que usava e pegou um objeto triangular.

Quando mostrou a palma da mão aberta, sentiu um choque profundo atravessar-lhe o corpo. O que havia em sua mão não era mais uma palheta, mas um dente comprido, talvez de tubarão, incrustado com um serpenteante e intrincado arabesco dourado.

Jack levantou os olhos para o rosto do capitão, quase com medo de levar um soco. Mas o que viu foi apenas um eco do mesmo choque que ele sentira. A impaciência, que parecia tão típica do homem, desaparecera por completo. Incerteza, até mesmo temor distorciam os traços marcantes do rosto do capi­tão. O oficial ergueu a mão na direção de Jack, e o garoto achou que ele pretendia pegar o dente adorna­do: Jack o teria entregue, mas o homem limitou-se a dobrar-lhe os dedos sobre o estranho objeto.

— Venha comigo — disse.

Circundaram o pavilhão e o garoto foi levado para trás de uma grande aba que, embora lembrasse a vela de um navio, era apenas a entrada de um resistente abrigo de lona. Na semi-obscuridade da tenda, as feições do soldado pareciam ter sido reforçadas com lápis cera.

— Este objeto — disse, procurando conservar a voz calma. — Onde o conseguiu?

— Foi Speedy Parker quem me deu. Mandou que eu falasse com o senhor e lhe mostrasse a coisa.

O homem sacudiu a cabeça.

— Não estou reconhecendo o nome. Quero que me dê o que tem na mão. Agora!

Agarrou com firmeza o pulso de Jack.

— Passe-o para mim e diga de onde o roubou.

— Mas estou dizendo a verdade! — Jack protestou. — Ganhei-o de Lester Speedy Parker! Ele traba­lha no Funworld... Só que não era um dente quando ele me deu. Era uma palheta de violão!

— Acho que ainda não entendeu bem o que vai lhe acontecer, garoto!

— O senhor conhece Speedy — Jack insistiu. — Ele o descreveu... Disse que era Capitão dos Guar­das do Exterior. Speedy me mandou procurá-lo.

O capitão sacudiu a cabeça e agarrou com mais força o punho de Jack.

— Diga como é esse sujeito! Vou descobrir agora mesmo se está dizendo a verdade ou não! Por isso, no seu lugar, eu procuraria ser bastante preciso!

— Speedy é velho — disse Jack. — Antigamente era músico...

O menino julgou captar um lampejo de reconhecimento nos olhos do homem.

— É preto — Jack continuou —, um homem preto. Tem cabelos brancos e muitas rugas no rosto. É bem magro, mas muito mais forte do que aparenta.

— Um homem preto... Você quer dizer, um homem pardo.

— Bem, os negros não são realmente negros. Como os brancos não são realmente brancos.

— Um homem pardo chamado Parker.

Num movimento lento, o capitão libertou o pulso de Jack.

— Aqui ele é chamado Parkus... Portanto, você veio... — Ele inclinou a cabeça para algum ponto distante e invisível do horizonte.

— É isso — disse Jack.

— E Parkus... Parker... mandou-o encontrar-se com nossa rainha.

— Ele me disse para ir ver a senhora. E disse que o senhor podia me levar até ela.

— Isto terá de ser feito com rapidez — disse o capitão. — Acho que sei o que fazer, mas não temos tempo a perder.

Tomara sua decisão com uma firmeza militar.

— Agora, escute! Temos muitos bastardos rondando por aqui, por isso vamos fingir que você é um filho ilegítimo que tive. Você me desobedeceu numa coisinha qualquer e eu fiquei furioso. Acho que ninguém poderá nos deter se representarmos nosso papel de forma convincente. Pelo menos vou conseguir introduzi-lo no palácio, mas é lá dentro que as coisas serão mais delicadas. Vai conseguir fazer isso? Con­vencer as pessoas de que é meu filho?

— Minha mãe é atriz — disse Jack, sentindo-se orgulhoso dela.

— Bom, então vamos ver como vai se sair! — disse o capitão, surpreendendo Jack com uma pisca­da de olho. — Vou tentar agir de modo a não lhe causar nenhum mal. — Estendeu de novo o braço e cravou a mão com uma força de garra no braço do garoto. — Vamos agora! — disse ele, e saiu marchando do abrigo de lona, quase arrastando Jack atrás de si.

— Quando eu lhe mandar lavar o chão atrás da cozinha, deve obedecer prontamente — disse o ca­pitão em voz alta, mas sem olhá-lo. — Entendeu bem? Vai fazer o que eu mandar. E se não fizer, será castigado.

— Posso muito bem lavar alguns ladrilhos... — Jack resmungou.

— Mas talvez não tenha apenas de lavar alguns ladrilhos! — gritou o capitão, carregando Jack com ele. As pessoas abriram caminho para deixar o oficial passar. Algumas sorriam simpaticamente para Jack.

— Agora vamos fazer as coisas direito. Não temos um minuto a perder...

O capitão puxou Jack para o portão do palácio sem nem ao menos olhar para os guardas; era como se estivesse levando o garoto à força.

— Não, papai! — Jack berrou. — Está me machucando!

— Pode estar certo de que ainda vou machucá-lo um pouco mais — disse o capitão e transpor­tou-o através do amplo pátio que o menino vira da trilha da carroça.

Na extremidade do pátio, o soldado obrigou-o a subir degraus de madeira e a penetrar no interior do grande palácio.

— Agora procure representar com um pouco mais de energia... — o homem sussurrou e dobrou imediatamente num longo corredor, apertando o braço de Jack com força suficiente para feri-lo.

— Prometo que vou obedecer ao senhor!!! — Jack gritava.

O homem arrastou-o para outro corredor mais estreito. Jack reparou que o interior do palácio não se assemelhava nem um pouco ao interior de uma tenda. Possuía um confuso labirinto de galerias e pequenas salas, e por toda parte havia cheiro de fumaça e gordura.

— Prometa! — vociferou o capitão.

— Prometo, juro!!!

Ao emergirem de um terceiro corredor, depararam-se com um grupo de homens requintadamente vestidos; alguns se apoiavam nas paredes; outros, recostados em divãs, viravam as cabeças para ver a du­pla barulhenta. Um deles, que se divertia dando ordens a duas mulheres que transportavam pilhas de pa­pel dobradas nos braços, olhou com desconfiança para Jack e o oficial.

— E eu prometo lhe dar uma boa surra! — disse em voz alta o capitão.

Alguns homens riram. Usavam chapéus macios com grandes abas adornadas de pele e as botas eram de veludo. Tinham rostos vorazes e expressão estúpida. O homem que falara com as criadas, talvez o encarregado de algum departamento do palácio, era esqueleticamente alto e magro. O rosto tenso e am­bicioso acompanhou o garoto e o soldado quando os dois passaram por ele.

— Por favor, não! — Jack gemia. — Por favor!!

— Cada por favor vai ser outra correada! — o soldado rosnou, e os homens riram de novo. O sujei­to magro acabou se permitindo um sorriso, frio como lâmina de faca. Depois voltou-se de novo para as criadas.

O capitão puxou o garoto para uma sala vazia, onde havia uma mobília de madeira cheia de pó. Então, soltou o braço dolorido de Jack.

— Aqueles são os homens dele — cochichou. — A vida seria ótima se...

Ele sacudiu a cabeça e, por um momento, pareceu esquecer toda a pressa.

— Diz no Livro da boa lavoura que os mansos herdarão a terra, mas ninguém é manso ou pacífico entre esses sujeitos. A única coisa que querem é pôr as mãos em tudo. Querem riqueza, querem... — Ergueu os olhos para o teto, sem vontade ou incapaz de dizer o que mais aqueles homens poderiam cobi­çar. Depois voltou a encarar o garoto: — Temos de agir com rapidez, mas ainda existem alguns segredos no palácio que esses homens não conseguiram descobrir.

Ele inclinou a cabeça para um dos lados, indicando uma parede de madeira sem cor.

Quando o capitão se pôs de novo em movimento, Jack o seguiu. Entendeu logo por que o homem empurrou dois cravos marrons na extremidade de uma tábua empoeirada do revestimento perto do rodapé. Uma das almofadas da parede descorada se deslocou, revelando um estreito e escuro corredor, não mais alto que um caixão na vertical.

— Você apenas vai dar uma olhada nela, mas acho que é tudo o que você precisa. E, além do mais, é tudo o que pode conseguir.

O garoto obedeceu à ordem silenciosa para se introduzir na passagem.

— Vá sempre em frente até eu mandá-lo parar — o capitão sussurrou.

Depois que o oficial também entrou e fechou o painel atrás deles, Jack começou a avançar lenta­mente através de uma escuridão absoluta.

A galeria seguia uma trajetória sinuosa, ocasionalmente iluminada pela débil claridade de uma fres­ta de porta ou de uma clarabóia. Jack logo perdeu todo o senso de direção e limitou-se a acompanhar ce­gamente o rastro do capitão. Num determinado trecho, seu nariz captou um aroma delicioso de carne as­sada; mais adiante, porém, havia um indisfarçável fedor de esgoto.

— Pare! — disse finalmente o capitão. — Agora terei de suspendê-lo. Levante os braços!

— Vou ver alguma coisa?

— Saberá num segundo — respondeu o capitão e, pondo as mãos sob as axilas de Jack, ergueu-o com energia.

— Há um alçapão bem na sua frente — murmurou. — Puxe-o para a esquerda.

Às cegas, Jack estendeu o braço e tocou uma superfície lisa de madeira. Ela deslizou facilmente, enchendo a galeria de uma luminosidade fraca. Através de uma longa teia de aranha avançando até o teto, Jack pôde ver um aposento do tamanho de um saguão de hotel. Estava repleto de mulheres vestidas de branco e equipado com um mobiliário tão requintado que lembrou ao menino os museus que ele visitara com os pais. No centro da sala, numa cama imensa, havia uma mulher adormecida ou inconsciente, apenas a cabeça e os ombros visíveis sobre o lençol.

E então Jack quase gritou sob o impacto do choque e do terror. A mulher deitada na cama era sua mãe. Era sua mãe que estava ali... E estava morrendo.

— Pronto, você a viu! — murmurou o capitão, apertando-o com mais força sob as axilas.

De boca aberta, Jack continuava contemplando a mãe. Estava morrendo, não havia mais dúvida al­guma; mesmo a pele parecia doentia, esbranquiçada, e o cabelo perdera todas as nuances de cor. As en­fermeiras corriam de um lado para o outro, ajeitando os lençóis ou arrumando livros numa me­sa-de-cabeceira. Estavam assim agitadas por não saberem mais o que fazer pela paciente. Sabiam que já não era possível prestar-lhe qualquer tipo de ajuda. Se conseguissem afugentar a morte por mais um mês, ou mais uma semana, já seria um milagre.

Jack se concentrou de novo na face virada para cima como uma máscara de cera e enfim percebeu que a mulher deitada na cama não era sua mãe. O queixo parecia mais redondo, a forma do nariz era ligeiramente mais clássica. A mulher que agonizava era o Duplo de sua mãe; era Laura DeLoessian. Se Speedy esperava que ele visse mais alguma coisa, estava redondamente enganado: aquele rosto branco e imóvel nada lhe revelava sobre a rainha que se escondia atrás dele.

— Está bem — murmurou fechando o alçapão, e o oficial colocou-o no chão.

Na galeria novamente escura, Jack perguntou:

— O que está havendo com ela?

— Ninguém descobriu ainda — disse a voz acima de sua cabeça. — A rainha não consegue mais enxergar, nem falar, nem andar...

Houve um momento de silêncio. Então o capitão tocou a mão do garoto.

— Temos de voltar — disse.

Em silêncio, foram emergindo da escuridão da passagem até a sala vazia e empoeirada. O capitão sacudiu pegajosas teias de aranha da frente do uniforme. Sua cabeça pendeu para um dos lados, a preocupação estampada no rosto. Os olhos examinaram detidamente o garoto.

— Quero que me responda a uma pergunta — disse.

— Sim.

— Foi mandado aqui para salvá-la? Para salvar a rainha?

Jack balançou a cabeça.

— Acho que sim... Acho que isso faz parte da... missão. Mas me diga uma coisa. — Ele hesitou. — Será que não existe ninguém por aqui capaz de ajudar a rainha?

O capitão sorriu. Não havia humor naquele sorriso.

— Talvez... — disse. — Meus homens... Nós tentamos deter aqueles que lhe ameaçam o trono... Mas não sei o que eles podem estar tramando em outros destacamentos militares, onde os laços de lealda­de são mais fracos... Aqui, porém, ainda garantimos o trono da rainha.

Na face onde não havia cicatriz, um músculo logo abaixo do olho saltou como um peixe. O solda­do apertou as mãos, palma contra palma.

— Suas instruções, suas ordens, a orientação que recebeu, em suma, são para... hã, ir para oeste, certo?

Jack podia sentir a vibração do homem; sua crescente agitação era mantida sob controle graças a um longo hábito de autodisciplina.

— É isso! — Jack respondeu. — Devo ir para o oeste. O senhor não sabia? Não tenho de ir para o oeste? Para o outro Alhambra?

— Não sei, não sei... — o capitão falou bruscamente, recuando um passo. — Mas tenho de tirá-lo daqui agora. Não posso lhe dizer como terá de agir.

De repente ele parecia ter perdido até mesmo a coragem de olhar para Jack, o garoto percebeu.

— Não pode ficar aqui nem mais um minuto... Vamos, hã... Vamos ver se consigo fazê-lo escapar antes da chegada de Morgan.

— Morgan? — Jack perguntou, achando que seus ouvidos o tinham enganado. — Morgan Sloat? Ele está vindo para cá?

 

FARREN

 

O capitão pareceu não ter ouvido a pergunta de Jack. Seu olhar estava fixo num canto daquele quarto estranhamente vazio; como se houvesse alguma coisa para ver ali. Procurava pen­sar. Pensar profundamente, intensamente e depressa; Jack percebeu isso. E tio Tommy lhe ensinara que interromper um adulto que estava meditando era tão deseducado quanto interromper um adulto que esti­vesse falando. Mas...

Fique longe do velho Bloat. Cuidado com ele! Com ele e com seu Duplo. Ele vai correr atrás de você como uma raposa atrás de um ganso.

Fora o que Speedy dissera, e Jack ficara tão preocupado com o talismã que quase se esquecera da advertência. Agora as palavras lhe voltaram à mente com extrema brutalidade. Era como levar um soco na nuca.

— Como é o jeito dele? — perguntou ansioso ao capitão.

— O jeito de Morgan? — replicou o capitão, como se alguém o tivesse acordado bruscamente de algum sonho interior.

— Ele é gordo? É gordo e está ficando careca? E quando fica furioso, faz uma cara... assim...? — Jack empregou seu dom inato de imitar as pessoas (uma aptidão que fazia o pai morrer de rir mesmo quando es­tava cansado ou abatido) e “fez” a cara de um Morgan enfurecido. Seu rosto pareceu envelhecer quando re-puxou a testa para reproduzir os sulcos da raiva do tio Morgan. Simultaneamente, encolheu as bochechas e inclinou a cabeça para criar uma dobra no queixo. Os lábios formaram um beiço de desdém e as sobrance­lhas começaram a se sacudir com rapidez para cima e para baixo. — É assim que ele fica?

— Não — disse o capitão, mas alguma coisa lampejou nos olhos dele, o mesmo lampejo que Jack observara quando lhe contou que Speedy Parker era um velho. — Morgan é alto. E usa cabelos compridos. — Levantou a mão até a altura do ombro direito para mostrar a Jack o comprimento. — Ele manca um pouco... Têm um pé deformado. Usa uma bota especial mas...

O capitão balançou os ombros.

— O senhor deve ter identificado algum traço dele quando o imitei! O senhor...

— Shhh! Não precisa falar tão alto, rapaz!

Jack abaixou a voz.

— Acho que conheço muito bem esse tal de Morgan — disse ele e, pela primeira vez, sentiu um medo estranho, um medo palpável... alguma coisa que podia quase pegar (muito mais do que podia “pe­gar”, “apalpar” aquele mundo). Tio Morgan ali? Jesus!

— Morgan é simplesmente Morgan. Alguém com quem não se deve brincar, rapaz. Venha! Vamos sair daqui!

Suas mãos apertaram de novo o braço de Jack. Ele se encolheu, mas resistiu.

Parker se transformara em Parkus. E Morgan... Era coincidência demais.

— Espere um pouco — disse ele. Outra pergunta lhe ocorrera. — Ela tem um filho?

— A rainha?

— É.

— Ela teve um filho — o capitão respondeu com relutância. — Olhe, rapaz, não podemos nos de­morar aqui dentro. Temos...

— Conte-me alguma coisa sobre ele!

— Não há nada para contar — respondeu o capitão. — Morreu quando ainda era bebê. Tinha menos de um mês e meio. Chegaram a comentar que um dos homens de Morgan (Osmond, talvez) sufocou o guri. Mas não se pode dar muito crédito a boatos desse gênero. Não sinto qualquer simpatia por Morgan de Orris, mas todos sabem que uma entre 12 crianças morre no berço. Ninguém sabe por quê; morrem misteriosamente, sem qualquer causa aparente. Existe um ditado: “Os desígnios de Deus são insondáveis.” Nem mesmo um bebê real constitui exceção aos olhos do Carpinteiro do Mundo. Ei... rapaz!? Você está bem?

Jack sentiu tudo escurecer à sua volta. Cambaleou um pouco e, quando voltou a sentir as mãos do capitão, seu aperto pareceu tão macio quanto um travesseiro de penas.

Ele quase morrera quando bebê.

A mãe tinha lhe contado... Como o encontrara imóvel e aparentemente já sem vida no berço, os lá­bios azulados, as faces do tom que assumem as velas de funeral quando são apagadas e tiradas dos casti­çais. A mãe contara como atravessara gritando a sala com ele nos braços. O pai e Sloat estavam sentados na grama do jardim, tomando vinho e assistindo a uma luta livre na TV. O pai o arrebatara dos braços de Lily e começara a beliscá-lo brutalmente com a mão esquerda. (Um mês depois ainda se viam os beliscões, Jacky, dissera-lhe a mãe com um riso nervoso.) Depois Phil Sawyer aplicou os lábios contra a boquinha de Jack, enquanto Morgan gritava: Acho que não vai adiantar nada, Phil! Acho que não vai adiantar

(Tio Morgan era engraçado, não era, mamãe?, Jack tinha dito. Sim, muito engraçado, Jack, a mãe respondera. E depois abrira um estranho e amargo sorriso, acendera outro Herbert Tarrytoon com o toco do que acabara de jogar no cinzeiro.)

— Ei, garoto! — o capitão murmurou, sacudindo-o com tanta força que a cabeça frouxa de Jack chegou a bater no pescoço. — Maldito garoto! Se desmaiar aqui...

— Já estou bem — disse Jack. Sua voz parecia vir de muito longe; como a voz de um jogador que perdera no beisebol ecoando distante, no meio de um sonho. — Bem mesmo! Pode me largar, mas deixe eu respirar um instante.

O capitão parou de sacudi-lo, mas fitou-o com apreensão.

— Tudo bem! — Jack repetiu e, abruptamente, deu um tapa bem forte no próprio rosto. — Oh...! — Mas tudo foi entrando de novo perfeitamente em foco.

Ele quase morrera quando era bebê... no apartamento em que moravam naquela época (mal se lembrava dele). No apartamento que a mãe costumava chamar de Palácio do Sonho em Technicolor, devi­do à vista espetacular das colinas de Hollywood que tinham da sala. Ele quase morrera quando era bebê. O pai estava bebendo vinho com Morgan Sloat, e quando se bebe muito vinho as coisas ficam um tanto confusas. Apesar da distância no tempo, ele conseguia lembrar que era fácil ir da sala do Palácio do So­nho em Technicolor para um lavabo, passando pelo quarto que ele ocupava quando era criança de berço.

Via muito bem a coisa: Morgan Sloat se levantando, rindo num tom bem à vontade, fazendo algum comentário tipo agüente a mão que só vou passar um recado, Phil; o pai mal dando conta do que se movia ao seu redor, pois Haystack Calhoun podia estar dando a chave de braço decisiva no infeliz oponente; Morgan se afastando da tela brilhante da TV, atravessando a sala para a cinzenta obscuridade do quarto do bebê (onde o pequeno Jacky Sawyer dormia com seu pijama de bolinhas, quente sob a coberta e con­fortável na secura da fralda). Viu o tio Morgan olhando furtivamente para trás, espreitando uma ponta da sala pelo quadrado da porta, a cabeça calva debruçando-se sobre as grades do berço, os lábios se franzin­do como a superfície friorenta de um lago. Viu o tio Morgan pegar um travesseiro numa cadeira; viu-o aplicar suave mas firmemente o travesseiro contra a cabeça do bebê, apertar o travesseiro com uma das mãos, suspender um pouco as costas do bebê com a outra. Quando toda a seqüência chegou ao fim, viu ainda o tio Morgan pôr de novo o travesseiro na cadeira onde Lily costumava sentar-se para acalentar o fi­lho... Depois, Morgan Sloat foi mesmo urinar no banheiro.

Se a mãe não viesse quase imediatamente ver como ele estava...

Um suor frio percorreu-lhe o corpo inteiro.

Fora desse jeito? Podia ter sido! Seu coração lhe dizia que tinha sido! A coincidência era excessiva­mente perfeita, sem mácula, completa!

Com um mês e meio de idade, o filho de Laura DeLoessian, Rainha dos Territórios, morrera no berço.

Com um mês e meio de idade, o filho de Phil e Lily Sawyer quase morrera no berço... e Morgan Sloat estava por perto.

Sua mãe sempre concluía a história com um gracejo: Phil Sawyer quase destroçara o Chrysler con­tra um poste quando corria para um hospital depois de Jacky ter voltado a respirar.

Muito engraçado, pode crer! Chocante!

 

— Agora vamos! — disse o capitão.

— Tudo bem — disse Jack. Ele ainda se sentia fraco, atordoado. — Tudo bem, vamos em...

— Shhhh!

O capitão olhou assustado em volta... Vozes se aproximavam. A parede da direita não era de ma­deira, mas de uma lona pesada e resistente. Acabava a uns dez centímetros do chão e, pela fenda, Jack viu botas passando do outro lado. Cinco pares. Botas de soldados.

Entre o burburinho, uma voz se destacou:

— Eu não sabia que ele teve um filho.

— Bem — respondeu uma segunda voz —, bastardos engendram bastardos... Um fato que você devia conhecer muito bem, Simon.

Houve um rugido alto e brutal de risos; o tipo de riso que Jack ouvia dos garotos maiores na esco­la, aqueles que brigavam ou faziam bagunça junto aos tapumes do pátio e chamavam a meninada mais nova de nomes misteriosos (e um tanto assustadores): veado, fodido, babaca. Cada um desses termos, um tanto sujos, era seguido por um áspero eco de riso, exatamente como aquele.

— Engulam a língua! Fechem a porra da boca! — disse uma terceira voz. — Se ele os ouvir, serão mandados para um posto de fronteira antes de verem 30 sóis nascerem!

Murmúrios.

Um ronco de riso abafado.

Outra piada, dessa vez ininteligível. Mais risos enquanto cruzavam o outro lado da lona.

Jack olhou para o capitão, que com os lábios repuxados até as gengivas, dentes à mostra, olhava atônito para o encerado. Não havia dúvida de quem estava falando. E assim como eles estavam falando, alguém podia estar ouvindo... Talvez a pessoa errada. Alguém que começasse a ficar curioso sobre quem realmente poderia ser aquele novo bastardo filho do velho bastardo. Mesmo um menino como Jack sabia que havia esse risco.

— Percebeu o perigo? — disse o capitão. — Temos de pôr o pé na estrada!

Talvez tenha tido vontade de sacudir Jack outra vez... Mas não se atreveu a fazê-lo.

Suas instruções, suas ordens, a orientação que recebeu, em suma, são para... hã, IR para oeste, certo?

Ele mudou, Jack pensou. Ele mudou duas vezes.

Uma, quando Jack mostrou o dente de tubarão que fora uma palheta de violão ornada de filigranas no mundo onde o que circulava nas estradas eram caminhões de entrega e não carroças puxadas a cava­los. E mudara de novo quando Jack confirmou que estava indo para o oeste. Passara de uma atitude de ameaça a uma disposição de ajudar... Mas de ajudar a fazer o quê?

Não sei... Não posso lhe dizer como terá de agir.

Agir, fazer alguma coisa com uma dedicação religiosa... ou um religioso terror.

Ele quer sair logo daqui porque tem medo de que sejamos apanhados, Jack pensou. Mas deve haver mais que isso, não é? Ele está com medo de mim. Com medo de...

Vamos — disse o capitão. — Vamos embora, pelo amor de Jasão!

— Pelo amor de quem? — Jack perguntou espantado, mas o capitão já o carregava pelos labirintos do palácio. Puxava Jack com força, quase o arrastava por um corredor que tinha uma parede de madeira de um dos lados e uma lona forte, com cheiro de mofo, do outro.

— Não foi por este caminho que viemos — Jack sussurrou.

— Não é bom passar de novo por aqueles sujeitos que vimos quando entramos — o capitão res­pondeu. — São homens de Morgan. Viu aquele cara alto? Tão esquelético que é quase transparente?

— Sim — Jack recordou o sorriso amarelo e os olhos que não sorriram. Os outros pareciam mais brandos. Mas a expressão do magro era dura. Uma expressão quase enlouquecida. E mais uma coisa: aquele rosto parecia ligeiramente familiar.

— É Osmond — disse o capitão, agora puxando Jack para a direita.

O cheiro de carne assada se tornava cada vez mais forte; ia impregnando todo o ar. Jamais um cheiro de carne lhe dera tamanho apetite. Estava assustado, estava mental e emocionalmente por um fio, talvez já beirasse as raias da loucura... Mas estava com água, muita água na boca.

— Osmond é o braço direito de Morgan — rosnou o capitão. — Ele enxerga longe, rapaz, e não seria nada bom que o visse duas vezes!

— O que poderia acontecer?

— Psssiu!

O capitão puxou com mais força ainda o braço dolorido de Jack. Estavam se aproximando de uma grande cortina que pendia do umbral de uma porta. Para Jack, não passava de uma cortina de chuveiro: a única diferença era a fazenda um pouco mais grossa, com uma textura de rede trançada; além disso, os anéis que a sustentavam eram de marfim, não de plástico ou ferro.

— Agora chore! — o capitão soprou com um hálito quente no ouvido de Jack.

Puxou a cortina e introduziu o garoto numa enorme cozinha impregnada dos mais exuberantes aromas (embora o cheiro de carne assada ainda predominasse). Ondas de vapor subiam por todo canto. Jack viu de relance alguns braseiros, uma grande chaminé de pedra e rostos de mulheres sob grandes len­ços brancos de cabeça que lhe trouxeram à memória toucas de freiras. Algumas se enfileiravam junto a uma comprida tina de ferro apoiada sobre cavaletes, os rostos vermelhos gotejando de suor. Lavavam va­silhas e utensílios de cozinha. Outras encontravam-se junto a um balcão que se estendia por toda a exten­são do aposento, cortando carne, misturando temperos, descascando batatas, preparando bolos. Outra carregava um engradado de ferro cheio de tortas para assar. Todas olharam para Jack e o capitão quando os dois entraram.

— Nunca mais faça isso! — gritou o capitão para Jack, sacudindo-o como um gato sacode um rato e continuando a puxá-lo rapidamente na direção das portas de vaivém na extremidade da cozinha. — Nunca mais faça isso, está me ouvindo?! Da próxima vez que tentar me fazer de bobo, vou lhe tirar o pêlo! Descasco você como uma batata, está entendendo?

E, a meia voz, o capitão sibilou:

— Todas elas vão se lembrar do que viram. Vão dar com a língua nos dentes! Portanto, comece logo a chorar, desgraçado!

E agora, enquanto o capitão com a cicatriz no rosto arrastava-o pela enfumaçada cozinha agarrando-o pela nuca e apertando-lhe um braço já dolorido, Jack deliberadamente evocou a imagem terrível de sua mãe num caixão. Viu-a num vestido branco com pregas de organdi: era o vestido de noiva que usara num de seus filmes, Ao correr das paixões, produzido em 1953 pela RKO. O rosto se tornava cada vez mais nítido na mente de Jack, uma perfeita efígie de cera. Reparou que ela estava usando os pequenos brincos de cruz, aqueles que Jack lhe dera no Natal de dois anos atrás... Então, o rosto se transformou. O queixo ficou mais redondo, o nariz mais reto e nobre. O cabelo se tornou um tanto mais grosso e mais descorado. Agora era Laura DeLoessian quem ele via no caixão. E o próprio caixão não era mais um ataúde anônimo encomendado numa funerária, mas uma urna rudemente talhada das melhores e mais antigas madeiras: um esquife digno dos vikings, se é que eles se preocupavam com essas coisas... era mais fácil imaginar o caixão sendo queimado sobre uma fogueira de troncos do que sendo depositado pelos coveiros na terra fria. Era Laura DeLoessian, Rainha dos Territórios, mas nessa fantasia que se tornara tão clara quanto uma visão, a rainha estava usando o vestido de casamento de Ao correr das paixões, e os brincos de cruz que o tio Tommy o ajudara a comprar no Sharp’s, de Beverly Hills. De repente, as lágrimas come­çaram a brotar num fluxo quente, abrasador — não lágrimas de mentira, mas lágrimas de verdade; não apenas pela mãe, mas por ambas as mulheres que estavam morrendo em universos distintos, que não ti­nham mais salvação, atadas pela mesma corda invisível que podia apodrecer, mas jamais se romperia... pelo menos, até que ambas tivessem morrido.

Através das lágrimas, viu um gigantesco homem de gola franzida atravessar correndo a cozinha na direção deles. Na cabeça, tinha um boné vermelho, em vez de um gorro branco de mestre-cuca, mas Jack percebeu que o propósito era o mesmo: identificar quem havia invadido seus domínios. Brandia na mão um garfo de madeira com três pontas afiadas.

— Saiam já! — ele gritou, e a voz que emergira da enorme caixa torácica era absurdamente estri­dente; a voz de um chefe dando uma ordem feroz a pés-de-chinelo. Mas o garoto nada possuía de absur­do; era pura e simplesmente mortal!

As mulheres se alvoroçaram como pássaros. Algumas tortas caíram do engradado que uma delas transportava. Ela emitiu um grito agudo de desespero quando os petiscos se desmancharam em pedaços nas tábuas do assoalho. Suco de morango escorreu pelo chão: vermelho, fresco e brilhante como sangue arterial.

— Saiam já da minha cozinha, seus safados! Isto não é um pátio de quartel! Isto não é uma espelunca de taberna! Isto é a minha cozinha e se não ficarem bem convencidos disso, podem ter certeza que não vão escapar de uma boa espetadela no traseiro!

Ele apontou o garfo para os dois, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça e semicerrava os olhos, como se, a despeito de toda a explosão, a idéia de ter perdido completamente o controle não lhe parecesse das mais elegantes. O capitão removeu a mão que segurava a nuca de Jack e impeliu-a à frente (quase sem querer, Jack pensou). Um instante depois, o mestre-cuca jazia no chão, o corpo estatelado em toda a extensão dos seus dois metros. O garfo de cortar carne resvalara para uma poça de suco de moran­go com pedaços de massa esbranquiçada e crua. O mestre-cuca guinou de um lado para o outro no assoa­lho, agarrando o punho direito e gritando naquela voz alta e cortante. As palavras que espalhava pela co­zinha eram bastante pessimistas: que estava à morte, que sem dúvida o capitão pretendera matá-lo! O es­tranho sotaque quase teutônico do mestre espalhava-se aos quatro ventos. Oh, estava próximo do último suspiro! O cruel e desalmado Capitão dos Guardas do Exterior destruíra-lhe a mão direita e a própria exis­tência! Sua vida seria miserável pelo resto de seus dias! O capitão lhe causara ferimentos terríveis, dores indescritíveis, dores insuportáveis...!

— Cale a boca!— berrou o capitão, e o mestre-cuca obedeceu. Imediatamente... Continuou estira­do no chão como um enorme bebê, a mão direita enroscada no peito, o boné vermelho caído sobre uma orelha (havia uma pequena pérola negra no centro do lóbulo). As bochechas gordas tremiam. As mulhe­res da cozinha deram risinhos abafados quando o capitão se curvou sobre o temido ogre da enfumaçada caverna onde elas passavam seus dias e noites. Jack, ainda chorando, vislumbrou um rapaz negro (um ra­paz pardo, sua mente corrigiu). Estava numa das portas do braseiro maior. Tinha a boca aberta e a surpre­sa que estampava no rosto lembrava a careta de um comediante. Mantinha, porém, um atiçador na mão; e o pernil suspenso sobre a brasa dos carvões continuava girando.

— Agora, escute bem! Vou lhe dar um conselho que não encontrará no Livro da boa lavoura — disse o capitão.                                                                                      

Curvou-se sobre o mestre-cuca até seus narizes quase se tocarem (a força paralisante com que apertava o braço de Jack — que já começava a ficar irremediavelmente dormente — não se afrouxou um só momento).

— Nunca mais... nunca mais ameace um homem com uma faca... ou um garfo... ou um arpão... ou seja lá qual for o bodoque, a não ser que pretenda realmente matá-lo! É justo esperar que os mestres-cucas sejam temperamentais, mas não se pode admitir que cheguem a ameaçar a integridade física do Capitão dos Guardas do Exterior. Entendeu bem o que eu disse?

O mestre gemeu um resmungo que ainda parecia um tanto desafiante. Jack não compreendeu o que ele disse. O insólito sotaque do homem e a voz pastosa tornaram isso impossível. Mas teve algo a ver com a mãe do capitão e os vira-latas do lado de fora do pavilhão.

— Pode até ser verdade — disse o capitão. — Afinal, eu nunca a conheci. Mas isso não responde à minha pergunta... Entendeu bem o que eu disse?

Cutucou o mestre com a ponta empoeirada e arranhada da bota. Foi um toque bastante suave, mas o mestre berrou como se o capitão o tivesse chutado com toda a força dos pés. As mulheres abafaram de novo algumas risadinhas.

— Compreendeu ou não o problema da relação entre mestres-cucas, armas e capitães? Porque se a coisa ainda não ficou clara, posso perfeitamente dar mais algumas explicações!

— Ficou tudo claro! — o mestre arfou. — Claro! Absolutamente claro! Mais do que...

— Bom. É bom que isso esteja resolvido, porque hoje ainda tenho de dar algumas lições a mais al­guém... — Sacudiu Jack pela nuca. — Não é mesmo, rapaz? — Sacudiu-o de novo e Jack deu um gemido que nada teve de simulado. — Bem... Acho que isso é tudo o que ele tem a dizer. O menino é um perfeito idiota. Puxou à mãe.

O capitão atirou um olhar agudo e cintilante ao redor da cozinha.

— Tenham um bom dia, senhoras. Que as bênçãos da rainha caiam sobre este lugar.

— E também sobre o senhor, capitão — respondeu a mais velha das cozinheiras, inclinando a ca­beça numa cortesia sem graça e sem jeito. As outras repetiram a mesura.

O capitão arrastou Jack para fora da cozinha. Os quadris do menino bateram com uma força brutal na beira da tina de lavar e ele gemeu de novo. Água muito quente jorrava. Gotas enfumaçadas atingiam as bordas e corriam, assobiando, entre elas. Essas mulheres não tiram a mão dessa água, Jack pensou. Como agüentam? Então o capitão, que agora já estava quase levando o garoto no colo, impeliu-o através de uma cortina de estopa que se abriu para um corredor.

— Arre! — disse o capitão em voz baixa. — Não gosto nada do que está acontecendo, isto me cheira mal.

À esquerda, à direita, depois de novo à direita. Jack começou a pressentir que estavam se apro­ximando das paredes externas do pavilhão. Não pôde deixar de se perguntar por que o palácio parecia muito maior por dentro do que por fora. Então o capitão o fez atravessar uma aba de lona e Jack se viu de novo em plena luz do dia. Após a semi-obscuridade do pavilhão, o sol do início da tarde parecia tão brilhante que Jack sentiu as pupilas doerem e teve de fechar os olhos.

O capitão não hesitou. No solo havia lodo amassado, barro. O ar tinha um cheiro de feno, cavalos e estrume. Jack tornou a abrir os olhos e viu que estava atravessando o que parecia ser um estábulo, um curral ou, talvez, apenas um terreiro. Viu uma tenda de aba levantada e ouviu galinhas cacarejando perto dali. Um homem muito magro, trajando apenas um calção encardido e sandálias com tiras de couro, carre­gava feno para uma cocheira, manejando com habilidade um forcado de madeira. Dentro da cocheira, um cavalo pouco maior que um pônei conservava uma atitude de total indiferença.

Já haviam ultrapassado a cocheira quando a mente de Jack foi finalmente capaz de aceitar o que seus olhos viram: o cavalo tinha duas cabeças.

— Ei! — gritou. — Posso dar uma olhada naquela cocheira? Vi...

— Não temos tempo.

— Mas aquele cavalo tinha...

— Não temos tempo, já disse. — O capitão levantou a voz e gritou: — E se eu o pegar vadiando por aí quando há tanto trabalho para ser feito, vou lhe dar uma lição dupla!

— Juro que não faço mais! — Jack gritou (na realidade, achava que a encenação já estava ficando bastante cansativa). — Juro que não! Já disse que vou me portar muito bem!!

Bem à frente deles, altos portões de madeira assomaram num muro tosco, feito de ripas cheias de farpas — era quase como um cercado de curral num velho filme de faroeste (a mãe também fizera alguns deles). Pesadas correntes estendiam-se pelo portão, mas as trancas que essas correntes deviam fixar não estavam no lugar. Tinham sido encostadas contra uma ripa à esquerda dos portões, fortes e grossas como dormentes de estrada de ferro. Havia uma abertura de uns 15 centímetros. Um confuso senso de direção na cabeça de Jack sugeria que tinham circundado completamente o pavilhão e estavam agora num terrei­ro dos fundos.

— Graças a Deus! — disse o capitão num tom mais calmo. — Agora...

— Capitão! — uma voz gritou atrás dele. A voz era baixa, mas o tom não parecia nada tranqüilo. O capitão parou de imediato. A voz chamara no momento exato em que estavam prestes a encostar a mão no portão para tentar abri-lo um pouco mais. Foi como se o dono da voz estivesse vigiando, esperando o momento exato de interferir.

— Talvez fosse bom me apresentar a seu... hã... filho!

O capitão se virou com Jack na direção do homem. No meio do terreiro, parecendo absolutamente deslocado naquele fundo de palácio, postava-se o cortesão esquelético que o capitão tanto temia; Osmond! Fitava-os com olhos sombrios e melancólicos. Jack viu alguma coisa se agitar naqueles olhos, algo profundamente desagradável. Seu medo cresceu de repente, tornou-se afiado, uma lâmina que ameaçava apunhalá-lo. Esse homem está enlouquecido, foi a intuição que saltou espontaneamente em sua mente. Está maluco, inteiramente fora de órbita!

Osmond deu dois passos na direção deles. Trazia na mão esquerda um chicote comprido, de cou­ro cru, usado pelos boiadeiros. Sacudia ligeiramente o cabo estreito sobre o ombro e o pescoço. Mas as correias do chicote pareciam grossas como o corpo de uma cascavel. Perto das pontas, tinha talvez uma dúzia de pequenas ramificações, cada uma de couro cru e trançado... e cada uma com uma rude e brilhante espora de metal.

Osmond apertou o cabo do chicote e os guizos das esporas chocalharam com um ruído seco. Sa­cudiu o cabo e as pontas dos arreios roçaram suavemente sobre a camada de barro que cobria o chão.

— É seu filho? — Osmond repetiu, e deu mais um passo na direção deles.

Jack, então, compreendeu de repente por que aquele homem lhe parecera tão familiar quando o vira pela primeira vez na sala do palácio. No dia em que fora quase seqüestrado... naquele dia... não era ele o sujeito de paletó branco?

Jack achou que podia ser...

 

O capitão fez uma espécie de continência e inclinou a cabeça para a frente. Após um instante de hesitação, Jack fez quase o mesmo.

— É meu filho Lewis! — disse o capitão num tom formal. Sua cabeça continuava um tanto inclina­da, Jack percebeu, e os olhos tentavam se desviar dos olhos do outro. Jack permaneceu também um pou­co curvado, o coração saltando no peito.

— Obrigado, capitão. É um prazer conhecê-lo, Lewis. Que as bênçãos da rainha caiam sobre você.

Quando o homem o tocou com o cabo do chicote, Jack quase gritou. Mas conseguiu sufocar o gri­to e empinar o corpo.

Agora Osmond estava apenas a dois passos de distância. Fitava Jack com a melancolia daqueles olhos loucos. Usava uma jaqueta de couro com botões que pareciam diamantes. A camisa era extravagantemente franzida. Um bracelete cheio de argolas retinia com ostentação no pulso direito (pelo modo como ele segurava o chicote, Jack suspeitou que sua mão esquerda funcionava melhor que a direita). O cabelo estava puxado para trás e amarrado com uma grande fita, que parecia de cetim branco. Dois odo­res o cercavam. O primeiro era o cheiro que sua mãe chamava de “perfume de todos os homens”: loção de barba, água-de-colônia, ou alguma coisa do gênero. O cheiro que envolvia Osmond era denso, vaporizado. Jack lembrou-se de velhos filmes britânicos em preto-e-branco onde algum pobre-coitado era levado a julgamento na Corte de Londres. Os juizes e advogados dessas fitas usavam sempre perucas, e Jack achou que as caixas de onde aquelas perucas saíam deviam cheirar exatamente como Osmond — aroma seco, adocicado, farelento como o farelo da mais velha rosquinha do mundo.

Mas sob esse, porém, havia um cheiro mais fundamental, e ainda menos agradável: um cheiro que parecia pulsar por todo o seu corpo. Era o odor de camadas de suor e de camadas de sujeira, cheiro de um homem que raramente tomava banho, se é que tomava.

Sim! Ali estava uma das criaturas que tentara seqüestrá-lo naquele dia.

Seu estômago deu um nó e se liqüefez.

— Não sabia que tinha um filho, Capitão Farren — disse Osmond.

Embora falasse com o capitão, seus olhos não se afastavam de Jack. Lewis, ele pensou, meu nome é Lewis, não posso esquecer...

Preferia não ter — respondeu o capitão, olhando para Jack com raiva e desprezo. — Dei-lhe a honra de trazê-lo para o grande pavilhão e ele se comportou como um animal. Peguei-o brincando no...

— Sim, sim — disse Osmond, com um sorriso distante.

Ele não está acreditando numa palavra, Jack pensou ansiosamente, sentindo sua mente dar mais um passo trôpego em direção ao pânico. Numa só palavra!

Crianças são assim mesmo. Não há garoto que não seja levado. É inevitável!

Deu uma pancadinha no punho de Jack com o cabo do chicote. Jack, os nervos à flor da pele, não se conteve e gritou... Ficou imediatamente vermelho de vergonha. Osmond deu uma risada.

— Levados, oh, sim, é inevitável! Todos os garotos são levados! Eu também fui; e aposto que você também, Capitão Farren. É ou não é? Vai dizer que não fazia as suas travessuras?

— Fazia, Osmond — disse o capitão.

— Muitas travessuras? — Osmond perguntou. Insolitamente, ele começara a saltitar no barro. Con­tudo, nada havia de muito estranho nisso. Osmond era quase gracioso e delicado, mas Jack não percebia nele qualquer verdadeira homossexualidade; a enfática afetação que lhe rodeava as palavras nada parecia indicar. Não, o que despontava mais claramente era o impulso maligno... e a loucura. — Muitas travessu­ras? Travessuras terríveis?

Sim, Osmond — o Capitão Farren respondeu secamente. A cicatriz brilhava na luz da tarde, ago­ra mais vermelha que rosada.

Osmond cessou sua pequena e improvisada dança tão bruscamente quanto a iniciara. Atirou um olhar frio ao capitão.

— Ninguém sabia que tinha um filho.

— É ilegítimo — disse o capitão. — E é muito simplório. Agora, ainda por cima, revelou-se um pre­guiçoso.

Farren girou de repente e deu uma bofetada em Jack. Não houve muita força no golpe, mas a mão do capitão era pesada como tijolo. Jack gritou e caiu no barro, machucando a orelha.

— Muitas travessuras, travessuras terríveis — disse Osmond, mas agora seu rosto assumira um as­pecto terrivelmente pálido, embaçado, dissimulado. — Levante-se, mau menino! Meninos levados que desobedecem aos pais devem ser castigados! E, além disso, devem ser interrogados para explicar direitinho o que fizeram...

Osmond deu um estalo com o chicote. Um ruído seco. A mente oscilante de Jack estabeleceu outra estranha ligação, uma ligação com alguma coisa que se passara em seu lar. O som do chicote de Osmond era como o estalo da espingarda de ar comprimido que o pai lhe dera quando ele fez oito anos. Ele e Ri­chard Sloat tinham espingardas iguais.

Osmond estendeu a mão e agarrou o braço enlameado de Jack. A mão era branca e parecia uma garra. Puxou Jack para perto de si, para aqueles cheiros: farelo de rosquinha velha e sujeira rançosa. Os misteriosos olhos castanhos espreitaram solenemente dentro dos olhos azuis do garoto. Jack sentiu a bexiga ficar mais pesada; teve de lutar para não molhar as calças.

— Quem é você? — Osmond perguntou.

 

A palavras ficaram pairando no ar entre os três.

Jack estava consciente do capitão olhando para ele com uma expressão severa, mas que não con­seguia disfarçar inteiramente seu desespero. Ouviu galinhas cacarejando, um cachorro latindo, o barulho de uma grande carroça se aproximando.

Conte-me a verdade; sei que está mentindo, dizia o olhar de Osmond. Você é muito parecido com um certo menino mau que encontrei na Califórnia... É ou não ê o mesmo garoto?

E por um instante tudo tremeu nos lábios de Jack:

Sim, meu nome é Jack, Jack Sawyer. Sou o mesmo garoto da Califórnia, a rainha deste mundo era minha mãe, só que eu morri... Conheço seu patrão, conheço Morgan — tio Morgan — e vou lhe dizer tudo o que quiser saber separar de me olhar com esses olhos monstruosos. Vou falar porque sou apenas um me­nino; e é isso que os meninos fazem. Eles contam, eles contam tudo...

Então ouviu a voz de sua mãe, dura, quase num tom de zombaria:

Vai dar o serviço a este sujeito, Jack? Logo a este sujeito? Ele tem cheiro de um balcão de águas-de-colônia em liquidação e parece uma versão medieval de Charles Manson... Mas faça o que qui­ser! Pode muito bem enganá-lo, quanto a isso não há dúvida. Mas faça o que bem entender!

— Quem é você? — Osmond perguntou de novo, chegando mais perto. Jack viu em seu rosto uma segurança absoluta. Por certo estava acostumado a arrancar as respostas que queria de todas as pessoas, não apenas de meninos de 12 anos.

Tremendo, Jack respirou profundamente (Se você deseja o máximo volume, se quer que sua voz seja ouvida na última fila do teatro, tem de trabalhar o diafragma, Jacky. Tem de saber puxar todo o ar pela caixa torácica.) e gritou:

— Eu estava voltando pra casa! Juro por Deus!

Osmond, que se inclinara ainda mais esperando um sussurro engasgado e sem energia, recuou como se o menino tivesse levantado o braço para esbofeteá-lo. No susto, pisou nas pontas das correias do chicote; por pouco não se enroscou nelas.

— Você, seu garoto infernal...

— Eu estava voltando! Por favor, não me bata com o chicote, Osmond! Eu estava voltando! nunca quis vir aqui! Nunca, nunca, nunca...!

O Capitão Farren investiu contra Jack e derrubou-o no chão. Jack se esparramou em cheio na lama, sempre gritando.

— É um idiota, está vendo? — ele ouviu o capitão dizer. — Peço que me desculpe, Osmond. Pode ter certeza de que saberei dar uma surra exemplar nesse garoto, uma surra da qual ele nunca vai esque­cer. Esse guri...

— Mas, afinal, o que ele estava fazendo aqui? — Osmond guinchou. Foi a voz alta e estridente de uma vendedora de peixe. — O que veio fazer aqui esse bastardo do inferno? Sei perfeitamente bem que ele não tinha autorização para vir ao pavilhão! Sei perfeitamente bem! Você o introduziu no palácio para deixá-lo pegar algumas migalhas da mesa da rainha, hã? E quem sabe ele não resolveu roubar a prata da rainha, o que me diz disso? É um menino mau. Basta olhá-lo para descobrir de imediato que é intoleravelmente, insuportavelmente mau!

O chicote estalou de novo, não com o pipocar suave de uma espingarda de ar comprimido, mas com o estouro forte de um 22. Jack teve tempo para pensar. Eu sei o que vai acontecer... E então uma correia febril atingiu-o por trás, A dor pareceu lhe abrasar o corpo inteiro, uma dor que, em vez de diminuir, aumentava. Uma dor de enlouquecer. Gritou e se contorceu na lama.

— Mau! Extremamente mau! Intoleravelmente mau!

E cada “mau” era pontuado por um novo estalar do chicote, uma nova correada, um novo grito de Jack. Suas costas ardiam. Ele não sabia mais por quanto tempo poderia suportar aquilo. A raiva de Osmond se tornava mais frenética a cada golpe.

Foi então que uma voz desconhecida gritou:

— Osmond! Osmond! Finalmente o encontrei! Graças a Deus!!

Uma agitação de passos correndo.

A voz de Osmond, furiosa e ligeiramente sem fôlego, perguntou:

— Bem! E daí? O que houve?

A mão do capitão agarrou o cotovelo de Jack e ajudou-o a se levantar. Quando o menino cambaleou, o braço ligado à mão agarrou-o pela cintura para não deixar que ele caísse. Era difícil acreditar que o Ca­pitão Farren, tão duro e áspero durante o giro atordoante pelo pavilhão, soubesse se comportar de manei­ra tão gentil.

Jack oscilava. O mundo continuava saindo um pouco de foco. Filetes de sangue quente escor­riam pelas suas costas. Ele fitava Osmond com um ódio cada vez maior. E era bom sentir aquele ódio! Servia como antídoto para o medo e a confusão.

Você teve coragem... Você me bateu, me cortou com a correia! Mas, escute aqui, seu safado, na pri­meira oportunidade que eu tiver, vou lhe dar o troco. Pode esperar!

— Você está bem? — o capitão cochichou.

— Estou.

— O que houve? — Osmond gritou para os dois homens que tinham interrompido a sessão de chicotadas.

O primeiro era um dos dândis que Jack e o capitão tinham visto ao se dirigirem para a galeria se­creta. O outro lembrava um pouco o carroceiro que o menino encontrara quase imediatamente após sua reentrada nos Territórios. O homem parecia extremamente assustado e estava ferido: o sangue que escor­ria de um corte no lado esquerdo da cabeça cobria boa parte do rosto dele. O braço esquerdo estava arranhado, o gibão rasgado.

— O que aconteceu com você, imbecil?

— Minha carroça virou numa curva... na entrada da Aldeia de All-Hands — respondeu o carrocei­ro. Falava no tom vagaroso, atordoado, de alguém sob profunda comoção. — E eu tinha apanhado meu filho em casa, senhor... Ele ficou esmagado sob os barris. Fez 16 anos no Dia da Lavoura de maio passado. A mãe dele...

— O quê — Osmond gritou de novo. — Barris? Cerveja? Não foi da Kingsland, foi? Ou está mesmo querendo dizer que derrubou uma carroça cheia de Cerveja Kingsland, seu estúpido filho de uma puta? É isso que veio me contar, seeeeeuuuuuuu...

A voz de Osmond cresceu na última palavra como o tom de um homem imitando uma diva da ópera. A voz tremeu, gorjeou. Ao mesmo tempo, ele começou de novo a dançar... Mas dessa vez era de raiva. A atitude foi tão insólita que Jack teve de levantar as duas mãos para esconder um riso involuntário. O movimento de Osmond começou a descoser-lhe as pregas da camisa e isto fez com que se acalmasse antes mesmo que o capitão murmurasse uma palavra de advertência.

Pacientemente, como se Osmond tivesse esquecido do único fato que tinha realmente importância (é o que ele deve ter achado), o carroceiro começou de novo:

— Ele tinha feito 16 anos no Dia da Lavoura de maio passado. Minha mulher não queria deixar que ele viesse comigo. Não sei como...

Osmond ergueu o chicote e brandiu-o com uma força inesperada e cega. O couro cru e as esporas de metal atingiram o lodo. Depois o chicote subiu outra vez e estalou, não como o som de um 22, mas como a espoleta de um revólver de brinquedo. O carroceiro se desequilibrou, berrando, as mãos prote­gendo o rosto. Sangue recente escorreu-lhe por entre os dedos encardidos. Caiu no chão, gritando, gargarejando num tom abafado:

— Meu senhor! Meu senhor! Meu senhor!

Jack gemeu:

— Vamos sair daqui. Rápido...

— Espere! — disse o capitão. O ar severo de seu rosto parecia ter afrouxado um pouco. Era como se a esperança tivesse renascido em seus olhos.

Osmond rodopiou para o dândi que recuara um passo, abrindo uma boca muito vermelha.

— Era mesmo a Kingsland? — Osmond ofegou.

— Osmond, você não devia ficar tão...

Osmond levantou rapidamente o braço esquerdo; dessa vez as esporas de metal das correias do chicote atingiram as botas do cortesão. Ele recuou mais um passo.

— Não me diga o que devo ou não devo fazer — gritou Osmond. — Limite-se a responder àquilo que lhe for perguntado. Estou amargurado, Stephen, estou insuportavelmente, intoleravelmente amargu­rado. Era mesmo a Kingsland?

— Sim — Stephen respondeu. — Lamento dizer isso, mas...

— Foi na Estrada do Posto de Fronteira?

— Osmond...

— Na Estrada do Posto de Fronteira, seu filho de uma égua?

— Sim — Stephen respondeu engolindo em seco.

— É claro — disse Osmond, e em seu rosto esquelético se abriu um hediondo sorriso branco. -Afinal, a Aldeia de All-Hands fica na Estrada do Posto de Fronteira. Uma aldeia não pode voar, não é, Stephen? Uma aldeia não pode passar de uma estrada para outra, não é, Stephen? É verdade ou não?

— É verdade, Osmond, é claro que não pode.

— Não pode. Portanto, há barris espalhados por toda a Estrada do Posto de Fronteira, certo? Seria correto presumir que a estrada está bloqueada por barris e uma carroça virada? E que a melhor cerveja dos Territórios está encharcando o chão para prazer e glória das minhocas? É correto isso?

— Sim... sim. Mas...

— Morgan está chegando pela Estrada do Posto de Fronteira!— Osmond gritou. — Morgan está chegando e você sabe como ele guia seus cavalos! Se a diligência der com todos esses trastes depois de uma curva, o cocheiro poderá não ter tempo de parar! A diligência poderá virar! Ele poderá morrer!

Deus nos livre! — Stephen exclamou com uma rapidez de matraca. A palidez de seu rosto ficou duas vezes maior.

Osmond balançou lentamente a cabeça.

— Acho que se a diligência de Morgan virar, é preferível rezar para ele morrer a rezar para ele ficar bom. Ai de nós!

— Mas... Mas...

Osmond se afastou de Stephen e quase correu para onde estavam o Capitão dos Guardas do Exte­rior e seu “filho”. Atrás de Osmond, o infeliz carroceiro ainda se contorcia na lama, balbuciando clemên­cia ao seu senhor.

Os olhos de Osmond tocaram os de Jack e depois se dirigiram para longe, como se o menino não mais estivesse ali.

— Capitão Farren — disse ele. — Prestou atenção aos eventos dos últimos cinco minutos?

— Sim, Osmond.

— Prestou bastante atenção? Conseguiu verdadeiramente captá-los? Conseguiu absorvê-los minuciosamente?

— Sim, acho que sim.

— Acha que sim? Que excelente capitão é você! Ainda teremos oportunidade de analisar como um capitão tão excepcional foi capaz de engendrar um filho digno de um testículo de rã!

Seus olhos resvalaram brevemente, friamente, pelo rosto de Jack.

— Mas agora não temos tempo pra conversa fiada, não é?... Claro que não! Sugiro que convoque uma dúzia de seus melhores homens e que os coloque em marcha acelerada... não, em marcha dupla­mente reforçada para a Estrada do Posto de Fronteira. Aposto que será capaz de concentrar toda a sua atenção no ponto onde aconteceu o acidente, certo, capitão?

— Certo, Osmond.

Osmond olhou rapidamente para o céu.

— Morgan deve chegar às seis horas... Talvez um pouco antes. Agora são duas... aposto que são duas horas. O que acha, capitão?

— Acho que são duas.

— E o que você acha, seu pedacinho de merda? Seriam 13? Vinte e três horas? Oitenta e uma horas?

Jack abriu a boca de espanto. Osmond fez uma careta de desdém e Jack sentiu a maré de sua raiva se erguer outra vez.

Melhor ficar de boca fechada. Se eu der um pretexto...

Osmond olhou de novo para o capitão.

— Sugiro que até as cinco horas se esforce ao máximo para salvar o maior número possível de bar­ris. Depois das cinco, sugiro que limpe a estrada com rapidez e presteza absolutas. Está claro?

— Está claro, Osmond.

— Mexa-se, então!

Farren levou o punho à testa e completou a continência inclinando a cabeça. Ofegando intensa­mente, com a raiva que sentia de Osmond pulsando nos miolos, Jack fez o mesmo. Mas Osmond virara as costas antes que as saudações fossem sequer esboçadas. Afastava-se em passo largo para o carroceiro, bramindo o chicote, provocando aquele estalo de espingarda de ar comprimido.

O carroceiro viu Osmond se aproximar e começou a gritar.

— Vamos sair daqui — disse o capitão, puxando o braço de Jack pela última vez. — Você não vai gostar de ver isso.

— Não — Jack concordou. — Por Deus que não!

Mas quando o Capitão Farren abriu o lado direito do portão e enfim conseguiu sair com o menino do terreiro, Jack ouviu os gritos (e os ouviria nos sonhos daquela noite): correias num assobio incessante e cada assobio seguido por um guincho do infeliz carroceiro.

Havia também um ruído que vinha de Osmond. Osmond resfolegava, perdia o fôlego, mas era difícil, sem se virar para lhe ver o rosto (coisa que Jack não queria fazer), dizer exatamente o que era aquele som.

Mas, ainda assim, Jack teve certeza quase absoluta de que não estava enganado.

Osmond estava rindo.

 

Tinham atingido a área pública que rodeava o pavilhão. Os passantes olhavam o Capitão Farren com o canto dos olhos... e mantinham-se à distância. O capitão caminhava com rapidez, o rosto contraído, carregado de sombrias reflexões. Jack tinha quase de correr para lhe acompanhar o passo.

— Tivemos muita sorte — disse de repente o Capitão Farren. — Realmente muita sorte! Cheguei a pensar que ele ia matá-lo.

Jack arregalou uma boca seca e quente.

— Ele é maluco, você sabe. Maluco como aquele homem que vem atrás de nós.

Jack não entendeu de imediato o que Farren queria dizer, mas concordava que Osmond era maluco.

— Por que...?

— Espere! — disse o capitão. Tinham chegado à porta da pequena tenda onde Farren interrogara Jack após ver em sua mão o dente do tubarão. — Fique aqui e espere por mim. Não fale com ninguém, está entendendo?

O capitão entrou na tenda. Jack ficou vigiando e esperando. Um malabarista passou diante dele, olhando-o de relance mas sem perder o ritmo com que formava um complexo padrão aéreo com meia dúzia de bolas. Atrás dele, como o bando que seguiu o Flautista de Hamelin, vinha um grupo de crianças sujas. Uma jovem, com um bebê encardido sugando um seio enorme, disse que poderia ensinar algumas coisas interessantes a Jack em troca de uma ou duas moedas. Jack se sentiu constrangido, e seu rosto foi ficando vermelho.

A moça soltou um riso de cacarejo.

— Ho-ho-ho! Como este jovenzinho é tímido! Venha até aqui, benzinho! Venha...

— Saia daqui, sua vagabunda, ou vai terminar o dia no calabouço!

Era o capitão. Saíra da tenda acompanhado de outro homem. O sujeito era velho e gordo, mas compartilhava uma das características de Farren: parecia um soldado de verdade, não um personagem do Recruta Zero. Tentava abotoar a frente do uniforme sobre a barriga saliente e segurava uma trompa curva (era um belo instrumento).

A jovem com o bebê encardido zarpou sem olhar uma segunda vez para Jack. O capitão segurou a trompa do homem gordo para que ele pudesse acabar de se abotoar e cochichou-lhe alguma coisa. O gordo assentiu com a cabeça, prendeu o último botão, pegou a trompa, deu um passo à frente e soprou-a. Não se parecia com o som de cometa que Jack ouvira na sua primeira incursão pelos Territórios. Daquela primeira vez, além de serem muitas cometas, o som era bem mais pomposo: um som de arautos. Aquilo lembrava apenas um apito de fábrica, anunciando o início do trabalho.

O capitão virou-se para Jack.

— Venha comigo — disse ele.

— Para onde?

— Para a Estrada do Posto de Fronteira — disse Farren atirando um olhar pensativo, quase temero­so, a Jack Sawyer. — A estrada que o pai de meu pai chamava Caminho do Oeste. Corre para o oriente através de aldeias cada vez menores até alcançar as Fronteiras. E continua além delas, rapaz! Ninguém sabe para onde... Se quer mesmo ir para oeste, que Deus o acompanhe! Embora se diga que nem mesmo Ele se aventura a cruzar as Fronteiras. Venha!

Perguntas se amontoavam na cabeça de Jack — milhões de perguntas —, mas o capitão andava num passo veloz, e o garoto não tinha fôlego para perguntar nada. Subiram uma elevação ao sul do gran­de pavilhão e Jack passou pelo lugar onde “saltara” pela primeira vez para os Territórios. A feira rústica es­tava agora bem próxima. Jack podia ouvir um homem convidando os passantes a tentar a sorte numa bar­ra de equilíbrio: quem ficasse dois minutos sem cair ganharia um belo prêmio, garantia ele. A brisa do mar conduzia com absoluta perfeição não apenas as nuances de sua voz, como também um cheiro de comida de dar água na boca: era espiga de milho e carne assada. O estômago de Jack roncava. Agora, a uma dis­tância segura de Osmond (o Grande e Terrível), sentia-se faminto.

Mas antes de atingirem a feira, os dois viraram à direita numa estrada muito maior do que aquela que levava ao grande pavilhão. Era a Estrada do Posto de Fronteira, Jack pensou. E então, com um ligeiro calafrio de medo e ansiedade lhe cruzando a barriga, ele se corrigiu: Mo... é a Estrada do Oeste. O cami­nho para o talismã.

Logo estava correndo atrás do Capitão Farren.

 

Osmond tinha razão: era preciso tomar algumas providências. Estavam ainda a um quilômetro e meio da aldeia com aquele nome estranho quando o primeiro aroma ácido de cerveja penetrou em seus narizes.

Na estrada havia um pesado tráfego no sentido leste. Em geral, de carroças puxadas por parelhas de cavalos com crinas enormes (mas nenhum com duas cabeças). As carroças, Jack supôs, eram os Mercedes, Fords e Chevrolets daquele mundo. Algumas vinham apinhadas de sacos, fardos, pacotes; outras de carne crua; outras ainda de barulhentos engradados de galinhas. Nos arredores da Aldeia de All-Hands, uma carreta cheia de mulheres passou por eles numa velocidade alarmante. As mulheres davam gritinhos e riam. Apesar da pressa, Jack observou que uma delas levantou a saia até o alto das pernas e deu uma gingada obscena. Teria caído do carro e mergulhado numa vala (provavelmente quebrando o pescoço) se uma das colegas não a tivesse puxado pelo vestido com força para o meio do veículo.

Jack ficou de novo vermelho. Lembrou-se da moça de grandes seios brancos, os mamilos avida­mente sugados por um bebê encardido: Ho-ho-ho! Como este jovenzinho é TÍMIDO!

— Deus do céu! — Farren murmurou, acelerando ainda mais o passo. — Todas elas estão bêbadas! Embriagadas com Kingsland! As putas e o condutor do carro! Todos bêbados! O carro é capaz de se arrebentar numa curva da estrada ou perder a direção num penhasco e mergulhar no mar. Se bem que não será uma grande perda... Vagabundas infectas!

— Pelo menos — falou Jack com voz ofegante — a estrada não deve estar assim tão obstruída, se todo este tráfego consegue circular. Não acha?

Estavam agora na Aldeia de All-Hands. Ali, a larga Estrada do Oeste fora pavimentada com casca­lho e havia menos poeira. Carroças iam e vinham, grupos de pessoas passavam de uma margem à outra, todos falando muito alto. Jack viu dois homens discutindo do lado de fora do que parecia ser um restau­rante. Subitamente, um deles deu um soco no outro. Logo depois, ambos rolavam engalfinhados no chão. Não foram só aquelas putas que beberam a Kingsland, Jack pensou. Acho que todo mundo da aldeia tomou o seu gole.

Mas ainda não vimos nenhuma carroça grande vindo de lá — disse o Capitão Farren. — É claro que os carros pequenos devem poder atravessar, mas a diligência de Morgan não tem nada de pequena, rapaz!

— Morgan...

— Bem, esqueça Morgan! Vamos em frente!

O cheiro da cerveja ia se tornando mais forte à medida que atravessavam o centro da aldeia. As pernas de Jack estavam doloridas pela força que faziam para acompanhar o passo do capitão. Ele calculou que já tivessem andado uns cinco quilômetros. A que distância aquilo corresponderia em seu mundo?, Jack se perguntou, e o pensamento fez com que se lembrasse do suco mágico de Speedy. Revirou freneticamente o gibão, convencido de que a garrafa não estaria mais lá — mas estava, estava guardada em se­gurança no interior daquela roupa que vira em seu corpo ao entrar nos Territórios.

Quando alcançaram o outro lado da aldeia, o lado oeste, o tráfego de carroças diminuiu, mas o flu­xo de pedestres se dirigindo para o leste aumentou extraordinariamente. A maioria deles ia cambaleando, esbarrando, rindo. Todos cheiravam a cerveja. As roupas de alguns gotejavam, como se tivessem mergu­lhado de cabeça nas poças da Kingsland e bebido como cães... era a única coisa que Jack podia supor. Um homem sorridente carregava pela mão um menino também sorridente de uns oito anos. O sujeito se parecia tremendamente com o abominável empregado da portaria do Alhambra, e Jack intuiu, com abso­luta clareza, que aquele era o Duplo do homem do hotel. Tanto ele quanto o menino estavam bêbados, e quando Jack virou a cabeça para olhá-los mais uma vez, o guri tinha começado a vomitar. O pai (Jack su­punha que fosse o pai) sacudiu-o com força pelos braços quando o garoto começou a tropeçar para o mato da beira da estrada — onde poderia continuar vomitando em relativa privacidade. A criança se debateu nas mãos do pai como um vira-lata preso numa correia curta, esparramando vômito num senhor idoso que caíra na margem da estrada e ali se deixara ficar.

O rosto do Capitão Farren se tornava cada vez mais sombrio.

— Que vão todos para o diabo! — disse.

Mesmo os mais embriagados conservavam-se bem longe do capitão. Já nas imediações do pavi­lhão, Jack observara que Farren trazia na cintura uma pequena e prática bainha de couro. E presumia (com muita lógica) que ali dentro devia haver uma pequena e prática espada. Quando algum beberrão se aproximava demais, Farren encostava a mão na espada e o sujeito se afastava com absoluta presteza.

Dez minutos depois — quando Jack começava a suspeitar que não ia mais conseguir acompanhar o passo do capitão — chegaram ao local do acidente. O carroceiro vinha fazendo uma curva fechada quando a carroça perdeu o equilíbrio e virou. Como resultado, havia barris espalhados por toda a estrada. Muitos estavam destroçados, e tudo, no raio de uns sete metros, se transformara num lamaçal. Um dos ca­valos morrera sob a carroça, só a garupa era visível. Outro jazia na sarjeta, a cabeça esmagada por uma trave de barril. Jack não achava que aquilo tivesse acontecido por acaso. Na certa o animal estava sofrendo muito e alguém lhe dera um fim misericordioso com o instrumento que encontrou mais à mão. Se havia outra parelha de cavalos, sem dúvida desaparecera por completo.

Entre o cavalo sob a carroça e o da sarjeta estendia-se o corpo do filho do carroceiro, braços e per­nas abertos no meio da estrada. Metade de seu rosto arregalava um olho para o brilhante azul do céu dos Territórios — numa expressão de estúpido assombro. No lugar da outra metade só restara uma polpa avermelhada e lascas brancas de osso saltando como pedaços de estuque.

Jack reparou que tinham revirado os bolsos do rapaz.

Vagando pela cena do acidente havia talvez uma dúzia de pessoas. Caminhavam devagar, às vezes se curvando com uma vasilha nas mãos para tirar cerveja de um barril, às vezes achando um lenço ou um pano qualquer sob a pata de um cavalo ou numa poça. A maioria cambaleava. Vozes se erguiam rindo ou em gritos de altercação. Após boa dose de insistência, a mãe de Jack o deixara ir junto com Richard a uma sessão noturna de um dos pequenos cinemas de Westwood. Era uma sessão dupla: A noite dos mortos-vi­vos e Alvorada dos mortos. Aquela gente embriagada arrastando os pés lhe trouxe à memória os zumbis daqueles dois filmes.

O Capitão Farren puxou a espada. Era curta e prática como Jack imaginara, a própria antítese de uma espada de cinema. Lembrava pouco mais que uma faca comprida de açougueiro: pontuda, lascada e arranhada, o cabo revestido de couro velho, cheio de manchas de suor. A própria lâmina estava suja... Com exceção, é claro, do gume. O gume, sim! Parecia brilhante, afiado e muito cortante!

— Fiquem longe daqui! — Farren gritou. — Fiquem longe da cerveja da rainha! Filhos do inferno! Levem a pança de vocês pra casa! Vão embora!

Rosnados de insatisfação foram ouvidos, mas todos obedeceram à ordem do Capitão Farren... To­dos, exceto um homem enorme com pequenos tufos de cabelo crescendo nos pontos mais díspares de uma cabeça quase calva. Jack estimou-lhe o peso em 150 quilos e a altura em mais de dois metros.

— É desse jeito que trata as pessoas, soldado? — o peso-pesado perguntou e fez sinal para que os aldeões (que já iam se afastando do pântano de cerveja e dos barris) parassem onde estavam.        

— É desse jeito! — Farren respondeu arreganhando os dentes para o gigante. — É assim que de- vem ser tratados! Eles e você, sua poça embriagada de merda.

Os dentes de Farren se tornaram mais afiados. Primeiro o homem hesitou, mas depois virou as cos­tas e foi embora.

— Tente alguma coisa, se tiver coragem! — provocou o capitão. — Enfiar minha espada nessa bar­riga seria a primeira coisa interessante que eu faria desde a hora que acordei.

Resmungando, de ombros caídos, o gigante bêbado foi se distanciando.

— Agora, escutem todos vocês! — Farren gritou. — Voltem pra casa! Um batalhão dos meus homens está vindo do pavilhão da rainha. Não ficarão nada satisfeitos se os encontrarem perambulando por aqui e não poderei censurá-los pelo que venham a fazer. Acho que ainda têm tempo de voltar para a aldeia e se esconder em seus porões! Seria muito prudente fazerem o que estou mandando! Afastem-se deste lugar!

Todos já se dirigiam num fluxo compacto para a aldeia de All-Hands, o homem corpulento que de­safiara o capitão na frente da coluna. Farren resmungou alguma coisa e virou-se para a cena do acidente. Tirou sua jaqueta e cobriu o rosto do filho do carroceiro.

— Gostaria muito de saber se reviraram os bolsos do rapaz quando ele já estava morto ou se nem esperaram o fim da agonia — disse Farren num tom meditativo. — Se descobrisse que alguém tentou roubá-lo quando ainda estava agonizante, não pensaria duas vezes para pendurá-lo numa cruz antes do anoitecer.

Jack ficou em silêncio.

O capitão continuou olhando um bom tempo para o corpo do rapaz, coçando com uma das mãos a carne macia, enrugada, da cicatriz do rosto. Quando se virou para Jack, era como se tivesse acabado de voltar a si.

— Agora tem de continuar sozinho, rapaz! Agora mesmo! Antes que Osmond decida investigar mais a fundo o idiota do meu filho.

— Vai haver algum problema para o senhor? — perguntou Jack.

O capitão sorriu ligeiramente:

— Se me deixar agora, não haverá problemas. Posso dizer que o mandei de volta para sua mãe. Ou que fiquei tão louco de raiva que o espanquei com um pedaço de pau e você morreu. Osmond acreditaria em qualquer coisa desse tipo. Ele não está com a cabeça no lugar. Nenhum deles. Estão esperando a mor­te da rainha... O que, aliás, acontecerá em breve... a não ser que...

Ele não concluiu.

— Agora vá — disse Farren. — Já está mais que na hora. E quando ouvir a diligência de Morgan se aproximando, saia da estrada e se esconda nos bosques. Fique bem escondido. Ou ele sentirá seu cheiro como um gato sente o cheiro de um rato. Morgan tem a capacidade de pressentir instantaneamente se al­guma coisa está fora de ordem. Da ordem dele, é claro! É um verdadeiro demônio!

— Vou ouvi-lo chegar? Vou ouvir a diligência? — Jack perguntou timidamente. Contemplou a es­trada que se estendia além da barafunda dos barris. A trilha se elevava e mergulhava numa floresta de pi­nheiros. Seria bem escuro naquele bosque, ele pensou... e Morgan estaria chegando pelo outro lado. Medo e solidão se combinaram na mais intensa, na mais desencorajadora onda de tristeza que ele já senti­ra. Speedy, eu não vou conseguir! Será que você não percebe? Sou apenas uma criança!

A diligência de Morgan é puxada por seis pares de cavalos e um 13° animal no comando — dis­se Farren. — A pleno galope, esse carro do inferno faz um barulho de trovão rolando pela terra. Você vai escutá-lo à distância, não tenha dúvida! E vai ter bastante tempo para se esconder. Cuide-se bem!

Jack murmurou alguma coisa.

— O quê?! — Farren perguntou num tom agudo.

— Estou dizendo que não quero ir — disse Jack, num fio de voz apenas um pouco mais alto. As lá­grimas estavam próximas e ele sabia que, assim que começassem a cair, a coragem que lhe restava iria por água abaixo; descontrolado, pediria ao Capitão Farren para ajudá-lo a sair daquela enrascada, para prote­gê-lo, para fazer alguma coisa...

— É tarde demais para desistir, garoto! — disse Farren. — Não conheço bem sua história, nem quero conhecer. Não quero sequer saber seu nome!

Jack continuou parado, fitando o oficial, os ombros caídos, os olhos ardendo, um tremor nos lábios.

— Empine a cabeça, vamos! — Farren ordenou com súbita ferocidade. — Está ou não disposto a salvar quem precisa salvar? Mal pisou na Estrada do Oeste e já está deste jeito! Sem dúvida você é novo demais para ser um homem, mas pode pelo menos fingir. Está parecendo um vira-lata que levou um chute!

Ferido no seu orgulho, Jack aprumou os ombros e conteve as lágrimas. Seus olhos caíram no cor­po do filho do carroceiro. Pelo menos, ele pensou, ainda estou inteiro... Por enquanto... Mas o capitão tem razão! Não posso me dar ao luxo de ter pena de mim mesmo! Era verdade. Apesar disso, não pôde deixar de sentir uma certa raiva daquele soldado de cicatriz no rosto que, com tanta facilidade, soubera atingir todos os seus pontos fracos.

— Assim está melhor — disse Farren num tom seco. — Não muito, mas um pouco melhor.

— Obrigado — Jack respondeu sarcasticamente.

— Não adianta chorar, garoto! Osmond está atrás de você! Morgan chegará em breve e também es­tará atrás de você! E talvez... talvez também tenha de enfrentar problemas graves no lugar de onde veio... Mas ouça o que eu digo. Se Parkus o mandou falar comigo, é porque queria que eu lhe desse isto aqui... Pegue e ponha os pés no caminho.

Farren estava segurando uma moeda. Jack hesitou, mas acabou pegando. Era do tamanho de uma moeda de 50 centavos de dólar, mas muito mais pesada — como se fosse de ouro, embora tivesse toda a aparência de prata escura. À moeda estampava o perfil de Laura DeLoessian. No primeiro instante, Jack tomou a ficar extremamente impressionado com a semelhança entre a rainha e sua mãe. Não, não se tra­tava apenas de semelhança... Apesar de certas diferenças físicas (como o nariz mais fino e o queixo mais redondo), ela era sua mãe! Jack sentia isso! Virou a moeda e viu um animal com cabeça e asas de águia e corpo de leão. Parecia estar olhando para ele. Isto o deixou um pouco nervoso e ele guardou a moeda no gibão, ao lado da garrafa do suco mágico de Speedy.

— Para que serve a moeda? — perguntou ao capitão.

— Você saberá quando chegar a hora — Farren respondeu. — Ou talvez nem precise dela... De um modo ou de outro, cumpri meu dever. Diga isso ao Parkus quando estiver com ele.

Jack sentiu uma estranha sensação de irrealidade envolvê-lo de novo.

— Vá agora, filho! — disse Farren. Seu tom de voz foi mais baixo, porém não necessariamente mais gentil. — Faça o que tem a fazer... Ou pelo menos faça o máximo que puder.

Em última instância, foi essa sensação de irrealidade (o vago sentimento de ser apenas um frag­mento de alucinação de alguma outra pessoa) que pôs Jack Sawyer em movimento. Pé esquerdo, pé direi­to, corpo empinado, cabeça em pé! Chutou uma ripa de barril de cerveja, saltou sobre as lascas de uma roda quebrada, rodeou a ponta da carroça sem se deixar impressionar pelas poças de sangue ou pelos enxames de moscas. Afinal, que importância tinham enxames de moscas ou poças de sangue num sonho?

Ultrapassou o trecho mais lamacento da estrada, o atoleiro de cerveja, a barafunda dos barris. Então virou-se para trás... mas o Capitão Farren já dera meia-volta, talvez para procurar os homens do seu regimento, talvez para não ter de olhar de novo para Jack. De qualquer forma, Jack supunha, dava no mesmo. Uma despedida era uma despedida. Nada de olhar para trás.

Pôs a mão dentro do gibão, tateou pela moeda que Farren lhe dera e apertou-a com força. O gesto fez com que se sentisse um pouco mais confiante. Segurando a moeda como um tostão que tivesse ganhado do pai para comprar uma bala na loja da esquina, Jack Sawyer seguiu em frente.

 

Talvez não se tivessem passado mais de duas horas quando Jack ouviu o som des­crito pelo Capitão Farren como “um trovão rolando sobre a terra”; mas também não era impossível que já se tivessem passado quatro horas. Como o sol se deslocava abaixo da orla oriental da floresta (e começara a seguir essa trajetória pouco depois de Jack ter penetrado nela), era difícil calcular com precisão o tempo.

De vez em quando, passavam veículos vindos do oeste, provavelmente rumando para o pavilhão da rainha. Entre os pinheiros, os veículos podiam ser ouvidos a longa distância; a clareza com que o som chegava aos ouvidos de Jack lembrava ao menino o que Speedy falara sobre um homem tirando um raba­nete da terra e outro sentindo o seu cheiro a quase um quilômetro. Cada vez que ouvia o barulho de um carro, Jack pensava em Morgan, atravessava as valas na margem da estrada, subia a encosta e entrava nos bosques. Não gostava de se ver no meio da escuridão dos pinheiros. Mas pelo menos ali podia se escon­der atrás de um tronco e espreitar a estrada. Embora seus nervos ficassem um tanto à flor da pele, a certe­za de que tio Morgan (que ele acreditava ser o patrão de Osmond) dificilmente suspeitaria de seu escon­derijo não deixava de lhe trazer uma certa dose de coragem.

Assim, sempre que ouvia uma carroça ou carruagem se aproximando, fugia da trilha e só voltava a andar quando o veículo passava. Numa dessas vezes em que cruzava a vala enlameada e a encosta na margem da estrada alguma coisa correu (ou deslizou) pelos seus pés. Jack gritou.

A passagem de cada veículo lhe dava algum trabalho, mas não deixava de ser um tanto reconfor­tante perceber que, pelo menos, não estava de todo sozinho naquela região.

Na realidade, já começava a se sentir um tanto farto dos Territórios.

O suco mágico de Speedy fora a pior coisa que bebera em toda a sua vida. Como seria bom se al­guém — Speedy, por exemplo — aparecesse na sua frente para lhe assegurar que, depois de cumprida a missão, poderia tomar o último gole do suco e, apesar das convulsões no estômago, abrir os olhos e ver as arcadas do parque de diversões Funworld e o Alhambra, onde estava a sua mãe. Um sentimento opressivo de risco ia tomando vulto dentro dele; uma sensação de que a floresta era realmente perigosa, que entre os pinheiros havia coisas conscientes de seus movimentos, que talvez a floresta em si mesma tivesse consciência de sua passagem por ali. As árvores iam se aproximando cada vez mais do leito da estrada. Era verdade ou não era? Claro que era! Antes, elas se detinham junto às valas. Agora, iam tomando de as­salto todos os fossos. Antes, a floresta parecia constituída apenas de pinheiros e alguns abetos. Agora outros gêneros de árvores começavam a se insinuar aqui e ali, algumas com troncos que se contorciam como nós apodrecidos de cordas, outras lembrando estranhas formas híbridas de abetos e samambaias... E essas novas árvores possuíam raízes cinzentas de aspecto maligno, raízes que se agarravam ao solo como dedos esquálidos. Será o nosso rapaz?, aquelas coisas más pareciam sussurrar dentro da cabeça de Jack. Será o nosso rapaz?

Tudo é fruto da sua imaginação, Jack. Está apenas dando asas às suas fantasias.

Bem, ele não ia se deixar dominar por elas.

Mas o problema é que as árvores estavam se transformando. Aquela sensação de opressão no ar (uma sensação de estar sendo vigiado) era absolutamente real. Ele começava a suspeitar que o progressi­vo apego de sua mente aos mais monstruosos pensamentos lhe estava sendo imposto pela desagradável vibração que a floresta emitia... como se as árvores estivessem irradiando algum terrível feixe de ondas curtas.

A garrafa do suco mágico de Speedy estava pela metade. Não podia se separar dela um só momen­to ao longo de toda a sua caminhada pelos Estados Unidos. E teria de poupá-la ao máximo. Acabaria an­tes que atravessasse a fronteira da Nova Inglaterra se tomasse um gole cada vez que se sentisse nervoso.

Também não esquecia da espantosa distância que viajara em seu mundo quando voltara dos Terri­tórios pela primeira vez. Cinqüenta metros nos Territórios correspondiam a quase um quilômetro no mun­do de onde viera. Mantida essa proporção (isto é, se suas trajetórias pelos Territórios não fossem bem mais sinuosas, uma possibilidade que Jack não podia desprezar), não precisaria caminhar mais de 15 qui­lômetros para alcançar a divisa de New Hampshire. Era como usar botas de sete léguas.

Mas as árvores... aquelas raízes cinzentas, esquálidas.

Quando começar a ficar realmente escuro, quando o céu passar de azul a roxo, vou cair fora dos Territórios. É isso, isso é tudo que eu sei. Não vou ficar andando no meio desses bosques depois do anoite­cer. E se o suco mágico me fizer saltar longe de Arcadia Beach, no Indiana ou em outro estado qualquer, posso pedir ao velho Speedy para me mandar outra garrafa pelo correio.

Pensando assim (e pensando como essas idéias o faziam se sentir melhor, pois não deixavam de ser um plano de ação que poderia ser posto em prática pouco depois do crepúsculo), Jack ouviu subita­mente o barulho de outro veículo se aproximando, um veículo com muitos cavalos.

Esticou a cabeça e parou no meio da estrada. Duas memórias desenrolaram-se diante dele com ve­locidade assustadora: o grande carro de Beverly Hills com dois homens dentro dele — o carro que não era Mercedes — e o caminhão criança rebelde fugindo do corpo estendido do tio Tommy, o sangue ain­da gotejando entre os aros do pára-choque. Viu as mãos no volante do caminhão... mas não eram mãos. Eram estranhas garras ou mãos mecânicas.

A pleno galope, esse carro do inferno faz um barulho de trovão rolando pela terra.

Agora, ouvindo aquilo (o som ainda distante, mas perfeitamente claro na limpidez do ar), Jack achou um absurdo ter receado que as outras carruagens fossem a diligência do tio Morgan. Jamais devia cometer erros desse tipo. O barulho que estava ouvindo agora era radicalmente sinistro, exalando um enorme poten­cial de maldade. O barulho de um carro do inferno, sem dúvida! Um carro do inferno trazendo um demônio!

Ficou paralisado no meio da estrada, quase hipnotizado, como um coelho se deixa hipnotizar por faróis de automóvel. O som ia se tornando cada vez mais alto: trovão de rodas e cascos, estalos de chicote e de arreios. Já podia ouvir a voz do condutor:

— Ei-aá! Ei-aaá! EEEIII-AAAAAÁ!

Permanecia na estrada, permanecia ali, a cabeça retumbando de horror.

Não consigo me mexer, oh Deus!, oh Cristo!, não consigo me mexer! Mãe!, mãe!, mããããããeeeeeee...!

Jack estava petrificado na estrada e o olho de sua imaginação viu uma enorme coisa preta (pareci­da com uma carruagem). Vinha puxada por animais negros (mais parecidos com pumas do que com cava­los). Viu cortinas negras balançando nas janelas da coisa. Viu o condutor de pé no estribo, o cabelo preto soprado pelo vento, os olhos frenéticos, enfurecidos; olhos de psicótico com chibata nas mãos.

Viu a coisa avançando em sua direção sem diminuir a velocidade.

Viu a coisa atropelá-lo.

E foi isso que quebrou sua paralisia. Correu para a direita, resvalando pela encosta da estrada, prendendo o pé numa daquelas raízes retorcidas, caindo no chão, rolando. Suas costas, relativamente indolores durante as últimas horas, lampejaram em novas pontadas. Jack repuxou os lábios numa enorme careta.

Depois ficou de pé e disparou para o meio dos bosques, as costas curvadas.

Primeiro deslizou para trás de uma das árvores mais negras, mas o toque nodoso do tronco (lembrando um pouco os bambus que ele vira no Havaí, nas férias do ano anterior) foi oleoso, incômodo. Pu­lou então para a esquerda, e escondeu-se atrás de um tronco de pinheiro.

O trovão da carruagem ficava cada vez mais alto. Jack esperava a qualquer momento ver o carro do inferno passar chispando por ele em direção à Aldeia de All-Hands. Os dedos de Jack apertavam a cas­ca viscosa do pinheiro. Os dentes mordiam os lábios.

Bem à sua frente, folhas desconhecidas, samambaias e ramos de pinheiro formavam um túnel que lhe proporcionava uma estreita, mas boa visão da estrada. E quando Jack Sawyer já começava a pensar que a comitiva de Morgan jamais chegaria, uma dúzia de soldados a cavalo passou a galope a caminho do leste. Eram os batedores! O que ia na frente conduzia uma bandeira, mas Jack não pôde ver o emblema (talvez tenha até gostado de não ver). Então a diligência faiscou pelo túnel de vegetação.

Foi breve o momento de sua passagem (não mais que um segundo, talvez menos), mas Jack jamais o esqueceria pelo resto da vida.

A diligência era um veículo gigantesco, de uns quatro metros de altura. Os fardos e baús amarrados i com cordas bem grossas no bagageiro acrescentavam mais um metro. Cada cavalo tinha um penacho negro na cabeça (os penachos se achatavam contra as crinas no vento gerado pela velocidade). Jack pensou mais tarde que Morgan devia recorrer a novas parelhas de cavalos para cada viagem, pois aqueles já pare­ciam à beira da exaustão. Baba e sangue escorriam dos freios que lhes prendiam as bocas; os olhos oscila­vam doidamente, revelando arcos imensos de brancura.

Em sua imaginação — ou em sua visão — cortinas negras e franzidas tremiam, esvoaçavam nas ja­nelas sem vidro. E de súbito, um rosto branco apareceu entre as dobras do tecido escuro. Um rosto branco de feições estranhas, duras, distorcidas. A repentina aparição daquele rosto não foi menos chocante que a face de um fantasma na janela arruinada de uma casa mal-assombrada. Não era bem o rosto de Mor­gan Sloat... Mas, ao mesmo tempo, era o rosto de Morgan Sloat.

E o dono daquele rosto sabia que Jack — ou algum outro perigo, algum outro odioso risco pessoal — estava por perto. Jack pressentiu isto no alargar dos olhos e na brusca e repelente contorção da boca.

O Capitão Farren tinha dito: Ele vai correr atrás de você como um gato atrás de um rato, e agora Jack tirava as mais pessimistas conclusões: Ele já deve ter sentido o meu cheiro. Já sabe que estou aqui. Eu é que não sei mais o que fazer! Aposto que ele vai parar toda a comitiva e mandar os soldados entrarem nos bosques para virem me pegar!

Outro grupo de soldados (esses protegendo a retaguarda da diligência) disparou pela estrada. Jack ficou imóvel, as mãos agarradas à casca do pinheiro, certo de que Morgan Sloat daria ordens para a cara­vana parar.

Mas isso não aconteceu. Logo o forte trovão da diligência e dos batedores começava a diminuir na distância.

Os olhos. São os mesmos olhos. Aqueles olhos negros naquele rosto branco. E...

As árvores:

É o nosso rapaz? simmm!

Alguma coisa deslizou em seu pé e subiu pela sua canela. Jack gritou e recuou tropeçando, achan­do que devia ser uma cobra. Mas quando olhou para baixo viu que era uma daquelas raízes cinzentas. Ela estava escalando a barriga de sua perna.

Impossível!, pensou estupefato. Raízes não se movem...

Deu um salto para trás, conseguindo arrancar a perna da algema cinzenta que a raiz formara. A dor foi tão abrasadora como uma chicotada.

Ergueu os olhos para a copa das árvores e sentiu um medo terrível crescendo dentro dele. Achava que sabia agora por que Morgan o farejara e não tomara qualquer providência. Morgan sabia que andar por aquela floresta era como nadar num rio de uma selva tropical infestado de piranhas.

Mas por que o Capitão Farren não o avisara daqueles perigos? A única hipótese concebível era que o capitão de cicatriz no rosto ignorasse-os por completo; afinal, era bem possível que nunca tivesse se aventurado até aquele ponto da Estrada do Oeste.

Agora, todas as raízes cinzentas daquelas formas híbridas de abetos e samambaias estavam se mo­vendo: subindo, descendo, rastejando em sua direção por entre os gravetos do solo. Formas de samambaia, Jack pensou morto de medo. HORRÍVEIS formas de samambaia.

Uma raiz particularmente grossa, dez centímetros de espessura cobertos de terra e lodo, ergueu-se e ondulou diante dele como uma cobra encantada por uma flauta de faquir.

O rapaz é nosso! simm!

A coisa avançava em sua direção e Jack retrocedia, consciente de que as raízes iam formando uma verdadeira barreira entre ele e a segurança do leito da estrada. Bateu de costas numa árvore, mas logo se desviou dela, gritando... O tronco começara a ondular, a se encrespar contra sua nuca — fora como sentir um músculo contorcendo-se para golpeá-lo. Jack olhou ao redor e viu uma daquelas árvores pretas com troncos cheios de nós. Agora os troncos estavam se mexendo, se retorcendo. E as torções dos nós pareciam formar uma espécie de rosto terrivelmente enrugado, deformado, um olho arregalado, aberto numa escu­ridão vazia, outro repuxando um piscar hediondo. As árvores ondularam e abaixaram as copas com um apavorante som de romper, de fender, de triturar. Uma seiva ligeiramente amarela começou a correr.

Ele é nosso! Oh, simmmmm!

Raízes que pareciam dedos deslizaram entre o braço e a costela de Jack, como se quisessem fazer cócegas.

O garoto desvencilhou-se delas e, aproveitando a última centelha de razão que, a poder de grande força de vontade, conseguia manter acesa, revirou o gibão à procura da garrafa de Speedy. Percebia — confusamente, mas percebia — gigantescos sons de rasgar. Julgou que as árvores estivessem querendo sair do solo. Ninguém jamais enfrentara o seu terror, ninguém!

Pegou a garrafa pelo gargalo, mas ao tentar destampá-la uma das raízes cinzentas enroscou-se no seu pescoço. O aperto foi tão forte quanto um laço de carrasco.

A respiração de Jack cessou. A garrafa caiu-lhe da mão quando ele agarrou a coisa que tentava es­trangulá-lo. Conseguiu enfiar os dedos sob a raiz. Não era fria e dura, mas quente e macia como carne hu­mana. Lutou com a planta, ouvindo o gargarejo de agonia que já lhe brotava da garganta e sentindo a sali­va descer-lhe pelo queixo.

Num desesperado e último esforço, ele conseguiu livrar o pescoço da raiz. Então ela tentou enroscar-se em seu pulso, e Jack puxou o braço com um grito. Olhou para o chão e viu a garrafa aos trancos e barrancos com uma das raízes cinzentas enroscada no gargalo.

Jack deu um salto na direção dela. As raízes agarraram-lhe as pernas para imobilizá-lo. Ele caiu no chão, debatendo-se, contorcendo-se, as pontas dos dedos cavando o duro e negro solo da floresta para tentar avançar alguns centímetros...

Por fim conseguiu tocar a superfície esverdeada e escorregadia da garrafa. E agarrou-a! Puxou-a com toda a sua força, percebendo que as raízes já se estendiam até sua cintura, formando laços em zigue­zague, procurando dominá-lo de uma vez por todas.

Ele destampou a garrafa. Outra raiz se aproximou — num movimento furtivo para lhe arrebatar de novo o suco de Speedy. Jack conseguiu afastá-la e levou a garrafa aos lábios. Aquele cheiro doentio de fruto podre pareceu envolver toda a atmosfera como uma membrana viva.

Speedy, faça com que isto funcione!

Novas raízes subiam-lhe pelas costas, rodeavam-lhe a cintura, jogavam-no de um lado para o outro. Então Jack bebeu, esparramando respingos daquele vinho barato pelas bochechas. Engoliu o suco gemendo, implorando a Deus... Aquilo não ia adiantar, aquilo não ia funcionar, seus olhos já estavam fechados, mas podia sentir as raízes enredando seus braços e pernas, podia sentir...

 

... A água encharcando-lhe o jeans e a camisa, podia sentir um cheiro...

De água?

De lodo e neblina, podia ouvir...

Jeans? Camisa?

... o contínuo coachar de rãs e...

Jack abriu os olhos e viu a luz alaranjada do sol poente refletida num rio enorme. Uma imensa floresta estendia-se na margem leste do rio. No lado oeste, o lado onde ele se encontrava, uma grande cam­pina, agora parcialmente obscurecida pela névoa do anoitecer, estendia-se até a beira da água. O solo era úmido, fofo. Jack estava estendido na margem do rio, na área mais pantanosa. Grandes ervas daninhas cresciam ali (as fortes geadas que as destruiriam ainda estavam a pelo menos um mês de distância). Jack se enrolara nelas como uma pessoa pode despertar de um pesadelo enrolada nos lençóis.

Ainda meio atordoado, conseguiu ficar de pé, o corpo úmido, coberto do cheiro penetrante do lodo, as correias da mochila sob os braços. Tirou com horror dos braços e do rosto algumas pequenas folhas de relva e começou a se afastar da água. Então se virou bruscamente para trás e viu a garrafa de Speedy joga­da no lodo, a rolha ao lado dela. Uma parte do “suco mágico” estaria derramado ali ou teria se perdido du­rante a luta com as malignas árvores dos Territórios. Agora a garrafa só continha um terço de líquido.

Ficou um instante imóvel, os tênis cheios de lama, afundados no barro. Contemplava o rio. Aquele era seu verdadeiro mundo; estava de novo nos Estados Unidos da América. Não via o Funworld, nem o Alhambra, nem coisa alguma de Arcadia Beach. Também não via nenhum arranha-céu nem a lua cintilan­do no céu que ia escurecendo. Mas sabia onde estava tanto quanto sabia como se chamava. Chegou até a se perguntar se estivera mesmo em algum outro mundo...

Percorreu com os olhos o contorno do rio. Não conhecia aquele rio nem a campina que o cercava. Ao longe, ouviu um brando mugido de bois.

Está num lugar que não conhece, Jack, disse para si mesmo. Sem dúvida isto não tem nada a ver com Arcadia Beach.

Não, não tinha nada a ver com Arcadia Beach, mas Jack não conhecia a área que cercava Arcadia Beach. Talvez estivesse apenas a seis ou sete quilômetros do Alhambra e da mãe. Mas sem dúvida não pressentia qualquer vestígio do Atlântico.

Era como se tivesse acordado de um sonho. E, afinal, não seria possível que tivesse sido apenas um pesadelo? Um pesadelo horroroso começando com um carroceiro transportando fardos de carne cer­cados de moscas e acabando com árvores vivas? Uma espécie de sonho mau de olhos abertos, durante» qual saíra caminhando como um sonâmbulo? Não deixava de fazer sentido! Sua mãe estava morrendo; ele agora percebia que há muito tempo tinha certeza disso. Não era de hoje que os sinais eram os mais evi­dentes. Desde o início seu subconsciente soubera tirar as devidas conclusões, embora a mente consciente tenha se recusado a aceitá-las. O conflito mental que vinha experimentando nos últimos tempos engen­drara uma atmosfera perfeita para a auto-hipnose, e aquele vinho maluco que Speedy Parker lhe dera contribuíra bastante para desencadear o processo. É claro! Tudo se encaixava!

E o tio Morgan não era nenhum demônio, é claro!

Então Jack tremeu e engoliu em seco. A garganta doeu quando ele engoliu. Não do modo como dói uma garganta inflamada, mas do modo como doem músculos que foram comprimidos...

Levantou a mão esquerda, a que não estava segurando a garrafa, e apalpou a garganta. Por um mo­mento, pareceu uma mulher tentando descobrir rugas ou papadas no pescoço. Encontrou uma contusão logo acima do pomo-de-adão. Não era uma grande ferida, mas doeu ao ser tocada. A raiz que se enrasca­ra em sua garganta tinha feito aquilo.

— Então foi verdade... — Jack murmurou, fitando a água alaranjada, ouvindo o coachar das enor­mes rãs e o mugido distante dos bois. — Foi tudo verdade.

 

Jack Sawyer começou a subir a encosta do campo, deixando o rio — e o leste — para trás. Depois de ter andado quase um quilômetro, o balanço contínuo da mochila em suas costas do­loridas (os golpes que Osmond lhe aplicara ainda estavam lá) despertou-lhe uma lembrança. Ele recusara o enorme sanduíche de Speedy, mas será que o velho não o teria colocado em sua mochila enquanto ele examinava a palheta do violão?

Seu estômago retumbou com a idéia.

Tirou a mochila das costas. Havia uma névoa rasteira muito densa, apesar da noite estrelada. Sol­tou uma das correias e viu o sanduíche! Não apenas um pedaço ou metade de um sanduíche, mas um san­duíche inteiro! Bem embrulhado numa folha de jornal. Os olhos do garoto encheram-se com o calor das lágrimas. Ele teve vontade de ver Speedy na sua frente e lhe dar um grande abraço!

Dez minutos atrás, você estava dizendo que ele dera um vinho maluco para você beber...

Seu rosto ficou vermelho ao se lembrar da injustiça, mas a vergonha não o impediu de devorar o sanduíche em meia dúzia de grandes mordidas. Depois tornou a prender a correia da mochila e a colo­cá-la nas costas.

Continuou seu caminho, sentindo-se bem melhor. Livre daquele buraco que roncara tanto tempo em seu estômago, sentia-se novamente senhor de si.

Não muito depois, viu luzes piscando na escuridão crescente. Era uma fazenda. Um cão começou a latir: o latido forte de um cachorro realmente bem grande. Jack parou.

Deve estar dentro de casa, argumentou consigo mesmo. Ou então numa corrente. Eu espero!

Virou à direita e, pouco depois, o cachorro parou de latir. Guiando-se pelas luzes da fazenda, logo chegou a uma estradinha estreita, asfaltada. Parou e ficou olhando para os lados, sem saber que caminho tomar.

Ei, pessoal, aqui está Jack Sawyer! A meio caminho entre cansado e morto! Molhado até os ossos e com os tênis cheios de lama! Será que não há ninguém para recebê-lo?

A solidão e as saudades de casa começaram de novo a crescer em seu peito. Mas Jack afugen­tou-as. Depois deixou cair uma gota de cuspe no dedo indicador da mão esquerda e deu uma palmada na gota. A maior das duas metades caiu do lado direito (ou pelo menos foi o que lhe pareceu). Decidiu então rumar naquele sentido. Quarenta minutos depois, caindo de fraqueza (e ainda por cima faminto, o que era pior que o cansaço), viu um caminho de cascalho. No fundo de uma pequena rampa, havia uma espé­cie de galpão.

Jack abaixou-se para cruzar uma corrente que bloqueava o caminho e encaminhou-se para o gal­pão. A porta estava trancada a cadeado, mas ele notou que a terra sofrera um grande processo de erosão junto a uma das paredes. Não demorou mais que um minuto para tirar a mochila das costas e esgueirar-se por uma fresta. Depois puxou a mochila para dentro. Na realidade, a tranca na porta fez com que se sen­tisse mais seguro.

Examinou o ambiente e viu que estava rodeado de ferramentas bastante velhas. Sem dúvida, aque­le lugar já não era usado há muito tempo, e isso o deixou ainda mais tranqüilo.

Ficou nu em pêlo, livrando-se do desagradável contato das roupas pegajosas e enlameadas. Apal­pou num dos bolsos da calça a moeda que ganhara do Capitão Farren. Lá estava ela, destacando-se como um gigante entre as outras moedas comuns. Jack tirou-a do bolso e reparou que a moeda de Farren, com o perfil da rainha numa das faces e o leão de asas na outra, se transformara num dólar de prata de 1921. Por alguns segundos, fitou-a sem pestanejar. De fato, ali estava a Estátua da Liberdade no grande dólar de prata! Por fim, tornou a colocar a moeda no bolso do jeans.

Tirou roupas limpas da mochila. De manhã guardara as que estavam sujas (até lá ficariam secas) e talvez conseguisse lavá-las ao longo do caminho, quem sabe numa lavanderia automática ou mesmo num regato que tivesse de atravessar.

Ao procurar meias limpas, sua mão encontrou alguma coisa comprida e dura. Jack puxou e viu que era a escova de dentes. De imediato, imagens do lar, da segurança e racionalidade da vida no lar (todas as coisas que uma escova de dentes é capaz de evocar) dominaram-no por completo. Dessa vez não houve meio de reprimir ou afugentar essas emoções. Uma escova de dentes destinava-se a ser utilizada num ba­nheiro bem iluminado, era uma coisa a ser usada com pijamas de algodão no corpo e chinelos confortá­veis nos pés. Não devia estar no fundo de uma mochila, num frio e escuro depósito de ferramentas, no fim de uma estradinha de cascalho, nos confins de um lugarejo rural deserto cujo nome ele nem sabia.

A solidão atirou-se com fúria contra Jack Sawyer; agora ele percebia com nitidez absoluta sua situa­ção de desgarrado. E começou a chorar. Não era o pranto histérico e estridente das pessoas que sufocam raiva com lágrimas; chorou com o soluçar contínuo de alguém que descobre que está sozinho e que, por muito tempo ainda, terá de continuar sozinho. Chorou porque toda a segurança e lógica das coisas pareciam ter desaparecido do mundo. A solidão estava ali, era uma realidade; e naquela situação a insanidade tam­bém não deixava de estar um pouco presente.

Jack adormeceu antes que os soluços tivessem cessado de todo. Dormiu enrascado na mochila, vestido apenas com uma cueca e meias limpas. As lágrimas tinham aberto sulcos nítidos no rosto encardi­do, e ele segurava frouxamente a escova de dentes com uma das mãos.

 

O TÚNEL DE OATLEY

Seis dias depois, Jack já conseguira superar quase inteiramente seu desespero. Ao término dos primeiros dias na estrada, parecia ter passado da infância à adolescência, e da adolescência à idade adulta. Pelo menos em termos de competência! Era verdade que ainda não voltara aos Territórios desde que despertara na margem oriental daquele rio, mas podia justificar o adiamento da jornada alegando que estava poupando o suco de Speedy para quando precisasse realmente dele.

E além do mais, Speedy não o advertira para viajar principalmente nas estradas de seu mundo ver­dadeiro? Então! Estava apenas cumprindo instruções!

Quando o sol estava a pino, seu estômago cheio e os automóveis passavam por ele a 80 ou 100 quilômetros por hora na direção do oeste, os Territórios se tornavam inacreditavelmente distantes e irreais: como um pedaço de filme que já começava a esquecer; uma fantasia temporária. Às vezes, quando se encostava no banco de algum carro que lhe dava carona e respondia às habituais perguntas sobre o que estava lhe acontecendo, chegava a esquecer completamente da existência dos Territórios. Aquele outro mundo se apagava da sua cabeça e ele voltava a ser o mesmo (ou quase o mesmo) garoto que passeava pela praia no início do verão.

Nas grandes rodovias federais, quando um motorista o largava num trecho do acostamento, basta­va esperar dez ou 15 minutos com o polegar em pé para que outro carro se aproximasse e lhe abrisse a porta. Estava agora perto de Batavia, no trecho oriental do Estado de Nova York, rumando para oeste pela rodovia I-90, o polegar sempre em movimento, dessa vez abrindo caminho para Búfalo. Depois de Bufalo, faria um pequeno contorno pelo sul (por causa do Lago Erie). Fora apenas uma questão, Jack pensou, de descobrir a melhor forma de chegar a seu destino e colocá-la em prática. Toda a aventura fantástica nos Territórios já pertencia ao passado; só precisava agora de um pouco de sorte para encontrar motoristas que o levassem a Búfalo, ou, quem sabe, diretamente a Chicago, Denver ou mesmo Los Angeles (Los Angeles é que seria mesmo o cúmulo da sorte, hem, rapaz?). Pretendia cumprir sua missão com rapidez e voltar para casa antes de meados de outubro.

Estava queimado de sol, tinha 15 dólares no bolso (fruto de seu último trabalho como lavador de pratos no Golden Spoon Diner em Auburn) e sentia os músculos fortes e rijos. Embora às vezes tivesse vontade de chorar, vinha reprimindo as lágrimas desde aquela miserável noite no galpão de ferramentas. Agora era mais senhor de si; esta era a diferença! Agora sabia como proceder, formulara caprichosamente o plano mais lógico para cumprir sua missão e mantinha-se à frente dos acontecimentos. Já conseguia ver concretamente o fim da jornada, mesmo que ele ainda estivesse um pouco distante. Viajando quase o tempo todo neste mundo, como Speedy lhe aconselhara, poderia mover-se com a rapidez das caronas nos automóveis e estar de volta a New Hampshire num período de tempo bastante razoável (trazendo o talismã, é claro!). A coisa ia funcionar; teria muito menos problemas do que imaginara a princípio!

Pelo menos era assim que pensava Jack Sawyer quando um empoeirado Ford Fairlane azul se des­viou para o acostamento e esperou que ele completasse uma pequena corrida apertando os olhos contra o sol ofuscante. Vou avançar mais alguns quilômetros, Jack pensou. Visualizou a página do mapa rodo­viário que estudara naquela manhã e decidiu: Oatley! Parecia um nome pequeno, agradável e seguro. Estava no caminho certo e não tinha nada a temer!

 

O garoto curvou a cabeça e olhou dentro do carro antes de abrir a porta. Havia muitos livros e folhetos espalhados no assento de trás e duas grandes maletas ao lado do motorista.

O homem de cabelos pretos, ligeiramente barrigudo, que quase pareceu imitar a postura de Jack quando se curvou sobre o volante para espreitar o guri pela janela aberta, era um vendedor. O paletó de seu terno azul estava pendurado num cabide atrás dele; o laço da gravata estava frouxo, as mangas da ca­misa arregaçadas. Um vendedor no meio da faixa dos 30, cobrindo confortavelmente sua área. Gostaria muito de ter alguém para conversar, como todos os vendedores. Sorriu para Jack e pegou primeiro uma das grandes maletas, jogando-a sobre o amontoado de papéis no assento de trás; depois fez o mesmo com a outra.

— Vamos abrir um pouco de espaço aqui! — disse.

Jack sabia que a primeira coisa que o sujeito ia lhe perguntar era por que não estava na escola.

— Obrigado! — disse ele abrindo a porta e entrando no carro.

— Vai pra muito longe? — o vendedor perguntou, deslizando pelo acostamento e olhando pelo re­trovisor para voltar ao leito da estrada.

— Vou para Oatley — Jack respondeu. — Acho que fica a menos de 50 quilômetros, não é?

— Acabou de ser reprovado em geografia, rapaz! — disse o vendedor. — Oatley fica a mais de 70 quilômetros.

Virou a cabeça para Jack e surpreendeu o garoto com uma piscadela.

— Não se sinta ofendido — disse ele —, mas detesto ver garotos de sua idade pedindo carona. Por isso é que sempre os apanho. Pelo menos sei que estarão mais seguros em minha companhia. Não correrão riscos, percebe o que quero dizer? Há muitos malucos rodando por aqui, garoto! Não lê os jornais? Existem até animais carnívoros! De repente, pode topar com um exemplar dos mais perigosos!

— Acho que tem razão — disse Jack. — Mas procuro sempre ter muito cuidado.

— Mora perto daqui?

O homem continuava olhando muito para ele, não dando mais que breves espiadas na estrada à sua frente. Jack revirou ávido a memória em busca do nome de alguma cidade nas proximidades.

— Palmira. Moro em Palmira.

O vendedor sacudiu a cabeça.

— É um bonito lugar — disse, voltando-se mais atentamente para a estrada. Jack relaxou um pou­co no confortável encosto do assento. — Não está matando aula, está? — o homem finalmente perguntou.

Estava outra vez na hora de Jack contar sua história.

Já a repetira tantas vezes (mudando, é claro, os nomes das cidades à medida que avançava para o oeste), que aquilo saiu como um monólogo dos mais fluentes:

— Não, senhor! O problema é que tenho de morar algum tempo em Oatley, com minha tia Helen, Helen Vaughan, sabe? É irmã de minha mãe. E professora. Meu pai morreu no inverno e as coisas ficaram muito difíceis para nós. Então, há duas semanas, minha mãe pegou uma doença e quase nem consegue mais subir uma escada. O médico disse que terá de ficar um bom tempo de cama. Então ela telefonou para a irmã e perguntou se eu não poderia passar algumas semanas com ela. Como tia Helen é professora, acho que vou continuar tendo aulas na escola de Oatley. Tia Helen jamais deixaria um sobrinho dela fora da escola, pode apostar!

— Está dizendo que sua mãe mandou-o ir de Palmira a Oatley pedindo carona? — o homem per­guntou.

— Oh, não! De jeito nenhum! Ela nunca faria isso! Me deu o dinheiro do ônibus, mas eu resolvi economizá-lo. Acho que não vou receber muito dinheiro lá de casa e a situação da tia Helen também não é das melhores. Minha mãe ia ficar furiosa se soubesse que estou indo de carona! Mas pagar a passagem de ônibus me pareceu jogar dinheiro fora. Afinal, cinco dólares são cinco dólares. Por que entregar tudo isso num guichê da rodoviária?

O homem lançou-lhe um olhar enviesado:

— Quanto tempo acha que vai ficar em Oatley?

— É difícil dizer. Mas espero que minha mãe fique logo boa.

— Bem, na volta vá de ônibus mesmo, OK?

— Perdemos até o carro — disse Jack, fazendo novos acréscimos à história. Já estava começando a achar a coisa divertida. — O senhor nem pode imaginar o que aconteceu! Vieram no meio da noite e nos tiraram o carro. Não passam de uns covardes! Sabiam que todos estavam dormindo. Vieram de madruga­da na ponta dos pés, e o tiraram da garagem. Ah, o senhor nem pode imaginar como eu teria lutado para defender aquele carro... Gostava quando íamos nele para a casa da tia Helen. Agora, quando minha mãe vai ao médico, tem de descer toda a ladeira e depois andar mais cinco quadras para chegar ao ponto de ônibus. Não deviam ter feito isso, o senhor não acha? Vir devagarinho e roubar o automóvel!! Assim que pudéssemos, íamos pagar de novo as prestações. Não acha que o que eles fizeram não deixa de ser um roubo?

— Se isso tivesse acontecido comigo, também ia achar que tinha sido um roubo — disse o homem. — Bem, espero que sua mãe se recupere o mais breve possível.

— Eu também espero — disse Jack, com absoluta sinceridade.

E a conversa os levou até as primeiras placas indicando a entrada de Oatley. O vendedor parou no acostamento pouco depois do acesso da direita, sorriu de novo e se despediu:

— Boa sorte, garoto!

Jack agradeceu com a cabeça e abriu a porta.

— Espero que não precise passar muito tempo em Oatley, rapaz!

Jack olhou-o inquisitivamente.

— Bem, você conhece pouco o lugar, não é mesmo? — o vendedor perguntou.

— Um pouco. Muito pouco!

— Ah, vai conhecê-lo melhor! É o tipo de cidade onde comem o que eles mesmos atropelam na es­trada. Uma espécie de Vila dos Gorilas. Um lugar meio maluco! Você bebe a cerveja e depois come o vidro do copo! Algo desse gênero, sabe?

— Obrigado pelo aviso — disse Jack saindo do carro.

O vendedor acenou e dirigiu de novo o Fairlane para o leito da estrada. Momentos depois, o carro não passava de uma forma escura, em disparada para o sol poente e alaranjado.

 

Por um quilômetro ou dois, a estrada conduziu o garoto pela monotonia de uma campina. Depois, Jack viu pequenas casas de madeira de dois andares empoleiradas em pequenas eleva­ções. O campo era cinza, despido de vegetação, e as casas não eram sítios nem fazendas. Bem separadas umas das outras, debruçavam-se sobre a desolação da campina, cuja morna imobilidade e o silêncio só eram quebrados pelo longínquo fluxo do tráfego correndo pela rodovia I-90. Não havia mugido de bois, nem relinchar de cavalos... Por ali não havia animais, nem máquinas agrícolas. Do lado de fora de uma das pequenas casas, Jack observou meia dúzia de carros velhos e enferrujados. Pareciam casas de pessoas que não gostavam muito de companhia. Talvez já achassem o próprio lugarejo de Oatley povoado de­mais. Por sorte os campos vazios lhes proporcionavam fossos indispensáveis à solidão de seus despoja- dos castelos de madeira.

Jack alcançou uma encruzilhada. Parecia uma daquelas encruzilhadas de desenho animado, duas estradas vazias e estreitas cruzando-se em lugar nenhum e se prolongando para outra espécie de lugar ne­nhum. Ele começava a se sentir inseguro quanto a seu senso de direção. Firmou as correias da mochila e aproximou-se de um alto poste de ferro, onde retângulos negros de ferrugem indicavam alguma coisa. Não teria sido melhor pegar o outro acesso de Oatley, o que fica à esquerda da rodovia I-90?

A placa da encruzilhada apontando o caminho que seguia paralelo à rodovia indicava: estrada da cidade dos cães. Cidade dos Cães? Jack estendeu o olhar pela estrada e viu apenas uma planura interminá­vel, campos cheios de mato rasteiro e uma tira negra de asfalto rolando pelo meio. Segundo a tabuleta, aquela tira de asfalto tinha um segundo nome: estrada da moenda.

Depois de caminhar algumas centenas de metros, ele percebeu que não se tratava apenas de pla­nura e mato rasteiro. Dois quilômetros à frente, o caminho indicado pela seta penetrava num túnel forma­do por árvores inclinadas e cercado de uma curiosa esteira de hera. Havia uma tabuleta branca apoiada na vegetação. As letras eram muito pequenas; não se podia ler nada daquela distância! Num movimento involuntário, Jack pôs a mão no bolso e apertou a moeda que ganhara do Capitão Farren.

Seu estômago protestava. Logo estaria louco por um jantar. Tinha de acelerar o passo e encontrar um povoado qualquer onde lhe dessem alguma coisa para comer. Já que entrara na Estrada da Moenda, valia a pena atravessar aquele túnel e sondar o que havia do outro lado.

Jack logo atingiu a boca do túnel. A escura abertura entre as árvores pareceu se alargar.

Frio, úmido, com cheiro de barro, o túnel deu-lhe a sensação de ter se aberto um pouco mais ape­nas para o devorar. Pois agora a vegetação parecia fechar-se ao seu redor. Por um instante o menino achou que estava seguindo um declive, que o túnel o conduziria para algum nível abaixo do solo (não via à sua frente nenhum círculo de luz indicando o fim do túnel). Então, observando com mais cuidado, percebeu que o asfalto era plano.

Ao entrar no túnel, conseguira ler as letras miúdas da tabuleta entre a vegetação: ligue as luzes, di­zia ela. Jack só se lembrou disso quando esbarrou numa parede de tijolo (então era um túnel de verdade!. ele pensou) e sentiu uma parte do reboco fragmentar-se em suas mãos.

“As luzes”, repetiu para si mesmo, desejando ardentemente ver um interruptor que pudesse ligar. O túnel devia fazer uma curva... Era por isso que não via a saída e foi por isso que, apesar de toda a caute­la e do passo vagaroso, acabou se chocando com a parede (por sorte já tinha começado a andar com as mãos estendidas, como fazem os cegos). Foi tateando ao longo do muro. (Quando alguém faz isso num desenho animado, geralmente acaba deparando com um enorme caminhão!)

De repente alguma coisa roçou pelo chão do túnel e Jack parou assustado.

Bem, podia ser um rato... Ou quem sabe um coelho cortando caminho por ali!

O problema é que a coisa parecia um tanto maior que um rato ou um coelho.

Tornou a ouvir o mesmo som e deu mais um passo cego à frente. Então escutou uma espécie de respiração e parou de novo. Seria um animal? Com as pontas dos dedos agarradas na úmida parede de tijolo, esperou outra emanação de ar. Aquilo não soara como a respiração de um animal (e sem a menor dúvida nenhum rato ou coelho respiravam tão profundamente). Jack arrastou-se mais alguns centímetros, quase determinado a não admitir que havia alguma coisa ali, alguma coisa que o estava enchendo de medo!

Parou de novo, ouvindo um som breve, abafado. Como um cacarejo ligeiramente áspero saltando da escuridão. E logo depois sentiu um cheiro familiar, mas de difícil identificação: um cheiro forte, grosseiro, penetrante, que parecia deslizar pelo interior do túnel.

Olhou para trás. Agora só metade da entrada era visível, semi-encoberta pela curvatura da parede. Parecia muito distante, do tamanho de uma toca de coelho.

— Quem está aí? — ele gritou. — Ei! Tem alguém aqui? Tem alguém?

Julgou ter ouvido alguma coisa resmungar bem no fundo do túnel.

Não estava mais nos Territórios, sabia muito bem disso. O máximo que podia haver ali era um ca­chorro tolo que tivesse penetrado na escuridão do túnel para tirar uma soneca. Neste caso, ele salvaria a vida do cachorro despertando-o antes que viesse um carro.

— Ei, cachorro! — ele gritou. — Cachorro!

E foi instantaneamente recompensado pelo som de patas trotando pelo túnel. Mas estavam aquelas patas... entrando ou saindo? Era impossível dizer! Plot, plot, plot, uma retirada ou um avanço abafado. Impossível saber se o animal fugia ou se aproximava.

Então lhe ocorreu que talvez o barulho estivesse vindo por trás... Ele virou a cabeça e percebeu que já se distanciara o suficiente para não conseguir ver mais a entrada.

— Onde você está, cachorro? — perguntou.

Alguma coisa arranhou o solo meio centímetro atrás dele. Jack deu um salto e seu ombro bateu com força na curva da parede.

Percebeu uma forma (talvez o cachorro) na escuridão. Deu um passo à frente e viu-se paralisado por um sentimento tão intenso de irrealidade que era como se tivesse voltado aos Territórios. O túnel estava impregnado de um forte e penetrante odor de zoológico. Mas aquilo que se aproximava dele não era um cachorro.

Foi atingido por uma rajada de ar frio cheirando a álcool e gordura. Jack sentiu a forma chegando mais perto.

E só por uma fração de segundo teve um vislumbre da face pendendo na escuridão: uma face bri­lhante, como se possuísse alguma débil e mortiça luminosidade interior; uma face comprida, áspera, jovem e velha ao mesmo tempo. Suor, gordura como uma espécie de graxa, um fedor de álcool na respira­ção que a coisa exalava. Jack se espremeu contra a parede e levantou os punhos fechados. Mas a face continuava sumida no escuro.

No meio do seu terror, julgou ouvir passos abafados, cruzando rapidamente o solo na direção da entrada do túnel. Virou o rosto do quadrado de escuridão onde vira a coisa e olhou para trás. Escuro, silêncio. Agora o túnel parecia vazio. Jack cruzou os braços, apertando os punhos sob as axilas e foi recostando suavemente a cabeça contra o tijolo. Seus dedos se afrouxaram e agarraram as correias da mochila. Pouco depois, começava de novo a avançar ao longo da parede.

Assim que conseguiu sair do túnel, virou-se para contemplá-lo. Nenhum ruído emergia dele, ne­nhuma criatura estranha movia-se sorrateiramente para atacá-lo. Deu três passos à frente e espreitou com mais cautela. E foi nesse momento que seu coração quase parou de bater, porque dois enormes olhos ala­ranjados vinham em sua direção. Cobririam em segundos a distância que havia até ele. Mas não conseguiu se mexer — foi como se seus pés tivessem se grudado no asfalto. Finalmente, foi capaz de estender as mãos, de palmas abertas, no gesto instintivo de quem tenta repelir um golpe. Os olhos continuaram se aproximando... e uma buzina tocou.

Segundos antes do carro emergir do túnel (o rosto vermelho do homem no volante brandindo um punho fechado), Jack pulou fora do caminho.

— Fiiiiiilho da mmmmmàãããaeeee... — escapou da boca contorcida do motorista.

Ainda atordoado, Jack Sawyer deu meia-volta e viu o carro acelerar colina abaixo em direção a um lugarejo que só podia ser Oatley.

 

Situada numa longa depressão de terreno, Oatley se espalhava ralamente a partir de duas ruas. Uma, continuação da Estrada da Moenda, ultrapassava um imenso e pobre edifício no meio de um vasto pátio de estacionamento (seria uma fábrica, Jack pensou) e se transformava numa avenida estreita, cheia de agências de carros usados (de todas as marcas e tamanhos), lanchonetes de serviço rápi­do (“as grandes tetas da América”, sua mãe dizia), um boliche com uma enorme tabuleta de néon (bowl-a-rama!), mercearias e postos de gasolina. Depois de tudo isso, a Estrada da Moenda cortava as cin­co ou seis quadras do verdadeiro centro de Oatley. Ali havia sobrados de dois andares com carros estacio­nados na frente.

A outra rua alojava flagrantemente as casas das pessoas mais importantes da cidade: grandes cons­truções de madeira com varandas e jardins. No cruzamento das duas vias, um sinal de trânsito piscava o olho vermelho naquele fim de tarde. Outro sinal, talvez oito quadras acima, mudou para o verde diante de um prédio encardido e alto, com muitas janelas, parecido com um hospital psiquiátrico (era bastante pro­vável que fosse um colégio). Muitas quadras de ambas as ruas estavam cobertas de uma miscelânea de pequenas casas, e entre as pequenas casas havia sobrados cinzentos, cercados de altas grades de arame.

A fábrica no meio do pátio de estacionamento tinha várias janelas quebradas, e muitas janelas da parte central da cidade não passavam de um amontoado de tábuas e pregos. Certos terrenos estavam cheios de lixo de cozinha e folhas amassadas de jornais. Mesmo nas casas mais importantes reinava total negli­gência; pórticos sujos e paredes desbotadas. Os carros usados de Oatley pareciam ter saído do cemitério de automóveis.

Por um instante Jack pensou em abandonar aquele povoado em ruínas e ir para a Cidade dos Cães (embora não fizesse a menor idéia do tipo de lugar que isso poderia ser). Mas virar as costas para Oatley significava ter de atravessar outra vez o túnel da Estrada da Moenda.

De repente, defronte a uma fileira de lojas, a buzina de um carro tocou e o barulho encheu os ou­vidos de Jack de um inexprimível sentimento de solidão e de nostalgia. Só conseguiu relaxar perto da fábrica bem longe do túnel da Estrada da Moenda. Quase um terço das janelas na fachada de tijolos tinha sido quebrado, e a maioria das outras estava vedada por quadrados de papelão marrom. Mesmo dos limi­tes da área de estacionamento, Jack pôde sentir um cheiro de óleo lubrificante, graxa, borracha queimada, Ouviu também o ruído metálico de engrenagens.

Pôs as mãos nos bolsos e desceu o mais rápido que pôde para a parte central de Oatley.

 

Vista de perto, a cidade era ainda mais deprimente do que parecera da colina. Os vendedores das agências de carros debruçavam-se nas janelas de seus escritórios, entediados demais para saírem dali. Os veículos malcuidados e sem brilho se amontoavam. Os cartazes espalhados pelos pá­ra-brisas revelavam os únicos indícios de otimismo: um só proprietário! verdadeira jóia! o carro da semana! A tinta havia descorado e quase se apagara totalmente em certas tabuletas, como se elas tivessem ficado expostas a alguma chuva forte.

A circulação de pessoas nas ruas era ínfima. Quando Jack se dirigia para o centro da cidade, viu um velho com faces encovadas e pele cinzenta puxando um carrinho vazio de supermercado pela beira da calçada. Quando o garoto se aproximou, o velho gritou alguma coisa hostil. Arreganhou os dentes com ar assustado e mostrou gengivas escuras como as de um cão policial. Achava que Jack ia roubar-lhe o carrinho!

— Desculpe — disse Jack, o coração disparando no peito.

O velho tentou envolver todo o carro com os braços para protegê-lo melhor. E, enquanto isso, não parava de arreganhar as gengivas negras para o inimigo.

— Desculpe — Jack repetiu. — Eu só estava indo...

— Saaaia daquiii! Saaaia jáá daquiiiii! — o velho berrou e as lágrimas começaram a descer pelas ru­gas do rosto.

Jack saiu correndo.                                  

Vinte anos atrás, nos anos 60, Oatley fora uma próspera cidadezinha. O bom traçado da Estrada da Moenda era fruto dessa era, quando havia gado nos campos dos arredores, a gasolina era barata e nin­guém ouvira falar em “racionalização dos gastos” (pois havia muito dinheiro para gastar).

As pessoas aplicaram suas economias em letras de câmbio e pequenas lojas. Puderam, durante al­gum tempo, escapar de grandes sufocos. Algumas construções de Oatley ainda conservavam traços dessa prosperidade. Mas agora, nas lanchonetes de serviço rápido, viam-se apenas alguns adolescentes senta­dos com ar de tédio diante de garrafas de Coca-Cola. E nas vitrines de muitas lojinhas, tabuletas descora­das como as das agências de carros usados anunciavam: você não pode perder! queima de estoques para fechamento das portas! Jack não viu qualquer tabuleta oferecendo trabalho, e continuou andando.

O desbotar das cores felizes dos anos 60 mostrava toda a realidade do centro de Oatley. À medida que Jack se arrastava ao longo daqueles quarteirões de prédios e sobrados sujos, sua mochila parecia se tornar mais pesada, os pés mais relutantes. Talvez fosse mesmo melhor caminhar até a Cidade dos Cães...

O problema é que suas pernas já pareciam bem fracas, e o receio de atravessar de novo o túnel da Estrada da Moenda era muito grande. Claro, não haveria qualquer uivante homem-lobo emboscado na escuridão lá dentro (ele agora tinha certeza absoluta disso). Na realidade o vislumbre de uma face fantasma­górica no túnel não passara de pura ilusão. Os Territórios tinham mexido com ele. Primeiro a visão da rai­nha, depois aquele rapaz morto sob a carroça, metade do rosto esmagado. Em seguida, Morgan. E, por fim, as árvores... Mas isso tinha acontecido lá, onde tais coisas podiam acontecer (talvez fosse até normal que acontecessem). Aqui, porém, a vida cotidiana não admitia coisas desse gênero.

Ele alcançou uma grande e suja vitrine. depósito de móveis, dizia um letreiro quase ilegível na alve­naria de tijolos. Pôs a mão em forma de concha sobre os olhos e deu uma espiada lá dentro. Um sofá e uma cadeira, ambos cobertos por lençóis brancos, repousavam a cinco metros um do outro no amplo as­soalho de madeira. Jack afastou-se do depósito, desconfiando que teria de implorar a alguém um prato de comida.

Um pouco abaixo, na frente de uma loja fechada do quarteirão seguinte, havia quatro homens dentro de um carro. Jack demorou um pouco para notar que o carro, um DeSoto preto, tão velho que po­deria ter pertencido a Broderick Crawford, não tinha pneus. No pára-brisa havia um cartaz amarelo: clube dos amigos DA esquina. Os homens lá dentro, dois na frente e dois atrás, estavam jogando cartas. Jack aproximou-se de uma das janelas da frente.

— Desculpe — disse, e o jogador mais próximo lançou-lhe um sombrio olhar de peixe morto. — O senhor podia me dizer onde...

— Vá embora — disse o homem.

Sua voz parecia abafada e catarrenta, como se não estivesse muito acostumada ao ato de falar. O rosto que tinha se virado um pouco para Jack era profundamente salpicado de cicatrizes de acne e parecia estranhamente achatado, como se alguém o tivesse pisado quando o sujeito era criança.

— Só estou perguntando se o senhor sabe onde posso conseguir um trabalho temporário.

— Tente o Texas — disse o homem que estava na frente do volante, e a dupla do assento de trás deu uma gargalhada, respingando cerveja nos leques de cartas.

— Eu já lhe disse, garoto! Vá embora! — repetiu o homem de olho de peixe morto e rosto achata­do. — Porque se não for, pode ter certeza que vou me levantar daqui e lhe dar um pescoção!

E não era mentira, Jack percebeu. Se continuasse ali por mais um instante, a raiva do homem ia ferver. Ele ia sair do carro para espancá-lo sem dó. Depois voltaria tranqüilamente para o velho DeSoto e abriria outra cerveja. Latas vazias de Rolling Rock cobriam o meio-fio, latas cheias e abertas brilhavam nas mãos dos homens, latas ainda por abrir estavam enroladas num saco plástico transparente. Jack recuou. O olho de peixe morto se afastou de seu rosto.

— Acho que vou mesmo tentar o Texas.

Ao dizer aquilo, Jack acreditou que a porta do DeSoto fosse se abrir de repente, mas só o que esta­lou foi outra lata da Rolling Rock.

Crack! Hisssss..., fez a lata de cerveja.

Ele continuou andando.

Chegou ao fim do quarteirão e, na outra rua da cidade, viu um jardim semi-abandonado, cheio de hastes de mato amarelo. No meio do mato, espreitavam estátuas de fibra de vidro. Eram personagens de Disney. Um vulto velho de mulher, segurando um mata-moscas, olhava-o de uma sacada de varanda.

Jack desviou a cabeça do desconfiado olhar da velha e se deparou com a última das inertes cons­truções de tijolos da Estrada da Moenda. Três degraus de cimento levavam a uma porta aberta, com almo­fada de vidro e cortina. Uma grande e sombria vitrine estampava uma tabuleta cintilante indicando ape­nas: taberna. Poucos centímetros à direita, havia um letreiro pintado no vidro: a melhor cerveja de oatley. E, como se não bastasse, cerca de meio metro mais abaixo, escritas à mão num cartaz amarelo (idêntico ao que Jack tinha visto no pára-brisa do DeSoto), liam-se as milagrosas palavras: procura-se auxiliar.

Jack Sawyer tirou a mochila das costas, colocou-a sob um dos braços e subiu os degraus. Por não mais que um instante, passando da mortiça luz do sol para a escuridão do bar, lembrou-se do passo fatal que o fez cruzar a densa fímbria de hera e penetrar no túnel de Oatley.

 

JACK NA PLANTA CARNÍVORA

Menos de 60 horas depois, num estado de espírito muito diferente daquele que o fizera se aventurar pelo túnel da Estrada da Moenda na quarta-feira anterior, Jack Sawyer estava na friorenta despensa da Taberna Oatley, escondendo a mochila atrás dos barris de cerveja que, como traves de alumínio de um boliche de gigantes, enfileiravam-se no fundo da galeria. Daí a menos de duas horas, quando a taberna finalmente cerrasse as portas, Jack pretendia fugir dali. Era exatamente assim que imaginava a coisa: não se tratava de sair, nem de ir andando, mas realmente de fugir dali Isso mostrava até que ponto se sentia numa situação desesperadora.

Estou dizendo seis, seis, John B. Sawyer. Estou dizendo seis, Jack. Seis.

Esse pensamento, aparentemente sem qualquer sentido, caíra naquela noite em sua mente e passa­ra a se repetir de modo incessante. Ele não duvidava que uma idéia fixa daquele tipo mostrava como seus nervos estavam à flor da pele, como as coisas voltavam a fechar um cerco em torno dele. Não sabia o que aquele pensamento significava; as palavras simplesmente giravam sem parar em sua cabeça como um cavalo de pau num eixo de carrossel.

Seis. Estou dizendo seis. Estou dizendo seis, Jack Sawyer!

A coisa se repetia infinitamente, rodava, rodava; não lhe dava trégua.

Uma das paredes da despensa dava para o salão da taberna e, naquela noite, a parede trepidava com o barulho; vibrava realmente como couro de tambor. Até 20 minutos atrás, ainda era noite de sexta-feira, e tanto os Têxteis Oatley quanto a Weaving and Dogtown Custom Rubber pagavam às sextas-feiras... Agora a Taberna Oatley estava cheia até o teto. E além do teto. Um grande cartaz à esquerda do bar dizia: ultrapassar a lotação máxima de 220 pessoas constitui infração do artigo 331, referente Às normas municipais de prevenção de incêndios. Ao que tudo indicava, o artigo 331 não se aplicava aos fins de semana, pois Jack calculava que houvesse mais de 300 pessoas ali, sapateando ao som de uma banda de música Country chamada Os Loucos Rapazes do Vale. Era uma banda horrível, mas tinha uma boa guitarra elétrica.

— O pessoal daqui adora uma guitarra elétrica! — dissera Smokey.

— Jack! — Lori gritou sobre a barreira de som.

Lori era a mulher de Smokey. Jack ainda não sabia qual era o último nome dela. Mal conseguiu ou­vi-la sobre o ronco da vitrola automática. A vitrola ficava tocando em último volume enquanto a banda descansava. Os cinco Loucos Rapazes do Vale estariam lá no fundo do bar, Jack sabia, abastecendo o es­tômago com vodca barata.

Lori espichou a cabeça pela porta da despensa. O fosco cabelo louro, repuxado num rabo-de-cavalo com prendedores de plástico branco (pareciam prendedores de cabelo de menina), brilhava sob a luz fluorescente do teto.

— Jack! Se não trouxer correndo esta barrica, ele vai lhe torcer o pescoço!

— OK! Diga que já estou indo!

Jack sentiu um arrepio na nuca, e o calafrio não veio inteiramente do frio úmido que havia na des­pensa. Smokey Updike não era homem de brincadeiras... Smokey, que usava na cabeça estreita uma pilha de chapéus de papel tipo mestre-cuca; Smokey, com a enorme dentadura de plástico (comprada pelo re­embolso postal), horrorosa e algo fúnebre em sua uniformidade absoluta; Smokey, com a violência dos olhos castanhos, um amarelo encardido, sujo nas córneas. Aquele Smokey Updike que, em certo sentido, ainda era um desconhecido para Jack (talvez por isso mesmo fosse ainda mais assustador), conseguira de alguma forma transformá-lo num prisioneiro.

A vitrola automática ficou momentaneamente silenciosa, mas o contínuo rugir da multidão aumentou um ponto para compensar. Algum vaqueiro do Lago Ontário soltou a voz num grande, embria­gado “laaarrruuuuu!”. Uma mulher gritou. Um copo foi quebrado. Então a vitrola voltou a funcionar, lem­brando um pouco um foguete Saturno da nasa atingindo a velocidade de escape.

O tipo de cidade onde comem o que eles mesmos atropelam na estrada.

E comem cru!

Jack curvou-se sobre um dos barris de alumínio e arrastou-o cerca de três metros, a boca se repu­xando numa dolorosa contorção, as costas protestando, o suor lhe escorrendo pela testa apesar do frio ar refrigerado. O barril rangeu e guinchou no chão liso de cimento. Ele fez uma pausa, ofegante, as orelhas zumbindo.

Empurrou a plataforma rolante para perto do barril e pôs o cabo na vertical. Depois conseguiu sus­pender o barril de cerveja e dar um ou dois passos para a plataforma. Quando começou a pousá-lo, não agüentou mais o peso (o barril não tinha muitos quilos a menos que o próprio Jack). A barrica caiu com força e de lado na plataforma. A sorte é que o metal tinha sido forrado com uma sobra de tapete para amortecer aterrissagens desse tipo. Jack procurou colocá-lo na vertical e livrar a mão esquerda a tempo. Não conseguiu. A barrica imprensou-lhe os dedos contra o cabo. A pancada foi dilacerante, mas por al­gum milagre conseguiu soltar os dedos latejantes. Então, pôs esses dedos na boca e sugou-os com força, as lágrimas brotando dos olhos.

Pior do que ter esmagado os dedos era o que estava ouvindo. Um lento suspirar de gases escapan­do por um orifício da tampa. Se Smokey encaixasse de mau jeito o barril no engradado do balcão e visse espuma saindo... Ou, pior ainda, se ao abri-lo a cerveja pulasse como um jato em seu rosto...

Melhor não pensar nessas coisas.

Na noite anterior, a noite de quinta-feira, quando Jack tentava “levar a barrica de Smokey”, a barri­ca caíra de lado e rolara pelo chão. A tampa se soltara. Espuma branca e dourada de cerveja inundara o chão da despensa e correra para o ralo como um grande rio. Jack ficou paralisado de medo, coberto de náusea, desligado até mesmo dos gritos de Smokey. Não era a Cerveja Busch; era a Kingsland! Não era uma cerveja comum, mas a divina cerveja de Sua Majestade.

Foi então que Smokey lhe bateu pela primeira vez: um rápido e sibilante golpe que jogou Jack contra uma das ásperas paredes da despensa.

— Hoje, a paga que você merece é só essa! — dissera Smokey. — E ai do dia em que me fizer isso de novo!

O que mais deprimia Jack na frase “E ai do dia em que me fizer isso de novo” era a suposição im­plícita que havia nela de que ele, Jack Sawyer, ainda teria dias de oportunidade para voltar a fazer aquilo! Como se Smokey Updike contasse com sua presença ali por muito, muito tempo!

— Jack, traga isso já!

— Já estou indo! — Jack resfolegou.

Empurrou de costas a plataforma rolante até a porta da despensa, tateou em busca da maçaneta, girou-a e escancarou a porta. Esta bateu em alguma coisa grande, mole e macia.

— Ei! Olhe por onde anda!

— Opa! Desculpe!

— Vá bater no traseiro da sua mãe! — disse a voz.

Jack esperou até o freguês se afastar da porta da despensa e levou o barril para o corredor.

O corredor era estreito, com paredes de um verde bilioso. Tinha cheiro de mijo e cocô, de banhei­ros infectos. O reboco era só buracos que, em alguns pontos, quase atravessavam a parede. Por toda par­te, rabiscadas a lápis ou à tinta, havia palavras ou rimas de sujeitos embriagados esperando a vez de uri­nar. A maior das inscrições parecia ter sido feita com lápis-cera preto e revelava a fúria cega e sem objeti­vo da atmosfera de Oatley: mandem todos os crioulos e judeus americanos para o ira!

O barulho do salão da taberna já fazia trepidar a despensa, mas o corredor parecia uma grande onda sonora em contínua arrebentação. Pela ponta do barril inclinado na plataforma, Jack deu mais uma olhada no fundo da despensa. Queria certificar-se de que a mochila estava bem escondida.

Tinha de fugir. Sem a menor dúvida, tinha de fugir. O olhar do sujeito em quem havia esbarrado ainda o cobria de gelo. Não era uma coisa boa! Mas com Randolph Scott a coisa teria sido ainda pior. E o sujeito não era realmente Randolph Scott; apenas lembrava o jeito de Scott nos filmes dos anos 50.

Com Smokey Updike seria pior ainda... embora Jack já não tivesse tanta certeza. Tinha visto (ou pensado ter visto) os olhos do homem que lembrava Randolph Scott mudarem de cor.

Mas que o povoado de Oatley era a pior coisa do mundo, isso era! Disso ele tinha certeza absoluta!

Oculta no fundo do Condado de Genny, Oatley parecia agora uma horrível armadilha que lhe ti­nham preparado, uma espécie de planta carnívora municipal. Sem dúvida, uma das maravilhas da nature­za, as plantas carnívoras! Fácil cair dentro delas. Quase impossível sair.

 

O homem alto, com uma grande barriga pendurada à frente, continuava esperando o banheiro. Fazia um palito de plástico passar de um a outro canto da boca e não tirava os olhos de Jack. Jack achou que a coisa mole e macia onde a porta batera fora a grande barriga do homem.

— Imbecil! — disse o sujeito.

Então a porta do banheiro se abriu. Alguém saiu de lá e desceu o corredor. Por um momento de congelar o sangue, os olhos de Jack Sawyer encontraram os olhos do homem da barriga. De fato, era precisamente o jeito de Randolph Scott, mas o sujeito não era um astro de cinema. Não passava de um dos habitantes de Oatley tomando seu porre de fim de semana. Quando saísse da taberna, ia pousar o traseiro num carro de segunda mão ou no pequeno selim de uma motocicleta. Provavelmente, não passava de um típico caipira americano com o chapéu de caubói esquecido na mesa da pista de danças.

Os olhos dele ficaram amarelos.

Não, é apenas sua imaginação, Jack! É apenas sua imaginação! Ele só...

Só lhe deu uma olhada de mau jeito porque você bateu na barriga dele. É apenas um pacato mora­dor de Oatley. Um cara que estudou no ginásio daqui, jogou futebol no clube local, fisgou uma boa moça católica e se casou com ela. Depois a boa moça católica começou a engordar comendo chocolates e ali­mentos congelados da Stouffer. É só mais um homem de Oatley, um tanto rude, é claro! Só mais um...

Mas os olhos dele ficaram amarelos.

Pare com isso! Não ficaram!

Contudo, alguma coisa fez Jack pensar no que acontecera quando estava tentando chegar à cida­de... O que acontecera na escuridão do túnel.

E, de repente, o homem da barriga, que mandara Jack bater no traseiro da mãe e o chamara de im­becil, pareceu ir minguando até se transformar num sujeito esbelto, de calça Levi’s e camiseta branca. Randolph Scott olhava firme para Jack. Tinha mãos enormes com veias azuis palpitando. E os olhos que fais­cavam um azul de barra de gelo começaram a se modificar, a oscilar de um lado para outro, a ficar um pouco mais claros, a ficar...

— Garoto... — disse ele, mas uma pressa atordoante se apoderou de Jack. A plataforma com o barril atravessou o corredor aos trancos, dando solavancos que podiam (Jack não se importava mais) bater em qualquer coisa.                                                                                                                     

O barulho do salão inundou-lhe os ouvidos. O pescoço vermelho de Kenny Rogers, um dos Loucos Rapazes do Vale, berrava uma estranha espécie de hino:

Vire a outra face, a outra

E diga que os mansos herdarão a Terra!

O salão estava cheio de pés que se arrastavam, de rostos embriagados e taciturnos. Jack não via ninguém de aparência mansa. Sapateando, os Loucos Rapazes do Vale atacavam de novo os instrumen­tos. Com exceção do tocador da guitarra elétrica, todos os outros pareciam muito tontos e bêbados... Tal­vez nem soubessem muito bem onde estavam. Mas o guitarrista parecia apenas entediado.

À esquerda de Jack, uma mulher falava com veemência no telefone público que havia na taberna. A seu lado, um homem embriagado sacudia o peito dentro da camisa de vaqueiro aberta. Na grande pista de dança, uns 70 casais se agarravam e se empurravam, indiferentes ao compasso rápido da música, espremendo-se, sorrindo, mãos em nádegas, lábios juntos, suor escorrendo nos rostos e formando grandes círculos debaixo dos braços.

— Oh, graças a Deus! — disse Lori com seu sotaque caipira, abrindo uma porta de vaivém para Jack passar com o barril. Smokey estava perto do balcão, abastecendo a bandeja de Glória com gim-tônica, vodca barata e a única coisa que competia com a cerveja local: um chope chamado Black Russians.

Jack viu Randolph Scott atravessar a porta de vaivém. Na confrontação, os olhos azuis captaram imediatamente os de Jack. O garoto balançou ligeiramente a cabeça, como para dizer: Sim, senhor, está bem. Vamos conversar. Talvez possamos chegar a um acordo sobre o que aconteceu ou não aconteceu no túnel de Oatley. Ou sobre o chicote de Osmond. Ou sobre mães doentes. Talvez possamos discutir por que está há tanto tempo no Condado de Genny... E se pretende continuar indefinidamente rondando por aqui. Até se transformar num velho maluco chorando por causa de um carrinho vazio de supermercado. O que acha disso, cara?

Jack tremeu.

Randolph Scott sorriu, como se tivesse visto (ou pressentido) o tremor. Depois sumiu no meio da multidão e do ar enfumaçado.

Foi então que os dedos magros mas fortes de Smokey beliscaram-lhe o ombro. Procuraram o lugar mais sensível e, como sempre, conseguiram achar. Eram dedos experientes, habilidosos em localizar cer­tas nervuras.

— Jack, você tem de ser mais rápido! — disse Smokey.

A voz era quase simpática, mas os dedos cutucavam, sondavam-lhe os nervos dos ombros, mo­viam-se neles. O hálito cheirava aos drops rosados de menta que ele praticamente não tirava da boca. A dentadura postiça (que veio pelo reembolso postal) mascava e estalava. Às vezes ocorria um deslocamen­to obsceno quando as placas escorregavam um pouco e Smokey precisava sugá-las para o lugar certo.

— Ou você anda mais depressa ou te sento de bunda numa fogueira. Entendeu bem o que estou dizendo?

— Entendi — disse Jack, procurando não gemer.

— Tudo bem... Está certo.

Por um torturante momento, os dedos de Smokey fizeram um gancho mais fundo, agarrando com amargo entusiasmo uma delicada teia de nervos. Jack teve de gemer! Smokey gostou da reação e se levantou.

— Ajude-me a suspender este barril, Jack. E vamos fazer isso rápido. As pessoas gostam de beber sexta-feira à noite.

— Sábado de manhã — Jack corrigiu um tanto atordoado.

— Tanto faz! Vamos com isso!

De alguma forma Jack conseguiu ajudá-lo a encaixar o barril no compartimento quadrado embaixo do balcão. Os músculos pegajosos de Smokey incharam e se contorceram sob a camiseta com a estampa da taberna. O chapéu de papel tipo mestre-cuca não caiu da cabeça de fuinha. Em nítido desafio às leis da gravidade, uma das pontas continuava se equilibrando pouco acima da sobrancelha esquerda.

Prendendo a respiração, Jack viu Smokey girar a tampa de plástico vermelho. A barrica assobiou mais ruidosamente do que devia ter feito... mas não espumou. O ar saiu dos pulmões de Jack numa golfa­da silenciosa.

Smokey extraiu a cerveja e fez o barril vazio rodar na direção do garoto.

— Leve para a despensa! Depois dê uma limpada no banheiro. Lembre-se do que eu lhe disse hoje à tarde.

Jack se lembrava. Às três da tarde, uma chaminé de fábrica deixara escapar um violento apito de ar comprimido. Jack quase pulou de susto. Lori riu e disse:

— Olhe o Jack, Smokey! Ele quase se borrou!

Smokey dirigiu à mulher um olhar enviesado e frio. Depois se virou para Jack. Disse ao garoto que o apito da sexta-feira na Oatley T & W era o maior de todos. Disse ao garoto que logo um apito muito semelhante ia sair da Dogtown Rubber, uma companhia que fabricava bóias de praia e bonecos infláveis para crianças, além de camisas-de-vênus para adultos (chamadas “Ponto das Delícias”). Daí a pouco, ele disse, a Taberna Oatley começaria a encher.

— Eu, você, Lori e Gloria vamos ter de correr como se fugíssemos do inferno! — disse Smokey. — Os urros do pessoal da sexta-feira compensam toda a pasmaceira dos domingos, segundas, terças, quartas e quintas. Quando eu mandar você me trazer correndo uma barrica, ela tem de estar na minha frente antes que eu acabe de gritar. E de meia em meia hora passe um pano no chão do banheiro dos homens. Nas sextas-feiras, mais ou menos de 15 em 15 minutos um cara vomita.

— O banheiro das mulheres fica por minha conta — disse Lori se aproximando. Tinha um cabelo ralo, ligeiramente ondulado e dourado. A pele era branca como o rosto de um vampiro de revista de ter­ror. Se não estava resfriada, sem dúvida cheirava cocaína, pois não parava de fungar. Mas Jack achava que devia ser resfriado. Dificilmente uma pessoa em Oatley poderia se dar ao luxo de ser viciada em cocaína. — Felizmente as mulheres são menos sujas que os homens. A diferença é pequena, mas existe.

— Cale a boca, Lori! — disse Smokey.

— Cale a sua! — ela respondeu.

O braço de Smokey cintilou como um raio. Houve um estalo e, de repente, a marca da palma da mão avermelhara como tatuagem plástica uma das faces pálidas de Lori. Ela começou a choramingar, mas Jack ficou surpreso e enojado ao ver em seus olhos uma expressão de quase felicidade. Talvez Lori acre­ditasse piamente que um tratamento daquele tipo era sinal de carinho.

— Trabalhe direito e não teremos problemas — disse Smokey, virando-se para Jack. — Corra quando eu lhe mandar trazer uma barrica! E não esqueça de ir de meia em meia hora ao banheiro dos homens para limpar o vômito!

Então Jack disse novamente a Smokey que queria ir embora, e Smokey reiterou sua falsa promessa de que o deixaria partir domingo à tarde...

Mas o que adiantava pensar nisso agora? A gritaria ia se tornando cada vez mais alta e havia fortes explosões de riso. Houve um barulho de cadeira quebrando e um gemido ondulante de dor. Houve um soco (o terceiro da noite) na pista de danças. Smokey soltou um palavrão e deu um empurrão em Jack.

— Livre-se do barril! — ele gritou.

Jack pôs o barril vazio na plataforma e a fez rodar na direção da porta de vaivém. Olhava ansiosa­mente em volta à procura de Randolph Scott. Viu-o de pé, no meio da turba que assistia à briga. Relaxou um pouco.

Na despensa, tirou o barril da plataforma e arrumou-o num canto. (Os fregueses da Taberna Oatley já haviam consumido seis barricas naquela noite.) Feito isso, foi novamente verificar se a mochila estava bem guardada.

Por um instante de pânico, achou que ela tinha sumido. O coração começou a martelar. O suco mágico estava lá dentro (além da moeda dos Territórios, que neste mundo se transformou num dólar de prata). Jack deu uma súbita guinada à direita, o suor encharcando-lhe a testa, e procurou entre dois outros barris. Ah, lá estava! Pôde até sentir o contorno da garrafa de Speedy através do náilon verde. O coração voltou a bater mais devagar, no entanto ele estava tonto, as pernas tremendo (como fica uma pessoa de­pois de escapar por um triz de algum perigo).

O banheiro dos homens tinha um aspecto terrível. No início da noite, Jack quase juntava ao vômito que encontrava o seu próprio, mas já parecia estar se acostumando ao fedor (e de certa forma isso era o pior de tudo: habituar-se ao fedor!). Abriu uma bica de água quente, levantou o puxador com o pano de chão enrolado na ponta, e começou a esfregar o pano na indescritível sujeira do chão. Sua mente iniciou um balanço dos últimos dias, concentrando-se neles como o animal que caiu na armadilha concentra sua ação na perna ferida.

 

A taberna oatley parecia escura, sombria, sem vivalma quando Jack atravessou pela primeira vez o umbral da porta. Os fios da vitrola automática, da máquina de fliperama e do jogo dos Invasores do Espaço estavam fora das tomadas. A única luz que havia no salão vinha do anúncio da Cer­veja Busch sobre o balcão: a marca em néon entre dois picos de montanha (sob eles havia um relógio di­gital, parecendo o mais estranho ovni jamais imaginado).

Com um leve sorriso nos lábios, Jack caminhou para o balcão. Estava quase lá quando ouviu uma voz atrás dele:

— Isto é uma taberna. Menores não podem entrar. Quem é você, cretino? Caía fora!

Jack quase pulou de susto. Tinha começado a contar o dinheiro que ainda havia em seu bolso e es­tava disposto a empregar a mesma tática que usara para conseguir seu trabalho anterior: sentava calmamente num banco, pedia alguma coisa e depois perguntava se precisavam de algum ajudante. Evidente­mente, era ilegal empregar menores num bar (principalmente sem autorização dos pais ou responsáveis), o que significava que, a pretexto de compensar o risco, só lhe pagariam uma quantia irrisória. Mas não ha­via outra solução! Jack trazia na ponta da língua a história fictícia de um padrasto malvado que o expulsa­ra de casa.

Deu meia-volta e viu um homem sentado num dos compartimentos. Fitava-o com um ar assustador de alerta e desdém. O sujeito era magro, mas uma boa musculatura movia-se sob a camiseta branca e dos lados do pescoço. As calças eram brancas e muito largas, como as calças dos cozinheiros. Um gorro de papel caía sobre a sobrancelha esquerda. A cabeça parecia de fuinha, estreita e pontuda. O cabelo, muito curto, começava a ficar grisalho. E entre suas mãos enormes havia uma pilha de faturas e uma calculadora eletrônica.

— Vi o anúncio procurando um auxiliar — disse Jack, sem muita esperança. Aquele cara não ia lhe dar trabalho, e ele também já não estava com vontade de trabalhar ali. O homem tinha toda a pinta de um mau-caráter.

— Viu o anúncio, hã? Deve ter aprendido a ler num dos raros dias em que não esteve matando aula, foi ou não foi?

Havia uma caixa de charutos Phillies em cima da mesa. O homem pegou um deles.

— Bem, eu não reparei que isto era uma taberna — disse Jack recuando um passo em direção à porta. A luz do sol atravessava a vitrine empoeirada e assumia um brilho estranho no assoalho, como se a Taberna Oatley estivesse situada numa dimensão ligeiramente diferente. — Pensei que fosse... o senhor sabe... uma espécie de churrascaria. Algo assim... Bem, até logo!

— Venha cá, rapaz!

Agora os olhos castanhos do homem olhavam-no com firmeza.

— Não, não, tudo bem! — disse Jack meio nervoso. — Vou mesmo embora.

— Venha cá! Sente-se aqui!

O sujeito acendeu um fósforo com um piparote da unha do polegar. Depois acendeu o charuto. Uma mosca que lhe rodeava o gorro de papel desapareceu zumbindo na escuridão. Os olhos do homem não saíam do rosto de Jack.

— Não vou mordê-lo, pode crer! — disse ele.

Jack se aproximou vagarosamente do compartimento e, após um instante de hesitação, resvalou para uma cadeira e cruzou os braços sobre a mesa.

Sessenta horas mais tarde, à meia-noite e meia da madrugada de sábado, passando um pano de chão no banheiro dos homens, o cabelo suado caindo nos olhos, Jack achou — isto é, teve certeza — que sem a estúpida confiança que depositara em si mesmo não teria deixado que o alçapão da armadilha caís­se sobre ele (aquele alçapão que se fechou no momento exato em que se sentou diante de Smokey Updi­ke).

A dionéia é capaz de se fechar sobre os insetos infelizes que lhe caem nas garras. Com seu aroma delicioso, e a suavidade cristalina e fatal de suas pétalas, a planta carnívora limita-se a esperar que algum inseto estúpido voe para dentro dela... O inseto acabará se afogando na água da chuva que a planta cole­ta. Em Oatley, em vez de água da chuva, a planta estava cheia de cerveja: esta era a única diferença.

Se ele tivesse corrido...

Mas ele não correu. Fez força para enfrentar os frios olhos castanhos de Smokey e achou que po­dia conseguir algum trabalho ali. Minette Banberry, proprietária e gerente do Golden Spoon, um pequeno restaurante de Auburn, onde Jack trabalhara na cozinha, tinha simpatizado com ele. Chegara a lhe dar um abraço, um monte de beijos e três enormes sanduíches quando ele partiu, mas Jack Sawyer não era tolo. Simpatia (e mesmo uma dose remota de afetividade) não excluem um frio interesse em lucros nem uma ambição por ganhos maiores à custa da mão-de-obra.

O salário mínimo em Nova York era de três dólares e 40 centavos por hora. Em cumprimento de uma lei municipal, esta informação estava afixada na cozinha do Golden Spoon, num bonito quadrado de cartolina alaranjada, quase do tamanho de um pôster de filme. Mas o chefe da cozinha era um haitiano que mal falava inglês e parecia ter entrado ilegalmente no país. O sujeito cozinhava bem, nunca deixando que uma batata frita torrasse demais ou que um bife passasse do ponto. A garçonete que ajudava a Sra. Banberry era bonita, mas participava de um programa de treinamento profissional para excepcionais. No caso dela, a tabela do sindicato também não se aplicava. Tímida e retardada, a mocinha confessou a Jack, com absoluta ingenuidade, que estava ganhando um dólar e 25 centavos por hora; e o dinheiro era todo

Jack ganhava um dólar e 50. E só tinha conseguido isso porque o velho lavador de pratos fora em­bora naquela manhã. Se a Sra. Banberry não estivesse enfrentando problemas graves na cozinha, jamais teria se deixado dobrar. “Pegue o dólar e 25, garoto, ou ponha o pé na estrada”, ela se limitaria a dizer. “Estamos num país livre.”

Agora, pensou ele com o desconhecido cinismo que começava a fazer parte de seu novo senti­mento de autoconfiança, ali estava outra Sra. Banberry. Dessa vez, numa versão masculina, um jeito es­guio e musculoso em vez de gordo e maternal, a cara feia em vez dos sorrisos. Mas, sem dúvida, outra Sra. Banberry em tudo o que havia de essencial.

— Procurando trabalho, hã?

O homem de calças brancas e gorro de papel pousara o charuto num velho cinzeiro de metal com a palavra camels impressa no fundo. Uma mosca parou de andar nas pernas dele e levantou vôo.

— Sim senhor, mas como o senhor disse, isto é uma taberna e...

Uma espécie de mal-estar percorreu o corpo de Jack. Aqueles olhos castanhos e córneas amarela­das começavam a perturbá-lo: era o olhar de um velho gato caçador, um gato que já pegara outros camundongos errantes antes dele.

— Sim, esta é a minha taberna! — disse o homem. — Smokey Updike, muito prazer!

Ele estendeu a mão. Surpreso, Jack ofereceu a sua. E o aperto que sentiu foi imediato, cruel, atin­gindo quase o estágio da dor. Tentou puxar a mão... mas Smokey não a deixou fugir.

— E então? — disse Smokey.

— Hã? — Jack respondeu, consciente de que estava parecendo estúpido e assustado. E de fato se sentia estúpido e um tanto assustado... Queria que Updike largasse sua mão.

— Ninguém o ensinou a dizer o nome às pessoas?

A pergunta foi tão inesperada que Jack quase deixou escapar seu verdadeiro nome, em vez daque­le que usou no Golden Spoon e que dava aos motoristas com quem pegava carona. Este nome (que ele estava começando a considerar seu “nome de estrada”) era Lewis Farren.

— Jack Saw... ah... Sawtelle — disse ele.

Updike prendeu-lhe mais um pouco a mão, os olhos castanhos imóveis. Por fim, deixou-a escapar.

— Jack Saw-ah-Sawtelle — disse Smokey. — Deve ser o nome mais comprido na porra da lista te­lefônica, hem, guri?

Jack ficou vermelho, mas não disse nada.

— Você ainda é muito pequeno — disse Updike. — Acha que vai conseguir levantar uma barrica de 40 quilos e empurrá-la numa plataforma rolante?

— Acho que sim — disse Jack, sem saber se conseguiria ou não. De qualquer modo, a coisa não o deixou muito preocupado. Num lugar tão desolado quanto Oatley, as barricas de uma taberna não se esvaziariam com grande rapidez.

Como se lesse seus pensamentos, Updike disse:

— Olhe, agora não há ninguém aqui. Mas temos um bom movimento lá pelas quatro, cinco horas. E nos fins de semana, isto enche até o teto. Aí é que você tem de trabalhar direito, rapaz!

— Bem, eu não sei... — disse Jack. — De quanto é o salário?

— Um dólar por hora — respondeu Updike. — Seria bom se eu pudesse pagar um pouco melhor, mas...

O taberneiro sacudiu os ombros e bateu na pilha de faturas. Chegou até a esboçar um sorriso, como se dissesse: Você sabe como é, garoto... Tudo em Oatley está parado. Como um relógio velho cujo dono esqueceu de dar corda. Desde 1971 nada mais se movimenta. Mas os olhos dele não sorriram. Os olhos vigiaram a expressão de Jack com a imóvel concentração de um gato diante de sua presa.

— Puxa, é mesmo muito pouco — disse Jack. Falava devagar, mas procurava pensar o mais de­pressa possível.

A Taberna Oatley parecia uma tumba; não havia sequer um velho chocando uma cerveja no balcão e vendo um seriado na tela de TV. Jack chegara a pensar que, em Oatley, as pessoas bebiam num carro sem pneus que chamavam de “clube”. Um dólar e 50 por hora era um péssimo salário quando se tem de suar o dia inteiro lavando pratos; mas num lugar como Oatley, quem sabe a pasmaceira da freguesia não transformaria um dólar numa remuneração bastante razoável?

— Sem dúvida é pouco — Updike concordou, voltando à calculadora. — Mas não posso lhe pagar mais.

O tom de sua voz dizia que era pegar ou largar. Não havia qualquer possibilidade de negociação.

— Então acho que está bem — disse Jack.

— Ótimo! — exclamou Updike. — Mas quero que você me explique um pequeno detalhe... De quem está fugindo? Quem anda atrás de você? — Os olhos castanhos tinham voltado ao rosto de Jack e pareciam perfurá-lo. — Não quero complicações do meu lado, não quero me foder, está claro?

Isso não abalou muito a segurança de Jack. Talvez não fosse o garoto mais brilhante do mundo, mas era suficientemente esperto para saber que não conseguiria sobreviver com a mochila nas costas sem uma historinha apropriada para possíveis patrões. Era a história número dois: O Padrasto Malvado.

— Sou de uma pequena cidade do Estado de Vermont — disse ele. — Fenderville. Minha mãe se divorciou do meu pai há dois anos. Papai quis ficar com a guarda, mas o juiz me entregou à minha mãe. Na maioria das vezes eles agem assim.

— E é a maior merda que fazem!

Smokey voltara às suas contas e estava tão curvado sobre a minicalculadora que o nariz quase en­costava nas teclas. Mas Jack sabia que ele podia somar e ouvir ao mesmo tempo.

— Bem, meu pai foi para Chicago e conseguiu trabalho numa fábrica de lá. Ele me escreve pratica­mente toda semana, mas desde que Aubrey lhe deu uma surra, nunca mais veio nos visitar. Aubrey é o...

— Seu padrasto — disse Updike, e por um breve momento os olhos de Jack se estreitaram e a sensação de mal-estar o atingiu de novo. Não havia simpatia na voz do taberneiro. Updike parecia estar quase rindo dele, como se tivesse certeza de que toda a história não passava de uma grande trouxa de mentiras.

— Sim — disse Jack. — Minha mãe se casou de novo há um ano e meio. Meu padrasto me bate, me bate a toda hora...

— É uma história triste, Jack. Muito triste. — Updike voltou a erguer os olhos; havia neles uma sar­dônica expressão de descrença. — E agora está a caminho de Chicago, onde você e o papai poderão viver felizes para sempre...

— Bem, espero que sim! — disse Jack e, tendo uma súbita inspiração, acrescentou: — Sem dúvida, meu pai verdadeiro nunca ia me pendurar pelo pescoço num gancho de armário!

Abaixou o colarinho da camiseta para Smokey ver a marca. Agora já estava meio desbotada, mas durante a temporada no Golden Spoon ainda estampava um feio e brilhante tom avermelhado, como marca de ferro em brasa. No Golden Spoon jamais tivera ocasião de exibi-la. Era, é claro, a marca deixada pela raiz que quase o estrangulara naquele outro mundo.

Ficou satisfeito vendo os olhos de Smokey Updike se arregalarem de espanto. Talvez tivesse con­seguido chocá-lo. Smokey se debruçou sobre a mesa, espalhando algumas faturas alaranjadas e amarelas.

— Jesus, garoto! — exclamou. — Seu padrasto fez isto?

— Foi aí que eu decidi fugir.

— Você acha que ele pode aparecer por aqui? Você lhe roubou algum carro, alguma moto, uma carteira de dinheiro, uma porra qualquer que pudesse trazer no bolso?

Jack negou com um movimento de cabeça.

Smokey fitou-o por mais um instante e, então, apertou a tecla off da calculadora.

— Venha comigo dar uma olhada na despensa — disse ele.

— Para quê?

— Quero ver se consegue levantar um daqueles barris. Se for capaz de me trazer uma barrica de cerveja quando eu precisar, pode ter certeza de que o emprego é seu!

 

Para a satisfação de Smokey Updike, Jack se mostrou inteiramente capaz de pôr nas costas um dos grandes barris de alumínio e pousá-lo com suavidade na plataforma rolante. Esfor­çou-se para fingir que o fazia sem grande dificuldade (ninguém ia imaginar que no dia seguinte deixaria cair uma daquelas barricas, inundando a despensa de espuma).

— Tudo bem, não foi assim tão mau — disse Updike. — Você ainda não tem idade suficiente para o trabalho e não é impossível que acabe arranjando uma hérnia... Mas, de qualquer modo, a responsabili­dade é sua.

Disse que Jack poderia começar ao meio-dia e trabalhar até uma hora da manhã (“Desde que agüente esse tempo todo, é claro.”) Jack seria pago diariamente, disse Updike, quando a taberna fechasse as portas.

— Pagamento à vista, garoto!

Voltaram ao salão e lá estava Lori, vestindo um short azul-marinho de basquete (tão curto que a ponta das calcinhas de raiom aparecia) e uma blusa sem mangas, com toda a certeza comprada fora de Oatley. Prendedores de plástico puxavam num rabo-de-cavalo o cabelo louro e ralo. Lori fumava um Pall Mall, o filtro úmido, com marcas nítidas de batom. Um grande crucifixo de prata lhe pendia entre os seios.

— Este é Jack! — disse Smokey. — Pode tirar da vitrine o cartaz para o auxiliar.

— Vá embora, garoto! — disse Lori. — Você ainda tem tempo...

— Feche a porra dessa boca!

— Se eu quiser!

Updike deu-lhe um tapa nas nádegas, não de um modo carinhoso, mas com força suficiente para fazê-la bater na borda almofadada do balcão. Jack pestanejou. Lembrou-se do som do chicote de Osmond.

— Bonito papel! — disse Lori. Os olhos dela estavam marejados de lágrimas, mas pareciam contentes, como se tudo estivesse acontecendo conforme o programado.                                           

O mal-estar inicial de Jack voltou a assaltá-lo. Dessa vez de forma mais nítida, mais intensa. Já era quase um sentimento de horror.

— Não nos deixe entrar na sua vida, guri! — disse Lori, passando perto dele para tirar a tabuleta da vitrine. — Ficará bem melhor longe de nós!

— Ele se chama Jack, não guri! — Smokey gritou. Voltara para o compartimento onde “entrevista­ra” Jack e começava a recolher as faturas. — Guri é um nome de sarjeta. Não aprendeu isso na escola? Sir­va dois hambúrgueres ao garoto. Ele só vai começar a trabalhar às quatro!

Lori removeu a plaqueta procura-se auxiliar da vitrine e guardou-a atrás da vitrola automática. Pa­recia já ter feito aquilo milhares de vezes. Passando outra vez por Jack, piscou o olho para ele.

O telefone tocou.

Todos se viraram para o aparelho, levando um susto com a campainha estridente. Para Jack foi como se uma nuvem negra passasse diante de seus olhos. Um momento estranho, quase desprovido de tempo. Mas ele teve tempo de observar a palidez de Lori; a única coloração das faces vinha das marcas avermelhadas da acne de adolescente. Teve tempo de estudar os traços cruéis, um tanto dissimulados, do j rosto de Smokey Updike e de ver como as veias saltavam nas mãos enormes. Teve tempo de ver o letreiro amarelado sobre o telefone: por favor, limite suas chamadas a três minutos.

No silêncio, o telefone não parava de tocar.

Subitamente aterrorizado, Jack pensou: É pra mim. Chamada interurbana... Chamada interurbana.

— Atenda o telefone, Lori! — disse Updike. — Saia do mundo da lua, guria, vamos lá!

Lori foi até o telefone.

— Taberna Oatley — disse ela com uma voz fraca e trêmula. Esperou um instante. — Alô? Alô?... Oh, merda!

Bateu com o fone no gancho.

— Ninguém respondeu. Brincadeira de garotos. Às vezes ligam pra perguntar se temos vaselina lí­quida em lata! Como quer os hambúrgueres, guri?

— Jack! — Updike rosnou.

— Jack, ok, ok, Jack! Como quer os hambúrgueres, Jack?

Jack explicou e ganhou dois hambúrgueres no ponto, cheios de mostarda e grandes rodelas de ce­bola. Devorou-os num instante e bebeu um copo de leite. O sentimento de mal-estar diminuiu na mesma medida da fome. Brincadeira de garotos, Lori dissera. Mesmo assim, de vez em quando, os olhos de Jack Sawyer deslizavam para o telefone. Estava meio intrigado.

 

Logo eram quatro horas e, como se a total desolação da taberna fosse apenas uma encenação armada para atraí-lo (como as plantas carnívoras atraem os insetos com sua aparência inocente e cheiro agradável), a porta se abriu e uma dúzia de homens com macacões de trabalho entra­ram com ar animado. Lori ligou as tomadas da vitrola automática, da máquina de fliperama e do jogo dos Invasores do Espaço. Alguns dos homens berraram cumprimentos para Smokey. Ele deixou escapar um sorriso estreito, expondo a grande fileira de dentes postiços comprados pelo reembolso postal.

A maioria pediu cerveja. Dois ou três pediram o chope Black Russians. Apenas um (membro do Clube dos Amigos da Esquina, Jack tinha quase certeza) pôs duas moedas na vitrola automática, convocando as vozes de Mickey Gilley, Eddie Rabbit, Waylon Jennings e outros. Smokey mandou que Jack pe­gasse um pano de chão, desse uma limpada na despensa e uma boa esfrega na pista de dança. Defronte à pista de dança havia um tablado, que, deserto, esperava pela noite de sexta-feira com os Loucos Rapazes do Vale. Smokey também mandou que Jack, depois de pôr em ordem a despensa e a pista de dança, pe­gasse uma flanela e desse um polimento no balcão.

— Quando enxergar seus dentes se arreganhando para você, pode ter certeza de que o trabalho está bem-feito!

 

E foi assim que Jack começou a trabalhar na Taberna Oatley, de Smokey Updike.

Temos um bom movimento lá pelas quatro, cinco horas.

Bem, não seria justo dizer que Smokey mentira. Até o momento em que Jack acabou os hambúrgueres, a taberna estava deserta. Às quatro, chegou uma pequena dúzia de trabalhadores e Jack começou a fazer jus ao seu salário de um dólar. Lá pelas seis horas, porém, já havia umas 50 pessoas no salão e Glo­ria, uma forte garçonete, atendia aos berros e urros dos clientes. Lori juntou-se a Gloria, servindo garrafas de vinho, um bom número de canecas de chope e oceanos de cerveja.

Além das barricas de Busch, Jack tinha de buscar caixas e caixas de cerveja em garrafa: Budweiser, é claro, pois era uma marca nacional, mas também cervejas da região, como Genesee, Utica Club e Rolling Rock. Suas mãos começaram a se cobrir de bolhas, as costas a doer.

Entre idas à despensa em busca de engradados de cerveja e idas à despensa em obediência a “Tra­ga-me uma barrica, Jack” (uma frase diante da qual já começava a sentir um temor instantâneo), Jack Sawyer passava um pano molhado no assoalho da taberna e dava lustre na grande garrafa de Pledge sobre o balcão. Certa vez, uma garrafa vazia de cerveja passou raspando pela sua cabeça, errando o alvo por um ou dois centímetros. Ele se abaixou depressa, o coração saltando pela boca, e a garrafa se espatifou na pa­rede. Smokey, a dentadura aberta num grande e falso sorriso de jacaré, expulsou da taberna o bêbado que estava criando problemas. Olhando pela vitrine, Jack viu o bêbado bater num paquímetro com força suficiente para fazer a bandeira vermelha se levantar.

— Venha cá, Jack! — Smokey gritou impaciente do balcão. — Ele quase o acertou, não é? Limpe essa sujeira!

Meia hora depois, Smokey mandou-o limpar o banheiro dos homens. Um sujeito de meia-idade, com cabelo muito curto e parecendo um pouco tonto, urinava com uma das mãos apoiadas na parede e a outra brandindo um enorme pênis não-circuncidado. Uma poça de vômito avançava entre o couro de suas botas.

— Limpe isso aí, garoto — disse o homem, tentando cambalear para fora do banheiro e dando um “tapinha” nas costas de Jack que quase o derrubou no chão. — Afinal, aqui é o melhor lugar para se vomi­tar, não é?

Jack conseguiu esperar que o homem saísse, mas logo depois perdeu o controle da goela.

Vomitou na única privada do banheiro, onde teve de enfrentar o cheiro penetrante, intenso, das fe­zes de um freguês. Vomitou tudo o que comera à tarde, respirou fundo e vomitou de novo. Com a mão trêmula, procurou o botão da descarga e apertou-o. Do outro lado da parede, Waylon e Willie atacavam na vitrola automática uma monótona canção sobre o Texas.

De repente, viu o rosto de sua mãe na frente dele, mais bonito do que em qualquer filme — olhos grandes, escuros e tristes. Viu-a sozinha na suíte do Alhambra, o cigarro ardendo num cinzeiro. Estava chorando. Chorando por sua causa.

O coração martelou com muita força no peito de Jack e ele achou que ia morrer de saudades. Quis voltar para perto da mãe, para uma vida onde não existiam coisas emboscadas em túneis, mulheres que gostavam de ser esbofeteadas, homens que vomitavam entre as botas enquanto urinavam. Quis estar junto dela e odiou Speedy Parker com todas as suas forças. Fora Speedy quem o fizera seguir aqueles terríveis caminhos do oeste.

Naquele momento, tudo o que ainda lhe restava de autoconfiança ruiu por terra. Ruiu de vez, de forma radical, integral. Todo o seu autocontrole foi substituído por uma profunda, elementar, lamuriosa, infantil vontade de gritar: Quero minha mãe! Por favor, Deus, eu quero minha mãe!...

Saiu do banheiro tremendo, as pernas bambas, pensando: Fique você com esta poça de merda, Speedy, porque eu vou voltar pra casa! Mesmo que esta casa tenha de ser o Alhambra! Naquele momento, não se preocupou mais em saber se a mãe estava morrendo. Naquele momento de dor inarticulada, tor­nou-se integralmente Jack-Jack, tão instintivo quanto um animalzinho medroso: um cervo, um coelho, um esquilo, uma doninha, que qualquer carnívoro pode pegar. Naquele momento pouco se importou que a mãe morresse daquele câncer que devia estar se expandindo vorazmente do interior de seus pulmões. Só queria que ela o abraçasse, o beijasse, lhe desse boa-noite na hora de dormir, dissesse para ele não esque­cer o rádio ligado na mesa-de-cabeceira nem o abajur aceso até de manhã.

Apoiou-se na parede e, aos poucos, foi recuperando o controle. A retomada de ânimo não foi uma coisa consciente, mas uma simples reviravolta mental, algo que tinha muito a ver com as repentinas mudanças de humor de Phil Sawyer e Lily Cavanaugh. Ia cometer um erro, um grande erro, sim!, mas já não estava disposto a voltar. Os Territórios eram reais e, portanto, o talismã também podia ser real. Não ia ma­tar sua mãe por causa de um momento de fraqueza!

Encheu um balde d’água quente na torneira da despensa e foi limpar o banheiro.

Quando voltou ao salão, eram dez e meia da noite e a turba de freqüentadores tinha começado a se dispersar. Oatley era uma cidade onde havia algumas fábricas, e nos dias de semana aqueles trabalhadores beberrões iam cedo para casa.

— Você está pálido como massa de pastel, Jack! — disse Lori. — Está sentindo alguma coisa?

— Será que eu podia tomar um gingerale? — ele perguntou.

Lori trouxe o refrigerante e Jack bebeu-o passando um pano de chão no assoalho. Às 15 para a meia-noite Smokey mandou que ele fosse até a despensa “pegar uma barrica”. Jack trouxe a barrica com muita dificuldade. Às 15 para a uma Smokey começou a gritar que fechassem a taberna. Lori desligou a vitrola automática (a voz de Dick Curless se dissipou num longo, tortuoso gemido). Ainda havia alguns fregueses, que deixaram escapar débeis exclamações de protesto. Gloria desligou os jogos, vestiu um suéter (tinha a mesma cor dos drops de hortelã que Smokey estava sempre chupando, a mesma cor das gengivas de sua dentadura postiça) e foi embora. Smokey começou a apagar as luzes e a convencer os últimos quatro ou cinco beberrões a saírem.

— Tudo bem, Jack — disse ele quando os homens se foram. — Você trabalhou direitinho. Ainda pode melhorar, mas para começar está bom. Pode dormir na despensa, Jack.

Em vez de pedir seu pagamento (que Smokey, aliás, não ofereceu), Jack cambaleou para a despen­sa, tão cansado que parecia uma versão em tamanho ligeiramente menor dos últimos bêbados a abando­nar o salão.

Na despensa, viu Lori de cócoras num canto. A posição fazia o short de basquete descer a um ponto quase alarmante. Por um instante, teve medo que ela estivesse mexendo em sua mochila. Então reparou que ela apenas estendia dois cobertores sobre um amontoado de sacos de estopa. Pusera também um pequeno travesseiro de cetim ao lado dos cobertores. O travesseiro tinha alguns dizeres: feira mundial de nova york.

— Achei melhor fazer uma cama para você, guri — disse ela.

— Obrigado — Jack respondeu. Fora um simples, quase involuntário ato de gentileza, mas Jack chegou a ter dificuldade para conter as lágrimas. Repuxando os lábios, forçou um sorriso. — Muito obri­gado mesmo, Lori!

— Não se preocupe. Ficará bem instalado aqui, Jack! Smokey não é assim tão mau. Quando passar a conhecê-lo melhor, vai ver que tenho razão.

Falara com uma certa tristeza e ansiedade, como se estivesse fazendo força para acreditar no que dizia.

— Acho que sim — disse Jack, e então, num impulso, acrescentou: — Mas vou-me embora ama­nhã. Acho que não me adaptei muito bem a Oatley.

— Talvez vá, Jack... — disse ela. — Ou talvez decida ficar mais um pouco... Agora, por que não procura dormir?

Havia alguma coisa forçada e artificial no tom de Lori. Havia alguma coisa estranha em seu sorriso quando ela lhe disse: Achei melhor fazer uma cama para você. Jack não deixou de observar isso, mas es­tava cansado demais para refletir sobre o assunto.

— Bem, amanhã será outro dia — disse ele.

— É claro que sim — Lori concordou, caminhando para a porta. Antes de sair, atirou-lhe um beijo com a palma encardida da mão. — Durma bem, Jack!

— Boa noite.

Ele começou a tirar a camisa... mas parou pelo meio, achando que era melhor tirar apenas o tênis. A despensa era fria e úmida. Sentou-se na cama improvisada, desamarrou os cordões, tirou primeiro um pé, depois o outro.

Estava prestes a deitar no travesseiro Feira Mundial de Nova York (e talvez conseguisse adormecer antes que sua cabeça afundasse nele), quando o telefone começou a tocar no salão... Uma estridência no salão, uma estridência dentro dele, uma estranha sensação que lhe trouxe à memória raízes viscosas, chi­cotes e pôneis de duas cabeças.

Ring ring, ring no meio do silêncio, no meio do silêncio mortal!

Ring, ring, ring, muito tempo depois dos garotos que podiam passar um trote perguntando se ti­nham vaselina líquida em lata terem ido dormir. Ring, ring, ring! Alô, Jacky! Aqui é Morgan! Pressenti que você estava nos bosques, seu merdinha... farejei-o nos meus bosques. E como pôde acreditar que estaria se­guro em seu mundo? Meus bosques também estão aí, rapaz! Esta é sua última chance, Jacky! Volte pra casa ou nossas tropas irão atrás de você. Você ficará sem saída, Jacky! Você ficará...

Jack se levantou e, de meias, atravessou correndo a despensa. Uma fina camada de suor, fria como gelo, parecia lhe envolver o corpo inteiro.

Abriu uma fresta da porta.

Ring, ring, ring, ring!

Então, finalmente:

— Alô? Taberna Oatley. E é melhor que isto não seja brincadeira! — Era a voz de Smokey. Uma pausa. — Alô? — Outra pausa. — Por que não vai se foder?!

Smokey bateu com o fone no gancho e Jack ouviu-o atravessar a porta interna do salão e subir os degraus para os pequenos aposentos que ocupava com Lori no andar de cima.

 

Sem acreditar no que via, Jack correu os olhos da folha verde de papel em sua mão esquerda para a pequena pilha de notas fiscais — todas iguais — e voltou para a mão direita. Eram 11 horas da manhã seguinte. Manhã de quinta-feira, quando ele reclamara o pagamento.

— O que é isto? — perguntou, ainda incapaz de crer no que via.

— Você sabe ler — disse Smokey — e também sabe contar. Não é tão ligeiro quanto eu gostaria que fosse (pelo menos ainda não), mas parece bastante esperto.

Jack segurava a folha verde de papel numa das mãos e o dinheiro na outra. Uma raiva surda come­çava a lhe pulsar como uma veia no meio da testa. despesas de empregado, dizia a folha verde. Era exatamente o mesmo modelo que a Sra. Banberry usara no Golden Spoon. Enumerava:

 

1 hambúrguer                    $1.35

1 hambúrguer                    $1.35

1 copo de leite                        .55

1 gingerale                              .55

Serviço                                   .30

 

Embaixo de tudo, a cifra $ 4.10 fora escrita em grandes algarismos e circundada por um risco à tin­ta. Jack ganhara nove dólares por seu turno de quatro da tarde à uma da manhã. Smokey reembolsara quase a metade; na mão direita de Jack Sawyer restavam apenas quatro dólares e 90 centavos.

Ele levantou os olhos, furioso. Primeiro para Lori, que desviou a cabeça como se estivesse ligeira­mente embaraçada, depois para Smokey, que nem piscou.

— É um roubo! — disse com voz trêmula.

— Jack, não é verdade. Dê uma olhada nos preços do cardápio...

— O senhor sabe muito bem que não é isso o que estou querendo dizer!

Lori contraiu um pouco o rosto, como se esperasse que Smokey desse uma bofetada no guri... Mas o taberneiro limitou-se a encarar Jack com uma espécie de assustadora paciência.

— Não cobrei a cama em que dormiu, cobrei?

— Cama?! — Jack gritou, sentindo a fervura do sangue subir-lhe à cabeça. — Chama aquilo de cama?! Cobertores forrando sacos de estopa sobre um chão de cimento? Chama aquilo de cama? Queria ver se teria coragem de me cobrar por aquela coisa, seu ladrão sujo!

Lori deu um gemido de medo e dirigiu um olhar a Smokey... Mas Smokey limitou-se a encarar Jack do outro lado do compartimento, a densa fumaça azul de um charuto rodopiando no ar. Um novo gorro de papel caía sobre a cabeça estreita de Smokey.

— Você me perguntou se tinha direito a dormir na despensa — disse Smokey. — Eu respondi que sim. Mas esquecemos de conversar sobre suas refeições. Se o problema tivesse sido levantado na hora, talvez pudéssemos ter dado um jeito... Ou talvez não. O fato é que estou apenas cumprindo fielmente o acordo que fizemos.

Jack estremeceu, lágrimas de raiva ondularam em seus olhos. Tentou dizer mais alguma coisa, mas só conseguiu extrair da garganta um gemido estrangulado. Estava, literalmente, furioso demais para conseguir falar.

— Sem dúvida, se tivesse levantado antes o problema do desconto das refeições dos empregados, eu...

— Vá para o inferno! — Jack conseguiu enfim articular. As palavras seguintes completaram a explosão: — Ensine ao próximo otário que passar por aqui como negociar um salário com você! Eu vou embora!

Cruzou o salão em direção à porta mas, apesar da ira, sabia muito bem (não apenas desconfiava, mas sabia muito bem) que não chegaria à calçada.

— Jack.

Jack pôs a mão na maçaneta como se quisesse esganá-la e girou-a com força... Mas o tom de ameaça que envolveu a voz de Smokey não podia ser desprezado. Jack tirou a mão da maçaneta, deu meia-volta e a raiva começou a se dissipar. Teve a sensação de que seu corpo se encolhera um pouco, Lori fora para trás do balcão, onde começou a espanar e murmurar uma canção. Sem dúvida, concluíra que Smokey não ia destroçar Jack com os punhos, e já que isso não ia acontecer, estava tudo bem.

— Você não vai me abandonar na véspera de um fim de semana, certo? Isto fica cheio até o teto!

— Quero ir embora. O senhor me roubou.

— Nada disso — disse Smokey. — Já lhe expliquei o que houve. Você é que não soube deixar as coisas em pratos limpos. Agora, se quiser, podemos discutir sobre as refeições. Cinqüenta por cento pela comida, quem sabe?! E olhe que não vou cobrar as sodas-limonadas. Nunca fui tão compreensivo com os rapazes que contrato de vez em quando, mas este fim de semana vai ser especialmente cabeludo. Toda a mão-de-obra do condado vem para a minha taberna, garoto! Sabe, Jack, eu gosto de você! Por isso é que não o esmurrei quando levantou a voz para me chamar de ladrão sujo, embora devesse ter feito isso. Mas preciso que fique, ao menos até domingo.

Jack sentiu a raiva subir-lhe rapidamente à cabeça e depois se extinguir outra vez.

— E se eu preferir ir embora já? — disse ele. — Pelo menos tenho cinco dólares no bolso... E sair desta cidadezinha nojenta ia me fazer muito bem.

Encarando Jack, ainda repuxando o sorriso estreito, Smokey falou:

— Lembra-se de ontem à noite, quando foi ao banheiro dos homens limpar a imundície de um su­jeito que pôs as tripas pelas goelas?

Jack balançou a cabeça.

— Lembra-se dele?

— Tinha cabelo curto, à escovinha, sei lá!

— Chamam-no Coveiro Atwell. Seu verdadeiro nome é Carlton Atwell, mas como ele passou dez anos cuidando dos cemitérios da cidade, todos o chamam de Coveiro. Isso foi... Oh, há 20 ou 30 anos. De­pois, na época em que Nixon foi eleito presidente, ele passou a fazer parte da força policial de Oatley. Agora é o nosso chefe de polícia.

Smokey pôs o charuto na boca, soltou uma baforada e voltou-se de novo para Jack.

— Eu e o Coveiro Atwell somos muito amigos — disse Smokey. — E se sair agora por aquela porta, Jack, será impossível jurar que não vai ter problemas com a polícia. Pode acabar sendo mandado à força para casa. Pode acabar sendo obrigado a colher maçãs nas chácaras da cidade. Oh, algumas delas têm 40 acres de árvores carregadinhas... Pode acabar também levando uma surra. Rapaz, o velho Coveiro tem uma predileção toda especial por crianças que encontra vadiando na estrada. Principalmente pelos garotos.

Jack se lembrou daquele pênis do tamanho de um cacetete. Sentiu náusea e frio por dentro.

— Aqui, em certo sentido, você está sob minha proteção — disse Smokey. — Mas, depois de cru­zar aquela porta, só Deus sabe o que pode acontecer! O Coveiro é capaz de estar fazendo uma ronda pelo quarteirão, não é? Sem dúvida há uma possibilidade de que consiga chegar são e salvo aos limites da cida­de. Mas é muito mais provável que o Coveiro encoste aquele Plymouth enorme que ele dirige do seu lado... Olhe, o Coveiro Atwell não é particularmente inteligente, mas tem um faro de fazer inveja a qual­quer um. Além do mais, alguém pode lhe dar um telefonema...

Atrás do balcão, Lori acabou de lavar os pratos. Enxugou as mãos numa toalha, ligou o rádio e co­meçou a acompanhar em voz alta uma velha canção de Steppenwolf.

— Diga se não tenho razão — falou Smokey. — É melhor ficar aqui, Jack. Trabalhe direitinho no fim de semana. Depois eu mesmo coloco você no meu pick-up e o tiro da cidade. Estamos combinados? Pode ir embora domingo ao meio-dia. E vai sair com quase 30 dólares no bolso! Um dinheiro que não ti­nha quando entrou aqui, não esqueça! Quando tiver tempo de pensar com mais calma, vai descobrir que Oatley não é um lugar assim tão mau. Então? O que me diz da idéia?

Jack encarou aqueles olhos castanhos. Observou o amarelado das córneas e algumas pintas verme­lhas. Inspecionou o sorriso largo de Smokey, repleto de dentes falsos. Chegou a notar, com uma estranha e apavorante sensação de déjà vu, que uma mosca passeava calmamente no gorro de papel de mes­tre-cuca, limpando e alisando patinhas finas como fios de cabelo.

Desconfiou que Smokey sabia que ele sabia que tudo que Smokey Updike dissera não passava da mais deslavada mentira. Mas isso não o preocupou. Após trabalhar até sábado de manhã, e depois até domingo de manhã, ia dormir pelo menos até as duas da tarde. Smokey ia dizer que não poderia ti­rá-lo da cidade porque ele acordara tarde. Estaria muito ocupado vendo pela TV um jogo entre os Colts e os Patriots. E Jack estaria não apenas cansado demais para andar, mas morrendo de medo que Smo­key, perdendo subitamente o interesse pela partida, resolvesse dar um telefonema para seu bom amigo Coveiro Atwell. Poderia dizer, por exemplo:

— Ele está descendo para a Estrada da Moenda, meu velho! Por que não aproveita a oportunidade? Depois dê uma passada por aqui. Podemos ver juntos o segundo tempo. A cerveja fica por minha conta, é claro! Mas não vá vomitar no meu banheiro antes de me devolver o garoto, está bem?

Essa seria uma das possibilidades. Podia pensar em outras, cada uma um pouco diferente, mas to­das com o mesmo pano de fundo.

O sorriso de Smokey Updike se alargou.

 

ELROY

Quando eu tinha seis...

A taberna, que a essas horas já começara a perder o fôlego nas duas noites anteriores, continuava rugindo como se toda a clientela quisesse saudar o amanhecer. Jack viu que duas mesas tinham desapare­cido, vítimas da briga de socos que irrompera pouco antes de sua última expedição ao banheiro. Agora, no lugar das mesas, as pessoas dançavam.

— Ande logo! — disse Smokey quando Jack passou em ziguezague para o lado de dentro do bal­cão e pousou o engradado de cerveja perto do grande refrigerador. — Arrume isto aí e vá apanhar a caixa da Bud! A porra da Bud devia ter vindo primeiro.

— Lori disse...

Uma dor ardente, abrasadora, explodiu no pé de Jack quando Smokey lhe pisou no tênis. O garoto soltou um grito abafado e sentiu as lágrimas lhe enchendo os olhos.

— Cale a boca! — disse Smokey. — Lori não sabe merda nenhuma e você é suficientemente esper­to para já ter desconfiado disso. Volte e me traga correndo uma caixa da Bud!

Ele voltou à despensa, mancando com o pé que Smokey pisara, achando que os ossos de algum dedo deviam estar quebrados. Não era nada impossível! Sua cabeça transbordava de fumaça, de barulho e do ritmo forte e sincopado dos Loucos Rapazes do Vale (dois deles já visivelmente cambaleando). Mas um pensamento despontou com nitidez: talvez não fosse possível esperar até o fechamento da taberna. Tal­vez não conseguisse agüentar tanto tempo. Se Oatley era uma prisão e a Taberna Oatley um calabouço, não havia dúvida de que a exaustão seria sua carcereira, tanto quanto Smokey Updike — talvez até mais.

Apesar dos temores sobre como poderiam ser os Territórios naquele lugar, o suco mágico começa­va a lhe parecer a única esperança de salvação. Podia tomar um gole e atravessar... Depois de caminhar um ou dois quilômetros nos Territórios, três no máximo, podia beber um pouco mais e num instante esta­ria de volta aos Estados Unidos, mas bem longe daquele lugarzinho horroroso, talvez bem mais para o oeste, nos arredores de Bushville ou mesmo Pembroke.                  

Quando eu tinha seis, quando Jack tinha seis, quando...

Pegou o engradado da Bud e oscilou de novo pela porta aberta... Mas o caubói alto e magro, de mãos enormes, aquele parecido com Randolph Scott, estava ali de pé, os olhos cravados nele.

— Alô, Jack! — disse o homem, e Jack viu com crescente terror que as pupilas daqueles olhos eram amarelas como pés de galinha. — Será que ninguém é capaz de tirá-lo daqui? Por que não desapare­ce, garoto?!

Jack parou com a caixa de cerveja apoiada nos braços, sempre fitando os olhos amarelos. E de re­pente uma idéia horripilante bateu em sua cabeça: fora ele a coisa emboscada no túnel, fora aquele homem-coisa com seus olhos terríveis!

— Deixe-me em paz — disse Jack. As palavras saíram num sussurro abafado.

O homem foi se aproximando.

— Por que não desaparece, garoto?!

Jack procurou recuar... mas agora já estava contra a parede e, quando o caubói que parecia Randolph Scott se inclinou em sua direção, Jack Sawyer pôde sentir cheiro de carne crua no hálito dele.

 

Na quinta-feira, entre o meio-dia, quando Jack começou a trabalhar, e as quatro da tarde, quando a turba habitual que freqüentava a taberna começou a chegar, o telefone público com a tabuleta por favor limite suas chamadas a três minutos tocou duas vezes.

Da primeira vez, Jack não sentiu qualquer espécie de medo. Era apenas uma senhora pedindo contribuições para instituições de caridade.

Duas horas mais tarde, quando Jack estava arrumando as últimas garrafas da noite anterior, o tele­fone voltou a tocar com enorme estridência. Dessa vez ele esticou a cabeça como um animal que sente cheiro de fogo numa floresta seca... Só que não era uma sensação de fogo, mas de gelo. Virou-se para o aparelho, a apenas um metro do ponto onde se encontrava, e ouviu os tendões do pescoço estalarem. Via o telefone coberto de gelo, gelo que escorria pela caixa de plástico negro, vazava pelos buracos do fone em linhas azuladas, finas como pontas de lápis. O gelo se insinuava como pequenas barbatanas entre os números do disco, se introduzia furtivamente na tampinha por onde eram devolvidas as fichas.

Mas Jack suspeitava que se tratava apenas de um telefone comum. A sensação de frio e morte de­via estar dentro dele.

Mesmo assim, como se estivesse hipnotizado, não tirava os olhos do aparelho.

— Jack! — Smokey gritou. — Atenda esse maldito telefone! Pra que estou lhe pagando, porra?!

Jack olhou para Smokey, desesperado como um animal acuado... Mas Smokey o encarou com lábios apertados e uma expressão de paciência esgotada (era o mesmo ar que lhe cobria o rosto quando se dispunha a dar uma bofetada em Lori). Jack começou a se aproximar do aparelho, quase inconsciente do movimento dos próprios pés. Avançava cada vez mais na direção daquela cápsula de gelo, um calafrio lhe percorrendo os braços, o nariz rachando.

Estendeu o braço e agarrou o fone. Suas mãos ficaram dormentes.

Pôs o fone no ouvido. O ouvido ficou dormente.

— Taberna Oatley — disse para a terrível escuridão do local, e sua boca ficou dormente.

A voz que escapou do fone era o grasnido seco e rascante de alguma coisa há muito tempo morta, uma criatura que jamais poderia ser vista pelos vivos (a visão levaria a pessoa à insanidade ou à morte, uma morte com gelo nos lábios e olhos cegos, arregalados de cataratas de neve).

— Jack — a voz escabrosa e rangente soprou pelo fone. O rosto de Jack ficou dormente até o pes­coço (como se ele tivesse acabado de sair da cadeira do dentista depois de uma extração dentária com muita anestesia). — Com mil diabos, você tem de voltar para casa, Jack!

De muito longe (uma distância de anos-luz), ele teve a impressão de ouvir sua própria voz se repetindo:

— Taberna Oatley. Quem fala? Alô... Alô...

Tudo frio, muito frio.                                                                                

A garganta também ficara dormente. Respirou fundo e os pulmões pareceram congelar. Logo as veias do coração ficariam congeladas e ele cairia morto.

A voz gélida murmurou:

— Coisas muito ruins podem acontecer a um guri que viaja sozinho, Jack. Pode perguntar a quem quiser.

Num gesto trôpego e veloz, bateu com o fone no gancho. Puxou rapidamente a mão e ficou para­do, fitando o aparelho.

— O que você tem, Jack? — Lori perguntou, e a voz dela era distante... mas um pouco mais próxi­ma que sua própria voz alguns momentos atrás. O mundo ia voltando ao lugar. Podia ver no fone, esboçada contra uma brilhante superfície coberta de gelo, a marca de sua mão. Mas o gelo já começava a der­reter e o plástico negro ia aparecendo.

 

Foi naquela noite (a noite de quinta-feira) que Jack viu pela primeira vez o sósia de Randolph Scott no Condado de Genny. A multidão era um pouco menor que na noite anterior (afinal, o pagamento em Oatley era às sextas-feiras e muitos já estavam sem dinheiro). Mesmo assim, havia gente suficiente para ocupar todo o balcão e se espalhar pelas mesas e compartimentos.

Era gente de uma área rural onde provavelmente os arados já estavam enferrujados, esquecidos em velhos galpões; eram homens que talvez ainda quisessem ser fazendeiros, mas sabiam que isto não era mais possível. Havia muitos chapéus de caubói, mas Jack achava que a maioria jamais tinha se aproximado de um trator. Usavam calças de brim: cinza, marrons ou verdes, mas tinham seus nomes estampados em camisas azuis com letras douradas. Alguns arrastavam botas de vaqueiro; outros, grandes sapatos de sola impermeável. Carregavam os chaveiros nos cintos e suas rugas não eram sulcos provocados por risos freqüentes: as bocas pareciam tristes.

Mas aqueles homens não largavam o chapéu de caubói; e quando Jack contemplou da extremidade do balcão uma fileira de oito beberrões, achou que todos se pareciam com os velhos vaqueiros de certos anúncios de charutos. O problema é que eles não fumavam charutos, só cigarros baratos (muitos, aliás).

Jack limpava o vidro da vitrola automática quando o Coveiro Atwell entrou. A vitrola estava desli­gada porque um jogo de futebol na TV atraía a atenção de todos. Na noite passada, Atwell usava a versão masculina de roupa esporte predominante em Oatley: calça de brim, camisa cáqui com um monte de ca­netas num dos grandes bolsos e botas de couro com ponteiras de metal. Agora vestia um uniforme azul da polícia. Uma grande pistola com cabo de madeira pendia de um coldre num rangente cinto de couro.

Olhou para Jack, que se lembrou das palavras de Smokey: Rapaz, o velho Coveiro tem uma predile­ção toda especial por crianças que encontra vadiando na estrada. Principalmente pelos garotos.

A lembrança fez Jack Sawyer se encolher, como se fosse culpado de algum crime. O Coveiro Atwell abriu um sorriso largo, vagaroso:

— Então decidiu ficar algum tempo em Oatley, rapaz?

— Sim, senhor — Jack murmurou, esfregando com mais força o vidro da vitrola (embora fosse im­possível deixá-lo mais reluzente).

Esperou que Atwell se afastasse. Queria que o homem o deixasse em paz. Jack virou-se a tempo de ver o forte policial sentar-se num banco defronte à TV. E foi então que um outro sujeito virou a cabeça.

Randolph Scott, Jack pensou de imediato. É a cara de Randolph Scott.

Mas, apesar do aspecto vago e cínico de seu rosto, o verdadeiro Randolph Scott tinha um inegável ar de heroísmo; e mesmo que alguns traços de suas feições fossem duros, era um homem capaz de sorrir. A face que Jack via no balcão parecia ao mesmo tempo entediada e enlouquecida.

E com um medo real, Jack percebeu que o homem estava olhando para ele, para Jack. Não tinha virado casualmente a cabeça durante o comercial para ver se havia algum conhecido na taberna. Nada disso! Tinha virado a cabeça para olhar para Jack. Jack Sawyer teve certeza disso.

O telefone tocou.

Com um esforço sobre-humano, Jack desviou o olhar do rosto de Randolph Scott. Mas defron­tou-se com o vidro reluzente da vitrola automática, onde seu próprio rosto, como um fantasma assustado, pairava sobre os escaninhos de fitas.

O telefone começou a ecoar com estridência cada vez maior.

O homem do balcão deu uma espiada no aparelho... e tornou a se virar para Jack, que congelara ao lado da vitrola com um vidro de lustra-móveis numa das mãos, a flanela na outra e o cabelo arrepiado, a pele congelando.

— Se for de novo um trote, vou comprar um apito bem forte para soprar no fone! — Lori dizia en­quanto se aproximava do aparelho. — Por Deus que ele não passa sem essa!

Parecia uma atriz num palco, e todos os fregueses não passavam de figurantes recebendo o cachê de 35 dólares por dia (conforme a tabela do sindicato). Os únicos personagens reais da Taberna Oatley eram Jack e aquele temível caubói de mãos enormes e olhos que não podiam ser... inteiramente... vistos.

De repente, de forma brutal, o caubói esboçou algumas palavras: Com mil diabos, você tem de voltar para casa, Jack! E piscou o olho.

O telefone parou de tocar assim que Lori estendeu o braço para pegá-lo.

Randolph Scott olhou em volta, esvaziou o copo e gritou:

— Mais uma espumosa, está bem?

— Maldição! — disse Lori — Acho que esse telefone está mal-assombrado!

 

Mais tarde, na despensa, Jack perguntou a Lori quem era o sujeito parecido com Randolph Scott.

— Parecido com quem? — ela exclamou.

— Randolph Scott foi um velho ator de filmes de faroeste. Um sujeito igualzinho a ele estava senta­do na ponta do balcão.

Ela sacudiu os ombros.

— Para mim, Jack, todos têm a mesma cara! Um punhado de gente querendo se divertir um pou­co... Nas noites de quinta, costumam assinar vales por conta do dinheiro que vão receber. Smokey confia.

— “Mais uma espumosa”, foi assim que ele pediu a cerveja.

Os olhos de Lori se acenderam.

— Ele? Oh, sei quem é! Parece um sujeito grosseiro...

Dissera aquilo como se fosse um elogio, uma apreciação positiva sobre o traçado de um nariz ou a brancura de um sorriso.

— Quem é?

— Não sei como se chama — disse Lori. — Apareceu aqui pela primeira vez há uma ou duas sema­nas. O moinho deve estar de novo empregando gente. Esteve...

— Pelo amor de Deus, Jack! Não mandei você me trazer um barril!?

Jack conversava com Lori tentando acomodar na plataforma rolante um dos grandes barris de Cer­veja Busch. Como o barril era quase mais pesado que ele, aquele ato exigia uma boa dose de equilíbrio e atenção. Quando Smokey berrou do umbral da porta, Lori gritou de susto e Jack oscilou, perdendo intei­ramente o controle do barril. O barril caiu de lado e rolou, a tampa saltando como uma rolha de champa­nha, a cerveja pulando num jato branco e dourado. Smokey continuava berrando, mas Jack não conse­guia mais tirar os olhos da cerveja. Ficou petrificado no chão... até que Smokey arremeteu contra ele.

Vinte minutos depois, quando Jack voltou ao salão usando um esparadrapo na ponta do nariz in­chado, Randolph Scott já tinha ido embora.

 

Eu tenho seis.

John Benjamin Sawyer tem seis.

Seis...

Jack sacudiu a cabeça tentando afastar aquele pensamento incessante, repetitivo. Um torvelinho de sentimentos comprimia sua mente com força cada vez maior. Os olhos do homem... amarelos e um tanto escamosos. Ele — a coisa — tinha piscado. Uma piscadela rápida, leitosa, oscilante. Jack notou estranhas membranas sobre o globo ocular.

— Por que não desaparece, garoto?! — a coisa tinha murmurado de novo antes de avançar para Jack com mãos que começavam a se retorcer, a se tornar metálicas, perigosas.

A porta se abriu com estrondo, deixando entrar uma áspera enchente de som da vitrola automáti­ca. Smokey apareceu atrás de Randolph Scott.

— Jack, se não parar de andar com a cabeça nas nuvens, vou lhe dar uma lição que nunca mais vai esquecer!

Scott recuou um passo. Agora as mãos não estavam mais se transformando em cascos metálicos, eram apenas mãos... grandes e fortes, permeadas de uma cordilheira de veias salientes. Houve mais uma j piscadela, leitosa e rodopiante, mas que, estranhamente, não exigiu qualquer movimento de pálpebra. E j de súbito os olhos do homem não estavam mais amarelos, porém ligeiramente azuis. Scott lançou a Jack um último olhar e continuou seu caminho para o banheiro.

Smokey se aproximara, o gorro de papel caído sobre a testa, a cabeça de fuinha um tanto inclina­da, os lábios se abrindo para revelar dentes de jacaré.

— Não vou mais repetir o que eu disse, ouviu bem? — Smokey gritou. — É o último aviso que es­tou lhe dando. E pode ter certeza de que estou falando sério!

Como acontecera quando teve de enfrentar Osmond, a fúria de Jack veio bruscamente à tona (esse tipo de raiva, sempre relacionada ao sentimento de estar sendo vítima de terrível injustiça, jamais é tão forte quanto aos 12 anos — às vezes os estudantes de alguma universidade acham que sentem a mesma ira, mas não é bem assim; geralmente o que sentem é pouco mais que uma espécie de ressonância inte­lectual).

Desta vez, a explosão foi incontrolável.

— Não sou um cachorro! E não admito que me trate assim! — disse Jack, avançando um passo para Smokey Updike (as pernas tremiam de medo).

Surpreso, talvez até um tanto confuso pela ira totalmente imprevista de Jack, Smokey recuou.

— Jack, estou lhe avisando...

— Não, cara! Eu estou lhe avisando —Jack se surpreendeu dizendo. — Não me confunda com Lori. Não gosto que me batam. E se encostar a mão em mim, pode ter certeza de que vai levar um bom soco!

O espanto de Smokey Updike foi apenas momentâneo. Sem a menor dúvida, o garoto não tinha noção do que podia lhe acontecer (não era de Oatley, não podia saber). Talvez achasse que tinha pesado todos os riscos e estivesse disposto a enfrentá-los. Às vezes, a segurança deixa uma pessoa tremendamen­te forte, mesmo um menino daquele tamanho.

Smokey estendeu o braço para agarrar o colarinho de Jack.

— Não tente bancar o engraçadinho comigo, rapaz! — disse ele, puxando-lhe a camisa. — Enquanto estiver em Oatley, vai ser exatamente um cachorrinho pra mim. Enquanto estiver em Oatley, vou lhe passar a mão na cabeça quando tiver vontade e vou lhe dar uma boa sova quando precisar.

Sacudiu com força o pescoço de Jack. Ele mordeu a língua e gritou.

Agora, manchas febris de raiva brilhavam como pó-de-arroz no rosto pálido de Smokey.

— Pode ter certeza, Jack, que as coisas não são como você pensa! Enquanto estiver em Oatley, não vai passar de um cachorro meu. E só vai embora quando eu deixar! E agora vou lhe ajudar a guardar bem direitinho na cabeça o que estou lhe dizendo!

Fechando o punho, Smokey fez uma das mãos recuar. Por um instante as três lâmpadas de 60 watts que pendiam no estreito corredor brilharam de maneira ofuscante no diamante do anel em forma de ferra­dura que Smokey usava. Então o punho se arremessou à frente e esmurrou uma das faces de Jack. Ele foi impelido para trás, contra uma parede coberta de riscos e inscrições. Primeiro o rosto se abrasou de dor; depois foi ficando dormente. Jack sentiu na boca o gosto do próprio sangue.

Smokey o encarava — o mesquinho olhar de avaliação de alguém que examina um novilho ou um número de loteria. Talvez não tenha visto a expressão que esperava ver nos olhos de Jack, pois tornou a agarrar o garoto, possivelmente para assestar-lhe um segundo soco.

Nesse momento, porém, veio da taberna um grito agudo de mulher:

— Não, Glen! Não!

Houve um berreiro de vozes masculinas, em geral alarmadas. Outra mulher gritou — um som alto, estridente. Depois, houve um tiro de revólver.

— Mas que merda é esta? — Smokey gritou, pronunciando cada palavra tão cuidadosamente quanto um ator num palco da Broadway. Arremessou novamente Jack contra a parede, deu meia-volta e foi como um raio para o salão. O revólver disparou outra vez e houve um grito de dor.

Jack só tinha certeza de uma coisa: estava na hora de escapar. Não quando a taberna fechasse hoje, nem quando fechasse amanhã, nem na manhã de domingo quando ele acordasse. Agora!.

A barulheira parecia estar diminuindo um pouco. Não havia sirenes, talvez ninguém tivesse ficado ferido... mas, Jack se lembrou com um frio no estômago, o sujeito que parecia Randolph Scott ainda esta­va no banheiro.

Na despensa friorenta, impregnada de cheiro de cerveja, Jack Sawyer se ajoelhou perto dos barris e procurou a mochila. Enquanto seus dedos encontravam apenas vento e o chão encardido de cimento, teve de novo aquele pressentimento sufocante de que alguém — Smokey ou Lori — vira-o esconder a mochila e a pegara. Seria o método mais seguro para não deixá-lo sair de Oatley! Então veio o alívio, qua­se tão sufocante quanto o medo, ao sentir os dedos no náilon.

Jack abraçou a mochila e olhou ansiosamente para a porta nos fundos da despensa. Poderia usá-la. Era melhor do que sair pela porta de incêndio no fim do corredor. Ficava perto demais do banheiro dos homens. O problema é que, se abrisse aquela porta de carga e descarga, uma luz vermelha se acenderia no balcão. Mesmo que Smokey ainda estivesse tentando controlar o tumulto, Lori veria a luz e não deixa­ria de alertá-lo.

Portanto...

Foi até a porta que dava para o corredor. Abriu uma fresta e deu uma espiada com um olho. O cor­redor estava vazio. Tudo bem, isso era bom. Por certo, enquanto Jack procurava a mochila, Randolph Scott resolvera seu problema no banheiro e voltara para onde a ação estava mais interessante. Ótimo!

Só que talvez ele ainda estivesse lã dentro. Quer encontrá-lo no corredor, Jacky? Quer ver os olhos dele ficarem de novo amarelos? Espere até ter certeza.

Mas não podia esperar. Smokey logo ia descobrir que ele não estava no salão, ajudando Lori e Glo­ria a limpar as mesas; nem. atrás do balcão, cuidando da louça suja. Voltaria num minuto à despensa para acabar de ensinar a Jack qual era o seu lugar no grande esquema das coisas.

E então? Vamos logo, rapaz!

Talvez ele esteja à sua espera na ponta do corredor, Jacky... Talvez salte sobre você como um grande e malvado boneco de molas...

A bela ou a fera? Smokey ou Randolph Scott? Jack hesitou numa agonia de indecisão. Que o ho­mem de olho amarelo ainda estivesse no banheiro era sem dúvida uma possibilidade; que Smokey viria procurá-lo era uma certeza!

Jack abriu a porta e saiu no estreito corredor. A mochila que colocara nas costas parecia ter aumen­tado de peso — um indício evidente, para qualquer um que o visse na rua, de que havia alguma coisa errada com ele. Começou a descer o corredor. Movia-se grotescamente na ponta dos pés, apesar do trovão da música e do berreiro da multidão. O coração martelava em seu peito.

Eu tinha seis, Jacky tinha seis.

Por que isso? Por que essas frases não lhe saíam da cabeça?

Seis.

O corredor parecia mais comprido. Era como caminhar num túnel. Só com uma exasperante lenti­dão a porta de incêndio parecia ir ficando um pouco mais perto. O suor lhe escorria pela testa e pelo lábio superior. Seu olho continuava espreitando a porta à direita. Havia o tosco desenho de um cachorro rabis­cado nela. Sob o desenho, liam-se as palavras: lugar de cão. E no fim do corredor havia uma porta pintada de vermelho, descorada, descascada. A tabuleta dizia: só use em caso de emergência! o alarme soará! Na verdade, a campainha de alarme já estava quebrada há dois anos. Fora o que Lori lhe tinha dito quando ele vacilou em abri-la para levar o lixo.

Enfim estava quase lá! Afastando-se cada vez mais do lugar de cão!

Ele está por perto, eu sei disso... E se pular em cima de mim eu vou gritar... Eu... Eu vou...

Jack estendeu sua trêmula mão direita e a encostou na tranca da porta. Sentiu um frio agradável quando a tocou. Por um instante realmente acreditou que conseguiria saltar da barriga da planta carnívora e voar para a noite... livre!

Então, bruscamente, a porta atrás dele se escancarou e a mão pesada agarrou-lhe a mochila. Jack deixou escapar o guincho alto, desesperado, de um animal que caiu numa armadilha. Num impulso, in­vestiu contra a porta, esquecido da mochila e do suco mágico que havia dentro dela. Se as correias tives­sem arrebentado, Jack teria disparado como um raio pelo terreno baldio, cheio de lixo e mato, que havia atrás da taberna. Não pensaria em qualquer outra coisa além de correr!

Mas o náilon das correias era resistente e não se rompeu. A porta se abriu um pouco, revelando uma ponta escura de noite, e depois se fechou outra vez. Jack foi arrastado para o banheiro das mulheres, sacudido para todos os lados e depois empurrado de costas. Se tivesse batido contra a parede, a garrafa de suco mágico se teria espatifado dentro da mochila, impregnado suas roupas e o velho mapa com o cheiro de uvas podres. Por sorte, bateu apenas com os rins na beira da pia. A dor foi gigantesca, torturante.

Então, o rosto de Randolph Scott se aproximou de novo, puxando-lhe o jeans com mãos que tinham começado a se contorcer e a engrossar.

— Já devia ter desaparecido, garoto! — disse ele, a voz ficando rouca, cada vez mais parecida com o rosnado de um animal.

Jack começou a se esquivar para a esquerda, os olhos fixos na cara do homem. Os olhos pareciam agora quase transparentes, não apenas amarelos, mas iluminados por dentro... Olhos de uma horripilante lanterna do Dia das Bruxas.

— Mas pode confiar no velho Elroy — disse a coisa que parecia um caubói, agora sorrindo, revelando um punhado de grandes dentes curvos, alguns quebrados e afiados, outros negros de podridão. Jack gritou. — Oh, pode confiar em Elroy — disse a voz que parecia um rosnado de cão. — Ele não vai machucá-lo muito. Você vai continuar inteiro, pode ter certeza.

A coisa continuava rosnando e se aproximando.

— Vai continuar inteiro, é claro que vai...

A coisa continuava a falar, mas Jack não entendia mais o que ela dizia. Era apenas um chiado de animal.

A mão de Jack se aproximou da lata de lixo que havia junto da porta... Quando a coisa-caubói se decidiu a pegá-lo com o casco de suas mãos, Jack pegou a lata e atirou-a com força. A lata bateu no peito da coisa-Elroy. Jack escancarou a porta do banheiro e arremeteu para a esquerda, para a porta de emergência. Puxou com força a tranca de ferro, consciente da presença de Elroy atrás de si... Então saltou para a escuridão atrás da Taberna Oatley.

À direita da porta havia uma fileira de latas abarrotadas de lixo. Jack derrubou algumas quando passou. Ouviu-as rolar, chocalhar. E depois um uivo de fúria de Elroy tropeçando e caindo sobre elas.

Virou a cabeça a tempo de ver a coisa rolando pelo chão. Teve mesmo uma fração de segundo para pensar: Oh, Deus, uma cauda! Ele tem alguma coisa que parece uma cauda! Elroy assumira quase inteiramente a forma de um animal. Uma luminosidade dourada fluía de seus olhos em raios estranhos (como uma luz brilhante jorrando por dois buracos de fechadura).

Jack foi se afastando, tirando a mochila das costas, tentando desamarrar as correias com dedos que pareciam pedaços de pau. Uma tremenda confusão rugia em sua mente.

Jacky tinha seis Deus me ajude Speedy Jack tinha seis Deus por favor...

Pensamentos e apelos incoerentes. A coisa rosnava e se debatia entre as latas de lixo. Jack viu o casco de uma das mãos se levantar e depois cair assobiando, bater com força numa chapa amassada de metal, atirá-la a um metro de distância. A coisa se levantou de novo, trôpega, quase desabando. E voltou a se atirar na direção de Jack. O rosto se contorcia, guinchava, encolhendo-se contra o peito. E de alguma forma, entre aqueles rosnados de quem muito em breve poderia começar a latir, Jack foi capaz de enten­der o que Elroy estava dizendo:

— Agora não vou apenas te dar um aperto, seu merdinha! Agora vou te matar! Vou te matar!

Teria ouvido com seus ouvidos! Ou dentro de sua cabeça?

Tanto fazia. A distância entre ele e o mundo daquela coisa tinha se reduzido a uma simples membrana.

A coisa-Elroy se aproximava rosnando, um passo oscilante e desajeitado nas patas traseiras, as rou­pas escorregando para todos os lugares errados do corpo, a língua pendendo de uma boca cheia de cani­nos. Ali estava o terreno baldio nos fundos da Taberna Oatley de Smokey Updike, sim! Ali estava aquela área coberta de mato e de lixo soprado pelo vento: aqui uma armação enferrujada de cama; mais adiante, a grade de um Ford 57. Uma fantasmagórica lua em forma de foice, lasca de osso no céu, transformava cada estilhaço de vidro quebrado num olho atento e fatal. E tudo isso não começara em New Hampshire, certo? De jeito nenhum! Não tinha começado quando a mãe ficou doente, nem com o aparecimento de Lester Parker. Tinha começado quando...

Jacky tinha seis anos. Quando todos moravam na Califórnia, e ninguém queria morar em nenhum outro lugar, e Jacky tinha...

Remexeu entre as correias da mochila.

E a coisa veio outra vez, quase executando uma dança, fazendo Jack se lembrar dos personagens de Disney — uma raposa tropeçando sob a fraca luz da lua. Jack começou a rir às gargalhadas. E então a coisa rosnou e pulou em sua direção.

Mas o equilíbrio daquela pesada mistura de cascos e patas fraquejou no meio de seu bailado frené­tico entre o mato e o lixo. A coisa-Elroy caiu sobre as molas da armação da cama e acabou ficando presa entre os arames. Uivando, soprando uma espuma branca, a besta se retorceu, se repuxou, investindo para todos os lados, uma das patas profundamente enterrada entre as espirais enferrujadas das molas.

Jack procurou a garrafa dentro da mochila. Remexeu entre meias, cuecas sujas e um embolado e malcheiroso jeans. Conseguiu encontrar o gargalo da garrafa e o suspendeu.

A coisa-Elroy se debateu com uivos de cólera e finalmente conseguiu se livrar das molas da cama.

Jack se abaixou no chão, entre o mato e o lixo, querendo se esconder. Com os dois dedos menores da mão esquerda prendia uma das correias da mochila, enquanto a mão direita segurava a garrafa. Fez força para tirar a rolha com o indicador e o polegar da mão esquerda. A mochila oscilou, balançou no ar, mas a rolha saiu.

Será que esta besta é capaz de atravessar comigo?, ele se perguntou incoerentemente, levando a garrafa aos lábios. Será que quando atravesso perfuro algum buraco pelo meio das coisas? Será que a besta pode vir atrás de mim e me pegar do outro lado?

A boca de Jack se encheu daquele gosto nauseante de uvas podres. Teve ânsia de vômito e sentiu a garganta fechando, como se pretendesse expelir o líquido. Então o cheiro terrível envolveu-lhe as narinas e as suas vias nasais. Ele deixou escapar um profundo gemido de nojo. Agora podia ouvir a coisa-Elroy gritando, mas o grito parecia muito distante, como se a besta estivesse numa das bocas do tú­nel de Oatley e ele, Jack, resvalasse com rapidez para a outra saída. E dessa vez havia uma sensação de queda. Ele pensou: Oh, meu Deus, e se eu chegar aos Territórios rolando por um penhasco ou pela encosta de uma enorme montanha?

Agarrou-se com força à mochila e à garrafa, os olhos desesperadamente fechados, esperando o que ia acontecer... A coisa-Elroy ou nada da coisa-Elroy, os Territórios ou uma espécie de nada absoluto. As idéias fixas que o assombravam naquela noite tornaram a assaltá-lo, giraram como um carrossel: Dama Prateada, Ella Speed, tudo rodopiando. Entrou num torvelinho, submergindo na nuvem do cheiro terrível do suco, esperando o melhor e o pior, sentindo as roupas se transformarem em seu corpo.

Seis oh sim quando todos nós éramos seis e ninguém era qualquer outra coisa e era a Califórnia que soprava aquele sax que o papai gostava de ouvir nas mãos de Dexter Gordon ou talvez seja isto que a mamãe quer dizer quando fala que estamos vivendo uma vida falsa e onde onde oh onde você ia papai você e o tio Morgan oh papai às vezes ele olha para você como oh como se houvesse uma vida falsa na cabeça dele e um terremoto acontecendo detrás dos olhos dele e você está morrendo no meio do terremoto oh papai!

Caindo, se contorcendo, girando para o centro de um limbo, no meio de um cheiro que se trans­formara numa nuvem arroxeada, Jack Sawyer, Jack Benjamin Sawyer, Jacky, Jacky...

... tinha seis anos quando tudo começou a acontecer, e quem soprou a nota inicial desse sax, papai? Quem soprou quando eu tinha seis anos, quando Jacky tinha seis, quando Jacky...

 

A MORTE DE JERRY BLEDSOE

... Tinha seis anos... quando tudo realmente começou, papai, quando o motor que finalmente me levaria a Oatley, e além de Oatley, começou a funcionar. Havia uma música alta de saxofo­ne. Seis. Jacky tinha seis anos. De início sua atenção estivera toda concentrada no presente que o pai lhe dera: uma miniatura de um táxi londrino. O carro de brinquedo pesava como tijolo e, na madeira lisa dos tacos do novo escritório, era preciso um forte impulso para fazer o táxi correr chocalhando até a outra pa­rede. Naquele fim de tarde, naquele dia de verão da segunda quinzena de um mês de agosto, Jack tinha um novo e bonito carrinho que rolava como um tanque de guerra no chão atrás do sofá. E havia um senti­mento de satisfação, de relaxamento no ar-condicionado do escritório... O pai não tinha mais trabalho a fazer, não tinha mais telefonemas que não podiam esperar até o dia seguinte. E Jack impelia o pesado táxi de brinquedo pela faixa sem tapete do assoalho, quase não ouvindo o rumor dos sólidos pneuzinhos de borracha por causa do solo do saxofone. O carro negro bateu numa das pernas do sofá, deu uma guinada para o outro lado e parou. Jack foi de gatinhas atrás do brinquedo. O pai tinha esticado os pés na escrivaninha e o tio Morgan se instalara numa das poltronas do outro lado do sofá. Estavam bebendo alguma coi­sa; logo pousariam os copos na mesa, desligariam o toca-discos, o amplificador, e desceriam para seus carros.

Quando todos nós éramos seis, e ninguém era qualquer outra coisa e era a Califórnia...

— Quem está no sax? — ele ouviu o tio Morgan perguntar, e, como num devaneio, percebeu aque­la voz familiar sob um tom. diferente. Alguma coisa sussurrante e dissimulada na voz de Morgan Sloat fil­trou-se para os ouvidos de Jacky. Ele encostou a mão na capota do táxi e seus dedos ficaram frios como se o carro fosse feito de neve, não de ferro inglês.

— É Dexter Gordon quem está solando — o pai respondeu. Como sempre, sua voz fora preguiço­sa e cordial, e Jack passou a mão em volta do pesado táxi.

— Um disco muito bom.

— Papai toca o pistão. É uma gravação antiga, mas muito bonita, não acha?

— Vou ver se ainda consigo encontrá-la em alguma loja.

E então Jack achou que sabia o que toda aquela estranheza na voz do tio Morgan queria dizer. Na realidade, o tio Morgan não gostava absolutamente de jazz, apenas fingia gostar quando estava diante do seu pai. Há muito tempo Jack descobrira aquele segredo de Morgan Sloat, e não entendia por que o pai não conseguia notar o que era tão evidente. Tio Morgan jamais iria procurar em alguma loja um disco chamado Papai toca o pistão. Estava apenas querendo ser agradável a Phil Sawyer — e talvez Phil Sawyer não percebesse a coisa porque, como todo mundo, nunca dava grande atenção a Morgan Sloat. Esperto e ambicioso (“Esperto como uma raposa, furtivo como um advogado num tribunal”, dizia Lily), o bom tio Mor­gan gostava disso. Gostava de poder escapar de qualquer exame mais atento. Seu olho tinha um jeito natural de se esquivar na hora certa. Jacky apostava que quando o tio era menino os professores deviam ter tido muita dificuldade para se lembrar do nome dele.

— Imagine o que esse cara seria lá! — disse o tio Morgan, agora despertando plenamente a aten­ção de Jack. Aquela falsidade ainda bulia em sua voz, mas não foi a hipocrisia de Sloat que fez Jacky levantar a cabeça e apertar os dedinhos em volta do táxi de brinquedo. Foi a palavra lá que adquiriu em seu cérebro uma ressonância de carrilhão. Porque lá era o país dos sonhos de olhos abertos. Ele percebeu de imediato isso. O pai e o tio Morgan tinham esquecido que ele estava atrás do sofá e iam conversar sobre os sonhos de olhos abertos.

O pai, então, sabia do país dos sonhos... Jack nunca tocara no assunto, nem com o pai nem com a mãe, mas o pai sabia tanto quanto ele dos sonhos de olhos abertos. Parecia incrível, mas era verdade! E a outra certeza que perpassou as emoções de Jack, mesmo que não tenha sido conscientemente expressa, é que o pai se preocupava menos que ele em guardar o segredo.

Mas, por alguma razão, igualmente difícil de traduzir da emoção para a linguagem, a conjunção de Morgan Sloat com aqueles sonhos deixou o menino inquieto.

— Ei? — disse o tio Morgan. — Este cara realmente os deixaria transtornados, não acha? Possivelmente o transformariam em Duque das Terras Secas ou coisa parecida.

— Ou talvez não — disse Phil Sawyer. — Pelo menos se gostassem dele tanto quanto nós.

Mas, papai! Tio Morgan não gosta dele!, Jack pensou, tendo a súbita certeza de que aquilo era importante. O tio não gostava absolutamente dele, de jeito nenhum. E ele está achando que a música está alta demais, e está se sentindo prejudicado de alguma forma...

— Oh, você sabe muito mais sobre isso do que eu — disse o tio Morgan numa voz que parecia a vontade e relaxada.

— Bem, estive lá com mais freqüência. Mas você está pegando a coisa com muita rapidez. Jacky percebeu que o pai sorria.

— Oh, aprendi algumas coisas, Phil! Você sabe... Vou lhe agradecer a vida toda por ter me mostra­do tudo aquilo.

As quatro sílabas de agradecer vieram cheias de fumaça e do barulho de vidro quebrado.

Mas todas aquelas pequenas sensações negativas não conseguiram eliminar a intensa, quase exul­tante satisfação de Jack. Estavam falando sobre os sonhos de olhos abertos. Era inacreditável que uma coi­sa assim fosse possível. O que os dois diziam estava além de sua compreensão, os termos e o vocabulário eram adultos demais, mas o Jack de seis anos de idade experimentava de novo o sentimento de espanto e de alegria que sempre acompanhava os sonhos de olhos abertos. Além disso, já tinha idade suficiente para entender pelo menos o sentido geral da conversa. Os sonhos eram reais e, de certa forma, Jacky os compartilhava com o pai. Isto constituía metade de sua alegria.

 

— Deixe-me tentar colocar algumas coisas em ordem! — disse o tio Morgan, e Jacky imaginou as palavras em ordem como duas cordas amarradas uma na outra, ou melhor, como co­bras. — Eles têm magos como nós temos físicos, certo? Trata-se de uma monarquia agrária, usando a ma­gia em vez da ciência.                

— Exato — disse Phil Sawyer.

— E com toda a certeza vivem assim há séculos. Suas vidas nunca se modificaram muito. Apesar das questões políticas, é claro!

Então a voz do tio Morgan ficou tensa, a vibração que tentava ocultar estalou como chicote entre as consoantes.

— Bem, vamos deixar de lado os problemas políticos. Pensemos em nós como instrumento de mu­dança. Você vai dizer, e eu não poderia deixar de concordar, Phil, que temos feito muito bem em não in­terferir nos Territórios... E que teríamos de ser muito cautelosos ao tentar introduzir mudanças. Não me é difícil aceitar esta posição. Vejo as coisas do mesmo modo.

Jack pôde sentir o silêncio do pai.

— Ok! — Sloat continuou. — Vamos admitir que, numa situação vantajosa para nós, possamos estender os benefícios a todos que estiverem do nosso lado. Não abriremos mão de certas vantagens, mas não teremos grandes ambições sobre os lucros que elas possam trazer. Respeitamos aquelas pessoas, Phil! Olhe o que elas fizeram por nós! Acho que poderíamos realmente colaborar muito com elas. Nossa energia pode se combinar com a energia delas... Alcançaremos resultados jamais concebidos antes, Phil! E acabarão nos achando generosos... O que de fato somos, embora não a ponto de deixar de lado todos os nossos interesses... é claro!

O tio Morgan estaria franzindo a testa e inclinando a cabeça. As mãos estariam entrelaçadas, as pal­mas comprimidas.

— É claro que não temos uma visão global da situação, você sabe disso. Para dizer a verdade, acho que só a sinergia já compensa... Mas, Phil, já imaginou a porra do choque que íamos provocar se lhes déssemos a eletricidade? Se levássemos armas modernas para alguns membros da tribo? Tem idéia do que isso significaria? Seria um impacto assombroso! Assombroso!

Houve um som úmido, abafado, das palmas das mãos do tio Morgan batendo uma na outra.

— Não quero colocar a carroça na frente dos bois, nem pense nisso, mas está na hora de começar a ver as coisas sob este prisma... Talvez devêssemos aumentar nosso envolvimento nos Territórios.

Phil Sawyer continuava em silêncio. Tio Morgan bateu de novo as palmas das mãos. Finalmente o pai de Jack falou num tom evasivo:

— Acha que devemos aumentar nosso envolvimento...

— Acho que esta é a hora certa! Nem preciso lhe dizer em detalhes o que tenho na cabeça. É uma experiência que estamos tendo em conjunto e você conhece as possibilidades. Talvez possamos fazer muita coisa contando apenas com nossas próprias forças. Eu me sinto muito contente por não estar repre­sentando grupos sem escrúpulos ou firmas vorazes.

— Vá com calma, Morgan! — disse o pai de Jack.

— Aviões! — disse o tio Morgan. — Pense nos aviões!

— Vá com calma, vá com calma, Morgan! Consigo ver um monte de coisas que você não é capaz de enxergar...

— Estou sempre receptivo a novas idéias — disse Morgan, e sua voz pareceu de novo estranha­mente dissimulada.

— Ok! Acho que temos de penetrar lá com muito cuidado, parceiro... Acho que qualquer coisa de vulto (qualquer modificação radical que viéssemos a provocar) poderia voltar-se inteiramente contra nós. As conseqüências seriam sérias, e algumas dessas conseqüências poderiam ser perigosas.

— Como por exemplo...? — perguntou o tio Morgan.

— Como por exemplo, a guerra.

— Isto é pura tolice, Phil! Nunca vimos qualquer indício que pudesse... A não ser que esteja pen­sando em Bledsoe...

— E estou pensando em Bledsoe. Não acha que tenho razão?

Bledsoe?, Jack se perguntou. Já ouvira aquele nome antes; mas era uma lembrança muito vaga.

— Bem, teriam de percorrer um longo caminho para chegar a uma guerra. E não vejo relação entre...

— Tudo bem! Não se lembra de ter ouvido dizer que, há muito tempo, um estrangeiro assassinou um velho rei dos Territórios? Já deve ter ouvido a história...

— É, acho que sim — disse o tio Morgan, e Jack percebeu de novo o tom de falsidade na voz dele.

A cadeira do pai rangeu; estava tirando os pés da escrivaninha, inclinando o corpo para a frente.

— O assassinato deu início a uma pequena guerra. Os que apoiavam o velho rei tiveram de debelar uma rebelião conduzida por alguns nobres descontentes. Os rebeldes queriam se apoderar do governo pela força: açambarcar as terras, requisitar propriedades, atirar os inimigos na prisão, tornar-se homens ricos.

— Ei, não seja injusto! — Morgan interrompeu. — Também soube da coisa, mas numa versão um pouco diferente. Queriam também dar uma nova ordenação política a um sistema extremamente ineficaz. Às vezes é preciso ser duro para começar as reformas. Pelo menos é a minha opinião.

— Bem, não nos cabe fazer julgamentos sobre a política deles. Mas essa pequena guerra ou revolta se prolongou por cerca de três semanas. Talvez umas 100 pessoas tenham morrido durante os choques... Ou pouco menos que isso. Alguém lhe contou quando a rebelião começou? Em que ano foi? Em que dia?

— Não — o tio Morgan murmurou num tom sombrio.

— Foi a l° de setembro de 1939. Correspondia aqui ao dia em que a Alemanha invadiu a Polônia.

O pai parou de falar e Jacky, segurando o táxi de brinquedo atrás do sofá, bocejou silenciosamente (mas foi uma boca enorme).

— O que está insinuando? — perguntou finalmente o tio Morgan. — Que a guerra deles deu início à nossa? É uma idéia maluca. Acredita mesmo nisso?

— Acredito — disse o pai de Jack. — Acredito que, de certa forma, uma rebelião de três semanas nos Territórios desencadeou aqui uma guerra que durou seis anos e matou milhões de pessoas. Acredito, sim!

— Bem... — disse o tio Morgan e Jack pôde sentir sua irritação, seu esforço para controlar a raiva.

— E tem mais! Conversei com muita gente sobre o que aconteceu nos Territórios. A sensação que tive é de que o estrangeiro que assassinou o rei era um verdadeiro estrangeiro... Entende o que eu quero dizer, não? Os que o conheceram achavam que ele não estava à vontade vestindo as roupas dos Territórios. Agia como se estivesse inseguro dos costumes locais... Não conhecia a moeda corrente, por exemplo!

— Ah!

— Sim! Se não o tivessem destroçado logo após ele ter apunhalado o rei, talvez possuíssemos mais informações a seu respeito. Quanto a mim, não tenho dúvidas de que se tratava...

— De gente como nós.

— Como nós. Exatamente. Um visitante. Morgan, acho que não devemos nos intrometer muito na vida de lá! Não sabemos quais poderão ser os efeitos. Para dizer a verdade, acho que somos continuamen­te afetados pelas coisas que se passam nos Territórios!... E será que está disposto a ouvir outra suposição maluca?

— Por que não? — Sloat respondeu.

— Os Territórios não são o único outro mundo que existe.

 

— Besteira! — Disse Sloat.

— Não acho. Quando estava lá, tive uma ou duas vezes a sensação de que me encontrava perto de alguma outra região: uma espécie de Territórios dos Territórios.

Sim, Jack pensou, era isso mesmo: os sonhos de olhos abertos dos sonhos de olhos abertos, um lugar ainda mais bonito. E do outro lado ficavam os sonhos de olhos abertos dos sonhos de olhos abertos dos sonhos de olhos abertos. Mais um lugar, mais um mundo. E ainda mais bonito! Então Jack percebeu que estava ficando com sono.

Os sonhos de olhos abertos dos sonhos de olhos abertos.

Adormeceu quase de imediato, com o táxi preto no colo, o corpo pesado de sono, desabando pe­los tacos do assoalho e, ao mesmo tempo, extraordinariamente leve.

A conversa deve ter continuado; Jack deve ter perdido muita coisa. Ele ondulava, pesado e leve, pela continuação do LP que tinha Papai toca o pistão. Durante esse tempo, Morgan Sloat deve ter primeiro tentado argumentar (gentilmente, mas com que apertões nos punhos, com que contorções da testa!) a fa­vor de seus planos; depois deve ter fingido que continuava receptivo aos pontos de vista do sócio e, em seguida, deve ter fingido que se deixara persuadir pelas dúvidas de Phil. No fim da conversa, que voltava à memória de um Jacky Sawyer com 12 anos de idade na perigosa fronteira entre Oatley e uma desconhe­cida aldeia dos Territórios, Morgan Sloat fingira parecer não apenas convencido, mas positivamente agra­decido pelas lições que aprendera de Phil. Quando Jack despertou, a primeira coisa que ouviu foi a per­gunta do pai:

— Ei, Jack desapareceu?

E a segunda coisa foi o que disse o tio Morgan:

— Diabo! Acho que você tem razão, Phil! Você consegue chegar ao âmago das questões com uma lucidez que é difícil de encontrar por aí.

— Ora, mas onde está Jack? — o pai tomou a perguntar, e Jack se mexeu atrás do sofá, agora real­mente acordando. O táxi preto tinha capotado no chão.

— Ha-ha! — disse o tio Morgan. — Perninhas curtas, mas antenas ligadas, aposto!

— Então você estava aí atrás, filhote? — disse o pai. Ruídos de cadeiras sendo arrastadas no chão, ruídos dos dois se levantando.

— Oooh — murmurou o pequeno Jack e, num gesto lento, tornou a pôr o táxi no colo. Sentia as pernas duras, dormentes. Quando ficou de pé, elas formigaram.

O pai riu. Passos se aproximaram do menino. O rosto vermelho e obeso de Morgan Sloat apareceu sobre o sofá. Jack bocejou e encostou os joelhos nas costas do sofá. O rosto do pai apareceu ao lado do rosto de Sloat. O pai estava sorrindo. Por um momento, as duas grandes cabeças de adultos pareceram es­tar flutuando sobre a borda do sofá.

— Já vamos para casa, dorminhoco! — disse o pai.

Quando o Jack de seis anos olhou para o rosto do tio Morgan, viu cálculo e dissimulação nos olhos dele, uma falsidade que deslizava sob as bochechas sorridentes e rechonchudas como cobra sob pedra. E, de repente, ele tornou a ser apenas o pai de Richard Sloat, o bom tio Morgan que no Natal e no dia de seu aniversário sempre lhe dava presentes incríveis! O bondoso tio Morgan de rosto gordo e suado!

Mas o que parecera antes? Um terremoto humano, um homem entupido de hipocrisia por trás da menina dos olhos, um homem ocultando alguma coisa presa por uma mola no fundo de uma caixa, pronta para explodir a qualquer momento....

— Que tal um sorvetinho a caminho de casa, Jacky? — perguntou o tio Morgan. — Não é uma boa idéia?

— Uh! — Jack exclamou.

— Então, rapaz! Podemos parar na sorveteria ao lado do edifício! — disse o pai.

— Hum-hum-hum! — murmurou o tio Morgan. — Agora estamos realmente falando sobre sinergia! — E sorriu mais uma vez para Jack.

 

Tudo isto aconteceu quando Jack tinha seis anos, e no meio de sua queda sem peso através do limbo, a coisa se repetia. O gosto horrível do suco arroxeado de Speedy voltava continuamente aos seus lábios, às suas vias nasais, e tudo o que aconteceu naquela tarde sonolenta há seis anos se desenrolava outra vez em sua mente. Como se o suco mágico pudesse trazer uma recordação integral de certos fatos! E de um modo tão concentrado e veloz que ele reviveu toda aquela tarde nos poucos segundos em que achou que ia vomitar. Ah, como era horrível o suco mágico!

Os olhos do tio Morgan pairando como fumaça e, dentro de Jack, uma questão que também pairava, repetindo sempre as mesmas perguntas e chegando por fim à...

Quem faz

Quem faz acontecer

Quem faz essas coisas acontecerem, papai?

Quem é responsável pela

... morte de Jerry Bledsoe? O suco introduzia-se à força pelos recantos da boca, filetes nauseantes aferroando as paredes do nariz. Assim que sentiu terra fofa nas mãos, Jack parou de bancar o valente e vomitou para não morrer sufocado. O que matou Jerry Bledsoe? A coisa fétida e roxa que saiu da boca de Jack causou-lhe enorme repugnância. Ele recuou bruscamente, esbarrando com pernas e pés numa relva alta e dura. Depois, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e conseguiu esticar o corpo. Paciente como uma mula, esperou o que ia acontecer. A boca aberta tinha os lábios frouxos, preparados para um segundo jato. O estômago se enroscou e ele não teve tempo nem de gemer. Um novo fluxo do suco fedorento veio ardendo-lhe pelo peito e pela garganta até salpicar sua boca. Filetes viscosos de saliva pendiam dos seus lábios, e Jack os esfregou num gesto frenético. Depois limpou as mãos nas calças. Jerry Bledsoe, sim. Jerry... que sempre tivera o nome estampado na camisa... Como um empregado de posto de gasolina. Jerry, que morrera quando...

Jack Sawyer balançou a cabeça e esfregou outra vez a boca com as mãos. Vomitou de novo num monte áspero de relva (a relva parecia germinar da terra cinzenta como um buquê de casamento de gigante).

Algum obscuro instinto animal (que ele não seria capaz de entender) o fez cobrir de terra a poça arroxeada de vômito. Outro reflexo levou-o a esfregar mais uma vez as palmas das mãos nas pernas da calça. Finalmente, Jack levantou a cabeça.

Estava de joelhos, num final de crepúsculo, na margem de uma trilha de cascalho. Nenhuma horrí­vel coisa-Elroy o perseguia. Teve consciência imediata disso. Cachorros presos num cercado de madeira que parecia uma jaula latiam e rosnavam para ele, enfiando os focinhos por entre as tábuas. Do outro lado do cercado, havia uma feia estrutura de madeira de onde ruídos igualmente caninos pareciam uivar para a imensidão do céu. Sem a menor dúvida, lembravam bastante os sons que Jack ouvia do outro lado da pa­rede da despensa da Taberna Oatley: uma barulheira tremenda de homens embriagados urrando para to­dos os lados. Outra taberna? Parecia mais uma hospedaria, uma estalagem. Agora que já não sentia a náu­sea do suco de Speedy, ele era capaz de identificar os odores penetrantes, os odores difusos de vinho e cerveja. Realmente não estava disposto a deixar que os freqüentadores daquela outra taberna soubessem de sua chegada.

Por um instante, imaginou-se correndo de todos aqueles cães uivando e rosnando pelas fendas do cercado. Foi então que se levantou. O céu parecia curvado sobre sua cabeça, cada vez mais escuro. E lá atrás? Lá atrás, em seu mundo... O que estaria acontecendo? Algum desastrezinho de automóvel na rua central de Oatley? Quem sabe o início de uma bela enchente, de um bonito incêndio? Que fossem para o diabo!

Jack foi se afastando em silêncio da estalagem, caminhando entre o matagal que rodeava a trilha. A uns 60 metros de distância, velas muito grossas ardiam nas janelas de outra casa, a única que ele podia ver além da estalagem. De algum lugar não muito distante à sua direita, vinha um cheiro de porcos.

Quando cobriu metade da distância entre a estalagem e a casa, os cães pararam de rosnar e de latir. Lentamente, então, Jack Sawyer deu início a uma nova caminhada para a Estrada do Oeste. A noite era escura e sem lua.

Jerry Bledsoe.

 

Havia outras casas, que ele só conseguiu distinguir quando já se encontrava bem próximo delas. Excluindo os barulhentos beberrões da estalagem que ia ficando para trás, ali, nos campos dos Territórios, as pessoas dormiam quando o sol se punha. As velas não ardiam mais naquelas pequenas janelas quadradas. De forma simples e melancólica, as casas nas margens da Estrada do Oeste manti­nham-se num insólito isolamento. Como se houvesse alguma coisa errada na distribuição do espaço. Como num jogo visual de uma revista infantil (mas Jack não conseguia identificar os sete erros). Sem dúvida, não havia nada de cabeça para baixo, nada incandescente, nada extravagantemente fora de lugar. A maioria das casas possuía telhados grandes, espessos, telhados que lembravam montes de feno aparados à escovinha. Jack presumia que fossem telhados de sapê, um estilo local. Já ouvira falar daqueles vastos telhados rurais, mas era a primeira vez que os via.

Morgan, ele pensou com uma repentina sensação de pânico. Morgan de Orris! Era como se visse os dois na sua frente. Um homem de cabelos longos e botas de couro e um homem de rosto suado, obcecado pelos negócios: o ex-sócio do pai. Por um momento os dois chegaram a se embaralhar em sua cabeça. O olho de sua mente viu Morgan Sloat com um comprido cabelo de pirata caminhando pela estrada. Mas Morgan, pelo menos o Morgan que ele conhecia, não era o que havia de errado naqueles campos.

Jack passava agora por uma cabana pequena e atarracada, ainda em construção. Escorada em tra­ves de madeira em forma de xis, parecia uma enorme coelheira. O grosso telhado de sapê já fora devidamente instalado. Se estivesse saindo de Oatley (correndo de Oatley seria mais exato), o que esperaria ver na escuridão da única janela daquela vivenda para coelhos gigantes? E claro! A cintilação de uma tela de TV. Mas, obviamente, nos Territórios as casas não tinham aparelhos de televisão. O que o confundia, po­rém, não era a ausência daquela cintilação colorida. Era alguma outra coisa, uma coisa tão necessária que sua inexistência deixava um buraco na paisagem. A pessoa era capaz de notar o buraco mesmo que não conseguisse identificar o que estava faltando.

Televisão, aparelhos de televisão... Jack ultrapassou a pequena casa semiconstruída e viu diante dele outra pequena e estranha habitação, a porta da frente a poucos centímetros da margem da estrada. Aquela parecia ter um telhado de tijolos primitivos, não de sapê, e Jack sorriu consigo mesmo. O lugarejo que atravessava o fez lembrar-se de Hobbiton, nos Estados Unidos. Seria possível que uma camioneta de uma firma de TV por cabo estacionasse ali em frente e dissesse a uma senhora na janela da... choça... choupana: “Ei, madame, estamos instalando televisões por cabo nesta área, e por uma pequena taxa mensal, que em nada vai comprometer seu orçamento doméstico, a senhora terá ao seu dispor 15 novos canais com programas fabulosos, uma excelente cobertura esportiva e várias emissoras que transmitem dia e noite. Poderá ver...”?

E então ele percebeu a coisa. Na frente daquelas casas não havia postes! Nem fios! Nem antenas de TV complicando a visão do céu! Ao longo da Estrada do Oeste não havia postes de madeira porque não havia eletricidade nos Territórios. Aquele era o elemento cuja ausência parecera tão difícil de identificar. E quanto a Jerry Bledsoe...

Jerry fora, pelo menos durante muito tempo, eletricista e auxiliar geral da Sawyer & Sloat.

 

Quando seu pai e Morgan Sloat citaram aquele nome, Bledsoe, ele achou que nun­ca o ouvira antes. Talvez já tivesse ouvido falar uma ou duas vezes no eletricista, mas Jerry Bledsoe era quase sempre apenas Jerry, como aliás estava escrito no bolso de seu macacão. “Será que o Jerry não pode dar um jeito no ar-condicionado?” “Mande o Jerry lubrificar as dobradiças daquela porta. Este lugar está parecendo mal-assombrado.” E o Jerry logo comparecia, o macacão limpo e muito bem passado, o cabelo castanho-claro bastante cheio, os óculos de aros redondos dando-lhe ao rosto um certo ar de aus­teridade. Em silêncio, consertava o que estava enguiçado. Havia uma Sra. Jerry, que tirava as manchas de graxa e fazia muito bem o vinco nas roupas do marido. Havia ainda inúmeros pequenos Jerrys, de quem a Sawyer & Sloat invariavelmente se lembrava por ocasião do Natal. Na época, Jack era muito criança e as­sociara o nome Jerry com o eterno adversário do gato Tom. Às vezes imaginava o eletricista morando com a Sra. Jerry e os pequenos Jerrys numa gigantesca casa de rato, acessível apenas por um buraco redondo cavado num rodapé.

Mas quem matara Jerry Bledsoe? Seu pai e Morgan Sloat, sempre tão carinhosos com os filhos dele na época do Natal?

Jack continuou seguindo a escuridão da Estrada do Oeste, procurando esquecer o eletricista da Sawyer & Sloat, querendo encontrar de novo o sofá do escritório do pai, engatinhar para detrás dele e dormir. Queria dormir e se desligar dos incômodos pensamentos que aqueles fatos de seis anos atrás des­pertavam dentro dele. Prometeu a si mesmo que, assim que se distanciasse pelo menos três quilômetros da última casa, buscaria algum lugar para dormir. Um trecho de relva, até uma vala serviriam. Suas pernas não queriam mais avançar; e todos os músculos (até mesmo os ossos) pareciam duas vezes mais pesados que ele.

Foi num daqueles dias em que Jack não parava de andar atrás do pai... De repente, descobriu sim­plesmente que Phil Sawyer desaparecera. Com o correr do tempo, o pai começou a se evaporar do quar­to, da sala de jantar, da sala de reuniões da Sawyer & Sloat. Certa vez, executou seu truque de mágico na garagem da casa da Rodeo Drive.

Sentado sozinho numa pequena elevação do jardim (a coisa mais próxima de uma colina que ha­via em sua rua), Jack viu o pai sair de casa pela porta da frente, atravessar o gramado revirando os bolsos (para ver se não esquecera o dinheiro ou as chaves) e entrar na garagem pela porta lateral. A grande porta branca por onde o carro saía devia ter se levantado segundos depois. O problema é que continuou obstinadamente fechada. Então Jack percebeu que o carro estava onde o pai o deixara no início daquela ma­nhã de sábado: ou seja, no meio-fio, bem em frente à casa. O carro da mãe já se fora. Enfiando um cigarro entre os lábios, Lily anunciou que ia rodar umas cenas de Vereda sombria, o último filme do diretor de Noiva da morte, e não tinha tempo nem para piscar um olho. Depois, a garagem tinha ficado vazia. Durante alguns minutos, Jack esperou que alguma coisa acontecesse. Mas nem a porta lateral nem a grande porta da frente se abriram. Finalmente, ele escorregou do monte de grama, foi até a garagem e entrou. Aquele amplo espaço, que conhecia tão bem, estava inteiramente deserto. Manchas de óleo escureciam o chão de cimento; as ferramentas continuavam presas nos ganchos da parede. Mas não havia ninguém. Jack deixou escapar uma exclamação de espanto e chamou: “Papai?”. Depois olhou de novo ao redor, apenas para ter certeza. Dessa vez viu um grilo saltar para a sombra de uma parede e, por uma fração de segundo, quase chegou a acreditar que bruxarias existiam mesmo, que algum feiticeiro malvado estivera escondido na garagem e... O grilo deu um novo salto e sumiu por algum buraco. Não, o pai não podia ter se transformado num grilo. É claro que não! “Ei!”, chamou o garoto... Mas foi como se falasse consigo mesmo. Caminhou para a porta lateral e saiu da garagem. O sol banhava os exuberantes gramados de pri­mavera da Rodeo Drive. Teve vontade de chamar alguém, mas quem? A polícia? Meu pai entrou na gara­gem. E como não consigo encontrá-lo lá dentro, estou assustado...

Duas horas mais tarde, Phil Sawyer veio andando da esquina da rua. Trazia o paletó no ombro e ti­nha afrouxado o laço da gravata. Aos olhos de Jack, parecia um homem retornando de uma viagem de volta ao mundo.

Ansioso, Jack saltou da elevação do jardim e correu para o pai.

— Ei, garoto! Você é um corredor e tanto! — disse o pai sorrindo e, por um instante, Jack parou como uma estátua na frente dele. — Achei que estava tirando uma soneca, Jack Viajante!

Quando subiam o caminho do jardim, ouviram o telefone tocar, e algum instinto (talvez o instinto de manter o pai perto dele) fez Jack dizer que o telefone já tocara mais de uma dúzia de vezes e que a pessoa ia desligar antes que chegassem à porta da sala. Mas com a mão grande e quente, o pai tirou o ca­belo da testa e da nuca, foi correndo até a porta e se aproximou do telefone em cinco longas passadas.

— Sim, Morgan! — Jacky ouviu o pai dizer. — Oh? Más notícias? É melhor contar de uma vez, rapaz...

Após um longo momento de silêncio (em que o menino pôde ouvir o som abafado e rangente d; voz de Morgan Sloat escapando pelo fio), o pai respondeu:

— Oh, Jerry... Meu Deus! Pobre Jerry! Já estou indo para aí!

Então o pai olhou em sua direção, sem sorrir, sem piscar, sem fazer nada além de olhar o vazio.

— Não vou demorar, Morgan! Tenho de levar Jack, mas ele pode ficar esperando no carro.

Jack sentiu os músculos relaxarem. Foi um tamanho sentimento de alívio que nem se preocupou em perguntar por que ia ficar esperando no carro (preocupação que normalmente não deixaria de ter).

Phil dirigiu o carro até o Hotel Beverly Hills, virou à esquerda na Rua Sunset, e foi direto para o prédio de escritórios. Não falou nada durante todo o trajeto.

Ziguezagueando por um tráfego intenso, Phil Sawyer parou o carro numa vaga do estacionamento ao lado do edifício. No local, já havia dois carros da polícia, um carro de bombeiros, o pequeno Mercedes conversível do tio Morgan e um velho e enferrujado Plymouth de duas portas. Era o carro do eletricista. Logo na entrada do prédio, o tio Morgan falava com um policial. O policial balançava lentamente a cabeça, com um evidente ar de simpatia. O braço direito de Morgan Sloat apertava o ombro de uma mulher jovem e pequena. Ela usava um vestido muito largo e tinha o rosto curvado sobre o peito. A mulher de Jerry, Jack soube de imediato, observando que a maior parte de seu rosto permanecia oculta por um lenço branco apertado contra os olhos. Um bombeiro de chapéu e capa impermeável carregava metal e plástico retorcidos, cinzas e lascas de vidro, colocando-os numa espécie de trouxa depositada no chão do vestíbulo.

— Só vai ter de esperar um minutinho, está bem, Jacky? — disse Phil correndo para a entrada.

Junto a um pilar de concreto nos limites da área de estacionamento, uma jovem chinesa conversa­va com um policial. Ao lado dela havia a ponta de alguma coisa que Jack demorou um pouco para identi­ficar como uma bicicleta. Respirando mais fundo, sentiu um cheiro amargo de fumaça.

Vinte minutos depois, o pai saiu do edifício com o tio Morgan. Sempre abraçando a Sra. Jerry, o tio Morgan deu adeus para os Sawyers. Depois, abriu a porta do Mercedes conversível para a mulher de Jerry entrar. Phil Sawyer fez uma manobra no estacionamento e voltou para o trânsito da Rua Sunset.

— Aconteceu alguma coisa com o Jerry? — Jack perguntou.

— Um acidente terrível, filho — disse o pai. — Um curto-circuito. Todo o edifício podia ter pegado fogo.

— E aconteceu alguma coisa com o Jerry? — o menino repetiu.

— O pobre-coitado ficou tão machucado que acabou morrendo — o pai respondeu.

Jack e Richard Sloat levaram dois meses para conseguir compor toda a história a partir das conver­sas que ouviam. A mãe de Jack e a governanta de Richard forneceram alguns detalhes (os mais sangrentos couberam à governanta).

Jerry Bledsoe fora até o escritório num sábado. Tinha de resolver alguns problemas do sistema de segurança do prédio. Se tivesse escolhido um dia de semana para trabalhar com o delicado sistema, sem dúvida assustaria ou irritaria as pessoas com a barulheira dos alarmes que, vez por outra, teriam de ser tes­tados. O sistema de segurança estava conectado ao sistema elétrico central do edifício, oculto atrás de duas enormes paredes de madeira do andar térreo. Carregando o estojo de ferramentas, Jerry entrou no compartimento do sistema. Já verificara que o prédio estava vazio e tinha certeza de que ninguém morre­ria de susto quando o alarme começasse a tocar. Fora também à pequena cabine telefônica do subsolo para pedir à delegacia policial do bairro que ignorasse qualquer alarme da Sawyer & Sloat até que ele tele­fonasse outra vez. Quando voltou ao andar térreo para desligar as conexões dos fios do vestíbulo, uma moça de 23 anos, chamada Lorette Chang, pedalava sua bicicleta em direção à área de estacionamento (estava distribuindo folhetos com o anúncio de um restaurante que seria inaugurado na rua daí a 15 dias).

Mais tarde a Srta. Chang contou à polícia que deu uma espiada pelo vidro da porta da frente e viu um homem de macacão entrar no vestíbulo. Vinha do subsolo. Assim que o homem pegou a chave de fenda e tocou num painel elétrico, ela teve a sensação de que todo o pátio de estacionamento estava tre­mendo. Era, ela pensou, um miniterremoto. Morando há muito tempo em Los Angeles, Lorette Chang não se deixava mais perturbar pelos pequenos abalos sísmicos, que não faziam ninguém cair na rua nem se machucar. Viu Jerry Bledsoe firmar os pés (então ele também tinha sentido o tremor, embora ninguém mais na cidade o tivesse notado). Viu-o sacudir a cabeça e introduzir suavemente a ponta da chave de fenda numa colméia de fios.

E foi nesse momento que o saguão e o grande corredor do prédio da Sawyer & Sloat se transforma­ram num holocausto.

Todo o painel elétrico converteu-se instantaneamente num sólido e retangular corpo de fogo; re­lâmpagos em forma de arcos amarelos atingiram e envolveram as roupas de Jerry. Sirenes eletrônicas começaram a gemer sem parar: uam-uam-uam-uam-uammmm! uam-uam-uam-uam-uammm! Uma bola de fogo com dois metros de altura subiu pela parede, sacudiu o corpo já sem vida de Jerry e investiu para o fundo do corredor. A porta da frente explodiu numa torrente de estilhaços de vidro, fumaça, pedaços retorcidos da armação de ferro.

Lorette Chang largou a bicicleta e correu para o telefone público do outro lado da rua. Quando for­neceu aos bombeiros o endereço do prédio e viu sua bicicleta toda retorcida por causa da força da explo­são da porta, o cadáver carbonizado de Jerry Bledsoe ainda era sacudido para todos os lados pela voltagem do painel. Milhares de volts atravessavam-lhe o corpo, contorciam-no em súbitos safanões, faziam-no oscilar para trás e para a frente num ritmo quase regular. Os cabelos do corpo do eletricista e a maior par­te de suas roupas foram verdadeiramente fritados, a pele se transformou numa pasta cinzenta, cozida à exaustão. E os óculos viraram um sólido tablete de plástico marrom, cobrindo-lhe o nariz como um cata­plasma.

Jerry Bledsoe. Por que acontecem essas coisas, papai? Jack já conseguira fazer seus pés se arrasta­rem por meia hora sem ver mais nenhuma das pequenas choupanas com telhados de sapé. Estrelas que ele não conhecia, formando padrões que não lhe eram familiares, enchiam todo o céu... como mensagens escritas numa língua que ele não soubesse ler.

 

JACK VAI AO MERCADO

Naquela noite, Jack dormiu num monte de feno suavemente perfumado dos Territórios. Primeiro ajeitou o feno para ter uma cama mais confortável, depois tentou achar uma posição que lhe permitisse aproveitar o ar fresco da noite. Ficou apreensivamente atento a pequenos sons rastei­ros; ouvira ou lera em algum lugar que certos ratos gostavam muito de freqüentar os montes de feno. Mas se houvesse algum por ali, certamente um camundongo bem maior que eles, chamado Jack Sawyer, dei­xara-os bastante assustados, reduzindo-os a um silêncio absoluto. Aos poucos foi relaxando, a mão es­querda sentindo o contorno da garrafa de Speedy. Tinha envolvido a rolha com um punhado de musgo seco, encontrado na margem de um pequeno regato onde parara para beber água. Achava muito provável que algumas hastes do musgo acabassem caindo, ou já tivessem caído, dentro da garrafa. Quem sabe não amenizariam um pouco o sabor picante e o delicado aroma de uvas apodrecidas?

Tentou se aconchegar no feno, sentindo o corpo cada vez mais pesado de sono. A sensação, po­rém, que mais o agradava era de alívio... como se estivesse carregando uma mochila de uma tonelada nas costas e alguma alma caridosa soltasse as correias para deixá-lo cair sobre aquele feno. Estava de novo nos Territórios, o lugar onde havia gente de nomes fascinantes como Morgan de Orris; Osmond, o Chicoteador; e Elroy, o Espantoso Homem-Coisa... Os Territórios, onde tudo podia acontecer!

Mas os Territórios também podiam ser generosos. Sabia disso desde que era muito criança, quando todo mundo morava na Califórnia e ninguém queria morar em nenhuma outra parte. Os Territórios podiam ser bons, e naquele momento, por exemplo, ele era capaz de sentir essa bondade à sua volta. Uma benevolência calma, doce como o perfume do feno, límpida como o cheiro do ar.

Será que uma mosca ou uma joaninha sentiam a mesma dose de alívio quando uma inesperada rajada de vento subjugava de tal forma a planta carnívora que ela se via obrigada a abrir suas garras para deixar o inseto escapar? Jack não sabia... Mas sabia como se sentia bem por estar longe de Oatley, longe do Clube dos Amigos da Esquina, de velhos que choravam para defender carrinhos vazios de supermercado, longe do cheiro de cerveja e do cheiro de vômito... E, principalmente, longe de Smokey Updike e da Taberna Oatley.

Achou que, ao menos por algum tempo, poderia viajar em paz pelos Territórios.

E, pensando assim, adormeceu.

 

Na manhã seguinte, já havia andado três ou quatro quilômetros pela Estrada do Oeste (desfrutando o sol e o gostoso cheiro de campos quase prontos para a colheita do fim do verão) quando uma carroça se aproximou e um camponês de longas costeletas, vestindo uma espécie de toga enfiada em calções largos, gritou:

— Ei, está indo para o mercado, garoto?

Jack abriu a boca, meio em pânico, percebendo que o homem não estava falando inglês (não era um inglês arcaico, não era absolutamente inglês de espécie alguma), mas ele conseguira entender perfei­tamente a pergunta.

Na carroça, ao lado das costeletas do camponês, havia também uma mulher num volumoso vesti­do. Tinha no colo uma criança de uns três anos de idade. Sorriu com simpatia para Jack e voltou os olhos para o marido:

— Ele parece meio tímido, Henry.

Não estão falando inglês... Mas seja lã qual for essa língua, consigo entendê-la muito bem. Na realidade, estou até pensando nesse idioma... E tem mais: estou vendo as coisas na língua dos Territórios, com os nomes dessa língua, mesmo que não saiba explicar nem a mim mesmo exatamente o que estou sentindo.

Jack descobriu que acontecera a mesma coisa da última vez que estivera nos Territórios. Só que naquela primeira jornada estava confuso demais para perceber o que se passava; tudo ocorrera depressa demais, e tudo lhe parecera estranho.

O camponês inclinou a cabeça. Sorriu mostrando dentes absolutamente horríveis.

— Será que é mesmo tão tímido assim, garoto? — ele perguntou num tom cordial.

— Não — Jack respondeu, procurando devolver o sorriso, consciente de que em vez de dizer não emitira algum fantástico som da língua dos Territórios. Percebeu que quando “atravessava”, mudava sua fala e seu modo de pensar (pelo menos seu modo de apreender as coisas — ele não tinha essa palavra em seu vocabulário, mas mesmo assim compreendia o sentido geral), do mesmo modo como as roupas se transformavam em seu corpo. — Não tenho nada de tímido. O problema é que minha mãe me disse para ter cuidado com as pessoas que encontrasse pelo caminho.

Agora, a esposa do camponês sorriu:

— E sua mãe tem razão — disse ela. — Vai para o mercado?

— Sim — disse Jack. — Isto é, estou seguindo a estrada... na direção do oeste.

— Suba aí atrás, garoto! — disse Henry, o camponês. — Não se pode perder a luz do dia. Quero vender o que trouxe comigo e chegar em casa antes do anoitecer. O milho não é dos melhores, mas esta­mos no fim da estação. Sem dúvida podemos nos dar por muito felizes por ainda termos milho no nono mês. E sempre haverá quem queira comprá-lo.

— Obrigado — disse Jack subindo na traseira da carroça. Viu dezenas de sacos de milho, amarra­dos com rudes pedaços de corda e empilhados como lenha. Se o milho não era dos melhores, então Jack não podia imaginar o que seria considerado um bom milho nos Territórios: eram as maiores espigas que já vira em toda a sua vida. Havia também pequenos montes de abóboras, ervilhas e coisas que lembravam grandes laranjas: mas eram vermelhas, em vez de alaranjadas. Mesmo sem saber o que eram, Jack descon­fiava que deviam ter um sabor excelente. Seu estômago roncava sem parar. Desde que começara a seguir a estrada, descobrira como estava faminto. Não era uma sensação de fome comum, do tipo que sentimos depois da aula e que pode ser perfeitamente controlada com alguns biscoitos e um copo de Toddy. Era uma coisa mais profunda, uma ânsia de comida que às vezes amortecia um pouco, mas nunca o abando­nava totalmente.

Estava sentado de costas para a frente da carroça, as sandálias balançando nos pés, quase tocando o barro da Estrada do Oeste. Havia muito movimento naquela manhã. Jack presumiu que a maioria das carroças e pessoas fosse para o mercado. De vez em quando, Henry berrava um cumprimento para algum conhecido.

Jack ainda estava curioso para descobrir o sabor daquelas coisas parecidas com laranjas mas com cor de maçã (e curioso para saber onde encontraria uma boa refeição), quando pequenas mãos lhe agarraram o cabelo e deram um forte puxão — forte o bastante para deixar seus olhos rasos d’água.

Ele virou a cabeça e viu um menino de três anos, descalço e de pé, um grande sorriso no rosto e al­guns fios de cabelo nas mãos.

— Jason! — a mãe gritou, mas não deixava de ser um grito bastante tolerante (Viu como puxou o cabelo do rapaz? É incrível como está forte!) — Jason, não faça mais isso!

Sem se deixar abalar, Jason abriu um novo sorriso. Foi um sorriso grande, luminoso e ingênuo, doce como o cheiro do feno onde Jack tinha passado a noite. Ele também sorriu e, embora não tivesse sido uma atitude calculada, percebeu que conquistara a amizade da mulher de Henry.

— Ti — Jason exclamou, jogando o corpinho de um lado para o outro num movimento inconsciente de um velho marinheiro. Ainda sorria para Jack.

— Hã?

— Bum!

— Não estou entendendo, Jason.

— Ti-bum...

— Não estou...

E então Jason, sorridente e bastante robusto para os seus três anos de idade, jogou-se no colo de Jack.

Ti-BUM! Oh, sim, agora entendi!, Jack pensou, sentindo uma dor lhe subir dos testículos para a boca do estômago.

— Jason, que coisa feia! — a mãe repreendeu de novo naquele mesmo tom macio. (Ele não é uma graça?) Jason, que sabia quem estava no comando da situação, limitou-se a insistir no sorriso doce, sim­pático, inocente.

Jack Sawyer percebeu que Jason estava molhado. Muito, extremamente, indiscutivelmente molhado!

Bem-vindo outra vez aos Territórios, Jack!

E, sentado ali, com o menino nos braços e uma umidade quente se filtrando pelas roupas, Jack co­meçou a rir, o rosto levantado para o céu muito azul.

 

Daí a alguns minutos, a mulher de Henry se aproximou de Jack e pegou o filho.

— Ooh, molhado! Mas que menino mau! — disse ela, sempre tolerante.

Ele não fica uma gracinha molhado?, Jack pensou e riu de novo. Jason também riu e a Sra. Henry juntou-se aos dois.

Enquanto trocava a fralda de Jason, fez algumas perguntas a Jack — as mesmas que ele ouvira com tanta freqüência em seu próprio mundo. Mas nos Territórios teria de ser ainda mais cuidadoso. Era um es­trangeiro e seria fácil cair em alguma armadilha. Ouviu o pai conversando com Morgan... Um verdadeiro estrangeiro, percebe o que estou querendo dizer?...

Jack viu que a mulher do camponês o ouvia atentamente. Respondeu às perguntas com uma cautelosa versão da história que contava nos Estados Unidos (não a que contava ao se candidatar a um emprego, mas a história reservada para os motoristas que lhe davam carona).

Disse que tinha vindo da Aldeia de All-Hands — a mãe de Jason tinha uma vaga lembrança de ter ouvido falar do lugar, mas isso era tudo. Vinha realmente assim de tão longe? Era incrível! Jack confirmou com a cabeça. E qual era o seu destino? Ele disse (Henry escutava em silêncio) que estava a caminho da Aldeia da Califórnia. Desta ela ainda não ouvira falar, nem mesmo vagamente, nem mesmo nas histórias dos vizinhos mais tagarelas. Jack não ficou muito espantado por não conhecerem a “aldeia”, mas deu gra­ças a Deus por não ter ouvido Henry exclamar: “Califórnia? Será que alguém já ouviu falar de uma aldeia chamada Califórnia? Quem está tentando enganar, guri?”. Nos Territórios, devia haver muitos lugares — regiões e aldeias — de que as pessoas que viviam em áreas distantes jamais tinham ouvido falar. Não ha­via postes nem fios. Nem eletricidade. Nem cinemas. Nem TV para informá-los das coisas maravilhosas que existiam em Malibu ou Sarasota. Não havia telefones, nem chamadas interurbanas com tarifas reduzi­das nos fins de semana e depois das oito da noite. Vivem num mundo misterioso, ele pensou. Quando se vive num mundo misterioso, não se duvida da existência de uma aldeia simplesmente por nunca se ter ou­vido falar dela. Califórnia não soa mais estranho que um lugar chamado All-Hands.

Eles não duvidaram de nada. Jack contou que o pai morrera há um ano, e que a mãe estava muito doente (pensou em acrescentar que os homens do serviço de reintegração de posse da rainha tinham vin­do no meio da noite e levado o único jumento que possuíam, mas achou melhor omitir essa parte). Sua mãe lhe dera algum dinheiro (só que, na estranha língua dos Territórios, a palavra não era dinheiro, mas alguma coisa parecida com varas) e o mandara para a Aldeia da Califórnia, onde devia morar com a tia Helen.

— Os tempos estão difíceis — disse a Sra. Henry, apertando Jason, agora de fralda limpa, de en­contro ao peito.

— All-Hands fica perto do palácio de verão, não é, rapaz?

Era a primeira vez que Henry falava desde que o convidara a subir na boléia.

— Sim — disse Jack. — Isto é, razoavelmente perto, eu acho...

— Você não disse do que seu pai morreu.

Henry tinha virado a cabeça. O olhar era estreito, um olhar de avaliação. A benevolência anterior desaparecera (apagada como chama de vela ao vento). Sim, havia armadilhas ali.

— Ele estava doente? — a Sra. Henry perguntou. — Há tanta coisa ruim nos dias de hoje... Lepra, peste... São tempos difíceis.

Por um momento de descontrole, Jack pensou em dizer: Não, ele não estava doente, Sra. Henry. Morreu de um choque de milhares de volts. Imagine que saiu numa manhã de sábado para fazer um con­serto e deixou a Sra. Jerry e todos os pequenos Jerrys — inclusive eu— em casa. Morávamos num buraco do rodapé e ninguém queria morar em outro lugar, imagine a senhora! Sabe o que aconteceu? Enfiou a chave defenda num monte de fios e a Sra. Feeny, a governanta da casa de Richard Sloat, ouviu o tio Mor­gan falando ao telefone e ele disse que houve uma explosão de eletricidade, de toda a eletricidade do pré­dio. O homem ficou cozido, tão bem cozido que os óculos se colaram no nariz... O problema é que a senho­ra não sabe o que são óculos porque não existem óculos por aqui. Nem óculos... nem eletricidade... nem televisão... nem aviões. Não queira acabar como a Sra. Jerry, Sra. Henry. Não queira...

Não importa se ele estava doente — disse o camponês de longas costeletas. — Ele era político?

Jack virou o rosto para Henry. Sua boca se moveu, mas não emitiu qualquer som. Não sabia o que dizer. Havia armadilhas demais naquela conversa.

Henry fez um movimento de compreensão, como se Jack tivesse respondido.

— Pode saltar, rapaz! O mercado fica depois da próxima lombada. Acho que pode andar daqui até lá, não pode?

— Sim — disse Jack. — Acho que sim.

A Sra. Henry parecia confusa, mas tentava agora manter Jason o mais longe possível de Jack, como se ele tivesse alguma doença contagiosa.

Olhando por cima do ombro, o camponês sorriu um tanto pesaroso e disse:

— Sinto muito. Você parece um bom rapaz, mas somos pessoas simples. O que está acontecendo perto do mar são problemas que só aos grandes senhores cabe discutir. Não sei se a rainha vai morrer ou não... E, sem dúvida, um dia terá de morrer. Mais cedo ou mais tarde, a mão de Deus alcança todo mun­do. E quando gente humilde se mete nos problemas dos poderosos, sai sempre muito machucada.

— Meu pai...

— Não quero saber o que houve com seu pai! — disse Henry num tom áspero. A mulher se afastou ainda mais de Jack, sempre segurando Jason de encontro ao peito. — Não sei e não quero saber se foi um homem bom ou mau. O que sei é que é um homem morto, acho que você não mentiu sobre isso... O que sei é que o filho dele vem passando por maus momentos e está pensando em alguma artimanha. Você não tem o jeito de quem diz a verdade, garoto! Portanto, desça! Tenho um filho, como está vendo, e não posso me meter em enrascadas.

Jack saltou, lamentando o medo que via no rosto da mulher; um medo que ele, Jack Sawyer, puse­ra em seus olhos. O camponês tinha razão. Gente humilde não se mete nos assuntos dos poderosos, as­sim como crianças não se metem nos assuntos dos adultos. Ao menos quando são inteligentes.

 

OS HOMENS NO CÉU

Foi um choque descobrir que os dólares que ganhara com tanto sacrifício tinham li­teralmente se convertido em “varas”. E essas “varas” pareciam bengalas tortas ou cobras de brinquedo fei­tas por um artesão inexperiente.

Mas o choque só durou um momento e ele acabou rindo sozinho. Afinal, as “varas” eram dinheiro. Quando atravessava para os Territórios, tudo se transformava. Dólares de prata viravam moedas com o perfil da rainha, camisas se tornavam gibões, o inglês se transformava numa língua estranha, e a boa moe­da americana em... bem, em “varas”. Saíra dos Estados Unidos com cerca de 22 dólares e achava que de­via ter uma soma equivalente na moeda dos Territórios (embora tenha contado 14 “nós” numa das “varas” em forma de cobra e mais de 20 na outra).

O problema é que não tinha idéia do custo de vida nos Territórios. Não sabia muito bem o que era barato ou caro e, caminhando pelo mercado, sentia-se como um participante de um programa de TV chamado Qual é o preço?. A única diferença era que ali, se errasse, não teria um animador do seu lado para lhe dar um tapinha nas costas e um prêmio de consolação. Ali, se errasse, podia... bem, não tinha certeza do que podia lhe acontecer. Podiam enganá-lo; podiam achar que ele estava tentando enganar e ridicularizar os outros. Podiam correr atrás dele, quem sabe machucá-lo, espancá-lo? Quem sabe...? Será que iam querer matá-lo? Provavelmente não, mas era impossível ter certeza absoluta. Eram pessoas sim­ples. Não eram políticos. E ele... era um estrangeiro.

Caminhava lentamente de uma ponta à outra da barulhenta e agitada multidão que enchia o mercado. Seus problemas passaram a se concentrar principalmente no estômago: sentia uma fome terrível. Junto a uma barraca, viu Henry pechinchando com um homem que vendia bodes. A Sra. Henry permanecia ao lado dele, mas um pouco atrás, abrindo espaço para a gesticulação do marido. Estava de costas para Jack, o bebê suspenso no colo. Jason, um dos pequenos Henrys, Jack pensou — e Jason o viu. O menino sacudiu uma mão gorducha para Jack, mas Jack se virou num movimento brusco, pondo o máximo de gente possível entre ele e os Henrys.

Em toda parte parecia haver cheiro de churrasco. Viu vendedores girarem lentamente pedaços de carne sobre brasas de carvão; viu meninos estenderem fatias grossas de carne de porco sobre rodelas de pão caseiro e passarem os sanduíches abertos para os fregueses. Os vendedores tinham a agitação de leiloeiros modernos, embora a maioria dos homens que enchiam a feira fosse constituída de camponeses como Henry. A clientela escolhia as mercadorias como se fizesse lances de valores diversos: erguiam im­periosamente uma das mãos, os dedos espalmados. Jack observou de perto inúmeras transações e, em cada caso, o meio de troca foram sempre as varas marcadas de nós... Mas quantos nós seriam necessários para comprar uma coisa ou outra? Ele não sabia. Se bem que já não se preocupava muito com isso. Tinha de comer, mesmo que ao fazer alguma compra o identificassem como estrangeiro.

Passou por um grupo de saltimbancos, mas quase não os viu, embora a grande platéia ali reunida (formada principalmente de mulheres e crianças) explodisse em risos e aplausos. Encaminhou-se para uma tenda com paredes de lona onde, ao lado de uma vala escavada na terra e cheia de brasas fumegan­tes de carvão, havia um homem corpulento, com tatuagens nos grandes músculos do braço. Um espeto de ferro com mais de dois metros de comprimento se estendia pelas brasas. Em cada ponta do espeto ha­via um garoto suado e sujo. Cinco pedaços enormes de carne torravam no espeto que os garotos faziam rodar num movimento sincronizado.

— Olha a carne! — gritava o homem. — A melhor carne! A melhor carne! Olha a carne! A mais gos­tosa de todo o mercado!

De repente, o homem virou-se e disse em voz baixa para o garoto que estava mais perto.

— Rode mais depressa esse espeto, rapaz! Mais depressa!

Depois voltou à monótona gritaria de seu pregão.

Um camponês passando com uma filha adolescente ergueu a mão e apontou para o segundo pe­daço de carne a contar da esquerda. Os garotos pararam de rodar o espeto e o patrão cortou uma fatia do churrasco. Depois, colocou-a sobre uma rodela de pão. O sanduíche aberto foi servido ao freguês, que ti­rou do bolso uma “vara” com nós. Olhando mais de perto, Jack viu-o quebrar dois nós da madeira e dá-los a um dos garotos. Quando o garoto voltou para junto da tenda, o freguês tornou a guardar no bolso o que sobrara da vara de dinheiro. Era o gesto automático, mas cuidadoso, de alguém que guardava o troco no bolso. Depois o freguês deu uma mordida gigantesca no “sanduíche” e passou o resto às mãos da fi­lha (cuja primeira dentada foi quase tão entusiástica quanto a do pai).

O estômago de Jack chiava e rangia. Já tinha visto o que queria ver. Assim esperava...

— A melhor carne! A melhor carne! Olha...

O homem se interrompeu e baixou os olhos para Jack. As sobrancelhas se franziram (os olhos eram pequenos, mas não inteiramente estúpidos).

— Acho que seu estômago está roncando, amigo! Se tiver dinheiro, vou lhe dar um bom pedaço e pedir a Deus pela sua saúde quando rezar hoje à noite. Mas se não tiver, tire sua estúpida cara de cabrito de perto de mim e vá para o diabo!

Os dois garotos do espeto riram, embora estivessem visivelmente cansados. Riram como se não ti­vessem controle sobre os sons que emitiam.

Mas o cheiro enlouquecedor do churrasco que assava lentamente não deixou Jack ir embora. Ele tirou do bolso a mais curta de suas varas com nós e apontou para o segundo pedaço de carne a contar da esquerda. Não falou nada. Talvez fosse melhor assim. O vendedor resmungou alguma coisa, tornou a tirar o facão afiado do cinturão de couro e cortou uma fatia. Era uma fatia menor do que a que dera ao campo­nês, mas o estômago de Jack não tinha mais tempo de se preocupar com esses detalhes: roncava furiosa­mente, numa ansiosa antecipação da comida.

O homem pôs a carne sobre a rodela de pão e entregou-a pessoalmente a Jack, dispensando qual­quer ajuda dos garotos. Depois pegou a vara-dinheiro de Jack Sawyer. Em vez de dois nós, ficou com três.

Cheia de sarcasmo, a voz de Lily Cavanaugh falou dentro da cabeça do filho: Parabéns Jack... Está deixando que o façam de bobo com a maior facilidade!

O negociante o encarava, abrindo um sorriso cheio de dentes estragados e negros, desafiando-o a dizer alguma coisa, a esboçar algum tipo de protesto: Devia se dar por satisfeito por eu só ter tirado três nós em vez de todos os 14 que você tem nessa vara. Eu podia ter feito isso, você sabe muito bem! É como se houvesse uma tabuleta pendurada no seu pescoço, rapaz! sou estrangeiro e estou sozinho aqui! Então me diga, cara de cabrito: quer mesmo criar um caso por causa disso?

O que Jack queria não importava. Obviamente, não podia criar nenhum caso. Mas sentiu outra vez aquela raiva difusa e impotente se erguer dentro dele.

— Vá embora — disse o vendedor, cansado de Jack. A mão enorme deu uma pancadinha no rosto de Jack. Os dedos eram muito ásperos, e havia sangue sob as unhas. — Já tem sua comida. Agora suma!

Jack pensou: Se eu lhe mostrasse uma lanterna elétrica, sairia correndo como se todos os demônios do inferno estivessem atrás de você. Se visse um avião, provavelmente iria enlouquecer. Talvez não seja tão valente quanto está pensando, amigo!

Ele sorriu, e talvez alguma coisa em seu sorriso não tenha agradado ao vendedor de churrasco. Com um indício momentâneo de nervosismo, o homem tirou os olhos de Jack. Mas logo as sobrancelhas tornaram a se franzir.

— Vá embora, estou dizendo! — ele rosnou. — Suma daqui, vá para o diabo!

E, dessa vez, Jack foi embora.

 

A carne estava deliciosa Jack devorou-a juntamente com o pão. Depois, num ato involuntário, lambeu o molho que caíra na palma da mão. A carne tinha gosto de carne de porco... e, no entanto, não era. Era algo mais suculento, de sabor mais forte que o da carne de porco. Fosse lá o que fosse, encheu o buraco de seu estômago com absoluta eficácia. Jack não se incomodaria de levar durante mil anos “sanduíches” daquela carne para o lanche na escola.

Agora que conseguira acalmar um pouco a barriga (ao menos por algum tempo), sentiu-se capaz de examinar o mercado com maior interesse... E embora não percebesse isso, tinha finalmente começado a se harmonizar com a multidão. Talvez agora fosse apenas mais um caipira que saíra de sua granja para fazer compras na feira da região, no “mercado”, como eles diziam. Passeou lentamente entre as tendas e as barracas, apreciando embasbacado tudo o que via. Para os mascates era apenas mais um possível freguês entre tantos outros. Gritavam, tentavam atraí-lo com gestos quando ele passava; depois repetiam a mesma coisa para quem viesse atrás: homem, mulher ou criança. Jack arregalava os olhos para os artigos que via à sua volta, coisas ao mesmo tempo fascinantes e estranhas. Mas entre tanta gente que também abria a boca diante de tudo, deixava de ser um forasteiro... Talvez porque tivesse decidido não mais se es­forçar para parecer entediado num lugar onde ninguém reagia com indiferença. Todos riam, discutiam, pechinchavam... mas ninguém dava mostras de tédio.

O mercado tinha alguma coisa do pátio fronteiro ao pavilhão da rainha. Mas não havia aquele ar de tensão e imponente agitação nervosa. As semelhanças, porém, estavam na mistura de odores extremamente rica (com a predominância das carnes assadas e da gordura animal), na mesma multidão com roupas coloridas (embora até os mais bem vestidos estivessem longe da ostentação dos dândis que vira nos arredores do pavilhão), na mesma insólita mas empolgante justaposição de coisas que lhe pareciam perfeitamente normais com as mais absurdas extravagâncias.

Parou numa barraca onde um homem vendia tapetes com o rosto da rainha cuidadosamente bordado. Jack se lembrou da mãe de Hank Scoffler e sorriu. Hank era um dos garotos com quem ele e Richard Sloat brincavam em Los Angeles. A Sra. Scoffler tinha uma predileção toda especial pelos mais exóticos artigos de decoração. Deus do Céu! Se visse aqueles tapetes com a imagem de Laura DeLoessian, o cabelo adornado com um diadema real e um coque de belas tranças, sem dúvida perderia o fôlego e o equilíbrio. Eram muito mais bonitos que as pinturas em veludo do Alasca ou os pequenos vasos de cerâmica com motivos geométricos que a mãe de Hank expunha nas estantes da sala.

Então o rosto bordado nos tapetes pareceu se modificar... A face da rainha desaparecera e o que Jack via agora era o rosto da mãe, repetido numa fileira infinita, os olhos muito negros, a pele excessivamente esbranquiçada.

A saudade assaltou-o de novo. Atravessou-lhe a mente como uma onda do mar e ele gritou por dentro: Mamãe! Ei, mamãe! Meu Deus, o que estou fazendo aqui? Mamãe!! Num ímpeto de muito amor, quis saber o que ela estaria fazendo naquele momento, naquele exato momento. Estaria sentada perto da janela fumando, olhando para o mar com um livro aberto do lado? Vendo televisão? Num cinema? Dormindo? Morrendo?

Morta?, uma voz cruel acrescentou antes que ele pudesse detê-la. Morta, Jack?Já estará morta?

Pare com isso!

Sentiu a ardência das lágrimas.

— Por que está tão triste, rapaz? Em que está pensando?

Jack levantou os olhos, assustado, e viu um vendedor de tapetes. Era tão corpulento quanto o ho­mem do churrasco e também tinha uma tatuagem no braço. Mas o sorriso era franco, jovial. Não transmi­tia maldade. E aquela era a grande diferença.

— Em nada — disse Jack.

— Se pensar em nada deixa você com essa cara, devia estar sempre pensando em alguma coisa, garoto!

— Minha cara está tão ruim assim? — Jack perguntou, sorrindo ligeiramente. Falara de uma forma quase involuntária e talvez por isso o vendedor não notou nada de estranho ou fora do normal no jeito dele.

— Rapaz, você parece que viu um lobisomem devorar o único amigo que tinha no mundo!

Jack sorriu. O vendedor de tapetes deu meia-volta e tirou alguma coisa da pequena vitrine à direita do tapete maior: era oval e tinha cabo curto. Ele girou a coisa e o sol faiscou através dela — era um espe­lho. Parecia um espelho pequeno e barato, daqueles que a pessoa pode ganhar num parque de diversões ao acertar uma argola na garrafa do fundo.

— Aqui está, garoto! — disse o vendedor de tapetes. — Dê uma olhada e veja se não tenho razão.

Jack olhou para o espelho e, por um momento, achou que seu coração parara de bater. Era ele! Só que parecia ter saído da Ilha dos Prazeres na versão que Walt Disney fez de Pinóquio (muita pólvora de espingarda e fumaça de charuto transformavam meninos em jumentos). Seus olhos, normalmente muito azuis e redondos por causa da herança anglo-saxônica, haviam se tomado castanhos e amendoados. O cabelo, emaranhado e caído na testa, adquirira o aspecto exato de uma juba. Jack ergueu uma das mãos para tirar alguns cachos da testa. No espelho, os dedos pareceram sumir entre os cabelos. Ouviu o vende­dor rir, um riso divertido. O mais surpreendente de tudo, o mais espantoso, é que orelhas compridas de jumento caíam até abaixo da linha de seu queixo. Concentrando-se melhor, viu uma delas se mexer.

Pensou de repente: eu já tive essas orelhas!

E depois disso: Nos sonhos de olhos abertos, eu já tive essas orelhas, mas no mundo comum elas sempre foram... foram...

Talvez não tivesse mais de quatro anos naquela época. No mundo comum (aos poucos, ia deixan­do de pensar no mundo comum como o mundo real), ganhara uma enorme bola de gude com um centro rosado. Um dia, quando estava brincando, ela foi rolando pelo caminhozinho de cimento que havia na frente de casa e, antes que pudesse alcançá-la, ela caiu num bueiro. A bola de gude se fora — para sem­pre, ele pensou então, sentando no meio-fio, chorando, esfregando os olhos com as mãos encardidas. Mas a bola não se fora... De repente, lá estava ela de novo, ali naquela feira, tão maravilhosa como quan­do ele tinha três ou quatro anos. Sorriu de alegria. A imagem se distorceu outra vez, e Jack, o jumento, se transformou em Jack, o gato, o focinho esperto, manhoso, engraçado. Os olhos passaram de um tom cas­tanho ao tom esverdeado dos grandes felinos. Agora, no lugar das orelhas compridas de jumento havia duas orelhinhas de gato, atentas e cobertas de um pêlo cinza.

— Ótimo! — disse o vendedor. — Agora está melhor! Gosto de ver um garoto contente. Um garoto contente é um garoto saudável, e um garoto saudável acaba sempre achando o caminho certo. O Livro da boa lavoura diz isso, mas, mesmo que não dissesse, seria a pura verdade. Vou até sublinhar o trecho no meu exemplar... Isto é, se algum dia tiver dinheiro para comprar um. Quer o espelho?

— Quero! — Jack gritou. — Claro! É incrível!

Remexeu os bolsos em busca das varas. As medidas de economia tinham sido esquecidas.

— Quanto custa?

O vendedor franziu a testa e olhou rapidamente ao redor para ver se alguém os estava observando.

— Leve o espelho, rapaz! Esconda-o bem e siga o seu caminho. Quem mostra o dote pode perder o lote. E o mercado está cheio de ladrões.

— O quê?

— Esqueça! O espelho não custa nada. Pode levá-lo. Metade deles se quebra na boléia de minha carroça quando os levo de volta para o depósito. As mães trazem os filhos aqui, os filhos gostam dos es­pelhos, mas comprar, que é bom, ninguém compra.

— Pelo menos o senhor é sincero! — disse Jack.

O vendedor olhou-o com um certo ar de espanto e depois acompanhou-o numa gargalhada.

— Um garoto contente com uma língua afiada — disse o vendedor. — Venha me visitar quando estiver coroa e careca, rapaz! Mesmo que eu já esteja usando bengala, saberei enganar você no preço com lábios de veludo.

Jack riu. O sujeito era mais engraçado que um filme de Jerry Lewis.

— Obrigado — disse ele (um grande e absurdo sorriso arreganhou a boca do gato no espelho). — Muito obrigado!

— Me recomende a Deus — disse o vendedor... Depois, como num acréscimo repentino: — E cui­dado com a cauda!

Jack seguiu em frente, guardando com cuidado o espelho dentro do gibão, ao lado da garrafa de Speedy.

A toda hora, punha a mão no bolso para verificar se as varas ainda estavam lá.

Tinha mesmo de se proteger dos ladrões!

 

Duas barracas à frente da tenda do vendedor de tapetes havia um homem com uma venda num dos olhos, olhar depravado no outro e bafo de aguardente. Tentava vender um galo enorme a um camponês. Dizia que se o camponês comprasse o galo e o pusesse junto das galinhas teria um rendimento duplo de pintos nos próximos 12 meses.

Jack, porém, não teve olhos para o galo nem orelhas para a conversa fiada do vendedor. Juntou-se a uma multidão de crianças que ria e batia palmas, pois defronte à tenda do vendedor de um olho só havia uma grande gaiola de vime com um bicho estranho. O bicho tinha quase o tamanho das crianças mais novas, e penas lisas, de um verde muito escuro. Os olhos eram dourados, brilhantes... E eram quatro; eram quatro olhos! Como o pônei que vira nos estábulos do pavilhão, o bicho, uma espécie de papagaio, também tinha duas cabeças. Agarrava-se num poleiro com grandes pés amarelos e olhava mansamente para dois lados ao mesmo tempo (os tufos de suas duas cristas quase se tocavam).

Para maior diversão, o papagaio estava falando alguma coisa, mas Jack notou que, embora as crianças dessem grande atenção ao bicho, nem de longe pareciam tão espantadas quanto ele. Não eram como crianças vendo seu primeiro filme, estupefatas no assento do cinema, olhos muito arregalados. Lembravam antes crianças assistindo na televisão ao habitual desenho animado das tardes de sábado. Era uma coisa incrível, sim, mas não tão incrível quanto parecia a Jack! E os mais novos logo iam perdendo o interesse na exibição da ave.

— Grouuuuk! Que altura tem lá no alto? — perguntou a cabeça da direita.

— A mais baixa de todas! — respondeu a cabeça da esquerda, e as crianças riram.

— Grááááá! Qual é a verdade de um homem nobre? — perguntou de novo a cabeça da direita.

— Que um rei será rei a vida toda, mas ser cavaleiro por um dia é melhor que nada! — respondeu com animação a cabeça da esquerda.

Jack sorriu e algumas crianças riram; as menores, porém, continuavam apenas olhando.

— E o que há no guarda-louça da Sra. Spratt? — interrogou a cabeça da direita.

— Coisas que ninguém deve ver! — disse a cabeça da esquerda, e embora Jack não tivesse enten­dido, as crianças morreram de rir.

Com ar solene, o papagaio fez os pés saltitarem no poleiro e ameaçou saltar para o chão de palha.

— E por que Alan Destry morreu de susto no meio da noite?

— Ele viu a mulher... grouuuuk!... sair do banheiro!

Agora o camponês ia recuando, mas o vendedor de um olho só ainda tentava lhe empurrar o galo. Por fim, virou-se furioso para as crianças:

— Saiam daqui! Saiam daqui antes que eu dê um bom chute na bunda de todos vocês!

As crianças se dispersaram. Jack foi junto com elas, lançando um último olhar de assombro ao fa­buloso papagaio.

 

Noutra barraca pagou dois nós de madeira por uma maçã e um canecão de lei­te: o leite mais saboroso e puro que já provara. Achou que se houvesse um leite como aquele no seu mundo, a Nestlé iria à falência numa semana.

Estava acabando de tomar a caneca de leite quando viu a família Henry caminhando lentamente em sua direção. Devolveu a caneca à mulher da barraca, que a mergulhou numa grande terrina cheia d’água. Jack se afastou limpando um bigode de nata de cima do lábio e pedindo a Deus que ninguém que tivesse usado aquela caneca antes dele sofresse de tuberculose, herpes ou alguma coisa do gênero. (Mas não podia acreditar que aquelas doenças terríveis existissem nos Territórios!)

Atravessou de uma ponta à outra a rua principal do mercado. Passou de novo pelos saltimbancos, passou por duas mulheres gordas vendendo potes e caçarolas (panelas de pressão dos Territórios, Jack pensou sorrindo), viu de novo o espantoso papagaio de duas cabeças (seu dono caolho bebia agora pelo gargalo de um cântaro de barro, cambaleava de uma ponta à outra da barraca, pegava pelo pescoço o galo meio tonto e gritava furiosamente para os passantes; Jack reparou que o esquelético braço direito do homem estava coberto por uma espécie de estrume branco e amarelo). Finalmente chegou a uma área aberta, onde havia uma roda de camponeses. Deteve-se ali por um instante, curioso. Alguns camponeses fumavam cachimbos brancos e Jack viu também vários potes de barro (muito semelhantes ao cântaro do vendedor de um olho só). Os potes passavam de mão em mão. Num terreno cheio de relva ao fundo, ho­mens verificavam as ferraduras de cavalos de crina enorme, ou se agachavam no chão, a cabeça baixa, os olhos suaves, mansos.

Jack passou pelo vendedor de tapetes. O vendedor o viu passar e acenou. Jack respondeu com um gesto e teve vontade de dizer alguma coisa engraçada, tipo Use, mas não abuse!. Achou melhor, porém, continuar de boca fechada.

Teve uma súbita sensação de melancolia. O sentimento de ser um forasteiro, um estrangeiro, caíra de novo sobre ele.

Chegou a uma encruzilhada no fim da feira. A estrada que corria no sentido norte-sul era pouco maior do que uma picada. A Estrada do Oeste era bem mais ampla.

Jack Viajante..., ele pensou e tentou sorrir. Depois aprumou os ombros e ouviu a garrafa de Speedy tilintar suavemente contra o espelho. Jack Viajante seguindo pela versão dos Territórios da Estrada Federal 90! Agora é só rezar para que as pernas ajudem!

Retomou a caminhada e logo foi engolido por aquela grande terra de sonhos.

 

Cerca de quatro horas depois, no meio da tarde, Jack sentou-se na relva da mar­gem da estrada e viu alguns homens — daquela distância pareciam pouco maiores que insetos — escalan­do uma torre alta, mas de aspecto frágil. Escolhera aquele lugar para descansar e comer sua maçã. Era ali que a Estrada do Oeste chegava mais perto da torre. A torre ainda deveria estar a uns cinco quilômetros (talvez a muito mais que isso — a quase sobrenatural claridade do ar tornava extremamente difícil avaliar , com precisão as distâncias), mas há mais de uma hora Jack a vinha observando.                             

Comeu a maçã, deixou os pés cansados relaxarem e se perguntou o que podia ser aquela torre, isolada no meio de um campo coberto de relva. E naturalmente ficou curioso em saber por que aqueles homens queriam escalá-la. O vento não parara de soprar desde que partira do mercado e a torre estava contra o vento. Mas nos raros momentos em que a ventania cessava, Jack podia ouvir os homens gritando uns com os outros... e rindo. Havia muito riso naquela escalada.

Cerca de oito quilômetros a oeste do mercado, Jack atravessou uma aldeia (desde que se possa chamar de aldeia a cinco minúsculas casas e um depósito que, obviamente, há muito tempo estava fecha­do). Aquelas foram as únicas habitações humanas que vira desde que se afastara da feira. Pouco antes de vislumbrar a torre, começou a se perguntar se já não teria chegado às Fronteiras. Lembrava-se muito bem do que dissera o Capitão Farren:... a estrada que o pai de meu pai chamava Caminho do Oeste. Corre para o oriente através de aldeias cada vez menores até alcançar as Fronteiras. E continua além delas, rapaz! Ninguém sabe pra onde... Já ouvi dizer que nem o próprio Deus se aventura além das Fronteiras...

Jack teve um ligeiro tremor.

Mas realmente não acreditava que já tivesse chegado assim tão longe. E, além disso, não estava sentindo o mal-estar que experimentara ao se esconder entre as árvores vivas para escapar da diligência de Morgan... Aquelas árvores pareceram apenas uma terrível amostra dos maus momentos que teria de passar em Oatley.

Na realidade, a segurança que sentira desde que acordou aquecido e descansado no monte de feno até a hora em que Henry, o camponês, o convidara a subir na carroça tinha ressurgido: aquela sensa­ção de que os Territórios, apesar de todo o mal que pudessem abrigar, eram fundamentalmente bons, de que sempre que quisesse poderia desfrutar a atmosfera daquele lugar... Não era absolutamente um estran­geiro nos Territórios.

Começava a perceber que fizera parte dos Territórios por longos períodos de tempo. Um estranho pensamento que tomara conta dele durante a tranqüila caminhada pela Estrada do Oeste, um pensamento que veio metade em sua língua natal e metade no idioma dos Territórios: Quando tenho um sonho, só SEI que estou realmente sonhando quando começo a acordar. Se estou dormindo e me acordam bruscamente (se o despertador, por exemplo, começa a tocar), sinto o maior espanto do mundo. A princípio, o mundo do despertar é que parece um sonho. E tanto nele quanto no mundo do sonho não me sinto um estrangeiro. Será exatamente isto que estou querendo dizer? Não, mas estou chegando perto! Aposto que meu pai tinha sonhos muito profundos e sonhava muito! E aposto que o tio Morgan quase nunca conseguia sonhar...

Decidiu que tiraria a rolha da garrafa de Speedy e tomaria um gole assim que visse alguma coisa perigosa... mesmo que fosse algo apenas levemente assustador. Mas, se nada acontecesse, daria preferên­cia absoluta às caminhadas pelos Territórios. Na realidade, teria até coragem de passar outras noites em montes de feno... No momento, seu único problema era ter apenas uma maçã nas mãos e nenhum lugar à vista onde pudesse haver comida. Era uma pena que na ampla Estrada do Oeste não houvesse algum bar­zinho moderno; em último caso, até uma venda serviria.

As velhas árvores que cercavam o cruzamento na saída do mercado tinham dado lugar, depois que Jack ultrapassou aquele último povoado, a uma planície coberta de relva, estendendo-se de ambos os la­dos da estrada. Ele começou a ter a sensação de estar atravessando uma ponte interminável, cruzando um oceano sem limites. Naquele dia, o céu estava claro e ensolarado, mas o ar um pouco frio (É final de setembro, naturalmente já começa a esfriar, Jack pensou, só que a palavra que lhe veio à mente não foi se­tembro, mas uma expressão dos Territórios que, traduzida ao pé da letra, significava mês nono). Naquele trecho de estrada não havia pedestres, nem carroças, vazias ou cheias. O vento soprava sem parar, suspi­rando pelo oceano de relva num murmúrio baixo, que lhe trazia uma sensação de outono e mesmo de so­lidão. Sob aquele vento, grandes ondulações encrespavam a relva.

Se alguém perguntasse “Como está se sentindo, Jack?”, o rapaz responderia: “Muito bem, obrigado. Animado.” Animação foi a palavra que se fixou em sua mente quando começou a atravessar a imensa pla­nície (êxtase parecia uma palavra surrada demais por um dos sucessos do grupo de rock Blondie). Mas êx­tase, arrebatamento ou mesmo animação era o que experimentava ao ver aquelas grandes ondas de relva pularem umas sobre as outras em direção ao horizonte. Uma visão que pouquíssimas crianças americanas teriam oportunidade de desfrutar: enormes campos abertos sob um céu azul, planuras deslumbrantes a perder de vista e, sim!, o azul do céu era bem mais profundo! Era um céu que não conhecia a esteira de combustível dos grandes jatos, nem colunas de fumaça indicando a presença de cidades poluídas ao longe.

Jack passava por uma experiência de extraordinário impacto sensorial. Via, ouvia, cheirava coisas que lhe eram totalmente desconhecidas. Todos os artifícios sensoriais a que fora condicionado começa­vam a perder boa parte de sua força. De certa forma, era um menino extremamente sofisticado, criado numa família de Los Angeles, filho de um empresário e de uma atriz de cinema. Talvez a atmosfera dos Territórios ainda lhe parecesse mais estranha se fosse uma criança ingênua. Mas o fato é que ainda era muito novo e, sofisticadas ou não, as crianças não deixam de aproveitar de uma maneira muito própria determinadas situações... pelo menos situações como aquela. Mesmo num adulto, uma caminhada solitária através daqueles campos produziria uma sobrecarga emocional, talvez até uma vaga sensação de loucura e alucinação. Um adulto lutaria avidamente pela garrafa de Speedy (provavelmente com dedos demasiado trêmulos para conseguir se apoderar dela). Um adulto lutaria avidamente pelo direito de desfrutar por algumas horas, ou mesmo por alguns minutos, as sensações que Jack vivia naquele momento.

No caso de Jack, o choque se apoderava quase de forma integral de sua mente consciente e mergulhava no subconsciente. Quando, num verdadeiro estado de graça, começou a chorar, estava inconsciente das lágrimas (percebeu-as apenas como uma perturbação momentânea da visão, que atribuiu ao suor) e limitou-se a pensar: Puxa, como me sinto bem... Devia estar meio assombrado no meio desta campina, longe de tudo e de todos; mas não é o que está acontecendo...

Foi assim que, avançando sozinho pela Estrada do Oeste (sua sombra aos poucos se alongando atrás dele), Jack começou a encarar o estado de êxtase apenas como uma gratificante sensação de anima­ção. Não lhe ocorreu que parte daquela vibração emocional podia dever-se ao fato de que, menos de 12 horas antes, ainda era prisioneiro na Taberna Oatley de Smokey Updike (as manchas de sangue pisado do último barril a lhe esmagar os dedos ainda estavam frescas); não lhe ocorreu que, menos de 12 horas atrás, escapara — por um triz! — de alguma espécie de besta assassina que começava a figurar em sua mente como homem-cabra; também não lhe ocorreu que, pela primeira vez na vida, caminhava totalmen­te sozinho por uma estrada ampla, cercada de prados; não havia sequer um anúncio da Coca-Cola à vista, nem a placa de um motel, nem fios correndo de poste em poste ou se cruzando sobre sua cabeça (coisas que encontrara em todas as estradas por onde passara); não havia sequer o ruído distante de um avião (nada do trovão das turbinas de um 747 se aproximando de algum aeroporto, nada dos jatos militares que não paravam de decolar de Portsmouth e, como o chicote de Osmond, cortavam em baixa altitude as cos­tas do Atlântico e o céu sobre o Alhambra); ouvia apenas o tranqüilo fluxo e refluxo da própria respiração e o barulho de seus pés na estrada.

Puxa, como estou me sentindo bem, Jack pensou, enxugando distraidamente os olhos e definindo tudo aquilo como “animação”.

 

E agora lá estava aquela torre para lhe despertar a curiosidade.

Rapaz, você nunca vai descobrir para que serve esta torre, Jack pensou. Comera a maçã até o caro­ço e, sem pensar no que estava fazendo nem tirar os olhos da torre, cavou com os dedos um buraco na terra fértil e primaveril, enterrando lá dentro o caroço da maçã.

A torre parecia construída de tábuas de madeira como as dos celeiros, e Jack avaliou sua altura em mais de 150 metros. Lembrava uma espécie de cilindro oco, as tábuas se erguendo de todos os lados em escoras em forma de x. No topo, havia uma plataforma e, apertando os olhos, Jack pôde ver alguns ho­mens andando lá em cima.                                                                                       

O vento envolveu-o numa rajada suave quando ele se sentou na margem da estrada, os joelhos no peito e os braços em volta deles. Outra daquelas ondulações de relva correu na direção da torre. Jack ima­ginou como aquela estrutura franzina devia balançar e sentiu um nó na garganta.

jamais quero ir lá em cima, ele pensou, nem por um milhão de dólares!

E então a coisa que estava temendo que pudesse acontecer desde o momento em que observou pela primeira vez os homens na torre de fato aconteceu: um deles caiu.

Jack ficou de pé, no rosto a consternação e o espanto de alguém que estava num circo e, du­rante um número perigoso, presenciou um acidente no picadeiro: o acrobata que caiu de mau jeito sobre uma barra de ferro, o trapezista que perdeu o equilíbrio e foi lançado longe com um baque pela rede de proteção, a pirâmide humana que desabou inesperadamente esparramando uma monta­nha de corpos.

Oh merda, oh droga, oh...

E, de repente, os olhos de Jack se arregalaram ainda mais. Por um instante, seu queixo tremeu vio­lentamente e caiu quase até o pescoço. Mas voltou depressa ao lugar... e a boca se alargou num assom­brado sorriso de incredulidade. O homem não caíra da torre nem fora lançado no ar pelo vento. Dos lados da plataforma havia saliências que se projetavam no espaço como trampolins. O homem apenas caminha­ra até a beira de um desses trampolins e saltara. A meio caminho do solo, alguma coisa começou a se de­senrolar — um pára-quedas, Jack pensou, mas o problema é que jamais haveria tempo de abrir um pá­ra-quedas naquela altitude.

E de fato não era um pára-quedas.

Eram asas.

A queda do homem se tornou mais lenta e cessou completamente quando ele chegou a uns 15 me­tros da relva da campina. Então a trajetória ficou sinuosa. O homem voava agora para cima e para os lados, as asas se erguiam tão alto que quase se tocavam (como as crinas e cabeças daquele papagaio malu­co) e depois batiam com imensa energia (a energia dos braços de um nadador nos metros finais de uma prova).

Oh, rapaz, Jack pensou, tentando dar vazão de alguma forma ao seu total, absoluto sentimento de assombro. A exclamação coroou toda a surpresa que rodopiava em sua cabeça. Oh, rapaz, olhe isso aí, cara! Oh, rapaz!

E um segundo homem pulou do trampolim do alto da torre; depois um terceiro; logo a seguir um quarto. Daí a cinco minutos, já havia uns 50 homens no ar, esvoaçando sobre a planície numa complica­da, mas definida teia de padrões: depois de pular e abrir as asas, faziam uma trajetória em forma de oito, em seguida sobrevoavam a torre, repetiam o mesmo desenho do outro lado, passavam de novo pela torre e continuavam seguindo o padrão.

Rodopiavam, dançavam e se cruzavam no ar. Jack começou a rir de contentamento. Era como as­sistir aos balés aquáticos daqueles velhos filmes cafonas de Esther Williams. Aquelas nadadoras (em primeiro lugar a própria Esther Williams, é claro) faziam tudo parecer muito fácil, como se qualquer pessoa pudesse mergulhar daquele jeito, como se pudéssemos, com a maior tranqüilidade, saltar com nossos amigos de um trampolim com diversas pranchas, numa coreografia precisa, formando uma espécie de fonte humana.

Mas havia uma diferença. Os homens que voavam sobre a campina não transmitiam qualquer im­pressão de “facilidade”; pareciam, ao contrário, estar empregando somas fantásticas de energia para se manterem no ar. Jack compreendeu, com súbita certeza, que a coisa doía, doía como certos exercícios de educação física (as flexões de braços ou as abdominais, por exemplo). Doía! Sem dor, não se consegue nada. E num vôo daquele tipo as coisas ficariam pretas se alguém fraquejasse.

De repente, Jack se lembrou de mais uma coisa. Lembrou-se do dia em que a mãe o levara a um estúdio de dança no Bulevar Wilshire para ver o ensaio de uma amiga dela, Myrna. Myrna era uma verdadeira bailarina, participava de um ótimo grupo de balé e Jack já a vira dançar algumas vezes no palco (fre­qüentemente tinha que ir junto com a mãe aos balés, coisa que achava tão chata quanto os cultos da igreja ou os programas infantis da rede de tevê educativa). Mas nunca vira Myrna ensaiando... Nunca a vira de tão perto. Ficara realmente impressionado, até mesmo um pouco assustado, pelo contraste entre o balé no palco, onde todo mundo parecia deslizar sem esforço nas pontas das sapatilhas, e um “balé” a um ou dois metros de distância, com a sombria luz do sol filtrada por janelas que iam do chão até o teto e sem música: nada além do coreógrafo batendo ritmadamente as mãos e gritando asperamente. E nada de elo­gios; só críticas. Os rostos das bailarinas gotejavam de suor; as roupas estavam grudadas no corpo; a sala, embora larga e arejada, ficava impregnada do cheiro do suor. Músculos reluzentes tremiam, vibravam à beira da exaustão. Tendões retesados lembravam cabos de guerra. Veias salientes palpitavam nas testas e nos pescoços. Excluindo as palmas e os gritos furiosos, agressivos do coreógrafo, o único som era o tap-tap das sapatilhas se deslocando pelo assoalho e o arfar áspero, angustiante, em busca de ar. Jack achou que aquelas mulheres não estavam apenas ganhando a vida, estavam realmente se matando. Lem­brava-se principalmente das expressões dos rostos: toda aquela exausta concentração, toda aquela dor... Mas transcendendo a dor, ou pelo menos rastejando pelas brechas da dor, havia também alegria. Sem a menor dúvida! Havia alegria! E foi isso que deixou Jack ainda mais assustado, porque parecia uma coisa inexplicável! Que tipo de pessoa poderia gostar de ser submetida a uma dor tão contínua, tão severa, tão exasperante?

Era também a dor o que estava vendo ali nos Territórios, ele pensou. Seriam realmente homens que nasceram com asas, como os homens-pássaros dos velhos seriados do Flash Gordon, ou seriam asas como as de Ícaro e Dédalo, alguma coisa amarrada ao corpo? Mas Jack achou que aquilo era um detalhe que não tinha grande importância... Ao menos para ele.

Alegria

Vivem num mistério. Essas pessoas vivem num mistério.

A alegria é que lhes dá força.

E era isso que importava. Era a alegria que lhes dava força, tivessem nascido com asas nas costas ou tivessem de amarrá-las no peito com grampos e cinturões. Porque, mesmo daquela distância, ele via o mesmo tipo de esforço que havia no estúdio de dança do Bulevar Wilshire. Todo aquele pródigo investi­mento de energia para obter uma esplêndida, mas momentânea, reversão da lei natural. Que tal reversão exigisse tanto empenho e durasse tão pouco tempo era terrível. Mas que existisse gente capaz de se esfor­çar para alcançá-la, era ao mesmo tempo terrível e magnífico!

E tudo não passa de um jogo, ele pensou e, de repente, teve certeza da coisa. Um jogo ou talvez nem mesmo isso, talvez apenas um treino de jogo, do mesmo modo como o suor e a exaustão nervosa daquele estúdio de dança só faziam parte de um ensaio. Ensaio para um espetáculo que só umas poucas pessoas teriam vontade de ver e que provavelmente se resumiria a meia dúzia de apresentações.

Alegria!, ele pensou de novo, de pé na margem da estrada, o vento jogando o seu cabelo na testa, o rosto empinado para contemplar os homens que voavam no horizonte. Seu período de inocência infantil estava chegando rapidamente ao fim (se pressionado, o próprio Jack seria capaz de mostrar que tinha plena consciência do processo: um garoto não pode se mandar por aí por tanto tempo, não pode passar por experiências tão complicadas quanto as que ele vivera em Oatley e continuar sendo um menino ingênuo), mas, naquele momento, olhando os homens no céu, a inocência parecia envolver todas as coisas à sua volta; como o jovem pescador, durante seu breve momento de êxtase, no poema de Elizabeth Bishop, tudo era arco-íris, arco-íris, arco-íris.

Alegria!... Rapaz, aquilo era realmente um mundo muito animado!

Sentindo-se bem melhor do que se sentia quando aquela aventura começou (e só Deus sabia há quanto tempo tudo aquilo tinha realmente começado), Jack retomou a caminhada pela Estrada do Oes­te, o passo leve, o rosto abrindo o contorno do mesmo sorriso solto, magnífico. De vez em quando olhava para trás e dava mais uma espiada nos homens voadores. Pôde vê-los ainda durante um bom tempo. O ar dos Territórios era tão límpido que parecia quase radiante. E mesmo quando os ho­mens-pássaros ficaram na distância, a sensação de alegria continuou. Continuou como um arco-íris dentro de sua cabeça.

 

Quando o sol começou a cair, Jack viu que estava protelando o retorno ao outro mundo — aos Territórios americanos — e não apenas por causa do gosto terrível do suco mágico... Esta­va protelando porque não queria ir.

Um regato surgira do meio da campina (onde pequenos bosques despontavam de novo aqui e ali — bosques com grandes árvores de copas estranhamente achatadas, como pés de eucalipto). Depois de uma curva sinuosa, o regato passara a ladear a estrada. Mais adiante, à direita e um pouco ao longe, Jack viu uma enorme massa d’água. Na realidade, era tão grande que, até o último minuto, ele achou que fosse um trecho de céu, com uma coloração ligeiramente mais azul do que o resto. Mas não era céu, era um lago. Um grande lago, ele pensou, sorrindo com a idéia. Achou que, no outro mundo, aquilo poderia perfeitamente ser o Lago Ontário.

Sentia-se bem. Estava na direção certa — talvez um pouco excessivamente ao norte, mas não tinha dúvida de que a Estrada do Oeste faria as devidas correções na trajetória. Aquela sensação de quase en­louquecida alegria (aquilo que definira como “animação”) ia cedendo espaço a um espantoso sentimento de calma e serenidade, um sentimento que parecia tão límpido quanto o ar. Só uma coisa perturbou a continuidade daquela sensação: a lembrança.

(seis, tinha seis, Jack tinha seis)

de Jerry Bledsoe. Por que lhe era tão difícil expulsar da mente aquela lembrança?

Não... não apenas uma lembrança... Na realidade duas lembranças. Primeiro, ele e Richard ouvin­do a Sra. Feeny contando à irmã que a eletricidade explodiu e cozinhou o Jerry, que lhe grudou os óculos no nariz, que ela ouvira o Sr. Sloat falando ao telefone e fora assim que soubera dos detalhes... Depois ele atrás do sofá, sem nenhuma vontade de ouvir a conversa dos outros ou bisbilhotar, mas escutando o pai dizer “As conseqüências seriam sérias, e algumas dessas conseqüências poderiam ser perigosas.” Certamente alguma coisa tomou Jerry Bledsoe perigoso, não foi? Mas quando os óculos dele se grudaram no nariz, isso deve ter sido uma coisa bastante incômoda, não é?

Jack parou. Congelou no lugar.

O que está tentando dizer?

Você sabe muito bem o que estou tentando dizer, Jack! Seu pai tinha desaparecido naquele dia ele e Morgan, os dois. Eles estavam lá. Onde? No lugar de onde nunca saiu o edifício deles na Califórnia, lá nos Territórios americanos. E tinham feito alguma coisa, ou pelo menos um deles fez. Talvez uma coisa grande, ou talvez apenas uma pedra atirada na água... ou um caroço de maçã enterrado no chão. Mas a coisa ecoou de alguma forma... do outro lado. Ecoou lã na Califórnia e matou Jerry Bledsoe.

Jack estremeceu. Oh, sim, ele agora achava que sabia por que sua mente estava tendo tanta dificul­dade para expulsar a lembrança: o táxi de brinquedo, o murmúrio das vozes do pai, do tio, Dexter Gor­don e o solo de sax. A mente não queria expulsá-la porque

(por que acontecem essas coisas, papai?)

ela sugeria que, apesar de estar ali, ele poderia provocar alguma coisa terrível no outro mundo. Dar início à Terceira Guerra Mundial? Não, provavelmente não. Não assassinara nenhum jovem ou velho rei. Mas o que teria sido preciso fazer para engendrar o eco que cozinhou Jerry Bledsoe? Teria o tio Mor­gan dado um tiro no Duplo de Jerry (se é que o Jerry tivera algum Duplo nos Territórios)? Teria tentado mostrar a algum manda-chuva dos Territórios a força de uma coisa nova, a eletricidade? Ou teria feito ape­nas uma coisinha aparentemente sem importância... algo tão tolo quanto comprar um pedaço de churras­co num mercado rural? Quem faz essas coisas acontecerem, papai? O que faz essas coisas acontecerem?

Um desastrezinho de automóvel na rua central de Oatley... Quem sabe o início de uma bela en­chente, de um bonito incêndio...

Subitamente a boca de Jack ficou seca como sal.

Aproximou-se do pequeno riacho na margem da estrada, ajoelhou-se e fez concha com uma das mãos. Então a mão ficou paralisada. O curso suave do regato adquirira os tons do crepúsculo que avançava. Mas esses tons logo foram tingidos de vermelho, de modo que o riacho ficou parecendo mais um ria­cho de sangue que um riacho de água. Depois ficou negro. E por fim tornou-se transparente e Jack viu...

A diligência de Morgan em disparada pela Estrada do Oeste, deixando escapar um som de cascos e arreios. Viu as crinas enormes e negras de sua dúzia de cavalos flutuando no vento. Viu, com terror quase mortal, que o cocheiro sentado lá no alto, as botas de couro apoiadas no estribo, o chicote estalando sem cessar numa das mãos, era Elroy. Mas a coisa que segurava o chicote não podia absolutamente se chamar de mão. Era uma espécie de casco. Era Elroy quem conduzia aquela carruagem de pesadelo, era Elroy quem sorria com uma boca cheia de caninos mortais, era Elroy que simplesmente não podia esperar a hora de encontrar de novo Jack Sawyer... Ia lhe abrir a barriga e arrancar as tripas!

Jack continuou ajoelhado diante do regato, os olhos esbugalhados, a boca tremendo de aversão e horror. E viu ainda uma última coisa, não uma coisa muito grande, não, mas algo que lhe pareceu o deta­lhe mais horripilante: os olhos dos cavalos pareciam brilhar! E pareciam brilhar porque estavam cheios de luz... cheios da luz do pôr-do-sol!

A diligência estava seguindo para Oeste pela mesma estrada que ele... Estava no seu encalço!

Arrastando-se, duvidando até mesmo que conseguisse ficar de pé, Jack foi se afastando do regato, foi cambaleando para o leito da estrada. Caiu estatelado no chão, a garrafa de Speedy e o espelho que o vendedor de tapetes lhe dera fazendo pressão em seu peito. Virou a cabeça de lado e apertou a orelha e a face direitas contra o solo.

Pôde sentir um ronco incessante no leito duro e seco da Estrada do Oeste. Ainda estava distante... mas ia se aproximando.

Elroy lá no alto... e Morgan lá dentro. Morgan Sloat? Morgan de Orris? Pouco importava. Ambos eram a mesma pessoa.

Com grande esforço livrou-se do efeito hipnótico daquele ronco na terra e conseguiu se levantar. Tirou do gibão a garrafa de Speedy (que nos Territórios como nos Estados Unidos continuava sempre idêntica a si mesma) e puxou a rolha com toda a sua força. Não se preocupou sequer em observar o nível do líquido (agora não mais que uns cinco ou seis centímetros). Atirou um olhar nervoso à esquerda, como se esperasse ver a qualquer momento a carruagem negra despontar no horizonte, os olhos dos cavalos (cheios da luz do crepúsculo) brilhando como estranhas lanternas. Naturalmente não viu coisa alguma. Já tinha reparado que os horizontes ficavam mais perto nos Territórios e os sons viajavam mais depressa. A diligência de Morgan ainda devia estar a 15 ou mesmo a uns 30 quilômetros a leste.

Mesmo assim, está vindo bem pra cima de mim, Jack pensou e levou a garrafa aos lábios. Mas, um segundo antes de beber, sua mente gritou: Ei, espere um minuto! Espere um minuto, idiota. Ou será que está querendo morrer? Seria muito engraçado, não é mesmo, desaparecer do meio da Estrada do Oeste e aparecer na pista central de alguma grande rodovia americana (evidentemente para ser atropelado por um furgão ou uma enorme carreta).

Jack cambaleou para a margem da estrada... E depois, por medida de segurança, deu mais dez ou 20 passos por entre a relva. Então respirou profundamente, inalando pela última vez o doce aroma daque­le lugar, procurando inutilmente recuperar a sensação anterior de perfeita tranqüilidade... aquela sensa­ção de arco-íris.                         

Vou tentar me lembrar para sempre deste lugar, ele pensou. Posso não ter mais oportunidade de voltar aqui... ao menos por um bom tempo.

Contemplou de novo a planície. Ela ia sendo coberta pela noite que avançava do leste. O vento continuava a soprar, um tanto frio mas ainda perfumado, encrespando-lhe o cabelo (que, na realidade, já estava bastante desgrenhado) como encrespava a relva.

Está pronto, Jack-O?

Jack fechou os olhos e tomou coragem para enfrentar o gosto terrível e o vômito que era bem ca­paz de vir em seguida.

— Vamos à luta! — ele sussurrou, e bebeu.

 

O VELHO PARKINS

Vomitou uma fina saliva roxa, o rosto a poucos centímetros do mato que cobria a encosta de uma rodovia de quatro pistas. Sacudiu a cabeça, mas continuou curvado, as costas voltadas para o céu cinzento, carregado. O mundo, aquele mundo, cheirava mal. Jack arrastou-se para trás, distanciando-se um pouco dos filetes de vômito salpicados nas hastes de relva, O fedor se alterou, mas não diminuiu. Gasolina e inúmeros outros venenos flutuavam no ar; o próprio ar tinha um cheiro de exaustão, de fadiga (mesmo os ruídos que assomavam da rodovia poluíam aquele ar mortal). Como um gigantesco vídeo de tevê, um anúncio de beira de estrada se debruçava sobre sua cabeça. Ainda meio trôpego, Jack ficou de pé. Lá embaixo, do outro lado da estrada, cintilava uma interminável massa d’água, apenas ligeiramente menos cinzenta que o céu. Uma espécie de maligna radiância faiscava na superfície. Também daquela água vinha um odor de limalha e vapor. Era o Lago Ontário. E a medíocre cidadezinha na margem devia ser Olcott ou Kendall. Desviara-se mais de 150 quilômetros de seu caminho e perdera uns quatro dias e meio. Sem saber muito bem o que fazer, Jack Sawyer ergueu os olhos para as grandes letras pretas. Enxugou os lábios com a mão. angola. Angola? Que lugar era aquele? Através do ar já quase tolerável, contemplou a cidadezinha enfumaçada.

 

E o velho atlas de Rand McNally, seu companheiro inseparável, informou-o de que a massa d’água lá embaixo era o Lago Erie — em vez de perder dias de viagem, ele os ganhara.

Mas antes que pudesse decidir se não seria mais conveniente voltar aos Territórios assim que se julgasse a salvo (isto é, assim que a diligência de Morgan tivesse passado), sentiu um impulso incontrolá­vel de caminhar até a enfumaçada cidadezinha de Angola e ver se dessa vez Jack Sawyer, Jacky, teria mais sorte nos Territórios americanos. Começou a descer a encosta, calça jeans e camisa xadrez, bastante alto para seus 12 anos, e já começando a lembrar um menor abandonado, com um excesso de preocupação no rosto.

A meio caminho do acostamento, percebeu que estava de novo pensando em inglês.

 

Muitos dias depois, bem mais a oeste, um homem conhecido como “Velho” Par­kins, que perto de Cambridge, no Estado de Ohio, dera carona a um garoto crescido chamado Lewis Far­ren, foi capaz de reconhecer de imediato aquele ar de preocupação. Era como se a ansiedade estivesse formando sulcos eternos naquele rosto. Anime-se, meu filho! Pelo menos para o seu próprio bem!, Parkins teve vontade de dizer. Mas, segundo a história que ouvira, o rapaz tinha uma verdadeira montanha de problemas. Pai morto, mãe doente que o mandara para a casa de uma tia professora no Lago Buckeye... Sobravam motivos de preocupação para Lewis Farren. Parecia nunca ter andado com mais de cinco dóla­res no bolso desde o Natal anterior. Contudo... o “Velho” achava que alguma coisa não estava se encaixando na história daquele tal de Lewis Farren.

Por exemplo, ele tinha cheiro de gente do campo, não da cidade. O Velho Parkins e seus irmãos tinham 300 acres de terra a cerca de 50 quilômetros a sudeste de Columbus, não muito longe de Amanda. O “Velho” tinha certeza de que não estava equivocado. Aquele garoto cheirava a Cambridge e Cambridge, era campo. O Velho Parkins crescera entre pastos e lavouras, entre adubo, estrume, espigas de milho e vi­nhas. As roupas encardidas do carona a seu lado tinham absorvido todos aqueles cheiros que lhe eram tão familiares.

E havia também o problema das roupas em si. A Sra. Farren devia estar terrivelmente doente, o “Velho” pensou, para deixar o filho sair de casa com um jeans tão duro de sujeira que ficaria de pé fora do corpo. E os tênis! Os tênis de Lewis Farren estavam a ponto de cair dos pés, os cordões quase podres, a sola quase rompida, pronta a se abrir em meia dúzia de rombos.

— Então levaram o carro de seu pai, Lewis? — Buddy perguntou.

— Foi como eu contei ao senhor. Os covardes vieram depois da meia-noite e simplesmente rouba­ram o nosso carro. Acho que devia haver uma lei para proibi-los de fazer uma coisa dessas. Não deviam tirar o carro de gente trabalhadora, que ia voltar a pagar as prestações assim que pudesse. Não acha que te­nho razão?

O rosto franco e bronzeado do garoto virou-se para o Velho Parkins como se estivesse discutindo o mais sério problema americano desde Watergate ou a Baía dos Porcos. Todos os instintos de Parkins eram para concordar — não lhe seria difícil aprovar a opinião sincera de um rapaz que tanto lhe lembrava a vida rural.

— Acho que tem razão... Se bem que existem sempre dois lados em cada coisa... — disse o Velho Parkins, não muito sorridente.

O garoto piscou e virou de novo a cabeça para a estrada. E de novo Parkins sentiu a ansiedade dele, a nuvem de preocupação que parecia pender sobre seu rosto. Chegou quase a lamentar não ter concedido a Lewis Farren a solidariedade absoluta de que ele tanto parecia precisar.

— Sua tia ensina numa escola primária lá no Lago Buckeye... Isso é bom, não é? — disse Parkins, tentando abrandar a angústia do garoto. (Olhe para o futuro, não para o passado...!)

— Sim senhor. Ela ensina na escola primária. Chama-se Helen Vaughan.

A expressão do garoto não se alterou, mas alguma coisa retiniu nos ouvidos de Parkins. Ele não se considerava um especialista nos sotaques americanos, mas tinha certeza de que o jovem Lewis Farren não falava como alguém criado em Ohio. A voz era estranha, um tanto veloz e cheia de altos e baixos nos lu­gares errados. Não era um jeito de falar de Ohio. E, principalmente, não era um jeito de falar rural. Havia uma entonação muito singular.

Seria possível que um garoto de Cambridge, em Ohio, tivesse aprendido a falar daquela maneira? E para quê? Era uma coisa absurda, que não fazia muito sentido.

Além disso, o jornal que Lewis Farren prendia com o cotovelo esquerdo parecia legitimar a mais profunda e pior suspeita do Velho Parkins: ou seja, que aquele jovem cheio dos mais diversos aromas estava fugindo de alguma coisa e que cada palavra que ouvia dele não passava da mais descarada mentira. O nome do jornal, que Parkins descobrira inclinando ligeiramente a cabeça, era The Angola Herald. Havia aquela Angola na África, que a África do Sul vinha atacando com mercenários, e havia um lugar chamado Angola, no Estado de Nova York — lá em cima no Lago Erie. Não há muito tempo, vira fotos do lugarejo nos jornais, mas não conseguia se lembrar a propósito de quê.

— Queria lhe fazer uma pergunta, Lewis — disse ele pigarreando.

— Pode fazer — disse o garoto.

— Por que um rapaz de uma cidade de Ohio está carregando um jornal de Angola, em Nova York? Fica muito, muito longe daqui. Estou curioso, filho!

O rapaz olhou para o jornal amassado sob o braço e imprensou-o ainda com mais força, como se temesse que alguém o roubasse.

— Oh! — disse ele. — Encontrei num banco.

— Encontrou? — disse o Velho Parkins.

— Foi. Num banco da rodoviária. Lá perto de casa.

— Foi até a rodoviária hoje de manhã?

— Sim. Antes de resolver economizar o dinheiro do ônibus e ir de carona. Se puder me deixar no trevo para Zanesville, Sr. Parkins, só terei de andar mais um pouco. Acho que vou chegar à casa da minha tia antes do jantar.

— Tudo bem — disse Parkins e, por vários quilômetros, continuou dirigindo num silêncio inquieto. Finalmente, não pôde mais suportar e, num tom de voz calmo e sem tirar os olhos da estrada, perguntou:

— Filho, você está fugindo de casa?

Lewis Farren surpreendeu-o com um sorriso: não era um sorriso forçado, não era um sorriso falso; era um sorriso normal. O garoto achou engraçada a idéia de estar fugindo de casa. Ela o divertia. Virou-se para Parkins uma fração de segundo depois de o Velho ter se virado também. Os olhos dos dois se encontraram.

Por um segundo, por dois segundos, três... pelo tempo que aquele momento durou, o Velho Par­kins viu que o garoto sujo sentado do lado dele era muito bonito. Julgara-se incapaz de usar aquela pala­vra para descrever qualquer ser humano do sexo masculino acima de nove meses, mas, sob o rosto encar­dido, Lewis Farren sem dúvida era bonito. Seu senso de humor pareceu dissipar momentaneamente todas as preocupações. O que cintilou para os olhos de Parkins (que tinha 52 anos e três filhos adolescentes) foi uma espécie de honesta generosidade que só podia ter se originado de uma multidão de experiências incomuns. Aquele Lewis Farren, que dizia ter 12 anos, conseguira de alguma forma ter ido mais longe que Parkins, conseguira de alguma forma ter visto muito mais que Parkins. E o que vira nos caminhos por onde andara transformara-o num garoto realmente bonito.

— Não, não estou fugindo de casa, Sr. Parkins — disse o garoto.

Depois piscou, as sobrancelhas se franziram de novo, os olhos perderam o brilho, a luminosidade, e ele voltou a se afundar no assento. Suspendeu um dos joelhos, apoiou-o no painel do carro e pôs o jor­nal debaixo do braço.

— É, acho que não... — disse o Velho Parkins, olhando de novo para a estrada. Sentia-se aliviado, embora não pudesse explicar muito bem por quê. — Acho mesmo que não está fugindo de casa, Lewis! Mas há alguma coisa com você...

O garoto não respondeu.

— Esteve trabalhando numa fazenda, não foi?

Lewis levantou os olhos, parecendo espantado.

— Foi! Nos últimos três dias trabalhei numa fazenda. Dois dólares por hora.

E sua mãe nem teve tempo de lavar suas roupas antes de mandá-lo para a casa da irmã, hem?, pen­sou o Velho Parkins. Mas o que ele disse foi:

— Lewis, não quer ir lá pra casa? Não estou dizendo que tenha feito alguma coisa errada, nada dis­so... Mas, se me provar que é mesmo de Cambridge, pode estar certo que comerei este velho carro com pneus e tudo! Tenho três filhos e o mais novo, Billy, é apenas três anos mais velho que você. Sabemos muito bem cuidar de garotos lá em casa. Pode ficar conosco o tempo que quiser, desde que não se impor­te que lhe façam perguntas. Aliás, eu mesmo já perguntei muita coisa.

O Velho Parkins passou a palma da mão no cabelo grisalho, cortado à escovinha, e olhou para o lado. Agora Lewis Farren lembrava mais uma criança ingênua que um mistério a ser decifrado.

— Será muito bem recebido, rapaz!

Lewis respondeu sorrindo:

— Talvez fosse mesmo uma boa, Sr. Parkins, mas não posso ir! Tenho de chegar à casa da minha, hã, tia em...                                                                                                   

— No Lago Buckeye — Parkins ajudou.

O garoto engoliu em seco e olhou de novo para a frente.

— Se precisar, posso lhe dar uma ajuda — o Velho insistiu.

Lewis deu uma pancadinha no braço forte e bronzeado de Parkins.

— Esta carona já é uma grande ajuda, pode crer.

Depois do silêncio de quase dez minutos, o Velho Parkins viu o vulto indefeso do garoto descer vagarosamente o acostamento na entrada de Zanesville. Provavelmente Emmie ficaria furiosa se o visse chegar com um garoto estranho e sujo, mas depois de algum tempo conversando com ele, seria até capaz de tirar do armário os copos e pratos que ganhara da mãe e que só costumava usar em ocasiões especiais. O Velho Parkins não acreditava que existisse uma mulher chamada Helen Vaughan nas margens do Lago Buckeye, e duvidava até que aquele misterioso Lewis Farren tivesse mãe. O garoto sugeria muito mais ser um órfão, errando sem destino pelas estradas. Parkins ficou vendo o rapaz desaparecer na curva do trevo e depois continuou olhando para a distância (onde se via a enorme tabuleta amarela e roxa de um shop­ping).

Por um instante, teve vontade de saltar do carro, correr atrás do garoto, trazê-lo de volta... E então teve um breve lampejo de uma cena cheia de tumulto e fumaça que vira no noticiário das seis. Angola, no Estado de Nova York. Uma ocorrência sem grande importância, que só fora transmitida uma vez. Uma da­quelas pequenas tragédias que a custo conseguem figurar numa montanha de notícias mundiais. Tudo que o Velho pôde reconstituir naquele curto e provavelmente falho momento de recordação foi uma ima­gem de vigas caídas (como gigantescos fiapos de palha) sobre carros velhos. As vigas pareciam ter saltado de um buraco fumegante no solo (um buraco que devia chegar ao inferno de tão profundo). Parkins olhou mais uma vez para o trecho vazio de estrada por onde o garoto desaparecera, pisou na embreagem de seu velho carro e engatou a primeira.

 

A memória do velho Parkins fora mais precisa do que ele imaginara. Se tivesse vis­to a primeira página do exemplar do Angola Herald que “Lewis Farren”, aquele enigmático garoto, con­servava com tanto cuidado (e até mesmo temor) sob o braço, teria lido o seguinte:

 

ligeiro tremor de terra mata cinco pessoas

por Joseph Gargan, repórter do Herald

 

O trabalho na Rainbird Towers, que viria a ser o mais alto e mais luxuoso condomínio da região, e cujas obras deviam estar concluídas em seis meses, foi ontem tragicamente interrompido quando um tremor de terra, sem precedentes na cidade, fez desmoronar toda a estrutura do prédio, soterrando alguns trabalhadores. Cinco corpos já foram retirados dos escombros e dois homens ainda não foram encontrados, mas presume-se que estejam mortos. Os sete eram soldadores e montadores da Speiser Construction e, no momento do acidente, estavam no segundo andar da estrutura do prédio.

O abalo de ontem foi o primeiro tremor que a história registrou em Angola. Armin Van Pelt, do Departamento de Geologia da Universidade de Nova York (consultado hoje por telefone), descreveu o lamentável acontecimento como “deslocamento sísmico”. Representantes da Comissão de Segurança do Estado deram início a um exame do local, enquanto uma equipe de...

 

Os homens mortos eram Robert Heidel, de 23 anos; Thomas Thielke, de 34; Jerome Wild, 48; Mi­chael Hagen, 29; e Bruce Davey, de 39. Os dois trabalhadores ainda não encontrados eram Arnold Schulkamp, de 54 anos, e Theodore Rasmussen, de 43. Jack não teria mais de reler a primeira página do jornal para se lembrar do nome deles. O primeiro tremor de terra na história de Angola, em Nova York, ocorreu no dia em que ele “saltara” da Estrada do Oeste e “aterrissara” nos limites da cidade. Uma parte de Jack Sawyer gostaria de ter ido para a casa do bondoso Parkins, sentar-se na mesa da cozinha, jantar com a fa­mília (ensopadinho e torta de maçã), depois acomodar-se na cama de abrir e cobrir-se até a cabeça com um grosso acolchoado. Durante quatro ou cinco dias, só ia sair da cama para comer. Mas outra parte do mesmo Jack Sawyer via a mesa de pinho do Velho Parkins amontoada de pedaços de queijo e, do outro lado da mesa, um buraco de camundongos talhado num rodapé gigante (e de buracos nos jeans dos três filhos de Parkins saíam caudas compridas e finas). Quem faz coisas como o que se deu com Jerry Bledsoe acontecerem, papai? Heidel, Thielke, Wild, Hagen, Davey; Schulkamp e Rasmussen. Coisas como o que se deu com Jerry...? Ele sabia quem podia fazê-las acontecer...

 

Uma enorme tabuleta dizendo buckeye mall flutuava à frente de Jack quando ele contornou a última curva da variante. No pátio de estacionamento do shopping, havia uma fileira de pos­tes amarelos de luz.

O shopping era um amontoado futurístico de prédios cor de ocre que pareciam não ter janelas. Um segundo mais tarde, porém, Jack percebeu que se tratava de um único edifício... A visão de um conglomerado de prédios não passava de ilusão de ótica. Pôs a mão no bolso e remexeu o punhado de 23 notas de um dólar, que era tudo o que possuía.

Na fria luz do sol do início de uma tarde de outono, Jack cruzou a rua em direção ao estaciona­mento.

Sem aquela conversa com o Velho Parkins, provavelmente teria continuado na Rodovia Federal 40, tentando conseguir carona para avançar mais uns 70 ou 80 quilômetros. Queria chegar a Illinois, onde Ri­chard Sloat estudava, nos próximos dois ou três dias. A idéia de encontrar-se com o amigo Richard servi­ra-lhe de consolo durante o período de trabalho fatigante na fazenda de Elbert Palamountain: a imagem do rosto sério (óculos na ponta do nariz) de Richard Sloat no alojamento do Colégio Thayer, em Springfi­eld, Illinois, não o deixava menos animado que as generosas refeições da Sra. Palamountain. Jack ainda queria ver Richard, e o mais breve possível. Mas o convite do Velho Parkins conseguira deixá-lo um pou­co nervoso. Não se sentia com coragem de subir em outro carro e repetir toda a história da mãe doente e da tia professora. (Por alguma razão, pensou Jack, a história parecia estar perdendo a força.) O shopping dava-lhe uma excelente oportunidade de descansar por uma ou duas horas, principalmente se houvesse um cinema lá dentro (veria qualquer coisa com prazer, mesmo uma love story melodramática e chata).

Mas, antes do filme (se tivesse sorte de encontrar o cinema), tinha de cuidar de duas coisas que, pelo menos há uma semana, vinham reclamando os seus cuidados. Jack vira o Velho Parkins observando-lhe os tênis, já em avançado processo de deterioração. Além da lona estar começando a rasgar, as so­las, antes macias e elásticas, tinham, misteriosamente, começado a ficar duras como asfalto. Quando precisava caminhar grandes distâncias — ou quando tinha de trabalhar o dia inteiro em pé — seus dedos ar­diam como se tivessem sido queimados.

A segunda tarefa — telefonar para a mãe — vinha tão carregada de culpa e emoções desagradáveis que Jack não tinha muita certeza se seria capaz de executá-la. Não sabia se ia conseguir conter as lágrimas quando ouvisse a voz de Lily Cavanaugh. E se ela soasse fraca, por exemplo, como a voz de alguém muito doente? Teria coragem de continuar seguindo o caminho do Oeste se a mãe lhe suplicasse com todas as forças que voltasse a New Hampshire? Era difícil admitir a idéia de conversar com a mãe ao telefone. Sua mente lhe fornecia uma imagem muito nítida de uma fileira de orelhões de plástico, mas ele procurou soterrá-la quase de imediato. Como se houvesse o risco de Elroy ou alguma outra criatura dos Territórios saltar do fone e apertar-lhe a garganta com uma das mãos.

Exatamente nesse momento, três garotas, um ou dois anos mais velhas que ele, saltaram do banco de trás de um carro japonês que se enfiara numa vaga apertada, defronte à entrada principal do shopping. Por um segundo, Jack viu-as como modelos contorcidos em insólitas e elegantes poses de contentamento e espanto. Quando conseguiram se equilibrar em posturas mais convencionais, lançaram um olhar indiferente a Jack e começaram a ajeitar meticulosamente os cabelos. As confiantes princesas de início de ginásio tinham pernas compridas e apertadas nos jeans e, quando riam, tapavam a boca com as mãos (como se o riso fosse indecente, censurável). Jack avançou lentamente; era como um sonâmbulo caminhando. Uma das princesas lançou-lhe mais uma olhadela e sussurrou alguma coisa para a amiga de cabelo castanho.

Eu sou diferente agora, Jack pensou. Não sou mais como elas. Este reconhecimento encheu-o de um sentimento de solidão.

Um rapaz louro e forte, com uma camisa azul sem mangas, pulou do assento do motorista e reuniu as mocinhas à sua volta pelo simples expediente de fingir ignorá-las. O rapaz, que já devia estar no último ano da escola secundária e talvez fosse um craque no futebol, deu uma olhada em Jack e apreciou a fa­chada do shopping.

— Timmy? — chamou a garota alta, de cabelos castanhos.

— Hã? — disse o rapaz. — Só estou querendo saber de onde vem este cheiro de merda.

Premiou as moças com um breve sorriso de superioridade. A de cabelo castanho olhou com arro­gância para Jack, depois, ao lado das amigas, atravessou rebolando o asfalto. As três seguiram o corpo empinado de Timmy pela porta de vidro e entraram no shopping.

Jack esperou que Timmy e sua corte, visíveis através do vidro, desaparecessem na esquina de uma loja de brinquedos. Só depois pisou na placa que abria a porta.

Um frio de ar-condicionado envolveu-lhe o corpo.

De uma fonte no meio de um grande lago cercado de bancos, a água pingava. A fonte tinha a altura de dois andares e todas as portas de entrada do shopping se defrontavam com ela. No teto cor de ocre havia spots e curiosos candelabros de bronze. O cheiro de pipoca, que impregnara as narinas de Jack desde o momento em que as portas de vidro se fecharam atrás dele, emanava de uma antiga carrocinha de pipoqueiro. A carrocinha fora pintada de um vermelho muito vivo e cuidadosamente instalada à esquerda da fonte, junto a uma loja de livros de bolso. Jack percebeu de imediato que não havia cinema no Buckeye Mall. Timmy e suas princesas de pernas compridas estavam subindo a escada rolante na outra ponta do shopping. Dirigiam-se para um restaurante self-service chamado A Mesa do Capitão, que ficava bem à direita do alto da escada. Jack pôs de novo a mão no bolso da calça e tocou o rolinho de notas. A palheta de violão de Speedy e a moeda do Capitão Farren continuavam no fundo do bolso, junto com um punhado de moedas de dez e 25 centavos.

No andar térreo, espremida entre uma loja de doces e salgados, chamada Mr. Chips, e uma loja de bebidas anunciando novos preços baixos para o bourbon Hiram Walker e o vinho Inglenook, havia uma vitrine comprida, repleta de tênis. O caixa inclinou a cabeça e ficou espreitando Jack, evidentemente com medo de que ele tentasse roubar alguma coisa. Jack não conhecia nenhuma das marcas em exposição. Não havia Nikes nem Pumas; os tênis se chamavam Speedster, Bullseye ou Zooms, e os laços de cada par estavam bem amarrados. Talvez as marcas não fossem famosas, mas os tênis pareciam resistentes.

Comprou o par mais barato que havia no tamanho dele, um tênis de lona azul com um ziguezague de faixas vermelhas dos lados. Não havia qualquer etiqueta: o tênis era praticamente idêntico à maioria dos pares da vitrine. Junto à caixa registradora, Jack contou seis notas moles de um dólar e disse ao ho­mem que não ia querer uma sacola,

Sentou-se num dos bancos em volta da fonte e tirou os surrados Nikes (sem nem se preocupar em desamarrá-los). Quando se sentiram nos tênis novos, os pés suspiraram de gratidão. Jack se levantou do banco e jogou os velhos Nikes num grande coletor de lixo onde estava escrito não suje o que é seu em le­tras brancas sobre fundo preto. Embaixo, em letras menores, o coletor concluía: A Terra é nosso único lar.

Jack começou a andar pela longa galeria do shopping. Procurava os telefones públicos. Na carroci­nha de pipoca, despediu-se de uma moeda de 50 centavos em troca de um bom saco de pipoca doce (o mel ainda reluzente). O homem quarentão, de boné na cabeça, bigode pontudo e mangas arregaçadas, que lhe vendeu a pipoca, disse que os telefones públicos ficavam no andar de cima, perto da loja Aromas 31. Com um gesto vago, indicou a escada rolante mais próxima.

Enchendo a boca de pipocas, Jack subiu atrás de duas mulheres de calças compridas. Uma de vinte e poucos anos, outra mais velha, de ancas tão largas que cobriam quase toda a largura da escada.

Se Jack desaparecesse dentro do Buckeye Mall (ou mesmo a um ou dois quilômetros dali), será que as paredes iam tremer e o teto desabar? Será que iam cair tijolos, candelabros de bronze e spots sobre todos que tivessem o azar de estar lá dentro? Será que as princesas do ginasial, o arrogante Timmy e várias outras pessoas sairiam de lá com fraturas no crânio, pernas e braços decepados, peitos dilacerados e... Por uma fração de segundo, antes de atingir o alto da escada, Jack viu pedaços de parede e gigantescas vigas de metal caindo pelas galerias. Depois ouviu o estalo terrível dos pisos dos andares superiores Mas não ouviu os gritos: era como se os gritos tivessem se congelado no ar.

Angola. O condomínio.

Jack sentiu as palmas das mãos começarem a coçar, a suar, e esfregou-as no jeans,

aromas 31, anunciava uma luz incandescente e esbranquiçada à sua esquerda, e Jack seguiu a cur­va de um corredor. Ladrilhos marrons brilhavam nas paredes e no chão e, um pouco mais adiante, guar­dados sob orelhões de plástico transparente, havia três telefones. Em frente, viam-se duas portas: homens e senhoras.

No orelhão do meio, Jack discou o DDD de Arcadia Beach e o número da Pousada dos Jardins do Alhambra.

— Alhambra! — respondeu a telefonista.

— Isto é uma chamada a cobrar para a Sra. Sawyer nos apartamentos quatro zero sete e quatro zero oito. É Jack Sawyer quem fala.

A telefonista transferiu a chamada para a suíte e o coração se apertou dentro do peito de Jack. O te­lefone tocou uma vez, duas vezes, três vezes. Então a mãe atendeu:

— Meu Deus, rapaz! Por onde você tem andado?! Esta sua viagem não está sendo fácil pra mim, ga­roto! Morro de saudades quando não o tenho do meu lado para me dizer se estou agindo bem ou mal com os garçons.

— Você é bacana demais para a maioria dos garçons, esse é o problema, mamãe! — disse Jack, achando que a qualquer momento começaria a chorar.

— Tudo bem, Jack? Me diga a verdade!

— Tudo ótimo, pode acreditar! — disse ele. — Estou muito bem. Mas quis telefonar para saber se você... Bem, você sabe.

O telefone chiou eletronicamente, um sopro de estática que parecia areia soprando na praia.

— Estou OK — disse Lily. — Realmente OK. Pelo menos não piorei, se era isso o que estava preocupando você. Mas de onde está ligando, Jack?

Jack fez uma pausa e a estática chiou, assobiou outra vez.

— Estou em Ohio agora. Logo vou me encontrar com Richard.

— E quando pretende voltar para casa, Jacky?

— Não posso dizer. Não tenho certeza.

— Não tem certeza... Eu juro, rapaz, não sei onde estava com a cabeça quando o deixei partir! Jack Viajante!... Seu pai o chamava desse jeito, não é? Mas, se você tivesse me pedido dez minutos antes ou dez minutos depois...

Uma grande onda de estática levou a voz por um instante. Jack se lembrou da mãe no pequeno restaurante ao lado do Alhambra, pálida e fraca, parecendo uma velha. Quando a estática diminuiu, ele perguntou:

— Está tendo problemas com o tio Morgan? Ele está chateando você?

— Mandei o tio Morgan pra muito longe daqui. Ele é que está com a cabeça fervendo, pode ter certeza!

— O tio Morgan esteve aí? Foi mesmo a Arcadia Beach? Ainda está atormentando você, mamãe?

— Eu me livrei do Sloat dois dias depois de você ter ido embora, rapaz! Não perca seu tempo se preocupando com ele.

— O tio disse para onde ia? — Jack perguntou, mas assim que as palavras lhe escaparam da boca, o telefone emitiu um torturante guincho eletrônico que pareceu explodir dentro de sua cabeça. Ele fez uma careta e afastou o fone do ouvido. O terrível ruído de estática era tão alto que poderia ser ouvido a três metros de distância.

— mamãe! — Jack gritou, aproximando um pouco o fone do ouvido. O guincho de estática aumen­tou ainda mais, como se houvesse um rádio, ligado a pleno volume, entre duas estações de ondas curtas.

E, bruscamente, a linha ficou muda. Jack apertou o fone contra a orelha e só ouviu o silêncio, um silêncio inerte e sinistro de ar.

— Ei! — disse ele, sacudindo o fone. O silêncio morto da linha pareceu fazer pressão em seu tímpano.

E, de repente, como se sacudir o fone tivesse dado resultado, o ruído de linha desocupada — um oásis de sanidade, de regularidade — voltou. Jack enfiou a mão direita no bolso, procurando outra moeda.

Ficou segurando desajeitadamente o fone com a mão esquerda enquanto remexia o bolso, e estre­meceu quando o ruído de discar foi subitamente abafado.

A voz de Morgan Sloat falou tão claramente como se o velho tio Morgan estivesse no orelhão do lado.

— Volte já pra casa, Jack!

A voz de Sloat retalhava o ar como um escalpelo.

— Volte já pra casa antes que eu vá buscá-lo com minhas próprias mãos.

— Espere! — disse Jack, como se precisasse de tempo para pensar: na realidade, estava excessiva­mente aterrorizado para ter consciência do que dizia.

— Não é possível esperar mais, garoto! Agora você é um assassino. Tenho ou não tenho razão? Você é um assassino! Por isso já não estamos dispostos a lhe dar outra chance. Volte já para New Hampshire! Neste exato minuto! Ou quer vir à força, amarrado num saco?

 

Jack ouviu o clique do fone no gancho. Soltou o telefone. E então o aparelho trepidou, se curvou para baixo e pulou do orelhão. Por meio segundo, oscilou no meio de uma teia de fios; depois bateu com toda a força no chão.

A porta do banheiro dos homens se abriu atrás dele e uma voz gritou:

— Deus, que merda!

Jack virou a cabeça e viu um rapaz de uns 20 anos, magro, de cabelo curto. Arregalava os olhos para os telefones. Usava um guarda-pó branco e uma gravata borboleta: por certo era balconista de uma das lojas.

— Eu não fiz isso — disse Jack. — Simplesmente aconteceu...

— Que grande merda!

Por um instante, como se fosse atirar sobre ele, o balconista de cabelo curto revirou os olhos na di­reção de Jack. Depois olhou para o teto e pôs as mãos na cabeça.

Jack foi se afastando pelo corredor. Quando estava a meio caminho da escada, ouviu o grito do balconista;

— Sr. Olafson! O telefone, Sr. Olafson!

Jack correu.

Lá fora, o tempo estava ensolarado, mas surpreendentemente úmido. Atordoado, Jack atravessou a rua e viu, nos confins do pátio de estacionamento, um carro preto-e-branco da polícia fazer a curva em direção ao shopping. Olhou para os lados e começou a descer a calçada. Alguns metros à frente, uma família de seis pessoas lutava para fazer passar uma espreguiçadeira por uma das portas estreitas do shopping. Jack diminuiu o passo e viu o marido e a mulher inclinarem a cadeira na diagonal, exasperados pelas ten­tativas que os filhos faziam de sentar na espreguiçadeira ou de ajudá-los. Por fim, mais ou menos na posi­ção dos soldados americanos levantando a bandeira em Iwo Jima, a família conseguiu se esgueirar pela porta. O carro de polícia circundava vagarosamente a grande área do estacionamento.

A poucos metros da porta por onde a família conseguira passar a cadeira, havia um preto velho sentado num caixote. Tinha uma guitarra no colo. Ao se aproximar, Jack observou a caneca de metal ao lado dos pés dele. Seu rosto se escondia atrás de grandes óculos escuros e embaixo da aba de um chapéu de feltro coberto de manchas. As mangas da jaqueta de brim não pareciam menos enrugadas que uma tromba de elefante.

Jack se afastou para o meio-fio, abrindo espaço para as pernas esticadas do velho. Em volta do pescoço dele havia um cartaz com uma grande e trêmula caligrafia sobre uma folha encardida de cartolina branca. Alguns passos e Jack pôde ler:

 

cego de nascença

mas sabe tocar qualquer coisa

deus o abençoe

 

Jack já quase ultrapassara o homem com a guitarra quando ouviu a voz dele, uma espécie de mur­múrio malicioso, num tom de taquara rachada:

— Ei, garoto!                                           

 

A CANÇÃO DO BOLA DE NEVE

Jack virou-se para o preto, o coração aos pulos.

Speedy?

O preto tateou em busca da caneca, suspendeu-a, sacudiu-a. Algumas moedas chocalharam no fundo.

Era Speedy. Atrás daqueles óculos escuros, era Speedy.

Jack teve certeza disso. Mas, um momento depois, teve a mesma certeza de que não era Speedy. Speedy não tinha ombros quadrados nem o peito assim tão largo; os ombros de Speedy eram arredonda­dos, ligeiramente caídos, e conseqüentemente seu peito tinha uma aparência um tanto cavada. Mississippi John Hurt, não Ray Charles.

Mas, se ele tirasse os óculos, aí, sim! Eu teria certeza absoluta!

Abriu a boca para dizer em voz alta o nome de Speedy, mas de repente o velho começou a tocar a guitarra. Os dedos eram enrugados, escuros como uma tábua de nogueira cuidadosamente envernizada (mas sem polimento). Moveram-se com graça e agilidade pelas cordas. Tocava bem, solando a melodia. E Jack reconheceu a melodia. Sempre ouvira aquela música num dos velhos discos do pai. Um LP chamado Mississippi John Hurt Today. Embora o cego não cantasse, Jack conhecia a letra:

 

Oh, meus amigos, digam-me se não é duro

Ver o velho amigo Lewis num novo cemitério

Os anjos a enterrá-lo...

 

O craque louro do time de futebol de colégio cruzou a porta principal do shopping acompanhado de suas três princesas. Cada princesa com uma casquinha de sorvete. Mr. América trazia um cachorro-quente na mão direita e outro na mão esquerda. O grupo caminhou vagarosamente para o trecho de calçada onde Jack se encontrava.

Jack, cuja atenção se deixara absorver totalmente pelo preto velho, nem reparou neles. Continuava obcecado pela idéia de que era Speedy, e que Speedy conseguira de alguma forma ler seus pensamentos. Pois, afinal, quem poderia ser aquele homem que tinha começado a tocar uma composição de Mississippi John Hurt no momento exato em que Jack o achara parecido com Speedy? E uma canção que citava o nome que ele dava aos motoristas a quem pedia carona: Lewis? Pura coincidência?                      

O craque louro de futebol de colégio transferiu os dois cachorros-quentes para a mão esquerda e, com a direita, bateu o mais forte que pôde nas costas de Jack. Os dentes de Jack se cravaram na língua (como uma armadilha de urso). A dor foi brusca, torturante.

— Está na hora de mudar essa roupa, hem, meu chapa? — disse ele. As princesas riram com estridência.

Jack tropeçou e chutou sem querer a caneca do cego. Moedas se esparramaram e rolaram pela cal­çada. A suave melodia do blues desafinou e parou de repente.

Mr. América e as três princesinhas foram se afastando. Jack encarou-os por trás e sentiu outra vez a raiva impotente que já lhe era familiar. Sem dúvida, estava vivendo sem depender de ninguém, mas era jovem demais para ficar à mercê do bom ou mau gênio dos outros. Podia deparar com um psicótico tipo Osmond ou um velho e antipático luterano tipo Elbert Palamountain, cuja noção de um bom dia de trabalho significava trabalhar de sol a sol em campos pantanosos, suportar 12 horas contínuas dos aguaceiros de outubro e, na hora do almoço, sentar numa ponta qualquer da carroceria de um caminhão (comendo sanduíches de cebola e lendo o Livro de Jó).

Jack não teve qualquer ímpeto de correr atrás deles, embora tenha experimentado a estranha sen­sação de que, se quisesse, poderia perfeitamente “pegá-los” e dar uma boa sova no rapaz. Era como se tivesse adquirido uma nova espécie de força (a energia de uma descarga elétrica, por exemplo). Às vezes achava que os outros também percebiam isso; olhavam-no estranhamente, como se desconfiassem dos processos que vinham ocorrendo dentro dele. Mas Jack não queria pegá-los; queria apenas ser deixado em paz. Ele...

O cego tateava em busca das moedas, as mãos atarracadas movendo-se suavemente pela calçada, parecendo quase dispostas a ler a calçada. Esbarraram numa moeda de dez centavos, tornaram a colocar a caneca em pé e jogaram a moeda dentro dela. Plink!

Jack escutou a voz longínqua de uma das princesas:

— Como deixam gente assim ficar na frente do shopping? Viu o jeito do garoto? Tão grosseiro, tão sujo!

E, ainda mais longe, escutou a voz da outra:

— É mesmo, tão sujo!

Jack se ajoelhou. Começou a ajudar o velho a catar as moedas e a colocá-las outra vez na caneca. Ali, do lado do cego, pôde sentir-lhe o cheiro amargo do suor, do mofo das roupas, e um aroma mais brando, mais suave, que lembrava espigas de milho. Os bem-vestidos freqüentadores do shopping passa­vam bem longe dos dois.

— Obrigado, obrigado — resmungava monotonamente o cego. Jack sentiu um odor de pimenta podre no bafo do homem. — Obrigado, que Deus o abençoe, obrigado...

Ele é Speedy.

Ele não é Speedy.

O que finalmente o impeliu a falar (e não parecia nada estranho tentar puxar conversa com aquele cego) foi a lembrança de que só lhe restava uma quantidade muito pequena do suco mágico. Mal daria para dois goles. Não sabia se, depois do que tinha acontecido em Angola, seria conveniente atravessar de novo para os Territórios e voltar aos Estados Unidos. O problema é que estava determinado a salvar a vida de sua mãe. Não ia parar no meio do caminho.

E, fosse lá o que fosse o talismã, estava disposto a dar mais um pulo até aquele outro mundo para pegá-lo.

— Speedy?

— Deus o abençoe, obrigado, Deus o abençoe... Está falando com alguém? — Ele esticou o dedo.

— Speedy! É Jack!

— Não há nenhum Speedy por aqui, rapaz. Nada disso!

As mãos do cego começaram a tatear pelo cimento da calçada na direção que o dedo apontara. Uma delas encontrou um níquel e jogou-o na caneca. A outra mão tocou por acaso o sapato de uma jovem bem-vestida, que acabara de sair do shopping. O rosto bonito e fútil se contorceu numa expressão quase de dor, e ela atravessou a rua.

Jack apanhou a última moeda da sarjeta. Era um dólar de prata, a grande e velha moeda com a imagem da Liberdade num dos lados.

As lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Manchavam-lhe a face encardida e ele as enxugava com um braço trêmulo. Chorava por Thielke, Wild, Hagen, Davey e Heidel. Pela mãe. Por Laura DeLoessian. Pelo filho do carroceiro, estendido na estrada com os bolsos virados pelo avesso. Mas chorava principalmente por ele mesmo. Estava cansado das estradas. Talvez sejam estradas de sonho quando viajamos por elas num Cadillac, mas quando se tem de levantar o polegar, pedir carona e inventar uma boa história para contar aos motoristas, quando se fica à mercê do bom ou do mau gênio das pessoas, as estradas passam a ser caminhos de duras provações. Jack sabia que fizera muito... Mas era impossível desistir. Se tentasse cair fora, o câncer ia levar sua mãe — e ele podia ser levado pelo tio

— Acho que não vou conseguir, Speedy! — ele choramingou. — Acho que não vai dar, Speedy!

Agora o cego procurava tocar em Jack e não mais em moedas espalhadas. Os dedos suaves e es­pertos encontraram-lhe o braço e se fecharam em torno dele. Na ponta de cada dedo, Jack pôde sentir um calo duro.

O cego puxou o garoto para perto de si, para aqueles cheiros de suor, febre e pimenta velha. Jack afundou o rosto no peito de Speedy.

— Oh, rapaz! Eu não conheço nenhum Speedy, mas parece que você precisa muito dele. Você...

— Estou com saudades de minha mãe, Speedy! — Jack soluçou. — E Sloat está atrás de mim. Foi ele quem falou no telefone do shopping, foi ele. E isso não é o pior. O pior foi Angola... o condomínio Rainbird Towers... o tremor de terra... cinco homens... Eu fui responsável por isso, Speedy! Matei aqueles homens quando atravessei para este mundo. Matei-os como meu pai e Morgan Sloat mataram Jerry

Agora tinha desabafado o pior. Vomitara a carga de culpa entalada na garganta, ameaçando sufo­cá-lo, Uma tempestade de soluços se apoderou dele... Mas dessa vez foi antes alívio que medo. Ele tinha falado. Confessado. Era um assassino!

— Oooohhh! — o preto velho gritou. Parecia perversamente satisfeito. Segurou Jack com um braço magro, mas forte. Sacudiu-o. — Está tentando carregar um fardo pesado demais, garoto! Por certo que está. Talvez devesse se desembaraçar de uma parte dele.

— Eu os matei — Jack sussurrou. — Thielke, Wild, Hagen, Davey...

— Bem, se seu amigo Speedy estivesse aqui — disse o preto —, seja ele quem for nesta Terra grande e velha, talvez o aconselhasse a não querer carregar o mundo nas costas, filho! Não pode fazer isso. Ninguém pode. Primeiro, é preciso carregar as próprias costas pelo mundo. Tentar carregar a culpa de tudo...

— Eu matei...

— Encostou o revólver na cabeça deles e apertou o gatilho?

— Não... Mas o tremor de terra... Foi na hora em que eu atravessei...

— Você não sabe o que está dizendo — o preto falou.

Jack se distanciou um pouco e contemplou, com curiosidade e espanto, o rosto manchado. O cego virara a cabeça na direção do pátio de estacionamento. E se era realmente cego, teve habilidade suficiente para distinguir o barulho do motor do carro de polícia do barulho do motor dos outros automóveis, pois estava olhando exatamente na direção da patrulha.

— Mas sei muito bem — ele continuou — que essa idéia de “assassinato” deve ter assumido proporções enormes dentro de sua cabeça. Se algum sujeito tiver um ataque do coração e cair perto de nós, você vai achar que o matou. “Oh, veja, eu assassinei este cara porque estava sentado aqui. Oh, meu Deeeeeeeeus, sou um assassino, e mais isso e mais aquilo...”

Falou isso e aquilo separando e enfatizando bastante as palavras. Depois riu, satisfeito consigo mesmo.

— Speedy...  

— Não há nenhum Speedy por aqui — repetiu o velho, os dentes amarelados abrindo um sorriso torto. — É incrível como as pessoas gostam de se culpar por coisas que não puseram em ação! Acho que está colocando a carroça na frente dos bois, rapaz! E... acho que está sendo caçado.

O c de caçado saiu com um estranho som de g.

— Ou talvez só esteja um pouco deslocado, não é?

Fora uma inflexão muito enfática e quase debochada, que fez Jack sorrir involuntariamente.

— Quem sabe precisa chegar a algum lugar, acertei?

De novo uma inflexão insólita. O cego pôs a guitarra de lado e sacudiu as mãos. No carro de polí­cia, dois tiras esticavam a cabeça para descobrir qual dos dois teria que empurrar o velho Bola de Neve caso ele se recusasse a entrar no carro.

— Oh, meu Deeeeeeeeus. Sou um assassino!... E isso, e aquilo...

Riu de novo, como se os medos de Jack fossem a coisa mais engraçada de que já tinha ouvido falar.

— Não sei o que poderia acontecer se eu...

— Ninguém sabe o que pode acontecer quando se faz alguma coisa, correto? — interrompeu o preto velho (que podia ser ou podia não ser Speedy Parker). — Não. Ninguém sabe. Se o sujeito pensasse nessas coisas, teria de ficar em casa o dia inteiro, morrendo de medo de pôr um pé na rua! Não sei quais são os seus problemas, rapaz... Nem quero saber! Aliás, toda essa conversa de tremor de terra está me pa­recendo uma loucura! Mas, como me ajudou a pegar as moedas e não roubou nenhuma (senti uma por uma nos dedos), vou lhe dar um conselho... Certas coisas não podem ser evitadas, acredite! Às vezes morre meia dúzia de pessoas porque alguém fez alguma coisa. Mas se esse alguém não tivesse feito essa coisa, muito mais gente teria morrido. Entende onde estou querendo chegar, filho?

As lentes sujas dos óculos escuros inclinaram-se em sua direção.

Jack estremeceu, mas sentiu um alívio profundo. O velho enxergava longe e estava falando sobre escolhas difíceis. Estava sugerindo que havia uma diferença entre escolhas difíceis e comportamento cri­minoso. E que talvez ele não fosse o verdadeiro culpado.

O verdadeiro culpado podia muito bem ter sido o homem que, cinco minutos atrás, mandara-o voltar para casa.

— É até mesmo possível — observou o cego (dessa vez com um chiado rouquenho) — que tudo aconteça por vontade de Deus, como minha mãe ensinou e a sua, se foi uma boa cristã, também deve ter ensinado. Às vezes achamos que estamos fazendo uma coisa e estamos fazendo outra. O livro sagrado diz que todas as coisas, mesmo as que parecem nocivas, dão glórias ao Senhor. O que acha disso, rapaz?

— Eu não sei — Jack respondeu com franqueza. Ainda estava bastante confuso. Era só fechar os olhos e via o telefone pulando do orelhão, balançando nos fios como um estranho fantoche.

— Bem, a coisa cheira mal, mas às vezes tem de ser bebida.

— O quê? — Jack perguntou, atônito. Depois pensou: Acho que Speedy era parecido com Mississippi John Hurt, e este sujeito começou a tocar um blues de John Hurt... Agora está falando sobre o suco mági­co. Claro, está fazendo rodeios, mas sei muito bem aonde quer chegar... Não pode ser outra coisa!

— Você sabe ler o pensamento dos outros, não sabe? — Jack perguntou em voz baixa. — Apren­deu isso nos Territórios, certo?

— Não sei nada sobre o pensamento dos outros — o cego respondeu —, mas minhas antenas vão fazer 52 anos em novembro. É tempo suficiente para deixar o nariz e os ouvidos bastante afiados. Sinto cheiro de vinho barato em você, garoto! O cheiro está em todo o seu corpo! É como se tivesse lavado o ca­belo com ele!

Jack teve um estranho sentimento de culpa (era assim que se sentia quando o acusavam de ter fei­to alguma coisa da qual, na verdade, estava inocente — ou pelo menos não era o verdadeiro culpado). Desde que voltara aos Estados Unidos, só encostara uma vez na garrafa quase vazia do suco mágico. Mas esse simples toque fora suficiente para enchê-lo de temor. Passara a encarar a garrafa com o mesmo res­peito que um camponês do século XIV devotaria a uma lasca da Verdadeira Cruz de Cristo ou à ponta de osso de um santo. Era uma coisa mágica, sem dúvida. Poderosamente mágica. E podia até matar pessoas.

Não tenho abusado, pode ter certeza —Jack conseguiu dizer. — A garrafa já está quase vazia, mas sempre tentei economizar. Eu nem mesmo gosto da coisa! — Seu estômago começara a se embrulhar; a simples lembrança do suco mágico provocava-lhe náuseas. — Mas tenho de conseguir mais um pouco. Só vou usar em último caso, é claro...

— Mais desse vinho barato? Para um garoto da sua idade? — O cego riu e, com uma das mãos, fez um gesto de repulsa. — Com todos os diabos, você não precisa disso! Nenhum guri precisa viajar com um veneno desses!

— Mas...

— Olhe, vou tocar alguma coisa para lhe dar coragem. O som é gostoso como um manjar dos deuses.

Ele começou a cantar e, cantando, sua voz ficava diferente. Era profunda, enérgica, comovente, sem as cadências exóticas e preguiçosas da fala. Era, Jack pensou, a voz treinada e cultivada de um cantor de ópera divertindo-se com uma pequena canção popular. Ouvindo aquela voz cheia, exuberante, Jack sentiu arrepios nos braços e nas costas. Na calçada defronte ao monótono tom ocre do shopping, cabeças se viravam.

“Quando o pássaro, pássaro preto passa o pardal no ar; pulsa o pardal, palpita a canção do pardal a mar, a voar...”

Jack foi envolvido por um doce e assustador sentimento de familiaridade, a sensação de já ter ouvi­do aquela música antes ou, pelo menos, algo muito parecido com ela... E, quando o cego arreganhou o sorriso de dentes amarelos e cariados, Jack percebeu de onde vinha a sensação. Sabia por que tantas ca­beças se viravam na direção deles (era como se houvesse um unicórnio galopando na frente do pátio de estacionamento do shopping). Havia uma bela e estranha limpidez na voz do cego, a limpidez de um ar tão puro que se poderia sentir o cheiro de um rabanete que alguém tirasse da terra a um quilômetro de distância. Talvez fosse apenas uma velha canção americana, mas a voz era uma voz dos Territórios.

“Pule da cama seu dorminhoco... Pule, salte, solte-se livre e solto... Ame, viva, ria e diga...”

De repente, a voz e a guitarra deram uma parada brusca. Jack, que estivera febrilmente concentra­do no rosto do cego (tentando, inconscientemente, espreitar o que se escondia do outro lado daqueles óculos escuros... quem sabe não estariam ali os olhos de Speedy Parker?), virou a cabeça para o lado e viu dois tiras de uniforme azul.

— Você sabe, eu não ouvi nada — disse quase timidamente o guitarrista cego —, mas acho que cheirei uma espécie de sombra azul.

— Maldito Bola de Neve! Está farto de saber que não deve poluir a fachada do shopping! — gritou um dos policiais. — O que foi que o juiz Hallas lhe disse da última vez que esteve na cadeia? Fique no centro da cidade, entre a Center Street e a Mural Street, mas não passe daí! Será que já está ficando senil? E essas roupas? Aposto que nunca foram lavadas desde que sua mulher deu no pé, acertei? Meu Deus, eu simplesmente não entendo...

O colega agarrou-lhe o braço e inclinou a cabeça apontando para Jack, num gesto que queria dizer “cuidado com esse garoto de antenas ligadas”.

— Vá dizer à sua mãe por onde tem andado, guri! — ordenou laconicamente o primeiro tira.

Jack começou a descer a calçada. Não podia mais ficar ali. Mesmo que pudesse fazer alguma coisa pelo cego, não podia mais ficar ali. A sorte é que toda a atenção dos tiras estava concentrada no homem que chamaram de Bola de Neve. Se tivessem dado uma segunda olhadela nele, Jack não tinha dúvidas de que ficaria em maus lençóis. Excluindo os tênis novos, tudo o que trazia no corpo tinha um aspecto velho, surrado. A polícia não costuma simpatizar com garotos que andam levantando o polegar nas estradas, mesmo que não tenham aquele ar desgarrado e vagabundo, tão ostensivo na figura de Jack...

Ele se imaginou jogado na cadeia de Zanesville, enquanto os zelosos policiais do condado, corre­tos rapazes vestidos de azul que ouviam diariamente Paul Harvey e davam apoio político ao presidente Reagan, tentavam descobrir quem eram os pais do menor.

Não, não queria que os tiras de Zanesville lhe dispensassem mais que um olhar distraído.

Um motor, trepidando suavemente, veio se aproximando por trás dele.

Jack suspendeu um pouco as correias da mochila e concentrou os olhos nos novos tênis, como se estivesse extremamente interessado neles. Mas, pelo canto do olho, viu a patrulha passar vagarosamente a poucos metros do meio-fio.

O cego ia no assento de trás, o braço da guitarra erguido a seu lado.

Quando a patrulha dobrou numa das alamedas de saída da área do shopping, o cego virou brusca­mente a cabeça e, pela janela de trás, olhou diretamente para Jack...

... e embora Jack não pudesse enxergar através dos óculos escuros, teve plena consciência de que Lester “Speedy” Parker piscara-lhe o olho.

 

Até alcançar de novo as variantes que conduziam à estrada, Jack Sawyer procurou tirar da cabeça todos os pensamentos angustiantes. Ficou olhando as placas de sinalização, as únicas coisas que ainda pareciam claras num mundo

(mundos?)

onde tudo se transformara num sombrio e enlouquecido torvelinho. Sentiu um início voraz de de­pressão rodopiar à sua volta, puxá-lo para a corrente irresistível, tentando lhe destruir a fibra, a determina­ção. Admitiu que as saudades de casa desempenhavam um certo papel nesta depressão, e esse reconheci­mento fez a saudade parecer uma coisa infantil, piegas. Mas sentia-se absolutamente à deriva, sem qual­quer lasquinha de tábua onde pudesse se apoiar.

Chegando à beira da estrada, contemplou a fileira de placas e o tráfego pesado em ambos os senti­dos. Percebeu que estava muito perto de um gesto tresloucado de suicídio. Por algum tempo, a idéia de que ia se encontrar com Richard Sloat fora capaz de encorajá-lo (e, embora quase improvável, a esperan­ça de que Richard resolvesse ir com ele até a Califórnia passou-lhe mais de uma vez pela cabeça — afinal, não seria a primeira vez que um Sawyer e um Sloat fariam juntos estranhas jornadas, certo?), mas o traba­lho duro na fazenda Palamountain e os estranhos acontecimentos do shopping Buckeye Mall tinham re­vestido o suposto encontro com Richard de uma auréola de ouro falso.

Volte para casa, Jacky, você está exausto, uma voz sussurrou. Se insistir, vão acabar lhe arrancan­do as tripas pela boca! Além disso, da próxima vez poderão morrer umas 50 pessoas. Ou 500!

Rodovia Federal 70 — Leste.

Rodovia Federal 70 — Oeste.

De repente, resolveu pegar uma moeda no bolso — a moeda que, neste mundo, era um dólar de prata. Que os deuses decidissem de uma vez por todas o seu destino. Ele estava cansado demais para fa­zê-lo por si mesmo. As costas ainda lhe doíam onde Mr. América golpeara. Se desse coroa, atravessaria a pista do leste e voltaria para casa. Se desse cara, continuaria em frente (e sem olhar para trás).

Ele se pôs no meio do acostamento e atirou a moeda no frio ar de outubro. Ela subiu rodopiando, cintilando de reflexos do sol. Jack empinou a cabeça para acompanhar-lhe a trajetória.

 

Uma família que enchia uma velha camioneta parou um instante no acostamento, e observou Jack Sawyer com curiosidade. O homem ao volante, um funcionário público meio calvo que às vezes acordava no meio da noite achando que estava sentindo pontadas no peito e no braço esquerdo, teve uma súbita e absurda série de fantasias. Aventura! Perigo! Dedicação a uma nobre causa! Sonhos de glória e destemor! Depois balançou a cabeça como se quisesse clarear as idéias e avaliou o rapaz que via pelo retrovisor... Alguém que estava atrás de alguma coisa! Cristo!, pensou o funcionário público meio calvo, tire essas idéias da cabeça, Larry! Você não é personagem de um livro juvenil de aventuras!

Larry tornou a entrar na pista de tráfego, acelerou rapidamente a camioneta para 110, e esqueceu o garoto de jeans desbotado e surrado na beira da estrada. Se conseguisse chegar em casa por volta das três, ainda veria a final dos pesos médios-ligeiros na televisão.

A moeda caiu. Jack se curvou. Era cara... mas não inteiramente.

A dama na moeda não era a Liberdade. Era Laura DeLoessian, rainha dos Territórios. Meu Deus, mas que diferença entre o rosto na moeda e o rosto sonolento, imóvel, que, cercado de enfermeiras em franzidos uniformes brancos, ele vira por um momento no pavilhão. Aquele rosto estava alerta e consciente; era enérgico, bonito! Não era uma beleza clássica; o contorno do queixo não era suficientemente nítido e a bochecha que aparecia de perfil era um tanto fofa. A beleza residia basicamente no porte régio da cabeça, sugerindo, de forma equilibrada, benevolência e competência.

E, oh!, tão parecido com o rosto da mãe!...

Os olhos de Jack se encheram de lágrimas, mas piscaram com força para elas não começarem a cair. Não estava disposto a passar um dia inteiro chorando. Já tinha a resposta que queria e não havia por que se lamentar.

Quando abriu novamente os olhos, Laura DeLoessian desaparecera; a mulher na moeda era outra vez a Liberdade.

A resposta dos deuses permanecia a mesma.

Jack se abaixou, tirou a moeda do pó do acostamento, colocou-a no bolso e continuou seguindo pela pista oeste da Estrada Federal 70.

 

Um dia depois; uma atmosfera nublada que, daí a pouco, ia se transformar em chu­va fria; a fronteira Ohio-Indiana a poucos minutos de carro.

Jack se achava numa parada rodoviária cercada de bosques, na Estrada Federal 70. Tinha se escon­dido (e Deus queira que estivesse bem escondido) atrás das árvores, aguardando pacientemente que o homem careca e alto, de voz áspera e forte, voltasse para o seu Chevy Nova e seguisse viagem. Rezava para que ele voltasse depressa, antes que começasse a chover. Mesmo sem chuva, já fazia muito frio. De manhã, Jack acordara com o nariz pingando e a voz um tanto rouca. Achava que ia pegar um resfriado.

O homem careca e alto, de voz áspera e forte, tinha dito que se chamava Emory W. Light. Pegara Jack ao norte de Dayton, por volta das 11 horas, e quase de imediato o garoto teve uma sensação de vazio na boca do estômago. Já viajara outras vezes com Emory W. Light. Em Vermont, Light dera o nome de Tom Ferguson, e disse que era gerente de uma sapataria; na Pensilvânia, o nome era Bob Darrent (“Quase o nome daquele sujeito que canta ‘Splish-Splash’, ha-ha-ha-ha”), e o emprego dessa vez era de diretor mu­nicipal do Ensino Secundário. Agora Light se dizia diretor-presidente do The First Mercantile Bank de Paradise Falls, uma cidade de Ohio.

Ferguson era magro e sombrio; Darrent era corpulento, corado como um bebê que acabou de sair do banho; e aquele novo Emory W. Light era alto e tinha cara de coruja (os olhos lembravam ovos cozidos atrás dos óculos sem aro).

As diferenças, no entanto, eram apenas superficiais. Todos ouviam a história de Jack com o máxi­mo interesse. Todos perguntavam se ele não tinha namorada. E, mais cedo ou mais tarde, Jack encontraria uma grande mão pousada na sua coxa. Quando olhasse de novo para Ferguson/Darrent/Light, veria uma expressão de semi-enlouquecida expectativa, mesclada a um semi-enlouquecido sentimento de culpa. Haveria uma tira de suor no lábio superior; no caso de Darrent, o suor brilhara através do bigode preto (minúsculos olhos brancos espreitando entre escassa vegetação).

Ferguson perguntou se ele gostaria de ganhar dez dólares.

Darrent dobrou a oferta para 20 dólares.

Light, com uma voz que, apesar de áspera e forte, estalava e oscilava por vários registros, pergun­tou se não gostaria de ter 50 dólares — disse que sempre trazia uma nota de 50 no calcanhar do sapato do pé esquerdo e não se importaria de oferecê-la a Lewis Farren. Havia um lugar perto de Randolph para onde podiam ir. Um celeiro vazio.       

Jack não estabeleceu qualquer relação entre o desenrolar de suas aventuras e as crescentes ofertas monetárias das várias encarnações de Light; não era de natureza introspectiva e não se interessava muito pela auto-análise.

Aprendera rapidamente a lidar com sujeitos do tipo Emory W. Light. Sua primeira experiência com Light, quando Light ainda se chamava Tom Ferguson, ensinara-lhe que a discrição era de longe a melhor saída. Quando Ferguson pôs a mão em sua coxa, Jack reagiu de forma automática, sem aquela sensibilidade californiana onde os gays fazem parte do cenário normal.

— Não, senhor, obrigado. Sou estritamente heterossexual.

Já fora abordado muitas vezes, é claro. Principalmente em cinemas. Mas houve também o balconis­ta de uma loja de artigos masculinos, na zona norte de Hollywood. Cordialmente, o homem se ofereceu para ajudá-lo a experimentar uma calça numa das cabines (quando Jack disse não, obrigado, o balconista respondeu apenas: “Ótimo! Então experimente esta jaqueta azul, está bem? Pode esquecer a cabine.”).

Em Los Angeles, um garoto de 12 anos e boa aparência aprende logo a enfrentar esses contratempos (assim como uma mulher bonita aprende a lidar com as cantadas no metrô). Finalmente se encontra um meio de contornar esse tipo de coisa sem estragar o nosso dia. Propostas como as de Ferguson deixam de ser um problema quando se sabe lidar com elas. Podemos colocá-las gentilmente fora de cogitação...

Pelo menos na Califórnia é assim. Os gays do leste — principalmente os do interior — sem dúvida encaram a rejeição de uma forma diferente.

Ferguson fez o carro parar com guinchos e derrapagens, deixando 40 metros de marcas de pneus atrás do Pontiac e levantando uma sombria nuvem de poeira.

— Está me chamando de homossexual? — gritou. — Está me chamando de veado, guri? Eu não sou veado! Deus! Você dá carona à porra de um garoto e ele te chama de veado!

Jack ficou olhando para o homem, meio atordoado. Não contando com a freada brusca, batera com força com a cabeça no acolchoado do painel do carro. Ferguson, que um momento antes o fitara com olhos castanhos e lacrimosos, parecia disposto a matá-lo.

— Saia! — Ferguson gritou. — Você é o veado, não eu! Você é o veado! Saia do meu carro, seu veadinho de merda! Saia do meu carro! Tenho mulher! Tenho filhos! Provavelmente tenho bastardos espalha­dos por toda a Nova Inglaterra!Eu não sou veado! Você é o veado, não eu! Portanto, saia do meu carro!

Jack ficou mais assustado que durante o encontro que tivera com Osmond. Delirando de raiva, Ferguson arrancou-o do carro e atirou-o no pátio da parada rodoviária. Jack correu, pulou um pequeno muro de cimento e escondeu-se atrás de uma árvore. Depois começou a rir e os risos quase se transforma­ram em gargalhadas. Então, tapou a boca com as mãos e concluiu que teria de apelar para o MÉTODO (pelo menos se quisesse chegar ao fim da travessia pelos estados do interior). “Qualquer problema sério exige um método”, o pai lhe dissera um dia. Morgan concordara vigorosamente, e, pelo menos daquela vez, Jack achou que o tio também tinha razão.

O método dera bom resultado com Bob Darrent e, sem dúvida, também ia funcionar com Emory Light... Mas, enquanto isso, o frio aumentava e o nariz escorria. De trás da árvore, Jack podia ver o homem lá embaixo, andando de um lado para o outro com as mãos nos bolsos, a cabeça calva brilhando suave­mente sob as nuvens do céu. Nas pistas da estrada, grandes caminhões passavam roncando, enchendo o ar de cheiro de combustível. Ali o bosque estava bem devastado e sujo, como costumam ficar os bosques nas margens das paradas rodoviárias. Sacos de comida vazios. Pacotes amassados de batatas fritas. Latas de cerveja e refrigerante (as alças iam chocalhar dentro delas se alguém as chutasse). Garrafas quebradas de gim e uísque barato. Mais adiante, um par de calcinhas de náilon com o absorvente ainda grudado. Um velho pneu sobre um galho caído.

Era sujeira demais, sem dúvida! Na parede dos fundos do banheiro dos homens, inúmeras e gran­des inscrições não deixavam de ter relação com um sujeito do tipo Emory W. Light: gosto de chupar um pau. Esteja aqui às 4 para a melhor foda que você já deu. Gosto de chupar um cu. E, mais embaixo, uma bicha iniciara um poema com altas aspirações: que goze todo mundo/ em teu sorriso imundo.

Estou com saudades dos Territórios, Jack pensou, mas não se sentiu surpreso com a idéia. Lá estava ele numa parada rodoviária da Estrada Federal 70, em algum lugar do oeste de Ohio, atrás de uma árvore e de dois banheiros de tijolo. Tremia numa suéter surrada que comprara por um dólar e meio numa loja de roupas usadas. Queria que o homem careca e alto lá embaixo entrasse logo no carro e fosse embora.

O método de Jack era o mais simples possível: não hostilizar um sujeito de mãos pesadas e voz ás­pera e forte.

Jack suspirou de alívio quando achou que sua estratégia começava a dar resultados. Uma mistura de raiva e repugnância se instalou no rosto grande e rude de Emory W. Light. Ele voltou para o carro, en­trou, deu marcha à ré com tanta rapidez que quase bateu num utilitário que ia passando (houve um breve guincho de buzina e o homem que acompanhava o motorista do utilitário xingou-o de alguma coisa), e foi embora.

Agora tratava-se apenas de voltar para perto do desvio, onde os carros que saíam da parada rodo­viária tornavam a pegar o tráfego de a estrada. Depois era levantar o polegar... Esperava ardentemente conseguir uma carona antes de a chuva começar a cair.

Deu mais uma olhada em volta. Feiúra, desleixo. Essas palavras lhe vieram naturalmente à cabeça quando contemplou pela última vez a imunda desolação atrás do pequeno muro de cimento. Ocorreu-lhe que havia uma sensação de morte naquele lugar. Aliás, não apenas ali, ou nas estradas em geral, mas espalhada pelo país inteiro. Achou que aquela sensação era quase visível. Era como uma sombra no meio de uma luz mortiça, como a nuvem de fumaça deixada pelo cano de descarga de um carro muito velho.

Um novo sentimento de saudade tornou a assaltá-lo — a vontade de ir para os Territórios e ver o profundo céu azul, a ligeira curvatura nos limites do horizonte...

Mas quem faz essas coisas tipo Jerry Bledsoe acontecerem?

Não sei nada sobre isso... Sei apenas que essa idéia de “assassinato” deve ter assumido proporções enormes dentro da sua cabeça...

Aproximando-se do banheiro (agora teve vontade de urinar), Jack Sawyer espirrou três vezes seguidas. Engoliu em seco e se encolheu, sentindo um formigamento quente na garganta. Estava ficando doente, oh, sim, não faltava mais nada! Ainda não tinha atravessado a fronteira de Indiana, a temperatura era de dez graus, a chuva se aproximava... e talvez não fosse fácil conseguir uma nova carona.

O pensamento foi subitamente interrompido. Arregalando a boca, Jack fitou o estacionamento da parada rodoviária. Por um terrível momento, achou que ia molhar a calça. Tudo debaixo do seu peito começou a se apertar, a se comprimir. Parado numa das 20 pequenas vagas, a pintura verde-escura coberta do pó da estrada, lá estava o bmw do tio Morgan. Nenhuma possibilidade de estar equivocado, absolutamente nenhuma. Aquele era o carro de Morgan Luther Sloat! Devia ter vindo voando do leste, é claro!

Mas se ele falou com você de New Hampshire, rapaz!? Como o carro pode estar aqui?, resmungou sua mente. Tem mesmo certeza de que não é uma coincidência, um carro muito parecido?...

Então viu o homem dentro da cabine telefônica e voltou a ter certeza absoluta. O sujeito estava de costas para ele e usava um enorme casaco forrado de pele, mais adequado para um frio de 20 graus abai­xo de zero do que para uma temperatura de dez graus. Era impossível não reconhecer aqueles ombros largos, aquele corpo grande, robusto, preguiçoso.

O homem começou a se virar, imprensando o fone entre a orelha e o ombro.

Jack se escondeu atrás da parede de tijolo do banheiro.

Será que ele me viu?

Não, respondeu para si mesmo. Não, acho que não. Mas...

Mas o Capitão Farren dissera que Morgan — aquele outro Morgan dos Territórios — poderia fare­já-lo como um gato fareja um rato. E isso era a pura verdade! De seu esconderijo na perigosa floresta das árvores vivas, Jack vira o hediondo rosto branco contorcer o nariz na janela da diligência.

O Morgan americano também saberia farejá-lo. Era só ter uma oportunidade e...

Passos no cimento se aproximando.

Com o rosto dormente e contraído de medo, Jack tentou remexer na mochila em busca do suco mágico. Mas não seria tarde demais? Daí a uma fração de segundo Morgan surgiria na sua frente, sorrindo, para pegá-lo pelo pescoço. Ei, Jacky! Aleluia, rapaz! O jogo parece que terminou! Não concorda comigo, seu pequeno patife?

Um sujeito alto, com um casaco de caçador, dobrou a esquina do banheiro, lançou a Jack um olhar desatento e foi para o bebedouro.

Ia voltar. Ele ia voltar para os Territórios. Não havia mais sentimentos de culpa, pelo menos não agora; só aquele medo terrível, encurralado em seu peito, mas estranhamente mesclado a sensações de alívio e prazer. Abriu a mochila e remexeu dentro dela. Lá estava a garrafa de Speedy, com menos de três centímetros do líquido roxo

(Nenhum guri precisa viajar com um veneno desses, mas vou ter de usá-lo, Speedy!, vou ter de usá-lo!)

engordurando o fundo. Pouco importava! Ele ia voltar! O coração ameaçava saltar-lhe pela boca, Mas um grande sorriso de madrugada de sábado brilhou em seu rosto, negando o dia sombrio e o medo no peito. Voltar, oh, sim, voltar para os Territórios!

Novos passos se aproximando, e dessa vez era mesmo o tio Morgan, não havia erro quanto ao pas­so de chumbo (ainda que furtivo). Mas o medo se fora. Tio Morgan estava se aproximando, mas quando virasse a esquina do banheiro veria apenas latas amassadas de cerveja e sacos de comida espalhados pelo chão.

Jack Sawyer respirou fundo. Era o cheiro engordurado dos vapores diesel dos caminhões, das des­cargas dos automóveis, do frio ar de outono. Encostou nos lábios o gargalo da garrafa. Tomou um dos dois goles que ainda restavam. E, mesmo com os olhos fechados, franziu a testa como...

 

LOBO

... Se a luz forte do sol estivesse lhe atravessando as pálpebras.

Por entre o nauseante cheiro adocicado do suco mágico, pôde sentir outra coisa: o cheiro quente de animais. Pôde também ouvi-los movendo-se em volta dele.

Assustado, Jack abriu os olhos, mas a princípio não conseguiu ver nada — a diferença na luz fora demasiado brusca e repentina, como se alguém tivesse acendido refletores de 200 watts numa sala escura.

Um lombo quente, coberto de pêlo, esbarrou nele. Não de uma forma ameaçadora (pelo menos foi a esperança de Jack), mas com um jeito de foi-um-prazer-conhecê-lo-mas-tenho-de-ir-logo-pra-casa-rapaz! Jack, que começara a se levantar, baqueou de novo no chão.

Ei! Ei! Saia de perto dele! Saia já, vamos, vamos!

Uma voz forte e saudável foi seguida por um som animal de descontentamento, alguma coisa entre um mugido e um balido.

Pelo amor de Deus! Fique direita, vamos! Saia já de perto dele ou lhe arranco os olhos da cara!

Agora seus olhos já tinham se adaptado ao brilho quase imaculado de um dia de outono nos Terri­tórios e, no meio de um rebanho de animais de pêlo crespo, ele viu um jovem gigantesco, golpeando lombos, ancas e Corcundas com grande energia e disposição. Jack se sentou, procurando automaticamen­te a garrafa de Speedy (com seu precioso último gole) e guardando-a no gibão. Nem por um instante tirou os olhos do rapaz, que continuava de costas.

Era realmente alto (pelo menos dois metros, Jack calculou). Os ombros eram tão largos que, mes­mo levando em conta a altura, pareciam um tanto fora de esquadro. O cabelo comprido e liso chegava até as omoplatas. Os músculos salientes ondulavam enquanto ele se movia entre animais que lembravam va­cas em tamanho pequeno. Mantendo-as longe de Jack, ele tentava guiá-las para a Estrada do Oeste.

Mesmo visto de costas, o rapaz era uma figura espantosa, mas o que mais surpreendeu Jack foi o tipo de roupa que ele estava usando. Até então, todo mundo que vira nos Territórios (incluindo ele mes­mo) usava túnicas, gibões ou calções de pano grosso.

Aquele sujeito parecia estar usando um macacão enorme, com uma espécie de babadouro no peito.

Então o rapaz se virou e Jack sentiu um terrível choque subir-lhe pela garganta. Levantou-se num salto.

Era a coisa-Elroy.

O pastor era a coisa-Elroy.

 

Só que não era.

Se fosse, talvez Jack não tivesse sobrevivido para ver aquele rosto, e tudo o que aconteceu depois — o cinema, o galpão, o inferno da Casa do Sol — não teria ocorrido (ou, quando muito, teria ocorrido de forma completamente diferente). Mas, no limite de seu terror, ficou totalmente paralisado; tão incapaz de fugir quanto um cervo hipnotizado pela lanterna do caçador.

E, quando a figura de macacão se aproximou, ele disse para si mesmo: Elroy não tinha essa altura nem esses ombros tão largos. E os olhos dele eram amarelos...

Os olhos daquela criatura, no entanto, tinham uma brilhante, fantástica sombra alaranjada. Olhar dentro deles era como olhar nos furos de uma abóbora-moranga no Dia das Bruxas. E enquanto o sorriso de Elroy sugeria crime e loucura, o sorriso que se abria naquele rosto era inofensivo e cordial.

Os pés pareciam enormes, espalmados, dedos reunidos em grupos de três e dois, quase invisíveis por entre ásperos anéis de cabelo. Nada de cascos, como os cascos de Elroy, mas apesar disso aqueles pés se pareciam muito com patas. Jack ficou um tanto atordoado por causa do espanto, por causa do medo. Mas, estranhamente, experimentou também uma crescente sensação de alegria.

Quando a distância entre a criatura e Jack diminuiu,

(O que seria aquilo? Gente? Bicho?)

os olhos faiscaram num alaranjado brilhante, lembrando por um momento as faixas divisórias das pistas de estradas iluminadas de sol. A coloração foi se desbotando até se transformar num tom casta­nho-claro, mas um tanto turvo. Jack percebeu que havia ao mesmo tempo surpresa e cordialidade naque­le sorriso, e compreendeu mais duas coisas: primeiro, a criatura não era perigosa, não havia nela qualquer vestígio de hostilidade; segundo, a criatura era lenta. Não fraca, talvez, mas de movimentos lentos,

— Lobo! — gritou o grande e peludo rapaz-animal, sempre sorrindo. Sua língua era comprida e pontuda (Jack admitiu com um súbito calafrio que um lobo era exatamente o que ele lembrava; não um bode, mas um lobo).

Desejou ardentemente ter tirado a conclusão certa sobre a ausência de ferocidade da criatura. Se cometi um erro de julgamento, pensou ele, pelo menos não teria mais de me preocupar com avaliações fu­turas... Nunca mais!

— Lobo! Lobo!

A criatura estendeu uma das mãos e Jack observou que, assim como os pés, as mãos eram cobertas de pêlos (embora ali o pêlo fosse mais fino e mais exuberante: a mão, na realidade, era quase bonita). O pêlo se adensava principalmente nas palmas e tinha o tom ligeiramente esbranquiçado de uma testa bri­lhante de cavalo.

Meu Deus! Acho que ele quer apertar minha mão!

Cautelosamente, lembrando-se de que o tio Tommy achava que nunca se deve recusar um aperto de mão, nem mesmo ao nosso pior inimigo (“Se for preciso, lute com ele até a morte, mas primeiro lhe dê um aperto de mão.”), Jack estendeu o braço (quem sabe não estaria prestes a ter a mão esmagada... Ou talvez comida?).

— Lobo! Lobo! Sempre trocar um aperto de mão! — gritou, satisfeito, a coisa-rapaz de macacão. — Sempre trocar um aperto de mão! Com o bom companheiro Lobo! Deus gosta de coisas assim! Agora e sempre! Lobo!

Apesar do entusiasmo, o cumprimento de Lobo foi bastante suave, amortecido pela crespa, peluda profusão de cabelo da mão. Um grande macacão e um grande aperto de mão de uma criatura que parece um superdesenvolvido husky siberiano e tem um certo aroma de celeiro de feno depois de chuva de en­chente, Jack pensou. O que virá agora? Um convite para acompanhá-lo à igreja no domingo?

— O Lobo é um bom companheiro, pode apostar! Um companheiro para hoje e sempre! Lobo cruzou os braços em volta do peito enorme e riu, deliciado consigo mesmo. Depois pegou de novo a mão de Jack.

Dessa vez sua mão foi vigorosamente bombeada para cima e para baixo. Se não tomasse alguma providência, aquele simplório camponês-lobo poderia continuar lhe sacudindo a mão até o pôr-do-sol.

— O bom companheiro Lobo — disse ele. Parecia ser uma frase pela qual tinha particular predileção.

Lobo riu como uma criança e soltou a mão de Jack. Sem dúvida, foi um alívio. A mão não fora es­magada nem comida, mas parecia um tanto dormente. O cumprimento de Lobo fora mais veloz que uma bomba hidráulica acionada a todo vapor.

— Estrangeiro, não é? — Lobo perguntou. Enfiou as mãos peludas nos bolsos e, inteiramente à vontade, começou a brincar com elas dentro do macacão.

— Sim — disse Jack, sem saber qual seria o significado da palavra “estrangeiro” nos Territórios (provavelmente seria um significado muito específico). — Sim, acho que é exatamente isso o que eu sou. Um estrangeiro.

— Não falei? Pude sentir o cheiro! Na mesma hora, rapaz! Oh, na mesma hora eu dei conta! Não é um cheiro ruim, é claro, mas sem dúvida é bem engraçado! Lobo! Lobo sou eu! Lobo! Lobo! Lobo!

Atirou a cabeça para trás e riu. De um modo desconcertante, o som acabou se transformando numa espécie de uivo.

— Jack — disse o garoto. — Jack Saw...

Lobo se apoderou outra vez da mão de Jack e bombeou-a com energia.

— Sawyer — Jack concluiu ao se ver novamente livre. Embora atordoado, como se lhe tivessem batido com um grande taco de golfe, Jack sorriu.

Cinco minutos atrás, estava encurralado na fria parede de tijolo de um banheiro da Estrada Federal 70. Agora estava ali de pé, conversando com um jovem que parecia mais animal do que gente.

Mas, sem a menor dúvida, a sensação de frio desaparecera por completo.

 

— O Lobo encontrou Jack! Jack encontrou o Lobo! Aqui e agora! Tudo bem! Muito bem! Oh, Jasão! Vacas na estrada! Mas elas não são estúpidas! Lobo, oh, Lobo!

Berrando, Lobo galopou pela colina até a estrada, onde cerca de metade de seu rebanho se encon­trava. Os animais olhavam ao redor com uma leve expressão de surpresa, como a perguntar para onde fora o pasto. Pareciam uma estranha mistura de vacas e ovelhas, e Jack se perguntou se não era aquilo que chamavam de “espécie híbrida”. Mas a expressão que lhe veio mais concretamente à cabeça foi “es­pécie mutante”... Lá estava o Lobo cuidando do seu rebanho de mutantes. Oh, sim. Ali e agora!

De novo a sensação de tontura, de novo o taco de golfe na cabeça. Ele se sentou e começou a rir, as mãos tapando a boca para abafar o som.

Mesmo o maior “mutante” não teria mais de um metro e 20 de altura. O pêlo parecia lã, mas de um tom indefinido, turvo, semelhante aos olhos de Lobo (pelo menos quando os olhos de Lobo não estavam brilhando como lanternas no Dia das Bruxas), No alto da cabeça dos animais havia chifres curtos e retorci­dos numa espécie de arabesco que, sem dúvida, não tinham qualquer utilidade prática. Lobo guiou-os para fora da estrada. Eles o seguiram obedientes, sem demonstrar qualquer sinal de medo. Se uma vaca ou uma ovelha americanas vissem o rosto desse sujeito, Jack pensou, acabariam se matando tentando fu­gir da frente dele.

Mas Jack gostou de Lobo — gostou dele à primeira vista, assim como teve medo e não gostou de Elroy à primeira vista. E o contraste era particularmente interessante, porque era inegável que havia certas semelhanças entre os dois. A única diferença era que Elroy tinha traços de cabra, enquanto Lobo era... bem... lupino.

Jack caminhou lentamente para onde Lobo guiara o rebanho. Lembrou-se de quando caminhara na ponta dos pés pelo escuro e fedorento corredor da Taberna Oatley, a saída de incêndio lá no fundo e Elroy por perto, talvez sentindo o cheiro dele (como uma vaca indubitavelmente sente o cheiro de um lobo). Lembrou-se das mãos de Elroy começando a engrossar, a se retorcer, a nuca inchando, os dentes se transformando num punhado de caninos apodrecidos.                                          

— Lobo?

Lobo se virou e olhou-o sorrindo. Um brilho alaranjado, simultaneamente selvagem e inteligente, cintilou em seus olhos. Depois o brilho se dissipou, dando lugar àquele castanho turvo que parecia perpetuamente atordoado.

— Será que você... é uma espécie de lobisomem?

— É claro que sim — disse Lobo, sorrindo. — Acertou na mosca, Jack! Lobisomem! Lobo, oh, Lobo!

Jack sentou-se numa pedra, contemplando Lobo com ar pensativo. Até pouco tempo, julgara im­possível se surpreender com mais alguma coisa; Lobo, porém, superava todas as expectativas.

— Como está seu pai, Jack? — ele perguntou naquele tom despreocupado e descontraído com que perguntamos pelos parentes dos outros. — O que Phil anda fazendo? Lobo, oh, Lobo!

 

Jack ficou inteiramente perplexo: foi como se sua mente tivesse sido varrida por um torvelinho. Continuou sentado e calado, um branco total na cabeça, como uma emissora de rádio que saiu do ar. Então viu o rosto de Lobo se alterar. A expressão de felicidade e curiosidade infantil foi substi­tuída por uma expressão de tristeza. Jack viu as narinas começando rapidamente a se inflamar.

— Ele morreu, não foi? Lobo, oh, Lobo! Sinto muito, Jack. Que Deus me castigue! Sou um estúpido! Estúpido!

Lobo bateu com a mão na testa e dessa vez realmente uivou. Foi um som que congelou o sangue de Jack. O rebanho de mutantes olhou em volta com ar inquieto.

— É, foi isso — disse Jack. Ouviu sua voz mais nos ouvidos que na cabeça, como se fosse outra pessoa que tivesse falado. — Mas... como você soube?

— Seu cheiro se modificou — Lobo respondeu com naturalidade. — Seu cheiro me disse que ele tinha morrido. Pobre Phil! Que ótimo sujeito! Digo-lhe isto aqui e agora, Jack! Seu pai era um ótimo sujei­to! Oh, Lobo!

— Sim — disse Jack —, era um bom sujeito. Mas como o conheceu? E como soube que eu era filho dele?

Lobo olhou para Jack como se ele tivesse feito uma pergunta tão tola que nem merecia resposta.

— Eu me lembro do cheiro de Phil, é claro! Lobo se lembra de todos os cheiros. E você cheira como seu pai.

Pang! O taco de golfe bateu de novo em sua cabeça. Jack sentiu uma súbita urgência de sapatear pela relva verde, primarevil, uma urgência de abrir bem a goela e uivar. Já lhe tinham dito que tinha os olhos do pai, a boca do pai, até mesmo a habilidade do pai para desenhar, mas era a primeira vez que ou­via dizer que tinha o mesmo cheiro do pai. A idéia, porém, não deixava de ter uma certa lógica.

— Como o conheceu? — Jack perguntou outra vez.

Lobo pareceu um tanto confuso.

— Ele veio com aquele outro — disse por fim. — Aquele de Orris. E esse era mau. Esse roubou al­guns de nós. Seu pai não ficou sabendo disso — ele logo acrescentou, como se não quisesse melindrar os sentimentos de Jack. — Deus! Não! Seu pai era um bom sujeito... Phil... mas o outro...

Lobo balançou lentamente a cabeça. Em seu rosto brotara uma expressão extremamente ingênua. Como se recordasse algum pesadelo infantil.

— O outro era mau — disse Lobo. — E meu pai acha que ele conseguiu arranjar um lugar nos Ter­ritórios. Na maioria das vezes, estava na pele do Duplo, mas era um homem do seu mundo, não há dúvi­da! Nós sabíamos que ele era mau, tínhamos certeza disso, mas quem dá importância aos Lobos? Seu pai sabia que ele era mau, mas não podia farejar a coisa tão bem quanto nós. Sabia que o outro era mau, mas não até que ponto.

Lobo atirou a cabeça para trás e uivou de novo, um longo e assustador guincho de dor que ecoou pelo profundo azul do céu.    

 

SLOAT NESTE MUNDO (II)

Do bolso de seu enorme casaco com capuz (ele o comprara convencido de que, depois das Montanhas Rochosas, a América se transformava, já no outono, numa terra árida e glacial — agora, no entanto, estava suando em bicas), Morgan Sloat tirou uma caixinha de aço. Sob a fechadura ha­via dez pequenos botões e um enfumaçado vidro amarelo com meio centímetro de altura e cinco centímetros de comprimento. Com a unha da mão esquerda ele empurrou cuidadosamente alguns botões e uma série de números apareceu na pequena janela. Sloat comprara aquela geringonça, que diziam ser o menor cofre do mundo, em Zurique. Segundo o homem que o vendera, nem mesmo uma semana num forno crematório seria capaz de violar sua integridade.

O cofrinho se abriu com um estalido.

Sloat puxou duas pequenas capas de veludo negro (como as que revestem caixas de jóias) e en­controu uma coisa que vinha guardando há mais de 20 anos (muito tempo antes da detestável criança que estava causando todo aquele problema ter nascido). Era uma chave de metal, manchada e sem brilho, que outrora servira para dar corda nas costas de um soldadinho de chumbo. Sloat vira o soldadinho na vitrine de um bazar na estranha cidade de Point Venuti, na Califórnia — uma cidade na qual tinha grande interes­se. Movido por uma compulsão irresistível (e não tivera, aliás, a menor intenção de resistir a ela; Morgan Sloat sempre considerara a compulsão uma virtude), entrou na loja e pagou cinco dólares pelo soldadi­nho amassado e enferrujado... Mas, sem dúvida, não fora exatamente o soldado o que despertara o seu in­teresse. A chave de dar corda é que lhe atraíra a atenção, a chave é que lhe transmitira alguma coisa. Assim que saiu do bazar, tirou a chave das costas do soldado e colocou-a no bolso. Mais adiante, o solda­do foi jogado numa lata de lixo defronte à livraria Planeta Perigoso.

Agora, ao lado de seu carro na parada rodoviária Lewisburg, ele levantou a chave e fitou-a com atenção. Como a palheta de violão de Jack, a chave se transformava numa coisa diferente nos Territórios. Certa vez, quando voltava para casa, deixou-a cair no vestíbulo do velho prédio de escritórios. E devia ter sobrado na chave alguma força mágica dos Territórios, pois aquele idiota do Jerry Bledsoe foi inteiramen­te cozinhado menos de uma hora depois. Será que Jerry a pegara? Será que pisara nela? Sloat não sabia e nem se importou em saber. Não deu a mínima para o acidente com Jerry. Considerando que o eletricista tinha um vultoso seguro para morte acidental (o supervisor do edifício, com quem às vezes conversava um pouco, lhe passara esta informação), a Sra. Bledsoe devia ter ficado bem servida. O que deixou Mor­gan extremamente preocupado foi a perda da chave. A sorte é que Phil Sawyer a encontrou, devolven­do-a ao sócio com um comentário distraído: “Ei, Morgan. Seu objeto de estimação, não é? Deve estar com o bolso furado, rapaz! Encontrei-a no vestíbulo depois que levaram o corpo do coitado do Jerry.”

Sim, no vestíbulo. No vestíbulo onde tudo cheirava como numa fornalha que, durante um bom tempo, tivesse funcionado a pleno vapor. No vestíbulo, onde tudo ficara enegrecido, retorcido, fundido.

Exceto aquela despretensiosa chavezinha.

Que, no outro mundo, virava uma estranha espécie de pára-raios — e que Sloat punha agora em volta do pescoço numa fina corrente de prata.

— Pode estar certo de que vou pegá-lo, Jacky... — disse Sloat num tom de voz quase terno. — Está na hora de acabar de uma vez por todas com esse negócio ridículo.

 

O LOBO E O REBANHO

Lobo falava de muitas coisas, levantando-se de vez em quando para afastar o gado da estrada e uma vez para levá-lo até um riacho, cerca de um quilômetro a oeste. Quando Jack perguntou onde ele morava, Lobo limitou-se a inclinar vagamente o braço para o norte. Morava, disse, com a família. Quando, alguns minutos mais tarde, Jack pediu maiores esclarecimentos, Lobo explicou que não tinha mulher nem filhos, e que só entraria no que chamou de “grande cio lunar” daí a um ou dois anos. Mas o sorriso inocentemente sensual que se espelhou em seu rosto deixou bem claro que aguardava com ansie­dade pelo “grande cio lunar”.

— Mas você disse que morava com a família.

— Oh, família! Eles! Oh, sim! — Lobo riu. — Por certo. Eles! Nós todos vivemos juntos. O rebanho tem de ser conservado, você sabe. O rebanho dela.

— Da rainha?

— Sim. Talvez ela nunca, nunca morra.

E Lobo fez uma mesura absurdamente solene, curvando-se com a mão direita e tocando a testa.

Novas perguntas deixaram as coisas mais claras na mente de Jack (ou pelo menos foi o que ele pensou). Lobo era solteiro (embora, de certa forma, esse tipo de qualificação não se adaptasse muito bem ao seu caso). A família de que falara era uma família muito extensa — ou seja, uma família de lobos. Fazia parte de uma raça nômade, mas extremamente fiel a laços de lealdade. Deslocavam-se de um lado para outro pelas grandes áreas desérticas a leste das Fronteiras, mas a oeste das “colônias” (nome que Lobo usava para indicar as cidades e vilas do leste).

Os lobinos (jamais “lupinos” — quando Jack uma vez usou a palavra certa, Lobo riu até as lágrimas lhe escorrerem pelos cantos dos olhos) eram, em geral, de constituição sólida e trabalhadores dignos de toda a confiança. Seu vigor físico era lendário, sua coragem indiscutível. Alguns tinham ido para as “colô­nias”, onde serviam à rainha como guardas, soldados ou guarda-costas pessoais. Suas vidas, Lobo expli­cou a Jack, tinham apenas duas grandes motivações: a rainha e a família. A maioria dos Lobos, porém, servia à rainha do mesmo jeito que ele: guardando rebanhos.

As vacas-ovelhas eram para os Territórios as fontes básicas de carne, vestuário, gordura animal e óleo para lamparinas (Lobo não falou a Jack exatamente desse modo, mas o garoto procurou tirar do que ouviu as deduções mais lógicas). Todos os rebanhos (ou todo o “gado”) pertenciam à rainha, e a família lobina se encarregava de guardá-los desde tempos imemoriais. Era uma função estritamente deles. Jack estabeleceu um paralelo com os índios das planícies americanas e os búfalos (pelo menos até o momento em que o homem branco entrou nas terras indígenas e alterou o seu modo de vida).

— E eu vos digo, o leão deitará ao lado do cordeiro e o Lobo será companheiro dos híbridos — Jack murmurou e sorriu. Estava deitado de costas, as mãos cruzadas atrás da cabeça. Fora envolvido pela mais esplêndida sensação de paz e harmonia.

— O que você disse, Jack?

— Nada — ele respondeu. — Lobo, você realmente se transforma num verdadeiro animal na lua cheia?

— É claro que sim! — disse Lobo. Parecia atônito, como se Jack tivesse lhe perguntado alguma coi­sa do tipo Você realmente fica contente quando acerta na quina da loto?— Os estrangeiros é que não se transformam, não é? Foi isso que Phil me contou.

— O... o rebanho — disse Jack. — Quando você vira bicho, o que...

— Oh, nem chegamos perto do rebanho quando mudamos de forma — Lobo respondeu gravemente. — Por Jasão, nada disso! Íamos querer comê-lo, você não acha? E um Lobo que come do rebanho deve morrer. É o que diz o Livro da boa lavoura. Lobo! Oh, Lobo! Temos lugares próprios para onde ir quando é lua cheia. O rebanho também. São animais meio tolos, mas sabem que têm de fugir na época da grande lua. E os Lobos, oh, os Lobos! Eles sabem ainda melhor o que devem fazer. Conhecem os castigos de Deus.

— Mas você come carne, não é verdade? — Jack perguntou.

— Cheio de perguntas, exatamente como o pai — disse Lobo. — Oh, Lobo não se importa. Sim, nós comemos carne. É claro que sim. Afinal, somos lobinos, não é?

— Mas se não comem carne dos rebanhos, de que se alimentam?

— Sabemos nos alimentar — disse Lobo, e não tocou mais no assunto.

Como todas as outras coisas nos Territórios, Lobo era um mistério — um mistério simultaneamente fascinante e assustador. O fato de ele ter encontrado tanto o pai de Jack quanto Morgan Sloat (ou pelo menos seus Duplos, por certo mais de uma vez) contribuía para a particular aura de mistério que Lobo transmitia, mas não era suficiente para explicá-la inteiramente. Tudo o que Lobo contava instigava Jack a fazer novas perguntas, a maioria das quais Lobo não podia — ou não queria — responder.

Um exemplo foram as visitas de Philip Sawtelle e Orris. Apareceram pela primeira vez quando Lobo estava na “pequena lua” e vivia com a mãe e duas “irmãs de cria”. Aparentemente, estavam apenas passeando, como Jack parecia estar fazendo agora... Só que estavam indo para o leste, não para o oeste.

— Para dizer a verdade — Lobo confessou —, acho que você é o único humano que já encontrei por estas bandas disposto a caminhar ainda mais para o oeste.

De início, a companhia de Phil e Orris tinha sido extremamente agradável. Mais tarde, no entanto, surgiram problemas... problemas com Orris. Tudo aconteceu depois que o sócio do pai de Jack resolveu “conceder a si mesmo um lugar neste mundo”, Lobo contou e repisou para Jack (Morgan Sloat transpare­cia cada vez mais sob seu disfarce de Orris). Lobo disse que Morgan pegara uma de suas irmãs de cria (“Minha mãe ficou tão angustiada que, durante um mês, não parou de roer as mãos e os dedos dos pés”, Lobo disse a Jack com naturalidade) e de vez em quando levava outros Lobos. Depois abaixou a voz e, com uma expressão de temor e supersticioso respeito, contou a Jack que o “homem do diabo” carregou alguns desses Lobos para o outro mundo, o lugar dos estrangeiros, e os ensinou a comer da carne do re­banho.

— Isto deve ter sido terrível para o seu pessoal, não é? — Jack perguntou.

— Eles estão possessos — Lobo respondeu com uma expressão de tristeza.

A princípio, Jack pensou que Lobo estava falando de seqüestro — afinal, o verbo que usara ao se referir à irmã de cria era a versão de roubar na língua dos Territórios. Logo, no entanto, percebeu que não se tratara exatamente de seqüestros. Com uma poesia inconsciente, Lobo tentava explicar que Morgan “seqüestrara” as mentes de alguns membros da família lobina. Jack compreendeu que Lobo se referia a lobisomens que renegaram a fidelidade ancestral à coroa e ao rebanho para se tornarem vassalos de Mor­gan... Morgan Sloat, Orris, Morgan de Orris.

O que levou Jack a se lembrar também de Elroy...

Um Lobo que come do rebanho deve morrer.

O que levou Jack a se lembrar dos homens do carro verde que lhe perguntaram onde ficava o ho­tel, que lhe ofereceram um doce e tentaram seqüestrá-lo. Os olhos. Os olhos tinham se alterado.

Eles estão possessos.                          

Ele resolveu conceder a si mesmo um lugar neste mundo.

Até aquele momento, Jack sentira-se ao mesmo tempo satisfeito e seguro: satisfeito por estar de volta aos Territórios, onde havia uma certa aragem fria no ar, mas nada que se pudesse comparar à umidade, ao céu cinzento que ameaçara perfurá-lo com gotas geladas a oeste de Ohio; e seguro por estar ao lado do grande e cordial Lobo, na solidão do campo, a quilômetros de qualquer coisa ou de qualquer pessoa.

Conceder a si mesmo um lugar neste mundo.

Perguntou a Lobo sobre o pai (Philip Sawtelle naquele mundo), mas Lobo limitou-se a sacudir a cabeça. Phil era um excelente sujeito, e era um Duplo (portanto, obviamente, um estrangeiro), mas isso era tudo o que Lobo parecia saber. Um Duplo, disse ele, era algo que tinha alguma coisa a ver com crias duplas de pessoas, e sobre esses assuntos não se sentia capacitado a falar. Nem podia descrever Philip Sawtelle; não se lembrava de como ele era. Só se lembrava do cheiro. Tudo o que sabia era o seguinte: embora a princípio os dois estrangeiros parecessem ser boa gente, apenas Phil Sawyer tinha realmente agido como boa gente. Certa vez, chegou até a trazer presentes para Lobo e suas irmãs e irmãos de cria. Um dos presentes (que não se alterou na travessia do mundo dos estrangeiros) foi uma bonita coleção de macacões para Lobo.

— Eu nunca deixei de usá-los — disse Lobo. — Minha mãe queria que eu os jogasse fora, pois já ti­nham mais de cinco anos. Ela achava que já estavam gastos! Achava que ficavam apertados demais em mim! Lobo, oh, Lobo! Ela dizia que eram apenas remendos e mais remendos. Mas eu não dei o braço a torcer, Jack! Finalmente, ela comprou uns panos num mercado lá para o leste. (Nem sei quanto custaram, e confesso a você que tive até medo de perguntar.) Ela os cortou, coseu e me fez seis macacões iguais aos que Phil tinha me dado. Mas ainda uso os que ganhei de seu pai quando vou dormir. Lobo, oh, Lobo! Não há travesseiros melhores, pode apostar!

Lobo sorriu tão francamente (ainda que com um certo ar de tristeza) que Jack ficou comovido e pe­gou a mão dele. Era uma coisa que, alguns dias atrás, jamais pensaria ter coragem de fazer, não importa em que circunstâncias travasse amizade com um lobisomem. Mas, naquele momento, aquilo lhe pareceu absolutamente natural. E ficou contente ao sentir o calor da mão forte do Lobo.

— Estou muito feliz por você ter conhecido o meu pai e ter gostado dele — disse Jack.

— Eu gostava dele, gostava! Lobo, oh, Lobo!

E então, o inferno pareceu abrir as comportas.

 

Lobo parou de falar e olhou assustado ao redor.

— Lobo? O que há de err...

— Psssiu!

Então Jack escutou. Os ouvidos mais sensíveis de Lobo tinham captado o som primeiro, mas a coi­sa se avolumou de tal forma que, pouco depois, mesmo um surdo seria capaz de ouvi-la. O rebanho olhou em volta e começou a se afastar num passo nervoso, pesado. Era como uma interferência num rá­dio de ondas curtas que, muito lentamente, começasse a crescer. E o volume foi aumentando, aumentan­do cada vez mais, até Jack achar que o som ia deixá-lo maluco.

Lobo ficou de pé, parecendo tonto, confuso, assustado. Aquele chiado extraordinariamente forte, aquele ronco grave continuava a aumentar. O balido do rebanho ficou mais alto. Alguns animais foram re­cuando para o riacho e Jack viu um dos “híbridos” cair dentro dele. Houve um esparramar de água, um debater de patas. O animal fora empurrado pela agitada retirada dos companheiros. Deixou escapar um guincho estridente, doloroso. Outra vaca-ovelha tropeçou e foi igualmente atirada na água pela fuga compacta do rebanho. As margens do riacho eram pantanosas, cheias de juncos e lodo. A vaca-ovelha que caiu primeiro logo ficou atolada no barro e na lama.

— Oh, rebanho maluco! Vocês não prestam pra nada, oh, Lobo!— Lobo gritou e disparou pela co­lina na direção do riacho, onde o animal atolado no barro já estava à beira da morte.

— Lobo! — Jack gritou, mas Lobo não pôde ouvi-lo. Na realidade, Jack mal podia ouvir o som da própria voz no meio daquele som de trovoada. Virou os olhos para a direita e abriu a boca de espanto. Alguma coisa estava acontecendo no ar. Cerca de um metro acima do solo, havia um trecho de atmosfera se encrespando, ondulando, formando um torvelinho de contorções. Do outro lado daquele trecho de ar, Jack pôde ver a Estrada do Oeste, mas a estrada parecia borrada, fora de foco, como se vista através das ondas de ar quente de um incinerador.

Alguma coisa está repuxando, rasgando o ar. Alguma coisa está atravessando...? Vindo do outro lado? Oh, Jasão, será que eu também provoco isso quando atravesso?

Mas, mesmo entre a perplexidade e o pânico, Jack sabia que não.

Fazia uma idéia muito concreta de quem poderia estar chegando daquela maneira — como um es­tupro, uma violação.

E começou a correr pela colina.

 

O som de algo rasgando continuou aumentando. Lobo estava de joelhos na margem do riacho, tentando ajudar um segundo animal caído a ficar de pé. O primeiro flutuava molemen­te rio abaixo, o corpo arranhado, mutilado.

— Levante-se! Diabo, levante! Lobo, oh, Lobo!

Lobo sacudia e empurrava a vaca-ovelha, mas ela apenas se debatia e mugia. Então, ele pôs os bra­ços em volta da barriga do animal e puxou-o para cima.

— Lobo, oh lobo, oh, lobo! Companheiro aqui e agora! — gritou.

As mangas de sua camisa se arregaçaram até os bíceps, fazendo Jack se lembrar de David Banner tendo um dos acessos de cólera provocados pelos raios gama e se transformando no Incrível Hulk. Salpi­cando água por todo lado, Lobo conseguiu ficar em pé, um brilho alaranjado nos olhos, o macacão azul agora negro de lama. A água ainda escorria do nariz do animal, que Lobo mantinha nos braços como se abraçasse uma boneca gigante. Os olhos da vaca-ovelha tinham se transformado num branco enevoado.

— Lobo! — Jack gritou. — É Morgan! É...

— O rebanho! — Lobo também gritou. — Veja o que está acontecendo com o meu rebanho, Jack! Lobo, oh, Lobo! Você não...

O resto foi sufocado por um enorme ribombar de trovão que sacudiu a terra. Por um instante, o trovão chegou mesmo a cobrir aquele incessante e enlouquecedor som de algo rasgando. Quase tão con­fuso quanto o rebanho de Lobo, Jack levantou os olhos e viu um límpido céu azul, onde apenas algumas nuvens inocentes, a quilômetros de distância, manchavam o horizonte.

O trovão deu origem a um completo pânico no rebanho de Lobo. Os animais tentaram fugir, mas de uma forma absolutamente irracional, uns avançando, outros recuando. Empurraram-se de tal forma uns aos outros que começaram a cair em massa no riacho. Jack ouviu estalos de ossos quebrando e bali­dos de dor. Lobo berrou de raiva, largou a vaca-ovelha que estava tentando salvar e correu para o meio do riacho.

Assim que o atingiu, foi atropelado e derrubado por meia dúzia de animais. A água se esparramou, fluiu em jatos brilhantes e finos. Jack percebeu que Lobo estava correndo o risco de ser simultaneamente esmagado e afogado pelos estúpidos animais em fuga.

Jack entrou no rio, cuja superfície estava agora coberta de lodo. A corrente ameaçava fazê-lo per­der o controle de seus movimentos. Balindo, a loucura estampada nos olhos, uma vaca-ovelha passou correndo por ele, quase lhe dando um coice. A água respingou em cheio em seu rosto e Jack tentou tirá-la dos olhos.

Agora aquele som parecia encher o mundo inteiro: rrrrriiipppp...

Lobo! Pouco importava Morgan, ao menos por ora. Lobo era o problema.

A cabeça peluda e encharcada ficou momentaneamente visível à superfície da água, e então, três dos animais voaram sobre ela e Jack pôde ver apenas uma cabeluda mão se sacudindo. Jack quis salvá-lo. Tentou abrir caminho entre os animais, alguns ainda de pé, outros se debatendo e quebrando as patas no lodo.

— Jack! — uma voz berrou sobre todo aquele barulho. Era uma voz que Jack conhecia. Era a voz do tio Morgan.

— Jack!

Outro ribombar de trovão, dessa vez um grande ruído surdo que rolou pelo céu como uma salva compacta de artilharia.

Ofegando, o cabelo ensopado caindo nos olhos, Jack olhou para trás... e viu a parada rodoviária da Estrada Federal 70, em Ohio. Viu-a como se estivesse usando óculos deformantes, mas viu-a. A quina da parede do banheiro despontava no lado esquerdo daquele ruidoso, ondulante trecho de ar. O capô do que lembrava um utilitário Chevrolet aparecia à direita, flutuando um metro acima do campo onde ele e Lobo, há menos de cinco minutos, estavam sentados, conversando tranqüilamente. E no centro do painel, lembrando um figurante num filme sobre a conquista do Pólo Sul pelo Almirante Byrd, lá estava Morgan Sloat, o rosto gordo e vermelho repuxado por uma raiva homicida. Raiva... e alguma outra coisa... Triun­fo? Sim. Jack pensou que havia também um ar de triunfo.

Ficou de pé no meio do rio, a água lhe chegando quase até a cintura, o rebanho passando a seu lado, mugindo e balindo. Fixou o olhar naquela janela que se abrira na própria textura da realidade, os olhos arregalados, a boca muito aberta.

Ele me encontrou, oh, meu Deus, ele me encontrou.

— Então você está ai, seu merdinha!— Morgan berrou. Sua voz era clara, mas assumira um tom abafado e lúgubre ao se transferir da realidade daquele mundo para a realidade deste. Era como ouvir um homem gritar dentro de uma cabine telefônica: Agora vamos nos entender, é ou não é?É ou não é, guri?

Morgan deu um passo à frente, o rosto ondulando como se fosse feito de plástico maleável. Jack teve tempo de ver que ele apertava alguma coisa com a mão, alguma coisa que trazia pendurada no pescoço, uma coisa pequena e prateada.

Ficou atônito quando Sloat começou a transpor o buraco que se formara entre os dois universos. E, enquanto fazia isso, executava seu próprio número de lobisomem, passando de Morgan Sloat, financista, especulador imobiliário, e eventualmente empresário artístico de Hollywood, a Morgan de Orris, aspirante ao trono de uma rainha às portas da morte. As bochechas caídas e coradas emagreceram, perderam completamente o colorido. O cabelo tornou a crescer, primeiro enchendo o contorno calvo da cabe­ça (como se algum ser invisível estivesse colorindo o crânio de um desenho), depois cobrindo-a na parte de cima. O cabelo do Duplo de Sloat era comprido, negro, ondulado, mas tinha um aspecto um tanto arti­ficial. Fora amarrado na nuca, Jack percebeu, mas a maior parte dos fios logo se soltou.

O casaco com capuz oscilou e desapareceu. Em seu lugar, surgiu um manto com uma touca.

As botas de camurça de Morgan se transformaram em escuras botas de couro, as pontas viradas para baixo (lembrando um pouco o punho de uma espada).

E a coisinha prateada na mão dele transformou-se numa grande haste com pontas em cima.

É um pára-raios. Oh, Jesus, é um...

Jack!

O grito foi baixo, gorgolejante, cheio de água.

Jack rodopiou desajeitadamente no meio do rio, quase caindo sobre uma vaca-ovelha que, morta na água, flutuava ao seu lado. Viu a cabeça de Lobo afundando de novo, as mãos se debatendo. Jack se aproximou o mais depressa que pôde daquelas mãos, procurando desesperadamente se esquivar do gado. Um dos animais escoiceou com força sua cintura e ele caiu para a frente, bebendo água. Levan­tou-se depressa, tossindo, ofegando, apalpando o gibão em busca da garrafa de Speedy, temendo que ela pudesse ter sido arrastada pela correnteza. Felizmente, ainda estava lá.

— Ei, garoto! Quero falar com você. Olhe para mim, rapaz!

Sinto muito, mas não vou olhar, tio Morgan. Sinto muito, mas não quero morrer pisado, afogado pelo rebanho de Lobo, e muito menos fritado por algum raio que você consiga atirar com esta vara. Pretendo...

O pára-raios se inclinou na direção de Jack, zumbindo. A centelha atingiu uma das vacas-ovelhas que se debatiam na margem do rio e o infeliz animal simplesmente explodiu, como se tivesse engolido dinamite, O sangue jorrou num jato contínuo. Pedaços de carne choveram ao redor de Jack.

— Vamos lá, olhe pra mim, garoto!

Jack pôde sentir a força daquela ordem, agarrando-lhe a cabeça com mãos invisíveis, tentando vi­rá-la na direção de Morgan.

Lobo conseguiu vir novamente à tona, o cabelo grudado no rosto, os olhos tentando espreitar atra­vés de uma cortina de névoa (como os olhos de um pastor-alemão). Tossia e cambaleava, já parecendo inconsciente de onde se encontrava.

— Lobo! — Jack gritou, mas o trovão explodiu de novo pelo céu azul, abafando completamente seu chamado.

Lobo curvou a cabeça e vomitou um grande e lamacento jato de água. Logo a seguir outra aterrada vaca-ovelha esbarrou nele, fazendo-o de novo submergir.

É isso, Jack pensou desesperado. Não há outra solução! Acho que ele vai morrer e não posso aju­dá-lo. Tenho de sair daqui agora!

Mas, ainda assim, continuou lutando para chegar perto de Lobo, tirando do caminho um animal moribundo, que se debatia nas últimas convulsões da morte.

— Jasão!— Morgan de Orris gritou, e Jack percebeu que Morgan não estava praguejando na gíria dos Territórios; ele o estava chamando pelo nome. É que ali seu nome não era Jack. Ali, nos Territórios, ele era Jasão.

Mas seu Duplo nos Territórios, o filho da rainha, morrera quando ainda era criança de berço. Ele...

De novo o zumbido da eletricidade passando rente ao seu cabelo. De novo uma centelha atingin­do a outra margem, vaporizando mais um dos animais de Lobo. As patas, no entanto, escaparam. Estavam enterradas no lodo. E por uma fração de segundo ainda se debateram em quatro direções diferentes.

— Vire a cabeça e olhe pra mim, maldito garoto!

A água, por que ele não atira uma descarga elétrica na água? Poderia fritar, ao mesmo tempo, a mim, Lobo e todos esses animais.

Então, as noções de física da escola não deixaram de funcionar. Na água, a eletricidade poderia ir para qualquer parte... Poderia até mesmo voltar para a fonte geradora da corrente.

A cabeça atordoada de Lobo, flutuando sob a água, tirou essas considerações da mente de Jack, Lobo ainda estava vivo, mas parcialmente imprensado sob uma vaca-ovelha que, embora aparentemente intacta, ficara paralisada pelo pânico. As mãos de Lobo acenavam com uma patética e já fraca energia. Quando Jack deu o último passo que o separava de Lobo, uma das mãos caiu e passou simplesmente a flutuar, mole como uma planta aquática.

Sem pensar duas vezes, Jack abaixou o ombro esquerdo e deu um coice no lombo da inerte va­ca-ovelha.

Se fosse uma vaca de verdade, em vez de um modelo compacto dos Territórios, ele poderia ter se dado muito mal (principalmente com a corrente relativamente forte do riacho trabalhando contra ele), Mas o animal era menor que uma vaca e Jack conseguiu tirá-lo da apatia. A vaca-ovelha mugiu, recuou um passo, apoiou-se brevemente na margem do rio e acabou se afastando. Jack agarrou as mãos de Lobo e puxou-o com toda a força.

Lobo voltou à superfície tão penosamente quanto um tronco de árvore encharcado: os olhos vidra­dos e meio cerrados, a água escorrendo das orelhas, do nariz, da boca. Os lábios estavam roxos,

Dois raios de eletricidade faiscaram à esquerda e à direita de onde estavam Jack e Lobo (que pare­ciam uma dupla de bêbados dançando uma valsa numa piscina). Na margem direita, outra vaca-ovelha explodiu em todas as direções, a cabeça decepada ainda balindo (ou mugindo). Fagulhas de fogo zigue-zaguearam, iluminando os juncos e se dissipando na relva seca do campo onde o terreno começava de novo a se elevar.

— Lobo! — Jack gritou. — Lobo, pelo amor de Deus, acorde!

— Ouh — Lobo gemeu e vomitou uma água lamacenta pelo ombro de Jack. Ouhhhhhhhhhh...

Agora Jack viu Morgan se aproximando da margem, uma figura alta, de ar puritano, envolvida em seu manto preto. O capuz emoldurava-lhe o rosto pálido, vampiresco, com uma espécie de lúgubre ro­mantismo. Jack teve tempo para pensar que a placidez mágica dos Territórios não deixava de atuar mes­mo ali, a despeito do temível caráter do tio. Nos Territórios, Morgan não era um gordo e nervoso empresá­rio com pirataria no coração e idéias homicidas na mente; nos Territórios, seu rosto se tornara mais suave e não deixava de revelar uma certa beleza masculina. Ele apontou para Jack a haste prateada como uma varinha de condão.

— Agora chegou sua vez e a vez de seu estúpido amigo! — Morgan gritou. Os lábios finos se abri­ram num sorriso de triunfo, revelando dentes tortos e amarelados que, de uma vez por todas, eliminaram a passageira impressão de beleza que se insinuara na mente de Jack.

Lobo gritou e se debateu nos braços doloridos do garoto. Encarava Morgan, os olhos alaranjados projetando um brilho de ódio e de medo.

— Seu demônio! — Lobo gritou. — Demônio! Minha irmã! Minha irmã de cria! Lobo, oh, Lobo! Você ê um demônio!

Jack tirou a garrafa do gibão. Havia um único gole. Não tinha forças para levantar Lobo e Lobo pa­recia incapaz de se salvar por si mesmo. Mas o que podia fazer? Não podia levá-lo consigo para o outro mundo... Ou será que podia?

— Seu demônio!— Lobo gritava, chorando, o rosto molhado escorregando pelo braço de Jack. As costas do macacão flutuavam e borbulhavam na água.

Cheiro de relva queimada e animais queimados.

Trovão explodindo.

Dessa vez a trilha de fogo no ar passou tão perto de Jack que os pêlos de seu nariz ficaram cha­muscados, enrascados.

— Oh, sim! vocês dois! — Morgan berrou. — vou lhes ensinar a sair do meu caminho, bastardos de

Merda! Vou torrar vocês dois! Vou arrasar com vocês!

— Lobo, agüente firme! — Jack gritou. Ele desistira de suspender o corpo de Lobo, mas continuava lhe agarrando a mão, apertando-a com toda a força. — Agarre-se em mim, está ouvindo?

— Lobo, oh, Lobo!

Ele inclinou o gargalo da garrafa e o terrível gosto de uvas podres encheu-lhe a boca pela última vez. A garrafa ficou vazia. Ele a ouviu se estilhaçar sob o impacto de uma das descargas elétricas de Mor­gan. Mas o som do vidro quebrando foi fraco... E o zumbido da eletricidade também... Mesmo os gritos de raiva de Morgan.

Jack se sentiu como se estivesse caindo de costas num buraco. Talvez num túmulo. A mão de Lobo apertou com tanta força a de Jack que o fez gemer. Aquela sensação de vertigem, de queda em parafuso, começou a se dissipar. E então a luz do sol foi substituída pelo melancólico tom arroxeado de um crepús­culo de outono no coração da América.

Uma chuva forte atingiu o rosto de Jack, e a água que agora o molhava era muito mais fria que a água do riacho dos Territórios. De algum lugar por perto vinha o ronco familiar dos grandes caminhões na estrada... Só que o barulho parecia vir de cima dele.

Impossível, ele pensou, mas seria verdade? Os limites do impossível pareciam capazes de se esten­der com extrema flexibilidade, Por um momento vertiginoso, ele teve uma estranha visão de caminhões voadores impelidos por homens com grandes asas de lona amarradas nas costas.

De volta, ele pensou. De volta ao mesmo dia de outono, à mesma rodovia.

Espirrou.

De volta ao mesmo frio também.

Mas havia duas coisas que não eram as mesmas.

Não havia qualquer parada rodoviária. Estava no meio de um riacho sob uma ponte da estrada, com água gelada pela cintura.

E Lobo estava a seu lado. Essa era a outra diferença.

E Lobo estava berrando.

 

LOBO VAI AO CINEMA

Em cima dele, outro caminhão retumbou pela ponte, o grande motor a diesel rugin­do a pleno vapor. A ponte estremeceu. Lobo ganiu e se agarrou a Jack, quase fazendo os dois caírem de cabeça na água.

— Pare com isso! — Jack gritou. — Me solte, Lobo! É apenas um caminhão! Me solte!

Deu uma palmada em Lobo, por mais que lhe desagradasse fazer isso... Mas o terror de Lobo era histérico. Lobo era bem mais alto que Jack e ultrapassava o seu peso em quase 70 quilos. Se continuasse a se apoiar sobre ele, ambos afundariam naquela água congelada e iam, sem dúvida, pegar uma pneumonia.

— Lobo, oh, Lobo! Lobo não está gostando nada disso! Não está gostando nada, oh, Lobo, Lobo!

Mas Lobo relaxou um pouco. Seus braços penderam ao lado do corpo. Quando outro caminhão roncou em cima deles, Lobo uivou, mas conseguiu resistir ao impulso de se agarrar novamente a Jack. Mesmo assim, encarou o garoto com uma ansiedade muda e trêmula que sugeria: Tire-me daqui, por favor, tire-me daqui! Eu preferia estar morto a estar neste mundo!

Eu gostaria muito de voltar aos Territórios, Lobo, Jack pensou, mas Morgan está lá! E mesmo que não estivesse, não tenho mais o suco mágico.

Jack olhou para sua mão esquerda e viu que ela ainda estava segurando o gargalo quebrado i garrafa de Speedy (como a mão de um homem pronto a causar sérios problemas num salão de bar). Tinha sido mesmo uma sorte que Lobo não tivesse se cortado quando, aterrorizado, se agarrou a ele.

Jack atirou longe o gargalo. Splash!

Dois caminhões dessa vez — o barulho foi duplo. Lobo uivou de pavor e tapou as orelhas com as mãos. Jack pôde ver que, na travessia, a maior parte dos pêlos de Lobo tinha desaparecido; a maior parte. mas não todos. E observou também que os dois primeiros dedos de cada uma de suas mãos se tornaram exatamente do mesmo comprimento.

— Vamos lá, Lobo! — disse Jack quando o rugido dos caminhões começou a se dissipar.— Vamos sair daqui. Não vamos ficar esperando São João Batista na beira do rio.

Pegou Lobo pela mão e estremeceu quando, em pânico, os dedos do indesejado companheiro de viagem começaram a apertá-lo. Lobo viu a expressão em seu rosto e afrouxou... um pouco.

— Não me deixe sozinho, Jack! — disse Lobo. — Por favor, por favor, não me deixe sozinho!

— Não, Lobo, não vou deixá-lo sozinho — disse Jack. E pensou: Como foi se meter numa situação dessas, seu cretino? Aqui está você, embaixo de um viaduto em algum lugar de Ohio segurando a mão de um lobisomem. Como chegou a este ponto? Não acha tudo isso meio fantástico? E, aliás, o que está aconte­cendo com a lua, Jacky? Será que Lobo se portará bem na lua cheia, hein, Lobo, oh, Lobo?

Ele não sabia se era lua cheia, e com aquelas nuvens cobrindo o céu e a chuva fria que não parava de cair, não havia meio de saber.

Agora, que chances lhe restariam de pegar o talismã e cumprir sua missão? Cinqüenta, 30, meio por cento a seu favor?

Mas, fosse qual fosse a proporção, podia apostar que não era das mais encorajadoras. Pelo menos se as coisas continuassem tomando aquele rumo.

— Não, não vou deixá-lo sozinho — Jack repetiu, e conduziu Lobo para a margem do rio.

Num banco de areia, os restos da boneca de alguma menina flutuavam de barriga para cima, os olhos azuis vidrados, encarando o vazio da escuridão crescente. Os músculos do braço de Jack doíam devido ao esforço que tiveram de fazer transportando Lobo para este mundo. Os ombros latejavam como um dente a ser extraído.

Quando saíram do leito do rio e começaram a pisar no mato da margem, Jack espirrou de novo.

 

Dessa vez Jack não progredira mais nos Territórios que um quilômetro para oeste - a distância que Lobo seguiu com seu rebanho até o pequeno rio onde, mais tarde, quase morreria afogado. Nos Estados Unidos, portanto, devia ter avançado, na melhor das hipóteses, uns 15 ou 16 quilômetros.

Lutaram para subir o declive da margem (Lobo acabou tendo de puxar Jack com seus dois braços) e, naquele final de crepúsculo, Jack pôde ver uma saída rodoviária cerca de 50 metros à direita da estrada. Uma placa fosforescente dizia: arcanum última saída em ohio divisa estadual a 23 quilômetros.

— Temos de pegar uma carona — disse Jack.

— Carona? — Lobo perguntou sem entender.

— Deixe eu dar uma olhada em você...

Achou que o aspecto de Lobo estava aceitável, pelo menos no escuro. Ainda usava macacão, que tinha agora a etiqueta de uma loja americana. O tecido caseiro se transformara numa cambraia azul indus­trializada, que lembrava um uniforme de marinheiro. Os pés, antes descalços, escondiam-se sob um enor­me par de sapatos de lona e meias brancas.

O mais estranho de tudo, porém, era que no meio do grande rosto de Lobo havia um par de óculos redondos de aro fino (do tipo que John Lennon costumava usar).

— Lobo, você tinha problemas de visão lá nos Territórios?

— Não sei — disse Lobo. — Mas acho que sim, Lobo, oh, Lobo! Sem dúvida estou vendo melhor aqui com estes olhos de vidro... Bem melhor, aqui e agora!

Ele se virou para o tráfego barulhento da rodovia e, por um momento, Jack percebeu o que devia estar vendo: grandes animais de aço com enormes olhos brancos e amarelos, bestas hediondas roncando pela noite em velocidades vertiginosas — patas redondas de borracha cortando a estrada.

— Vejo melhor do que gostaria de ver — Lobo concluiu num tom de desânimo.

 

Dois dias depois, uma dupla de rapazes de pés doloridos ultrapassou mancando a placa divisa de município num dos lados da auto-estrada 32 (do outro lado ficava o Restaurante 10-4). Pe­netravam nos subúrbios da cidade de Muncie, no estado de Indiana. Jack estava com 39 graus de febre e tossia sem parar. O rosto de Lobo estava inchado e pálido. Ele parecia um buldogue derrotado numa bri­ga de cães. Na véspera, tentara colher maçãs de uma árvore ao lado de um celeiro abandonado. Estava em cima da árvore enfiando algumas maçãs mirradas no grande bolso da frente do macacão quando um en­xame de vespas que tinham construído seu ninho nos beirais do telhado do velho celeiro resolveu ata­cá-lo. Com uma nuvem marrom zumbindo em volta da cabeça, Lobo desceu da árvore o mais depressa que pôde. Uivava e gania. E foi com um olho completamente vermelho de picadas e o nariz parecendo um nabo arroxeado que selecionou as melhores maçãs e deu para Jack. Nenhuma delas prestava (eram pequenas, azedas, já meio bichadas). Jack não teve muita vontade de comê-las, mas, depois do sacrifício que Lobo fizera para apanhá-las, seria impossível recusar.

Uma grande e velha camioneta, com a frente muito baixa, passou devagar perto deles e buzinou,

— Ei, babacas! Isso tem bicho!— o motorista gritou num tom de deboche e explodiu numa risada alta (por certo regada a muita cerveja). Lobo rosnou e se agarrou a Jack. Jack pensava que Lobo já tivesse superado o terror dos carros, mas viu que estava redondamente enganado.

— Tudo bem, Lobo — disse ele num fio de voz, procurando se livrar (pela vigésima ou trigésima vez naquele dia) do aperto do amigo. — Ele já foi.

— Uma buzina tão alta! — Lobo gemeu. — Lobo, oh, Lobo! Tão alta, Jack! Minhas orelhas, oh, mi­nhas orelhas!

— Você vai se habituar — disse Jack, pensando consigo mesmo: Vai adorar a Califórnia, Lobo. Podemos conhecê-la afundo se ainda estivermos juntos, OK? Que tal assistir a algumas corridas de carros e motos? Você nunca vai esquecê-las, aposto! — Alguns engraçadinhos gostam de buzinas, você sabe... Eles...

Foi interrompido por outro acesso de tosse que o dobrou em dois. Por um instante, o mundo rodo­piou num torvelinho de sombras cinzentas. Devagar, muito devagar, as coisas voltaram a entrar em foco.

— Gostam de buzinas? — Lobo exclamou. — Jasão! Como alguém pode gostar de uma coisa des­sas, Jack? E os cheiros...

Jack sabia que para Lobo os cheiros eram o pior de tudo. Menos de quatro horas após sua “vinda” dos Territórios, começou a chamar os Estados Unidos de País do Mau Cheiro. Na primeira noite, vomitou meia dúzia de vezes, a princípio só a água lamacenta do riacho que existia no outro universo, depois um vômito seco e escuro. Eram os cheiros, ele explicou com um ar digno de pena. Não entendia como Jack conseguia suportá-los, como alguém podia suportá-los.

Jack sabia que, ao voltar dos Territórios, a pessoa ficava um tanto chocada com odores que quase não notava quando estava vivendo no meio deles. Gasolina, diesel, descargas de automóveis, despejos industriais, lixo, água poluída, gases químicos. Mas, em pouco tempo, o recém-chegado voltava a se adaptar ao meio ambiente (mesmo porque não havia outro remédio). Mas com Lobo isso não acontecia, Ele odiava os carros, odiava aquele mundo. Jack acreditava piamente que ele jamais se acostumará àquele estilo de vida. Tinha de devolvê-lo aos Territórios o mais depressa possível ou ele poderia enlouquecer de vez. E se tiver de ficar muito tempo aqui, Jack pensou, é ele quem vai me deixar maluco! E, aliás, já não devo estar muito longe disso.

Um barulhento caminhão de fazenda, cheio de engradados de galinhas, aproximou-se deles. Vi­nha seguindo por uma impaciente fila de carros, alguns buzinando sem parar. Lobo quase pulou nos bra­ços de Jack. Enfraquecido pela febre, Jack rodopiou, cambaleou e caiu numa vala coberta de mato e de lixo. A queda foi tão forte que seus dentes estalaram.

— Desculpe, Jack — disse Lobo num tom angustiado. — Sou mesmo um desastre...

— Não foi culpa sua — disse Jack. — Isso acontece, você sabe...

Lobo se sentou ao lado de Jack, em silêncio, olhando ansioso para o amigo. Sabia que estava tor­nando as coisas muito difíceis para Jack, sabia que Jack estava ardendo em febre e precisava continuar seguindo o seu caminho... Para ficar bem longe de Morgan, mas principalmente por alguma outra razão que ele desconhecia... Sabia que Jack chamava pela mãe enquanto dormia e às vezes chorava. Mas a única vez que chorou acordado foi ao ver que Lobo, oh, Lobo, ficou aterrorizado no entroncamento de Arcanum. Pois foi lá que Lobo entendeu o que Jack queria dizer quando falava de “carona”. Quando Lobo disse a Jack que achava que não ia ter coragem de pedir carona (pelo menos não de imediato e talvez nunca), Jack se sentou na grade de proteção do acostamento, pôs as mãos no rosto e chorou. E, de repente, ines­peradamente, parou de chorar. Isso pareceu bom, mas, quando Jack tirou as mãos do rosto e olhou para Lobo, ele teve certeza de que o amigo estava disposto a deixá-lo sozinho naquele horrível País do Mau Cheiro. E, sem Jack, Lobo ficaria maluco num piscar de olhos.

 

Tinham caminhado pelo acostamento até a saída de Arcanum, Lobo estremecen­do e se agarrando a Jack cada vez que um carro ou um caminhão cruzava a escuridão da noite.

— Onde perderam o carro, seus babacas? — gritou em disparada a voz de um motorista gozador.

Jack nem olhou para o lado e continuou seguindo em frente, puxando Lobo pela mão, não deixan­do que ele diminuísse o passo e se sentisse tentado a fugir para os bosques. O mais importante era sair da­quele trecho de estrada, onde era proibido pedir carona, e chegar ao entroncamento das variantes de Arcanum. Alguns estados tinham legalizado as caronas nos entroncamentos (ou pelo menos fora o que contara um andarilho com quem, certa noite, Jack compartilhou um celeiro vazio). Mesmo nos estados onde levantar o polegar era tecnicamente um crime, os policiais geralmente faziam vista grossa quando a coisa era feita num entroncamento.

Então, tratava-se de chegar a um ponto onde fosse possível acenar para a boa vontade dos moto­ristas. E seria bom que os carros da patrulha rodoviária estivessem bem longe dali. Qual seria a reação de um patrulheiro diante da figura de Lobo? Por certo ia achar que pegara em flagrante uma versão dos anos 80 de Charles Manson com óculos de John Lennon.

Alcançaram o entroncamento de Arcanum e postaram-se na beira da estrada. Daí a dez minutos, um velho Chrysler se aproximou. O motorista, um homem robusto, com pescoço grosso, forte, e um boné onde se lia tratores e fertilizantes, cumprimentou-os com a cabeça. Depois inclinou o corpo e quase abriu a porta.

— Querem carona, rapazes? A noite está terrível aí fora, não é?

— Está mesmo muito ruim — Jack respondeu num tom de alegria. Sua mente, no entanto, estava sobrecarregada, pensando num jeito de encaixar Lobo na história que teria de contar ao homem. Nem por um momento reparou na expressão de seu involuntário companheiro de viagem.

Mas o motorista reparou.

E seu rosto endureceu.

— Está sentindo algum mau cheiro, filho?

Jack foi reconduzido bruscamente à realidade pelo tom de voz do homem, tão duro quanto sua ex-pressão. Toda a cordialidade desaparecera. Ele parecia ter acabado de sair da Taberna Oatley após tomar algumas cervejas, quebrar alguns copos e absorver os maus humores de Smokey.

A cabeça de Jack virou-se para Lobo.

As narinas de Lobo tinham se alargado como o nariz de um urso farejando um pequeno mamífero. Os lábios não estavam apenas repuxados para trás dos dentes, estavam enrugados, crispados, e no lábio superior formara-se uma fileira de sulcos.

— Ele é... retardado? — o homem de chapéu tratores e fertilizantes perguntou em voz baixa.

— Não, hã, ele apenas...

Lobo começou a rosnar.

Aquilo foi demais.

— Oh, Cristo! — disse o motorista com a inflexão de alguém que simplesmente não podia mais acreditar no que seus olhos viam. Pisou no acelerador e disparou como um raio por uma das saídas do entroncamento. Lá embaixo, junto a um cruzamento, as lanternas traseiras se iluminaram por um instante sob a chuva escura, salpicando de reflexos as setas vermelhas do acostamento onde Jack e Lobo tinham sido abandonados.

— Rapaz, essa foi incrível. — disse Jack e virou-se para Lobo que, pressentindo a fuga do compa­nheiro, recuou um passo e encolheu o corpo. — Foi simplesmente incrível. Se o carro dele tivesse um rá­dio, ele teria chamado a polícia e espalhado aos quatro ventos que havia dois loucos furiosos pedindo ca­rona na entrada de Arcanum! Jasão! Ou Jesus! Ou seja lá quem for, pouco importa! Se agir assim outra vez, vai nos criar problemas até a raiz dos cabelos! Tente repetir a cena e não vai escapar de boas pauladas nessa cabeça! Nem eu nem você! Nenhum de nós vai escapar!

Exausto, atordoado, frustrado, quase morto de cansaço, Jack avançou para o assustado Lobo. Se quisesse, Lobo poderia lhe arrancar a cabeça dos ombros com um único golpe, mas limitou-se a recuar e se encolher ainda mais.

— Não precisa gritar, Jack — ele gemeu. — Os cheiros... que havia ali... fechados ali, oh, aqueles cheiros...                                                                                                                                 

— Não senti cheiro de coisa nenhuma! — Jack gritou. Sua voz estalava, a garganta dolorida doía mais do que nunca, mas ele não pôde se conter. Tinha de berrar para não ficar doido. O cabelo molhado lhe caiu sobre os olhos. Ele o tirou da testa e deu um tapa no ombro de Lobo. A palmada fez um baralho seco e sua mão começou a doer quase de imediato. Foi como se tivesse batido numa pedra. Lobo gemeu e isso o deixou ainda mais irritado.                                                                                           

Mas era o fato de estar mentindo, de estar mentindo para Lobo, que o deixava muito mais furioso. Dessa vez ficara menos de seis horas nos Territórios, mas sem dúvida o carro daquele homem fedia como a toca de um animal feroz. Odores penetrantes de café frio e cerveja (havia uma lata de cerveja aberta en­tre as pernas dele), um purificador de ar pendurado no retrovisor que cheirava como pó-de-arroz nas bochechas de um cadáver. E havia mais alguma coisa, uma coisa mais desagradável, mais sombria...

— Não senti cheiro de coisa nenhuma — ele repetiu e o grito foi áspero, quebrado.

Bateu no outro ombro de Lobo. Lobo gemeu de novo e virou-se de costas, encolhendo o corpo como uma criança que estivesse levando uma surra do pai. Jack começou então a lhe bater nas costas, fa­zendo a água respingar do macacão. Cada vez que a mão de Jack descia, Lobo gemia.

— É melhor ir se acostumando a isso (tap!), porque o próximo carro pode ser um carro da polícia (tap!) ou pode ser Morgan Sloat em seu nojento BMW verde (tap!). Se você voltar a se comportar como um bebê gigante, vamos nos meter na porra de um mundo de problemas! (Tap!) Entendeu o que eu disse?

Lobo ficou calado. Continuou encolhido na chuva, as costas viradas para Jack, tremendo, choran­do. Jack sentiu um bolo lhe subir pela garganta, sentiu os olhos ficarem úmidos, ardentes. Mas todo esse sentimento de culpa só aumentou sua raiva. Uma parte dele queria desesperadamente ferir a si mesma, e sabia que magoar Lobo era um excelente meio de fazer a coisa.

— Vire pra mim!

Lobo obedeceu. As lágrimas não paravam de cair dos olhos castanhos e turvos atrás dos óculos re­dondos. O nariz pingava.

— Entendeu bem o que eu disse?

— Sim — Lobo gemeu. — Sim, entendi, mas eu não podia viajar na carona dele, Jack.

— Por que não? —Jack o encarou furioso, os punhos na cintura (Oh, como a cabeça lhe doía!).

— Porque ele estava morrendo — disse Lobo em voz baixa.

Jack arregalou os olhos e toda a fúria se escoou.

— Jack, você não sabia? — Lobo perguntou suavemente. — Lobo, oh, Lobo! Você não sentiu o cheiro?

— Não — disse Jack com uma voz pequena, sibilante, sem fôlego. Porque ele também tinha pres­sentido o cheiro de alguma coisa, não tinha? Alguma coisa cujo cheiro nunca tinha sentido antes. coisa como uma mistura de...

A idéia apoderou-se dele e, de súbito, toda a sua energia pareceu se esgotar. Deixou-se cair na gra­de do acostamento e olhou para Lobo.

Cocô e uvas podres. Era assim aquele cheiro. Não 100 por cento isso, mas quase, terrivelmente quase isso.

Cocô e uvas podres.

— É o pior cheiro — disse Lobo. — É o cheiro de quando as pessoas esquecem como é ser saudá­vel. Nós chamamos a coisa, Lobo, oh, Lobo, de Peste Negra. Mas acho que ele nem sabia que estava com a peste. E... os estrangeiros não conseguem sentir o cheiro, não é mesmo, Jack?

— Não conseguem — ele sussurrou. Se Lobo chegasse subitamente a New Hampshire, à suíte que a mãe ocupava no Alhambra, sentiria nela aquele cheiro?

Sim. Lobo e talvez ele mesmo conseguiriam sentir o cheiro de sua mãe escoando pelos poros — um cheiro de cocô e uvas podres, a Peste Negra.

— Chamamos isso de câncer — Jack murmurou.

Chamamos de câncer e é o que tem minha mãe.

Não sei se vou conseguir andar de carona — disse Lobo. — Se quiser, posso tentar de novo, Jack, mas os cheiros... lá dentro... Eles já são horríveis aqui fora, mas... lá... lobo, oh, Lobo!

Foi dessa vez então que Jack pôs o rosto nas mãos e chorou; em parte por desespero, em parte por pura e simples exaustão. E, sim, a expressão que Lobo acreditou ter visto no rosto de Jack não fora uma ilusão de ótica; por um instante, a tentação de abandonar Lobo fora mais que uma tentação, fora um pro­jeto consciente. As chances de conseguir chegar à Califórnia e encontrar o talismã (pouco importava o que fosse esse talismã) já eram muito pequenas. Mas com Lobo agarrado no seu pé ficavam reduzidas a um pontinho no horizonte. Lobo não ia apenas lhe retardar a viagem, mais cedo ou mais tarde faria os dois irem para a cadeia. Provavelmente bem mais cedo do que podia imaginar. E, além disso... como ia explicar a presença de Lobo ao racional Richard Sloat?

Naquele momento, o que Lobo viu no rosto de Jack foi um ar de fria especulação que lhe desen­gonçou as pernas. Ele caiu de joelhos e, como o personagem de um melodrama vitoriano, suplicou de mãos postas:

— Não me deixe sozinho, Jack — ele chorou. — Não deixe o velho Lobo sozinho! Não me deixe aqui, você me trouxe pra cá, por favor, por favor, não me deixe...

Depois disso ficou sem palavras; talvez ainda quisesse repetir alguma súplica, mas só pôde soluçar. Jack sentiu uma grande fraqueza cair sobre ele como um paletó surrado. Não me deixe sozinho, você me trouxe pra cá...

E era verdade. A responsabilidade era dele, não era? Sim. Oh, sem dúvida, pegara Lobo pela mão e o trouxera dos Territórios para Ohio (seu ombro ainda latejava para lembrá-lo da façanha). Não teve esco­lha, é claro. Lobo ia se afogar, e mesmo que não se afogasse, Morgan o teria cozinhado com aquele pára-raios. O que você prefere, rapaz? Estar aqui, assustado mas inteiro, ou morto nos Territórios?

Podia perguntar, é claro, mas Lobo não teria resposta porque não era muito veloz em termos de massa cerebral. Se estivesse ali, sem dúvida o tio Tommy aproveitaria a oportunidade para citar um provérbio chinês: Quando você salva a vida de um homem, fica responsável por ele pelo resto da vida.

Não importava o risco, nem os problemas que teria de enfrentar, Lobo era responsabilidade dele.

— Não me deixe sozinho, Jack! — Lobo voltou a suplicar. — Lobo, oh, Lobo! Por favor, não deixe o velho Lobo... Eu posso ajudá-lo, posso ficar de guarda no meio da noite, posso fazer muitas coisas, só que eu não, eu não...

— Levante-se e pare de chorar — disse Jack num tom cordial. — Não vou abandoná-lo. Mas temos de sair logo daqui. Aquele sujeito do carro pode mandar a polícia atrás de nós. Vamos em frente, rapaz!

 

— Tem idéia do que vamos fazer, Jack? — Lobo perguntou timidamente. Estavam sentados numa vala cheia de mato perto da divisa da cidade de Muncie. Há mais de meia hora estavam ali parados.

Jack virou-se para Lobo que ficou aliviado ao ver um sorriso nos lábios do amigo. Era um sorriso fraco, e Lobo não gostava nada das marcas de cansaço sob os olhos de Jack (não gostava principalmente daquele cheiro doentio que tinha se apossado dele). Apesar de tudo, era um sorriso.

— Acho que sei o que vamos fazer — disse Jack. — Estava pensando nisso poucos dias atrás, quando comprei meus tênis novos.

Esticou o pé e contemplou os tênis num silêncio deprimido. Os tênis estavam arranhados, surra­dos, sujos. A sola começara a descolar. Jack os havia comprado há... (Ele franziu a testa, tentando se lem­brar. A febre lhe confundia as idéias.) Há três dias... Há apenas três dias ele os tirara da bonita prateleira da sapataria do shopping. E agora já estavam velhos. Velhos!

— Bom... — Jack suspirou. — Está vendo aquele prédio lá embaixo, Lobo?

O prédio, uma explosão de ângulos insólitos em tijolo cinza, erguia-se como uma ilha no meio de uma gigantesca área de estacionamento. Lobo pressentia qual seria o cheiro do asfalto naquele lugar: um cheiro de morte, de animais em decomposição. O cheiro quase o sufocaria e Jack mal daria conta disso.

— Para sua informação, aquele letreiro está dizendo: Town Line Sixplex — Jack explicou. — Pare­ce nome de uma loja de roupas, mas é um cinema com seis salas. Deve haver pelo menos um filme interessante.

E, à tarde, não costuma haver muita gente na platéia. O que é ótimo, porque Lobo não terá grandes problemas de olfato.

— Vamos até lá — disse Jack, levantando-se com dificuldade.

— O que é um cinema, Jack? — Lobo perguntou.

Ele era um problema terrível para Jack, e tinha plena consciência disso. Era um problema tão terrí­vel que hesitava em esboçar qualquer protesto (e já procurava até mesmo não deixar transparecer qual­quer ar de desagrado). Mas uma terrível intuição foi tomando forma em sua mente: ir ao cinema e pegar uma carona deviam ser coisas muito parecidas. Jack chamava as barulhentas carroças e carruagens de “carros”, “camionetas”, “caminhões” e “jamantas” (alguns desses veículos, Lobo deduzia, deviam ser como as diligências que, nos Territórios, conduziam gente de um lugar para outro). Será que também haveria carruagens rangentes e fedorentas chamadas “cinemas”? Não era nada impossível.

— Bem — disse Jack —, é mais fácil lhe mostrar um cinema do que falar sobre ele. Acho que vai gostar. Vamos lá!

Jack tropeçou na vala, caiu de joelhos, mas logo tornou a ficar de pé.

— Você está bem? — Lobo perguntou angustiado.

Jack disse que sim e os dois se puseram em marcha. Logo chegaram ao pátio de estacionamento, que, como Lobo havia previsto, tinha o pior cheiro do mundo.

 

Jack Sawyer avançara boa parte dos 55 quilômetros entre Arcanum, em Ohio, e Muncie, em Indiana, nas costas largas de Lobo. Lobo estava apavorado com os carros, aterrado com os ca­minhões, nauseado pelo cheiro de quase tudo e gania de angústia quando os ruídos eram muito altos. Mas, em compensação, parecia quase infatigável. Pelo que vi até agora, Jack pensou, pode-se até riscar c “quase”. Pelo que tinha visto até agora, Lobo era infatigável.

Jack tinha procurado se afastar o mais depressa possível do entroncamento de Arcanum, forçando as pernas encharcadas e doloridas num trote acelerado. Sua cabeça latejava como se os miolos estivessem cheios de farpas, ondas de frio e calor cobriam-lhe alternadamente o corpo. Lobo movia-se lepidamente do seu lado esquerdo. Tinha o passo tão largo que com apenas uma caminhada moderadamente rápida conseguia se manter emparelhado com ele. Jack sabia que talvez estivesse paranóico com os carros de polícia, mas o homem do boné tratores e fertilizantes deixara-o realmente assustado. E com raiva!

Ainda não tinham andado 400 metros quando uma abrasadora pontada de dor nos rins induziu Jack a perguntar se Lobo conseguiria transportá-lo por algum tempo.

— Hã? — Lobo perguntou.

— Você sabe... — disse Jack, e fez um gesto para mostrar como era.

Um grande sorriso se espalhou no rosto de Lobo. Ali estava uma coisa que ele entendia muito bem, ali estava uma coisa que podia muito bem fazer.

— Você quer uma carona de garupa? — ele gritou, fascinado.

— É, acho que é isso...

— Oh, claro! Lobo, oh, Lobo! Aqui e agora sempre um bom companheiro! Eu carregava deste jeito meus irmãos de cria! É só pular, Jack!

Lobo se abaixou e colocou as mãos numa posição de estribo para as coxas de Jack.

— Quando achar que eu estou muito pesado, é só falar e...

Antes que pudesse terminar a frase, Lobo erguera o tronco e começara a correr com ele nas costas, levando-o era segurança pela escuridão da estrada. O vento frio e chuvoso tirava o cabelo de Jack da testa febril.

— Lobo, você vai cair morto de cansaço! — Jack gritou.

— Nada disso. Comigo não! Lobo, oh, Lobo! Correndo aqui e agora!

Pela primeira vez desde que chegara aos Estados Unidos, Lobo parecia realmente feliz. Correu duas horas sem parar, até se afastar bastante de Arcanum. Na maior parte do tempo, seguiu um pequeno acostamento de cascalho. Jack viu um celeiro deserto no meio de um prado cheio de mato e os dois pas­saram a noite lá.

Lobo queria ficar bem longe da área urbana, onde o tráfego fluía num ronco incessante e o mau cheiro subia até o céu em nuvens venenosas. Pelo menos nisso, estava inteiramente de acordo com Jack, que também preferia se manter afastado das cidades.

Na manhã seguinte, Lobo o carregou longos trechos nas costas. Na fronteira de Indiana, perto de Harrisville, Jack fez o amigo parar junto a uma venda de beira de estrada. Enquanto Lobo esperava nervoso na margem da rodovia, ganindo baixo, cavando a terra, sentando, levantando, rodando em pequenos círculos, Jack comprou um jornal e examinou atentamente a previsão do tempo. A próxima lua cheia era a 31 de outubro, Dia das Bruxas, o que, sem dúvida, parecia estar bastante de acordo. Jack virou a primeira página para ver em que dia estavam. Era 26 de outubro.

 

Empurrando uma das portas de vidro, Jack penetrou no saguão do Town Line Sixplex. Olhou atentamente para Lobo, mas Lobo parecia (ao menos naquele momento) bastante satisfeito. E de fato Lobo se sentia razoavelmente otimista... Não gostava de estar dentro de um prédio, mas pelo me­nos não era um carro. Ali havia um cheiro agradável, leve, gostoso. Seria de todo satisfatório se não viesse acompanhado de um aroma um tanto amargo e rançoso. Lobo olhou para a esquerda e viu uma caixa de vidro cheia de coisas brancas. Aquela era a fonte do cheiro agradável.

— Jack — ele murmurou.

— Hã?

— Eu queria um pouco daquela coisa branca, por favor! Mas não da urina.

— Urina? Do que está falando?

— De urina — Lobo repetiu e apontou para um compartimento da caixa de vidro onde se lia: pipoca amanteigada. — Ali há uma espécie de urina, não há? Tem de ser, o modo como isso cheira...

Jack sorriu com ar fatigado.

— Quer pipoca sem margarina, certo? — disse ele. — Agora fique de boca fechada, OK?

— Claro, Jack — Lobo respondeu humildemente. — Aqui e agora sem abrir o bico.

A bilheteira estava mascando um grande chiclete com cheiro artificial de uva. De repente, parou de ruminar. Olhou para Jack, depois para o enorme, gigantesco Lobo. Dentro da boca meio aberta, a goma apareceu no meio da língua como um grande tumor arroxeado. Ela passou novamente os olhos pela du­pla à sua frente.

— Duas, por favor — disse Jack.

Pegou seu maço de notas, notas encardidas, de orelhas dobradas, quase rasgando.

— Que filme? — ela perguntou, os olhos movendo-se de um lado para o outro, de um lado para o outro, de Jack para Lobo, de Lobo para Jack. Era como se assistisse a uma acelerada partida de pin­gue-pongue.

— Qual é o que está começando agora? — Jack perguntou.

— Bem... — Ela consultou um papel preso na fita adesiva. — Na Sala Quatro há O Dragão Voador. É um filme de kung-fu com Churk Norris. — Seus olhos olharam de um lado para o outro, de um lado para o outro, de Jack para Lobo. — Na Sala Seis há uma sessão dupla. Dois desenhos animados de Ralph Bakshi. Os feiticeiros e O senhor dos anéis.

Jack se sentiu aliviado. Lobo não passava de uma criança grande (enorme, aliás) e as crianças ado­ram desenhos animados. Aquele tipo de filme devia funcionar muito bem. Talvez Lobo encontrasse pelo menos uma coisa divertida no País do Mau Cheiro (e Jack poderia dormir calmamente três horas na pol­trona do cinema).

— Vamos ver esse — disse ele. — Os desenhos.

— São quatro dólares — disse a bilheteira — Os preços da matinê acabaram às duas.

Ela apertou um botão e, de uma máquina com mecanismo de catraca, saltaram duas entradas. Lobo recuou um passou e abafou um grito.

A moça o encarou de sobrancelhas erguidas.

— O senhor se assustou?

— Não! Lobo, oh, Lobo!

Lobo sorriu, mostrando uma grande fileira de dentes. Jack seria capaz de jurar que mostrou mais dentes do que tinha há um ou dois dias. A moça olhou para todos aqueles dentes. E molhou os lábios.

— Ele está bem. Ele apenas... — Jack abanou os ombros. — Não costuma sair muito do rancho, a senhora sabe como é...

Jack lhe passou uma nota de cinco dólares. Ela a pegou com um rápido e higiênico movimento de pinça e deu o troco com a ponta dos dedos.

— Vamos entrar, Lobo!

Quando se aproximaram da vitrine de doces, Jack, guardando o troco no bolso encardido do jeans, ouviu a bilheteira murmurar para o balconista:

— Olhe o nariz dele!

Jack virou-se para o lado e viu o nariz de Lobo se dilatando ritmadamente.

— Pare com isso! — Jack sussurrou.

— Parar com o quê, Jack?

— Pare de fazer essa coisa com o nariz!

— Oh. Eu vou tentar, Jack, mas...

— Shhh, fale baixo!

— Quer alguma coisa, rapaz? — perguntou o vendedor de doces.

— Sim, por favor. Um drops de hortelã, um chiclete de bola e um saco grande de pipoca sem manteiga.

O balconista pegou as balas, as pipocas e entregou-as aos dois. Lobo segurou o saco de pipocas com as duas mãos e começou imediatamente a mascá-las com grandes movimentos dos maxilares.

O balconista contemplou-o em silêncio.

— Ele não costuma sair muito do rancho — Jack repetiu. Já começava a se perguntar se o que o homem e a bilheteira tinham visto não era suficiente para fazê-los chamar a polícia. Pensou, não pela primeira vez, que havia uma cruel ironia em tudo aquilo. Em Los Angeles ou Nova York, provavelmente nin­guém teria olhado uma segunda vez para Lobo (muito menos uma terceira). Sem dúvida, o nível de tole­rância de excentricidades era muito mais baixo no interior do país. Mas, é claro, Lobo já teria enlouqueci­do completamente se estivesse em Los Angeles ou Nova York.

— Tenho certeza que não — disse o balconista. — São dois e 80.

Jack pagou, tremendo por dentro, percebendo que gastara um quarto de todo o dinheiro que pos­suía com o cinema daquela tarde.

Lobo sorria para o balconista com a boca cheia de pipocas. Jack reconheceu que Lobo queria se mostrar simpático, mas achou que o balconista não estava interpretando a coisa da mesma maneira. Havia todos aqueles dentes naquele sorriso... talvez centenas deles.

E Lobo dilatava de novo o nariz.

Desligue-se, vamos! Que chamem a polícia se tiverem vontade!, Jack pensou com um ar de enfado mais adulto que infantil. Não posso me atrasar mais do que já me atrasei. Lobo não pode andar nos carros novos porque não suporta o cheiro dos transformadores modernos e não pode viajar nos carros velhos porque eles cheiram a cano de descarga, suor, gasolina e cerveja... Provavelmente não poderia viajar em qualquer automóvel porque morreria de claustrofobia. Admita a verdade, Jack-O, mesmo que apenas para si mesmo! Você não pode continuar achando que hoje ou amanhã Lobo vai superar esses problemas, porque é muito provável que isto jamais aconteça. E sabe o que terá de fazer? Atravessar a pé o estado de In­diana, certo? Ou melhor, lobo vai atravessar a pé o estado de Indiana. Você vai simplesmente montado a cavalinho nele. Mas primeiro deve entrar com o velho Lobo neste maldito cineminha e dormir até que os dois desenhos tenham terminado ou até que a policia tenha chegado. Isso é tudo o que tenho a dizer, rapaz!

Bem, divirtam-se com o filme! — disse o balconista.

— Obrigado — Jack respondeu.

Recomeçou a andar e percebeu que Lobo não estava mais do seu lado. Lobo fitava alguma coisa. Era um olhar de espanto quase religioso, pois o cartaz da reprise de Contatos imediatos do terceiro grau, de Steven Spielberg, movia-se lentamente num display giratório.

— Vamos entrar, Lobo — disse ele.

 

Lobo desconfiou que a coisa não era das melhores assim que cruzou a porta da sala de projeção.

A sala era pequena, escura, úmida. Os cheiros eram terríveis. Um poeta, cheirando o que Lobo fa­rejava naquele momento, teria se referido ao “fedor dos sonhos mais amargos”. Lobo não era poeta. Só sa­bia que predominava o cheiro de pipoca com urina e que começava a sentir uma certa ânsia de vômito.

Então as luzes começaram a diminuir ainda mais, transformando a sala numa caverna negra.

— Jack — ele gemeu, agarrando-se ao braço do amigo. — Vamos sair daqui, está bem?

— Você vai gostar, Lobo! — Jack murmurou, consciente da angústia do amigo, mas não de sua in­tensidade. Afinal, a angústia passara a ser o estado normal de Lobo. No mundo americano, a palavra an­gústia era suficiente para defini-lo. — Procure se interessar pela coisa...

— OK — disse Lobo. Jack ouviu a concordância, mas não percebeu que Lobo estava se agarrando com ambas as mãos ao último fio de autocontrole. Lobo se sentara a seu lado, joelhos encolhidos numa posição de total desconforto, o saco de pipocas (que ele não se interessava mais em comer); contra o peito.

Na frente deles, um fósforo ficou brevemente amarelo. Jack sentiu o cheiro da tragada de maco­nha, tão familiar nos cinemas que podia ser ignorada no instante seguinte.

Lobo farejou um incêndio na floresta.

— Jack...!

— Shhh, o filme vai começar!

E eu já estou cochilando.

Jack não poderia fazer idéia do heroísmo de Lobo nos poucos minutos que se seguiram; nem o próprio Lobo teve plena consciência de sua bravura. Soube apenas que, pelo bem de Jack, devia tentar, com todas as suas forças, suportar o pesadelo. Deve estar tudo bem, pensava ele. Olhe, Lobo, Jack vai é dormir, vai até dormir aqui, aqui e agora! E você sabe muito bem que Jack não o traria a um lugar perigo­so. Portanto, agüente firme! Tenha um pouquinho de paciência, Lobo, oh, Lobo, está tudo bem!

Mas Lobo era uma criatura cíclica, e o ciclo estava se aproximando do clímax mensal. Seus instintos iam se tornando estranhamente apurados, quase incontroláveis. A mente racional lhe dizia que estava tudo bem, que Jack não o submeteria a uma situação de risco, mas, no fundo, sentia-se como um homem com comichão no nariz no meio da missa (tentando não espirrar porque era falta de educação).

Na caverna escura e fedorenta, continuou sentindo o cheiro de incêndio, crispando-se quando al­guma sombra passava pelo corredor, esperando, com um medo paralisante, que algo se precipitasse so­bre ele da escuridão do teto.

E então, uma janela mágica se abriu na frente da caverna, os nervos se retesaram, o medo lhe es­correu em gotas de suor, os olhos se arregalaram ao máximo. E quando viu carros batendo uns nos outros e capotando, edifícios se incendiando e pessoas de cassetete perseguindo outras, seu rosto se transfor­mou numa máscara de horror.

— É só o jornal... — Jack murmurou. — Você vai adorar, rapaz!

E havia também as Vozes... Entre muitas outras coisas, diziam: não fume, não suje as ruas da suo, cidade, sessão promoção todos os dias úteis até as quatro da tarde.

— Agora é que vai começar — Jack sussurrou. Começou a dizer mais alguma coisa, mas a frase se transformou num ronco.

Uma voz final proclamou: E agora, nossa maior atração!

Foi então que Lobo perdeu o controle. O Senhor dos Anéis era em som estereofônico e, nas mati­nês, o operador cinematográfico tinha ordem para colocá-lo no último volume (porque é quando as cabe­ças estão mais leves, e cabeças leves gostam realmente de um som nas alturas).

Houve um áspero, dissonante ruído de trompas. A janela mágica se iluminou mais intensamente e Lobo pôde ver o fogo, as chamas alaranjadas, as chamas avermelhadas.

Uivou e, puxando consigo um Jack mais adormecido que acordado, ficou de pé no corredor.

— Jack!— gritou. — Vamos sair daqui! Vamos sair daqui Lobo, oh, Lobo! Olhe o fogo!

Ei, sai da frente! — alguém berrou.

— Cala a boca, imbecil! — gritou mais alguém. A porta traseira da Sala Seis se abriu de repente.

— O que está acontecendo aqui?

— Lobo, cale a boca! — Jack sibilou. — Pelo amor de Deus...

— Aauuuuuuuuuumuuhhhhhhhhhhhhhhhhh! — Lobo uivou.

Uma mulher deu uma boa espiada em Lobo quando a luz esbranquiçada do corredor iluminou suas feições. Ela gritou, agarrou o filho pelo braço, e começou a arrastá-lo para fora do cinema. (Literalmente a arrastá-lo, o garoto tinha caído de joelhos e foi espalhando pipocas por todo o corredor central. Um dos tênis lhe saíra do pé.)

— Aauuuuuuuuunhhhhhhhhhhhhhhhh!

Todas as filas da frente se viraram para trás e, apertando os olhos, os espectadores procuraram des­cobrir o que se passava na escuridão.

Lobo sentiu uma agitação de gente e uma voz pesada atrás de suas orelhas.

— Pra fora!— gritou a voz. — Muito engraçadinho, hein? Os lobisomens de Londres atacam outra vez, não é?

— Tudo bem — disse Jack para o homem do cinema. — Tudo bem, já estamos indo. Não faz mal... Nunca mais... nunca mais vamos brincar desse jeito, OK? OK?

Começou a levar Lobo para fora. A fadiga tomara de novo conta dele.

A luz do saguão atingiu-lhe os olhos de forma brusca, perfurando-os como agulhas. A mulher que arrastara o filho estava acuada num canto com os braços em volta da criança. Quando viu Jack atravessar as portas de vaivém da Sala Seis puxando um Lobo que não parava de uivar, pegou de novo o garoto pela mão e tentou fugir da sala.

O vendedor de doces, a bilheteira, o operador e um sujeito alto tinham se reunido num grupo compacto. O sujeito alto, de paletó esporte xadrez e sapatos brancos, devia ser o gerente. Parecia estar na largada de uma prova de 100 metros rasos para se atirar contra os dois.

Na galeria, as portas das outras salas tinham se aberto parcialmente. Rostos espreitavam por toda parte para ver o que era aquele barulho. Jack lembrou-se de ratazanas espreitando de suas tocas.

— Saiam! — gritou o homem de paletó esporte xadrez. — Saiam já! Chamei a polícia e eles devem chegar em menos de cinco minutos.

Cascata, Jack pensou, sentindo um raio de esperança. Não teve tempo de chamar a polícia. E se sairmos depressa, talvez... quem sabe... talvez resolva nem chamá-la!

— Já estamos indo — disse ele. — Desculpe o que aconteceu. O problema é que... meu irmão mais velho é epilético e costuma ter esse tipo de ataque. Nós... nós esquecemos de trazer o remédio.

À palavra epilético, a bilheteira e o vendedor de doces recuaram dois passos. Foi como se Jack ti­vesse dito leproso.

Vamos embora, Lobo!

Jack viu os olhos do gerente baixarem e os lábios se contraírem de repugnância. Seguiu o olhar e observou a grande mancha escura na frente do macacão de Lobo... Ele tinha molhado as calças.

Lobo também se deu conta. Embora tudo no mundo de Jack lhe fosse desconhecido, não deixou de sentir o que aqueles olhares de desprezo queriam dizer. Explodiu em soluços altos, ululantes, pungentes.

— Jack, me desculpe, Lobo está tão triste!

— Tire-o daqui! — disse o gerente com ar de nojo, começando a se afastar.

Jack pôs o braço em volta da cintura de Lobo e levou-o até a porta de saída.

— Vamos embora, Lobo.

Falara num tom suave, com uma ternura sincera. Nunca sentira tanto carinho por Lobo quanto na­quele momento.

— Vamos embora. A culpa foi minha, não sua. Vamos...

— Desculpe! — Lobo chorava copiosamente. — Eu não sou gente boa, eu não sou... Lobo, oh, Lobo!

— Você é gente muito boa! — disse Jack — Vamos lá...

Ele empurrou a porta de vidro e os dois saíram para o último calor de meados de outono.

A mulher com o filho estava a uns 20 metros de distância. Quando viu Jack e Lobo, encolheu-se contra um carro, agarrando a criança como um gângster seguraria um refém.

— Não o deixe chegar perto de mim! — ela gritou. — Não deixe este monstro chegar perto do meu filho! Está ouvindo? Não cheguem perto de mim!

Jack teve vontade de dizer alguma coisa para tranqüilizá-la, mas não pôde pensar em nada. Estava cansado demais.

Ele e Lobo continuaram andando, atravessando obliquamente a área do estacionamento. A meio caminho da estrada, Jack cambaleou; por um instante, o mundo ficou embaçado. Então teve a impressão de que Lobo o suspendia nos braços para carregá-lo como um bebê. E percebeu vagamente que Lobo ainda estava chorando.

— Jack, sinto muito! Por favor, não passe a detestar o velho Lobo! Lobo pode ser um bom compa­nheiro! Lobo, oh, Lobo! Você vai ver...

— Não estou com raiva de você — disse Jack. — Sei que... sei que você é... é um bom...

Mas, antes de terminar a frase, caiu adormecido.

Quando despertou, era noite, e Muncie tinha ficado para trás. Lobo se afastara das rodovias e se­guia por estradas de barro e terra. Longe das placas de sinalização, Lobo se sentia à vontade, seguia com passo firme entre a teia de caminhos e, com o instinto infalível de uma ave migratória, mantinha-se na di­reção do oeste.

Naquela noite, dormiram numa casa abandonada ao norte de Cammack. Pela manhã, Jack achou que sua febre tinha cedido um pouco.

E pouco antes do meio-dia — do meio-dia de 28 de outubro — percebeu que os pêlos tinham vol­tado às palmas das mãos de Lobo.

 

TRANSFORMAÇÃO

No final da tarde, os dois acamparam nas ruínas de uma casa incendiada, com uma vasta campina de um dos lados e um bosque do outro. Havia um rancho na extremidade da campina, mas Jack achou que estariam seguros se ficassem quietos e procurassem não se afastar da casa.

Contudo, logo depois que o sol se pôs, Lobo saiu andando na direção do bosque. Caminhava de­vagar, de cabeça baixa. Antes de perdê-lo de vista, Jack achou que ele estava parecendo um homem míope à procura dos óculos. Ficou bastante nervoso (visões de Lobo caindo numa armadilha de caçador co­meçaram a assaltá-lo; Lobo ganindo, adquirindo um olhar feroz, roendo a própria perna para livrá-la da garra de ferro). Mas, pouco depois, Lobo estava de volta, agora caminhando quase normalmente e carre­gando plantas em ambas as mãos (as raízes caindo-lhe pelos punhos).

— O que você tem aí, Lobo? — Jack perguntou.

— Remédios — Lobo respondeu de mau humor. — Mas não são muito bons, Jack. Lobo, oh, Lobo! Nada é muito bom no seu mundo!

— Remédios? O que você está querendo dizer?

Mas Lobo não falou mais nada. Tirou dois fósforos do bolso da frente do macacão e começou a fa­zer uma minúscula fogueira. Depois perguntou se Jack podia encontrar uma lata. Jack encontrou uma lata de cerveja numa vala. Lobo cheirou-a e torceu o nariz.

— Mais mau cheiro. Eu preciso de água, Jack. Água limpa. Se estiver muito cansado, eu vou procurar.

— Lobo, por que não me diz o que está querendo fazer?

— Eu vou buscar — disse Lobo. — Há um rancho bem do outro lado do campo, Lobo, oh, Lobo! Lá deve haver água. Você fica descansando, está bem?

Jack imaginou a mulher do dono do rancho olhando pela janela da cozinha enquanto preparava o jantar. Veria Lobo rondando em volta da casa com uma lata de cerveja numa pata peluda e um monte de eras e raízes na outra.

— Eu vou até lá — disse Jack.

O rancho ficava a menos de 200 metros de onde estavam “acampados”; o amarelado das luzes era bem visível no fim da campina. Jack foi até lá e, sem ser visto por ninguém, encheu a lata de cerveja na torneira de um galpão. Na volta, quando estava no meio da campina, percebeu que podia ver sua sombra e olhou para o céu.

A lua, agora quase lua cheia, viajava pelo horizonte oriental.

Preocupado, voltou para perto de Lobo e passou-lhe a lata cheia d’água. Lobo cheirou, torceu de novo o nariz, mas não disse nada. Pôs a lata sobre o fogo e começou a selecionar cuidadosamente peda­ços das coisas que tinha colhido no bosque. Depois enfiou-os pelo buraco da lata. Daí a mais ou menos cinco minutos, um cheiro terrível (lembrando um defumador fedorento ou coisa muito pior) começou a se evaporar da lata. Jack torceu o nariz. Não teve absolutamente qualquer dúvida de que Lobo ia querer que ele bebesse aquela coisa, e também não teve dúvida de que a coisa ia matá-lo. Provavelmente, de uma forma lenta, terrível.

Fechou os olhos e começou a fingir que roncava (e roncou o mais alto possível). Se Lobo achasse que ele estava dormindo, por certo não o molestaria. Ninguém acorda gente doente que caiu no sono, não é? E Jack estava doente; sua febre voltara com o cair da noite, formigando-lhe pelo corpo, cobrindo-o de calafrios, fazendo-o suar por todos os poros.

Olhando por entre as pálpebras, viu Lobo colocar a lata ao lado da fogueira para esfriar. Lobo se sentou no chão e olhou para o céu, as mãos peludas fechando-se em volta dos joelhos, uma certa beleza no rosto sonhador.

Ele está olhando para a lua, Jack pensou, e sentiu um início de medo.

Oh, nem chegamos perto do rebanho quando mudamos de forma. Por Jasão, nada disso! Íamos querer comê-lo, você não acha?

Lobo, me diga uma coisa... será que o rebanho agora sou eu?

Jack estremeceu.

Cinco minutos depois (Jack já quase adormecera de verdade), Lobo se inclinou sobre a lata, chei­rou-a, balançou a cabeça, agarrou-a com a mão peluda e se aproximou da estaca caída, carbonizada, que Jack forrara com uma camisa para apoiar a cabeça. Jack fechou com força os olhos e voltou a roncar.

— Vamos lá, Jack! — disse Lobo num tom jovial. — Sei muito bem que está acordado. Não pode enganar o velho Lobo.

Jack abriu os olhos e encarou Lobo com um certo ressentimento.

— Como soube que eu estava fingindo?

— As pessoas têm um cheiro quando estão dormindo e um cheiro diferente quando estão acorda­das — disse Lobo. — Puxa, será que os estrangeiros não sabem disso?

— Acho que não — disse Jack.

— Bem, de qualquer modo, você vai ter de tomar isto aqui. É um remédio. Vamos lá, rapaz, beba! Aqui e agora, está bem?

— Não quero beber — disse Jack.

O cheiro que vinha da lata era pantanoso, rançoso.

— Jack — disse Lobo —, você também está com cheiro de doença, sabia?

Jack continuou olhando para ele, mas não disse nada.

— É verdade! — Lobo insistiu. — E pode piorar! Não é uma coisa grave, ainda não, mas... Lobo, oh, Lobo! Vai ficar grave se não tomar um remédio.

— Lobo, tenho certeza de que você é muito bom para farejar raízes e ervas medicinais nos Territó­rios, mas isto é o País do Mau Cheiro, esqueceu? Pode muito bem ter cheirado as coisas erradas, ter apa­nhado raízes venenosas, ervas...

— Só peguei coisas boas — Lobo interrompeu. — Não tão poderosas quanto as dos Territórios, mas boas. — Assumiu um ar de reflexão. — Nem tudo cheira mal aqui, Jack. Também há cheiros bons Mas os cheiros bons são como as plantas medicinais. Fracos. Acho que já devem ter sido mais fortes, anti­gamente...

Lobo contemplava de novo sonhadoramente a lua. E Jack sentiu o mesmo mal-estar de minuto: atrás.

— Aposto que isto já foi um bom lugar — disse Lobo. — Limpo e cheio de força!

— Lobo? — Jack perguntou em voz baixa. — O cabelo voltou à palma de suas mãos, não foi?

Lobo se sobressaltou e encarou Jack. Por um instante (pode ter sido sua imaginação febril, e mes­mo que não tenha sido, não passou de um instante), Lobo fitou-o com um ávido olhar de fome. Depois pareceu se sacudir por dentro, como se quisesse afastar um pesadelo.

— Sim — disse ele. — Mas não quero falar sobre isso e também não quero que você toque no as­sunto. Não há por que se preocupar, pelo menos ainda não. Lobo, oh, Lobo! Apenas beba o remédio, Jack. Isso é tudo o que você precisa fazer.

Obviamente, aquilo era mais que uma sugestão; se Jack não quisesse tomar o remédio, Lobo pode­ria se ver obrigado a lhe abrir a boca à força e derramar-lhe a poção pela goela.

— Não esqueça, se essa coisa me matar, você ficará sozinho — disse Jack de cara feia, pegando a lata. Ela ainda estava quente.

Uma expressão de terrível angústia se espalhou pelo rosto de Lobo. Ele empurrou os óculos arre­dondados da ponta do nariz.

— Não tenho qualquer intenção de magoá-lo, Jack. Lobo jamais iria querer magoá-lo de alguma forma.

O ar de aflição era tão nítido e intenso que, se não fosse absolutamente sincero, pareceria ridículo.

Jack desistiu de lutar e bebeu o que havia na lata. Mas não pôde conter a careta de repugnância. O gosto era pior do que imaginara... E, por um instante, o mundo pareceu oscilar... Como se ele estivesse pres­tes a voltar aos Territórios!

— Lobo! — gritou. — Lobo, segure minha mão!

Lobo obedeceu, ansioso e extasiado.

— Jacky? O que está havendo?

O gosto do remédio começou a passar. Simultaneamente, uma quentura (o mesmo tipo de quentu­ra que sentia nas raras ocasiões em que a mãe o deixara tomar um pequeno gole de conhaque) começou a se espalhar em sua barriga. E o mundo de novo se firmou. Aquele breve oscilar podia ter sido fruto de sua imaginação... mas Jack achava que não.

Eu quase atravessei. Por um instante, os Territórios pareceram muito próximos. Talvez eu possa vol­tar sem o suco mágico... Talvez possa!

— Jack? O que está havendo?

— Já estou me sentindo melhor — disse ele, e conseguiu sorrir. — Já estou melhor, não foi nada.

— Seu cheiro também já melhorou — disse Lobo num tom alegre. — Lobo, oh, Lobo!

 

E, de fato, Jack continuou a melhorar no dia seguinte, mas ainda estava fraco. Lobo o carregou no “cangote” e não avançaram muito para o oeste. No fim da tarde, começaram a procurar um lugar para passar a noite. Jack avistou um depósito de lenha ao lado de um pequeno barranco. Estava cercado de lixo e pneus carecas. Lobo concordou com um monossílabo. Passara o dia inteiro rabugento e calado.

Jack dormiu quase de imediato e acordou por volta das 11, querendo urinar. Olhou para o lado e viu que Lobo não estava lá. Deduziu que, provavelmente, ele fora procurar mais ervas para administrar uma espécie de dose de reforço. Jack torceu o nariz, mas se Lobo quisesse que ele bebesse mais um pou­co da coisa, não ia opor resistência. Sem dúvida, a maldita poção o deixara muito melhor.

Foi para o lado do depósito. Vestia um short, tinha os tênis desamarrados e a camisa aberta no pei­to. Durante um tempo que lhe pareceu muito longo, mijou contemplando o céu. Era uma daquelas noites de ilusória beleza que às vezes são vistas no Meio-Oeste em outubro e princípios de novembro, pouco an­tes da chegada do manto glacial do inverno. Fazia um calor quase tropical, e a brisa suave era como uma carícia.

Lá no alto a lua flutuava — branca, redonda, fascinante, envolvendo tudo em um brilho estranho, ilusório, que parecia, ao mesmo tempo, clarear e obscurecer. Jack não conseguia tirar os olhos dela. Sen­tiu que estava quase hipnotizado, mas não ligou.

Oh, nem chegamos perto do rebanho quando mudamos de forma. Por Jasão, nada disso!

Será que o rebanho agora sou eu, Lobo?

Havia um rosto na lua. Jack constatou, sem grande espanto, que era o rosto de Lobo... Só que não era largo, franco, um tanto assustado, estampando uma expressão de bondade e simplicidade. Era uma fisionomia crispada, ah, sim, e sombria; sombria por causa do pêlo, mas não apenas do pêlo. Era sombria devido às intenções que revelava.

Nem chegamos perto deles. Íamos querer comê-los, íamos querer comê-los, Jack, quando mudamos de forma, nós tamos...

A face na lua, um claro-escura gravado em osso, era a face de um animal rosnando, a cabeça empinada no instante final que precede o ataque, a boca aberta, cheia de dentes.

Íamos querer comer, íamos querer matar o rebanho, matar, matar, matar, matar!

Um dedo tocou o ombro de Jack e desceu lentamente até sua cintura.

Jack continuava com o membro na mão, contemplando a lua, o prepúcio ligeiramente apertado entre o polegar e o indicador. E, de repente, um forte jato de urina esguichou.

— Assustei você — disse Lobo atrás dele. — Sinto muito, Jack. Não tive essa intenção.

Mas por um momento Jack achou que Lobo tivera aquela intenção.

Por um momento, Lobo pareceu estar sorrindo de deboche.

E Jack teve a súbita certeza de que ia ser devorado.

Casa de tijolo?, ele pensou incoerentemente. Não vejo sequer uma casa de sapê que possa me servir de esconderijo.

Agora o medo chegava, um terror seco nas veias, mais quente que qualquer febre.

Quem tem medo do Lobo mau, do Lobo mau, do Lobo...

— Jack?

Eu, eu tenho! Oh, meu Deus, eu tenho muito medo do Lobo mau...

Ele se virou devagar.

O rosto de Lobo, que já estava ligeiramente peludo quando os dois chegaram ao depósito de le­nha, mostrava-se agora barbado quase até a testa, as bochechas cobertas de um pêlo áspero, duro. E os olhos... os olhos tinham um brilho avermelhado.

— Lobo, você está bem? — Jack perguntou num murmúrio rouco, meio sufocado. (Foi, no entanto, o tom mais alto que pôde emitir.)

— Sim — disse Lobo. — Estive correndo atrás da lua. Ela parecia muito bonita e eu corria... corria... corria. Mas está tudo bem, Jack.

Lobo sorriu para mostrar o quanto estava bem e revelou um punhado de enormes dentes afiados. Jack recuou com um calafrio de horror. Era como olhar para a boca de um monstro de cinema.

Lobo observou aquela reação e suas feições duras, rudes, cobriram-se de um ar de desânimo. Mas sob o desânimo — e, sem dúvida, não muito fundo — havia mais alguma coisa. Alguma coisa que cintila­va nos dentes e arreganhava o sorriso. Alguma coisa que seria capaz de caçar uma presa até vê-la gemer, o sangue escorrendo pelo nariz. Alguma coisa que seria capaz até mesmo de rir enquanto a pobre vítima era dilacerada.

E a coisa não deixaria de rir, mesmo se a vítima fosse Jack.

Principalmente se a vítima fosse Jack.

— Eu sinto muito — disse Lobo. — A época... está chegando. Teremos de tomar algumas provi­dências. Amanhã... teremos de... teremos de...

Ele olhou para o céu e aquele ar de hipnotizado voltou a lhe cobrir o rosto.

Levantou a cabeça e uivou.

E Jack imaginou que ouvia (muito debilmente) o Lobo na lua devolver o uivo.

De uma forma discreta (mas integral) o horror tomava conta dele. Naquela noite, não conseguiu mais dormir.

 

No dia seguintes, Lobo estava melhor. Um pouco melhor, pois ainda se mostrava extremamente tenso. Quando começou a explicar o que Jack devia fazer, um avião a jato rasgou o céu. Lobo ficou bruscamente de pé e saiu correndo, uivando para o avião, sacudindo os punhos. Os pés cabe­ludos estavam de novo descalços. Ao se dilatarem, tinham rompido os sapatos de lona.

Lobo não explicou muita coisa. Limitou-se a relatar velhas lendas e boatos. Sabia como era a trans­formação em seu próprio mundo, mas achava que podia ser muito mais intensa (mais poderosa e perigo­sa) na terra dos estrangeiros. Pressentia isso. Pressentia a força apoderando-se dele.

Naquela noite, quando a lua surgiu, Lobo percebeu que a força o dominaria. Mas não parou de re­petir que não queria causar mal a Jack, que preferia morrer a causar algum mal ao velho Jack.

 

Daleville era a cidadezinha mais próxima. Jack chegou lá pouco depois do relógio do tribunal bater meio-dia e foi direto para uma loja de ferragens. Tinha uma das mãos enfiada no bolso da calça, apalpando o fino maço de notas.

— Quer alguma coisa, filho?

— Sim, senhor — disse Jack. — Preciso de um cadeado.

— Bem, venha até aqui e dê uma olhada comigo. Temos Yales, Moslers, Lok-Tites e várias outras marcas, Que tipo de cadeado você quer?

— Um bem grande — disse Jack, fitando o vendedor com olhos sombrios e um tanto inquietos. Apesar de abatido, o rosto ainda impressionava por sua estranha beleza.

— Um bem grande... — refletiu o vendedor. — Posso perguntar por que está precisando de um ca­deado desses?

— Meu cachorro — Jack respondeu prontamente. Uma historinha. Queriam sempre uma histori­nha. Inventara aquela vindo do depósito de lenha, onde ele e Lobo tinham passado as últimas duas noites. — Tenho de deixá-lo bem trancado. É bravo.

 

O cadeado que Jack escolheu custou dez dólares, deixando-o apenas com mais dez dólares no bolso. Doeu-lhe gastar uma quantia tão grande e ele quase se decidiu por um artigo mais barato... Então se lembrou da aparência de Lobo na noite anterior, uivando para a lua, um fogo alaranjado saltando dos olhos.

Pagou os dez dólares.

Levantava o polegar para todos os carros que passavam enquanto corria pela estrada de volta ao depósito de lenha, mas, naturalmente, nenhum deles parou. Talvez parecesse apavorado demais, quase fora de si. E, sem dúvida, Jack se sentia apavorado e fora de si. O jornal em que o vendedor da loja de fer­ragens o deixara dar uma olhada indicava que o pôr-do-sol seria às seis horas em ponto. Não havia refe­rências à lua, mas Jack achava que ela ia surgir no máximo às sete. Já era uma hora da tarde e ele ainda não sabia onde Lobo poderia ser trancado.

Você tem de me trancar a cadeado, Jack, dissera Lobo. Tem de me trancar muito bem. Porque se eu sair, vou machucar qualquer coisa que atravesse meu caminho. Mesmo você, Jack. Mesmo você. Então me deixe bem trancado, não importa o que eu faça ou o que diga. Durante três dias, Jack, até que a lua comece a minguar. Três dias... até quatro, se ainda tiver alguma dúvida.

Sim, mas trancá-lo onde? Teria de ser em algum lugar bem afastado, para que as pessoas não ficas­sem sabendo da existência de Lobo se — quando, ele se corrigiu com relutância — Lobo começasse a ui­var. E tinha de ser um lugar bem mais forte do que o depósito de lenha onde estavam dormindo. Se pu­sesse aquele novo e resistente cadeado de dez dólares na porta do depósito, Lobo simplesmente daria um murro nas tábuas e sairia com a maior facilidade.

Então, onde?

Não sabia, e só dispunha de seis horas para achar um lugar adequado... talvez menos.

Jack começou a correr ainda mais depressa.

 

Tinham passado por várias casas vazias para chegar assim tão longe, tinham até pernoitado numa, e Jack voltou de Daleville procurando indícios de casas desocupadas: janelas sem corti­nas e tabuletas de À venda, mato crescido até o segundo degrau da varanda e a aparência de inatividade comum às casas abandonadas. Não achava, é claro, que pudesse trancar Lobo no quarto de dormir de al­gum agricultor durante os três dias de sua transformação. Lobo derrubaria num segundo a porta. Mas uma casa de fazenda costuma ter um porão resistente; e um porão assim devia servir.

Já tinham passado por uma casa com uma sólida porta de carvalho fixada num outeiro cheio de ve­getação (coisa digna de um conto de fadas). Atrás da porta, havia um aposento ,sem paredes nem teto: uma galeria subterrânea, uma caverna de onde nenhuma criatura conseguiria sair em menos de um mês, Um porão desse tipo seguraria Lobo, e o chão e as paredes de terra o impediriam de se ferir.

Mas a casa abandonada, com a galeria subterrânea, ficara a pelo menos 50 ou 60 quilômetros para trás. Nunca conseguiriam alcançá-la antes de a lua aparecer. E será que, tão perto da época da Transformação, Lobo ainda se disporia a correr 60 quilômetros? E com a única finalidade de se deixar trancar num confinamento solitário e sem alimento?

E se já tivessem esperado demais? E se Lobo já tivesse chegado perto demais de sua “mudança de forma” e se recusasse a ser aprisionado? Talvez aquele traço sinistro, perverso, de seu caráter já estivesse à flor da pele, começando a analisar o estranho e novo ambiente, farejando comida. O enorme cadeado que Jack trazia no bolso, o cadeado capaz de fechar todas as comportas dos impulsos de Lobo, talvez se mostrasse inteiramente inútil.

Jack podia dar meia-volta, é claro. Podia voltar para Daleville e continuar seguindo em frente. Num dia ou dois estaria perto de Lapel ou Cicero, e talvez pudesse trabalhar uma tarde num armazém ou passar algumas horas numa fazenda. Podia ganhar alguns dólares e filar alguns almoços. Depois era só seguir para a fronteira de Illinois e aí seria fácil! Jack tinha certeza de que no máximo 48 horas depois de ter cru­zado a divisa de Illinois conseguiria chegar a Springfield e ao Colégio Thayer.

A 500 metros do depósito de lenha, Jack hesitava. Mas como poderia explicar a presença de Lobo a Richard Sloat? Seu velho companheiro Richard, com óculos redondos, gravata borboleta, sapatos de cou­ro... Richard Sloat era completamente racional e, embora muito inteligente, um tanto cabeça-dura. O que ele não via com os próprios olhos, para ele simplesmente não existia. Quando criança, nunca se interes­sou por contos de fadas, nunca vibrou com os filmes de Disney sobre fadas-madrinhas que transforma­vam abóboras em carruagens e rainhas malvadas que tinham espelhos falantes. Eram conceitos absurdos demais para satisfazer a imaginação do Richard Sloat de seis, oito ou dez anos de idade. Em compensa­ção, sentia-se irresistivelmente atraído por uma câmera fotográfica ou um microscópio eletrônico. O entusiasmo de Richard admitia coisas como o Cubo Mágico (que sabia solucionar em menos de 90 segundos), mas Jack apostava que ele não seria capaz de aceitar um lobisomem de 16 anos e dois metros de altura.

Por um momento Jack Sawyer quase parou na estrada; por um momento achou que conseguiria abandonar Lobo à sua própria sorte e que poderia prosseguir sozinho na jornada para Richard Sloat e de­pois para o talismã.

E se eu for o rebanho?, ele se perguntava.

E o que lhe veio à cabeça foi a imagem de Lobo correndo por uma colina atrás de seus pobres ani­mais, atirando-se no riacho para salvá-los.

 

O depósito de lenha estava vazio. Assim que viu a porta aberta, Jack soube que Lobo tinha fugido. Com ar preocupado, desceu o barranco, abrindo caminho entre o lixo. Para onde teria ido?

— Ei! Estou aqui! — Jack gritou. — Ei, Lobo?! Trouxe o cadeado!

Sabia que estava falando sozinho, e uma olhada no depósito confirmou isso. Lá estava a mochila em cima de um banquinho de madeira, ao lado de uma grande pilha de revistas de 1973. Num dos cantos do depósito sem janelas, estranhos galhos de árvore tinham sido descuidadamente amontoados (como se alguém tivesse pretendido fazer um enorme ninho para esquilos). Fora isso, o depósito estava vazio. Jack contornou a porta escancarada e inspecionou sem esperanças as encostas do barranco.

No meio da relva havia alguns velhos pneus, um pacote de panfletos políticos corroídos e desbota­dos, uma placa de automóvel azul e branca de Connecticut, bastante amassada, garrafas de cerveja com rótulos rasgados... mas nada de Lobo. Jack fez concha com ambas as mãos e gritou:

— Ei, Lobo! Estou aqui!

Como era de se esperar, não houve resposta. Lobo se fora.

— Merda! — Jack exclamou e pôs as mãos na cintura. Emoções conflitantes — exasperação, alívio e ansiedade — percorreram-lhe o corpo. Lobo fora embora para salvar-lhe a vida — só podia ser esse o significado de sua fuga. Assim que Jack partira para Daleville, o companheiro fugira. Por certo, saíra cor­rendo com aquelas pernas infatigáveis e já estaria agora a quilômetros de distância, esperando o nasci­mento da lua. Lobo podia ter ido agora para qualquer lugar.

Essa compreensão contribuía para aumentar a ansiedade de Jack. Lobo podia ter se enfiado nos bosques que havia nos limites de uma longa campina nos fundos da casa. Nos bosques, poderia fartar-se de coelhos, camundongos, toupeiras, texugos, todo o elenco de O vento no laranjal. Tudo, sem dúvida, muito gostoso. O problema é que Lobo poderia farejar a criação de alguém e se colocar numa situação de real perigo. Poderia também, Jack suspeitava, farejar o agricultor e a família dele. Ou, ainda pior, poderia se aproximar de uma das cidades ao norte. Jack não tinha certeza, mas achava que um lobisomem conse­guiria massacrar pelo menos meia dúzia de pessoas antes de ser morto.

— Maldição! — disse Jack, e começou a subir o barranco. Não tinha grandes esperanças de avistar Lobo; provavelmente jamais veria Lobo outra vez. Daí a alguns dias, encontraria no jornal de alguma cidadezinha uma terrível descrição da carnificina causada por um enorme lobo que aparecera na Avenida Central em busca de comida. E haveria novos nomes. Nomes como Thielke, Heidel, Hagen...

A princípio olhou para a estrada esperando ver o vulto gigantesco de Lobo se distanciando para o leste — ele não ia querer encontrar-se com Jack voltando de Daleville. A longa estrada parecia tão deserta quanto o depósito de lenha.

É claro, ele se fora!

O sol, um relógio tão bom quanto o que se usa no pulso, já estava muito abaixo do meridiano.

Jack virou-se ansiosamente para a campina e os bosques ao longe. Além do mato, que uma brisa fria fazia ondular, nada mais se mexia.

continua a caça ao lobo assassino, diria, alguns dias mais tarde, uma manchete de jornal. Então uma grande forma marrom oscilou no meio da campina e Jack percebeu que a forma era Lobo. Estava agachado, estava fitando Jack.

— Oh, seu grande filho da puta — disse Jack e, por entre seu sentimento de alívio, não deixou de perceber que uma parte dele ficara bastante satisfeita com a partida de Lobo.

Deu um passo à frente.

Lobo não se mexeu, mas sua postura ficou mais tensa, mais alerta.

O passo seguinte de Jack exigiu mais coragem que o primeiro.

Vinte metros à frente, ele viu que a transformação continuava a se processar no corpo do amigo. O cabelo se tornara ainda mais grosso e abundante (como se tivesse sido lavado e seco no secador); e agora a barba realmente parecia começar bem embaixo dos olhos. E, mesmo agachado, o corpo parecia maior e mais forte. Os olhos, cintilando com uma liquidez de chama, lembravam o fogo vermelho de uma foguei­ra de São João.

Jack se obrigou a chegar mais perto. Ficou quase paralisado ao achar que as mãos de Lobo tinham se transformado em patas, mas logo depois percebeu que se tinha enganado: as mãos e os dedos estavam apenas cobertos por uma camada de pêlos negros.

Lobo continuava a fitá-lo com olhos chamejantes. Jack se aproximou um pouco mais e parou de novo. Pela primeira vez, desde que se defrontara com Lobo guiando o rebanho junto a um riacho dos Ter­ritórios, não pôde entender a expressão daquele rosto. Talvez Lobo já se tivesse tornado excessivamente enluarado, ou talvez o rosto estivesse excessivamente oculto atrás de todo aquele pêlo. Mas tinha certeza de que alguma forte emoção se apoderara do amigo.

Três metros adiante, Jack parou de vez e obrigou-se a olhar diretamente nos olhos do lobisomem.

— Ainda bem que você chegou, Jacky! — disse Lobo, e a boca se abriu numa assustadora paródia de sorriso.

— Achei que tivesse fugido.

— Fiquei sentado aqui à sua espera. Lobo, oh, Lobo!

Jack não sabia que dedução tirar. Mas a imagem do Chapeuzinho Vermelho lhe veio à cabeça. Vovó, por que esses dentes tão longos, tão afiados, tão fortes?

— Trouxe o cadeado.

Jack tirou o cadeado do bolso e o mostrou a Lobo.

— Conseguiu pensar em alguma coisa enquanto fui à cidade?

Toda a fisionomia de Lobo — olhos, dentes, tudo — cintilou para Jack.

— Agora você é o rebanho, Jack — disse Lobo. E, levantando a cabeça, soltou um longo e forte uivo.

 

Um Jack Sawyer menos assustado poderia ter dito: “Não acha melhor usar o cadea­do?” ou “Todos os cachorros do condado correrão atrás de você se eu deixá-lo solto!”, mas tudo isso lhe morreu na garganta. Estava assustado demais para dizer qualquer coisa.

Lobo deu um sorriso artificial, tipo anúncio de creme dental, e agilmente se pôs de pé. Os óculos de John Lennon desapareciam no meio da barba e do cabelo grosso que lhe caía sobre as têmporas. Ele realmente parecia ter crescido, ultrapassando os dois metros; e estava troncudo como os barris de cerveja na despensa da Taberna Oatley.

— Também existem cheiros bons neste seu mundo, Jacky!

E Jacky finalmente foi capaz de identificar o estado de espírito do amigo. Lobo estava exultante. Lembrava alguém que, contra todas as expectativas, tivesse conquistado a medalha de ouro numa prova muito difícil. E, no fundo daquela triunfante emoção, insinuava-se o traço de caráter selvagem que Jack já vira antes naquele rosto.

— Cheiros bons! Lobo, oh, Lobo!

Com medo de estar a favor do vento que trazia os cheiros para Lobo, Jack deu um leve passo atrás.

— Você nunca tinha dito nada de bom sobre este mundo — disse ele, a voz um tanto trêmula.

— Isso foi antes. Antes é antes e depois é depois — disse Lobo. — Há coisas boas. Muitas coisas boas... por todo lado. Lobo vai encontrá-las, pode apostar!

Agora Jack podia ver (na realidade podia quase sentir) uma estranha determinação, uma ânsia, uma fome inteiramente amoral brilhando nos olhos avermelhados. Vou devorar tudo o que conseguir pe­gar, dizia aquela fome. Tudo o que conseguir pegar e matar. Pegar e matar.

— Espero que nenhuma dessas coisas boas sejam pessoas, Lobo — disse Jack em voz baixa. Lobo empinou o queixo e proferiu uma série de ruídos borbulhantes, algo entre riso e uivo.

— Lobo precisa comer — disse ele, e o tom estava pleno de júbilo. — Oh, Jacky, como Lobo preci­sa comer. comer, oh, Lobo!

— Vou ter de colocá-lo naquele depósito — disse Jack. — Está lembrado, Lobo? Já trouxe o cadea­do. Acho que as tábuas podem não agüentar, mas não há outra solução. Vamos pôr mãos à obra, está bem? Você está me deixando assustado até a raiz dos cabelos.

Dessa vez o riso borbulhante subiu como um balão pelo peito de Lobo.

— Assustado? Lobo sabe disso! Lobo sabe, Jacky! Você tem o cheiro do medo.

— E não é de admirar, não acha? — disse Jack. — Vamos para aquele depósito agora, OK?

— Oh, não vou entrar no depósito — disse Lobo, e uma língua comprida e pontuda caiu das man­díbulas. — Não, eu não, Jacky. Não Lobo. Lobo não pode entrar no depósito.

As mandíbulas se abriram e a multidão de dentes brilhou.

— Lobo está lembrando, Jacky. Lobo, oh, Lobo! Aqui e agora! Lobo se lembra muito bem!

Jack recuou mais um passo.

— Mais cheiro de medo. Chega até os meus sapatos. Até os sapatos, Jacky! Lobo, oh, Lobo!

Sapatos com cheiro de medo, aquilo era sem dúvida uma piada de Lobo.

— Você tem de entrar no depósito, é isso que você não pode esquecer...

— Errado! É você quem tem de entrar no depósito, Jacky! Jacky fica no depósito! Me lembro muito bem! Lobo, oh, Lobo!

Os olhos do lobisomem passaram do brilho vermelho-alaranjado a uma ligeira sombra roxa.

— Está no Livro da boa lavoura, Jacky. A história do “Lobo que não ataca seu rebanho”. Não sabe disso? O rebanho vai para o celeiro. Está lembrado? O cadeado fica na porta. Quando o lobino pressente a vinda da Transformação, o rebanho vai para o celeiro e o cadeado fica na porta. Não podemos atacar o re­banho Dele.

As mandíbulas estalaram e se abriram de novo. A língua escura e comprida enroscou-se numa ima­gem perfeita de deleite.

— Não! Não! Não atacar o rebanho Dele. Lobo, oh, Lobo! Aqui e agora!

— Quer que eu fique três dias trancado no depósito? — Jack perguntou.

— Tenho de comer, Jacky — Lobo respondeu laconicamente, e o garoto viu alguma coisa escura, veloz, sinistra, resvalar dos olhos de Lobo. — Quando a lua me levar com ela, eu vou ter de comer. Há bons cheiros aqui. Muita comida para Lobo. Quando a lua me abandonar, então, sim, Jacky poderá sair do depósito.

— O que vai acontecer se eu não quiser passar três dias trancado?

— Lobo matará Jacky. E ficará amaldiçoado.

— Tudo está escrito no Livro da boa lavoura, não é?

Lobo balançou a cabeça.

— Eu me lembrei a tempo, Jacky. Quando estava à sua espera.

Jack ainda tentava absorver a idéia de Lobo. Teria de ficar três dias sem comida. Lobo ficaria livre para perambular por onde bem quisesse. Ele, Jack, ficaria na prisão, e Lobo teria o mundo inteiro ao seu dispor. No entanto, talvez lhe fosse impossível sobreviver de outra forma à transformação de Lobo. Se tinha de escolher entre a morte e o jejum de três dias, ficava com o jejum.

Então ocorreu a Jack que essa inversão talvez não fosse realmente uma inversão... Mesmo trancado no depósito, ele ainda estaria livre, enquanto Lobo, embora à solta no mundo, continuaria aprisionado, à mercê dos caprichos da lua. Sua jaula seria bem maior que o depósito de lenha, mas continuava sendo jaula.

— O Livro da boa lavoura foi abençoado por Deus e eu não pensaria em desobedecê-lo — disse Lobo.

A fisionomia lupina cintilou de novo, depois se virou para o céu com um ar pálido e ansioso,

— Não vai demorar muito tempo, Jacky. Você é o rebanho. Tenho de guardá-lo.

— Está bem — disse Jack. — Acho que não há outra solução.

E essa conclusão pareceu deixar Lobo bastante satisfeito. Riu como se uivasse, jogou um braço em volta da cintura de Jack, suspendeu-o e atravessou o campo com ele no colo.

— Lobo tomará conta de você — disse ele com um uivo que pareceu virá-lo pelo avesso. Pousou suavemente o garoto no barranco defronte ao depósito.

— Lobo... — disse Jack.

Lobo alargou as mandíbulas e contorceu o queixo.

— Você não pode matar pessoas, Lobo — disse Jack. — Pode ter certeza de uma coisa: se matar al­guém, muita gente vai querer caçá-lo. Se matar alguém, mesmo que seja uma única pessoa, muita, muita gente correrá atrás de você para destruí-lo. E vão pegá-lo, Lobo! Pode ter certeza absoluta! Não importa onde tente se esconder!

— Não pessoas, Jacky! Animais cheiram melhor que pessoas. Nada de pessoas! Lobo, oh, Lobo!

Desceram o barranco. Jack tirou o cadeado do bolso e prendeu-o várias vezes na argola de metal, mostrando a Lobo como usar a chave.

— Depois você passa a chave por debaixo da porta, está bem? — disse Jack. — Quando a transfor­mação acabar, eu lhe passo de novo a chave.

Jack olhou para a parte de baixo da porta — havia uma fenda de cinco centímetros entre a porta e o chão.

— Com certeza, Jacky. Você me passa de novo a chave.

— Bem, o que vamos fazer? — Jack perguntou. — Tenho de entrar agora?

— Sente-se aqui — disse Lobo, apontando para um ponto no chão do depósito a 30 centímetros da porta.

Jack lançou um olhar curioso ao amigo, depois entrou no depósito e sentou. Lobo se agachou do lado de fora da porta e, sem olhar para Jack, estendeu-lhe a mão. Jack pegou a mão de Lobo. Foi como se­gurar uma criatura peluda do tamanho de um coelho. Lobo apertou-a com tanta força que Jack quase gri­tou... Mas, mesmo que tivesse gritado, Lobo não o ouviria. Estava de novo hipnotizado pelo céu: o rosto sonhador, pacífico, extasiado. Após um ou dois segundos, Jack conseguiu acomodar sua mão numa posi­ção mais confortável dentro do apertão de Lobo.

— Vamos ficar assim por muito tempo? — ele perguntou. Lobo demorou quase um minuto para responder.

— Até quando for preciso — disse Lobo, e apertou de novo a mão de Jack.

 

Ficaram horas sentados ali, um de cada lado da soleira da porta, calados. Final­mente a luz começou a declinar. Lobo começara a tremer quase imperceptivelmente nos 20 minutos que precederam o início do crepúsculo e, à medida que a escuridão avançava, o tremor de sua mão aumenta­va. Era desse jeito, Jack pensou, que devia tremer um cavalo de corrida antes da largada (esperando o som de um tiro, esperando o portão se abrir).

— A lua já está começando a me levar com ela — disse Lobo num tom suave. — Logo estaremos correndo pelos campos, Jack! Eu e ela! Gostaria muito que você pudesse nos acompanhar.

Virou a cabeça para Jack e o garoto achou que, embora Lobo pretendesse dizer apenas o que dis­se, havia uma espécie de significado oculto na mensagem.

O problema é que eu tanto podia correr do seu lado quanto atrás de você, meu velho!

— Acho que agora temos de fechar a porta — disse Jack.

Tentou livrar a mão da garra lupina, mas só conseguiu libertá-la quando Lobo, quase com despre­zo, recolheu o braço.

— Jacky fica trancado aí dentro! Lobo fica trancado aqui fora!

Os olhos de Lobo faiscaram, tomaram-se liquidamente vermelhos. (Lembravam os olhos de Elroy.)

— Não esqueça, você tem de manter o rebanho em segurança — disse Jack.

E recuou para o meio do depósito.

— O rebanho vai para o celeiro e o cadeado fica na porta. Não podemos atacar o rebanho Dele.

Os olhos de Lobo pararam de faiscar e assumiram um tom alaranjado.

— Ponha o cadeado na porta.

— Oh, meu Deus, é exatamente isto o que vou fazer — disse Lobo. — Vou colocar o bendito cadeado na bendita porta, está vendo?

Ele bateu a porta, fazendo Jack mergulhar na escuridão.

— Está ouvindo isso, Jacky? É o bendito cadeado.

Jack ouviu o estalo do cadeado na argola de metal e sentiu a lingüeta fechada.

— Agora a chave — disse Jack.

— A bendita chave, aqui e agora! — disse Lobo, e a chave foi retirada da fechadura. Um segundo depois, era lançada pelo chão empoeirado sob a porta com força suficiente para deslizar por um bom tre­cho de assoalho.

— Obrigado — Jack murmurou.

Ele se curvou e seus dedos tatearam pelas tábuas do chão até encontrarem a chave. Por um instan­te, apertou-a com tanta força na palma da mão que quase rasgou a pele — a marca, com a forma do esta­do da Flórida, duraria mais de quatro dias. Depois, enfiou cuidadosamente a chave no bolso. Do lado de fora, Lobo estava arquejando em arfadas regulares, quentes, agitadas.

— Está com raiva de mim, Lobo? — ele sussurrou através da porta.

Um punho atingiu a porta com força.

— Não! Não estou com raiva! Lobo, oh, Lobo!

— Então está bem — disse Jack. — Nada de pessoas, OK? Não se esqueça disso! Senão vão caçá-lo até a morte.

— Nada de pessoaauuuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhhhhhhh!

A palavra se transformou num longo, nítido uivo. O corpo de Lobo bateu contra a porta e os pés cobertos de um pêlo negro surgiram na abertura no chão. Jack percebeu que Lobo estava colado à porta.

— Nada de raiva, Jack... — Lobo murmurou, como se estivesse um tanto envergonhado do uivo. — Lobo não está com raiva, Lobo está nervoso! Porque a coisa vai acontecer daqui a pouco. Logo-logo, oh, bendito logo!

— Eu sei! — disse Jack, sentindo agora uma súbita vontade de chorar. Gostaria de ter dado um abraço em Lobo antes de ele fechar a porta, gostaria de ter encontrado uma boa casa de fazenda, gostaria de estar agora do lado de fora de um porão resistente... com Lobo solidamente aprisionado lá dentro.

E ocorreu-lhe o estranho, inquietante pensamento de que Lobo estava solidamente aprisionado.

Os pés de Lobo apareciam sob a porta. Tornavam-se mais compactos, mais compridos, mais estreitos.

Lobo rosnou, arquejou, rosnou de novo. Afastou-se da porta e emitiu um ruído um tanto insólito.

— Aaaah...

— Lobo? — Jack chamou.

Um uivo de furar os tímpanos sacudiu o corpo de Jack: vinha do alto do barranco.

— Tenha cuidado — disse o garoto, sabendo que Lobo não o ouviria mais, temendo que Lobo não fosse mais capaz de ouvi-lo mesmo se estivesse junto da porta.

Uma série de novos uivos seguiram-se ao primeiro — o som de uma criatura liberta ou o grito de­sesperado de alguém que, ao acordar, descobre que ainda está na prisão. Pungentes, ferozes e estranha­mente belos, os uivos do pobre Lobo enchiam a noite enluarada como lenços brancos levados pelo vento. Jack só percebeu que estava tremendo quando cruzou os braços e sentiu-os vibrar contra o peito (um pei­to que também parecia vibrar).

Os uivos diminuíram, recuaram para a distância. Lobo estava correndo com a lua.

 

Por três dias e três noites Lobo se empenhou numa busca quase incessante de co­mida. De cada amanhecer até pouco depois do meio-dia, dormia numa cavidade que descobrira sob o tronco caído de um carvalho. Certamente não se sentia aprisionado, a despeito das previsões de Jack. Os bosques nos limites da campina eram extensos e fartos da dieta natural de um lobo. Camundongos, coe­lhos, gatos, cachorros, esquilos — tudo era facilmente encontrado. Poderia dar-se por satisfeito com aque­les bosques e comer mais do que o suficiente para sustentá-lo até a próxima transformação.

Mas Lobo estava correndo com a lua e lhe seria tão impossível ficar confinado aos bosques quanto reprimir sua metamorfose. Vagava de um ponto a outro, sempre levado pela lua, atravessando pastos e quintais, passando por isoladas casas suburbanas e estradas em construção (onde máquinas de terraplenagem e gigantescos rolos de asfalto pareciam dinossauros dormindo nas margens). Metade de sua inteli­gência era motivada pelo sentido do olfato, e não seria exagero sugerir que o nariz de Lobo, sempre apu­rado, tinha agora atingido um verdadeiro status de gênio. Conseguia farejar um cercado de galinhas a mais de sete quilômetros de distância, conseguia distinguir seu cheiro dos cheiros das vacas, porcos e ca­valos da mesma fazenda — mas tudo isso era elementar. Porque Lobo se tornara capaz de farejar o movi­mento das galinhas; porque Lobo se tornara capaz de farejar que um dos porcos adormecidos tinha um fe­rimento no pé e uma das vacas do curral, uma teta esfolada.

E aquele mundo, o mundo por onde a lua o conduzia, não tinha mais cheiro de morte e substâncias químicas. Uma forma mais antiga, mais primitiva de natureza o acompanhava naquela jornada. Lobo conseguia inalar tudo o que ainda sobrava da primitiva doçura da terra, tudo o que ainda restava das qualidades que um dia o mundo americano havia compartilhado com os Territórios. Mesmo quando se aproximava de alguma habitação humana, mesmo quando abocanhava a espinha do vira-lata da família e o dilacerava em pedaços enormes que eram engolidos inteiros, Lobo não deixava de sentir a pureza de fontes de água fresca movendo-se sob o solo ou da neve brilhando sobre uma montanha no mais longínquo oeste. Era um lugar perfeito para um Lobo metamorfoseado, mas se matasse algum ser humano Lobo ficaria amaldiçoado para sempre.

Ele não matou pessoas.

Talvez... pela simples razão de que não viu nenhuma. Mas, durante os três dias da Transformação, Lobo matou representantes da maioria das outras formas de vida encontradas no leste de Indiana, incluin­do um gambá e uma família inteira de linces que viviam em cavernas de calcário a dois vales de distância. Na primeira noite nos bosques, abocanhou um morcego que passava em vôo rasante, arrancou-lhe a ca­beça e engoliu o resto ainda se mexendo. Esquadrões inteiros de gatos domésticos e pelotões de cães des­ceram-lhe pela goela. Numa das noites, com uma alegria selvagem e feroz, abateu todos os porcos de um chiqueiro do tamanho de um quarteirão urbano.

Mas duas vezes Lobo se sentiu misteriosamente impedido de matar suas presas, e também isto o fez se sentir em casa no mundo por onde rondava. Foi uma questão de lugar, não de algum abstrato sentimento moral. Um desses lugares foi uma clareira nos bosques, onde ele caçava um coelho; outro, foi o pátio de uma fazenda onde um cachorro, preso numa estaca por uma corrente, não parava de ganir. No instante exato em que pisou nesses lugares, seu pêlo se eriçou e um comichão elétrico atravessou-lhe toda a extensão da espinha. Eram lugares sagrados, e num lugar sagrado um lobo não podia matar. Isso era tudo o que ele sabia. Como todos os lugares sagrados, aquelas áreas tinham sido “isoladas” muito tem­po atrás, há tanto tempo que a expressão “de uma época primordial” talvez pudesse ser usada para des­crevê-las. Foi essa profunda sensação de tempo remoto que Lobo sentiu ao se aproximar do pátio da fa­zenda e da clareira nos bosques: uma densa vastidão de anos concentrada num espaço pequeno, mas cheio de vibrações.

Nessas duas ocasiões, Lobo simplesmente se afastou do solo sagrado pela primeira trilha que en­controu. Como os homens-pássaros que Jack tinha visto, Lobo vivia num mistério e estava bastante acostumado a coisas desse tipo.

E Lobo também não esqueceu de seu dever para com Jack Sawyer.

 

Trancado no depósito de lenha, Jack teve oportunidade de analisar os traços fundamentais de sua mente e de seu caráter com mais argúcia do que em qualquer outra ocasião.

No depósito, havia apenas o banquinho de madeira e, para lhe servir de distração, a pilha de revis­tas de quase uma década atrás. O problema é que não podia ler as revistas. Como não havia janelas, tinha dificuldade até para ver as fotos (exceto no início da manhã, quando a luz escoava por sob a porta). As palavras surgiam como fileiras indecifráveis de vermes cinzentos.

De início, não pôde imaginar como agüentaria passar três dias fechado ali. Foi até o banco (onde bateu dolorosamente com o joelho numa das quinas) e sentou-se para pensar.

Uma das primeiras coisas que percebeu foi que o tempo dentro do depósito era diferente do tem­po lá fora. Do outro lado da porta, os segundos passavam com rapidez, confundiam-se com os minutos e os minutos confundiam-se com as horas. Dias inteiros, semanas inteiras voavam num tique-taque de metrônomo. No interior do depósito, porém, os segundos se recusavam obstinadamente a correr, transfor­mavam-se em monstros grotescos, de uma lentidão viscosa. Enquanto quatro ou cinco segundos se dilata­vam, inchavam do lado de dentro, uma hora voava lá fora.

A segunda coisa que Jack percebeu foi que pensar sobre a lentidão do tempo só agravava a situa­ção. Quando começava a se concentrar na passagem dos segundos, aí é que eles se recusavam a avançar um dedo.

Para afastar da mente a eternidade dos segundos que somavam três dias, começou a medir as di­mensões da cela. Pondo um pé na frente do outro e contando os pequenos passos, concluiu que o depó­sito tinha aproximadamente sete pés por nove, isto é, cerca de dois metros e 10 por dois e 70. Pelo menos teria espaço suficiente para se esticar durante a noite.

Fazendo uma volta completa no depósito, andava quase dez metros.

Se desse 100 vezes aquela volta, completaria um quilômetro.

Não tinha nada para comer, mas sem dúvida podia caminhar. Tirou o relógio do pulso e colocou-o no bolso, prometendo a si mesmo que só o consultaria em caso de absoluta necessidade.

Tinha caminhado cerca de 400 metros em seu primeiro quilômetro, quando se lembrou de que não havia água no depósito. Nem comida, nem água. Mas achava que uma pessoa levava mais de três ou qua­tro dias para morrer de sede. Quando Lobo voltasse, ainda estaria bem... talvez não muito, mas pelo me­nos vivo. E se Lobo não voltasse? Seria obrigado a arrombar a porta, não é?

Nesse caso, pensou, era melhor fazer isso o mais depressa possível, enquanto ainda tinha alguma energia.

Aproximou-se da porta e empurrou-a com as duas mãos. Empurrou-a com força e os gonzos ran­geram. A título de experiência, jogou o ombro contra a madeira da porta. Bateu de novo com mais força. Os gonzos rangeram mas não se deslocaram um milímetro. Lobo poderia ter arrancado aquela porta com uma só mão, mas Jack não conseguiria abri-la mesmo que transformasse os ombros em hambúrgueres de tanto esmurrá-la. A única saída era esperar pela volta de Lobo.

Pelo meio da noite, Jack já tinha andado uns dez ou 12 quilômetros; perdera a conta do número exato de 100 vezes que contornara o depósito. Estava com sede e o estômago roncava. O depósito fedia a urina, pois fora forçado a mijar numa das paredes (uma fenda nas tábuas dava esperanças de que pelo menos uma parte da urina jorraria para fora). Embora o corpo estivesse cansado, achava que não ia con­seguir dormir. De acordo com o relógio, não estava sequer a cinco horas no depósito; de acordo com o tempo do interior, porém, já se tinha passado mais de um dia. Tinha medo de deitar e ficar rolando insone no chão.

Sua mente não o estava ajudando muito. Tentara fazer listas dos livros que lera no ano anterior, dos professores que teve na escola, dos jogadores de futebol... Mas imagens perturbadoras e caóticas sempre interrompiam a contagem. Continuava vendo Morgan Sloat rasgando um buraco no ar. O rosto de Lobo flutuava sob a água e suas mãos se agitavam na superfície. Jerry Bledsoe se retorcia e tremia diante do painel elétrico, os óculos grudados no nariz. Os olhos de um homem ficavam amarelos e a mão se transformava numa espécie de garra. A dentadura postiça do tio Tommy era atirada na sarjeta da Rua Sunset. E Morgan Sloat se aproximava, a careca subitamente coberta de cabelo negro... Mas, de repente, não era dele, era de sua mãe que o tio Morgan se aproximava.

— Dê mais uma volta, rapaz! — dizia uma voz, e Jack obedecia, completando mais um circuito na escuridão. — Mas que pés enormes você tem!... E que orelhas tão grandes!... Vamos lá, rapaz! Lobo é uma caixa de surpresas... Não vá cair noutra cilada, está bem?

E então a coisa-Elroy estendeu o braço para sua mãe, sussurrando obscenidades, colocando uma das mãos na cintura dela.

— Já estive em lugares incríveis da América Central: Nicarágua, Honduras, Guatemala, Costa Rica.,,

Mesmo quando, morrendo de cansaço, Jack se deitou e, usando a mochila como travesseiro, en­roscou-se como uma bola no chão, Elroy e Morgan Sloat não pararam de lhe devastar os pensamentos. Osmond fazia o chicote estalar nas costas de Lily Cavanaugh, os olhos dançando. Lobo rosnava, o corpo compacto, absolutamente anti-humano. Rosnava e desfechava um tiro de rifle bem no coração de Jack.

 

Jack acordou com as primeiras luzes da aurora e sentiu cheiro de sangue. Todo o seu corpo supli­cava por um pouco d’água... e também por comida. Jack gemeu. Seria impossível sobreviver a mais três noites naquela situação. O baixo ângulo da luz do sol lhe permitiu divisar vagamente as paredes e o teto do depósito. Tudo parecia maior que na noite anterior. Teve outra vez vontade de urinar, embora não entendesse muito bem como seu corpo ainda conseguia ter alguma coisa para despejar. Pouco depois, en­tendeu que o depósito só parecia maior porque ele estava deitado no chão.

E sentiu de novo o cheiro de sangue. Olhou para o lado, para a porta. O quarto traseiro de um coe­lho fora enfiado pela abertura da porta. A carne se espalhara nas tábuas do assoalho, gotejando sangue e cintilando. Manchas de sujeira e um profundo arranhão mostravam que fora difícil empurrar a carne por baixo da porta. Lobo estava tentando alimentá-lo.

— Oh, meu Deus! — Jack resmungou.

As patas do coelho pareciam desagradavelmente humanas. O estômago de Jack ficou embrulhado, mas, em vez de vomitar, ele riu, assaltado por uma absurda comparação. Lobo era como o animal de estimação da família que, toda manhã, presenteia os donos com um pássaro morto ou um rato de barriga aberta.

Com dois dedos, Jack Sawyer pegou delicadamente a horrível oferenda e escondeu-a embaixo do banco. Ainda sentia vontade de rir, mas seus olhos estavam úmidos. Lobo sobrevivera à primeira noite de sua transformação, e Jack também.

 

Na manhã seguinte, os olhos de Jack depararam com um pedaço de carne, de forma quase ovóide, que ele não conseguiu identificar. No centro, havia um osso extremamente branco lascado nas duas 220     pontas.

 

Na manhã do quarto dia, ouviu alguém deslizar pelo barranco. Um passarinho as­sustado piou e, sacudindo ruidosamente as asas, fugiu do telhado. Pisadas fortes avançaram para a porta. Jack se ergueu nos cotovelos e piscou na escuridão.

Um corpanzil se apoiou do lado de fora e ficou imóvel. Através da abertura, Jack pôde ver um par bastante rasgado de sapatos de lona.

— Lobo? — Jack perguntou num tom suave. — É você, não é?

— Me dê a chave, Jack.

Jack enfiou a mão no bolso, pegou a chave e empurrou-a para os sapatos de lona. Uma grande mão bronzeada surgiu na abertura e pegou a chave.

— Trouxe água? — Jack perguntou.

Apesar do que conseguira extrair dos medonhos presentes de Lobo, estivera bem próximo de uma séria desidratação: os lábios estavam inchados e rachados; a língua parecia dormente, assada. A chave foi enfiada no cadeado e Jack ouviu a argola de metal se abrir.

Depois o cadeado foi tirado da porta.

— Só mais um instante — disse Lobo. — Feche os olhos, Jack. Você não está mais acostumado a luz do dia.

Quando a porta foi aberta, Jack apertou os olhos com as mãos, mas a luz que jorrou conseguiu passar entre as fendas dos dedos para lhe perfurar os olhos. Ele gritou de dor.

— Isso já vai passar — disse Lobo, bem próximo dele. Os braços do amigo o agarraram e o suspen­deram. — Feche os olhos — Lobo advertiu e saiu com ele do depósito.

Quando Jack repetiu o pedido de água e sentiu a borda enferrujada de uma caneca se aproximar de seus lábios, entendeu por que Lobo se apressara a tirá-lo do depósito. O ar lá fora parecia inacredita­velmente fresco e doce (como se tivesse sido importado diretamente dos Territórios). Os primeiros goles de água tiveram um sabor inigualável e escorreram por dentro dele como um regato espumante, fazendo reviver tudo em que tocavam. Era como se ele estivesse sendo irrigado.

Lobo retirou a caneca de seus lábios muito antes de Jack ter saciado completamente a sede.

— Vamos devagar. Se beber de uma vez toda a água que tem vontade, não vai passar nada bem — disse Lobo. — Abra os olhos, Jack... mas só um pouquinho.

Jack fez como Lobo mandou. Um milhão de partículas de luz precipitaram-se para seus olhos. Ele gritou.

Lobo sentou-se, embalando Jack nos braços.

— Beba mais um pouco — disse Lobo tornando a encostar a caneca nos lábios de Jack. — E abra mais um pouco os olhos.

Agora a luz do sol doeu muito menos. Jack espreitou por entre as pestanas e, enquanto outro mila­groso gole de água lhe descia pela garganta, viu um clarão fulgurante.

— Ha! — disse Jack. — O que torna a água tão gostosa?

— O vento do oeste — Lobo respondeu prontamente.

Jack abriu mais os olhos. O ofuscamento, o enxame de flechas de luz transformaram-se no marrom descorado do depósito e na mistura cinza-esverdeada do barranco. Sua cabeça descansava no ombro de Lobo. O estômago inchado do amigo fazia pressão em seu peito.

— Tudo bem com você, Lobo? Conseguiu comer bastante?

— Lobo sempre consegue comer bastante.

O lobisomem deu um tapinha na coxa do garoto.

— Obrigado por me trazer aqueles pedaços de carne.

— Eu prometi, não foi? Você era o rebanho. Esqueceu?

— Oh, não, eu me lembro muito bem — disse Jack. — Posso tomar mais um pouco dessa água?

Escorregou do colo enorme de Lobo e sentou-se no chão, de onde podia fitá-lo melhor.

Lobo lhe passou a caneca. Os óculos de John Lennon estavam novamente na ponta do nariz; agora a barba não passava de uma ligeira penugem cobrindo-lhe o rosto; o cabelo negro, embora ainda compri­do e gorduroso, não chegava à altura dos ombros. O rosto tinha uma expressão cordial, pacífica e, sem dúvida, um tanto fatigada. Sobre o macacão, usava uma camiseta, dois números abaixo do seu tamanho, com departamento de atletismo da universidade de indiana escrito na frente.

Desde que ele e Jack se encontraram, Lobo nunca se parecera tanto com um ser humano comum. Embora não lembrasse um universitário médio, não era impossível que o tomassem por um craque do time de futebol da faculdade.

Jack bebeu mais um gole d’água. Lobo empurrava a caneca de lata, pronto a afastá-la se o garoto se engasgasse.

— Tudo bem mesmo com você?

— Aqui e agora, Lobo, oh, Lobo! — disse Lobo. Esfregou a mão na barriga, agora tão inchada que esticava o tecido da camisa como se ela fosse uma luva de borracha. — Apenas cansado. Tenho de dormir um pouco, Jack. Aqui e agora!

— Onde conseguiu a camiseta?

— Estava pendurada numa corda — disse Lobo. — Secou no meu corpo!

— Não machucou nenhuma pessoa, não foi?

— Nenhuma pessoa. Lobo, oh, Lobo! Agora beba dessa água... devagar...

Por uma fração de segundo, seus olhos ainda lembraram lanternas do Dia das Bruxas e Jack perce­beu que Lobo jamais poderia ser confundido com um ser humano comum. Então Lobo abriu sua enorme boca e bocejou:

— Tenho de dormir um pouco.

Procurou uma posição confortável no barranco e deitou a cabeça. Adormeceu quase imediatamente.

 

SOB O JUGO DA LEI

Por volta das duas horas daquela tarde, os dois estavam 150 quilômetros a oeste, e Jack Sawyer sentia-se como se também ele tivesse corrido com a lua (por algum tempo, tudo lhe pareceu muito fácil).

Apesar da fome que o devorava, Jack continuou bebendo água lentamente na caneca enferrujada e esperou Lobo acordar. Por fim Lobo se mexeu, disse “Agora estou em forma, Jack”, pôs o garoto nas cos­tas e saiu a galope na direção de Daleville.

Com Lobo sentado no meio-fio e tentando passar despercebido, Jack entrou no Daleville Burger King. Primeiro foi até o banheiro e tirou a camisa. Mesmo ali o cheiro alucinante da carne na brasa enchia a sua boca d’água. Lavou as mãos, os braços, o peito e o rosto. Depois, enfiou a cabeça sob a torneira e lavou os cabelos com sabonete líquido. Uma atrás da outra, as toalhas de papel foram caindo no chão.

Por fim, achou que estava pronto para ir até o balcão.

A moça uniformizada fitou-o atentamente e perguntou o que ele queria (o cabelo molhado estava chamando atenção, Jack pensou). Enquanto esperava o pedido, a moça deu um passo atrás e se inclinou para a janela da cozinha, sempre observando o freguês.

Quando estava comendo o primeiro hamburgão, Jack virou-se para as portas de vidro. O ketchup lhe escorria pelo queixo. A fome era tanta que ele mal mastigava. Três enormes mordidas abocanharam a maior parte do grande sanduíche. E ele já arredondara bem a boca para devorar de uma só vez o resto quando, através do vidro, viu que Lobo atraíra uma multidão de crianças. A carne se congelou em sua lín­gua e o estômago pareceu trancado.

Saiu correndo, ainda tentando engolir o bocado de carne, pão, picles, alface, rodelas de tomate e molho. Na rua, as crianças cercavam Lobo por todos os lados, fitando-o com um ar tão ingênuo e ostensi­vo quanto o da garçonete que fitara Jack. Lobo se agachara o melhor que pudera no meio-fio, curvara as costas e encolhera o pescoço como uma tartaruga. As orelhas pareciam achatadas contra a cabeça. A co­mida bateu na garganta de Jack como uma bola de golfe e, quando o resto do sanduíche foi convulsiva­mente engolido, a bola marcou outro ponto em seu estômago.

Pelo canto do olho, Lobo viu-o sair da lanchonete e ficou visivelmente mais relaxado. Um rapaz alto, de vinte e poucos anos e jeans azul, abriu a porta de um velho utilitário vermelho, parado a pouco mais de um metro da calçada. Apoiando-se na carroceria, ficou contemplando sorridente a cena.

— Coma um hambúrguer, Lobo — disse Jack o mais descontraidamente possível.

Lobo cheirou a caixa do hambúrguer. Depois ergueu a cabeça, deu uma enorme mordida na caixa e começou lentamente a mastigar. Atônitas e fascinadas, as crianças chegaram mais perto. Algumas começaram a rir.

— Quem é ele? — perguntou uma menina de rabo-de-cavalo louro amarrado com um felpudo laço cor-de-rosa. — É um monstro?

Um menino de cabelo curto, de sete ou oito anos de idade, colocou-se na frente da garota e perguntou:

— Ele é o Hulk, não é? É mesmo o Hulk. Ei! Ei! É o Hulk, certo?

Lobo conseguiu extrair o hambúrguer do invólucro de cartolina e com a palma da mão pôs tudo na boca. Pedaços de alface caíram entre seus joelhos, molho e maionese escorreram pelo queixo e pelas bochechas. O resto se transformou numa polpa marrom espremida entre enormes dentes. Depois que engo­liu, Lobo começou a lamber o interior do que sobrara da caixa.

Jack tirou suavemente a cartolina de sua mão.

— Não, pessoal, ele é apenas meu primo. Não é um monstro e não é o Hulk. Por que não vão em­bora e nos deixam sozinhos, hein? Vamos lá, gente! Deixem-nos em paz!

As crianças continuaram paradas, fitando Lobo que, agora, estava lambendo os dedos.

— Se continuarem olhando desse jeito, ele pode se zangar. E quando ele se zanga, tudo pode acontecer.

O menino de cabelo curto tinha visto muitas vezes a metamorfose de David Banner para ter um idéia do efeito da raiva sobre aquele monstruoso carnívoro, comedor de hambúrgueres do Burger King, Deu um passo atrás. A maioria das outras crianças também recuou um pouco.

— Vão embora, por favor! — Jack pediu, mas as crianças pareciam novamente congeladas de as­sombro.

Então Lobo se ergueu como uma montanha e sacudiu os punhos:

— Saiam daqui! Não fiquem olhando pra mim! — gritou ele. — Não sou palhaço de circo! Estão querendo me fazer de palhaço, é?

As crianças saíram correndo. Respirando forte, o rosto muito vermelho, Lobo viu-as subir toda a rua principal de Daleville e dobrar numa esquina distante. Depois que elas se foram, Lobo cruzou os braços e virou-se para Jack. Parecia envergonhado.

— Lobo não devia ter gritado — disse ele. — Eram apenas crianças.

— Um susto não faz mal a ninguém, pode ter certeza! — disse uma voz, e Jack viu o rapaz do utili­tário vermelho ainda sorrindo, encostado na carroceria. — Se bem que eu mesmo nunca tinha visto uma coisa desse gênero... Vocês são primos?

Jack balançou a cabeça com ar desconfiado.

— Desculpem, eu não quis ofender nem estou querendo ser intrometido...

O rapaz deu um passo à frente. Era um homem extrovertido, de cabelos pretos e camiseta sem mangas em tecido xadrez.

— Não quero que ninguém se sinta como palhaço de circo, sabem? — Ele fez uma pausa e levan­tou as mãos com as palmas estendidas. — É verdade mesmo! Só acho que vocês dois parecem que estão viajando há muito tempo!

Jack olhou para Lobo, que ainda mantinha os braços cruzados e o ar envergonhado, embora, atrás dos óculos de John Lennon, já encarasse de cara feia o rapaz.

— Eu também fiz isso — disse o homem. — Ei, pessoal! Eu sei como a gente fica depois de dias e dias de viagem. Quando acabei o segundo grau, fui e voltei de carona até o norte da Califórnia. E, olhem, se estiverem indo para oeste, posso muito bem levar vocês.

— Não vamos, Jacky — Lobo falou num murmúrio trovejante.

— Até onde você vai? — Jack perguntou. — Estamos tentando chegar a Springfield. Tenho um amigo lá.                               

— Ótimo, então! — Ele levantou de novo as mãos. — Vou até Cayuga, perto da divisa do Illinois, Se quiserem esperar, só vou comprar um hambúrguer e já volto. É só um minuto. Daqui a uma hora e meia, talvez menos, poderei deixar vocês a meio caminho de Springfield.

— Não podemos ir — Lobo tornou a resmungar.

— Só há um problema, OK? Tenho umas coisas no assento da frente. Um de vocês terá de ir lá atrás, no bagageiro. Vai pegar um pouco de vento, é claro!

— Isso é ótimo! — disse Jack, falando a pura verdade. — Estaremos aqui quando voltar. — Lobo começou a tremer, a dançar de nervosismo. — Pode crer, estaremos à sua espera. E obrigado!

Assim que o homem entrou na lanchonete, Jack virou-se para conferenciar com Lobo.

 

Quando o rapaz — Bill “Buck” Thompsons, este era o nome dele — voltou com as caixas de dois hamburgões, encontrou um lobo tranqüilamente ajoelhado no bagageiro do pequeno caminhão. Lobo apoiava os braços na carroceria, o nariz empinado, a boca escancarada. Jack estava no assento da frente, ao lado de uma enorme pilha de sacos plásticos, cuidadosamente fechados, grampeados e, a julgar pelo cheiro, inundados de purificador de ar. Dentro dos sacos transparentes viam-se mudas de plantas, muito verdes e de bom tamanho. Vários botões cresciam nas hastes amputadas.

— Acho que você ainda está com fome — disse o rapaz, e atirou outro hamburgão para Lobo. De­pois foi para o volante, ao lado de Jack e da pilha de sacos plásticos. — Olhe, pegue você também um hambúrguer. Seu primo já deve estar devorando o dele.

E viajaram 160 quilômetros na direção do oeste, Lobo delirando de alegria por sentir o vento so­prando na cabeça, semi-hipnotizado pela velocidade e pela variedade dos odores que o nariz conseguia captar. Os olhos cintilavam, brilhavam, registravam cada detalhe da paisagem. Lobo pulava de um lado para o outro na carroceria, dilatando as narinas para o ar que batia em seu corpo.

Buck Thompson disse que era fazendeiro. Falou sem parar durante os 70 minutos em que manteve o pé no acelerador, e não fez qualquer pergunta a Jack. Quando entrou no acostamento de uma variante nos arredores de Cayuga e parou o carro ao lado de um imenso milharal, enfiou a mão no bolso da camisa e tirou de lá um cigarro ligeiramente torto, enrolado num papel muito fino.

— Já vi gente de olhos vermelhos — disse ele —, mas os do seu primo são fantásticos. — Ele dei­xou cair o cigarro nas mãos de Jack. — Faça-o fumar um pouco quando ficar muito excitado, está bem? Ordens do médico.

Com ar distraído, Jack pôs o cigarro no bolso da camisa e saltou da cabine.

— Obrigado, Buck!

— Rapaz, cheguei a ficar mesmo impressionado quando vi seu primo comer! — disse Buck. — Quero ver como vai conseguir andar com ele em certos lugares! Bem, o problema é seu, OK? Felicidades!

Assim que percebeu que o passeio terminara, Lobo pulou da traseira.

O pequeno caminhão vermelho saiu em disparada, deixando para trás uma longa nuvem de pó.

— Vamos fazer isso de novo! — Lobo pediu num tom vibrante. — Jacky! Vamos fazer isso de novo!

— Estou querendo a mesma coisa! — disse Jack. — Vamos lá, vamos andar um pouco. Quem sabe não encontramos logo outro caminhão!

Jack começou a achar que sua sorte tinha voltado, que logo entraria com Lobo em Springfield... Ti­nha certeza de que as coisas melhorariam assim que pudesse falar com Richard Sloat no Colégio Thayer. Mas parte de sua mente ainda estava no interior do depósito, onde o irreal deformava e distorcia o real, e onde as coisas ruins começavam a acontecer de novo, e aconteciam tão depressa que Jack era incapaz de controlá-las. Talvez continuasse a se sentir por muito tempo trancado no depósito de lenha... Pelo menos até chegar a Springfield.

 

A rápida e atordoante série de acontecimentos que levaram à Casa do Sol começou dez minutos após os dois rapazes terem ultrapassado a pequena placa na estrada informando-os de que estavam entrando em Cayuga, 23.568 habitantes. Na realidade, Cayuga em si ainda não era visível. À direita deles, o imenso milharal estendia-se até o horizonte; à esquerda, uma campina de vegetação ras­teira deixava visível o contorno da estrada, que fazia uma curva um pouco à frente e depois apontava em linha reta para a distância. Pouco depois de Jack ter concluído que, provavelmente, teriam de andar até a cidade para conseguir uma nova carona, um carro apareceu ao longe, correndo na direção dos dois.

— Outra carona? — Lobo gritou, agitando em delírio os braços. — Outra carona! Aqui e agora! Lobo, oh, Lobo!

— O carro está indo para o lado errado — disse Jack. — Está voltando. Tenha paciência, Lobo. Abaixe os braços ou ele vai achar que você o está avisando de algum perigo.

Relutantemente, Lobo abaixou os braços. O carro tinha entrado na curva.

— Mas não é outra carona? — Lobo perguntou com o rosto amuado de uma criança.

Jack abanou a cabeça. Não era outra carona. Via um emblema oval na porta empoeirada do carro. Podia ser um veículo da Comissão de Parques do Condado ou da Comissão Federal de Proteção à Caça. Podia ser um veículo do Ministério da Agricultura ou uma viatura do Departamento de Saneamento de Ca­yuga. Mas não era. Quando o carro entrou na curva, Jack viu que se tratava de uma viatura da polícia.

— É um tira, Lobo. Um policial. Continue andando naturalmente, com ar descontraído. Não seria nada bom que ele parasse.

— O que é um tira? — a voz de Lobo tinha adquirido um timbre sombrio; ele percebia que o cano vinha diretamente em sua direção. — Um tira mata lobinos?

— Não — disse Jack —, eles nunca matam lobinos.

Mas a explicação não deve ter convencido Lobo, pois ele pegou a mão de Jack, o braço tremendo,

— Lobo, por favor, me largue! — Jack implorou. — Ele vai achar isso estranho!

Lobo deixou a mão cair.

Quando o carro da polícia se aproximou, Jack deu uma espiada na figura ao volante e diminui um pouco a marcha para ocultar o rosto do amigo. O que estava vendo não era nada encorajador. O policial ao volante tinha um rosto enorme, flácido, mas dominador, as bochechas pálidas, repletas de grandes dobras de gordura.

Lobo tinha o terror estampado no rosto. Os olhos e as narinas chamejavam; e ele começava a arre­ganhar os dentes.

— Você realmente gostou de andar na traseira daquele caminhão, não foi? — Jack perguntou para distraí-lo.

Uma parte do terror desapareceu e Lobo quase conseguiu sorrir. O carro da polícia passou roncan­do por eles... Jack percebeu que o motorista virara a cabeça para inspecioná-los.

— Tudo bem — disse Jack. — Ele já se foi. Tudo bem, Lobo.

Foi então que ouviu o carro da polícia manobrando atrás deles.

— O tira está voltando! — Lobo gritou.

— Na certa está voltando para Cayuga — disse Jack. — Não olhe para trás e procure agir naturalmente. Olhe para o milharal quando ele passar por nós.

Lobo e Jack caminhavam um ao lado do outro, fingindo ignorar o carro, que agora parecia se arrastar no rastro dos dois. Lobo deixou escapar um som que foi algo entre gemido e ganido.

O carro da polícia passou por eles e avançou alguns metros. Então as lanternas do freio acenderam e a viatura parou em diagonal no acostamento. O policial abriu a porta e plantou um dos pés no chão. De­pois se levantou do assento. Era aproximadamente da altura de Jack, e todo o seu peso se concentrava no rosto e no estômago. As pernas eram atarracadas, os braços e os ombros, porém, lembravam um homem normalmente desenvolvido. A barriga saltava do uniforme marrom como um peru de Natal e projetava-se ostensivamente de ambos os lados do grande cinturão.

— Por esta eu não esperava — disse o tira, sacudindo um dos braços e se apoiando na porta aberta — O que vocês têm para me contar, rapazes? Vamos lá!

Lobo se escondeu atrás de Jack e encolheu os ombros, as mãos cavando profundamente os bolsos do macacão.

— Estamos a caminho de Springfield. Estivemos pedindo carona, é claro... Acho que não devía­mos, não é?

— Você acha que não devia, não é? Que grande merda de explicação! Quem é este sujeito que está tentando se evaporar atrás de você? Hulk?

— É meu primo.

Jack pensava freneticamente. A história tinha de incluir de alguma forma a presença de Lobo.

— Tenho de levá-lo para casa — Jack continuou. — Ele mora em Springfield, com sua tia Helen, quero dizer, com minha tia Helen, aquela que é professora...                         

— O que ele fez, escapou de algum lugar?

— Não, não, nada disso. O problema é que...

O tira olhou-o com uma expressão de neutralidade, o rosto muito vermelho.

— Nomes!

Agora o garoto se viu num dilema: sem a menor dúvida Lobo ia chamá-lo de Jack, não importa o nome que desse.

— Meu nome é Jack Parker — disse ele. — E meu primo se chama...

— Espere! Deixe ele mesmo dizer. Ei, você aí, figurinha difícil! Não esqueceu o seu nome, não é?

Lobo se contorceu atrás de Jack, procurando afundar o queixo na gola do macacão. Murmurou al­guma coisa.

— Não estou ouvindo nada, rapaz!

— Lobo...

— Lobo. É claro, eu devia ter adivinhado. E qual é o seu primeiro nome, ou será que tem apenas um número?

Lobo tinha fechado os olhos e juntado as pernas.

— Vamos lá, Phil! — disse Jack, achando que aquele era um dos poucos nomes de que Lobo con­seguiria se lembrar.

Mal ele tinha acabado de dizer isso, Lobo empinou a cabeça, aprumou as costas e berrou:

— Jack! Jack! Jack Lobo!

— Às vezes o chamamos de Jack — o garoto acrescentou, achando que já era tarde demais. — Ele é muito ligado a mim, o senhor entende? Às vezes acho que sou a única pessoa no mundo que pode fazer alguma coisa por ele. Estou até mesmo pensando em ficar alguns dias em Springfield, pelo menos até me certificar de que está tudo bem.

— Já estou cansado do som de sua voz, rapaz. Por que você e seu velho companheiro Phil-Jack não fazem a gentileza de entrar aqui atrás? Vamos até a cidade e deixaremos tudo em pratos limpos, OK?

Quando Jack continuou imóvel, o policial encostou a mão na coronha do enorme revólver que lhe pendia do cinto.

— Entrem no carro! Ele primeiro! Quero descobrir por que estão a 160 quilômetros de casa num dia de aula. Entrem no carro! Já!

— Bem, sargento... — Jack começou.

— Não. Não podemos — Lobo resmungou atrás dele.

— Meu primo tem um problema — disse Jack. — Sofre de claustrofobia. Espaços pequenos, espe­cialmente o interior dos carros, o deixam maluco. Só podemos viajar em utilitários ou caminhões, pois ele pode ir no bagageiro.

— Entrem no carro! — disse o policial. Ele deu um passo à frente e abriu a porta traseira.

— não podemos! — Lobo gemeu. — Lobo não pode! Cheira mal, Jacky, cheira muito mal aqui. — Seus lábios e nariz não paravam de se contorcer.

— Se não colocá-lo no carro, vou fazê-lo entrar à força — disse o policial a Jack.

— Lobo, não será por muito tempo — disse Jack, estendendo o braço em sua direção.

Com muita relutância, Lobo permitiu que o amigo o segurasse. Jack foi impelindo-o na direção do assento de trás do carro, Lobo literalmente arrastando os pés pelo acostamento.

Por alguns segundos, pareceu que ia dar resultado. Lobo chegou suficientemente perto do carro para encostar a mão na porta.

Então, seu corpo inteiro tremeu. Ele se agarrou com ambas as mãos na capota. Foi como se estivesse disposto a rasgar o carro em duas metades, como o halterofilista do circo rasga uma lista telefônica ao meio.

— Por favor — disse Jack em voz baixa. — Precisamos entrar.

Mas Lobo estava apavorado e extremamente nauseado por tudo o que seu nariz captava. I violentamente a cabeça. A saliva escorreu-lhe da boca e caiu na capota do carro.

O policial fez a volta por trás de Jack e tirou alguma coisa do cinto. Jack só teve tempo de ver que não era o revólver quando o tira brandiu com perícia o cassetete na base do crânio de Lobo. O troncudo amigo caiu sobre a capota do carro e depois escorregou graciosamente para o pó da estrada.

— Você pega de um lado e eu do outro — disse o policial, guardando o cassetete no cinto. — Fi­nalmente vamos conseguir enfiar este saco de merda na viatura.

Daí a dois ou três minutos, depois de terem enrascado o pesado e inconsciente corpo de Lobo no assento de trás, já corriam em direção a Cayuga.

— Já sei o que vai acontecer a você e a seu primo, embora eu duvide que ele seja mesmo seu primo,

No espelho retrovisor, os olhos do policial se levantaram para Jack, olhos que lembravam passas mergulhadas em alcatrão.

O sangue pareceu ferver e depois se congelar nas veias do garoto. O coração martelava em seu peito. Acabara de se lembrar do cigarro no bolso da camisa. Encostou a mão no bolso, mas logo a deixou cair, antes que o tira pudesse notar qualquer coisa.

— Vou pôr os sapatos dele — disse Jack. — Estão caindo do pé.

— Esqueça — disse o policial, mas não fez objeções quando Jack se curvou. Fora do alcance do espelho, primeiro ele empurrou um dos sapatos rasgados para o pé de Lobo; depois tirou rapidamente o cigarro do bolso e enfiou-o na boca. Mordeu-o com força. Partículas secas e esfareladas, com um estranho gosto de ervas, espalharam-se em sua língua. Jack começou a triturá-las com os dentes. Algumas lhe caí­ram no goto e a garganta fez um movimento convulso. Ele pôs a mão na frente da boca e procurou tossir com os lábios fechados. Depois de limpar a garganta, engoliu bruscamente toda a maconha umedecia, já um tanto lodosa. Finalmente passou a língua nos dentes, recolhendo os últimos resíduos.

— Você tem algumas surpresas pela frente — disse o policial. — Sua alma terá um pouco de sol.

— Sol em minha alma? — Jack perguntou, com medo de que o policial o tivesse visto enfiar o ci­garro na boca.

— E bolhas nas suas mãos — disse o tira, os olhos brilhando de satisfação ante a imagem culpada de Jack no espelho retrovisor.

 

A Prefeitura Municipal de Cayuga era uma massa sombria de corredores sem luz e escadas estreitas que pareciam serpentear infinitamente através de salas igualmente estreitas. Água roncava e chiava em ca­nos expostos.

— Deixem-me explicar uma coisa a vocês, garotos — disse o policial, conduzindo-os por um últi­mo lance de escada. — Vocês não estão presos. Compreenderam bem? Estão apenas detidos para averiguações. Não quero ouvir qualquer besteira sobre telefonemas para advogados. Vão ficar detidos até nos dizerem quem são e o que estão tramando — continuou o tira. — Estão me ouvindo? Detidos! Vão falar com o juiz Fairchild. Ele é um magistrado, não esqueçam! Se não lhe disserem a verdade, vão sofrer algu­mas conseqüências bem fodidas. Agora, para cima. Mexam-se!

No alto dos degraus, o policial abriu uma porta. Uma mulher de meia-idade, com óculos de aro fino e um vestido preto, tirou os olhos do teclado da máquina de escrever numa mesinha da parede oposta.

— Mais dois malandros — disse o policial. — Diga a ele que estamos aqui.

Ela abanou a cabeça, pegou o telefone e falou algumas palavras.

— Podem entrar — disse a secretária, seus olhos passando de Lobo a Jack, de Jack a Lobo.

O policial empurrou os dois pela ante-sala e abriu a porta de um aposento duas vezes mais largo, cheio de livros numa das paredes e de certificados, diplomas e retratos emoldurados na outra. Nas janelas compridas, as persianas tinham sido abaixadas. Um homem alto e magro, de paletó preto, camisa branca pregueada e uma gravata estreita de estranha estamparia, ficou de pé atrás de uma velha escrivaninha de madeira com dois metros de comprimento. Seu rosto era um mapa em relevo de rugas, e o cabelo parecia tão negro que só podia ser tingido. O ar estava viciado da fumaça de cigarros.

— Bem, o que temos aqui, Franky?

A voz era assustadoramente grave, quase teatral.

— Garotos que encontrei na Estrada French Lick, perto da casa de Thompson.

Às rugas do juiz Fairchild se contorceram num sorriso quando ele encarou Jack.

— Tem documentos de identidade, filho?

— Não senhor — disse Jack.

— Contou ao sargento Williams toda a verdade? Ele deve achar que falta alguma coisa, ou não o te­ria trazido aqui.

— Contei toda a verdade — disse Jack.

— Então, repita a história pra mim, vá lá!

O juiz se moveu atrás da escrivaninha, espalhando as camadas de fumaça que pairavam sobre sua cabeça e, sentando-se na beira da cadeira, inclinou-se ligeiramente no canto mais perto de Jack. Olhan­do-o de soslaio, acendeu um cigarro; Jack viu os olhos pálidos e fundos espreitarem-no por entre a fuma­ça e percebeu que não encontraria ali qualquer tipo de clemência.

Era de novo a planta carnívora.

Jack respirou fundo.

— Meu nome é Jack Parker. Ele é meu primo, e também é chamado de Jack. Jack Lobo. Mas seu verdadeiro nome é Philip. Ficou algum tempo conosco em Daleville porque o pai morreu e a mãe ficou doente. Eu apenas o estava levando de volta a Springfield.

— Ele é retardado?

— Um pouco — disse Jack, e deu uma olhadela em Lobo. O amigo parecia semi-inconsciente.

— Como se chama sua mãe? — o juiz perguntou a Lobo. Lobo não deu qualquer resposta. Tinha os olhos bem fechados e as mãos enfiadas nos bolsos.

— Ela se chama Helen — disse Jack. — Helen Vaughan.

O juiz se levantou suavemente da escrivaninha e se aproximou vagarosamente de Jack.

— Bebeu alguma coisa, filho? Parece um tanto ébrio...

— Não.

O juiz Fairchild se pôs a 30 centímetros de Jack e curvou a cabeça.

— Deixe-me sentir o seu hálito.

Jack abriu a boca e soprou.

— Não. Não há cheiro de bebida. — O juiz empinou novamente o corpo. — Mas isso foi a única coisa sobre a qual falou a verdade, não foi? Está tentando me enganar, não é mesmo, garoto?

— Sinto muito. Também estivemos pedindo carona — disse Jack, ciente de que agora tinha de me­dir muito bem as palavras. O que ia dizer poderia determinar se ele e Lobo seriam soltos ou não. O pro­blema é que estava sentindo alguma dificuldade para formar as palavras; tudo parecia estar acontecendo com grande lentidão. Como no interior do depósito, os segundos tinham escapado do compasso normal. — Se bem que não costumamos pedir carona, porque Lobo... isto é, Jack... detesta entrar em carros. Nun­ca mais voltaremos a fazer isso, pode acreditar. Não fizemos qualquer coisa errada, senhor juiz. Esta é a pura verdade!

— Você não está entendendo bem, meu filho — disse o juiz, e seus olhos remotos tornaram a bri­lhar. Ele está se divertindo com isto, Jack percebeu. O juiz Fairchild voltou lentamente para trás da escrivaninha. — O problema não são as caronas. O problema é que vocês são dois garotos perambulando sozi­nhos pelas estradas, vindo não se sabe de onde, indo não se sabe pra onde... Aí está o xis da questão. — O tom era meloso, sombrio. — O fato é que dispomos neste condado de ótimas instalações, aprovadas e subvencionadas pelo Estado, fundadas com o objetivo expresso de ajudar rapazes como vocês. É a Casa Evangélica do Sol. Dá abrigo a garotos cabeçudos e é dirigida pelo Sr. Gardener. O Sr. Gardener tem reali­zado verdadeiros milagres com os problemáticos jovens que hospeda. Sempre lhe mandamos casos bas­tante complicados, e daí a pouco tempo, os meninos estão de joelhos, pedindo perdão a Deus pelas faltas que cometeram. Eu diria que é um lugar bastante adequado para você e seu primo.

Jack engoliu em seco. Sentiu a boca mais seca do que no depósito.

— Oh, senhor juiz, precisamos chegar logo a Springfield. Todos vão ficar preocupados e...

— Será mesmo? — perguntou o juiz, sorrindo com todas as rugas. — Mas, por via das dúvidas, as­sim que vocês dois estiverem a caminho da Casa do Sol, vou telefonar para Springfield e tentar falar com esta tal de Helen... Lobo, não é? Ou será Helen Vaughan?

— Vaughan — disse Jack, e uma camada vermelha cobriu-lhe o rosto como um acesso de febre.

— Sim, Vaughan! — disse o juiz.

Lobo balançou a cabeça, piscou e pôs a mão no ombro de Jack.

— Finalmente você teve alguma reação, meu filho! — disse o juiz. — Seria capaz de me dizer sua idade?

Lobo piscou de novo e olhou para Jack.

— Dezesseis — disse Jack.

— E você?

— Doze.

— Oh. Achei que eram bem mais velhos. Mais uma razão para ajudá-los, ajudá-los sem demora, antes que se metam em complicações bem mais graves. Você não acha, Franky?

— Sem dúvida — disse o policial.

— Daqui a um mês conversarão de novo comigo — disse o juiz. — Vamos ver então se a memória de algum de vocês melhorou. Por que o grandalhão está com os olhos tão vermelhos?

— É uma inflamação na vista — disse Jack, e o policial pareceu dar um latido. Mas fora apenas uma risada, Jack percebeu um segundo depois.

— Leve-os embora, Franky — disse o juiz. Ele já estava pegando o telefone. — Serão moços bem diferentes daqui a 30 dias. Podem apostar.

 

Enquanto desciam os degraus do prédio de tijolo vermelho da prefeitura, Jack perguntou a Frank Williams por que o juiz tinha perguntado a idade deles. O policial parou no último degrau e virou-se para Jack com o rosto vermelho-chama:

— A Casa do Sol costuma pegá-los aos 12 anos e soltá-los aos 19. — Ele sorriu. — Será que nunca ouviram falar da Casa no rádio? É a coisa mais famosa que temos por estas bandas. Tenho absoluta certeza de que, mesmo além de Daleville, muita gente já ouviu falar do Sr. Gardener.

Seus dentes pareciam pequenos espetos descorados, com espaços irregulares entre eles.

 

Vinte minutos depois, estavam de novo no campo.

Lobo subira no assento de trás do carro de uma maneira surpreendentemente civilizada. Franky Williams tirara o cassetete do cinturão e dissera:

— Quer experimentar isto de novo, seu merda? Quem sabe a porrada não vai lhe deixar mais esperto.

Lobo estremecera, contraíra o nariz, mas acabou entrando docilmente no carro. Imediatamente tapou o nariz com a mão e passou a respirar pela boca.

— Vamos arranjar um meio de sair dessa, Lobo! — Jack sussurrou em sua orelha. — Um ou dois dias e estaremos de novo em liberdade!

— Bico calado! — veio do banco da frente.

Jack sentia-se estranhamente relaxado. Tinha certeza de que ia encontrar um meio de escapar. Re­costou-se no plástico do assento, a mão de Lobo agarrando a sua. Pela janela, os campos corriam.

— Lá está ela — Franky Williams gritou do banco da frente. — O futuro lar de vocês.

Jack viu um amontoado de muros de tijolo, surrealisticamente plantados entre os campos. Eram al­tos demais para alguém olhar por cima deles, tinham cacos de vidro e três fileiras de arame farpado. Cercavam toda a Casa do Sol. O carro atravessava agora campos ressecados, com cercas onde o arame co­mum e o arame farpado se alternavam.

— Sessenta acres a partir daqui — disse Williams. — E tudo murado ou muito bem cercado. Po­dem acreditar que ninguém escapa. Todos os garotos sabem disso!

Um grande portão de ferro interrompia o muro na altura em que o carro se aproximou da propriedade. E assim que o carro começou a subir uma rampa de acesso, o portão se abriu sozinho, acio­nado por algum sinal eletrônico.

— Há câmeras de tevê aqui na estrada — o policial explicou. — Já estavam à espera dos dois no­ras peixinhos.

Jack esticou a cabeça e olhou pela janela. Rapazes vestindo blusões de brim trabalhavam em cam­pos muito extensos: moviam carrinhos de mão, agitavam enxadas e ancinhos.

— Vocês, seus dois merdinhas, me fizeram ganhar 20 dólares — disse Williams. — Mais outros 20 para o juiz Fairchild. É ótimo, não?

 

A CASA DO SOL

A casa parecia feita de cubos de crianças, Jack pensou. Fora desordenadamente ampliada à medida que houve necessidade de mais espaço. Ele observou que inúmeras janelas tinham grades e a feia construção lhe trouxe à memória uma colônia penal, não um reformatório juvenil.

Quase todos os garotos que trabalhavam nos campos tinham pousado as ferramentas para contem­plar a passagem do carro de polícia

Franky Williams estacionou na extremidade ampla e arredondada da estrada. Assim que desligou o motor, um vulto cruzou a porta da frente e ficou parado no alto dos degraus, as mãos entrelaçadas diante do corpo. Sob cabelos um tanto longos, ondulados e brancos, o rosto parecia absurdamente jovem — como se aqueles traços fortes, nitidamente masculinos, tivessem sido criados, ou pelo menos aperfeiçoados, pelas mãos de algum cirurgião plástico. Era o rosto de um homem capaz de conseguir qualquer coisa, em qual­quer lugar, capaz de tapear qualquer um com a mais refinada astúcia. As roupas eram brancas como o cabe­lo: paletó branco, sapatos brancos, camisa branca e um cachecol de seda branca jogado em volta do pesco­ço. Quando Jack e Lobo saltaram do banco traseiro do carro, o homem de branco tirou um par de esverdea­dos óculos escuros do bolso do paletó, colocou-os no nariz, e examinou os dois rapazes. Depois sorriu — longas rugas marcaram-lhe a face. Tirou os óculos escuros e tornou a colocá-los no bolso.

— Bem — disse ele. — Bem, bem, bem. O que faríamos sem o senhor, sargento Williams?

— É sempre um prazer ajudar, reverendo Gardener — respondeu o policial.

— É a mesma coisa de sempre ou esses dois garotos estão realmente envolvidos em atividade criminosa?

— São apenas vadios — disse o tira. Com as mãos na cintura, apertou os olhos, como se toda a brancura de Gardener lhe ferisse a vista. — Recusaram-se a dar a Fairchild os nomes verdadeiros. Este aqui, o grandalhão — disse ele, apontando um polegar para Lobo —, não falou absolutamente nada. E tive de lhe acertar a cabeça para ele entrar no carro.

Gardener balançou dramaticamente o rosto.

— Por que não os trouxe primeiro aqui para que se sentissem mais à vontade para falar? Depois cuidaríamos das formalidades legais. Há algum motivo para os dois estarem parecendo tão, hã, como dizer, “atordoados”?

— Bem, acertei o grandalhão atrás das orelhas.

— Hummmmm...

Gardener recuou um passo, tamborilando com os dedos no peito.

Quando Williams cutucou os rapazes pelos degraus até a comprida varanda, Gardener inclinou a cabeça e contemplou mais de perto os recém-chegados. Jack e Lobo atingiram o último degrau e oscila­ram pela superfície da varanda. Franky Williams limpou o suor da testa e postou-se ao lado deles. Garde­ner sorria vagamente, mas seus olhos se agitavam de um lado para o outro entre os garotos. Um segundo após alguma coisa dura, fria e familiar saltar daqueles olhos para Jack, o reverendo tirou novamente os óculos escuros do bolso e colocou-os no nariz. O sorriso se manteve vago e delicado, mas, apesar de con­tinuar envolvido por uma estranha sensação de segurança, Jack ficou paralisado por aquele olhar — porque já o conhecia de algum lugar.

O reverendo Gardener puxou um pouco os óculos pela ponta do nariz e espreitou jocosamente por cima das lentes.

— Nomes? Nomes? Posso saber os nomes dos dois cavalheiros?

— Eu sou Jack — disse o garoto, e depois parou. Só pretendia dizer o que fosse estritamente ne­cessário. Por um instante, a realidade pareceu se distorcer e rodopiar à sua volta: era como se tivesse vol­tado outra vez aos Territórios; só que agora os Territórios eram maus e ameaçadores, grandes labaredas, uma fumaça negra, gritos de corpos torturados enchiam o ar.

Uma poderosa mão segurou-o pelo cotovelo e o manteve de pé. Em vez da fumaça e das chamas, Jack farejou um forte aroma de água-de-colônia. Um par de olhos castanhos e melancólicos estava olhan­do diretamente nos seus.

— E você tem sido um mau menino, Jack? Tem sido um menino muito mau, não é?

— Não, estávamos apenas pedindo carona e...

— Acho que tem o coração um tanto duro — disse o reverendo Gardener. — Vamos ter de lhe dis­pensar uma atenção muito especial, não é mesmo?

A mão soltou-lhe o cotovelo; Gardener se distanciou um pouco e empurrou os óculos para cima do nariz.

— Imagino que tenha um sobrenome, certo?

— Parker — disse Jack.

— Muito bemmmm.

Gardener tirou novamente os óculos, executou uma meia-volta um tanto gingada, e começou a inspecionar Lobo. Não deu qualquer indicação de ter ou não acreditado em Jack.

— E você, amigo? — disse ele. — É um espécime bastante saudável, aposto! Sem dúvida, bastante robusto. Com a ajuda de Deus, não será difícil encontrar uma atividade para um rapaz tão grande e tão forte quanto você. E será que se importaria em seguir os passos de seu amigo, o Sr. Jack Parker, e me di­zer como se chama?

Jack olhou apreensivo para Lobo. A cabeça de Lobo estava curvada, a respiração pesada. Um filete brilhante de saliva corria do canto da sua boca até o queixo. Uma nódoa de gordura e sujeira mancha­va-lhe a frente da camiseta do Departamento de Atletismo. Lobo balançou a cabeça, mas o gesto pareceu desprovido de conteúdo — foi como se tivesse afugentado uma mosca.

— Diga seu nome, filho. Seu nome, vamos. Você se chama Bill? Paul? Art? Sammy? Não... É um nome extremamente mais comum, aposto! Quem sabe George, hã?

— Lobo — disse Lobo.

— Ah, isso é ótimo.

Gardener lançou olhares aos dois.

— Sr. Parker e Sr. Lobo... Não quer fazê-los entrar, sargento Williams? É uma sorte que o Sr. Bast já tenha chegado. A presença do Sr. Hector Bast, nosso comissário, significa que teremos meios de prover o Sr. Lobo com trajes mais adequados.                                                                                 

Gardener espreitou os dois rapazes por cima dos aros dos óculos de sol.

— Uma das crenças que cultivamos em nosso lar evangélico é que os soldados do Senhor mar­cham melhor quando estão uniformizados. E Heck Bast é quase do tamanho de nosso amigo Lobo, está ouvindo, jovem Parker? Do ponto de vista da indumentária e da disciplina, os dois ficarão muito bem ser­vidos. Uma sorte, não?                                                           

— Jack — disse Lobo em voz baixa.

— Sim...

— Minha cabeça está doendo, Jack. Dói muito.

— Sua cabecinha o incomoda, Sr. Lobo?

O reverendo Sunlight Gardener deu um passo de dança em direção a Lobo e bateu-lhe gentilmente no braço. Lobo se esquivou bruscamente, um ar de profunda repugnância cobrindo-lhe o rosto. Era a água-de-colônia, Jack sabia. Aquele aroma que impregnava o ar cheiraria a amônia nas sensíveis narinas de Lobo.

— Tudo bem, meu filho — disse Gardener, aparentemente não se deixando ofender pelo brusco repelão de Lobo. — O Sr. Bast ou o Sr. Singer, nosso outro comissário, saberão cuidar de tudo. Frank, será que já não lhe pedi para levá-los para dentro?

O sargento Williams reagiu como se tivesse sido espetado no traseiro com um alfinete. Com o rosto febril, sacudiu o corpo atarracado até a porta da frente.

Sunlight Gardener piscou de novo para Jack e o rapaz viu que toda aquela animação de almofadi­nha era só uma espécie de estéril tentativa de gratificação íntima: por dentro, o homem de branco devia ser frio e louco. Um pesado cordão de ouro lhe escorregou pela manga do paletó e veio pousar num dos polegares. Jack pensou ter ouvido o estalar de um chicote cortando o ar e, então, reconheceu os sombrios olhos castanhos de Gardener.

Gardener era o Duplo de Osmond.

— Podem entrar, rapazes — disse Gardener, inclinando um pouco a cabeça e indicando a porta aberta.

 

— Estou curioso, Sr. Parker... — disse Gardener assim que entraram na casa. — É possível que já nos tenhamos encontrado em algum lugar. Por algum motivo, sua expressão está me pare­cendo muito familiar...

— Não sei... — disse Jack, observando atentamente o estranho interior da Casa do Sol.

Encostados na parede, viam-se sofás compridos forrados de tecido azul-escuro. Havia um carpete muito verde. Duas pesadas escrivaninhas com tampo de couro tinham sido dispostas lado a lado. Numa das escrivaninhas, um adolescente com o rosto cheio de espinhas olhou-os apaticamente, voltando-se logo em seguida para o vídeo à sua frente, onde um pregador de TV lançava as mais terríveis invectivas contra o rock. O adolescente da mesa ao lado, porém, endireitou o corpo e fixou em Jack um olhar agres­sivo. Era magricela, de cabelos pretos; a cara estreita parecia mesquinha e geniosa. No bolso da suéter branca de gola alta havia uma plaqueta retangular como as usadas pelos militares: Singer.

— Mas acho que já tivemos oportunidade de nos encontrar, meu rapaz — Gardener insistiu. — Posso garantir que já nos vimos, sabe? Eu nunca esqueço, sou literalmente incapaz de esquecer o rosto de um garoto que vejo. Já esteve metido em outras complicações, não foi?

— Esta é a primeira vez que encontro o senhor — disse Jack.

Do outro lado da sala, um garoto robusto se levantara de um dos sofás azuis quase em posição de sentido. Também usava uma suéter branca de gola alta e uma plaqueta militar. Suas mãos oscilavam nervosamente para o cinto, para os bolsos da calça, para os lados do corpo. Teria uns 16 anos de idade e pa­recia pesar 150 quilos. As faces e a testa estavam cobertas de acne. Aquele, sem dúvida, seria Bast,

— Bem, talvez eu me lembre mais tarde — disse Sunlight Gardener. — Heck, venha até aqui e ajude nossos recém-chegados a se instalar, OK?

Com a cara fechada, Bast deu alguns passos à frente. Quando passou por Lobo franziu ainda mais o rosto. Se Lobo tivesse aberto os olhos, coisa que não fez, veria apenas a paisagem árida da testa de Bast, os olhos pequenos, mesquinhos, como olhos de urso, saltando de sobrancelhas grossas,

— Vamos lá — murmurou Bast concentrando o olhar em Jack e indicando a frente da escrivaninha.

— Façam o registro, depois lhes dêem roupas adequadas — disse Gardener num tom seco. Sorriu para Jack com um brilho de cromo. — Jack Parker... — murmurou suavemente. — Eu me pergunto quem realmente é você, Jack Parker! Bast, certifique-se de que ele não fique com nada nos bolsos!

Bast sorriu mostrando os dentes.

Sunlight Gardener cruzou a sala em direção a um impaciente Franky Williams e puxou languida­mente uma comprida carteira de couro do bolso do paletó. Jack observou-o contar e passar algumas notas para as mãos do policial.

— Vire pra cá, malandro! — disse Singer atrás da escrivaninha e Jack virou-se bruscamente para encará-lo. O rapaz brincava com um lápis, o rosto se contorcendo num trejeito incapaz de disfarçar a raiva que, na opinião de Jack, lhe seria característica (uma raiva que borbulharia sem cessar dentro dele). — O grandalhão sabe escrever?

— Acho que não.

— Então assine no lugar dele.

Singer lhe estendeu duas folhas de papel tamanho ofício.

—Escreva com letra de fôrma em cima e rubrique na linha de baixo. Nos lugares marcados com xis.

Singer se recostou na cadeira, encostou a caneta na boca e atirou-a com força ao lado das mãos de Jack. Talvez tivesse aprendido aquele truque com o reverendo Sunlight Gardener.

Jack Parker, Jack escreveu com letra de fôrma, e rabiscou alguma coisa parecida embaixo da folha.

Philip lobo. Outra letra de fôrma e outro rabisco, tudo bem diferente de sua verdadeira caligrafia.

— Agora estão sob a tutela do Estado de Indiana, e assim ficarão pelos próximos 30 dias, a não ser que decidam permanecer por mais tempo. — Singer tirou as folhas de papel das mãos de Jack. — Agora vou...

— A não ser que decidam...? — Jack perguntou. — O que está querendo dizer com decidir?

Um tom avermelhado assomou ligeiramente às bochechas de Singer. Ele inclinou a cabeça para o lado e pareceu sorrir.

— Acho que ainda não sabe que mais de 60 por cento de nossos rapazes estão aqui voluntaria­mente. Isto é possível, sim! Vocês podem decidir muito bem permanecer aqui!

Jack procurou não revelar suas emoções.

A boca de Singer se contorceu violentamente, como se tivesse sido repuxada por um anzol.

— Isto é um lugar muito bom e se algum dia o ouvir praguejando contra ele pode ter certeza de que vai pagar bem caro. É o melhor lugar em que já esteve, pode ter certeza disso. E, além do mais.... você não tem escolha. Nem você, nem seu amigo. A Casa do Sol deve ser objeto de todo o respeito. Está claro?

Jack assentiu com a cabeça.

— E o grandalhão? — Singer perguntou. — Será que ele também entendeu o que eu disse?

Jack virou-se para Lobo, que pestanejava lentamente e respirava pela boca.

— Acho que sim.

— Ótimo, então. Vão dormir no mesmo beliche. Nosso dia começa às cinco da manhã, quando te­mos o culto na capela. Depois há trabalho no campo até às sete e em seguida o café da manhã no refeitó­rio. Aí os hóspedes voltam para o campo até o meio-dia, quando temos o almoço e as leituras da Bíblia... Todos participam ativamente dessas leituras, portanto é melhor começar a pensar desde já sobre o trecho que vai ler. Nada daquela coisa sexy do Cântico dos Cânticos, a não ser que queira testar a eficiência de nossa disciplina. Depois do almoço, volta-se ao trabalho.

Ele lançou a Jack um olhar afiado.

— Ei! Não pense que vai trabalhar de graça na Casa do Sol! Parte de nosso acordo com o Estado exige que todos obtenham uma justa remuneração pelo trabalho, remuneração, é claro, da qual são deduzidas das despesas de sua manutenção aqui: roupas e alimento, eletricidade, aquecimento, coisas desse gênero. Você recebe 50 centavos por hora. Isto significa que ganha cinco dólares pela jornada diária de trabalho — 30 dólares por semana. Os domingos são passados na Capela do Sol, exceto quando liga­mos a tevê para ver a Hora Evangélica do Reverendo Sunlight Gardener.

O vermelho voltou a se suavizar na superfície de seu rosto, e Jack, como não tinha alternativa, ba­lançou servilmente a cabeça.

— Se andar na linha, se souber se comportar como um ser humano (o que, aliás, a maioria das pes­soas não sabe), pode até se integrar a um ce, ou seja, pode ser membro do Corpo do Exterior. Temos dois esquadrões de ces: um que trabalha nas ruas em geral, vendendo flores, hinos e outros impressos do reverendo Gardener; outro que se concentra no aeroporto. De qualquer modo, temos 30 dias para despe­jar as montanhas de lixo que entopem a mente de vocês e fazê-los ver a sujeira, a doentia insalubridade que envolviam suas miseráveis vidas antes de chegarem aqui... E é por aí que começamos, exatamente por aí!

Singer ficou de pé, o rosto da cor de uma folha queimada de outono, e pousou delicadamente as pontas dos dedos no couro da escrivaninha.

— Esvaziem os bolsos. Agora mesmo!

— Aqui e agora — Lobo murmurou num ato reflexo.

— Virem-nos pelo avesso! — Singer gritou. — Quero ver tudo o que há dentro deles!

Bast aproximou-se de Lobo. Tendo levado Franky Williams até o carro, o reverendo Gardener tor­nara a entrar na sala e concentrava toda a sua atenção em Jack.

— Aprendemos, por experiência própria, que posses pessoais tendem a ligar excessivamente nos­sos garotos ao passado — Gardener falou num tom rouquenho. — Tornam-se coisas destrutivas. É uma utilíssima ferramenta de evangelização livrá-los desse fardo.

— esvaziem os bolsos! — Singer latiu, como se fosse explodir de cólera.

Jack foi tirando dos bolsos os detritos de sua jornada. O lenço vermelho que a mulher de Elbert Palamoutain lhe dera quando o viu limpar o nariz na manga da camisa, duas caixas de fósforos, os poucos dólares e centavos que possuía (num total de seis dólares e 42 centavos), a chave do quarto 407 da Pousa­da dos Jardins do Alhambra... Fechou os dedos sobre três objetos dos quais não queria se separar.

— Acho que vão querer também minha mochila, não é? — disse.

— E claro, seu deplorável nitrato de pó de peido — Singer rosnou —, é claro que vamos querer esta mochila imunda! Mas, primeiro, queremos ver o que está guardando aí na mão! Tire já do bolso! Agora!

Com relutância, Jack tirou do bolso a palheta de violão que Speedy lhe dera, a bola de gude que fora um espelho deformante no mercado dos Territórios e o grande dólar de prata. Colocou tudo no meio do lenço.

— São apenas talismãs para dar boa sorte, como pés-de-coelho, sabe?

Singer arrebanhou a palheta.

— O que é isto? O que é esta coisa?

— Uma palheta para tocar violão.

— Ah, claro...

Singer girou-a nos dedos, cheirou-a. Se resolvesse mordê-la, Jack seria capaz de se descontrolar e lhe dar um soco.

— Palheta de violão... Está me dizendo a verdade?

— Ganhei de um amigo meu — disse Jack e, de repente, sentiu-se mais solitário e indefeso que nunca. Lembrou-se de todas aquelas semanas de viagem. Pensou no Bola de Neve na porta do shopping, que o olhara com os olhos de Speedy, e que, de uma forma que Jack não era capaz de compreender inteiramente, não deixava de ser o próprio Speedy Parker. Cujo sobrenome, aliás, acabara de adotar como seu.

— Aposto que a roubou — disse Singer, não se dirigindo a ninguém em particular, e deixando a palheta cair ao lado da moeda e da bola de gude. — Agora, a mochila!

Jack tirou a mochila das costas e pousou-a na escrivaninha. Singer vasculhou-a por alguns minutos com uma crescente expressão de mal-estar e frustração. O mal-estar devia-se à péssima aparência das poucas roupas que Jack ainda trazia consigo; a frustração, à relutância da mochila em revelar qualquer tipo de droga.

Speedy, onde está você agora?                                                  

— Aparentemente, não há nada demais — Singer lamentou. — Quer uma busca minuciosa pelo corpo dele, Sr. Gardener?

Gardener balançou negativamente a cabeça.

— Por ora, vamos ver que surpresas nos aguardam com o Sr. Lobo.

Bast se postou bem rente ao corpanzil de Lobo.

— E então? — disse Singer.

— Ele não tem nada nos bolsos — disse Jack.

— É o que vamos ver... Quero ver esses bolsos vazios! vazios! — Singer gritou. — tudo em cima da mesa!

Lobo encostou o queixo no pescoço e fechou bem os olhos.

— Você não tem nada nos bolsos, tem, Lobo? — Jack perguntou.

Muito devagar, Lobo balançou a cabeça. Tinha alguma coisa, sim.

— Eu não disse? Ele só está escondendo o jogo! O boneco só está escondendo o jogo! — Singer parecia exultante. — Vamos lá, seu animal, despeje a coisa na mesa! — Bateu palmas duas vezes. — Oh,

Williams nunca os revista! Fairchild muito menos! Isto é incrível... Aposto que só está se fazendo passar por débil mental. Puro fingimento! Bast empinou o rosto para Lobo e rosnou:

— Se não esvaziar agora mesmo os bolsos nesta mesa, vou lhe dar um murro que nunca vai esquecer.

— Faça o que ele está mandando, Lobo — disse Jack em voz baixa.

Lobo gemeu. Então tirou do bolso do macacão sua mão em forma de bola. Esticou-se sobre a escri­vaninha, estendeu a mão e abriu os dedos. Três palitos de fósforos e duas pedrinhas granuladas, raiadas e coloridas, caíram sobre o tampo de couro. E quando a outra mão também se abriu, mais duas bonitas pe­drinhas rolaram ao lado das outras.

— Bolinhas! — Singer gritou arreganhando os dentes.

— Não seja idiota, meu filho! São apenas pedras — disse Gardener.

— Por sua causa, me senti uma mula — disse Singer a Jack num tom baixo, mas veemente, assim que começaram a subir as escadas para os andares de cima. Os degraus eram cobertos por um desbotado tapete com estamparia de flores. Só os principais aposentos tinham sido decorados, disfarçados... O resto da Casa Evangélica do Sol parecia arruinado por anos de negligência. — Vai se arrepender do que fez, pode ter certeza! Neste lugar, ninguém faz Singer de bobo! Fique sabendo, você e seu amigo, que eu pra­ticamente dirijo isto aqui. Cristo! — Ele aproximou ainda mais de Jack o rosto vermelho e crispado. — Que grande palhaçada lá embaixo, o beócio e a porra das pedrinhas coloridas! Vou ficar com você atra­vessado na garganta por muito tempo, não tenha a menor dúvida!

— Mas que culpa tenho eu? — disse Jack. — Nem sabia que ele tinha aquilo no bolso!

Dando um passo à frente dos dois, Singer parou bruscamente. Os olhos se apertaram; todo o rosto pareceu se contrair. Jack entendeu o que ia acontecer um segundo antes de a mão de Singer aferroá-lo com um tapa na cara.

— Jack? — Lobo murmurou.

— Estou bem — disse ele.

— O que você me fizer, eu lhe faço em dobro e duas vezes pior! — disse Singer. — E o que me fi­zer na frente do reverendo Gardener, pode ter certeza de que vai receber o troco multiplicado por quatro, fui claro?

— Foi — disse Jack. — Acho que foi. Vamos ganhar alguma roupa?

Singer rodopiou e continuou a subir a escada. Por um instante, Jack continuou imóvel, contem­plando as costas do outro avançarem pela galeria. Você também, ele disse para si mesmo. Você e Osmond. Um dia vão ter o que merecem. Então foi atrás dele, arrastando Lobo.

Singer parou diante de uma sala comprida, cheia de pilhas de caixas. Com impaciência, esperou que um garoto alto, com um rosto pálido, inexpressivo, e uma atitude de sonâmbulo, revirasse as prateleiras em busca de mudas de roupa para os recém-chegados.

— Sapatos também! Se vocês não andarem bem vestidos e bem calçados, terão de trabalhar um dia inteiro com a picareta — disse Singer no umbral da porta, ignorando ostensivamente o funcionário. Um desprezo mútuo e onipresente, esta parecia ser uma das primeiras lições da Casa do Sol.

Finalmente, no canto do depósito, o rapaz conseguiu localizar um enorme par de sapatos pretos, e Jack calçou-os em Lobo. Depois Singer os conduziu por outro lance de degraus até o andar dos dormitórios. Ali já não havia qualquer tentativa, por menor que fosse, de disfarçar a verdadeira natureza da Casa do Sol. Um estreito corredor se alongava por aquele último andar. Devia ter mais de 15 metros de comprimento. Diversas portas estreitas (com pequenas portinholas por onde era possível espreitar o inte­rior) enfileiravam-se de ambos os lados. Para Jack, o suposto andar-dormitório não passava de uma prisão.

Singer avançou mais alguns metros pelo estreito corredor e parou diante de uma das portas,

— No primeiro dia ninguém trabalha. Começarão a seguir o programa amanhã. Agora, entrem aí e dêem uma olhada nas Bíblias ou façam alguma coisa até as cinco. Voltarei para deixá-los sair a tempo da confissão. E vistam as roupas da Casa do Sol, não esqueçam!

— Pretende nos deixar três horas trancados aqui? — Jack perguntou.

— Será que vou ter de lhe dar um aperto? — Singer explodiu, o rosto ficando de novo vermelho, — Olhe, se fossem voluntários, poderia deixá-los andar por aí, dar uma olhada no lugar. Mas como, a pe­dido da polícia local, foram postos judicialmente sob nossa custódia, estão praticamente na mesma situa­ção de réus sentenciados. Talvez, se tiverem sorte, em 30 dias se tornem voluntários. Agora, entrem no quarto e comecem a agir como seres humanos feitos à imagem de Deus, não de um animal.

Impaciente, ele pôs a chave na fechadura, escancarou a porta e ficou de lado para os dois passarem.

— Entrem aí! Tenho muito o que fazer.

— O que vai acontecer às nossas coisas?

Singer suspirou teatralmente.

— Você acha, seu nojento, que estamos interessados em roubar as suas coisas?

Jack achou melhor não responder.

Singer suspirou outra vez.

— OK. Guardamos tudo numa pasta com o nome dos dois. Fica tudo bem protegido lá embaixo, na sala do reverendo Gardener, até mesmo o dinheiro, que receberão de volta quando forem libertados. Agora, entrem aí ou vou ter de acusá-los de desobediência. Façam o que estou mandando.

Lobo e Jack entraram no pequeno quarto. Quando Singer bateu a porta, a luz do teto se acendeu automaticamente, revelando um cubículo sem janelas com um beliche de metal, uma pequena pia num canto e uma cadeira também de metal. Nada mais. Na tinta branca das paredes, marcas amareladas de fita adesiva mostravam onde os antigos habitantes do quarto tinham posto gravuras. A porta foi trancada. Jack e Lobo viraram-se para ver o rosto de Singer na pequena portinhola retangular.

— Agora, sejam bonzinhos — disse ele sorrindo, e foi embora.

— Não, Jacky — disse Lobo. O teto não ficava a mais de dois ou três centímetros de sua cabeça. — Lobo não pode ficar aqui.

— É melhor você se sentar — disse Jack. — Prefere a cama de cima ou a de baixo?

— Hã?

— Fique com a de baixo e sente-se. Estamos numa enrascada.

— Lobo sabe, Jacky. Lobo sabe. Isto é um lugar mau, muito mau. Não posso ficar.

— Por que é um lugar mau? Isto é, como sabe disso?

Lobo sentou-se pesadamente na cama de baixo, jogou suas novas roupas no chão e pegou casualmente o livro e os dois impressos que encontrou. O livro era a Bíblia, com uma encadernação de plástico imitando seda azul; os impressos (Jack conseguiu ler olhando da cama de cima) intitulavam-se O verdadeiro caminho para a graça eterna e Deus ama você!

— Lobo sabe. Você também sabe, Jacky!

Fazendo uma careta, Lobo olhou para cima. Depois passou os olhos pelos livros que tinha nas mãos, começando a torcê-los, quase a rasgá-los. Eram, Jack supunha, os primeiros livros que ele tinha visto.

— O homem de branco — disse Lobo tão baixo que Jack mal pôde ouvir.

— O homem de branco?

Lobo suspendeu um dos impressos. Na contracapa havia uma enorme fotografia em preto-e-branco de Sunlight Gardener, o bonito cabelo esvoaçando na brisa, os braços estendidos — um homem que conquistou a graça eterna, filho dileto de Deus.

— Ele — disse Lobo. — Ele mata, Jacky. Com chicotes. Este é um dos lugares dele. Nenhum Lobo pode ficar num dos lugares dele. Nenhum Jack Sawyer também. Jamais. Temos de sair daqui, Jacky!

— Vamos sair — disse Jack. — Eu lhe prometo. Não hoje, nem amanhã, porque primeiro temos de bolar um plano. Mas sairemos o mais depressa possível.

Os pés de Lobo ultrapassavam em muito a beira da cama.

— O mais depressa possível — ele repetiu.

 

O mais depressa possível, Jack prometera e Lobo precisava de uma promessa. Estava aterrorizado. Jack não sabia se Lobo já tinha visto Osmond nos Territórios, mas certamente já tinha ouvido falar dele. A reputação de Osmond nos Territórios, pelo menos entre os membros da família lupina, parecia ser ainda pior do que a de Morgan. Mas, embora tanto Lobo quanto Jack tivessem reco­nhecido Osmond em Gardener, Gardener não os reconhecera, o que sem dúvida levantava duas possibili­dades. Ou Gardener estava apenas brincando com eles, fingindo-se de ignorante, ou era um Duplo como a mãe te Jack, profundamente vinculado a um personagem dos Territórios, mas inconsciente do vínculo (exceto, talvez, nos níveis mais profundos da mente).

E, se isto fosse verdade, como Jack acreditava, então poderiam esperar com mais tranqüilidade pelo momento adequado de escapar. Teriam tempo de observar, avaliar a situação.

Jack vestiu as roupas malfeitas da Casa do Sol. Os sapatos pretos pareciam pesar toneladas, mas couberam bem em seus pés. Com dificuldade, conseguiu persuadir Lobo a vestir o uniforme. Então os dois se deitaram. Jack ouviu o amigo começar a roncar e, após algum tempo, também adormeceu. Em seus sonhos, a mãe estava num lugar escuro, pedindo que ele a ajudasse, que a ajudasse.

 

O SERMÃO

Às cinco da tarde, uma campainha elétrica soou no corredor, um longo ruído metá­lico. Lobo pulou da cama, batendo com a cabeça na moldura do beliche com força suficiente para acordar Jack, que ainda estava cochilando, com um solavanco.

Cerca de 15 segundos depois, a campainha parou de guinchar; Lobo ficou de pé e, segurando a ca­beça com as mãos, cambaleou para o canto do quarto.

— É um lugar mau, Jack!— ele gritou. — Aqui e agora, é um mau lugar! Temos de sair daqui! Temos de sair daqui aqui e agora!

Houve batidas na parede.

— Faça este imbecil calar a boca!

Do outro lado veio um riso estridente, um relincho de cavalo.

— Vão receber um pouco de luz nessas cabeças, seus idiotas! E, pelo jeito desse vozeirão aí do lado, estão bem necessitados disso! Vai ser ótimo para vocês!

O riso cacarejante, relinchante, muito parecido com um grito de horror, fez-se ouvir outra vez.

— Muito mau, Jack!— disse Lobo. — Lobo, oh, Lobo! Muito mau! Por Jasão! Mau, mau...!

As portas foram se abrindo de cima a baixo do corredor. Jack pôde ouvir o rastejar de muitos pés calçando os pesados sapatos da Casa do Sol.

Obrigando seu corpo a se mexer, deu um pulo da cama. Sentiu-se confuso com a agitação à sua volta, ainda um tanto distante da realidade — nem totalmente acordado, nem adormecido. Atravessar o quartinho sórdido até junto de Lobo foi como cruzar uma atmosfera de xarope em vez de ar.

Agora se sentia cansado... muito cansado.

— Lobo — disse — Lobo, pare com isso.

— Não posso, Jacky! — Lobo soluçou. Seus braços ainda seguravam a cabeça, como se quisessem impedir que ela explodisse.

— Temos de ir, Lobo. Agora temos de ir para o corredor!

— Eu não posso, Jacky! — Lobo tornou a soluçar. — É um mau lugar, tem cheiros maus...

Do corredor, alguém (Jack achou que fosse Heck Bast) gritou:

— Saiam para a confissão!

— Saiam para a confissão! — gritou uma segunda voz, e todos passaram a cantar em coro: Saiam pra a confissão! Saíam para a confissão! Era como uma estranha torcida de futebol.

— Se quisermos sair inteiros daqui, temos de ficar de cabeça fria.

— Não posso, Jacky, não posso ficar de cabeça fria, é um mau...

A porta do quarto seria aberta num minuto e lá estariam Bast ou Singer... talvez os dois. Eles ainda não teriam “saído para a confissão”, não importa o que isso significasse, e mesmo que os recém-chegados à Casa do Sol pudessem cometer alguns deslizes durante o período de adaptação, Jack achava que as chances de escapar seriam bem maiores se eles fingissem se integrar completamente às normas de Gardener. Com Lobo, é claro, isso não ia ser fácil. Cristo, lamento muito que você também esteja metido nesta encrenca, meu velho, Jack pensou. Mas a situação é o que é. E se não conseguirmos dominá-la, ela vai nos derrubar. Então, se eu for duro com você, será para o seu próprio bem. E, angustiado, acrescentou para si mesmo: Assim espero.

— Lobo — ele sussurrou —, quer que Singer me bata de novo?

— Não, Jack, não...

— Então, é melhor sair agora comigo — disse Jack. — Não esqueça que a forma como Singer e Bast vão me tratar dependerá muito do que você fizer. Singer me deu um tapa por causa das pedras que você tinha.

— E alguém podia ter devolvido o tapa — disse Lobo. A voz era baixa, suave, mas os olhos tinham se apertado e adquirido um tom alaranjado. Por um instante, Jack viu um brilho de dentes brancos entre os lábios de Lobo... não como se Lobo estivesse sorrindo, mas como se os dentes tivessem crescido.

— Não pense mais nisso — disse Jack severamente. — A raiva só vai piorar as coisas.

Lobo tirou os braços da cabeça.

— Eu não sei...

— Por que não tenta? — Jack perguntou, virando-se para a porta com outro olhar de alarme.

— Vou tentar — Lobo murmurou num tom vacilante. Lágrimas cintilaram em seus olhos.

 

O corredor devia estar banhado pela luz da tarde, mas não estava. Era como se alguma espécie de filtro vedasse as janelas para que os rapazes só pudessem enxergar a verdadeira luz, a luz que vinha do interior da Casa do Sol. O sol lá de fora parecia morrer nos estreitos peitoris das altas ja­nelas vitorianas.

Havia 40 garotos em pé na frente de 20 portas, dez de cada lado. Jack e Lobo foram os últimos a aparecer, mas a demora passou despercebida. Singer, Bast e dois outros rapazes tinham encontrado alguém para atormentar e não tiveram tempo de se preocupar com mais nada.

A vítima era um garoto de uns 15 anos, magro e de óculos. Estava de pé, numa deplorável imitação de posição de sentido, com as calças cáqui em volta dos sapatos pretos. Não usava cuecas.

— Ainda não parou com isso? — Singer perguntou.

— Eu...

— Cale a boca! — gritou um dos outros rapazes que acompanhavam Singer e Bast. Os quatro usa­vam jeans azuis em vez de calças cáqui, e suéteres brancas de gola alta. Jack ficou sabendo que o sujeito que acabara de gritar chamava-se Warwick. O quarto era gordo e se chamava Casey.

— Fique de boca fechada até nós mandarmos você falar! — Warwick gritou de novo. — Vai continuar batendo punheta, Morton?

Morton estremeceu e não disse nada.

— responda ao que ele perguntou! — Casey guinchou. Era um garoto atarracado, que lembrava um maligno boneco de molas.

— Não — Morton gemeu.

— Se ficar uma semana sem fazer isso, vamos lhe devolver as cuecas — disse Singer com o ar de quem concedia um grande favor a um ser desprezível. — Agora, vista as calças, menino nojento!

Fungando, Morton se curvou e puxou as calças.

Os garotos seguiram em frente para a confissão e o jantar.

 

A confissão transcorreu numa grande sala de paredes nuas do outro lado do refeitório. Cheiros estonteantes de toucinho e bifes impregnavam o ar, e Jack pôde ver as narinas de Lobo se agitando ritmadamente. Pela primeira vez naquele dia a expressão de absoluta apatia deixava os olhos do amigo; Lobo começava a mostrar algum interesse pela situação.

Jack estava mais desconfiado da “confissão” do que deixava transparecer. Deitado com as mãos na cabeça na cama de cima do beliche, vira uma coisa preta num dos cantos do teto. Por um momento, achou que fosse alguma espécie de besouro ou até mesmo uma enorme barata. Achou que se chegasse mais perto talvez conseguisse ver a teia de aranha que aprisionara o inseto... Mas não era nada de tipo orgânico. Era um pequeno e antiquado microfone aparafusado na parede com uma trave. Um fio saía detrás dele e atravessava um buraco no reboco. Não tinham se preocupado sequer em ocultá-lo. Faz parte dos bons ofícios, rapazes! Sunlight Gardener poderá ouvir melhor o seu rebanho.

Depois de ter visto o microfone, depois da cena com Morton no corredor, ele esperava que a con­fissão fosse uma cerimônia desagradável, talvez assustadora. Alguém, possivelmente o próprio Sunlight Gardener, mais provavelmente Singer ou Hector Bast, tentaria fazê-lo admitir que usara drogas durante a viagem, que arrombara casas no meio da noite para roubar, que cuspira em todas as calçadas e se mastur­bara ao término de cada dia de jornada. Pouco importa que não tivesse feito nada disso; ficariam atrás dele até fazê-lo admitir suas “culpas”. Tentariam dobrá-lo, quebrar-lhe qualquer resistência. Jack acredita­va que poderia suportar um tratamento desse tipo, mas não tinha certeza se Lobo ia conseguir.

O mais perturbador, no entanto, era a avidez com que os garotos da Casa do Sol pareciam aguar­dar a confissão.

O quadro de funcionários (os rapazes com as suéteres brancas de gola alta) sentou-se na frente da sala. Jack olhou ao redor e viu os outros fitando a porta aberta com uma espécie de estúpida expectativa. Achou que o motivo de toda aquela ansiedade só podia ser o jantar: de fato o cheiro era ótimo, principalmente depois de tantas semanas passadas à base de hambúrgueres, sem qualquer tipo de acompanhamento.

Então Sunlight Gardener entrou bruscamente e Jack viu as expressões de expectativa se transfor­marem em expressões de gratificação. Sem dúvida, não era exatamente o jantar que estavam aguardando. Morton, que há apenas 15 minutos fora humilhado no corredor com as calças nos tornozelos, parecia qua­se exultante.

Os garotos ficaram de pé. Lobo continuou sentado, o nariz chamejando. Parecia confuso e assusta­do. Jack agarrou-o pela camisa e fez com que ele se levantasse.

— Faça como os outros, Lobo — ele murmurou.

— Podem sentar, rapazes — disse Gardener, sorrindo. — Sentem-se, por favor.

Todos sentaram. Gardener usava uma calça jeans desbotada e uma camisa de seda muito branca, aberta no pescoço. Sempre sorridente, olhou-os com benevolência. Os garotos o encaravam com olhos de veneração. Pelo menos a maioria deles. Jack viu um rapaz — cabelo castanho e ondulado, com um ca­cho caído na sobrancelha, queixo recuado, mãos pequenas, delicadas, brancas como a porcelana holan­desa do tio Tommy — virar para o lado e tapar a boca para esconder um sorriso de escárnio. Isso não deixou de encorajá-lo. Sem dúvida, nem todas as cabeças tinham sido afetadas pelo que estava acontecendo ali... mas muitas tinham. E bastante, a julgar pelo que via. Um sujeito com dentes acavalados estava olhando para Sunlight Gardener com uma postura de absorta veneração.

— Vamos orar. Heck, não quer nos dar uma ajuda?

Heck ajudou. Rezou rápida e mecanicamente. Foi como ouvir um disco de orações gravado por um disléxico. Depois de pedir a Deus para favorecê-los nos dias e semanas que tinham pela frente, para perdoar seus pecados e ajudá-los a se tornarem pessoas melhores, Heck Bast concluiu bruscamente:

— Em nome de Jesus, amém! — e se sentou.

— Obrigado, Heck — disse Gardener.

Ele se aproximara de uma cadeira e sentara ao contrário, cruzando os braços no encosto. Lembrava um elegante ladrão de cavalos num Western de John Ford. Tinha uma aparência realmente fascinante, quase despojada da loucura que Jack vira pela manhã.

— Vamos ter apenas uma dúzia de confissões, por favor. Não mais que isso. Quer nos ajudar, Andy?

Warwick, uma expressão de ridícula piedade no rosto, tomou o lugar de Heck.

— Obrigado, reverendo Gardener — disse ele, e depois virou-se para os garotos. — Confissão — disse. — Quem deseja começar?

Houve um rumor, uma agitação... e então as mãos começaram a se erguer. Duas... seis... nove delas.

— Roy Owdersfelt — disse Warwick.

Roy Owdersfelt, um rapaz alto com uma espinha do tamanho de um tumor na ponta do nariz, se levantou, contorcendo as mãos ossudas na frente do corpo.

— No ano passado, roubei dez dólares da bolsa de minha mãe! — proclamou numa voz alta e es­tridente. A mão escura, com cascas de ferida, aproximou-se da espinha e deu-lhe um bom beliscão. — Le­vei o dinheiro para o fliperama, troquei-o em moedas e joguei até o último centavo no Pac-Man e na Bata­lha do Leiser. Ela estava guardando aquele dinheiro para pagar a conta do gás e foi por isso que durante algum tempo cortaram nosso aquecimento! — Pestanejando, ele se virou para os companheiros. — E meu irmão pegou uma pneumonia e teve de ir para o hospital em Indianápolis! Tudo isso porque eu roubei aquele dinheiro! Essa é a minha confissão.

Roy Owdersfelt se sentou.

— Roy pode ser perdoado? — perguntou Sunlight Gardener.

— Roy pode ser perdoado — os garotos responderam numa só voz.

— Pode alguém aqui perdoá-lo?

— Ninguém aqui pode perdoá-lo.

— Quem pode perdoar Roy?

— Deus, pela intercessão de Seu filho unigênito, Jesus Cristo!

Vai pedir a Jesus que interceda a seu favor? — Gardener perguntou a Roy Owdersfelt.

— É claro que vou! — Roy gritou numa voz trêmula e beliscou de novo a espinha. Jack viu que Roy Owdersfelt estava chorando.

— E da próxima vez que sua mãe vier aqui, vai dizer a ela que pecou contra sua bolsa, contra seu irmãozinho e contra a face de Deus? E que lamenta de todo o coração?

— Pode ter certeza!

Sunlight Gardener balançou a cabeça para Andy Warwick.

— O próximo! — disse Warwick.

Antes de a confissão ter terminado às seis da tarde, quase todos, com exceção de Jack e Lobo, ti­nham levantado a mão, ansiosos para relatar algum pecado à assembléia. Inúmeros confessaram peque­nos furtos. Outros confessaram ter bebido até ficarem embriagados. Houve também, é claro, muitos rela­tos de uso de drogas.

Warwick os chamava, mas era para Sunlight Gardener que eles olhavam em busca de aprovação. E falavam... falavam... falavam...

Gardener faz com que o pessoal goste de ter pecado, Jack pensou, transtornado. Eles o amam, eles querem sua aprovação, e acho que só a conseguem se confessam pecados. Aposto que alguns desses tolos chegam até a inventar seus pequenos crimes.

Os cheiros que vinham do refeitório tinham ficado mais fortes. O estômago de Lobo roncava furio­samente e de modo incessante. Durante a lacrimosa confissão de um rapaz, que dizia ter roubado uma re­vista Penthouse para dar uma olhada nas fotos “imundas” do que ele chamou de “mulheres com o sexo de fora”, o estômago de Lobo roncou tão alto que Jack teve de lhe dar uma cotovelada.

Após a última confissão da noite, Sunlight Gardener presenteou os fiéis com uma breve e melodio­sa oração. Depois ficou de pé no umbral da porta, informal e magnífico no jeans azul e na camisa de seda branca. Os garotos saíram em fila.

Quando Jack e Lobo passaram, ele fechou uma das mãos no pulso de Jack.

— Eu já o encontrei antes.

Confesse!, exigiram os olhos de Sunlight Gardener. E Jack quase sentiu uma urgência era fazê-lo. Oh, sim, já nos conhecemos, sim! Você chicoteou minhas costas!

— Não — disse Jack.

— Oh, sim — disse Gardener. — Oh, sim. Tenho certeza de que já o encontrei. Na Califórnia, será? No Maine? Em Oklahoma? Onde?

Confesse!

— Eu não o conheço — disse Jack.

Gardener riu. Jack teve certeza de que, no íntimo, Sunlight Gardener estava sapateando, dançando, fazendo o chicote estalar.

— Foi a mesma coisa que disse Pedro quando lhe pediram para identificar Jesus Cristo — ele falou. — Mas Pedro mentiu. E você está mentindo, eu sei. Foi no Texas, Jack? Em El Paso? Foi em Jerusalém, numa outra encarnação? Foi sobre o Gólgota, o lugar do sacrifício?

— Estou lhe dizendo que...

— Sim, sim, mas sem dúvida já nos encontramos.

Outra risada. Lobo, Jack reparou, se esquivava de Sunlight Gardener o máximo que o umbral da porta permitia. Era o cheiro. O nauseante, saturante cheiro de água-de-colônia. E sob ele, o cheiro da loucura.

— Nunca me esqueço de um rosto, Jack. Nunca esqueço de um rosto ou de um lugar. Vou lembrar onde nos encontramos, pode ter certeza!

Seus olhos passaram de Jack a Lobo — Lobo deu um ligeiro gemido e recuou — e depois voltaram a Jack.

— Faça bom proveito do seu jantar, Jack — disse ele. — Faça bom proveito do seu jantar, Lobo. A verdadeira vida de vocês na Casa do Sol começa amanhã.

A meio caminho da escada, ele parou e olhou para trás.

— Nunca esqueço um lugar ou um rosto, Jack. Eu vou me lembrar.

Deus, espero que não, Jack pensou sentindo um calafrio. Pelo menos, até eu estar a três mil quilô­metros da porra deste lugar...

Alguma coisa atingiu-o com força. Jack rodopiou pelo corredor, agitando os braços em busca de equilíbrio, mas acabou batendo com a cabeça no chão de cimento e vendo uma chuva de estrelas.

Ao conseguir se sentar, viu Singer e Bast, um ao lado do outro, sorrindo. Atrás deles estava Casey, a barriga repuxando a suéter branca de gola alta. Lobo fitava Singer e Bast, e alguma coisa em sua postura tensa deixou Jack alarmado.

— Não, Lobo! — ele gritou num tom agudo.

Lobo abaixou a cabeça.

— Nada disso, vá em frente, boneco! — disse Heck Bast, rindo um pouco. — Não lhe dê ouvidos! Venha e tente me acertar, se for homem! Adoro um aquecimento antes do jantar.

Singer virou-se para Lobo e disse:

— Deixe este idiota em paz, Heck. Não passa de uma carcaça vazia. — Empinou a cabeça para Jack. — Ele é o cabeça. Ele é a cabeça que temos de mudar. — Curvou-se olhando para Jack, mãos nos joelhos, como um adulto dando uma ou duas palavrinhas a uma criança muito pequena. — E vamos mu­dá-la, Sr. Jack Parker. Pode crer!

— Vá à merda, seu cavalo! — Jack gritou num impulso.

Singer recuou como se tivesse levado uma bofetada, um tom avermelhado subindo-lhe pela gola, pelo pescoço, cobrindo-lhe o rosto. Com um rosnado, Hesk Bast avançou um passo. Singer agarrou o braço de Bast. Sempre olhando para Jack, disse:

— Agora, não. Mais tarde.

Jack ficou de pé.               

— É melhor tomar cuidado comigo — disse Jack encarando calmamente os dois, e embora Hector Bast tenha apenas ficado vermelho, Singer pareceu assustado. Por um momento, julgou ter visto alguma coisa no rosto de Jack Sawyer, algo muito forte e ameaçador (algo que ainda não existia naquela fisiono­mia há dois meses, quando um garoto muito mais jovem deu as costas para a cidadezinha litorânea de Arcadia Beach e tomou o caminho do Oeste).

 

Jack achou que o tio Tommy teria descrito aquele jantar — corretamente, aliás — como “rango de fazenda americana”. Os rapazes sentaram-se em mesas compridas e foram servidos por quatro companheiros que, depois da confissão, vestiram aventais brancos.

Depois de mais uma prece, a comida foi solenemente introduzida no refeitório. Grandes caçarolas de vidro cheias de arroz foram distribuídas pelas quatro mesas, seguidas de travessas de bifes malpassados com pedaços de toucinho, terrinas com fatias de abacaxi e leite em embalagens de cartolina com os dizeres alimentos doados e associação dos produtores de leite do estado de indiana.

Lobo comeu em sombria concentração, cabeça baixa, um pedaço de pão numa das mãos para em­purrar a comida e, às vezes, servir de guardanapo. Devorou cinco bifes e três porções de arroz. Lembran­do-se do pequeno quarto com a janela trancada, Jack se perguntou se Lobo conseguiria dormir sem uma máscara contra gases. De qualquer modo, não havia alternativa. Com ar abatido, Jack viu o amigo colocar no prato uma quarta porção de arroz.

Ao término do jantar, os garotos se levantaram, formaram filas e tiraram as mesas. Enquanto pega­va seu prato e o de Lobo, um resto de pão, duas embalagens vazias de leite e levava tudo para a cozinha, Jack arregalou os olhos. Os rótulos nas caixas de leite tinham lhe dado uma idéia.

O lugar não era uma prisão e também não era um reformatório. Talvez o classificassem como inter­nato ou qualquer coisa do gênero e, pela lei, esse tipo de estabelecimento devia receber visitas periódicas dos inspetores do Estado. A cozinha era um lugar onde o olho da inspeção do Estado de Indiana sem dú­vida se deteria com mais freqüência. Havia grades nas janelas lá em cima, é claro. Mas também haveria grades nas janelas da cozinha? Jack achava que não. Isso despertaria alguma suspeita.

A cozinha podia ser um ótimo ponto de partida para uma tentativa de fuga, por isso Jack quis exa­miná-la mais detidamente.

Lembrava a cozinha da cafeteria de sua escola na Califórnia. O chão e as paredes eram ladrilhados, as pias e os balcões, enormes recipientes de aço inoxidável. Os armários eram quase do tamanho de celei­ros. Numa das paredes, havia uma velha lavadora de pratos. Três rapazes operavam aquela amarelada antigüidade sob a supervisão de um homem com gorro de cozinheiro. O homem era magro, pálido e tinha um rosto de ratinho. Um cigarro sem filtro pendia grudado em seu lábio superior e, aos olhos de Jack, isso o identificava como possível aliado. Ele duvidava muito de que Sunlight Gardener deixasse algum membro de seu rebanho fumar.

Na parede, um certificado emoldurado anunciava que aquela cozinha pública estava de acordo com os padrões estabelecidos pelo governo do Estado de Indiana e pelo governo federal.

E realmente não havia grades defronte aos vidros foscos das janelas.

O homem com rosto de ratinho levantou os olhos para Jack, desgrudou o cigarro do lábio e ati­rou-o numa das pias.

— Gente nova, você e seu amigo, hem? — disse ele. — Logo se tornarão gente da casa. O pessoal não demora a se adaptar devidamente à Casa do Sol, não é, Singer?

Sorriu com um ar de deboche. Era de todo evidente que Singer não sabia lidar com um sorriso da­queles; ficou confuso e inseguro, tornou-se quase um garoto indefeso.

— Você sabe que não devemos conversar com os rapazes, Rudolph — disse ele.

— Ora! Não faz mal a ninguém tomar um pouco de ar! — disse Rudolph, piscando preguiçosamen­te ao lado de Singer. — É ou não é?

Singer virou-se para ele, os lábios primeiro tremendo, depois se contorcendo, depois se contraindo.

E, de repente, virou-se para Jack e para Lobo.

— Já para o ofício noturno! — gritou furioso. — Para o ofício noturno, vamos, andem! Larguem a louça e vamos andando! Já estão atrasados! Para o ofício noturno!

 

Os rapazes marcharam por uma escada estreita iluminada por globos brancos de luz. As paredes pareciam úmidas, e Jack não gostou nada do modo como as pupilas de Lobo estavam ro­lando dentro dos olhos.

No fim da escada, a capela foi uma surpresa. A maior parte da área do porão — que era bastante extensa — fora convertida num templo agradável e moderno. O ar parecia bom: nem quente, nem frio de­mais. E parecia saudável. Jack podia ouvir o som do sistema de ventilação em algum lugar perto dali. Ha­via cinco bancos separados por um corredor central. O corredor levava a um tablado com um púlpito, de­fronte a uma cruz de madeira num fundo de veludo roxo.

Um órgão estava sendo tocado.

Os garotos se sentaram tranqüilamente nos bancos. O microfone no púlpito possuía um grande an­teparo de borracha, de tipo profissional. Jack acompanhara a mãe a muitos estúdios de som (onde costu­mava se sentar pacientemente numa poltrona, lendo uma revista ou mesmo fazendo os deveres de casa, enquanto, de fone nos ouvidos, ela tentava dublar em cima do som-guia) e sabia que aquele tipo de ante­paro destinava-se a impedir que o locutor se aproximasse demais do microfone. Achou estranho ver aquela coisa no templo de um internato religioso para garotos delinqüentes. Havia também duas câmeras, uma de cada lado do púlpito, a primeira para captar o perfil direito de Sunlight Gardener, a outra para o perfil esquerdo. Nenhuma delas estava funcionando naquele momento. Nas paredes, viam-se pesadas cortinas roxas. À direita, cobriam toda a parede. À esquerda, porém, havia um retângulo de vidro. Jack pôde ver Casey agachado ao lado de uma caixa acústica bastante sofisticada; à sua direita havia um grava­dor sobre um suporte. Casey pôs nos ouvidos os fones que estavam sobre a caixa.

Jack olhou para cima e viu traves de madeira se elevando numa fileira de seis arcos. Entre eles tam­bém havia equipamento sonoro. O lugar parecia uma capela, mas era uma combinação muito eficiente de estúdio de rádio e tevê. Jack lembrou-se de Jimmy Swaggart, Rex Humbard, Jack Van Impe.

Meus irmãos, girem os botões de seus aparelhos de tevê e ficarão curados!!!

De repente, teve vontade de soltar uma enorme gargalhada.

Uma pequena porta abriu-se à esquerda do tablado e Sunlight Gardener entrou no recinto. Estava vestido de branco da cabeça aos pés, e nos rostos de muitos garotos Jack viu expressões que iam da exaltação à idolatria. Teve outra vez de reprimir uma selvagem explosão de riso. A imagem branca aproximando-se do púlpito trouxe-lhe à memória certos comerciais que vira quando ainda era muito pequeno.

Achou que o sabão em pó que lavara a roupa de Sunlight Gardener rendera o “Branco Total Radiante”.

Lobo virou-se para ele e sussurrou num tom meio rouco:

— O que está havendo, Jack? Você tem o cheiro de quem está achando tudo isto muito engraçado.

As mãos de Jack tiveram de tapar a boca com tanta força que todo o sangue dos dedos pareceu se escoar.

Sunlight Gardener, o rosto cintilante de boa saúde, virou as páginas da grande Bíblia sobre o púlpito, aparentemente absorto na mais profunda meditação. Jack viu a assustadora, acidentada paisagem da testa de Heck Bast, a expressão desconfiada de Singer. Tentou, de imediato, parecer o mais sóbrio possível.

Casey estava sentado na cabine de vidro, contemplando atentamente os movimentos de Gardener. E quando Gardener levantou os olhos da Bíblia e fez os olhos baços, sonhadores e extremamente insanos deslizarem pela audiência, Casey apertou um botão. Os carretéis do grande gravador começaram a girar.

 

— Não te irrites contra os malfeitores —

disse Sunlight Gardener. Sua voz era baixa, musical, concentrada.

— Nem tenhas inveja dos

obreiros da iniqüidade.

Pois eles serão cortados como erva daninha,

e secarão como a relva no inverno.                       

Confia no Senhor e sê bom;

porque assim poderás viver em seus Territórios...

 

(Jack Sawyer sentiu o coração dar um enorme salto no peito.)

 

— ... e serás verdadeiramente alimentado.

Mas procura deliciar-te agora com o Senhor;

e ele te concederá os desejos do teu coração.

Confia-te à guarda do Senhor

e abre o caminho para a Sua casa.

Ele te levará os males...

Cessação da ira, abandono de toda cólera...

Mo te deixes tentar a fazer o mal,

pois os feitores do mal serão extirpados.

Mas aqueles que confiam no Senhor

herdarão seu Território.

 

Sunlight Gardener fechou o livro.

— Possa Deus — disse ele — trazer sua bênção à leitura de Sua Sagrada Palavra.

Baixou os olhos e por muito, muito tempo contemplou as mãos. Na cabine de vidro de Casey, os carretéis do gravador continuavam a rodar. Então, Gardener levantou outra vez a cabeça, e em sua mente Jack ouviu o grito de seu Duplo: Não foi da Kingsland, foi? Ou está mesmo querendo dizer que derrubou uma carroça cheia de Cerveja Kingsland, seu estúpido filho da puta? É isso que veio me contar, seeeeeeuuuuuu...?

Sunlight examinou minuciosa e avidamente a congregação de jovens. Todas as faces estavam vol­tadas para ele: rostos redondos, rostos magros, rostos machucados, rostos cobertos de acne, rostos tímidos e rostos extrovertidos, cheios de encanto e jovialidade.

— O que tudo isto significa, rapazes? Compreenderam bem o Salmo 37? Compreenderam bem esta fascinante, fascinante canção?

Não, as faces diziam — tímidas ou expansivas, ingênuas, doces, com marcas de cicatrizes ou com marcas de varíola. Não passamos do ginásio na escola, o senhor sabe. E ficamos muito tempo na vadia­gem, na beira das estradas, metidos em muitos problemas... Mas diga o que significa... diga... diga...

Subitamente, de uma forma chocante, Gardener guinchou no microfone:

— Isto significa: não deixe transpirar o que você tem de bom!

Lobo se encolheu, gemendo um pouco.

— Agora já sabem o que significa, certo? Já ouviram o que significa, não foi?

— Sim! — alguém gritou atrás de Jack.

— oh, sim! — Gardener repetiu, radiante. — não deixe transpirar o que você tem de bom o suor tem de ser sempre positivo! São palavras bonitas, não acham, garotos? Sem a menor dúvida, são boooooooas palavras, oh, são!

— São!... OH! São!

— Este salmo diz que vocês não têm de se preocupar com os malfeitores! o suor tem de ser sempre positivo! oh, sim! Diz que vocês não têm de ter inveja dos obreiros do pecado e da iniqüidade! não deixe transpirar o que você tem de bom! Este salmo diz que, se vocês caminham com o Senhor e conversam com o Senhor, tudo correrá muito bem! Entenderam o que eu disse, rapazes? Tiveram ouvidos para entender o que eu disse?

— Sim!

— Aleluia! — Heck Bast gritou, sorrindo divinamente.

— Amém! — respondeu um jovem com um grande olho preguiçoso atrás de óculos com lentes grossas. Sunlight Gardener pegou o microfone com uma agilidade temperada pelo hábito e Jack se lem­brou de um dançarino que vira em Las Vegas. Gardener começou a andar de um lado para o outro com uma rapidez saltitante, nervosa. Às vezes dava um meio passo de dança com seus sapatos de couro bran­co; aqui lembrava Dizzy Gillespie, ali Jerry Lee Lewis, ali Stan Kenton, ali Gene Vincent; parecia impulsio­nado por uma febre divina.

— Não, você não tem de temer! Oh, não! Você não tem de temer o garoto que quer lhe mostrar revis­tas sujas! Você não tem de temer o garoto que diz que apenas uma tragada num cigarro de maconha não vai lhe tirar nenhum pedaço e que você será um maricas se não fizer isso! Oh, não! Porque quando se tem o senhor e se anda com o senhor, nada se pode temer, certo?

— Sim!!!

— Oh, sim! E quando se tem o senhor e se conversa com o senhor, nada se pode temer, certo?

— Sim!

— Não estou ouvindo vocês; estou certo?

— Sim!!! — gritaram a plenos pulmões, muitos se balançando para um lado e para o outro num ver­dadeiro frenesi.

— Se eu estou certo, digam aleluia!

— Aleluia!                                                                                            

— Se estou certo, digam oh, iê!

— Oh, iê!

Eles balançavam de um lado para o outro e, sem saída, Jack e Lobo balançavam também. Jack re­parou que alguns garotos estavam chorando.

— Agora me digam o seguinte — Gardener falou, olhando ardorosa e intimamente para eles. -Aqui na Casa do Sol há lugar para malfeitores? Hã? O que vocês acham?

— Não senhor — gritou o rapaz magro com dentes acavalados.

— Está bem — disse Sunlight Gardener aproximando-se novamente do púlpito. Deu uma mexida rápida e profissional no microfone para tirar o fio de debaixo do pé e depois o apoiou de novo no supor­te. — Isso é que é! Não há lugar aqui para contadores de lorotas e obreiros da iniqüidade, aleluia!

— Aleluia! — disseram os garotos.

— Amém — Sunlight Gardener acrescentou. — O Senhor diz, no Livro de Isaías, que se você se apóia no Senhor, subirá aos céus, oh, ié! Com asas de águia e a energia de dez homens. E então eu digo, pessoal: a Casa do Sol é um ninho de águias, aleluia!

— Aleluia!

Houve outra pausa. Sunlight Gardener agarrou os lados do púlpito e abaixou a cabeça como se es­tivesse rezando, o esplêndido cabelo branco caindo em disciplinadas ondas. Quando voltou a falar, o tom era baixo e doce. Não ergueu os olhos. Os rapazes ouviram sem respirar.

— Mas temos inimigos — disse Gardener por fim. Foi apenas um sussurro, mas o microfone captou-o e transmitiu-o com perfeição.

Os garotos suspiraram — um farfalhar de vento entre folhas de outono.

Heck Bast estava olhando truculentamente ao redor, as pupilas rolando dentro das órbitas, as espi­nhas adquirindo um tom muito vermelho, como se alguma doença tropical o tivesse atacado. Mostre-me um inimigo, dizia o rosto de Heck Bast. Sim, vã em frente, mostre-me um inimigo e o senhor verá o que vai acontecer a ele!

Gardener levantou a cabeça. Seus olhos insanos pareciam cheios de lágrimas.

— Sim, temos inimigos — ele repetiu. — Duas vezes o Estado de Indiana tentou me fazer calar. Sa­bem por quê? Os subversivos não podem suportar a idéia de me ver aqui na Casa do Sol, ensinando meus meninos a amar Jesus e o país. Isso os deixa furiosos, e querem saber de uma coisa, garotos? Querem sa­ber de um profundo e velho segredo?

Todos se inclinaram para a frente, olhos grudados em Sunlight Gardener.

— Nós não apenas os deixamos furiosos — disse Gardener num áspero sussurro de conspirador. - Nós os deixamos com meeeedo!

— Aleluia!

— Oh, ié!

— Amém.

Com um movimento de relâmpago, Sunlight Gardener tornou a pegar o microfone e perdeu intei­ramente o controle. Agitou-o para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Às vezes ensaiava dois passos de dança como se estivesse na Nova Orleans de 1910. Queria bombear a palavra do Senhor, pri­meiro apontando o braço para os garotos, depois para os céus, onde presumivelmente Deus estaria sentado em Sua poltrona para ouvi-lo.

— Nós os deixamos com medo, aleluia! Tão assustados que eles têm de recorrer a outra dose de vod­ca, a mais uma tragada de maconha, a mais uma fungada de cocaína! Nós os assustamos, porque mesmo os subversivos mais experientes na negação de Deus e no ódio a Jesus podem farejar a virtude e o amor a Deus, e quando farejam este cheiro podem sentir também o cheiro do enxofre saindo de seus poros; e eles não gostam desse cheiro, oh, não! Por isso mandam um ou dois inspetores extras para depositar lixo sob os balcões da cozinha ou espalhar uma legião de baratas no chão! E dão início a um monte de rumores in­fames dizendo que meus rapazes são espancados. Vocês são espancados?

— Não! — eles rugiram num tom indignado, e Jack ficou atônito ao ver Morton rugir a negativa tão entusiasticamente quanto os outros, embora uma marca roxa já estivesse começando a se formar na sua face.

— Vejam! Eles mandam um punhado de repórteres tarimbados para preparar reportagens caluniosas para algum noticiário subversivo!

Agora Sunlight Gardener gritava numa espécie de atordoante amargor.

— Eles vêm aqui e dizem: “Tudo bem, nada de armação, ninguém está procurando encrenca. Mas não nos subestime. Temos especialistas em macular a virtude, pode crer! Por que não faz as pazes conos­co, nos dá alguns cigarros de maconha, um pouco de vodca e nos aponta o caminho certo?”. Mas não marcamos bobeira com eles, não é, pessoal?

Houve um rumor quase perverso de concordância.

— Eles não encontram ninguém amarrado em correntes, não é? Não encontram ninguém em cami­sas-de-força, como dizem aqueles paranóicos da Comissão Municipal de Ensino. Não encontram ninguém com as unhas arrancadas ou o cabelo raspado à máquina zero, nem nada, nada disso! O máximo que con­seguem desencavar são alguns garotos dizendo que levaram uma palmada, e sem dúvida levaram mesmo uma palmada, oh, ié, levaram uma palmada e eu posso dar testemunho dessa verdade diante do trono do Todo-Poderoso Senhor Jesus, aleluia! Posso dar testemunho da verdade com um detetor de mentiras amarrado em cada braço! Porque a Palavra de Deus diz que se você poupa a vara, a criança estraga, e se acreditam nisso, rapazes, saúdem o Senhor! Aleluia!

— aleluia!

— Mesmo a Secretaria de Educação do Estado de Indiana, por mais que gostasse de se livrar de mim e deixar o campo livre para Satanás, mesmo eles têm de admitir que, quando alguém aqui leva uma palmada, aplica-se tanto a lei de Deus quanto a lei do Estado de Indiana: se você poupa a vara, a criança estraga! O que encontram aqui? Rapazes felizes! Rapazes saudáveis! Rapazes dispostos a caminhar com o Senhor, a conversar com o Senhor, aleluia!

— Aleluia!

— Sabem dizer aleluia, sabem dizer oh, ié?

— aleluia!

Sunlight Gardener voltou ao púlpito.

— O Senhor protege aqueles que O amam. O Senhor não vai deixar um punhado de viciados, tara­dos e comunistas passar a mão neste lugar de repouso para garotos cansados, confusos... Alguns meninos dizem feias mentiras para agentes infiltrados na imprensa. Vejo essas mentiras repetidas nos noticiários de tevê e, embora os rapazes que despejam esse lodo sejam covardes demais para mostrarem os rostos no ví­deo, eu sei, aleluia!, eu conheço muito bem aquelas vozes. Quando você alimenta uma criança, quando você encosta ternamente a cabeça dela em seu peito, quando ela chama pela mãe durante a noite, ora!, como é possível esquecer sua voz? Os rapazes que nos difamaram já não estão mais conosco. Que Deus os perdoe (espero que Ele os perdoe, aleluia!), mas Sunlight Gardener é apenas um homem.

Deixou cair a cabeça para provar a admissão vergonhosa que acabara de fazer. Mas, quando tor­nou a erguê-la, seus olhos ainda estavam abrasados, faiscantes de fúria.

— Sunlight Gardener não pode perdoá-los. Por isso, Sunlight Gardener os manda de novo para as ruas. Então eles voltam aos Territórios da vida, mas aí não serão alimentados; aí as próprias árvores, como feras que caminham na noite, vão querer devorá-los.

Um silêncio aterrador caiu sobre o templo. Atrás da cabine de vidro, Casey parecia pálido, estranho.

— O Livro Sagrado diz que Deus mandou Caim para o Leste do Éden, para a terra de Nod. Ver-se no meio da estrada da vida é assim, meus caros! Aqui temos um porto seguro; lá fora, nada!

Ele os inspecionou.

— Mas se vocês fraquejam... se mentem... não escaparão da desgraça! O inferno aguarda o apósta­ta e o que escorrega sem querer, assim como aguarda o homem ou rapaz que mergulha em seus caldei­rões por livre e espontânea vontade. Lembrem-se disso, rapazes! Lembrem-se disso! Vamos rezar ao Se­nhor.

 

FERD JANKLOW

Jack levou menos de uma semana para descobrir que uma possível volta aos Terri­tórios era o único meio de escapar da Casa do Sol. Estava disposto a tentar, mas sentiu que seria capaz de correr qualquer risco para não fazer a travessia a partir da própria Casa do Sol.

Não havia nenhuma razão concreta para isso, apenas a voz de seu subconsciente sussurrando que um mau lugar aqui seria ainda pior nos Territórios. Aquele espaço talvez fosse mau em todos os mundos... Como um ponto podre que cruza uma maçã até o núcleo. Sem dúvida, a Casa do Sol já era ruim o bastante; ele não estava nem um pouco ansioso em descobrir como seria sua contrapartida nos Territórios.

Mas talvez houvesse um jeito.

Lobo, Jack e os outros rapazes que não tiveram a sorte de entrar para o Corpo do Exterior (isto é, a maioria deles) passavam os dias no que os veteranos chamavam Campo de Fronteira. Ficava a cerca de dois quilômetros e meio da estrada, nos limites da propriedade de Gardener, e ali todos quebravam pe­dras. Não havia outro tipo de trabalho a ser feito naquela época do ano. As últimas colheitas tinham ocor­rido em meados de outubro, mas, como Sunlight Gardener sublinhava a cada manhã na Capela das Devoções, era sempre época das pedras.

Todo dia, sentado na traseira de um dos velhos caminhões da Casa, Jack contemplava o Campo de Fronteira, enquanto Lobo, sempre a seu lado, mantinha a cabeça baixa, como se estivesse de ressaca. Era um outono chuvoso no Meio-Oeste e o Campo de Fronteira se transformara num lamaçal pegajoso, viscoso. Há dois dias, um dos garotos praguejara baixinho, chamando aquilo de “verdadeiro inferno”.

Suponhamos que tentássemos fugir..., Jack pensou pela quadragésima vez. Suponhamos que eu dissesse a Lobo: Vamos correr, rapaz!, e puséssemos o pé na estrada. Para onde poderíamos correr? Para o norte, onde estão aquelas árvores e o paredão de rocha. São os limites da propriedade de Gardener.

Pode haver uma cerca.

Mas nós conseguiríamos pulá-la. Se fosse necessário, Lobo poderia até me atirar como uma bola para o outro lado.

Pode haver arame farpado.

Poderíamos passar rastejando por baixo dele. Ou...

Ou Lobo poderia rasgá-lo com as mãos. Jack nem gostava de pensar nisso, mas sabia que a força de Lobo era muito grande... e, se ele pedisse, Lobo saberia usá-la. O arame faria as mãos do amigo sangra­rem, mas sem dúvida ficaria em farrapos.

E depois?

Atravessar, é claro. Era isso que tinham a fazer. Se conseguissem sair das terras de Sunlight Gardener, murmurava sua voz interior, as possibilidades de voltar aos Territórios seriam bem maiores.

Singer e Bast (que Jack começara a ver como uma dupla de bandidos) não poderiam usar nenhum dos caminhões para persegui-los; se um dos veículos se aproximasse do Campo de Fronteira antes das ne­vadas de dezembro, ficaria atolado até o capô.

A perseguição tem de ser a pé, pura e simplesmente a pé. Vale a pena tentar. Melhor do que passa mais uma noite na Casa. E...

E não era apenas o abatimento crescente de Lobo que o amargurava; estava também extremamen­te preocupado com a mãe, que morria aos poucos, no litoral de New Hampshire, enquanto ele era obriga­do a dizer “Aleluia!” sob ameaça de espancamento.

Por que não tentar? Com o suco mágico ou sem o suco mágico. Por que não tentar?

Mas, antes de Jack se dispor verdadeiramente a tentar a fuga, Ferd Janklow tomou a iniciativa.

Outra mente além da sua estava sintonizada no mesmo canal, aleluia!

 

Quando aconteceu, aconteceu depressa. Num momento Jack estava ouvindo a habitual torrente de cinismo, piadas e anedotas. No momento seguinte, Ferd estava atravessando a toda a velocidade o campo lamacento na direção do paredão de rocha. Até a iniciativa de Ferd, o dia parecera tão monótono quanto qualquer outro dia na Casa do Sol. Fazia frio, o céu continuava nublado; havia um cheiro de chuva, talvez até mesmo de neve, no ar. Jack se levantara para esticar as costas doloridas e para ver se Singer estava por perto. Singer gostava de atormentá-lo das mais variadas formas. Jack levava pisadas, empurrões nas escadas, e em três refeições sucessivas tivera o prato derrubado da mão (até que aprendeu a esquivá-lo no momento exato, a agarrá-lo com força contra o peito).

Não sabia muito bem por que Singer ainda não organizara uma ação mais decisiva, capaz de machucá-lo mais profundamente. Talvez porque Sunlight Gardener estivesse demasiadamente interessa­do no recém-chegado. Não queria pensar nisso, a idéia o assustava um bocado, mas não deixava de fazer sentido. Singer estava se segurando porque Gardener o mandara agir assim... E, sem dúvida, aquela era outra razão para fugir o mais depressa possível daquele lugar.

Virou-se para a direita. Lobo estava a cerca de 20 metros de distância, carregando pedras com o ca­belo caído no rosto. Mais perto dele, postava-se o rapaz magricela, de dentes acavalados — chamava-se Donald Keegan. Donny deu-lhe um sorriso, mostrando a espantosa dentadura, a saliva escorrendo da ponta de sua língua. Jack desviou rapidamente os olhos.

Ferd Janklow estava à sua esquerda — o rapaz com as pequenas mãos de porcelana e o cacho de cabelo caindo até o meio das sobrancelhas. Desde que fora encarcerado na Casa do Sol, ele e Ferd tinham se tornado bons amigos.

Ferd ria cinicamente.

— Donny está apaixonado por você — disse.

— Pare com isso — disse Jack meio envergonhado, sentindo um rubor lhe subir pelo rosto.

— Aposto que Donny daria qualquer coisa que você pedisse — disse Ferd. — Não daria, Donny?

Sem ter a menor idéia do que eles falavam, Donny Keegan abriu o grande sorriso de dentes cavalares.

— Pare já com isso, OK? — disse Jack. Sentia-se mais constrangido que nunca. Donny está apaixonado por você.

O problema, ele pensou, é que talvez o pobre e retardado Donny Keegan estivesse realmente apaixonado por ele... e talvez Donny não fosse o único. Estranhamente, Jack lembrou-se do homem que quisera levá-lo para casa e que ficou parado na margem da estrada enquanto ele descia a variante de Zanesville. Foi ele que viu primeiro, Jack pensou. Se houver alguma coisa de novo na minha cara, aquele homem foi o primeiro que reparou.

— Está ficando muito popular por aqui — disse Ferd. — Acho que até o velho Heck Bast arriaria as calças pra você.

— Que droga, cara! — disse Jack, tornando a ficar vermelho. — Por que não...

E, de repente, Ferd largou a pedra em que trabalhava e ficou de pé. Olhou rapidamente ao redor, viu que nenhum dos garotos de suéteres de gola alta estava olhando para ele, e virou-se para Jack:

— E agora, querido, como este grupo está muito desanimado, vou realmente puxar o carro. Ferd fez ruídos de beijo para Jack e um sorriso de extrema radiância iluminou e ampliou seu rosto estreito, pálido. Daí a um segundo estava em plena carreira, disparando em enormes passadas de cego­nha, correndo para o paredão de rocha nos limites do Campo de Fronteira.

Ele realmente pegara os “comissários” distraídos — pelo menos até certo ponto. Pedersen conver­sava sobre garotas com Warwick e um garoto de feições duras chamado Peabody (um membro do Corpo do Exterior que, provisoriamente, fora remanejado para a Casa do Sol). Heck Bast fora agraciado com o supremo prazer de acompanhar Sunlight Gardener a Muncie numa pequena missão. Ferd conseguiu atin­gir uma boa distância antes que um grito de alarme se erguesse:

— Ei! Ei, alguém está fugindo!

Jack ficou de boca aberta. Ferd já se distanciara centenas de metros numa disparada louca. Apesar de ver seu próprio plano exposto à luz do dia, Jack sentiu uma vibração de triunfo e, no íntimo, desejou que tudo corresse bem. Vá! Corra, seu sacana de uma figa! Vá, pelo amor de Jasão!

— É Ferd Janklow — Donny Keegan balbuciou e riu com seus dentes enormes.

 

Naquela noite, como sempre, os rapazes se reuniram para a confissão na sala co­munitária, mas a cerimônia foi cancelada. Andy Warwick entrou, anunciou bruscamente o cancelamento e disse-lhes que podiam ter uma hora de “conversa sadia” antes do jantar.

Jack achou que, sob o rígido verniz de autoridade, Warwick parecia estar assustado.

E Ferd Janklow não estava mais lá.

Depois que Warwick se retirou, Jack olhou em volta e pensou mal-humorado que, se aquilo era “conversa sadia”, ele detestaria ver o que ia acontecer se Warwick lhes tivesse mandado ter “uma hora de repouso”. Sentados em volta da grande e comprida sala comunitária, 39 garotos, entre nove e 17 anos, olhavam para as mãos, esfolavam os dedos, roíam nervosamente as unhas. Todos compartilhavam uma ansiedade comum: tinham sido despojados de sua dose de ópio. Queriam ouvir confissões; pior ainda, queriam fazer confissões.

Ninguém mencionou Ferd Janklow. Era como se Ferd, com suas caretas nos sermões de Sunlight Gardener e as mãos de porcelana holandesa, nunca tivesse existido.

Jack mal conseguiu resistir ao impulso de ficar em pé e gritar com eles. Mas acabou se limitando a mergulhar em seus pensamentos.

Ele não está aqui porque, simbolicamente, eles o mataram. Estão completamente loucos. Você acha me a loucura não é contagiosa? É só lembrar o que aconteceu naquele lugar da América do Sul, quando um homem de óculos escuros e cintilantes mandou as pessoas tomarem um vinho envenenado. Elas disse­ram: “Faremos tudo que o mestre mandar”, e tomaram a coisa.

Jack contemplou os rostos, rostos melancólicos, absortos, cansados, pálidos. Imaginou como se iluminariam, como ficariam radiantes se Sunlight Gardener entrasse naquele momento, se Sunlight Gaidener irrompesse como um deus pela porta da sala.

Eles também fariam tudo que o Mestre Sunlight Gardener mandasse. Também tomariam o verme depois segurariam à força a mim e a Lobo e nos entornariam a coisa pela goela. Mas Ferd tinha razão... eles vêem alguma coisa na minha cara, nos meus olhos talvez; alguma coisa que absorvi nos Territórios. E talvez gostem realmente um pouco de mim... Heck East não é exceção e deve estar muito desconcertado com isso. O cretino não está acostumado a gostar de nada nem de ninguém. Sim... Talvez eles gostem n pouco de mim... Mas gostam muito mais de Sunlight Gardener. Fariam qualquer coisa por ele. Estão todos loucos.

Sentado a seu lado na sala comunitária, Ferd contara muita coisa sobre a Casa do Sol.

Disse a Jack que fora levado para a Casa do Sol pelos pais, crentes que caíam de joelhos na sala sempre que um pastor começava a fazer uma prece na televisão. Nem o pai nem a mãe compreendiam Ferd, que era feito de uma cepa bem diferente. Achavam que Ferd tinha o diabo no corpo, que era um ga­roto de mau gênio, com tendências comunistas e radicais. Quando ele fugiu de casa pela quarta vez e foi apanhado por nada mais, nada menos que Frankly Williams, os pais foram até a Casa do Sol — onde Ferd, é claro, tinha sido devidamente instalado — e se apaixonaram à primeira vista por Sunlight Gardener. Ali estava a resposta para todos os problemas que um filho rebelde, desobediente e brilhante lhes causava. Sunlight Gardener educaria o garoto, saberia lhe abrir o caminho para o Senhor. Sunlight Gardener mos­traria o erro de seus procedimentos. Sunlight Gardener tiraria aquele pesado fardo de suas costas e afasta­ria o rapaz da vadiagem nas ruas.

— Leram aquela reportagem sobre a Casa do Sol no Sunday Report — Ferd contou a Jack. — E me mandaram um cartão-postal dizendo que Deus castigaria os mentirosos e falsos profetas atirando-os num lago de fogo. Eu respondi devidamente à carta... Rudolph na cozinha despachou-a para mim. Rudolphé um ótimo sujeito... Você sabe qual é a minha definição de um ótimo sujeito, Jack?

— Não.

— Um cara que faz um preço razoável quando se precisa dele — disse Ferd com cinismo e amar­gura. — Dois dólares compram os serviços de carteiro de Rudolph. Então eu respondi devidamente à car­ta dizendo que se Deus castigava os mentirosos com um lago de fogo, Sunlight Gardener seria queimado até a medula no outro mundo, pois ele mente sobre o que acontece aqui com mais desenvoltura que um cavalo a galope. Tudo o que havia na reportagem do Sunday Report... os rumores sobre as cami­sas-de-força e sobre a Caixa... era tudo a verdade nua e crua. Oh, mas eles não podem provar, é claro. Gardener não é tolo, é um osso muito duro de roer, é um sujeito esperto. Se você subestimar essa esperteza, pode estar certo de que vai sofrer o diabo... Você e seu amigo Phil, o Intrépido Homem-Lobo.

— Os repórteres do Sunday Report— disse Jack — geralmente são muito bons para pegar os viga­ristas com a mão na massa. Pelo menos é o que diz minha mãe.

— É. E Gardener ficou assustado. Ficou realmente morrendo de medo. Já viu Humphrey Bogart em The Caine Mutiny? Foi assim que ele ficou desde que soube que os repórteres vinham aqui. É claro que, quando os repórteres chegaram, Gardener fez muito charme, mostrou-se muito doce e racional, mas na semana anterior isto aqui tinha virado um inferno. A brancura de sorvete de Gardener estava se derre­tendo pelas calças. Foi nessa semana que ele chutou Benny Woodruff pelas escadas desde o terceiro an­dar porque o pegou lendo uma revista do Superman. Benny ficou desacordado por mais de três horas e até o dia seguinte não soube muito bem quem era nem onde estava.

Ferd fez uma pausa.

— Ele conseguiu saber com muita antecedência da vinda dos repórteres. Do mesmo modo como consegue saber com antecedência quando os inspetores estaduais virão fazer uma visita de surpresa. Ele esconde as camisas-de-força no sótão e enche a Caixa de feno e cereais.

De novo o riso cínico e amargurado.

— Sabe o que os meus pais fizeram, Jack? Enviaram a Sunny Gardener uma xerox da minha carta. “Fizemos isso para o seu próprio bem”, disse meu pai na carta seguinte. E sabe o que aconteceu? Fui colocado na Caixa, por cortesia especial da família!

Outra vez o riso de amargura.

— Vou lhe dizer mais uma coisa, Jack. Ele não estava brincando naquela noite na capela. Os garo­tos que deram o serviço aos repórteres do Sunday Report realmente desapareceram. Pelo menos aqueles em que ele pôde pôr as mãos.

Do mesmo modo como o próprio Ferd tinha agora desaparecido, Jack pensou, contemplando a ex­pressão meditativa de Lobo do outro lado da sala. Estremeceu e sentiu um frio muito grande nas mãos.

Seu amigo Phil, o Intrépido Homem-lobo.

Não estaria Lobo ficando mais cabeludo? Já? Certamente não. Mas a coisa viria, é claro — era tão inevitável quanto as marés.

E, por falar nisso, Jack, enquanto você está aí sentado se perguntando sobre os perigos que podem estar à sua volta, como vai sua mãe? Como vai Lady Lily, Rainha das Produções B? Estará perdendo peso? Sentindo dores? Enquanto você está enjaulado nesta prisão, a doença continuará a roê-la? A roê-la com seus afiados dentinhos de rato? E Morgan, não estará atirando seus raios para dar uma mãozinha ao câncer?

Ele ficara chocado ao saber das camisas-de-força e, embora tivesse visto a Caixa — uma enorme e feia coisa de ferro jogada nos fundos da Casa como uma geladeira abandonada —, não pudera acreditar que Gardener realmente colocasse garotos lá dentro. Mas Ferd conseguiria convencê-lo, falando em voz baixa, enquanto os dois carregavam pedras no Campo de Fronteira.

— Não se iluda, Jack. Ele tem uma estrutura muito bem montada aqui dentro — dissera Ferd. — E que funciona também como ótima fonte de renda. Seus shows religiosos são transmitidos pelo rádio para todo o Meio-Oeste e alcançam quase todo o país pela TV por cabo e horários matinais das pequenas redes. Nós somos apenas sua audiência cativa. Aparecemos muito bem no rádio e ainda melhor no vídeo da TV... pelo menos quando Roy Owdersfelt não está espremendo a porra daquela espinha na ponta do nariz. Casey funciona como uma espécie de produtor de rádio e TV. Grava todas as sessões diurnas e noturnas da capela. Seleciona cuidadosamente o material e faz uma montagem para que Gardener fique parecido com Billy Graham e nós, como a torcida do Estádio Yankee no último jogo do Campeonato Nacional. E Casey faz muito mais que isso. Ele é o gênio eletrônico da casa. Viu o microfone instalado em seu quarto? É obra de Casey. Tudo vai dar numa sala de controle, e só se pode chegar à sala passando pelo gabinete particular de Gardener. Qualquer coisa suculenta ouvida na casa é imediatamente levada ao conhecimento de Sunlight Gardener. Soube que Casey fez um arranjo no telefone de Gardener que permite que ele fale livremente para qualquer lugar do país, e sei também que emendou uma linha na TV por cabo para pegar programas de fora. É engraçado imaginar o Sr. Sorvete de Nata recostando-se numa cadeira e assistindo a sessão da meia-noite após um duro dia de trabalho vendendo Jesus às massas. É realmente engraçado! O sujeito é tão americano quanto um Cadillac, Jack, e aqui, em Indiana, é quase tão admirado quanto um craque de basquete.

Ferd deu um sorriso de desprezo, sacudiu a cabeça e cuspiu no chão.

— Está brincando — disse Jack.

— Ferd Janklow nunca brinca quando fala de Sunlight Gardener e seu exército de robôs — disse Ferd solenemente. — Ele é rico, ele não tem que declarar coisa alguma ao imposto de renda, ele intimida o comitê municipal de ensino (o comitê tem um medo mortal do homem). Há uma mulher misteriosa que de vez em quando desliza por aqui e quando ela sai Gardener fica sabendo com precisão quando e por quem será feita a visita-surpresa da Secretaria de Educação. Aí nós limpamos a casa de cima a baixo; Bast, o Bastardo, leva as coisas feias para o sótão e a Caixa é devidamente enchida com feno e cereais. Quando o inspetor chega, estamos sempre assistindo a uma aula. Quantas aulas você teve desde que aterrissou nesta versão do inferno em Indiana, Jack?

— Nenhuma.

— Exatamente. Nenhuma! — Ferd concordou deliciado. Riu outra vez com cinismo e amargura... e esse riso dizia: Sabe o que eu descobri quando tinha mais ou menos oito anos? Descobri que estava tendo uma vida fodida e que as coisas não iam se modificar da noite para o dia. Ou talvez jamais chegassem a se modificar. Embora isso tenha sido um choque, também não deixava de ter seu lado engraçado. Entende o que estou dizendo, gurizinho?

 

Eram esses os pensamentos de Jack quando dedos fortes o agarraram pelo pescoço, fazendo pressão nos pontos sensíveis sob as orelhas e levantando-o da cadeira. Ele rodopiou numa nu­vem de mau hálito até a paisagem estéril do rosto de Heck Bast.

— Eu e o reverendo ainda estávamos em Muncie quando seu amiguinho criador de casos deu en­trada no hospital — disse ele. Seus dedos pulsavam e apertavam, pulsavam e apertavam. A dor era exasperante. Jack gemeu e Hesk deu uma risada. O riso fez o mau hálito escapar de sua boca como uma ver­dadeira enchente. — O reverendo ficou sabendo das novidades pelo bip. Janklow parecia uma pizza que passou 45 minutos num forno de microondas. Vai demorar um pouco até conseguirem pôr aquele garoto outra vez em forma.

Ele não está falando só contigo, Jack pensou. Está falando para todo mundo na sala. Está querendo nos fazer acreditar que, embora machucado, Ferd ainda está vivo.

— Você é um mentiroso, um mentiroso sujo! — disse Jack. — Ferd já está...

Heck Bast bateu nele. Jack caiu esparramado no chão. Todos os outros rapazes se distanciaram dos dois. De algum lugar veio um pequeno gemido de Donny Keegan.

Então houve um rugido de raiva. Meio atordoado, Jack levantou os olhos e balançou a cabeça num esforço para clareá-la. Heck se virou e viu Lobo de pé ao lado de Jack, o lábio superior repuxado, as lâmpadas do teto enviando para os óculos de lentes redondas estranhos reflexos alaranjados.

— Então o retardado finalmente quer brincar — disse Heck, começando a rir. — Ei, tudo bem! Eu adoro brincar. Vamos lá, seu nojento! Venha brincar comigo!

Ainda resmungando, a saliva escorrendo pelo lábio, Lobo deu um passo à frente. Heck moveu-se para encontrá-lo. Cadeiras arranharam o sinteco quando os garotos recuaram ainda mais para abrir espaço,

— O que está acontecendo aqui...?

Singer aparecera na porta. Mas não precisou terminar a pergunta, viu o que estava acontecendo. Entrou sorrindo, fechou a porta e se recostou nela. Ficou contemplando a cena, braços cruzados no peito estreito, o rosto sombrio agora iluminado.

Os olhos de Jack voltaram-se para Lobo e Hesk.

— Lobo, tenha cuidado! — ele gritou.

— Vou ter cuidado, Jack — disse Lobo, e sua voz era pouco mais que um resmungo. — Vou...

— Vamos brincar, seu filho da puta — Heck Bast rosnou e assobiou como uma locomotiva. Deu um soco na face direita de Lobo, fazendo-o cambalear três ou quatro passos. Donny Keegan soltou seu estridente relincho de riso que, Jack agora sabia, podia funcionar como um sinal de tristeza ou de alegria,

O soco foi um golpe muito pesado. Em outras circunstâncias, a luta poderia ter acabado ali mesmo. Infelizmente para Hector Bast, aquele foi também o único golpe que ele teve oportunidade de desfechar em Lobo.

Heck avançou confiante, os grandes punhos na altura do peito, e fez o braço recuar para tomar im­pulso. Mas dessa vez o braço de Lobo moveu-se com bastante rapidez. E segurou o punho de Heck.

A mão de Heck era grande. A mão de Lobo era maior.

O punho de Lobo engoliu o de Heck.

O punho de Lobo apertou.

Ouviu-se um som de gravetos secos. Primeiro estalando, depois quebrando.

O sorriso de confiança de Heck primeiro se contorceu, depois congelou. Em seguida, ele começou a gritar.

— Nunca se pode ferir o rebanho, seu merda — Lobo sussurrou. — Não param de dizer que a Bí­blia de vocês diz isso e aquilo, Lobo, oh, Lobo!, mas agora vão ter de aprender as seis palavras do Livro da boa lavoura. Vão ter de aprender que nunca...

Um osso estalando.

— ... nunca...

Um osso quebrando.

— nunca se pode ferir o rebanho.

Heck East caiu de joelhos, uivando, chorando. Lobo continuou segurando o punho de Heck e o braço de Heck postou-se em ângulo reto. Era como um fascista fazendo de joelhos a saudação Heil Hitler! O braço de Lobo estava rígido como pedra, mas o rosto não revelava qualquer esforço; exceto pelos olhos chamejantes, a expressão era quase serena.

O sangue começou a gotejar do punho de Lobo.

— Pare, Lobo! Já chega!

Jack olhou rapidamente ao redor e viu que Singer fora embora, deixando a porta aberta. Agora quase todos os rapazes estavam de pé. Tinham se afastado de Lobo o máximo que as paredes da sala permitiam, o espanto e o medo estampados nos rostos. E o quadro se mantinha imóvel no centro do aposen­to: Heck Bast de joelhos, o braço erguido e a palma da mão levantada, o punho devorado pelo de Lobo, o sangue pingando no chão.

Ia se amontoando gente no umbral da porta. Casey, Warwick, Singer, três outros rapazes corpulen­tos. E Sunlight Gardener, com um pequeno estojo preto (lembrando uma caixa de óculos) numa das mãos.

— Já chega, Lobo, eu já disse!— Jack deu uma olhada nos recém-chegados e correu para Lobo. — Aqui e agora! Aqui e agora! Já chega!

— Tudo bem — disse Lobo em voz baixa. Soltou a mão de Heck e Jack viu uma horrível coisa amassada, semelhante a um cata-vento despedaçado. Os dedos de Heck pendiam nos mais diversos ân­gulos. Heck apertou contra o peito a mão ferida.

— Tudo bem, Jack.

Os seis rapazes da porta agarraram Lobo. Ele deu meia-volta, conseguiu soltar um dos braços, e su­bitamente empurrou Warwick contra a parede. Alguém gritou.

— Peguem-no! — disse Gardener. — Peguem-no! Peguem-no, pelo amor de Jesus!

Ele estava abrindo o estojo negro.

— Não, Lobo! — Jack gritou outra vez. — Pare com isso!

Por um instante, Lobo continuou lutando, mas acabou cedendo, deixando que o empurrassem contra a parede. Pareciam liliputianos agarrando-se a Gulliver. Singer parecia bastante amedrontado.

— Não o soltem — disse Gardener, tirando do estojo uma seringa hipodérmica. O sorriso dissimu­lado, quase recatado, voltara a lhe cobrir o rosto. — Não o soltem, pelo amor de Deus!

— O senhor não precisa usar isso — disse Jack.

— Jack? — Lobo pareceu subitamente assustado. — Jack? Jack?

Gardener aproximou-se de Lobo e deu um empurrão em Jack. Sem dúvida o empurrão revelou bons músculos para chicotear. Jack cambaleou na direção de Morton, que gritou e se encolheu como se Jack estivesse contaminado. Atemorizado pela seringa, Lobo começou de novo a lutar — mas os outros eram seis, e isso era demais, mesmo para a força de Lobo. Talvez não fosse, é claro... quando a Transformação ocorresse.

— Jack! — ele berrou. — Jack! Jack!

Não o soltem, pelo amor de Deus... — Gardener murmurou, os lábios brutalmente repuxados, e mergulhou a agulha da injeção no braço de Lobo.

Lobo ficou rígido, atirou a cabeça para trás e gemeu.

Vou matá-los, seus filhos da puta!, Jack pensou incoerentemente. Vou matá-los, matá-los, ma­tá-los!

Lobo se debatia, tentava resistir. Depois de aplicar a injeção, Gardener recuou, contemplando fria­mente a cena. Lobo atingiu com o joelho a grande barriga de Casey. Casey soltou uma arfada de ar, cambaleou, mas recuperou o equilíbrio. Daí a um ou dois minutos, Lobo começou primeiro a fraquejar... de­pois a cair.

Jack ficou em pé, chorando de raiva. Tentou mergulhar entre o emaranhado de suéteres de gola alta para ajudar o amigo. Casey acertou um soco no rosto caído de Lobo e o sangue começou a lhe escorrer do nariz.

Várias mãos empurraram Jack. Ele se debateu e viu as expressões assustadas dos rapazes com quem trabalhava na pedreira do Campo de Fronteira.

— Quero ele dentro da Caixa — disse Gardener, quando os joelhos de Lobo finalmente vergaram Depois virou-se lentamente para Jack. — A não ser, Sr. Parker, que o senhor me diga onde nos encontramos.

Jack continuou olhando para o chão, sem nada dizer. Seus olhos ardiam, queimavam com lágrimas quentes de raiva.

— Então, Lobo vai para a Caixa — disse Gardener. — Talvez o senhor mude de opinião quando ele começar a gritar, Sr. Parker.

Gardener saiu da sala em passos largos.

 

Lobo ainda estava gritando na Caixa quando Jack e os outros rapazes marcharam para o culto matinal. Os olhos de Sunlight Gardener pareceram se deter ironicamente no rosto tenso e pá­lido de Jack. Será que ainda não está disposto a me contar, Sr. Parker?

Lobo, trata-se de minha mãe, de minha mãe...

Lobo ainda estava gritando quando Jack e os outros garotos escalados para o Campo de Fronteira foram divididos em dois grupos e marcharam para os caminhões. Quando passaram perto da Caixa, Jack teve que conter o ímpeto de tapar os ouvidos com as mãos. Aqueles ganidos, aqueles soluços que não paravam!

E, de repente, Singer estava a seu lado.

— O Reverendo Gardener está na sala dele esperando sua imediata confissão — disse Singer. — Vai tirar o retardado da Caixa assim que você lhe contar o que ele quer saber.

A voz de Singer era macia, mas havia perigo na expressão do rosto.

Lobo gritava e gania para que o deixassem sair, esmurrava com golpes furiosos as paredes da Caixa.

Lobo, oh, Lobo, ela é minha mãe...

— Não posso contar a ele o que ele quer saber — disse Jack. Virou-se para Singer e projetou-lhe a força misteriosa que absorvera nos Territórios. Singer recuou dois passos enormes, o rosto abatido e morbidamente assustado. Tropeçou e bateu na carroceria do caminhão. Se o caminhão não estivesse ali, teria levado um belo tombo.

— Tudo bem — disse Singer; as palavras saltaram num arquejar sem fôlego que foi quase um ge­mido. — Tudo bem, tudo bem, esqueça! — O rosto magro ficou de novo arrogante. — O Reverendo Gar­dener mandou eu lhe dizer que, se não quiser fazer a confissão, seu amigo continuará gritando. E a culpa será sua. Entendeu bem?

— Eu sei de quem é a culpa.

— Subam no caminhão! — Pedersen gritou com ar severo, mal olhando para os garotos à medida que ia passando por eles... Mas, quando passou por Singer, fez uma careta, como se tivesse farejado algu­ma coisa podre.

Jack continuou ouvindo Lobo gritar mesmo depois de os caminhões já terem se distanciado bastante (apesar de os silenciosos estarem em petição de miséria e os motores roncarem como trovão). Não, os gritos de Lobo não iam cessar. Alguma espécie de conexão se estabelecera entre a mente de Lobo e a sua; ele pôde ouvir os gritos de Lobo mesmo depois das equipes de trabalho terem alcançado o Cam­po de Fronteira. A convicção de que os gritos só perduravam em sua cabeça de nada serviu para melhorar as coisas.

Por volta da hora do almoço, Lobo ficou em silêncio. Jack teve certeza de que Gardener ordenara que o tirassem da Caixa antes que seus gritos e uivos atraíssem ouvidos indiscretos. Depois do que acontecera a Ferd, ele não ia querer que novas atenções se voltassem para a Casa do Sol.

No fim da tarde, quando as equipes de trabalho retornaram, a porta da Caixa estava aberta e a Cai­xa vazia. Lá em cima, no quarto dos dois, Lobo estava estendido na cama de baixo do beliche. E abriu um sorriso fraco quando Jack entrou.

— Como vai sua cabeça, Jack? Já está menos roxa no lugar da pancada. Lobo, oh, Lobo!

— Lobo, você está bem?

— Gritei um bocado, não foi? Não pude agüentar.

— Lobo, sinto muito — disse Jack. Lobo parecia estranho, pálido demais, o corpo um tanto min­guado.

Ele parece que está morrendo, Jack pensou. Sim, sua mente formulou mais claramente a questão: lobo estava morrendo desde que, fugindo de Morgan, atravessara para aquele mundo. Só que agora parecia estar morrendo mais depressa. Excessivamente pálido... Minguado... Mas...

Jack sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha.

As pernas e os braços de Lobo tinham começado a ficar cobertos de uma fina camada de pêlos. Duas noites atrás, aqueles pêlos não existiam; ele tinha certeza disso.

Sentiu uma urgência de correr até a janela e tentar ver alguma coisa lá fora, contemplar a lua, certi­ficar-se de que não se equivocara sobre o tempo que faltava para a nova lua cheia.

— Ainda não está na época da Transformação, Jack — disse Lobo. Sua voz era seca, um tanto rou­ca. A voz de um inválido. — Mas eu comecei a me transformar naquele lugar escuro e fedorento onde eles me puseram. Lobo, oh, Lobo! A coisa começou a acontecer porque eu estava fora de mim e completamen­te assustado, porque eu estava gritando e ganindo. E se um Lobo fica muito tempo ganindo e gritando, a Transformação pode ocorrer por si mesma. — Lobo passou a mão no pêlo de suas pernas. — Isto vai de­saparecer, não se preocupe.

— Gardener fixou um preço para soltar você — disse Jack —, mas eu não pude pagá-lo. Eu queria, mas... Lobo... minha mãe...

Sua voz ficou embargada, os olhos se encheram de lágrimas.

— Psssiu, Jacky! Lobo sabe. Aqui e agora!

Lobo tornou a abrir seu sorriso extremamente pálido e pegou a mão de Jack.

 

JACK DÁ NOME AOS PLANETAS

Outra semana na Casa do Sol, para júbilo do Senhor. A esfera da lua aumentava.

Na segunda-feira, um sorridente Sunlight Gardener pediu que os rapazes curvassem a cabeça e dessem graças a Deus pela conversão de seu irmão Ferdinand Janklow. Ferd fizera sua opção por Jesus enquanto se recuperava no Hospital Parkland, disse Sunlight, o sorriso radiante. Ele dera um telefonemas cobrar para os pais dizendo-lhes que queria ser uma sentinela da causa do Senhor. Houve uma calorosa confraternização ao telefone e os pais vieram buscá-lo na mesma hora.

Ferd, Jack pensou, estaria morto e enterrado sob algum campo gelado... Ou, quem sabe, não tem ido para os Territórios, onde a Polícia Estadual de Indiana jamais conseguiria penetrar.

A terça-feira foi um dia frio e chuvoso demais para o trabalho no campo. Permitiram que a maior parte dos rapazes ficasse nos quartos, lendo ou dormindo. Mas Jack e Lobo foram devidamente atormen­tados. Lobo foi obrigado a levar cestos e cestos de lixo do celeiro e dos galpões para a margem da estrada. e sempre sob uma chuva forte. Jack foi encarregado de lavar os banheiros. Sem dúvida Warwick e Casey, que lhe destinaram a tarefa, julgaram estar lhe dando um trabalho realmente sujo. Evidentemente eles não conheciam o banheiro dos homens da Taberna Oatley.

Talvez achassem que, após mais uma semana na Casa do Sol, Jack e Lobo já não se recusariam a dizer aleluia!

Hector Bast voltou na quarta-feira, o braço direito enfaixado até o cotovelo, o rosto grande e fláci­do tão pálido que as espinhas lembravam manchas berrantes de ruge.

— O médico disse que talvez eu nunca volte a recuperar inteiramente a força em minha mão direi­ta — disse Heck Bast. — Você e seu retardado mental pagarão muito caro por isso, Parker!

— Você quer que aconteça a mesma coisa com sua outra mão? — Jack perguntou; mas sentiu um certo medo. Não foi apenas um desejo de vingança que viu nos olhos de Heck; foi um desejo de assassinato.

— Não tenho medo dele — disse Heck. — Singer diz que grande parte da fúria do seu amigo ficou sufocada lá dentro da Caixa. Singer acha que ele fará qualquer coisa para não ser obrigado a voltar para lá. E quanto a você...

O punho esquerdo de Heck estalou. Ele não tinha grande agilidade na mão esquerda mas, atônito com a raiva estampada no rosto de Hector Bast, Jack não viu o punho se agitar. Seus lábios se abriram num estranho sorriso sob o punho de Heck e continuaram sorrindo. Ele caiu contra a parede.

Uma porta se abriu e Billy Adams deu uma espiada.

— Fecha já esta porta ou você vai acabar pegando as sobras!— Heck gritou, e Adams, que não queria nem um pouco ser atacado ou esmurrado, cumpriu sem hesitação a ordem. Heck avançou para Jack. Ele se afastou meio grogue da parede e ergueu os punhos. Heck parou.

— Você gostaria disso, não é mesmo? — disse Heck. — Lutar com um sujeito que tem um braço na tipóia. — Um tom vermelho de cólera subiu-lhe pelo rosto.

Soaram passos no terceiro andar, encaminhando-se para as escadas. Heck encarou Jack.

— É Singer. Saia daqui enquanto é tempo. Mas pode ter certeza de que ainda vamos ajustar contas com você, meu amigo. Com você e com aquele imbecil. O Reverendo Gardener nos deu carta branca, a não ser que você conte o que ele quer saber. — Heck sorriu. — E, faça-me um favor, seu merda. Não lhe conte nada!

 

Com a caixa, eles tinham sufocado alguma coisa em Lobo, não havia dúvida, Jack pensou. Tinham se passado seis horas desde sua última confrontação com Heck Bast. A campainha para a confissão logo ia tocar, mas Lobo ainda dormia pesadamente na cama de baixo do beliche. Lá fora, a chu­va continuava a bater nas paredes da Casa do Sol.

O que fora sufocado em Lobo não era bem uma fúria, mas uma espécie de energia. E Jack sabia muito bem que não fora apenas a Caixa a responsável por isso. Nem mesmo apenas a Casa do Sol. Fora todo o Território americano. Lobo estava, simplesmente, ansiando desesperadamente por uma volta a seu mundo. Perdera a maior parte de sua vitalidade. Raramente sorria e nunca ria. Quando Warwick o censu­rou na hora do almoço por ele estar comendo com os dedos, Lobo se encolheu.

Tenho de voltar depressa, Jacky. Porque estou morrendo. Lobo está morrendo.

Heck Bast dizia que não tinha medo de Lobo, e de fato parecia não haver mais nada a temer; o apertão na mão de Heck parecia ter sido o último ato de força de que Lobo fora capaz.

A campainha tocou para a confissão.

Naquela noite, após a confissão, o jantar e a capela, quando Jack e Lobo voltaram ao quarto, en­contraram o beliche molhado e com cheiro de urina. Jack escancarou a porta e viu Singer, Wanwick e um grandalhão chamado Van Zandt de pé no corredor, sorrindo.

— Acho que entramos no lugar errado, rapaz — disse Singer. — Pensamos que era a porta do ba­nheiro por causa dos pedaços de merda que sempre vemos saindo daqui.

Van Zandt quase estourou de rir com a piada.

Jack fitou-os por um bom tempo e Van Zandt parou de rir.

— Por que está nos olhando, cara? Quer ter a porra do nariz quebrado?

Jack fechou a porta, olhou em volta, e viu Lobo dormindo no beliche molhado sem ter tirado uma só peça de roupa. A barba de Lobo estava voltando a crescer, mas seu rosto ainda estava pálido, a pele repuxada e brilhante. Era o rosto de um inválido.

Então deixe-o em paz, Jack pensou desanimado. Se ele está tão cansado, deixe-o dormir tranqüilo.

Não. Você não pode deixá-lo dormir nessa cama imunda. Não pode!

Com ar abatido, Jack aproximou-se de Lobo e sacudiu-o, tirou-o do colchão molhado, fedorento, e livrou-o dos sapatos da Casa do Sol. Os dois dormiram enrascados no chão.

Às quatro da manhã, a porta se abriu e Singer e Heck entraram. Puxaram Jack e o carregaram para a sala de Sunlight Gardener no subsolo.

Gardener estava sentado, com os pés apoiados na quina da mesa. Apesar da hora, estava inteira­mente vestido. Atrás dele havia uma gravura de Jesus caminhando sobre o Mar da Galiléia ante o olhar maravilhado dos discípulos. À direita, uma janela de vidro dava para o estúdio (agora às escuras) onde Casey manipulava suas maravilhas eletrônicas. Das presilhas do cinto de Gardener saía a corrente de um pesado chaveiro. As chaves, um grande punhado de chaves, jaziam na palma de sua mão. Brincava com elas enquanto falava.

— Você ainda não nos fez uma única confissão desde que entrou aqui, Jack — disse Sunlight Gar­dener, uma suave reprovação no tom de sua voz. — A confissão faz bem à alma. Sem confissão, não po­demos ser salvos. Oh, não me refiro à confissão idólatra, pagã dos católicos. Refiro-me à confissão diante de seus irmãos e de seu Salvador.

— Se não se importa, prefiro resolver esse problema diretamente com o Salvador — disse calma­mente Jack e, apesar de seu medo e desorientação, não pôde deixar de saborear a expressão de fúria que se espalhou pelo rosto de Gardener.

— Mas eu me importo! — Gardener gritou.

Uma dor explodiu nos rins de Jack. Ele caiu de joelhos.

— Veja como fala com o Reverendo Gardener, seu imundo! — disse Singer. — Alguns de nós da­ríamos a vida por ele!

— Deus o abençoe por sua confiança e seu amor, Singer — disse Gardener gravemente, e voltou de novo sua atenção para Jack.

— Levante-se, filho.

Apoiando-se na beirada da cara mesa de jacarandá, Jack conseguiu se erguer.

— Qual é seu verdadeiro nome?

— Jack Parker.

Ele viu Gardener fazer um sinal quase imperceptível de cabeça, tentou se esquivar, mas já era tarde demais. De novo a dor explodiu em seus rins. Ele gritou e caiu de novo, batendo com a testa na beira da mesa.

— De onde você veio, seu mentiroso, atrevido, maldito garoto?

— Da Pensilvânia.

A dor explodiu na parte superior de sua coxa esquerda. Ele rolou em posição fetal no tapete Karastan branco, os joelhos curvados contra o peito.

— Ponham-no de pé!

Singer e Heck obedeceram.

Gardener pôs a mão no bolso do paletó branco, tirou um isqueiro branco e acendeu-o. Uma gran­de chama amarela foi se aproximando lentamente do rosto de Jack. Vinte centímetros. Ele pôde sentir o cheiro penetrante do fluido. Quinze centímetros. Agora já podia sentir o calor. Sete centímetros. Mais um ou dois centímetros e o mal-estar se converteria em dor. Os olhos de Sunlight Gardener estavam rasos de contentamento. Seus lábios tremiam no despontar de um sorriso.

— Isso mesmo! — O hálito de Heck era quente, tinha cheiro de pimenta velha. — Isso mesmo, re­verendo!

— De onde nos conhecemos?

— Nunca estive antes com o senhor! — Jack arquejou.

A chama se aproximou um pouco mais. Os olhos de Jack começaram a lacrimejar; ele podia sentir a pele começando a queimar. Tentou afastar a cabeça. Singer empurrou-a para a frente.

— Onde o encontrei? — Gardener rosnou. A chama do isqueiro dançava na frente de suas pupilas negras, ameaçando se aproximar mais e mais. — É sua última chance, guri!

Diga a ele. Pelo amor de Deus, diga a ele!

— Não me lembro onde nos encontramos — Jack ofegou. — Talvez na Califórnia...

O isqueiro Zippo se fechou. Jack soluçou de alívio.

— Tirem-no daqui — disse Gardener.

Singer e Heck arrastaram-no para a porta.

— Sua resistência será inteiramente inútil, pode ter certeza — disse Sunlight Gardener. Ele se virou e pareceu estar meditando sobre a gravura de Cristo caminhando sobre as águas. — Vou arrancar isso de você. Hoje à noite ou amanhã à noite. Amanhã à noite ou depois de amanhã à noite. Sei esperar. Por que não procura facilitar as coisas, Jack? É para o seu próprio bem!

Jack não respondeu. Pouco depois, sentiu lhe torcerem o braço até os ombros. Gemeu.

— Diga a ele!— Singer sussurrou. E uma parte de Jack teve vontade de contar, não por causa da dor, mas porque...

... porque a confissão faz bem a alma.

Lembrou-se do cortesão perverso, daquele mesmo homem num outro invólucro de pele pergun­tando quem era ele. Lembrou-se de ter pensado: Vou lhe dizer tudo o que quiser saber se parar de me olhar com esses olhos monstruosos. Vou falar porque sou apenas um menino, e é isso que os meninos fazem. Eles contam, eles contam tudo...

Então ele se lembrou da voz da mãe, uma voz dura, perguntando se ia dar o serviço a um sujeito

— Não posso dizer o que não sei — disse ele.

Os lábios de Gardener se repartiram num sorriso pequeno e seco.

— Levem-no de volta para o quarto.

 

Mais uma semana na Casa do Sol, irmãos e irmãs, e todos dirão aleluia! Só mais uma longa, longa semana.

Jack demorou-se na cozinha depois dos outros terem deixado no balcão as bandejas do desjejum e ido embora. Sabia perfeitamente bem que estava se arriscando a outro espancamento, mas naquele mo­mento isso lhe pareceu uma consideração sem importância. Três horas atrás, Sunlight Gardener estivera perto de lhe queimar os lábios. Ele vira o mal nos olhos loucos do homem, sentira o mal no coração lou­co. Após uma coisa daquelas, o risco de um espancamento parecia um perigo realmente sem importância.

O gorro de cozinheiro de Rudolph estava encardido de sujeira, cinzento como o céu de final de outono. Quando Jack o chamou num sussurro, Rudolph lhe atirou um olhar vermelho e cínico. O bafo de uísque barato era muito forte.

— É melhor ir se mandando daqui, garoto! Pode apostar que estão de olho em você.

Estou careca de saber disso, Rudolph!

Jack olhou ansiosamente para a velha lavadora de pratos. Ela vibrava, assobiava, arfava, soltava va­pores de dragão para os rapazes que a enchiam de louça. Eles pareciam não estar prestando atenção a nada, mas pareciam era a palavra certa. Boatos e cochichos circulavam com muita rapidez na Casa do Sol. Oh, sim. Na Casa do Sol havia um fluxo diário de fábulas e intrigas.

— Preciso ir embora daqui — disse Jack. — Eu e meu amigo Lobo. Quanto você quer para fazer vista grossa quando nós dois atravessarmos aquela porta dos fundos?

— Mais do que você pode pagar... Mesmo que conseguisse pôr as mãos no que tinha no bolso quando entrou aqui! — disse Rudolph. As palavras eram duras, mas havia uma estranha espécie de bene­volência no olhar.

Sim, é claro. Tudo estava com eles. Tudo. A palheta de violão, o dólar de prata, a bola de gude, os seis dólares... Tudo com eles! Tudo fechado num envelope e guardado em algum lugar, provavelmente na sala de Gardener lá embaixo. Mas...

— Escute, eu lhe daria uma promissória.

Rudolph sorriu.

— Vindo de alguém enterrado neste antro de ladrões e viciados, a idéia é quase engraçada — dis­se. — Pode jogar no lixo a porra de sua promissória, guri.

Jack tentou voltar para Rudolph a força misteriosa que absorvera nos Territórios. Esforçou-se para projetar toda aquela energia que, pelo menos até certo ponto, vivia contida dentro dele.

Rudolph deu um passo atrás, o rosto momentaneamente confuso, espantado.

— Minha promissória seria paga até o último centavo e acho que você sabe muito bem disso — Jack falou em voz baixa — Dê-me um endereço e eu lhe enviarei o dinheiro. Quanto? Ferd Janklow disse que por dois dólares você despacha uma carta. Será que dez o fariam olhar para o outro lado enquanto vamos até lá fora?

— Nem dez, nem 20, nem 100 — Rudolph respondeu. Ele encarou Jack com uma tristeza assusta­dora. Aquele olhar assegurava que Jack e Lobo estavam irremediavelmente encarcerados. — Olhe, eu já fiz isso antes. Às vezes por cinco dólares. Às vezes, acredite ou não, de graça. Por Ferdie Janklow, por exemplo, eu teria feito de graça. Ele era um ótimo sujeito. Aqueles filhos da puta...

Rudolph levantou um punho vermelho, cheio de água e detergente, e sacudiu-o para os ladrilhos verdes da parede. Morton estava do lado; Rudolph atirou-lhe um olhar de fúria e o garoto quase saiu cor­rendo da cozinha.

— Então por que não faz de novo? — Jack perguntou desesperado.

— Porque tenho medo, rapaz.

— Medo? Vi você conversando muito à vontade com Singer...

— Ora, Singer! — Rudolph sacudiu a mão num gesto de desprezo. — Não tenho medo de Singere não tenho medo de Bast, por mais grandalhão que ele seja. É dele que eu tenho medo.

— De Gardener?

— De Gardener. Ele é um demônio saído do inferno — disse Rudolph. Fez uma pausa e acrescen­tou: — Vou lhe contar uma coisa que nunca contei a ninguém. Uma sexta-feira, ele estava demorando a me dar o envelope com o pagamento e eu fui lá embaixo, ao escritório. Não costumo ir lá, não gosto de ir lá, mas naquele dia tive de ir... Queria receber logo minha grana, você entende? Eu o vira descer o corre­dor e entrar no escritório, por isso sabia que ia encontrá-lo lá. Desci, bati na porta e ela se abriu sozinha quando eu bati. Não estava fechada com o trinco. E sabe de uma coisa, garoto? Ele não estava lá dentro.

A voz de Rudolph se tornara quase um sussurro. Jack mal conseguia ouvi-lo entre os roncos e asso­bios da lavadora de pratos. Os olhos de Rudolph tinham se arregalado como olhos de criança contando à mãe um pesadelo.

— Achei que ele podia estar no estúdio de gravação, mas não estava. E não podia ter ido para a ca­pela porque ela não tem porta de ligação com o escritório. É verdade que no estúdio há uma porta de saída, mas ela estava trancada a cadeado pelo lado de dentro. Então me explique uma coisa, garoto! Para onde ele tinha ido? Para onde ele tinha ido?

Jack, que sabia muito bem a resposta, limitou-se a olhar espantado para Rudolph.

— Acho que ele é um demônio saído do inferno e pode ir e vir quando bem entender — disse Rudolph. — Gostaria de ajudá-lo, mas não posso. Nem a Casa da Moeda teria dinheiro suficiente para me fa­zer enfrentar Sunlight Gardener. E, agora, saia daqui! Talvez ainda não tenham dado pela sua falta.

Mas, evidentemente, já tinham dado pela falta de Jack. Quando ele atravessou a porta de vaivém, Warwick apareceu do seu lado e agarrou-lhe a nuca com um punho gigantesco. Quando Jack conseguiu se soltar e tropeçou pelo refeitório deserto, Casey saiu não se sabe de onde, como um diabólico boneco de molas, e deu-lhe uma pisada no pé. Jack não parou. Conseguiu ultrapassar Casey, mas levou um em­purrão pelas costas e se esborrachou num amontoado de cadeiras. Levantou-se depressa, lutando para su­focar as lágrimas de raiva e vergonha.

— Não acha que demorou demais para levar a bandeja, seu merda? — disse Casey. — Viu o que aconteceu? Se machucou na volta.

Warwick deu uma risada.

— É isso. Agora vamos subir. Os caminhões estão à nossa espera.

 

Naquela madrugada, ele foi acordado de novo às quatro horas e levado para a sala de Sunlight Gardener.

Gardener levantou os olhos da Bíblia como se estivesse espantado por vê-lo ali.

— Está pronto para confessar, Jack Parker?

— Não tenho nada...

O isqueiro de novo. A chama, a dois ou três centímetros da ponta de seu nariz.

— Confesse! Onde nos encontramos?

A chama se aproximou ainda mais um pouco.

— Estou mesmo disposto a obrigá-lo a falar, Jack. Onde foi? Onde?

— Em Saturno! — Jack gritou. Foi a única coisa que lhe veio à cabeça. — Urano! Mercúrio! Em algum lugar no cinturão de asteróides! Io! Ganimedes! Dei...

Uma dor compacta, pesada, alucinante explodiu embaixo de sua barriga quando Hector East pôs as mãos entre suas pernas e lhe apertou os testículos.

— Viu? — disse Heck East sorrindo de alegria. — Não precisava estar passando por esta se não se fizesse de engraçadinho.

Soluçando, Jack escorregou lentamente para o chão.

Sunlight Gardener inclinou-se sobre ele, um rosto paciente, quase beatífico.

— Da próxima vez é seu amigo quem estará aqui — disse num tom gentil. — E com ele eu não he­sitarei. Pense nisso, Jack. Até a madrugada de amanhã.

Mas Jack decidiu que, na madrugada do dia seguinte, ele e Lobo não estariam mais lá. Se só resta­vam os Territórios, então que fossem para os Territórios...

... se ele e Lobo, é claro, conseguissem voltar.

 

JACK E LOBO DESCEM AO INFERNO

Tinham de atravessar o térreo. Jack se preocupava mais com isso do que com a questão de saber se conseguiriam ou não efetivamente atravessar. Seria mais simples tentar a passagem a partir do quarto, mas o pequeno e miserável cubículo que ele compartilhava com Lobo ficava no terceiro andar, 12 metros acima do solo. Jack não sabia se a geografia e topografia dos Territórios correspondiam exatamente à geografia e topografia do Estado de Indiana, mas não queria correr o risco de quebrar o nariz.

Explicou a Lobo o que iam fazer.

— Você entendeu?

— Sim — Lobo respondeu apaticamente.

— Então repita o que eu disse, vamos lá!

— Depois do desjejum, vou até o banheiro que fica do outro lado da sala comunitária. Entro na primeira privada. Daí a pouco, você entra atrás de mim. E nós dois voltaremos para os Territórios. Está certo, Jacky?

— Está.

Jack pôs a mão no ombro de Lobo e apertou-o. Lobo sorriu debilmente. Jack suspirou e disse:

— Sinto muito por você ter entrado nesta fria. Foi culpa minha.

— Não, Jack — Lobo respondeu num tom suave. — Vamos tentar fazer o que você disse. Talvez... Um pequeno e melancólico raio de esperança pareceu cintilar brevemente nos olhos de Lobo.

— Sim — disse Jack. — Talvez.

 

Jack estava assustado e agitado demais para se preocupar com o desjejum, mas achou que podia chamar atenção se não comesse. Por isso revirou ovos e batatas que tinham gosto de 268     serragem e chegou até a comer uma boa fatia de bacon.

Finalmente o tempo melhorara. Mas tinha nevado na noite anterior e as pedras do Campo de Fronteira pareciam pedaços de lava cobertos de plástico.

As bandejas foram levadas para a cozinha.

Os garotos tiveram permissão de voltar para a sala comunitária enquanto Singer, Hector Bast e Andy Warwick comiam seu desjejum especial.

Sentaram-se todos ao redor da sala, expressões apáticas. Pedersen, um dos “comissários”, tinha a última edição da revista que a organização de Gardener publicava, A Luz de Jesus. Folheava aleatoriamente as páginas, levantando de vez em quando os olhos para dar uma olhada nos rapazes.

Lobo olhou com ar interrogativo para Jack. Jack balançou afirmativamente a cabeça. Lobo se le­vantou e saiu da sala. Pedersen deu uma espiada, viu Lobo cruzar o corredor e entrar no banheiro estreito e comprido. Depois voltou à revista.

Jack contou até 60, depois se obrigou a contar de novo até 60. Foram os dois minutos mais longos de sua vida. Estava morrendo de medo de que Singer e Heck entrassem na sala para ordenar que fossem todos para os caminhões. Jack tinha de entrar no banheiro antes que isso acontecesse. Mas Pedersen não era estúpido. Se Jack fosse logo atrás de Lobo, Pedersen poderia suspeitar de alguma coisa.

Por fim, Jack se levantou e atravessou a sala. A porta do banheiro parecia incrivelmente distante e seus pés pareciam pesados, incapazes de avançar com naturalidade; era uma sensação bastante palpável.

Pedersen levantou os olhos.

— Onde você vai, guri?

— Ao banheiro — disse Jack. Sua língua estava seca. Já tinha ouvido dizer que a boca das pessoas ficava seca quando elas estavam com medo, mas sua secura era na língua.

— Singer e Heck logo vão chegar — disse Pedersen, esticando a cabeça para o fim do corredor (a escada no fim do corredor conduzia à capela, ao estúdio e à sala de Gardener). — É melhor ficar aqui e mijar no Campo de Fronteira.

— Mas estou com dor de barriga — disse Jack num tom de desespero.

Incrível. Parece que você e seu estúpido amigo conseguem até sentir dor de barriga na mesma hora... Se é que não pretendem se alisar um pouco antes de começar o dia. Não passam de dois imundos, devia é ficar sentado aí.

Tudo bem, pode ir — disse Pedersen com voz rabugenta. — Mas, se demorar, pode ter certeza que vai se arrepender...

Ele voltou para a revista. Jack atravessou o corredor e entrou no banheiro.

 

Lobo tinha ocupado a privada errada, bem defronte às pias e extremamente visível. Seus enormes sapatos surrados despontavam ostensivamente sob a porta. Jack entrou. Confinado com Lobo num espaço tão pequeno, teve plena consciência do forte odor animal do companheiro.

— OK — disse Jack. — Vamos tentar.

— Jack, estou com medo.

Jack deu um riso nervoso.

— Eu também estou com medo.

— Como vamos conseguir...

— Eu não sei. Me dê suas mãos.

Aquilo parecia um bom começo. Lobo pôs as mãos cabeludas — quase patas — nas mãos de Jack, e Jack sentiu uma estranha energia fluir para seu corpo. Afinal, a energia de Lobo ainda não se perdera. Estivera simplesmente sufocada, como a primavera às vezes corre subterraneamente sob um período de grande calor.

Jack fechou os olhos.

— Eu quero voltar — disse ele. — Quero voltar, Lobo. Por favor, me ajude!

— Vou ajudar — Lobo sussurrou. — Se puder, vou ajudar!, Lobo, oh, Lobo!

— Aqui e agora.

— Aqui e agora!

Jack apertou com mais força as mãos de Lobo. Podia sentir um cheiro de desinfetante. Podia ouvir um carro passando ao longe. Um telefone tocando. Estou tomando o suco mágico, ele pensou. Em minha mente, estou tomando o suco mágico. Aqui e agora estou tomando o suco. Posso sentir-lhe o cheiro. É um gosto pegajoso de uvas podres. Posso senti-lo. Posso sentir minha garganta reagindo...

Quando o gosto lhe encheu a boca, o mundo oscilou, rodopiou ao redor.

— Jacky, está dando certo! — Lobo gritou.

O grito o tirou de sua concentração febril e por um instante ele tomou consciência de que aquilo era apenas um truque, como tentar dormir contando carneirinhos. O mundo ficou firme outra vez. O chei­ro de desinfetante de banheiro voltou. Debilmente, ouviu uma voz preguiçosa atender ao telefone:

— Alô, quem é?

Não importa, não é um truque, não é absolutamente um truque. É pura magia. É magia e eu sabia fazê-la quando era pequeno e vou ser capaz de fazê-la outra vez. Foi isso que Speedy quis dizer, foi isso que aquele cego Bola de Neve quis dizer! O suco mágico está em minha mente... Ele se concentrou com toda a sua energia, com toda a sua força de vontade... E foi surpreendente a facilidade com que os dois atravessaram. Como se tivessem dado um soco em alguma coisa que parecia granito e, com o impacto, o granito tivesse se transformado em papel colorido. O soco que devia quebrar todos os nós dos dedos não encon­trou qualquer resistência.

 

Com os olhos bem fechados, Jack primeiro sentiu o chão se esfarelando sob seus pés... e depois desaparecendo completamente.

Oh, merda, pensou desanimado, será que vamos levar um tombo?

Mas não foi realmente um tombo, apenas um escorregão à toa. Logo depois, ele e Lobo estavam firmemente em pé, não sobre os ladrilhos de um banheiro, mas num solo poeirento.

Uma fumaça de enxofre misturada com um cheiro de esgoto fluía em torno deles. Era um cheiro mortal, e Jack achou que indicava o fim de toda a esperança.

— Jasão! O que é este cheiro? — Lobo gemeu. — Oh, Jasão, este cheiro? Não posso ficar aqui, Jacky, não posso ficar...

Os olhos de Jack subitamente se arregalaram. No mesmo momento, Lobo soltou-se de suas mãos e inclinou-se para a frente, os olhos ainda bem fechados. Jack reparou que a calça cáqui e a camisa xadrez da Casa do Sol tinham sido substituídas pelo macacão que Lobo usava quando guiava o rebanho nos Ter­ritórios. Os óculos de John Lennon também tinham sumido. E...

E Lobo estava se inclinando para a beira de um precipício a apenas um metro de distância.

— Lobo! — ele gritou e segurou com os braços a cintura do amigo. — Lobo, não!

— Jacky, não posso ficar aqui — Lobo tornou a gemer. — É uma Cova, uma das Covas! Morgan fez esses lugares! Lobo, oh, Lobo, Morgan fez Covas! Eu posso até sentir o cheiro dele...

— Você está na ponta de um penhasco! Vai cair!

Os olhos de Lobo se abriram. O queixo caiu quando ele se deparou com o abismo enfumaçado que se abria a seus pés. Nas profundezas mais nevoentas, um fogo vermelho piscava como olhos inflamados.

— Uma Cova — Lobo gemeu. — Oh, Jacky, é uma Cova! Uma fornalha vinda do Coração Negro lá embaixo. Um Coração Negro no meio do mundo. Não posso ficar aqui, Jacky! Não há lugar pior do que este!

O primeiro pensamento que ocorreu a Jack quando ele se viu à beira da Cova, olhando para o in­ferno — ou para o Coração Negro no meio do mundo, como queria Lobo —, foi que a geografia dos Ter­ritórios e a geografia do Estado de Indiana não eram idênticas. Não havia, na Casa do Sol, qualquer lugar que correspondesse àquele abismo, àquela hedionda Cova.

Um metro para a direita, Jack pensou com súbito e intenso horror. Era tudo o que seria necessário -apenas um metro para a direita. E se Lobo tivesse feito exatamente como eu mandei...

Se Lobo tivesse agido exatamente como ele mandara, os dois fariam a travessia a partir da primeira privada do banheiro. E, se tivessem feito isso, aterrissariam nos Territórios bem na beira do abismo.

As pernas de Jack fraquejaram. Ele se agarrou de novo a Lobo, dessa vez em busca de apoio para si mesmo.

Lobo abraçou-o com ar distraído, os olhos arregalados com uma cintilação alaranjada. Sua face era uma máscara de medo e abatimento.

— É uma Cova, Jacky.

O fosso lembrou a Jack a imensa mina de molibdeno que visitara com a mãe durante umas férias no Colorado, três invernos atrás. Tinham ido esquiar em Vail, mas um dia fez tanto frio que resolveram fa­zer uma excursão de ônibus até a mina da Continental Minerais, nos arredores da pequena cidade de Sidewinder.

— Para mim, isto parece o inferno, Jack — dissera ela, olhando com o rosto triste e sonhador pelas janelas rodeadas de neve do ônibus. — Gostaria que acabassem com estes lugares, que fechassem todos eles. Eles trazem fogo e destruição de dentro da terra. São fossas do inferno, não há dúvida!

Densas, grossas colunas de fumaça saíam das profundezas da Cova. As paredes do abismo estavam raiadas de grossos filões de algum venenoso metal esverdeado. Parecia ter quase um quilômetro de diâ­metro. Uma trilha conduzia para baixo, se espiralando no interior da circunferência. Jack podia ver alguns vultos avançando para cima e para baixo pela trilha.

Sem dúvida, seria uma espécie de prisão, assim como a Casa do Sol era uma prisão. Aqueles seriam os prisioneiros e os carcereiros. Os prisioneiros estavam nus, atrelados aos pares a carros que lembravam jinriquixás — carros cheios de pedaços enormes daquele minério verde, de aparência gordurosa. Os ros­tos estampavam duros recortes de dor e, apesar de escurecidos pela fuligem, não ocultavam grandes feri­das vermelhas.

Os guardas se agitavam ao lado deles. Consternado, Jack viu que não eram seres humanos; em absolutamente nenhum sentido poderiam ser chamados de humanos. Os corpos eram retorcidos e tinham Corcundas, as mãos eram garras, as orelhas pontudas como as do Dr. Spock no seriado Jornada nas Estrelas.

Ora, eles são gárgulas!, Jack pensou. São aqueles monstros de pesadelo daquelas catedrais da Fran­ça. Minha mãe tinha um livro e me mostrava as figuras, mas ela o escondeu quando eu tive um pesadelo e molhei a cama. De onde terão vindo? E quem já os terá visto? Sem dúvida, alguém da Idade Média que atravessasse e visse este lugar pensaria que estava tendo uma visão do inferno.

Mas aquilo não era visão.

As gárgulas tinham chicotes e, por entre o barulho das rodas dos carros e da rocha crepitando sob a ação de alguma poderosa fonte de calor, Jack podia ouvi-los estalar, assobiar. Próximo do topo da trilha em espiral, uma turma de trabalhadores fez uma pausa. Jack e Lobo viram suas cabeças baixas, os tendões do pescoço se relaxando de alívio, as pernas tremendo de exaustão.

A monstruosidade que os estava aguardando — uma criatura disforme com uma tanga na cintura e uma linha irregular de pêlos brotando da carne esticada sobre os nós da espinha — fez o chicote estalar para um lado e para o outro, berrando com eles numa linguagem áspera e estridente que pareceu atirar farpas de dor na cabeça de Jack. Jack viu as mesmas contas de metal que decoravam o chicote de Os­mond e, antes que pudesse piscar, o braço de um prisioneiro foi rasgado e a nuca de outro se transformou em farrapos.

Os homens gritaram e caíram de frente, o sangue profundamente vermelho tingindo o solo amare­lo. A coisa ganiu e tagarelou com outro guarda. O cinzento braço direito fez outra flexão e o chicote vol­tou a silvar sobre as cabeças dos escravos. Com um empurrão final, em que pareceram empregar todo o resto de suas energias, os infelizes conseguiram puxar o carro até um platô. Um deles caiu de joelhos, exausto, e o movimento do carro atingiu-o, deixando-o estirado no chão. Depois uma das rodas lhe pas­sou pelas costas. Jack ouviu o som da espinha do prisioneiro quebrar. Foi quase um som de gatilho de es­pingarda de ar comprimido.

A gárgula guinchou de raiva quando o carro balançou e caiu de lado, derramando toda a carga no solo árido, arenoso e rachado do paredão da Cova. Ela se aproximou do prisioneiro em duas enormes passadas e levantou o chicote. Nesse momento, o moribundo virou a cabeça e olhou dentro dos olhos de Jack Sawyer.

Era Ferd Janklow.

Lobo também viu.

Eles tatearam um em busca do outro.

E atravessaram de novo. E voltaram à Casa do Sol.

 

Achavam-se num lugar fechado e apertado (uma das privadas do banheiro) e Jack mal podia respirar devido ao abraço esmagador de Lobo em volta do seu pescoço. E um de seus pés estava ensopado. Voltara ao território americano com um dos pés enfiado num vaso sanitário. Era realmente in­crível! Coisas desse tipo jamais aconteceriam a Conan, o Bárbaro, Jack pensou abatido.

— Jack, não, Jack, não! A Cova, era a Cova, não, Jack...

— Pare com isso! Pare com isso, Lobo! Já voltamos!

— Não, não, n...

Lobo parou de choramingar e abriu lentamente os olhos.

— Voltamos?

— Pode ter certeza. Voltamos à Casa do Sol, Lobo, oh, Lobo! E agora me solte, aqui e agora, por­que está quebrando minhas costelas e, além disso, meu pé mergulhou na maldita...

Com um estrondo, a porta do banheiro se escancarou. Bateu na parede de azulejos com força sufi­ciente para rachar um deles.

A porta da privada foi aberta com fúria. Andy Warwick deu uma espiada lá dentro e proferiu qua­tro palavras de rancor e desprezo:

— Seus veados de merda!

Ele agarrou o atordoado Lobo pelo colarinho da camisa xadrez e o tirou da privada. O bolso da calça de Lobo prendeu na alça inoxidável que segurava o papel higiênico ao lado do compartimento e puxou todo o rolo. O rolo foi se desdobrando pelo chão do banheiro. Warwick empurrou Lobo de encon­tro a uma das pias, cuja altura era exata para lhe atingir os órgãos genitais. Lobo caiu no chão, contorcen­do-se de dor.

Warwick virou-se para Jack. Singer apareceu na porta da privada, esticou o braço e também pegou Jack pelo colarinho.

— Tudo bem, sua bicha! — disse Singer e isso foi o máximo que conseguiu dizer. Desde que Jack e Lobo tinham sido enterrados naquele lugar, Singer não parara um só momento de fazer provocações. O odioso Singer, cujo rosto hipócrita e sinistro parecia querer rivalizar com o de Sunlight Gardener. O odio­so Singer, que chamava Jack de nojento, de merdinha. Singer que, sem dúvida, fora o autor da idéia de mijarem no beliche.

Jack lançou à frente o punho direito, não executando um movimento curvo no estilo de Heck Bast, mas impulsionando-o de forma retilínea. E o punho entrou dolorosamente em contato com o nariz de Sin­ger. Foi um baque audível. Jack sentiu um momento de absoluta, perfeita e sublime satisfação.

— Esta é pra você aprender! — ele gritou, tirando o pé do vaso sanitário. Um grande sorriso lhe iluminou o rosto e ele tentou transmitir a Lobo um pensamento positivo de vitória:

Não estamos nos saindo assim tão mal, Lobo! Você quebrou a mão de um filho da puta e eu quebrei o nariz de outro.

Singer oscilou para trás, berrando, o sangue lhe escorrendo entre os dedos.

Jack saiu da privada, os punhos em posição de ataque numa imitação razoável de John L Sullivan.

— Eu disse para ter cuidado comigo, Singer. Agora fui eu quem lhe ensinei a dizer aleluia!

— Heck! — Singer gritou. — Andy! Casey! Alguém venha cá!

— Está assustado, Singer? — disse Jack. — Não há razão para tanto pavor...

E então alguma coisa — alguma coisa parecida com um monte de tijolos — lhe desabou pela nuca, empurrando-o contra um dos espelhos das pias. Se o espelho fosse de vidro, teria se espatifado e causado grandes estragos em seu rosto. Mas todos os espelhos eram de aço polido, de onde ninguém podia tirar lasca para cortar os pulsos. Não devia haver suicídios na Casa do Sol. Jack ainda conseguiu levantar um braço e amortecer um pouco o golpe, mas se sentia muito zonzo se virou e viu o sorriso de Heck Bast na sua frente. Heck o atingira com o molde de gesso da mão direita,

E com uma enorme sensação de nojo, Jack percebeu isso e outra coisa pior: Era ele!

— Também me doeu — disse Heck, segurando suavemente a mão engessada —, mas valeu a pena, seu merda.

Era ele! Era ele uma das gárgulas ao lado de Ferd naquele outro mundo, chicoteando-o até a morte. Era de! A gárgula era seu Duplo!

Uma ira tão abrasadora quanto um rubor de vergonha envolveu o corpo de Jack. Quando Heck chegou mais perto, ele se inclinou contra a pia, agarrou fortemente a beirada com ambas as mãos, e le­vantou os dois pés num enorme coice. Heck Bast foi atingido no peito e rodopiou até a privada aberta. O sapato que voltara a Indiana plantado num vaso sanitário deixou uma marca molhada na suéter branca de gola alta de Heck. Heck caiu sentado no vaso com uma expressão atordoada. O gesso da mão bateu com força na louça sanitária.

Outros entravam agora no banheiro. Lobo estava tentando se levantar, o cabelo caído no rosto. Singer começou a avançar para Lobo, a mão ainda apertando o nariz que esguichava sangue. Parecia dis­posto a dar um bom chute em Lobo.

— Isso mesmo, vá em frente. Experimente encostar a mão nele, Singer — disse Jack suavemente, e Singer se encolheu.

Jack pegou Lobo pelo braço e ajudou-o a se levantar. E, como num sonho, viu que Lobo tinha vol­tado mais peludo que nunca. Tudo isto o está submetendo a uma grande tensão. Está provocando a metamorfose antes da hora e, meu Deus, esta carga de tensão não vai diminuir, não vai... não vai...

Ele foi recuando com Lobo para os fundos do banheiro. Warwick, Casey, Pedersen, Peabody, Sin­ger, todos avançavam. Heck saía da privada para onde fora chutado e Jack observou mais uma coisa: eles tinham atravessado para os Territórios da quarta privada. Heck Bast estava saindo da quinta, do mesmo cubículo de onde eles voltaram. Isto é, ele e Lobo tinham se movido no outro mundo um espaço suficien­te para retornar por um diferente compartimento sanitário.

— Os dois estavam fazendo sacanagem aí dentro! — Singer gritou num tom abafado e nasal. — O retardado e esse menino bonitinho! Warwick e eu os pegamos em flagrante!

As nádegas de Jack tocaram o azulejo frio. Não havia mais espaço para retroceder. Ele se livrou de Lobo que, atordoado, contraía o corpo num estado digno de pena e levantou os punhos.

— Vamos lá! — disse. — Quem vem primeiro?

— Acha que vai dar conta de todos nós, guri? — Pedersen perguntou.

— Se for preciso, sim! — disse Jack. — Não vou me deixar crucificar como Jesus, sabiam? Vamos lá!

Um lampejo de mal-estar no rosto de Pedersen; uma cãibra ostensiva de medo no corpo de Casey. Eles pararam... Realmente pararam. Jack experimentou um momento de selvagem, enlouquecida esperan­ça. Os rapazes o encaravam com o receio de quem fita um cão raivoso que podia perfeitamente ser abati­do... mas que, no processo, podia morder gravemente alguém.

— Abram caminho, rapazes — disse uma voz potente, serena. Eles obedeceram de bom grado, uma sensação de alívio estampada nos rostos. Era o Reverendo Gardener. O Reverendo Gardener saberia como lidar com o problema.

Ele se aproximou dos dois internos acuados. Vestia uma calça larga com listras cinzentas e uma ca­misa branca de seda com mangas enormes. Trazia na mão aquele estojo preto com a seringa hipodérmica.

Olhou para Jack e suspirou:

— Você sabe o que diz a Bíblia sobre o homossexualismo, Jack?

Jack arreganhou os dentes para ele.

Gardener balançou a cabeça com uma expressão de tristeza, como se não pudesse esperar outro tipo de reação de gente daquele tipo.

— Bem, todos os rapazes fazem travessuras — disse ele. — É axiomático.

Abriu o estojo. A seringa brilhou.

— Mas acho que você e seu amigo estão fazendo coisas ainda piores que sodomia — Gardener continuou com a voz branda e pesarosa. — Indo a lugares que deviam deixar reservados aos mais velhos e aos seus superiores, quem sabe...

Singer e Hector Bast trocaram um olhar assustado, inquieto.

— Acho que um pouco desse mal... dessa perversidade... foi culpa minha. — Ele pegou a seringa e depois um pequeno frasco. Passou o estojo para Warwick e encheu a seringa — Nunca pensei em forçar meus garotos a confessar, mas sem confissão não pode haver opção por Cristo, e sem opção por Cristo, o mal continua a crescer. Por isso, embora lamentando profundamente, acho que terminou o tempo de pedir e veio o tempo de exigir em nome de Deus. Pedersen. Peabody. Warwick. Casey. Segurem os dois!

Como cães bem treinados, os rapazes avançaram, obedecendo a seu comando. Jack ainda conse­guiu esmurrar Peabody, mas logo teve as mãos agarradas e imobilizadas.

— Deixe eu lhe dar uma lição! — Singer gritou em seu novo tom nasal. Foi abrindo caminho com os cotovelos entre a multidão estupefata de rapazes, entre os olhares cintilantes de raiva. — Quero ia uma lição nesse cara!

— Agora não — disse Gardener. — Talvez mais tarde. Primeiro temos de rezar por ele, não é mes­mo, Singer?

— Sim. — O brilho nos olhos de Singer tinha se tornado decididamente febril. — Vou rezar bastan­te pela alma dele.

Como um homem que finalmente acorda após um período muito longo de sono, Lobo resmungou e olhou em volta. Viu Jack imobilizado, viu a agulha da injeção, e arrancou as mãos de Pedersen dos bra­ços de Jack, como se tirasse um doce de uma criança. Um ronco surpreendentemente forte lhe escapou da garganta:

— Deixem meu amigo em paz!

Num passo de dança, com uma fluidez graciosa que lembrava Osmond acuando o carroceiro no terreiro lamacento dos Territórios, Gardener aproximou-se de Lobo pelo outro lado. A agulha faiscou e mergulhou em seu braço. Lobo rodopiou, urrando como se tivesse sido perfurado... O que, de certa for­ma, fora exatamente o que lhe acontecera. Ele ergueu a mão para a seringa, mas Gardener conseguiu es­quivá-la.

Alguns internos que tinham assistido a parte dos acontecimentos com a habitual pasmaceira predominante na Casa do Sol, começaram a debandar para o corredor com fisionomias de alarme. Não queriam presenciar a fúria daquele Lobo simplório e grandalhão.

— Deixem meu amigo em paz! Deixem... meu... amigo...

— Lobo!

— Jack... Jacky...

Lobo fitava-o com olhos atordoados que, como estranhos caleidoscópios, oscilavam do casta­nho-claro ao alaranjado e a um vermelho turvo. Estendeu as mãos peludas para Jack.

Foi então que Hector Bast se colocou atrás dele e derrubou-o no chão com uma pancada na cabeça.

— Lobo! Lobo!— Jack olhou para o amigo com olhos úmidos e furiosos. — Se você o matou, seu filho,

— Shhh, Sr. Jack Parker — Gardener sussurrou em seu ouvido, e Jack sentiu a agulha espetar-lhe o braço. — Agora fique quietinho. Vamos trazer um pouco de luz para sua alma. E depois, então, veremos se vai gostar de puxar um vagão carregadinho pela trilha em espiral. Não quer dizer aleluia?

Essa foi a única palavra que o acompanhou enquanto ele apagava.

Aleluia... aleluia... aleluia...

 

LOBO NA CAIXA

Jack despertou muito tempo antes de perceber que estava verdadeiramente acordado. Só gradualmente foi tomando consciência de quem era, do que acontecera e da enrascada em que se metera. Sentia-se como um soldado que tivesse sobrevivido a um feroz e prolongado fogo de artilharia. O braço latejava no lugar onde Gardener aplicara a injeção. A cabeça doía tanto que até seus olhos pareciam pulsar. E estava morrendo de sede.

Subiu mais um degrau na escada da autoconsciência quando a mão esquerda procurou tocar o lu­gar onde Gardener espetara seu braço. Mas não conseguiu fazê-lo. E não conseguiu simplesmente porque tinha os braços amarrados em torno do peito. Podia sentir o cheiro de uma lona velha, mofada — cheiro de uma tenda de escoteiro encontrada depois de muitos anos num sótão. Embora há mais de dez minutos estivesse fitando estupidamente a coisa por entre pálpebras semicerradas, só então compreendeu o que estava usando. Era uma camisa-de-força.

Ferd teria percebido isso com mais rapidez que você, Jack-O, ele pensou, e a lembrança de Ferd conseguiu clarear sua mente apesar da exasperante enxaqueca. Mexeu-se um pouco e as pontadas de dor na cabeça e o latejar do braço fizeram-no gemer. Ele não pôde evitar.

— Está acordando — veio a voz de Heck Bast.

— Não, ainda não — disse Sunlight Gardener. — Dei-lhe uma dose suficiente para acalmar um crocodilo. Vai continuar apagado pelo menos até as nove da noite. Está apenas sonhando um pouco. Heck, quero que você suba e ouça as confissões dos garotos. Diga-lhes que hoje à noite não haverá culto na capela; tenho muito o que fazer. Provavelmente isto é apenas o começo de uma longa noite. Você fica comigo para me dar assistência técnica.

— Mas parece mesmo que ele está acordando — Heck insistiu.

— Fique tranqüilo — disse Sunlight. — E mande Bobby Peabody cuidar de Lobo.

— O imbecil não vai gostar nada de ficar lá dentro — disse Singer, rindo baixo.

Lobo, oh, Lobo, eles vão colocá-lo na Caixa, Jack pensou chorando por dentro. Sinto muito... É mi­nha culpa... Tudo isso é minha culpa...

— Os cães do inferno costumam reagir com muita violência à mecânica da salvação — Jack ouviu Sunlight Gardener dizer. — Quando os demônios dentro dele começarem a ser derrotados, sairão gritan­do de seu corpo. Agora faça o que eu disse, Heck.

— Sim, senhor, Reverendo Gardener.

Jack ouviu mas não viu Heck passando bruscamente perto dele. Até então, ainda não se atrevera a abrir completamente os olhos.

 

Socado na caixa cruelmente soldada, lacrado sob uma forte tranca como uma vítima de um enterro equivocado num caixão de ferro, Lobo uivou o dia inteiro, bateu com os punhos contra as paredes da Caixa até fazê-los sangrar, chutou com os pés a tranca reforçada (tipo ferrolho de for­no crematório ou lacre de ataúde) até as pontadas de dor lhe subirem pelas pernas e atingirem a virilha. Sabia muito bem que não ia sair dali batendo com os punhos ou golpeando com os pés, assim como sabia que seus gritos de nada adiantavam. Mas não pôde controlar a reação. Não havia coisa pior para um lupino do que se ver trancado.

Seus gritos atravessavam toda a Casa do Sol e se espalhavam pelos campos ao redor. Ouvindo aqueles urros, os internos se olhavam nervosos e tinham até medo de falar.

— Eu o vi no banheiro esta manhã. Ele parecia possesso — confidenciou Roy Owdersfelt a Morton numa voz baixa, insegura.

— Os dois estavam mesmo fazendo sacanagem, como Singer disse? — Morton perguntou.

Outro uivo lupino brotou da Caixa de ferro, e os dois garotos se viraram instintivamente na direção do som.

— E como! — Roy respondeu com avidez. — Eu não consegui ver muita coisa porque sou baixo, mas Buster Oates estava bem na frente, de cabeça empinada, e disse que o grandalhão retardado tinha um pau do tamanho de uma torre de TV. Foi isso que ele disse.

— Jesus! — Morton exclamou respeitosamente, pensando talvez em seu próprio pau de tamanho mirim.

Lobo urrou o dia inteiro, mas parou quando o sol começou a declinar. Os garotos sentiram um ar ameaçador no silêncio que se seguiu. Trocavam olhares com freqüência cada vez maior e viravam-se cada vez mais inquietos para o retângulo de ferro no centro do terreno baldio dos fundos da Casa do Sol. A Caixa tinha um metro e 80 de altura e 90 centímetros de largura. Se não fosse dividida ao meio por uma trave de aço inoxidável (que lhe dava uma certa aparência de geladeira), seria exatamente idêntica a um ataúde de ferro. O que estava acontecendo lá dentro?, eles se perguntavam. E, mesmo durante a confissão, du­rante aqueles minutos em que costumavam entrar em êxtase, em que costumavam esquecer completa­mente o mundo ao redor, os olhos insistiam em se voltar para a única janela da sala comunitária (embora aquela janela desse para o lado da casa diametralmente oposto à Caixa).

O que está acontecendo lã dentro?

Hector Bast sabia que suas mentes não estavam em confissão e isto o exasperava, mas ele não foi capaz de chamá-los à ordem porque não entendia o que estava realmente acontecendo. Um sentimento de amedrontada expectativa se apoderara dos rapazes. Seus rostos pareciam mais pálidos que nunca; os olhos brilhavam como olhos de viciados em drogas.

O que está acontecendo lá dentro?

O que estava acontecendo era bem simples.

Lobo estava viajando com a lua.

Ele sentiu a coisa começar quando a tira de sol que penetrava pelo quadrado de ventilação foi fi­cando cada vez mais alta, e a luz foi ficando avermelhada. Era cedo demais para viajar com a lua; ela ain­da não estava totalmente cheia e uma metamorfose teria efeitos negativos naquele momento. Contudo, a transformação seria inevitável, como sempre fora inevitável quando, na época ou fora da época, os lupinos sofriam pressões muito fortes e prolongadas. Por muito tempo, Lobo conseguira se controlar porque era a vontade de Jacky. Para o bem de Jack, tivera atitudes verdadeiramente heróicas naquele novo mundo. Talvez o amigo tivesse percebido isso, mas de forma vaga. Jamais poderia ter plena com­preensão do incrível esforço, da fibra que Lobo precisou reunir para se conter.

Mas agora ele estava morrendo, e estava se deixando levar pela lua. E era a lua que fazia a morte parecer mais tolerável — quase agradável — e, sem a menor dúvida, serena. Lobo passara a experimentar uma sensação de alívio e mesmo de alegria. Era maravilhoso não ter mais de lutar.

Sua boca, subitamente carregada de dentes, foi se fechando.

 

Após Heck ter saído, houve uma série de sons de escritório: o suave arranhar de ca­deiras pelo assoalho, o tilintar das chaves no cinto de Sunlight Gardener, uma gaveta de arquivo sendo aberta e depois fechada.

— Abelson. Duzentos e quarenta dólares e trinta e seis centavos.

Barulho de chaves sendo sacudidas. Peter Abelson era um dos rapazes do Corpo do Exterior. Como todos os CEs, era esperto, persuasivo, e não tinha defeitos físicos. Jack só o vira algumas vezes, mas achava Abelson muito parecido com Dôndi, aquele menino desamparado de olhos grandes das histórias em quadrinhos.

— Clark. Sessenta e dois dólares e dezessete centavos.

Chaves sendo sacudidas. A máquina se agitou quando Singer apertou a tecla total.

— Houve mesmo uma queda — Singer comentou.

— Conversarei com ele, não se preocupe. Agora, por favor, não me distraia, filho. O Sr. Sloat chega a Muncie às 10hl5 e há muito chão até lá. Não quero chegar atrasado.

— Desculpe, Reverendo Gardener.

Gardener disse mais alguma coisa que Jack não conseguiu ouvir. O nome Sloat, embora tenha lhe provocado um grande choque, não deixava de corresponder a certas expectativas. Uma parte dele sem­pre soubera que o jogo poderia incluir um lance desse tipo. Gardener ficara desconfiado desde o início. Mas não quisera levar o problema a seu chefe e incomodá-lo com trivialidades, Jack pensou. E talvez não quisesse admitir que era incapaz de obrigar um garoto a abrir o bico. Mas, por fim, deve ter decidido re­correr a Sloat e lhe telefonara... Telefonara para onde? Para o leste? Oeste? Jack daria a vida para saber. Morgan fora localizado em Los Angeles ou em New Hampshire?

Alô, Sr. Sloat. Espero não estar incomodando o senhor, mas a polícia local me trouxe um garoto.., Na realidade dois, mas é apenas o inteligente que me preocupa. Acho que já o conheço de algum lugar. Ou talvez seja meu... ah, meu outro eu quem o conhece. Ele me disse que se chama Jack Parker, mas... Como? Descrevê-lo? Pois não...

E tudo ficara em pratos limpos.

Por favor não me distraia, filho. O Sr. Sloat chega a Muncie às 10hl5...

O tempo estava quase esgotado.

Eu mandei que voltasse para casa, Jack... Agora é tarde demais.

Todos os rapazes fazem travessuras. É axiomático.

Jack levantou um pouco a cabeça e olhou pela porta. Gardener e Singer estavam sentados na escri­vaninha do escritório subterrâneo.

Singer movia as teclas de uma máquina de somar à medida que Gardener ia lhe ditando as quantias arrecadadas, cada quantia seguida do nome de um CE, cada nome despontando primorosamente em ordem alfabética. Na frente de Sunlight Gardener havia um livro-caixa, um fichário de aço e um amontoado de envelopes. Quando Gardener pegou um desses envelopes para ler a soma rabiscada na frente, Jack observou que todos eles estampavam um desenho de duas crianças risonhas, ambas carregando uma Bíblia e de mãos dadas, seguindo uma trilha em direção a uma igreja. Embaixo estava escrito: serei um raio de sol para Jesus.

— Temkin. Cento e seis dólares.

O envelope voltou para o fichário juntando-se aos que já tinham sido registrados.

— Acho que ele está vacilando de novo — disse Singer.

— Deus vê a verdade, mas espera — disse Gardener num tom suave. — Victor já está de novo em forma, Agora cale a boca e vamos ver se acabamos com isto antes das seis.

Singer sacudiu as chaves.

A gravura de Jesus caminhando sobre as águas fora deslocada, revelando um cofre atrás dela. O cofre estava aberto.

Jack reparou que havia outras coisas de interesse na escrivaninha de Sunlight Gardener: dois envelopes, um com a inscrição rack Parker e outro com a inscrição phillip Jack lobo. E sua boa e velha mochila.

A terceira coisa era o molho de chaves de Sunlight Gardener.

Das chaves, os olhos de Jack moveram-se para a porta à esquerda da sala. Sem dúvida era a saída particular de Gardener. Se houvesse um jeito...

— Yellin. Sessenta e dois dólares e dezenove centavos.

Gardener suspirou, pôs o último envelope no comprido fichário de aço e fechou o livro-caixa.

— Ao que parece, Heck tinha razão. Acho que nosso bom amigo, o Sr. Jack Parker, já acordou. Levantou-se, deu a volta na escrivaninha e caminhou na direção de Jack. Seus olhos maus e turvos cintilavam. Pôs a mão no bolso e tirou o isqueiro. Vendo aquilo, Jack sentiu uma onda de pânico crescer dentro dele.

— Seu nome, meu filho, não é absolutamente Parker, certo? Seu verdadeiro nome é Sawyer, não é? Oh, sim. Sawyer! Uma pessoa que está muito interessada em você vai chegar logo, logo. E teremos muita coisa interessante para lhe contar, não é mesmo?

Sunlight Gardener fez a tampa do isqueiro Zippo estalar. Jack viu o pavio escuro e a rodinha que o acendia.

— A confissão é boa para a alma — Gardener sussurrou e rodou o pavio.

 

Pam!

— O que foi isso? — Rudolph perguntou, levantando os olhos de seus fornos. O jantar, 15 grandes pastelões de peru, estava quase pronto.

— O que foi isso? — George Irwinson repetiu.

Na pia, onde descascava batatas, Donny Keegan proferiu seu alto e habitual relincho de riso.

— Eu não ouvi nada — disse Irwinson. Donny riu outra vez.

Rudolph virou-se irritado para ele:

— Por que não descasca essas batatas de bico fechado, seu idiota?

— Hhhi-mi-rrri!

Pam!

— Agora você ouviu, não foi?

Irwinson balançou afirmativamente a cabeça.

E Rudolph ficou subitamente assustado. Aquele barulho estava vindo da Caixa, da Caixa que devia se destinar apenas a ser um depósito de cereais. Sim, alguma coisa grave estava acontecendo lá dentro. Aquele grandalhão estava na Caixa, o retardado que, segundo voz corrente, fora apanhado naquela manhã em pederastia com o amigo, o retardado com jeito de lobo que andara quebrando a mão de uns e ou­tros. Diziam que o grandalhão revelara um gênio perigoso quando se viu acuado pelos rapazes... Dizia-se, ainda, que não se limitara a quebrar a mão de Bast, mas que a espremera, até transformá-la numa pasta. Isso era mentira, claro!, tinha de ser, mas...

Pam!

Dessa vez Irwinson olhou em volta. E, de repente, Rudolph teve vontade de ir ao banheiro, Com isso teria oportunidade de subir até o terceiro andar para fazer suas necessidades. E não estava disposto a se demorar menos de duas ou três horas. Vem coisa feia por aí, ele pensava, coisa muito feia...

Pam-pam!

Que se fodessem os pastelões de peru!

Rudolph tirou o avental, atirou-o sobre o bacalhau que estava de molho para o jantar do dia se­guinte e saiu da cozinha.

— Onde você vai? — Irwinson perguntou. Sua voz saiu inesperadamente estridente. E trêmula. Donny Keegan começara a descascar furiosamente batatas enormes, reduzindo-as a pequenas, diminutas bolas de gude. O cabelo úmido de suor lhe caía no rosto.

Pam! Pam! Pam-pam-pam!

Rudolph não respondeu à pergunta de Irwinson e, ao atingir a escada do segundo andar, já estava quase correndo. Os tempos andavam difíceis em Indiana, faltava trabalho e Sunlight Gardener pagava em dia.

Mesmo assim, Rudolph começava a se perguntar se já não era hora de procurar um novo emprego, se não seria mais saudável sair o mais depressa possível daquele covil.

 

Pam! A tranca na parede da Caixa tipo forno crematório quebrou ao meio. Por um instante, houve apenas uma escura fenda entre o interior da Caixa e o terreno baldio nos fundos da Casa do Sol.

Silêncio por algum tempo. Então...                           

Pam!

O trinco sobressalente estalou, torceu.

Pam!

O trinco sobressalente rachou.

E a porta da Caixa rangeu pela última vez nas grandes, feias, enferrujadas dobradiças. Depois se escancarou. Dois pés enormes, cobertos de pêlo, saíram lá de dentro num movimento de marcha. Patas compridas socando o barro do pátio. Lobo começou a procurar a saída da Casa do Sol.

 

Diante dos olhos de Jack, a chama oscilava de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro. Sunlight Gardener parecia um misto de hipnotizador de circo e velho ator de Hollywood desempenhando o papel principal num filme sobre a vida de Freud. Paul Muni talvez. Era engraçado e, se não estivesse com tanto medo, Jack seria até capaz de rir. E quem sabe se, apesar de tudo, não deixaria escapar uma pequena risada...

— Agora vou fazer algumas perguntas e você vai respondê-las — disse Gardener. — O Sr. Morgan poderia muito bem arrancar as respostas (com muita facilidade, sem dúvida), mas prefiro não lhe dar tanto trabalho. Quando... quando se tornou capaz de migrar?

— Não estou entendendo.

— Quando se tornou capaz de migrar para os Territórios?

— Não sei do que está falando.

A chama chegou mais perto.

— Onde encontrou o negro?

— Quem?

— O negro, o negro! — Gardener berrou. — Parker, Parkus, seja lá qual for o nome que tenha dado! Onde ele está?

— Não sei de quem está falando.

— Singer! Andy! — Gardener gritou. — Soltem-lhe a mão esquerda. Segurem-na para mim.

Warwick se curvou sobre Jack e desamarrou alguma coisa. Pouco depois, descolava a mão de Jack dos rins. Ela estava dormente e formigava como se a tivessem coberto de alfinetes. Jack tentou lutar, mas foi inútil. Singer e Warwick o imobilizaram por completo.

— Agora, abram-lhe os dedos!

Singer puxou o mindinho e o anular numa direção; Warwick puxou o médio e o indicador para outro lado. Logo em seguida, Gardener aplicava a chama do Zippo na membrana do V formado entre os dedos. A dor foi intensa, subindo pelo braço esquerdo de Jack e passando depois para todo o seu corpo. Um cheiro de coisa queimada se elevou no ar. Vinha dele mesmo. De sua própria carne. Queimando...

Após uma eternidade, Gardener fez o Zippo recuar e fechou-o com um estalido. Finas gotas de suor cobriam a testa de Jack. Ele ofegava.

— Os demônios gritam antes de saírem do corpo — disse Gardener. — Oh, sim, é isso que eles fa­zem. Eles gritam, não é, rapazes?

— Sim! Para a glória do Senhor! — disse Warwick.

— É preciso esmagar o mal — disse Singer.

— Oh, sim, eu sei disso. Sem dúvida, eu sei. Conheço os segredos dos meninos e os segredos dos demônios. — Gardener deu uma risadinha e se inclinou para a frente até seu rosto ficar a dois centímetros do rosto de Jack. O cheiro enjoativo de água-de-colônia inundou tudo. Mas, por terrível que fosse, Jack achou-o bem melhor do que o aroma de sua própria carne queimada. — Agora seja compreensivo, Jack! Há quanto tempo vem migrando para os Territórios? Onde está o negro? O que sua mãe sabe de tudo isso? Comentou o assunto com mais alguém? O que o negro lhe contou? Vamos começar por aí, certo?

— Não sei do que está falando.

Gardener arreganhou os dentes num sorriso.

— Rapazes — disse ele —, ainda teremos de trazer mais luz para a alma deste guri! Prendam-lhe a mão esquerda e soltem a direita.

Sunlight Gardener abriu de novo o isqueiro e esperou que Singer e Warwick fizessem sua parte. O polegar descansava delicadamente sobre a rodinha do pavio.

 

George Irwinson e Donny Keegan ainda estavam na cozinha.

— Há alguém lá fora — disse George num tom nervoso.

Donny não disse nada. Acabara de descascar as batatas e se aproximara dos fornos em busca de calor. Não sabia mais o que fazer. A confissão transcorria na sala comunitária e era lá que queria estar — na confissão havia segurança e ali, na cozinha, ele se sentia muito, muito nervoso —, mas Rudolph ainda não o dispensara. Melhor, então, continuar por ali.

— Estou ouvindo alguém — George repetiu.

Donny limitou-se a rir:

— Hhi-rrri-mi!

— Jesus, esse seu riso me dá arrepios! — disse George. — Tenho um almanaque do Capitão Amé­rica escondido sob o colchão. Se der uma olhada lá fora, deixo você ler o almanaque.

Donny disse que não e repetiu de novo o relincho de riso.

George virou-se para a porta. Barulho. Ruído de arranhão. Era o que parecia. Alguém arranhando a porta. Como um cachorro que quisesse entrar. Um vira-lata perdido, sem casa, sem dono. O problema é que dificilmente um vira-lata sem casa e sem dono conseguiria arranhar o alto da porta, uma porta de dois metros de altura!

George foi até a janela e deu uma espiada. Não pôde ver quase nada na escuridão. A Caixa não passava de uma sombra mais escura que as outras.

George caminhou para a porta.

 

Jack gritou com tanta força e tão alto que achou que tinha rompido as cordas vocais. Agora Casey, com a grande barriga saliente, também se juntava aos torturadores e seria sem dúvida de grande utilidade. Era mais um que se unia a Warwick e Singer para conservar totalmente imobilizado o braço de Jack, permitindo que a chama fosse aplicada com precisão milimétrica.

Dessa vez, quando Gardener afastou o isqueiro, havia uma nódoa preta do lado da mão de Jack, um borrão do tamanho de uma pequena moeda coberto de bolhas. Gardener se levantou, foi até a escri­vaninha pegar o envelope com a inscrição jack Parker e voltou. Tirou do envelope a palheta de violão.

— O que é isto?

— Uma palheta de violão — Jack conseguiu dizer. Era imensa a agonia das queimaduras nas mãos,

— Em que se transforma nos Territórios?

— Não sei o que está querendo dizer.

— O que é isto?

— Uma bola de gude. Será que ficou cego?

— Vira um brinquedo nos Territórios?              

— Não...

— É um espelho?

— ...sei...

— É alguma coisa que desaparece quando você a gira com rapidez?

— ... do que está...

— Sabe! Sabe muito bem, seu veado de merda! Cão do inferno!

— ...falando.

A mão de Gardener passou rente ao rosto de Jack.

Ele pegou o dólar de prata. Seus olhos brilhavam.

— O que é isto?

— Um talismã da minha tia Helen. Para dar boa sorte.

— Em que se transforma nos Territórios?

— Numa caixa de flocos de milho.

Gardener suspendeu o isqueiro.

— É sua última chance, guri!

— Se transforma num vibrafone e toca Ritmo alucinante.

— Agarrem de novo a mão direita dele — disse Gardener.

Jack se debateu, mas por fim conseguiram imobilizar a mão dele.

 

Nos fornos, os pastelões de peru tinham começado a queimar.

George Irwinson ficara parado quase cinco minutos junto da porta, tentando reunir coragem para abri-la. Os ruídos de arranhar não tinham se repetido.

— Bem, vou lhe mostrar, Donny, que não temos nada a temer — disse George num tom vigoroso. - Quando se confia no Senhor, nada se tem a temer!

Com essa declaração pomposa, escancarou a porta. E uma coisa enorme, peluda e sombria des­pontou no umbral; das órbitas de olhos fundos saltavam labaredas vermelhas. George divisou uma pata se erguendo no vento da escuridão de outono e deu um grito de pavor. Garras de 15 centímetros brilha­ram na luz da cozinha, arrancaram a cabeça de George Irwinson do pescoço e a jogaram no chão. Ela foi rolando, esparramando sangue, até os pés de Donny Keegan que, enlouquecido, ria sem parar.

Lobo entrou na cozinha caindo de quatro. Passou com olhos chamejantes por Donny Keegan e correu para o corredor.

 

Lobo! Lobo! Aqui e agora!

Sem dúvida era a voz de Lobo em sua mente, mas parecia mais exuberante, mais profunda, mais enérgica que nunca. Atravessou-lhe a névoa de dor como uma afiada faca sueca.

Lobo está correndo com a lua, ele pensou. E o pensamento trouxe um misto de triunfo e pesar. Sunlight Gardener estava levantando e apertando os olhos. Naquele instante, o reverendo assemelhava-se bastante a um animal, um animal que farejava o perigo em algum lugar.

— Reverendo? — Singer chamou. Singer arquejava discretamente de satisfação e as pupilas de seus olhos pareciam muito largas. Ele está se divertindo bastante, Jack pensou. Se eu começar a dar o serviço, ai ficar desapontado.

— Estou ouvindo alguma coisa — disse Gardener. — Casey! Vá dar uma olhada na cozinha e na sala comunitária.

— Agora mesmo — Casey exclamou.

Gardener olhou de novo para Jack.

— Logo vou ter de partir para Muncie — disse ele —, e quando me encontrar com o Sr. Morgan quero mostrar que sou capaz de lhe transmitir imediatamente alguma informação. Então, é melhor abrir o jogo e depressa, Jack! Você só estará se poupando novas dores!

Jack o encarou, esperando que o martelo que lhe batia no coração não transparecesse no rosto nem na rápida pulsação das veias do pescoço. Se Lobo tivesse saído da Caixa...

Com uma das mãos, Gardener pegou a palheta de violão de Speedy; com a outra, a moeda do Ca­pitão Farren.

— Para que servem essas coisas?

— Quando eu atravesso, elas se transformam em testículos de tartaruga — disse Jack com um riso selvagem, histérico.

A fisionomia de Gardener se escureceu com uma raiva sangrenta.

— Amarrem de novo os braços dele! — ordenou a Andy e a Singer. — Amarrem os braços e tirem as calças deste bastardo do inferno! Vamos ver o que acontece quando esquentarmos os testículos dele!

 

Heck Bast estava mortalmente entediado com a confissão. Já ouvira mil vezes aqueles insignificantes pecados de encomenda. Tirei dinheiro da bolsa de minha mãe; gostava de chutar os outros no recreio da escola; passávamos cola num pedaço de papel e colávamos a asa de uma borboleta viva; e fiz isto, e mais isso e aquilo. Coisas estúpidas de criança. Nenhuma empolgação. Nada para lhe dis­trair a mente do contínuo latejar de dor na mão. Heck queria estar lá embaixo, ajudando a “trabalhar” aquele tal de Sawyer. E depois gostaria de se “dedicar” com os outros àquele grandalhão retardado que, por obra do inferno, conseguira pegá-lo de surpresa e destruir-lhe a mão direita. Sim, ocupar-se do gran­dalhão seria um real prazer. De preferência, com um bom e forte chicote de couro.

Um rapaz chamado Vernon Skarda despejava fluentemente suas culpas.

— ...então eu e ele vimos as chaves na mão dela, percebe o que estou dizendo? Aí ele disse: “Va­mos atrás. Falamos com ela na esquina.” Mas pressenti que era errado ir atrás de uma puta e por isso ele foi sozinho. “Você é um pirralho, um pirralhinho de merda”, disse ele. “Não sou um pirralho”, eu respon­di. Foi mais ou menos assim... Aí ele provocou: “Então prove, então prove que você é homem!” “E você acha que estou com medo?”, eu disse. Aí ele continuou provocando e eu...

Oh, Cristo, Heck pensou. A mão estava começando realmente a incomodá-lo e todos os analgési­cos tinham ficado lá em cima em seu quarto. Do outro lado da sala viu Peabody arredondar as mandíbulas num bocejo de fazer estalarem os ossos.

— Então nós dois fomos até a esquina, e aí ele se virou pra mim e disse...

Foi de repente. A porta foi aberta com tanta força que saltou das dobradiças, bateu na parede, rico­cheteou, atingiu um garoto chamado Tom Cassidy e jogou-o no chão. Alguma coisa saltou na sala comunitária. A princípio, Heck Bast achou que fosse o maior filho da puta de cachorro que já tinha visto em toda a sua vida. Os garotos gritaram e pularam das cadeiras. Depois congelaram, olhos incrédulos e arre­galados. A besta de pêlo cinza-escuro em que Lobo se transformara tinha ficado em pé, farrapos de calça cáqui e camisa xadrez ainda grudados no corpo.

Vernon Skarda olhava assombrado, o queixo caído.

Lobo deu um berro, olhos faiscando ao redor quando os rapazes tentaram recuar. Pedersen diri­giu-se para a porta do corredor. Lobo, agora tão alto que a cabeça quase roçava no teto, moveu-se com a velocidade da luz. Sacudiu um braço maior que uma viga de celeiro e suas garras abriram um canal nas costas de Pedersen. Por um instante a espinha do rapaz ficou claramente visível — uma esfria saliente, sangrenta. E o sangue salpicou as paredes. Pedersen deu um grande passo vacilante na direção do corre­dor e se esborrachou no chão.

Lobo se virou. As chamas de seus olhos se concentraram em Heck Bast. Heck saltou da cadeira com as pernas bambas fitando aquele horror peludo, de olhos vermelhos. Sabia muito bem quem era aquela coisa... Ou, pelo menos, quem tinha sido.

Heck daria qualquer coisa para voltar à chateação dos garotos em confissão.

 

Jack estava sentado numa cadeira, as mãos queimadas e latejantes de novo cola­das nos rins. Depois de apertar cruelmente a camisa-de-força, Singer desabotoara e tirara a calça cáqui de sua pobre vítima.

— Agora — disse Gardener suspendendo o Zippo para os olhos de Jack —, agora preste atenção ao que vou dizer! Preste bastante atenção! Vou lhe fazer de novo algumas perguntas, está bem? Se não respondê-las direitinho e com toda a sinceridade, pode crer que nunca mais será tentado a praticar com ninguém atos imorais de pederastia.

Singer riu de modo selvagem. Aquele turvo e perigoso brilho de ansiedade se estampou novamen­te em seus olhos. Ele fitou o rosto de Jack com uma espécie de mórbida avidez.

— Reverendo Gardener! Reverendo Gardener! — Era Casey, e Casey parecia alarmado. Jack abriu os olhos. — Alguma coisa muito estranha está acontecendo lá em cima!

— Não quero ser incomodado, Casey.

— Donny Keegan está rindo como um louco na cozinha! E...

— Não ouviu ele dizer que não quer ser incomodado? — Singer gritou. Mas Casey estava assustado demais para se conter.

— ... e parece que está havendo um motim na sala comunitária! Berros! Uivos! E também parece...

De repente, um urro de incrível força e vitalidade encheu a mente de Jack:

Jacky! onde você está? lobo, oh, Lobo! Onde você está aqui e agora?

— ...que há um enorme pastor-alemão ou alguma coisa solta lá em cima!

Agora Sunlight Gardener estava fitando Casey, olhos estreitos, lábios apertados.

No escritório de Gardener! No subsolo! Você já esteve aqui!

De que lado, Jacky? De que lado, Lobo, oh, Lobo?

As escadas, Lobo! Desça as escadas!

Aqui e agora, Jacky!

E foi assim. Lobo perdera completamente a cabeça. De lá de cima veio uma pancada e um grito.

— Reverendo Gardener? — Casey perguntou. Seu rosto normalmente corado ficou profundamente pálido, — Reverendo Gardener, o que é isso? O que...

— Cale a boca! — disse Gardener, e Casey se encolheu como se tivesse levado um tapa, olhos ar­regalados e lacrimejantes, a papada de gordura tremendo. Gardener passou correndo por ele e foi até o cofre, de onde tirou um enorme revólver que enfiou no cinto. Pela primeira vez, o reverendo parecia ate­morizado, confuso.

Na sala comunitária, houve um estranho som de algo estilhaçando seguido de um berro. Os olhos de Singer, Warwick e Casey ergueram-se inquietos; eles pareciam ocupantes nervosos de um abrigo antiaéreo prestando atenção num assobio crescente na superfície.

Gardener olhou para Jack e deixou que um sorriso lhe brotasse no rosto. Mas os cantos da boca se repuxavam de forma irregular, como se estivessem presos a cordões manejados com imperícia por um mau diretor de marionetes.

— Ele está vindo pra cá, não é? — disse Sunlight Gardener e balançou a cabeça como se Jack tives­se respondido. — Ele está vindo... mas acho que não vai sair vivo daqui.

 

Lobo deu o salto. Heck Bast ainda tentou proteger o rosto com a mão direita en­gessada. Mas houve um forte lampejo de dor, um rumor de coisa quebrando, uma nuvem de pó esbran­quiçado quando Lobo abocanhou o gesso e o resto de mão que havia dentro dele. Atônito, Heck baixou os olhos para a mão engessada que não mais existia. O sangue jorrava do pulso. Encharcava a suéter branca de gola alta de um tom muito vermelho e quente.

— Por favor — Heck gemeu. — Por favor, por favor, não...

Lobo cuspiu a mão. Sua cabeça avançou com a velocidade de um bote de cobra. Heck teve a vaga impressão de um Lobo lhe rasgando a garganta; depois não sentiu mais nada.

 

Quando lobo saiu da sala comunitária, Peabody escorregou no sangue de Peder­sen, caiu de joelhos, se levantou e, vomitando por todo o corpo, correu o mais depressa que pôde pelo corredor do primeiro andar. Os internos corriam de um lado para o outro, gritando num pânico absoluto. O pânico de Peabody, no entanto, não era assim tão completo. Lembrava-se bem do que devia fazer em situações extremas — embora, sem dúvida, ninguém jamais tivesse imaginado uma situação como aque­la; ele achava que o Reverendo Gardener pensara mais em termos de um garoto enlouquecido ferindo os companheiros, algo assim...

No ponta do vestíbulo por onde entravam os novos hóspedes da Casa do Sol, havia uma pequena sala usada apenas pelos capangas de Gardener, seu “corpo de comissários”.

Peabody se trancou naquela sala, pegou o telefone e discou um número de emergência. Pouco de­pois, estava falando com Franky Williams.

— É Peabody, da Casa do Sol — disse. — Venha logo pra cá com o número máximo de policiais que o senhor puder arranjar, Sargento Williams. Parece que o inferno em peso...

Lá de fora veio um grito estridente seguido por um barulho de madeira quebrando. Depois um ros­nado, e o grito cessou.

— ...se soltou aqui dentro — ele concluiu.

— Que tipo de inferno? — Williams perguntou irritado. — Deixe-me falar com Gardener.

— Não sei onde está o reverendo, mas ele está precisando muito do senhor. Há gente morta. Garo­tos mortos!

— O quê?!

— Venha o mais depressa que puder! E venha com muitos homens! — disse Peabody. — E com muitas armas!

Outro grito. O baque de alguma coisa pesada — provavelmente a alta e velha cômoda do corredor da frente — sendo derrubada.

— Metralhadoras, se o senhor tiver!

Um ruído cristalino, como se o grande lustre do corredor tivesse caído. Peabody encolheu-se de medo. O monstro parecia estar destroçando portas e móveis com garras poderosíssimas.

— Inferno! Traga um tanque se puder! — disse Peabody, verde como uma ervilha, começando a se debulhar em lágrimas.

— O que...

Peabody desligou antes que Williams pudesse terminar. Rastejou para baixo de uma escrivaninha e protegeu a cabeça com os braços. Depois começou a rezar fervorosamente para que tudo aquilo fosse apenas um sonho — o pesadelo mais fodido que já tivera em toda a sua vida.

 

Lobo irrompera pelo corredor do primeiro andar que ligava a sala comunitária com o vestíbulo de entrada, parando apenas para derrubar a cômoda e puxar o lustre. Pendurara-se nele como Tarzã, até ele se soltar do teto e espalhar diamantes de cristal por toda a passadeira do corredor.

Desça as escadas, Lobo. Jacky está lá embaixo. Mas... para que lado ficavam as escadas? Um rapaz que não conseguira mais suportar a tensão agonizante de ficar esperando a coisa acontecer escancarou a porta da pequena saleta onde estava escondido e disparou para as escadas. Lobo alcançou-o e atirou-o pelo corredor afora. Com um baque de osso quebrado, o rapaz bateu na porta fechada da cozinha e ficou prostrado no chão.

A cabeça de Lobo rodopiava com o intoxicante odor de sangue fresco derramado. O cabelo lhe caía em cachos ensangüentados até o queixo e o focinho. Tentou parar para pensar, mas achou difícil... muito difícil. Teria de encontrar Jack o mais depressa possível. Antes de perder inteiramente a capacidade de raciocínio.

Voltou correndo à cozinha, caindo novamente de quatro, pois assim se movimentava mais depressa e mais à vontade... E, de repente, passando por uma porta fechada, ele se lembrou! Havia um lugar estrito do outro lado! Já estivera lá e fora como descer a um túmulo. E havia o cheiro! O cheiro úmido, fa­zendo pressão em sua garganta...

escadas. Atrás daquela porta. Ali e agora!

— Lobo, oh, Lobo!— ele gritou, embora os garotos, tremendo em seus esconderijos do primeiro e do segundo andares, tenham ouvido apenas um retumbante uivo de triunfo. Lobo ergueu as duas patas musculosas que antes tinham sido braços e atirou-as contra a porta. A porta explodiu de cima a baixo, vo­mitando lascas de madeira por todo o poço da escada. A escada... Lobo foi abrindo caminho e, sim, lá es­taria o lugar estreito, estreito como uma garganta; o lugar onde o Homem Branco contara suas mentiras enquanto Jack e o Pequeno Lobo ouviam sentados.

Jack estava lá embaixo agora. Lobo podia sentir o cheiro dele.

Mas também podia farejar o Homem Branco... e pólvora.

Cuidado...

Oh, sim! Os Lobos sabiam ser cuidadosos. Os Lobos podiam correr, estraçalhar e matar, mas quan­do era preciso... sabiam ser cuidadosos!

Desceu as escadas de quatro, silencioso como fumaça, olhos vermelhos como lanternas de freio.

 

Gardener estava ficando cada vez mais nervoso; lembrava um sujeito entrando “numa de horror” depois de um cigarro de maconha. Seus olhos se moviam aos solavancos, aos trancos e barrancos num jogo duplo: do estúdio, onde Casey se mantinha numa frenética escuta eletrônica das reações de Jack, à porta fechada que ia dar no corredor.

A maior parte dos ruídos que vinham lá de cima tinha cessado.

E Singer se encaminhou para a porta:

— Vou subir e ver o que...

— Você não vai a lugar nenhum! Volte aqui!

Singer se encolheu como se tivesse levado um bofetão.

— Qual é o problema, Reverendo Gardener? — Jack perguntou. — O senhor parece um pouco nervoso...

Singer lhe acertou um tapa.

— Olhe como fala com o reverendo, seu merda! Veja lá como fala!

— Você também parece nervoso, Singer. Você também, Warwick. E Casey lá dentro...

— Faço-o calar!— Gardener gritou de repente. — Será que são incapazes de qualquer iniciativa? Será que tenho de fazer tudo com minhas próprias mãos?

Singer esbofeteou Jack outra vez, com muito mais força que antes. O nariz de Jack começou a san­grar, mas ele sorria. Lobo agora estava perto... e Lobo estava sendo muito cuidadoso. Jack começou a alimentar a enlouquecida esperança de que os dois saíssem dali com vida.

Casey levantou-se de repente, arrancou os fones do ouvido e moveu uma chave na mesa de som.

— Reverendo Gardener! Estão vindo sirenes dos microfones externos!

Os olhos de Gardener, agora muito arregalados, resvalaram para Casey do outro lado do vidro.

— O quê? São muitas? Estão muito longe?

— Parecem muitas — disse Casey. — Ainda estão um pouco longe. Mas vêm pra cá. Pode ter certeza!

Gardener parecia estar perdendo o sangue-frio; Jack via a coisa acontecer. O reverendo se sentou, ficou um momento indeciso, depois bateu delicadamente na boca com a ponta da mão.

Ele não está pensando no que aconteceu lá em cima; nem se as sirenes poderão ajudá-lo. Sabe que Lobo já está muito próximo. Sabe porque sentiu o cheiro... E não está gostando nada disso. Lobo, oh, Lobo, nós ainda temos uma chance! Nós ainda temos!

Gardener passou o revólver para Singer.

— Não tenho mais tempo de conversar com a polícia nem de resolver o que pode estar acontecen­do lá em cima — disse ele. — O importante é o encontro com Morgan Sloat. Vou agora mesmo para Muncie. Você e Andy vêm comigo, Singer! Mantenha o revólver apontado para nosso amigo Jack enquanto tiro o carro da garagem. Quando ouvir a buzina, saia com Andy!

— E Casey? — Andy Warwick perguntou.

— Sim, sim, tudo bem, Casey também — Gardener concordou de imediato e Jack pensou: Ele está fugindo e vai deixá-los na mão, seus burros! Isso é tão evidente que nem uma criança de cinco anos se deixaria enganar. Mas os cérebros de vocês já estão entorpecidos demais para entender qualquer coisa. Se a comida e o papel higiênico derem pra tanto tempo, vão ficar dez anos aqui esperando aquela buzina tocar!

Gardener se levantou. Singer, o rosto envaidecido pela responsabilidade que lhe fora conferida, sentou-se atrás da escrivaninha e apontou o revólver para Jack.

— Se aquele retardado aparecer por aqui — disse Gardener —, atire sem pestanejar.

— Mas como ele poderia aparecer por aqui? — Singer perguntou. — Está trancado na Caixa!

— Não importa! — disse Gardener. — Ele é um demônio, os dois são demônios! Sem dúvida! É óbvio! Se o retardado der as caras, atire! Atire nos dois!

Gardener revirou o chaveiro e pegou uma chave.

— Esperem a buzina tocar — disse.

Abriu a porta e saiu. Jack apurou os ouvidos tentando ouvir as sirenes, mas nada escutou.

A porta bateu atrás de Sunlight Gardener.

 

O tempo. O tempo passando.

Um minuto que se estendia por dois; dois minutos que se estendiam por dez; quatro que pareciam uma hora. Os três “comissários” lembravam crianças brincando de estátua. Singer sentara-se empinado como um pau atrás da escrivaninha de Gardener — um lugar que venerava e cobiçava. O revólver apon­tava diretamente para o rosto de Jack. Warwick se imobilizara perto da porta do corredor. Casey voltara a se sentar na cabine profusamente iluminada e recolocara os fones nos ouvidos. Lançava um olhar vazio para o outro quadrado de vidro, para a escuridão da capela. Não via nada, apenas escutava.

— Gardener não vai levar vocês com ele — disse repentinamente Jack, surpreso com o tom da própria voz. Era calmo. Não revelava qualquer temor.

— Cale a boca, seu merda! — Singer berrou.

— Isso mesmo! Não tente prender a respiração até ouvir o som daquela buzina — disse Jack, -Aposto que ia ficar roxo e morrer.

— Se ele falar mais alguma coisa, Andy, quebre-lhe o nariz! — Singer gritou.

— Tudo bem — disse Jack. — Quebre meu nariz, Andy. Me dê um tiro, Singer. Os tiras estão che­gando, Gardener está fugindo, e vão descobrir vocês três ao lado de um cadáver numa camisa-de-força — Fez uma pausa e arrematou: — Um cadáver numa camisa-de-força e com o nariz quebrado.

— Dê um soco nele, Andy — disse Singer.

Andy Warwick afastou-se da porta e aproximou-se da cadeira onde Jack estava amarrado na camisa-de-força (a calça e a cueca puxadas até os tornozelos).

Jack levantou corajosamente o rosto para enfrentar Warwick.

— Tudo bem, Andy — disse ele. — Pode me dar um soco. Eu vou agüentar, não tenho medo! Sou um alvo muito bom, não acha?

Andy Warwick levantou o punho, depois o fez recuar para tomar impulso... e hesitou. A dúvida cintilou era seus olhos.

Havia um relógio digital na escrivaninha de Gardener. O olhar de Jack consultou-o rapidamente e logo retornou ao rosto de Warwick.

— Já se passaram quatro minutos, Andy! Quanto tempo um sujeito leva para tirar o carro de uma garagem? Principalmente se está com pressa?

Singer deu um pulo da cadeira de Sunlight Gardener, contornou a escrivaninha e aproximou-se de Jack. Seu rosto estreito e hipócrita estava furioso. Os punhos foram se levantando, como se pretendessem realmente investir contra Jack. Warwick, que era maior, o conteve. E agora já havia preocupação na fisio­nomia de Warwick — grande preocupação.

— Espere!

— Não sou obrigado a ouvir o que ele está dizendo! Não sou...

— Por que não pergunta a Casey se as sirenes ainda estão muito longe? — Jack sugeriu e Warwick franziu ainda mais profundamente a testa. — Vocês entraram numa fria, rapazes! Ainda não se deram conta? Será que vou ter de entrar em detalhes? As coisas estão cada vez mais pretas por aqui. Ele teve plena consciência disso... Ele farejou o perigo! Gardener está deixando vocês numa enrascada! E, pelo que se ouviu lá era cima...

Singer se desvencilhou do aperto desanimado de Warwick e empurrou o rosto de Jack. A cabeça foi jogada para o lado, depois voltou lentamente ao lugar.

— ...é um enguiço e tanto... um enguiço e tanto — Jack concluiu.

— Cale a boca ou mato você! — Singer sibilou. Os números do relógio digital tinham se alterado.

— Cinco minutos agora — Jack avisou.

— Singer — disse Warwick com a voz um tanto embargada —, vamos tirá-lo dessa coisa.

— Não! — O grito de Singer foi furioso, amargurado e, no fim das contas, bastante assustado.

— Você não se lembra do que o reverendo disse? — Warwick falou rapidamente. — Há pouco tempo, quando o pessoal da TV veio aqui? Ninguém pode ver as camisas-de-força. Eles não compreende­riam. Eles...

Click! O intercomunicador do estúdio.

— Singer! Andy! — Casey parecia em pânico. — Estão mais perto! As sirenes! Cristo! O que vamos fazer?

— Vamos desamarrá-lo já! — Só dois pequenos pontos vermelhos nas bochechas quebravam a pa­lidez do rosto de Warwick.

— O Reverendo Gardener também disse...

— O que ele disse ou não disse não vale merda nenhuma! — Warwick perdeu completamente a fibra e falou como uma criança morrendo de medo: — Vamos ser apanhados, Singer! Vamos ser

E Jack agora julgava que já podia ouvir as sirenes, ou talvez fosse apenas sua imaginação.

Os olhos de Singer rolaram para Jack com horrível, desesperada indecisão. Ele levantou o cano do revólver e, por um instante, Jack acreditou que Singer ia realmente atirar.

Mas já tinham passado seis minutos e nenhuma buzina vinha do Ente supremo anunciando que o deus ex machina estava de saída para Muncie.

— Você o solta — disse Singer com ar sombrio para Andy Warwick. — Não quero nem encostar a mão nele. É um pecador. É um veado.

Singer recuou para a escrivaninha enquanto os dedos de Andy Warwick desfaziam os nós da cami­sa-de-força.

— É melhor ficar de bico calado — Singer resfolegou. — É melhor ficar de bico calado, se não qui­ser morrer.

Livre o braço direito.

Livre o braço esquerdo.

Os braços desabaram como se não tivessem ossos. Agulhas e alfinetes formigaram de cima abaixo.

Warwick desamarrou-lhe o traje odioso, a horrível lona pardacenta, os cordões de couro. Warwick fitou a camisa-de-força em suas mãos e fez uma careta. Depois disparou pela sala e enfiou-a no cofre de Sunlight Gardener.

— Levante as calças! — disse Singer. — Acha que estamos interessados em seus colhões?

Jack remexeu na roupa, pegou o cós da calça e conseguiu levantá-la junto com a cueca. Clik! O intercomunicador do estúdio.

— Singer! Andy! — entrou a voz de Casey num tom de pânico. — Estou ouvindo alguma coisa!

— Estão entrando na casa? — Singer quase gritou. Warwick redobrou seus esforços para enfiara camisa-de-força no cofre. — Estão entrando pela porta da frente...?

— Não! É na capela! Não consigo ver nada, mas estou ouvindo alguma coisa se mexer lá dentro...

Houve uma explosão de estilhaços de vidro quando Lobo saltou da escuridão da capela e invadiu o estúdio.

 

Os gritos de Casey, quando ele recuou da mesa de som em sua cadeira de rodinhas, foram tremendamente amplificados.

Do lado de dentro do estúdio, houve uma breve tempestade de vidro. Lobo aterrissou de quatro no declive da mesa de som e, meio caindo, meio subindo, seus olhos atiraram um clarão vermelho. As garras compridas acionavam teclas e chaves. O grande gravador Sony começou a girar:

— comunistas! — berrou a voz de Sunlight Gardener. Fora ativada em máximo volume, afogando os gritos estridentes de Casey e Warwick dizendo atire nele, Singer, atire nele, atire, Singer! E não era só a voz de Gardener. Em segundo plano, enquanto os microfones de Casey captavam a caravana de carros de polícia se aproximando da Casa do Sol, ouvia-se, como um fundo musical do inferno, o gorjeio de muitas sirenes.

— Oh, eles vão dizes a vocês que não faz mal nenhum dar uma olhada nesses livros imorais! Eles vão dizer a vocês que não faz mal nenhum que seja contra a lei rezar em conjunto nas escolas públicas! Eles vão dizer a vocês que não faz mal nenhum que existam 16 deputados e dois governadores americanos declaradamente homossexuais! Eles vão dizer a vocês...

A cadeira de Casey bateu no vidro entre o estúdio e a sala de Sunlight Gardener. Sua cabeça se vi­rou para o lado e, por uma fração de segundo, todos puderam ver os olhos agoniados, saltando das órbitas. Então Lobo saltou da beira da mesa de som. O focinho atingiu a barriga de Casey... e mergulhou den­tro dela. As mandíbulas começaram a abrir e fechar com a velocidade de um cortador elétrico de cana. O sangue jorrou e borrifou a janela quando Casey começou a entrar em convulsões.

— Atire nele, Singer, atire na porra dessa coisa!— Warwick berrou.

— Acho que prefiro matar este aqui! — disse Singer virando-se para Jack. Tinha a expressão de um homem que finalmente chegara a uma grande conclusão. Balançava a cabeça, começava a sorrir.

— O dia está chegando, rapazes! Oh, sim, um dia grandioso! e desse dia em diante, a canalha comunista, subversiva e ateísta vai descobrir que as montanhas não lhe servirão de abrigo e as árvores secas não a protegerão! Ela vai, aleluia!, ela vai cair...

Lobo rosnava e rasgava.

Sunlight Gardener declamava sobre comunismo e ateísmo, sobre cães do inferno defendendo a maconha e querendo que as aulas de religião não voltassem nunca mais às escolas públicas.

Sirenes do lado de fora; portas de carro batendo; alguém dizendo a alguém para ir com calma, alguém assustado.

— Sim, a culpa é sua! Foi você que provocou toda essa confusão.

Singer levantou o 45. O cano parecia tão grande quanto a boca do túnel de Oatley.

A parede de vidro entre o estúdio e o escritório implodiu com um ronco muito alto de tosse. Uma forma cinza-escuro e peluda explodiu na sala, o focinho quase rasgado ao meio por um estilhaço de vi­dro, os dentes sangrando. Deixou escapar um uivo quase humano e um pensamento atingiu com tanta força a cabeça de Jack que o fez recuar num passo inseguro.

Nunca se pode ferir o rebanho!

— Lobo! — ele gritou. — Cuidado! Cuidado, Lobo, ele tem um re...

Singer puxou duas vezes o gatilho. Os estampidos foram ensurdecedores no pequeno espaço do gabinete. Os tiros não foram dirigidos a Lobo; foram dirigidos a Jack. Mas, apesar disso, acabaram atingin­do Lobo porque, naquele momento, ele estava no meio de um salto entre os dois rapazes. Jack viu bura­cos enormes, esfiapados, sangrentos, na parte do corpo de Lobo por onde as balas saíram. As balas ricochetearam depois de atravessarem as costelas de Lobo, mas Jack não foi atingido por nenhuma delas (em­bora um sopro de vento tenha roçado em sua face esquerda).

— Lobo!

O pulo ágil e veloz de Lobo se tornou desequilibrado. O ombro direito rolou para o lado e ele se esborrachou contra a parede, respingando sangue e derrubando um retrato emoldurado de Sunlight Gardener com um pequeno barrete de comendador.

Rindo, Singer virou-se para Lobo e atirou de novo. Segurava o revólver com as duas mãos e seus ombros tinham tremido com o coice. A fumaça de pólvora elevou-se numa coluna densa, tóxica, quase imóvel. Lobo se debateu nas quatro patas e, de repente, conseguiu se erguer outra vez. Um dilacerante, pungente grito de dor e raiva se sobrepôs à trovoada de Sunlight Gardener no gravador.

Singer atirou pela quarta vez. A bala escavou um buraco no braço esquerdo de Lobo. Jorrou san­gue e cartilagens.

— Jacky! Jacky, oh, Jacky, isso dói, dói muito...

Jack avançou num passo vacilante e agarrou o relógio digital de Gardener; era a única coisa que estava à mão.

— Singer, cuidado!— Warwick gritou. — Olhe...

Então Lobo, o corpo agora transformado num sangrento emaranhado de pêlos e pedaços de carne, se atirou contra ele. Warwick lutou com Lobo e, por um instante, os dois pareceram estar quase dançando.

— ... Num lago de fogo eterno! Pois a Bíblia diz...

E quando Singer começou a se virar, Jack lhe bateu, com toda a força, com o relógio digital na ca­beça. O plástico estalou e rompeu. Os números do mostrador começaram a piscar descontroladamente.

Singer rodopiou, tentando manter o revólver apontado. Jack brandiu o rádio num pequeno arco que foi desaguar na boca de Singer. Os lábios de Singer retrocederam num grande sorriso de espelho deformante. Houve um ruído frágil de estalo como se os dentes tivessem quebrado. O dedo vibrou de novo sobre o gatilho. A bala, porém, passou entre os seus pés.

Ele cambaleou, bateu na parede, recuperou o equilíbrio e sorriu para Jack por entre o sangue dos lábios. Oscilando, levantou de novo o revólver.

— Cão do inferno...

Lobo arremessou Warwick. Warwick cortou o ar com a maior facilidade e atingiu Singer nas costas no momento exato em que ele atirava. A bala saiu ricocheteando pelo gabinete e acabou se alojando num dos gravadores do estúdio de som. A estridente declamação de Sunlight Gardener cessou. Um rumor oco e grave de feedback começou a sair dos alto-falantes.

Rosnando, cambaleando, Lobo avançou para Singer. Singer apontou o 45 e puxou o gatilho. Houve um estalido seco, inofensivo. A munição acabara e o sorriso úmido de Singer sumiu num passe de mágica.

— Não — ele disse em voz baixa e puxou o gatilho outra vez... outra vez... outra vez. Quando Lobo avançou, ele atirou o revólver e tentou correr em volta da grande escrivaninha de Gardener. O 45 atingiu o crânio de Lobo, que numa última e já enfraquecida explosão de energia saltou pela escrivaninha atrás de Singer, esparramando tudo o que havia sobre ela. Singer esquivou-se para um canto, mas Lobo conseguiu lhe agarrar o braço.

— Não! — Singer gritou. — Não! Se fizer isso, vai voltar para a Caixa. Agora quem manda aqui dentro sou eu, eu... eu... euuuuuuuuuu...!

Lobo torceu o braço de Singer. Houve um som de algo rasgando, o som de uma coxa de galinha sendo arrancada do frango assado por uma criança endiabrada. Subitamente, todo o braço de Singer jazia separado do corpo na grande pata dianteira de Lobo. Singer oscilou, o sangue brotando aos borbotões de seu ombro. Jack viu uma branca e úmida saliência de osso. Virou o rosto com uma brusca vontade de vomitar.

Por um instante, tudo ao redor pareceu ondular na escuridão.

 

Quando ele se virou de novo, Lobo se sacudia no meio do matadouro em que o gabinete de Gardener se transformara. Seus olhos se derretiam num amarelo pálido, como velas que se apagam. Alguma coisa estava acontecendo no rosto, nos braços e pernas do amigo — ele estava se tor­nando outra vez o velho Lobo, oh, Lobo... E então Jack compreendeu plenamente o que aquilo significa­va. As velhas lendas mentiam ao dizer que apenas balas de prata podiam destruir um lobisomem, mas, ao que parecia, sobre certas coisas elas não mentiam. A metamorfose de Lobo estava cessando porque ele ia morrer.

— Lobo, não! — Jack gritou conseguindo se levantar. Deu um passo em direção ao companheiro. escorregou numa poça de sangue, caiu de joelhos, tornou a se levantar. — Não!

— Jacky...

A voz era baixa, gutural, pouco mais que um gemido... mas compreensível.

E, por mais estranho que fosse, Lobo estava tentando sorrir.

Warwick tinha aberto a porta do gabinete de Gardener. Ia recuando devagar pela escada, os olhos arregalados numa expressão de choque.

— Vá embora! — Jack gritou. — Vá embora, saía daqui!— Andy Warwick fugiu como um coelho assustado.

No intercomunicador, uma voz — a voz de Franky Williams — interrompeu o chiado oco do gra­vador. Franky estava horrorizado, mas tomado por uma mórbida, doentia vibração.

— Jesus, veja isto! Parece que alguém andou fazendo muita besteira com um facão! Mande os rapa­zes darem uma olhada na cozinha!                                   

— Jacky...

Lobo desmoronou como uma árvore depois de serrada.

Jack se ajoelhou e virou-o de frente. O pêlo ia se dissipando das bochechas com a velocidade má­gica de uma revelação fotográfica. O tom castanho-claro voltava a seus olhos. E Jack o achou terrivelmen­te fatigado.

— Jacky...

Lobo ergueu a mão ensangüentada e tocou o rosto do amigo.

— Atiraram... em você? Ele atirou em...

— Não — disse Jack, segurando a cabeça de Lobo. — Não, Lobo, ninguém atirou em mim. Ninguém.

— Eu...

Os olhos de Lobo se fecharam e, vagarosamente, tornaram a se abrir. Ele sorriu com incrível suavi­dade e falou com cuidado, pronunciando nitidamente cada palavra, como se precisasse transmitir pelo menos aquilo antes de morrer:

— Eu... soube manter... meu rebanho... a salvo.

— Sim, você conseguiu — disse Jack, e as lágrimas começaram a cair de seus olhos. A dor lhe apertava o peito. Continuava segurando a cabeça cabeluda e cansada do amigo. E chorava. — Você con­seguiu, rapaz! Meu bom e velho Lobo!

— Bom... bom e velho Jacky.

— Lobo, eu vou até lá em cima... Há policiais... Pode haver uma ambulância...

— Não! — Lobo pareceu fazer um grande esforço para falar e mover a cabeça. — Não se preocupe comigo... Vá em frente... Sozinho...

— Não sem você, Lobo!

Todas as luzes tinham se tornado duplas, triplas. Jack segurava a cabeça do amigo com as mãos queimadas.

— Não sem você, hã-hã, de jeito nenhum...

— Lobo... não quer viver neste mundo. — Ele sugou uma grande e trêmula arfada de ar para o pei­to destroçado, enorme. Tentou sorrir mais uma vez. — Os cheiros... os cheiros são muito ruins.

— Lobo... escute, Lobo...

Lobo pegou suavemente as mãos do amigo e Jack pôde sentir os pêlos sumindo das palmas de suas mãos. Era uma sensação terrível, fantasmagórica.

— Gosto muito de você, Jack.

— Também gosto muito de você, Lobo — disse Jack. — Aqui e agora.

Lobo sorriu.

— Estou voltando, Jacky... Eu posso sentir isso. Voltando...

Subitamente, as próprias mãos de Lobo foram ficando sem substância dentro dos punhos de Jack.

— Lobo!

— Voltando pra casa...

— Lobo, não! — Jack sentiu o coração disparar, estalar dentro do peito. Podia quebrar, oh sim, há corações partidos, ele sabia muito bem. — Lobo, oh, Lobo, volte! Gosto tanto de você!

Havia uma sensação de leveza no corpo de Lobo, como se ele estivesse se transformando no algo­dão dos campos ou num lampejo de fantasia... Como um sonho de olhos abertos.

— Tchau, rapaz...

Lobo ia ficando transparente como vidro e se extinguia... se extinguia... se extinguia...

— Lobo!

E-eu gosto muito de você, J...

Lobo se fora. Havia apenas um contorno ensangüentado no pedaço de chão onde ele caíra.

— Oh, Deus — Jack gemeu. — Oh, Deus, Deus!

Ele abraçou a si mesmo e começou a balançar de um lado para o outro no gabinete destroçado de Sunlight Gardener, gemendo.

 

JACK ESCAPA OUTRA VEZ

O tempo passava. Jack não tinha idéia se muito depressa ou muito devagar. Conti­nuava sentado. Abraçava o próprio peito como se ainda estivesse na camisa-de-força. Balançava de um lado para o outro. Gemia e se perguntava se era mesmo verdade que Lobo tivesse desaparecido.

Ele se foi. Oh, sim, ele se foi. E adivinhe quem o matou, Jack! Procure adivinhar...

De repente, o ruído oco do gravador adquiriu um tom agudo. Logo em seguida ouviu-se um alto zumbido de estática e tudo cessou: o rumor do feedback, as vozes lá em cima, o barulho de motores em marcha lenta na frente da casa. Mas Jack mal se dava conta do que se passava à sua volta.

Vá em frente! Lobo disse: Vá em frente!

Não posso. Não posso. Estou cansado e tudo o que faço dá errado. Já morreram pessoas...

Pare com essa autopiedade imbecil! Pense na sua mãe, Jack!

Não! Estou cansado. Me deixe em paz!

E na rainha.

Por favor, me deixe em paz...

Por fim, ele ouviu a porta sendo aberta no alto da escada e aquilo o despertou. Não queria ser en­contrado ali. Que o pegassem lá fora, nos fundos da casa, mas não naquele gabinete enfumaçado, fedo­rento, cheio de sangue, onde ele fora torturado e seu amigo morto.

Sem pensar no que estava fazendo, pegou o envelope com a inscrição Jack Parker. Olhou lá den­tro e viu a palheta do violão, o dólar de prata, a velha carteira de dinheiro e o mapa rodoviário. Inclinou o envelope e viu a bola de gude. Enfiou tudo na mochila e, quase num estado de hipnose, colocou-a nas costas.

Passos nos degraus, abafados e cautelosos.

— Onde está o maldito interruptor?

— Cheiro engraçado. De zoológico...

— Vejam isto, rapazes...

O olho de Jack resvalou pelo fichário de metal, cheio de envelopes com a inscrição: serei um raio de sol para Jesus. Pegou dois.

Agora, quando me agarrarem, poderão me acusar de roubo, além de assassinato.

Não importava. Seus movimentos eram automáticos, quase involuntários.

O pátio dos fundos parecia completamente deserto. Jack foi até a escada que, atravessando uma pequena sacada, saía do gabinete e olhou ao redor, incapaz de acreditar no que via. Da frente da casa vinham gritos, feixes de lanterna, e ocasionais ruídos de estática e vozes rápidas nos rádios dos carros de polícia (que deviam estar ligados no último volume), mas o pátio dos fundos estava vazio. Aquilo não fa­zia sentido. Só se estivessem confusos demais, assustados demais com o que tinham encontrado no inte­rior da Casa do Sol...

Então Jack ouviu uma voz abafada, menos de seis metros à sua esquerda:

— Cristo! Você acredita nisto?

A cabeça de Jack se voltou rapidamente. Jogada no meio do pátio, como um grosseiro ataúde da Idade do Ferro, lá estava a Caixa. O feixe de uma lanterna movia-se dentro dela. Jack pôde ver sapatos avançando e um vulto escuro se curvou diante da Caixa para examinar a porta.

— Olhe como ela foi arrancada das dobradiças! — gritou o sujeito para dentro da Caixa. — Não sei como alguém conseguiu fazer isto! As dobradiças eram de aço. Mas foram simplesmente... torcidas e arrancadas!

— Pouco importam as dobradiças — respondeu a voz abafada. — Esta maldita coisa... Eles tranca­vam garotos aqui dentro, Paulie! Acho que realmente faziam isso! Garotos, crianças! Há iniciais gravadas nas paredes...

O feixe da lanterna se mexeu.

— ...e versículos da Bíblia...

A luz se moveu de novo.

— ...e desenhos. Pequenos desenhos. Aqueles bonequinhos que as crianças gostam de fazer... Cristo! Você acha que Williams sabia o que se passava aqui?

— Acho que sim — disse Paulie, ainda examinando as dobradiças torcidas e arrancadas da porta da Caixa.

Paulie se curvou e entrou na Caixa; o colega saiu. Sem tomar nenhum cuidado especial para se es­conder, Jack atravessou a sacada, passou pelo lado da garagem e foi dar na beira da estrada. De lá teve uma visão do amontoado de carros de polícia na frente da Casa do Sol. Uma ambulância se aproximava da fachada a toda a velocidade, as luzes piscando, a sirene tocando.

— Gostava muito de você, Lobo — Jack murmurou e enxugou os olhos com o braço. Foi seguindo na escuridão pela beira da estrada, achando que muito provavelmente seria apanhado antes de conseguir se afastar um quilômetro para oeste.

Três horas mais tarde, porém, ele ainda estava andando sem ser molestado; ao que tudo indicava, os tiras estavam mais do que ocupados lá atrás.

 

Uma ou duas lombadas à frente, havia uma grande rodovia. Jack podia ver no horizonte o intenso brilho alaranjado das lâmpadas de mercúrio; podia ouvir o zumbido dos grandes caminhões.

Parou junto a um barranco cheio de lixo e lavou o rosto e as mãos no filete de água que jorrava de um bueiro. A água era quase paralisantemente fria, mas silenciou durante algum tempo o latejar das quei­maduras nas mãos. A ansiedade anterior, porém, ia retornando de modo quase incontrolável.

Jack ficou um instante parado, sob o escuro céu noturno de Indiana, atento ao rumor do tráfego pesado na rodovia.

O vento, murmurando entre as árvores, agitava o seu cabelo. A perda de Lobo pesava em seu pei­to, mas era irremediável... E talvez Lobo estivesse melhor agora.

Uma hora depois, um caminhão se aproximou lentamente do garoto pálido e cansado parado no acostamento com o polegar em pé. Jack subiu na cabine.

— Para onde vai? — o motorista perguntou.

Jack estava exausto e triste demais para se preocupar com a historinha. Além disso, mal se lembra­va dela, embora achasse que poderia trazê-la à memória se fosse preciso.

— Para oeste — disse ele. — Até o ponto mais longe que você for.

— Vou até Midstate.

— Ótimo — disse Jack, e adormeceu quase no mesmo instante.

O grande Diamond Reo rolou pela noite fria de Indiana. Com Charlie Daniels cantando no to­ca-fitas, o caminhão seguia para oeste, perseguindo a luz de seus grandes faróis na direção de Illinois.

 

O SONHO DE JACK

Sem dúvida Lobo ia junto com ele. Lobo fora para casa, mas uma grande sombra viajava a seu lado em todos os caminhões, kombis e carros poeirentos que disparavam pelas estradas do Illinois. Aquele fantasma sorridente penetrava no coração de Jack. Às vezes ele podia ver — quase po­dia ver— a enorme forma cabeluda de Lobo se alongando pelo acostamento, irrompendo pelos campos secos por causa do frio. Livre, Lobo o fitava com olhos alaranjados. E ao virar a cabeça Jack sentia a ausên­cia da mão do amigo se curvando em volta da sua. Agora que o perdera completamente, a lembrança de sua impaciência com Lobo o envergonhava, fazia o sangue aflorar ao seu rosto. Um número incontável de vezes pensara em abandonar o amigo Lobo. Uma vergonha, uma vergonha. Lobo fora... Jack demorou um certo tempo para concluir, mas a palavra certa era nobre. E aquele caráter nobre, tão deslocado neste mundo, morrera por ele.

Eu soube manter meu rebanho a salvo. Agora Jack Sawyer não era mais o rebanho. Eu soube manter meu rebanho a salvo. Às vezes os motoristas de caminhão ou agentes de seguros que pegavam aquele estranho e fascinante garoto na beira da estrada — embora Jack estivesse cabeludo e sujo de poeira — olhavam para o lado e viam uma lágrima cintilando em seus olhos.

Jack chorava por Lobo enquanto percorria o Illinois. Percebeu de imediato que não teria proble­mas em conseguir carona naquela região; e em geral só precisava levantar o polegar e olhar o motorista dentro dos olhos. A carona era instantânea. A maioria dos sujeitos nem sequer exigia a historinha. Tudo o que precisava fazer era dar uma explicação sumária por estar viajando sozinho. “Vou visitar um amigo em Springfield”, ou “Tenho de pegar um carro e trazê-lo para casa”. “Ótimo!”, diziam os motoristas. Será que eles tinham ouvido bem? Jack não saberia responder. Sua mente disparava por entre uma enorme pilha de imagens de Lobo. Lobo se atirando num rio para salvar as criaturas que guiava nos Territórios, Lobo chei­rando e mordendo a caixa de um hamburgão, Lobo empurrando comida por baixo da porta do depósito de lenha, Lobo explodindo no estúdio de som, sendo baleado por Singer, desaparecendo... Jack não que­ria ficar revendo essas coisas, mas elas não lhe saíam da cabeça e seus olhos ardiam de lágrimas.

Não muito distante de Danville, um homem baixo e cinqüentão, com cabelo grisalho em um tom metálico, e a divertida mas severa expressão de quem passou duas décadas lecionando num ginásio, con­tinuou lhe dirigindo olhares tímidos atrás do volante. Por fim, conseguiu dizer:

— Devia estar usando um casaco, não essa jaqueta, rapaz! Não está com frio?

— Mais ou menos — disse Jack. Sunlight Gardener achava que aquelas jaquetas de brim eram sufi­cientemente quentes para o trabalho no campo durante o inverno. O frio, no entanto, parecia penetrar através de todos os poros de Jack.

— Tem um casaco no banco traseiro — disse o homem. — Pode pegá-lo. Não, nem precisa agra­decer! O casaco é seu! Acredite em mim, eu não preciso dele.

— Mas...

— Você não tem escolha, rapaz. O casaco agora é seu. Pode vestir.

Jack estendeu a mão para o banco de trás e puxou um pesado monte de tecido. A princípio, parecia uma coisa sem forma, indefinível. Então surgiu um bolso enorme e um botão com colchete. Era um casaco bem grosso, cheirando a fumo de cachimbo.

— É meu velho casaco — disse o homem. — Só o conservava no carro porque não sabia o que fa­zer com ele. No ano passado, os garotos me deram essa coisa peluda que estou usando. Portanto, você pode ficar com esse.

Jack vestiu logo o enorme casaco sobre a jaqueta de brim.

— Puxa vida! — exclamou. Era como ser abraçado por um urso depois de ficar nu numa tempes­tade de neve.

— Ficou muito bem — disse o homem. — Agora, quando estiver de novo pedindo carona no meio do frio e da ventania da estrada, agradeça a Myles P. Kiger, de Ogden, no Illinois, por lhe ter salvo a pele, sua...

Myles P. Kiger parou, mas sem dúvida tivera intenção de dizer mais alguma coisa: por um segundo a palavra ficou pairando no ar, e o homem ainda sorria; depois o sorriso se transformou num ar sem graça e Kiger voltou a cabeça para a frente. Na luz cinzenta da manhã, Jack viu uma mancha vermelha se espa­lhar em seu rosto.

Sua maldita (ou qualquer outra coisa) pele?

Oh, não.

Sua bonita pele. Sua pele adorável, beijável, tocável... Jack enfiou as mãos nos bolsos e apertou bastante o casaco contra o corpo. Myles P. Kiger, de Ogden, Illinois, tinha os olhos fixos na estrada.

— Eh-eh — disse Kiger, lembrando um personagem de história em quadrinhos.

— Obrigado pelo casaco — Jack falou. — Obrigado mesmo. Vou me lembrar do senhor sempre que usá-lo.

— É claro — disse Kieger —, mas esqueça isso.

Por um segundo, seu rosto ficou extremamente parecido com o do pobre Donny Keegan da Casa do Sol.

— Um pouco à frente há um lugar tranqüilo... — O tom de Kiger foi convulso, abrupto, cheio de uma falsa calma. — Se quiser, podemos almoçar lá.

— Não tenho dinheiro algum — disse Jack, uma afirmação exatamente dois dólares e 38 centavos distante da verdade.

— Não se preocupe com isso. — Kiger já tinha batido no volante com o indicador.

O carro aproximou-se de uma área de estacionamento quase vazia, onde Ventava muito. Na frente, havia uma construção cinzenta que lembrava um vagão de trem. A tabuleta de néon sobre a porta princi­pal faiscava empire Diner, Kiger parou diante de uma das grandes janelas do restaurante e os dois saltaram. O casaco era bem quente, Jack percebeu. Sentia o peito e os braços protegidos por uma couraça de lá. Jack começou a caminhar para a porta sob o pisca-pisca de néon, mas deu meia-volta quando percebeu que Kiger continuara ao lado do carro. O cinqüentão de cabelos grisalhos, só dois ou três centímetros mais alto que Jack, fitava-o sobre a capota.

— E aí? — disse Kiger.

— Olhe, eu gostaria de lhe devolver o casaco — Jack respondeu.

— Não, o casaco é seu. Eu só estava pensando que, para falar a verdade, não estou com fome ne­nhuma. E, se continuar agora minha viagem, posso chegar em casa bem mais cedo.

— É claro — disse Jack.

— Vai ser fácil pegar outra carona aqui. Pode ter certeza. Eu não iria deixá-lo na pior, num lugar qualquer da estrada.

— Tudo bem.

— Espere. Eu o convidei para o almoço, e quem convida paga. — Ele pôs a mão no bolso e passou uma nota pelo teto do carro. O vento frio jogava o seu cabelo na testa. — Pegue.

— Não, não precisa mesmo! — disse Jack. — Está tudo bem. Tenho alguns dólares.

— Ora, rapaz, coma um bom bife! — disse Kiger inclinando a cédula sobre a capota do carro como se passasse a um náufrago o bote salva-vidas.

Jack avançou com relutância e pegou a nota dos dedos estendidos de Kiger. Eram dez dólares.

— Muito obrigado. Obrigado mesmo.

— Por que não fica também com o jornal? É bom ter alguma coisa para ler, certo? Pode ter que es­perar um pouco, ou sei lá! — Kiger já abrira a porta do carro e se inclinava para pegar um pequeno tablóide jogado no banco de trás. — Não se preocupe, eu já li! — Atirou o jornal para Jack.

Os bolsos do casaco eram tão espaçosos que o jornal coube muito bem num deles.

Myles P. Kiger parou uma fração de segundo ao lado da porta aberta do carro e estreitou os olhos.

— Se não se importa que eu diga isso, acho que você vai ter uma vida muito interessante — ele falou.

— Já é muito interessante — Jack respondeu com ar pensativo.

O churrasco Salisbury custava cinco dólares e 40 centavos e vinha acompanhado de batatas fritas. Jack sentou na ponta do balcão e abriu o jornal. A reportagem que o interessava estava na página dois; na véspera, ele a tinha visto na primeira página de um jornal de Indiana. carnificina na casa do sol provoca prisões. O juiz local, Ernest Fairchild, e o Sargento Prank B. Williams, da polícia de Cayuga, Indiana, ti­nham sido acusados de malversação de fundos públicos e aceitação de suborno no decurso das investiga­ções sobre a morte de seis rapazes na Casa Evangélica do Sol, estabelecimento que se destinava a alojar meninos vindos de lares desagregados. Ao que tudo indicava, o popular pastor Robert Sunlight Gardener conseguira escapar da Casa pouco antes da chegada da polícia e, embora o mandato de sua prisão pre­ventiva ainda não tivesse sido expedido, ele já estava sendo procurado para prestar depoimento. outro Jim Jones?, dizia a legenda sob uma esplêndida foto de Gardener, braços estendidos para as almas que pre­cisavam de salvação, cabelo caindo em ondas imaculadas. Cães treinados levaram a Polícia Estadual a uma área perto de cercas eletrificadas onde havia corpos de rapazes enterrados sem qualquer cerimônia fúnebre; ao que parecia, cinco corpos, a maioria deles num estado já tão avançado de decomposição que a identificação não era mais possível. Provavelmente só conseguiriam identificar o cadáver de Ferd Janklow. Seus pais ainda teriam oportunidade de lhe proporcionar um verdadeiro funeral e teriam uma boa chance para se questionar e descobrir onde, exatamente, tinham errado; e como o amor que devotavam a Jesus condenara o filho esperto, inteligente e rebelde a um fim tão doloroso.

O churrasco Salisbury foi servido e estava salgado e duro, mas Jack devorou-o até o último pedaço, sem esquecer as batatas fritas um tanto moles e engorduradas. Estava acabando a refeição quando um barbado motorista de caminhão, o boné da Detroit Tigers caído de lado sobre um cabelo preto e compri­do, um casaco que parecia confeccionado de pele de lobo e um grosso charuto na boca, parou a seu lado e perguntou:

— Se precisa de uma carona para o oeste, rapaz, vou até Decatur.

A meio caminho de Springfield, exatamente o que ele precisava.

 

Naquela noite, num hotel de três dólares que o motorista lhe indicara, Jack teve dois sonhos distintos (é possível até que, mais tarde, sua memória tenha selecionado apenas esses dois dentre os muitos sonhos que podem ter se desenrolado em seu sono; é possível ainda que os dois sonhos constituíssem, na realidade, um único sonho longo e confuso). Ele trancara a porta, mijara na pia rachada e manchada do canto do quarto, escondera a mochila sob o travesseiro, e adormecera segurando a grande bola de gude que, nos Territórios, se transformava num espelho. Então ele ouviu longe uma música, como uma música de fundo de filme — uma vibrante melodia de jazz, mas num volume tão baixo que Jack mal pôde perceber que o solo era de trompete e sax tenor. Richard, Jack pensou entorpecido, amanhã devo me encontrar com Richard Sloat e, pela declinação do som, foi mergulhando em total inconsciência.

Lobo trotava em sua direção através de uma paisagem enfumaçada e cheia de ruínas. Cercas de arame farpado, às vezes se enrascando em fantásticos e irregulares montes de farpas, separavam os dois, Fossos profundos também dividiam a terra devastada. Lobo saltou com facilidade um desses fossos, mas quase caiu sobre uma das cercas de arame.

— Cuidado! — Jack gritou.

Lobo conseguiu se equilibrar antes de desabar sobre a fileira tripla de farpas. Levantou uma grande pata para mostrar a Jack que não tinha se machucado e depois, cuidadosamente, pulou a cerca.

Uma espantosa sensação de felicidade e alívio atravessou o corpo de Jack. Lobo não tinha morri­do; Lobo se juntaria novamente a ele.

Lobo saltou mais uma cerca de arame farpado e continuou a correr em sua direção. Mas a distância entre Jack e Lobo parecia aumentar misteriosamente; a fumaça cinzenta que saía dos inúmeros fossos quase obscurecia a grande e peluda figura que tentava chegar até ele.

— Jasão! — Lobo gritava. — Jasão! Jasão!

— Ainda estou aqui! — Jack respondeu.                                           

— Não consigo chegar, Jasão! Lobo não consegue chegar!

— Continue tentando — Jack berrou. — Não desista, porra!

Lobo fez uma pausa diante de um impenetrável monte de arame e, através da fumaça, Jack viu-o cair de quatro e trotar de um lado para o outro, tentando farejar um espaço aberto. De uma ponta à outra Lobo trotava, cada vez avançando uma distância maior e se tornando, a cada segundo, mais nitidamente transtornado. Finalmente Lobo tornou a ficar de pé, pousou as mãos no grosso emaranhado de arame e forçou um espaço através do qual pudesse ao menos gritar.

— Lobo não pode! Jasão, Lobo não pode!

— Gosto muito de você, Lobo! — Jack gritou para a planície fumegante.

— jasão! — Lobo berrou. — tenha cuidado! Eles estão indo atrás de você! E são muitos!

— Eles quem? — Jack teve vontade de gritar, mas não pôde. Sabia quem eram.

Então, ou todo o sentido do sonho se modificou, ou outro sonho começou. Ele estava de volta ao estúdio de gravações e ao gabinete arruinado da Casa do Sol. Os cheiros de pólvora e carne queimada enchiam o ar. O corpo mutilado de Singer jazia estatelado no chão e o cadáver de Casey pendia do destroça­do painel de vidro. Jack sentou-se com Lobo nos braços e sabia que o amigo estava morrendo. Só que Lobo não era Lobo.

Na realidade, Jack segurava o corpo trêmulo de Richard Sloat, e era Richard quem morria. Atrás das lentes dos grossos óculos de plástico negro, os olhos de Richard expressavam dor e apatia.

— Oh, não, oh, não — Jack sussurrava horrorizado. O braço de Richard fora estraçalhado e o peito era uma polpa de carne podre, a camisa branca manchada de sangue. Ossos fraturados despontavam es­branquiçados aqui e ali, como dentes.

— Eu não quero morrer — disse Richard, cada palavra lhe exigindo um esforço sobre-humano. Ja­são, você não devia... Você não devia ter...

— Você não pode morrer — Jack suplicou —, já chega um.

O tronco de Richard fraquejou nos braços de Jack e um longo som borbulhante escapou-lhe da garganta. Então os olhos de Richard encontraram os de Jack. Estavam límpidos e quietos.

— Jasão.

O som deste nome, que era quase doce, pairou suavemente no mau cheiro do ar.

— Você me matou — Richard sussurrou, ou você mmmmematoouu, pois seus lábios já não con­seguiam formar perfeitamente os fonemas. Os olhos de Richard afundaram para fora de foco e seu corpo pareceu ficar bem mais pesado nos braços de Jack. Não havia mais vida naquele corpo. Chocado, Jasão DeLoessian levantou a cabeça...

 

... E Jack Sawyer levantou-se da cama fria e desconhecida de um albergue barato de Decatur, Illinois. Na escuridão amarela iluminada por um lampião de rua, viu sua respiração flutuar com a exuberância de um sopro de duas bocas ao mesmo tempo. Para não gritar, teve de apertar as mãos contra os lábios e espremê-las com força suficiente para rachar uma noz. Seus pulmões exalaram outra enorme pluma branca de ar.

Richard.

Lobo correndo por aquela paisagem desolada, chamando, chamando... por quem? Jasão.

O coração do rapaz deu um salto rápido e ágil, como o coice de um cavalo derrubando uma cerca.

 

RICHARD NO COLÉGIO

Às onze horas da manhã seguinte, um exausto Jack Sawyer tirou a mochila das cos­tas na margem de um extenso campo de educação física coberto de grama seca e cinzenta. À distância, dois homens com casacos em tecido xadrez e bonés de beisebol trabalhavam com grandes vassourões, ti­rando as folhas do gramado que cercava o conjunto mais distante de pavilhões. À esquerda de Jack, bem atrás dos fundos em tijolo vermelho da biblioteca do Colégio Illayer, ficava a área de estacionamento. De­fronte à fachada da escola, um grande portão conduzia a um caminho ladeado de árvores que circunda­vam um grande pátio cruzado por trilhas estreitas. O que mais se destacava no campus era a biblioteca: uma estrutura de Bauhaus feita de vidro, tijolo e aço.

Jack vira um portão secundário, que conduzia a outra estrada de acesso diante da biblioteca. A es­trada percorria dois terços da extensão do colégio e terminava em depósitos de lixo escondidos num beco arredondado, pouco antes do terreno se elevar para formar o platô do campo de futebol.

Jack começou a atravessar a área de educação física em direção aos fundos dos prédios que abriga­vam as salas de aula. Quando os rapazes saíssem para o refeitório, ele procuraria o alojamento de Richard: Entrada 5, Pavilhão Nelson.

A grama seca de inverno estalava sob seus pés. Jack apertou o excelente casaco de Myles P. Kiger em torno do corpo — pelo menos o casaco lhe dava uma aparência decente. Ele passou entre o Thayer Hall e o dormitório do Pavilhão Spence. Seguia na direção do grande pátio. Vozes preguiçosas, à espera do almoço, atravessavam as janelas do Pavilhão Spence.

 

Jack deu uma olhada no pátio e viu um homem idoso, ligeiramente curvado e com um esverdeado tom de bronze na pele. Estava de pé numa plataforma de cimento da altura de um banco de jardim. Examinava a capa de um livro pesado. O velho Thayer, Jack deduziu. Vestia uma camisa de colarinho duro, uma gravata esvoaçante e uma capa do estilo preferido pelos diretores de colégio e reitores da Nova Inglaterra. O rosto de bronze do velho Thayer inclinava-se sobre o volume e o cocuruto da cabe­ça apontava na direção dos prédios das salas de aula.

Jack virou à direita na ponta da estrada. Ruídos bruscos irromperam de uma alta janela à sua frente -garotos gritando um nome que soava como “Etheridge! Etheridge!”. Depois uma irrupção de gritos e berros, acompanhados pelo barulho de mobília pesada sendo arrastada por um assoalho de madeira.

— Etheridge!

Jack ouviu uma porta batendo atrás de si e virou a cabeça. Um rapaz alto com cabelo louro-escuro descia correndo a escada do Pavilhão Spence. Usava uma jaqueta esporte de tweed, uma gravata e sapatos de couro da L. L. Bean Maine. Apenas um comprido cachecol azul e amarelo, várias vezes enrolado em volta do pescoço, o protegia do frio. O rosto parecia ao mesmo tempo abatido e arrogante. Era a expressão de um veterano numa raiva arrogante. Jack pôs na cabeça o capuz do casaco e continuou seguindo a trilha.

— Não quero que ninguém se mova! — gritou o rapaz alto para a janela fechada. — Não passam de reles calouros, não esqueçam disso!

Jack avançava para o pavilhão vizinho.

— Estão arrastando as cadeiras! — o rapaz alto gritou atrás dele. — Posso ouvi-los muito bem!

Então Jack ouviu o veterano chamá-lo.

— Ei, você! Seja lá quem for! Vá agora mesmo para o Pavilhão Nelson. Vá rápido, acelerado! Ou vou falar agora mesmo com o diretor.

— Sim, senhor — disse Jack e virou-se rapidamente para tomar a direção que o inspetor-aluno in­dicara.

— Está pelo menos sete minutos atrasado!— Etheridge berrou e Jack estremeceu de susto. — Vá rá­pido, acelerado, já disse! — Jack transformou o tremor numa corrida.

Quando começou a descer (esperava que estivesse no caminho certo; pelo menos era a direção em que Etheridge parecia estar olhando), viu um enorme carro preto — uma limusine — começando a dobrar no portão principal e a subir lentamente a longa estrada que conduzia ao pátio. E achou que quem estava atrás dos vidros escuros da limusine não seria o simples pai de um estudante do segundo ano do Colégio Thayer.

O grande carro preto continuava a avançar, com uma lentidão arrogante.

Não, Jack pensou. Já estou querendo ver assombrações onde elas não existem.

Mesmo assim, não conseguiu se mexer. Viu a limusine aproximar-se dos limites do pátio e parar, o motor ainda em funcionamento. Um motorista negro, com ombros de atleta, saltou do banco da frente e abriu a porta traseira. Um velho de cabelos brancos, um desconhecido, levantou-se com esforço do banco do automóvel. Usava um casaco preto que deixava entrever a frente de uma camisa imaculadamente branca e uma cara gravata escura. O homem fez um sinal com a cabeça para o chofer e começou a subir o pátio na direção do pavilhão central. Não lançou sequer um olhar para Jack. O motorista esticou o pes­coço e olhou para o céu, como se tivesse receio de alguma nevasca. Jack deu um passo atrás e contem­plou o homem que se aproximava da escadaria do Thayer Hall. O motorista dava continuidade a um cui­dadoso exame do céu. Jack retrocedeu mais um pouco até se ver protegido pela quina do pavilhão. Então se virou e começou a correr.

 

O Pavilhão Nelson era uma construção de três andares do outro lado do pátio quadrangular. No andar térreo, duas janelas revelavam uma dúzia de veteranos desfrutando seus privilégios: lendo, esparramados em confortáveis poltronas, jogando desatentamente baralho numa mesinha de café, olhando preguiçosamente para o que devia ser um aparelho de TV colocado sob as janelas.

Uma porta invisível bateu com força um pouco acima e, de relance, Jack viu novamente o alto e louro inspetor-aluno, Etheridge, por certo voltando a seu próprio pavilhão após lidar com os crimes dos calouros.                                                                                                                                                     

Jack atravessou a frente do pavilhão e um gosto de vento frio atingiu-o em cheio assim que ele chegou à esquina. Do outro lado da esquina havia uma porta estreita e uma placa (dessa vez de madeira branca com letras negras, de tipo gótico) que dizia: entrada 5. Uma fileira de janelas se estendia até a es­quina seguinte.

E então, na terceira janela, uma sensação de alívio. Pois lá estava Richard Sloat, os óculos presos com firmeza nas orelhas, o nó da gravata impecável, as mãos apenas ligeiramente manchadas de tinta. Sentado reto numa escrivaninha, lia um grosso volume como se daquilo dependesse sua própria vida. Estava de lado para Jack, que teve tempo de avaliar o estimado e bem conhecido perfil de Richard antes de esbarrar na janela e lhe chamar a atenção.

A cabeça de Richard desprendeu-se do livro. Ele arregalou os olhos, desperto e assustado pelo inesperado ruído.

— Richard — disse Jack em voz baixa e foi recompensado pela visão do rosto atônito do amigo vi­rando-se para ele. Richard parecia quase imbecilizado de espanto.

— Abra a janela — disse Jack, articulando exageradamente as palavras para que o amigo pudesse ler os seus lábios.

Ainda movendo-se com a lentidão do susto, Richard se levantou da escrivaninha. Por meio de gestos, Jack pediu que Richard abrisse a janela. Richard pôs a mão no peitoril e, por um instante, encarou severamente o amigo (a olhadela crítica e breve trazia uma avaliação do rosto sujo, encardido de Jack, do cabelo seboso, da chegada intempestiva...) Que diabo você andou aprontando? Finalmente, ele empurrou a janela.

— Bem — disse Richard. — A maioria das pessoas usa a porta.

— Ótimo — disse Jack, quase rindo. — Quando eu for como a maioria das pessoas, provavelmente também usarei a porta. Chegue pra trás, OK?

Ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo, Richard recuou alguns passos.

Jack subiu no peitoril e pulou para dentro.

— Ufa!

— Muito bom, rapaz — disse Richard. — É realmente muito bom encontrá-lo de novo. Mas logo vou ter de sair para o almoço. E você podia aproveitar para tomar um banho, que tal? Não se preocupe, não vai incomodar. Todos estarão no refeitório.

Ele se interrompeu, parecendo receoso de ter falado demais.

Richard, Jack percebeu, teria de ser manejado de modo sutil.

— Será que pode me trazer um pouco de comida? Estou realmente morrendo de fome.

— Ótimo! — disse Richard. — Primeiro você se manda e deixa todo mundo maluco, incluindo meu pai. Depois chega aqui como um assaltante e me pede para lhe roubar um pouco de comida. Incrível rapaz! Muito bom! Muito bom!

— Temos muita coisa para conversar — disse Jack.

— Se — disse Richard, inclinando-se ligeiramente para a frente com as mãos nos bolsos — se pro­meter voltar hoje mesmo para New Hampshire... Se me deixar telefonar para o meu pai e dizer que ele pode vir apanhá-lo. Nestas condições, posso muito bem lhe conseguir um prato de comida.

— Tenho muita coisa para lhe contar, Richard. Preciso conversar muito com você antes de voltar.

Richard concordou com a cabeça.

— Afinal, por onde tem andado? — Seus olhos ardiam de curiosidade sob as grossas lentes dos óculos. Depois houve uma grande piscadela de absoluta perplexidade. — E como pode justificar a manei­ra como você e sua mãe estão tratando meu pai? Que merda, Jack! Eu acho mesmo que devia voltar para aquela praia de New Hampshire.

— Eu vou voltar — disse Jack. — Prometo. Mas primeiro tenho de colocar algumas coisas em or­dem. Posso me sentar em algum lugar? Estou morto de cansaço.

Richard indicou a cama com a cabeça, mas de repente bateu nas costas da cadeira da escrivaninha, que estava, aliás, mais próxima de Jack.

Portas bateram no corredor. Um berreiro de vozes passou pela porta de Richard, uma multidão ar­rastando os pés.

— Você leu alguma coisa sobre a Casa do Sol? — Jack perguntou. — Eu estava lá. Dois amigos meus morreram naquele lugar e, escute esta, Richard, um deles era um lobisomem.

O rosto de Richard se contraiu.

— Bem, isso é uma espantosa coincidência, porque...

— Eu estava realmente na Casa do Sol, Richard.

— Eu compreendo — disse Richard. — Tudo bem. Daqui a meia hora volto com alguma comida. Depois vou lhe contar quem se esconde no quarto ao lado do meu. Mas isso é uma coisa tipo Seabrook Island, certo? Diga a verdade.

— É. Acho que sim.

Jack deixou o casaco que Myles P. Kiger lhe dera cair de seus ombros e pendurou-o nas costas da cadeira.

— Espere por mim aqui — disse Richard. Ao sair do quarto, acenou vagamente para Jack.

Jack arrancou os sapatos dos pés e fechou os olhos.

 

A conversa a que Richard se referira como “uma coisa tipo Seabrook Island”, e da qual Jack se lembrava tão bem quanto o amigo, ocorrera na última semana de umas férias de verão.

Quando Phil Sawyer era vivo, quase todo ano as duas famílias tiravam férias juntas. No verão após sua morte, Morgan Sloat e Lily Sawyer tentaram manter a tradição e foram com os filhos para um grande e velho hotel em Seabrook Island, na Carolina do Sul, onde já haviam passado alguns verões excelentes. Mas a experiência não deu certo.

Os meninos estavam acostumados à companhia um do outro. Também estavam acostumados a lu­gares como Seabrook Island. Richard Sloat e Jack Sawyer tinham feito verdadeiras maratonas de hotel de veraneio, e conhecido as mais belas e ensolaradas praias durante o período de infância — mas agora a at­mosfera tinha se alterado misteriosamente. Uma inesperada seriedade penetrara em suas vidas, uma espé­cie de mal-estar.

A morte de Phil Sawyer mudara o próprio tom do futuro. Naquele último verão em Seabrook, Jack começou a sentir que talvez tivesse mais vontade de sentar na cadeira atrás da escrivaninha do pai (até pouco tempo era o que ele mais queria na vida). Sabia — essa era uma das poucas coisas que ele verda­deiramente sabia — que aquele poderoso desejo de “sentar na cadeira” estava relacionado de alguma for­ma aos sonhos de olhos abertos. E havia “algo mais” naqueles sonhos.

Quando fez essa descoberta, tomou consciência de outra coisa: seu amigo Richard era incapaz de sentir essa qualidade de “algo mais” e, de fato, voltava-se para um lado diametralmente oposto. Richard queria “algo menos”. Reagia negativamente a qualquer coisa que não pudesse entender com facilidade.

Naqueles dias preguiçosos, tão comuns nos balneários, entre o almoço e os drinques de fim de tar­de, Jack e Richard tinham ido passear sozinhos. Não foram muito longe. Limitaram-se a escalar uma colina coberta de pinheiros de onde se avistavam os fundos do hotel. Lá embaixo cintilava a água da enorme pis­cina retangular, onde Lily Cavanaugh Sawyer nadava com suavidade e eficiência de uma ponta a outra e voltava. Numa das mesas à beira da piscina sentava-se o pai de Richard, enrolado num grande e vistoso roupão de banho, descansando os pés em sandálias macias, comendo um sanduíche e segurando um te­lefone sem fio na outra mão.

— É esse tipo de coisa que você quer? — Jack perguntou a Richard, que estava sentado no chão de pernas cruzadas e (não era de espantar) trazia um livro debaixo do braço: A Vida de Thomas Edison.

— O que eu quero? O que eu quero ser quando crescer, é isso? — Richard pareceu um tanto emba­raçado pela pergunta. — É engraçado, mas não sei se quero ter o mesmo tipo de vida do meu pai.

— Você sabe o que você quer, Richard? Você sempre diz que quer ser químico... para fazer expe­riências — disse Jack. — Por que diz isso? O que isso significa?

— Significa simplesmente que quero ser mesmo um químico... para fazer experiências. Richard sorriu.

— Você sabe o que estou dizendo, não sabe? Qual é o sentido para você de ser um químico lidan­do com tubos de ensaio? Acha que seria divertido? Acha que poderia descobrir a cura do câncer e salvar a vida de milhões de pessoas?

Richard encarou-o de frente, os olhos ligeiramente aumentados pelos óculos que há quatro meses começara a usar.

— Não acho que vou descobrir a cura do câncer, não acho mesmo. E, na realidade, o que me inte­ressa não é bem isso. O que me interessa é descobrir como as coisas funcionam. E as coisas realmente funcionam de um modo ordenado, não importa que aparência tenham ou o que se possa descobrir sobre elas.

— Ordem.

— Sim. Por que está rindo?

— Você vai pensar que estou maluco, Richard, mas gostaria de descobrir alguma coisa que fizesse tudo isso, todos esses caras ricos jogando golfe e berrando nos telefones, parecer inteiramente absurdo.

— Mas já parece inteiramente absurdo — disse Richard, sem qualquer intenção de ser engraçado.

— Nunca achou que talvez a vida não seja feita apenas de ordem lógica? — Ele contemplou o rosto cético e inocente de Richard Sloat. — Não gostaria de experimentar uma certa dose de magia, Richard?

— Sabe, às vezes eu acho que você sonha com o caos — disse Richard, ficando um pouco verme­lho. — E acho que está me gozando. Fala em magia para tentar reduzir a cinzas tudo em que acredito. Acho que gostaria de reduzir a cinzas a própria realidade.

— Mas talvez não exista apenas uma realidade.

— Alice no País das Maravilhas, certo?

Richard estava começando a ficar irritado e tratou de escapar por entre os pinheiros. Jack percebeu de imediato que a conversa provocada por suas experiências com os sonhos de olhos abertos tinha enfurecido o amigo. Em segundos, as pernas mais compridas de Jack o emparelharam com Richard.

— Eu não estava falando de gozação — disse. — Só estava curioso para saber por que você sem­pre diz que quer ser químico quando crescer.

Richard se deteve e atirou um olhar arrogante ao colega.

— Pare de me chatear com esse tipo de coisa — disse ele. — Magia é pura tolice, e mesmo em Seabrook Island uma conversa dessas me irrita. Sem dúvida, já é muito difícil ser uma das seis ou sete pessoas realmente sãs da América. Não preciso que meu melhor amigo saia totalmente de órbita.

Daí em diante, Richard Sloat começou a repudiar qualquer tipo de fantasia em Jack, qualificando-a imediatamente de “coisa tipo Seabrook Island”.

 

Quando Richard voltou do refeitório, Jack, que acabara de sair do banho com o cabelo molhado grudado na cabeça, folheava casualmente os livros que havia na escrivaninha. Quando Richard atravessou a porta conduzindo uma substancial quantidade de comida coberta por um guardana­po de papel engordurado, Jack se perguntava se a conversa que viria a seguir não seria mais fácil se os li­vros da escrivaninha fossem O Senhor dos Anéis e O naufrágio, em vez de Química orgânica e Enigmas matemáticos.

— O almoço estava bom? — Jack perguntou.

— Você teve sorte. Galinha à milanesa. Uma das poucas coisas de nossa cozinha que não fazem você lamentar a inutilidade do sacrifício do animal servido.

Passou a Jack o guardanapo manchado. Quatro grossos e macios pedaços de galinha exalavam um aroma de quase inacreditável doçura e densidade. Jack atacou-os com determinação.

— Há quanto tempo vem comendo como se grunhisse em vez de falar? — Richard empurrou os óculos pelo nariz e sentou-se na cama estreita. Sob a jaqueta de tweed, usava uma suéter com listras mar­rons e colarinho em forma de V, cuidadosamente enfiada por dentro da calça.

Jack teve uma sensação de mal-estar. Seria mesmo possível conversar sobre os Territórios com al­guém de espírito tão quadrado? Alguém que ainda usava a suéter por dentro da calça?

— A última vez que comi — disse ele com voz suave — foi ontem, por volta do meio-dia. Estou um pouco faminto, Richard. Obrigado por ter me trazido a galinha. Está ótima! É a melhor galinha que já comi em toda a minha vida! Você é um cara incrível... Arriscando-se até ser expulso por minha causa.

— E pode ter certeza que está dizendo a pura verdade. — Richard pôs a mão na gola da suéter, franzindo a testa. — Se alguém descobrir você aqui, é muito provável que eu seja realmente expulso. Portanto, não queira bancar o engraçadinho. Temos de arranjar um meio de mandá-lo de volta a New Hampshire.

Silêncio, por um instante: um olhar de avaliação por parte de Jack, um olhar severo de Richard.

— Sei que vai querer que eu explique o que está acontecendo — disse Jack com a boca cheia de galinha —, e sem dúvida isso não vai ser fácil.                                                                   

— Você nem parece o mesmo, sabia disso? — Richard perguntou. — Parece... mais velho... E há mais alguma coisa... você está mudado.

— Sei que estou mudado. Você também estaria um pouco diferente se tivesse passado pelas expe­riências que eu passei.

Jack sorriu, fitou a carranca de Richard em suas roupas de bom menino e percebeu que jamais se­ria capaz de contar a Richard o que sabia do pai dele. Simplesmente não ia conseguir. Se as circunstâncias fizessem a revelação por si mesmas, tudo bem, mas ele não possuía sangue-frio suficiente para esse tipo de desmascaramento.

O amigo continuava de testa franzida, esperando com impaciência o início da história.

Talvez para preparar o momento em que teria de tentar convencer o racional Richard Sloat do ina­creditável, Jack perguntou:

— O garoto do quarto ao lado está deixando a escola? Do lado de fora, vi suas malas na cama.

— Oh, sim, é muito interessante — disse Richard. — Quero dizer, o que você falou é muito interes­sante. Ele não está indo embora; de fato, já foi. Acho que alguém deve ter vindo buscar as coisas dele. Só Deus sabe que tipo de enredo fantástico você fará do que vou dizer, mas a verdade é que o garoto do quarto ao lado era Reuel Gardener. Filho daquele pastor que dirigia a casa de onde você escapou. — Ri­chard ignorou o súbito acesso de tosse de Jack. — Em certo sentido, eu diria que Reuel era apenas um vi­zinho anônimo e obscuro. Ao que tudo indica, ninguém aqui lamentou sua partida. Quando publicaram a reportagem sobre as mortes na casa que o pai dele dirigia, Reuel recebeu um telegrama lhe ordenando que deixasse o Colégio Thayer.

Jack conseguiu puxar o pedaço de galinha que quase o engasgara.

— Era filho de Sunlight Gardener? Então o sujeito tinha um filho? E ele estava aqui?

— Ele chegou no início do semestre — disse Richard com ar de desinteresse.

E subitamente, o Colégio Thayer assumia um ar ameaçador que Richard não poderia entender.

— Como era ele?

— Um sádico — disse Richard. — Às vezes, ouviam-se estranhos ruídos vindo do quarto de Reuel. E, certa vez, vi um gato morto na cesta de lixo perto da janela dele. O gato não tinha mais olhos nem ore­lhas. Se você tivesse conhecido Reuel, perceberia de imediato que era o tipo de pessoa capaz de torturar um gato. E exalava um cheiro rançoso de água-de-colônia. — Por um instante, Richard ficou silencioso e profundamente pensativo; depois, perguntou: — Esteve realmente na Casa do Sol?

— Por 30 dias. Aquilo era o inferno nos porões do inferno. — Jack respirou fundo contemplando o rosto contraído, mas pelo menos semiconvencido de Richard. — O que vou dizer é difícil de engolir, eu sei disso, mas o sujeito que andava comigo era um lobisomem. E se não tivesse sido morto ao tentar salvar minha vida, agora estaria aqui, do meu lado e do seu.

— Um lobisomem, cabelo nas palmas das mãos. Um ser que a cada lua cheia se transforma num monstro sedento de sangue. — Richard olhou ao redor do quarto com ar divertido.

Jack esperou que o olhar de Richard voltasse a seu rosto.

— Quer saber o que estou fazendo? Quer saber por que ando pedindo carona de uma ponta a ou­tra do país?

— Vou começar a uivar se não me contar! — Richard exclamou.

— Bem — disse Jack —, estou tentando salvar a vida de minha mãe.

Essas palavras lhe pareceram exalar uma maravilhosa claridade.

— E como pretende fazer isso? — Richard explodiu. — Sua mãe provavelmente está com câncer. Como meu pai já lhe disse, ela precisa de médicos e de tratamento... E você se manda por aí! O que pre­tende fazer para salvar a vida de sua mãe, Jack? Magia?

As lágrimas começaram a arder nos olhos de Jack Sawyer.

— Há muita coisa que você não entende, Richard.

Ele levantou o braço e enxugou os olhos úmidos na manga da camisa.

— Ei, calma, Jack, eu não quis... — disse Richard, agarrando nervosamente a gola da suéter. — Não chore, rapaz, vamos lá, por favor, eu sei que é uma coisa terrível, acho que nem devia ter... mencio­nado...

Richard cruzou rápida e silenciosamente o quarto e tocou carinhosamente no braço e no ombro de Jack.

— Tudo bem — disse Jack abaixando a manga da camisa. — Não é uma fantasia louca, Richard, por mais absurda que pareça. — Ele se sentou de cabeça erguida. — Meu pai me chamava de Jack Viajan­te e, em Arcadia Beach, encontrei um velho que me chamou do mesmo jeito.

Jack esperava que o afeto de Richard quebrasse certas resistências ao caráter fantástico do que ele ia contar. Quando olhou para o rosto do amigo, viu que não se enganara. Richard parecia preocupado, carinhoso, interessado.

Jack deu início à história.

 

Em volta dos dois, a vida do Pavilhão Nelson seguia seu curso normal, ao mesmo tempo calmo e turbulento (como em todos os colégios), sempre pontuado de gritos, ruídos e risos. Passos cruzavam a porta, mas não paravam. Do andar de cima vinham pancadas regulares de uma melodia que Jack identificou como uma gravação do Blue Oyster Cult. Começou a falar a Richard dos sonhos de olhos abertos. Dos sonhos de olhos abertos passou a Speedy Parker. Descreveu a voz lhe falando do funil rodo­piante na areia. E depois explicou como tomara o “suco mágico” de Speedy e, pela primeira vez, “atraves­sara” para os Territórios.

— Mas acho que aquele suco não passava de vinho barato, vinho de uvas podres — disse Jack. -Mais tarde, depois que o suco acabou, descobri que não precisava dele para atravessar. Podia fazer isso por mim mesmo.

— Muito bem — disse Richard sem se comprometer.

Jack tentou descrever os Territórios com riqueza de detalhes: a trilha de carros de bois, a visão do palácio de verão, tudo o que havia lá de singular e específico. O Capitão Farren, a rainha agonizante, a questão dos Duplos, Osmond. A cena na aldeia de All-Hands, a Estrada do Posto de Fronteira que era a Estrada do Oeste. Mostrou a Richard sua pequena coleção de objetos sagrados: a palheta de violão, a bola de gude, a moeda. Richard limitou-se a sacudi-los na palma da mão e devolvê-los sem comentários. Então, Jack reviveu a terrível experiência de Oatley. Richard ouviu as histórias de Oatley em absoluto si­lêncio, mas de olhos arregalados.

Jack teve o cuidado de omitir Morgan Sloat e Morgan de Orris de sua narrativa da cena na parada rodoviária Lewisburg da Estrada Federal 70, no oeste de Ohio.

Depois descreveu a impressão que teve de Lobo ao vê-lo pela primeira vez — um gigante metido em macacão de estilo americano — e sentiu as lágrimas novamente brotando nos olhos. Richard ficou realmente espantado vendo o amigo chorar enquanto relatava a resistência de Lobo em entrar nos carros e lamentava seus momentos de impaciência com o companheiro. Então, conseguindo reprimir as lágrimas, Jack desfiou a história da primeira metamorfose de Lobo. Por algum tempo, o pranto fora contido, a garganta se relaxara, mas a voz ficou outra vez embargada quando ele começou a falar da Casa do Sol e da morte de Ferd Janklow. Seus olhos mais uma vez arderam.

Richard ficou muito tempo calado. Depois se levantou e tirou um lenço limpo da gaveta da escriva­ninha. Jack assoou ruidosamente o nariz.

— Foi isso que aconteceu — disse Jack. — Pelo menos lhe contei quase tudo.

— O que você anda lendo. Que filmes tem assistido?

— Vá à merda — disse Jack. Levantou-se e atravessou o quarto para pegar a mochila, mas Richard deu um passo à frente e agarrou o pulso do amigo. — Não acho que você inventou tudo isso. Não acho que esteja me contando uma fábula. Não. Não sei o que pensar, mas tenho certeza que não está me contando mentiras. — Soltou o pulso de Jack. — Acredito que esteve na Casa do Sol, acredito nisso, é claro! E acredito que teve um amigo chamado Lobo, que morreu lá. Mas, sinto muito, Jack! Não posso levar a sério a idéia dos Territórios nem aceitar a sugestão de que seu amigo era um lobisomem.

— Então você acha que não estou regulando bem.

— Acho que está com problemas, só isso. Mas não vou telefonar para meu pai, nem vou mandá-lo embora. Esta noite poderá dormir aqui. Se eu ouvir o Sr. Haywood rondando pelos quartos, você se esconde embaixo da cama.

Assumindo um ligeiro ar de executivo, Richard pôs as mãos na cintura e lançou um olhar crítico ao redor.

— Você precisa de uma boa noite de sono. Tenho certeza que a falta de repouso está agravando seus problemas. Eles o torturaram quase até a morte naquele lugar terrível e sua mente ficou um tanto conturbada. Agora você tem de descansar.

— Tenho mesmo — Jack admitiu.

Richard desviou os olhos.

— Daqui a pouco, vou para o basquete, mas você pode ficar escondido aqui. Mais tarde trago ou­tro prato de comida. O importante é que você precisa descansar... e precisa voltar para casa.

— Minha casa não fica em New Hampshire — disse Jack.

 

O COLÉGIO FICA ESTRANHO

Pela janela, Jack pôde ver rapazes encasacados, curvados contra o frio, de um lado para o outro entre a biblioteca e o resto da escola. Heridge, o inspetor-aluno que falara com Jack naquela manhã, passou correndo, o cachecol esvoaçando ao vento.

Richard tirou uma jaqueta esporte de tweed do pequeno armário ao lado da cama.

— Você deve voltar para New Hampshire. Nada vai me convencer do contrário. Agora tenho de ir para o basquete, senão o Instrutor Frazer vai me obrigar a dar dez voltas na pista com a velocidade de um raio. Hoje temos outro instrutor, mas Frazer logo estará aqui e disse que vai castigar severamente quem faltar aos treinos. Vou lhe emprestar algumas roupas, OK? Tenho pelo menos uma camisa que vai dar muito bem em você. Meu pai mandou-a de Nova York, mas a loja despachou o tamanho errado.

— Deixe eu ver — disse Jack. Suas roupas estavam realmente uma vergonha, duras de sujeira. Sempre que Richard o examinava, Jack se sentia como Cascão, o personagem de história em quadrinhos que está sempre envolvido por uma nuvem imunda. Richard lhe passou uma camisa branca com botões, ainda na embalagem de plástico. — Ótimo, obrigado — disse Jack. Tirou-a da embalagem e começou a remover os alfinetes. Ela se ajustava quase perfeitamente a seu corpo.

— Tem um paletó que você também pode experimentar — disse Richard. — E este blazer aqui na ponta do armário. Veja se dá. E, se quiser, pode usar uma de minhas gravatas. Seria muito bom para o caso de alguém entrar aqui. Diga que você é do jornal escolar do Colégio de Saint Louis e está fazendo um estágio no Thayer. Isso acontece duas ou três vezes por ano. Alunos do Thayer vão para o Saint Louis, e vice-versa. A finalidade é fazer um estágio no jornal escolar do outro colégio. — Ele avançou para a porta. — Volto antes do jantar para ver se está tudo bem.

No bolso da jaqueta havia duas canetas num recipiente de plástico, e todos os botões estavam abotoados.

Daí a poucos minutos o Pavilhão Nelson ficou inteiramente silencioso. Da janela do quarto de Richard, Jack viu alunos sentados nas escrivaninhas do outro lado das janelas envidraçadas da biblioteca. Agora ninguém mais andava nas trilhas ou sobre a grama cinzenta. Uma campainha tocava com insistên­cia, marcando o início do quarto período do dia. Jack esticou os braços e bocejou. Uma sensação de segu­rança o envolveu. Ao seu redor havia um colégio, com todos aqueles rituais familiares das campainhas, das aulas, dos treinos de basquete. Talvez ele até gostasse de ficar mais um dia no Colégio Thayer. Talvez é a ligar para a mãe de um dos telefones do pavilhão. E, sem dúvida, conseguiria pôr o sono em dia.

Foi até o armário e encontrou o blazer pendurado no lugar indicado por Richard. A etiqueta ainda pendia de uma das mangas: Sloat o mandara de Nova York, mas Richard não chegara a usá-lo. Com a ca­misa, o blazer ficava um tanto apertado em Jack, principalmente nos ombros, e os punhos da camisa branca avançavam dois ou três centímetros além das mangas. A sorte era que a frente tinha um corte fol­gado.

Jack tirou uma gravata do cabide da porta — vermelha, com um estampado de âncoras azuis. Pôs a gravata em volta do pescoço e deu um laço caprichado. Então se olhou no espelho e riu em voz alta. O efeito era realmente fantástico. Examinou detidamente o bonito blazer, a gravata moderna, a camisa branca como neve e seus jeans amarrotados. Ali estava ele. Era quase um típico colegial!

 

Richard se tornara, Jack percebeu, um grande admirador de John McPhee, Lewis Thomas e Stephen Jay Gould. Como gostou do título, tirou The Paneta’s Thumb (O polegar do panda) da fileira de livros da estante. Depois se esticou na cama.

Richard demorou um tempo infinito no treino de basquete. Jack começou a andar de um lado para o outro no pequeno quarto. Não podia entender por que o amigo estava demorando tanto para voltar, e sua imaginação criava uma calamidade atrás da outra.

Depois de ter consultado o relógio pela quinta ou sexta vez, Jack reparou que não havia um só es­tudante nos terrenos da escola.

Não importa o que tivesse acontecido a Richard, tinha acontecido a todo o colégio. O Colégio Tha­yer parecia completamente abandonado, morto. E ele se sentiu como o portador de uma praga, o porta­dor da morte. A única coisa que comera naquele dia fora a galinha que Richard trouxera do refeitório, mas não estava com fome. Extremamente angustiado, Jack Sawyer sentou-se na cama. Levava destruição para onde quer que fosse.

 

Então ouviu novamente passos no corredor.

Do andar de cima veio o tum tum tum abafado de uma bateria, e ele reconheceu outra vez a grava­ção do Blue Oyster Cult. Os passos pararam diante da porta. Jack se levantou de um salto.

Richard apareceu no umbral. Dois garotos de cabelo alourado e gravatas de laço frouxo olharam para dentro do quarto e continuaram seguindo. No corredor, o rock era bem mais audível.

— Onde você esteve a tarde toda? — Jack perguntou.

— Bem, aconteceu uma coisa estranha — disse Richard. — Todas as aulas da parte da tarde foram canceladas. Mas o Sr. Dufrey não deixou ninguém voltar para os quartos. Minha turma teve de ir para a quadra de basquete e isso é que foi o mais fantástico.

— Quem é o Sr. Dufrey?

Richard olhou para ele com uma expressão de bebê que tivesse caído do carrinho.

— Quem é o Sr. Dufrey? É o diretor da escola! Será que não sabe absolutamente nada sobre o Colé­gio Thayer?

— Não, mas estou começando a ter algumas idéias — disse Jack. — O que havia de tão fantástico na quadra de basquete?

— Está lembrado que eu disse que o Instrutor Frazer mandou um amigo substituí-lo hoje na qua­dra? Bem, Frazer berrou que quem faltasse ao treino seria severamente punido, e eu pensei que esse ami­go dele fosse um tipo de primeira linha, você sabe, um verdadeiro instrutor. O Colégio Thayer não tem uma grande tradição atlética. Eu teria jurado que o substituto era um sujeito realmente incrível.

— Deixe eu concluir. O substituto parecia que nunca tinha visto uma quadra na vida, certo?

Richard levantou o queixo e arregalou os olhos.

— Certo. Ele nada tinha a ver com basquete. — Richard dispensou a Jack um olhar de avaliação. — Não parou de fumar um só minuto. E tinha o cabelo muito comprido e seboso. Era o extremo oposto da figura de um instrutor. O tipo de homem que a maioria dos treinadores jamais gostaria de ver pela frente, Até os olhos pareciam engraçados. Aposto que ele queima fumo. — Richard apertou a gola da suéter. - E acho que não sabe nada de basquete. Nem as jogadas tradicionais ele nos fez praticar... Aquele mínimo que costumamos fazer após o aquecimento. Fizemos o que bem entendemos na quadra e ele dava gritos sem qualquer sentido. E ria. Como se garotos jogando basquete fossem a coisa mais ridícula que tivesse visto na vida. Você pode conceber um instrutor achando graça de um treino? Até o período de aqueci­mento foi estranho. Ele apenas disse: “Bem, comecem a pular”, e acendeu um cigarro. Nada de contagem, nada de cadência, todo mundo pulando como bem entendesse. Depois ele disse: “Tudo bem. Agora cor­ram um pouquinho em volta da quadra.” Parecia estar realmente... num barato! Acho que amanhã vou me queixar ao Instrutor Frazer.

— No seu lugar, eu não me queixaria. Nem a ele, nem ao diretor do colégio — disse Jack.

— Oh, já sei aonde quer chegar! — Richard exclamou. — O Sr. Dufrey é um deles. Uma daquelas pessoas dos Territórios, acertei?

— Ou trabalha para elas.

— Você não percebe que pode encaixar qualquer coisa nesse seu esquema maluco? Qualquer coi­sa que não ande bem? É fácil demais, não acha? Tudo pode ser explicado num piscar de olhos. É assim que a loucura funciona. A pessoa estabelece correlações que não existem.

— E vê coisas que não existem.

Richard sacudiu os ombros mas, apesar do descaso do gesto, o rosto estava tenso.

— É isso.

— Espere um pouco — disse Jack. — Está lembrado que eu lhe falei daquele prédio que desabou em Angola, no Estado de Nova York?

— O Rainbird Towers.

— Que memória! Pois é. Acho que esse acidente aconteceu por minha culpa.

— Jack, você está...

— Louco, eu sei. Olhe, será que alguém daria o alarme se você e eu saíssemos para dar uma olha­da no noticiário das sete?

— Acho que não. Agora a maioria dos garotos está estudando. Mas por que...

Porque eu quero saber o que está acontecendo aqui, Jack pensou, mas não disse. Pequenos incên­dios, ligeiros tremores de terra — sinais certos de que eles estão atravessando. Atrás de mim. Atrás de nós.

— Preciso de uma mudança de cenário, rapaz! — disse Jack, e seguiu Richard Sloat pelo corredor de um verde muito desbotado.

 

O COLÉGIO DESCE AO INFERNO

Jack percebeu a mudança de atmosfera e reconheceu-a logo. Já a sentira antes, en­quanto Richard estava fora, e, como da outra vez, ficou impressionado.

O estridente som metálico do rock “Vampiro tatuado” do Blue Oyster se extinguira por completo. A televisão da sala comunitária, que ainda há pouco cacarejava um episódio da Supermáquina, perdera a imagem e o som.

Richard virou-se para Jack, abrindo a boca para falar.

— Não estou gostando nada disso, meu velho — disse Jack antes dele. — O tambor metaleiro pa­rou. Tudo está silencioso demais.

— Pois é — disse Richard em voz baixa.

— Richard, posso lhe perguntar uma coisa?

— Claro.

— Você está com medo?

O rosto de Richard mostrou que ele desejava ardentemente dizer É claro que não! O Pavilhão Nel­son fica sempre muito silencioso no início da noite. Infelizmente, Richard era absolutamente incapaz de dizer uma mentira. O bom e velho Richard. Jack sentiu uma onda de afeição pelo amigo.

— Sim — disse Richard. — Estou um pouco assustado.

— Posso lhe perguntar mais uma coisa?

— Acho que sim...

— Por que nós dois estamos sussurrando?

Por um bom tempo Richard contemplou-o sem nada dizer. Depois continuou a seguir o corredor esverdeado.

As portas dos outros quartos estavam abertas ou semicerradas. Jack sentiu um odor muito familiar pairando pela porta entreaberta da Suíte 4, e empurrou-a com a palma da mão.

— Qual deles queima fumo? — Jack perguntou.

— O quê? — Richard exclamou num tom vacilante. Jack fungou.

— Está sentindo o cheiro?

Richard retrocedeu um passo e olhou dentro do quarto. Sobre a escrivaninha, dois abajures estavam acesos. Num lado havia um livro de história aberto; no outro, um número da revista Heavy Metal. Pôsteres decoravam as paredes: Costa del Sol, Frodo e Sam avançando pela planície desolada e fumegante de Mordor em direção ao castelo de Sauron; num canto, Eddie Van Halen. Fones de ouvido jaziam sobre o exemplar aberto da Heavy Metal e ainda soltavam minúsculos rangidos de música.

— Se um aluno pode ser expulso apenas por deixar um amigo dormir embaixo da cama, o que não fariam se encontrassem alguém queimando fumo, hem, Richard?

— O rapaz seria expulso, é claro.

Hipnotizados, os olhos de Richard encontraram o cigarro de maconha no meio da escrivaninha, ainda soltando fumaça. Nem quando Jack mostrou as queimaduras entre os dedos que ganhara na Casa do Sol Richard Sloat teve uma reação de tamanho choque e perplexidade.

— O Pavilhão Nelson está vazio — disse Jack.

— Não seja ridículo! — O tom de Richard foi estridente.

— Mas o fato é que está vazio! — Jack estendeu o braço mostrando o corredor. — Só sobramos nós. E é impossível tirar trinta e tantos garotos de um pavilhão-dormitório sem fazer o menor ruído. Eles não saíram simplesmente pela porta, eles evaporaram!

— E foram para os Territórios, certo?

— Eu não sei — disse Jack. — Talvez ainda estejam aqui, mas numa dimensão ligeiramente dife­rente. Talvez estejam... lá. Podem até mesmo estar em outro lugar qualquer. Cleveland, por exemplo. Mas, sem a menor dúvida, não estão onde nós estamos.

— Feche essa porta — disse Richard bruscamente, e como Jack não se mexeu com a devida rapi­dez, Richard fechou-a ele mesmo.

— Vai comentar com alguém o que viu?

— Nem quero tocar mais no assunto — disse Richard. — Eu devia informar o fato à direção, você sabe. Devia fazer um relatório ao Sr. Waywood.

— E faria isso? — Jack perguntou, fascinado.

Richard pareceu um tanto envergonhado.

— Não... provavelmente não. Mas não gosto disso.

— Não se encaixa na ordem — disse Jack.

— É.

Os olhos de Richard faiscaram atrás dos óculos, com uma expressão de donos da verdade, com uma expressão de certeza absoluta do andamento ao mundo à sua volta. Se Jack o achasse careta, ele que se danasse. Richard continuou a seguir o corredor.

— Quero saber o que está acontecendo aqui — disse ele —, e pode ter certeza que vou descobrir. E a descoberta pode ser bem mais perigosa para sua saúde do que a maconha, rapaz!, Jack pensou, e foi atrás do amigo.

 

Pararam no vestíbulo, olhando para fora. Richard apontou para o pátio. Sob a úl­tima luz do crepúsculo, Jack viu um punhado de garotos agrupados em volta da estátua de bronze esver­deado do velho Thayer.

— Eles estão fumando! — Richard gritou furioso. — Bem no meio do pátio! Estão fumando!

Jack lembrou imediatamente do cheiro de maconha no corredor.

— Estão fumando, sem dúvida — disse a Richard —, e não é o tipo de cigarro que se pode com­prar no bar da esquina.

Richard bateu furiosamente com os nós dos dedos no vidro da porta. Para Richard Sloat, Jack con­jecturou, o dormitório estranhamente deserto estava esquecido, o fantástico substituto do Instrutor Frazer esquecido, a aparente aberração mental de um amigo que entrara pela janela também estava esquecida. Aquele olhar de propriedade violada no rosto de Richard dizia: Quando um punhado de guris se reúne num grupo desses, fumando cigarros de maconha aos pés da estátua do fundador da escola, é como se alguém estivesse tentando me dizer que a terra é plana, que os números primos podem ser divisíveis por dois ou alguma bobagem ainda pior,

O coração de Jack se encheu de pena do amigo, mas não deixou de admirá-lo por sua coragem em manter uma atitude que, aos olhos dos colegas, devia parecer bastante reacionária e excêntrica. Ele se questionou mais uma vez se Richard seria capaz de suportar os choques que podiam muito bem estar a caminho.

— Richard — disse ele —, aqueles garotos não são do Colégio Thayer, são?

— Deus, você está realmente maluco, Jack! São todos veteranos. Reconheço cada um deles. O su­jeito que está usando aquele estúpido boné de couro é o Norrington. Aquele outro, de calça verde, é o Buckley. Estou vendo também o Garson... o Littlefield... O do cachecol é Etheridge.

— Tem certeza que é Etheridge?

— Certeza absoluta!— Richard gritou. Virou-se bruscamente para girar o fecho da janela, levan­tá-la e se debruçar no ar frio.

Jack puxou Richard pela suéter.

— Richard, por favor, escute o que eu tenho a dizer...

Richard não parecia disposto a lhe dar ouvidos. Inclinou-se ainda mais para a penumbra do crepúsculo.

— Ei!

Não, não atraia a atenção deles, Richard! Pelo amor de Deus!

— Ei, vocês! Etheridge! Norrington! Littlefield! Que diabo está acontecendo aí?

A conversa ruidosa e os risos do grupo cessaram. O sujeito que estava usando o cachecol de Ethe­ridge virou-se na direção de Richard. Richard empinou ligeiramente a cabeça para vê-lo melhor. As luzes da biblioteca e o clarão avermelhado do crepúsculo de inverno caíram em seu rosto. As mãos de Richard subiram e taparam a boca.

A metade direita do rosto que se voltara para a janela lembrava realmente a fisionomia de Etherid­ge: um Etheridge mais velho, um Etheridge que já tivesse estado em um monte de lugares que os colegiais não costumam freqüentar e que já tivesse feito um monte de coisas que os colegiais não costumam fazer. A outra metade do rosto, porém, era uma pasta retorcida e repleta de cicatrizes. Uma coisa brilhante, uma espécie de olho, espreitava de uma cratera na encaroçada massa de carne sob a testa. Parecia uma bola de gude que tivesse sido empurrada até o fundo de uma polpa meio derretida de sebo. Um dente comprido se destacava no canto esquerdo da boca.

É o Duplo de Etheridge, Jack ponderou com calma e absoluta convicção. É o Duplo de Etheridge no Colégio Thayer. Será que todos estes são Duplos? O Duplo de Littlefield, o Duplo de Norrington, o Duplo de Buckley e assim por diante? Parece impossível, não é?

— Sloat! — gritou a coisa-Etheridge e cambaleou dois passos na direção do Pavilhão Nelson. O darão do lampião da estrada que cortava o pátio banhou-lhe diretamente o rosto arruinado.

— Feche a janela — Richard murmurou. — Feche a janela. Eu me enganei. Ele se parece com Ethe­ridge, mas não é. Talvez seja seu irmão mais velho, um irmão que foi atingido por ácido ou algo assim. Talvez o rapaz tenha até enlouquecido por causa disso. Não, não é Etheridge. Quanto mais ele se aproxi­ma do pavilhão, quanto m...

Lá embaixo a coisa. Etheridge se aproximou mais um passo. E sorria. A língua, horripilantemente comprida, pendia-lhe da boca como uma flâmula de time de futebol.

— Sloat! — ele gritou. — Entregue-nos o viajante!

Jack e Richard estremeceram e se entreolharam com rostos muito tensos.

Um ganido se elevou na noite... Pois já era noite; o crepúsculo terminara.

Richard olhou para Jack e, por um momento, seus olhos deixaram transparecer uma espécie de ira — um lampejo da expressão do pai. Por que você tinha de aparecer aqui, Jack? Hã? Por que tinha de me meter nesta enrascada? Por que tinha de me envolver em toda esta maldita coisa tipo Seabrook lsland?

Quer que eu vá embora? — Jack perguntou suavemente.

Por um instante aquele olhar de ira e intolerância permaneceu nos olhos de Richard, mas logo foi substituído pela velha generosidade do filho de Morgan Sloat.

— Não — disse ele, passando atordoado as mãos pelo cabelo. — Não, você não vai a lugar ne­nhum. Há... há cães ferozes lá fora. Cães ferozes no pátio do Colégio Thayer, Jack! Quero dizer que... Você não está vendo?

— Claro! Eu os vejo muito bem, rapaz — disse Jack enquanto Richard passava outra vez nervosa­mente as mãos no cabelo (um cabelo em geral muito bem penteado) e começava a emaranhá-lo. O bem-comportado e ordeiro amigo de Jack começava a lembrar um pouco o amalucado primo-inventor do Pato Donald.

— Vamos chamar Boynton, ele é o segurança. É isso que devemos fazer — disse Richard. — Va­mos chamar Boynton, ou a polícia, ou...

Na extremidade do pátio, entre as sombras ali reunidas, um novo ganido se elevou. Um uivo cres­cente, oscilante, que pareceu quase humano. Richard olhou para a frente, a boca tremendo como a de um velho enfermo. Depois virou-se para Jack com olhos Suplicantes.

— Feche a janela, Jack, OK? Acho que estou com febre. Devo ter pegado um resfriado. Tem uma corrente fria aí fora.

— Pode apostar que tem — disse Jack, e fechou a janela, abafando o mais possível o ganido que vinha do pátio.

 

 “ENTREGUE O VIAJANTE!”

— Ajude-me aqui, Richard — Jack resmungou.

— Não quero mexer na escrivaninha, Jack — disse Richard num tom infantil de repreensão. Agora os círculos escuros sob seus olhos estavam mais nítidos do que no vestíbulo. — Aí não é o lugar dela.

No pátio, o ganido se elevou outra vez no ar.

A cama fora colocada na frente da porta. Agora o quarto de Richard estava inteiramente fora de ordem. Richard continuava olhando ao redor e piscando. De repente, aproximou-se da cama e puxou os co­bertores. Sem uma palavra, passou um deles para Jack, em seguida pegou o seu e estendeu-o no chão. Ti­rou do bolso moedas e notas, colocando-as sobre a escrivaninha. Depois se esticou na cama improvisada, cobriu-se com os lados do cobertor e ficou imóvel no chão, os óculos ainda no nariz, uma expressão de silenciosa angústia no rosto.

O silêncio lá fora tornou-se denso, irreal, quebrado apenas pelo ronco distante dos grandes cami­nhões na estrada. O próprio Pavilhão Nelson parecia estranhamente silencioso.

— Não quero falar sobre o que há lá fora — disse Richard. — Não quero me preocupar com nada desse tipo.

— Está bem, Richard — disse Jack num tom tranqüilizador. — Não vamos tocar no assunto.

— Boa noite, Jack.

— Boa noite, Richard.

Richard deu-lhe um sorriso amarelo, extremamente exausto; naquele sorriso, porém, havia afeto suficiente para aquecer e consolar o coração de Jack.

— Ainda estou satisfeito por você ter vindo — disse Richard — e de manhã podemos voltar a falar de suas aventuras. Tenho certeza que farão mais sentido. Esta minha febre já terá passado.

Richard virou para o lado direito e fechou os olhos. A despeito do chão duro, cinco minutos depois estava dormindo profundamente.

Jack continuou sentado por um longo tempo, de olhos abertos na escuridão. Às vezes via os faróis dos carros que passavam na Avenida Springfield; outras vezes, tanto os faróis dos carros quanto a luz dos lampiões de rua pareciam desaparecer por completo, como se todo o Colégio Thayer tivesse resvalado para fora da realidade e oscilasse no limbo esperando a hora de voltar.

O vento aumentava. Jack podia ouvi-lo roçando nas últimas folhas congeladas do pátio; podia ou­vi-lo fazendo os galhos se chocarem como ossos; podia ouvi-lo assobiando um ar frio pelos espaços entre os pavilhões.

 

— Aquele sujeito está vindo — disse Jack com voz muito tensa. Era mais ou me­nos uma hora mais tarde. — É o Duplo de Etheridge.

— Hã?

— Nada — disse Jack. — Volte a dormir. Você não quer ver essas coisas.

Mas Richard estava se sentando. Antes que seus olhos pudessem se fixar no vulto curvado e um tanto disforme se aproximando do Pavilhão Nelson, ele se viu arrebatado pela visão sinistra do próprio pátio. Estava profundamente chocado, extremamente assustado.

A hera no Pavilhão de Desportes Monkson, que naquela manhã já estava minguada, mas ainda li­geiramente verde, assumira um feio, apodrecido tom amarelo.

— Sloat! Entregue seu viajante!

De repente, tudo o que Richard queria fazer era voltar a dormir... Dormir até que a gripe e a febre tivessem passado (acordara convicto de que ele devia estar doente; não apenas com um simples resfriado, mas com uma tremenda gripe, com uma virose e um febrão); a virose e a febre estavam provocando aquelas horrendas, lúgubres alucinações. Jamais devia ter se exposto à corrente de ar na janela do vestí­bulo... Ou, à tarde, jamais devia ter deixado Jack entrar pela janela do seu quarto. Foi isso que Richard pensou, e logo se sentiu profundamente envergonhado.

 

Jack deu uma olhada em Richard. Os olhos arregalados e a palidez do rosto do ami­go sugeriam que ele estava afundando cada vez mais numa terra de pesadelos e... magia.

A coisa lá fora estava perto. Como um estranho monstro que tivesse surgido debaixo de algum via­duto, permanecia de pé na grama esbranquiçada pela geada, as mãos compridas, em forma de garras, pendendo quase até os joelhos. Vestia um casaco felpudo, de aspecto militar, com o nome etheridge so­bre o bolso esquerdo. O casaco estava aberto, solto ao vento. Por baixo dele, havia uma camisa esporte amarrotada e rasgada. Uma mancha escura de sangue ou vômito se espalhava por um dos lados. Usava uma gravata azul e encardida, com várias iniciais E douradas bordadas no tecido. Alinhavando as iniciais havia algumas bolinhas, como grotescos percevejos prendendo a gravata à camisa.

Só metade do rosto daquele novo Etheridge parecia ter movimento. Havia muita sujeira nos cabe­los e folhas nas roupas.

— Sloat! Entregue o viajante!

Jack olhou outra vez para o grotesco Duplo de Etheridge. E foi quase hipnotizado pelos olhos dele, que de alguma forma pareciam vibrar dentro das órbitas como diapasões. Teve de lutar para se des­viar daqueles olhos.

— Richard! — murmurou. — Não olhe nos olhos dele.

Richard não respondeu; contemplava a sorridente versão-monstro de Etheridge com um entorpeci­do e lívido interesse.

Assustado, Jack empurrou o amigo com o ombro.

— Oh — disse Richard, agarrando repentinamente a mão de Jack e comprimindo-a contra a testa. -Você acha que estou assim tão quente? — perguntou.

Jack tirou a mão da testa de Richard, que estava um pouco quente, mas não muito.

— Bastante quente — ele mentiu.

— Eu sabia disso — disse Richard com uma verdadeira sensação de alívio. — Daqui a pouco vou até a enfermaria, Jack. Acho que preciso de um antibiótico.

— Entregue o viajante, Sloat!

— Vamos pôr a escrivaninha na frente da janela — disse Jack.

— Você não está em perigo, Sloat!— Etheridge gritou, e sorriu com ar tranqüilizador (pelo menos a metade direita do rosto sorriu; a esquerda manteve a estupefação de um cadáver).

— Como pode essa coisa ser tão parecida com Etheridge? — Richard perguntou com uma calma estranha, desconcertante. — Como pode essa voz atravessar o vidro com tanta limpidez? E como pode existir um rosto assim? — Sua voz se tornou um tanto estridente, e recuperou parte do antigo tremor quando ele fez uma última pergunta, uma pergunta que, naquele momento, parecia ser uma questão vital, ao menos para Richard Sloat: — Onde ele conseguiu a gravata de Etheridge?

— Não sei — disse Jack. Sem dúvida estamos de volta a Seabrook Island, meu velho. E acho que você vai balançar até vomitar.

— Entregue o viajante, Sloat, ou iremos buscá-lo aí dentro!

Num feroz sorriso de canibal a coisa-Etheridge mostrou um dente afiado e canino.

— Entregue o viajante, Sloat, ele está morto! Ele já morreu e se não entregá-lo o mais depressa possí­vel terá de suportar o cheiro quando ele começar a feder!

— Ajude-me a arrastar esta maldita escrivaninha! — Jack sibilou.

— Tudo bem — disse Richard. — Tudo bem, OK. Empurramos a escrivaninha e depois eu torno a deitar. Talvez mais tarde dê um pulo na enfermaria. O que você acha, Jack? O que me diz disso? Não é uma boa idéia? — O rosto implorava que Jack dissesse que era uma boa idéia.

— Talvez seja. Mas vamos começar pelo princípio. A escrivaninha. Eles podem atirar pedras.

 

Pouco depois, richard já murmurava e gemia no sono que, de novo, tomara con­ta dele. Isso não era nada bom; então lágrimas começaram a rolar dos cantos dos seus olhos, o que pare­ceu ainda pior.

— Não posso entregá-lo — Richard gemeu no tom choroso e assustado de um menino de cinco anos. Jack o contemplou sentindo um frio por dentro. — Não posso entregá-lo, eu quero meu pai, por favor, alguém me diga onde posso encontrar o meu pai. Ele entrou no armário, mas não está lá dentro. Quero falar com o meu pai, ele me dirá o que fazer, por favor...

Uma pedra quebrou a janela. Jack gritou.

A pedra bateu com força atrás da escrivaninha. Algumas lascas de vidro esvoaçaram pelas fendas à esquerda e à direita do móvel e se estilhaçaram no chão.

— Entregue seu viajante, Sloat!

— Não posso — Richard gemeu, contorcendo-se embaixo do cobertor.

— Entregue o rapaz!— gritou outra voz gargalhante, uivante. — Levaremos seu amigo de volta para Seabrook Island, Richard! De volta para Seabrook Island! Lá é o lugar dele!

Outra pedra. Jack se abaixou instintivamente, embora essa nova pedra também tenha batido atrás da escrivaninha. Cães começaram a ganir, a latir, a rosnar.

— Nada de Seabrook Island — Richard murmurava no sono. — Onde está meu pai? Quero que ele saia daquele armário! Por favor, por favor, nenhuma coisa tipo Seabrook Island, por favor...

Então Jack se pôs de joelhos, sacudindo Richard com bastante força, mandando que ele acordasse, dizendo que tudo era apenas um sonho, que ele acordasse, pelo amor de Deus, acorde!

— Por favor-por favor-por favor. — Um coro rude e inumano de vozes se elevava do lado de fora. Como o coro dos homens-animais da Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells.

— Entregue, entregue, entregue o rapaz! — um segundo coro respondeu.

Os cachorros ganiam.

Um monte de pedras voou, tirando mais vidro da janela, retumbando atrás da escrivaninha, fazen­do-a balançar.

— papai está no armário! — Richard gritou. — papai, saia daí, por favor, saia daí, eu estou com medo!

— Por favor-por favor-por favor!

— Entregue, entregue, entregue o rapaz! As mãos de Richard se agitavam no ar.

Pedras voando, atingindo a escrivaninha; logo viria uma pedra suficientemente grande para perfu­rar a madeira do móvel ou simplesmente derrubá-lo, Jack pensou.

No pátio, as monstruosidades riam, berravam, cantavam; vozes hediondas, medonhas. Cães -pelo que parecia, verdadeiras matilhas de cães — ganiam e rosnavam.

— Papaaaaaaaaaaaiiii...! — Richard gritou com uma voz estridente e aterrada.

Jack lhe deu um tapa.

Os olhos de Richard se abriram subitamente. Por um instante, ele contemplou o amigo sem reco­nhecê-lo, como se o pesadelo tivesse destruído sua sanidade. Depois respirou profundamente, o corpo tremendo. Por fim suspirou.

— Um pesadelo terrível — disse. — Acho que é efeito da febre. Foi horrível. Mas não me lembro exatamente de como ele era! — acrescentou rispidamente, como se Jack estivesse lhe pedindo com insis­tência para contar o sonho.

— Richard, temos de sair deste quarto.

— Sair de onde...? — Richard olhou para Jack como se o amigo tivesse enlouquecido. — Não pos­so fazer isso, Jack. Estou ardendo em febre... No mínimo uns 40 graus, talvez 41! Não posso...

— Você está com menos de 37, Richard — Jack falou calmamente. — Aposto que sua temperatura está absolutamente normal...

— Estou queimando, queimando de febre! — Richard protestou.

— Eles estão atirando pedras...

— Alucinações não podem atirar pedras, Jack — disse Richard, como se explicasse um fato sim­ples, mas de fundamental importância, a um deficiente mental. — Isso é uma coisa tipo Seabrook Island. Isso é...

Outro monte de pedras atravessou a janela.

— Despache o viajante, Sloat!

— Vamos lá, Richard — disse Jack, ajudando o amigo a ficar de pé. Conduziu-o até a porta e saiu com ele para o corredor. Agora sentia uma pena enorme de Richard, talvez não tanta pena quanto sentira de Lobo... mas estava chegando lá.

— Não... Estou doente... Estou com febre... Não posso... Novas pedras atingiram a escrivaninha.

Richard gritou e se debateu nos braços de Jack como se estivesse se afogando.

Do lado de fora vinham risos selvagens, cacarejantes. Cachorros rosnavam e brigavam entre si.

Jack viu o rosto pálido de Richard ficar ainda mais lívido, viu-o oscilar e segurou-o firme. Mas não foi suficientemente rápido para ampará-lo quando ele caiu no umbral da porta de Reuel Gardener.

 

Foi apenas um início de desmaio e Richard logo voltou a si quando Jack beliscou as delicadas membranas entre seus polegares e indicadores. Richard Sloat não queria falar sobre o que havia lá fora. Na realidade, fingia nem saber por que Jack estava agindo daquele modo.

Desceram cautelosamente o corredor em direção à escada. Na sala comunitária, Jack sacudiu a ca­beça do amigo e sussurrou:

— Richard, olhe pra isso!

Com relutância, Richard olhou ao redor. A sala comunitária estava uma bagunça. Cadeiras tinham sido derrubadas, as almofadas do sofá rasgadas. O retrato a óleo do velho Thayer fora desfigurado: alguém desenhara um par de chifres de diabo no bonito cabelo branco, um segundo elemento acrescentara um bigode sob o nariz, e um terceiro usara uma lixa de unhas, ou coisa parecida, para rabiscar um grosseiro pênis no meio das pernas. O vidro da estante de troféus estava em pedaços.

Jack já esperava o inacreditável olhar de choque e horror no rosto de Richard. Em certo sentido, os demônios trotando de um lado para o outro no pátio, os fantásticos pelotões de estranhos monstros ron­dando entre os pavilhões seriam mais facilmente absorvidos por Richard que aquela erosão interna, aque­la depredação dos lugares mais sagrados do Colégio Thayer (o colégio que ele tanto amava). O Colégio Thayer que, sem a menor dúvida, Richard considerava um lugar nobre e sadio, um sólido baluarte contra a violência do mundo lá fora, se transformara em palco de acontecimentos tão estranhos quanto a entrada de um pai no armário para nele desaparecer.

— Quem fez isto? — Richard perguntou furioso. — Foram aqueles monstros que fizeram isto! — ele se apressou a responder. — Foram eles!

Richard virou-se para Jack, uma grande e nebulosa suspeita começando a lhe cobrir o rosto.

— Podem ser colombianos — ele falou de repente. — Podem ser colombianos e isto pode ser uma espécie de guerra de traficantes, Jack! Você já tinha pensado nisso?

Jack teve de sufocar o ímpeto de soltar uma enorme gargalhada. Ali estava uma explicação que so­mente alguém como Richard Sloat seria capaz de conceber. Eram os colombianos. As guerras pelo tráfico da cocaína já tinham chegado ao Colégio Thayer, em Springfield, no Illinois. Elementar, meu caro Watson; o problema estava praticamente solucionado.

— Acho que qualquer coisa é possível — disse Jack. — Vamos dar uma olhada lá em cima.

— Mas, pelo amor de Deus, por que ir lá em cima?

— Bem... talvez possamos encontrar mais alguma coisa interessante — disse Jack. Ele realmente não acreditava nisso, mas pelo menos era uma resposta lógica. — Talvez haja alguém escondido por lá. Alguém normal como nós.

Richard olhou para Jack, depois olhou novamente para a desordem da sala comunitária. A expressão de dor e assombro voltou a seu rosto, uma expressão que dizia: Eu realmente não quero olhar para isso, mas por alguma razão parece absolutamente impossível desviar os olhos; é uma coisa desagradavelmente compulsiva, como morder um limão, passar as unhas num quadro-negro ou arrastar os dentes de um garfo na porcelana da pia.

A droga virou uma calamidade neste país — disse Richard num tom insólito de conferência. — Semana passada, li um artigo sobre o aumento do número de viciados no The New Republic. Jack, todas aquelas pessoas lá fora podem estar dopadas! Podem estar totalmente fora de si! Podem estar...

— Vamos lá, rapaz — disse Jack em voz baixa.

— Acho que não vou conseguir subir a escada — disse Richard, num débil tom de lamento. — Acho que estou com febre demais para subir escadas.

— Bem, faça isso pelo bom e velho Colégio Thayer — disse Jack, e começou a conduzi-lo para o andar de cima.

 

Quando alcançaram o patamar do segundo andar, tomaram plena consciência do silêncio sereno, quase irrespirável, existente no interior do Pavilhão Nelson.

Lá fora, no entanto, era bem diferente. Os cães rosnavam, latiam. Como se fossem não apenas de­zenas ou dúzias, mas centenas deles. Os sinos da capela explodiam numa selvagem algazarra.

Os sinos faziam o pelotão de cães correrem enlouquecidos de um lado para o outro. Os animais brigavam entre si, rolavam sem parar pela grama (que estava começando a parecer maltratada, cheia is mato, inexistente em alguns pontos) e atacavam com mordidas qualquer coisa que lhes passasse na fren­te. Jack viu um deles investir contra um olmo. Outro se atracou com a estátua do velho Thayer. Quando a dentada, gotejando saliva, colidiu com a solidez do bronze, o sangue jorrou, se esparramou para os lados,

Jack desviou a cabeça com o estômago embrulhado.

— Vamos em frente, Richard.

Richard obedeceu com docilidade.

 

O segundo andar era uma terrível confusão de móveis derrubados, janelas que­bradas, trastes espalhados pelo chão, discos que, sem dúvida, teriam sido atirados para o teto. Roupas jo­gadas por todos os cantos.

O terceiro andar estava tão saturado de umidade e névoas de calor quanto uma chuvosa floresta tropical. Quando os dois se aproximaram da porta com a inscrição chuveiros, o calor parecia de sauna. A névoa, que já vinha deslizando pela escada em finos anéis, tornou-se mais densa, opaca.

— Fique aqui — disse Jack. — Eu já volto.

— Tudo bem — disse Richard serenamente, elevando a voz sobre o rufar de tambor dos chuveiros. Seus óculos tinham ficado embaçados, mas ele não se preocupou em limpá-los.

Jack empurrou a porta e entrou. O calor era viscoso e o suor começou a lhe inundar o corpo e en­charcar as roupas. Os azulejos do banheiro trovejavam com o barulho da água caindo. Todos os 20 chuveiros estavam abertos e os jatos d’água tinham sido dirigidos para uma pilha de equipamentos de esporte no meio do chão. Os ralos não davam vazão para escoar toda a água e o banheiro estava alagado. Jack tirou os sapatos e circundou o banheiro, tentando desviar dos jatos dos chuveiros para se molhar o menos possível e não ser escaldado — sem dúvida, quem fez aquilo não se preocupou em abrir as torneiras de água fria. Ele foi desligando as torneiras, uma por uma. Não havia absolutamente nenhuma razão para Jack fazer aquilo; era uma perda de tempo e o deixava ainda mais ensopado. Na realidade devia esta pensando numa maneira de sair de lá — sair do Pavilhão Nelson e da área do Colégio Thayer — antes que o machado caísse sobre a sua cabeça.

Nenhuma razão para fazer aquilo... Só que Richard talvez não fosse o único a ter necessidade de criar ordem do caos... criar ordem e mantê-la.

Quando Jack voltou ao corredor, o amigo desaparecera.

— Richard?

Jack podia ouvir o coração martelando no peito. Não houve resposta.

— Richard!

O ar estava impregnado, fortemente carregado de cheiro de água-de-colônia.

— Richard, onde você se meteu?

A mão de Richard caiu no ombro de Jack e ele gritou.

 

Não sei por que você gritou daquele jeito — disse Richard mais tarde. — Era eu.

— Acho que eu estava um pouco nervoso — Jack respondeu num tom vacilante.

Estavam no terceiro andar, no quarto de um garoto com o estranhamente harmonioso nome de Al­bert Humbert. Richard contou que Albert Humbert, cujo apelido era Albert, o Bolha, era o aluno mais gordo da escola, e Jack pôde confirmar isso com os próprios olhos: o quarto continha uma espantosa variedade de restos de comida. Era o covil de um garoto cujo pior pesadelo não era ser reprovado num exame final ou ser cortado do time de basquete, mas acordar no meio da noite e não ter um saco de biscoitos ou uma caixa de chocolates para comer. O quarto estava de pernas para o ar. Um pote de vidro, cheio de bombons, se espatifara no chão, mas Jack não gostava muito de bombons e deixou-os de lado. Também ignorou as balas de licor — Albert, o Bolha, tinha uma caixa cheia delas escondida na prateleira mais alta do armário. Num dos lados da caixa, havia as palavras Feliz aniversário, querido. Com todo o carinho de sua mãe.

O carinho da mãe de Albert manda caixas de balas de licor e o carinho do pai de Richard manda blazers de Nova York, Jack pensou um tanto nauseado.

No quarto de Albert, o Bolha, encontraram comida suficiente para fazer uma curiosa refeição: con­feitos de amendoim, fatias de presunto, batatas fritas. Agora estavam acabando com um pacote de biscoi­tos, Jack tinha trazido a cadeira de Albert do corredor e estava sentado perto da janela. Richard continuava sentado na cama de Albert.

— Bem, sem dúvida você está nervoso — Richard concordou, balançando a cabeça numa recusa quando Jack lhe ofereceu o último biscoito. — Paranóico mesmo. É o resultado de ter passado os últimos meses na estrada. Ficará bom assim que voltar para sua mãe.

— Richard — disse Jack, jogando para o lado o saco de biscoitos vazio —, pare com esse papo fu­rado! Será que não viu o que está acontecendo lá fora no pátio?

Richard molhou os lábios.

— Tudo tem uma explicação — disse ele. — Estou com febre. Provavelmente nada disso está acontecendo, e se está, são coisas absolutamente normais que minha mente começou a distorcer, a deformar, Essa é uma das possibilidades. A outra é... bem... que seja um bando de gente drogada.

Richard inclinou o corpo na cama de Albert, o Bolha.

— Você não tem feito experiências com drogas, tem, Jack? Não lhe ofereceram nada numa dessas caronas?

A centelha de convicção e inteligência voltara subitamente a brilhar nos olhos de Richard. É possí­vel uma explicação. Há um meio lógico de explicar toda essa loucura, seus olhos diziam. Jack se envolveu em algum sinistro jogo de traficantes, e eles o seguiram até aqui.

— Não — disse Jack num tom de desânimo. — Sempre achei que você era senhor absoluto da rea­lidade à sua volta, Richard. Nunca pensei que chegaria a vê-lo... justamente você!... usando o cérebro para distorcer os fatos.

— Jack, isto é apenas uma... coisa de traficantes, e você sabe muito bem disso!

— Guerra de traficantes em Springfield, Illinois? — Jack exclamou. — Isso, sim, é uma coisa tipo Seabrook Island!

 E foi então que uma pedra atingiu a janela de Albert Humbert, espalhando cacos de vidro pelo chão.

 

RICHARD NA ESCURIDÃO

Richard gritou e levantou o braço para proteger o rosto. Vidro voava.

— Entregue o viajante, Sloat!

Jack se levantou. Uma fúria cega tomou conta dele.

Richard agarrou-lhe o braço.

— Jack, não! Fique longe da janela!

— Foda-se a janela! — Jack quase rosnou. — Estou cansado de ver esses caras me tratando como se eu fosse uma pizza.

Do outro lado da estrada que atravessava o pátio, a coisa-Etheridge os contemplava do meio da calçada.

— Saia daqui! — Jack gritou. Uma súbita inspiração explodiu em sua mente como um clarão de sol. Ele hesitou uma fração de segundo; depois berrou: — Ordeno que saiam daqui! Todos vocês! Ordeno que saiam daqui em nome de minha mãe, a rainha!

A coisa-Etheridge se encolheu como se alguém tivesse levantado um chicote para seu rosto.

Depois a expressão de pânico e surpresa se dissipou; a coisa-Etheridee começou a rir.

— Ela está morta, Sawyer!

Mas os olhos de Jack tinham se tornado mais argutos durante o tempo que ele passara na estrada. Sob o riso artificial de triunfo, seus olhos puderam perceber um certo mal-estar.

— A Rainha Laura está morta e sua mãe também... Ela também está morta, lá em New Hampshire... Morta e fedendo.

— Vã embora!— Jack berrou, e sentiu que a coisa-Etheridge novamente se encolhia com um ar de temor. Pálido e atordoado, Richard se pusera à janela ao lado de Jack.

— Do que vocês estão falando? — ele perguntou olhando fixamente para a caricatura sorridente no meio do pátio. — Como Etheridge sabe que sua mãe está em New Hampshire?

— Sloat!— a coisa Etheridge gritou. — Onde está sua gravata?

Um ímpeto de culpa contraiu o rosto de Richard; suas mãos oscilaram para o colarinho aberto da camisa.

— Desta vez vamos deixar passar, Sloat! Mas entregue o viajante! — urrou a coisa-Etheridge. — Se o entregar, tudo pode voltar a ser como antes: isso é o que você quer, não é?

Richard contemplava a coisa-Etheridge e, de forma totalmente inconsciente (Jack tinha certeza dis­so), balançava docilmente a cabeça. Seu rosto era um farrapo amarrotado de angústia, os olhos brilhavam com lágrimas reprimidas. Ele queria que tudo voltasse a ser como era antes, é claro.

— Você não ama este colégio, Sloat? — a coisa-Etheridge berrou para a janela de Albert.

— Sim — Richard murmurou e engoliu um soluço. — É claro que amo este colégio.

— Sabemos dar uma boa lição aos pequenos punks que não amam este colégio. Entregue-nos o guri, Sloat! E tudo voltará a ser como antes!

Richard virou lentamente a cabeça e olhou para Jack com olhos assustadoramente brancos.

— A decisão é sua, Richard — disse Jack em voz baixa.

— Ele está transportando drogas, Richard — gritou a coisa-Etheridge. — De quatro ou cinco espé­cies diferentes! Coca, haxixe, lsd! Tem vendido essas coisas para financiar a viagem para o Oeste! De onde acha que ele tirou dinheiro para comprar aquele casaco incrível com que apareceu na sua porta?

— Das drogas — disse Richard com um grande e trêmulo alívio. — Eu sei disso.

— Não acredite no que ele está falando — disse Jack. — Não foram as drogas que modificaram seu colégio, Richard. E os cães...

— Mande-o sair, Sloat... — a voz da coisa-Etheridge estava esmorecendo, esmorecendo.

Quando os dois olharam de novo para baixo, Etheridge desaparecera.

— Para onde você acha que foi o seu pai? — Jack perguntou suavemente. — Para onde você acha que ele foi quando não saiu do armário?

Richard virou-se lentamente. Seu rosto, geralmente tão calmo, inteligente e sereno, começou a se despedaçar. O peito começou a oscilar irregularmente. E de repente Richard Sloat caiu nos braços de Jack, agarrou-se a ele com um desespero e um pânico cegos.

— Ele to-to-cou na mi-minha cabeeeça! — Richard gritou. Seu corpo tremia como um elástico a ponto de arrebentar. — Tocou na minha cabeça, mexeu na minha cabeça, veio alguma coisa daquela voz e deu um nó dentro da minha cabeça. E eu nã-não sei o que foi!

 

Com a testa ardendo encostada no ombro de Jack, Richard desabafou a história que mantivera todos aqueles anos trancada no peito. Ela veio aos pedaços, bocados duros como balas defor­madas. Ao ouvi-lo, Jack lembrou-se do dia em que o pai entrou na garagem... e só saiu duas horas depois. Aquilo tinha sido uma experiência desagradável, mas o que aconteceu a Richard fora bem pior. Explicava sua férrea resistência a qualquer elemento que parecesse fugir da realidade, sua rejeição intolerante a qualquer coisa que parecesse se chocar com a realidade. Explicava sua aversão a qualquer tipo de fanta­sia, mesmo à ficção-científica... Jack sabia que gente como Richard Sloat, mesmo na escola, procurava petiscos muito diferentes dos apreciados pela maioria dos rapazes. Nada de Heinlein, Asimov, Arthur C. Larke, Larry Niven. Nada da besteira metafísica dos Robert Silverbergs e Tarry Malzbergs. No entanto, serão capazes de ler a tábua de logaritmos até que os números lhes saiam pelos ouvidos. Richard tinha ta­manha repugnância à fantasia que não se aproximava de qualquer romance, a não ser como leitura obri­gatória para um trabalho escolar. Encarava com indiferença todas as aventuras dos livros que Jack gostava de ler. Tornou-se um desafio para Jack Sawyer encontrar uma história — qualquer história — que pudes­se agradar a Richard, interessá-lo, diverti-lo, levá-lo para um outro mundo — os bons livros sempre arre­batavam Jack do morno cotidiano. Esses livros, Jack pensava, eram quase tão gratificantes quanto os so­nhos de olhos abertos; cada um deles não deixava de cartografar sua própria versão dos Territórios. Mas, certamente, jamais conseguiriam provocar qualquer sensação, qualquer arrebatamento, qualquer reação em Richard Sloat. Diante de O pônei vermelho, O apanhador no campo de centeio, A última esperança sobre a Terra, ou Demônio na armadilha, a reação de Richard era sempre a mesma: uma leitura apressada das duas primeiras páginas, a testa franzida, um ar crítico e depois o fechamento do livro, o exame descui­dado da capa, o desvio da atenção para os assuntos do dia (Será que o professor de inglês vai faltar?). Nas raras ocasiões em que Richard teve o nome excluído da lista dourada dos primeiros alunos, as notas bai­xas em inglês foram sempre as responsáveis por isso.

Jack chegou à última página de O senhor das moscas, de William Golding, sentindo um frio de emoção, um tremor lhe percorreu o corpo — ele se sentiu ao mesmo tempo excitado e assustado. Quando lia um livro como aquele, gostaria que a história nunca chegasse ao fim, que se desenrolasse indefinidamente, assim como a própria vida (só que a vida era sempre muito mais monótona e muito mais sem sentido do que as histórias). Ele sabia que Richard tinha de fazer um trabalho sobre um livro para o professor de inglês, e lhe emprestou O senhor das moscas. Achou que a história não poderia deixar de empolgá-lo, que, sem dúvida, o livro de Golding conseguiria realizar o milagre, que Richard não deixaria de reagir positivamente à aventura daqueles rapazes perdidos e sua degradação para uma condição de selvageria. Mas Richard folheou O senhor das moscas com total desinteresse e escreveu uma dissertação com o zelo e a frieza de um laudo de autópsia sobre uma vítima de acidente de automóvel. O que há com você?, Jack explodiu, exasperado. Pelo amor de Deus, o que você tem contra uma boa história, Richard’? E Richard limitou-se a fitá-lo, estupefato, não entendendo a razão da raiva de Jack. Bem, acho que uma boa história, uma história bem montada, é algo que não existe, Richard respondeu.

Naquele dia, Jack se convenceu amargamente de que Richard repudiava por completo o mundo do faz-de-conta, o mundo da ficção. Mas agora compreendia melhor as motivações do amigo (talvez até melhor do que queria compreender). Talvez, para Richard, cada capa de romance se parecesse um pouco com uma porta de armário, e as pessoas dessas capas, retratadas como se fossem perfeitamente reais, lhe trouxessem à memória o mistério de um armário fechado, um mistério que fora suficiente para o resto da sua vida.

 

Richard vê o paientrar no grande armário embutido do quarto da frente e fechar a porta sanfonada atrás dele. Richard tem cinco anos... ou seis... sem dúvida, menos que sete. Espera cinco minutos, depois dez, e como o pai não sai do armário, começa a ficar um pouco assustado. Ele chama. Ele grita

(pelo cachimbo do pai, pelo copo de bebida do pai, ele chama)

pelo pai e, quando o pai não responde, ele grita num tom cada vez mais alto, e se aproxima caia vez mais do armário sem parar de gritar. Finalmente, depois de 15 minutos sem o pai responder ou sair, Richard empurra a porta de sanfona e entra no armário... É a escuridão de uma caverna.

E alguma coisa acontece.

Após abrir caminho entre tweeds ásperos, algodões macios, forros de seda dos casacos, temos e paletós esporte do pai, o cheiro de roupa, de naftalina e de ar escuro começa a ser substituído por outro cheiro — um cheiro quente, chamejante. Richard começa a tatear pelo armário, gritando o nome do pai achando que devia haver fogo ali dentro e o pai podia estar se queimando (pois o cheiro era de fogo). E de repente percebe que as tábuas de madeira desapareceram sob seus pés, que ele está num chão de terra. Estranhos insetos, com olhos na ponta de corpos compridos, esvoaçam ao redor de seus chinelos felpudos. Papai!, ele grita. Os casacos e paletós sumiram, o assoalho sumiu, e o que Richard sente sob os pés não é uma neve branca e quebradiça, é um solo escuro, fedorento, que ao que parece aloja as tocas daqueles incômodos insetos sempre a pular (e aquele lugar não é, de forma alguma, fruto de sua imaginação). Outros gritos respondem ao grito de Richard — gritos e um riso histérico, enlouquecido. Ondas de fumaça se deslocam ao seu redor num torvelinho e Richard dá meia-volta, cambaleia alguns passos, mãos estendidas como as mãos de um cego. Procura freneticamente os casacos, os paletós, o cheiro fraco e rançoso de naftalina...

E de repente a mão de alguém o agarra pelo pulso.

Papai?, ele chama, mas quando olha para baixo não vê mão humana, mas uma coisa verde e escamosa, cheia de ventosas, uma coisa verde ligada a um braço comprido e elástico que se estica da escuridão. E há também os olhos, fixos nele. Olhos amarelos, olhos retorcidos por uma expressão faminta.

Gritando, ele consegue soltar a mão e se atira no escuro... E no momento exato em que seus dedos vacilantes encontram de novo os temos e paletós do pai, no momento exato em que volta a ouvir o bendito e racional barulho dos cabides chocalhando, aquela mão verde e sugadora rodopia mais uma vez em volta de sua nuca e... e desaparece!

Ele fica paralisado, tremendo, pálido como cinzas antigas num fogão à lenha. Depois sai bruscamente do armário, bate aporta e espera três horas do lado de fora. Tem medo. Medo da coisa verde e dos olhos amarelos. Tem quase certeza absoluta de que o pai já deve ter morrido.

Mas quase no fim da quarta hora de espera o pai volta para o quarto. Não volta saindo do armário, mas cruzando a porta do corredor — a porta atrás de Richard. E quando isso acontece, Richard rejeita a fantasia de uma vez por todas; Richard nega e renega a fantasia; Richard se recusa a lidar com a fantasia, a compactuar com ela, a comprometer-se com ela. A experiência já fora suficiente, já fora o bastante para uma vida inteira. Dá um salto de alegria, corre para o pai, para o amado Morgan Sloat, e lhe dá um abraço tão apertado que ficará a semana inteira com os braços doloridos. Morgan o põe no colo, ri, e pergunta por que ele está tão pálido. Richard sorri e diz que, provavelmente, foi alguma coisa que comeu no desjejum, mas que agora já está se sentindo melhor. E beija o rosto do pai, sente o reconfortante cheiro de suor e água-de-colônia. E na tarde daquele dia apanha todos os seus livros de história: os Pequenos livros de Ouro, a Coleção Infantil das Maravilhas, as historietas de sapos falantes do Eu Já Sei Ler, os livros do Dr. Seuss, o volume verde dos Contos de Fadas, põe todos numa caixa, leva a caixa para um canto do porão e pensa: “Seria ótimo se agora houvesse um terremoto que abrisse uma fenda no chão e tragasse todos esses livros. Sem dúvida, seria um alívio, um alívio tão grande que eu ia rir o dia inteiro e a semana inteira.” O terremoto não aconteceu, mas Richard sentiu-se muito bem quando viu os livros trancados numa dupla escuridão: a escuridão da caixa e a escuridão do porão. Nunca mais os procurou, assim como nunca mais voltou a abrir a porta sanfonada do armário do pai. Embora às vezes sonhasse que havia alguma coisa embaixo da cama ou em seu pequeno armário, alguma coisa de olhos imóveis e amarelos, nunca mais pensou naquela mão verde coberta de ventosas... Até que coisas estranhas começaram a acontecer no Colégio Thayer e,num pranto que não lhe era habitual, ele caiu nos braços de seu amigo Jack Sawyer.

Richard não precisava de novas fantasias sinistras. Aquela dose tomada na infância já fora mais que suficiente.

 

Jack achava que com o desabafo da história e o término das lágrimas Richard volta­ria a seu estado normal de sólida racionalidade. Mas esperava que essa racionalidade viesse agora acompanhada de uma pequena brecha por onde o amigo pudesse aceitar, ao menos em parte, o que tinha visto e ouvido. Seria formidável se Richard pudesse ajudá-lo de alguma forma. Ajudá-lo a continuar inteiro nos domínios do Colégio Thayer.

Mas as coisas não se passaram assim. Quando Jack tentou conversar com ele, quando tentou falar do dia em que seu próprio pai, Phil, entrara na garagem e não saíra, Richard recusou-se terminantemente a ouvi-lo. O velho segredo do que acontecera no armário fora posto para fora, mas Richard Sloat ainda se apegava, obstinadamente, à idéia de que tudo não passara de alucinação. A experiência fantástica que vi­venciara quando criança já preenchera todas as suas necessidades de fantasia.

Na manhã seguinte, Jack foi até o térreo. Pegou todas as suas coisas e as coisas que achou que Ri­chard ia querer: escova de dentes, livros de estudo, cadernos, roupas limpas. Passariam aquele dia no quarto de Albert, o Bolha. De lá de cima poderiam vigiar o pátio e o portão. Quando a noite caísse de novo, talvez conseguissem fugir.

 

Jack vasculhou a escrivaninha de Albert e encontrou um vidro de melhorai infantil. Por um momento, contemplou em silêncio aqueles pequenos comprimidos brancos, achando que eles ti­nham tanto a dizer sobre o tipo de criação que Albert recebera da mãe quanto a caixa de balas de licor na prateleira do armário. Jack pegou meia dúzia de comprimidos e deu-os a Richard. Richard tomou-os qua­se sem se dar conta.

— Venha se deitar aqui — disse Jack.

— Não — Richard respondeu. O tom era rabugento, fatigado, tremendamente amargurado. Ele voltou à janela. — Tenho de ficar atento, Jack. Se esse tipo de coisa está mesmo acontecendo, alguém tem de ficar atento. Depois posso fazer um relatório completo... à... à diretoria. Mais tarde...

Jack tocou ligeiramente a testa de Richard. E, embora estivesse fria (quase gelada), ele disse:

— Você piorou da febre, rapaz. É melhor ficar deitado até o melhorai fazer efeito.

— Piorei? — Richard o encarou com um ar de patética gratidão. — É mesmo?

— É — Jack respondeu gravemente. — Venha se deitar.

Richard adormeceu cinco minutos depois de deitar. Jack sentou-se na poltrona de Albert, o Bolha, o assento tão fundo quanto o meio do colchão. O rosto pálido de Richard brilhava como porcelana na luz cada vez mais forte do sol.              

 

O dia foi passando e, por volta das duas horas, Jack adormeceu. Acordou no escuro, sem saber quanto tempo tinha dormido. Só sabia que não tivera qualquer sonho, e achou melhor assim. Richard começava a se mexer na cama como se fosse acordar. Sentindo uma desagradável rigidez nas cos­tas, Jack ficou de pé e se espreguiçou. Foi até a janela, olhou para fora e ficou imóvel, olhos arregalados. Seu primeiro pensamento foi: Não quero que Richard veja isto. Não quero mesmo.

Oh, Deus, temos de sair daqui e o mais depressa possível, Jack pensou, assustado. Mesmo se, por al­guma razão, eles tiverem medo de nos atacar diretamente...

Mas ia realmente tirar Richard de lá? Jack tinha certeza de que eles não contavam com isso. Apostariam, sem dúvida, na sua recusa a expor o amigo a novas loucuras.

Mas você tem de atravessar, Jack. Você tem de atravessar e sabe disso. E tem de levar Richard com você, porque este lugar está virando um inferno.

Não posso! Atravessar para os Territórios colocaria os miolos de Richard completamente fora de órbita.

Não interessa! Você tem de fazer isso. Sem dúvida é a melhor solução, talvez a única, porque eles não devem estar contando com isso.

— Jack? — Richard estava se sentando na cama. Sem os óculos, seu rosto tinha um estranho ar de nudez. — Está tudo acabado, Jack? Foi um sonho, não foi?

Jack também se sentou na cama e pôs o braço em volta dos ombros do amigo.

— Não — disse ele, a voz baixa e tranqüilizadora. — A coisa ainda não acabou...

— Acho que estou pior da febre — Richard anunciou afastando-se de Jack. Arrastou-se até a janela, segurando a armação dos óculos delicadamente entre a ponta do polegar e do indicador da mão direita. Pôs os óculos e olhou para fora. Formas com olhos brilhantes perambulavam de um lado para o outro. Por um bom tempo, ficou ali parado; depois fez uma coisa tão contrária à sua índole que Jack mal pôde acreditar no que viu. Richard tirou de novo os óculos e jogou-os no chão. Houve um pequeno estalido quando uma das lentes rachou. Então ele pisoteou os óculos, reduzindo ambas as lentes a pó.

Richard se abaixou, pegou os óculos quebrados e atirou-os com total indiferença na cesta de lixo de Albert, o Bolha. Eles caíram fora da cesta. Agora havia uma espécie de obstinação no rosto de Richard, alguma coisa dizendo: Não quero ver mais nada. Sem os óculos não verei mais nada... E não terei mais de me preocupar com o problema. A experiência que tive no armário já foi suficiente.

— Veja isso — ele disse num tom calmo, entorpecido. — Meus óculos caíram. Eu tinha outro par, mas eles quebraram no ginásio há duas semanas. Estou quase cego.

Jack sabia que isso não era verdade, mas estava espantado demais para dizer alguma coisa. Não pôde achar absolutamente qualquer resposta adequada para o ato radical de Richard — seria como tentar domar um acesso de loucura com argumentos lógicos.

— Acho que minha febre está cada vez pior — disse Richard. — Há mais daqueles comprimidos?

Jack abriu a gaveta da escrivaninha e, sem dizer uma palavra, deu o vidro a Richard. Richard engo­liu seis ou oito e deitou novamente.

 

À medida que a noite avançava, Richard, que prometera discutir a situação dos dois, se recusava obstinadamente a fazê-lo. Não podia discutir a possibilidade de uma fuga do colégio; não po­dia discutir qualquer coisa desse tipo, pelo menos não agora, quando sua febre voltara e ele se sentia mui­to, muito pior. Quem sabe não estaria com 41, 42 graus! Dizia que precisava dormir mais um pouco.

— Richard, pelo amor de Deus! — Jack berrou. — Você está fazendo papel de bobo! Uma coisa que nunca, nunca esperei de você...

— Você é que está fazendo papel de bobo — disse Richard, caindo outra vez na cama. — Estou apenas doente. Você não vai querer que eu converse sobre essas coisas malucas quando estou doente, vai?

— Quer que eu vá embora e o deixe sozinho?

Richard virou a cabeça e, olhando nos olhos de Jack, piscou lentamente.

— Não vá — disse ele; depois voltou a dormir.

 

Por volta das nove horas da noite, o pátio tornou a mergulhar em outro daqueles misteriosos períodos de tranqüilidade, e Richard, talvez pressentindo inconscientemente que haveria me­nos ataques à sua sanidade, acordou e levantou-se da cama. Viu manchas marrons nas paredes e ficou olhando para elas até Jack se aproximar.

— Estou me sentindo bem melhor, Jack — ele foi logo dizendo —, mas realmente será totalmente inútil conversar sobre fugas do colégio e coisas do gênero. Já é tarde e...

— Temos de sair daqui esta noite! — Jack falou num tom severo. — Estamos fazendo exatamente o jogo deles, Richard! Há fungos crescendo nas paredes, e não me diga que não está vendo isso!

Richard sorriu com um ar de arrogância que quase fez Jack ter um acesso de cólera. Sem dúvida gostava muito de Richard, mas por pouco não o fez mergulhar de cabeça entre os fungos.

E naquele exato momento grandes e gordos insetos brancos começaram a rastejar para o quarto de Albert, o Bolha. Vinham dos fungos que apodreciam as paredes. Pareciam nascer espontaneamente no meio dos fungos. Contorciam-se furtivamente, deslizando pelas manchas marrons. Pulavam para o assoa­lho e começavam a avançar para a cama com determinação.

Jack começara a se perguntar se a visão de Richard não estaria realmente muito pior do que ele imaginava, se a miopia não aumentara bastante desde a última vez em que os dois se encontraram. Mas logo percebeu que estava enganado. Richard podia enxergar muito bem. Sem a menor dúvida, via com absoluta clareza as coisas gelatinosas que saíam das paredes. Gritou e se abraçou a Jack, o rosto contorci­do de repugnância.

— Insetos, Jack! Oh, Deus! Insetos! Insetos!

— Tudo vai ficar bem, Richard — disse Jack. Segurava Richard com uma energia que jamais pen­sou que possuísse. — Só precisamos esperar o amanhecer, está bem? Não há problema, certo?

Os insetos enxameavam às dúzias, às centenas, formas rechonchudas, moles e esbranquiçadas como larvas superdesenvolvidas. Alguns arrebentavam quando batiam no chão; o resto continuava raste­jando preguiçosamente na direção dos dois.

— Insetos, Jesus! Temos de sair daqui, temos de...

Graças a Deus! O garoto finalmente encarou a realidade! — Jack exclamou.

Pôs a mochila no ombro esquerdo, agarrou o cotovelo de Richard com a mão direita e foi levando o amigo para a porta. Formas brancas se esborrachavam, vazavam sob seus sapatos. Agora os insetos bro­tavam dos fungos numa torrente contínua; um obsceno e múltiplo nascimento que ia acontecendo por todo o quarto de Albert. Uma fileira desses insetos brancos caiu de uma fenda no teto, se contorcendo, sobre o cabelo e os ombros de Jack; ele os sacudiu o mais depressa que pôde e arrastou pela porta o amigo que, embora quase desmaiado, não parava de gritar.

Acho que vamos sair dessa, Jack pensou. Que Deus nos ajude! Realmente acho que vamos sair dessa!

 

Estava de novo na sala comunitária. Richard sabia ainda menos que Jack qual era a melhor maneira de escapar do pátio do Colégio Thayer. Jack só tinha certeza de uma coisa: não ia se deixar enganar pela aparente tranqüilidade que havia lá fora e sair de peito aberto por uma das portas do Pavilhão Nelson.

À esquerda da ampla janela da sala, havia uma pequena forma octogonal de tijolo.

— O que é isso, Richard?

— Hã?                                            

Richard não tirava os olhos das viscosas, vagarosas torrentes de lodo esbranquiçado que agora pa­reciam cobrir o pátio escuro.

— Essa coisa do lado esquerdo. Essa coisa de tijolo, está vendo?

— Oh. O Depósito.

— Depósito de quê?

— O nome não significa mais nada — disse Richard, ainda olhando inquieto para o lodo que en­chia o pátio. — Como nossa enfermaria. É chamada Leiteria porque havia uma ali até mais ou menos em 1910. É a tradição, Jack. Isso é uma coisa muito importante, você sabe. É uma das razões que me fazem gostar do Thayer.

Desanimado, Richard olhou de novo para o pátio cheio de lodo.

— Sem dúvida é uma das razões... É claro.

— A Leiteria, OK. Como se chega ao Depósito?

Richard começava lentamente a se deixar empolgar pelas idéias gêmeas de Thayer e tradição.

— Toda a área de Springfield era um importante entreposto ferroviário — disse ele. — Nos velhos tempos...

— De que velhos tempos você está falando, Richard?

— Oh, 1880, 1890...

Um ar de abatimento envolveu o rosto de Richard. Seus olhos, um tanto míopes, moveram-se ao redor da sala comunitária — procurando mais insetos, Jack supôs. Não havia nenhum... pelo menos ainda não, Mas algumas manchas marrons já começavam a se formar nas paredes. Os insetos ainda não tinham chegado, mas estavam a caminho.

— Vamos lá, Richard — Jack incitou. — As recordações não vão ajudar agora. Richard sorriu brevemente. Seus olhos voltaram a Jack.

— Nas últimas décadas do século XIX, Springfield foi um dos três ou quatro maiores entrepostos ferroviários da América. Ficava geograficamente muito bem situado: no próprio coração do país. — Ele le­vou a mão direita ao rosto e, num gesto tipicamente acadêmico, esticou o indicador para empurrar os óculos. Percebendo que eles não estavam mais lá, abaixou rapidamente a mão, parecendo um tanto embaraçado. — Importantes linhas férreas saíam de Springfield para os pontos mais distantes. Este colégio existe porque Andrew Thayer percebeu as potencialidades do lugar. Ele ganhou uma verdadeira fortuna com o comércio ferroviário. Principalmente para a costa oeste. Foi o primeiro a ver que, assim como o les­te, o oeste oferecia as mais amplas possibilidades comerciais.

De repente uma luz pareceu se acender dentro da cabeça de Jack; todos os seus pensamentos fo­ram envolvidos por um forte clarão.

— Costa oeste?

O estômago rodopiou. Ele ainda não era capaz de identificar a forma que aquela luz brilhante ti­nha revelado, mas a palavra que saltou para sua mente foi ardente e extremamente clara:

Talismã!

— Costa oeste, você disse?

— Claro. — Richard olhou de um modo estranho para Jack. — Você está ficando surdo?

— Não — Jack respondeu. — Springfield foi um dos três ou quatro maiores entrepostos ferroviários ia América... Estou ouvindo muito bem.

Ele foi o primeiro a ver que o oeste oferecia as mais amplas possibilidades comerciais...

Bem, por um instante você pareceu ter saído completamente de órbita.

Pode-se dizer que foi o primeiro a ver as possibilidades de levar mercadorias por estrada de ferro para os Postos de Fronteira.

Jack entendeu, realmente entendeu, que Springfield ainda era um ponto que tinha alguma espécie de importância, talvez ainda fosse um ponto de embarque. Talvez fosse por isso que a magia de Morgan funcionava tão bem ali.

— Havia montes de carvão, pátios de manobras, rotundas para locomotivas, galpões para vagões de carga, quilômetros de trilhos e desvio. — Richard dizia. — Cobriam toda essa área onde é agora o Colégio Thayer. Basta cavar um metro em qualquer parte do gramado para encontrar cinzas de carvão, peda­ços de trilho e coisas do gênero. Mas tudo o que sobrou do entreposto foi essa pequena construção. O Depósito. Evidentemente, nunca foi um verdadeiro depósito, qualquer um pode ver que é pequeno de­mais para isso. Mas foi o principal escritório da estrada de ferro, o lugar onde ficavam o chefe da estação e o supervisor dos embarques.

— Você sabe muita coisa sobre isto aqui — disse Jack, falando quase automaticamente (sua cabeça ainda estava cheia daquela nova e selvagem luz).

— Este Depósito faz parte da tradição do Thayer — Richard acrescentou.

— Para que ele é usado agora?

— Há um pequeno teatro lá dentro. Serve para as montagens do Clube de Arte Dramática, se bem que o clube não tem sido muito atuante nos últimos anos.

— O Depósito está trancado?                             

— Por que alguém trancaria o Depósito? — Richard perguntou. — Só se algum curioso estivesse interessado em roubar um ou dois cenários de uma produção de 1979: Os fantásticos.

— Então podemos entrar lá?

— Acho que sim, claro! Mas por que...

Jack indicou uma porta um pouco à frente das mesas de pingue-pongue.

— E o que há ali?

— Máquinas vendedoras automáticas. E um forno de microondas para esquentar lanches e refei­ções congeladas. Jack...

— Vamos!

— Jack, acho que minha febre voltou — disse Richard com um sorriso fraco. — Por que não fica­mos algum tempo aqui? Podíamos descansar um pouco nos sofás...

— Está vendo aquelas manchas marrons nas paredes? — Jack perguntou severamente, apontando.

— Não, não vejo nada sem os óculos, é claro que não!

— Pois bem, elas estão lá. E no máximo daqui a uma hora aqueles insetos brancos começarão a chegar e...

— Está bem — Richard se apressou a dizer.

 

As máquinas vendedoras automáticas cheiravam mal.

Era como se o que havia dentro delas tivesse apodrecido. Um mofo azulado já estaria cobrindo co­quetéis de queijo e camarão, Chokitos e batatas fritas. Filetes vagarosos de sorvete derretido escorriam pe­los lados de uma máquina vermelha e branca.

Jack levou Richard até a janela. De lá se podia ver muito bem o Depósito. Atrás dele havia uma cerca de ferro e a entrada de serviço do campus.

— Mais alguns segundos e teremos saído daqui — Jack sussurrou. Destravou a janela e empur­rou-a para cima.

Este colégio existe porque Andrew Thayer percebeu as potencialidades do lugar... você percebe as potencialidades, Jack?

Ele achava que sim.

— Aquelas pessoas ainda estão lá fora? — Richard perguntou, nervoso.

— Não — disse Jack, dando uma rápida olhada. Pouco importava que estivessem ou não. Um dos três ou quatro maiores entrepostos ferroviários da América... Uma verdadeira fortuna com o comércio ferroviário... principalmente para a costa oeste... Ele foi o primeiro a ver que o oeste oferecia as mais amplas possibilidades comerciais... O oeste... Oeste...

Uma densa e repulsiva mistura de cheiro de lixo e maresia envolveu a janela. Jack passou uma per­na pelo parapeito e puxou Richard pela mão.

— Ande!

Richard recuou, o rosto cheio de medo e angústia.

— Jack... Eu não sei..

— Este lugar está vindo abaixo — disse Jack — e logo estará cheio de insetos. Agora, ande! Alguém vai me ver nesta janela e perderemos a chance de escapar daqui. Escapar como dois camundongos, está entendendo?

— Não estou entendendo nada! — Richard gritou. — Não estou entendendo que diabo está acon­tecendo aqui!

— Cale a boca e venha comigo. Ou vou deixá-lo sozinho, Richard. Juro que vou. Gosto de você, mas minha mãe está morrendo. Se não quiser vir agora comigo, vai ter que se defender sozinho.

Richard olhou para o rosto de Jack e, mesmo sem os óculos, viu que o amigo estava dizendo a verdade.

— Deus, estou com medo — murmurou, dando-lhe a mão.

— Eu também — disse Jack e pulou. Seus pés bateram no lodo que cobria o gramado. Richard pu­lou um segundo depois.

— Temos de chegar ao Depósito — Jack sussurrou. — Até lá são uns 50 metros. Se não estiver fechado à chave, vamos entrar. Se estiver trancado, podemos nos esconder na passagem entre o Depósito e a ponta do Pavilhão Nelson. Assim que tivermos certeza de que ninguém nos viu... E se o lugar continuar silencioso...

— Correremos até a cerca!

— Certo!

Ou talvez tenhamos de atravessar para os Territórios, Jack pensou, mas isso agora não vem ao caso.

— A entrada de serviço. Desconfio que, se conseguirmos sair dos domínios do colégio, tudo volta­rá a seu estado normal. Assim que avançarmos uns 400 metros pela estrada, você poderá olhar para trás e ver luzes nos dormitórios e na biblioteca. Tudo como era antes, Richard!

— Seria ótimo! — disse Richard com uma voz de cortar o coração.

— Tudo bem. Você está pronto?

— Acho que sim.

— Vamos correr para o Depósito. Fique sempre grudado a este lado do muro. E corra abaixado, para que aqueles arbustos possam escondê-lo. Entendeu a coisa?

— Sim.

— Muito bem... Então vamos!

E dispararam do Pavilhão Nelson em direção ao Depósito.

 

Ainda nem estavam na metade do caminho (as bocas soltando um vapor branco, os pés afundando na lama) quando os sinos da capela irromperam num horripilante amontoado de som. Um coro uivante de cães passou a responder aos sinos.

Todos aqueles pretensos inspetores-alunos estavam de volta. Jack tateou à procura Richard e en­controu Richard tateando à procura dele. Os dois se deram as mãos.

Richard gritou e tentou puxar o amigo para a esquerda. Sua mão apertou a de Jack até os ossos es­talarem numa dor paralisante. Um lobo branco e magro, com pinta de chefe de matilha, contornou o Depósito e começou a correr na direção deles. Parecia uma metamorfose do velho da limusine que Jack vira no pátio. Outros lobos e cães o seguiam... E então Jack percebeu com absoluta clareza que alguns deles não eram cães; alguns deles eram rapazes semitransformados, outros, caricaturas de homens adultos — por certo, professores.

— Sr. Dufrey!— Richard guinchou, apontando-o com a mão. (Puxa, para alguém que quebrou os óculos, você está vendo muito bem, Richard!, Jack pensou atordoado). — Sr. Dufrey! oh, Deus, é Sr. Dufrey! Sr. Dufrey! Sr. Dufrey!

Então Jack deu sua primeira e única olhada no diretor do Colégio Thayer — um velhinho de cabe­los brancos, grande nariz curvado, o corpo mirrado e peludo de um pequeno lobo ou macaco. Ele corria velozmente, acompanhado dos demais lobos, cães, garotos e professores. Um barrete oscilava em seu fo­cinho, mas não chegava a cair. Arreganhava os dentes para Jack e Richard. A língua comprida e amarela de nicotina pendia do meio da boca.

— Sr. Dufrey! oh, Deus! Oh, meu Deus! Sr. Dufrey! Sr. Du...

Cada vez mais, Richard ia arrastando Jack para a esquerda. Jack era maior e mais forte, mas Richard estava fortalecido pelo pânico. Explosões faziam o ar estremecer. O fedor de lixo e maresia se tornava cada vez mais denso. E Jack conseguiu ouvir um leve borbulhar no lodo que cobria o gramado. O branco lobo-Dufrey que liderava o grupo ia encurtando a distância e Richard estava tentando arrastar Jack para longe deles, arrastá-lo para a cerca, e isso era bom, mas ao mesmo tempo era ruim; era ruim porque ti­nham de chegar ao Depósito, não à cerca. O Depósito era o ponto-chave, era o ponto-chave porque foi um dos três ou quatro maiores entrepostos ferroviários da América; era o ponto-chave porque Andrew Thayer fora o primeiro a perceber as possibilidades do comércio com o oeste; era o ponto-chave porque Andrew Thayer percebera o potencial do lugar e agora Jack, Jack Sawyer também percebia esse mesmo potencial. Tudo isso, é claro, não passava de intuição, mas Jack começava a acreditar que, em certos assuntos delicados, só podia confiar na intuição.

— Afaste-se do viajante, Sloat!— Dufrey gargarejou. — Afaste-se do viajante! Ele é perigoso demais para andar com você!

Mas o que é um viajante?, Jack se perguntou naqueles poucos segundos, enquanto Richard tentava desesperadamente desviá-lo do caminho do Depósito e Jack continuava avançando para o pelotão de cães, alunos e professores que seguiam o lobo branco. Eu lhe digo o que é um viajante: um viajante é alguém que viaja, tudo bem! E onde um viajante começa a viajar? Ora, na plataforma de uma estação ferroviária, numa plataforma ou um depósito...

— Jack, eles vão atacar! — Richard gritou.

Um dos lobos investiu decididamente na direção dos dois, as mandíbulas abertas como um grande alçapão. Atrás deles houve um ronco muito forte de coisa rachando, como se o Pavilhão Nelson estivesse se desintegrando como uma árvore seca.

Agora era Jack quem apertava com força cada vez maior os dedos de Richard. Sinos enlouquecidos enchiam a noite, bombas de gasolina cintilavam pelo pátio e explodiam como fogos de artifício.

— Tenha calma! — Jack gritou. — Tenha calma, Richard, vamos conseguir!

Jack ainda teve tempo de pensar: Agora as coisas mudaram de figura; agora o rebanho é Richard e sou eu quem tem de guardá-lo. Que Deus nos ajude!

— Jack, o que está acontecendo?— Richard berrou. — O que você está fazendo?Pare com isso! Pare com isso! Pare...

Richard ainda estava berrando, mas Jack Sawyer já não o escutava. Subitamente aquela sensação de horror e desespero estalou como um ovo choco e seu cérebro foi inundado de uma claridade e de uma atmosfera suave, doce; um ar tão puro que se poderia sentir o cheiro do rabanete que um homem tirasse de seu jardim a um quilômetro de distância. De repente, Jack se sentiu capaz de cruzar num único salto toda a extensão do pátio... Capaz de voar, como aqueles homens com asas amarradas nas costas.

Oh, um ar transparente e muita luz substituíam aquele terrível fedor de lixo e maresia, aquela sen­sação de tatear sem saída numa escuridão sem fim. Por um momento, tudo pareceu intensamente lumino­so, radiância pura. Por um momento tudo foi arco-íris, arco-íris, arco-íris...

E foi assim que, no meio de uma fuga desesperada pelo pátio em decomposição do Colégio Tha­yer, entre o ranger de sinos estridentes, o rosnar dos cães, o uivo dos lobos, Jack Sawyer atravessou de novo para os Territórios.

E dessa vez levava consigo o filho de Morgan Sloat.

 

SLOAT NESTE MUNDO/ORRIS NOS TERRITÓRIOS (III)

Pouco depois das sete da manhã seguinte à travessia de Jack e Richard, Morgan Sloat aproximou-se do meio-fio defronte ao portão principal do Colégio Thayer. Estacionou o carro junto de uma placa com a inscrição reservado para deficientes físicos. Sloat olhou-a com indiferença, pôs a mão no bolso, tirou um frasco de cocaína e cheirou um pouco. Daí a instantes, o mundo pareceu adquirir cor e vitalidade. Sem dúvida, era uma droga maravilhosa. Ele se perguntava se não seria possível extrair folhas de coca dos Territórios. E também se perguntava se os efeitos não seriam ainda mais potentes na­quele outro mundo.

Às duas horas da madrugada, Gardener tinha despertado Sloat em sua casa de Beverly Hills para lhe fazer um relatório dos acontecimentos; em Springfield ainda era meia-noite. A voz de Gardener estava trêmula. Parecia aterrado com a possibilidade de que a perda do rastro de Jack Sawyer desencadeasse um acesso de cólera, uma fúria cega em Morgan.

— Aquele rapaz... aquele mau, mau rapaz..

Sloat não se deixara dominar pela raiva. Na realidade, se sentira extraordinariamente calmo. Expe­rimentou um sentimento de predestinação que suspeitava vir daquela outra parte dele — a parte que ele costumava chamar de “ego Orris” e que, a seu ver, tinha todas as características de um ego de realeza.

— Tenha calma — Sloat tranqüilizou-o. — Estarei lá assim que puder. Vamos nos encontrar, Gardener.

Desligou antes que Gardener pudesse dizer mais alguma coisa e esticou-se na cama. Cruzou as mãos sobre o estômago e fechou os olhos. Houve um momento de total ausência de peso... apenas um momento... Então ele teve uma sensação de movimento embaixo do próprio corpo. Ouviu o estalar de chicotes de couro, o rangido de toscas molas de ferro, as pragas de um cocheiro.

E abriu os olhos como Morgan de Orris.

Como sempre, sua primeira reação foi de completo deleite: aquilo fazia as sensações da coca pare­cerem efeitos de melhorai infantil. Seu peito estava mais leve, o peso do corpo era menor. Durante um ato sexual, o coração de Morgan Sloat passava de 85 a 120 batidas por minuto; o coração de Orris raramente tinha mais que 65 batimentos. A visão de Morgan Sloat fora medida como 100%, mas Morgan de Orris en­xergava ainda melhor. Orris podia ver e seguir o curso de cada ranhura na parede interna da diligência; Orris podia deliciar-se com a delicada textura das cortinas de renda que esvoaçavam nas janelas. A cocaí­na afetara o nariz de Sloat, entorpecera-lhe o olfato; o nariz de Orris era de uma limpidez absoluta e podia farejar poeira, terra e ar com perfeita fidelidade (era como se pudesse sentir e avaliar cada molécula da­quele outro mundo).

Atrás dele ficara uma cama de casal vazia ainda marcada com a forma de seu corpanzil. Agora esta­va sentado num banco mais luxuoso que o banco de qualquer Rolls Royce. Agora estava correndo para oeste, para os Postos de Fronteira, para um lugar chamado Depósito dos Postos de Fronteira. Ia se encon­trar com um homem chamado Anders. Sabia dessas coisas, sabia exatamente onde se achava porque Orris estava sempre dentro de sua cabeça. Orris conversava com ele como o lado direito do cérebro pode con­versar com o lado esquerdo racional durante os sonhos de olhos abertos. Numa voz baixa, mas perfeitamente audível. Fora desse modo que Sloat conversara com Orris nas poucas ocasiões em que Orris migrou para aquele mundo que Jack às vezes chamava de Territórios Americanos. Quando um ego emigrava e entrava no corpo de seu Duplo, o resultado era uma espécie de possessão benigna. Sloat já lera sobre casos mais violentos de possessão e, embora o tema não lhe despertasse grande interesse, achava que os pobres, infortunados tolos afligidos por esses problemas tinham sido “possuídos” por via­jantes enlouquecidos de outros mundos; ou talvez tudo não passasse de loucura gerada no próprio mun­do americano. Isto, sem dúvida, era uma hipótese bastante viável; a cabeça do pobre Orris fora quase vi­rada pelo avesso nas primeiras duas ou três vezes em que ele se revelou concretamente na América. Orris ficara barbaramente empolgado, mas também aterrorizado.

A diligência balançava muito — nos Postos de Fronteira, um homem não pode esperar nada do es­tado de conservação das estradas e deve dar graças a Deus pelo simples fato de elas ainda existirem. Orris era sacudido no assento e seu traseiro começava a reclamar.

— Andem firmes, seus cavalos estúpidos! — o cocheiro rosnava da boléia. O chicote assobiava e estalava — Firmes, seus filhos da puta! Andem firmes!

Sloat sorria feliz por estar ali, embora talvez não pudesse se demorar. Já sabia o que precisava sa­ber; a voz de Orris lhe murmurara no ouvido. A diligência chegaria ao Depósito dos Postos de Fronteira (que correspondia no outro mundo ao Colégio Thayer) bem antes do amanhecer. Talvez fosse possível pegá-los se eles tivessem permanecido no campus; caso contrário, se defrontariam com as Terras Secas, Morgan se sentia irritado e magoado ao pensar que Richard estava agora com o garoto Sawyer, mas se fosse preciso um sacrifício... Bem, Orris tinha perdido o filho dele e sobrevivera.

A única coisa que mantivera Jack com vida durante todo esse tempo fora o caráter singular de suas travessias. Ao atravessar, ele surgia sempre num posto análogo ao lugar de onde tinha saído. Sloat, porém, acabava sempre onde Orris estava, às vezes a quilômetros de distância de onde precisava chegar... como era o caso agora. Ele tivera sorte na travessia a partir da parada rodoviária; Sawyer, porém, se saíra ainda melhor.

— Mas toda essa sorte está no fim, meu amiguinho — disse Orris. A diligência deu outro terrível solavanco. Ele fez uma careta, mas voltou a sorrir. A situação estava até se simplificando, mesmo que o confronto final tivesse implicações mais amplas e mais profundas.

É claro.

Fechou os olhos e cruzou os braços. Por um instante, sentiu uma fisgada de dor no pé deforma­do... e, quando abriu os olhos, estava olhando para o teto de seu apartamento. Como sempre, sentiu os quilos extras desabarem incomodamente sobre ele, sentiu o coração ter uma reação de surpresa e come­çar a se acelerar.

Levantou-se e fez uma chamada para a West Coast Business Jet, uma empresa de táxis aéreos. Se­tenta minutos depois, estava deixando Los Angeles. O jatinho da Lear correu pela pista e decolou abruptamente. Como sempre, Morgan teve uma sensação de vácuo no estômago. Às 5h50, hora local, o avião desceu em Springfield, no momento exato em que Orris estava se aproximando do Depósito dos Postos de Fronteira nos Territórios. Sloat alugou um carro na Hertz e lá estava ele no portão do Thayer. Uma via­gem à americana tinha as suas vantagens.

Saltou do carro, e quando os sinos da manhã começavam a tocar, entrou no pátio do Colégio Thayer, de onde seu filho acabara de fugir.

Tudo estava absolutamente normal naquele início de manhã no Colégio Thayer. Os sinos da cape­la tangiam as mesmas notas musicais de sempre, alguma coisa clássica, mas não de todo identificável, que parecia o “Te Deum”, mas não era. Muitos estudantes passaram por Sloat a caminho do refeitório ou dos treinos matinais. Estavam talvez um pouco mais silenciosos que de hábito e todos pareciam pálidos, ligei­ramente atordoados, como se tivessem compartilhado um mesmo pesadelo.

O que, sem dúvida, realmente ocorrera, Sloat pensou. Às vezes, os garotos paravam diante do Pa­vilhão Nelson e o fitavam com ar pensativo. Não percebiam que eles mesmos eram quase irreais, como são quase irreais as criaturas que vivem na fronteira entre dois mundos. Morgan contornou o pavilhão e viu um gari coletando estilhaços de vidro que jaziam na grama como falsos brilhantes. No Pavilhão Nel­son um estranhamente silencioso Albert, o Bolha, fitava com olhos turvos o pacote de balas.

Sloat dirigiu-se para o Depósito, seus pensamentos voltados para a primeira vez em que Orris atra­vessou para o mundo americano. Lembrou-se do fato com uma nostalgia que, quando parasse de pensar no assunto, lhe pareceria um tanto grotesca. Afinal, ele quase morrera. Os dois quase morreram. Mas isso fora em meados dos anos 50, e agora era ele quem estava cinqüentão — a época e o estado de espírito eram muito diferentes, é claro!

Morgan estava voltando do escritório e o crepúsculo envolvia Los Angeles num clarão salpicado de tons arroxeados e nebulosamente amarelos (naquele tempo, a poluição da cidade ainda não era visível no céu). Estava no Sunset Boulevard, contemplando o anúncio de um novo disco de Peggy Lee, quando sen­tiu um frio na espinha. Foi como se uma fonte gelada tivesse se aberto em seu subconsciente, vertendo um líquido estranho e desconhecido que era como... como...

(como sêmen)

... bem, ele não sabia exatamente como era. Exceto que a coisa logo foi se tornando quente, ga­nhando consistência. Morgan quase nem teve tempo de perceber que era Orris. Tudo se tornou confuso em sua mente. Era como se ele tivesse aberto uma porta secreta e encontrado um ambiente insolitamente iluminado com uma estante numa das paredes e uma cômoda com espelho na outra (ambos os móveis se ajustando perfeitamente ao aposento, mas nada tendo a ver com o resto da casa). E, de repente, lá estava Orris ao volante de Um Ford 1952 de capô redondo. Orris usando colete, um paletó marrom e uma grava­ta John Penske. Orris que punha a mão entre as pernas com uma leve e incômoda curiosidade (evidente­mente, nunca usara uma calça com um zíper daquele tipo).

Houve um momento, ele se lembrava, em que o Ford quase subiu na calçada, mas Morgan Sloat (um ego já então muito fraco) ainda conseguiu se encarregar de dirigir o carro, levando Orris em seguran­ça pelas ruas de Los Angeles. Orris esbugalhava os olhos para todos os lados, quase enlouquecido de ale­gria. E o que sobrou de Morgan Sloat também ficou contente; contente como um homem fica quando mostra pela primeira vez sua nova casa a um amigo e vê que o amigo achou a casa incrível.

Orris foi até um drive-in e após alguma confusão com o dinheiro de Morgan (coisa que lhe era in­teiramente desconhecida) pediu um hambúrguer, batatas fritas e um milk shake de chocolate (as palavras lhe saindo facilmente da boca, saltando de seu ego subjacente como água jorrando de uma fonte). A pri­meira mordida no hambúrguer pareceu saborosa... E então ele devorou o resto com a velocidade de Lobo comendo seu primeiro hamburgão. Enfiava as batatas na boca com uma das mãos enquanto a outra tenta­va sintonizar o rádio. Acabou ouvindo uma canção de Perry Como, uma música de orquestra e alguns blues. Tomou até o fim o milk shake e pediu uma segunda rodada.

Na metade do segundo hambúrguer, Orris — e também Sloat — começaram a se sentir enjoados. Até as batatas fritas pareciam rançosas; e, de repente, o cheiro de descarga dos automóveis estava por toda parte. Orris sentiu uma forte coceira nos braços. Tirou bruscamente o paletó, afrouxou o colete (o se­gundo milk shake, dessa vez de baunilha, entornou, derramando sorvete no banco do Ford) e olhou para os braços. Bolhas feias, muito vermelhas no centro, começavam a lhe brotar por toda a pele. Ele sentiu um bolo no estômago, inclinou-se para fora da janela e, enquanto vomitava na bandeja fixada na porta, Morgan sentiu Orris se afastando, voltando para seu próprio mundo...

— Posso ajudar o senhor?

— Hummm?

Saindo do devaneio, Sloat olhou ao redor. Um rapaz alto e louro, obviamente da classe alta, estava na sua frente. Vestia um blazer de flanela impecavelmente azul, uma camisa de colarinho aberto e uma calça Levi’s desbotada.

Tirou o cabelo dos olhos, que pareciam ébrios, sonhadores.

— Meu nome é Etheridge — disse. — Será que não está precisando de ajuda? O senhor parece... estranho.

Sloat sorriu e teve vontade de dizer: Não, não preciso de ajuda e você é que parece estranho, amigo! Mas não disse nada. Estava tudo bem. O garoto Sawyer ainda estava solto, mas Sloat sabia por onde andava e isso significava que Jacky não deixava de estar acorrentado a ele. Era uma corrente invisível, mas era uma corrente.

— Estava recordando o passado, só isso — disse ele. — Lembrando os velhos tempos... Não sou um intruso, Sr. Etheridge, se é isso o que quer saber. Meu filho estuda aqui. Chama-se Richard Sloat.

Por um instante, os olhos de Etheridge pareceram ainda mais ébrios, mais perplexos, mais perdi­dos. Depois se clarearam.

— É claro. Conheço o Richard! — exclamou.

— Daqui a pouco vou falar com o diretor — disse Morgan. — Mas antes queria dar um passeio pelo pátio.

— Ora, fique à vontade! — Etheridge consultou o relógio. — Tenho um compromisso. Se tem cer­teza de que está tudo bem...

— É claro que sim.

Etheridge despediu-se com um gesto de cabeça, um sorriso um tanto vago e foi embora.

Sloat viu-o se distanciar por uma trilha do pátio e depois inspecionou o solo entre o Pavilhão Nel­son e o lugar onde se achava. Observou de novo que havia uma janela quebrada. Era correto — mais do que correto — presumir que, em algum lugar entre o Pavilhão Nelson e aquela construção octogonal de tijolo, os dois tinham migrado para os Territórios. Se quisesse, poderia segui-lo. Simplesmente entrar no Depósito (não havia cadeado na porta) e desaparecer. Reaparecer onde quer que o corpo de Orris esti­vesse naquele momento. Não devia estar longe; talvez estivesse bem ali, defronte ao Depósito.

Só que não fazia sentido migrar para um local que poderia estar a mais de 100 quilômetros do ponto de interesse na geografia dos Territórios; distância que ele poderia ser obrigado a cobrir de carroça ou a pé.

E com toda a certeza os garotos já estariam bem longe. Tentando avançar pelas Terras Secas. Sendo assim, as próprias Terras Secas acabariam com eles. E Osmond, o Duplo de Sunlight Gardener, seria mais do que capaz de extrair todas as informações necessárias onde pudessem ser encontradas. Osmond e seu horrendo filho. Sim, não era preciso migrar.

Só se fosse apenas para dar uma olhada, uma rápida olhada. Pelo prazer, pela sensação revigoran­te de se transformar mais uma vez em Orris, nem que fosse apenas por alguns segundos.

E para Ter Certeza, é claro. Toda a sua vida, desde a infância, fora um permanente exercício de Ter Certeza das coisas.

Olhou mais uma vez ao redor para certificar-se de que Etheridge não estava por peito; depois abriu a porta do Depósito e entrou.

O ar era viciado, melancólico e extremamente nostálgico — tinha o cheiro das velhas maquiagens e cenários de tecido do Clube de Arte Dramática do colégio. Por um instante, Morgan teve a louca idéia de que estava fazendo algo ainda mais incrível do que migrar; sentia-se viajando através do tempo, recuando aos dias de estudante, quando ele e Phil Sawyer montavam peças de teatro amador.

Então seus olhos se adaptaram à escuridão e ele apreciou detalhes de uma pieguice quase nauseante: o cartaz amarelado de uma produção de O corvo, uma gaiola de passarinho extravagantemente dourada, uma estante cheia de falsas capas de livros. Lembrou-se que os cenários malfeitos dos teatros amadores serviam sempre como pretexto para uma performance de “pequeno teatro”.

Ficou um instante imóvel, respirando profundamente o pó que impregnava o ambiente; depois voltou o olhar para a poeira no raio de sol que atravessava uma pequena janela. A luz tremulava e, subitamente, pareceu um tanto mortiça, como luz artificial. Oh, sim! Ele estava nos Territórios. Era exatamente isso! Estava nos Territórios! Teve um momento de júbilo quase delirante, por causa da velocidade em que se dera a travessia. Geralmente havia uma pausa, uma sensação de estar resvalando de um lugar para ou­tro. Essa pausa parecia ser diretamente proporcional à distância entre os corpos físicos de seus dois egos, Sloat e Orris. Certa vez, quando estava migrando do Japão (onde negociara um contrato com os irmãos Shaw para um romance de impacto sobre estrelas de Hollywood ameaçadas por uma enlouquecida ninja), a pausa foi tão grande que ele temeu se perder inteiramente no vácuo, na espécie de limbo que existe entre os mundos. Mas desta vez Sloat e Orris estavam próximos... muito próximos! Era como aquelas pou­cas vezes, ele pensou

(Orris pensou),

em que um homem e uma mulher atingem o orgasmo exatamente no mesmo instante e gozam jun­tos até o fim.

O cheiro da velha maquiagem e dos velhos cenários fora substituído pelo leve, agradável aroma dos lampiões a óleo dos Territórios. Sobre uma mesa, o pequeno pavio de um candeeiro irradiava escuras membranas de fumaça. À esquerda havia outra mesa com restos de uma refeição coagulando em pratos de ferro. Três pratos.

Orris deu um passo à frente, arrastando um pouco o pé deformado. Levantou um dos pratos e exa­minou-o à luz do lampião. Quem terá comido neste prato? Terá sido Anders, Jasão ou Richard... Como teria sido bom que meu filho Rushton não tivesse morrido.

Rushton morrera afogado ao nadar num lago não muito longe da Grande Casa. Durante um pique­nique. Orris e a esposa tinham bebido uma boa quantidade de vinho. O sol estava muito quente. O garo­to, pouco mais que um bebê, tirara uma soneca. Orris e a esposa fizeram amor e depois adormeceram sob o gostoso sol da tarde. Os gritos da criança os despertaram. Rushton tinha acordado e fora até o lago. Ele sabia nadar muito mal, estilo cachorrinho, apenas o suficiente para mantê-lo com a cabeça fora d’água. Agora estava se afogando. Orris correu para o lago, mergulhou e deu as braçadas mais rápidas de sua vida até o local onde o filho se debatia. Fora seu pé, seu maldito pé torto, que lhe dificultara os movimentos e lhe roubara a vida do filho. Quando conseguiu levantar o menino, Rushton praticamente já não respirava. Pegou-o pelos cabelos e arrastou-o para a margem... Mas Rushton chegou roxo e morto.

Margaret se suicidou menos de seis semanas mais tarde.

Sete meses depois, o jovem filho de Morgan Sloat também quase se afogou numa piscina de clube durante um treino de pólo aquático. Foi retirado da piscina tão roxo quanto Rushton... Mas o salva-vidas lhe aplicou uma respiração boca a boca e a reação de Richard foi positiva.

Ah, este maldito está aqui!, Orris pensou, e um profundo rosnado de raiva lhe martelou dentro da cabeça.

Anders, o zelador do depósito, estava deitado num catre que havia num canto. Usava um saiote, tipo escocês, levantado até os calções. Um pote de vinho, de barro, entornara a seu lado e lhe encharcara boa parte do cabelo.

Ele roncava, gemia como se estivesse tendo pesadelos.

Nenhum pesadelo que você possa ter será tão pavoroso quanto sua vida daqui para a frente, Orris pensou sombriamente. Deu mais um passo, o manto flutuando ao seu redor. O olhar que atirou a Anders foi impiedoso.

Sloat era capaz de planejar assassinatos, mas fora sempre Orris quem tivera de migrar para executar as sentenças. Fora Orris no corpo de Sloat quem tentara asfixiar o jovem Jack Sawyer com um travesseiro (enquanto o pai se distraía diante de uma televisão). Fora Orris quem supervisionara o assassinato de Phil Sawyer em Utah (assim como supervisionara o assassinato do representante de Phil Sawyer nos Territórios, o príncipe plebeu Philip Sawtelle).

Sloat já tivera gosto por sangue, mas ultimamente ficara tão alérgico a ele como Orris era alérgico à comida e ao ar americanos. Fora Morgan de Orris, outrora ridicularizado como Morgan Pé-de-Martelo, quem sempre executara as façanhas planejadas por Sloat.

Meu filho morreu; o dele ainda vive. O filho de Sawtelle morreu, o de Sawyer ainda vive. Mas esse problema pode ser remediado. será remediado. Nenhum talismã cairá nas mãos de vocês, meus amiguinhos. O destino de vocês é uma versão radioativa de Oatley; vocês dois estão no rumo da morte, um morte que restabelecerá o justo equilíbrio das coisas. Que a ira de Deus chegue a seu devido lugar!

— E se Deus não ajudar, podem ter certeza que saberei resolver o assunto sozinho — ele disse em voz alta.

O homem no catre gemeu outra vez, como se tivesse ouvido alguma coisa. Orris deu mais um passo em sua direção, talvez pretendendo acordá-lo com um chute e levantar-lhe a cabeça pelas orelhas. Na distância ouviu o trote de cascos de cavalos, o débil ranger e estalar de arreios, os gritos ásperos de cocheiros.

Sem dúvida era Osmond. Ótimo, então! Que Osmond cuidasse do caso de Anders com suas pró­prias mãos. Na realidade, ele tinha pouco interesse em interrogar um homem de ressaca; já sabia muito bem tudo o que Anders teria a dizer.

Orris caminhou pesadamente até a porta, abriu-a e deparou com o exuberante colorido do ama­nhecer nos Territórios. Era daquela direção — da direção de onde o sol se erguia no horizonte — que se aproximavam os sons da diligência de Osmond. Ele se permitiu saborear por um momento o fascinante clarão da aurora e depois virou-se para o oeste, onde o céu ainda tinha o tom avermelhado de uma contu­são. A terra estava escura... exceto por alguns feixes de brilhantes raios de luz que aquele início de manhã proporcionava.

Rapazes, vocês estão no rumo certo da morte, Orris pensou com satisfação... E então lhe ocorra uma idéia que lhe trouxe ainda mais alegria: talvez a morte deles já tivesse ocorrido.

— Ótimo — disse Orris, e fechou os olhos.

Daí a um instante, Morgan Sloat agarrava a maçaneta da porta do pequeno teatro do Colégio Tha­yer, abria os olhos e pensava na viagem de volta para a costa oeste.

Talvez houvesse tempo para seguir um trajeto sentimental e passar por uma cidade da Califórnia chamada Point Venuti. Talvez fosse primeiro até o leste — fazer uma visita à rainha — e depois...

— O ar marinho — ele disse para o busto de Pallas — me fará muito bem.

Recuou de novo para o interior do Depósito e, sem dar importância ao cheiro de maquiagem velha e de cenário mofado, recorreu mais uma vez a um pequeno frasco que tirou do bolso. Revigorado, abriu a porta e começou a descer o pátio em direção ao carro.

 

ANDERS

Jack percebeu de repente que, embora ainda estivesse correndo, estava correndo num ar muito rarefeito, como um personagem de desenho animado que ultrapassou a estrada e continuou a seguir por um abismo de 700 metros. Mas não eram 700 metros. Teve tempo de descobrir que o chão não estava mais ali, mas só caiu um ou dois metros. Cambaleando, tentou levantar o corpo. Richard, porém, chocou-se com ele e ambos rolaram aos trambolhões.

— Cuidado, Jack!— Richard estava gritando. Não parecia interessado em seguir seu próprio con­selho, pois conservava os olhos muito bem fechados. — Cuidado com o lobo! Cuidado com o Sr. Dufrey! Cuidado...

Pare com isso, Richard!

Aqueles gritos esbaforidos eram o que mais assustava Jack. Richard parecia louco, absolutamente fora de si.

— Pare com isso. Está tudo bem! Eles já foram!

— Cuidado com Etheridge! Cuidado com os insetos! Cuidado, Jack!

Richard, eles já foram embora! Olhe à sua volta, pelo amor de Deus.

Jack ainda não tivera chance de olhar ao redor, mas sabia que todas as monstruosidades tinham desaparecido — o ar estava quieto e doce, a noite perfeitamente silenciosa, exceto por uma ligeira brisa agradavelmente morna.

— Cuidado, Jack! Cuidado, Jack! Cuidado, cuidado...

Como um eco sinistro dentro de sua cabeça, Richard ouvia os meninos-cães cantando em coro do lado de fora do Pavilhão Nelson. Entregue, entregue, entregue o rapaz! Por favor, por favor, por favor!

— Cuidado, Jack!— Richard continuava berrando. Seu rosto estava afundado na terra, como um fervoroso maometano determinado a fazer as pazes com Alá. — cuidado! O lobo! Os inspetores-alunos! O diretor da escola! Cuida...

Assustado pela idéia de que Richard tivesse realmente enlouquecido, Jack suspendeu a cabeça do amigo pelas costas da camisa e lhe deu um tapa.

O berreiro de Richard foi bruscamente interrompido. Ele arregalou os olhos para Jack, e Jack viu o contorno de sua mão deixar uma marca ligeiramente vermelha na palidez do rosto do amigo. Mas seu remorso foi logo substituído por uma urgente curiosidade em saber onde estavam. Havia luz; de outro modo, ele não teria sido capaz de ver aquela marca.

De dentro dele veio uma resposta parcial à pergunta, uma resposta que pelo menos até certo pon­to parecia firme e indiscutível.

Os Postos de Fronteira, Jack. Agora você está nos Postos de Fronteira.

Mas, antes de analisar melhor a idéia, Jack Sawyer tinha de colocar o amigo em forma.

— Tudo bem com você, Richie?

Richard fitava Jack com uma fisionomia magoada e entorpecida de espanto.

— Você me bateu, Jack!

— Eu lhe dei um tapa. É isso o que se deve fazer com pessoas histéricas.

— Eu não estava histérico! Nunca fiquei histérico em toda a minha vi... — Richard se interrompeu e ficou de pé, olhando nervosamente ao redor. — O lobo! Temos de ter cuidado com o lobo, Jack! Se con­seguirmos chegar até a cerca, ele não vai nos pegar!

Se Jack não o tivesse segurado com toda a força, Richard teria disparado como um ciclone pela es­curidão, procurando uma cerca que, agora, estava em outro mundo.

— O lobo já foi embora, Richard.

— Hã?

— Nós conseguimos escapar. E atravessamos.

— Do que você está falan...

— Dos Territórios, Richard! Nós estamos nos Territórios! Conseguimos atravessar! — E você quase arrancou meu braço do ombro, Jack pensou, esfregando o ombro dolorido. Da próxima vez que tentar trazer alguém comigo, vou procurar um menino bem pequeno, alguém que ainda acredite em Papai Noel e Dona Cegonha.

— Isso é ridículo — disse Richard pausadamente. — Não existe essa coisa de Territórios.

— Se não existe — disse Jack severamente —, então como você explica que o lobo branco não es­teja mordendo seu traseiro? Onde está o amaldiçoado Sr. Dufrey?

Richard olhou para Jack, abriu a boca para dizer alguma coisa, depois fechou-a de novo. Olhou em volta, dessa vez com um pouco mais de atenção (pelo menos foi a esperança de Jack). Jack fez o mesmo, desfrutando o calor e a limpidez do ar. Morgan e sua multidão de monstros grotescos podiam irrompera qualquer momento diante deles mas, por ora, era impossível não se entregar à pura alegria animal de es­tar... de volta.

Estavam num campo. Uma relva amarela com pontas barbadas — não trigo, mas alguma coisa se­melhante a trigo; sem dúvida, algum cereal comestível — se estendia em todas as direções pela escuridão noturna. A brisa quente a fazia dançar em ondas misteriosas, mas fascinantes. À direita, num pequeno ou­teiro, havia uma construção de madeira, com uma lamparina pendurada num poste diante da porta. Uma chama amarela, quase brilhante demais para ser olhada, queimava dentro do globo de vidro. Jack reparou que a construção era octogonal. Os dois tinham chegado aos Territórios pelos limites do círculo de luz do lampião. E havia alguma coisa além do círculo, alguma coisa metálica que refletia a luz em feixes cintilan­tes. Jack apertou os olhos para o débil clarão prateado... e então compreendeu. O que sentiu não foi bem espanto, mas uma sensação de expectativa plenamente correspondida. Era como se duas grandes peças de um quebra-cabeça, uma nos Territórios Americanos e a outra ali, tivessem se encaixado com perfeição,

A seu lado, havia trilhos de estrada de ferro. E, embora fosse impossível avaliar com precisão os pontos cardeais naquela escuridão, Jack achou que sabia para onde seguiam aqueles trilhos:

Para oeste, é claro.

 

— Ande — disse Jack.

— Não quero ir até lá — disse Richard.

— Por que não?

— Está acontecendo muita coisa absurda. — Richard molhou os lábios. — Pode haver perigo na­quela construção. Cães. Pessoas malucas. — Molhou novamente os lábios. — Insetos.

— Eu já lhe disse. Agora estamos nos Territórios. Toda aquela loucura do pátio do colégio não existe mais.,. Está tudo bem. Que diabo, Richard, você não pode sentir isso?

— Não existe essa coisa de Territórios — Richard falou debilmente.

— Olhe à sua volta.

— Não — disse Richard. Sua voz foi mais baixa que nunca; era o tom de uma criança irritada e teimosa.

Jack pegou um punhado da relva com hastes barbadas.

— Veja isto!

Richard virou a cabeça.

Jack teve de reprimir um ímpeto de sacudir o amigo.

Jogou a relva no chão, contou mentalmente até dez e depois começou a subir o outeiro. Baixou os olhos e viu que estava usando uma espécie de calça de couro. Richard estava vestido exatamente da mes­ma maneira e tinha um lenço vermelho em volta do pescoço (um lenço que parecia ter saído de uma pintura de Frederic Remington). Jack levantou a mão e tocou um lenço do mesmo tipo. Depois alisou o cor­po e descobriu que o casaco deliciosamente quente de Myles P. Kiger se tornara muito semelhante a um poncho mexicano. Devo estar parecendo uma figura de anúncio de faroeste rodado em Monterey, ele pen­sou, e sorriu.

Uma expressão de pânico absoluto cobriu o rosto de Richard quando Jack começou a subir a coli­na, deixando-o sozinho no meio da relva.

— Aonde você vai?

Jack olhou para Richard e voltou. Pôs as mãos nos ombros do amigo e olhou gravemente em seus olhos.

— Não podemos ficar aqui — disse. — Alguns deles devem ter-nos visto atravessar. Talvez não possam vir logo atrás de nós ou talvez possam. Eu não sei. Conheço tanto as leis que governam isto aqui como um garoto de cinco anos conhece o magnetismo; e tudo o que um garoto de cinco anos sabe do as­sunto é que às vezes os ímãs atraem e às vezes repelem. Ao menos por enquanto, não sei praticamente nada sobre as “travessias”. O fato é que temos de sair daqui. E fim de papo, Richard.

— Tudo isto não passa de um sonho, tenho certeza.

Jack indicou com a cabeça a decrépita construção de madeira.

— Pode vir comigo ou pode ficar. Se ficar aqui, volto depois de dar uma olhada no lugar.

— Nada disto está acontecendo — disse Richard. Os olhos sem óculos estavam arregalados, surpresos, um tanto nublados. Contemplou por um instante o escuro céu dos Territórios com sua estranha e desconhecida torrente de estrelas, estremeceu e desviou os olhos. — Estou com febre. Com muita febre. Está havendo uma epidemia de gripe. Isto é um delírio. Você não passa do ator convidado do meu delírio, Jack.

— Bem, quando tiver um tempinho, mandarei alguém me inscrever na Associação dos Atores de Delírio — disse Jack. — Enquanto isso, por que não fica aqui me esperando, Richard? Se nada disto está acontecendo, você não tem por que se preocupar.

Jack recomeçou a andar, achando que não valia a pena iniciar outra daquelas conversas, tipo Alice na mesa de chá, para Richard tentar convencê-lo de que ele, Jack, estava maluco.

Estava a meio caminho do cume do outeiro quando Richard apareceu do seu lado.

— Eu ia voltar depois de dar uma espiada lá em cima — disse Jack.

— Eu sei — disse Richard. — Mas achei que não faria mal algum ir junto com você. Afinal, tudo isto não passa de um sonho.

— Bem, se houver alguém lá em cima, fique de boca fechada — disse Jack. — Acho que há. Acho que vi alguém me olhando pela janela da frente.

— O que você vai fazer? — Richard perguntou.

Jack sorriu.

— Tocar de ouvido, rapaz. É isso que venho fazendo desde que saí de New Hampshire. Tocando de ouvido.

 

Chegaram à varanda, Richard agarrou-se ao ombro de Jack com força. Jack virou-se com ar fatigado; a pose de Richard, embora já um tanto desgastada, voltara, por um momento, a se recompor.

— Que foi?

— Isto é um sonho, não há dúvida — disse Richard —, e posso muito bem provar!

— Como?

— Nós não estamos falando inglês, Jack! O idioma que estamos falando, e falando com perfeição, não é inglês!

— Exato — disse Jack. — Curioso, não acha?

Começou a subir os degraus da varanda, deixando Richard de boca aberta parado atrás dele.

 

Daí a um ou dois segundos Richard conseguiu se recompor e subir os degraus atrás de Jack. As tábuas eram frouxas, empenadas, lascadas. Hastes daquele exuberante e desconhecido cereal cresciam entre algumas fendas. Da vasta escuridão lá fora vinha o sonolento zumbir dos insetos. Não era o contínuo estalar de grilos, mas algo mais suave. Muita coisa era mais suave nos Territórios, Jack pensou.

O lampião externo estava agora atrás deles; suas sombras corriam à frente pelo chão da varanda e, depois de fazer um ângulo reto, se estendiam pela porta. Na porta havia uma tabuleta velha e desbotada. Por um instante, pareceu estar escrita em estranhas letras cirílicas, tão indecifráveis como caracteres rus­sos. Mas de repente a inscrição ficou clara, e a palavra não surpreendeu: depósito.

Jack ergueu a mão para bater, depois sacudiu a cabeça. Não. Não ia bater. Aquilo não era uma resi­dência particular; a tabuleta dizia depósito, e esta era uma palavra que ele associava com instalações públicas: escritórios, salas de espera e garagens automáticas.

Simplesmente empurrou a porta. Uma acolhedora luz de lampião a óleo e uma voz indiscutivel­mente hostil atingiram ao mesmo tempo a varanda.

— Vá embora, demônio!— veio um guincho entrecortado. — Vá embora, vou de manhã. Eu juro! O trem está no galpão! Vá embora! Jurei que ia embora e vou mesmo. Mas agora me... me deixe em paz, em paz!

Jack franziu a testa. Richard abriu a boca. O aposento era limpo, mas muito velho. As tábuas esta­vam tão empenadas que as paredes eram onduladas. O retrato de uma diligência que parecia tão grande quanto um barco pesqueiro pendia de uma das paredes. Um balcão antigo, com a superfície quase tão empenada quanto as paredes, se estendia pelo meio do salão, dividindo-o em dois ambientes. Na parede atrás do balcão havia um quadro-negro com duas colunas: chegadas de carruagens - partidas de carruagens. Olhando o antigo quadro-negro, Jack suspeitou que há muito tempo nenhuma informação era escrita ali; chegou a pensar que, se alguém tentasse rabiscar a giz alguma coisa sobre a lousa, mesmo suavemente, ela ia se partir e se desintegrar no chão.

Num dos lados do balcão havia a maior ampulheta que Jack já vira: era do tamanho de um garrafão de champanha e estava cheia de areia verde.

— Deixe-me em paz, está ouvindo? Prometo que vou embora. Eu vou! Por favor, Morgan! Tenha piedade! Eu prometi. E, se não acredita em mim, dê uma olhada no galpão! O trem está pronto, juro que o trem está pronto!

A tagarelice continuou sempre no mesmo tom. O homem corpulento e idoso estava encolhido no canto direito da sala. Jack calculou a altura do velhote em pelo menos um metro e 90 — mesmo naquela postura servil, o tamanho era indisfarçável; o teto baixo do Depósito ficava a apenas dez centímetros da cabeça dele. Podia ter uns 70 anos; ou uns 80, bem conservados. A barba branca como neve começava sob os olhos e lhe caía em cascata até o peito. Eram pêlos finos como cabelo de bebê. Os ombros pareciam largos, embora bastante curvados, como se tivessem sido forçados a carregar pesos enormes durante muitos e muitos anos. Profundos pés-de-galinha se irradiavam dos cantos dos olhos; rugas fundas marcavam a testa. A pele tinha um amarelado de cera. Ele usava um saiote branco, tipo escocês, atravessado por brilhantes flores escarlates. Obviamente, estava morrendo de medo. Brandia um sólido cajado, mas sem qualquer energia.

Jack olhou atentamente para Richard quando o velho mencionou o nome de Morgan, mas o estado de Richard não lhe permitia prestar atenção a detalhes.

— Eu não sou quem o senhor está pensando — disse Jack, avançando para o velho.

— Vá embora!— ele reagiu com um grito estridente. — Não tenho nada a ver com você! Acho que o demônio pode muito bem se apresentar com um rosto simpático! Vá embora! Eu vou embora! O trem já está pronto. Vou embora de manhã cedo! Disse que faria isso e é o que eu vou fazer. Agora, saia daqui, está bem?

A mochila se transformara num rústico bornal pendurado no ombro de Jack. Ao chegar ao balcão, ele remexeu dentro dela, afastou o espelho e um certo número de varas, o dinheiro do Territórios. Seus dedos se fecharam em volta de um objeto redondo. Era a moeda que o Capitão Farren lhe dera há muito tempo, a moeda com a rainha numa face e o grifo na outra. Ele a jogou no balcão e a luz suave da sala iluminou o fascinante perfil de Laura DeLoessian. De novo ficou maravilhado pela semelhança daquele per­fil com o perfil da mãe. Será que elas sempre foram assim parecidas? Será que, quanto mais penso nelas, mis encontro semelhanças entre as duas? Será que as estou reunindo em minha mente, transformando-as numa única pessoa?

Vendo Jack se aproximar do balcão, o velho se encolheu ainda mais no canto do Depósito; era como se pretendesse furar a parede e escapar. As palavras começaram a lhe saltar da boca num fluxo histérico. Quando Jack jogou a moeda sobre o balcão como um ladrão de cavalos pedindo um drinque num filme de faroeste, o velho parou subitamente de falar. Fitou a moeda, arregalou os olhos e contorceu a boca molhada de saliva. Os olhos esbugalhados se levantaram e, pela primeira vez, viram realmente o rosto de Jack.

— Jasão — ele murmurou com uma voz trêmula. O timbre fraco desapareceu. Agora a voz tremia não de medo, mas de respeito. — Jasão!

— Não — disse ele. — Meu nome é...

Então parou, entendendo que a palavra que sairia naquele estranho idioma não seria Jack, mas...

— Jasão!— o velho gritou e caiu de joelhos. — Jasão, você voltou! Você voltou e a partir de agora tudo vai correr bem, tudo vai correr bem, oh, sim, tudo vai correr bem!

— Espere! — disse Jack. — Pode não ser bem assim...

— Jasão! Jasão voltou e a rainha vai ficar boa, oh, sim! E tudo vai correr bem!

Menos preparado para lidar com aquela chorosa adoração do que para enfrentar a aterrorizada tru­culência do velho zelador do Depósito, Jack virou-se para Richard... mas viu que não encontraria qual­quer apoio ali. Richard se esticara no chão, à esquerda da porta e, se não caíra mesmo no sono, estava fin­gindo muito bem.

— Oh, merda — Jack gemeu.

O velho estava de joelhos, balbuciando e chorando. A situação passava rapidamente do campo do meramente ridículo ao totalmente cômico. Jack encontrou uma parte móvel no balcão e atravessou para o outro lado.

— Levante-se, meu bom e fiel servo — disse Jack. Ele se perguntava se Cristo ou Buda tiveram de enfrentar problemas daquele tipo. — Fique de pé, amigo.

— Jasão! Jasão! — o velho arquejava. O cabelo branco tapou as sandálias de Jack quando o ho­mem se curvou para lhe beijar os pés. E não eram apenas toques de lábios, mas verdadeiros e suculentos beijos. Jack começou a rir sem controle. Conseguira escapar com Richard de Illinois e lá estava ele, num depósito em ruínas, no centro de uma grande plantação de cereal, que parecia trigo mas não era. Lá estava ele em algum lugar dos Postos de Fronteira: Richard dormindo perto da porta e aquele estranho velo beijando-lhe os pés e lhe fazendo cócegas com a barba.

— Levante-se! — Jack gritou, abafando o riso. Tentou recuar, mas bateu no balcão. — Levante-se, bom e fiel servo! Tente se equilibrar em seus pés. Vamos lá, já chega!

— Jasão!

Mais um beijo.

— Agora tudo vai correr bem!                                      

Beijos e beijos.

E a rainha vai ficar boa, Jack pensou atordoado, tentando sufocar o riso enquanto o velho conti­nuava beijando-lhe os pés. Não sei o que lêem nos Territórios, mas Robert Burns não seria uma má idéia.

Beijos e beijos.

Oh, eu realmente não agüento mais, já chega.

— De pé — Jack berrou com toda a força dos pulmões e o velho finalmente se levantou, tremendo e chorando, incapaz de encarar de frente os olhos de Jasão. Mas seus ombros, espantosamente largos, tinham se erguido um pouco, tinham perdido aquela aparência vergada e, sem saber muito bem por que, Jack se sentiu satisfeito com isso.

 

Jack levou mais de uma hora para conseguir conversar coerentemente com o velho. Sempre que tentava iniciar a conversa, Anders, que era cavalariço por profissão, reencenava outra de suas louvações: Oh-Jasão-meu-Jasão-só-tu-podes-nos-livrar-do-mal, e Jack tinha de usar de toda a sua ha­bilidade para acalmá-lo (antes que Anders começasse de novo a lhe beijar os pés). No entanto, Jack gos­tou do homem, simpatizou realmente com ele. E para lhe desculpar o excesso de veneração só teve de imaginar como se sentiria ao se deparar com Buda ou Jesus num posto de gasolina ou na fila do refeitório de seu antigo colégio. Teve ainda de reconhecer outro fato duro e elementar: em parte ele não ficara as­sim tão surpreso com a atitude de Anders. Embora ainda se sentisse basicamente como Jack, estava come­çando a se sentir cada vez mais como... o outro.

Só que o outro morrera.

Era uma verdade indiscutível. Jasão morrera e provavelmente Morgan de Orris tivera alguma coisa a ver com a morte dele. Será que personalidades como Jasão tinham algum meio de retornar?

Jack considerou bem empregado o tempo que Anders levou para entabular conversa; pelo menos pôde ter certeza de que Richard não estava fingindo, que de fato caíra num sono profundo. O que era bom, pois Anders tinha muita coisa a dizer sobre Morgan.

Outrora, Anders começou, aquele fora o último entreposto de carruagens do mundo conhecido, e passara a ser chamado de Depósito dos Postos de Fronteira. Além daquele ponto, o mundo se tornava um lugar monstruoso.

— Como monstruoso? — Jack perguntou.

— Eu não sei — disse Anders, acendendo o cachimbo. Olhou para a escuridão e seu rosto assumiu um ar glacial. — Há histórias sobre as Terras Secas, mas cada uma é diferente da outra e todas começam dizendo: “Eu conheci um homem que conheceu um homem que ficou três dias perdido lá para os lados das Terras Secas e ele disse isso e aquilo.” Eu nunca ouvi uma história que começasse: “Eu fiquei três dias perdido lá para os lados das Terras Secas e vi isso e aquilo...” Percebe a diferença, meu senhor?

— Percebo — disse Jack pausadamente. As Terras Secas. Aquele simples nome fora suficiente para arrepiar os cabelos de seus braços e da nuca. — Então ninguém sabe o que são essas terras?

— Acho que não — disse Anders. — Mas se a quarta parte de tudo o que ouvi sobre elas for verdade...

— O que você ouviu?                                      

— Que guardam monstruosidades que fariam as coisas que trabalham nas covas de minério de Orris parecerem quase normais. Que há bolas de fogo que rolam pelas colinas e clareiras áridas, deixando compridos rastros escuros atrás delas... Dizem que os rastros são escuros à luz do dia, mas brilham à noi­te. E se um homem se aproxima muito de uma dessas bolas, fica terrivelmente doente. Perde o cabelo e o corpo se enche de feridas. Depois começa a vomitar; talvez se sinta melhor, mas geralmente vomita sem parar até o estômago se romper, a garganta explodir e...

Anders empinou a cabeça.

— Meus Deus! Por que o senhor virou o rosto desse jeito? Viu alguma coisa lá fora? Algum fantas­ma nos limites do campo?

Anders se aproximou nervoso da janela e deu uma olhada.

Radiação venenosa, Jack pensou. Ele não sabe disso, mas descreveu quase em detalhes os sintomas da radiação nuclear.

No ano anterior, tinha estudado com o professor de ciências as bombas atômicas e as conseqüências da exposição à radiação nuclear. Além disso, sua mãe participava do movimento antinuclear e do movimen­to contra a proliferação das usinas atômicas; Jack prestava muita atenção ao que ouvia em algumas reuniões.

Sem dúvida a idéia de radiação nuclear se ajustava perfeitamente à noção de Terras Secas! E então de percebeu outra coisa: os primeiros testes atômicos tinham sido realizados no oeste. Fora lá que o pro­tótipo da bomba de Hiroxima fora atirado de um avião e observado de uma torre por um grupo de cientis­tas; fora lá que algumas regiões, habitadas apenas por bonecos e manequins, tinham sido destruídas para que o exército pudesse fazer uma avaliação mais precisa dos resultados de uma explosão nuclear e da conseqüente tempestade de fogo. E ultimamente os militares tinham retornado a Utah e Nevada, nos confins dos verdadeiros Territórios Americanos, mas se limitavam a testes subterrâneos. Existiam, ele sabia, muitas terras federais de circulação restrita naquelas vastidões, naqueles emaranhados de colinas, penhas­cos e desertos. E, sem dúvida, o que testavam ali não eram apenas bombas.

Quanta coisa desse lixo atômico Sloat traria para os Territórios se a rainha morresse? E quanta coisa de toda essa merda atômica ele já teria trazido? Aquele entreposto de carruagens juntamente com a ponta de trilhos que Jack vira nos limites da luz da lamparina fariam parte de algum sistema montado por Sloat?

— O senhor parece que não está bem. Nada bem, meu senhor. Está branco como uma folha de pa­pel! Eu sei, eu juro que não está bem.

— Não é nada — Jack respondeu pausadamente. — Sente-se, por favor. Continue a história e acenda o cachimbo; ele apagou.

Anders tirou o cachimbo da boca, tornou a acendê-lo e olhou para a janela... Agora seu rosto não tinha apenas um ar glacial, estava desfigurado de medo.

— Logo saberei se as histórias são verdadeiras ou não — disse ele.

— Por quê?

— Porque amanhã, às primeiras luzes da aurora, tenho de partir para as Terras Secas. Vou atraves­sá-las com aquela máquina diabólica que Morgan de Orris guarda no galpão. E só Deus sabe que hedion­do tipo de mercadoria a máquina vai carregar.

Jack fitou-o atentamente, o coração martelando no peito, o sangue zumbindo na cabeça.

— Até onde você vai? Até o oceano? Até o deserto de água?

Anders balançou lentamente a cabeça.

— Sim — disse. — Até o deserto de água. E...

Sua voz caiu, tornou-se um murmúrio sem fôlego. Os olhos resvalaram de novo para a janela escura, como se ele temesse que alguma coisa inominável pudesse estar vigiando, espreitando, ouvindo na escuridão.

— E lá Morgan se encontrará comigo. Depois a mercadoria será descarregada.

— E levada para onde? — Jack perguntou.

— Para o hotel negro — Anders respondeu numa voz trêmula e baixa.

 

Jack quase explodiu numa enorme gargalhada. Hotel Negro — parecia título de um apavorante romance de mistério. E no entanto... no entanto... tudo começara num hotel, não é? No Alhambra, em New Hampshire, na costa do Atlântico. Haveria algum outro hotel, outra sinistra monstruo­sidade vitoriana na costa do Pacífico? Seria lá que aquela longa e estranha aventura iria terminar? Em al­gum lugar parecido com o Alhambra, em algum lugar perto de um parque de diversões arruinado? A idéia não deixava de ser terrivelmente fascinante; de um modo insólito, mas preciso, revelava-se de forma mais ampla uma noção de duplicatas, duplicações, Duplos...

— Por que está me olhando desse jeito, meu senhor?

Anders parecia agitado, transtornado. Jack desviou rapidamente o olhar.

— Desculpe. Eu só estava pensando.

Abriu um sorriso tranqüilizador, e o homem lhe devolveu um olhar hesitante.

— E queria que parasse de me chamar assim.

— Assim como, meu senhor?

— Meu senhor.

— Meu senhor?

Anders parecia confuso. Não estava fazendo eco às palavras de Jack, mas pedindo um esclarecimento. Jack teve o pressentimento de que, se insistisse no assunto, acabaria num beco sem saída de repetições.

— Esqueça — disse ele. Depois inclinou-se para a frente. — Quero que me conte tudo o que sabe, Está certo?

— Vou tentar, meu senhor — Anders respondeu.

 

A princípio, as palavras vieram devagar. Era um homem solitário, que passara a vida inteira nos Postos de Fronteira e não estava acostumado a falar muito. Agora, no entanto, um rapaz que ele considerava pelo menos régio (senão uma espécie de Deus) lhe ordenara que falasse. Pouco a pouco suas palavras começaram a ficar mais rápidas e, lá pelo fim de sua história inconclusiva, mas tremendamente curiosa, foram despejadas numa torrente contínua. Não foi difícil para Jack seguir a narrativa, apesar do sotaque do homem, que lhe trouxe à memória as mais estranhas inflexões do interior dos Territórios Americanos.

Anders conhecia Morgan, pois Morgan era nada mais, nada menos que o Senhor dos Postos de Fronteira. Seu verdadeiro título, Morgan de Orris, não dava conta da real extensão de seu poder. Orris era o mais oriental aquartelamento dos Postos de Fronteira, a única parte realmente organizada daquela gran­de e remota área. Como Morgan administrava Orris de forma integral (e com extremo rigor), governava também, devido à ausência de outros poderes, o resto dos Postos de Fronteira. Além disso, nos últimos 15 anos, os Lobos perversos tinham começado a gravitar em torno de Morgan. A princípio, isso pouco signifi­cou, porque eram poucos os Lobos corrompidos (o adjetivo da gíria dos Territórios que Anders usou soou quase como “hidrófobos” aos ouvidos de Jack). Mas, nos últimos anos, seu número crescera assustadora­mente e, segundo o que Anders tinha ouvido dizer, desde que a rainha adoecera, mais da metade da tribo de pastores lobisomens tinha se deixado corromper. E essas não eram, de forma alguma, as únicas criatu­ras que obedeciam ao comando de Morgan de Orris, Anders acrescentou; havia outras, ainda piores. Di­zia-se que algumas podiam enlouquecer um homem com uma simples aparição.

Jack lembrou-se de Elroy, o homem-besta da Taberna Oatley, e estremeceu.

— Esta parte dos Postos de Fronteira em que estamos agora tem algum nome? —Jack perguntou.

— Como disse, meu senhor?

— Como se chama o lugar onde estamos?

— Não tem um verdadeiro nome, meu senhor, mas algumas pessoas chamam isto aqui de Ellis-Breaks.

— Ellis-Breaks — Jack repetiu. Uma imagem da geografia dos Territórios, vaga e provavelmente incorreta em muitos aspectos, finalmente começava a se desenhar em sua mente. Havia os Territórios, que correspondiam ao leste americano; os Postos de Fronteira, que correspondiam ao Meio-Oeste e às Gran­des Planícies (Ellis-Breaks? Illinois? Nebraska?); e havia as Terras Secas, que correspondiam ao oeste dos Estados Unidos.

Ele contemplou Anders por tanto tempo e tão fracamente que o homem começou a revelar uma certa apreensão.

— Desculpe — disse Jack. — Por favor, continue.

Seu pai, Anders explicou, fora o último condutor de diligências que fazia a “linha” do Depósito dos Postos de Fronteira para o leste. Anders fora aprendiz do pai. Mas mesmo naqueles dias já havia tumultos e rebeliões no leste; o assassinato do velho rei e a curta guerra que se seguiu marcaram o início das como­ções sociais. Embora a guerra tenha terminado com a coroação da boa Rainha Laura, os motins continua­ram. E toda a confusão parecia vir das amaldiçoadas e perversas Terras Secas. Segundo alguns, Anders acrescentou, o Mal estava começando a dominar inteiramente as regiões do oeste.

— Não sei se o compreendi muito bem — disse Jack, embora no fundo achasse que sim.

— O Mal veio do fim da Terra — disse Anders. — Das margens do deserto de água, dos confins para onde sou obrigado a ir agora.

Em outras palavras, veio do mesmo lugar que meu pai, Jack pensou. Meu pai, eu, Richard... e Mor­gan. O velho tio Morgan.

Os problemas, disse Anders, não demoraram a chegar aos Postos de Fronteira, e agora a tribo dos Lobos já fora parcialmente corrompida — até que ponto ninguém podia dizer com precisão, mas o velho disse a Jack que, a seu ver, se não fosse logo detida, a podridão atingiria toda a família lupina. As rebeliões também não tardaram a chegar aos Postos de Fronteira, e agora já tinham alcançado o leste, onde (ele ouvira boatos) a rainha jazia doente em seu leito, realmente à beira da morte.

— Mas isso não é verdade, é, meu senhor? — Anders perguntou quase num tom de súplica. Jack fitou-o dentro dos olhos.

— Acha que eu sei a resposta?

— É claro — disse Anders. — Então não é filho dela?

Por um instante, o mundo inteiro pareceu se tornar muito silencioso aos ouvidos de Jack. O doce rumor dos insetos cessou do lado de fora. Richard fez uma pausa entre duas respirações sonolentas, preguiçosas.

Até o próprio coração de Jack (principalmente o coração de Jack) pareceu parar. Então, com uma voz perfeitamente calma, Jack Sawyer respondeu:

— Sim... sou filho dela. E é verdade... a rainha está muito doente.

— Mas está morrendo? — Anders insistiu, os olhos agora ostensivamente Suplicantes. — Ela está morrendo, meu senhor?

Jack sorriu brevemente:

— Não tenho certeza — disse.

 

Anders explicou que, até os problemas começarem, Morgan de Orris não era mais que um senhor de fronteira pouco conhecido; herdara o título do pai, um gordo e fedorento bobo da corte. O pai de Morgan tinha um estoque de riso que parecia inesgotável, Anders continuou, e se divertiu até a hora da morte.

— Bateu as botas quando estava com uma mulher, após um dia de bebedeiras com licor de pêsse­go. As pessoas esperaram ver no filho um segundo palhaço, mas a graça acabou quando começaram os enforcamentos em Orris. E quando os problemas foram tomando vulto nos anos que se seguiram à morte do velho rei, Morgan começou a adquirir importância cada vez maior, despontando no cenário do reino como uma estrela de mau agouro. Mas, ao menos a princípio, isso fez pouca diferença nos Postos de Fronteira. Aqueles grandes espaços vazios — disse Anders — em geral faziam a política parecer coisa sem importância. É claro que a terrível corrupção de parte da tribo dos Lobos repercutiu mesmo naquelas lonjuras, mas como a maioria dos corrompidos fora para o Outro Lugar, a diferença não foi muito grande (“Isso nos abalou muito pouco, meu senhor”, foi o que Jack achou ter ouvido).

Então, não muito tempo depois da notícia sobre a doença da rainha ter chegado até ali, veio uma caravana de escravos tirados das covas de minério de Morgan; esses escravos eram vigiados por Lobos desgarrados e outras criaturas ainda mais estranhas. O capataz era um homem terrível; carregava sempre um chicote. No início do trabalho, estava constantemente ali; depois desapareceu. Anders, que passara a maior parte daquelas terríveis semanas e meses escondido em sua casa (a cerca de oito quilômetros para o sul), ficou muito satisfeito quando viu que o sujeito tinha partido. Ouvira rumores de que Morgan levara o homem do chicote para o leste, onde as manobras políticas estavam chegando ao clímax; Anders não sabia se aquilo era verdade ou não, e nem se preocupava com isso. Achou ótimo que o homem, que às vezes se fazia acompanhar por um menino magro e de aspecto um tanto horripilante, tivesse sumido da­quelas paragens.

— O nome — Jack perguntou —, qual era o nome dele?

— Não sei, meu senhor. Os Lobos o chamavam de Homem do Chicote. Os escravos o chamavam simplesmente de demônio. Eu diria que ela era as duas coisas: um demônio de chicote.

— Ele se vestia como um manequim? Jaquetas de veludo? Sapatos com fivelas nas pontas?

Anders assentiu com a cabeça.

— Usava muito perfume?

— Oh, sim, muito!

— E o chicote tinha pequenas correias com bolotas de metal?

— Sim, meu senhor. Era um chicote do diabo, sem dúvida! Ele era muito bom com ele, oh, se era!

Era Osmond. Era Sunlight Gardener. Ele esteve aqui, supervisionando algum projeto de Morgan...

Então a rainha adoeceu e Osmond foi chamado de volta ao palácio de verão, onde, pela primeira vez, tra­vou conhecimento comigo.

— E o filho? — Jack perguntou. — Como é o filho dele?

— É magricela — disse Anders pausadamente. — E tem um olho flutuante. Isso é tudo de que pos­so me lembrar. Ele... meu senhor, o filho do Homem do Chicote é difícil de descrever. Os Lobos pareciam ter mais medo dele que do pai, embora o rapaz não carregasse chicote. Diziam que era um garoto turvo.

— Turvo... — Jack repetiu com ar pensativo.

— Sim. Os Lobos descrevem assim alguém que é difícil de enxergar, por mais que olhemos para a pessoa. A invisibilidade é impossível, assim dizem os Lobos, mas o sujeito pode ficar turvo se conhecer o truque. A maioria dos Lobos consegue fazer isso, e aquele pequeno filho da puta também conseguia. Por isso eu só me lembro de que era muito magro, tinha um olho flutuante e parecia feio como um pecado sifilítico.

Anders fez uma pausa.

— Adorava machucar os bichos. Pequenos bichos. Costumava trazê-los para perto da varanda e eu ouvia os gritos mais terríveis... — Anders estremeceu. — Esta foi uma das razões que me fizeram ficar trancado em casa, o senhor sabe. Não gosto de ouvir pequenos animais sentindo dor. Fico me sentindo extremamente mal.

O que Anders disse levantou um sem-número de questões na mente de Jack. Teria gostado particularmente que Anders lhe contasse tudo o que sabia sobre os Lobos. À simples menção da família lupina, Jack experimentou uma sensação de ternura e profunda, dolorosa saudade de seu Lobo em particular.

Mas o tempo era curto; pela manhã, o homem começaria sua viagem para o oeste através das Ter­ras Secas e, a qualquer momento, uma horda enlouquecida de estudantes, liderada pelo próprio Morgan, poderia irromper do Outro Lugar, conforme a expressão usada pelo velho. Além disso, Richard podia acordar. Podia querer saber quem era aquele Morgan sobre quem tanto falavam, e quem era aquele garo­to turvo — um garoto turvo que lembrava profundamente o aluno do Colégio Thayer que ocupava o quarto vizinho ao de Richard.

— A caravana veio — Jack adiantou —, a caravana chegou até aqui e Osmond foi o cabeça, pelo menos enquanto pôde se manter afastado das devoções do culto noturno no reformatório em Indiana...

— Meu senhor? — O rosto de Anders estava de novo perplexo.

— Eles vieram e construíram... o quê?

Jack tinha certeza de que já sabia a resposta, mas queria ouvi-la dos próprios lábios de Anders.

— Ora, os trilhos! — Anders respondeu. — Os trilhos que correm para oeste através das Terras Se­cas. Os trilhos que terei de percorrer amanhã. — Ele estremeceu.

— Não — disse Jack, Uma quente, tremenda empolgação explodiu como um sol em seu peito. Fi­cou de pé. Houve novamente um estalo em sua cabeça, aquela terrível, penetrante sensação de grandes coisas se aproximando.

Anders caiu de joelhos com um forte baque ao ver o rosto de Jack se iluminar. Ouvindo o barulho, Richard se sacudiu e sentou-se sonolento no chão.

— Você não vai — disse Jack. — Quem vai somos eu e... — ele apontou para Richard —... e ele.

— Jack? — Richard fitou-o com cara de sono, uma expressão de míope confusão. — Do que você

está falando? E por que esse homem está cheirando o chão?

— Meu senhor... é claro que lhe obedecerei... mas não entendo...

— Você não vai — disse Jack. — Nós é que partiremos. Nós levaremos o trem.

— Mas, por que, meu senhor? — Anders conseguiu perguntar sem se atrever a levantar os olhos.

Jack Sawyer olhou para a escuridão.

— Porque — disse ele — acho que há alguma coisa no fim dos trilhos... No fim ou perto do fim dos trilhos... Uma coisa da qual preciso me apoderar.

 

SLOAT NESTE MUNDO (IV)

A 10 de dezembro, um Morgan Sloat encasacado sentou-se na pequena e descon­fortável cadeira ao lado da cama de Lily Sawyer. Ela estava resfriada, por isso se enrolara no pesado casa­co de caxemira e enfiara profundamente as mãos nos bolsos. Sentia-se, no entanto, muito mais feliz do que sua aparência sugeria. Lily estava morrendo. Estava indo de vez para aquele lugar de onde ninguém volta, mesmo se a pessoa for uma rainha deitada numa cama do tamanho de um campo de futebol.

A cama de Lily não era tão grande, e ela não tinha a menor semelhança com uma rainha. A enfermidade subtraíra grande parte de seus dotes: emagrecera-lhe o rosto e a deixara uns 20 anos mais velha. Os olhos de Sloat percorreram com ar de avaliação as salientes cordilheiras de ossos em volta dos olhos, o casco de tartaruga na testa. O corpo esquálido não passava de um estreito contorno sob os lençóis e co­bertores. Sloat sabia que o Alhambra fora bem pago para deixar Lily Cavanaugh Sawyer sozinha, pois fora de quem pagara. Até o aquecimento do quarto deixara de funcionar. Lily era a única hóspede do hotel. Além do cozinheiro e do empregado da recepção, só havia no Alhambra três empregadas portuguesas que passavam o dia inteiro limpando o vestíbulo. Essas empregadas é que devem ter conservado Lily sob a pilha de cobertores. Sloat reservara a suíte do outro lado do corredor e pedira que o empregado da re­cepção e as criadas o informassem do estado de Lily Cavanaugh.

— Você está com uma aparência melhor — disse Sloat, para ver se ela ainda conseguia abrir os olhos. — Acho mesmo que há sinais de recuperação.

Sem mover qualquer coisa além da boca, Lily comentou:

— Não sei por que está fingindo ser generoso, Sloat.

— Sou seu melhor amigo — Sloat respondeu.

Nesse momento ela abriu os olhos, e eles não estavam suficientemente opacos para satisfazer Sloat.

— Saia daqui — ela murmurou. — Você é obsceno.

— Estou tentando ajudá-la e gostaria que levasse isso em conta. Tenho todos os papéis, Lily. Tudo que você tem a fazer é assiná-los. Depois que fizer isso, você e seu filho estarão seguros pelo resto da vida. — Sloat contemplou Lily com uma expressão de alegre abatimento. — Aliás, não tenho tido muita sorte em localizar Jack. Tem falado com ele?

— Você sabe que não — disse ela. E não chorou, como Morgan previra.

— O rapaz já devia estar aqui, você não acha?

— Por que não vai à merda? — Lily respondeu.

— Vou procurá-la em seu banheiro. Estou com dor de barriga, sabe? — disse ele se levantando. Lily fechou novamente os olhos e ignorou-o. — Espero que ele não tenha se metido em complicações — Sloat observou num tom distraído, caminhando vagarosamente ao lado da cama. — Acontecem coisas ter­ríveis a rapazes na estrada. — Lily continuou em silêncio. — Coisas em que nem gosto de pensar.       

Ele atingiu os pés da cama e continuou avançando para a porta do banheiro. Lily jazia sob os len­çóis e cobertores como um pedaço amarrotado de papel higiênico. Sloat entrou no banheiro.

Esfregou as mãos, fechou delicadamente a porta e abriu ambas as torneiras da pia. Depois tirou do bolso do casaco um pequeno frasco marrom de dois gramas e, do bolso interno do paletó, uma pequena caixa que continha um espelho, uma navalha de barbear e um pequeno canudinho de metal. Pôs sobre o espelho cerca de um oitavo de grama da mais pura cocaína peruana que foi capaz de encontrar. Então cortou-a ritualisticamente com a navalha, dividindo-a em duas linhas curtas. Sorveu as linhas pelo canu­do, ofegou, inalou com força e prendeu a respiração por um ou dois segundos.

— Aaah!

Suas vias nasais abriram-se como túneis. Como era de se esperar, uma gota ameaçou escapar, mas Morgan empurrou-a com o dedo. Depois molhou as mãos com água e passou na ponta das narinas o po­legar e o indicador. Por fim, pegou uma toalha e esfregou as mãos e o rosto.

Aquele adorável trem, ele se permitiu pensar, aquele adorável trem... Acho que estou mais orgulho­so dele do que de meu filho.

Morgan Sloat deleitou-se com a visão de seu precioso trem, que era a mesma coisa em ambos os mundos. Deleitou-se com a visão da primeira manifestação concreta de seu plano, há tanto tempo acalentado, de exportar tecnologia moderna para os Territórios. Deleitou-se com a visão da chegada do trem a Point Venuti com seu utilíssimo carregamento. Point Venuti! Sloat sorriu quando o efeito da coca lhe atin­giu o cérebro, trazendo a habitual mensagem de que tudo ia dar certo, tudo ia dar certo. Mesmo com toda a sorte do mundo, o pequeno Jack Sawyer não conseguiria se sair bem na pequena e estranha cidade de Point Venuti. E, sem dúvida, considerando-se que teria de atravessar as Terras Secas, precisaria de uma imensa dose de sorte apenas para chegar lá.

Mas a droga lembrou a Sloat que, de um certo ponto de vista, era até preferível que Jack conseguis­se vencer todos os perigos, conseguisse escapar de Point Venuti, conseguisse sobreviver ao hotel negro (que não era apenas um amontoado de tábuas, pregos, tijolos e pedra, mas uma coisa viva). Quem sabe ele não lograria se apoderar do talismã com suas mãos de pequeno ladrão. E se isso acontecesse...

Sim, se esse fato absolutamente espantoso viesse a ocorrer, tudo ficaria muito bem!

E tanto Jack Sawyer quanto o talismã seriam partidos ao meio.

E ele, Morgan Sloat, finalmente receberia a recompensa que seu talento há tanto tempo merecia. Por um instante, pôde se ver abrindo os braços sobre vastidões cheias de estrelas, sobre mundos entrela­çados como amantes numa cama, sobre tudo o que o talismã protegia, sobre tudo o que ambicionara quando, anos atrás, comprou o Agincourt. Talvez Jack conseguisse tudo isso para ele. Serenidade. Glória.

Para comemorar essa idéia, tirou novamente o frasco do bolso e, sem se preocupar com o ritual da navalha e do espelho, simplesmente usou a colherinha ligada ao frasco para levar o salutar pozinho bran­co primeiro a uma narina, depois à outra. Serenidade, oh, sim!

 

Voltou fungando para o quarto. Lily parecia ligeiramente mais animada, mas Sloat estava agora tão bem-humorado que mesmo aquela pequena evidência de continuidade de vida não o perturbou. Brilhan­do, mas singularmente fundos dentro dos círculos de ossos, os olhos dela o seguiram.

— Então o tio Sloat tem um novo e odioso vício — disse Lily.

— E você está morrendo — Morgan respondeu. — O que acha melhor?

— Tome bastante dessa coisa e logo também estará morrendo.

Sem se deixar abalar pela hostilidade de Lily, Sloat voltou à pequena e instável cadeira.

— Pelo amor de Deus, Lily, fale como uma mulher madura! — ele disse. — Agora todo mundo usa coca. Você está desligada do mundo. Há anos você está desligada do mundo! Não quer experimentar um pouco, hã?

Ele tirou o frasco do bolso e sacudiu-o pela corrente ligada à pequena colher.

— Saia daqui!

Sloat agitou o frasco ainda mais perto do rosto de Lily.

Ela se sentou na cama com a agilidade de uma cobra dando o bote e cuspiu na cara dele.               

— Sua puta!

Ele recuou, pegando um lenço enquanto a saliva escorria pela sua face.

— Se essa coisa é tão maravilhosa, por que teve de escapulir para tomá-la no banheiro? Não, não responda, apenas me deixe sozinha... Não quero vê-lo de novo, Sloat. Tire sua bunda gordona daqui!

— Você vai morrer sem ninguém do seu lado, Lily — disse ele cheio de uma alegria fria, perversa. — Vai morrer sem ninguém, e esta cômica cidadezinha vai lhe proporcionar um enterro de indigente. E seu filho também vai morrer, porque não conseguirá enfrentar o que está à espera dele. Ninguém voltará a ouvir falar de você nem de Jack. — Sloat sorriu. As mãos rechonchudas fecharam-se em punhos esbran­quiçados e cabeludos. — Ainda se lembra de Asher Dondorf, Lily? Nosso cliente? Ator coadjuvante de um seriado de TV? Estive lendo uma reportagem sobre ele no The Hollywood Reporter. Saiu há algumas sema­nas. Tentou o suicídio na sala de estar, mas em vez de acertar um tiro no coração, preferiu atirar no céu da boca. Entrou em coma. Ouvi dizer que o coma pode se prolongar por anos a fio, mas ele vai apodrecer por dentro. — Morgan inclinou-se sobre ela e franziu a testa. — Na minha opinião, você e o velho Asher têm muita coisa em comum.

Ela se limitou a desviar o rosto. Seus olhos, no entanto, pareciam querer afundar para dentro do crânio. Lembrou uma obstinada desbravadora do oeste com uma velha espingarda numa das mãos e a Bí­blia na outra.

— Meu filho vai salvar minha vida — disse. — Jack vai salvar minha vida. Você não conseguirá detê-lo.

— Bem... veremos, não é? — Sloat respondeu. — Veremos...

 

AS TERRAS SECAS

— Mas vai chegar a salvo, meu senhor? — Anders perguntou, ajoelhando-se dian­te de Jack com o saiote vermelho e branco estendido à sua volta como saia de mulher.

— Jack? — Richard chamou, e sua voz era um pequeno e lamuriente fio de som.

— Você chegaria a salvo? — Jack perguntou.

Anders virou para o lado a enorme cabeça branca e franziu a testa, como se Jack lhe tivesse pedido para decifrar uma charada. Parecia um cachorro peludo perdido.

— Posso chegar a salvo do mesmo modo que você. Foi isso o que eu quis dizer.

— Mas, meu senhor...

— Jack? — veio de novo a voz queixosa de Richard. — Eu dormi e agora já devia ter acordado, mas ainda estou neste lugar estranho... Logo, ainda estou sonhando, você não acha? Mas quero acordar, Jack, não quero ter mais este sonho. Não! Não quero mais ver isto!

E foi para não ver que quebrou seus malditos óculos, Jack pensou consigo mesmo.

— Isto não é um sonho! — ele disse em voz alta. — Teremos de nos pôr a caminho. Vamos fazer uma viagem de trem.

— Hã? — disse Richard, esfregando o rosto e sentando no chão. Se Anders parecia um grande ca­chorro branco de saias, Richard lembrava um bebê que tivesse acabado de acordar.

— Jasão, meu senhor! — Anders exclamou. Jack achou que ele ia chorar... de alívio. — Essa é mes­mo sua vontade? É mesmo sua vontade conduzir aquela máquina do diabo pelas Terras Secas?

— Sem a menor dúvida — disse Jack.

— Onde estamos? — Richard perguntou. — Tem certeza que não estão correndo atrás de nós?

Jack virou-se para o amigo. Richard continuava no chão amarelado e empenado. Piscava com um ar estúpido, o terror ainda o envolvendo como névoa.

— Tudo bem — disse Jack. — Vou responder à sua pergunta. Estamos num trecho dos Territórios chamado Ellis-Breaks...

— Estou com dor de cabeça — disse Richard. Ele tinha fechado novamente os olhos.

— E, — Jack continuou — vamos conduzir o trem deste homem pelas Terras Secas até o hotel ne­gro, ou o mais próximo dele que pudermos chegar. O que está acontecendo é isso, Richard! Acredite você ou não! E quanto mais cedo acreditar, maiores serão nossas chances de escapar das armadilhas que vamos encontrar pela frente.

— Etheridge — Richard sussurrou. — Sr. Dufrey...

Richard observava o interior do velho depósito como se esperasse que, a qualquer momento, uma horda de perseguidores irrompesse pelas paredes.

— É um tumor no cérebro, você sabe — ele disse a Jack num tom de perfeita sensatez. — Por isso é que estou com essa dor de cabeça.

— Jasão, meu senhor — o velho Anders estava dizendo (tão curvado que o cabelo tocava as tábuas do chão) —, como o senhor é generoso. Oh, Grande Jasão, como é bondoso para seu mais humilde servo!Como é clemente para aqueles que, como eu, não merecem sua abençoada presença!

Ele se arrastou para a frente e, aterrado, Jack percebeu que o homem estava prestes a retomar o hi­rta ritual de lhe beijar repetidamente os pés.

— E um tumor já bem avançado — Richard balbuciou.

— Por favor, levante-se, Anders! — disse Jack, recuando um passo. — Levante-se! Vamos lá, já chega!

O velho continuou a rastejar para os pés de Jack, arfando de alívio por não ser mais obrigado a su­portar as duras provas das Terras Secas.

— levante-se! — Jack berrou.

Anders ergueu a cabeça, a testa franzida.

— Sim, meu senhor.

E lentamente se pôs de pé.

— Ponha seu tumor cerebral em funcionamento, Richard — disse Jack. — Teremos de descobrir como se maneja este maldito trem!

 

Anders fora para trás do balcão comprido e empenado, abrira uma gaveta e co­meçara a remexer dentro dela.

— Acho que a coisa funciona graças ao poder de demônios, meu senhor — disse ele. — Demônios estranhos, que se movem ruidosamente. Não parecem estar vivos, mas estão. Oh, como estão!

O velho tirou da gaveta a vela mais grossa e comprida que Jack já vira. Depois, puxou de uma pe­quena caixa uma ripa de madeira, com uns 30 centímetros de comprimento, e aproximou uma das pontas da chama da lamparina. A ripa de madeira entrou em ignição e Anders usou-a para acender a enorme vela. Depois sacudiu o fósforo de um lado para o outro até a chama se transformar num anel de fumaça.

— Demônios? — Jack perguntou.

— Estranhas coisas quadradas. Tenho certeza que os demônios estão dentro delas. Às vezes cospem e soltam faíscas! Vou lhe mostrar, Senhor Jasão.

Sem dizer mais nada, caminhou depressa para a porta. O quente clarão da vela obscureceu mo­mentaneamente as rugas do seu rosto. Jack acompanhou-o até o lado de fora, doce vastidão nos confins dos Territórios. Lembrou-se de uma fotografia na parede do escritório de Speedy Parker, uma fotografia que irradiava uma força inexplicável. Percebeu que se encontrava perto do lugar onde a foto tinha sido tirada. Ao longe, estendia-se um contorno de montanha que não lhe era desconhecido. Do sopé da pe­quena colina onde se erguia o depósito, os campos de cereais abriam-se em todas as direções, ondulando em vagas suaves, majestosas. Coçando a testa, Richard Sloat aproximou-se de Jack num passo hesitante. O prateado dos trilhos de metal, destoando do resto da paisagem, prolongava-se infinitamente para o oeste.

— O galpão fica lá atrás, meu senhor — disse Anders em voz baixa, iniciando uma caminhada qua­se furtiva para o lado do depósito. Jack deu mais uma olhada na montanha distante. Agora já se parecia menos com a montanha da foto de Speedy; agora era uma montanha do oeste, não do leste.

— Que história é essa de Jasão-meu-senhor? — Richard cochichou em sua orelha. — Ele pensa que o conhece.

— Bem, é difícil de explicar — disse Jack.

Richard segurou o lenço do pescoço, depois agarrou o braço de Jack. O velho aperto tipo valentão de Kansas City.

— O que houve com o colégio, Jack? O que houve com os cachorros? Onde estamos?

— Venha comigo sem fazer perguntas. Provavelmente, você ainda está sonhando.

— Sim — disse Richard num tom do mais puro alívio. — Sim, é isso, não é? Ainda estou dormindo, Você me contou toda aquela besteira sobre os Territórios e agora estou sonhando com isso!

— Pois é — disse Jack e foi atrás de Anders. O velho segurava a enorme vela como um archote e, contornando os fundos do outeiro, dirigiu-se para outra construção octogonal, um pouco maior que a primeira. Os dois garotos o seguiam através de uma relva alta e amarela. Uma luminosidade mortiça derramava-se de um globo transparente, revelando que aquela segunda construção era aberta em duas extremidades, como se a área tivesse sido cortada ao meio. Os trilhos prateados do trem cruzavam essas aberturas. Anders chegou ao galpão e parou à espera dos garotos. Agarrado à vela chamejante, crepitante, de barba comprida e roupas estranhas, parecia uma criatura de lenda ou de conto de fadas, um bruxo, um feiticeiro.

— Essa coisa não saiu daqui desde que chegou. Talvez por isso os demônios ainda estejam quietos dentro dela. — Anders fez uma careta e todas as rugas se aprofundaram. — É uma invenção do diabo. Uma coisa infernal, pode ter certeza. — Olhava pelo ombro como se esperasse algum ataque. Jack perce­beu que Anders sequer suportava a idéia de ficar no galpão ao lado do trem. — A bordo já há muita carga e o cheiro dela também veio do inferno.

Jack deu um passo à frente, obrigando Anders a segui-lo. Richard cambaleava atrás dos dois, sem­pre esfregando os olhos. O pequeno trem estava virado para o oeste. Uma locomotiva de aparência estra­nha, um vagão de carga fechado e um vagão-plataforma coberto por uma lona formavam a composição. Deste último carro vinha o cheiro de que Anders reclamara. Não era um cheiro dos Territórios, mas um odor metálico, gorduroso.

Richard foi imediatamente para um dos ângulos interiores do galpão, sentou-se no chão, encos­tou-se na parede e fechou os olhos.

— Já viu isto funcionar, meu senhor? — Anders perguntou em voz baixa.

Jack assentiu com a cabeça e seguiu os trilhos até a frente do trem. Sim, lá estavam os “demônios” de Anders. Eram pilhas elétricas, exatamente como Jack desconfiara. Dezesseis pilhas enormes, encaixadas num compartimento de metal ligado às engrenagens da cabine da locomotiva. A locomotiva lembrava uma versão mais sofisticada de um carrinho-bicicleta de entregas, só que no lugar do selim e pedais havia a pequena cabine. E a cabine fez Jack lembrar-se de mais alguma coisa... uma coisa que não soube identi­ficar de imediato.

— Os demônios falam com a vareta vertical — disse Anders atrás dele.

Jack subiu à pequena cabine. A “vareta” que Anders mencionara era uma alavanca fixada num es­caninho com três entalhes. E então Jack descobriu com o que se parecia a locomotiva. O trem fora construído exatamente como um carrinho de golfe. Movido à pilha, tinha apenas três marchas: para a frente, ponto morto e marcha à ré. Possivelmente, era o único tipo de trem que podia funcionar nos Territórios; devia ter sido construído por encomenda para Morgan Sloat.

— Os demônios nas caixas cospem faíscas e falam com a vareta. Então a vareta faz o trem andar, meu senhor.

Anders pairava ansioso ao lado da cabine, o rosto contorcido num espantoso desfile de rugas.

— Você ia partir amanhã de manhã? — Jack perguntou.

— Sim.

— Mas o trem ainda não está pronto?

— Já está pronto, meu senhor.

Jack esticou a cabeça e pulou da cabine.

— Qual é a carga?

— Coisas do demônio — disse Anders de cara fechada. — Coisas para os Lobos corruptos... A se­rem levadas para o hotel negro.

Se eu partisse agora, Jack pensou, ganharia um ponto de vantagem sobre Morgan. E olhou inquieto para Richard, que conseguira adormecer de novo. Se não fosse a visita ao cabeça-dura, ao hipocondríaco e racional Richard no Colégio Thayer, talvez ele nunca tivesse deparado com aquela locomotiva no Territórios... E Sloat conseguiria facilmente empregar contra ele as “coisas do demônio” — certamente armas — assim que o visse se aproximar do hotel negro. Agora Jack tinha certeza de que o hotel marcaria o fim de sua jornada. E tudo aquilo parecia indicar que Richard, por mais desamparado ou irritante que pa­recesse naquele momento, ainda ia desempenhar um papel fundamental na busca do talismã. O filho de Sawyer e o filho de Sloat; o filho do Príncipe Philip Sawtelle e o filho de Morgan de Orris. Por um instante o inundo rodopiou em volta de Jack e ele teve a percepção nítida de que Richard seria essencial ao que teria de ser feito no hotel negro. Então Richard fungou e deixou o queixo cair. A sensação de momentâ­nea compreensão escapuliu da mente de Jack.

— Vamos dar uma olhada nessas coisas do demônio — disse ele. Deu meia-volta e caminhou por toda a extensão do trem. Reparou que o chão do galpão era dividido em duas partes: uma delas era uma grande massa redonda, como um enorme prato de jantar. Depois havia uma fenda e o trecho além do pe­rímetro do círculo estendia-se até as paredes. Jack nunca tinha visto uma rotunda de locomotivas, mas sabia mais ou menos o que era: a parte circular do chão podia girar 180 graus. Normalmente, os trens viriam do leste e voltariam na mesma direção.

A lona sobre a carga fora amarrada com uma corda marrom. Era muito grossa, e áspera como palha de aço. Jack conseguiu levantar uma ponta, espiou por baixo, mas viu apenas escuridão.

— Me ajude — disse ele, virando-se para Anders.

Franzindo ainda mais a testa, o homem deu um passo à frente e, com um gesto forte e ágil, soltou um dos nós. A lona afrouxou. E então, ao levantar novamente uma ponta, Jack constatou que metade do vagão-plataforma estava carregado de caixas de madeira com a inscrição: peças de máquinas automáticas. Amas, peças de Metralhadora, ele pensou: Morgan estava armando os Lobos rebeldes!

A outra metade do espaço sob a lona estava ocupada por volumosos pacotes retangulares de uma substância de aparência pastosa, embrulhada em camadas de plástico. Jack não tinha idéia do que aquilo poderia ser, mas sem a menor dúvida não era recheio de pão-doce. Deixou cair a lona e recuou um passo. Anders puxou a corda e refez o nó.

— Vamos sair hoje à noite — disse Jack, com um ar de súbita resolução.

— Mas Jasão, meu senhor... as Terras Secas... à noite... o senhor não sabe...

— Sei muito bem, não se preocupe — disse Jack. — Sei muito bem que preciso aproveitar o fator surpresa. Morgan e aquele sujeito que os Lobos chamam de Homem do Chicote estarão à minha procura, e se eu e Richard aparecermos 12 horas antes da hora prevista para a chegada do trem, teremos maiores chances de escapar com vida.

Anders balançou sombriamente a cabeça, de novo lembrando um cachorro muito grande queren­do se encolher num canto qualquer.

Jack voltou a olhar para Richard. Ele estava dormindo de boca aberta. Como se adivinhasse o que se passava na mente de Jack, Anders também olhou para o sonolento Richard.

— Morgan de Orris teve um filho? — Jack perguntou.

— Teve, meu senhor. O fruto do breve casamento de Morgan foi um menino chamado Rushton.

— E o que houve com Rushton?

— Morreu — Anders respondeu sucintamente. — Morgan de Orris não devia ser um bom pai.

Jack estremeceu, recordando como seu inimigo atacara rasgando o próprio ar e quase matando todo o rebanho de Lobo.

— Vamos partir — disse ele. — Pode me ajudar a pôr meu amigo na cabine, Anders?

— Meu senhor...

Anders sacudiu a cabeça, depois tornou a erguê-la com um ar de preocupação paterna.

— A viagem até a costa oeste levará pelo menos dois dias, talvez três. O senhor tem alguma comi­da? Não quer me dar a honra de jantar comigo?

Impaciente para dar início à última fase de sua jornada, Jack ainda esboçou uma negativa, mas seu estômago roncou abruptamente, avisando-o de que já se passara muito tempo desde que digerira batatas fritas e biscoitos no quarto de Albert, o Bolha.

— Bem — disse ele —, acho que perder mais meia hora não vai fazer muita diferença. Obrigado, Anders! Ajude-me a levantar Richard, está bem?

E talvez, Jack Sawyer pensou, não estivesse assim tão ansioso para se lançar na travessia das Terras Secas.

Os dois puseram Richard de pé. Richard abriu os olhos como um ratinho indefeso, sorriu e caiu outra vez no sono.

— Comida — disse Jack. — Comida de verdade! Vai ou não vai acordar?

— Eu nunca como nos sonhos — Richard respondeu com surrealista racionalidade. Bocejou, esfre­gou os olhos, e pouco a pouco foi se equilibrando no chão, deixando de se apoiar em Anders e Jack. —Mas, para dizer a verdade, estou com muita fome. Este sonho parece interminável, você não acha, Jack?-Ele parecia quase orgulhoso de ter um sonho interminável,

— Acho — Jack respondeu.

— Diga, é este o trem que vamos tomar? Parece de desenho animado!

— É este trem.

— Sabe manobrá-lo, Jack? O sonho é meu, eu sei, mas...

— É mais ou menos como operar meu velho trenzinho elétrico — disse Jack. — Posso muito bem levá-lo. E você também, Richard.

— Não conte comigo — disse Richard, e o tom queixoso, lamuriento, voltou de novo à sua voz. — Não quero subir neste trem. Preciso voltar para o meu quarto.

— Mas antes venha conosco e coma alguma coisa — disse Jack, arrastando Richard para fora do galpão. — Depois vamos iniciar nossa viagem para a Califórnia.

 

E assim, pouco antes dos dois penetrarem nas Terras Secas, os Territórios mostraram aos garotos uma de suas belas faces. Anders ofereceu-lhes boas e grossas fatias de pão, sem dúvida feito do cereal que crescia ao redor do Depósito, pedaços de uma carne macia, gostosos e suculentos vegetais que eles não conheciam, um cheiroso suco rosado que, por alguma razão, Jack achou que fosse mamão (embora soubesse que não era). Richard comeu e bebeu quase num estado hipnótico. O suco escorreu pelo seu queixo e foi Jack quem teve de limpá-lo.

— Califórnia! — Richard gritou de repente. — Eu devia ter imaginado!

Presumindo que Richard estivesse fazendo alusão à fama de loucura que aquele Estado possuía, Jack não fez perguntas. Estava mais preocupado com o estrago que os dois estavam causando no possi­velmente limitado estoque de comida de Anders. O velho, porém, continuava remexendo atrás do balcão, onde ele ou o pai dele tinham instalado um pequeno fogão à lenha. A cada segundo, voltava com novos pratos: bolinhos de milho, geléia de mocotó, coisas que lembravam coxinhas de galinha, mas tinham um gosto... de quê? Incenso e mirra? Flores? O sabor era tão espantoso que fazia a saliva explodir na língua de Jack. Ele teve medo de começar a babar como um ruminante.

Os três acabaram se sentando numa pequena mesa, sob a luz suave e aconchegante do Depósito. No fim da refeição, Anders foi buscar, quase com timidez, um jarro pesado, cheio até a metade com um vinho muito vermelho. Como se precisasse seguir polidamente todas as normas de uma casa nobre, Jack tomou um pequeno copo.

 

Duas horas depois, começando a se sentir sonolento, Jack perguntou-se se aquela refeição enorme não fora um tremendo erro. Antes de mais nada, houve a partida de Ellis-Breaks e do De­pósito, que não fora fácil; em segundo lugar, houve Richard, que ameaçava ficar totalmente maluco; e em terceiro, e acima de tudo, haveria as Terras Secas. Que talvez fossem mais perigosas do que Jack poderia imaginar e que, sem dúvida, exigiriam atenção redobrada.

Após o jantar, os três voltaram ao galpão e os problemas começaram. Jack já estava receoso do que ia encontrar pela frente — e, ele agora sabia, o receio era plenamente justificável. Talvez sua excitação nervosa não o tenha feito se comportar tão bem quanto seria de desejar. A primeira dificuldade surgiu quando tentou pegar o velho Anders com a moeda que o Capitão Farren lhe dera. Anders reagiu como se o amado Jasão tivesse lhe dado uma punhalada nas costas. Sacrilégio! Blasfêmia! Ao oferecer a moeda, Jack não fez mais do que insultar o velho cavalariço; pelo menos metaforicamente, não deixara de ofender a devoção religiosa do homem. Seres divinos, revividos de forma sobrenatural, por certo não de­vem oferecer moedas a seus seguidores. Anders ficara suficientemente transtornado para quase esmagar a mão dando um soco na “caixa do demônio”, como ele chamava o recipiente de metal que continha as pi­lhas, e (Jack percebeu) sentira-se fortemente tentado a atingir outro alvo além das baterias. Jack conseguira apenas uma trégua parcial: Anders não aceitava suas desculpas assim como não aceitava seu dinheiro. O velho finalmente se acalmou assim que percebeu a intensidade do arrependimento de Jack, mas só vol­tou a seu estado normal quando Jack comentou em voz alta que a moeda do Capitão Farren podia ter ou­tras funções, outros papéis a desempenhar além do de banal meio de troca.

— Você não é o verdadeiro Jasão — disse sombriamente o homem —, mas a moeda da rainha po­derá lhe ajudar a cumprir seu destino.

Anders balançou gravemente a cabeça. Seu aceno de adeus foi nitidamente despido de entusiasmo.

Uma boa parte de toda a confusão correu por conta de Richard. O que começara como uma espécie de pânico infantil rapidamente se transformara em pleno terror. Richard se recusara a entrar na cabine. Durante muito tempo, ficou vagando pelo galpão, sem ao menos olhar para o trem, um tanto atordoado, mas aparentemente calmo. No entanto, ao perceber que Jack pretendia de fato embarcá-lo naquela coisa, todo o seu controle desmoronou; e, estranhamente, o que mais o perturbou foi a idéia de ir para a Califórnia.

— Não! Não! Não posss! — berrou quando Jack insistiu para que subisse no trem. — quero voltar para meu quarto!

— Eles podem estar nos seguindo, Richard — disse Jack timidamente. — Temos de ir em frente. — Estendeu a mão e pegou Richard pelo braço. — Isto não passa de um sonho, esqueceu?

— Oh, Senhor, oh, Senhor — Anders exclamou movendo-se transtornado pelo interior do galpão. Jack percebeu que, pelo menos daquela vez, o cavalariço não estava se dirigindo a ele.

— tenho de voltar para o meu quarto! — Richard trovejou. Fechara e apertara os olhos com tanta força que uma pontada de dor lhe correu de uma têmpora à outra.

Jack lembrou-se de Lobo recusando-se a entrar nos carros. Tentou puxar Richard para o trem, mas o garoto resistia como uma mula.

— não posso entrar! — berrava.

— Bom, você também não pode ficar aqui — disse Jack. Fez outro inútil esforço para arrastar Ri­chard até o trem, e dessa vez realmente conseguiu puxá-lo 30 ou 50 centímetros. — Richard — disse ele —, isso é ridículo. Quer ficar aqui sozinho? Quer que eu o deixe sozinho nos Territórios? — Richard ba­lançou a cabeça. — Então venha comigo. Está na hora. Daqui a dois dias estaremos na Califórnia.

— Mal negócio... — Anders murmurou consigo mesmo observando os rapazes. Richard continua­va balançando a cabeça, reiterando uma obstinada negativa.

— Não posso ir pra lá — ele repetiu. — Não posso subir neste trem e ir pra lá.

— Para a Califórnia?

Richard mordeu com força os lábios e fechou novamente os olhos.

— Oh, diabo — disse Jack. — Pode me ajudar, Anders?

O enorme velho lançou-lhe um olhar de desânimo, quase de aversão, depois aproximou-se de Ri­chard e pegou-o no colo (como se Richard fosse do tamanho de uma boneca). O garoto deixou escapar um pequeno berro infantil. Anders soltou-o no banco estofado da cabine.

— Jack! — Richard gritou, temendo que o amigo fosse deixá-lo seguir sozinho para as Terras Se­cas.

— Estou aqui — disse Jack, já escalando a cabine pelo outro lado. — Obrigado, Anders!

O velho cavalariço balançou sombriamente a cabeça e retirou-se para um canto do galpão.

— Tome cuidado — ele disse laconicamente. Richard começara a chorar, mas Anders olhou-o sem piedade.

Jack apertou o botão da ignição e, assim que o motor começou a funcionar, duas enormes centelhas azuis pularam da “caixa do demônio”.

— Aqui vamos nós! — Jack gritou e empurrou a alavanca para a frente. O trem começou a deslizar para fora do galpão. Richard choramingava e abraçava os próprios joelhos. Dizendo coisas tipo “Absur­do!” ou “Impossível!” (os esses sibilavam no ouvido de Jack), enterrou o rosto entre os joelhos. Parecia es­tar tentando transformar-se numa bola. Jack acenou para Anders, que devolveu o aceno. Logo estavam fora do galpão iluminado; logo estavam cobertos pela vastidão do céu escuro. A silhueta de Anders apare­ceu na abertura por onde o trem passara, como se ele tivesse decidido correr atrás dos dois. Por certo o trem não seria capaz de fazer mais de 50 quilômetros por hora, e naquele momento devia estar dando uns dez ou 15. Era de uma lentidão exasperante. Para oeste, Jack dizia para si mesmo. Para oeste, oeste, oeste! Anders recuou para o interior do galpão. Sua barba caía sobre o peito como uma camada de neve. O trem cambaleava para a frente; outra centelha azul sibilou. Jack estava atento a Richard.

— Não! — Richard gritou, quase fazendo Jack cair da cabine. — eu não posso! não posso ir pra lá!

Ele tirara a cabeça dos joelhos, mas continuava fechando com força os olhos. Todo o seu rosto lembrava um nó cego.

— Fique quieto — disse Jack. Os trilhos seguiam como flechas através de intermináveis campos de cereais oscilando no vento; recortes escuros de montanhas flutuavam como velhos dentes nas nuvens do oeste. Jack olhou uma última vez para trás e viu o pequeno oásis de calor e luz do Depósito e do galpão. O oásis resvalava lentamente para a escuridão. Anders era um vulto alto e esguio num umbral iluminado de porta. Jack lhe deu uma aceno final e o vulto retribuiu. Depois Jack olhou ao redor e contemplou a imensidão do campo de cereal, toda aquela lírica distância se estendendo na noite. Se as Terras Secas fossem assim, sem dúvida os próximos dois dias seriam positivamente relaxantes.

Mas obviamente as Terras Secas não eram de modo algum assim. Mesmo na escuridão do luar, ele podia perceber que o cereal ia se tornando ralo e mirrado — a mudança começara aproximadamente meia hora depois que o trem partiu do Depósito. Agora o colorido já parecia estranho, quase artificial, não mais o bonito amarelo orgânico que ele vira antes, mas o amarelo de alguma coisa situada bem perto de uma poderosa fonte de calor — o amarelo de alguma coisa que perdera grande parte de sua força vital. Richard se assemelhava àquele grão. Por algum tempo, se mostrara superagitado, depois chorara silencio­sa e abertamente como uma moça que rompeu o namoro, em seguida caíra num sono agitado. “Não pos­so voltar pra lá”, ele murmurara dormindo ou, pelo menos, foram essas as palavras que Jack pensou ter ouvido. Dormindo, o corpo de Richard parecia encolhido, minguado.

Todo o aspecto da paisagem começara a se alterar. Em vez da vastidão das planícies de Ellis-Breaks, o terreno apresentava agora pequenas concavidades e vales escuros, cheios de árvores ne­gras. Havia penedos por toda parte. Lembravam crânios, ovos, dentes gigantes. O próprio solo tinha se al­terado, tornando-se muito mais arenoso. Duas vezes os paredões dos vales quase se fecharam sobre os trilhos, e tudo o que Jack pôde ver de ambos os lados do trem foram penhascos avermelhados, cobertos de plantas rastejantes. De vez em quando, via algum animal correndo para se esconder, mas a luz era de­masiado fraca, e o animal demasiado rápido para poder ser identificado. Jack, porém, teve a estranha sen­sação de que se o animal ficasse imóvel no meio da Rodeo Drive ao meio-dia em ponto, ele ainda seria in­capaz de identificá-lo. (Teve a leve impressão de que a cabeça possuía duas vezes o tamanho normal; a leve impressão de que o animal ficaria melhor bem escondido da visão humana.)

Depois de uma hora e meia, Richard começou a gemer em seu sono, e a paisagem se tornara extremamente esquisita. Na segunda vez que o trem emergiu de um dos vales claustrofóbicos, Jack foi surpreendido por uma sensação de repentina vastidão — a princípio, foi como ter voltado aos Territórios propriamente ditos, à terra dos sonhos de olhos abertos. Então, mesmo no escuro, reparou que as árvores eram esquálidas e tortas; depois reparou no cheiro. Provavelmente a coisa fora lentamente tomando vulto em sua consciência, mas só após ter visto como as poucas árvores espalhadas pela planície tinham se enrascado como animais torturados notou o fraco, mas inequívoco cheiro de podridão no ar. Podridão, podridão infernal. Ali os Territórios fediam (ou quase).

O odor de flores há muito apodrecidas impregnava a terra; e, como no caso de Osmond, havia sob esse cheiro um odor mais forte e denso. Se Morgan, sob qualquer uma de suas faces, tivesse causado aquilo, então se podia dizer que ele trouxera a própria morte para os Territórios.

Agora não havia mais cavidades ou vales fechados, agora a terra parecia um vasto deserto verme­lho. A disformidade das árvores apenas manchava as encostas do grande deserto. Diante de Jack, as vigas prateadas dos trilhos desdobravam-se pela vastidão escura e vermelha; do seu lado, o vazio também se estendia através da noite.

A região parecia completamente desolada. Por várias horas Jack não conseguiu divisar qualquer coisa maior que pequenos e disformes animais escondendo-se nos barrancos do leito da estrada de ferro. is vezes julgava perceber um súbito movimento deslizante pelo canto do olho. Virava a cabeça e não via lida, A princípio achou que estava sendo seguido. Depois, durante um confuso período de tempo (que não durou mais que 20 ou 30 minutos), imaginou que estava sendo perseguido pelas coisas caninas do Colégio Thayer. Para onde quer que olhasse, era como se algo tivesse acabado de se mover; tivesse, por exemplo, se esgueirado para trás de uma das árvores contorcidas ou mergulhado na areia. Durante esse intervalo de tempo, o amplo deserto das Terras Secas não parecia realmente vazio ou morto, mas repleto deformas deslizantes, furtivas. Jack empurrou para a frente a alavanca do trem (como se isso pudesse aju­dar); insistia para que o trenzinho fosse mais depressa, mais depressa. Choramingando, Richard continua­ra afundado no encosto do assento. Jack imaginou todos aqueles seres, todas aquelas coisas, nem huma­nas nem caninas, correndo na direção dos dois e pediu a Deus que os olhos de Richard permanecessem fechados.

— não! — Richard gritou, ainda dormindo.

E então Jack quase caiu da cabine. Pôde ver Etheridge e o Sr. Dufley galopando atrás deles. Iam ganhando terreno, as línguas pendendo das bocas, os ombros oscilando na carreira. No instante seguinte percebeu que vira apenas sombras viajando ao lado do trem. Os velozes corpos discente e docente do Colégio Thayer tinham apenas cintilado por alguns momentos, como velas de bolo de aniversário.

— não pra lá! — Richard berrou. Jack respirou fundo. Ele, eles estavam salvos. Por certo superesti­mavam os perigos das Terras Secas. Daí a poucas horas, o sol nasceria de novo. Jack levantou o relógio e viu que tinha partido a menos de duas horas. A boca se abriu num enorme bocejo; achou que tinha exa­gerado um pouco na comida que Anders servira no Depósito.

Se bem que seu estômago ainda aceitaria de bom grado um pedaço de bolo...

E quando começava a se lembrar com satisfação do jeito curioso do velho Anders, viu a primeira das bolas de fogo. Aquilo acabou de vez com seu bom humor.

 

Uma bola de luz de pelo menos três metros de diâmetro rolou pela linha do hori­zonte. Foi um chiado incandescente, a princípio apontado diretamente para o trem.

— Grande merda — Jack murmurou para si mesmo, lembrando do que Anders dissera sobre as bolas de fogo. Se um homem se aproxima muito de uma dessas bolas, fica terrivelmente doente. Perde o cabelo e o corpo se enche deferidas. Depois começa a vomitar, vomita sem parar até o estômago se romper, a garganta explodir e...

Jack engoliu em seco. Foi como engolir um punhado de pregos.

— Por favor, Deus! — ele rogou em voz alta. A gigantesca bola de luz corria a toda a velocidade em sua direção, como se possuísse vontade própria e tivesse decidido eliminar Jack Sawyer e Richard Sloat da face da Terra. Radiação fatal. O estômago de Jack se contraiu, os testículos congelaram.

Radiação fatal. Vomita sem parar até o estômago se romper...

O excelente jantar que Anders lhe dera quase saiu do seu estômago.

A bola de fogo continuava a rolar diretamente para o trem, atirando centelhas e sibilando sua ener­gia incandescente. Atrás dela se estendia uma brilhante trilha dourada, marcando fantasticamente a terra de clarões flamejantes. Quando a bola pulou sobre o terreno, ricocheteando como uma gigantesca bola de tênis e desviando-se para a esquerda, Jack teve a primeira visão realmente nítida das criaturas que ele julgava estarem seguindo o trem. A luz dourado-avermelhada da bola de fogo e os clarões que ela provo­cava na terra iluminaram um bando de animais de aparência disforme. Eram cães, ou pelo menos seus ancestrais teriam sido cães. Jack lançou um olhar inquieto a Richard, certificando-se de que ele ainda estava dormindo.

As criaturas pareciam rastejar como serpentes atrás do trem. As cabeças lembravam focinhos de ca­chorros, mas os corpos tinham apenas rudimentares pernas traseiras e pareciam desprovidos de pêlos ou caudas. Eram coisas... molhadas. A pele rosada brilhava como a pele de um camundongo recém-nascido. Rosnavam como se quisessem chamar atenção. O que Jack tinha visto nas margens da estrada de ferro eram aqueles terríveis seres mutantes. Agrupados em bando, rastejando como répteis, silvando, roncando. Aos poucos, porém, começaram a se dispersar — também pareciam ter medo das bolas de fogo e das marcas que as bolas de fogo deixavam na terra.

Então Jack captou o odor da bola de fogo, agora voltando-se rapidamente (quase iradamente) para o horizonte, incendiando em sua passagem uma fileira inteira de árvores esquálidas. Fogo do inferno, podridão!

Outra bola de fogo chegou cruzando o horizonte e continuou a avançar para o lado esquerdo de Jack. Um aroma de ódio, de más intenções frustradas. Com o coração na boca, Jack imaginou encontrar tudo isso no estranho cheiro irradiado pela bola. Roncando e ganindo, a multidão de seres mutantes se dispersara entre o contorno denteado dos penhascos, um rumor de movimento furtivo, um neshrushnxsh de pesados corpos sem pernas rastejando pela poeira vermelha. Quantos desses seres haveria ali? Da base de uma árvore calcinada, que tentava esconder a copa no tronco, dois daqueles cães deformados arreganharam dentes afiados.

Então, outra bola de fogo guinou sobre o vasto horizonte, executou uma trajetória chamejante bem na frente do trem e, por um instante, Jack vislumbrou o que parecia ser um pequeno galpão era ruínas, bem abaixo de uma lombada. Na frente do galpão havia um grande vulto humanóide, macho, de olhos fi­xos nele. Transmitia uma sensação de truculência, pilosidade excessiva, força, malícia...

Jack tinha plena consciência de que a lentidão do pequeno trem de Anders o expunha à investida de qualquer coisa que quisesse investigá-lo um pouco mais de perto. A primeira bola de fogo dispersara as horrendas coisas caninas, mas talve2 os habitantes humanos ou humanóides das Terras Secas não se deixassem assustar com facilidade. Antes que o clarão da bola diminuísse, Jack observou que o vulto diante do galpão estava acompanhando o progresso do trem, virando uma grande cabeça cabeluda na direção da cabine. Se os seres mutantes que ele tinha visto eram cães, como seriam as pessoas? Nos últimos reflexos da luz chamejante da bola de fogo, o ser humanóide saiu correndo pelo lado do galpão. Uma grossa cauda de réptil despontava de suas costas. Depois que a coisa sumiu, houve apenas noite outra vez; mais nada — cães, homem-animal, galpão — era visível. Jack chegou a duvidar que tivesse realmente visto tudo aquilo.

Richard se sacudiu no meio do sono, e Jack empurrou a alavanca com a mão, tentando inutilmente ganhar mais velocidade. Aos poucos o rosnar dos cães foi diminuindo. Suando, Jack levantou o punho esquerdo até a altura dos olhos e viu que só haviam passado 15 minutos desde a última vez que consultara o relógio. Ficou espantado por bocejar de novo, e de novo se arrependeu de ter comido tanto no Depósito.

— Não! — Richard gritou. — Não! eu não posso ir pra lá!

Para onde?, Jack se perguntou. Onde era “lá”? Era mesmo a Califórnia? Ou seria algum lugar amea­çador, um lugar que o autocontrole de Richard, tão vacilante quanto um cavalo de perna quebrada, não era capaz de impedir que lhe viesse plenamente à memória?

 

Jack passou a noite inteira diante da alavanca de comando. Richard dormia. Os ras­tros deixados pelas bolas de fogo ainda cintilavam na superfície vermelha da terra. O odor de flores mortas e podridão enchia o ar. De vez em quando, Jack ouvia o rumor dos cães mutantes, ou de outras criaturas desconhecidas erguendo-se das copas das árvores esquálidas que manchavam a paisagem. As baterias soltavam centelhas azuis. O estado de Richard estava além do mero sono. Era uma espécie de inconsciên­cia que, até certo ponto, ele mesmo provocara. Não dava mais gritos torturados. Limitava-se a afundar cada vez mais no canto da cabine e respirar debilmente, como se a respiração exigisse mais energia do que ele possuía. Jack continuava temeroso da volta das bolas de fogo. Sabia que, quando o dia raiasse, conseguiria ver os animais; o que mais, porém, lhe estava reservado?

Vez por outra, dava uma olhada em Richard. A pele do amigo parecia singularmente pálida; era uma sombra de cera, quase fantasmagórica.

 

A manhã trouxe um lento dissipar da escuridão. Uma faixa avermelhada apareceu em forma de arco na linha do horizonte oriental. Logo uma segunda tira, também vermelha, cresceu sobre a primeira, empurrando cada vez mais o clarão de luz para o alto do céu. Os olhos de Jack estavam quase tão vermelhos quanto a alvorada, e as pernas lhe doíam. Richard estendera-se agora o mais que podia no pequeno assento da cabine, ainda respirando de um modo quase sufocado, quase relutante. Era verdade, Jack percebeu, o rosto de Richard parecia estranhamente pálido. As pálpebras flutuaram, e Jack desejou ansiosamente que o amigo não deixasse escapar outro de seus gritos. A boca de Richard se abriu, mas o que pulou lá de dentro foi uma ponta de língua, não um berro estridente. Richard passou a língua pelo lá­bio superior, ofegou, depois tornou a mergulhar em seu estranho coma.

Embora estivesse morto de cansaço, louco para sentar um pouco e fechar os olhos, Jack não o per­turbou. Quanto mais o sol se erguia no horizonte e revelava em detalhes o panorama das Terras Secas, mais ele pedia a Deus que Richard continuasse naquele estado de inconsciência, e que ele conseguisse suportar as condições de trabalho no desengonçado trenzinho de Anders. Não estava nada ansioso para testemunhar a reação de Richard Sloat às idiossincrasias das Terras Secas. Uma dose pequena de dor, uma certa exaustão, tudo isso era um preço mínimo a pagar pela paz temporária que o desfalecimento de Richard lhe proporcionava.

O que ele via pelas pupilas contraídas era uma paisagem onde tudo parecia seco e mirrado. Sob o luar, a região parecera um vasto deserto, embora um deserto salpicado de algumas árvores. Agora Jack percebia que o “deserto” absolutamente não existia. O que confundira com uma variedade avermelhada de areia não passava de um solo muito fofo, poeirento. Talvez não fosse difícil um homem ficar enterrado nele até os tornozelos, se não até os joelhos. Daquele solo extremamente seco brotavam as árvores de as­pecto miserável. Mesmo à luz do dia, tinham praticamente a mesma aparência noturna: formas esqueléti­cas e contorcidas, como se as copas tentassem se enroscar nas raízes que, em geral, cresciam em espirais. A paisagem não era nada boa; sem dúvida seria péssima para o racional Richard Sloat. Vistas de lado, as árvores lembravam criaturas em grande tormento: os galhos, braços retesados de dor; os nós dos troncos, faces imobilizadas num grito. De certos ângulos, Jack podia ver com riqueza de detalhes a tortura dos ros­tos estampados naqueles troncos: o grande O formado pelas bocas, os olhos esbugalhados, os narizes tor­cidos, as longas, angustiadas rugas correndo pelas faces. Estariam rogando, suplicando, gemendo. As vo­zes mudas pairavam no ar como fumaça. Jack também gemeu. Como tudo nas Terras Secas, aquelas árvo­res tinham sido envenenadas.

O terreno estendia-se por quilômetros e quilômetros de ambos os lados da via férrea, salpicado aqui e ali com um mato amarelado, corroído, brilhante como urina ou pintura nova. Se não fosse pela hedionda coloração da relva, aquelas áreas de terreno lembrariam oásis, pois estavam situadas ao lado de um pequeno lago redondo. A água era escura, com manchas de óleo flutuando na superfície. E parecia extremamente densa; como tudo o mais, também fora contaminada. Quando o trem passou próximo a um daqueles falsos oásis, Jack pensou aterrorizado que a água escura parecia uma coisa viva, um ser tão atormentado quanto as árvores que ele não mais queria contemplar. Então, por um momento, viu alguma coisa romper a superfície do fluido denso e oleoso, uma forma grande e negra que rolou de um lado para o outro antes de mostrar uma boca enorme, voraz, mordendo o próprio ar. O que seria aquilo, o que seria aquela criatura totalmente desfigurada pela escuridão da água? Alguma forma de peixe?, Jack se pergun­tou. Parecia ter quase sete metros de comprimento, sem dúvida grande demais para habitar o pequeno lago. Uma longa cauda rodopiou pela superfície antes que toda a enorme criatura voltasse a deslizar para o fundo da água, que sem dúvida deveria ter considerável profundidade.

Jack olhou apreensivo para o horizonte, imaginando ter visto a forma de uma cabeça espreitando lá de cima. Foi então que experimentou outro daqueles choques de súbito temor, desta vez semelhante ao que lhe provocara uma foto do monstro do Lago Ness. Como seria possível, por Deus, uma cabeça es­preitar sobre o horizonte?

O horizonte, no entanto, Jack finalmente compreendeu, não era o verdadeiro horizonte. Durante toda a noite, com um ângulo de visão bastante limitado, ele subestimara drasticamente a amplitude das Terras Secas. Agora que o sol começava a avançar pelo céu, percebia que se encontrava num amplo vale, e que as bordas que avultavam de ambos os lados do trem não eram de fato os limites do horizonte, mas apenas os cumes escarpados de uma pequena cadeia de colinas. Alguma coisa poderia ter-lhe seguido o rastro, mantendo-se sempre oculta pelas cristas que havia ao redor. Ele recordou o ser humanóide com cauda de crocodilo que fugira pelo lado do pequeno galpão. Poderia a criatura ter seguido Jack a noite in­teira, esperando que ele caísse de sono junto à alavanca?

O trem chocalhava pelo sinistro vale, movendo-se com uma exasperante falta de pressa.

Jack inspecionou detidamente todo o contorno das colinas ao redor. Viu apenas o sol matutino bri­lhar nos penhascos quase a prumo sobre sua cabeça. Espreguiçou-se longamente no interior da cabine. para ver se conseguia afastar o medo, a tensão, o cansaço. Richard atirou um braço sobre os olhos e conti­nuou a dormir. Qualquer coisa podia tê-los seguido, qualquer coisa podia estar atrás deles... esperando o momento exato de entrar em ação.

Do lado esquerdo, um movimento lento e furtivo o fez prender a respiração. Um movimento serpenteante, escorregadio. Jack teve uma visão de meia dúzia de homens-crocodilos rastejando pelas bordas das colinas. Pareciam preparar uma investida. Ele protegeu os olhos com as mãos e ficou observando de esguelha o que se passava ao redor. As rochas apresentavam a mesma coloração vermelha que o solo poeirento. Entre elas havia uma greta profunda, talvez uma trilha, ondulando entre os pequenos cumes e se bifurcando em inúmeras outras fendas. O que Jack agora observou se movendo entre dois penhascos era uma forma que nada tinha de humana. Era uma serpente: pelo menos era isso que Jack achava. A coisa rapidamente se ocultou no paredão de uma fenda. Um enorme e polido corpo de réptil desaparecendo atrás das rochas. A pele parecia singularmente enrugada; queimada também (pouco antes de ela desaparecer, Jack teve a impressão de ter visto buracos negros em seu lombo, buracos que pareciam feridas...). Jack esticou o pescoço para o lugar onde a coisa deveria emergir e, poucos segundos depois, testemunhou o repugnante espetáculo que foi a cabeça de um gigantesco verme, semi-encoberto pela grossa poeira vermelha do chão, oscilar em sua direção. Tinha olhos coloridos e embaciados, mas, sem dúvida, era a cabeça de um verme.

Algum outro animal disparou de sob uma rocha, a cabeça pesada e o corpo rastejante: era um dos cães mutantes. O verme abriu uma boca do tamanho de uma caixa de correspondência e abocanhou a assustada coisa-cachorro. Jack ouviu com nitidez o estalar dos ossos. O ganido do cachorro cessou. A enor­me minhoca engolira o cão como se ele fosse uma pílula. Naquele exato momento, ao lado da monstruo­sa forma da minhoca, Jack percebeu um dos rastros negros deixados pelas bolas de fogo. A comprida cri­atura fugiu para uma toca no chão de poeira como um navio mergulhando sob a superfície do oceano. Sem dúvida compreendera que os rastros das bolas de fogo lhe seriam nocivos e, sendo uma espécie de minhoca, poderia muito bem entocar-se sob eles. Jack contemplou a feia criatura desaparecer completa­mente no terreno vermelho. Depois percorreu com os olhos toda a encosta coberta de uma vegetação ras­teira, mirrada. Queria saber se ela emergiria de novo.

Por fim, quando se sentiu praticamente certo de que o verme não tentaria engolir o trem, voltou a inspecionar a crista das colinas rochosas.

 

Antes que Richard despertasse no fim da tarde, Jack viu:

— pelo menos uma inconfundível cabeça espreitando pela crista das colinas;

— duas saltitantes e fatais bolas de fogo correndo em sua direção;

— o esqueleto sem cabeça do que, a princípio, parece ser um grande coelho; depois, no entanto, percebeu nauseado que se tratava de um bebê humano, o corpo reluzente estendido ao lado de marcas das bolas de fogo;

— o crânio arredondado do mesmo bebê, semi-enterrado no chão.

Viu ainda:

— um bando de cães com cabeças enormes, mais perigosos do que os que já tinha visto. Rasteja­vam pateticamente atrás do trem, babando de fome;

— três barracões de tábuas, provavelmente habitações humanas enterradas como palafitas no solo poeirento. Talvez no meio da desolação fedorenta e venenosa das Terras Secas rondasse também gente como ele, à caça de comida;

— um pequeno pássaro coriáceo, sem penas e (um verdadeiro toque dos Territórios) com uma cara barbada parecida com focinho de macaco, além de dedos se projetando com nitidez da ponta das asas;

— e, pior de tudo (sem contar o que ele pensou ter visto): dois animais completamente irreconhe­cíveis bebendo num dos lagos negros — animais com dentes compridos, olhos humanos, quarto dianteiro de porco e traseiro de gato. Os focinhos também estavam cobertos de pêlo. Quando o trem passou por eles, Jack viu que os testículos do macho tinham o tamanho de travesseiros e arrastavam no chão. O que criara aquelas monstruosidades? Irradiação nuclear, Jack supôs, pois dificilmente alguma outra coisa teria o poder de deformar a tal ponto a natureza. As criaturas, possivelmente contaminadas desde o nascimento, bebiam a água envenenada e rosnavam para o trenzinho.

Um dia, nosso mundo pode ficar assim, Jack pensou. Uma idéia terrível, sem dúvida!

 

Além disso, houve as coisas que ele pensou ter visto. Começou a sentir uma quen­tura, uma coceira na pele. Já deixara cair no chão da cabine o sobretudo tipo poncho que substituíra o ca­saco de Myles P. Kiger. Antes do meio-dia, tirara também a camisa de algodão cru. Havia um gosto terrível em sua boca, uma ácida combinação de metal enferrujado e fruto podre. O suor lhe escorria da testa para os olhos. Estava tão cansado que, mesmo incomodado pelo suor, começou quase a dormir e a sonhar em pé. Viu grandes matilhas dos obscenos cães disparando pelas colinas; viu se abrirem as nuvens averme­lhadas sobre o trem e tocarem Richard com diabólicos braços chamejantes. Quando, por fim, seus olhos efetivamente se fecharam, viu um Morgan de Orris com quase quatro metros de altura, vestido de preto e atirando relâmpagos para todo lado, rasgando a terra em grandes fendas e crateras empoeiradas.

Richard gemia e murmurava:

— Não, não, não!

Morgan de Orris se dissipou como um farrapo de névoa e os doídos olhos de Jack se abriram.

— Jack? — Richard chamou.

Na terra vermelha à frente do trem só havia os rastros negros das bolas de fogo. Jack esfregou os olhos e olhou para Richard, que se espreguiçava languidamente.

— Ei! Tudo bem com você?

Richard se recostou no assento, pestanejando do fundo do rosto pálido.        

— Desculpe eu ter perguntado — Jack falou outra vez.

— Não — disse Richard. — Estou melhor, pode crer.

Jack sentiu que, de fato, o amigo parecia um pouco menos tenso.

— Ainda sinto dor de cabeça, mas estou melhor.

— Você estava fazendo muito barulho em seu... hum... — Jack hesitou, sem saber muito bem até que ponto o amigo estava disposto a enfrentar a realidade.

— Em meu sono. Sim, acho que sim. — O rosto de Richard se contorceu um pouco, mas, ao me­nos daquela vez, Jack não esperou um grito. — Sei que não estou sonhando agora, Jack. E sei que não te­nho um tumor cerebral.

— Sabe onde está?

— No trem. No trem daquele velho. Atravessando o que ele chamou de Terras Secas.

— Bem, finalmente você admite — disse Jack, sorrindo.

Richard corou sob a palidez de cera.

— Por que mudou de opinião? — Jack perguntou, ainda sem saber muito bem se podia confiar na mudança de Richard.

— Bem, eu sabia que não estava sonhando — disse Richard, e suas faces ficaram ainda mais ver­melhas. — Acho... acho que já está na hora de parar de lutar contra as evidências. Se estamos nos Territó­rios, então estamos de fato nos Territórios, por mais impossível que isso pareça. — Seus olhos encontra­ram os de Jack, e o traço de humor que havia neles sobressaltou o amigo. — Está lembrado daquela gi­gantesca ampulheta que havia no Depósito? — Jack assentiu com a cabeça e Richard continuou: —Bem, foi aquilo... Quando vi aquela coisa, tive certeza de que não estava sonhando nem delirando. Simples­mente porque eu não podia ter concebido a ampulheta. Não podia. Era simplesmente... impossível, Se eu tivesse de inventar um relógio primitivo, ele teria uma série de engrenagens e grandes polias. Não seria uma coisa tão rudimentar quanto aquela ampulheta. Foi aí que percebi que não estava criando aquilo. Portanto, era real. E tudo o mais era real.

— Bem, como está se sentindo agora? — Jack perguntou. — Você dormiu um bom tempo, rapaz.

— Mas ainda estou tão cansado que mal consigo manter a cabeça de pé. Acho que, de um modo geral, não estou me sentindo muito bem.

— Richard... Quero lhe perguntar uma coisa... Há algum motivo para você ter medo de ir para a Califórnia?

Richard baixou os olhos e sacudiu a cabeça.

— Já ouviu falar de um lugar chamado hotel negro? — Jack perguntou.

Richard continuou balançando negativamente a cabeça. Não estava dizendo a verdade mas, Jack reconheceu, já começava a enfrentar uma boa parte dela. Qualquer coisa a mais (pois, de repente, Jack teve certeza absoluta de que havia mais, bem mais que aquilo) teria de esperar. Talvez até chegarem real­mente ao hotel negro. O Duplo de Rushton, o Duplo de Jasão: sim, juntos eles se apoderariam do talismã.

— Bem, tudo bem — disse Jack. — É capaz de ficar de pé?

— Acho que sim.

— Ótimo, porque há uma coisa que quero fazer agora. E como você não está mais morrendo de um tumor cerebral, vou precisar de sua ajuda.

— Qual é o problema? — Richard perguntou, esfregando o rosto com a mão um pouco trêmula.

— Quero abrir uma ou duas daquelas caixas do vagão-plataforma para pegarmos algumas armas.

— Eu detesto, tenho aversão a armas — disse Richard. — Você também devia detestá-las. Se nin­guém usasse revólveres ou espingardas, seu pai...

— Sim, e se os porcos tivessem asas poderiam voar — disse Jack. — Tenho certeza absoluta de que alguém está vindo atrás de nós.

— Bem, talvez seja meu pai — disse Richard num tom esperançoso.

Jack gemeu e moveu a pequena alavanca de comando da primeira marcha. O trem começou a per­der velocidade e, quando parou, Jack pôs a alavanca em ponto morto.

— Pode saltar e me dar uma ajuda?

— É claro — disse Richard, e logo se levantou. Mas seus joelhos se curvaram, e ele teve de sentar outra vez. O rosto parecia mais pálido que nunca, o suor brilhava na testa e no lábio. — É, talvez eu não possa...

— Procure se levantar devagar — disse Jack aproximando-se dele, Segurando-lhe o cotovelo e a cabeça suada, quente. — Relaxe.

Richard fechou brevemente os olhos, depois encarou Jack com uma expressão de absoluta confiança.

— Tentei fazer a coisa depressa demais — disse ele. — Estou formigando da cabeça aos pés. Fi­quei muito tempo imóvel na mesma posição.

— Então vamos com calma — disse Jack, e ajudou Richard a se erguer do banco.

— Está doendo.

— Já vai passar. Preciso que me ajude, Richard.

Richard tentou dar um passo e assobiou de dor. Depois moveu a outra perna. Então, inclinou-se li­geiramente para a frente, batendo com as palmas das mãos nas coxas e na barriga das pernas. Jack viu a fisionomia de Richard se alterar, mas dessa vez não havia sido de dor: um ar de absoluta estupefação ins­talara-se naquele rosto.

Jack seguiu a direção dos olhos do amigo e viu um dos pássaros sem penas e cara de macaco salti­tar na frente do trem.

— É. Há muitas coisas engraçadas aí fora — disse Jack. — Vou me sentir bem melhor se pudermos achar algumas armas embaixo daquela lona.

— O que você acha que há do outro lado das colinas? — Richard perguntou. — A mesma coisa que aqui?

— Não, acho que do outro lado há mais gente — Jack respondeu. — Se é que poderemos cha­má-los de gente. Duas vezes já surpreendi alguém nos vigiando.

Sob a expressão de breve pânico que envolveu o rosto de Richard, Jack acrescentou:

— Não acho que seja alguém do seu colégio. Mas deve ser alguma coisa do gênero. Não estou querendo assustá-lo, rapaz; o problema é que já vi muito mais das Terras Secas que você.

— Terras Secas — disse Richard com um ar de espanto. Ele estreitou os olhos para o empoeirado vale vermelho com suas escabrosas manchas de relva amarela. — Oh... aquela árvore... ah...

— Eu sei — disse Jack. — O melhor que você tem a fazer é ignorá-la.

— Que coisa diabólica poderia provocar este tipo de devastação? — Richard perguntou. — Nada disto é natural, você sabe!

— Talvez um dia descubramos quem fez isso.

Jack ajudou Richard a pular da cabine e ambos se equilibraram num estribo que cobria as rodas.

— Não pise no chão — ele advertiu Richard. — Não sabemos qual é a profundidade. Não quero ter de puxá-lo de dentro dessa areia.

Richard estremeceu... Mas talvez apenas por ter visto pelo canto do olho outra daquelas árvores Su­plicantes, torturadas. Os dois deslizaram pelo estribo do trem até o engate do primeiro vagão de carga. Dali, uma estreita escada de metal levava ao teto do vagão. Na extremidade do teto, uma segunda escada descia para o vagão-plataforma coberto com a lona.

Jack puxou a corda, tentando lembrar como Anders conseguira soltá-la com tanta facilidade.

— Acho que encontrei um nó mais fraco — disse Richard, segurando a corda como um carrasco.

— Tente puxá-lo.

Richard não teve força suficiente para soltar o nó mas, com a ajuda de Jack, o laço afrouxou e a lona caiu sobre o amontoado de caixas. Jack desencobriu as peças de máquinas automáticas mas, ao lado delas, descobriu um conjunto de caixas menores que ainda não vira no galpão; havia uma etiqueta: lentes.

— Aí estão — disse ele. — Seria ótimo se tivéssemos um pé-de-cabra.

Ergueu os olhos para a beira do vale e uma árvore esquálida abriu sua enorme boca num grito mudo. E lá em cima? Perto de uma crista? O que fora aquilo? Mais uma cabeça espreitando? Ou uma daquelas enormes minhocas deslizando para pegá-los?

— Vamos lá, vamos tentar abrir uma das caixas grandes — disse Jack, e Richard se aproximou do­cilmente para ajudá-lo.

Após meia dúzia de desesperados arrancos, Jack sentiu um indício de movimento e ouviu os pre­gos estalando. Richard continuou a puxar pelo lado da caixa.

— Está indo — disse Jack. Com o esforço, Richard ia ficando cada vez mais pálido, uma fisionomia de cera, quase amarela. — Vamos conseguir. Puxe mais um pouco. — Richard hesitou e quase caiu sobre uma das caixas menores. Mas conseguiu se equilibrar e voltou a ajudar o amigo.

Os dentes de Jack rangeram com o esforço, mas finalmente ele conseguiu soltar a ponta da tampa. Parou um segundo, respirou fundo e deu um arranco final, que fez os músculos tremerem. Os pregos começaram a ranger de novo e a se soltar da madeira. Jack berrou fazendo força, mas conseguiu extrair a tampa.

Empilhadas lá dentro, bem lubrificadas, havia algumas armas de um tipo que Jack nunca vira antes: pistolas pegajosas, que lembravam borboletas, meio máquinas, meio insetos. Pegou uma delas e examinou-a detidamente, procurando descobrir como funcionava. Era uma arma automática e, sem dúvida, precisaria de um pente de balas. Ele se abaixou e usou o cano da arma para levantar a tampa de uma das caixas menores, com a inscrição LENTES. Como não era difícil de adivinhar, havia nessa caixa um conjunto de pentes de munição bastante lubrificados e envoltos em sacos plásticos.

— É uma Uzi — disse Richard atrás dele. — Uma pistola israelense. Arma muito prática e muito em moda. É o brinquedo favorito dos terroristas.

— Como sabe disso? — Jack perguntou, pegando outra minimetralhadora.

— Eu vejo televisão, é claro. Como acha que eu ia saber dessas coisas?

Jack apanhou um pente de balas, tentou encaixá-lo ao contrário na cavidade, mas logo encontrou a posição correta. Em seguida, achou a trava, soltou o gatilho e prendeu-o de novo.

— Essas coisas são horríveis — disse Richard.

— Você vai ter de pegar uma delas! É melhor ir se acostumando.

Jack passou um segundo pente de munição para Richard e, após um momento de reflexão, tirou todos os outros pentes da caixa, colocou dois nos bolsos, passou dois para Richard e guardou os demais no bornal.

— Diabo! — Richard protestou.

— Acho que agora estamos mais seguros — disse Jack.

 

Assim que voltaram à cabine, Richard desmoronou no assento: as subidas e desci­das pelas duas escadas, o equilibrar-se pelo estreito estribo de metal sobre as rodas tiraram praticamente toda a sua energia. Mas ele abriu espaço para Jack sentar e com as pálpebras pesadas contemplou o ami­go dando outra vez partida no trem. Jack pegou o poncho e começou a limpar a arma.

— O que está fazendo?

— Tirando a graxa. Você devia estar fazendo a mesma coisa com a sua Uzi.

Pelo resto do dia, os dois continuaram sentados na cabine do trem, suando, tentando não levar em conta as árvores Suplicantes, o cheiro de podridão da paisagem, a fome que sentiam. Jack observou que um pequeno jardim de feridas desabrochara na boca de Richard. Por fim, tirou-lhe a pistola da mão, li­vrou-a da graxa e carregou-a. Um suor salgado lhe escorria pelas fendas dos lábios.

Jack fechou os olhos. Talvez não tivesse visto as cabeças espreitando pela borda do vale, talvez não houvesse ninguém atrás deles. Ouviu as baterias chiarem, emitindo uma grande centelha azul, e sen­tiu que Richard tinha levado um susto. Daí a pouco, no entanto, Jack Sawyer caía no sono, sonhando com comida.

 

Quando Richard o sacudiu pelo ombro, tirando-o de um mundo onde ele comia uma gostosa pizza do tamanho de um pneu de caminhão, as sombras apenas começavam a se estender pelo vale, suavizando, talvez, a agonia das árvores. Mesmo elas, apesar de vergadas, apesar das mãos con­torcidas em gestos de desespero, pareciam belas sob a luz declinante. O solo muito vermelho bruxuleava, cintilava. As sombras iam se fixando no terreno, quase perceptivelmente se alongando. O terrível amarela­do das manchas de relva se transformava num alaranjado suave. Um crepúsculo avermelhado cobria ve­lozmente as rochas na borda do vale.

— Achei que você ia gostar de ver isso — disse Richard. Mais algumas pequenas feridas tinham lhe aparecido na boca. Ele abriu um sorriso débil. — Parece diferente... O tom do crepúsculo parece diferente.

Jack temeu que o amigo se lançasse a uma explanação científica das oscilações do espectro solar durante o pôr-do-sol, mas, por sorte, Richard estava cansado ou doente demais para exercitar seus conhecimentos de física. Os dois contemplaram em silêncio o entardecer aprofundando todas as cores, transfor­mando o céu do oeste num esplendor arroxeado.

— Você sabe o que mais este trem está carregando? — Richard perguntou.

— O que mais? — disse Jack. Na realidade, pouco se importara em saber. Mas não podia ser nada bom. Como gostaria de sobreviver, de contemplar outro pôr-do-sol nas Terras Secas, tão exuberante, tão rico de sensações!

— Explosivo plástico. Tudo embrulhado em pacotes de mais ou menos um quilo. Uma quantidade suficiente para mandar toda uma cidade pelos ares. Se uma de nossas armas disparar acidentalmente, ou se alguém acertar uma bala naqueles sacos, sobrará apenas um buraco no chão no lugar deste trem.

— Bem, eu tomarei cuidado com minha pistola — disse Jack, arrebatado pela estranheza do cre­púsculo. O entardecer parecia singularmente carregado de presságios (até mesmo de bons presságios). Jack mergulhou nas lembranças de tudo o que lhe acontecera desde que deixara a Pousada dos Jardins do Alhambra. Viu a mãe tomando chá no pequeno restaurante, uma mulher que, de repente, lhe pareceu ex­tremamente fatigada. Viu Speedy Parker sentado sob uma árvore, Lobo cuidando do rebanho, Smokey e Lori rondando na sinistra Taberna Oatley, todos os odiosos rostos da Casa do Sol: Heck Bast, Singer e companhia. À medida que a noite avançava, Jack se deixava envolver pela saudade de Lobo, um senti­mento que o atingia de forma particularmente aguda. Teve vontade de segurar a mão de Richard. Bem, porque não?, ele pensou e moveu o braço até encontrar o pulso um tanto encardido e pegajoso do amigo. Fechou os dedos em volta dele.

— Estou me sentindo muito mal — disse Richard. — Nunca tive isto... antes. Meu estômago parece embrulhado e todo o meu rosto está formigando.

— Acho que se sentirá melhor assim que sairmos daqui — disse Jack. Mas qual é a certeza que se pode ter, doutor?, ele pensou consigo mesmo. Qual é a certeza que se pode ter de que Richard não está sendo irremediavelmente contaminado? Nenhuma, é claro. Ele se consolou com a idéia (recentemente in­ventada ou descoberta) de que Richard era parte essencial do que, por certo, ia acontecer no hotel negro. Precisaria de Richard Sloat — e não apenas porque Richard Sloat era capaz de identificar explosivos plás­ticos em sacos de fertilizantes.

Será que Richard já estivera alguma vez no hotel negro? Será que já estivera próximo do talismã? Jack deu uma olhada no rosto do amigo. A respiração era superficial, débil. A mão de Richard jazia quase inerte na sua, como uma fria escultura de cera.

— Não quero mais essa pistola — disse Richard, tirando-a do colo. — O cheiro está me deixando enjoado.

— Tudo bem — disse Jack, pegando a arma com a outra mão. Uma árvore despontou no canto de seu olho, um gemido atormentado e mudo na face desenhada no tronco. Logo os cães mutantes começa­riam a sair de suas tocas. Jack ergueu os olhos para as colinas à esquerda de Richard e viu uma figura hu­manóide deslizar entre as rochas.

 

— Ei! — Gritou ele, quase sem acreditar. Indiferente a seu choque, o fantástico pôr-do-sol continuava a embelezar o que, na verdade, não podia deixar de ser feio. — Ei, Richard!

— Hã? Também está se sentindo mal?

— Acho que vi alguém ali do seu lado.

Ele se virou de novo para os penhascos, mas não viu qualquer movimento.

— Não estou preocupado — disse Richard.

— Seria melhor se preocupar. Não percebe como eles estão fazendo a coisa? Querem nos pegar quando estiver mais escuro e não pudermos vê-los.

Richard franziu o olho esquerdo e olhou indiferente ao redor.

— Não estou vendo nada.

— Nem eu, por enquanto. Mas acho que fizemos muito bem em pegar aquelas armas. Se quiser sair inteiro daqui, Richard, é melhor ficar atento.

— Acho que você está raciocinando de uma forma esquemática.

Mas Richard acabou seguindo o conselho do amigo: empinou o corpo e abriu bem os olhos.

— Não vejo nada por perto, Jack — disse ele. — E já está ficando bem escuro. Você provavelmente imaginou...

— Espere! — disse Jack. Ele pensou ter visto outro corpo deslizando entre as cristas do vale. — São dois. Talvez mais.

— Aposto como não há nada lá fora — Richard insistiu. — Por que alguém ia querer nos fazer mal? Não há razão...

Jack virou a cabeça e fixou os olhos nos trilhos à frente do trem. Alguma coisa moveu-se atrás de uma das árvores Suplicantes. Alguma coisa maior que um cão!

— Hã-oh! — ele exclamou. — Acho que há um sujeito bem ali na frente.

Por um momento, o medo o paralisou. Não pôde pensar no que fazer para proteger-se dos três prováveis atacantes. Seu estômago congelou. Tirou a Uzi do colo e fitou-a com uma expressão entorpeci­da, sem saber se seria realmente capaz de usá-la. Será que os eventuais salteadores das Terras Secas tam­bém tinham armas?

— Richard, sinto muito — disse ele —, mas desta vez acho que vai realmente haver encrenca, e vou precisar que me ajude.

— O que eu posso fazer? — Richard perguntou com voz rouca.

— Pegue sua pistola — disse Jack passando-lhe a Uzi. — E acho que devemos nos ajoelhar, ou se­remos alvos muito fáceis.

Ele ficou de joelhos e Richard o imitou num movimento lento, como em um nado submerso. De trás deles veio um grito estridente; de cima, outro.

— Já devem saber que os vimos — disse Richard. — Mas onde é que eles estão?

A pergunta foi quase imediatamente respondida. Ainda visível no tom profundamente arroxeado do crepúsculo, um homem (ou o que parecia ser um homem) saiu de uma cavidade e começou a descer correndo a encosta em direção ao trem. Os farrapos de sua roupa flutuavam no ar. Gritava como um índio e segurava alguma coisa nas mãos. Parecia ser uma vara flexível e Jack ainda estava tentando descobrir sua função quando ouviu (antes ouviu do que viu) uma forma estreita sibilando pelo ar.

— Eles têm arco e flecha!

Richard gemeu e Jack achou que ele ia vomitar por toda a cabine.

— Vou ter de atirar — disse Jack.

Richard engoliu em seco e emitiu um som que não foi bem uma palavra.

— Malditos! —Jack exclamou, destravando o gatilho de sua Uzi. Empinou a cabeça e viu a criatura atrás dele, atirando outra flecha. Se o lançamento tivesse sido mais preciso, sem dúvida ele não teria oportunidade de ver mais nada. A flecha, porém, oscilou sem equilíbrio pelo lado da cabine. Jack apontou a Uzi e apertou o gatilho.

Ele não esperava o que aconteceu. Achava que a pistola permaneceria imóvel em suas mãos e soltaria obedientemente alguns balaços. Em vez disso, a Uzi pulou como um animal, fazendo uma série de ruídos suficientemente altos para lhe ferir os ouvidos. O cheiro da pólvora lhe queimou o nariz. O ho­mem esfarrapado atrás do trem agitou os braços, mas num gesto de espanto, não porque tivesse sido feri­do. Jack finalmente resolveu tirar o dedo do gatilho. Não tinha idéia de quantos tiros desperdiçara, nem de quantas balas ainda restavam.

— Acertou? Acertou? — Richard perguntava.

Agora o homem corria pelo lado do vale, pés enormes chapinhando no solo. Então Jack viu que não eram pés: o homem caminhava sobre enormes armações de metal, o equivalente a botas de neve nas Terras Secas. Tentava chegar a uma das árvores para se proteger.

Jack levantou a Uzi com ambas as mãos e estreitou o olho na mira. Depois apertou suavemente o gatilho. A pistola automática deu um coice em sua mão, porém menor que da primeira vez. As balas se es­palharam num vasto arco e ao menos uma delas atingiu o alvo, pois o homem deu um solavanco como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Seus pés saltaram das botas de neve.

— Dê-me sua pistola — disse Jack, e tirou a outra Uzi das mãos de Richard. Ainda ajoelhado, des­pejou meio pente de balas na sombria escuridão à frente do trem, disposto realmente a eliminar a criatura que estava lá à sua espera.

Outra flecha roçou contra a locomotiva e uma terceira bateu com força na parede do vagão de carga.

Richard tremia e chorava no fundo da cabine.

— Carregue a minha — disse Jack, tirando do bolso um pente de munição e passando-o para Ri­chard. Jack inspecionou a encosta do vale em busca de um segundo atacante. Em menos de um minuto, já estaria escuro demais para ver qualquer coisa.

— Estou vendo o sujeito — Richard gritou. — Vi o sujeito... bem ali!

Jack apontou para uma sombra que se movia nervosa e silenciosamente entre as rochas, e deu uma rajada barulhenta com a Uzi. Depois, Richard trocou a sua pistola.

— Ótimo, rapazes, bom, rapazes — veio uma voz correndo do lado direito (era impossível dizer a que distância exata se encontrava). — Agora vocês param e eu também paro, está bem? Vamos acabar com este negócio, está bem? Vocês são gente boa, e quem sabe não me vendem essa arma, hã? Desse jeito vocês podem matar muito bem, tenho certeza.

— Jack — Richard murmurou nervoso, querendo adverti-lo do perigo.

— Jogue fora o arco e as flechas — Jack gritou, ainda agachado ao lado de Richard.

— Jack, você não pode! — Richard sussurrou.

— Já joguei fora — veio a voz, ainda um tanto longe. Alguma coisa brilhou na escuridão. — Ei, ra­pazes! Vamos parar com isto, está bem? Me vendam a arma, certo?

— Tudo bem — disse Jack. — Chegue mais perto para que possamos vê-lo.

— Já vou chegar — disse a voz.

Jack puxou a alavanca, fazendo o trem parar.

— Quando eu gritar — ele sussurrou para Richard —, empurre a alavanca para a frente o mais de­pressa que puder, está bem?

— Oh, Jesus — Richard suspirou.

Jack observou que a pistola que Richard acabara de lhe passar estava engatilhada. Uma gota de suor escorreu-lhe da testa para o olho direito.

— Agora, tudo bem, rapazes — disse a voz. — Podem se sentar, vamos lá! Sentem-se, por favor!

Entregue o viajante, entregue o viajante, por favor, por favor.

Um vulto chegava cada vez mais perto do trem.

— Ponha sua mão na alavanca — Jack sussurrou. — Ele está vindo.

A mão trêmula de Richard, parecendo pequena e infantil, incapaz de cumprir mesmo as tarefas mais simples, tocou levemente a alavanca.

Jack teve uma súbita e nítida lembrança do velho Anders se ajoelhando diante dele num empenado chão de madeira e perguntando: Mas vai chegar a salvo, meu Senhor? Ele respondera sem dar grande importância à pergunta. O que eram as Terras Secas para um guri que passara dias e dias empurrando bar­ris de cerveja para Smokey Updike?

Agora ele fazia tanta força para não molhar as calças quanto Richard para não vomitar sobre a ver­são, estilo Territórios, do pesado casaco de Myles P. Kiger.

Um jorro de riso brotou da escuridão ao lado da cabine. Jack levantou-se de arma na mão e gritou quando um vulto corpulento pendurou-se no estribo. Richard empurrou com força a alavanca e o trem arrancou.

Um braço peludo grudou-se num dos mastros da locomotiva. Chega de brincar de mocinho no oes­te selvagem, Jack pensou, mas nesse exato momento o tronco inteiro do homem lançou-se sobre eles. Ri­chard deu um grito estridente e Jack quase evacuou as tripas na cueca.

Os dentes pareciam cobrir a maior parte do rosto do atacante: era uma fisionomia tão instintiva­mente má quanto a de uma cascavel preparando o bote. Uma gota do que Jack presumiu ser um veneno fatal pendia num dos dentes compridos e curvos. Exceto pelo minúsculo nariz, a criatura que se lançava sobre o trem parecia-se muito com um homem com cabeça de cobra. Tinha uma faca nas teias de uma das mãos. Em pânico, Jack deixou escapar um tiro sem pontaria.

Então a criatura oscilou e recuou. Jack só levou uma fração de segundo para ver que a mão cheia de teias e a faca tinham desaparecido. A criatura agitou um toco sangrento de braço e deixou uma man­cha vermelha na camisa de Jack. O garoto perdeu completamente a cabeça, apontou a arma diretamente para o peito do homem-cobra, os dedos apertaram o gatilho.

Um grande buraco vermelho abriu-se no meio da pele de cascavel e os dentes do monstro range­ram com força. Jack manteve o gatilho comprimido. O cano da Uzi se levantou sozinho e, em um ou dois segundos de total carnificina, destruiu a cabeça da criatura. Os frangalhos do corpo rolaram para a via fér­rea. Só restou uma grande mancha de sangue no estribo e o sangue na camisa de Jack, provando que o episódio não fora apenas um pesadelo.

— Cuidado! — Richard ainda gritou.

— Eu o acertei em cheio — Jack resfolegou.

— Onde ele está?

— Caiu do trem — disse Jack. — Está morto.

— Você lhe cortou a mão pelo punho — Richard murmurou. — Como conseguiu isso?

Jack estendeu as mãos e viu que elas estavam tremendo. O cheiro de pólvora as envolvia.

— Apenas imitei alguém com boa pontaria.

Ele baixou as mãos e molhou os lábios.

 

Doze horas mais tarde, quando o sol se levantou de novo sobre as Terras Secas, os dois permane­ciam de olhos bem abertos. Tinham passado a noite inteira rígidos como soldados, com as pistolas no colo e atentos aos menores ruídos. Lembrando-se da quantidade de munição que o trem carregava, de vez em quando Jack atirava uma rajada de balas na borda do vale. E por todo esse segundo dia, se havia pessoas ou monstros naquela longínqua região da Terras Secas, eles deixaram os rapazes em paz. O que talvez indicasse, Jack pensou fatigado, que sabiam da existência das pistolas automáticas. Ou mesmo que ali, tão perto da costa oeste, ninguém queria se meter com o trem de Morgan. Não comentou nada disso com Richard, cujos olhos estavam turvos, enevoados, e que parecia febril a maior parte do tempo.

 

Na noite desse dia, Jack começou a sentir cheiro de água salgada na acidez do ar.

 

JACK E RICHARD VÃO À GUERRA

Naquela noite, o crepúsculo foi mais amplo (a terra começara novamente a se aplainar à medida que eles se aproximavam do oceano), mas não tão espetacular. Jack parou o trem no topo de uma colina corroída pela erosão e foi outra vez até o galpão-plataforma. Ficou remexendo lá por quase uma hora (até as cores sombrias terem desbotado do céu e uma lua minguante ter-se erguido no leste). Veio com mais seis caixas, todas com a inscrição lentes.

— Abra essas caixas — disse a Richard. — Faça um inventário da munição. Você fica nomeado Ze­lador dos Cartuchos de Balas.

— Excelente — disse Richard num tom abatido. — Eu bem que desconfiava que toda a educação que estava recebendo no Colégio Thayer ia servir para alguma coisa.

Jack voltou ao vagão-plataforma e levantou a tampa de um dos caixotes com a inscrição peças de máquinas automáticas. E, enquanto estava fazendo isso, ouviu um grito áspero, rouco, vindo de algum lugar da escuridão. O grito foi seguido por um verdadeiro guincho de dor.

— Jack? Jack, você está aí?

— Estou aqui! — Jack gritou. Achou pouco sensato os dois ficarem gritando um para o outro como lavadeiras separadas por um muro de quintal, mas a voz de Richard sugeria que ele estava bem perto do pânico.

— Vai demorar?

— Tenha um pouco de paciência! — Jack gritou, manejando com mais força e rapidez o cano da Uzi que servia de alavanca. Estavam começando a sair das Terras Secas, mas Jack ainda não queria se arriscar a uma longa parada na via férrea. Teria sido muito mais simples se, logo da primeira vez, tivesse car­regado a caixa de pistolas para a locomotiva, mas o problema é que ela pesava demais.

Elas valem quanto pesam, Jack pensou e riu um pouco, lembrando-se de um anúncio de sabonete.

— Jack? — A voz de Richard tinha um timbre estridente, nervoso.

— Agüente a mão, cara!

— Não me chame de cara — Richard gritou.

Os pregos chiaram, se afrouxaram na tampa do caixote, e Jack conseguiu abri-la. Ele se apossou de duas pistolas engraxadas e estava começando a voltar quando viu outra caixa: era aproximadamente do tamanho de uma televisão portátil. Estava semi-encoberta por uma dobra de lona.

Jack foi deslizando pelo teto do vagão de carga sob a débil luz do luar, com a brisa lhe batendo no rosto. Era um vento puro, sem qualquer vestígio de podridão, sem qualquer traço de corrupção; o vento trazia apenas umidade e o inconfundível odor do sal.

— O que esteve fazendo? — Richard perguntou num tom irritado. — Jack, nós temos armas! E te­mos munição! Por que quis voltar e pegar mais? Alguma coisa podia ter subido na cabine enquanto você estava se divertindo lá atrás!

— Precisávamos de mais armas porque essas minimetralhadoras têm o mau hábito de ficarem superaquecidas — disse Jack. — Precisávamos de mais munição porque talvez tenhamos de atirar bastante, Eu também vejo tevê, você sabia?

E Jack virou-se para voltar ao vagão-plataforma. Queria ver o que havia naquela caixa quadrada.

Richard agarrou-o pelo braço. O pânico transformara sua mão numa verdadeira garra de águia.

— Richard, não vai acontecer nada...

— Alguma coisa pode pegar você!

— Acho que já estamos quase fora das Terras Se...

— Alguma coisa pode me pegar, Jack! Não me deixe sozinho! — Richard explodiu em lágrimas. Não abaixou a cabeça nem cobriu o rosto com as mãos; ficou ali parado, o rosto contorcido pelo pranto, os olhos despejando uma torrente de choro. Jack achou-o extremamente indefeso. Aproximou-se do ami­go, abraçou-o.

— Se alguma coisa pegá-lo e matá-lo, o que vai ser de mim? — Richard soluçou. — Como, Jack, como eu ia conseguir sair deste lugar?

Eu não sei, Jack pensou. Eu realmente não sei.

 

E assim Richard acompanhou Jack Sawyer numa última ida ao vagão-plataforma. Isto significou ter de empurrá-lo pela escada, escorá-lo pelo teto do vagão de carga e ajudá-lo cuidadosa­mente a descer para o vagão-plataforma. Foi como ajudar uma decrépita velhinha a atravessar uma rua. Mentalmente, o racional Richard Sloat estava quase reabilitado; fisicamente, porém, parecia cada vez pior.

Embora filetes de óleo lubrificante escorressem entre as tábuas, a caixa quadrada tinha a inscrição frutas. Não era de todo falsa, Jack descobriu quando os dois conseguiram abri-la. A caixa estava cheia de coisas que lembravam pequenos abacaxis, só que tremendamente explosivos: eram granadas de mão.

— Pelo demônio! — Richard murmurou.

— Quem quer que ele seja — Jack concordou. — Me ajude! Acho que cada um pode enfiar quatro ou cinco embaixo da camisa.

— Por que está reunindo todo esse arsenal de artilharia? — Richard perguntou. — Está pretenden­do enfrentar um exército?

— Ou alguma coisa do gênero.

 

Quando tornava a cruzar com Jack o teto do vagão de carga, Richard olhou para o céu e sentiu-se dominado por uma onda de fraqueza. Oscilou e Jack teve de segurá-lo para ele não cair. Richard Sloat não conseguira identificar nem as constelações do hemisfério norte, nem as do hemisfério sul. As estrelas que havia lá em cima eram estranhas... Mas havia padrões e, em algum lugar daquele mundo fantástico, misterioso, talvez os marinheiros se orientassem por eles. Foi essa idéia que trouxe de novo à mente de Richard a realidade de tudo aquilo — uma realidade decisiva, que o atingiu como um violento soco.

A voz de Jack parecia chamá-lo de muito longe:

— Ei, Richard! Por Jasão! Você quase caiu!

Por fim, os dois conseguiram voltar à cabine.                                  

Jack empurrou a alavanca para o encaixe da frente, apertou a barra do acelerador e o estranho trenzinho de Morgan de Orris começou de novo a avançar. Jack contemplou o chão da cabine: quatro mini-metralhadoras Uzi, quase 20 pentes de munição e dez granadas de mão com pinos que lembravam alças de latas de cerveja.

— Bem, se o que há aqui não for suficiente — disse Jack —, não teremos mais chance de ir lá atrás.

— O que você está esperando encontrar?

Jack limitou-se a sacudir a cabeça.

— Você deve estar achando que sou um jumento, hã? — Richard perguntou.

Jack sorriu.

— Sempre achei, cara.

— Não me chame de cara!

— Cara-cara-cara!

Richard acabou cedendo e rindo. Não foi um grande sorriso, apenas uma contração de simpatia no canto dos lábios... Mas foi melhor que nada.

— Tudo bem com você se eu dormir um pouco? — Richard perguntou, abrindo espaço entre os pentes de munição e se instalando, coberto com o poncho de Jack, num canto da cabine. — Todo esse sobe e desce... Acho que devo estar mesmo doente. Estou me sentindo completamente exausto.

— Fique sossegado, eu vou ficar bem — disse Jack. Era até bom que Richard tentasse recuperar suas forças. Provavelmente, daí a pouco tempo ia precisar delas.

— Estou sentindo cheiro de mar — disse Richard num tom estranhamente mesclado de fascínio, raiva, nostalgia e medo. As pálpebras se fecharam.

Jack empurrou a barra do acelerador o mais que pôde. Tinha o pressentimento de que o desfecho - alguma espécie de desfecho — estava mais próximo que nunca.

 

Os últimos miseráveis e medíocres vestígios das Terras Secas desapareceram an­tes da lua surgir. O cereal tornara a aparecer. Parecia mais rijo que em Ellis Breaks, mas ainda irradiava uma atmosfera pura, saudável. Jack ouviu o grito abafado de aves: provavelmente gaivotas. Era um som inexpressivo, solitário, naqueles grandes campos abertos. Também havia um leve aroma de frutas e um cheiro mais penetrante de maresia.

Após a meia-noite, o trem começou a passar por fileiras de árvores. A maioria das árvores era muito verde. Seu odor de pinho, misturado ao cheiro de sal, parecia fortalecer na mente de Jack a conexão entre o lugar a que estava chegando e o lugar de onde tinha vindo. Ele e a mãe nunca passaram muitos dias no norte da Califórnia (talvez porque Sloat passasse freqüentemente as férias ali), mas ele se lembrava de Lily comentando que a região de Mendocino e Sausalito lembrava muito a Nova Inglaterra, até mesmo pela areia das praias, que se estendiam até Cape Cods. Quando Hollywood precisava de cenários da Nova Inglaterra, geralmente preferia buscá-los ali. Era mais fácil do que atravessar o país inteiro para filmar in loco... E o público nem percebia a diferença.

É o que parece. De uma forma estranha, estou praticamente voltando ao ponto de partida.

Está pretendendo enfrentar um exército?, dissera Richard.

Estava contente por Richard ter conseguido dormir. Assim, não teria de responder a perguntas des­se tipo. Pelo menos ainda não.

Coisas do demônio. Coisas para os Lobos corruptos. Apoderar-se do hotel negro. As palavras de Anders lhe vinham confusamente à cabeça.

As coisas do demônio eram as minimetralhadoras Uzi, os explosivos plásticos, as granadas. As coi­sas do demônio estavam ali. Os Lobos corrompidos não. O vagão de carga, porém, estava vazio, e Jack achou o fato terrivelmente intrigante.

Eis aí uma história para você, Richard, e estou muito contente que tenha conseguido dormir, por­que assim não preciso lhe explicar certas coisas. Morgan sabe que estou chegando, e está planejando um recepção-surpresa. Só que o que vai sair do bolo serão lobisomens, não moças seminuas. E por certo esse lobisomens estarão armados de pistolas Uzi e granadas de mão. Bem, a sorte é que nos apoderamos a tem­po do trem. Estamos dez ou 12 horas à frente do horário previsto de chegada... E se, como tenho quase cer­teza, o fim da linha ficar num acampamento cheio de Lobos à espreita, vamos ter de rezar de joelhos para que o fator surpresa funcione bem direitinho a nosso favor.

Jack enxugou o suor do rosto.

Seria mais lógico parar o trem a uma boa distância de onde estivesse o pelotão de Morgan e tentai tomar de surpresa o acampamento? Sim. Seria mais lógico e mais seguro.

Mas será que você, Richard Sloat, seria capaz de enfrentar os lobos maus?

Ele fitou o arsenal no chão da cabine e se perguntou se seria realmente capaz de comandar um ataque-relâmpago contra a Brigada Lupina de Morgan. Dispunha de dois pontas-de-lança. O velho Jack Sawyer, Rei dos Vagabundos de Estrada, e seu lugar-tenente Richard Comatoso. Jack achou que enlouquecera completamente, pois o que estava planejando era exatamente isso: um ataque-relâmpago. Por certo um raid de dupla seria a última coisa que os inimigos iam esperar. Mas sua paciência tinha chegado ao fim. Ele fora chicoteado, Lobo fora morto. Tinham destruído o colégio de Richard, abalado quase irremediavelmente a sanidade do amigo e, como se não bastasse, ele podia apostar que Morgan Sloat estava em New Hampshire, atormentando sua mãe.

Maluquice ou não, aquele era o momento da desforra.

Jack se abaixou, pegou uma das Uzis carregadas e colocou-a no colo. O trilho continuava a se des­dobrar à sua frente; o cheiro de sal ia se tornando cada vez mais forte.

 

De madrugada, Jack conseguiu dormir um pouco, a cabeça apoiada na barra do acelerador. Parecia um maquinista que tivesse morrido sobre os comandos do trem. Quando a manhã chegou, foi acordado por Richard.

— Tem alguma coisa aí na frente.

Antes de olhar para os trilhos, Jack deu uma boa espiada no rosto do amigo. Tivera esperanças de ver Richard menos abatido à luz do dia, mas nem mesmo os cosméticos naturais da aurora puderam lhe disfarçar o aspecto doentio. As cores da manhã tinham feito a palidez de sua pele passar de um tom cin­zento a um tom amarelado... Mais nada.

— Ei! Trem! Para onde vai essa porra de trem?

O grito foi gutural, pouco mais que um rosnado animal. Jack virou a cabeça.

Estavam se aproximando de uma pequena casamata, na frente de uma construção de madeira.

Do lado de fora da casamata havia um Lobo, mas qualquer semelhança com o Lobo de Jack se li­mitava ao chamejar alaranjado dos olhos. A cabeça daquele Lobo parecia terrivelmente achatada, como se uma grande mão tivesse aplainado a curva do crânio. A face parecia projetar-se sobre mandíbulas pen­dentes (como um penedo oscilando na ponta de um longo declive). Mesmo o ar de satisfação e surpresa estampado naquele rosto não podia ocultar sua rude, brutal estupidez. Tranças ou pequenos rabos-de-cavalo caíam sobre as bochechas. Uma cicatriz em forma de xis marcava o meio da testa.

O Lobo estava usando uma espécie de uniforme de mercenário (ou pelo menos o que Jack imagi­nava ser um uniforme de mercenário). Calças verdes e largas mergulhavam em botas escuras (mas as pontas dos botas tinham sido cortadas, para permitir que os pés cabeludos e de unhas compridas do Lobo pu­dessem ficar à vontade).

— Trem!— ele continuou exclamando enquanto a locomotiva vencia os últimos 50 metros. De re­pente, começou a pular de um lado para o outro, sorrindo de modo selvagem. Uma espécie de espuma lhe caía do queixo, formando coágulos sujos. — Trem! Trem! A porra do trem aqui e agora! — Sua boca permanecia aberta num grande e alarmante arreganhar de dentes, um afiado conjunto amarelo. — Ei! Vo­cês chegaram muito, muito cedo! Muito cedo, oh, sim!

— O que é isso? — Richard perguntou. Em pânico, sua mão apertava o ombro de Jack, mas a voz tentava manter um tom sereno.     

— É um Lobo. Uma das criaturas de Morgan.

Ei, rapaz, você disse o nome do pai dele. Imbecil!

Mas agora Jack não tinha tempo de pensar no assunto. Estavam parados junto à casamata e, obvia­mente, o Lobo pretendia subir a bordo. Sem dúvida, Jack observou, ele se movia desajeitadamente dentro daquelas botas. No peito nu, trazia uma faca num cinto de couro, como um velho bandoleiro, mas não portava qualquer outra arma.

Jack engatilhou a Uzi.

— Morgan? Quem é Morgan? De que Morgan você está falando?

— Depois eu explico — disse Jack.

Toda a sua atenção se voltava para um único ponto: a atitude do Lobo. Forjara um grande sorriso amarelo para tentar enganar a criatura e abaixara bastante a Uzi, para que ela não pudesse ser vista do lado de fora.

— O trem de Anders! Tudo bem, muito bem! Aqui e agora!

Agarrando o mastro do lado direito do estribo, sorrindo de modo obsceno, obviamente insano, e deixando escapar uma repugnante espuma pelo queixo, o Lobo começou a se içar para a cabine.

— Ei! Onde está o velho? Lobo, oh, Lobo! Onde...

Jack levantou a Uzi e acertou uma bala no olho esquerdo do Lobo.

O chamejante clarão alaranjado se extinguiu como uma chama de vela sob uma rajada de vento forte. O Lobo caiu para trás do estribo como se desse um salto mortal numa piscina olímpica. Bateu frouxamente no chão.

— Jack! — Richard puxou-o pela camisa. Seu rosto parecia quase tão selvagem quanto o rosto do Lobo. Mas era uma sensação de terror, não de alegria, que o deformava. — Você está se referindo ao meu pai? Meu pai tem alguma coisa a ver com isso?

— Richard, você confia em mim?

— Sim, mas...

— Então deixe o assunto para mais tarde. Para mais tarde. Agora não é hora de discutirmos isso.

— Mas...

— Pegue uma pistola.                     

— Jack...      

— Richard, pegue uma pistola!

Richard se abaixou e pegou uma das Uzis.

— Detesto armas — ele disse outra vez.

— Sim, eu sei. Também não sinto qualquer atração por elas, pode acreditar! Mas está na hora de acertarmos algumas contas.

 

Agora, os trilhos se aproximavam de uma alta paliçada. De trás dela vinham resmungos, gritos, urros, o bater rítmico de palmas. Havia outros sons menos identificáveis, mas todos se reuniram num único rumor aos ouvidos de Jack: eram os ruídos de uma operação militar is treinamento. A área entre a casamata e a paliçada tinha uns 800 metros de extensão, e Jack achou muito improvável que alguém tivesse ouvido seu tiro. O trem, sendo elétrico, era quase totalmente silencioso. O fator surpresa ainda parecia atuar a seu favor.

Os trilhos desapareciam sob um portão duplo, fechado, na frente da paliçada. Jack pôde ver os raios do sol entre as fendas das toras que formavam o portão.

— Jack! É melhor você diminuir a marcha!

Estavam agora a 150 metros do portão. E além do portão havia um berreiro de vozes:

— Uff! Rufe-rufe! Um-dois, um-dois!

Jack lembrou-se outra vez dos homens-animais de H.G. Wells e estremeceu.

— Não há outro meio, rapaz! Vamos ter de atravessar o portão na marra. Engatilhe a arma, vamos!

— Jack, você está louco!

— Eu sei.

Cem metros. As baterias chiavam. Uma centelha azul pulou, sibilando do ar. A margem da via fér­rea corria depressa de ambos os lados do trem. Agora não se pode vacilar, Jack pensou. Se Noel Casai escrevesse uma peça sobre Morgan Sloat, aposto que ia chamá-la a praga do caldeirão do inferno,

— Jack, você já pensou no que pode acontecer se este trenzinho desengonçado saltar dos trilhos?

— Bem, no fim da linha ele pode descarrilhar, é claro! — disse Jack.

— E é mesmo! Se ele arrebentar o portão, pode não haver qualquer trilho do outro lado!

— É. É um risco que temos de correr.

Cinqüenta metros.

— Jack, você realmente perdeu a cabeça!

— Acho que sim. Mas engatilhe a pistola, Richard! Richard puxou a trava.

Baques... resmungos... homens marchando... botas de couro estalando... um riso estridente, animalesco, que fez Richard se encolher. Mas, apesar de tudo, Jack viu uma nítida determinação no rosto de Richard, um ar de resolução que o fez sorrir com orgulho do amigo. Ele vai me dar uma força... Cabe­ça-dura ou não, Richard vai realmente me dar uma força!

Vinte e cinco metros.

Uivos... gritos... ordens berradas... e um denso guincho de réptil — Gruuuu-UUUU! — que fez o cabelo se arrepiar na nuca de Jack.

— Se sairmos inteiros dessa enrascada — disse ele —, e voltarmos à verdadeira Califórnia america­na, vou lhe pagar o melhor lanche do McDonald’s.

— E eu sou capaz de vomitá-lo!— Richard gritou e, por mais incrível que pudesse parecer, come­çou a rir. Naquele instante, até mesmo o amarelo doentio pareceu se dissipar um pouco de seu rosto.

Cinco metros. As toras de madeira davam uma aparência sólida, sim, bem sólida ao portão. Jack quase nem teve tempo de se perguntar se não estaria cometendo o maior erro de sua vida.

— Se abaixe, cara!

— Não me chame de...

O trem investiu contra o portão e rompeu as toras.

 

O portão era realmente bem forte e, pelo lado de dentro, possuía uma enorme tranca em forma de cruz. O trem de Morgan não era dos maiores e as baterias estavam bem fracas após a longa jornada pelas Terras Secas. Sem dúvida, a colisão o teria destroçado, matando os dois garotos no choque. A sorte é que o portão tinha um calcanhar-de-aquiles. Por certo Morgan já estaria trazendo dos Territórios Americanos modernas e invioláveis dobradiças de aço, só que elas ainda não tinham chegado. Os velhos gonzos de ferro, é claro, saltaram quando a locomotiva atingiu o portão.

O trem penetrou no interior da paliçada a 40 quilômetros por hora, empurrando o portão destroça­do na frente dele. Uma série de obstáculos de madeira, utilizados para treinamento militar, se estendia ao redor do perímetro do campo, mas o portão, agindo quase como limpa-neve, começou a destruí-los à me­dida que ia se chocando com eles. Eles eram derrubados, rolavam pelo chão, se estilhaçavam e espalha­vam lascas para todos os lados.

O trem com o portão grudado na frente também atingiu um Lobo que estava fazendo estragos com um chicote. Seus pés desapareceram sob a base do portão em movimento e foram verdadeiramente triturados, com botas e tudo. Mas ainda assim o Lobo conseguiu escapar com vida das rodas do trem. E em meio a uivos e rosnados, a metamorfose começou. As unhas começaram a crescer com rapidez; as mãos se transformaram em garras. O portão, agora, penetrara 15 metros na área interna da paliçada. Sur­preendentemente, manteve-se na mesma posição. Até Jack colocar a alavanca de comando em ponto morto. O trem parou. Então o portão caiu, levantando muito pó e esmagando de vez o infeliz lobisomem com seu peso. Lá atrás, porém, no último vagão, os pêlos continuaram a crescer por alguns minutos nos pés cortados do Lobo.

A situação dentro do campo era melhor do que Jack se atrevera a esperar. Sem dúvida, o dia come­çava cedo no pelotão, coisa habitual nas guarnições militares. A maioria das tropas parecia estar fora, certamente entregue a um bizarro cardápio de ordens-unidas e exercícios físicos.

— À direita! — ele gritou para Richard.

— À direita por quê?— Richard perguntou. Jack abriu bem a boca e gritou: pelo tio Tommy Wood­bine, atropelado na rua; por um carroceiro anônimo, chicoteado até a morte num pátio coberto de lama; por Ferd Jaklow; por Lobo, assassinado no sórdido escritório de Sunlight Gardener; por sua mãe; mas, principalmente, ele percebeu, pela Rainha Laura DeLoessian, que também era sua mãe, e pelos crimes que estavam sendo cometidos por toda parte nos Territórios. Gritou como Jasão, e sua voz teve um som de trovoada.

— esmague-os! — Jack Sawyer/Jasão DeLoessian berrou. E abriu fogo à esquerda.

 

Do lado de Jack havia uma área reservada a exercícios militares; do lado de Ri­chard, uma comprida construção de toras. A construção de toras lembrava um depósito de munição dos filmes de Roy Rogers, e Richard achou que fosse o quartel-general da guarnição. De fato, aquele lugar pa­receu mais familiar a Richard do que tudo o que ele tinha visto até agora naquele estranho mundo para onde Jack o levara. Já vira lugares daquele tipo nos noticiários da tevê. Era em acampamentos assim que a CIA treinava rebeldes para golpes de Estado na América do Sul e na América Central. Só que, em geral, os campos de treinamento da CIA ficavam na Flórida. Além disso, o que Richard estava vendo ali não eram cubanos exilados rondando numa praça de armas. Richard não sabia o que estava vendo.

Algumas das criaturas lembravam pinturas medievais de demônios e duendes. Outras lembravam seres humanos degenerados — quase trogloditas. E uma das coisas que cambaleavam nas primeiras luzes da manhã tinha uma pele escamosa e pálpebras que não paravam de pestanejar... Parecia um crocodilo andando em pé. A coisa levantou o focinho e proferiu o grito que ele e Jack tinham ouvido do lado de fora: Gruuuu-UUUU! Ele mal teve tempo de ver que a maioria daquelas criaturas infernais parecia total­mente desnorteada. Logo a Uzi de Jack trovejava ao seu redor.

Do lado de Jack, cerca de 20 Lobos estavam fazendo exercícios no campo. Como o Lobo da casa-mata, a maioria usava calças verdes e largas, botas com as pontas cortadas e cinturões de bandoleiro. Como o guarda, todos tinham a cabeça chata, todos pareciam estúpidos e essencialmente maus.

Tinham parado no meio de uma espasmódica série de cambalhotas ao ver o trem penetrar no acampamento, arrastando o portão e o infortunado sujeito que rodava um chicote no lugar errado. Ouvin­do o grito de Jack, começaram a se mexer, mas já era tarde demais.

A maior parte da Brigada Lupina, cuidadosamente treinada durante cinco anos, cuidadosamente estimulada a se desenvolver em termos de força, brutalidade, temor e fidelidade a Morgan, foi arrasada por uma barulhenta rajada da minimetralhadora nas mãos de Jack. Aos trambolhões, os Lobos foram recuando para a proteção da paliçada, buracos se abrindo no peito, cabeças sangrando. Houve urros de raiva impotente e urros de dor... mas não muitos. A maioria simplesmente morreu em silêncio.

Jack substituiu rapidamente o pente de balas. Pelo canto esquerdo do campo, quatro Lobos tenta­vam escapar; no centro, outros dois tinham ficado um pouco abaixo da linha de fogo. Embora feridos, ambos corriam em sua direção, as unhas crescendo nos pés entre uma nuvem de pó, o pêlo brotando nos rostos, os olhos faiscando. Quando chegaram perto da locomotiva, Jack viu espuma brotando das bocas e caindo por entre os pêlos que, com uma rapidez de raio, iam lhes cobrindo os queixos.

Ele puxou o gatilho da Uzi, apontando agora com grande dificuldade o cano superaquecido e le­vando um grande coice da arma. Os dois Lobos atacantes foram atirados para trás com tanta violência que rodopiaram no ar como acrobatas de circo. Os outros quatro Lobos corriam para o lugar onde, dois minu­tos atrás, estava o portão.

Estranhas criaturas saídas do quartel-general da guarnição pareciam ter finalmente descoberto que, embora os recém-chegados estivessem guiando o trem de Morgan, sua atitude não podia ser considerada de modo algum amistosa. Começaram a resmungar e a avançar num grupo compacto. Richard apoiou a coronha da Uzi no lado direito do peito e abriu fogo. Os balaços perfuraram os monstros, jogando-os para trás. Duas insólitas coisas, que lembravam bodes, atiraram-se no chão de mãos e joelhos — ou cascos — e fugiram precipitadamente para o interior do galpão. Richard viu três outras criaturas rodopiarem e caírem sob a força das balas. Uma estranha e selvagem alegria apoderou-se dele.

As balas também rasgaram a barriga verde-esbranquiçada da coisa-crocodilo. Um fluido escuro — uma espécie de seiva, e não sangue — começou a escorrer pela ferida. A coisa caiu para trás, mas a cauda pareceu amortecer a queda. Num instante o monstro tornou a se levantar e deu um salto para perto de Ri­chard. De novo a criatura proferiu seu grito rude, estridente... E dessa vez Richard percebeu que havia algo terrivelmente ferino naquele uivo.

Ele apertou o gatilho da Uzi. Nada aconteceu. A munição acabara.

A coisa-crocodilo se arremessava com lenta, trôpega, mas efetiva determinação. Os olhos cintila­vam de uma fúria assassina... e de súbita esperteza. Farrapos de pele balançavam no peito escamoso.

Richard se abaixou, tateou pelo chão da cabine sem tirar os olhos da coisa, e encontrou uma das granadas.

É um fato tipo Seabrook Island, Richard pensou sonhadoramente. Jack chama este lugar de Territó­rios, mas na realidade é Seabrook Island, e não há necessidade de ter medo, realmente não há; tudo isso não passa de um sonho, e se essa coisa apertar suas garras escamosos em volta do meu pescoço, sem dúvi­da vou acordar. E mesmo que não seja um sonho, Jack encontrará um meio de me salvar. Sei que encon­trará, tenho certeza, porque, aqui, Jack é uma espécie de deus.

Reprimindo o pânico que começava a se apoderar de seus nervos, ele puxou o pino da granada e atirou-a suavemente contra a coisa que avançava.

— Jack, se abaixe!

Na mesma hora Jack se deixou cair no chão da cabine. Richard também se abaixou, mas não sem antes ter visto algo inacreditável, digno do melhor humor negro: a criatura-crocodilo segurava a granada... e tentava comê-la.

A explosão não foi o ronco monótono que Richard esperava, mas um rugido alto, estridente, que ecoou como tambor em seus ouvidos, ferindo-lhe os tímpanos. Ele ouviu um chape-chape, como se al­guém tivesse atirado baldes de água contra o trem.

Levantou os olhos e viu que a locomotiva, o vagão de carga e o vagão-plataforma estavam cober­tos de entranhas, sangue escuro e pedaços de carne da criatura-jacaré. Toda a fachada do quartel-general da guarnição fora pelos ares. Grande parte dos estilhaços estava coberta de sangue e, no meio de tudo aquilo, havia um pé cabeludo numa bota cortada na ponta.

Ripas das toras de madeira esvoaçavam para todo lado, mas duas das criaturas parecidas com bode começavam a se recompor e a investir em sua direção. Richard se abaixou, encontrou um novo pente de balas e colocou-o na pistola. O cano estava ficando muito quente, exatamente como Jack previra.

— Oooopaa! — Richard exclamou num tom baixo, e abriu fogo outra vez.

 

Quando Jack se levantou após a explosão da granada, viu que os quatro Lobos que tinham escapado de suas duas primeiras fuziladas começavam a atravessar o buraco onde estivera o por­tão. Urravam de terror. Corriam lado a lado, e Jack podia fazer uma boa pontaria. Levantou a Uzi; depois abaixou-a de novo, sabendo que os veria mais tarde, provavelmente no hotel negro; sabendo que estava se comportando como um tolo... Mas, tolo ou não, sentira-se incapaz de alvejá-los pelas costas.

Agora um alto e estridente grito afeminado começou a se elevar atrás do que sobrara do galpão do quartel-general.

— Saiam daí! Saiam daí, vamos! Andem! Andem!

Havia também o estalar assobiante de um chicote.

Jack conhecia aquele som; reconhecia aquela voz. Da última vez que a ouvira, estava amarrado numa camisa-de-força. Jack a teria reconhecido em qualquer lugar de ambos os mundos.

“Se o amigo retardado aparecer por aqui, atirem nele!”

Bem, você conseguiu matá-lo, mas talvez agora seja a hora do acerto de contas. E pelo tom de sua az, acho que você já sabe disso.

— Peguem aqueles dois! O que está havendo com vocês, seus covardes? Peguem aqueles dois. Será que tenho de fazer tudo com minhas próprias mãos? Vão atrás deles, andem!

Três criaturas saíram de trás do que sobrou do galpão, mas apenas uma delas era efetivamente humana: Osmond! Carregava o chicote numa das mãos e uma pistola Sten na outra. Usava uma capa vermelha, botas negras e calças de seda branca com pernas largas, esvoaçantes. A roupa estava salpicada de sangue. À sua esquerda, havia uma criatura peluda, que lembrava um bode, de jeans e botinas estilo western. Esta criatura e Jack se entreolharam, compartilhando um momento de pleno reconhecimento. Tratava-se do terrível caubói que Jack encontrara na Taberna Oatley. Era Randolph Scott. Era Elroy. Arreganhava os dentes para Jack; a língua comprida serpenteou como uma cobra e lambeu o lábio superior.

— Pegue-o! — Osmond gritou para Elroy.

Jack tentou levantar a Uzi mas, de repente, a arma pareceu pesada demais em suas mãos. Osmond era mau, a reaparição de Elroy era pior, mas a coisa que havia entre os dois era um pesadelo. Era, é claro, aversão de Reuel Gardener nos Territórios; o filho de Osmond, o filho de Sunlight Gardener. Tinha um certo ar de criança — mas de uma criança com uma cruel perversão mental.

Era magricela e esbranquiçado; um de seus braços terminava num tentáculo abjeto que, de alguma forma, trouxe à mente de Jack o chicote de Osmond. Seus olhos, um deles à deriva, ficavam em níveis di­ferentes. Grandes chagas vermelhas lhe cobriam as bochechas.

Talvez parte do horror dessa coisa seja fruto de radiação nuclear... Por Jasão! O filho de Osmond deve ter chegado perto demais de uma daquelas bolas de fogo... Mas e o resto da aparência dele?... Jasão!... Jesus!... Quem terá sido sua mãe? Em nome de todos os mundos conhecidos e desconhecidos, quem terá sido sua mãe?

— Peguem o impostor!— Osmond gritava. — Salvem o filho de Morgan, mas peguem o impostor! Peguem o falso Jasão! Andem, covardes! Eles já estão sem munição!

Ouviram-se rosnados, urros. Daí a pouco, Jack percebeu um novo contingente de Lobos, com o apoio das mais hediondas criaturas, brotando dos fundos do galpão (onde provavelmente tinham se escondido para se proteger da explosão, onde provavelmente se conservavam de cabeça baixa, e assim continuariam... se Osmond não tivesse ordenado o contrário).

— Daquela vez, então, você conseguiu escapar, não foi, guri? — Elroy rosnou e correu para o trem. Sua cauda sacolejava no ar. Reuel Gardener, ou fosse lá quem fosse Reuel Gardener no mundo dos Territórios, deixou escapar um resmungo rouco e tentou seguir Elroy. Osmond estendeu a mão e o fez re­cuar; seus dedos, Jack reparou, pareceram quase apertar a repulsiva nuca do menino-monstro,

Então Jack levantou a Uzi e despejou todo um pente de balas no rosto de Elroy. A cabeça inteira da coisa-bode saltou do corpo. Porém, mesmo sem cabeça, Elroy continuou a investir. Uma das mãos — os dedos apertados em dois blocos compactos, lembrando um casco fendido — lançaram-se cegamente con­tra a cabeça de Jack. Mas logo a pata oscilou e caiu para trás.

Jack ficou atônito. Lembrou-se daquela terrível confrontação nos fundos da Taberna Oatley, quan­do ele conseguiu escapar do monstro atravessando um terreno baldio cheio de mato e estilhaços de vidro, Havia também uma armação de cama de molas. Agora lá estava a criatura e estava morta. Era difícil acos­tumar-se à idéia. Era como se tivesse matado o bicho-papão de seus piores pesadelos de infância.

Richard estava gritando — e sua minimetralhadora roncava, quase ensurdecendo Jack.

— É Reuel! Oh, Jack, oh, meu Deus, oh, Jasão, é Reuel, é Reuel...

Nas mãos de Richard, a Uzi cuspiu outra rajada de balas antes de cair em silêncio, o pente de balas esgotado. Reuel soltou-se do pai e atirou-se gemendo para o trem. A contorção de seus lábios revelou dentes compridos e amarelados, que pareciam postiços, frágeis (como os dentes de papel de uma lanterna no Dia das Bruxas).

Os últimos balaços de Richard tinham conseguido atingir-lhe o peito e o pescoço. Os buracos des­pontaram entre o xadrez marrom da roupa, juntamente com sangue e farrapos de pele. O sangue foi escu­ro e não muito abundante. Talvez Reuel já tivesse sido humano — Jack achava que essa possibilidade não podia ser descartada. Mas, sem dúvida, há muito tinha perdido qualquer traço de semelhança com um ser humano normal. Apesar de perfurá-lo, as balas pareceram incapazes de detê-lo. Reuel pulou cambaleante por sobre o corpo de Elroy. Tinha um cheiro de cogumelo e a aparência perfeita de um demônio...

E alguma coisa estava aquecendo a perna de Jack. A princípio, foi apenas uma sensação de calor. Depois, uma verdadeira quentura. O que era aquilo? Era como se houvesse uma chaleira quente em seu bolso. Mas ele não tinha tempo para pensar. Coisas graves estavam se desenrolando bem no seu nariz. Como um pesadelo colorido.

Richard deixou cair a Uzi e oscilou para trás, tampando o rosto com as mãos. Horrorizados, seus olhos contemplavam a coisa Reuel por entre as fendas dos dedos.

— Não deixe ele me pegar, Jack! Não deixe ele me pegaaaaar...

Reuel rosnou, borbulhou. As mãos bateram contra o lado da locomotiva e o som foi idêntico ao de grandes barbatanas batendo num terreno muito lodoso.

Jack observou que entre os dedos de Reuel havia grossas teias amarelas.

— Volte! — Osmond gritou para o filho, e o medo em sua voz era indisfarçável. — Volte! Ele é mau ele vai machucá-lo! Todos os garotos são maus, é axiomático! Volte, volte!

Reuel ganiu, guinchou entusiasmado. Subiu no estribo do trem e Richard gritou loucamente, recuando para um canto.

— Não deixe ele me pegaaaaar...

Mais Lobos, mais criaturas estranhas apareceram no canto do galpão.

Um dos monstros, com chifres curvos no alto da cabeça e usando apenas calças muito largas, caiu e foi pisado pelos outros.

O calor aumentava na perna de Jack.

Reuel atirou uma perna vermelha do lado da cabine. Reuel babava, avançando na direção dos dois, e a perna ia se contorcendo, como se não fosse absolutamente uma perna, mas um tentáculo. Jack apontou a Uzi e disparou.

Metade do rosto da coisa-Reuel se desmanchou como pudim. Uma torrente de vermes começou a . sair das sobras.

Mas Reuel ainda estava se aproximando.

Estendendo para Jack um braço cheio de dedos e teias.

Os gritos de Richard e os gritos de Osmond se fundiram num único urro.

Como ferro em brasa, o calor queimava a perna de Jack. E, de repente, ele descobriu o que era. Descobriu no momento exato em que as mãos de Reuel apertavam-lhe os ombros. Era a moeda que ganhara do Capitão Farren, a moeda que Anders se recusara a aceitar.

Pôs a mão no bolso. Na palma da mão, a moeda parecia um pedaço de estranho minério muito i bem polido. Jack fechou o punho em torno da moeda e sentiu uma força desconhecida apoderar-se dele em ondas muito fortes.

Reuel também sentiu a força. Seus grunhidos, sua baba de triunfo viraram resmungos de medo. Tentou retroceder, o único olho que lhe sobrara no rosto rolou freneticamente.

Jack abriu de novo a mão. Agora, a moeda parecia ter um brilho incandescente. Sem dúvida ele sentia o calor, mas aquele calor não o queimava.

O perfil da rainha brilhava como o sol.

 — Em nome da rainha Laura, sua coisa suja, abortada... — Jack gritou. — Em nome da rainha Laura, desapareça da face deste mundo!

Jack estendeu a palma da mão e estampou a moeda na testa de Reuel. 

Reuel e o pai gritaram ao mesmo tempo. Osmond, num agudo tom de tenor (quase soprano); Reuel, num grave sussurro de inseto. A moeda deslizou na testa de Reuel como a ponta de uma faca numa barra de manteiga. Depois escorreu dos restos da cabeça de Reuel para o punho de Jack. A moeda parecia destilar um fluido quente. E havia minúsculos vermes neste fluido que se torciam e retorciam na pele de Jack. Ele sentiu mordidas no pulso. Apesar disso, apertou com força a moeda com os dois primeiros dedos da mão direita, aplicando-a de novo, e dessa vez com mais energia, à testa do monstro. 

— Desapareça da face deste mundo. Você é um sujeito infame! Em nome da rainha Laura e em nome de seu filho, desapareça da face deste mundo!

Reuel guinchava, gania; Osmond fazia coro. As demais criaturas tinham parado e estavam se com­primindo atrás de Osmond, os rostos cheios de terror supersticioso. Jack parecia ter crescido; parecia estar emitindo uma luz brilhante.

Reuel deu um solavanco e proferiu mais um grito borbulhante. A coisa negra escorrendo de sua ca­beça ficou amarela. Um verme comprido e muito branco se espichou do buraco que se formara na moe­da. O verme caiu no chão da cabine da locomotiva. Jack o pisou. Ele estourou, se esborrachou sob seus pés. Reuel também caiu, formando uma pasta úmida.

Então, no pátio empoeirado do galpão elevou-se um grito tão estridente de dor e fúria que o crânio de Jack parecia que ia estourar. Richard enroscou-se em posição fetal, os braços apertados em torno da cabeça.

Osmond estava gritando. Deixara cair o chicote e a pistola-metralhadora.

— Oh, seu imundo! — ele gritou, sacudindo o punho para Jack. — Olhe o que você fez! Seu imundo menino mau! Eu detesto você, vou detestá-lo a vida inteira e além da vida inteira! Seu sujo impos­tor! Vou matá-lo! Morgan vai matá-lo! Oh, meu querido filho único, Reuel! Você é um sujo! Morgan vai matá-lo pelo que fez! Morgan...                                                                                                                          

Os outros acompanharam o grito com um rumor sussurrante, trazendo à memória de Jack os rapazes da Casa do Sol: Não vão dizer aleluia? Logo depois, no entanto, ficaram todos em silêncio... Porque houve outro som...

Jack lembrou-se instantaneamente da agradável tarde que passara ao lado de Lobo, os dois senta­dos perto do riacho, vendo o rebanho pastar e beber, Lobo falando das peculiaridades de sua família lobina. Era uma atmosfera extremamente calma... extremamente calma... até que Morgan chegou.

E agora Morgan estava voltando de novo — não meramente atravessando, mas abrindo, rasgando caminho pelo ar.

— Morgan! É...

— ... Morgan, Senhor...                                  

— Senhor de Orris...

— Morgan... Morgan... Morgan...

O som de coisa rasgando ficava cada vez mais alto. Os Lobos prostraram-se na poeira do chão. Osmond arrastava os pés numa estranha dança, as botas negras pisando as bolas de metal que se entrela­çavam no chicote.

— Um menino mau! Um menino sujo! Agora vai pagar por isso! Morgan está chegando! Morgan está chegando!

Cerca de sete metros à direita de Osmond, o ar começou a ficar enevoado, a bruxulear. Era como a nuvem que se forma sobre um forno crematório.

Jack olhou ao redor. Viu Richard enrascado num chão repleto de metralhadoras, munições e gra­nadas. Parecia uma criança pequena que tivesse dormido enquanto estava brincando de guerra. Só que Richard não estava dormindo, é claro, e nada daquilo fora brincadeira. Se Richard visse o pai atravessando por um buraco entre os mundos, poderia muito bem enlouquecer de vez.

Jack agachou-se ao lado do amigo e abraçou-o com força. O som de lençol rasgando ficava cada vez mais alto e, de repente, ele ouviu a voz de Morgan num clímax de ira:

— O que esse trem está fazendo aqui agora, seus imbecis?

Depois Osmond gemeu:

— O impostor, o sujo impostor! Ele matou o meu filho!

— Aqui vamos nós, Richard! — Jack murmurou e apertou os braços em torno do amigo. — Está na hora de cair fora!

Fechou os olhos, se concentrou... e houve aquele breve momento de rodopiante vertigem quando os dois iniciaram a travessia de volta.

 

RICHARD SE LEMBRA

Depois foi uma sensação de rolar de um lado para o outro, para cima e para baixo, como se houvesse uma pequena rampa entre os dois mundos. Obscuramente, indistintamente, pratica­mente mergulhando no nada, Jack ainda ouviu Osmond gritar:

— Maus! Todos os rapazes! É axiomático! Todos os rapazes são maus! Sujos! Sujos!

Por um momento os dois pairaram num ar rarefeito. Richard gritou. Então, Jack bateu com o ombro no chão. A cabeça de Richard caiu sobre o peito. Jack não abriu os olhos, ficou imóvel, abraçado a Richard, ouvindo, cheirando.

Silêncio. Não absoluto e completo, mas enorme — apenas quebrado pelo canto de dois ou i três pássaros.

O cheiro era frio e salgado. Um bom cheiro... mas não tão bom quanto o mundo podia cheirar nos Territórios. Mesmo ali (onde quer que fosse este ali), Jack sentia um leve indício de mau cheiro, como o odor de óleo velho no chão de cimento dos postos de gasolina. Cheiro de muitas pessoas acionando mui­tos motores, poluindo a atmosfera. Seu nariz ficara um tanto sensível, é claro. Ele sentia esse cheiro num lugar onde não havia um único ronco de automóveis.

— Jack? Tudo bem conosco?

— Tudo bem — disse Jack e abriu os olhos para ver se o que estava dizendo correspondia à verdade.

Seu primeiro olhar lhe trouxe uma idéia terrível: de alguma forma, em sua frenética necessidade e pressa de atravessar, em sua fuga antes da chegada de Morgan, ele não saltara para os Territórios Ameri­canos, mas para alguma outra dimensão do tempo — uma dimensão futura. Aquele parecia ser o mesmo lugar, só que mais velho, já abandonado, como se um século ou dois tivessem se passado. O trem ainda permanecia fixado nos trilhos, e sua aparência era a mesma. Os trilhos, que cruzavam um antigo pátio de exercícios militares, agora cheio de ervas daninhas, continuavam não se sabe para onde. Estavam velhos, cobertos de ferrugem. Os dormentes estavam carcomidos, já em avançado processo de deterioração. Um mato bem alto crescia entre eles.

Jack apertou ainda mais os braços em torno de Richard, que se contorceu debilmente e abriu os olhos.

— Onde estamos? — ele perguntou olhando ao redor.

No lugar do quartel-general do acampamento, havia uma enorme cabana de madeira, com um te­lhado cheio de ferrugens, nódoas. O telhado era tudo o que os dois podiam ver claramente; o resto não passava de um amontoado de toras em ruínas, cobertas de hera e mato. Na frente da cabana havia dois mastros, que talvez tivessem sustentado uma tabuleta (mas há muito, muito tempo).

— Eu não sei — disse Jack, e então, virando-se na direção da pista de corrida de obstáculos (que se transformara numa trilha cinzenta, coberta de plantas silvestres), viu reforçado seu pior temor. — Pode­mos ter avançado no tempo.

Para sua surpresa, Richard deu uma risada.

— É bom saber que nada mais vai mudar no futuro — disse ele, e apontou para a folha de papel fi­xada por um prego num dos mastros em frente à cabana de madeira. Estava um tanto desbotada, mas ain­da era perfeitamente legível:

Não ultrapasse!

Por Ordem do Xerife do Condado de Mendocino

Por ordem da Polícia do Estado da Califórnia

Os transgressores serão processados!

 

— Bem, se você já sabia onde estávamos — disse Jack, sentindo-se ao mesmo tempo tolo e aliviado —, por que perguntou?

— Só agora vi o papel — Richard respondeu, e qualquer impulso que Jack pudesse ter tido de ca­çoar outra vez do amigo cessou por completo. Richard estava com uma aparência terrível: era como se tivesse desenvolvido algum estranho tipo de tuberculose que atacasse a mente em vez dos pulmões. Não se tratava apenas do choque que sua sanidade sofrera com a viagem de ida e volta aos Territórios... ele realmente parecia ter se adaptado a isso. O problema é que ele descobrira alguma outra coisa. Não sabia apenas da existência de uma realidade radicalmente diversa de todas as suas noções minuciosamente cultivadas; a isso seria perfeitamente capaz de se ajustar; era apenas uma questão de tempo. Mas descobrir que o pai era um dos vilões, sem dúvida, o colocava numa situação crítica.

— Está bem — disse Jack, tentando se mostrar animado; ele realmente parecia um tanto animado. Mesmo um garoto morrendo de câncer se sentiria revitalizado ao conseguir fugir de uma monstruosidade como Reuel, Jack pensou. — Bem, vamos sacudir a poeira e seguir em frente, meu amigo. Temos missões a cumprir, saudáveis caminhadas antes de poder dormir. Seu visual não é dos melhores, sabia?

Richard estremeceu.

— A pessoa que lhe pôs na cabeça que você tem senso de humor devia ser eliminada da face da Terra, cara!

— Bitez mon crank, mon ami.

— Para onde vamos?

— Eu não sei — disse Jack —, mas vamos para algum lugar não muito longe daqui. Posso pressen­tir isso. É como um anzol pescando alguma coisa em minha mente.

— Point Venuti?

Jack virou a cabeça e olhou um bom tempo para Richard. Os olhos cansados de Richard, porém, nada revelaram.

— Por que fez esta pergunta?

— É pra lá que vamos?

Jack abanou os ombros. Talvez sim, talvez não. Os dois começaram a atravessar lentamente o ter­reno coberto de mato e Richard mudou de assunto.

— Tudo isso foi real? — Estavam se aproximando de um enferrujado portão duplo. Uma faixa de esmaecido céu azul despontava sobre uma planície verde. — Será que nisso tudo houve alguma coisa real?

— Passamos dois dias num trem elétrico que dava uma média de 40 quilômetros por hora, 45, no máximo — disse Jack. — A essa velocidade, conseguimos ir de Springfield, no Illinois, ao norte da Califór­nia, perto da costa. E você ainda me pergunta se alguma coisa foi real!

— Sim... sim, mas...

Jack estendeu os braços. Os pulsos estavam cobertos de cortes muito vermelhos que coçavam e doíam.

— Mordidas — disse Jack. — Dos vermes. Dos vermes que caíram depois que encostei a moeda na cabeça de Reuel Gardener.

Richard virou-se para o lado e pareceu cambalear de náusea.

Jack segurou-o. Senão, ele percebeu, Richard teria simplesmente se esborrachado no chão. O ami­go parecia ter emagrecido; a pele assumira um tom quase incandescente atrás da fina camisa de colegial.

— Desculpe. Eu não devia ter falado isso — disse Jack quando Richard pareceu um pouco melhor. - Fui um tanto rude, eu acho.

— Pois é, foi. Mas talvez fosse a única maneira de... você sabe...

— De convencê-lo?

— Sim. Talvez...

Richard fitou-o com olhos fundos, vermelhos. Agora havia espinhas de uma ponta à outra de sua lesta. Feridas lhe cercavam a boca.

— Jack, tenho de lhe perguntar uma coisa, e quero que me responda... com toda a sinceridade. Preciso saber...

Oh, eu já sei o que você quer saber, rapaz!

— Daqui a pouco — disse Jack. — Daqui a pouco pode me fazer todas as perguntas do mundo. Mas primeiro temos algumas preocupações mais urgentes.

— Que preocupações?

Em vez de responder, Jack subiu no pequeno trem. Ficou um instante parado na cabine, contemplando a composição: a locomotiva atarracada, o vagão de carga vazio, o vagão-plataforma. Tinha realmente conseguido fazer aquela coisa atravessar para o norte da Califórnia? Achava que não. Atravessar com Lobo já fora um sacrifício; arrastar Richard para os Territórios a partir do campus do Colégio Thayer quase lhe arrancara o braço dos ombros; mas em ambas as situações a transferência resultara de um esforço consciente de sua parte. Ao menos pelo que conseguia lembrar, não pensara absolutamente no trem ao atravessar. Quisera apenas fugir com Richard do campo de treinamento paramilitar dos Lobos (antes que Richard se defrontasse com o pai). Tudo costumava assumir uma forma ligeiramente diferente quando ele passava de um mundo para outro — o ato de migrar parecia conter também um movimento de transmutação. Camisas podiam se transformar em gibões, jeans em calças de lã, dólares em “varas”, moeda corrente nos Territórios. Mas aquele trem mantivera exatamente a mesma aparência. Por certo, Morgan conseguira criar uma coisa que não perdia nenhuma de suas características ao se transferir de um universo para outro.

Além disso, mesmo do outro lado, eles estavam usando jeans, Jacky!

Sim! E, embora Osmond conservasse o chicote na mão, carregava também uma metralhadora.

As metralhadoras de Morgan. O trem de Morgan!

Um calafrio lhe percorreu a espinha. Ouviu Anders murmurando: um mau negócio, Jack!

Era isso, é claro! Um péssimo negócio! Anders tinha razão. Havia demônios chocalhando naquele trem. Jack estendeu a mão para o chão da cabine, pegou uma das Uzis, abasteceu-a de um pente de balas e voltou para onde Richard o fitava com pálido, meditativo interesse.

— Isto parece um velho campo de treinamento, uma relíquia de tempos passados — disse.

— Está querendo se referir ao tipo de lugar onde mercenários eram treinados para uma Terceira Guerra Mundial?

— Sim, mais ou menos isso. Há muitos campos assim no norte da Califórnia... Funcionam a todo o vapor por algum tempo, depois as pessoas perdem o interesse por eles, vendo que a Terceira Guerra não dá indícios de começar. Então passam a atuar no comércio ilegal de armas, no tráfico de drogas ou algo do gênero. Foi... foi meu pai quem me disse isso.

Jack ficou calado.

— O que está querendo fazer com essa pistola, Jack?

— Vou tentar me livrar do trem. Alguma objeção?

Richard tremeu; a boca se contorceu numa careta de mal-estar.

— Não, nenhuma.

— Acha que posso fazer isso com a Uzi? Se acertar num daqueles explosivos plásticos?

— Uma bala não vai funcionar. Um pente inteiro, talvez.

— Vamos ver.

Jack puxou a trava. Richard o agarrou pelo braço.

— É melhor recuarmos para trás da cerca antes de fazermos a experiência.

— Tudo bem.

De trás da cerca coberta de mato, Jack apontou a Uzi para as gelatinosas “embalagens” de explosi­vo plástico. Apertou o gatilho e a pistola rompeu o silêncio numa sucessão de rajadas. Por um momento a fumaça da pólvora pairou misticamente na ponta do cano. O tiroteio ecoou de forma chocante no silêncio de igreja do campo. Os pássaros piaram de medo e surpresa, logo voando para pontos mais tranqüilos da floresta. Richard recuou e tapou os ouvidos com as palmas das mãos. A lona que cobria o vagão-plataforma sacolejou, se agitou no ar. Então, embora Jack ainda continuasse apertando o gatilho, a arma parou de atirar. O pente se esgotara e o trem continuava no mesmo lugar.

— Bem — disse Jack —, o teste não deu certo. Tem alguma outra idéia...?

E foi nesse momento que o vagão-plataforma irrompeu num único clarão de fogo azul. O ronco foi ensurdecedor. Jack viu o vagão se levantar dos trilhos, como se estivesse decolando. Agarrou a nuca de Richard e fez o amigo se abaixar.

As explosões continuaram por um longo tempo. Metal assobiava, voava para todo lado. Houve uma pesada chuva metálica no telhado da cabana de madeira. Vez por outra, uma viga maior soava como um gongo chinês (como se tivesse atingido alguma coisa realmente grande, cheia de possibilidade de eco). De repente, um projétil atravessou a cerca, pouco acima da cabeça de Jack, deixando na madeira um buraco maior que seu punho e o punho de Richard unidos. Jack resolveu cair fora. Agarrou Richard e começou a empurrá-lo para os portões.

— Não! — Richard gritou. — Os trilhos!

— O quê?

— Os tri...

Alguma coisa passou por cima deles e os dois se abaixaram ainda mais. Deram uma cabeçada um no outro.

— Os trilhos!— Richard gritou, esfregando o crânio com a mão pálida. — Não vamos para a estrada! Vamos para os trilhos!

— Tudo bem!

Jack estava intrigado, mas não fez perguntas. Era preciso ir para algum lugar.

Como soldados cruzando um campo minado, os dois começaram a rastejar ao longo da cerca en­ferrujada. Richard ia ligeiramente à frente, dirigindo-os para a abertura por onde os trilhos atravessavam a cerca e saíam da área.

Jack olhou para trás. Viu o máximo que precisava ou queria ver. A outra parte do trem parecia sim­plesmente ter-se evaporado. Barras retorcidas de metal, algumas reconhecíveis, a maioria não, formavam um amplo círculo em volta do lugar onde talvez o maldito trenzinho tivesse voltado para a América (para a América onde fora encomendado, construído e pago). Era impressionante que os dois não tivessem sido atirados pelos ares e mortos pela explosão. Que não tivessem recebido o menor arranhão parecia quase inconcebível.

O pior terminara. Estavam do lado de fora do cercado e começavam a se levantar (mas prontos a se abaixar e correr se houvesse explosões residuais).

— Meu pai não vai gostar nada quando souber que você destruiu o trem que ele fez, Jack — disse Richard.                                           

A voz do amigo fora perfeitamente calma, mas, quando Jack virou os olhos, descobriu que Richard Sloat estava chorando.

— Richard...

— Não, ele não vai gostar nada disso — disse Richard, como se respondendo a si mesmo.

 

Uma densa e exuberante faixa de mato da altura dos joelhos crescia no meio da via : férrea. Os trilhos se afastavam do campo no sentido sul, segundo uma grosseira avaliação de Jack. Eram pura ferrugem; há muito tempo não deviam ser usados. Em certos pontos, estavam estranhamente contorcidos — ondulados.

Terremotos provocam coisas desse tipo, Jack pensou com um certo mal-estar.

Atrás deles, o explosivo plástico continuava a atirar fagulhas no ar. Jack pensara que tudo estivesse acabado, mas logo houve outro longo e áspero ronco. Era, ele pensou, o barulho de um gigante pigarreando... ou soltando gases dos intestinos. Virou-se mais uma vez e observou uma escura coluna de fumaça se erguendo para o céu. Apurou os ouvidos para ver se escutavam crepitar de fogo (como todos que moraram por algum tempo na costa da Califórnia, Jack tinha medo de fogo), mas nada ouviu. Ali, até as ma­deiras pareciam típicas da Nova Inglaterra, grossas e muito úmidas. Certamente era a antítese do campo cinzento ao redor de Baja, com sua atmosfera clara e extremamente seca. Os bosques pareciam agora cheios de vida, a ferrovia se transformara numa trilha espremida entre árvores enormes, arbustos e muita relva (relva venenosa, eu aposto, Jack pensou, coçando inconscientemente os dedos). Um desbotado céu azul desenhara entre as copas das árvores uma trilha quase idêntica à da ferrovia. Os resíduos de carvão no meio dos trilhos estavam cobertos de musgo. O lugar parecia secreto, um lugar cheio de segredos.

Ele acelerou o passo, não apenas para tirar os dois daqueles trilhos antes que aparecessem policiais ou bombeiros, mas para garantir o silêncio de Richard. A respiração pesada do amigo o impedia de conversar... ou de fazer perguntas.

Tinham andado cerca de três quilômetros e Jack ainda se congratulava com o sucesso da marcha forçada quando Richard o chamou numa voz fina sussurrante:

— Ei, Jack...

Jack virou-se a tempo de ver Richard, que se atrasara um pouco e cujo corpo começava a oscilar. Manchas marcavam a palidez de seu rosto como marcas de nascimento.        

Jack puxou-o com facilidade. Richard parecia não pesar mais que um cesto de papel.

— Oh, Cristo, Richard!

— Até um ou dois segundos eu estava me sentindo bem — disse Richard naquela mesma voz baixa, sussurrante. Sua respiração parecia muito rápida, muito seca. Os olhos estavam semicerrados. Jack só podia ver tiras brancas e minúsculos arcos de pupilas azuis. — Agora estou um pouco... fraco. Sinto muito, Jack.

Detrás deles veio uma forte, abrupta explosão, seguida pelo som chuvoso de estilhaços de trem caindo no fino telhado da cabana de madeira. Jack deu uma espiada por cima dos ombros; depois seus olhos subiram com ansiedade os trilhos.

— Quer que eu o carregue? Posso levá-lo algum tempo nos ombros.

A imagem e semelhança de Lobo, Jack pensou.

— Tudo bem.

— Vai conseguir se equilibrar?

— Jack — Richard resmungou com um patético vestígio de sua velha irritação nervosa —, se eu não pudesse me equilibrar, não ia dizer tudo bem.

Jack segurou o corpo de Richard. Ele ficou imóvel, oscilando, como se alguma rajada mais forte de vento pudesse derrubá-lo. Jack se agachou, as solas dos tênis vergando nos enferrujados e velhos dormentes da estrada de ferro. Fez as mãos de estribo e Richard conseguiu pular para o cangote dele. Jack se levantou e começou a sacolejar entre as vigas dos trilhos. Saiu num passo rápido, quase num trote. Carregar Richard no cangote parecia não ser um problema muito grande, e não apenas porque Richard tinha perdido peso. Jack, afinal, arrastara barris e barris de cerveja, caixotes de armas, colhera maçãs em árvores. Durante algum tempo quebrara pedras nos campos de Sunlight Gardener (quase dizendo aleluia). Tudo isso o fortaleceu. Mas o crescimento de sua fibra interior foi mais forte que qualquer resultado simples e banal de ginástica física. Sua vida de modo algum se resumia a atravessar de um mundo para outro e, como acrobata de circo, ser virado pelo avesso nas experiências que enfrentava em ambos os Territórios. Jack reconhecia, mesmo que de uma forma ainda obscura, que estava fazendo mais do que tentar salvar a vida de sua mãe; na realidade, desde o início tivera a sensação de estar se lançando a uma aventura de significado maior. Tentava fazer um bom trabalho e talvez estivesse tendo êxito. E, quanto às más experiências... elas endureciam a fibra, é claro.

Então, Jack começou efetivamente a trotar.

— Você vai acabar me deixando enjoado — disse Richard, a voz tremendo no ritmo dos passos do amigo. — Vou acabar vomitando em sua cabeça.

— Sei que não vai fazer isso, rapaz — Jack ofegou, sorrindo.

— Estou me sentindo... absolutamente ridículo aqui em cima. Como um poste de pernas abertas.

— E provavelmente é isso mesmo que está parecendo, cara!

— Não me chame... de cara — Richard sussurrou, e o sorriso de Jack ficou mais largo. Oh, Richard, seu filho da mãe, que você viva 100 anos!

 

— Eu conheço aquele homem — Richard sussurrou em cima de Jack. A voz o as­sustou, como se o tivessem acordado no meio de um cochilo. Há dez minutos ele pusera Richard nas cos­tas. Já tinham andado mais dois quilômetros e ainda não havia indícios de qualquer espécie de civilização. Somente os trilhos, e aquele cheiro de sal no ar.

Os trilhos... Será que eles vão para onde eu estou pensando?

— Que homem? — Jack perguntou.

— O homem com o chicote e a metralhadora. Eu o conheço. Acho que já o vi muitas vezes.

— Quando? — Jack ofegou.

— Há muito tempo. Quando eu era pequeno... Na época... — Richard acrescentou com grande re­lutância — na época em que eu tive aquele... aquele sonho engraçado no armário. — Fez uma pausa — Só que não foi sonho, foi?

— Não, acho que não foi.

— Pois é... O homem do chicote era o pai de Reuel?

— O que você acha?

— Era — disse Richard sombriamente. — Por certo que era.

Jack parou.

— Richard, para onde vão esses trilhos?

— Você sabe para onde eles vão — disse o amigo com uma estranha, apática serenidade.

— Sim, acho que sim. Mas quero ouvir de você. — Jack fez uma pausa. — Preciso ouvir a coisa de você. Para onde eles vão?

— Para uma cidade chamada Point Venuti — disse Richard, e pareceu estar de novo à beira das lágrimas. — Lá existe um hotel enorme. Não sei se é ou não o lugar que você está procurando... Mas deve ser.

— Eu também acho — disse Jack. Ajustou mais uma vez as pernas de Richard nos braços e, com uma dor crescente nas costas, seguiu os trilhos que os levariam ao lugar onde a salvação de Lily Cavanaugh podia ser alcançada.

 

Enquanto caminhavam, Richard conversava. Não entrou logo no tema do envol­vimento do pai em toda aquela sujeira, mas deu início a um lento rodeio em torno do assunto.

— Eu já tinha visto aquele homem — disse Richard. — Tenho certeza absoluta. Às vezes ele ia lá em casa. Entrava sempre pelos fundos. Nunca tocava a campainha ou batia na porta. Ele simplesmente... arranhava a porta. Isso me dava arrepios. Me deixava tão assustado que eu tinha de me controlar para não molhar as calças. Era um sujeito alto (oh, sei que todos os adultos são altos aos olhos das crianças, mas aquele sujeito era muito alto) e tinha cabelo branco. Usava óculos escuros quase o tempo todo. Às vezes, aquele tipo de óculos escuros de lentes espelhadas. Quando li o artigo que escreveram no Sunday Report sobre a Casa do Sol, pressenti que já vira em algum lugar aquele pastor. E me lembro, me lembro bem... Um dia meu pai estava no andar de cima, remexendo uns papéis. E havia um programa religioso na tevê. Eu estava assistindo, e quando meu pai entrou na sala, quase deixou cair a bebida que estava segurando. Mudou logo de canal... para um seriado. Jornada nas estrelas, eu acho. Só que o sujeito da tevê não se apresentava como Sunlight Gardener quando vinha ver meu pai. O nome dele... Eu não lembro bem. Mas era parecido com Banlon... ou Orion...

— Osmond?

O rosto de Richard se iluminou.

— Sim, era isso. Nunca soube se era nome ou sobrenome. Mas ele costumava nos visitar a cada um ou dois meses. Às vezes com mais freqüência. Numa determinada semana, veio quase todas as noites. Depois desapareceu por seis meses. Quando ele chegava, eu costumava me trancar no quarto. Não gostava de seu cheiro. Usava um perfume forte... água-de-colônia, eu acho, ou talvez algo ainda mais ativo. Uma espécie de perfume de corista. Coisa barata mesmo. Mas sob aquele cheiro...

— Sob aquele cheiro, ele fedia. Era como se estivesse há dez anos sem tomar banho.

Richard arregalou os olhos para Jack.

— Eu também o conheci como Osmond — Jack explicou. Ele já contara a história antes (pelo menos uma parte da história), mas Richard não prestara atenção. Agora parecia bem mais atento. — Me encontrei com ele na versão Territórios de New Hampshire, antes de vê-lo como Sunlight Gardener em Indiana.

— Então você já devia ter conhecido aquela... aquela coisa.

— Reuel? — Jack balançou a cabeça. — Na época, talvez ele estivesse nas Terras Secas, sofrendo maciças radiações de cobalto.

Jack pensou nas feridas que cobriam o rosto da criatura, pensou nos vermes. Depois olhou para seus pulsos vermelhos, muito inchados nos pontos onde foram mordidos por vermes. Estremeceu.

— Eu nunca tinha visto Reuel antes da batalha no campo — disse —, e nunca vi seu Duplo ameri­cano. Que idade você tinha quando Osmond começou a freqüentar a casa de seu pai?

— Uns quatro anos. A coisa do... você sabe, do armário... ainda não tinha acontecido. Eu me lem­bro que depois daquilo fiquei ainda com mais medo dele.

— Depois que a coisa o tocou no armário?

— Sim.

— E isso aconteceu quando você tinha cinco anos.

— Sim.

— Quando nós dois tínhamos cinco anos.

— Sim... E agora pode me pôr no chão. Posso muito bem andar um pouco.

Jack abaixou-se e ele desceu. Continuaram andando em silêncio, devagar, lado a lado, cabeças baixas, sem trocarem um único olhar. Aos cinco anos, alguma coisa se espichou da escuridão e encostou em Richard. Quando eles dois tinham seis...

(seis, Jacky tinha seis)

Jack surpreendera o pai e Morgan Sloat conversando sobre um lugar a que tinham ido, um lugar que Jacky chamava de país dos sonhos de olhos abertos. E no fim daquele ano, alguma coisa saída da escuridão afetou a ele e a mãe. Fora nada mais, nada menos que a voz de Morgan Sloat. Morgan Sloat telefo­nando de Green River, em Utah. Soluçando. Ele, Phil Sawyer e Tommy Woodbine tinham saído há três dias para uma caçada de final de outono. Um amigo da universidade, Randy Glover, possuía uma confor­tável cabana de caça em Blessington, Utah. Glover costumava caçar com eles, mas naquele ano estava fazendo um cruzeiro pelo Caribe. Morgan ligara para dizer que Phil tinha sido alvejado. Ao que tudo indica­va, por outro caçador. Ele e Tommy Woodbine tiraram o amigo dos bosques numa pequena padiola de cordas. Phil tinha recuperado a consciência na traseira do jipe de Glover e pedira que Morgan dissesse a Lily e a Jack que os amava muito. Morreu 15 minutos depois, quando Morgan dirigia o jipe a toda a velocidade para o hospital mais próximo de Green River.

Morgan não matara Phil, havia Tommy para testemunhar que os três estavam juntos quando o tiro espocou (se houvesse, é claro, necessidade de algum testemunho, coisa que não aconteceu).

Mas a história sempre ficou um tanto confusa. E o tio Tommy devia alimentar certas dúvidas sobre o que de fato acontecera. Tommy nunca se mostrara muito inclinado a dar cobertura às manobras que Morgan já começara a urdir contra Jack e sua mãe. Talvez ele tenha morrido porque Morgan se cansou de temer que o velho veado acabasse por sugerir a Jack que a morte do pai podia ter sido mais que um acidente. Jack sentiu um arrepio de angústia e repugnância lhe repuxar a pele.

— Aquele homem andou pela sua casa antes de nossos pais terem saído para a caçada? — Jack perguntou num tom nervoso.

— Jack, eu tinha quatro anos de idade...

— Não, você não tinha quatro, tinha seis. Você tinha quatro quando Osmond começou a freqüentar a sua casa, mas tinha seis quando meu pai foi baleado em Utah. E você deve se lembrar de alguma coisa, Richard! Ele rondou pela sua casa antes da morte de meu pai?

— Foi nessa época que ele passou uma semana nos visitando quase todas as noites — disse Ri­chard, a voz quase inaudível. — Foi um pouco antes daquela última caçada.

Embora Richard não tivesse culpa nenhuma do que aconteceu, Jack foi incapaz de reprimir a amargura.

— Meu pai morre num acidente de caça em Utah, o tio Tommy morre atropelado em Los Angeles. A taxa de morte entre os amigos de seu pai é extremamente alta, Richard.

— Jack... — Richard começou com uma voz trêmula, baixa.

— O que estou querendo dizer é o seguinte: já passou água demais debaixo da ponte, já estou de saco cheio, entende? Quando eu apareci em seu colégio, você me chamou de maluco!

— Jack, será que você não percebe que eu...

— Não, acho que não. Eu estava cansado e você me deu um lugar para dormir. Ótimo! Estava com fome e você me alimentou. Excelente! Mas o que eu mais precisava era que você acreditasse era mira. Eu sabia que não podia esperar demais de você, mas, porra! Você conhecia o sujeito de quem eu estava fa­lando! Você sabia que ele tinha participado da vida de seu pai! E você se limitou a dizer: “Oh, o velho Jack tem passado muito tempo naquele sol escaldante de Seabrook Island, e por isso veio com esse blablablá!” Por Deus, Richard, achei que nossa amizade fosse mais séria!

— Você ainda não compreende.

— O quê?! Que estava com medo demais de alguma coisa tipo Seabrook Island para acreditar em mim? — A voz de Jack oscilava de fatigada indignação.

— Não. Não era só disso que eu tinha medo.

— Ah, é? — Jack exclamou e encarou brutalmente o rosto pálido e angustiado de Richard. — De que mais o Racional Richard Sloat poderia ter medo, hã?

— Eu estava muito assustado — disse Richard com uma voz perfeitamente calma. — Muito assustado porque, se eu descobrisse certas coisas, se eu me lembrasse da existência de Osmond, ou do que estava no armário naquele dia, talvez não conseguisse mais gostar do meu pai. E acho que eu tinha razão.

Richard cobriu o rosto com dedos magros, sujos, e começou a chorar.

 

Jack ficou vendo Richard chorar e se amaldiçoou de 20 formas diferentes. Não im­porta quem fosse Morgan, ele seria sempre o pai de Richard Sloat. O fantasma de Morgan se ocultava na forma das mãos de Richard, nos ossos do rosto de Richard. Será que Jack se esquecera dessas coisas? Não. Mas por um momento sua amarga decepção com o amigo obscureceu-as totalmente. E seu crescente nervosismo desempenhara um papel nisso tudo. O talismã estava muito, muito perto agora; ele se sentia como um cavalo cheirando água no deserto ou farejando um incêndio distante nas planícies. O nervosismo brotara como uma espécie de animal empinando-se em frenética agitação.

Ei, rapaz, este sujeito devia ser seu melhor amigo, Jack. Fique um pouco assustado se quiser, mas não precisa dar coices no velho Richard. Além disso, se ainda não reparou, o garoto está doente!

Jack estendeu a mão para Richard. Ele tentou esquivar-se. Jack insistiu. Pôs o braço em torno dele e, por algum tempo, os dois ficaram abraçados no meio dos trilhos desertos, a cabeça de Richard no om­bro de Jack.

— Escute — disse Jack embaraçado —, tente não se preocupar demais com... você sabe... com tudo o que está acontecendo... Fique tranqüilo, Richard. Tente conviver com os fatos, percebe?

Rapaz, você está realmente dizendo bobagens, Jack pensou. É como dizer a um sujeito que está com câncer para não esquentar a cabeça porque vai passar a reprise do Guerra nas estrelas na tevê e ele logo vai se sentir mais animado.

— Tudo bem — disse Richard. Ele se afastou de Jack. As lágrimas tinham desenhado sulcos profundos em seu rosto encardido. Esfregou os olhos com as mãos e tentou sorrir. — Andar conforme a carruagem...

— E aceitar as coisas da melhor forma possível — Jack fez coro. Acabaram de falar quase ao mes­mo tempo, depois riram juntos e tudo ficou muito bem.

— Vamos lá — disse Richard. — Vamos, rapaz!

— Para onde?

— Vamos pegar seu talismã. Pelo que posso deduzir, ele deve estar em Point Venuti É a próxima estação da linha do trem. Vamos, Jack! Sempre em frente! Mas ande devagar... Ainda não estou na minha melhor forma.

Jack olhou-o com curiosidade e os dois voltaram a caminhar... Mas sem pressa.

 

Agora que as barreiras tinham se rompido e Richard começara a se lembrar das coi­sas, o amigo podia se tornar uma inesperada fonte de novas informações. Jack começou a se sentir como se estivesse tentado montar um quebra-cabeça sem saber que as peças mais importantes estavam perdi­das. Era Richard quem possuía a maior parte dessas peças. Richard já estivera antes no acampamento mili­tar; esta era a primeira peça.

— Você tem certeza que era o mesmo lugar, Richard? — Jack perguntou num tom de dúvida.

— Tenho certeza — disse Richard. — Desde o início o campo me pareceu um tanto familiar. E quando... quando atravessamos de novo... eu tive certeza.

Jack balançou a cabeça com um ar hesitante.

— Estávamos acostumados a passar dias em Point Venuti. Ficávamos lá e às vezes visitávamos o campo. Andar nesse trem era uma verdadeira festa; quantos pais têm seu próprio trem particular?

— Não muitos — disse Jack. — Acho que Diamond Jim Brady e alguns sujeitos do mesmo tipo ti­nham trens particulares, mas não sei se eram pais ou não.

— Oh, meu pai não estava no time deles — disse Richard, rindo um pouco, e Jack pensou: Talvez você esteja enganado, Richard. — Íamos de Los Angeles a Point Venuti num carro alugado. Ficávamos sempre num motel. Só nós dois. — Richard fez uma pausa. Seus olhos estavam nublados de ternura e nos­talgia. — Então, depois de uma noite lã, subíamos no trem do meu pai até o Campo Prontidão. Era apenas um trenzinho. — Ele se virou para Jack, olhos arregalados. — Como aquele em que viemos, eu acho.

— Campo Prontidão?

Richard pareceu não ouvi-lo. Estava olhando para a ferrugem dos trilhos. Jack achou que o amigo podia estar se lembrando dos dormentes retorcidos que vira um pouco atrás. Em alguns lugares, as pontas dos engates chegavam a se vergar para o alto, como cordas arrebentadas de guitarra. Jack achou que nos Territórios aqueles trilhos estariam reluzentes, em ótimo estado de conservação.

— Antigamente havia aqui uma linha regular de trens — disse Richard. — Isso foi nos anos 30, meu pai me contou. A Linha Vermelha do Condado de Mendocino. Só que não era do condado, era pro­priedade de uma empresa particular, e a empresa faliu, porque na Califórnia... você sabe...

Jack assentiu com a cabeça. Na Califórnia ninguém gostava de trens.

— Richard, por que você nunca me falou sobre este lugar?

— Essa foi a única coisa que meu pai mandou que eu nunca lhe contasse. Você e sua família sabiam que às vezes passávamos as férias no norte da Califórnia. Até aí tudo bem, dizia meu pai. Mas ele pediu que eu jamais lhe falasse do trem, e muito menos do Campo Prontidão. Disse que, se eu contasse alguma coisa, Phil ficaria louco, pois isto envolvia um segredo muito sério...

Richard fez uma pausa.

— Disse ainda que, se eu contasse alguma coisa, ele nunca mais me traria aqui. Achei que se trata­va de um pequeno problema da sociedade dos dois. Mas agora, estou desconfiado que era algo muito mais grave.

Richard fez outra pausa e continuou:

— A estrada de ferro foi à falência por causa dos carros e das rodovias. — Ele se interrompeu com ar pensativo. — Interessante... havia uma coisa estranha no lugar para onde você me levou, Jack. Não ha­via cheiro de fumaça, poluição. O ar era incrível.

Jack concordou outra vez com a cabeça, permanecendo em silêncio.

— A companhia de trens finalmente vendeu toda a ferrovia (um patrimônio que vinha dos avós dos donos) para uma companhia de urbanização. Julgaram que muita gente começaria a se interessar por isto aqui... O problema é que não foi bem assim.

— Então seu pai comprou a via férrea.

— Sim, acho que sim. Mas não tenho certeza. Ele não gostava muito de falar sobre essa compra... nem do que fez por aqui.

Jack lembrou-se das “covas” de mineração e da necessidade aparentemente ilimitada que Morgan de Orris tinha de mão-de-obra escrava.

— Só soube que ele fez algumas modificações porque comprei um livro sobre estradas de ferro e descobri que havia diferentes bitolas. Isto aqui é a bitola estreita. Meu pai a transformou em bitola larga.

Jack se ajoelhou e, sim, pôde ver um duplo recorte muito fraco dentro dos trilhos ainda existentes: lá estava a bitola estreita.

— Ele tinha um trenzinho vermelho — disse Richard com ar sonhador. — Só uma locomotiva e dois vagões. Era movido a diesel. Costumava achar muita graça no trem e dizia que a única coisa que separava os adultos das crianças era o preço dos brinquedos. Havia uma velha estação na colina acima de Point Venuti. Nós chegávamos lá no carro alugado, estacionávamos diante do portão e entrávamos. Me lembro bem do cheiro da estação: cheiro de coisa velha, mas um cheiro gostoso... saturado de velha luz do sol, algo assim. O trem estava sempre ali. E meu pai dizia: “Todos a bordo para o Campo Prontidão, Ri­chard! Tem o seu bilhete?”. Às vezes tínhamos coisas... suprimentos... atrás... mas ficávamos sempre senta­dos lá na frente... e...

Richard engoliu em seco e esfregou os olhos.

— E foi uma época muito boa — ele concluiu. — Só ele e eu. Tudo muito calmo.

Olhou ao redor, os olhos brilhando de lágrimas contidas.

— Havia uma rotunda para girar o trem no Campo Prontidão — disse ele. — Mas isso foi naquele tempo. Nos bons tempos.

Richard deixou escapar um soluço terrivelmente estrangulado.

— Richard...

Jack encostou a mão nele.

Richard se esquivou e deu um passo atrás, tirando as lágrimas do rosto com as costas da mão.

— Não havia coisas sérias naquela época — disse ele, sorrindo. Tentando sorrir. — Não havia nada grave naquela época, havia, Jack?

— Não — disse Jack, percebendo agora que também ele estava chorando.

Oh, Richard. Oh, meu bom amigo!

— Não — Richard repetiu sorrindo, olhando em volta, vendo as árvores enormes e enxugando as lágrimas com as costas sujas das mãos —, não havia nada de grave naquela época. Nos bons tempos, quando éramos apenas crianças. Quando morávamos todos na Califórnia e ninguém queria sair de lá.

Ele olhou para Jack, tentando sorrir.

— Jack, me ajude. Estou me sentindo como se minha perna tivesse caído nos dentes de alguma ar­madilha e eu... eu...

Então Richard caiu de joelhos com o cabelo no rosto cansado e Jack se abaixou perto dele. Os dois se consolaram o melhor que puderam, mas, como em todas as experiências amargas, o consolo esteve longe de ser completo.

 

— Naquela época, a cerca era nova — disse Richard, quando pôde continuar. Andavam agora num passo um tanto cambaleante. Um curiango cantava num enorme galho de carvalho. O cheiro de sal no ar era mais forte. — Eu me lembro bem. E na tabuleta lia-se: campo prontidão. Havia uma pista com obstáculos, cordas para subir e cordas onde o sujeito se pendurava e se arrastava sobre grandes poças d’água. Lembrava um acampamento de fuzileiros navais na Segunda Guerra Mundial. Mas os sujeitos que rondavam por lá não pareciam fuzileiros. Eram gordos e vestiam todos a mesma roupa: camisas cinza com campo prontidão escrito no peito e calças com listras vermelhas do lado. Todos pareciam estar à beira de ataques do coração ou derrames cerebrais. Talvez das duas coisas ao mesmo tempo. Às vezes dormíamos lá. Uma ou duas vezes passamos todo o fim de semana. Não na cabana de madeira; a cabana era uma espécie de alojamento do pessoal que... fazia exercícios para emagrecer.

— Se é que era isso mesmo que faziam.

— Exato. Se é que era isso mesmo que faziam. Nós ficávamos numa grande tenda e dormíamos em catres. Era um tanto desconfortável. — Richard sorriu com ar pensativo. — Mas você tem razão, Jack. Nem todos os sujeitos que andavam pelo campo lembravam executivos tentando perder a barriga. Os outros...

— O que havia com os outros? — Jack perguntou em voz baixa.

— Alguns deles, muitos deles, lembravam aquelas grandes criaturas peludas que vimos no outro mundo — Richard murmurou. Jack teve de fazer força para ouvir. — Eram como os Lobos. Isto é, pareciam pessoas comuns, mas não muito. Pareciam... rudes. Você sabe como é.

Jack assentiu com a cabeça. Ele de fato sabia.

— Eu me lembro que tinha um certo medo de ver aqueles olhos. De vez em quando, havia estra­nhas cintilações dentro deles... Como se os cérebros estivessem pegando fogo. Alguns... — um brilho de compreensão despontou no rosto de Richard — alguns lembravam aquele substituto do treinador de bas­quete de quem lhe falei. O sujeito que usava jaqueta de couro e fumava.

— Point Venuti fica muito longe, Richard?

— Não tenho certeza. Costumávamos fazer o trajeto em duas horas e o trem ia sempre muito deva­gar. A distância até o Campo Prontidão devia ser de uns 50 quilômetros. Talvez menos.

— Então devemos estar, no máximo, a 25 quilômetros de Point Venuti. Do...

(do talismã)

Exato, é isso.

Jack ergueu a cabeça e viu o dia escurecendo. Como para comprovar que aquela situação era mais que fantástica, o sol deslizava agora atrás de uma barragem de nuvens. A temperatura parecia ter caído cinco graus e a atmosfera se tornara estranhamente melancólica. O curiango tinha silenciado.

 

Richard foi o primeiro a ver a tabuleta: um simples quadrado de madeira, caiado de branco e pintado com letras negras. Ficava à esquerda dos trilhos e o mato cobrira todo o poste que o sustentava. Sem dúvida, já devia estar ali há muito tempo. A mensagem, no entanto, era bem atual. Dizia: Os bons pássaros podem voar; os maus meninos devem morrer. Esta é sua última chance: volte para casa!

— Você pode ir, Richie — disse Jack suavemente. — Vai ficar tudo bem comigo. Eles vão deixá-lo escapar, pode ter certeza. Esta encrenca não é sua.

— Talvez seja — disse Richard.

— Fui eu que o meti nisso.

— Não — disse Richard. — Meu pai me meteu nisso. Ou o destino, não sei. Ou Deus. Ou Jasão, Mas não importa, vou continuar com você.

— Muito bem — disse Jack. — Então, em frente, pelotão!

Ao passarem pela tabuleta, Jack investiu contra o poste com um golpe razoavelmente bom de kung-fu. O poste e a tabuleta caíram.

— Sempre adiante, cara — disse Richard, sorrindo.

— Sempre! Mas não me chame de cara.

 

Embora tivesse começado a parecer novamente pálido e cansado, Richard continuou a falar enquanto seguiam os trilhos na direção do aroma cada vez mais forte do Oceano Pacífico. Despejou uma torrente de reminiscências há anos reprimidas dentro dele. Embora sua fisionomia não revelasse isso, Jack estava assombrado, estupefato... e sentia uma profunda, incontrolável pena do menino solitário que procurava com avidez, mas talvez inutilmente, resguardar um último fiapo de afeição pelo pai.

Contemplou o tom de cera no rosto do amigo, as feridas nas bochechas, na testa, em volta da boca; prestou atenção naquela voz tímida, quase sussurrante que, no entanto, não hesitava, não gaguejava quando, finalmente, enfrentava o momento de contar tudo aquilo. Mais uma vez deu graças a Deus pelo fato de ter tido um pai completamente diferente de Morgan Sloat.

Richard disse a Jack que se lembrava de muita coisa ao longo da estrada de ferro. Em certo trecho, viram um anúncio desbotado de Chesterfield Kings sobre o telhado de um celeiro.

— No anúncio saía uma fumaça muito bonita de 20 cigarros enormes — disse Richard, sorrindo. — Só que, naquele tempo, o celeiro estava em bom estado.

Ele apontou para um grande pinheiro com uma copa dupla e, 15 minutos depois, contou a Jack:

— Do outro lado desta colina, havia uma rocha que lembrava muito uma rã. Vamos ver se ela ain­da está lá.

Estava, e Jack concordou que parecia mesmo uma rã. Pelo menos um pouco. Com um certo esfor­ço de imaginação. Talvez tenha sofrido a erosão de muitos, muitos séculos.

Antigamente, Richard adorava aquela linha de trem e achava o Campo Prontidão um lugar real­mente muito interessante, com seus obstáculos para saltar e cordas para subir. Mas nunca simpatizara com Point Venuti. Com certo nervosismo, chegou até a lembrar o nome do motel em que ele e o pai pernoita­vam durante o tempo em que ficavam na pequena cidade costeira. Motel Kingsland, disse ele... e Jack não se deixou absolutamente surpreender pelo nome.

O Motel Kingsland, Richard contou, ficava logo abaixo do velho hotel em que Sloat parecia interes­sado. Richard podia ver o hotel de sua janela e não gostava nada dele. Era um lugar enorme e assustador, com torreões, cumeeiras, ameias, cúpulas e torres; cata-ventos de metal de formas estranhas rodopiavam no alto das torres. Rodopiavam mesmo quando não havia vento, disse Richard. Ele se lembrou claramente das vezes em que se encostava no parapeito da janela do quarto e ficava apreciando os cata-ventos. To­dos giravam sem parar, estranhas criações de metal em forma de luas minguantes, escaravelhos e ideogramas chineses. Cintilavam ao sol enquanto o oceano espumava e rugia lá embaixo.

Oh, sim, garoto, agora você se lembra de tudo, Jack pensou.

— E o hotel enorme? Estava fechado? — ele perguntou.

— Sim, estava à venda.

— Qual era o nome dele? 

— Agincourt.

Richard fez uma pausa; depois acrescentou outra lembrança infantil (um detalhe que nenhuma criança deixaria escapar).

— Era negro. Era feito de madeira, mas a madeira parecia pedra. Velha pedra negra. E era assim que meu pai e seus amigos o chamavam: Hotel Negro.

 

Foi parcialmente — mas não inteiramente — para distrair Richard que Jack perguntou:

— Seu pai comprou o hotel? O hotel e o Campo Prontidão?

Richard pensou um pouco e depois respondeu:

— Sim. Acho que sim. Após algum tempo... Da primeira vez que fui lá com ele, havia uma tabuleta, “Vende-se”, nos portões. Mas um dia, quando chegamos, ela tinha desaparecido.

— Você nunca pernoitou no hotel?

— Deus, não! — Richard tremeu. — Só me fariam entrar naquela coisa numa camisa-de-força... E, mesmo assim, talvez não conseguissem!

— Então você nunca quis dar uma espiada lá dentro?

— Não! Nunca quis e nunca vou querer!

Oh, Richard, você ainda não aprendeu que nunca se deve dizer “Dessa água não beberei”?

— E seu pai? Ele entrava no hotel, não é?

— Não que eu saiba — disse Richard em seu melhor tom professoral. O indicador foi até a ponta do nariz, empurrando óculos que não estavam mais lá. — Seria quase capaz de apostar que ele nunca en­trou no hotel. Acho que tinha tanto medo do lugar quanto eu. Mas, com relação a meu pai, havia mais al­guma coisa. Ele estava...

— Estava o quê?

Com relutância, Richard respondeu:

— Estava obcecado pelo lugar, eu acho.

Richard fez uma pausa, os olhos vagos, tentando revirar o passado.

— Sempre que estávamos em Point Venuti, ele ia diariamente para a frente do hotel e ficava para­do diante dele. Não por alguns minutos ou algo desse tipo. Ficava postado na fachada do hotel por... três horas, às vezes mais. Em geral sozinho. Mas nem sempre. Ele tinha... amigos estranhos.

— Lobos?

— Acho que sim — disse Richard, quase num tom de raiva. — Sim, acho que alguns deles podem ter sido Lobos, ou seja lá como você queira chamá-los. Não pareciam à vontade em suas roupas. Estavam sempre se coçando... Em geral naqueles lugares em que as pessoas educadas não devem se coçar. Outros lembravam o substituto do treinador de basquete. Eram uma mistura de sujeitos rudes e maus... Alguns também apareciam no Campo Prontidão. Vou lhe dizer uma coisa, Jack: aqueles sujeitos tinham ainda mais medo do hotel que meu pai. Eles se encolhiam quando chegavam perto do portão.

— E Sunlight Gardener? Ele também rondava pelo hotel?

— Hã-hã — foi a afirmativa de Richard. — Mas em Point Venuti ele lembrava mais o homem que vimos do lado dos Territórios...

— Osmond?

— Sim. Mas essas pessoas não vinham com muita freqüência. Em geral, meu pai ficava sozinho. Às vezes, ele ia até o restaurante do motel, pegava uns sanduíches e se sentava num banco da calçada, comendo e apreciando o hotel. Eu ficava na janela do saguão do Kingsland e via meu pai olhando para o hotel. Jamais gostei da cara dele nessas horas. Parecia assustado, mas também parecia... parecia rir clinicamente.

— Rir cinicamente — Jack repetiu num tom meditativo.

— Às vezes ele me perguntava se eu queria ir com ele, e eu sempre respondia que não. Ele abana­va a cabeça e uma vez me disse: “É. Talvez ainda não seja hora. Um dia você compreenderá... tudo, Richard.” Me lembro de ter pensado que jamais ia querer entender o que havia com aquele hotel negro.

— Um dia — Richard continuou —, um dia em que estava bêbado, meu pai me contou que havia alguma coisa dentro daquele lugar. Disse que a coisa estava há um bom tempo lá. Já estávamos deitados, eu me lembro. O vento parecia muito forte naquela noite. Eu escutava as ondas batendo na praia e o som rangente dos cata-ventos girando no alto das torres do Agincourt. Era um barulho assustador, Pensei na­quele estranho prédio, em todos aqueles quartos... nada dentro deles...

— A não ser fantasmas — Jack murmurou. Achou que tinha ouvido passos e virou-se bruscamente para trás. Nada, ninguém. Pelo menos até onde os trilhos podiam ser vistos, a estrada de ferro parecia deserta.

— Exato. A não ser fantasmas — Richard concordou. — Então eu perguntei: “É uma coisa valiosa, papai?”. “É a mais valiosa de todas as coisas”, disse ele. “Então algum ladrão é capaz de arrombar o hotel para roubá-la”, disse eu. Não era... como vou dizer?... não era um assunto que eu quisesse prolongar, mas também não queria que ele dormisse. Não com aquele vento soprando lá fora e os cata-ventos rangendo na noite... Ele riu, e eu ouvi um retinir de vidro quando ele se serviu de mais um pouco de bourbon da garrafa no chão. “Ninguém vai roubá-la, Richard”, disse ele. “Qualquer sujeito que entrasse no Agincourt veria coisas que jamais teria sido capaz de imaginar.” Ele acabou seu trago de bebida e começou a ficar sonolento. “Só um sujeito no mundo inteiro poderia encostar a mão naquela coisa, mas ele nunca conse­guirá chegar perto dela, Richard. Pode ter certeza. É uma coisa que me interessa muito e que se mantém inalterada tanto aqui quanto lá. Ela não se transforma. Acho que nunca poderia se transformar. Gostaria muito de tê-la em minhas mãos, mas não pretendo tentar obtê-la, pelo menos por enquanto... e talvez nunca. Façanhas incríveis poderiam ser feitas com aquela coisa, pode apostar... Mas, levando tudo em conta, acho que ela fica melhor onde está.”

— Eu mesmo já estava ficando sonolento — Richard acrescentou —, mas acabei perguntando do que ele estava falando.

— E o que disse Sloat? — Jack perguntou com uma secura na boca.

— Chamou a coisa... — Richard hesitou, franzindo a testa — chamou a coisa de “eixo de todos os mundos possíveis”. Depois riu. Depois a chamou de outra coisa. Uma coisa de que você não vai gostar.

— O que foi?

— Você vai ficar furioso.

— Vamos lá, Richard, desembuche!

— Ele a chamou... bem... ele a chamou de “a loucura de Phil Sawyer”.

Não foi raiva o que Jack sentiu, mas uma explosão de quente, estonteante agitação. Lá estava, sem dúvida; lá estava o talismã! O eixo de todos os mundos possíveis. Quantos mundos? Só Deus sabia. Os Territórios Americanos, os próprios Territórios, os hipotéticos Territórios dos Territórios, e assim por diante, como faixas se elevando sem cessar num mastro de barbearia. Um universo de mundos, um multidimensional macrocosmo de mundos — e em todos eles uma coisa que era sempre a mesma, uma força unificadora inegavelmente boa, mesmo que estivesse aprisionada num mau lugar: o talismã, “eixo de to­dos os mundos possíveis”. E era assim, então, a loucura de Phil Sawyer? Provavelmente sim. A loucura de Phil... A loucura de Jack... de Morgan Sloat... de Gardener... e a esperança, é claro, das duas rainhas.

— Não se trata apenas de Duplos — Jack disse em voz baixa.

Richard andava devagar, vendo os dormentes enferrujados desaparecerem sob os pés. Agora atira­va olhares nervosos a Jack.

— Não se trata apenas de Duplos, porque existem mais de dois mundos. E por isso devem existir Triplos... Quádruplos... quem sabe? Morgan Sloat aqui; Morgan de Orris ali; talvez Morgan, duque de Azreel, em algum outro lugar. Mas ele nunca entrou no hotel!

Não sei do que você está falando — disse Richard num tom resignado. Mas tenho certeza que está exagerando, dizia aquele tom, passando do mero absurdo à completa insanidade. Todos a bordo para Seabrook Island!

— Ele não pode entrar. Isto é, o Morgan da Califórnia não pode entrar... E você sabe por quê? Porque Morgan de Orris não pode. E Morgan de Orris não pode porque o Morgan da Califórnia também não pode. Se um deles não pode entrar em sua versão do hotel negro, o outro também não pode. Está entendendo?

— Não.

Febril com a descoberta, Jack não ouviu absolutamente o que disse Richard.

— Dois Morgans ou dezenas deles. O que importa? Duas Lilys ou dezenas delas... dezenas de rai­nhas em dezenas de mundos, Richard, pense nisso! Isso não mexe com a sua cabeça? Dezenas de hotéis negros. Só que, em alguns mundos, podem assumir a forma de um parque de diversões negro... de um trailer negro ou não sei mais o quê. Mas Richard...

Ele parou, pegou Richard pelos ombros e ficou olhando para ele, os olhos brilhando. Richard ten­tou se esquivar, mas logo ficou imóvel, fascinado pela beleza febril estampada no rosto de Jack. De re­pente, subitamente, Richard acreditou que todas as coisas podiam ser possíveis. Subitamente, de repente, ele se sentiu curado.

— O quê? — sussurrou.

— Algumas coisas não estão excluídas. Algumas pessoas não estão excluídas. Elas possuem... por assim dizer... uma natureza única. É a única expressão que me parece adequada para classificá-las. Elas são como aquilo, o talismã. De uma natureza única. Eu, por exemplo. Eu sou de uma natureza única. Tive um Duplo, mas ele morreu. Não apenas nos Territórios, mas em todos os mundos, a não ser neste aqui. Eu sei disso; eu sinto isso. Meu pai também sabia. Acho que por essa razão é que ele me chamava de Jack Viajante. Quando estou aqui, não estou lá. Quando estou lá, não estou aqui. E, Richard, com você acontece o mesmo!

Richard o fitava, mudo.

— Você não ouviu; esteve dormindo quase o tempo todo enquanto eu falava com Anders. Mas ele disse que Morgan de Orris teve um filho. Rushton. Você sabe quem era ele?

— Sim — Richard murmurou. Ainda se sentia incapaz de desviar os olhos de Jack. — Era meu Duplo.

— Isso mesmo. O menino morreu, disse Anders. O talismã é de uma natureza única. Nós somos de uma natureza única. Seu pai não é. Vi Morgan de Orris naquele outro mundo, e ele é como seu pai, mas não é seu pai. Naquela época, ele não poderia entrar no hotel negro. Agora ainda não pode. Mas ele sabia que você era de natureza única, e sabe que eu também sou. Gostaria de me ver morto. E precisa ter você do lado dele.

— Porque assim, se ele decidisse se apossar do talismã, poderia mandar que eu o pegasse, certo?

Richard começou a tremer.

— Mas não importa — disse Jack grave. — Nós vamos pegar o talismã. Sloat não conseguirá pôr as mãos nele!

— Jack, acho que não vou conseguir entrar naquele lugar — disse Richard, mas falou num suspiro baixo, sem fôlego, e Jack, que já retomara a caminhada, não o ouviu.

Richard correu para alcançá-lo.

 

A conversação cessou. O meio-dia veio e se foi. A floresta tinha se tomado muito silenciosa e duas vezes Jack viu árvores com estranhos troncos retorcidos e um emaranhado de raízes bem perto dos trilhos. Ele não gostou muito da aparência dessas árvores. Elas pareciam familiares.

Richard, fitando os dormentes que desapareciam sob seus pés, acabou tropeçando, caindo e ba­tendo de cabeça num dos trilhos. Depois disso, Jack voltou a carregá-lo nas costas.

— Olhe ali, Jack! — Richard gritou, após o que pareceu ser uma eternidade.

Bem à frente, os trilhos desapareciam numa espécie de velha garagem de bondes. As portas se abriam para uma escuridão sinistra, lúgubre, e que devia estar coberta de mofo. Além da garagem (que talvez, antigamente, tivesse sido tão agradável quanto Richard dissera, mas que agora parecia absoluta­mente fantasmagórica aos olhos de Jack), por certo haveria uma estrada. A Rodovia 101, Jack supunha.

E, além da estrada, o oceano. Ele podia ouvir o barulho das ondas.

— Acho que já chegamos — disse num tom de voz seco.

— Quase — disse Richard. — Point Venuti fica a um ou dois quilômetros da estrada. Deus, como eu gostaria que não tivéssemos de ir para lá, Jack... Jack? O que você está fazendo?

Jack nem virou a cabeça. Continuou desviando-se dos trilhos, contornando uma daquelas árvores de aspecto estranho (esta, pouco maior que um arbusto) e dirigindo-se para a estrada. Ervas e mato alto roçavam nas pernas surradas do jeans. Alguma coisa dentro da garagem — a estação ferroviária particular que Morgan Sloat utilizara outrora — movia-se aos solavancos, num serpentear obsceno, mas Jack nem mesmo olhou para ela.

Chegou à estrada, atravessou-a e caminhou até a orla do mar.

 

Quase em meados de dezembro do ano de 1981, um menino chamado Jack Sawyer estava onde a terra e o mar se encontram, mãos nos bolsos do jeans, contemplando o impetuoso Oceano Pacífico. Tinha 12 anos e era extraordinariamente belo para a sua idade. O cabelo era castanho e comprido — provavelmente comprido demais —, mas a brisa marinha o tirava de uma testa lisa e delicada. Permanecia ali, pensando na mãe que estava morrendo, e nos amigos, simultaneamente presentes e ausentes, e em mundos, todos seguindo seus respectivos cursos.

Venci a distância, ele pensou e tremeu. Venci a distância de costa a costa como Jack Viajante Sawyer. Seus olhos se encheram de lágrimas. O nariz inspirou profundamente o cheiro do sal. Lá estava ele; e o talismã estava perto.

— Jack!

Jack não atendeu logo ao chamado, seu olhar continuava preso no Pacífico, no brilho dourado do sol na crista das ondas. Lá estava ele, ele conseguira. Ele...

— Jack! — Richard o sacudiu pelo ombro, tirando-o de seu arrebatamento.

— Hã?

— Olhe! — Richard estava ofegante, apontando alguma coisa na estrada, na direção em que, provavelmente, se achava Point Venuti — Está vendo?

Jack virou a cabeça. Compreendeu o espanto de Richard, mas o espanto não o atingiu — como não ficara surpreso quando Richard lhe dissera o nome do motel onde ele e o pai costumavam pernoitar em Point Venuti. Não, não havia razão para espanto, mas...

Mas era extremamente bom ver sua mãe outra vez.

A face da mulher tinha quase dez metros de altura, e era um rosto mais jovem do que Jack podia lembrar. Era Lily no auge de sua carreira. O cabelo, uma esplêndida sombra de louro metálico, estava repuxado num bonito rabo-de-cavalo. Sua marca registrada, porém, era o sorriso despreocupado, atrevido. Nenhuma outra estrela jamais sorrira daquele jeito — era uma invenção dela, uma patente exclusiva. Lily olhava para trás por cima do ombro nu. Olhava para Jack... para Richard... para o azul do Pacífico.

Era sua mãe... mas, quando ele piscou, a fisionomia se transformou um pouco. A linha do queixo ficou mais redonda, as bochechas menos salientes, o cabelo mais escuro, os olhos de um azul ainda mais profundo. Agora era o rosto de Laura DeLoessian, mãe de Jasão. Jack piscou outra vez, e era novamente sua mãe — sua mãe aos 28 anos, abrindo o alegre sorriso que mandava tudo para o inferno.

Era um cartaz. Em cima, havia os seguintes dizeres:

 

Terceiro festival anual do filme policial Point

Venuti, Califórnia

Cinema Bitker

de 10 a 20 de dezembro

com a participação especial de Lily Cavanaugh

“Rainha da Produções B”

 

— Jack, é sua mãe — disse Richard. A voz estava rouca de espanto. — Será que é apenas uma coincidência? Não pode ser, você não acha?

Jack balançou a cabeça. Não, não era uma coincidência.

A palavra em que seus olhos continuavam fixos era, naturalmente, rainha.

— Vamos — ele disse a Richard. — Acho que estamos quase chegando.

Os dois caminharam lado a lado pela beira da estrada, em direção à cidadezinha chamada Point Venuti.

 

O FIM DA ESTRADA

Enquanto caminhavam, Jack examinava cuidadosamente a postura curvada e o rosto brilhante de Richard. Era como se agora apenas uma enorme força de vontade estivesse conseguin­do arrastá-lo pela estrada. Mais algumas espinhas de aparência úmida tinham desabrochado em seu rosto.

— Você está bem, Richie?

— Não. Não estou me sentindo muito bem. Mas ainda posso andar, Jack. Você não precisa me carregar.

Ele curvou a cabeça e continuou a se arrastar sombriamente. Jack viu que o amigo, que tinha tantas lembranças daquela estranha e pequena estrada de ferro e daquela estranha e pequena estação, estava sofrendo demais com a realidade que via ao redor: dormentes enferrujados, quebrados, ervas daninhas, trepadeiras com espinhos... e, lá no fim, uma construção em ruínas, onde toda a pintura brilhante de que Richard se lembrava tinha desbotado, uma construção onde alguma coisa resvalava incomodamente na escuridão.

Estou me sentindo como se minha perna tivesse ficado presa em alguma armadilha, Richard dissera, e Jack achou que podia entender muito bem o que o amigo sentia... mas não com a profundidade da compreensão de Richard. Não com a mesma intensidade. Uma parte da infância de Richard fora tostada dentro dele, virada pelo avesso. A ferrovia e a estação fantasma, com suas espantosas janelas sem vidros, devem ter parecido, aos olhos de Richard, terríveis paródias de tempos passados. E cada novo pedaço desses velhos tempos ia, paradoxalmente, destruindo toda a imagem que ele fazia do pai. Toda a vida de Richard, assim como a de Jack, começara a se dobrar aos padrões dos Territórios, e Richard estava bem menos preparado para a transformação.

 

Quanto ao que dissera a Richard sobre o talismã, Jack tinha certeza absoluta de que era verdade: o talismã sabia que eles estavam chegando. Começara a sentir isso quando viu o cartaz brilhando com a estampa da mãe; agora a sensação era de urgência e era poderosa. Era como se um gran­de animal tivesse despertado a alguns quilômetros dali e seu ronco ecoasse pela Terra... Ou como se cada lâmpada de um edifício de 100 andares tivesse acabado de ser acesa, formando um clarão de luz suficien­temente forte para ofuscar as estrelas... Ou como se alguém tivesse acionado o maior ímã do mundo, um ímã que lhe sugasse a fivela do cinto, as moedas dos bolsos, as obturações dos dentes e pretendesse lhe sorver o próprio coração. Aquele grande animal roncando, aquela súbita e drástica iluminação, aquela ân­sia magnética, tudo isso ecoava no peito de Jack. Alguma coisa lá embaixo, alguma coisa na direção de Point Venuti, queria Jack Sawyer, e ele tinha certeza de que o objeto que o atraía tão visceralmente era um objeto grande. Grande! Nenhuma coisinha pequena possuiria tamanho poder. Devia ser algo do tamanho de um elefante, do tamanho de uma cidade.

E Jack se questionava sobre sua capacidade de manejar uma coisa tão monumental. O talismã fora aprisionado num mágico, sinistro e velho hotel; presumivelmente fora posto ali não apenas para ficar a salvo de mãos indesejáveis, mas porque, ao menos em parte, era difícil lidar com ele (fossem quais fossem as intenções da pessoa). Talvez, Jack ponderou, Jasão fosse o único ser capaz de manipulá-lo, capaz de manobrá-lo sem causar dano a si mesmo ou ao próprio objeto. Sentindo a energia, a insistência desse chamado, Jack só esperava não fraquejar diante do talismã.

— Um dia você vai entender, Rich — disse Richard, surpreendendo-o. Sua voz era baixa e melancólica. — Meu pai disse que eu compreenderia. “Um dia você vai entender, Rich.”

— Sim — disse Jack, olhando preocupado para o amigo. — Como está se sentindo?

Além das feridas em volta da boca, Richard tinha agora uma feia coleção de manchas e calombos vermelhos nas têmporas e entre as espinhas da testa. Era como se um enxame de insetos tivesse consegui­do se esconder sob a superfície de sua pele. Por um instante, Jack teve um vislumbre de Richard Sloat na manhã em que escalou a janela do Pavilhão Nelson no Colégio Tayer: Richard Sloat, com seus óculos fir­memente plantados na ponta do nariz e a suéter caprichosamente presa na calça. Será que aquele garoto irritantemente correto e imperturbável algum dia voltaria a se manifestar?

— Eu ainda posso andar — disse Richard. — Mas será que foi isso o que ele quis dizer? Será esta a compreensão que um dia eu iria alcançar, absorver, sei lá...

— Seu rosto tem alguma coisa de diferente — disse Jack. — Por que não descansa um pouco?

— Nada disso — Richard exclamou. Era como se sua voz viesse do fundo de um barril lamacento. — Posso sentir a erupção na minha pele. Ela coça. Acho que essa coisa também está enchendo as minhas costas.

— Deixe-me ver — disse Jack. Richard parou no meio da estrada, obediente como um cão. Fechou os olhos e respirou pela boca. As manchas vermelhas chamejavam na testa e nas têmporas. Jack foi para as costas dele, tirou-lhe a jaqueta e levantou a parte de trás da suja e manchada camisa azul de botões. Ali as manchas eram menores, não tão feias quanto as manchas do rosto. Estendiam-se dos ombros até os rins, pouco maiores que verrugas.

Richard deixou escapar um grande e inconsciente suspiro de desânimo.

— Realmente. A urticária também está aqui, mas não é tão feia quanto no rosto — disse Jack.

— Obrigado — disse Richard. Ele respirou fundo e levantou a cabeça. Lá em cima, o céu nublado parecia suficientemente pesado para se esborrachar sobre a Terra. Na encosta áspera, o oceano batia rui­dosamente nas rochas. — Agora só faltam dois ou três quilômetros. Eu vou conseguir.

— Posso carregá-lo de novo se você precisar — disse Jack, convicto de que daí a pouco teria de colocar outra vez o amigo nos ombros.

Richard balançou negativamente a cabeça e fez uma tentativa fracassada de empurrar a camisa para dentro da calça.

— Às vezes eu acho... Às vezes eu acho que não posso...

— Vamos entrar naquele hotel, Richard — disse Jack, pondo o braço em volta do ombro do amigo e quase o forçando a continuar andando. — Você e eu. Nós dois. Não tenho a menor idéia do que vai acontecer quando estivermos lá dentro, mas você e eu conseguiremos entrar. Pouco importa quem tente nos deter. Não se esqueça disso!

Richard lançou-lhe um olhar meio temeroso, meio agradecido. Agora Jack podia ver o contorno ir­regular de futuras erupções amontoando-se sob a pele do rosto de Richard. Ele teve outra vez consciência de uma poderosa força atuando sobre ele, forçando-o a seguir em frente (do mesmo modo como ele for­çava Richard).

— Você está se referindo ao meu pai, é claro — disse Richard. Ele piscou e Jack achou que o amigo estava tentando não chorar. Aquele esforço para conter as lágrimas ampliava todas as emoções de Richard.

— Estou me referindo a tudo — disse Jack, não de todo sincero. — Vamos continuar, rapaz!

— Mas o que eu devo entender? Eu não...

Richard olhou em volta. Os olhos sem óculos pestanejavam muito. A maior parte do mundo, Jack se lembrou, pareceria um tanto borrada aos olhos de Richard.

— Você já está entendendo muita coisa, Richie — Jack falou.

E então, por um instante, um sorriso desconcertantemente amargo repuxou os lábios de Richard. Ele fora levado a compreender muito mais do que desejava saber, e Jack quase chegou a se arrepender de não ter fugido sozinho do Colégio Thayer no meio da noite. Mas o momento em que podia ter preservado a inocência de Richard já fazia parte do passado. (Se é que esse momento realmente existira; afinal, Ri­chard fazia parte, era parte indispensável daquela missão.) Jack sentiu mãos fortes apertarem seu peito: as mãos de Jasão, as mãos do talismã.

— Estamos no caminho certo — disse ele, e Richard ajustou-se ao ritmo de seus passos.

— Lá em Point Venuti vamos encontrar meu pai, não é? — ele perguntou.

— Vou cuidar de você, Richard. Agora você é o rebanho.

— O quê?

— Ninguém vai machucá-lo, a não ser que você se coce e se esfole até a morte.

Richard resmungava, sempre se arrastando ao lado de Jack. Suas mãos resvalavam para as têmpo­ras inflamadas, coçando e coçando. De vez em quando, fincava os dedos no cabelo, coçava-se como um cachorro e rosnava numa satisfação apenas parcialmente alcançada.

 

Pouco depois da camisa de Richard ter sido levantada, revelando as bolhas verme­lhas nas costas, eles viram a primeira das árvores dos Territórios. Ela ficava na margem da estrada voltada para a terra, um emaranhado de galhos escuros e nós irregulares, uma casca grosseira emergindo de uma teia viscosa e avermelhada de trepadeiras. Os buracos do caule se arregalavam para os rapazes em forma de bocas ou olhos. Entre a densa rede de trepadeiras, algumas raízes pareciam sussurrar e se mover, agi­tando as folhas de aspecto pegajoso (como se uma brisa as soprasse).

— Vamos atravessar a estrada — disse Jack, esperando que Richard não tivesse visto a árvore. Po­dia ouvir as densas raízes resvalando como lâminas de borracha entre as hastes das trepadeiras.

Não é um rapaz? Não haverá um rapaz por aqui? Quem sabe um rapaz especial?

As mãos de Richard passavam dos ombros à testa, da testa ao couro cabeludo. A segunda onda de calombos assemelhava-se às maquiagens dos filmes de terror. Ele parecia um monstro juvenil saído de um dos filmes de Lily Cavanaugh. Jack viu que nas costas das mãos de Richard os calombos vermelhos da erupção começavam a se reunir em grandes chagas vermelhas.

— Ainda agüenta caminhar, Richard? — ele perguntou.

Richard balançou a cabeça.

— É claro. Ao menos por mais algum tempo. — Estreitou os olhos para examinar a estrada. — Aquilo não é uma árvore comum, é? Nunca vi uma árvore assim, nem mesmo em livros. É uma árvore dos Territórios, não é?

— Infelizmente, é o que parece — disse Jack.

— Isto quer dizer que os Territórios estão realmente perto, não é?

— Acho que sim.

— Então ainda vamos encontrar mais árvores desse tipo, correto?

— Se você sabe as respostas, por que pergunta? — Jack falou. — Oh, Jasão, que bobagem estou dizendo! Desculpe, Richie. Acho que não estava querendo que você reparasse na árvore. Sim, acho que, mais adiante, encontraremos mais árvores desse tipo. Só não poderemos chegar perto de nenhuma delas.

De qualquer modo, Jack pensou, “mais adiante” não era um modo preciso de descrever o ponto exato de destino dos dois: a estrada se prolongava decididamente à frente, e cada 50 metros da caminha­da pareciam torná-la mais longa. Tudo parecia invadido pelos Territórios.

— Quer dar uma olhada em minhas costas? — Richard perguntou.

— É claro.

Jack levantou outra vez a camisa do amigo. De início não disse nada, embora tenha sentido ímpetos de gemer. Agora as costas de Richard estavam cobertas de bolhas vermelhas, tão grandes que pareciam irradiar calor.

— Está um pouquinho pior — disse por fim.

— Só podia estar. Um pouquinho, hã?

— É. Um pouquinho.

Não ia demorar muito para Richard ficar parecido com uma maleta de pele de jacaré. Rapaz-crocodilo, filho do Homem-elefante.

 

Um pouco à frente, duas árvores se entrelaçavam. Os troncos enrugados Contorciam-se um à volta do outro de um modo que sugeria mais violência que amor. Ao passar por elas, Jack julgou ter visto os buracos negros das cascas fazendo caretas, jogando pragas ou beijos. E ouviu também as raízes grasnindo em conjunto: um rapaz! Há um rapaz por aqui! Nosso rapaz está aqui!

Embora fosse apenas umas três horas da tarde, a atmosfera estava escura, estranhamente arroxeada, estranhamente granulada (como uma foto de jornal antigo). No lugar da grama que há pouco cobria a margem da estrada, surgia agora uma irreconhecível forração de mato. Sem flores e quase sem folhas, aquelas hastes lembravam cobras aninhadas e exalavam um ligeiro odor de óleo diesel. Vez por outra, o sol cintilava na escuridão da tarde como um fogo levemente alaranjado. Jack lembrou-se de uma foto da cidade de Gary, em Indiana. Era uma vista noturna: clarões infernais elevavam-se até um céu escuro, envenenado de poluição.

O talismã o atraía, fazia com que ele seguisse adiante, puxava-o pelas roupas com mãos de gigan­te. O elo de todos os mundos possíveis. Ele ia levar Richard para dentro daquele inferno, lutando com toda a energia para defender a vida dele, mas o levaria até lá... nem que tivesse de arrastá-lo pelos pés. E Richard deve ter visto essa determinação no olhar de Jack, pois, sem parar de se coçar pelo corpo inteiro, continuava seguindo docilmente o amigo.

Vou conseguir, disse Jack para si mesmo, e tentou ignorar até que ponto estava apenas tentando fortalecer sua coragem. Nem que eu tenha de atravessar uma dúzia de mundos diferentes!

 

Trezentos metrs à frente, um punhado das feias árvores dos Territórios embos­cavam-se na margem da estrada como jacarés na beira de um rio. Ao passar do outro lado da pista, Jack deu uma olhadela no novelo das raízes e, semi-enterrado na terra onde as raízes se enroscavam, viu um pequeno esqueleto esbranquiçado, talvez de um menino de oito ou nove anos, ainda usando uma surra­da camisa xadrez, verde e preta. Jack engoliu em seco e apertou o passo, arrastando Richard atrás de si como um cãozinho numa coleira.

 Alguns minutos depois, Jack Sawyer avistou Point Venuti pela primeira vez.      

 

POINT VENUTI

Point Venuti estendia-se lá embaixo, colada às encostas de uma rocha que ia dar no oceano. Mais além, uma cadeia de penhascos erguia-se de forma compacta, mas irregular, na atmosfera escura. Os penhascos lembravam velhos elefantes, cobertos de rugas. A estrada margeava altos muros de madeira até uma esquina onde havia um comprido e cinzento prédio de metal, certamente fábrica ou armazém. Depois, desfiavam-se casas em ladeira e telhados melancólicos de outros armazéns. Da perspecti­va de Jack, a estrada só voltava a aparecer subindo uma pequena colina, que devia se estender para o sul, na direção de São Francisco. Ele só conseguia ver o declive, quase em degraus, dos telhados dos arma­zéns, algumas áreas de estacionamento, e, um pouco à direita, o frio brilho cinzento do mar. Não via gen­te em qualquer parte da estrada; ninguém apareceu na fileira de pequenas janelas nos fundos da fábrica. Muita poeira rodopiava pelas áreas vazias de estacionamento. Point Venuti parecia deserta, mas Jack sabia que não estava deserta. Sem dúvida, Morgan Sloat e seu bando (pelo menos a parte do bando que tinha sobrevivido ao ataque-surpresa no acampamento) estariam à espera da chegada de Jack Viajante e do Ra­cional Richard. A vibração do talismã se irradiava para Jack, impelindo-o a seguir em frente.

— Tudo bem! Aqui vamos nós. Tudo bem! — ele exclamou e continuou avançando.

Duas novas facetas de Point Venuti entraram imediatamente em seu ângulo de visão. A primeira foi o aparecimento de cerca de 20 centímetros da traseira de uma limusine Cadillac — Jack viu a lustrosa pin­tura negra, o pára-choque brilhante, uma parte da lanterna direita. Teria sido ótimo que o renegado Lobo ao volante tivesse morrido no Campo Prontidão. Então, olhou de novo para o oceano. A água cinzenta ru­gia para a costa.

Um lento movimento sobre os telhados de uma fábrica e de um armazém lhe atraiu a atenção. venha CÁ, o talismã chamava de um modo urgente e magnético. De certa forma, Point Venuti pareceu se contrair como um punho. Sobre os telhados, e só agora visível, um monótono cata-vento escuro, com a forma da cabeça de um lobo, rodopiava de um lado para outro, sem obedecer a qualquer vento.

Quando Jack viu o oscilante cata-vento indo da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, e depois executando um círculo completo, percebeu que estava se defrontando pela primeira vez com o hotel negro — pelo menos com uma parte do hotel. Dos telhados dos armazéns, da estrada à frente, de todo o trecho ainda oculto da cidade, erguia-se uma inequívoca atmosfera de hostilidade, palpável como um tapa no rosto. Os Territórios envolviam Point Venuti, Jack percebeu; ali, a realidade se transformava em areia fina. A cabeça de lobo rodopiava sem sentido no ar e o talismã continuava atraindo Jack. venha cá venha cá venha agora venha agora agora... Jack percebeu que, juntamente com sua incrível e cres­cente atração, o talismã cantava para ele. Sem palavras, sem música, mas cantava. A suave ondulação de uma melodia que só por ele estaria sendo ouvida.

Por certo o talismã sabia que Jack Sawyer acabara de ver o cata-vento do hotel.

Talvez Point Venuti fosse o mais perigoso e depravado lugar de toda a América do Norte e do Sul, Jack pensou, experimentando um súbito calafrio. Mas isso não o impediria de ir até o Hotel Agincourt. Virou-se para Richard, que agora ofegava como se estivesse há um mês fazendo exercícios físicos, e tentou não desanimar diante do deplorável estado do amigo. Richard também não podia parar; se fosse preciso, ele o empurraria pelos muros do amaldiçoado hotel. Viu o atormentado Richard arrastar as unhas pelo couro cabeludo e pela estranha teia de urticária na testa e nas faces.

— Vamos conseguir, Richard — disse ele. — Sei que vamos. Pouco importa que eles tentem nos assustar. Vamos conseguir!

— Nossos problemas vão ter problemas conosco — disse Richard, citando (sem dúvida inconscientemente) o Dr. Seuss. Ele fez uma pausa. — Não sei se vou conseguir. Essa é a verdade. Já estou morrendo em pé. — Lançou a Jack um olhar de extrema angústia. — O que está acontecendo comigo, Jack?

— Eu não sei, mas sei como curá-lo. — Esperava que isso fosse verdade.

— Será que meu pai está me fazendo isto? — Richard perguntou ansioso.

Passou as mãos sobre o rosto inchado. Depois tirou a camisa de dentro da calça e examinou as erupções vermelhas na barriga. Os calombos, com o formato aproximado do Estado de Oklahoma, começavam na cintura, estendiam-se por ambos os lados das costas, e chegavam quase até o pescoço.

— Parece um vírus, ou algo assim. Será que é meu pai quem está me fazendo isso?

— Não acho que esteja fazendo de propósito... — disse Jack. — Não sei se isto serve de consolo, mas...

— Não serve — Richard retrucou.

— Tudo vai passar. O Expresso de Seabrook Island está chegando ao fim da linha.

Richard empinou a cabeça, Jack deu mais um passo à frente... e viu as lanternas do Cadillac piscarem; depois o carro se pôs em movimento e desapareceu.

Dessa vez não haveria ataque-surpresa, nenhum estupendo arrombar de portão com um trem car­regado de armas e munições. Mas, mesmo que todo mundo em Point Venuti soubesse que eles estavam chegando, Jack ia continuar avançando. De repente, se sentiu vestindo uma armadura e segurando uma espada mágica. Ninguém em Point Venuti teria o poder de prejudicá-lo, pelo menos até que chegasse ao Hotel Agincourt. Jack seguia adiante, tendo a seu lado o Racional Richard Sloat. Tudo ia correr bem.

E, antes que tivesse dado mais três passos, os músculos em sintonia com o talismã, Jack teve uma melhor e mais precisa imagem de si mesmo: era um caubói partindo para um duelo. A imagem saíra diretamente de um dos filmes de sua mãe, entregue por telegrama celestial. Era como se estivesse montado num cavalo, chapéu de aba larga na cabeça e pistola amarrada na cintura. Corria através de campos e perigosos desfiladeiros.

O último trem para Hangtown era o nome do filme: Lily Cavanaugh, Clint Walker e Will Hutchins. Produção de 1960.

 

Ao lado do primeiro dos prédios abandonados, quatro ou cinco árvores dos Terri­tórios brotavam do chão duro, marrom. Talvez já estivessem há muito tempo ali, lançando seus galhos si­nuosos quase até a faixa branca no meio da estrada. Talvez tivessem aparecido de repente. Jack não se lembrava de as ter visto quando contemplou pela primeira vez a misteriosa cidade. Era, no entanto, bem mais provável que, preocupado com o panorama geral, não tivesse se detido nas árvores. Pôde ouvir suas raízes sussurrando pelo chão enquanto se aproximava com Richard de um dos armazéns.

(nosso rapaz? nosso rapaz?)

— Vamos passar para o outro lado da estrada — disse a Richard, pegando-lhe a mão empolada para ajudá-lo a atravessar.

Assim que atingiram a outra margem, uma das árvores dos Territórios espichou-se ostensivamente, com raízes e galhos, na direção deles. Se árvores tivessem estômago, talvez os dois ouvissem o ronco faminto. O galho retorcido e a raiz em forma de serpente chicotearam pela faixa amarela, cobrindo quase metade da distância até eles. Jack cutucou Richard com o cotovelo; depois puxou-o com o braço.

(Meu meu meu meu rapaz! Simmm!!)

Um som de algo rasgando elevou-se na estrada e, por um momento, Jack pensou que Morgan de Orris estava tentando romper outra vez o ar e atravessar de um mundo para outro, transformando-se dessa vez em Morgan Sloat... Morgan Sloat com uma oferta final e irrecusável envolvendo uma metralha­dora, um maçarico e um par de tenazes incandescentes... Mas, em vez do furioso pai de Richard, quem sabe não estaria surgindo uma multidão de árvores dos Territórios, os galhos se agitando de um lado para outro, as raízes querendo pegar os pés dele?

— Oh, meu Deus — disse Richard. — Parece que tem uma árvore se soltando do chão para correr atrás de nós.

Isso era exatamente o que Jack estava pensando.

— Uma árvore camicase — disse ele. — Acho que as coisas vão começar a ficar um tanto selvagens aqui em Point Venuti.

— Por causa do hotel negro?

— Sem dúvida... Mas também por causa do talismã.

Ele contemplou a estrada e, a cerca de dez metros do sopé de uma colina, viu um grupo de árvores carnívoras.

— As vibrações, a atmosfera, ou seja lá o que for isto que nos rodeia, parece que está esquentando. Parece que muita coisa má está pretendendo se reunir por aqui.

Jack conservava-se atento ao grupo de árvores de que, lentamente, iam se aproximando. Viu a ár­vore mais próxima vergar a copa para eles, como se quisesse ouvir o que estavam dizendo.

Talvez toda aquela cidade fosse uma grande Oatley, Jack pensou, e talvez escondesse as mesmas armadilhas... Mas, se houvesse um túnel à frente, a última coisa que Jack Sawyer ia querer era entrar nele. Realmente não estava disposto a encontrar a versão de Elroy em Point Venuti.

— Estou com medo — disse Richard. — Jack, será que novas árvores vão se soltar do chão?

— Sabe — disse Jack —, eu já tive a oportunidade de observar que mesmo árvores móveis não conseguem chegar muito longe. Não é muito difícil correr de uma delas.

Jack contornava a última curva da estrada, descendo a lombada e ultrapassando os últimos arma­zéns. O talismã chamava sem parar. Era como uma harpa gigantesca, tocando uma melodia especialmente dedicada a ele. Quando chegou ao final da curva, viu toda a Point Venuti a seus pés.

Seu lado Jasão continuou a impeli-lo para a frente. Talvez Point Venuti já tivesse sido um agradável lugar de veraneio, mas isso fazia parte do passado. Agora, a cidade se transformara numa versão ampliada do Túnel de Oatley e, mesmo que não quisesse, Jack seria obrigado a atravessá-lo outra vez. O asfalto cheio de fendas do leito da estrada mergulhou numa área de casas carbonizadas, uma área cercada pelas árvores dos Territórios. Os trabalhadores das fábricas e armazéns (agora vazios) por certo teriam vivido naquelas pequenas casas de madeira. Em uma ou duas, sobravam elementos suficientes para revelar o que elas tinham sido. Cascos retorcidos de carros, também queimados, jaziam ao redor das casas. O mato cobrira grande parte dos veículos. E por entre as casinhas arruinadas proliferavam as copas das árvores.

Os quintais estavam cheios de tijolos e tábuas, banheiras velhas e amassadas, canos tortos. Uma cintilação branca atraiu o olhar de Jack, mas ele desviou os olhos assim que percebeu que se tratava do osso desconjuntado de um esqueleto. O esqueleto parecia preso numa teia de raízes. Antigamente, havia crianças andando de bicicleta naquelas ruas, donas-de-casa se reunindo nos muros para se queixarem dos baixos salários e do desemprego, homens lustrando carros nas calçadas... Tudo isto se fora. Estranhas er­vas pareciam penetrar entre as ripas de madeira, entre a poeira dos muros.

Pequenos clarões vermelhos pareciam se acender e se apagar no céu nevoento.

Um pouco à frente dos dois quarteirões de casas queimadas e árvores famintas, um inerte farol de trânsito despontou num cruzamento vazio. Do outro lado do cruzamento, o muro de um prédio chamus­cado ainda exibia alguns dizeres: uh ah! seu carro ao melhor preço da praça! Ao lado havia uma vitrine de vidro laminado e uma gravura desbotada da frente de um automóvel. O fogo não chegara muito longe, mas isso não agradou a Jack. Point Venuti era uma cidade em ruínas, e os vestígios de fogo eram mais agradáveis que o ar de podridão. O prédio com o anúncio semidestruído de “carro ao melhor preço da praça” era o primeiro de uma fileira de lojas: Livraria Planeta Perigoso, Chá & Simpatia, Restaurante Vege­tariano do Ferdy, Neon Village etc. Jack só pôde ler alguns nomes, pois a maioria das tabuletas estava completamente corroída e amassada. Todas as lojas, é claro, pareciam estar fechadas, abandonadas como as fábricas e os armazéns no alto da lombada. Mesmo de onde estava, Jack pôde observar que as vitrines estavam quebradas, por certo, há muito tempo. Lembravam agora óculos de lentes rachadas ou olhos inertes de idiotas. Manchas de pintura ainda salpicavam as fachadas: tons vermelhos, amarelos e mesmo pretos, singularmente brilhantes na sombria atmosfera cinzenta. Uma mulher despida, tão magra que seria fácil lhe contar as costelas, arrastava-se lenta e solenemente entre as sarjetas imundas na frente das lojas. Acima do pequeno monte de pêlos pubianos e dos seios caídos, seu rosto parecia emitir uma espécie de brilho alaranjado. Alaranjado também era o cabelo. Jack parou de andar e, com olhos clínicos, contem­plou a mulher, certamente insana. A contorção de seu corpo era tão pronunciada que chegava a lembrar uma postura de ioga. De repente ela chutou com o pé esquerdo o cadáver carbonizado de um cão e ficou imóvel como uma estátua. Como símbolo de toda a decadência de Point Venuti, parecia decidida a se manter até o fim da vida naquela postura. Lentamente, no entanto, o pé direito avançou alguns centíme­tros e o corpo esquálido voltou a se mover.

Depois da mulher, depois da fileira de lojas vazias, a Avenida Central tornava-se residencial — pelo menos Jack supôs que, um dia, já tivesse sido residencial. Também ali cintilantes marcas de tinta e riscos de grafite salpicavam os prédios, pequenas casas de dois andares outrora muito brancas. Uma ins­crição se destacava nas paredes: agora vocês estão mortas. Cobria toda a parte lateral do que já fora uma hospedaria ou pensão. Sem dúvida, as palavras tinham sido escritas há muito tempo.

Jasão, eu preciso de você, o talismã lhe gritava numa linguagem simultaneamente acima e abaixo das possibilidades da fala.

— Eu não posso — Richard sussurrou ao lado dele. — Jack, eu sei que não posso!

Após uma fileira de casas descascadas, de aspecto constrangedor, a estrada entrava novamente em declive, e Jack pôde avistar a traseira de duas limusines Cadillac, pretas, uma em cada lado da Avenida Central. Ambas estacionadas de frente para a continuação da ladeira, motores funcionando. Como num truque fotográfico, o topo (a metade?, a terça parte?) absurdamente grande, absurdamente sinistro do ho­tel negro despontava sobre as traseiras dos Cadillacs e os telhados das casas absurdamente pequenas. Pa­recia flutuar acima da curva da colina.

— Não posso entrar lá — Richard repetia.

— Nem sei se vamos conseguir passar por aquelas árvores — disse Jack. — Agüente firme, Richie!

Richard deixou escapar um estranho, fanhoso ruído que Jack levou um segundo para identificar como um grito abafado. Pôs o braço no ombro do amigo.

O hotel dominava a paisagem, isto era óbvio. O hotel negro dominava Point Venuti, a atmosfera, o solo da cidade. Olhando-o de frente, Jack viu os cata-ventos rodopiando nas mais absurdas direções, os torreões e ameias elevando-se como grandes verrugas no ar cinzento. O Agincourt parecia feito de pedra (pedra de mil anos atrás, preta como carvão). Numa das janelas superiores, uma luz subitamente faiscou. Para Jack foi como se o hotel estivesse piscando para ele, regozijando-se secretamente de, enfim, desco­bri-lo tão perto. Um vulto pareceu deslizar pela janela: um segundo depois, o reflexo de uma nuvem tam­bém resvalou pelo vidro.

De algum lugar lá dentro, o talismã continuava a emitir uma canção que só Jack era capaz de ouvir.

 

— Acho que ele ficou maior — Richard suspirou. Esquecera de se coçar desde que vira o hotel flutuando depois da última colina. Lágrimas lhe escorreram entre os calombos vermelhos da face, e Jack viu que os olhos estavam agora completamente apertados por causa da estranha urticária. Ri­chard não precisaria mais estreitá-los para enxergar melhor. — É impossível, Jack, mas o hotel parecia bem menor! Tenho certeza disso!

— Bem, agora nada é impossível — disse Jack, quase desnecessariamente (eles já tinham entrado há muito tempo no reino do absurdo). O Agincourt parecia tão grande, tão dominador, que ficava absur­damente fora de escala com o resto da cidade.

A extravagância arquitetônica do hotel negro, as ameias e os cata-ventos de metal ligados a torres esguias, as cúpulas e cumeeiras que deviam torná-lo uma alegre fantasia transformavam-no, ao contrário, numa ameaçadora visão de pesadelo. Era como se a construção pertencesse a uma espécie de anti-Disneylandia, onde o Pato Donald tivesse estrangulado os três sobrinhos, e o Mickey, com a cabeça cheia de heroína, tivesse dado um tiro em Minnie.

— Estou com medo — Richard dizia.

— Jasão se aproxima — entoava o talismã para os ouvidos de Jack.

— Fique sempre do meu lado, rapaz! Você vai ver que entraremos naquele lugar com a maior faci­lidade do mundo.

Jasão está chegando!

Bem à frente, o grupo de árvores dos Territórios farfalhava cada vez mais, à medida que os dois avançavam.

Assustado, Richard recuou um passo. Talvez, Jack admitiu, sem os óculos e com os olhos cada vez mais comprimidos pela erupção, Richard estivesse agora realmente quase cego. Ele estendeu o braço e empurrou o amigo para a frente, sentindo como a mão e o pulso de Richard tinham emagrecido.

Richard avançou cambaleando. Seu pulso esquálido queimava na mão de Jack.

— Não importa o que você esteja sentindo, não diminua o passo — disse Jack. — Só precisamos fi­car um ao lado do outro.

— Não posso — Richard soluçou.

— Quer que eu o carregue nas costas? Estou falando sério, Richard! Isto pode se tornar muito pior! E olhe que, se não tivéssemos eliminado boa parte das tropas inimigas no acampamento, encontraríamos guardas a cada 20 metros.

— Você não vai poder andar depressa me carregando nas costas. Eu ia atrapalhar.

E que diabo você acha que está fazendo agora?, foi a idéia que passou pela mente de Jack.

— Fique do meu lado e mande tudo à sua volta para o inferno. Está entendendo? Quando eu contar até três, empine a cabeça, está bem? Um... dois... três!

Ele agarrou o braço de Richard e começou a acelerar a marcha para ultrapassar as árvores. Richard tropeçava, arquejava, mas conseguiu avançar sem cair. Torvelinhos de poeira surgiam na base das árvores dos Territórios. Havia um movimento de terra sendo revolvida, um agitar de coisas rastejantes que lem­bravam enormes escaravelhos (brilhantes como sapato de couro engraxado). Um pequeno pássaro mar­rom esvoaçou do mato vizinho ao grupo de árvores conspiradoras. Uma raiz flexível, do comprimento e grossura de uma tromba de elefante, levantou-se do solo e derrubou a ave em pleno vôo.

Outra raiz serpenteou para o tornozelo esquerdo de Jack, mas não conseguiu alcançá-lo. Na casca grosseira, as bocas se abriam e gritavam.

(Nosso querido? Nosso querido rapaz?)

Jack cerrou os dentes e tentou forçar Richard Sloat a correr. As copas das estranhas árvores tinham começado a se sacudir, a vergar. Ninhos inteiros, famílias de raízes rastejavam para a linha branca da es­trada, movendo-se como se tivessem vontade própria. Richard fraquejou, retardou o passo ao ver Jack passar bem rente às árvores que se espichavam.

— Corra! — Jack gritou e puxou Richard pelo braço. Os caroços vermelhos lembravam pedras incandescentes, ardendo sob a pele. Empurrou o amigo com toda a sua força ao ver as raízes sinuosas avançarem com determinação cada vez maior na direção deles.

Jack pôs o braço na cintura de Richard no momento exato em que uma longa raiz assobiou no ar e se enroscou em seu pulso.

— Meu Deus! — Richard gritou. — Jasão! Ela vai me levar! Ela vai me levar!

Horrorizado, Jack viu a ponta da raiz, uma cega cabeça de verme, erguer-se e encará-lo. Ela se contorceu quase languidamente no ar e de novo se enroscou no pulso de Richard. Outras raízes cruzavam a estrada para pegá-los.

Jack puxou violentamente Richard e conseguiu avançar mais uns 15 centímetros. A raiz que se enroscara no pulso de Richard começou a se retesar. Jack cerrou os braços em torno da cintura de Richard e empurrou-o impiedosamente. Richard deixou escapar um fantasmagórico, espectral gemido. Por um instante, Jack teve medo de que o ombro do amigo tivesse sido separado do corpo, mas uma poderosa voz dentro dele insistiu:

— Empurre-o!                                                         

Jack obedeceu. Firmou os calcanhares e empurrou o rapaz com toda a energia que conseguiu reunir.

Os dois quase caíram num ninho serpenteante de raízes, mas a ventosa no pulso de Richard se soltou. Jack oscilou, mas recuperou o equilíbrio. Depois conseguiu tirar Richard da estrada. Afastaram-se depressa, ouvindo o som sussurrante, rastejante das árvores dos Territórios. E dessa vez Jack não precisou aconselhar o amigo a correr.

A árvore seguinte que encontraram brotou rugindo do solo e caiu em cheio a apenas um metro de Richard. Outras árvores iam rompendo a superfície da estrada atrás dos dois, agitando as raízes como cabelos arrepiados.

— Você me salvou a vida — disse Richard. Estava outra vez chorando. Mais de fraqueza, exaustão e choque que de medo propriamente dito.

— De agora em diante, rapaz, vou carregá-lo nas costas — disse Jack num tom ofegante. Depois se curvou para ajudar Richard a subir em seus ombros.

 

— Eu devia ter lhe contado — Richard murmurou. Seu rosto queimava contra o pescoço de Jack, a boca contra a orelha de Jack. — Eu não quero que sinta raiva de mim, mas não vou fi­car chateado se isso acontecer, não vou mesmo. Sei que devia ter lhe contado.

Richard não parecia pesar mais que a sua pele. Era como se nada tivesse sobrado em suas entranhas.

— Ter me contado o quê?

Jack acomodou melhor o amigo no cangote e teve outra vez a incômoda sensação de que Richard se transformara num saco de pele vazio.

— Há muito tempo eu devia ter lhe contado sobre o homem que vinha visitar meu pai... e o Cam­po Prontidão... E também devia ter lhe contado do armário...

O corpo aparentemente oco de Richard tremeu contra a nuca de Jack.

— Devia ter contado tudo a você — Richard repetiu. — Mas o problema é que eu não conseguia sequer contar a mim mesmo. Eu não conseguia admitir!

A respiração de Richard, quente como sua pele, soprava nervosamente na orelha de Jack.

Jack pensou: O talismã o está incitando a dizer essas coisas. Um instante depois, se corrigiu: Não! O hotel negro o está incitando a dizer essas coisas. As duas limusines que estavam estacionadas na lombada tinham desaparecido durante a luta que os dois tiveram de travar contra as árvores dos Territórios, mas o hotel continuava lá, tornando-se maior a cada passo de Jack. A mulher nua e esquálida, por certo outra das vítimas do hotel, cruzava, num lento e enlouquecido passo de dança, as fachadas arruinadas das lojas. Pequenos clarões vermelhos continuavam a dançar, a cintilar na lúgubre atmosfera, Não havia qualquer sensação de passagem de tempo em Point Venuti. Não era manhã, tarde ou noite -era o tempo inerte das Terras Secas. O Hotel Agincourt parecia feito de pedra, embora Jack soubesse que não era. A madeira parecia ter se calcificado, endurecido, engrossado, escurecido. Um processo que, por certo, ocorrera de dentro para fora. Os cata-ventos de metal, em forma de lobos, corvos, cobras ou em estranhas formas circulares que Jack não conseguia identificar, giravam ao sabor de ventos insolitamente contrários. Várias janelas pareciam piscar, como se quisessem adverti-lo de alguma coisa. Mas todo aquele piscar podia muito bem ser apenas reflexo dos clarões vermelhos. Ele ainda não conseguia ver o fundo da colina e o andar térreo do Agincourt. E não seria capaz de vê-los antes de ultrapassar a livraria, a casa de chá e as demais lojas que tinham escapado ao fogo. Onde estaria Morgan Sloat?

E onde estaria todo o sinistro comitê de recepção para dar cobertura às estratégias de Sloat? Jack apertou com mais força as finas perninhas de Richard, ouvindo sempre o talismã a chamá-lo, sentindo uma força, cada vez mais imperiosa, crescer dentro dele.

— Não fique com raiva de mim por eu não ter lhe contado... — dizia Richard num tom de moribundo.

Jasão, venha já venha já!

Jack agarrava as pernas de Richard e descia a área incendiada, onde tantas casas tinham, outrora, sido cheias de vida. As árvores dos Territórios, que encaravam aqueles blocos devastados como uma espécie de refeitório, agitavam-se, sussurravam entre si, mas estavam muito distantes para preocupar Jack.

A mulher no meio da rua vazia e suja girou sobre os tornozelos ao tomar consciência do avanço dos rapazes pela lombada. Fora interrompida num complexo movimento de pernas e braços. Toda e qualquer sugestão de dança foi eliminada quando ela retesou o corpo inteiro e ficou imóvel ao lado de um cachorro morto. Jack caminhava em sua direção. Por um instante, a mulher pareceu apenas uma miragem, demasiado alucinatória para ser real. Por que aquela mulher despida rondava pela cidade com um estranho brilho alaranjado no rosto? De repente, num solavanco, ela retomou seu passo de dança, atraves­sou a rua e, sem nada dizer, entrou numa das lojas. Jack sorriu, sem saber muito bem por que estava fa­zendo isso; mas fora surpreendido por um sentimento de triunfo e de alguma coisa bem próxima da bra­vura de um cavaleiro andante.

— Tem mesmo certeza de que vai conseguir? — Richard ofegou.

— Agora estou me sentindo capaz de tudo — Jack respondeu.

Seria capaz, por exemplo, de carregar Richard nas costas até Illinois se o grande e cantante objeto aprisionado no hotel assim lhe ordenasse. Jack experimentou de novo uma sensação de absoluta determi­nação e pensou: A atmosfera está escura porque todos aqueles mundos devem ter se amontoado aqui; devem ter se sobreposto como uma tripla exposição num negativo de filme.

 

Sentiu as pessoas de Point Venuti antes de as ter visto. Elas não iam atacá-lo — Jack teve absoluta certeza disso desde que viu a mulher demente escapulir para o interior de uma das lojas. Mas havia gente observando. Em sótãos, atrás de vigas, dos fundos de quartos e salas vazios. Sabia que o espreitavam, mas não podia dizer se eram expressões de medo, raiva ou frustração.

Richard tinha adormecido ou desmaiado em suas costas, e respirava soltando pequenas mas fortes rajadas de ar quente.

Jack contornou o corpo do cachorro morto e olhou para o lado, para o buraco onde devia ficar a vitrine da Livraria Planeta Perigoso. A princípio, viu apenas um amontoado de agulhas hipodérmicas usa­das cobrindo o chão, em cima e ao lado de livros espalhados. Nas paredes, as altas prateleiras estavam va­zias como bocejos. Então um movimento nos fundos da loja atraiu o olhar dele e duas pálidas figuras despontaram da escuridão. Ambas tinham barbas e longos corpos nus, em que os tendões se projetavam como cordas. Os brancos de quatro olhos enlouquecidos lampejaram. Um dos homens nus tinha apenas uma das mãos e estava sorrindo. A ereção de seu membro ondulava diante de Jack, um pau grosso e es­branquiçado. Aquela imagem não parecia real, ele disse a si mesmo. Onde estava a outra mão do homem? Jack piscou e, de repente, viu apenas um emaranhado de braços e pernas extremamente magros.

Jack Sawyer não olhou para as vitrines de nenhuma das outras lojas, mas sentiu que vários olhos acompanharam sua passagem.

Logo ultrapassava a pequena casa de dois andares. agora vocês estão mortas era a inscrição numa parede lateral. Não olharia para as vitrines. Não devia olhar.

Rostos alaranjados, com cabelos também alaranjados, se agitavam numa das vitrines do andar de baixo.

— O broto — uma mulher murmurou na casa ao lado. — O jovem broto Jasão!

Dessa vez ele olhou. Agora vocês estão mortas. A mulher estava do outro lado de uma vitrine quebrada, revirando correntes que tinham sido inseridas em seus mamilos, exibindo um sorriso enviesado. Jack fitou seus olhos vagos. A mulher deixou cair as mãos e se afastou hesitante da vitrine. As correntes lhe caíram entre os seios.

Olhos vigiavam Jack do fundo de aposentos escuros, entre vigas de madeira, por janelinhas de pe­quenos porões sob as varandas.

O hotel erguia-se à sua frente, mas não mais diretamente à frente. A estrada devia ter se curvado num ângulo delicado, pois agora o Agincourt se deslocara decididamente para a esquerda. O lado Jasão, ou o próprio Jasão, se inflamou dentro de Jack, e viu que o hotel negro, embora realmente muito grande, não era de forma alguma uma montanha de pedra.

Venha! Eu preciso de você agora!, Cantava O talismã. Você tem razão. Ele não é tão grande como quis parecer à primeira vista.

 

No topo da última colina Jack parou e olhou para baixo. Lá estavam eles, tudo bem, todos eles. E lá estava o hotel negro, todo ele. A Avenida Central descia até a praia, areia branca interrompida por grandes erupções de rocha que se estendiam como dentes pontiagudos e descoloridos. O Agincourt se elevava numa curta distância à esquerda, flanqueado, do lado do oceano, por um maciço quebra-mar de pedra. Na frente dele, enfileiradas, havia uma dúzia de compridas limusines pretas, algumas empoeiradas, outras polidas como espelhos. Os motores estavam em funcionamento. Nuvens de fumaça, colunas voando baixo, mais brancas que o ar, fluíam dos canos de descarga dos automóveis. Homens de temos pretos (lembrando agentes do FBI) faziam patrulha ao longo da cerca do hotel. As mãos sobre os olhos espreitavam o horizonte. Quando Jack viu dois clarões vermelhos de luz irrompendo do rosto de um dos homens, ocultou-se ao lado de uma das pequenas casas, e logo percebeu que os homens estavam usando binóculos.

Por um ou dois segundos, ele deve ter parecido um farol apagado na crista de uma colina. Perce­bendo que uma momentânea falta de cuidado podia facilmente levar à sua captura, Jack respirou fundo e descansou o ombro nas paredes encardidas e descascadas da casa. Depois acomodou melhor o amigo nas costas.

Agora sabia que teria de se aproximar do hotel negro pelo lado do mar, o que significava ter de cruzar a praia sem ser visto.

Ao empinar o corpo, observou pelo lado da casa e olhou colina abaixo. O pequeno exército de Morgan Sloat continuava instalado nas limusines ou, disperso como um bando de formigas, amontoava-se diante da alta cerca negra. Por um momento, Jack reviveu com total precisão sua primeira vista do palácio de verão da rainha. Naquele dia também vira um amontoado de gente se movendo, aparentemente ao acaso, de um lado para outro. Mas havia uma diferença. Naquele dia (que parecia agora pertencer a um tempo muito distante, quase pré-histórico) a multidão e todo o cenário na frente do palácio transmitiam uma inegável aura de paz e ordem. Isso desaparecera. Era como se Osmond dirigisse os acontecimentos diante da tenda real e as pessoas suficientemente corajosas para enfrentá-lo tivessem de entrar correndo no pavilhão, procurando proteger as cabeças. E onde estaria agora a rainha?, Jack se questionava. Ele não podia deixar de recordar aquele rosto chocantemente familiar estirado na brancura dos lençóis da cama.

E então o coração de Jack quase congelou: o pavilhão real e a rainha doente se transformaram num borrão em sua memória. Sunlight Gardener entrara em sua linha de visão segurando um megafone. O vento do mar jogava fios e fios de cabelo branco nas lentes dos óculos dele. Por um instante Jack teve certeza de estar sentindo cheiro de água-de-colônia e podridão vegetal. Parou de respirar talvez por cinco segundos, e limitou-se a ficar ao lado do muro descascado e rachado, olhando para baixo. Gardener co­meçou a gritar ordens para os homens de terno preto, executou uma pirueta, apontou para alguma coisa fora do alcance da visão de Jack e fez uma nítida careta de desaprovação.

Jack voltou a respirar.

— Bem, Richard, temos uma interessante situação aqui — disse ele. — Temos um hotel que acho que pode dobrar de tamanho sempre que quiser e temos também, ali embaixo, o sujeito mais louco do mundo.

Richard, que Jack achou que estava dormindo, surpreendeu-o com um murmúrio indecifrável.

— O que você disse?

— Vamos em frente — Richard sussurrou debilmente. — Vamos em frente, cara...

Jack acabou rindo. Um segundo depois, descia cautelosamente a colina que se estendia pelos fun­dos das casas, atravessando um alto matagal que se estendia até a praia.

 

SPEEDY NA PRAIA

No sopé da colina, Jack começou a rastejar pela relva, carregando Richard como outrora carregava sua mochila. Quando chegou à beira do alto mato amarelo que margeava a estrada, passou a avançar palmo a palmo, a barriga quase roçando no chão. Apurou os olhos e os ouvidos. Diretamente à sua frente, do outro lado da estrada, começava a praia. Grandes rochas corroídas pela ação do tempo brotavam da areia cinzenta; uma água também cinzenta espumava pela beira-mar. Jack olhou para a esquerda, em direção à estrada. A curta distância do hotel, no lado da estrada voltado para a terra, erguia-se uma comprida e arruinada estrutura que lembrava uma fatia de bolo de casamento. Sobre ela, uma tabuleta de madeira com um grande buraco no meio dizia: kingsla Tel. Era o Motel Kingsland, Jack se lembrou, onde Morgan Sloat costumava pernoitar com o filho durante suas obsessivas inspeções do hotel negro. A cintilação branca da roupa de Sunlight Gardener perambulava estrada acima. Ele repreendia ostensivamente vários homens de terno preto e apontava para a colina. Gardener não sabe que eu já estou aqui embaixo, Jack percebeu ao ver um dos homens caminhar pela estrada e examinar as encostas da colina. Gardener fez outro gesto abrupto, autoritário, e a limusine estacionada no fim da Avenida Central saiu de perto do hotel e começou a acompanhar um dos homens de terno preto. O homem desabotoou o paletó assim que atingiu determinado ponto da calçada e tirou uma pistola de um coldre pendurado no ombro.

Os motoristas das limusines viravam as cabeças e inspecionavam a crista da colina. Jack abençoou sua sorte — se tivesse se atrasado na descida, um Lobo renegado, com um enorme revólver na cinta, por certo não deixaria de encontrar o garoto que ouvia o chamado da coisa do hotel.

Jack só conseguia ver os dois últimos andares do hotel, e os malucos objetos giratórios que faziam parte das extravagâncias arquitetônicas do telhado. Por causa do seu ângulo de visão (uma perspectiva de minhoca), o quebra-mar que cortava a praia do lado direito do hotel negro parecia atingir seis ou sete me­tros de altura, marchando ao longo da areia e depois mergulhando na água.

venha já venha já, chamava o talismã em palavras que não eram palavras, mas expressões quase fí­sicas de urgência.

O homem com o revólver estava agora fora de vista, mas os motoristas ainda vasculhavam alucina­damente a colina. Sunlight Gardener ergueu o megafone e rugiu:

— Tirem esse garoto daí! Peguem-no pelas orelhas!

Voltou o megafone para outro homem de terno preto e depois empinou o binóculo na direção do leito da estrada.

— Você, cabeça de porco! Atravesse a rua... e me traga aquele menino mau, oh, sim, o pior dos piores de todos os meninos maus! O pior!...

Sua voz se extinguiu quando o homem, apontando a pistola, chegou à calçada oposta.

Era sua melhor chance, Jack percebeu. Ninguém estava olhando de frente para a beira da praia.

— Agüente firme — ele sussurrou para Richard, que não se moveu. — É hora de dar no pé, rapaz!

Jack não suspendeu muito o corpo, receando que as costas de Richard pudessem ser vistas acima da relva e do mato amarelo. Curvando-se, ele pulou do mato e pôs o pé na estrada.

Daí a pouco, Jack Sawyer achatava o estômago contra a areia áspera. Tentava avançar apenas com a ajuda dos pés. Uma das mãos de Richard apertava-lhe o ombro com muita força. Jack foi rastejando pela areia até ter ultrapassado o primeiro rochedo; depois ficou imóvel e apoiou a cabeça com as mãos. Em suas costas, Richard parecia leve como uma folha e respirava baixo. A água, a uns sete metros dali, batia na areia. Jack podia ouvir Sunlight Gardener praguejando contra imbecis e incompetentes, a voz enlou­quecida descendo pela colina até a Avenida Central. O talismã estimulava-o a avançar, a avançar sempre...

Richard caiu de suas costas.

— Você está bem?

Richard ergueu a mão fina. Tocou a testa com os dedos, a face com o polegar.

— Acho que sim. Está vendo meu pai? Jack balançou a cabeça.

— Ainda não.

— Mas ele está aqui...

— Acho que sim. Tem de estar.

O Kingsland permanecia ali ao lado, a fachada em ruínas, a tabuleta de madeira com um grande buraco no meio. Morgan Sloat poderia estar escondido no motel (onde há seis ou sete anos costumava pernoitar). Jack pressentia, bem perto dele, a presença colérica de Morgan. Mas, de certa forma, esse pres­sentimento intensificava suas forças.

— Bem, não se preocupe com ele. — A voz de Richard estalava como papel. — Isto é, não se preocupe comigo só porque eu estou me preocupando com ele. Acho que ele morreu, Jack.

Jack olhou para o amigo com uma nítida ansiedade: será que Richard estaria realmente perdendo a razão? Sem dúvida parecia febril. No alto da colina, Sunlight Gardener berrava pelo megafone:

— Espalhem-se!

— Você acha... — disse Jack.

E então Jack Sawyer ouviu outra voz, sussurrada sob o irado comando de Gardener. Era uma voz um tanto familiar. Antes de conseguir realmente identificá-la, Jack reconheceu-lhe o timbre, a cadência. E estranhamente percebeu que o som específico daquela voz o deixava mais relaxado (era como se agora pudesse deixar de se atormentar, de se irritar, de tentar adivinhar tudo o que ainda teria pela frente — an­tes mesmo que soubesse dizer com certeza o nome do dono da voz).

— Jack Sawyer — a voz repetiu. — Estou aqui, filho!

Era a voz de Speedy Parker.

— Acho mesmo — disse Richard, e fechou outra vez os olhos inchados, parecendo um cadáver le­vado pelas marés.

Acho mesmo que meu pai morreu, Richard quisera dizer, mas a mente de Jack estava longe dos devaneios do amigo.

— Aqui, Jacky — Speedy chamou outra vez, e o rapaz viu que o som brotava do conjunto de rochas mais alto, três penedos se erguendo na vertical a um ou dois metros da beira-mar. Uma linha escu­ra, a marca da maré alta, atravessava as rochas a um quarto da sua altura.

— Speedy... — Jack sussurrou.

— Sim, rapaz, sou eu — veio a resposta. — Venha aqui. Mas cuidado para não ser visto por esses zumbis, está bem? E traga também seu amigo.

Agora Richard jazia na areia, a mão cobrindo o rosto.

— Vamos lá, Richie! — Jack murmurou na orelha dele. — Temos de andar um pouquinho. Speedy está aqui!

— Speedy? — Richard perguntou num sussurro tão baixo que Jack mal conseguiu ouvir.

— Um amigo. Está vendo aquelas rochas? — Ele levantou a cabeça de Richard pela nuca. — Está atrás delas. E vai nos ajudar, Richard! Agora sim, vamos ter uma verdadeira ajuda!

— Não estou vendo nada — Richard se queixou. — E me sinto muito cansado...

— Suba de novo nas minhas costas, vamos!

Ele se virou e se abaixou na areia. Os braços de Richard alcançaram-lhe os ombros; as pernas esca­laram com dificuldade.

Jack observou as pontas das rochas. Na estrada da praia, Sunlight Gardener passava a mão no ca­belo e caminhava a passos largos para a porta da frente do Motel Kingsland. O hotel negro erguia-se apa­vorante no horizonte. O talismã abria sua garganta e chamava por Jack Sawyer. Gardener hesitou fora da porta do motel, sempre passando as mãos no cabelo. Depois balançou a cabeça, rodopiou e começou a caminhar velozmente pela longa fila de limusines. O megafone se ergueu:

— Relatórios a cada 15 minutos! — berrou ele. — Quero sinais! informações de qualquer coisa que se mova! Estou falando sério! Muito sério!

Gardener continuava andando; todos se viravam para ele. Estava na hora. Jack pulou de seu abrigo de rocha e, curvando-se o mais que pôde com Richard no cangote, correu pela praia. Seus pés chutavam conchas na areia dura. Os três altos penedos, aparentemente tão perto quando ele respondera a Speedy, pareciam, agora, estar a quase um quilômetro de distância. A distância não diminuía. Era como se as ro­chas recuassem à medida que ele corria. Jack esperou ouvir o estampido de um tiro. Será que sentiria a bala primeiro ou ia escutar a detonação antes da bala atingi-lo? Por fim, as três rochas foram ficando cada vez maiores a seus olhos, e lá estava ele, caindo de frente sobre um dos penhascos e resvalando para trás do paredão de pedra.

— Speedy! — disse ele, quase rindo apesar de todos os perigos que enfrentava. Mas a visão de Speedy, sentado ao lado de um pequeno cobertor colorido, inclinado contra o pilar de rocha, sufocou o riso em sua garganta (e sufocou, também, pelo menos metade de suas esperanças).

 

Pois Speedy Parker parecia pior que Richard. Muito pior. Seu rosto esburacado, cheio de fendas, inclinou-se debilmente para Jack, e o rapaz pensou que Speedy estivesse confirmando sua desesperança. Speedy usava apenas um velho short marrom. Toda a sua pele parecia terrivelmente cheia de erupções (era como se estivesse leproso).

— Sente-se aqui, Jack Viajante — Speedy murmurou num tom áspero, rachado. — Tenho muita coisa a lhe dizer, por isso abra bem os ouvidos.

— Você está se sentindo bem? — Jack perguntou. — Quero dizer... Jesus, Speedy!... Há alguma coisa que eu possa fazer por você?

Jack pousou suavemente Richard na areia.

— Abra bem os ouvidos, rapaz! Não se preocupe comigo. Como você vê, Speedy não está em sua melhor forma, mas vai ficar bom se você fizer as coisas direitinho. O pai de seu amigo pôs estas feridas em mim... E, como você está vendo, até no próprio filho. O velho Sloat não quer o filho naquele hotel, nada disso! Mas você, Jack, você tem de levá-lo até lá. Não existe outra alternativa. Você tem de fazer isso.

Speedy parecia definhar enquanto falava. Desde a morte de Lobo, Jack nunca tivera tanta vontade de chorar. Seus olhos ardiam.

— Eu sei, Speedy — disse ele. — Era o que eu imaginava.

— Você é um bom garoto — disse o velho. Ele inclinou a cabeça para trás e fitou Jack atentamente. — A missão é sua, sem dúvida. A jornada deixou marcas em você, eu sei disso. Mas a missão é sua. E você vai cumpri-la.

— Como está minha mãe, Speedy? — Jack perguntou. — Por favor, me diga. Ela ainda está viva, não está?

— Assim que for possível, você mesmo poderá falar com ela e ver se ela está bem — Speedy res­pondeu. — Mas, primeiro, cumpra sua missão, Jack. Porque se não cumprir, ela morrerá. E Laura, a rai­nha, também morrerá.

Speedy repuxou o corpo, se contorceu para esticar as costas.

— Deixe eu lhe dizer uma coisa — ele continuou. — Quase todo mundo na corte já perdeu as es­peranças na recuperação de Laura. Alguns já a dão como morta. — O rosto de Speedy expressou uma grande amargura. — Todos têm medo de Morgan. Porque sabem que Morgan os esfolará vivos se não jurarem fidelidade a ele. E jurarem agora. Enquanto Laura ainda tem algum sopro de vida dentro dela... Nos confins dos Territórios, serpentes como Osmond e seu bando estão dizendo às pessoas que ela já morreu. E, se ela de fato morrer, Jack Viajante, se ela de fato morrer...

Speedy aproximou as chagas de seu rosto dos olhos do garoto.

— Então, teremos horrores em ambos os mundos. O mais devastador horror. E não adiantará mais você tentar falar com sua mãe. Cumpra sua missão, Jack. É preciso! Não há outra saída!

Jack não precisou perguntar o que ele queria dizer.

— Estou feliz por ver que você entendeu, meu filho.

Speedy fechou os olhos e encostou a cabeça na rocha. Daí a um segundo, porém, seus olhos volta­ram a se abrir, lentamente.

— Destinos. É por isso que estão acontecendo essas coisas. Mais destinos, mais vidas do que você é capaz de imaginar. Já ouviu o nome Rushton? Acho que em algum ponto de sua jornada deve ter ouvido falar dele.

Jack assentiu com a cabeça.

— Todos esses destinos, todas essas fatalidades explicam por que sua mãe o levou para o Hotel Alhambra, Jack Viajante. Eu estava à sua espera. Sabia que você ia chegar. O talismã o trouxe até aqui, ra­paz! Jasão! Você também já ouviu este nome, é claro!

— Jasão sou eu — disse Jack.

— Então, pegue o talismã! Eu lhe trouxe uma coisinha. Ela vai ajudá-lo.

Speedy puxou o cobertor que, Jack logo percebeu, era de borracha — na realidade, não era um cobertor. Jack puxou a trouxa de borracha da mão chamuscada do velho.

— Como vou conseguir entrar no hotel, Speedy? — ele perguntou. — Não posso pular a cerca e, por causa do Richard, também não posso chegar nadando até lá.

— Sopre essa coisa.

Os olhos de Speedy tinham se fechado outra vez. Jack desdobrou o objeto. Era uma balsa inflável com cabeça de cavalo.

— Não a está reconhecendo? — A voz de Speedy, por mais rouca que fosse, transmitia uma nostál­gica leveza. — Um dia nós a suspendemos. E conversamos sobre os cavalos do carrossel.

Então Jack lembrou. Lembrou de um dia cheio de listras brancas e pretas no interior de um galpão redondo. Lembrou do carrossel e do cavalo que ajudara Speedy a fixar. Suspenda a velha Dama Prateada por baixo da cauda. Sei que ê um pouco de abuso, mas tenho de colocá-la no lugar certo. Acho que ela não vai se importar se você me ajudar. Agora isso também assumia um significado maior. Outro pedaço do quebra-cabeça se encaixava.

— É a Dama Prateada — disse ele.

Speedy piscou e de novo Jack teve a estranha sensação de que tudo em sua vida conspirara para levá-lo exatamente àquele ponto.

— Seu amigo está bem?                                            

Speedy falara com um ar... quase... distraído.

— Acho que sim.

Jack olhou nervoso para Richard, que virara de lado e respirava superficialmente, os olhos fecha-los.

— Então, já que acha que sim, sopre logo a velha Dama Prateada. Você tem de fazer este rapaz entrar com você no hotel negro. Ele também faz parte da coisa.

A pele de Speedy parecia estar ficando cada vez pior. Aos poucos, ia assumindo um desagradável tom de velhas cinzas de carvão. Antes de começar a soprar, Jack perguntou:

— Posso fazer alguma coisa por você, Speedy?

— Oh, claro! Por que não vai à drogaria mais próxima e me compra um tubinho de pomada? — j Speedy sacudiu ironicamente a cabeça. — Ora, rapaz! Você sabe muito bem como ajudar Speedy Parker! Pegue o talismã! Essa é toda a ajuda que eu preciso.

Jack começou a soprar a balsa inflável.

 

Pouco tempo depois, com uma rolha absurdamente comprida, ele tampava a balsa inflável com cabeça de cavalo. Tinha pouco mais de um metro e 20 de comprimento.

— Não sei se vou conseguir colocar Richard nesta coisa — disse ele, não se lamentando, mas ape­nas pensando em voz alta.

— Seu amigo será capaz de acompanhá-lo, Jack Viajante. Ele só precisa de um pouco de estímulo, pode ter certeza.

Enrascado num abrigo natural das rochas, Richard respirava suave e regularmente pela boca aber­ta. Jack não sabia se estava adormecido ou acordado.

— Tudo bem — disse Jack. — Existe um cais ou alguma coisa parecida atrás daquele hotel?

— Melhor que um cais, Jacky. Assim que ultrapassar o quebra-mar, você vai ver grandes estacas. Os alicerces do hotel avançam até a água. Há uma escada numa dessas estacas. Suba a escada com Ri­chard e vocês se verão num enorme convés. Há grandes janelas ali... Ou melhor, portas de vidro. Abra uma dessas portas e sairá na sala de jantar. — Speedy conseguiu abrir um sorriso. — Assim que chegar à sala de jantar, acho que será capaz de sentir o cheiro do talismã. E não tenha medo dele, filho. Ele está à sua espera. Virá para as suas mãos como um bom cachorrinho.

— Mas o que vai impedir que todos aqueles sujeitos corram atrás de mim?

— Ora, eles não podem entrar no hotel negro.

O espanto com a ingenuidade de Jack ficou impresso em cada ruga do rosto de Speedy.

— Eu sei disso. Mas quero dizer... na água. Por que eles não podem vir atrás de mim num bote ou alguma coisa do gênero?

Speedy deu um sorriso doloroso, mas sincero.

— Você logo vai saber por que, Jack Viajante. O velho Sloat e sua turma não gostam nada da água, hi, hi! Não se preocupe com isso. Apenas lembre-se do que eu lhe disse e comece a viagem, está bem?

— Já estou indo! — Jack respondeu e começou a contornar as rochas para dar uma espiada na es­trada da praia e no hotel. Tinha conseguido atravessar a areia até o esconderijo de Speedy sem ser visto, certamente também ia conseguir arrastar Richard por um ou dois metros até a beira-mar e colocá-lo na balsa. E, com alguma sorte, também poderia chegar até as estacas sem ser notado. Gardener e os homens com binóculos estavam concentrados na cidade e nas encostas da colina.

Ao lado de uma das altas colunas de rocha, Jack conseguiu ver o que se passava. As limusines ain­da continuavam diante do hotel. Jack esticou a cabeça alguns centímetros para contemplar o leito da es­trada. Um homem de terno preto cruzava a porta do arruinado Motel Kingsland — ele estava tentando, Jack percebeu, não olhar para o hotel negro.

Um apito começou a soar, alto e estridente como um grito de mulher.

— Ande logo! — Speedy murmurou energicamente.

Jack empinou a cabeça e, no alto da grama que crescia atrás das casas em ruínas, viu um homem de terno preto soprando o apito e apontando diretamente em sua direção. O cabelo do homem caía até os ombros — com aquele cabelo, com o terno preto e os óculos escuros, lembrava o Anjo da Morte.

— encontrem o guri! encontrem o guri! — Gardener berrava. — atirem nele! mil dólares para o irmão que me trouxer suas bolas!

Jack recuou para a segurança das rochas. Meio segundo depois, uma bala ricocheteou no meio de um penedo (pouco antes do som da detonação chegar a seus ouvidos). Agora eu sei, Jack pensou enquanto agarrava o braço de Richard e o puxava para a balsa. Primeiro você é derrubado, depois é que ouve o disparo.

— Você tem que ir já! — disse Speedy num jorro sem fôlego. — Em 30 segundos começará o tiroteio. Procure se proteger atrás do quebra-mar o mais que puder, e depois avance para as pilastras do hotel. Pegue o talismã, Jack!

Jack atirou um olhar nervoso a Speedy quando, a poucos centímetros de seu frágil abrigo, uma se­gunda bala atingiu a areia. Logo depois empurrou Richard para a parte da frente da balsa e viu, com algu­ma satisfação, que Richard tivera suficiente presença de espírito para se agarrar com firmeza na crina de borracha da cabeça do cavalo. Speedy levantou a mão direita num gesto simultâneo de bênção e adeus. De joelhos, Jack deu um empurrão na balsa que a colocou quase na água. Ouviu mais um sopro estriden­te de apito. Depois se levantou bruscamente e começou a correr. Ainda estava correndo quando a balsa atingiu a água, e ficou molhado até a cintura quando subiu nela.

Jack levou lentamente a balsa pelo quebra-mar. Quando atingiu a sua extremidade virou para o mar aberto e começou a remar vigorosamente.

 

Enquanto remava, Jack conseguiu tirar da cabeça a idéia de que os homens de Morgan iam matar Speedy. Tinha de chegar às pilastras do hotel, e era só nisso que devia se concentrar. Uma bala atingiu a água, causando uma pequena erupção de gotas, cerca de dois metros à sua esquerda. Ouviu outra bala retinir e ricochetear na água além do quebra-mar. Jack remou para a frente com toda a sua energia.

Algum tempo (ele não sabe quanto) escoou vagarosamente. Jack impelia os remos com todos os nervos dos braços. Uma corrente quase imperceptível levou-o para mais perto de sua meta. Por fim, as pi­lastras começaram a surgir: altas, ásperas colunas de madeira, da grossura de postes telefônicos. Jack em­pinou a cabeça e viu o imenso hotel se elevando sobre o amplo convés escuro, quase caindo sobre ele. Olhou para trás e para a direita, mas Speedy não se movera. Ou estava enganado? Os braços de Speedy pareciam diferentes. Talvez...

Houve uma agitação, um movimento no longo declive de relva atrás da fileira de casas em ruínas. Jack levantou os olhos e viu quatro homens de terno preto correndo pela praia. Uma onda bateu contra a balsa, quase lhe tirando um remo da mão. Richard gemeu. Dois homens apontaram para ele. Suas bocas se moveram.

Outra onda bem alta atingiu a balsa, ameaçando empurrá-la de volta à praia.

Onda, Jack pensou, que onda?

Olhou nervosamente ao redor quando a balsa tornou a sacolejar. O enorme dorso cinzento de al­guma coisa, sem dúvida demasiado grande para ser um mero peixe, se agitava na superfície do mar. Um tubarão? Jack teve a desagradável consciência de que, na posição em que se instalara na pequena balsa, suas duas pernas flutuavam na água. Estreitou os olhos, temendo ver um comprido estômago em forma de charuto sacudir os dentes em sua direção.

Não foi essa a forma que viu, não exatamente, mas a coisa o estarreceu.

A água, que agora parecia ser muito profunda, estava repleta de vida. Como um aquário. Só que não continha qualquer peixe de tamanho ou aparência normais. Naquele aquário só nadavam monstruo­sidades. Sob as pernas de Jack, movia-se um gigantesco zoológico marinho. As espécies, às vezes, eram horrendamente feias. Deviam estar acompanhando a balsa desde que a profundidade da água aumentou. Os animais se moviam por toda parte. Um deles parecia deslizar a três metros sob a superfície, comprido como um trem de carga. De repente, começou a vir em direção à superfície. A película que lhe cobria os olhos pestanejou. Longos bigodes escorriam de sua boca cavernosa — aquela boca parecia uma porta de elevador, Jack pensou. A criatura deslizou pelo lado da balsa, deslocando Jack para mais perto do hotel com a força da água que deslocava. Depois seu focinho gotejante veio à tona. Tinha um perfil peludo, se­melhante ao Homem de Neanderthal.

O velho Sloat e sua forma não gostam nada da água, Speedy dissera e rira. A força que lacrara o ta­lismã no hotel negro colocara aquelas criaturas nas águas ao largo de Point Venuti para manter à distância as pessoas erradas; e Speedy sabia disso. Os grandes corpos das criaturas cutucavam delicadamente a balsa empurrando-a para cada vez mais perto das pilastras, mas as ondas que elas faziam só permitiam que Jack tivesse uma visão muito fragmentada do que estava acontecendo na costa.

Na crista de uma onda, ele viu Sunlight Gardener de pé ao lado de uma cerca preta. Com o cabelo flutuando no vento, Gardener apontava uma comprida e pesada espingarda de caça em sua direção. A balsa mergulhou, uma bala passou à distância com um ruído de colibri; o estampido foi ouvido em seguida. Quando Gardener atirou outra vez, uma coisa parecida com peixe, de três metros de comprimento e uma barbatana dorsal que lembrava uma vela de barco, pulou da água e aparou a bala. Num instante a criatura rodopiava no ar e cortava novamente a água, Jack viu um grande buraco estraçalhando seu lombo. Da vez seguinte que chegou à crista de uma onda, Gardener estava correndo pela praia na direção do Motel Kingsland. O peixe gigantesco continuava a empurrar diagonalmente a balsa na direção das pilastras.

 

Haveria uma escada, Speedy dissera, assim que Jack se aproximasse de um amplo convés. Jack espreitava através da atmosfera escura tentando encontrá-la. As grossas pilastras, incrustadas de algas, musgos e gotejando uma viscosa substância marinha, formavam quatro fileiras. Se a escada tives­se sido instalada na época em que o convés foi construído, provavelmente estaria agora completamente inutilizada. Além disso, seria difícil descobrir uma escada de madeira, coberta de algas e musgos. As gran­des e ásperas pilastras eram agora muito mais grossas do que tinham sido originalmente. Jack largou os remos e, apoiando-se nas bordas de borracha, instalou-se com mais firmeza no meio da balsa. Depois, tre­mendo, desabotoou a camisa encharcada (a camisa abotoada até embaixo, um tamanho abaixo do seu — a camisa que Richard lhe dera do outro lado das Terras Secas) e jogou-a no fundo da balsa. Seus sapatos tinham caído na água. Ele retirou as meias molhadas e atirou-as sobre a camisa. Richard continuava apoia­do na cabeça de cavalo inflada na frente da balsa. Estava de joelhos, o corpo muito vergado, os olhos e a boca fechados.

— Temos de procurar uma escada — disse Jack.

Richard concordou num movimento de cabeça quase imperceptível.

— Acha que vai conseguir subir uma escada, Richie?

— Talvez — Richard murmurou.

— Bem, ela deve estar por aqui. Provavelmente ligada a uma dessas pilastras.

Jack voltou a remar, levando a balsa para o meio de duas pilastras na primeira fileira de colunas. O chamado do talismã era incessante; parecia quase suficientemente forte para sugá-lo da balsa e depositá-lo no convés. O pequeno bote de borracha começou a derivar entre a primeira e a segunda fileiras de pilastras, já sob o pesado e escuro chão do convés, Mesmo ali embaixo, pequenos clarões vermelhos surgiam de vez em quando, Contorciam-se no ar, piscavam. Jack contou: quatro filas de pilastras, cinco pilastras em cada fila. Vinte lugares onde a escada poderia estar. Com a escuridão sob o convés e a interminável bifurcação dos corredores sugeridos pelas pilastras, aquele trecho de água lembrava um fosso de catacumbas.

— Não nos mataram — disse Richard com absoluta naturalidade. No mesmo tom, poderia ter dito: “Não achei mais pão na padaria.”

— Tivemos alguma ajuda — disse Jack e contemplou Richard, curvado sobre os joelhos. Sem dúvi­da, aquele guri jamais conseguiria subir uma escada, a não ser que recebesse um choque elétrico.

— Vamos bater numa dessas pilastras — disse Jack. — Estique o braço e ajude, está bem?

— O quê?

— Ajude a balsa a desviar da pilastra — Jack explicou. — Vamos lá, Richard! Preciso de sua ajuda!

O pedido pareceu funcionar. Richard abriu o olho esquerdo e apoiou a mão direita na beira da bal­sa. Quando a pilastra se aproximou, ele esticou a mão esquerda para desviar a balsa. Então, alguma coisa na coluna de madeira deu um pequeno estalo. Era como se lábios molhados se abrissem.

Richard gemeu, encolheu a mão.

— O que foi? — Jack perguntou, mas o amigo nem precisou responder: os dois viram criaturas pa­recidas com lesmas grudando na estaca. Os estranhos animais estavam de bocas e olhos fechados, mas havia um ranger, um bater de dentes. Nervoso, Jack esticou as mãos e procurou afastar a balsa da pilastra.

— Oh, meu Deus! — Richard exclamou. — Essas boquinhas sem lábios devem ter uma enorme quantidade de dentes. E também devem estar grudadas em outras pilastras. Eu não posso...

— Você terá de fazer, Richard — disse Jack. — Não ouviu o que Speedy falou lá embaixo na praia? Talvez agora ele já tenha morrido, Richard, e se isto for verdade, ele se sacrificou para que eu e você pu­déssemos entrar no hotel.

Richard tinha fechado novamente os olhos.

— E não importa quantas lesmas desse tipo vamos ter de matar para subir a escada. Eu e você te­mos de fazer isso. É assim, e ponto final! Está claro?

— Que merda! — Richard gemeu. — Você não tem o direito de falar assim comigo. Já estou farto desse seu ar de comandante, entendeu? Não precisa se preocupar! Vou conseguir subir a escada, não im­porta onde ela esteja! Minha febre deve ser de 42 graus, mas tenho certeza que vou subir a maldita escada, Só não sei se vou conseguir matar as lesmas. E vá para o diabo, Jack! — Richard falara com os olhos fecha­dos, mas, de repente, num ímpeto de força de vontade, conseguiu arregalá-los: — Isto é uma loucura!

— Eu preciso de você — disse Jack.

— É uma loucura! Mas vou subir essa escada, porra!

— Nesse caso, é melhor me ajudar a encontrá-la — disse Jack, fazendo a balsa se aproximar da fi­leira seguinte de pilastras.

 

A escada pendia entre as duas filas mais internas de pilastras. Sua ponta ondulava a pouco mais de um metro da superfície da água. Um retângulo escuro no alto da escada indicava um al­çapão se abrindo para o convés. Na escuridão, havia apenas o espectro quase invisível dos degraus.

— Estamos no caminho certo, Richie — disse Jack. Cuidadosamente, fez a balsa passar pela pilastra seguinte, tomando cuidado para não esbarrar nela. As centenas de criaturas parecidas com lesmas se agarravam com os dentes à pilastra. Em segundos, a cabeça de cavalo na frente da balsa deslizava sob a ponta da escada. Jack esticou a mão e agarrou um degrau. — Tudo bem — disse ele. Primeiro amarrou no degrau uma manga da camisa encharcada; a outra manga foi amarrada na dura cauda de borracha da bal­sa. Pelo menos a balsa não sairia dali. O que seria muito útil; se, é claro, conseguissem escapar com vida do hotel.

Subitamente, Jack sentiu uma secura na boca. O talismã entoava sua canção, chamava-o. Ele ficou de pé na balsa e se pendurou na escada.

— Você primeiro — disse a Richard. — Não vai ser fácil, mas vou tentar ajudá-lo.

— Não preciso de sua ajuda — Richard resmungou, mas ao ficar de pé perdeu o equilíbrio e quase atirou os dois dentro d’água.

— Agora, calma.

— Não preciso dos seus conselhos! Já estou calmo!

Richard estendeu ambos os braços e conseguiu se equilibrar. Com a boca bem apertada, parecia ter medo até de respirar. Deu um passo à frente.

— Bom.

— Maldição!

Richard moveu o pé esquerdo, levantou o braço direito, levou à frente o pé direito. Contraindo fe­brilmente um dos olhos, conseguiu tocar a ponta da escada com as mãos.

— Está vendo como vou conseguir?

— Ótimo! — disse Jack, fazendo suas mãos recuarem de palmas abertas, dedos estendidos, suge­rindo que não insultaria Richard com uma oferta de ajuda física.

Richard agarrou-se na escada, mas seus pés deslizaram irresistivelmente para a frente, levando a balsa com eles. Num segundo, estava quase suspenso sobre a água. Só a camisa de Jack impediu a balsa de escapulir inteiramente dos pés de Richard.

— Ajude-me!

— Recue o pé!

Richard obedeceu e recuperou o equilíbrio, a respiração muito ofegante.

— Deixe eu lhe dar uma mão, está bem?

— Está bem.

Jack oscilou pela balsa até perto do amigo. Era difícil manter o equilíbrio. Richard agarrou o degrau com ambas as mãos, tremendo. Jack o segurou pela cintura esquálida.

— Vou ajudá-lo a subir nessa coisa. Procure não balançar o pé. Tente pôr o joelho no primeiro de­grau. Apóie-se bem com as mãos.

Richard abriu um dos olhos e seguiu as instruções.

— Está pronto?

— Estou.

A balsa resvalou para a frente, mas Jack empurrou Richard com tanta firmeza que conseguiu fa­zê-lo encaixar o joelho direito no primeiro degrau. Depois, agarrou os lados da escada e empregou toda a energia de seus braços e pernas para estabilizar a balsa. Richard resmungou e fez força para colocar o ou­tro joelho no degrau. Um segundo depois, a proeza foi cumprida. Mais dois segundos e Richard Sloat con­seguiu ficar de pé na escada.

— Não vou chegar até lá em cima — disse ele. — Acho que vou cair. Estou me sentindo muito mal, Jack!

— Tente avançar ao menos mais um degrau, por favor. Por favor! Depois vou poder ajudá-lo melhor!

Debilmente, Richard arrastou as mãos por mais um degrau. Olhando para o convés, Jack viu que a escada devia ter uns dez metros de comprimento.

— Agora mexa os pés. Por favor, Richard!

Vagarosamente, Richard conseguiu erguer um pé, depois outro, até o segundo degrau.

Jack pôs as mãos nos tornozelos de Richard. A balsa oscilou num semicírculo, mas Jack levantou os joelhos e firmou ambas as pernas no degrau mais baixo. Segura pela camisa esticada de Jack, a balsa se sacudia como um cãozinho nervoso numa coleira.

A um terço do caminho para o alto da escada, Jack teve de pôr um braço em torno da cintura de Ri­chard para impedi-lo de cair na escuridão da água.

Por fim, o quadrado retangular do alçapão na madeira negra pairou bem acima da cabeça de Jack. Ele puxou com força o amigo (a cabeça já inconsciente de Richard lhe caiu sobre o peito). Jack abraçou Richard e a escada com a mão esquerda; com a direita, tentava abrir o alçapão. E se o alçapão estivesse pregado?... Mas não estava, se escancarou com facilidade e bateu com força no chão do convés. Jack fir­mou o braço esquerdo sob as axilas de Richard e conseguiu fazê-lo passar pelo buraco do convés, livrando-o da escuridão e do perigo da escada.

 

SLOAT NESTE MUNDO (V)

O motel Kingsland ficara vazio por quase seis anos, e tinha o cheiro mofado de jornal amarelo dos prédios que ficam vazios por muito tempo. Esse cheiro, a princípio, perturbara Sloat. Sua avó materna morrera em casa, quando ele ainda era garoto (até o último suspiro, foram quatro anos de agonia), e o cheiro de sua morte fora semelhante àquele. Não queria esse tipo de cheiro, esse tipo de lembrança, no momento em que seu maior triunfo estava tão perto.

Agora, porém, aquilo não mais importava. Nem mesmo as terríveis perdas que sofrera com a pre­matura chegada de Jack ao Campo Prontidão importavam. As primeiras sensações de abatimento e fúria tinham se convertido num frenesi de agitação nervosa. Cabeça baixa, lábios torcidos, olhos brilhantes, ele andava de um lado para o outro no quarto onde, nos velhos tempos, costumava pernoitar com Richard. Às vezes, entrelaçava as mãos atrás das costas, às vezes batia com um punho na palma de uma das mãos, às vezes revirava a dentadura postiça na boca. Em geral, no entanto, limitava-se a perambular como fazia na universidade, as mãos firmemente fechadas em punhos, as unhas escavando dolorosamente as palmas. Seu estômago se mantinha alternadamente azedo e oco, vertiginosamente oco.

As coisas estavam chegando a um clímax.

Não, não! Idéia correta, frase imprecisa.

As coisas estavam se ajustando. A esta hora Richard já está morto. Meu filho está morto. Tem de estar. Sobreviveu (por um triz) às Terras Secas, mas nunca sobreviverá ao Agincourt. Está morto! Seria inútil acalentar falsas esperanças. Jack Sawyer o matou! E por isso vou lhe arrancar os olhos da cara a sangue-frio.

— Mas eu também o matei — Morgan sussurrou, parando por um instante.

Subitamente, lembrou-se do próprio pai.

Gordon Sloat fora um austero ministro luterano em Ohio. Morgan tinha passado toda a infância e a adolescência tentando fugir daquele homem ríspido, assustador. Um dia, conseguiu escapar para Yale. Entregou-se de corpo e alma aos estudos por uma razão muito simples, mas que sua mente consciente fora incapaz de admitir: Yale era um lugar onde o pai, com seu jeito rude e caipira, jamais se atreveria a entrar, Se o pai tentasse colocar um pé no campus de Yale, sem dúvida alguma coisa lhe aconteceria. Exa­tamente o que podia ser esta alguma coisa, o estudante Sloat não saberia dizer... Mas tinha de ser algo muito semelhante, ele desconfiava, ao que acontecera com a Bruxa Má quando Dorothy atirou um balde d’água sobre ela. E esta suspeita parecia ter sua lógica, tanto que o pai jamais pôs os pés no campus da universidade. Desde o primeiro dia de Morgan em Yale, o poder de Gordon Sloat sobre o filho começou a declinar. Só este fato já parecia fazer toda a sua luta, todo o seu esforço, terem valido a pena.

Mas agora, com os punhos cerrados e as unhas escavando a maciez das palmas das mãos, a voz do pai lhe vinha à cabeça: De que serve um homem conquistar o mundo inteiro se para isso tiver de perder o próprio filho?Por um instante, aquele cheiro úmido e amarelo (cheiro de motel vazio, cheiro da avó, chei­ro da morte) encheu-lhe as narinas, como se quisesse sufocá-lo. Morgan Sloat/Morgan de Orris teve medo.

De que serve um homem...

Pois estava escrito no Livro da boa lavoura que um homem não deve levar o broto de sua semente ao lugar do sacrifício, pois...

De que serve...

Este homem ficará amaldiçoado, amaldiçoado, amaldiçoado!

...um homem conquistar o mundo inteiro se para isso tiver de perder o próprio filho?

Parecem fedorentas. Cheiro seco de manchas de vinho se transformando em pó nos espaços escu­ros das paredes. Loucos! Havia loucos nas ruas!

De que serve um homem?

Morto. Seu filho único morto nos Territórios, seu filho único morto neste mundo.

De que serve um homem?

Seu filho está morto, Morgan! Tem de estar! Morto na água, morto sob os alicerces do hotel (flutuando de um lado para o outro) ou então morto — com certeza! — sobre o convés. É inevitável. É...

De que serve...

E, de repente, lhe ocorreu a resposta.

— Serve, é claro! Serve à posse do mundo inteiro!— Morgan gritou no quarto em ruínas. Começou a rir e andar novamente de um lado para o outro. — Se um homem conquista o mundo, por Jasão!, isto é mais do que suficiente!

Rindo, começou a andar cada vez mais rápido, e, pouco depois, o sangue gotejava dos seus punhos cerrados.

 

Daí a dez minutos, um carro parou na frente do velho motel. Morgan foi até a janela e viu Sunlight Gardener saltar do Cadillac.

Segundos depois, Gardener martelava a porta com ambos os punhos. Era como um menino de três anos tocando um tambor. Morgan percebeu que o homem estava colérico, e se perguntou se aquilo era bom ou mau.

— Morgan! — Gardener berrou. — Abra a porta, meu mestre! Trago notícias! Notícias!

Acho que já vi tudo o que você tem a me contar pelo meu binóculo! Martele mais um pouco essa porta, Gardener, enquanto eu coloco minhas idéias em ordem! Afinal, toda essa fúria é sempre um bom esti­mulante, você não acha?

É claro que acha, Morgan concluiu. Em Indiana, no momento crucial, Gardener fugira sem se preo­cupar com Jack. Agora, toda aquela selvagem fúria e sofrimento serviriam para redimi-lo e, de certa for­ma, torná-lo outra vez confiável. Se Morgan precisasse de um piloto camicase, Sunlight Gardener seria o primeiro a correr para os aviões.

— Abra a porta, mestre! Trago notícias! No...

Morgan abriu a porta. Embora ele mesmo estivesse bastante nervoso, presenteou Gardener com uma fisionomia de quase divina serenidade.

— Calma — disse. — Tenha calma, Gard. Olhe as coronárias!

— Eles foram para o hotel... pela praia... Atiramos enquanto estavam na praia... mas os bandidos entraram... na água... Aí eu pensei... vamos pegá-los na água... Então vieram as criaturas do fundo do mar... Eu estava observando aquele garoto... Eu tinha aquele garoto mau bem nos meus olhos... e então... as criaturas... elas... elas...

— Vá devagar — Morgan pediu num tom suave. Fechou a porta e tirou uma garrafa do bolso do paletó. Passou a garrafa a Gardener, que torceu a rolha e tomou dois gigantescos goles. Morgan esperou. Seu rosto parecia benevolente, sereno, mas uma veia pulsava no centro de sua testa e as mãos se abriam e fechavam, se abriam e fechavam.

Tinham ido para o hotel, é claro! Morgan vira a ridícula balsa com cabeça e cauda de cavalo. Vira a balsa tentando avançar até lá.

— Meu filho... — ele disse a Gardener. — O que seus homens disseram? Ele estava vivo ou morto quando Jack o colocou na balsa?

Gardener balançou indeciso a cabeça — mas seus olhos revelaram em que ele acreditava.

— Ninguém tem certeza, meu mestre. Alguns dizem que o viram se mexer. Outros dizem que não.

Não importa! Se ainda não estivesse morto naquele momento, agora já estaria. Seria suficiente que de respirasse uma vez o ar daquele hotel para seus pulmões explodirem.

O rosto de Gardener ficou da cor do uísque e os olhos lacrimejaram. Ele não devolveu a garrafa, continuou bebendo. Às vezes era bom estar ao lado de Sloat. Naquele momento Sloat não precisava de uísque nem de cocaína. Estava naturalmente dopado.

— Comece tudo de novo — disse Morgan. — E desta vez seja coerente.

A única coisa que Gardener ainda não dissera era se aquele negro sujo também estava na beira da praia, mas Sloat podia quase apostar que sim. Contudo, deixou Gardener continuar. A voz de Sunlight Gardener se acalmara, mas a raiva parecia ter-se avivado.

Enquanto Gardener falava, Morgan procurou, com uma breve palpitação de pesar, tirar o filho da equação de seus problemas.

De que serve um homem conquistar o mundo inteiro? Serve, é claro. A posse do mundo serve. A posse do mundo é o bastante... E, no seu caso, a posse de vários mundos. De início dois, e mais de dois quando a coisa engrenasse. Se quisesse, poderia governar todos eles, Morgan pensava. Poderia ser uma espécie de Deus do Universo.

O talismã. O talismã é...

A chave?

Não, oh, não!

Não uma chave, mas uma porta; uma porta trancada entre ele e seu destino. Ele não queria abrir essa porta, mas destruí-la, destruí-la completamente, radicalmente, eternamente, para que ela nunca mais pudesse ser fechada (muito menos trancada).

Quando o talismã fosse despedaçado, todos aqueles mundos seriam seus.

— Gard! — ele chamou, e recomeçou a andar de um lado para o outro.

Gardener virou-se para Morgan com ar curioso.

— De que serve um homem? — Morgan gorjeou num tom frenético.

— Mestre... Eu não compreen...

Morgan se postou diante de Gardener, os olhos febris, cintilantes. O rosto se contorcia. Conver­teu-se no rosto de Morgan de Orris. Converteu-se outra vez no rosto de Morgan Sloat.

— De que serve um homem conquistar o mundo? — Morgan perguntou, pondo as mãos nos om­bros de Osmond. Um segundo depois, quando o soltou, Osmond era novamente Sunlight Gardener. — Não acha que a posse do mundo serve? Não acha que o mundo basta?

— Meu mestre, acho que o senhor não está compreendendo a situação... — disse Gardener, olhando para Morgan como se o comparsa tivesse enlouquecido. — Acho que eles entraram. Acho que entraram onde A coisa está. Tentamos atirar nos dois, mas as criaturas... as criaturas do fundo to mar... vieram à tona e os protegeram, assim como o Livro da boa lavoura disse que ia acontecer... E se eles estão mesmo lá dentro... — O tom da voz de Gardener foi se elevando. Os olhos de Osmond se agitaram num misto de cólera e abatimento.

— Estou entendendo muito bem — Morgan disse com voz serena. Sua fisionomia estava novamen­te calma, mas os punhos se fechavam, as unhas se enterravam, o sangue escorria para o mofo do tapete. — Sim, rapaz, entendi tudo, entendi perfeitamente, claramente bem. Eles entraram, e meu filho jamais vai sair de lá. Você perdeu o seu garoto, Gard, e agora eu perdi o meu.

— Sawyer!— Gardener rosnou. — Jack Sawyer! Jasão! Aquele...

Por quase cinco minutos, Gardener se entregou a uma irresistível torrente de palavrões e pragas. Amaldiçoou Jack em dois idiomas; a voz tremia, estalava de dor e fúria insanas. Morgan ficou imóvel, es­perando até que a crise de nervos do parceiro terminasse.

Quando Gardener parou, ofegante, e tomou outro gole de uísque, Morgan falou:

— Tudo bem! Os cachorros foram soltos, tudo bem! Mas agora acalme-se e escute, Gard... está me ouvindo?

— Sim, mestre.

Os olhos de Gardener/Osmond brilhavam com amarga atenção.

— Meu filho jamais vai sair do hotel negro e acho que Sawyer também não. Temos uma boa chance de que ele ainda não seja suficientemente Jasão para conseguir lidar com o que existe lá dentro, a coisa provavelmente vai matá-lo, enlouquecê-lo ou enviá-lo para 100 mundos distantes daqui. Mas talvez ele consiga sair, Gard. Sim! Talvez... Ele é o pior dos piores filhos da puta que já pisaram na Terra — Gardener sussurrou. Sua mão apertou a garrafa... apertou... apertou... e os dedos começaram a rasgar o rótulo.

— Você acha que aquele negro está lá embaixo, na praia?

— Está.

— Parker — disse Morgan, e no mesmo momento Osmond fez eco:

— Parkus!

— Já está morto? — Morgan perguntou sem muito interesse.

— Não sei. Acho que sim. Quer que eu mande alguns homens pegá-lo?

— Não! — Morgan respondeu com aspereza. — Não... Mas vamos nos aproximar de onde ele está, não vamos, Gard?

— Vamos?

— Sim. Você... eu... todos nós. Porque, se Jack sair do hotel, a primeira coisa que ele vai fazer é fa­lar com Parker. Ele não vai deixar aquele velho vagabundo de estrada estirado na praia, vai?

Então Gardener também começou a sorrir.

— Não — disse ele. — Não!

Pela primeira vez, Morgan tomou consciência da dor, do latejar em suas mãos. Abriu-as e contem­plou pensativo o sangue que escorria do profundo semicírculo de feridas nas palmas. Seu sorriso, porém, não desapareceu. Ao contrário, tornou-se mais largo.

Gardener estava olhando solenemente para ele. Morgan sentiu-se envolvido por uma grande sensação de força. Levou a mão ensangüentada até o pescoço e fechou-a em torno da chave que atirava raios.

— A vantagem é que o homem fica com o mundo — ele murmurou. Não vale a pena dizer aleluia! Seus lábios se arreganharam ainda mais. O sorriso se transformou num esgar amarelado de um lobo astu­to: um lobo velho, mas ainda matreiro, obstinado, poderoso.

— Vamos, Gard! — disse ele. — Vamos até a praia!

 

O HOTEL NEGRO

Richard Sloat não estava morto, mas quando Jack o pegou nos braços, viu que o amigo perdera totalmente a consciência.

Quem é o rebanho agora?, Lobo perguntava na cabeça dele. Tenha cuidado, Jacky! Lobo, oh, Lobo! Tenha...

Venha para perto de mim! venha agora!, cantava o talismã numa voz poderosa e muda. Venha para perto de mim, traga o rebanho, e todos os seus desejos serão realizados! Todos os seus desejos serão realizados!

— ... e tudo ficará bem — Jack resmungou.

Tomou coragem e pulou do alçapão como um garoto participando de alguma bizarra brincadeira. Brincando com o melhor amigo, Jack pensou um tanto fora de si. O coração martelava nas suas orelhas, e por um instante ele achou que ia vomitar na água escura que batia nas pilastras. Conseguiu então se controlar e fechou o alçapão com o pé. Agora havia apenas o som dos cata-ventos — misteriosas formas de metal rodopiando sem cessar no céu.

Jack virou-se para o Agincourt.

Estava num amplo convés, semelhante a uma varanda elevada. Outrora, pessoas elegantes dos anos 20 e 30 teriam desfilado por ali, tomando coquetéis à sombra dos guarda-sóis, bebendo gim com cu­bos de gelo ou misturado a refrigerantes, lendo o último romance de Edgar Wallace ou Ellery Queen, olhando para a Ilha Los Cavernes, possivelmente apenas uma mancha no horizonte, mesmo em dia claro — uma mancha azulada, estendida sobre a água como lombo de baleia. Os homens estariam vestidos de branco, as mulheres em tons pastéis.

Antigamente, quem sabe...

Agora as tábuas estavam empenadas, esburacadas, lascadas. A cor original do convés não era mais reconhecível. O convés se tornara negro, negro como o resto do hotel; o lugar tinha a cor que ele imagi­nava que devia ter o tumor maligno nos pulmões da mãe.

A sete metros dali estavam as portas de vidro de que Speedy falara. Sem dúvida, era por elas que os hóspedes circulavam naqueles bons tempos. Agora pareciam olhos fechados, viscosos, com estranhas pinceladas de branco.

Numa dessas portas estava escrito:

 

É sua última chance de voltar para casa!

 

Barulho das ondas. Barulhos de ferragens nos ângulos dos telhados. Cheiro de maresia e de velhos drinques pelo convés, drinques há muito tempo derramados por gente bonita, gente que agora estava de­composta, morta. Cheiro do próprio hotel. Olhou de novo para a porta de vidro e, sem qualquer surpresa, viu que a mensagem se alterara:

 

Ela já está morta, Jack! Por que todo esse trabalho?

 

(agora quem é o rebanho?)

— Você, Richie — disse ele —, e não vou deixá-lo sozinho.

Nos braços de Jack, Richard deixou escapar uma espécie de ronco de protesto.

— Vamos em frente — disse Jack, e começou a andar. — Agora já não está longe. É pegar ou largar.

 

As portas de vidro pareciam se alargar à medida que Jack se aproximava do Agin­court. Era como se o hotel negro tivesse aberto os olhos e o contemplasse com surpresa cada vez maior.

Você acha, garoto, acha mesmo que conseguirá entrar aqui e escapar com vida? Acha que seu lado Jasão está assim tão forte?

Clarões vermelhos, como os que vira em muitos outros pontos de Point Venuti, cintilavam, corriam por entre as portas viscosas. Por um instante os clarões pareceram assumir estranhas formas geométricas. Jack os contemplava, quase fascinado, como se assistisse a um espetáculo pirotécnico. Os clarões pareciam rodopiar pelas maçanetas das portas num insólito movimento convergente. As maçanetas começaram a brilhar como vigas de ferro numa forja.

Vamos lá, rapaz! Encoste a mão numa delas! Tente!

Um dia, quando tinha seis anos, Jack pôs a mão num forno de fogão elétrico e girou até o fim o bo­tão de temperatura. Fora simples curiosidade de sentir o forno esquentando. Pouco depois, teve de tirar a mão, já com um início de dor. Phil Sawyer correu para perto dele, desligou o fogão e perguntou quando ele tinha começado a sentir aquela estranha compulsão de se queimar.

Jack continuava com Richard nos braços, olhando para as maçanetas incandescentes.

Vamos lá, rapaz. Não se lembra do fogão? Acha que não vai ter tempo de tirara mão se queimar de­mais? “Diabo” você está pensando, “talvez a coisa não esteja assim tão quente!” Então por que não tentai Será que não vale a pena, Jack? Nem por simples curiosidade?

Novos clarões vermelhos patinaram pelo vidro e começaram a rodopiar em torno das maçanetas. As maçanetas foram se alterando. Ficaram cada vez mais vermelhas e passaram a gotejar, como se estives­sem derretendo sob o efeito do calor. Se encostasse a mão numa delas, sem dúvida ela ficaria grudada em sua carne, destruindo o tecido, fazendo o sangue coagular. A agonia seria terrível. Uma agonia como nun­ca tinha sentido.

Ficou imóvel com Richard nos braços, esperando que o talismã o chamasse, ou que o “lado Jasão” viesse à tona. Mas foi a voz da mãe que ecoou em sua cabeça.

Será que alguém ou alguma coisa tem sempre de empurrá-lo, Jack? Vamos lá, garoto! Você não vai recuar por causa de uma bobagem dessas, está bem? Se tiver realmente força de vontade, vai conseguir atravessar essas portas. Você sabe, Parker não pode fazer tudo...

— Tudo bem, mamãe — disse Jack. Ele sorria suavemente, mas a voz tremia de medo. — Aqui vou eu. Só espero que alguém se lembre de empacotar os ossos que derreterem...

Estendeu o braço e agarrou uma das maçanetas incandescentes.

Só que não estava incandescente — tudo não passara da mais pura ilusão. A maçaneta estava mor­na, só isso. Quando Jack a fez rodar, o brilho vermelho desapareceu de todas as maçanetas. E quando abriu a porta de vidro, o talismã cantou outra vez, fazendo todo o seu corpo se arrepiar:

Muito bem, Jasão! Agora venha! Venha me buscar!

Com Richard nos braços, Jack entrou na sala de jantar do hotel negro.

 

Ao transpor a soleira da porta, sentiu uma estranha força (um tanto parecida com a mão de um morto) puxá-lo para trás. Jack lutou contra ela e pouco depois a desagradável sensação o abandonava completamente.                                                                                                                       

A sala não era particularmente escura, mas as portas viscosas conferiam-lhe uma brancura sombria, insípida. Jack ficou confuso, olhos embaçados. Ali entre paredes onde o reboco devia estar se transformando em massa pegajosa havia cheiros antigos, amarelados, de decadência e ruína: cheiros de épocas há muito enterradas, cheiros de amarga escuridão. Mas havia outra coisa além dos cheiros. E Jack teve medo.

Teve medo porque o lugar não estava vazio.

Não sabia exatamente de que maneira seriam as coisas lá dentro, mas sabia que Sloat não se atreveria a entrar ali, nem Sloat, nem qualquer outra pessoa... O ar era muito denso, pesava em seus pulmões. Era como se estivesse aspirando um veneno de efeito lento. Sentiu galerias, corredores, portas e passagens secretas; paredes querendo enclausurá-lo como as paredes de uma grande cripta mortuária. Havia loucura, demência ali dentro. E morte, morte que caminhava pelos corredores. Havia um áspero, atordoante clima de irracionalidade. Talvez Jack não tivesse palavras para expressar essas coisas, mas era capaz de senti-las. E muito bem. Pressentia os riscos. Sabia que nem todos os talismãs do cosmo seriam capazes de protegê-lo daqueles perigos. Participava de um insólito ritual cuja conclusão, ele sabia, era totalmente imprevisível.

E só podia contar consigo mesmo.

Alguma coisa fez cócegas em sua nuca. Jack desviou o corpo. Richard gemeu roucamente em seus braços.

Havia uma grande aranha negra pendurada numa teia. Jack estreitou os olhos. A teia se enrascava numa das vigas do teto, um sujo emaranhado de fios sobre traves de madeira. O corpo da aranha parecia muito inchado. Jack reparou nos olhos dela. (Sem dúvida, era a primeira vez que contemplava os olhos de uma aranha.) Contornou a aranha (que ameaçava pender até o nó) e aproximou-se de um conjunto de mesas. A aranha continuava a descer o fio, como se pretendesse segui-lo.

— Saia daqui! — ela guinchou, bruscamente.

Jack gritou e apertou Richard de encontro ao peito com a elétrica energia gerada pelo pânico. O grito ecoou por todos os cantos do elevado teto da sala. De algum lugar dos fundos do aposento veio um clangor metálico e cavernoso. Alguma coisa riu.

— Saia já daqui, saia já daqui! — a aranha guinchava, mas, de repente, voltou correndo para o centro de sua teia e ficou em silêncio.

Com o coração martelando no peito, Jack atravessou a sala e pôs Richard sobre uma das mesas. O garoto gemeu outra vez, um gemido fraco. Jack podia sentir os calombos sob as roupas de Richard.

— Vou ter de deixá-lo um minuto aqui, está bem? — disse Jack.

A aranha voltou a falar das sombras do teto:

— Estou me preocupando... estou me preocupando com você, Jack... Saia daqui! Saia já daqui!

Houve um breve, malévolo zumbido de riso.

Uma pilha de toalhas, outrora brancas, jazia sob a mesa onde Jack pusera Richard. As toalhas, onde por certo já tinham sido servidas requintadas refeições, estavam agora mofadas, amareladas. No meio da pilha, porém, despontava uma toalha que não parecia tão estragada. Jack pegou-a, e cobriu Richard até o pescoço. Depois se afastou.

Agora a voz da aranha continuava sussurrando entre as vigas do teto, numa escuridão que fedia a moscas, baratas, insetos apodrecidos ou ainda vivos. Jack não conseguia vê-los, mas era capaz de pres­senti-los.

— Estou me preocupando com você, Jack... Saia já daqui!

Jack levantou a cabeça, mas não pôde mais ver a aranha. Devia estar imaginando aqueles olhinhos frios; devia estar imaginando aquela voz. Mas sua imaginação parecia viva, muito viva. Uma aterradora, nauseante imagem lhe ocorreu: a aranha rastejando pelo rosto de Richard, abrindo caminho entre os lábios do amigo, forçando a entrada para a boca, guinchando, guinchando sem parar:

— Saia daqui, saia daqui, saia já daqui...

Pensou em puxar a toalha de mesa até a boca de Richard, mas achou melhor não transformar o amigo em alguma coisa que se assemelharia bastante a um cadáver. Seria quase como um convite, um chamado à verdadeira morte.

Voltou para perto de Richard e ficou imóvel, indeciso, sabendo que sua indecisão servia ao jogo das forças que queriam impedi-lo de se aproximar do talismã.

Pôs a mão no bolso e tirou de lá uma grande bola de gude esverdeada. No outro mundo, era um espelho mágico. Jack não tinha qualquer razão para acreditar que a bola contivesse algum poder especial contra as forças do mal, mas sem dúvida era um objeto dos Territórios... e, Terras Secas à parte, os Territó­rios eram um lugar essencialmente bom. E uma bondade essencial, Jack ponderava, devia ter algum po­der contra o mal.

Encaixou a bola de gude na mão de Richard. A mão de Richard se fechou, depois afrouxou um pouco quando Jack a soltou.

De algum lugar entre as vigas do teto, a aranha despejava seu riso obsceno.

Jack curvou-se sobre Richard, tentando ignorar o cheiro de doença que o amigo transmitia (um odor muito parecido com o cheiro daquele lugar), e murmurou:

— Prenda isto em sua mão, Richie. Segure com força, cara!

— Não... me chame... de cara — Richard sussurrou, e fechou debilmente a mão em torno da bola.

— Isso mesmo, rapaz! — disse Jack. Ele beijou suavemente a face de Richard e começou a atravessar a sala em direção às portas fechadas na extremidade do aposento. É como o Alhambra, pensou. De um lado, a sala de jantar vai dar nos jardins; do outro, num convés sobre a água. Portas duplas em ambas as saídas, abrindo-se daí para o resto do hotel.

Ao atravessar a sala, sentiu aquela mão de morto puxando-o outra vez. Era como se o hotel quisesse repeli-lo, tirá-lo de seu interior.

Não ligue, Jack pensou, e continuou avançando.                              

A força pareceu se extinguir quase imediatamente.

Temos outras saídas, as portas duplas sussurraram quando ele se aproximou. De novo Jack ouviu o sinistro clangor de metal.

Você está preocupado com Sloat, as portas murmuraram; só que agora a voz não parecia vir apenas das portas — agora a voz que Jack estava ouvindo parecia vir do hotel inteiro. Você está preocupado com Sloat, Lobos degenerados, coisas que parecem cabras e técnicos de basquete que não são técnicos de bas­quete de verdade. Está preocupado com armas, explosivos plásticos e chaves mágicas. Nós aqui não nos preocupamos com nada disso, rapaz! Não temos nada a ver com isso! Morgan Sloat não passa de uma ba­rata tonta. Tem apenas 20 anos de vida pela frente e precisaria de muito mais tempo para percorrer todos os mundos que quer possuir. Aqui, no Hotel Negro, só nos preocupamos com o talismã — o eixo de todos os mundos possíveis. Você chegou como um ladrão para nos despojar do que é nosso, mas vamos lhe dar um aviso: temos muitos meios de lidar com gatunos do seu tipo. Se insistir, vai entender o que estamos queren­do dizer — vai entender de uma vez por todas.

 

Jack abriu primeiro uma das portas duplas, depois a outra. Os gonzos rangeram in­comodamente. Há anos, sem dúvida, não se moviam.

Do outro lado das portas havia um corredor escuro. Vai dar no saguão, Jack pensou. E depois, se este lugar for mesmo idêntico ao Alhambra, terei de subir um lance de escadas.

No segundo andar, encontraria o grande salão de festas. E no grande salão de festas, encontraria a coisa que o levara ao hotel.

Jack olhou para trás, viu que Richard não tinha se mexido, e entrou no corredor. Depois fechou as portas atrás de si.        

Começou a avançar lentamente, os tênis velhos e encardidos rangendo no tapete rasgado.

Um pouco mais adiante, deparou com outro conjunto de portas duplas. Entre elas havia pássaros pintados.

Bem ali perto, estariam as salas de estar. A Sala Dourada ficaria em frente à Sala da Corrida ao Ouro. Cinco passos depois das portas duplas com os pássaros pintados se acharia a Sala Mendocino (e pendurado na porta de mogno haveria um cartaz: sua mãe está morrendo e gritando!). Bem no fim do corredor — inacreditavelmente longe! — surgiria uma luminosidade mortiça. O saguão.

Tlam!

Jack girou nos calcanhares e, pouco à frente de um dos pontiagudos portais na garganta de pedra do corredor, captou um vestígio de movimento...

(pedras?)

(pontiagudos portais?)

Jack piscou nervosamente. O corredor fora revestido por escuras almofadas de mogno que começavam a apodrecer por causa da maresia. Nada de pedra. E as portas que davam na Sala Dourada, na Sala da Corrida ao Ouro e na Sala Mendocino eram portas comuns, retângulos simples, nada pontiagudos. Por um instante, porém, ele julgou ver umbrais semelhantes a arcos de velhas catedrais. Preenchendo os umbrais havia portões de ferro — o tipo de portão que é erguido ou abaixado por roldanas. Pesados portões de ferro com pontas afiadas em cima. E quando o portão foi abaixado para bloquear a entrada, as grades se ajustaram em buracos no chão.

Nada de arcos de pedra, Jack. Veja com seus próprios olhos. Apenas umbrais, umbrais comuns. Os portões de ferro que você está imaginando estão na Torre de Londres. Você os viu na viagem que fez com sua mãe e o tio Tommy. Foi há três anos, está lembrado? Esses umbrais são comuns. Você está apenas fantasiando um pouco as coisas, só isso...

Mas a sensação que Jack experimentou na boca do estômago foi inconfundível.

Os portões estavam na Torre de Londres, tudo bem. E ele poderia ter atravessado, atravessado para os Territórios, mesmo na frente da mãe e do tio Tommy.

Tlam!

Jack virou rapidamente a cabeça, o suor lhe escorrendo pelas faces e pela testa, o cabelo começan­do a se arrepiar na nuca.

E vislumbrou a coisa. Uma cintilação metálica nas sombras de uma daquelas salas. Depois viu pe­dras enormes, pretas como pecados mortais, as superfícies ásperas cobertas de um musgo esverdeado. Asquerosos insetos de aparência mole enxameavam pelos poros da argamassa apodrecida entre as pe­dras. Apoios vazios de candelabros de parede enfileiravam-se a intervalos de cinco ou seis metros. As ve­las ou lâmpadas que aquelas bases tinham suportado estavam há muito tempo apagadas.

Tlam!

Dessa vez ele nem piscou. O mundo ondulava diante de seus olhos, agitava-se como um objeto visto através de água transparente. As paredes eram de novo almofadas de mogno escuro em vez de blo­cos de pedra. As portas eram portas e não gigantescos portões de ferro. Os dois mundos, separados por uma membrana fina como uma meia de mulher, ameaçavam realmente se sobrepor.

E, Jack percebeu confusamente, seu lado Jasão começara a se mesclar a seu lado Sawyer. Uma es­pécie de terceiro ser, que era um amálgama dos dois, ia gradualmente emergindo.

Não sei exatamente como esta combinação poderia ser classificada, mas espero que seja poderosa — porque existem coisas atrás daquelas portas... atrás de todas elas.

Jack começou de novo a se esgueirar pelo corredor em direção ao saguão.

Tlam!

Desta vez o mundo não oscilou; portas sólidas continuaram sendo portas sólidas e não houve qualquer movimento estranho.

Atrás delas, porém. Atrás delas...

Agora Jack ouvia ruídos atrás das portas duplas... E no céu de uma desbotada pintura marinha so­bre uma das portas havia os dizeres: bar das garças. O barulho atrás da porta sugeria uma máquina gran­de e enferrujada sendo posta em movimento. Jack deu um passo

(Jasão deu um passo)

para a porta que se abria

(para aquele grande portão de ferro que se suspendia)

enfiando a mão

(na bolsa)

no bolso

(que trazia no cinto do gibão)

do jeans e fechando-a em torno da palheta de violão que Speedy há muito tempo lhe dera.

(e fechando-a em tomo do dente de tubarão)

Ficou atento para ver o que ia sair do Bar das Garças, e as paredes do hotel sussurraram obscuramente: Temos muitos meios de lidar com gatunos como você. Devia ter saído enquanto era tempo, Jack...

...porque agora, garoto, seu tempo está esgotado.

 

Tlam ... Pam!

Tiara.. pam!

Tlam... pam!

O barulho era forte, rude, metálico. Trazia a sugestão de alguma coisa implacável, inumana, algo que assustava Jack mais cruamente do que qualquer som humano, mesmo o mais terrível.

O barulho se movia, se arrastava, avançava sempre no mesmo ritmo lento e idiota,

Tlam... pam!

Tlam... pam!

Houve uma longa pausa. Jack esperou, encolheu-se contra a parede a um ou dois metros da porta do bar, os nervos tão tensos que pareciam zumbir. Por um longo tempo, não aconteceu absolutamente nada. Jack desejou ardentemente que a estranha fonte de ruído tivesse caído em algum alçapão secreto, voltando para o mundo de onde tinha vindo. Devido à incômoda imobilidade, à postura contraída, as cos­tas começaram a lhe doer. Ele deu um passo à frente e quase caiu.

Então, houve um som de estilhaços e um enorme punho, os nós dos dedos afiados como garras, saltou do obscuro vão da porta. Jack recuou de novo para a parede e se encolheu contra ela, a respiração ofegante.

E, sem outra saída, atravessou para os Territórios.

 

Do outro lado do enorme portão de ferro havia um vulto numa armadura escura, enferrujada. O elmo, de forma cilíndrica, tinha uma abertura muito pequena na altura dos olhos, não mais que dois ou três centímetros de largura. Em cima do elmo havia uma suja pluma vermelha. Insetos esbran­quiçados enxameavam por todos os lados. Eram muito parecidos, Jack percebeu, com os vermes que bro­taram das paredes do quarto de Albert, o Bolha, e depois de todo o Colégio Thayer. O elmo terminava numa espiral de malha que, como uma estola de senhora, caía até a ferrugem dos ombros do cavaleiro. Os braços e antebraços estavam protegidos com pesadas placas de aço. As placas se uniam nos cotovelos por meio de estranhas dobradiças. O aço parecia incrustado de velhas camadas de sujeira, e quando o ca­valeiro se movia, as arestas dos cotovelos rangiam como o choro estridente, impertinente, de uma criança contrariada.

Os punhos blindados estavam cheios de ferrões.

Jasão continuou encolhido no muro de pedra, contemplando o vulto, incapaz de desviar um se­gundo os olhos. A boca tinha uma secura de febre e as pálpebras pareciam ondular ritmadamente, no mesmo compasso acelerado das pulsações do coração.

A mão direita do cavaleiro segurava o “martelo de ferro”, um martelo de batalha com uma enferru­jada cabeça de ferro de 15 quilos, pronta para desfechar o ato homicida.

O portão de ferro; o portão de ferro está entre você e o talismã...

Mas então, embora sem o auxílio de qualquer mão humana, a roldana passou a girar; a corrente de ferro, cada elo do comprimento do antebraço de Jack, começou a ser enrolada ao redor de um cilindro e o portão começou a se erguer.

 

O punho de malha foi repuxado por um pequeno trecho de madeira que o cavalei­ro tentara arrebentar com um soco. Na madeira ficou um buraco estilhaçado, transformando o romântico aspecto pastoril do portão numa surrealista e sinistra porta semi-arrombada de prisão. O vulto lembrava agora um dos cavaleiros do Apocalipse, desapontado com o ritmo de seu ataque. Então, a ponta do mar­telo de batalha explodiu contra o portão, quase esmagando uma pequena garça que, desatenta, passava num vôo lento e rasante. Jack pôs a mão na frente dos olhos para se proteger. O “martelo de ferro” caiu das mãos do cavaleiro. Houve outra pausa, breve mas suficiente para Jack pensar na possibilidade de atra­vessar de novo para o outro mundo. Então, o próprio punho do cavaleiro quis paralisar o movimento do portão. Depois desistiu, pegou de novo o martelo e tentou alargar o buraco na parte de madeira. Também não conseguiu. Um segundo depois, cavaleiro e martelo eram empurrados pelo movimento do portão. O cavaleiro caiu. O martelo esmagou grande parte da sua mão direita.

A cena ondulou. Jack pôde ver agora o enorme vulto da armadura se levantando (ou meramente se sacudindo num clímax de dor nas sombras do Bar das Garças). A armadura não era mais a mesma que se defrontara com Jasão no interior de um castelo negro. A outra tinha um elmo quase cilíndrico e uma pluma vermelha em cima; o novo vulto usava um elmo que lembrava a cabeça de um pássaro esculpido em ferro. Na altura das orelhas, de ambos os lados do capacete, cresciam chifres. Jack viu um peitoril de tipo medieval, um conjunto de proteções de ferro, cravos e entalhes por toda parte. O martelo continuara o mesmo em ambos os mundos e, em ambos os mundos, os cavaleiros-Duplos o empregaram simultanea­mente... O que, sem dúvida, não deixara de ser um tanto ridículo. Quem precisaria de tal instrumento de batalha para enfrentar um oponente tão indefeso quanto Jack/Jasão?

Corra, Jack! Corra!

Tudo bem, o hotel murmurou. Corra! Ê isso que os gatunos de sua laia devem sempre fazer! Corra! Corra!

Mas ele não correu. Podia morrer, mas não ia fugir. Porque aquela voz maliciosa, sussurrante, não deixava de ter razão. Correr era exatamente o que faria um gatuno.

Mas eu não sou um gatuno!, Jack pensou severamente. Essa coisa aí na minha frente pode até me matar, mas não vou correr. Porque não sou ladrão!

— Não vou correr! — Jack gritou para o rosto polido do pássaro de ferro. — Não sou ladrão, está ouvindo? Vim buscar aquilo que me pertence e não sou ladrão!

Uma mistura de grito e gemido saiu dos buracos de respiração no elmo em forma de cabeça de pássaro. O cavaleiro ergueu os punhos com cravos e farpas, depois os deixou cair... Eles se soltaram do corpo, um para a direita, outro para a esquerda. A pintura sobre a porta quase se extinguiu. Os gonzos es­talaram e a porta caiu sobre o cavaleiro. Jack viu um resto de pintura, um fragmento retratando uma garça, sair voando como um pássaro numa cena fantástica de desenho animado de Disney. Os olhos da garça brilhavam e revelavam enorme terror.

O cavaleiro livrou-se da porta e avançou em sua direção como um robô assassino (os pés estala­vam no chão). Teria, sem dúvida, mais de dois metros de altura. Ao atravessar o umbral, os chifres do elmo tiraram pedaços da esquadria superior. Aqueles chifres pareciam aspas. Aspas introduzindo algum recado decisivo das forças do mal que se emboscavam no interior do Hotel Negro.

Corra!, uma voz lamurienta gritou na mente de Jack.

Corra, gatuno!, foi o eco do hotel.

— Não! — Jack respondeu. Empinou a cabeça para o cavaleiro que avançava e sua mão apertou com força a palheta de violão guardada no bolso. Punhos afiados ressurgiram na ponta dos antebraços e se espicharam até o visor do elmo em forma de cabeça de pássaro. O elmo foi levantado. Jack ficou boquiaberto.

O interior do elmo estava vazio.

Então, punhos cheios de pinos se esticaram para Jack Sawyer.

 

Os punhos ameaçadores seguravam com força o capacete em forma de cilindro. Começaram lentamente a erguê-lo e, sobre o pescoço vazio, foi surgindo o rosto desfigurado, lívido, de um homem que parecia ter pelo menos 300 anos de idade. Um dos lados da cabeça fora despedaçado. Lascas de osso (lembrando cascas quebradas de ovos) se espalhavam pela pele, e a ferida exibia uma espécie de massa escura, que Jasão acreditou fazer parte de um cérebro apodrecido. A cabeça não respirava, mas os olhos vermelhos que contemplavam Jasão faiscavam com uma indizível fúria. A cabeça arreganhava os dentes. Jasão reparou que os dentes eram afiados como agulhas, capazes de rasgá-lo em pedacinhos.

Cambaleante, a coisa avançou. Um barulho metálico, oco... Mas havia outro som.

Ele se virou para a esquerda, para o principal vestíbulo

(para o saguão)

do castelo

(do botei)

e viu um segundo cavaleiro, este usando um capacete achatado, com um formato de bacia, conhe­cido como “O Grande Elmo”. E atrás dele havia um terceiro... e depois um quarto. Eles se aproximavam lentamente pelo corredor, movendo armaduras de antigos e leais guerreiros que, agora, alojavam uma es­pécie terrível de vampiro.

Então as mãos o agarraram pelos ombros. Os pinos rombudos das luvas que cobriam os punhos arranharam seus ombros e braços. Sangue quente fluiu do seu corpo e a face lívida e distorcida se repu­xou ainda mais num hediondo e ávido sorriso. As juntas dos cotovelos estalaram quando o espectro de cavaleiro o puxou.

 

Jack berrou de dor — as pontinhas curtas dos pinos estavam entrando, entrando em seu corpo, e ele compreendeu de uma vez por todas que aquilo era real, compreendeu de uma vez por todas que, daí a poucos momentos, a coisa ia matá-lo.

Ele fora puxado para a devoradora, vazia escuridão dentro do capacete...

Mas haveria realmente um vazio ali?

Jack teve uma difusa, vaga impressão de ver um duplo clarão vermelho... alguma coisa semelhante a olhos. E à medida que as mãos do espectro o puxavam, ele ia sentindo um frio crescente, como se todos os invernos de sua vida tivessem se juntado, transformando-se num único inverno. Aquele rio de ar glacial escoava do elmo vazio.

Essa coisa vai realmente me matar e minha mãe vai morrer; Richard vai morrer; Sloat sairá vitorio­so. Essa coisa vai me matar, vai me...

(estraçalhar, me abrir o corpo com os dentes)

vai me congelar de frio...

— jack! — gritou a voz de Speedy.

(— Jasão! — gritou a voz de Parkus)

— A palheta, rapaz! Use a palheta! Antes que seja tarde demais! pelo amor de jasão, use a palheta antes que seja tarde demais!

A mão de Jack apertou a palheta. Estava quente como a moeda no Campo Prontidão. O frio entor­pecedor foi substituído por uma súbita sensação de triunfo avassalador. Ele tirou a palheta do bolso, gri­tando de dor quando os músculos vergaram contra os pinos que os perfuravam, mas sem perder aquele sentimento de triunfo — aquela fascinante sensação de calor dos Territórios, aquela nítida sensação de ar­co-íris.

A palheta estava em seus dedos, um pesado e forte triângulo de marfim, trabalhado e incrustado com insólitos desenhos. E, nesse momento, Jack

(e Jasão)

viu aqueles desenhos se transformarem num rosto: o rosto de Laura DeLoessian.

(o rosto de Lily Cavanaugh Sawyer.)

 

— Em nome dela, sua coisa imunda, abortada!— eles gritaram em conjunto (mas foi um único grito: o grito daquela natureza única, Jack/Jasão). — Desapareça da face deste mundo! Em nome da rainha e em nome de seu filho, desapareça da face deste mundo!

Jasão aproximou a palheta de violão do rosto branco, esquálido, da velha coisa-vampiro dentro da armadura; no mesmo instante ele resvalou sem piscar para seu eu-Jack e viu a palheta mergulhar num gla­cial vazio negro. Houve outro momento como Jasão quando os olhos vermelhos da coisa-vampiro se esbugalharam com um ar de descrença vendo a palheta se aproximar das rugas profundas no centro de sua testa. Um momento depois, já bastante embaçados, os olhos explodiram e um fluido negro, fumegante, escorreu para a mão e para o pulso de Jack/Jasão. O lúgubre cavaleiro estava cheio de pequenos mas perigosos vermes.

 

Jack foi jogado para trás e bateu com a cabeça na parede. Apesar disso, e da pro­funda e latejante dor nos ombros e no alto dos braços, continuou segurando a palheta.

A armadura sacolejou como um espantalho feito de lata. Jack teve tempo de ver a coisa se dilatan­do, inchando, e, num gesto instintivo, levantou a mão para proteger os olhos.

A couraça da armadura se autodestruiu. Não espalhou estilhaços com um grande estrondo, sim­plesmente caiu em pedaços. Jack pensou que, se estivesse vendo aquela cena num filme (em vez de estar participando dela ao vivo, no sombrio corredor de um hotel fedorento, com o sangue escorrendo pelas axilas), sem dúvida teria achado graça. O polido elmo de aço, tão semelhante a uma cabeça de pássaro, caiu no chão com um baque surdo, metálico. A placa da garganta, destinada a impedir que uma espada ou uma lança inimiga atravessassem a goela do cavaleiro, caiu para dentro da couraça da armadura com um pesado retinir de anel de ferro. As proteções dos braços soltaram-se dos suportes como panelas ve­lhas. Os revestimentos das pernas se despedaçaram. Por um ou dois segundos, o tapete mofado ficou cheio de pedaços de metal. Depois, sobrou apenas uma pilha de alguma coisa que lembrava restos de fer­ro velho.

Jack continuou encostado na parede, os olhos arregalados, como se esperasse que, a qualquer mo­mento, a armadura se recompusesse. Achou que não era nada impossível que algo assim acontecesse. Mas, quando viu que o ferro velho continuava inerte no tapete, virou a cabeça, caminhou para o saguão... e deparou-se com mais três cavaleiros de armadura, avançando lentamente em sua direção. Um deles conduzia um estandarte esfarrapado, amarelado, um símbolo com estampado que Jack reconheceu: ele já o vira flutuando nas bandeiras carregadas pelos soldados de Morgan de Orris enquanto esperava a dili­gência preta passar em disparada pela Estrada dos Postos de Fronteira na direção do pavilhão da Rainha Laura. Lá estava o emblema de Morgan! As criaturas pareciam carregar com grande orgulho o estandarte, como se aquele assustador corruptor de mundos fosse a própria razão de suas existências.

— Já basta! — Jack sussurrou asperamente. A palheta tremeu entre seus dedos. Alguma coisa tinha acontecido àquele pequeno talismã; talvez tivesse sido irremediavelmente danificado quando ele teve de usá-lo para destruir a armadura que saíra do Bar das Garças. O marfim, antes da cor de sorvete de creme, ficara nitidamente amarelo. Pequenas rachaduras atravessavam-no de lado a lado.

As ferragens das armaduras rangiam com passo firme em sua direção. Um dos cavaleiros puxou uma longa espada que terminava numa ponta dupla, de aparência cruel.

— Já basta! —Jack gemeu. — Oh, Deus, por favor, já chega! Estou cansado, não posso mais supor­tar, por favor, já chega, já chega...

Velho Jack, Jack Viajante...

— Speedy, eu não posso!— ele gritou. Lágrimas atravessaram a sujeira de seu rosto. Com a inevita­bilidade de robôs de aço, os cavaleiros se aproximavam em fila indiana. Um vento ártico assobiava pelas fendas frias e negras das couraças.

... você virá à Califórnia buscá-la.

— Por favor, Speedy, não agüento mais!

Os cavaleiros avançavam — metal frio e negro, corpos de autômatos, ranger de ferrugem, telas de proteção manchadas, salpicadas de musgo e mofo.

Você tem de conseguir, Jack Viajante, Speedy suspirava, ofegante. Então a voz dele se extinguiu e Jack ficou sozinho, para viver ou morrer por sua própria conta.

 

JACK E O TALISMÃ

Você cometou um erro, disse uma voz fantasmagórica dentro da cabeça de Jack Sawyer. Ele permanecia imóvel diante do Bar das Garças, vendo novos cavaleiros de armadura avançarem devagar. Um olho se arregalou em sua mente e viu um homem furioso (um homem que, na realidade, não passava de um menino crescido) caminhando na direção da câmara por uma pequena rua empoeirada do faroeste. O homem lutava desajeitadamente com os dois revólveres que tirara do cinturão. Você cometeu um erro. Você tinha de matar os dois irmãos Ellis!

 

De todos os filmes em que a mãe trabalhara, o preferido de Jack sempre foi O último trem para Hangtown, rodado em 1960 e exibido em 1961. Era uma produção da Warner Brothers e os principais papéis (como em quase todos os filmes de baixo orçamento feitos pela Warner nesse período) foram desempenhados por atores da meia dúzia de séries de TV que a empresa mantinha em produção constante. Jack Kelly, do Maverick, participava de O último trem como o “jogador bom caráter”, e Andrew Duggan, do seriado Bourbon Street Beat, figurava como o “diabólico barão do gado”. Clint Walker, que Obtivera grande sucesso nas telas de TV com um personagem chamado Cheyenne, aparecia como Rafe Ellis (o xerife aposentado que pela última vez teria de voltar a usar os revólveres). Inger Stevens fora chamada para o papel da dançarina do Salão (com braços aconchegantes e coração de ouro), mas a Srta. Stevens pegou uma forte bronquite e teve de ficar de cama. Então, Lily Cavanaugh foi convocada para substituí-la. Era um papel tão simples que, mesmo em estado de coma, Lily teria sido capaz de executá-lo de forma competente. Certa vez, quando os pais achavam que ele já tinha dormido e conversavam à vontade na sala, Jack ouviu a mãe dizer uma coisa bastante interessante (estava passando descalço pelo corredor para ir ao banheiro). Uma coisa interessante e suficientemente chocante para ser lembrada a vida inteira.

— Em todos os meus papéis — Lily dissera a Phil —, as mulheres sabem muito bem foder, mas ne­nhuma delas sabe peidar.

Will Hutchins, que fora astro de outra produção da Warner (um filme chamado Pés de melado). também estava no filme. O último trem para Hangtown era a fita predileta de Jack justamente por causa do personagem interpretado por Hutchins. Foi este personagem — chamado Andy Ellis — que penetrou em sua mente cansada, enquanto os cavaleiros de armadura marchavam em sua direção pelo corredor escuro.

Andy Ellis fora o irmão-covardemente-enganado-que-perde-a-cabeça-no-último-rolo. Após esca­pulir de mil perigos durante todo o filme, ele acaba se defrontando com Duggan, um desalmado bandido (interpretado pelo sinistro, atarracado e estrábico Jack Elam, chefe de quadrilha em inúmeros faroestes da Warner, tanto no cinema quanto na TV) que matara pelas costas seu irmão Rafe.

Hutchins começava a descer a rua empoeirada, da largura da tela, as mãos se aproximando desajei­tadamente dos revólveres no cinturão.

— Vamos lá! Vamos lá! — gritava. — Estou à sua espera! Você cometeu um erro! Você tinha de matar os dois irmãos Ellis!

Will Hutchins nunca fora considerado um astro de primeira grandeza, mas naquela cena, pelo me­nos aos olhos de Jack, atingira um momento de grande autenticidade e real brilhantismo. Havia uma sensação de que o homem caminhava para a morte (pois Duggan vinha acompanhado de todo o seu bando) e que, apesar de saber disso, continuava caminhando com passo firme e cabeça erguida. Mesmo assusta­do, Andy Ellis não revelava a menor relutância em seu ato de vingança; avançava decidido, sem a menor dúvida sobre o que devia fazer, embora os gestos de Hutchins tivessem se embaralhado um pouco quan­do ele precisou puxar as armas do cinturão.

As armaduras avançavam, encurtando cada vez mais a distância, oscilando de um lado para o outro como estranhos robôs. Devem ter pinos elétricos atrás da cabeça, Jack pensou.

Ele se virou para enfrentá-los, a palheta amarela suspensa entre o polegar e o indicador da mão di­reita (como se ele fosse dedilhar uma corda).

Os cavaleiros pareceram hesitar. Talvez estivessem um tanto amedrontados com o destemor que brotara no rosto de Jack. O hotel inteiro pareceu hesitar. Como se arregalasse os olhos diante de um peri­go que se mostrava maior do que parecera à primeira vista. As tábuas do chão rangeram.

As portas foram se fechando, uma atrás da outra. Nos telhados, os cata-ventos devem ter parado de rodopiar por um instante.

Então as armaduras retomaram o passo. Agora marchavam num movimento sincronizado, ritmado pelo clangor das chapas de metal, dobradiças e argolas de encaixe. Os elmos, os revestimentos dos braços e das pernas pareciam cintilar. Os punhos exibiam pinos afiados, cortantes. Um deles carregava o martelo de ferro; outro segurava a perigosa espada de ponta dupla.

E, de repente, foi Jack quem começou a avançar na direção dos punhos. Seus olhos se iluminaram; ele apertava contra o peito a palheta de violão. O rosto se inundava com aquele brilho radiante de seu lado Jasão. Ele resvalou,

atravessou

momentaneamente para os Territórios

e se transformou em Jasão; lá, o dente de tubarão, que no outro mundo era uma palheta de violão, pareceu se inflamar. Quando chegou perto dos três cavaleiros, um deles tirou o capacete, revelando outro daqueles velhos e pálidos rostos — dessa vez um rosto ainda mais coberto de papadas; a própria nuca tinha dobras que lembravam estranhos lençóis de cera. A coisa atirou o capacete na direção de Jasão. Ele se esquivou facilmente e

tornou a resvalar

para seu eu-Jack quando o elmo atingiu a almofada da parede. De pé na sua frente havia um cavaleiro sem cabeça.

Acha que pode me assustar?, ele pensou com desprezo. Já conheço esse truque. Ele não me assusta, você não me assusta e eu vou lhe dar uma lição, pode ter certeza!

Dessa vez ele não apenas sentiu o hotel ouvindo; dessa vez o hotel pareceu recuar ao seu redor, como se o tecido de um órgão digestivo pudesse se distanciar de um pedaço contaminado de carne. Na parte superior, cinco Cavaleiros Guardiães morreram em cinco salas e cinco janelas se escancararam como tiros de revólver. Jack deu um passo à frente para a coleção de armaduras.

De algum lugar, com sua límpida, doce e triunfante voz, o talismã entoava:

Jasão! Venha para perto de mim!

— Em frente! — Jack gritou diante das armaduras e começou a rir. Foi um riso incontrolável. Jamais em sua vida sentira um ímpeto tão grande, tão forte, tão gostoso de rir; era como água brotando de uma fonte ou correndo num rio profundo. — Venham, estou à espera de vocês! Não sei de que maldita Távola Redonda vocês saíram, mas podem ter certeza que não deviam ter vindo! Vocês cometeram um mo!

Rindo mais forte que nunca, mas tão decidido quanto Wotan no rock das Valquírias, Jack pulou para o oscilante vulto sem cabeça à sua frente.

— Vocês deviam ter matado os dois irmãos Ellis! — ele gritou, e quando a palheta de violão de Speedy entrou na zona de ar congelado onde a cabeça do cavaleiro devia estar, toda a coleção de armaduras se desfez em pedaços.

 

Em seu quarto do Alhambra, Lily Cavanaugh Sawyer levantou subitamente os olhos do livro que estava lendo. Pensou ter ouvido alguém — não, não apenas alguém, Jack! — gritando do fundo do corredor deserto, talvez mesmo do saguão. Ficou atenta, olhos arregalados, lábios franzidos, co­ração aos pulos... mas não era nada. Jacky ainda não voltara, o câncer continuava a mordê-la e ainda falta­va uma hora e meia para ela tomar outro daqueles enormes comprimidos marrons que aliviavam um pou­co a dor.

Com freqüência cada vez maior, começara a pensar em tomar todos os comprimidos de uma vez. Isso faria mais do que simplesmente aliviar um pouco a dor; acabaria para sempre com ela. Dizem que es­sas coisas não têm cura. Portanto, não tenha medo, Sr. Câncer. Tente comer duas dúzias desses pulmões por dia. O que me diz disso? Não vale a pena?

Mas o que a impedia de tomar todos os comprimidos de uma vez só era Jack. Queria tanto vê-lo de novo que estava agora imaginando sua voz... uma voz que não se limitava à bobagem de chamá-la pelo nome, mas chegava a citar um trecho de um dos seus velhos filmes.

— Você está é ficando pirada, Lily! — ela grasniu e, com os dedos magros, trêmulos, acendeu um Herbert Tarrytoon. Deu duas tragadas e o apagou. Mais uma tragada e a tosse recomeçaria, uma tosse que pareceria rasgá-la por dentro. — Você está ficando pirada, Lily!

Pegou novamente o livro, mas não conseguiu ler, pois as lágrimas lhe caíam pelo rosto e os pul­mões doíam, doíam, oh, como eles doíam, e ela queria tomar o vidro inteiro dos comprimidos marrons, mas primeiro tinha de rever o filho, seu filho querido, com a testa bonita e os olhos brilhantes.

Volte para casa, Jacky, ela pensou. Por favor, volte logo pra casa ou, da próxima vez que quiser falar comigo, terá que ir a uma sessão espírita. Por favor, Jack, por favor, volte pra casa!

Fechou os olhos e procurou dormir.

 

O cavaleiro com os pinos nas redes do punho balançou mais um pouco, exibindo espaços vazios dentro da armadura, e depois também explodiu. O cavaleiro que restava levantou seu martelo de batalha... e, então, simplesmente se desintegrou num monte de ferragens. Jack ficou um ins­tante entre os destroços, ainda rindo. Depois examinou a palheta de violão de Speedy.

A palheta se tomara amarelada, um amarelo forte, envelhecido; a superfície polida exibia uma teia de rachaduras.

Não importa, Jack Viajante. Vá em frente. Talvez ainda haja mais uma dessas latas velhas andando por aí. Mas você não tem medo, certo? Se encontrá-la, aposto que saberá o que fazer!

— Claro que sim! — Jack murmurou em voz alta.

Chutou um revestimento de perna, um elmo, uma proteção para o peito. Atravessou a passos lar­gos o corredor, o tapete se esborrachando sob o tênis. Alcançou o saguão e olhou rapidamente ao redor.

Jack! Venha para perto de mim! Jasão! Venha para perto de mim!, o talismã entoava.

Jack começou a subir a escadaria. A meio caminho do topo, olhou para cima e viu o último cavalei­ro, imóvel, à espera dele. Era uma figura gigantesca, com mais de três metros de altura; a armadura e a pluma eram escuras, e um maligno clarão vermelho atravessava a viseira do capacete.

Um punho protegido com malha suspendia uma enorme maça.

Por um instante, Jack congelou no meio da escada. Depois, começou a subi-la de novo.

 

Guardaram o pior para o fim, Jack pensou, e enquanto avançava na direção do cavaleiro negro

resvalou

de novo

para seu lado Jasão. Aquele último cavaleiro também usava uma armadura negra, mas de um tipo diferente. A viseira estava levantada e exibia um rosto quase totalmente coberto por velhas feridas. Jasão as reconhecia. Por certo o sujeito se aproximara demais de uma daquelas bolas de fogo que rolavam pelas Terras Secas.

Outros vultos passavam a seu lado nos degraus. Vultos que ele não podia ver muito bem. Os de­dos seguiam um amplo corrimão que não era de mogno das Índias Ocidentais, mas de madeira crua dos Territórios. Os vultos foram adquirindo formas: homens com roupões de seda, mulheres com grandes pe­nhoares e capuzes muito brancos atirados para trás de cabelos esplendidamente penteados. Aquelas pes­soas eram bonitas, mas lúgubres — é esta sensação, sem dúvida, que os fantasmas transmitem aos vivos; afinal, por que outra razão a idéia de fantasmas inspiraria tamanho terror?

Jasão! Venha para mim!, o talismã cantava, e por um instante toda aquela fragmentada realidade pa­receu desmoronar de vez. Jack não atravessou, mas pareceu cair através de mundos como um homem co­lidindo contra o assoalho apodrecido de uma antiga torre de madeira, um andar após outro. Não sentiu medo. O pensamento de que talvez nunca mais pudesse retornar (de que talvez continuasse eternamente resvalando por um feixe de realidades distintas, perdido para sempre num grande bosque) sem dúvida lhe ocorreu, mas ele logo o afugentou. Tudo isso estava acontecendo a Jasão

(e a Jack)

num piscar de olhos; em menos tempo do que seu pé levaria para ir de um degrau a outro na escadaria. Ele ia voltar; era de uma natureza única e não acreditava que uma pessoa assim pudesse se perder num limbo — pois uma pessoa assim tinha um lugar em todos os mundos. Mas eu não existo simultaneamente em todos eles, Jasão

(Jack)

pensou. Isso é o que importa, essa é a diferença; estou atravessando uma infinidade de mundos, talvez depressa demais para vê-los de forma precisa. Deixo um rastro de som como uma torrente de aplausos ou um estrondo supersônico quando o ar se fecha no lugar onde, por um milionésimo de segundo, eu paro.

Em muitos desses mundos, o hotel era uma ruína negra — nos mundos, ele pensou sombriamente, onde o grande mal que agora fazia seu pêndulo oscilar entre a Califórnia e os Territórios já tinha se mani­festado. Num deles, o mar que rugia e se emaranhava na costa tinha um mórbido tom esverdeado; o céu lembrava uma gangrena. Em outro, havia uma criatura voando do tamanho de uma velha carruagem, as asas empinadas na direção da terra como asas de falcão. A criatura agarrou um bicho que parecia um car­neiro e depois voou para o alto, carregando no bico os quartos ensangüentados do animal.

Flap...flap...flap. Os mundos passavam pelos olhos de Jack como cartas embaralhadas por um jogador num navio.

Lá estava de novo o hotel, e Jack pressentiu meia dúzia de versões diferentes do cavaleiro negro, mas a intenção de cada um deles era a mesma e as diferenças eram tão secundárias quanto os modelos de carros de corrida. Jack viu uma tenda negra impregnada do cheiro seco de lona podre. A tenda estava ras­gada em muitos pontos de modo que o sol brilhava através dela em raios empoeirados, entrecortados. Na­quele mundo, Jack/Jasão era uma espécie de corda enroscada, e o cavaleiro negro se achava dentro de um cesto de madeira como um enorme filhote de corvo. Jack continuava a cruzar mundos e mundos, mundos e mundos...

Aqui, todo o oceano estava em chamas; ali, o hotel era muito parecido com o hotel de Point Venu­ti, só que meio submerso no oceano. Por um instante, Jack se sentiu num elevador, o cavaleiro de pé lá em cima, espiando pelo poço. Depois se viu numa rampa, cujo patamar era guardado por uma enorme serpente, o corpo comprido e musculoso revestido de brilhantes escamas negras.

E quando vou chegar ao fim disso tudo? Quando vou parar de cair através de andares e andares, abrindo ruidosamente caminho para a escuridão?

jack, Jasão!, o talismã chamava, e chamava em todos os mundos. venha para mim!

Jack foi para o talismã.

E foi como voltar para casa.

 

Sim, sem dúvida subira um único andar. Mas a realidade se solidificara outra vez. O cavaleiro negro (o seu cavaleiro negro, o cavaleiro negro de Jack Sawyer) continuava bloqueando o pata­mar. Erguia a maça.

Jack teve medo, mas continuou subindo, a palheta de Speedy estendida na mão.

— Não pretendo me meter com você — disse ele. — Mas é melhor sair do meu caminho...

A figura de negro brandiu a maça com uma força estupenda. Jack se esquivou. A maça bateu no degrau onde ele se encontrava e abriu um buraco na madeira.

O vulto puxou a maça. Jack subiu mais dois degraus, a palheta de Speedy sempre estendida entre o polegar e o indicador... De repente, ela simplesmente se desintegrou, caindo como um chuvisco amare­lado de fragmentos de marfim. Fragmentos salpicaram os tênis de Jack. Ele os fitou com ar estúpido.

Barulho do riso de um morto.

A maça, minúsculas lascas de madeira e farrapos do velho e úmido tapete da escada ainda gruda­dos nela, ergueu-se nos dois punhos encouraçados do cavaleiro. O clarão incandescente do espectro cru­zou a viseira do capacete. Lançou, no osso do nariz de Jack, uma mancha horizontal cor de sangue.

De novo aquele riso rude — não ouvido com as orelhas, pois ele sabia que a cabeça daquela arma­dura estava vazia como todas as outras (não passava de uma couraça de aço para um espírito errante), mas ouvido dentro de sua cabeça. Você perdeu, rapaz. Acha então que aquela coisinha em sua mão ia fa­zê-lo passar por mim?

A maça assobiou de novo, dessa vez em diagonal. Jack tirou os olhos daquele clarão vermelho bem a tempo de se abaixar. Sentiu a ponta da maça atravessar a camada superior de seu cabelo longo (um segundo antes de cortar um pedaço de mais de um metro do corrimão e atirá-lo longe).

Houve um estalo seco de metal quando o cavaleiro se inclinou para ele. De, certa forma, o capacete inclinado era uma hedionda e sarcástica paródia de cortesia. Então a maça recuou e de novo se ergueu para outro daqueles formidáveis golpes.

Jack, você não precisou do suco mágico para atravessar, e você também não precisa de qualquer palheta mágica para vencer este monte de latas!

A maça veio explodindo pelo ar — wwvuuuuuuuuuuu! Jack recuou cambaleando, encolhendo a barriga; os músculos em seus ombros rangeram ao contornarem as perfurações que os pinos das luvas do outro cavaleiro tinham feito.

A maça passou a menos de um centímetro da pele de seu peito e arrancou toda uma fileira de grossos balaústres de mogno (como se eles fossem palitos). Jack tateou no vazio, como estranho personagem de desenho animado. Esbarrou nos pedaços destruídos do corrimão à esquerda e pequenas lascas se cravaram embaixo de duas de suas unhas. A dor foi tão violenta que por um momento ele achou que suas pálpebras iam explodir. Sacudindo a mão direita, foi capaz de se equilibrar e não cair.

Toda a magia está em você, Jack! Ainda não entendeu isso?

Jack ficou parado mais um instante, ofegante; depois tornou a olhar para o alto da escada, encaran­do o rosto vazio de ferro.

— É melhor sair daí, Sir Gawain!

O cavaleiro tornou a inclinar o capacete para a frente. Um gesto estranhamente cortês. Desculpe, meu jovem, mas será que realmente ouvi sua voz? Então, sacudiu outra vez a maça.

Talvez cego pelo medo, Jack ainda não tivesse reparado como era vagaroso o movimento da maça, com que clareza ela executava a trajetória de cada golpe. Talvez as juntas do cavaleiro estivessem enferru­jadas... Sem dúvida, agora que suas idéias estavam claras, seria mais fácil mergulhar pelo meio daquele círculo feito pelo movimento da maça.

Ficou na ponta dos pés, esticou os braços e pegou o capacete negro com as duas mãos. O metal estava nauseantemente quente. Era como uma pele febril.

— Saia da face deste mundo — disse ele num tom baixo e calmo, quase íntimo. — Em nome dela, eu lhe ordeno.

A luz vermelha no capacete se apagou como vela dentro de uma abóbora no Dia das Bruxas. De repente o peso do elmo — pelo menos oito quilos — estava todo nas mãos de Jack, pois não havia mais nada que o sustentasse; a couraça de ferragens sob o capacete tinha desmoronado.

— Você devia ter matado os dois irmãos Ellis! — Jack gritou e atirou o elmo vazio no patamar. Ele atingiu o chão com estrondo e rolou como um brinquedo. O hotel pareceu se encolher.

Jack virou-se para o amplo corredor do segundo andar. Ali estava claro: havia luz, limpidez, como no dia em que vira os homens voadores no céu. O corredor terminava em outro conjunto de portas du­plas e as portas estavam fechadas, mas vinha luz suficiente por cima e por baixo delas, assim como pelas fendas verticais onde elas se juntavam. Sem dúvida, a luz que havia lá dentro devia ser muito brilhante.

Ele queria desesperadamente ver aquela luz, ver a fonte daquela luz; viera de longe, cruzando a mais amarga escuridão, para encontrar-se com ela.

As portas eram pesadas e tinham delicadas incrustações em forma de arabescos. Sobre elas, em le­tras douradas um pouco lascadas, mas ainda perfeitamente legíveis, estava escrito: salão de baile dos territórios.

— Ei, mamãe... — disse Jack Sawyer com uma voz suave, fascinada, enquanto caminhava para aquele brilho. A felicidade enchia-lhe o coração: aquela sensação era arco-íris, arco-íris, puro arco-íris! — Ei, mamãe, acho que cheguei, acho mesmo que cheguei!

Suavemente, com respeito e temor, Jack agarrou uma maçaneta em cada mão e empurrou as por­tas, que se abriram, e um brilhante feixe de pura luz banhou-lhe o rosto erguido, fascinado.

 

Por acaso Sunlight Gardener inspecionava a praia no momento exato em que Jack despachava o último dos cinco Cavaleiros Guardiães. Ouviu um estrondo abafado, como se uma pe­quena carga de dinamite tivesse explodido em alguma parte do hotel. No mesmo instante uma luz bri­lhante faiscou por todas as janelas do segundo andar do Agincourt. Todos os cata-ventos de lata (em for­matos de luas, estrelas, planetóides e estranhas setas retorcidas) pararam ao mesmo tempo.

Gardener lembrava um dos sinistros membros da SWAT de Los Angeles. Vestia um inflado casaco de estilo militar sobre a camisa branca e transportava, num dos ombros, um rádio envolto por uma correia de lona. A antena grossa e curta oscilava de um lado para o outro quando ele se movia. De seu outro om­bro, pendia um Weatherbee 360. Era um rifle de caça quase tão grande quanto uma metralhadora antiaé­rea; teria feito o próprio Robert Baxk babar de inveja. Gardener o comprara há seis anos, após as circuns­tâncias terem-no convencido de que devia se livrar de seu velho rifle de caça. O estojo de pele genuína de zebra do Weatherbee estava na mala de um Cadillac preto, ao lado do corpo do filho.

— Morgan!

Morgan não se virou. Estava de pé atrás dele, ao lado de um escarpado conjunto de rochas que se abriam na areia como dentes de serpentes. Seis ou sete metros além dessas rochas, e apenas a um metro da maré alta, jazia Speedy Parker... ou Parkus. Como Parkus, ele tinha ordenado que Morgan de Orris fos­se marcado. Havia nítidas cicatrizes na parte interna das grandes coxas brancas de Morgan de Orris, mar­cas pelas quais um traidor é conhecido nos Territórios. Fora só pela intercessão da Rainha Laura que aquelas cicatrizes não tinham se espalhado pelas faces em vez da parte interna das coxas, onde ficavam quase sempre ocultas pelas roupas. Morgan — ambos os Morgans — não se mostrou mais simpático à rai­nha por essa intercessão... mas o ódio por Parkus, que conseguira desmascarar aquela primeira trama, crescera muito.

Agora Parkus/Parker jazia de bruços na praia, a cabeça cheia de feridas inflamadas. O sangue lhe jorrava sem parar dos ouvidos.

Morgan queria acreditar que Parker ainda estava vivo, ainda sofria, mas o último movimento per­ceptível de suas costas fora pouco depois que ele e Gardener chegaram àquelas rochas, cerca de cinco minutos atrás.

Quando Gardener gritou, Morgan não se virou porque estava embevecido com o exame do velho inimigo Parkus, agora definitivamente abatido. Quem disse que a vingança não gratificava estava redon­damente enganado.

  • Morgan! — Gardener tomou a sibilar.

  • Dessa vez Morgan se virou e franziu a testa:

    — O que há?

    — Olhe! O telhado do hotel!

    Morgan viu que todos os cata-ventos (velhas formas de lata que rodopiavam exatamente à mesma velocidade, quer o vento estivesse absolutamente calmo ou uivasse num furacão) tinham parado de se mover. Nesse instante, a terra tremeu ligeiramente, mas logo voltou a se aquietar. Foi como se um mons­tro subterrâneo de enorme tamanho tivesse se sacudido em sua hibernação. Se não fosse pelo arregalar dos olhos injetados de Gardener, Morgan teria sido capaz de acreditar que imaginara tudo aquilo. Aposto que já se arrependeu amargamente de ter fugido de Indiana, não é, Gard?, Morgan pensou. Não há terre­motos em Indiana, certo?

    Uma luz silenciosa brilhou de novo em todas as janelas do Agincourt.

    — O que isto significa, Morgan? — Gardener perguntou asperamente. Sua fúria insana pela perda do filho tinha se transformado em medo. Aquele medo podia causar problemas, Morgan percebeu, mas se fosse preciso, Gardener poderia ser incitado a recuperar seu frenesi de cólera. Só que era um trabalho a mais, uma chatice. Naquele momento, Morgan não queria desperdiçar idéias ou energia com nada que não se referisse diretamente à questão de conquistar o mundo (todos os mundos), ao problema de arrebatar essa conquista das mãos de Jack Sawyer. Um garoto que começara a atormentá-lo como uma peste passageira, mas que acabara se transformando no mais monstruoso problema de sua vida.

    O rádio de Gardener começou a zumbir.

    — Líder Quatro do Esquadrão Vermelho para Sunlight! Responda, Sunlight!

    — Sunlight na escuta, Líder Quatro do Esquadrão Vermelho — Gardener berrou. — Continue!

    Em rápida sucessão, Gardener recebeu quatro nervosos, afobados relatórios que eram exatamente idênticos. Não havia qualquer informação que ele e Morgan não tivessem visto com os próprios olhos: faiscar de luzes, cata-ventos parados, alguma coisa que parecera um abalo sísmico ou mesmo um pequeno terremoto. Ainda assim, Gardener recebia com delirante excitação cada detalhe dos informes, fazendo perguntas abruptas sobre coisas que já sabia, gritando Tudo bem! ao término de cada transmissão, interrompendo freqüentemente o interlocutor: Mensagem não recebida, repita!, Mensagem não entendida, Gardener na escuta! Sloat, porém, agia com a frieza de um ator coadjuvante num filme-catástrofe.

    Sloat estava bem. O rádio o livrara de ter de responder à pergunta de Gardener... Se bem que não fosse nada impossível que o próprio Gardener não quisesse ter sua pergunta respondida; talvez por isso é que se lançara naquele inútil envolvimento com o rádio.

    Os Cavaleiros Guardiães estavam mortos ou fora de ação. Era por isso que os cata-ventos tinham parado de rodopiar; era isso que os flashes de luz indicavam, Jack não tinha o talismã... pelo menos ainda não. Se já o tivesse nas mãos, as coisas em Pont Venuti iam realmente tremer, ranger, rolar. Mas Sloat ago­ra acreditava que Jack conseguiria pegá-lo, pois o garoto agira com determinação absoluta para chegar até ele. Isto, porém, não o intimidava.

    Suas mãos se ergueram e tocaram a chave em volta do pescoço.

    Gardener encerrara a balbúrdia com o rádio. Tornou a pôr o aparelho no ombro e contemplou Morgan com olhos arregalados, assustados. Antes que ele pudesse dizer uma palavra, Morgan pôs as mãos em seus ombros. Se fosse capaz de sentir carinho por mais alguém além de seu pobre filho morto, sentiria carinho (sem dúvida, de uma forma distorcida) por aquele homem. Já tinham caminhado um lon­go tempo juntos, tanto como Morgan de Orris e Osmond quanto como Morgan Sloat e Robert Sunlight Gardener.

    Fora com um rifle muito semelhante ao que agora lhe pendia do ombro que Gardener, em Utah, dera um tiro mortal em Phil Sawyer.

    — Escute, Gard — ele disse calmamente. — Nós vamos vencer.

    — Tem certeza disso? — Gardener sussurrou. — Acho que ele matou os Guardiães, Morgan! Sei que isso parece loucura, mas é realmente o que eu penso!

    Gardener se interrompeu, a boca um tanto trêmula, os lábios brilhando com uma fina membrana de saliva.

    — Vamos vencer — Morgan repetiu naquele mesmo tom calmo; e falou com sinceridade. Um sen­timento de predestinação se apoderara dele. Tinha esperado muitos anos por aquilo; sua resolução fora correta; permanecia correta agora. Jack sairia do hotel com o talismã nos braços. Era uma coisa de imenso poder... mas era frágil.

    Olhou para o rifle Weatherbee, capaz de derrubar um rinoceronte. Depois tocou a chave que atira­va raios.

    — Estamos bem equipados para enfrentá-lo quando ele sair de lá — disse Morgan, e acrescentou: — Estamos bem equipados em ambos os mundos. Pelo menos, se você conservar a fibra, Gard! Se cami­nhar comigo!

    Os lábios trêmulos se firmaram um pouco.

    — É claro que sim, Morgan, é claro que eu...

    — Não esqueça que foi Jack quem matou seu filho — Morgan falou em voz baixa.

    No mesmo instante em que Jack Sawyer encostara a moeda incandescente na testa de uma mons­truosidade dos Territórios, Reuel Gardener, que costumava sofrer pequenos ataques epilépticos, relativa­mente sem gravidade, desde os seis anos de idade (a mesma idade em que o filho de Osmond começara a dar sinais da chamada Doença das Terras Secas), teve um violento acesso na traseira do Cadillac que um Lobo degenerado guiava pela rodovia 1-70, de Illinois para a Califórnia.

    Roxo e sufocado, Reuel morrera nos braços de Sunlight Gardener.

    Os olhos de Gardener começaram a se projetar das órbitas.

    — Não esqueça — Morgan repetiu suavemente.

    — Garoto mau — Gardener sussurrou. — Como todos os garotos. É axiomático. Principalmente no caso desse guri!

    — Exatamente! — Morgan concordou. — Guarde essa idéia, Gard! Podemos detê-lo, mas quero ter certeza absoluta de que ele sairá do hotel por terra seca.

    Levou Gardener até a rocha onde estivera contemplando Parker. Moscas (inchadas e albinas) co­meçavam a cobrir o corpo do negro morto. Aquilo parecia uma bela pintura aos olhos de Morgan. Se hou­vesse um jornal de classificados anunciando alojamentos para moscas, Morgan anunciaria com muito pra­zer a locação de Parker. Veio a primeira, vieram todas. Depositariam ovos nas dobras de sua carne em processo de putrefação. E o homem que mandara marcar as coxas de seu Duplo se transformaria numa asquerosa fonte produtora de larvas. Sem dúvida, era uma imagem muito bonita.

    Ele apontou para o convés.

    — A balsa está lá embaixo — disse. — Parece um cavalo, só Deus sabe por quê! Está protegida pe­las pilastras. Mas você atira muito bem, Gard! Se conseguisse alvejá-la... perfurar aquela borracha com um ou dois balaços. Afundar aquela porra!

    Gardener tirou o rifle do ombro e pôs o olho na mira. Por um longo tempo o cano da arma desli­zou minuciosamente de um lado para o outro.

    — Já estou vendo a balsa — Gardener murmurou com alegria na voz e engatilhou o rifle. O estam­pido do tiro ecoou pela água numa trajetória ondulada, que acabou não tendo nenhum resultado. A bala mergulhou no mar. O cano do rifle se ergueu, depois se abaixou de novo. Gardener atirou mais uma vez. E mais outra.

    — Acertei! — disse Gardener, abaixando a arma. Sentia sua coragem voltar; sentia-se revigorado, cheio de fibra. Sorria como estava sorrindo ao ver cumprida aquela pequena missão em Utah. — Agora é só uma borracha vazia flutuando na água. Quer dar uma olhada na mira?

    Estendeu o rifle para Sloat.

    — Não — disse Sloat. — Se você diz que acertou, por que duvidar? Agora ele tem de voltar por ter­ra e sabemos que direção vai tomar. Acho que nos trará o que há tanto tempo estamos esperando.

    Gardener virou-se para ele, com os olhos brilhando.

    — É melhor irmos até lá — disse Morgan, apontando para o velho convés. Ele estava ao lado da cerca onde passara tantas horas contemplando o hotel e pensando no que havia no salão de baile.

    — Está bem...

    Foi então que a terra começou a rugir e ondular. Aquela criatura subterrânea tinha despertado... Estava sacudindo o corpo e rosnando.

    Nesse mesmo instante uma ofuscante luminosidade branca encheu cada janela do Agincourt: a luz de mil sóis. As janelas explodiram. Vidro voou para todos os lados em rajadas de diamante.

    — lembre do seu filho e venha comigo! — Sloat trovejou. Aquele sentimento de predestinação es­tava cada vez mais claro dentro dele, claro e indestrutível. Sem dúvida, estava predestinado a vencer!

    Os dois começaram a subir a areia ondulante da praia na direção do convés.

     

    Fascinado, Jack avançou devagar pelo chão de madeira do salão de baile. Olha­va para cima e os olhos brilhavam. Seu rosto estava banhado por uma clara radiância que era de todas as cores: cores da aurora, cores do pôr-do-sol, cores do arco-íris. O talismã pendia no ar bem acima dele, gi­rando lentamente.

    Era um globo de cristal com menos de um metro de circunferência. A coroa do círculo de luz tinha um brilho tão intenso que seria impossível dizer exatamente qual era o seu tamanho. Graciosas linhas curvas pareciam entalhar sua superfície, como linhas de latitude e longitude... E afinal, porque não?,Jack pensou, ainda deslumbrado de espanto e respeitoso temor. Afinal, ali estava o mundo — todos os mundos — em microcosmo. Melhor ainda, ali estava o eixo de todos os mundos possíveis.

    Cantando; rodopiando; ardendo.

    Ele permaneceu embaixo do globo, deixando-se inundar pelo seu calor e por uma nítida sensação de força benigna. Era como se estivesse imóvel no meio de um sonho, sentindo aquela força fluir para dentro dele como límpida chuva de primavera (despertando o poder oculto em bilhões de minúsculas se­mentes). Sentiu uma alegria selvagem atravessar como um foguete a mente consciente. Jack Sawyer le­vantou ambas as mãos, sorrindo, rindo. Um gesto de fascínio que acompanhava aquela alegria e parecia querer tocar sua fonte de origem.

    — Vim até você. Vim! — ele gritou,

    e resvalou

    (deslizou? atravessou?)

    para

    Jasão.

    — Vim até você. Vim! — ele tornou a gritar no suavemente cristalino, levemente escorregadio idioma dos Territórios. Gritava e ria, e lágrimas escorriam pelo seu rosto. Compreendeu que a busca começara com o outro rapaz, e com o outro rapaz devia ser concluída. Por isso se deixou levar

    e resvalou

    de volta,

    de novo para

    Jack Sawyer.

    Sobre sua cabeça, o talismã oscilava no ar, girando lentamente, transmitindo luz, calor e um senti­mento de verdadeira bondade, de pureza.

    — Venha para mim!

    O globo de luz começou a descer pelo meio do salão.

     

    Assim, após muitas semanas de duras aventuras, de escuridão e desespero; após encontros e desencontros com amigos; após dias de trabalho exaustivo, noites ao relento era úmidos montes de feno; após se defrontar com os demônios de lugares escuros (embora menos escuros que a sombra que habitou as fendas de sua própria alma), após tudo isso, foi assim que o talismã chegou a Jack Sawyer:

    Ele o viu descer e, embora não tivesse sentido qualquer impulso de fugir, teve uma arrasadora sensação de mundos em perigo, mundos em frágil equilíbrio. Seria seu eu-Jasão um ser verdadeiro? O filho da Rainha Laura fora morto; não passava de um fantasma cujo nome era invocado pelas pessoas dos Territórios. Jack, porém, logo concluiu que não era bem assim. A jornada que fizera em busca do talismã, uma busca originalmente destinada a Jasão, revivera, por algum tempo, o filho da Rainha Laura. Jack realmente tinha um Duplo, pelo menos até certo ponto. Se Jasão era um fantasma, assim como os cavaleiros eram fantasmas, poderia muito bem desaparecer para sempre quando aquele radiante e rodopiante globo tocasse a ponta de seus dedos estendidos. Jack o estaria matando outra vez. Não se preocupe, Jack, uma voz sussurrou. Era uma voz cálida e cristalina.

    Lá vinha ele, o globo, um mundo, todos os mundos — era esplendor e calor, era doçura, era a vinda da pureza. E por isso, como sempre tem acontecido com a pureza e deve sempre acontecer, o globo era terrivelmente frágil.

    O talismã descia. Mundos giravam sobre a cabeça de Jack. Ele não se sentia atravessando camadas de realidade, mas vendo todo um cosmo de realidades, umas se sobrepondo às outras, unidas como uma camisa de

    (realidade)

    malha.

    Você está esticando as mãos para pegar um universo de mundos, um cosmo de bondade, Jack, dizia-lhe a voz do pai. Não o deixe cair, filho. Pelo amor de Jasão, não o deixe cair.

    Mundos superpostos a mundos e mundos, alguns magníficos, outros infernais, todos brevemente iluminados pela cálida luminosidade branca daquela estrela, daquele globo de cristal adornado com um delicado entalhe de linhas. O globo descia lentamente pelo meio do salão para os dedos trêmulos e esten­didos de Jack Sawyer.

    — Venha para mim!— ele gritava, tentando repetir o canto do talismã. — Agora, venha para mim!

    Estava a um metro de suas mãos, inundando-as de um calor suave, saudável. Pouco depois, a 60 centímetros, 50, 30. O globo hesitou por um instante, rodopiando lentamente, seu eixo ligeiramente inclinado. Jack pôde ver o brilhante, oscilante contorno de continentes, oceanos e calotas polares em sua superfície. O globo hesitou... E então vagarosamente resvalou para as mãos estendidas.

     

    NOTÍCIAS DE TODA PARTE

    Lily Cavanaugh, que depois de ter imaginado a voz de Jack vindo de alguma parte do hotel caíra num sono agitado, sentou-se bruscamente na cama. Pela primeira vez, num período de se­manas, um colorido brilhante substituiu o amarelado tom de cera de seu rosto. Os olhos brilharam com uma selvagem esperança.

    — Jasão? — ela suspirou, e depois franziu a testa; esse não era o nome do filho. Mas no sonho do qual, num sobressalto, acabara de despertar, tinha um filho com esse nome, e nesse sonho fora outra pes­soa. Era o efeito do remédio, é claro. A droga tinha embaralhado extremamente os seus sonhos.

    — Jack? — ela chamou outra vez. — Jack, onde você está?

    Nenhuma resposta... mas ela o sentia, tinha certeza absoluta de que ele estava vivo. Pela primeira vez num longo período (seis meses, talvez), ela se sentiu realmente bem.

    — Jacky! — Lily chamou, e pegou o maço de cigarros. Contemplou-o por um momento e depois atirou o maço longe. Os cigarros caíram na lareira, em cima de algumas folhas de papel que ela pretendia queimar no fim do dia. — Acho que parei de fumar pela segunda e última vez na vida, Jacky! Volte pra cá, rapaz! Sua mãe gosta muito de você!

    E, aparentemente sem qualquer motivo, ela percebeu que seus lábios se abriam num grande, num absurdo sorriso.

     

    Donny Keegan, que trabalhava na cozinha da Casa do Sol quando Lobo escapou da caixa, conseguira sobreviver àquela terrível noite; George Irwinson, o rapaz que trabalhava ao lado dele, não teve tanta sorte. Agora Donny estava num orfanato mais convencional, em Muncie, Indiana. Ao contrário de muitos garotos da Casa do Sol, Donny era um verdadeiro órfão; Gardener precisara de alguns símbolos para satisfazer as exigências do Estado.

    Agora, passando um pano de chão num corredor escuro, Donny se sentiu um tanto atordoado e, arregalando os olhos embaçados, levantou bruscamente a cabeça. Lá fora, nuvens que manchavam a neve nos esgotados campos daquele frio de dezembro se abriram de repente no oeste, deixando escapar um estranho feixe de raios de sol, terrível, mas fascinante em sua isolada beleza.

    — Você tem razão, eu realmente o amo! — Donny gritou num tom de triunfo. Era para Ferd Janklow que Donny estava gritando, embora Donny, que tinha vento demais na cabeça para que o cérebro pudesse funcionar direito, já tivesse esquecido o nome dele. — Ele é muito bonito e eu realmente o amo!

    Donny relinchou seu riso meio idiota, só que, naquele momento, aquele riso foi quase bonito. Alguns companheiros do orfanato espreitaram pelas portas dos quartos, maravilhados com a imagem de Donny. Seu rosto estava banhado pela luz do límpido e efêmero feixe de sol; naquela noite, um dos garo­tos cochicharia para um amigo íntimo que, por um instante, Donny Keegan ficara igualzinho a Jesus.

    O momento passou; as nuvens taparam aquele estranho espaço aberto no céu, e à noite a neve aumentou, dando início à primeira grande tempestade de inverno daquele ano. Donny percebeu — por um breve instante ele realmente percebeu — o que aquela sensação de amor e triunfo significava. O momento passou (do modo como passam os sonhos ao despertar), mas ele nunca esqueceria o que sentiu, aquele quase vertiginoso sentimento de graça, uma realização completa e sem restrições (em vez de apenas uma promessa ou uma esperança jamais atingidas). Era um sentimento de claridade e doçura, de perfeito amor. Um sentimento de êxtase acompanhando a chegada da neve branca.

     

    O juiz Fairchild, que mandara Jack e Lobo para a Casa do Sol, não era mais juiz. Assim que seu segundo julgamento confirmasse a sentença inicial, ele seria posto no xadrez. E, sem dúvida, seus dias na cadeia iam ser bem desagradáveis. Talvez nunca mais saísse de lá. Era um homem ve­lho e tinha a saúde abalada. Se não houvessem encontrado os malditos corpos...

    Tentara enfrentar aquela situação com o máximo de sangue-frio, mas agora, em seu escritório, em casa, limpando as unhas com a comprida lâmina do canivete que trazia no bolso, uma grande e negra onda de depressão se abateu sobre ele. De repente afastou o canivete das unhas, contemplou-o pensati­vamente, e depois enfiou a ponta da lâmina na narina direita. Conservou-a algum tempo ali e murmurou:

    — Oh, merda!... Por que não?

    Impulsionou o punho para cima, fazendo os 15 centímetros de lâmina executarem uma trajetória curta e letal, perfurando primeiro toda a cavidade do nariz, depois o cérebro.

     

    Smokey Updike estava sentado num compartimento da Taberna Oatley, remexen­do em contas e pressionando as teclas de sua calculadora eletrônica Texas (assim como fazia no dia em que conheceu Jack). Escurecera há pouco, e Lori estava servindo os primeiros fregueses da noite. A vitrola automática tocava Eu prefiro ter uma garrafa na minha frente (a uma lobotomia frontal).

    Naquele momento, tudo estava normal. Um segundo depois, Smokey deu um solavanco na cadeira, e o pequeno gorro de papel escorregou para trás. Ele apertou a camiseta branca do lado esquerdo do peito. Sentiu uma violenta pontada de dor, como se lhe tivessem enfiado a ponta de um punhal. Que vá para o diabo!, Jack teria dito.

    Nesse mesmo instante a grelha explodiu com enorme estrondo. Uma grande lasca atingiu uma ta­buleta com um anúncio da Busch; a tabuleta despencou do teto e se espatifou no chão. Quase de imedia­to um forte cheiro de gás inundou a área atrás do balcão. Lori gritou.

    A rotação da vitrola automática começou a acelerar: 45 rotações por minuto, 78, 150, 400! O lamen­to tragicômico da cantora acabou se transformando num silvo de foguete na plataforma de lançamento. Em seguida, a tampa da vitrola também explodiu. Estilhaços coloridos de vidro voaram por toda parte.

    Smokey baixou os olhos para a calculadora e viu uma única palavra piscando sem cessar na janeli­nha vermelha:

    Talismã — Talismã — Talismã — Talismã

    Então seus olhos explodiram.

    — Lori, desligue o gás!— um dos fregueses gritou. Ele pulou do banco e virou-se para Smokey. — Smokey, diga a ela... — O homem gritou de medo quando viu sangue jorrando dos buracos onde, antes, ficavam os olhos de Smokey Updike.

    Daí a pouco, toda a Taberna Oatley voava pelos ares e, antes que os bombeiros chegassem, a maior parte do centro da cidade estava em chamas.

    Não foi uma grande perda, rapazes, digam aleluia!

     

    No colégio Thayer, onde agora a normalidade reinava como sempre tinha reina­do (excluindo aquele breve interlúdio de que o pessoal do campus só se recordava como uma série de so­nhos vagos, apesar da semelhança entre eles), as últimas aulas do dia mal tinham começado. O que era neve em Indiana não passava de garoa em Illinois. Os alunos se sentaram sonhadores e pensativos nas sa­las de aula.

    De repente os sinos da capela começaram a repicar. Cabeças se empinaram. Olhos se arregalaram. Por todo o Colégio Thayer, os sonhos já quase esquecidos pareciam estar sendo bruscamente revividos.

     

    Etheridge assistia a uma aula de matemática e alisava ritmadamente o pau sob a calça desbotada. Olhava distraído para os logaritmos que o velho Sr. Hunkins empilhava no quadro-negro. Pen­sava na engraçadinha garçonete de um bar da cidade, com quem ia se encontrar no fim do dia. Ela gosta­va de usar ligas prendendo a calcinha e as meias, e nunca tirava as meias quando transava. De repente Etheridge olhou ao redor para as janelas, esquecido do tesão, esquecido da garçonete de pernas compri­das e meias de náilon suaves — subitamente, sem qualquer razão aparente, Richard Sloat entrara em sua cabeça. O afetado Richard Sloat, que poderia ser seguramente classificado como bicha, mas que não era homossexual. Pensou em Sloat e se perguntou se tudo andaria bem com ele. Talvez Sloat, que tinha saído inexplicavelmente do colégio há quatro dias e que, desde então, não fora mais visto, estivesse enfrentan­do sérios problemas.

     

    Na sala da diretoria, o Sr. Dufrey estava discutindo a expulsão de um garoto chamado George Hat­field com seu furioso (e rico) pai quando os sinos começaram a tocar fora de hora. Quando pararam, o Sr. Dufrey percebeu que estava de quatro no chão. O cabelo branco caído sobre os olhos, a língua pendendo dos lábios. O velho Hat­field estava de pé ao lado da porta (na realidade, encolhido contra ela), olhos arregalados, boca aberta, a cólera transformada num misto de espanto e de medo. O Sr. Dufrey rastejava pelo tapete, latindo como um cão.

     

    Albert, o Bolha, iniciava um lanche quando os sinos começaram a tocar. Olhou para a janela e franziu a testa (do modo como uma pessoa faz quando tenta se lembrar de alguma coisa que está na ponta da língua). Abanou os ombros e voltou aos confeitos de amendoim (a mãe acabara de lhe mandar uma caixa enorme). De repente, arregalou os olhos. Achou (apenas por um momento, mas um momento suficientemente longo) que a caixa estava cheia de vermes esbranquiçados, rechonchudos, viscosos.

    Perdeu de imediato os sentidos.

    Depois de acordar e conseguir reunir coragem suficiente para espiar dentro da caixa, viu que tudo não passara de alucinação. É claro! O que mais poderia ser? Mesmo assim, foi uma alucinação que, no futuro, passaria a exercer um estranho poder sobre ele. Sempre que abria uma caixa de confeitos de amen­doim, barras de chocolate, flocos açucarados ou jujubas, via aqueles insetos no canto de sua mente. Na primavera, Albert já pesava menos 17 quilos. Logo começou a participar da equipe de tênis do colégio, o corpo cada vez mais ágil e esbelto. Albert chegou a um verdadeiro êxtase de alegria. Pela primeira vez na vida, percebia que era capaz de sobreviver ao amor de sua mãe.

     

    Todos olharam em volta quando os sinos começaram a tocar. Alguns riram, outros franziram a testa, outros, ainda, explodiram em lágrimas. Uma dupla de cães Uivava em algum lugar, o que, sem dúvida, era bastante estranho, pois não era permitida a entrada de cães nos terrenos do colégio.

    O tom em que os sinos repicavam destoava por completo da sonoridade habitual. O fato descon­certou e arrepiou até as orelhas o zelador da capela. O jornal estudantil anunciaria em seu número seguin­te que algum mau elemento penetrara na torre da capela pensando nas férias de Natal e disposto a brincar com os sinos. O repique fora uma versão desafinada do “Jingle Bells”.

     

    Embora já se considerasse velha demais para engravidar, a mãe do Lobo de Jack Sawyer ficara muito tempo sem seu fluxo menstrual e, três meses atrás, dera à luz trigêmeos: duas fêmeas e um macho. O trabalho de parto fora difícil, e o pressentimento de que um de seus filhos mais velhos estava prestes a morrer apoderou-se dela. Aquele filho, ela sabia, tinha ido para o Outro Lugar proteger o rebanho, e morreria nesse Outro Lugar. Ela nunca mais ia vê-lo e isto era terrível, mais difícil de suportar do que as dores do parto.

    Agora, porém, adormecendo os recém-nascidos sob a lua cheia, todos bem distantes do rebanho devido à época que se aproximava, ela se sacudiu com um sorriso no rosto, puxou o mais novo contra o peito e começou a lambê-lo. Já quase dormindo, o rebento lobino pôs os braços em volta da peluda nuca da mãe e apertou o rosto contra o seio macio. Os dois sorriram. No estranho sonho da mãe, um pensamento irrompeu: Deus sabe muito bem onde põe as unhas. E o luar daquele mundo fascinante, onde todos os cheiros eram bons, brilhou sobre a mãe e o filho, tranqüilamente adormecidos nos braços um do outro ao lado das irmãs.

     

    Na cidade de Goslin, Ohio (não longe de Amanda, e cerca de 50 quilômetros ao sul de Columbus), um homem chamado Buddy Parkins estava limpando o galinheiro. Começava a escurecer. Com um lenço amarrado no nariz e na boca tentava se proteger do pó branco do fertilizante com que, pouco antes, pulverizara a plantação. O ar cheirava a amônia. O mau cheiro já lhe dera dor de cabeça. Sentia também uma ligeira dor nas costas, pois era alto e tinha de se abaixar bastante para limpar a sujeira das galinhas.

    Levando tudo em conta, Parkins achava que, no geral, o trabalho no sítio era uma boa merda.

    Tinha três filhos, mas todos pareciam estar ocupados quando havia alguma coisa desagradável a fazer. Felizmente o trabalho já estava no fim e...

    O garoto! Cristo! Aquele garoto!

    Ele se lembrou de repente do garoto que dissera se chamar Lewis Farren. Lembrou-se com absoluta nitidez e uma espécie de amor. O garoto que contara que estava indo para a casa da tia, Helen Vaughan, na cidade de Buckeye Lake; o garoto que se virara para Parkins quando Parkins lhe perguntou se estava fugindo de casa e, ao se virar, tinha revelado um rosto cheio de autêntica bondade e inesperada, surpreendente beleza (uma beleza que fizera Parkins pensar nos arco-íris que surgem no fim das tempestades, nos crepúsculos dos dias em que o trabalho era doce, agradável, e ficava bem-feito).

    Um tanto ofegante, ele aprumou o corpo e bateu com a cabeça numa trave do galinheiro com for­ça suficiente para encher os olhos d’água. Mesmo assim, porém, continuou sorrindo.

    Oh, meu Deus, aquele garoto está lá, ele está lá!, Parkins pensou e, embora não soubesse muito bem o que aquele pensamento queria dizer, foi bruscamente dominado por uma agradável mas violenta sensação de arriscada aventura. Nunca, desde que lera A Ilha do Tesouro aos 12 anos e, aos 14, pegara pela primeira vez o seio de uma jovem, sentira-se tão empolgado, tão entusiasmado, tão alegre. Começou a rir. Deixou cair a pazinha. As galinhas o fitaram com um estúpido ar de assombro. Parkins começou a dançar no galinheiro, rindo atrás do lenço e estalando os dedos.

    — Ele está lá! — Parkins gritou para as galinhas, sempre rindo. — Com todos os diabos! Ele está lá, ele conseguiu chegar, ele conseguiu chegar e pôr a mão na coisa!

    Mais tarde, Buddy Parkins quase chegou a pensar (quase, mas não inteiramente) que tivera um acesso de loucura. Tudo aquilo fora estranho, muito estranho. Lembrava-se de ter tido uma espécie de revelação, mas não conseguia mais lembrar exatamente que tipo de revelação... Achava que tinha lhe acontecido uma coisa parecida com o que aconteceu ao poeta britânico de que seu professor de inglês na escola secundária gostava de falar: o sujeito tomara uma boa dose de ópio e começara a escrever um poema sobre um bordel chinês... mas quando passou o efeito da droga, foi incapaz de terminá-lo.

    Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo, ele pensou, mas de certa forma sabia que estava enganado. Embora não conseguisse lembrar exatamente o que provocara aquela alegria, Parkins, como Donny Keegan, nunca mais ia esquecer aquele momento, um momento tão delicadamente espontâneo, Nunca mais ia esquecer a sensação doce, mas violenta, de ter tido algum ponto de contato com alguma grande aventura; de ter vislumbrado, por um momento, uma bonita e estranha luz. Branca na aparência, mas tendo no fundo todas as cores do arco-íris.

     

    Há uma velha canção de Bobby Darin que diz: E o chão expeliu algumas raízes/  usando botas e camisas de brim./ Mandou-as embora... Mandou-as embora.

    Era uma canção que as crianças nos arredores de Cayuga, Indiana, cantariam com entusiasmo, se não tivesse sido esquecida bem antes de seu tempo. A Casa do Sol estava vazia há pouco mais de uma semana, e já conquistara, entre os garotos do lugar, a reputação de mal-assombrada. Considerando-se os restos de corpos que tinham sido encontrados perto do paredão de rocha nos fundos do campo, isso não era de surpreender. A tabuleta de à venda posta pelo corretor local parecia ter sido enfiada na grama há um ano, não apenas há nove dias. Mesmo em tão curto espaço de tempo, o corretor já baixara o preço uma vez e estava pensando em reduzi-lo de novo.

    Mas o corretor não teria muito trabalho. Quando a primeira nevasca começou a cair dos céus carre­gados de Cayuga (e quando Jack Sawyer tocou o talismã a três mil quilômetros dali), os tanques de gás atrás da cozinha explodiram. Um funcionário da Eastern Indiana Gas and Electric viera na semana anterior e retirara todo o gás daqueles tanques. O homem juraria de pés juntos que se poderia entrar nos tanques e acender um cigarro lá dentro sem correr qualquer perigo, mas mesmo assim... eles explodiram. Explodi­ram no momento exato em que as janelas da Taberna Oatley eram reduzidas a mil pedaços (levando com elas alguns fregueses que usavam botas e camisas de brim — as padiolas dos bombeiros de Elmira le­vou-os embora).

    Quase numa fração de segundo, a Casa do Sol ardeu até os alicerces.

    Vamos dizer aleluia?

     

    Em todos os mundos, alguma coisa, como um grande animal, deslocou-se e acomo­dou-se numa posição ligeiramente diferente. Mas em Point Venuti o animal estava na terra; fora despertado e estava roncando. Segundo o Instituto de Sismologia de Cal Tech, só voltaria a dormir 79 segundos depois.

    O terremoto tinha começado.

     

    O TERREMOTO

    Jack levou algum tempo para perceber que o Agincourt estava desmoronando ao seu redor, e não era de admirar. Ele se deixara arrebatar pelo fascínio do talismã. Em certo sentido, não se encontrava absolutamente no Agincourt, nem em Point Venuti nem no Condado de Mendocino, nem na Califórnia, nem nos Territórios Americanos, nem naqueles outros Territórios; mas estava neles, neles e num número infinito de outros mundos. Tudo ao mesmo tempo. Jack também não estava em um único lugar em todos aqueles mundos; estava em toda parte, pois ele era aqueles mundos. Ao que parecia, o ta­lismã era uma coisa ainda mais importante do que seu pai imaginara. Não apenas o eixo de todos os mun­dos possíveis, mas os próprios mundos: os mundos e os espaços entre eles.

    O transcendentalismo que havia ali seria suficiente para enlouquecer um eremita tibetano. Jack Sawyer estava em toda parte; Jack Sawyer era tudo. Num mundo a 50 mil mundos de distância da Terra, uma haste de grama morreu numa planície seca, no centro de um continente que, grosso modo, corresponderia à África; Jack morreu com essa haste de grama. Em outro mundo, dragões copulavam no centro de uma nuvem acima do planeta, e o hálito febril de seu êxtase misturava-se ao ar frio e fazia cair chuvas e provocava enchentes no solo lá embaixo. Jack era o dragão-macho; Jack era o dragão-fêmea; Jack era o hálito e o esperma; Jack era o ovo do novo ser. Mais distante, no éter de um milhão de universos de distância, três partículas de poeira flutuavam próximas umas das outras no espaço interestelar. Jack era a poeira e era o espaço. Galáxias se desdobravam em volta de sua cabeça como compridos rolos de papel. O acaso as repuxava nos mais diversos padrões, transformando-as em macrocósmicas partituras de piano onde tudo cabia: do ragtime aos dobres de finados. Deliciados, os dentes de Jack mordiam uma laranja; a casca infeliz do Jack-laranja gritava quando os dentes a dilaceravam. Ele era um trilhão de grãos de poeira sob um bilhão de camas. Era um filhote de canguru sonhando na bolsa da mãe, sendo transportado por uma planície arroxeada, cheia de coelhos e cerros. Era um pedaço de presunto numa mercearia do Peru e ovos sob uma das galinhas do sítio de Parkins em Ohio. Era o cheiro de fertilizante no nariz de Parkins; era o calafrio que logo faria Parkins espirrar; era o espirro e os germes que havia no espirro; era os átomos que havia nos germes; era os taxions nos átomos viajando para trás no tempo, aproximando-se da grande explosão no início da criação.

    Seu coração pulou dentro do peito e mil sóis explodiram em supernovas.

    Viu uma quantidade infinita de pardais numa quantidade infinita de mundos e sentiu a fraqueza e a força de cada um deles.

    Morreu no fogo infernal das covas de minérios dos Territórios.

    Ressurgiu como um vírus de gripe na gravata de Etheridge.

    Correu no vento até os lugares mais distantes.

    Ele era...

    Oh, ele era...

    Ele era Deus. Deus ou alguma coisa tão próxima de Deus que praticamente não fazia diferença.

    — Não! — Jack gritou apavorado. — Não, eu não quero ser Deus! Por favor! Por favor, eu não quero ser Deus, eu só quero salvar a vida de minha mãe!

    E de repente a infinitude foi se fechando como o punho de um ilusionista escondendo um objeto. Aos olhos de Jack, ela se comprimiu num ofuscante raio de luz cintilando no salão de baile.

    Tudo acontecera em poucos segundos.

    E Jack conservava o talismã nas mãos.

     

    Lá fora o chão começava a ranger e tremer como uma passista de escola de samba. A maré, que vinha se elevando, refez sua trajetória e começou a recuar, expondo uma areia bronzeada como as pernas de uma corista. Debatendo-se pela areia subitamente descoberta, ficaram estranhos pei­xes, alguns quase limitados a um coágulo gelatinoso de olhos.

    Os penhascos atrás de Point Venuti deveriam ser rochas sedimentares, mas qualquer geólogo teria percebido à primeira vista que aquelas rochas estavam para a classificação sedimentar como o novo-rico para os Quatrocentos Metropolitanos de Nova York. O terreno montanhoso da cidade se transformara numa espécie de lodo, com alguns pontos de maior solidez. O solo estalava, rachava em mil direções. As fendas se abriam e fechavam como bocas ofegantes; de repente, começavam a se escancarar, deslizando sobre a cidade. Chuvas de pó se espalhavam em todas as direções. Por entre a poeira rolavam pedras do tamanho das fábricas de pneus de Toledo.

    A Brigada Lupina de Morgan fora quase toda dizimada pelo ataque-relâmpago de Jack e Richard no Campo Prontidão. Agora o contingente se reduzira ainda mais, pois muitos Lobos fugiam ganindo e gritando em supersticioso terror. Alguns conseguiam realizar a travessia e voltar para seu próprio mundo. Outros, menos bem-sucedidos, eram tragados pelo cataclismo geológico que estava acontecendo ali. Uma cadeia de catástrofes semelhantes se estendia por todos os mundos, como se obedecessem às medidas cuidadosas de um agrimensor e aos circuitos de um motor central. Um grupo de três Lobos (vestindo jaquetas de motoqueiros com os dizeres Fresno Demons) entrou num carro — um velho e pontiagudo Lin­coln Mark IV — e conseguiu avançar uma quadra e meia com Harry James berrando no rádio. De repente um enorme pedaço de rocha caiu do céu e transformou o carro em ferro velho.

    Muitos Lobos simplesmente corriam gritando pelas ruas, iniciando suas transformações num pro­cesso incontrolável. A mulher nua com as correntes nos seios caminhava serenamente pelo meio deles. Com a mesma serenidade, ia arrancando grandes mechas do próprio cabelo. Passou uma dessas mechas para um dos Lobos. As raízes sariguinolentas das árvores dos Territórios ondulavam como plantas mari­nhas batidas pelas marés.

    — Aqui! — ela gritou, sorrindo e estendendo um chumaço de cabelo. — Um buquê! É seu, pegue!

    O Lobo, nada sereno, arrancou-lhe a cabeça com um único movimento das mandíbulas e continuou a correr, a correr, a correr.

     

    Jack examinava o que tinha capturado, tão sem fôlego quanto uma criança que vê uma pomba se aproximar para comer na palma de sua mão.

    O globo brilhava entre seus dedos, aumentando e diminuindo de tamanho, crescendo e encolhendo.

    No ritmo das batidas do meu coração, ele pensou.

    O globo parecia de vidro, mas Jack sentia um toque macio, fofo. Apertou-o suavemente; o globo cedeu um pouco. A coloração convergiu para o centro em fascinantes ondulações de luz. Junto à sua mão esquerda, o globo adquiria um tom azul-claro; junto à direita, uma coloração vermelha, bastante carrega­da. Ele sorriu... mas logo o sorriso se apagou.

    Talvez você esteja matando um bilhão de pessoas fazendo isso, Jack! Pode estar provocando incêndios, inundações, só Deus sabe! Está lembrado daquela construção que viu na cidade de Angola, assim que...

    — Não, Jack — o globo sussurrou, e então ele compreendeu por que o cristal cedera à suave pressão de seus dedos. O talismã era uma coisa viva; sem a menor dúvida! — Não, Jack. Tudo está correndo bem... correndo bem... E as coisas sempre estão correndo bem. Acredite nisso, Jack! Aja com o coração, mas com firmeza, sem vacilações!

    Jack sentiu uma paz se apoderar dele. Oh, uma imensa paz!

    Arco-íris, arco-íris, Jack pensou; e percebeu que, em momento algum, poderia deixar aquela frágil e espantosa coisinha escapar de sua mão.

     

    Aterrorizado na praia, Gardener tinha caído de bruços. Enfiou os dedos na areia solta. Seu gemido foi um miado de gato.

    Morgan aproximou-se dele com um passo de bêbado e tirou-lhe o rádio do ombro.

    — Tenham calma! — ele rugiu para o aparelho, e então percebeu que esquecera de apertar o bo­tão de transmissão. Apertou-o em seguida. — Tenham calma! Se tentarem escapar da cidade, os filhos da puta dos rochedos vão cair em cima de suas cabeças! Venham para cá! Venham para perto de mim! Isto não passa de um maldito punhado de efeitos especiais! Venham para cá! Formem um anel em torno da praia! Aqueles que obedecerem serão recompensados! Os que desobedecerem morrerão nas covas e nas terras secas! Venham para cá! Aqui não há perigo! Aqui nada pode cair em cima de vocês! Venham pra cá, agora, já!

    Ele atirou o rádio para o lado. O aparelho rachou. Escaravelhos com longas antenas começaram a enxamear às dúzias.

    Morgan se abaixou e puxou o aterrado, uivante Gardener.

    — Fique de pé, vamos! — ordenou.

     

    Mesmo em sua inconsciência, Richard conseguiu gritar quando a mesa em que esta­va deitado o derrubou no chão. Jack ouviu o grito, e isso o tirou da fascinada contemplação do talismã.

    Tomou súbita consciência de que o Agincourt rangia como um navio no meio de uma tempestade. Quando olhou em volta, viu tábuas estalando, expondo empoeiradas vigas de madeira. As vigas oscilavam de um lado para o outro, como fios numa tecelagem. Insetos albinos fugiam em bando da luz cristali­na do talismã.

    — Já estou indo, Richard — ele gritou e começou a caminhar através da poeira do salão de baile. Um tremor o fez escorregar, mas ele caiu segurando a esfera brilhante, sabendo que ela era frágil... quebraria com facilidade se levasse algum golpe mais forte. Nessa eventualidade, só Deus sabia o que po­deria acontecer. Jack apoiou-se num joelho, mas foi de novo atirado para trás, batendo com o traseiro no chão. Bem depressa, conseguiu ficar de pé. De lá de baixo, Richard gritou outra vez.

    — Richard! Estou indo!

    Do teto veio um som parecido com o leve toque de sinos. Ele olhou para cima e viu um grande lustre executando um movimento de pêndulo, cada vez mais rápido, para um lado, para o outro. Eram os pingentes de cristal que produziam aquele som. Pouco depois de Jack ter erguido a cabeça, a corrente se rompeu e o lustre atingiu as tábuas do chão como uma bomba (carregada de cristais de diamante em vez de explosivo de alto teor). Estilhaços de vidro voaram para todos os lados.

    Ele se virou e saiu da sala em passadas largas e ruidosas. Parecia um cômico burlesco representan­do um marinheiro bêbado.

    Começou a seguir o corredor, sendo jogado contra as paredes à medida que o chão rachava e osci­lava num movimento de gangorra. Cada vez que batia numa parede, estendia os braços para proteger o talismã, braços que lembravam uma pinça em cuja ponta cintilava um pedaço incandescente de carvão.

    Você nunca conseguirá descer as escadas.

    Vou conseguir. Vou conseguir.

    Chegou ao patamar onde se defrontara com o cavaleiro negro. O hotel oscilava em todas as dire­ções. Cambaleando, Jack viu o elmo rolando freneticamente pela escadaria.

    Jack continuou a olhar para baixo. Os degraus formavam enormes e tortuosas ondas que davam vontade de vomitar. Um dos degraus estalou, se abriu, exibindo um esfiapado buraco negro.

    — Jack!

    — Estou indo, Richard!

    Você não vai conseguir descer essas escadas de jeito nenhum. De jeito nenhum, rapaz!

    Vou conseguir. Vou conseguir.

    Segurando nas mãos o globo frágil e precioso, Jack começou a descer o lance de degraus. A esca­daria parecia um tapete voador no meio de um tornado.

    Os degraus oscilaram numa onda mais forte e ele foi arremessado para um buraco onde o elmo do cavaleiro negro acabara de cair. Jack gritou e oscilou para trás. Com a mão direita, segurava o talismã con­tra o peito; com a esquerda, dava golpes no ar em busca de apoio. Golpes que pareciam inúteis. Seus cal­canhares atingiram a beira da fenda e se inclinaram para trás.

     

    Tinham se passado 50 segundos desde o início do terremoto. Só 50 segundos. Mas, como dizem os sobreviventes dos terremotos, o tempo dos relógios perde todo o significado durante o ca­taclismo. Três dias após o terremoto de 1964 em Los Angeles, um repórter de tevê perguntou a um sobre­vivente que estivera perto do epicentro quanto tempo a terra tremeu.

    — Ela ainda está tremendo — respondeu calmamente o homem.

    Sessenta e dois segundos após o início do terremoto, quase toda a região montanhosa de Point Ve­nuti se transformara numa estranha planície movediça. A cidade vinha abaixo numa série de estalos lamacentos, borbulhantes. Só sobrara uma crista de rocha ligeiramente mais resistente. Essa pequena crista apontava para o Agincourt como um dedo acusador. Atrás de uma colina afundada, uma chaminé encardida indicava o céu como um pênis em ereção.

     

    Na praia, Morgan Sloat e Sunlight Gardener continuavam abraçados, cambaleando, um suportando o peso do outro. Pareciam dançar o hula-hula. Gardener tinha tirado do ombro o rifle Weatherbee. Alguns Lobos, os olhos alternadamente saltando das órbitas num paroxismo de medo e lampejando com raiva quase incontrolável, tinham se juntado a eles. Outros Lobos se aproximavam. Todos metamorfoseados ou em processo de metamorfose. As roupas caíam em farrapos por seus corpos. Morgan viu um deles mergulhar de cabeça no chão e começar a morder a areia. Era como se o próprio solo fosse um inimigo que tivesse de ser exterminado. Morgan contemplou com desprezo toda aquela loucura.

    Um caminhão com as palavras criança rebelde escritas do lado em letras psicodélicas cruzou a Praça Point Venuti onde antigamente as crianças passeavam com os pais, pedindo sorvetes e flâmulas com a gravura do Hotel Agincourt. O caminhão oscilou pelo asfalto, pulou por cima de uma calçada e de­pois, abrindo caminho entre os destroços da cidade, roncou para a praia. Uma última fenda abriu-se na terra e o criança rebelde, que tinha atropelado Tommy Woobdine, desapareceu para sempre, mergulhan­do de nariz na enorme cavidade. Uma coluna de chamas se elevou no ar quando o tanque de gasolina ex­plodiu. Vendo aquilo, Sloat lembrou-se vagamente das pregações do pai sobre o Fogo Pentecostal. Então a fenda se fechou, tragando para sempre o caminhão.

    — Agüente firme! — ele gritou para Gardener. — Acho que o hotel vai cair em cima de Sawyer e esmagá-lo, mas se ele conseguir sair, atire sem hesitar, com terremoto ou sem terremoto.

    — Como saberemos se a coisa será realmente destruída? — Gardener perguntou num tom estridente. Morgan Sloat sorriu como um javali no meio de um bambuzal.

    — Vamos saber... — disse. — O sol se tornará negro.

    Setenta e quatro segundos.

     

    A mão esquerda de Jack agarrou-se com força aos restos do corrimão. O talismã brilhava intensamente em seu peito, as linhas de longitude e latitude reluzindo como filamentos de uma lâmpada elétrica. Seus calcanhares se inclinaram e as solas dos sapatos começaram a escorregar.

    — Estou caindo! Speedy! Estou...

    Setenta e nove segundos.

    Parou.

    De repente, o terremoto parou.

    Só que Jack, como aquele sobrevivente do terremoto de 1964, ainda sentia tudo tremer, pelo me­nos numa parte de seu cérebro. Naquele pedaço de cérebro, a terra continuaria a se sacudir para sempre, quase como uma vibração de sino de igreja.

    Ele conseguiu se afastar da beira do buraco e cambaleou para o meio da escada retorcida. Por um instante, ficou imóvel, a respiração ofegante, o rosto inundado de suor, a brilhante estrela redonda do ta­lismã apertada contra o peito. Ficou imóvel e atento ao silêncio.

    Em algum lugar, alguma coisa pesada (talvez uma escrivaninha ou um guarda-roupa) que estivera oscilando a ponto de perder o equilíbrio caía agora com um forte eco.

    — Jack! Por favor! Acho que estou morrendo! — Richard gemia, a voz indefesa soando como a súplica de uma criança à beira da morte.                              

    — Richard! Estou indo!                                          

    Jack começou a abrir caminho pela escada, agora toda revirada, vergada, instável. Inúmeros degraus tinham desaparecido, e ele teve de pular sobre os espaços abertos. Num determinado ponto, faltavam quatro degraus, e ele deu um enorme salto, apertando com uma das mãos o talismã e deslizando com a outra pelas rachaduras do corrimão.

    As coisas ainda caíam. Vidro se estilhaçava e tilintava. Em algum lugar, a descarga de uma privada não parava.

    O balcão de madeira crua do saguão tinha sido cortado ao meio. As portas duplas, no entanto, es­tavam entreabertas, e um brilhante feixe de sol passava entre elas. O velho e úmido tapete parecia ferver e fumegar em protesto contra aquela luz.

    As nuvens se abriram, Jack pensou. O sol está brilhando lá fora. E depois: Vamos cruzar todas as portas, Richie! Eu e você! De cabeça em pé e peito erguido!

    O corredor que passava pelo Bar das Garças e desembocava na sala de jantar lembrou-lhe alguns cenários daqueles velhos filmes da série Além da imaginação. Tudo parecia torto, fora de esquadro. Aqui o chão se inclinava para a esquerda, ali para a direita, mais adiante parecia empenado como as corcovas de um camelo. Ele atravessava as sombras do corredor com o talismã iluminando os seus passos (a me­lhor lanterna do mundo).

    Abriu caminho para a sala de jantar e viu Richard no chão, enrolado numa toalha de mesa. O san­gue escorria-lhe pelo nariz. Chegando mais perto, viu que alguns daqueles grandes calombos vermelhos tinham se aberto. Vermes brancos saíam das feridas e rastejavam vagarosamente para o rosto do amigo. Enquanto Jack contemplava a cena, um inseto brotou do nariz de Richard.

    Richard gritou, um grito fraco, borbulhante, angustiado, e agarrou o inseto. Foi o grito de alguém na agonia da morte.

    A camisa de Richard se retorcia entre as coisas que o atormentavam.

    Jack cambaleou para ele pelo chão empenado... e a aranha desceu da escuridão, destilando seu veneno no meio do aposento.

    — Saia daqui!— ela balbuciou no silvo sussurrante de um inseto. — Ei, você! Saia daqui e devolva essa coisa, devolva essa coisa, devolva essa coisa!

    Sem pensar duas vezes, Jack ergueu o talismã. Ele faiscou um límpido fogo esbranquiçado — fogo de arco-íris. A aranha encolheu, seu corpo ficou negro. Um segundo depois, não passava de um minúscu­lo ponto de carvão oscilando como um pêndulo, lentamente (até sua última parada no ar).

    Jack não teve tempo nem de abrir a boca diante daquele prodígio. Richard estava morrendo.

    Jack aproximou-se dele, caiu de joelhos a seu lado, e tornou a cobri-lo com a toalha de mesa, como se a toalha fosse um lençol.

    — Finalmente está tudo arranjado, cara! — ele sussurrou, procurando desviar os olhos dos vermes que saíam da carne do amigo. Ergueu o talismã, pensou um pouco, e depois colocou-o na testa de Ri­chard. Richard gritou angustiado e tentou se esquivar. Jack pôs um braço no peito esquálido de Richard e o imobilizou (foi fácil fazer isso, pois Richard estava muito enfraquecido). Um mau cheiro inundou o apo­sento quando os vermes foram carbonizados sob o talismã.

    E agora? Ainda era preciso fazer mais alguma coisa para Richard ficar bom, mas o quê?

    Jack olhou ao redor da sala e, por acaso, seus olhos se fixaram na bola de gude esverdeada que fi­cara com Richard — a bola de gude que era um espelho mágico no outro mundo. A bola rolou dois me­tros e depois parou. Rolou, sim. Rolou porque era uma bola de gude e as bolas de gude costumam rolar. Bolas de gude são redondas. Redondas como o talismã.

    Uma idéia penetrou em sua mente rodopiante.

    Segurando Richard, Jack rolou lentamente o talismã por toda a extensão do corpo do amigo. Após ter atingido o peito, Richard parou de se debater. Jack achou que provavelmente ele desmaiara, mas um rápido olhar mostrou que não era bem assim. Richard o estava fitando com um início de admiração...

    ... e as bolotas em seu rosto desapareciam! Os grandes calombos vermelhos estavam sumindo!

    — Richard! — ele gritou, rindo como um idiota. — Ei, Richard, dê uma olhada nisso! Os tambores estão chamando o Fantasma e vão salvar a aldeia!

    Com a palma da mão, rolou vagarosamente o talismã pela barriga de Richard. O talismã brilhava intensamente, entoando uma clara, silenciosa melodia de saúde, de cura. Depois o talismã rolou pelo meio das pernas. Jack juntou as perninhas finas do amigo e, pelo sulco que se formou entre elas, fez o globo rolar até os tornozelos. O talismã emitia tons fortes, profundos. Azul... vermelho... amarelo... o ver­de dos gramados de junho.

    Depois ficou branco outra vez.

    — Jack — Richard murmurou. — Foi isso que viemos buscar?

    — Foi.

    — É bonito — disse Richard. Ele hesitou um pouco. — Posso pegá-lo?

    Jack teve um súbito ímpeto de egoísmo e mesquinhez. Por um instante, apertou com força o talis­mã. Não! Você pode quebrá-lo! Além disso, ele é meu! Atravessei o país inteiro para buscá-lo! Lutei contra cavaleiros! Você não tem o direito de pegá-lo! Ele é meu! Meu! M... Em suas mãos o talismã irradiou subita­mente um terrível calafrio, e por um momento (um momento mais assustador para Jack do que todos os terremotos que já aconteceram ou poderão acontecer em todos os mundos que existem) adquiriu uma es­curidão gótica. Toda a luz foi extinta. Em seu exuberante, vivo, revoluto interior, ele viu o hotel negro. Nas ameias, nas torres e torreões, nos telhados de cúpulas que desabrochavam como verrugas recheadas de coisas malignas, os símbolos cabalísticos rodopiavam: lobo, corvo, uma distorcida estrela de aparência genital.

    Será que você quer ser a alma do novo Agincourt?, o talismã sussurrou. Mesmo um garoto pode se transformar num hotel, sabia? Se você quiser...

    A voz de sua mãe soou clara em sua mente: Se não quer compartilhá-lo, Jacky, se não quer se arriscar a passá-lo para seu amigo, então é melhor ficar onde está. Se não quer compartilhar o prêmio — correr o risco de compartilhar o prêmio —, nem se preocupe em voltar para casa. Os garotos ouvem a vida inteira esse blablablá de repartir as coisas, mas na hora H não querem dar nem um pedacinho do bolo. Se não é capaz de compartilhar o que conseguiu obter, deixe eu morrer, garotão, porque não quero viver a esse preço.

    De repente o peso do talismã pareceu imenso, o peso de corpos sem vida. Mas logo Jack o ergueu e pousou-o suavemente nas mãos de Richard. As mãos do amigo estavam esbranquiçadas, esqueléticas... mas Richard segurou-o com facilidade. Jack percebeu que a sensação de peso fora apenas sua imagina­ção, fruto de um destorcido e doentio ímpeto de egoísmo. Quando o talismã voltou a emitir a esplêndida luz branca, Jack sentiu toda a sua própria escuridão interior se dissipar. Ocorreu-lhe vagamente que só devemos expressar a propriedade de uma coisa em termos da liberdade com que somos capazes de abrir mão dela... Esse pensamento veio e passou como uma onda.

    Richard sorriu, e o sorriso embelezou-lhe o rosto. Jack já vira Richard sorrir muitas vezes, mas ha­via uma paz naquele sorriso que lhe era desconhecida; uma paz que ultrapassava sua compreensão. Na luz branca, saudável, do talismã ele viu que o rosto de Richard Sloat, embora ainda manchado, pálido e abatido, começava a cicatrizar. Richard apertava o talismã contra o peito, como se o talismã fosse um bebê, e sorria com olhos brilhantes.

    — Se isto for o Expresso de Seabrook Island — disse ele —, estou disposto a comprar uma passa­gem. Se conseguirmos sair deste hotel, é claro!

    — Está se sentindo melhor?

    O sorriso de Richard brilhou como a luz do talismã.

    — Um milhão de mundos melhor — disse ele. — Agora ajude-me a levantar, Jack!

    Jack aproximou-se para puxá-lo pelo ombro. Richard estendeu-lhe o talismã.

    — É melhor pegá-lo — disse. — Ainda estou fraco, e o globo está querendo voltar para as suas mãos. Sinto isso.

    Jack pegou o talismã e ajudou o amigo a se levantar. Richard pôs o braço em volta do seu pescoço.

    — Você está pronto... cara?

    — Sim — disse Richard. — Pronto. Mas acho que podemos esquecer a rota pelo mar. Ouvi o con­vés desabar durante o terremoto.

    — Vamos sair pela porta da frente — disse Jack. — Mesmo se Deus tivesse colocado uma ponte sobre o oceano, uma ponte das janelas dos fundos até a praia, eu sairia pela porta da frente. Não estamos fugindo deste lugar, Richie! Estamos saindo como hóspedes que pagaram a conta. E acho que paguei uma soma muito boa. Você não concorda?

    Richard estendeu a mãozinha magra, a palma virada para cima. Marcas vermelhas ainda brilhavam nela.

    — Acho que devemos tentar escapulir logo — disse ele. — Me dê uma ajuda, Jacky.

    Jack pegou a palma da mão de Richard e os dois voltaram pelo corredor, Richard com o braço no ombro do amigo.

    No meio do corredor, Richard contemplou o amontoado de ferragens das armaduras.

    — Que diabo é isso?

    — Latas de café solúvel — Jack respondeu sorrindo. — Ferro velho.

    — Jack, o que você teve de fazer para...

    — Não importa, Richard.

    Jack estava sorrindo, e ainda se sentia bem, mas fios de tensão começavam a cruzar de novo seu corpo. O terremoto terminara... mas, de certa forma, ainda não completamente. Morgan estaria à espera deles. E Gardener também.

    Não importa. Que façam o que bem entenderem.

    Atingiram o saguão e Richard olhou com ar curioso em volta. Viu o balcão de recepção quebrado, os troféus e quadros caídos das paredes. A cabeça empalhada de um urso negro tinha o nariz num dos escaninhos de correspondência, como se ali dentro houvesse alguma coisa de cheiro gostoso... talvez mel.

    — Rapaz! — Richard exclamou. — O lugar veio quase todo abaixo.

    Jack atravessou com Richard as portas duplas e observou a satisfação do amigo ao se deparar com uma rajada de sol.

    — Está realmente pronto, Richard?

    — Estou.

    — Seu pai está lá fora.

    — Não, não está. Ele está morto. O que está lá fora é seu... como é que se diz? Seu Duplo.

    — Oh!

    Richard reafirmou o que dissera com um movimento de cabeça. Apesar da proximidade do talis­mã, estava começando a parecer novamente exausto.

    — Sim, seu Duplo — Richard frisou mais uma vez.

    — Talvez tenhamos de travar uma pequena batalha — disse Jack.

    — Bem, vou fazer o que puder.

    — Gosto muito de você, Richard.

    Richard abriu um sorriso fraco.

    — Também gosto muito de você, Jack. Agora vamos em frente, antes que eu perca a coragem.

     

    Sloat realmente acreditava que tinha tudo sob controle: não só a situação, mas a si próprio. Continuou acreditando nisso até que viu o filho, obviamente fraco, obviamente doente, mas ainda bem vivo, sair do hotel negro com o braço em volta do pescoço de Jack Sawyer e a cabeça inclinada em seu ombro.

    Sloat acreditara que tinha os sentimentos sobre o filho de Phil Sawyer sob estrito controle: foram seus prévios acessos de cólera que o fizeram perder o filho de Sawyer, primeiro no pavilhão da rainha, depois no Meio-Oeste. Cristo!, aquele garoto tinha cruzado Ohio sem um arranhão — e Ohio ficava ape­nas a um piscar de olhos de Orris, o quartel-general daquele outro Morgan. Mas sua fúria o levara a um comportamento frenético, descontrolado, e por isso o rapaz conseguira escapar. Sem dúvida, durante um bom tempo, conseguiria suprimir sua raiva.

    Naquele momento, porém, com perversa e desenfreada energia, toda a cólera voltou a se manifes­tar. Era como se alguém tivesse esguichado querosene numa chama amortecida.

    Seu filho, ainda vivo. E seu amado filho, a quem pretendera legar o reinado sobre mundos e univer­sos, vinha apoiado no ombro de Sawyer!

    E não era só isso! Nas mãos de Sawyer, brilhando e faiscando como uma estrela que tivesse caído na Terra, lá estava o talismã! Mesmo do lugar onde se encontrava, Sloat podia sentir sua força: era como se o campo gravitacional do planeta tivesse se tornado mais forte, puxando-o para o interior da terra, acele­rando as batidas de seu coração; era como se o tempo estivesse disparando, secando-lhe a carne, enfraquecendo-lhe os olhos.

    — Isso dói! — Gardener gritou atrás dele.

    A maioria dos Lobos que tinham confiado em Morgan e ido para a praia (em vez de fugir em pâni­co pelas ruas da cidade) estava agora rodopiando de terror, as mãos cobrindo os rostos. Alguns vomita­vam sem cessar.

    Morgan também teve um momento de medo que quase o fez desmaiar... e então a raiva, o nervo­sismo, a loucura que alimentava seus sonhos cada vez mais grandiosos de domínio do universo, tudo isso fez explodir sua fina teia de autocontrole.

    Ele levantou os polegares e enfiou-os profundamente nas orelhas, tão profundamente que sentiu dor. Em seguida pôs a língua para fora e sacudiu os dedos formando garras no ar. Daí a pouco, os dentes superiores desceram como uma tranca de portão e cortaram a ponta oscilante da língua. Sloat nem repa­rou no que aconteceu. Agarrou Gardener pelo casaco de estilo militar.

    O rosto de Gardener estava enluarado de medo.

    — Eles conseguiram sair. Ele tem a coisa! Morgan, meu mestre! Devíamos sair correndo daqui, te­mos de sair correndo daqui...

    — atire nele! — Morgan gritou no rosto de Gardener. O sangue da língua cortada fluía num jato fino. — Atire neler, seu etíope filho da puta! Ele matou seu garoto! Atire nela e na porra daquele talismã! Atire no meio dos braços dele! Acabe com ele e com aquela coisa!

    Sloat começou a pular diante de Gardener, o rosto se contorcendo nas mais terríveis caretas, os polegares agora atrás dos ouvidos, os dedos fincados na nuca, a língua amputada entrando e saindo de sua boca como numa daquelas festas de Ano-novo em que as pessoas não param de circular. Parecia uma criança assassina: hilariante, e ao mesmo tempo terrível.

    — Ele matou seu filho! Vingue o seu filho! Atire nele! Atire! Você atirou no pai dele. Agora atire nele!

    — Reuel — disse Gardener pensativamente. — Sim. Ele matou Reuel. O pior filho da puta que já respirou sobre a Terra. Todos os garotos são maus. É axiomático. Mas ele... ele...

    Gardener virou-se para o hotel e apoiou no ombro o rifle Weatherbee. Jack e Richard chegavam ao último degrau da retorcida escadaria da frente e começavam a descer a ampla calçada, que fora plana al­guns minutos atrás e tinha agora um pavimento cheio de ondulações. Na mira de Gardener os dois rapa­zes eram do tamanho de trailers de acampamento.

    — atire nele! — Morgan berrava. Mostrou de novo a língua ensangüentada e fez um som horren­damente triunfante de menino de escola maternal: — larrúú-iarrúú-iarrúúú!— Os pés, protegidos por encardidos sapatos de lona, saltavam no chão como se fossem movidos por molas. Um deles aterrissou na ponta decepada da língua e enterrou-a profundamente na areia.

    — Atire nele! Atire nele! — Morgan urrava.

    O cano do Weatherbee fez um círculo no ar com a mesma precisão de quando Gardener se prepa­rava para alvejar o cavalo de borracha. De repente, a arma ficou imóvel.

    Jack apertava o talismã contra o peito. As linhas de latitude e longitude transpareciam numa fais­cante luz circular. A mira do rifle atravessaria em cheio aquela luz, despedaçaria o globo por trás dela e o sol ficaria negro...

    Mas, antes que o sol fique escuro, Gardener pensou, vou ter o prazer de ver o peito do pior de todos os garotos voar pelos ares!

    — Ele já é carne morta, pode apostar — Gardener murmurou e começou a fazer uma leve pressão sobre o gatilho do rifle.

     

    Richard levantou a cabeça com grande esforço e seus olhos foram atingidos pelo sol refletido na areia.

    Dois homens. Um com a cabeça ligeiramente inclinada, outro que parecia dançar. De novo aquele reflexo de sol, e Richard compreendeu. Ele compreendeu... Jack estava olhando para o lugar errado. Jack estava olhando para as rochas onde Speedy jazia.

    — Jack, cuidado! — Richard gritou. Jack olhou em volta, surpreso.

    — O que...

    Tudo aconteceu depressa demais. Jack praticamente não se deu conta. Richard viu e compreen­deu, mas jamais poderia explicar muito bem o que houve. O sol faiscou outra vez na mira do rifle. Dessa vez o raio de luz refletida atingiu o talismã. E o amuleto fez o raio ricochetear diretamente para o atirador. Isto foi o que, mais tarde, Richard contou a Jack, mas era como dizer que o Empire State Building tem al­guns andares de altura.

    O talismã não apenas refletiu o raio de sol; de certa forma, ele o reforçou. Devolveu uma densa tira de luz, como os raios da morte dos filmes de guerras espaciais. Só durou um segundo, mas ficou impresso por quase uma hora nas retinas de Richard: primeiro branco, depois verde, depois azul e, finalmente, quase ao se apagar, amarelo-claro, um amarelado fraco de luz do sol.

     

    — Ele já é carne morta — Gardener murmurou, e então a mira se inundou de fogo. As grossas lentes de vidro se estilhaçaram. Vidro fumegante e derretido correu para o olho direito de Gar­dener. Os cartuchos do rifle explodiram, praticamente rasgando a coronha ao meio. Um dos estilhaços de metal amputou quase toda a face direita de Gardener. Outros ganchos e pontas de aço rodopiaram ao re­dor de Sloat, mas, por incrível que possa parecer, deixaram-no intacto. Só restavam três Lobos na praia. Dois deles fugiram a toda a velocidade. O terceiro caiu morto, deitado de costas, os olhos arregalados para o céu. O gatilho do Weatherbee estava solidamente plantado entre os olhos dele.

    — O que foi isso? — Morgan berrou. Sua boca sanguinolenta se abriu. — O que foi isso? O que foi?

    Gardener lançou-lhe um olhar estranho, como os personagens de desenho animado que recebem o tiro pela culatra.

    Ele jogou para o lado o resto da arma e Sloat viu que todos os dedos da mão esquerda de Gard ti­nham sido arrancados.

    Com a mão direita, Sunlight Gardener tirou a camisa num movimento de afeminada delicadeza. Havia um pequeno punhal preso na cintura da calça. O punhal estava protegido por uma capa de couro finamente adornada. A lâmina que Gardener tirou da capa ficava embutida num cabo de marfim. Ele aper­tou um botão e a lâmina saltou. Mais de 15 centímetros de comprimento.

    — São maus — ele sussurrou. — Maus! — Sua voz começou a se elevar. — Todos os garotos! São maus! É axiomático! É axiomático!

    Começou a subir a praia na direção da calçada defronte ao Agincourt, onde estavam Richard e Jack. Sua voz continuou a crescer até se transformar num guincho estridente, febril:

    — São maus! Diabólicos! Maus! Diabóóólicos! Maaaus! Diabóóóóóóóó...

    Morgan ficou um momento parado. Depois pegou a chave que trazia em volta do pescoço. Ao agarrá-la, pareceu também se apoderar de seus próprios pensamentos; pensamentos confusos, repletos de pânico.

    Ele vai procurar o velho negro. E é lá que vou pegá-lo!

    — diabóóóóóóó... — Gardener guinchava, correndo e espichando na frente do corpo um punhal homicida.

    Morgan se virou e desceu a praia. Estava vagamente consciente de que os Lobos (todos eles) ti­nham fugido. Mas não fazia mal.

    Cuidaria de Jack Sawyer — e do talismã — com as próprias mãos.

     

    EM QUE MUITAS COISAS SÃO RESOLVIDAS NA PRAIA

    Fora de si, Sunlight Gardener corria desesperado na direção de Jack. O sangue escorria do seu rosto mutilado. Ele era agora o centro de uma devastada loucura humana. Sob brilhante camada de luz do sol (talvez pela primeira vez em décadas), Point Venuti era uma ruína de prédios destruídos, encanamentos furados, fragmentos de calçadas erguidos do solo, lembrando livros inclinados numa estante. Livros de verdade jaziam aqui e ali, as capas rasgadas flutuando entre escuras fendas, Atrás de Jack, o Hotel Agincourt proferiu um ruído sinistro, uma espécie de suspiro; então Jack ouviu a barulheira de mil tábuas caindo sobre si mesmas, rebocos se desintegrando numa chuva de ripas, sarrafos e cimento velho. O rapaz percebeu com dificuldade o vulto de Morgan Sloat resvalando como barata tonta pela praia, mas pressentiu, com uma pontada de mal-estar, que seu adversário estava indo ao encontro de Speedy Parker — ou, pelo menos, do cadáver de Speedy.

    — Ele tem uma faca, Jack! — Richard cochichou referindo-se a Gardener.

    A mão arruinada de Sunlight Gardener ia salpicando de sangue a outrora imaculada camisa de seda branca.

    — diabóóóóóóóólico! — ele uivava, a voz ainda abafada pelo contínuo bater da água na praia e os igualmente contínuos, embora mais esparsos, ruídos de destruição urbana. — diabóóóóóóóó...

    — O que você vai fazer? — Richard perguntou.

    — Sei lá! — Jack respondeu. Era a melhor, mais verdadeira resposta que poderia dar. Não tinha a menor idéia de como poderia derrotar o louco que corria em sua direção. Mas no íntimo sabia que ia vencê-lo. Tinha certeza disso. Você devia ter matado os dois irmãos Ellis, Jack disse para si mesmo.

    Sempre gritando, Gardener vinha correndo pela areia. Ainda estava a uma boa distância. Só cobrira metade do caminho entre o fim da cerca que rodeava a praia e a fachada do hotel. Uma máscara vermelha cobria metade do seu rosto. A inutilizada mão esquerda deixava fluir uma contínua torrente de sangue para o solo arenoso.

    Mas a distância entre aquele Gardener enlouquecido e os garotos começava a se encurtar com bas­tante rapidez. O que Morgan Sloat pretendia fazer agora? Jack estava ansioso para descobrir. E o talismã parecia empurrá-lo para a frente, empurrá-lo sem cessar para a frente.

    — Diabólico! É axiomático! É um garoto diabólico! — Gardener gritava.

    — Atravesse! — Richard disse em voz alta, e Jack resvalou como fizera no interior do hotel negro.

    E então se viu de pé na frente de Osmond sob a brilhante luz do sol dos Territórios. A maior parte de suas certezas subitamente o abandonara. Tudo era igual, mas tudo era diferente. Mesmo sem olhar, Jack sabia que atrás dele havia alguma coisa muito pior que o Agincourt. Nunca vira o exterior do castelo em que o hotel se transformava nos Territórios, mas pressentiu que uma língua serpenteava por entre as grandes portas da frente... e que Osmond pretendia empurrá-lo, juntamente com Richard, na direção dela. Osmond tinha o olho direito afundado e uma luva manchada na mão esquerda. As complicadas correias do chicote pendiam do seu ombro.

    — Oh, sim! — ele exclamou entre um sussurro e um assobio. — Este garoto! O garoto do Capitão Farren!

    Numa atitude de proteção, Jack puxou o talismã contra a barriga. As borlas das correias do chicote resvalaram pelo chão, tão sensíveis aos mínimos movimentos da mão e do punho de Osmond quanto ré­deas de cavalo nas mãos de um jóquei.

    — De que serve um garoto conquistar uma bugiganga de vidro se ele perde o mundo? — O chico­te pareceu se levantar sozinho do chão. — Nada! Absolutamente nada!

    O verdadeiro cheiro de Osmond, cheiro de podridão, sujeira, oculta putrefação, inundou o ar. O rosto magro e enlouquecido se encrespou como se um pára-raios tivesse explodido sob ele. Osmond sor­riu ostensivamente, um sorriso vazio, e ergueu o ondulante chicote que trazia no ombro.

    — Um merdinha, não passa de um merdinha — disse Osmond, quase suavemente. As correias do chicote se aproximaram cantando de Jack. Jack recuou um passo, não muito grande. Fora tomado de in­tenso pânico.

    A mão de Richard agarrou-se a seu ombro quando ele atravessava de novo, e o terrível barulho do chicote (quase um barulho de riso) instantaneamente se dissipou.

    — Olhe a faca! — Jack ouviu Speedy dizer. Lutando contra seus instintos, Jack avançou para o es­paço onde o chicote estivera (não retrocedeu como seus nervos queriam que fizesse). A mão de Richard caiu de seu ombro e a voz de Speedy continuou gritando e se perdendo no ar. Com a mão esquerda, Jack apertou contra a barriga o talismã cintilante e esticou a direita. Seus dedos se fecharam magicamente num pulso muito magro.                                                           

    Sunlight Gardener deu uma risada.

    — Jack! — Richard gritou atrás dele.

    Ele estava de novo em Point Venuti, sob uma camada de luz cada vez mais clara e purificadora. A faca na mão de Sunlight Gardener se retorcia em sua direção. O rosto arruinado de Gardener estava a cen­tímetros do seu. Um cheiro de lixo e cadáveres de animais atropelados na estrada o envolveu.

    — Não serve de absolutamente nada — disse Gardener. — Não vai dizer aleluia?

    Ele empurrou a bela faca letal, mas Jack conseguiu se esquivar.

    — jack! — Richard gritou outra vez.

    Sunlight Gardener fitou-o com um ar de pássaro arisco. E continuou a investir com a faca.

    Você não sabe o que Sunlight fez?, disse a voz de Speedy. Você ainda não sabe?

    Jack enfrentou o olho dançante, enlouquecido de Gardener. Sim!

    Richard deu um passo à frente e chutou as canelas de Gardener. Depois esmurrou-o na testa com um soco fraco.

    — Você matou meu pai! — Jack exclamou.

    O olho que sobrara a Gardener voltou a cintilar.

    — Você matou meu garoto, seu pior dos bastardos!

    — Morgan Sloat mandou que você matasse meu pai e você obedeceu.

    Gardener avançou cinco centímetros com a faca. Um nódulo de cartilagem amarela e um borbu­lhar de sangue escorria do buraco de seu olho direito.

    Jack gritou; com horror, com raiva; com a memória de todos os sentimentos de desamparo e aban­dono que se seguiram à morte do pai. E, de repente, descobriu que estava empurrando a mão de Garde­ner que segurava a faca. Tornou a gritar. A mão esquerda, sem dedos, de Sunlight Gardener golpeava o braço esquerdo de Jack. Jack estava quase conseguindo torcer o pulso de Gardener quando sentiu aquela gotejante pasta de carne se insinuar entre seu peito e seu braço. Richard continuava a desferir pequenos golpes contra Gardener, mas Gardener ia aproximando a mão sem dedos do talismã.

    O rosto de Gardener inclinou-se sobre o de Jack.

    — Aleluia! — ele murmurou.

    Jack contorceu o corpo inteiro, usando mais energia do que julgava possuir. E conseguiu arriar a mão de Gardener que segurava a faca. A mão sem dedos deu um forte golpe no vazio. Jack espremeu o pulso da mão que tinha a faca. Tendões salientes latejaram naquele aperto. Então a faca caiu, tão inofensiva quanto a pasta sem dedos que batia repetidamente nas costelas de Jack. Ele investiu de cabeça contra o peito de Gardener e o fez recuar.

    Depois estendeu o talismã na direção de Gardener. Richard trovejou:

    — O que você está fazendo?

    Jack sabia que estava certo, certo, certo! Deu um passo na direção de Gardener, cujos olhos ainda brilhavam de fúria (embora com menos ênfase), e empurrou o talismã em sua direção. Gardener arrega­nhou os dentes (outro borbulhar de sangue inundou a órbita vazia) e se sacudiu freneticamente diante do talismã. Depois investiu com a faca. Jack esquivou-se para o lado e encostou a superfície quente e cheia de linhas na pele do inimigo. Calor em Sunlight — como o calor na testa de Reuel. Gardener deu um salto para trás.

    Sunlight Gardener ganiu como um animal ferido ou perdido. Onde o talismã encostara, a pele pri­meiro escureceu, depois se transformou num fluido lentamente deslizante, emergindo do crânio. Jack re­cuou um passo. Gardener caíra de joelhos. Toda a pele de sua cabeça ia se convertendo em cera derreti­da. Daí a meio segundo, só uma pasta reluzente de crânio brotava do colarinho da camisa rasgada.

    Agora se vire!, Jack pensou. E boa viagem!

     

    — Tudo bem — disse Jack. Ele se sentia cheio de vibrante confiança. — Vamos adiante, Richie. Vamos...

    Olhou para Richard e viu que o amigo estava outra vez à beira de perder os sentidos. Oscilava na areia, os olhos semicerrados, a fisionomia dopada.

    — Talvez fosse melhor você ficar aqui sentado — disse Jack.

    Richard balançou a cabeça.

    — Vamos lá, Jack. Em frente para Seabrook Island. Até o fim da linha...

    — Acho que vou ter de matar... aquele sujeito — disse Jack. — Isto é, se eu puder.

    Richard balançou a cabeça com teimosia, obstinada persistência.

    — Não se preocupe que ele não é meu pai. Eu já lhe disse isso. Meu pai morreu. Se me abandonar aqui, irei rastejando. Rastejando pelo esterco que aquele sujeito deixar atrás dele.

    Jack olhou para as rochas. Não pôde ver Morgan, mas era praticamente certo que ele estava lá. E se Speedy ainda estivesse vivo, talvez naquele exato momento Morgan estivesse tomando providências para remediar a situação.

    Jack tentou sorrir, mas não conseguiu.

    — Pense nos germes que você pode pegar.

    Ele hesitou um momento; depois passou o talismã para Richard.

    — Vou carregar você, mas você terá de carregar o globo. Não o deixe cair, Richard. Se você o largar...

    O que era mesmo que Speedy tinha dito?

    — Se você o deixar cair, tudo estará perdido!

    — Não vou deixá-lo cair.

    Jack pôs o talismã nas mãos de Richard, e de novo a fisionomia de Richard pareceu melhorar... Mas não muito. Seu rosto estava terrivelmente pálido. Lavado pela luz do talismã, parecia um rosto de criança morta captado pelo flash de um fotógrafo da polícia.

    É o hotel. Ele está sendo envenenado pelo hotel.

    Mas não era o hotel; não inteiramente. Era Morgan! Morgan o estava envenenando!

    Jack olhou em volta, relutando em se afastar um só segundo do talismã. Vergou as costas e fez um estribo com as mãos.

    Richard subiu. Agarrou o talismã com uma das mãos e enroscou a outra em volta do pescoço de Jack. Ele agarrou as coxas de Richard.

    Ele não pesa mais que um cacto. Já deve estar com alguma espécie de câncer. E há muito tempo. Desde que nasceu. Morgan Sloat é diabolicamente radioativo e Richard está morrendo por causa da con­taminação.

    Consciente da luz e do calor do talismã sobre sua cabeça, Jack começou a sacolejar em direção às rochas atrás das quais se achava Speedy.

     

    Carregando Richard, ele correu ao redor do bloco de rochas, cheio de uma lou­ca autoconfiança... E essa segurança quase insensata se manteve quando uma perna gorducha, vestindo uma calça marrom-clara (logo abaixo da bainha Jack teve um rápido vislumbre de uma meia de náilon também marrom), saiu de trás do último penedo como uma barreira de pedágio.

    Merda, a mente de Jack gritou. Ele estava à sua espera. O que é muito natural, não acha?

    Richard gritou. Jack tentou passar por cima das pernas mas não conseguiu.

    Morgan parecia disposto a brincar com ele como um garoto levado no recreio da escola. Após Smokey Updike, Osmond, Gardener, Elroy e uma estranha mistura de jacaré com tanque de guerra, um pesadão Morgan Sloat saía detrás de uma pedra para derrubá-lo no chão. Um hipertenso Morgan Sloat que ficara escondido, à espreita, esperando que um garoto superconfiante chamado Jack Sawyer se apro­ximasse de sua toca.

    — Eiii! — Richard gritou quando Jack perdeu o equilíbrio. Jack viu de relance sua sombra combinada com a sombra do amigo (os quatro braços lembravam um ídolo hindu). Sentiu o talismã se deslocando... caindo.

    — Cuidado com ele, richard! — Jack gritou.

    Richard caiu por cima da cabeça do amigo, os olhos arregalados, assustados. Os tendões de seu pescoço retiniram como cordas de piano.

    Richard conseguiu suspender o talismã ao cair. A boca se repuxou nos cantos e deixou escapar um rosnado de desespero. Ele bateu no chão de cabeça, como a ogiva de um foguete defeituoso. A areia onde Speedy estivera não era propriamente areia, mas uma dura camada de conchas e pequenas pedras. Richard caiu sobre um pedregulho que fora deslocado pelo terremoto. O tombo provocou um baque compacto, sonoro. Por um instante Richard pareceu uma avestruz com a cabeça enterrada na areia. As nádegas, cobertas por encardidas calças de algodão, oscilavam de um lado para o outro. Em outras circunstâncias (circunstâncias eliminadas por aquele tremendo baque sonoro, por exemplo), teria sido uma pose cômica, digna de um instantâneo Kodak: “O Racional Richard Perde a Cabeça na Praia.” Mas, daquele jeito, não tinha graça nenhuma. As mãos de Richard se abriram lentamente... e o talismã rolou um metro pelo suave declive da praia, refletindo céu e nuvens, não na superfície, mas na cálida luminosidade interior.

    — Richard! — Jack berrou outra vez.

    Morgan estava em algum lugar por perto, mas Jack momentaneamente o esquecera. Toda a sua tranqüilidade se fora; deixara-o no instante exato em que aquela perna, vestida numa calça de lã marrom, surgira na sua frente como barreira de pedágio. Ficara irritado como um menino derrubado no pátio da escola maternal, e Richard... Richard estava...

    — Rich...

    Richard rolara pelo chão e Jack viu que o pobre e cansado rosto do amigo estava coberto de san­gue. Em sua cabeça se abrira um corte triangular que lembrava uma vela esfiapada de barco. Uma mecha de cabelo ensopado lhe caía pelas bochechas como estranha planta marinha... E aquele cabelo fora com­pletamente arrancado do crânio (em seu lugar havia uma cintilação de couro cabeludo).

    A voz de Richard estalou como um grito:

    — O globo quebrou? Jack, será que ele quebrou quando eu caí?

    — Acho que está tudo bem, Richie... O talismã...

    Os olhos vermelhos de Richard saltaram das órbitas para alguma coisa atrás dele.

    — Jack! Jack, cuida...!

    Alguma coisa que pareceu um tijolo de couro (um dos sapatos de Morgan Sloat) mergulhou entre as pernas e os testículos de Jack. Foi uma pancada mortal e Jack se contorceu, experimentando, talvez, a maior dor de sua vida, uma agonia física como jamais imaginara sentir. Não foi sequer capaz de gritar.

    — O talismã está bem — disse Morgan Sloat —, mas acho que você não, meu rapaz. Absolutamen­te não.

    E agora o homem que avançava lentamente para Jack (lentamente porque saboreava a situação) era um sujeito a quem ele nunca fora devidamente apresentado. Por um espaço de segundos, sua face es­branquiçada despontara na janela de uma grande carruagem negra, uma face com olhos escuros que, de certa forma, pressentiam sua presença. Aquela mesma fisionomia surgira, alterada, na planície em que ele e Lobo conversavam de maravilhas como irmãos de cria sob a grande lua cheia. Era a lembrança daquela fisionomia que deixara uma sombra nos olhos de Anders.

    Mas, até agora, eu nunca tinha realmente visto Morgan de Orris, Jack pensou.

    E ele ainda era Jack. Vestindo calças de algodão, rústicas e encardidas (de um tipo que talvez só se encontrasse num trabalhador braçal asiático), e sandálias com tiras de couro cru. Vestido assim, mas ainda Jack — não Jasão. Seus testículos eram um grande grito congelado de dor.

    A dez metros de distância estava o talismã, atirando seu fulgurante clarão pela areia escura da praia. Richard não estava lá, mas só um pouco mais tarde este fato despertaria a atenção da mente consciente de Jack.

    Morgan usava uma capa azul-escura, presa no pescoço por um prendedor de prata. A calça era da mesma lã que a calça de Sloat, só que agora enfiada em botas negras.

    Este Morgan coxeava ao andar. O pé esquerdo, um tanto deformado, deixava pequenas marcas na areia. O prendedor de prata pendeu ao longo do tecido quando ele deu um passo à frente, e Jack perce­beu que o prendedor nada tinha a ver com a capa (esta era segura por um cordão preto e sem adornos). Aquilo era uma espécie de pingente. No primeiro instante, Jack achou que fosse um minúsculo taco de golfe, o tipo de coisa que uma mulher poderia tirar da caixa de jóias e usar em volta do pescoço, um mero enfeite. Mas, quando Sloat chegou mais perto, Jack viu que o enfeite era muito pequeno. E não terminava numa ponta de taco de golfe, mas numa agulha.

    Lembrava um pára-raios.

     

    — Não, você não parece nada bem, meu rapaz — disse Morgan de Orris.

    Jack estava caído no chão, gemendo, segurando os testículos, as pernas retorcidas. Morgan deu um passo em sua direção e curvou a cabeça. A calça ficou a poucos centímetros dos joelhos de Jack. Morgan o estudava como um homem examinando o animal que seu carro atropelou. Um animal sem grande im­portância, como um esquilo ou marmota.

    — Você não está nada bem.

    Morgan curvou o corpo.

    — Você tem me causado muitos problemas, garoto! — disse Morgan de Orris, curvando-se cada vez mais. — Você já me causou muitos prejuízos! Mas, no fim das contas...

    — Acho que estou morrendo — Jack murmurou.                                                 

    — Ainda não. Oh, imagino como deve estar se sentindo, mas acredite em mim, você ainda não está morrendo! Mais ou menos em cinco minutos você saberá o que é realmente estar morrendo!

    — Não... Eu estou... destroçado... por dentro — Jack gemeu. — Abaixe a cabeça... Eu quero di­zer... pedir... Eu quero suplicar que...

    Os olhos escuros de Morgan cintilaram no rosto pálido. Pareciam iluminados pela visão de Jack a seus pés, pedindo, suplicando. Ele se inclinou até seu rosto quase tocar o de Jack. As pernas do garoto ti­nham se contraído.

    E, de repente, Jack deu um forte chute. O movimento aumentou a dor. Foi como se uma lâmina enferrujada lhe raspasse os órgãos genitais e penetrasse no estômago. Mas o som de suas sandálias atin­gindo o rosto de Morgan, rachando os lábios, esborrachando um lado do nariz de Morgan, compensou toda a agonia. Morgan de Orris oscilou para trás, rosnando de dor e susto, a capa flutuando como as asas de um grande morcego.

    Jack ficou de pé. Por um instante, viu o castelo negro — era muito maior que o Agincourt; parecia cobrir centenas de acres de terra. Depois, viu Parkus estendido na areia, inconsciente ou morto/Jack in­vestiu para o talismã, que brilhava pacificamente na areia, e ao correr

    tornou a atravessar

    para os Territórios Americanos.

    — Seu filho da puta!— Morgan berrou. — Seu merdinha! Meu rosto, meu rosto! Você machucou o meu rosto!

    Houve um chiado e um cheiro de ozônio. Um brilhante feixe de luz azul e branca passou bem à di­reita de Jack, derretendo a areia como se ela fosse vidro.

    E então Jack pegou o talismã — pegou-o de novo! A dilacerante, tremenda dor nos testículos começou de imediato a diminuir. Jack virou-se para Morgan com o globo de vidro nas mãos.

    Morgan Sloat estava sangrando pelo lábio e levando uma das mãos ao rosto. (Jack gostaria muito de ter conseguido arrancar alguns dentes de Sloat.) Na outra mão, estendida na direção de Jack, estava a coisinha que parecia uma chave e acabara de fazer um raio explodir na areia.

    Jack esquivou-se para o lado, os braços circundando como um arco-íris, as cores mutantes do talis­mã. O talismã parecia compreender que Sloat estava perto. O grande globo cheio de linhas dera início a uma espécie de zumbido abafado que Jack sentia — mais do que ouvia — como um formigamento nas mãos. O centro do talismã emitiu um claro feixe de luz. Sloat esquivou-se dessa luz e apontou a chave para a cabeça de Jack.

    Depois limpou o sangue do lábio inferior.

    — Você me machucou, seu merdinha imundo — disse ele. — Mas não pense que essa bola de vi­dro vai conseguir protegê-lo. A vida dessa coisinha vai ser ainda mais curta que a sua!

    — Então não tenha medo dela, segure-a! — disse o garoto, inclinando o talismã na direção de Sloat.

    Sloat se esquivou, como se o talismã também pudesse disparar raios. Ele não sabe o que o talismã pode fazer, Jack percebeu; ele simplesmente não sabe nada sobre o talismã; só sabe que é perigoso!

    — Jogue essa coisa no chão! — Sloat gritou. — Largue esse traste, moleque! Ou sua cabeça vai vi­rar churrasco! Agora! Vamos! Largue isso!

    — Você está com medo — disse Jack. — Agora que o talismã está bem na sua frente, você está com medo de pegá-lo.

    — Eu não preciso pegá-lo — disse Sloat. — Solte essa coisa, seu maldito fedelho! Você mesmo é que há de quebrá-lo, Jacky!

    — Venha apanhá-lo, Sloat — disse Jack, sentindo uma rajada de cólera atravessar o seu corpo. Jacky! Ele detestava ouvir o modo carinhoso da mãe chamá-lo nos lábios de Sloat. — Eu não sou o hotel negro, Sloat. Sou apenas um guri. Será que não pode tirar uma bola de vidro das mãos de um guri?

    É claro que, enquanto o talismã se conservasse nas mãos de Jack, Sloat ficaria num impasse. Uma centelha muito azul, vibrante como uma das centelhas dos “demônios” de Anders, acendeu e apagou no centro do talismã. Outra centelha seguiu-se à primeira. Jack continuava sentindo aquele poderoso zumbido que emanava do núcleo do globo de vidro. Ele, Jack, fora destinado a conquistar o talismã — o talismã devia ficar em suas mãos. O talismã, Jack tinha certeza, soubera de sua existência desde seu nascimento, e desde então tinha esperado que ele viesse libertá-lo. O talismã precisava de Jack Sawyer e de ninguém mais.

    — Venha pegá-lo! — Jack falou num tom de zombaria.

    Sloat estendeu a chave em sua direção, rosnando. Sangue escorreu pelo seu queixo. Por um ins­tante, Sloat pareceu desnorteado, perplexo, enraivecido como um touro num cercado. Jack sorria. Depois olhou para Richard caído na areia e o sorriso desapareceu do seu rosto. A face de Richard estava literal­mente coberta de sangue, o cabelo preto tinha grandes manchas vermelhas.

    — Seu filho da... — ele começou, mas fora um erro desviar o olhar. Uma sibilante rajada azul e amarela espocou bem a seu lado.

    Jack virou-se para Sloat, que atirava outro raio na direção de seus pés. Recuou num passo de dança e o raio destruidor transformou a areia num líquido amarelado, que quase imediatamente se solidificou numa lisa e brilhante superfície de vidro.

    — Seu filho vai morrer — disse Jack.

    — Sua mãe vai morrer! — Sloat respondeu furioso. — Largue essa maldita coisa antes que eu lhe corte a cabeça! Já! Largue isso!

    — Por que não vem buscá-lo?

    Morgan Sloat abriu a boca e guinchou, revelando uma fileira de dentes quadrados e salpicados de sangue.

    — Vou buscá-lo pisando no seu cadáver!

    A ponta da chave foi inclinada para a cabeça de Jack, depois se elevou ainda mais. Com os olhos chamejando, Sloat foi erguendo a mão e apontou a chave para o céu. Um longo e fino feixe de luz pareceu brotar do punho de Sloat, alargando-se à medida que ascendia. O céu escureceu. O talismã e o rosto de Morgan Sloat brilharam na súbita escuridão, mas Sloat cintilava porque o talismã o inundava de luz. Jack pressentiu que seu rosto também devia estar feericamente iluminado pelo talismã. E assim que brandiu o talismã para Sloat, tentando só Deus sabe o quê — fazê-lo largar a chave, enraivecê-lo, esfregar-lhe no nariz o fato de que ele estava sem saída —, Jack compreendeu que as possibilidades de resistência de Morgan Sloat ainda não tinham chegado ao fim. Grandes flocos de neve caíram do céu escuro. Sloat desapareceu atrás de uma densa cortina de neve. Jack ouviu seu riso grotesco.

     

    Lily fez força para se levantar de sua cama de inválida e foi até a janela. Contem­plou a praia sem vida de dezembro, iluminada por um único lampião de rua. Subitamente, uma gaivota pousou no parapeito da janela. Um pedaço de marisco pendia-lhe do bico e, nesse momento, ela se lem­brou de Sloat. A gaivota era parecida com Sloat.

    Primeiro Lily se encolheu, depois recuou. Sentiu um absurdo acesso de raiva. Uma gaivota não po­deria ser parecida com Sloat, e uma gaivota não podia invadir o parapeito de sua janela... Aquilo não era correto. Fechou com força o vidro. O pássaro bateu rapidamente as asas, mas não levantou vôo. E então Lily Cavanaugh ouviu um pensamento vindo da mente glacial daquela ave, ouviu-o tão claramente quan­to uma emissão de rádio:

    — Jack está morrendo, Lily... Jack está morreeeeeeeennnenun...

    A ave inclinou a cabeça. Bateu no vidro tão intencionalmente quanto o corvo de Poe.

    — Morreeeeeeeennnnnenn...

    — Não! — ela gritou para o bicho. — Vá à merda, sloat!

    Lily deu um soco e arrebentou o vidro. A gaivota inclinou-se para trás, oscilando, quase caindo. Um ar muito frio entrou pelo buraco feito na janela.

    O sangue pingava da mão de Lily. Não, não apenas pingava. O sangue escorria. Ela se cortara bas­tante. Tirou alguns cacos de vidro da palma da mão e depois limpou-a no corpete do penhoar.

    — Não conte com isso, está ouvindo, demônio?! — gritou para o pássaro, que agora esvoaçava em círculos sobre o jardim. Depois explodiu em lágrimas. — Deixe-o em paz! Deixe-o em paz! Deixe meu filho em paz!

    Estava toda coberta de sangue. O ar frio soprava pela fenda que ela abrira no vidro. Lá fora os flocos de neve começaram a cair sobre a luz esbranquiçada do lampião de rua.

     

    — Cuidado, Jacky!           

    Baixo. À esquerda.

    Jack virou-se para aquele lado, segurando o talismã como um holofote. Ele mostrou um feixe de luz cheio de neve caindo.

    Nada mais. Escuridão... neve... o som do oceano.

    — Lado errado, Jacky.

    Ele se virou para a direita, os pés derrapando na neve. Mais perto. Chegara mais perto.

    Jack levantava o talismã.

    — Venha pegá-lo, Sloat!

    — Você não tem nenhuma chance, Jack. Posso agarrar você quando muito bem entender.

    Atrás dele... e ainda mais perto. Mas, quando Jack levantou a luz cintilante do talismã naquela dire­ção, não havia nada de Sloat. A neve batia no seu rosto. Ele inalou o frio e começou a tossir.

    Sloat deu uma risadinha bem na sua frente.

    Jack se assustou e quase tropeçou em Speedy.

    — Uh-uh, Jacky!

    À sua esquerda, brotou uma mão da escuridão e lhe puxou a orelha. Ele se virou, o coração marte­lando no peito, os olhos esbugalhados. Escorregou. Caiu apoiado num joelho.

    Em algum lugar perto dali, Richard deixou escapar um gemido denso, rangente.

    Lá no alto, uma artilharia de trovões corria pela escuridão que Sloat provocara.

    — Me atire o talismã! — Sloat zombou. Surgira de repente no meio do escuro e da tempestade, sacudindo braços e pernas. Estalava os dedos da mão direita, balançava a pequena chave com a esquerda. Os gestos tinham uma estranha cadência de dança. Lembrava um velho maestro de orquestra latina; Xavier Cugat, por exemplo. — Me atire o talismã, por que não, Jack? Tiro ao alvo! Tiro aos pombos, rapaz! Com o velho tio Morgan! O que me diz disso, Jack? Não acha divertido? Atire a bola e ganhe uma bruxinha de pano, está bem?

    E Jack puxou o talismã de encontro ao ombro direito. Ele está querendo assustá-lo. Está tentando deixá-lo em pânico, suficientemente em pânico para largar o talismã, para... Sloat se dissipou na escuri­dão. A neve continuava caindo, quase formando um rodamoinho.

    Jack rodopiava com os nervos à flor da pele, mas não conseguia ver Sloat em lugar nenhum. Tal­vez ele tenha ido embora. Talvez...

    — E então, Jacky? O que você resolve, filho?

    Não! Morgan ainda estava lá! Em algum lugar! À esquerda!

    — Eu morri de rir quando seu querido papai levou aquele tiro, garoto! Ri na cara dele! Quando o motor ficou em silêncio no peito de Phill eu senti...

    A voz tinha um gorjeio de pássaro. Por um instante enfraquecia, depois se elevava. À direita. Jack virou-se para a direita, não entendendo o que acontecia, os nervos cada vez mais tensos.

    — ... meu coração bater como um pássaro. Ele voou assim, Jacky!

    E uma rocha saiu da escuridão. Apontada não para Jack, mas para o globo de vidro. Jack se esqui­vou. Captou um olhar embaçado de Sloat. Um olhar que daí a um instante sumiu.

    Uma pausa... Mas logo Sloat estava de volta; e tinha mudado o disco.

    — Sua mãe está fodida, Jack — a voz ergueu-se atrás dele. A mão gorda e quente de Morgan deu-lhe uma palmada no traseiro.

    Jack rodopiou, dessa vez quase caindo sobre Richard. Lágrimas (quentes, dolorosas, humilhadas) começaram a correr de seus olhos. Jack as odiava, mas lá estavam elas, e nada no mundo poderia negá-las. O vento gritava como um dragão num túnel. A magia está em você, Speedy dissera, mas onde estava agora a magia? Onde, oh, onde, onde?

    — Pare de falar na minha mãe!

    — Ela está bem fodida — Sloat acrescentou com uma torpe alegria.

    De novo à direita. Um vulto gordo, dançante na escuridão.

    — Ela já caiu na cantada da morte, Jacky!

    Atrás dele! Bem perto!

    Jack rodopiou. Suspendeu o talismã. O globo emitiu uma branca camada de luz. Sloat resvalou para trás e Jack viu de relance uma careta de dor e ira. Aquela luz tocara Sloat e o machucara.

    Não importa o que ele está dizendo. É tudo mentira e você sabe disso. Mas como Sloat consegue fazer isso? É como Edgar Bergen... Não. É como os índios no escuro, atacando um vagão de trem. Como ele consegue fazer isso?

    — Sua mãe também já trepou comigo, Jacky — disse Sloat com uma risada sórdida. Parecia um pouco sem fôlego, mas não muito. Ainda não o bastante para calar a boca. Jack ofegava como um cachor­rinho num dia quente, os olhos arregalados procurando o vulto de Sloat na escuridão da tempestade. — Mas não vou insistir no assunto. Agora vejamos... do que a gente estava falando? Oh, sim. Sua mãe...

    Um pequeno gorjeio... um som sufocado... um ruído... E então uma pedra veio assobiando no es­curo e atingiu a testa de Jack. Ele girou nos calcanhares, deu uma volta completa... e encontrou Sloat. Mas Morgan Sloat continuou se escondendo com muita agilidade no manto de neve.

    — Oh, ela abriu aquelas pernas compridas em torno das minhas costas e quis repetir, repetir, até eu gemer que não agüentava mais! — Sloat deslizava da esquerda para a direita, da esquerda para a direita de Jack. — E eu gemia ooooohhhhhhhhhhhi

    Não acredite no que ele está dizendo. Não deixe ele fazer sua cabeça. Não...

    Era fácil não acreditar, mas não era fácil se conter. Afinal, era de sua mãe que aquele homem no­jento estava falando; de sua mãe.

    — Pare com isso! Cale essa boca!

    Sloat estava agora na frente dele, tão perto que Jack chegou a acreditar que o veria claramente, apesar do torvelinho de neve. No entanto, viu apenas uma cintilação, como um rosto à noite sob a água. Outra pedra zumbiu e atingiu-lhe a cabeça por trás. Ele cambaleou e, de novo, quase caiu em cima de Ri­chard — Richard que ia desaparecendo velozmente sob um manto de neve.

    Viu estrelas... e entendeu o que estava acontecendo.

    Sloat está atravessando, sempre atravessando! Indo... vindo!

    Jack debateu-se num círculo instável, como um homem enfrentando 100 inimigos em vez de um. Um fogo de relâmpago brotou da escuridão num estreito raio verde e azul. Ela avançou com o talismã, es­perando ricochetear o raio para Sloat. Tarde demais! O raio se extinguiu.

    Por que não consegui ver Sloat, ver Sloat nos Territórios?

    A resposta lhe ocorreu como uma luz ofuscante... como se o talismã sublinhasse a resposta com um esplêndido feixe de luz branca.

    Eu não consegui ver Sloat, eu não consegui ver Sloat nos Territórios, porque eu não estou nos Territórios! Jasão se foi... e eu sou de natureza única! Sloat está atravessando de uma praia onde não há ninguém a não ser Morgan de Orris e um homem morto ou moribundo chamado Parkus. Richard também não está nos Territórios, porque o filho de Morgan de Orris, Rushton, morreu há muito tempo, e Richard também é de natureza única! Quando atravessei há algum tempo, o talismã estava lá... mas Richard não. Morgan está atravessando... resvalando... passando de um lado para o outro... fazendo tudo para me pegar...

    — Hu-hu! Ei, Jacky!

    À esquerda.

    — Aqui, Jack!

    À direita.

    Mas Jack não estava mais preocupado com aqueles deslocamentos. Fitava o talismã, esperava o golpe decisivo do talismã. O golpe mais decisivo de toda a sua vida.

    Atrás. Dessa vez ele viria por trás.

    O talismã faiscou. Um forte lampejo na neve.

    Jack rodopiou... e quando rodopiou, aí sim, atravessou para os Territórios, para um brilhante sol nos Territórios. Lá estava Morgan de Orris, colossal, e duas vezes mais colossal. No primeiro instante, Mor­gan não percebeu que Jack descobrira o truque. Coxeava velozmente para um lugar que ficaria atrás de Jack nos Territórios Americanos. Em seu rosto havia um sorriso malicioso de menino travesso. A capa es­voaçava, ondulava atrás dele. A perna esquerda mancava, e Jack viu que a areia estava coberta de marcas arrastadas. Morgan estivera correndo ao seu redor num círculo alucinado, atormentando-o com mentiras obscenas sobre a mãe, atirando pedras e saltando de um lado para o outro.

    Jack gritou com toda a força dos pulmões:

    — Agora estou vendo você!!!

    Morgan encarou-o com uma atordoada expressão de choque, a mão enroscada na chave de prata.

    — Estou vendo você! — Jack gritou outra vez. — Não quer dar mais uma voltinha, Sloat?

    Morgan de Orris apontou a chave para ele. A fisionomia de choque e perplexidade se transformara instantaneamente no ar de astúcia que lhe era mais característico. Foi a expressão de um sujeito esperto, avaliando com rapidez todas as possibilidades de uma situação. Os olhos se contraíram. Naquele instante, vendo a chave e os olhos de Morgan de Orris fixando-se nele como miras de revólver, Jack quase tornou a atravessar para os Territórios Americanos. Mas uma fração de segundo antes que o medo ou o pânico o expusessem a uma situação de perigo ainda maior, o mesmo discernimento que o fizera perceber que Morgan estava atravessando sem cessar os mundos tornou a vir em seu socorro: Jack teve uma visão de conjunto da estratégia do adversário. Apertou o talismã, de novo esperando aquele quase místico golpe decisivo. Prendeu a respiração. Se Morgan fosse uma lâmina menos orgulhosa de seu gume, talvez tivesse conseguido realizar o que, naquele momento, constituía o seu maior desejo: assassinar Jack Sawyer.

    Em vez disso, porém, aconteceu justamente o que Jack estava esperando. A imagem de Morgan partiu abruptamente dos Territórios. Jack respirou fundo. O corpo de Speedy (corpo de Parkus, Jack per­cebeu) jazia imóvel bem perto dali. O golpe decisivo se aproximava. Jack respirou fundo mais uma vez e atravessou.

    Uma nova tira de vidro derretido marcava a areia da praia em Point Venuti, refletindo agora o feixe de luz branca que emanava do talismã.

    — Um ponto para você, hã? — Morgan Sloat sussurrou da escuridão.

    A neve batia no rosto de Jack, um vento frio lhe congelava os membros, a garganta, a testa. Havia um carro estacionado à distância.

    Sloat tinha se postado diante dele, as rugas que já eram familiares a Jack lhe marcando a testa, a boca ensangüentada e aberta. No meio da nevasca, estendeu a chave para o sobrinho (flocos finos de neve aderiram à manga do seu terno marrom). Jack viu um rastro negro de sangue verter do nariz absur­damente pequeno de Sloat. Os olhos de Sloat, injetados de dor, brilharam na escuridão do ar.

     

    Richard Sloat abriu confusamente os olhos. Sentia frio em cada centímetro do corpo. A princípio, sem qualquer tipo de emoção, achou que estava morto. Caíra em algum lugar, provavelmente naqueles degraus íngremes e traiçoeiros que havia no fundo da tribuna de honra do Colégio Thayer. Estava frio, morto, e nada mais podia lhe acontecer. Experimentou um segundo de vertiginoso alívio.

    A cabeça lhe proporcionou uma súbita pontada de dor, e ele sentiu um sangue quente se destilar pela mão fria. Essas duas sensações deixavam claro que, fosse lá o que estivesse acontecendo, Richard Llewellyn Sloat ainda não estava morto. Tratava-se apenas de uma criatura ferida, uma criatura sofrendo. Toda a parte de cima de sua cabeça parecia ter sido cortada. Não tinha uma idéia exata de onde estava. Sentia frio. Seus olhos se concentraram um tempo suficientemente longo para informá-lo de que estava deitado na neve. O inverno chegara com muita força; a neve não parava de cair.

    Então ouviu a voz do pai e tudo o que estava acontecendo lhe veio à memória.

    Richard manteve a mão no alto da cabeça, mas inclinou o queixo muito lentamente para olhar na direção da voz de Sloat.

    Jack Sawyer estava segurando o talismã, Richard percebeu. O globo ainda não tinha quebrado. Sentiu que voltava uma parte do alívio que experimentou ao achar que estava morto. Mesmo sem os ócu­los, Richard pôde observar que Jack tinha um olhar resoluto, convicto, que o comoveu profundamente. Jack parecia... parecia um herói. Era isso. Um herói sujo, descabelado, absurdamente jovem, errado para o papel em quase cada detalhe, mas indiscutivelmente um herói.

    Jack agora era apenas Jack, Richard percebeu. Aquela extraordinária qualidade extra, aquele insó­lito ar de astro de cinema num menino mal vestido de 12 anos, tinha desaparecido. E isto fazia seu heroís­mo ainda mais impressionante aos olhos de Richard.

    O sorriso do pai era ávido, voraz. Mas aquele não era seu pai. Há muito tempo, o pai fora destruí­do. Destruído pela inveja que teve de Phil Sawyer, pela ânsia das ambições que acalentou.

    — Não podemos ficar a vida inteira nisso — dizia Jack. — Nunca vou lhe dar o talismã e você nun­ca vai conseguir destruí-lo com essa chavezinha. Desista.

    A ponta da chave nas mãos de Sloat moveu-se lentamente de um lado para o outro. Depois, em conjunto com a face de Morgan Sloat, a chave apontou diretamente para Richard.

    — Primeiro vou fazer Richard em pedaços — disse ele. — Está realmente disposto a ver seu com­panheiro virar presunto? Hã? Está disposto? E é claro que eu não vou hesitar em conceder o mesmo bene­fício à peste que está ao lado dele.

    Jack e Sloat trocaram rápidos olhares. Richard percebeu que o pai não estava brincando. Ele o ma­taria se Jack não entregasse o talismã. E depois mataria o velho negro Speedy!

    — Não entregue o talismã — ele conseguiu murmurar. — Agüente firme, Jack! Diga que ele pode fazer o que bem entender!

    Richard ficou desconcertado vendo Jack piscar um olho para ele.

    — Simplesmente deixe cair o talismã — ele ouviu o pai dizer.

    E Richard observou com horror que Jack começava a abrir as palmas das mãos para soltar o talismã.

     

    — Jack, não!

    Jack nem olhou para Richard. Só se possui verdadeiramente uma coisa quando se é capaz de abrir mão dela, sua mente martelava. Só se possui verdadeiramente uma coisa quando se é capaz de abrir mão dela... De que adianta tentar possuí-la de outro jeito? Não vale para nada. É inútil. E se você não aprendeu isso na escola, aprendeu na estrada, tirou a lição de Ferd Janklow. Richard está enluarado. Bateu de cabeça nas rochas como um foguete Saturno que se deu mal no lançamento.

    Se não aprender de vez certas coisas, Jack, vai morrer num mundo de onde quase toda a luz foi ex­tinta.

    — Já chega de mortes — ele disse na escuridão cheia de neve daquela praia da Califórnia. Sentia-se extremamente exausto. Os últimos quatro dias tinham sido cheios de horrores, e agora, no fim, estava quase disposto a atirar o globo como um jogador de basquete amador. Atirá-lo, atirá-lo para qualquer lado. Ouviu, porém, a voz de Anders, Anders que se ajoelhara diante de Jack/Jasão com o saiote estendido ao redor do corpo e a cabeça baixa; Anders dizendo: Jasão voltou e a rainha vai ficar boa, oh, sim! E tudo vai correr bem!

    O talismã brilhava na praia, a neve escorrendo em gotas pela sua superfície luminosa, e cada gota era um arco-íris. Foi nesse momento que Jack percebeu como era assombrosamente correto abrir mão da coisa que ele mais desejara possuir.

    — Já chega de matanças. Quebre o talismã se quiser — disse ele. — Tenho muita pena de você, mas não posso fazer nada.

    Foi sem dúvida a afobação que destruiu Morgan Sloat. Se tivesse lhe sobrado um fiapo de pensa­mento racional, ele teria desenterrado uma pedra da neve e esmagado o talismã (o talismã de fato podia ter sido esmagado; era frágil, não tinha qualquer proteção).

    Sloat, no entanto, virou a chave na direção do globo.

    Ao fazer isso, sua mente encheu-se de sórdidas, repelentes memórias de Jerry Bledsoe e da mulher de Jerry Bledsoe. O Jerry Bledsoe que ele matara, a bela Nita Bledsoe que agiu como Lily Cavanaugh... (Uma vez, quando Sloat estava embriagado e quis abusar de Lily, ela o esbofeteou com tanta força que o sangue lhe escorreu pelo nariz.)

     

    O raio zumbiu — um fogo verde e azulado atirado da ponta retorcida da pequenina chave. O raio atingiu o talismã, bateu nele, espalhou-se sobre ele, transformou-o num sol ardente. Por um instante, todas as cores estiveram ali... Por um instante, todos os mundos estiveram ali. Depois a brasa foi extinta.

    O talismã engolira o raio da chave de Morgan.

    Comera todo o raio.

    A escuridão voltou. Os pés de Jack derraparam na neve e ele caiu com um baque surdo sobre as pernas de Speedy Parker. Speedy resmungou e se contorceu.

    Durante um período de dois segundos, tudo ficou estático... e então, bruscamente, saltou do talis­mã uma torrente de fogo. Os olhos de Jack se arregalaram. Um pensamento frenético o torturava:

    Isso vai cegá-lo, Jack! Isso vai cegá-lo!

    A geografia alterada de Point Venuti estava iluminada como se o Deus de Todos os Universos ti­vesse vindo à Terra para tirar uma foto. Jack viu o Agincourt, vergado e semidestruído; viu as colinas que tinham se transformado em estranhas planícies; viu Richard do seu lado; viu Speedy deitado de bruços com o rosto virado. Speedy estava sorrindo.

    Então Morgan Sloat foi impelido para trás e envolvido no campo de fogo de sua própria chave (fogo que tinha sido absorvido pelo talismã como os flashes de luz da mira telescópica de Sunlight Gar­dener tinham sido absorvidos). O fogo lhe foi devolvido multiplicado por mil.

    Um buraco se abriu entre os mundos, um buraco do tamanho do Túnel de Oatley. Jack viu o elegante terno marrom de Sloat ardendo em chamas, e uma esquelética mão, sebosa, ainda agarrando a chave, passar por aquele buraco. Os olhos de Sloat ferviam nas órbitas, mas estavam grandes... estavam conscientes.

    E enquanto Sloat passava, Jack o via se transformar. Viu a capa aparecer como as asas de um mor­cego que tivesse mergulhado através da chama de uma tocha, viu as botas queimando, o cabelo queima­do. Viu a chave se tornar uma espécie de miniatura de pára-raios.

    Viu... a luz do sol.

     

    A luz retornou numa impetuosa torrente. Ofuscado, Jack rolou pela neve da praia procurando esquivar-se dela. Em seus ouvidos (ouvidos profundamente enterrados na cabeça) ouviu o grito agonizante de Morgan Sloat (que estava sendo impelido, através de todos os mundos que existiam, para o esquecimento).

    — Jack?

    Richard estava sentado zonzo na areia, segurando a cabeça ferida.

    — Jack, o que aconteceu? Acho que caí nos degraus do estádio.

    Speedy contorceu-se na neve, fez uma espécie de rebolado e olhou para Jack. Seus olhos estavam exaustos... mas o rosto ficara livre das manchas.

    — Bom trabalho, Jack — ele disse e sorriu. — Bom...

    Richard caiu parcialmente para a frente, ofegante.

    Arco-íris, Jack pensou atordoado. Levantou-se e caiu outra vez. Uma neve muito fria fustigava o seu rosto e começava a escorrer como choro.

    Ele conseguiu ficar de joelhos e depois se levantar. O campo de sua visão estava cheio de manchas... mas ele viu, na neve, a enorme faixa queimada onde Morgan estivera. Ela se estendia como uma lágrima.

    — Arco-íris!— Jack Sawyer gritou e, rindo e chorando, levantou as mãos para o céu. — Arco-íris! Arco-íris!

    Ainda chorando, aproximou-se do talismã e o pegou.

    Depois passou-o para Richard Sloat, que fora Rushton, e para Speedy Parker, que era Parkus no outro mundo.

    Ele os curou de vez.

    Arco-íris, arco-íris, arco-íris!

     

    OUTRA JORNADA

    Ele os curou de vez, mas nunca seria capaz de lembrar exatamente como isso acon­teceu. Os detalhes lhe escaparam. Por algum tempo, o talismã chamejou e zumbiu em suas mãos. Jack teve a impressão de que eles foram inundados pelo fogo do talismã até brilharem numa camada de luz. Era só isso que conseguia recordar.

    Quando tudo acabou, a esplêndida luz do talismã foi diminuindo... diminuindo... até se extinguir por completo.

    Pensando na mãe, Jack deixou escapar um grito rouco de dor.

    Cambaleando, Speedy caminhou para ele pela neve que se derretia e pôs o braço em volta de seus ombros.

    — Tudo pronto, Jack Viajante!

    Speedy sorria, mas parecia estar duas vezes mais cansado que Jack. Speedy fora curado... mas ainda não estava bem. Este mundo o está matando, Jack pensou sombriamente. Pelo menos, está matando a parte dele que é Speedy Parker. O talismã o curou... mas ele ainda está morrendo.

    — Você fez muita coisa pelo talismã — Speedy continuou — e pode ter certeza que ele não vai deixá-lo na mão. Não se preocupe. Vamos lá, Jack! Vamos ver como está seu amigo.

    Jack obedeceu. Richard dormia na neve que ia derretendo. Aquela terrível camada solta de pele desaparecera da sua cabeça, mas agora uma comprida tira branca de couro cabeludo brilhava em seu crâ­nio (uma listra careca, onde jamais cresceria cabelo).

    — Pegue a mão dele.

    — Por quê? Para quê?

    — Vamos atravessar.

    Jack olhou inquisitivamente para Speedy, mas ele não deu qualquer explicação. Limitou-se a balançar a cabeça, como se dissesse: Sim, foi isso mesmo que você ouviu.

    Bem, Jack pensou, eu confiei nele até agora e...

    Estendeu o braço e pegou a mão de Richard. Speedy segurou a mão de Jack.

    Sem grande esforço, os três atravessaram.

     

    Foi como Jack intuíra: o vulto de pé a seu lado, ali naquela areia negra que fora marcada em toda parte pelas pegadas coxas de Morgan de Orris, parecia robusto, saudável, vigoroso,

    Jack contemplou com espanto (e um certo mal-estar) aquele estrangeiro que lembrava um pouco o irmão mais novo de Speedy Parker.

    — Speedy... Isto é, Sr. Parkus... o que o senhor...

    — Vocês precisam descansar — disse Parkus. — Você em primeiro lugar; esse outro jovem cava­lheiro ainda mais que você. Só ele mesmo poderá entender o quanto esteve perto da morte... E acho que ele não é do tipo capaz de admitir com facilidade as coisas.

    — Exatamente — disse Jack. — O senhor tem toda a razão.

    — Ele descansará melhor ali — Parkus disse a Jack e começou a subir a praia, afastando-se do cas­telo, carregando Richard. Jack foi tropeçando atrás deles, mas aos poucos a distância aumentou. Jack fi­cou rapidamente sem fôlego, as pernas bambas. Sua cabeça doía numa reação instintiva à batalha final (choque retardado, ele supôs).

    — Ora... onde...

    Isso foi tudo o que conseguiu balbuciar. Apertou o talismã contra o peito. Agora o talismã estava sem brilho, a superfície cheia de fuligem, opaca, desinteressante.

    — Só mais um pequeno esforço — disse Parkus. — Você e seu amigo não querem descansar onde ele estava, certo?

    Absolutamente exausto, Jack concordou com a cabeça.

    Parkus olhou ao redor; depois encarou Jack com uma fisionomia triste.

    — O fedor do mal ainda está lá atrás — disse ele —, e é um cheiro muito peculiar a seu mundo, Jack!

    — Para mim, certos cheiros do meu mundo não deixam de ser um consolo.

    Parkus recomeçou a andar, levando Richard nos braços.

     

    Parou 40 metros adiante. Ali a areia tinha um tom ligeiramente mais claro — não branco, mas um cinza suave. Parkus pousou Richard suavemente na praia. Jack se escarrapachou ao lado dele. A areia estava quente, abençoadamente quente. Não havia nenhuma neve.

    Parkus sentou-se com as pernas cruzadas.

    — Agora você vai dormir um pouco — disse ele. — Talvez só acorde amanhã de manhã. Ninguém vai molestá-lo, pode ter certeza. Dê uma olhada.

    Com um gesto, Parkus indicou o lugar onde ficava Point Venuti nos Territórios Americanos. Jack viu o castelo negro parcialmente destruído e muito chamuscado, como se lá dentro tivesse havido uma tremenda explosão. Agora o castelo parecia quase banal. Sua ameaça se dissipara, os perigos nele escon­didos estavam extintos. Só restavam pedras empilhadas em montes das mais diversas formas.

    Olhando à frente, Jack constatou que o terremoto não fora tão violento nos Territórios (talvez ali houvesse menos o que destruir). Viu choupanas derrubadas, convertidas num amontoado de tábuas; viu carroças destroçadas (que talvez fossem Cadillacs nos Territórios Americanos); aqui e ali via um corpo caí­do, descabelado, peludo.

    — Aqueles que estavam na praia e sobreviveram já foram embora — disse Parkus. — Sabem o que aconteceu, sabem que Orris morreu, e não o incomodarão mais. O mal que havia aqui desapareceu de vez. Não percebe isso? Não pode sentir isso?

    — Sim — Jack sussurrou. — Mas... Sr. Parkus... o senhor não...

    — Se não vou embora? Sim. Daqui a pouco, daqui a pouco... Você e seu amigo poderão tirar uma boa soneca, mas antes precisamos conversar. Não vai demorar muito, por isso procure descolar a cabeça do peito, Jack. Um pouco mais de paciência, está bem?

    Com algum esforço, Jack levantou a cabeça e abriu os olhos (quase de todo). Parkus sorriu com um ar de aprovação.

    — Quando acordar, vá em direção ao leste. Mas não atravesse! Continue algum tempo nos Territó­rios. Haverá muita movimentação lá do seu lado: turmas de socorro, curiosos, só Jasão sabe! Pelo menos a neve se derreterá antes que alguém perceba que ela caiu. E, é claro! Se alguém tiver visto a neve e fizer re­ferência a ela, vai fazer papel de maluco...

    — Por que você tem de ir embora?

    — Ainda tenho de caminhar um pouco, Jack. Ainda há muito trabalho a ser feito. As notícias da morte de Morgan logo estarão correndo para o leste. E correndo depressa. Já estou atrás dessas notícias e tenho de me manter à frente delas. Tenho de voltar para os Postos de Fronteira e atingir o leste... antes que as sobras do grupo de Morgan comecem a escapulir.

    Ele fitou o oceano, os olhos opacos, frios como uma pedra.

    — Quando a conta vem, as pessoas têm de pagar. Morgan foi embora, mas ainda há uma dívida a ser resgatada.

    — Você é uma espécie de policial, certo?

    Parkus assentiu com a cabeça.

    — Sou mais ou menos o que vocês chamariam “Presidente do Supremo Tribunal”... Aqui nos Territórios, é claro. — Ele pôs a mão forte e quente na cabeça de Jack. — Em seu mundo, sou apenas aquele sujeito que anda sem destino de um lugar para outro, arranja alguns trabalhos aqui e ali, e toca alguma coisa na guitarra. Às vezes, pode crer, prefiro estar na pele dele.

    Parkus tornou a sorrir e, por um instante, voltou a ser Speedy.

    — E de vez em quando, Jacky, você verá esse sujeito. Sim! De vez em quando. Num shopping cen­ter, talvez, ou num parque de diversões...

    Parkus piscou o olho.

    — Mas Speedy não está muito bem — disse Jack. — Não sei o que há com ele, mas é uma coisa que o talismã não pode resolver.

    — Speedy está velho — disse Parkus. — Tem a minha idade, mas seu mundo o tornou mais velho. Ainda tem alguns anos pela frente, mas não muitos. Não precisa se assustar, Jack. Não há nada de mais com Speedy.

    — Tem certeza? — Jack perguntou.

    Parkus sorriu.

    — É claro, rapaz!

    Jack devolveu um sorriso cansado.

    — Quando acordar, caminhe com o seu amigo para o leste. Ande até completar uns oito ou dez quilômetros. Depois de ultrapassar aquelas colinas, estará em segurança. As colinas são baixas, o caminho não é difícil. Procure uma grande árvore, a maior árvore que já tiver visto. Vá até essa velha árvore, pegue a mão de Richard e atravesse. Vocês sairão perto de uma gigantesca sequóia. Há um túnel escavado na base da sequóia; a estrada passa por ali. A estrada é a Rodovia 17, e levará vocês a uma pequena cidade do norte da Califórnia: Storeyville. Entrem na cidade. Há um posto de gasolina junto ao sinal luminoso.

    — E depois?

    Parkus abanou os ombros.

    — Não sei, não tenho certeza. Talvez encontrem alguém conhecido...

    — Mas como vamos conseguir chegar em casa?

    — Psssiu! — disse Parkus, e pôs a mão na cabeça de Jack exatamente como sua mãe fazia quando ele era

    (bicho-papão sai de cima do telhado, deixa o menino, e toda essa besteira para dormir sossegado, Jacky!, para ficar tudo bem, tudo bem, tudo)

    muito pequeno. — Já chega de perguntas. Agora eu acho que vai ficar tudo bem com você e com Richard...

    Jack se deitou. Aninhou o globo escuro na curva de um dos braços. Suas pálpebras pareciam ter adquirido um tom de cinza vulcânica.

    — Você tem sido bravo e leal, Jack — disse Parkus com um ar calmo e grave. — Gostaria que fosse meu filho... E o saúdo por sua coragem. E pela sua fé. Há pessoas, em muitos mundos, que têm para com você uma dívida de gratidão. E acho que, de um modo ou de outro, a maioria delas tem plena consciência disso.

    Jack conseguiu sorrir.

    — Fique aqui um pouco — ele pediu.

    — Tudo bem — disse Parkus. — Até você dormir. Não tenha medo, Jack. Nada vai machucá-lo.

    — Minha mãe costumava dizer...

    Mas, antes que pudesse terminar a frase, o sono tomou conta dele.

     

    E, de algum modo misterioso, o sono continuou a dominá-lo no dia seguinte, quan­do ele já estava tecnicamente acordado; uma parte de sua mente funcionaria quase todo aquele dia de for­ma lenta e sonhadora. Ele e Richard, que estava igualmente lento de reflexos e gestos, se achavam de pé sob a mais alta árvore do mundo. Em volta deles, lantejoulas de luz cobriam o chão da floresta. Dez ho­mens adultos, de mãos estendidas, não conseguiriam circundar o tronco. A árvore se elevava, compacta e solitária: mesmo numa das altas florestas da América, aquela árvore seria um leviatã, um nítido exemplo da exuberância dos Territórios.

    Não tenha medo, Parkus dissera (com um jeito de quem era capaz de desaparecer rapidamente no ar como um gato mágico). Jack inclinou a cabeça para fitar a copa da árvore. Ainda não tinha consciência disso, mas estava emocionalmente exausto. A imensidão da árvore só lhe causou um breve lampejo de admiração. Jack pousou a mão na surpreendente suavidade da casca. Eu matei o homem que matou meu pai, disse para si mesmo. Sua outra mão apertava contra o peito o globo escuro, aparentemente sem vida, do talismã. Richard levantava os olhos para a gigantesca copa da árvore. Era como se os dois estivessem embaixo de um arranha-céu. Morgan estava morto, Gardener também, e nesse momento a neve já devia ter derretido na areia da praia. Nem toda a neve, porém, sumira. Dentro de sua cabeça, Jack ainda sentia uma praia cheia de neve. Certa vez, pensara (mil anos pareciam ter passado desde então) que, quando conseguisse realmente pôr as mãos no talismã, ficaria tão inundado de triunfo, vibração e temor que começaria a chiar como uma chaleira. Naquele momento, porém, não sentia mais que um débil vestígio de todas essas emoções. Nevava em sua cabeça, e a mente não conseguia enxergar mais nada além das instruções de Parkus. Percebeu que a enorme árvore estava querendo prendê-lo naquele lugar.

    — Pegue minha mão — ele disse a Richard.

    — Mas como vamos chegar em casa? — Richard perguntou.

    — Não tenha medo — disse ele, e fechou a mão em volta do pulso de Richard. Jack Sawyer não se deixaria atrasar por uma árvore. Jack Sawyer estivera nas Terras Secas, conquistara o hotel negro; Jack Sawyer era bravo e leal.

    Jack era um menino de 12 anos cansado, com neve caindo nos ombros, mas rompeu quaisquer barreiras que pudessem prendê-lo aos Territórios e atravessou sem esforço para seu próprio mundo. Ri­chard foi junto com ele.

     

    A floresta tinha se contraído; era agora uma floresta americana. As copas dos galhos que se moviam eram nitidamente mais baixas, as árvores consideravelmente menores que na floresta dos Territórios para onde Parkus os conduzira. Jack teve apenas uma vaga consciência da alteração da escala das coisas antes de ver as duas pistas planas e negras na sua frente. Mas a realidade do século XX deu-lhe quase imediatamente um chute nas canelas, pois, assim que viu a estrada, ouviu o som de um pequeno motor. Instintivamente puxou a camisa de Richard e o fez recuar antes que um pequeno Renault branco passasse zumbindo por eles. O carro entrou no túnel aberto no tronco da sequóia (que tinha pouco mais que a metade do tamanho de sua parceira nos Territórios). As duas crianças e um dos adultos que iam no Renault provavelmente nem se deram ao trabalho de reparar em mais uma das grandes árvores que talvez viessem observando na costa leste. A mulher e as duas crianças pequenas no banco traseiro tinham se virado e aberto a boca para Jack e Richard. As bocas eram pequenas cavernas escuras, muito arreganhadas. Tinham acabado de ver dois garotos aparecerem como fantasmas no acostamento, surgirem milagrosa e instantaneamente do nada (como o Capitão Kirk e o Dr. Spock saindo da coluna de transferência da Enterprise).

    — Você consegue andar um pouco?

    — É claro que sim — disse Richard.

    Jack pôs o pé no asfalto da Rodovia 17 e, pouco depois, atravessava o enorme buraco cavado na árvore.

    Talvez estivesse sonhando tudo aquilo, ele pensou. Talvez ainda estivesse na praia dos Territórios, Richard desacordado ao seu lado, ambos sob o olhar suavemente brilhante de Parkus. Minha mãe costumava dizer... Minha mãe costumava dizer...

     

    Como se atravessasse uma densa neblina (embora o dia — como quase todos os dias na Califórnia — estivesse ensolarado e seco), Jack Sawyer tirou Richard Sloat da floresta de sequóias e desceu com ele uma lombada entre as secas campinas de dezembro.

    ... que a pessoa mais importante em qualquer filme geralmente é o câmera...

    Seu corpo precisava de mais horas de sono. Sua mente precisava de umas férias.

    ... que o vermute é a ruína de um bom martini...

    Richard o acompanhava em silêncio, remoendo pensamentos. Ele era muito mais lento e, de vez em quando, Jack tinha de parar na margem da estrada para que o amigo o alcançasse. Uma pequena cida­de, provavelmente Storeyville, era visível a menos de um quilômetro. Pequenos prédios brancos enfileira­vam-se de ambos os lados da estrada. antiguidades, dizia a tabuleta sobre um deles. Depois dos prédios, um sinal de trânsito piscava sobre um cruzamento vazio. Jack pôde ver o canto da placa mobil em frente ao posto de gasolina. Richard arrastava-se penosamente, a cabeça tão baixa que o queixo quase encosta­va no peito. Quando Richard se emparelhou com ele, Jack percebeu que o amigo estava chorando.

    Pôs o braço em volta do ombro de Richard.

    — Quero lhe dizer uma coisa, rapaz...

    — O que é?

    Embora coberto de lágrimas, o pequeno rosto de Richard tinha um ar de desafio.

    — Gosto muito de você — disse Jack.

    Os olhos de Richard voltaram-se bruscamente para a superfície da estrada. Jack conservou o braço sobre os ombros do amigo. Daí a pouco, Richard levantou a cabeça e encarou Jack com um ar de espanto. A expressão de Richard trouxe à memória de Jack alguma coisa que Lily Cavanaugh Sawyer tinha-lhe dito uma ou duas vezes: Jacky, nem sempre é bom cuspir as entranhas pela boca.

    — Estamos a caminho de casa, Richie — disse Jack. Ele esperou que o amigo enxugasse os olhos. — Acho que alguém deve estar nos esperando no posto de gasolina.

    — No mínimo Hitler. — Richard apertou os olhos com os punhos, mas logo recuperou o controle e caminhou decidido ao lado de Jack para Storeyville.

     

    Havia um cadillac estacionado no lado da sombra do posto de gasolina — um El Dorado com uma antena de tevê na traseira. Era grande como um trailer e escuro como a morte.

    — Oh, Jack, que grande merda — Richard gemeu e se agarrou ao ombro do amigo. Seus olhos es­tavam arregalados, a boca tremia.

    Jack sentiu a adrenalina fustigar outra vez seu sistema nervoso. Mas foi mais uma sensação de can­saço que de medo. Já passara por muita coisa, muita coisa.

    Agarrando com força o escuro e feio globo de vidro em que o talismã se transformara, Jack come­çou a descer a colina em direção ao posto.

    — Jack!— Richard gritou atrás dele. — Que diabo você está fazendo? É um deles! É o mesmo tipo de carro que havia no Colégio Thayer! O mesmo tipo de carro que havia em Pont Venuti!

    — Parkus nos mandou ir até o posto — disse Jack.

    — Não seja doido, cara! — Richard sussurrou.

    — Sei que parece uma loucura, mas acho que vai ficar tudo bem. Você vai ver. E não me chame de cara!

    A porta do Cadillac se abriu e surgiu uma perna extremamente musculosa, vestindo um brim azul desbotado. O mal-estar se converteu em franco terror quando Jack viu a ponta da bota do motorista corta­da na frente. Sem dúvida, para dar espaço a dedos enormes e cabeludos sob a meia.

    A seu lado, Richard gritou como um rato silvestre.

    Era um Lobo, tudo bem. Jack teve certeza disso antes mesmo que o sujeito se virasse. O Lobo tinha mais de dois metros de altura. Seu cabelo era comprido, revolto e não muito limpo. Os cachos emaranhados chegavam ao colarinho. E havia manchas esverdeadas na roupa. Quando o enorme vulto se virou, Jack viu um cintilar de olhos alaranjados. E de repente o terror se transformou em alegria.

    Jack disparou em direção ao sujeito, ignorando o empregado do posto que saíra para ver o que es­tava acontecendo e o olhar curioso de alguns passantes. O cabelo lhe caía esvoaçando da testa, os tênis gastos batiam com força no chão, um sorriso atordoado se abria no rosto, os olhos brilhavam como o pró­prio talismã tinha brilhado.

    Grandes macacões fabricados na América pela Oshkosh. Óculos redondos sem aro tipo John Len­non. E um enorme sorriso de boas-vindas.

    — Lobo! — Jack Sawyer gritava. — Lobo, você está vivo! Lobo, você está vivo!

    Quando estava a um metro e meio de Lobo, deu um salto na direção dele. E Lobo pegou-o com ágil facilidade, sorrindo de prazer.

    — Jack Sawyer! Lobo! Veja isso! Exatamente o que Parkus dizia! Estou aqui nesse maldito lugar que cheira como merda num pântano, e você também está aqui! Jack e seu amigo! Lobo! Incrível! Incrível! Lobo, oh, Lobo!

    Foi o cheiro que disse a Jack que aquele não era o seu Lobo, assim como foi o cheiro que disse que aquele Lobo devia ser parente do outro (e certamente parente bem próximo).

    — Conheci seu irmão de cria — disse Jack, ainda nos braços fortes, peludos, do Lobo. Agora, olhando em seu rosto, podia ver que aquele Lobo era mais velho e mais esperto. Mas, ainda assim, pare­cia amável.

    — Meu irmão Lobo — disse o Lobo, e pôs Jack no chão. Estendeu um dos braços e tocou o talismã com a ponta de um dedo. Seu rosto estava cheio de cautelosa admiração. Quando ele encostou a ponta do dedo, uma faísca cintilou e depois, como um cometa muito luminoso, mergulhou para as profundezas do globo.

    O Lobo respirou profundamente, encarou Jack e sorriu. Jack devolveu o sorriso.

    Richard agora se aproximava, contemplando os dois com espanto e prudência.

    — Nos Territórios não há só Lobos degenerados... — Jack começou.

    — Há muitos Lobos bons — Lobo interrompeu.

    Ele estendeu a mão para Richard. Richard hesitou um segundo e depois a apertou. A expressão de sua boca quando a mão foi engolida fez Jack se lembrar da fisionomia de Heck Bast ao receber a lição do velho Lobo.

    — Este é o irmão de cria do meu Lobo — disse orgulhosamente Jack.

    Richard pigarreou, não sabendo muito bem como expressar seus sentimentos pela morte do Lobo de Jack. Haveria pêsames entre os Lobos? Haveria condolências em seu ritual social?

    — Eu gostava muito de seu irmão — disse Jack. — Ele me salvou a vida. Excluindo Richard, acho que foi o meu melhor amigo. Lamento muito a morte dele.

    — Agora ele está na lua — disse o irmão de Lobo. — Ele voltará. Como a lua, Jack Sawyer, tudo desaparece. E, como a lua, tudo volta a aparecer. Vamos lá, pessoal! Vamos sair deste lugar fedorento!

    Richard parecia confuso, mas Jack compreendeu e mais do que simpatizou com a idéia; o posto de gasolina parecia cercado de um quente e oleoso aroma de hidrocarbonetos. E havia uma névoa de polui­ção, uma espécie de mortalha transparente ao redor do posto.

    O Lobo foi até o Cadillac e abriu a porta traseira como um motorista (e Jack, aliás, supunha que ele fosse exatamente isso: um motorista).

    — Jack?

    Richard parecia assustado.

    — Está tudo bem, Richard.

    — Mas para onde...

    — Para o hotel de minha mãe, eu acho — disse Jack. — Vamos atravessar o país inteiro até Arcadia Beach, em New Hampshire. Viajando de primeira classe. Vamos lá, Richie!

    Eles caminharam para o carro. No grande banco traseiro, havia um amassado e velho estojo de gui­tarra. Jack sentiu o coração saltar dentro do peito.

    — Speedy?

    Ele se virou para o irmão de cria de Lobo.

    — Speedy vai conosco?

    — Não conheço ninguém chamado Speedy — disse o Lobo. — Tive um tio chamado Speedy, mas ele morreu muito doente e coxo. Coitado, oh, Lobo, já nem conseguia acompanhar o rebanho!

    Jack apontou o estojo de guitarra.

    — De onde veio isso?

    O Lobo sorriu, mostrando uma fileira de dentes grandes.

    — De Parkus — disse ele. — E Parkus também lhe deixou outra coisa, quase ia me esquecendo...

    Tirou do bolso traseiro do macacão um postal muito velho. No postal havia um carrossel cheio de cavalos que Jack conhecia: Ella Speedy e a Dama Prateada figuravam entre eles. Em torno do carrossel, porém, havia senhoras de saias armadas, garotos de calções, homens de chapéu-coco e grandes bigodes curvados na ponta. O cartão estava seboso de tão velho.

    Jack virou o cartão e leu primeiro as palavras impressas: carrossel de Arcadia Beach, 4 de julho de 1894.

    Era Speedy — e não Parkus — quem tinha rabiscado duas frases no espaço da mensagem. A cali­grafia trêmula, irregular fora escrita com um lápis de ponta rombuda.

    Você conseguiu fazer maravilhas, Jack! Abra o estojo e use o que precisar. Guarde o resto ou jogue fora.

    Jack guardou o postal no bolso, entrou na traseira do Cadillac e acomodou-se no luxuoso assento. Um dos trincos do velho estojo da guitarra estava quebrado. Ele abriu os outros três.

    — Meu Deus! — Richard murmurou entrando depois de Jack.

    O estojo de guitarra estava apinhado de notas de 20 dólares.

     

    O Lobo levou-os para casa e, embora Jack estivesse um tanto atordoado pelos inúmeros acontecimentos daquele outono, cada momento da viagem ficaria gravado em sua memória pelo resto da vida. Ele e Richard sentaram-se na parte de trás do El Dorado e o Lobo conduziu-os dia e noite na direção do leste. O Lobo conhecia as estradas e levou-os em segurança. Às vezes, punha fitas do Creedence Clearwater Revival no toca-fitas — Correndo pela selva (Run Through the Jungle) era a música preferida —, sempre num volume que parecia dilacerar os tímpanos. Depois passava longos períodos de tempo mexendo no botão que controlava o quebra-vento e ouvindo as variações tonais do vento. Aquilo parecia deixá-lo inteiramente fascinado.

    Leste, leste, leste. Toda a manhã na direção do nascente, na direção da misteriosa penumbra azul-escura de cada alvorada (ouvindo John Fogerty e depois o vento, John Fogerty e depois o vento).

    Comeram no Stuckeys. Comeram nos Reis do Hambúrguer. Pararam no Kentucky Fried Chicken. Neste restaurante, Jack e Richard jantaram; o Lobo pediu uma refeição tamanho família e devorou todos os 21 pratos. Para arrematar, comeu também a maioria dos ossos. Jack lembrou-se de Lobo com o saco de pipocas. Onde tinha sido? Em Muncie, é claro. Nos subúrbios de Muncie, no Town Line Sixplex, um cine­ma com seis salas. Pouco depois, começariam a levar palmadas na Casa do Sol. Ele sorriu... e sentiu uma espécie de flecha penetrar em seu coração. Olhou pela janela para Richard não ver o brilho das lágrimas.

    Na segunda noite, pararam em Julesburg, Colorado. Lobo tirou da mala uma churrasqueira portátil e promoveu um enorme piquenique. Comeram à luz das estrelas, num campo nevado, enrolados em pe­sados cobertores comprados com o dinheiro do estojo de guitarra. Uma chuva de meteoros faiscou no céu e Lobo dançou na neve como uma criança.

    — Gosto muito desse sujeito — disse Richard com ar pensativo.

    — Eu também. Você devia ter conhecido o irmão dele.

    — Gostaria mesmo.

    Richard começou a recolher os restos da refeição. O que ele disse em seguida deixou Jack bastante confuso.

    — Estou esquecendo grande parte da coisa, rapaz!

    — O que está querendo dizer?

    — O que eu disse. A cada quilômetro me lembro um pouco menos do que aconteceu. Tudo está fi­cando embaçado em minha mente. E acho... acho que é isso mesmo que quero que aconteça. Olhe, você tem certeza de que sua mãe está bem?

    Jack já tentara falar com a mãe ao telefone três vezes. Não houve resposta. Mas ele não ficou muito preocupado com isso. As coisas estavam bem. Pelo menos era o que esperava. Quando chegasse a Arca­dia Beach, ela estaria à sua espera. Doente, mas ainda viva. (Pelo menos, era o que esperava.)

    — Sim.

    — Então por que ela não atende ao telefone?

    — Sloat deve ter feito alguma coisa com os telefones — disse Jack. — Algum arranjo com a recep­ção do Alhambra, pode apostar! Ela ainda está bem. Doente, mas bem. Ainda está lá. Eu sinto isso.

    — E se o poder de cura do talismã fizer efeito... — Richard fez uma careta, depois arriscou. — Se fi­zer efeito, você ainda... quero dizer, você acha que ela me deixaria... você sabe, ficar com vocês?

    — Não — disse Jack, ajudando Richard a recolher os restos do jantar. — Provavelmente, vai querer mandá-lo para um orfanato. Ou colocá-lo na cadeia. Não seja tolo, Richard! É claro que pode ficar conosco!

    — Bem... depois de tudo o que meu pai fez...

    — Foi seu pai, Richie — disse Jack com naturalidade. — Não você.

    — Mas será que você e sua mãe não vão ficar sempre me lembrando do que aconteceu? Você sabe... avivando a minha memória?

    — Não. Se quer esquecer, esqueça.

    — Eu quero, Jack. Quero mesmo.

    O Lobo se aproximava.

    — Estão prontos, garotos? Lobo, oh, Lobo!

    — Tudo em cima — disse Jack. — Escute, Lobo, que tal ouvir um pouco daquela fita do Scott Ha­milton que comprei em Cheyenne?

    — Tudo bem, Jack! E depois... Que tal um pouco de Geedence?

    — Correndo pela selva, certo?

    — Boa idéia, Jack! Pesado mesmo! Lobo, oh, Lobo/Deus gosta de pôr as garras no heavy metal!

    — É isso aí, Lobo. — Ele dirigiu os olhos para Richard. Richard olhou de volta e sorriu.

    No dia seguinte, rolaram por Nebraska e Iowa; um dia depois, passaram pelos destroços da Casa do Sol. Jack achou que o Lobo seguira aquele caminho de propósito (talvez para ver o lugar onde o irmão morrera). O Lobo colocou a fita do Creedence no volume máximo, mas Jack ainda achou que podia ou­vi-lo soluçar.

    O tempo passava — ondas de tempo fluindo no ar. Jack parecia estar quase flutuando. Havia uma sensação de leveza, triunfo, adeus... E um sentimento de dever lealmente cumprido.

    Por volta do pôr-do-sol do quinto dia, chegaram à divisa da Nova Inglaterra.

     

    O FIM DA JORNADA

    Toda a viagem da Califórnia à Nova Inglaterra pareceu ter transcorrido numa longa, mas única tarde e noite. Uma tarde que durou dias, uma noite que pareceu durar a vida toda, um período cheio de crepúsculos, música e emoções. Grandes bolas de fogo saltando sobre a terra, Jack pensava, e eu consegui realmente me livrar de todas elas. Pela segunda vez, Jack achou que passara mais meia hora de viagem; ao olhar, porém, para o pequeno relógio do painel do carro, constatou que tinham corrido três horas, três horas num piscar de olhos. E o dia? Perdera a noção também dos dias. Correndo pela selva trovejava no ar; o Lobo balançava a cabeça no compasso da música, sorrindo sempre, encontrando infalivelmente as melhores estradas. Na janela de trás, o céu se abria em grandes faixas de luz crepuscular: tons azuis, roxos e aquele vermelho particularmente profundo do pôr-do-sol. Jack seria capaz de lembrar cada detalhe daquela longa, longa jornada; cada palavra, cada refeição, cada nuance da música (Zoot Sims, John Fogerty) ou do Lobo se deliciando com os ruídos do ar. A verdadeira extensão do tempo, porém, reduzia-se em sua mente a uma concentração de diamante. Ele adormecia no confortável assento traseiro e abria os olhos na luz ou na escuridão, na luz do sol ou das estrelas. Entre as coisas de que se lembrava com particular nitidez (assim que entraram na Nova Inglaterra e o talismã voltou a brilhar, assinalando o retorno do tempo normal — ou talvez o retorno do próprio tempo) estavam os rostos de pessoas espreitando para o banco traseiro do El Dorado (pessoas em áreas de estacionamento; um marinheiro e uma moça de rosto enorme num conversível, parados no sinal de trânsito de uma cidadezinha ensolarada de Iowa; um garoto de Ohio, muito magro, passeando numa autêntica bicicleta de corridas). Talvez quisessem saber se Mick Jagger ou Frank Sinatra estavam naquele carro. Nada disso! É só a gente, pessoal! O sono continuava a levá-lo embora. Certa vez, acordou bruscamente (Colorado? Illi­nois?) sob a forte bateria do rock (Lobo estalava os dedos enquanto o carro rodava suavemente na direção de um magnífico horizonte alaranjado, roxo, azul) e viu que Richard tinha comprado um livro e lia com o auxílio da pequena luzinha lateral do Cadillac. O Livro era O romance da ciência. Sem dúvida, Richard estaria sempre a par da hora exata. Jack levantou os olhos e deixou a música, as cores da tarde transportarem-no de novo. Eles tinham conseguido, tinham feito tudo... Tudo, é claro, excluindo o que ainda precisavam fazer numa pequena e quase deserta cidadezinha balneária de New Hampshire.

    Cinco dias (ou apenas um único e longo dia) sonhando em tons de pôr e nascer do sol. Correndo pela selva... O sax-tenor de Zoot Sims dizendo: Assim foi a história, você gosta dela? Richard era seu irmão, seu irmão.

    A noção de tempo voltou durante o mágico crepúsculo do quinto dia, quando o talismã retornou à vida. Oatley, Jack pensou no sexto dia, eu podia ter mostrado a Richard o Túnel de Oatley e o que sobrou da Taberna Oatley. Eu podia ter mostrado a Lobo de que modo se chega lá...

    Mas Jack não queria ver Oatley de novo, não havia satisfação ou prazer nisso. E agora estava cons­ciente de como estavam próximos de New Hampshire, das centenas e centenas de quilômetros que ti­nham viajado enquanto ele flutuava pelo tempo como uma bóia. Já em Connecticut, Lobo os conduzia para a grande e ampla artéria da Rodovia 95. Arcadia Beach estava apenas a duas divisas de distância, no alto da costa recortada da Nova Inglaterra. De agora em diante, Jack contaria os quilômetros — e os minu­tos também.

     

    As cinco e quinze do fim de tarde de 21 de dezembro, cerca de três meses após Jack Sawyer ter ido com a cara e a coragem (e com todas as suas esperanças) para oeste, um Cadillac El Dorado preto manobrou no acesso de cascalho da Pousada dos Jardins do Alhambra, na pequena cidade de Arcadia Beach, em New Hampshire. No oeste, o crepúsculo era uma exuberante despedida com tons vermelhos e alaranjados desbotando em amarelo... em azul... em roxo. Nos jardins, as árvores estalavam os galhos secos sob um áspero vento de inverno. Até pouco tempo, havia entre elas um arbusto que pega­va e comia pequenos animais: esquilos, pássaros, o gato de pêlo brilhante e sempre esfomeado do empre­gado da recepção. Aquela pequena árvore morrera subitamente. Certas coisas que cresciam no jardim, embora esqueléticas agora, ainda molestavam a dormente vida vegetal de inverno.

    Os pneus com aro metálico do El Dorado sacolejavam, estalavam no cascalho. De dentro do carro, abafado atrás do vidro polarizado, vinha o som de Creedence Clearwater Revival. As pessoas que conhecem minha magia, John Fogerty cantava, encheram a terra de fumaça.

    O Cadillac parou defronte a grandes portas duplas. Atrás delas só havia escuridão. Os faróis se apagaram e o enorme carro estacionou na sombra, o cano de descarga ainda soltando uma fumaça bran­ca, a luz alaranjada das lanternas ainda brilhando.

    Lá estavam! No fim do dia, no pôr-do-sol, com o glorioso céu do oeste inflamado de cores.

    Lá estavam!

    Ali e agora.                         

     

    A traseira do Cadillac estava iluminada por uma luminosidade fraca, trêmula. O talismã cintilava, mas seu brilho era débil, pouco maior que o brilho de um vagalume moribundo.

    Richard virou-se lentamente para Jack. Seu rosto estava pálido e assustado. Ele agarrava Carl Sagan com ambas as mãos, esfregando o livro como uma lavadeira esfregaria um lençol.    

    O talismã de Richard, Jack pensou e sorriu.

    — Jack, você quer...               

    — Não — disse Jack. — Espere aqui.

    Jack abriu a porta traseira, começou a sair do carro, depois olhou para Richard. Ele continuava en­colhido no assento, sempre espremendo o livro. Parecia angustiado.

    Sem pensar, Jack tornou a entrar e deu um beijo no rosto de Richard. Ele pôs o braço em torno do pescoço do amigo e abraçou-o febrilmente. Depois deixou Jack sair. Nenhum dos dois disse nada.

     

    Jack dirigiu-se para os degraus que levavam ao saguão do hotel. De repente, porém, virou à direita e caminhou até a beira da estrada do jardim. Ali havia uma grade de ferro. A grade debruçava-se sobre uma rocha cheia de arestas e fendas que descia até a praia. Adiante, à direita, erguendo-se contra o céu que escurecia, achava-se a montanha-russa do Arcadia Funworld.

    Jack levantou o rosto para o leste. O vento que assolava a simetria dos jardins tirava-lhe o cabelo da testa, soprava-o para trás.

    Ele ergueu o globo, como se estivesse fazendo uma oferenda ao mar.

     

    A 21 de dezembro de 1981, um rapaz chamado Jack Sawyer estava perto do lugar onde a terra e o mar se encontram, as mãos segurando um estranho objeto, os olhos fixos na calma e cada vez mais escura superfície do Atlântico. Naquele dia, Sawyer completava 13 anos (embora nem se lembrasse disso) e parecia extraordinariamente belo. O cabelo castanho era comprido (talvez comprido demais), mas a brisa marinha o tirava da testa bonita, límpida. Estava pensando na mãe e na suíte que compartilhara com ela naquele hotel. Será que ela ia acender uma luz lá em cima? Jack suspeitava que sim.

     

    Jack se virou, os olhos faiscando de modo selvagem à luz do talismã.

     

    A mão trêmula e esquelética de Lily resvalou pela parede à procura do interruptor. Encontrou-o e acendeu a luz. Qualquer um que a visse naquele momento talvez tivesse vontade de virar o rosto. Há mais ou menos uma semana, o câncer começara a disparar dentro dela (como se sentisse que alguma coisa estava a caminho para estragar sua farra). Lily Cavanaugh já não pesava mais que 40 quilos. Sua pele, esticada como pergaminho sobre o crânio, adquirira um tom amarelo. Os círculos marrons debaixo dos olhos tinham se tornado absolutamente negros; os olhos fitavam de dentro das órbitas com uma inteligência exausta e febril. O busto tinha desaparecido. A carne dos braços também. Em suas nádegas e na parte posterior de suas coxas, começavam a surgir feridas provocadas pela longa permanência na cama.

    E não era só isso. Na semana anterior, pegara uma pneumonia.

    Em sua debilidade, ela era, é claro, uma candidata privilegiada àquela ou a qualquer outra compli­cação respiratória. Podia ter sido atingida pela doença mesmo nas melhores circunstâncias... e que, efetivamente, não eram as do hotel. Há muito os aquecedores do Alhambra tinham parado de zumbir e tilintar no meio da noite. Lily não sabia exatamente há quanto tempo; para ela, o tempo se tomara tão impreciso, tão obscuro quanto para Jack no El Dorado. Só lembrava que o calor fugira na noite em que dera um soco na janela e fizera esvoaçar a gaivota que parecia Sloat.

    Desde aquela noite, o Alhambra se tornara um congelador deserto. Uma cripta onde ela logo ia morrer.

    Se Sloat era responsável pelo que tinha acontecido ao Alhambra, sem dúvida trabalhara muito bem. Todos tinham sumido. Todos! Nos corredores não havia mais criadas arrastando seus rangentes carrinhos de limpeza. O homem da manutenção não passava mais assobiando. O sujeito de olhar hipócrita não estava mais no balcão de recepção. Por certo Sloat tinha subornado todos eles; todos tinham ido embora.

    Quatro dias atrás (quando Lily não pôde encontrar no quarto comida suficiente para satisfazer seu apetite de passarinho), levantara-se da cama e conseguira se arrastar lentamente até o elevador. Levara uma cadeira naquela expedição, que usou alternadamente para sentar, a cabeça caindo de cansaço, e como muleta. Demorou 40 minutos para atravessar os 12 metros de corredor até a porta do elevador.

    Apertou várias vezes o botão, mas o elevador não veio. Os botões nem mesmo acenderam.

    — Filho da mãe... — Lily murmurou asperamente e arrastou-se por mais seis metros até o poço da escada.

    — Ei! — ela gritou, vergando o corpo nas costas da cadeira para enfrentar um acesso de tosse.

    Talvez não tenham ouvido o grito, ela pensou, mas sem dúvida me ouviram colocar pra fora os res­tos dos meus pulmões.

    Só que não veio ninguém.

    Ela gritou de novo, gritou mais duas vezes, teve outro acesso de tosse, e depois começou a recuar pelo corredor (que parecia interminável — como uma longa reta de estrada). Não se atreveria a descer aqueles degraus. Sabia que jamais ia conseguir subi-los de novo. Além disso, por certo não encontraria ninguém lá embaixo; nem no saguão, nem no Lombo do Cordeiro, nem na cafeteria, nem em lugar algum. E os telefones estavam cortados. O telefone do seu quarto estava cortado e ela não ouvia mais um único tilintar naquele velho mausoléu. Não valia a pena descer. Perda de tempo. Ia ficar congelada de frio no saguão!

    — Jacky! — ela murmurou. — Diabo, onde você...

    Então Lily começou a tossir de novo e caiu de fraqueza no meio do ataque, puxando a feia cadeira por cima dela. Ficou estendida no chão frio por quase uma hora. Provavelmente foi aí que a pneumonia penetrou no frágil pedaço de carne em que se transformara seu corpo. Ei, aqui, grande C! Eu sou a novi­dade no pedaço! Pode me chamar de grande P! Vou ajudá-lo a alcançar a linha de chegada, está bem?

    De alguma forma, ela conseguiu voltar ao quarto, e passou a subsistir numa espiral de febre cada vez mais profunda, ouvindo a respiração ficar sempre mais alta até a mente febril começar a imaginar os pulmões como dois aquários orgânicos, onde um certo número de correntes submersas chocalhavam. Lily, porém, agüentou; agüentou porque parte de sua mente insistia em dizer com louca, frenética certeza que Jack estava a caminho, que Jack estava voltando.

     

    O início do coma final foi como uma ondulação na areia — uma ondulação que passou a girar como um redemoinho. O som de correntes submersas em seu peito transformou-se numa longa e seca exalação: Hahhhhhhh...

    Então alguma coisa tirou-a daquela espiral cada vez mais funda e obrigou-a a tatear pela parede, no frio e na escuridão, em busca do interruptor de luz.

    Lily Cavanaugh levantou-se da cama. Não tinha mais forças para fazer isso; um médico teria achado graça da idéia. Contudo, ela conseguiu. Cambaleou duas vezes sobre o colchão, mas conseguiu fi­car de pé, a boca contorcida num esgar de esforço. Tateou em direção a uma cadeira, encontrou-a, e co­meçou a oscilar pelo quarto até a janela.

    Lily Cavanaugh, Rainha das Produções B, tinha desaparecido. Aquilo era um horror caminhando no escuro, um vulto comido pelo câncer, queimando de febre.

    Ela chegou à janela e olhou para fora.

    Viu uma forma humana lá embaixo... E um globo brilhante.

    Jack!, ela tentou gritar. Mas nada escapou de sua boca além de um murmúrio rouco. Levantou uma das mãos, tentando acenar. A fraqueza

    (Haahhhhhhh...)

    caiu sobre ela. Lily agarrou-se ao parapeito.

    — Jack!

    Subitamente o globo de luz faiscou intensamente, iluminando o vulto que o segurava. Era Jack, era o rosto de Jack! Oh, graças a Deus, era Jack! Jack tinha voltado para casa!

    O vulto começou a correr.

    Jack!

    Os olhos fundos e agonizantes de Lily Cavanaugh se tornaram ainda mais brilhantes. Lágrimas cor­reram pelo rosto amarelo e tenso.

     

    — Mamãe!                                                   

    Jack atravessou correndo o saguão, e viu que a antiquada mesa da telefonista havia sido derretida e ficara escura (como se tivesse sido atingida por uma descarga elétrica). Ele tinha visto a mãe do jardim e seu aspecto era terrível; fora como contemplar a silhueta de um espantalho na janela.

    — Mamãe!

    Jack arremessou-se pelas escadas, subindo primeiro dois degraus de cada vez, depois três. O talis­mã ensaiou uma explosão de luz avermelhada e depois ficou escuro em suas mãos.

    — Mamãe!

    Disparou pelo corredor, os pés voando, e agora, por fim, ouvia a voz dela: não foi um grito estri­dente, nem um gemido gutural, foi o guincho rangente de uma criatura à beira da morte.

    — Jacky?

    — Mamãe!

    Ele irrompeu em direção ao quarto.

     

    Lá embaixo, no carro, um nervoso Richard Sloat olhou pelo vidro polarizado da ja­nela. O que ele estava fazendo ali, o que Jack estava fazendo ali? Os olhos de Richard doíam. Tiveram de fazer força para enxergar as janelas no meio da noite escura. Quando Richard se curvou para o lado e le­vantou os olhos, uma ofuscante luz branca irrompeu de várias janelas, cobrindo momentaneamente toda a fachada do hotel de uma camada deslumbrante, quase palpável, de luz. Richard pôs a cabeça entre os joelhos e gemeu.

     

    Ela estava caída no chão, embaixo da janela. A cama amarrotada, de aparência um tanto poeirenta, estava vazia; todo o quarto, desarrumado como um quarto de criança, parecia vazio... O estômago de Jack tinha se congelado e as palavras recuavam em sua garganta. Então o talismã enviou outra de suas grandes camadas de luz. Por um instante tudo dentro do quarto adquiriu uma brancura ofuscante.

    — Jacky? — Lily gemeu mais uma vez.

    — Mamãe! — ele berrou, vendo-a amassada no chão como um embrulho de doce. Ralo e grudado à cabeça, o cabelo de Lily caía sobre o tapete sujo do quarto. As mãos lembravam garras descarnadas de um pequeno animal.

    — Oh, Deus, mamãe, oh, poxa, Jesus! — Jack balbuciou e, de alguma forma, conseguiu atravessar o quarto sem dar um único passo. Num instante que lhe pareceu tão áspero quanto a imagem de um ne­gativo fotográfico, ele flutuou, nadou pelo desarrumado e congelado quarto da mãe. O cabelo formava uma poça no tapete sombrio, as mãos se fechavam ressaltando os nós afilados dos dedos.

    Jack inalou o penetrante odor de doença, de morte iminente. Jack não era médico e ignorava por que as coisas andavam tão erradas no corpo de Lily. Mas sabia que ela estava morrendo, que a vida de Lily estava se escoando por fendas invisíveis, que o tempo que lhe restava era muito pouco. Lily Cavanaugh sussurrou duas vezes o nome do filho, e isso foi praticamente tudo o que o resto de vida que ainda havia dentro dela permitiu. Já começando a chorar, Jack pôs a mão na cabeça inconsciente da mãe e pousou o talismã no chão.

    O cabelo de Lily parecia cheio de areia e a cabeça ardia de febre.

    — Oh, mamãe, mamãe! — Jack exclamou, e pôs as mãos sob ela. Ainda não pudera lhe ver o ros­to. Do outro lado do fino penhoar, a cintura estava quente como a porta de um forno. Na palma da outra mão de Jack, o ombro esquerdo pulsava com um calor igual. Ela não mais possuía camadas confortáveis de carne sobre os ossos. Por um sinistro segundo de tempo, a mãe pareceu uma criança pequena e suja, abandonada doente num quarto. Lágrimas incontroláveis começaram a correr dos olhos de Jack. Ele a er­gueu e foi como suspender uma trouxa de roupas. Jack gemeu. Os braços de Lily penderam frouxamente, desgraciosamente.

    (Richard)

    Richard também estivera... não tão mal assim, é claro, nem mesmo quando, descendo uma colina na contaminada Point Venuti, a erupção cobriu-lhe as costas de cima a baixo. Na realidade, tudo não pas­sara de um punhado de espinhas, embora ele também estivesse ardendo em febre. Jack percebeu com ex­tremo horror que, mesmo nos piores momentos, Richard tivera muito mais vida, muito mais substância do que Lily. Contudo, ela havia chamado seu nome.

    (e, no hotel negro, Richard quase morrera)

    Ela o chamara pelo nome. Jack se aferrava a esse raio de esperança. Além disso, ela conseguira chegar até a janela. E o chamara pelo nome. Era impossível, inconcebível, imoral imaginar que Lily pudes­se morrer. Um de seus braços pendia diante de Jack como um caniço cortado ao meio por uma segadeira. A aliança lhe caíra do dedo. Em sua mente, Jack gritava sem parar, sem parar.

    — Tudo bem, mamãe — disse ele. — Tudo bem, agora está tudo bem, tudo bem, tudo bem.

    Do corpo flácido veio uma vibração que podia ser de concordância.

    Ele a levou cuidadosamente para a cama, e Lily rolou sem resistência para o lado. Jack pôs o joelho na cama e inclinou-se sobre a mãe. O cabelo ralo fora repuxado do rosto de Lily.

     

    Certa vez, por um vergonhoso momento no início de sua jornada, ele vira a mãe como uma velha — uma velha acabada e exausta num pequeno restaurante. Assim que a reconheceu, a ilusão se dissipou e Lily Cavanaugh Sawyer recuperou seu antigo eu. Na realidade, a verdadeira Lily Cava­naugh parecia incapaz de envelhecer: seria eternamente uma bela loura, com um sorriso breve e um ar atrevido no rosto. Fora esta Lily Cavanaugh que proporcionara novas forças ao coração do filho Sorrin­do-lhe de um cartaz de rua.

    A mulher na cama lembrava muito pouco a atriz do cartaz. As lágrimas de Jack cegaram-no por um momento.

    — Oh, não, não, não! — ele lastimou e estendeu a palma da mão sobre a face amarela de Lily. Ela parecia estar sem forças até para mover os dedos.

    Jack pegou-lhe a mão seca, dura, descarnada.

    — Por favor, por favor, por favor, não... — falou a meia voz, num sussurro quase inaudível.

    E então Jack percebeu o esforço que aquela mulher mirrada tinha feito. Fora até a janela para pro­curá-lo, ele percebeu num grande e vertiginoso ímpeto de compreensão. Lily pressentira sua chegada. Confiara em sua volta, o que, de certa forma, devia estar relacionado ao próprio efeito do talismã sobre as pessoas. Pressentira o momento exato de seu retorno.

    — Estou aqui, mamãe — ele sussurrou. Um bolo úmido lhe transbordava do nariz. Sem cerimônia, ele o esfregou na manga do casaco.

    E de repente Jack viu que estava tremendo da cabeça aos pés.

    — Ele veio comigo — disse. Experimentou um momento de absoluto e radiante orgulho, de com­pleta gratificação. — Eu trouxe o talismã.

    Colocou suavemente a mão vergada da mãe sobre o cobertor.

    No chão, ao lado da cadeira (onde Jack o pousara de forma igualmente suave), o talismã continua­va a brilhar. Mas sua luminosidade parecia débil, hesitante, enevoada. Ele tinha curado Richard fazendo o globo rolar por toda a extensão de seu corpo; fizera o mesmo com Speedy. Mas talvez agora tivesse de agir de forma diferente. Pressentia isso, mas não tinha a menor idéia do que fazer.

    Não podia quebrar o talismã, nem mesmo para salvar a vida da mãe; disso tinha certeza.

    O interior do talismã foi lentamente se inundando de uma brancura enevoada. Depois as nuvens foram se fundindo e produziram uma luz mais firme e uniforme. Então Jack colocou as mãos sobre o glo­bo e ele emitiu uma ofuscante camada de luz. Arco-íris! Um feixe de arco-íris que parecia quase falar. Enfim!

    Jack atravessou o quarto em direção à cama, o talismã derramando luz do chão à parede, da pare­de ao teto, iluminando exuberantemente, feericamente, a cama.

    Assim que ele chegou à cama da mãe, a textura do talismã pareceu se alterar sutilmente sob seus dedos. A dureza vítrea transformou-se de alguma forma, tornou-se menos escorregadia, mais porosa. As pontas dos dedos pareceram quase mergulhar no talismã. A névoa que havia dentro dele ferveu e ficou escura.

    Nesse momento, Jack experimentou uma forte (na realidade, apaixonada) sensação que, muito tempo atrás, quando atravessou pela primeira vez para uma tímida caminhada nos Territórios, lhe parece­ria inteiramente absurda. Ele sabia que, de alguma forma imprevisível, o talismã, o objeto que custara tan­to sangue e provocara tanta confusão, ia se modificar. Ia se alterar para sempre, e ele, Jack, ia perdê-lo. O talismã não seria mais seu. A superfície do globo estava ficando estranhamente embaçada; e toda aquela bonita superfície cheia de linhas começava a amolecer. O que agora suas mãos tocavam não parecia vi­dro, mas plástico em processo de aquecimento.

    Mais que depressa, Jack colocou o talismã nas mãos da mãe. O próprio talismã saberia o que fazer; afinal, estava destinado àquele momento. Fora criado, em alguma forja fantástica, para responder às exi­gências daquele momento específico (e talvez de nenhum outro).

    Ele não tinha a menor idéia do que devia esperar. Uma explosão de luz? Um cheiro de remédio? A grande explosão da criação do mundo?

    Nada aconteceu. A mãe continuou imóvel, e ostensivamente morrendo.

    — Oh, por favor — Jack deixou escapar. — Por favor, mamãe, por favor...

    E então a respiração congelou em seu peito. Uma ranhura, uma das linhas verticais do talismã, ti­nha se aberto silenciosamente. Uma camada tangível de luz escoou do interior do globo e se concentrou como poça nas mãos de Lily. Do interior embaçado do globo, agora macio, em processo de esvaziamento, uma quantidade cada vez maior de luz continuava a escapar pela fenda. Do lado de fora do hotel, veio um súbito e alto chilreio de pássaros, comemorando, talvez, a existência da vida.

     

    Mas Jack estava apenas vagamente consciente desse canto. Sem respirar, incli­nou-se sem fôlego para a frente e contemplou o talismã fluir para a cama da mãe. Um brilho enevoado jorrava do globo. Faíscas e centelhas de luz o inflamavam. Os olhos de Lily se apertaram.

    — Oh, mamãe — ele sussurrou. — Oh...

    Uma luz cinza e dourada fluiu pela abertura do talismã e subiu nevoentamente pelos braços de Lily. O seu rosto amarelo e enrugado franziu muito ligeiramente.

    Jack farejou alguma coisa...

    (O quê?)

    (Música?)

    A nuvem cinza e dourada do centro do talismã ia se estendendo sobre o corpo de Lily, cobrindo-a de uma membrana transparente, mas ligeiramente opaca, que se movia com suavidade. Jack contemplou aquele tecido fluido deslizar pelo lastimável peito da mãe, chegando até as pernas descarnadas. Da ra­nhura aberta no talismã, além da nuvem cinza e dourada, escapava um aroma muito agradável, um aroma ao mesmo tempo doce e selvagem, de flores e terra, um cheiro bom, penetrante; cheiro de nascimento, Jack pensou, embora nunca tivesse assistido a um verdadeiro nascimento. Jack sorveu aquele cheiro e, no meio de sua admiração, foi presenteado com a idéia de que ele, Jacky Sawyer, estava nascendo naquele exato instante. E então imaginou, com um choque quase imperceptível de reconhecimento, que a abertu­ra no talismã era como uma vagina. (Jack, é claro, nunca vira uma vagina, e não tinha mais que uma no­ção muito rudimentar de sua estrutura.) Olhou diretamente para a ranhura aberta no distendido e frouxo talismã.

    Pouco depois, tomou consciência do incrível alarido, de certa forma misturado com uma débil me­lodia, dos pássaros do lado de fora das janelas escuras.

    (Música? O que....)

    Uma pequena bola colorida cheia de luz disparou pelo campo de sua visão. A bola faiscou na ra­nhura, depois continuou a girar sob a nevoenta superfície do talismã, mergulhando cada vez mais para o cambiante e gasoso interior do globo. Jack piscou. Outra bola seguiu a primeira, e dessa vez ele teve tem­po de observar que naquela minúscula esfera havia manchas azuis, marrons e verdes, contornos de conti­nentes e minúsculas cadeias de montanhas. Ocorreu a Jack que naquele mundo em miniatura haveria ou­tro atônito Jack Sawyer contemplando outra pequenina esfera, uma esfera do tamanho de um ponto, e na­quela esfera do tamanho de um ponto haveria outro Jacky, do tamanho de um grão de poeira, contem­plando outro pequeno mundo, dessa vez do tamanho de um átomo. Outro mundo se seguiu aos dois pri­meiros, girando, ondulando entre os nublados movimentos do talismã.

    Lily moveu a mão direita e gemeu.

    Jack começou a chorar copiosamente. Ela ia viver. Agora ele sabia disso. Tudo funcionara como Speedy dissera. O talismã estava forçando a vida a retornar ao corpo da mãe dominado pela enfermidade, exausto. O talismã estava matando o mal que a destruía. Ele se inclinou para a frente, por um momento quase cedendo à imagem de si mesmo beijando o talismã, uma imagem que tomara conta de sua mente. Os aromas de jasmim, hibisco e terra revolvida lhe encheram as narinas. Uma lágrima rolou pela ponta de seu nariz e brilhou como uma jóia entre os feixes de luz do talismã. Jack viu um cinturão de estrelas passar flutuando pela fenda e um esplêndido sol amarelo nadar pelo vasto espaço negro. O talismã, o quarto, o mundo lá fora pareciam se encher de música. Um rosto de mulher, o rosto de uma estranha, atravessou a abertura. Depois rostos de crianças e rostos de outras mulheres... As lágrimas rolaram com mais intensida­de pelo rosto de Jack quando ele viu o rosto da mãe flutuando no talismã: feições ternas, confiantes, atrevidas de uma rainha de mais de 50 filmes sem grandes pretensões. E quando viu seu próprio rosto flutuando entre todos os mundos e vidas que brotavam do talismã, Jack Sawyer achou que ia explodir de êxtase, de arrebatamento. Teve a impressão de se expandir. Respirava pura luz.

    E por fim tomou consciência dos ruídos de assombro à sua volta quando, em não mais de dois abençoados segundos, Lily abriu os olhos...

    (Abriu os olhos para despertar como os pássaros, para despertar com os mundos contidos no talismã. Jack ouviu sons de trombones e trompetes, gritos de sax, vozes combinadas de rolas, rãs e pombas cantando: As pessoas que conhecem minha magia encheram a terra de fumaça. Jack ouviu vozes de lobos fazendo wolfmusic na lua. A água batia no casco do navio e uma barbatana de peixe batia na superfície de um lago. Um arco-íris batia no chão e um guri viajante batia uma gota de cuspe na palma da mão para saber o caminho a seguir. E a mãe batia num bebê e o bebê fazia uma careta e abria o berreiro. E Jack ouviu o vozerio de uma orquestra tinindo seus metais do fundo da alma. E o quarto se encheu da espiral de fumaça de uma voz solitária subindo de tom, subindo, subindo de tom por toda aquela pilha aleatória de som. Caminhões engrenavam marchas e marchas, apitos tocavam nas fábricas e, em algum lugar, um pneu explodia, fogos de artifício se abriam num assobio, um amante sussurrava outra vez, está bem?, um garoto fazia uma travessura e a voz subia de tom, subia de tom e, por um momento, Jack achou que não estava conseguindo ver mais nada — mas depois tomou consciência de que podia enxergar muito bem.)

    Os olhos de Lily se arregalaram. Encararam o rosto de Jack com uma sobressaltada expressão tipo “Ei, pessoal, eu estou aqui!”. Era a expressão de um recém-nascido que acabou de chegar ao mundo. Então Lily estremeceu, iniciou uma respiração ofegante...

    ... e um rio de mundos, de universos e galáxias inclinadas brotou do talismã. Brotou numa torrente de cores de arco-íris. E o rio correu para a boca e para o nariz de Lily... E o rio se instalou, cintilante, na palidez do corpo de Lily. Oscilou como orvalho e deixou-se absorver pelos poros. Por um instante a mãe de Jack ficou envolvida de radiância...

    ... por um momento sua mãe foi o talismã.

    Toda a enfermidade fugiu de seu rosto. Não aconteceu à maneira de uma seqüência de fusões num filme. Aconteceu imediatamente. Aconteceu instantaneamente. Num momento, ela estava doente; no momento seguinte, estava boa. Um corado tom de saúde lhe floresceu nas faces. O cabelo ralo, espigado, tornou-se bruscamente cheio, macio, exuberante, de um escuro tom de mel.

    Seus olhos encontraram os do filho.

    —  Oh... oh... meu deus... — Lily sussurrou.

    A radiância de arco-íris começava a se desbotar — mas a saúde ficara.

    — Mamãe?

    Jack inclinou-se para a frente. Alguma coisa se amassou como celofane sob seus dedos. Era o quebradiço, o frágil murchar do talismã. Ele o pousou na mesa-de-cabeceira. Empurrou vários vidros de re­médio para fazer isso. Alguns caíram no chão e quebraram, mas não fazia mal. A mãe não precisaria mais de remédios. Jack depositou o que restara do talismã com delicadeza e reverência, suspeitando — ou me­lhor, sabendo — que mesmo aquela sobra logo desapareceria.

    A mãe sorriu. Foi um sorriso fascinante, cheio de alegria. Foi um sorriso um tanto espantado tam­bém: Alô, mundo, eu estou aqui de novo! O que você acha disso?

    — Jack, você voltou para casa — ela disse por fim, e esfregou os olhos para ter certeza de que não se tratava de uma miragem.

    — É claro — disse Jack. Ele tentou sorrir. E não deixou de ser um sorriso irradiante, apesar das lá­grimas que não paravam de cair pelo seu rosto. — É claro que voltei.

    — Estou me sentindo... muito melhor, Jacky.

    — É mesmo? — Ele sorriu, esfregou os olhos molhados com as palmas das mãos. — Isso é ótimo, mamãe!

    Seus olhos estavam radiantes.

    — Me abrace, Jacky.

    No quarto andar de um deserto hotel de veraneio da minúscula costa de New Hampshire, um garo­to de 13 anos chamado Jack Sawyer inclinou-se para a frente, fechou os olhos e, sorrindo, deu um forte abraço na mãe. Sua vida habitual de escola, jogos e música, uma vida onde havia deveres de casa a fazer e claros lençóis entre os quais deslizar na hora de dormir, a vida comum de um garoto de 13 anos (se é que a vida de um garoto dessa idade, com todo o colorido de seu alvoroço, pode ser considerada comum) ti­nha voltado a lhe pertencer. Isso também era obra do talismã. Quando Jack se lembrou de virar a cabeça e procurá-lo, o talismã sumira.

     

    Num quarto branco e tumultuado, cheio de mulheres ansiosas, Laura DeLoessian, Rainha dos Ter­ritórios, abriu os olhos.

 

                                                                                            Peter Straub e Stephen-King

 

 

                      

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